Você está na página 1de 315

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE FILOSOFIA
DOUTORADO EM FILOSOFIA

O TEMPO DO FIM:
DIÁLOGO E ANTÍTESE NO USO DO MESSIANISMO PAULINO
PELA FILOSOFIA DE GIORGIO AGAMBEN

Pedro Lucas Dulci Pereira

Goiânia
2020
2
3
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE FILOSOFIA
DOUTORADO EM FILOSOFIA

O TEMPO DO FIM:
DIÁLOGO E ANTÍTESE NO USO DO MESSIANISMO PAULINO
PELA FILOSOFIA DE GIORGIO AGAMBEN

Tese apresentada à Banca Examinadora como


requisito parcial para a obtenção do título de Doutor
em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás,
sob a orientação da Prof.a Dr.a Adriana Delbó.

Pedro Lucas Dulci Pereira

Goiânia
2020

4
5
6
7
Agradecimentos

A conclusão da presente pesquisa é uma das consequências de toda a jornada de formação filosófica
que foi iniciada há mais de 12 anos na Universidade Federal de Goiás. Estou absolutamente consciente de
que tal feito não seria possível sem a colaboração de diversas pessoas que gostaria de agradecer formalmente
aqui.
Em primeiro lugar, e de uma maneira muito especial, à professora Adriana Delbó que em sua
generosidade me permitiu caminhar ao seu lado por tantos anos para aprender as competências filosóficas
mais fundamentais que tenho certeza que carregarei por toda a minha vida. Seu olhar rigoroso me ensinou a
fazer as perguntas certas aos textos e interlocutores intelectuais, nunca me deixando assumir nada como
óbvio e imune ao questionamento filosófico. Seu suporte constante é indispensável para mim. Obrigado,
minha querida amiga!
Também sou imensamente devedor do trabalho dos professores Adriano Correia Silva, Carmelita
Brito de Freitas Felício e Helena Esser dos Reis que me inspiraram em cada aula a trilhar os caminhos da
pesquisa em ética e filosofia política. O empenho que despendiam em cada aula e a generosidade de
compartilharem a própria rotina pessoal foi fundamental para me moldar enquanto aprendiz. Em especial,
serei eternamente grato a minha amiga Carmela, que um dia entrou em sala de aula e me entregou um livro
de Giorgio Agamben, determinando os rumos das minhas leituras por toda a próxima década. Muito
obrigado, minha querida!
É importante registrar aqui também minha imensa gratidão aos professores Castor Bartolomé Ruiz,
Marcio Gimenes de Paula e Oswaldo Giacoia Jr., que aceitaram com pronta generosidade ler e contribuir
com meu trabalho. Sem exceção, cada um de vocês sempre foi uma inspiração e responsável por importantes
momentos de aprendizado, seja nas leituras de artigos acadêmicos ou nas conversas entre congressos. Não
poderia ter honra maior para mim do que tê-los como leitores finais de meu trabalho. Obrigado por mais um
momento de crescimento!
Sou profundamente grato pela bolsa de estudos que recebi da John Templeton Foundation para
custear minha estadia na Universidade Livre de Amsterdã, sob a orientação do professor Gerrit Glas. Meu
tempo na Holanda foi marcado pelo encantamento com a proficuidade que a tradição holandesa de filosofia
reformacional tem. O rigor e a profundidade nas aulas e seções de orientação com o professor Glas me
deixaram convicto de como ainda existem muitos diálogo importantes com os holandeses que precisam ser
estabelecidos também aqui no Brasil. O acolhimento do professor Glas sempre será motivo de gratidão e
deixará muita saudade!
Por fim, não poderia deixar de dizer como sou eternamente grato à minha família. O apoio e a
confiança constantes dos meus pais, Albino José e Solange Dulci, foram devidamente continuados pela
minha esposa Carolinne Borges e meu filho Benjamim Dulci. Nenhuma página dessa tese poderia ter sido
escrita sem que cada um deles também não tivesse cedido generosamente sua vida aos meus projetos
acadêmicos. Serei devedor eterno de cada período dos dias que os privei de minha presença para completar
meus compromissos universitários. Quanto a isso, ninguém mais do que a Carol merece minha admiração e
gratidão. Nunca perderei de vista que para que eu pudesse alcançar qualquer conquista pessoal, ela se
sacrificou pessoalmente para oferecer-me o melhor. Muito obrigado, meu amor, você tem um espírito
grande!
A Deus a glória pela vida de cada uma das pessoas maravilhosas que escreveram com o fio da
própria existência parte da história que esse trabalho é um dos frutos.

8
Para resumir tudo o que eu gostaria de ter dito a vocês sobre esse ponto, poderíamos
dizer o seguinte. No fundo, a razão de Estado, como vocês se lembram, havia posto
como primeira lei, lei de bronze da governamentalidade moderna e, ao mesmo tempo,
da ciência histórica, que agora o homem deve viver em um tempo indefinido.
Governo sempre haverá, o Estado sempre estará aí e não esperam por uma parada. A
nova historicidade da razão de Estado excluía o Império dos últimos tempos, excluía o
reino da escatologia. Contra esse tema que foi formulado no fim do século XVI e que
ainda permanece hoje em dia, vamos ver se desenvolverem contracondutas que terão
precisamente por princípios afirmar que virá o tempo em que o tempo terminará, que
têm por princípio colocar a possibilidade de uma escatologia, de um tempo último, de
uma suspensão ou de um acabamento do tempo histórico e do tempo político, o
momento, por assim dizer, em que a governamentalidade indefinida do Estado será
detida e parada por o quê? Pois bem, pela emergência de algo que será a própria
sociedade. No dia em que a sociedade civil puder se emancipar das injunções e das
tutelas do Estado, quando o poder de Estado puder enfim ser absorvido por essa
sociedade civil – essa sociedade civil que eu procurei lhes mostrar como nascia na
própria forma, na própria análise da razão governamental –, com isso, o tempo, se não
da história, pelo menos da política, o tempo do Estado terminará. Escatologia
revolucionária que não parou de atormentar os séculos XIX e XX. Primeira forma de
contraconduta: a afirmação de uma escatologia em que a sociedade civil prevalecerá
sobre o Estado.

Michel Foucault
Sécurité, territoire et population

[Deus] nos revelou o mistério da sua vontade, de acordo com o seu bom propósito
que ele estabeleceu em Cristo, isto é, de fazer convergir [anakephalaiōsasthai] em
Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na dispensação [oikonomian] da
plenitude [plērōmatos] dos tempos [kairōn].

Paulo de Tarso
Epístola aos Efésios (1.9-10).

esse versículo [Ef 1.9-10] é realmente carregado de significado até o ponto de


explodir, tão carregado que se pode dizer que alguns textos fundamentais da cultura
ocidental — a doutrina da apocatástase em Orígenes e Leibniz, a da retomada em
Kierkegaard, o eterno retorno em Nietzsche e a repetição em Heidegger — não são
senão fragmentos resultantes da sua explosão.

Giorgio Agamben
Il tempo che resta: un commento ella Lettera ai Romani

é o próprio Messias quem leva toda a disputa ao terreno jurídico quando decide
confrontar a lei judia. E, por outro lado, em que outros termos, que não sejam os da
política e do direito, se pode falar acerca de um Rei?

Fabian Ludueña Romandini


La comunidad de los espectros I: Antropotecnia
9
Resumo
A presente tese tem como seu objetivo principal defender a importância política do tema messiânico do tempo do fim.
Ao contrário da superficialidade das relações traçadas entre tempo e política pelos defensores das teses sobre o fim da
história, essa formulação sobre o significado político do tema messiânico do tempo do fim, é oriunda das análises em
ética e filosofia política da obra do filósofo italiano, Giorgio Agamben e o diálogo que estabelece com a tradição
teológica e filosófica ocidental. Quanto a esse tema, nossa argumentação no presente trabalho percorrerá o seguinte
caminho. Em primeiro lugar, dedicaremos o primeiro capítulo a uma arqueologia do modo de governar infinitamente os
indivíduos, característico de nossa contemporaneidade política. A pergunta chave nesse primeiro capítulo será, portanto,
por que a política foi transformada em mera gestão dos corpos? Com o auxílio de uma relação temática estabelecida
com alguns cursos ministrados por Michel Foucault no College de France, procuraremos defender a leitura
agambeniana do estado de ocaso em que se encontra a ética e a política contemporânea. Tentaremos deixar evidente que
a configuração política atual não diz respeito apenas ao que Foucault chamou de governamentalidade moderna, como
também às argumentações de Agamben sobre a necessidade de louvor e glória para o funcionamento indeterminado da
máquina política. Em segundo lugar, nos concentraremos propriamente dito no tema messiânico do tempo do fim, em
sua formulação paulina como uma estratégia de Agamben para responder toda a situação política e jurídica de nosso
tempo descrita no primeiro capítulo. Nosso objetivo no segundo capítulo, portanto, será o de argumentar que a
utilização, por parte de Agamben, de paradigmas teológicos advindos das epístolas de Paulo de Tarso, apresenta-se
como uma alternativa intelectual profícua para munir seus leitores de um repertório teórico que não seja subalterno às
teses do fim da história – e que tenha condições de operar uma renovação em nosso quadro de categorias e conceitos de
uma forma que abra a possibilidade de novos usos livres dos componentes indispensáveis para a filosofia política e a
ética no mundo contemporâneo. A recuperação desses paradigmas teológicos significará perguntar-se de maneira geral
por que Paulo de Tarso é importante para a filosofia contemporânea e, especificamente, por que ele é importante para a
filosofia de Agamben. Por fim, no terceiro capítulo, procuraremos fazer uma avaliação crítica do conteúdo mesmo das
teses agambenianas tentando responder à pergunta por que é difícil ser agambeniano? Com essa pergunta, procuraremos
explicitar os desafios que são inerentes às possibilidades de usos dos paradigmas paulinos para os desafios políticos,
bem como a dificuldade de lidar com as longas linearidades que o filósofo italiano estabelece a partir de suas
representações do tempo vivido no messias. Através de uma leitura criteriosa de alguns pilares metodológicos no
pensamento do filósofo italiano, acreditamos que será possível mostrar não só as contribuições, mas também os limites
de seu projeto intelectual. Portanto, essa tese estabelece tanto o diálogo, quanto a antítese com o uso que Agamben faz
das temáticas messiânicas formuladas pelo apóstolo Paulo. Acreditamos que com essa argumentação, bem como com as
conclusões que alcançamos, teremos condições de contribuir para um tema pouco explorado, tanto enquanto uma
chave-hermenêutica da filosofia de Agamben, como um paradigma para a renovação dos quadros referências da
filosofia política e ética contemporânea. Com isso, procuramos oferecer uma contribuição original aos estudos
agambenianos no território brasileiro.

Palavras-chave: biopolítica; messianismo; Paulo; paradigma; história; Agamben

10
Abstract
This work has as its main objective to defend the political importance of the messianic theme of the time of the end.
Unlike the superficiality of relations established between time and politics by the advocates of the thesis about the end
of history, this formulation of the political significance of the messianic theme of the time of the end, comes from the
analysis in ethics and political philosophy of the work of Italian philosopher Giorgio Agamben, and the dialogue he
establishes with the Western theological and philosophical tradition. Regarding this theme, our arguments in the present
work will take the following path. First, we will dedicate the initial chapter to an archeology of the way of governing
infinitely individuals, characteristic of our political contemporaneity. The key question in this first chapter is, therefore,
why has politics been transformed into mere body management? With the help of a thematic relationship established
with some courses taught by Michel Foucault at the Collège de France, we will seek to defend the Agambenian reading
from the state of decline in which contemporary ethics and politics are found. We will try to make it clear that the
current political configuration does not only concern what Foucault called modern governmentality, but also Agamben's
arguments about the need for praise and glory for the undetermined functioning of the political machine. Second, we
will focus itself in the messianic theme of the time of the end, in his Pauline formulation, as a Agamben’s strategy to
address to the legal and political situation of our time described in the first chapter. Our objective in the second chapter,
therefore, will be to argue that the use, by Agamben, of theological paradigms arising from the epistles of Paul de
Tarsus, presents itself as a useful intellectual alternative to equip his readers with a theoretical repertoire that be
subordinate to the end-of-history theses – and be able to carry out a renewal in our framework of categories and
concepts in a way that opens up the possibility of new free uses of the essential components for political philosophy and
ethics in the contemporary world. The recovery of these theological paradigms will mean asking ourselves in general
terms why Paul de Tarsus is important for contemporary philosophy and, specifically, why he is important for
Agamben's philosophy. Finally, in the third chapter, we will try to make a critical assessment of the content of the
Agambenian theses, trying to answer the question why is it difficult to be an Agambenian? With this question, we will
try to explain the challenges that are inherent in the possibilities of using the Pauline paradigms for political challenges,
as well as the difficulty of dealing with the long linearities that the Italian philosopher establishes from his
representations of the time lived in the messiah. Through a careful reading of some methodological pillars in the
philosophy of the Italian thinker, we believe that it will be possible to show not only the contributions, but also the
limits of his intellectual project. Therefore, this thesis establishes both the dialogue and the antithesis with the use that
Agamben makes of the messianic themes formulated by the apostle Paul. We believe that with this argument, as well as
with the conclusions we reached, we will be able to contribute to a little explored theme, both as a key-hermeneutics of
Agamben's philosophy, as a paradigm for the renewal of the frameworks of contemporary political and ethical
philosophy. With that, we try to offer an original contribution to the agambenian studies in the Brazilian territory.

Keywords: biopolitics; messianism; Paul; paradigm; history; Agamben

11
Soli Deo Gloria

12
Sumário

INTRODUÇÃO – Do fim da história à história do fim.......................................................................15

CAPÍTULO 01 – Genealogia do governo infinito dos homens: por que a política se transformou
em gestão?................................................................................................................................................30

1.1. Foucault e Agamben: ressonâncias messiânicas................................................................................32


1.1.1. O governo infinito da população: Foucault e a governamentalidade moderna................33
1.1.2. A glória da máquina política: o porquê do poder precisar de louvor..............................38
1.1.3. Inoperosidade e fim da história: do homo oeconomicos ao homo sabaticus....................53

1.2. Pilatos e Jesus: uma parábola do nosso tempo..................................................................................61


1.2.1. Quem matou Jesus? A estrutura de um processo jurídico que não chega ao fim.............63
1.2.2. Quem pode interromper a crise infinita? Um antigo debate teológico-político..............80
1.2.3. Quem interpreta nosso tempo? A crise infindável como instrumento do poder...............96

CAPÍTULO 02 – O escritório escatológico do Ocidente: por que o apóstolo Paulo é importante


para a política?......................................................................................................................................105

2.1. A filosofia que vem: Agamben leitor de Paulo...............................................................................114


2.1.1. Por que Paulo é importante para a filosofia contemporânea?.......................................117
2.1.2. Por que Paulo é importante para a filosofia de Agamben?............................................132

2.2. Vivendo no tempo do fim: temporalidade messiânica e des-confiança nas obras da lei................145
2.2.1. O tempo que resta: a estrutura histórico-escatológica do tempo messiânico.................147
2.2.2. A des-confiança nas obras da lei: divisão messiânica e inoperosidade da lei pela fé....163

2.3. O poder que freia: a comunidade messiânica e o governo imperial................................................180


2.3.1.“Como se não”: a transformação das vocações mundanas na comunidade messiânica..185
2.3.2. O mistério da iniquidade: a Igreja e o poder que freia em tensão na história.................211

CAPÍTULO 03 – O messianismo sem Messias: por que é difícil ser agambeniano?......................225

3.1. A dificuldade de utilizar longas linearidades históricas................................................................233


3.1.1. Sobre as novas representações históricas para os desafios políticos.............................235
13
3.1.2. Dificuldades com as novas representações históricas para os desafios políticos..........246

3.2. A dificuldade de utilizar paradigmas sem substância....................................................................254


3.2.1. Possibilidade com usos dos paradigmas paulinos nos desafios políticos........................256
3.2.2. Dificuldades com usos dos paradigmas paulinos nos desafios políticos.........................271

CONCLUSÃO – O messias está às portas?.......................................................................................296

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................307

14
Introdução – Do fim da história à história do fim

A história como nós a conhecemos é um conceito cristão.

Giorgio Agamben
Il mistero del male. Benedetto XVI e la fine dei tempi

Teses sobre o fim da história

Na filosofia política contemporânea, uma tendência recorrente foi a de defender que a


história chegou ao fim. Uma das primeiras argumentações notórias nessa direção foi apresentada
por Daniel Bell, em 1960. Para o sociólogo estadunidense, depois do fim da Segunda Guerra
Mundial as ideologias, tal como eram articuladas para entender as plataformas políticas, não eram
mais conceitos relevantes para pensar o cenário político atual. Com o novo período pós-guerra, elas
seriam substituídas por um consenso generalizado de tal forma que, a partir de então, as pautas
públicas seriam decididas exclusivamente por parecer técnico (cf. BELL, 1960, p. 393-407). Parte
dessa mudança se deu, justamente, com a prosperidade econômica que uma parcela do globo
começaria a experimentar, bem como do crescimento das expectativas que o mercado capitalista
conseguiria resolver as questões de distribuição de bens que outrora era a esperança socialista. Em
um cenário assim, acreditava-se que posturas meramente administrativas seriam suficientes para
gerir uma sociedade que havia sido transformada em uma grande classe média. A publicação do
livro The End of Ideology: On the Exhaustion of Political Ideas in the Fifties, foi um dos principais
sintomas que estávamos, definitivamente, em um novo momento histórico em que a política foi
eclipsada e transformada em mero governo.
Sabemos que toda essa confiança na gestão pública pelos técnicos da burocracia
governamental foi rapidamente frustrada. Nos Estados Unidos, por exemplo, a política interna do
presidente Lyndon Johnson, apesar do momentâneo sucesso do “tratamento Johnson” nos estímulos
econômicos e sociais, resultou em um fracasso final marcado por insurreições sociais em vários
lugares. Na verdade, o fiasco de tais práticas governamentais foi um dos motivos, não só do

15
aparecimento, mas da consolidação da nova esquerda [new left] como alternativa desejável no
cenário de discussão e prática política.
A despeito das novas demonstrações de que era necessária uma discussão séria a respeito do
papel das ideologias na direção das práticas governamentais, uma geração depois dos escritos de
Daniel Bell surgiu a aposta mais radical no fim da história. A publicação do livro The End of
History and the Last Man, de Francis Fukuyama, em 1992, tornou-se o manifesto de uma época
para a governamentalidade liberal. Uma vez que as brutalidades da Guerra Fria já havia se tornando
dados dos livros de história, Fukuyama se sentia a vontade em argumentar que a história tinha
chegado ao fim. Apesar da sucessão temporal de dias e noites não ser alterada, Fukuyama utilizou a
interpretação de Hegel feita por Alexandre Kojève para defender que aquele contínuo conflito entre
diferentes ideias que a história conheceu, alcançou seu ponto final na evolução ideológica e que,
portanto, fez com que a história chegasse ao fim. Nas suas palavras:

Tanto para Hegel quanto para Marx a evolução das sociedades humanas não era
ilimitada. Mas terminaria quando a humanidade alcançasse uma forma de sociedade
que pudesse satisfazer suas aspirações mais profundas e fundamentais. Desse modo,
os dois autores previam o ‘fim da História’. Para Hegel seria o estado liberal,
enquanto para Marx seria a sociedade comunista (FUKUYAMA, 1992, p. 12).

Em outras palavras, o que Fukuyama está argumentando aqui é que, paralelamente às


especificidades de cada um dos projetos ideológicos — sejam eles socialistas ou liberais — existe
um denominador comum no que se refere à temporalidade política. O desenrolar da sua história não
seria na forma de uma linearidade infinita, mas encontraria um fim. No caso específico da
contemporaneidade, a humanidade poderia celebrar a queda do muro de Berlim como a derrota final
do comunismo e o início de uma nova maneira de enxergar o tempo em que a diversidade
ideológica seria substituída pela uniformidade da combinação burguesa de democracia com
liberalismo — que transformaria todos os acontecimentos sociais em mais do mesmo. A partir
daquele momento, o que outrora foram preocupações distintamente políticas, agora são questões
muito técnicas para serem geridas pelas tecnologias de governo.
Não é nossa intenção fazer aqui um catálogo das defesas notórias pelo fim da história. Para
os propósitos dessa introdução, o que nos chama atenção nessas diferentes apostas sobre esse fim, é
a prematura relação que elas estabelecem entre fim da história e a obsolescência das ideologias. É
um tanto irônico ler que chegamos ao fim da linha ideológica em razão da fragmentação de um
bloco ideológico hegemônico na Guerra Fria e a permanência de outro. De forma alguma esse fato
ajuda a sustentar a argumentação pelo fim da história. Antes o contrário, parece que Bell e
Fukuyama apenas evidenciam que os seus comprometimentos com arranjos ideológicos específicos
tendem a impor padrões simplistas às complexidades das relações sociais. Quem identificou e
16
elaborou com precisão esse ponto fraco de alguns discursos sobre o fim da história foi o cientista
político estadunidense David T. Koyzis dizendo-nos o seguinte:

Os que tocam a marcha fúnebre da ideologia via de regra já caíram nos laços de uma
visão de mundo que filtra sua percepção da esfera política, embora eles tipicamente
relutem em rotular essa visão e mundo como uma forma de ideologia. Bell e
Fukuyama não são, na verdade, profetas de uma nova ordem social despida de
compromissos ideológicos; simplesmente estão prevendo o triunfo de sua própria
ideologia favorita, no caso, uma combinação de liberalismo e democracia,
potencializada pela orientação tecnocrata dos cientistas sociais (KOYZIS, 2014, p.
19).

Essas palavras de Koyzis nos ajudam a lançar novas luzes, não só sobre os acontecimentos a
partir de 1989, como também nas motivações de muitas teses sobre o fim da história. Em vez de
presenciarmos o raiar de uma nova era, livre de variações ideológicas pelo fim de sua evolução
histórica, o que temos é a defesa retumbante das promessas de redenção que uma ideologia
particular traz consigo. O próprio Fukuyama não se preocupa em esconder isso quando assume que:
“a democracia liberal continuaria como a única aspiração política corrente que constitui o ponto de
união entre regiões e cultura diversas do mundo todo” (FUKUYAMA, 1992, p. 12).
Junto à queda do muro de Berlim não assistimos blocos ideológicos hegemônicos
desaparecerem abrindo as cortinas do fim da história. Em oposição a isso, o que realmente
testemunhamos foi fragmentarem-se nas diversas propostas ideológicas à disposição do pensamento
político contemporâneo — desde o nacionalismo étnico e o radicalismo islâmico até as atuais
políticas de identidade (cf. KOYZIS, 2014, p. 17). Nesse sentido, se realmente quisermos entender a
relação entre temporalidade e política, precisamos prescindir das meras discussões entre as
preferências ideológicas para caminharmos rumo a uma abordagem mais completa no tratamento
dessa questão.

Uma tese sobre a história do fim

Se realmente não estivermos convencidos da relação estabelecida entre fim da história e o


início de uma era pós-ideológica, precisamos recolocar a pergunta sobre o que realmente está no
núcleo desse eclipse pela qual a política passou na modernidade, transformando-a em mero
governo. Vale ressaltar que não é algo simples esquivar-se das teses de Fukuyama na prática
política cotidiana. Quanto a isso, é relevante a constatação do filósofo esloveno Slavoj Žižek
quando ele nos provoca dizendo: “é fácil zombar da ideia do ‘fim da história’ de Francis Fukuyama,
mas hoje a maioria é fukuyamista: o capitalismo liberal-democrático é aceito como a fórmula

17
finalmente encontrada da melhor sociedade possível, e tudo o que se pode fazer é torná-la mais
justa, tolerante etc.” (ŽIŽEK, 2008, s/p.). A predominância do tratamento da política como mera
gestão pública, de orientação tecnocrata dos cientistas sociais e economistas, não é uma dinâmica
simples de negar na contemporaneidade. Para o próprio Žižek, por exemplo, “hoje a única
verdadeira questão é: nós endossamos essa naturalização do capitalismo ou o capitalismo global de
hoje contém antagonismos fortes o suficiente para impedir sua infinita reprodução?”, essa questão
tem condições de recolocar o valor daquilo que é políticamente importante: “a verdadeira utopia é a
crença em que o sistema global existente pode se reproduzir indefinidamente. A única maneira de
ser verdadeiramente realista é imaginar o que, dentro das coordenadas desse sistema, só pode
parecer impossível” (ŽIŽEK, 2008, s/p.).
Para nos mantermos em harmonia com o que começamos dizendo sobre o fim da história,
vale esclarecer que perguntar-se pelos antagonismos fortes o suficiente para impedir a infinita
reprodução de um sistema de governamentalidade liberal é sinônimo de questionarmos a concepção
temporal que está por trás das teses sobre o fim da história. Caracterizar a contemporaneidade
política como o período em que a novidade histórica terminou implica, necessariamente, em uma
visão da história como linearidade infinita. Isso porque, quando a única tarefa que resta é a perpétua
administração pública por exclusivo parecer técnico, definitivamente, adotamos uma forma de
governar que busca, a qualquer custo, eliminar os acontecimentos genuinamente políticos que
sempre trouxeram novidades e curvas na trajetória histórica. Em outras palavras, isso significa que
temos um problema mais profundo do que a simples relação entra fim da história e queda de blocos
ideológicos hegemônicos. O soterramento da política pelo governo carrega consigo uma das mais
sutis questões da ética e filosofia política: a inexistência de um contraponto ao governo infinito dos
seres humanos. Ao que parece, o Ocidente fechou seu escritório de contrapontos históricos quando
se viu incapaz de imaginar uma postura política alternativa à perpétua administração pública pelos
desenvolvimentos tecnológicos e a prosperidade econômica. A satisfação passiva com as teses do
fim da história revela que falta-nos uma história do fim.
Diante de tudo isso, a presente tese de doutorado tem como seu objetivo principal defender a
importância política do tema messiânico do tempo do fim. Em oposição às relações traçadas entre
tempo e política pelos defensores das teses sobre o fim da história, essa formulação sobre o
significado político do tema messiânico do tempo do fim é oriunda de uma das análises em ética e
filosofia política mais inusitada nas últimas décadas. 1 Trata-se da obra do filósofo italiano, Giorgio

1
Uma vez que se trata do tema central da presente tese, a expressão “significado político do tema messiânico do tempo
do fim” assume, em Agamben, uma conotação técnica que precisa ser imediatamente elucidada. No interior de suas
obras a partir dos anos 2000 o “tempo do fim” ou também “tempo que resta” são paradigmas retirados dos textos
paulinos e transpostos para pensar na política sobre um tipo de experiência temporal na história diferente da mera
linearidade contínua do tempo cronológico. O “tempo que resta” é também chamado de “tempo do fim” porque se
18
Agamben. Chamamos de inusitado o trajeto filosófico empreendido por Agamben nos últimos anos
exatamente pelas categorias que o filósofo introduziu na discussão política atual. Ainda que seja um
dos intelectuais contemporâneos que não só está consciente, mas também colaborou para fazer mais
conhecidos os reducionismos políticos que experimentamos, Agamben recusa-se a nos oferecer
respostas simplistas. Em vez de recorrer aos conceitos que se tornaram óbvios nos debates atuais
sobre ética e política, ele busca paradigmas políticos em experiências e fenômenos que
habitualmente não são considerados políticos. 2 Essa preferência fica explícita nas primeiras páginas
do seu livro Il regno e la gloria. Per uma genealogia teologica dell’economia e del governo (2007),
onde ele mesmo diz sobre suas escolhas teóricas:

A análise das doxologias e das aclamações litúrgicas, dos ministérios e dos hinos
angélicos revelou-se, assim, mais útil para a compreensão da estrutura e do
funcionamento do poder do que muitas análises pseudofilosóficas sobre a soberania
popular, o Estado de direito ou os procedimentos comunicativos que regem a
formação da opinião pública e da vontade política (AGAMBEN, 2011, p. 10).

Fazer uso de temas distintamente teológicos em investigações éticas e políticas pode parecer
inusitado para alguns, mas mostrou-se bastante relevante nas mãos de Agamben. O que está
pressuposto nessa metodologia de uso do teológico para o político é a convicção de que a teologia
cristã dos primeiros séculos pode constituir-se como “um laboratório privilegiado para observar o
funcionamento e a articulação — ao mesmo tempo interna e externa — da máquina governamental”

refere ao tempo que falta para que o próprio tempo termine – com a vinda do messias e o cumprimento da história. Esse
paradigma eminentemente messiânico assume importância ética e política justamente quando as estruturas jurídicas,
econômicas e governamentais alicerçam suas práticas de gestão pública em uma representação temporal exatamente
contrária àquela messiânica – isto é, uma temporalidade infinita que se estende através de crises sem fim e de um
discurso de naturalização infinita do governo. Portanto, a importância política do tema messiânico do tempo do fim
refere-se a uma transformação interna no tempo que nos permite dar lugar no presente a novos usos do mundo que não
estejam mais limitados à reprodutibilidade infinita da gestão dos corpos humanos. Ou ainda, conforme explica de
maneira precisa Leland de la Durantaye, o tempo messiânico “não é o que está por vir, mas o que já está aqui. O tempo
messiânico rejeita uma dialética histórica do progresso e sua lógica de diferimento; rejeita a proposição da conclusão de
uma tarefa histórica em um futuro indeterminado. Para muitos, ‘tempo messiânico’ sugere esperar pela vinda do
Messias, redimir a humanidade e completar a história humana. Dependendo do ponto de vista da pessoa, isso pode soar
anárquico ou teocrático. Para Agamben, entretanto, o tempo messiânico significa, como para Benjamin, o exato oposto
dessa espera, e por isso ele coloca seu foco não no último, mas no penúltimo” (DURANTAYE, 2012, p. 58).
2
O filósofo e professor brasileiro Selvino J. Assmann também atribui essa característica à filosofia de Agamben e diz o
seguinte a respeito: “Agamben vai consolidando em sua obra uma corajosa leitura do pensamento político
contemporâneo, recorrendo a paradigmas extremos como o ‘campo de concentração’ ou o ‘estado de exceção’, e
sobretudo falando da biopolítica como luta da vida e das formas da vida contra o poder que procura submetê-las a seus
fins por meios muitas vezes ilegítimos. Em um mundo onde tudo parece ter-se tornado necessário e inevitável, sagrado,
Agamben procura resistir, descriar o que existe, tentando ser mais forte do que o que está aí, como o faz o escriturário
Bartleby de Melville (‘preferiria não!’). Isso equivale a ir em busca da infância, ou seja, de nossa capacidade de jogar e
de amar, a saber, de viver na intimidade de um ser estranho, não para fazê-lo conhecido, e sim para estar ao lado dele
sem medo de ficar entre o dizível e o indizível; equivale a perseguir sinais e frestas de contingencia, de ‘absoluta
contingência’, ou seja, de subjetividade, de liberdade humana, de cesuras entre um poder-ser e um poder-não-ser.
Insista-se: um mundo em que tudo é necessário e nada é possível é um mundo sem sujeito, um mundo sem liberdade,
sem possibilidade de criação” (ASSMANN, 2007, p. 7).

19
(AGAMBEN, 2011, p. 9). De certa forma, é como se nos textos bíblicos, nas formulações litúrgicas
dos primeiros séculos e na atual administração da grande tradição cristã, Agamben encontrasse
estruturas e dinâmicas muito características de nossa contemporaneidade política, mas em suas
aparições exemplares — ou como ele prefere dizer, paradigmáticas. 3
O valor das contribuições de Agamben também está nas formas criativas com que ele faz
esse uso livre de temas teológicos para a ética e a política – muitas vezes, até mesmo contra essa
tradição. Ele consegue transportar assinaturas teológicas para o âmbito político de várias maneiras.
Desde episódios contemporâneos muito pontuais, como a renúncia de Bento XVI ao papado, às
interpretações de momentos decisivos para a teológica cristã como o processo jurídico que
culminou na crucificação de Jesus, ou então a releitura das cartas que escreveu o apóstolo Paulo
para as igrejas cristãs do primeiro século. Não obstante a variabilidade de paradigmas teológicos
escolhidos pelo filósofo existe uma preocupação fundamental que perpassa todos os seus esforços
intelectuais. Trata-se exatamente daquele eclipse que a política passa hoje, sendo esvaziada pelos
dispositivos de governamentalidade técnicas e econômica dos sujeitos. Isso pode ser confirmado
pelas palavras do próprio Agamben escrevendo sobre a renúncia de Ratzinger:

Por que tal decisão parece hoje exemplar? Porque volta a chamar atenção para a
distinção entre dois princípios essenciais de nossa tradição ético-política, dos quais
as sociedades parecem ter perdido qualquer consciência: a legalidade das
instituições, mas também sua legitimidade; não só, como se repete muito
frequentemente, as regras e as modalidades do exercício do poder, mas o próprio
princípio que o fundamenta e o legitima. Os poderes e as instituições não são hoje
deslegitimadas porque caíram na ilegalidade; é mais verdadeiro o contrário, ou seja,
que a ilegalidade é difundida e generalizada porque os poderes perderam toda a
consciência de sua legitimidade. Por isso é vão acreditar que se pode enfrentar a
crise das sociedades por meio da ação (certamente necessária) do poder judiciário –
uma crise que investe a legitimidade não pode ser resolvida somente no plano do
direito. A hipertrofia do direito, que tem a pretensão de legiferar sobre tudo, revela,
isso sim, através de um excesso de legalidade formal, a perda de toda legitimidade

3
Dedicaremos uma seção inteira do terceiro capítulo às considerações metodológicas de Agamben, no entanto, é
esclarecedor já deixarmos evidente o que o filósofo italiano escreve ao final de sua obra dedicada exclusivamente ao
método, Signatura Rerum (2008), onde nos fornece a seguintes definições de paradigma: “(1) o paradigma é uma forma
de conhecimento que não é nem indutivo, nem dedutivo, mas análogico, que se move da singularidade para a
singularidade. (2) Neutralizando a dicotomia entre o geral e o particular, ele substitui a lógica dicotômica por um
modelo analógico bipolar. (3) O caso paradigmático se torna tal suspendendo e, ao mesmo tempo, expondo seu
pertencimento ao conjunto, de forma que nunca é possivel separar nele exemplaridade e singularidade. (4) o conjunto
paradigmático nunca é pressuposto aos paradigmas, mas permanece imanente a eles. (5) Não há, no paradigma, uma
origem ou uma arché: cada fenômeno é a origem, cada imagem é arcaica. (6) a historicidade do paradigma não está
nem na diacronia, nem na sincronia, mas num cruzamento entre elas. Acredito que, a esta altura, esteja claro o que
significa, tanto no meu caso como no de Foucault, trabalhar por meio de paradigmas. O homo sacer e o campo de
concentração, o Musselmann e o estado de exceção – como, mais recentemente, a oikonomia trinitaria ou as aclamações
– não são hipoteses pelas quais eu pretendia explicar a modernidade, reconduzindo-a a algo como uma causa ou uma
origem histórica. Pelo contrário, como a própria multiplicidade delas poderia ter deixado entender, tratava-se sempre de
paradigmas, cujo escopo era tornar inteligível uma série de fenômenos, cujo parentesco poderia escapar ou passar
desapercebido ao olhar do historiador” (AGAMBEN, 2019, p. 41-42). Quanto a isso, confrontar também com
FAVARETTO, Caio Mendonça Ribeiro. O Futuro Anterior: Giorgio Agamben e o método paradigmático. Cadernos de
Ética e Filosofia Política. Número 23, ano 2013, p. 108-124; RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. O campo como
paradigma biopolítico moderno. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, Edição 372, Setembro de 2011.
20
substancial. A tentativa moderna de fazer coincidir legalidade e legitimidade,
procurando assegurar, através do direito positivo, a legitimidade de um poder, é –
como resulta do irrevogável processo de decadência em que ingressaram as
instituições democráticas – totalmente insuficiente. As instituições de uma sociedade
só continuarão vivas se ambos os princípios (que em nossa tradição também
receberam o nome de direito natural e direito positivo, de poder espiritual e poder
temporal ou, em Roma, de auctoritas e protestas) se mantiverem presentes e nelas
agirem, sem nunca pretender que coincidam (AGAMBEN, 2013, p. 10-11).

Essas palavras, ainda que de maneira muito prévia, nos permite introduzir a radical diferença
entre as teses sobre o fim da história e a importância política do tema messiânico da história do fim.
As graves crises que as sociedades contemporâneas enfrentam hoje não podem ser totalmente
compreendidas pelo signo da ilegalidade. A mera repetição ad infinitum do diagnóstico de
“corrupção” não consegue atingir a raiz de nossas dificuldades políticas contemporâneas. A busca
por redenção em atos heróicos do poder judiciário camufla o ponto cego de nossas democracias
liberais fukuyamistas. Em vez de insistir em iniciativas na esfera pública que apenas reforçariam a
hipertrofia da legalidade, precisamos questionar o desequilíbrio existente entre os princípios de
legalidade e legitimidade. Segundo o raciocínio de Agamben, ambos são fundamentais para que
qualquer sociedade continue em operação. No entanto, quando uma sociedade, mesmo que de
maneira tácita, impossibilita o que Agamben chamou de a presença igualmente necessária do poder
espiritual frente ao poder temporal, ela cai em uma crise de legitimidade.
Com essa hipótese, Agamben mostra toda a relevância de sua filosofia para o presente, uma
vez que argumentaremos ser esse o exato diagnóstico da ausência de legitimidade do poder político
em nossas sociedades contemporâneas. Quando os governos insistem na hipertrofia da legalidade
produzindo uma administração pública sem crises, uma população sem fraturas ou, simplesmente, o
desaparecimento de qualquer grupo que possa ser entendido como “fora da lei”, não estamos
somente diante de um aumento inaudito dos poderes judiciários. Essa assimetria entre os dois
princípios que fazem das instituições de uma sociedade legítimas colocou as democracias ocidentais
em uma rota de esfacelamento fatal.
Tal tecnologia governamental é a tentativa de superar o que Agamben chamou, anos atrás,
de “fratura biopolítica”. Em um dos pequenos textos que compõem a coletânea Mezzi senza fine:
note sulla politica (1996), Agamben desenvolve uma argumentação que explicita como o sintagma
“povo” sempre representa, ao mesmo tempo, o conjunto dos sujeitos políticos, como também a
classe que foi excluída da política — por serem meros populares sem voz na esfera pública. Uma
ambiguidade dessas não acontece por acaso. Na verdade, Agamben nos mostra que em vez de
encararmos o povo como uma identidade unitária e bem definida em nossas sociedades, devemos
reconhecer uma dinâmica dialética de pertencimento e exclusão dos sujeitos políticos. Essa inclusão
dos indivíduos na política que, ao mesmo tempo, os exclui é o que ele chama de fratura biopolítica.
21
4
Os parâmetros para as teses do fim da história repousam, precisamente, nas tentativas de superar
essa fratura biopolítica pelas tecnologias governamentais contemporâeas. Nas palavras de
Agamben:

Se isso for verdade, se o povo contém necessariamente em seu interior a fratura


biopolítica fundamental, será então possível ler de modo novo algumas páginas
decisivas da história do nosso século. Visto que, se a luta entre os dois povos já
estava certamente em curso desde sempre, no nosso tempo ela sofreu uma última,
paroxística aceleração. […] o nosso tempo não é senão a tentativa – implacável e
metódica – de atestar a cisão que divide o povo, eliminando radicalmente o povo dos
excluídos. Essa tentativa reúne, segundo modalidades e horizontes diferentes,
esquerda e direita, países capitalistas e países socialistas, unidos no projeto – em
última análise inútil, porém que se realizou parcialmente em rodos os países
industrializados – de produzir um povo uno e indivisível. A obsessão do
desenvolvimento é tão eficaz no nosso tempo porque coincide com o projeto
biopolítica de produzir um povo sem fratura. O extermínio dos judeus na Alemanha
nazista adquire, nesse perspectiva, um significado radicalmente novo. Como povo
que recusa integrar-se no corpo político nacional (supõe-se, de fato, que toda sua
assimilação seja, na verdade, somente simulada), os judeus são os representantes por
excelência e quase o símbolo vivente do povo, daquela vida nua que a modernidade
cria necessariamente no seu interior, mas cuja presença não consegue mais de algum
modo tolerar. […] E de modo diferente, mas análogo, hoje o projeto democrático-
capitalista de eliminar, através do desenvolvimento, as classes pobres não só
reproduz no seu interior o povo dos excluídos, mas transformam em vida nua todas
as populações do Terceiro Mundo. Somente uma política que tiver sabido prestar
contas da cisão biopolítica fundamental do Ocidente poderá deter essa oscilação e
colocar um fim na guerra civil que divide os povos e as cidades da terra
(AGAMBEN, 2015, p. 38-40).

Na busca de uma releitura das páginas da história, Agamben encontra aquilo que ultrapassa
as especificidades das diferentes ideologias políticas de países capitalistas ou socialistas, apontando
para um projeto unificado que perpassa tanto governos conservadores quanto progressistas. Trata-se
da busca sistemática e metódica de produzir um povo sem fratura, uma administração pública sem
crise, uma população sem “foras da lei”. Na celebração do fim da história e nas boas vindas a uma
nova era de desenvolvimento técnico e econômico para a gestão pública esconde-se um projeto
biopolítico de governar indefinidamente uma massa populacional uniformizada. No entanto, para
que tal tecnologia política seja executada com sucesso, o desenvolvimento tecnológico precisa

4
Claramente esse raciocínio agambeniano que reconstruímos acima é o núcleo de sua argumentação nos primeiros
volumes da obra a respeito do homo sacer. Uma reprodução mais exaustiva desses argumentos já foi realizada em outra
ocasião – cf. PEREIRA, Pedro Lucas Dulci. O trono vazio: a teoria unitária do poder na genealogia teológica de
Giorgio Agamben. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2015. Estamos
conscientes de que as abordagens mais ricas a respeito desse tema em língua portuguesa são: NASCIMENTO, Daniel
Arruda. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de Giorgio Agamben. São Paulo: Editora LiberArs, 2012;
NASCIMENTO, Daniel Arruda. Umbrais de Giorgio Agamben. Para Onde nos Conduz o Homo Sacer? São Paulo:
Editora LiberArs, 2014; RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. A Condição de Homo Sacer. O Direito e a Arqueologia do
Sagrado, um Diálogo com Giorgio Agamben. Revista Portuguesa de Filosofia 69 (2): p. 331-348 (2013); RUIZ, Castor
M. M. Bartolomé. Homo Sacer. O poder Soberano e a vida nua. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, Edição 371,
Agosto de 2011; RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. O campo como paradigma biopolítico moderno. Revista do Instituto
Humanitas Unisinos, Edição 372, Setembro de 2011.

22
tornar-se uma obsessão, a economia de mercado tem que se mostrar eficaz na eliminação dos pobres
e a presença decisiva do poder judiciário precisa hipertrofiar-se na administração pública. Essa é a
receita que consegue executar a obsolescência da legitimidade de nossos governos e perpetuar a
guerra civil como o modo ordinário de poder político.
Conforme o próprio filósofo italiano termina dizendo, somente uma política que estiver
consciente dessa dinâmica biopolítica fundamental conseguirá apresentar-se como um antagonismo
forte o suficiente para fazer frente à reprodução infinita dessa tecnologia governamental. É
exatamente aqui que argumentaremos na presente tese sobre a importância política do tema
messiânico do tempo do fim. Agamben utiliza-se desse paradigma teológico para fornecer-nos uma
caixa de ferramentas conceituais. Utilizando em sua argumentação a exemplaridade da renúncia de
Joseph Ratzinger para repensar tais questões, Agamben sustenta o seguinte:

Entendemos que legitimidade e legalidade são duas partes de uma única máquina
política que não só nunca devem ser reduzidas uma à outra, mas devem permanecer
sempre, de alguma forma, operantes para que a máquina funcione. Se a Igreja
reivindica um poder espiritual ao qual o poder temporal do Império ou dos Estados
deveria ficar subordinado, como aconteceu na Europa medieval, ou se, como se deu
nos Estados totalitários do século XX, a legitimidade pretende prescindir da
legalidade, então a máquina política gira no vazio, com êxitos sequentemente letais;
se, por outro lado, como aconteceu nas democracias modernas, o princípio
legitimador da soberania popular se reduz ao momento eleitoral e se restringe às
regras procedimentais prefixadas juridicamente, a legitimidade corre o risco de
desaparecer na legalidade e a máquina política fica igualmente paralisada
(AGAMBEN, 2013, p. 12).

O que Agamben está apresentando aqui é uma análise diferente daquelas que se ocupam
apenas com a ampliação indevida da legalidade de nossas sociedades, ou então nas insistentes
reivindicações de legitimidade que prescindem do aparato legal satisfatório. Podemos dizer que,
com essas palavras de Agamben, uma apropriada interpretação da situação política atual depende da
reintrodução da mesma no interior de um quadro histórico maior. Essa opção filosófica de
Agamben ajuda a compreender o privilégio que o italiano atribui ao tema messiânico do tempo do
fim na política. Isso porque, ao colocar a Igreja em contraposição ao Império (e, posteriormente, os
Estados modernos), o filósofo italiano não está meramente contrastando duas instituições sociais
pertencentes ao mesmo horizonte temporal. Ao contrário, ele está reivindicando a natureza
messiânica em que as igrejas cristãs experimentavam a temporalidade nos seus primeiros séculos de
sua existência. Nesse caso específico toda a singularidade da interpretação que Agamben faz da
situação política que vivemos depende do que ele mesmo nos lembra: “de como se interpreta o tema
escatológico, inseparável da filosofia cristã da história (talvez toda filosofia da história seja
construtivamente cristã) e, em particular, do sentido atribuído à passagem da epístola paulina”
(AGAMBEN, 2013, p. 21).
23
É uma citação recorrente nos escritos de Agamben o comentário do teólogo alemão Ernst
Troeltsch de que a Igreja encerrou, há muito tempo, o seu escritório escatológico. Com essas
palavras, tanto Troeltsch quanto Agamben, querem enfatizar aquele desequilíbrio entre os dois
princípios necessários para manter as instituições de uma sociedade legitimas e legais. No trecho
anteriormente citado, o italiano argumenta que sem esse equilíbrio entre os dois princípios a
máquina governamental gira no vazio com êxitos sequentemente letais. Essa é a tese fundamental
de Il regno e la gloria, a saber: a ausência de um contraponto messiânico ao agigantamento do
poder temporal dos governos modernos colocou a política atual em uma situação de incontornável
falta de legitimidade. Em um cenário assim, a gestão pública precisou valer-se de uma tecnologia
governamental para esconder o vazio de seu núcleo político. Essa prática na gestão pública é o que
Agamben chama de glorificação. A utilização de aclamações políticas e liturgias sociais,
principalmente através da formação da opinião pública, foi o meio privilegiado que não só os
totalitarismos do século 20, mas também as democracias liberais do século 21 encontraram para
esconder o vazio da máquina governamental. Por isso, Agamben defende que: “o que está em
questão é nada menos que uma nova e inaudita concentração, multiplicação e disseminação da
função da glória como centro do sistema político. O que ficava confinado às esferas da liturgia e dos
cerimoniais concentra-se agora na mídia” e, por meio dela, “difunde-se e entra em cada instante e
em cada âmbito, tanto público quanto privado da sociedade. A democracia contemporânea é uma
democracia inteiramente fundada na glória, ou seja, na eficácia da aclamação” (AGAMBEN, 2011,
p. 278).
Interpretar as atuais conjunturas políticas como um agigantamento da função da glória no
centro do sistema político é sinônimo de dizer que: “o centro da máquina governamental está vazio.
O trono vazio, a hetoimasia tou thronou que aparece nas arcadas e nas absides das basílicas
paleocristãs e bizantinas, talvez seja, nesse sentido, o símbolo mais carregado do poder”
(AGAMBEN, 2011, p. 11). E, um dos fatores decisivos para a constituição desse cenário de crise de
legitimidade política foi, justamente, a Igreja fechar seu escritório escatológico. Em outras palavras,
isso significa dizer que quando a Igreja permitiu que sua institucionalização também significasse
uma batalha para se manter indefinitivamente no tempo, com isso, ela perdeu aquilo que era a sua
grande importância política: ser um das principais porta-vozes do contraponto temporal do governo
infinito dos homens. A Igreja, literalmente, se perdeu no tempo. Conforme explica Agamben à luz
do que argumentamos sobre as teses do fim da história,

quando o elemento escatológico se eclipsa na sombra, a economia mundana se torna


propriamente infinita, isto é, interminável e sem escopo. O paradoxo da Igreja é que
ela, do ponto de vista da escatologia, deve renunciar ao mundo, mas não pode fazê-
lo porque, no âmbito da economia, ela é do mundo e não tem como renunciar a ele

24
sem renunciar a si mesma. E é justamente aqui que está a crise decisiva, porque a
coragem – que nos parece ser o sentido último da mensagem de Bento XVI – não
está sendo na capacidade de se manter em relação com o próprio fim. Procuramos
interpretar a exemplaridade do gesto de Bento XVI no contexto teológico e
eclesiológico que lhe é próprio. Se esse gesto nos interessa, porém, não é apenas por
remeter a um problema interno da Igreja, mas, sobretudo, porque permite focar um
tema genuinamente político, o da justiça, que assim como a legitimidade, não pode
ser eliminada da práxis da sociedade (AGAMBEN, 2013, p. 24).

Politicamente falando, o fechamento do escritório escatológico da Igreja significa o


soterramento de uma das melhores opositoras à economia mundana infinita. O gesto de Joseph
Ratzinger é tão emblemático para Agamben porque ele, no contexto teológico e eclesiológico, agiu
de maneira paradigmática para o contexto político. Quando Bento XVI renunciou a liderança de
uma instituição cuja cúria esqueceu-se totalmente de sua legitimidade ao entrar em uma busca
frenética das dimensões econômicas e temporais do poder, ele estava puxando o pêndulo da história
romana para o lado do poder espiritual. O que para muitos foi interpretado como um gesto de
fraqueza ou até mesmo de irrelevância política por suas razões meramente eclesiásticas, na
perspectiva de Agamben, é um acontecimento que deveria interessar a todo aquele que busca pensar
uma política que faça frente à operação biopolítica fundamental de gerir indefinidamente um povo
até torná-lo sem fratura.
Quando Agamben coloca sua leitura da crise de legitimidade que atinge a política
contemporânea em um quadro maior da filosofia da história, fica um pouco mais claro seu interesse
com o tema escatológico do tempo do fim. Acreditamos ser possível defender a tese de que a
intenção de Agamben é provocar os seus leitores a reabrirem o escritório escatológico que
antagonizará com o governo infinito dos homens – fazendo com que se forme no espaço
contemporâneo, não necessariaente a Igreja, mas o que ele chama de a comunidade que vem. E isso
ele diz só ser possível com a recuperação de uma leitura filosófica do sentido atribuído ao tema nos
textos de Paulo de Tarso, apóstolo cristão. Em uma obra-chave para entender praticamente toda a
fase mais recente do pensamento agambeniano, o livro entitulado Il tempo che resta: un commento
alla Lettera ai Romani (2000), Agamben deixa explícito logo de início que suas motivações de
realizar seminários de filosofia a partir dos textos bíblicos tinham um alvo muito objetivo: “restituir
as Cartas de Paulo à sua condição de texto messiânico fundamental do Ocidente” (AGAMBEN,
2016, p. 13). A escolha de Paulo não é aleatória. Para o filósofo italiano, o que se destaca na
mensagem do apóstolo cristão é que ele não caracteriza a temporalidade vivida pela Igreja como
sendo o fim dos tempos. Antes, Paulo de Tarso insiste que o fator escatológico na temporalidade
messiânica é uma transformação interna que não coloca fim à história, mas inaugura o tempo do
fim.

25
No interior de uma argumentação de Agamben sobre um trecho da Segunda Epístola aos
Tessalonicenses, a qual vamos explorar detidamente no segundo capítulo da presente tese, podemos
recortar as seguintes palavras que nos ajudam a entender melhor o significado da temporalidade
messiânica em Paulo e seu uso feito pelo filósofo italiano:

O que interessa ao Apóstolo não é o último dia, não é o fim dos tempos, mas o
tempo do fim, a transformação interna do tempo, que o evento messiânico uma vez
por todas produziu, e a consequente mudança da vida dos fiéis. O mysterium
iniquitatis da “Segunda epístola aos tessaolinicenses” não é um arcano
supratemporal, cujo único sentido é pôr fim à história e à economia da salvação, mas
um drama histórico (mysterion em grego significa “ação dramática”) que está
acontecendo em cada momento e no qual incessantemente se jogam os destinos da
humanidade, a salvação ou a ruína dos homens. […] as profecias não se referem ao
fim dos tempos, mas à condição da Igreja no intervalo entre a primeira e a segunda
vindas, isto é, no tempo histórico que ainda estamos vivendo. […] A decisão de
Bento XVI trouxe à luz o mistério escatológico com toda a sua força explosiva – e
só desse modo a Igreja, que se perdeu no tempo, poderia reencontrar a justa relação
com o fim dos tempos (AGAMBEN, 2013, p. 22-23).

Nas palavras supracitadas, Agamben ressalta como o pensamento de Paulo não faz coro às
teses do fim da história e suas apropriações políticas hodiernas. O evento messiânico não apenas
pretende aparecer em seu caráter acontecimental, isto é, que fratura a linearidade infinita do
Império, mas também operar uma transformação interna na própria forma com que os membros da
comunidade messiânica passam a experimentar o tempo. Ou seja, o tempo que resta entre a primeira
e a segunda vinda do messias não tem o sentido de pôr fim à história. Antes, trata-se de qualificar
esse intervalo de tempo em que a Igreja existe como um drama histórico que está acontecendo
momento após momento. Essa maneira de compreender o mysterion que anunciava o apóstolo
Paulo é que ajudará a Igreja a reencontrar o ajuste fino de sua relação com o tempo, como também
restabelecer seu potencial de antagonismo ao governo infinito dos seres humanos.
Em síntese, podemos dizer que o objetivo geral da presente tese de doutorado é o de
investigar a importância política do tema messiânico do tempo do fim e como essa pode também ser
compreendida como uma tentativa de encontrar novos parâmetros e categorias para a filosofia
política que esteja livre da relação viciosa entre fim dos tempos e política. Ou ainda, segundo as
palavras do próprio Agamben, em um discurso proferido em 2012, na Suíça, por ocasião do
recebimento do título honoris causa em teologia, a investigação do significado do tema do tempo
do fim é uma convocação para reencontrarmos nossa experiência escatológica na ação histórica (cf.
AGAMBEN, 2013, p. 34). Isso ele argumenta, pois, para o italiano, “somente assim poderá dispor
de um critério de ação que não seja subalterno — como de fato acontece agora — em relação à
política profana e ao progresso das ciências e das técnicas, que ela parece em todo lugar perseguir,
procurando em vão lhe impor limites” (AGAMBEN, 2013, p. 45). O filósofo italiano está realmente

26
convicto de que: “só restituindo mysterium iniquitatis a seu contexto escatológico uma ação política
possa tornar-se novamente possível, tanto na esfera teológica quanto na profana” (AGAMBEN,
2013, p. 45).

Os fins da presente tese

A pesquisa de Agamben é tanto genealógica quanto arqueológica, ainda que seja, acima de
tudo, paradigmática. Isso significa dizer que suas leituras e usos livres das mais diversas fontes
filosóficas, históricas, teológicas e jurídicas não estejam submetidos às mesmas regras da mera
historiografia sincrônica e diacrônica, mas em um cruzamento dessas. Conforme o filósofo e
professor brasileiro Oswaldo Giacoia Jr. corretamente explica: “a função dos paradigmas consiste,
antes de tudo, na libertação de um modelo de inteligibilidade para a compreensão do que vigora
como a força mais essencial” (GIACOIA JR., 2018, p. 13). Nesse sentido, a forma metodológica
escolhida para a elaboração dos argumentos da presente tese procurou se mostrar adequada à
própria prática filosófica de Agamben, a saber, uma reapropriação crítica dos seus próprios textos e
dos da tradição utilizados pelo filósofo italiano como dispostivos teóricos que fornecem as
condições de assimilar o sentido do próprio tempo, bem como o de conceber um diagnóstico do
presente. O conjunto de reflexões reunidas nas obras agambenianas, principalmente as que
constituem a investigação sobre o homo sacer, fornecem as condições de possibilidade para aquilo
que Giacoia Jr. descreve como:

Um pensamento que franqueou o limiar de uma renovação do quadro categorial que


serviu de referência para a filosofia do direito e para a filosofia política na
modernidade. E, a partir dessa renovação, também para a possibilidade de liberar
para um novo uso de componentes essenciais do espaço cultural no qual se desenrola
nossas vidas, como os corpos, a técnica, a linguagem, a economia, a arte e a religião.
Nesse sentido, o programa de pesquisa consubstanciado nos volumes que integram o
conjunto Homo Sacer constitui efetivamente o que Agamben define como obra de
poesia e de pensamento – e que, enquanto tais, não podem ser concluídas, mas
apenas abandonadas e, eventualmente, continuadas por outros. Pois elas são o
legado próprio de uma forma-de-vida que se esforça para colocar-se além da cisão
entre o privado e o público, entre política e biografia, ação e inércia, bios e zoé
(GIACOIA JR., 2018, p. 226).

Diante de tal possibilidade não só do próprio abandono inconclusivo dessas investigações


por parte de Agamben, mas também pela viabilidade de a continuarmos através de outras vias,
optamos em construir nossa argumentação no presente trabalho, percorremos o seguinte caminho:
em primeiro lugar, dedicaremos o primeiro capítulo a uma arqueologia desse modo de governar
infinitamente os indivíduos que é característico de nossa contemporaneidade. A pergunta chave
27
nesse primeiro capítulo será, portanto, por que a política foi transformada em mera gestão dos
corpos? Com o auxílio de uma relação temática estabelecida com alguns cursos ministrados por
Michel Foucault no College de France, procuraremos defender a leitura agambeniana do estado de
ocaso em que se encontra a ética e a política contemporânea. Tentaremos deixar evidente que a
configuração política atual não diz respeito apenas ao que Foucault chamou de governamentalidade
moderna, como também às argumentações de Agamben sobre a necessidade de louvor e glória para
o funcionamento indeterminado da máquina política. Também argumentaremos que uma das mais
paradigmáticas parábolas de nossa condição jurídica e política é o julgamento de Jesus por Pôncio
Pilatos reconstruído por Agamben em Pilato e Gesú. Nessa obra vemos claramente a estrutura de
um processo jurídico que não chega ao fim, bem como o antigo debate teológico-político que está
incrustrado na crise infindável como um instrumento do poder.
Em segundo lugar, nos concentraremos propriamente dito no tema messiânico do tempo do
fim, em sua formulação paulina como uma estratégia de Agamben para responder toda a situação
política e jurídica de nosso tempo descrita no primeiro capítulo. Nosso objetivo no segundo
capítulo, portanto, será o de argumentar que a utilização, por parte de Agamben, de paradigmas
teológicos advindos das epístolas de Paulo de Tarso, apresenta-se como uma alternativa intelectual
profícua para munir seus leitores de um repertório teórico que não seja subalterno às teses do fim da
história – e que tenha condições de operar uma renovação em nosso quadro de categorias e
conceitos de uma forma que abra a possibilidade de novos usos livres dos componentes
indispensáveis para a filosofia política e a ética no mundo contemporâneo. A recuperação desses
paradigmas teológicos significará perguntar-se de maneira geral por que Paulo de Tarso é
importante para a filosofia contemporânea e, especificamente, por que ele é importante para a
filosofia de Agamben. Com isso, pretendemos, ao mesmo tempo, explorar o significado dos temas
paulinos no interior da interpretação da obra de Agamben, como também da própria filosofia do
presente. Acreditamos que, com isso, conseguiremos explicitar a capacidade criativa e explicativa
que algumas marcas do messianismo paulino têm para lidarmos com a hipertrofia da legalidade em
nossos dias – como, por exemplo, a estrutura histórico-escatológica do tempo messiânico que resta,
bem como a inoperosidade da lei através da fé no messias.
Por fim, no terceiro capítulo, procuraremos fazer uma avaliação crítica do conteúdo mesmo
das teses agambenianas tentando responder à pergunta por que é difícil ser agambeniano? Com essa
pergunta, procuraremos explicitar os desafios que são inerentes às possibilidades de usos dos
paradigmas paulinos para os desafios políticos, bem como a dificuldade de lidar com as longas
linearidades que o filósofo italiano estabelece a partir de suas representações do tempo vivido no
messias. Através de uma leitura criteriosa de alguns pilares metodológicos no pensamento do

28
filósofo italiano, acreditamos que será possível mostrar não só as contribuições, mas também os
limites de seu projeto intelectual — e, por conseguinte, a extensão que pode assumir uma
empreitada filosófica dessa natureza que procura antagonizar com as dinâmicas mais destrutivas da
política contemporânea.
Como o leitor poderá perceber, os dois primeiros capítulos têm um caráter de concordância
com as contribuições do filósofo italiano, enquanto a terceira parte da tese é de natureza crítica aos
limites de sua filosofia. Com isso, queremos deixar explícito o que o nosso subtítulo já sinaliza:
essa tese estabelece tanto o diálogo, quanto a antítese com o uso que Agamben faz das temáticas
messiânicas formuladas pelo apóstolo Paulo. Acreditamos que com essa argumentação, bem como
com as conclusões que alcançamos, teremos condições de contribuir para um tema pouco
explorado, tanto enquanto uma chave-hermenêutica da filosofia de Agamben, quanto como um
paradigma para a renovação dos quadros referências da filosofia política e ética contemporânea.
Com isso, procuramos oferecer uma contribuição original aos estudos agambenianos no território
brasileiro.
Por último, gostaríamos de mencionar que, apesar das constantes consultas às obras de
Agamben em italiano, as nossas tentativas de tradução dos originais sempre se mostravam inferiores
às traduções das obras publicadas em português. Nesse sentido, nós não só mantivemos as citações
segundo as edições brasileiras, como também acreditamos ser necessário registrar aqui nosso
agradecimento aos professores e pesquisadores envolvidos nas traduções – em especial ao professor
Selvino J. Assmann, que recebe aqui nossa homenagem póstuma. Sem nenhuma exceção, todos os
tradutores da obra de Agamben para o português são importantes pesquisadores de sua obra e além
de nos oferecerem a possibilidade de ler o filósofo italiano em nosso próprio idioma, também
sempre contribuíram para tornar ainda mais clara sua filosofia através dos comentários e
introduções às edições brasileiras.

29
CAPÍTULO 01 – A genealogia do governo infinito dos seres humanos:
por que a política se transformou em gestão?

na dimensão da glória, a Igreja e o poder profano ingressam


em um longo limiar de indeterminação, no qual é difícil
avaliar as influências recíprocas e os intercâmbios conceituais.
Enquanto o Estado territorial soberano se prepara para assumir
a figura de um “governo dos homens”, a Igreja, deixando de
lado as preocupações escatológicas, identifica cada vez mais
sua missão com o governo planetário das almas, não tanto para
sua salvação, mas para “a maior glória de Deus”. Daí nasce a
reação indignada de um filósofo católico do século XX diante
desse Deus que não é senão egoísmo, uma espécie de “César
eterno”, que recorre aos homens apenas “como instrumento a
fim de mostrar a si mesmo sua glória e sua potência”.

Giorgio Agamben
Il regno e la gloria. Per una genealogia teologica dell'economia e
del governo

O presente capítulo tem um propósito específico, mas fundamental, para a presente tese.
Através de três movimentos argumentativos muito circunscritos, procuraremos reconstruir alguns
aspectos da genealogia realizada pelo filósofo italiano Giorgio Agamben que nos fornecem
condições de compreender a atual configuração política contemporânea. A principal característica
desse contemporâneo político, que servirá como uma corrente elétrica por todo o capítulo,
carregando a energia necessária para iluminar os argumentos utilizados, é que a política foi
transformada em gestão pública. Isso aconteceu quando a soberania política foi substituída pela
governamentalidade infinita dos seres humanos. Mostraremos que tal modificação é a condição de
possibilidade para que se multipliquem os discursos sobre o fim da história mencionados na
introdução. O amálgama entre burocratização técnica das democracias liberais, hipertrofia da
economia capitalista e normalização da exceção jurídica — tão presentes na filosofia de Agamben
— são resultados de uma modificação muito mais profunda e insidiosa. Uma alteração na forma de
enxergarmos a temporalidade e sua relação com a política foi responsável pelas principais
transformações na política ocidental.

30
A hipótese sobre o soterramento da política pela gestão pública não é uma exclusividade de
Agamben. O primeiro movimento argumentativo do presente capítulo será um tópico inteiro
dedicado a relação entre o filósofo italiano e Michel Foucault. À revelia do que alguns intérpretes e
estudiosos da biopolítica possam pensar, a utilização de conceitos advindos da teologia cristã, bem
como da concepção temporal escatológica, também é um recurso foucaultiano na tentativa de
pensar as condições de possibilidade de resistência e linhas de fuga no cenário político atual.
Foucault, em seus últimos cursos da década de 70 – principalmente, Il faut défendre la Société e
Sécurité, territoire et population –, já se valia da mesma terminologia, ainda que de modo bastante
embrionário. O núcleo do argumento é que o filósofo francês observou mudanças pontuais no
exercício do poder soberano ao longo dos séculos que estavam pressupostas nas visões a respeito do
tempo que só podem ter seu significado completo se forem reintroduzidas em um quadro teológico
maior. Sendo assim, mostraremos os pontos de conexão entre a arqueologia foucaultiana e a
genealogia paradigmática agambeniana. 5
Em nosso próximo movimento argumentativo, dedicaremos o segundo tópico deste capítulo
para mostrar como Agamben encontra no processo de julgamento de Jesus por Pilatos um
paradigma privilegiado para pensar a estrutura jurídica de uma gestão pública que assumiu o
governo infinito dos seres humanos como sua distintiva característica. Através de uma minuciosa
análise sobre cada etapa do processo de Jesus, que não terminou com um julgamento de Pilatos,
assumindo a forma de uma crise sem fim, temos a oportunidade de recolocar a mesma questão
fundamental da presente tese de uma nova forma: a importância política do tema do tempo
messiânico mostrou-se de forma singular no encontro de Pilatos e Jesus, uma vez que essa é uma
perfeita imagem do cruzamento entre a eternidade e a história. O fato desse cruzamento ter
assumido a forma de um juízo processual sem fim chama muito a atenção de Agamben e nos
sinaliza que existem questões jurídicas e políticas importantes para a genealogia do governo infinito
da população.
Nesse sentido, temporalidade infinita governamental e resistência por antagonismos
genuinamente políticos, bem como a tensão entre o reino messiânico eterno e o Império Romano
histórico serão os grandes temas reconstruídos neste capítulo a partir da filosofia de Giorgio
Agamben para respondermos a pergunta fundamental para a filosofia política hodierna: por que a

5
Gostaríamos de deixar claro que reconhecemos a especificidade de cada autor e a diferença entre seus projetos.
Concordamos com o comentário de Morten Sørensen Thaning, Marius Gudmand-Høyer e Sverre Raffnsøe quando
dizem que: “Apesar de uma certa afinidade a respeito do status da ética e da relação entre ética, política e governo, o
projeto Homo Sacer de Agamben difere da obra de Foucault por insistir que a filosofia deve abordar de forma mais
positiva a questão de como desenvolver uma concepção da natureza humana. Entre outras coisas, essa insistência parece
motivada pela convicção de Agamben de que o pensamento de Foucault é facilmente reapropriado no pensamento
político tradicional e nas formas de governo. Assim, sugerimos que a abordagem de Foucault à ética permanece na
perspectiva de Agamben no nível mais profundo diante de uma antinomia que Agamben busca mediar com sua
concepção paulina de ‘inoperatividade’” (THANING; GUDMAND-HØYER; RAFFNSØE, 2016, p. 192).
31
política se transformou em gestão?Acreditamos que o filósofo italiano renova o quadro de
referências teóricas da filosofia política e ética no Ocidente com categorias que podem ser
instrumentos promissores para pensarmos uma forma de vida livre dos aprisionamentos da gestão
pública contemporânea.

1.1. Foucault e Agamben: ressonâncias messiânicas

A transformação da temporalidade política dos governos atuais acompanha modificações


nas tecnologias de governo e a compreensão que este tinha de si mesmo. Não é possível
compreender a importância do tema messiânico do tempo do fim sem, antes, percorrer as páginas da
recente história da racionalidade política moderna. Para essa tarefa, o diálogo que pode ser
estabelecido entre a filosofia de Agamben com as investigações arqueológicas de Michel Foucault
são importantes. O filósofo francês nos auxiliará a reconhecer o núcleo de preocupações dessa nova
racionalidade governamental que, por sua vez, fará com que seja necessário um contradiscurso
escatológico dos tempos do fim.
A atenção aos acidentes e calamidades que podem sobrevir à população será algo
fundamental desta nova racionalidade governamental. Com essa modificação nas preocupações
públicas, se reinsere a problemática a respeito do governo infinito dos indivíduos mencionada na
introdução. Dizer que uma das características marcantes da arte de governar no século XVI é sua
natureza antiacontecimental significa argumentar que tal governo arroga para si uma natureza
infinita de seu exercício soberano. Essa nova razão de Estado procurará eliminar acontecimentos
inesperados através de cálculos e previsões, fazendo da estatística uma ferramenta técnica que não
mais se afastará da governamentalidade pública, nem da ciência política a ela correlata. Ou seja, a
argumentação de Foucault serve para nos mostrar que, quando perscrutamos o que está no centro
dos objetivos da razão de Estado moderna e contemporânea, não encontraremos a tentativa de
fundamentação da soberania, por exemplo. Em vez disso, ficará explícito o desejo de sustentação
perpétua de uma forma governamental.
Não obstante, nossa intenção nesse primeiro tópico do presente capítulo é lançar um olhar
diferente a um tema tão tratado nas investigações foucaultianas, como é o caso do poder pastoral,
recolocando-o em um quadro maior sobre tempo e política, conforme anunciado na introdução.

32
1.1.1. O governo infinito da população: Foucault e a governamentalidade moderna.

No interior de sua investigação sobre a soberania, no livro-curso Sécurité, territoire et


population, é possível perceber uma curva na trajetória do objeto de estudo de Foucault, pelo
encargo de novas tarefas que o próprio filósofo francês coloca para si. Na verdade, um de seus
comentadores argumenta que esse curso, por várias razões, reveste uma importância capital em seu
pensamento”, isto porque, ele continua dizendo, “nesse curso se pode seguir a guinada do
pensamento do autor para a questão do governo e da governamentalidade” (CASTRO, 2014, p.
109). Essa modificação pode ser observada pela colocação de uma nova questão pelo filósofo, em
determinado momento avançado do curso. Quanto a isso, lemos o seguinte no registro de suas
aulas: “em que medida quem exerce o poder soberano deve encarregar-se agora de tarefas novas e
específicas, que são as do governo dos homens?” (FOUCAULT, 2008, p. 311). De uma maneira
bastante precisa, Foucault está se colocando a questão sobre a transformação da política em gestão
de pessoas através de tecnologias e dispositivos governamentais. Isto Foucault se pergunta porque,
enquanto o exercício do poder soberano na Idade Média ocorria sobre territórios e, por conseguinte,
sobre os súditos que neles habitavam, a arte de governar, a qual nos fala o filósofo francês, a partir
do século XVI se exercerá sobre os indivíduos. Na verdade, “uma espécie de complexo constituído
pelos homens e pelas coisas” (FOUCAULT, 2008, p. 128). 6
Temos consciência de que, no interior do pensamento de Foucault, não existe uma sucessão
histórica entre os diferentes dispositivos políticos — como se houvessem períodos e épocas muito
estanques em que predominavam somente a soberania, e outro somente das disciplinas e um mais
recentes da segurança biopolítica. Na verdade, a riqueza de sua análise é reconhecer a presença
simultânea e cumulativa dessas diferentes formas de exercício do poder. Em suas palavras,

Portanto, vocês não têm uma série na qual os elementos vão se suceder, os que
aparecem fazendo seus predecessores desaparecerem. […] Na verdade, vocês têm
uma série de edifícios complexos nos quais o que vai mudar, claro, são as próprias
técnicas que vão se aperfeiçoar ou, em todo caso, se complicar, mas o que vai
mudar, principalmente, é a dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlação
entre os mecanismos jurídico-legais, os mecanismos disciplinares e os mecanismos

6
Em uma importante reflexão a respeito das características constitutivas dessa governamentalidade biopolítica – e sua
relação com o diálogo que Foucault e Agamben estabelecem com a teologia de Paulo – o teólogo anglicano e diretor
emérito do Centro de Teologia e Filosofia da Universidade de Nottingham, John Milbank, nos lembra de que: “o
liberalismo promove um autogoverno imaginário da vida por meio de uma certa captura e disciplinamento das forças
naturais de agressão e desejo dentro da estrutura de um jogo cultural, regido por convenções civis e leis instituídas.
Nesta concepção, a vida é tanto de uma construção cultural, como é lei, embora a naturalidade da vida, pensado como
intrinsecamente auto-regulador, é sempre inusitada. No entanto, a vida que a biopolítica desencadeia e governa também
é concebida como intrinsecamente selvagem e indomável e dinamicamente criativa, uma vez que tem a ver com a
expressão de paixões egoístas. Tanto na política propriamente dita quanto na economia, o liberalismo se regozija em
uma ordem que se supõe emergir naturalmente do próprio choque de paixões” (MILBANK, 2008, p.126).
33
de segurança. Em outras palavras, vocês vão ter uma história que vai ser uma
história das técnicas propriamente ditas (FOUCAULT, 2008, p. 11-12).

Nesse sentido, quando Foucault coloca a pergunta sobre as novas tarefas específicas do
governo, ele quer chamar a atenção de seus alunos para o fato de que a transformação da política
em governamentalidade não diz respeito só a uma gestão dos sujeitos, mas também de suas relações
e vínculos com as coisas. Mais especificamente, Foucault definia governamentalidade como um
conjunto formado pelas instituições, os procedimentos, as análises e reflexões, os cálculos e as
táticas “que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que
tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por
instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança” (FOUCAULT, 2008, p. 143). Em
outras palavras, isso significa dizer que os objetos que passaram a ocupar as atenções do poder
político são as riquezas, os recursos, os meios de subsistência, o próprio território, o clima, a
fronteira, etc. Controlar esse complexo de acontecimentos e indivíduos entendidos sob o signo da
“população” passou a ser a melhor maneira de administrar a coisa pública e perpetuar intacto o
exercício da soberania. Em síntese, “são os homens em suas relações com estas outras coisas que
podem ser os acidentes ou as calamidades como a fome, as epidemias, a morte” (FOUCAULT,
2008, p. 128).
A atenção aos acidentes e calamidades que podem sobrevir à população será algo
fundamental desta nova racionalidade governamental. Na verdade, ela é a primeira característica de,
pelo menos, três marcas fundamentais da razão de Estado que Foucault descreve por todo o seu
livro-curso. A pergunta por qual forma de cálculo será possível governar os seres humanos no
âmbito da soberania a partir do século XVI pode ser respondida com três parâmetros: (1) incidência
sobre os acontecimentos, (2) criação de uma sociedade civil e (3) gestão de natureza providencial
dos humanos. Este será o tripé que sustentará o que Foucault chamará de “poder pastoral”, tão
importante para o tema da soberania. Não é nossa intenção falar propriamente do poder pastoral,
pois além de não dispormos do espaço necessário para tal, ele já foi devidamente contemplado em
outras obras (cf. CASTRO, 2009, p. 323-334; CASTRO, 2014, p. 124-134; FONSECA, 2012, p.
156-235; CANDIOTTO; SOUZA, 2012, p. 111-120).
Não obstante, nossa intenção é lançar um olhar diferente ao tema tão tratado do poder
pastoral, recolocando-o em um quadro maior sobre tempo e política, conforme anunciado na
introdução. Para tanto, gostaríamos de chamar atenção para um desses aspectos mencionados no
curso ministrado por Foucault. Trata-se do primeiro, isto é, a incidência do exercício soberano de
poder sobre os acontecimentos. Para Foucault, soberania e acontecimentos, têm uma relação
estabelecida a partir de algo que ele chama de “o problema da população”. Segundo o autor, será a

34
ciência estatística que mostrará que: “a população comporta efeitos próprios da sua agregação e que
esses fenômenos são irredutíveis aos da família: serão as grandes epidemias, as expansões
epidêmicas, a espiral do trabalho e da riqueza” (FOUCAULT, 2008, p. 138-139). Justamente para
atacar este tipo de problema, característico das novas formações urbanas do século XVI, a arte de
governar passará a ser caracterizada por ocupar-se com: “acontecimentos que podem sobrevir”
(FOUCAULT, 2008, p. 129). Evitar a qualquer custo as crises políticas que podem surgir das novas
agregações da população se tornará assunto de prioridade estatal. Neste sentido, podemos dizer que
a arte do governo é, por definição, antiacontecimental.
Com essa definição, se reinsere a problemática a respeito do governo infinito dos indivíduos
já mencionada. Dizer que uma das características marcantes da arte de governar no século XVI é
sua natureza antiacontecimental significa argumentar que tal governo arroga para si uma natureza
infinita de seu exercício soberano. A menção por Foucault da ciência estatística é uma das provas
disso. Utilizando-a como uma ferramenta técnica que não mais se afastará da governamentalidade
política, essa nova razão de Estado procurará eliminar acontecimentos inesperados através de
cálculos e previsões. Ou seja, a argumentação de Foucault serve para nos mostrar que, quando
perscrutamos o que está no centro dos objetivos da razão de Estado moderna e contemporânea, não
encontraremos a tentativa de fundamentação da soberania, por exemplo. Em vez disso, ficará
explícito o desejo de sustentação perpétua de uma forma governamental. Tal pretensão de infinitude
será feita, justamente, pelo esforço de impossibilitar acontecimentos, isto é, por meio das medidas
cautelares que impeçam qualquer tipo de crise que possa atingir a população (como as crises
alimentares, sociais, médicas) que, por sua vez, desencadeariam revoltas contra o governo fazendo
com que este chegasse ao fim.
Com tudo isso, gostaríamos de reafirmar aquela relação muito estreita entre teses do fim da
história com essa nova forma de cálculo político. A gestão pública que evita, através de meios
técnicos e econômicos, qualquer tipo de crise que interrompa o exercício da soberania, explicita
dois fatos. Em primeiro lugar, ela não poder ser mais chamada de política, uma vez que deixou de
encontrar na ação histórica livre dos indivíduos em direção aos assuntos públicos a sua razão de ser.
Entretanto, em segundo lugar, ao mesmo tempo em que ela abre mão da novidade histórica,
esforçando-se para alcançar aquele estado de coisas descrito por Fukuyama, ela também está
manifestando claramente sua pretensão de infinitude. Junto às transformações que a soberania
política experimentou no século XVI estava sendo pavimentado um caminho para chegarmos às
aporias políticas em que nos encontramos hoje.
Reafirmando esse ponto, Foucault utiliza de um elemento do imaginário teológico para
descrever o princípio pastoral de obediência governamental. Escrevendo de uma forma muito

35
parecida com as teses típicas de Agamben, ele diz que nessa configuração da gestão pública,
“nunca há acesso a um estado de beatitude ou a um estado de identificação com Cristo, a uma
espécie de estado terminal de domínio perfeito, mas, ao contrário, um estado definitivo, adquirido
desde o início, de obediência às ordens dos outros” (FOUCAULT, 2008, p. 273). Em outras
palavras, trata-se dos discursos hegemônicos de naturalização da sociedade em que não vemos
alternativa à sua forma de existência, nem mesmo um horizonte “messiânico” de rompimento e
novidade, em que este governo não será mais necessário. Dessa forma, temos diante de nós a defesa
de um governo artificial como se ele não o fosse.
Nossa releitura de alguns trechos do curso de Foucault tem um objetivo muito circunscrito
de estabelecer uma relação temática com nossa tese no interior do pensamento de Agamben. Com
isso, gostaríamos de deixar claro que não é uma exclusividade do filósofo italiano interpretar as
consequências contemporâneas das modificações políticas modernas a partir de uma relação entre
política e temporalidade. Ambos identificaram uma hipertrofia dos dispositivos administrativos e
das tecnologias governamentais para favoreceram um exercício de soberania política sem
rompimentos e novidades históricas. Ademais, também temos consciência de que essa proximidade
não é um tema novo e já foi discutido muitas vezes sob a rubrica da biopolítica. O que é mais
importante para o objetivo geral da presente tese é a utilização de paradigmas teológicos para
contrapor essa presença indefinida na história com uma postura escatológica do tempo. Podemos
observar esse segundo desdobramento em um trecho final do curso de Foucault em que o filósofo
francês resume muitas de suas intenções e explicita argumentos que podem ser utilizados para
reforçar nossa hipótese geral. Em um parágrafo que mais parece ter sido extraído de uma obra de
Agamben, lemos o seguinte:

Para resumir tudo o que eu gostaria de ter dito a vocês sobre esse ponto, poderíamos
dizer o seguinte. No fundo, a razão de Estado, como vocês se lembram, havia posto
como primeira lei, lei de bronze da governamentalidade moderna e, ao mesmo
tempo, da ciência histórica, que agora o homem deve viver em um tempo indefinido.
Governo sempre haverá, o Estado sempre estará aí e não esperam por uma parada. A
nova historicidade da razão de Estado excluía o Império dos últimos tempos, excluía
o reino da escatologia. Contra esse tema que foi formulado no fim do século XVI e
que ainda permanece hoje em dia, vamos ver se desenvolverem contracondutas que
terão precisamente por princípios afirmar que virá o tempo em que o tempo
terminará, que têm por princípio colocar a possibilidade de uma escatologia, de um
tempo último, de uma suspensão ou de um acabamento do tempo histórico e do
tempo político, o momento, por assim dizer, em que a governamentalidade
indefinida do Estado será detida e parada por o quê? Pois bem, pela emergência de
algo que será a própria sociedade. No dia em que a sociedade civil puder se
emancipar das injunções e das tutelas do Estado, quando o poder de Estado puder
enfim ser absorvido por essa sociedade civil – essa sociedade civil que eu procurei
lhes mostrar como nascia na própria forma, na própria análise da razão
governamental –, com isso, o tempo, se não da história, pelo menos da política, o
tempo do Estado terminará. Escatologia revolucionária que não parou de atormentar
os séculos XIX e XX. Primeira forma de contraconduta: a afirmação de uma

36
escatologia em que a sociedade civil prevalecerá sobre o Estado (FOUCAULT,
2008, p. 478).

Apesar de longa, nessa citação temos um concentrado de argumentos e proposições


fundamentais para nossa hipótese no presente capítulo. Como de costume, Foucault termina seu
curso — com o auxílio dos alunos “se vocês me derem mais dois ou três minutos, gostaria de
acrescentar o seguinte…” (FOUCAULT, 2008, p. 476) — fazendo um resumo de suas intenções ao
longo daquela trajetória. As considerações citadas são suas primeiras palavras sintéticas. Nelas, fica
explícita a intenção do filósofo francês em relacionar a nova razão de Estado governamental com
uma ciência histórica que lança o ser humano em uma temporalidade infinita. Ou seja, as condições
de possibilidade para as teses do fim da história através do banimento de qualquer novidade política
que se oponha ao exercício de poder vigente. A característica mais fundamental da
governamentalidade moderna é sua intenção de perpetuação do governo e do Estado, sem nunca
deixar espaço para uma parada.
Para dar dimensões mais claras do significado dessa característica da governamentalidade
moderna, Foucault lança mão de imagens teológicas para contrapor às realidades biopolíticas. Isso o
filósofo francês faz quando argumenta que a nova historicidade típica da razão de Estado exclui o
Império dos últimos dias. Ou seja, não existe no horizonte temporal da governamentalidade
moderna nenhuma possibilidade de um reino escatológico em que a perspectiva do fim da história
possa ser substituída por uma história do fim. Isso significa apontar para o caráter
antiacontecimental do governo biopolítico através de sua concepção histórica antiescatológica. Em
poucas palavras, a importância do tema messiânico do tempo do fim não encontra nenhum espaço
na racionalidade de Estado que foi formulada a partir do século XVI.
Vale dizer, no entanto, que não se trata de um achatamento do horizonte histórico restrito ao
século XVI. Muito mais agudo do que uma interpretação do passado, Foucault é mais uma vez
coerente com a observação feita no início de seu curso e defende que tal desaparecimento de
horizontes escatológicos permanece ainda hoje em nosso cenário político. Na história das técnicas e
cálculos governamentais, esses dispositivos e instituições vão se aperfeiçoando, complicando-se e
mantendo-se simultaneamente no exercício de poder até os nossos dias. A relevância do
pensamento de Foucault está, precisamente, no fato que ainda hoje carecemos de contracondutas
que terão como objetivo político fundamental afirmar que virá um tempo do fim. A mesma aporia
contemporânea que colocamos na introdução da presente tese, com o auxílio de Slavoj Žižek e
Giorgio Agamben sobre os antagonismos fortes o suficiente para impedir a infinita reprodução do
governo dos homens, reaparece aqui sob o signo das contracondutas. Foucault apresenta a
necessidade de recolocarmos a escatologia como uma possibilidade de fazer frente à

37
governamentalidade infinita da população. Portanto, o tema geral da presente tese sobre a
importância política da ideia messiânica do tempo do fim aparece em Foucault quando ele leva a
termo sua arqueologia da razão de Estado moderna. Essa ressonância temática sobre o messiânico
entre Foucault e Agamben será importante para a defesa de nossa tese.
Com a menção de contracondutas que afirmem uma historicidade em que o tempo
terminará, Foucault está nos colocando a pergunta pelo o quê poderá deter a governamentalidade
infinita do Estado. Muito próximo dos freios do trem da história, do qual falou Walter Benjamin,
Foucault está terminando seu curso com o questionamento sobre a emergência de algo que
conseguirá opor-se à temporalidade infinita em que os seres humanos foram jogados na
modernidade política. Especificamente quanto a isso, o filósofo francês advoga por uma resistência
que virá da própria sociedade civil. Será através de contracondutas que reafirmem uma visão
histórica do tempo de matiz escatológica que conseguirá fazer frente à governamentalidade infinita
do Estado. A sociedade civil conseguirá se emancipar das injunções e tutelas biopolíticas do Estado
quando o tempo do Estado terminar. Nesse sentido, a afirmação de uma escatologia política
alternativa ao governo infinito da população é um tema de primeira importância política não só para
compreendermos a própria filosofia de Foucault, mas estabelecermos diálogos frutíferos com as
hipóteses de Agamben.

1.1.2. A glória da máquina política: o porquê do poder precisar de louvor

Antes de continuarmos avançando nas ressonâncias em torno do tema do messiânico, que


existem no diálogo entre Foucault e Agambem, gostaria de retroceder brevemente a um momento
no curso do filósofo francês, em que ele discorre sobre a forma com que esse governo infinito se
mantém indefinidamente naturalizado. Foucault empreende uma detalhada explicação a partir de
dois eixos fundamentais que ele desenvolve, enquanto políticas características dos Estados na
modernidade: (1) o dispositivo diplomático-militar e (2) o dispositivo policial, conforme se lê nas
aulas de 22 de março a 5 de abril de 1978, no curso Sécurité, territoire et population. De forma
estrutural, nessas duas aulas, Foucault argumenta que o fortalecimento do poder do Estado acontece
não só através do desenvolvimento de um novo aparato militar e policial, como também por meio
do desenvolvimento de uma ideia de política como guerra. Décadas antes de Agamben eleger a

38
7
guerra civil como um paradigma da política Ocidental, Foucault já havia percebido que o
equilíbrio interno e externo dos Estados modernos dependida de exércitos e regulamentação policial
da sociedade.
Não obstante essa hipótese da política como guerra civil continuada, existe ainda outro
detalhe na argumentação de Foucault que quase escapa àqueles olhares que já não estão habituados
com as leituras agambenianas. Após já ter desenvolvido um pouco a tese mencionada sobre os dois
dispositivos, Foucault faz um breve resumo e conecta sua hipótese de trabalho com um termo
inesperado para os seus ouvintes:

Ora a partir do século XVII, parece-me que a palavra polícia vai começar a adquirir
um significado profundamente diferente. Creio que podemos resumi-lo, grosso
modo da seguinte maneira. A partir do século XVII, vai-se começar a chamar de
“polícia” o conjunto dos meios pelos quais é possível fazer as forças do Estado
crescerem, mantendo ao mesmo tempo a boa ordem desse Estado. Em outras
palavras, polícia vai ser o cálculo e a técnica que possibilitarão estabelecer uma
relação móvel, mas apesar de tudo estável e controlável, entre a ordem interna do
Estado e o crescimento das suas forças. Há uma palavra, aliás, que exprime em boa
parte esse objeto, esse domínio, que designa bem essa relação entre o crescimento
das forças do Estado e sua boa ordem. Essa palavra algo estranha vocês vão
encontrar várias vezes para caracterizar o objeto da polícia. Vão encontrá-la no
início do século XVII num texto sobre o qual terei a oportunidade de tomar várias
vezes, um texto de Turquet de Mayerne, que tem o curioso nome de A monarquia
aristodemocrática, texto de 1611. Tornarão a encontrá-lo cento e cinquenta anos
mais tarde, num texto alemão de Hohenthal, em 1776. E essa palavra é
simplesmente a palavra “esplendor”. A polícia é o que deve assegurar o esplendor
do Estado (FOUCAULT, 2008, p. 421-422).

Em sua escavação arqueológica, Foucault encontra no termo “esplendor” um paradigma


privilegiado para condensar o objetivo governamental do dispositivo policial. Dizer que o alvo de
todos os esforços de segurança e ordem interna do Estado é o “esplendor da república”, não se trata
de uma curiosidade histórica de um lema policial. Falando um pouco mais sobre o que é este
esplendor, Foucault nos diz que “é ao mesmo tempo a beleza visível da ordem e o brilho de uma
força que se manifesta e que se irradia. Portanto, a polícia é de fato a arte do esplendor do Estado
como ordem visível e força brilhante” (FOUCAULT, 2008, p. 422). Em outras palavras, a
regulamentação policial que tem por objetivo consolidar e aumentar a força do Estado, fazer bom
uso das suas forças e proporcionar a felicidade da população, ou ainda, na fórmula que Foucault
recupera: “esplendor da república e felicidade de cada um” (FOUCAULT, 2008, p. 439). Neste
sentido, é através do mecanismo do esplendor que uma governabilidade de natureza ininterrupta se
mantém sem resistências.

7
cf. AGAMBEN, G. Stasis: La guerra civile come paradigma politico. Homo sacer II, 2, Torino: Bollati Boringhieri,
2015.
39
Essa relação entre perpetuação do governo e esplendor do Estado é uma conexão importante
para os propósitos da presente tese, uma vez que consegue nos fornecer um núcleo de sentido para a
governamentalidade. Quando o filósofo francês sustenta no curso do Collège de France que, para
Turquet de Mayerne, tudo o que deve dar ornamento, forma e esplendor à cidade é função do
dispositivo policial, ele está nos levando a concluir que: “por conseguinte, a polícia é, de fato,
tomada nesse nível, exatamente a inteira arte de governar. Arte de governar e exercer a polícia são,
para Turquet de Mayerne, a mesma coisa” (FOUCAULT, 2008, p. 429). Zelar pelo esplendor da
república é sinônimo de garantir a segurança dos processos econômicos e das dinâmicas intrínsecas
à população de maneira infinita, utilizando o dispositivo policial para evitar e conter as crises. Ou
seja, o esplendor é o objetivo fundamental da governamentalidade.
Para nossa arqueologia do governo infinito dos seres humanos, em especial na relação
possível entre Foucault e Agamben, o tema do esplendor é fundamental. Isso porque, ele será
retomado por Agamben, anos depois, ocupando um lugar importante em sua genealogia teológica
da economia e do governo. 8 Utilizando o conceito de “glória”, o filósofo italiano argumentará em Il
Regno e la gloria (2007) que este brilho glorioso do esplendor policial tem por objetivo algo que
Foucault já tinha identificado, a saber, produzir uma intensa luminosidade que consiga esconder a
falta de legitimidade do atual governo que permanece às sombras. Temos aqui uma importante
ressonância entre os dois filósofos, pois Foucault também já havia argumentado que no centro das
conclusões de uma arqueologia sobre a razão de Estado moderna encontra-se um vazio de tentativas
de fundamentação do exercício soberano. Foucault resume tudo o que apresentamos até aqui em um
parágrafo longo, mas que deve ser citado em razão de sua capacidade explicativa:

com essa análise da razão de Estado vemos esboçar-se um tempo, um tempo


histórico e político que tem, em relação ao que tinha dominado o pensamento na
Idade Média ou até mesmo ainda na Renascença, características bem particulares.
Porque se trata justamente de um tempo indefinido, do tempo de um governo que é
um governo ao mesmo tempo perpétuo e conservador. Em primeiro lugar, por
conseguinte, não há problema de origem, não há problema de fundamento, não há
problema de legitimidade, não há tampouco problema de dinastia. […] A arte de
governar e a razão de Estado não levantam mais o problema de origem. Já se está no
governo, já se está na razão de Estado, já se está no Estado. […] Quer dizer que o
Estado – a razão de Estado e o governo comandado pela razão de Estado - não terá
de se preocupar com a salvação dos indivíduos. Não terá nem sequer de buscar algo
como um fim da história, ou como uma consumação, ou como um ponto em que se
articulariam o tempo da história e a eternidade. Nada, por conseguinte, como esse
sonho do último Império que, apesar de tudo, havia comandado as perspectivas

8
Quanto a esse ponto de relação e as contribuições distintas de Agamben, devemos nos lembrar do apontamento de
professor e filósofo Castor Bartolomé Ruiz quando diz que: “os estudos de Agamben têm recolocado no debate
questões filosóficas que permaneciam adormecidas na sombra como questões esquecidas ou aparentemente menores. A
aparência de menoridade contribuiu para que essas questões não fossem suficientemente pesquisadas. Uma delas diz
respeito à relação do poder com suas formas de manifestação, seus modos de apresentação, suas liturgias. A liturgia é
aparência, ou seja, manifestação ritualizada do poder. Aparece, aparentemente, como superfície do poder;
superficialidade que, na sua superfície, oculta os imperceptíveis elos que a vinculam à genealogia do próprio poder”
(RUIZ, 2014, p. 188).
40
religiosas e históricas da Idade Media. Afinal de contas, na Idade Média, ainda se
estava num tempo que devia, a certa altura, tornar-se um tempo unificado, o tempo
universal de um Império em que todas essas diferenças seriam apagadas, e é esse
Império universal que anunciaria e seria o teatro no qual se produziria o retorno de
Cristo. O Império, o último Império, o Império universal, seja o dos Césares, seja o
da Igreja, era no fim das contas algo que rondava a perspectiva da Idade Média, e,
nessa medida não havia governo indefinido. Não havia Estado ou reino fadado
indefinidamente à repetição no tempo. Agora, ao contrário, nós nos encontramos
numa perspectiva em que o tempo da história é indefinido. É o indefinido de uma
governamentalidade para a qual não se prevê termo ou fim. Estamos na historicidade
aberta, por causa do caráter indefinido da arte política (FOUCAULT, 2008, p. 346-
347).

Uma vez mais, Foucault mantém conectado à nova temporalidade histórica e política com a
governamentalidade da população. E, além disso, aqui ele também mostra que a razão de Estado
moderna, cujo objetivo é conservar indefinidamente seu esplendor glorioso, não está preocupada
nem em tentar fundamentar a origem, nem a legitimidade de seu exercício soberano de poder. Em
vez disso, o que ficará explícito é seu desejo metódico e sistêmico de perpetuar-se indefinidamente
na gestão da população. Tal administração, que visa impedir as crises e quaisquer outros
acontecimentos de capacidades revolucionárias, é a razão de Estado que se opõe à história do fim.
Não existe, nessa configuração de governo, espaço para narrativas e imaginários sociais
escatológicos. O tempo histórico e político é vivido em uma reprodução infinita, que faz das
transformações sociais advindas de novos rompimentos e crises totalmente impensadas. A arte
política de caráter infinito nem se preocupa em fundamentar sua origem e legitimidade porque já
está em pleno curso, como também, porque toda sua razão de ser é, justamente, manter-se
indefinidamente da mesma forma.
É importante para a presente tese mostrar que Agamben compartilha exatamente das
mesmas conclusões arqueológicas de Foucault. Anos depois das aulas ministradas no College de
France, o filósofo italiano nos coloca novamente no centro dessa discussão quando formula, com
precisão metodológica, uma das questões filosóficas mais importantes para a politica
contemporânea: “qual é a relação que liga tão intimamente o poder à glória?” (AGAMBEN, 2011,
p. 215). Essa questão, que foi esquivada, inclusive, por estudiosos que se ocuparam com os aspectos
cerimoniais do poder, como Ernst Kantorowicz e Andreas Alföldi, é sinônimo de ser perguntar o
porquê de operações governamentais tão características, como o dispositivo militar e policial,
podem ser sintetizadas pela signatura do esplendor ou da glória da res publica. A conexão entre
mecanismos de controle, disciplina e policiamento com beleza, glória e esplendor, para Agamben,
ainda não foi devidamente investigada, até que se responda a pergunta: “se o poder é
essencialmente força e ação eficaz, por que necessita receber aclamações rituais e cantos de louvor,

41
vestir coroas e tiaras incômodas, submeter-se a um impraticável cerimonial e a um protocolo
imutável?” (AGAMBEN, 2011, p. 215). 9
Parte importante da ineficácia de muitos estudos sobre os aspectos cerimoniais do poder
reside em uma ingenuidade com que os historiadores e cientistas políticos mantêm com as próprias
liturgias e rituais do poder. A função da arqueologia foucaultiana, bem como da genealogia
agambeniana, é justamente chamar a atenção do leitor às transformações no significado técnico-
jurídico do exercício do poder na modernidade. Reduzir as cerimônias e rituais esplendorosos à
mera ostentação dos governantes é ignorar o que está no núcleo do significado dos governos
gloriosos. Agamben é contundente ao afirmar que: “não se trata simplesmente de uma paixão pelo
luxo ou pela pompa, ou de um desejo de se distiguir dos cidadãos comuns, mas sim de uma
verdadeira esfera constitutiva da soberania, que os estudiosos têm dificuldade de definir”
(AGAMBEN, 2011, p. 196). As aclamações políticas e rituais litúrgicos nas cerimônias de coroação
não podem ser plenamente compreendidas apenas como “símbolos do poder” ou “insígnias de
domínio”. Muito mais refinado do que a mera ostentação de poder, o que está em jogo nas
glorificações políticas é uma zona de indiferença praticamente inexplorada pelo pensamento
político e filosófico. Comentando a obra do historiador húngaro Andreas Alföldi, Agamben nos
explica que:

Em geral, vê em ação, quando emerge o aspecto aclamatório e cerimonial do poder e


ao elevar-se simultâneo do soberano acima da comunidade dos cidadãos, um
elemento de certo modo antagônico ao direito: “com a formulação jurídica do poder
do príncipe, vemos em ação outro princípio formativo da onipotência imperial, que
não é objetivo e racional, mas subjetivo e imaginário. Nele, não é a razão, mas o
sentimento que vem à palavra”. Contudo, admite pouco depois que não se
compreendem corretamente fenômenos como as aclamações quando se vê neles
apenas uma forma de adulação puramente subjetiva […]. Também é insuficiente a
contraposição entre um elemento jurídico e um religioso, porque a aclamação é
precisamente o lugar em que eles parecem coincidir sem resíduos. […] A aclamação
indica, portanto, para uma esfera mais arcaica, que lembra aquela que Gernet
denominava, com um tempo pouco feliz, pré-direito, em que fenômenos que
costumamos considerar jurídicos parecem agir de maneira mágico-religiosa. Mais do
que em um estágio cronologicamente mais antigo, devemos pensar aqui em algo
como um limiar de indistinção sempre operante, em que o jurídico e o religioso se
tornam indiscerníveis. Um limiar desse tipo é aquele que em outro lugar definimos
como sacertas, em que uma dupla exceção, tanto do direito humano quanto do
divino, deixava entrever uma figura, o homo sacer, cuja relevância para o direito e a

9
Uma vez mais, o professor Ruiz explica o que está no núcleo dessa incapacidade da pesquisa ética e política em
responder a questão a respeito da relação entre governo e glorificação: “Agamben detecta essa lacuna nos estudos sobre
o poder, que não valorizam os rituais para a compreensão da sua genealogia. Por sua vez, estudos específicos sobre os
símbolos, insígnias e liturgia do poder como os de Peterson, Kantorowicz, Alföldi e Schramann não tiveram a
perspicácia de ir além dos meros rituais e interrogar a relação destes com a genealogia do poder que glorificam. A
questão central que Agamben interroga é a relação entre o poder e a Glória, entre o exercício do poder e as formas
gloriosas em que se manifesta. Se o poder, necessariamente, utiliza-se da força ou das técnicas de governo e através
destes meios se compreende e legitima, por que o poder necessita de tantas formas ritualísticas, cerimoniais e formas de
glorificação? A questão central que Agamben se propõe explorar é por que o poder necessita de Glória?” (RUIZ, 2018,
p. 189).
42
política ocidental temos procurado reconstruir. Se chamarmos agora de “glória” a
zona incerta em que circulam aclamações, cerimônias, liturgias e insígnias, veremos
abrir-se diante de nós um campo de investigação igualmente relevante e, ao menos
em parte, ainda inexplorado (AGAMBEN, 2011, p. 207-208).

Agamben explora, propositadamente, a dificuldade de descrever, no raciocínio de Alföldi, o


estatuto dessa dimensão que emerge assim que o aspecto aclamatório e cerimonial do poder entra
em ação. O estranhamento com esse elemento, aqui retratado como, de certo modo antagônico ao
direito, pertencente a uma esfera pré-jurídica mais arcaica e, até mesmo, de aparência mágico-
religiosa, visa remeter o leitor ao lugar que a glorificação ocupa na razão de Estado moderna. Longe
de ser apenas um acessório ao exercício soberano, a identificação de Agamben da presença perene
de protocolos cerimoniais é um ponto-chave de sua genealogia. Assim como a noção de esplendor,
articulada por Foucault, a glorificação política desempenha uma função sempre em operação no
exercício da soberania no Ocidente, a qual seja: “as aclamações profanas não são um ornamento do
poder político, mas o fundam e justificam” (AGAMBEN, 2001, p. 251). 10 A incessante necessidade
que o poder tem de receber cantos de louvor em rituais de aclamação está no fato de que sua
legitimidade não lhe é inerente — seja no uso de sua força, no aumento de suas leis ou mesmo na
produção de justificativas teóricas para o seu fundamento político. A forma encontrada pelo
soberano de naturalizar o seu governo e de manter-se indefinidamente no poder foi o investimento
constante nas operações de glorificação da máquina governamental. O brilho do esplendor encobre
o vazio do exercício de poder soberano.
Em sua argumentação, que citamos acima, Agamben chama de “glória” uma zona cinzenta,
em que religião e direito coincidem sem deixar nenhum resíduo. Dizer que o jurídico e o religioso
se tornam indiscerníveis nas operações de glorificação do governo não é sinônimo, no pensamento
de Agamben, de algum tipo de hipótese mágico-religiosa — na acepção depreciativa das palavras.
Na verdade, a menção desse limiar de coincidência entre religião e direito diz respeito ao objeto
mais procurado pelo filósofo em toda a sua genealogia do poder no Ocidente, iniciada há mais de
vinte anos com Homo Sacer I. Na assinatura teológica “glória”, Agamben encontra o arcana
imperii da máquina governamental contemporânea. O que toda a sua genealogia teológica da
economia e do governo alcançou na publicação de Il reino e la gloria foi a constatação que: “a
dupla estrutura da máquina governamental, que em Estado de exceção (2003) apareceu na
correlação entre auctoritas e potestas, assume aqui a forma da articulação entre Reino e Governo”
10
Novamente o professor Ruiz é esclarecedor nessa altura da argumentação, quando comenta a natureza das aclamações
nos governos atuais: “a mídia concentra atualmente o poder de disseminar e multiplicar a função da glória no sistema
político. Ela interiorizou o deslocamento da função aclamatória da liturgia e a operatividade política da aclamação. A
mídia dissemina a função aclamatória de forma capilar e constante, perfaz o ser da opinião pública através da
penetração em cada instante e em todo lugar dos conteúdos e temas por ela propostos. Os âmbitos público e privado das
sociedades se diluem na medida em que a mídia consegue penetrar em todos eles, formatando sua percepção e o modo
como as pessoas opinam e pensam.” (RUIZ, 2018, p. 209).
43
e, por fim, também questiona a relação entre “oikonomia e Glória, entre o poder como governo e
gestão eficaz e o poder como realeza cerimonial e litúrgica, dois aspectos que curiosamente foram
menosprezados tanto pelos filósofos da política quanto pelos politólogos” (AGAMBEN, 2011, p. 9-
10).
Em tudo isso percebemos como que Foucault e Agamben, ainda que por caminhos diversos,
remetem os seus leitores para uma mesma relação fundamental na política ocidental. Ambos
esforçaram-se em reconstruir o elo que existe entre glorificação esplendorosa e exercícios de
soberania que assumiram, na contemporaneidade, a configuração de uma gestão infinita da
população. Aquilo que a arqueologia de Foucault desvelou como esplendor da governamentalidade
infinita da população, Agamben apresenta aqui como oikonomia e Glória. É necessário dizer que,
apesar das similitudes nas leituras que podemos fazer da obra de ambos, existem grandes
diferenças. Em especial, no que se refere a Agamben, o modo que ele encontrou para alcançar essa
relação entre oikonomia e Glória foi através de uma longa reconstrução das raízes genealógicas de
um dispositivo referente à doutrina cristã da economia da Trindade. A argumentação de Agamben
reside na hipótese de que a noção de “glória” é o resultado de séculos de trabalho dos teólogos
cristãos para eliminar possíveis incoerências que poderiam surgir na apresentação da doutrina do
governo divino do mundo. A partir dessa acomodação teórica, surgiu no imaginário intelectual do
Ocidente uma estrutura dual que, posteriormente, foi secularizada e transposta para a discussão
política. Segundo um resumo fornecido pelo próprio Agamben:

Conforme já vimos, os teólogos modernos distinguem “trindade econômica” (ou


trindade de revelação) e “trindade imanente” (ou trindade de substância). A primeira
define Deus em sua práxis salvífica, pela qual se revela aos homens. A trindade
imanente, por sua vez, refere-se a Deus assim como é em si mesmo. Voltamos a
encontrar aqui, na contraposição entre duas trindades, a fratura entre ontologia e
práxis, teologia e economia, que já vimos marcar construtivamente a formação da
teologia econômica. À trindade imanente correspondem ontologia e teologia, à
econômica, práxis e oikonomia. Nossa investigação procurou mostrar como, a partir
dessas polaridades originais, se desenvolveram em planos diferentes aquelas entre
ordem transcendente e ordem imanente, entre Reino e Governo, entre providência
geral e providência especial, que definem o funcionamento da máquina do governo
divino do mundo. A trindade econômica (o Governo) pressupõe a trindade imanente
(o Reino) que a justifica e funda. […] Não existem, portanto, duas diferentes
trindades, mas uma única trindade, que é, ao mesmo tempo, uma única história
divina da salvação, uma única economia. Contudo, tal identidade não deve ser
entendida como “uma dissolução de uma na outra”. Segundo o complexo
mecanismo que vimos marcar, desde o início, as relações entre teologia e economia
— e depois o funcionamento da máquina governamental —, as duas trindades,
embora intimamente vinculadas, continuam sendo distintas. O que está em questão
é, antes de mais nada, a reciprocidade de suas relações. […] A glória é o lugar em
que a teologia procura pensar a inacessível conciliação entre trindade imanente e
trindade econômica, theologia e oikonomia, ser e práxis, Deus em si e Deus para nós
(AGAMBEN, 2011, p. 227-228).

44
Com essa breve retomada do tema principal desenvolvido por Agamben em Il reino e la
gloria, temos melhores condições de entender algumas de suas afirmações já mencionadas
anteriormente. É importante para nossa argumentação observar aqui que, aquilo que os teólogos
buscaram equacionar — a relação de pressuposição, justificação e fundamentação entre os dois
aspectos constituintes da doutrina da Trindade, vinculando-os intimamente, sem misturá-los — é
exatamente o que Agamben menciona em Il Mistero del Male sobre as duas instâncias necessárias
para que as instituições de uma sociedade continuem vivas. Os funcionamentos adequados de
nossas instituições políticas demandam um ajuste fino entre direito natural e direito positivo, de
poder espiritual e poder temporal, transcendência e imanência, de auctoritas e protestas (cf.
AGAMBEN, 2013, p. 10-11). O paradigma para que ambos princípios se mantenham presentes e
em ação em nossas sociedades encontra suas raízes genealógicas na reciprocidade das relações
trinitárias.
Nesse labor de manter unificado a obra divina na história de salvar os indivíduos (Trindade
econômica), bem como com a substância de quem Deus realmente é (Trindade imanente), a glória
ocupa lugar central. Foram as aclamações que mantiveram unidas os céus e a terra, os anjos e os
ministros, o imperador e o pontífice, pois as liturgias e as aclamações tinham a responsabilidade de
manter o cruzamento de quem Deus era com o que ele fazia aqui. Com isso, surge uma
circularidade de glória no interior da Trindade que impressiona Agamben. Comentando o trecho do
Evangelho de João 13.31-32 e 17.1-5, o filósofo italiano diz que: “a obra — a economia da salvação
— que Jesus realizou sobre a terra é, na verdade, a glorificação do Pai, ou seja, é uma economia da
glória. Mas ela é, exatamente na mesma medida, glorificação do Filho por obra do Pai”
(AGAMBEN, 2011, p. 222). Esse círculo doxológico é desenvolvido ao longo da história da
teologia até assumir configurações formalizadas, em um processo litúrgico da Igreja, em que o as
aclamações assumem função central na afirmação de quem Deus é e de como a Igreja deve viver —
para a glória de Deus.
Não nos compete aqui, discutir a viabilidade teológica dessa circularidade da glória que
Deus exige para si. O interesse de Agamben não se prende a uma discussão estritamente teológica.
Sua investigação é de natureza filosófica e, por isso, ele preocupa-se em nos mostrar que tal
economia da glória foi secularizada e teve suas assinaturas transpostas para o âmbito político. E é
justamente aqui que reside o desdobramento responsável por fazer formulações teológicas
orientarem práticas governamentais. Agamben argumentou, em uma das passagens que já
mencionamos acima, que a glória é o lugar onde direito e religião coincidem sem deixar resíduos
porque é essa circularidade inerente à glorificação que a máquina governamental do Ocidente se

45
apropriou para perpetuar-se infinitamente no exercício soberano do poder. Conforme o próprio
filósofo italiano explica em outra ocasião:

Sem a compreensão preliminar dessa teoria da glória fica difícil entender, em todos
os seus aspectos, a política pós-tridentina da Igreja, o fervor das ordens missionárias
e a imponente atividade ad maiorem Dei gloriam — e, ao mesmo tampo, a má fama
— da Companhia de Jesus. Mais uma vez, na dimensão da glória, a Igreja e o poder
profano ingressaram em um longo limiar de indeterminação, no qual é difícil avaliar
as influências recíprocas e os intercâmbios conceituais. Enquanto territorial
soberano se prepara para assumir a figura de um “governo dos homens”, a Igreja,
deixando de lado as preocupações escatológicas, identifica cada vez mais sua missão
com o governo planetário das almas, não tanto para sua salvação, mas para “a maior
glória de Deus”. Daí nasce a reação indignada de um filósofo católico do século XX
diante desse Deus que não é senão egoísmo, uma espécie de “César eterno”, que
recorre aos homens apenas “como instrumentos a fim de mostrar a si mesmo sua
glória e sua potência” (AGAMBEN, 2011, p. 231).

Nessa argumentação, Agamben alcança algumas conclusões prévias de sua genealogia e,


novamente, explica como se tornou problemática a relação entre poder espiritual e poder profano. O
governo e a Igreja adentraram uma zona de indiferenciação — que é própria dos ritos de
glorificação — quando duas modificações ocorrem. O exercício de soberania territorial, que
também foi mencionado por Foucault, transformou-se em uma gestão da vida nua dos indivíduos,
isto é, o “governo dos homens”, ao mesmo tempo em que a Igreja abandonou suas preocupações
escatológicas, concentrando-se em missões que não tinham mais a práxis salvífica de Deus que se
revela aos homens (a trindade econômica) como parâmetro, mas tão somente o aumento da glória
de Deus assim como é em si mesmo (trindade imanente). Ainda que seja um processo de
transformação duplo, no núcleo dessa modificação encontra-se um elemento motriz fundamental:
reforçar a ideia de uma governamentalidade infinita da população através de um poder profano que
se tornou indistinguível com o poder espiritual. Ou seja, quando as contracondutas escatológicas
que poderiam fazer frente ao governo da população desapareceram, aquele ajuste fino necessário
para a vitalidade das instituições de toda sociedade, simplesmente, esfacelou-se. A comunidade
messiânica perdeu-se na história quando deixou de afirmar a temporalidade típica da vida no
messias, sendo assimilada nas estratégias da nova razão governamental.
Não é apropriado, à luz da filosofia de Agamben, entendermos esse processo de
transformação política e eclesiástica como mero sinônimo da secularização de assinaturas
teológicas para a formação dos principais conceitos da teoria do Estado. Na verdade, Agamben
coloca essa tese, que foi formulada paradigmaticamente pelo jurista Carl Schmitt, em contraste e
em diálogo com a inversão feita pelo egiptólogo Jan Assmann, que defendeu a hipótese de que os
conceitos significativos da teologia são conceitos políticos teologizados. Quando Agamben
menciona esse intercâmbio de interpretações sobre a relação entre teologia e política, ele está

46
consciente que “toda inversão de uma tese continua secretamente solidária com a tese invertida”
(AGAMBEM, 2011, p. 213). Nesse sentido, o interessante não é tomar partido por um dos lados,
como se estivéssemos em um jogo de soma zero. De maneira muito mais coerente à própria
atividade filosófica, Agamben argumenta que é mais profícuo “tentar compreender a relação
funcional que, em ambas, liga estreitamente os dois princípios. A glória é precisamente o lugar em
que esse caráter bilateral (ou biunívoco) da relação entre teologia e política aparece com evidência”
(AGAMBEN, 2011, p. 213). A glória assumiu tal centralidade nessa zona de indiferença entre
política e teologia quando aconteceu aquele esfacelamento do ajuste fino entre “governo dos
homens” e contracondutas escatológicas. Uma vez que desapareceram os antagonismos
escatológicos, a governamentalidade da população assumiu para si a tarefa de legitimar seu
exercício infinito de poder. Mesmo que a hipertrofia da legalidade não fosse suficiente para
fornecer legitimidade ao governo, os rituais de aclamação poderiam produzir glória e esplendor
suficiente para ofuscar o vazio no centro da máquina governamental.
Esse projeto, que está no núcleo da nova razão de Estado, de utilizar dispositivos profanos
para suprir com glória a necessidade de legitimidade que a atual política tem, produziu
totalitarismos de todos os matizes na história do Ocidente. Conforme Agamben nos explica:

Entre os séculos XIII e XIV, o uso de louvores na liturgia e nas cerimônias de


coroação começa a decair por toda parte. Mas ressurgem inesperadamente no
decurso da década de 1920, ressuscitada por teólogos e musicólogos no exato
momento em que, “por uma daquelas ironias que a história parece amar”, o cenário
político europeu é dominado pelo surgimento dos regimes totalitários. Os louvores
têm um papel importante na tensão convergente entre Pio XI, eleito pontífice em
fevereiro de 1922, e Benito Mussolini, que assume o poder em outubro do mesmo
ano. […] A partir daquele momento, segundo a constante oscilação entre o sagrado e
o profano que caracteriza a história da aclamação, o louvor passou dos fiéis aos
militantes fascistas, que se serviram dele, entre outras ocasiões, durante a Guerra
Civil espanhola. […] Ao reproduzir essa nova e extrema versão do louvor no fim do
livro, Kantorowicz observa que “as aclamações são indispensáveis para a estratégia
emotiva [emotionalism] próprias dos regimes fascistas”. […] A tentativa de excluir a
própria possibilidade de uma “teologia política” cristã, para fundar na glória a única
dimensão política legítima da cristandade, confina perigosamente com a liturgia
totalitária (AGAMBEN, 2011, p. 212-213).

Diante de tudo isso, podemos argumentar junto de Agamben que a tentativa do governo
justificar-se e legitimar-se através de instrumentos de louvor e liturgia, sem conexão com sua
origem teológica e eclesiástica, produziu uma razão governamental ilegítima que faz a máquina
estatal funcionar com seu centro vazio — mas encoberto pelo brilho do seu esplendor glorioso.
Quando os louvores e aclamações voltaram a assumir um lugar de importância para legitimar
regimes políticos no começo do século passado, testemunhamos o perigoso confinamento da
liturgia na imaginação totalitária. É por essa razão que Agamben escolheu a imagem do trono vazio,

47
que adorna os arcos e as basílicas cristãs bizantinas, como o paradigma privilegiado para a
ilegitimidade da gestão pública contemporânea. Não obstante, Agamben não está sozinho na
identificação do trono vazio enquanto um paradigma privilegiado para carregar os significados da
política contemporanea. O filósofo holandês e ex-senador Roel Kuiper articula o mesmo paradigma
e nos ajuda a entender um pouco mais do que está envolvido nessa imagem:

Muitas teorias políticas desviaram porque passaram a considerar o Estado como um


poder isolado em si. A história mostrou a necessidade de represar esse poder em
nome da liberdade. A solução que o pensamento contratual escolheu para isso é a
remoção do soberano com uma autoridade transcendental. Não há soberano que fala,
não há fonte independente do direito, é justamente neste ponto que reside o
problema do “trono vazio”. O pensamento contratual continua se chocando com o
significado transcendente do direito, mas aceita um “lugar vazio” neste momento.
Ali, onde antigamente se sentava o soberano, agora surgiu um lugar vazio. Mas isso
traz novos problemas para uma democracia liberal que se deixa guiar por esse
pensamento. Eles estão diretamente relacionados à legitimação “vinda de baixo” da
autoridade do governo. Sem uma autoridade que vem externamente, a soberania será
no máximo legalidade e o direito, no máximo, convencional. O que se ve do governo
é poder agregado. A pergunta de quem aqui fala de fato, a resposta é clara: os
cidadãos. Mas se a autoridade do governo emana das pessoas, onde os governos
buscam o direito para comandar outros? Se a autoridade do governo é obtida das
pessoas, quem então nos protege de arbitrariedade na determinação e proteção do
direito de todos? Se não existir uma fonte absoluta de autoridade, será que a
autoridade do governo aos olhos dos cidadãos não se transforma em imposição e
pura política de poder? O problema do “trono vazio” ilustra o problema da
legitimação política do modelo de estado liberal-democrático. Na autoridade do
Estado, ela mal reconhece o contratual e se mostra incapaz de fazer jus à dimensão
supraindividual da autoridade do Estado. Ela luta continuamente com uma crise de
sua própria autoridade em todas as relações políticas. O que ela perdeu é o
significado da própria autoridade do Estado, que quer ser independente para uma
justiça que em princípio é de uma ordem diferente do direito estabelecido
convencionalmente (KUIPER, 2019, p. 235).

Ao que parece, nenhuma imagem consegue carregar consigo mais significados do atual
estado da política ocidental que o trono vazio. Ele afigura-se como o sintagma do problema da
legitimidade política no modelo de estado liberal-democrático que se degenerou em gestão pública
e procura na glorificação um meio de mascarar sua ilegitimidade A explicação escatológica desse
trono vazio, alicerçada em uma leitura que Agamben faz dos textos bíblicos de Apocalipse 4.1-11,
Isaías 6.1-4 e Ezequiel 1.1-28, é que “ele está pronto desde sempre e desde sempre espera a glória
do Senhor”, ou seja, “na teologia cristã o trono está pronto desde a eternidade, porque a glória de
Deus é coeterna com ele. Portanto, o trono vazio não é um símbolo da realeza, mas da glória. A
glória precede a criação do mundo e sobrevive ao seu fim” (AGAMBEN, 2011, p. 267). Em outras
palavras, no centro da máquina governamental está o vazio encoberto pela glória produzida pelos
louvores públicos. Essa glória, tão articulada por Agamben, nada mais é do que “o esplendor que

48
emana desse vazio, o labor inesgotável que revela e, ao mesmo tempo, vela a vacuidade central da
máquina” (AGAMBEN, 2011, p. 231). 11
Talvez em nenhum outro momento da história recente da política a observação de
Kantorowicz sobre a necessidade das aclamações como estratégias emotivas para regimes fascistas
foi tão verdadeira. Em um período histórico em que a ação politica foi reduzida a mera repetição de
fórmulas vazias, das mais diferentes orientações politicas, podemos perceber o lugar que a glória
ainda ocupa em nossas democracias contemporâneas para ocultar seu vazio político. Nesse aspecto
particular, a argumentação de Agamben encontra um ponto de tangência muito promissor com as
recentes interpretações dos desafios da política atual que fez o professor norte-americano Mark
Lilla. Escrevendo sobre o fracasso do pensamento progressista em fazer frente às novidades sociais
que conseguiram eleger, por exemplo, Donald Trump, ele identifica o mesmo clima de
emocionalismo, típico dos regimes totalitários. Segundo Lilla, as tentativas de militância
progressista contra a governamentalidade liberal da população se perdem, justamente, porque
“vivem hipnotizados por simbolismos: conquistar uma diversidade superficial nas organizações,
recontar a história de modo a deslocar o foco para grupos marginais e não raro minúsculos, inventar
eufemismos inócuos para descrever realidades sociais”, enfim, da mesma forma que Agamben
argumentou que os louvores passaram dos fiéis para os militantes, Lilla também reconhece que a
agenda política progressista “deixou de ser um projeto político e se metamorfoseou num projeto de
evangelização. A diferença é a seguinte: evangelizar é dizer verdades ao poder. Fazer política é
conquistar o poder para defender a verdade” (LILLA, 2018, p. 17-18).
Frente ao exposto, podemos dizer que o emocionalismo dominante nas discussões de pautas
públicas revela que as aclamações ainda estão produzindo na população um afeição política
característica das dinâmicas que foram típicas nos regimes totalitários. O que Mark Lilla chama de
pseudopolítica é, exatamente, o resultado da continuada gestão da vida nua dos indivíduos que lhes
tira qualquer capacidade de pensar e agir de maneira genuinamente política. Entretanto, alguns
leitores de Agamben ainda poderiam contra-argumentar que as formas de glorificação hoje em dia
não são tão explicitas como quando as multidões gritavam Heil Hitler na Alemanha nazista ou Duce
Duce na Itália fascista. Essa objeção seria sinônimo de colocar a pergunta sobre o “como” acontece

11
O professor Ruiz também reforça a nossa leitura explicando-nos o caráter paradoxal e aporético dessa condição
política atual: “sendo a opinião pública a atualização do dispositivo aclamatório, a estabilidade das atuais democracias
depende das formas como veiculam as formas aclamatórias da opinião pública. Essa dependência torna as atuais
democracias totalmente dependentes do dispositivo da Glória. Elas se legitimam através da opinião pública, que
glorifica suas decisões e atos de governo e garante sua continuidade na medida em que sejam capazes de produzir uma
opinião pública favorável a si mesmas. Encontramo-nos, pois, perante um grave paradoxo das democracias. Elas
afirmam formalmente sua legitimidade como expressão da vontade e soberania popular, enquanto veiculam sua
legitimação através dos dispositivos aclamatórios de glorificação. A transformação do poder em espetáculo e do
espetáculo em meio aclamatório de legitimação do poder coloca as atuais versões das democracias formais em uma
posição aporética” (RUIZ, 2018, p. 210).
49
a permanência dos processos aclamatórios nas democracias contemporâneas. Para responder essa
questão, Agamben utiliza o texto da Teoria da Constituição (1928), de Carl Schmitt para concordar
com o jurista católico que “a opinião pública é a forma moderna da aclamação. […] Não há
nenhuma democracia e nenhum Estado sem opinião pública, assim como não há Estado sem
aclamação” (SCHMITT apud AGAMBEN, 2011, p. 277). 12 O esplendor da república sobrevive na
função de glorificação que a opinião pública exerce nas democracias contemporâneas. Sustentamos,
junto do filósofo italiano, que somente quando o vínculo entre aclamações liturgias e opinião
pública foi corretamente restituído à filosofia política, conseguiremos compreender o papel decisivo
que a publicidade tem no governo infinito da população.
Mais uma vez, encontramos um ponto de convergência entre a argumentação de Agamben e
as descrições mais atuais da manipulação na pública feita por Lilla. Analisando o crescente aceno
da opinião pública americana à direita, Lilla diz que “na verdade, graças em grande parte ao
descarado e influentíssimo complexo midiático de direita, quanto mais tempo ficavam no cargo”,
pensando nos presidentes Clinton e Obama, “maior era o desprezo do público pelo liberalismo
como doutrina política”; além disso, “agora nos deparamos com sites populistas de extrema direita
que misturam meias verdades, mentiras, teorias da conspiração e invencionices num caldo tóxico
engolido com vontade pelos crédulos, pelos indignados e pelos perigosos” (LILLA, 2018, p. 10).
Em outras palavras, nas últimas eleições norte-americanas ficou claro o papel decisivo que exerceu
a nova configuração de formação e manipulação da opinião pública. Paralelos também podem ser
estabelecidos não só nas eleições presidenciais brasileiras, como também nas práticas
governamentais do mesmo. 13 Uma influente nova rede de circulação de notícias constituída de fake

12
Quanto ao acúmulo de espetáculos em nossas democracias aclamatórias, o professor Ruiz é bastante preciso em
argumentar que: “a reflexão crítica sobre os efeitos políticos da liturgia aclamatória, atualmente cooptados pelo que
Debord denominou de “sociedade do espetáculo”, derivam facilmente em uma democracia de massas em que a massa é
fabricada através da opinião pública, que por sua vez legitima as formas institucionalizadas de poder. No âmago vazio
do poder espetacular da sociedade de massas está o vazio de uma opinião pública pré-fabricada pela mídia. Ela se
legitima através de um consenso vazio, fruto das estratégias dos meios de comunicação social. Um consenso que se
pretende formalmente democrático enquanto é efetivamente induzido pelos dispositivos midiáticos. Nesses casos, a
democracia fica esvaziada de sentido e diluída nas formas de glorificação do poder. Ela recai em uma aporia que
transforma a legitimação do exercício do poder na função doxológica dos novos cerimoniais políticos, que encarnam
uma nova dimensão política da liturgia” (RUIZ, 2018, p. 212).
13
Em um artigo recente, discutindo as novas circunstâncias que a pandemia do COVID-19 desencadeou na sociedade, o
professor Ruiz é muito feliz na leitura que faz das técnicas governamentais utilizadas pelo governo para gerir a
população através de dispositivos de consenso e massificação da opinião pública. Ele diz que: “estas, entre
outras técnicas biopolíticas de controle social, só puderam se experimentar em grande escala porque houve um
consentimento generalizado de sua necessidade em tempos de pandemia. Ao mesmo tempo, a pandemia possibilitou
comprovar a eficiência dessas medidas como técnicas de controle social da cidadania. Não é possível verificar o alcance
futuro destas medidas de exceção, uma vez terminada a pandemia. Historicamente se sabe que as atuais técnicas de
policiamento da população são oriundas das técnicas utilizadas para o controle dos apestados do século XVII. Antes do
século XVII não havia polícias que controlavam as populações, depois das pestes se comprovou que as técnicas de
policiamento dos apestados eram muito úteis para policiar também o comportamento dos cidadãos. A técnica do
registro das impressões digitais foi criada pelo médico Francis Galton (que também idealizou o conceito de eugenia
social), no final do século XIX, para controlar presos muito perigosos, e uma vez comprovada sua eficiência foi
50
news, memes distribuídos na internet e proliferação de mídias ideologicamente comprometidas, fez
com que ficasse ainda mais explícita a tese de Schmitt que Agamben recupera para interpretar
nossas democracias gloriosas. Tratam-se das forças invisíveis que buscam fundar e legitimar um
exercício governamental ilegítimo. Ou ainda, conforme o jurista alemão coloca: “em toda
democracia há sempre partidos, oradores e demagogos, desde os prostatai da democracia ateniense
até os bosses da democracia norte-americana, além de imprensa, filmes e outros métodos de
manipulação psicotécnica das grandes massas”, além disso, “existe sempre o perigo de que forças
sociais invisíveis e irresponsáveis dirijam a opinião pública e a vontade do povo” (SCHMITT apud
AGAMBEN, 2011, p. 278).
O que precisa ficar claro para encerrarmos o presente tópico, é que tal configuração
governamental, ainda que se apresente democrática e genuinamente política, tem seus paradigmas
no que foi habitual de regimes totalitários — onde o soterramento da política atingiu o seu cume
pela governamentalidade da vida nua dos indivíduos. A manipulação da opinião pública por uma
nova e complexa rede de circulação de informações desempenha papel fundamental na condução e
formação da vontade popular porque nossas democracias são fundadas e legitimidades pela glória.
As atuais discussões sobre a função política da mídia, nesse caso, assume um renovado lugar de
urgência graças ao desvelamento que a genealogia teológica da glória e do governo trouxe. Ou
ainda, nas palavras do próprio Agamben:

O que está em questão é nada menos que uma nova e inaudita concentração,
multiplicação e disseminação da função da glória como centro do sistema político. O
que ficava confinado às esferas da liturgia e dos cerimoniais concentra-se agora na
mídia e, por meio dela, difunde-se e penetra em cada instante e em cada âmbito,
tanto público quanto privado, da sociedade. A democracia contemporânea é uma
democracia inteiramente fundada na glória, ou seja, na eficácia da aclamação,
multiplicada e disseminada pela mídia além do que se possa imaginar (que o termo
grego para glória — doxa — seja o mesmo que designa hoje a opinião pública é,
desse ponto de vista, mais que mera coincidência). E, como já havia ocorrido nas
liturgias profanas, e eclesiásticas, esse suposto “fenômeno democrático originário” é
mais uma vez capturado, orientado e manipulado nas formas e segundo as
estratégias do poder espetacular (AGAMBEN, 2011, p. 278-279).

Compreender essa característica esplendorosa das nossas democracias fundadas na glória é


condição de possibilidade para atingirmos o arcano central do poder da economia e do governo

aplicada como técnica de controle obrigatório para todos os cidadãos” (RUIZ, 2020, s/p.). Além disso, o professor Ruiz
também relaciona os interesses politicos e econômicos de tais medidas governamentais dos presidentes norte-americano
e brasileiro: “esta margem cinza da exceção é a que diferencia as posições críticas de Agamben em relação aos
dispositivos de exceção da pandemia, das posições negacionistas da pandemia como as dos presidentes dos EEUU,
Donald Trump, ou do Brasil, Jair Messias Bolsonaro. Agamben, em vários artigos, tomou posturas críticas a respeito
dos dispositivos da exceção implantados na pandemia por considerá-los exagerados e desnecessários. Sem entrar no
mérito de seus argumentos, consideramos pertinente marcar a diferença entre esta postura crítica de Agamben e
a postura negacionista de Trump ou Bolsonaro. Estes simplesmente negam que a pandemia seja uma doença grave
porque querem preservar a lucratividade econômica do sistema capitalista” (RUIZ, 2020, s/p.).
51
hodierno. A pesquisa arqueológica de Foucault, especialmente relacionada e aprofundada pela
genealogia teológica de Agamben, nos permite ultrapassar discussões superficiais da experiência
governamental contemporânea e concentrarmo-nos naquilo que realmente é determinante para a
ação política. Em um cenário assim, com uma longa genealogia de trocas e transposições de
assinaturas políticas e teológicas, colocar as perguntas de forma superficial pode comprometer todo
o projeto de problematização filosófica da política. Agamben, por exemplo, identificou muito bem
como isso pode facilmente acontecer ainda hoje, quando nos forneceu um dos mais precisos
exemplos de discussão em filosofia política contemporânea envolvendo pensadores progressistas,
como Jürgen Habermas, e as teses políticas de conservadores religiosos. Nas suas palavras, “o que
nossa investigação mostrou é que o Estado holístico fundado na presença imediata do povo
aclamante e o Estado neutralizado resolvido nas formas comunicativas sem sujeito contrapõem-se
apenas em aparência”, isso acontece, justamente, porque, “eles nada mais são que duas faces do
mesmo dispositivo glorioso em suas duas formas: a glória imediata e subjetiva do povo aclamante e
a glória midiática e objetiva da comunicação social” (AGAMBEN, 2011, p. 280-281). A
incapacidade de perceber a atuação fundamental da produção de glória, seja ela na forma do povo-
nação ou do povo-comunicação, fez com que teóricos de matizes diferentes do pensamento político
não fossem hábeis em perceber o entrelaçamento constante de ambas nas sociedades
contemporâneas. Nesse entrelaçamento, “os teóricos ‘democráticos’ e laicos do agir comunicativo
correm o risco de encontrar-se lado a lado com os pensadores conservadores da aclamação, como
Schmitt e Peterson” (AGAMBEN, 2011, p. 281).
Em tudo isso, temos diante de nós uma daquelas ironias que somente aqueles que estão
atentos à história da filosofia conseguem perceber. O que sempre foi colocado como uma questão
de antítese radical entre pensadores progressistas e conservadores, na verdade, é apenas uma
aparente discordância encoberta pela incapacidade de reconhecer como os processos aclamatórios
de glória e esplendor velam o vazio que realmente caracteriza as bases da política moderna. A
desatenção ao que está no núcleo central da política pode ser resultado de muitos fatores — desde
preconceitos laicistas que impedem o diálogo filosófico com a teologia cristã, até mesmo
incapacidades metodológicas de não percorrerem até as últimas instâncias uma genealogia da
economia e do governo. Seja como for, concordamos com Agamben que a contradição fundamental
que muitas elaborações filosóficas incorrem “é precisamente o preço que sempre devem pagar as
elaborações teóricas que acreditam poder prescindir das precauções arqueológicas” (AGAMBEN,
2011, p. 281).

52
1.1.3. Inoperosidade e fim da história: do homo oeconomicos ao homo sabaticus

Gostaríamos de retomar, brevemente, as investigações foucaultianas reconstruídas


anteriormente, para deixarmos mais bem estabelecido o primeiro passo de toda a nossa tese que é
uma genealogia da governamentalidade infinita dos indivíduos — que, por sua vez, procura
responder por que a política se transformou em gestão. Quando Foucault abordou a questão sobre as
modificações na soberania territorial, no Estado e também na população, ele o fez a partir de uma
observação que agora, após toda a reconstrução da argumentação de Agamben, assume renovada
importância.
Podemos ler no início da aula de 8 de Fevereiro de 1978 que a pergunta que estava na mente
de Foucault foi formulada da seguinte maneira: “supondo-se, portanto que ‘governar’ não seja a
mesma coisa que ‘reinar’, não seja a mesma coisa que ‘comandar’ ou ‘fazer a lei’; supondo-se que
governar não seja a mesma coisa que ser soberano, ser suserano, ser senhor, ser juiz”, supondo,
portanto, “que haja uma especificidade do que é governar, seria preciso saber agora qual é o tipo de
poder que essa noção abarca” (FOUCAULT, 2008, p. 155-156). E, antes mesmo de continuar
analisando as relações de poder transformadas a partir do século XVI nas artes de governar,
Foucault continua seu argumento colocando uma segunda pergunta: “por que querer estudar esse
domínio, no fim das contas, inconsistente, nebuloso, cingido por uma noção tão problemática e
artificial quanto a de ‘governamentalidade’?”, sem deixar espaço para duplas interpretações, o
próprio Foucault oferece uma resposta aos seus questionamentos: “para abordar o problema do
Estado e da população”, ou seja, “tudo isso é muito bonito, mas o Estado e a população todo o
mundo sabe o que são, em todo caso imagina saber o que são. […] O domínio a que essas noções se
referem é, grosso modo, mais ou menos conhecido, ou, se tem uma parte imersa e obscura, tem uma
outra visível” (FOUCAULT, 2008, p. 156). Esta parte obscura, imersa e vazia, do Estado e da
população é o domínio que Foucault pretendeu abordar com a noção de governamentalidade — e
que Agamben, caminhando na mesma direção do filósofo francês, nos auxiliou a compreender
como os dispositivos aclamatórios são articulados nas democracias contemporâneas para manter
obscura, difusa e lacunar essa instância do governo. Em resumo, podemos identificar como que a
governamentalidade infinita da população e os dispositivos de esplendor e glória do poder estão
entrelaçados e se articulam sem cessar nas sociedades contemporâneas.
Entretanto, o objetivo específico da presente tese não é apenas reconstruir a longa
genealogia que esclarece o soterramento que a esfera política experimenta hoje, mas também expor
a relação que existe entre nova razão de Estado e uma concepção de história particular. Tudo isso
será feito para que, nos capítulos seguintes, possamos ter condições de sustentar a hipótese de que

53
tal concepção histórica linear e infinita só pode ser desarticulada a partir do tema messiânico do
tempo do fim — daí a sua importância política, conforme já anunciado. Quanto a esse objetivo, as
contribuições de Foucault são imprescindíveis. Além de encontrarmos no material de suas aulas
exatamente essa percepção da relação entre tempo e política, ela também aparece em diálogo com
categorias teológicas importantes para a filosofia de Agamben. Por todo o seu curso, o filósofo
francês argumenta que esta nova historicidade da razão de Estado, de caráter infinito, através de
suas políticas antiacontecimentais de brilho e esplendor glorioso, tinha por objetivo, justamente,
excluir as condições de possibilidade de emergência do Reino messiânico dos últimos dias —
chamado por Foucault de “Império”. Ou seja, o filósofo francês também argumenta que as
configurações históricas que contribuíram para o soterramento da política, transformando-a em
mera gestão dos corpos, tinham como objetivo resistir ao reino escatológico dos últimos dias que
colocaria fim na necessidade das injunções e das tutelas biopolíticas dos governos.
Nesse sentido, convém mostrar aqui como emerge o relacionamento entre o dispositivo
glorioso e sua modalidade historiográfica a serviço da nova razão de Estado moderna. Em uma
comparação muito importante para a tese que buscamos defender, Foucault nos diz, no curso Il faut
défendre la société, que, com essa compreensão da razão governamental que vem se desenvolvendo
desde o século XVI, nós estamos testemunhando um confronto entre duas formas de encarar a
história que têm decorrências políticas incontornáveis. Nas palavras de Foucault:

vemos delinear-se algo que, no fundo, se aproxima bem mais da história mítico-
religiosa dos judeus do que da história político-legendária dos romanos. Estamos
muito mais do lado da Bíblia do que do lado de Tito Lívio, muito mais numa forma
hebraico-bíblica do que numa forma do analista que narra, no dia-a-dia, a história e
a glória ininterrupta do poder. Eu creio que, de um modo geral, jamais se deve
esquecer de que a Bíblia foi, a partir da segunda metade da Idade Média pelo menos,
a grande forma na qual se articularam as objeções religiosas, morais, políticas, ao
poder dos reis e ao despotismo da Igreja. Essa forma – assim como, aliás, muito
amiúde a própria referência aos textos bíblicos – funcionou, na maior parte dos
casos, como objeção, crítica, discurso de oposição. Jerusalém, na Idade Media,
sempre foi objetada a todas as Babilônias ressuscitadas; sempre foi objetada à Roma
eterna, à Roma dos Césares, aquela que derramava o sangue dos justos nos circos.
Jerusalém e a objeção religiosa e política à Idade Media. A Bíblia foi a arma da
miséria e da insurreição, foi a palavra que subleva contra a lei e contra a glória [...]
O discurso histórico que aparece nesse momento pode, pois, ser considerado uma
contra-história, oposta à história romana, por esta razão: nesse novo discurso
histórico, a função da memória vai mudar totalmente de sentido. Na história de tipo
romano, a memória tinha, essencialmente, de garantir o não-esquecimento – ou seja,
a manutenção da lei e o aumento perpétuo do brilho do poder à medida que ele dura.
Pelo contrário, a nova história que aparece vai ter de desenterrar alguma coisa que
foi escondida, e que foi escondida não somente porque menosprezada, mas também
porque, ciosa, deliberada, maldosamente, deturpada e disfarçada. No fundo, o que a
nova história quer mostrar é que o poder, os poderosos, os reis, as leis esconderam
que nasceram no acaso e na injustiça das batalhas (FOUCAULT, 2005, p. 82-84).

54
Neste parágrafo, temos um condensado de temas e argumentos que conseguem lançar mais
luz à genealogia do governo que pretendemos apresentar aqui. Estamos conscientes de que outros
pensadores procuraram explicitar a oposição que existe entre duas formas de interpretar a história.14
Entretanto, a maneira como Foucault apresenta essa articulação é muito adequada para tudo o que
ele mesmo produziria nos anos seguintes de curso no Collège de France, bem como com o
raciocínio que estamos construindo aqui a partir da filosofia de Agamben. Foucault deixa claro que
uma historicidade que busque resistir ao discurso hegemônico da glória ininterrupta do poder não
poderá ser uma história da continuidade e da infinitude, mas da ordem do desmascaramento de um
saber que foi propositalmente afastado e enterrado. Junto à vitória dos poderosos nos foi
apresentado uma maneira de interpretar a história, em que o poder aparece ininterruptamente
glorioso. E qualquer tentativa de interpretar e ultrapassar a configuração governamental que
argumentamos até aqui, necessariamente, também precisará ser alimentada por um novo discurso
sobre a história. Quando entendemos o porquê do poder precisar de glória, incontornavelmente,
precisaremos modificar nossas estratégias interpretativas para direcionar nossos esforços aos
dispositivos específicos que alimentam e favorecem a nova razão de Estado. A contribuição de
Foucault para essa questão é que ele identificou que uma forma mítico-religiosa de enxergar a
história foi perdida com o soterramento que a política sofreu pelo governo. Essa foi a forma que o
filósofo francês encontrou de afirmar algo na mesma direção do argumento sobre o fechamento do
escritório escatológico da Igreja, que Agamben recorrentemente sustenta e que nós introduzimos a
presente tese mencionando-o. Aquilo que Foucault chama de “nova história” terá como tarefa se
ocupar com a arqueologia das formas bíblicas e teológicas de articular objeções ao poder que brilha
glorioso. Vale dizer que, com isso, Foucault não apela à nenhuma capacidade espiritual ou
transcendente que a Bíblia cristã tem, mas justifica sua importância para a nova historiografia
política em razão de que foi a forma judaico-cristã de encarar a história que funcionou como
objeção e discurso crítico aos dispositivos de poder que, genealogicamente, estão nas raízes da
governamentalidade moderna. Mais do que um laboratório político privilegiado, como Agamben
sustenta, temos também na teologia cristã uma “caixa de ferramentas” conceituais muito
proveitosas para os fins de nossa tese.
Frente ao exposto, podemos dizer que o tema messiânico do tempo do fim assume toda sua
importância política não só na genealogia agambeniana, como também na arqueologia foucaultiana,
uma vez que essa maneira de encarar a história que as primeiras comunidades messiânicas
desenvolveram tem potencial de antagonismos e contracondutas sem precedentes. Sua força se

14
O filósofo alemão Eric Voegelin estabelece um contraste entre essas duas concepções de uma maneira muito próxima
da de Foucault em seu primeiro volume dedicado ordem e história. Cf. VOEGELIN, Eric. Ordem e História – Vol 1:
Israel e a Revelação. São Paulo: Edições Loyola, 2009.
55
encontra em algo que Foucault formulará no curso seguinte no Collège de France, a saber, elas têm
por princípio afirmar que virá o tempo em que o tempo terminará, ou seja, que essas comunidades
messiânicas têm por princípio colocar a possibilidade de uma escatologia, de um tempo do fim, de
uma suspensão ou de um acabamento do tempo histórico e do tempo político. Quanto a isso,
devemos nos lembrar das palavras do próprio Foucault, já mencionadas, que terminam e apontam
para as conclusões que ele gostaria de alcançar com seus alunos: “no fundo, a razão de Estado,
como vocês se lembram, havia posto como primeira lei, lei de bronze da governamentalidade
moderna e, ao mesmo tempo, da ciência histórica, que agora o homem deve viver em um tempo
indefinido”, ou seja, isso significa dizer que “governos sempre haverá, o Estado sempre estará aí e
não esperem por uma parada. A nova historicidade da razão de Estado excluía o Império dos
últimos tempos, excluía o reino da escatologia” (FOUCAULT, 2008, p. 478).
Aparentemente óbvio, mas de forma alguma simplista, a governamentalidade infinita da
população encontra antagonismos fortes o suficiente apenas quando estes vêm movidos por um
princípio temporal distintamente messiânico: a afirmação do tempo do fim. Ou ainda, nas palavras
do próprio Foucault, “contracondutas que terão precisamente por princípio afirmar que virá o tempo
em que o tempo terminará, que têm por princípio colocar a possibilidade de uma escatologia, de um
tempo último, de uma suspensão ou de um acabamento do tempo histórico e do tempo político”
(FOUCAULT, 2008, p. 478). As teses do fim da história que alimentam a governamentalidade
liberal de nossas sociedades contemporâneas só podem ser antagonizadas por uma postura histórica
que esteja consciente da importância política do tema messiânico do tempo do fim.
A grande questão que paira os discursos de possibilidade escatológica, tal como estamos
defendendo aqui, é precisamente pelo momento em que a governamentalidade indefinida do Estado
será detida e desarticulada. Mesmo sem dar muitos detalhes de como isso pode acontecer, estava
claro para Foucault, ao final de seu curso, que aquilo que conseguirá frear o trem infinito da história
governamental será a emergência de uma comunidade que, ao mesmo tempo, se emancipará das
injunções e tutelas do Estado, bem como conseguirá absorver o poder do Estado. Apesar de
Foucault não ter tempo hábil em seu curso que chegara ao fim, nós podemos nomear esse ator da
política que está por vir com o conceito agambeniano de “comunidade que vem”. Esse conceito será
devidamente desenvolvido e articulado com toda a argumentação presente no próximo capítulo.
Nesse momento, nomeá-lo é suficiente para mostrar como a descrição que Foucault faz dessa
comunidade que está por vir muito se assemelha à Aufheben hegeliana que Agamben enunciará para
referir-se a uma dinâmica que não concilia a tensão entre uma tese e uma antítese, mas que, ao
mesmo tempo, faz cessar (deixa de existir) e a suspende (deixa de fazer sentido), criando assim algo
novo (cf. AGAMBEN, 2016, p. 117). Neste sentido, poderíamos ousar afirmar que tal sociedade

56
mencionada por Foucault, assim como o processo dialético, não é apenas um desdobramento
necessário de um processo histórico, mas também uma concretização do mesmo. Não é sem motivo
que o próprio filósofo francês disse que tão somente com essa sociedade “o tempo, se não da
história, pelo menos da política, o tempo do Estado terminará” (FOUCAULT, 2008, p. 478).
Diante de tudo isso, a conclusão que o filósofo francês encaminha seus alunos e seus leitores
é que as contracondutas e os antagonismos que pretendem resistir a governamentalidade infinita dos
indivíduos deverão assumir a forma de uma afirmação escatológica de prevalência dessa
“comunidade que vem” sobre o Estado. Ou seja, a escatologia política vai assumir a forma do
direito absoluto à ruptura de todos os vínculos de obediência infinita à glória do estado (cf.
FOUCAULT, 2008, p. 479). Esse é o último ponto de encontro da arqueologia foucaultiana com a
genealogia agambeniana que gostaríamos de mencionar aqui. Pensar as condições de possibilidade
de uma afirmação escatológica na política, como fez Foucault, é estruturalmente análogo a insistir
no potencial desarticulador que tem uma comunidade política orientada pela historiografia de matiz
messiânica.
Agamben também termina sua genealogia apontando para a mesma direção. De uma forma
diferente de Foucault, o filósofo italiano aborda essa mesma questão sob o signo do descanso
sabático — outro tema fundamental para a concepção messiânica do tempo e da experiência
15
humana. Para Agamben, a inoperosidade que caracteriza o descanso sabático prescrito na lei
judaica — e que para os cristãos foi cumprida na vida do messias — está intimamente relacionada
com a glória. A relação entre a inoperosidade sabática que leva a história ao seu cume e os
dispositivos aclamatórios é estabelecida por Agamben da seguinte forma: “na medida em que
nomeia o fim último do homem e a condição que sucede ao Juízo Universal, a glória coincide com a
cessação de toda atividade e de toda a obra [a inoperosidade sabática]” (AGAMBEN, 2011, p. 261).
Com essas palavras, Agamben faz algo típico de suas argumentações em todos os seus livros:
recolocar o mesmo argumento de uma nova forma.16 Nesse caso, ele quer mostrar que a função

15
Em uma das obras de referência a respeito do assunto, o especialista em Novo Testamento, D. A. Carson esclarece
que: “há evidências que favorecem a associação do próprio Shabbath com o tema da restauração e da era messiânica.
Dentro dessa linha de raciocínio, o fato de Jesus ser o Senhor do Shabbath se torna ainda mais relevante, pois o próprio
conceito de Shabbath começa a sofrer uma transformação. Dizer que Jesus Cristo é o Senhor do Shabbath não é apenas
uma declaração messiânica de proporções formidáveis, mas apresenta também a possibilidade de uma mudança ou
reinterpretação futura do Shabbath, exatamente da mesma forma como a superioridade de Cristo sobre o Templo
apresenta certas possibilidades quanto à lei ritual” (CARSON, 2006, p. 66).
16
O professor Daniel Arruda Nascimento explica que essa é uma marca distintiva das produções de Agamben: “o fato
de os textos do autor se iniciarem quase sempre com uma relação ou um desfile de referências, entre autores, conceitos,
ideias e fatos históricos, que formariam uma constelação e que, uma vez entrelaçados, possibilitariam um
desenvolvimento próprio rumo a conclusões mais ou menos inauditas, de longa ou curta duração na obra. […] A
intenção era mostrar como o texto do autor é capaz de reunir referências das mais diversas, e de diversas áreas do
conhecimento, somando-as de maneira incomum para expandi-lo até o limite do tolerável. Além disso, as análises do
57
política da glória de encobrir a vacuidade central do governo cumpre também o papel de desviar a
atenção política da população do fato de que governo humano nenhum deveria ser infinito e que,
por conseguinte, sua história deveria chegar ao fim. Uma vez que estamos vivendo em democracias
de governamentalidade infinita dos indivíduos, só podemos concluir que não existe nada de
espiritual e legítimo em tais configurações politicas, antes elas são marcadas por modos de operação
tipicamente infernais — e por isso precisam de louvores e aclamações para esconder sua
ilegitimidade. Segundo a imagem que o próprio Agamben utiliza, “enquanto no inferno ainda
funciona algo como uma administração penal, o paraíso não só desconhece governo, como vê cessar
também toda escritura, toda leitura, toda teologia e até mesmo toda celebração liturgia — com
exceção da doxologia e do hino de glória” (AGAMBEN, 2011, p. 261). A única instituição que a
cristandade ocidental conhece que não tem fim é o inferno. Agamben nos lembra de que o reino
escatológico dos últimos dias será caracterizado por uma inoperosidade típica do sábado
messiânico: “no judaísmo, a inoperosidade como dimensão mais própria tanto de Deus quanto do
homem encontrou uma imagem grandiosa no sábado” (AGAMBEN, 2011, p. 261). Portanto, as
teses do fim da história, que querem nos lançar em uma historiografia infinita e sem rompimentos
político inovadores são, analogicamente, infernais.
Finalmente, aqui é possível deixar um pouco mais explícito por que o governo precisa de
glória. Em uma digressão antropológica singular dos escritos de Agamben, o filósofo explicita
porque as doxologias, cerimônias liturgias e processos aclamatórios são tão importantes para os
exercícios de poder soberano na modernidade — e como esses se relacionam com a promessa
messiânica do grande sábado de inoperosidade:

Começamos a compreender agora por que doxologia e cerimonial são tão essenciais
para o poder. Neles estão em questão a captura e a inscrição em uma esfera
separada da inoperosidade central da vida humana. A oikonomia do poder põe
firmemente em seu centro, na forma de festa e glória, aquilo que aparece diante dos
seus olhos como inoperosidade do homem e de Deus, inoperosidade que não se
pode olhar. A vida humana é inoperosa e sem objetivo, mas é justamente essa argia
e essa ausência de objetivo que tornam possível a operosidade incomparável da
espécie humana. O homem se devotou à produção e ao trabalho, porque em sua
essência é privado de obra, porque é por excelência um animal sabático. E assim
como a máquina oikonomica teológica só pode funcionar se inserir em seu centro
um limiar doxologia em que trindade econômica e trindade imanente transitam
litúrgica (ou seja, política) e incessantemente de uma para outra, assim também o
dispositivo governamental funciona porque capturou em seu centro vazio a
inoperosidade da essência humana. Essa inoperosidade é a substância política do
Ocidente e, da mesma maneira, neles naufragam continuamente. Esses sonhos e
utopias são restos enigmáticos que a máquina econômico-teológica abandona nos
casos de batalha da civilização e sobre os quais os homens voltam de tempos em
tempos a interrogar-se inútil e nostalgicamente. Nostalgicamente, porque parecem
conter algo que pertence ciosamente à essência humana; e inutilmente, porque nada

autor costumam terminar em zonas de indiscernibilidade ou de indistinção, com polarizações que simultaneamente
separam e confundem os limites, criam zonas-limites” (NASCIMENTO, 2018, p. 22).
58
mais são, na realidade, do que resíduos do combustível imaterial e glorioso que o
motor da máquina queimou em seu curso irreprimível (AGAMBEN, 2011, p. 268).

Encontrar no núcleo de significado da essência humana a inoperosidade é uma hipótese


importante para a filosofia da Agamben. Para o filósofo, será essa característica que conseguirá
explicar, desde o lugar de importância divina que o ócio e a contemplação assumiram no Ocidente,
até mesmo nos ajudar a identificar como os governos ilegítimos de nossas democracias gloriosas
permanecem funcionando inquestionamente — mesmo com seu centro vazio. Para Agamben, o que
há de comum nesses fatos é que eles conseguiram capturar tal essência humana e a colocou em seu
centro vazio de poder. Segundo o filósofo italiano, “compreende-se agora a função essencial que a
tradição da filosofia ocidental atribuiu à vida contemplativa e à inoperosidade”, a qual seja “a práxis
propriamente humana é um sabatismo, que, tornando inoperosas as funções específicas do ser vivo,
abre-as em suas possibilidades” (AGAMBEN, 2011, p. 273). É por essa razão que Agamben
mantem-se muito crítico à diferenciação introduzida no pensamento político por Aristóteles, quando
o filósofo em sua Política (1324a), contrapôs a vida contemplativa à vida política, como se fossem
dois tipos de bios fundamentalmente diferentes. Ao ensinar todo o Ocidente a pensar assim,
Aristóteles comprometeu tanto os rumos da política como os da própria filosofia. Para Agamben, “o
político não é nem bios nem zoé, mas a dimensão que a inoperosidade da contemplação, ao
desativar as práticas linguísticas e corpóreas, materiais e imateriais, incessantemente abre e confere
ao ser vivo” (AGAMBEN, 2011, p. 273). 17
Precisamente diante de tudo isso, é que o filósofo italiano encaminha as conclusões de sua
genealogia teológica para uma tarefa urgente: recolocar a inoperosidade nos próprios dispositivos
políticos. Ou ainda, formulando a mesma tarefa de uma maneira mais significativa a todo o diálogo
que empreendemos aqui entre Foucault e Agamben, podemos dizer que a tarefa que nos resta é
confrontar o homo oeconomicos, bem como toda a reflexão filosófica sobre a governamentalidade
que Foucault construiu a partir dele, com o homo sabaticus sugerido por Agamben. 18 Nessa última

17
O professor Daniel Arruda Nascimento também identifica o fato que Agamben relaciona as capacidades
contemplativas com as condições de emergência de uma forma-de-vida que antagonize com a biopolítica da máquina
governamental: “Agamben nomeia de pensamento o nexo que permite coligar e constituir a forma-de-vida,
considerando-o não o exercício de um órgão ou faculdade psíquica, mas uma experiência, o experimento tem por objeto
o caráter potencial da vida e da inteligência humana” (NASCIMENTO, 2018, p. 26).
18
Apesar de dedicarmos um capítulo inteiro para as considerações de Agamben a respeito das dimensões típicas do
messianismo, é importante comentar agora que na imagem do descanso sabático encontramos um núcleo de
significados messiânicos privilegiados. Quem nos lembra disso é a pesquisadora Eleanor Kaufman quando também
estabelece uma relação entre Agamben e Alain Badiou e explica que: “na medida em que o messiânico pode ser
representado por um dia ou número adjacente, que não é o último (isso seria o apocalíptico) mas o penúltimo, não o
sétimo dia como o dia de descanso, mas o sexto (a diferença entre o sábado cristão e o judaico), e na medida em que se
pode dizer que este espaço de diferença na contagem marca o messiânico, então parece que tal espaço de subtração da
contagem é o elemento messiânico latente na obra de Badiou. Mais do que subtração no sentido de perda, parece que
59
antropogênese introduzida por Agamben, está um condensado de princípios teológicos e políticos
que têm condições de antagonizar com a configuração que a governamentalidade liberal produziu.
Se o político não é nem bios nem zoé, resta ao filósofo italiano sustentar que: “zoé aionios, vida
eterna, é o nome desse centro de inoperosidade do humano, dessa ‘substância’ política do Ocidente
que a máquina da economia e da glória busca continuamente capturar em seu próprio interior”
(AGAMBEN, 2011, p. 273). O encaminhamento necessário que a genealogia agambeniana nos
propõe é que somente quando pensarmos as condições de possibilidade que fazem reaparecer essa
origem última do ser humano que foi soterrada pela gestão pública, é que conseguiremos,
verdadeiramente, pensar em contracondutas políticas à governamentalidade infinita da população. 19
Na verdade, a vida eterna, sempre entendida como a condição escatológica daqueles que estão no
messias, não é somente uma condição futura. Agamben está consciente de que se trata também de
“a qualidade especial da vida no tempo messiânico, ou seja, a vida em Jesus messias. Essa vida é
marcada por um senso especial de inoperosidade que de certa maneira antecipa no presente o
sabatismo do Reino” (AGAMBEN, 2011, p. 270).
Alicerçada nessas conclusões, que a breve reconstrução genealógica alcançou, que a
presente tese procura sustentar a importância política do tema messiânico do fim. Não poderíamos
terminar o primeiro passo de nossa argumentação de uma maneira diferente. É necessário
argumentar, como faz Castor Bartolomé Ruiz, que “entre outras dimensões da política que vem
cabe pensar a política num presente messiânico, com-se-não, que significa transformar cada instante
numa possibilidade inédita de ser diferente” (RUIZ, 2018, p. 15). Recolocar a inoperosidade
característica do animal sabático de Agamben é sinônimo de desativar a governamentalidade
infinita dos indivíduos a partir da afirmação da tensão típica do tempo messiânico. A tarefa que
resta à política que vem é também sintetizada pelo professor Daniel Arruda Nascimento, quando
diz: “para que uma forma-de-vida possa ser encontrada é preciso depor toda condição social e
propriedade jurídica, tal como parece possível na fórmula hos me (como se não) paulino”, ou seja,
trata-se de “constranger as condições sociais, usando-as sem negá-las. Fazer coincidir a constituição
de uma forma-de-vida com a destituição das condições sociais e biológicas para as quais se foi

Badiou usa esse termo para sinalizar uma diferença de um, ou uma relação do penúltimo, em oposição a um
reconhecimento exclusivo apenas do último e mais visível termo” (KAUFMAN, 2013, p. 51).
19
Uma vez mais, o Castor Ruiz é preciso em fazer uma leitura da condição política e econômica durante a pandemia do
COVID-19 de uma forma que deixe explícito não só as raízes religiosas do modelo civilizatório por traz da cultura do
homo economicus, como também a sua insustentabilidade a médio e longo prazo. Quanto a isso, ele diz que: “há muitas
décadas que desde diversas perspectivas do pensamento crítico vinham se levantando vozes que nos alertavam sobre a
insustentabilidade a médio e longo prazo deste modelo civilizatório baseado na acumulação indefinida de riqueza em
poucos oligopólios, que exige uma predação ad infinitum do planeta terra. Este modelo impôs a cultura do homo
economicus como uma espécie de nova religião naturalizada. A cultura do homo economicus, muito mais que um
projeto econômico ou político, tornou-se um modo de subjetivação através do qual as atuais gerações globalizam
a cultura da mercantilização da vida e a descartabilidade econômica de tudo que se toca” (RUIZ, 2020a, s/p.).
60
lançado” (NASCIMENTO, 2018, p. 26). A referência ao pensamento de Paulo de Tarso por ambos
comentadores não é acidental. Ficará evidente no capítulo seguinte que os textos paulinos
constituem repositórios conceituais privilegiados para pensar, tanto os antagonismos que
conseguem desativar as operações de um governo infinito, como também figurar uma forma-de-
vida qualificada por um senso especial de inoperosidade sabática. Exploraremos cada uma dessas
dimensões argumentativas do pensamento de Agamben a seguir. Nesse momento, basta concluir
que resta à política e à filosofia uma realização em favor da potência humana do agir. Se não
tornarmos inoperosas as operações econômicas e biológicas que estão no centro da máquina
biopolítica do Ocidente, não conseguiremos sinalizar o que pode realmente um corpo humano. Em
síntese, sem confrontar o homo oeconomicos com o homo sabaticus será impossível desvelar a
abertura de um corpo humano para o novo, para novos usos possíveis.

1.2. Pilatos e Jesus: a crise infindável como instrumento da gestão governamental

Para os propósitos da presente tese, de argumentar sobre a importância política do tema


messiânico do tempo do fim, é necessário fazermos uma pausa antes de continuarmos a tratar sobre
os modos como Agamben encontra nos textos paulinos um repositório conceitual privilegiado para
pensar, tanto os antagonismos que conseguem desativar as operações do governo infinito da
população, como também figurar uma forma-de-vida qualificada pelas dinâmicas da temporalidade
messiânica. Na verdade, o presente subtópico é uma pausa estratégica, que não irá retardar o
próximo movimento argumentativo, mas, em vez disso, nos ajudará a dar um passo com mais
firmeza. Defendemos essa ideia baseado em um movimento que o próprio Giorgio Agamben fez na
sua odisséia filosófica. Quem nos indica essa estratégia do filósofo italiano é o professor Vinícius
Nicastro Honesko, ao explicar que Agamben foi acometido de forma tão intensa por uma
problemática teológico-política que “acabou por interromper por três meses outros trabalhos em
curso (trata-se de L’uso dei corpi, último volume da série Homo sacer, que acabou por ser
publicado em setembro de 2014, e de Il fuoco e il racconto, livro de ensaios também publicado em
setembro” (HONESKO, 2014, p. 7). Segundo a explicação de Honesko, o que fez o filósofo italiano
ocupar-se com a narrativa do processo de Jesus foi “a imagem do cruzamento (que acontece
justamente naquelas seis horas que marcam o encontro de Jesus e Pilatos) entre eternidade e
história, o ponto de atravessamento do temporal pelo eterno”, imagem essa que não tem só valor
61
próprio, mas que também carrega consigo perguntas jurídicas e políticas fundamentais para nosso
interesse: “por que o cruzamento entre dois mundos, o humano e o divino, o histórico e o que não
tem história, tem a forma de um processo, de uma krisis, isto é, de um juízo processual?”
(HONESKO, 2014, p. 8-9). O objetivo do presente subtópico é mostrar como essa questão é
importante em nossa genealogia do governo infinito da população a partir da filosofia de Agamben,
bem como sua relação com o tema messiânico do tempo do fim. 20
Nesse sentido, ocupar-se com a narrativa acerca do julgamento de Jesus por Pilatos é uma
condição privilegiada de continuarmos nossa argumentação a respeito do governo infinito da
população, uma vez que, no interior desse julgamento, encontraremos a estrutura típica de um
julgamento sem fim – ou, como Agamben mesmo coloca, de uma krisis indeterminada. Os anúncios
de constantes e indeterminadas crises políticas, econômicas e, mais recentemente, sanitárias se
tornará um dispostivo para a governamentalidade infinita da população. Concordamos com
Agamben a respeito do fato de que na narrativa do julgamento de Jesus por Pilatos existe um
paradigma privilegiado para entendermos o que realmente está em jogo não só na incapacidade de
colocar fim à crise indefinida, como também o deliberado interesse de sua infinita reprodução. Para
alcançarmos esse entendimento procederemos da seguinte maneira: em primeiro lugar,
reconstruiremos os marcos fundamentais da narrativa do julgamento e crucificação de Jesus; em
seguinda, localizaremos esses marcos em um antigo e importante debate teológico-político que
Agamben também toma lugar, em razão de suas interpretações acerca do julgamento de Jesus; por
fim, mostraremos como tais discussões teológico-políticas têm condições de iluminar o tempo
presente, marcado pelas crises indefinidas como dispositivos de governamentalidade infinita da
população.

20
Além disso, podemos acrescentar um ponto importante que a instrutiva resenha do livro Pilato e Gesú, escrita por
Ryne Beddard, nos chama atenção: “o caráter histórico dos eventos da Paixão é crucial para Agamben porque é
precisamente aqui que a contingência histórica radical da autoridade divina eterna, em suas manifestações mundanas, é
revelada. Assim, o que Agamben se propõe a oferecer com sua breve investigação do papel de Pilatos no julgamento de
Jesus é nada menos que uma crítica indiscriminada da tradição jurídica ocidental que expõe o que está em jogo em
nossas tentativas de negociar entre o histórico e o eterno – entre justiça e salvação. Este é o problema difícil que
Agamben aborda em Pilatos e Jesus, que foi publicado em inglês na mesma época em que ele finalmente estava
encerrando sua série de décadas de Homo Sacer . E embora Pilatos e Jesus não façam parte dessa série, é, talvez, a
descrição mais concisa e acessível do que considero ser o cerne da série Homo Sacer – um projeto que envolve não
apenas aceitar o esvaziamento da teologia em o político (como o famoso teórico do direito Carl Schmitt disse, ‘Hoje
tudo é teológico, com exceção do que os teólogos falam’), mas desafiando o liberalismo contemporâneo com base em
seus pressupostos teológicos implícitos” (BEDDARD, 2016, s/p.).

62
1.2.1. Quem matou Jesus? A estrutura de um processo jurídico sem fim

Existem muitos manuais teológicos que reunem em forma de história a narrativa dos
Evangelhos. Nesses livros, os eventos principais são agrupados e sistematizados em porções
relativamente homogêneas. Entretanto, uma publicação nessa área se destaca pela atenção desigual
que dá ao evento do processo que Jesus foi submetido até sua crucificação. O especialista em Novo
Testamento e professor da Universidade Teológia de Kampen, na Holanda, Jakob van Bruggen
interrompe seu manual teológico sobre o todo o período da vida de Jesus para dedicar três capítulos
exclusivos sobre o processo e a execução da crucificação do Messias cristão. Em seu livro Cristo na
Terra (1987), ele começa um dos capítulos explicando essa opção investigativa: “muito tem sido
escrito sobre o curso dos acontecimentos no dia da morte de Jesus, particularmente sobre seu
julgamento. […] Porém, é muitas vezes difícil combinar todos os detalhes numa só história”, essa
dificuldade, para van Bruggen, não é de surpreender, pois “acontecem muitas coisas ao mesmo
tempo — e o Sinédrio agiu com astúcia. Isso significa que estamos lidando com dois níveis tanto
com o que realmente aconteceu como com a intenção que havia por trás das ações” (VAN
BRUGGEN, 2005, p. 241). No relato do processo ao qual foi submetido Jesus, existe uma trama
complexa de interesses divergentes em ação — tanto dos opositores judeus, quanto da participação
de Pilatos, tangenciando até as posturas paradoxais de Judas Iscariotes. Para compreender a
exemplaridade desse episódio histórico, é necessário manter-se atento à trama multinível que é
estabelecida pelos autores dos bíblicos.
A pluralidade de intencionalidades envolvidas nesse relato não é só um fator complicador de
sua leitura, mas também um elemento decisivo na multiplicação das publicações sobre o ocorrido.
Da mesma forma que a crucificação de Jesus interessou muitas pessoas ela, ainda hoje, desperta
atenção de públicos variados. Um dos exemplos notáveis, que reacendeu as discussões sobre o
processo de Jesus foi a publicação On the Trial of Jesus (1961) do autor judeu Paul Winter. Essa
obra, não apenas foi dedicada às vítimas de Auschwitz, como também pretendeu ser um exorcismo
da maldição que recaia sobre os judeus de terem sido os desencadeadores do processo que culminou
na crucificação de Jesus — argumento utilizado à exaustão pelo governo nazi durante o Terceiro
Reich Alemão. A hipótese de trabalho de Winter é que Jesus foi preso e julgado por iniciativa do
governo romano e que sua execução foi feita, justamente porque ele tinha a ambição de se
apresentar como rei, criando uma tensão irreconciliável entre o povo e o Império. 21

21
cf. WINTER, Paul. On the Trial of Jesus. Studia Judaica 1. Berlim: De Gruyter, 1974.
63
A despeito dos inegáveis aspectos emocionais que estavam envolvidos na colocação e no
tratamento dessa questão, perguntar-se por quem realmente desempenhou um papel decisivo no
processo e na execução de Jesus não é uma tarefa menor. Na multiplicidade de interesses
envolvidos nas leituras do processo de Jesus, a própria investida de Agamben assume importância
significativa por deslocar nosso olhar para novas questões e maneiras inesperadas de abordar uma
narrativa milenar. Conforme reitera, mais uma vez, o professor Honesko na introdução à obra de
Agamben, “que o processo sem acusação (e sem julgamento), que culmina na crucificação de Jesus,
seja determinante na inquietação de Agamben não é aqui um acaso”, isto porque, “ao atribuir a
Pilatos a condição de alter ego de Jesus, com efeito, o filósofo coloca ambos, nos rastros da
tradição, em relação de cumplicidade” (HONESKO, 2014, p. 15-16).
O que motivou Agamben interromper o último passo de sua jornada filosófica de quase 20
anos foi a curiosa figura de Pôncio Pilatos e seu encontro com Jesus. É preciso dizer que não
podemos ser ingênuos de pensar que o desvio de atenção de Agamben para um episódio marcante
da vida do prefeito da Judeia no século I foi, totalmente, um abandono temporário de suas
preocupações políticas de anos. Antes o contrário, como de costume, o filósofo italiano recolocou
as questões que lhe rondavam de uma forma inédita e criativa, procurando atingir novas fronteiras
do pensamento ético e político. Em uma conferência que Agamben proferiu no evento Torino
Spiritualità, por ocasião do lançamento do seu livro Pilato e Gesù (2013), ele esclareceu um pouco
mais a motivação de ocupar-se com esse funcionário da administração pública romana. Em suas
palavras:

Por que Pilatos? Por que esse homem, o prefeito da Judeia entre os anos 26 e 36, se impôs
com tanta urgência à minha atenção, quase me obrigando a refletir e a escrever sobre ele,
sem me dar descanso, até que, interrompendo a escrita de uma obra em andamento, levei a
termo, em três meses frenéticos, o livreto sobre o qual vim falar a vocês? […] Por que
Pilatos? Para provar, disse-se com razão, o caráter histórico da paixão de Jesus, que
ocorreu naquele certo dia, sob Pôncio Pilatos, justamente. Mas por que nomear justamente
ele, um obscuro vigário e não, segundo o costume romano, o imperador Tibério? […] na
narrativa dos Evangelhos e principalmente em João, ele, Pilatos, é algo menos e, ao
mesmo tempo, muito mais: um homem do qual conhecemos as hesitações, o medo, o
ressentimento, o sarcasmo, as suscetibilidades, a hipocrisia (como quando se lava as mãos
para se purificar do sangue de um justo). É, enfim, o autor de frases memoráveis, como a
famigerada réplica a Jesus que quer testemunhar a verdade: "O que é a verdade?". Ou
como o lema com o qual silencia os judeus que lhe pedem para mudar a inscrição sobre a
cruz: "O que escrevi, escrevi". É ele, por fim, que, pouco antes de entregar Jesus ao
suplício, pronuncia as palavras fatídicas: "Ecce homo, eis o homem!”. As razões pelo
interesse certamente não faltavam, se Nietzsche pôde escrever que Pilatos "é a única figura
dos Evangelhos que merece respeito” (AGAMBEN, 2013a, s/p.).

Contornando o núcleo motivador de seu desvio de atenção rumo a Pilatos, Agamben começa
explicando os motivos que, apesar de interessantes, não são o foco de sua atração pelo prefeito da
Judeia. Tais considerações são importantes, pois livra os leitores do filósofo italiano de buscarem
64
em seu livro algum tipo de reconstrução meramente histórica ou teológica dos relatos bíblicos
envolvendo Pilatos. Mais importante do que isso, com tais considerações prévias, Agamben
também situa seu esforço intelectual longe de investigações que procuram fazer uma leitura
psicologizante, buscando reconstruir o perfil e a personalidade dessa figura que aparece nos
Evangelhos com falas e gestos tão marcantes. Conforme já mencionado acima, o que fez o filósofo
italiano ocupar-se com a narrativa do processo de Jesus foi “a imagem do cruzamento (que acontece
justamente naquelas seis horas que marcam o encontro de Jesus e Pilatos) entre eternidade e
história, o ponto de atravessamento do temporal pelo eterno”, imagem essa que não tem só valor
próprio, mas que também carrega consigo perguntas jurídicas e políticas fundamentais para nosso
interesse: “por que o cruzamento entre dois mundos, o humano e o divino, o histórico e o que não
tem história, tem a forma de um processo, de uma krisis, isto é, de um juízo processual?”
(HONESKO, 2014, p. 8-9). O objetivo do presente subtópico é mostrar como essa questão é
importante em nossa genealogia do governo infinito da população a partir da filosofia de Agamben,
bem como sua relação com o tema messiânico do tempo do fim. 22
De modo geral, em toda a sua trajetória filosófica, Agamben faz um convite para todos
aqueles que estão envolvidos com as questões da atualidade política, a saber: o de reler textos
fundamentais para a formação da fisionomia política do Ocidente. Essa postura não é diferente aqui.
Para o filósofo italiano, no encontro de Pilatos e Jesus “estava em questão um evento enorme e
inédito”, isto porque, aqui, “como nunca em outro lugar na história do mundo, a eternidade cruzou a
história em um ponto exemplar, o temporal foi atravessado pelo eterno. Importava-me entender
isso, esse grito e essa recíproca perfuração entre os dois mundos era o quebra-cabeça que eu senti
que devia resolver” (AGAMBEN, 2013a, s/p.). Esse cruzamento não é uma mera curiosidade do
filósofo italiano. Se nos lembrarmos do que já foi apresentado tanto na introdução quanto no
primeiro subtópico da presente tese, existe uma afirmação recorrente do filósofo italiano de que a
vitalidade de nossas sociedades depende de um ajuste fino, justamente, entre esses dois mundos que

22
É importante ressaltar que estamos conscientes de leituras críticas que são feitas ao texto agambeninano e sua
interpretação idiossincrática do evento de julgamento de Jesus. Em especial o recente e muito bem construído artigo
científico de D. L. Dusenbury onde ele deixa explícito que: “essas questões, colocadas por Agamben, são genuinamente
interessantes. Seu uso de fontes para colocá-los e resolvê-los, entretanto, é às vezes arrogante e, em outras – ao que tudo
indica – dissimulado. Já que Agamben leva ‘atenção aos documentos’ como uma regra metodológica básica; professa
‘seguir as leis da filologia histórica’; e compromete-se em Pilatos e Jesus a ‘avaliar cuidadosamente todos os detalhes
da crônica do confronto [de Jesus] [com Pilatos]’, esse tipo de indisciplina filológica só pode minar drasticamente suas
conclusões. Os escritos jurídico-filosóficos de Agamben viram uma década ou mais de apropriação intensamente
politizada e muitas vezes exótica. Ocasionalmente, eles têm sido objeto de polêmica. No entanto, eles têm menos
frequentemente recebido críticas rigorosas em seus próprios termos. É, portanto, precisamente uma crítica filológica dos
argumentos filológicos feitos em Pilatos e Jesus que ofereço neste artigo. O resultado é uma demonstração de que
Pilatos sentenciou Jesus à morte na cruz romana” (DUSENBURY, 2017, p. 343). Para além do fato de que a presente
tese também tem a intenção de ser uma leitura não só de diálogo, mas também de antítese com os usos que Agamben
faz de alguns elementos em sua filosofia, acreditamos que a interação dos escritos do filósofo italiano com a
argumentação do erudito e acadêmico bíblico Jacob van Bruggen é proveitosa para sanar os desequilíbrios que
Agamben eventualmente possa ser acusado.
65
se cruzaram de maneira paradigmática no processo de Jesus. Toda a filosofia de Agamben é
construída a partir do desenvolvimento dessa dualidade. Segundo a explicação de um de seus
comentadores, o professor de literatura e filosofia contemporânea na Brunel University, West
London, William Watkin, “seu sistema filosófico é tornar aparente e então declarar indiferentes
todas as estruturas de oposição diferencial que subjazem na raiz, assim ele crê, de toda principal
assinatura conceitual ou estrutura discursiva do Ocidente” (WATKIN, 2013, p. 39). Em outras
palavras, é como se toda a filosofia de Agamben fosse uma contundente crítica dessa cumplicidade
metafísica entre identidade e diferença que se revelam de diversos modos nas contingências
históricas, formando uma unidade singular na tradição ocidental. Seu esforço em tornar essa
unidade indiferente é sinônimo de insistir em “suspender sua apresentação como formando uma
unidade singular de diferença oposicional, em luta: um e muitos, soberania e governo, zoe e bios e
assim por diante, sem reconstitui-las, pois, como uma unidade” (WATKIN, 2013, p. 39). No caso
do encontro de Pilatos e Jesus, a diferença oposicional em questão é a da eternidade com a história.
Iremos nos dedicar detalhadamente às contribuições e limites da operação de suspensão
indiferente agambeniana no segundo capítulo. Nossa intenção nesse momento, entretanto, é mostrar
como a a narrativa sobre o processo sem julgamento de Jesus se insere no conjunto maior da obra
do italiano. Argumentaremos que nela encontramos um paradigma privilegiado para pensar, uma
vez mais, essa operação dual da tradição metafísica ocidental, bem como as condições de sua
inoperosidade. Quanto a isso, significativo para Agamben é o fato de que, na narrativa de Pilatos e
Jesus, esse encontro acontece na forma de um processo sem julgamento — mantendo conectados,
assim, vários interesses do filósofo italiano. Em suas próprias palavras,

Mas a esse enigma logo se sobrepunha outro, ainda mais tenaz, mais obscuro, e,
nele, o próprio Pilatos era o elemento decisivo, em todos os sentidos. Por que o
cruzamento entre os dois mundos, o humano e o divino, o histórico e o que não tem
história, tem a forma de um processo? Dei-me conta, lentamente, mas com clareza
cada vez mais crescente, que esse, e não outro, era o problema com o qual eu tinha
que me deparar, com o qual, “no pavimento de pedra que em hebraico se diz
Gabatá”, tiveram que se deparar, em última análise, cada um a seu modo, tanto
Pilatos, o juiz, quanto Jesus, o acusado. O encontro entre o divino e o humano tem a
forma de um processo, de uma krisis (krisis em grego significa o juízo em um
processo). Mas justamente aqui as coisas se complicavam de modo inextrincável.
Porque, enquanto eu analisava o texto do Evangelho de João, tornava-se cada vez
mais evidente para mim que, no término da sexta hora, o juiz não tinha pronunciado
um juízo, tinha simplesmente “entregue” Jesus – assim dizem concordemente os
evangelistas – aos sinedritas e aos carnífices. Durante toda a duração do processo,
Pilatos, aliás, só tinha tergiversado, tentando primeiro se declarar incompetente e
remeter o juízo a Herodes, propondo depois uma anistia para a Páscoa, finalmente
fazendo com que o acusado fosse flagelado para isentá-lo da acusação maior. Mas
quando todo expediente, toda tergiversação resultara vã, ele não pronuncia o juízo,
limita-se a “entregar” Jesus. Houve um processo – ou, ao menos, um simulacro de
processo: mas ele não concluiu com um juízo. Ainda mais enigmático se tornava o
meu problema. O que é, de fato, um processo sem juízo? E o que é uma pena – neste
caso, a crucificação – que não deriva de um juízo? (AGAMBEN, 2013a, s/p.).

66
Em meio as muitas leituras possíveis da narrativa do processo que Jesus foi submetido, a
diferença específica que Agamben nos chama atenção é a sua estrutura jurídica de um processo que
não chegou ao fim. Quando os leitores acompanham toda a reconstrução das cenas de tal
julgamento, presentes tanto no Evangelho de João, como também reconstruídas no livro de
Agamben, fica evidente que Pilatos, na condição de juiz não pronunciou nenhum juízo no processo
de Jesus. O relato termina com o prefeito da Judeia “entregando” Jesus aos seus algozes. O que
chamou a atenção do filósofo italiano é que existiu um processo, mas ele não foi concluído com um
juízo. O encontro da cidade terrena com a cidade celestial aconteceu na forma de um processo
jurídico sem fim. Para além da curiosidade histórica, tal acontecimento levanta perguntas
fundamentais para uma investigação filosófica, tal como a presente tese que ocupa-se em
reconstruir uma genealogia do governo infinito da população. A saber, a pergunta que Agamben
menciona: o que é um processo sem juízo? Que estrutura jurídica é essa que mantém-se
indefinidamente sem dar fim a krisis em questão?
Agamben explora cada uma dessas características em sua argumentação sobre a estrutura de
23
um processo sem juízo. A começar pela arqueologia do próprio ato de julgar, que em grego se
denomina krisis e que significa, literalmente, separar ou de-cidir. Segundo Agamben, ao lado desse
significado jurídico, “convergem, no termo, tanto um significado médico (krisis como momento
decisivo na evolução de uma doença, quando o médico deve ‘julgar’ se o doente morrerá ou
sobreviverá)”, como também diz respeito a um significado “teológico (o Juízo Final: en emerai
kriseos, ‘no dia do Juízo’, é a advertência que retorna mais vezes à boca de Jesus” (AGAMBEN,
2014, p. 33). Vale ressaltar, no entanto, que o termo grego utilizado pelo evangelista João é bema,
que se refere a cátedra no qual se assenta aquele que pronunciará a sentença em questão. Conforme
o relato evangélico, “Pilatos procurou libertar Jesus, mas os judeus gritavam: ‘Se deixares esse
homem livre, não és amigo de César. Quem se diz rei opõe-se a César’”; ao ouvir isso, “Pilatos
trouxe Jesus para fora e sentou-se na cadeira de juiz [bema], num lugar conhecido como Pavimento
de Pedra (que em aramaico é Gábata)” (Evangelho de João, 19.12-13). Tudo isso chama muito a

23
Através de uma investigação minuciosa do texto agambeniano, o pesquisador D. L. Dusenbury chama nossa atenção
para uma estrutura presente na forma de Agamben redigir seu texto. Quando a isso, ele diz o seguinte:
“superficialmente, o texto de Agamben não tem estrutura – além de sua divisão em dezenove seções numeradas (mas
sem título) e sete seções não numeradas (e sem título). As sete seções não numeradas do texto são melhor tratadas como
sua rubrica sugere: elas são as ‘glosas’ de Agamben. O leitor pode usá-los para esclarecer ou ampliar o significado de
seu núcleo, seções numeradas. Mas, embora as seções numeradas de Agamben não tenham títulos e não exibam
nenhuma ordem óbvia, sugiro que elas podem, no entanto, ser distribuídas em cinco grupos definidos – se não sempre
discretos: credo (§§1–2), apócrifo (§§3-5), exegético (§§6-9, 13-14), teológico (§§10-12), político (§§15-19)
(DUSENBURY, 2017, p. 243). A observação de Dusenbury é importante para nos mostrar as diferentes camadas em
que o texto agambeniano se move e nos permite também identificarmos de que ordem são seus argumentos que iremos
reconstruir ao longo da presente seção.

67
atenção de Agamben, que enxerga nessa cena o encontro de dois bematas, dois juízes que se
confrontam e geram uma inoperosidade do direito temporal, uma vez que a estrutura deste é usada
para julgar outro bema. Ou ainda, conforme coloca Agamben: “é o mundo dos fatos que deve julgar
o da verdade, o reino temporal que deve pronunciar um julgamento sobre o Reino eterno”
(AGAMBEN, 2014, p. 34). Para o filósofo italiano essa configuração é paradigmática e, “ainda
mais necessário é avaliar com cuidado cada detalhe da crônica desse enfrentamento decisivo, dessa
krisis histórica que, de algum modo, está sempre em curso” (AGAMBEN, 2014, p. 34).
Nesse sentido, a despeito do termo krisis não aparecer no texto evangélico, o que está
acontecendo no encontro de Pilatos e Jesus é, precisamente, um estranho esforço do juiz de manter
indefinidamente o processo em um estado de krisis sem fim. O encontro de Pilatos com Jesus se dá
na forma de um processo jurídico que não termina no julgamento, na decisão, no momento de juízo.
Pilatos, independentemente de sua posição política no Império Romano, não se vê capaz de assumir
a postura de juiz no processo de Jesus e emitir um juízo. Tudo isso faz com que esse encontro dos
dois bematas, dos dois juízes, assuma a forma de um estado de suspensão sem fim da krisis. 24
Tal incapacidade de Pilatos pronunciar-se como juiz competente para o caso de Jesus nos
leva para outras perguntas, mencionadas por Agamben, mas pouco exploradas pelo filósofo no seu
breve texto. Por exemplo, a estranheza no fato de que Pilatos foi escolhido pelos membros do
Sinédrio para julgar o caso de Jesus e não Herodes ou mesmo Tibério, já que acusação preliminar
era de crime contra a soberania de César. Até mesmo as hesitações em pronunciar-se no caso de
Jesus nos fazem perguntar, por que Pilatos? Agamben menciona esse ponto quando nos diz que “o
comportamento de Pilatos durante o julgamento devia parecer enigmático, mas era essencial que,
por algum motivo, o julgamento acontecesse perante o prefeito” (AGAMBEN, 2014, p. 32). Quanto
a esse questionamento, a respeito do porquê da necessária presença do prefeito no julgamento, o
especialista em Novo Testamento, Jakob van Bruggen nos auxilia muitíssimo. Para o teólogo
holandês, existe uma trama de múltiplos níveis envolvendo o julgamento de Jesus que precisa ser
desembaraçada para que possamos compreender corretamente porque o episódio paradigmático do
encontro dos dois reinos fundamentalmente distintos aconteceu na forma de uma krisis suspensa
pela indecidibilidade. Para van Bruggen, o núcleo desse jogo de interesses aparece na declaração
24
Uma vez mais, Dusenbury é instrutivo ao nos lembrar do seguinte: “este é o lugar para apontar que a tese jurídica de
Pilatos e Jesus não é originária de Agamben. Já no século XVII, Thomas Hobbes poderia escrever que ‘Pilatos ... sem
encontrar culpa nele, entregou [Cristo] aos judeus para serem crucificados’. A elisão do julgamento de Pilatos, aqui,
sinaliza uma negação – e esta leitura do julgamento de Jesus antecede Hobbes em pelo menos 1300 anos. Haverá mais
sobre isso posteriormente. Mais próximo do nosso propósito aqui é que a tese do não julgamento de Pilatos manteve
uma presença na literatura crítica, pelo menos desde o aparecimento de Il processo di Gesú de Giovanni Rosadi.”
(DUSENBURY, 2017, p. 353). Em outra altura do seu texto, ele também lembra que: “Agamben afirma que ‘a
interpretação tradicional do julgamento de Jesus ... deve ser revisada’ à luz de Pilatos e Jesus, mas não há nada de novo
em sua tese que Pilatos falhe em pronunciar uma sentença. Pelo contrário, essa ideia é maliciosamente tradicional. Sua
boa-fé do século XX já foi esboçada, mas a ideia do não-julgamento de Pilatos se originou na antiguidade e atraiu
polêmica ao longo do início do período moderno” (DUSENBURY, 2017, p. 359).
68
que os denunciantes de Jesus fizeram a Pilatos: “a nós não nos é lícito matar ninguém” (Evangelho
de João 18.31). De acordo com o contexto maior da passagem, está claro que essa proibição se
refere a uma execução baseada no regulamento judaico. Ademais, van Bruggen também direciona
nossa atenção para o fato de que: “eles não deliberam se iam mandar assassiná-lo (phoneusai), mas
se eles mesmos (!) iam matá-lo (apokteinai). Nenhuma palavra foi dita sobre entregá-lo ao
governador, o que seria um passo óbvio se eles não tivessem o direito de pronunciar e executar
sentenças de morte” (VAN BRUGGEN, 2005, p. 216). Em resumo, o teólogo holandês levanta o
questionamento sobre a possibilidade dos judeus administrarem sua própria justiça no interior do
Império Romano. Essa pergunta, apesar de sua presença muito sutil na investigação de Agamben, é
fundamental para compreendermos o descompasso em que estavam as expectativas messiânicas do
Sinédrio em relação àquelas apresentadas por Jesus diante de Pilatos.
Sabemos que fazia parte da postura colonizadora romana manter uma autonomia relativa na
administração da justiça pública de suas colônias. Esse era o fato com os judeus. Van Bruggen
explica que o Sinédrio, porém, não era um tribunal da Judeia. Ele era, na verdade, uma espécie de
“supremo tribunal para toda a Palestina e todos os judeus. O Sinédrio continuava a ter direitos,
embora limitados, como é evidenciado pelo fato de que os romanos se reservavam o direito de
nomear o sumo sacerdote, que era o presidente do Sinédrio” (VAN BRUGGEN, 2005, p. 217). Com
essa nomeação, o conselho judaico permanecia sob o controle romano, uma vez que qualquer
discussão que não agradasse as autoridades romanas poderia ser contornada pela deposição do
cargo de presidente do conselho. Não obstante às rédeas curtas que o Império mantinha sobre a
comunidade judaica, não lhes era tirado a possibilidade de administrarem sua própria justiça. Antes
o contrário, se o Sinédrio fosse um mero conselho consultivo, não haveria necessidade de controlar
suas ações. Uma das provas de que, durante o governo romano o sistema jurídico judaico foi
mantido em funcionamento é a história de um dos julgamentos de Paulo de Tarso. Seguindo uma
estrutura muito parecida com a narrativa do encontro de Pilatos e Jesus, somos informados que:

Nessa história temos ampla evidência que os judeus puderam pedir que os romanos
lhes mandasse Paulo “para investigar mais acuradamente a sua causa” (At 23.15) e
para que eles mesmos o julgassem segundo a sua própria lei (At 24.6). Quando
Paulo apelou para o imperador, ele fez isso para evitar um julgamento judaico.
Festo queria que ele fosse para Jerusalém para ser julgado (em sua presença) pelo
Sinédrio. Paulo não queria fugir de uma pena de morte caso ele mesmo a merecesse,
mas ele percebeu que Festo já sabia que ele não tinha feito nada que merecesse
punição e, por isso, recusou ser entregue aos judeus como vítima: “para lhes ser
agradável” (At 25.9-11). O favor que Festo queria fazer aos judeus pressupõe que o
Sinédrio tinha permissão para julgar um crime. Como cidadão romano, porém,
Paulo não podia ser entregue sem motivo a esse tribunal judaico (VAN BRUGGEN,
2015, p. 217).

69
Alguns aspectos da des-confiança paulina na lei judaica serão mais exporados no próximo
capítulo. Justamente por esse motivo, é importante já inserir seu episódio na discussão mais ampla
sobre as expectativas messiânicas em relação a essa tradição judaica e sua relação com o Império
Romano. Ademais, van Bruggen nos auxilia a entender isso melhor quando deixa claro que Paulo
não apelou para César para evitar um julgamento de Festo — que estava na mesma posição de
Pilatos. Antes, o que Paulo buscava evitar era um julgamento judaico. Com isso, fica evidente que o
Sinédrio tinha autonomia para julgar e sentenciar processos sérios em sua comunidade —
culminando, inclusive, na pena de morte dos acusados. Em resumo, a situação em que se encontrava
a Palestina no tempo de Pilatos e Jesus era a de que “os judeus impunham sua própria justiça
religiosa (inclusive as punições envolvidas), por meio de Sinédrios menores e também por meio do
grande Sinédrio de Jerusalém”, os romanos, por sua vez, “eram guardiões da lei romana na
Palestina. Essa coexistência de corpos judiciais dava ao governador o direito de ter qualquer crime
que fosse punível tanto pelas leis romanas, como elas leis judaicas, julgado por um tribunal
romano” (VAN BRUGGEN, 2005, p. 219).
Apesar da complexa trama formada pela coexistência de dois sistemas judiciais, a primeira
acusação que o Sinédrio fez a Jesus perante Pilatos não assumiu nem a natureza judaica, muito
menos a romana. Agamben observa que: “Pilatos sai e pergunta: ‘qual a acusação (kategorian) que
trazeis contra esse homem?’. A pergunta é coerente com a estrutura do processo romano, que
começa com a inscrição da acusação que deveria ser determinada e não caluniosa” (AGAMBEN,
2014, p. 35). Entretanto, o que salta aos olhos dos leitores do relato evangélico é que os judeus não
formulam nenhuma acusação, nem de cunho religioso ou de falta pública. Ao invés disso, “se
limitam a declarar genericamente que ‘se este não fosse um malfeitor não o teríamos entregado a ti
(paradokamen)’” (AGAMBEN, 2014, p. 35). Essa situação colocou o prefeito da Judeia na
necessidade de questionar os judeus se o acusado não poderia ser julgado segundo as próprias leis
judaicas — pergunta essa que seguia a lógica processual ordinária, uma vez que “enquanto a
acusação não tivesse sido formalizada, a lei romana não poderia ser aplicada” (AGAMBEN, 2014,
p. 35).
Para o filósofo italiano, é a réplica dos judeus (“a nós não é permitido matar”) ao
questionamento sobre a viabilidade de administrarem internamente o caso de Jesus que “marca uma
reviravolta no comportamento de Pilatos” (AGAMBEN, 2014, p. 35). A partir desse momento, o
representante público do Império parece interpretar o caso como um crime de lesa-majestade
cometido contra a segurança do povo romano. A essa altura do processo, surge um dos diálogos
mais marcantes entre Pilatos e Jesus para sustentar a tese de que o que estava em jogo ali era o

70
encontro dos juízes de duas cidades muito distintas. Segundo a reconstrução que Agamben faz da
passagem bíblica seguida de seus comentários, podemos ler o seguinte:

Nesse momento, acontece o primeiro e acirrado confronto entre Pilatos e Jesus.


“Então, Pilatos entrou novamente (eiselthen palin) no pretório, chamou Jesus e lhe
perguntou: ‘És tu o rei dos judeus?’. Jesus respondeu: ‘Dizes isso por ti ou outros te
disseram isso de mim?’. Respondeu Pilatos: ‘Talvez seja eu um judeu?’ A tua nação
(to ethnos to son) e os sumos sacerdotes te entregaram a mim. O que fizeste?” O
sintagma “rei dos judeus” (basileus ton Ioudaion), que será em seguida uma função
tão decisiva, aparece aqui pela primeira vez no processo. A julgar por sua réplica,
Jesus não esperava a pergunta: de fato o que tem a ver o prefeito romano com uma
questão interna do judaísmo, como era a expectativa hebraica do messias? Pilatos
parece ler seus pensamentos: “Talvez seja eu um judeu?”. Começa aqui o diálogo a
respeito do Reino e da verdade, sobre o qual foram escritas inúmeras páginas. Ao
invés de responder à pergunta: “O que fizeste?”, Jesus replica à precedente: “o meu
reino não é deste mundo (He Basileia he eme ouk estin ek tou kosmou toutou). Se
meu reino fosse deste mundo, os meus servos teriam combatido por mim, a fim de
que eu não fosse entregue aos judeus. Ora, o meu reino não é daqui”. A resposta é
ambígua, porque nega e, ao mesmo tempo, afirma a condição régia. Os antigos
comentários, de Agostinho a Crisóstomo até Tomás, insistem em concordar nesse
ponto. […] “o meu reino não é deste mundo” significa que não se origina da causa
mundana e da escolha dos homens, mas vem de outro lugar, isto, do Pai
(AGAMBEN, 2014, p. 36-37).

Os contornos do contraste entre o reino messiânico de Jesus e o imperio temporal de Pilatos


começaram a se tornar nítidos quando nem mesmo uma acusação pode ser formulada nesse
processo. Além disso, van Bruggen comenta esse ponto dizendo que, na primeira apresentação que
os membros do Sinédrio fizeram do caso para Pilatos, os judeus vêem o caso de Jesus como uma
questão que “o próprio juiz romano deve assumir, solucionar e levar a uma conclusão. A natureza
do crime exigia isso — Jesus era um malfeitor. Ao entregar Jesus, eles mostraram a Pilatos que ele
estava lidando com um homem culpado perante a lei romana” (VAN BRUGGEN, 2005, p. 220).
Entretanto, a despeito dessa tentativa de vincular o processo de Jesus à lei romana, Pilatos desde o
começo não reconhece a plausibilidade de tal vinculação. Agamben mostra acima que, na forma de
suas perguntas, Pilatos estava entendendo que todo aquele processo se tratava de uma questão
interna ao judaísmo. Nesse aspecto, van Bruggen concorda com o filósofo italiano e diz que
“Pilatos não aceitou essa argumentação — ele consegue enxergar além dela. Ele sabia muito bem
que se tratava de um problema interno judaico” (VAN BRUGGEN, 2005, p. 220). E é, justamente,
aqui que surge o principal questionamento de Agamben em todo o seu pequeno livro: o que tem a
ver um juiz romano com as expectativas e cumprimentos de promessas messiânicas? Nesse
atravessamento entre a cidade dos homens e a cidade de Deus desvela uma “krisis histórica que, de
algum modo, está sempre em curso” (AGAMBEN, 2014, p. 34).

71
As diferentes manobras de Pilatos, que o faziam tergiversar constantemente dos interesses
dos membros do Sinédrio, não podem ser compreendidas como sinais de descaso com o que estava
acontecendo ali. Na verdade, trata-se do contrário. Depois de dizer que “eu não acho nele crime
algum” (Evangelho de João 19.6), os membros do Sinédrio lhe explicaram melhor suas intenções,
dizendo: “temos uma lei, e, de conformidade com a lei, ele deve morrer, porque a si mesmo se fez
Filho de Deus” (Evangelho de João 19.7). Com essas palavras, ficou evidente para Pilatos que se
tratava de um caso que merecia julgamento — no entanto, precisava ser resolvido internamente.
Conforme as explicações de Van Bruggen, “Pilatos levou a sério a acusação interna judaica (a qual
inicialmente não tinha sido mencionada; Jo 18.28-32) como uma acusação que merecia uma
sentença de morte” (VAN BRUGGEN, 2005, p. 220). Não obstante sua anuência ao crime interno
da lei judaica, Pilatos reserva-se no direito de não aplicar a lei romana ao caso de Jesus, mas, tão
somente, cooperar com a administração jurídica judaica. O direito romano, simplesmente, não se
aplica ao caso. Agamben alcança as mesmas conclusões e nos diz o seguinte:

Não tendo encontrado culpa no acusado, Pilatos deveria ter emitido um veredito de
inocência (a fórmula prevista no processo romano era absolvo [eu absolvo] ou
videtur non fecisse [parece não ter feio nada], ou suspendido o processo e pedido
uma complementação do inquérito […]. Ele pensa, ao contrário, em resolver o caso
servindo-se da anistia pascal. Durante todo o processo — é um fato sobre o qual é
necessário refletir —, Pilatos procura insistentemente evitar proferir um veredicto.
Mesmo no fim, quando cede à tumultuosa insistência dos judeus, o prefeito não
profere, como veremos, uma sentença, limitando-se a “entregar" (paradoken) o
acusado aos hebreus. […] “Pilatos, vendo que não havia o que fazer, mas que o
tumulto podia crescer, pegou água e lavou as mãos diante da multidão, dizendo:
‘Sou inocente do sangue deste justo’” (AGAMBEN, 2014, p. 39-40).

O clímax do encontro entre Pilatos e Jesus nos conduz a nossa última pergunta, mas a que
acreditamos ser a mais fundamental para o presente subtópico. A questão que insiste em manter-se
acoplada ao relato do processo de Jesus é referente à necessidade de Pilatos ser o condutor de tal
processo sem julgamento. Não é algo simples se perguntar, a despeito de toda inaplicabilidade do
direito romano às questões internas do judaísmo, por que o Sinédrio insistiu em colocar nas mãos de
Pilatos o caso de Jesus? Por que, mesmo pronunciando várias vezes a inocência de Jesus e
tergiversando-se de emitir uma sentença referente ao direito romano, ao final, Pilatos é quem
entrega Jesus para a crucificação? Em síntese, a razão que leva Pilatos a procurar, insistentemente,
evitar proferir um veredicto é um fato sobre o qual é necessário refletir.
Na ininterrupta insistência do Sinédrio em manter nas mãos romanas de Pilatos a execução
de Jesus há uma trama de intenções que sustenta a estrutura de um processo sem fim. Encoberta
pelos vários diálogos entre Pilatos e as lideranças judaicas, existe um núcleo oculto que dá suporte a
essa suspensão indefinida da krisis. Quem nos conduza até o centro dessas intenções veladas é, uma

72
vez mais, Jakob van Bruggen. Através de uma investigação detalhada das práticas jurídico-
religiosas da comunidade judaica no período de Pilatos e, principalmente, no caso envolvendo
Jesus, o teólogo de Kampen argumenta a favor da hipótese de que o Sinédrio foi forçado a apelar ao
tribunal romano em razão de seu calendário religioso. Segundo van Bruggen, “ambos os
evangelistas mostram claramente que agora faltavam exatamente dois dias para a Páscoa e a Festa
dos Pães Asmos”, e isso afetava consideravelmente as tentativas do Sinédrio para levarem Jesus aos
juízes, julgá-lo e matá-lo, pois “se Jesus deveria ser morto, isso deveria ser feito pela astúcia, caso
contrário todo o julgamento acabaria acontecendo durante a festa. Há uma ligação estreita entre ‘à
traição’ e ‘não durante a festa’” (VAN BRUGGEN, 2005, p. 234). Em outras palavras, isso
significa dizer que o tribunal judaico se viu na obrigação de tecer uma complexa rede de imposturas
para assegurar, ao mesmo tempo, que Jesus fosse condenado, sem que a responsabilidade de sua
execução caísse em suas mãos — que estavam impossibilitadas de julgá-lo em razão da
consagração necessária para a principal festa do calendário judaico.
A forma como o Sinédrio conduziu essa trama é importante para nossa investigação, uma
vez que o que está em questão no julgamento de Jesus perante Pilatos “dizia respeito ao modo de
execução” (VAN BRUGGEN, 2005, p. 235). Isso aconteceu porque, no complexo corpo de leis
judaicas, existia parâmetros muito claros sobre a condução do processo de alguém. Somos
informados, por exemplo, “uma sentença de morte oficial nunca podia ser executada no mesmo dia
em que ela era pronunciada. Depois que o Sinédrio tivesse condenado alguém à morte, devia
passar-se uma noite de reflexão antes que a execução pudesse ser realizada” (VAN BRUGGEN,
2005, p. 235). Na narrativa evangélica sobre o processo de Jesus, lemos que os líderes judaicos
passaram a semana toda tentando encurralar Jesus com perguntas insidiosas. Entretanto, a quarta
feira já havia terminado e, caso Jesus fosse julgado e condenado na quinta feira, ele só poderia ser
executado na sexta — o primeiro dia da festa da Páscoa, fazendo com que o Sinédrio chegasse a um
impasse. Segundo explica o teólogo de Kampen, “as execuções não eram permitidas no dia 15 de
Nisã, que era um dia de festa, como também no sábado seguinte. […] Eles decidiram por uma
mudança e terminaram com um plano para matar Jesus à traição” (VAN BRUGGEN, 2005, p. 235).
Essa opção evitaria, tanto um julgamento legal em dias proibidos, como também os conflitos com
os peregrinos que estavam chegando à Jerusalém nos dias de festa e que eram simpatizantes à causa
de Jesus.
Pilatos foi colocado em um curso de acontecimentos alimentados por preciosismos legalistas
da religião judaica e motivações políticas de conter qualquer tumulto que Jesus pudesse provocar.
Essa é a interpretação mais acurada do encontro de Pilatos com Jesus, que van Bruggen nos auxilia
a alcançar:

73
O curso dos acontecimentos da Sexta-feira Santa revela que a estratégia mudou
de um julgamento pelo Sinédrio para uma condenação pelos romanos. O
governador tinha a liberdade de fazer coisas que os líderes judaicos estavam
impedidos de fazer por suas leis e tradições. Essa mudança, para um outro tipo
de julgamento, tinha implicações para a maneira como Jesus seria morto. Não
seria por apedrejamento, mas por crucificação. Como o Sinédrio não podia
tolerar um adiamento – por temor de um levante popular em apoio a Jesus – a
profecia improvável de Jesus de que ele seria crucificado foi cumprida (VAN
BRUGGEN, 2005, p. 235).

Não só a maneira como Jesus seria executado, mas a mudança para outro tipo de tribunal em
que seria julgado o rei dos judeus tem implicações para compreendermos a estrutura de um
processo que teve sua krisis suspensa e que assume aquela dinâmica histórica que Agamben diz
estar, de algum modo, sempre em curso em nossas sociedades ocidentais. As ardilosas tramas do
Sinédrio e as evasivas posturas de Pilatos no julgamento de Jesus apontam para além de si mesmas.
Elas no ajudam a compreender a inoperosidade jurídica de um processo sem krisis, em que um
prefeito romano é colocado para julgar uma questão interna às expectativas messiânicas hebraicas.
Toda a estrutura do julgamento de Jesus não apenas desrespeitou a práxis romana, como mostrou
Agamben anteriormente, como também procedeu de maneira ilegítima do ponto de vista judaico,
conforme argumenta van Bruggen.
Pelo menos três pontos fundamentais no julgamento de Jesus demonstram sua discrepância
com o as leis rabínicas. Resumidamente, podemos dizer que: (1) o Sinédrio não poderia tratar de
crimes que exigiam sentença de morte durante uma seção noturna. No entanto, foi exatamente isso
que aconteceu naquela ocasião: “sob a liderança do sumo sacerdote Caifás, todo o Sinédrio - os
principais sacerdotes, os interpretes da lei e os anciãos – reuniram-se à noite (Mc 14.57,59). […]
Essa sessão noturna era anormal e oficiosa” (VAN BRUGGEN, 2005, p. 242); além disso, (2) o
Sinédrio não poderia tratar de crimes que exigiam sentença de morte durante uma única sessão e em
um único dia. Entretanto, “isso também não ocorreu, porque o julgamento foi transferido, por meio
de astúcia, para o tribunal do governador romano, de modo que o Sinédrio pudesse ficar isento de
toda a culpa nesse ponto” (VAN BRUGGEN, 2005, p. 236); e, por fim, (3) o Sinédrio não poderia
reunir-se para uma sessão fora do complexo do templo. Não obstante, “nessa noite, em vez de se
reunirem na sala oficial de reuniões, eles se encontraram na casa do presidente. Essa sessão noturna
era anormal e oficiosa” (VAN BRUGGEN, 2005, p. 243). Em tudo isso, percebemos que, a
despeito do fato do corpo jurídico rabínico estar em vigor e convivendo paralelamente ao corpo
jurídico romano, a estrutura do processo de Jesus assumiu, ao mesmo tempo, a forma de um
julgamento ilegal do ponto de vista judaico e ilegítimo da perspectiva romana. Na verdade, o que
buscamos sustentar aqui com toda nossa argumentação é que a estrutura de um julgamento que

74
mantém suspensa indefinidamente sua krisis e limita-se a meramente entregar o réu à morte é, na
verdade, a consequência de tal ilegalidade e ilegitimidade. No núcleo de tal encontro, tão
importante na filosofia de Agamben, está uma série de atos ilegais que se apresentaram como força-
de-lei para constranger o tribunal romano a pronunciar-se.
Em um contrassenso jurídico tão absurdo, que nos ajuda a entender melhor a situação de
incapacidade de Pilatos emitir juízo, a estrutura de um processo que não termina com uma krisis, é
marcado por uma hipertrofia ilegítima do aparato legal. Podemos chegar a essa conclusão
preliminar a partir das seguintes considerações de van Bruggen:

Teria sido muito mais simples mandar matar Jesus no Getsêmani por servos pagos
para isso. Porém, os líderes sentiam-se compelidos agir de um modo que era
“correto” em cada detalhe, porque o povo simpatizava com Jesus e vigiava
cuidadosamente o comportamento dos líderes. Embora o coração e a mente deles
fossem extremamente tendenciosos, os líderes tinham de ser muito cuidadosos
quanto a manter uma aparência de legalidade durante o julgamento. […] Entretanto,
isso não significa que o Sinédrio estivesse agindo sem consideração para com essas
leis. Pelo contrário, foram regulamentações das leis que forçaram os membros do
conselho a mudar o curso da ação face da aproximação do dia de festa e do sábado.
Eles tiveram de tramar uma artimanha para não entrar em conflito com as leis, o que
teria sido inevitável se a acusação criminal contra Jesus tivesse sido feita na quinta-
feira, na sexta-feira ou no sábado que se seguiu. A porta para um julgamento judaico
se fecha por agora, na noite de quarta-feira. […] Com base nisso é possível ler a
declaração dos judeus em João 18.31 (“a nós não é licito mata ninguém”) como se
referindo ao caráter especial desse dia. O dia 15 de Nisã era o primeiro dia da
Páscoa, e, assim, um dia santo. Pilatos era livre para fazer o que quisesse, mas aos
judeus não era permitido matar ninguém nesse dia (VAN BRUGGEN, 2005, p. 240).

É na perspectiva dessa tentativa “correta”, mas ilegal e ilegítima, que o encontro entre
Pilatos e Jesus deve ser compreendido. Nela escondem-se perguntas que Agamben julga necessárias
para a reflexão filosófica contemporânea. Por exemplo, o filósofo italiano nos pergunta “por que
encenar um processo (ou o simulacro de um processo) e por que as tergiversações, os subterfúgios,
as declarações de inocência do imputado?” (AGAMBEN, 2014, p. 48). Em harmonia com o que foi
argumentado no subtópico anterior a respeito na necessária glória para o poder ilegítimo de uma
krisis em indefinida suspensão, também aqui vemos a encenação ritualística de um processo
jurídico que procura camuflar o vazio que se encontra no núcleo das intenções religiosas e políticas
do Sinédrio. E, apesar de todas as insistentes investidas do conselho judaico sobre Pilatos, “o
prefeito não profere, como veremos, uma sentença, limitando-se a ‘entregar’ (paradoken) o causado
aos hebreus” (AGAMBEN, 2014, p. 40).
Em uma daquelas ironias que somente os que estão atentos ao movimento da história
conseguem observar, o encontro entre os juízes da cidade de Deus e a da cidade dos homens
aconteceu na forma de um processo jurídico temporal sem fim motivado por escrúpulos religiosos.
O legalismo com o cerimonial da festa messiânica por excelência levou o Sinédrio a condenar
75
aquele que se apresentava diante do poder imperial romano justamente como promessa messiânica
de rei dos judeus. Em outras palavras, o que está subentendido no esforço dos membros do Sinédrio
é a consciência de que: “era moral e religiosamente justificável que um blasfemador fosse morto”,
todavia, como eles mesmos não podiam administrar a justiça judaica, “decidiram entregar esse caso,
principalmente, para que eles mesmos não tivessem mais que se envolver com ele durante a semana
de festa. O motivo interno deles para essa entrega foi que Jesus Cristo se dizia Filho de Deus”
(VAN BRUGGEN, 2005, p. 247).
Para os propósitos da presente tese, a compreensão de tais detalhes religiosos e jurídicos do
processo envolvendo Pilatos e Jesus é de fundamental importância. A escolha desse episódio da
história por parte de Agamben foi paradigmática, uma vez que todo o esforço dos sinedristas em
negar as afirmações e a própria presença messiânica de Jesus, através de uma suspensão da lei
judaica, provocou uma krisis sem fim — um processo sem sentença final. De forma exemplar, a
importância do tema da temporalidade messiânica para a política assume uma configuração muito
elucidativa para aquele paradigma governamental que descrevemos no primeiro tópico desse
capítulo como sendo uma racionalidade de governo que ainda se mantém em curso na gestão
infinita da população. De forma esquemática, o argumento é que: os judeus, enquanto povo
messiânico por excelência, ao escolherem suprimir a presença messiânica de Jesus apelando para
as leis do Império temporal de Roma, desencadearam uma zona cinzenta de exceção jurídico-
político que os colocava indefinidamente sob os auspícios de Pilatos — protagonizando, assim, uma
contradição performática nas expectativas messiânicas dos tempos do fim. Mesmo que as estruturas
jurídicas do Império não fossem capazes de desferir uma sentença ao caso de Jesus, enquanto um
juiz de outra ordem, a simples evocação de Pilatos e a abertura do processo fora das leis judaicas
atestava a opção do povo hebreu de deixarem as expectativas do Reino messiânico serem tragadas
pelo Império temporal — causando o fechamento do seu escritório escatológico.
Agamben tem consciência dessa corrupção das expectativas messiânicas por parte do
Sinédrio à custa de permanecerem bem estabelecidos na história ao curvarem-se ao poder temporal
do Império. Segundo explica o filósofo italiano:

Última cena, ao ar livre: “ouvindo essas palavras, Pilatos trouxe Jesus para fora
(egagen exo) e sentou-se no trono (ekathisen epi tou bematos), no lugar chamado
Lithostrotos (pavimento de pedra), em hebraico Gabbathà. Era a preparação para a
Páscoa, por volta da hora sexta. Pilatos disse aos judeus: ‘Eis o vosso rei!’. Mas eles
gritaram: ‘Fora! Fora! Crucifica-o!’. Disse-lhes Pilatos: ‘Crucificarei o vosso rei?’.
Responderam os sumos sacerdotes: ‘Não temos outro rei senão César’. Então, o
entregou (paradoken) a eles para que fosse crucificado”. Birckerman observou, com
razão, que o fato de Pilatos ter se sentado no trono só nesse momento significa que
todo o debate precedente não tem valor processual, mas privado […]. Além disso,
não é por acaso que, no momento de repentina rendição de Pilatos, a questão da
majestade de Jesus seja novamente evocada por Pilatos. Já que a acusação que o

76
Sinédrio move contra Jesus é justamente a pretensão messiânica à realeza, que os
hebreus rejeitam, mas que Pilatos, com sua pergunta, parece recolocar em pauta. A
questão do Reino de Jesus, mundano ou celeste que seja, continua suspensa até o
fim. E é precisamente por isso que a argumentação final dos membros do Sinédrio
(“Não temos outro rei senão César”) convence Pilatos a entregar Jesus
(AGAMBEN, 2014, p. 43-44).

Nenhuma rendição à temporalidade infinita do Império poderia ser mais explicita do que a
declaração dos líderes religiosos do povo hebreu dizendo que “Não temos outro rei senão César”. 25
E é precisamente aqui que se localiza a importância desse paradigma para a filosofia da história do
tempo do fim que pode ser construída a partir dos argumentos de Agamben. No núcleo mais central
da estrutura de um processo jurídico sem fim está a rejeição dos acontecimentos ou frentes de
resistência que podem freiar a condução infinita da população por um governo — acontecimentos
esses que são característicos das pretensões messiânicas de um reino que possa abalar o
estabelecimento infinito do Império. Jakob van Bruggen nos auxilia não só a compreender melhor a
dimensão dos temas messiânicos condensados nesse episódio da história, como também a ironia da
comunidade messiânica abrir mão de suas expectativas e entregar-se à infinitude da temporalidade
cronológica:

Os líderes judeus tentaram apresentar Jesus como um agitador popular que tinha
vindo para incitar o povo em toda a Palestina (Lc 23.5). Eles o acusaram de ter
proibido que se pagasse imposto ao imperador e decorava de si mesmo que era um
rei (Cristo) (Lc 23.2). O próprio Jesus respondeu as perguntas do governador sobre a
natureza do seu reinado (Jo 18.33-37), mas, de resto, ele se recusou a responder as
acusações que foram proferidas sem que existissem provas […]. A tentativa de
Pilatos de fugir da pressão dos líderes havia chegado a um beco sem saída. Porém,
Pilatos fez uma segunda tentativa para tirar proveito da popularidade de Jesus entre
o povo. Barrabás havia sido escolhido para ser solto, mas o que deveria ser feito com
Jesus? Esse não é o tipo de pergunta que deve ser feita publicamente, no pátio, na
frente do tribunal. O Sinédrio tinha entregado Jesus ao governador para que este o
julgasse. A partir do momento em que ele assumiu o processo, a questão tornou-se
um assunto da responsabilidade dele, como autoridade oficial romana. Desde
quando Roma consultava as massas a respeito de assuntos legais? Quando Pilatos
perguntou ao povo o que eles queriam que fosse feito com Jesus, isso mostra o
grande constrangimento em que a situação o tinha colocado. A multidão, então
começou a gritar, exigindo a crucificação […], em vez de serem acalmadas pela
visão da humilhação de Jesus, as pessoas tinham ficado frustradas. Pilatos não tinha
levado Jesus, como rei, a sério. Se ele fosse um rei, os judeus poderiam tomá-lo de
volta para si. Porém, um rei desse tipo era uma afronta ao orgulho nacional das
multidões. O povo virou as costas a um Cristo que se deixava humilhar pelo inimigo
dessa maneira. As pessoas não percebiam que o propósito dele, ao se permitir ser
humilhado, visava ao bem tanto dos judeus quanto dos romanos. […] Pilatos
percebeu que estava sendo usado para objetivos judaicos e, depois de uma breve

25
Agamben mostra como essa questão reaparece no processo de julgamento: “a questão da realeza volta com a fará da
inscrição (titulus) que Pilatos manda colocar sobre a cruz: ‘Jesus nazareno, Rei dos judeus’. Ao mencionar o motivo
pelo qual foi condenado, ela parece afirmar ao mesmo tempo a sua realeza. […] A ambiguidade da insígnia não deixa
de ser percebida pelos membros do sinédrio porque eles pedem a Pilatos para trocá-la ‘Não escreva ‘rei dos judeus’,
mas ‘que disse ser Rei dos judeus’. Aqui Pilatos pronuncia sua segunda frase histórica, que parece desmentir a outra,
igualmente célebre, sobre a verdade e com esta, suas precedentes tergiversações e todo suposto ceticismo”
(AGAMBEN, 2014, p. 44-45).
77
investigação das acusações recusou cooperar. […] Ele decidiu entregar Jesus ao
povo e aos líderes (VAN BRUGGEN, 250-253).

O constrangimento de Pilatos e a insuperável impossibilidade de dar fim ao processo de


Jesus apontam para a zona cinzenta de exceção e anomia que caracteriza o episódio de encontro
entre a história e a eternidade, o reino messiânico e o império temporal. Agamben coloca a
percepção desse constrangimento do prefeito da Judeia da seguinte forma: “de fato, o que tem a ver
o prefeito romano com uma questão interna do judaísmo, como era a expectativa hebraica do
messias?” (AGAMBEN, 2014, p. 36). E não somente isso, mas também outra questão que
Agamben levanta, pede elucidação:“ por que encenar um processo (ou um simulacro de processo) e
por que as tergiversações, os subterfúgios, as declarações de inocência do imputado?”
(AGAMBEN, 2014, p. 48). Para o filósofo italiano, somente na perspectiva da entrega (paradoken)
que esse episódio de Pilatos e Jesus não só pode ser compreendido, como também tornar-se
significativo para a investigação política contemporânea. À luz do que já argumentamos sobre a
necessidade de glória e esplendor para legitimar o poder governamental, torna-se mais fácil
responder tais perguntas de Agamben. Nas palavras do próprio filósofo:

O papel do profeta da Judeia e do julgamento, da krisis que deve proferir, não se


inscreve na economia da salvação como um instrumento passivo, mas como um
personagem real de um drama histórico, com suas paixões e suas dúvidas, seus
caprichos e seus escrúpulos. Com o veredito de Pilatos, a história irrompe na
economia e suspende sua “entrega”. A krisis histórica é também — e sobretudo —
crise da tradição. Isso significa que a concepção da história como execução da
economia divina da salvação — ou, na sua versão secularizada, como realização de
leis irrevogáveis a ela imanentes — deve ser, pelo menos no nosso caso, revista.
Como magistrado romano, Pilatos deve exercer o seu veredito e o exerce a seu
modo, sem levar em conta a economia da “entrega" que ele ignora e à qual cederá no
fim só porque parece ter se convencido de que um rei dos judeus é, de qualquer
forma, politicamente problemático. Certamente, ele é capaz de compreender que
pode exigir — pelo menos para aquele jovem hebreu que tem diante de seus olhos
— um plano que transcende a história (se assim não fosse, não teria replicado:
“Então, tu és rei”, quando Jesus lhe esclarece que o seu Reino não é deste mundo);
contudo ele sabe que, como prefeito da Judeia, deve julgar também esse plano,
porque ele poderia provocar — e já provocou — consequências práticas (o motim
entre os judeus, testemunhando pela multidão que tem diante de si). O representante
do reino terreno é competente para julgar o “reino que não é daqui”, e Jesus —
importa não esquecer — recolhe-lhe essa competência que lhe vem “do alto”
(AGAMBEN, 2014, p. 49-50).

Nas palavras acima, fica claro que para o filósofo italiano, de certa forma, Pilatos transita
várias vezes entre uma figura histórica e o personagem de importância teológica. Na verdade, mais
do que isso, ele sustentará que: “é só enquanto personagem histórico Pilatos desenvolve sua função
teológica e, vice-versa”, ou seja, “personagem histórico e pessoa teológica, processo jurídico e crise
escatológica coincidem sem resíduos e só nessa coincidência, só no fato de ‘caírem juntos’ eles

78
encontram sua verdade” (AGAMBEN, 2014, p. 54). Agamben explora aqui as ambiguidades que
essa krisis histórica gera — principalmente porque, “de algum modo, ela está sempre em curso”
(AGAMBEN, 2014, p. 34). A estrutura ambígua e altamente contraditória de um processo jurídico
sem fim torna-se um motivo importante para revisarmos o significado da concepção messiânica de
história e sua versão secularizada. Na verdade, para Agamben, o resíduo final desse episódio é que:
“dois julgamentos e dois reinos estão frente a frente sem conseguirem chegar a uma conclusão. Não
fica claro nem mesmo quem julga quem, se o juiz legalmente investido pelo poder terreno ou o juiz
por escárnio, que representa o Reino que não é deste mundo”, aliás, ele termina dizendo que “é
possível que nenhum dos dois pronuncie verdadeiramente um juízo” (AGAMBEN, 2014, p. 55). O
fato de aquele jovem hebreu ter colocado diante de Pilatos a possibilidade de um plano escatológico
que transcenda a história, fez com que o prefeito da Judeia se convencesse das consequências
tumultuosas que essa afirmação poderia provocar. Para resguardar a perpetuidade infinita do
Império frente às possibilidades de tumultos, o representante do império terreno submete-se ao
limite do que poderia fazer diante de um processo contra o juiz de um “reino que não é daqui” —
esse limite é a entrega e o abandono. 26
Comentando esse fato, o professor Vinícius Nicastro Honesko salienta que os termos de toda
essa contenda nos colocam em uma situação de desamparo atávico: “na caducidade deste mundo
(onde não está um reino messiânico tal qual esperado pelos hebreus, mas apenas uma desesperança
revelada)”, bem como, “nesse processo sem julgamento nem pena em que os homens se colocam
(num autocaluniar-se constante), é preciso que as criaturas percebam sua condição de insalváveis,
ou em outras palavras, a impossibilidade de redenção” (HONESKO, 2014, p. 17). Diante da zona de
exceção e indiferença que é aberta por uma crise histórica sempre em curso, as categorias de
entrega e abandono assumem primeira importância nos assuntos políticos. Não é sem motivo que o
sintagma homo sacer é ainda tão relevante para descrever essa possibilidade de abandono e entrega

26
Estamos satisfeitos quanto à segurança da leitura e interpretação que fizemos do escrito de Agamben, suplementando
tanto por Jacob van Bruggen, quanto por Vinícios Nicastro Honesko. Entretanto, acreditamos que é importante dizer
que existem controvérsias quanto às conclusões do filósofo italiano. Dusenbury insiste em dizer que existe uma grande
ironia na leitura agambeniana no relato bíblico: “existe uma formidável ironia por trás de tudo isso. Nas últimas páginas
de Pilatos e Jesus, Agamben revisita o tópico de suas primeiras páginas: a aparição de Pilatos no credo de 381. Tendo
estetizado o prefeito romano no §2, Agamben prefere politizá-lo em sua penúltima glosa. Ele escreve aqui que ‘o nome
de Pilatos foi incluído no Symbolon Constantinopolitano’ como uma ‘justificativa teológica do poder imperial e da
aliança que a Igreja havia concluído’ com Roma no século IV. Em termos históricos, isso é pura insinuação. Pilatos já é
citado em textos canônicos de Atos e 1 Timóteo. Mas a ironia, aqui, é que não foi a insistência solene do Credo no
julgamento de Pilatos que serviu para uma ‘aliança’ do século IV entre a Igreja e o império. Ao contrário, é a
interpretação da Paixão de Lactâncio – agora de Agamben – que fundiu um império romano recém-cristianizado. O não
julgamento de Pilatos é a linha Constantiniana. Assim, mesmo enquanto está acusando o Concílio de Constantinopla – e
em todo Pilatos e Jesus – é Agamben quem inconscientemente reproduz uma justificativa teológica do poder imperial”
(DUSENBURY, 2017, p. 364).

79
27
para a morte sem condenação. O encontro de Pilatos e Jesus é uma forma privilegiada de
Agamben nos mostrar algo que Honesko uma vez mais é preciso em explicar:

como o lugar da krisis, do juízo, hoje abre o mundo dos homens ao funcionamento
de um estado de exceção fictício, em que a lei (a caducidade da lei) vige sem
significar. E enquanto perdurar esse estado (e não advir uma suspensão efetiva da lei
— tal como Agamben lê nas cartas paulinas) permaneceremos — acusados por
ninguém mais do que nós mesmos e implicados num processo interminável —
decidindo sobre o indecidível que é a vida (HONESKO, 2014, p. 18).

A afirmação messiânica contra a crise infinita, que caracteriza as sociedades


contemporâneas, abre a possibilidade para que esse mundo dos seres humanos enxergue o estado de
exceção em que vivem — onde a lei caducou, vigendo, sem significar. 28 Em tudo isso, percebemos
mais uma vez as possibilidades renovadas de abordarmos o presente a partir de representações
temporais messiânicas do tempo do fim. Toda a nossa argumentação até aqui tem como objetivo
suplementar a continuidade de nosso raciocício no próximo capítulo a respeito da afirmação
messiânica, tal como estão presentes nas epístolas de Paulo de Tarso, enquanto antagonismos fortes
o suficiente para conseguirmos fazer frente a esses processos intermináveis.

1.2.2. Quem pode interromper a crise infinita? Um antigo debate teológico-político

Para conseguirmos uma compreensão completa da argumentação de Agamben a partir do


processo sem fim envolvendo Pilatos e Jesus, precisamos restituí-la ao seu contexto teológico mais
amplo, ao qual indiscutivelmente pertence, e que permite avaliarmos o significado dos temas que

27
Muitos anos mais tarde, em um dos seus mais recentes livros, Stasis: la guerra civil come paradigma politico (2015)
Agamben recorda sua tese principal e a reafirma à luz de sua genealogia da oikonomia e do governo dizendo o seguinte:
“minhas investigações recentes tem demonstrado, sem qualquer sombra de dúvida, que as relações entre o oikos e a
polis, a zoe e a bios, que são o fundamento de toda a politica no ocidental devem ser repensadas desde o seu começo.
[…] Essa oposição entre ‘viver’ e ‘bem viver’ é, não obstante, ao mesmo tempo uma implicação do primeiro e do
segundo, da família e da cidade, da zoe e da vida política. Um dos propósitos e Homo Sacer I. Il Potere Sovrano
e la nuda vita era precisamente o de analisar as razões e as consequências desta exclusão — que é também uma inclusão
— da vida natural na política. Que realces devemos supor entra a zoe e o oikos, por uma lado, e entre a polis e a bios,
por outro, se os primeiros devem ser incluídos nos segundos através de uma exclusão? […] Não se trata de uma
superação, se não de um complicado e irresoluto entendimento de capturar uma exterioridade e de expulsar uma
intimidade” (AGAMBEN, 2015, p. 21-22).
28
Quanto a isso, uma vez mais a resenha de Ryne Beddard é instrutiva quando ele nos lembra de que, em última
instância, o que está em jogo no julgamento de Jesus é um tema central da filosofia de Agamben, a saber, “assim, o que
está em jogo na tradição jurídica ocidental não é o pronunciamento da justiça, mas sim a gestão da vida e da morte e,
quando necessário - ou seja, onde quer que seja a exceção que se tornou a norma – a gestão estratégica e calculada da
vida até a morte. É sob essas condições que, como Agamben escreve em outro lugar, ‘tudo novamente se torna
possível’” (BEDDARD, 2016, s/p.)

80
estão em jogo aqui. O próprio Agamben indica a viabilidade de tal relação teológico-filosófica
quando inclui Dante Alighieri em sua discussão sobre o lugar que Pilatos ocupa na concepção cristã
da história. Agamben nos informa que Dante não apenas cita Pilatos em sua obra De Monarchia,
como também o faz para “conciliar o plano divino da salvação com o representante de César, o
Reino espiritual de Cristo com o reino temporal de Roma” (AGAMBEN, 2014, p. 56). Parte da
argumentação de Dante, que vamos reproduzir abaixo, tem como objetivo legitimar teológica e
juridicamente o veredito de Pilatos. Para o pensador florentino, era necessário para a salvação da
humanidade que Jesus se submetesse ao julgamento e punição de um juiz que tivesse jurisdição
sobre todo o gênero humano — tal como o Império Romano propiciava. Conforme podemos ler na
obra de Dante:

E se o Império Romano não foi legítimo, o pecado de Adão não foi castigado em
Cristo; isto, porém, é falso […]. Como pelo pecado de Adão tornamo-nos todos
pecadores, segundo disse o Apóstolo [Paulo]: “de maneira que o pecado entrou no
mundo por um homem, e pelo pecado a morte, e a morte assim se transmitiu a todos
nos que todos pecaram”; se o pecado não tivesse a satisfação pela morte de Cristo,
seríamos todos filhos da ira por natureza, isto é, de natureza depravada […].
Sabemos que o castigo não é somente a pena aplicada ao que cometeu o agravo pelo
que tem jurisdição para castigar. Resulta daí que, se a pena não está aplicada pelo
juízo ordinário, não é pena, antes injúria. Do que foi dia a Moisés: “quem te
constitui juiz sobre nós outros?”. Cristo, pois, se não tivesse padecido sob um juiz
competente quem não tivesse jurisdição sobre todo o gênero humano, pois todo o
gênero humano devia ser castigado na carne de Cristo, a qual (como diz o profeta)
suportava e continha nossas dores. E Tibério César, cujo vigário era Pilatos, não
teria jurisdição, se o Império Romano não fosse legítimo. Eis aqui por que Herodes,
ainda ignorando o que fazia — como Caifás que, não obstante, acertou ao falar de
designo divino — mandou Cristo para Pilatos o julgasse, segundo escreve Lucas em
seu Evangelho. Não era Herodes representante de Tibério, baixo do sinal da guia ou
do Senado; era rei, feito para governar um reino particular, sob o signo de reino que
se lhe havia cometido. Cessem, pois, as injúrias ao Império Romano os que fingem
filhos da Igreja; vejam que o esposo desta, Jesus Cristo, o confirmou do princípio ao
fim de sua milícia. Creio já estar suficientemente demonstrado que o povo Romano
se arrogou legitimamente o Império do orbe (ALIGHIERI, 1979, p. 93-94).

O que chama a atenção de Agamben no trecho supramencionado é que Dante mantém


conectado de forma indissolúvel o cumprimento da economia da salvação divina com a
legitimidade do julgamento temporal de Pilatos. Somente através de uma punição tal como foi
decretada por Pilatos, oficial do Império Romano e representante genuíno de César, a economia
redentora seria efetivamente levada a cabo. Na visão de Dante, portanto, Jesus tinha que passar por
um processo exatamente como o que é descrito nos Evangelhos. Agamben explica a importância
dessa argumentação para nossa tese geral: “para Dante, trata-se, evidentemente, de uma tese
teológico-política, que deve legitimar o Império perante a Igreja”, ou seja, “o Império Romano está
inscrito no plano divino da salvação, mas ali está inscrito justamente enquanto é autônomo e age
como tal” (AGAMBEN, 2014, p. 58). Isso significa dizer que para Dante, toda o emaranhamento do

81
julgamento de Jesus não é um espetáculo de marionetes encenado frente à impossibilidade de um
juiz temporal proferir sentença contra o juiz do reino eterno. Ao contrário, Pilatos é condição de
possibilidade para a execução do drama divino narrado no Novo Testamento — o qual ele é visto
como “ato histórico, com todas as suas insuperáveis contradições” (AGAMBEN, 2014, p. 58).
Em outros momentos da sua obra, Dante continua defendendo sua posição teológico-política
de que Cristo deliberadamente quis nascer e fazer parte de todos os processos que estavam sob o
29
édito de César. Essa forma de legitimação do Império Romano protagonizada por Dante nos
interessa porque ela é uma maneira de responder a mesma pergunta que Agamben está ocupado em
Pilato e Gesú, a saber: “por que o evento decisivo da história — a paixão de Cristo e a redenção da
humanidade — deve assumir a forma de num processo?”, ou ainda, em outras palavras, “por que
Jesus deve acertar as contas com a lei e confrontar-se com Pilatos — vicário de César —, num
impasse do qual, até o último momento, não parece conseguir escapar?” (AGAMBEN, 2014, p. 73).
Através dessas perguntas, começa a ficar mais claro como a investigação filosófico da processo
jurídico a qual foi submetido Jesus não se trata de uma curiosidade de Agamben. Antes, inscreve-se
em uma longa tradição teológico-política que tem representantes antigos e modernos importantes
para compreendermos a filosofia do italiano. Agamben havia se dedicado às históricas tentativas de
justificação teológica do poder imperial, bem como à aliança da Igreja com o poder temporal,
quando proferiu uma palestra em Friburgo, na Suíça, por ocasião do recebimento do título honoris
causa em Teologia, como também quando escreveu sobre a renúncia do papa Bento XVI. Segundo
o filósofo, “ambos os textos, de fato, consideram um único problema: o do significado político do
tema messiânico do fim dos tempos, tanto hoje como há vinte séculos” (AGAMBEN, 2013, p. 7).
Podemos dizer que a obra de Dante, De Monarchia, inscreve-se na mesma história das
argumentações teológico-políticas de clássicos como a De Civitate Dei, de Agostinho de Hipona.
Isso porque, ela é uma moderna tentativa de recolocar uma discussão que já teve lugar nos debate
sobre a postura da Igreja em tempos imperiais. O interesse de Agamben nessa discussão de
pormenores teológicos se dá em razão de que esses escritos foram endereçados, originalmente, à
pergunta sobre o tempo do fim. Mais especificamente, estavam respondendo questionamentos sobre
a interpretação de um dos textos mais articulados de Agamben para se referir a temporalidade
messiânica, a qual seja: a passagem de 2 Tessalonicenses 2.1-11 — a qual vamos tratar
exaustivamente na última subdivisão do próximo capítulo. Entretanto, já é importante lembrar que

29
Em outro momento de sue livro, Agamben (2014, p. 73-74) nos recorda outro trecho do livro de Dante que ele julga
ser elucidativo para sua tese de justificação teológica do Império Romano. Segundo Dante: “no relato de Cristo, o
mesmo testemunho se encontra, em Lucas, cujas palavras são todas verdade, nesta frase de seu Evangelho: ‘Foi
promulgado um édito por César Augusto, para que fosse descrito todo o universo’. De onde podemos inferir
perfeitamente que pertencia aos romanos a jurisdição universo do mundo. Por todos esses dados, é manifesto que o
povo romano prevaleceu entre todos os que lutavam pelo império do mundo; logo, prevaleceu por juízo divino, e por
conseguinte, obteve por juízo divino, isto é, legitimamente, o que conseguiu” (ALIGHIERI, 1979, p. 83).
82
Agamben no livro Il mistero del male: Benedetto XVI e la fine dei tempi, explica que: “a intenção
dos intérpretes concentrou-se, sobretudo, na identificação dos dois personagens, os quais Paulo
chama ‘aquele — ou aquilo — que retém’ e ‘o homem da anomia’” (AGAMBEN, 2013, p. 28-29).
Sendo assim, a questão que o Pais da Igreja, de Irineu a Jerônimo, e também Agostinho, estavam
ocupados pode ser colocada da seguinte maneira: quem ou o quê é que retém a volta do messias?
Quem ou o quê deve ser tirado de circulação para que o Anticristo possa aparecer e dar lugar aos
acontecimentos do tempo do fim? Para essas perguntas existiam mais de uma resposta. Agostinho
de Hipona já havia comentado possibilidades distintas de interpretar essa passagem bíblica e
responder essas questões:

Vejo que tenho de omitir muitas asserções evangélicas e apostólicas acerca do


referido último juízo divino para que este livro não atinja demasiado volume. Mas
de modo nenhum se deve omitir o que diz o apóstolo Paulo ao escrever aos
Tessalonicenses: “sabeis o que o retarda, qual a causa deste retardamento para que
se revele no seu tempo”; ao dizer que eles o sabem não o quis ele dizer abertamente.
Por isso nós que não sabemos o que eles sabiam, com esforço desejamos chegar
àquilo que o Apóstolo pensou, mas não o conseguimos — principalmente porque
aquilo que ele acrescentou tornou-lhe o sentido ainda mais obscuro. […] Confesso
que ignoro totalmente o que ele pretende dizer. Mas nem por isso deixarei de expor
as conjecturas dos homens que pude ouvir ou ler. Julgam alguns que isto foi dito a
propósito do Império Romano e que o apóstolo Paulo não o quis escrever
abertamente para não incorrer na acusação de calúnia por desejar um mal ao Império
Romano, pois esperava-se que fosse eterno. […] Mas outros julgam que, tanto o que
foi dito: “Sabeis o que agora o retém é que o mistério da iniquidade já se encontra
em acção” se referem apenas aos maus e aos hipócritas que estão na Igreja até
chegarem a um tão grande número que formem um grande povo do Anticristo. É o
mistério da iniquidade porque parece estar oculto. Mas o Apóstolo exorta os crentes
a que perseverem com tenacidade na fé que possuem […]. isto é, até que do meio da
Igreja saia o mistério da iniquidade que agora está oculto. Julgam que diz respeito a
esse mistério oculto o que o Evangelista João diz numa sua epístola: “Filhos, é a
última hora; como ouvistes, o Anticristo está para chegar. Pois já muitos se tornaram
Anticristos. Daí concluímos que esta é a última hora. Eles saíram de entre nós, mas
não eram nossos. Se fossem dos nossos teriam certamente ficado connosco”. Assim,
pois, antes do fim, nesta hora, dizem eles, a que João chama a última saíram do meio
da Igreja muitos hereges, a muitos dos quais chama Anticristos. Da mesma forma
dela sairão agora os que hão-dc pertencer não a Cristo mas a esse último Anticristo,
e então é que este se revelará (AGOSTINHO, 2000, XX, 19, p. 2055-2056).

Ainda que Agostinho não localize nesse debate nenhum nome específico, Agamben acredita
que pode reconhecer os autores que o bispo de Hipona tem em mente. Segundo o italiano, “do
primeiro grupo se deixam inscrevem sem dificuldade no sulco de Jerônimo, que se ocupou com a
interpretação da epístola Paulina em sua carta a Algásia” (AGAMBEN, 2013, p. 31). A opção de
Jerônimo, segundo a descrição de Agostinho, é que o apóstolo Paulo não quis escrever abertamente,
para não ser acusado de lesa-majestade, mas quem retardava a chegada escatológica do messias era
o Império Romano com suas pretensões de governo eterno. Segundo o próprio Jerônimo: “[Paulo]
não está disposto a falar abertamente sobre a destruição do Império Romano, pois eles pensam que

83
esses mesmos é que eternamente vão dar o comando” (JERÔNIMO apud AGAMBEN, 2013, p.
32).
Em seguida, Agamben insere uma figura um pouco menos conhecida nessa história da
teologia medieval como o representante da segunda possibilidade interpretativa. Esta teria como seu
principal articulador um teólogo africano donatista chamado Ticônio, cuja obra influenciou
decisivamente a ideia de cidade de Deus em Agostinho. Agamben recupera os argumentos desse
autor a partir de um ensaio escrito por Joseph Ratzinger ainda na juventude, em que a hipótese
principal do teólogo africano é colocada da seguinte maneira: “o conteúdo essencial da doutrina do
corpus bipartitum, consiste na tese de que o corpo da Igreja tem dois lados ou aspectos: um
‘esquerdo’ e outro ‘direito’, um culpado e um bendito, os quais, contudo, constituem um só corpo”
(TICÔNIO apud AGAMBEN, 2013, p. 14). Em outras palavras, Ticônio defendeu uma
compreensão sobre a Igreja como apenas uma cidade, não só dividida em dois lados, como também
uma coesa em si mesma. Isso significa dizer que, na eclesiologia de Ticônio, a Igreja abrigava em si
mesma tanto o pecado quanto a graça. Com a ajuda de Ratzinger, Agamben consegue nos mostrar a
diferença fundamental que tem essa tese a de Agostinho. Em Ticônio, “não há a clara antítese entre
Jerusalém e Babilônia, tão característica em Agostinho. Jerusalém é, ao mesmo tempo, Babilônia; a
inclui em si. Ambas constituem uma só cidade, que tem um lado ‘esquerdo’ e ‘direito’”
(RATZINGER apud AGAMBEN, 2013, p. 14). Ticônio, portanto, é o representante de uma
tradição teológica que encarava o tempo escatológico da volta do messias como sendo aquele que
separaria esse corpo bipartido da Igreja.
Dentre muitas implicações que podemos tirar dessa doutrina, a que interessa Agamben é que
é possível dizer, a partir da argumentação de Ticônio, que o que atrasava a volta do messias
(parousia) e, por conseguinte, o fim dos tempos de governo infinito, era uma parte da própria Igreja
— sua porção de discípulos de Cristo não autênticos ou os autênticos discípulos do Anticristo. Essa
identificação é importante para toda a argumentação que temos desenvolvido no presente tópico do
capítulo, porque representa uma reafirmação de leitura que fizemos de Pilato e Gesú. Da mesma
forma que Jakob van Bruggen interpreta que o povo hebreu, messiânico por excelência, contribuiu
para a extensão da krisis sem fim do processo de Jesus por terem mantido fidelidade ao imperador,
aqui Ticônio vai dizer que a parte da Igreja, que é formada de falsos seguidores do messias, também
se entregou aos poderes temporais quando abriu mão de suas expectativas messiânicas. Ou ainda,
nas palavras do filósofo italiano, “a consequência dessa tese radical, que divide e ao mesmo tempo
une uma Igreja dos maus e uma Igreja dos justos, seria, segundo Ratzinger, que a Igreja é, até o

84
Juízo universal, ao mesmo tempo Igreja de Cristo e Igreja do Anticristo” (AGAMBEN, 2013, p.
15). 30
À luz de tudo isso, podemos localizar a leitura que Dante Alighieri faz do processo entre
Pilatos e Jesus junto à Jerônimo, que atribuía ao Império Romano um poder de reter a vinda do
messias e, por isso, justificava teológica e politicamente sua presença na economia da salvação.
Entretanto, Agamben não pára por aqui. O filósofo italiano continua a genealogia do antigo
debate teológico-político localizando-o nas suas contemporâneas reivindicações. Ele diz que:
“a primeira hipótese, que identificava, no Império Romano, o poder que retém, foi reivindicada no
século XX por um grande jurista católico, Carl Schmitt, que via na doutrina do katechon a única
possibilidade de conceber a história a partir de um ponto de vista cristão” (AGAMBEN, 2013, p.
18-19). De modo esquemático, podemos dizer que Carl Schmitt foi um dos mais originais
pensadores jurídico-político do século XX. Tal atribuição se dá em razão de seus esforços em
libertar-se de uma visão romântica e juspositiva do fenômeno jurídico e político. Para empreender
tal projeto, foi necessário encontrar nos quadrantes da decisão soberana de exceção o fundamento
do direito. Isto fez com que o seu trabalho, em algum momento, fosse relacionado com os objetivos
do nazismo. Contudo, suas posições teóricas podem ser reconstruídas genealogicamente em uma
incômoda tradição de realismo moderno que passa por Hobbes, Maquiavel e alguns espectros da
teologia católica. Como sintetiza o professor e jurista brasileiro Alysson Mascaro: “para Schmitt, tal
qual o Papa é a sede da decisão soberana para a Igreja, o Führer protege o direito” (MASCARO,
31
2010, p. 410). Agamben cita um pequeno trecho da obra de Schmitt que o liga

30
É importante explicar nessa altura de nossa argumentação que Agamben procurará colocar como antagônicas tais
posições que se localizam nesse debate teológico-político antigo e moderno – a saber, uma que enxerga o poder que
freia de 2 Tessaolonicenses no Império Romano e a outra que vê na incredulidade de parte da comunidade messiânica
(seja na Igreja, seja do povo judeu). Apesar de reconhecermos historicamente essas duas vias interpretativas, e suas
consequentes implicações filosóficas e políticas, procuraremos mostrar no próximo capítulo (baseado em argumentos
apresentados na presente seção) que existe uma estreita afinidade entre ambas fazendo com possa existir um fio que as
mantenha conectadas e secretamente implicadas uma na outra. A grande questão que nos faz enxergar essa linha de
determinação mútua está no fato de que: quando se opta por interpretar o poder que freia a vinda do messias como uma
parte infiel da comunidade messiânica necessariamente é preciso ligar tal povo do anticristo ao Império Romano. Isto
porque, rejeitar as reivindicações messiânicas de Jesus na ocasião de seu julgamento significava, necessariamente,
também alinhar-se aos propósitos imperiais de Roma. Nesse sentido, a tese da infidelidade do povo messiânico (que
procuramos defender a partir das leituras especializadas de Jakob van Bruggen), como também a leitura sobre o papel
decisivo do Império Romano nesse processo estão, de alguma forma, intimamente relacionadas. O meio através do qual
a parte infiel da comunidade messiânica manifestou seu gesto antimessiânica (fazendo de si a Igreja do Anticristo) foi
possibilitado pela fidelidade aos desígnios do Império Romano. Sendo assim, é necessário não manter tão separadas tais
vias interpretativas históricas, pois de certa maneira sua mútua determinação será importante para nossos argumentos
posteriores.
31
Mascaro explica em outra oportunidade que; “ao afirmar a exceção, e não a regra, como fundamento da compreensão
do direto, do poder e da soberania, Schmitt atenta contra o pressuposto profundo da tradição moderna iluminista e
laicizada. Católico, Schmitt aproxima o fenômeno jurídico moderno da própria organização da Igreja Católica, fundada
na representação. Ao contrário do protestante, para quem a relação é direta do individuo para com Deus, o católico
baseia sua condição religiosa na submissão à representação divina do papa. A lei não é uma observação dos costumes
85
incontestavelmente a esse debate sobre o poder que retarda o advento do reino messiânico: “a fé em
um poder que retém o fim do mundo constitui a única ponte que pode levar da paralisia escatológica
de qualquer acontecimento humano a uma potência grandiosa como a do império cristão dos reis
germânicos” (SCHMITT apud AGAMBEN, 2013, p. 19).
Essa breve citação de Schmitt feita por Agamben é importante não só para os interesses da
presente tese, como também para nos fornecer uma chave interpretativa de toda a presença de
Schmitt na obra agambeniana. Todo o primeiro capítulo de sua obra Il regno e la gloria. Per uma
genealogia teologica dell’economia e del governo é dedicado aos dois paradigmas identificados por
Agostinho e transmitidos na história pela teologia política que temos tratado aqui — e Carl Schmitt
é o primeiro nome a ser lembrado ao lado do teólogo alemão Erik Peterson:

De 1935 a 1970 desenrola-se uma polêmica singular entre Erik Peterson e Carl
Schmitt, dois autores que, por motivos diversos, podem ser definidos como
“apocalípticos da contrarrevolução”. Singular não só porque os dois adversários,
ambos católicos, compartilhavam pressupostos teológicos comuns, mas também
porque, como indica o longo silêncio que supera as duas datas, a resposta do jurista
chegou dez anos após a morte do teólogo que havia aberto o debate […]. O que
estava em jogo na polêmica era a teologia política, que Peterson punha
resolutamente em questão […]. Era comum aos dois adversários uma concepção
teológica que se pode definir como “catechonica”. Como católicos, não podiam
deixar de professar a fé escatológica na segunda vinda de Cristo. Mas ambos
(Schmitt, de maneira explicita, Peterson, de maneira tácita), referindo-se à Segundo
Epístola aos Tessalonicenses, capítulo 2, afirma que existe algo que retarda e detém
o eschaton, ou seja, o advento do Reino e o fim do mundo. Para Schmitt, esse
elemento retardador é o Império; para Peterson, a recusa dos judeus de acreditar em
Cristo. Tanto para o jurista quanto para o teólogo, a história presente da humanidade
é, por conseguinte, um ínterim fundado na demora do Reino. Em um caso, porém, a
demora coincide com o poder soberano do império cristão […]; e no outro, a
suspensão do reino por causa da não conversão dos judeus fundamenta a existência
história da Igreja (AGAMBEN, 2011, p. 18-19).

Em uma espécie de espiral hermenêutica, no trecho citado acima, Agamben nos recoloca no
centro de sua discussão sobre glória e oikonomia infinita do governo através da indicação de
contribuições contemporâneas para o antigo debate teológico-político sobre o elemento retardador
do fim dos tempos messiânico. A contribuição que essa indicação traz é situar a posição de Schmitt
sobre os tempos do fim na sua discussão com Erik Peterson. Além de nos fornecer outro nome
contemporâneo para as duas posições clássicas que Agostinho identificou, a reconstrução dos
argumentos de Peterson nos auxilia na compreensão das dimensões que esse debate teológico-
político milenar tem para a filosofia política contemporânea e o lugar que a filosofia de Agamben
assumirá nele.

arraigados, nem do justo, nem uma decorrência da razão. Ela é uma operação da vontade do representante. O Führer e o
Papa, nesse sentido, guardam semelhança” (MASCARO, 2010, p. 423).
86
A obra que passa a ser investigada aqui é o livro Der Monotheismus als politisches Problem
(1935) de Peterson. Trata-se de uma genealogia teológica do problema político do monoteísmo —
como ele se instituiu como uma questão teológico-política no Ocidente, contribuindo para um
governo infinito da população, e o que é necessário para superarmos esse problema. Em linhas
gerais, o esforço de Peterson de esclarecer a natureza e a identidade do katechon começa onde todas
as modernas discussões sobre a Trindade também encontraram suas raízes: nas considerações
32
aristotélicas sobre a monarquia. Com isso, ele quer mostrar que: “o paradigma teológicos do
motor imóvel aristotélico seja, de qualquer maneira, o arquétipo das sucessivas justificativas
teológico-políticas do poder monárquico no âmbito judaico e cristão” (AGAMBEN, 2011, p. 21). A
genealogia da transmissão desse arquétipo aristotélico para a teologia cristã encontra em Filo a
transição dessa teologia política do mundo greco-romano para o universo judaico-cristão.
Entretanto, depois de Filon, o conceito de monarquia divina foi assimilado por muitos apologistas
da Igreja, tais como Justino, Taciano, Teófilo, Irineu, Hipólito, Tertuliano e Orígenes. Não obstante
essa longa lista, será somente em Eusébio de Cesaréia, o teólogo da corte romana do Imperador
Constantino, que uma correspondência sem resíduos foi instituida entre o reino messiânico e o
Império Romano. Segundo Agamben, “Eusébio estabelece uma correspondência entre a vinda de
Cristo sobre a terra como salvador de todas as nações e a instauração, por parte de Augusto, de um
poder imperial sobre toda terra”, quanto a isso, ademais, Agamben argumenta que: “Peterson
mostra como, segundo Eusébio, o processo que havia sido iniciado com Augusto chega a seu
cumprimento com Constantino” (AGAMBEN, 2011, p. 22). 33

32
Um comentário especializado quanto a essa questão pode nos ajudar a entender o ponto da discussão agambeniana. O
teólogo norte-americano Michael Horton escreve que: “o defensor mais entusiasmado da pluralidade hoje é Jürgen
Moltmann, que desafia a afirmação de Karl Rahner de que o triteísmo é o maior perigo e acusa Barth e Rahner como
evidência da ameaça contínua de modalismo por parte do Ocidente. A crítica de Moltmann das formulações trinitarianas
clássicas é parte do seu desafio mais abrangente ao teismo clássico. Ele se refere a essa visão como ‘panteísmo
trinitariano’ ou trinitarianismo social. Com essa trajetória, uma ontologia trinitariana mais hegeliana pode ser
encontrada até mesmo entre alguns dos alunos do próprio Barth. Estranhamente (dadas as raízes judaicas do
monoteismo cristão), Moltmann argumenta que os problemas com o monoteismo clássico começam com Aristóteles.
Do ‘único Deus’ ao ‘único imperador’ (Alexandre, o Grande), a ‘estrutura monárquica’ do cosmos leva ao despotismo
por toda a descida da escada. O monoteismo também deu origem ao patriarcalismo e à subjugação do corpo pela alma.
O objetivo de Moltmann é articular uma doutrina social da Trindade (como comunidade divina) que possa se tornar a
base para o socialismo democrático que abrange toda a criação. Na leitura de Moltmann, o Oriente e o Ocidente têm
uma concepção monárquica de Deus, seja a monarquia do Pai ou aquela da essência única, respectivamente, e até
mesmo em Rahner e Barth, as três pessoas são subordinadas ao senhorio do único Deus por meio de sua autorrevelação.
Essas abordagens têm fortalecido a base para dominação e passividade. Em vez de começar com o senhorio externo de
Deus", de acordo com Moltmann, deveríamos começar com a comunidade interna de Deus’” (HORTON, 2016, p. 313).
33
Agamben faz um comentário digno de nota sobre esse momento da discussão, relacionando pensadores antigos e
modernos a respeito dessa questão. Quanto a isso ele diz o seguinte: “as teses de Eusébio sobre a solidariedade entre o
advento de um único império mundano, o fim da poliarquia e o triunfo do único verdadeiro deus apresentam analogias
com a tese de Negri e Hardt, segundo a qual a superação dos Estados nacionais no único império global capitalista abre
o caminho para o triunfo do comunismo. Enquanto a doutrina do cabeleireiro teológico de Constantino tinha um
evidente sentido tático e obedecia não a um antagonismo, mas a uma aliança entre o poder global de Constantino e a
87
A partir da leitura de Eusébio feita por Peterson, não fica difícil continuar na linha
sucessória da teologia política que legitimava o poder imperial infinito com outros nomes
importantes da teologia cristã — tais como João Crisóstomo, Prudêncio, Ambrósio e,
principalmente, Jerônimo. Em todos estes, “o paralelismo entre unidade do império mundial e a
revelação cumprida do único Deus se converte na chave para interpretar a história” (AGAMBEN,
2011, p. 23). Tudo isso poderia ser usado como recurso teológico para justificar a hipótese de
Schmitt, Dante e Jerônimo de que o elemento retardador do fim dos tempos é o Império. Entretanto,
a genealogia de Peterson encontra um acontecimento que coloca sob suspeita o paradigma
teológico-político da monarquia divina, a qual seja: o desenvolvimento da teologia trinitária. Nos
esforços teológicos dos concílios ecumênicos em torno do dogma trinitário esconde-se o ocaso do
monoteísmo como problema político não só para os cristãos, como para todo o Ocidente. Nas
palavras finais com que o próprio Peterson termina sua investigação:

O monoteísmo, como problema político, surgiu da elaboração helenista da fé judaica


em Deus. O conceito de monarquia divina, quando foi amalgamado com o princípio
monárquico da filosofia grega, cobrou do judaísmo a função de um slogan político-
teológico. A Igreja, ao expandir-se através do Império Romano, assume esse
conceito político-teológico da propaganda, que mais tarde entra em conflito com
uma concepção pagã de teologia política, segundo a qual o monarca divino reina,
mas os deuses nacionais devem governar. Os cristãos, a fim de se oporem à teologia
pagã cortejada na extensão do Império Romano, responderam que os deuses
nacionais não podem governar porque o Império Romano significa a liquidação do
pluralismo nacional. Nesse sentido, Pax Augusta foi posteriormente explicada como
cumprimento das profecias escatológicas do Antigo Testamento. Certamente, a
doutrina da monarquia divina teve que tropeçar diante do dogma trinitário e na
interpretação de Pax Augusta na escatologia cristã. E assim, não apenas acabou-se
teologicamente com o monoteísmo como um problema político, e a fé cristã foi
libertada do encadeamento do Império Romano, mas também a ruptura radical foi
realizada com uma “teologia política” que transformou o Evangelho em um
instrumento de justificativa de uma situação política. Somente em solo judeu ou
pagão é que algo como uma “teologia política” pode ser levantado. Mas o evangelho
do Deus trino está além do judaísmo e do paganismo, e o mistério da Trindade é um
mistério da divindade mesma, e não da criatura. Assim como a paz que o cristão
busca é uma paz que não garante nenhum César, porque essa paz é um presente
daquele que está “acima de toda razão” (PETERSON, 1999, p. 94-95).

Nas palavras acima temos um condensado de toda a argumentação que Peterson desenvolve
em seu livro. A partir da leitura que Peterson fez dos pais capadócios — Gregório de Nazianzo,
Basílio de Cesaréia e Gregório de Nissa — parece ser absolutamente impossível sustentar uma
legitimação teológica da monarquia política. O teólogo alemão encontra no esforço dos capadócios
o exercício de pensar tanto a unidade ontológica da Trindade sem introduzir em seu interior uma

Igreja, o significado da tese de Negri e Hardt certamente não pode ser lido no mesmo sentido e, por isso mesmo,
continua no mínimo enigmático” (AGAMBEN, 2011, p. 23-24).
88
34
stásis — uma guerra intestina —, quanto uma solução teológica para o longo debate político
sobre a monarquia. A solução encontrada foi, “usando livremente a terminologia estóica, Gregório
concebe as três ripostasses não como substâncias, mas como modos de ser ou relações (pros ti, pôs
echon) em uma única substância” (AGAMBEN, 2011, p. 26). É difícil mensurar a importância
dessa saída que os teólogos capadócios forneceram à cristandade. Para além do simples fato de ter
sido a porta de entrada de uma controvérsia teológica que até hoje mantêm ânimos exautados de
35
todos os lados, Agamben também enxerga na leitura de Peterson um momento importante para
36
sua genealogia teológica da economia e do governo. Em dois parágrafos muito esclarecedores, o
filósofo italiano diz o seguinte:

o logos da “economia” encontra, assim, em Gregório, a função específica de evitar


que, através da Trindade, seja introduzida em Deus uma fratura estasiológica, ou
seja, política. Dado que também uma monarquia pode ocasionar uma guerra civil,
uma stasis interna, só o deslocamento de uma racionalidade política para uma
“econômica” — no sentido que procuramos esclarecer — pode proteger contra esse
perigo. […] A compreensão do dogma trinitário no qual se funda a argumentação de
Peterson pressupõe, portanto, uma compreensão preliminar da “linguagem da
economia”, e só quando tivermos explorado esse logos em todas as suas articulações
poderemos identificar o que de fato está em jogo entre os dois amigos-adversários
no debate sobre a teologia política (AGAMBEN, 2011, p. 26-27).

Fica explícito nas palavras acima que uma correta compreensão da linguagem teológica da
Trindade econômica é condição de possibilidade não só para explorar as implicações do diálogo

34
Em 2001, alguns anos antes de escrever Il regno e la gloria, Agamben foi convidado pela Universidade de Princeton
para proferir alguns seminários sobre guerra civil. Muitos anos depois, em 2015, os textos que orientaram esses
seminários foram publicados, reproduzindo com algumas modificações e agregados, a tese desenvolvida ali, a saber,
“que identificam a guerra civil como um umbral de politização fundamental do Ocidente, e na adémia, isto é, na
ausência de povo, o elemento constitutivo do Estado moderno” (AGAMBEN, 2018, p. 7). Essa investigação política
sobre a stasis completa, de maneira muito enriquecedora, a genealogia teológica da economia e do governo que
Agamben faz. Quando Erik Peterson encontra o ponto de transição do problema político da monarquia no exercício
teológico de pensar a Trindade a partir de sua oikonomia para evitar uma stasis no interior da comunidade divina, ele
está sugerindo um caminho semelhante ao que Agamben identificou como o elemento decisivo na politização do
Ocidente. Nas palavras do italiano: “a stasis não provém do oikos, não é uma ‘guerra em família’, antes forma parte de
um dispositivo que funciona de maneira similar ao estado de exceção. Assim como no estado de exceção a zoe da vida
natural, está incluída na ordem jurídico-política através de sua exclusão, de modo análogo através da stasis o oikos está
politizado e incluído na polis” (AGAMBEN, 2018, p. 31). Em outras palavras, argumento teológico-político que
Peterson sustenta sobre o fator decisivo da oikonomia da Trindade nos ajuda a compreender como a stasis politiza o
oikos e economiza a polis — tornando-se um umbral de indiferença nos Estados modernos ocidentais.
35
Para uma compreensão das dimensões atuais desse debate, ver HOLMES, R. Stephan; et. al. Two views on the
Doctrine of The Trinity. Grand Rapids: Zondervan, 2014.
36
No volume IV, 2 da série Homo Sacer, entitulado L’uso dei corpi (2014) Agamben percorre uma genealogia da
introdução da forma modal na ontologia ocidental procurando entender como Leibniz encontrou no raciocínio modal as
condições de pensar a natureza unitária da singularidade corpórea não como algo meramente aparente, mas real. Uma
das novidades do raciocínio de Leibniz que Agamben explora foi a introdução de modalidades enquanto relações entre
as mônadas. No momento em que ele identifica essa manobra no pensamento do filósofo moderno ele deixa claro que:
“propôs-se interpretar a novidade da concepção leibniziana defendendo um primado da relação do ser. Contudo, isso
significa, por um lado, diminuir sua novidade, pois a teologia escolástica já havia afirmado sem reservas, em Deus, o
primado da relação trinitária (a ‘economia’) sobre a substância” (AGAMBEN, 2017, p. 176). Com isso, gostaríamos de
situar no interior das reconstruções genealógicas de Agamben o lugar de importância que a visão econômica da trindade
tem não só para a política, mas também para a ontologia no Ocidente.
89
entre Schmitt e Peterson, mas, acima de tudo, compreender a hipótese de Agamben sobre como a
racionalidade política foi substituída por uma econômica. Tal substituição visa impedir uma stasis
interna aos governos, mantendo-os infinitamente na gestão da população. Portanto, através de uma
compreensão preliminar da origem e natureza da “linguagem da economia”, somos recolocados,
uma vez mais, na questão fundamental desse capítulo. Agamben explorou um pouco mais esse
logos econômico em uma das suas articulações mais cruentas da contemporaneidade que são as
guerras civis. Na obra Stasis: la guerra civil come paradigma politico (Homo Sacer II, 2) (2015),
Agamben esclarece como economizar a pólis e politizar o oikos não só é parte da racionalidade
governamental em operação, como também produziu um resíduo de indiferença letal — a guerra
civil. Nas palavras do filósofo:

O que está em jogo na relação entre o oikos e a polis é a constituição de um umbral


de indiferença em que o político e o impolítico, o de fora e o de dentro, coincidem.
Então devemos conceber a política como um campo de forças cujo extremos são o
oikos e a polis: entre eles a guerra civil marca o umbral em que ele, ao transitar-se, o
impolítico se politiza e o político se “economiza”.

politização ⇔ despolitização
oikos ———————— | stásis | ———————— pólis

Isso significa que, tanto na Grécia clássica como hoje, não existe algo assim como
uma substância política: a política é um campo incessantemente percorrido pelas
correntes de tensão entre a politização e a despolitização, entre a família e a cidade.
Entre estas polaridades opostas, desunidas e intimamente ligadas, a tensão não pode
resolver-se (AGAMBEN, 2018, p. 31-32).

Com essas palavras, fica mais claro o que significa o movimento dos pais capadócios de
economizarem o monarca (Trindade) para evitarem uma fratura estasiológica no seu interior. Na
cultura grega clássica, a stásis correspondia a um conflito familiar. A ideia de um oikeîos pólemos
[uma guerra familiar], no entanto, soava como um oxímoro para um grego, uma vez que pólemos
era, por definição, um conflito externo. Agamben nos diz que essa ambiguidade da stásis aponta
exatamente para: “a função da ambiguidade do oikos com a qual ela [a stásis] é consubstancial. A
guerra civil é stásis émphylos, conflito com o próprio phylon, de parentesco de sangue”
(AGAMBEN, 2018, p. 17). Tradicionalmente, conflito interno ao oikos sempre foi visto como
proveniente das relações familiares de fraternidade. Trata-se de uma guerra em que o sangue da
mesma família é derramado. Agamben nos convida a enxergar a guerra civil grega como um
conflito em família porque tal interpretação não só vai nos dar uma compreensão verdadeira da
natureza da stásis pressuposta em toda sua genealogia da economia e do governo, como também
entenderemos a proposta de remédio para esse conflito: “a fraternidade puramente política tira de
jogo a fraternidade de sangue e, com isto, libera a cidade da stásis émphylos; com um mesmo gesto,

90
porém, a primeira constitui um parentesco agora no plano da pólis, faz da cidade uma família de um
novo gênero” (AGAMBEN, 2018, p. 19).
Toda essa argumentação é uma forma renovada de ler outra vez a argumentação hobbesiana,
por exemplo, da origem do conflito atávico entre os seres humanos em estado de natureza e a
politização da vida nua como a resposta para essa guerra familiar. Apesar dessa resposta ter sido
encarada como origem do pacto social, na verdade, segundo Agamben, ela nada mais é do que
submeter à linguagem da oikonomia os assuntos da pólis. O umbral de diferença que o filósofo
italiano quer destacar está no duplo fato da cidade passar a ser compreendida como uma família de
outro gênero e a guerra civil tornar-se o paradigma de politização e despolitização. Transformar a
política em gestão foi tanto um dispositivo para evitar fraturas stasiológicas, como também um
meio de garantir a governamentalidade da população sem que nenhuma crise colocasse fim a gestão
infinita — e abrisse as portas para a genuína ação política. Agamben acredita que “a Grécia clássica
é talvez o lugar onde essa tensão encontrou, por um momento, um incerto e precário equilíbrio”,
entretanto, esse paradigma continua em funcionamento hoje, no curso da história política ocidental
em que: “a tendência de despolitizar a cidade transformando-a em uma casa e em uma família,
regida por relações de sangue e por operações meramente econômicas, se alternando, pelo contrário,
em fases simetricamente opostas, em que todo o impolítico deve ser mobilizado e politizado”
(AGAMBEN, 2018, p. 32). 37
Por tudo isso, a contribuição de Erik Peterson para nossa investigação se dá através da
apresentação da doutrina da Trindade como sendo um elemento fundamental para compreender os
processos de politização e despolitização do Ocidente, como também pensar em uma genuína ação
política cristã. Estava claro que Peterson tinha essa discussão em mente quando, em uma nota de
roda-pé específica ao final de seu texto, comenta como as tentativas teológicas de legitimar
governos indefinidamente voltaram a ser articuladas na política contemporânea. Como que em uma
conclusão: “o conceito de ‘teologia política’ foi introduzido na literatura por Carl Schmitt,
Politische Theologie, München, 1922. Mas ele não propôs sistematicamente esses breves

37
Essa é a razão para que Agamben acredite que somente na década de 1990 a atenção dos especialistas voltou-se ao
tema da guerra civil reduzindo-a a “uma doutrina do manegement, ou seja, da gestão, da manipulação e da
internacionalização dos conflitos internos” (AGAMBEN, 2018, p. 13), como faz tão recorrentemente os EUA em suas
investidas nos países do Oriente Próximo e Médio com a justificativa de auxílio aos conflitos internos. Ou ainda, nos
constantes discursos sobre a Europa que procuram apresentá-la a partir do tranquilizante espaço de uma casa, Agamben
enxergar, mais uma vez, uma submissão do político ao econômico: “a forma que a guerra civil tem assumido na
atualidade e na história mundial é o terrorismo. Se o diagnóstico foucaultiano da política moderna como biopolítica está
correto, e também aquela genealogia que remete a um paradigma teológico-oikonomico, então o terrorismo mundial é a
forma que a guerra civil assume quando a vida enquanto tal se vê posta em jogo na política. Precisamente quando a
pólis se apresenta na figura tranquilizadora de um oikos — ‘a casa Europa’, ou o mundo como espaço absoluto da
gestão econômica global — então, a stásis, que já não pode situar-se no umbral entre o oikos e a pólis, se transforma no
paradigma de todo conflito e entra a figura do terror” (AGAMBEN, 2018, p. 32-33).

91
argumentos. Tentamos aqui provar com um exemplo concreto a impossibilidade teológica de uma
‘teologia política’” (PETERSON, 1999, p. 123). A imprtância de tal nota de roda-pé é tão aguda
que Agamben chega a dizer que “todo o tratado foi escrito tendo em vista esta nota” (AGAMBEN,
2011, p. 23). Seja como for, a impossibilidade de uma teologia política que Peterson argumenta
significa que, em vez de servir aos poderes temporais legitimando-os indefinidamente, como queria
Eusébio, Jerônimo, Dante e Schmitt, o teólogo alemão argumenta em prol de um “agir político”
38
litúrgico — no seu significado etimológico de práxis pública. A contribuição de Peterson ao
debate que pode ter sua linha genealógica rastreada até Agostinho e Ticônio, é o de mostrar que a
elaboração de uma teologia trinitária foi suficiente para inoperar a concepção teológico-política de
uma monarquia divina e dar nova direção para discussão política da época.
Ao final de sua breve exploração dos dois paradigmas teológico-políticos em Il regno e la
gloria, Agamben ocupa-se com o que realmente significa falar de um “agir político” litúrgico de
Peterson. Essa questão assume primeira importância em todo o projeto recente de Agamben, em que
ele dedica-se com a renovação dos conceitos e práticas políticas contemporâneas reintroduzindo-as
39
em seu contexto teológico original. No caso específico de Peterson, Agamben ainda destaca um
detalhe muito significativo na trajetória que os argumentos do teólogo alemão tomaram:

38
A despeito dos exageros que podem ser cometidos na supervalorização do termo liturgia, Nicholas Wolterstorff,
brilhante filósofo norte-americano, vai além, refinando um pouco mais nossa compreensão sobre liturgia – sustentando
exatamente a profunda relação entre o culto cristão e justiça pública: “no grego clássico, a palavra [leitourgia] era
empregada para se referir a um serviço realizado por um indivíduo em benefício público, geralmente a suas próprias
expensas. Por exemplo, se um navio de guerra tinha de ser equipado, algumas vezes, em vez de taxar todos os cidadãos,
os funcionários convidavam uma pessoa rica para fazer a aparelhagem como uma contribuição pessoal ao público. Esse
serviço público era uma liturgia e a pessoa que o realizava era um liturgista (leitourgos) [...] E hoje em dia é muito
comum haver uma argumentação em defesa de maior participação do povo na liturgia da Igreja baseada nessa afirmação
[...] Mas a palavra leitourgia nunca quis dizer ato do povo. Ela significa ato ‘em benefício do’ povo. A liturgia era uma
espécie de serviço público. Na tradução Septuaginta do Antigo Testamento, a palavra leitourgia foi constantemente
emprestada de seu uso cívico grego e aplicada, por extensão metafórica, ao tipo de serviço pelos sacerdotes no templo
[...] Mais usual no Novo Testamento é a extensão do uso da palavra para uma espécie ou outra de serviço não cúltico
prestado por alguém a outra pessoa. Em Filipenses 2.30, por exemplo, ouvimos a respeito da liturgia dos filipenses a
Paulo. Em Hebreus 8.6, da liturgia de Cristo. E, em 2 Coríntios 9.12, a oferta financeira dos coríntios às outras igrejas é
descrita como o ‘ministério dessa liturgia’” (WOLTERSTORFF, 1995, p. 234-235).
39
Um exemplo paradigmático desse procedimento de Agamben é o início de sua investigação sobre o significado do
sintagma “uso dos corpos” na obra que também recebe esse nome. Nela podemos ler a seguinte relação muito
esclarecedora: “de Aristóteles em diante, a tradição da filosofia ocidental sempre apresentou como fundamento da
política o conceito de ação. Inclusive em Hannah Arendt, a esfera pública coincide com a do agir, e a decadência da
política é explicada com a progressiva substituição, no decurso da idade moderna, do agir pelo fazer, do ator político
pelo homo faber e, depois, pelo homo labrans. Contudo, o termo actio, de que deriva a palavra ‘ação' e que, com base
nos estoicos, traduz o grego praxis, pertence originalmente à esfera jurídico e religiosa, não à política. Actio designa em
Roma, sobretudo, o processo. […] Actionem constituere significa, portanto, ‘abrir um processo’, assim como agere
litem ou causam significa ‘conduzir um processo’. Por outro lado, o verbo ago significa, em sua origem, é ‘celebrar um
sacrifício’ e, segundo alguns, é esse o motivo pelo qual, nos sacramentos mais antigos, a missa é definida como actio, e
a eucaristia, como actio sacrificii. É um termo proveniente da esfera jurídica religiosa que forneceu à política seu
conceito fundamental. Uma das hipóteses da presente investigação é, colocando em questão a centralidade da ação e do
fazer para a política, tentar pensar o uso como categoria política fundamental” (AGAMBEN, 2017, p. 41-42). Esse
resultado encontrado em sua breve genealogia do uso dos corpos não só tem importância para situarmos a ideia de
92
A tese segundo a qual a verdadeira política cristã é a liturgia, e segundo a qual a
doutrina trinitária fundamenta a política como participação no culto glorioso dos
anjos e dos santos, pode parecer surpreendente. Mas acontece que é precisamente
aqui que se situa o divisor de águas que separa a “teologia política” schmittiana do
“agir político” cristão de Peterson. Para Schmitt, a teologia política funda uma
política em sentido próprio e a potência mandada do império cristão, que age como
katechon; a política como ação liturgia em Peterson exclui, ao contrário, qualquer
identificação com a cidade terrena (a invocação do nome de Agostinho, “que se
torna visível em cada mudança espiritual e política do Ocidente”, confirma isso): ela
nada mais é que a antecipação cultual da glória escatológica. Nesse sentido, a ação
das potências mundanas é, para o teólogo, escatologicamente de todo irrelevante: o
que age como katechon não é um poder político, mas apenas a recusa dos judeus de
se converterem. Isso significa que, para Peterson (e sua posição concede nesse caso
com a de parcela não irrelevante da Igreja), os eventos históricos de que foi
testemunho — das guerras mundiais ao totalitarismo, da revolução tecnológica à
bomba atômica — são teologicamente insignificantes. Todos, com exceção de um: o
extermínio dos judeus. Se o advento escatológico do Reino só se tornará concreto e
real quando os judeus tiverem se convertido, então a destruição dos judeus não pode
ser indiferente para o destino da Igreja (AGAMBEN, 2011, p. 28-29).

Exploraremos no capítulo seguinte o que significa o papel político da Igreja através da sua
liturgia enquanto antecipação cultual da glória escatológica. Nesse momento, o que precisa ser
esclarecido é como a posição de Peterson no debate teológico-político sobre o katechon se alinha
com o que argumentamos anteriormente com Jakob van Bruggen — sobre a recusa dos judeus
reconhecerem o caráter messiânico do processo de Jesus com Pilatos, o que os mantêm em uma
krisis infinita —, apesar de Agamben destacar como essa interpretação tornou-se ambígua e
perigosa na contemporaneidade. O filósofo italiano julga ser pertinente perguntar se Peterson, no
auge do Terceiro Reich alemão, se deu conta da ambiguidade fatal que sua tese teológica poderia
significar naquele momento de extermínio dos judeus. Acreditamos que é fundamentalmente
diferente argumentar sobre o fechamento escatológico do povo hebreu diante da presença de Jesus
— contribuindo assim para retardar o tempo do fim —, e dizer que o advento do reino messiânico é
atrasado pela simples existência do povo judeu, encontrando na solução final hitlerista uma porta de
entrada para a vinda do messias. Agamben parece estar de acordo com essa necessária diferenciação
que fazemos quando ele diz o seguinte: “talvez essa ambiguidade possa ser superada apenas se o
katechon, o poder que, adiando o fim da história, abre espaço da política mundana, for restituído à
sua relação originária com a oikonomia divina e com a sua Glória” (AGAMBEN, 2011, p. 29).
Todo o nosso esforço de sublinhar nuances teológicas na argumentação filosófica de Agamben tem
por objetivo, justamente, restituir às relações teológicas originárias essa ambiguidade. Tão somente
através do entendimento das consequências políticas das formulações teológicas é que poderemos
avaliar o significado dos temas que estão em jogo aqui. Ou ainda, nas palavras do próprio

Peterson de uma ação política cristã como liturgia, como também para termos dimensão da importância que tem o
processo entre Pilatos e Jesus, onde ação política e sacrifício religioso coincidem sem deixar resíduos.

93
Agamben: “a compreensão do dogma trinitário no qual se funda a argumentação de Peterson
pressupõe, portanto, uma compreensão preliminar da ‘linguagem da economia’”, nesse sentido, “só
quando tivermos explorado esse logos em todas as suas articulações poderemos identificar o que de
fato está em jogo entre os dois amigos-adversários no debate sobre teologia política” (AGAMBEN,
2011, p. 27).
Essa capacidade de ultrapassar a ambiguidade que a opção de Peterson pode dar lugar, é o
que permite Agamben reconhecer outros representantes da mesma opção teológico-política do autor
alemão sem prescindir do debate como um todo. Isso o filósofo italiano faz quando, além de
Peterson também identifica o seguinte:

Quanto à segunda hipótese, ela foi retomada em nosso tempo por um teólogo genial,
menosprezado pela igreja, Ivan Illich. De acordo com Illich, o mysterium iniquitatis
de que fala o Apóstolo não é senão a corruptio optimi pexima, isto é, a perversão da
Igreja, que, institucionalizando-se cada vez mais como busca da societas perfecta,
forneceu ao Estado moderno o modelo para que assumisse o comando integral da
humanidade. Mas, já antes, a doutrina da Igreja romana como katechon encontrou
sua expressão mais extrema na lenda do Grande Inquisidor, a qual Ivan Karamazov
narra no romance de Dostoiévski. Nela a Igreja não é somente o poder que retarda a
segunda vinda de Cristo, mas o que procura excluí-la definitivamente (“vá e não
volte mais”, diz para Cristo o Grande Inquisidor) (AGAMBEN, 2013, p. 19).

Com o auxílio de Ivan Illich a segunda hipótese histórica do debate teológico-político


assume mais clareza, afastando-se de ambiguidades terríveis como o raciocínio de Peterson pode
nos encaminhar. Dizer que o não reconhecimento, por parte dos hebreus, do caráter messiânico do
julgamento de Jesus por Pilatos, não é sinônimo de encontrar no extermínio dos judeus,
literalmente, a solução final da história. Antes, essa hipótese significa compreender que todas às
vezes que a comunidade messiânica institucionalizar-se diante do poder temporal, o advento do
reino messiânico é retardado — assim como é descrito o mistério do mal pelo apóstolo Paulo. Essa
é a hipótese que, ao mesmo tempo, alinha-se com a investigação anteriormente reconstruída de
Jakob van Bruggen, como também dialoga com o raciocínio de Peterson sem emparelhar-se com a
ideologia nazista. A igreja que procura excluir do seu horizonte teológico e litúrgico a expectativa
da segunda vinda do messias assume a postura temporal de ser um poder que contribui para a crise
infindável na gestão dos seres humanos.
Tais pormenores escatológicos e eclesiásticos têm importância fundamental para a filosofia
de Agamben e a exploração do significado político do tema messiânico do tempo do fim, tanto hoje
como há vinte séculos. Utilizando uma terminologia escatológica que reaparece constantemente na
obra de Agamben, o sentido das coisas últimas determina e deve orientar a ação das coisas
penúltimas. Existe uma relação necessária entre a expectativa e, principalmente, a antecipação das
dinâmicas típicas do tempo do fim, com as posturas que podemos assumir agora. Nesse sentido,

94
podemos compreender porque, para Agamben, “tudo depende de como se interpreta o tema
escatológico, inseparável da filosofia cristã da história (talvez toda filosofia da história seja
construtivamente cristã) e, em particular, do sentido atribuído à passagem da epístola paulina”
(AGAMBEN, 2013, p. 21). Sendo assim, ocupar-se filosoficamente com aquilo que é constituinte
da escatologia cristã não é sinônimo de um quietismo político travestido de erudição teológica.
Antes, refere-se a uma criativa maneira que Agamben encontrou de, já no presente, desarticular
dispositivos e racionalidades governamentais infinitas. Ficará mais explicito no próximo capítulo o
significado da expressão “o tempo de agora”, tão presente nos raciocínios paulinos quando
apresenta sua escatologia messiânica. Entretanto, é importante entender desde já que: “o que
interessa ao Apóstolo não é o último dia, não é o fim dos tempos, mas o tempo do fim, a
transformação interna no tempo, que o evento messiânico uma vez por todas produziu, e a
consequente mudança na vida dos fiéis” (AGAMBEN, 2013, p. 22). É com essa transformação
interna no tempo que alterna a vida da comunidade messiânica que Agamben ocupa-se há tantos
anos. Apesar da ser possível rastrear uma genealogia teológico-política até os dias de Agostinho e
Ticônio, em que a Igreja fechou-se aos interesses escatológicos, o filósofo italiano acredita que
alguns acontecimentos pontuais — como a renúncia do papa Bento XVI — nos permitem perceber
algo fundamental para a continuação de nossa argumentação na presente tese:

o problema das coisas últimas continua a agir subterraneamente na história da


instituição. Alíás, a escatologia não significa necessariamente — como sugere
Schmitt — uma paralisia dos eventos históricos, no sentido de que o fim dos tempos
faria com que fosse inútil qualquer ação. É exatamente o contrário; é parte integrante
do estado das coisas últimas, que elas devam guiar e orientar a ação nas coisas
penúltimas. […] O mysterium iniquitatis da ‘Segunda epístola aos tessalonicenses’
não é um arcano supratemporal, cujo único sentido é pôr fim à história e à economia
da salvação, mas um drama histórico (mysterion em grego significa ‘ação
dramática’) que está acontecendo em cada momento e no qual incessantemente se
jogam os destinos da humanidade, a salvação ou a ruína dos homens. Uma das teses
do comentário ao apocalipse de Ticônico, que Bento XVI conhecia bem, era
exatamente a de que as profecias não se referem ao fim dos tempos, mas à condição
da Igreja no intervalo entre a primeira e a segunda vindas, isto é, no tempo histórico
que ainda estamos vivendo (AGAMBEN, 2013, p. 22).

O parágrafo acima é decisivo para Agamben nos mostrar como a temática teológica está
presente de maneira determinante na discussão política. Para ele, os temas escatológicos, ou seja, o
problema das coisas últimas continua a agir de modo definitivo na história do presente (i.e., o tempo
das coisas penúltimas). Diferentemente do que se costuma pensar, a escatologia não diz respeito a
uma paralisia dos eventos históricos, como queriam os pregoeiros fukuyamistas do fim da história.
Essa maneira historicamente reducionista de enxergar o futuro faz com que se torne inútil qualquer
ação no presente. Para Agamben, a temática escatológica do tempo do fim é o exato oposto de tudo
isso. O significado político do tema messiânico do fim dos tempos se estabelece como uma trama

95
histórica que integra o estado das coisas últimas com a direção da ação política no tempo das coisas
penúltimas. Essa forma de estabelecer uma filosofia da história é distintamente cristã, pois enxerga
o desenrolar dos eventos como um drama histórico (um mysterion, que em grego significa “ação
dramática”). As questões teológico-políticas do tempo messiânico agem subterraneamente na
história de todas as instituições políticas e eclesiásticas, fazendo com que cada momento do
presente seja decisivo para os destinos da humanidade — para a salvação ou a ruína dos seres
humanos.
Ações pontuais, como a renúncia do Papa Bento XVI, assumem sentido renovado para os
interesses de Agamben justamente porque elas são interpretadas à luz desse drama histórico
messiânico. Quando o pontífice renuncia à liderança de uma igreja que se institucionalizou de tal
forma que forneceu ao Estado moderno um modelo para que assumisse o comando infinito e
integral da humanidade, ele está antecipando na história o conjunto de ações penúltimas que são
guiadas pela expectativa última da volta do messias — e do poder que freia o governo infinito dos
seres humanos. Nesse sentido, se torna exemplar para toda ação genuinamente política a condição
em que a Igreja, enquanto verdadeira comunidade messiânica encontra-se no intervalo entre a
primeira e a segunda vinda de Cristo. Ou seja, a exemplaridade escatológica da Igreja para nós no
tempo histórico que ainda estamos vivendo. 40

1.2.3. Quem se compara nosso tempo? A crise infindável como instrumento do poder

A correta compreensão da obra agambeniana precisa situá-lo no interior desse debate


teológico-político que reconstruímos a genealogia anteriormente. Apesar de não ser teólogo, o
próprio Agamben faz uma opção sobre qual dos dois lados ele ficará nesse debate. Para o filósofo
italiano, todas as contradições e paradoxos que Pilatos incorre no julgamento de Jesus não são de
ordem psicológica — para a frustração daqueles que buscam estabelecer um perfil psicológico do
prefeito da judeia. Antes, referem-se às estruturas mais profundas que temos explicitado até então.
Nas palavras de Agamben, nessas contradições: “vem à luz um contraste mais profundo, que se
refere à antítese entre economia e história, entre o temporal e o eterno, entre justiça e salvação, que
a doutrina dantesca tenta em vão conciliar” (AGAMBEN, 2014, p. 58). Isso significa dizer que, à

40
Justamente por isso que Agamben argumenta que: “isso significa, no caso da separação entre os dois lados do corpo
da Igreja, que a ‘grande discessio’ da qual falava o jovem Ratzinger não é apenas um evento futuro que, como tal, deve
ser separado do presente e circunscrito ao fim dos tempos; é acima de tudo, algo que deve orientar aqui e agora a
conduta de todo cristão e, em primeiro lugar, do pontífice” (AGAMBEN, 2013, p. 22-23).
96
revelia dos séculos de tentativas teológicas de conciliar as antíteses fundamentais da história do
Ocidente, para Agamben o eterno e o histórico não se sobrepõem, nem se harmonizam sem que um
dos lados seja estruturalmente comprometido. Conforme o próprio Agambem explica uma vez
mais:

O processo que se desenrola diante de Pilatos, no pretório de Jerusalém, é, nesse


sentido, um mistério. No entanto, o divino e o humano, o temporal e o eterno que
aqui se encontram não se sobrepõem — como em Elêusis —, mas continuam
tenazmente separados. Disso provém a angustiada hesitação de Pilatos; disso
provém a impassível leveza de Jesus. Juízo e salvação permanecem até o fim
estranhos e incomunicáveis. Restam o drama, a ação quase teatral com os seus
“dentro” e “fora”, seus diálogos ofegantes e interrompidos, as tiradas ferozes e sua
inconcludente precipitação num êxito letal, mas que continua não resolvido. Aqui,
nunca há algo como um ponto arquimediano fora da vida que permite pará-la.
Talvez por isso o que os latinos chamavam actio ou causa assuma, com o tempo, um
nome que designa um decurso contínuo e implacável, um transcurso e uma
progressão incessante (processus morbi é o decurso da doença). Mas aquilo a que o
“processo" deveria levar — a “crise" definitiva, o juízo — desapareceu. A não ser
que o juízo coincida com a ininterrompível corrida — a menos que não seja o
processo que acabe em juízo, mas o juízo em processo (AGAMBEN, 2014, p. 72).

Com essa leitura que Agamben faz do processo de Pilatos e Jesus fica mais clara sua
compreensão de como não é possível situar-se ao lado de Eusébio, Jerônimo, Dante e,
principalmente, de Carl Schmitt. Para o filósofo italiano a razão para essa antítese irreconciliável
entre história e eternidade reside no fato de que Jesus é o monarca de um reino que “não é daqui”,
ou seja, está sendo julgado por um império que, por limitação histórica, não consegue julgar o
reinado eterno do messias — fazendo com que a krisis que o processo deveria encaminhar não seja
possível de estabelecer, transformando em um processo sem fim. O núcleo da ausência de
julgamento de Cristo por Pilatos, segundo Agamben, “não é o testemunho em si que é enigmático e
árduo, mas a verdade da qual deve dar testemunho”, isto é, “o fato paradoxal de que ele tem um
reino, mas um reino que não é ‘daqui’. Ele deve atestar, na história e no tempo, a presença de uma
realidade extra-histórica e eterna” (AGAMBEN, 2014, p. 60). O que explica os diálogos
enigmáticos entre Pilatos e Jesus é o lugar extra-histórico de sua enunciação. Do ponto de vista
jurídico, o testemunho de Jesus só pode fracassar, pois, em razão do caráter eterno de seu reinado,
ele precisa afirmar e desmentir o próprio Reino ao mesmo tempo.
Todas as cenas dramáticas da crucificação, em que elementos monárquicos são apresentados
em forma de blasfêmia atestam a radicalidade da antítese que existe entre o Império Romano
histórico e o Reino eterno do messias — que na história só pode assumir a forma de uma blasfêmia.
Quanto a isso, Agamben diz: “o manto púrpura, a coroa de espinhos, o bastão como cetro, os gritos
‘Julga-nos!’. Ele — que não veio para julgar o mundo, mas para salvá-lo — encontra-se, talvez
justamente por isso, tendo de responder a um processo submetendo-se a um julgamento”

97
(AGAMBEN, 2014, p. 62-63). Dessa forma, a justiça do império não pode ser conciliada com a
salvação do reino messiânico. Na verdade, nesse processo específico envolvendo Jesus, elas se
confrontam e se excluem mutuamente. Será por isso que Agamben dirá que: “o julgamento é
implacável e, ao mesmo tempo, impossível, porque nele as coisas aparecem como perdidas e sem
salvação; a salvação é piedosa e, contudo, ineficaz, porque nela as coisas aparecem como não
julgáveis” (AGAMBEN, 2014, p. 63).
Tudo isso é importante não só para a compreensão interna de todo o raciocínio de Agamben,
como também para os habitantes do mundo contemporâneo em que a política foi transformada em
gestão infinita da vida nua da população. Diante de toda essa reconstrução da exemplaridade do
processo de Jesus e Pilatos, a pergunta fundamental sobre os antagonismos fortes o suficiente para
impedir a reprodução infinita da governamentalidade naturalizada das sociedades ocidentais assume
uma nova forma. Trata-se justamente de sublinhar a antítese fundamental entre os julgamentos sem
sim, as krisis infinitas, e o discurso da salvação eterna. Segundo Agamben, “dar testemunho, aqui e
agora, da verdade do Reino que não está aqui significa aceitar que o que queremos salvar nos
julgue. E isso porque o mundo, na sua caducidade, não quer salvação, mas justiça”. (AGAMBEN,
2014, p. 63). Toda essa compreensão faz com que Agamben se localize, incontornavelmente, ao
lado daqueles teólogos que não acreditam ser possível uma teologia política, isto é, uma
argumentação teológica que justifique e alinhe o governo humano no drama escatológico. A antítese
que antagoniza essas duas ordens da realidade é, desde o gesto paradigmático de Pilatos, irredutível.
Conforme o próprio filosófico italiano conclui:

Porém, se Pilatos não emitiu um juízo legítimo, o encontro entre o vicário de César e
Jesus, entre a lei humana e o divino, entre a cidade terrena e a celeste, perde a sua
razão de ser e se transforma em enigma. Com isso, cai qualquer possibilidade de
formular uma teologia política cristã e uma justificativa teológica do poder profano.
A ordem jurídica não se deixa inscrever tão limpidamente na ordem da salvação,
nem esta naquela. Pilatos, com sua irresolução — a exemplo do soberano barroco
que, segundo Benjamin, é incapaz de decidir —, dividiu para sempre as duas ordens
— ou, ao menos, tornou insondável a relação entre elas. Assim, condenou a
humanidade a uma krisis incessante — incessante porque nunca poderá ser decidida
de uma vez por todas (AGAMBEN, 2014, p. 74-75).

As sutilezas dessa argumentação que Agamben desenvolve não têm importância meramente
teológica. Além de remeter a assuntos internos da Igreja, ele está fundamentalmente relacionado
com um tema distinto que pertence à filosofia política. A insolubilidade implícita no debate entre os
dois mundos representados por Pilatos e Jesus é, para Agamben, “uma alegoria do nosso tempo”
(AGAMBEN, 2014, p. 75). Quanto a isso, é importante determinar o sentido de uma alegoria antes
de argumentar sobre o que ela significa. Tal importância foi estabelecida pelo próprio Agamben em
um dos dez ensaios reunidos em Il fuoco e il racconto (2014), um volume destinado à relação
98
estreita entre práticas linguístas e artísticas com a ética e a filosofia política. Logo no primeiro
ensaio, que dá título a todo o livro, Agamben coloca as questões relacionadas a literatura em uma
estrutura análoga ao que fez com as questões jurídicas e teológicas em Pilato e Gesú. Baseado em
uma analogia que Gersom Sckholem transmite a partir da mística judaica sobre o fogo (o mistério) e
o relato (a história), Agamben, uma vez mais, descreve o momento histórico em que vivemos como
o fechamento às dimensões místicas e teológicas:

A humanidade, ao longo de sua história, afasta-se cada vez mais das fontes do
mistério e perde, pouco a pouco, a lembrança daquilo que a tradição lhe ensinara
sobre o fogo, o lugar e a fórmula — mas disso tudo os homens ainda podem narrar a
história. O que resta do mistério é a literatura e “isso” — comenta sorrindo o rabino
— “deve ser suficiente”. O sentido desse “deve ser suficiente”, porém, não é tão
fácil de apreender, e talvez o destino da literatura dependa justamente de como se
entenda isso. Pois, se for entendido simplesmente no sentido de que a perda do fogo,
do lugar e da fórmula é, de qualquer modo, um progresso e que o fruto desse
progresso — a secularização — é a libertação do relato de suas fontes míticas e a
constituição da literatura — que se tornou autônoma e adulta — numa esfera
separada, a da cultura, então esse “deve ser suficiente” torna-se deveras enigmático
(AGAMBEN, 2018a, p. 28).

A questão sobre a satisfação com um relato (uma visão da história) que perdeu sua relação
com o fogo (a dimensão mística) é estruturalmente análoga à questão anteriormente articulada sobre
as razões do evento decisivo da história — a paixão de Cristo — assumir a forma de um julgamento
41
sem fim. Como é característico de seu modo de filosofar, Agamben está colocando a mesma
questão de fundo a partir de outros pontos de vista. Aqui, no caso, a teologia dá lugar à literatura
para perguntar-se sobre o necessário ajuste fino entre história e eternidade. No entanto, essas
repetições de questionamentos sob outros olhares ajudam no aumento da compreensão que temos
sobre o assunto.
Para os propósitos da presente tese, esse perspectivismo temático de Agamben é elucidativo.
Em um ensaio entitulado Parábola e Reino, o tema do reinado messiânico reaparece em articulação
com um gênero específico de enunciação: as parábolas. Agamben repara com precisão que nos
Evangelhos, Jesus frequentemente fala sobre o seu reino extra-histórico através de parábolas. O
filósofo italiano enxerga nisso uma forma linguística de entrelaçar, mesmo que de modo paradoxal,
os temas do reino messiânico eterno com as dinâmicas típicas da cidade terrena. Segundo ele
mesmo explica: “as parábolas, de acordo com um módulo retórico cultivado na Antiguidade, são
um discurso cifrado para impedir que seja compreendido por quem não deve compreendê-los;

41
Em outro momento do seu ensaio podemos ver de maneira mais explícita tal analogia estrutural na forma de colocar a
questão: “o fogo e o relato, o mistério e a história são dois elementos indispensáveis da literatura. Mas de que forma um
elemento, cuja presença é a prova incontestável da perda do outro, pode dar testemunho daquela ausência, esconjurar
sua sombra e sua lembrança? Onde há relato, o fogo se apagou; onde há mistério, não pode haver história”
(AGAMBEN, 2018a, p. 34).

99
todavia, ao mesmo tempo exibem o mistério em plena luz” (AGAMBEN, 2018a, p. 47). Em outras
palavras, isso significa dizer que as parábolas enunciadas por Jesus nos Evangelhos são uma forma
de correspondência entre o seu Reino e o mundo em que viviam os habitantes do Império Romano.
Essa proximidade que as parábolas estabelecem entre a cidade eterna e a cidade terrena
ajudam a compreender aquela relação entre assuntos escatológico últimos e ações históricas
42 43
penúltimas, como também futuro e presente. Por tudo isso, “a palavra do Reino está fadada a
perder-se e a ficar incompreendida, a não ser em sua literalidade” (AGAMBEN, 2018a, p. 54),
assim como o episódio de julgamento de Jesus por Pilatos. Agamben destaca essa natureza fugidia
das verdades sobre o reino messiânico quando apresenta um fragmento póstumo de Franz Kafka
cujo título é Von Den Gleichnissen [Sobre as parábolas]. Segundo o filósofo italiano, trata-se de
uma espécie de parábola sobre as parábolas. Nela podemos ler o seguinte:

Muitos queixam-se de que as palavras dos Sábios percam-se em parábolas, sem


emprêgo na vida quotidiana – afinal a única que nos é dada. Quando o Sábio diz
“Atravessai” não quer dizer que a gente deva realmente passar para o outro lado, o
que aliás poder-se-ia fazer quando valesse a pena a travessia; ele quer referir-se a
um outro lado lendário, algo que não nos é dado conhecer, que mesmo para ele não
é fácil pormenorizar e que para nós aqui de nada serve. Todas essas parábolas em
verdade querem dizer que não se pode conceber o Inconcebível: isso é o que temos
aprendido... Aquilo com que todos os dias nos temos de preocupar, todavia, são
outras coisas. A propósito falou alguém: “Por que relutais? Se houvésseis por bem
seguir as parábolas, acabaríeis vós próprios integrados nelas e assim libertos das
preocupações quotidianas!” Outrem replicou: “Aposto que isso é uma parábola,
também!” Disse o primeiro: “Ganhaste”. E o segundo: “Só por parábola,
infelizmente...” Disse o primeiro: “Não, na realidade; por parábola, perdeste.”
(KAFKA, 1985, p. 21-22).

42
Quanto a isso, Agamben, em outra ocasião, nos lembra do seguinte: “a proximidade do Reino não é apenas de ordem
temporal – como seria de se esperar de um evento escatológico, que coincide com o fim dos tempos –, mas também e
sobretudo de ordem espacial: ele está, literalmente, ‘ao alcance da mão’. Isso significa que o Reino, que é por
excelência a última coisa, está essencialmente ‘próximo’ das coisas penúltimas, às quais se assemelha nas parábolas. A
semelhança do Reino também é uma proximidade: o Último é, ao mesmo tempo, próximo e semelhante” (AGAMBEN,
2018a, p. 48).
43
Em mais um momento muito explicativo Agamben argumenta o seguinte: “o sentido literal e o sentido místico não
são dois sentidos separados, mas sim homólogos: o sentido místico não é senão a elevação da letra para além do seu
sentido lógico, a sua transfiguração na compreensão – isto é, a cessação de qualquer sentido ulterior. Entender a letra,
tornar-se parábola significa deixar que nela advenha o Reino. A parábola fala ‘como se o Reino não fôssemos’, mas é
exatamente e apenas desse modo que nos abre a porta do Reino. A parábola sobre a ‘palavra do Reino’ é, então, uma
parábola sobre a língua, isto é, sobre o que nos resta ainda e sempre para entender: o nosso ser falante. Compreender
nossa morada na língua não significa conhecer o sentido das palavras, com todas as suas ambiguidades e sutilezas.
Significa, antes, perceber que o que está em questão na língua é a proximidade do Reino, sua semelhança com o mundo:
tão próximos e tão semelhantes que a custo o reconhecemos. Pois sua proximidade é uma exigência, e sua semelhança é
uma apóstrofe que não podemos deixar inatendidas. A palavra foi-nos dada como parábola, não para nos afastar das
coisas, mas para mantê-las próximas de nós, mais próximas, como quando reconhecemos num rosto uma semelhança,
como quando uma mão nos toca de leve. Parabolar é simplesmente falar: Marana tha, ‘Senhor, venha’” (AGAMBEN,
2018a, p. 56-57).

100
Através da leitura de Kafka, Agamben nos mostra como as parábolas nos auxiliam a
ultrapassar a antítese fundamental entre a vida eterna característica do tempo messiânico e aquele
estado de coisas na temporalidade infinita. Trata-se do convite que as próprias parábolas fazem para
que não permaneçamos presos na mera vida cotidiana. Segundo Agamben, “quem se obstina em
manter a distinção entre realidade e parábola não entendeu o sentido da parábola”, isto porque, ele
continua argumentando, “tornar-se parábola significa compreender que não há mais diferença entre
a palavra do Reino e o Reino, entre discurso e a realidade” (AGAMBEN, 2018a, p. 55). Essa
libertação que as parábolas trazem da mera vida cotidiana dizem respeito ao tipo de proximidade
que o Reino está. Quando Jesus anunciava nos Evangelhos que o Reino dele estava próximo
(Mateus 3.2; 10.7; Marcos 1.15; Lucas 10.9), não se tratava de uma proximidade temporal apenas,
como estamos habituados a pensar nos eventos escatológicos. Mas dizem também de uma
proximidade espacial, literalmente, ao alcance de nossas mãos. O tipo de discurso cifrado que as
parábolas propunham ser fazia com que dinâmicas da vida cotidiana se tornassem meios de
compreender características do reinado messiânico. Essa será a base de toda a trasformação interna
no tempo que Agamben argumentará exaustivamente em seu comentário à epistola de Paulo aos
Coríntios. As dinãmicas típicas da vida vivida no tempo messiânico, no tempo que resta, seguem
essa transformação na compreensão das dinâmicas cotidianas da vida que passam a ser usadas de
uma forma livre e renovadas. Segundo a duplicidade que Agamben repetidamente articula: “isso
significa que o Reino, que é por excelência a última coisa, está essencialmente ‘próximo’ das coisas
penúltimas, às quais se assemelham nas parábolas” (AGAMBEN, 2018a, p. 48). E é justamente
essa correspondência que faz com que, mesmo vivendo no cotidiano, não estejamos mais presos
nele. O que está em jogo em uma parábola é como o Reino se assemelha a algo cotidiano no
mundo: “tão próximo e tão semelhante que a custo o reconhecemos”. (AGAMBEN, 2018a, p. 57).
Entretanto, quando reconhecemos essa paridade, o Reino chegou e não estamos mais limitados a
enxergar as atividades penúltimas em seu uso cotidiano, mas na sua ligação com as coisas últimas.
44

É tão somente nesse sentido que o processo sem fim de Pilatos e Jesus é “uma alegoria do
nosso tempo” (AGAMBEN, 2014, p. 75). Através da descrição de uma rotina jurídica cada vez
mais cotidiana nas democracias ocidentais — as krisis sem fim — nós temos ao alcance de nossas
mãos uma maneira de figurar o que é característico do tempo messiânico do fim. A escatologia das
coisas últimas torna-se próxima da vida cotidiana quando estas passam a serem vistas como coisas

44
É justamente por isso que, no último volume da grande odisseia homo sacer, L’uso dei corpi (2014) Agamben, já no
prefácio, estabelece que: “o elemento genuinamente político consiste justamente nessa incomunicável, quase ridículo,
clandestinidade da vida privada” (AGAMBEN, 2017, p. 11). Vida privada esta que foi articulada todas às vezes nas
parábolas para significar e apontar para além de si mesma, as expectativas do reino messiânico.
101
penúltimas — ou seja, ações pontuais na história, mas que se remetem e nos guiam para o que é
distintivo da vida eterna no tempo messiânico. Quem estabelece essa correlação é o próprio
Agamben quando conclui da seguinte forma o seu ensaio sobre Pilatos e Jesus:

A insolubilidade implícita no embate entre os dois mundos, entre Pilatos e Jesus, é


atestada nas duas ideias-chave da modernidade: a historia seja um “processo” e que
esse processo, enquanto não se concluir em um juízo, esteja em permanente estado
de crise. Nesse sentido, o processo de Jesus é uma alegoria do nosso tempo que,
como toda época histórica que tenha respeito por si própria, deveria ter a forma
escatológica de uma novissima dies [o último dia, o dia do juízo final], mas foi
privada da mesma pela tácita e progressiva extenuação do dogma do Juízo
Universal, do qual a igreja não quer mais ouvir falar. Tanto na tradição médica
quanto na teológica, que confluíram no significado moderno do termo, o termo krisis
é inseparável da conexão com um momento determinado do tempo: os “dias
decisivos (krisimoi emerai, dies decretorii)” em que o médico “julga” se o doente irá
sobreviver, e o último dia, que coincide com o fim dos tempos ou da coisa que ser
julgada. […] Assim como o trauma na psicanálise, a crise que foi retirada de seu
terrífico lugar, reaparece em formas patológicas em todos os âmbitos e a todo
momento. Ela se separa de seu “dia decisivo” e se transforma em uma condição
permanente. Por conseguinte, acaba a faculdade de decidir de uma vez por todas e, a
decisão incessante não decide propriamente nada (AGAMBEN, 2014, p. 75-76).

Nas palavras acima fica explicito que Agamben enxerga na insolubilidade do drama
envolvendo Pilatos e Jesus uma estrutura análoga ao governo infinito dos seres humanos que estão
privados de qualquer antagonismo de tipo messiânico ou escatológico pela tácita e progressiva
extenuação do dogma do Juízo Universal, do qual a Igreja não quer mais ouvir falar. Nesse
contexto, o estado de krisis se torna permanente.
Agamben articulou essa hipótese não apenas em formas mais desenvolvidas e publicadas em
livros, mas também em textos menores e mais pontuais. Notável é o episódio em que o filósofo
italiano escreveu um breve texto Intitulado Um “Império latino” contra a híper potência alemã. O
texto era crítico às práticas ilegítimas da União Europeia e foi publicado originalmente em italiano
no jornal La republica março de 2013, até ser traduzido em vários idiomas e republicado
exaustivamente. A repercução foi tão ampla que o filósofo foi convidado poucos dias depois para
uma entrevista no Frankfurter Allgemeine Zeitung, em que pode expor de forma mais completa suas
ideias. A principal delas é justamente a crise infindável se tornou um instrumento do poder.
Questionado sobre a onipresença do estado de crise enquanto uma expressão de todo um sistema de
dominação da vida cotidiana da população, Agamben responde o seguinte:

O conceito de “crise” de fato tem se tornado o mote da política moderna e tem sido
por muito tempo parte da normalidade em qualquer segmento da vida social. A
palavra expressa duas raízes semânticas: a médica, que se refere ao curso de uma
doença, e a teológica, que remete ao Juízo Final. Ambos significados, no entanto,
sofreram uma transformação hoje, que os desprovê de sua relação com o tempo.
“Crise” na medicina antiga remetia a um julgamento, ao momento decisivo em que o
médico percebia se o doente sobreviveria ou não. A concepção atual de crise, por
102
outro lado, se refere a um estado duradouro. Assim, essa incerteza é estendida ao
futuro, ao infinito. É exatamente o mesmo com o sentido teológico: o Juízo Final era
inseparável do fim dos tempos. Hoje, no entanto, o juízo é divorciado da ideia de
resolução e repetidamente adiado. Então o prospecto de uma decisão é cada vez
menor, e um processo interminável de decisão jamais se conclui […] A crise atual
tornou-se um instrumento de dominação. Ela serve para legitimar decisões políticas
e econômicas que de fato desapropriam cidadãos e os desproveem de qualquer
possibilidade de decisão. Na Itália isso é muito claro. Aqui um governo foi formado
em nome da crise e Berlusconi voltou ao poder apesar de basicamente contrariar a
vontade do eleitorado. Esse governo é tão ilegítimo quanto a dita constituição
europeia. Os cidadãos da Europa devem ter claro que esta crise interminável – assim
como um estado de emergência – é incompatível com a democracia. (AGAMBEN,
2013b, s/p.).

Através da aplicação do conceito anteriormente articulado a uma situação bem pontual e


circunscrita no tempo e no espaço, a capacidade analítica das ideias apresentadas em Pilato e Gesú
aumenta. Fica mais claro porque a crise atual tornou-se um instrumento à favor da
governamentalidade infinita da população. Para Agamben, será o estado de crise permanente que
dará legitimidade para decisões governamentais serem tomadas à revelia da vontade popular. Para
o filósofo italiano, as rotas de fuga e alternativas genuinamente políticas para as
democracias contemporâneas está em sua compreensão para além do espaço econômico:
“por mais de duzentos anos, as energias humanas vêm sendo focadas na economia. Muito indica
que o momento talvez tenha chegado para os homo sapiens organizarem a ação humana para além
desta única dimensão. A velha Europa pode justamente fazer uma contribuição decisiva ao futuro
aqui” (AGAMBEN, 2013a, s/p.).
O desafio de pensar em uma ação humana que não seja reduzida à mera dimensão
econômica, e que possibilite freiar a crise infinita nas democracias do Ocidente, nos devolve para o
questionamento sobre as contracondutas escatológicas e os antagonismos fortes o suficiente para
devolver aos indivíduos um horizonte em que o significado original da palavra “crise” seja
restaurado — como um momento de julgamento e de escolha que ponha fim a gestão infinita dos
corpos humanos. Esse desafio é estruturalmente análogo às questões teológico-política que
argumentamos anteriormente. Ao final de seu ensaio sobre a renúncia de Ratzinger, Agamben
lembra que: “o corpo da sociedade política também é, como o da Igreja — e talvez de forma ainda
mais grave —, bipartido, mistura de bem e de mal, de crime e de honestidade, de injustiça e de
justiça” (AGAMBEN, 2013, p. 24). Todavia, apesar de ser uma questão política, as democracias de
governamentalidade infinita procuram atenuar essa fratura com o pesado, e cada vez maior, aparato
jurídico. Na tentativa de liquidar a bipartição social no plano das normas, se tenta controlar
indefinidamente uma sociedade cada vez mais à beira do caos.
Nesse cenário, uma das urgências do pensamento político é reabrir o escritório escatológico
da Igreja que foi fechado há séculos – e essa é, portanto, a importância política do tema messiânico

103
do tempo do fim tanto para a Igreja do primeiro século quando para a política do século XXI.
Quanto a isso, Agamben está convencido de que:

uma sociedade só funciona se a justiça (que, na Igreja, corresponde à escatologia)


não for mera ideia, totalmente inerte e impotente perante o direito e a economia, mas
conseguir encontrar expressão política em uma força capaz de contrabalançar o
progressivo achatamento, num único plano técnico-econômico, daqueles princípios
coordenados, ainda que radicalmente heterogêneos — legitimidade e legalidade,
poder espiritual e poder temporal, auctoritas e potestas, justiça e direito —, que
constituem o patrimônio mais preciso da cultura europeia (AGAMBEN, 2013, p.
25).

Em cada momento decisivo na história, foram as contracondutas escatológicas, tipificadas


pela Igreja, que fizeram expressão política capaz de contrabalançar o progressivo achatamento
técnico-econômico dos governos no Ocidente. Contrário senso também é verdadeiro. Quando a
doutrina do Juízo Final foi obscurecida pelas tentativas da Igreja manter-se indefinidamente
alinhada aos poderes temporais — seja na corrupção dos sacerdotes hebreus no julgamento de
Jesus, na justificação teológica da monarquia medieval e moderna, ou no silêncio da Igreja Alemã
no extermínio de judeus no Terceiro Reich — , experimentamos a crise sem fim. Por tudo isso, um
último passo necessário para respondermos por que a política se transformou em gestão passa,
incontornavelmente, pelo lugar paradigmático que a Igreja ocupa na política. Esse será um dos
temas do próximo capítulo.

104
CAPÍTULO 02 – O escritório escatológico do Ocidente:
por que o apóstolo Paulo é importante para a política?

à diferença do mundo clássico, com o cristianismo todos


os atos pessoais, incluídos os aparentemente mais triviais,
transformam-se imediatamente em ações políticas.

Fabián Ludueña Romandini


A Comunidade dos Espectros: I. Antropoténica

Poucas pessoas são vistas com maior desconfiança na filosofia moderna do que o apóstolo
Paulo. Quanto a essa tendência, é difícil exagerar a importância dos argumentos de Friedrich
Nietzsche para construir tal suspeição. O filósofo e economista alemão Franz Hinkelammert,
responsável por uma das leituras filosóficas de Paulo na contemporaneidade, é muito preciso
quando diz que: “seu livro O Anticristo é, de fato, um ‘antipaulo’. O filósofo vê em Paulo uma
grande inversão de todos os valores humanos e se apresenta como encarregado de reinverter a
45
inversão efetuada por Paulo” (HINKELAMMERT, 2012, p. 53). Sabemos que a crítica de
Nietzsche ao cristianismo perpassa diferentes momentos de sua obra, podendo servir como uma
46
linha compreensiva do seu raciocínio. De maneira geral, o cristianismo na obra de Nietzsche
representa a decadência dos valores de uma existência que valoriza a vida e, de forma específica,
Paulo de Tarso é um dos principais responsáveis pelo estabelecimento dessa inversão de valores
47
vitais. Curioso é o fato de que Nietzsche não mostra tanta repulsa ao próprio Cristo que, para o

45
O filósofo e professor universitário brasileiro Álvaro L. M. Valls reconhece que: “Paulo de Tarso foi um tipo genial,
um intelecto espantosamente produtivo, e não é totalmente errada a afirmação de Nietzsche de que foi ele que
‘inventou’ o cristianismo”, isso ele afirma lembrando um dado curioso a respeito da obra Der Antichrist de Nietzsche:
“ou ao menos teríamos de estranhar quando, ainda hoje, um livro de moral cristã dedica metade de suas páginas ao
ensino de Jesus e a outra metade (!) ao de Paulo de Tarso” (VALLS, 2006, p. 7).
46
O comentarista da obra nietzscheana, Jean Lefranc diz que: “desde o Nascimento da tragédia, no qual a própria
ausência do cristianismo tem o sentido de uma rejeição, até as diatribes violentas do Anticristo (no qual alguns quiseram
ver um sintoma de doença mental), o anticristianismo é o tema mais constante de toda a obra de Nietzsche”
(LEFRANC, 2008, p. 167).

105
filósofo alemão foi o único cristão, logo ele que foi crucificado — e, por isso, o termo cristianismo
é um mal-entendido, uma vez que o Evangelho morreu na cruz (cf. NIETZSCHE, AC/AC, § 39,
1983, p. 351). Paulo, diferentemente de Jesus, é o grande símbolo da décadence e corrupção do ser
humano:

Aquilo que se erguia aere perennius, o imperium Romanum, a mais grandiosa forma de
organização sob condições difíceis que até agora foi alcançada, em comparação à qual
todo o antes, todo o depois, é fragmento, remendo, diletantismo — aqueles santos
anarquistas se fizeram uma “devoção”, de destruir “o mundo”, isto é, o imperium
Romanum, até que não restasse pedra sobre pedra […]. Essa organização era firme o
bastante para suportar mais césares: o acaso das pessoas não pode fazer nada em tais
coisas, — primeiro princípio de toda grande arquitetura. Mas não era firme o bastante
contra a mais corrupta espécie de corrupção, contra o cristão… Esse verme secreto que à
noite, na neblina e na ambiguidade, se aproximava sorrateiro de todos os indivíduos e
sugava de cada indivíduo a serenidade para coisas verdadeiras e, em geral, o instinto para
realidades, esse bando covarde, feminino e açucarado, passo a passo afastou das “almas"
desse descomunal edifício […]. E Epicuro teria vencido, todo espírito respeitável no
império romano era epicurista: então apareceu Paulo… Paulo, o ódio-de-chandala feito
carne, feito gênio, contra Roma, contra “o mundo”, o judeu, o judeu eterno par
excelence… O que ele adivinhou, foi como, com o auxílio do pequeno e sectário
movimento cristão, à margem do judaísmo, se pode acender um “incêndio do mundo”,
como, com o símbolo “Deus na cruz”, se pode somar tudo o que está por baixo, tudo o que
é secretamente sedicioso, a inteira herança de agitações anarquistas dentro do império, em
uma potência descomunal. “A salvação vem dos judeus”. — O cristianismo como fórmula
para suplantar os cultos subterrâneos de toda espécie, o de Osíris, da grande Mãe, de
Mithra, por exemplo — e somá-los; nessa intuição consiste o gênero de Paulo
(NIETZSCHE, AC/AC, § 58, 1983, p. 359-360).

O elogio nietzscheano ao Império Romano também sinaliza a direção de sua crítica ao


apóstolo Paulo. O parâmetro de tudo aquilo que era grandioso e firme foi insidiosamente
corrompido por uma grande invasão dos valores nobres do gênero humano. A menção ao “Deus da
cruz” é, claramente, uma referência ao processo que Jesus foi submetido por Pilatos segundo a
denúncia dos judeus. Hinkelammert comenta que: “para Paulo, as autoridades crucificaram Jesus
em nome da sabedoria do mundo. Segundo ele, a cruz — que sempre vincula com a ressurreição —
é o símbolo dos fracos, nos quais está a força; uma força que arrebenta o poder dos poderosos”
(HINKELAMMERT, 2012, p. 58). É por tudo isso que, para Nietzsche, Paulo é o inventor de uma
religião povoada de seres imaginários — tais como “Deus”, “espíritos”, “almas” — que nada tem a

47
Antes mesmo de Der Antichrist, em Zur Genealogie der Moral, Nietzsche caracteriza os termos da inversão que
Paulo empreendeu: “já se percebe com que felicidade o modo de valoração sacerdotal pode derivar daquele
cavalheiresco-aristocrático e depois desenvolver-se em seu oposto; em especial, isso ocorre quando a casta de
sacerdotes e a dos guerreiros se confrontam ciumentamente, e não entram em acordo quanto às suas estimativas. Os
juízos de valor cavalheirescos-aristocráticos têm como pressuposto uma constituição física poderosa, uma saúde
florescente, rica, até mesmo transbordante, juntamente com aquilo que serve à sua conservação: guerra, aventura, caça,
dança, torneios e tudo o que envolve uma atividade robusta, livre, contente. O modo de valoração nobre-sacerdotal — já
o vimos — tem outros pressupostos: para ele a guerra é um mau negócio! Os sacerdotes são, como sabemos, os mais
terríveis inimigos — por quê? Porque são os mais impotentes. Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas,
sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Na história universal, os grandes odiares sempre foram sacerdotes,
também os mais ricos de espírito” (NIETZSCHE, GM/GM, § 7, 2009, p. 22-23).

106
ver com a natureza, mas é uma ficção pura que escraviza todo aquele que se submete ao
48
adoecimento dos seus corpos pelo dogma cristão. Essa postura do apóstolo é a responsável pelo
que Nietzsche chama de incêndio universal que o movimento cristão provocou. Essa é a inversão
que Nietzsche busca transvalorar. 49 Nietzsche enxerga essa alteração fundamental do que realmente
era louvável na antiguidade, quando lê nas páginas do Novo Testamento o apóstolo dizendo que:
“o Messias não me enviou para batizar, mas para pregar o evangelho; não por sabedoria de palavras,
para não esvaziar o significado da cruz de Cristo”, visto que, “na sabedoria de Deus, o mundo por
sua própria sabedoria não o conheceu, foi do agrado de Deus salvar os que creem por meio do
absurdo da pregação” (1 Coríntios 1.17-22). Hinkelammert, comentando essa leitura nietzscheana,
diz que: “trata-se do povo da sabedoria de Deus no sentido de Paulo: os apóstolos são loucos no
Messias, são fracos, são desprezíveis. Eles o são porque apresentam essa sabedoria de Deus” ou
seja, “no fraco está a força, os plebeus e os desprezíveis são eleitos de Deus e o que é se revela a
partir do que não é”. (HINKELAMMERT, 2012, p. 55).
Independentemente da intenção de Nietzsche para que isso se tornasse uma tendência, um
consenso filosófico se formou em torno desse desserviço que Paulo de Tarso prestou ao Ocidente. 50
Entretanto, em anos mais recentes, esse quadro começou a mudar. Não porque os argumentos de

48
Quanto a isso, Nietzsche afirma o seguinte: “nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm algum ponto de
contato com a efetividade. Somente causas imaginárias (‘Deus’, ‘alma’, ‘eu’, ‘espírito’, ‘a vontade livre’ — ou ainda,
‘não livre’); somente efeitos imaginários (‘pecado’, ‘redenção’, ‘clemência’, ‘castigo’, ‘remissão dos pecados’). Uma
transação entre seres imaginários (‘Deus’, ‘alma’, ‘espírito’); uma ciência imaginária da natureza (antropocêntrica; total
ausência do centro de causas naturais); uma psicologia imaginária (somente mal-entendidos sobre si, interpretações de
sentimentos gerais agradáveis ou desagradáveis, por exemplo, os estados do nervus sympathicus, com auxílio da
linguagem simbólica da idiossincrasia moral-religiosa — (‘arrependimento’, ‘remorso da consciência’, ‘tentação do
diabo’, ‘a proximidade de Deus’); uma teologia imaginária (‘o reino de Deus’, ‘o Juízo final’, ‘a vida eterna’). — Esse
puro mundo de feitiches distingue-se, muito em seu desfavor, do mundo dos sonhos, por este último espelhar a
efetividade, enquanto ele falsifica, desvaloriza, nega a efetividade” (NIETZSCHE, AC/AC, § 15, 1983, p. 349).
49
É interessante reparar aqui que, Kierkegaard, em diferença com o projeto nietzscheano, confirma que o apóstolo é a
inversão do gênio filosófico e que, por isso, sempre assumirá essa postura antifilosófica que Nietzsche tanto despreza.
Nas palavras do filósofo dinamarquês: “falam muito alto das qualidades intelectuais do apóstolo Paulo, da sua
profundidade, de suas belas comparações, etc.: outras tantas coisas que dependem estritamente do estético. Se o
apóstolo Paulo deve ser considerado como um gênio, está numa má posição; só os sacerdotes podem, na sua ignorância,
lembrar-se de lhe atribuir elogios no terreno estético […]. Que Paulo é apóstolo; e como apóstolo, não tem nenhuma,
absolutamente nenhuma semelhança com Platão, Shakespeare, os estilistas e os fabricantes de tapetes, que todos
(Platão, Shakespeare e o tapeceiro Hansen) não podem de modo algum comparar-se com ele. O gênio e o apóstolo
distinguem-se qualitativamente; cada um pertence à sua esfera qualitativa, um à da imanência e o outro à da
transcendência. […] um apóstolo é o que é pela autoridade divina de que está revestido. A autoridade divina é aqui o
fator qualitativo decisivo. Não é o avaliar do ponto de vista estético ou filosófico o teor da doutrina que devo ou posso
chegar a esta conclusão […] não devo escutar Paulo porque é um grande, um incomparável, mas devo inclinar-me
perante ele porque está revestido de autoridade divina” (KIERKEGAARD, 1986, p. 160-162).
50
Basicamente, Nietzsche acreditava no seguinte: “que Paulo, cuja pátria era o centro do racionalismo estóico, possa ser
considerado de boa-fé quando cria uma alucinação como prova da sobrevivência do redentor, ou mesmo só dar-lhe um
voto de confiança quando conta que ele teve esta alucinação, isto seria uma verdadeira tolice da parte de um psicólogo;
Paulo queria o fim, portanto queria também os meios… O que ele mesmo não acreditava, acreditaram-no os idiotas aos
quais se dirigia sua doutrina […]. A invenção de Paulo, seu meio de estabelecer a tirania sacerdotal, de formar
rebanhos, a crença na imortalidade — isto é a doutrina do julgamento” (NIETZSCHE, AC/AC, § 42, 1983, p. 352).

107
Nietzsche caíram em descrédito, mas porque o contexto original do apóstolo Paulo voltou a ser
51
considerado de maneira mais atenta. Um dos maiores especialistas no pensamento do apóstolo
Paulo, o professor de Novo Testamento e de cristianismo primitivo no St. Mary’s
College, na Universidade de St. Andrews, na Escócia, Nicholas Thomas Wright escreve o seguinte
sobre essa situação:

a falta de neutralidade dos estudos paulinos por toda a parte é fácil de mostrar em
todo o decorrer do século XX. Não foi por acaso que Albert Schweitzer entendeu o
cristianismo primitivo à luz da apocalíptica judaica, ou pelo menos da noção
nietzscheana. Não foi por acaso que Rudolf Bultmann aderiu ao existencialismo de
Heidegger à luz do qual procurou interpretar Paulo. Não foi por acaso que W. D.
Davies escreveu o livro de transformação radical Paulo e o judaísmo rabínico na
hora em que começaram a correr as notícias do Holocausto nazista, quando a Europa
estava se afastando do neopaganismo que tinham dado à luz tal coisa, indagando se a
avaliação negativa do judaísmo tinha sido um tremendo equívoco (WRIGHT, 2009,
p. 32-33).

À revelia da multiplicidade das influências em cada um dos exemplos mencionados acima,


fica claro um ponto específico em que repousa todas as novas tentativas de se ler Paulo de Tarso: os
principais intérpretes do seu pensamento não procuraram lê-lo em seu contexto original, mas foram
influenciados por perspectivas históricas, filosóficas e teológicas estranhas ao pano de fundo de
surgimento dos escritos de Paulo. Wright continuará seu argumento mostrando que: “prestar
atenção à estrutura narrativa latente do pensamento de Paulo não é simplesmente uma questão de
reconhecer as narrativas implícitas em Paulo e mostrar as implicações das narrativas na exegese
detalhada”, muito além disso, para Wright, “algo mais profundo e revolucionário acontece quando
começamos a desenterrar essas histórias implícitas” (WRIGHT, 2009, p. 28) — e é aqui que reside
o renovado interesse pelo apóstolo Paulo não só na teologia, como também na filosofia e nas
ciências humanas como um todo. Wright defende que o ponto central no mundo judaico do
Segundo Templo, o qual Paulo era inquestionavelmente um dos habitantes, não é que: “as pessoas
gostassem de contar histórias para ilustrar ou comprovar esta ou aquela experiência ou doutrina,

51
Quanto a isso, o professor de Novo Testamento da Universidade de Montreal, Canadá, Alan Gignac diz o seguinte:
“de sua parte, não se trata de uma maledicência (fundamentada), mas de uma calúnia (inventada). Nietzsche dissocia
Jesus e Paulo para opô-los e para atacar o apóstolo se servindo de um Jesus que lhe convém. Nietzsche fabrica uma
imagem de Jesus para, em seguida, provar sua tese segundo a qual Paulo inventou uma forma religiosa aberrante, o
cristianismo, que toma o exato contrapé do ensinamento do fundador, do qual Paulo se proclama, no máximo da
desonestidade, o mensageiro. Sobre isso, duas coisas. De um lado, para o apóstolo, Jesus não é uma mensagem, um
ensinamento, um conjunto de valores mais ou menos humanistas, mas uma experiência (isto, Badiou entendeu melhor
do que Nietzsche). Nós nos lembraríamos da personalidade e da sabedoria de Jesus, se os primeiros cristãos não
tivessem feito a experiência de um encontro libertador do Vivo? Por outro lado, Nietzsche não soube ver que as cartas
de Paulo são o eco do ensinamento Jesus de Nazaré – mesmo se este é citado somente em caso raro (e, nestes casos
raros, jamais de maneira muito clara, inclusive). O amor fraterno, a doçura, o ideal de perfeição evangélica que
impulsiona o humano para o alto sem esmagá-lo sob uma moral do dever – tudo isto é muito presente em suas cartas
(GIGNAC, 2008, p. 23).

108
mas sim pelo fato de que os judeus do Segundo Templo se consideravam atores dentro da narrativa
da vida real” (WRIGHT, 2009, p. 28). Esse pormenor interpretativo, que os estudiosos chamam de
52
“virada à narrativa” nos auxilia mutíssimo a entender, não apenas o pensamento do apóstolo
Paulo desvinculado de leituras enviesadas, como também o interesses renovado de seus interpretes
contemporâneos.
Quanto a esse último objetivo, Giorgio Agamben ocupa um lugar de destaque.
Diferentemente de outras leituras filosóficas atuais do apóstolo dos gentios — que iremos explorar
no primeiro tópico do presente capítulo —, Agamben é sensível aos reducionismos que acometeram
as leituras de Paulo na filosofia moderna, da mesma forma que sabe restituir o contexto original do
autor bíblico. Apesar de todos os seus escritores terem chegado até nós em grego, isso não faz de
Paulo um autor decidido a contrabandear noções platônicas ou helênicas para dentro da nascente
igreja cristã. Nas primeiras páginas da obra Il tempo che resta: un commento ella Lettera ai Romani
(2000), Agamben já deixa explícito que: “houve uma espécie de solidariedade subterrânea entre a
Igreja e a Sinagoga ao apresentar Paulo como o fundador de uma nova religião — qualidade que
com toda evidência ele, que esperava em curto prazo o findar do tempo, jamais teria reivindicar”
(AGAMBEN, 2016, p. 14). Não obstante, da mesma forma que N. T. Wright comentou acima,
Agamben também está consciente de que: “só recentemente que um sério reexame do contexto
judaico de Paulo foi empreendido por estudiosos judeus […] chamava novamente com força a
atenção para o caráter substancialmente judeu-messiânico da fé paulina” (AGAMBEN, 2016, p.
14). 53
Esta consciência atualizada dos estudos sobre o pensamento de Paulo faz de Agamben um
leitor privilegiado de suas obras. Para o italiano, “a oposição entre Atenas e Jerusalém, cultura
grega e judaísmo, tornou-se um lugar-comum, especialmente entre aqueles que não conhecem bem
nem uma nem a outra”, para esses leitores, as cartas de Paulo estavam “impregnada de cultura grega
e liam a Bíblia na língua de Aristóteles e de Platão” (AGAMBEN, 2016, p. 17). Entretanto, não

52
O profícuo teólogo norte-americano, Kevin J. Vanhoozer, escrevendo sobre as principais forças intelectuais que
ajudaram a formar a fisionomia intelectual da teologia ocidental descreve da seguinte maneira essa “virada à narrativa”:
“de todos esses usos da linguagem, talvez nenhum esteja ligado de forma mais íntima às questões da autocompreensão
humana que a narrativa. Visto que somos seres-no-tempo, com passado e futuro, bem como presente, nossa vida possui
uma qualidade narrativa irredutível. Com efeito, o filósofo Paul Ricouer crê que a narrativa é o único modo de articular
a identidade humana ao longo do tempo. As narrativas são também indispensáveis para moldar a identidade de uma
comunidade. As tradições que nos moldam, religiosas e não religiosas, possuem fundamentos narrativos. Mesmo os
filósofos analíticos recorrem à narrativa na explicação de acontecimentos históricos: explicar um evento é ‘enredá-lo’
em uma história” (VANHOOZER, 2018, p. 238).
53
Grosso modo, a mudança que ocorreu nesses estudos é exatamente aquela que Agamben descreve com as seguintes
palavras: “desde então as coisas, naturalmente, mudaram e, em Jerusalém como em Berlim e nos Estados Unidos,
estudiosos judeus começaram a ler as cartas de Paulo em seu contexto específico, mesmo se, talvez, não ainda como
aquilo que elas são, antes de tudo, ou seja, o mais antigo — e o mais exigente — tratado messiânico da tradição
judaica” (AGAMBEN, 2016, p. 15).

109
existe nada mais distante do que essa ficção criada pelos leitores modernos dos textos antigos. Ao
contrário desse anacronismo, Agamben sabe o que está por trás do idioma que Paulo usa em seus
escritos: “Paulo pertence a uma comunidade judaica da diáspora que pensa e fala em grego (em
judeu-grego) exatamente como os sefarditas falarão em ladino (ou judeu-espanhol) e os asquenazes,
em iídiche” (AGAMBEN, 2016, p. 16). Em outras palavras, o judaísmo do primeiro século, o qual
pertencia Paulo, era estrangeiro não só nos territórios que ocupava, mas também no idioma com o
54
qual trabalhavam. Para Agamben, “não há nada mais puramente judaico do que habitar uma
língua de exílio e trabalhá-la desde o seu interior até confundir sua identidade e torná-la outra coisa
que não uma língua gramatical: língua menor, gíria (como Kafka chamava o iídiche)”
(AGAMBEN, 2016, p. 17). Em vez de permanecer no estereótipo do Paulo platônico-hegeliano de
55
Nietzsche, Agamben agarra-se ao Paulo hebreu de Jacob Taubes e Walter Benjamin. Isso,
portanto, nos permite concordar com o professor e filósofo brasileiro Oswaldo Giacoia Jr. quando
ele nos lembra de que Jacob Taubes estabeleceu uma relação entre niilismo e messiânismo, mas em
linhas de pensamento paulino e não nitzscheano. Nesse sentido, “entende-se o paralelo traçado com
o conceito de niilismo, tal como o compreende também Nietzsche, mas pensado também contra
Nietzsche”, isto acontece justamente porque “‘os poderes deste mundo, deste século’ tornaram-se
peremptos, porque os derivados que são próprios da lei perderam sua validade cogência, liberou-se
também um livre espaço de uso” (GIACOIA JR., 2018, p. 212). 56

54
Nesse aspecto, Franz Hinkelamert segue a tendência geral de insistir em um anacronismo com o apóstolo Paulo,
quando ele sustenta que: “Paulo procede a uma inculturação da mensagem de Jesus na cultura greco-romana. Ele não só
escreve em grego como também pensa em grego. Os evangelhos sinópticos fazem traduções de seus textos para o
grego. O texto de Paulo é o próprio texto grego, não apenas as palavras por ele usadas. O apóstolo faz filosofia, que é a
base de usa teologia. Mas a faz de um modo especial. Ele pensa a partir do interior da cultura grega e, por isso,
desemboca numa crítica dessa cultura que é crítica a partir de dentro. Paulo critica o pensamento grego. Partir de dentro
do pensamento grego. Não assimila simplesmente esse pensamento. Trata-se de uma crítica da filosofia grega que parte
dos fundamentos dessa filosofia e de seus conceitos” (HINKELAMERT, 2012, p. 15).
55
Quanto a isso, é importante dizer que as teses de Nietzsche tinham o objetivo claro de ocupar-se com um tipo de
cristianismo muito específico e circunscrito na modernidade alemã que foi determinante para muitos séculos da
teologia, a saber: as leituras filosóficas da escola teologia de Tübigen. Além de Nietzsche deixar esse ponto explícito na
seção § 10 de Der Antichrist, somos informados também pela história dessa escola de pensamento teológico que grande
parte dos principais nomes da filosofia Alemã clássica — outrora chamado de Idealismo Alemão — ou foram
estudantes ou professores na Faculdade Teológica de Tübigen, tais como Friedrich Hölderlin, Georg Wilhelm Friedrich
Hegel, Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, Ernst Bloch e, mais recentemente, Ernst Tugendhat. Julgamos que era
impossível, portanto, que as críticas à filosofia desse período na Alemanha não se misturassem ao cristianismo
produzido nessa escola teológica específica, que tinha muito mais a ver com Platão e Hegel do que com o judaísmo do
Segundo Templo ao qual Paulo se referia.
56
O especialista na obra e pensamento de Paulo, N. T. Wright, comenta um pormenor muito significativo no que diz
respeito a compreensão de “judaismo” por Paulo e seus contemporâneos: “a palavra ‘judaismo’ no mundo de Paulo (do
grego ioudaismos) nâo se referia ao que chamaríamos hoje de ‘religião’. Na verdade, e mais uma vez como sinal de que
há desafios pela frente, a própria palavra ‘religião’ passou por uma mudança de significado. Nos dias de Paulo,
‘religião’ consistia em atividdes divinamente relacionadas que, juntamente com a política e a vida comunitária,
mantinham uma cultura unida e interligavam os membros dessa cultura às divindades e uns aos outros. No mundo
ocidental moderno, ‘religião’ tende a signiicar crenças individuais e práticas relacionadas a Deus, supostamente
distintas de cultura, política e vida comunitária” (WRIGHT, 2019, p. 17).
110
A consciência dessa vida linguística estrangeira do judeu do primeiro século permitirá que
Agamben restitua as ideias e os conceitos de Paulo ao seu contexto de origem, proporcionando uma
redescoberta do proveito que a leitura de suas epístolas pode trazer para o Ocidente. Mais
especificamente, o objetivo de Agamben com a leitura e circulação das ideias de Paulo durante um
período importante de sua escrita filosófica é, segundo suas palavras, “restituir as Cartas de Paulo à
sua condição de texto messiânico fundamental do Ocidente” (AGAMBEN, 2016, p. 13). Tal tarefa
pode parecer banal para muitos leitores, tendo em vista que suas epístolas são eminentemente
messiânicas. Entretanto, à luz do apagamento que o Ocidente experimentou de perspectivas
histórico-escatológicas fortes o suficiente para resistir à hipertrofia da governamentalidade infinita
da população que descrevemos no capítulo anterior, o projeto de encontrar em Paulo uma caixa de
ferramentas conceituais messiânicas assume primeira importância política. Agamben repara que o
crescimento totalitário de plataformas governamentais que procuravam gerir infinitamente a mera
vida dos habitantes das democracias modernas coincide com: “a história das Igrejas cristãs, que
apagaram literalmente o messiânismo — e o próprio termo ‘messias’ — do texto paulino”
(AGAMBEN, 2016, p. 13). Agamben não acredita que nisso encontra-se uma estratégia intencional
de neutralização do messianismo por parte das comunidades cristãs. Antes, refere-se às diversas
tendências antimessiânicas que engoliram a própria comunidade do messias que tinha que se
apresentar como uma instituição histórica estável — tarefa essa paradoxal e muito perigosa.
Em tudo isso, conseguimos perceber como realmente a crítica nietzscheana ao cristianismo
pode ser reavaliada contemporaneamente. A ideia da inversão dos valores da vida greco-romana
propagada pelo cristianismo não deve ser enxergada como mera invenção paulina, fruto da
desconsideração da vida de Jesus que seria o único cristão. Antes, essa inversão só tem sentido
interna à lógica cristã quando é perspectivada a partir do contexto judaico de submissão anti-
messiânica aos decretos imperiais de Roma. Quem nos ajuda a sustentar essa hipótese é Jacob
Taubes, filósofo vienesse judeu que fará uma das primeiras leituras contemporâneas da obra de
Paulo segundo o seu próprio contexto hebreu. Ele defende essa ideia quando diz que: “e o que
Nietzsche descobriu nele [em Paulo], o gênio de uma inversão dos valores, está dentro, justamente,
da sua crítica ao conceito de lei: nas várias ondas que se repetem na carta aos Romanos” (TAUBES,
2007, p. 40). Nietzsche acertou na descrição do movimento paulino de inverter os valores
dominantes no primeiro século, entretanto, foi incapaz de perceber o alto grau de resistência que
esse movimento perpetrou nas primeiras comunidades cristãs frente aos domínios infinitos do
Império Romano — o qual Nietzsche enxergava a mais grandiosa forma de organização cultural.
Nesse sentido, só é possível conservar o lugar específico de Paulo para os raciocínios nietzscheanos
se o contexto judaico-romano específico for levado em consideração — e não como uma mera

111
oposição de moralidade escrava e decadente resultado sua impotência diante da nobreza
cavalheiresco-aristocrática. Quem consegue enxergar com precisão esse limite da obra de
Nietzsche, relacionando com outro leitor privilegiado de Paulo na filosofia contemporânea é, uma
vez mais, Hinkelammert:

Taubes, porém, não chega a analisar essa relação de Nietzsche com Paulo, ainda que
a mostre. Mas me parece básico entendê-la, porque Nietzsche considerava Paulo —
precisamente nos últimos anos de sua atividade — seu inimigo principal, que dividiu
a história em duas partes e diante do qual ele deseja erigir-se como um novo
refundado dos valores. A razão, contudo, é bastante óbvia. Nietzsche, que se sente
pensador aristocrático por excelência, se sente demasiadamente acima dos
movimentos contra os quais quer reagir: os anarquistas e os marxistas. Para seu
sentido de limpeza, são sujos demais. Percebe, no entanto, que de fato o pensamento
de Paulo é o cânon, a prefiguração de todos esses movimentos. Nietzsche considera
Paulo exatamente como o faz Benjamin: como a figura, o cânon, a prefiguração do
materialismo histórico que inspira esses movimentos. Do mesmo modo, percebe o
que Benjamin percebe: sua união pode criar uma nova força, porque é uma união na
essência de ambos. O que chama a atenção em todas as análises anteriormente
mencionadas é o fato de que não dão conta dessa coincidência entre Nietzsche e
Benjamin, que é uma consciência com sinais contrários. Benjamim deseja promovê-
la como a constelação que hoje pode mobilizar; quanto a Nietzsche, que a percebe
da mesma maneira, tem a intenção de enfrentá-la e destruir sua possibilidade. Trata-
se de uma raiz que Nietzsche quer extirpar e que Benjamin deseja ativar
(HINKELAMMERT, 2012, p. 9-10).

À despeito da hipótese de que Paulo seja ou não a prefiguração dos anarquistas e marxistas,
o que gostaríamos de chamar atenção nesse trecho supracitado é um importante contraponto entre
Nietzsche e Benjamin que tem condições de tornar decisiva a escolha do apóstolo para o diálogo
filosófico na presente tese. Longe de insistir nas tradicionais leituras platônico-hegelianas de Paulo
— que Nietzsche, com certeza, tinha em seu horizonte — todo este capítulo insistirá na recuperação
judaica de Paulo para a filosofia. Nesse sentido, argumentaremos por todo o capítulo que Nietzsche
tratou de maneira vaga uma questão muito específica do contexto da vida e pensamento paulino.
Essa é uma das razões de recolocar Paulo como uma pergunta filosófica na contemporaneidade, ou
ainda, nas palavras de Taubes em um artigo dedicado somente ao raciocínio do apóstolo: “talvez
possamos hoje definir o caráter marcadamente polêmico da discussão de maneira mais precisa do
que fizera Nietzsche”, isso porque, “Nietzsche — no horizonte de compreensão do século XIX —,
todavia, interpreta este fragmento da primeira epístola aos Coríntios muito vagamente como uma
polêmica geral contra a sabedoria e a filosofia grega” (TAUBES, 2007a, p. 119). Nesse sentido,
talvez, ninguém melhor que Nietzsche, tenha percebido a novidade subversiva que o anúncio de
Paulo carregava consigo, ainda que mantivesse o desejo de transvalorá-la. Entretanto, o professor
José Antonio Zamora explica que: “o que Nietzsche denuncia como ressentimento dos sacerdotes
frente à hierarquia natural da vida é, para Taubes, o princípio de uma nova comunidade universal de

112
iguais perante Deus” (ZAMORA, 2011, p. 11-12). Precisamente nesses princípios encontram-se
nosso interesse político nas leituras de Paulo.
Portanto, o fato de Agamben deter-se no pensamento de Paulo de Tarso durante anos
importantes para o projeto filosófico de homo sacer, diz respeito ao trabalho de compreender a
estrutura e interpretar “o tempo messiânico como paradigma do tempo histórico” (AGAMBEN,
2016, p. 15) — deixando, assim, a tradicional leitura nietzschean de lado e trilhando a senda já
estabelecida por Benjamin e Taubes. Esse objetivo agambeniano liga-se muito harmonicamente
com o propósito geral da presente tese de questionar-se sobre a importância do tema do tempo
messiânico do fim para a política, tanto do século primeiro, quanto atualmente. Para isso, portanto,
procederemos da seguinte forma no presente capítulo: partindo do mais geral para o mais
específico, começaremos nos perguntando sobre a importância das leituras de Paulo para a filosofia
contemporânea. Isso será realizado através de uma reconstrução e avaliação crítica dos argumentos
de Alain Badiou sobre o apóstolo dos gentios. Em seguida, de forma mais específica, mostraremos
como os conceitos paulinos são caros à filosofia de Agamben – e como este se afasta
consideravelmente, não só de Badiou, mas de um senso comum que se formou
57
contemporaneamente em torno de Paulo de Tarso. Após esse movimento de situar os diálogos
com a teologia de Paulo, vamos apresentar a distinta contribuição que esse apóstolo da Igreja traz
para o projeto agambeniano, a saber, uma robusta noção de temporalidade messiânica que está em
oposição a reprodução infinita da governamentalidade política atual. Essa forma messiânica de
encarar o tempo desdobra-se em alguns pontos importantes para Agamben que vamos explorar em
seguida, as quais sejam: o tempo que resta, a inoperosidade da lei, a revogação das vocações
temporais e a postura escatológica da comunidade messiânica frente ao poder que freia o trem da
história governamental no Ocidente. Específicamente com a exploração desses conceitos oriundos
das epístolas de Paulo, acreditamos que é possível responder a pergunta sobre por que o apóstolo
Paulo é importante para a política.

57
Um reforço a nossa escolha de trabalhar as leituras de Badiou e Agamben encontrou ressonância no erudito trabalho
científico de Joris Vlieghe e Piotr Zamojski, onde eles esclarecem que: “Pode haver muitas razões para fazer isso, por
exemplo, porque ambos são filósofos políticos influentes dos dias atuais que criticaram a situação política atual e que
defenderam sem compromisso uma alternativa radical às sociedades biocapitalistas e pós-democráticas em que
vivemos. Nesse sentido, uma conversa entre Agamben e Badiou pode ser frutífera. Ao mesmo tempo, a alternativa que
Badiou defende e que consiste em um universalismo recém-inventado foi fortemente criticada por Agamben como uma
mera continuação da ordem que ambos desaprovam e como uma linha de pensamento fundamentalmente antipolítica”
(VLIEGHE; ZAMOJSKI, 2017, p. 2). Quem também percebeu essa relação profícua entre os dois filósofos foi o
especialista na obra agambeniana Gert-Jan van der Heiden, em que podemos ler o seguinte: “eu escolhi Badiou e
Agamben porque suas leituras vão em direções diferentes exatamente no que diz respeito à questão da dialética de
Paulo. Na verdade, é até bastante duvidoso se podemos encontrar uma dialética na leitura de Badiou, dado seu direto
rejeição da dialética em sua ênfase na ‘antidialética da morte e ressurreição’. Além disso, tanto Agamben quanto Badiou
problematizam, embora de maneiras diferentes, qualquer tentativa de buscar a alternativa de Paulo ao dualismo em uma
dialética hegeliana. Esta herança da alternativa de Paulo à dialética hegeliana não marca apenas suas leituras de Paulo
mas também marcam fortemente seu trabalho após suas respectivas leituras de Paulo” (HEIDEN, 2016, p. 172-173).

113
2.1. A filosofia que vem: Agamben leitor de Paulo

Um caminho importante para o estabelecimento dos fundamentos metodológicos da


investigação filosófica dos textos de Paulo é dar um passo atrás nas atuais leituras políticas do
58
apóstolo, e recorrer ao uso paradigmático que Martin Heidegger faz das epístolas paulinas.
Durante os anos de 1920 e 1921 o jovem privatdozent, e assistente de Edmund Husserl na
Universidade de Freiburg, pronuncia as conferências de inverno que levaram o título de Introdução
à fenomenologia da religião. Nessa ocasião, o jovem filósofo paulatinamente afastava-se de suas
influências católicas e, talvez por influência do círculo de Husserl, experimenta uma fase de
“protestantismo não-dogmático”. Para tanto, não existia nada mais adequado do que dedicar-se
durante o período dos cursos ao texto de Paulo, Agostinho, Lutero e também Kierkegaard. Tais
lições, principalmente em torno do texto paulino, serão determinantes para a formação da categoria
experiência fática da vida, sobre a qual Heidegger elaborará toda a superestrutura de sua obra Ser e
Tempo (1927).59 Metodologicamente falando, Heidegger estabelece algumas diferenciações
importantes aqui: “é necessário determinar provisoriamente o significado das palavras do título da
preleção. Isto está fundamentado na peculiaridade dos conceitos filosóficos” (HEIDEGGER, 2010,
§ 1, p. 9). Claramente, o filósofo alemão estabelece que não fará uma leitura teológica de Paulo,
mas antes, filosófica. Ou ainda, segundo suas próprias palavras, “no que segue, não temos a
58
Em um trabalho científico bastante refinado, Ezra Delahaye nos lembra de que natureza é a relação entre Agamben e
Heidegger: “a compreensão de Agamben de kairos e chronos torna-se compreensível ao ser confrontado com o
contexto heideggeriano de grande parte de sua obra. Heidegger é a fonte muitas vezes não mencionada de Agamben,
mas sempre presente. Em 1969 Agamben, ainda estudante, foi convidado a comparecer Seminários le Thor de
Heidegger. Esses seminários foram de vital importância para o desenvolvimento do jovem Agamben como filósofo. Em
outra entrevista, Agamben afirma que entende sua própria obra como o desenvolvimento da obra de autores que são
importantes para ele. Um dos quatro autores que ele menciona explicitamente aqui é Heidegger. Heidegger é um
recurso importante para Agamben e, a seguir, argumentarei que a concepção de tempo de Agamben em O tempo que
resta pode ser proveitosamente entendida como um desenvolvimento da noção de Heidegger de temporalidade em Ser e
Tempo” (DELAHAYE, 2016, p. 90). Quem também reconhece a importância desse ponto de partida investigativo é o
filósofo argentino Enrique Dussel em sua leitura de Paulo de Tarso na filosofia política atual. Quanto a leitura
heideggeriana, ele diz que: “ainda que sua obra não seja de filosofia política, ela servirá de introdução ao nosso tema.
Podemos ver claramente a intenção metodológica heideggeriana — correta, no meu ponto de vista — e de interesse para
nossa exposição” (DUSSEL, 2016, p. 40).
59
Em suas palavras iniciais, buscando esclarecer a peculiaridade da atividade filosófica e de seus conceitos, ele nos diz
o seguinte: “o ponto de partida do caminho para a filosofia é a experiência fática da vida. [...] A experiência da vida é
mais do que a mera experiência de tomada de conhecimento. Ela significa a plena colocação ativa e passiva do homem
no mundo: vemos a experiência fática da vida apenas segundo a direção do comportamento que experimenta. Assim,
definimos o que é experimentado – o vivido – enquanto ‘mundo’, não como ‘objeto’. ‘Mundo’ [Welt] é algo no qual se
pode viver (num objeto não é possível viver). O mundo pode ser formalmente articulado como mundo circundante
[Umwelt], como aquilo que nos vem ao encontro, ao qual pertencem não apenas coisas materiais, mas também
objetualidades, ideias, ciências, artes, etc. [...] Até onde seja possível que eu possa entrar na ciência ou na arte, que eu
então viva plenamente nela, ciência e arte são definidas como genuínos mundos da vida” (HEIDEGGER, 2010, § 3, p.
15-16).

114
intenção de oferecer nem uma interpretação dogmática ou teológico-exegética, bem tampouco um
estudo histórico ou uma meditação religiosa, mas oferecer tão-somente uma introdução à
compreensão fenomenológica” (HEIDEGGER, 2010, § 14, p. 61). Fica evidente, portanto, que
Heidegger procurava uma nova via de acesso ao teológico a partir do fenomenológico — “tem a
intenção somente de inaugurar e abrir o acesso ao Novo Testamento” (HEIDEGGER, 2010, § 14, p.
61). 60
O que chama nossa atenção, e corrobora com a hipótese que ambicionamos desenvolver no
presente capítulo, é que Heidegger esforça-se em mostrar aos seus alunos daquele semestre de
inverno que na comunidade cristã descrita nos textos paulinos encontramos uma nova relação
fundamental com o mundo, isto é, a experiência fática da vida. Nas palavras do próprio filósofo
alemão: “Paulo encontra-se em luta. Ele se vê impelido a afirmar a experiência cristã da vida diante
do mundo circundante, para o qual aplica os meios insuficientes da doutrina rabínica que estão à sua
disposição. A partir disso, sua explicação da vida cristã recebe sua estrutura peculiar”
(HEIDEGGER, 2010, § 16, p. 65). Agamben chama nossa atenção para o fato de Heidegger lançar
mão do discurso paulino para desvelar a modificação exemplar que o apóstolo empreende. Todo o
sentido da relação com o mundo circundante é transformado através da “boa notícia” que Paulo
anuncia. Segundo Agamben, “essenciais em Paulo não são nem o dogma nem a teoria, mas a
experiência factícia, o modo como as revelações mundanas são vividas (der Vollzug, a excecuçào, o
modo de viver)” (AGAMBEN, 2016, p. 47). 61
Mesmo conscientes das especificidades do uso paulino por Heidegger, acreditamos que
mencionar sua intenção metodológica aqui seria esclarecedor para nosso próprio projeto. Foi
através da leitura dos textos paulinos que Heidegger parece ter elaborado, pela primeira vez, aquilo
que é decisivo no caráter da existência humana – elaboração essa que Agamben explorará às
62
últimas consequências. O filósofo argentino Enrique Dussel comenta esse movimento

60
Quanto a isso, Dussel comenta que: “o filósofo extrairá os conceitos filosóficos implícitos da narração fáctico-
cotidiana dos textos de Paulo para seus fins. Efetuará uma interpretação fenomenológica da experiência láctica da vida
cotidiana que é o horizonte existencial a partir de onde se escrevem as cartas. Estas devem então ser consideradas uma
narração racional baseadas em símbolos. E, nesse nível, Heidegger se distingue de Martinho Lutero porque advogaria
por uma aproximação existencial a Paulo a partir do próprio Paulo, tentando, na interpretação, não objetivar experiência
moderna” (DUSSEL, 2016, p. 42).
61
Em relação a um dos conceitos mais importantes para a leitura messiânica de Paulo na filosofia de Agamben, Esza
Delahaye chama nossa atenção para o fato de que: “tanto Agamben quanto Heidegger usam o mesmo conceito de tempo
cronológico. Para Heidegger, o tempo cronológico é o tempo concebido como uma sequência de 'agoras', que é
completamente homogênea. Este tempo se presta a ser contado. O paradigma para essa concepção de tempo é o relógio.
Da mesma forma, a concepção de tempo cronológico de Agamben é o tempo como a duração do início do mundo ao
início do fim do mundo. É a hora cotidiana do mundo, que - como mostra Heidegger - é precisamente a hora do relógio”
(DELAHAYE, 2016, p. 94).
62
Quanto a isso, é importante citar que: “é através de uma interpretação do hos me paulino que Heidegger parece
elaborar, pela primeira vez, a ideia de uma apropriação do impróprio como caráter decisivo da existência humana. O
115
heideggeriano de uma forma importante para nossas argumentações que virão a seguir: “Heidegger
efetua esclarecimentos metodológicos feitos para o Ser e Tempo — aproveitados também por Alain
Badiou — tais como o conceito de “experiência fáctica da vida” como ponto de partida ontológico”
(DUSSEL, 2016, p. 42). Essa “experiência fáctica da vida” que Heidegger menciona se diferencia
de outras possíveis posturas dentro do mundo, tais como, o pensamento filosófico ou a explicação
científica. Essa diferenciação é importante para entendermos o que Heidegger procurava nos textos
paulinos — busca essa que também inspirará Alain Badiou, conforme mostraremos a seguir. Dussel
é mais uma vez esclarecedor quando diz que: “uma vez munido de alguns avanços metodológicos e
categoriais, Heidegger interpreta a ‘experiência de Paulo’ fazendo uma reflexão filosófico-
existencial e não de filosofia política que, apesar de escatológica”, e aqui está a grande contribuição
de Dussel para nossos raciocínios, “não descobre o tema do ‘messianismo’ (que W. Benjamin junto
com G. Scholem vislumbravam a partir das obras de Rosenzweig). […] Falta-lhe, portanto, a
dialeticidade da interpretação que buscamos” (DUSSEL, 2016, p. 42-43). É justamente essa a
contribuição e os limites da leitura heideggeriana que Agamben reconhece e ultrapassa. A
compreensão da temporalidade escatológica será fundamental para entendermos a perspectiva
histórica que Paulo ajuda a formar no Ocidente. Por outro lado, é justamente na ausência do tema
do messianismo que vemos como o projeto filosófico de Agamben distingue-se das outras leituras
63
feitas contemporaneamente. A partir do olhar de Walter Benjamim, Agamben empreenderá a
recuperação da genuína contribuição intelectual que Paulo nos fornece.
Justamente nesse cenário que a recuperação filosófica do apóstolo Paulo é empreendida
como uma das condições privilegiadas de pensar as linhas de resistência e rotas de ultrapassamento
das aporias nas quais a ética e a filosofia política se encontram atualmente – especialmente no que
64
diz respeito à transformação da política em mera gestão pública. Tal hipótese tem dois aspectos:
por um lado, diz respeito à potencialidade e valor filosófico intrínseco ao próprio texto paulino e,
por outro, refere-se ao valor da redescoberta e dos desdobramentos apontados por vários pensadores

modo de vida cristão não é determinado, de fato, pelas relações mundanas e pelo seu conteúdo, mas pelo modo como
elas são vividas e — apenas dessa maneira — apropriadas na impropriedade mesma” (AGAMBEN, 2016, p. 48).
63
Conforme a explicação complementardes Dussel resume muito bem o projeto de Heidegger: “vale indicar, portanto,
que o futuro filósofo de Freiburg também se ocupou filosoficamente de Paulo, porém fenomenologicamente e não a
partir da filosofia política, tampouco dentro de uma interpretação messiânica. Isso é percebido pela não tensão entre o
mundo da vida cotidiana sob a Lei e o novo mundo que se origina como sua crítica” (DUSSEL, 2016, p. 44).
64
Em entrevista recente ao Brasil, o teólogo e professor alemão de ética, Hermann Häring diz o seguinte sobre esse
fenômeno: “o crescente interesse dos mencionados pensadores é, de fato, um fenômeno fascinante. Aqui não é possível
dar uma resposta exaustiva. A teologia cristã infelizmente quase não acolheu estes novos discursos, porém para um
ethos mundial essas reflexões são muitíssimo interessantes. […] Mas o que ocorre nos mencionados pensadores? Todos
eles descobrem em Paulo uma força política atual relevante. Eles veem em Paulo não o pensador de uma intimidade
religiosa, mas de um futuro universal e cósmico, embora ele aja num jogo linguístico religioso. Também sua crítica da
falência das pessoas (tanto judeus como não-judeus) é marcada por perspectivas políticas. (HÄRING , 2008, p. 10).

116
do contemporâneo a partir desse texto. O primeiro aspecto é a importância da figura de Paulo de
Tarso para a formação da fisionomia intelectual do Ocidente. Conforme já foi preconizado por
Heidegger, não se trata de recuperar filosoficamente a teologia do apóstolo, propondo, assim, uma
teologia filosófica. Ao invés disso, o que está em jogo é a redescoberta de textos fundacionais para
a constituição intelectual do Ocidente. E no que diz respeito a esses textos, seja na leitura de
Nietzsche ou do jovem Heidegger, é praticamente inegável que Paulo introduziu categorias no
Ocidente que, ainda hoje, povoam nosso imaginário cultural. Julgamos que esse é um “gesto
intelectual” de primeira importância, não só para entendermos a própria filosofia de Agamben, mas
para pensarmos posturas análogas em nossa configuração política. 65
Por outro lado, o segundo aspecto em jogo na imagem de Paulo como filósofo está em sua
recuperação hodierna enquanto repositório de categorias críticas de primeira grandeza para a
filosofia política contemporânea. Esse segundo aspecto é importante porque apenas afirmar que
Paulo introduziu categorias fundamentais para a cultura ocidental não significa, em si mesmo, que
tais conceitos ainda são importantes. Contudo, o renovado interesse de filósofos de diferentes
matizes de pensamento pelos textos paulinos aponta para a relevância contemporânea de tal
pensamento. Na “caixa de ferramentas” paulina, para falarmos com Gilles Deleuze, vários filósofos
encontraram um discurso de potencialidades criadoras, ainda que em jogo linguístico teológico.

2.1.1. Por que Paulo é importante para a filosofia contemporânea?

Ao final de sua análise comparativa entre o marxismo e o pós-marxismo, o professor


emérito da Universidade de Cambridge, Göran Therborn dedica-se a uma breve enumeração dos
novos modos que a ciência e a filosofia política responderam às demandas sociais contemporâneas
– principalmente à governamentalidade das democracias liberais contemporâneas. Dentre esses
modos, o primeiro que o autor apresenta é o que ele chama de “a virada teológica” na filosofia

65
Quem nos ajuda a sustentar tal hipótese é, uma vez mais, Alain Gignac quando diz que: “depois, a modernidade é
abalada politicamente, após o choque dos totalitarismos em meados do século XX e o desmoronamento do mundo
bipolar no final do século. O ideal do progresso e o da democracia parecem bater asas. Eis que, por ocasião desta crise
da modernidade, de maneira surpreendente, diversos filósofos europeus, na maioria não-cristãos, se voltam a Paulo para
refletir em novas bases as questões de hoje. Seria esta volta a Paulo uma moda? Em todo o caso, ela é real. É preciso
considerar que Paulo é um ‘clássico’ do Ocidente, que, por diversas vezes, foi catalisador de mudanças de paradigma,
tanto em teologia como em filosofia. Agostinho, Lutero, Barth, mas também Nietzsche ou Heidegger eram leitores de
Paulo e só podem se compreender em relação a ele. Trata-se da densidade do estilo de Paulo? De sua vivacidade? Das
imagens e metáforas brutais e explosivas que se exprimem nestes textos? Do gênero literário ‘cartas paulinas’ de que
ele é o inventor? Sempre é verdade que se considerou Paulo como um mestre a ser pensado, um texto apto a provocar
um choque e a alimentar a reflexão. E que ele é nova- mente redescoberto, após um eclipse temporário (GIGNAC,
2008, p. 13 -14).
117
política. Nas suas palavras: “o desenvolvimento teórico mais surpreendente na filosofia social de
esquerda na última década foi uma nova virada teológica” (THERBORN, 2012, p. 111). Filósofos e
sociólogos tais como Alain Badiou, Antonio Negri, Boaventura de Sousa Santos, Costas Douzinas,
Enrique Dussel, Franz Hinkelammert, Michael Hardt, Slavoj Žižek, Wolfgang Fritz Haug, Terry
Eagleton são alguns dos que manifestam aquilo que Therborn define como sendo uma “fascinação
disseminada pela religião e pelos exemplos religiosos, principalmente cristãos” (THERBORN,
2012, p. 113). Ele continua sua argumentação dizendo que este fenômeno talvez possa ser mais bem
compreendido se enxergarmos nele um sintoma cultural mais amplo. Isso significa dizer que: “à
medida que o futuro alternativo desaparece ou perde o brilho, o que importa são as raízes, a
experiência e o contexto”, tudo isso torna “a cristandade uma experiência histórica natural que deve
ser observada” (THERBORN, 2012, p. 113).
Vale destacar, entretanto, que essa “virada teológica”, ainda que se mostre um fenômeno
contemporâneo evidente, não se trata de algo tão recente. 66 Bem antes de qualquer um dos esforços
filosóficos dos autores mencionados acima, já existia uma larga tradição de pensadores que se
valiam das categorias teológicas para pensar os problemas socioculturais de seus contextos. Nesse
horizonte, destaca-se a profícua obra de Walter Benjamin, Gershom Scholem, Martin Buber, Carl
67
Schmitt, Johann Baptist Metz, Jacob Taubes e até mesmo Pier Paolo Pasolini. Tais autores, em
sua maioria, sensíveis àquelas diferenciações fundamentais do pensamento judaico de Paulo,
ajudaram a contribuir para a renovação dos estudos paulinos também na filosofia. Basicamente, o
que estava no núcleo desse movimento foi a redescoberta de seus textos enxergando neles um
repositório privilegiado de ideias para renovar o quadro teórico da filosofia política.

66
O professor canadense Alan Gignac destaca com precisão o seguinte fato: “Por que se fala de redescoberta? Talvez
por que há um eclipse (passageira) após a Segunda Guerra mundial? Na época em que o marxismo e depois o
estruturalismo ocupavam toda a cena? Todavia, os ‘novos’ leitores de Paulo não são tão inovadores, uma vez que eles
se inscrevem em uma longa tradição a exemplo de John Locke, Friedrich Nietzsche, Soren Kierkegaard, Max Weber ou
Martin Heidegger. Os filósofos ocidentais, mesmo ateus, leram Paulo em seu tempo” (GIGNAC, 2008, p. 20).
67
Quando a esse aspecto, é de importância especial para a obra de Agamben as considerações que Walter Benjamin tece
a respeito da teologia e, particularmente, sobre o pensamento de Paulo. Existia uma aliança estratégica entre o
pensamento político radical de Benjamim e a teologia, aliança essa que pode ser comprovada na primeira tese Sobre o
conceito de História em que lemos sobre o “anãozinho corcunda, mestre de xadrez, que conduzia os movimentos do
boneco por meio de um sistema de arames” (BENJAMIM, 2012, p. 9). A correlação dessa aparelhagem na filosofia é
explicada pelo próprio filósofo que explica que o boneco é o materialismo histórico e o mestre anão é a teologia que,
“como se sabe, hoje é pequena e feia e, assim como assim, não pode aparecer à luz do dia” (BENJAMIM, 2012, p. 9).
Ao que parece, Benjamim acreditava que o materialismo histórico teria muito a ganhar com as contribuições desse
mestre pequeno e feio que é a teologia. Um dos especialistas no assunto, o professor José A. Zamora comenta que: "O
que o anão corcunda ensina é que nada pode informar-nos melhor sobre o processo histórico do que aquilo que não fica
subsumido e superado na tendência dominante. A esperança messiânica não consiste, pois, em alimentar uma utopia que
se realizará no final dos tempos, senão na capacidade de constatar o que em cada instante permite espreitar a ‘força
revolucionária’ do novo em vez da dinâmica dominante da história” (ZAMORA, 2011, p. 8).
118
Abordando essa questão sobre o crescente interesse pelos textos e conceitos paulinos no
campo filosófico, o professor do Centre Sèvres e no Instituto Católico de Paris, e membro da revista
Esprit, Jean-Claude Eslin, dirá o seguinte:

O interesse por Paulo no campo filosófico está ligado às categorias intelectuais que
ele introduziu e que continuam sendo as nossas categorias, mesmo quando o
conteúdo é diferente. Ele introduziu a categoria de “novidade radical”, de
“conversão absoluta”, de “homem novo”. E separa um “antigo tempo” de um “novo
tempo”, já inaugurado, mas que se seguirá no futuro (“já chegado, ainda não”). Há
então algo de revolucionário que continua marcando nossa concepção de tempo. Ele
dispensa o passado, mas mantém o passado: então há uma liberdade. Os filósofos
atuais gostariam muito de poder pensar assim, de beneficiar-se de tal dialética
(ESLIN, 2008, p. 20-21).

Com essas palavras, Eslin mostra que no centro dos interesses de muitos filósofos
contemporâneos está o desejo de se beneficiar não só das categorias em si mesmas que Paulo
introduziu no ocidente, mas da própria exemplaridade da consequências práticas do seu pensamento
— que foi algo altamente novo quando surgiu. É por essa razão que o professor de Novo
Testamento da Faculdade de Teologia e Ciências da Religião da Universidade de Montreal, do
Canadá, Alan Gignac sustenta que: “para todos esses filósofos, a leitura das cartas foi determinante
como catalisador de seu próprio pensamento – que não se situava necessariamente na linha de Paulo
e, mesmo seguidamente se opunha a ele. Isso prova que Paulo é um mestre... que faz pensar!”
(GIGNAC, 2008, p. 21).
Vale dizer, no entanto, que o pensamento que a leitura das epístolas de Paulo provoca não é
de natureza indeterminada. Antes, encontra-se nele as ferramentas para suprir uma lacuna que nos
anos mais recentes o Ocidente carecia, frente às crescentes gestões públicas infinitas da população.
Quem ultrapassou as apreciações meramente generalistas dos pensamento do apóstolo Paulo e nos
mostrou de forma mais específica a importância de Paulo para a filosofia política contemporânea foi
o filósofo brasileiro e professor da Universidade de São Paulo, Vladimir Safatle. Introduzindo aos
leitores brasileiros a obra do filósofo marroquino Alain Badiou, Saint Paul: la fundation de
l’universalisme (1997), Safatle deixa claro em torno de quê orbitam as leituras paulinas
contemporâneas. A urgência da redescoberta de Paulo pela filosofia política fica explicita logo no
título que Safatle dá ao seu breve ensaio: De que filosofia do acontecimento a esquerda precisa?
(2009). Com essa pergunta, o filósofo brasileiro faz tanto uma crítica interna aos limites que o
pensamento político assumiu na contemporaneidade, quanto também aponta para um horizonte
promissor que os textos paulinos encaminham seus leitores. Quanto a primeira intenção de revisar
criticamente as temáticas que a discussão política assumiu na contemporaneidade, Safatle enxerga
na obra de Badiou sobre o apóstolo Paulo uma tentativa de renovação do pensamento político

119
radical que não tenha sucumbido às propostas de constituição de políticas multiculturais das
diferenças étnicas, nacionalista ou até mesmo de gênero e sexualidade. 68 Conforme ele sustenta:

Afinal, quem hoje estaria disposto a insistir no papel dos universais, na relação
intrincada entre violência e política, na crítica aos limites da democracia parlamentar
e das temáticas dos direitos dos homens, no formalismo da concepção da liberdade,
na política como campo de realização da verdade de uma situação, na função central
da igualdade como ordenadora das lutas políticas e na armadilha que consiste em
suspender a política através de um certo discurso muito em voga sobre a moral?
(SAFATLE, 2009, p. 131).

Tanto para Badiou quanto para Safatle, o arrefecimento das posturas políticas que insistam
no papel determinante dos universais para uma avaliação crítica dos rumos que governos estão
assumindo hoje é o resultado da preponderância de administrações públicas que se utilizam dos
discursos identitários das minorias para mantê-las em uma posição de vitimismo e quietismo
político. Essas tendências, presentes tanto na gestão pública quando em alguns discursos filosóficos
pós-estruturalistas críticos de todo tipo de universal, procuram vincular a existência humana à
69
particularidades incompatíveis com a vida política em comunidade. Logo nas primeiras páginas
de seu livro dedicado a Paulo de Tarso, Alain Badiou descreve e lógica de vitimização que está em
operação em diferentes espaços das democracias liberais contemporâneas:

De fato, de que se compõe nossa atualidade? A redução progressiva da questão da


verdade (portanto, do pensamento) à forma linguística do julgamento, ponto sobre
qual estão de acordo a ideologia analítica anglo-saxônica e a tradição hermenêutica
(a dupla analítica/hermenêutica tranca com cadeado a filosofia acadêmica

68
Paralelamente às argumentações de Vladimir Safatle e Alain Badiou que serão reconstruídas nesse subtópico,
colocaremos em nota de rodapé uma crítica muito semelhante empreendida pelo professor norteamericano Mark Lilla
em seu livro O Pregressista de ontem e o do amanhã (2017) que tem condições de descrever na experimentai
norteamericana o mesmo reducionismo político que tanto o brasileiro quanto o francês tem passado. Em suas próprias
palavras: “escrevo na condição de liberal americano frustrado. Minha frustração não está ligada aos eleitores de Trump,
nem àqueles que explicitamente apoiaram a ascensão desse demagogo populista, àqueles que na impressa aceitaram as
engrenagens de sua companha, ou aos medrosos washingtonianos que deixaram de resistir. […] Minha frustração tem
origem numa ideia que, há décadas impede que liberais desenvolvam uma visão ambiciosa dos Estados Unidos e seu
futuro capaz de inspirar cidadãos de todas as classes sociais em todas as regiões do país” (LILLA, 2018, p. 12). O
reconhecimento de um esgotamento no pensamento progressista, bem como o desafio de propor novos arranjos
políticos que não estejam limitados às discussões de subconjuntos sociais é o que mantêm unidos tanto Safatle, quanto
Badiou e Lilla.
69
Mark Lilla chama esse procedimento de pseudopolítica e explica sua lógica da seguinte forma: “a política identitária
da esquerda se tratava, a princípio, de grandes grupos de pessoas — afro-americanos, mulheres — que buscavam
reparar grandes erros históricos se mobilizando e se valendo de nossas instituições política para assegurar seus direitos.
Mas nos anos de 1980 essa política cedera lugar a uma pseudopolítica de autoestima e de autodefinição cada vez mais
estreita e excludente, hoje cultivada nas faculdades e universidades. Seu principal resultado foi fazer os jovens se
voltarem para a própria interinidade em vez de se abrirem para o mundo exterior. Isso os deixou despreparados para
pensar no bem comum e no que deve ser feito, na prática, para assegurá-lo — especialmente a difícil e nada glamorosa
tarefa de persuadir pessoas muito diferentes de si a participarem de um esforço comum. Todo progresso da consciência
identitária liberal tem sido marcado por um retrocesso da consciência política liberal, sem a qual nenhuma visão do
futuro americano pode ser imaginada” (LILLA, 2018, p. 14-15).

120
contemporânea) chega a um relativismo cultural e histórico que, hoje, é
simultaneamente um tema de opinião publica, uma motivação ‘política’ e um quadro
de referência para a pesquisa em ciências humanas. As formas extremas desse
relativismo, já em ação, pretendem destinar a própria matemática a um conjunto
‘ocidental’ ao qual se pode fazer equivaler qualquer dispositivo obscurantista ou
simbólico irrisório, contanto que se esteja em estado de nomear o subconjunto
humano que porta esse dispositivo, ou melhor, que haja razões, para acredita que
esse subconjunto é composto por vítimas. É na tentativa de dessa interseção entre
ideologia culturalista e a concepção vitimária do homem que sucumbe todo acesso
ao universal, o qual não tolera que lhe seja atribuída uma particularidade, nem
mantém relação direta com o estatuto — dominante ou vitimário — dos lugares em
que emerge a proposição (BADIOU, 2009, p. 13).

Nas palavras supracitadas, existe uma dura crítica aos consensos acadêmicos e políticos que
se estabeleceram na atualidade e que impossibilitam a formulação de um pensamento filosófico
crítico aos reducionismos e empobrecimentos que a política passou nos últimos tempos quando foi
transformada em gestão infinita da população. Para Badiou, a supressão progressiva da
possibilidade de uma verdade universal é observada na preponderância de um relativismo cultural e
histórico nas motivações políticas, na opinião pública e também nas pesquisas em ciências
humanas. Tornou-se praticamente impossível em cada um desses espaços sustentar qualquer
discurso que não tenha como ponto de partida lugares determinados de subconjuntos humanos que
evidenciam a condição de vítimas sociais ou culturais. É na sustentação dessa relação entre
ideologia multiculturalista e concepção vitimária do ser humano que sucumbe qualquer
argumentação universal que prescinda dos lugares concretos de onde emergem suas proposições.
Para Badiou, “o Estado teria de se garantir em primeiro lugar e constantemente cuidar da identidade
genealógica, religiosa e racionalmente certificáveis daqueles pelos quais é responsável. […] seria
preciso que toda a legislação fosse acompanhada dos protocolos identitários requeridos”, de tal
forma que “subconjuntos da população fossem sempre definidos por seu estatuto especial”
(BADIOU, 2009, p. 15-16). 70

70
É importante lembrar aqui o contexto político francês em que essas questões identitárias assumem tons de discussão
política muito inflamados. Badiou nos lembra disso quando comenta o seguinte: “Se nos limitarmos ao nosso país
[França], ao destino público do seu Estado, o que se pode assinalar como tendência marcante nos últimos quinze anos?
[…] a máxima é: ‘A França para os franceses’. […] O motivo pelo qual se instala no centro do espaço público a questão
deletéria: o que é um francês? Mas para essa questão, todos sabem que não existe nenhuma resposta sustentável a não
ser a perseguição de pessoas designadas arbitrariamente como não francesas. A única política real da palavra ‘francês’ ,
mantida portam categoria fundadora no Estado, é o estabelecimento cada vez mais insistentemente, de medidas
discriminatórias obstinadas que visam às pessoas que estão aqui, ou que procuram viver aqui. E é particularmente
assustador que essa perseguição real da lógica identitária (a Lei serve apenas para os franceses) reúna sob a mesma
bandeira, como mostra o triste caso denominado ‘do foulard’, os defensores resignados da devastação capitalista […] e
os defensores de uma fantasmagoria, assim excepcional, ‘república francesa’” (BADIOU, 2009, p. 15). Discursos
nacionalistas muito similares foram reivindicados nos Estados Unidos da América durante as eleições presidenciais de
Donald Trump, como também foram slogan da campanha presidencial brasileira de Jair Bolsonaro. Em cada um desses
exemplos observa-se a mesma lógica identitária pseudopolítica, conforme sustenta também Mark Lilla: “a cidadania
desapareceram do mapa. E as pessoas se puseram a falar em identidade pessoal nos termos do homúnculo interno, dessa
pequena coisa composta de partes matizadas por raça, sexo e gênero” (LILLA, 2018, p. 55).

121
Analisando esse fenômeno político, Safatle chega a conclusões muito próximas às
argumentações de Agamben sobre o a condição do homo sacer que define a vida nas democracias
contemporâneas. Ele diz que tais discursos multiculturalistas e o relativismo de grupos minoritários
são: “tendências que procuram vincular a experiência moral às temáticas da finitude do indivíduo,
desse indivíduo exposto ao sofrimento, à morte, às catástrofes históricas das múltiplas formas de
campos de concentração”, ou seja, “vida que, segundo Badiou, reduz o sujeito à ‘persistência da
animalidade’” (SAFATLE, 2009, p. 136). Nesse cenário, o que resta aos cidadãos geridos
politicamente é se reconhecerem como vítimas em potencial, como se as pautas políticas só
assumissem legitimidade quando interrogam sobre a condição vitimária do ser humano. Para
Safatle, esse reducionismo do indivíduo a uma mera condição de vítima é uma maneira insidiosa de
transformar todo o campo do político em um espaço de discussões que podemos identificar como
pseudo e antipolíticas. 71 Isso porque, “se trata de levar os sujeitos a transformarem suas demandas
políticas em exigências de reparação subjetiva, a transformarem expectativas de reconfiguração do
campo social em demanda de cuidado psicológico e reconhecimento” (SAFATLE, 2009, p. 136).
Em um cenário em que as discussões governamentais reduzem-se às ações do Estado para reparar
os traumas históricos de grupos minoritários e evitar novos gatilhos psicológicos desses mesmos
subconjuntos, a política foi transformada em terapia.
Nesse cenário político, Badiou argumenta que existe uma importante questão a ser feita, cuja
resposta nos auxiliará tanto na evidência dessa lógica da reparação da individualidade lesada,
quanto na contribuição para sua perpetuação. A pergunta é: “qual é o real unificador dessa
promoção da virtude cultural dos subconjuntos oprimidos, desse elogio linguístico dos
particularismos comunitários (os quais, em última análise, repetem sempre não só à língua, mas à
raça, à nação, à religião ou ao sexo)?” (BADIOU, 2009, p. 13). Para o filósofo marroquinho, o
único aspecto na contemporaneidade que tem capacidade de unificar a miríade de discursos
identitários de minorias é o que ele chama de abstração monetária. Segundo seu argumento, as
promessas do capital fornecem um falso universal que, apesar de vazio, mantém unificados os
subconjuntos oprimidos. Badiou enxerga a estreita relação entre políticas de identidade e
globalização financeira através de um processo de retroalimentação: “cada identidade (criação ou
bricolagem de identidade) cria uma figura que constitui matéria para seu investimento no mercado”
(BADIOU, 2009, p. 17). Em outras palavras, parece não existir nada mais conveniente às dinâmicas

71
Em uma inversão de rara precisão política, Mark Lilla argumenta que o que está no centro dessa lógica pseudopolitica
é o seguinte: “a princípio, a Nova Esquerda interpretada o slogan ‘O pessoal é político’ de uma maneira um tanto
marxista, dando a entender que tudo que parece pessoal é, na verdade, político, que nenhuma esfera da vida está isenta
na luta pelo poder. É isso que tornava tão radical, entusiasmando simpatizantes e aterrorizando os demais. Mas a frase
poderia ser interpretada exatamente no sentido oposto: que aquilo que para nós é ação política na verdade não passa de
atividade pessoal, uma expressão do eu e de como me defino. Como diríamos hoje, é um reflexo da minha identidade”
(LILLA, 2018, p. 62).
122
mercadológicas do que comunidades e seus territórios para a produção de novos produtos que
venham suprir homogeneidades monetárias. Nesse processo, nenhum grupo identitário da sociedade
consegue escapar:

Que futuro inesgotável para os investimentos mercantis, tal qual o surgimento — em


forma de comunidade reivindicativa e de pretensa singularidade cultural — das
mulheres, dos homossexuais, dos deficientes, dos árabes! E as combinações infinitas
de traços predicativos, que oportunidade! Os homossexuais negros, os sérvios
inválidos, os católicos pedófilos, os islamitas moderados, os padres casados, os
jovens executivos ecologistas, os desempregados submissos, os jovens já velhos!
Constantemente, uma imagem social autoriza produtos novos, revistas
especializadas, centros comerciais adequados, rádios “livres”, redes publicitárias
dirigidas a alvos específicos e, enfim, obstinados “programas de debates” nos
horários de grande audiência. Deleuze dizia exatamente isto: a desterritorialização
capitalista tem necessidade de uma constante reterritorialização. O capital exige,
para que seu princípio de movimento torne homogêneo seu espaço de exercício, o
permanente ressurgimento de identidades subjetivas e territoriais, as quais, aliás,
reivindicam apenas o direito de serem expostas, da mesma maneira que as outras, às
prerrogativas uniformes do mercado. Lógica capitalista do equivalente geral e lógica
identitária e cultural das comunidades ou das minorias formam um conjunto
articulado (BADIOU, 2009, p. 17-18).

De uma forma inusitada, Badiou argumenta como as singularidades identitárias que estão
nas bases das práticas políticas de grupos minoritários se servem e, ao mesmo tempo, são
emparelhados, pela lógica capitalista de constante reterritorialização. Com isso, ele não está
construindo um argumento ingênuo contra a realidade salutar do cosmopolitismo. O próprio Badiou
antecipa as críticas dizendo: “que o mundo seja heterogêneo e que ele não deixa as pessoas
viverem, comerem, vestirem-se, imaginarem e amarem como elas querem, não é aí que está a
questão, como os falsos ingênuos querem nos fazer crer” (BADIOU, 2009, p. 18). O grande desafio
que se coloca frente ao pensamento político hodierno é pelo estatuto da verdade que reivindicamos
para defender essa heterogeneidade social — e aqui retorna a pergunta de Vladimir Safatle sobre o
72
tipo de filosofia do acontecimento que a contemporaneidade precisa. O filósofo brasileiro
colocará a mesma pergunta de outra forma dizendo: “em nome de qual valor criticamos os valores
socialmente partilhados? Em nome do que estaríamos dispostos a colocar em risco nossas estruturas

72
Um dos principais nomes nos estudos sobre a redescoberta filosófica do pensamento teológico de Paulo é o professor
José A. Zamora. Comentado especificamente a forma como Badiou utiliza-se da teologia paulina, diz o seguinte: “Alain
Badiou se define como pensador radical de esquerda e assinala como traços característicos dessa esquerda radical o
igualitarismo e o antiestatismo. Rechaça, pois, as formas diferenciadoras e hierárquicas de representação que dominam
no “capital-parlamentarismo” e todos os seus esforços se concentram em lutar por um “comunismo das singularidades”.
Sob estes pressupostos não pode causar estranheza sua distância frente às teorias e filosofias políticas convencionais,
centradas em determinar as condições de possibilidade da democracia. A questão política central para Badiou é o
acontecimento revolucionário da verdade. Por isso, sua concepção da política se afasta daquelas que a concebem como
um subsistema social, um conjunto de instituições de governo e participação cidadã ou um tipo de construção
discursiva. Política em sentido enfático é uma intervenção que possui caráter de acontecimento e que inter- rompe o
curso normal das coisas, forçando todos os que participam no processo a uma replanejamento radical” (ZAMORA,
2011, p. 13).

123
jurídico-institucionais?” (SAFATLE, 2009, p. 137). As condições de despolitização que a vida
ocidental está experimentando é fruto de sua incapacidade de articular qualquer discurso verdadeiro
que não esteja limitado às demandas territorializadas de individualidades lesadas. 73
Isso significa dizer que a condição vitimária dos subconjuntos minoritários não consegue
fundamentar uma crítica social capaz de fazer frente à governamentalidade infinita da população.
Tornou-se uma condição de possibilidade política perguntar-se sobre o status ontológico universal
do discurso político contemporâneo. É justamente esse o ponto que Safatle também sustenta através
de uma pergunta retórica fundamental: “não bastaria simplesmente apelar à existência do
sofrimento social resultante da opressão da classe, da pauperização persistente e das práticas
disciplinares presentes em múltiplas instituições sociais?” (SAFATLE, 2009, p. 137). A resposta é
negativa, pois o sofrimento social reivindicado por cada indivíduo ou grupo social a partir de seu
lugar de fala não é suficiente para instituir-se como um catalizador político diante da progressiva
hipertrofia da gestão pública de todos os aspectos da vida humana. Isso acontece, justamente
porque, “sujeitos não são apenas individualidades resultantes de processos de socialização e de
formação do Eu que se desenrolam na família, nas instituições, nas comunidades, no Estado”; de
forma muito mais ampla, “sujeitos são operações que colocam indivíduos para além do que a
família, instituições, comunidades, estados podem produzir e legitimar. Sujeitos são operações que
resultam em algum tipo de ancoragem em uma transcendência que se manifesta como ruptura”
(SAFATLE, 2009, p. 138).
Nesse sentido, portanto, qualquer processo de afirmação de verdade política necessariamente
deverá se perguntar pela sua relação com as categorias e as demandas sociais identitárias. Quanto a
isso, Badiou é categórico em afirmar que: “essas categorias devem ser ausentadas do processo, sem
o que nenhuma verdade tem a menor chance de estarrecer sua persistência e de acumular sua
infinidade imanente. Aliás, sabemos que as políticas identitárias consequentes, como o nazismo, são
74
guerreiras e criminosas” (BADIOU, 2009, p. 19). A severidade do filósofo marroquino com as

73
Nesse aspecto, Mark Lilla é, uma vez mais, elucidativo quando diz que: “a herança deixada pela Nova Esquerda para
o liberalismo foi dupla. Ela produziu movimentos centrados em problemas específicos que ajudaram a trazer mudanças
progressistas em numerosas áreas, com destaque para meio ambiente e direitos humanos no exterior. E gerou
movimento sociais centrados na identidade — em defesa de ação afirmativa e diversidade, feminismo e libertação gay
— que fizeram dos Estados Unidos um lugar mais tolerante, mais justo e mais inclusivo do que era cinqüenta anos
atras. O que a Nova Esquerda não fez foi contribuir para a unificação do partido Democrata e para o desenvolvimento
de uma vista liberal do futuro comum dos americanos. E à medida que o interesse lentamente se deslocou dos
movimentos centrados em problemas específicos para os movimentos centrados em identidades, foco do liberalismo
americano também se deslocou — do que havia em comum para a diferença. E o que substituiu a ampla visão política
foi uma retórica pseudopolítica e distintamente americana do individuo senciente e sua luta por reconhecimento. Que
acabou não sendo tão diferente da retórica antipolítica de Reagan do indivíduo que produz e luta por lucro. Apenas
menos sentimental e mais hipócrita” (LILLA, 2018, p. 64-65).
74
Nesse aspecto, Mark Lilla também concorda com Badiou e Safatle quando reconhece que: “uma das leiras férreas das
democracias é que qualquer coisa obtida por meio da política de movimentos pode ser desfeita por meio da política
124
práticas políticas de afirmação da diferença identitária alicerça-se na descrição de sua lógica interna
que, necessariamente, vai rivalizar-se contra todo conceito genérico — seja ele de arte, cultura ou
política — questionando-o à luz dos conceitos concebidos pelo subconjunto social. Uma vez que os
conceitos referentes ao grupo social são potencialmente não universalizáveis, eles também só serão
compreensíveis por integrantes dos subconjuntos considerados. É dessa lógica interna que surgem
os “enunciados catastróficos do gênero: somente um homossexual pode ‘compreender'o que
significa ser homossexual, um árabe o que significa ser árabe, etc.”, entretanto, essa lógica encobre
o fato de que “se, como pensamos, somente as verdades (o pensamento) permitem distinguir o
homem do animal humano que o subentende, não é exagerado dizer que esses enunciados
‘minoritários' são realmente bárbaros” (BADIOU, 2009, p. 19-20). 75
O caráter antipolítico dessa lógica identitária, que Badiou chama de bárbaro, encontra-se no
fato de que só é possível transformar um traço identitário — seja ele minoritário ou não — em
operador político dominante pela desconsideração de todos os outros subconjuntos sociais. Em
outras palavras, a afirmação pública de uma política de identidade assume sua legitimidade,
necessariamente, através do descrédito das outras. Em um cenário assim, é necessário perguntar
junto a Badiou: “quem pode pretender que seja evidente a superioridade do culto-competente-
gerente-equilibrado? Mas quem defenderá o religioso-corrompido-terrorista-polígamo? Ou
celebrará o marginal-cultural-homeopata-midiático-transexual? Cada figura tira sua legitimidade
tortuosa do descrédito do outro” (BADIOU, 2009, p. 20). Na promoção de um particularismo
infindável que reparte todo o corpo social, acaba-se oscilando entre o universal abstrato do capital e
as perseguições locais em nome das identidades.
Tendo tais questões em vista, é possível afirmar o impasse que a política contemporânea se
encontra quando pretende afirmar-se apenas a partir da fragilidade, expropriação e condição

institucional. O inverso não é verdade. Os movimentos que remodelaram o país nos últimos cinquenta anos fizeram um
grande bem, especialmente mudando, como costumamos dizer, corações e mentes. Talvez essa seja a coisa mais
importante que qualquer movimento pode fazer, como acreditavam Gandhi e Martin Luther King Jr. Mas a longo prazo
os movimentos são incapazes de conquistar objetivos políticos concretos por conta própria. Precisam de políticos do
sistema e funcionários públicos simpáticos aos objetivos do movimento que estejam dispostos a realizar o lento e
paciente trabalho de disputar cargos, redigir leis, barganhar para que sejam aprovadas e, em seguida, supervisionar as
burocracias para ter certeza de que sejam aplicadas. Martin Luther King Jr. foi o maior líder de movimento da história
americana/ mas, como certa vezes ressaltou Hillary Clinton, e com acerto, seus esforços teriam sido inúteis sem os do
político de panelinha Lyndon Johnson, experiente negociador do Congresso disposto a assinar qualquer pacto com o
Diabo para aprovar a Lei dos Direitos Civis e a Lei dos Direitos de Voto. […] Oficinas e seminários universitários não
bastam. Mobilização pela internet e súbitas manifestações de rua não bastam. Não basta protestar, transgredir,
extravasar. A era da política de movimentos acabou, pelo menos por ora” (LILLA, 2018, p. 87-89).
75
Nas raízes desse barbarismo político escondem-se reivindicações epistemológicas que, se forem levadas às últimas
consequências, se mostram intransponíveis, conforme argumenta Lilla: “ela ergue uma barreira contra perguntas, que,
por definição, vêm da perspectiva de um não X [subconjunto em questão]. E o encontro se converte numa relação de
poder: o vitorioso na discussão será aquele que invocar a identidade moralmente superior e expressar mais indignação
com as perguntas que lhe forem feitas. […] Significa que não existe espaço imparcial para o diálogo. Homens brancos
têm uma ‘epistemologia’, mulheres negras têm outra. Se é assim, o que resta dizer? O que substitui o argumento, então,
é o tabu” (LILLA, 2018, p. 75).
125
vitimatória de determinados grupos sociais. É possível concordar com Safatle quando sustenta que:
“nenhuma filosofia pode ser solidária apenas de um acontecimento meramente negativo (evitar
algo, impedir que algo aconteça novamente etc.). Toda verdadeira filosofia traz também consigo a
exigência de pensar a partir de um acontecimento portador de promessas instauradou-ras”
(SAFATLE, 2009, p. 140). Politicamente falando, isso significa dizer que estamos aquém das
possibilidades do pensamento político quando permitimos o aparato governamental reduzir-se a
uma máquina de assistência e reparação histórica das individualidades lesadas. Parte constitutiva do
processo de transformação da política em gestão infinita da população foi reconfigurar as
responsabilidades governamentais em expectativas de proteção contra traumas sociais. Com essa
demanda infindável de proteção, nenhuma promessa instaurativa do novo poderia ser feita —
perpetuando, assim, a gestão sem fim da população. 76
Será exatamente em ruptura com tudo isso, a saber, “nem homogeneidade monetária, nem
reivindicação identitária; nem universalidade abstrata do capital, nem particularidade dos interesses
de um subconjunto”, que Alain Badiou colocará a pergunta fundamental de sua investigação: “quais
são as condições de uma singularidade universal?” (BADIOU, 2009, p. 20). Nesse ponto torna-se
explícito o que está por trás do projeto de um “retorno a Paulo”. Procurando manter evidente a
distinção que faz entre interesses religiosos e interesses filosóficos, Badiou escreve quais são seus
objetivos de se valer de Paulo para as atuais circunstâncias políticas que vivenciamos:

76
Muitos anos antes, em um contexto diferente, mas ainda assim conectado com a discussão política, Agamben
comenta outra estrutura argumentativa de Alain Badiou, em sua obra, L’être et l’evénement (1988) que nos ajuda a
entender como os filósofos não só trabalham a partir dos pressupostos um do outro, como também a discussão sobre
subconjuntos sociais: “Na teoria dos conjuntos distingue-se pertencimento e inclusão. Tem-se uma inclusão quando um
termo e parte de um conjunto, no sentido em que todos os seus elementos são elementos daquele conjunto […]. Em um
livro recente, Alain Badiou desenvolveu esta distinção, para traduzi-la em termos políticos. Ele faz corresponder o
pertencimento à apresentação, e a inclusão à representação (re-apresentação). Dir-se-á, assim, que um termo pertence a
uma situação se ele é apresentado e contado como uma unidade nesta situação (em termos políticos, os indivíduos
singulares enquanto pertencem a uma sociedade). Dir-se-á, por sua vez, que um termo está incluído em uma situação, se
é representado na metaestrutura (o Estado) em que a estrutura da situação é, por sua vez, recontada como unidade (os
indivíduos, enquanto recodificados pelo Estado em classes, por exemplo, como ‘eleitores’). Badiou define normal um
termo que esta, ao mesmo tempo, apresentado e representado (isto é, pertence e está incluído), excrescência um termo
que esta representado, mas não apresentado (que esta, assim, incluindo em uma situação sem pertencer a ela), singular
um termo que está apresentado, mas não representado (que pertence, sem estar incluído). E como fica a exceção
soberana neste esquema? Poderíamos pensar, a primeira vista, que ela se encaixe no terceiro caso, ou seja, que a
exceção configure uma forma de pertencimento sem inclusão. E assim é certamente do ponto de vista de Badiou. […] A
exceção soberana e, então, a figura em que a singularidade é representada como tal, ou seja, enquanto irrepresentável.
Aquilo que não pode ser em nenhum caso incluído vem a ser incluído na forna da exceção. No esquema de Badiou ela
introduz uma quarta figura, um limiar de indiferença entre excrescência (representação sem apresentação) e
singularidade (apresentação sem representação), algo como uma paradoxal inclusão do pertencimento mesmo. Ela é
aquilo que nada pode ser incluída no todo ao qual pertence e não pode pertencer ao conjunto no qual está desde sempre
incluída. O que emerge nesta figura limite é a crise radical de toda possibilidade de distinguir com clareza entre
pertencimento e inclusão, entre o que está fora e o que está dentro, entre exceção e norma” (AGAMBEN, 2010, p. 30-
31). Fica, portanto, mais evidente como a crítica de Badiou aos subconjuntos que estão, ao mesmo tempo, dentro e fora
do ordenamento político de uma sociedade, aproximam-se e confirmam as construções de Agamben sobre a lógica da
exceção política que, por sua vez, é a crise radical de toda a possibilidade genuinamente política.
126
O que vai nos reter na obra de Paulo é uma conexão singular, que é formalmente
possível separar a fábula e da qual Paulo é precisamente o inventor: a conexão que
estabelece uma passagem entre uma proposição sobre o sujeito e uma interrogação
sobre a lei. Digamos que, para Paulo, trata-se de explorar qual é a lei que podemos
estruturar um sujeito sem qualquer identidade e suspenso a um acontecimento, cuja
única “prova” é justamente sua declaração por um sujeito. Para nós, o essencial é
que essa conexão paradoxal entre um sujeito sem identidade e uma lei sem suporte
funda a possibilidade na história de uma predicação universal. O gesto inédito de
Paulo é subtrair a verdade da dominação comunitária, seja de um povo, de uma
cidade, de um império, de um território ou de uma classe social. O que é verdadeiro
(ou justo, o que nesse caso tem o mesmo significado) não se deixa remeter a nenhum
conjunto objetivo, nem do ponto de vista de sua causa, nem do ponto de visa de seu
destino. […] o que importa é o gesto subjetivo apreendido na sua potência fundadora
no que se refere às condições genéricas da universalidade. Mesmo que no conteúdo
fabuloso seja abandonado, resta a forma dessas condições e, particularmente, a ruína
de toda atribuição do discurso da verdade a conjuntos históricos pré-constituídos.
Separar arduamente cada processo de verdade da historicidade “cultural” na qual a
opinião pública pretende dissolvê-lo: essa é a operação em que Paulo nos guia.
Repensar esse gesto, desfazer suas divergências, viciar sua singularidade e força
instituinte é, com toda certeza, uma necessidade contemporânea (BADIOU, 2009, p.
12-13).

O interesse de Badiou na postura intelectual de Paulo não diz respeito ao conteúdo de sua
mensagem evangélica, mas à forma que seus procedimentos assumiram. O que o filósofo
marroquino enxergou nas páginas do Novo Testamento foi um gesto capaz de romper com todas as
fraturas identitárias em prol de uma subjetividade estabelecida por um acontecimento fundamental e
com poderes de colocar forças sociais em movimento. Nesse sentido, o que Badiou enxerga em
Paulo é um paradigma para sua filosofia do acontecimento. 77 Quanto a isso, Safatle é mais uma vez
importante para esclarecer as intenções desse autor: “Badiou quer pensar também aquilo que é um
acontecimento (ou evento, em algumas traduções) capaz de ser apreendido apenas em suas relações
com situações localizáveis […] vinculadas a campos produtores de verdade” (SAFATLE, 2009, p.
132) — campos estes que são a política, a ciência, as artes e as relações humanas amorosas. Ou
seja, Badiou está em uma longa jornada filosófica de investigação sobre a noção de acontecimento
que tem condições de romper com a estabilidade instaurada por todo tipo de processo de
78
uniformização do pensamento nos campos produtores de verdade. Uma das formas que ele

77
Quanto a isso, o professor Zamora nos auxiliar argumentando que: “Para Badiou, a fé cristã representa um paradigma
fundamental do acontecimento. A morte e ressurreição de Cristo é o núcleo ativo a partir do qual se constrói o sentido
como fidelidade a ele. De modo que encontramos no cristianismo todos os parâmetros da doutrina do acontecimento”
(ZAMORA, 2011, p. 15). Além disso, também podemos nos lembrar da avaliação especializada de Gert-Jan van der
Heiden quando ele conclui o seguinte a respeito dos interesses da leitura de Badiou: “como discutido acima, essa
divisão é a luta do sujeito e a negação da 'situação do velho' da qual ela se origina. Essas reflexões posteriores sobre a
dialética mostram, primeiro, que Badiou reconhece que sua antidialética de São Paulo pode ser compreendida e, em na
verdade, precisam ser compreendidos, em termos de uma dialética da exceção. E, em segundo lugar, eles mostram que
sua leitura de Paulo oferece o exemplo exemplar dessa dialética” (HEIDEN, 2016, p. 178-179).
78
Do ponto de vista da própria obra do filósofo, Safatle explica que: “podemos encontrar tal projeto de articulação entre
ontologia e matemática, principalmente, em O ser e o evento e no ainda não traduzido Logiques des mondes. Badiou
atualiza esse topos tradicional da filosofia referente à afirmação da matemática como via privilegiada de reflexão sobre
o ser de uma maneira extremamente particular, principalmente por meio do recurso a Georg Cantoe, Kurt Gödel,
127
encontrou para realizar esse percurso filosófico foi a utilização secularizada de raciocínios
teológicos paulinos e a exploração filosófica das consequências políticas que estes desencadearam.
Quem também comenta a viabilidade desse projeto é o professor e um dos maiores
especialistas em pesquisas sobre o Novo Testamento, John M. G. Barclay:

A reativação de Paulo enquanto um “contemporâneo” feita por Badiou é derivada


das características formais do pensamento de Paulo, ao invés de seu conteúdo
religioso. Em particular ele aclama Paulo como figura seminal no modo em que
configura a verdade enquanto fundada em um evento incalculável e incondicionado,
do qual emerge uma subjetividade “militante” radicalmente nova, que é fiel ao
evento e (de forma crucial) não confinada pelas particularidades culturais. Reagindo
contra o falso “universalismo" do capitalismo globalizado e contra as formas
divisivas de identidade políticas (baseadas em etnicidade, nacionalismo, ou gênero),
Badiou explora como Paulo concebe uma forma de universalizão que não é limitada
por qualquer agregado (conjunto) comunitário, seja em sua origem ou horizonte; é
endereçado a todos, atravessando, mas não suprimindo, todas as diferenças sociais e
culturais (BARCLAY, 2018, p. 161).

Para esses objetivos, a recuperação filosófica de Paulo é realmente urgente. Se nos


lembrarmos de que uma das principais marcas da governamentalidade infinita da população é
justamente sua gestão antiacontecimental, é digna de investigação a postura de um indivíduo que
conseguiu desencadear no contexto social de sua época um conjunto de novidades e rompimentos a
79
partir da fidelidade a um acontecimento historicamente singular. Essa é a força filosófica de
Paulo, segundo Badiou: “Paulo é um pensador-poeta do acontecimento e, ao mesmo tempo, aquele
que pratica e anuncia atos constantes característicos do que se pode denominar a figura militante”, e
isso ele faz através de uma conexão que é “integramente humana e cujo destino me fascina, entre a
ideia geral de uma ruptura, de uma virada, e a de um pensamento prático, que é a materialidade
subjetiva dessa ruptura” (BADIOU, 2009, p. 8). Sendo assim, o interesse renovado da filosofia

Richard Dedekind, Paul J. Cohen e teoria dos conjuntos a fim de Mostar como multiplicidades infinitas podem ser
atuais” (SAFATLE, 2009, p. 132). O professor Zamora também concordar dizendo: “Badiou elabora sua ontologia do
acontecimento com ajuda das teorias matemáticas de Georg Cantor, Kurt Gödel e Paul Cohen. A intenção desta
ontologia é apresentar a experiência religiosa da transcendência a partir da perspectiva de uma imanência radical,
secularizar o conceito de infinitude e desconstruir a oposição entre finito e infinito, entre o intramundano e o
sobrenatural, para assim mostrar que a finitude não é mais do que um caso especial da infinitude de possibilidades. O
acontecimento não é a irrupção da transcendência no mundo, senão de um novum desde a infinitude imanente do
mundo” (ZAMORA, 2011, p. 15).
79
O professor Zamora explica um pouco mais esse ponto dizendo o seguinte: “Quando Badiou fala de acontecimento,
não está pensando na manifestação de um ser que o precede. Ao invés, ser e acontecimento se encontram em
irreconciliável oposição. O acontecimento não pertence à dimensão do ser, senão do não-ser. Posto que surge do nada,
não pode ser deduzido a partir das coordenadas da situação da qual surja. Por isso, só podemos realizar uma
aproximação negativa ao acontecimento: trata-se de uma interrupção ou suspensão das ordens ontológicas estabelecidas
que permite oferecer espaço e tempo a uma nova aposta. Esta ruptura possui caráter político, posto que supõe
resistência frente ao que há e quebra com isso. Isto resulta tanto mais evidente, quanto do ponto de vista da filosofia do
acontecimento a práxis política nunca pode reduzir-se a estruturas sociais, senão que irrompe no espaço social
impedindo sua clausura ou fechamento numa ordem totalizadora e quase natural” (ZAMORA, 2011, p. 14).

128
contemporânea sobre os escritos paulinos justifica-se pelo potencial que tais ideias têm de nos
fornecer um paradigma privilegiado de ação frente à sustentação uma krisis sem fim. Paulo nos
auxilia a fazer uma crítica renovada da “democracia parlamentar e do indivíduo liberal como peças
de uma forma mutilada de vida social que tenta esvaziar a possibilidade de todo acontecimento
radical” (SAFATLE, 2009, p. 133). 80
Necessário nessa altura de nossa argumentação é a pergunta por como Badiou opera essa
utilização filosófica de Paulo. Frente a toda argumentação que reconstruímos anteriormente sobre o
estado em que se encontra o pensamento político contemporâneo — esvaziado tanto pela abstração
monetária do capitalismo, como também pelos processos pseudopolíticos fundados na identidade de
subconjuntos sociais — o que Badiou procura é justamente “refundar uma teoria do Sujeito que
subordine a existência à dimensão aleatória do acontecimento e à pura contingência do ser-múltiplo,
sem sacrificar o motivo da verdade” (BADIOU, 2009, p. 11). Nesse sentido, o que está em jogo na
argumentação do filósofo marroquino é repensar as condições de possibilidade de um processo de
subjetivação que consiga produzir uma singularidade universal desvinculando-se, assim, das
superficiais tentativas identitárias de alcançar a diferença pela repetição. Trata-se de uma insistência
no universalismo político que, para Badiou, é o único que tem condições de produzir sujeitos
indiferenciados que estejam livres do esvaziamento político pelas lutas pontuais e limitadas aos
grupos identitários. A forma de produzir essa identidade universal seria através de sua fundação em
um legítimo acontecimento que, por definição, é “a-normal, instável, subtraído à representação ou,
de maneira mais resumida, ‘histórico’ e que tem força de colocar situações em movimento”
(SAFATLE, 2009, p. 132).
Podemos dizer, portanto, que no coração da filosofia de Badiou, como também em sua
leitura de Paulo, está a noção de um evento tem é caracterizado por uma singularidade tal que não
pode ser explicado, nem mesmo nomeado, com base em categorias preexistentes do pensamento.
Badiou reconhece que, no pensamento Paulino, isso está presente da seguinte forma: “o sujeito
cristão não preexiste ao acontecimento que ele declara (a Ressurreição do Cristo). Portanto,
polemizaremos contra as condições extrínsecas de sua existência ou de sua identidade” (BADIOU,
2009, p. 22). Da mesma forma que o acontecimento da ressurreição do messias dá início a um novo
sujeito humano, uma nova vida marcada pelas dinâmicas típicas desse acontecimento, Badiou
procura pensar as condições de possibilidade para ultrapassar as determinações contextuais que

80
O professor Zamora também identifica nos processos de despolitização radical as raízes do interesse filosófico em
Paulo. Conforme ele coloca: “este interesse político pelo apóstolo Paulo coincide com o que poderíamos chamar uma
nova reivindicação de o político sob as condições de despolitização impostas às sociedades atuais pela globalização
neoliberal. Ante a necessidade de fazer frente à crescente penetração e configuração burocrática, jurídica e econômica
das relações sociais, trata-se de reivindicar o político como práxis democrática radical de autoconstituição da sociedade
que se vê acompanhada de filosofias políticas que vão além da mera fundamentação da ação política em categorias
racionais e jurídicas” (ZAMORA, 2011, p. 5).
129
controlam as políticas de identidade. E isso só pode ser feito a partir de um acontecimento que
rompe a história com uma novidade radical. Barclay explica que na própria compreensão do que é
esse tipo de acontecimento está presente a razão pela qual ele é instaurado de novas identidades
livres de antigas determinações contextuais: “por que não pode ser limitado por condições ou
qualificações previamente existentes, o evento é de relevância completamente universal: é tanto
totalmente singular (‘um’) como ‘para todos’” (BARCLAY, 2018, p. 162).
Nesse sentido, a contribuição de Paulo para esse processo investigativo é que na
exemplaridade de sua prática missionária — anunciando o acontecimento-messias e fundando
novas comunidades messiânicas (igrejas) — conseguimos enxergar uma estrutura característica da
total relativização das tradicionais identidades baseadas em etnia, gênero e religião. À revelia do
conteúdo próprio do anúncio de Paulo, Badiou descreve da seguinte maneira a forma de seu
raciocínio:

É nesse ponto que convocamos São Paulo, pois sua questão é exatamente essa. O
que quer Paulo? Sem dúvida, tirar a Nova (o Evangelho) da estrita cerca em que ela
teria valor apenas para a comunidade judaica. Mas, de toda maneira, jamais a deixar
ser determinada pelas generalizações disponíveis, sejam elas estatais ou ideológicas.
[…] o caminho geral de Paulo é o seguinte: se houve um acontecimento e se a
verdade consiste em proclamá-lo e, em seguida, ser fiel a essa proclamação
decorrem duas consequências. Primeiro, sendo a verdade pertinente ao
acontecimento, ou da ordem do que advém, ela é singular. Não é estrutural, nem
axiomática, nem legal. Nenhuma generalidade disponível pode dar conta ou
estruturar o sujeito que se reporta a ela. Não poderia, portanto, haver uma lei da
verdade. Em seguida, sendo a verdade registrada a partir de uma declaração de
natureza subjetiva, nenhum subconjunto pré-constituído a sustenta, nada de
comunitário ou de historicamente estabelecido empresta sua substância a seu
processo. A verdade é diagonal em relação a todos os subconjuntos comunitários,
ela não comporta nenhuma identidade e (esse ponto é, evidentemente, o mais
delicado) não constitui nenhuma identidade. Ela é oferecida a todos, ou destinada a
cada um, sem que uma condição de pertencimento possa limitar essa oferta ou essa
destinação (BADIOU, 2009, p. 21).

No procedimento fundamental de Paulo como um apóstolo do acontecimento messianico,


Badiou enxerga a estrutura básica de um processo de subjetivação subordinada tão somente a
novidade histórica produzida pelo rompimento acontecimental. Com isso, ele está apresentando as
condições de possibilidade de fazermos frente às dinâmicas infinitas da gestão governamental,
através de antagonismos fortes o suficiente para desarticular a krisis infinita que foi naturalizada.
Tais condições dizem respeito ao desafio filosófico de pensar um universalismo político que não é,
simplesmente, outro particularismo hegemônico mascarado como universal — seja através da
abstração capitalista ou por qualquer plataforma política instituída a partir das identidades concretas
de subconjuntos sociais. Agindo dessa forma, Badiou não só reconhece que diferentes posições
concretas na realidade formam características que não devem ser simplesmente ignoradas (como

130
gênero, orientação sexual, etnia, nacionalidade, etc.), mas que são indiferenciadas por um
procedimento de afirmação da verdade de forma “diagonal”, travessando-as e relativizando sua
importância. Isso ele ilustra dizendo o seguinte: “ainda que, ele próprio, um cidadão romano e feliz
por sê-lo, Paulo jamais autorizará que qualquer categoria do direito identifique o sujeito cristão.
Serão, portanto, admitidos, sem restrição nem privilégio, os escravos, as mulheres, as pessoas de
todas as profissões e de todas as nacionalidades”, e isso só seria possível porque, “em última
análise, trata-se de fazer valer uma singularidade universal contra as abstrações estabelecidas
(jurídicas na época, econômicas atualmente) e, ao mesmo tempo, contra a reivindicação comunitária
ou particularista” (BADIOU, 2009, p. 21). 81
Todo esse raciocínio explica a importância de Paulo para a filosofia contemporânea. O que
muitos filósofos, cientistas políticos e historiadores das ideias fizeram nas últimas décadas foi
perceber como existia um paradigma sem igual das condições para o universalismo político. 82 Com
toda essa compreensão, soa de forma mais clara o enunciado de Paulo, “enunciado realmente
impressionante quando se conhecem as regras do mundo antigo: ‘Não há mais judeu nem grego,
não há mais escravo nem livre, não mais homem e mulher’ (Gl 3.28)” (BADIOU, 2009, p. 16). Essa
e a razão pela qual uma filosofia política, que seja coerente com os processos de verdade, não pode
fundar-se no identitário. A verdade só surge a partir do rompimento genuinamente singular que, tão
somente por isso, nos permite universalizar a singularidade. A dificuldade que os agentes políticos e
os movimentos sociais tradicionais têm de entender esse processo de instauração da verdade livre
das identidades é porque “colocam a língua em um impasse”, conforme explica Safatle, “por
trazerem processos que ainda não tem nome, que devem ser pensados como ‘fora de lugar, como
nomadismo da gratuidade’e que permitem o advento de um ‘sujeito desprovido de toda identidade’"

81
Quanto a isso, Zamora explica que: “Frente à universalidade abstrata ou à singularidade particularizante, Paulo
representa uma singularidade universal que rompe com a hegemonia dos dois discursos precedentes. Singularidade e
universalidade se veem transformadas. A singularidade como rebaixamento pelo acontecimento de uma determinada
estrutura do simbólico e a universalidade como verdade supracomunitária. Assim, pois, a verdade/acontecimento possui
um caráter singular, não nasce de nenhuma legalidade ou regularidade universal, porém ao mesmo tempo tampouco está
fundada numa particularidade comunitária ou destinada a fundá-la. É para todos e para cada um. A significação política
atual desta singularidade universal se torna patente se a confrontarmos com os princípios da comensurabilização de todo
o singular por meio da forma da mercadoria, sobre a qual se funda uma ordem particular que, sem embargo, exclui o
singular” (ZAMORA, 2011, p. 18).
82
Quanto a esse ponto, Hermann Häring, que está envolvido na elaboração dos princípios teológicos e filosóficos para
pensarmos uma ética mundial, nos ajuda a entender que: “ninguém inculcou tão profundamente no cristianismo o
pensamento do universalismo como Paulo. Ele iniciou sistematicamente e fundamentou explicitamente o primeiro
processo histórico de universalização. Em todo o caso, esta tendência modificou fortemente seu anuncio em face da
originária comunidade judaica. Só assim o apelo à universalidade podia sem- pre de novo tornar-se eficaz […] Graças à
sua orientação universal, Paulo relativiza todas as orientações concretas que se implantaram no povo de Israel através
da Tora. Seu perigo reside no orgulho e no sentimento de superioridade. Conhece-se o preceito divino, mas não se
cumpre. Simultaneamente, Paulo radicaliza a lei pela obrigatoriedade interior. Com isso, ampliam-se as perspectivas,
porque no coração as normas e os valores foram inscritos também nos não judeus. Expresso modernamente: existe um
ethos global que vale para todos os homens” (HÄRING, 2008, p. 6-7).

131
(SAFATLE, 2009, p. 134). Esse limiar é o que marca a formação de identidades indiferentes aos
costumes e hábitos estabelecidos de grupos sociais identitários. Estas são capazes de “instaurar uma
posição ex-cêntrica, indiferente em relação às possibilidades de ação postas pelo ordenamento
jurídico” (SAFATLE, 2009, p. 134). 83
A relevância para a política que têm tais argumentos construídos a partir da obra de Paulo é
o que faz a filosofia interessar-se tanto pelos seus escritos. Em especial, Badiou tem o mérito de
conseguir ultrapassar as interpretações individualistas que são feitas dos raciocínios de Paulo e nos
oferecer “uma leitura da teologia da graça de Paulo que atrai a atenção não, em última instância, em
virtude de sua importância para os dilemas sociais e políticos do mundo contemporâ-neo”
(BARCLAY, 2018, p. 164). Tudo isso ele faz de uma maneira distinta do que tradicionalmente
foram as apropriações da teologia cristã por parte do pensamento progressista: “não deixa de ser
interessante que em Badiou a recuperação da significação política do cristianismo não vá de mão
dada com a reivindicação do Jesus histórico como profeta crítico ou revolucionário político”, tal
como recorrentemente acontece no interior dos movimentos e das teologias progressistas que,
“desde a segunda metade do século XX, sublinham a dimensão política do cristianismo. Mas isso
tem a ver com a teoria política de Badiou vinculada ao conceito de acontecimento, como visto
acima” (ZAMORA, 2011, p. 18). Claramente existem muitas outras questões suscitadas e deixadas
em aberto pelo raciocínio de Badiou. No entanto, não podemos deixar de concordar com o filósofo
marroquino que Paulo “provocou uma revolução cultural da qual dependemos ainda” (BADIOU,
2009, p. 23).

2.1.2. Por que Paulo é importante para a filosofia de Agamben?

Apesar das inegáveis contribuições de Alain Badiou, não só para a compreensão da


importância de Paulo na filosofia contemporânea, como também para um projeto semelhante ao de

83
Badiou é cuidadoso o suficiente para mostrar que não se trata de simplesmente desconsiderar as diferenças que os
contextos históricos e sociais geram nas pessoas. Ele não ignora esse fato, mas o ultrapassa enquanto um fundamento
frutífero para a filosofia política: “que haja histórias emaranhadas, culturas diferentes e, de modo mais geral, diferenças
já imensas em um único e ‘mesmo’ individuo, que o mundo seja heterogêneo e que ele não deixe as pessoas viverem,
comerem, vestirem-se, imaginarem e amarem como elas querem, não é aí que está a questão, como os falsos ingênuos
querem nos fazer crer. Essas evidências liberais não lutam claras e gostaríamos apenas que aquele que as proclamam
não se mostrassem tão violentos quando aparece a menor tentativa mais ou menos séria de se distinguir de sua própria
pequena diferença liberal. O cosmopolitismo contemporâneo é uma realidade salutar. Demandaremos somente que a
visão de uma jovem que usa véu não coloque em transe seus defensores, o que tememos uma vez que eles não desejam,
na realidade, mais do que um verdadeiro tecido de diferenças instáveis, a ditadura universo do que acreditam ser a
‘modernidade’” (BADIOU, 2009, p. 18-19).

132
Agamben, é necessário, entretanto, destacar onde ambos filósofos se distanciam. 84 Na verdade, essa
menção sobre o que lhes separa é significativa para entendermos as diferenças que existem entre as
85
diferentes recuperações filosóficas de Paulo na atualidade. Apesar do apóstolo servir como um
denominador comum, os projetos não são homogêneos, antes revelam as ênfases de cada pensador
que o articula filosoficamente. No caso específico de Badiou, não podemos deixar de argumentar
como o filósofo marroquino enfatiza desproporcionalmente o aspecto do universalismo paulino ao
ponto de prescindir de uma das características que era fundamental ao apóstolo: o traço judaico de
seu messianismo. No processo de secularizar seu pensamento, Badiou compromete essa
característica constitutiva do pensamento paulino:

Paulo não é para mim, um apóstolo ou um santo. Eu não tenho a menor necessidade da
Nova que ele declara ou do culto que lhe foi consagrado. Mas ele é uma figura
subjetiva de importância fundamental. Sempre li as epístolas como quando voltamos
aos textos clássicos que nos são particularmente familiares, caminhos abertos, detalhes
abolidos, força intacta. Nenhuma transcendência para mim, nada de sagrado, igualdade
perfeita com qualquer outra obra, uma vez que ela me toca pessoalmente. Um homem
inscreveu de maneira penosa essas fases, essas mensagens veementes e ternas, e
podemos tomá-las empregado livremente, sem devoção nem repulsa. […] Para mim,
Paulo é um pensador-poeta do acontecimento e, ao mesmo tempo, aquele que pratica e
denuncia atos constantes característicos do que se pode denominar a figura militante.
Ele faz surgir a conexão, integralmente humana e cujo destino me fascina, entre a ideia
geral de uma ruptura, de uma virada, e de um pensamento prático, que é a
materialidade subjetiva dessa ruptura (BADIOU, 2009, p. 7-8).

O que fica explícito no trecho acima é que, na ânsia de enfatizar o universalismo que está
inquestionavelmente presente no raciocínio de Paulo, Badiou não se empenha nas mesmas
proporções para entender o epicentro que faz do universalismo apenas um de seus efeitos — a

84
Quanto a relação entre os dois filósofos, Alain Gignac comenta o seguinte: “malgrado sua querela, Badiou e
Agamben se reúnem em sua crítica da obsessão identitária, no cuidado de fundamentar de outra forma o ‘sujeito’, longe
de todo cartesianismo. Eles se unem na ideia de que Paulo nos permite estruturar nosso pensamento político e nos
fornece uma porta de saída para relançar a militância. Ou, ainda, a época atual seria o momento propício para
compreender Paulo (Agamben) e Paulo seria um dos textos maiores para compreender nossa época (Agamben e
Badiou). Em suma, Paulo é nosso contemporâneo. Pode-se discutir com ele como se discute ainda com Parmênides ou
Platão” (GIGNAC, 2008, p. 17).
85
Quem deixa essa diferenciação mais clara é o professor Zamora quando diz que: “a um par de décadas assistimos, não
sem certa surpresa, à manifestação de um vivo interesse pela figura e pela mensagem do apóstolo Paulo entre alguns
pensadores políticos de esquerda carentes de relevância. Há alguns anos Slavoj Žižek convidava todo verdadeiro
materialista dialético a considerar o apóstolo Paulo como um leninista avant la lettre e a ‘passar pela experiência cristã’.
Alain Badiou encontrava em Paulo uma resposta à ‘busca de uma nova figura de militante”, cuja necessidade se sente
hoje por toda parte após a crise da figura do “militante de partido’, pois em seu apostola- do encontramos traços
invariantes dessa figura e de suas condições formais. Agamben considerava que o conceito paulino de resto ‘permite
situar numa perspectiva nova nossas noções de povo e democracia’” (ZAMORA, 2011, p. 5). Em seguida, a partir da
ideia de Walter Benjamim do anão feio e escondido chamado teologia por trás da marionete chamada materialismo
dialético, o professor Zamora explica que: “Apesar de todas as diferenças, há uma coisa que os assemelha: o acordo
aparente na hora de identificar o anão corcunda e feio do relato de Benjamin. Trata-se do apóstolo dos gentios, figura
central do cristianismo e da história do Ocidente. Esta recuperação fora do âmbito teológico e exegético é a que tem
levado a falar de uma “ressurreição política de São Paulo’” (ZAMORA, 2011, p. 9).

133
saber, a compreensão messiânica do novo tempo inaugurado com a encarnação, morte e
ressurreição do messias. Badiou não desconhece que esses fatores estão no conteúdo da mensagem
paulina, mas ele intencionalmente esvazia o interior da mensagem para ficar tão somente com sua
86
forma. “Se, hoje, quero retraçar em poucas páginas a singularidade dessa conexão feita por
Paulo”, Badiou argumenta, “a busca de uma nova figura militante, demanda para suceder àquela
cujo lugar Lenin e os bolcheviques ocuparam, no início do século passado, e que se pode dizer ter
sido a do militante de partido” (BADIOU, 2009, p. 8). Esse equívoco é recorrente nas recuperações
87
apressadas de Paulo pela filosofia, retirando-o totalmente do contexto judaico que lhe é próprio.
Tudo isso nos coloca diante de um desafio específico que o professor Alain Gignac formula
precisamente da seguinte forma: “o principal desafio é ler Paulo tomando um distanciamento em
relação às grandes leituras do passado, como a leitura luterana e a sua justificação pela fé – sem,
todavia jogar esta herança na lixeira”, sendo assim, a pergunta que resta é, “podemos ler o texto de
Paulo sem um parâmetro preconcebido que aplica ao pé da letra uma dogmática ou uma ideologia
predefinida?” (GIGNAC, 2008, p. 18).
Ao colocarmos a insistência de tal pergunta sobre as condições de possibilidade de uma
leitura Paulina que tome um distanciamento consciente das tradicionais interpretações históricas,
não estamos defendendo a possibilidade de uma neutralidade investigativa absoluta. Antes, tal
questionamento nos serve para redobrar os esforços na compreensão do contexto do próprio Paulo
de onde emergiram suas ideias. Quem também logo de início valoriza as investigações que não só
redescobriram Paulo, mas o fizeram também com o seu contexto de vida e pensamento, foi
Agamben. Na introdução de seus seminários sobre a Epístola aos Romanos, ele diz: “só
recentemente que um sério reexame do contexto judaico de Paulo foi empreendido por estudiosos
judeus” (AGAMBEN, 2016, p. 14). Nesse cenário de atenção ao caráter substancialmente judeu-
messiânico da fé paulina, Agamben se vale de um importante nome para tal empreendimento:

86
Comentando esse fato, o professor Alain Gignac explica que: “enfim, o livro de Badiou apresenta Paulo como o
fundador do universalismo que possibilita (e teoriza) um terceiro discurso, entre o discurso ‘judeu’ das identidades
particulares e o discurso ‘grego’ da identidade pseudouniversal, em que a cultura dominante conduz a um nivelamento
superficial. Segundo Badiou, Paulo descreve a postura filosófica daquele que dá testemunho de um evento in-
condicionado na banalidade da história, tornando-se, assim, plenamente sujeito” (GIGNAC, 2008, p. 15-16).
87
Uma das mais flagrantes leituras anacrónicas de Paulo que ilustra perfeitamente o ponto do nosso argumento é aquela
empreendida pelo professor Hemann Häring que declara com todas as letras exatamente o contrário do que
procuraremos argumentar a seguir a partir da filosofia de Agamben: “O universalismo paulino não afirma, portanto, que
uma determinada tradição judaica ou cristã tenha significado universal, mas ele não exclui nenhum grupo humano.
Paulo ancora o seu universalismo na conduta interna das pessoas ante o mandamento do amor que lhes é exigido por
Deus. Ele não acrescenta nenhuma nova condição, nenhuma ulterior indicação de conduta. O seu universalismo pode,
sem esforço e de modo preciso, ser inserido na fundamentação de um ethos mundial, o que abre espaço para o diálogo
entre culturas e religiões. Paulo mostra acima de tudo um caminho que liberta o universalismo cristão de suas fantasias
de superioridade. Ele nos ensina a – junto com outras religiões – submeter-nos a um ethos global […]. Paulo mostra, já
em seu tempo, uma surpreendente conduta moderna” (HÄRING, 2008, p. 7-8).
134
Nessa perspectiva, o livro póstumo de Taubes, Die politische Theologie des Paulus
(1993), assinala — apesar da cursividade e incompletude próprias de um seminário
que durou apenas uma semana — um momento importante. Taubes — que pertencia
a uma antiga família de rabinos asquenazes e tinha trabalhado em Jerusalém com
Scholem (cuja relação com Paulo é, como veremos, tão complicada quanto aquela
que o ligava a Benjamim) — vê em Paulo um representante perfeito do
messianismo. Nosso seminário, que, 11 anos depois do seu seminário em
Heidelberg, se propôs a interpretar o tempo messiânico como paradigma do tempo
histórico, não pode começar sem uma dedicatória in memoriam (AGAMBEN, 2016,
p. 15).

Ao dedicar postumamente seus seminários sobre a Epístola paulina aos romanos a Jacob
Taubes, Agamben o estabelece como um interlocutor privilegiado, uma vez que o filósofo judeu
também faz do caráter judeu-messiânico a coluna vertebral de sua interpretação paulina. De uma
maneira muito distinta de Alain Badiou, Agamben encontra em Taubes recursos intelectuais que o
auxiliaram na leitura do tempo messiânico como paradigma do tempo histórico — que para nós tem
importância central na presente tese. Segundo um resumo que José Zamora faz dos esforços em
questão: “Taubes oferece uma leitura da Carta aos Romanos como ata funcional de uma teologia
política subversiva que pretende recuperar Paulo como um dissidente judeu cujo anúncio do
Messias crucificado nasce da lógica interna do messianismo” (ZAMORA, 2011, p. 10). É
precisamente essa lógica interna do messianismo que interessa Agamben. 88
Jacob Taubes inicia seu seminário enunciando uma hipótese radical à respeito de sua leitura
dos escritos do apóstolo Paulo a partir dos dados presentes na introdução da carta — os sete
primeiros versículos que Agamben também se ocupara em Il Tiempo que resta:

Quero destacar que é uma declaração de guerra política isto de escrever uma carta à
comunidade de Roma para ser lida publicamente, sem saber em que mãos estará (e o
sensores não são idiotas) e introduzi-la precisamente com essas palavras. Sua
introdução poderia ter sido de caráter pietista, quietista, neutra… mas não foi nada
disso. Assim, minha tese é que, em seu sentido, a carta aos Romanos é uma teologia
política, uma declaração politica de guerra aos césares. […] a literatura cristã é uma
literatura de protesto contra o florescente culto aos césares (TAUBES, 2007, p. 30-
31).

88
Em outro texto, entitulado Martin Buber e a filosofia da história, Jacob Taubes sustenta, a partir da teologia de Paulo,
uma concepção da história muito articulada por Agamben em suas obras: “Paulo não resume em nenhum lugar sua
teoria da história; para reconstruir a teoria paulina, Buber reune fragmentos dispersos. Paulo interpreta a história como
um drama no qual se revela o ‘segredo’ predeterminado por Deus, oculto aos eons e às gerações” (TAUBES, 2007b, p.
53). Em seguida, de maneira muito próxima do que fez Agamben em Pilato e Gesú, ele mostra como o drama se insere
na história: “a crucificação do messias pelos poderes terrenos e pelos principados celestiais (representados do Sinedrio e
Pôncio Pilatos) é uma artimanha da providência divina: os poderes deste mundo ajudam para que funcione sua própria
trama e, assim, certamente contra a sua vontade, cumprem com o sentido da história” (TAUBES, 2007b, p. 53). Taubes
mantém esse raciocínio desde sua juventude, quando, em 1953, já havia chegado às mesmas conclusões que Agamben a
respeito da entrega que os judeus empreenderam do messias — sendo engolidos pelo esforço infinito de perpetuarem-se
na história: “Paulo recusa isso e interpreta a negativa da comunidade em reconhecer o Cristo em Jesus como parte do
drama universal da redenção: a recusa de Jesus por Israel fez possível a salvação dos povos pagãs” (TAUBES, 2007c, p.
89).

135
Apesar do jogo linguístico religioso, os primeiros versos da epístola aos Romanos teria
soado aos ouvidos do primeiro século um claro desafio aos poderes políticos e religiosos de Roma.
Essa hipótese de Taubes será sustentada por todo seu seminário e guiará a leitura que ele faz do
89
escrito Paulino. De forma geral, a estrutura argumentativa do filósofo judeu parte do dado
histórico de que entre judeus e romanos existia um consenso religioso-político que permitia a
condução das práticas judaicas com liberdade no interior do império. Esse acordo era algo raro,
pois, “todos os diferentes grupos religiosos eram uma ameaça para o poder romano; em especial o
mais irredutível, os judeus, que não tomaram parte no culto ao César e eram, no entanto, uma
religião lícita” (TAUBES, 2007, p. 38). Claramente o filósofo judeu nos lembra que a colonização
imperial romana amalgamava em seu interior não apenas uma concepção política de poder, mas
90
eminentemente religiosa — que assume a forma do culto aos imperadores. No entanto, Taubes
reconhece a exceção religiosa que Roma submeteu os judeus através de um ponto de contato
fundamental não só para o processo de colonização, mas também para a declaração radical de Paulo
contra o culto aos césares. Taubes explica que: “havia certa aura, uma aura helenística geral: uma
apoteose do nomos. Essa apoteose podia declarar-se de modo pagão, ou seja, de modo grego-
helenístico ou romano, como também poderia ser declarada de modo judeu. Cada qual entendia algo
distinto e próprio pela palavra lei” (TAUBES, 2007, p. 38). O que o filósofo judeu explica aqui é
que o privilégio religioso que os judeus desfrutavam frente ao poder imperial de Roma era
alicerçado na ideia de lei — em sua forma judaica na Torá, ou na lei natural grega, ou ainda, na lei

89
Em um texto escrito em sua juventude, entitulado A controvérsia entre o judaico e o cristianismo (1953), Taubes
sustenta a mesma hipótese teológico-política: “Os problemas eminentes e urgentes das relações judaico-cristãs são
principalmente de natureza política e social, isso não judicia que se siga postergando a revisão da problemática
subjacente. Esse é, no entanto, um problema teológico e dele surgem em primeiro lugar todos os temas sociais e
políticos” (TAUBES, 2007c, p. 87). O professor Zamora também comenta que: “A saudação inicial da carta recolhe
uma apresentação autolegitimadora do apóstolo ante uma comunidade que ele não fundou e que vive no coração do
Império Romano. Paulo fala de sua ‘vocação’ e, com o uso deste termo se coloca em linha com os profetas de Israel,
inscrevendo assim a missão aos gentios na história salvífica judaica e no cumprimento das promessas escatológicas. A
procedência davídica do Messias é a base sobre a qual Paulo proclama uma entronização com pretensões universais
avalizadas pelos atributos de poder do Filho de Deus ressuscitado. Taubes interpreta estes atributos como “uma
declaração de guerra a Roma”. O front político se abre com a simples nomeação desses títulos imperiais ante uma
audiência especialmente familiarizada com o culto ao César” (ZAMORA, 2011, p. 10).
90
O filósofo e jurista holandês Herman Dooyeweerd, reconstruindo a trajetória político-religiosa da antiguidade explica
o seguinte quanto a isso: “Em 324 a. C., Atenas decidiu incluir Alexandre entre as divindades da cidade, como Dionisio.
O culto a Alexandre foi a base da ideia religiosa de imperium, a qual se tornou a força motriz por trás da conquista
romana do mundo e continuou a existir, numa forma cristalizada, com a ideia germânico-romana de sacrum imperium,
o Sacro Império Romano, depois da queda de Roma. A ideia religiosa do imperium passou a combinar com o motivo
básico da cultura grega. […] Depois que os romanos ocuparam a Grécia, eles adaptaram o culto de seus próprios deuses
à religião cultural grega. Mais ainda, a religião romana da vida, que rendia culto à vida comunal da tribo e do clã, tinha
muito em comum com as antigas religiões gregas da natureza. Desse modo, a ideia religiosa do imperium encontrou um
solo fértil entre os conquistadores romanos. […] a deificação do ofício do imperador estaria associada primeiramente a
prática romana comum de culto aos ancestrais. O imperador Tibério, sucessor de augusto, ainda resistiu à veneração de
um imperador vivo e só permitiu o culto de seu antecessor. Mas depois, o infame Calígula eliminou essa restrição e o
governante existente veio a ser venerado como um deus” (DOOYEWEERD, 2015, p. 37-38).

136
do direito romano. É como se a ideia de lei fosse uma moeda de troca com reconhecimento comum
entre os romanos, gregos e judeus. 91 Tratava-se de um veículo de paz interna entre esses diferentes
grupos. Essa situação especial que desfrutava o povo judeu no interior do Império é a que favoreceu
aquela postura de inscrever-se de maneira estável na perpetuidade histórica entregando o messias
para ser julgado pelo Império — impedindo que assumissem sua condição de comunidade
messiânica – conforme Agamben argumentou em Pilato e Gesù.
Nesse contexto, os escritos de Paulo tornavam-se altamente polêmicos, em especial sua
desconfiança na lei judaica como instrumento de salvação. Segundo Taubes, “Paulo rompe a golpes
o consenso existente na teologia de missão grego-judaica-helenística que, em minha opinião, estava
sumamente estendida” (TAUBES, 2007, p. 39). Na verdade, Taubes explica que o que Paulo fez
exatamente foi assumir uma postura radical diante do Império: “protestando e invertendo. O
imperador não é a lei, mas antes é o cravado pela lei na cruz. Em uma amplitude em cuja
comparação não é nada todos os aprendizes de revolucionários” (TAUBES, 2007, p. 39). Isso
significa que o anuncio do evangelho a partir da crucificação de Jesus pela lei judaica — em um
processo de krisis infinita, envolvendo Jesus e Pilatos — é uma tentativa do apóstolo por em
destaque o fato de que não só a lei é insuficiente como ponto de universalismo entre o encontro dos
mundos judaico, grego e romano, como também é a responsável pela crucificação do messias.
Assim, a leitura pública das cartas paulinas “supõe uma provocação não só para os judeus, mas
também rompe o consenso sobre o qual se baseia a ordem existente” (ZAMORA, 2011, p. 11).
Nessa proposta paulina é que encontramos a inversão de todos os valores dominantes no período
antigo — inversão esta que Nietzsche endereçou a Paulo, mas, ao mesmo tempo, foi incapaz de
perceber que se tratava de uma resistência aos domínios imperiais infinitos estabelecidos sob os
92
povos por Roma. Taubes explicará as implicações de tal anuncio em um texto entitulado A
justificação da fé na tradição cristã primitiva (1968), em que ele afirma categoricamente que:

91
O professor Zamora reitera a leitura de Taubes quando comenta o seguinte: “A situação especial de que gozavam os
judeus no Império como religio licita reflete um compromisso que os dispensava do culto ao César. Esse compromisso
exigia prudência política, mas também vinha favorecido pelo que Taubes chama ‘a apoteose helenística do nomos’. A
ideia de lei – tora, lei natural, lei romana – representava uma moeda de câmbio reconhecida por romanos, gregos e
judeus, chave de paz interna e veículo de missão entre os grupos” (ZAMORA, 2011, p. 10).
92
Aqui conseguimos perceber como realmente a crítica nietzscheana ao cristianismo pode encontrar um alicerce mais
sólido para firmar-se. A ideia da inversão dos valores da vida propagada pelo cristianismo não deve ser enxergada como
mera invenção paulina a partir da desconsideração da vida de Jesus que seria o único cristão. Antes, essa inversão só
tem sentido interno à lógica cristã quando é perspectivada a partir do contexto judaico de submissão anti-messiânica aos
decretos imperiais de Roma. É esse contexto que nos ajuda a entender a perspectiva do próprio Taubes que
mencionamos na introdução desse capítulo: “o que Nietzsche descobriu nele [em Paulo], o gênio de uma inversão dos
valores, está dentro, justamente, da sua crítica ao conceito de lei: nas várias ondas que se repetem na carta aos
Romanos” (TAUBES, 2007, p. 40). Nesse sentido, só é possível conservar o lugar específico de Paulo para os
raciocínios nietzscheanos se o contexto judaico-romano especifico for levado em consideração. Ou ainda, conforme
reitera Zamora: “O que Nietzsche denuncia como ressentimento dos sacerdotes frente à hierarquia natural da vida é,
para Taubes, o princípio de uma nova comunidade universal de iguais perante Deus” (ZAMORA, 2011, p. 11).
137
“portanto, essa posição social da comunidade, sua existência de parias, é, para Paulo, consequência
e expressão precisamente da mesma debilidade e loucura divinas cujo signo é a cruz” (TAUBES,
2007c, p. 125). Isso significa defender que: “a sentença social se converte em uma sentença
metafísica. Deus tem escolhido o que não era (ta me onta) para destruir o que era (ta onta)”
(TAUBES, 2007c, p. 126). O que por muito tempo foi lido nas páginas da história da filosofia como
um elogio à fraqueza, inerente à moral de rebanho cristã, na verdade, foi uma das formas
privilegiadas de insistir na ruptura da krisis infinita do Império a partir do anúncio messiânico.
A partir de tudo isso, podemos entender a genuína relação do novo universalismo que Paulo
está anunciando e qual é sua relação com a estrutura legal eminentemente judaica — e não a versão
descontextualizada de algumas leituras de Paulo na filosofia contemporânea. Em vez de defender
uma substituição da lei judaica pela lei das gentes romanas, ou de propagar uma substituição do
poder do imperador por outra teocracia, o que o apóstolo dos gentios faz é uma negação radical da
lei como fundamento para a ordem política, frente a sua insuficiência desta em julgar o reino
messiânico inaugurado por Jesus — conforme argumentamos no capítulo anterior sobre os impasses
de Pilatos frente a Jesus. Taubes afirma que: “esta inversão dos valores põe de pernas para cima a
teologia judaica-romana-helenística das altas esferas, ou seja, essa mistura estranha que é o
helenismo” (TAUBES, 2007, p. 39). Paulo continuará sendo um arauto do universalismo,
entretanto, o fará a partir de bases renovadas ao imaginário popular helenístico — em uma espécie
de “inversão de todos os valores deste mundo” (TAUBES, 2007, p. 39). Em uma continuidade
estruturalmente perene entre as aporias que o julgamento de Jesus por Pilatos explicitaram em
relação ao amalgama entre lei judaica e júri romano, Paulo procurará demonstrar que a lógica
messiânica que rompe com tais estruturas legais precisa constitui-se a partir de outro fundamento. A
nova vida no messias e a comunidade messiânica dependem inteiramente do acontecimento-messias
93
e a fé em suas promessas que rompem a cadeia infinita de dominação imperial. Nas palavras do
próprio Taubes:

Com elas [as promessas messiânicas] começa Paulo, que dão prova de sua tristeza
infinita, de sua dor, mas que com elas dá também prova do que é para ele significa a
comunidade solidária de Israel. Não se trata de parentesco de sangue, mas antes de
parentesco da promessa! Tudo depende disso: da filiação, das promessas, a glória, a
lei, o templo, a haggadá, as promessas e o messias, que se revelou em Jesus Cristo.
O que está em jogo? Para Paulo, está em jogo o fundamento e a legitimação de um
novo povo de Deus. Depois de dois mil anos de cristianismo, talvez vocês não
perceberam o drama do assunto. No entanto, nada pode ser mais dramático para uma
alma judia. A base da ideia é que a orge theou, a ira de Deus, exterminará o povo

93
Conforme o comentário de Zamora: “porém e em todo caso, a constituição de uma nova comunidade já não se
sustenta nem no vínculo étnico, nem na ordem política do império, senão na fé no Messias crucificado e ressuscitado,
escândalo e loucura. A Igreja paulina entende-se a si mesma não como particularidade em frente a outras comunidades,
mas como uma ordem universal aberta, como constituição de um corpo social que nem sequer pretende destruir o status
especial de Israel na ordem salvífica” (ZAMORA, 2011, p. 11).
138
porque tem pecado, porque tem renegado. E vocês dirão: Não pode ser! Pois sim:
tudo pode ser. Tal é a experiência capital da Torá em dois dos seus lugares: Êxodo
32-34, e em uma versão breve, Números 14-15 (TAUBES, 2007, p. 42).

Taubes consegue encontrar o núcleo de significado da mensagem de Paulo que inspira tantos
pensadores que pretendem recuperar as condições de possibilidade do universalismo político. Ainda
que, como judeu, Paulo afirme com dor a caducidade dos privilégios religiosos que o seu povo
desfrutou durante séculos, ele declara com muito entusiasmo que agora a comunidade messiânica
não está limitada ao sangue, território e ordenamento legal, mas a fidelidade às promessas do
messias. O que está em jogo em seus textos lidos no Império Romano é um novo fundamento e uma
nova legitimidade para o povo no Reino de Deus. Conforme argumenta o professor Zamora: “a
constituição de uma nova comunidade já não se sustenta nem no vínculo étnico, nem na ordem
política do império, senão na fé no Messias crucificado e ressuscitado, escândalo e loucura”
(ZAMORA, 2011, p. 11).
Não é sem motivo que o raciocínio de Taubes é recorrentemente utilizado por Agamben ao
longo de sua própria exposição da epístola aos Romanos. A dependência contínua que esse
raciocínio estabelece com as noções que são próprias ao messianismo encontram em Agamben um
dos desenvolvimentos mais frutíferos na contemporaneidade. Sabemos que o filósofo italiano é
conhecido por uma produção literária vasta e também por um saber que transcende os limites das
disciplinas acadêmicas. Nesse sentido, Agamben é um daqueles autores que possuem várias portas
de acesso ao todo de sua obra. Entretanto, à revelia de sua multifacetada obra, existe uma espécie de
coluna vertebral que perpassa todo o trabalho do filósofo nas últimas décadas. Trata-se justamente
da noção de messianismo — especialmente aquela de recorte paulino. Das diversas referências que
fizemos sobre o conceito e os temas que orbitam a ideia de messianismo, temos em mente uma
curta, mas muito significativa, pergunta que o professor da Universidade Livre de Amsterdã, Gerrit
Glas faz sobre o messianismo que nos ajuda a compreender seus desdobramentos para a ética e a
filosofia política contemporânea: “se messianismos é mais do que apenas um fenômeno de histeria
em massa, de pessoas que necessitam de esperança e liderança, quais são os efeitos salutares que ele
oferece à luz do repetitivo e pessimístico elemento que caracteriza a condição humana?” (GLAS,
2007, p. xiii). Em outras palavras, como a temática do messianismo consegue articular novos
conceitos e formas de vida que oferecem antagonismos fortes o suficiente para não nos permitir a
resignação frente aos cenários de ocaso da ação humana?
Podemos dizer que o esforço investigativo de Agamben nas últimas décadas é uma das mais
94
profícuas tentativas na filosofia de pensar tais antagonismos à luz da temática messiânica. Quem

94
O professor Gerrit Glas continua sua argumentação descrevendo uma marca característica da trajetória de Jesus que
está em estreita continuidade dos raciocínios de Agamben — em especial, seu tratamento das dualidades que a
139
nos ajuda a entender a importância desse messianismo de tipo paulino para a filosofia de Agamben
é Catherine Mills em seu verbete “Messianism” para o Agamben Dictionary. Nele podemos ler o
seguinte:

A atenção para o messiânico, e a correlativa necessidade de repensar o tempo e a


história, é uma característica constante da obra de Agamben, a partir de textos
antigos, tais como Infância e História, bem como em textos mais recentes, como O
Tempo que resta. Em Infância e História, ele aborda a necessidade de uma nova
concepção de tempo que seja mais adequada para a concepção revolucionária de
história delineada pelo marxismo. Levantando essa tarefa para si mesmo, Agamben
se volta para fontes alternativas, como o gnosticismo e o estoicismo, bem como em
Walter Benjamin e Heidegger, para enfatizar tanto o rompimento de tempo, quanto a
realização do homem, enquanto ressurreição ou decisão daquele momento. O
modelo para esta concepção de tempo que ele sugere, portanto, é a noção de kairos,
“a conjunção abrupta e repentina onde a decisão agarra a oportunidade e a vida é
preenchida naquele momento” (IH, 101). [...] Em O tempo que resta, Agamben
propõe uma interpretação da teologia paulina, que enfatiza a sua dimensão
messiânica, e argumenta que a Carta aos Romanos de Paulo realmente alinha-se
conceitualmente com os fios messiânicos que atravessam o pensamento de
Benjamin. Focando mais especificamente o texto de Benjamin, Sobre o conceito de
história, Agamben argumentou que Benjamin apropriou-se do messianismo paulino,
que deve ser entendido, não como relativo à fundação de uma nova religião, mas
como a abolição ou o cumprimento da lei judaica (MILLS apud MURRAY;
WHYTE, 2011, p. 131-132).

Trançando essas relações no interior do pensamento de Agamben, Mills deixa um pouco


mais claro não apenas o lugar que o pensamento de Paulo ocupa na filosofia de Agamben, como
também o que o italiano faz a partir dele. Em sua investigação a respeito de um conceito de tempo e
de história que correspondam e sejam adequados à ação política na atualidade, Agamben encontra
no messianismo paulino um paradigma privilegiado. Em Paulo, o filósofo italiano identifica uma
concepção messiânica que muito se aproxima daquele que talvez seja a maior influência do
95
pensamento de Agamben: Walter Benjamin. O professor Michael Löwy, comentando as Teses
sobre o conceito de História de Benjamin, conclui que: “parece-me dificilmente contestável que a
96
teologia à qual Benjamin se refere seja acima de tudo judaica” (LÖWY, 2005, p. 139).

ontologia ocidental nos oferece. Nas palavras de Glas: “a vida de Jesus sugere que existe uma concepção de presença
além das dualidades ordinárias, de presença e ausência, presença e passado, e/ou presença e futuro. A realidade dessa
presencio misericordiosa manifesta em si mesma uma esfera em que alguém pode chamar de ‘concreto além’, isto é, ela
manifesta-se em uma esfera em que, por um instante, relações florescem e amor e cuidado são alcançados pelas pessoas
além de seus limites” (GLAS, 2007, p. 129).
95
Quanto a isso, o professor Zamora é, mais uma vez, muito assertivo ao dizer que: “Walter Benjamin, testemunha
excepcional das catástrofes do século XX e intelectual radicalmente comprometido contra o curso da história na qual
estas se incubaram, na primeira tese Sobre o conceito de história oferece-nos um breve relato que não deixa de
surpreender a quem pretenda ser aliado da classe trabalhadora em sua luta contra a dominação total […] o que
recomenda Benjamin é servir-se de um anão corcunda e feio, a teologia, que não deve se deixar ver, mas que pode
prestar uma ajuda inestimável e decisiva” (ZAMORA, 2011, p. 6)
96
Quanto a isso, é importante para entender esse projeto presente nas Teses que: “Walter Benjamin percebe que há
elementos valiosos da tradição judaico-cristã que podem ter permanecido no tinteiro, por não terem sido assimilados.
[…] Ao referir a teologia ao materialismo histórico, a teologia dá uma virada em seu oposto, de maneira que já não dá
140
Entretanto, Agamben, vai além e se pergunta: “quem é esse teólogo corcunda que o autor soube
ocultar tão bem no texto das teses, que ninguém até agora consegui identificá-lo?” (AGAMBEN,
2016, p. 159). Em uma investigação digna do tradutor das obras completas de Benjamim para o
idioma italiano, Agamben encontra uma “citação sem aspas” no texto de Benjamim que se refere
exatamente ao pensamento paulino. E neste ponto, também fica evidente a dependência de
Agamben das hipóteses anteriormente apresentadas por Taubes:

Vocês entenderão que a descoberta dessa citação paulina escondida — mas não
muito — no texto das teses tenha me emocionado não pouco. No que me dizia
respeito, Taubes já tinha sido o único a sugerir uma influência possível de Paulo
sobre Benjamin, mas sua hipótese se refere a um texto do começo dos anos de 1920,
o “Fragmento teológico-político”, que ele coloca em relação com Rm 8,19-23. A
intuição de Taubes é certamente justa; todavia, não somente não é possível, nesse
caso, falar de citação (exceto, talves, para o termo benjaminiano Vergängnis,
“caducidade”, que poderia corresponder ao vergengliches Wesen, na tradução
luterana do versículo 21) — mas há, entre os dois textos, diferenças substanciais.
Enquanto, de fato, em Paulo a criação geme e sofre à espera de ser redimida, em
Benjamin, com uma inversão genial, a natureza é messiânica precisamente pela sua
eterna e total caducidade, e o ritmo dessa messiânica caducidade é a felicidade. Uma
vez descoberta a citação paulina na segunda tese (lembro-lhes que as teses Sobre o
conceito de história são uns dos últimos escritos de Benjamin, quase uma espécie de
compêndio testamentário de sua concepção messiânica da história), a via estava
aberta para a identificação do teólogo anão, que move secretamente as mãos do
fantoche materialismo histórico (AGAMBEN, 2016, p. 161-162).

Nesse sentido, fica um pouco mais claro não só como as teses de Agamben se ligam
intimamente às de Taubes, como também elas se desenvolvem para além dele. Será a descoberta
desse Handeexemplar das teses Sobre o conceito de história, tese 2, que dá segurança para
Agambem afirmar que: “pois bem, eu conheço um único texto em que se teoriza de modo explícito
a fraqueza e a força messiânica. Trata-se, como vocês entenderam, da passagem de 2Cor 12,9-10,
97
que comentamos várias vezes” (AGAMBEN, 2016, p. 160). Com essa descoberta, e as novas

nenhum conceito de si, senão que somente se faz perceptível na forma como se introduziu e ficou abismada no profano,
mas a revolução recebe dessa maneira uma face messiânica, sua verdadeira face. A revolução já não é vista como a
‘locomotiva da história’, da qual falava Marx, como um salto para um futuro abstrato no qual, como denuncia
Benjamin, se perpetua a dominação e a catástrofe, senão como um lançar mão ao freio de emergência, como uma
ruptura da dinâmica cega de um sistema, o capitalista, que em seu avanço contínuo reproduz a dominação e com ela
incontáveis vítimas convertidas em preço irrelevante de um progresso sem fim. O que o anão corcunda ensina é que
nada pode informar-nos melhor sobre o processo histórico do que aquilo que não fica subsumido e superado na
tendência dominante. A esperança messiânica não consiste, pois, em alimentar uma utopia que se realizará no final dos
tempos, senão na capacidade de constatar o que em cada instante permite espreitar a ‘força revolucionária’ do novo em
vez da dinâmica dominante da história” (ZAMORA, 2011, p. 7-8).
97
É digno de nota também outras características de Paulo que estão “escondidas” no texto benjaminiano. Quem se
atenta a esses detalhes é Franz Hinkelammert quando explica que: “é possível encontrar, então, outras referências
sugestivas, que aparecem no próprio texto sobre o jogo de xadrez que Benjamin apresenta. Há nesse texto um boneco
vestido ‘à moda turca’ dirigido por um anão corcunda. Por que ‘à moda turca’? […] Paulo é da cidade de Tarso, que
hoje é uma cidade turca. Visto da perspectiva do mundo de hoje, Paulo de fato é turco. Oferecidas por Benjamin, essas
imagens confirmam por completo a análise de Agamben” (HINKELAMMERT, 2012, p. 7).

141
afirmações que são possíveis a partir dela, a recuperação agambeniana dos escritos de Paulo assume
um status diferenciado em relação a todas as outras — incluindo não só Taubes, mas também
Badiou e Žižek. 98
Toda essa discussão, para além dos detalhes e curiosidades biográficas de Benjamin, Taubes
e Agamben, é apenas um exemplo paradigmático para nossa hipótese sobre a compreensão e o lugar
que o messianismo paulino ocupa em Agamben. De maneira específica, queremos sustentar que a
contribuição de Paulo para a filosofia de Agamben é o fato dela ser indispensável para entender
todas as obras publicadas pelo filósofo italiano a partir do ano de 2000 — data que remonta seu
seminário em torno da epístola paulina. O comentário ao primeiro versículo da Epístola aos
Romanos em Il tempo che resta, afigura-se como uma das suas principais obras quando levamos em
consideração esse eixo temático do messianismo. Neste livro temos, sistematicamente e de forma
muito harmônica, a apresentação do pensamento de Paulo enquanto uma fonte de onde Agamben
retirará os conceitos centrais trabalhados em seus livros subsequentes. Ideias como “resto”
(fundamental na redação de Quel che resta di Auschwitz. L'archivio e il testimone), “juramento” e
“sacramento da linguagem” (chaves para Il sacramento del linguaggio. Archeologia del giuramento),
“novo uso” (atitude característica da vida franciscana de Altissima povertà. Regole monastiche e forma
di vita, como também para o volume fina da série L'uso dei corpi), “forma de vida”, “vida messiânica” e
“inoperosidade da lei” (todas presentes nos argumentos de Il regno e la gloria. Per una genealogia
teologica dell'economia e del governo), fazem de Il tempo che resta não só uma leitura basilar para
a compreensão de todos os desdobramentos futuros da pesquisa agambeniana, como também nos
auxilia a sustentar a temática messiânica como um fio de ouro no texto de Agamben.
Em um insight muito perspicaz e digno de ser repetido aqui, Slavoj Žižek mostra que:
“na contracapa da edição francesa do livro de Agamben, Le temps qui reste, a sua leitura da
Epístola aos Romanos de São Paulo, propõe um resumo tão preciso do conteúdo da obra, que
podemos supor que ele foi redigido pelo próprio autor” (ŽIŽEK, 2006, p. 134). Esse texto merece
ser citado uma vez que faz coro à fundamentação de nossa hipótese:

Se é verdade que cada obra do passado só alcança uma legibilidade em certos


momentos da sua própria história que é importante saber como apreender, na origem
deste livro há a convicção de que existe uma espécie de ligação secreta, que não
devemos imperativamente falhar, entre as epístolas de Paulo e a nossa época. Nessa
perspectiva, um dos textos mais lidos e mais comentados de toda a nossa tradição
cultural adquire, sem dúvida, uma nova legibilidade, que desloca e reorienta os
cânones da sua interpretação: Paulo já não é o fundador de uma nova religião, mas o
representante mais exigente do messianismo judeu; já não é o inventor da
universidade, mas aquele que ultrapassa a divisão dos povos através de uma nova

98
Quem nos ajuda a fazer essa afirmação é, uma vez mais, Enrique Dussel quando diz que: “O livro de Giorgio
Agamben, El Tiempo que resta. Comentário a la carta a los romanos, é fruto de uma pesquisa mais especializada sobre
nosso tema, cheio de sugestões e atualidade. Nele, são alcançados grande precisão e clareza sobre alguns temas
debatidos por Paulo de Tarso no âmbito filosófico europeu e norte-americano” (DUSSEL, 2016, p. 75).
142
divisão e que introduz nela um resto; já não é a proclamação de uma nova identidade e
de uma nova vocação, mas a revogação de qualquer identidade e de qualquer vocação;
já não é a simples crítica da Lei, mas a sua abertura para um uso para lá de todo o
sistema do direito. E, no centro de todos estes motivos há uma nova experiência do
tempo que, ao inverter a relação entre passado e futuro, entre memória e esperança,
constitui o kairos messiânico, não como o fim do tempo, mas como o próprio
paradigma do tempo presente, de todos os presentes (ŽIŽEK, 2006, p. 134-135).

Na identificação de uma espécie de ligação secreta entre o texto das cartas de Paulo com a
condição de nossa época, esconde-se o anseio por um gesto político exemplar que não seja guiado
pelos clichês multiculturalistas da atualidade ou pelas exigências de ideais normativos de consensos
democráticos. Repetir o gesto paulino, a partir da leitura de Agamben, dá uma resposta àquela
pergunta do professor Vladimir Safatle no posfácio da obra de Badiou: De que filosofia do
acontecimento a esquerda precisa? Semelhantemente às leituras filosóficas de Paulo na
contemporaneidade, mas com a diferença de uma nova consideração estreita do contexto judaico-
messiânico do apóstolo, Agamben parece estar disposto a procurar um paradigma de crítica às
formas de vida na modernidade através da conceitografia das primeiras comunidades cristãs com
suas relações de reconhecimento baseadas na fidelidade às promessas do messias.
Em um Limiar que se inscreve entre a análise das raízes angeológicas das burocracias
ocidentais e o tema propriamente dito do poder e da glória, em Il regno e la gloria, Agamben
demonstra o poder explicativo que as categorias paulinas têm para esclarecer alguns dos processos
mais típicos das democracias contemporâneas — e sua ligação específica com a ideia geral de
messianismo:

Que a angelologia coincida imediatamente com uma teoria do poder, que o anjo seja
a figura por excelência do governo do mundo já resulta do simples fato de que os
nomes angélicos se identificam com os nomes dos poderes terrenos: arkai, exousiai,
kyriotetes (na tradução latina, principatus, potestates, dominationes — principados,
potestades, dominações). Isso é evidente em Paulo, em cujas cartas nem sempre é
fácil distinguir entre o nome dos anjos e o das autoridades mundanas. Aliás, a
expressão arkai kai exousiai [principados e potestades] é comum no grego da época
para indicar de maneira genérica os poderes humanos (por exemplo, em Lc 12.11,
os seguidores de Jesus são levados à sinagogas “perante os magistrados e as
autoridades [epi… tas arkas kai tas exousias]” e, em Tt 3.1, Paulo recomenda aos
membros da comunidade ser “submissos às arkais exousiais”). Também na Epístola
aos Colossenses, em que certamente está em questão um culto aos anjos, não está
claro se “os principados e as potestades”, sobre os quais o Messias triunfou pela cruz
(2.15), são potências angélicas ou humanas; e até mesmo na célebre passagem de
1Co 15.24, a destruição de “todo principado, toda dominação e toda potência” que o
Messias leva a cabo quando devolve o reino a Deus pode referir-se tanto aos poderes
terrenos quanto aos anjos. […] A promiscuidade entre anjos e potências terrenas é
realmente mais íntima e essencial e deriva sobretudo do fato de que os anjos
enquanto figura do governo divino do mundo, são imediatamente também “os
arcontes deste século” (1Co 2.6). Em Paulo, os poderes terrenos e os angélicos se
indeterminam porque derivam ambos de Deus. A célebre passagem de Rm 13.1-5,
sobre a origem divina de toda exousia (“não há autoridade que não venha de Deus”)
deve ser lida nessa perspectiva e, nela, encontra também seu corretivo. A
angelologia paulina é de fato solidária com sua crítica à lei e à autoridade que se

143
funda sobre esta, porque a autoridade, assim como a lei (“que foi promulgada por
meio dos anjos”, como é dito em Gl 3.19; ver também Hb 2.2), foi dada “em vista do
pecado” e seu poder cessa com a vida do messias. […] O messianismo paulino deve
ser visto nessa perspectiva. Funciona como corretivo da hipertrofia demoníaca dos
poder angélicos e humanos. O messias desativa e torna inoperosos (katargeo — “eu
torno argos”, inoperoso, e não simplesmente “eu destruo” — é o termo técnico
usado por Paulo para exprimir a relação entre messias e os poderes dos anjos e dos
homens) tanto a lei quanto os anjos e, dessa maneira, reconcilia-os com Deus (todas
as coisas, como se lê em Cl 1.15-20, “inclusive os tronos, as dominações, os
principados e as potências”, foram criadas através do messias, e através dele serão
reconciliadas no fim com Deus. O tema da lei não mais aplicada, porém estudada,
que nos romances de Kafka acompanha os dos funcionários-anjos constantemente
inoperosos, mostra aqui sua pertinência messiânica. O telos último e glorioso da lei e
das potências angélicas, assim como o dos poderes profanos, consiste em ser
desativado e tornado inoperoso (AGAMBEN, 2011, p. 183-184).

Diante do que foi exposto, portanto, podemos terminar essa seção recapitulando o seguinte:
a repetição do gesto intelectual de Paulo de Tarso é uma das condições privilegiadas para
ultrapassarmos a condição de eclipse político em que os governos ocidentais se encontram.99 O
significado dessa hipótese tem, pelo menos, dois aspectos muito importantes. Em primeiro lugar,
diz respeito à potencialidade e valor filosófico intrínseco ao próprio texto paulino – que deixa de ser
um patrimônio exclusivo da cristandade, das igrejas e do discurso teológico especializado, para
afirmar-se como ponto de partida de aproximações, provocações e impulsos para transvalorar as
propostas vigentes e criar alternativas possíveis. Ademais, em segundo lugar, refere-se ao valor da
redescoberta e dos desdobramentos que um pensador contemporâneo específico empreendeu a
partir desses textos. O messianismo paulino na filosofia de Giorgio Agamben é, ao mesmo tempo,
repositório de potencialidades, como também condição de inteligibilidade da própria filosofia que o
italiano desenvolveu nos últimos anos. Nesse sentido, uma investigação dessa natureza inscreve-se
como um trabalho não apenas de filosofia contemporânea, mas dos dilemas e problemas do mundo
contemporâneo. Trata-se do esforço de pensar a filosofia como instrumento de leitura para o mundo
em que habitamos tal como está dado, isto é, uma problemática do presente. Sendo assim, portanto,
cabe perguntar: quais as dimensões dessa problemática? Por que Paulo é relevante para pensar a
situação de eclipse político a qual estamos nos referindo? Quais categorias do seu vocabulário
teológico nos servem filosoficamente para o cenário de transformação da política em gestão através
do governo infinito da população? Essas são as questões que orientarão as próximas seções do
presente capítulo.

99
Nas palavras do professor José Antonio Zamora: “diante desse panorama, as leituras de Paulo que apresentamos são
um gesto de libertação, um grito de protesto, as alternativas de recuperação que merecem esse nome. O ponto de partida
é a perda de confiança que a democracia pode frear o capitalismo. A crise atual precisa de uma emancipação completa,
uma reinvenção da política, que envolve também uma nova forma de produção não só econômica, mas também social.
[...] O verdadeiro problema político é que esse quadro do mercado homogêneo produziu permanentemente não-lugares,
sem-partes, não-direitos, não-cidadãos,... E isso se torna cada vez mais frequente todos os dias. Assim, a política passa a
ser definida como uma resposta organizada a este problema fundamental. Que neste espaço a figura do Apóstolo Paulo
seja reivindicada, não deixa de nos surpreender gratamente (ZAMORA, 2012, p. 99, tradução nossa).
144
2.2. Vivendo no tempo do fim: temporalidade messiânica e des-confiança nas obras da lei

Seguindo seu projeto de reconfigurar toda a metafísica ocidental e forjar uma nova
conceitografia para a experiência humana no mundo, Agamben encontrará em Paulo a estrutura
para aquilo que ele chama de o pensamento que vem – isto é, o prelúdio para toda uma filosofia do
futuro que já em 1990 o filósofo italiano esboçava em La comunità che viene. O professor Alain
Gignac, consegue captar o cerne da questão envolvendo o apóstolo Paulo que iremos perseguir na
presente seção da tese. Quanto a isso, ele nos diz o seguinte:

As cartas de Paulo, enquanto forem lidas (pois podem cessar de serem lidas: o que é
um clássico pode cair em abandono), saberão nos sacudir, nos confrontar, nos forçar
a refletir. A história da interpretação antes de nós mostra isso amplamente. Não há
momento propício para ler Paulo, mas, ao contrário, a leitura de Paulo pode criar um
momento propício, o momento capaz de criar o novo. Por quê? [...] Primeiramente, a
temporalidade paulina é construída sobre o modo do kairós que surge e vem
interromper o chronos (cronologia): Bultmann o salientou bem (e, paradoxalmente,
cada um a sua maneira, Badiou e Agamben). O “agora” e o “doravante” são muito
fortes em Paulo e colocam constantemente o leitor diante da urgência de uma
decisão. (Mais uma vez, pode-se reler Romanos 3.21-26, que começa por um sonoro
“mas agora”) (GIGNAC, 2008, s/p.).

Conforme Gignac menciona acima, a noção de tempo em Paulo aproxima-se muito daquilo
que Benjamin falava ser necessário para uma nova concepção de história, não mais marcada pelo
progresso infinito – como a crise sem juízo que vivemos – mas por uma temporalidade do “agora”
que nos impele para a decisão verdadeira – a krisis efetiva e não mais infinita. Em outras palavras, o
uso das categorias messiânicas de Paulo significa a busca do estabelecimento de uma renovada
dialética entre temporalidade governamental infinita e tempo messiânico do fim. Foi justamente o
arrefecimento dos discursos messiânicos durante anos que deu lugar na contemporaneidade à
jurisdização e à economização integral das relações humanas, fortalecendo aquela transformação da
política em gestão infinita da população. Por trás da extensão cega e derrisória dos domínios
econômicos e da hipertrofia ilegítima do direto, esconde-se a ausência de uma contraconduta
messiânica.100 Na história dessa busca de contracondutas e antagonismos fortes o suficiente para

100 A problemática sobre o rompimento de uma das duas polaridades fundamentais para qualquer comunidade humana
acompanha o pensamento de Agamben até hoje. Em Pilatos e Jesus, o filósofo italiano recoloca a relação entre direito,
estado de emergência permanente e a temporalidade messiânica. Nas suas palavras: “a insolubilidade implícita no
embate entre os dois mundos, e entre Pilatos e Jesus, é atestada nas duas ideias-chave da modernidade: que a história
seja um ‘processo’ e que esse processo, enquanto não se concluir em um juízo, esteja em permanente estado de crise.
Nesse sentido, o processo de Jesus é uma alegoria do nosso tempo que, como toda época histórica que tenha respeito
por si própria, deveria ter a forma escatológica de uma novissima dies [o último dia, o dia do juízo final], mas foi
privada da mesma pela tácita e progressiva extenuação do dogma do Juízo Universal, do qual a Igreja não quer mais
ouvir falar” (AGAMBEN, 2014, p. 75). Diante de tudo isso, mais uma vez se mostra uma alternativa interessante à
145
fazer frente ao domínio infinito dos seres humanos existem alguns detalhes sobre Paulo que fazem
com que sua posição na história das ideias assuma um status privilegiado. Conforme esclarece o
filósofo argentino Gabriel Liceaga:

O discurso teológico-político de Paulo é anterior ao Estado-nação e é construído


contra a falsa universalidade imperial e opressiva (que é facilmente comparável com
o contemporâneo império mundial do capital), e contra o fechamento em uma
cultura particular (o judaísmo de estrita observância da lei no contexto de Paulo). Os
atores importantes estão lá no Império Romano, a tradição judaica fechada às
aberturas culturais para os gentios, e a comunidade messiânica (os “cristãos”),
imersos em uma parte integrante da comunidade judaica (o resto de Agamben). Isto
pode dar a pauta para a filosofia política contemporânea, em que aparecem postos
em jogo tanto um tácito interesse por combater a homogeneização do poder
econômico, político e militar, como a necessidade de superar os horizontes
monoculturais, em uma “comunidade” aberta à novidade (LICEAGA, 2009, p. 483).

No parágrafo supracitado, Liceaga apresenta alguns movimentos do pensamento paulino que


Agamben recupera em sua filosofia que, por sua vez, serão parte constituinte da justificação de
repetir Paulo hoje. O primeiro deles é uma espécie de vantagem cronológica. Lembrar que os textos
teológico-políticos de Paulo são anteriores ao Estado-nação significa dizer que eles estão livres de
alguns vícios filosóficos da modernidade política. Ou seja, repetir o gesto messiânico em Paulo não
tem nada a ver com as diferentes insistências ainda contemporâneas, de pensar o mundo de hoje a
partir das categorias de contratos, consensos racionais ou meros direitos individuais – sejam eles
humanos ou naturais. Ao contrário, o estudo do discurso paulino nos permite escapar do rígido
mapa conceitual de algumas opções políticas que, apesar de não ser exclusivo, acabou tornando-se
dominante no imaginário ocidental – que, sem nos darmos conta, é fundamentalmente mais
determinado pelas questões do Iluminismo do que dos desafios da contemporaneidade. Que
concorda com essa vantagem do texto paulino é N. T. Wright, um dos principais estudiosos do
Novo Testamento na atualidade: “percebemos que trazemos de nascença uma escala de
posicionamento de esquerda-direita e, de acordo com essa escala, quanto mais tendermos para a
esquerda, tanto mais nos inclinaremos para o lado da oposição a todos os governos e estrutura de
autoridade”, no entanto, não resta dúvida, de que: “Paulo não tem lugar em nossa escala. Ele se
situa, quando muito, no mapa da opinião política constituída pelas circunstâncias peculiares do
judaísmo do Segundo templo, formado por fatores bem diferentes dos vigentes” (WRIGHT, 2009,
p. 84).
Essa primeira vantagem cronológica, entretanto, poderia ser aos olhos de alguns intérpretes
do pensamento político, uma desvantagem metodológica – uma vez que Paulo não teve ideia dos

contemporaneidade biopolítica a proposta de relacionar ao campo de imanência infinito do governo do mundo a postura
messiânica que, por sua vez, encontra em Paulo seu correspondente privilegiado – sem mencionar o lugar central que
esse tema encontra no interior do próprio pensamento de Agamben, tornando seus esforços mais inteligíveis.
146
desafios que a ética e a filosofia política contemporânea enfrentariam. Contudo, não é esse o caso.
Sem desconsiderar suas complexidades específicas e irredutíveis, na verdade Agamben sustenta que
no contexto sociocultural paulino encontramos uma estrutura epocal análoga a que vivemos hoje. 101
Esse é o segundo ponto que Liceaga menciona no parágrafo supracitado. O contexto em que o
apóstolo se encontra é na dobra de três mundos: o Império romano, a cultura helênica e o judaísmo
do Segundo Templo. A grande questão, todavia, é o modo como Paulo articula esses três mundos
para dar lugar a uma quarta realidade: a ekklesia, a comunidade messiânica. Acreditamos ser esse
movimento intelectual, em que Paulo critica a falsa e opressiva universalidade imperial através de
um uso totalmente inesperado da tradição judaica, o gesto que Agamben busca repetir —
constituindo-se nossa hipótese de trabalho sobre a importância política do tema messiânico do fim
dos tempos. De uma maneira muito clara, o próprio Agamben estabelece esse ponto quando termina
a primeira jornada de seu seminário: “o nosso seminário não se propõe enfrentar o problema
cristológico, mas, mais modesta e filosoficamente, compreender o significado da palavra christós,
ou seja, ‘messias’”, e esse objeto de investigação corresponde a uma série de perguntas
fundamentais que procuraremos responder nessa seção, a saber, “o que significa viver no messias, o
que é a vida messiânica? E qual é a estrutura do tempo messiânico? Essas perguntas, que são as
perguntas de Paulo, devem ser também as nossas” (AGAMBEN, 2016, p. 30).

2.2.1. O tempo que resta: a estrutura histórico-escatológica da temporalidade messiânica

Existem vários caminhos possíveis para reconstruímos o livro Il tempo che resta no que se
refere às contribuições paulinas para a filosofia de Agamben.102 É possível percorrer o caminho

101 Estabelecendo uma relação que não encontra lugar apenas em Paulo, mas também no movimento franciscano – que
será objeto de pesquisa anos mais tarde em Altissima povertà. Regole monastiche e forma di vita – Agamben dirá que:
“Desenvolvendo a tendência, já presente nos escritos de Francisco, de conceber a ordem como uma comunidade
messiânica e de dissolver a regra no evangelho concebido como forma de vida […], tratava-se, tanto para Olivi quanto
para Angelo clareno, de criar um espaço que escapasse à tomada do poder e das suas leis, não entrando em conflito com
elas, mas simplesmente tornando-as inoperantes. A estratégia paulina em relação à lei — da qual a passagem em 1Cor 7
sobre o como não é parte integrante — pode ser lida, como veremos, numa perspectiva análoga” (AGAMBEN, 2016, p.
41). A partir dessa mesma estrutura problemática, de criar uma forma de vida e um espaço que escapa das mãos do
poder e de suas leis, Agamben procurará ler a situação ética e política hodierna.
102
O caminho escolhido por Agamben é uma detida análise de um trecho do seguinte documento bíblico escrito pelo
apóstolo: “Paulo, servo [δουλος] de Cristo Jesus, chamado [κλητος] para ser apóstolo [αποστολος], separado
[αφωρισμενος] para o evangelho de Deus, o qual foi prometido por ele de antemão por meio dos seus profetas nas
Escrituras Sagradas, acerca de seu Filho, que, como homem, era descendente de Davi, e que mediante o Espírito de
santidade foi declarado Filho de Deus com poder, pela sua ressurreição dentre os mortos: Jesus Cristo, nosso Senhor.
Por meio dele e por causa do seu nome, recebemos graça e apostolado para chamar dentre todas as nações um povo para
a obediência que vem pela fé [πιστεως]. E vocês também estão entre os chamados para pertencerem a Jesus Cristo. A
147
mais natural de seguir a ordem escolhida pelos editores para as seis conferências; existe também
uma sequência temática que pode ser identificada por um conjunto de perguntas que Agamben
apresenta-nos ao longo de suas conferências. Optamos por não escolher nenhum destes caminhos,
uma vez que nossa intenção não é repetir a totalidade dos temas tratados neste livro. Antes, o que
pretendemos é apresentar o que significa viver na temporalidade messiânica, ou ainda, sobre o que
implica uma forma de vida messiânica tal como aquela que mencionamos repetidas vezes enquanto
uma contraconduta forte o suficiente para se instituir como um antagonismo ao governo infinito da
população. Nossa opção metodológica não apenas se dá em referência aquilo que o próprio
Agamben apresenta como sendo a coluna vertebral de todo o seu raciocínio ao longo do seminário,
103
mas também se detém naquilo que os especialistas no pensamento de Paulo entendem que é o
núcleo de sua argumentação. Um diálogo muito frutífero que pode ser estabelecido nesse sentido
com a obra de Agamben é o reconhecimento que faz o antigo professor da Universidade Teológica
de Kampen, o holandês Herman N. Ridderbos. Em sua obra Paulo: um esboço de sua Teologia
(1966), o especialista em Novo Testamento estabelece aquele que deve ser reconhecido como o
núcleo de sentido do pensamento paulino:

A partir da história da investigação, tomou-se aparente quão facilmente a entrada


para a pregação de Paulo é bloqueada ou estreitada quando certas facetas da sua
proclamação da salvação são colocadas no centro e absolutizadas à custa de outras.
Pode-se dizer, sem dúvida alguma que, como resultado da investigação mais recente,
apesar de esta não ter, em si, escapado de todo tipo de unilateralidade e dogmatismo,
foi possível chegar a uma concepção mais ampla da pregação de Paulo. A
investigação não busca mais o tema básico de sua pregação num determinado
aspecto soteriológico, quer na justificação pela fé ou na vitória sobre a carne por
meio do Espírito, mas transcendendo a todos esses pontos de vista parciais e
antecedendo-os todos, vai procurá-lo no ponto de partida escatológico ou histórico-
redentor da proclamação de Paulo. Todo o conteúdo dessa pregação pode ser
resumido como sendo a proclamação e explicação do tempo escatológico da salva-
ção que teve início com o advento, a morte e a ressurreição de Cristo. E desse ponto
de vista principal e sob esse denominador que todos os temas separados da pregação
de Paulo podem ser compreendidos e sondados em sua unidade e na relação que
possuem uns com os outros (RIDDERBOS, 2013, p. 47).

O contexto das afirmações de Ridderbos sobre o que ele chama de “ponto de partida
escatológico ou histórico-redentor”, são páginas dedicadas a reconstruir brevemente o estado da
questão paulina na teologia moderna e contemporânea. Começando com o hegelianismo da Escola

todos os que em Roma são amados de Deus e chamados para serem santos: A vocês, graça e paz da parte de Deus nosso
Pai e do Senhor Jesus Cristo” (Romanos 1.1-7).
103
Antes de iniciar as jornadas, propriamente ditas, Agamben deixa claro o tema e as perguntas com que se ocupará: “o
nosso seminário não se propõe enfrentar o problema cristológico, mas, mais modesta e mais filosoficamente,
compreender o significado da palavra christós, ou seja, ‘messias’. O que significa viver no messias, o que é a vida
messiânica? E qual é a estrutura do tempo messiânico? Essas perguntas, que são as perguntas de Paulo, devem ser
também as nossas” (AGAMBEN, 2016, p. 30).
148
de Tübingen de F. C. Baur — alguém que, com certeza, Nietzsche estava em diálogo crítico —,
passando pelas tradicionais interpretações liberais e a abordagem da história das religiões,
Ridderbos terminar mostrando que nem mesmo a interpretação escatológica de Albert Schweitzer
conseguiu ser feliz em estabelecer um fio de ouro para a leitura dos diversos temas presentes nas
epístolas Paulinas (cf. RIDDERBOS, 2013, p. 11-29). Apesar de desenvolvimentos e retrocessos
terem sucedido esse percurso interpretativo da obra de Paulo, o que fica claro para o teólogo
holandês é que: “não é possível citar aqui uma escola específica de investigação, mas sim, um grupo
abrangente de intérpretes altamente diferenciados entre si, que nunca entendera o evangelho paulino
dentro de seu sentido e teor original”, tudo isso, “sem submeter seu conteúdo a um princípio
hermenêutico determinado” (RIDDERBOS, 2013, p. 39). É justamente nesse contexto que a
interpretação histórico-redentora que tanto Ridderbos quanto o teólogo luterano Oscar Culmann
sustentam, que procura oferecer uma contraposição às importâncias unilaterais atribuídas aos
escritos de Paulo. Agamben se insere precisamente nesse mesmo esforço, não só de encontrar um
tema unificador, como também de identificar na estrutura histórico-escatológica da pregação de
Paulo o núcleo de acesso ao seu pensamento.
Tendo em vista as possibilidades de diálogo entre os esforços agambenianos e a
recomendação do especialista na teologia de Paulo, para os interesses da presente seção, portanto,
vamos começar pela quarta jornada do livro, em que Agamben destaca na apresentação do apóstolo
Paulo justamente o vocábulo “apóstolo”. Para o filósofo italiano, o significado pode ser
depreendido da própria palavra: a junção da preposição apo com o verbo stéllō, que significa
literalmente “enviado da parte de”. Ou seja, para Agamben o significado desta função está claro: “o
apóstolo é um enviado, neste caso, não por homens, mas do messias Jesus e da vontade de Deus,
para o anúncio messiânico” (AGAMBEN, 2016, p. 77). Além disso, o que também está em jogo,
mas não fica tão evidente a nós, é o fato de que a noção correspondente em hebraico para apóstolo é
um conceito essencialmente jurídico. No termo al šaliah se aplicava uma máxima rabínica que tinha
seu correspondente também no mundo romano: “‘o enviado de um homem é como o próprio
homem’ (os efeitos do ato do mandatário recaem sobre o mandante). Esta figura originalmente
jurídica adquiriu no judaísmo um significado religioso” (AGAMBEN, 2016, p. 77). No caso do
apóstolo Paulo fica claro que ele se compreendida como um enviado do próprio messias – fazendo
com que seus atos assumissem a mesma força messiânica.
Diante desta apresentação de si mesmo, Agamben introduz uma pergunta importante para
compreendermos a dimensão do que está envolvido na função de apóstolo: “por que Paulo se define
como apóstolo e não, por exemplo, como profeta? Qual é a diferença entre apóstolo e profeta?”
(AGAMBEN, 2016, p. 78). Esta pergunta não é sem sentido, uma vez que a figura do profeta, tanto

149
no judaísmo, quanto na história das ideias filosóficas, ocupa um lugar muito mais importante que o
apóstolo. Citando Aby Warburg, Agamben lembra que Nietzsche e Burckhardt podem ser vistos
como tipos diferentes de profetas na modernidade – “o primeiro orientado para o futuro e o segundo
ao passado” (AGAMBEN, 2016, p. 78). Ademais, também somos lembrados que em seu último
curso ministrado no Collège de France, Michel Foucault apresenta o profeta como um daqueles que
se ocupam com a prática do dizer verdadeiro – junto ao sábio, ao professor e ao parresiasta
propriamente dito (cf. FOUCAULT, 2011, p. 15-16). Contudo, à revelia desta presença na história
das ideias, o interesse de Agamben pelo fato de que Paulo apresenta-se como apóstolo e não como
profeta está na razão que diferencia o profeta do apóstolo. Trata-se de uma diferença na concepção
de tempo que movimenta estes dois ofícios. O próprio Foucault percebe este fato ao dizer: “o
profeta se situa numa posição de intermediário, neste outro sentido de que se situa entre o presente e
o futuro. É aquele que desvela o que o tempo esconde dos homens e que nenhum olhar humano
poderia ver” (FOUCAULT, 2011, p. 15). Isto acontece porque a proclamação profética no judaísmo
104
era feita para anunciar a vinda futura do messias. Por isso que Foucault mostra que eles se
encontravam em uma relação intermediaria entre o presente e o futuro, vendo aquilo que os
humanos não podiam ainda ver. Como bem resume Agamben:

Seja qual for o modo de entender esse fechamento, o profeta é, essencialmente,


definido pela sua relação com o futuro. Em Sl 74.9 lê-se: “não vimos mais os sinais;
não havia mais um único profeta, não havia mais ninguém que soubesse até
quando”. “Até quando”: todas as vezes que os profetas anunciam o advento do
messias, o anúncio concerne sempre a um tempo por vir, ainda não presente. Nisso
consiste a diferença entre o profeta e o apóstolo. O apóstolo fala a Artur da vinda do
messias. Nesse momento, a profecia deve silenciar: ela está, agora, realmente
realizada (esse é o sentido de sua tensão íntima voltada para um fechamento). A
palavra passa ao apóstolo, ao enviado do messias, com o tempo não é mais o futuro,
mas o presente. Por isso, a expressão técnica para o evento messiânico é em Paulo:
ho nyn kairós, “o tempo de agora”; por isso, Paulo é um apóstolo, e não um profeta
(AGAMBEN, 2016, p. 79).

104
O teólogo e especialista na história do desenvolvimento religioso de Israel, Geerhardus Vos, nos ajuda a
compreender a relação entre o profetismo hebreu e o messianismo a partir do tema do reino de Deus: “Nos dias de
Samuel, esse movimento começou; ele encontrou corpo provisório no reinado de Saul, mas não foi consolidado sob
uma base firme até a ascensão de Davi. Daqui por diante, a ideia desse reino permanece central na esperança de Israel.
Esse reino humano, contudo, é somente uma representação do reino do próprio Yahweh. Inicialmente, quando o povo
pediu por um rei, Yahweh desaprovou o espírito não-teocrático no qual a solicitação foi feita, e declarou como sendo o
equivalente a rejeitá-lo. Não obstante, o desejo foi concedido, obviamente a fim de que, por meio da conduta errada do
ofício de Saul, seu conceito verdadeiro pudesse ser ensinado mais claramente. Essa foi também a razão pela qual, por
tão longo tempo, durante o período de Josué e dos juizes, a instituição do reino foi mantida em suspenso. Somente dessa
forma dupla - primeiro negando um rei, em seguida permitindo um tipo errado de rei - o ideal do rei segundo o coração
de Yahweh havia sido cuidadosamente inculcado e aquilo que é permanente chegou. O reino é, em seu propósito, um
instrumento de redenção bem como de materialização da bem-aventurança de Israel. As expectativas messiânicas se
anexam a ela. É um erro grave conceber o reino como algo que se sucedeu acidentalmente, e tolerado meramente por
um tempo à custa da democracia. A coisa era por demais grande e profunda para ter algo de não-essencial e dispensável
a seu respeito. Ela atinge, por meio do reinado de Cristo, o apogeu e perfeição da religião bíblica” (VOS, 2011, p. 227-
228).
150
Diante dessa diferenciação, podemos compreender a intenção agambeniana de fazer
referência à função de “apóstolo” em Paulo: a noção de temporalidade pressuposta na função
apostólica é importante porque nos ajuda a pensar a vida vivida no messias – na qual a vida sem
forma e as formas sem vida coincidem em uma forma de vida. Neste sentido, o presente tópico se
insere no contexto maior de nossa tese, sobre a necessária atitude de se viver no tempo que resta, e
que tem possibilidades de desarticular a krisis infinita que opera na gestão pública no Ocidente.
Neste intuito, uma das primeiras diferenciações que precisa ser feita a respeito da noção de
temporalidade messiânica é em relação ao tempo apocalíptico. Agamben é enfático em nos mostrar
que o tempo messiânico não pode ser confundido com o fim do tempo – o apocalíptico. Isto porque,
“o apocalíptico se situa no último dia, e no dia da cólera [final]: ele vê o cumprimento do fim e
descreve o que vê” (AGAMBEN, 2016, p. 80). Por outro lado, o tempo messiânico em que vive o
apóstolo não é o dia final dos tempos, referente às coisas últimas do dia do juízo final em que mais
nada é possível. Mas antes, trata-se do tempo do fim referente às coisas penúltimas e, por isso, o
tempo que resta. Justamente por isso que: “o que interessa ao apóstolo não é o último dia, não é o
instante em que o tempo acaba, mas o tempo que se contrai e começa a se acabar [...], ou se
preferirem, o tempo que resta entre o tempo e o seu sim” (AGAMBEN, 2016, p. 80). Seguindo a
sugestão do filósofo italiano Gianni Carchia, o messiânico é o tempo do fim. 105
Nessa altura, é importante colocarmos aqui algumas explicações mais técnicas do
significado dessa ênfase temporal do messiânismo. Novamente, quem nos ajuda é Ridderbos ao
explicar que toda a discussão significa entender: “até que ponto Paulo compreende o advento e a
obra de Cristo como revelação da atividade realizadora de Deus na História e como o começo de
um grande tipo de salvação” (RIDDERBOS, 2013, p. 47-48). Algo que facilita muitíssimo
entendermos a natureza desse tempo histórico-escatológico, em diferenciação aguda com o tempo
apocalíptico, é o termo técnico “plenitude do tempo” [pléroma tou kairoí], que Paulo usa várias
vezes e Agamben se apropria para seus raciocínios. Segundo Ridderbos, “com ‘plenitude dos
tempos’ não está se falando, apenas, da maturação de uma determinada questão dentro da grande
estrutura da história redentora, mas do cumprimento do tempo num sentido absoluto”, ou seja, o
messianismo articulado por Paulo é uma forma de anunciar que “o tempo do mundo chegou a uma
conclusão com o advento de Cristo. Independentemente do quanto esse cumprimento do tempo
ainda traz em si um caráter provisório e perfectum é seguido mais uma vez de um futurum”

105
O professor Giacoia Jr. comenta esse argumento de Agamben dizendo o seguinte: “o tempo messiânico não é tempo
histórico nem eternidade, mas sim o afastamento e a distância que os divide, pois o tempo messiânico é o tempo
kairótico, e não o tempo cronológico, não um télos que põe fim à história, ao ‘tempo-de-agora’. As testemunhas não são
nem os mortos nem os vivos que sobreviveram, nem os submersos, nem os salvos, mas aquilo que resta entre eles. Nem
o tempo da profecia, que se volta para o futuro; o eschaton, o dia do juízo final. O messiânico não é o final do tempo,
mas o tempo do fim, não é o instante em que o tempo acaba, mas o tempo que se contrai e começa a acabar” (GIACOIA
JR., p. 2018, p. 89).
151
(RIDDERBOS, 2013, p. 48). É essa estrutura temporal de plenitude dos tempos, que produz um
resto, que está por trás de todas as afirmações de Paulo. Ou seja, todo o pronunciamento do apóstolo
“não é apenas o princípio de uma nova vida, no sentido espiritual e ético do mundo”, mas, acima de
tudo, “a renovação do homem integral, na totalidade das funções e potencialidades de sua existência
e de todo o cosmo, assim como Cristo, também, tem uma posição proeminente nas pregações de
Paulo” (RIDDERBOS, 2016, p. 39). Será exatamente por essa forma de passar a enxergar a história
após o acontecimento-messias que Agamben defenderá que nossas representações do tempo
messiânico não podem seguir o modelo daquelas guiadas pelo tempo apocaliptico. Ou ainda, nas
suas palavras: “por isso a representação comum que vê o tempo messiânico como orientado
univocamente para o futuro é falsa. […] ho nyn kairós é uma contração de passado e presente, que,
na instancia decisiva, é antes de tudo com o passado que devemos acertas as contas” (AGAMBEN,
2016, p. 95).
Esta diferenciação entre o tempo messiânico e o tempo apocalíptico não se refere a uma
particularidade teológica sem importância. Conforme mencionamos no início do presente capítulo,
nos vários esforços contemporâneos de recuperar o pensamento teológico como ferramenta de
oxigenação da filosofia política, alguns autores optaram por concepções diferentes de tempo que
comprometem todo o seu raciocínio. Para citarmos um exemplo que se encaixa perfeitamente na
diferenciação entre tempo messiânico e apocalíptico que Agamben menciona, podemos nos lembrar
novamente de Slavoj Žižek. Em um dos seus livros, Vivendo no fim dos tempos (2010), o filósofo
desenvolve a tese de que: “estamos em termos históricos, nos ‘tempos interessantes’, [que sempre]
foram períodos de inquietação, guerra e luta pelo poder em que milhões de inocentes sofrem as
consequências” (ŽIŽEK, 2012, p. 291). Ou seja, estamos vivendo no fim dos tempos, de um ponto
de vista histórico-social, em que se aproxima um ponto zero apocalíptico. Para o filósofo esloveno,
“seus ‘quatro cavaleiros do Apocalipse’ são a crise ecológica, as consequências da revolução
biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema”, isto é, “(problemas de propriedade intelectual, a
luta vindoura por matéria-prima, comida e água) e o crescimento explosivo das divisões e exclusões
sociais” (ŽIŽEK, 2012, p. 11-12). Contudo, algo com que Žižek conclui seu texto a respeito de uma
característica de viver em tempos assim, é que:

Nossa situação, portanto, é diametralmente oposta à dificuldades clássica do século


XX, em que a esquerda sabia o que tinha de fazer (fundar a ditadura do proletariado,
etc.), mas precisava esperar com paciência até que surgisse a oportunidade. Hoje,
não sabemos o que fazer, mas temos que agir agora, porque as consequências da
inação podem ser catastróficas. Temos de nos aventurar no abismo do novo em
condições totalmente inadequadas; temos de reinventar aspectos do novo apenas
para manter o que era bom no velho (educação, assistência médica, etc.). [...] Em
resumo, nossa época pode ser caracterizada do mesmo modo como Stalin
caracterizou a bomba atômica: não é para quem tem nervos fracos. O comunismo,
hoje, não é o nome da solução, mas o nome do problema: o problema das áreas

152
comuns em todas as suas dimensões [...] Seja qual for a solução, ela terá de resolver
esse problema (ŽIŽEK, 2012, p. 362).

O que fica claro neste raciocínio de Žižek é que, embora a situação planetária não possa
continuar como está, pouco se pode retirar das antigas tradições de pensamento político que tem
poder reduzido de desencadear algo de novo no cenário público. Neste sentido, quem ergue para si a
incumbência de responder as questões contemporâneas precisará dar conta de problemas desta
natureza. Neste horizonte, prevalece uma constatação que Agamben adianta em sua filosofia,
conforme argumentamos no primeiro capítulo: a concepção de que os problemas estruturais de
nosso tempo, os quatro cavaleiros do apocalipse de Žižek, apontam para uma concepção temporal
de fim da história pela perpetuação infinita da crise ocidental. Poderíamos dizer que esses dois
elementos — crises indefinidas e temporalidade apocalíptica — se completam e retroalimentam
gerando aquele estado de crise permanente que nunca dá lugar a uma krisis efetiva.
Precisamente contra concepções teológico-políticas como essas que Agamben se coloca,
conforme podemos constatar no ato de opor a temporalidade messiânica à apocalíptica. Com isso,
ele está se inserido em um esforço maior no interior da história da filosofia. Trata-se da descoberta
moderna de um lugar privilegiado na concepção de tempo que não flui e transcorre
indeterminadamente, mas que encontra toda a sua potencialidade no momento, este encarado como
o lugar no tempo carregado de potencialidades. Quanto a isso, sabemos que foram vários os
esforços filosóficos para se pensar esta ruptura com a imagem progressiva do tempo. Podemos nos
lembrar do “momento da decisão” de Carl Schmitt, bem como o “momento messiânico” que
também existe em toda a filosofia da história de Walter Benjamin. Mas poderíamos recordar
também de Ernst Bloch com o “o momento de decisão”, de Paul Tillich com o seu “kairós” e
mesmo de Heidegger com seu momento enquanto “possibilidade fundamental da existência do
106
dasein”. A afirmação de uma filosofia que tem uma concepção temporal que rompe com uma
imagem do tempo progredindo indefinidamente, diz respeito precisamente aos esforços contra essa
gestão pública despolitizada. Por tudo isto, no projeto agambeniano de se pensar antagonismos
fortes o suficiente para desarticular a gestão infinita da população, necessariamente precisaremos

106
É o biógrafo e comentador da obra heideggeriana, Rüdiger Safranski que nos lembra de todos estes exemplos e que
nos mostra que: “contra o plano e-assim-por-diante da estabilidade burguesa, está o prazer forte de uma infinitude
intensa – no momento” (SAFRANSKI, 2000, p. 215). Tal percepção de Safranski está em estreito acordo com a crítica a
uma forma temporal característica que alimenta as iniciativas da governamentalidade infinita contemporânea. Quem
também nos ilumina a respeito da relação entre Heidegger e Agamben, por exemplo, no que diz respeito às
continuidades e descontinuidades da avaliação de chronos e kairos é Ezra Delahaye quando explica que: “para
Heidegger, a estrutura subjacente da relação entre kairos e chronos é uma oposição entre continuidade e
descontinuidade. A cronologia como concepção linear e homogênea do tempo vê uma continuidade entre cada
momento e o próximo. O tempo pressiona de forma gradual e consistente. A kairologia é uma descontinuidade nessa
ideia de tempo. O momento kairológico quebra a progressão linear do tempo e torna impossível compreendê-lo de
maneira homogênea. O tempo kairológico acontece dentro e quebra o tempo cronológico” (DELAHAYE, 2016, p. 91).

153
nos valer de uma temporalidade à semelhança do tempo que resta — uma temporalidade
messiânica. Igualmente é fato que, quando Žižek opta pela concepção apocalíptica do tempo,
acompanhada pela necessidade de se compreender o que precisa ser feito na atualidade, ele
comprometeu desde o início sua postura de ação política. 107
Além disso, Safranski sustenta que foi Søren Kierkegaard o pai da ideia de fraturar a
temporalidade indefinida através do mistério do momento. O momento kierkegaardiano diz respeito
à ocasião em que Deus irrompe a vida do indivíduo e este se sente chamado para uma decisão
pessoal por Cristo e, então, pode ousar o salto na fé (cf. SAFRANSKI, 2000, p. 215). Será
precisamente por isso que Carl Schmitt, quando constrói sua teoria sobre a soberania alicerçada no
conceito de decisão, faz referência ao fato de que “um teólogo protestante, no século XIX, provou
de que intensidade vital a reflexão teológica pode ser capaz” (SCHMITT, 2006, p. 15). Precisamos
considerar, contudo, a despeito da argumentação de Safranski, que não foi Kierkegaard o primeiro a
explorar as dimensões de uma concepção de tempo não linear. Na verdade, o filósofo dinamarquês
só foi capaz de fazer isto por estar em contanto com o pensamento do apóstolo Paulo. Nele
encontramos uma articulação paradigmática de uma ruptura, tanto com a temporalidade cíclica dos
gregos, quanto à linearidade indefinida da historiografia profana e burguesa. O próprio Heidegger
reconhece tal feito da obra paulina, e atribuiu justamente a este fato o principal valor da fé cristã na
história das ideias. Assim como Heidegger tentou ancorar na temporalidade histórica a sua analítica
existencial do dasein, Paulo também se esforçou em lançar os cristãos em uma compreensão
incontornável de tempo. Nas palavras do filósofo alemão: “a religiosidade cristã originária consiste
na experiência cristã originária da vida e ela mesma é um tal; a experiência fática da vida é
histórica. A religiosidade cristã vive a temporalidade como tal” (HEIDEGGER, 2010, p. 72).
Dizer, contudo, que Paulo fez esta modificação temporal não é o suficiente para os nossos
propósitos de entendermos como tais noções contribuem para as dificuldades típicas que emergiram
da gestão pública contemporânea. Agamben ocupa-se com este “como” se perguntando pelo modo
que podemos representar este tempo que resta. De maneira esquemática ele coloca nos seguintes
termos:

Aparentemente as coisas são simples: há, em primeiro lugar, o tempo profano – ao


qual Paulo se refere geralmente com o termo chronos – que vai da criação até o
evento messiânico (que, para o apóstolo Paulo, não é o nascimento de Jesus, mas sua
ressurreição). Aí o tempo se contrai e começa a acabar-se: mas este tempo é
contraído – ao qual Paulo se refere com a expressão ho nyn kairós, “o tempo de
agora” – dura até a parousia, a presença plena do messias, que coincide com o dia
da cólera e com o final do tempo (que resta indeterminado, mesmo se eminente).

107Agamben menciona também o projeto de Hans Blumenberg e Karl Löwith que está registrado em História do
mundo e história da salvação (1953) como um exemplo comprometido, justamente porque confunde o tempo
messiânico com o tempo apocalíptico (cf. AGAMBEN, 2016, p. 81).
154
Aqui o tempo explode — ou antes, implode, em outro éon, na eternidade
(AGAMBEN, 2016, p. 81).

Para compreendermos exatamente toda a extensão desta noção de tempo que Agamben
recupera do pensamento de Paulo, vamos nos valer agora dos comentários de Oscar Culmann – o
teólogo luterano que renovou as investigações sobre o tempo e sobre a história do Novo
108
Testamento, influenciando toda a teologia e a filosofia contemporânea. Segundo Culmann, ao
contrário do que tradicionalmente se pensou, a noção de tempo presente no Novo Testamento não é
a de que, com o advento do Messias, a história chegou ao seu fim. Tal leitura apocalíptica do Novo
Testamento foi muito difundida por Rudolf Bultmann. Segundo o teólogo alemão, “fica claro,
porém, que Jesus tem a seguinte certeza: o presente éon chegou ao fim. O resumo de sua pregação
está na palavra ‘cumpriu-se o tempo e o reino de Deus está próximo’” (BULTMANN, 2008, p. 42).
A reviravolta nos estudos neotestamentários operada por Culmann se refere justamente ao
questionamento desta imagem apocalíptica da história e do tempo no Novo Testamento. Segundo os
raciocínios de Culmann: “é evidente que eu mantenho que, para Jesus, o tempo anterior à parousia
prossegue ainda após o retorno, e mesmo para além de sua morte, mesmo que não se trate senão de
um lapso de tempo muito reduzido” (CULMANN, 2003, p. 37). Ou seja, em vez de enxergar no
acontecimento-messias o fim da história e do tempo, Culmann mostra que na verdade temos uma
redução do tempo linear entre a morte e a ressurreição do messias — uma abreviação, como
Agamben gosta de dizer. O tempo não termina, mas é contraído entre estes dois momentos do
mesmo acontecimento messiânico, produzindo assim um tempo que resta, que, segundo a
terminologia criada por Culmann: “funda-se claramente a tensão entre o ‘já’ e o ‘ainda não’ que
caracteriza toda a história da salvação no Novo Testamento. [...] A ruptura decisiva permanece a
mesma sendo o lapso de tempo que resta curto ou longo” (CULMANN, 2003, p. 37). 109
Esta é, portanto, a estrutura temporal presente no pensamento do apóstolo Paulo que
Agamben busca recuperar o que seria um dos modos (o temporal) da chamada vida no messias.

108
Ridderbos comenta o que é tão explicito no ganho que Culmann trouxe ao estudo do Novo Testamento: “essa
interpretação histórico-redentora (como foi expressa de maneira bastante representativa, por exemplo, na obra Christ
and Time, de O. Culmann) é marcada por uma forte ênfase sobre o elemento de seu cumprimento tanto na pregação de
Jesus como na de Paulo. Desse modo, essa interpretação oferece uma poderosa contraposição à importância unilateral
atribuída pela chamada escatologia coerente ao Naherwartung no Novo Testamento e aponta constante para o fato de
que a igreja primitiva, justamente por causa dessa consciência do cumprimento, não ter se desestruturado quando sua
expectativa de que o Senhor voltaria em breve não foi preenchida” (RIDDERBOS, 2013, p. 39).
109
Quanto a essa tensão entre o “já” e o “ainda não”, Agamben não só a reconhece como também a subscreve
comentando o seguinte: “analisemos, agora mais de perto, a estrutura do tempo messiânico em Paulo. Como se sabe,
Paulo decompõe o evento messiânico em dois tempos: a ressurreição e a parousia, a segunda vinda de Jesus no fim do
tempo. Daí a tensão paradoxal entre um já e um ainda não que define a concepção paulina de salvação: o evento
messiânico já aconteceu, a salvação já foi realizada para os crentes e, todavia, ela implica, para realizar-se realmente um
tempo ulterior” (AGAMBEN, 2016, p. 87).

155
Segundo o filósofo italiano: “o tempo messiânico — ho nyn kairós — não coincide nem com o fim
do tempo e com o éon futuro, nem com o tempo cronológico profano, sem, porém, ser exterior em
relação a esse último”, diferentemente de ambos, o tempo messiânico é, na verdade, “uma parte do
tempo profano, que sofre uma contração que transforma integralmente” (AGAMBEN, 2016, p. 82).
Conforme mostramos no início dessa seção, na teologia contemporânea, essa transformação integral
recebe o nome técnico de estrutura histórico-redentivo ou escatológico. Histórica porque, segundo
Cullmann, “não há lugar aqui para especulações acerca de Deus, independentes do tempo e da
História” (CULLMANN, 2008, p. 101). Redentivo porque, segundo explica Ridderbos: “o que
aconteceu em Cristo constitui o término e o cumprimento da grande série de atos redentores divinos
na história de Israel e a pressuposição do progresso e da consumação da história do mundo”
(RIDDERBOS, 2013, p. 52). E por fim, escatológico, em primeiro lugar, porque não é apocalíptica,
ou seja, não se trata do fim do tempo, mas do tempo do fim, dos dias que restam entre a morte e a
segunda vinda do messias. Em segundo porque, conforme o próprio Agamben reconhece, este
tempo que resta, mesmo não sendo o fim da história, é “o mais maduro, o único e verdadeiro
110
pleroma [plenitude] dos tempos” (AGAMBEN, 2013b, p. 102). Tal tempo é o mais maduro da
história, bem como o mais cheio de potencialidades, justamente porque é o tempo do fim, o
momento que antecede o acabamento da história pelo retorno do messias. Não haveria sentido dizer
que o apocalíptico seria a plenitude dos tempos porque este, na verdade, é o fim dos tempos. O
tempo que resta, ao contrário, é aquele lugar da história que se mostra mais carregado de
potencialidade precisamente porque será nele que a presente ordem do mundo começará a ser
desarticulada, ou ainda, como coloca Agamben no parágrafo anteriormente citado, este tempo se
contrai e começa a acabar-se, implodindo em outro éon. Vale ressaltar, entretanto, que apesar dessa
transformação radical que inicia uma implosão rumo a outro éon, o filósofo italiano reitera que: “o
mundo messiânico não é um outro mundo, mas é esse mesmo mundo profano com um pequeno
deslocamento, uma ínfima diferença. Mas essa pequena diferença”, que Agamben argumenta ser
fruto da consciência da desconexão com o tempo cronológico daqueles que vivem o tempo do fim,
“é em todos os sentidos decisiva” (AGAMBEN, 2016, p. 87).
Neste sentido, após esta longa reconstrução terminológica, temos melhores condições de
compreendermos a definição preliminar que Agamben nos fornece a respeito do tempo messiânico

110
Quanto a esse tema, Ridderbos explora um pouco mais o texto paulino para nos auxiliar na compreensão de seu
raciocínio: “Em Gálatas 4.4. é mencionado pléróma tou chronou, isto é, a plenitude do tempo em toda a sua extensão,
como tempo do mundo. Em Efésios 1.10, trata-se de pléróma tón keirón, ou seja, o cumprimento de todas as
intervenções e mudanças histórico-redentoras anteriores na extensão do tempo. […] De acordo com Tt 1.2-3 onde se
fala da esperança da vida eterna, que o Deus verdadeiro prometeu antes dos tempos eternos, mas revelou a seu próprio
tempo (kairois idiois). A mesma expressão pode ser encontrada em 1Timóteo 2.6; 6.15. Pode-se entendê-la como
sinônimo de pléróma tou chronou ou tón kairón. Os adjetivos idoso refere-se ao que é apropriado, devido, correto, que
exatamente, como pléróma, encontra sua determinação no conselho de Deus” (RIDDERBOS, 2013, p. 88-89).
156
e como esta concepção pode nos ajudar a pensar contracondutas à infinita gestão pública da
população. Nas palavras de Agamben:

Podemos, então, propor uma primeira definição do tempo messiânico: ele é o tempo
que o tempo leva para acabar – ou, mais exatamente, o tempo que empregamos para
fazer acabar, para concluir nossa representação do tempo. Ele não é nem a linha –
representável, mas impensável – do tempo cronológico; nem um instante –
igualmente impensável – do seu fim; mas não é tampouco simplesmente um
segmento extraído do tempo cronológico, que vai da ressurreição até o fim do
tempo: é, antes, o tempo operativo que urge no tempo cronológico, e o trabalha e o
transforma a partir do interior, tempo do qual precisamos para fazer findar o tempo
— nesse sentido, o tempo que resta (AGAMBEN, 2006, p. 72-73).

Com esta definição, pelos menos duas coisas ficam claras em nossa reconstrução do
argumento sobre a importância política do tema do tempo messiânico. Primeiro que a decomposição
do acontecimento messiânico em dois tempos, o da ressurreição e da parousia, coloca a
temporalidade que resta em uma tensão constituinte. Quanto a isto, Agamben menciona Gershom
Scholem, “que representa um ponto de vista bastante difundido no judaísmo”, para nos mostrar que:
“a antinomia messiânica define-se com uma ‘vida vivida no diferimento’ (Leben im Aufschub), na
qual nada pode ser levada a cabo” (AGAMBEN, 2016, p. 87). Em outras palavras, nesta
temporalidade que nos foi dada para realizar a conclusão de toda a história, o que nos resta não é
fazermos algo de novo, mas adiantarmos a inoperosidade de todas as coisas. Trata-se daquela
modificação fundamental anunciada por Agamben ao final de La comunità che viene sobre a
filosofia que vem: a pergunta decisiva não é “o que fazer?”, mas “como fazer?”, isto é, uma
operação na qual o como substitui integralmente o que, na qual a vida sem forma e as formas sem
111
vida coincidem em uma forma de vida. Nesse ponto, encontra-se um perigo que o filósofo
italiano nos alerta que serve a muitos esforços de perpetuação infinita do estado de crise não efetiva
em nossos dias. Segundo Agamben, encarar o tempo messiânico como uma espécie de tempo de

111
Ao final da obra La comunità che viene, Agamben anexa um pequeno texto escrito como posfácio, mas que também
parece endereçar-se para a revista filosófica francesa Tiqqun. O texto data de 2001, portanto, um ano após a publicação
dos seminários do filósofo italiano sobre o apóstolo Paulo. Isso faz com que os temas apresentados em La comunità che
viene se conectem muito harmonicamente com os raciocínios sobre Paulo de Agamben. Um trecho importante para
nossa argumentação é o seguinte: “o tempo presente, como tempo que vem depois do último dia, como tempo em que
nada pode ocorrer porque o novíssimo está ainda em curso, lhe parece mais maduro, o único verdadeiro pleroma dos
tempos. O próprio de um tal tempo — do nosso tempo — é que, em um certo momento, todos — todos os povos e todos
os homens da terra — se encontraram em posição de resto. Isso implica, olhando bem, uma generalização sem
precedentes da condição messiânica, na qual o que era, de início, apenas uma hipótese — a ausência de obra, a
singularidade qualquer, o bloom — se tornou realidade. Precisamente porque era dirigido a esse não-sujeito, a essa
‘vida sem forma’e a esse shabbath do homem — ou seja, a um público que por definição não podia recebê-lo — pode-
se diz que o livro não falhou em seu objetivo e não perdeu, portanto, nada da sua inatualidade… Não o trabalho, mas a
inoperosidade e a descriação são, nesse sentido, o paradigma da política que vem (que vem não significa futura). A
redenção, o tique que está em questão no livro, não é uma obra, mas uma espécie particular de férias sabáticas. Ela é o
insalvável, que torna possível a salvação, que deixa advir a redenção. Por isso, no livro, a pergunta decisiva não é ‘o que
fazer?’, mas ‘como fazer?’, e o ser é menos importante do que o assim. Inoperosidade não significa inércia, mas
katargesis — isto é, uma operação na qual o como substitui integralmente o que, na qual a vida sem forma e as formas
sem vida coincidem em uma forma de vida” (AGAMBEN, 2013b, p. 102-103).
157
transição entre dois períodos — entre o antigo éon e novo — pode dar lugar a seguinte estrutura
temporal: “o risco é, aqui, uma dilatação de algum modo implícita no próprio conceito de ‘tempo de
transição’, que, como toda transição, tende a prolongar-se ao infinito e a tornar, assim, inapreensível
aquele fim que ele deveria, ao contrário, produzir” (AGAMBEN, 2016, p. 87). Sendo assim, o
estado de krisis suspensa que a política ocidental vive alimenta-se, precisamente, de uma estrutura
temporal de transição que se prolonga indefinidamente e torna impossível produzir aquele fim ao
qual se destina. A temporalidade messiânica é exatamente o contrário e essa é sua importância para
o atual cenário governamental.
Tudo isto, aponta para o segundo aspecto que fica evidente na definição do tempo
messiânico supracitada. Trata-se do significado da parousia messiânica. Ainda que a teologia cristã
tenha tradicionalmente utilizado este termo para se referir apenas à segunda vinda do messias,
Agamben nos mostra que pasousia no grego indica simplesmente “presença” – literalmente a
preposição “para” somada a “ousia” que literalmente significa: “ao lado de, junto de...”. Desta
forma, Agamben infere que: “a presença messiânica está ao lado de si mesma, porque, sem nunca
coincidir com um instante cronológico e sem se acrescentar a ele, no entanto, o apreende e o leva a
partir do seu interior ao seu acabamento” (AGAMBEN, 2016, p. 88). Sendo assim, a decomposição
paulina da presença messiânica em dois momentos – a ressurreição e a parousia – se assemelha
muito à estrutura messiânica que Franz Kafka apresenta quando nos diz que: “o messias não chega
no dia da sua vinda, mas somente em um dia depois, não no último dia, mas no ultíssimo” (KAFKA
apud AGAMBEN, 2016, p. 89). Essa estrutura fundamental também está muito próxima de uma
imagem oriunda do pensamento de Walter Benjamin, a saber, de que “cada segundo era a porta
estreita por onde podia entrar o Messias” (BENJAMIN, 2012b, p. 20). Esta porta não é a história,
não é o último dia, mas o ultíssimo, ou seja, o fim da história.
Essa estrutura temporal articulada por Agamben é fundamental para a imaginação de uma
nova postura política, uma vez que, para além de fazê-la apreensível, também nos devolve algo que
foi roubado na secularização da teologia na política. Diferentemente do que acontece na percepção
histórica hegeliano-marxista, em que este “momento” da revolução é um ideal prolongado para o
futuro indefinidamente, no “cada momento” do tempo messiânico (kairós) não temos um ideal, mas
112
uma porta histórica real por onde o tempo chegará ao seu fim. Esse é o motivo que levará

112
Quanto a isso, Agamben diz o seguinte: “A justa compreensão do problema do reino (como também do seu
equivalente secularizado, o problema marciano da fase de transição entre pré-história e história) depende do sentido que
se dá a esse ‘entre’. Isso significa que as interpretações milenaristas estão, ao mesmo tempo, certas e erradas. Erradas,
se pretendem identificar literalmente o reino messiânico com certo período de tempo cronológico situado entre a
parousía e o fim do tempo; certas, na medida em que o tempo messiânico em Paulo implica — como tempo operativo
— uma transformação atual da experiência do tempo, capaz de interromper aqui e agora o tempo profano. O reino não
coincide com nenhum dos instantes cronológicos, mas está entre eles, distendendo-os na para-ousia” (AGAMBEN,
2016, p. 90).

158
Agamben, em outra ocasião, a defender que: “não o trabalho, mas a inoperosidade e a descriação
são, nesse sentido, o paradigma da política que vem (que vem não significa futura). […] a pergunta
decisiva não é ‘o que fazer?’, mas ‘como fazer?’” (AGAMBEN, 2013b, p. 103). A sustentação de
tal postura política encontra-se na argumentação de que cada momento (kairoi) se relaciona com o
próprio messias, isto é, está ao lado dele, em sua presença (parousia), e não o de um processo —
que correria aquele risco já mencionado de perpetuar-se indefinidamente como um momento de
transição que nunca chegou. Em substituição a esse padrão de representação histórica na política,
Agamben sugere que:

Decisivo aqui é que o pléróma dos kairoí seja entendido como a relação de cada
instante com o messias — todo kairoí é unmittelbar zu Gott — e não — segundo o
modelo que Hegel deixará como herança para o marxismo — como resultado de um
processo. Como Ticônio havia intuído no capítulo “De recapitulatione”, das suas
Regulae, cada tempo é o “agora” messiânico (totum illud tempus diem vel horam
esse) e o messiânico não é o fim cronológico do tempo, mas o presente como
exigência de acabamento, como aquilo que se põe “a título de fim” (AGAMBEN,
2016, p. 94).

Nas palavras acima, além de antagonizar a estrutura temporal messiânica com suas versões
113
secularizadas em Hegel e Marx, Agamben, através de uma nova citação de Ticônio, também
introduz um tema teológico fundamental para compreendermos sua argumentação: a doutrina da
recapitulação [anakephalaíosis]. Somos informados nos manuais de teologia do Novo Testamento
que a doutrina da recapitulação diz respeito à esperança messiânica de que “a benção futura para
Israel e o mundo é a recapitulação da primeira criação, de modo que a salvação de Israel e das
nações é retratada como nova criação e saída da escuridão espiritual” (BEALE, 2019, p. 218). Isso
significa dizer que, no messias, as expectativas da comunidade judaica seriam restabelecidas, ou
seja, o messias recapitularia tudo aquilo que a humanidade foi alienada em sua queda no pecado e
forneceria um novo caminho para a restauração dessa primeira criação através da fé nele. A
passagem bíblica fundamental para essa doutrina é a carta de Paulo aos Efésios onde lemos o
seguinte: “[Deus] nos revelou o mistério da sua vontade, de acordo com o seu bom propósito que
ele estabeleceu em Cristo, isto é, de fazer convergir [anakephalaiōsasthai] em Cristo todas as coisas,
celestiais ou terrenas, na dispensação [oikonomian] da plenitude [plērōmatos] dos tempos [kairōn]”
(Efésios 1.9-10). Quanto a esse trecho, Agamben não poderia ser mais enfático do que quando

113
Nesse ponto, é importante ressaltar uma diferença de Agamben com alguns destacados filósofos que também usam e
comentam a sua obra, como Enrique Dussel e Franz Hinkelammert. Ambos acreditam ser possível estabelecer uma
relação estreita do pensamento de Paulo com Marx e a tradição marxista (DUSSEL, 2016, p. 32-40;
HINKELAMMERT, 2012, p. 10-12). É claro que essa relação também pode ser identificada com a filosofia de Walter
Benjamim que também se inscreve de alguma maneira na tradição marxista de uma forma própria — a qual Agamben
está em contínuo diálogo. Entretanto, no que diz respeito a temática da importância política do tempo messiânico, o
filósofo italiano se distancia de formas temporais tradicionais nos raciocínios hegeliano-marxistas.
159
comenta a força e a importância desse texto paulino, não só para sua própria argumentação, como
também para a filosofia como um todo:

esse versículo é realmente carregado de significado até o ponto de explodir, tão


carregado que se pode dizer que alguns textos fundamentais da cultura ocidental — a
doutrina da apocatástase em Orígenes e Leibniz, a da retomada em Kierkegaard, o
eterno retorno em Nietzsche e a repetição em Heidegger — não são senão fragmentos
resultantes da sua explosão. O que diz, aqui, Paulo? Que o tempo messiânico —
enquanto nele está em jogo o acabamento dos tempos (plērōma tōn kairōn — dos
kairoí e não dos chronoí! cf. Gl 4.4: plērōma tou chronou) — opera uma
recapitulação, uma espécie de abreviação em grandes linhas de todas as coisas, tanto
celestes quanto mundanas — isto é, de tudo o que aconteceu desde a criação até
chegar ao “agora" messiânico, da integralidade do passado. Ou seja, o tempo
messiânico é uma recapitulação sumária — também no sentido que o adjetivo tem na
expressão jurídica “julgamento sumário” — do passado. Essa recapitulação do
passado produz um plērōma, um preenchimento e um cumprimento dos kairoí (os
kairoí messiânicos são, portanto, literalmente plenos de chroros, mas de um chronos
sumário, abreviado) que antecipa o plērōma escatológico, quando “Deus será tudo em
todos”. O plērōma messiânico é, então, uma abreviação e uma antecipação do
cumprimento escatológico (AGAMBEN, 2016, p. 93).

Quando Agamben recorre tanto a ideia de recapitulação quanto de plenitude dos tempos para
explicar um pouco mais as características do tempo messiânico, sua intenção parece ser destacar
alguns pontos fundamentais. Primeiro, que o tempo messiânico não é um terceiro tempo entre dois
éons — o antigo e o novo. Agamben prefere dizer que se trata de uma abreviação, uma
recapitulação que introduz entre esses dois tempos um resto, uma zona de indiferença. Ou seja, nem
passado nem futuro, mas uma tensão entre eles, através da qual “o passado (o acabado) reencontra
atualidade e se torna inacabado e o presente (o inacabado) adquire uma espécie de completude”
(AGAMBEN, 2016, p. 92). Em segundo lugar, essa recapitulação produz o que ele chama de
plērōma, isto é, cada kairoí messiânico são preenchimentos que os fazem plenos de chronos. Isso
acontece por que cada instante está em relação com o messias, em cada momento da existência
vivida no tempo messiânico o messias está presente, e não enxergamos sua presença apenas em um
instante futuro prolongando indefinidamente sua vinda. Em outras palavras, a temporalidade
messiânica é uma contração de passado e presente que produz instantes decisivos através dos quais
o messias “está ao lado” (parousia).
Por isso o tema do “agora” nos escritos de Paulo assume uma característica essencial para a
114
temporalidade messiânica. Nas palavras do próprio apóstolo: “Com certeza vos afirmo que esse

114
Ridderbos comenta esse pormenor relacionando com outra ideia importante na teologia paulina que é a noção de
mistério: “Pela maneira em que esse termo [mistério] — certamente muito característico de Paulo — é usado, fica
aparente mais uma vez a natureza escatológica do conteúdo de sua pregação. Isso porque esse mistério refere-se ao
propósito de Deus tendo em vista a plenitude dos tempos (Ef 1.9,10). Em contraste com as expressões ‘outrora oculta’,
‘que estivera oculto dos séculos e das gerações’, etc., encontra-se sempre e de novo o ‘agora’ da revelação, o fim das
gerações de espera, a intervenção final de Deus de acordo com seu plano e promessa. O que é chamado aqui, com várias
nuanças, de revelação do mistério, não é outra coisa senão aquilo que é mostrado pela plenitude do tempo; é o
cumprimento da promessa escatológica de redenção nos tempos determinados para ela, seus ‘tempos devidos’, que é
160
é o momento propício [nyn kairos], agora é o dia da salvação!” (2 Coríntios 6.2). Tão somente essa
estrutura temporal de cumprimento messiânico é que possibilita os eventos do passado revestirem-
se de novo sentido, e que fornece condições de termos um conceito de história que faça justiça à
tradição dos oprimidos — como queria Walter Benjamin. O professor Giacoia Jr. reforça que:
“o anúncio messiânico dá-se nesse presente: é isso que Paulo de Tarso experimenta e anuncia aos
seus irmãos daquela contemporaneidade por excelência, que é o tempo messiânico, o ser
contemporâneo do Messias, que ele chama de ‘tempo de agora’” (GIACOIA JR., 2018, p. 210).
Portanto, em vez de lançar mão do fim do tempo como um resultado de um processo que parece
nunca acabar, o tempo messiânico ocupa-se com o tempo do fim, assumindo que cada indivíduo
pode apropriar-se do tempo que lhe resta para adiantar e abrir portas histórias pelas quais o Messias
pode entrar e levar à cume a História. Ou ainda, nas palavras de Agamben, “que não se trate apenas
de uma prefiguração, mas de uma constelação e quase de uma unidade entre os dois tempos, está
implícito na ideia de que todo o passado está, por assim dizer, contido sumariamente no presente”
(AGAMBEN, 2016, p. 94).
Antes de finalizarmos esse tópico, vale ainda dizer que apesar de termos nos ocupado
detidamente com o tema da temporalidade messiânica, fundamental para responder ao ocaso da
política ocidental pela gestão pública, ainda não foi falado sobre outra importante contribuição
paulina para pensar a desarticulação inoperosa daquele que é o principal dispositivo biopolítico
contemporâneo, a saber, a lei. Ainda que não seja uma associação óbvia, estas duas instâncias do
pensamento paulino recuperadas por Agamben estão em estreita continuidade. Na quinta jornada do
seu seminário dedicado à Epístola aos Romanos, Agamben chama nossa atenção para outra
característica na apresentação que Paulo faz de si: a de que ele foi “separado para o evangelho de
Deus [eis euaggelion theou]” (Romanos 1.1). Diferentemente do anúncio profético, que tem seu
lócus temporal no futuro, o evangelho, para o qual o apostolo Paulo foi separado (aphōrismenos),
chamado (klesis) e enviado (apostolos), tem sua operatividade no presente. Segundo a interpretação
de Agamben: “assim como o apóstolo se distingue do profeta, do mesmo modo a estrutura temporal
implícita no seu euaggélion distingue-se daquela da profecia. O anúncio não se refere a um
acontecimento no futuro, mas a um fato presente” (AGAMBEN, 2016, p. 108).
É necessário dizer que, no raciocínio de Paulo, esta referência ao presente significa mais do
que simplesmente uma mensagem dita agora – que fatalmente se tornará passado. Segundo
Agamben, valendo-se de uma definição de Orígenes, o evangelho é: “um discurso [logos] que

referido dessa maneira. Essa revelação do mistério é o verdadeiro conteúdo do evangelho de Paulo (Rm 16.26), o objeto
do ministério que foi confiado a ele (Cl 1.25, 26; cf. Ef 3.2). Assim, a própria pregação de Paulo é colocada dentro do
grande evento escatológico; é corretamente e no pleno sentido da palavra, kerygma do evangelho, ou seja, a anunciação,
a proclamação da vinda da salvação” (RIDDERBOS, 2013, p. 50).
161
contém para aquele que crê a presença [parousía] de um bem, ou um discurso que anuncia que um
bem esperado está presente [pareínai]” (AGAMBEN, 2016, p. 108). Neste sentido, o evangelho é
mais do que uma mensagem apresentada no tempo presente, antes, ela é uma mensagem que é
capaz de operar a presença (parousía) naquele que o escuta fazendo de cada instante um “agora" no
sentido escatológico de Paulo. Em outras palavras, ela presentifica e atualiza os seus ouvintes. Será
por este motivo que o filósofo argentino Fabián Ludueña Romandini sustentará que foram os
cristãos, muito antes de J. L. Austin ou J. Searle, que operaram na linguagem algo parecido com o
115
que conhecimento hoje como atos de fala. Agamben explica que os cristãos foram capazes de
fazer isso produzindo um discurso que não separava mais o conteúdo de sua forma. Ou seja, aquela
importante divisão do mundo grego que opera em toda a metafísica ocidental entre ato (energeia) e
116
potência (dynamis) é totalmente desarticulada pelo anúncio do evangelho. Isto porque, segundo
o próprio Paulo, este anúncio é realizado “segundo eficácia (energeia) do seu [do messias] poder
(tou dynasthai)” (Filipenses 3.21) – ou ainda, na tradução que Agamben fornece: “segundo um ato
de seu poder” (AGAMBEN, 2016, p. 109). Dessa forma, segundo o filósofo italiano, com a
proclamação da mensagem messiânica temos condições de criar uma zona de indiferença e
destituição de primeira grandeza para o cenário político contemporâneo. O nome desta zona de
indiferença que é criado com o anúncio do evangelho na teologia de Paulo é justamente a fé (pistis).
Nas palavras do próprio filósofo italiano, “Paulo define a relação essencial entre euaggélion e pístis
nesses temos: ‘o anúncio é potência [dynamis] para a salvação para todo aquele que crê [panti to
pisteúonti] (Rm 1.16)” (AGAMBEN, 2016, p. 109). Ou seja, é tão somente a fé, entendida como a
zona de indiferença, que consegue fazer o ser passar ao ato e desarticular toda essa bipartição
117
sustentada pela metafísica ocidental. Neste sentido, convém analisar como este evangelho da fé

115 Nas suas próprias palavras: “a doutrina sacramental da Igreja latina medieval constitui, portanto, a primeira
articulação de uma teoria dos atos linguisticos performativos. Com efeito, toda ação sacramental não é outra coisa do
que colocar em jogo um signo que realiza em um ato aquilo que ele significa. Os teólogos medievais falaram de ‘efeito
sacramental’ para referir-se a esta qualidade suprema do signo performático” (ROMANDINI, 2014, p. 8).
116
Quanto a esse elemento na filosofia de Agamben, o professor Giacoia Jr. esclarece o seguinte: “Na filosofia
ocidental, o conceito de potncia tem uma longa história e, pelo menos a partir de Aristóteles, ocupa um lugar central
nessa tradição. Aristóteles opõe — e, ao mesmo tempo, vincula — a potência (dynamis) ao ato (energeia), e essa
oposição, que atravessa tanto a sua metafísica quanto a sua física, foi transmitida por ele como hereditariedade, primeiro
à filosofia e depois à ciência medieval e moderna. Compreende-se, portanto, a razão pela qual Agamben, ao tentar
circunscrever o âmago de seu empreendimento filosófico, o define como um esforço para responder à pergunta: ‘o que
eu posso fazer’” (GIACOIA JR., 2018, p. 237).

117 Esconde-se aqui uma curiosidade nada banal da língua grega e portuguesa que faz todo o sentido a partir do
raciocínio que Agamben está nos propondo. Segundo o filósofo italiano, “o apóstolo Paulo repetidas vezes une fé e
energeia, ser e ato: a fé é assim, por excelência, um energúmeno [do grego energouméne] a respeito da potência, um
princípio de atualidade e de operação” (AGAMBEN, 2016, p. 105). Não é sem motivo que na língua portuguesa, o
termo energúmeno é utilizado para se referir a um indivíduo inútil aos olhos da sociedade. Atribuir esta inutilidade a fé
faz todo o sentido, uma vez que será precisamente ela que se mostrará o princípio desarticulador de toda obra, de toda
utilidade, no pensamento ocidental.
162
propagado por Paulo desarticula justamente o dispositivo bipartido por excelência no Ocidente, e,
como consequência direta, nos permite um renovado olhar a dois grandes temas políticos que
gostaríamos de explorar aqui, as quais sejam, o universalismo e a lei. Vejamos qual é a contribuição
do pensamento paulino para pensarmos novos usos do direito e da identidade social.

2.2.2. A des-confiança nas obras da lei: divisão messiânica e inoperosidade da lei pela fé

Conforme mencionamos no parágrafo acima, as últimas características da apresentação que


o apóstolo Paulo faz de si e que Agamben chama nossa atenção é a que segue em destaque: “Paulo,
servo de Jesus Cristo, chamado para apóstolo, separado para o evangelho de Deus” (Romanos 1.1).
Ou seja, o filósofo italiano se pergunta o significado da ideia de ser “separado” e “evangelho de
Deus”. Essas características são analisadas, respectivamente, na terceira e na quinta jornada do
seminário que o filósofo italiano realizou em torno do pensamento paulino. Ambas envolvem a
crítica de Paulo à lei, portanto, vamos analisá-las conjuntamente. Quanto à primeira parte,
“separado” (aphórisménos) Agamben, imediatamente, levanta uma questão nada retórica: “como é
possível que Paulo, que predica o universalismo e anuncia o fim messiânico de toda separação entre
judeus e pagãos, refira-se a si mesmo como um ‘separado’?” (AGAMBEN, 2016, p. 61). Ao que
parece, Agamben identifica uma contradição profunda entre a consciência de si mesmo e o
conteúdo da mensagem de Paulo. Ademais, conforme já argumentamos na primeira seção deste
capítulo, a temática do universalismo é uma das poucas unanimidades entre as diferentes vozes que
procuram recuperar a viabilidade dos argumentos de Paulo na contemporaneidade filosófica.
Exatamente, por tudo isso, que Agamben insiste em dizer que: “compreender o sentido exato do
termo aphórisménos significa, portanto, para nós, colocar corretamente um problema fundamental:
o do universalismo — ou do pretenso universalismo — de Paulo”, que, ao mesmo tempo, também
se refere, “da vocação ‘católica’ da comunidade messiânica” (AGAMBEN, 2016, p. 62).
Parte constituinte dessa autocompreensão diz respeito aos dados biográficos de Paulo.
Agamben nos lembra de que aphórisménos pode ser uma evocação ao seu passado como um
fariseu. 118 Seja como for, é inegável a relação entre o zelo de Paulo e sua separação para o anúncio

118
O especialista nas discussões contemporâneas sobre o pensamento de Paulo, N. T. Wright comenta o seguinte a
respeito dessa tese de Agamben: “a palavra ‘separado’ aphórismenos, é interpretada por alguns como um trocadilho
com a palavra ‘fariseu’, mas esta opinião continua exposta a debate, do mesmo modo que a etimologia da última
palavra. O que podemos admitir com toda certeza é que Paulo mapeou sua própria vocação e a implícita narrativa
dentro da qual a sua vocação tinha seu próprio sentido na quadrícula que mencionamos antes. O evangelho de Deus era
a boa notícia de que a aliança tinha sido cumprida e de que a novação criação tinha começado. O grande apocalipse
tinha sobrevindo, revelando Jesus como o Messias de Israel/ Jesus, portanto, e não César, era o Senhor do mundo. Esta
163
do evangelho. Quem explica a lógica das divisões que lei judaica institui com a postura de zelo que
dela decorre é o teólogo inglês e especialista em Novo Testamento, N. T. Wright:

Israel queria ser como os goyim, os povos, as nações, em vez de distinguir-se,


conforme havia sido chamado a ser. É por isso que existiam leis alimentares: outros
comem todo tipo de alimento, incluindo sangue; mas os judeus comem apenas
alimento “limpo”, adotando procedimentos cuidadosos sobre como animais são
mortos e preparados. Era isso que a circuncisão deveria demonstrar: outros
consideram o sexo um brinquedo, mas, para o judeu, é o sinal glorioso da antiga
aliança. Outros não seguem um ritmo de vida; judeus guardam o Sábado,
deleitando-se na antecipação semanal do futuro prometido por Deus, o dia em que o
tempo de Deus e o tempo humano finalmente se encontrariam. Vez após vez, os
antigos israelitas haviam se esquecido dessas lições, e coisas terríveis aconteceram.
Agora, na memória recente do povo judeu dos dias de Saulo, muitos judeus haviam
se esquecido dessas lições outra vez, corrompendo-se, tomando-se como os goyim,
e, por esse motivo, alguns judeus, incluindo ele próprio — um dos primeiros fatos
sólidos que sabemos a respeito do jovem Saulo —, seguiam a tradição antiga
caracterizada pelo “zelo”; nesse sentido, a violência seria necessária para desarraigar
a impiedade de Israel. A tradição do “zelo” é parte da história da liberdade, e o
jovem Saulo aprendeu-a desde cedo, isto é, que era o povo de Deus contra o resto do
mundo, as nações, os goyim — e que os goyim geralmente venciam (WRIGHT,
2019, p. 44-45).

Nessa reconstrução do contexto religioso e cultura em que Paulo formou-se fica explícito a
lógica em que opera a lei judaica. Agamben tem conhecimento dessa operação, pois reconhece que:
“o principio da lei é, portanto, a divisão. E a partição fundamental da lei hebraica é aquela entre
Judeus e não-Judeus — nas palavras de Paulo: Ioudaíoi e ethné” (AGAMBEN, 2016, p. 64). Ao
longo dos escritos de Paulo, ele explicita esse princípio fundamental através da antítese
circuncisão/incircuncisão. Somado a isso está a vocação do fariseu, entendido como um separado
que destaca e coloca em relevância essa divisão fundamental entre os judeus e todo o resto do
mundo. Agamben também era consciente disso e nos lembra de que essencial à consciência dos
fariseus é “o ideal farisaico constituía um ordenamento nomístico integral da vida dos adeptos”
(AGAMBEN, 2016, p. 63).
Nesse contexto de dados biográficos imiscuídos nos seus argumentos é que Paulo apresenta-
se como um “separado”. Agamben enxerga nessa retomada, além de uma ironia cruel, uma negação
da separação farisaica em nome de uma nova separação: “que não é mais, dessa vez, segundo o
nomos, mas para o anúncio messiânico (eis euaggélion theoú)” (AGAMBEN, 2016, p. 63). Em
primeiro lugar, a novidade dessa separação para o anúncio messiânico diz respeito ao seu
relacionamento com a lei. Isso porque, não só todo o movimento farisaico foi construído em torno
da lei e de suas tradições concebidas ao seu redor, como também porque existe pressuposta em toda

não era apenas uma mensagem que Paulo tinha recebido para repassar, como no caso de um carcereiro que ignora o
conteúdo sensacional e transformador da vida contigo no material que entrega. Era uma mensagem pela qual a sua
própria vida era definida, moldada e controlada, tanto de sua parte interior como da exterior” (WRIGHT, 2009, p. 199).
164
lei judaica uma separação fundamental. Na verdade, é constitutivo da lei essas separações, ou com
diz Agamben: “a lei opera, antes de tudo, instituído divisões e separações” (AGAMBEN, 2016, p.
63). A mais básica e também a principal delas é a divisão entre judeus e não judeus — em hebraico,
am e goj que a edição grega do Antigo Testamento traduziu por laos e ethné. Israel é o am, o povo
com quem Deus tem uma aliança; todos os outros povos não-judaicos são ethné. Agamben nos
lembra que Paulo não só tinha conhecimento dessa divisão fundamental como também a utilizava
para se referir a todos os membros da comunidade messiânica de origem não judaica como ethné,
além dele mesmo ser ethnóna póstolos — apóstolo dos gentios (cf. Romanos 3.31).
Diante de todo esse contexto tanto biográfico como também étnico envolvendo a Torá
judaica que Paulo apresenta-se como separado para o euaggélion de Deus. Isso faz com que
Agamben levante questões que são fundamentais para nossa investigação: “qual é a estratégia de
Paulo diante dessa divisão fundamental? De que modo ele consegue neutralizar na perspectiva
messiânica as divisões nomísticas?” (AGAMBEN, 2016, p. 65). A resposta para tais perguntas,
nada triviais, passa pelo reconhecimento que a separação messiânica tem uma estrutura complexa e
que só à luz de sua compreensão os movimentos paulinos podem ser corretamente apreciados. O
professor Giacoia Jr. corretamente pondera que: “é nesse horizonte teórico que o fecundo conceito
de ‘resto' se liga à noção de tempo messiânico, adquirindo um estudo fundamenta; no interior do
programa de homo sacer” (GIACOIA JR., 2018, p. 87). Agamben acredita que parte dessa
compreensão passa pela leitura da passagem da Carta aos Efésios (2.14) em que: “a expressão to
mesoítochon tou pharagmoú, que traduzidos por ‘o muro da separação’, mas que literalmente
significa: ‘o muro divisório do tapume’ trata-se de uma clara alusão à ‘parede divisória’ e ao
‘tapume' em torno da Torá que constitui o ideal dos fariseus” (AGAMBEN, 2016, p. 63). Em outras
palavras, é como se Paulo estivesse dizendo que a separação messiânica derrubasse o muro
construído ao redor dos judeus e de sua lei para protegê-los contra todos os gojim. Se essa hipótese
de Agamben estiver correta, é como se a separação messiânica fosse uma divisão de segunda
ordem, isto é, uma separação da própria separação que os judeus arrogavam para si tornando-a
inoperosa. Isso faz com que essa divisão de segunda ordem reparta e atravesse outras divisões
nomísticas como, por exemplo, a interpretação farisaica da lei. Agamben explica o que está em jogo
nessa opção de dividir as divisões:

Diante dessas partições, Paulo introduz uma outra divisão, que não coincide com as
precedentes, mas tampouco é exterior a elas. O aforismo messiânico se exerce, pelo
contrário, sobre as mesmas divisões nomísticas, divide-as com um corte ulterior.
Trata-se do corte entre sarx/pneuma, “carne/sopro”. Seja a divisão nomística
fundamental: Judeus/não-judeus. Essa divisão é clara quanto ao seu critério
(circuncisão/prepúcio) e exaustiva quanto ao seu funcionamento, pois divide o
conjunto “homens" em dois subconjuntos, sem deixar nenhum resto. Paulo corta
essa divisão com uma nova divisão, aquela do corte entre carne/sopro. Essa partição
165
não coincide com a divisão Judeu/não-Judeu, mas não está fora dela: ela corta a
própria divisão. […] O aforismo messiânico e, nesse sentido, um corte de Apeles,
que não tem um objetivo próprio, mas divide as divisões traçadas pela lei
(AGAMBEN, 2016, p. 66).

O resultado dessa manobra de dividir a divisão é a produção de um povo que é, na verdade,


um resto. Através de um corte ulterior, aquele de sarx/pneuma, Paulo consegue redividir cada polo
da divisão original da Lei. Quanto ao subconjunto “Judeus”, Paulo consegue transformá-lo em dois:
“Judeus segundo a carne” e “Judeus segundo o sopro”. Pode se dizer que a mesma operação ocorre
com os não judeus. Com essa dupla redivisão Agamben acredita que Paulo mostra que: “a partição
nomística Judeus/não-Judeus não é nem clara nem exaustiva, pois existirão Judeus que não são
Judeus, e não-Judeus que não são não-Judeus” (AGAMBEN, 2016, p. 67). Em especial, quanto a
esse último grupo, surge a curiosa categoria dos “não não-Judeus”. É nesse resto que Agamben
enxerga aqueles que estão vivendo sob outra separação, a do messias — conforme sua interpretação
de 1Coríntios 9.21, onde podemos ler o seguinte: “Para os que estão sem lei, tornei-me como sem
lei (embora não esteja livre da lei de Deus, mas sim sob a lei de Cristo), a fim de ganhar os que não
têm a lei”. Uma vez mais, o filósofo brasileiro Giacoia Jr. não só concorda com o raciocínio acima,
mas também o explica dizendo que: “para Agamben, ocorre a partição paulina entre judeu e não
judeu. Pois o verdadeiro judeu não é aquele que como tal aparece externamente; a verdadeira
circuncisão não é aquela visível, na carne; judeu é aquele que o é no interior e no espírito”, ou seja,
“a circuncisão verdadeira é aquela do coração, do espírito e não segundo a letra” (GIACOIA JR.,
2018, p. 88).
O que fica evidente, portanto, é que Paulo não respondeu às aporias ligadas a Lei judaica
com uma simples desativação ou abandono da mesma. Antes, o filósofo argentino Fabián Ludueña
Romandini nos chama atenção para o fato de que Paulo pensa: “ao contrário, em espiritualizá-la”
(ROMANDINI, 2012, p. 140). Entretanto, essa espiritualização da lei não deve ser compreendida
como um desdém da realidade histórica — uma espécie de acosmia, como o cristianismo foi
algumas vezes acusado. Uma vez mais, Romandini é preciso em explicar que: “o preconceito
moderno poderia nos fazer crer que ‘espiritual' equivale aqui a desinteressado nos assuntos do
mundo temporal. Nada está mais distante da perspectiva de Paulo”, e isso acontece porque “a lei
espiritual é o resultado da modificação da lei pela intromissão do Espectro divino na carne”
(ROMANDINI, 2012, p. 141). Sendo assim, nesse movimento de dividir a tradicional divisão da
lei, “Paulo não faz outra coisa que especializar a lei, fazer com que esta transforme completamente
sua natureza pela ação do Espectro messiânico encarnado” (ROMANDINI, 2012, p. 141). Tal
especialização será responsável pela modificação da natureza da lei e seus efeitos na comunidade

166
messiânica — mostrando, assim também, aquela natureza do reino messiânico que Jesus descreve a
Pilatos como “não sendo deste mundo”.
Existe um condensado teológico bastante denso nessas páginas da filosofia de Agamben.
Temos melhores condições de compreender o que está em jogo com o auxílio de comentadores do
pensamento de Paulo sobre os temas que Agamben articula. Em especial, quanto ao lugar da lei na
vida vivida nos tempos do fim, Herman Ridderbos é bastante elucidativo quando nos diz o seguinte:
“o fato de o Espírito não revogar a validade e o preceito da lei, mas justamente confirmá-los e fazer
com que sejam cumpridos, não deve ser negado”, isto acontece porque, “a obra do Espírito consiste
exatamente em efetuar a lei na vida dos crentes […] A diferença entre o ‘pendor da carne’ e o
‘pendor do Espírito’ encontra-se precisamente nisto — a carne não se submete à lei de Deus”
(RIDDERBOS, 2013, p. 315). Aqui, em primeiro lugar, Ridderbos evita qualquer tipo de
interpretação antinômica do raciocínio de Paulo. 119 Simplesmente dizer que o apóstolo dos gentios
descarta a importância da lei não é o tipo de estrutura desencadeada pelo acontecimento messiânico.
Antes, de acordo com a divisão carne/espírito que Agamben mencionou anteriormente, podemos
dizer que um novo tipo de relacionamento é produzido com a lei. Agora ela não é mais guardada
pela carne, mas sim pelo espírito. Entretanto, isso não é tudo. Ridderbos continua explicando o que
está no núcleo do argumento de Agamben: “com o advento de Cristo, a validade da lei em sua
forma histórica não permaneceu a mesma. Nesse contexto, é importante o pronunciamento em
1 Coríntios 9.21”, isto porque, é nessa passagem que “Paulo expande sua declaração de que, para os
que estão sem lei, ele tornou- se como se ele mesmo fosse sem lei, com as palavras: ‘não estando
sem lei para Deus, mas debaixo da lei de Cristo’” (RIDDERBOS, 2013, p. 316). O teólogo holandês
nos ajuda a compreender alguns elementos fundamentais na nova relação com a lei que o
acontecimento messiânico desencadeia. Primeiramente, é correta a afirmação de Agambem que a
comunidade messiânica pode ser qualificada como “sem lei”. Aqui, o raciocínio de Ridderbos é
bem importante para o argumento agambeninano:

o fato de a lei de Moisés em seu significado particular de divisão entre judeus e gentios
não ter mais efeito, constitui a base do apostolado de Paulo entre os gentios. Ele se
refere a essa lei como “lei dos mandamentos na forma de ordenanças” e “parede de
separação”. Quanto a esse modo de funcionamento da lei, ele foi destruído e feito
inoperante (Ef 2.14ss; cf. G1 2.14; 4.10; 5.2ss; 6.12; Cl 2.16ss; 3.11; também Rm
2.26ss; 3.30; 4 passim; 1Co 7.18, 19). Isso é válido, acima de tudo, para a circuncisão,

119
Nesse aspecto específico, Fabián Ludueña Romandini é mais sensível do que Agamben na compreensão do gesto
paulino em relação a lei: “há quem tenha sugerido interpretar a proposta do apóstolo como uma forma de desativação
messiânica da lei; não obstante, uma leitura atenta da mesma mostra, se não completamente o contrário, pelo menos
uma complexidade muito maior do problema. Em princípio, é muito claro que Paulo está falando da lei em sentido
estritamente jurídico, e de maneira alguma sustenta que a lei possa ser prejudicial, mas antes que o caráter obrigatório
do preceito estava destinado a fortalecer a vida (zoè), mas a morte penetrou na lei através do pecado” (ROMANDINI,
2012, p. 139).
167
mas de um modo geral, para “viverem como judeus” (loudaizein, Ioudaikõs zên; G1
2.14), como uma descrição das regras que tinham o efeito de manter a linha de
demarcação entre Israel e os gentios no que se referia aos aspectos rituais, cultuais e
sociais (RIDDERBOS 2013, p. 316).

Vários pontos da argumentação agambeniana são retomados e amarrados no raciocínio de


Ridderbos. Ele se lembra de que aquela divisão fundamental na Torá entre Judeus e não-Judeus não
tem mais efeito no tempo messiânico. Além de constituir a base para o apostolado do próprio Paulo,
ela também se refere a um modo de operação da lei à semelhança da “parede de separação” que, no
presente momento, foi feita inoperante. Não somente a circuncisão, mas todas as regras culturais,
sociais e aspectos rituais que mantinham a demarcação rígida entre Judeus e não-Judeus,
simplesmente, foi inoperada. Segundo o raciocínio do teólogo holandês: “com o advento de Cristo,
a lei, também no que se refere ao seu conteúdo, foi colocada sob uma nova norma de julgamento e
que a falta de compreensão dessa nova situação é uma negação de Cristo (Gl 5.2)” (RIDDERBOS,
2013, p. 317).
Além disso, em segundo lugar, a nova relação com a lei advinda com o messias pode ser
compreendida como “compromisso com a lei de Cristo” (ennomos Christou). Isso significa dizer
que, “caso alguém se pergunte qual é o conteúdo material da expressão ‘debaixo da lei de Cristo’
(1Co 9.21), a resposta estará no fato de que Cristo suo modo representa a lei de Deus e assim, a lei
de Moisés” (RIDDERBOS, 2013, p. 317). Em outras palavras, o próprio messias é o novo
parâmetro de julgamento quanto àquilo que é referente ao passado e à lei, como também o que é
referente ao presente e tem validade permanente. É exatamente por isso que Agamben vai defender
que: “aquele que se mantém na lei messiânica é não-não na lei” (AGAMBEN, 2016, p. 67). O
messias é o lugar onde o resto, o remanescente do povo de Israel, acontece.
Em linhas teológicas, esses são os contornos mínimos do que Agamben chama de “teoria do
resto” (AGAMBEN, 2016, p. 70) que Paulo desenvolve em sua carta (cf. Romanos 11.1-26). A
pergunta em questão nesse trecho da carta era sobre a rejeição dos Judeus pelo acontecimento
messiânico. Entretanto, à despeito de toda a novidade que o messias traz à história, como também,
Ridderbos lembra, “apesar de toda a incredulidade e apostasia, como nos dias de Elias, ainda há um
resto, um remanescente (leimna) que Deus manteve consigo e do qual o próprio Paulo é prova”
(RIDDERBOS, 2013, p. 399). Com isso, ao mesmo tempo em que se abre mão do lugar singular
que Israel tinha no drama da salvação messiânica, também se resguarda, simultaneamente, um
remanescente do próprio povo — que já não é mais povo porque está no messias. É aqui que o
termo pléroma, que tanto Agamben trabalhar, assume um significado escatológico. De fato,
“o termo ‘plenitude’ contrasta com o presente ‘abatimento’ de Israel. Num sentido antitético,

168
também corresponde a ‘remanescente’ (pléroma em contraste com leimna) no versículo 5. De fato,
existe no termo ‘remanescente’ a ideia de que Israel não foi inteiramente abandonada”
(RIDDERBOS, 2013, p. 399). Agamben enxerga nesse paradoxo de um povo que não é povo, mas
um resto, uma característica distintiva da prática profética no judaísmo. Eram Isaías, Amós e
Miquéias que “se dirigem ao povo eleito, a Israel, como um todo, e, porém, anunciam-lhe que só
um resto sará salvo” (AGAMBEN, 2016, p. 70).
A partir dessa estrutura profético-messiânica, Agamben acredita que temos condições de
entender o resto de uma forma politicamente relevante, indo um pouco além do que tem sido as
históricas apresentações por teólogos e filósofos. Primeiramente, o resto não deve ser pensado como
uma mera porção numérica. Antes, na leitura dos textos proféticos que Agamben faz, diz respeito “a
consistência ou a figura que Israel assume em relação à eleição ou ao evento messiânico”
(AGAMBEN, 2016, p. 71). Isso significa dizer que o resto é uma posição que se assume diante do
momento decisivo que é o acontecimento messias. A diferença entre Paulo e os profetas, é que os
segundos vislumbravam essa postura para o futuro, enquanto Paulo o transforma em uma
experiência do presente, aquela fratura história que disponibiliza um “agora” escatológico-
redentivo. Quando Agamben diz acima que se trata de uma “figura que Israel assume” em relação
ao evento messiânico ele tem em mente aquela oikonomia da salvação em que Israel tinha um
privilégio enquanto comunidade messiânica, mas que, posteriormente, foi deslocada para todos os
outros povos — inaugurando a proclamação da salvação para os gojim, na qual Paulo tem papel
destacado enquanto “apóstolo dos gentios”. Portanto, em termos de divisão da divisão que a Torá
apresentava, o raciocínio fica dessa maneira: começa com o privilégio dos Judeus (conforme a
carne), mas em decorrência de sua incredulidade, move-se para os não-Judeus, que não tem o
privilégio étnico (conforme a carne), mas acesso ao messias pela fé (conforme o sopro/espírito).
Entretanto, à luz dessa nova lógica, que não obedece apenas a divisão da Torá entre Judeus e não-
Judeus, mas também faz uma subdivisão dos dois conjuntos a partir de carne/espírio, surge então o
120
remanescente, um resto salvável que Agamben tanto fala. O raciocínio é o seguinte: com a
possibilidade aberta aos não-Judeus de acessarem o messias pela fé, e não somente pela carne, uma
segunda chance para Israel é possibilitada. Agora, não mais pela carne, mas pelo espírito, os Judeus
podem sair do seu posto de incredulidade e, pela fé, tornarem-se outra vez parte da comunidade
messiânica — transformando-os assim em “não não-Judeus”. Essa é a lógica que produz o

120
Quanto a esse argumento intrincado de Agamben, o professor Giacoia Jr. explica um pouco mais o contexto
teológico e étnico que Paulo estava inserido: “contra os que exigiam a circuncisão nas comunidades dos primeiros
cristãos, Paulo sustentava que o judeu não se defina como tal em virtude do fato da circuncisão (pela circuncisão feita
na carne). A verdadeira circuncisão é aquela do espírito, do coração. portanto, nem todo judeu, mesmo que ritualmente
circuncidado, é verdadeiramente judeu; inversamente, o verdadeiro cristão, mesmo não circuncidado na carne, é
verdadeiramente judeu. Verdadeiros cristãos e judeus não se definem nem pela circuncisão nem pela ausência de
circuncisão, mas pela circuncisão simbólica no espírito, ou no coração” (GIACOIA JR., 2018, p. 108).
169
remanescente de Israel, o resto de onde vem a resistência, da qual o próprio Paulo é uma das
expressões mais paradigmáticas — sendo ele Judeu conforme a carne, mas que, por sua
incredulidade em um primeiro momento, só pode estar em em aliança com o messias pela fé. Por
tudo isso, Agamben sustentará que: “o resto é precisamente aquilo que impede às divisões de serem
exaustivas e exclui que as partes e o todo possam coincidir com si mesmas. Ele é tanto o objeto da
salvação, mas, antes, o seu instrumento, aquilo que, propriamente, a torna possível” (AGAMBEN,
2016, p. 72).
Diante de toda essa argumentação em cima de pormenores teológicos, a pergunta que não
pode deixar de ser feita, é sobre as implicações políticas de toda essa nova forma de pensar um
povo que a temporalidade messiânica dá lugar. Com isso, retornamos muito harmonicamente ao
tópico com que começamos o presente capítulo a partir da filosofia de Alain Badiou, a saber, o
nascimento do universalismo político em Paulo. O interesse de Agamben nessa “divisão da divisão”
é sustentar uma posição em relação ao pensamento de Paulo que vai à contramão de praticamente
todas as contemporâneas reconstruções filosóficas de sua teologia. Segundo explica o filósofo
italiano:

Qual é o interesse dessa “divisão da divisão? Por que o aforismo paulino me parece
tão importante? Antes de tudo, porque obriga a pensar de modo completamente novo
a questão do universal e do particular, não só na lógica, mas também na ontologia e
na política. Vocês sabem que Paulo foi sempre considerado o apóstolo do
universalismo e que “católica”, isto é, universal é o titulo que reivindicou para si a
Igreja que pretendeu fundar-se na sua doutrina. Assim, A fundação do universalismo
é o título de um livro recente sobre Paulo, que deseja precisamente mostrar como
“partindo da proliferação mundana das alteridades… uma pensamento universal
produz o Mesmo e o Igual” (BADIOU, 1997, p. 117). Mas as coisas são realmente
assim? É possível pensar, em Paulo, um universal como “produção do Mesmo”? É
evidente que o corte de Apeles messiânico jamais alcança um universal. O “judeu
segundo o sopro” não é um universal, porque não pode ser predicado de todos os
Judeus, assim como não é um universal o “não-judeu segundo a carne”. Mas isso
não significa que os não não-Judeus sejam somente uma parte dos Judeus ou dos
não-Judeus. Eles representam antes a impossibilidade dos Judeus e dos gojim de
coincidir com si mesmos, são algo como um rato entre cada povo e si mesmo, entre
cada identidade e si mesma. Pode-se aqui medir a distância que separa a operação
paulina do universalismo moderno, no qual algo — por exemplo, a humanidade do
homem — vale como o princípio que abole todas as diferenças ou como a diferença
última, para além da qual nenhuma divisão é mais possível” (AGAMBEN, 2016, p.
68).

A interpretação do gesto paulino como a fundação do universalismo político é uma


incompreensão de termos. O que Agamben demostra que ele faz é, na verdade, uma manobra
teológico-política que impeça as pessoas fundamentarem sua postura no mundo a partir de suas
identidades (seja pela étnica, de gênero ou religiosidade). Conforme o filósofo sustenta acima, não
se trata de um humanismo genérico para fins universais na política. A divisão da divisão é um
recurso para fazer surgir o genuíno sujeito que a política carece para fugir das construções
170
pseudopolíticos alicerçadas em identidades particulares. Isso não funda um universalismo, isso gera
um resto, um remanescente de onde vem a resistência à gestão pública concentrada em assimilar
todo indivíduo em uma universalização sem resíduos. O erro fundamental de Badiou apenas
exemplifica outras tentativas de alcançar uma benevolência política e uma tolerância pública a
121
partir de uma universalização indiferente retirada dos escritos paulinos. Entretanto, Agamben é
categórico em dizer que: “para Paulo não se trata de ‘tolerar’ ou de atravessar as diferenças para
encontrar para além delas o mesmo e o universal”, muito diferente disso, “o universal não é para ele
um princípio transcendente a partir do qual se olha para as diferenças — ele não dispõe de um tal
ponto de vista —, mas uma operação que divide as próprias divisões nomísticas” (AGAMBEN,
2016, p. 69) não permitindo que essas diferenças fundamentem políticas identitárias de
subconjuntos sociais, mas tornando-as inoperantes. Não existe um ser humano universal, uma figura
de cidadão político global de características coletivas. Antes, o que se tem é um resto, ou ainda, nas
palavras de Agamben: “há apenas a impossibilidade do judeu e do grego de coincidir com si
mesmos. A vocação messiânica separa toda klésis de si mesma, coloca-a em tensão consigo mesma,
sem lhe fornecer uma identidade ulterior” (AGAMBEN, 2015, p. 69).
Precisamos reconhecer que Badiou acerta em sua interpretação do momento presente da
política em que esta entra em ocaso por uma série de práticas pseudo e antipolíticas. Entretanto,
concordamos com Agamben que não será a artificial fundação do universalismo que nos fornecerá
rotas de resistência a esse cenário. Argumentaremos que nessa impossibilidade dos Judeus e não-
Judeus coincidirem consigo mesmos é que se encontram as bases renovadas para pensarmos
conceitos políticos que estejam livres daquelas aporias que caracterizam as posturas públicas
construídas sob a identidade dos subgrupos sociais ou critérios universalizantes vazios. Agamben já
tinha sido sensível a um detalhe na genealogia das políticas de identidade que marcam a gestão
pública hoje quando observou o seguinte: “a versão [do Antigo Testamento] dos Setenta traduz am
por laos e gojim por ethné” e com essa escolha, para Agamben, “começa aqui um capítulo
fundamental na história semântica do termo ‘povo’ que seria pertinente seguir até o uso hodierno do
adjetivo ‘étnico’ no sintagma ‘conflitos étnicos’” (AGAMBEN, 2016, p. 64). Com essa percepção,
Agamben identifica o que ele chama de uma falha “teológica-política originária” na compreensão
Ocidental de enxergar o agente político por excelência a partir do sintagma ethné em vez de
escolher “outro termo grego para povo, tão prestigioso na nossa tradição filosófica-política: démos”
(AGAMBEN, 2016, p. 64).

121
Agamben é duro em sua crítica quando diz que: “qualquer que possa ser a legitimidade de conceitos como
‘tolerância' ou ‘benevolência’, que concernem, em última análise, ao comportamento do Estado com respeito aos
conflitos religiosos (aqui se vê como aqueles que declaram querer abolir o Estado frequentemente não consigam
libertar-se de um ponto de vista estatal)” (AGAMBEN, 2016, p. 69).
171
Observar essa diferença é muito importante para entender o distanciamento substancial que
Agamben toma, por exemplo, de Badiou. Enquanto o segundo está preocupado em encontrar em
Paulo um paradigma de universalismo entendido como indiferença tolerante das particularidades
dos subgrupos sociais, Agamben abre mão de qualquer tentativa de acomodar as identidades
pessoais e minoritárias como fundamentos para a ação política. A exemplaridade do raciocínio de
Paulo está no fato dele escapar tanto às tentativas modernas de uniformizar a gestão da população,
como também das contemporâneas reivindicações de direito das minorias sociais como exercício de
tolerância e resistência. Para o apóstolo de Tarso, não existia nem mais valor na identidade própria
em ser Judeu ou ser grego, como também não era possível encontrar um universal que mantivesse
conectados essas diferentes formas de vida. Em outras palavras, para Agamben, não existe sentido
falar em universalismo em Paulo se esse for pensado como um princípio superior para tolerar e
atravessar as diferenças pontuais. Na verdade, a real diferença de viver no tempo messiânico e no
tempo profano não é transferir-se para outro mundo, mas operar uma modificação nas identidades e
vocações desse mundo. Portanto, “o resto é precisamente aquilo que impede às divisões de serem
exaustivas e exclui que as partes e o todo possam coincidir com si mesmas” (AGAMBEN, 2016, p.
72).
Dar esse uso aos conceitos paulinos faz com que o filósofo italiano seja explicito em
reconhecer, nas Epístolas do apóstolo, um legado político mutíssimo atual. Isto acontece, porque o
conceito de resto nos permite recolocar sob novos olhares categorias clássicas da política, tais como
as noções de povo e de democracia. Seguindo a divisão da divisão de Paulo, Agamben poderá
sustentar que: “o povo não é nem o todo nem a parte, nem maioria nem minoria. Ele é, antes, aquilo
que jamais pode coincidir consigo mesmo, nem como todo nem como parte, aquilo que
infinitamente resta ou resiste em toda divisão” (AGAMBEN, 2016, p. 73). Uma vez que o resultado
de uma divisão de segunda potência gera um remanescente que não pode ser reduzido nem a uma
maioria nem a uma minoria, nós temos renovadas condições de pensar a democracia para além da
ditadura da maioria, como também não confundir povo com um subconjunto minoritário. Agamben
acredita que somente assim conseguiremos alcançar “único sujeito político real” (AGAMBEN,
2016, p. 73).
Se o raciocínio de Agamben estiver correto, existem várias páginas da filosofia política
recente que podem ser relidas à luz do conceito paulino de resto. O próprio Agamben sugere a
direção de algumas dessas releituras quando escreve:

O conceito messiânico de resto apresenta sem dúvida mais de uma analogia com o
proletariado marxiano, que não pode coincidir consigo mesmo enquanto classe e
excede necessariamente tanto a dialética estatal quanto a dialética social dos Stände,
porque sofreu “não uma injustiça particular, mas a injustiça absoluta [das Unrecht

172
schlechtin]”. Ele permite, além disso, compreender melhor aquilo que Deleuze
chama de “povo menor”, que está constitutivamente em posição de minoria (noções
que têm certamente origens mais antigas, porque lembro de José Bergamín, que
tinha vivido a guerra civil espanhola, costuma repetir quase como um adágio que el
pueblo es siempre minoria). Num sentido provavelmente análogo, Foucault, numa
entrevista dada em 1977 a Jacques Rancière, fala da plebe como lamento inatribuível
e absolutamente irredutível às realces de poder, que não é, porém, simplesmente
exterior em relação a elas, mas assinala, de algum ponto, o seu limite: “a plebe
provavelmente não existe, mas se dá [il y a de la plèbe]. Dá-se plebe nos corpos, nas
almas, nos indivíduos, no proletariado, mas com extensão, formas, energia e
irredutibilidade, a cada vez, diferentes. Essa parte da plebe não representa tanto uma
exterioridade referente às relações de poder, mas antes, o seu limite, a sua inversão,
o seu contragolpe” (FOUCAULT, 1994, p. 421). Muitos anos depois, o próprio
Rancière retomou esse conceito fouêcualtiano para desenvolvê-lo naquele de um
povo, entendido como “parte dos sem parte”, ou em um supranúmero, portadora, de
uma injustiça que institui a democracia como “comunidade do litígio”. Tudo
depende, aqui, do que se entende por “injustiça” e “litígio”. Se o litígio democrático
é entendido por aquilo que é verdadeiramente, isto é, como possibilidade da stasis
ou da guerra civil, então a definição é pertinente. Se, ao invés, como parece acreditar
Rancière a injustiça da qual o povo é a cifra não é — como era ainda em Marx —
“absoluta”, mas é, por definição, “tratável” (RANCIÈRE, 1995, p. 64), então a linha
que separa a democracia da sua contrafação consensualística ou pós-democrática —
que Rancière critica, no entanto, explicitamente — tende a se apagar (AGAMBEN,
2016, p. 73-74).

Agamben relaciona o conceito paulino de resto com uma longa e destacada tradição
filosófica que tem pensado a política dos muitos através de diversos modos de articular o lugar do
povo no pensamento filosófico. Em uma direção substancialmente diferente do que alguns leitores
contemporâneos de Paulo, quando se encaminharam para encontrar nele um fundamento para o
universalismo político, o que há de unânime nos exemplos dados acima é o caráter subversivo e de
antagonismo que uma nova maneira de entender o conceito de povo pode oferecer à política. Estava
claro que desembaraçar o conceito de povo dos atuais usos correntes pela gestão pública é tarefa
incontornável para aqueles que estão buscando contracondutas fortes o suficiente para levar a krisis
sem fim ao seu termo.
O próprio Agambem também pode ser contado nessa lista como alguém que, anos antes,
também se ocupou em repensar a categoria de povo. Podemos retomar a um texto menor de
Agamben, mas que se relaciona estreitamente com o que temos desenvolvido aqui. Trata-se do texto
O que é um povo? presente em Mezzi senza fine. Note sulla politica (1996). Nele, mesmo que muito
brevemente, Agamben sustenta que a arqueologia da ideia de povo revela uma ambiguidade
semântica muito difundida e nada casual. Aquilo que tem sido chamado de povo acriticamente em
muitos raciocínios políticos é, na verdade, “uma oscilação dialética entre dois polos opostos: de um
lado, o conjunto Povo como corpo político integral, de outro, o subconjunto povo como
multiplicidade fragmentária de corpos necessitados e excluídos” (AGAMBEN, 2015, p. 36). Esses
dois usos do conceito de povo representam, respectivamente, os dois polos que o conceito de resto
paulino procura evitar com sua divisão de segunda ordem. Ou seja, o resto é justamente uma

173
tentativa de não recair naquela inclusão universalizante que busca encerrar todo indivíduo em uma
maioria política sem deixar nenhum resíduo de diferença; como também reconhece a
impossibilidade de se constituir ação política a partir da multiplicidade vertiginosa de minorias
excluídas, oprimidas e banidas da inclusão universal. Em resumo, “num extremo, o Estado total de
cidadãos integrados e soberanos, no outro, a reserva — corte dos milagres ou campo — dos
miseráveis, dos oprimidos, dos vencidos que foram banidos” (AGAMBEN, 2015, p. 37).
A busca pelo rompimento dessa polarização através de uma teoria do resto é sinônima de
reconhecer como o Ocidente tem compreendido a formação de um povo político a partir da
oscilação entre a vida nua (povo minoritário) e a existência política (Povo majoritário), entre
exclusão e inclusão, entre zoé e bios. Toda a odisséia agambeniana em torno do homo sacer
encontra aqui um ponto de inflexão, a saber, que “o povo já traz sempre em si a fratura biopolítica
fundamental. Ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual já faz parte e não pode
pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído” (AGAMBEN, 2015, p. 37). É em um
cenário assim que uma divisão da divisão, conforme Paulo empreendeu em suas Epístolas, que não
só a oscilação alienante é rompida, como também surge um remanescente que escapa à lógica do
todo e a parte.
A partir dessa argumentação podemos entender a razão de insistir em uma teoria do resto a
partir do pensamento teológico de Paulo. Mais do que uma alternativa teórica para pensarmos a
postura que uma vida deve assumir na esfera pública para constituir-se um verdadeiro agente
político, essa hipótese agambeniana nos permite entender uma longa história sobre “dois povos”
que além de ser incapaz de resolver-se, agravou-se substancialmente na contemporaneidade.
Agamben explica como essa oposição se mostra atualmente:

Se isso for verdade, se o povo contém necessariamente em seu interior a fratura


biopolítica fundamental, será então possível ler de modo novo algumas páginas
decisivas da história do nosso século. Visto que, se a luta entre os dois povos já
estava certamente em curso desde sempre, no nosso tempo ela sofreu uma última,
paroxístico aceleração. Em Roma, a cisão interna do povo era sancionada
juridicamente na divisão clara entre populus e plebs, os quais tinham, cada um deles,
suas instituições e seus magistrados, assim como na Idade Média a distinção entre
povo miúdo e povo gordo correspondia a uma articulação precisa de diversas artes e
profissões; mas quando, a partir da Revolução Francesa, o povo se torna o
depositário único da soberania, o povo transforma-se numa presença embaraçosa, e
miséria e exclusão aparecem pela primeira vez como um escândalo em qualquer
sentido intolerável. Na idade moderna, a distinção seria e exclusão não são apenas
conceitos econômicos e sociais, mas categorias eminentemente políticas (todo o
economicismo e o “socialismo” que parecem dominar a política moderna têm, na
realidade, um significa político, aliás, biopolítico). Nessa perspectiva, o nosso tempo
não é senão a tentativa — implacável e metódica — de atestar a cisão que divide o
povo, eliminando radicalmente o povo dos excluídos. Essa tentativa reúne, segundo
modalidades e horizontes diferentes, esquerda e direita, países capitalistas e países
socialistas, unidos no projeto — em última análise inútil, porém que se realizou
parcialmente em todos os países industrializados — de produzir um povo uno e

174
indivisível. A obsessão do desenvolvimento é tão eficaz no nosso tempo porque
coincide com o projeto biopolítico de produzir um povo sem fratura. O extermínio
dos judeus na Alemanha nazista adquire, nessa perspectiva, um significado
radicalmente novo. Como povo que recusa integrar-se no corpo político nacional
(supõe-se, de fato, de toda sua assimilação seja, na verdade, somente simulada) os
judeus são os representantes por excelência e quase o símbolo vivente do povo,
daquela vida nua que a modernidade cria necessariamente no seu interior, mas cuja
presença não consegue mais de algum modo tolerar (AGAMBEN, 2015, p. 38-39).

De maneira radical, como lhe é de costume, Agamben procura evidenciar acima que existe
um projeto em andamento no subsolo do pensamento político ocidental. Trata-se de produzir um
povo unificado e sem fratura. Seja nas democracias liberais capitalistas, sejam nos progressistas
projetos socialistas — ou, por que não, até mesmo nas reapropriações de Paulo para pensar um
universalismo tolerante —, o horizonte em direção ao qual muitas páginas de filosofia política
foram escritas é pela obsessão de um povo uno e indivisível. Em um cenário assim, precisamos
concordar com o professor Giacoia Jr. quando ele nos lembra de que: “as antinomias ínsitas à
oposição entre o ‘eu’ e o ‘outro’, o indivíduo e a sociedade, são armadilhas, artimanhas que só
fazem se ocultar melhor quando são sub-repticiamente resolvidas ou suprimidas numa modalidade
qualquer de unidade originária” (GIACOIA JR., 2018, p. 93). Exatamente para fugir dessas
armadilhas e artimanhas que o pensamento político muitas vezes nos coloca, é que Agamben diz
que somente uma leitura que faz justiça à fratura biopolítica fundamental conseguirá colocar fim
nessa stasis infinita que coloca a gestão pública da população infinitamente funcionando. Conforme
ele mesmo aplica essa operação ao nosso cotidiano político explicando como a lógica da gestão
infinita se insere nesse cenário de produção de uma população sem resíduo:

A fratura, que [os nazistas] acreditavam ter sanado eliminando o povo (os judeus
que são seu símbolo), reproduz-se, assim, transformando novamente todo o povo
alemão em vida sagrada voltada à morte e em corpo biológico que deve ser
infinitamente purificado (eliminando doentes mentais e portadores de doenças
hereditárias). E de modo diferente, mas análogo, hoje o projeto democrático-
capitalista de eliminar, através do desenvolvimento, as classes pobres não só
reproduz no seu interior o povo dos excluídos, mas transforma em vida nua todas as
populações do Terceiro Mundo. Somente uma política que tiver sabido prestar
contas da cisão biopolítica fundamental do Ocidente poderá deter essa oscilação e
colocar um fim na guerra civil que divide os povos e as cidades da terra
(AGAMBEN, 2015, p. 40).

Diante de tudo isso, não é sem motivo que as estruturas temporais e comunitárias que estão
pressupostas no messianismo são tão caras a Agamben. Já em Mezzi senza fine ele tinha consciência
dessa stasis — que assumiu muitos nomes durante a história — “não é senão essa guerra interna
que divide cada povo e que terá um fim somente quando, na sociedade sem classes ou no reino
messiânico, Povo e povo coincidirem e não houver mais, especificamente, povo algum”
(AGAMBEN, 2015, p. 38). Nesse cenário, a lógica da vocação messiânica, que separa toda klésis
175
de si mesma, colocando-as em tensão consigo mesmas, assume uma posição politicamente atrativa.
Essa é a força da contribuição de Paulo para noções políticas fundamentais no Ocidente. Muito mais
que fornecer a fundação de um universalismo mesmificante, ele inopera e torna impossíveis
identidades minoritárias ou majoritárias se instituirem como extremo polarizador da vida pública.
Resta perguntar, por fim, sobre o modo como essa divisão da divisão funciona gerando um
remanescente que inopera as polarizações intestinas da stasis. Segundo a lógica sustentada por
Agamben, o “não não-Judeu” é aquele que viu a antiga divisão Judeus e não-Judeus sendo re-
dividida, agora a partir da carne/sopro (ou espírito). O privilégio de ser comunidade do messias saiu
dos Judeus (que eram conforme a carne, mas incrédulos quanto a Jesus) rumo a todos os povos
gentílicos, isto é, os não-Judeus (que, pelo espírito, independente da carne, creem em Jesus). Com o
fim da exclusividade messiânica judaica, não só os gentios puderam ser alcançados, mas um
remanescente de dentro do povo de Israel surgiu dessa divisão sequencial: o “não não-Judeu” é um
Judeu que, mesmo tendo sido desprevilegiado junto ao seu povo (pela carne), pode pela fé (pelo
sopro), tornar-se um remanescente, um resto salvável. Ou seja, trata-se de uma nova possibilidade
aberta pela dupla divisão que os transforma em povo messiânico novamente, mas agora, não pela
lei, mas pela fé. Era assim que o próprio Paulo se compreendia: um Judeu que tinha todas as
credenciais e zelo religioso, mas que, pelo encontro com o messias, percebeu não ter valor algum
nessas honrarias segundo a carne (cf. Filipenses 3.8), mas que poderia estar em aliança com o
messias pela fé. É a fé, portanto, o princípio em operação na geração do resto.
Essa maneira de entender o lugar da fé no procedimento de produção de um resto é
fundamental para compreendermos os trechos iniciais da quinta jornada do seminário de Agamben
em que ele dedica-se, mais detalhadamente ao tema da fé. Em primeiro lugar, e de forma muito
fundamental, Agamben acredita que Paulo conhecia a antiga e bem difundida oposição entre ato e
potência que moveu alguns filósofos da antiguidade. O filósofo acredita nisso porque: “Paulo define
a relação essencial entre euaggélion e pistis nestes termos: ‘o anuncio é potência [dúnamis] para a
salvação para todo aquele que crê [panti to pisteúonti]’ (Rm 1.16)” (AGAMBEN, 2016, p. 108-
109). Com essa definição, a fé apresenta-se como essa zona de indiferença em que enérgeia e
dúnamis coexistem de uma maneira muito singular para aqueles que estão acostumados a vê-las em
oposição. Isso faz com que Agamben conclua que: “Aquilo que é anunciado é a mesma fé que
realiza a potência do anúncio. A fé é o ser em ato, a energia do anúncio” (AGAMBEN, 2016, p.
109). Em outras palavras, o evangelho é um tipo de discurso em que não só um logos que diz sobre
algo de maneira independente do lugar de quem fala ou do lugar de quem escuta. Em vez disso, é
um discurso que produz plérophoría (cf. Tt 1.5). Agamben explica que essa junção de pleros
(pleno, realizado) e phoréo (levar assiduamente) significa: “levar à plenitude, ou, na voz passiva,

176
ser transportado em plenitude, aderir plenamente a algo, sem que restem vazios” (AGAMBEN,
2016, p. 109). O evangelho, portanto, não é um discurso vazio em si, um mero pronunciar de
palavras que referem a algum estado de coisas na realidade. Ao contrário disso, e aqui se insere sua
força para produzir um resto, Agamben diz que: “ele nasce — egenéthé — na fé de quem o profere
e de quem o escuta, e vive somente nela […] o apóstolo parece quase avizinhar-e à consciência de
um poder performativo específico implícito na promessa (epaggellía)” (AGAMBEN, 2016, p. 110).
Conforme já mencionamos no início do capítulo, qualquer recuperação do pensamento de
Paulo precisa considerar o seu contexto de origem — a qual seja, o judaísmo. Quando o apóstolo
escreve que a salvação é pela fé e sem a lei, ele está se opondo, ponto a ponto, ao que os
especialistas chamam de doutrina da redenção sinagogal judaica. 122 Na teologia judaica acreditava-
se que Deus salvaria aqueles que cumprissem detalhadamente todas as leis prescritas, tanto por
Moisés quanto pelo testemunho dos profetas do Antigo Testamento – algo que fica explicito no
detalhe do texto “obediência à lei” [ergōn nomou] e que dá lugar àquela rígida distinção entre
Judeus e não-Judeus. A reversão notória no pensamento do apóstolo Paulo está em sua ênfase de
que: “agora se manifestou uma justiça que provém de Deus, independente da lei” (Romanos
3.21).123 Em outras palavras, significa dizer que a salvação não vem através de nenhuma obra
(ergōn), mas de através da confiança nas promessas, da fé no messias. O arranjo de fé e promessa
em oposição à lei é o núcleo da boa notícia de Deus (euaggelion theou) a qual Paulo foi separado
para proclamar.
Será essa dupla de fé e promessa (pistis/epaggelía) que o aposto utilizará para confrontar a
lei — e as divisões que ela dava lugar. Pela fé nas promessas do messias, não só os gentios, mas
também os judeus de nascimento têm condições de serem salvos e, assim, assumirem a condição de
um remanescente das antigas promessas que estavam exclusivamente sobre o povo hebreu. É a
partir dessa estrutura de pensamento que o tratamento paulino da fé e da promessa é desenvolvido
em um contraponto estreito com uma crítica da lei. Não obstante, conforme já mencionamos
anteriormente, que não diz respeito a um mero abandonar da lei pela fé nas promessas. Em outros

122
Quanto a isso, Herman Ridderbos é mais uma vez muito elucidativo quando explica que: “a pregação apostólica
encontra-se no mais nítido contraste com a doutrina de redenção sinagogal judaica e sem esse contexto o grande ditado
paulino “pela fé, sem a lei” não pode ser compreendido. […] não apenas significa que a maneira pela qual a justiça de
Deus é recebi da, é totalmente diferente no evangelho em relação à teologia do judaísmo, como também tem a
consequência de que, em Paulo, essa justiça em si adquire um conteúdo todo próprio e totalmente divergente do
judaísmo” (RIDDERBOS, 2013, p. 191).

123 Conforme explica mais uma vez o comentador: “o cumprimento dos mandamentos, desse modo, não é concebido
como algo abstrato, mas no sentido concreto da obra dele resultante, o cumprimento individual da lei como um ato. São
esses cumprimentos concretos da lei que, de acordo com a doutrina sinagogal de redenção constituem o homem justo
diante de Deus. Mediante esses cumprimentos da lei e do mérito que neles se encontra, o israelita é capaz de guardar um
tesouro que lhe é absolvido por Deus. Nessa posse da lei como um meio para a justificação e a vida eterna encontra-se o
privilégio de Israel. A lei era para o judeu, portanto, a verdadeira ‘substância de vida’” (RIDDERBOS, 2013, p. 192).
177
momentos Paulo elogia e resguarda a lei de um mero abandono. Agamben explica que esse aparente
comportamento paradoxal diante da lei é fruto de uma nuance que faz toda a diferença. Segundo
explica o filósofo italiano:

É sabido que nomos, no judeu-grego da versão dos Setenta e de Paulo, é um termo


genérico, que tem muitos significados. Paulo tem, por isso, o cuidado de precisar
muitas vezes o sentido em que somos é contraposto à epaggelía e à pistis: trata-se da
lei no seu aspecto prescritivo e normativo, que ele chama de nomos tón entolón, “lei
dos mandamentos” (Ef 2.15) — entolé é, na versão dos Setenta, a tradução do
hebraico miswa, preceito legal; lembre-se dos 613 miswoth que todo judeu deve
observar! — ou também nomos tón ergón, “lei das obras” (Rm 3.27-28), isto é, atos
cumpridos em execução dos preceitos. A antítese diz respeito, portanto, à epaggelía
e à pistis, por uma parte, e, por outra, não simplesmente à Torá, mas ao seu aspecto
normativo (AGAMBEN, 2016, p. 112-113).

Com as distinções acima, fica mais claro não só o caráter da oposição que Paulo faz entre
fé/promessas às obras da lei, como também sua relação com o que foi anteriormente afirmado sobre
sua teoria do resto. Da mesma forma que havia falado em Romanos 9.21 que se tornou hós ánomos
(como sem lei), em seguida ele diz que está na énnomos chsitoú (na lei do messias). Nesse sentido,
estar sob a lei do messias não significa estar sem lei, abandoná-la em troca da fé. Muito menos
significa substituir preceitos que estão na Torá por novos preceitos prescritos pelo messias. Antes, o
que está em jogo aqui é “opor uma figura não normativa da lei àquela normativa” (AGAMBEN,
2016, p. 113). É o aspecto normativo da lei que é deixado de lado pela fé, pois esse aspecto é o que
produzia a rígida divisão entre Judeus e não-Judeus impossibilitando que um remanescente fosse
124
gerado pela fé nas promessas do messias. É nesse sentido que podemos falar de uma des-
125
confiança na lei pela fé.

124
Quem coloca este mesmo raciocínio de uma forma muito brilhante é o estudioso do judaísmo Gershom Scholem.
Narrando um episódio em que ele e Benjamin conversavam sobre os Dez Mandamentos, ele confessou sua postura
pessoal, enquanto judeu, sobre o assunto da observância da lei: “para mim o modo de vida estava ligado à concretização
da Torá [a lei] numa esfera falsa e prematura, que se evidenciava nos paradoxos dos truques que se manifestam no
processo e são necessariamente inerentes a tal relação falsa”, ou seja, para o teólogo alemão, “algo está errado com a
aplicação [da lei]: as ordens se chocam entre si. Eu deveria manter o suspense anárquico” (SCHOLEM, 2008, p. 80).
Para Scholem ficava evidente que a própria estrutura da lei era construída de tal forma que impediria, por princípio, a
sua obediência. Anos mais tarde, será Benjamin que também colocará esta mesma posição lembrando a imagem do
novo advogado, para quem o direito já não era mais praticado e aplicado, mas tão somente estudado – sem falar de toda
a estrutura kafkiana de des-confiança na lei. Nessa imagem, em que a lei torna-se inoperosa, e que nos fornece a cifra de
compreensão da lei no estado de exceção benjaminiano, temos emblematicamente o raciocínio de Paulo a respeito da
relação de implicação e confirmação entre fé e lei.
125
Segundo a explicação de Ridderbos, que está próxima de toda a argumentação de Agamben até aqui reconstruída: “a
fé representa um novo modo de existência que foi dado no advento de Cristo; ela ‘vem’ com a chega da plenitude do
tempo (Gl 3.21; 4.4) e com a manifestação da graça de Deus na morte e ressurreição de Cristo. Revela-se, então, que
Cristo é o fim da lei para a justificação de todo o que crê (Rm 10.4); assim também, é compreendida a insuficiência, na
verdade a insensatez de se confiar na lei; nasce a consciência da própria imperfeição e da culpa (Fp 3.4-8) e as
evidências do Antigo Testamento são descobertas. É essa sequência, e não na ordem inversa, que é capaz de dar uma
percepção correta da verdadeira natureza tanto da fé como da graça de Deus em relação à justificação” (RIDDERBOS,
2013, p. 194-195).
178
O que toda essa forma de contrapor a fé às obras da lei gera é uma pergunta sobre como
devemos entender um aspecto não normativo de uma lei. Para exprimir essa relação Paulo faz uso
de um verbo muito característico do seu pensamento, a saber, do verbo katargéo. Uma vez que esse
conceito é exaustivamente articulado na filosofia de Agamben e muito importante para os nossos
propósitos de pensar a importância política do tema do tempo messiânico, nos ocuparemos dele
mais detidamente na próxima seção do presente capítulo.

2.3. O poder que freia: a comunidade messiânica e o governo imperial

Para compreendermos o sentido de fazer das perguntas de Paulo sobre o messias as nossas
questões filosóficas é preciso levar algumas particularidades em consideração. A primeira delas diz
respeito ao contexto imperial romano do qual Paulo era cidadão. Quando ele escreveu suas cartas, o
Império já tinha a idade de duas gerações, a saudosa República de Roma já havia sucumbido à
guerra civil desencadeada pelo assassinato de Júlio César que, depois de anos de conflito sangrento,
forneceu as condições para que Otaviano assumisse o título de Augusto e se constituísse o soberano
sobre Roma enquanto Império. A extensão desse domínio foi ampliada ao longo das décadas e
através de outros imperadores por todo mundo ao redor do Mediterrâneo. Livre de sua principal
rival, Cartago, Roma entregou-se ao luxo entrelaçado em uma rede de poder, influência e riqueza.
Nesse quadro histórico, o especialista no pensamento de Paulo, N. T. Wright nos lembra que: “a
ideologia do império herdou os antigos ideais da República. Cícero tinha firmado, um século antes
de Paulo, que Roma e o povo romano eram a pátria natural da liberdade” (WRIGHT, 2009, p. 88).
Isso significa difundir que Roma instituiu uma democracia cuja aspiração tinha sido mantida por
todo o período imperial graças ao esforço do soberano em salvaguardar a paz ao povo romano –
“paz e segurança é, de fato, quase a definição de sōtēria ou salvação oferecida aos romanos”
(WRIGHT, 2009, p. 100).
Todo esse imaginário social movia a convicção de que Roma possuía a Justiça e tinha
obrigação de compartilhá-la com o resto do mundo. A partir de então, os poetas e historiadores se
dedicaram a narrar essa nova história, “criaram uma nova narrativa grandiosa do império, uma
longa escatologia que agora tinha chegado ao auge” (WRIGHT, 2009, p. 89). Tudo isso nos ajuda a
compreender a razão pela qual todos os tumultus e rebeliões eram punidos com brutalidade, fazendo

179
com que o medo se tornasse mais um elemento do imaginário antiamessiânico romano.126 Nesse
contexto, tanto o julgamento sem sentença que Jesus foi submetido por Pilatos, quanto a estrutura
perene de uma krisis sem fim assumem renovado significado. A filosofia política contemporânea
encontra um paradigma privilegiado para interpretar estados de crise perdurados infinitamente nas
democracias contemporâneas. Essa é a estrutura epocal que Agamben acredita ser análoga ao nosso
tempo e, por isso, útil ao pensamento filosófico. Diante da gestão infinita da população, a reabertura
do escritório escatológico paulino pode fornecer linhas de resistência para nos perguntarmos sobre
os antagonismos fortes o suficiente para freiar o trem da história.
Foi nesse contexto de falsa universalidade e justiça imperial que Paulo percorria as cidades
anunciando a “boa notícia” de que Jesus de Nazaré, crucificado pelos soldados romanos, tinha
ressuscitado dos mortos, tornando-se o verdadeiro Senhor do mundo, merecendo fidelidade
universal. Com isso, ele integrava as antigas fileiras que os cínicos há muito já cerravam contra essa
127
paz advinda pela exaustão militar, sem virtude alguma. Nesse aspecto, vemos como Paulo
também era um conhecedor da cultura helênica que o precedia também impregnada no mundo ao
128
redor do Mediterrâneo. Justamente por isso, Agamben sustenta que a “oposição entre Atenas e
Jerusalém, entre cultura grega e judaísmo, trata-se apenas de um clichê, especialmente entre aqueles
que conhecem bem tanto uma como a outra. A comunidade a que Paulo pertencia lia a Bíblia na
língua de Platão e Aristóteles” (AGAMBEN, 2016, p. 16). No entanto, é importante mostrar aqui a
diferença específica do gesto paulino de uma mera repetição cínica. O pensamento antiimperial de

126 Escrevendo sobre o instituto romano do iustitium que pode ser considerado o arquétipo do moderno estado de
exceção, Agamben afirma: “quando tinha notícia de alguma situação que punha em perigo a República, o Senado emitia
um senatus consultum ultimum por meio do qual pedia aos cônsoles (ou a seus substitutos em Roma, interrex ou pró-
consules) e, em alguns casos, também aos pretores e aos tribunos da plebe e, no limite, a cada cidadão, que tomasse
qualquer medida considerada necessária para a salvação do Estado. [...] Esse senatus-consulto tinha por base um decreto
que declarava o tumultus (isto é, a situação de emergência em Roma, provocada por uma guerra civil) e dava lugar,
habitualmente, à proclamação de um iustitium” (AGAMBEN, 2004, p. 67). O termo iustitium significa literalmente
interrupção ou suspensão do direito. Visto que Agamben utiliza o iustitium romano para observar o estado de exceção
em sua forma paradigmática, também nos é franqueado nos servirmos de todo o contexto sociocultural em que ele
estava inserido para traçarmos a estrutura analógica do pensamento de Paulo para as dificuldades políticas hodiernas.
127
Somos informados que: “um cínico romano chegou a colocar na boca de um inimigo vencido, um século depois, a
acusação de que os romanos tinham criado um deserto que rotularam com o nome de ‘paz’. Augusto foi saudado
também como ‘Salvador’, em sinal de gratidão por ter resgatado Roma da discórdia civil e dos inimigos externos”
(WRIGHT, 2009, p. 88).
128
Conforme nos lembra Wright: “basta ler algumas páginas de Epiteto, um contemporâneo mais jovem de Paulo, para
perceber que, apesar da discordância radical entre os dois sobre várias crenças, eles tinham uma linguagem e um estilo
comum de argumentar. Às vezes se tem até a impressão de que os dois viviam na mesma rua. Na verdade, Paulo se
sente à vontade no mundo do discurso helenista de rua [...] Paulo tira proveito da linguagem e das imagens dos
moralistas pagãos, ao mesmo tempo em que instila neles constantemente um novo conteúdo. Não se trata aqui
simplesmente de adaptação a uma outra cultura, procurando tirar vantagem dos dois lados. Paulo, como alguns de seus
contemporâneos, tem condições de traçar uma firme plataforma dentro do próprio pensamento judaico, de onde pode
dirigir-se aos habitantes e também aos governantes do resto do mundo” (WRIGHT, 2009, p. 20-21). Precisamente por
essa razão que Foucault, em sua reconstrução da função do tudo-dizer e da coragem da verdade (parresia) na política,
inclui Paulo e os Pais da Igreja no seu conjunto investigativo.

180
Paulo encontrava nas categorias messiânicas judaicas, aplicadas a Jesus de Nazaré, o meio de
desafiar as exigências do Império Romano. Aqui está o ponto de encontro de três mundos aos quais
Paulo pertencia: o modo como o apóstolo anunciava o messias judeu no mundo em que a Grécia
tinha ensinado as pessoas pensarem, e Roma as tinha forçado à submissão pelo medo. Nessa dobra
de três povos que um quarto elemento se instituirá com forças escatológicas antiimperiais: a Igreja,
enquanto comunidade distintamente messiânica.
O contexto judaico tinha uma tradição crítica dos impérios pagãos que remontava a quase
um milênio, tendo como pano de fundo originário de sua tradição o êxodo do Egito. Nesse sentido,
não era difícil para um judeu do primeiro século, como era Paulo e muitos dos seus ouvintes, repetir
o relato das antigas histórias de opressão e libertação no contexto em que viviam. Mais do que isso,
ao que parece, essa estrutura retórica e o uso que Paulo faz da tradição judaica é justamente o
método de ligar o passado ao presente e colocar seus leitores em ação política. Nas palavras de N.
T. Wright:

A questão principal sobre as narrativas no mundo judaico do Segundo Templo, e


igualmente no mundo de Paulo, não se explica simplesmente pelo fato de que as
pessoas gostassem de contar histórias para ilustrar ou comprovar esta ou aquela
experiência ou doutrina, mas sim pelo fato de que os judeus do Segundo Templo se
consideravam atores dentro da narrativa da vida real. [...] As narrativas que eles
empregavam podiam funcionar e funcionavam tipologicamente, ou seja, fornecendo
um tipo que podia ser tomado como padrão com relação aos incidentes e histórias de
outros períodos sem continuidade histórica que pudesse ligar as duas narrativas. Mas
a função principal das histórias assim narradas era recordar os momentos antigos e
(assim esperavam) característicos dentro da história única, maior que se estendia
desde a criação do mundo e da vocação de Abraão até seus próprios dias e, como
esperavam, também para o futuro (WRIGHT, 2009, p. 28).

A partir dessa explicação, temos condições de abrir mão do senso comum que vem sendo
propagado no ambiente filosófico que redescobriu Paulo, de que hoje temos uma época privilegiada
para lê-lo. Na verdade, não existe um momento propício para ler Paulo, mas, ao contrário, é a
própria estrutura discursiva do apóstolo que cria um momento novo para seus leitores.129 A força
performática do texto paulino, somada à sua posição histórica privilegiada, pré-moderna,
apresentam-se como uma paradigmática justificava à recuperação de seu gesto messiânico. Nesse
sentido, a afirmação de Agamben de que: “essas perguntas, que são as perguntas de Paulo, devem
ser também as nossas” (AGAMBEN, 2016, p. 30) não é um capricho teológico-político. Fazer

129 Conforme explica Alain Gignac “Para além dos efeitos retóricos, as cartas de Paulo se apresentam como um
discurso que constrói a realidade. Constantemente, Paulo trabalha dois eixos que devem se co-ordenar: identidade e
agir, indicativo e imperativo, visão do mundo e valores que se ligam uns aos outros: ‘Eis o que sois — o que somos!
Agis em consequência’. Este jogo de linguagem pode ser analisado sobre dois planos: a enunciação e os enunciados.
[...] Em outras palavras, o leitor é conduzido pela enunciação do texto a identificar-se com este tipo de retrato-falado de
“vós” que se constrói pouco a pouco ao longo da leitura” (GIGNAC, 2008, p. 12)

181
nossas as perguntas de Paulo sobre o que significa viver no messias, trata-se de uma postura
filosófica que tem condições de abrir um novo momento na história a partir de uma compreensão
dessa mesma temporalidade de outro ponto de vista. Isso significa não permanecer no conjunto de
possibilidades que a análise infinita da glória dos governos e da gestão da população nos permite.
Mas antes, recuperar uma forma histórica que enxerga na resistência ao Império sua devoção ao
verdadeiro senhor do mundo. Conforme coloca Agamben, “a força — o Império Romano, mas
também toda autoridade constituída — que contrasta e esconde a katárgésis, o estado de anomia
tendencial que caracteriza o messiânico” e, nesse sentido, “retarda o desvelamento do ‘mistério da
anomia’. O desvelamento desse mistério significa o vier à luz da inoperosidade da lei e da
ilegitimidade substancial de todo poder no tempo messiânico” (AGAMBEN, 2016, p. 128). Nesse
verdadeiro estado de emergência, o qual falava Walter Benjamin, é que se encontra a importância
política do tema messiânico do fim dos tempos, tanto hoje como há vinte séculos, conforme temos
argumento por todas as páginas anteriores.
O sentido dessa “vida messiânica” articulada nas epístolas de Paulo que Agamben procura
inscrever no cenário político atual, “significa abraçar a identidade arraigada no judaísmo,
vivenciada no mundo helenístico e estipular uma reconvenção contra a aspiração de César de
dominar o mundo” (WRIGHT, 2009, p. 23). Tal postura torna-se muito importante em tempos que
o império do capital exige adoração incontestável e que nos encontramos no fechamento da cultura
de uma jurisdização integral das relações humanas. Ler Paulo deixa de ser um privilégio religioso
para tornar-se um instrumento eficaz no corpo a corpo com os dispositivos políticos
contemporâneos. Esse esforço não apenas pode nos fornecer uma pauta para a filosofia política
contemporânea, como também, nos conceder as condições de possibilidade para criarmos uma vida
e uma comunidade que antagonize com a gestão integral da vida, não apenas entrando em conflito
com ele, a não ser silenciosamente tornando-o inoperante. 130

130
Esse esforço intelectual a partir das apropriações contemporâneas de Paulo pela filosofia são explicitamente
enunciadas no editorial escrito por Gert-Jan van der Heiden para um volume dedicado às leituras filosóficas de Paulo.
Especificamente sobre o mesmo objetivo que enunciamos acima, ele diz o seguinte: “Nosso percurso alternativo está
preocupado com a questão da vida e, em particular, com a questão da atitude ou modo de vida que está em jogo na
virada para Paulo e que nos permite explicar algumas das conexões cruciais com o novo e o antigo testamento.
preocupações filosóficas. A questão da atitude de vida preocupa-se antes de mais nada com a questão do ethos. As
escolas helenísticas de filosofia antiga preocupavam-se principalmente, como Foucault a chamou de acordo com Hadot,
o cuidado de si: para essas escolas, a filosofia nunca foi uma atividade puramente teórica, mas sim uma atividade pela
qual os humanos redirecionam sua atitude ou ethos.em relação a si e ao mundo para que possam experimentar e viver
suas vidas de forma diferente. Esta atenção particular à atitude de vida também está presente nas cartas de Paulo. Como
as contribuições deste número especial irão mostrar, a questão da atitude de vida é uma das preocupações fundamentais
comuns nas leituras contemporâneas de Paulo. Além disso, as contribuições conectam a leitura dessas cartas à leitura de
material filosófico antigo, permitindo conectar, por exemplo, a leitura de Agamben de Paulo à leitura de Foucault dos
estóicos. Finalmente, essa atenção filosófica à atitude para com a vida é espelhada em pesquisas que posicionam Paulo
entre os antigos filósofos: a atenção para com a atitude de vida é algo que Paulo de fato tem em comum com seus
próprios contemporâneos filosóficos” (HEIDEN, 2016a, p. 81).
182
No centro das motivações filosóficas de Agamben está a criação de forma de vida que
consiga ser verdadeiramente política em tempos de hipertrofia do direito – situação estruturalmente
análoga a de Paulo, diante da Lei judaica. Com isso, Agamben busca escapar das duas
possibilidades de vida que Alexandre Kojève mostrou que o homo sapiens tinha diante de si no fim
da história: “o american way of life (que Kojève via como uma vegetação pós-histórica), ou o
esnobismo japonês, a simples celebração dos rituais vazios da tradição agora furtados de qualquer
sentido histórico” (AGAMBEN, 2013c, s/p.). Essa pergunta por uma forma de vida efetivamente
política dominará os últimos volumes da pesquisa Altissima povertà. Regole monastiche e forma di
vita (IV,1) e L'uso dei corpi (VI, 2). No entanto, para alcançarmos esse ponto, necessariamente
precisamos passar por Paulo em Il tempo che resta, de onde Agamben retira cada uma dessas
categorias futuramente utilizadas. Quem também percebeu essa questão foi Žižek ao contrastar
Paulo com esse esnobismo japonês de Kojève. Para o filósofo esloveno, justamente porque Paulo
“não tem nada a ver com a versão clássica da sabedoria oriental que impõe a indiferença em relação
às coisas do mundo, no espírito do Bhagavad-Guitá”, antes o contrário, “em Paulo, a distância não é
a de um observador desprendido, consciente da nulidade das paixões terrestres, mas a de um
combatente totalmente empenhado que ignora as diferenças que nada têm a ver com o combate a
travar” (ŽIŽEK, 2006, p. 139).
Em tudo isso, percebemos que ao recorrer a Paulo, Agamben está buscando uma conjugação
totalmente nova que o italiano acredita ser necessária para a configuração política contemporânea.
Trata-se do esforço de “pensar a relação potência e ato, e, além dela, será possível conceber um
poder constituinte inteiramente livre do bando soberano” até surgir “uma nova e coerente ontologia
da potência não tenha substituído a ontologia fundada sobre a primazia do ato e sobre sua relação
com a potência, uma teoria política subtraída às aporias das soberanias permanece impensável”
(AGAMBEN, 2002, p. 51-52). Será precisamente na teologia das cartas de Paulo que Agamben
encontrará o que procura: “reecontramos aqui o vocabulário técnico Paulo da enérgeia e da
dúnamis, do ser em ato (energeín) e do ser inoperante (katargeín)” (AGAMBEN, 2016, p. 128).
Será na condição de vida messiânica que o somos é tornado inoperante em um estado de katargésis.
Nesse sentido, a presente seção de nossa investigação assume um ponto de culminância de todos os
argumentos utilizados no primeiro capítulo para descrever a situação de transformação e ocaso que
a política ocidental se encontra. É nosso propósito no dois subtópicos que se seguem respondermos
por que o apóstolo Paulo é importante para a política através da reabertura de seu escritório
escatológico. Acreditamos que a compreensão das dinâmicas próprias da vida na temporalidade
messiânica, bem como o entendimento da quase enigmática discussão sobre o poder que atrasa o
fim da história são contribuições distintas que Paulo lega à filosofia contemporânea.

183
2.3.1. “Como se não”: a transformação das vocações mundanas na comunidade messiânica

Em 2009, por ocasião do ciclo de Conférences de Carême, Agamben proferiu uma palestra
na Catedral de Nortre-Dame, em Paris, intitulada La Chiesa e il Regno. Não é exagero dizer que
esse texto menor do filósofo italiano constitui-se em um ponto de inflexão fundamental na
investigação do significado político do tema messiânico do fim dos tempos. Nela, segundo o
próprio filósofo, “o tema da minha conferência é o messias, e paroikein, viver em estância como um
estrangeiro, é o termo que designa a morada do cristão no mundo e sua experiência do tempo
messiânico” (AGAMBEN, 2016a, p. 11-12). Através de uma genealogia teológica do termo grego
paroikousa — que é traduzido por Agamben por “em estância”, mas de maneira geral significa
estadia, estada, permanência e até mesmo demora —, o filósofo italiano busca entender a condição
de estrangeiro que a paróquia, isto é, a Igreja enquanto comunidade messiânica, ocupa na história.
Nas suas palavras, “gostaria de retomar essa fórmula para dirigir-me aqui e agora à Igreja de Deus,
em estância ou em exílio em Paris” (AGAMBEN, 2016a, p. 11).
O motivo de escolha desse termo, bem como dos temas que o orbitam, é justamente falar
sobre aquela que pode resistir aos intentos imperiais do governo infinito dos seres humanos — bem
como da tragédia histórico-política quando a Igreja institucionaliza-se e perde-se no tempo. Sendo
131
assim, o objeto de reflexão agambeniana é a temporalidade messiânica propriamente dita.
Quanto a essa, ele diz que: “o termo ‘estância’ não implica nada em relação a sua duração
cronológica”, na verdade, “o tempo do messias não designa, de fato, uma duração cronológica, mas
antes uma transformação qualitativa do tempo vivido” (AGAMBEN, 2016a, p. 12-13). Tal
transformação na qualidade do tempo vivido é fundamental para compreender todo uso do
messianismo paulino na obra de Agamben. Tudo isso fica mais claro com algumas lembranças
teológicas que Agamben faz como, por exemplo, a que o apóstolo Pedro escreve em sua primeira
epístola (1Pe 1.17) dizendo que: “o tempo da Igreja ho choros pés paroikias, ‘o tempo da
paróquia’” (AGAMBEN, 2016a, p. 12). Dentre outras coisas, tal compreensão da experiência
messiânica com o tempo da Igreja explica que a pergunta sobre o “atraso” no retorno do messias
não faz sentido. Na verdade, para Agamben, foi justamente a incapacidade de compreender a

131
Esra Delahaye é muito instrutivo quando comenta que: “A compreensão da temporalidade da vida cristã é central
para Agamben. [...] Curiosamente, no entanto, ele em primeiro lugar não tenta entender essa temporalidade por um
exame do que Paulo escreve sobre temporalidade. Em vez disso, ele tenta descobrir como Paulo incorporou a
temporalidade messiânica como pano de fundo de sua proclamação. Então, em vez de voltar imediatamente para o que
Paulo diz sobre o tempo, Agamben primeiro dá um relato da autocompreensão de Paulo e da temporalidade que está em
ação nele” (DELAHAYE, 2016, p. 86).

184
natureza da transformação que o messias introduzia na temporalidade que fez com que as igrejas
perdessem o horizonte de compreensão da sua responsabilidade escatológica. Nas palavras do
filósofo italiano:

Segundo essa opinião, que sempre me pareceu blasfêmia, quando as primeiras


comunidades, que esperavam que o retorno do messias e o fim dos tempos fosse
eminentes, perceberam que havia um atraso do qual não conseguiam vislumbrar uma
solução, mudaram sua orientação para dar-se uma organização institucional e
jurídica estável. Ou seja, deixaram de paroikein, de estanciar como estrangeiras,
para começar a katoikein, residir como cidadãs, como todas as outras instituições
mundanas. Se isso fosse verdade, a Igreja teria perdido a experiência messiânica do
tempo que a define e lhe é consubstancial (AGAMBEN, 2016a, p. 12-13).

Essas palavras de Agamben são muito importante para compreendermos as dimensões tanto
de argumentos que apresentamos no capítulo anterior, como os que vêem a seguir. Nesse processo
de incompreensão de sua natureza temporária, e na busca de estabilidade temporal via
institucionalização, encontramos um momento exemplar do ponto de encontro entre teologia e
política. O professor da Universidade de Notre-Dame, Mark A. Noll, nos explica que existia uma
característica dominante nos períodos iniciais da teologia cristã: ela não tinha interesse em produzir
doutrina sobre a natureza da própria Igreja. Tal marca é fruto, tanto da confiança na eminente volta
132
do messias, quando de amálgamas feitos com as estruturas do Império. Conforme ele explica
com riqueza de detalhes e precisão:

Tão logo Constantino começou a agir em favor da igreja e tão logo os seus
sucessores começaram simplesmente a pressupor que o governo imperial tinha
alguma coisa a ver com a igreja, esta deixara para trás as condições dos três
primeiros séculos. Essas condições haviam acentuado a existência da igreja como
uma comunidade peregrina, que não estava em casa em parte alguma do mundo,
uma vez que o poder do estado a qualquer momento poderia voltar-se contra os fiéis,
enviá-los para o exílio ou perturbar a ordem regular do culto e do serviço cristão.
Mesmo que a perseguição romana direta fosse rara e mesmo que as comunidades
cristãs locais muitas vezes alcançassem considerável estabilidade na era pré-
constantiniana, a verdade sempre presente é que essas comunidades não poderiam
esperar nenhuma segurança permanente nesta vida. Com a conversão de
Constantino, a realidade da igreja como comunidade peregrina gradualmente se
desfez […] as ações de governantes no sentido de implantar, promover, sustentar e
(muitas vezes) ditar normas à igreja gradualmente familiarizou os líderes tanto da
igreja quanto do estado com o conceito de uma religião oficial. Quando os

132
Quem também identifica o mesmo processo histórico é o teólogo e professor da Universidade de Oxford, Alister E.
McGrath. Ele irá nos mostrar que somente a modificação de interesses teológicos pela estabilidade política fez com que
um corpo doutrinário ao redor da Igreja se formasse: “em parte, esta falta de interesse pela doutrina da igreja era um
reflexo da situação política do período. A igreja era, na melhor das hipóteses, apenas tolerada e, na pior das hipóteses,
uma organização perseguida com vigor, na esfera de autoridade de um Estado pagão e hostil — a saber, o Império
Romano. Com a conversão de Constantino, a situação alterou-se radicalmente. Cada vez mais teólogos começaram a
traçar paralelos entre o Império Romano e a Igreja cristã — seja com sentido negativo (como fez Hipólito de Roma, que
viu no império uma imitação satânica da igreja), seja com uma carga positiva (como fez Eusébio, que viu o império
como uma instituição ordenada por Deus e encarregada da tarefa de preparar o mundo para a vinda do reino de Cristo)”
(MCGRATH, 2005, p. 544).
185
governantes reconheceram publicamente a centralidade da igreja para toda as áreas
da vida, foi difícil para a igreja não responder com a pressuposição de que ela
possuía um papel extremamente importante a desempenhar não somente quanto à
vida futura, mas também na vida presente. Muita coisa boa resultou dessa adaptação
[…] Mas o custo também foi elevado. Um mundo em que o imperador podia tomar a
decisão crítica de resolver uma grande crise doutrinária era um mundo em que as
preocupações legítimas do imperador quanto à ordem, sucesso, riqueza e
estabilidade temporais virtualmente haveriam de tornar-se preocupações também
para a igreja. Nesses termos, Nicéia foi um ponto de transição que colocou o
cristianismo num caminho que ele somente começou a abandonar, e isto apenas de
modo relutante, nos últimos dois ou três séculos. Esse caminho consistiu em
acrescentar anseios de poder mundano à sua preocupação original de cultuar a Deus
(NOLL, 2000, p. 66-67).

Junto à institucionalização da igreja vieram àquelas tentativas de acomodação entre teologia


e política que mencionamos no primeiro capítulo. Mark Noll, inclusive, nos lembra de Eusébio que,
em sua História Eclesiástica, buscou acomodar as formulações teológicas às estruturas imperiais de
Roma. Com isso, ele foi o primeiro de uma longa sucessão de teólogos e filósofos que buscaram
construir uma teologia política — aos quais Agamben também reune Dante e Schmitt. Além disso,
Fabián Ludueña Romandini também nos lembra que foi nesse período em que as principais
doutrinas do cristianismo tiveram sanção jurídica, evidenciando no interior da igreja estrutura
eminentemente políticas e jurídicas: “basta considerar o lugar e o modo em que estas disputas e
decisões tomavam forma definitiva: o concílio. Quanto a isso, o filósofo argentino argumenta que:
“os concílios não eram reuniões de natureza meramente religiosa, pois, para além de poderem
contar com a atuação do Imperador, sua própria forma correspondia a uma politicidade de uma nova
ordem” (ROMANDINI, 2012, p. 128).
Nesse processo de institucionalização da igreja dois elementos concomitantes evidenciaram-
se. Por um lado mais nefasto, no núcleo desse processo de estabilização na temporalidade através de
uma instituição pesada e alinhada aos interesses do Império está, por exemplo, a mesma postura do
Sinédrio judaico de entregar Jesus a Pilatos. Somente através da negação de viver na temporalidade
do messias que a comunidade judaica optou por chamar César de kyrios e não Jesus. Esconde-se
nessa opção todo o raciocínio que Agamben desenvolve sobre o poder kathecônico de impedir a
fratura do governo infinito dos seres humanos. Por outro lado, essa compreensão da história da
Igreja também nos permite perceber que as discussões das doutrinas centrais do cristianismo não
eram de natureza especulativa, mas, fundamentalmente, de constituição política. Com isso, não
estamos nos referindo a um problema, em vez disso, ele serve para nos mostrar que no centro das
preocupações da primeira comunidade messiânica estavam as novas formas políticas que poderiam
ser desencadeadas do acontecimento-messias. Quem coloca isso em termos exemplares é, mais uma
vez, Romandini dizendo: “seria um erro gravíssimo interpretar este caráter essencialmente jurídico
das decisões eclesiásticas sobre o corpo de Cristo [por exemplo] como uma perversão de uma

186
religiosidade originária que teria estado livre de contaminação com a esfera do direito”
(ROMANDINI, 2012, p. 132). Muito pelo contrário, somente quando entendermos essa dimensão
construtivamente política dos gestos e posturas da comunidade messiânica é que entenderemos que:
“é o próprio Messias quem leva toda a disputa ao terreno jurídico quando decide confrontar a lei
judia. E, por outro lado, em que outros termos, que não sejam os da política e do direito, se pode
falar acerca de um Rei?” (ROMANDINI, 2012, p. 132). É justamente porque o messias reivindica
para si um reinado inaudito que a comunidade messiânica leva às últimas consequências sua
promessa de transformar a condição da vida através de um novo uso de todas as coisas.
Todo o esforço de Agamben será o de questionar a primeira postura que a igreja assume na
contemporaneidade através da ênfase na responsabilidade política desta comunidade. Para ele, é um
ponto passivo que: “a permanência da Igreja sobre a terra pode durar — e, de fato, durou — séculos
e milênios, sem que isso altere minimamente a natureza particular de sua experiência messiânica do
tempo” (AGAMBEN, 2016a, p. 12). Isso porque, o tempo no messias não se refere a nenhum tipo
de duração cronológica, mas, em vez disso, designa uma transformação qualitativa no tempo
daqueles que vivem no messias. Justamente por isso, é impossível experimentá-lo na forma de um
atraso, como também é não é possível habitar nele de maneira estável. Veremos no subtópico a
seguir que a vida na temporalidade messiânica é, na verdade, o poder que freia todo tipo de esforço
governamental e econômico de estabilizar-se na história indefinidamente.
Contra todo poder de institucionalização da Igreja que o gesto de Agamben institui-se no
133
presente. Isso ele fará levantando uma série de questões sobre a estrutura desse tempo
messiânico. Procedendo de uma forma muito parecida com a que faz no seminário sobre a epístola
aos Romanos, Agamben começa sua palestra em Notre Dame diferenciando o tempo messiânico do
tempo apocalíptico. Tal confusão é muito recorrente, mas não deve ser tratada com ingenuidade,
uma vez que todas as descrições teológicas do tempo apocalítico descrevem os últimos dias, isto é,
o dia do juízo final. Isso faz com que os usos políticos dessa estrutura temporal sejam sempre
rodeado de cataclismas e impossibilidade de ação — uma vez que estamos no fim dos tempos.
Muito mais interessante para a filosofia política é o tempo messiânico, que Agamben é sempre
cuidadoso em dizer que: “o messiânico não é o fim dos tempos, mas o tempo do fim. Messiânico
não é o fim dos tempos, mas a relação de cada instante, de cada kairos, com o fim dos tempos e a
eternidade” (AGAMBEN, 2016a, p. 14). Do ponto de vista político, tal estrutura temporal é muito

133
Ezra Delahaye nos chama atenção para um detalhe que capta a importância do momento e do lugar em que Agamben
estabelece suas declarações sobre a comunidade messiânica e a transformação no tempo em que ela deveria viver: “Em
A Igreja e o Reino, palestra proferida na Catedral de Notre-Dame, diante do bispo de Paris, Giorgio Agamben acusa a
igreja de ter perdido sua vocação messiânica. Esta acusação ecoa o lamento de Alfred Loisy de que Jesus veio para
proclamar o Reino, mas foi a Igreja que veio. Agamben chega a conclusão de que a Igreja perdeu sua vocação
messiânica, porque não tem mais a experiência original de temporalidade que pode ser encontrada nas cartas de Paulo”
(DELAHAYE, 2016, p. 85).
187
mais relevante, uma vez que não se trata mais do inalterável último dia apocalíptico, mas dos
penúltimos dias que são decisivos para o fim dos tempos. Nesse sentido, o tempo do fim é o nome
dado para uma nova relação messiânica com cada instante que nos resta possibilitando pensar em
um horizonte novo para a política humana. Trata-se da oportunidade que nos resta entre o tempo
que temos e o fim. Agamben relaciona diretamente esse tempo ao presente e ao messias: “‘Vem’
(erchetai) é ao presente, assim como o messias é chamado nos Evangelhos ho erchomenos, ‘aquele
que vem’, que não cessa de vir”, é justamente por isso que: “Walter Benjamin, que havia
compreendido perfeitamente a lição de Paulo, repete a seu modo: ‘todo dia, todo instante é a
pequena porta pela qual o messias entra” (AGAMBEN, 2016a, p. 14).
O que Agamben ganha em proficuidade desse conceito para a ação política ele perde em
capacidade de concebê-lo. A dificuldade se encontra em representá-lo para além da mera linha
homogênea e infinita do tempo cronológico, como também além do tempo pontual e sem conexão
com o que está ao seu redor. Para além dessas formas habituais, Agamben é desafiado por uma
estrutura temporal que: “cresce e urge dentro do tempo cronológico, que o trabalha e transforma-o
de dentro. É, por um lado, o tempo que o tempo leva para terminar, mas, por outro, o tempo que nos
resta, o tempo do qual necessitamos para terminar o tempo, desenovelar a representação”
(AGAMBEN, 2016a, p. 16). Precisamente por essas qualidade que o tempo do fim se torna tão
importante para a filosofia política contemporânea. A qualidade de ser um tempo operativo, que
transforma o presente a partir de dentro faz com que o tempo do fim seja um contraponto sem
precedentes à gestão infinita da população pelos instrumentos da krisis sem fim. Ao contrário da
vivência que a governamentalidade infinita nos oferece, o tempo do fim é, para Agamben, “o único
tempo real, o único tempo que podemos ter. Fazer experiência desse tempo implica uma
transformação integral de nós mesmos e de nosso modo de viver” (AGAMBEN, 2016a, p. 16-17).
Será a partir de todas esses fatores que falam sobre a relevância política da condição de
paroikias da Igreja que Agamben argumentará sobre o significado da vida no messias. Para o
filósofo italiano, “é o que Paulo afirma em um passo, que talvez seja a mais bela definição da vida
messiânica (1Cor. 7:29-31)”:

Isto finalmente vos digo irmãos: o tempo é breve [ho kairos synestalmecos esti — o
verbo sustellein pode significar tanto o ato de estingar as velas como o recolher-se
de um animal sobre si mesmo antes de saltar]; o que resta é que também os que têm
mulheres sejam como se não [hós mé] as tivessem, e os que choram como se não
chorassem, e os que folgam como se não folgassem, e os que compram como se não
possuíssem, e os que usam deste mundo como se dele não abusassem, porque a
aparência deste mundo passa (PAULO apud AGAMBEN, 2016a, p. 17).

188
No trecho acima, Agamben menciona o que está no cerne do entendimento da vocação
messiânica: o hós mé paulino. Antes de explorá-lo, contudo, é importante fazer uma conexão que o
filósofo italiano menciona em seu seminário sobre a epístola aos Romanos. Agamben começa a
segunda jornada fazendo referência ao termo klétós, do verbo kaléó, que significa “chamado”. Para
o italiano é necessário deter-se nesse conceito, pois “em Paulo, a família de kaléó adquire um
significado técnico essencial para a definição da vida messiânica, principalmente na forma do
deverbal klésis, ‘vocação, chamado’” (AGAMBEN, 2016, p. 33). A referência a esse verbo
associado à vida messiânica é encontrado em alguns versículos anteriores à citação feita acima
(1Cor 7:17-22), onde Paulo faz algumas declarações igualmente fundamentais:

Para o resto, a cada um como o senhor deu como sorte, cada um como Deus
chamou, assim caminhe. Desse modo disponho em todas as comunidade [ekklésiais,
também uma palavra da família de kaléó]. Um foi chamado circunciso? Que não se
retire o prepúcio. Um foi chamado com prepúcio? Que não se faça circuncidar! A
circuncisão é nada e o prepúcio é nada… Cada um permaneça no chamamento no
qual foi chamado. Foste chamado de escravo? Não te preocupes com isso. Mas se
também podes tornar-te livre, de preferência faça uso. Quem foi chamado de escravo
no senhor é um liberto no senhor. Do mesmo modo, quem foi chamado de livre é
escravo do messias (PAULO apud AGAMBEN, 2016, p. 33).

Tanto com o primeiro trecho citado, quanto com este segundo, Agamben compõem os
contornos mínimos que caracterizam a vida messiânica nos escritos paulinos. Em ambos trechos, o
que fica explícito sobre essa vivência no tempo messiânico é uma orientação de Paulo para que se
permaneça no estado em que foi chamado pelo messias. Quem foi chamado judeu permaneça
circuncidado, quem foi chamado grego permaneça näo-circuncidado, e assim por diante. Essa
permanência não é um quietismo qualquer, mas um requisito para a segunda marca distintiva da
vida no messias: viver sua vocação “como se não” fosse algo distintivo para sua existência.
Permanecer ou não na circuncisão não é o ponto de atenção de Paulo. Tanto uma quanto a outra não
são nada para ele — e já mencionamos na seção anterior que uma divisão de segunda ordem nessa
divisão da Torá gera um resto que não é caracterizado por nenhuma dessas marcas. A fé que des-
confia da lei e permite a divisão de segunda ordem é também a que possibilita viver no messias
revogando outras vocações. A consciência de que é indiferente o valor de estar ou não circuncidado
deve ser acompanhada por uma transformação interna no modo de conduzir a própria vocação: agir
como se não estivesse preso à nenhuma vocação temporal. Segundo a explicação de Agamben,
“klésis indica a peculiar transformação que todo estado jurídico e toda condição mundana sofrem
pelo fato de serem colocadas em relação com o evento messiânico” (AGAMBEN, 2016, p. 36).
Muito diferente do universalismo político que alguns leitores contemporâneos de Paulo insistem em
enxergar nas suas epístolas, Agamben argumenta que o que está em jogo é uma relativização de

189
qualquer condição existencial daqueles que foram colocados em relação com o acontecimento-
messias. Agamben explica que: “a ekklésia, a comunidade messiânica, é, para Paulo, literalmente o
conjunto das kléseis, das vocações messiânicas. A vocação messiânica não tem, no entanto, nenhum
conteúdo específico”, ou seja, é uma relativização de todos os conteúdos vocacionais temporais,
instituindo-se como “uma retomada das mesmas condições factícias ou jurídicas nas quais ou tais
quais alguém é chamado” (AGAMBEN, 2016, p. 36). Assim como a divisão de segunda ordem
introduzida pelo messias gera um resto no interior das antigas divisões da lei judaica, a vocação
messiânica também é um chamado de segunda ordem: “o gesto anafórico imóvel do chamado
messiânico, o seu ser, essencialmente e antes de qualquer coisa, um chamado do chamado”
(AGAMBEN, 2016, p. 37).
A partir desses argumentos conseguimos compreender o que mantém unificado nos
raciocínios de Agamben hós mé e klésis. A condição de transformação qualitativa do tempo
cronológico que caracteriza a vida no messias estabelece uma conexão estreita com essas
orientações de Paulo às igrejas. É justamente porque “a forma desse mundo está passando”, graças a
modificação temporal realizada pelo messias, que a klésis da comunidade messiânica é marcada por
um hós mé, isto é, uma vocação de não se prender às condições temporais, mas dar-lhes um novo
uso como se não fossem a última palavra sobre a situação de um indivíduo. Isso significa dizer que:
“o messiânico não apaga simplesmente, mas faz passar, prepara o seu fim. Ele não é uma outra
figura, mas um outro mundo: é a passagem da figura desse mundo” (AGAMBEN, 2016, p. 38). Tal
condição de viver no tempo do fim, o tempo que resta para chegarmos ao acabamento dos tempos, é
a marca distintiva do messianismo paulino. Em um parágrafo onde cada uma dessas ideias está
conectada umas às outras, Agamben diz o seguinte:

o hós mé, “como se não”, significa que o sentido último da vocação messiânica é o
de ser a revogação de qualquer vocação. Assim como o tempo messiânico
transforma de dentro o tempo cronológico sem simplesmente aboli-lo, a vocação
messiânica graças ao hós mé, ao “como se não”, revoga qualquer esperança e
qualquer condição factícia para abrir a um novo uso (“aproveita a ocasião”)
(AGAMBEN, 2016a, p. 18).

Nas palavras acima, além de manter coesas as ideias que desenvolveu até o momento,
Agamben também introduz um novo conceito retirado do vocabulário técnico de Paulo que será
importante para sua própria filosofia, a saber, o de “uso”. Para o filósofo italiano, uso é: “a
definição que Paulo dá da vida messiânica na forma de como não. Viver messianicamente significa
‘usar’ a klésis, e a klésis messiânica é, inversamente, algo que só se pode usar e não possuir”
(AGAMBEN, 2016, p. 39). Ao colocar o uso no centro da vida messiânica, Agamben também nos
remete diretamente ao último movimento de sua odisséia filosófica em torno do homo sacer, a

190
saber, o livro L'Uso dei corpi. Nele, o filósofo desenvolve uma longa arqueologia da ideia de uso
dos corpos e suas implicações para a política contemporânea. Essa trajetória tem início com o
tratamento aristotélico sobre a natureza do escravo, no início da Política (1254b 18). Os escravos
representam uma dimensão do ser humano em que a obra melhor “não é o ser-em-obra (energeia)
da alma segundo o logos, mas algo para que Aristóteles encontra outra denominação, o ‘uso do
corpo’” (AGAMBEN, 2017, p. 23). Nesse sentido, o interesse de Aristóteles no significado da
escravidão diz respeito a se perguntar sobre homens cujo ergon não é propriamente humano ou,
pelo menos, é diferente dos outros seres humanos.134
Dizer apenas que a definição do escravo é aquele ser humano cuja obra consiste
simplesmente no uso do seu corpo, ainda é muito pouco para os interesses de Agamben na
expressão “uso” (chresis).135 Na verdade, a arqueologia do termo revelou uma utilização muito
difusa do conceito na antiguidade. Fazendo menção à pesquisa realizada por Georges Redard,
Agamben fala de “23 significados do termo” (AGAMBEN, 2017, p. 43). Nesse sentido, para
alcançar a compreensão do significado de tal verbo grego a estratégia foi observar que, em seu uso,
“trata-se todas as vezes de uma relação com algo” (AGAMBEN, 2017, p. 44), mesmo que a
natureza dessa relação seja tão indeterminada quanto o seu número de possibilidades combinatórias.
Além disso, a voz média do verbo também traz consigo algumas distintas marcas que ajudam a
compreender mais o significado de chresis: “enquanto no ativo, os verbos denotam um processo
que se realiza com base no sujeito e fora dele, no médio o verbo indica um processo que tem lugar
no sujeito: o sujeito é interior ao processo” (AGAMBEN, 2017, p. 46). Sendo assim, além de um
caráter eminentemente relacional, o significado de “uso” tem no sujeito o lugar onde essa relação
136
acontece. Em outras palavras, o sujeito é tanto o autor quando o receptor da ação, ou ainda, ele

134
Em uma tentativa de fixar uma série de teses que caracterizam a atividade que Aristóteles chama de “uso do corpo”,
Agamben apresenta a seguinte definição do escravo: “o escravo, que se define por intermédio desse ‘uso do corpo’, é o
homem sem obra que torna possível a realização da obra do homem, aquele ser vivo que, embora sendo humano, é
excluído da humanidade — e, por essa exclusão, incluído nela — para que os homens possam ter uma vida humana, ou
seja, política” (AGAMBEN, 2017, p. 41).
135
Em um trecho bastante instrutivo, Agamben explica que: “na expressão ‘uso do corpo’, uso deve ser entendido em
sentido não produtivo, mas prático: o uso do corpo do escravo é semelhante àquele do leito ou da roupa, não àquele da
lançadeira ou da palheta. Estamos tão habituados a pensar o uso e a instrumentalizado em função de um objeto externo
que não nos fica fácil entender uma dimensão do uso totalmente independente de uma finalidade, como aquela sugerida
por Aristóteles: para nós, também a cama serve para o descanso e a roupa serve para proteger-nos do frio. Da mesma
maneira, estamos habituados a considerar o trabalho do escravo parecido com aquele, eminentemente produtivo, do
operário moderno. Por isso, uma primeira e necessária precaução consiste em separar ‘uso do corpo’ do escravo da
esfera da poiseis e da produção, a fim de a devolver àquela — segundo Aristóteles, improdutiva por definição — da
práxis e do modo de vida” (AGAMBEN, 2017, p. 30).
136
Nesse momento de sua argumentação, fica evidente o historicismo perene que está presente na obra agambeniana
quando ele, através dessa definição, coloca que: “aqui a esfera da ação de si sobre si corresponde à ontologia da
imanência, ao movimento de autoconstituição e da autoapresentação do ser, em que não só é impossível distinguir entre
agente e paciente, como também sujeito e objeto, constituinte e constituído, se indeterminam” (AGAMBEN, 2017, p.
48).
191
realiza algo que se realiza nele. Tendo isso em mãos, Agamben se mostra mais capaz de apresentar
a seguinte conclusão prévia de sua arqueologia do uso:

Podemos agora tentar definir o significado de chresthai: ele expressa a relação que
se tem consigo, a afeição que se recebe enquanto se está em relação com
determinado ente. Aquele que synphorai chretai faz experiência de si enquanto
infeliz, constitui e se mostra como infeliz; aquele que utitur honore se põe à prova e
se define enquanto assume um cargo; aquele que nosthoi chretai faz experiência de
si enquanto é afetado pelo desejo de retorno. Sendo assim, somatos chresthai, “usar
o corpo”, significará a afeição que se recebe enquanto se está em relação com um ou
mais corpos. Ético — e político — é o sujeito que se constitui nesse uso, o sujeito
que dá testemunho da afeição que recebe enquanto está em relação com um corpo
(AGAMBEN, 2017, p. 47-48).

Com essa definição, já podemos identificar paralelos com as palavras de Paulo que
Agamben recupera para falar da revocação das vocações mundanas pela vocação messiânica.
Precisamente essa relação que se tem consigo e a afeição que se recebe enquanto está em relação
com determinada vocação que caracteriza aquele permanecer “como se não…” nas diversas
vocações mundanas. Na verdade, o próprio Agamben estabelece essa relação em seu livro L'Uso dei
corpi. Em uma seção dedicada somente a isso, ele diz que: “é por essa perspectiva que podemos ler
a teoria messiânica que Paulo elabora na primeira epístola aos Coríntios” (AGAMBEN, 2017, p.
78). Inclusive, a argumentação de Paulo se dá justamente aos escravos que, caso tenham sido
chamados à viver no messias enquanto estavam nessa condição, não se preocupassem com isso. Tal
postura do apóstolo não é uma desvalorização da causa escravagista — como se os cristãos não se
importassem com isso. Antes o contrário, trata-se justamente da desativação das vocações
mundanas pelo uso sem posse: “Não te preocupes com isso; mas, se também podes tornar-te livre,
faz uso (mallon chresai — ou seja, de tua condição de escravo — 1 Coríntios 7.21) (AGAMBEN,
2017, p. 78). Ou seja, o que fica explícito no raciocínio de Paulo, como também no uso que
Agamben faz dele, é que as circunstâncias factuais e as condições jurídico-políticas de um
indivíduo não devem ser tratadas como uma substancia essencial, nem simplesmente alteradas por
outra condição de existência igualmente encarada como uma essência fundamental. Em vez disso,
“a chamada messiânica não confere nova identidade substancial, mas consiste, acima de tudo, na
capacidade de ‘usar’ a condição factícia em que cada um se encontra” (AGAMBEN, 2017, p. 78).
Em tudo isso, vemos que a vocação messiânica se trata de uma desativação e, até mesmo,
uma desapropriação das circunstâncias factuais e as condições jurídico-políticas que se encontram
um indivíduo para que se abra um horizonte de possibilidade de novos usos dos corpos. Em outras
palavras, “o ‘como não’ paulino, tensionando cada condição factícia consigo mesma, a cancela e
desativa sem alterar sua forma (os que choram como não chorantes, os que têm mulher como não a
tivessem, escravos como não escravos) (AGAMBEN, 2017, p. 78). Esses novos usos das
192
circunstâncias em que nos encontramos após o acontecimento messiânico estabelecem as marcas
que estão no fundamento da “nova vida” possibilitada por esse chamado de segunda ordem.
Conforme explica Agamben: “a ‘nova criatura’ nada mais é do que a capacidade de tornar
inoperosa e usar de modo novo a antiga: ‘se alguém está no messias, é nova criatura [kainè ktisis]:
as coisas antigas passaram, eis que se fizeram novas’ (2 Coríntios 5.17)” (AGAMBEN, 2017, p.
79).
Agamben enxerga nessas possibilidades abertas por um renovado uso de todas as condições
humanas, uma referência explícita às compreensões sobre propriedade que eram comuns no Império
Romano. Segundo o filósofo italiano, Paulo contrapõe uso ao domínio: “ficar na chamada na forma
do ‘como não’ significa fazer do mundo um objeto de propriedade, só de uso” (AGAMBEN, 2017,
p. 79). Essa discussão nos remete, incontornavelmente, às investigações sobre regras monásticas e
formas de vida que Agamben empreendeu em Altissima povertà. Sobre o fundo de toda a
compreensão paulina de vocação messiânica, essa obra tem como objetivo de se perguntar a
respeito do legado mais precioso do monasticismo franciscano, com o qual o Ocidente teria que
confrontar-se: “como pensar uma forma-de-vida, ou seja, uma vida humana totalmente subtraída
das garras do direito e um uso dos corpos e do mundo que nunca acabe numa apropriação? Ou seja,
pensar a vida como aquilo de que nunca se dá propriedade, mas apenas um uso comum”
(AGAMBEN, 2014a, p. 11). É óbvio que essa argumentação das regras monásticas franciscanas
esbarrava-se em uma teoria do uso, tal como Agamben desenvolveria anos depois, no último
volume da série homo sacer. Entretanto, no meio dessas duas investigações, Agamben precisou
desviar-se rumo a outra arqueologia igualmente necessária para entender o que está em jogo com as
modificações que a vida vivida com fé no messias implica — “uma arqueologia do ofício (cujos
resultados são publicados em volume separado com o título Opus Dei: arqueologia do ofício)”
(AGAMBEN, 2014a, p. 10). Portanto, a triangulação dos volumes finais das investigações
agambenianas sobre o homo sacer repousam sobre o pano de fundo teológico da escatologia paulina
que procuramos reconstruir aqui.
A argumentação de Agamben da extensa discussão sobre o uso sem posse entre os adeptos
do movimento franciscano e a cúria da Igreja mostra que, do ponto de vista filosófico, “o uso de
fato dos bens consumíveis não existe na realidade, e não pode, portanto, competir a ninguém”,
nesse sentido, para justificar a possibilidade de tal uso, o movimento franciscano elabora “uma
verdadeira ontologia do uso, na qual ser e devir, existência e tempo parecem coincidir”
(AGAMBEN, 2014a, p. 136). Uma importante categoria assume centralidade na investigação

193
ontológica que é a efeitualidade. 137 Para o movimento franciscano, o uso assume a condição de ser
um feito no tempo, cuja possibilidade e existência coincidam com as do próprio transcurso
temporal. Tal compreensão, do ponto de vista da filosofia medieval, é muito importante, pois
significa que: “as realidades em jogo não se situam no plano da essência e do quid est, mas somente
no da existência ou do quod est; elas são, como escreverá Heidegger muitos séculos depois, puros
existenciais e não essenciais” (AGAMBEN, 2014a, p. 139). Isso significa compreender o
pensamento franciscano como uma ontologia existencialista e não essencialista, como é de costume
pensar sobre todo o pensamento medieval. O tipo de uso proposto em questão é: “destituído do
plano das essências e passam a valer como puras efetualidades que dependem unicamente de um
comando da vontade humana ou divina” (AGAMBEN, 2014a, p. 139).138
Ao final de seu livro, quando, mesmo que provisoriamente, tira as implicações da
investigação sobre a pobreza como uso no pensamento franciscano, Agamben estabelece a seguinte
conclusão que, em seguida, o levará a uma crítica: “tal doutrina foi elaborada no interior de uma
estratégia defensiva, incialmente contra os ataques dos mestres seculares parisienses e depois contra
os da Cúria de Avignon, que questionavam a recusa franciscana de qualquer forma de propriedade”
(AGAMBEN, 2014a, p. 140). O mencionado caráter defensivo na raiz dessa ideia de separar o uso
da sua relação com a propriedade é um dos fatores decisivos para que as influências mais amplas da
teoria franciscana ficassem limitadas. Isso aconteceu porque os seguidores de Francisco “preferem
apoiar-se na doutrina da liberdade jurídica da separação entre o uso de fato e o direito” em vez de, à
semelhança de seu precursor, colocar a força do seu argumento na “natureza da propriedade, que
revela não ter outra realidade senão psicológica (uti re ut sua, intenção de possuir a coisa como
própria) e procedimental (direito de reivindicar juízo)” (AGAMBEN, 2014a, p. 141). Precisamente
quando a discussão foi deslocada do campo da efetualidade para o âmbito jurídico, aquele projeto
de pensar uma vida que se vincule tão estreitamente a sua forma e, assim, que escape das garras do
direito, foi impossibilitado — dando lugar aos decisivos ataques de João XXII através dos meios

137
O professor Daniel Arruda Nascimento, notório conhecedor da filosofia de Agamben e também tradutor de parte de
suas obras para o português, comenta a utilização desse termo com as seguintes referências: “traduzimos a palavra
effettualità por efetualidade, respeitando a diferença, desejada pelo autor, de efetividade, também próxima de efeito e
efetivo. Embora efetuabilidade seja uma opção mais segura no que concerne ao uso do nosso vernáculo, escolhemos
efetualidade por outras razões. Além de guardar uma maior familiaridade com a palavra original, fica evidente que se
cuida de uma palavra em destaque, uma palavra que aqui adquire uma refinada relevância filosófica na investigação do
autor” (NASCIMENTO apud AGAMBEN, 2013a, p. 8).
138
Nessa altura de sua argumentação, Agamben evidencia, mais uma vez, o caráter historicista do raciocínio que está
empreendendo a partir do pensamento franciscano: “a esfera da prática humana, com seus direitos e seus signos, é real e
eficaz, mas não produz nada de essencial nem gera uma nova essência para além de seus próprios efeitos. Em outras
palavras, a ontologia que aqui está em questão é puramente operativa e efetual. O conflito com o direito — ou melhor, a
tentativa de o desativar e tornar inoperoso pelo do uso — situa-se no mesmo plano puramente existência no qual age a
operatividade do direito e da liturgia. A forma de vida é aquele puro existencial que deve ser libertado das marcas do
direito e do ofício” (AGAMBEN, 2014a, p. 139-140).
194
jurídicos que impediam que uma numerosa ordem religiosa se comportasse como àquele pequeno
grupo de monges errantes. É justamente por isso que Agamben dirá que a tarefa de pensar essa
forma-de-vida exigirá uma teoria do uso, “a respeito da qual, na filosofia ocidental, faltam até
mesmo os princípios mais elementares, e, a partir dela, uma crítica daquela ontologia operativa e
governamental que, sob os disfarces mais diversos, continua determinando os destinos”
(AGAMBEN, 2014a, p. 11).
O que permite o filósofo italiano fazer esse julgamento do movimento franciscano é
justamente o pano de fundo da teoria dos usos que está presente nas epístolas de Paulo. Quanto a
isso, Agamben diz o seguinte:

Na literatura franciscana, falta uma definição de uso em si mesmo, e não só em


contraposição ao direito. A preocupação de construir uma justificação do uso em
termos jurídicos impediu que se acolhessem as indicações de uma teoria do uso
presente nas cartas paulinas, especialmente em 1Cor 7,20-31, em que o fato de usar
o mundo como o de não usá-lo ou não abusar dele […] definia a forma de vida do
cristão e poderia ter proporcionado um argumento útil contra as teses de João XXII
sobre o uso das coisas consumíveis como abusos. No mesmo sentido, a concepção
da pobreza como “expropriadora” por parte dos espirituais poderia ter sido
generalizada para além do direito a toda a existência dos frase menores, vinculando-
a a uma passagem importante das Admonitiones [Admoestações], em que Francisco
identificava o pecado original com a apropriação da vontade […]. Precisamente
quando, na elaboração da teologia escolástica, a vontade se tornava o dispositivo que
permitia a definição da liberdade e da responsabilidade do homem como dominuis
sui actus, a forma vivendi dos frades menores é, nas palavras de Francisco, a vida
que se mantém em relação não só com as coisas, mas também com ela mesma de
acordo com o modo da inapropriabilidade e da recusa da própria ideia de uma
vontade própria (o que desmente radicalmente a tese dos historiadores do direito
que, como vimos, entreveem no franciscanismo a fundação do direito subjetivo)
(AGAMBEN, 2014a, p. 142-143).

Diante dessas palavras, fica mais explícito o relacionamento íntimo entre a necessária
estrutura escatológica da teoria do uso paulino com o projeto franciscano de pensar uma vida que
esteja desembaraçada das capturas do dispositivo jurídico. O paradigma paulino do uso das
vocações temporais por aqueles que foram chamados pelo messias torna-se uma infraestrutura a
partir da qual podemos erguer as primeiras categorias de uma crítica daquela ontologia operativa e
governamental que reaparece contemporaneamente sob os disfarces mais diversos. Está em sintonia
com todo o projeto paulino que descrevemos anteriormente o que Agamben chama de: “o caráter
escatológico específico da mensagem franciscana”, este, por sua vez, explicita-se porque tal
mensagem “não se expressa numa nova doutrina, mas numa forma de vida pela qual a própria vida
de Cristo se torna novamente presente no mundo, a fim de levar a cumprimento não tanto o
significado histórico das ‘pessoas’ na economia da salvação, mas sua vida como tal” (AGAMBEN,

195
139
2014a, p. 146). No caráter eminentemente existencial do movimento franciscano esconde-se a
necessidade de uma robusta teoria do uso que consiga pensar o nexo entre forma e vida. Pela
relativização de todas as vocações mundanas, a comunidade messiânica tinha condições de fazer um
novo uso do mundo, de forma que a própria vida do messias se tornasse, outra vez, presente na
história por meio de sua comunidade. 140 Nesse sentido, podemos concordar com o filósofo italiano
quando ele sustenta que essa forma de vida experimentada na temporalidade messiânica é “o fim de
todas as vidas (finis omnium vitarum), o último modus, depois do qual não é mais possível a
realização histórica múltipla dos modi vivendi” (AGAMBEN, 2014a, p. 146). Mediante uma
manobra característica da estrutura temporal que o acontecimento messiânico inaugura, será
possível fazer um uso das coisas que permitirá não só renunciar todas as vocações temporais, mas
também experimentar uma forma-de-vida que: “começa quando todas as formas de vida do
Ocidente avançam sua consumação histórica” (AGAMBEN, 2014a, p. 146). Justamente no
momento contemporâneo, em que várias filosofias políticas anunciam o fim dos tempos é que se
torna possível distinguir o tempo do fim e a possibilidade de afirmar um uso dos corpos que é o
necessário para o tempo acabar.
Somente no tempo que resta para que o tempo acabe será possível levar a cabo um projeto
enunciado muitos anos antes em Il regno e la gloria: “o trono vazio, símbolo da glória, é o que deve
ser profanado para dar lugar, para além dela, a algo que, por ora, podemos apenas evocar com o
nome zóé aiónios, vida eterna”, e Agamben já sabia disso, pois no mesmo trecho ele continua
dizendo que: “é só quando a quarta parte da pesquisa — dedicada à forma de vida e ao uso — for
concluída, o significado decisivo da inoperosidade como práxis propriamente humana e política
poderá aparecer em sua luz própria” (AGAMBEN, 2011, p. 11). A viabilidade da zóé aiónios, da
vida eterna, se dá através de uma renovada concepção de uso que a teologia paulina nos oferece.
Por intermedio dela, a forma de vida enunciada pelo franciscanismo pode ser pensada nas condições
de possibilidade de uma vida que se situa fora das amarras do direito que se hipertrofia sobre a vida

139
Nos seminários sobre a Epístola aos Romanos, Agamben sustentava essa mesma tese dizendo que: “é sobre o fundo
dessa concepção paulina de vocação messiânica que a reivindicação franciscana do usos contra a propriedade adquire
todo o seu sentido. Na sua fidelidade ao principio da altissima paupertas, as correntes espirituais franciscanas não se
limitavam, de fato, a recusar — contra as indicações da cúria romana — toda forma de propriedade; como tinha logo
percebido a agudeza jurídica de Bártolo de Sassoferrato, que falava a propósito dos franciscanos de uma novatas vital, à
qual o direito civil resultava inaplicável, eles avançavam implicitamente a ideia de uma forma vivendi integralmente
subtraída à esfera do direito (AGAMBEN, 2016, p. 40).
140
Quanto a isso, Agamben também comenta o seguinte: “desenvolvendo a tendência, já presente nos escritos de
Francisco, de conceber a ordem como uma comunidade messiânica e de dissolver a regra no evangelho concebido como
forma de vida (haec est vita evangeli Jesu Christi principia a primeira regra), tratava-se, tanto para Olivi quanto para
Angelo Clareno, de criar uma espaço que escapasse à tomada do poder e das suas leis, não entrando em conflito com
elas, mas simplesmente tornando-as inoperantes. A estratégia paulina em relação à lei — da qual a passagem em 1Co 7
sobre o como não é parte integrante — pode ser lida, como veremos, numa perspectiva análoga” (AGAMBEN, 2016, p.
41).
196
nua da população através de crises sem fim. Por meio da estrutura paulina da justificação pela fé
somente, sem as obras da lei, Agamben encontrar um paradigma privilegiado para pensar uma
existência que abdica-se do direito. Segundo ele, “este é certamente o legado que modernidade se
mostrou incapaz de enfrentar e que nosso tempo nem sequer parece capaz de pensar” (AGAMBEN,
2014a, p. 147).
Precisamente diante dessas possibilidades políticas abertas pelo paradigma paulino,
reafirmado através da arqueologia do uso franciscano, que se inserem um conjunto de perguntas
fundamentais para a investigação de Agamben que faz no final de seu livro:

certamente, graças à doutrina do uso, a vida franciscana pôde afirmar-se sem


reservas como a existência que se situa fora do direito, ou seja, que, para existir,
deve abdicar do direito — e este certamente é o legado que a modernidade se
mostrou incapaz de enfrentar e que nosso tempo nem sequer parece capaz de pensar.
Mas o que é uma vida fora do direito, se ela se deve como a forma de vida que faz
uso das coisas sem nunca se apropriar delas? E o que é o uso, se deixarmos de
defini-lo apenas negativamente na relação com a propriedade? É, pois, o problema
do nexo essencial entre uso e forma de vida que, a essa altura, se torna inadiável.
Como pode o uso — ou seja, uma relação com o mundo enquanto inapropriável —
traduzir-se em um ethos e em uma forma de vida? Qual ontologia e qual ética
corresponderão a uma vida que, no uso, se constitui como inseparável de sua forma?
A tentativa de responder a essas perguntas exigirá necessariamente um confronto
com o paradigma ontológico operativo em cujo quadro a liturgia, por um processo
secular, acabou por aprisionar a ética e a política do Ocidente (AGAMBEN, 2014a,
p. 147).

Muitos temas já tratados encontram aqui uma nova articulação. Desde o confronto entre dois
juízes de diferentes corpos jurídico-políticos em Pilato e Gesú, até mesmo as conclusões alcançadas
em L’Uso dei corpi. Na primeira obra vimos como não só o reinado messiânico, mas a própria
pessoa do messias coloca o aparato jurídico imperial em uma krisis suspensa uma vez que se trata
de uma forma de vida fora do direito romano — inoperando e impedido Pilatos de pronunciar uma
sentença ao julgamento de Jesus. No que diz respeito ao L’Uso dei corpi, é interessante observar
que Agamben coloca as mesmas questões fundamentais que ele apresenta no trecho supracitado.
Após o enunciado de algumas conclusões preliminares a respeito das semelhanças e das diferenças
entre uso e hábito, Agamben questiona-se: “mas o que é o uso habitual, como se usa um hábito sem
o fazer passar para o ato, sem o pôr em obra? É claro que isso não significa inércia ou simplesmente
ausência de obras, mas uma relação totalmente diferente com estas” (AGAMBEN, 2017, p. 85). O
que está em questão aqui é pensar em uma obra que não seja nem o resultado nem a efetivação de
uma potência. Estruturalmente trata-se do mesmo questionamento feito anos antes em Altissima
povertà quando se questionou sobre as condições de possibilidade de um uso traduzir-se em uma
forma de vida. Como uma relação com o mundo que o mantenha como inapropriável pode
expressar-se em um ethos?

197
Como é recorrente nas investigações de Agamben, de uma maneira inesperada a resposta
para essas questões são encontradas em uma curva incalculável que a arqueologia do uso faz em
direção à teologia cristã. Escrevendo sobre a tradição do aristotelismo que culmina na escolástica
cristã medieval, Agamben chama nossa atenção à uma contraposição que Galeno faz entre uso e
energeia, dizendo que: “o uso [chreia] de uma parte é diferente de sua energeia, de seu ser-em-ato,
porque a energeia é movimento ativo (kinesis drastikè), enquanto o uso é aquilo que
costumeiramente se chama euchrestia” (GALENO apud AGAMBEN, 2017, p. 81). O que está em
questão aqui é mostrar como um estado ou um hábito se contrapõe ao movimento e à operação. Para
ressaltar tal dissemelhança, Galeno refere-se ao uso (chreia) como uma euchrestia, literalmente, um
bom uso. Agamben explica que: “Euchrestia significa a adequação de uma parte para desenvolver
determinada função, a boa funcionalidade, ou seja, não uma operação e uma passagem da potência
ao ato, mas algo semelhante a uma condição habitual” (AGAMBEN, 2017, p. 81). Será na esfera
religiosa dos sacramentos cristãos, em especial, na eucaristia, que Agamben encontrará o paradigma
para elucidar uma condição habitual em que se usa um hábito sem o fazer passar para o ato, sem o
pôr em obra. Na ministração do sacramento da eucaristia pelo oficial cristão encontra-se uma
relação totalmente diferente com as obras — e, consequentemente, com o paradigma da ontologia
operativa.
A construção desse argumento de Agamben começa com a localização do lugar em que a
teoria da causa instrumental se desenvolve no interior da teologia escolástica, a qual seja, na
doutrina dos sacramentos. O filósofo explica que: “a função do sacramento consiste em conferir a
graça, e esta só pode provir de Deus, que é sua causa principal: o que é próprio do sacramento é,
porém, que ele produz seu efeito por meio de um elemento que age como causa instrumental”
(AGAMBEN, 2017, p. 94). O que chama atenção nessa descrição do sacramento como uma ação
através de um instrumento (a água no batismo, por exemplo) é que se trata de uma operação que
realiza um plano que transcende ela mesma — ao mesmo tempo em que lhe é imanente. Agamben
dá destaque para o fato de que essa relação assemelha-se muito à obra histórica do próprio messias:
“na economia da salvação Cristo era dispositive — ou seja, segundo uma ‘economia’ — a redenção
dos homens. […] Cristo, que age nos sacramentos como causa principal, é, enquanto encarnou em
corpo humano, causa instrumental, não principal da redenção” (AGAMBEN, 2017, p. 95).
Argumentando assim, Agamben localiza na economia trinitária e na doutrina dos sacramentos os
lugares exemplares para elucidar o paradigma teológico da instrumentalidade.
O desenvolvimento exaustivo dessa argumentação encontra-se no volume dedicado a uma
arqueologia do ofício, a saber, Opus Dei. Archeologia dell’ufficio. Apesar da inegável conexão com
a pesquisa sobre os sacramentos, essa obra de Agamben “diz respeito sobretudo aos sacerdotes, ou

198
seja, os sujeitos a quem compete por assim dizer, ‘o mistério do mistério’”; ademais, vale lembrar
que: “como, em O reino e a glória, procuramos esclarecer o ‘o mistério da economia’ […] tratava-
se aqui de arrancar o mistério liturgia da obscuridade e da imprecisão da literatura moderna sobre o
argumento, restituindo-o ao rigor e ao esplendor dos grandes tratados medievais” (AGAMBEN,
2013d, p. 7). Nesse sentido, a Opus Dei completa o que será necessário para que em L’Uso dei
corpi seja enunciado o paradigma teológico da instrumentalidade a partir da economia da salvação e
doutrina dos sacramentos. Isso porque, através da arqueologia do ofício será possível afirmar a
tentativa mais radical de “pensar uma prática absolutamente e integralmente efetual. O mistério da
liturgia, é, nesse sentido, o mistério da efetualidade” (AGAMBEN, 2013d, p. 7). As consequências
dessa tese para a filosofia política contemporânea são significativas, uma vez que, para Agamben,
somente ao compreender essa fronteira de mistério que será possível entender “a enorme influência
que essa prática, só em aparência separada, exerceu sobre o modo como a modernidade pensou
tanto sua ontologia quanto sua ética, tanto sua política quanto sua economia” (AGAMBEN, 2013d,
p. 8). Em uma ironia daquelas que só estão conscientes os que acompanham os movimentos da
história, vemos que foi uma doutrina cristã dos sacramentos e da liturgia que forneceu o paradigma
ontológico para várias construções filosóficas contemporâneas que repousam seus argumentos no
performativo — como a teoria queer de Judith Butler ou a plasticidade ontológica de Catherine
Malabou.
Mais uma vez, a partir das ações do messias, Agamben explora esse ponto de encontro entre
a economia trinitária com a doutrina dos sacramentos. A partir de sua leitura da epístola aos
Hebreus ele diz o seguinte:

Reflita-se sobre a identidade que o texto supõe entre a ação de Cristo e a liturgia.
Não somente sua ação salvífica é apresentada como uma “liturgia”, mas, como
grande sacerdote de um sacrifício em que o sacrificante sacrifica a si mesmo
(“heauton prosénenken” 9,14), Cristo realiza uma ação litúrgica, por assim dizer,
absoluta e perfeita, que, por isso, pode ser cumprida uma vez só (“hapax
prosenechtheis” 9,28; “mian […] prosenkas thysian” 10,12). Nesse sentido, Cristo
coincide sem resíduos com sua liturgia — é essencialmente liturgia — e justamente
essa coincidência confere a ele sua incomparável eficácia. […] Na afirmação dessa
irrepetibilidade do sacrifício, cujo único sacerdote “tendo conseguido uma redenção
eterna, entra de uma vez por todas [efapax] no santuário” (9,12), autor da carta se
mantém fiel a uma genuína inspiração messiânica, sobre cujas base (em boa paz com
a praxe eclesiástica sucessiva) não é possível fundar nenhum liturgia cultual
(AGAMBEN, 2013d, p. 19-20).

Com as palavras acima, temos condições de introduzir o caráter peculiar dessa realidade
misteriosa que os sacramentos efetuam na liturgia cristã. Agamben nos lembra que a presença real
do messias nos sacramentos “não coincide com a presença do Cristo histórico em carne e osso (sicut
corpus in loco) nem com sua simples representação simbólica, como em um teatro” (AGAMBEN,

199
2013b, p. 50). Existe um paradoxo que é próprio da liturgia cristã que ajuda a compreender a
natureza da realidade que está em jogo nos sacramentos. Trata-se do paradoxo de que a liturgia das
celebrações tem com modelo de seu sacerdócio o sacrifício do messias que, por sua vez, tem a
marca distintiva de ser irrepetível. Ou seja, nos elementos da celebração cristã “comprometer-se-á a
repetir um ato irrepetível, a celebrar o não celebrável” (AGAMBEN, 2013d, p. 20). Nesse sentido, a
realidade que tem lugar com o ofício liturgia não se limita a meramente representar a paixão de
Cristo. Em vez disso, Agamben explica que na verdade, “representando-a, realiza seus efeitos, de
maneira que se pode dizer que a presença de Cristo concede nele integralmente com sua
efetualidade” (AGAMBEN, 2013d, p. 50). Será exatamente essa constituição de realidade que
Agamben acredita que tem condições de implicar uma transformação na ontologia ocidental. Isso
porque: “enquanto no vocabulário da ontologia clássica o ser e a substância são considerados
independentemente dos efeitos que possam produzir, na efetualidade o ser é inseparável de seus
efeitos”, isso faz com que “ele denomine o ser na medida em que é efetuar, produz certos efeitos e,
ao mesmo tempo, é determinado por eles. A efutualidade é, portanto, a nova dimensão ontológica
que se afirma primeiro em âmbito litúrgico para depois estender-se progressivamente”
(AGAMBEN, 2013d, p. 51). 141
O remetimento a uma nova dimensão ontológica que não funciona mais segundo os
parâmetros de Aristóteles diz respeito à ação concebida como um “ofício”, isto é, não a obra, mas o
resultado da obra. Entretanto, para que essa nova equação ontológica se forme, é necessário
remeter-se ao operador desse ofício que, apesar de não poder ser o próprio messias, age na pessoa
do messias e faz as suas vezes funcionando também como uma causa instrumental. Trata-se da
doutrina do sacerdote. Agamben explica que esse caráter instrumental do sacerdote, enquanto
ministro dos sacramentos, “não se trata aqui tanto de uma figura de representação jurídica, mas, por
assim dizer, de uma vicariedade constitutiva, que atenta à natureza ontológica do sacerdócio e o
torna indiferente às qualidades acidentais do indivíduo que exerce o ministério” (AGAMBEN,
2013d, p. 62). A indiferença às qualidades acidentais do sacerdote enquanto indivíduo nos remete à
discussão clássica de Agostinho e os donatista entre 396 e 410 d.C. (cf. AGAMBEN, 2013d, p. 31).
O bispo de Hipona advogou pela validade dos sacramentos ministrados por sacerdotes moral ou
espiritualmente indignos. Para Agostinho, estava claro que os ministros da igreja operavam os

141
Quanto as duas ontologias em operação no Ocidente, Agamben diz o seguinte: “há, portanto, na tradição ocidental,
duas ontologias, distintas e coligadas: a primeira, a ontologia do comando, própria do âmbito jurídico-religioso, que se
exprime no imperativo e tem caráter performativo; a segunda, própria da tradição filosófico-científica, que se exprime
na forma do indicativo (ou, em forma substantivada, no infinitivo ou no particípio — esti, einai, on, ‘é’, ‘ser’ e ‘ente’).
A ontologia do estó e do ‘seja’ remete a um dever-ser; aquela do esti e do ‘é’ se refere ao ser. Claramente distintas e,
por muitos aspectos, opostas, as duas ontologias convivem, confrontam-se e, de qualquer modo, não cessam de
entrelaçar-se, hibridizar-se e prevalecer, de vez em vez, uma sobre a outra na história do Ocidente” (AGAMBEN,
2013d, p. 124).
200
sacramentos de um modo instrumental, fazendo com que não dependesse de sua fé para que aquele
ofício tivesse efeito. Isso significa declarar a eficácia ex opere operato e não ex opere operantis,
fazendo com que o ministro seja “uma espécie de ‘instrumento animado’ de uma operação cujo
agente é Cristo” (AGAMBEN, 2013d, p. 32). Portanto, a nova dimensão ontológica advinda com a
doutrina dos sacramentos cristão não só separa a realidade efetual do processo através do qual ela
realiza, como também do sujeito que a realiza.
Diante de tudo isso, a ação sacerdotal se torna uma paradigma para pensarmos as condições
de possibilidade de um uso instrumental do mundo, enquanto característica da vida na
temporalidade messiânica, a respeito da qual começamos essa seção. Agamben estabelece algumas
conclusões prévias que são importantes para nossa argumentação:

Reflita-se sobre o singular estatuto que vem assim a competir à ação sacerdotal. Esta
se cinde em duas: de uma parte, o opus operatum, isto é, os efeitos que dela derivam
e a função que ela desempenha na economia divina; de outra, o opus operans (ou
operantis), isto é, as disposição e as modalidades subjetivas através das quais o
agente faz existir ação. A liturgia enquanto opus Dei é a efetualidade que resulta da
articulação desses dois elementos distintos e, todavia, conspiradores. Desse modo, o
nexo ético entre o sujeito e sua ação se quebra: determinante não é tanto a reta
intenção do agente, mas só a função que a ação desempenha enquanto opus Dei.
Como a ação do demônio enquanto opus operatum é desenvolvida a serviço de
Deus, também, como opus operantis, se resta maldosa, assim a ação litúrgica do
sacerdote é eficaz como Opus Dei, mesmo se o sacerdote indigno comete pecado. A
liturgia define assim uma esfera particular de ação, na qual o paradigma mistérico da
Epístola aos Hebreus (o opus operatum de Cristo grande sacerdote) e aquele
ministerial da Epístola de Clemente (o opus operantis Ecclesiae) coincidem e ao
mesmo tempo se distinguem. Isso pode ocorrer, porém, somente ao custo de dividir
e esvaziar de sua substância pessoal a ação do sacerdote, que, enquanto “instrumento
animado” de um mistério que o transcende, em realidade não age e, todavia,
enquanto titular de um ministério, exerce de qualquer maneira uma ação própria.
Nesse sentido, sentido, se, por um lado (com relação ao mistério e ao opus
operatum) ele não é sujeito, mas instrumento, que, nas palavras de Tomás, “não age
em virtude da própria forma”, por outro (com relação a seu ministério), mantém sua
ação específica, como o machado, no exemplo de Tomás “segue sua ação
instrumental só exercitando sua ação específica, que é dividir e cortar”. O sacerdote,
enquanto instrumento animado, é, portanto, aquele sujeito paradoxal, a quem
compete o “ministério do mistério”. […] É possível reconhecer aqui o modelo
teológico daquela cisão e, ainda, cooperação, entre a atividade e a iniciativa
necessária do militante político, de um lado, e as leis dialéticas da história que lhes
garantem a eficácia, de outro, que assinalou permanentemente a praxe da tradição
marxista. (AGAMBEN, 2013d, p. 34-35).

Opus Dei é o nome da ação liturgia do sacerdote que articula opus operatum e opus operans,
mantendo juntos tanto os efeitos próprios da função que desempenha na economia da trindade,
como também as disposições subjetivas do agente em questão. Com isso, a tradicional ligação entre
sujeito e ação perde seu nexo constitutivo, uma vez que, em se tratando dos sacerdotes, não é
decisiva que sua intenção seja indubitável para que os efeitos do ofício sejam eficazes. Com isso,
Agamben procura mostrar que a liturgia cristã define uma esfera particular de ação, na qual o

201
sacerdote se torna um paradigma para pensarmos um agir que não mais oscila entre a dualidade
metafísica clássica de ato e potência, ou ainda, entre o poder constituído ou poder constituinte, mas
que, finalmente, pode dar lugar a um poder destituinte. 142
Com essas palavras, Agamben nos remete de volta ao ponto com que começamos a
triangulação entre os volumes finais da pesquisa sobre o homo sacer. Em L’Uso dei corpi o
sacerdote reaparece não só como um paradigma para pensar essa esfera particular da ação que a
liturgia cristã dá lugar, mas também se refere a posição que o escravo ocupa na arqueologia do uso
dos corpos. Em momentos distintos da história e das ideias, tanto o sacerdote quando o escravo são
“instrumentos animados”. Quanto a isso, Agamben explica que: “o termo ‘instrumento animado’
provém, como sabemos, de Política, de Aristóteles, no qual se definia a natureza do escravo. O
termo minister, de resto, significa originariamente ‘servo’ (AGAMBEN, 2017, p. 98). Nessa
redução do ministro ao escravo encontra-se a forma da Igreja ter garantido o estatuto não jurídico da
personalidade do ministro, cujos atos, assim como os dos escravos, são imputados não a ele mas ao
seu senhor, o messias — o qual o ministro age na sua pessoa e faz as suas vezes funcionando
também como uma causa instrumental. Para Agamben, “isso significa que, pelo paradigma do
‘instrumento animado’, o sacerdócio sacramental está genealogicamente, não só
terminologicamente, vinculado à escravidão” (AGAMBEN, 2017, p. 98). Se nos lembrarmos que o
escravo foi compreendido como o ser humano em cujo ergon é o uso do corpo, tanto ele, quanto o
sacerdote, são a aparição paradigmática para uma pura instrumentalização. Em outras palavras, isso
significa falar sobre “um ser que, ao viver segundo o próprio fim, é, justamente por ela e na mesma
medida, usado para um fim de outrem” (AGAMBEN, 2017, p. 98).
O desvio rumo à arqueologia do ofício e do ministério do sacerdote se justifica em nossa
investigação sobre o tema específico dessa seção — a transformação das vocações mundanas pela
comunidade messiânica através do “como se não” da teologia paulina —, pois são os argumentos

142
Em seu artigo Crítica ao poder como violência, Walter Benjamin havia deixado claro que o verdadeiro estado de
exceção não tem relação com o direito – em oposição ao que Carl Schmitt tentou argumentar, por exemplo. Antes, o
efetivo estado de emergência não dizia respeito nem a instituição soberana nem a manutenção policial do aparato
jurídico, mas o seu cumprimento inoperante – aos moldes do messianismo judaico-cristão. Trabalhando dessa forma,
Benjamin traz outra perspectiva para o debate recolocando-nos a urgente necessidade de pensar, não só um conceito de
história que corresponda a essa verdade, bem como assumirmos a tarefa política por excelência: instaurar o verdadeiro
estado de exceção. Ou seja, a questão política por excelência – a ação humana livre de qualquer captura – relacionada a
um questionamento sobre o tempo e a lei. Ou ainda, como apontou Agamben na entrevista à Folha de S. Paulo, uma
ação política que: “não ponha, que não execute ou que não transgrida simplesmente o direito” (AGAMBEN, 2005, s/p.).
Justamente nesse horizonte de oscilação dialética entre violência que instaura e violência que mantém o direito, que
surge a necessidade de um terceiro movimento, que rompa com essa aporia circular entre as duas formas de violência.
Para Agamben, esse terceiro elemento está mais perto de algo inédito resultado de um corpo-a-corpo com os
dispositivos do poder que procuram subjetivar, no direito, as ações humanas. A definição desse terceiro elemento na
oscilação dialética das violências do poder, nos escritos de Benjamin é denominada como “violência divina” e, para
Agamben, a compreensão de tal conceito é central para todo aquele que busca entender e levar adiante as ideias do
filósofo alemão. Nesse sentido, seja o que for essa “violência divina”, no horizonte de uma arqueologia da potência, se
trata de um poder destituinte.
202
necessários para entendermos no interior da obra de Agamben como a doutrina dos sacramentos nos
oferecem “uma técnica superior, uma technologia sacra, em cujo centro estão a ação especialíssima
da causa instrumental e a inexorável eficácia do opus operatum” (AGAMBEN, 2017, p. 99). A
triangulação com três das últimas obras publicadas por Agamben nos ajudam a explicitar uma
hipótese muito frutífera no pensamento do filósofo italiano e que perpassa vários momentos de seu
raciocínio. Doutrina sacramental e instrumentalidade viva do sacerdote se conectam
harmonicamente com o uso sem posse do mundo no centro da estratégia franciscana que, por sua
vez, nos remetem à vida na temporalidade messiânica que relativiza as vocações factuais e nos
lança em uma nova relação com o mundo. Esses três elementos formam a compreensão de um uso
143
instrumental do mundo que não põe nada em obra, mas, ao contrário, inopera e desarticula. A
transformação substancial que a vocação messiânica introduz na vida dos membros de sua
comunidade não destrói ou abandona as vocações mundanas em que viviam previamente. Em vez
disso, ela realiza uma divisão de segunda ordem e produz uma vocação das vocações que, por
definição, se apresenta como um uso sem posso do mundo. A teologia messiânica de Paulo está por
trás das manobras franciscanas de uso instrumental porque em Paulo a existência vivida na
temporalidade do messias significa estar consciente de uma transformação no interior do próprio
tempo que traz implicações diretas ao uso do mundo:

Isto, porém, vos digo, irmãos, que o tempo se abrevia [kairos synestalménos]; o que
resta é que também os que têm mulheres sejam como se não as tivessem; E os que
choram, como se não chorassem; e os que folgam, como se não folgassem; e os que
compram, como se não possuíssem [katechontes]. E os que usam deste mundo
[chrōmenoi ton kosmon], como se dele não abusassem, porque a aparência deste
mundo passa (1Coríntios 7.29-31).

Um uso sem posse do mundo só se torna possível com uma transformação substancial do
tempo vivido, que passa a ser experimentando como o tempo que resta. Teoria do uso instrumental
e temporalidade messiânica se cruzam e se confundem na teologia de Paulo — e, por conseguinte,
na filosofia de Agamben. É justamente em razão desse entrecruzamento que a figura do sacerdote
assume relevância e se transforma em um paradigma para compreendermos a natureza singular
dessa ação que desvencilha-se da temporalidade infinita da história, como também da hipertrofia da

143
Quanto a isso, são importantes os comentários que Agamben faz em Il regno e la gloria: “Nas epístolas paulinas, em
particular naquela endereçada aos Hebreus, o tema escatológico da inoperosidade é introduzido exatamente por um
midrash sobre o Sl 95.11. Paulo (ou quem quer que seja o autor da epístola) chama de ‘sabatismo’ (sabbatismos, Hb
4.9) a inoperosidade e a beatitude que esperam o povo de Deus […]. O vínculo de Paulo, ao desenvolver um tema
bíblico e rabínico, estabelece entre condição escatológica, sábado e inoerosidade marca profundamente a concepção
cristã do Reino. Em seu comentário à Epístola aos Hebreus, João Crisóstomo identifica sem reservas inoperosidade,
sabatismo e Reino dos céus: ‘Paulo não diz só inoperosidade, mas sabatismo, que é um nome próprio, chamando assim
de sabatismo o reino’. ‘ O que é a inoperosidade [katapausis] senão o reino dos céus [basileia ton ouranón], cujas
imagens e figura [eikón kai typos] é o sábado?’. O sabatismo nomeia a glória escatológica, que é, em sua essência,
inoperosidade” (AGAMBEN, 2011, p. 262).
203
lei. Nas palavras do próprio Agamben sobre o sacerdote: “isso pode ocorrer, porém, somente ao
custo de dividir e esvaziar de sua substância pessoal a ação do sacerdote”, que, enquanto
“instrumento animado” de um mistério que o transcende, “em realidade não age e, todavia,
enquanto titular de um ministério, exerce de qualquer maneira uma ação própria” (AGAMBEN,
2013d, p. 34). A maioria dos paradoxos de uma ação desembaraçada da maneira habitual de
enxergar a relação entre ato e potência encontra aqui uma formulação paradigmática. Sem advogar
por uma destruição das vocações factuais ou um abandono dos usos do mundo, a vocação
messiânica permite um renovado uso sem posse do mundo em vocações que foram relativizadas
pela transformação interna no tempo messiânico dando lugar, assim, a um tempo que resta e um
poder que inopera. Conforme o próprio Agamben resume em L’Uso dei corpi, “o uso se apresenta
como a relação com um inapropriável, como a única relação possível com o estado supremo do
mundo, em que ele, como justo, não pode ser de modo nenhum apropriado” (AGAMBEN, 2017, p.
105).
Nessa articulação de conceitos fundamentais do messianismo de Paulo, podemos encontrar a
resposta para aquele questionamento sobre o que é o uso habitual com que nos ocupamos acima. A
temporalidade messiânica e a possibilidade que essa concede para um novo uso das vocações
factuais na história são pressupostos para a forma com que se usa um hábito sem o fazer passar para
um ato, sem o pôr em obra. Em resumo, temos no messianismo paulino as condições de
possibilidade para uma ação no mundo que não inaugura ou mantêm o poder infinitamente, mas o
inopera e o faz cessar. Desarticulação e inoperosidade messiânica, do ponto de vista da ação
política, não são sinônimos de inércia ou simplesmente ausência de obras. Antes, diz respeito a uma
relação totalmente diferente com os entes e as formas de vida. Podemos dizer que o quê está em
questão ao longo de todos os últimos anos da pesquisa de Agamben é pensar em uma obra que não
seja nem resultado nem efetivação de uma potência, mas, uma destituição. Quando em Altissima
povertà questionou-se sobre as condições de possibilidade de um uso traduzir-se em uma forma de
vida, era essa desarticulação e inoperosidade que estavam em horizonte. A importância política do
tema da temporalidade messiânica está em sua capacidade de nos permitir dar lugar na existência a
uma relação com o mundo que o mantenha como inapropriável, em expressar em um ethos o
sabatismo característico do tempo vivido no messias. Ou ainda, nas palavras do próprio Agamben:
“a obra não é o resultado nem a efetivação de uma potência, que nela se realiza e esgota”, ao invés
disso, “a obra é aquilo em que a potência e o hábito ainda estão presentes, ainda em uso, ela é a casa
do hábito, que não para de mostrar-se e quase de dançar nela, reabrindo-a incessantemente para um
novo e possível uso” (AGAMBEN, 2017, p. 85).

204
A partir dessa relação que podemos compreender o significado político da Igreja, enquanto
assembleia litúrgica. Apesar da piedade privada dos crentes no messias ser valorizada ao longo dos
escritos de Paulo e de outros autores bíblicos, estas só tem valor porque são preparações para a
celebração pública da eucaristia. Nessa praxe sacramental, Agamben enxerga o princípio de
inteligibilidade da “conjunção entre Igreja celeste e Igreja terrena [que] correspondem aqui à dupla
articulação entre opus operatum e opus operans, trindade imanente e trindade econômica que vimos
definir a liturgia” (AGAMBEN, 2013d, p. 36). Muitas impossibilidades que a filosofia de Agamben
enfrenta no contemporâneo podem ser compreendidas pela oscilação constante entre esses dois
pólos opostos da metafísica ocidental — em especial aquele entre reinado celeste e império terreno
que deu lugar a uma krisis sem fim no julgamento de Jesus por Pilatos. Nesse sentido, a perspectiva
oposta ao fechamento do escritório escatológico da Igreja é a recuperação do seu significado
144
político enquanto assembleia litúrgica. Ou ainda, conforme o filósofo italiano explica,
“definindo desse modo a particular operatividade de sua prática pública, a Igreja inventou o
paradigma de uma atividade humana cuja eficácia não depende do sujeito que a põe em obra e que
necessita dele, contudo, como de um ‘instrumento animado’ para realizar-se e tornar-se efetiva”
(AGAMBEN, 2013d, p. 37). Resistir às pressões do tempo que procuram institucionalizá-la em uma
temporalidade infinita é sinônimo do desafio da comunidade messiânica em permanecer realizando
o mistério da economia trinitária e da praxe dessa operatividade no mistério litúrgico.
No contexto de compreender qual é a natureza dessa esfera particular da ação humana que se
abre para a existência vivida na temporalidade messiânica, Agamben faz referência a um breve
texto de Walter Benjamin em seus Notizblöcke entitulado “Apontamentos para um trabalho sobre a
categoria de justiça” onde o conceito de justiça é articulado ao de inapropriabilidade — em vez de
ser compreendido como a repartição dos bens segundo as necessidades dos indivíduos. Nesse trecho
podermos ler o seguinte:

Compete a todo bem limitado na ordem espaço-temporal como expressão de sua


caducidade. A propriedade, enquanto presa na própria finitude, é, contudo, sempre
injusta. Por isso, nenhuma ordem de propriedade, independente de como se queira
concebê-la, pode levar à justiça. Esta consiste acima de tudo na condição de um bem
que não pode ser apropriado [das nicht Besitz sein kann]. Só esse é o bem, em
virtude do qual os bens se tornam sem posse [besitzlos]… A justiça não parece
referir-se à boa vontade de um sujeito, mas constitui um estado do mundo [einen
Zustand der Welt], a justiça designa a categoria ética do existente, a virtude, a
categoria fixa daquilo que é devido. Pode exigir-se a virtude, mas a justiça em

144
Quanto a relação entre liturgia cristã e política, Agamben nos explica que: “se a tese de Peterson é correta, devemos
olhar para o elemento doxológico-aclamatório não só como aquilo que une a liturgia cristã ao mundo pagão, mas como
o próprio fundamento jurídico do caráter ‘liturgico’, ou seja, público e ‘político’, das celebrações cristãs. O termo
leitourgia (de laos, ‘povo’)significa etimologicamente ‘prestação pública’ e a Igreja sempre insistiu em sublinhar o
caráter público do culto liturgia, em oposição às devoções privadas. […] A tese de Peterson fundamenta nesse sentido o
caráter público da liturgia através das aclamações do povo reunido em ekklésia” (AGAMBEN, 2011, p. 194).
205
última instância só pode ser, como estado do mundo ou como estado de Deus
(BENJAMIN apud AGAMBEN, 2017, p. 104).

As contribuições que Benjamin traz no texto acima são importantes para o raciocínio de
Agamben uma vez que ele nos fornece uma noção de justiça que não se compreende como uma
virtude do indivíduo, mas como um estado do mundo — ou um estado de Deus, como Benjamin
termina. Poderíamos dizer que, por um traço messiânico, a estrutura do argumento de Benjamin se
aproxima muito da de Paulo que é utilizada exaustivamente por Agamben. O início se dá com a
constatação da limitação e caducidade dos bens e da propriedade dos mesmos, fazendo desta última
sempre injusta — algo muito próximo da convicção paulina de que “a forma desse mundo está
passando” (1 Coríntios 7.31). Em razão disso, nenhum tipo de propriedade, seja de qual ordem for,
poderá levar à justiça, uma vez que estaria igualmente limitada à caducidade do bem que lhe é
próprio. Nesse sentido, a justiça só poderia vir de um estado de coisa inapropriável. Com isso, a
justiça deixa de ser encarada à partir da boa vontade de um sujeito, para ser articulada no interior de
um novo estado de coisas, uma configuração da realidade em que os bens são usados sem posse —
um estado de Deus, conforme Benjamin. É nesse contexto que Agamben argumenta que essa seria a
única relação possível com um estado supremo do mundo, onde: “o uso se apresenta como a relação
com um inapropriável” (AGAMBEN, 2017, p. 105).
Essa é, portanto, uma das maneiras de compreendermos no interior da obra de Agamben
como o filósofo usa vários elementos diferentes da grande tradição cristã em uma renovada
articulação para fazer surgir meios de antagonizar e inoperar os dispositivos de gestão infinita da
população. Sob a rubrica da existência vivida na temporalidade messiânica temos um condensado
de argumentos e conclusões que Agamben chega que são teses importantes para a política
contemporânea. Em um trecho derradeiro do livro Il regno e la gloria podemos ler um condensado
privilegiado de conclusões que Agamben chega em sua genealogia teológica da economia e do
governo:

Paulo recorre algumas vezes a esse símbolo a fim de descrever a condição


escatológica dos justos, comparados aos atletas que correm em uma competição
(“Eles receberam a coroa que renece, nós, uma coroa incorruptível”, em 1Cor 9.25;
“combati o bom combate, completei a corrida, conserve a fé.Aguarda-me a coroa da
justiça que naquele dia me dará o Senhor”, em 2Tm 4.7-8). No entanto, o tema da
vida eterna não indica para ele somente uma condição futura, mas a qualidade
especial da vida no tempo messiânico (ho nyn kairos, o tempo de agora), ou seja, a
vida em Jesus messias (“a vida eterna através de Jesus messias, nosso Senhor”, em
Rm 5.21). Essa vida é marcada por um senso especial de inoperosidade que de certa
maneira antecipa no presente o sabatismo do Reino: o hós mé, o “como se não”.
Assim como o Messias cumpriu e, ao mesmo tempo, tornou inoperosa a lei (verbo
que Paulo utiliza para exprimir a relação entre o Messias e a lei — katargein —
significa literalmente “tornar argos”, inoperoso), assim também o hós mé conserva
e, ao mesmo tempo, desativa no tempo presente todas as condições jurídicas e todos
os comportamentos sociais dos membros da comunidade messiânica […]. Sob o

206
signo do “como se não”, a vida não pode coincidir com ela mesma e divide-se em
uma vida que vivemos (vitam quam vivimus, o conjunto dos fatos e dos
acontecimentos que definem nossa biografia) e uma vida para que e em que vivemos
(vita qua vivimus, o que torna a vida vivível e dá a ela um sentido e uma forma).
Viver no Messias significa justamente anular e tornar inoperosa em cada instante e
em cada aspecto da vida que vivemos, fazer aparecer nela a vida pela qual vivemos,
que Paulo chama de "vida de Jesus” (“zoé tou Iesou”, zoé e não bios!): “Porque nós,
os seres vivos, estamos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que
também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne” (2Cor 4.11). A vida
messiânica é a impossibilidade da vida coincidir com uma forma predeterminada, a
revogação de todo bios para abri-lo para a zoé tou Iesou. E a inoperosidade que aqui
acontece não é simples inércia ou repouso, mas é, ao contrário, a operação
messiânica por excelência (AGAMBEN, 2011, p. 270-271).

Da condição escatológica daqueles que vivem segundo a fé no messias, Agamben parece


querer explorar o senso especial de inoperosidade que tem condições de antecipar no presente o
sabatismo típico do reinado messiânico. Através de um renovado uso inapropriável do mundo que o
“como se não” messiânico oportuniza, Agamben acredita poder dar lugar a uma ação política
inaudita. O hós mé conserva mas, ao mesmo tempo, desativa no tempo presente todas as condições
jurídicas e todos os comportamentos sociais daqueles que se tornam membros da comunidade
messiânica pela fé. As identidades históricas pontuais deixam de ser os pontos de partida para se
posicionar-se politicamente, para darem lugar a revogação de todas as vocações pelo chamado de
viver a vida do messias — fazendo com que a comunidade que vem antecipe-se no presente. As
vidas factuais deixam de coincidir com elas mesmas e são divididas por um corte de segunda ordem
que separa da vida o conjunto de acontecimentos que definem uma biografia, para dar lugar a uma
vida que dá sentido e forma à existência. — uma forma de vida. Esse e o significado mais íntimo do
que Paulo apresenta como vida no messias: desativar e tornar inoperoso cada instante vivido e cada
aspecto da vida que meramente vivemos, para que então surja também, momento após momento, a
vida pela qual vivemos. Trata-se da revogação de todo bios para dar lugar à zoé aiónios, a vida
145
eterna no messias. Agindo assim teremos condições de entender algo que Fabián Ludueña
Romandini nos lembra: “à diferença do mundo clássico, com o cristianismo todos os atos pessoais,
incluídos os aparentemente mais triviais, transformam-se imediatamente em ações políticas”
(ROMANDINI, 2012, p. 108).
Tais formulações alcançadas nos permitem recolocar uma questão de ordem muito prática e,
por isso, de importância especial para a ação política. Trata-se da relação entre as experiências
últimas e as experiências penúltimas. Já abordamos introdutoriamente a diferença entre as duas
possibilidades de experiência em temporalidades distintas quando descrevemos a dissemelhança

145
É justamente por isso que Agamben defendeu que: “Walter Benjamin, que havia compreendido perfeitamente a lição
de Paulo, repete a seu modo: ‘todo dia, todo instante é a pequena porta pela qual o messias entra” (AGAMBEN, 2016a,
p. 14).

207
entre o tempo apocalíptico do tempo messiânico. Entretanto, Agamben chama nossa atenção em sua
palestra à Igreja de Notre-Dame que foi o pastor e teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer que:
“denunciou a falsa alternativa entre radicalismo e compromissos, que consiste em ambos os casos
em separar drasticamente as realidades últimas das penúltimas, ou seja, das que definem nossa
condição humana e social de todo dia” (AGAMBEN, 2016a, p. 18). A partir dessa compreensão
podemos sustentar que a transformação a qual Agamben se refere recorrentemente em seus escritos
não tem apenas importância última, mas mostra-se relevante justamente para as realidades
penúltimas. Em vez de afirmar que o tempo messiânico seria outra temporalidade diferente da que
vivemos cotidianamente na sociedade, reservada para um futuro longínquo e indeterminado, a
escatologia messiânica é “nada além de uma transformação da experiência das coisas penúltimas”
(AGAMBEN, 2016a, p. 19). Essa característica é determinante para repensarmos a prática política
de todos os dias, uma vez que não nos deixa limitados a esperar um dia do juízo final — ou da
revolução — para nos ocuparmos com aquelas atividades que são, por definição, destituístes e
inoperantes. 146
Na verdade, podemos ir além e afirmar que as realidades últimas só terão lugar a partir das
posturas assumidas e decisões tomadas no tempo das coisas penúltimas. É por isso que Bonhoeffer
dirá que o radicalismo ou o quietismo são falsas opções políticas polarizadas. Sua oposição só
acontece quando os fenômenos sociais não são encarados à luz das transformações realizadas no
tempo pelo acontecimento messiânico. Nesse sentido, podemos dizer que a importância política da
temática do tempo messiânico encontra-se em seu potencial de realizar e levar à cabo as coisas
últimas da história através de um engajamento renovado com as realidades penúltimas. Viver o fim
da história não significa apostar na cessação da mobilidade política pela vitória de uma ideologia
dominante — como fez Fukuyama. Antes, conforme Agamben bem resume: “viver as coisas
últimas significa antes de tudo viver as coisas penúltimas. E, posto que as realidades últimas se
realizam antes de tudo nas penúltimas, elas — contra quaisquer radicalismos — não podem ser
impunemente negadas”; por outro lado, vale também dizer que “pela mesma razão e contra
qualquer tentação de compromisso — as coisas penúltimas não podem ser em nenhum caso
invocadas contra as últimas” (AGAMBEN, 2016a, p. 19). Viver na temporalidade messiânica é
viver nas realidades últimas através da transformação das realidades penúltimas, ou ainda, viver a

146
Com uma clareza de aparecimento raro nas páginas de Agamben, o filósofo italiano diz o seguinte: “o messianismo
paulino deve ser visto nessa perspectiva. Funciona como corretivo da hipertrofia demoníaca dos poderes angélicos e
humanos. O messias desativa e torna inoperosos (katargeó — ‘eu torno argos’, inoperoso, e não simplesmente ‘eu
destruo’ — é o termo técnico usado por Paulo para exprimir a relação entre o messias e os poderes dos anjos e dos
homens) tanto a lei quanto os anjos e, dessa maneira, reconcilia-os com Deus (todas as coisas, como se lê em Cl 1.15-
20, ‘inclusive os tronos, as dominações, os principados e as potências’, foram criadas através do messias, e através dele
serão reconciliados no fim com Deus” (AGAMBEN, 2011, p. 184).

208
vida do messias, a vocação para a vida eterna, através da transformação das vocações factuais no
momento do tempo presente. Viver as realidades últimas é, nesse sentido, viver de outra maneira as
realidades penúltimas.
No centro dessa operação messiânica, que reúne relativização das vocações factuais, uso
instrumental do mundo e transformação qualitativa no tempo presente, está a noção de
inoperosidade. Essa noção, que poderíamos dizer, com segurança, que também está no centro de
147
toda a filosofia de Agamben, encontra aqui sua realização mais clara, isso porque
“Paulo exprime a realização messiânica entre o que é último e o que não o é através do verbo
katargein, que não significa ‘destruír’, mas tornar inoperante. A realidade última desativa, suspende
e transforma as realidades penúltimas” (AGAMBEN, 2016a, p. 19) — ao mesmo tempo em que é
nas ações realizadas na realidade penúltima que se testemunha e põe à prova as expectativas
últimas. Em um trecho decisivo da investigação sobre o uso dos corpos, Agamben explicita o lugar
singular dessa noção em seu raciocínio e sua ligação com os temas que articulamos até aqui:

No decorrer dessa investigação sobre o uso dos corpos, nunca deixou de aparecer
um termo: inoperosidade. Os elementos de uma teoria da inoperosidade foram
elaborados em volume precedente; o conceito de uso que procuramos definir só
pode ser compreendido corretamente se o situarmos no contexto daquela teoria. O
uso é construtivamente uma prática inoperosa, que só ocorre com base em uma
desativação do dispositivo aristotélico potência/ato, que confere à energeia, ao ser-
em-obra, o primado sobre a potência. Por essa perspectiva, o uso é um principio
inteiro à potência , que impede que esta se esgote simplesmente no ato e a impele a
voltar-se para si mesma, tornar-se potência da potência, poder a própria potência (e,
por isso, a própria impotência). A obra inoperosa, que resulta dessa suspensão da
potência, expõe no ato a potência que a levou ao ser: se for uma poesia exporá na
poesia a potência da língua; se for uma pintura, exporá sobre a tela a potência do
pintar (do olhar); se for uma ação, exporá no ato a potência do agir. So nesse sentido
pode-se afirmar que a inoperosidade é poesia da poesia, pintura da pintura e práxis
da práxis. Ao tornar inoperosa as obras da língua, das artes, da política e da
economia, ela mostra que o corpo humano pode, abrindo-o para um novo uso
possível. A inoperosidade como práxis especificamente humana também permite
compreendermos de que maneira o conceito de uso aqui proposto (como o de forma-
de-vida) se refere ao conceito marciano de “forma de produção”. […] Concentrado
unicamente na análise das formas de produção, Marx menosprezou a análise das
formas de inoperosidade, e essa carência certamente está na raiz de algumas aporias
de seu pensamento, ainda mais no que diz respeito à definição da atividade humana
na sociedade sem classes. Com isso, seria essencial uma fenomenologia das formas
de vida e de inoperosidade que procedesse pari passo de uma análise das formas de
produção correspondentes. Na inoperosidade, a sociedade sem classes já está
presente na sociedade capitalista, assim como, segundo Benjamin, os estilhaços do

147
A metodologia de crítica que Agamben empreende em toda a saga Homo Sacer é bastante coerente e segue um
caminho básico. Antes de apontar a necessidade de um poder destituinte ou mesmo a urgência de uma nova política,
Agamben sempre inicia seus raciocínios mostrando a condição paradoxal entre duas categorias clássicas da filosofia
política ou ontologia. Esse é o primeiro movimento de toda e qualquer argumentação de Agamben – sempre seguido de
um passo que evidência a zona de indeterminação entre essas duas categorias, para depois, ao final, apontar para a
inoperosidade destituinte. Ou ainda, nas palavras do comentador William Watkin: “para Agamben, todos os conceitos
ocidentais de qualquer significância derivam sua longevidade, consistência e operação do conflito dialético interno entre
elementos em comum e elementos próprios”, ou seja, “cada conceito no Ocidente é bifurcado” (WATKIN, 2014, p. xii).
209
tempo messiânico estão presentes na história em forma eventualmente infame e
risíveis (AGAMBEN, 2017, p. 117-118).

Com essas palavras, temos condições de compreender como os paradigmas teológicos do


anúncio sobre o Reino messiânico contribuem para fazer surgir uma prática inoperosa que desativa
o dispositivo aristotélico potência e ato — e, por conseguinte, todas as implicações éticas e políticas
dessa metafísica tradicional. Ao empreender uma divisão de segunda ordem sobre as vocações
factuais que estamos tão acostumados a experimentar no cotidiano e, até mesmo, a construir política
e ética sobre elas, a vocação messiânica, ao afirmar a inoperosidade de toda posição existencial
concreta, mostra que o corpo humano pode abrir-se para um novo uso possível. Um uso dos corpos
que não será mais marcado pela injustiça da propriedade em sua caducidade, mas de um uso
inapropriável da realidade que aponta para um estado divino do mundo. Somente uma
fenomenologia dessas formas de vida inoperosas e desarticulados dos dispositivos de gestão infinita
dos corpos é que conseguirá sinalizar para a presença temporal daquilo que é característico do
Reino messiânico eterno — mesmo que em formas infames, fragmentadas e risíveis, como dizia
Walter Benjamin. 148
Por tudo isso que podemos sustentar que a compreensão paulina do reinado messiânico não
é a de um quietismo religioso frente à espera de um juízo derradeiro. Antes, Agamben nos diz que:
“contrariamente à representação corrente da escatologia, é preciso lembrar que o tempo do messias
não pode ser, para ele, um tempo futuro. A expressão com a qual se refere a este tempo é sempre ho
nyn kairos, ‘o tempo de agora’” (AGAMBEN, 2016a, p. 20). Segundo a compreensão que tanto
Benjamin quanto Agamben recuperam de Paulo é que as formas de vida e experiências da vida
eterna já estão presentes no interior da temporalidade infinita da gestão governamental. Conforme
começamos essa seção, o paradigma para descrever a vida nessa temporalidade é o termo paroikia e
parousia, utilizados para descrever a estadia da Igreja na história. Uma presença no tempo que é um
“já” e, simultaneamente, um “ainda não”. Na verdade, Agamben sumariza dizendo que: “estanciar
como estrangeiro e presença do messias, possuem a mesma estrutura”, ou seja, “uma presença que

148
Em um trecho significativo, Agamben diz que: “No início e no fim do poder mais elevado está, segundo a teologia
cristã, uma figura não da ação e do governo, mas da inoperosidade. O mistério inenarrável — que a glória, com sua luz
deslumbrante, deve esconder do olhar dos scrutatores maiestatis [escrutadores da majestade] — é o da inoperosidade
divina, daquilo que Deus faz antes de criar o mundo e depois que o governo providencial do mundo chegou ao seu fim.
[…] A glória, tanto na teologia quanto na política, é justamente aquilo que toma o lugar daquele vazio impensável que é
a inoperosidade do poder; e, no entanto, é precisamente essa indizível vacuidade que nutre e alimenta o poder (ou
melhor, o que a máquina do poder transforma em nutrimento). Isso significa que o centro do dispositivo governamental,
o limiar em que Reino e Governo se comunicam e se distinguem sem cessar é, na verdade, vazio, é apenas sábado e
katapausis. No entanto, essa inoperosidade é tão essencial para a máquina que deve ser assumida e mantida a qualquer
preço em seu centro na forma de glória. Na iconografia do poder, tanto profano quanto religioso, essa vacuidade central
da glória, essa intimidade entre majestade e inoperosidade, encontrou um símbolo exemplar na hetoimasia tou thronou,
isto é, na imagem do trono vazio” (AGAMBEN, 2011, p. 264-265).

210
distende o tempo, um já que também é um não ainda, uma dilatação que não é um revira para mais
tarde, mas uma diferença e uma desconexão interna ao presente, que nos permite aferrar o tempo”
(AGAMBEN, 2016a, p. 20). Ser estrangeira na temporalidade infinita do governo da população é a
única maneira da comunidade messiânica fazer frente e produzir antagonismos fortes o suficiente
para fraturar a krisis infinita em que nos encontramos e, verdadeiramente, levar à cabo o tempo que
resta. Contrário senso também é verdadeiro e nos ajuda a compreender a situação política da Igreja
há dois mil anos e no presente: sujeitar-se às estruturas temporais do império para permanecer
indefinidamente enquanto instituição histórica é sinônimo da entrega de Jesus à Pilatos por parte
dos judeus para continuarem dizendo que “não temos rei, senão César” (João 19.15). 149

2.3.2. O mistério da iniquidade: a Igreja e o poder que freia em tensão na história

A argumentação de Agamben a respeito das distinções e relações entre os acontecimentos


últimos e os eventos penúltimos correspondem a ganhos significativos na compreensão daquilo que
é típico da vocação messiânica. Distinguir o fim dos tempos e o tempo tempo do fim não apenas
nos livre das argumentações ideológicas a respeito do fim da história, como também no coloca em
uma renovada dimensão compreensiva que está muito além da polarização entre radicalismos e
conservadorismos. Na verdade, a operação empreendida pela compreensão das distinções
tipicamente messiânicas na compreensão da história não só torna inoperosas espectativas utópicas
sempre lançadas a um futuro indeterminado, como também opera uma renovação na forma de viver
o presente – enquanto a dimensão dos eventos penúltimos que conseguem sinalizar e antecipar os
acontecimentos últimos. Isso está explícito na argumentação de Agamben quando ele, ainda falando
à Catedral de Notre Dame, explica que: “assim como o tempo messiânico não é outro tempo, mas
uma íntima transformação do tempo cronológico, viver as coisas últimas significa antes de tudo
viver de outra maneira as coisas penúltimas” (AGAMBEN, 2016a, 18-19). Para além de uma
dimensão eminentemente prática e ao alcance imediato de nossas possibilidades, essa diferenciação
ajuda a corrigir a compreensão equivocada – apesar de muito difundida – que a escatologia refere-

149
Em um importante trecho conclusivo das teses de Il regno e la gloria, Agamben faz as mesmas aplicações filosófico-
teológicas à política contemporânea: “mais uma vez, na dimensão da glória, a Igreja e o poder profano ingressam em
um longo limiar de indeterminação, no qual é difícil avaliar as influências recíprocas e os intercâmbios conceituais.
Enquanto o Estado territorial soberano se prepara para assumir a figura de um ‘governo dos homens’, a Igreja, deixando
de lado as preocupações escatológicas, identifica cada vez mais sua missão com o governo planetário das almas, não
tanto para sua salvação, mas para ‘a maior glória de Deus’. Daí nasce a reação indignada de um filósofo católico do
século XX diante desse Deus que não é senão egoísmo, uma espécie de ‘César eterno’, que recorre aos homens apenas
'como instrumento a fim de mostrar a si mesmo sua glória e sua potência’” (AGAMBEN, 2011, p. 239).
211
se tão somente aos acontecimentos últimos do fim dos tempos. A estreita decorrência dos
acontecimentos últimos a partir das realidades penúltimas mostra que a escatologia nada mais é do
que uma transformação da experiência cotidiana das coisas penúltimas. Esse é o pressuposto que
está implicado na leitura que Agamben faz da realização messiânica de Paulo. Ele procura deixar
claro que: “Paulo exprime a realização messiânica entre o que é último e o que não é através do
verbo katargein, que não significa ‘destruir’, mas tornar inoperante”, isso significa dizer que “a
realidade última desativa, suspende e transforma as realidades penúltimas – e, todavia, é
precisamene e acima de tudo nelas que ela testemunha e se põe à prova” (AGAMBEN, 2016a, p.
19). O teste a que submetemos uma forma de vida se realiza nesse tempo que resta para que o
tempo acabe.
Nessas realidades descritas por Agamben, a Igreja assume uma resposabilidade diferenciada,
enquanto comunidade messiânica. Justamente pelo fato de a escatologia não se referir a um mero
tempo futuro, mas relacionar-se aos processos que são mais próprios de um tempo de agora,
paroikia [estanciar como estrangeiro] e parousia [presença do messias] revelam-se intimamente
relacionados. Seja na epístola de Clemente aos Coríntios, ou o próprio Agambe dirigindo-se à
Catedral de Notre Dame, o termo “paroikousa” refere-se ao estado provisório da comunidade
messiânica no tempo, enquanto estrangeira e peregrina – em oposição a um estabelicimento nativo e
residência plena do cidadão. Esse é o tom do pronunciamento de Agamben em Paris: “gostaria de
retomar essa fórmula para dirigir-me aqui e agora à Igreja de Deus, em estância ou em exílio em
Paris” e, em seguida, ele mesmo colocar a questão: “Por que escolhi essa fórmula? Porque o tema
de minha conferência é o messias, e paroikein, viver em estância como um estrangeiro. É o termo
que designa a morada do cristão no mundo e sua experiência do tempo messiânico” (AGAMBEN,
2016a, p. 11-12). No início de sua conferência o filósofo já deixa claro que a presença última do
messias nas realidades penúltimas da vida se mantém intimamente relacionada com que a existência
estrangeira das paróquias cristãs. Na verdade, Agamben é mainda mais radical ao final de sua fala
em Paris dizendo que: “a experiência deste tempo não é, assim, algo que a Igreja possa escolher
fazer ou não fazer. Não existe Igreja a não ser neste tempo e através desse tempo” (AGAMBEN,
2016a, p. 20). Não existe paroikia sem a constante eminência da parousia. Todas as vezes na
história que a Igreja deixou de afimar sua identidade fundamental através da instável figura do
estrangeiro, e procurou adquirir estabilidade por meio da cidadania temporal, ela não só correu o
risco de ser arrastada pela ruína das estruturas de poder às quais ela se alinhou, como também de
desfigurar-se a ponto de perder sua razão de ser. Não existe comunidade messiânica sem anúncio de
sua presença – mesmo que isso signifique seu imediato fim enquanto instituição.

212
À luz dessas pressuposições específicas, Agamben coloca a derradeira convocação política
que diz respeito ao antagonismo forte o suficiente para fazer frente à gestão governamental infinita
da população. Nas suas palavras:

O que essa experiência significa na Igreja hoje? É essa pergunta que vim propor aqui
e agora à Igreja em estância em Paris. A evocação das coisas últimas parece ter de
tal maneira desaparecido das palavras da Igreja, que poderíamos dizer não sem
ironia que a Igreja de Roma fechou o guichê escatológico. E é com uma ironia ainda
mais amarga que um teólogo pôde escrever “Cristo anunciava o Reino, e foi a Igreja
que veio”. É uma constatação inquietante, sobre a qual os convido a refletir. Depois
do que eu lhes disse sobre a estrutura do tempo messiânico, é claro que não se trata
aqui de redarguir à Igreja, em nome do radicalismo, seu compromisso com o mundo.
E nem mesmo se trata, segundo o gesto do maior teólogo ortodoxo do século XIX,
Fiódor Dostoiévski, de apresentar a Igreja de Roma na figura do Grande Inquisidor.
Trata-se, na verdade, da capacidade da Igreja de ler o que Mateus (Mt 16.3) chama
“os sinais dos tempos”, ta semeia tón kairón. Quais são esses “sinais” que o apóstolo
opõe ao vão desejo de conhecer os aspectos do céu? Se a história é penúltima em
relação ao Reino, é nela, antes de tudo, que este – como vimos – tem seu lugar.
Viver o tempo do messias exige assim a capacidade de ler os sinais de sua presença
na história, de reconhecer em seu curso a signatura da economia da salvação
(AGAMBEN, 2016a, p. 20-21).

Para além da ousadia que o filósofo italiano tem de pronunciar o ocaso escatológico da
Igreja romana na frente do bispo de Paris, o que nos chama atenção nesse trecho é como ele
recoloca a responsabilidade diferenciada da Igreja no momento presente. A pergunta sobre o
significado da experiência messiânica para a Igreja hoje é sinônimo de questionar sobre suas
capacidades de ler os sinais do tempo e de posicionar-se adequadamente neles. Perder-se na leitura
da signatura da economia da salvação em curso significa, para a Igreja, alinhar-se às estruturas
governamentais que serão inoperadas pela presença do messias.
Os leitores de Agamben pode ter a falsa sensação de descanso frente ao diagnóstico urgente
que o filósofo põe para a Igreja cristã na conteporaneidade, pelo simples fato dela referir-se a uma
instituição que parece ter cada vez menos significado nas nossas sociedades secularizadas e
multiculturais. Entretanto, a preocupação de Agamben não tangencia apenas a membresia das
igrejas cristãs, mas aponta também para um desequilíbrio histórico e político já mencionado na
introdução do presente trabalho. Agamben está convencido de que na história das ideias tanto a
patrística quanto os filósofos que refletiram sobre a história (incluindo o próprio Marx), existe uma
compreensão em comum que está ameaçada. Segundo o filósofo italiano, o que existe de consenso
entre diferentes filosofias da história é a constatação de que: “a história se apresenta como um
campo de tensões atravessado por duas forças opostas” (AGAMBEN, 2016a, 22). Uma dessas
forças já foi exaustivamente trabalhada nesse trabalho. Trata-se justamente do messias ou da igreja,
“cuja economia, enquanto economia da salvação, é constitutivamente finita” (AGAMBEN, 2016a,
p. 22). Não obstante essa força em tensão na história, existe uma segunda potência mais misteriosa
213
e que exige de nós, nessa altura da argumentação, uma compreensão mais pormenorizada. Agamben
a descreve como sendo àquela realidade que “Paulo, em um tão célebre quanto enigmático passo da
Segunda epístola aos tessalonicenses, chama to katechon – retém e incessantemente retarda o fim
no curso linear e homogêneo do tempo cronológico” (AGAMBEN, 2016a, p. 22). Nesse sentido,
existe tanto o tempo que resta para que o tempo termine, quanto o poder que freia e,
incessantemente, retém o fim do curso linear do tempo cronológico.
A origem da expressão grega katechon advém do vocabulário messiânico de Paulo, em
especial no célebre e enigmático trecho da epístola de Paulo (2Ts 2.3-9) que reproduzimos abaixo:

Ninguém vos engane de nenhum modo: se antes não vier a apostasia e for revelado o
homem da anomia, o filho da destruição, aquele que está contra e se eleva sobre tudo
aquilo que se diz Deus ou objeto de culto, até se sentar ele mesmo no templo de
Deus, mostrando-se ele próprio como Deus. Não vos lembrais de que, quando eu
estava ainda entre vós, dizia-vos estas coisas? E agora conheceis aquilo que detém
[to katéchon], a fim de que seja revelado no seu tempo. De fato, o mistério da
anomia já está em ato [energeítaí], somente aquele que detém [ho katéchón], a fim
de que agora seja tirado do meio. E então será revelado o sem lei [ánomos], que o
Senhor abolirá com o sopro da sua boca e tornará inoperante [katergéseí] com a
aparição da sua presença [parousía]. A presença [parousía] daquele é segundo o ser
em ato de Satanás em toda potência [kat’ enérgeian tou sataná en pasé dynámeí]
(PAULO apud AGAMBEN, 2016, p. 127).

Poucos trechos das epístolas paulinas trazem consigo tantos conceitos fundamentais para a
compreensão do significado da vida na temporalidade messiânica. Entretanto, ao mesmo tempo, em
que a passagem é rica em temas messiânicos, ela é disputada quanto ao seu significado original. 150
O especialista na obra de Paulo e professor da Universidade Teológica de Kampen, Herman
Ridderbos, nos explica que contexto maior da argumentação paulina diz respeito certos
acontecimentos que antecedem a volta do messias. Ou seja, “manifesta-se o ‘programa’
determinado por Deus com respeito ao grande fim dos tempos” – que Agamben também identifica e
chama de economia da salvação. Nesse sentido, Ridderbos continua nos explicando que,
“assim como se pode falar da ‘plenitude do tempo’ com respeito à vinda de Jesus em carne, isto é, o
cumprimento de um plano divino de redenção ‘em tempos oportunos’, assim como a volta do
Senhor, não apenas tem um tempo específico determinado, mas também uma sequência de

150
O filósofo argentino Fabian Ludueña Romandini dedica-se a esse tema em um excelente artigo científico onde ele
reconhece a ampla bibliografia a respeito do tema tão controvertido. Quanto a isso ele diz que: “nesse sentido, a
tradição cristã do Anticristo e do katechon tem seu ponto de partida bíblico na Segunda Epístola aos Tessalonicenses de
São Paulo (JEWETT, 1986), no sonho de Nabucodonosor do Livro de Daniel (CAQUOT, 1967), em a Primeira Epístola
de João e no Apocalipse de João (BADILITA, 2005, p. 33-126). Por razões de espaço e de racionalidade temática, neste
artigo nos concentraremos quase exclusivamente nos textos paulinos, dada a preponderância decisiva que esta fonte
teve na apocalíptica cristã em geral e na filosofia política moderna e contemporânea em particular” (ROMANDINI,
2016, p. 5). Não obstante a afirmação de Romandini, o trabalho mais exaustivo em língua portuguesa ainda é de
Ricardo Quadros Gouvêa (2011) que utilizaremos no corpo do texto de nossa argumentação. Também serão úteis para
nossa argumentação a obra de Herman Ridderbos (2013) e de William Hendriksen (2007).
214
acontecimentos” (RIDDERNOS, 2013, p. 569). A convocação feita na Catedral de Notre Dame
para que a Igreja volte a interpretar os sinais do tempo diz respeito à atenção a esse programa. Sua
importância não pode ser substimada, pois, conforme o olhar do especialista, “estamos lidando aqui
com um fenômeno que pode ser chamado, talvez, de essência do apocalipse do (Antigo e) Novo
Testamento. [...], isto é, por pertencer ao plano oculto de Deus, é um ‘mistério’” (RIDDERBOS,
2013, p. 570). É claro que isso não deve ser encarado como uma busca que calcule os dias e as
horas da volta do messias, em uma espécie de “escatologia de rumo” como tornou-se popular em
alguns ambientes teológicos. Antes, trata-se de uma tomada de consciência de que “certos
acontecimentos que antecedem o dia do Senhor e a partir dos quais lhe seja possível, num certo
sentido, determinar que já está ‘livre’ o caminho para a vida do Senhor” (RIDDERBOS, 2013, p.
570). Entretanto, essa atitude de atenção aos acontecimentos e circunstâncias sem as quais o tempo
do fim “não pode” vir não é o enigma do texto paulino. Em vez disso, o mistério está em torno do
fato de que uma dessas circunstâncias antecipatórias é uma força que retarda o tempo do fim.
Apesar da brevidade no tratamento da questão por Agamben, não é uma questão simples falar sobre
“aquilo que detém” [to katéchon].
A questão sobre a quem ou a quê Paulo se refere como esse poder que freia foi,
historicamente, interpretado de diversas maneiras. Com exceção dos próprios autores bíblicos, uma
das primeiras propostas para entender o essa força katechônica foi a tradição que remonta a
Tertuliano, e que Agamben menciona logo de entrada e seu seminário sobre a epístola aos
Romanos. O filósofo italiano diz que: “uma antiga tradição, já presente em Tertuliano, identifica
esse poder que retarda ou retém o fim dos tempos com o Império Romano, que desenvolveria, nesse
sentido, uma função histórica positiva” (AGAMBEN, 2016, p. 126). Considerado, ao lado de
Agostinho e Cipriano, Tertuliano é um dos três maiores Padres latinos. Seu tratamento às questões
em discussão aqui estão presentes em seu livro Adversus Marciones, em que ele identifica os
seguidores do teólogo heterodoxo Marcião os anticristos. Além disso, Tertuliano não se limita a
falar do anticristo em termos de indivíduos, mas ele também enxergava no Império Romano uma
estrutura que retardada a revelação do messias (cf. GOUVÊA, 2011, p. 262). Quanto a isso, o
filósofo argentino Fabian Ludueña Romandini nos chama atenção para o fato de que com essa
escolha, Tertuliano é protagonista em um programa teológico-político duradouro no Ocidente: “é na
obra de Tertuliano que os caminhos que na filosofia política ocidental são para identificar o
katéchon com o Império Romano como uma força positiva e negativa são abertos pela primeira
vez”, isso vai fazer com que “os exegetas posteriores enfatizarão uma ou outra tradição textual do
corpus de Tertuliano para apoiar suas posições diante dos poderes terrestres” (ROMANDINI, 2016,
p. 17).

215
Textualmente, existem alguns pontos a favor dessa interpretação que, inclusive, será
sustentada por Agamben com algumas modificações. Ridderbos nos explica que: “essa concepção
pode explicar a alternância do masculino e do neutro no refreamento. Chegou-se até mesmo a ver
uma alusão na palavra ‘deter’ (katechein) ao nome do imperador que então governava, Claudius
151
(claudo = tapar, fechar, impedir)” (RIDDERBOS, 2013, p. 582). Todavia, apesar disso, alguns
detalhes parecem não fazer sentido com a hipótese dominante nos primeiros séculos da Igreja.
Ridderbos explica que, em primeiro lugar, “a menos que se deseje falar de uma profecia não
cumprida, é preciso deslocar-se do governo romano para o governo em geral como refreador do
anticristo, sendo que nesse caso a alternância entre masculino e neutro torna-se obscura”
(RIDDERBOS, 2013, p. 582). Nesse sentido, o ponto crítico diz respeito a incoerência de sustentar
que era simplesmente o Império Romano que retardadava o tempo do fim após esse mesmo império
ter sucumbido. O deslocamento dessa estrutura imperial específica para uma leitura sobre o governo
em geral parece mais atraente, inclusive para Agamben.
De qualquer forma, tal dificuldade de sustentar a interpretação de Tertuliano após a queda
do Império Romano deu lugar a uma outra explicação que ganhou muito espaço na igreja moderna e
na filosofia contemporânea. Ridderbos diz que: “outro ponto de vista é aquele que pode ser
encontrado em alguns patriarcas da igreja e em Calvino e que, subsequentemente, foi defendido
especialmente por Cullmann e, seguindo seus passos, por Munck”, basicamente essa interpretação
“encontra o refreamente do anticristo no fato de que o evangelho deve antes ser proclamado a todos
os povos. Só quando isso tiver ocorrido é que pode vir o fim” (RIDDERBOS, 2013, p. 583). Para
além do fato de ser, ainda hoje, uma visão dominante na interpretação do trecho paulino em
questão, essa visão a respeito do poder katechonico deu lugar para que outros filósofos
contestassem não só Tertuliano, mas o próprio Agamben em sua opção interpretativa. Estamos nos
referindo a profícua discordância entre Agamben e o professor emérito da Faculdade de Filosofia da

151
Os comentários adicionais de Romandini são importantes para termos dimensão da consolidação dessa hipótese por
importantes nomes da Igreja antiga: “temos aqui, no entanto, uma posição muito mais matizada do que a submissão
total ao Império que Eusébio de Cesaréia havia proclamado ao estabelecer laços indissociáveis entre a pax christiana e a
pax romana. Por outro lado, o Ambrosiastro identifica o início do mistério da iniqüidade (mysterium inquitatis) com
Nero e o katechon com o regnum Romanum que deve ser destruído para que o Anticristo seja revelado
(AMBROSIASTER, 1844-1855, col. 457 A). João Crisóstomo, em seu comentário à Epístola, enfrenta o problema da
identidade do katéchon e dá conta das respostas históricas ao problema: ou é a graça do Espírito ou o Império Romano.
Crisóstomo dirá que, se o apóstolo quisesse se referir ao Espírito, não o teria dito obscuramente, mas claramente. A
referência corresponde, decididamente, ao Império Romano e o Anticristo, dirá Crisóstomo, refere-se à figura de Nero.
A escuridão das palavras de Paulo se deve à necessidade de não despertar inimigos perigosos ao anunciar a necessidade
da destruição do Império para a chegada do Reino (JUAN CRISOSTOMO, 1857-1866, col. 485). A mesma tradição é
adotada por Jerônimo, que identifica Nero com o Anticristo e o Império com o katéchon que atrasa a chegada do
Anticristo e o fim dos tempos. Em Jerônimo, o katéchon tem claramente uma função negativa e o Império deve ser
destruído embora o apóstolo, reconhece o autor, ele não poderia dizer isso abertamente para evitar a perseguição contra
a Igreja” (ROMANDINI, 2016, p. 17-18).

216
152
Universidade San Rafaelle de Milão, Massimo Cacciari. Apesar de não mencionar
explicitamente nem a obra nem o próprio Agamben, não só as alusões retóricas são claras aos
argumentos do filósofo de Roma, como também a hermenêutica agambeniana é seriamente
questionada através da afirmação de uma posição exatamente contrária. Basicamente seu argumento
pressupõe que: “Paulo pôs em alerta a comunidade: a parusia do Senhor seguirá o ‘triunfo’ da
apostasia e da anomia, e isso, para que se realize o apocalipse, terá que ser precedido, por sua vez,
da destruição do que neste momento o retém” (CACCIARI, 2016, p. 31-32). Nesse sentido, ele
procura deixar evidente o quanto a parousia e o katechein estão intimamente entrelaçados e,
paradoxalmente interdependentes. Essa dependência será fundamental para ele sustentar a posição
contrária de Agamben apontando na direção daquela segunda alternativa que Ridderbos mencionou.
Em um trecho importante sobre a releitura que faz do império romano, Cacciari diz o seguinte:

Um tempo ‘messiânico’ é incompatível com sua ideia de imperium sine fine – e


todavia, de forma específica, é o elemento essencial de sua origem. A contrdição é
necessária. E é a mesma que diversas vezes foi evidenciada a propósito de Schmitt: é
katekhontica sua ideia de poder político? [...] Essa tensão, que abstratamente parece
contraditória, expressa, na verdade, a realidade do império: este não pode não ‘reter’
na própria época, não pode não deter-frear quem deseajaria ‘julgá-la’, mas, amo
mesmo tempo, é sempre chamado a pro-duzir, a conduzir mais além, isto é, a
transformar continuamente a própria estrutura e os próprios confins. A energia
katekhontica, de per si, é essencialmente executivo-administrativa, produz segurança
– mas uma segurança de fato impotente ante o propagar da anomia. O império é
concebível, por sua vez, somente como energia que em si contém para crescer, que
em si detém toda decisão, mas para aumentar irrefreavelmente o próprio domínio. O
império não pode que exigir auctoritas da augeo: sua civitas é augescens, ou não é.
Esta contém em si o próprio katechon, mas como um ‘mistério’ a serviço de sua
mais autêntica missão: a universalização do próprio domínio, fazer do mundo seu
próprio ‘sistema’. Impõe-se, aqui também, a figura do centauro! Fazer época, para o
império, não pode equivaler a exercício do poder que freia, posto que sua ideia de
poder é, ao contrário, pro-dutiva. No entanto, é ao interno de seu próprio ‘corpo’ que
o novo deve se produzir. [...] Eis aqui, então, a diferença essencial em relação ao
tempo messiânico: este é propriamente catastrófico, impõe uma mudança radical de
cena. Mas pode impô-lo porque a transformação se deve pelo irromper do
transcendente no horizonte da história. O império, ao contrário, inova-se, reproduz-
se inovando-se; e as formas dessa inovação devem ser inscritas em seu nomos,
válidas erga omnes. Segundo essa perspectiva, a forma política do império não
poderá jamais se confundir com a do katechon (CACCIARI, 2016, p. 39-41).

Em uma linguagem um pouco mais hermética que a do próprio Agamben, Cacciari procura
sustentar em trechos como o supracitado que a hipótese do império – seja ele romano ou germânico
– não é conciliável com a noção de “poder que freia” de Paulo, uma vez que sua expressão de poder

152
Romandini não só está consciente dessa discussão entre os dois filósofos italianos, como também nos explica o
seguinte: “ora, essa exegese [de Tertuliano e Agamben] foi respondida por Massimo Cacciari no que consideramos uma
polêmica implícita sobre a interpretação do legado político paulino. Certamente, as diferenças teóricas entre Agamben e
Cacciari podem ser rastreadas, em hipótese plausível, pelo menos até os anos setenta do século XX, quando Cacciari
publicou, na lendária revista Aut-Aut bem conhecida por Agamben e também por ele escrito, um artigo altamente crítico
das filosofias de Deleuze e Foucault (CACCIARI, 1977), ambos autores muito apreciados por Agamben a ponto de
terem determinado sensatamente seu pensamento” (ROMANDINI, 2016, p. 8).
217
nunca foi de retardar ou freiar o catastrófico que é típico do tempo messiânico. Em vez disso, o
império sempre foi produtivo em um esforço de constantemente expandir e dominar através da sua
inovação e reprodução. Sendo assim, Cacciari estava convicto de que a resposta sobre a natureza
desse poder que freia não deveria ser procurada nas estruturas imperiais. 153 Em oposição a isso, “o
katechon assim deverá configurar-se como um poder total, organizado – mas não na forma própria
do império, nem na da Igreja” (CACCIARI, 2016, p. 82). Nesse sentido, a sugestão do filósofo de
Veneza é que essa força que freia e tensiona a história seja encarada como um limiar, ou ainda, “e
se, no século, o katechon ocupa em todo o caso, como parece, uma posição de meio, se desempenha
um papel quase de temperança e moderação” (CACCIARI, 2016, p. 83). Com essa visão a respeito
do katechon, Cacciari começa a delinear uma interpretação alternativa à visão de Tertuliano que se
mostra bem mais generosa com as contribuições do império para a oikonomia da salvação que
orienta a postura da Igreja na história. Colocando de maneira clara qual é sua interpretação sobre o
katechon, ele diz o seguinte:

O katechon, mesmo conhecendo a inevitabilidade do Fim, e talvez possuindo


também a fé que funda a esperança, poderia advertir como intolerável o
transbordamento da destruição e da devastação da anomia e da apoleia, e por isso,
por philantropia, opor-se ao Adversário. É sobre essa base, então que a Igreja
reconheceria a função ‘boa’ do poder imperial. E é nesse esquema que o filho da
perdição se transforma em um bárbaro; o universalismo da lei imperial harmoniza-
se providencialmente com a missão evangelizadora; império e Igreja juntos mantêm
em forma a Era em vigilante espera e reprimindo toda impaciente soberba. É esse o
modelo de toda ‘sacra aliança’ entre poder político e papado? Essa irenista,
conciliadora filosofia da história foi repetida nas formas mais variadas (CACCIARI,
2016, p. 86)

No parágrafo acima, Cacciari deixa claro sobre qual base a Igreja reconheceria a boa função
do poder imperial. Sem construir diretamente uma teologia política que buscasse justificar de
maneira cristá o poder imperial de Roma, o filósofo italiano recoloca indiretamente a função
adequada do império através de sua contribuição para a propagação da mensagem do evangelho a
todas as nações. Está claro para ele que: “o carisma da Igreja consiste no anúncio do Reino – ou

153
Conforme coloca o próprio filósofo italiano, “quanto mais se indaga, mais complexo e problemático aparece esse
protagonista do conflito escatológico. Vimos quão árduo é assimilá-lo ao império. Se a quarta besta de Daniel é
interpretada como imagem dos próprios romanos, é evidente que em nada o poder de Roma poderia frear o ímpeto do
Adversário, como, ao contrário, contraitoriamente, o próprio Hipólito sustenta. Se, ao contrário, de Roma exalta-se a
força da lei e do direito – ainda que injustamente empregadas contra os cristãos –, e assim tenta-se reduzi-la a katechon
(como pare ser, substancialmente, a posição de Tertuliano, também em função antimarcionista), seu poder não é
definível como autenticamente imperial. A visão de Rm 13 parece referir-se ao problema geral da necessidade do poder
político, e não a esta ou àquela forma – e é de todo modo claro que também Paulo tem em mente uma autoridade
eminentemente burocrática-administrativa, com a qual o cristão pode e deve viver em paz (como com o inimigo!). O
fato de se pensar sobre o fundamento de Romanos (ou, creio, de qualquer outro texto do cristianismo antigo, até o
século IV), em uma santidade da autoridade política, é o monstruum da teologia da Restauração. Para os Padres da
Igreja, diakonia, servitium são considerados essencialmente no horizonte de uma ‘jurisdização’ do Político. E da
neutralização de sua auctoritas. O imperador, no fim, é reduzido à figura daquele que rege, do simples rex, ‘servus
servorum Dei’” (CACCIARI, 2016, p. 71-73).
218
melhor, em sua atual proximidade de seu ser aqui e agora, a cada instante, para quem crê – e, assim,
em predicar, agora, a conversio tadical do homem” (CACCIARI, 2016, p. 89). O fato do katéchon
configurar-se como um poder total e organizado, fornece as condições de possibilidade para a sua
constante propagação e universalização, pavimentando o caminho que a Igreja poderia utilizar para
cumprir sua função de propagadora das boas novas apostólicas antes da revelação do homem da
154
anomia. É justamente por essa motivo que a Igreja, “à medida que considera necessária uma
energia katechonica, buscará o compromisso com ‘governos fortes’, mesmo sabendo, com o
realismo político que marca toda sua tradição, que jamais se verá na Terra impérios obedientes a
quem julga o próprio carisma” (CACCIARI, 2016, p. 91). O caráter antiacontecimental do poder
imperial coloca-se a serviço da esperança da Igreja uma vez que é o meio através do qual são
impedidas quaisquer rupturas impacientes ante a demora do retorno do messias. Em lugar de um
sacro império cristão, Cacciari é mais comedido, e se diz alinhado ao realismo político da tradição
cristã, restando apenas argumentar em prol de uma sacra aliança entre Império e Igreja. Isso fará
com que ele conclua que “a própria Igreja parece então essencialmente katechontica. Sua obra é o
que segura a anomia, clamando incessantemente para a conversão a fim de se preparar para a ‘morte
do tempo’” (CACCIARI, 2016, p. 97). As consequências de tais opções interpretativas de Cacciari
implicam pontos teológico-políticos importantes daquele antigo debate teológico-político que
analisamos no primeiro capítulo e que Agamben reconstruiu a genealogia até os nossos dias.
Não é necessário dizer que as teses de Cacciari estão em direta oposição as de Agamben,
bem como aos argumentos que temos sustentado desde o primeiro capítulo a respeito das discussões
teológico-políticas. É necessário, no entanto, dizer porque essa interpretação de Cacciari não se
sustenta. O próprio Agamben chama atenção para um fato muito simples, mas que tem condições de
colocar sob suspeita a hipótese de Cacciari. Ele lembra que: “o fato é, porém, que a passagem
paulina, apesar de sua obscuridade, não contém nenhuma avaliação positiva do katéchon. Ele é, ao
contrário, aquilo que deve ser removido do caminho para que o ‘mistério da anomia’ seja
plenamente revelado” (AGAMBEN, 2016, p. 127). Ao retirar a generosidade de Cacciari em
relação ao katéchon resta, nesse caso, a relação entre Império e Igreja que ambos filósofos italianos
reconhecem, mas que não restam muitas alternativas do que subscrever a hipótese de Tertuliano –
com a ressalva de Ridderbos sobre a necessária amplificação da força katechonica a toda estrutura
temporal de governo, a menos que se deseje falar de uma profecia não cumprida exclusivamente
sobre o Império Romano (cf. RIDDERBOS, 2013, p. 582).

154
Segundo as palavras do filósofo italiano, uma vez mais, “como ‘energeitai’, a força do engano, esta facies do
katechon, atua com desesperada esperança para que o próprio tempo do fim perdure – não para permitir que o
Adversário continue a propagar, ou que o império cresça, ou que a organização eclesiástica expresse um monopólio
espiritual, mas para a abertura à escuta, para o recebimento do amor da verdade dos homens de dura cerviz”
(CACCIARI, 2016, p. 96).
219
Vale dizer, no entanto, que a opção pela interpretação agambeniana a respeito do katéchon
não foi feita simplesmente por ter sido a única que restou. Na verdade, temos importantes
especialistas no texto paulino que não só sustentam uma argumentação semelhante, como nos
fornece elementos ainda mais ricos para articular a tensão histórica entre tempo messiânico e poder
katechonico que freia. Um exemplo desse é o comentário do professor de Novo Testamento do
Calvin Theological Seminary, William Hendriksen. Quanto a 2Ts 3.3-9 ele diz o seguinte:

Entendemos prontamente que “o mistério da iniquidade” já está em operação.


Mesmo nos dias de Paulo, a rebelião contra Deus e suas ordenanças já estava
presente no mundo. Contudo, não era ainda evidente que um dia esse espírito da
iniquidade se encarnasse em “o homem da iniquidade”. Isso era ainda um mistério;
ou seja, uma verdade desconhecida à parte da divina revelação especial. Na perversa
oposição ao evangelho, demonstrada por alguns que conheciam o caminho, Paulo,
como resultado de divina revelação e iluminação especiais, viu um claro sinal desse
sinistro movimento que um dia culminaria no domínio do anticristo. O que o
apóstolo escreve pode ser comparado com a afirmação de João de que o espírito do
anticristo já está presente no mundo, e que ainda agora têm surgido muitos
anticristos (1Jo 4.3; 2.18). Muito mais difícil de responder é a pergunta: “que
significa aquele que ou o que agora [o] detém” de ser revelado como “o homem da
iniquidade”? [...] Nessa questão, contudo, os tessalonicenses estava à nossa frente
em seu conhecimento de escatologia. Eles sabiam. Nós, não. Agostinho, em seus
dias, confessou francamente que, mesmo com os melhores esforços, não era capaz
de descobrir o que o apóstolo queria dizer (Cidade de Deus, XX, xix). [...] De todas
as teorias propostas até aqui, a que parece ter mais peso em seu favor é aquela
segundo a qual aquele que detém é “o poder do governo humano bem ordenado”, “o
princípio da lealdade oposto ao da ilegalidade” (veja o Comentário de Ellicott sobre
esta passagem). Segundo este ponto de vista, Paulo tinha em mente que, enquanto a
lei e a ordem prevalecessem, o homem da iniquidade está impossibilitado de
aparecer no cenário da História com seu programa de injustiça, blasfêmia e
perseguição sem precedentes. Em favor deste ponto de vista, note o seguinte: a) de
certo modo tem o contexto ao seu favor: “o homem da iniquidade” [anomia] está
sendo impedido pelo dominio da lei; b) ele explica como Paulo pode falar tanto de
“aquele que restringe” como “o que restringe”. Pense no império e no imperador, na
justiça e no juiz, na lei e naquele que a faz cumprir; c) Este (ou algo parecido) é o
ponto de vista mais frequentemente expresso pelos pais da Igreja. Tertuliano,
comentando essa passagem, declara “Que obstáculo há senão o Estado romano?”
(Sobre a ressurreição da carne, XXIV); d) ele se apoia no fato de que Paulo se
orgulhava de sua cidade romana, a qual o socorreu muitas vezes, e também porque
foi em Crinto onde a carta foi escrita (At 18.12-17). Além disso, num bem
conhecido capítulo de outra epístola, ele fala do poder do estado romano como
sendo “ministro de Deus para o teu bem”, e dos governantes como sendo “vingador
para castigar o que pratica o mal” (Rm 13). Podemos dizer com segurança, pois, que
o apóstolo via no governo e seus administradores um freio para o mal; e) é uma
teoria razoável também em vista do fato de que, em certo sentido, a lei e ordem
romanas não morreram quando Roma caiu. No mundo civilizado de hoje, elas ainda
estão em vigor. Contudo, quando a estrutura básica da justiça desaparece e quando
os juízos falsos e as confissões fraudulentas se transformam na ordem do dia, então
o cenário se acha preparado para a revelação do homem da iniquidade
(HENDRIKSEN, 2007, p. 211-212).

A interpretação de Hendriksen nos ajuda a revisar e resumir o ponto de nossa hipótese da


seção. A partir dessa argumentação, podemos compreender que, apesar do mysterium iniquitatis já
estar em operação, em todas as formas de anomia que são vivenciadas na história, o poder que freia

220
a revelação plena do homem da anomia é justamente o esforço governamental humano bem
ordenado. Essa perspectiva não podesia ser mais adequada à posição de Agamben. Conforme já
argumentamos, a condição da lei no tempo messiânico é a de uma lei que foi tornada inoperante, ou
ainda, segundo o vocabulário técnico da metafísica aristotélica, de uma lei que não está nem em
energeín, nem em dúnamis, mas em estado de katárgésis. Nessa perspectiva, portanto, faz todo
sentido lermos o trecho paulino da forma que se segue: “o katéchon é, então, a força – o Império
Romano, mas também toda autoridade constituída – que contrasta e esconde a katérgesis, o estado
de anomia tendencial que caracteriza o messiânico e, nesse sentido, retarda o desvelamento do
‘mistério da anomia’” (AGAMBEN, 2016, p. 128). O que Agamben chama de desvelamento do
mistério da anomia é justamente o processo de fazer com que fique claro como a luz do dia a
inoperosidade da lei e da ilegalidade fundamental de toda forma histórica de poder no
tempo messiânico. Em harmonia com tudo o que já mencionamos, isso
significa fazer com que todas as expressões de governo com pretenções de
gestão infinita da população tenham seu esplendor e brilho
glorioso descoberto e a vacuidade dos tronos explicitada. Nas palavras de Agamben,
“o poder profano – Império Romano ou qualquer outro – é a aparência que cobre a anomia
substancial do tempo messiânico. Como a dissolução do ‘mistério’, essa aparência é retirada do
caminho, e o poder assume a figura do ánomos, do fora-da-lei absoluto” (AGAMBEN, 2016, p.
128).
Decididamente, portanto, podemos concluir que a segunda epístola de Paulo aos
tessalonicenses não se presta ao serviço de fundar uma doutrina cristã do poder temporal. Na
verdade, é justamente o contrário. A tensão histórica constituinte que Agamben sustenta e com que
começamos a discussão dessa seção encontra nessa passagem bíblica um paradigma de
antagonismo, fornecendo-nos os parâmetros mínimos para uma doutrina do poder destituinte. Se a
história é um campo de tensão atravessado por duas forças opostas, então o messias e a Igreja,
segundo sua economia da salvação, estão em polarização com as forças katechonicas de todos os
momentos da história – que buscam incessantemente reter e retardar o fim do curso linear e
homogêneo do tempo cronológico. Agamben resume dizendo: “chamemos Lei ou Estado a
primeira, consagrada à economia, ou seja, ao governo infinito do mundo; e chamemos messias ou
Igreja a segunda, cuja economia, enquanto economia da salvação, é ao contrário, constitutivamente
finita” (AGAMBEN, 2016a, p. 22). Sem precisarmos tomar partido por nenhum desses dois lados
em tensão, o que é decisivo na filosofia de Agamben é o reconhecimento que uma comunidade
humana não pode constituir-se e sobreviver sem essas duas polaridades esterem presentes e em
tensão. Para além de seu pronunciamento à Catedral de Notre Dame, Agamben também sustentou a

221
mesma posição em seu texto Il mistero del male. Benedetto XVI e la fine dei tempi onde podemos
ler o seguinte a respeito da decisão de renúncia de Joseph Ratzinger:

Por que tal decisão nos parece hoje exemplar? Porque volta a chamar atenção para a
distinção entre dois princípios essenciais de nossa tradição ético-política, dos quais
as sociedades parecem ter perdido qualquer consciência: a legitimidade e a
legalidade. Se é tão profunda e grave a crise que nossa sociedade está atravessando,
é porque ela não só, como se repete muito frequentemente, as regras e as
modalidades do exercício de poder, mas o próprio princípio que o fundamenta e o
legitima. Os poderes e as instituições não são hoje deslegitimados porque caíram na
ilegalidade; é mais verdadeiro o contrário, ou seja, que a ilegalidade é difundida e
generalizada porque os poderes perderam toda a consciência de sua legitimidade.
Por isso é vão acreditar que se pode enfrentar a crise das sociedades por meio da
ação (certamente necessária) do poder judiciário – uma crise que investe a
legitimidade não pode ser resolvida somente no plano do direito. A hipertrofia do
direito, que tem a pretensão de legiferar sobre tudo, revela, isso sim, através de um
excesso de legalidade forma, a perda de toda legitimidade substancial. A tentativa
moderna de fazer coincidir legalidade e legitimidade, procurando assegurar, através
do direito positivo, a legitimidade de um poder, é – como resulta do irrevogável
processo de decadência em que ingressaram as instituições democráticas –
totalmente insuficiente. As instituições de uma sociedade só continuarão vivas se
ambos os princípios (que em nossa tradição também receberam o nome de direito
natural e direito positivo, de poder espiritual e poder temporal, ou em Roma de
auctoritas e potestas) se mantiverem presentes e nelas agirem, sem nunca pretender
que coincidam (AGAMBEN, 2013, p. 10-11).

Em diversos momentos Agamben deixa clara sua compreensão dual da máquina política e
da irredutibilidade de cada um desses polos ao outro. Ambos devem permanecer sempre operantes
para que as sociedades humanas funcione adequamente, sem confundir ou misturar tais aspectos
fundamentais. Essa compreensão além de ser uma ferramenta analítica profícua para a filosofia
política e ética, também é também um instrumento de crítica privilegiado, uma vez que, através
dela, conseguimos entender as verdadeiras raizes da crise política que experimentamos. Segundo a
continuação do argumento de Agamben, “se a Igreja reivindica um poder espiritual ao qual o poder
temporal do Império ou dos Estados deveria ficar subordinado, como aconteceu na Europa
medieval, ou se, como se deu nos Estados totalitários do século XX”, o que começa a delinear-se é
que “a legitimidade pretende prescindir da legalidade, então a máquina política gira no vazio, com
êxitos frequentemente letais” (AGAMBEN, 2013, p. 12).
Precisamente em razão desse necessário ajuste fino entre tensões fundamentais da história
que o gesto de Bento XVI parece tão importante para Agamben. Isso porque, guardadas as devidas
proporções, tinhamos uma situação de crise análoga aos nossos dias. Essa situação é descrita da
seguinte maneira: “perante uma cúria que, totalmente esquecida da própria legitimidade, persegue
com obstinação as razões da economia e do poder temporal, Bento XVI optou por usar somente o
poder espiritual, do único modo que lhe pareceu possível”, isto é, “renunciando ao exercício do
vicariato de Cristo. Assim a própria Igreja foi colocada em questão, desde a raiz” (AGAMBEN,

222
2013, p. 12). Quando confrontamos essa circunstância com toda a argumentação de Agamben na
Catedral de Notre Dame, percebemos que o filósofo busca repetir o gesto de Ratzinger. Apesar de
não possuir o mesmo poder de impacto que tinha o antigo pontífice, sua denúncia assume a mesma
consistência:

é precisamente essa tensão que parece hoje esgotada. À medida que a percepção da
economia da salvação no tempo histórico se enfraquece e cancela, a economia
estende seu cerco, irrisório domínio sobre todos os aspectos da vida social. A
exigência escatológica, abandonada da Igreja, retorna em forma secularizada e
paródica nos saberes profanos, que redescobrindo o gesto obsoleto do profeta
anuncia em todos os âmbitos catástrofes irreversíveis. O estado de crise e de
exceção permanentes que os governos do mundo proclamam pelos quatro cantos
não é senão a paródia secularizada da atualiação incessante do Juízo Universal na
história da Igreja. Ao eclipse da experiência messiânica do cumprimento da lei e do
tempo corresponde uma inaudita hipertrofia do direito, que, pretendendo legiferar
sobre tudo, trai através de um excesso de legalidade a perda de toda e qualquer
legitimidade. Digo aqui e agora medindo minhas palavras: hoje não há sobre a terra
nenhum poder legítimo e os poderosos do mundo são eles próprios convictos da
ilegalidade. A juridização e a economização integral das relações humanas, a
confusão entre em que podemos crer, esperar e amar e em que somos obrigados a
fazer ou não fazer, a dizer ou não dizer marcam não apenas a crise do direito e dos
estados, mas também e sobretudo a da Igreja (AGAMBEN, 2016a, 23-24).

O questionamento sobre o desequilibrio fundamental em operação nas sociedades e igrejas


ocidentais assume nas palavras acima sua forma mais precisa. Fica claro no pensamento de
Agamben os fatores que culminam nesse esgotamento escatológico da Igreja: a diminuta percepção
de economia da salvação, enquanto aquele princípio que poderia dar às comunidades messiânicas a
capacidade de discernir os sinais do tempo, bem como a hipertrofia inaudita da economia e do
direito que se estendem sobre todas as demais esferas da vida humana. O fechamento do escritório
escatológico da igreja faz com que as sociedades contemporâneas fiquem sem um antagonismo
messiânico forte suficiente para impedir que os estados transformem a crise em um instrumento
permanente. Em um cenário assim, as meras paródias secularizadas dos saberes profanos têm pouca
eficiência de instituir um gesto profético de denúncia e transformação, limitando-se a reconhecer as
catástrofes irreversíveis em cada esfera da experiência humana.
O fator inusitado na filosofia de Agamben é que sua crítica não se restringe ao direito e os
estados nacionais, mas também a Igreja. Justamente por argumentar que existe um papel
insubstituível da comunidade messiânica na tensão de forças da história, Agamben insiste em
chamar a Igreja a sua resposabilidade diferenciada. Isso significa recuperar a consciência de sua
tensão fundamental com qualquer projeto institucional de permanecer indefinidamente na história.
Alinhar-se às estruturas imperiais de poder e perder de vista sua identidade de peregrina e forasteira
no mundo é, incontornavelmente, esquecer-se que sua existência está em relação imediata com seu
próprio fim. E Agamben, que não poupa imagens fortes e teologicamente coerentes, termina seu
223
pronunciamento com uma lembrança muito significativa para a política contemporânea:
“é importante não esquecer que, segundo a teologia cristã existe apenas uma única instituição legal
que não conhece interrupção nem fim: o inferno. O modelo da política atual, que pretende uma
155
economia infinita do mundo, é assim propriamente infernal” (AGAMBEN, 2016a, p. 24). Esse
juízo de valor já havia sido feito anteriormente quando, em Il regno i la gloria, Agamben estabelece
um comparativo entre anjos e demônios no interior da tradição cristã e explica que a diferença
reside no fato de que: “o inferno é, assim, o lugar onde o governo divino do mundo sobrevive para
sempre, ainda que de forma puramente penitenciária”, isto porque, ele continua argumentando,
“enquanto os anjos no paraíso, mesmo conservando a forma vazia de suas hierarquias, abandonarão
toda função de governo e já não serão ministros, mas apenas assistentes, os demônios serão os
ministros indeectíveis e os carrascos eternos da justiça divina” (AGAMBEN, 2011, p. 182). Uma
vez que, por toda a sua genealogia teológica da economia e do governo, a angeologia coincida com
a teoria do poder, não é injustificado concluir que: “na perspectiva da teologia cristã, a ideia de um
governo eterno (que é o paradigma da política moderna) é propriamente infernal” (AGAMBEN,
2011, p. 182).
Diante de tudo isso, uma das perguntas mais importantes que a filosofia de Agamben deixa
para o ocidente – fazendo-o um filósofo fundamental para os nossos dias – é justamente se “a igreja
irá decidir-se finalmente a captar sua ocasião história e a reencontrar sua vocação messiânica?”
(AGAMBEN, 2016a, p. 24). O significado político dessa pergunta é sobre a urgência da inclusão da
inoperosidade própria da experiência messiânica do tempo do fim para desarticular as práticas e
dispositivos governamentais infinitos. Lembrando que o risco de ignorar esses sinais do tempo é
que também a igreja “seja arrastada na ruína que ameaça todos os governos e todas as instituições
da terra” (AGAMBEN, 2016a, p. 24).

155
Contudo, não é apenas Agamben que recorre a tal juízo de valor. Foucault, a despeito do que alguns de seus
intérpretes costumam pensar, também não se eximiu de mostrar-nos justamente quando tratava a respeito do ponto de
estrangulamento que chegou sua teoria unitária do poder com disciplinas e soberania atuando: “eu creio que nos
encontramos aqui numa espécie de ponto de estrangulamento, que não podemos continuar a fazer que funcione
indefinidamente dessa maneira: não é recorrendo à soberania contra a disciplina que poderemos limitar os próprios
efeitos do poder disciplinar” (FOUCAULT, 2005, p. 47). Na eminência de trazer à baila novamente os princípios
escatológicos capazes de fazer frente ao governo infinito do mundo, uma das primeiras atitudes que nos surge é
precisamente questionar tais leituras “acríticas” de Foucault – ou de quem quer que seja – anteriormente mencionadas,
sobre a ordem regente atual. Os exegetas de filosofias confortáveis contribuem para o discurso da hegemonia inalterável
da governamentalidade biopolítica hodierna e não favorecem o exercício criativo de um pensamento do
ultrapassamento. Não somos saudosistas de um tempo existencial mais originário e puro, como um estado de natureza
pré-histórico. Na verdade, somos ansiosos por um novo tempo e uma nova política, ou ainda, como disse Foucault, “na
luta contra as disciplinas, ou melhor, contra o poder disciplinar, na busca de um poder não disciplinar, não é na direção
do antigo direito da soberania que se deveria ir; seria antes na direção de um direito novo, que seria antidisciplinar, mas
que estaria ao mesmo tempo liberto do princípio da soberania” (FOUCAULT, 2005, p. 47).
224
CAPÍTULO 03 – O messianismo sem Messias:
por que é difícil ser agambeniano?

Quem conhece a prática da pesquisa nas ciências


humanas sabe que, ao contrário da opinião comum, a
reflexão sobre o método geralmente não antecede, mas é
posterior a essa prática. De algum modo, portanto, trata-
se de pensamentos secundários, a serem discutivos entre
amigos ou especialistas, e que só um longo hábito com a
pesquisa pode legitimar

Giorgio Agamben
Signatura Rerum

Para uma disciplina como a filosofia, que tem um diálogo fundamental com a história,
ocupar-se com os argumentos e textos de um pensador contemporâneo nos coloca,
simultaneamente, em posições de vantagens e desvantagens do ponto de vista filosófico. As
vantagens são óbvias no sentido de termos um ganho significativo na compreensão dos contextos
éticos e políticos aos quais um pensador como Agamben se refere em seus livros. Ao contrário do
que acontece quando estudamos um filósofo moderno ou antigo, não precisamos nos deter
demoradamente na reconstrução das situações contextuais que fizeram emergir os textos e
argumentos de uma produção contemporânea. Isso nos coloca e uma vantagem contextual que é
significativa para nos dar segurança quanto à compreensão sobre as realidades às quais Agamben se
refere em seus textos, bem como às situações às quais seus conceitos se aplicam. Com certeza,
podemos concordar com o professor e filósofo brasileiro Cláudio Oliveira que não é nada agradável
o sentimento de desencanto de: “não viver mais num mundo habitado por grandes filósofos”, como
era a sensação de quem, como ele, “se iniciou na filosofia entre o fim dos anos 80 e o início dos
anos 90 do século passado” (OLIVEIRA, 2013, p. 25). Diferentemente daqueles professores que
haviam sido testemunhas da construção do pensamento do século XX, no seu início com autores
ainda vivos – cujos cursos alguns deles chegaram a frequentar –, o sentimento do professor Oliveira
era o de “não sermos mais contemporâneos da filosofia ou de não haver mais nenhuma filosofia
contemporânea a nós, vivendo o tempo de um hiato que parecia não ter fim” (OLIVEIRA, 2013, p.

225
25). Realmente é um privilégio acompanhar, em tempo real, o desenvolvimento da obra de um
filósofo de reconhecimento mundial, construindo aquelas que serão as tendências de parte da
fisionomia intelectual do início do século XXI.
Por outro lado, do ponto de vista da disciplina filosófica, existem desvantagens
significativas no estudo de um autor contemporâneo. Estas se revelam, principalmente, quando o
filósofo assume posições altamente polêmicas e, até mesmo, aparentemente injustificadas em
relação a contextos específicos do presente. Esta também é uma circunstância própria dos anos mais
recentes da filosofia de Giorgio Agamben. Apesar de já ter consolidado uma fama inglória por ser
um filósofo de paradigmas extremos, mais recentemente, Agamben acumulou sobre si críticas
severas quanto aos seus posicionamentos éticos e políticos em relação às declarações sobre a
configuração social em resposta à pandemia do coronavírus. O pontapé para o início dessas reações
foi um texto publicado em 26 de fevereiro de 2020 em que o filósofo italiano, após citar as
declarações do Conselho de Investigação Nacional da Itália questiona as “frenéticas, irracionais e
por completo injustificadas medidas de emergência por uma suposta epidemia devido ao
coronavírus” (AGAMBEN, 2020, p. 8). Após esse texto, uma série de outros pequenos
pronunciamentos foram solicitados ao filósofo por jornais e revistas que, ao receberem seus textos,
os rechaçavam imediatamente devido ao conteúdo de suas ideias. A via escolhida pelo
filósofo para abordar as questões contemporâneas foi muito mal vista. Quanto a
isso, a professora e filósofa brasileira Yara Frateschi diz o seguinte:
“Agamben chega às raias do rompimento com a verdade factual e nem mesmo as milhares de
mortes ou o colapso dos sistemas de saúde em diversos países do mundo o demovem da tese de que
as medidas de contenção, como o distanciamento social, sejam ‘irracionais’ e ‘imotivadas’”
(FRATESCHI, 2020, s/p.).
A insatisfação de muitos leitores dos textos de Agamben diz respeito a total ausência de
qualquer menção às questões de saúde pública envolvidas na pandemia, desigualdade social entre
aqueles que foram acometidos pela doença ou mesmo um tratamento sobre o tema do contágio do
ponto de vista científico ou epidemiológico. O caminho escolhido pelo filósofo italiano foi outro,
muito mais coerente com sua filosofia que está sendo produzida nas últimas décadas. Para
Agamben, o centro problemático das medidas governamentais em torno da pandemia está no
seguinte:

A epidemia mostra aos nossos olhos que o estado de exceção a que os governos nos
habituaram durante muitos anos, tornou-se verdadeiramente normal. Embora no
passado houvesse epidemias mais graves, ninguém havia pensado em declarar por
isso um estado de emergência como o atual, que nos impede até de nos movermos.
As pessoas estão tão acostumadas a viver em condições de crises e emergências
perpétuas que parecem não perceber que sua vida foi reduzida a uma condição
226
puramente biológica e perdeu não só todas as dimensões sociais e políticas, mas
também humanas e afetivas. Uma sociedade que vive em estado de emergência
perpétua não pode ser uma sociedade livre. Na verdade, vivemos em uma sociedade
que sacrificou a liberdade em nome das chamadas “razões de segurança” e por isso
se condenou a viver em um perpétuo estado de medo e insegurança (AGAMBEN,
2020, p. 14).

Para além do fato de reafirmar que no passado pandemias mais graves já haviam acontecido,
o foco da atenção de Agamben, uma vez mais, é o paradigma biopolítico da exceção. Ao que
parece, para o filósofo italiano, os habitantes do mundo contemporâneo acostumaram-se a viver na
condição de crises e emergências perpétuas – semelhante àquela estrutura que apresentamos no
primeiro capítulo. Nessa situação, a condição humana foi reduzida à função puramente biológica,
fazendo com que não só as dimensões sociais e políticas desaparecessem, como também uma
radical transformação nos arranjos afetivos dos indivíduos ocorresse. A sociedade atual sacrificou
sua liberdade e reduziu sua experiência humana à mera sobrevivência da vida nua a partir do
dispositivo tecnológico sanitário. Tal opção nos condenou ao estado de medo e pânico frenético e
irracional que parecem justificar sem resíduos as medidas de emergência. A maior prova dessa
transformação radical é a condição de isolamento social, que Agamben também não avalia do ponto
de vista epidemiológico, mas coloca como um novo paradigma da habitação no mundo hodierno, a
qual seja, o da abolição do nosso próximo. Nas suas palavras, “que universidades e escolas fechem
de uma vez por todas, que as aulas são ministradas apenas online, que não saímos para se encontrar
e conversar por razões políticas ou culturais”, e o que nos resta seja apenas que “trocamos
mensagens digitais e que, quando possível, as máquinas substituem todo contato – todo contágio –
entre seres humanos” (AGAMBEN, 2020, p. 11-12). 156
Para outros intérpretes do contemporâneo, as escolhas de Agamben foram muito infelizes. A
professora Frateschi não deixa argumentar que se as suas reflexões não estão à altura da crise atual,
e isso se deve “às limitações da sua própria filosofia, construída a partir de um binarismo um tanto
simplório, de acordo com o qual a máquina governamental sempre domina, controla e restringe
liberdades, ao passo que a sociedade é invariavelmente passiva, compacta e inerte” (FRATESCHI,

156
Especificamente falando a respeito do tema das universidades, Agamben é extremamente duro e desmedido com
professores e alunos que se encontram nessa situação de exceção. Traçando paralelos descalibrados entre a exceção
nazista e o estado de emergência da atual pandemia, ele escreve o seguinte: “Os professores que aceitam – como o
fazem em massa – submeter-se à nova ditadura telemática e ministrar suas aulas apenas online são o equivalente
perfeito aos professores universitários que em 1931 juraram fidelidade ao regime fascista. Como então, é provável que
agora apenas quinze em mil recusem, mas sem dúvida seus nomes serão lembrados junto com os daqueles quinze
professores que não juraram” (AGAMBEN, 2020, p. 54). Julgamos ser absolutamente inadequada essa comparação
estabelecida pelo filósofo italiano que desconsidera a situação de desigualdade e necessidade em que muitos professores
e alunos se encontram quando recorrem ao ensino remoto para cumprirem suas obrigações discentes e docentes.

227
157
2020, s/p.). Ou seja, a pandemia provocou crises complexas envolvendo diversos modos da
experiência humana, fazendo com que filosofias que pretendessem analisá-la de uma forma
unilateral e sem tensões fossem incapazes de lograr êxito. Nesse sentido, a filósofa brasileira se
pergunta: “como lidar com as tensões agudas que a pandemia provoca a partir de uma filosofia sem
tensões?”, para ela, se Agamben “não fosse tão mais comprometido com as próprias teses do que
com o mundo que elas deveriam explicar, esta seria uma grande oportunidade para o filósofo
admitir ‘sei que não sei’ e reconciliar-se com a cidade, quiçá com a sua própria humanidade”
(FRATESCHI, 2020, s/p.).
Nosso interesse em toda a celeuma causada pela posição de Agamben não diz respeito a uma
fragilidade pontual da trajetória filosófica do italiano. Antes, acreditamos que no interior tanto de
sua postura, quanto das críticas que esta levantou, esconde-se um aspecto central para
compreendermos a extensão e os limites da filosofia agambeniana como um todo. Contrariando
todo mal estar e espanto dos leitores contemporâneos das opiniões de Agamben sobre a pandemia,
gostaríamos de reconhecer um núcleo muito coerente na utilização dos paradigmas mencionados na
filosofia do italiano para entender, não só a pandemia, mas toda a política como contágio. Em
poucas palavras, no horror dos seus comentários, Agamben foi muito coerente com sua filosofia
construída sobre paradigmas extremos e elegidos de maneira autoritativa pelo filósofo. Uma vez
mais, nas palavras da professora Frateschi:

Surpresos, ou até mesmo indignados, os críticos devem reconhecer que as reflexões


de Agamben sobre a epidemia inventada são inegavelmente coerentes com a sua
filosofia política, especialmente com as análises sobre o vínculo entre biopoder e
exceção soberana, que o tornaram aclamado por uma parte da intelectualidade
brasileira de esquerda. [...] Agamben aplica ao caso da pandemia o esquema que ele
desenhou para explicar a íntima solidariedade entre biopoder e estado de exceção e
que, embora seja um esquema promissor em certos aspectos e em alguns momentos
– por exemplo, para analisar Guantánamo, o Ato Patriótico de Bush e a preservação
de elementos ditatoriais nas democracias – está amarrado na camisa de força de um
antagonismo único e de um retrato sem muitas nuances das sociedades capitalistas
atuais. De um lado, Agamben vê a máquina governamental – sempre dominadora –
e seus aliados na produção de dispositivos de controle e dessubjetivação (a mídia, a

157
É importante destacar que, apesar de suas duras críticas à filosofia de Agamben, em um segundo artigo escrito sobre
o mesmo tema, Frateschi reconhece o seguinte: “aproveito a ocasião para explicitar algo que talvez eu não tenha feito
com suficiente clareza no primeiro artigo. Estou de acordo a respeito da importância de nos colocarmos, desde já,
alertas para o perigo da perenização das medidas de emergência que hoje adotamos (ou defendemos que sejam
adotadas) para conter o contágio. Faz todo sentido pensar sobre esse perigo, refletir sobre os usos e os abusos das
tecnologias de controle, ponderar como aquilo que hoje nos parece imprescindível para a sobrevivência poderá ser
usado para impedir uma ‘vida politicamente qualificada’ no futuro, para usar as palavras do próprio Agamben em Homo
Sacer: o poder soberano e a vida nua” (FRATESCHI, 2020a, s/p.). Nessa forma mais equilibrada de enxergar a relação
entre exceção e pandemia, Frateschi concorda com o professor Ruiz quando ele também identifica o real problema em
toda essa situação: “a condição paradoxal da exceção possibilita sua maleabilidade, podendo ser instrumentalizada
como tecnologia biopolítica de controle social, muito além da pandemia. A desconfiança da utilização da exceção de
forma tão ampla e generalizada em tempos de pandemia advém da impossibilidade de evitar a utilização da exceção
como dispositivo biopolítico de controle social para outros muitos fins, além do controle da pandemia” (RUIZ, 2020,
s/p.).
228
religião, a ciência, a tecnologia). De outro, há a sociedade, retratada quase
invariavelmente como um bloco unívoco, inerte, passivo, composta por sujeitos
dessubjetivados. Com o triunfo do biopoder e as novas modalidades de dispositivos
tecnológicos, as sociedades contemporâneas se apresentam – sentencia Agamben no
início dos anos 2000 – como “o corpo social mais dócil e frágil jamais constituído
na história do ocidente” (FRATESCHI, 2020, s/p).

No parágrafo acima fica evidente que aquilo que tornou Agamben conhecido e celebrado
por uma parcela da intelectualidade contemporânea parece ser, para Frateschi, o que alimenta suas
conclusões controversas sobre a condição ética e política durante a atual pandemia. Apesar de
reconhecer que os paradigmas agambenianos são promissões em determinadas circunstâncias, a
filósofa brasileira não deixa de reconhecer os limites de tais abordagens para outras circunstâncias
políticas que receberam os mesmos princípios interpretativos. Seu grande ponto de discordância
está em um retrato muito estanque que Agamben constrói da sociedade civil como um invariável
bloco unívoco e inerte composto por subjeitos dessubjetivados e incapazes de fazer frente à
máquina governamental sempre vencedora no desenvolvimento de dispositivos de controle e
dessubjetivação.158 Tal passividade parece ficar explícita quando o filósofo italiano descreve a
condição de isolamento social em que foi colocada a sociedade civil à revelia de qualquer
possibilidade de resistência – desejando apenas fazer sobreviver sua vida nua. 159
O grande problema é que essa leitura pode deixar de fora uma série de fatores simultâneos
aos dispositivos de poder que também operam e são responsáveis nos processos de subjetivação e
dessubjetivação dos indivíduos. A imagem passiva com que descreve a sociedade civil frente às
decisões governamentais, à ciência e até mesmo à religião pode esconder outros diversos motivos

158
Em outra ocasião, a professora discorre sobre o mesmo ponto cego na filosofia de Agamben dizendo o seguinte: “a
construção do diagnóstico extremamente pessimista que Agamben faz foca na análise do funcionamento da máquina
governamental, sempre dominadora, ao mesmo tempo em que prescinde da sociedade civil. Quando esta aparece,
como é o caso no livro de 2007, é retratada como sujeito coletivo singular, um bloco unívoco formado por sujeitos
indistintos e, mais ainda, totalmente passivos e controlados. Essa é a razão pela qual ele recusa solenemente a teoria do
agir comunicativo: para ele, o povo não debate, mas aclama, a sociedade não é plural, mas singular (porque sua opinião
é formada pela mídia), o diálogo público – até porque não acontece – não restringe ou pressiona o poder
governamental, e a soberania popular é uma quimera que se desfaz quando atentamos para o vínculo entre o poder e a
glória. Ocorre que ao tentar desfazer a ‘ficção’ do govern by consent, Agamben desmerece o papel das instituições
para a construção da igualdade democrática e, ao mesmo tempo, retira a sociedade de cena ignorando a sua
capacidade de organização, mobilização e reivindicação. Sugiro estar aqui a raiz da inadequação do seu retrato
das democracias contemporâneas bem como da incapacidade da sua teoria para detectar e enfrentar formas
diversas de dominação, e, por conseguinte, a questão da emancipação da mulher” (FRATESCHI, 2016, p. 218).
159
Em suas próprias palavras: “é evidente que os italianos estão dispostos a sacrificar praticamente tudo, condições
normais de vida, relações sociais, trabalho, até amizades, afetos e convicções religiosas e políticas diante do perigo de
adoecer que, pelo menos por agora, nem é até estatisticamente tão ruim. A vida nua – e o medo de perdê-la – não é algo
que une as pessoas, mas as cega e separa. Outros seres humanos, como na praga descrita por Manzoni, passam a ser
vistos apenas como contágios potenciais que devem ser evitados a todo custo e dos quais deve ser mantida uma
distância de pelo menos um metro. Os mortos - nossos mortos - não têm direito a um funeral e não está claro o que
acontecerá com os cadáveres das pessoas que amamos. Nosso vizinho foi apagado e é curioso que as igrejas se calem
sobre isso. Em que se tornam as relações humanas em um país acostumado a viver assim por tempo indeterminado? E o
que é uma sociedade que não tem outro valor além da sobrevivência? (AGAMBEN, 2020, p. 13-14).

229
que culminaram na ausência de protestos e oposições. Nem toda ressonância com as abordagens
governamentais de um estado de segurança biotecnológica é sinônimo de captura pelo biopoder.
Conforme Frateschi concebe: “ao invés de cogitar que talvez seja porque as pessoas estão morrendo
ou cuidando uma das outras, ele prefere culpar a ciência, outro dispositivo na receita do biopoder”
160
(FRATESCHI, 2020, p. s/p). Agindo assim, muitos argumentos de Agamben soam idealistas,
isto é, tratados sem as devidas nuances características da sociedade concreta, permanecendo no
mero âmbito dos paradigmas sem diálogo com as complexas tramas de onde emergem as
experiências da vida em sociedade que experimenta um fenômeno tão plurívoco. Em sociedades
multiculturais e desiguais, um mesmo fenômeno como o da pandemia é experimentado em
múltiplas camadas, fazendo com que seja virtualmente impossível estabelecer uma descrição
reducionista de toda a sociedade civil apenas a partir das capturas pelos dispositivos do biopoder.
Ignorar essa expressão multiforme que qualquer fenômeno social está sujeito é o que mantém
Agamben em uma posição de negacionismos frente as vozes exteriores – fazendo com que seus
ensaios sejam construídos sobre uma constante desqualificação dos pronunciamentos científicos,
midiáticos e governamentais. Somente através de um diálogo transdisciplinar mais refinado com
outras ciências teríamos condições de alcançar uma visão mais nuançada que essa complexidade
específica exige.
Diante de tudo isso, podemos concordar com Frateschi que “o diagnóstico antecede a análise
dos fenômenos e eventos, pois Agamben está mais comprometido com a sua própria filosofia do
que com o mundo que ela deveria explicar ou tentar compreender” (FRATESCHI, 2020, s/p.). No
entanto, existe aqui, nesse comprometimento com a própria filosofia, uma arbitrariedade que não é
típica de um exercício filosófico e que denuncia algo mais problemático no gesto de Agamben.
Procuraremos mostrar nesse capítulo que a dificuldade de levar a filosofia de Agamben às suas
últimas consequências está, exatamente, em recorrentes escolhas arbitrárias do filósofo para manter
sua metodologia paradigmática estável e em funcionamento. Procuraremos mostrar que o fato de o
diagnóstico anteceder a análise dos fenômenos e eventos concretos da história, mencionado pela
professora Frateschi, é mais do que uma simples incapacidade de sair do monólogo e dialogar com
as diversas camadas que um fenômeno concreto tem – pagando o preço de precisar negar e

160
Tratando do anticientificismo de Agamben, Frateschi chama nossa atenção para os seguintes pontos: “Tendo se
tornado a “religião do nosso tempo”, o filósofo alerta que a ciência também pode produzir superstição e medo. Numa
alusão às guerras religiosas da cristandade, ele está chamando a nossa atenção para a aliança nefasta entre os cientistas
que difundem medo e superstição (para ele, aparentemente a maioria) e o “monarca”. Quando isso acontece, temos as
condições mais do que favoráveis para a aceitação “fácil” da suspensão das condições normais de vida, pois o medo
cultivado pela ciência é extremamente persuasivo da necessidade da restrição da liberdade. Agamben aprendeu muitas
coisas com Thomas Hobbes a respeito do papel do medo na manutenção da obediência civil, mas Hobbes, herdeiro da
revolução científica, insistia no poder da ciência contra a superstição, ao passo que Agamben, herdeiro do pós-
modernismo, está mais disposto a questionar do que afirmar a diferença entre uma e outra” (FRATESCHI, 2020, s/p.).

230
desmerecer facetas genuínas desse evento para poder permanecer coerente com seus próprios
pressupostos. Na verdade, a antecedência do diagnóstico frente à real análise multifatorial de um
acontecimento histórico é uma característica inerente à metodologia paradigmática de Agamben. 161
Apesar dessa marca intrínseca à metodologia paradigmática, o raciocínio de Agamben não está de
todo comprometido, como se pudéssemos simplesmente descartar seus resultados ou mesmo suas
premissas mais constitutivas. Antes, a compreensão dessas características nos fornecerá as
condições de entendermos porque a utilização de paradigmas extremos é coerente com as opções
metodológicas do filósofo italiano e que tornam tão difícil permanecer um agambeniano sem
antíteses muito claras. Mais do que um viés ou preferência argumentativa marginal, existe um gesto
filosófico presente em toda a metodologia paradigmática que compromete a adoção acrítica da
filosofia de Agamben desde suas raízes.
Guardadas as devidas proporções, uma dificuldade muito semelhante de coerência interna à
própria filosofia foi enfrentada por Martin Heidegger em ocasião de sua participação no regime do
Terceiro Reich Alemão. Sem sombra de dúvidas, a filosofia heideggeriana será lembrada pelo seu
desenvolvimento de forma pioneira da caracterização da estrutura epocal do
desvelamento/velamento do Ser – por exemplo, através do questionamento sobre a essência da
técnica – mas que, por outro lado, não conseguiu se desembaraçar das análises da total diferença
ontológica do Ser que, quando se mostra, não abre espaço para praticamente nenhuma ação do ser
humano a não ser sua contemplação. Isso fez com que a essência da técnica – a com-posição (Ge-
stell) em seu ensaio pioneiro sobre a técnica – se apresentasse como um mistério insondável e
inatingível, em que somente se pode assistir e, no máximo, custodiar o arcano central do poder
técnico-ontológico do Ocidente. Nesse sentido, não é inadequado interpretar o fato de que, quando
o filósofo alemão se viu cercado pelo Terceiro Reich Alemão, enxergou nele a possibilidade do
evento revolucionário que talvez pudesse fornecer as condições de solubilidade da aporia ontológica
em que se encontrava. Será esse o motivo que levará Slavoj Žižek a escrever sobre a filiação do
filósofo no partido nacional socialista da seguinte forma: “Heidegger deu o passo certo (embora na

161
Em seu segundo artigo a respeito desse tema, a professora Frateschi consegue identificar e antecipar aquela que será
nossa principal tese na primeira metade desse capítulo, a saber, de uma teleologia remanescente na metodologia
paradigmática de Agamben. Nas suas palavras: “crítico contundente da ilusão moderna no progresso, Agamben troca
seis por meia dúzia: no lugar do progresso, entra o ‘rio biopolítica’, um processo aparentemente inexorável, de
significado único, que nos conduz para a ruína. O ar metafísico das filosofias da história continua no ambiente, o que
muda é a direção para a qual caminha a humanidade. Tal qual os filósofos do progresso, Agamben não se deixa
interessar pelas sutilezas do mundo fenomênico e da história que atrapalhariam a continuidade do movimento. A
sentença é: todos os direitos que os indivíduos conquistam preparam ‘a cada vez, uma tácita, porém crescente,
inscrição de suas vidas na ordem estatal’. Talvez seja o caso de considerarmos que a genealogia praticada como
método por Agamben seja, no final das contas, pura teleologia” (FRATESCHI, 2020a, s/p.).

231
direção errada) em 1933” (ŽIŽEK, 2011, p. 111).162 Por não ter permanecido tempo suficiente na
morada do ser, e precipitando-se em retornar aos afazeres humanos, restou a Heidegger reafirmar a
163
lógica padrão da política ocidental que parece constantemente dar lugar à exceção política.
Nesse ponto específico, quando algumas pessoas, no afã de descredibilizar toda a filosofia
heideggeriana em razão do infeliz episódio de sua associação com o nazismo, o que acontece, na
verdade, é um mascaramento da própria incapacidade – ou mesmo da má fé de certos indivíduos –
de identificar alguns marcos fundamentais da filosofia ocidental contemporânea. Um ponto muito
importante para essa última seção de nossa tese é que a compulsão que muitos críticos têm em
destacar os equívocos profundos de Heidegger ou de Agamben não pode ser uma justificativa para
não nos ocuparmos profundamente com as questões e problemas filosóficos agudos que somente
somente eles conseguiram identificar no contemporâneo. 164 Muito mais que um constrangimento a
todos aqueles que ainda leem e utilizam-se dos paradigmas agambeninanos para interpretar o
presente, o presente capítulo pretende ocupar-se a fundo com os comprometimentos mais básicos do
filósofo italiano para compreender a extensão e os limites de sua obra – que pode ser perfeitamente
lida, mantida e, até mesmo, usada contra ele.
Alguns leitores podem julgar a escolha de apresentar as antíteses metodológicas ao final da
tese uma opção inadequada, uma vez que já foi gasto dois terços de todo o trabalho reconstruindo e,

162
A argumentação completa do ponto interpretativo de Slavoj Žižek pode ser acompanhada a partir do seguinte: “para
que Heidegger não se dispôs a extrair todas as consequências desse significado duplo e necessário de ‘desocultamento’,
o que, para sermos francos, o obrigaria a aceitar que, em última análise, a ‘diferença ontológica’ não passa de uma
fenda na ordem ôntica (aliás, num paralelo exato com o reconhecimento fundamental de Badiou de que o Evento, em
última análise, não passa de uma torção da ordem do Ser). Essa limitação do pensamento de Heidegger tem uma série
de consequências filosóficas e ético-políticas. Filosoficamente, leva à noção de destinos históricos de Heidegger, que
permite horizontes diferentes da revelação do Ser, destino que não pode nem deve ser influenciado de modo algum por
ocorrência ôntica nem depender delas. Ético-politicamente, explica a indiferença (não somente ética, mas propriamente
ontológica) de Heidegger para com o Holocausto, seu nivelamento a apenas mais um caso de descarte tecnológico da
vida (no episódio infame da conferência sobre técnica): admitir a condição extraordinária/excepcional do Holocausto
seria o mesmo que reconhecer nele um trauma que abala as próprias coordenadas ontológicas do Ser” (ŽIŽEK, 2011, p.
140).
163
Quanto a isso, Agamben irá nos dizer que: “Heidegger não pôde resolver o problema da técnica porque não
conseguiu restituí-lo ao seu locus político. A economia do ser, seu desvelar-se epocalmente em um velar-se é – como a
economia teológica – um arcano político, que corresponde ao ingresso do poder na figura do Governo. E política é a
operação que resolve esse mistério, que desativa e torna inoperoso o dispositivo técnico-ontológico. A política não é
custódia do ser e do divino, mas, nesse ser e nesse divino, a operação que desativa e cumpre sua economia”
(AGAMBEN, 2011, p. 274-275)
164
Nesse ponto, uma vez mais, a argumentação de Žižek é muito precisa, tanto para o caso heideggeriano quanto em
nossas discussões sobre os pontos de Agamben a respeito da pandemia: “é como se essa consonância nos permitisse
considerar Heidegger teoricamente irrelevante, e assim, evitar o esforço de pensar com e por Heidegger, de enfrentar as
incômodas questões que ele levanta contra princípios básicos da modernidade, como o ‘humanismo’, a ‘democracia’, o
‘progresso’ etc. Quando Heidegger some do quadro, podemos nos concentrar tranquilamente em nossas preocupações
habituais com os problemas éticos suscitados pela biogenética, com a necessidade de acomodar a globalização
capitalista dentro de uma vida comunitária significativa; enfim, podemos evitar, com toda a segurança, o confronto com
o que é realmente novo na globalização e nas descobertas da biogenética e continuar a medir esse fenômeno de acordo
com os antigos padrões, na esperança louca de encontrar uma síntese que nos permita ficar com o que há de melhor nos
dois mundos” (ŽIŽEK, 2011, p. 131).
232
de certa forma, subscrevendo argumentos agambenianos. Entretanto, temos o testemunho do
próprio filósofo italiano em sua obra dedicada ao método – que foi escrita muitos anos depois que
tais caminhos filosóficos já estava em uso corrente. Quanto a isso, Agamben diz que: “quem
conhece a prática da pesquisa nas ciências humanas sabe que, ao contrário da opinião comum, a
reflexão sobre o método geralmente não antecede, mas é posterior a essa prática”, nesse sentido, “de
algum modo, portanto, trata-se de pensamentos secundários, a serem discutivos entre amigos ou
especialistas, e que só um longo hábito com a pesquisa pode legitimar” (AGAMBEN, 2019, p. 7).
Dessa forma, este último capítulo é o momento adequado de nos ocuparmos com as antíteses ao
pensamento de Agamben.

3.1. A dificuldade de utilizar longas linearidades históricas

No interior do propósito de dedicar um capítulo à antitese dos usos agambenianos de


paradigmas messiânicos retirados da obra de Paulo de Tarso, cumpre a responsabilidade de pensar,
em pelo menos dois fatores envolvidos em tal etapa investigativa, a quais seja: os paradigmas e o
próprio messianismo. Nas duas seções constituíntes desse capítulo, nos deteremos, respectivamente
a cada um desses temas. Nesse sentido, cumpre nessa primeira seção argumentarmos a respeito da
proficuidade e dos limites que a metodologia arqueológico-paradigmática nos oferece. Essa
argumentação é necessária devido as recorrentes críticas que o filósofo italiano recebe em relação
aos seus usos de longas linearidades para constituir argumentos filosóficos. Conforme a professora
Frateschi mencionou anteriormente, “talvez seja o caso de considerarmos que a genealogia
praticada como método por Agamben seja, no final das contas, pura teleologia” (FRATESCHI,
2020a, s/p.). Em outras palavras, procuraremos nessa seção mostrar que aquilo que ficou explícito
com os episódios dos pronunciamentos de Agamben a respeito da atual pandemia, na verdade, é um
elemento constitutivo de sua prática filosófica: estabelecer paradigmas abritrariamente que
consigam explicar o sentido e o significado prévio do trânsito de assinaturas ao decorrer de longos
períodos de tempo.
Nesse sentido, vamos estabelecer a antítese da presente tese com a filosofia de Agamben em
duas partes subsequentes. Em primeiro lugar, iremos reconstruir os próprios termos da discussão no
interior da obra do filósofo italiano. Faremos isso para explicar com rigor e honestidade os
contornos mais fundamentais de seu método e as razões por trás de suas escolhas fundamentais para
a construção de vários argumentos que já foram mencionados e também, utilizados no primeiro e
segundo capítulo da presente tese. Em segundo lugar, tendo estabelecidas as características que o
233
próprio Agamben nos fornece de suas opções metodológicas, vamos nos dedicar a apresentar
críticas mais qualificadas em relação aos limites próprios desses usos paradigmáticos que o italiano
empreende. Em especial, mostraremos que Agamben precisa recorrer a uma espécie de teleologia
essencial em referência aos paradigmas que arbitrariamente estabelecem a priori o sentido e a
determinação toda a sua argumentação subsequente.
Tudo isso será feito não só para localizar pontos frágeis na construção filosófica do italiano,
mas para mostrar que pressuposto ao seu método arqueológico-paradigmático está a compreensão
alternativa de história que Agamben quer fornecer uma imagem à filosofia do presente. Essa
imagem histórica alternativa ao desenho indeterminado do tempo cronológico a serviço do governo
infinito da população é caracteizada por um conjunto fragmentado de situações únicas – e, por isso,
paradgimáticas – que interrompem e fraturam a concepção cronológica do tempo, fazendo surgir
uma transformação interna à própria história – aquele tempo que resta que mencionamos
anteriormente nas argumentações do segundo capítulo. Portanto, com tudo isso, pretendemos
conectar até mesmo nossa crítica à filosofia de Agambem com o núcleo central da nossa tese sobre
a importância política do tema do tempo messiânico do fim. Oculta em opções metodológicas
bastante inusuais encontra-se uma fidelidade última ao próprio tema do tempo que resta para o
tempo do fim. Ao chegarmos a essas compreensões, poderemos concordar com Agamben quando
ele mesmo coloca que: “contrariamente à opinião comum, o método efetivamente partilha com a
lógica a impossibilidade de ser totalmente separado do contexto que atua” (AGAMBEN, 2019, p.
8). Não existe, portanto, método que possa prescindir dos objetos de sua atenção. No caso da
filosofia agambeniana, o método não poderia manter-se separado dos paradigmas messiânicos que
articula, mesmo que este acabe fazendo o filósofo italiano se comprometer com um gesto
teleológico determinista contrário às suas pretenções mais primordiais.

3.1.1. Sobre as novas representações históricas para os desafios políticos

Uma das formas de apresentar o trabalho filosófico de Giorgio Agamben é descrevendo-o


como um pensador do contemporâneo. Ainda que seja uma obra ocupada com os mais distintos
períodos e elementos históricos, toda a articulação com paradigmas do passado tem, inegavelmente,
o tempo presente como seu horizonte de interesse. Não obstante toda essa ocupação com o
contemporâneo, Agamben reconheceu em uma entrevista que: “o presente é a coisa mais difícil para
vivermos. Porque uma origem, eu repito, não se limita ao passado: é um turbilhão, de acordo com a

234
imagem muito fina de Benjamin, um abismo no presente. E somos atraídos para este abismo”, é
justamente por isso, ele conclui, “que o presente é, por excelência, a única coisa que resta não
vivida” (AGAMBEN, 2014b, s/p.). Com essas palavras, Agamben nos mostra que existe uma
estreita ligação entre o desafio de vivermos o presente enquanto a única realidade que nos resta não
vivida, e uma compreensão a respeito da origem que não seja limitada ao passado. Em outras
palavras, o filósofo está, uma vez mais, mostrando como a compreensão do contemporâneo está
intimamente ligado à metodologia arqueológica. A correta compreensão das forças em tensão no
contemporâneo depende da percepção desse vórtice do tempo que está muito mais próximo do
turbilhão do que da reconstrução causal de uma origem primordial.
Essa articulação entre arqueologia e contemporâneo não é nova no pensamento
agambeniano, nem está limitada à essa entrevista mencionada. Em seu pequeno ensaio Che cos'è il
contemporaneo?, ele escolhe exatamente essa forma de alinhar uma investigação filosófica sobre o
significado de sermos contemporâenos e a metodologia arqueológica, especialmente presente na
obra de Michel Foucault. A pergunta que orienta sua argumentação é: “De quem e do que somos
contemporâneos? E, antes de tudo, o que significa ser contemporâneo?” (AGAMBEN, 2009, p. 57).
e, para respodê-la, Agamben recorre a três interlocuções: as Considerações intempestivas de
Friedrich Nietzsche, um diálogo com a neurofisiologia e a astronomia, e, por fim, a arqueologia
foucaultiana. Em relação ao seu diálogo com o primeiro interlocutor, Agamben argumenta que ser
contemporâneo é estabelecer um vínculo com o presente de inatualidade. Ou seja, a
contemporaneidade diz respeito a uma desconexão e dissociação com o presente. Nas palavras do
filósofo, ser pertencente ao seu tempo, é “aquele que não coincide perfeitamente com este, nem
está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; […] exatamente através desse
deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o
seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p. 58-59).
Quanto a segunda resposta sobre o que significa ser contemporâneo, Agamben propõe o
seguinte: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não
as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p. 62). Nesse caso, ser contemporâneo é justamente ser
capaz de ver a obscuridade do tempo presente e trabalhar mergulhado nessa ausência de luz. Com
essa imagem, Agamben tinha em mente tanto um dado da neurofisiologia de células perifécias à
retina que começam a trabalhar quando falta luz, nos auxiliando na locomoção no escuro, quanto
também um dado da astronomia sobre a escuridão que enxergamos no céus em razão das luzes
dirigidas a nós nunca nos alcançarem, por estarem, também, se afastando de nós em uma velocidade
superior a da própria luz. Vale dizer, no entanto, que mesmo com esses auxílios científicos e
filosóficos, Agamben reconhece que ainda não respondeu sua questão fundamental. Resta ainda

235
saber “por que conseguir perceber as trevas que provêm da época deveria nos interessar?”
(AGAMBEN, 2009, p. 64).
Isso nos encaminha à terceira resposta dada pelo filósofo italiano para a questão a respeito
do significado do contemporâneo – agora, em especial relação com a metodologia arqueológica.
Nas palavras do filósofo:

De fato, a contemporaneidade se escreve no presente assinalando-o antes de tudo


como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e as
assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo. Arcaico significa: próximo da
arké, isto é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num passado
cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste,
como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na
vida psíquica do adulto. A distância – e, ao mesmo tempo, a proximidade – que
define a contemporaneidade tem o seu fundamento nessa proximidade com a
origem, que em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente
(AGAMBEN, 2009, p. 69).

Nesse parágrafo, Agamben explora a ideia com que iniciamos essa seção sobre uma
inscrição no presente que se faz com aquilo que é arcaico. Somente quem tem sensibilidade para
perceber naquilo que é atual as assinaturas do arcaico pode, então, ser verdadeiramente
contemporâneo nos termos apresentados. É importante distinguir que arcaico não é sinônimo de
recuo cronológico a uma origem causal. Antes, trata-se daquele vórtice que não deixa de operar no
presente e que permanece, constantemente, nos assediando para o seu abismo. Agamben diz que em
nenhum outro momento essa força arqueológica pulsa mais do que no presente. Uma boa forma de
entender isso, Agamben exemplifica, é através da moda: “aquilo que define a moda é que ela
introduz no tempo uma peculiar descontinuidade, que o divide segundo a sua atualidade ou
inatualidade, o seu estar ou o seu não-estar-mais-na-moda” (AGAMBEN, 2009, p. 66). Apesar de
ser muito claro para quem trabalha cotidianamente com moda, e tem capacidades aguçadas de
perceber atualidade e inatualidade nos comportamentos, essa censura é muito sutil e
cronologicamente inapreensível. Não existe nenhum cronômetro nas mãos do estilista que irá
marcar com precisão matemática o “agora” em que determinada peça saiu de moda. Para Agamben,
esse limiar de inapreensibilidade do contemporâneo e suas relações arcaicas, paradigmaticamente
presentes na moda, mostra como determinadas experiências temporais dependem de assinaturas de
outras âmbitos, aparentemente distintos do atual. Esse é o caso da dependência da moda de uma
assinatura teológica da veste, “que deriva do fato de que a primeira veste foi confeccionada por
Adão e Eva depois do pecado original, na forma de um tapa-sexo entrelaçado com folhas de figo”
(AGAMBEN, 2009, p. 67). Nisso revela-se um “agora” kairológico inapreensível, como
argumentamos em seções anteriores da presente tese, mas presente também em experiências

236
cotidianas de “estar na moda”. A contemporaneidade comporta um certo “agora” tão fugidio quanto
à censura de estar dentro ou fora de moda. 165
Diante da reconstrução das três respostas de Agamben ao significado do contemporâneo,
podemos concordar com Edgardo Castro que: “qualquer das três atitudes descritas ou, melo talvez,
as três ao mesmo tempo servem para caracterizar o próprio percurso do autor”, em outras palavras,
isso significa dizer que “o pensamento de Agamben, de fato, pode ser visto como um contínuo
esforço para manter com o próprio tempo uma relação de contemporaneidade” (CASTRO, 2012, p.
146). O uso de seus paradigmas, as longas reconstruções arqueogenealógicas e a descrição dos
processos de transposições de assinaturas são esforços de manter com o próprio tempo presente um
limiar de inapreensibilidade característica do contemporâneo e suas relações arcaicas. Valer-se de
um paradigma teológico antigo como fizemos, por exemplo, é arrancá-lo da cronologia que lhe é
corrente e mostrar como ele ainda é presente comparecendo em contextos diferentes daquele seu
original – fazendo de noções como oikonomia, glória e fé paradigmas, ao mesmo tempo, defasados
e adequados ao momento presente. O professor Giacoia Jr. concorda e também argumenta que as
teses de Agamben não são tentativas de reconduzir a contemporaneidade política a uma causa ou
origem histórica. Antes, “a arché (origem, princípio, poder) que suas arqueogenealogias encontram
em sua regressão ao passado é hermeneuticamente resgatada a partir de signaturas ou marcas
significantes incritas nas coisas, as assinaturas” (GIACOIA JR., 2018, p. 13).
Não obstante, é preciso dizer que tais imagens só têm condições de ficarem ainda mais
claras se explorarmos tanto o conceito de assinaturas quanto o de arqueologia, tão importantes para
as novas representações históricas que Agamben procura oferecer para os desafios políticos
contemporâneos. Quanto a isso, é muito interessante tomar consciência de que, na mesma época em
que a aula inaugural Che cos'è il contemporaneo? foi proferida, Agamben também estava
publicando Signatura Rerum, sua obra dedicada ao método filosófico. O professor Vinícius
Nicastro Honesko explica que os três ensaios que compõem o livro – a quais sejam, Che cos’è un

165
Em sua obra dedicada ao método, Signatura Rerum, Agamben também se vale da imagem da moda para
exemplificar a natureza da indiscernibilidade que ele pretendia evocar: “um âmbito privilegiado das assinaturas é a
moda. E justamente na moda elas mostram seu caráter genuinamente histórico. Pois, a atualidade, que deve ser
reconhecida a cada vez, constitui-se sempre através de uma rede incessante de referências e citações temporais, que a
definem como um ‘não mais’ ou um ‘de novo’. Ou seja, a moda introduz uma descontinuidade peculiar no tempo, que o
divide de acordo com sua atualidade ou inatualidade, seu estar ou não-estar-mais na moda. Essa cesura, ainda que sutil,
é perspícua, no sentido de que aqueles que têm necessariamente de percebê-la a percebem ou não a captam, e
exatamente desse modo atestam seu estar (ou não estar) na moda: mas se procurarmos objetivá-la e fixá-la no tempo
cronológico, ela se revela inalcançável. A assinatura da moda arranca, pois, os anos (os 20, 60, 80...) da cronologia
linear e os dispõe numa relação especial com o gesto do estilista, que os chama a comparecer no ‘agora’ incomputável
do presente. Mas isso é, em si, inalcançável, porque vive somente na relação kairológica (e não cronológica!) com as
assinaturas do passado. Por isso, o estar na moda é uma condição paradoxal, que implica necessariamente certo conforto
ou uma imperceptível defasagem, em que a atualidade inclui dentro de si uma pequena parte de seu fora, um toque de
démodé. O homem na moda, como o historiador, pode ler as assinaturas do tempo somente se não se colocar
inteiramente no passado e não coincidir sem resquícios com o presente, mas mantendo-se, por assim dizer, na
‘constelação’ delas, isto é, no lugar exato das assinaturas” (AGAMBEN, 2019, p. 105-106).
237
paradigma?, Teoria delle segnature e Archeologia filosofica – “dão as notas do cabedal
metodológico que perpassa toda a obra de Agamben – desde seus primeiros textos como Stanze, de
1977, até o seu recentíssimo Nudità, de 2009” (HONESKO, 2009, p. 15). Nesse sentido, para
compreendermos corretamente as tentativas do filósofo italino de estabelecer novas representações
históricas que ele acredita serem profícuas para os desfios políticos no contempraneo, devemos
apresentar os termos da discussão a partir de Signatura Rerum – em que paradigmas, assinaturas e
arqueologias se entrecruzam e retroalimentam-se. Essa é a forma que o próprio filósofo coloca a
questão:

Em minhas pesquisas, pude analisar algumas figuras – o homo sacer e o


muçulmano, o estado de exceção e o campo de concentração – que certamente são,
mesmo que em medida diferente, fenômenos históricos positivos, mas que nelas
eram tratados como paradigmas, cuja função era constituir e tornar inteligível um
contexto histórico-problemático mais amplo. Será oportuno nos determos aqui no
sentido e na função do uso dos paradigmas na filosofia e nas ciências humanas, uma
vez que isso deu lugar a equívocos, em especial com aqueles que – com maior ou
menor boa-fé – julgaram que minha intenção era oferecer teses ou reconstruções de
caráter meramente historiográfico (AGAMBEN, 2019, p. 9).

Não obstante o próprio filósofo colocar no centro da compreensão de sua obra o método
paradigmático, qualquer compreensão dessa abordagem de Agamben precisa abrir mão, logo de
entrada, das conexões automáticas que podem ser feitas com as estruturas das revoluções científicas
kuhnianas. Muito mais próximo de Foucault, Agamben sabia que o diálogo com Thomas Kuhn era
bem improvável. Isto porque, “uma das orientações mais constantes da pesquisa de Foucault é o
abandono da abordagem tradicional do problema do poder, baseada em modelos jurídicos,
institucionais e em categorias universais”, nesse sentido, Foucault estava muito mais concentrado
em uma análise dos “dispositivos concretos mediante os quais o poder penetra nos próprios corpos
dos súditos e governa suas formas de vida” (AGAMBEN, 2019, p. 13-14). Essa primazia que dava a
microfísica do poder tornava a análise de Foucault diferente da de Kuhn, pois o francês não tomava
os membros bem estabelecidos da comunidade científica, mas a existência anônima dos enunciados.
Com essa diferença em mente, Agamben argumenta que o uso de paradigmas em Foucualt é de
outra ordem: “para ele foi decisivo o deslocamento do paradigma da epistemologia para a política,
sua deslocação no plano de uma política dos enunciados e dos regimes discursivos, em que já não se
trata de uma ‘alteração da forma teórica’ e sim do ‘regime interno de poder’” (AGAMBEN, 2019,
p. 16-17). Nesse sentido, será na obra de Foucault que Agamben encontrará diálogo e possibilidade
de desenvolvimentos metodologicos. 166 Segundo as palavras do filósofo italiano:

166
Encontramos apoio para essa leitura no comentário especializado do professor Honesko, que reforça esse ponto
dizendo que: “é a Foucault que Agamben se refere no início de Signatura Rerum. Todo o texto é, em maior ou menor
medida, uma indagação a respeito das ideias do pensador francês. Como a arqueologia feita ao texto de Melandri,
238
Não se trata de um caso isolado na obra de Foucault: ao contrário, pode-se dizer que,
nesse sentido, o paradigma define o método foucaultiano no seu gesto mais
característico. O grand enfermement [grande reclusão], a confissao, a investigação, o
exame, o cuidado de si: uma série de fenômenos históricos singulares que são
tratados – e isso constitui a especificidade da pesquisa de Foucault no tocante à
historiografia – como paradigmas que decidem por um contexto problemático mais
amplo que ao mesmo tempo constituem e tornam inteligível. Observou-se que
Foucault mostrou a partinência dos contextos prodizidos por campos metafóricos em
relação aos criados por censuras meramente cronológicas. [...] Foucault teria
libertado a historiografia do domínio exclusivo dos contextos metonímicos (o século
XVIII, a França meridional), para devolver a primazia aos contextos metafóricos. A
observação só está correta se esclarecermos que, pelo menos para Foucault, não se
trata de metáforas, e sim de paradigmas no sentido mencionado, que não obedecem à
lógica do transporte metafórico de um significado, mas àquela analógica do
exemplo. Não lidamos aqui com um significante, que é ampliado para designar
fenômenos heterogêneos em virtude de uma mesma estrutura semântica; mais
parecido com a alegoria do que com a metáfora, o paradigma é um caso individual
que é isolado do contexto do qual faz parte apenas na medida em que ele, exibindo a
própria singularidade, torna inteligível um novo conjunto, cuja homogeneidade é
constituída por ele mesmo. Assim, dar um exemplo é um ato complexo, que supõe
que o termo que serve de paradigma esteja desativado do seu uso normal, não para
ser transferido para outro âmbito, mas, ao contrário, para mostrar o cânone daquele
uso, que não é possível exibir de outro modo. [...] O paradigma foucaultiano é as
duas coisas ao mesmo tempo: não apenas exemplar e modelo, que impõe a
constituição de uma ciência normal, mas também e sobretudo exemplum, que
permite reunir enunciados e práticas discursivas num novo conjunto inteligível e
num novo contexto problemático (AGAMBEN, 2019, p. 22-23).

A forma foucaultiana de trabalhar, para Agamben, conseguiu evidenciar de uma maneira


exemplar, como os paradigmas fazem insurgir contextos problemáticos bem mais amplos que, em
uma operação dupla, os constituem e os tornam inteligíveis. Nesse sentido, o paradigma carrega
consigo muito mais que uma causa historiograficamente reconstrutível, mas, antes, diz respeito à
reunião de enunciados e práticas discursivas de uma forma inteligível e a partir de um novo
contexto problemático. Vale destacar que no trecho de Signatura Rerum supracitado, Agamben faz
uma diferenciação entre a obediência à lógica do transporte metafórico de um significado e àquela
analógica do exemplo. Aqui existe um detalhe que Honesko nos ajuda a identificar quando explica
que: “O princípio de analogia, pedra de toque do livro de Melandri, é a base da compreensão do
paradigma agambeniano” (HONESKO, 2009, p. 15). Com essas palavras, uma camada a mais na
escavação do pensamento agambeniano se mostra a nós, a saber, o cruzamento das reflexões
foucaultianas com a obra do professor de filosogia da Universidade de Bologna, Enzo Melandri. Em
seu livro La Linea e Il Circolo, Melandri tenta, justamente a partir do princípio da analogia, declinar
as oposições binárias que caracterizam a lógica ocidental. Nesse sentido, quando Agamben
estabelece seu método à luz da operação de Melandri com o princípio da analogia, ele está

Signatura Rerum é, de certa maneira, uma outra arqueologia de uma arqueologia, desta vez, à Arqueologia do Saber de
Foucault” (HONESKO, 2009, p. 15).
239
167
buscando alcançar aquele não-dito, a arché que paira sobre todo dito e está sempre presente. É
por isso que o filósofo italiano diz acima que dar um exemplo é algo complexo. Para funcionar
como exemplo, como um paradigma, ele não só tem que estar desativado do seu uso normal, mas
também conseguir carregar em si o cânone daquele uso e, assim, ter condições de exemplificar um
conjunto problemático novo. Essa é a razão que Agamben argumentará que “o paradigma implica
um movimento que vai da singularidade à singularidade e que, sem sair desta, transforma cada caso
individual em exemplar de uma regra geral que nunca é possível formular a priori” (AGAMBEN,
2019, p. 28).
Alcançar essa estância do não-dito através de paradigmas não é sinônimo de encontrar-se
com algum tipo de fronteira da consciência do sujeito, nem qualquer outra percepção ainda de
cunho epistemológico de insconscientes esquecidos. Podemos dizer que a utilização de paradigmas
na filosofia de Agamben cumpre a função de ser uma condição de possibilidade não só da
arqueologia filosófica, mas da própria criatividade do pensamento: “só um pensamento que não
esconde o próprio não-dito, mas incessantemente o retoma e o desenvolve, pode, eventualmente,
pretender a originalidade” (AGAMBEN, 2019, p. 8). Paradigmas e arqueologias se entrecruzam
aqui e se tornam mais compreensíveis quando são confrontados entre si. Isso fica estabelecido nas
palavras finais de sua reflexão sobre os paradigmas:

Acredito que, a esta altura, esteja claro o que significa, tanto no meu caso como no
de Foucault, trabalhar por meio de paradigmas. O homo sacer e o campo de
concentração, o Muselmann e o estado de exceção – como, mais recentemente, a
oikonomia trinitária ou as aclamações – não são hipóteses pelas quais eu pretendia
explicar a modernidade, reconduzindo-a a algo como uma causa ou uma origem
histórica. Pelo contrário, como a própria multiplicidade delas poderia ter deixado
entender, tratava-se sempre de paradigmas, cujo escopo era tornar inteligível uma
série de fenômenos, cujo parentesco poderia escapar ou passar despercebido ao olhar
do historiador. Ceramente, tanto minhas pesquisas como as de Foucault são de
caráter arqueológico e os fenômenos com os quais elas lidam se desenvolvem no
tempo, implicando, portanto, uma atenção aos documentos e à diacronia que não
pode deixar de obedecer às leis da filologia histórica; mas a arché que elas alcançam
– e isso vale, talvez, para qualquer pesquisa histórica – não é uma origem
pressuposta no tempo, mas, situando-se no cruzamento entre diacronia e sincronia,
torna inteligível o presente do pesquisador não menos que o passado do seu objeto.
Nesse sentido, a arqueologia é sempre uma paradigmatologia, e a capacidade de
reconhecer e articular paradigmas define o nível do pesquisador tanto quanto sua
habilidade de examinar os documentos de um arquivo. Em última análise, do
paradigma depende a possibilidade de produzir no interior do arquivo cronológico, e
si inerte, aqueles plans de clivage (como são chamados pelos epistemólogos
franceses) que são os únicos que permitem torná-lo legível (AGAMBEN, 2019, p.
41-42).

167
O pesquisador da obra agambeniana Caio Mendonça Ribeiro Favaretto corrobora e também amplia nossa
compreensão do método paradigmático de Agamben explicando que: “assim, o paradigma não só estabeleceria um
padrão de eventos que se repetem ao longo da história, mas também os expõe, os indica e os representa, além de
oferecer um modo de intelecção ou de representação adequado a seu conjunto diante de uma determinada posição
histórica” (FAVARETTO, 2013, p. 120)
240
Com essas palavras, Agamben estabelece uma ligação direta não só de sua filosofia com a
de Foucault, como também da prática arqueológica com o método paradigmático. O alinhamento de
um sobre o outro se dá em razão de ambos não estarem envolvidos em fornecer explicações que nos
reconduzizem a uma mera causa ou origem histórica. Ao contrário, ambos são profícuos em tornar
inteligível uma série de fenômenos cuja relação não se estabelece claramente nem na sincronia, nem
na diacronia histórica – na verdade, o que ambos alcançam é justamente o que está no cruzamento
de diacronia e sincronia. Edgardo Castro comenta que a tarefa da arqueologia foucaultiana e a
paragmatologia agambeniana é a de “descrever como as realidade históricas surgem em
determinado momento a partir de outras realidades históricas, heterogêneas a elas, porém das quais,
no entanto, provêm” (CASTRO, 2012, p. 149). Não existe, portanto, a busca por uma origem que
explique em termos ideais e teleológicos o desenvolvimento dos fenômenos históricos. Antes, o
paradigma funciona como um recorte da linearidade história que, mesmo ao ser abstraído, continua
a ser capaz de explicar um conjunto novo de elementos contemporâneos, mesmo que esses sejam,
cronologicamente, estranhos à origem histórica do paradigma. Sua força metodológica está em
mostrar a presença ainda explicativa de paradigmas que não são cronologicamente atuais, mas,
ainda assim, plenos de capacidade filosófica de interpretar o presente. É por isso que Agamben
argumenta que os paradigmas vão da singularidade à singularidade em gestos exemplares.
Não é só ao método paradigmático que Agamben sobrepõe as arqueologias. No texto que
recebe o nome de Teoria delle segnature, o filósofo percorre uma longa incursão sobre as
assinaturas para mostrar que também são um elemento constitutivo para a filosofia e as ciências
humanas. O que é interessante, logo de saída nesse texto, é que Agamben defende seus contornos
metodológicos a partir de práticas que só podem ser plenamente compreendidas através do próprio
método. Isso acontece por meio do uso de longas lineraridades, como lhe é de costume, por meio
das quais inicia essa investigação com a episteme de Paracelso, passando pelo desenvolvimento e
discussões teológicas sobre a doutrina dos sacramentos da Igreja, pelas investigações astrológicas e
médicas do Renascimento, até chegar ao seu desaparecimento das signaturas no final do XVIII – e,
posteriormente, como elas reaparece, mais uma vez, em Foucault na obra Le Mots et les choses.
Ainda que Foucault não defina o que são as assinaturas, muito menos da forma como Agamben as
toma, ele enuncia uma função e posição próprias às assinaturas enquanto um entre-lugares que
Agamben se beneficiará muitíssimo. Isso o filósofo francês faz ao dividir o campo epistemológico
do século XVI em semiologia e em hermenêutica – isto é, entre os conhecimentos que nos
permitem reconhecer o que é um signo e aqueles que nos possibilitam saber qual é o seu sentido. As

241
168
assinaturas vão ser, justamente, aquilo que permite a passagem de uma para a outra. Sobre essa
hipótese de Foucault, Agamben dirá que: “isso equivale a dizer que da semiologia à hermenêutica
não há passagem e que é precisamente no ‘hiato’ que as separa que se situam as assinaturas. Os
signos não falam se as assinaturas não os deixam falar” (AGAMBEN, 2019, p. 86). Aos olhos do
filósofo italiano isso significa que a teoria da significação linguística precisa ser completada por
uma teoria das assinaturas – a sua grande contribuição metodológica. Conforme ele mesmo
argumenta:

Tudo se torna mais claro quando se supôe que os enunciados ocupam, na


Archéologie, o lugar que, em Les Mots et les choses, cabia às assinaturas, ou seja,
quando se situam os enunciados no limitar entre a semiologia e a hermenêutica em
que as assinaturas têm lugar. Nem semiótico nem semântico, ainda não discurso e
não mais mero signo, os enunciados, assim como as assinaturas, não estabelecem
relações semióticas nem criam novos significados, mas marcam e “caracterizam” os
signos no âmbito de sua existência e, dessa forma, atuam e deslocam sua eficácia.
Eles são as assinaturas que os signos recebem pelo fato de existirem e serem usados,
o caráter indelével que, ao marcá-los em seu significar algo, orienta e determina em
certo contexto sua interpretação e eficácia. Assim como a assinatura nas moedas, as
figuras das constelações e dos decanos no céu da astrologia, a mancha em forma de
olho na coroa de eufrásia ou o caráter do batismo imprime na alma do batizado, eles
já decidiram, sempre pragmaticamente, o destino e a vida dos signos que nem a
semiologia, nem a hermenêutica conseguem esgotar. Em suma, a teoria das
assinaturas (dos enunciados) intervém para reitificar a ideia abstrata e falaciosa de
que existem signos, por assim dizer, puros e não marcados, de que o signans
significa o signatum de forma neutra, univocamente e de uma vez por todas. O signo
significa porque traz uma assinatura, mas esta predetermina necessariamente sua
interpretação e distribui seu uso e eficácia segundo regras, práticas e preceitos que
devem ser reconhecidos. A arqueologia é, nesse sentido, a ciência das assinaturas
(AGAMBEN, 2019, p. 90-91).

No parágrafo acima, fica explícita a sobreposição entre arqueologia e teoria das assinaturas –
como também o remetimento automático aos paradigmas e seu igual alinhamento com o método
arqueológico. A implicação metodológica desse ajuste fino entre arqueologia, paradigmas e
assinaturas é que quando as ciências humanas se propõem a estudar um fenômeno histórico,
necessariamente, elas precisam ter clareza do fato de que ele nunca será abstraído de maneira
neutra. Ao contrário, virá sempre acompanhado de uma assinatura que lhe determina e lhe dá as

168
Conforme as palavras do próprio Foucault: “Chamemos hermenêutica ao conjunto de conhecimentos e de técnicas
que permitem fazer falar os signos e descobrir seu sentido; chamemos semiologia ao conjunto de conhecimentos e de
técnicas que permitem distinguir onde estão os signos, definir o que os institui como signos, conhecer seus liames e as
leis de seu encadeamento: o século XVI superpôs semiologia e hermenêutica na forma da similitude. Buscar o sentido é
trazer à luz o que se assemelha. Buscar a lei dos signos é descobrir as coisas que são semelhantes. A gramática dos seres
é sua exegese. E a linguagem que eles falam não narra outra coisa senão a sintaxe que os liga. A natureza das coisas,
sua coexistência, o encadeamento que as vincula e pelo que se comunicam não é diferente de sua semelhança. E esta só
aparece na rede de signos que, de um extremo ao outro, percorre o mundo. A “natureza” está inserida na fina espessura
que mantém, uma acima da outra, semiologia e hermenêutica; ela só é misteriosa e velada, só se oferece ao
conhecimento por ela às vezes confundido, na medida em que essa superposição não se faz sem um ligeiro desnível das
semelhanças. De imediato, o crivo não é claro; a transparência se acha turva desde o primeiro lance. Aparece um espaço
sombrio que será necessário progressivamente aclarar. É aí que está a “natureza” e é isso que é mister aplicar-se a
conhecer” (FOUCAULT, 1995, p. 46).
242
condições de inteligibilidade histórica. Na verdade, o signo só significa porque traz consigo uma
assinatura, que lhe predetermina, incontornavelmente, sua interpretação e distribui seus usos
possíveis. É claro que essa imagem que as assinaturas imprimem também precisam ser encaradas de
um ponto de vista da insurgência do devir histórico, e nunca como uma propriedade estanque e
localizada em uma origem cronológica. Giacoia Jr. argumenta que a opção pelas “assinaturas,
correspondentes aos paradigmas, que determinam um método ou modo próprio de retomar o não
dito, a origem que vige a todo instante, sempre presente”, amplia consideravelmente nossa
compreensão dos fenômenos históricos, não mais tentando enteder suas origens em um pressuposto
tempo remoto, mas os situando “no carrefour entre diacronia e sincronia, e, em virtude disso, que
torna inteligível tanto o presente do investigador quanto o passado de seu objeto” (GIACOIA JR.,
2018, p. 13).
Para Agamben, essas considerações sobre o método precisam renovar qualquer prática de
pesquisa em ciências humanas – em particular aquelas envolvidas com o âmbito histórico. De fato,
se mantivermos os nossos gestos filosóficos sempre orientados por esse devir imanente da
historiografia, que sempre nos confronta e é sempre presente, as assinaturas passarão a integrar o
núcleo da investigação em humanidades. Nas palavras do italiano, “aprender a reconhecê-las e a
manuseá-las corretamente é muito mais urgente para o pesquisador, uma vez que, em última
análise, o bom resultado de suas investigações dependerá justamente delas” (AGAMBEN, 2019, p.
108). Com esse renovado olhar para os fenômenos históricos, a filosofia pode acabar revelando o
que à primeira vista parecia uma assinatura, mas revelou-se, posteriormente, como um conceito.
Contrário senso também é verdadeiro, quando nos deparamos com conceitos que, na verdade, são
assinaturas. Agamben exemplifica essas possibilidades com uma assinatura que é importante para
as argumentações que estabelecemos previamente: “um deles é a secularização, sobre a qual, em
meados dos anos de 1960, realizou-se na Alemanha um animado debate, que envolvei
personalidades como Hans Blumenberg, Karl Löwith e Carl Schmitt”; Agamben argumentará que
essa discussão não conseguiu atingir êxito, justamente, pelo fato de que “nenhum dos participantes
parecia se dar conta do fato de que ‘secularização’ não era um conceito [...] mas um operador
estratégico que assinava os conceitos políticos para remetê-los à sua origem teológica”
(AGAMBEN, 2019, p. 109). Em outras palavras, a secularização age no interior da trama conceitual
da modernidade como uma assinatura que remete constantemente os conceitos da teoria política à
teologia cristã. Somente captando esse caráter eminentemente assinatorial que será possível ler as
contribuições que Agamben traz tanto à política quanto à teologia na contemporaneidade. 169

169
Alguns anos antes, em uma aplicação exata ao que estamos nos referindo aqui, Agamben diz o seguinte: “a
secularização não é, pois, um conceito, mas uma assinatura no sentido dado por Foucault e Melandri, ou seja, algo que,
em um signo e conceito, marca-os e excede-os para remetê-los a determinada interpretação ou determinado âmbito, em
243
A relação que Agamben estabelece entre arqueologia, assinaturas e paradigmas,
especialmente no movimento que estes implicam, que vai da singularidade à singularidade, nos
permite perceber pressuposto ao método sua compreensão da história. Conforme argumentamos no
capítulo anterior, a temporalidade história aparece nas argumentações de Agamben como uma
composição de fragmentos e situações únicas que interrompem e fazem surgir uma excedência no
tempo (cronológico) visto de maneira indefinida. Essa relação conecta-se com o tema central do
presente trabalho, a respeito da importância do tema do tempo messiânico para a política. À luz
dessas reflexões metodológicas, torna-se um pouco mais claro os motivos que o levaram a
encontrar no tempo messiânico uma imagem alternativa ao fluxo contínuo do tempo da
governamentalidade infinita da população. Nisso, temos condições renovadas de compreender que:
“o histórico é o tempo messiânico, ou o tempo restante. Conhecer o passado histórico não significa
conhecê-lo como de fato foi – isso é o ideal do historicismo positivista. Conhecer o passado
histórico é apropriar-se de uma reminiscência, tal como esta relampeja num momento de supremo
perigo” (GIACOIA JR., 2018, p. 94). Justamente porque o paradigma implica aquele movimento
que vai da singularidade à singularidade e, com isso, transfroma cada caso individual em um
exemplo, em uma regra geral, não sobra nenhum espaço para enxergar o processo histórico como
uma trajetória linear direcionada por uma teleologia do progresso. Dessa forma, a arché deixa de
estar limitada a uma origem situada no passado cronológico e passa a afigurar-se sempre como
contemporânea do devir histórico. Ela não cessa de operar no presente de cada instante. Tudo isso
nos permite reafirmar que, no interior da filosofia de Agamben, o tempo que resta carrega consigo
aquela potencialidade messiânica de ser um tempo sempre atual, uma porta através da qual o
messias pode sempre entrar, ou ainda, como dirá Benjamin na tese XIV Sobre o conceito de
história, é o tempo-de-agora (Jetztzeit). Diante disso, podemos concordar com Giacoia Jr. quando
ele chega às seguintes conclusões a partir das mesmas leituras agambenianas:

sair, porém, do semiótico, para constituir um novo significado ou um novo conceito. As assinaturas transferem e
deslocam os conceitos e os signos de uma esfera para outra (nesse caso, do sagrado para o profano, e vice-versa), sem
redefini-los semanticamente. Muitos conceitos aparentes da tradição filosófica são, nesse sentido, assinaturas que, assim
como os ‘índices secretos’ de que fala Benjamin, cumprem determinada e vital função estratégica, orientando por um
longo tempo a interpretação dos signos em certa direção. Enquanto estabelecem relação entre tempos e âmbitos
diversos, as assinaturas agem, por assim dizer, como elementos históricos em estados puros. A arqueologia de Foucault
e a genealogia de Nietzsche (e, em sentido diverso, a desconstrução de Derrida e a teoria das imagens dialéticas em
Benjamin) são ciências das assinaturas que caminham paralelamente à história das ideias e dos conceitos e com estas
não devem ser confundidas. Caso não se tenha a capacidade de perceber as assinaturas e de seguir as mudanças e os
deslocamentos que elas efetuam na tradição das ideias, a simples história dos conceitos pode, às vezes, resultar
totalmente insuficiente. Nesse sentido, a secularização atua no sistema conceito do moderno como uma assinatura que o
remete à teologia. Do mesmo modo como, de acordo com o direito canônico, o sacerdote secularizado deveria levar
consigo um sinal da ordem, a que havia pertencido, assim também o conceito secularizado exibe como assinatura seu
pertencimento passado à esfera teológica. É decisivo, a cada vez, o modo como é entendido o remeter efetuado pela
assinatura teológica. Assim, a secularização também pode ser entendida (como acontece em Gogarten) como uma
contribuição específica da fé cristã, que abre pela primeira vez ao homem o mundo em sua mundanidade e
historicidade. A assinatura teológica age aqui como uma espécie de trompe l’oeil, em que justamente a secularização do
mundo se torna a contrassenha de seu pertencimento a uma oikonomia divina” (AGAMBEN, 2011, p. 16).
244
Uma representação da história que não seja capaz de perceber a possibilidade de
repetição desses aconecimentos mesmos em nosso século é, por certo, uma teoria da
história incapaz de “tornar melhor nossa situação” em face de qualquer novo assalto
do totalitarismo. Para Agamben, um espanto efetivamente filosófico seria aquele
capaz de perceber a presença da estrutura jurídico-política do “campo”
concentracionário como matriz do espaço biopolítico das sociedades ocidentais.
Uma nova biopolítica seria aquela capaz de perceber no homo sacer e na vida nua
uma potência capaz de transformação. O sujeito ético, nesse contexto, é o sujeito do
testemunho, que se constitui no trânsito entre os processos de subjetivação e
desubjetivação, “incoicidência”, no espaço restante entre captura e emancipação,
como peça de desativar a máquina das relações de poder, jogando um contra o outro
os pólos que determinam seus funcionamento – a soberania e a vida nua (GIACOIA
JR., 2018, p. 98).

Frente à eminência dos totalitarismos que nos assaltam e a tantos assediam politicamente,
uma filosofia da história orientada pelos paradigmas messiânicos torna-se um tema de primeira
grandeza política. Uma representação da história que permite ser informada pela metodologia
arqueológica e paradigmática está em condições privilegiadas de nos fazer perceber como
determinados acontecimentos históricos não só se repetem, mas são sempre presentes, justamente
através daquela percepção de suas origens não como um evento cronológico remoto, mas como um
jogo de forças que se mantém sempre presente – e, por isso, recorrentemente ameaçadoras. Essa
compreensão histórica é o que faz com que Agamben insista em sustentar contemporaneamente a
espantosa presença jurídico-política de paradimas tão extremos como o campo de concentração
entendido como o núcleo mais originário das práticas biopolíticas das sociedades ocidentais.
Vale ressaltar, entretanto, que é exatamente essa metodologia que também nos permite
argumentar a favor de uma leitura de Paulo enquanto um contemporâneo nosso. Seus paradigmas
teológicos não estão limitados a uma origem estagnada em um passado bíblico perdido, mas
também instituem-se como forças temporais com potência transformadora do nosso presente.
Quanto a isso, uma vez mais, o professor Giacoia Jr. argumenta na mesma direção nos ajudando a
compreender o pormenor agambeniano: “para Agamben, o contemporâneo exibe as vértebras
partidas do tempo, os pontos de ruptura, e o espaço para o encontro entre os tempos e as gerações.
O anúncio messiânico dá-se nesse presente: é isso que Paulo de Tarso experimenta e anuncia aos
seus irmãos” (GIACOIA JR., 2018, p. 210). A correspondência entre a formulação agambeniana do
que é o contemporâneo com a representação do tempo messiânico esclarece porque o filósofo
italiano escolhe justamente o anuncio paulino de ser contemporâneo do messias – o “tempo de
agora” (ho nyn kairós) tantas vezes articulado por Paulo – como a expressão da contemporaneidade
por excelência. Esse tempo que resta e que o próprio tempo emprega para chegar ao seu fim não é
meramente o tempo que dura de forma cronologicamente indeterminada, mas refere-se “a libertação
da singular capacidade ou poder de se relacionar consigo mesmo, a cada instante do passado, de

245
fazer de cada momento ou episódio do relato bíblico, por exemplo, uma profecia ou uma
prefiguração (um typos), uma figura do presente”, esse é o caso, por exemplo de Adão, “por meio
de quem a humanidade recebeu a morte e o pecado, que é também o ‘tipo’ ou figura do Messias,
que traz aos homens a redenção e a vida” (GIACOIA JR., 2018, p. 210). É nesse sentido que
podemos sustentar também que, em todas as novas representações que fazemos do tempo a partir da
obra de Agamben, “encontra-se implicado também um tempo ulterior, que não se identifica
plenamente nem pode exaurir-se no primeiro”, como também, não é outro tempo, ou seja, “alguma
coisa como um tempo suplementar que se ajuntasse de fora ao tempo dos relógios” (GIACOIA JR.,
2018, p. 209).
Diante de tudo isso, podemos encerrar dizendo que em todas as novas representações que
fazemos do tempo a partir da metodologia arqueológica e paradigmática – que encontra no tempo
que resta messiânico sua cifra privilegiada –, um tempo ulterior está implicado e pressuposto. Isso
não significa dizer que esse tempo contemporâneo é outro tempo diferente daquele marcado em
nossos relógios – nem tampouco uma espécie de suplemento ao tempo cronológico. Antes, é aquele
tempo que resta que, a partir do próprio interior do tempo histórico, o comprime e o conduz à
conclusão e ao acabamento. Em razão disso, que o sujeito ético em tempos de governamentalidade
biopolítica é o sujeito do testemunho que, por definição, experimenta seus processos de
subjetivação e desubjetivação no trânsito e na “incoincidência” em relação a si mesmo. Essa
defasagem em relação à própria representação temporal é que faz do contemporâneo esse tempo
intempestivo, extemporâeo e capaz de antagonizar a máquina das relações de poder.

3.1.2. Dificuldades com as novas representações históricas para os desafios políticos

Existe uma performatividade no gesto filosófico de Agamben registrado em seus livros. Em


suas buscas por novas representações do tempo a partir da metodologia arqueológica e
paradigmática, o filósofo italiano demonstra, na própria argumentação sobre essa representação,
como podemos nos valer dos momentos fundamentais a que um paradigma se refere. Em vários
pontos de sua obra podemos testemunhar Agamben operando através de longas linearidades que a
metodologia paradigmática parece pressupor. Reconstruir aqui todas essas argumentações seria
contraproducente, uma vez que essa é uma marca distintiva da grande maioria das obras de
Agamben – mantendo unidos institutos romanos, liturgias medievais e campos de concentração com

246
170
práticas e espaços de exceção nos estados democráticos contemporâneos. Para nossa
argumentação basta lembrar de alguns momentos específicos quando o próprio Agamben remete à
sua prática de usos de longas linearidades através de paradigmas selecionados. Para citar apenas um
exemplo mais recente, na obra L'uso dei corpi, após concluir sua argumentação a respeito do
significado do conceito de uso em Aristóteles, ele imediatamente estabelece uma longa linha
histórica de atualizações desse paradigma dizendo: “de Aristóteles em diante, a tradição da filosofia
ocidental sempre apresentou como fundamento da política o conceito de ação. Inclusive em Hannah
Arendt”, ele argumenta, “a esfera pública coincide com a do agir, e a decadência da política é
explicada com a progressiva substituição, no decurso da idade moderna, do agir pelo fazer, do ator
político pelo homo faber e, depois, pelo homo laborans” (AGAMBEN, 2017, p. 41). Nesse sentido,
um paradigma abstraído da filosofia de Aristóteles encontraria-se contemporâneo à doutrina dos
sacramentos cristãos na argumentação de Agostinho, na regra monástica dos franciscanos, no
fundamento físico da escravidão de Marques de Sade e na transformação da política analisada por
Hannah Arendt.
Em alguns momentos específicos de sua argumentação, Agamben não só está consciente das
possíveis incompreensões que seu gesto paradigmático pode gerar, como também explicita quais
são suas intenções. Isso pode ser visto, por exemplo, no seguinte trecho da obra Il regno e la gloria,
onde lemos o seguinte:

Não se trata de fazer uma reconstrução exaustiva do interminável debate sobre a


providência que, no âmbito pagão, cristão e judaico, chega da Stoa ao limiar da
idade moderna praticamente sem solução de continuidade. Isso nos interessa apenas
na medida em que constitui o lugar em que o paradigma teológico-econômico e a
fratura entre ser e práxis que ele comporta assumem a forma de um governo do
mundo e, vice-versa, o governo se apresenta como a atividade que só pode ser
pensada se ontologia e praxis estiverem “economicamente” divididas e coordenadas
entre si. Podemos afirmar, nesse sentido, que a doutrinas da providência é o âmbito
teorético privilegiado em que a visão clássica do mundo, com sua primazia do ser
sobre a práxis, começa a fender-se, e o deus otiosus cede lugar a um deus actuosus.
O que importa analisar aqui é o sentido e as implicações dessa atividade divina de
governo (AGAMBEN, 2011, p. 129).

No trecho acima, retirado do contexto da argumentação agambeniana a respeito do


paradigma da providência divina do mundo, o filósofo italiano claramente faz uma distinção das
tradicionais reconstruções históricas exaustivas em relação ao seu real interesse pelos modos como
o paradigma teológico-econômico se comporta. Trata-se de reconhecer em diferentes momentos da

170
Nem mesmo em sua obra dedicada ao próprio método arqueológico-paradigmático, Agamben deixa de servir-se de
longas linearidades para construir sua argumentação. O professor Vinício Nicastro Honesko observa essa presença ao
dizer o seguinte: “depois de uma incursão sobre como as assinaturas aparecem na ciência ocidental com Paracelso,
passando pelo seu desenvolvimento na doutrina dos sacramentos da Igreja, pelas ideias astrológicas e medicinais do
Renascimento, até seu desaparecimento no final do século XVIII, Agamben constata como elas ressurgem em Foucault,
em As Palavras e as Coisas” (HONESKO, 2009, p. 16).
247
história o sentido e as implicações que essa atividade divina de governo reaparece de forma
paradigmática. Alguns trechos à frente, Agamben argumentará, mais uma vez, a respeito do núcleo
de sua argumentação genealógico-teológica ele reitera que: “mais do que em um estágio
cronologicamente mais antigo, devemos pensar aqui em algo como um limiar de indistinção sempre
operante, em que o jurídico e o religioso se tornam indiscerníveis” (AGAMBEN, 2011, p. 207).
Com isso também fica explícito, a relação que estabelece entre o método paradigmático e a
apresentação de limiares de indistinção e inoperosidade que são característicos da filosofia
agambeninana. Na continuação do seu argumento, ele nos lembra de um destes limiares mais
fundamentais em todo o seu projeto filosófico em torno do homo sacer, qual seja, o de sacertas, “em
que uma dupla exceção, tanto do direito humano quando do direito divino, deixará entrever uma
figura, o homo sacer, cuja relevância para o direito e a política ocidental temos procurado
reconstruir” (AGAMBEN, 2011, p. 208). Toda a odisseia filosófica assinada pela signatura do
homo sacer tem seu princípio de inteligibilidade – sua arché fundamental – não em uma origem
reconstruída cronologicamente de maneira causal, mas em um paradigma exemplar que continua
operando em diferentes momentos da história produzindo limiares de indistinção e indiferença.
Nesse sentido, é necessário ficar evidente quais são as opções feitas pelo filósofo italiano, como
também as consequências de tais escolhas metodológicas para o conteúdo mesmo de suas
argumentações. Em suas palavras em outro momento importante de sua caminhada filosófica:
“nesse ponto, vocês terão já entendido a hipótese que pretendo sugerir, ainda que ela deva ser
entendida muito mais como um paradigma epistemológico do que como uma hipótese histórico-
genética” (AGAMBEN, 2016, p. 102).
Essa performatividade que Agamben empreende a partir da metodologia paradigmática em
seus usos de longas linearidades tem despertado a atenção de muitos comentários críticos a sua
obra. A pesquisadora da Monash University, Allison Ross argumenta que: “como ponto de partida
para um exame crítico do projeto de Agamben e de suas reivindicações políticas, podemos submeter
seu projeto ao duplo teste que Foucault estabelece para a filosofia política”, esse duplo teste, ela
explica, consiste em: “por um lado, deve ser capaz de falar através de ‘uma população de eventos
dispersos’ ou, em outras palavras, não impor um princípio explicativo redutivo a fenômenos
complexos” e, por outro lado, “à sua capacidade explicativa de tornar legível um campo de ‘eventos
dispersos’, deve agregar a disposição de testar suas hipóteses contra situações reais” (ROSS, 2008,
p. 5). 171 Quanto a isso, à revelia das reiteradas justificativas do filósofo italiano conectar sua prática

171
Em relação a essa argumentação de Foucault, Ross explica que: “Gilles Deleuze identificou a novidade da obra de
Foucault não apenas em sua ruptura com a terminologia da filosofia política tradicional, mas na distinção operativa em
sua abordagem do poder entre a microanálise de uma instituição ou ambiente específico e a máquina ou diagrama
abstrato, imanente ao todo o campo social, que esta análise sugere. Embora esses dois aspectos da abordagem de
Foucault representem um problema de complementaridade em Vigiar e Punir, Deleuze argumenta que no primeiro
248
argumentativa com a metodologia de Foucault, o contraste entre a abordagem de Foucault à
biopolítica e as afirmações extremas de Agamben sobre os paradigmas tais como o campo de
concentração, o Terceiro Reich alemão e até a atual pandemia do COVID-19, ficam evidentes.
Segundo a argumentação de Ross: “sua abordagem inverte a metodologia ascendente de Foucault e
nos deixa perguntar o que o raciocínio de instâncias extremas nos diz sobre o domínio da análise de
Agamben sobre os fenômenos que deseja decodificar” (ROSS, 2008, p. 6). Podemos compreender
essa incapacidade de fazer justiça à metodologia foucaultiana argumentada por Ross porque através
de sua articulação de paradigmas Agamben acaba impondo um princípio explicativo reducionista
em relação a fenômenos complexos, como também não consegue agregar a disposição de testar suas
hipóteses contra situações reais – conforme já mencionamos no início do presente capítulo a partir
172
das reflexões da professora Yara Frateschi. Quem também empreendeu uma avaliação crítica à
abordagem agambeninana foi Dominick LaCapra em seu artigo seminal Approaching Limit Events:
Siting Agamben. Nas conclusões do seu capítulo a respeito do uso de paradigmas extremos para
abordar a filosofia política, LaCapra entende que está em jogo uma metodologia muito específica
que tem no uso de paradigmas extremos o objetivo de levar o pensamento ao limite e tornar
evidente sua vacuidade: “o pensamento deve se engajar em uma crítica implacável e radical do
presente em sua relação com o passado. Daí o papel fundamental da aporia, do paradoxo e da
hipérbole como estratégias de provocação explícitas” (LACAPRA, 2007, p. 161).
Será o filósofo argentino Ernesto Laclau, no entanto, que conseguirá colocar uma das mais
precisas críticas ao pensamento agambeniano no que se refere a presença de longas linearidades no

volume de A história da Sexualidade eles funcionam em conjunto como microdisciplinas (estruturas institucionais
específicas, como a disposição de dormitórios em internatos). que também são biopolíticas (imanentes ao campo
social). A biopolítica descreve a lógica da administração da vida que sustenta as disciplinas específicas, mas também
escapa de ser um modo de explicação globalizante porque é alcançada pela análise dos objetivos locais de poder cujos
efeitos não se limitam a um local específico. Nesse contexto, Deleuze elogia a capacidade de Foucault de fazer uma
grade ou mapear um espaço social a partir da microanálise de suas disciplinas locais” (ROSS, 2008, p. 5-6).
172
Especialmente quanto a incapacidade de ressonância com eventos reais, muitos críticos duvidam da capacidade
elucidativa de alguns dos paradigmas extremos de Agamben. Para além dos já mencionados exemplos a partir dos
raciocínios de Frateschi, é importante mencionar o brilhante filósofo franco-argelino Jacques Rancière que, apenas de
não mencionar Agamben, deixa explícita sua crítica às suas propostas filosóficas extremas: “Os praguejadores querem,
na verdade, ligar diretamente os quatro termos: nazismo, democracia, modernidade e genocídio. Mas transformar o
nazismo em realização direta da democracia é uma demonstração delicada, mesmo pelo viés do velho argumento
contrarrevolucionário que vê o ‘individualismo protestante’ como a causa da democracia, logo do terrorismo totalitário.
E transformar as câmaras de gás na encarnação dessa essência da técnica designada por Heidegger como o destino fatal
da modernidade é suficiente para colocar Heidegger do lado ‘certo’, mas não para resolver o problema: podemos
empregar meios modernos e racionais que sirvam a fanatismos arcaicos. Para que o raciocínio funcione, é preciso
chegar a uma solução radical: suprimir o termo que impede o encaixe das peças, ou seja, simplesmente, o nazismo. Este
se torna, no fim do processo, a mão invisível que trabalha pelo triunfo da humanidade democrática, livrando-a de seu
inimigo íntimo, o povo fiel à lei da filiação, para permitir que ela realize seu sonho: a procriação artificial a serviço de
uma humanidade dessexualizada. Da pesquisa atual sobre o embrião, deduz-se retrospectivamente a razão do
extermínio dos judeus. Desse extermínio, deduz-se que tudo que está ligado ao nome de democracia é apenas a
continuação infinita de um único e mesmo crime” (RANCIÈRE, 2014, p. 115).

249
seu método paradigmático. Em seu texto, Bare Life or Social Indeterminacy?, podemos ler o
seguinte:

Tenho grande admiração pelo trabalho de Giorgio Agamben. Aprecio


particularmente sua erudição clássica deslumbrante, sua habilidade – tanto intuitiva
quanto analítica – em lidar com categorias teóricas e sua habilidade de relacionar
sistemas de pensamento cujas conexões não são imediatamente óbvias. Essa
apreciação não passa, entretanto, sem algumas reservas profundas a respeito de suas
conclusões teóricas, e essas reservas são o que desejo desenvolver aqui. Se tivesse
que resumi-los, afirmaria que Agamben tem – invertendo o ditado usual – os vícios
de suas virtudes. Ao ler seus textos, muitas vezes temos a sensação de que ele salta
muito rapidamente depois de ter estabelecido a genealogia de um termo, um
conceito ou uma instituição, para determinar seu funcionamento real em um
contexto contemporâneo, que em certo sentido a origem tem uma prioridade
determinante secreta sobre o que se segue. Não estou, é claro, afirmando que
Agamben comenteu o engano ingênuo de assumir que a etimologia fornece a cifra
ou pista para o que se segue dela, mas, eu argumentaria, muitas vezes seu discurso
permanece inquietamente indeciso entre a explicação genealógica e a estrutural.
Tomemos o exemplo da linguística saussuriana: o termo latino necare (matar)
tornou-se no francês moderno noyer (afogar), e podemos examinar o quanto
quisermos essa mudança diacrônica na relação entre significante e significado e
ainda iremos não encontrar nela qualquer explicação do sentido decorrente de sua
última articulação-significação depende inteiramente de um contexto de valores
estritamente singular e que nenhuma genealogia diacrônica é capaz de captar. É a
partir dessa perspectiva que queremos questionar a abordagem teórica de Agamben:
sua genealogia não é suficientemente sensível à diversidade estrutural e, no final,
corre o risco de acabar na pura teleologia (LACLAU, 2007, p. 11-12).

Sob o o pretesto de expor os vícios das virtudes de Agamben, Laclau assinala com precisão,
justamente a sensação de desconforto com os saltos muito rápidos por longos períodos históricos
entre o estabelecimento da genealogia de um paradigma e a descrição de seu funcionamento em um
contexto contemporâneo. Nesse gesto recorrente na filosofia agambeniana, a arché tem uma
prioridade determinante e, até mesmo, secreta, no que se segue independentemente do quão longa
seja a linearidade que o italiano estabeleceu. Com essa crítica, Laclau reconhece que não está
acusando o filósofo italiano de que ele teria assumido um etimologismo ingênuo, tentando
estabelecer o significado de uma assinatura a partir de sua cifra mais superficial. O que na verdade
está no núcleo da crítica de Laclau é a instabilidade da metodologia agambeniana que, ora oscila
entre a explicação genealógica, ora soa como uma argumentação estruturalista. Sua incapacidade de
dar clareza à sua metodologia nesse sentido assinalado, faz com que mantenha-se ausente de suas
reconstruções arqueogenealógicas uma sensibilidade mais acurada à diversidade estrutural
envolvida em cada determinação de assinaturas – o que pode fazer com que seus leitores avaliem
seus gestos como puras teleologias. Essa é a conclusão que Laclau chega após avaliar as três teses
com que Agamben termina o primeiro volume de Homo Sacer. Para o filósofo argentino,
“Agamben, que apresentou uma análise bastante convincente do modo como uma ontologia da
potencialidade deve ser estruturada”, no entanto, “fecha seu argumento com um teleologismo

250
ingênuo, no qual a potencialidade aparece como inteiramente subordinada a uma realidade pré-
concebida” (LACLAU, 2007, p. 21). É justamente esse teleologismo ingênuo que Laclau se referia
no parágrafo anteriormente citado. Ao que parece, nas subordinações integrais que Agamben
sempre estabelece entre a arché de um paradigma e seus funcionamentos no contemporâneo,
esconde-se uma teleologia que, apesar de não poder ser chamada de ingênua, se mostra muito rígida
e capaz de estreitar muitíssimo as potencialidades contemporâneas de paradigmas abstraídos do
passado. Mais uma vez, nas palavras do argentino, “o efeito combinado deles é desviar a atenção de
Agamben da questão realmente relevante, que é o sistema de possibilidades estruturais que cada
nova situação abre” (LACLAU, 2007, p. 22). Em síntese, na identificação de padrões ocultos
funcionando presentemente à luz de suas forças arqueológicas mais fundamentais, Agamben
impede que várias outras possibilidades possam ser consideradas ao longo de tais linearidades
históricas – fechando-se ao que há de mais originário na escavação aqueológica. Ou ainda,
conforme Laclau mais uma vez: “ao unificar todo o processo de construção política moderna em
torno do paradigma extremo e absurdo do campo de concentração”, Agamben faz mais do que
apresentar uma história distorcida: “ele bloqueia qualquer exploração possível das possibilidades
emancipatórias abertas por nossa herança moderna (LACLAU, 2007, p. 22). Essa seria, segundo
Laclau, a razão das conclusões políticas de Agamben assumirem tons tão niilistas e, em alguns
casos, inaceitáveis.
O ponto da crítica de Laclau aos procedimentos metodológicos de Agamben tem condições
de serem melhor entendido se nos atentarmos ao que ele chamou atenção no exemplo da linguística
saussuriana anteriormente mencionado. Na determinação do processo de deslocamentos entre o
significado e o significante de um termo, podemos ser exaustivos em nossas leituras diacrônicas
sem sermos bem-sucedidos no estabelecimento de uma explicação sobre o sentido que um termo
moderno assumiu em relação à sua origem mais longínqua. Isso se dá, Laclau explica, porque o
reconhecimento de qualquer explicação do sentido decorrente de sua última e mais moderna
significação “depende inteiramente de um contexto de valores estritamente singulares e que
nenhuma genealogia diacrônica é capaz de captar” (LACLAU, 2007, p. 12). É aqui que se encontra
o centro do questionamento da abordagem teórica de Agamben e das novas relações temporais que
dela surgem. Por não ser suficientemente sensível a essa diversidade estrutural de significados que
são inteiramente dependentes de contextos de valores específicos, que a metodologia paradigmática
de Agamben pode acabar degenerando-se em mero teleologismo ingênuo ou ainda, em uma
determinação arbitraria dos sentidos que o filósofo deseja que suas argumentações encaminham-se.
Com essa compreensão em mente, temos condições renovadas de apreciar outra importante
leitura crítica à obra agambeniana que nos fornecerá os meios de aprofundarmos ainda mais nosso

251
diálogo crítico com esta filosofia. Em seu texto The Exemplary Exception: Philosophical and
Political Decisions in Giorgio Agamben’s Homo Sacer, o professor de teoria política da
Universidade da Pennsylvania, Andrew Norris argumenta sobre aquilo que julga ser “talvez mais
intrigante e problemático sobre o trabalho de Agamben”, a saber, “essas afirmações sobre a
metafísica em diálogo com um conjunto rico e específico de exemplos bastante concretos, incluindo
campos de refugiados, enfermarias de hospitais, corredores da morte e campos militares” (NORRIS,
2005, p. 264). Em cada um desses locais, temos exemplos privilegiados daquela afirmação básica
do filósofo italiano sobre a operação da lógica biopolítica fundamental para dar lugar a vida nua.
Com a enumeração desses espaços de exceção, Agamben está fazendo mais do que simplesmente
descrever o presente. Segundo Norris, “o projeto de Agamben depende do status paradigmático do
campo”, isso se dá, porque “existe um isomorfismo entre a exceção e o exemplo ou paradigma”
(NORRIS, 2005, p. 264). Da mesma forma que argumentamos na seção anterior que o próprio
método arqueológico-paradigmático implica a representação messiânica do tempo que resta, aqui
também Norris insistirá que uma sobreposição entre o paradigma e a exceção, fazendo com que a
metodologia do primeiro só possa ser compreensível à luz das dinâmicas da segunda. Em poucas
palavras, a metodologia paradigmática opera sob a lógica da exceção e não da regra. Norris explica
que essa característica da filosofia de Agamben só pode ser compreendida se cosiderarmos a
“apropriação de Agamben da teoria política decisória inicial de Carl Schmitt”, isto significa dizer
que dada sua aceitação da análise de Schmitt sobre a exceção como o produto da decisão soberana,
“a avaliação de Agamben do campo como ‘o paradigma biopolítico fundamental do Ocidente’
torna-se uma decisão soberana além da regulamentação do governo ou da razão” (NORRIS, 2005,
p. 264). Valer-se dos paradigmas extremos dos campos, por exemplo, é um gesto agambeniano que
repete a lógica decisória de Schmitt que, por natureza, não se refere às regras, mas às exceções.
As implicações desse isomorfismo entre as noções de “exceção”, “exemplo” e “paradigma”
são elucidativas para compreendermos a natureza e os limites do método paradigmático de
Agamben. Uma vez mais, Norris é preciso em sua argumentação construída a partir de alguns
trechos do primeiro volume de homo sacer, em que podemos ler o seguinte:

A implicação clara da própria explicação de Agamben do que torna algo exemplar


ou paradigmático é que, ao reivindicar um status paradigmático para os campos, ele
está e só pode estar tomando uma decisão não regulamentada que não pode ser
justificada para seus leitores de maneira não autoritária. Visto que o exemplo
precede e define a regra, Agamben não pode apelar a uma regra ou padrão
independente para justificar sua afirmação de que os campos são exemplares de
qualquer coisa. A determinação de que o campo é representativo da regra é feita e
não é reconhecida em nenhum sentido substantivo. O paradigma ou exemplo
espelha a estrutura da exceção: como um é uma exclusão inclusiva, o outro é ‘uma
inclusão exclusiva’. Na verdade, Agamben extrai explicitamente a inferência de que
‘exceção e exemplo são conceitos correlativos que são, em última instância

252
indistinguível’. Isso implica diretamente que a afirmação de que algo é exemplar é
tanto um produto de uma decisão do estilo Schmitt quanto a afirmação de que algo
é uma exceção. Em cada caso, a decisão é primária e a regra derivada dela. Por esta
razão, em cada caso, a decisão, nas palavras de Schmitt, ‘torna-se instantaneamente
independente da fundamentação argumentativa e recebe um valor autônomo’
(NORRIS, 2005, p. 274-275).

O gesto de Agamben em tornar algo exemplar e paradigmático opera segundo a lógica da


decisão não regulamentada do soberano schimittiano. Isso faz com que, do ponto de vista do
método, Agamben não possa, em última instância, justificar aos seus leitores as determinações que
estabelece no processo de deslocamentos entre o significado e o significante de uma assinatura – e
aqui, a crítica de Laclau se junta à descrição de Norris. Da mesma forma que Laclau argumentou
que nenhuma genealogia diacrônica é capaz de captar aquele contexto de valores altamente
particulares que determinam os deslocamentos de um termo, aqui também Norris está dizendo que
Agamben não tem nenhuma regra ou padrão para justificar suas afirmações sobre paradigmas
extremos, como os campos. O que soa para muitos – como, por exemplo, Laclau – que algumas
conclusões que Agamben chega às raias dos puros teleologismo ingênuos, na verdade é o caráter
fundamentalmente excepcional dos próprios paradigmas. Agamben não pode apelar à nenhuma
justificativa para seus leitores que não assuma a forma de uma opção arbitrária, pois a afirmação de
que algo é exemplar é tanto um produto de uma decisão ao estilo de Carl Schmitt, quanto a
afirmação de que algo é uma exceção incapturável pelas regras. Nesse sentido, a professora Yara
Frateschi, mesmo que por caminhos diferentes, se junta às críticas de Laclau e de Norris quando
também sustentou que: “embora os textos do filósofo italiano estejam causando espanto”,
principalmente em razão de algumas semelhanças do seu discurso com o de Bolsonaro, “devemos
reconhecer que a sua posição sobre a crise do coronavírus é coerente com a sua obra, especialmente
com o esquema para explicar a afinidade entre o biopoder e o estado de exceção na modernidade. O
esquema já estava pronto, Agamben o aplicou ao caso” (FRATESCHI, 2020, s/p.).
À luz da contundente argumentação de Andrew Norris, não podemos chegar a outra
conclusão que não aquela que reconhece os limites inerentes às próprias escolhas de Agamben. O
mal estar que não só muitos paradigmas extremos geraram nos primeiros leitores de Agamben, mas
também a estranheza que o próprio método paradigmático pode dar lugar, são melhor
compreendidos agora. A arbitrariedade que muitas reconstruções genealógicas assumem através de
longas linearidades na obra de Agamben não são fortuitas. Antes o contrário, dizem respeito às
opções que o filósofo italiano fez no interior de sua própria filosofia. Nesse sentido, mesmo sem
discordar de Agamben e das escolhas que fez ao longo de sua odisseia filosófica, podemos
concordar com as críticas de Laclau de que os saltos genealógicos de Agamben são arbitrários.
Ademais, podemos dizer que fora às explicações que só o próprio italiano pode nos dar sobre suas

253
interpretações das continuidades contemporâneas de paradigmas do passado, realmente não existe
ao alcance dos leitores de Agamben nenhuma regra ou justificativa filosófica tradicional para
sustentarmos que sua leitura é preferível em lugar de outras. Com as implicações filosóficas de sua
metodologia paradigmática, Agamben parece colocar os seus leitores em um limiar de
inoperosidade dos recursos filosóficos tradicionais. Conforme as palavras de Leland de la
Durantaye, que escreveu uma das importantes introduções ao pensamento de Agamben, “por meio
de sua escolha de paradigma, Agamben está declarando uma espécie de estado de exceção
conceitual em que o império da razão é suspenso” (DURANTAYE, 2009, p. 221). Para muitos, essa
opção interna à obra de Agamben pode soar como uma artimanha argumentativa em vez de uma
173
construção filosófica comunicável. No entanto, para quem não se convence com as
argumentações do italiano, alicerçadas em longas reconstruções genealógicas arbitrárias, resta
apenas reconhecer aquela performatividade que mencionamos no início dessa seção, inerente ao
gesto filosófico de Agamben registrado em seus livros. Em suas buscas por novas representações do
tempo a partir da metodologia arqueológica e paradigmática, o filósofo italiano demonstra, na
própria argumentação, como podemos nos valer dos momentos fundamentais a que um paradigma
se refere. Essa característica, em específico, torna difícil o trabalho de quem busca ser coerente às
hipóteses de Agamben.

3.2. A dificuldade de utilizar paradigmas sem substância

Poucos temas no interior da obra de Agamben têm a capacidade de provocar desconforto e,


até mesmo, incompreensão de suas intenções do que os usos que faz de paradigmas retirados da
religião – especialmente da tradição cristã de recorte paulino. Para os propósitos da presente tese
essa importância adquire dimensões ainda maiores, não só porque o seu tema central é justamente o
173
Leland de la Durantaye contra argumenta os pontos levantados por Norris colocando as seguintes considerações a
respeito da sobreposição que é feita entre o decisionismo jurídico de Schmitt e o paradigmático de Agamben: “o
problema com essa analogia é que o soberano não se propõe a persuadir seus súditos a aceitar uma declaração do estado
de exceção; o soberano simplesmente declara. O verdadeiro paralelo para uma decisão soberana não seria escrever uma
obra explicando em que sentido o campo de concentração pode ser entendido como um paradigma para nosso passado
histórico e presente político, mas emitir um edital autoral – e mais, um que seria de alguma forma, obrigue seus leitores
a aceitá-lo. Ao obscurecer a distinção entre poder político e persuasão intelectual, Norris caracteriza o método
paradigmático de Agamben como uma imposição arbitrária porque não é fruto de consenso. É o produto de um autor e,
nesse sentido, a descrição de Norris é perfeitamente precisa; mas também se aplicaria igualmente a todo texto produto
de um único autor – incluindo, é claro, o do próprio Norris” (DURANTAYE, 2009, p. 222). Mesmo com esse
contraponto, ainda permanecemos satisfeitos com a argumentação de Norris uma vez que – levando adiante a ideia de
que o verdadeiro paralelo com a decisão do soberano pela exceção não se propõe a persuadir seus súditos, mas
simplesmente declarar o extado de exceção – o próprio estilo de fazer filosofia de Agamben não é o de explicar
didaticamente o sentido dos paradigmas extremos que utiliza, mas antes de tão somente declará-los como ainda atuantes
na contemporaneidade. Agamben parece não se dispor a ser intelectualmente persuasivo, como coloca Durantaye, mas
tão somente preciso em suas descrições urgentes do presente.
254
uso que Agamben faz do messiânismo na política, mas também, conforme procuramos mostrar na
seção anterior, porque está pressuposto em sua metodologia alguns comprometimentos com
paradigmas religiosos fundamentais arbitrariamente selecionados pelo filósofo e sua contrução
argumentativa. Nesse sentido, é condição de possibilidade para o entendimento da própria obra de
Agamben que essas articulações de paradigmas messiânicos sejam melhor elucidadas.
No entanto, procuraremos mostrar nessa seção que, apesar de abundantes ao longo de muitos
anos de trabalho, os paradigmas teológicos não são tomados por Agamben em seu contexto
religioso mais originário. Conforme já procuramos mostrar na primeira seção do segundo capítulo,
a redescoberta de paradigmas teológicos pela filosofia política contemporânea acontece de forma
secularizada e através de uma desubstancialização do seu núcleo religioso central. É justamente isso
que faz com que, por exemplo, as investigações de Agamben sejam eminentemente filosóficas e
não propriamente teológicas. Método e conteúdo, mas uma vez, mostram-se intrinsecamente
alinhados no trabalho do italiano. De acordo com essa dinâmica, portanto, surge uma questão que
complexifica ainda mais a compreensão do significado da presença de tais paradigmas em seus
argumentos. Se estes foram desubstancializados de seu núcleo religioso mais central – podemos
dizer também que foram profanados – a utilização da paradigmas sem substância não compromete
os próprios argumentos contruídos a partir de tais assinaturas teológicas? Não seria difícil – para
não dizer contraditório – utilizar paradigmas sem substância querendo torná-los exemplares ainda
hoje? Nessas perguntas fica explícito o desafio que todo leitor da obra agambeniana terá que lidar
sobre a possibilidade de alcançar os mesmos desdobramentos políticos e sociais que Paulo
provocou com seus conceitos e paradigmas, por exemplo, mesmo sem os comprometimentos
religiosos que os alimentavam. Em síntese, perguntaremos sobre a viabilidade de um messianismo
sem messias.
Para respondermos essas perguntas, procederemos de uma maneira muito semelhante a que
empreendemos na primeira seção do presente capítulo. Em primeiro lugar, vamos tentar reconstruir
de maneira mais precisa e honesta a possibilidade de fazer uso de paradigmas teológicos retirados
dos escritos paulinos para elucidar os desafios políticos contemporâneos. De certa forma, toda a
presente tese trata-se justamente desses usos, no entanto, não nos colocamos ainda na posição de
explicar sua viabilidade em termos diretamente ligados às opções metodológicas de Agamben.
Ficará evidente, em harmonia a tudo o que já tem sido argumentado até aqui, que tais usos são
filosoficamente justificados e muito profícuos para ajudar em nossa tarefa de discernir as trevas dos
tempos contemporâneos. Entretanto, em segundo lugar, vamos nos perguntar sobre as dificuldades
de se usar esses mesmos paradigmas paulinos nos desafios políticos desubstancializados de seu
núcleo religioso mais originário. Com isso, colocaremos a pergunta mais fundamental da presente

255
tese, a qual seja, sobre as condições de viabilidade do projeto de apresentar paradigmas teológicos
como ferramentas filosóficas ao tempo presente, mesmo que nossos comprometimentos últimos não
sejam da mesma natureza religiosa que moveu os seus primeiros autores. Em outras palavras, uma
vez que Agamben assume logo de saída que o uso que faz de paradigmas teológicos é em uma
forma profana, como não comprometer não só o entendimento, mas a força de tais paradigmas
retirando-os de seu arranjo religioso oringiário?
Agamben tem suas próprias repostas para essas perguntas, no entanto, diferentemente de
outros momentos de argumentação na presente tese, operaremos segundo as margens antitéticas que
a metodologia filosófica nos permite. Dito de outra forma, à revelia do próprio Agamben e contra
ele, procederemos conforme o professor Giacoia Jr. descreve ser a abordagem filosófica distinta do
filósofo italiano: “a reapropriação crítica das fontes e da tradição enquanto o dispositivo teórico que
permite apreender o sentido do próprio tempo, elaborar o diagnóstico do presente” (GIACOIA JR.,
2018, p. 14). Leremos Agamben contra ele mesmo nesse pormenor específico, nos apropriando de
sua filosofia de maneira crítica e fazendo um uso livre de sua obra como fonte e dispostivo teórico
para pensarmos o sentido do tempo presente para além do que o próprio Agamben pode enxergar.
Nesse aspecto também, apesar da antítese em termos de conteúdo e opções interpretativas últimas,
estaremos operando segundo uma lógica que o próprio filósofo italiano estava consciente ser
característica da metodologia filosófica e que, de acordo com seu relato, ele fazia uso recorrente. A
saber, “de acordo com outro princípio metodológico – igualmente não discutido no livro – do qual o
autor faz uso frequente, o elemento genuinamente filosófico em cada obra, seja ela obra de arte, de
ciência ou de pensamento é a capacidade de ser desenvolvida” (AGAMBEN, 2019, p. 8). Será na
capacidade de desenvolver e continuar os elementos constitutivos da obra de Agamben em uma
direção que nem ele mesmo optou por trilhar, é que estaremos apostando e correndo o risco de dar
lugar a argumentos e ideias que não lhe pertenciam, mas se mostram muito importantes para nós.

3.2.1. Possibilidade com usos dos paradigmas paulinos nos desafios políticos

A despeito das críticas que recebe, a filosofia de Agamben ainda apresenta-se como uma
alternativa viável ao pensamento ético e político contemporâneo em razão da capacidade elucidativa
dos seus paradigmas – grande parte deles, assinaturas teológicas transpostas ao direito e à esfera da
ação política. Mesmo que sejam considerados paradigmas extremos e, por isso, muitas vezes
hiperbólicos para serem utilizados no cotidiano político, ainda assim, seus argumentos se prestam

256
ao que o professor Giacoia Jr. descreve como: “condição prévia para uma renovação dos quadros
conceituais da política, para uma libertação da política de seu confisco no interior dos limites
fixados pela organização jurídica do Estado” (GIACOIA JR., 2018, p. 19-20). Nesse sentido,
existem muitas possibilidades de usos dos paradigmas paulinos para os desafios políticos
contemporâneos. A pergunta sobre como desarticular e inoperar os dispositivos de
governamentalidade que procuram capturar a vida nua no centro do funcionamento da soberania
não só é urgente, como também possível.
Um dos melhores paradigmas para sustentarmos essa promessa do possível é o de “resto”.
Além de ter as condições privilegiadas de carregar consigo tudo o que está pressuposto no
messianismo agambeniano, ele também mostra-se como uma das melhores portas de entrada aos
antagonismos políticos que nos faltam. Quem sustenta isso é o próprio Agamben quando, na
ocasião de uma entrevista à revista Vacarme n.10, em janeiro de 2000, ele responde a pergunta
sobre a necessária inversão tática que sai de uma biopolítica maior (a do Estado e do direito) para o
que ele chama de biopolítica menor:

Em certo sentido, talvez seja necessário inverter a questão. É muito mais dos atores
em jogo que se deveria esperar uma resposta. Dito isso, se os movimentos e os
sujeitos dos quais o senhor fala “rondam meus escritos mais como objetos do que
como sujeitos”, isso ocorre porque vejo aí um problema maior: precisamente a
questão do sujeito, a qual só posso conceber em termos de processos de
subjetivação e de dessubjetivação — ou ainda como uma diferença ou um resto
entre esses processos. Quem é o sujeito dessa nova biopolítica, dessa biopolítica
menor sobre a qual o senhor fala? Trata-se de um problema essencial da política
clássica, encontrar, por exemplo, quem é o sujeito revolucionário. Algumas pessoas
continuam a colocar esse problema no sentido antigo do termo: o da classe, do
proletariado. Não são problemas obsoletos, mas quando colocados sobre o novo
terreno do qual falamos, o do biopoder, da biopolítica, tornam-se muito mais
difíceis. Porque o Estado moderno funciona, parece-me, como um tipo de máquina
de dessubjetivar, isto é, como uma máquina que quebra todas as identidades
clássicas e, ao mesmo tempo (Foucault mostra isso bem), como uma máquina de
recodificar as identidades dissolvidas, notadamente de maneira jurídica: há sempre
uma ressubjetivação, uma reidentificação desses sujeitos destruídos, desses sujeitos
vazios de toda identidade. Hoje, parece-me que o terreno político é uma espécie de
campo de batalha onde acontecem simultaneamente estes dois processos: destruição
de tudo o que era identidade tradicional — e eu o digo sem nenhuma nostalgia, é
claro — e ressubjetivação imediata pelo Estado; e não apenas pelo Estado, mas
também pelos próprios sujeitos (AGAMBEN, 2016b, p. 4-5).

Nas palavras acima, Agamben coloca o que há de mais específico e urgente na política
contemporânea, e como seu enfrentamento exige um antagonismo igualmente específico. A saída de
de um enfrentamento biopolítico “maior”, focalizado no Estado e nos dispositivos do direito, em
prol de uma biopolítica “menor”, diz respeito a uma atenção diferenciada aos atores políticos. Com
isso, até aqui, nada de novo, pois o professor Castor Bartolomé Ruiz nos lembra que: “a metade do
século XX colocou em debate a questão do sujeito. Tal debate começou, ainda no século XIX, com

257
os questionamentos aos modelos racionalistas, essencialistas e dualistas do humano”, ademais, “o
teor desses questionamentos foi-se ampliando até colocar em questão o sentido da pessoa humana:
‘Existe a pessoa humana?’, pré-anunciando a morte do sujeito” (RUIZ, 2011, s/p.). É nessa
sociedade pós-humanista que se inserem as contribuições de Agamben à discussões sobre a
subjetividade dos atores políticos. O filósofo italiano sustenta que a identidade dos indivíduos dessa
nova biopolítica deve ser concebida à luz dos processos de subjetivação e dessubjetivação
contemporâneos. Uma vez que o Estado moderno funciona como uma máquina de dessubjetivação,
quebrando todas as identidades clássicas, o ator da biopolítica menor será justamente o resto que
sobrará desses processos.
Com isso, recuperamos não só a crítica de Alain Badiou às políticas de identidades
minoritárias homogenizadas pelo Estado e pelo mercado, como também toda a potencialidade de
um uso livre dos corpos a partir de um corte de segunda ordem em nossas identidades – conforme o
caminho paulino de descrever a transformação messiânica de nossas vocações pessoais. Essa
relação fica evidente quando o entrevistador da revista Vacarme questiona sobre a margem de
manobra que existe para a dessubjetivação, principalmente quando um antagonista nos confina em
subjetividades alienantes – “seja pela lei (como as leis sobre imigração) ou pelo insulto (como as
injúrias homofóbicas), que as torna como que objetivas? Em outros termos, qual margem de
dessubjetivação nossas condições sociais nos deixam?” (AGAMBEN, 2016b, p. 10). A resposta de
Agamben deixa explícito como o filósofo italiano enxerga possibilidades de usos livres dos
paradigmas paulinos nos desafios políticos hodiernos:

Neste momento, trabalho em cima das cartas de Paulo, e lá ele coloca o problema:
“O que é a vida messiânica? O que faremos agora que estamos no tempo
messiânico? O que faremos em relação ao Estado?” Há aí esse duplo movimento,
que sempre foi um problema e que me parece muito interessante. Paulo diz:
“Permaneça na condição social, jurídica ou identitária, na qual tu te encontras. Tu és
escravo? Permaneça escravo. Tu és médico? Permaneça médico. Tu és mulher, tu és
casado? Permaneça na vocação para a qual tu foste chamado.” Porém, ao mesmo
tempo, diz: “Tu és escravo? Não te preocupes com isso, antes, faça uso dessa
condição, aproveite-a.” Isto é, não se trata de uma mudança de estatuto jurídico ou
de mudança de vida, mas que se faça uso desta. Em seguida, ele especifica o que
quer dizer com esta bela imagem: “como se não” ou “como não”. Isto é: “Choras?
Como se não chorasse. Tu te alegras? Como se tu não te alegrasses. És casado?
Como não casado. Compraste algo? Como não comprado” etc. Há esse tema do
“como não”. Não é “como se”, mas “como não”. Literalmente, consiste em:
“Chorando como não chorando; casado como não casado; escravo como não
escravo.” É muito interessante, porque seria possível dizer que ele chama de usos
condutas de vida que, ao mesmo tempo, não colidem frontalmente com o poder —
permaneça em tua condição jurídica, em tua vocação social —, mas as transforma
completamente nessa forma do “como não”. Parece-me que a noção de uso, nesse
sentido, é muito interessante: é uma prática na qual não podemos designar o sujeito.
Tu permaneces escravo mas, uma vez que faz uso dessa condição, no modo do
como não, tu não és mais escravo (AGAMBEN, 2016b, p. 11-13).

258
Quando concedeu essa entrevista, Agamben estava publicando Il tempo che resta (2000)
isso pode explicar o fato de seu argumento girar em torno da doutrina paulina do uso livre das
vocações temporais. A discussão a respeito da subjetivação e dessubjetivação política dos
indivíduos é retirada de seu ambiente e repensada à luz de um tipo de colisão com o poder que não
acontece diretamente, mas que tem condições de transformá-lo profundamente. Na maneira de
conduzir uma existência, meramente usando uma condição, sem pertencer a ela, faz com que seja
muito mais difícil designar um sujeito – e com isso, aprisioná-lo objetivamente.
Para muitos leitores, essa estratégia de Agamben pode mostrar-se quietista e alinhada ao
status quo. Não é sem motivo que o entrevistado da revista Vacarme continua interpelando o
filósofo italiano justamente nessa direção: “como tal uso poderia ser político, ou estar sob condições
políticas? Porque seria possível ver aí uma conversão de pensamento estritamente individual ou
ético, ou mesmo religioso, mas, em todo caso, singular e ‘privado’”, ou ainda, em outras palavras,
“que relação essa conversão, quanto a seu próprio estatuto, o qual permite não ser mais um sujeito,
mantém com a política? Em que medida ela necessita da comunidade, da luta, do conflito etc.?”
(AGAMBEN, 2016b, p. 12). Agamben não nega que o discurso paulino pode ser redirecionado ao
mero ponto de vista da interiorização. Na verdade, por muitos séculos essa foi a leitura dominante
de suas epístolas e que motivou, por exemplo, críticas agudas como a de Nietzsche. No entanto,
quando reconduzimos o apóstolo ao seu contexto de preocupação messiânica, a relação entre
transformações das vocações temporais e vida em comunidade, luta e conflito com o poder
reaparecem com mais clareza. Para deixar evidente que o cenário ao qual Paulo se dirige é a vida
em comunidade messiânica, e que esse paradigma pode responder aos problemas
que tais comunidades enfrentam em diferentes momentos da história, Agamben se lembra
do caso franciscano. No movimento de crítica ao direito de propriedade
através da prática da pobreza extrema, um problema eminente comunitário
estava em questão. Esse esforço instancia de maneira paradigmática o que consiste a ideia de:
“abrir uma zona de vida comunitária que faz uso, mas que não tem direito e tampouco o reivindica.
Aliás, os franciscanos não criticam a propriedade, eles deixam todos os direitos sobre ela à Igreja:
‘A propriedade? Não a queremos. Nós só nos servimos dela’” (AGAMBEN, 2016b, p. 13-14).
Esses exemplos bem pontuais, mas intimamente ligados a outros momentos argumentativos
de Agamben, nos mostram não só que, originalmente, os problemas no horizonte paulino eram
eminentemente políticos, ou, pelo menos, comunitários, como também que eles ainda têm
condições de possibilidades de darem lugar a novos usos para antigas circunstâncias de
subjetivação. Um dos exemplos que pode nos ajudar a reconhecer essa possibilidade e nos fornecer
uma instanciação concreta de políticas possíveis para além dos paradigmas esgotados com os quais

259
temos operado, é dado ao final do capítulo. Para além dos direitos dos homens, em Mezzi senza
fine: note sulla politica. Escrevendo sobre o necessário questionamento do princípio de inscrição da
natalidade na soberania estatal sobre um território e uma população, é sugerido uma política não
identitária nos seguintes termos:

Não é fácil indicar a partir de agora os modos nos quais isso poderá concretamente
realizar-se. Basta, aqui, sugerir uma direção possível. É notório que uma das opções
levadas em consideração para a solução do problema de Jerusalém é que ela se
torne, contemporaneamente e sem divisão territorial, capital de dois organismos
estatais diferentes. A condição paradoxal de extraterritorialidade recíproca (ou
melhor, aterritorialidade) que isso implicaria poderia ser generalizada como modelo
de novas relações internacionais. Em vez de dois Estados nacionais separados por
incertos e ameaçadores confins, seria possível imaginar duas comunidades políticas
insistentes numa mesma região e em êxodo uma em relação à outra, articuladas entre
si por uma série de extraterritorialidades recíprocas, na qual o conceito-guia não
seria mais o ius do cidadão, mas o refugium do indivíduo. Em sentido análogo,
poderíamos olhar para a Europa não como uma impossível “Europa das nações”, da
qual já se entrevê a curto prazo a catástrofe, mas como um espaço aterritorial ou
extraterritorial, no qual todos os residentes dos Estados europeus (cidadãos e não-
cidadãos) estariam em posição de êxodo ou de refúgio e o estatuto de europeu
significaria o estar-em-êxodo (obviamente também imóvel) do cidadão. O espaço
europeu assinalaria, então, uma separação irredutível entre o nascimento e a nação,
na qual o velho conceito de povo (que, como se sabe, é sempre minoria) poderia
reencontrar um sentido político, contrapondo-se decididamente aquele de nação (que
até então o usurpou indevidamente). Esse espaço não coincidiria com nenhum
território nacional homogêneo nem com sua soma topográfica, mas agiria sobre eles,
penetrando-os e articulando-os topologicamente como numa garrafa de Klein ou
numa fita de Moebius, onde exterior e interior ficam indeterminados. Nesse novo
espaço, as cidades europeias, entrando em relação de extraterritorialidade específica,
reencontrariam sua antiga vocação de cidades do mundo (AGAMBEN, 2015, p. 31-
32).

De uma forma muito concreta, Agamben nos mostra como a crítica às políticas alicerçadas
na identidade dos indivíduos e subgrupos sociais poderia dar lugar à novas relações internacionais
em que a discussão não teria no direito do indivíduo o seu conceito diretor. O contexto maior da
argumentação de Agamben é um texto de Hannah Arendt em que ela mostra como a condição de
refugiado coloca em questão toda a política construída em torno do Estado-nação e suas categorias
jurídico-políticas tradicionais. Quanto a isso, poucas análises são mais precisas que a da professora
da Universidade do Porto, Eugénia Vilela ao escrever que: “na contemporaneidade, a compulsão
por uma geografia política nítida articula-se com a vontade de enunciação de espaço legítimo de
pertença através de uma criação discursiva de espaços territoriais e fronteiras enquanto limites
materiais” (VILELA, 2010, p. 181). Uma vez que se entra em uma zona de constantes
deslocamentos e refúgios, essa compulsão simplesmente entra em colapso.
É exatamente nisso que Agamben enxerga possibilidades no mínimo promissoras para a
política contemporânea. Justamente porque “o refugiado que perdeu todo direito e cessa, porém, de
querer assumiar-se a qualquer custo a uma nova identidade nacional” (AGAMBEN, 2015, p. 23)
260
tem condições de dar lugar a práticas políticas desembaraçadas das identidades nacionais. Uma vez
mais os comentários de Eugénia Vilela são importantes ao lembrar que: “aqueles a quem se retira o
nome, a fala e o corpo reconhecido passam a existir numa terra de ninguém, onde se procura negar a
possibilidade de reação e de expressão como manifestações de uma força essencial de resistência”
(VILELA, 2010, p. 181). A partir dessa configuração que surgem as sugestões de direções possíveis
feitas acima a respeito de Jerusalém e da Europa. Alicerçados em uma aterritorialidade, um novo
modelo de relações internacionais se mostraria possível. Nesse modelo, o conceito fundamental não
seria mais o direito do cidadão, mas a condição de refúgio dos indivíduos. Em um contexto de
declínio incontornável do modelo de Estado-nação e suas categorias filosóficas típicas, Agamben
acredita que: “o refugiado é, talvez, a única figura pensável do povo no nosso tempo e, ao menos
até quando não for realizado o processo de dissolução do Estado-nação e de sua soberania, a única
categoria na qual é hoje permitido entrever as formas e os limites de uma comunidade política por
vir” (AGAMBEN, 2015, p. 24). 174 Nesse sentido, alguns anos antes de publicar com maior clareza
aquelas que seriam as principais marcas da comunidade que está por vir – que encontra no
paradigma messiânico sua caracterização mais específica –, Agamben já antecipava algumas tarefas
absolutamente novas que estavam diante de nós. É tão somente desse ponto de partida que podemos
pensar uma biopolítica menor, ou ainda, nas palavras de Giacoia Jr, “essa questão hoje só pode ser
colocada em termos de processos de subjetivação e de dessubjetivação, como um resto, um
afastamento, uma distância aberta entre processos de subjetivação e dessubjetivação” (GIACOIA
JR., 2018, p. 84).
Justamente nesse aspecto reside todo o potencial da noção de estrangeiro associada à Igreja,
conforme desenvolvemos no segundo capítulo. Se nos lembrarmos da forma com que Agamben
começa sua palestra na Catedral de Notre Dame, veremos que ele sustenta uma relação íntima entre
ser parte da comunidade messiânica e viver na condição de um estrangeiro. Nas suas palavras,
“viver em estância, como um estrangeiro, é o termo que designa a morada do cristão no mundo e
sua experiênica do tempo messiânico” (AGAMBEN, 2016a, p. 12). A partir dessa marca distintiva
da comunidade messiânica tal como aparece nas epístolas paulinas, temos condições renovadas de
estabelecer interações entre a derrocada das configurações jurídico-políticas do Estado-nação com a
identidade daqueles que estão no messias. O raciocínio pode ser reconstruído da seguinte maneira:
uma das características das sociedades disciplinares e dos Estados de polícia é justamente a

174
Em outro momento de sua argumentação, ele continua dizendo que: “se o refugiado representa, no ordenamento do
Estado-nação, um elemento tão inquietante, é antes de tudo porque, rompendo a identidade entre homem e cidadão,
entre natividade e nacionalidade, põe em crise a ficção originária da soberania” (AGAMBEN, 2015, p. 29). Abrindo
mão dessa configuração política moderna teremos condições de ultrapassar armadilhas bem estabelecidas na reflexão
política. Nas palavras de Oswaldo Giacoia Jr.: “as antinomias ínsitas à oposição entre o ‘eu’ e o ‘outro’, o indivíduo e a
sociedade, são armadilhas, artimanhas que só fazem se ocultar melhor quando são sub-repticiamente resolvidas ou
suprimidas numa modalidade qualquer da unidade originária” (GIACOIA JR., 2018, p. 93).
261
distribuição geométrica dos corpos. Visando à maximização da produção de corpos dóceis e
disciplinados, o enquadramento geométrico das pessoas de uma sociedade é atividade necessária de
qualquer Estado que busque a infinitude. O estrangeiro é justamente a figura que rompe com esta
forma de gerir a atividade pública. Ele situa-se no espaço que impossibilita a articulação do binômio
político amigo/inimigo. O estrangeiro não é nem um nem o outro, fazendo com que, historicamente,
175
os governos não saibam bem o que fazer com eles. Com isto, ele desorganiza e nega a forma
policial de exercício soberano nas democracias contemporâneas. A sua indeterminação é a sua
potência de resistir ao sossego da ordem. Articulando justamente a noção de estrangeiro com o
conceito-limite de refugiado (Agamben) e recém-chegado (Derrida), a professora Eugénia Vilela,
sintetiza-nos as ideias sobre o estrangeiro da seguinte forma:

Os estrangeiros são, assim, a premonição de um terceiro elemento que não deveria


existir; são inclassificáveis, põem em questão o princípio da oposição, a
plausibilidade da dicotomia e a possibilidade de separação; desmascaram a
artificialidade da divisão. Para que o mundo não sucumba, desde a perspectiva da
ordem, eles devem ser suprimidos e isolados, física ou mentalmente. [...]
convertendo-se em sujeito de uma acção que me transforma em objecto, em receptor
de uma iniciativa, ele entra no mundo da vida sem ser convidado, o que o aproxima
da figura do inimigo. Mas, distintamente da figura convencional de inimigo, ele não
se mantém do lado oposto da linha de batalha; numa proximidade incómoda,
reclama o direito a ser objecto de responsabilidade, tal como ocorre com o amigo.
Assim, atingindo a figura da oposição em si mesma, constitui-se como uma ameaça
para a ordem do mundo. [...] Nesse sentido, enquanto arrivant, ou seja, enquanto
recém-chegado que nunca chega definitivamente pois traz em si mesmo a
possibilidade de partida, o estrangeiro incorpora uma promessa no modo
fundamental do talvez (VILELA, 2010, p. 136-137).

Com estas palavras, não apenas torna-se mais claro o que afirmamos a respeito da figura do
estrangeiro, como também o motivo pelo qual o tratamento “diplomático” oferecido a ele é,
geralmente, o isolamento físico e mental. Caso isto não seja feito, o mundo sucumbe a partir do
desaparecimento da gloriosa ordem interna e externa do Estado. Quando transportamos essas
características à comunidade messiânica, tal como o fez Agamben, torna-se muito significativa a
oposição tensional que ele apresenta. Insistir em uma postura de resistência a partir da afirmação
histórico-escatológica de uma comunidade estrangeira no mundo da vida significa apontar para
aquele terceiro elemento que não deveria existir, mas está aqui e que sinaliza para o que está por vir.
A Igreja-estrangeira, enquanto comunidade de contraconduta messiânica, incorpora em si mesma
um pensamento do acontecimento possível nas sociedades de governamentalidade

175
Caracterizando um pouco mais o que significa pensar o lugar daqueles que, pela condição de refúgio e estrangeiro,
não estão em lugar nenhum, Eugénia Vilela diz o seguinte: “na sua singularidade, esses seres em sofrimento são à
margem: constituem um não-mundo face ao mundo definido pelas fronteiras da ordem do discurso. São a massa
informe de uma humanidade em trânsito, de um espaço de anonimato em larga escala que se movimento sob a figura do
silêncio. Na disseminação dessa figura, os desaparecidos, os deslocados e os refugiados são objeto de um poder que
pretende reduzir cada ser singular à vida nua” (VILELA, 2010, p. 188).
262
antiacontecimentais. Por um lado, ela está presente, mas por outro, através do seu discurso
messiânico, ela tenciona o mundo da vida com uma promessa de sua possibilidade de partida, a
parousia messiânica.
Por tudo isso, a Igreja apresenta-se como condição de representabilidade da proposta de
contracultura articuladas por Agamben. Na forma de uma comunidade estrangeira, tal conjunto de
indivíduos situa-se em um espaço entre dois – e, por isso, como um resto entre a subjetivação e a
dessubjetivação. Mais precisamente, em vários espaços entre dois: entre o amigo/inimigo, entre o
já/ainda não, entre a ordem/caos, entre o ser/acontecimento. Ao mesmo tempo, tal comunidade
messiânica está fora de lugar, não tem lugar e aponta para outro lugar. Não é sem motivo que a
mesma estratégia política aplicada aos indivíduos estrangeiros é também aquela utilizada por certa
forma de racionalidade diante das comunidades messiânicas, qual seja, o estigma. Segundo Eugénia
Vilela, “designando, no seu significado original, os signos corporais que manifestam inferioridade
de caráter ou iniquidade moral, o conceito de estigma aplica-se aos casos em que uma característica
observável de um determinado grupo de pessoas é salientado” (VILELA, 2010, p. 138). Na maioria
das vezes, tal característica salientada publicamente é interpretada como um signo de iniquidade.
Sob a natureza de inferioridade, algo do estigma assume-se como nocivo ou perigoso. Em se
tratando do presente caso da Igreja mencionado por Agamben anteriormente, o estigma é
perfeitamente compreensível: trata-se de um grande perigo à governamentalidade de pretensões
infinitas, pois esta precisa chegar ao seu fim.
Entretanto, é importante dizer que quando falamos a respeito das possibilidades de usos dos
paradigmas paulinos nos desafios políticos contemporâneos, não precisamos, necessariamente,
pensar apenas em gestos grandiosos – como resolver a questão israelense-palestina ou mesmo da
união europeia, como foi instanciado acima. Durante a entrevista que concedeu à revista Vacarme,
Agamben nos lembra de outra estratégia menor, mas com condições iguais de sinalizar as
características da política por vir:

Com relação a isso, penso em uma revista que acaba de ser publicada na França, por
alguns jovens que conheci, denominada Tiqqun. Essa é, de fato, uma revista
messiânica, pois Tiqqun, na cabala de Luria, é justamente o termo da redenção
messiânica, da restauração messiânica. Isso me interessa porque é uma revista
crítica ao extremo, muito política, que tem um tom muito messiânico, mas sempre
de maneira completamente profana. Assim, eles chamam de Bloom os novos
sujeitos anônimos, as singularidades quaisquer, esvaziadas, prontas para tudo, que
podem se difundir por toda parte, mas permanecem inalcançáveis, sem identidade
mas reidentificáveis a todo instante. O problema que eles colocam é: “Como
transformar esse Bloom, como esse Bloom vai dar o salto para além de si mesmo?”
(AGAMBEN, 2016b, p. 17-18).

263
Poucas iniciativas bem pontuais poderiam ter mais capacidade do que a revista Tiqqun de
materializar convicções agambenianas antigas, que remete à publicação de La comunità che viene.
O tom messiânico da revista, que chama atenção de Agamben, está muito além da referência
cabalistica em seu nome. Antes, são nas singularidades quaisquer, esvaziadas de identidiades
objetivamente cooptáveis pelos dispositivos do governo que Agamben enxerga o seu maior
potencial. Além de estarem prontas para tudo, permanecem sempre inalcançáveis. Esse
esvaziamento da identidade é marca constituínte do conceito de resto paulino que sobra depois dos
processos de dessubjetivação de segunda ordem operadas pela relativização das vocações
temporais. Agamben vai destacar esse mesmo ponto em outra ocasião, quando foi convidado para
apresentar o lançamento da Tiqqun Contributions à la guerre enc ours, em 2009. Naquele dia,
lembrando da obra de Miche Foucault, Agamben recoloca o mesmo ponto de indiferenciação das
identidades ao dizer que: “se, como vimos, havia em Foucault um abandono sem reservas de toda
perspectiva antropológica, todavia, no cruzamento entre as técnicas de governo e os processos de
subjetivação, talvez o espaço tenha permanecido vazio”, ou melhor, “talvez houvesse nessa zona –
de encontro entre as técnicas de poder e os processos de subjetivação – as figuras que um texto
extraoridinário de 1983, A vida dos homens infames, chama de ‘vidas infames’, ‘sombras sem
176
rostos’ extraídos dos arquivos policiais” (AGAMBEN, 2019a, p. 259-260). O que é notório e
radical em Tiqqun e, por isso, chama tanto a atenção de Agamben como uma genuína possibilidade
messiânica na política, é que ela opera exatamente nesse resto das duas estratégias analizadas por
Foucault – as técnicas de governo e os processos de subjetivação. O modo como ela faz isso é
insistindo na identidade vazia dos bloom, como novos sujeitos anônimos e quaisquer, inatingíveis
pelos dispositivos do Estado-nação de governamentalidade infinita.
Para o propósito do presente capítulo de apresentar antíteses a alguns pontos das teses
agambenianas, é importante não apenas reproduzirmos e colocarmos, uma vez mais, em harmonia
os argumentos do filósofo italiano. Esse precisa ser um espaço em que suas teses não recebem
acolhida tão automaticamente. E para esse intuito, a revista Vacarme compre, outra vez, um papel
especial, pois o indivíduo – anônimo para nós – que entrevista Agamben não deixa de antagonizar
as respostas que o filósofo italiano apresenta. Notável para a nossa argumentação são os
176
O professor Castor Bartolomé Ruiz amplia nossa compreensão do uso que Agamben faz da obra de Foucault nesse
caso nos explicando o seguinte: “Embora Foucault não tenha se colocado a desenvolver de forma explícita a questão
proposta por Agamben, ele tratou dela minuciosamente na obra A vida dos homens infames. Nesta obra, resgata do
anonimato as vidas declaradas infames por atos de enunciação (que sempre são atos de poder): sentenças, condenações,
lettres de cachet, diagnósticos médicos, etc., condenaram ao ostracismo milhares de vidas humanas na condição de
vidas infames. Essas vidas silenciadas, inexistentes porque não foram enunciadas, não teriam deixado nenhum sinal de
si caso não fossem arrancadas do esquecimento por um ato de memória. O que restou delas foi o arquivo dos
enunciados das sentenças, relatórios, processos, diagnósticos, em que sua memória é preservada como memória do
arquivo enunciador. O que essas vidas infames revelam é a possibilidade de indivíduos serem levados a ocupar o lugar
vazio da enunciação produzido por outros. Eles resultam dos efeitos de poder de um enunciado que os enuncia como
infames e em tal condição são condenados ao ostracismo da vida” (RUIZ, 2011, s/p.).
264
contrapontos estabelecidos imediatamente após Agamben terminar de falar sobre a Tiqqun enquanto
um paradigma de possibilidade política messiânica. Nesse momento, lemos a seguinte formulação
oriunda do entrevistador:

É aí, talvez, que temos dificuldade em seguir o senhor. Não no que diz respeito à
postura messiânica, mas sobre as “singularidades quaisquer”. Como dizer? No seu
entendimento, a nova biopolítica, essa política que se anuncia, revela mais sobre a
fuga ou a saída do que sobre a resistência ou o conflito. De um lado, o senhor
identifica de maneira muito clara um inimigo, um adversário, muito massivo, muito
consistente, muito coerente, do qual podemos traçar genealogias longas e localizar
os dispositivos recorrentes etc. De outro, diante da consistência desse adversário,
tudo acontece como se o senhor defendesse uma sorte de política da inconsistência,
da dissolução, da esquiva: mais do que fabricar sujeitos coletivos, seria preciso
aprender a se “desprender” de si; mais do que reivindicar direitos, seria preciso
imaginar “usos sem direito”; mais do que afrontar o Estado, seria preciso assumir-se
como um “não Estado” etc. Ora, tem-se sempre a liberdade de fugir? Parece-nos
que a potência dos aparelhos biopolíticos tem a ver com sua terrível força de
captura. Para dizer de modo brutal, a dessubjetivação poderia muito bem ser um
luxo cuja possibilidade só se oferece, justamente, àqueles que escapam dos
aparelhos do biopoder. Como se desprender de si, se esquivar da ressubjetivação,
ser um não Estado etc. quando se é “soropositivo”, “desempregado” ou
“toxicômano”, isto é, preso, literalmente, nas categorias e dispositivos do biopoder?
Não se está, com frequência, obrigado a agir como eles mais do que como não, para
retomar seus termos? Em resumo, podemos ter a sensação de que o senhor defende
a mobilidade e a esquiva aí onde a potência de captura e a espessura material do
inimigo não nos deixa outra escolha senão afrontá-lo. (apud AGAMBEN, 2016b, p.
18-19)

O diálogo que se segue à resposta anterior de Agamben é muito importante para a correta
compreensão do ponto defendido pelo filósofo – sem mencionar a relevância das identidades
capturadas pelo biopoder que o interlocutor de Agamben traz à discussão. A grande objeção
colocada a Agamben diz respeito à aposta do italiano nas singularidades quaisquer como uma linha
de fuga às capturas do biopoder. Apesar de Agamben ser bem-sucedido na identificação e análise
dos adversários ou mesmo das condições adversas massivas e consistentes que se colocam frente
aos indivíduos, sua resposta a elas parece menos com um conflito ou uma resistência e mais como
uma linha de fuga e desembaraçamento de seus processos de captura. 177 Não obstante, soa um luxo
acessível para poucos essa esquiva ou as estratégias de desprender de si frente as omnicompetentes

177
Uma vez mais, a professora Yara Frateschi já havia identificado a mesma fragilidade nas construções agambenianas,
em que a estrutura soberana aparece bem definida, unívoca e sempre operante, enquanto os indivíduos são frágeis,
dóceis e incapazes de se mover de maneira significativa. Nas suas palavras: “de um lado, Agamben vê a máquina
governamental – sempre dominadora – e seus aliados na produção de dispositivos de controle e dessubjetivação (a
mídia, a religião, a ciência, a tecnologia). De outro, há a sociedade, retratada quase invariavelmente como um bloco
unívoco, inerte, passivo, composta por sujeitos dessubjetivados. Com o triunfo do biopoder e as novas modalidades de
dispositivos tecnológicos, as sociedades contemporâneas se apresentam – sentencia Agamben no início dos anos 2000 –
como ‘o corpo social mais dócil e frágil jamais constituído na história do ocidente’” (FRATESCHI, 2020, s/p.).

265
178
habilidades de captura do biopoder. Segundo o interlocutor de Agamben, toda essa construção
paulina de usos livres, sem posses, do direito e das identidades nacionais pressupõe uma capacidade
de afrontar e escapar desse Estado que parece não estar disponível a todos. Justamente porque
Agamben foi bem-sucedido em identificar e analisar as dinâmicas e dispositivos da
governamentalidade infinita da população, seu entrevistador questiona se essa liberdade de
percorrer rotas de fuga realmente existe ou se, pelo menos, está disponível a uma subjetividade
qualquer. Esse é o significado da pergunta a respeito da real plausibilidade de sustentar e difundir
um chamado à desprender de si quando, na verdade, se está preso nas categorias e dispositivos do
biopoder – perdendo de vista toda possibilidade de mobilidade e esquiva e restando apenas o
afrontamento direto com o poder. Quem concorda e amplia nossa compreensão dos obstáculos
profundos que se colocam à frente de Agamben é a professora portuguesa Eugénia Vilela.
Descrevendo situações análogas às mencionadas, ela diz o seguinte: “gerando-se a nível discursivo,
essa experiência política de dissolução da força da vida tem profundas consequências materiais,
tanto nos corpos singulares como nos corpos sociais”, dentre as que são mencionadas, destaca-se o
processo de dessubjetificação: “arrancando os corpos à palavra e ao sonho, o poder faz deles corpos
vivos mas desérticos. E os homens passam a ser apenas sintomas. Essa é única existência. Esses
espaços são uma porção de palavras e terra que envolvem os corpos que caem. Aí o silêncio é uma
ferida que se dissemina” (VILELA, 2010, p. 188-189).
Em sua resposta e esses pungentes questionamentos, Agamben reconhece que existem
especificidades na opção pelas rotas de fuga – mostrando estar consciente de que se refere a uma
estratégia deleuzeana e que a dificuldade depende do que se entende por fuga. Quanto a isso, o
italiano diz: “não é que haja, na noção de fuga, um fora para onde se pode ir. Não, trata-se de uma
fuga muito particular. É uma fuga que não tem um fora. Onde estaria o fora para onde poderíamos
fugir?”, feitas essas considerações ele pode inserir a diferença específica “para mim, trata-se de

178
Quem também identifica os limites das abordagens de fuga para fazerem frente às dimensões biopolíticas das
democracias contemporâneas é o economista da Universidade Livre de Amsterdã, Bob Goudzwaard. Seu raciocínio é
importante para ampliar a antítese às opções agambenianas: “As fronteiras entre uma atitude de resistência e uma
atitude de fuga nem sempre podem ser definidas claramente. A fuga pode ser um modo de resistência silenciosa ao
passo que, por outro lado – como é, em parte, o caso de Marcuse –, o modo de resistência adotado na vida em sociedade
pode aproximar-se da fuga. [...] A despeito da intenção salutar por trás de muitas dessas comunidades, devemos
perguntar se elas representam uma alternativa real, uma solução para os problemas da sociedade ocidental. Em primeiro
lugar, muitas comunidades são caracterizadas por uma moralidade dupla. Seus membros frequentemente assumem
silenciosamente que outras pessoas estão preparadas para permanecer na sociedade que eles mesmos rejeitam, desse
modo possibilitando aos membros da comunidade que comprem roupas, façam uso dos equipamentos e tecnologias
disponíveis e, no caso de doenças, recorram aos serviços médicos fornecidos pela sociedade. Portanto, parte
significativa do ‘escapismo’ revela uma moralidade elitista dupla: ‘as regras para minha vida naturalmente não são
válidas para sua vida’. Por causa disso, é difícil acreditar que o sistema comunal’ possa prover uma alternativa
significativa para a sociedade. Ainda mais importante, a fuga enquanto expressão de reação reflete a negação dos
problemas existentes. A questão quanto ao que seria um uso responsável das possibilidades existentes de
desenvolvimento econômico e tecnológico é frequentemente desconsiderada por esse tipo de atitude (GOUDZWAARD,
2019, p. 185-186).
266
pensar uma fuga que não implica uma evasão: um movimento na situação em que ele acontece.
Somente assim é que a fuga poderia ter uma significação política” (AGAMBEN, 2016b, p. 20). 179
Nas suas palavras, fica evidente que ele não é ingênuo de pensar que exista algum âmbito para
colocar-se fora dos tentáculos estatais de governamentalidade infinita. Sendo assim, sua estratégia
só pode ser a de traçar uma rota de fuga muito particular, uma rota que não leva para fora, que não
seja uma evasão.
O que resta, portanto, é insistir em categorias que nos permitam pensar aquilo que ele já
havia mencionado no trecho citado acima de Mezzi senza fine: note sulla politica. Quando discute
sobre a proposta de aterritorialidade para a questão envolvendo israelenses e palestinos, ou sobre
uma Europa para as noções, enquanto um novo espaço de relação de extraterritorialidade específica,
ele usa uma imagem esclarecedora: “esse espaço não coincidiria com nenhum território nacional
homogêneo nem com sua soma topográfica, mas agiria sobre eles, penetrando-os e articulando-os
topologicamente como numa garrafa de Klein ou numa fita de Moebius, onde exterior e interior
ficam indeterminados” (AGAMBEN, 2015, p. 32). Na garrafa de Klein ou na fita de Moebius temos
duas imagens que ilustram como indeterminar o exterior e o interior, dando lugar à possibilidade de
insistir em uma rota de fuga que não seja sinônimo de evasão. Não obstante, não é só com esses
dois exemplos da física que podemos articular um paradigma da interpenetrabilidade mútua e a
articulação sobre si mesmo. Uma vez mais, será na teologia paulina que Agamben encontrará
direções para pensar em paradigmas proveitosos para as dificuldades políticas que são
antagonizadas:

É preciso inventar uma prática que rompa a casca dessas representações. Por certo
não um sujeito substancial a ser identificado, mas outra coisa que parece que
encontrei em Paulo, para voltar ao meu trabalho em andamento. Paulo tem relação
com a lei judaica que separa os homens em judeus e não judeus, judeus e gentios. O

179
Além de mencionar essas dificuldades específicas em pensar um paradigma de resistência que não opere sobre as
categorias de dentro e fora, Agamben argumenta em um longo trecho que essa dificuldade também está presente na obra
de Karl Marx: “Marx faz uma crítica extremamente forte a esse tema, mas o fato de ele consagrar cem páginas mostra
bem que é um problema sério. A essa oposição revolta/revolução, ele opõe uma espécie de unidade entre a revolta e a
revolução. Ele não opõe um conceito político a um conceito anárquico-individual, mas procura a unidade dos dois: será
sempre por razões egoístas, por assim dizer, de revolta, que um proletário fará um ato diretamente político. Aí, mesmo
se isso coloca outros problemas, tenderia a pensar como Marx: uma espécie de unidade dos dois gestos, ou, ainda, de
entremeio, digamos. Tenderia a pensar não um corte que isola a fuga da revolução, como é uma tendência a se fazer,
mas que todo ato que emana da necessidade singular de um indivíduo, do proletário, que não tem nenhuma identidade,
nenhuma substância, será também, apesar de tudo, um ato político. Creio que não é preciso opor ação política e fuga,
revolta e revolução, mas tentar pensar o entremeio — que também é um problema para Marx; o problema da classe. A
classe não tem consciência, o proletariado existe enquanto sujeito, mas ele não tem consciência. A partir disso surge o
problema leninista do partido: será preciso algo que não seja diferente da classe, que não seja outra coisa que a classe,
mas que será, por assim dizer, o órgão de sua consciência. Isso também é uma aporia. Não digo que há uma solução
para esse problema, entre as linhas de fuga que seriam um gesto de revolta e uma linha puramente política. Nem o
modelo partido nem o modelo de ação sem partido: há uma necessidade de inventá-lo. Porque, depois disso, cai-se no
problema da organização política, do partido-classe, que vai produzir um “nós”: o partido é o que assegura que toda
ação seja política e não pessoal, não individual; a classe, ao contrário, é o órgão de uma infinita produção de atos não
políticos, mas de revoltas individuais. Mas o problema é real” (AGAMBEN, 2016b, p. 21-22).
267
que ele vai fazer com essa divisão? Com frequência, Paulo é apresentado como o
mentor do universalismo, alguém que teria oposto àquelas divisões, judeu/não judeu,
um novo princípio universal, pai da Igreja católica, isto é, universal. Ora, quando se
observa seu trabalho de perto, é exatamente o contrário. Diante dessa divisão
imposta pela lei (no fundo, ele considera a lei como o que divide, o que reparte,
judeu/não judeu, mas também cidadão/não cidadão etc.), em vez de opor, como
teríamos a tendência nestes tempos dos direitos do homem, um princípio universal
contra uma divisão étnica, ele faz algo muito sutil: ele divide a própria divisão. A lei
divide em judeus e não judeus? Bem, eu vou cortar essa divisão com um outro corte.
Há várias dessas divisões como, por exemplo, judeus segundo a carne e judeus
segundo o espírito, o sopro vital. Esse corte carne/espírito vai dividir a divisão
exaustiva que dividia a humanidade entre judeus e não judeus. Essa nova divisão vai
produzir judeus que não são judeus, pois são judeus que são judeus segundo a carne
e não segundo o espírito, e gentios que são gentios segundo a carne, mas não
segundo o espírito. Isto é, isso vai produzir um resto. Paulo introduz um resto nessa
divisão judeu/não judeu. É uma espécie de corte que corta a própria linha. Assim, no
fundo, é muito mais interessante: ele não opõe um universal, põe em questão a
divisão da lei, introduz um resto. Uma vez que o judeu segundo o espírito não é um
não judeu, ele também é um judeu, seria possível dizer que é uma espécie de não
não judeu. Paulo trabalha dessa forma em toda parte: ele divide a divisão em vez de
propor um princípio universal, e o que resta é o sujeito novo, mas indefinível,
sempre em resto, pois pode estar de todos os lados, do lado dos não judeus ou dos
judeus. Há aí algo de precioso para se representar hoje uma noção de povo e, talvez,
também para pensar o que Deleuze dizia quando falava de um povo menor, do povo
enquanto minoritário. É menos um problema de minorias do que uma apresentação
do povo como resto em relação a uma divisão, algo que permanece ou resiste a uma
divisão — não como uma substância, mas como uma diferença. Seria preciso
proceder muito mais dessa forma, por meio da divisão da divisão, do que se
perguntando: “Qual seria o princípio universal comunitário que poderia nos permitir
conviver?” Pelo contrário, face às divisões que a lei introduz, aos cortes que a lei
continuamente faz, trata-se de trabalhar sobre o que se coloca em questão ao resistir,
ao restar — resistir e restar têm a mesma raiz (AGAMBEN, 2016b, p. 23-26).

Com as palavras acima, temos condições de entender que o delineamento de uma rota de
fuga que não seja uma mera evasão envolve, necessariamente, uma orientação de se pensar uma
teoria que ultrapasse as dinâmicas próprias da mera representação. Para Agamben, isso significa
abrir mão de toda a lógica que busca estabelecer um sujeito substancial a ser identificado e utilizado
180
como eixo de manobra do partido, da classe ou da revolução. O repositório dessa renovação do
vocabulário político é, uma vez mais, as operações messiânicas descritas por Paulo. Conforme já
argumentamos na primeira parte do segundo capítulo da presente tese, Agamben vai muito além
daquelas leituras superficiais da obra paulina que enxergam no apóstolo alguém que teria sido
meramente o inventor do universalismo político. Agambém está convicto de que é exatamente o
contrário que ele faz. Diante da divisão que a lei judaica impunha sobre os seres humanos,

180
Uma vez mais, o entrevistador de Agamben na revista Vacarme é muito feliz em concordar e explicar que essa
prerrogativa argumentativa, dentre outras coisas, significa que: “é um problema que se coloca, na prática, a todos que
procuram produzir um coletivo fora dessas máquinas de agregar, que são os partidos políticos, e sem o socorro de um
princípio geral superior, seja a República, a Classe ou o Homem. Se nos sentimos próximos das associações de doentes,
de desempregados ou de trabalhadores informais, é precisamente porque eles inventam algo como uma política em
primeira pessoa, em formas de organização novas nas quais as distinções entre o social e o político, a classe e sua
consciência, o singular e o universal etc. se apagam e em que a significação política dos atos é imanente aos próprios
atos” (apud AGAMBEN, 2016b, p. 23).

268
separando-os entre judeus e não judeus, Paulo não se vale de um raciocínio universal, do tipo dos
direitos do homem. Antes, ele opera uma divisão de segunda ordem, dividindo a divisão judaica e
dando lugar a um resto que, por definição, ultrapassa as dinâmicas da mera representação e não
estabelece um novo sujeito substancial. O filósofo argentino Fabian Ludueña Romandini comenta
essa manobra de Paulo nos seguintes termos: “aqui Paulo não pensa de modo algum que a solução
consista em desativar a lei, mas, ao contrário, em espiritualiza-la”, dentre outras coisas, isso
significa que: “espectralizar a lei, fazer com que esta transforme completamente sua natureza pela
ação do Espectro messiânico encarnado” (ROMANDINI, 2012, p. 140-141). Esse segundo corte,
entre judeus espirituais e carnais, vai fazer com que surja o resto que Agamben tanto utiliza em sua
biopolítica menor.
Agamben enxerga em Paulo a repetição dessa manobra em outras ocasiões. Em vez de
pressupor as vocações mundanas particulares – sejam elas étnicas, de gênero ou religiosas – Paulo
faz um corte de segunda ordem e dá lugar a uma nova forma de pensar o pertencimento a uma
comunidade que não esteja alicerçada tão somente em uma identidade substanciável. Nisso, o
filósofo italiano acredita encontrar uma possibilidade preciosa para repensar as condições de um
povo menor, de um povo enquanto minoritário. No lugar de trabalhar com as categorias de
minorias, Agamben parece acreditar que existem muitos cenários possíveis quando um povo é
entendido como um resto em relação às divisões jurídicas e políticas, isto é, um grupo que resiste a
181
uma divisão. Ou ainda, conforme coloca Giacoia Jr. “à sombra desse diagnóstico do
contemporâneo, o pensamento atento pode ainda vislumbrar, sem subterfúgios, uma ‘grande
transformação’ operando-se sob o impulso de uma vontade de poder coletiva e anônima, que impele
os poderes estabelecidos”, sejam eles repúblicas, monarquias, tiranias democracias, federações ou
estados nacionais, “a uma espetacular catástrofe planetária: o capital parlamentarismo globalizado
como estágio final da forma ‘estado’” (GIACOIA JR., 2018, p. 216). Resto e resistência têm a
mesma raiz e, por isso, nesse modo de operar, através de uma divisão da divisão, Agamben acredita
encontrar encaminhamentos bem mais promissores para a política contemporânea.
Vale ressaltar ainda que a referência de Agamben ao resto paulino, bem como seu esforço de
pensá-lo como uma como uma possibilidade preciosa para a política hodierna não significa apostar
em uma porção numérica. Antes, refere-se a uma posição que um povo deve assumir nesse instante

181
Em conformidade com o que argumentamos no segundo capítulo a partir da análise de Alain Badiou do cenário
político francês, o interlocutor de Agamben também aplica e faz referência imediatamente a esse argumento dizendo o
seguinte: “É exatamente o que acontece na França em torno dos imigrantes sem documentos. A lei definia critérios, e
todo o trabalho consistiu não em invocar um princípio de hospitalidade geral, mas em mostrar que todos os critérios
produziam situações que não correspondiam mais a ninguém: pessoas inexpulsáveis, irregularizáveis etc. Por fim, a
estratégia das associações consistiu em mostrar que era possível multiplicar os critérios de maneira tal que ninguém
corresponderia exatamente à alternativa entre clandestino e legalizado. Há uma linha de referência que emerge disso”
(apud AGAMBEN, 2016b, p. 26).
269
decisivo do agora. Agamben reitera: “foi isso que me espantou em Paulo. É o que se encontra na
Bíblia na figura do profeta: o profeta sempre fala de um resto de Israel. Isto é, ele se dirige a Israel
como a um todo, mas anuncia-lhe que ‘apenas um resto será salvo’” (AGAMBEN, 2016b, p. 25).
Produzir-se enquanto um resto é a melhor formulação daquela linha de fuga agambeninana que não
se reduz à mera evasão, mas indiferença interior e exterior a partir de uma desarticulação
messiânica das vocações e identidades temporais. Essa não é, de maneira nenhuma, uma manobra
abstrata e em geral, mas, antes, “sempre é preciso vê-lo numa situação determinada: em tal situação,
o que se colocaria enquanto resto? Isso não corresponde à distinção maioria/minoria. É outra coisa.
Todo povo toma essa figura se o instante é verdadeiramente decisivo” (AGAMBEN, 2016b, p. 26).
Por tudo isso, podemos terminar a presente seção insistindo sobre a possibilidade de usos
livres e novos dos paradigmas paulinos para os desafios políticos. Giacoia Jr. concorda com tais
usos porque: “no messiânico, portanto, está em ação a mesma subversão da topologia que
determinou os rumos políticos da história ocidental: aquela estrutura antinômica, paradoxal de
inclusão excludente – exceptio, ex-capere –, cuja figura jurídico-política surge no instituto do Bann
(banido)” (GIACOIA JR., 2018, p. 221-222). Essa capacidade subversiva presente no messianismo
é o que permite Agamben fazer uso de categorias e paradigmas muitas vezes considerados extremos
como o de campo de concentração, para mostrar o que está no núcleo da operação governamental
do nosso tempo. Mais do que isso, é justamente o uso de tais paradigmas que torna possível a
percepção muitas vezes escandalosa para os leitores contemporâneos de que “o rio da biopolítica
não apenas transborda suas margens no espaço-tempo dos regimes totalitários, mas continua a fluir
livremente pelos canais que percorrem as democracias liberais contemporâneas” (GIACOIA JR.,
182
2018, p. 222). Mais do que qualquer outra percepção, essa consciência da permanência do
totalitário na gestão governamental faz com que a pergunta sobre as estratégias do nosso corpo a
corpo com os dispositivos seja urgente. Nesse sentido, Agamben pode nos ajudar muitíssimo a, pelo
menos, pensar em como liberar aquilo que foi capturado pelos diversos instrumentos de gestão
infinita da população e restituir a novos e livres usos comuns. Para essa finalidade, “o verdadeiro
estado de exceção, bem como o tempo messiânico, constituem outro paradigma: ambos são a
metáfora de uma condição que pode melhorar ‘nossa situação’ no combate contra o fascismo”

182
O professor Castor Bartolomé Ruiz também concorda que: “enganamo-nos se lermos as consequências perversas da
biopolítica como algo do passado que não mais ameaça a vida humana. Ou pensarmos que tais barbáries não mais
ocorrerão em proporções tão gigantescas como as que foram praticadas? Enquanto a vida humana possa atingir o
estatuto de mero recurso natural, pura vida nua, ninguém estará a salvo da barbárie. Recentes acontecimentos políticos,
econômicos e tecnológicos nos alertam, mais uma vez, para esta possibilidade. A tanatopolítica mostrou algumas das
consequências a que conduz a redução da vida humana como mera vida natural. Porém, para proteger-nos de tal ameaça
biopolítica, não podemos pensar no retorno ao prisma do dualismo antropológico, nem advogar pelo humano como uma
essência determinada. Continua em aberto o debate sobre o ser humano, sobre quem somos. Talvez um debate que não
possa e nem deva fechar-se porque a inexauribilidade nos constitui. Porém, não podemos renunciar a repensar-nos
sempre sob novas perspectivas (RUIZ, 2011, s/p.).
270
(GIACOIA JR., 2018, p. 222). Se esse é o caso, então a filosofia de Agamben pode contribuir
muito.

3.2.2. Dificuldade com usos dos paradigmas paulinos nos desafios políticos

Em uma pesquisa a respeito da importância política do tema messiânico do fim dos tempos,
uma pergunta incontornável é sobre a natureza desse tipo de uso que a filosofia política pode fazer.
Se nos lembrarmos do modo como o sociólogo da Universidade de Cambridge, Göran Therborn
coloca os termos desse renovado interesse em termos e temas teológicos pelo pensamento pós-
marxista, descobriremos que: “o desenvolvimento teórico mais surpreendente na filosofia social de
esquerda na última década foi uma nova virada teológica”; entretanto, vale ressaltar que,
“em essência, isso não significou abraçar uma fé religiosa, apesar de alguns intelectuais de esquerda
terem chegado ao ponto de afirmar uma judaização etnorreligiosa e de haver frequentemente
indicações de uma relação pessoal particular” (THERBORN, 2012, p. 111). E de fato, alguns dos
mais destacados filósofos e cientistas políticos que se valem do pensamento teológico para construir
suas leituras do presente, não escondem a forma não religiosa de se aproximarem desses temas.
Therborn explica um pouco mais o que está em jogo em tais leituras filosóficas da tradição
teológica: “a virada teológica manifesta-se no interesse acadêmico pela religião e no uso de
exemplos religiosos na argumentação filosófica e política”, em seguida, o autor faz uma distinção
específica de um fenômeno mais conhecido por nós: “em contraste com a Teologia da Libertação na
América Latina, que era um compromisso religioso com a justiça e foi liderada por padres católicos,
o que se vê na Europa é uma teologia do discurso” (THERBORN, 2012, p. 112). 183
Para utilizarmos um exemplo que já foi anteriormente mencionado, Alain Badiou deixa para
seus leitores claro, na primeira página de sua obra, que: “Paulo não é, para mim, um apóstolo ou um
santo. Eu não tenho a menor necessidade da Nova que ele declara ou do culto que lhe foi
consagrado” (BADIOU, 2009, p. 7). Ou seja, não se trata de uma leitura confessional da teologia de
183
Therborn faz outra comparação que também é iluminadora para nós. Trata-se da diferença norte-americana do uso da
tradição teológica com essa redescoberta europeia: “nos Estados Unidos, muito mais religiosos, não há evidências de
uma virada teológica à esquerda comparável. Lá, a Bíblia é mais ou menos monopolizada pela direita, apesar de a
esquerda afro-americana ainda ter pregadores políticos influentes, como Jesse Jackson e teólogos como Cornel West,
que se apresenta como um ‘cristão tchekhoviano’. Enquanto esquerdistas europeus se reportam aos ícones cristãos do
passado, seus camaradas norte-americanos olham cada vez mais para o futuro – as projeções de curto prazo nunca
foram tão positivas para a esquerda norte-americana. Além do mais, entre suas mentes mais brilhantes, as expectativas
para o futuro sobreviveram ao ataque furioso do pósmodernismo e ao colapso do comunismo e levaram a um novo
futurismo. Há duas correntes significativas, mas a que mais se destaca é um novo utopismo; a outra é sistêmica e
apocalíptica” (THERBORN, 2012, p. 113).

271
Paulo, mas um uso filosófico de seu gesto histórico e de seus conceitos fundamentais. Nas palavras
de Badiou, “ele é uma figura subjetiva de importância fundamental. Sempre li as epístolas como
quando voltamos aos textos clássicos que nos são particularmente familiares” (BADIOU, 2009, p.
7). Nesse sentido, não existe nenhuma transcendência nem nada de sagrado nas leituras das
epístolas de Paulo feitas por Badiou. Como no uso de qualquer outra obra, o critério de escolha foi
fundamentalmente subjetivo. Trata-se, tão simplesmente, de que: “um homem inscreveu de maneira
penosa essas frases, essas mensagens veementes e ternas, e podemos tomá-las emprestado
livremente, sem devoção nem repulsa” (BADIOU, 2009, p. 7). Diante dessa clara secularização da
leitura dos textos paulinos, poderia se perguntar, então, porque esse uso livre, sem devoção ou
repulsa? No caso de Badiou ele também deixa claro que: “para mim, Paulo é um pensador-poeta do
acontecimento e, ao mesmo tempo, aquele que pratica e enuncia atos constantemente característicos
do que se pode denominar a figura militante. Ele faz surgir a conexão, integralmente humana e cujo
destino me fascina” (BADIOU, 2009, p. 8).
Quando deixamos os escritos de Badiou de lado, e vamos em direção aos de Agamben, a
natureza fundamental da relação que o italiano estabelece com os escritos teológicos não é tão
explícita, quanto a do franco-marroquino. Em nenhuma obra de Agamben, nem mesmo em seu
seminário destinado à epístola de Paulo aos romanos, ele faz qualquer advertência para os seus
leitores como as de Badiou. Essa opção de Agamben faz com que surjam muitos questionamentos a
respeito dos propósitos e das pressuposições por trás dos usos que empreende do messiânismo
paulino. 184 Nesse caso, o que nos resta é uma investigação na imensa coleção de textos menores do
filósofo italiano. Nos seus ditos e escritos, vez por outra, encontramos alguns comentários mais
explícitos quanto a sua relação com a teologia, especialmente a de Paulo. No entanto, em poucos
lugares lemos declarações tão explicitas quando em sua entrevista à revista Vacarme. Em
determinada altura da conversa com o filósofo italiano, após alguns exemplos retirados dos
conceitos de Paulo terem sido utilizados para compor suas respostas, o interlocutor de Agamben o
interrompe e coloca de maneira muito direta e clara a interrogação que direcionará os esforços
investigativos da presente seção de nossa tese:

Para pensar essa alternativa, muitas vezes o senhor traz referências que pertencem à
esfera religiosa; isso é apenas um acaso? Às vezes, quando o lemos, há como que

184
Em um ensaio científico crítico à filosofia de Agamben, Matthew Sharpe levanta essa pergunta à luz da reconstrução
do significado do messianismo de Gersom Scholem e diz: “portanto, surge a pergunta: Agamben está defendendo um
retorno bastante puro ao messianismo dos mais radicais, das correntes espiritualmente fechadas e aristocráticas da
cabala como uma resposta para a esquerda pós-marxista? A resposta é finalmente não, como ainda poderíamos esperar
dada a posição de enunciação de Agamben como um intelectual secular do século XXI. Nos capítulos centrais de O
Aberto, Agamben desenvolve sua posição por meio de uma leitura idiossincrática de motivos de Heidegger, que (ao
lado de Homo Sacer (1998) ou de Linguagem e Morte (1991)) situam indiscutivelmente sua obra dentro do discurso
filosófico da modernidade. de uma forma que iremos detalhar” (SHARP, 2009, p. 6).
272
um tom profético na designação dessa outra política, ou desse outro estatuto do
político. O senhor escreve, por exemplo: “Por isso, se nos permitimos lançar uma
profecia sobre a política que se anuncia, esta não será mais um combate pelo
controle ou conquista do Estado por novos ou antigos sujeitos sociais, mas uma luta
entre o Estado e o não Estado (a humanidade), disjunção irremediável das
singularidades quaisquer e da organização estatal.” Que lugar designa a tais
referências e a esse tom em seu trabalho? (apud AGAMBEN, 2016b, p. 14).

O questionamento do interlocutor é composto de alguns elementos. Em primeiro lugar, ele


pergunta se o uso de temas teológicos é intencional ou ao acaso. Além disso, em segundo lugar, ele
questiona sobre o tom profético que assumem alguns juízos do italiano – fazendo com que se avalie
se o trabalho do italiano tem um juízo de valor por trás de suas descrições ou se mantém o mero tom
analítico-descritivo. Por fim, e de maneira mais direta, questiona-se o lugar que Agamben designa
para tais referências teológicas e a razão de ser desse tom profético que seus textos assumem muitas
vezes. O fato da pergunta ser bem colocada nos permite encontrar na resposta de Agamben muitos
pontos esclarecedores de sua filosofia e da natureza que intenciona no usos que faz do messianismo
paulino. Apesar de ser longa, acreditamos que é proveitoso reproduzir aqui sua resposta:

Não é tanto o domínio da religião o que me interessa nos textos de Paulo, mas esse
domínio pontual, que tem relação com o religioso, mas que não coincide com ele,
que é o messiânico, isto é, um domínio muito próximo do político. Aí se encontra
um outro autor que foi decisivo para mim e que de forma alguma é religioso: trata-
se de Walter Benjamin, que pensa o messiânico como paradigma do político ou,
digamos, do tempo histórico. A questão, para mim, é muito mais essa. E, com
efeito, penso que a maneira pela qual Benjamin introduz, na primeira das Teses
sobre o conceito de história, a teologia como entidade que, mesmo escondida, deve
ajudar o materialismo histórico a ganhar a partida contra seus inimigos, permanece
um gesto muito legítimo e atual que nos dá, justamente, os meios para pensar o
tempo e o sujeito de outra maneira. Pois bem, o senhor falava do profeta… Por
estes dias estava escutando os cursos gravados de Foucault, sobretudo aquele em
que distingue quatro figuras da veridicção em nossa cultura: o profeta, o sábio, o
técnico e, em seguida, aquele que denomina parresiastes, quem tem a coragem de
dizer a verdade. O profeta fala no futuro, e não o faz em seu nome, mas em nome de
outra coisa. O parresiastes, com o qual Foucault sem dúvidas se identifica, pelo
contrário, fala em seu nome e deve dizer o que é verdade agora, hoje. Certamente
ele diz que não são figuras separadas. Mas, da minha parte, reivindicaria mais a
figura do parresiastes do que a do profeta. O profeta evidentemente é importante, e
é inclusive uma catástrofe que tenha desaparecido de nossa cultura: a figura do
profeta era a do líder político até há cinquenta anos e desapareceu por completo.
Mas, ao mesmo tempo, parece-me que não podemos mais pensar um discurso que
se dirige ao futuro. É preciso pensar a atualidade messiânica, o kairós, o tempo de
agora. Dito isso, ressalto que se trata de um modelo muito complicado, pois não é
nem o tempo que vem — a escatologia futura, o eterno — nem exatamente o tempo
histórico, o tempo profano, mas um pedaço de tempo tomado do tempo profano
que, de um golpe, transforma-se. Benjamin escreve em algum lugar que Marx
secularizou o tempo messiânico na sociedade sem classes. É de todo verdade. Mas,
ao mesmo tempo, com todas as aporias que isso engendra — as transições etc. —,
consiste numa espécie de obstáculo diante do qual a Revolução fracassou. Não
dispomos de um modelo de tempo que permita pensar isso. Em todo caso, creio que
o messiânico é sempre profano, jamais religioso. Inclusive, é a última crise do
religioso, a projeção do religioso no profano (AGAMBEN, 2016b, p. 14-16).

273
Nessas palavras, temos um condensado de temas e métodos muito importantes para
entendermos os movimentos de Agamben em sua filosofia. Acima de tudo, em primeiro lugar, ele
deixa explícito que seu interesse nos temas e conceitos teológicos não é religioso, mas profano.
Apesar do domínio pontual do messianismo ser o foco em que Agamben concentra suas forças, ele
faz, em todo caso, sempre de maneira profana e jamais de forma religiosa. Aqui temos um ponto
muito importante para toda a pesquisa empreendida até aqui, bem como dos usos que faremos dela.
O gesto de repetir posturas e argumentações de Paulo em Agamben pode assumir tons muito
entusiasmados para quem não entende esse tipo de uso profano que o filósofo italiano descreve
acima. Apesar de ficar explícito no último volume da odisseia filosófica em torno do homo sacer
que a busca por uma doutrina do uso livre do mundo encontra suas origens no gesto paulino do
primeiro século, esse uso livro pode ser feito, inclusive contra Paulo – no sentido de um uso livre
dos conteúdos teológicos. Para muitos, seria nessa possibilidade de ler Paulo contra ele mesmo que
estaria a força do trabalho de Agamben. Quem comenta esse ponto e nos ajuda a entender as
dimensões desse uso livre da teologia paulina por Agamben é de Alain Gignac, concordando tanto
com Therborn, quanto com o próprio Agamben em sua resposta: “trata-se mais precisamente do
tema de Agamben, que tem uma visão bastante especial, pós-comunista, do messianismo, na linha
de Walter Benjamin”, nesse esforço, Gignac vai esclarecer que: “Agamben ‘descristologisa’ o
messianismo de Paulo, o esvazia do alcance experiencial (crer no Cristo, aderir ao Messias, lhe dar
a sua fé), para manter somente a estrutura. Para Agamben, o messianismo é uma postura e uma
atitude política” (GIGNAC, 2008, s/p.). Fica evidente, portanto, que o interesse de Agamben está
nas possibilidades de relação que são estabelecidas entre as condições político-jurídicas de Paulo e
suas estruturas análogas à gestão igualmente infinita e imperial da governamentalidade biopolítica
contemporânea. Frente às tentativas totalitárias da gestão governamental hipertrofiar-se sob todos os
aspectos da vida humana, o gesto messiânico de Paulo tem valor enquanto uma postura e atitude
política de afirmar uma visão a respeito da história que antagonize a gestão infinita dos seres
humanos. Esse é o encaminhamento mais positivo que Agamben procura oferecer aos seus leitores
contemporâneos. 185
Essas conclusões nos encaminham muito harmonicamente para o segundo elemento
fundamental da resposta de Agamben sobre a natureza de seus usos livres da teologia Paulina. A

185
Em um trabalho científico muito preciso, Agata Bielik-Robson deixa claro o tipo de empreendimento que Agamben
está se propondo: “no prólogo de seu trabalho sobre o drama barroco alemão, Benjamin define constelação como uma
estrutura epistemológica peculiar na qual as ideias formam espontaneamente uma Gestalt escatológica, guiando os
perplexos em sua jornada pela ‘noite do mundo’ e permitindo a realização de seu ‘fraco poder messiânico’ em busca da
salvação. Agamben, cujas próprias aspirações messiânicas são bem conhecidas, afirma estar nos oferecendo uma nova
constelação de esperança radical” (BIELIK-ROBSON, 2010, p. 103). Nossa intenção na presente seção da tese é
justamente avaliar se esse conjunto de ideias – que foi anterior reconstruído nos outros capítulos – cumpre o que
promete.

274
saber, o autor decisivo para a forma com que ele lida com o religioso: Walter Benjamin. Está claro
para o filósofo italiano que Benjamin é um pensador do paradigma messiânico nos termos políticos
e históricos que interessam Agamben. A filósofa e professora no Brasil Jeanne-Marie Gagnebin
nos explica que existe alguns perigos inerentes às relações entre messianismo, política e teologia no
pensamento de Benjamin. Gagnebin nos explica que algumas interpretações da filosofia de
Benjamin: “acabam se tornando armadilhas perigosas, até porque, muitas vezes, remetem à
louvável intenção de reconciliar aspirações religiosas e lutas políticas” (GAGNEBIN, 1999, p.
186
191). Em sua resposta anteriormente citada, Agamben deixa explícito que seu interesse está em
repetir a compreensão benjaminiana do lugar da teologia em relação à política. Agamben pensa que
a maneira como Benjamin introduz a teologia na primeira das Teses sobre o conceito de história se
tornou paradigmático para o seu trabalho também. Nessa tese podemos ler o seguinte:

É conhecida a história daquele autômato que teria sido construído de tal maneira que
respondia a cada lance de um jogador de xadrez com um outro lance que lhe
assegurava a vitória na partida. Diante do tabuleiro, assente sobre uma mesa
espaçosa, estava sentado um boneco em traje turco, cachimbo de água na boca. Um
sistema de espelhos criava a ilusão de uma mesa transparente de todos os lados. De
fato, dentro da mesa estava sentado um anãozinho corcunda, mestre de xadrez, que
conduzia os movimentos do boneco por meio de um sistema de arames. É possível
imaginar o contraponto dessa aparelhagem na filosofia. A vitória está sempre
reservada ao boneco a que se chama “materialismo histórico”. Pode desafiar
qualquer um se tiver ao seu serviço a teologia, que, como se sabe, hoje é pequena e
feia, e assim, não pode aparecer à luz do dia (BENJAMIN, 2012, p. 9).

A retórica de Benjamin é rica e cheia de significado. É interessante observar a imagem que


construiu para falar a respeito da permanência do teológico no político. O boneco sempre vitorioso,
chamado materialismo histórico, na verdade, é conduzido por um anãozinho feio e escondido que
comanda com arames seus movimentos – essa é a teologia. Destaque para o fato de que o boneco
está usando um traje turco, em uma clara referência à Turquia, região atual da cidade de Tarso, de

186
É preciso estar consciente de que, nesse debate sobre teologia e política em Benjamin, Gagnebin assume uma postura
menos generosa com os usos teológicos do filósofo, enquanto Michael Löwy advoga por um Benjamin teólogo.
Gagnebin continua sua argumentação explicando que: “teríamos em Benjamin, sempre na opinião desses intérpretes,
um esquema teórico que reformularia, de modo extremamente original, é verdade, um paradigma de origem religiosa: a
história humana seria a perda de um paraíso originário determinada pela queda na temporalidade e na
incomunicabilidade (Babel, como consagração lingüística do pecado original); a transformação dessa história
decaída e o restabelecimento da harmonia primitiva seriam assim a única tarefa autêntica na qual os homens se
devem empenhar, por uma prática (revolucionária) ou/e por uma teoria reparadora da injustiça. [...] Toda a obra
de Michael Löwy enfatiza essa leitura. Finalmente, tal convergência contribui de modo salutar a fragilizar a redução
positivista do fenômeno religioso ao irracional, em oposição ao político como esfera do desdobramento da razão”
(GAGNEBIN, 1999, p. 194-195). Löwy, por sua vez deixa claro que: “W. Benjamin é marxista e teólogo” (LÖWY,
2005, p. 36), ou seja, no pensamento de Benjamin temos uma “refundação do materialismo histórico. [...] O
próprio materialismo, revisto e corrigido pela teologia, é integrado a seu dispositivo teórico” (LÖWY, 2005, p.
149). Fica evidente, portanto, que em Benjamin, sua relação com a teologia é um campo de tensões e leituras
antagônicas. Quanto a essa discussão, fizemos uma pequena contribuição que foi publicada há alguns anos (cf. DULCI,
2015).

275
onde Paulo era originário. Nesse sentido, Benjamin fornece o exato paradigma que Agamben
articula em toda a sua filosofia relacionando filosofia política com teologia paulina. É nesse sentido
que Agamben responde à revista Vacarme que retira dessa imagem o lugar que dá a teologia,
entendida como essa entidade que, mesmo escondida, deve ajudar o materialismo histórico a ganhar
a partida contra seus inimigos. Agamben acredita que essa maneira de relacionar as duas ainda
permanece como sendo um gesto legítimo e atual que nos fornece as condições de possibilidade
para pensar o tempo e o sujeito de uma outra maneira.
Em sua resposta, Agamben também lembra que Benjamin escreve que Marx secularizou o
tempo messiânico na sociedade sem classes. Essa referência diz respeito a uma das teses da história
que estava perdida e que, inclusive, foi Agamben que a descobriu e integrou ao volume VII dos
Gesammelte Schriften de Benjamin (1991). Na tese podemos ler o seguinte:

Marx secularizou na ideia da sociedade sem classe a ideia do tempo messiânico.


E a ideia foi boa. A desgraça começa quando a social democracia resolveu elevar
essa ideia à condição de “ideal”. Nas doutrinas do neokantianismo, o ideal
era definido como uma “tarefa infinita”. E essas doutrinas foram a filosofia
escolar do Partido Social-Democrata – de Schmidt e Stadler a Natorp e
Vorländer. Se a sociedade sem classes começou por ser definida como tarefa
infinita, o tempo vazio e homogêneo transformou-se, por assim dizer,
numa antecâmara onde se podia esperar mais ou menos tranquilamente pela
entrada da situação revolucionária. Na verdade, não existe um único
momento que não traga consigo a sua oportunidade revolucionária – ela precisa
apenas ser definida como oportunidade específica, concretamente como
ocasião para uma solução radicalmente nova perante uma tarefa radicalmente
nova. É a situação política que confirma ao pensador revolucionário essa
oportunidade revolucionária singular de cada momento histórico. Mas
confirma-se igualmente através do poder decisivo desse momento sobre um
aposento perfeitamente determinado, mas até aí fechado, do passado. A
entrada nesse aposento corresponde exatamente à ação política; e é por essa
entrada que essa ação, por mais destruidora que possa ser, se dá a conhecer
como ação messiânica (a sociedade sem classes não é o objetivo final do
progresso na história, mas sim a sua interrupção, tantas vezes fracassada e por
fim concretizada) (BENJAMIN apud BARRENTO, 2012, p. 177).

Se nos atermos a sequência de ideias que aparecem no próprio texto, vamos começar pela
constatação de que Marx secularizou o tempo messiânico para, então, entendermos porque
Benjamin faz um juízo de valor positivo – dizendo que foi algo bom. Para a filosofia do alemão,
isso diz respeito aos seus próprios esforços de articulação do materialismo histórico com a teologia
messiânica. Isso porque, tanto uma quanto a outra ideia, tomadas sozinhas, não terão outro destino
do que aquela “desgraça” sugerida por Benjamin. Agamben concorda com isso, quando em sua
reposta à revista Vacarme diz que com todas as aporias que isso pode envolver — as transições, por
exemplo —, consiste numa espécie de obstáculo diante do qual a Revolução fracassou. Fora essa
articulação entre materialismo histórico e teologia messiânica, não dispomos de um modelo de

276
tempo que permita pensar o ultrapassamento desses obstáculos. Nisso está o interesse de Benjamin
e de Agamben na teologia messiânica paulina.
Em todo esse debate, o ponto central, tanto de Benjamin quanto de Agamben, é a
declaração de que o messiânico articulado em suas filosofias é sempre profano, jamais religioso.
Em Agamben, isso é claramente declarado na entrevista, inclusive ele lembra que esta é a última
crise do religioso, a sua projeção no profano. Entretanto, em Benjamin existe uma longa e
documentada discussão sobre o seu messianismo sem messias. Basicamente, o que está em jogo
nessa construção benjaminiana de um paradigma temporal messiânico alternativo à visão linear
187
infinita é o de um tempo atravessado pelos estilhaços do tempo messiânico. Entretanto, nós não
temos condições a partir do próprio texto de Benjamin de dizer que se trata de um olhar místico ou
esotérico. O que o filósofo parece procurar é um conceito disruptivo e não linear de tempo histórico
que visa o encontro revolucionário do passado com o presente a partir desses estilhaços messiânicos
kairológicos. Nesse sentido, é uma leitura e um uso da teologia messiânica modelado pela filosofia
do materialismo histórico dialético, fornecendo a esta última algo que ela não tinha e que poderia
ser usado para ultrapassar os obstáculos que historicamente se colocaram frente ao marxismo. O
188
paradigma messiânico que Agamben reproduz, portanto, deve ser entendido nessas condições.
Comentando a filosofia de Benjamin, Sami Khatib explica algo que pode igualmente ser aplicado a
Agamben: “no cotidiano político, entretanto, a restituição profana não é a entrada no reino
messiânico da pura realidade, mas uma tentativa de interromper, descarrilar o curso catastrófico da

187
Em um excelente trabalho científico Sami Khatib explica que: “paradoxalmente, para Benjamin, a história profana
só pode ser verdadeiramente histórica na medida em que está em uma relação antitética e indecidível com o tempo
messiânico, que para Marx, assim como para o falecido Benjamin, é a ideia de sociedade sem classes. A afirmação de
Benjamin de a secularização do tempo messiânico de Marx não é, portanto, estritamente ateísta. Em vez disso, mantém
uma relação contraditória – uma relação de não relação – com o messiânico. Essa relação não é direcionada para um
telos teológico, mas é responsável por uma certa constelação temporal, causando um curto-circuito no passado e no
presente como o agora [Jetztzeit] e, assim, interrompendo o fluxo linear e irreversível de ‘tempo homogêneo e vazio’.
Tal ‘concepção do presente como o tempo presente atravessado com [pontuado por] estilhaços do tempo messiânico’
(SW 4: 397) não deve ser confundida com misticismo esotérico; O conceito disruptivo e não linear de Benjamin do
tempo histórico visa o encontro revolucionário do passado e do presente modelado a partir do nome do comunista
Spartakusbund de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. É nesse sentido que Benjamin afirma a ação política, porém,
destrutiva e, então, ela se revela messiânica. A redenção revolucionária, portanto, não pode ser separada de seu
elemento destrutivo, relacionando o marxismo tardio de Benjamin ao seu anarquismo inicial e sua contraparte teórica, o
niilismo” (KHATIB, 2013, p. 5).
188
Em uma pesquisa científica bem recente a respeito desse assunto, Patrick O’Connor concorda que: “a produção
filosófica de Agamben, argumentarei aqui, repete esse impulso metafísico em sua configuração do messiânico. Eu
argumento que Agamben deseja estabelecer um núcleo ou cerne da ‘redenção’ humana. Este kernel deseja isolar uma
forma de vida impermeável à transformação e temporalidade. Mais importante ainda, isso permite a explicação do
messianismo de Agamben como uma resposta à possibilidade do niilismo. Sua trajetória acadêmica tenta continuamente
resgatar, à maneira benjaminiana, os resquícios da redenção da história do pensamento. Explicar isso requer delinear o
lugar da temporalidade para Agamben. Depois disso, delineio as consequências éticas e políticas do messianismo de
Agamben de vida humana em oposição ao que ele percebe como negações niilistas do cerne messiânico dos humanos,
manifestadas no estado de exceção, diferença e demarcação e no campo de concentração. Minha tarefa é, portanto,
analítica e exegética. Eu demonstro uma ótica interpretativa chave para chegar a compreender o trabalho de Agamben,
bem como avaliar a realização da radicalização da temporalidade messiânica de Agamben” (O’CONNOR, 2018, p.
336).
277
história real” (KHATIB, 2013, p. 11). O messianismo sem messias é, portanto, o gesto de tentar
redimir nos momentos pontuais do presente a potencialidade historicamente não realizada do
passado. Esse gesto profano restitui a capacidade da história de ser tomada em um curso diferente
daquele linear.
Em último lugar, a resposta de Agamben à revista Vacarme evoca Michael Foucault e a
figura do profeta e do parriesiastes. Apesar do interlocutor da entrevista mencionar a figura do
profeta para referir-se a obra do filósofo italiano, Agamben se lembra que Foucault, quando
proferiou suas aulas no Collège de France a respeito de quatro figuras do discurso da verdade em
nossa cultura – o profeta, o sábio, o técnico e o parresiastes – e se identifica claramente com a
coragem da verdade do parresiastes em lugar do profeta. Essa preferência de Agamben tem menos
a ver com desdém do profeta em si, do que com a potencialidade que o parresiastes tem de colocar-
se corajosamente para falar toda a verdade no presente. Uma vez mais, o paradigma messiânico do
tempo do presente é pressuposto aqui. Trata-se da consicência de que não podemos mais pensar um
discurso que se dirige indefinidamente ao futuro, mas antes é urgente pensar a atualidade
messiânica do tempo do agora. Ou seja, uma vez mais o que está no horizonte do filósofo italiano é
um modelo diferenciado de se referir a um tempo que nem é o futuro, nem o tempo profano, mas
um tempo que resta e se comprime para acabar com o tempo.
O objetivo que temos na presente seção, conforme mencionado no início do capítulo, é
estabelecer algumas antíteses com as opções teóricas estabelecidas por Agamben. Apesar de
concordarmos que a leitura benjaminiana que reconstruímos acima é a mais correta para interpretar
a obra de Agamben, não estamos convencidos de que as implicações dessas escolhas são as
melhores para os próprios objetivos do filósofo italiano. Vamos passar a referir o messianismo sem
messias como a interpretação de que sempre que o messiânico é articulado na filosofia de Agamben
ele é feito de maneira profana e jamais religiosa. A despeito de que alguns encontram aqui a força
da filosofia de Agamben, isto é, fazer um uso livre de Paulo até mesmo contra ele – aquela
referência que o próprio Agamben menciona de que esta é a última crise do religioso, a saber, a
projeção do religioso no profano – vamos argumentar a partir de agora que essa opção compromete
a fundo a filosofia do italiano. Um comentador da obra de Agamben, com interpretações e
argumentos que se sustentam para além do apoio na obra do italiano, parece conseguir enxergar as
contradições fatais que a opção profana de Agamben podem resultar. Fabian Ludueña Romandini
diz o seguinte:

pode-se compreender agora as condições de possibilidade daquilo que se costuma


denominar “teologia política”: se os conceitos teológicos podem “secularizar-se” em
conceitos políticos ou, dito em outros termos, se o mundo espectral pode entrar no
mundo humano fazendo de toda política uma espectrologia, é porque, radicalizando

278
a inauditamente o gesto primeiro dos Vigilantes, o Corpo do Ungido opera como
vaso comunicante entre uma e outra esfera. No ventre de Maria, no corpo do
Messias, nos dois corpos do rei analisados por Kantorowicz, jogam-se então os
pontos de passagem entre dois mundos que antigamente mantinham-se separados: os
vivos e os mortos. A teologia política que se funda no Ocidente com o cristianismo
faz com que agora ambos os domínios estejam permanentemente comunicados e a
mitologia do poder seja, hoje mais do que nunca, uma zoopolítica espectral
(ROMANDINI, 2012, p. 135).

De uma forma muito característica de usar os conceitos, Romandini nos mostra onde está o
centro da operação de secularização da teologia na política e as questões que esse gesto levanta. As
condições de possibilidade de reconhecer e articular conceitos políticos que foram, originalmente,
secularizados de seus contextos teológicos, estão na encarnação do messias como fato teológico-
político central. No corpo do messias, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, articula-se de forma
radicalmente inovadora no Ocidente os pontos de passagem entre os mundos eterno e temporal –
mundos estes que, fora dos dois corpos do rei, mantinham-se separados ou em relações de
dualismos antagônicos. 189 Quanto esses paradigmas messiânicos foram transpostos para a discussão
política, o Ocidente passou a articular esses dois domínios de maneira indistinta permanentemente,
fazendo com que fosse necessário uma mitologia do poder para justificar no temporal pretenções
190
eternas. Nisso, a genealogia teológica da economia e do governo de Agamben não só encontra
ressonânica com a história ocidental, como também contribui muitíssimo para enxergarmos com
clareza esse momento inaugural no Ocidente. Ele reconheceu com precisão o porquê do poder
precisar de louvor. Entretanto, o que parece não ser mencionado nas reconstruções do raciocínio de
Agamben por outros filósofos e comentadores, é que esse trânsito de paradigmas teológicos para a
esfera política não pode ser estabelecido como uma via de mão dupla sem que se transforme – e se
comprometa – consideravelmente a força de tais paradigmas. Uma vez mais, Romandini é

189
Em outro momento de sua argumentação, Romandini explora o significado dessa declaração da seguinte forma:
“como podemos perceber, a história do messianismo cristão deve ser lida sob uma ótica completamente nova: não só
como uma confrontação com o problema político da lei ou dos tempos escatológicos, mas também, e
fundamentalmente, como uma forma absolutamente nova de antropotecnologia, que, pela primeira vez, estabelece
progressivamente através do nascimento do Ungido messiânico um modo de relação inédito entre a lei e a vida. A vida
do Messias, que pode ser definida como lex animata, é o resultado de um inusitado experimento zoopolítico no qual
Deus, por meio de um espectro, fecunda uma virgem a fim de produzir um anjo messiânico chamado a outorgar-lhe um
novo espaço de soberania entre a vida e a morte. Certamente, aqui as duas grandes antropotecnologias do Ocidente, a
bio-medicina e o direito, são invocadas para explicar a gestação messiânica. E, como consequência, o messinaismo
cristão não pode apenas ser lido como um problema de ‘salvação’” (ROMANDINI, 2012, p. 116).
190
Podemos compreender um pouco mais o significado dessas afirmações com as seguintes argumentações de Ludueña:
“de fato, a vida do Messias se transforma integralmente em uma questão jurídica, dado que, na comunidade primitiva, o
messianismo de Jesus será percebido como uma autêntica realização da Lei. Este ‘pleroma’ da lei não implica sua
abolição, mas, ao contrário, a inédita coincidência entre vida e lei no corpo do Messias. O messianismo de Jesus é uma
forma de antropotecnologia jurídica tanto quanto era o ius exponendi antigo; mas, se no mundo antigo ainda era
possível estabelecer uma diferença entre a lei e a vida. Agora ambas as dimensões entram em uma fusão inédita que
leva ao apagamento da própria distinção entre uma e outra. Um umbral de indiferenciação se estabelece no próprio
Messias, que é a encarnação da Lei” (ROMANDINI, 2012, p. 120).

279
elucidativo quando nos explica que a teologia política de Carl Schmitt não só assiná-la o
intercâmbio entre as esfera teológica e política, mas por seu turno, “demonstrando como, uma vez
teologizados, certos conceitos políticos podem voltar à esfera profana mediante um correlato
processo de ‘secularização’, que, não obstante, não os faz perder sua força teológica agregada”
(ROMANDINI, 2012, p. 146). Um exemplo que ilustra esse reconhecimento de Romandini é o fato
de que a exaltação litúrgica do messias como o kyrios pela Igreja primitiva é, claramente, a
transposição de um paradigma político antigo, aplicado aos imperadores Augusto e Cláudio.
Entretanto, o obstáculo se mostra no movimento contrário: tentar reler a liturgia imperial depois da
aclamação cristã se torna inviável. Conforme explica Romandini a partir das ideias do teólogo Eric
Peterson, “a realeza de Cristo arruinou, metafísicamente falando, o laço existente desde
Augusto (12 a.C.) entre o principado e o pontificado supremo”, isto porque,
“a ascensão e glorificação do Messias ressuscitado – parece indicar Peterson – introduziu não só
uma espécie de translatio imperri de César a Cristo, como também a própria realeza parece haver
mudado decisivamente sua natureza na transição” (ROMANDINI, 2012, p. 147). Isso significa
dizer que após o acontecimento messiânico da glorificação do messias ressuscitado, não é possível
fazer o caminho de volta a esfera política sem referenciar-se constantemente a operação originada
no corpo ressurreto do messias. Isso significa dizer que o novo paradigma de soberania no Ocidente
191
não é mais César, mas Cristo – e esse ressuscitado. Essa mudança acarreta uma virada decisiva
no fenômeno político que não pode mais ser desconsiderada. Quando sustenta-se que todos os
conceitos políticos são paradigmas teologicamente secularizados, necessariamente assume-se que a
substância mesma da política é teológica e, sem ela, torna-se difícil operar na política. Nesse

191
Romandini consegue nos trazer mais dimensões dessa transformação dizendo o seguinte: “de fato, a comunidade
messiânica propriamente dita tem aqui seu ponto de início, dado que sua instauração só é possível quando o fundador se
sacrifica a si mesmo para sacralizar o mundo humano. [...] Do mesmo modo que a sacratio antiga implicava entregar a
própria vida para a salvação da comunidade (como, por exemplo, no ritual da devotio descrito por Tito Lívio, agora o
Messias assume sobre si os destinos da humanidade, exceto que seu sacrifício não só salva a comunidade, mas também,
paradoxalmente, a rende completamente sacra. Se a morte do antigo devotus tinha por objetivo liberar os homens do
pacto com a divindade, a morte do Ungido implica, por outro lado, a fundação de uma comunidade perpetuamente
sacralizada. Salvação equivale aqui a que toda a história humana se transforme em história sacra e que toda comunidade
tenha na ecclesia seu novo modelo político em substituição à antiga polis. Não se trata, como se poderia crer, de uma
simples ‘espiritualização’ do poder, ou então, como acreditava Scholem, de que com a partida do Messias se abra a
porta para a ‘interiorização’ do messianismo. Ao contrário, que o poder se espiritualize não quer dizer que este se faça
menos real, senão que, ao contrário, adquira uma consistência inédita, pneumática, que transtorna a natureza de todo
poder público existente a ponto de nenhum poder terrestre poder mais se construir a não ser como modelo do que mais
tarde haverá de se chamar potestas spiritualis. A declaração ‘meu reino não é deste mundo’ (João 18, 36) não significa
que se trate de um reino alienado deste mundo ou sem relação com ele. Se assim tivesse sido, nada mais se teria sabido
desse Jesus-Messias, e hoje não estaríamos invocando sua vida para falar sobre a mitologia do poder. Por outro lado, o
Ungido é muito claro a esse respeito, uma vez que realiza sua apoteose post-mortem ante os onze apóstolos: ‘Todo
poder (pâsa exousia) foi me dado no céu (en ouranoi) e sobre a terra (epi [tés] gês)’ (Mateus 28, 18). O cristianismo
tem como mitologema fundacional um Rei morto cujo espectro essencial, retornando da morte a que ele mesmo
contribui assentindo à vontade de seu Pai através de uma sacratio jurídica, anuncia à humanidade que um novo regime
inédito de poder começou e, junto com ele, o mundo antigo pereceu: é o tempo do poder espiritual ou, em nossos
termos da espectropolítica” (ROMANDINI, 2012, p. 122-123).
280
horizonte, torna-se incontornável fazer a seguinte pergunta: “qual é o substrato político material da
soberania messiânica” (ROMANDINI, 2012, p. 147).
Do ponto de vista da teologia cristã não existe nenhum problema com essa transformação
substancial da soberania no Ocidente. Isso porque, todo o conteúdo mesmo da mensagem do
cristianismo e das ações da Igreja na história é político – declaração que não pode ser invertida sem
constrangimentos filosóficos, dizendo que tudo na política do Ocidente é teológico. Conforme
argumenta Romandini, “seria um erro gravíssimo interpretar esse caráter essencialmente jurídico
das decisões eclesiásticas sobre o corpo de Cristo como uma perversão de uma religiosidade
originária que teria estado livre de contaminações com a esfera do direito”, ou seja, a teologia cristã
não se sente contaminada quando transita pela esfera política, “ao contrário, é o próprio Messias
quem leva toda a disputa ao terreno jurídico quando decide confrontar a lei judia. E, por outro lado,
em que outros termos, que não sejam os da política e do direito, se pode falar acerca de um rei?”
(ROMANDINI, 2012, p. 132). É justamente porque, desde o início, o messias cristão se afigura
como um rei de um novo e inaudito reino, que sua mensagem só poderia ser compreendida através
de uma profunda transformação da política do Ocidente. Essa é a razão pela qual não só o
julgamento de Jesus perante Pilatos afigurou-se como uma krisis sem fim, dado que o aparato
jurídico temporal não tinha condições de julgar um rei de outro reino, como também o fato de que
sempre pareceu escandaloso a quem estava fora da comunidade messiânica o fato de que, ao
ressurgir, o messias não se manifestou aos poderosos que o conderam. Romandini recolocada, uma
vez mais, o centro da questão teológico-política a partir desse fato:

A dramática pergunta que Porfírio enuncia é por que, se Jesus-Messias era o novo
rei do mundo, não se manifestou publicamente ante as instituições políticas mais
importantes do mundo antigo. Em outras palavras, por que o rei cósmico decidiria
ignorar os poderosos cuja soberania tinha arrebatado para se manifestar mais ou
menos secretamente a uns poucos eleitos que nenhuma relação tinha com o mundo
da política? A resposa que os cristãos escolheram para dar a esta pergunta – com
base nos ensinamentos do próprio Messias – mudou definitivamente o curso da
história da soberania do Ocidente. Se Jesus-Messias não se manifestou ante os
representantes da esfera pública do poder é porque sua soberania tinha mudado
definitiva e inexoravelmente de natureza: Jesus não é tanto – ou não somente, dirão
os cristãos – o novo líder de uma res publica restaurada quanto, em maior medida, o
senhor do corpo biológico do mundo dos (mortos-) vivos. Kyrios tês zoês será o
título que selará uma soberania nova, inesperada e terrível. O sentido último dos
empréstimos entre a esfera política do Imperador romano e os atributos do Rei
messiânico, que Peterson estudou tão magistralmente, não significa apenas uma
mudança de soberano, senão, mais profundamente, uma troca irrevesível na essência
mesma da soberania, que, a partir de agora, abandonará definitivamente a arena que
os antigos, liderados pelo esforço impetuoso de Aristóteles, tratavam de recuperar
para os homens na esfera do político, para adentrar inexoravelmente no reino da
gestão zoopolítica da história (ROMANDINI, 2012, p. 152).

281
Nossa antítese à apropriação profana do messiânismo operada por Agamben alicerça-se
nessa troca irreversível na essência mesma da soberania no Ocidente. Quando o filósofo italiano
descreve as tentativas pragmáticas da gestão governamental esconder o vazio de suas operações
soberanas com glória e louvor, ele está consciente dessa dificuldade de se fazer o caminho de volta
à uma compreensão não messiânica da soberania política. Entretanto, quando ele insiste em fazer
uso livre dos paradigmas messiânicos desembaraçados de suas substâncias religiosas fundamentais,
é como se também o filósofo operasse um empreendimento de devolução de paradigmas
192
messiânicos para esferas profanas de poder. Além desse gesto de Agamben parecer contradizer
as conclusões que chegou em sua genealogia teológica da economia e do governo, também drena a
capacidade crítica que esses paradigmas deixam de ter quando são retirados de seu contexto
193
religioso e transferidos de volta ao âmbito profano. Parece que, justamente, o que havia de
promissor nas leituras contemporanêas de Paulo – os mais diversos conceitos e paradigmas
messiânicos que antagonizaram a estrutura imperial de poder – esvazia-se e passa a operar sem a
substância religiosa que os fez tão distintos quando foram anunciados pela primeira vez. Em uma
estranha inversão, aqueles paradigmas paulinos cheios de potência messiânicas são
fundamentalmente inviabilizados por precisarem se adequar a critérios profanos atribuídos a eles
em razão de pressuposições muito posteriores ao seu contexto originário – arqueológico. Nesse
sentido, Romandini consegue acessar o centro mais preciso da dificuldade política que todo aquele
que se ocupa com a soberania contemporanea precisará responder: “todo ‘segredo de Estado’ tem
sua raiz teológica no complexo jogo por meio do qual o Ungido se move entre o caráter público de

192
Alicerçado nos comentários à teologia política de Eric Peterson, Romandini também sustenta que: “se existe uma
circulação entre os atributos imperiais do César e os ornamentos da soberania do Messias, isto não se deve a um simples
deslocamento de símbolos da esfera política à teológica, mas, ao contrário, mostra a íntima solidariedade entre a
teologia e a política, assim como o fato de que a soberania messiânica é entendida em um sentido primordialmente
político” (ROMANDINI, 2012, p. 144).
193
Não são poucos acadêmicos contemporâneos que manifestam em pesquisas científicas as contradições que o
messianismo profano de Agamben engendra-se. Para citar alguns pontos fundamentais, Agata Bielik-Robson, diz que:
“isso, no entanto, indica um sério afastamento do ponto de partida de Agamben, descrito na visão messiânica de
Benjamin de uma ‘vida feliz sem lei’, onde ‘cessa o império da lei sobre os vivos’. Pois uma coisa é abraçar o estado de
exceção como irreparabilidade e reconciliar a vida nua com sua inerente ‘potencialidade de não ser’, na qual ‘qualquer’
existência está sendo finalmente reconhecida como um erro além da correção; e outra bem diferente é abraçar o estado
de exceção como um erro revigorante, que permite quebrar as regras do jogo ontológico e sair da ‘ordem policial de
partes e todos’. Uma coisa é usá-lo como uma força regressiva de implosão ou involução (Verwindung de Heidegger),
em que a singularidade se dobra sobre si mesma e corta todas as relações com o exterior, e outra bem diferente é usá-la
como uma força progressiva de êxodo que trabalha em direção ao transformação radical das relações entre o ser
humano e o seu mundo. Essa diferença é uma questão de vida ou morte – literalmente. Consequentemente, apesar de
algum esforço considerável para trazer uma mistura perfeita de ‘Heidegger com um certo Benjamin’, o trabalho de
Agamben trai uma hesitante duplicidade de perspectiva, que impede o surgimento de sua constelação projetada. Os dois
conceitos cruciais de Agamben – ‘vida nua’ e ‘o remanescente’ – chamam uma e a mesma coisa, o ‘estado de exceção’,
de dois ângulos irreconciliáveis. Agamben faz tudo o que pode para neutralizar sua tendência natural de desmoronar
(principalmente mexendo com ‘o remanescente’), mas no final, suas lógicas divergentes ganham a vantagem” (BIELIK-
ROBSON, 2010, p. 124).

282
sua revelação gloriosa e o segredo de seu verdadeiro poder que só uns poucos podem ver em seu
absoluto esplendor” (ROMANDINI, 2012, p. 149).
Vale dizer, no entanto, que essa crítica a respeito da dificuldade de fazer retornar paradigmas
messiânicos para esferas profanas, de onde vieram após uma transformação significativa da política,
não é sinônimo de exigir de Agamben alguma confissão de fé semelhante a de Paulo ou de outros
cristãos para que sua filosofia tenha valor. Antes o contrário, é precisamente porque sustentamos a
proficuidade dos argumentos do filósofo italiano para responder as aporias do presente, que nos
questionamos até que ponto é possível reconstruir argumentações como fizemos anteriormente sem
nos comprometermos com todas as implicações que estão envolvidas no messianismo. Ademais,
acreditamos que é justamente na utilização de paradigmas teológicos desubstancializados de sua
origem religiosa que faz com que a filosofia de Agamben seja alvo de tantos estranhamentos e
arbitrariedades paradigmático-arqueológicas. De uma forma muito grave, mas muito elucidativa,
torna-se muito mais claras e justificadas as críticas que são feitas à linguagem hermética e fugidia
do filósofo italino, uma vez que ele está tentando esconder na sua argumentação filosófica o mesmo
vazio messiânico que demonstrou corretamente nas liturgias do poder governamental infinito. Da
mesma forma que a maquinaria política contemporânea, desconectada de sua arché teológica
procura esconder o vazio em que gira a gestão infinita da população, Agamben também vacila em
um misticismo semântico que é fruto de uma engenharia argumentativa que precisa,
constantemente, afirmar paradigmas destituídos de seus conteúdos – e isso faz com que, dentre
outras coisas, a performatividade de sua linguagem se mostre opaca a vários leitores. Encontra-se
no centro da argumentação de Agamben justamente aquilo que ele reconhece de mais distinto dos
governos biopolíticos ocidentais: um giro vazio inoperoso escondido pelo brilho intenso da
194
glorificação aclamatória. Nisso mostra-se as contradições que um aclamado filósofo pode

194
Em uma conclusão bastante dura, mas muito precisa em observar as contradições que Agamben se engendra a partir
de seu messianismo profano e sem messias, Agata Bielik-Robson nos diz que: “não que ele fosse dissuadido por tal
acusação, mas devemos portanto, chamar Agamben de um ‘falso Messias’? Seu meta-antinomianismo não apenas
provoca tais acusações, mas também as acolhe como suas confirmações paradoxais. Seu método antinomiano, que ele
identifica como a característica fundamental do messianismo, não apenas localiza as chances de redenção naquilo que
comumente aparece como mais baixo e desprezível, mas também localiza o próprio discurso da redenção naquilo que
tradicionalmente se passava como o mais alheio a qualquer coisa messiânica, isto é, no idioma grego da condenação
trágica e sua variante pós-trágica na Gelassenheit heideggeriana e na destituição lacaniana. Semelhante a Sabbatai Zevi,
o famoso ‘falso Messias’ do século XVII, que ofereceu uma doutrina antinomiana de ‘redenção pelo pecado’, Agamben
fornece uma variante adequadamente moderna de ‘redenção pela morte’, por meio da qual devemos aprender que o
único a esperança reside precisamente no abandono de toda esperança. Assim, procuraríamos em vão o ‘arco de
ressurreição de volta’ benjaminiano ou a virada rosenzweigiana de perspectivas que permite que a vida nua ascenda a
um novo começo. Tudo o que obtemos aqui é uma queda cada vez mais profunda, que eventualmente se esquece de sua
queda e se dissolve em um abandono apático, o destino vegetativo feliz da ‘noite salva’”. (BIELIK-ROBSON, 2010, p.
126).

283
incorrer – em uma ironia que percebem somente aqueles que levam às últimas consequências os
próprios paradigmas presentes nos argumentos de Agamben. 195
Estabelecer uma antítese à filosofia de Agamben a partir de uma configuração messiânica
meramente aparente é um fator interessante, pois o filósofo italiano também se ocupou exatamente
com esse ponto quando menciona Theodoro Adorno em seu seminário a respeito da epístola de
Paulo aos romanos. O fato que gera essa menção é um aforismo no final de sua obra Mínima
moralia, em que Adorno coloca um título messiânico: Zum Ende, que significa “para terminar” e,
ali, definie a filosofia nos seguintes termos: “a única filosofia que poderia se justificar diante do
desespero seria a tentativa de considerar todas as coisas como se apresentariam por si mesmas do
ponto de vista da redenção” (ADORNO apud AGAMBEN, 2016, p. 48). Esse comentário não
passou desapercebido apenas a Agamben, o filósofo austríaco Jacob Taubes também havia tido sua
atenção despertada pelo aforismo e, quanto a ele disse, “um lugar admirável, no entanto, em última
instância, vazio; enquanto que no jovem Benjamin é algo substancial” (TAUBES, 2007, p. 90). A
vacuidade desse texto, confrontado com as obras do jovem Benjamin e do teólogo suíço Karl Barth,
se dá em razão de algo que Taubes chama de estetização do messiânico. Enquanto para os primeiros
anos de Benjamin a questão da ordem messiânica (em confronto com a profana) era importante,
para “Bloch e, mais ainda, para Adorno, eram coisas de preguiçosos”, isto porque, para eles “a
questão da realidade ou irrealidade da redenção torna-se quase indiferente” (TAUBES, 2007, p. 90).
Essa discussão entre vultos da filosofia do século 20 fez com que Agamben se perguntasse muitas
vezes “se a acusação de ‘estetização do messianismo’ – que implica uma renúncia à realidade da
redenção em troca da sua aparência – não seria por acaso injusta em relação ao autor daquela Teoria
estética”, na qual “a desconfiança para com a bela aparência é levada ao ponto de definiar a própria
beleza como der Bann über den Bann, ‘o encantamento do encantamento’” (AGAMBEN, 2016, p.
48). Nesse limiar que Agamben estabelece durante seu seminário a respeito da epístola paulina
temos mais do que um ponto de contato com autores importantes para o tema do messianismo.
Acreditamos que a acusação de estetização do messianismo feita por Taubes aplica-se perfeitamente

195
Em um ensaio acadêmico crítico às contradições que a teoria política de Agamben incorre, Paul A. Passavant chama
nossa atenção para o seguinte ponto: “Agamben indica, por meio do exemplo do apóstolo Paulo e o resto dos que
aderem fielmente ao direito messiânico, a possibilidade de sujeitos políticos ativos adequados ao desafio da soberania
do Estado. Este argumento, no entanto, contradiz suas posições anteriores, abraçando a potencialidade sobre os atos
emblemáticos de decisões soberanas e uma experiência de estar além de qualquer ideia de lei. Também, ao se apoiar em
uma situação determinada para criar as condições de possibilidade para um ato de fala bem-sucedido, obstrui as formas
de poder necessárias para manter essa situação contra outras possibilidades ontológicas, assim como sua primeira teoria
de passagem, além do estado de espetáculo integrado. Este argumento também levanta a questão de como essa
comunidade messiânica pode se relacionar com o que permanece diferente de sua situação. Ou seja, Agamben deve
abordar as próprias questões que sua abordagem ontológica da soberania do Estado pretendia evitar – questões de poder
e alteridade. Em suma, Agamben permanece atormentado pelos próprios problemas que motivaram não apenas sua
crítica ao Estado, mas também sua tentativa de remover essa investigação da filosofia política para a filosofia
‘primeira’. No final da teoria do estado de Agamben, a política permanece” (PASSAVANT, 2007, p. 169).
284
também a Agamben. Assumindo o papel da acusação nesse processo movido contra Adorno,
Agamben diz o seguinte:

Se devesse assumir o papel da acusação nesse processo, proporia ler o último


aforismo de Minima moralia junto com o início da Dialética negativa: “a filosofia
sobrevive, porque o momento de sua realização foi perdido”. É o ter perdido o
momento da própria realização que obriga a filosofia a contemplar indefinidamente
a aparência da redenção. A beleza estética é, por assim dizer, o castigo que a
filosofia deve sofrer por ter perdido a sua realização. Nesse sentido, pode-se
realmente falar de um als ob em Adorno, por isso a beleza estética não pode ser nada
mais que um encantamento do encantamento. Não há, aqui, nenhuma complacência
– ao contrário, é como se a condenação que o filósofo já se inflingiu a si mesmo
(AGAMBEN, 2016, p. 51).

Uma vez mais, na filosofia de Agamben a ideia de um momento pontual no tempo para a
realização reaparece. Para o italiano, justifica-se a filosofia contemplar indefinidamente a aparência
da redenção por ter perdido esse tempo, justamente a atualidade messiânica, o kairós, o tempo de
agora. Na incapacidade de articular esse tempo, que é um pedaço da temporalidade que resta que,
em um golpe, transformará o tempo profano, é o que obriga a filosofia manter-se de aparência,
como um castigo que deve sofrer. Para Agamben, “toda a filosofia de Adorno é escrita no
impotencial, e o como se não é, nesse sentido, senão o índice dessa íntima modalidade do seu
pensamento. A filosofia estava se realizando, mas o momento de sua realização foi perdido”
(AGAMBEN, 2016, p. 51). Tudo isso faz com que a redenção messiânica seja, tanto para Adorno,
quanto para Agamben, apenas um “ponto de vista”, pois Adorno não poderia imaginar que seria
possível restituir possibilidade ao acontecido. Sendo assim, “apesar das aparências, a dialética
negativa é um pensamento absolutamente não messiânico” (AGAMBEN, 2016, p. 52). Nessa
declaração agambeniana existe toda uma interpretação da filosofia de Adorno, enquanto uma mera
condenação negativa da realidade que está presa a não conseguir alimentar novas possibildiades de
esperiência por estar presa ao emaranhado dialético negativo da razão. Entretanto, essa leitura fala
mais de Agamben do que do próprio Adorno. Em uma pesquisa científica muito contundente
exatamente a respeito desse diálogo entre os filósofos, o professor da University of Aberdeen,
Christopher Craig Brittain explica que: “Agamben apresenta consistentemente sua leitura do
messiânico como uma alternativa ao que ele considera ser a dialética negativa ‘pessimista’ de
Adorno” (BRITTAIN, 2010, p. 40) – que ele argumenta ser uma forma de pensamento
absolutamente não messiânica. Não obstante, Brittain levanta algumas perguntas críticas, que
confrontam essa leitura de Agamben:

quando confrontado com a visão alternativa de Adorno, pode-se começar a fazer a


Agamben algumas questões pontuais, particularmente: quem é este verdadeiro
sujeito político que está sendo invocado aqui? O remanescente, como a concepção
285
de potencialidade de Agamben, não parece ter qualquer lugar real na história. É
instrutivo retornar ao aforismo de Adorno de Minima Moralia e à rejeição de
Agamben dessa posição como um pessimismo vazio na forma de um “como se”
(2005b: 35). O limite desse desafio a Adorno é esclarecido perguntando se refugiar-
se no messiânico pode representar uma fuga do problema que Agamben articulou
com tanta força. A crítica de Agamben ao “como se” de Adorno levanta a questão de
saber se seu messiânico “como não” sugere problematicamente que o assunto pode
minar e tornar “inoperante” o destrutivo sistema biopolítico sem substituí-lo. A
confissão de “fé” que é celebrada em O Tempo que Resta produz a salvação em si
mesma. É uma “experiência de estar além da existência e da essência”, que
Agamben compara ao estado de estar apaixonado (p. 128). Mas aqui sua
compreensão – não apenas de amor, mas também de resistência política – torna-se
romantizada. Quando afirma que “as palavras da fé surgem para ir além da relação
denotativa entre a linguagem e o mundo, em direção a um estatuto diferente e mais
originário da palavra”, a implicação é que a máquina antropológica de exclusão-
inclusão é superada por um mudança de atitude no assunto, ao invés de uma
mudança no relacionamento com o outro (p. 134). Isso é verificado quando é
sugerido “que no tempo messiânico o mundo salvo coincide com o mundo que está
irremediavelmente perdido” (p. 42). O mundo não parece mudar, mas apenas a
relação do sujeito com ele (BRITTAIN, 2010, p. 53).

Vale dizer que, embora a questão da filosofia política de Adorno continue a ser um debate
196
aberto, o que fica evidente aqui é uma diferença fundamental com o uso da teologia pela
filosofia política de Agamben. Quando o filósofo italiano – e até mesmo Jacob Taubes – critica
Adorno em defesa de Benjamin no ponto em questão aqui é a sua passividade ou não na prática.
Brittain explica que: “embora Adorno admitisse que seu nível de práxis engajada muitas vezes
chegava a um impasse, ele insistiu que seu pensamento, na forma de uma crítica negativa do
pensamento de identidade e opressão social, não chegava” (BRITTAIN, 2010, p. 53). Ou seja,
apesar de ser acusado por Agamben de pessimista ou de mera condenação negativa da realidade, ele
não havia se tornado idealista nem deixado a história para trás. Em outras palavras, isso significa
dizer que Adorno não fugiu das mediações necessárias na interação social. Não obstante, de acordo
com a citação acima, esse não era o caso com a filosofia de Agamben. O mesmo hós mé paulino é
articulado de maneira muito diferente da obra do filósofo da Escola de Frankfurt. Em comparação
com Adorno, a opção agabeniana de uma mudança de atitude em relação ao mundo, em lugar de
uma mudança no relacionamento com o outro, torna a resistência política romantizada. A razão para
isso, Brattain argumentará está no fato de que: “quando Agamben articula sua visão alternativa,

196
Quanto a isso, Christopher Craig Brittain esclarece que: “deve ser mencionado aqui que o próprio Adorno foi às
vezes criticado por articular uma visão política aparentemente pessimista e resignada. Ele desafiou Sartre e Brecht por
defenderem o que, em sua opinião, representava posições que exigiam uma adoção muito imediata de ação e significado
político específicos. Em resposta, Georg Lukacs acusou-o de ter ‘fixado residência no ‘Grand Hotel Abyss’ (Lukacs,
1971: 22). Adorno respondeu aos seus críticos argumentando que um ‘salto para a práxis não cura o pensamento de
resignação, desde que seja pago com o conhecimento secreto de que esse realmente não é o caminho certo a seguir’
(Adorno, 1998: 291). Para ele, a exigência de mergulhar na ação equivalia a um sacrifício forçado do ego e do
pensamento. Adorno insistiu que o pensamento pode ser uma forma de resistência, mesmo quando os caminhos para a
ação progressiva permaneceram barrados. Isso deixa Adorno vulnerável às mesmas críticas que ele dirige a Benjamin e,
por extensão, àquelas levantadas aqui contra Agamben?” (BRITTAIN, 2010, p. 53).
286
com sua ênfase em um 'agora' imediato que não olha para o futuro nem pretende mudar o existente
de qualquer forma particular, ele abandona qualquer atenção ao trabalho de mediação, que qualquer
coisa que se assemelhe a um ‘a política’ exige” (BRITTAIN, 2010, p. 54). Esse ponto específico,
em torno do qual gira muito do messianismo sem messias de Agamben, desarticula a potência da
sua argumentação mostrando um pouco do seu vazio – pondendo ser, perfeitamente, adjetivado de
estetização do messiânico. Brittain reconhece que, “embora seu trabalho ofereça um retrato
poderoso da fragilidade do mundo, a cura que ele oferece não passa por essas experiências de
sofrimento, mas apenas as evita”, isto porque, a redenção aparente que é anunciada por Agamben,
“não tem local, instituição, comunidade e, portanto, efetivamente não ocorre em lugar nenhum. Não
tendo substância material, o ‘como não’ não pode ser corrompido pela biopolítica, mas também não
pode intervir no que normalmente é chamado de ‘o político’” (BRITTAIN, 2010, p. 54). Essas
percepções a respeito de muitos argumentos de Agamben fazem com que sejam reduzidas as
possibilidade de alguém “experimentar a salvação” que o filósofo italiano recorrentemente coloca
naquilo que resta.
Tomadas como coerentes, essas antíteses estabelecidas com a filosofia de Agamben
poderiam inviabilizar a força dos paradigmas que o italiano utiliza – e, com isso, toda a nossa
reconstrução de seus argumentos nas seções anteriores da presente tese. Entretanto, esse não é o
caso. Não se trata de, simplesmente, descartar a filosofia de Agamben como se fosse injustificável
como um todo. Quem opta por gestos dessa natureza, na verdade, pode estar querendo esvair-se da
responsabilidade de ter que lidar com os paradigmas e questões políticas de primeira grandeza que o
filósofo italiano coloca aos contemporâneos. Mostraremos a seguir que, curioso é o fato de que
podemos fazer uma leitura da obra agambeniana à semelhança do que ele mesmo faz e nos deixa o
exemplo: uma reapropriação crítica das fontes e da tradição. Essa metodologia nos permite fazer
novos usos livres de Agamben, mesmo que seja, em alguns momentos, contra ele mesmo. E isso só
é possível, justamente, porque sua filosofia nos oferece um retrato poderoso das aporias éticas e
políticas que enfrentamos – bem como sinaliza algumas rotas de fuga que não precisam ser meras
evassões do mundo real. Quem parece que reconheceu exatamente esses dois aspectos presentes na
obra de Agamben foi o brilhante professor de Religião, Política e Ética da Universidade de
Nottingham, John Milbank. Em um ensaio acadêmico seminal, entitulado Paul against Biopolitics
(2008) Milbank argumentará que, apesar de existirem noções antigas e modernas de justiça
natural que tentam escapar das aporias biopolíticas, somente em Paulo
encontraremos uma visão alternativa que, ao mesmo tempo, nos permita imaginar
“uma possibilidade sem reservas de justiça humana além da legalidade, que combina equidade com
orientação hierárquica e faz a justiça coincidir com a plena realização de cada ser humano em

287
relação para todos os outros. Qualquer alternativa secular a isso tende a ser menos radical”
(MILBANK, 2008, p. 125). Milbank está consciente dos esforços da filosofia agambeniana, bem
197
como os seus limites. Especificamente, quanto ao nosso ponto do messianismo sem messias,
Milbank diz que: “embora Agamben fale de uma libertação ‘messiânica’ do ôntico desse cativeiro
[da condição ontológica], por meio de uma realização ‘mais pura’ e redentora de seu próprio
abandono, isso parece ontologicamente incoerente”, isto porque, “se os seres ‘não são’ por si
mesmos e não podem dar origem a si mesmos, então deve-se perguntar em que sentido eles podem
realmente deixar o próprio Ser para trás, ou escapar de seu vazio tirânico, como o ateísmo deve, de
fato, entendê-lo” (MILBANK, 2008, p. 135). A despeito dessa, e de outras críticas que menciona à
198
filosofia de Agamben, Milbank ainda assim irá sustentar que Paulo, enquanto paradigma
teológico político, tem condições de nos remeter autenticamente para além da ordem biopolítica –
em sua expressão antiga e moderna. Seu argumento percorre a seguinte linha:

Como os gregos antigos, Paulo defendeu a justiça natural e, como os pensadores


helenistas, ele a relacionou com a invocação de um Rei divino supremo que excedeu
a lei como ele mesmo incorporando uma ‘lei viva’ – nomos empsuchos, como os
pitagóricos faziam (Blumenfeld, 2001: 187, 235–6). A principal diferença é que
Paulo pensava na justiça natural não apenas em relação à vida, mas em relação à
ressurreição. Agamben tem razão: a dimensão ontológica da política é inevitável.
Mas se alguém considera a vida apenas vida biológica restrita à imanência, então a
vida está subordinada à morte. O pano de fundo que é assumido pelo liberalismo
secular é uma vida que se define negativamente contra a morte e a escassez – é a
busca da minha vida em vez da sua, o prolongamento da vida de alguns às custas da

197
Quanto a isso, ele diz o seguinte: “Agamben (2003) admite significativamente que os modos medievais de
governança escaparam aos paradoxos da lei de exceção, uma vez que o recurso ao poder não legislado foi aqui visto
como necessário, não em termos aporéticos das exigências da lei como tal, mas sim naquelas instâncias onde a lei
escrita não servia mais à justiça. Recurso foi feito, em outras palavras, a uma lei natural de equidade enraizada em uma
lei divina eterna. Presumivelmente, Agamben pensa que tal apelo é hoje impossível. Na verdade, ele parece considerar,
de uma maneira marxista, que algum ganho dialético emerge da biopolítica. A lacuna que se abre entre o direito e a vida
supostamente revela para ele a possibilidade de uma prática humana pura que seria uma criatividade por si mesma, um
'meio' puro que busca sem fim, uma prática nem natural, nem legislada (Agamben, 2003 : 64; Benjamin, 1996b). Ainda
assim, em resposta a Agamben aqui, deve-se dizer que não pode haver prática humana fora da linguagem, e a
linguagem sempre pressupõe regras e objetivos de projeto. Em outro lugar, de fato, o próprio Agamben vê um paralelo
entre a lei da exceção e as normas transcendentais de todo discurso (Agamben, 2003: 36-9). Ele lembra que Lévi-
Strauss mostrou que há um excesso permanente do significante sobre o significado: portanto, a referência deve sempre
apelar paradoxalmente a uma não referência excessiva, assim como o direito deve invocar incessantemente uma vida
extrajudicial e contrair uma extraeconômica. egoísmo militar” (MILBANK, 2008, p. 135).
198
Mostrando estar a par do recente diálogo entre os filósofos continentais, Milbank diz que: “como sugere Slavoj
Žižek seguindo Jacques Rancière, Agamben ontologiza o campo de concentração, uma vez que esse esquema parece
implicar que somos todos nós, em virtude de nossa existência humana, e não em virtude apenas da biopolítica, homo
sacer, consignado por natureza, a uma condição em que nossos direitos de animal humano estão sempre ameaçados de
suspensão pelo próprio poder que nos concede, reduzindo-nos ao nível de 'vida nua' que nem mesmo é concedida a
dignidade de condenação. (Este é o caso para os presidiários de Auschwitz, como hoje para aqueles da Baía de
Guantánamo e das prisões de tortura secretas da Europa.) Portanto, uma vez que estamos falando e existindo criaturas,
em que termos a pura prática pode ser decretada para Agamben, além daqueles de recusa apocalíptica? Às vezes, ele
invoca a resposta de Walter Benjamin à problemática schmittiana: uma boa violência revolucionária não exercerá mais
uma economia de sangue pagã e mítica, pela qual alguns morrem em nome de outros, mas irá, antes, como violência
‘monoteísta’, abolir de uma vez por todas toda a lógica aporeticamente conjugada e regime da lei e da exceção”
(MILBANK, 2008, p. 136)
288
vida de outros, já que é a isso que a extração injusta de lucros dos trabalhadores e
consumidores e um maior privilégio político, em última análise, equivalem. É
precisamente esta vida que vive para se preservar e grosseiramente para aumentar a
si mesma que deve se suplementar com a lei e o contrato: dispositivos de
autoproteção e autoreprodução, mutuamente consentidos. Essas são, portanto,
essencialmente reações diante do fato avassalador da morte – procuram um tempo
fútil para economizar a morte ou para atrasar sua chegada. Mas São Paulo começa
com a visão de um homem ressuscitado (Gálatas 1:19). Isso revela para ele outra
vida mais original – uma vida pré-queda sem morte que agora foi restaurada em sua
possibilidade original, não por economizar ou resistir morte, mas suportando-a até o
fim. Em consequência, a justiça agora está perante a lei, não apenas no sentido de
equidade excepcional, mas também como um excesso oculto de vida pneumática
autogerada sempre renovável que renova e redistribui gratuitamente o bem (1
Coríntios 15: 42-50) . Diante dessa abundância indefectível, a lei não é necessária,
porque não há morte e nem vontade maliciosa que trata da morte. Nem há mais uma
vida limitada pela morte, visto que nós, em Cristo, já sofremos prolepticamente tal
morte. Estando já mortos (deve-se entender literalmente), não podemos mais pecar,
porque esta é apenas uma possibilidade para aquela vida que está sempre
enfraquecida pela morte e pelas paixões defensivas que assolam a mortalidade
(Romanos 6: 7: “para aquele que morreu está livre de pecado”). Dentro da nova vida
ressuscitada sem tais paixões, a malícia não pode mais ser considerada inevitável ou
mesmo compreensível, uma vez que não há nada que ela pudesse arrebatar ou
ganhar da plenitude, exceto o prazer malicioso e inútil de inventar a própria noção
de ganho à custa de outros, através da instituição da morte e da escassez. E esta
instituição, é claro, torna possível uma visita inversa de malícia por outros ao
originalmente malicioso (MILBANK, 2008, p. 140)

Com as palavras acima, Milbank não apenas nos relembra alguns paradigmas paulinos que
já foram articulados anteriormente a partir da filosofia de Agamben, mas também os confronta com
a narrativa liberal secular de ontologia da morte – que durante a pandemia assumiu niveis inauditos.
O contraste começa com o reconhecimento de que Agamben está correto ao destacar as dimensões
ontológicas inevitáveis da política. Não obstante, quando essa ontologia restringe-se à imanência,
então, incontornavelmente ela está sujeita à morte. Esse é o pano de fundo mais fundamental que as
democracias liberais de governamentalidade infinita assumem na contemporaneidade. Uma vez que
a vida se define negativamente, a tentativa de ultrapassamento da morte e da escassez serão os
horizontes básicos de toda gestão pública da vida. A partir desse pressuposto que Milbank descreve
as tendências mais cotidianas da vida em sociedades liberais, em que a busca pela minha existência
em vez da alteridade e o prolongamento da minha vida às custas da existência dos outros se tornam
as características mais básicas do dia a dia de tais sociedades – argumento que inclusive Agamben
utilizou-se para criticar a reprodução vertiginosa de estratégias governamentais do dispositvios de
biosegurança durante a pandemia do COVID-19. Quando a mera vida nua se torna o foco das
atenções governamentais da gestão pública, a busca pela simples sobrevivência biológica se tornará
o valor mais fundamental da nova pseudopolítica – ou ainda, simplesmente, a biopolítica interna às
gestões públicas liberais. Nesse cenário, multiplicam-se os dispositivos de autoproteção e
autoreprodução como as reações mais atávicas e viscerais ao fato avassalador da morte. A relação
com o tempo e a história é resignificada pelos esforços de economizar a vida e atrasar a chegada da
289
morte a qualquer custo. A ilusão de uma temporalidade indefinidamente orientada para o futuro
alimenta as utopias liberais do cotidiano. 199
Milbank acredita que os esforços de Paulo são antagonismos direcionados exatamente a
essas ontologias imanentes da morte presentes em estruturas de poder tanto no Império Romano, e
que podem ser também orientações repetidas na resistência as suas análogas reproduções na
contemporaneidade. A principal diferença no modo de estar presente na história é por uma
reorientação radical da justiça natural e sua relação não apenas com a mera vida biológica, mas em
relação à ressurreição. O ponto de partida de Paulo é o ser humano ressuscitado, ou seja, aquele que
pela fé inopera tanto o poder da morte presente na lei como também as vocações temporais que
estão passando junto com a forma desse mundo – conforme descrevemos no segundo capítulo. Isso
permite Paulo construir um toda uma visão a respeito da existência humana em comunidade que
não esteja alicerçada em qualquer ontologia da morte. Esse ponto de partida permite que seus
paradigmas teológico-políticos não girem em torno de práticas e dispositivos de autopreservação às
custas da alteridade, bem como uma resistência sem esperança frente ao fato avassalador da morte.
Diante dessa vida orientada pela ressurreição, a zoé aiónios preconizada logo nas primeiras páginas
de Il regno e la gloria, a lei não é mais necessária, pois ela foi inoperada pela fé, além de que toda a
governamentalidade da escassez e da malícia em razão ao outro são, igualmente, tornadas
inoperosas. Nesse sentido, Milbank sustenta que: “a bondade mais original, portanto, para Paulo,
não age reativamente ou defensivamente diante da morte, do sofrimento e do mal, mesmo quando
essas negatividades afetam outra pessoa”, em vez disso, “ele simplesmente distribui sua própria
instância de uma maneira constantemente criativa, sempre gerando uma vida mais intensa em vez
de escorar a vida existente contra a morte” (MILBANK, 2008, p. 141). 200
A ressurreição enquanto ponto de partida alternativo às aporias da biopolítica também
chamou a atenção de Alain Gignac quando o canadense respondeu sobre como a postura de Paulo

199
Em um bem elaborado trabalho acadêmico exatamente a respeito do diálogo estabelecido entre Agamben e Milbank,
o pesquisador Mika Ojakangas explica um pouco mais sobre a ressonância que existe entre os autores: “embora o
argumento proposto por cada um seja diferente, o adversário permanece o mesmo: o niilista, o utilitarista, o
instrumentalista e, para resumir, a política liberal do capital contemporânea. Em sua opinião, o apóstolo Paulo ainda tem
algo importante a nos dizer – algo por meio do qual possamos resistir à razão instrumental utilitária niilista que
prevalece hoje, a razão que transformou toda política, toda práxis humana, no que Agamben e Milbank chamam de
biopolítica” (OJAKANGAS, 2009, p. 47-48).
200
Estabelecendo um diálogo crítico com outra obra que também trabalhamos na presente tese, Milbank diz o seguinte:
“esse ponto é bem apresentado em termos ligeiramente diferentes por Alain Badiou em seu livro sobre São Paulo (1999:
70). No entanto, em um mundo em que o pecado e a morte entraram irrecuperavelmente, mas contingentemente (e
distorceram, por meio de um evento meta-histórico, a ontologia da vida), exigindo na sua cumplicidade mútua algum
tipo de economia biopolítica destinada a restringir a sua instância (lei que tenta controlar uma vida condenada à morte e
semi-maliciosa que permanece em consequência sempre alheia à perpetuidade do próprio direito), mais bondade
original só é acessível por meio do sofrimento. Ou seja, suportando até o limite (Romanos 8: 17-23) todas as
consequências negativas do pecado, da morte e da lei, o que reforça o pecado e a morte ao assumir falsamente seu
caráter irredutível e assim oferecer em face de sua violência uma contra-violência (que por si só define a violência do
pecado como violência transgressiva), em vez de uma remoção de seu controle ontológico” (MILBANK, 2008, p. 141).
290
poderia ser compreendida hoje e o significado desses valores na contemporaneidade. Consciente de
que: “malgrado Agamben e Badiou, que secularizam o pensamento paulino (é seu direito e é
estimulante) e mesmo eliminam o caráter cristológico”, o ponto que o chama atenção
independentemente do messianismo sem messias dos autores, é que “é sempre verdade que os textos de
Paulo são portadores duma experiência religiosa, da qual dão testemunho. Trata-se da experiência do
Ressuscitado (ele está vivo!) feita pelos primeiros cristãos” (GIGNAC, 2008, p. 16). Essa vivência
messiânica aponta para uma forma de vida na temporalidade em que os indicativos sobre os filhos e as
filhas de Deus pela fé no messias, reorientam a vida política através de uma série de novos imperativos.
Essa é a chave para compreendermos a forma de vida anunciada por Paulo a partir dos paradigmas da
ressurreição. Ela se mostrou um antagonism forte o suficiente para resistir e se mostrar mais basilar do
que todas as gestões populacionais de proteção egoística da morte e uma extensão indefinida de uma
mera via biológica esvaziada das marcas humanas mais características. Milbank acredita que nesse
estado de coisas, “não há mais nada a ser resistido em face da morte ou da escassez e, [...] de modo
que apenas a paixão doadora extática de ágape [...] permanece, e a prática que ela informa de
generosidade irrestrita e superabundante” (MILBANK, 2008, p. 142).
Vale dizer ainda, antes de concluirmos essa seção, que esse gesto paulino que procura ser
repetido contemporaneamente não é uma plataforma utopica a ser implantada programaticamente.
Nem mesmo Paulo em seus textos seminais propôs abolir o que hoje entendemos ser o arranjo
biopolítica já presente no Império Romano. Antes o contrário, Milbank também nos lembra do fato
de que Paulo estava consciente do “programa proto-Constantiniano e assegurou que o Império
Romano na realidade ainda está entre nós. Portanto, ele não negou que o segundo aspecto – o
exercício do nomos imperativo em face da escassez, pecado e morte – permaneceria necessário”
(MILBANK, 2008, p. 159). Inclusive, é justamente essa permanência duradoura de arranjos
imperais em toda estrutura governamental que se pretende infinita que garante aquela interpretação
o katechon temporário é o mistério da iniquidade que já está operação e que restinge a viabilidade
do eschaton final. Contudo, ao mesmo tempo em que fica explícito esse reconhecimento antiutópico
da permanência do imperial no político, Milbank sustenta que “Paulo simplesmente contornou o
império e fez outra coisa – encheu-o com um conteúdo novo e mais primário, que o fez sofrer e
finalmente morrer em suas mãos” (MILBANK, 2008, p. 160). Essa audácia fica explicita na prática
recorrente de fazer circular epístolas entre os membros das recém-inauguradas comunidades
messiânicas como se, simplesmente, estivesse se dirigindo a todos os cidadãos desses locais –
epístolas aos Romanos, Gálatas, Coríntios, Filipenses, Tessalonicenses, Efésios, Colossenses, etc.
Nesse sentido, em lugar de um programa utópico empurrado artificialmente sobre as comunidades
messiânicas, Milbank insiste que “ao insinuar uma contra-política governada por um rei legalmente
morto e divinamente ressuscitado, Paulo abriu a possibilidade de maneira única que os excessos
291
instáveis lançados por processos biopolíticos, antigos ou modernos”, podessem, no entanto,
“gradualmente assumir um pouco do caráter de um excesso vivo de equidade tanto
hierarquicamente quanto unilateralmente encorajado e democrática e reciprocamente alternados”
(MILBANK, 2008, p. 159-160).
Resta reconhecer que essa proposta apresentada por Paulo é muito mais drástica e
comprometedora que a maioria dos cidadãos do mundo contemporâneos pareça estar disposto a
assumir. Inclusive, talvez tenha sido, justamente, este fator que faz com que os escritos de Paulo
pareçam tão proveitosos para a filosofia política contemporânea, a saber, “que só podemos fundar
uma comunidade justa com base em uma invocação totalmente contrafactual de uma realidade em
que não se morre mais” (MILBANK, 2008, p. 142). É por isso que argumentamos nessa seção que a
desustancialização do messianismo paulino operada por autores como Badiou e Agamben, apesar
de justificadas e coerentes com seus próprios projetos filosóficos, abre mão daquilo que faz potente
as leituras de Paulo na contemporaneidade – aquela experiência religiosa real que as epístolas
paulinas dão testemunho. Nesse sentido, mesmo que posturas políticas semelhantes a de Paulo
tenham sido antecipadas pelos helênicos e os pitagóricos, é altamente inaudita a radicalidade na
201
maneira do apóstolo de sustentar categorias salvíficas, cósmicas e políticas. Ao lermos Paulo
hoje, nos colocamos diante de noções antigas que já tinham uma história longa na antiguidade

201
Através de algumas referências que já articulamos anteriormente no primeiro segundo capítulo da presente tese,
Milbank explica o que está em jogo nessa política a partir da ideia de ressurreição: “para mediar esta questão, é preciso
ficar mais ciente da simples peculiaridade do que Paulo propõe. Os gregos já haviam falado sobre o governo de um rei
semelhante a Deus e, antes, com mais circunspecção, dito que tal indivíduo em potencial deveria, em vez disso, ser
condenado ao ostracismo da cidade. Mas Paulo anuncia nada menos do que o governo eterno começando aqui e agora
na terra de um homem morto, executado, banido das comunidades judaica, helenística e romana! É inevitavelmente
lembrado aqui do tema dos ‘dois corpos do rei’ que Ernst Kantorowicz encontrou na Idade Média, mas que Agamben
aponta que tiveram exemplificações muito anteriores no período romano. Na abordagem de Agamben, se, em certas
circunstâncias, só o poder soberano vivo mantém a lei no modo de uma auctoritas pessoal (em oposição a um imperium
mais impessoal), então é por esta razão que a morte do soberano constitui um momento de crise – seja de anarquia
potencial, ou então de possível influência aumentada e agora mágica do imperador apoteosizado – que é
ideologicamente tratada pela ficção de um corpo monárquico imortal, muitas vezes representado por uma efígie
artificial, que duplica o corpo morto do falecido soberano Esta efígie (o colosso) não representa (como Kantorowicz
supôs) em termos de metáfora concreta a abstração imorredoura da autoridade legal, mas antes representa o excesso de
soberania sobre tal autoridade. (Relacionado a isso, argumenta Agamben, está a ideia de que matar um rei sagrado não é
exatamente homicídio, porque é mais do que homicídio.) A morte é vista como realmente liberando e em certo sentido
aumentando esse excesso, por seu caráter psíquico ou pneumático é precisamente um poder sobre toda a vida
meramente ‘zoológica’, um poder de devolver toda essa vida a uma condição ‘nua’ de morte que não carrega
conotações religiosas regulares (sacrifícios) ou legais (assassinos). A morte do próprio soberano é visto, Agamben
argumenta, como uma espécie de grau zero final paradoxal do exercício de seu próprio poder. [...] No caso de Cristo,
entretanto, Paulo evoca não um segundo corpo cujo poder deve ser neutralizado ou recapturado, mas o verdadeiro corpo
morto de um homem divino que agora é de alguma forma trazido de volta à vida. Isso concorda com o fato de que Paulo
vê em Cristo não apenas um governante semelhante a Deus, mas o governo encarnado do próprio Deus, o único que
superou o domínio da morte e o governo reativo em face da morte. Segue-se que apenas Cristo é adequado para
governar a cosmopolidade humana e também que Cristo, uma vez encarnado, tendo agora alcançado a fusão divino-
humano, não pode realmente, embora ‘ascendido’, abandonar o cosmos físico. Portanto, a ‘ficção’ (seja verdade ou não)
de sua ressurreição deve ser mantida para sempre (MILBANK, 2008, p. 152-153).

292
202
clássica de que a vida mais elevada só poderia ser descoberta dentro da ordem cívica. Isso não
foi inventado nem abandonado por Paulo, entretando, a radicalidade de seu projeto está em afirmar
inversamente à essa noção clássica de que “a prática de desapego da carne destinada à morte e a
entrada em uma esfera pneumática divinizadora tornou-se novamente a própria condição para a
cidadania” (MILBANK, 2008, p. 142-143). A confiança em um absurdo contrafactual seria um
preço alto demais a ser pago pela filosofia política contemporânea? Inevitavelmente, nesse caso, é
preciso concordar com Milbank quando ele diz que: “a virtude mais nobre e mais elevada deve ser
considerada reativa: a contenção temporária do desastre final” (MILBANK, 2008, p. 160). Isso
significa dizer que, se a própria natureza da constante luta com os dispositivos do biopoder por
escassos recursos de manutenção da vida biológica em uma corrida diabólica para ver quem pode
morrer por último é, de fato, incontornável, então precisamos suspeitar radicalmente que a lei da
exceção agambeniana e os paradigmas dos campos de concentração são as perfeitas expressões de
uma ontologia política altamente sinistra que precisa ser imediatamente desarticulada.
Esse argumento não é sinônimo da afirmação ingênua de que qualquer resposta que se
apresente como reação ao que queremos enfrentar justifica-se por si só. Na verdade, para além do
simples fato de que a urgência na contenção imediata do desastre final, o gesto paulino tem ao seu
favor o fato de que pode encontrar ressonância em olhares humanos para o mundo que não
enxerguem apenas arranjos éticos e sociais fundamentalmente contaminados pelo mal. Olhares estes
que incluem em sua forma de vida um reconhecimento espontâneo da realidade como sendo, na
verdade, um bom presente – ou, como diria Paulo em sua linguagem teológica, um dom da graça.
Nesse sentido, podemos concordar com Milbank quando ele diz que:

Parece que, ao contrário, qualquer projeto político promissor requer a sensação de


que habitamos um cosmos no qual a realização do bem e da justiça pode ser pelo
menos uma possibilidade. Mas isso significa, em primeiro lugar, que devemos
considerar o bem mais do que uma ilusão humana, mas sim, em certo sentido, uma
realidade última, subsistindo ontologicamente antes do mal, tanto humano quanto
natural, incluindo as negatividades naturais da morte e do sofrimento. Significa
também que devemos acreditar, além do gnosticismo, que o bem pode, em alguma
medida, ser incorporado ao tempo humano, e isso significa que a vida humana deve

202
Uma vez mais o comentário especializado de Mika Ojakangas é importante para entendermos onde e como MIlbank
se aproxima e se afasta de Agamben: “Em outras palavras, o Paulo de Milbank é o Paulo da Igreja Católica, o Paulo que
adere à doutrina grega e especialmente estóica da lei natural – o Paulo que ‘defendeu a justiça natural’ (Milbank, 2008:
139). É essa lei e justiça, de acordo com Milbank, que nos salva do domínio da biopolítica e, portanto, da política
niilista, utilitarista, instrumentalista e liberal do capitalismo contemporâneo. Isso também explica a maneira como
Milbank critica a interpretação de Paulo por Giorgio Agamben. Durante a Idade Média, escreve Milbank, foi feito apelo
a uma lei natural enraizada em uma lei divina eterna, mas Agamben pensa (infelizmente) ‘que tal apelo é hoje
impossível’ (Milbank, 2008: 135). De acordo com Milbank, Agamben considera, à maneira marxista, que algum ganho
dialético emerge da biopolítica, mas na visão de Milbank esse ganho não é perceptível. Podemos resistir à biopolítica
apenas por meio da lei natural e da justiça natural. Para Milbank, o conteúdo desta lei é a equidade, ou seja, a já
mencionada doutrina da reciprocidade simétrica da troca de presentes. No que se segue, porém, argumentarei que a
crítica de Paulo à lei não diz respeito apenas à Lei mosaica (para não mencionar a lei romana), mas visa, mesmo em
primeiro lugar, a lei natural e a justiça natural” (OJAKANGAS, 2009, p. 52).
293
de alguma forma conter sua centelha biológica (que deve logicamente ser anterior à
morte, que é pura negação) também uma centelha pneumática que a liga à bondade e
à justiça imorredoura, e que lhe permite no final erradicar inteiramente aquelas
paixões vis “da carne” (de acordo com Paulo) que estão preocupadas apenas com a
sobrevivência, o eu satisfação, posse erótica e triunfo militar sobre outros
(MILBANK, 2008, p. 160).

Em um movimento que poderia ser caracterizado como anti-heideggeriano, Milbank


argumenta em favor de um necessário olhar para o ôntico enquanto participante da plenitude
ontológica que intuimos na habitação do cosmo. Tão somente em uma configuração dessa natureza,
a realização do bem e da justiça podem ser, pelo menos, uma possibilidade. Para isso, o todo e
qualquer ato de significação do ser vivo linguístico deve ser visto como participante de uma espécie
de reserva infinita de significado e também de significante. Não obstante possa parecer mais
racional ou, até mesmo, mais adequado à última moda intelectual, pressumir que a configuração do
campo de concentração é toda abrangente, queremos terminar sustentando que assumir com Paulo
que existe uma esperança a partir de uma forma de vida que deixou de ocupar-se com a mera
sobrevivência biológica para afigurar uma vida eterna no messias pode ser a sugestão de uma pista
mais primária da natureza do ser. Nesse caso, então, “poderíamos sugerir que o investimento, pela
esperança, apenas no contrafactual da ressurreição nos permite imaginar por meio da esperança
(embora essa imaginação ainda esteja por fazer) uma política que não se apóia inevitavelmente
regimes de abjeção” (MILBANK, 2008, p. 2008). A insistência de uma prioridade ontológica do
bem e da realidade como dom da graça implica, necessariamente, em um imperativo de viver, ética
e políticamente, a partir de exercícios de si que não esta limitado às capturas dos dispositivos legais
e biopolíticos de mera sobrevivência a qualquer custo. Portanto, uma crítica ao messianismo sem
messias de Agamben torna-se quase um imperativo ético para não nos enclausurarmos em
descrições e paradigmas filosóficos muito sinistros. Equilibrar nosso diálogo com a filosofia de
Agamben com uma antítese no seu uso profano do messianismo paulino nos permite fazer circular
outra vez fragmentos e estilhaços da eternidade e da ressurreição na realidade do tempo cronológico
– fornecendo assim, as condições de possibilidade para uma forma de vida que consiga participar de
um projeto de justiça e florescimento humano em cenários biopolíticos terrificantes.
Por fim, para darmos lugar ao contraditório, seria proveitoso citar um último trecho da
entrevista de Agamben à revista Vacarme em que o filósofo menciona e questiona as leituras
pessimistas que são feitas de sua filosofia: “com frequência me reprovam, ou ao menos me
atribuem, esse pessimismo do qual, talvez, não me dou conta. Mas eu não vejo dessa forma”, na
verdade, indo em direção contrária às críticas, Agamben diz que: “há uma frase de Marx, citada
também por Debord, de que gosto muito: ‘A situação desesperada da sociedade na qual vivo me
enche de esperança.’ Partilho dessa visão: a esperança é dada para os desesperados. Não me vejo

294
assim tão pessimista” (AGAMBEN, 2016b, p. 28). Nesse sentido, podemos, uma vez mais, reiterar
uma leitura de Agamben que, em algum sentido, vai contra o próprio filósofo para, posteriormente,
retornar com elementos mais promissores para a sua própria leitura. Esse gesto de um diálogo e
uma antítese com os usos agambenianos do messianismo de Paulo colabora para aquela contenção
temporária do desastre final que Milbank sugere. Talvez nesse sentido específico, podemos
concordar com a declaração final do filósofo italiano: “permita-me, assim, refutar sua acusação:
tenho certeza de que vocês são muito mais pessimistas do que eu…” (AGAMBEN, 2016b, p. 30).

295
CONCLUSÃO – O messias está às portas?

A proximidade do Reino não é apenas de ordem temporal


– como seria de se esperar de um evento escatológico, que
coincide com o fim dos tempos –, mas também e
sobretudo de ordem espacial: ele está, literalmente, “ao
alcance da mão” [Mt 3.2; 10.7; Mc 1.15; Lc 10.9]. Isso
significa que o Reino, que é por excelência a última coisa,
está essencialmente “próximo” das coisas penúltimas, às
quais se assemelha nas parábolas. A semelhança do Reino
também é uma proximidade: o Último é, ao mesmo
tempo, próximo e semelhante.

Giorgio Agamben
Il fuoco e il racconto

Em uma das seções da obra La comunità che viene, Agamben reproduz uma pequena
parábola a respeito do reino messiânico que circulava entre Walter Benjamin, Gersom Scholem e
Ernst Bloch. Segundo a reconstrução do filósofo italiano, a parábola tem as seguintes formas:

“Um rabino, um verdadeiro cabalista, disse uma vez: para instaurar o reino da paz, não é
necessário destruir tudo e dar início a um mundo completamente novo; basta deslocar só um
pouquinho essa taça ou esse arbusto ou aquela pedra, e do mesmo modo todas as coisas. Mas
esse pouquinho é tão difícil de realizar e sua medida tão difícil de encontrar que, no que diz
respeito ao mundo, os homens não o conseguem e é necessário que chegue o messias”. Na
redação de Benjamin, a parábola soa assim: “Entre os chassidim se conta uma estória sobre o
mundo que vem, que diz: lá tudo será exatamente como é aqui. Como agora é o nosso quarto,
assim será no mundo que vem; onde agora dorme o nosso filho, lá dormirá também no outro
mundo. E aquilo que vestimos neste mundo, o vestiremos também lá. Tudo será como é
agora, só um pouco diferente” (AGAMBEN, 2013c, p. 51-52).

A parábola selecionada por Agamben consegue carregar consigo de forma exemplar a


estrutura central da transformação que o messianismo opera no interior do estado das coisas no
presente. A importância política do tema do tempo messiânico do fim está justamente em sua
capacidade de nos fornecer não um outro tempo diferente do nosso, mas uma transformação interna
radical da sucessão cronológica dos relógios. Procuramos deixar claro que esse tempo não pode ser
confundido com o tempo com o anúncio apocalíptico uma vez que este refere-se ao último dia e ao

296
inalterável momento de conclusão da história. Em uma direção oposta, mas complementar, o tempo
messiânico é o tempo que ainda resta para o tempo chegar ao fim, ou seja, trata-se daquela
concentração kairológica relativas aos fenômenos penúltimos que esperam, antecipam e provocam
as coisas últimas. Nesse sentido, os constantes apelos da mídia de massa para cenários apocalípticos
– sejam eles causados pelos arrefecimentos econômicos e políticos, sejam eles causados pelas
tragédias sanitárias mais recentes – não conseguem dar conta do que realmente significa viver no
tempo do fim. Evocar o tempo apocalíptico em nada contribui para a compreensão e reação às
circunstâncias em que estamos inseridos. Antes, apenas demonstra que falta ao horizonte político e
econômico contemporâneo uma imagem histórica alternativa aos fechamentos apocalípticos da
sociedade hodierna.
A presente tese ocupou-se com a urgência na recuperação do tema messiânico do tempo do
fim justamente ao ocaso em que se encontra a política nas democracias ocidentais que foi
transformada em mera gestão pública de governamentalidade infinita. Nesse sentido, nosso
primeiro esforço argumentativo do presente trabalho foi em direção de procurar um maior
detalhamento dos desafios éticos e políticos aos quais esse tema do tempo do fim se enderença. Em
harmonia com que acabamos de mencionar, no primeiro capítulo, nos debruçamos com algum
detalhe sobre certos fatores que julgamos serem responsáveis fundamentais pela aquela
transformação da política ocidental em mera gestão da vida nua da população – enquanto um efeito
distintivo da perda de horizontes messiânicos em tempos de afirmações apocalípticas catastróficas.
A partir da apropriação crítica dos textos e argumentações de Agamben, especialmente em seus
diálogos com a obra de Michel Foucault, Carl Schmitt e a teologia cristã, podemos concluir que um
longo e documentado percurso a respeito do encerramento das democracias ocidentais em uma
governamentalidade moderna que se pretende naturalizada de maneira infinita. As ressonâncias
entre Foucault e Agamben mostraram que tal pretensão se afirmou através de uma série de
dispositivos militares, estatísticos e governamentais para retirar qualquer caráter acontecimental do
dia a dia da política ocidental. A gestão pública infinita da população seria caracterizada por uma
racionalidade de estado que procurava prever e impedir qualquer tipo de evento de caráter
insurgente e revolucionário. Isso fez com que se mostrasse necessário investir em diversos recursos
aclamatórios e de louvor político para esconder o vazio em torno do qual a máquina política girava
e que a permitia lutar constantemente para se manter soberana sobre a população mesmo sem
nenhuma legitimidade política. Nossa primeira conclusão alcançada foi em torno da necessidade
que o poder soberano tem da glória e do esplendor para justificar-se indefinidamente de maneira
natural e legitimada.

297
Essa primeira conclusão nos forneceu segurança para estabelecer uma segunda relação,
ainda no primeiro capítulo, com as investigações agambenianas a respeito do julgamento de Jesus
por Pôncio Pilatos. Conforme procuramos mostrar, esta se apresentava para nós como uma parábola
privilegiada nosso tempo – enquanto um período marcado pelas utilizações recorrentes dos
dispositivos jurídico-políticos das crises sem fim como meio de gerir a vida nua das populações.
Para além das próprias sutilezas que a leitura do relato evangélico sobre o julgamento de Jesus traz
consigo, a compreensão da estrutura de um processo jurídico que não chega ao fim tem condições
de situar Agamben no interior de um longo e antigo debate teológico-jurídico sobre as tentativas de
justificar teologicamente os governos imperiais ou, por outro lado, interromper suas estratégias de
crises infinitas. A partir da leitura de posições teológicas e políticas desde Ticônio até Schmitt,
passando por Agostinho, Jerônimo, Gregório Nazianso e Dante, pudemos concluir junto a Agamben
que a crise infindável como um instrumento de poder nos colocava diante de uma dupla posição
sobre os usos políticos de temas messiânicos fundamentais. Se por um lado, existiam genuínas
tentativas de dar lugar a imagens políticas alternativas e antagônicas aos ditames imperais, estas
precisariam enfrentar os constantes esforços de justificativas teológicas do poder temporal infinito.
Essa conclusão nos mostrou que, seja no século IV d. C. ou no século XX durante as aclamações
públicas aos regimes facistas, a temática da glorificação de poderes imperialistas era uma força
histórica que recorrentemente se mostrava em diferentes momentos e que ainda tinha condições de
explicar por que a crise infindável é utilizada como instrumento do poder para escamotear o vazio
da máquina governamental.
Diante de tudo isso, uma das primeiras conclusões alcançadas pela presente tese é que esses
são os elementos mínimos que caracterizam o fechamento de nossas democracias contemporâneas
em determinismos históricos governados por todo tipo de esforço antiacontecimental que não
permite que nada escape ou se mostre uma barreira à infinita reprodução fatalista da
governamentalidade biopolítica. É decorrente desse fechamento histórico antimessiânico aqueles
cenários apocalípticos que mencionamos no início dessa conclusão, constantemente utilizados pela
mídia de massa para fortalecer e consolidar no imaginário popular uma consciência de crise
constante. Meramente repetir que que a política no Ocidente está em crise, para além de não
contribuir substancialmente em nada na adição de novos elementos compreensivos de nossa
situação, também trabalha para reafirmar um dos dispositivos jurídico-políticos mais eficazes na
produção do brilho fulguroso que esconde o vazio da máquina política hodierna. Junto à primeira
conclusão da primeira tese, ficou explícito também que falta à compreensão e reação às
circunstâncias em que estamos inseridos uma imagem histórica alternativa aos fechamentos
apocalípticos. Talvez nada tenha uma urgência mais tangível à reflexão e prática política

298
contemporânea do que perguntar-se sobre as condições de possibilidade de uma abertura aos
encerramentos jurídicos e econômicos que está submetida a vida nua da população.
Quanto a isso, a pequena parábola à respeito do reino messiânico reconstruída por Agamben
em sua obra La comunità che viene, pode sinalizar, uma vez mais, a direção a qual nossas reflexões
na presente tese assumiram. Nela, aprendemos que a instauração do reinado de paz do messias não é
da ordem da destruição catastrófica do estado de coisas dado no mundo. Antes, dar início a um
mundo completamente novo, conforme aquele que está por vir plenamente junto ao messias, refere-
se a pequenas ajustes finos feitos em uma série de corpos, palavras e coisas. A transição entre o
presente eón e o novo tempo messiânico não se refere à mudança catastrófica e revolucionária, mas
pontuais modificações que só farão do mundo que vem um pouco diferente do que experimentamos
agora. Em lugar de instaurar um novo mundo radicalmente em oposição à toda a lógica do que
estamos acostumados, a operação de transformação messiânica modifica o uso que fazemos do
mundo, nos fornecendo um novo modo de lidar com tudo aquilo que já está a nossa disposição, mas
ainda não foi plenamente transformado. Conforme o próprio Agamben chama nossa atenção: “o
pequeno deslocamento não diz respeito ao estado das coisas, mas ao seu sentido e aos seus limites.
Ele não tem lugar nas coisas, mas na periferia delas, no espaço ao lado entre cada coisa e si mesma”
(AGAMBEN, 2013c, p. 52). Nisso fica mais claro que o sentido dos eventos últimos determina e
orienta a ação dos acontecimentos penúltimos. Existe uma relação necessária entre a expectativa e,
principalmente, a antecipação das dinâmicas típicas do tempo do fim, com as posturas que podemos
assumir agora.
Podemos concluir, portanto, que ocupar-se filosoficamente com aquilo que é característico
do tempo messiânico não é, de forma alguma, sinônimo de um quietismo político travestido de
erudição teológica. Em vez disso, trata-se a uma sutil maneira com que Agamben encontrou de, já
no presente, desarticular dispositivos e racionalidades governamentais infinitas através de
transformações internas protagonizadas pelos paradigmas messiânicos. É com essa transformação
interna no através de novas imagems históricas oriundas da tradição teológica messiânica que
Agamben ocupa-se há tantos anos. Apesar da ser possível rastrear uma genealogia teológico-
política até os dias de Agostinho e Ticônio, em que a Igreja fechou-se aos interesses sobre o tempo
do fim, o filósofo italiano acredita que alguns acontecimentos pontuais — como a renúncia do papa
Bento XVI, por exemplo — nos permitem perceber que forças históricas antigas continuam a operar
e determinar o sentido de acontecimentos políticos recentes.
Essa decorrência das primeiras reconstruções dos argumentos de Agamben nos levaram,
necessariamente, a continuar a exploração da tese sobre a importância do tempo messiânico do fim
para um nível seguinte. Tendo estabelecido que a marca mais fundamental da governamentalidade

299
biopolítica da vida nua da população é o seu fechamento à qualquer possibilidade de acontecimento
trasnformador de suas estruturas, foi necessário perguntar, no segundo capítulo do presente
trabalho, como podemos renovar o quadro categorial da filosofia política e ética através desses
paradigmas messiânicos. Se o tema do tempo do fim parece mostrar-se tão urgente para as
democracias ocidentais, como reativar sua importância política? Para responder essas perguntas, o
gesto fundamental de Agamben de restabelecer os textos paulinos como exemplos messiânicos por
excelência da tradição ocidental mostrou toda a sua força. Foi exatamente isso que tivemos
condições de entender que como teologia de Paulo e carência de imagens alternativas à
governamentalidade ininterrupta cruzavam-se e se mantinham interdependentes. Novamente, o
núcleo da questão refere-se àquela modificação interna operada no tempo pelo messiânico: “o que
interessa ao Apóstolo não é o último dia, não é o fim dos tempos, mas o tempo do fim, a
transformação interna no tempo, que o evento messiânico uma vez por todas produziu, e a
consequente mudança na vida dos fiéis” (AGAMBEN, 2013, p. 22).
O objetivo de Agamben com a leitura e desenvolvimento das ideias de Paulo – segundo suas
palavras, “restituir as Cartas de Paulo à sua condição de texto messiânico fundamental do Ocidente”
(AGAMBEN, 2016, p. 13) – pode parecer uma tarefa banal, tendo em vista que poucos duvidariam
que as epístolas em questão são eminentemente messiânicas. Entretanto, as conclusões que
chegamos em nossas investigações no segundo capítulo da presente tese é que essa investida
tratava-se menos de um projeto de mero interesse teológico, e muito mais de preocupações
políticas. À luz do apagamento que o Ocidente experimentou de perspectivas histórico-
escatológicas fortes o suficiente para resistir à hipertrofia da governamentalidade infinita da
população que descrevemos no capítulo anterior, o projeto de encontrar em Paulo uma caixa de
ferramentas conceituais messiânicas assume primeira importância política. O que ficou claro em
toda a nossa construção argumentativa é que Agamben reconhece que o crescimento totalitário de
regimes governamentais que procuravam gerir infinitamente a mera vida dos habitantes das
democracias modernas coincide com: “a história das Igrejas cristãs, que apagaram literalmente o
messiânismo — e o próprio termo ‘messias’ — do texto paulino” (AGAMBEN, 2016, p. 13).
Agamben não acredita que nisso encontra-se uma estratégia intencional de neutralização do
messianismo por parte das comunidades cristãs. Antes, refere-se às diversas tendências
antimessiânicas que engoliram a própria comunidade do messias que, a partir das novas dinâmicas
das sociedades ocidentais antiacontecimentais, passou a também ter que se apresentar como uma
instituição histórica estável indefinidamente. Tal objetivo agambeniano mostrou-se muito
importante para o propósito geral da presente tese de questionar-se sobre a importância do tema do
tempo messiânico do fim. As leituras de Paulo mostraram realmente que são importantes não só

300
para a filosofia política em geral, como é o caso de Alain Badiou, mas especificamente a própria
chave hermenêutica para a filosofia de Agamben. Temos segurança de concluir que, muito diferente
do consenso filosófico que se formou contemporaneamente em torno de Paulo de Tarso, Agamben
explora suas contribuições para muito além da mera afirmação do universalismo político. Uma vez
mais, todos os diferentes elementos que lançamos mão ao longo do segundo capítulo giravam em
torno de um ponto fundamental, a saber, uma robusta noção de temporalidade messiânica que está
em oposição a reprodução infinita da governamentalidade biopolítica atual. É possível afirmar com
segurança que é tão somente a partir desse paradigma temporal messiânico que se desdobram
alguns dos pontos mais importantes para as conquistas filosóficas recentes de Agamben – tais
como, o tempo que resta, a inoperosidade da lei, a revogação das vocações temporais e a postura
escatológica da comunidade messiânica como o poder que freia o trem da história governamental no
Ocidente. A exploração desses conceitos, oriundos das epístolas de Paulo, mostrou-se fundamental
responder a pergunta sobre por que o apóstolo Paulo é importante para a política justamente quando
está encerrou-se em mera gestão pública.
Estas conclusões nos permitiram caminhar em direção à última parte da presente pesquisa
em que vislumbravamos submeter à crítica filosófica os próprios procedimentos e paradigmas que
Agamben se valeu e que também nós usamos por todos os outros capítulos. Dedicamos o terceiro
capítulo para perguntar sobre a viabilidade de fazer usos profanos de materiais messiânicos. No
interior do propósito de dedicar um capítulo à antitese dos gestos filosóficos de Agamben e seu
diálogo com a teologia cristã, tínhamos a responsabilidade de pensar, em pelo menos dois fatores, a
quais seja: os paradigmas e o messianismo. A relação que Agamben estabelece entre arqueologia,
assinaturas e paradigmas, especialmente no movimento que estes implicam um no outro, nos
permitiu perceber pressuposto ao método sua compreensão da história – mantendo conectados os
resutados do último capítulo com aqueles que foram alcançados previamente nos dois primeiros. A
temporalidade história aparece nas argumentações de Agamben como uma composição de
fragmentos e situações únicas que interrompem e fazem surgir uma excedência no tempo
(cronológico) visto tradicionalmente de maneira indefinida. Essa conclusão se conectou
harmônicamente com o tema central da presente pesquisa, a respeito da importância do tema do
tempo messiânico para a política. À luz das reflexões metodológicas, tornou-se um pouco mais
claro os motivos que o levaram a encontrar no tempo messiânico uma imagem alternativa ao fluxo
contínuo do tempo da governamentalidade infinita da população. Justamente porque o método
paradigmático implica aquele movimento que vai da singularidade à singularidade e, com isso,
transforma cada caso individual em uma exemplaridade, em uma regra geral, não sobra nenhum
espaço para enxergar o processo histórico como uma trajetória meralmente linear e direcionada por

301
uma teleologia muito rígida. Isso nos levou a concluir que a arché deixa de estar limitada a uma
origem situada no passado cronológico e passa a afigurar-se sempre como contemporânea do devir
histórico. Ela não cessa de operar no presente de cada instante. Sendo assim, tivemos segurança de
reafirmar que, no interior da filosofia de Agamben, o tempo que resta carrega consigo aquela
potencialidade messiânica de ser um tempo sempre atual, uma porta através da qual o messias pode
sempre entrar – conforme já havia nos ensinado Walter Benjamin. Vale ressaltar, ainda, que é
exatamente essa metodologia que também nos permitiu argumentar a favor de uma leitura de Paulo
enquanto um contemporâneo nosso. Seus paradigmas teológicos não estão limitados a uma origem
estagnada em um passado bíblico perdido, mas instituem-se como forças temporais com potência
transformadora do nosso presente.
Não obstante, essas conclusões nos deram capacidade de reconhecer questões importantes
que permaneciam em aberto na abordagem metodológica de Agamben e, por conseguinte, em seus
resultados argumentativos. O mais significativo ponto que alcançamos em nossa investigação foi o
de perceber que na determinação do processo de deslocamentos entre o significado e o significante
de uma assinatura, não é possível ser bem-sucedido no estabelecimento de uma explicação sobre o
sentido que um termo moderno assumiu em relação à sua origem mais longínqua sem sermos
minimamente exaustivos em qualquer leitura diacrônica. Ou seja, em cada recuperação
arqueológico-paradigmática de Agamben, uma série não despresível de determinações significativas
é deixada em aberto, mesmo que o filósofo seja contundente em suas escolhas e relações
estabelecidas. Isso acontece porque o reconhecimento de qualquer explicação do sentido decorrente
de sua última e mais contemporânea significação vai depender inteiramente de um conjunto de
valores estritamente singular, situado em um contexto altamente pontual e que nenhuma genealogia
diacrônica é capaz de captar totalmente. Foi aqui, portanto, que encontramos o centro do
questionamento da abordagem teórica de Agamben e das novas relações temporais que dela surgem.
Por não ser suficientemente sensível à essa diversidade estrutural de significados que são
inteiramente dependentes de contextos de valores que lhes são específicos, que a metodologia
paradigmática de Agamben pode acabar degenerando-se em mero teleologismo ingênuo ou,
conforme tentamos mostrar, em uma determinação arbitrária do autor sobre o significado de um
deslocamento específico das assinaturas. Foi nesse ponto que a metodologia paradigmática foi
associada à lógica da decisão do soberano schimittiana. Isso faz com que, do ponto de vista do
método, Agamben não possa, em última instância, justificar aos seus leitores as determinações que
estabelece no processo de deslocamentos entre o significado e o significante de uma assinatura. Da
mesma forma que ficou claro em nossas investigações que nenhuma genealogia diacrônica é capaz
de captar o contexto de valores altamente particulares que determinam os deslocamentos de uma

302
assinatura ou paradigma, também pudemos concluir que Agamben não tem nenhuma regra ou
padrão para justificar suas afirmações sobre paradigmas extremos, como os campos de
concentração ou os dispositivos de biosegurança na pandemia. Tudo isso faz com que muitos dos
seus interpretes e interlocutores concluam que o filósofo italiano chegue às raias dos puros
teleologismo arbitrários e, por isso, ingênuos.
Além disso, a segunda conclusão que alcançamos em nossas diálogos críticos com a
filosofia de Agamben diz respeito à natureza do seus usos de paradigmas teológicos na política.
Acima de tudo, mostramos que o filósofo italiano deixa explícito que seu interesse nos temas e
conceitos teológicos não é religioso, mas profano. Apesar de ficar claro no último volume da
odisseia filosófica em torno do homo sacer que a busca por uma doutrina do uso livre do mundo
encontra suas origens no gesto paulino do primeiro século, esse uso livre pode ser feito, inclusive
contra Paulo – no sentido de um uso livre dos conteúdos teológicos. O gesto de repetir posturas e
argumentações de Paulo em Agamben pode assumir tons muito entusiasmados para quem não
entende esse tipo de uso profano que o filósofo italiano descreve acima. Entrentanto, algo que ficou
evidente foi que sempre se trata de algo empreendido a partir de uma postura profana e nunca
religiosa. Para muitos, seria nessa possibilidade de ler Paulo contra ele mesmo que estaria a força do
trabalho de Agamben. Nessa altura específica de nosso trabalho, no entanto, diferentemente de
outros momentos de argumentação na presente tese, optamos proceder segundo as margens
antitéticas que a metodologia filosófica nos permite. Uma vez que nossa argumentação procurou
mostrar que essa profanação de paradigmas teológicos, além de não ser uma via de mão dupla como
pretente Agamben, era também um fator que inviabilizaria o próprio projeto agambeniano. Sendo
assim, nos sentimos seguros de operar segundo a própria meotodologia do filósofo na reapropriação
crítica das fontes e da tradição enquanto o dispositivo teórico que permite apreender o sentido do
nosso próprio tempo, elaborar o diagnóstico do presente que ultrapassa e continua onde o italiano
havia parado. Ou seja, nesse momento específico da tese, lemos Agamben contra ele mesmo. Vale
dizer também que, apesar da antítese em termos de conteúdo e opções interpretativas últimas, nossa
forma de operar realizou-se segundo uma lógica que o próprio filósofo italiano estava consciente ser
característica da metodologia filosófica e que, de acordo com seu relato, ele fazia uso recorrente, a
qual seja, de que o elemento genuinamente filosófico em cada obra é, justamente, a capacidade dela
ser desenvolvida. Foi a partir dessa capacidade de desenvolver e continuar os elementos
constitutivos da obra de Agamben em uma direção que nem ele mesmo optou por trilhar, que
corremos o risco de dar lugar a argumentos e ideias que não lhe pertenciam, mas se mostram muito
importantes para nós, inclusive enquanto seus intépretes.

303
Por fim, gostaríamos de terminar dizendo que cada uma dessas conclusões que alcançamos
têm implicações muito diretas para aquela realidade a respeito da proximidade do reinado
messiânico com que começamos essa conclusão. Na verdade, para ser mais preciso, é a pequena
parábola de Benjamin e Scholem que tem condições de sumarizar e sinalizar a direção para onde
essa pesquisa aponta. A característica do tempo messiânico de irromper a continuidade história
infinita e dar lugar a um tempo-de-agora – o Jetztseit de Benjamin –, faz com que nossa
investigação não possa desdobrar-se em uma teleologia determinista de uma espera por um futuro
que sempre se mostra distante de nós. Ao contrário, conforme a redação benjaminiana da parábola,
o reino messiânico, isto é, o mundo que vem, já está aqui presente, mas de uma forma um pouco
diferente. O que vem, de algum modo, já está aqui através não só do que pode ser esperado, mas
acima de tudo pelo que pode ser antecipado. Nesse sentido, as conclusões desse trabalho não nos
encaminham para as reversões catastróficas das ordens biopolíticas estabelecidas através dos
dispositivos de biossegurança e captura da vida nua dos sujeitos políticos. Em vez disso, ela nos
mostra a importância política fundamental dos pequenos deslocamentos, dos novos usos livres de
antigas vocações, das releituras atentas dos mesmos textos anteriormente trabalhados, etc. Enfim, o
diálogo e a antítese que procuramos estabelecer com os usos que Agamben faz do messianismo
paulino parecem nos conduzir de volta ao mesmo, mas em um uso um pouco diferente.
Ética e politicamente, essa direção messiânica que nossa tese assumiu tem algumas
implicações importantes. Em primeiro lugar, é necessário abrir mão de qualquer tipo de proposta
com soluções isoladas e superficiais para as aporias que confrontam a nossa sociedade atualmente.
Ficou claro que a natureza das crises infinitas que as democracias ocidentais lidam não podem ser
solucionadas com ajustes pontuais e reformas específicas em algumas debilidades da maquinaria
política. O trabalho arqueológico-paradigmático com que nos envolvemos aqui nos mostrou que
cada uma das questões econômicas, tecnológicas e jurídicas de nossas sociedades além de estarem
intimamente entrelaçadas, são meros epifenômenos de um vazio político bem mais profundo e
fundamental. Sem uma consciência muito clara da complexidade e natureza específica do tipo de
transformação que está implicada na gestão pública contemporânea, não seremos capazes de
compreender os diversos mecanismos de captura da vida nua da população nos dispositivos do
poder. O arcano mais central dos problemas que enfrentamos politicamente pertence a uma ordem
muito distinta daquela concernente ao quadro de referências e categorias a partir das quais opera
muito do que é produzido em ciência política, direito e economia contemporaneamente. Lidar com
essas questões de frente significa, dentre outras coisas, alterar nossa caixa de ferramentas
conceituais incluindo, por exemplo, o melhor que a tradição messiânica tem a nos oferecer.

304
Além disso, em segundo lugar, o esforço de analisar, criticar e propor novas direções para os
encerramentos e dominações impostas pela hipertrofia da legalidade e da economia não significa,
necessariamente, apresentar um modelo alternativo de sociedade igualmente fechado em outras
concepções específicas de governo, economia e direito. Apesar de ser uma expectativa bastante
comum ao final de uma longa investigação crítica sobre a sociedade hodierna, apresentar um
programa fechado de ações concretas poderia ser, na melhor das hipóteses, contraditório – para não
dizer que poderia se tratar de uma anuência justamente ao fechamento típico da sociedade
biopolítica que foi descrita aqui. Não obstante a ação política sempre seja da ordem concreta e
histórica, devemos eliminar qualquer expectativa ou impressão equivocada de que as novas direções
a serem seguidas para dar lugar aos novos usos livres do mundo se tratam apenas de uma questão de
planejamento e execução de um determinado plano para uma sociedade menos ilegítima, mais justa
e melhor. Pode escapar da percepção de alguns que essa mentalidade de execução de um novo
plano tem condições de nos levar ao mesmo encerramento que estamos procurando ultrapassar,
exigindo de nós a mesma passividade e total anuência às novas reivindicações governamentais. Em
oposição a qualquer teoleologia determinista e fechada em si mesma – mesmo que seja nos usos
problemáticos de paradigmas transpostos em longas linearidades por Agamben – as direções que os
novos usos livres do mundo assumem não são da ordem de execução de uma plataforma
governamental específica, mas do estabelecimento de novos processos. Para serem genuinamente
novos e livres, os usos dos corpos, das palavras e das coisas não podem seguir os passos de um
programa previsível e anteriormente determinado. Mais do que nunca, é necessário incentivar a
espontaneidade das iniciativas advindas de lugares absolutamente inesperados e caminhos que não
foram, de maneira alguma, planejados com os recursos prévios que dispunhamos.
Por fim, devemos dizer que as conclusões da presente tese nos levam a convicção
fundamental de que a renovação nos usos livres do mundo deve ser caracterizada por um esforço
consciente e intencional de reverter a sequência típica de perguntas e juízos de valor que fazemos
em ética e filosofia política. Se a natureza fundamental dos problemas que enfrentamos não é
adequadamente tratada com os referenciais teóricos e conceituais que temos a nossa disposição em
ciências sociais e filosofia política moderna, mostra-se necessário questionar as afirmações
cotidianas de confiança no progresso econômico, tecnológico e até mesmo científico quando este
está alinhavado às intenções mais viscerais de naturalização da governamentalidade infinita da
população. Determinadas direções que são tradicionalmente celebradas na sociedade atual devem
ser questionadas e uma nova sequência de perguntas precisará ser feita. Caso contrário, não
encontraremos maneiras de desafiar a reprodução infinita dos dispositivos de gestão da vida nua da
população. Nesse sentido, as perguntas sobre como seremos capazes de assegurar o crescimento

305
econômico, desenvolvimento tecnológico ou até mesmo de preservar as garantias jurídicas bem
estabelecidas perde o seu lugar de primeira importância política. Reverter a ordem das perguntas
significa trocar nossas prioridades políticas e, com isso, abrir espaços para problematizações
renovadas que consigam trazer junto de si novos horizontes econômicos, científicos e até
tecnológicos que não estejam à serviço da reprodução indefinida da máquina governamental.
Para muitas pessoas esse esforço consciente e intencional de reverter a sequência típica de
perguntas e juízos de valor que fazemos em ética e filosofia política pode figurar-se como um sonho
inalcançável sem muitas capacidades práticas de implementação no cotidiano dos sujeitos políticos.
Entretanto, nisso revela-se um dos empenhos mais urgentes e difíceis que está ao nosso alcance, a
qual seja, não permitir que o atual arranjo econômico e jurídico nos forneça os critérios para
avaliarmos o que está ou não a nossa disposição. Seria uma contradição profunda limitar à ordem
do discurso vigente as categorias e critérios de nossos juízos de valor que são, eles mesmos, críticos
a esse estado de coisas. Na produção do possível, o que está dado não pode instituir-se como o
limite do que podemos alcançar, mas antes um estágio que já mostrou, há muito, o seu esgotamento
e premência de ser inoperado.

306
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. A política da profanação: entrevista a Folha de S. Paulo. Trad. Vladimir


Safatle. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br. Acessado em: 18 de setembro de 2005.

_______. O que é o Contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó,
SC: Argos, 2009.

_______. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.

_______. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo: homo sacer, II,
2. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2011.

_______. O mistério do mal. Bento XVI e o fim dos tempos. Trad. de Silvana de Gaspari e Patrícia
Peterle. 1. Ed. São Paulo: Boitempo; Florianópolis, SC: Ed. da UFSC, 2013.

_______. O fascínio discreto de Pôncio Pilatos. Trad. Moisés Sbardelotto. Disponível em:
https://blogdaboitempo.com.br/2014/12/08/agamben-o-fascinio-discreto-de-poncio-pilatos/
Acessado em: 29 de setembro de 2013a.

_______. Um ‘império Latino”contra a híper potencia alemã. Disponível em:


https://blogdaboitempo.com.br/2013/03/28/um-imperio-latino-contra-a-hiper-potencia-alema/.
Acessado em: 15 de março de 2013b.

_______. A comunidade que vem. Trad. Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2013c.

_______. Opus Dei: arqueologia do ofício: homo sacer II, 5. Trad. Daniel Arruda Nascimento. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2013d.

_______. Pilatos e Jesus. Trad. Silvana de Gaspari, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo;
Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.

_______. Altíssima pobreza: regras monásticas e forma de vida. Trad. Selvino J. Assmann. São
Paulo: Boitempo, 2014a.

_______. O pensamento é a coragem de desesperança: uma entrevista com o filósofo Giorgio


Agamben concedida à Juliette Cerf. Trad. Pedro Lucas Dulci. Disponível em:
http://outraspalavras.net/destaques/giorgio-agamben-pensamento-como-coragem-de-transfor-
macao/. Acessado em: 30 de junho de 2014b.

_______. Meios sem fim: notas sobre a política. Davi Pessoa. Belo Horizonte, MG: Autêntica
Editora, 2015.

_______. O tempo que resta: um comentário à Carta aos Romanos. Trad. Cláudio Oliveira. Belo
Horizonte, MG: Autêntica Editora, 2016.

_______. A Igreja e o Reino. Trad. Pedro Fonseca. Veneza, Itália: Editora Âyiné, 2016a

_______. Uma Biopolítica Menor. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: N-1 Edições, 2016b.

307
_______. O uso dos corpos: homo sacer, IV, 2. Trad. Silvino J. Assmann. São Paulo: Editora
Boitempo, 2017.

_______. Stasis: La guerra civil como paradigma político. Homo sacer II 2. Trad. Flavia Costa e
Rodrigo Molina-Zavalía. Buenos Aires, Argentina: Adriana Hidalgo, 2018.

_______. O fogo e o relato: Ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. Trad. Andrea Santurbano
e Patricia Peterle. São Paulo: Editora Boitempo, 2018a.

_______. Sigantura Rerum: sobre o método. Trad. Andrea Santurbano e Patricia Peterle. São Paulo:
Editora Boitempo, 2019.

_______. Pósfacio. In: Tiqqun: contribuições à guerra em curso. Trad. Vinícius Nicastro Honesko.
São Paulo: N-1 Edições, 2019a.

_______. ¿En Qué Punto Estamos? La epidemia como politica. Trad. María Teresa D'Meza e
Rodrigo Molina-Zavalía. Buenos Aires, Argentina: Adriana Hidalgo, 2020.

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus (Volume III). Trad. J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação
Calouste Goubenkian, 2000.

ALIGHIERI, Dante. Da Monarquia. Trad. João Penteado E. Stevenson. São Paulo: Ediouro, 1979.

ASSMANN, Selvino J. Prefácio. In: AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Silvino J. Assmann.
São Paulo: Editora Boitempo, 2007.

BADIOU, Alain. São Paulo: a fundação do universalismo. Trad. Wanda Caldeira Brant. São Paulo:
Boitempo, 2009.

BARCLEY, John M. G. Paulo e o dom. Trad. Fabrizio Zandonadi Catenassi, Fabiana Beckert,
Jefferson Zeferino. São Paulo: Paulus, 2018.

BARRENTO, João. Comentários. In: BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Organização e


Tradução João barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

BEALE, G. K. Teologia Bíblica do Novo Testamento: a continuidade teológica do Antigo


Testamento no Novo. Trad. Robinson Malkomes. São Paulo: Editora Vida Nova, 2019.

BEDDARD, Ryne. Agamben’s Political Reading of the Trial of Jesus. Religious Theory, v. 21,
July, 2016.

BENJAMIN, Walter. Teses sobre o ceonceito de história. In: O anjo da História. Trad. João
Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

_______. Fragmento teológico-político. In: O anjo da História. Trad. João Barrento. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012b.

BIELIK-ROBSON, A. A Broken Constellation: Agamben's Theology between Tragedy and


Messianism. Télos 2010 (152):103-126 (2010).

BELL, Daniel. The End of Ideology: On the Exhaustion of Political Ideas in the Fifties. Harvard
University Press, 1960.

BÍBLIA SAGRADA: a nova versão internacional. São Paulo: Editora Vida, 2004.
308
BRITTAIN, Christopher Craig. Political Theology at a Standstill: Adorno and Agamben on the
Messianic. Thesis Eleven, 102(1) 39–56, 2010.

BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Trad. Ilson Kayser. Santo André: Editora
Academia Cristã, 2008.

CACCIARI, Massimo. O poder que freia. Trad. Pedro Fonseca. Veneza, Itália: Editora Âyiné,
2016.

CANDIOTTO, Cesar; SOUZA, Pedro (org.). Foucault e o Cristianismo. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2012.

CARSON, D. A. (org.) Do Sabbath ao dia do Senhor. Trad. Susana Klassen. São Paulo: Cultura
Cristã, 2006.

CASTRO, Edgard. Introdução a Giorgio Agamben: uma arqueologia da potência. Trad. Beatriz de
Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

_______. Introdução a Foucault. Trad. Beatriz de Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2014.

CULLMANN, Oscar. Cristo e o tempo: tempo e história no cristianismo primitivo. Trad. Daniel
Costa. São Paulo: Editora Custom, 2003.

DURANTAYE, Leland de la. Giorgio Agamben, a critical introduction. Stanford, CA: Stanford
University Press, 2009.

_______. On the Anarchy and Theocracy. In: AGAMBEN, Giorgio. The Church and The Kingdom.
Translation Leland de la Durantaye. Seagull Books, 2012a

DELAHAYE, Ezra. About chronos and kairos. On Agamben’s interpretation of Pauline


temporality through Heidegger. International Journal of Philosophy and Theology . Volume 77,
2016.

DUSSEL, Enrique. Paulo de Tarso na filosofia política atual e outros ensaios. Trad. Luiz
Alexandre Solano Rossi. São Paulo: Paulus, 2016.

DULCI, Pedro Lucas. Testemunhas do futuro: sobre filosofia, teologia e messianismo em Walter
Benjamin. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, v. 3, n. 1, p. 116-142, 11.

DUSENBURY, D. L. The judgment of Pontius Pilate: a critique of Giorgio Agamben. Journal of


Law and Religion 32, no. 2 (2017): 340–365 .

DOOYEWEERD, Herman. Raízes da cultura ocidental. Trad. Rodolfo Amorim. São Paulo: Cultura
Cristã, 2015.

ESLIN, Jean-Claude. O universalismo paulino. In: Paulo de Tarso e sua relevância atual. Revista
IHU, São Leopoldo, Ed. 286, 2008.

FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Saraiva, 2012.

FAVARETTO, Caio Mendonça Ribeiro. O Futuro Anterior: Giorgio Agamben e o método


paradigmático. Cadernos de Ética e Filosofia Política. Número 23, ano 2013.

309
FRATESCHI, Yara. Giorgio Agamben e a emancipação da mulher. Philósophos - Revista De
Filosofia, 21(1), 2016, 213-234.

_______. Agamben sendo Agamben: o filósofo inventor da pandemia. Disponível em:


https://blogdaboitempo.com.br/2020/05/12/agamben-sendo-agamben-o-filosofo-e-a-invencao-da-
pandemia/. Acessado em: 15 de maio de 2020.

_______. Essencialismos filosóficos e a “ditadura do corona”: sobre Giorgio Agamben mais uma
vez. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/05/29/-essencialismos-filosoficos-e-
ditadura-do-corona-sobre-giorgio-agamben-mais-uma-vez/ Acessado em: 29 de maio de 2020ª.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad.
Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

_______. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Trad. Maria


Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

_______. Segurança, território e população: curso no Collège de France (1977-1978). Trad.


Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

_______. A Coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: curso no Collège de France
(1983-1984) Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

FUKUYAMA, Francis. O Fim da História e o último Homem. Trad. Aulyde S. Rodrigues. Rio de
Janeiro: Rocco, 1992.

GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin. Estudos


Avançados, São Paulo - USP, v. 37, p. 191-206, 1999.

GIACOIA JR., Oswaldo. Agamben: por uma ética da vergonha e do resto. São Paulo: N-1 Edições,
2018.

GIGNAC, Alain. A redescoberta de Paulo pela pós-modernidade. Disponível em:


http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/19055-a-redescoberta-de-paulo-pela-pos-modernidade-
entrevista-especial-com-alain-gignac. Acessado em: 21 de dez de 2008.

GLAS, Gerrit. Hearing visions and Seeing voices: psychological aspects of biblical concepts and
personalities. Dordrecht, The Netherlands: Springer, 2007.

GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental. Trad.


Leonardo Ramos. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2019.

GOUVÊA, Ricardo Quadros. O Anticristo na Biblia e na História. São Paulo: Fonte Editoral, 2011.

HÄRING, Hermann. Paulo, o universalismo e a ética mundial. Trad. Benno Dischinger. Revista do
Instituto Humanitas Unisinos, Edição 286, 22 Dezembro 2008.

HEIDEGGER, Martin. Fenomenologia da vida religiosa. Tradução Enio Paulo Giachini, et. al.
Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2010.

HEIDEN, Gert-Jan van der. The dialectics of Paul: on exception, grace, and use in Badiou and
Agamben. International Journal of Philosophy and Theology. Volume 77, 2016.

310
_______. Attitudes to life: Saint Paul and contemporary philosophy. International Journal of
Philosophy and Theology . Volume 77, 2016a.

HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento: 1 e 2 Tessalonicenses. Trad. Valter


Graciano. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.

HINKELAMMERT, Franz J. A Maldição que pesa sobre a Lei: as raízes do pensamento crítico de
Paulo de Tarso. São Paulo: Paulus, 2012.

HOLMES, R. Stephan; et. al. Two views on the Doctrine of The Trinity. Grand Rapids: Zondervan,
2014.

HONESKO, Vinícius Nicastro. As assinaturas de uma politica que vem. Sopro Panfleto Político-
Cultural, Desterro Agosto de 2009.

_______. Prefácio. In: AGAMBEN, Giorgio. Pilatos e Jesus. Trad. Silvana de Gaspari, Patricia
Peterle. São Paulo: Boitempo; Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.

HORTON, Michael. Doutrinas da Fé cristã. Trad. João Paulo Thomaz de Aquino. São Paulo:
Cultura Cristã, 2016.

KAFKA, Franz. Parábolas e Fragmentos. Trad. Geir Campos. São Paulo: Edições de ouro, 1985.

KAUFMAN, Eleanor. The Saturday of Messianic Time (Agamben and Badiou on the Apostle Paul).
South Atlantic Quarterly (2008) 107 (1): p. 37–54.

KHATIB, Sami. The Messianic Without Messianism: Walter Benjamin's Materialist Theology.
Anthropology & Materialism: A Journal of Social Research, vol 1 | 2013.

KIERKEGAARD, Søren. Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor. Trad. João
Gama. Lisboa, Portugal, Edições 70, 1986.

KOYZIS, David T. Visões e Ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias
contemporâneas. Trad. Lucas G. Freire. São Paulo: Edições Vida Nova, 2014.

KUIPER, Roel. Capital Moral: o poder de conexão de uma sociedade. Trad. Francis Petra Janssen.
Brasília, DF: Editora Monergismo, 2019.

LACAPRA, D. Approaching Limit Events: sitting Agamben. In: CALARCO, Matthew;


DECAROLI, Steven (eds). Giorgio Agamben: Sovereignt and Life. Stanford, CA: Stanford
University Press, 2007.

LACLAU, Ernesto. Bare Life or Social Indeterminacy? In: CALARCO, Matthew; DECAROLI,
Steven (eds). Giorgio Agamben: Sovereignt and Life. Stanford, CA: Stanford University Press,
2007.

LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. Trad. Lúcia M. Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Editora
Vozes, 2008.

LICEAGA, Gabriel. San Pablo en la Filosofía política contemporánea: un estado de la cuestión.


Revista Realidad, n. 121, 2009.

LILLA, Mark. O progressista de ontem e o de amanhã.Trad. Berilo Vargas. São Paulo : Companhia
das Letras, 2018.
311
LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de
história”. Trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2005.

MASCARO, Alysson. Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Atlas, 2010.

MCGRATH, Alister E. Teologia: histórica, filosófica e sistemática. São Paulo: Shedd Publicações,
2005.

MILBANK, John. Teologia e Teoria Social. Trad. Adail Sobral e Maria Gonçalves. São Paulo:
Editora Loyola, 1999.

_______. Paul against Biopolitics. Theory, Culture and Society. Vol 25, Issue 7-8, 2008.

MURRAY, Alex; WHYTE, Jessica. The Agamben Dictionary. Edinburgh University Press, 2011.

NASCIMENTO, Daniel Arruda. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de Giorgio


Agamben. São Paulo: Editora LiberArs, 2012.

_______. Umbrais de Giorgio Agamben. Para Onde nos Conduz o Homo Sacer? São Paulo:
Editora LiberArs, 2014.

_______. Em torno de Giorgio Agamben: sobre a política que não se vê. São Paulo: Editora
LiberArs, 2018.

NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. In: Obras Incompletas. Seleção de textod de Gérard Lebrun.
Trad.Ruben Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultura, 1983.

_______. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.

NOLL, Mark A. Momentos decisivos da história do cristianismo. Trad. Alderi de Sousa Matos. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000.

NORRIS, A. The Exemplary Exception: Philosophical and Political Decisionism in Giorgio


Agamben’s Homo sacer. In: NORRIS, A (ed). Politics, Metaphysics and Death. Essays on Giorgio
Agamben’s Homo sacer. Durham and London: Duke University Press, 2005.

O’CONNOR, Patrick. Redemptive Remnants: Agamben's Human Messianism. Journal for Cultural
Research, Volume 13 Numbers 3–4 (July–October 2018).

OJAKANGAS, Mika. Apostle Paul and the Profanation of the Law. Distinktion: Scandinavian
Journal of Social Theory, 10:1, 47-68, 2009.

OLIVEIRA, Claudio. Agamben, um filósofo para o século 21. Revista Cult, 180, ano 16, junho de
2013.

PASSAVANT, Paul A. The Contradictory State of Giorgio Agamben. Political Theory Volume 35
Number 2 April 2007.

PETERSON, Erik. El monoteísmo como problema político. Trad. A. Andreu. Madri: Editoral
Trotta, 1999.

312
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Editora Boitempo,
2014.

RIDDERBOS, Herman. A teologia do apóstolo Paulo: a obra definitiva sobre o pensamento do


apóstolo dos gentios. Trad. Suzana Klassen. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2ª ed., 2013.

ROSS, Alison. Introduction. In: South Atlantic Quarterly, col 107 (1) – Special Issue “The
Agamben Effect”.

ROMANDINI, Fabián Ludueña. A comunidade dos espectros: I. Antropotecnica. Trad. Alexandre


Nodari e Leonardo D‟Ávila de Oliveira. Desterro, Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2012.

_______. El mesianismo agambeniano entre Cacciari y Žižek. Una arqueología del katéchon. In.:
Revista Profanações. [on-line] Mafra: Santa Catarina, Ano 3, n. 2, p. 4-30, jul./dez. 2016.

RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. O campo como paradigma biopolítico moderno. Revista do


Instituto Humanitas Unisinos, Edição 372 Setembro de 2011.

_______. Homo Sacer. O poder Soberano e a vida nua. Revista do Instituto Humanitas Unisinos,
Edição 371 Agosto de 2011a.

_______. A Condição de Homo Sacer. O Direito e a Arqueologia do Sagrado, um Diálogo com


Giorgio Agamben. Revista Portuguesa de Filosofia 69 (2): p. 331-348 (2013).

_______. Giorgio Agamben, liturgia (e) política: por que o poder necessita da Glória? Revista
Brasileira de Estudos Políticos | Belo Horizonte | n. 108 | pp. 185-213 | jan./jun. 2014.

_______. O estado de exceção e a pandemia mascarada. Disponível em: www.ihu.unisinos.br/78-


noticias/598874-o-estado-de-excecao-e-a-pandemia-mascarada-artigo-de-castor-bartolome-ruiz
Acessado em: 13 de maio de 2020.

_______. Pandemia e as falácias do homo econômicas. Disponível em: www.ihu.unisinos.br/78-


noticias/598157-pandemia-e-as-falacias-do-homo-economicus Acessado em: 19 de abril de 2020a.

SAFATLE, Vladimir. De que filosofia do acontecimento a esquerda precisa? In: BADIOU, Alain.
São Paulo: a fundação do universalismo. Trad. Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2009.

SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. Trad. Lya Luft.
São Paulo: Geração Editorial, 2000.

SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, (Coleção
Del Rey Internacional, v. 2), 2006.

SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: a história de uma amizade. Trad. Geraldo Gerson de
Souza. São Paulo: Perspectiva, 2008.

SHARP, Metthew. Only Agamben can save us? Against the messianic turn recently adopted in
critical Theory. The Bible and Critical Theory, volume 5, number 3, 2009 Monash University Press.

TAUBES, Jacob. Carl Schmitt, apocalíptico de La contrarrevolución. In: La teología política de


Pablo. Trad. Miguel García-Baró. Madri: Editoral Trotta, 2007.

313
_______. El messianismo y su precio. In: Del culto a la cultura: elementos para una crítica de la
razón histórica. Traducido Silvia Villegas. Buenos Aires, Argentina: Katz Editores, 2007a.

_______. Martin Buber e la filosofia de la história. In: Del culto a la cultura: elementos para una
crítica de la razón historica. Traducido Silvia Villegas. Buenos Aires, Argentina: Katz Editores,
2007b.

_______. La justificación de la feo en la tradición cristiana primitiva. In: Del culto a la cultura:
elementos para una crítica de la razón histórica. Traducido Silvia Villegas. Buenos Aires,
Argentina: Katz Editores, 2007c.

THERBORN, Göran. Do marxismo ao pós-marxismo? Trad. Rodrigo Nobile. São Paulo: Boitempo,
2012.

THANING, Morten Sørensen; GUDMAND-HØYER, Marius; RAFFNSØE, Sverre.


Ungovernable: reassessing Foucault’s ethics in light of Agamben’s Pauline conception of use.
International Journal of Philosophy and Theology . Volume 77, 2016.

VALLS, Álvaro. Paulo e Kierkegaard: entrevista com Álvaro Valls. Revista do Instituto Humanitas
Unisinos, São Leopoldo, 10 de Abril de 2006.

VAN BRUGGEN, Jacob. Cristo na terra: as narrativas dos evangelhos como história. Trad.
Rinette Werkman. São Paulo: Cultura Cristã, 2005.

VANHOOZER, Kevin J. Quadros de uma exposição teológica: cenas de adoração, testemunho e


sabedoria da igreja. Trad. Fabrício Tavares de Moraes. Brasília, DF: Editora Monergismo, 2018.

VILELA, Eugénia. Silêncios tangíveis: corpo, resistência e testemunho nos espaços


contemporâneos de abandono. Porto: Edições Afrontamento, 2010.

VLIEGHE, Joris ; ZAMOJSKI, Piotr . The event, the messianic and the affirmation of life. A post-
critical perspective on education with Agamben and Badiou. Policy Futures in Education. Vol 15,
Issue 7-8, 2017.

VOS, Geerhardus. Teologia Bíblica Antigo e Novo Testamentos. Trad. Valter Graciano. São Paulo:
Cultura Cristã, 2011.

WATKIN, William. Agamben e a indiferença. In: Revista Cult, nº 180, Junho de 2013.

_______. Agamben and indifference: a critical overview. London: Rowman and Littlefield
International, 2014.

WRIGHT, N. T. Paulo: novas perspectivas. Trad. Joshuah de Bragança Soares. São Paulo: Edições
Loyola, 2009.

_______. Paulo: uma biografia. Trad. Elissamai Bauleo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil,
2019.

WOLTERSTORFF, Nicholas. Liturgia Reformada. In: MCKIM, Donald K. Grandes temas da


Tradição Reformada. São Paulo: Pendão Real, 1995.

ZAMORA, José Antonio. Escatologia, militância e universalidade: leituras políticas de são Paulo
hoje. Cadernos de Teologia Pública. Ano VIII, número 53, 2011.

314
_______. Mesianismo y escatología: la resurrección política de Pablo. Iglesia viva, n. 241, p. 71-
101, enero/marzo. 2012.

ŽIŽEK, Slavoj. Missão: impossível. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/-


fsp/mais/fs0405200816.htm Acessado em: 4 de maio de 2008.

_______. A Marioneta e o anão: o cristianismo entre perversão e subversão. Trad. Carlos Correia
Monterio de Oliveira. Lisboa: Relógio D‟Água, 2006.

_______. Em defesa de causas perdidas. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo,
2011.

_______. Vivendo no fim dos tempos. Trad. Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2012.

315

Você também pode gostar