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Lefebvre
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AREVOLUÇÃO URBANA
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Henri Lefebvre
HUMANITAS
HENRI LEFEBVRE

AREVOLUÇO URBANA
TRADUÇÃO
SÉRGIO MARTINS
REVISÃO TÉCNICA
MARGARIDA MARIA DE ANDRADE

Belo Horizonte
Editora UFMG
1999
o Élitions Gallimard, 1970 S M Á R
Titulo original: La RéolutionUrbaine
1999 da traduçào brasileira: Editora UFMG
Este livro ou purte dele nào pode ser reproduzido por
qualquer meio sem autorizaçlo cscrita do Editor

Lefebvre, Henri
LASr Arevoluçào urbuna/ Henri Lefebvre;
traduçào de Sérgio Murtins. - Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1999.
178p. - (Humanitas)
Traduçio de: La révolution urbaine
1. Sociologiu urbana 2. Economia PREFÁCIo
urbana 3. Urbanizaço I. Martins, Sérgio
II. Titulo Ill. Série CAPÍTULO I DA CIDADE ÀSOCIEDADE CRBANA 15
CDD:307.3
CDU:364.122.5 CAPÍTULO II O CAMPO CEGO 33

Catalogação na publicacão: Diviso de Planejamento CAPÍTULO III O FENÔMENO URBANO 51


UFMG
e Divulgação da Biblioteca Universitária - NÍVEIS E DIMENSÒES 77
CAPÍTULO IV
ISBN: 85-7041-195-2
CAPÍTULO V MITOS DO URBANO E IDEOLOGIAS 99

EDITORAÇÅO DE TEXTO CAPÍTULO VI A FORMA URBANA 109


Ana Maria de Moraes
PROJETO GRÁFICO CAPÍTULO VII PARA UMA ESTRATÉGIA URBANA 125
Glória Campos- Mangá
CAPA CAPÍTULO VIII AILUSAo URBANÍSTICA 139
Marcelo Belico sobre foto de Robson Martins
(pré-noldados de mutirlo) CAPÍTULO IX A SOCIEDADE URBANA 151
REVISÅO DE PROVAS
Lilian Valderez Felicio CONCLUSÃO 165
Maria Stela Souza Reis
NOTAS 173
PRODUÇÃO GRÁFICA EFORMATAÇÃO
Jonas Rodrigues Fróis
EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlas, 6627- Biblioteca Central - sala 405
Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG
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Carlos Antônio Leite Brandao, Heitor Capuzzo Filho, Heloisa Maria Murgel
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Damasceno e Silva Megale, Romeu Cardoso Guimares, Silvana Maria Leal
Wander Melo Miranda (Presidente)
SUPLENTEs
Machado
Antônio Luiz Pinho Ribeiro, Beatriz Rezende Dantas, Cristiano
Gontijo, Leonardo Barci Castriota, Maria das Graças Santa Bárbara, Maurílio
Nunes Vieira, Newton Bignotto de Souza, Reinaldo Martiniano Marques
amplamente
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pode ser considerada como uma condiçåoe uma situação curso do aprofundamento de sua elaboração
privilegiada, senào imprescindivel, para que Lefebvre abor importâncía decisiva da produção do espaço na reprodução
dasse aspectos da realidade social tidos como secundários, ou da sociedade contemporânea. As transformações operadas no
mercadoria, acom
simplesmente banais, para compreender a reprodução da for campo pelo desen volvimento do mundo da
mação econômico-social capitalista no século XX. panhadas da decomposição da cidade na qual esse mesmo
mundo, através da industrialização, se aninhou e expandiu,
De fato, estudos como os que produziusobre a vida cotidliana levando-a àexplosão-implosão, como denominava Lefebvre,
ea produçào do espaço (momento de seu percurso intelectual não mais permitiam que se continuasse pensando em
termos
a que pertence este livro), dificilmente teriam guarida no interior de cidade e campo, pois se tratava de um outro processo,
de um "pensamento" enbotado por exigências correspondentes mais amplo, rico, profundo e dialético: a urbanização da
àsua transformaçào em ideologia de partidos e Estados, que sociedade, processo desconcertante para o pensamento e a
reservava o abandono, quando nào o desdém, a processos ação, ao qual o autor se refere n'O Direito à Cidade, benm
que, por sua importância, exigiam do conhecimento crítico como na admirável antologia Du Rural àl'Urbain (ainda sem
retirá-los do atoleiro teórico do marxismo institucionalizado.
tradução para o português), emborao formule e o exponha
Foi em 1968, através de seu Le Droit à la Ville (O Direito à melhor neste ARevolução Urbana. Aqui, a análise da urbani
Cidade], que Lefebvre formulou de modo mais consistente zação como sentido e finalidade da industrialização prossegue
suas preocupaçÓes e proposições a respeito do fenômeno a ponto de se poder afirmar que tal formulação é ao mesmo
urbano. Nàose tratou, porém, de nenhum raio em dia de c¿u tempo essencial e insuficiente.
azul. Lefebvre chegou às questòes pertinentes ao espaço por
A problemática urbana não pode ser entendida, quiçá
vários caminhos. Um dos mais promissores teve a ver com conhecida, enquanto for considerada como subproduto da
seu interesse pela realidade agrária francesa. Esse interesse, industrialização. Desse modo, para Lefebvre, sequer épossivel
posteriormente estendido para outros países, o conduziu reconhecer a problemática urbana. O máximo que resultou
durante os anos 40 e 50 a estudar longamente as questões
dessa redução do urbano foi o urbanismo, isto é, a tentativa
implicadas pela renda fundiáia e, em conseqüência, a vasta de submeter a realidade urbana à racionalidade industrial,
teorização a esse respeito. Em meados dos anos 70, num às exigências do mundo supostamente lógico, sem contradições
belíssimo relato autobiográfico, Lefebvre lembrou, com certa
nem conflitos, da mercadoria. Sem nenhuma condescendência
amargura, que nesse percurso chegou a escrever um livro
ou comiseração, Lefebvre considera criticamente (isto é, cien
sobre oassunto, mas não houve na ocasião quem se interes
sasse em publicá-lo sob a simples e tosca alegação de que se tificamente) o urbanismo, identificando-o como parte funda
tratava de questões menores para o marxismo. Referindo-se
mental das tentativas de estender ao conjunto das atividades
também àsua oferta para discutir a chamada questão agrária, sociais os pressupostos, intencionalidades, representações
inequivocamente relevante, em países como Cuba e Argélia que governam a divisão manufatureira do trabalho, com suas
(contribuição que fora resolutamente recusada pelas esquerdas ordens e coações. Seria preciso lembrar Marx e suas inúmeras
que então assomavam ao poder de Estado), o autor chegou a análises sobre o processo de valorização das coisas, nas quais
concluir apressadamente que esse período de sua vida, de incrustou-se a "alma do capital", às custas da desvalorização
dez a quinze anos de trabalho, fora perdido.! Auto-avaliação do homem,que vê sua ação confinada à expansão da riqueza
bastante contestável, uma vez que em seus estudos subse como capital, como um mundo alheio eestranho que cada
qüentes, inicialmente estimulados pela formação de uma nova vez mais o domina e o arrasta para o seu empobrecimento?
cidade em sua regíão de origem, o sudoeste francês (onde, Pode-se considerar o urbanismo, afirma Lefebvre impiedosa
como ele próprio afirmava, pôde estudar in vivo, tn statu mente, como Marx considerava a economia política vulgar,
nascendi, a irrupção do urbano numa realidade rústica tradi isto é, um pensamento (para ser generoso) degradado porque
cional), Lefebvre retomou suas preocupações, chegando, no bovinamente satisfeito- para falar como Marx -comas formas
determinismos
assumidas pelas condições de produçào da vida neste momento determinações econômicas transformam-se em
econômicos,que pesam sobre o homem, sobre o seu processO
específico da História que é a formaçào econômico-social e em decorrência disso,
Capitalista. Trata-se de um pensamento limitado e confomado de humanização. Em segundo lugar,
enquanto realização plena.
a tomar como curso inevitável da História a dança fantas a sociedade urbana ainda não existe possibilidade, na reali
magórica das coisas. Por isso nào lhes resta seno constatá-las Ela existe por estar inscrita, enquantoassim Consideravelmente
dade, no "real", cuja definição fica
e enumerá-las.? sociedade atual encontra-se a meio
ampliada e enriquecida. A
Em verdade, o que o urbanismo acaba promovendo e legi amplo e rico
caminho do urbano, e é nessa transição, nesse
timando éuma redução da vida urbana ao mínimo, pesando cdomínio das lutas (de classes) para tornar possível o que se
Sobre ela. No entanto, a fragmentação prática e teórica a que compreende-la.
encontra no terreno do impossível, que se pode distintas
o urbano é submetido, permitindo que caca "pedacinho" possa Ademais, as diferentes sociedades chegam de maneiras
ser entregue aos especialistas, confinados eles próprios a uma vivendo-o de acordo
a esse período de revolução urbana, ainda ocorre
determinada diviso do trabalho, eque no final das contas com suas diferenças, a exemplo do que ocorrera
e
pouco ou nada deliberam, não éapenas expressão de suas sociedades
com a industrialização. O fato, porém, éque tanto
dificuldades em enxergar a realidade que se forma para além altamente industrializadas, como as da América do Norte e
do que as barras das jaulas de suas especialidades permitem. da Europa, quanto as que se devotaram
visceralmente ao cresci
Trata-se de uma cegueira. Em que consiste tal cegueira? Pergunta mento econômico através da industrialização valendo-se do
o filósofo. No fato de olharmos o urbano com os ollhos socialismo como ideologia de Estado, ou ainda as que, como
(de)formados pela prática e teoria da industrialização, pelas a nossa, convivem com as implicações do período industrial
representações (ideológicas, institucionais) engendradas nesse sem terem resolvido problemas precedentes, nào conseguiram
vasto prOcesso através do qual o capital se pôs de péna História. responder àproblemáica urbana por uma transformação capaz
Essas formas de consciência e de ação (das quais o urbanismo de colocar em primeiro plano a sociedade urbana. Esta continua
é caso exemplar) criaram raízes fundas no conhecimento cien sufocada pelo Estado que, por sua vez, tem reiteradamente
tífico a ponto de tamb¿m se poder falar de cegueira quanto à expropriado a sociedade civil de suas iniciativas e prerogativas
industrialização. Senão, como explicar a prioridade que lhe para atuar em favor da industrialização, do mundo da merca
tem sido concedida por quase dois séculos? Quanto ao urbano, doria tomado como fim em si, como razão suprema capaz de
esse olhar redutor não permite vê-lo enquanto campo de tensões tornar ininteligíveis os questionamentos nào devotados à sua
e conflitos, como lugar dos enfrentamentos e confrontações, consagração.
unidade das contradições. Énesse sentido que a formulação
desse conceito por Lefebvre retoma vivamente a dialética, Numa sociedade como a nossa, onde prevalece essa aridez
núcleo de toda a sua obra.3 de democracia concreta, onde as possibilidades de superação
por nós mesmos engendradas são parcamente realizadas, ou
Ao pensamento, Lefebvre propôs explicitamente com este mesmo tornadas impossíveis emn nome de uma devoção cega
livro o conhecimento da reviravolta pela qual a sociedade e nauseante ao mundo da mercadoria, é flagrante a atualidade
dita industrial se transforma em sociedade urbana. Isso significa de um livro como este, propondo estratégias para fazer a pro
então que os fenômenos ligados à industrialização cederam blemática urbana entrar não apenas no pensamento, mas sobre
lugar completamente aos fenômenos urbanos? Que aqueles tudo na prática, pela formação consciente de uma práxis urbana,
tornaram-se desimportantes, ou ento perderam sua especifi com sua racionalidade própria, para que a História exista de
cidade e sua força na determinação do conjunto social? Nada fato como produto de nossa ação concreta, como campo de
mais equivocado. Em primeiro lugar, Lefebvre sempre advertiu
ao longo de sua obra que a reposição contínua das determi possíveis sobre o qual deliberamos e fazemos nossas escolhas.
nações econômicas desta forma histórica de sociedade recalca Passados quase trinta anos de sua publicaço, tal projeto
as possibilidades de transformaço da própria História. As de transformação da sociedade, pela reinversão desse mundo
11
10
Lefebyre salientou: "um Muido único
invertido, não encontra lugar numa vida política caricatural e se estendeu por mais de 70 livros.
percorre o conjunto; tenho buscado restituir a teoriu de M:arx emn toda sua
sem substância. Podemos nos lamentar quanto a isso? Talvez. mesnio tempo seu aggiortd
integridade e anplitude, einpreendendo ao
trunsformações, o materialismo
Entretanto, a inversão só ganharásentido quando começarmos mento; depois de um século de grandes
não podem se sustent:ur
a tirar daí as conseqüências. histórico e o dialético tào poderosos no plano teórico
dogmaticamente". (LEFEBVRE. Tíempos equivocos, p.9.)
Lefelbvre encerrou com a seguinte
Hápoucos meses de su1 morte, em 19991.
entrevista: "Afinal de
Não posso deixar de mencionar aqui a participação crucial observação o que talvez tenha sido sua última long1
determinado ou eleécontingente?
contas, a questâoéa seguinte: o futuro está
de Margarida Maria de Andrade. Esta tradução foi feita origi Isto é, dependente de nossas decisðes. De fato, ele
não estádeterminado. O
nalmente no ano de 1995. Desde entào, tive o privilégio le determinaçòes, mas
que não quer dizer que nâo existam determinações. Há (COMBES,
contar com seu trabalho paciente e minucioso, acompanhado nào determinismo. Éprecisoconsiderar que a história continu:..." Messidor,
de seu rigor intelectual aliado à intimidlade con a obra Francis, LATOUR, Patricia. Conversation avcc Henri Lefebere. Paris:
lefebvriana. Seu envolvimento integral em todos os momentos 1991. p.113.)
$ Segundo Lefebvre, as lutas de classes ultrapassam em muito as relaçòes ao
necessários para que esta traduç§o saísse do terreno do impos rés-do-chão da fábrica, assim como nào se circunscrevem i isputa entre
tematizadas
sível foi, portanto, imprescindível. classes sociais por maiores frações da riqueza social, como foram
abertura e
pelo marxismo. Essa noção se refere ao embate em torno da
Por fim, a pronta acolhida oferecida pela Editora da UFMG, realizaçào dos possíveis. Cf. LEFEBVRE, Henri. Une pensée devenue monde:
que escolhi em virtude do trabalho sério e criterioso que nela faut-il abandonner Marx? Paris: Fayard, 1980.
vem sendo desenvolvido, também foi decisiva para anpliar
entre nós as possibilidades de conhecimento da realidade
urbana que este livro propicia.
Sérgio Martins

NOTAS

1Cf. LEFEBVRE, Henri. Tiempos equivocos. Trad. José Francisco Ivars, Juan
Isturiz Izco, Barcelona: Editorial Kairós, (1975) 1976. p.224-226.
0que faz o economista político vulgar, transformado não só em intérprete,
mas principalmente em apologista desta sociedade? Num outro livro dedicado
ao urbano, Lefebvre relembra a ironia fina de Marx: "Coloca-se na acepção
restrita com a consciência perfeitamente em ordem, ou seja, com uma certeza
que não se distingue da trivialidade do bom senso e a si mesma se toma por
verdade científica. Constata, conta, descreve. Tanto contará ovos como tone
ladas de aço, gado ou trabalhadores, com a mesma permanente, tranqüila e
inabalável certeza." Cf. LEFEBVRE, Henri. Opensamento marxista e a cidade.
Trad. Maria ldalina Furtado. Póvoa de Varzim: Ulisséia, (1972], (s.d.]. p.82-83.
No mesmo relato que citei anteriormente, Lefebvre manifestou seu desacordo
quanto às leituras fragmentárias de sua obra, que visam compreendê-la aos
"pedaços" em função das especializações a que supostamente se referem. Em
verdade, cada momento de seu percurso intelectual só pode ser apreendido,
isto ¬, apropriado pela compreensâo, se tivermos clareza com relação à
COncepçao de mundo quc lhe éfundante. Sobre o conjunto de sua obra, que

12 13
C A P
L

DA CIDADE A
S0CIEDADE URBANA
Partirenmos de uma hipótese: a urbanização conpleta da
sociedade. Hipótese que posteriormente serásustentada por
argumehtos, apoiada em fatos. Esta hipótese implica uma defi
nição. Denominaremos "sociedade urbana" a sociedade que
resulta da urbanização completa, hoje virtual, amanhã real.
Essa definição acaba com a ambigüidade no
emprego dos
termos. Com efeito, freqüentemente se designa por essas pala
Vras, "sociedade urbana", qualquer cidade ou cité:' a cité
a cidade oriental ou medieval, a cidade
grega,
comercial ou irndustrial,
a pequena cidade ou a megalópolis. Numa extrema
confusão,
esquece-se ou se coloca entre parênteses as relações sociais
(as relaçòes de produção) das quais cada tipo urbanoésoli
higote dário. Compara-se entre si "sociedades urbanas" que nada têm
de comparáveis. Isso favorece as ideologias
subjacentes: o
organisismo (cada "sociedade urbana", em si mesma, seria um
"todo" orgânico), ocontinuísmo (haveria continuidade his
tórica ou permanência da "sociedade urbana"),o evolucionismo
(os períodos, as transformações das relações sociais, esfu
mando-se ou desaparecendo).
Aqui, reservaremos o termo "sociedade urbana" à sociedade
que nasce da industrialização. Essas palavras designam, por
tanto, a sociedade constituída por esse processo que domina e
absorve a produção agrícola. Essa sociedade urbana só pode
ser concebida ao final de um processo no curso do qual explo
dem as antigas formas urbanas, herdadas de
transformações
descontínuas. Um importante aspecto do problema teórico éo
de conseguir siuar as descontinuidades em relação às conti
nuidades, e inversamente. Como existiriam descontinuidades
agrícola
absolutas sem Continuidades subjacentes, sem suporte e sem Será preciso insistir demoradamente que a produção
benm como
processo inerente? Reciprocamente, como existiria continui perdeu toda autonomia nos grandes países industriais,
setor
dade sem crises, sem o aparecimento de elementos ou de àescala mundial? Oue ela n·o mais representa nem o
características
relações novas? principal, nem mesmo um setor dotado de
distintivas (a não ser no subdesenvolvimento)? Mesmo conside
As ciências especializacdas (ou seja, a sociologia, a econo
rando que as particularidades locais e regionais provenientes
mia política, a história, a geografia humana etc.) propuseram dos tempos em que a agricultura predominava não desapare
ali,
numerosas denominações para caracterizar a "nossa" socie ceram, que as diferenças daíemanadas acentuam-se aqui e
dade, realidade e tendências profundas, atualidade e virtuali não émenos certo que a produção agrícola se converte num
dades. Pôde-se falar de sociedade industrial e, mais recente setor da produçào industrial, subordinad:a aos seus imperati
mente, de sociedade pós-industrial, de sociedade técrnica, de vos, submetida às suas exigências. Crescimento econômico,
sociedade de abundância, de lazeres, de consumo etc. Cada industrialização, tornados a0 mesmo tempo causas e razões
uma dessas denominaçòes conmporta uma parcela de verdade supremas, estendem suas conseqüências ao conjunto dos terri
empírica ou conceitual, de exagero e de extrapolação. Para tórios, regiðes, nações, continentes. Resultado: o agrupamnento
denominar a sociedade pós-industrial, ou seja, aquela que tradicional próprio àvida camponesa, a saber, a aldeia, trans
nasce da industrialização e a sucede, propomnos aqui este con forma-se: unidades mais vastas o absorvem ou o recobrem;
ceito: sociedade urbana, que designa, mais que um fato on ele se integra à indústria e ao Consumo dos produtos dessa
sumado, a tendência, a orientação, a virtualidade. Isso, por indústria. Aconcentração da populaço acompanha a dos meios
conseguinte, não tira o valor de outra caracterização crítica de produção. O tecido urbano prolifera, estende-se, corrói os
da realidade contemporânea como, por exemplo, a análise resíduos de vida agrária. Estas palavras, "o tecido urbano",
da "sociedade burocráica de consumo dirigido". não designam, de maneira restrita, o domínio edificado nas
Trata-se de uma bipõtese teórica que o pensamento científico cidades, mas o conjunto das manifestações do predomínio da
tem o direito de formular e de tomar como ponto de partida. Tal
cidade sobre o campo. Nessa acepçào, uma segunda residência,
procedimento não só é corrente nas ciências, como éneces uma rodovia,um supermercado em pleno campo, fazem parte
sário. Não há ciência sem hipóteses teóricas. Destaquemos do tecido urbano. Mais ou menos denso, mais ou menos espesso
desde logo que nossa hipótese, que concerne às ciências ditas e ativo, ele poupa somente as regiðes estagnadas ou arrui
"sociais", estávinculada a uma concepção epistemológicae nadas, devotadas à "natureza". Para os produtores agrícolas,
metodológica. O conhecimento não é necessariamente cópia os "camponeses", projeta-se no horizonte a agrovila, desa
ou reflexo, simulacro ou simulação, de um objeto já real. Em parecendo a velha aldeia. Prometida por N. Khrouchtchev
contrapartida, ele não constrói necessariamente seu objeto em aos camponeses soviéticos, a agrovila concretiza-se aqui e
nome de uma teoria prévia do conhecimento, de uma teoria do ali no mundo. Nos Estados Unidos, exceto em algumas regiões
objeto ou de "modelos". Para nós, aqui, o objeto se inclui na do Sul, os camponeses virtualmente desapareceram; apenas
hipótese, ao mesmo tempo em que a hipótese refere-se ao persistem ilhotas de pobreza camponesa ao lado das ilhotas
objeto. Se esse "objeto" se situa além do constatável (empírico), de pobreza urbana. Enquanto esse aspecto do processo global
(industrialização e/ou urbanizaço) segue seu curso, a grande
nem por isso ele éfictício. Enunciamos um objeto virtual, a
sociedade urbana, ou seja, um objeto possivel, do qual teremos cidade explodiu, dando lugar a duvidosas excrescências: subúr
que mostrar o nascimento e o desenvolvimento relacionando-os bios, conjuntos residenciais ou complexos industriais, peque
nos aglomerados satélites pouco diferentes de burgos urba
a um processo e a uma práxis (uma ação prática). nizados. As cidades pequenas e médias tomam-se dependências,
Que essa hipótese deva ser legitimada, não deixaremos semicolônias da metrópole. Éassim que nossa hipóese impõe-se,
de reiterar e tentar. Os argumentos e provas em seu favor ao mesmo tempo como ponto de chegada dos conhecinentos
não faltam, das mais simples às mais sutis.
17
16
utilizando-se as palavras
adquiridos e comoponto de partida de um novo estucdo e cde Do mesmo modo, em seguida, das transfor
novos projetos: a urbanizaçào completa. Ahipótese a antecipa. "revoluç§o urbana", designaremos o conjunto
mações que a sociedade contemporânea atravessa para passar
Ela prolonga atendncia fundamental do presente. Aravés e do período en que predominam as questões de crescimento
no seio da "sociedacde burocrática de consumo dirigiclo" a programação) ao
sociedade urbana está em gestaçao. e de industrializaço (modelo, planificação,
prevalecerá decisiva
período no qual a problemáica urbana
e das modalidades pró
Argumento negativo, demonstração pelo absurdo: nenhuma mente, em que a busca das soluções
outra hipótese convém, nenhuma outra abarca o conjunto dos urbana passará ao primeiro plano. Entre as
prias à sociedade pre
problemas. Sociedade pós-industrial? Coloca-se uma questào: transformações, algumas serão bruscas. Outras graduais,
de lazeres? responder est1
oque vem depois da industrialização? Sociedade vistas, concertadas. Quais? Serápreciso tentar
Contenta-se conm uma parte da questão; limita-se o exame clas questão legítima. De antemão, não écerto que, para o pens1
tendências e virtualidades aos "equipamentos", atitude realista sem ambigüidade.
mento, a resposta seja clara, satisfatória,
que deixa intacta a demagogia dessa definiçào. Consumo As palavras "revolução urbana" nào designam, por
essência,
maciço aumentando indefinidanmente? Contenta-se em tomar ações violentas. Elas não as excluem. Como separar
anteci
os índices atuais e extrapolá-los, arriscando-se assim a reduzir padamente o que se pode alcançar pela aço violenta e o que
realidade e virtualidadesa um único de seus aspectos. E assim seria próprio
por diante. se pode produzir por uma ação racional? Não
da violência desencadear-se? E próprio ao pensamento reduzir
A expresso "sociedade urbana" responde a uma necessi a violência ao mínimo, começando por destruir os grilhões
dade teórica. Não se trata simplesmente de uma apresentação no pensamento?
literária ou pedagógica, nem de uma formalização do saber No que concerne ao urbanismo, eis duas balizas
no caminho
adquirido, mas de uma elaboração, de uma pesquisa, e mesmo que será percorrido:
de uma formação de conceitos. Um movimento do pensamento urba
em direção a um certo concretoetalvez para oconcreto se esboça a) muitas pessoas, desde alguns anos, têm visto no
a caráter científico e técnico. Nesse
e se precisa. Esse movimento, caso se confirme, conduzirá nis1mo uma práica social com
uma prática, a prática urbana, apreendida ou re-apreendicla. caso, a reflexão teórica poderia e deveria apoiar-se nessa
Sem dúvida, haveráum umbral a transpor antes de entrar no prática, elevando-a a0 nível dos conceitos e, mais precisa
concreto, isto é, na prática social apreendida teoricamente. mente, ao nível epistemológico. Ora, a ausência de uma tal
Não se trata, portanto, de buscar uma receita empírica para epistemologia urbanística é flagrante. Iremos aqui nos esforçar
fabricar este produto, a realidade urbana. Não éisso o que para preencher tal lacuna? Não. Com efeito, essa lacuna tem
freqüentemente se espera do "urbanismno" e o que muitas um sentido. Não seria porque o caráter institucionale ideoló
vezes os "urbanistas" prometem? Contra o empirismo que gico disso a que se chama urbanismo prevalece, até nova or
constata, contra as extrapolações que se aventuram, contra, dem, sobre o caráter científico? Supondo que esse procedi
enfim, o saber em migalhas pretensamente comestíveis, éuma mento possa se generalizar, e que oconhecimento sempre
teoria que se anuncia a partir de uma bipÛese teórica. A essa
passe pela epistemologia, o urbanismo contemporâneo parece
pesquisa, a essa elaboração, associam-se procedimentos de distante disso. É preciso saber por que e dizê-lo;
método. Por exemplo, a pesquisa concernente a um objeto
virtual, para defini-lo e realizá-lo a partir de um projeto, já b) tal como ele se apresenta, ou seja, como politica (com
tem um nome. Ao lado dos procedimentos e operações clássicas, esse duplo aspecto institucional e ideológico), o urbanismo
a deduçãoea indução, háatransdução (reflexo sobre o objeto condiciona-se a uma dupla crítica: uma crítica de direita e
possfve). uma crítica de esquerda.
O conceito de "sociedade urbana" apresentado anteriormente A critica de direita, ninguém a ignora, é de bom grado
implica, portanto, simultaneamente, uma hipótese euma definição. passadista, não raro humanista. Ela oculta e justifica, direta

18 19
ou indiretamente, uma
ideologia neoliberal, ou seja, a "livre lentamente secretado a realidade urbana, corresponde a uma
empresa". Ela abre o caminho a todas as iniciativas "privadas"
dos capitalistas e de seus capitais. ideologia. Ela generalizao que se passou na Europa por oca
siào da decomposição da romanidacde (do Império Romano)
A criticade esquerda, muitos ainda a ignoram, nào é e da reconstituição das cidades na Idade Média. Pocde-se muíto
aquela
pronunciada por esse ou aquele grupo, agremiaç'o, partido, bem sustentar o contrário. A agricultura somente superou a
aparelho, ou ideólogo classificados "à esquerda". E aquela coleta e se constituiu como tal sob o impulso (autoritário) de
que tenta abrir a via cdo possível, explorar e balizar um terreno centros urbanos, geralmente ocupados por conquistadores
que nào seja simplesmente aquele do "real", do realizado, hábeis, que se tornaram protetores, exploradorese
ocupado pelas forças econômicas,sociais e politicas existentes. isto é, administradores, fundadores de um Estadoopressores,
ou de um
E, portanto, uma crítica u-tópica, pois tona distância em relação esboço de Estado. A cidade politica acompanha, ou segue cle
ao "real", sem, por isso, perde-lo de vista. perto, o estabelecimento de uma vicda social organizada, cla
Dito isso, tracemos um eixO: agricultura e da aldeia.
Éevidente que essa tese não tem sentido quando se
trata
dos imensos espaços onde um seminomadismo, uma miserável
100%
agricultura itinerante sobreviveram interminavelmente. Écerto
que ela se apóia sobretudo nas análises e documentos relatívos
que vaida ausência de urbanização (a "pura natureza", a terra ao "modo de produção asiático", às antigas
civilizações cria
entregue aos "elementos") àculminação do processo. Signifi doras, ao mesmo tempo, de vida urbana e de vida agrária
cante desse significado o urbano (a realidade urbana)-, (Mesopotâmia, Egito etc.). A questão geral das relações entre
esse eixo éao mesmo tempo espacial etemporal: espacia!, a cidade e o campo estálonge de ser resolvida.
porque o processo se estende no espaço que ele modifica;
Arrisquemo-nos, então, a colocar a cidade política no eixo
temporal, uma vez que se desenvolve no tempo, aspecto de espaço-temporal perto da origem. Quem povoava essa cidade
início menor, depois predominante, da prática e da história. política? Sacerdotes e guerreiros, príncipes, "nobres", chefes
Esse esquema apresenta apenas um aspecto dessa história, militares. Mas também administradores, escribas. A cidade
um recorte do tempo até certo ponto abstrato e arbitrário, política não pode ser concebida sem a escrita: documentos,
dando lugar a operações (periodizações) entre outras, não ordens, inventários, cobrança de taxas. Ela é inteiramente
implicando em nenhum privilégio absoluto, mas numa igual ordem e ordenaço, poder. Todavia, ela também implica um
necessidade (relativa) em relação a outros recortes. artesanato e trocas, no mínimo para proporcionar os materiais
No caminho percorrido pelo "fenômeno urbano" (numa indispensáveis à guerra e ao poder (metais, couros etc.), para
palavra: o urbano), coloquemos algumas balizas. No início, o elaborá-los e conservá-los. Conseqüentemente, ela compreende,
que há? Populações destacadas pela etnologia, pela antropo de maneira subordinada, artesos, e mesmo operários. A
logia. Em torno desse zero inicial, os primeiros grupos humanos cidade política administra, protege, explora um território fre
(coletores, pescadores, caçadores, talvez pastores) marcaram e qüentemente vasto, aí dirigindo os grandes trabalhos agrícolas:
nomearam o espaço; eles o exploraram balizando-o. Indicaram drenagem, irrigação, construção de diques, arroteamentos etc.
oslugares nomeados, as topias fundamnentais. Topologia e grade Ela reina sobre um determinado número de aldeias. Aí, a pro
espacial que, mais tarde, os camponeses, sedentarizados,aper priedade do solo torna-se propriedade eminente do monarca,
feiçoaram e precisaram sem perturbar sua trama. O que importa símbolo da ordem e da ação. Entretanto, os camponeses e as
ésaber que em muitos lugares no mundo, e sem clúvicda em comunidades conservam a posse efetiva mediante opagamento
todos os lugares onde a história aparece, a cidade acompanhou de tributos.
ou seguiu de perto a aldeia. Arepresentaço segundo a qual o Nunca ausentes, a troca e o comércio devem aumentar. De
campo cultivado, a aldeia e a civilização camponcsa, teriam início confiados a pessoas suspeitas, os "estrangeiros", eles
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se fortalecem funcionalmente. Os lugares destinacdos à troca do sudoeste, na França, primeiras cidades a se constituírem
e ao comércio sào, de início, fortemente marcados por signos em torno da praça do mercado. Ironia da história. O fetichismo
da mercadoria aparece com o reino da mercadoria, com su:a
de beterolopia. Conmo as pesoas que se ocupam deles e os lógica e sua icdeologia, conm sua língua e seumundo. No século
oCupam, esses lugares sào, antes cle mais nada,excluíclos da XIV, acredita-se ser suficiente estabelecer um mercado e cons
cidade política: caravançaris, praças de nercado, faubougs truir lojas, pórticos e galerias ao redor d praça central, para
etc. O processo de integraçìo do mercacio e cla mercacdoria
(as pessoas e as coisas) à cidale cura séculos e séculos. A que os mercacdlores e compradores afluam. Senhores e bur
troca e o comércio, indispensiveis à sobrevivÁncia como à vicda, gueses edificam, então, cidacdes mnercantis nas regiões incultas,
quase desérticas, aincla atravessadas por rebanhos e seminô
suscitam a riqueza, omovimento. Acidade politica resistecom
toda asua força, com toda a sua coesao; ela sente-se, sibe-se mades transumantes. Tais cidades do sudoeste francês perecem,
ameaçada pelo mercado, pela mercacloria, pelos conmerciantes, apesar de terem os nomes de grandese ricas cités (Barcelona,
por sua forma de propriedade (a propriedade mobiliária, Bolonha, Plaisance, Florença, Gran1da etc.). De todo modo,
movente por definiçào: o dinlheiro). Inumeráveis fatos testemu a cidade mercantil tem seu lugar, no percurso, depois da cidade
nham a existência, ao lado da Atenas política, tanto da cicdacle política. Nessa data (aproximadamente no século XIV, na
comercial, o Pireu, quanto as interdiçòes em vào repeticas à Europa Ocidental), a troca comercial torna-se função urbana;
disposiçào de mercadorias na ágorn, espaço livre, espaço do essa função fez surgir uma forma (ou formas: arquiteturais e/ou
encontro politico. Quando Cristo expulsa os mercadores clo urbanísticas) e, em decorrência, uma nova estrutura do espaço
templo, trata-se da mesma interdição, com o mesmo sentido. urbano. As transformações de Paris ilustram essa complexa
Na China, no Japão, os comerciantes permanecem durante interação entre os três aspectos e os três conceitos essenciais:
longo tempo na baixa classe urbana, relegada num bairro função, forma, estrutura. Os burgos e faubourgs, inicialmente
"especializado" (heterotopia). Em verdade, éapenas no Ocidente comerciais e artesanais Beaubourg, Saint-Antoine, Saint
europeu, no final da Idade Média, que a mercadoria, o mercaclo Honoré tornam-se centrais, disputando a influência, o pres
e os mercadores penetram triunfalmente na cidade. Pode-se
tígio e o espaço com os poderes propriamente políiticos (as
conceber que outrora os mercadores itinerantes, um pouco instituições), obrigando-os a compromissos, participando com
guerreiros, um pouco saqueadores, escolheram deliberada eles da constituição de uma poderosa unidade urbana.
mente as ruínas fortificadas das cidades antigas (romanas) Num determinado momento, no Ocidente europeu, tem
para levaracabo sua luta contra os senhores territoriais. Nesta lugar um "acontecimento" imenso e, entretanto, latente, se
hipótese, a cidade política, renovada, teria servido de quadro se pode dizer, porque despercebido. O peso da cidade no con
à ação que iria transformá-la. No curso dessa luta (de classes)
contra os senhores, possuidores e dominadores do território, junto social torna-se tal que o próprio conjunto desequilibra-se.
luta prodigiosamente fecunda no Ocidente, criadora de una A relação entre a cidade eocampo ainda conferia a primazia a
históriae mesmo de história tout court, a praça do mercado este último: àriqueza imobiliária, aos produtos do solo, às
torna-se central. Ela sucede, suplanta, a praça cda reunião (a pessoas estabelecidas territorialmente (possuidores de feudos
ágora, o fórum). Em torno do mercado, tornado essencial, ou de títulos nobiliários). A cidade conservava, em
relação aos
agrupam-se a igreja ea prefeitura (ocupada por uma oligarquia campos, um caráter heterotópico marcado tanto pelas muralhas
de mercadores), com sua torre ou seu campanário, símbolo de quanto pela transição dos faubourgs. Num dado momento,
liberdade. Deve-se notar que a arquiletura segue e traduz a essas relações múltiplas se invertem, há uma reviravolta. No
nova concepção da cidade. O espaço urbano torna-se o lugar eixo deve ser indicado o momento privilegiado dessa
do encontro das coisas e das pessoas, da troca. Ele se
menta dos signos dessa liberdade conquistacla, que
orna volta, dessa inversão da heterotopia. Desde entào, a revira
parece a não aparece mais, nem mesmO para si cidade
Liberdade. Luta grandiosa e irrisória. Nesse sentido, houve urbana num oceano camponês; ela nãomesma, como uma ilha
razåo em estudar, dancdo-Ihes um valor simbólico, as "bastides! mesma como paradoxo, monstro, infernoaparece mais para si
ou paraíso oposto
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à natureza alde ou camponesa. Ela entra na consciência e olhar, ao mesmotempo ideal e realista do pensamento, do
no conhecimento como um dos termos, igual ao outro, cla poder, situa-se na dimenso vertical, a do conhecimento e
da razão, para dominar e constituir uma totalidade: a cidade.
oposição "cidade-campo. O
campo? Não émais - nàoénada Essa inflexão da realidade social para o urbano, essa des
mais que a "circunvizinhanca" da cidade, seu horizonte,
seu limite.As pessoas da aldeia? Segundo sua própria maneira continuidade (relativa) pode perfeitamente ser indicada no
de ver, deixam de trabalhar para os senhores territoriais. Pro eixo espaço-temporal, cuja continuidade permite justamente
situar e datar cortes (relativos). Bastará traçar uma mediana
duzem para a cidade, para o mercado urbano. E, se sabenm que entre o zero inicial e o número final (por hipótese, cem).
os mercadores de trigo ou madeira os exploram, encontram
porém no mercado o caminho da liberdade. Essa inverso de sentido nào pode ser dissociada do cres
pessoas cimento do capital comercial, da existência do mercado. Éa
Oque se passa próximo a esse momento crucial? As cidade comercial, implantada na cidade política, mas prosse
que refletem nào mais se vêem na natureza, mundo tenebroso guindo sua marcha ascendente, que a explica. Ela precede
atormentado por forças misteriosas. Entre eles e a natureza, um pouco a emergência do capital industrial e, por conse
o
entre seu centro e núcleo (de pensamento, de existência) e guinte, a da cidade industrial. Este conceito merece um
mundo, instala-se a mediação essencial: a realidade urbana. comentário. A indústria estaria vinculada à cidade? Ela estaria,
com o
Desde esse momento, a sociedade no coincide mais antes de mais nada, ligada à não-cidade, ausência ou ruptura
coincide mais com a cité. O Estado os subjug.,
campo. Não da realidade urbana. Sabe-se que inicialmente a indústria se
OS reúne na sua hegemonia, utilizando
suas rivalidades. Para
se anuncia implanta como se diz próxima às fontes de energia
os contemporâneos, entretanto, a majestade quepor atributo? (carvo, água), das matérias-primas (metais, têxteis), das
velada. A quem se confere a Razão
Ihes aparece a razão reservas de mão-de-obra. Se ela se aproxima das cidades, é
ÅRealeza? Ao divino Senhor? Ao indivíduo? Contudo, é para aproximar-se dos capitais e dos capitalistas, dos mercados
que se restabelece após a ruína de Atenas e de Roma,
da Cité e de uma abundante mão-de-obra, mantida a baixo preço.
essenciais, a lógica e
após o obscurecimento de suas obras Logo, ela pode se implantar em qualquer lugar, mas cedo ou
mas o seu renascimento não é
o direito. O Logos renasce; tarde alcança as cidades preexistentes, ou constitui cidades
a uma razão
atribuído ao renascimento do urbano, e sim novas, deixando-as em seguida, se para a empresa industrial
transcendente. O racionalismo que culmina com Descartes
camponesa háalgum interesse nesse afastamento. Assim como acité política
acompanha a inversão que substitui a primazia resistiu durante longo tempo à ação conquistadora, meio pací
Durante esse
pela prioridade urbana. Ele não se vê como tal. fica, meio violenta, dos comerciantes, da troca e do dinheiro,
nasce a imagem da cidade. A cidade já
período, entretanto, a cidade política e comercial se defendeu contra o domínio
poderes. Ela já
detinha a escrita; possuía seus segredos e (ingênua e da indústria nascente, contra o capital industrial e o capita
opunha a urbanidade (ilustrada) à rusticidade
tem sua lismo tout court. Por que meios? Pelo corporativismo, a imo
brutal). A partir de um determinado momento, ela bilização das relações. O continuísmo histórico e o evolucio
própria escrita: o plano. Não entendamos por isso a planifi nismo mascaram esses efeitos e essas rupturas. Estranho e
cação ainda que ela também se esbocemas a planimne
precisamernte essa admirável movimento que renova o pensamento dialético: a
tria. Nos séculos XVIe XVII, quando ocorre não-cidade e a anticidade vão conquistar a cidade, penetrá-la,
inversão de sentido, aparecem, na Europa, os planos de cida
primeiros planos de Paris. Ainda não fazê-la explodir, e com isso estendê-la desmesuradamente,
des e, sobretudo, os levando à urbanização da sociedade, ao tecido urbano reco
projeção do espaço urbano num espa
são planos abstratos, entre a visão e brindo as remanescências da cidade anterior à indústria. Se
ço de coordenadas geométricas. Combinação esse extraordinário movimento escapa àatenção, se ele foi
planos mostram a
a concepção, obras de arte e de ciência, os descrito apenas fragmentariamente, éporque os ideólogos
cidade a partir do alto e de longe, em perspectiva, ao mesmo quiseram eliminar o pensamento dialético e a análise das
geometricamente. Um
tempo pintada, representada, descrita
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Contradições em tavor do pensamento lógico, ou seja, da reagem sobre elas. Bem entendido, se há uma realidade
constataçào das coerências e tào-somernte das coerências. urbana que se afirma e se confirma como dominante, isso Sóse
dá atravésda problemática urbana. Que fazer? Como construir
Nese movimento, a realidade urbana, ao mesmo tempo ampli cicdades ou "alguma coisa" que suceda o que outrora foi a
ficada e estilhaçada, perde os traços que a época anterior lhe Cidade? Como pensar o fenômeno urbano? Como formular, clas
atribuía: totalidade orgânica, sentido de pertencer, imagem sificar, hierarquizar, para resolv-las, as inumeráveis questões
enaltecedora, espaço demarcado e dlominado pelos esplen que ele coloca e que dificilmente passam, não sem múltiplas
dores monumentais. Ela se povoa com os signos do urbano na resistências, ao primeiro plano? Quais os progressos deci
dissoluç§o da urbanidade; torna-se estipulação, ordem repres sivos a serem realizados na teoria e na ação prática para que
s0va, inscriçào por sinais, códigos sumários de circulação (per aconsciência alcance o nível do real que a ultrapassa e do
cursos)e de referência. Ela se lê ora como um rascunho, ora
possível que lhe escapa?
Como uma mensagem autoritária, Ela se declara mais ou menos
imperiosamente. Nenhum desses termos descritivos dá conta Assim se baliza o eixo que descreveo processo:
completamente do processo histórico: a implosão-exploso
(metáfora emprestada da fisica nuclear), ou seja, a enorme
concentração (de pessoas, de atividades, de riquezas, de coisas Ciclade Zon:a
Cidade
e de objetos, de instrumentos, de meios e de pensamento) na Cidade
comercial industrial crítica
política
realidade urbana, e a imensa explosão, a projeção de frag
mentos múltiplos e disjuntos (periferias, subúrbios, residências 100%

secundárias, satélites etc.).


A cidade industrial (em geral uma cidade informe, uma inflexão
do agrário
aglomeração parcamente urbana, um conglomerado, uma para o urbano
"conurbação", como o Ruhr) precede e anuncia a zona crítica. implosão-explosão
Nesse momento, a implos§o-explosão produz todas as suas (concentração urbana,
conseqüências. O crescimento da produção industrial super êxodo ural, extensâo
põe-se ao crescimento das trocas'comerciais e as multiplica. do tecido urbano, subordinação
completa do agrário ao urbano)
Esse crescimento vai do escambo ao mercado mundial, da
troca simples entre dois indivíduos atéa troca dos produtos,
das obras, dos pensamentos, dos seres humanos. A comprae
a venda, a mercadoria e o mercado, o dinheiro e o capital O que se passa durante a fase critica? Esta obra tenta res
parecem varrer os obstáculos. No curso dessa generalização, ponder a esta interrogação, que situa a problemática urbana
por suavez, a conseqüência desse prOcesso a saber: a reali no processo geral. As hipóteses teóricas que permitem traçar
dade urbana torna-se causa e razão. O induzido torna-se um eixo, apresentar um tempo orientado, transpor a zona
dominante (indutor). Aproblemática urbana impõe-se à escala crítica pelo pensamento, indo além dela, permitem apreender
mundial. Pode-se definir a realidade urbana como uma "superes oque se passa? Talvez. Já podemos formular algumas supo
trutura", na superficie da estrutura econômica, capitalista ou sições. Dá-se salvo prova em contrário uma segunda
socialista? Como um simples resultado do crescimento e das inflexão, uma segunda inversão de sentido e de situação. A
forças produtivas? Como uma modesta realidade, marginal industrialização, potência dominante e coativa, converte-se em
em relação àprodução? Não! A realidade urbana modifica as realidade dominada no curso de uma crise profunda, às custas
relações de produção, sem, aliás, ser suficiente para transfor de uma enorme confusão, na qual o passado e o possível, o
má-las. Ela torna-se força produtiva, como a ciência. Oespaço melhor e o pior se misturam.
e a política do espaço "exprimem" as relações sociais, mas
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26
Todavia, a
do crescimento das trocas e da produção industrial.
Essa hipótese teórica concernente ao possível e à sua problemática urbana não pode absorver todos os problemas.
relação com o atual (o "real") nào poderia levar a esquecer
A agricultura e a indústria conservam os seus problemas pró
que a entrada na SOCiedade urbana e as modalicdades da prios, mesmo se a realidade urbana os
modifica. Ademais, a
urbanização dependem das características da sociedade problemática urbana não permite ao pensamento lançar-se
considerada no curso da industrialização (neocapitalista ou Cabe ao analista
na exploraçào do possível sem precaução.
Socialista, em pleno crescimento econômico ou já altamente
urbana,
descrever e discernir tipos de urbanizaçãoedizer no que se
transfor
técnica). As diferentes fomas de entrada na sociedacde tornaram as formas, as funçòes, as estruturas urbanas
diferenças iniciais, madas pela explosào da cidade antiga e pela urbanização gene
as implicações e conseqüências dessas urbano
fazem parte da problemática concernente ao fenômeno"cicdacde", ralizada. Até o presente, a fase crítica comporta-se como uma
ou "o urbano". Esses termos sào preferíveis à palavra "caixa preta". Sabe-se o que nela entra; às vezes percebe-se
que parece designar um objeto
definido e definitivo, objeto oque dela sai. Não se sabe bem o que nela se passa. Isso
dado para a ciência e objetivo imediato para a ação,
enquanto condena os procedimentos habituais da prospectiva ou da
abordagem teórica reclama inicialmente uma crítica desse projeção, que extrapolam a partir do atual, ou seja, a partir
a
um objeto virtual
"objeto"e exige anoção mais complexa de perspectiva, de uma constatação. Projeção e prospectiva têm uma base
uma determinada apenas numa ciência parcelar: na demografia,
oU possível. Noutros termos, n§o há, nessa
urbana etc.) por exemplo, ou então na economia política. Ora, o que está
ciência da cidade (sociologia urbana, economiaglobal, assim
processo em questão, "objetivamente", é uma totalidade.
mas um conbecimento em formação do
como de seu fim (objetivo e sentido). Para mostrar a profundidade da crise, a incerteza e a per
O urbano (abreviação de
"sociedade urbana") define-se plexidade que acompanham a "fase crítica", pode-se efetuar
relação à
situada, em uma confrontação. Exercício de estilo? Sim, mas um pouco mais
portanto não como realidade acabada,
realidade atual, de maneira recuada no tempo, mas, ao con que isso. Eis alguns argumentos a favor e contra a ua, a favor e
virtualidade iluminadora. O contra o monumento. Deixemos para depois as argumentações:
trário, como horizonte, como
urbano éo possível, definido por uma direção, no fim do per a favore contra a natureza, a favor e contra a cidade, a favor e
curso que vai em direç§o a ele. Para atingi-lo, isto é, para Contra o urbanismo, a favor e contra o centro urbano...
os obs
realizá-lo, é preciso em princípio contornar ou romper
conhecimento Afavor da rua. Não se trata simplesmente de um lugar de
tornam impossivel. O
táculos que atualmente o passagem e circulação. A invasão dos automóveisea pressão
ação, no
teórico pode deixar esse objeto virtual, objetivo da dessa indústria, isto é, do lobby do automóvel, fazem dele um
abstrato unica
abstrato? Não. De agora em diante, o urbano é objeto-piloto, do estacionamento uma obsessåo, da circulação
legítima. O
mente sob o título de abstração cientifica, isto é, base um objetivo prioritário, destruidores de toda vida social e
Conhecimento teórico pode e deve mostrar o terreno e a urbana. Aproxima-se o dia em que será preciso limitar os
marcha, a
sobre os quais ele se funda: uma práica social em direitos e poderes do automóvel, não sem dificuldades e des
constituição, apesar dos obstáculos
prática urbana em via de truições. A rua? É o lugar (topia) do encontro, sem o qual nào
esteja velada
que a ela se opõem. Que atualmente esta prática existem outros encontros possíveis nos lugares determinados
apenas fragmentos da realidade
e dissociada, que hoje existam crítica. Que
(cafés, teatros, salas diversas). Esses lugares privilegiados
e da ciência futuras, esse é um aspecto da fase animam arua e são favorecidos por sua animação, ouentão
nesta orientação exista uma saída, que existam soluções para nãoexistem. Na rua, teatro espontâneo, torno-me espetáculo
Em suma, o
a problemática atual, é o que é preciso mostrar. e espectador, às vezes ator. Nela efetua-se o movimento, a
virtual não éoutra coisa que a sociedade planetária e
objeto mistura, sem os quais não há vida urbana, mas separação,
a "cidade mundial", além de uma crise mundial e planetária
fronteiras segregação estipulada eimobilizada. Quando se suprimiu a
da realidade e do pensamento, além das velhas rua (desde Le Corbusier, nos "novos conjuntos"), viu-se as
traça das desde o predomínio da agricultura, mantidas no cUrso
29
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sobre o uso, até reduzi-lo a um resíduo. De tal modo que a
conseqüèncias: a extinção da vida, a reduçao cla "cicdade" a crítica da rua deve ir mais longe: a rua torna-se o lugar privi
dormitório, a aberrante funcionalizaçao da existência. A rua legiado de uma repressão, possibilitada pelo caráter "rel"
Contém as funçòes negligenciadas por Le Corbusier: a funçao clas relações que afse constituem, ou seja, ao mesmo tempo
informativa, a função simbólica, a funçào lúdica. Nela joga-se, débil e alienado-alienante. A passagen na rua, espaço de
nela aprende-se. A rua é a desorden? Certamente. Todos os comunicação, éa uma sóvez obrigatóriae reprinida. Em caso
elementos da vida urbana, noutra parte congelados numa de ameaça, a primeira imposição do poder é a interdiçào à
ordem imóvel e redundante, liberam-se e afluem às ruas e por permanência e à reunião na rua, Se a rua pôde ter esse sentido,
elas em direçào aos centros; aí se encontram, arrancacdos cle o encontro, ela o perdeu, e não pôde senão perd-lo, con
seus lugares fixos. Essa desordem vive. Informa. Surpreende. vertendo-se numa redução indlispensável à passagem solitária,
Além disso, essa desordem constrói uma ordem superior. Os cindindo-se em lugar de passagem de pedestres (encurralados)
trabalhos de Jane Jacobs mostraram que nos Estados Uniclos e le automóveis (privilegiados). A rua converteu-se em rede
a rua (movimentada, freqüentada) fornece a única segurança organizada pelo/para o consumo. A velocidade da circulação
possivel contra a vìolência criminal (roubo, estupro, agressåo). de pedestres, ainda tolerada, éaí determinada e demarcada
Onde quer quea rua desapareça, a criminalidade aumenta, se pela possibilidade de perceber as vitrinas, de comprar os
organiza. Na rua, e por esse espaço, um grupo (a própria objetos expostos. O tempo torna-se o "tempo-mercadoria"
cidade) se manifesta, aparece, apropria-se dos lugares, realiza (tempo de compra e venda, tempo comprado e vendido). A
um tempoespaço apropriado. Uma tal apropriação mostra que rua regula o tempo além do tempo de trabalho; ela o submete
o uso e o valor de uso podem dominar a troca e o valor
de ao mesmo sistema, o do rendimento e do lucro. Ela não é
troca. Quanto aO 2Contecimento revolucionário, ele geralmente mais que a transição obrigatória entre o trabalho forçado, os
OcoTe na rua. Isso n§o mostra também que sua
desordem lazeres programados e a habitaç§o como lugar de consumo.
engendra uma outra ordem? O espaço urbano da rua não éo A organizaçào neocapitalista do consumo mostra sua força
lugar da palavra, o lugar da troca pelas palavras e signos, na rua, que nãoé só a do poder (político), nem a da represso
assim como pelas coisas? Não éolugar privilegiado no qual se (explícita ou velada). A rua, série de vitrinas, exposição de
escreve a palavra? Onde ela pôde tornar-se "selvagem" e inscre objetos à venda, mostra como a lógica da mercadoria éacompa
ver-se nos muros, escapando das prescrições e instituições? nhada de uma contemplação (passiva) que adquire o aspecto e
Contra arua Lugar de encontro? Talvez, mas quais encon a importância de uma estética e de uma ética. A acumulação
tros? Superficiais. Na rua, caminha-se lado a lado, não se dos objetos acompanha a da populaço e sucede a do capital;
encontra. Éo"se que prevalece. A rua não permite a consti ela se converte numa ideologia dissimulada sob as marcas
tuição de um grupo, de um "sujeito", mas se povoa de um do legívele do visível, que desde entào parece ser evidente. E
amontoado de seres em busca. De quê? O mundo da merca assim que se pode falar de uma colonização do espaço urbano,
doria desenvolve-se na rua. A mercadoria que não pôde que se efetua na rua pela imagem, pela publicidade, pelo
confinar-se nos lugares especializados, os mercados (praças,..), espetáculo dos objetos: pelo "sistema dos objetos" tornados
invadiu a cidade inteira. Na Antigüidade as ruas eram apenas símbolos e espetáculo. Auniformização do cenário, visível na
anexos dos lugares privilegiados: o templo, o estádio, a ágora, modernização das ruas antigas, reserva aos objetos (merca
dorias) os efeitos de cores e formas que os tornam atraentes.
o jardim. Mais tarde, na Idade Média, o artesanato ocupava as
ruas. O artesão era, ao mesmo tempo, produtor e vendedor. Em Trata-se de uma aparência caricata de apropriação e de reapro
seguida, os mercadores, que eram exclusivamente mercadores, priação do espaço que opoder autoriza quando permite a
tornaram-se os mestres. A rua? Uma vitrina, um desfile entre as realização de eventos nas ruas: carnaval, bailes, festivais fol
lojas. Amercadoria, tornada espetáculo (provocante, atraente), clóricos. Quanto àverdadeira apropriação, a da "manifestação"
transforma as pesSoas em espetáculo Umas para as outras. Nela, efetiva, é combatida pelas forças repressivas, que comandam o
silêncioeo esquecimento.
maisque noutros lugares, a trOca e o valor de troca prevalecem
31
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C A P
Contra o monumento, omonumento é essencialmente
repressivo. Ele é a sede de uma instituição (a Igreja, o Estado,
2Univers0dade). Se cle organiza em tomo de si um cspaço,
para colonizá-lo e oprimi-lo. Os grandes monumentos foram
erguidos àglória dos conquistadores, dos poderosos. Mais 0CAMPO CEGO
raramente à glória dos nmortos e da beleza morta (o Tadj
Mahall..). Construiam-se palácios e túmulos. A infelicicdade
ao passo
da arquitetura é que ela quis erguer monunmentos,
monumentos,
que o habitar" foiora concebido à imagem dosmonumental ao O método utilizado nesta exposição não é histórico na
ora negligenciado. A extensào do espaço acepção habitual desse termo. Apenas aparentemente tomamos
uma cat£strofe, aliás oculta aos olhos dos
habitar sempre
monumental éformal. o objeto "cidade" para descrever e analisar sua gênese, suas
que a suportam. Com efeito, oesplendor modificações, suas transformações. Em verdade, colocamos
monumento sempre esteve repleto de símbolos, ele os
E se o
contemplaçào (passiva) no primeiramente o objeto virtual, o que nos permitiu traçar o
oferece àconsciência social e à
perdem seu eixo espaço-temporal. O futuro iluminou o passado, o virtual
momento em que esses simbolos, jáem desuso, permitiu examinar e situar o realizado. a cidade industrial.
sentido. Tal é o caso dos simbolos da revolução no Arco do
ou melhor, o estilhaçamento da cidade pré-industrial e pré
Triunfo napoleônico. capitalista sob o impacto da indústria e do capitalismo, que
vida coletiva
Afavordo monumento. Éoúnico lugar de controla, é permite compreender suas condições, seus antecedentes, a
(social) que se pode conceber e imaginar. Se ele saber, a cidade comercial; esta, por sua vez, permite apreender
caminham juntas. Os
para reunir. Beleza e monumentalidade a cidade política à qual se superpôs. Como Marx pensava, o
catedrais), e
grandes monumentos foram trans-funcionais (as e adulto compreende, como sujeito (consciência), e permite
poder ético
mesmo trans-culturais (os túmulos). Daí seu conhecer, como objeto real, seu ponto de partida, seu esboço,
mundo
estético. Os monumentos projetam uma concepção de talvez mais rico e complexo que ele próprio, a saber: a criança.
nele projeta
no terreno, enquanto a cidade projetava e ainda Embora complexae opaca, é asociedade burguesa que permite
a vida social (a globalidade). No próprio seio, às vezese no compreender as sociedades mais transparentes, a sociedade
reconhecem se
próprio coração de um espaço no qual se antiga e a sociedade medieval. Não o contrário. Um duplo
banalizam os traços da sociedade, os monumentos inscrevem movimento impõe-se ao conhecimento, desde que existem
u-tópicos.
uma transcendência, um albures. Eles sempre foramn tempo e historicidade: regressivo (do virtual ao atual, do atual
em profundidade, numa outra
Eles proclamavam, em altura ou ao passado) e progressivo(do superadoe do finito ao movimento
dimensão que a dos percursos urbanos, seja o dever, seja o que declara esse fim, que anuncia e faz nascer algo novo).
poder, seja o saber, a alegria, a esperança.
O tempo histórico pode ser. recortado (periodizado) segundo
os modos de produção: asiático, escravista, feudal, capitalista,
socialista. Esse recorte tem certas vantagens e alguns incon
venientes. Quando é levado longe demais, quando se insiste
nos cortes, nas características internas de cada modo de pro
dução, na coesão de cada um como totalidade, a passagem
de um a outro torna-se ininteligivel, no exato momento em
que se destaca e se acentua a inteligibilidade de cada um
tomado separadamente. Não há dúvida que cada modo de
produção "produziu" (não como uma coisa qualquer, mas como

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