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Alagoinhas-BA
2015
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
Alagoinhas-BA
2015
ELIZIA DE SOUZA ALCÂNTARA
Alagoinhas-BA
2015
TIRAS EM QUADRINHOS DA TURMA DO XAXADO:
imagens desviantes
Esta dissertação foi julgada para obtenção do título Mestre em Crítica Cultural. Área de
concentração em Letras e aprovada em sua forma final pelo curso de Pós-Graduação em
Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Campus II.
_____________________________________
Prof.ª Dr.ª Edil Silva Costa
Coordenadora do Pós-Crítica/
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Prof.º Dr.º Roberto Henrique Seidel
Presidente da Banca
______________________________________
Prof.ª Dr.ª Patrícia Kátia da Costa Pina
Examinador interno (UNEB)
______________________________________
Prof.ª Dr.ª Flávia Aninger de Barros Rocha
Examinador Externo (UEFS)
SUPLENTES
______________________________________
______________________________________
Claudio Cledson Novaes(UESF)
DEDICATÓRIA
Primeiro Deus.
Depois a leitura.
A sabedoria.
Tudo é depois.
Ao meu pai Antonio (in memoriam) que carinhosamente me chamava de “minha índia” e
“meu cheiro”. Obrigada por me mostrar o lado lúdico da vida.
Ao amigo Antonio Cedraz (in memoriam) pelo acolhimento, força e vontade de viver.
AGRADECIMENTOS
À João Assis meu amigo, compadre e parceiro de sonhos pelas altas gargalhadas e incentivo
sempre. (in memoriam)
Á minha filha Elis Marcela pela paciência e apoio nas horas de formatar as tiras em
quadrinhos. Sua parceria me fez caminhar com mais entusiasmo.
Ao meu filho Everton Marcel pela confiança no meu trabalho e pelo abraço na hora em que
mais precisava.
Á minha sobrinha Mara, minha “pró” das regras da ABNT. Sua disponibilidade na construção
dessa pesquisa foi de extrema importância. Sem ela, teria naufragado...
Ao meu sobrinho Antonio Leonardo pelos “papos” filosóficos sobre a vida e a educação.
Á minha apoiadora Sandra. A sua pergunta diária “E aí, pró? Já terminou o texto? indicava-
me que precisava escrever.
Á minha amiga Cristina pelos encontros terapêuticos em sua casa e pela calmaria que me
proporciona.
Á Evanildes por ter-me “adotado” durante todo o curso. A sua presença me fortaleceu nessa
caminhada.
Á Gislene pela alegria, doses de humor e apoio nas horas tão necessárias.
Ao meu professor orientador Roberto Seidel pelo apoio e tranqüilidade durante todo o meu
processo de escrita. A sua frase célebre “vai dá tudo certo” me acalentou nas horas de
angústia e dúvida.
Il existe dans la contemporanéité des nouvelles formations discursives qui sont installées
dans le domaine esthétique-culturelle. Elles engendrent des nouvelles singnifications à la
textualité. Ainsi, la langage des bandes dessinneés y montre comme une « machine narrative »
dans laquelle, le jeux conbinatoire entre le mot et l‟image mis en scéne des plusieurs histoires
en configurant de cette façon, ; comme un lieu de représentation et résistance.Ce memoire de
master présenté au programme des études superiéurs en Critique Culturelle propose
d‟analyser la musere dans lequelle le discours de la bande desinné discute le lien entre la
langage, la culture et le signe du capital dans la société contemporaine. Donc, certaines
questions sont soulevées: Quelles sont les sens fixes attribués aux bandes dissinées ?
Comment le livre didactique reconnaît les bandes dessinées ? De quelle manière le lecteur
contemporain réceptionne les narratives d‟imageries? C „est possible créer des alternatives
pour renforcer un nouveau lecteur d‟images dans les écoles brésiliennes ? Partant, la voie
méthodologique a comme référence la recherche quantitative qui est articulé avec la recherche
documentaire des histoires de la bandes dessinées publiées dans les revues « TURMA DE
XAXADO » creés par l‟ecrivain de Bahia, Antonio Cedraz entre 1999 a 2006 et dans la
collection des livres didactiques « Lendo et Interferindo » élaborée par Anna Frascolla, Aracy
S. Fér e Naura S. Paes en 1999 qui sont destinés au éleves de l‟école élémentaire. Alors, il est
prévu d‟élargir le débat autour de la puissance narrative de la bande dessinée dans le scénario
contemporain qui porte la production d'images pour le domaine de la «lecture déviante."
CONSIDERAÇÕES (IN)FINITAS.................................................................................144
REFERÊNCIAS...............................................................................................................148
INTRODUÇÃO
Foi ao repensar a minha vida que decidi, depois de 12 anos afastada, regressar ao
ambiente acadêmico. Recordo com propriedade o curso que fiz de Especialização em Estudos
Literários, em 1999 , na Universidade Estadual da Bahia/UNEB, campus II, em Alagoinhas.
De lá pra cá, tantas outras narrativas e histórias transitaram no meu caminho como sujeito do
conhecimento, inquieta e desejosa por novos (re) encontros. E foi o que aconteceu...
No ano de 2012, busquei coragem e decidi: prestarei seleção para aluna especial no
mestrado em Crítica Cultural, curso que já namorava há muito tempo. Fui aprovada na
disciplina Literatura, Cultura e Modos de Produção. Nesse período, fui me apropriando da
proposta pedagógica e já articulava conexões entre os conhecimentos adquiridos e meu objeto
de estudo, definido antes mesmo de me tornar aluna regular. Com o apoio de alguns
professores e incentivo dos estudantes da turma regular, cheguei à conclusão de que não
ficaria de fora do processo seletivo.
Após o estado de euforia, surgiu uma série de questionamentos, como: e agora? Como
enfrentar as disciplinas e atividades se não vivenciei o processo de iniciação científica, a
construção e publicação de artigos, a participação mais efetiva em congressos e anais? De que
forma cumprirei a creditação total se não me vejo embasada nas leituras que fundamentam as
análises teóricas do curso? Enfim, como me posicionar diante de um curso que tem como
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finalidade preparar “pessoal de alta qualificação e capacidade crítica, criadora e inovadora”,
conforme diz o regimento do programa?
Na disciplina Teorias e Críticas Culturais, a minha reflexão sobre o que é cultura foi
expandida a partir do instante em que desnaturalizamos noções sobre a prática da linguagem,
as produções culturais e os modos de produção capitalista. A problematização em torno de
que “nada é evidente, nada é gratuito, tudo é construído” (BACHELAR, 1966) nos fez
ressignificar a maneira de percebermos as relações sociais e questionarmos o que há por trás
das representações forjadas pela ideologia dominante. Sair do campo de uma visão natural e
linear dos acontecimentos para uma posição analítico-reflexiva diante da produção do saber.
No âmbito do estético, refletimos sobre o percurso da teoria literária e abrimos o debate em
torno importância da teoria como práxis na formação do pesquisador em Crítica Cultural.
Nesse sentido, a teoria nos faz pensar sobre o mundo e reposicionar noções, valores e atitudes.
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O debate desses aspectos foi ampliado com base no roteiro de análise organizado a
partir das seguintes perguntas: o que é? Como é? Por que é? Para que é? Quando é? Quem é
que é? O propósito desse mapa era engendrar uma revolução do pensamento considerando
que o primeiro passo para se tornar um crítico cultural é desconstruir a noção de signo e as
fronteiras binárias. Assim, o meu anteprojeto sofreu deslocamentos necessários e
significativos. Pensar sobre as produções culturais exige de nós, estudantes, uma releitura
frente às representações do significante forjadas como essência pura das palavras, com
sentidos fixados arbitrariamente e normatizadas pelas relações de força.
Diante disso, ao redefinir o meu anteprojeto descobri (escapar das sombras é preciso!)
que o deslocamento não se deu apenas no campo de investigação, mas principalmente na
minha posição como sujeito/leitor. Confesso que por diversas vezes considerei as trilhas
escolhidas como perigosas, violentas e inquietantes. Mas o que fazer? Estava lançada a
viagem e não podia regressar.
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E o tirocínio docente? Do meu ponto de vista, a atividade mais envolvente e produtiva.
Ressalto a necessidade de reavaliação dos trâmites legais a fim de tornar mais claro e coeso as
fases de participação nessa atividade. Assim, fiquei responsável em realizar o tirocínio na
disciplina O Estético e o Lúdico na Literatura Infanto-Juvenil, com carga horária de 60 horas,
na turma do 3º semestre, sob a orientação da Professora Regente Dulciene A. de Andrade.
E assim, as rotas do meu percurso acadêmico foram delineadas. Germinou o que agora
apresento como título da minha pesquisa: As tiras em quadrinhos da Turma do Xaxado:
imagens desviantes. Esse encontro com os quadrinhos floresceu há muito tempo, na minha
infância em Pojuca. Meus pais foram os meus incentivadores. Com eles aprendi duas
máximas: viver intensamente tudo o que me proponho a fazer e não perder o lado
“brincalhão” da vida.
Meu pai Antonio (in memoriam) despertou em mim o prazer pelas imagens. Recordo-
me de uma coleção – de capa dura esverdeada – de contos de fadas que ele comprou quando
tinha por volta de 4 a 5 anos. Nesse tempo, não sabia ler, mas isso não foi impedimento. Meus
finais de tarde eram destinados a ler os desenhos das histórias. Uma personagem me
fascinava: a sereia, do conto A Pequena Sereia, de Hans Christian. O colorido das imagens, o
fantástico ser parte mulher, parte peixe, as aventuras no mar e em terra, etc., tudo era lido com
os olhos e muito entusiasmo. Comecei a ler o mundo por meio das imagens, antes mesmo de
aprender o alfabeto, as palavras, etc.
Assim, falar dos quadrinhos é, indubitavelmente, refletir sobre a minha vivência com a
leitura e o meu papel como professora da área de Língua Portuguesa. Ler para mim sempre foi
desde a infância, uma prática prazerosa e instigante. E durante a minha trajetória como leitora,
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fui seduzida pelas imagens. Elas me contavam narrativas e davam múltiplos sentidos às
minhas experiências com o ato de ler. Ao mesmo tempo em que me convidavam a reinventar
a minha relação com e no mundo. Da leitora à professora, os quadrinhos sempre transitaram
nos espaços da minha casa, nas horas de leitura com os filhos e nas escolas em que trabalho.
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do livro didático Lendo e Interferindo elaborada pelas autoras Anna Frascolla, Aracy S. Fér e
Naura S. Paes, em 1999, destinada aos estudantes do Ensino Fundamental II e publicado pela
Editora Moderna, recurso pedagógico utilizado durante os 3(três) anos em que trabalhei no
Colégio Municipal Presidente Castelo Branco, em Pojuca, de 1999 a 2001, nas 5ª e 6ª séries.
Nesse período, já me preocupava a maneira como as tiras em quadrinhos se apresentavam no
ambiente educativo.
Para tecer reflexões sobre o problema formulado, a pesquisa foi sistematizada em três
capítulos.
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No espaço destinado às considerações finais, analiso os resultados obtidos sobre o
trabalho com a linguagem das tiras em quadrinhos no ensino fundamental II e estabeleço
relações entre as situações reais que prevalecem nas práticas pedagógicas e as possibilidades
de ampliação dos estudos sobre quadrinhos na perspectiva da Crítica Cultural.
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CAPÍTULO I
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1.1 O campo do texto imagético nos Parâmetros Curriculares Nacionais: um fim em si
mesmo?
Nesse ambiente pragmático de análise e estudo da língua, não havia espaço para outras
produções textuais. Aos leitores- estudantes eram oferecidas as consagradas modalidades
textuais como narração, descrição e dissertação. Cabia aprender e assimilar as características
de cada texto e produzi-los a partir dos modelos delimitados pelo professor e disciplinados
conforme a norma padrão da língua culta. Nas atividades escolares, o texto dissertativo ainda
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levava vantagem sobre os outros por ser exigido na prova do vestibular. Preparava-se o
estudante para ser aprovado desde que demonstrasse as habilidades necessárias para dissertar,
como dominar a estrutura padrão – introdução (relevância do tópico frasal), desenvolvimento
(argumentação – tese 1, 2,3 ) e conclusão ( conectivos adequados, capacidade de síntese),etc.
Assim, a abordagem da didática tradicional cumpria bem a sua lição: tratar a linguagem como
um instrumento trivial de ensino. Mas, até que ponto os Parâmetros Curriculares Nacionais
ressignificam a atividade com o texto em sala de aula?
No que se referem aos objetivos gerais do ensino fundamental propostos pelos PCNs,
percebemos mudanças na forma de conceber o texto e a abertura para as múltiplas linguagens
quando diz que os alunos devem ser capazes de:
Partindo desse ponto, o encontro com as aulas de Língua Portuguesa não se torna
confinado ao texto verbal. A prática de produção de textos orais e escritos para o terceiro e
quarto ciclos (5ª a 8º séries) rompe com a hierarquização das formações discursivas e com
isso, expande o trabalho com todos os gêneros textuais. O exercício da linguagem não é uma
atividade fechada, dicotômica e arbitrária. Pelo contrário, considerando a pluralidade de
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enunciados, imagens e vozes que marcam as produções contemporâneas, nos defrontamos
com a abertura de fronteiras textuais e consequentemente com um novo olhar sobre a
linguagem. É o texto que fala de culturas, de identificações, gênero, etnias, etc.
No contexto dessa multiplicidade de textos trazido pelos PCNs e a proposta “de dar ao
aluno condições de ampliar o domínio da língua e da linguagem, aprendizagem fundamental
para o exercício da cidadania” (PCNs,1998 p. 58,), encontramos a linguagem das tiras em
quadrinhos como sugestão de gênero para trabalhar a prática de escuta e leitura de textos.
Cabe, agora, perguntar: de que maneira as tiras em quadrinhos são apresentadas nos PCNs?
Qual sentido é atribuído às narrativas quadrinizadas? As respostas transitam pela prática
atribuída ao uso da língua se reduzida a uma formalização dos elementos que a compõem ou
se compreendida como enunciado, produtora de discurso.
Tal perspectiva defendida por Bakhtin nos remete ao descompasso entre o que se
propõe na reformulação do ensino da Língua Portuguesa no tocante ao texto como unidade
básica de estudo e o tratamento dado ao texto imagético nos PCNs. O procedimento didático
utilizado para caracterizar as tiras em quadrinhos parte de três elementos que são: conteúdo
temático, construção composicional e estilo. Tais especificidades, ainda restringem a potência
das narrativas quadrinizadas.
No que diz respeito ao conteúdo temático, busca-se identificar o que pode ser dito pela
sequência narrativa das tiras em quadrinhos. O jogo combinatório das imagens e das palavras
opera com as práticas culturais e a partir delas, monta o seu repertório de enunciados. No
processo sígnico dos quadrinhos, não há definição de um assunto, de um sentido fixo para a
leitura. Ainda é possível, em sala de aula, nos deparamos com a tradicional atividade de
compreensão do texto imagético subsidiada na pergunta que não quer calar: qual o assunto da
tira? Por conseguinte, o exercício de leitura é visto como uma ação capaz de exaurir todos os
significados do texto. Nem sempre o que o autor quer dizer é dito. O próprio sentido proposto
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pelo artista é colocado sob suspeita por ele mesmo e pelo leitor. A obra é um texto aberto tanto
para o criador como para o leitor. E nos diversos diálogos com as narrativas, o sentido é
multiplicado e inesgotável.
Baseando-se nas referências dadas pelos PCNs ao processo de leitura dos quadrinhos,
vejamos como se configura o ato de ler imagens a partir da tira em quadrinhos da Turma do
Xaxado:
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Fig:1
Fonte: Editora e Estúdio Cedraz(2008)
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partir do tema tratado, elementos constituintes (articulação da narrativa, ritmo gráfico-visual,
tipo de balão, uso ou não de onomatopeias, etc) e as características de estilo do autor.
Isso implica em reconhecer que o enfoque dado aos cinco níveis de leitura (integral,
inspecional, tópica, de revisão e item a item) corrobora a ideia de que a presença das tiras em
quadrinhos nos PCNs contempla o texto modelo como referência para as práticas pedagógicas
nas escolas. Em primeiro plano, valoriza-se o material linguístico em detrimento do texto
enunciativo, aquele que valida às relações entre imagem e palavra como discurso. A
significação da imagem vai além do uso puro e definitivo da língua. Os signos verbais e
visuais articuladores do discurso quadrinístico reivindicam o seu lócus de sentido e
significação nos espaços contemporâneos de análise e discussão da linguagem, cultura e
educação. Sobre a linguagem e suas conexões com a realidade, Foucault afirma:
Mas, por isso mesmo, a linguagem não será nada mais que um caso particular da
representação (para os clássicos) ou da significação (para nós). A profunda
interdependência da linguagem e do mundo se acha desfeita. O primado da escrita
está suspenso. Desaparece então essa camada uniforme onde se entrecruzavam
indefinidamente o visto e o lido, o visível e o enunciável. As coisas e as palavras vão
separar-se. O olho será destinado a ver e somente a ver; o ouvido somente a ouvir. O
discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será nada mais que o que
ele diz. (FOUCAULT, 2008, p. 59)
Partindo dessas reflexões, notamos que as orientações previstas nos PCNs para o
trabalho com o texto imagético ainda se distancia da perspectiva de um leitor de imagens
autônomo, competente e politizado. Os quadrinhos têm o seu espaço garantido nos encontros
com a língua, embora com uma metodologia encapsulada: contar e identificar os tipos de
balões, reconhecer onomatopeias, figuras cinéticas, enfim aprender a gramática normativa é
mais profícuo do que ler as metáforas dos quadrinhos.
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Defender que o livro didático não é uma construção social, é negar as relações
estabelecidas entre o processo comunicativo, as práticas culturais e os valores capitalistas. Ser
um livro consumível ou não, mercadoria vendida pela indústria cultural, objeto de trabalho
dos autores, editores e livreiros, com finalidade didática, referência para o ensino dos
conteúdos e como instrumento legitimado também para o trabalho com a leitura e escrita nos
espaços educativos, características típicas do livro didático trazem “pistas” significativas para
a análise de qual contexto surge à produção do corpus desse recurso pedagógico. Diante disso,
a equipe escolar deve acompanhar o tratamento dado aos conhecimentos veiculados nos livros
didáticos e de que forma conduzem a uma aprendizagem significativa. Na introdução dos
PCNs temos a seguinte orientação:
Série Quantidade
5ª 1
6ª 2
7ª 4
8ª 8
Figura 1.
Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)
O resultado quantitativo aqui esboçado tem uma forte relação com a finalidade
atribuída às tiras em quadrinhos na coleção em estudo e decorre da proposta pedagógica
defendida pelas autoras. A análise desses números já nos conduz a reconhecer os interstícios
entre o que se pretende “ensinar”, o que é “ensinado” e como deveria ser abordado o discurso
das tiras em quadrinhos nas páginas do livro didático. Vejamos a finalidade da coleção Lendo
e Interferindo quanto ao uso da Língua Portuguesa:
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Com respeito à relação entre o aluno-leitor e a linguagem, notamos que o centro da
proposta pedagógica é, portanto, fixar a noção de que ensinar os elementos internos da língua
assegura a leitura de mundo, da realidade e por consequência, torna o estudante apto a
resolver conflitos sociais.
Na página 02 (dois) do livro didático (5ª a 8ª séries), espaço destinado aos objetivos do
trabalho, as autoras perguntam: Mas como tornar o aluno capaz de ler o mundo? As respostas
dadas apresentam uma série de contradições dentre elas:
É preciso fazer algo para que a leitura deixe de ser um ato passivo, repetitivo,
baseado na mera reprodução de sons e imagens, ou seja, para que deixe de ser uma
leitura alienante. (...) Por isso é necessário apresentar a ele textos interessantes, bem
escritos, capazes de ir ao encontro de suas ansiedades e expectativas. (...)
Entendemos o conhecimento explícito do fato gramatical como um meio para a
leitura e/ou a produção de textos de qualidade que utilizam a língua padrão. (1999,
p.2-3)
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se satisfeito com os textos e as leituras que chegam até ele? Isso implica em não reconhecer a
leitura como um espaço aberto ao sentido plural. A leitura é uma linguagem simbólica, por
isso não pode ser esgotada. O aluno-leitor encontra dentro e fora dela, múltiplos
acontecimentos, num movimento coletivo em que autor e leitor reescrevem outras histórias.
No que se refere às competências básicas, o conceito de leitura se volta sobre três tipos
de análise: do conteúdo, da estrutura e do discurso. Iniciemos, então, a leitura das tiras
selecionadas para fins de reflexão sobre a maneira como as narrativas quadrinizadas são
delineadas no livro didático Lendo e Interferindo, nas seções “Sistematizando” e “Aplicando”
e suas respectivas funções. São elas:
Fig: 02. Classifique os termos em destaque nas tiras com objeto direto ou indireto:
Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)
Fig: 03. Classifique o predicado das frases destacadas nas tiras a seguir:
Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)
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Fig: 04. Classifique o pronome presente nas orações a seguir como índice de indeterminação do
artícula apassivadora ou pronome reflexivo (Abaixe-se):
Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)
Fig: 06. Destaque das tiras a seguir as orações solicitadas (uma oração subordinada substantiva
subjetiva):
Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)
Como pode ser observado, as tiras em quadrinhos da Turma do Xaxado são utilizadas
como pretexto para trabalhar os mecanismos linguísticos com ênfase no estudo da sintaxe e da
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morfologia. A língua é concebida como um sistema ordenado com base em normas
gramaticais que são “analisadas, questionadas e aplicadas em diversos contextos, de forma
gradativa e acumulativa” (1999, p. 03). Entretanto, sabemos que no cotidiano escolar a
aprendizagem dos estudos sintáticos e morfológicos se dá de forma estanque e fragmentada.
Nota-se o desespero do professor para “transmitir” as informações fixadas no guia de
orientações pedagógicas - o livro didático- e a angústia dos alunos na busca pela memorização
das regras gramaticais, completamente dissociado de um olhar interdisciplinar e politizado
dos agenciamentos das imagens. Coloca-se a narrativa das tiras em quadrinhos numa esfera
mecanizada de leitura e destituída de potencial analítico e reflexivo. Está instituída a leitura
do conteúdo.
Outro conteúdo também explorado nas tiras diz respeito às funções da linguagem
desenvolvidas pelo formalista russo Ramon Jakobson, assim apresentadas no livro didático:
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As funções da linguagem são estudadas a partir da análise de textos para que o aluno
perceba as características próprias da linguagem quando utilizada nas mais variadas
situações. Ressalta-se a importância de se identificar o processo de comunicação
para se conhecer essas características. (8ª série, 1999, p. 169).
Mais uma vez, a linguagem é tratada como conteúdo a ser ensinado, com funções
definidas e marcada como fenômeno que pode ser estudado com base nos procedimentos
intrínsecos da sua criação sob os pressupostos do formalismo russo, no século XX. O texto
para ser compreendido basta analisar a sua organicidade estrutural, seus traços lingüísticos,
retóricos e sua funcionalidade. É o texto pelo texto. Valoriza-se a forma sobre o contéudo. A
sua criação é explicada dentro da própria obra através de uma lógica rigorosa de análise. No
caso do texto literário, o que define a sua qualidade é a literariedade, meio que distingue a
linguagem poética de outras narrativas. A exemplo de outro texto temos a tira em quadrinhos
a seguir:
No livro didático, a resposta dada como correta é a função poética com base nas
características desenvolvidas tais como: palavras artisticamente selecionadas pelo poeta com
fins de produzir o belo, o original; predomínio da conotação e figuras de linguagem. O
mecanismo de seleção e combinação dos recursos linguísticos tem como eixo norteador a
mensagem.
Ao mesmo tempo, as autoras enfatizam que a função poética é mais presente nos
textos literários, especificamente nos poemas, contudo, outros textos podem apresentar essa
função. Percebe-se aqui, uma pseudo-valorização da tira em quadrinhos. O propósito é
evidenciar que há poeticidade na linguagem dos quadrinhos, embora se estabeleça um fim
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didático para a leitura da narrativa. Diante disso, notamos que as linguagens dos quadrinhos e
de outras modalidades textuais não apresentam interfaces com as questões sociais. Os fatores
extrínsecos são isolados do processo de criação, ou seja, o que está fora não interessa. As
relações humanas, o cotidiano, os conflitos sociais, os movimentos históricos, as formas de
saber-poder não entram nas cenas narrativas. O que está dentro do texto (aspectos
fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos) determina a sistematização do que é
narrado verbal ou imageticamente.
Fig: 08. Identifique uma marca regionalista na fala da personagem Xaxado e em que região do Brasil
costuma-se verificar o uso desse termo.
Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)
38
Na seção Produzindo, do módulo um, a tira em quadrinhos da Turma do Xaxado
apresenta-se como ferramenta para estudar a diversidade linguística do nosso país. O
tratamento dado ao assunto é bastante simplificado e reducionista, limitando-se apenas a
identificar a marca regionalista “Vixe!” e a região em que é falada a expressão. Para entender
o porquê dessa posição, cabe analisar a assertiva levantada pelas autoras quando declaram
que:
Fig: 09.
Fonte: Coleção Lendo e Interferindo (1999)
As perguntas elaboradas para os alunos são: Além do humor que a atitude ingênua da
personagem provoca, que mensagem a tira transmite? Você considera importante ter amigos?
Que qualidade um amigo deve ter? Pessoas com maneiras diferentes de pensar, sentir ou agir
podem ser amigas?
41
1.3 O discurso dos quadrinhos: uma metáfora de transformação quadro a quadro.
Texto e cultura. Foi essa intersecção que marcou a virada linguística e cultural
engendrada pelos Estudos Culturais ao propor novas configurações ao estudo analítico da
linguagem no cenário contemporâneo. Nesse sentido, a noção de textualidade é reposicionada
quando o texto passa a reivindicar a sua atuação enquanto prática discursiva no momento em
que interroga as relações entre o processo de significação, as produções culturais e as formas
de poder imbricadas na dinâmica da vida social.
Fora do campo dos Estudos Culturais, o texto era concebido a partir de uma visão
simplista e fechado. Os fatos narrados eram elaborados como se estivessem desvinculados das
experiências, conflitos e contradições que marcam as condições da vivência humana. Por
conta disso, a utilização do signo limitava-se apenas a nomear as “coisas” fixando a língua
como algo pronto, mera representação da realidade exterior. Assim, o processo sígnico trazia
o significante preso a um significado, ou seja, entre a palavra e o conceito havia uma relação
objetiva e automática sem estabelecer ligações de sentido com outras dimensões além da
linguística. Há, portanto, a valorização do signo abstrato.
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O projeto dos Estudos Culturais também questionou o caráter hierárquico empregado
para classificar se o texto era de “maior” ou “menor” qualidade de acordo com os padrões de
uma crítica tradicional que prestigiava o cânone literário em detrimento de outras
modalidades textuais, princípio herdado do modelo social em que a relação binária determina
a divisão de classes entre os indivíduos da “alta” sociedade e os da “baixa” sociedade.
As metáforas de transformação devem fazer pelo menos duas coisas. Elas nos
permitem imaginar o que aconteceria se os valores culturais predominantes fossem
questionados e transformados, se as velhas hierarquias sociais fossem derrubadas, se
os velhos padrões e normas desaparecessem ou fossem consumidos em um “festival
de revolução”, e novos significados e valores, novas configurações socioculturais,
começassem a surgir. (2003, p. 204)
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Esta consideração a respeito da hegemonia do texto literário permite formular a
seguinte pergunta: até que ponto, no âmbito dos Estudos Culturais, novas produções textuais
podem ser reconhecidas como práticas de significação e ter seu lugar legitimado como textos
culturais?
Nesse caso, a linguagem dos quadrinhos não pode ser avaliada como ingênua e
desvinculada dos problemas sociais, com a função apenas de entreter e divertir o leitor. O
discurso das tiras em quadrinhos produz um agenciamento de imagens que nos impulsiona a
ler os acontecimentos históricos se pelo parâmetro da história oficial que privilegia os
interesses da classe dominante e silencia outras vozes ou se pelo olhar da história como uma
construção a serviço da vida promovendo movimentos alternativos de resistência visando
desestabilizar os discursos institucionalizados, ao criar táticas de enfrentamento aos
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dispositivos de poder entranhados nas ações humanas e assim, trazer a produção de imagens
para o campo da “politização” da arte.
Na cena cultural contemporânea, o jogo dos signos da cadeia comunicativa das tiras
em quadrinhos abraça as questões estéticas, culturas e políticas. Assim declara Nelly Richard
quanto ao cruzamento desses aspectos na análise das formações discursivas:
Ao dizer “estética”, falo dos gestos e das marcas que atravessam as práticas
significantes com sua vontade de forma: seu desejo de incisão e de modelagem
expressivos. Ao dizer “cultura”, falo das figurações simbólicas em cujo teatro
sujeitos e linguagens vão desenvolvendo variantes interpretativas, que abrem o real a
deslizamentos plurais. Ao dizer “política”, falo das codificações de poder, das lutas
e dos antagonismos em torno da definição – violenta ou contratual – do social. Ao
dizer “estética”, “cultura‟ e “ política”, não falo de séries isoladas e nem de regiões
separadas, que o ir e o vir de uma certa reflexão crítica poderia, eventualmente,
juntar para completar o marco de leitura requerido por seus objetos, mas da
intercalação destes planos em constante jogo de atrações e refrações, no interior de
um mesmo olhar confuso e perturbado por essa tensão. ( 2002, p.175 – 176)
Posto isso, vamos acompanhar o convite de leitura proposto pela próxima tira em
quadrinhos da Turma do Xaxado:
Fig: 10.
Fonte Editora e Estúdio Cedraz (2008)
45
Se pensarmos no uso da narrativa visual da tira em quadrinhos em sala de aula
teríamos no plano estético, uma valorização da forma acrítica. O ato de criação se voltaria
basicamente para o trabalho técnico do quadrinista Antonio Cedraz. Quais os recursos
estilísticos empregados por ele na composição da tira? Dessa maneira, a leitura dos
quadrinhos estaria sujeitada e reduzida à forma. A tira diz mais pela forma do que pelas
interfaces entre a percepção do quadrinista, os sentidos recepcionados pelo leitor e o contexto
social. Desativa-se o processo semântico em prol da análise dos elementos caracterizadores da
tira.
Para ler a tira em quadrinhos sob o olhar cultural, o leitor deve se apropriar dos
conhecimentos prévios sobre o que é nação, democracia, respeito ás subjetividades, exclusão
social,etc. Saberes culturais e históricos ativados, o leitor estabelece conexões entre o Brasil
fabricado pelas representações simbólicas e o Brasil real, que não “ é uma país de todos”.
O leitor, ao se deparar com a sequência gráfico-visual da tira pode partir de três níveis
para o entendimento do que pretende dizer as imagens: o informativo, o simbólico e o obtuso
conforme nos indica os estudos de Roland Barthes sobre a semiologia (1984).
Sentido óbvio é aquele que se apresenta muito naturalmente ao espírito (...). Quanto
ao outro sentido, o terceiro, aquele que vem a mais, como um suplemento que a
minha intelecção não consegue absorver bem, ao mesmo tempo teimoso e fugidio,
liso e esquivo, proponho chamar-lhe o sentido obtuso (...) o sentido obtuso parece
estender-se para lá da cultura, do saber da informação (2009, p.45).
É por este viés que o leitor desconfia dos significados óbvios. Assim sendo, na tira em
análise temos duas realidades distintas e contraditórias: de um lado, um Brasil “fabricado”
dentro de uma ótica ufanista e de outro, um Brasil “real” , construído em bases sólidas de
exclusão, injustiça social e desrespeito aos direitos humanos.
O Brasil cantado no hino nacional é a “terra adorada”, a “mãe gentil”, a pátria amada
de aproximadamente 16 milhões de brasileiros que vivem em estado total de abandono e
miséria. São os “exilados” dentro do seu próprio país, mas que sonham em mudar para o
Brasil “quimérico” cordial e companheiro. Silviano Santiago nos alerta quanto aos cuidados
com a suposta ideia de um país multicultural que respeita às diferenças
47
Retomando as finalidades pedagógicas da coleção Lendo e Interferindo, as autoras
questionam: como fazer uma leitura que não aliene o aluno? A resposta é assim organizada:
“É necessário que o aluno entre em contato com diversos tipos de texto, produzidos
por pessoas diferentes, com diferentes visões de mundo e opiniões, a fim de que ele
perceba com clareza que textos não apresentam verdades absolutas, mesmo porque
um único texto admite tantas leituras quantas forem as pessoas que a lerem” (1999,
p.3)
Para as autoras, ler criticamente é quando o leitor apreende o que está dito e como foi
dito no texto. A ênfase dada ao conteúdo e estrutura da tira em quadrinhos neutraliza a análise
do discurso – atividade proposta e negligenciada no livro didático. Sem a realização da leitura
como análise discursiva, não há lugar para o não-dito na mensagem. Isso porque a mensagem
só apresenta uma variante interpretativa. Lê-se para decodificar a informação e de que forma
foi construída. Aqui, o que é dito se torna verdade. Mas há verdade absoluta no texto verbal
ou imagético?
É preciso considerar que no texto seja qual for o gênero, o real social é escamoteado
pelas representações dramatizadas nas narrativas. Assim, o não-dito perpassa pelos territórios
das formas simbólicas, em que as cadeias semióticas ultrapassam o cruzamento entre o real e
o imaginário, abrindo espaço para outra conexão: a do inconsciente.
48
politizadas em que a soberania do Estado- nação seja questionada. Quem elabora as leis? Com
quais interesses? Para atender a quem? Tais perguntas nos remetem ao discurso da elite
intelectual e governamental do país que nega aos grupos minoritários o direito de ter a sua
dignidade e qualidade de vidas garantidas. Este é o desafio: criar linhas de fugas para
desmontar os saberes instituídos arbitrariamente. Para isso, experimentamos o movimento de
que qualquer significante apresenta uma multiplicidade de sentidos e histórias, buscando
assim, problematizar como as marcas do real-imaginário-simbólico operam nas construções
discursivas e como estabelecer “rasuras” contra as posições dicotômicas e metafísicas
impregnadas nas construções da realidade social.
49
CAPÍTULO II
50
51
2.1 Estratégias da Indústria Cultural X leitor de quadrinhos: a ordem é automatizar!
Fig: 11.
Fonte: Editora e Estúdio Cedraz (2008)
A tira em quadrinhos que abre esse primeiro tópico do segundo capítulo nos remete às
inter-relações entre a linguagem, a indústria cultural, o signo do capital e os bens de cultura na
contemporaneidade e suas implicações para quem produz e para quem consome os produtos
massificados pelo mercado.
Nisso está implicado a forma como são produzidos os objetos culturais seja a
televisão, o cinema, o rádio ou revista e de que maneira eles são usados pelos indivíduos. Para
isso, é importante problematizar como se caracteriza a cultura diante de uma práxis social
sujeitada a economia e ao mundo do mercado e da publicidade.
52
No âmbito da linguagem, as tiras em quadrinhos são constituídas de signos e de
discursos, mas segundo a gramática da indústria cultural que prescreve e modela os objetos
culturais, a tira apresenta uma forma que só passa a existir como técnica a partir do momento
em que o seu conteúdo serve para massificar os leitores de quadrinhos. Mas como a técnica de
produzir quadrinhos pode uniformizar quem ler imagens?
53
Se atentarmos para a assertiva defendida por Adorno, veremos que a produção de
quadrinhos circula como uma técnica limitada a fazer o leitor\consumidor a divertir-se frente
àquilo que lê, reforçando assim, que o ato de pensar é dispensável porque exige um árduo
trabalho cognitivo. Ora, entre divertir-se e pensar, o mais conveniente é a diversão, um
exercício fácil e que faz os leitores/consumidores se distanciarem da dinâmica social
fragmentada, violenta e excludente. Tal posição condiciona o sujeito social a não resistir aos
problemas sociais. Portanto, limitar a leitura de imagens à diversão e entretenimento é seguir
fielmente a tarefa imposta pelo esquema industrial: formar leitores lineares, adestrados e
submissos ao capitalismo.
Em segundo lugar, o fazer artístico do autor e a recepção do leitor frente á tira. Nesta
ótica, a tira em quadrinhos é apresentada como um “pacote pronto e acabado” tanto para o
autor como para o leitor. Anula-se o papel do criador, além de fixar o sentido da criação em
54
apenas um aspecto: promover o riso. No que diz respeito ao leitor, cabe a ele somente
entreter-se. Fugir das barbáries da vida. Aqui, é negado ao leitor expandir os múltiplos
sentidos que a tira em quadrinhos proporciona. O único sentido já foi disciplinado: a
necessidade de diversão.
55
No segundo quadro, o cenário é bastante diferente. Visibilizamos a indústria da seca.
Carro-pipa, barragens, açudes, empresas construtoras, investimento de 22,2 bilhões em 2013
em ações contra os efeitos da estiagem, enfim, a mercantilização da seca não é ficção. Ao
invés de pessoas correndo atrás de um trio-elétrico, temos pessoas correndo desesperadamente
atrás de um carro-pipa. Na zona rural ou nas cidades pequenas a corrida é pela água tão
escassa nas regiões afetadas pela seca. Corre-se para assegurar a vida e a esperança. E pode a
indústria cultural assegurar uma vida de qualidade e sustentável ao consumidor? Pode-se
esperar que a promessa seja cumprida? Adorno assim se coloca:
“A indústria cultural não cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está
continuamente a lhes prometer. A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e
pela encenação, é prorrogada indefinidamente: maldosamente, a promessa a que
afinal se reduz o espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o
convidado deve se contentar com a leitura do cardápio. Ao desejo, excitado por
nomes e imagens cheios de brilho, o que enfim se serve é o simples encômio do
quotidiano cinzento ao qual ele queria escapar.” (1985, p.115).
56
produzido. Assim, com a reprodução técnica os artefatos entram no ciclo massificado em que
o que era singular passa a ser múltiplo.
57
contemporâneo segundo o caráter padronizado pela indústria cultural. A próxima tira em
quadrinhos da Turma do Xaxado nos oferece algumas pistas para analisarmos como se dá o
encontro mediatizado pelas imagens produzidas por Antonio Cedraz.
Como ponto de partida, é preciso notificar que o trabalho de produção das revistas em
quadrinhos da Turma do Xaxado acontece no Estúdio Cedraz criado e dirigido por Antonio
Luiz Ramos Cedraz, localizado em Salvador. A empresa é assim organizada conforme
informações do site:
58
quadrinhos e sua determinação em manter viva a potência dos quadrinhos no cenário
brasileiro.
Fig: 12.
Fonte Editora e Estúdio Cedraz (2008)
Estas perguntas podem ser analisadas a partir dos múltiplos sentidos veiculados na tira
em questão. Desse modo, transitemos por uma possível recepção do que nos diz a narrativa da
Turma do Xaxado.
59
avarento, egoísta e extremamente ostentador. Não perde a chance de explorar e humilhar os
peões que manejam as cabeças de gado da fazenda.
No contexto da tira, verificamos que nela são travadas relações de força que controlam
a dimensão social. O modelo de sistema capitalista fabrica as relações humanas na sociedade,
ora serializando-o, ora condicionando-o a viver de acordo com os parâmetros do capital, do
lucro. Uma das conseqüências mais significativas do modo de produção capitalista é a
concepção de que é natural existir divisão de classes, de pessoas, etc. Nesse processo violento
de naturalização dos fatos sociais, a subjetividade humana também é sucumbida,
considerando que o sujeito social é adestrado a não reagir. Perpetua-se, dessa forma, o lado
passivo e subserviente do ser humano frente ás mazelas de um espaço social construído em
bases sólidas de exclusão, injustiça social e desrespeito aos direitos humanos.
No que se refere aos direitos trabalhistas, ainda são poucos ou quase inexistentes os
locais de trabalho que valorizem a vida do peão, embora o Plenário do Senado já tenha
aprovado o Projeto de Lei da Câmara (PCL) 83\2011 que assegura o direito à carteira de
trabalho assinada, seguro de vida e de acidentes, salário mínimo, equipamentos de proteção
individual, reconhecendo e regulamentando a profissão de vaqueiro. Espera-se ainda que o
projeto seja sancionado pela presidenta do nosso país. Até lá, o peão continuará trabalhando,
recebendo bem menos do que necessita, além de serem descontados gastos com alimentação e
habitação, etc. no seu mísero pagamento. Diz Guattari sobre como se dá a relação entre a vida
humana e a ordem do capital:
60
A ordem capitalística produz os modos das relações humanas até suas
representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado, como
se ama, como se trepa, como se fala, etc.Ela fabrica a relação com a produção, com a
natureza, com os fatos, com o movimento, com o corpo, com a alimentação, com o
presente, com o passado e com o futuro – em suma, ela fabrica a relação do homem
com o mundo e consigo mesmo. Aceitamos tudo isso porque partimos do
pressuposto de que está é a ordem do mundo, ordem que não pode ser tocada sem
que se comprometa a própria idéia de vida social organizada. (2005, p.42).
61
opinião e possam articular-se numa ação coletiva que questione as decisões políticas
do Estado e, ao mesmo tempo, possa oferecer fundamentos e alternativas para novas
decisões e um processo de accountability avaliar os métodos e resultados. (1997,
p.190).
“É preciso que cada um se afirme na posição singular que ocupa; que a faça viver,
que articule com outros processos de singularização...; e que resista a todos os
empreendimentos de nivelação da subjetividade.” (Félix Guattari)
Para tanto, a leitura pode ser sustentada com base em duas perspectivas: a primeira, ler
para adestrar. Nesse caso, o sujeito/leitor é modelado conforme as estratégias da indústria
cultural. A segunda, ler para politizar. Aqui, ao invés de submeter-se a uma leitura linear, o
sujeito\leitor assume uma posição ativa frente ao processo de comunicação discursiva.
63
Fig: 13.
Fonte Editora e Estúdio Cedraz (2008)
O outro leitor se apropriará de uma leitura crítica. E desta perspectiva, o ato de ler
passa a ter um significado diferente. Ler também é uma ação política e se configura como
espaço para questionar as representações sociais, além das relações de força imbricadas na
estrutura de uma sociedade contemporânea excludente e desigual. Aqui, ler é resistir.
Problematiza-se sobre a vida. Assim, a construção dos significados assume um caráter
relacional e contextual. As formas simbólicas presentes no texto quadrinizado sempre dizem
algo, mas não podem ter o seu “sentido” fixado definitivamente. Ao contrário, devem ser
desestabilizadas no processo de codificação da mensagem.
Ao pensar sobre o papel desse leitor politizado na vida social, nos defrontamos com as
estratégias da indústria cultural para aprisionar aquele que ousa reagir á classificação de uso
64
do texto como mera mercadoria. E o que pode fazer o leitor para desviar-se do que é dito
arbitrariamente pela mercantilização cultural?
O desafio é desviar-se. Para isso, o leitor constrói a sua tática. Diz como e para quê ler.
Desta tomada de posição, produz-se uma nova prática de leitura: a heterológica. Washington
Drummond nos esclarece a partir das ideias de Bataille:
65
insólito no sentido de desvio do previsível e das normas linguísticas já sedimentadas nas
representações sociais.
Nesse processo de afirmação da vida, o leitor é visto como diferente pelas estratégias
de poder do Estado, da indústria cultural e da publicidade. Quanto mais domesticá-lo, melhor
para as vendas e o lucro. Não se quer um leitor, ativista cultural, manifestante ou “rebelde sem
causa”, promovendo transformações sociais sejam elas no plano individual ou coletivo. Ao
mesmo tempo em que convive com os modos operantes do capital, o leitor busca “linhas de
fuga” para problematizar sobre a vida. Seja o leitor consumidor, trabalhador, operário,
militante, “intelectual da academia”, manifestante, etc, cada um se constitui de identificações
que traduzem seu modo de vida, sua posição diante do mundo. Guattari afirma:
Nos termos do trabalho com a tira em dos quadrinhos ainda presenciamos uma prática
condicionada ao princípio de que o sentido é uniforme e totalizante. O uso da linguagem
quadrinística aparece como recurso didático para explicar o que quer dizer cada imagem e a
intenção do quadrinista ao criar a sua produção. Nesse caso, a leitura está acorrentada ao
domínio da unilateralidade do signo. Ao sujeito/leitor só resta reproduzir o que vê, sem
espaço para declarar a sua percepção diante da imagem dada e a exercitar sua capacidade de
criar novas rotas de sentido para os quadrinhos. Ler sem a ambição de esgotar a imagem. Os
quadrinhos não querem sem decifrados. Querem estar em suspense. Provocar o sujeito/leitor a
construir os (des) sentidos de cada tira em quadrinhos.
É pelo viés do projeto dos Estudos Culturais que a leitura dos quadrinhos passa a se
constituir um espaço de cruzamento entre a linguagem e os campos sócio-político-culturais.
No texto, as representações simbólicas “como local de poder e de regulamentação” (HALL,
2003, p. 198) são reconhecidas pelo sujeito/leitor como construções calcadas a partir das
contradições da experiência humana.
O texto – como elemento cultural – diz sobre o tempo e o espaço dos autores e
leitores, esboça o momento histórico em que se dá a produção textual e problematiza sobre os
territórios demarcados entre as relações de força e o sujeito produtor de conhecimento. O
texto-discurso não escamoteia os conflitos da vida em sociedade, contrariamente a isso, fala
dos intercâmbios entre culturas, das múltiplas formas de produzir saberes, do poder do
Estado-Nação, das lutas dos grupos minoritários, da vida, dos desejos e da esperança que
sustenta o texto-homem. Nesse sentido, Carlos Magno esclarece quanto o lugar do leitor
cultural na contemporaneidade:
Como o leitor cultural recepciona a tira anterior? De que maneira a linguagem dos
quadrinhos chega até o sujeito/leitor na sala de aula e em outros espaços culturais?
68
Tais questionamentos perpassam por um reposicionamento da noção de textualidade e
de ações que afirmem o papel ativo do sujeito/leitor nos processos de interlocução
vivenciados no meio social.
È necessário refletir sobre o que sabemos sobre leitura, o que fazemos com ela e o que
esperamos para a comunidade de leitores em nosso país. Nesse sentido, criar espaços de
69
analise e reflexão sobre a aplicabilidade dos Parâmetros Curriculares Nacionais, do livro
didático, das grades curriculares e das metodologias do ensino de Língua Portuguesa nas
escolas brasileiras é o caminho para ações mais libertárias do sujeito/leitor.
“Eu era ousado. Onde eu via que tinha jornal, revista, editora, eu mandava meu
material”.
(Antonio Cedraz, in memoriam)
Durante muito tempo, a linguagem dos quadrinhos foi estigmatizada sob uma série de
preconceitos fomentados por pais, professores, pesquisadores na área de Educação e
Linguagem e críticos de arte. Com isso, o texto imagético permaneceu fora do campo de
estudo dos textos considerados “maiores” e legitimados pela tradição literária, pautada em
padrões hierárquicos e classificatórios.
Nesta ótica, formulada com base em juízo de valor, as narrativas quadrinizadas eram
consideradas como textos “menores”, inferiores e marginais. Mensagem infantilizada e
inocente, mera forma de entretenimento e diversão, conteúdo destituído de informação,
produto massificado e sem qualidade, são alguns dos rótulos aplicados aos quadrinhos. Nas
escolas quando utilizados eram tratados como recurso didático para as aulas de Língua
Portuguesa, com ênfase no ensino da gramática normativa, sem desconsiderar ainda, algumas
falas dos professores, como: ler é coisa séria, quadrinhos não trazem nada de interessante para
o aluno. Se os estudantes não sabem interpretar o texto verbal, imagina se conseguem
entender o que quer dizer cada imagem? E tem mais, não podemos perder tempo com esse
tipo de leitura, nossos alunos devem aprender o que é útil para a prova, etc. E assim, os
quadrinhos eram repudiados no contexto escolar.
Nas universidades, o espaço de pesquisa era destinado aos grandes cânones literários.
Não havia lugar para os quadrinhos. Pesquisar o texto imagético nos espaços acadêmicos
interrompia os parâmetros normativos instituídos para qualificar se o texto é literário ou não
literário, legítimo ou não na sua potência estético-literária. Mais uma vez, os quadrinhos
70
estavam fora da cena de pesquisa e estudo. Cirne, no seu livro Uma Introdução Política aos
Quadrinhos, declara a sua posição quanto ao tratamento dado aos quadrinhos:
“Por outro lado, nada mais reacionário, nada mais elitista, do que afirmar que os
quadrinhos não merecem uma análise “respeitosa”, como a que se faz com um Joyce
(ou Faulkner, Kafka, Mann, Borges, Pound, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, e
assim por diante). Trata-se de um preconceito instituído entre aqueles que “cultuam” as
formas dominantes da (s) ideologias – de igual modo – dominantes (s).” (CIRNE, 1982,
p. 12).
Na cena cultural baiana, os quadrinhos têm uma força bastante expressiva por meio
das produções do artista Antonio Cedraz, nascido em Miguel Calmon, distrito de Jacobina,
cidade onde foi criado. Iniciou os seus trabalhos com desenhos e histórias em quadrinhos com
16 anos e atualmente é considerado o Mestre do Quadrinho Nacional pela Associação dos
Quadrinistas e Caricaturistas do Estado de São Paulo. “É, muito provavelmente, o mais
importante e premiado quadrinista da região nordeste” afirmação de Chico Castro Júnior,
jornalista da Revista Mundo/A Tarde, na reportagem” A volta do Xaxado.
Mergulha sobre as lendas e sobre a dura realidade do sertão, sem descuidar da crítica
social, e produz um resultado eclético que às vezes é difícil precisar a que faixa
72
etária se destinam as histórias. Xaxado agrada igualmente a criança e o adulto.
Diverte, ensina e chama à reflexão. Num mercado editorial saturado de criaturas
super-qualquer-coisa, que só falam inglês, é um colírio encontrar uma publicação
que fale de nossas raízes e dá voz aos que passam por inaceitável desamparo em
pleno século XXI. (OLIVEIRA, 2008, p.4)
Fig: 15.
Fonte: www.turmadoxaxado.com.br
O lócus de enunciação das tiras em quadrinhos agencia imagens que falam sobre o
sujeito/autor e sujeito/leitor, suas incompletudes, suas experiência de vida e devires de
resistência. Para tanto, as três características da literatura menos transitam na linguagem das
narrativas quadrinizadas, são elas: desterritorialização da língua, a ramificação do individual
no imediato-político e o agenciamento coletivo de enunciação.
73
Quanto ao uso da língua, Antonio Cedraz realiza o processo de desterrotorialização ao
trazer a fala do sertanejo para a cena dos quadrinhos e como operacionaliza a sua potência
linguística dentro dos espaços da língua oficial.Assim, a fala do sertanejo torna-se
territorializada, ou seja, se antes excluída, agora emerge como discurso próprio, sem a
submissão à língua maior.
Portanto, ser um quadrinho menor é ser maior na sua potencia ativa como linguagem.
È na e pela linguagem do menor que o devir da imagem/sujeito e do sujeito/imagem busca
linhas de fuga para questionar as representações sociais construídas pelos modos de produção
capitalista. “Grande e revolucionário, somente o menor” (DELEUZE e GUATARRI, 1977,
p.40).
74
CAPÍTULO III
75
76
3.1 Cada personagem, uma representação
(ScottMcCloud)
77
qualquer outro elemento, é aquilo que faz o trabalho perdurar. Este é um grandioso
desafio para um meio que sempre foi considerado coisa de criança. A tarefa é trazer
à tona a reação do leitor através das imagens (2005, p.6)
É importante salientar que essa abordagem teórica sobre a tipologia da tira não é fixa.
Outras nomenclaturas coexistem com base na linha de estudo de outros pesquisadores sobre
quadrinhos, como é o caso de VERGUEIRO (2009) que recorre ao termo tira de humor para
caracterizar o início e desfecho de uma história contada numa única tira com dois ou três
quadrinhos. No âmbito dessa pesquisa sobre a Turma do Xaxado adotou-se o termo tira(s) em
quadrinhos em consonância com a proposta de trabalho da Editora e Estúdio Cedraz quando
organiza a coleção Xaxado ano 4 365 Tiras em Quadrinhos.
Para iniciar uma viagem ao processo de criação das tiras em quadrinhos de Antonio
Cedraz é preciso conhecer o porquê da embarcação imagética se chamar A Turma do Xaxado,
quais os personagens que compõem as tramas narrativas, como se organiza a relação entre o
78
plano ficcional, os estereótipos e a recepção das imagens pelo leitor, além das temáticas
sociais que permeiam as cenas de cada tira em quadrinhos.
Até os dez anos não conhecia o significado de ler. Miguel Calmon, cidade pobre, não
me oferecia acesso aos livros e nem a Literatura. Aprendi a ler e a escrever utilizando apenas
um livro: o escolar.
Foi em Jacobina que descobri o mundo fantástico da leitura aos doze anos
aproximadamente. Sentia-me como um tabaréu do interior no seu primeiro encontro com as
palavras, as figuras. As histórias em quadrinhos e o cordel me fascinaram. A leitura ganhou
fôlego e não quis mais parar. A leitura me transformou. Aos quinze e dezesseis anos ainda
não desenhava. Um dia, ao passar numa livraria, vi um rapaz desenhando e perguntei: será
que eu também consigo desenhar? Peguei uma caneta, lápis e comecei a desenhar. Gostei do
resultado. Mostrei o desenho ao meu amigo e ele disse que estava até melhor do que o dele.
Não deu outra: botei na cabeça que queria ser autor, um desenhista como aqueles que tanto
gostava de ler. E não parei mais!
Formei-me em professor. Fui também bancário, mas o meu desejo era publicar meus
trabalhos em jornais, revistas e ter meus próprios livros.
Em Salvador, cursei durante dois anos a faculdade de Belas Artes. Trabalhando como
bancário, família já estruturada, sem tempo de estudar (a faculdade era de dia!), não pude
finalizar os trabalhos acadêmicos, contudo sempre busquei as redações dos jornais para
publicarem os meus desenhos.
O meu sonho era fazer um trabalho que tivesse alguma coisa do Brasil, alguma
coisinha do nordeste, do meu sertão lindo que tanto amo. Assim, tive a ideia de estudar e ler
sobre o nordeste, sua gente, sua fala, etc. Comecei a imaginar como seria...
79
O chapéu de Lampião, daquele de cangaceiro, foi a minha inspiração. Procurei criar
um personagem com a cara do nordeste e usando um chapéu de couro bem estilizado. Nada
melhor do que um chapéu para representar o nordeste. Em qualquer lugar do mundo que
encontrar alguém usando um chapéu como o de Luiz Gonzaga, você sabe que aquela pessoa é
nordestina! Passei a construir a figura de um menino e coloquei nela as minhas características:
pé no chão gostava de acordar cedo, ajudava meu pai a tirar leite da vaca, ia pra escola, enfim,
um garoto que trabalhava, mas era feliz. Eu fiz um menino caipira, lá bem do nordeste com as
referências daquele sertão mesmo de Jacobina. Faltava um nome. Resolvi colocar Xaxado.
Por que Xaxado?
Ora, porque tem tudo a ver como nordeste, com o cangaço. Quando os cangaceiros
conquistavam uma vitória na batalha, eles dançavam o xaxado com muita alegria. O garoto
Xaxado alcançou um sucesso que jamais imaginava. Os personagens anteriores Joinha e
Pipoca não tiverem o mesmo destino. O matuto, o tabaréu Xaxado ganhou o mundo: Portugal,
Itália e França. No Brasil, ganhou reconhecimento em diversos estados, como Rio Grande do
Sul, São Paulo, Minas Gerais, etc. Mas Xaxado viveria sozinho as aventuras no sertão
nordestino? Não, era preciso uma turma animada para encantar os leitores do mundo, do
Brasil e da Bahia.
Minha preocupação com o novo personagem era criar um tipo matuto, um cara que
falasse errado, com uma linguagem estereotipada.
Em algumas idas à Jacobina, costumava fazer pesquisa de “falas erradas”, aquela fala
típica do interior. Anotava tudo para depois, criar um dicionário. Daí veio a ideia de criar um
garoto que usasse a fala típica do interior. Nasceu Zé Pequeno, o mais preguiçoso e
“descansado” da turma. É o que os leitores mais gostam. Roubou a cena.
A turma estava se formando. Como ainda não tinha uma menina, criei um personagem
oposto a Zé Pequeno. Dei-lhe o nome de Marieta, uma garota que falava tudo certinho. Só
anda com um livro debaixo do braço. Incentivadora da leitura quer que todos aprendam a ler.
Zé Pequeno tem orelhas grandes de tanto ela puxá-lo para ir á escola.
80
besta, borsal, que adorava espezinhar o mais fraco, o famoso dono da rua, do pedaço, da
cidade. Da turma é o único que tem nome de poderoso, de rei. Nascia “em berço esplêndido, o
Artuzinho.
Para colocar a turma no ritmo musical do nordeste, criei o personagem Capiba. Toca
violão e adora cantar, principalmente as músicas de Luis Gonzaga, o Rei do Baião. Quer ser
um cantador nordestino.
A turma estava quase formada. Já tínhamos quatro garotos e apenas uma garota. Eis
que chega Marinês para completar o grupo. Ama a Natureza e se preocupa em protegê-la.
Sente-se uma ecologista e aproveita todo o tempo para falar sobre a importância da
preservação, do cuidado com as nossas plantas, animais, etc. É irmã de Capiba.
No início das minhas produções, fazia tudo sozinho. Criava a história, desenhava,
escrevia, pintava e bordava. Hoje, conto com uma equipe formada por desenhista,
argumentista e colorista. Gente que acreditou no meu trabalho e não abriu mão de me
acompanhar nessa aventura pelo universo dos quadrinhos.
81
No mercado dos quadrinhos, nenhuma editora quis apostar no meu trabalho. Acreditavam que
não teria sucesso porque visava à discriminação do nordeste. Só depois de algum tempo
entenderam a minha proposta: compor o mundo do Xaxado com tipos nordestinos e minhas
lembranças quando morava no interior, valorizando dessa forma, a cultura da região nordeste.
Eu sou o Xaxado!!!!
Eis a minha turma:
Fig: 17.
Fonte: www.turmadoxaxado.com.br
Em Homenagear Cedraz é garantir que sua obra não será esquecida, Chico Castro Jr.,
assim se reporta ao seu trabalho:
Fig: 18.
Fonte: Eisner, Will. Narrativas Gráficas, 2005
84
uma operação ideológica que engendra a exclusão não só no plano da textualidade como no
plano da vida.
85
Na perspectiva das produções quadrinísticas, as tiras em quadrinhos criadas por
Antonio Cedraz trazem à tona uma gama de imagens estereotipadas do nordestino, sua
linguagem, aparência física, suas ideias, valores, inquietações, etc. A fala do próprio
quadrinista e a representação gráfica das personagens são sinalizadores do processo de
estereotipização que permeia as narrativas da Turma do Xaxado.
Fig. 19.
Fonte: 365 tiras em quadrinhos. Xaxado ano 4
86
pesqueira e convida Zé Pequeno para ir com ele. Entretanto, percebemos o “jogo mole” de Zé
Pequeno para atender ao chamado do amigo, insinuando que está preparando a pesca, não na
prática, mas no sono como indica a última vinheta através do balão pensamento e da
onomatopeia “zzz”. Temos ainda, a presença de uma rede, local de descanso preferido pela
personagem e que denota a sua marca registrada: a preguiça, sua companheira inseparável.
É necessário destacar que a personagem Xaxado foge à regra. E fica a pergunta: todos
os baianos são preguiçosos? A quem interessa a manipulação desses estereótipos?
Na Turma do Xaxado, Marieta é a personagem que faz uso da língua culta, formal,
dentro dos padrões normativos impostos pela escola ao ensinar uma língua sistematizada e
pragmática. É a defensora da Língua Portuguesa. Não admite “erros” e exige dos amigos o
emprego correto das construções linguísticas.
Marieta considera o livro como “alimento da alma” e não perde a chance de participar
de feiras de livro, de ler histórias para a turma, de exigir do outro o emprego correto e oficial
da nossa língua materna.
87
Marieta assim se posiciona:
Fig: 20.
Fonte: 365 tiras em quadrinhos. Xaxado ano 4
Ainda sobre Marieta, a sua descrição valida à construção simbólica frente a uma
conduta sistemática e metódica diante da vida: cabelo liso, vestimenta discreta, óculos e papel
nas mãos. Nota-se que a composição de Marieta destoa dos outros personagens da turma
assim como afirma uma exclusão ao exigir que Zé Pequeno alcance notas altas, isso só sendo
possível utilizando a gramática conforme é ensinada na escola. Numa turma que divide as
experiências no sertão nordestino, com falares diversos, que sentem na pele o preconceito
lingüístico do “pessoal” da cidade, há Marieta com um lugar de fala dotado de juízo de valor,
88
de julgamento. E é possível, dentro de um grupo minoritário, existir exclusão? Sim, dentro da
diferença há exclusão!
Fig: 21.
Fonte: 365 tiras em quadrinhos. Xaxado ano 4
Fig: 22.
Fonte: www.turmadoxaxado.com.br
90
Há várias representações sociais veiculadas nessa imagem. Nesse momento, podemos
destacar a identificação de Xaxado com Lampião com base nos seguintes aspectos: o avô de
Xaxado foi cangaceiro do bando de Lampião, a indumentária – chapéu e sandália de couro e a
esperteza típica dos dois. Stallone e Schwarzenegger não representam Xaxado e sua
subjetividade. O seu herói não é americano. Ele é brasileiro e nordestino. O rei do cangaço!
Fig. 23
Fonte: www.turmadoxaxado.com.br
O instrumento musical utilizado por Capiba difere daquele usado por Luiz Gonzaga.
Ao invés de tocar sanfona, toca violão. Na musicalidade, o estereótipo recai na limitação de
alguns ritmos definidos como os únicos que devem ser aprendidos pelos nordestinos como é
o caso do baião, do forró e do xaxado. Legitima-se a concepção de que os nordestinos não
podem aprender, ouvir e tocar outros estilos musicais. Nasceram para ouvir as cançoes de
Gonzagão que falam do nordestino emigrando para o Sul , fugindo da seca, do sol inclemente,
do sertão seco e infértil , a saudade e lembranças da terra natal.Inventou-se que o ouvido do
91
nordestino não está aberto para outros ritmos típicos da camada social do eixo Rio\São Paulo:
mpb, bossa nova, samba, etc.
Vejamos o que a personagem Marinês nos diz sobre a relação do nordestino com a
natureza. Da turma, ela é a defensora e a amiga número um da natureza. Tem toda uma
preocupação com a preservação do meio ambiente, fauna, flora, etc e aproveita toda a
oportunidade para conscientizar a turma sobre a importância de valorizar os recursos naturais.
Quer ser bióloga. Considera-se ecologista. Quer ver as sementes brotarem em cada pedacinho
de chão. Pensa no seu local embora haja toda uma carga de flagelo por conta das intempéries
climáticas. A natureza para ela é vida!
Fig: 24.
Fonte: www.turmadoxaxado.com.br
92
já se viu árvore ter emoção? Sentir dor. Chorar. Sofrer. As metáforas visuais mostram a
declaração de amor através dos corações pulsando.
Desse modo, o sentimento de preservação de Marieta nos alerta para o fato de que a
imagem do sertão brasileiro ultrapassa as demarcações físicas e goegráfias. Existem “sertões”
com sertanejos preocupados com o meio ambiente, a sustentabilidade e importância da
natureza para a vida no planeta. Para os nordestinos, a natureza não é má. Quem produz e
ramifica a maldade é a “indústria da seca”, a omissão dos órgãos competentes, o desvio de
verbas, o descaso com a vida no sertão, etc.
Nas tiras em quadrinhos da Turma do Xaxado, o quadrinísta traz nas suas imagens o
contraste social, o modo de vida dos nordestinos e dos sulistas, a intenção política de dividir
os sujeitos sociais em fortes e fracos, cultos e incultos e os mecanismos culturais que também
marginalizam os que estão fora do eixo, fora da “nata da sociedade”, dificultando a criação de
modos alternativos de fazer cultura, promover o saber, democratizar os espaços públicos,etc.
De Xaxado à Capiba, todas as personagens representam problemas sociais da
contemporaneidade. Imagens fictícias que falam da (in)visiblidade das minorias, da
fragmentação do sujeito contemporâneo, da precaridade de vida individual e coletiva, dos
conflitos sociais, da fluidez da experiência humana. As imagens leem o mundo e o revelam
ora na perspectiva da inclusão, da afirmação da vida humana ora como local de opressão e
desigualdade social por via do fazer imagético-discursivo que fala das angústias de ser
“gente”. Umberto Eco em Apocalípticos e Integrados assim coloca:
93
O enredo torna-se, assim, uma síntese de ações complexas, e através do conflito
narrativo, toma forma uma paixão, uma atitude mental. Sem mais, é agora legítimo
afirmar que a personagem artística é significativa e típica “quando o autor consegue
revelar os múltiplos nexos que coligam os traços individuais dos seus heróis aos
problemas gerais da época, os problemas gerias do seu tempo, mesmo os mais
abstratos, como problemas individualmente seus, que tenham para ela uma
importância vital. ( ECO, 2011, p.219-220)
Sob esse viés, o mais importante ainda é refletir sobre o que é ser substituto e sobra na
constituição da realidade social, construída simbolicamente e com interesses históricos bem
posicionados.
94
Quando um grupo social hegemônico no plano do saber e do poder ocupa o lugar de
condutores da vida social, está instalado a substituição. Haverá sempre o subtituto e o
substituído, numa relação de força e poder. As minoriais, os conhecidos dominados e
subservientes, aqueles marcados pelo estigma da inferioridade têm a sua subjetividade
domesticada pelo lugar de fala da autoridade profícua e manipuladora. Aquela que pensa pelo
outro e diz quem ele é, referendando uma verdade inquestionável. Os substituídos não
merecem gerir suas próprias vidas. São banidos do processo de tomada de decisões. Da
substituição à sobra, o sujeito marginalizado passa a ser o resto, o excedente. De
indispensável, apenas os substitutos. O homem-sobra é homem-objeto, condiconado a ser uma
mentira forjada pela classe dominante, sem direito a legitimar a sua identificação, saberes, etc.
A tira em quadrinhos a seguir revela a cisão entre os dominadores e dominados, “assim,
representar é estar no lugar de, falar por e agir por”, diz CHAUÍ (2011, p.290).
Fig: 25.
Fonte: 365 tiras em quadrinhos. Xaxado ano 4
No campo da leitura em sala de aula, como seria lida essa tira em quadrinhos pelos
estudantes do Ensino Fundamental de 09 anos? Se ler é produzir sentido, nos resta saber:
95
Percebemos, enfim, que analisar as representações sociais seja por meio da palavra
(oral ou escrita) ou imagens, exige um posicionamento crítico frente a significação do
estereótipo e acima de tudo, quanto aos efeitos da fabricação dos sujeitos sociais e históricos.
Na Turma do Xaxado, em outras turmas, em outros gêneros presentes na narrativa
contemporânea, os quadrinhos dramatizam as experiências reais e veiculam modelos fixados.
E possível ler os estereótipos criticamente? Uma pergunta inquietante e desafiadora. E pode, o
professor e estudante provocar “desvios” na leitura dos esteréotipos?
O livro-raiz é linear. Sua constituição é rígida: início, meio e fim. Não permite
rupturas. Tudo é estrutural, rigorosamente definido dentro de um caráter homogêneo dos
signos sociais e culturais.
97
Diferentemente dos fundamentos epistemológicos dos livros raiz e sistema-radícula, o
livro rizoma se organiza baseado em seis princípios, são eles: conexão, heterogeneidade,
multiplicidade, ruptura de a- significante, cartografia e decalcomania que vão ao encontro da
concepção do discurso fechado e rigoroso.
O livro rizoma constrói discursos. Não está condicionado a uma linha de pensamento
única, centralizadora e delimitada num começo e num fim. A proposta é de estabelecer novas
conexões com as formações enunciativas. De um discurso a outro, surgem novos ligamentos e
se instaura a heterogeneidade das produções humanas. As formações discursivas perdem a
condição essencialista e ganha novo devir. Agora, conceito é ação, é ato, é movimento, é
desejo. É também contradição, ruptura, desvio. A produção e recepção do conhecimento
perpassam pela relação entre a enunciação e o enunciado. Seja quem for o autor, ele está
inserido num contexto construído historicamente e a sua fala e\ou produção revela as tensões
sociais, as múltiplas identificações, os conflitos da vida em sociedade.
98
Os dois últimos princípios correspondem à cartografia e a decalcomania. Livro-raiz e
o livro sistema radícula operam com o decalque da realidade exterior e racionalizada, por sua
vez pautados em conceitos centralizadores que classificam e nomeiam o sentido no processo
de significação. Por outro lado, o livro-rizoma é mapa. Desmonta a naturalização das idéias
que aprisiona o conhecimento humano ao fazer uso de múltiplas entradas e saídas de
dimensões diferenciadas, suscita a produção de novos enunciados, porque “um rizoma não
começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo
(DELLEUZE E GUATTARI, 1995, p.36).
Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser
preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo
numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou
como uma meditação. Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque
que volta sempre "ao mesmo". Um mapa é uma questão de performance.(Deleuze e
Guattari, 1995, p.20-21)
99
narrativa rizomática. Nesse percurso, busca-se, sobretudo, problematizar a relação dos
quadrinhos com as noções de mapa e decalque além de refletir sobre como é operacionalizado
o processo de produção de sentido das narrativas quadrinizadas. Quanto à estrutura das
histórias contadas pelos quadrinhos, Will Eisner assim se pronuncia:
Todas as histórias têm uma estrutura. Uma história tem um início, um fim, e uma
linha de eventos colocados sobre uma estrutura que os mantêm juntos. Não importa
se o meio é um texto, um filme ou quadrinhos. O esqueleto é o mesmo. O estilo e a
maneira de se contar pode ser influenciado pelo meio, mas a história em si não
muda. A estrutura de uma história pode ser diagramada com muitas variações
porque ela está sujeita a diferentes padrões entre o início e o fim. A estrutura é útil
como um guia para manter controle sobre a forma de contar. (2005, p.10)
Fig: 26.
Fonte: Will Eisner, Narrativas Gráficas, 2005
Observemos que Will Eisner destaca a estrutura narrativa – início, meio e fim – como
recurso relevante no processo de diagramação das histórias. Entretanto, mesmo ocorrendo à
variação na diagramação, não descarta a função controladora que a estrutura exerce sobre a
maneira como a história deve ser contada. Assim, toda história tem a mesma disposição, um
mesmo modelo estruturante que o autor de quadrinhos deve seguir. Para o leitor-consumidor,
o que é mais significativo? Reconhecer a estrutura da narrativa e decodificar os seus
elementos ou desobedecer à construção dos acontecimentos narrados pelas imagens e
palavras? O trabalho destinado aos quadrinhos nos dá caminhos para identificarmos qual ação
prevalece: se a de mapear ou decalcar a arte seqüencial das imagens.
100
A partir destas considerações podemos ler a próxima tira em quadrinhos da Turma do
Xaxado a partir das posições de Will Eisner e o princípio do decalque, visando com isso,
analisar o processo de construção dos quadrinhos sob a perspectiva do livro-raiz e do sistema-
radícula.
Fig: 27.
Fonte: WWW.turmadoxaxado.com.br
No que diz respeito á estrutura da narrativa defendida por Will Eisner, podemos
atribuir os seguintes significados a cada aspecto proposto no gráfico já apresentado:
Quanto aos recursos mais básicos da linguagem das tiras em quadrinhos podemos
identificar os seguintes recursos gráfico-expressivos:
101
uma narrativa com desfecho inesperado no final.
RAMOS (2014)
103
A questão envolvida nessa forma de leitura, estudo e pesquisa com base na estrutura
fixa da narrativa e na utilização dos recursos expressivos das tiras em quadrinhos nos conduz
à organização do pensamento tomando como base o decalque. Ler para apreender a sequência
convencional início, meio e fim da narrativa quadrinística é decalcar. Aprender, dominar e
utilizar a técnica de fazer quadrinhos é decalcar. Se decalcar é seguir um modelo, o que valida
o uso do texto imagético na contemporaneidade é a aprendizagem da “gramática” dos
quadrinhos que prescreve como ler e produzir quadrinhos. Reproduzir e copiar a gramática
dos quadrinhos é aprender os seus recursos gráfico-visuais. Se for assim, ler quadrinhos é
decodificar o enredo da narrativa obedecendo à linearidade pré-estabelecida pelo quadrinista.
Produzir quadrinhos é reconhecer e identificar a técnica que compõe o conjunto expressivo de
desenho empregado nos diversos gêneros dos quadrinhos.
Frente a essas premissas, faz-se necessário pensar quais são as relações que se
pretendem estabelecer entre as tiras em quadrinhos e o leitor\consumidor. Espera-se que o
leitor\consumidor realize um mero decalque do texto imagético ou engendre uma cartografia
quadrinística? Para mobilizarmos uma reflexão sobre o que é olhar para os quadrinhos como
um mapa veja o que nos diz Eni Pulcinelli Orlandi (2001) quando analisa a não-
homogeneidade do texto mobilizando conceitos como a historicidade do texto e a
historicidade do sujeito-leitor.
A imagem que segue estabelece um diálogo com a noção de mapa ao propor a quebra
da linearidade textual. De um olhar estruturalista – defendido pelo decalque – à um
movimento plural do texto, onde pensar sobre o papel da cultura na construção do que é
escrito redimensiona a relação entre o texto e o sujeito-leitor na contemporaneidade.
104
Fig: 28. Representaçãográfica das mediações entre o sujeito-leitor e o texto
Fonte: Leitura e Perspectivas Interdisciplinares, 1992, p.71
Todo texto em relação à leitura teria, pois, vários pontos de entrada e vários pontos
de fuga. Os pontos de entrada corresponderiam a múltiplas posições do sujeito. Os
pontos de fuga são as diferentes perspectivas de atribuição de sentidos: ao
relacionar-se com os vários pontos de entrada, o leitor pode produzir leituras que
encaminham-se em várias direções. Não necessariamente previstas, nem
organizadas, nem passíveis de cálculo. Há várias perspectivas de leituras. Há
diferentes posições do sujeito-leitor. (ORLANI, 2003, 70-71)
106
Como transitar com a próxima tira em quadrinhos sob o olhar e construção do mapa?
Vejamos:
Fig: 29.
Fonte: www.turmadoxaxado.com.br
E quanto aos outros saberes que circulam no texto? O que falta para que o sertanejo
tenha uma vida cidadã? Por que a imagem do sertanejo é sempre associada à fome, miséria,
sofrimento e morte? Por que a água chega pra uns e não para a coletividade? E a indústria da
seca a quem interessa? Por que ações emergenciais como construção de poços, barragens e
cisternas não são levadas a sério? E a educação? Saúde? Em que medida a vida do sertanejo
não é usada como plataforma político-partidária?
É tendo em vista essas questões que nos perguntamos: que tipo de leitura é produzida
na escola? Que tipo de leitor ela valoriza?
“A leitura vai, portanto, além do texto (seja ele qual for) e começa antes do contato
com ele. O leitor assume um papel atuante, deixa de ser mero decodificador ou
receptor passivo. E o contexto geral em que ele atua, as pessoas com quem convive
passam a ter influência apreciável em um desempenho na leitura. Isso porque o dar
sentido a um texto implica sempre levar em conta a situação desse texto e de seu
leitor. E a noção de texto aqui também é ampliada, não mais fica restrita ao que está
escrito, mas abre-se para englobar diferentes linguagens. (MARTINS, 2012, p. 33)
Década de 70. Escola pública. Ensino primário. Nessa época começa o meu itinerário
de leitura, as histórias mais memoráveis, os primeiros contatos com o texto, a difícil relação
com o ato de ler, os medos, as inseguranças e conflitos que a entrada no mundo das letras me
trazia. Lembro-me de duas situações que marcaram a minha vida, o encontro com as palavras,
que, diga-se de passagem, não foi um amor à primeira vista. No lugar do desejo de aprender a
ler, outro sentimento tomou fôlego e força: o medo. O medo de errar. O medo de ler. O medo
da reação da professora.
109
A primeira cena que segue aconteceu no ano de 1976 quando cursava a segunda série
“primária”.
Sala organizada em fileiras. Professora na frente, olhar austero, voz forte e pesada,
dizia: Hoje, vamos ler! Só de ouvir essas palavras, meu corpo tremia todo, pois ainda não lia
“corrido”, apenas soletrava com muita dificuldade. Eu tentava me livrar daquele dedo
impositivo, apontando para quem deveria ler: baixava a cabeça, rezava para não ser chamada,
acompanhava os movimentos do colega da frente na tentativa de me esquivar do olhar
rigoroso da professora, encolhia o corpo todo acreditando que não seria notada. Pura ilusão de
criança! Ninguém escapava da hora da leitura. Tive que ler. O texto me trouxe uma palavra
nova e de extrema complexidade para mim. Nem me recordo do que tratava a mensagem, mas
só sei que no meio do texto tinha uma palavra. Tinha uma palavra no meio do texto. Tinha
uma palavra. No meio do texto tinha uma palavra. Raquítico. E tentei ler...
Naquela época, não tinha noção do sentido da palavra raquítico, contudo “senti na
pele” o efeito de ser estigmatizada, de receber o rótulo de incompetente. Até hoje quando no
meio de um texto – seja ele verbal ou não – encontro a palavra raquítico, rememorizo como
foi dolorida o encontro com as “primeiras letras”, as primeiras palavras.
1978. Ano em que aconteceu a segunda cena. Cursava a quarta série. Com outra
professora pensei: agora, vai ser diferente! Já sabia ler como a escola queria. Outra “amarga”
ilusão! A professora – também rigorosa e exigente – numa aula em que comemorávamos o
Dia do Soldado – 25 de agosto – levou um desenho para a “classe” pintar. A tarefa rodada no
“mimeógrafo” trazia a figura de um soldado segurando com a bandeira do Brasil. Se tinha
uma aula que eu gostava era a de pintura. Nesse dia, recordo-me com detalhes, usei o lápis de
110
cor verde para pintar o uniforme do soldado, conforme orientação da professora. Tudo ia
muito bem até que resolvi pintar o bolso direito do uniforme da cor vermelha. Pra quê? A
professora ficou extremamente irritada e disse: Onde já se viu usar a cor vermelha no
uniforme do soldado brasileiro? Trate de refazer a atividade e não “erre” novamente. Já com
outro desenho em mãos, refiz a pintura como a “pró” desejava. No final da aula, ela teria que
expor os desenhos no varal da sala e não caberia compartilhar com a classe e as demais
professoras, a imagem deturpada do soldado brasileiro.
Desse dia em diante, as aulas de pintura nunca mais foram às mesmas. Ficava a
imaginar as datas comemorativas e as pinturas que viriam. Teria que pintar do “jeito da pró”.
E eu? Não podia escolher as cores? A minha forma de pintar? Por que todos os desenhos
deveriam ser iguais? Não podia ter ao menos um diferente? Assim, continuei a pintar do “jeito
da pró”, mas uma pergunta lá no fundo me acompanhava: seria sempre assim?
Sob a primeira cena narrada, a concepção de leitura do texto verbal ainda estava
ancorada no método de alfabetização sintético e analítico (silábicos ou tradicionais) que
visava à decodificação das letras e dos sons. Para isso, o aluno no método sintético precisava
“vencer” três etapas do processo a fim de dominar a técnica de leitura: soletração, silabação e
fônico, num processo direcionado da parte para o todo.
111
Fig: 30.
Fonte: acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br
Fig: 31.
Fonte: acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br
112
Fig 32.
Fonte: acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br
Quanto ao método analítico o caminho percorrido nasce do todo para as partes. Nessa
atividade existe a decomposição a partir de frases. O aluno separa palavras, divide em sílabas.
É a chamada setenciação.
Fig: 33.
Fonte acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br
113
No processo de palavração, a partir da palavra, dividem-se em unidades simples, as sílabas.
Fig: 34.
Fonte acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br
No global, apresenta-se uma história com começo, meio e fim. Depois o trabalho é
feito na decomposição em frases, palavras, sílabas e letras.
Fig: 35.
Fonte: acervohistoricodolivroescolar.blogspot.com.br
A abordagem psicossocial da leitura foi precedida por uma longa etapa em que os
estudos behavioristas dominavam o campo, fato este evidente (...) que previam um
leitor que precisava receber um estímulo visual, uma letra, para uni-la a um estímulo
visual anterior para assim formar uma sílaba, procedendo dessa forma em todos os
níveis de significação: letra por letra até completar uma sílaba, sílaba por sílaba, até
completar uma palavra, palavra por palavra até completar uma frase e assim
sucessivamente. (2004, p.16,17)
Como visto, a escola trabalhava com o procedimento linear dos elementos da língua.
Palavra – a – palavra, o aluno era privado dos processos de significação, experimentava a
leitura de controle, baseada no conhecimento lingüístico como fator decisivo para aprender a
ler.
Em relação à segunda cena – que trata da aula de pintura – também caracteriza o ato
de ler ou produzir texto imagético como um processo passivo. Pensar no ensino da leitura
imagética nos manuais didáticos dos anos 70 significa questionar a relação entre a ilustração-
texto-leitor e as suas finalidades. Vejamos as seguintes imagens:
Com base nesses manuais didáticos, é possível identificar o tratamento dado ao texto
imagético: é limitado a fotografias, ilustrações e desenho que servem de coadjuvantes no
processo de aprendizagem. As finalidades pedagógicas de se usar as ilustrações são:
Ancorar o texto;
Visualizar o conteúdo;
Enfeitar a capa;
116
A imagem inicial exibe uma relação de dependência do texto verbal, sem que se
estabeleça, no entanto, uma relação polissêmica entre a imagem e a linguagem (...).
Assim, os desenhos não parecem significar pelo seu valor simbólico: sua função
estaria limitada a prender a atenção de um leitor a quem não se credita mais a
possibilidade de engajamento contínuo, independente, na leitura do texto verbal.
(KLEIMAN, 2004, p.18)
117
“Nossos alunos não querem nada. Na aula de português, peço para ler e ninguém quer.
Termino lendo para a turma.”
Se tem crise na leitura? E como tem. Todo ano o tema da crise é discutido na jornada
pedagógica. Mas sabe o que acontece durante o ano? Nada. As dificuldades continuam as
mesmas.”
“Lá vem essa coordenadora com as teorias de leitura. Não entendo por que estudá-las,
se na prática, a leitura fica aprisionada ao livro didático.”
“Confesso que não gosto de ler. Tomara que meus alunos nunca saibam disso!”
“A gestora escolar exige um projeto de leitura, mas não dá condição de trabalho. Falta
uma biblioteca equipada, não há uma sala de leitura, se ultrapasso a minha cota de xerox, não
posso solicitar mais textos. Sem falar na omissão dos colegas das outras áreas quando
afirmam que ensinar a ler é uma tarefa apenas do professor. Assim, fica difícil incentivar a
leitura.”
118
Na medida em que se trata da teorização da leitura no espaço escolar, a crise ratifica
que é a escola que não funciona como deveria. A própria comunidade escolar não sabe
operacionalizar com os métodos e projetos. Os órgãos educacionais entregam o “pacote
pronto” de como organizar e estruturar o fazer pedagógico das escolas e se há erros,
certamente quem responde é toda a comunidade escolar. Quem elabora as leis sempre acerta.
Quem executa conforme a legislação definida mantém o equilíbrio da conjuntura. Havendo
quebra, existem desestruturação e ineficiência do instituído como legal e de direito. A crise
diz que há o problema, mas ao mesmo tempo oculta a sua dimensão.
É, pois, fundamental dizer que a busca por culpados pela crise instituída e oficial não
equaciona o problema. Precisamos compreender as (im) possibilidades de tratar o processo de
leitura como prática libertadora e não como uma atividade de pura mecanização e automação
como se apresenta nas escolas brasileiras.
Nesse momento, pode-se pôr em questão a forma como a escola trata a aprendizagem
da leitura e que tipo de leitor ela constrói. Para isso, é significativo refletir sobre as teorias da
leitura e analisar como cada uma percebe o uso do texto pelo leitor levando em consideração
que um dos motivos atribuídos ao fracasso da leitura nas escolas brasileiras é a pulverização
de diversas teorias simultaneamente, acarretando assim, numa superficialidade do processo de
ler e escrever.
119
MODELOS DE LEITURA
Concepção Estruturalista Leitura como um processo instantâneo de decodificação de
letras em sons, e a associação destes com o significado.
(p.62)
Processamento de dados Supõe que cada tarefa cognitiva pode ser analisada em etapas
ordenadas, começando com um estímulo sensorial e
terminando com uma resposta.
É linear e indutivo. (p.62)
120
A partir dessas perspectivas teóricas sobre leitura que coexistiram nas décadas de 70 e
80 é possível reconhecer a medida dos conceitos de leitor, a função do texto e os
procedimentos mecânicos e artificiais que marcam o fenômeno da linguagem e como ainda
hoje, alguns desses modelos prevalecem nas aulas de português.
No entanto, é preciso sinalizar que ainda há uma simulação da leitura. Entre “o que o
texto está dizendo” e “por que o escritor está dizendo o que o texto está dizendo” (Kato, 1990,
p.72) existe a marca de uma leitura conteudista, unilateral e explicada sob o olhar lingüístico.
Devido a isso, o processo de leitura silenciava o seu caráter ambíguo. Maria Cristina Leandro
Ferreira suscita a seguinte provocação:
Convém reconhecer que não se pode dizer tudo na língua. E este mecanismo de
indeterminação abre brechas para a ambigüidade (...). longe de encarar a
ambiguidade como uma “problema”, com um fato lingüístico “negativo”, ela deve
ser vista como um lugar de resistência, um lugar de diferença com o sistema e um
modo de se perceber o melhor sujeito que a produz e/ou a detecta). (2003, p. 207)
Vemos, então, que a partir da idéia de Ferreira (2003), de que a leitura é um espaço de
ambigüidades podemos – na cena escolar contemporânea – indagar como as nossas escolas
121
concebem o ato de ler, como o professor media a relação entre leitor e texto, além do tipo de
leitor privilegiado nos ambientes educativos.
Para tanto, me aproprio das minhas experiências como professora de português para
transitar pelo espaço da escola pública – que conheço tão de perto – e mostrar as rotas da
leitura na sala do ensino fundamental de 9 (nove) anos (5ª a 8ª séries).
Numa situação real como essa fica nítido o desespero do professor quanto aos meios
de aquisição da leitura por seus alunos. E também, denuncia a concepção de leitura que o
professor acredita e defende: a alfabetização. Se o aluno não chegou alfabetizado na 5ª série,
isso equivale dizer que ele não sabe ler? È iletrado? A sua vivência de leitura se dá apenas no
ambiente escolar? Pensemos sobre isso. Para responder a essas questões, Soares (1998, p.24)
esclarece:
122
É importante assinalar que diversos fatores interferem nas condições de uso e
aprendizagem da leitura e escrita. Se a escola agrega grupos sociais distintos, de modo algum
podemos negar as tensões e conflitos sociais que transitam nos espaços escolares. Há alunos
sem as mínimas condições financeiras. A ida á escola garante uma merenda ou uma refeição
diária. Uma parcela enorme de pais de alunos não é “alfabetizada”. Não têm capital para
comprar livros, etc. Muitos alunos trabalham no turno oposto para ajudar a família. Enfim,
além desses problemas existem outras questões sociais que separa violentamente aqueles
reconhecidos como “alfabetizados” do grupo rotulado de “analfabeto”
Na escola, o aluno alfabetizado é aquele capaz de ler e escrever. Para isso, ele
necessita dominar as técnicas que envolvem o aprendizado dos sistemas fonológicos e
gráficos da língua. Aluno alfabetizado é aluno que decodifica a “ciência das letras”, de forma
automatizada. Desde 1980 – com a chegada do Letramento na Educação e Ciências
Línguísticas – o conceito de alfabetização sofre questionamentos. Pode-se alfabetizar sem
pensar no social, político, cultural, etc? Basta ser alfabetizado para sentir-se inserido na
sociedade, ter uma atuação cidadã? Nessa discussão, o aluno letrado é aquele que exercita o
Letramento como resultado da “ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e
escrita. O estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como
consequência de ter-se apropriado da escrita e de suas práticas sociais.”, Soares (1998, p. 39).
123
dele!) pretendemos que a língua seja considerada como potência simbólica, instrumento
imprescindível para ler sobre cultura, estrutura de poder, etc.
124
competitivos. Se não sabe escrever o nome, nem tão pouco escrever um bilhete, não terá
acesso aos bens culturais. E assim, tais condutas ainda prevalecem na escola. A leitura do
estudante é o tempo todo julgada pelo professor. Ele lê o texto que é autorizado pelo
professor, o livro didático dita os gêneros textuais mais privilegiados, faz atividade avaliativa
para provar que sabe ler, recebe roteiro de leitura para “compreender” os romances
considerados clássicos da literatura, etc. Nesse sentido, institui-se a didatização da leitura.
Antes de entrar na escola, os nossos estudantes têm experiências de leitura e escrita. Após a
sua entrada na escola, ele conhece outra língua: a sistematizada, a oficial, a culta.
Diante do fato da presença marcante dos textos eletrônicos na vida social dos nossos
estudantes, a comunidade escolar num todo, sofre com a insatisfação dos alunos frente ao
trabalho pedagógico na sala de aula. O “muro das lamentações” caracteriza bem essa situação:
de um lado os professores agonizando com o desinteresse dos alunos e do outro lado, os
alunos que sofrem com uma escola que desvaloriza seus gostos de leitura.
125
Quando atentamos para essas questões e problematizamos as condições de produção
da leitura e da escrita na escola pública brasileira, reconhecemos que a crise efetivamente
existe. “A crise serve para ocultar a crise verdadeira” (CHAUÍ, 2011, p. 48) e nesse processo
de mascaramento, as “autoridades da educação” justificam os obstáculos na aprendizagem por
conta da crise. Não querem desestabilizar os seus projetos. Nem pensar em oficializar que
algo vai errado. Que as contradições e os conflitos não existem. Querem manter a “harmonia”
no processo de aprendizagem. Por isso, são os primeiros a propagar a existência e efeitos da
crise na educação que atinge a todos, sem distinção. Gestor, coordenadores, supervisores,
professore, alunos, etc. Todos são afetados pela crise.
E na crise, todos procuram uma salvação. Mas quem salvará a todos da crise? Existe
uma cura milagrosa para a crise? Precisamos de heróis e heroínas para assegurar o direito
legal de experimentar o exercício de ler e escrever com liberdade e autonomia?
Mas, o que de fato, a crise proporciona? O que podemos extrair dela? É possível falar
das deficiências encontradas nas práticas de leitura e ao mesmo tempo, mobilizar
ações\alternativas na (re) construção de um percurso para a leitura em sala de aula?
3.3.3 O uso das tiras em quadrinhos no Ensino Fundamental de 09 anos: remédio para
todos os males?
Por muito tempo, os quadrinhos foram estigmatizados por ser um produto fruto da
indústria cultural que tem como propósito fundamental a comercialização das edições e
publicações. Além desse aspecto, as imagens gráficas sofreram profundas críticas dos
intelectuais, pais, professores e demais segmentos sociais que olhavam com descrédito para a
leitura desse meio de comunicação de massa.
Com isso, o escritor também psiquiatra Frederic Wertham conseguiu propagar as suas
idéias nos Estados Unidos e em outros países do mundo. Se a criança ou adolescente lesse
uma HQs certamente imitariam as ações dos heróis. O livro fez bastante sucesso e atingiu
fortemente a produção e publicação dos quadrinhos que passaram a ser vistos como uma
127
grande ameaça para o público leitor. Ler quadrinhos era muito perigoso, pois criava crianças e
adolescentes desajustados e com sérios desvios de comportamento.
No Brasil, em 12 de abril de 1939 era lançada a revista Gibi, publicação que fez muito
sucesso na época. A popularidade alcançada fez com que o título da revista passasse a ser
sinônimo de HQs no cenário brasileiro há várias décadas e até hoje, os leitores continuam
utilizando o termo Gibi para se referir unicamente às histórias em quadrinhos, mas quando se
fala em tiras cômicas, o termo não procede. Vejamos as capas do Gibi:
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Fig: 41. Gibi, serviçal indiano, provável fonte do título da revista
Fonte: Gibi, a revista sinônimo de quadrinhos,2010
Fig: 42. Capa do Gibi# 34, que iniciou a nova periodicidade da revista
Fonte: Gibi, a revista sinônimo de quadrinhos,2010
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Fig: 43. Capa do último número do Gibi Semanal.
Fonte: Gibi, a revista sinônimo de quadrinhos,2010
Nota-se hoje, com o avanço das diversas estratégias de leitura em sala de aula, uma
permanência do olhar de desconfiança com os gêneros dos quadrinhos. A presença desses
gêneros na escola é uma realidade, mas a forma como são apresentados ao público leitor ainda
carrega as marcas e os rótulos de uma leitura que gera ociosidade, entretenimento sem
nenhum ganho significativo para quem ler. Luyten elucida a importância dos quadrinhos:
130
Quantas vezes todos nós já levamos bronca dos pais, sendo pegos “ em
flagra” com uma revista de quadrinhos não mão e eles diziam: Larga esse
gibi! Não tem coisa melhor para ler?”. Preconceitos como esse ainda existem,
mas estão ficando menos freqüentes. Hoje, a grande maioria das pessoas já
está conscientizada da enorme importância que têm as histórias em
quadrinhos. Tanto na área da educação como nas de lazer e, até, nos campos
da propaganda comercial e política. Em todas as páreas temos, portanto, a
possibilidade de encontrar os quadrinhos. O que importa, porém, é de onde
vêm essas histórias e quem as escreve, pois elas são excelente veículo de
mensagens ideológicas e de crítica social, explícita ou implicitamente.(1993,
p. 7)
Com relação à leitura das tiras em quadrinhos – surgiram primeiro do que as histórias
em quadrinhos – o quadro não é diferente. Nem sempre foram vistas com “bons olhos”. Desde
o seu surgimento no final do século XIX nos Estados Unidos – nossas produções
quadrinísticas receberam influências da indústria cultural americana – até a cena atual
contemporânea, as tiras passaram por enormes transformações no campo da diagramação,
editorial, publicação e teor de conteúdo, organização composicional, estilo de linguagem, o
fazer gráfico e, sobretudo, o reconhecimento dos quadrinistas brasileiros. Vejamos as duas
tiras em quadrinhos a seguir que visualizam bem o processo de evolução do trabalho gráfico
dos quadrinhos.A primeira de Ângelo Agostini, italiano radicado no Brasil, o pioneiro das
histórias ilustradas no Brasil e a segunda de Antonio Cedraz.
131
Fig: 44. “As aventuras de Nhô Quim, de Angelo Agostini, iniciada em 30 de janeiro de 1869.
Fonte: Fonte: Gibi, a revista sinônimo de quadrinhos, 2010.
Fig: 45.
Fonte: www.turmado xaxado.com.br
132
Os alunos se integram mais à sociedade que os rodeia, sendo capazes de distinguir
os níveis local, regional, nacional e internacional, relacioná-los entre si e adquirir a
consciência de estar em um mundo muito mais amplo do que as fronteiras entre sua
casa e a escola. O processo de socialização se amplia, com a inserção em grupos de
interesse e a diferenciação entre os sexos. Têm a capacidade de identificar detalhes
das obras de quadrinhos e conseguem fazer correlações entre eles e sua realidade
social. As produções próprias incorporam a sensação de profundidade, a
superposição de elementos e a linha do horizonte, fruto de sua familiaridade com a
linguagem dos quadrinhos. (2009, p. 28)
133
escolares num esforço de desembaraçar o tecido epistemológico da disciplinaridade que tanto
divide o conhecimento em partes, individualizando acima de tudo, o comportamento de todos
os envolvidos na construção do saber em sala de aula e das ações pedagógicas desenvolvidas
pela comunidade local.
134
Esse tipo de posicionamento do professor – de colocar a culpa no outro – também se
dá entre os alunos. Poxa, que aula chata! O professor nunca traz um texto interessante. Só usa
o que tem no livro didático. Nas aulas, só faço copiar, copiar, copiar. Por que o professor acha
que só ele manda? E nós, alunos, não podemos sugerir? Ah, se eu fosse professor... daria uma
aula bem “maneira”.
Na prática docente, esses aspectos ainda não são compreendidos e sua aplicabilidade
distante do que se deseja. Nas jornadas pedagógicas um eixo temático é selecionado para ser
trabalhado durante todo o no ano letivo – já vem pronto da secretaria ou departamento de
Educação – e levado às escolas sem que as especificidades de cada unidade de ensino sejam
analisadas. No primeiro encontro com as coordenadoras, é sugerido que os professores
formem grupos por disciplina e montem um projeto interdisciplinar. O eixo temático passa a
ser discutido e ao final da atividade, cada grupo expõe como cada disciplina trabalhará ,
indicando os textos a serem lidos, a metodologia, os recursos e critérios de avaliação,
135
definidos com base na duração das unidades (calendário construído também pelos dirigentes
da educação, sem a presença e acompanhamento dos docentes). Nesse campo de análise,
quase sempre quando ocorre divergência, é motivo para as “guerras de ego” e disputa de
quem sabe mais ou quem sabe menos, sem contar também com a valorização de algumas
disciplinas em detrimento de outras. É assim que a interdisciplinaridade se presentifica nas
escolas.
É neste sentido que pensamos a prática de leitura das tiras em quarinhos no ensino
fundamental de 09 anos: sob o fazer interdisciplinar, pois “a compreensão de uma imagem
requer uma comunidade de experiência” (Will Eisner, 1989, p.3)
Para desmistificar essa proposição, existem situações em sala de aula que mostram
outros caminhos na relação com os quadrinhos. Muitos alunos não dominam a “gramática”
dos quadrinhos e escrevem (produzem!) narrativas gráficas com propriedade. Outros
conhecem como fazer, dominam os recursos gráficos e não conseguem articular o enredo
seqüenciado da história. Alguns professores não dominam os mecanismos de composição dos
quadrinhos, contudo desafiam os alunos a pensar sobre o uso e prática social, no caso, das
tiras em quadrinhos. Há professores que sabem teorizar sobre o fazer quadrinhos e se
esquivam de proporcionar aos alunos, um encontro com uma leitura que vá além da repetição
mnemônica e formal dos quadrinhos.
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Fig:46
Fonte: Scott Mccloud, 2005, p.86
138
Como efetivar o processo de engajamento do educador num trabalho
interdisciplinar, mesmo que sua formação tenha sido fragmentada.
Como favorecer condições para que o educador compreenda como ocorre a
aprendizagem do aluno, mesmo que ele ainda não tenha tido tempo para
observar como ocorre sua própria aprendizagem.
Como propiciar formas de instauração do diálogo, mesmo que o educador
não tenha sido preparado para isso.
Como iniciar a busca de uma transformação social, mesmo que o educador
apenas tenha iniciado seu processo de transformação pessoal.
Como propiciar condições para troca com outras disciplinas, mesmo que o
educador não tenha adquirido o domínio da sua. (1994, p, 50)
Com base nesses questionamentos, percebemos que não é fácil construir um projeto
interdisciplinar de qualquer maneira ou que as ações nas escolas ocorrem como um passe de
mágicas. Pensar sobre a interdisciplinaridade requer mudanças substanciais na prática
pedagógica do professor.
Por outro lado, se a tira em quadrinhos fosse estudada pela perspectiva do texto
totalizante, não haveria a leitura do “impossível”, do inusitado, do diferente. Todas as
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informações possíveis são apresentadas, mantendo a unilateralidade textual. Com isso, o texto
se fecha na sua estrutura organizacional, sem abrir “pistas” para quem ler.
Na última vinheta, quando Marieta pensa: “não é fácil adaptar contos de fadas para
esses dois”, a sua declaração nos reporta ao papel do professor na mediação da leitura das
tiras em quadrinhos em sala de aula. Para que o aluno perceba a dialogicidade entre os
gêneros é necessário que a atividade de leitura intertextual seja uma prática vivenciada nos
encontros não somente nas aulas de português, mas nas outras áreas. Para legitimar essa ação
metodológica, a escola deve se abrir para a pluralidade de textos e de leitores que a dinâmica
contemporânea oferece e evitar com isso o descrédito atribuído a alguns gêneros e a
141
valorização exarcebada de outros. Os texto verbais, imagéticos e eletrônicos trabalhados de
maneira intertextual compõem um mosaico de leituras ativas, transformadoras e
potencialmente caregadas de multiplos olhares sobre o mundo, a vida, a linguagem,etc.
É, assim, possível no ambiente escolar e fora dele( lemos também em outros locais,
diariamente!) transitar por outras ordens textuais e nesse novo trânsito, o gênero tira em
qaudrinhos é uma potente formação discursiva aberta a todos que queiram navegar na sua
leitura.
142
Fig:48
Fonte: Scott Mccloud, Desvendando os quadrinhos, 2005
Por fim, Vergueiro sugere uma reflexão sobre a prática de leitura dos quadrinhos nas
escolas:
Os quadrinhos não podem ser vistos pela escola como uma espécie de panacéia que
atende a todo e qualquer objetivo educacional, como se eles possuíssem alguma
característica mágica capaz de transformar pedra em ouro. Pelo contrário, deve-se
buscar a integração dos quadrinhos a outras produções da indústria editorial,
televisiva, radiofônica, cinematográfica etc., tratando todos como formas
complementares e não como inimigas ou adversárias na atenção dos estudantes.
(2009, p. 27)
143
Afirmar que os quadrinhos e seus gêneros – no caso as tiras em quadrinhos – são
remédios para todos os males do processo de aquisição e aprendizagem da leitura e escrita nas
escolas da Educação Básica é uma profunda incoerência. O perigo está em se negar à
presença dos quadrinhos nos encontros em sala de aula ou utilizá-lo apenas como “enfeite”
para simular a leitura do texto imagético.
Fig:49
Fonte: Scott Mccloud, Desvendando os quadrinhos, 2005
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CONSIDERAÇÕES (IN) FINITAS
“A sanção do crítico não é o sentido da obra, mas o sentido do que dela diz.”
(Roland Barthes).
Para cursar o mestrado em Crítica Cultural obtive licença para curso por dois anos.
Com isso, me afastei das atividades escolares. No dia 09 de abril retornarei para as minhas
salas de aula. No município de Pojuca assumirei três turmas de 5ª séries, no turno matutino no
colégio público (Colégio Municipal Presidente Castelo Branco). Na escola estadual, no turno
vespertino, não tenho turmas. A escola esvaziou-se. Perdemos muitos estudantes. Alguns não
querem a seriação regular. Optam em cursar a EJA (Educação de Jovens e Adultos) do ensino
médio. Portanto, ao retornar sou uma professora de português “excedente”. O que restou foi a
retirada do pagamento das aulas complementares (AC), aproximadamente 28% do meu
salário.
Para os colegas de trabalho, o meu retorno às escolas vem com um enorme diferencial:
ela agora é mestra! Mestra em Crítica Cultural! E o que é mesmo ser mestra especificamente
na escola publica municipal? O que vale o título? Como e quando a minha tese terá uma
função social \escolar?
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Com o título da minha tese “As tiras em quadrinhos da Turma do Xaxado: imagens
desviantes trago para a discussão o texto imagético como signo e produto cultural, sua
potência narrativa e seu papel como suporte textual no trabalho com a leitura em sala de aula.
Ao relacionar os resultados obtidos, faço nesse momento uma ponte com a realidade
do meu espaço escolar ao retornar para a sala de aula.
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O gênero tiras em quadrinhos serve apenas para cobrar os conhecimentos lingüísticos.
No livro didático é assim a sua configuração e nas atividades avaliativas também. Pensar
sobre as representações sociais visibilizadas nos quadrinhos dá muito trabalho. O que adianta
falar sobre preconceito, discriminação, estereótipo se os nossos alunos não estão “nem aí”
para as questões sociais? É mais conveniente e simples pedi que os alunos façam desenhos
utilizando os tipos de balões ensinados nas aulas de português. Fácil de corrigir. Fácil de
atribuir uma nota.
Hora de planejar. Decidir as ações metodológicas para o ano letivo. Analisar o grande
problema da nossa escola: os alunos não sabem ler nem escrever. Está na hora de se montar
um projeto de leitura. Para essa elaboração, todos direcionam os olhares para os professores
de português, são eles que trabalham com a linguagem, corrigem as redações, conhecem as
produções textuais da turma. O professor da outra disciplina diz que não é obrigação dele
ensinar ninguém a ler e escrever. Já tem tanta atividade para corrigir.
É preciso tecer novos percursos. Redefinir a nossa prática. Construir novas relações
com a produção do conhecimento.
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senti-la no meu cotidiano, na minha sala de aula, nos encontros pedagógicos, enfim, é para
isso que o conhecimento funciona: para tecer revoluções por menor que sejam.
Para essa caminhada desviante, não há pacote pronto, soluções instantâneas, respostas
completas.
E eu quero construir.
Finalizo o meu trabalho – ele seguirá nas relações em sala de aula e fora dela –
driblando as normas das produções acadêmicas, com uma tira em quadrinhos do nosso
Xaxado, Antonio Cedraz falecido no dia 11 de setembro de 2014, dia em que a minha escrita
se entristeceu, quase parou. Obrigada, meu amigo Cedraz! Obrigada pela força dos nossos
encontros.
Fig: 50
Fonte: Guilherme Rossi, homenagem à Cedraz, 2014.
148
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