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Ensino na diversidade
Diferentes
diferenças
Desafios interculturais
na sala de aula
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
Presidente: LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA
Ministro da Educação: FERNANDO HADDAD
Secretária da Educação Básica: MARIA DO PILAR LACERDA ALMEIDA E SILVA
Coordenação-Geral de Formação de Professores: HELENA COSTA LOPES DE FREITAS
Referências / 53
Introdução
Um grupo de pessoas está fazendo uma refeição. Nesse grupo, há dois ho-
mens que estão sentados a uma mesa posta com travessas de comida. Há tam-
bém duas mulheres, com cabeças e corpos totalmente cobertos, sentadas no
chão, uma ao lado de cada homem. Ambos os homens mantêm uma das mãos
apoiada na cabeça de uma das mulheres. A comida das mulheres está sobre uma
folha de bananeira. Elas, descalças, comem com as mãos. Os homens comem
utilizando garfos e facas; e estão calçados.
▪ 5▪
Nessa civilização as mulheres são consideradas seres puros e sagrados e
somente elas podem tocar o chão, para que ele seja sempre fértil. Os homens
não podem tocar o chão, por isso têm que estar sempre calçados. É apenas
através da mulher que o homem pode alcançar a pureza da terra. E ele não pode
vê-la, porque é indigno.
O mito da caverna
Imaginemos que um grupo de seres humanos vive preso, há muitas
gerações, em uma caverna escura. Há ali apenas uma pequena réstia de luz que
projeta, na parede de fundo da caverna, apenas sombras de tudo o que se passa
lá fora. Acorrentadas de costas para a entrada da caverna, as pessoas que ali
vivem nunca viram a realidade exterior: só o que conseguem ver são essas
sombras projetadas, que acreditam serem os próprios seres e as coisas que
existem fora da caverna que habitam. Inconformado com a situação em que se
encontra, no entanto, um dos prisioneiros consegue quebrar os grilhões que o
prendem e, com muita dificuldade, sair da caverna.
Inicialmente, atordoado pela luminosidade à qual ele não estava
acostumado, o ex-prisioneiro quase nada consegue enxergar. Mas, aos poucos,
vai percebendo que tudo o que vira até então não era, de fato, a realidade: eram
apenas sombras do real. Encantado com essa descoberta, ele decide, ainda que
o caminho de volta seja penoso, retornar à caverna e alertar os prisioneiros
sobre o que descobriu, na esperança de que, assim, poderá convencê-los a
também se libertarem.
Seu retorno, no entanto, é difícil. Ele mesmo não sabe mais como se
comportar na escuridão da caverna; não sabe como se mover naquele ambiente
outrora tão familiar. Não sabe, além disso, como tornar compreensível aos
demais tudo o que viu e conheceu e, por isso, os prisioneiros não lhe dão crédito.
Inicialmente, zombam dele porque não levam suas palavras a sério. Como ele
insiste, os outros, não conseguindo silenciá-lo com suas caçoadas, passam a
tentar fazê-lo espancando-o. Ainda assim, ele teima em descrever o que viu e a
convidar os moradores da caverna a escapar rumo à realidade, mesmo correndo
o risco de acabar sendo morto por eles.
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O que nos interessa aqui é que o leitor reflita sobre a seguinte ques-
tão: por que os prisioneiros, não acreditando no relato feito pelo ho-
mem que retornou, reagiram de maneira violenta ao que ele lhes di-
zia?
A questão do estranhamento para com a diferença está também
aqui presente. Os moradores da caverna acreditam que não exista na-
da além dela. Eles julgam ser capazes de ver o real em sua totalidade,
sem se dar conta de que o que veem, de fato, são apenas sombras,
interpretações, projeções da realidade. A forma violenta com que rece-
bem a narrativa daquele homem expressa o medo causado pela possi-
bilidade de que o mundo possa ser, afinal, diferente do que supõem;
por isso, reagem ao seu relato com descrédito e – pior que isso – com
agressões.1
A diferença também habita as salas de aula brasileiras, já que, afi-
nal, a escola é um microcosmo da sociedade. Um olhar atento vai reve-
lar que nela podemos encontrar, com frequência, diferenças linguísti-
cas, étnicas, de classe social, de gênero, de credo religioso, de orienta-
ção sexual, de faixa etária etc. E, assim como vimos nas situações an-
teriormente analisadas, essas diferenças podem, também no contexto
escolar, ser ignoradas – como se a escola fosse um ambiente homogê-
neo, pasteurizado – ou, então, ser motivo de temor, de desdém ou de
agressividade.
Nesta publicação, pretendemos chamar a atenção para a complexa
pluralidade linguística, cultural e social brasileira e para os modos co-
mo essa pluralidade emerge em diferentes contextos educacionais no
país. Pretendemos, além disso, promover reflexão acerca dos modos
como a atuação dos professores de língua portuguesa (seu discurso e
seus procedimentos pedagógicos), bem como dos de outras disciplinas
(afinal, na formação para o exercício da cidadania, questões de língua
e discurso permeiam todo o currículo), pode contribuir para formar alu-
nos mais cientes da diversidade e mais respeitosos para com ela. Isso
porque partimos do pressuposto de que as práticas discursivas em sa-
la de aula frequentemente levam os alunos a forjarem identidades –
1 Uma discussão mais aprofundada sobre o mito em questão pode ser encontrada em Chauí
(2006).
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mais, ou menos, positivas – não apenas para si próprios mas também
para os inúmeros “outros” que os circundam. É importante chamar a
atenção para o fato de que esse pressuposto também aparece nos Re-
ferenciais para Formação de Professores do MEC:
“São muitos os aspectos que precisam ser considerados para que o profes-
sor possa se relacionar com seus alunos de maneira não discriminatória e
ajudar seu desenvolvimento, para que eles se lancem não só ao desafio de
aprender os conteúdos escolares, mas também ao desafio de viver, partici-
par de sua comunidade e da sociedade mais ampla. Isso demanda não só
aquisição de conhecimentos já produzidos “sobre” crianças, jovens e adul-
tos, mas também uma reflexão sobre suas próprias representações e
crenças, implicando muitas vezes uma revisão de valores pessoais. [...]
Pelo lugar que ocupa, o professor tem enorme influência sobre seus alu-
nos, pois a forma como os vê influencia não só as relações que estabele-
ce com eles, mas também a construção da sua autoimagem. [...] Mesmo
que não se manifeste explicitamente, sua forma de agir, suas expressões,
seu tom de voz, entre outras coisas, contêm mensagens que dizem muito
aos alunos.” (BRASIL, 1999b, p. 89-90, destaque nosso)
▪ 8▪
Discutindo alguns conceitos
2É bom lembrar que também a mídia impressa, on-line e televisiva vem, cada vez mais, dando
destaque, em suas pautas, à questão da diversidade cultural brasileira.
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como elemento definidor das relações sociais e interpessoais”. (BRASIL,
1998b, p. 121)
▪ 10 ▪
Essa concepção de cultura transparece no discurso de muitos pro-
fessores em nosso país, como pode ser visto nos exemplos abaixo, reti-
rados da tese de doutorado de Fochzato (em andamento):3
“Na minha opinião, a cultura é um conjunto de conhecimentos os quais
devemos passar ao próximo, principalmente devido a nossa profissão
(professor).”
“Cultura é tudo o que a gente adquire de bom. Ser culto é ser uma pessoa
que entende o que está acontecendo a sua volta. Todas as pessoas que
têm cultura são educadas, entendem os outros e procuram se inteirar do
que está acontecendo. Uma pessoa culta procura ler bastante para não
cometer erros.”
3 Grifos nossos.
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O ser humano interpreta tudo o que vê, a partir de um sistema de valores, de
representações e de comportamentos, isto é, a partir de sua CULTURA.
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“Eu acho estranho que os chineses comam carne de cachorro.”
“Eu acho esquisita a mania da minha vizinha, que é do candomblé, de se
vestir de branco às sextas-feiras.”
▪ 13 ▪
Ora, basta refletirmos um pouco sobre a nossa própria cultura para
vermos que esse raciocínio não procede. Quantos valores antigamente
considerados culturalmente positivos e altamente desejáveis foram dei-
xados para trás? Quantos hábitos e costumes considerados apropria-
dos no passado foram substituídos porque se tornaram antiquados?
Quantos “conhecimentos” e “certezas” de outrora são hoje questiona-
dos por serem considerados ultrapassados? As culturas não são fixas.
Elas estão sempre se transformando. As culturas são mutáveis porque,
se é certo que elas influenciam o comportamento das pessoas, também
é verdade que o comportamento das pessoas as influencia, fazendo
com que se modifiquem.
Para reflexão
De que modo os valores, os conhecimentos e os costumes de sua cultura
foram modificados desde que você era criança?
▪ 14 ▪
trata, apenas e sempre, de perspectivas diferentes sob as quais deve-
riam ser vistos nossos valores, crenças e comportamentos. Nunca é
demais lembrar que, na base das tentativas de hierarquização das cul-
turas, está o etnocentrismo... Em segundo lugar, as culturas são extre-
mamente permeáveis umas às outras; influenciam-se mutuamente.
Não há e nunca houve uma cultura original, pura; todas elas são produ-
to de um conjunto de combinações ressignificadas de traços de outras
culturas. A culinária é, novamente, um bom lugar – parece-nos – para
refletir sobre o fenômeno da transculturalidade aqui apontado. Qual-
quer olhar superficial sobre os hábitos alimentares de um paulistano
médio, por exemplo, vai revelar a influência de hábitos gastronômicos
de outros povos, como o dos árabes (o quibe, a esfirra, o tabule), dos
americanos (o hambúrguer, o cachorro-quente), dos japoneses
(o sushi), dos italianos (o macarrão, a pizza) etc. Também na língua de
um grupo cultural as influências externas são facilmente perceptíveis.
“Controlar” (do francês contrôler), “fubá” (do quimbumdo fu’ba),
“maracujá” (do tupi moruku’ia) são apenas alguns poucos exemplos de
palavras que, outrora “estrangeiras”, foram incorporadas e hoje fazem
parte do léxico da língua portuguesa. É preciso esclarecer, entretanto,
que as culturas são seletivas: no encontro, umas com as outras, elas
“tomam emprestado” somente aquilo que lhes parece mais convenien-
te. Além disso, os grupos culturais, na maioria das vezes, não incorpo-
ram pura e simplesmente elementos de outras culturais – frequente-
mente eles os adaptam, ressignificando-os de Veja Thomaz (1995),
modo a torná-los culturalmente mais Cuche (2002) e Canclini
“apropriados”. Ao encontrarmos em um cardápio (2003) para uma discussão
mais aprofundada sobre o
a opção “pizza de goiabada com queijo” – uma
conceito de cultura.
alternativa gastronômica impensável para os itali-
anos − é possível perceber que houve aí a apropriação de um elemento
cultural externo que passa a ganhar, assim, um “sabor” mais local. Ob-
serve-se também que, ao emprestarmos o termo delete do inglês, na
área da informática, nós o adaptamos para “deletar”, para que pudesse
ser conjugado de acordo com as regras gramaticais da língua portugue-
sa. O que interessa aqui ressaltar é que o caráter híbrido das culturas, a partir
do recrudescimento do fenômeno da globalização e da ampliação dos
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meios de comunicação de massa, torna-se cada vez mais evidente.
Intimamente ligadas ao conceito de cultura são as noções de alteri-
dade e de identidade sobre as quais passaremos a discorrer.
Representações de Maitê
Por seus alunos: A dona Maitê é muito legal! Ela é superdemocrática – ela é a única profes-
sora da escola que negocia os critérios de avaliação com os alunos... E ela respeita a opini-
ão da gente, mesmo quando não concorda com as nossas ideias. E as aulas dela são muito
divertidas também...
Por seus filhos: Mamãe é muito autoritária, é dona absoluta da verdade! É “não pode isso,
não pode aquilo” o tempo todo... Nunca se preocupa em ouvir o nosso ponto de vista. O que
ela mais sabe fazer é cobrar: “Já fez a lição?”, “Escovou os dentes?”. Ela é muito chata...
Por seus colegas: A Maitê é muito insegura: basta a diretora levantar a voz, que ela logo
“abaixa a cabeça”. Parece até que ela tem medo de ser demitida! Foi um erro a termos
eleito como nossa representante. Ela é boa gente, mas é muito medrosa, coitadinha...
Por seus vizinhos: A dona Maitê é a melhor síndica que já tivemos! O fiscal da prefeitura que
veio aqui na semana passada saiu “com o rabo entre as pernas”, porque ela virou um leão
com ele. Foi assertiva, corajosa, colocou os nossos direitos para ele na lata, sem meias-
palavras...
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Quem é, afinal, Maitê? Ela é autoritária ou democrática? Destemida
ou intimidável? Os teóricos que discorrem sobre o conceito de identida-
de insistem em que é ilusório atribuir ao sujeito uma identidade fixa,
imutável porque ela não é constituída por essência alguma: assim co-
mo Maitê, todos nós somos constituídos por múltiplas identidades. E
por que isso acontece? Porque a nossa “identidade” não é uma “coisa”
– ela é uma construção feita a partir das nossas relações de alterida-
de, isto é, das relações sociais que estabelecemos com os outros. Por-
tanto, para a pergunta-chave “Quem sou eu?”, a
Em Hall (1998) e Wood–
resposta será: “Depende de quem é o meu inter- ward (2000) o leitor
locutor...”. No caso de Maitê, percebe-se que ela poderá aprofundar seu co-
projeta “identidades” diferentes, por vezes até nhecimento sobre o conceito
mesmo “contraditórias”, quando o “outro” são os de identidade da perspectiva
teórica dos Estudos Cultu-
seus alunos ou os seus filhos, seu empregador ou
rais.
seus vizinhos... É por isso que dizemos que a
identidade é sempre relacional. É por esse motivo, também, que a
identidade tem que ser entendida não como algo “fixo”, mas como algo
provisório que construímos em diferentes contextos sociais e em dife-
rentes momentos históricos.
Para reflexão
Pense sobre a sua própria identidade e sobre as múltiplas facetas que a
constituem. De que forma essas facetas variam em diferentes contextos? Por que
elas variam? Como elas foram se modificando ao longo do tempo?
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abastada ou em situação de pobreza? Embora o que vimos afirmando
possa parecer óbvio – as identidades socioculturais são complexas,
múltiplas, provisórias e só podem ser compreendidas quando situadas
no tempo e no espaço social –, elas são frequentemente focalizadas,
em sala de aula, de forma descontextualizada e atemporal, como se
fossem fixas e estáveis: “os brasileiros”, “os negros”, “os indígenas”,
“os homossexuais”... E para que essas identidades congeladas possam
parecer convincentes, recorre-se a estereótipos, ora positivos (os brasi-
leiros “são simpáticos e adoram estrangeiros”, os gays “são sensí-
veis”), ora negativos (os brasileiros “são malandros, adoram dar um
jeitinho”; os gays “são promíscuos”). Evidentemente, essas identidades
modelares não correspondem a nenhuma verdade absoluta. São ape-
nas o que são: estereótipos identitários. Qualquer trabalho pedagógi-
co relevante terá que procurar escapar dessas armadilhas, dessas cila-
das. E, para tanto, é preciso estarmos atentos à força do discurso pe-
dagógico – o discurso dos professores, dos alunos, do livro ou material
didático – na construção das identidades socioculturais em sala de
aula, porque é aí que reside o perigo.
A identidade, é preciso enfatizar, é uma construção discursiva: é,
sobretudo, através do modo como a linguagem é utilizada que as iden-
tidades são elaboradas, são construídas de forma mais contundente. O
valor atribuído às palavras utilizadas no discurso pedagógico não pode
nunca, portanto, ser menosprezado porque elas acionam processos de
identificação e esses, muitas vezes, provocam sofrimento quando a
identidade traz em si um estigma:
“É duro ser aluno e ser gay... Você tem que aguentar, em silêncio, piadinhas
sem nenhuma graça o tempo todo, até dos professores mais bacanas, mais com-
petentes... O Ary, lá do cursinho, por exemplo, é um professor de matemática da
pesada! Ele sabe tudo, cara... Mas, vira e mexe, lá vem o Ary: “Ô, seu viadinho,
presta atenção! Isso sempre cai no vestibular”. E quando o pessoal tá cansado,
então, e ele começa a fazer gestos ridículos imitando um gay dando aula, pra
animar a turma? A classe toda cai na gargalhada... Eu tenho que dar risada tam-
bém, fazer o quê? Tem vezes que eu tenho vontade de falar pra ele: “Professor,
não faz isso, isso me ofende”. Mas... não dá, né? Tenho que aguentar... Só que
isso tudo vai calando fundo, vai acabando com a autoimagem da gente, sabe?”
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O depoimento desse jovem reflete bem o efeito perverso que o dis-
curso do professor, ainda que inadvertidamente, pode ter. Os alunos
que não se encaixam no que se assume, equivocadamente, serem as
únicas formas adequadas de se exercer suas identidades sexuais e/ou
de gênero são particularmente vulneráveis em sala de aula, muito em-
bora, como nos ensina Louro (s/d, p. 10),
“assim como ninguém nasce mulher, mas se torna mulher, ninguém nasce
homem, mas se faz homem ao longo da existência. Aprende-se a viver como
tal na cultura, pelos discursos repetidos da mídia, da igreja, da ciência
e das leis e também, contemporaneamente, pelos discursos dos movimen-
tos sociais de gênero e sexuais. As muitas formas de ser homem e mulher,
de experimentar prazeres e desejos, de dar e de receber afeto, de amar e de
ser amado são ensaiadas na cultura, são diferentes de uma cultura para
outra, de uma época ou de uma geração para outra. E hoje, mais do que
nunca, essas formas são múltiplas. As certezas se acabaram. As possibilida-
des se ampliaram. Isso tudo pode ser fascinante, rico, instigante ainda que,
ao mesmo tempo, seja também mais arriscado, instável, inseguro. A con-
temporaneidade é, afinal, assim mesmo”.
▪ 19 ▪
multiculturalismo na sociedade como um problema. Estes últimos des-
legitimam todas as crenças, todos os valores, todos os conhecimentos
e modos de utilizar a linguagem que não sejam hegemônicos. A escola,
vista desse prisma, é, sobretudo, o lugar onde as diferenças existentes
na sociedade devem ser “consertadas”, de modo a contribuir para que
essa mesma sociedade se torne uniforme. Algumas pessoas acreditam
que, idealmente, todos deveriam ter crenças e comportamentos iguais
aos que elas consideram ser as crenças e os comportamentos – lin-
guísticos, inclusive – “corretos”. E, nos casos em que isso é impossível,
as diferenças devem ser ignoradas na escola, pois são apenas
“desvios”. Os que se filiam a essa perspectiva – denominada por McLa-
ren “Multiculturalismo Conservador” – acreditam, também, que é peri-
goso estimular reflexões sobre as diferenças na sociedade, já que isso
iria apenas estimular o aparecimento de conflitos sociais.
Para reflexão
Você compartilha ou conhece alguém que compartilhe das crenças que des-
crevemos acima?
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MULTICULTURALISMO
Multiculturalismo Multiculturalismo
Humanista de Esquerda
▪ 21 ▪
Para reflexão
Ainda que a escola dê as mesmas oportunidades para todos os alunos, você
acha que
uma criança, cuja língua materna não é o português por ser filha de imigran-
tes, conseguirá se alfabetizar tão rapidamente nessa língua quanto uma criança
que já a domina antes de entrar na escola?
um aluno que é frequentemente ridicularizado em sala de aula pelo modo
como fala, como se veste ou como age terá exatamente as mesmas condições de
aprender o que lhe for ensinado que um aluno que encontra na escola um ambien-
te acolhedor?
▪ 22 ▪
representa apenas uma mera bandeira politicamente correta. E é esse
o motivo pelo qual, nessa perspectiva,
“as diferenças culturais são sempre trivializadas: celebra-se apenas aquilo
que está na superfície das culturas (comidas, danças, música), sem co-
nectá-las com a vida real das pessoas e suas lutas políticas. Assim orienta-
das, as escolas apressam-se em promover verdadeiros “safáris culturais”,
nos quais as culturas aparecem engessadas e o diferente é exoticizado. Não
há espaço nas celebrações culturais escolares para, por exemplo, um índio
Pataxó ou Kaxinawá contemporâneo que usa um celular, que acessa a inter-
net; o que se quer (e muito!) é celebrar o ‘índio autêntico’ (leia-se: o índio
mumificado). Assim, nessa perspectiva liberal, ‘tolera-se’, apenas uma certa
‘dose de diferença’...” (Maher, 2007, p. 260)
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Multiculturalismo Crítico
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competitiva, mas absolutamente necessária, que o poder pode ser ne-
gociado, pode ser desestabilizado, abrindo portas, portanto, para que
relações mais equânimes possam ser construídas. Em segundo lugar,
há também que se considerar que diferenças de valores e de compor-
tamentos podem ser, em muitos momentos, ininteligíveis ou inegociá-
veis. Não se trata, portanto, de tentar negar ou de ignorar a diferença
no diálogo intercultural, mas de se preparar para com ela conviver da
forma mais informada e respeitosa possível.
Sendo a diferença o cerne da questão, é preciso colocar o termo
“diversidade” sob suspeição porque, como argumenta Skliar (2003, p.
205), ele é, muitas vezes, utilizado “como um bálsamo tranquilizante,
talvez com o objetivo de anular ou atenuar os conflitos culturais e seus
efeitos; um bálsamo que cria a falsa ideia de uma equivalência dentro
da cultura e entre as culturas”. Também Houaiss e Villar (2001) cha-
mam a atenção para o fato de que o termo “diversidade” tende a ser
mais “palatável” do que o termo “diferença” – daí a sua atual banaliza-
ção devido à difusão de seu uso excessivo, principalmente em docu-
mentos oficiais como os que descrevem a escola dita inclusiva –, já
que “diferença” remete, mais prontamente, à falta de harmonia, às di-
vergências de ideias, às dissensões, às desavenças, em suma, aos con-
flitos existentes na sociedade.
4 Veja-se o caso da França, onde muitas línguas eram faladas (e ainda hoje são) e onde hoje o
reconhecimento internacional vai somente para a língua francesa. (Para uma discussão sobre o
assunto, ver Vermes & Boutet, 1989.)
▪ 25 ▪
mito esse que apaga as outras línguas faladas no país. De um lado,
portanto, está a valorização dessa língua única calcada na estigmatiza-
ção de outras línguas que não são vistas como línguas, ou seja, que
são apresentadas como variantes não prestigiadas do português. De
outro lado, essa valorização também está calcada na indiferença pelas
línguas minoritárias como, por exemplo, as línguas indígenas, a Língua
Brasileira de Sinais, as línguas faladas em comunidades imigrantes,
em comunidades de fronteira...
Essa estigmatização é cristalizada no entorno das comunidades e
esse entorno inclui a escola, as relações familiares e as relações de
amizade, sem contar os posicionamentos das autoridades políticas,
escolares etc.
César & Cavalcanti (2007, p. 63), no entanto, defendem que
“parece mais coerente admitir que somos de fato ‘multilingues’ em portu-
guês, e que as políticas linguísticas, se quiserem respeitar essa diversidade,
poderiam, pelo menos, usar das contribuições teóricas que têm sido produ-
zidas na área da educação bilíngue de minorias (...) para enfrentar uma das
suas grandes dificuldades, que é a ampliação do domínio da língua prestigi-
ada, principalmente entre os representantes de culturas de tradição oral,
sem recalcar, antes valorizando, a riqueza da nossa pluralidade cultural e
linguística".
Podemos dizer que decorre daí o fato de uma pessoa se ver como
(não) falante de uma língua indicar qual é o grau de prestígio dessa
língua. Para exemplificar esse ponto, apresentamos dois excertos a
seguir:
“Não sei falar bem o português, mas na minha língua [Kaxinawa] sou dou-
tor.” (Professor Kaxinawa, fluente em português – Dados do Grupo de Pes-
quisa CNPq “Vozes na Escola”5)
“Não falo português. Também não falo alemão.” (Membro de uma comuni-
dade rural imigrante alemã no sul do Brasil – Dados de Jung, 1997)
5 Disponível em:
<http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=0079801IYILPAG>
(acesso em: 03 jan. 2009) e <vozesnaescola.wordpress.com> (acesso em: 05 jan 2009).
▪ 26 ▪
No primeiro caso, em contexto indígena, o professor é fluente em
português e em Kaxinawa. No entanto, ele não se apresenta como fa-
lante de bom português, pois se vê como falante de um outro português
que não tem prestígio: o português indígena (ou português étnico). Te-
mos aqui, portanto, um contexto multilíngue, em que pelo menos três
línguas convivem: a língua indígena, o português indígena e o português
oficial.
Já no segundo caso, há aparentemente um descartar das duas lín-
guas. O português falado na comunidade tem traços rurais e traços do
alemão da comunidade. Via escola, essas pessoas também têm conta-
to com o português oficial e, via escrita, com o alemão oficial. Ou seja,
conforme indica o título da tese de Pereira (1999), “Naquela comunida-
de alemã se fala o ‘brasilero’ e o ‘alemão’. Na escola se ensina o portu-
guês”. Explicando, o português e o alemão falados na comunidade não
são descritos como língua dicionarizada e gramaticalizada e, assim,
não são reconhecidos como línguas nem dentro nem fora da comunida-
de. Em outras palavras, no entorno dessa comunidade imigrante há os
denominados brasileiros6 e os denominados “polacos”7 que dizem que
os moradores [dessa comunidade imigrante] não sabem falar língua
nenhuma ou que falam tudo errado. Ou seja, há olhares que desmere-
cem os falares dessa comunidade. Assim como essa comunidade tam-
bém desmerece os falares das comunidades vizinhas. Introjetam todos,
então, um olhar de baixa autoestima em relação às línguas presentes
nas comunidades.
É interessante notar que nesses dois exemplos – o do indígena e o
do imigrante –, embora haja várias línguas em jogo, as pessoas não
parecem se ver como bilíngues. E por que isso acontece? Será que es-
sas pessoas não se veem como bilíngues porque não são bilíngues?
Que línguas são essas que falam, mas que dizem não falar? Para res-
ponder essas perguntas, é importante fazer outra revisitação, isto é,
focalizar a carga ideológica atrelada ao termo língua. Daí o melhor seria
▪ 27 ▪
perguntar: O que é considerado uma língua? Para essa resposta, há
que se levar em conta aspectos políticos e questões de poder. Você já
notou que nem toda forma de comunicação é considerada língua? Ou
seja, nem toda forma de comunicação tem status de língua. As línguas
de prestígio, dicionarizadas, gramaticalmente descritas e, principalmen-
te, com o estatuto de língua padrão, oficial, culta etc., jamais têm seu
status de língua questionado. Já as línguas desprestigiadas são denomi-
nadas dialetos, pidgins, crioulos etc. Como a conversa sobre essa ques-
tão é longa e nosso espaço aqui é reduzido, deixaremos essa discussão
de lado. (Se quiser ler mais sobre isso, veja César & Cavalcanti, 2007.)
Aqui, vamos considerá-las todas como tendo status de língua, mesmo
que elas sejam apresentadas como um dialeto ou como uma variedade,
por exemplo.
O problema que vemos está na descaracterização e no desprestigia-
mento de uma forma de comunicação em relação a outra que é consi-
derada culta, oficial ou que tenha outra denominação de prestígio. O
importante é levar em consideração que essa carga ideológica é carre-
gada para os outros termos associados a “língua” — por exemplo, bilin-
guismo, multilinguismo, dialetos, variantes etc.
Se é, portanto, verdade que a imensa maioria dos brasileiros não
(re)conhece a extensão da pluralidade linguística no país, há algumas
perguntas que precisamos fazer sobre alguns conceitos que estão na
base de nossa discussão. A pergunta principal repousa sobre o conceito
de língua. Se já é difícil definir qualquer termo, imagine a dificuldade
em relação ao termo “língua”! Nossa primeira re-visitação remonta a
1972. Nessa época, Haugen (p. 72) já dizia que o debate era grande
em relação a esse conceito, mas que era importante lembrar que o ter-
mo “língua” estava associado com “o surgir de uma nação”, “a unidade
e identidade consciente”. Com o passar dos anos, o termo cristalizou-se
e o debate esmoreceu. Falava-se (e ainda hoje se fala assim na escola)
muito mais em visões de língua como código, como ação, como estrutu-
ra.
Mas, para além dessas visões, o que é língua? Em uma segunda re-
visitação, chegamos a duas possibilidades:
1. Seria, talvez, um recurso complexo para comunicação verbal?
▪ 28 ▪
2. Seria um “mecanismo para construir significado que opera inde-
pendentemente de outros meios de comunicação humana” (Graddol,
Cheshire & Swann, 2002/1994, p. 3)?
Tanto em uma resposta quanto em outra, segundo Graddol et al., a
visão de língua é muito centrada na comunicação verbal. Essa visão
deixa de lado os outros tipos de língua (ou linguagens), inclusive a não
verbal. Deixa também de lado os textos impressos
com seus layouts, ilustrações, recursos tipográfi- Para saber mais sobre
a ausência de foco em
cos, uma vez que não são integrados com a comu- linguagens de outras mí-
nicação verbal. E, ainda, deixa de lado as lingua- dias (incluindo imagens),
gens de outras mídias, que cada vez mais são par- veja o que diz Daley (2003).
te de nosso dia a dia.
Para fazer uma terceira re-visitação ao conceito de língua. Adota-
mos, neste volume, assim como em nosso trabalho de pesquisa na
área de Linguística Aplicada, uma perspectiva mais ampla sobre o fun-
cionamento da língua(gem) que inclui seu uso social e que vai além do
aspecto linguístico propriamente dito. E isso não é algo recente nem no
nosso trabalho nem no trabalho de outros pesquisadores como, por
exemplo, Cameron (1990) e Blommaert (2005), que apontam para a
necessidade de a língua(gem) ser tratada como parte integrante do so-
cial, uma vez que ela se manifesta na sociedade.
Também, conforme apontam Cavalcanti & César (2004):
“(...) língua, mesmo sendo um conceito até aqui impreciso, objeto de contro-
vérsia [...] entre os próprios linguistas, ainda é um capital simbólico que está
na base da própria definição do nosso campo de atuação profissional e aca-
dêmica. Mesmo quando preferimos, em nossa produção acadêmica, falar
em linguagem e não língua, ou usamos o termo discurso para as diversas
práticas e contextos, situamos o discurso fora da língua e reservamos a cate-
goria língua para pensar o arcabouço que ainda preservamos sob o rótulo de
‘linguístico stricto sensu’”.
▪ 29 ▪
Existe e existiu sempre um movimento em defesa dessa língua que de-
ve ser mantida intacta, mas não há como. Se a língua é uma instituição
social, ela é algo dinâmico, em constante mudança. No final das con-
tas, algumas dessas mudanças acabam sendo dicionarizadas
(gramaticalizadas) e outras se perdem pelo caminho, são esquecidas.
Para resumir esta parte, faremos agora, através de um jogo de per-
guntas e respostas, uma viagem panorâmica sobre as questões de bi-
linguismo e multilinguismo.
Portanto, o bilinguismo deveria somar sempre, pois saber qualquer outra língua
deveria ser visto como um recurso a mais, como uma abertura para aprender ain-
da outras línguas.
▪ 30 ▪
língua decente de casa” e outros, ainda, “são mudos”. Não é esse mito
que está por trás dessas falas tão recorrentes na escola, na mídia, na
sociedade?
Enquanto o valor atribuído por ela ao letramento é um valor relativo, julga que eu o
considere fundamental. Visando fazer com que eu mude minhas imagens, faz uso
de estratégias que vão desde tentativas, mais ou menos sutis, de denegrir indiví-
duos alfabetizados – saber ler não é garantia de esperteza – até autoelogios. Veja-
mos algumas instâncias:
Referindo-se ao dia em que uma de suas irmãs (letradas) lhe pede ajuda para
falar com um político:
Então ela falô assim pra mim: ‘Cida, vamu comigo lá, porque ...[quase que sussur-
rando, em tom confidencial] (a minha irmã é meio acanhada, sabe?). Ela disse
assim: ‘Vamu comigo lá, nós vamu conversa pra vê se eles me davam o material
pra mim fazê o muro’.
▪ 31 ▪
Referindo-se à falta de iniciativa de uma enfermeira que a atendeu em um posto
de saúde do governo:
...e ela parada lá com a receita na mão. Olhando para mim... Eu fiquei tão nervosa!
Agora, o que resolve, dona Tereza, os estudo dela? Me diga. Agora, se fosse eu...
TAREFA 1
Depois de ler o depoimento parcial de dona Cida, comente o modo
como ela se vê nessa sociedade que cobra que todos sejam alfabetiza-
dos. Qual é sua visão da escola, dos usos da escrita e do saber ler e
escrever?
TAREFA 2
Considere, agora, mais uma parte do depoimento de dona Cida e
responda: Que narrativa corrente na sociedade ela tenta derrubar em
sua fala? Você concorda com ela ou discorda dela? Por quê?
“Minha filha queria que eu estudasse no Mobral... Vô fica fazendo o que lá? À
toa... Porque eu acho que aquilo pra mim num vai ‘fruir nada. Aquilo pra mim vai
sê uma ‘lusão de criança...
Às veiz, quando eu era mais mocinha, eu achava que ia estudá e trabalhá num
banco, num escritório. Aquilo... acho que era mais pose, num é dona Tereza? Num
é que a gente achava que ia melhorá a vida da gente... Porque eu acho a vida da
gente... quarqué serviço... Se a senhora tem que subi, a senhora sobe; se a senho-
ra tem que num subi, a senhora num sobe...
Num é verdade? Agora dizê que... ‘Ah, eu perdi aquela casa porque eu num sabia
lê. Num arrumei aquele serviço...’
Mentira! Meu filho fala assim: ‘Ah! A mãe é muito durona’. Num é durona. Num é
verdade isso?”
▪ 32 ▪
recorte de dados da pesquisa sobre alunos brasileiros retornados do
Paraguai, desenvolvida por Santos (2004), mais especificamente, de
seu diário de campo.
“Durante as entrevistas com todos os alunos ’brasiguaios’, não foi possível perce-
ber traços do castelhano em suas falas. Com Carlos, o mesmo aconteceu, a não
ser quando ele trocou escrevo por escrivo. No entanto, segundo seu relato, quan-
do lia, os professores pediam que lesse em português e não em castelhano. Por
esse motivo e também por causa da risada dos colegas, não gostava de ler em
sala de aula. Surgiu a curiosidade em saber o que esse comentário representava,
pois também os professores manifestaram, nas entrevistas, a surpresa frente à
leitura deste e de outros alunos, comentando que não entendiam como eles liam
daquela forma e também escreviam com traços do castelhano, se pelas suas falas
cotidianas não era possível identificá-los na sala de aula, afirmando que ‘eles fa-
lam perfeito, não falam enrolado’. Aliás, muitas vezes o professor nem mesmo
tinha conhecimento da presença de um aluno ‘brasiguaio’, a não ser quando solici-
tava que lessem em voz alta ou redigissem um texto.” (Diário de campo da pesqui-
sadora – agosto de 2003)
TAREFA 1
Qual é a questão com os alunos brasiguaios? Como se pode explicar
o fato de eles não quererem aparecer? Em sua experiência como pro-
fessor(a), você já vivenciou algo semelhante? Em que contexto?
TAREFA 2
Com base na informação constante no quadro, Carlos pode ou não
ser considerado bilíngue?
▪ 33 ▪
Até agora enfatizamos que, no ensino da língua portuguesa, é o con-
texto monolíngue, e não o multilíngue, que desponta como foco, aliás
como sempre despontou, na escola brasileira (e na de outros países,
uma vez que se privilegia sempre uma língua oficial padrão). Os contex-
tos ditos monolíngues são homogeneizados pelo mito da língua única e,
neles, as questões de multilinguismo e de multiculturalismo parecem
ser vistas como exóticas e de interesse limitado. Se é assim no ensino
de português, não é diferente no ensino de outras disciplinas. Acredita-
mos, no entanto, que a situação seja ainda mais grave no ensino de
português, uma vez que o cotidiano pode muitas vezes ser tomado por
questões de língua(gem) descoladas do contexto social. Muitas vezes,
por exemplo, assuntos considerados tabu ou objeto de preconceito são
ou ignorados ou banidos da sala de aula pelo(a)
Ideologias linguísticas.
professor(a). O que acontece é que ignorar um
Crenças sobre línguas
(Kroskrity, 2004) que podem assunto, fazer de conta que ele não tem impor-
se tornar instrumentos de tância, pode ajudar a cristalizá-lo como “natural”,
poder como parte de outras ou seja, como não merecedor de atenção porque
ideologias culturais, sociais
ou políticas. (Blommaert,
“é assim mesmo na sociedade”. Bani-lo pode
2005, p. 171) postergar uma discussão ou fazer de conta que o
Construções identitárias.
assunto não existe. Um exemplo aqui seria o caso
Construções discursivas de dos apelidos dados em sala de aula, que podem
identidades sociais (de gêne- soar inocentes à primeira vista, mas... o que pode
ro, raça, faixa etária, orienta-
estar por trás deles? São essas as questões que
ção sexual etc.). (Ver Moita
Lopes, 2003) trataremos na terceira parte desta publicação.
Enfatizamos ainda que nosso interesse está
no impacto das práticas discursivas em sala de aula com foco na visão
plural da diferença em práticas de letramento9 examinadas através do
foco em ideologias linguísticas e em construções identitárias.
9 A visão de letramento como práticas sociais, ponto de partida do projeto, está baseada nas ideias
de Street (1993) e do grupo Novos Estudos de Letramento. Para o autor, a escrita está relaciona-
da a contextos sociais de uso, sendo que culturas diferentes enfatizam de forma diferente o
aprendizado da escrita e isso varia de acordo com tempo, espaço e objetivos. Nesse sentido as
práticas sociais carregam padrões sociais que determinam valores, crenças, formas de uso...
▪ 34 ▪
Discursos que nos constroem e nos
destroem dentro (e fora) da sala de aula
10 Esse recorte é proveniente de registros realizados pela própria professora como parte da pes-
quisa em andamento.
▪ 35 ▪
tuguês foi sempre alimentado, apagando-se, por exemplo, que no Brasil
Colônia se falava uma Língua Geral de base Tupi, ou que a língua de
instrução em escolas de comunidades imigrantes era o alemão ou o
japonês no período pré-Segunda Guerra Mundial. Tanto em um quanto
em outro caso, por força de políticas linguísticas explícitas, essas lín-
guas foram banidas para favorecer e fortalecer a língua portuguesa.
Em relação à invisibilização de parcelas da população brasileira,
também não é por acaso que se desconhece a existência de uma políti-
ca de branqueamento da população no país, principalmente depois da
época da vinda dos africanos escravizados. O que sempre se ouve é
que o país acolhe muito bem os imigrantes, e o
Leia mais sobre política exemplo dado está relacionado aos italianos e
de branqueamento, em:
aos alemães no Sul e no Sudeste do país. No en-
<http://www.espacoacadem
ico.com.br/047/47cmenega
tanto, você sabia que em relação aos japoneses
ssisouza.htm>. houve uma discussão anterior à decisão sobre a
aprovação das primeiras imigrações decorrente
dessa tal política de branqueamento? No cerne da discussão, pergun-
tava-se se essa imigração não atrapalharia o branqueamento da popu-
lação.
Você já viu menção a essa política em algum livro de História ou
de qualquer outra disciplina? Imaginamos que sua resposta seja nega-
tiva. Pois é... Essas diferenças no acolhimento de estrangeiros foram
apagadas através de um silenciamento histórico e/ou social, de acordo
com os interesses da sociedade. Relacionada a essa discussão, pode-
se trazer, por exemplo, a invisibilização social dos afrodescendentes e
a invisibilização histórica dos indígenas.
▪ 36 ▪
mento demográfico de 4%), era escrito no tempo passado nos livros
didáticos, como se não houvesse mais índios no país. Talvez se possa
dizer, então, que não é por acaso que eles são lembrados na escola
somente no Dia do Índio, conforme já apontado anteriormente. É bem
verdade que eles aparecem na mídia quando se defendem da invasão
de posseiros, por exemplo. No entanto, muito raramente são mostrados
seus projetos em favor do meio ambiente e da sustentabilidade.
Já os afrodescendentes (<http://www.palmares.gov.br/003/00301009.
jsp?ttCD_CHAVE=2361>), em todas as nuances de cor de pele, quando
apareciam nos livros didáticos eram relegados a papéis subalternos,
dentro da estereotipia construída para representá-los. Ainda hoje o de-
bate é atual, certamente com algumas mudanças perceptíveis, mas
muito lentas — veja, por exemplo, O Globo, de 14 de janeiro de 2008,
sobre papéis oferecidos a atores negros na TV, disponível em: <http://
oglobo.globo.com/cultura/espaco-para-atores-negros-na-tv-aumentou-
mas-eles-acham-que-ainda-pode-melhorar-3636958>, acesso em: 13
fev. 2009, e também Folha de S.Paulo de 17 de junho de 2009, sobre a
ausência de modelos negros em passarelas das semanas de moda no país.
Para reflexão
Escute a canção “Todo dia é dia de índio”, do compositor Jorge Ben Jor
(disponível em: <http://www.natureba.com.br/musica-floresta.htm>). A letra da
música pode ser o ponto de partida para uma conversa relevante e interessante
para esta discussão.
▪ 37 ▪
que são assim porque são assim. Parece não haver necessidade de
questionamento. É assim e ponto. Esse Outro que não sou eu e que me
incomoda porque quer ser ou é diferente... É difícil conviver com o dife-
rente, conviver com o pensamento do Outro que não combina com o
meu. No entanto, como vimos aqui, na primeira parte, as identidades
não são fixas, são transitórias e fluidas, estabelecidas em relação ao
Outro, e nos esquecemos que esse Outro, às vezes, sou eu, da perspec-
tiva da outra pessoa. E por que não se aceita esse Outro? Por que nos
ressentimos com esse Outro? Pode-se perguntar, por exemplo, onde
estão as raízes desse ressentimento. Mas dificilmente vamos nos dar
conta de que esse ressentimento é criado pela sociedade e que nós
fazemos parte dela. Por exemplo, hoje o mal no mundo globalizado es-
tá no islamismo. É o que se ouve e se lê na mídia. Mas o que se sabe
sobre o islamismo? (E por que se faz referência ao islamismo no singu-
lar? Certamente, não existe apenas uma forma de islamismo.) Ontem o
mal estava no comunismo. E o que era o comunismo? (As perguntas
sobre islamismo cabem aqui também, não é?) Ou seja, há uma demoni-
zação do Outro que de alguma forma é construído e apresentado como
uma ameaça. E quem é esse Outro ameaçador? Como aponta Stein
(2001), o Outro é sempre descrito com termos desairosos que incluem
desde a descrição de não limpeza (“sujo”), não escolarização
(“analfabeto”), não afiliação a alguma religião (“pagão” ou “ateu”), não
dotação de beleza (“feio”) etc. Em nossa discussão, no entanto, quere-
mos ficar longe tanto da demonização que promove os estigmas quan-
to da idealização (ou visão romantizada) que foge da realidade da pes-
soa comum.
▪ 38 ▪
Divulgado em 2009, o estudo da Fundação de
Para mais detalhes so-
Pesquisas Econômicas (Fipe) sobre preconceito e
bre a pesquisa, veja:
discriminação no ambiente escolar, com foco em
<http://www.robertobeling.
atitudes, crenças e valores, aponta a existência com/educação/index.php?
de preconceito nas escolas públicas brasileiras. pagina=nacionais/fipe_pre
E esse preconceito aparece nas sete áreas temá- conceito.php>. Acesso em:
ticas de discriminação focalizadas na pesquisa: 11 ago. 2009.
“étnico-racial, de deficiência, de gênero, geracio- Veja também: <http://www.
fea.usp.br/noticias.php?i=
nal, socio-economica, territorial e de identidade
222>. Acesso em 13 fev.
de gênero”. A pesquisa (um estudo quantitativo), 2009.
coordenada por José Afonso Mazzon, da FEA-USP,
foi realizada através de entrevistas com 18.500 pessoas em 500 esco-
las em vários pontos do país. Seu público alvo foram estudantes de 7ª
ou 8ª série do ensino fundamental, de 3ª ou 4ª série do ensino médio,
de EJA, professores(as) do ensino fundamental e do ensino médio que
lecionam português e matemática nas séries focalizadas, diretores(as),
profissionais de educação que trabalham nas escolas, e pais e mães
desses alunos.
Nessa pesquisa, é importante ressaltar que
Bullying. “Provocação,
o preconceito e a discriminação acontecem entre zombaria, ameaça, compor-
diretores, professores, funcionários, alunos e tamento que assusta ou
pais/mães, mas são os alunos que mais apare- fere alguém menor ou mais
fraco; especificamente, na
cem nas ações que podem ser caracterizadas escola, intimidação física
como discriminatórias e preconceituosas. dos colegas mais fracos
pelos mais fortes” (…);
“A noção de preconceito se refere a uma atitude injus- “Qualquer comportamento
ta e negativa em relação a um grupo ou a uma pessoa que, mesmo em tom de
que se supõe ser membro do grupo. O conceito de brincadeira, intimida, ofen-
discriminação, apesar de literalmente significar ‘tratar de, agride ou exclui é cha-
alguém de uma forma diferente’, pode ser definido mado de ‘bullying’”. (Rosely
como um comportamento manifesto, geralmente Sayão, Folha de S.Paulo,
apresentado por uma pessoa preconceituosa, que se 2005; aspas do original).
exprime através da adoção de padrões de preferência (...) Fonte: Agenor Soares
em relação aos membros do próprio grupo e/ou de dos Santos, Dicionário de
rejeição em relação aos membros dos grupos exter- Anglicismos e de Palavras
nos.” (Marcos E. Pereira. Psicologia social dos este- Inglesas Correntes em Por-
reótipos, 2002, p. 77). tuguês).
▪ 39 ▪
(preconceito de orientação sexual) e aos pobres (preconceito socioeco-
nômico). Veja a informação resumida no quadro a seguir.
Intensidade da atitude preconceituosa
(escala varia entre 0 e 100)
– Gênero: 38,2%
– Geracional: 37,9%
– Necessidades especiais: 32,4%
– Orientação sexual: 26,1%
– Socioeconômica: 25,1%
– Étnico-racial: 22,9%
– Territorial: 20,6
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/diversidade_apresentacao.pdf> (FIPE/MECINEP).
Acesso em: 13 dez. 2009.
Segundo a pesquisa:
“Mais preocupante é o fato que o preconceito e a discriminação muitas ve-
zes resultam em situações em que pessoas são humilhadas, agredidas e
acusadas injustamente simplesmente pelo fato de fazerem parte de algum
grupo social específico. Nota-se que estas práticas discriminatórias têm
como principais vítimas os alunos, especialmente negros, pobres e homos-
sexuais, com médias de 19%, 18% e 17% respectivamente para o índice
percentual de conhecimento de situações de bullying nas escolas entre os
respondentes da pesquisa.”
(Disponível em: <http://www.robertobeling.com/educacao/index.php?
pagina=nacionais/fipe_preconceito.php>. Acesso em: 11 ago. 2009.)
▪ 40 ▪
Além do preconceito e da discriminação, tam-
Distância social. O grau de
bém a distância social aparece nos resultados proximidade ou aceitação
da pesquisa como um fator relevante, uma vez que um indivíduo sente em
relação a outro indivíduo ou
que está presente nas salas de aula juntamente a um grupo. (Disponível
em:<http://decs.bvs.br/cgi-
com o preconceito e as práticas discriminatórias. bin/wxis1660.ex/
decsserver/?IsisScript=..cgi
No entanto, parece que a distância social não -bin/decsserver/
tem merecido tanta atenção quanto o preconcei- decsserver.xis&task=exact
_term&previous_page=ho
to e a discriminação. É na distância social do mepage&interface_languag
e=p&search_language=p&
“Outro” (Skliar, 2003) que é totalmente afastado search_exp=Dist%E2ncia%
20social>. Acesso em: 12
do convívio social e do “outro” (Skliar, 2003) que nov. 2009.)
se aceita com certa resistência, como uma prática
de tolerância, que medimos nossa relação com pessoas de diferentes
classes sociais, etnias, gêneros, raças. Em outras palavras, a distância
social raramente está sozinha. Ela pode estar ligada a etnia, gênero,
raça, orientação sexual e, nessas tramas e interrelações, o grau de (in)
tolerância é tecido, sublinhado e aumentado. Ou seja, é na maneira
como lidamos com a distância social que deixamos visível a intolerân-
cia. Muitas vezes mascaramos nosso dizer que entendemos e aceita-
mos o Outro porque esse entendimento e essa aceitação podem em-
butir que o que se quer é que essa pessoa fique distante, não se apro-
xime, não queira amizade, não queira entrar para a família, para o con-
vívio. Afinal, a própria escolha lexical de termos como "tolerar" e
"aceitar" indexam a distância social. Aquele que se considera superior
"tolera" o outro que é visto como inferior. E espera-se que esse "aceite"
que lhe é proposto seja tomado/visto como uma benesse. Tolerância
potencialmente gera preconceito naquele que age de forma condes-
cendente. O termo "aceitação", por sua vez, está relacionado à subser-
viência, ao submeter-se a regras impostas sem lugar para negociação.
▪ 41 ▪
De acordo com o relatório da pesquisa:11
A distância em relação a pessoas homossexuais foi a que apresentou o mai-
or valor para o índice percentual de distância social, com 72%, seguido da
distância em relação a pessoas portadoras de deficiência mental (70,9%),
ciganos (70,4%), portadores de deficiência física (61,8%), índios (61,6%),
moradores da periferia e/ou de favelas (61,4%), pessoas pobres (60,8%),
moradores e/ou trabalhadores de áreas rurais (56,4%) e negros (55%).
(Disponível em: <http://www.robertobeling.com/educacao/index.php?
pagina=nacionais/fipe_preconceito.php>. Acesso em: 11 ago. 2009.)
▪ 42 ▪
Recorte no cotidiano de uma professora de escola pública
Dando sequência a nossa discussão, fizemos um recorte no cotidia-
no de uma professora que depara com um problema de racismo a ser
resolvido na sua sala de aula no início do semestre letivo:
“(...) durante o mês de março, um dia, após o recreio, ouv[ia] a queixa
de um aluno, ele me contava já em classe que um dos meninos o havia cha-
mado de “negrinho” e que ele não gostava disso. Estava exaltado e mostra-
va estar muito ofendido. Apontava para o outro que o ofendera, repetindo
várias vezes que ele iria bater se repetisse a ofensa (...). Um outro menino,
que era negro, falou calmamente que essa discussão não tinha valor. A clas-
se quis opinar e aos poucos, quem levantasse a mão falava sobre o que
pensava da situação. O menino, que agredira com palavras o outro, era
branco e se recusava a ouvir os comentários que as outras crianças faziam
em relação ao fato de ter sido usada a palavra “negrinho”. O menino que
recebera a ofensa cobrava de mim uma atitude. Ouvi a todos, esclareci o
significado que tinha tal palavra e que, realmente, não seria aceito que isso
ocorresse novamente. Tentei me manter mais calada para ouvir as crianças.
Elas relatavam exemplos que conheciam sobre casos de preconceito racial
que haviam ouvido ou sofrido e apontavam que a questão deveria ser discu-
tida.
Foram momentos de tensão e esclarecimento. Foi o primeiro confronto
que assisti e o nível da discussão foi interessante. Só depois de muitos de-
les comentarem ou se posicionarem é que voltamos para o conteúdo [da
aula].” (Diário da Professora. Fonte: Lamari, 2006-2008)
A professora relata em seu diário que a saída que encontrou foi pro-
por à classe a criação do Projeto “Bullying”, que teria um blog e uma
mascote – uma boneca negra. Nas suas palavras:
“Levei a boneca dentro de uma sacola, para que o fator surpresa fi-
zesse parte do objetivo de [despertar] na turma interesse em determinadas
questões. [A boneca] ficou em um canto perto de mim, na classe, e durante
essa aula, em um determinado momento, falei que teríamos um símbolo
que representasse o Projeto “Bullying” (...) Tirei a boneca da sacola e a
classe ficou espantada. Primeiro um silêncio geral e comentários baixinhos,
de forma que eu não ouvisse.
Perguntei (...) se eles aceitariam que aquela boneca representasse o
projeto e fizesse parte do nosso cotidiano de sala de aula e de casa tam-
bém. Alguns meninos riram. As meninas começaram a falar alto e diziam
que ela era uma boneca negra e era bonita. Algumas meninas que eram
brancas apenas olhavam. Perguntei como faríamos para que todos pudes-
sem levar a boneca para casa.” (Diário da Professora. Fonte: Lamari, 2006-
2008)
▪ 43 ▪
Depois de apresentar a boneca para a classe, o passo seguinte foi
uma conversa com as famílias dos alunos para obter autorização para
a implantação do projeto. Com a autorização obtida, com um trabalho
para o envolvimento de todos os alunos, começou o rodízio de lares
para “Carolina”.
“Havia ainda um desconforto por parte de algumas crianças em rela-
ção à boneca.
A maioria da classe já havia atingido nove anos de idade e alguns
[estavam] com dez anos completos. A única aluna mais velha era a Flávia,
com doze anos. Perguntei o que eles achavam sobre o fato de a boneca ser
negra. Poucos se manifestaram. Havia risos e olhares. Houve estranhamen-
to pelo fato de ser a boneca da cor negra. Depois de criada a identidade da
boneca, com nome idade e tudo mais, fizemos uma lista de cuidados que
todos deveriam ter para poderem conviver [responsavelmente com esse
'bebê']. Só depois de formado esse vínculo, a ‘Carolina’ passou a ir para [as]
casa[s] e a primeira criança que a levou não era loira e de pele clara. Aos
poucos, isso veio fazer parte do nosso cotidiano e todos foram se envolven-
do. A hora do sorteio era esperada com muita atenção, pois todos, meninos
e meninas para o meu espanto, levaram a ‘Carolina’ para casa. [A boneca]
voltava com sacola nova, roupas novas, que a família doava. Até uma cartei-
ra de identidade com foto e tudo foi feita por uma menina que já tinha mais
conhecimento na área de informática e providenciou a documentação que
também era carregada dentro da sacola, na qual havia sido bordado o seu
nome.” (Diário da Professora. Fonte: Lamari, 2006-2008)
Para reflexão
Com base no recorte no cotidiano da professora, qual seria seu objetivo com o
desenvolvimento do projeto proposto?
Como descreveria essa classe? E o relacionamento da professora com os
familiares dos alunos? E com os alunos? E com a administração da escola?
Um projeto desse tipo funcionaria na sua escola? Por quê?
Pensando as questões de diferenças que discutimos aqui, que foco você esco-
lheria para um projeto na sua escola?
▪ 44 ▪
Como parte desse projeto, a professora iniciou, então, o blog junta-
mente com os alunos. As famílias já envolvidas com o projeto foram
aderindo à ideia do blog. Tanto o projeto como o blog foram usados co-
mo ponto de partida para as produções textuais do grupo de alunos.
Essas produções textuais foram integradas a atividades de desenho e
colagem, por exemplo, sobre como as próprias crianças se viam, ou se-
ja, um autorretrato e um retrato de um(a) colega de classe de escolha
do(a) aluno(a). O blog foi também parte de um projeto de letramento
digital iniciado pela professora, que incluía o apoio às crianças (e, even-
tualmente, a seus pais) para criar um endereço eletrônico, se necessá-
rio. Incluía ainda o envio de convites para o blog, além da solicitação de
permissão das famílias para a participação dos alunos nas atividades
desenvolvidas.
Para reflexão
Releia o diário da professora. O que mais chamou a sua atenção? Por quê?
Há outros pontos que você gostaria de trazer para discussão com seus colegas ou
com seus coordenadores?
Como você trabalha com produção de textos? De que forma o trabalho de-
senvolvido pela professora é semelhante/diferente do seu? A integração das pro-
duções textuais com o blog, com atividades de desenho e colagem, faz parte do
seu cotidiano escolar?
Qual é sua relação pessoal com o computador e com o letramento digital,
incluindo o uso da internet?
Para reflexão
“Temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o
direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”. (Sousa San-
tos, 1999, p. 92)
Que leitura você faz da afirmação acima?
Você vê alguma possibilidade de relacionar essa afirmação com o recorte no
cotidiano da professora?
O que seria essa afirmação na prática?
Você teria, em sua experiência, alguma história para ilustrar/alavancar a
leitura que faz dessa afirmação?
▪ 45 ▪
Fechando a discussão e abrindo espaço
para continuar a reflexão
▪ 46 ▪
apenas para si próprios, mas também para os inúmeros “outros” que
os circundam.
É importante, ainda, lembrar a razão que nos moveu a focalizar o
tema-foco desta publicação, ou seja, que a sala de aula brasileira, co-
mo um microcosmo da sociedade, é habitada pelas diferenças, sejam
elas diferenças linguísticas, étnicas, de classe social, de gênero, de
credo religioso, de orientação sexual, de faixa etária etc. Em outras pa-
lavras, nosso ponto é que a escola não pode ser tratada como se fosse
um local pasteurizado e homogêneo onde não há lugar para as diferen-
ças, principalmente, se levarmos em consideração que a diferença,
quando ignorada, pode se tornar foco de temor, desdém ou agressivi-
dade. E é sempre importante lembrar que o discurso que está na sala
de aula provém da sociedade, que inclui a família, os amigos, as redes
sociais, a mídia, as associações organizadas, os partidos políticos etc.
Vale a pena destacar aqui o discurso dos partidos políticos que a
mídia, nesta primeira década do século XXI, tem apresentado como um
discurso único, descaracterizado das opiniões fortemente marcadas
como acontecia no passado. Interessantemente, Pierucci (1990, p. 4)
já apontava essa apropriação do discurso dos partidos de esquerda
pelos partidos de direita. Se, no passado, direita e esquerda eram cla-
ramente identificadas, já em 1990, mas também hoje, o discurso sobre
a “celebração (...) das diferenças, de apego às singularidades culturais,
de apologia da irredutibilidade e especificidades culturais, sociais e
ambientais” (...) é “absolutamente palatável e familiar à direita popu-
lar”. Se o discurso da diferença é hoje palatável, nas palavras desse
autor o que não é aceito é o discurso dos Direitos Humanos:
“Para um indivíduo dessa direita, o discurso não palatável, aquele que mais
do que qualquer outro desencadeia sua violência verbal, lhe arranca impre-
cações, injúrias e acusações não raro ferozes, aquele que provoca sua ojeri-
za e lhe causa urticária é, ainda hoje, duzentos anos depois, o discurso dos
Direitos Humanos (...), o discurso revolucionário da igualdade, seja a igualda-
de diante da lei, seja a igualdade de condições econômicas (a conquistar
como direito), seja a igualdade primeira de pertencermos todos à mesma
condição, a igualdade ao nascer. Vale dizer que em nosso país o discurso
não palatável e imediatamente odioso ainda é, cento e poucos anos depois
da abolição da escravatura, o discurso abolicionista das desigualdades e
subordinações, discriminações e humilhações, segregações e exclusões.”
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E se o discurso dos Direitos Humanos é ignorado (ou mesmo rejeita-
do) ao mesmo tempo que a diversidade é louvada, pode-se dizer que
houve uma banalização do discurso da diversidade. E essa banalização
tem por base a dicotomização da diferença e da igualdade, lembrando
também que o termo “diferença” é menos palatável do que
“diversidade”. Ou seja, a banalização do discurso da diversidade foi
bem-vinda, uma vez que efetivamente não houve nenhuma mudança.
É esse o nosso ponto. É aqui que sublinhamos a necessidade de contri-
buir para a formação de gerações mais respeitosas com as diferenças
e, em decorrência, em consonância com os Direitos Humanos, e como
tal, com uma sociedade mais justa.
Como já foi apontado anteriormente, são essas diferenças, combi-
nadas com as questões de poder e de ideologia, que formam a base de
preconceitos entre os alunos (entre agentes da educação, entre funcio-
nários da escola, das secretarias de educação...), que geram conflitos
explícitos, no caso do bullying, por exemplo, ou implícitos − quando, por
exemplo, ficam guardados e são acumulados, muitas vezes transfor-
mando-se em sentimentos tais como ressentimentos, raiva, ódio etc.
Como nos lembra Skliar (2003), tornamos invisível aquele que nos
incomoda, seja culturalmente, seja socialmente, seja religiosamente,
seja politicamente... Assim, dentro de nossa zona de conforto, aceita-
mos como natural viver as grandes narrativas de invisibilização do ou-
tro que nos foram passadas por nossas famílias ou pela sociedade em
que vivemos. Tais narrativas são tornadas naturais, ou seja, naturaliza-
das e, assim, não se vê a necessidade de problematizá-las. Nesse pro-
cesso, o silenciamento desse outro é uma decorrência, porque, afinal,
conviver com o diferente é difícil.
Em outras palavras, são esses os discursos que nos constroem e
nos destroem dentro e fora da sala da aula, na nossa vida em socieda-
de. E o que nos interessa é que a nossa construção enquanto cidadãos
esteja voltada para a construção de uma sociedade justa onde possa-
mos conviver com as diferenças individuais e coletivas e com as dife-
renças dentro das diferenças. Ou seja, há aqui um cuidado no sentido
de estarmos sempre alertas para não escorregar na fixação (ou essen-
cialização) das diferenças, um cuidado para não cairmos em armadi-
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lhas que nos empurram para atitudes preconceituosas de qualquer es-
pécie. E se cairmos nessas armadilhas, como seres humanos imperfei-
tos e contraditórios que somos, precisaremos estar sempre prontos a
rever nossas reações e atitudes tanto como professores em sala de
aula ou, fora da sala de aula, como simples cidadãos.
Como se vê, o tema das diversidades/diferenças é amplo e comple-
xo e, certamente, não se esgota neste espaço. Aqui apenas arranha-
mos a superfície das clivagens sociais onde se ancoram os preconcei-
tos, a invisibilização e o silenciamento de vozes na sociedade. Porém,
não focalizamos, por exemplo, o campo das necessidades especiais.
Para uma entrada nesse campo, indicamos no quadro ao lado dois li-
vros de Claudia Werneck, fundadora da ong Escola de Gente.12
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nados do Paraguai − foram todos relevantes para nos proporcionar uma
nova mirada no ensino de língua portuguesa e outras disciplinas, princi-
palmente na escola pública. Sem dúvida, temos hoje mais questiona-
mentos do que respostas porque as respostas só podem ser construí-
das de acordo com cada contexto. E os contextos com os quais depara-
mos sempre nos surpreendem nas semelhanças e diferenças encontra-
das e na diversidade entre as semelhanças − e, é claro, nas diferentes
diferenças! Observar, estar sempre alerta e ter abertura para mudanças
é imprescindível. E, logicamente, o trabalho em sala de aula depende
do trabalho com a comunidade, depende da educação do entorno, co-
mo aponta Maher (2007).
Para reflexão
Reflita e discuta com colegas professores e colegas da coordenação pedagógica
da(s) escola(s) em que você trabalha:
1. Como a mídia − impressa, online e televisiva − aborda a diversidade/diferença?
Faça sua observação e registre através de anotações.
2. E o material/livro didático que você usa, como focaliza a diversidade/diferença?
3. Como essa questão aparece no discurso da sua escola (na sala dos professo-
res, por exemplo) e na sua sala de aula?
4. Como essa questão é tratada em sua família? E entre seus amigos? (Sugestão:
Faça um diário sobre isso durante uns dois meses.)
5. Como esse tema aparece em documentos oficiais? Faça uma busca e recorte
algumas entradas sobre o assunto que tenham potencial para discussão.
6. Aproveite o foco em documentos oficiais e faça um levantamento de como o
termo “inclusão” é apresentado. Veja, por exemplo, o que está escrito nos PCNs.
De que forma a “inclusão” é relacionada à diversidade?
7. Como essa “inclusão” é (ou não) implementada nas escolas? Na sua experiên-
cia, a “inclusão” dos documentos é concretizada como inclusão, ou, às vezes, está
mais próxima da exclusão? Por quê?
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A segunda sugestão é um convite para ler as publicações da área
temática de Ensino na Diversidade do Cefiel, cujas informações deta-
lhadas são apresentadas nas Referências. Apresentamos a seguir to-
dos os títulos e autores, e uma breve anotação indicando o foco de ca-
da um.
O índio, a leitura e a escrita – o que está em
jogo? (Cavalcanti & Maher, 2005). Com foco nas
questões de letramento no complexo e diverso
mundo indígena brasileiro, apresenta uma refle-
xão sobre a educação escolar indígena e tam-
bém sobre como essa situação-limite, tão rica
cultural e linguisticamente, pode contribuir para
a educação convencional no país.
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Surdos na escola – letramento e bilinguismo
(Silva & Favorito, 2009). Propicia discussão e
reflexão sobre o que significa ser surdo em uma
sociedade ouvinte. Faz um histórico da educa-
ção de surdos e traz as especificidades linguísti-
cas dos alunos surdos, sua relação com a língua
oral e com a língua de sinais.
Refletindo sobre falar e escrever em EJA (Faria & Paula, 2009). Des-
constrói a crença de que para o aluno aprender a escrever precisa, pri-
meiro, “aprender a falar”.
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Referências
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ências Sociais realizado na Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal (16-
18 set. 2004).
__________________ & SILVA, I.R. “Já que ele não fala, podia ao menos escre-
ver” – o grafocentrismo naturalizado que insiste em normalizar o surdo. In:
KLEIMAN, A.B. & CAVALCANTI, M.C. (orgs.). Linguística Aplicada – suas faces e
interfaces. Campinas: Mercado de Letras, 2007. p. 200-219.
CUCHE, D. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Trad. Viviane Ribeiro. 2.ed.
Bauru: EDUSC, 2002.
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HOUAISS, A. & VILLAR, M.S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
PEREIRA, M.E. Psicologia social dos estereótipos. São Paulo: EPU, 2002.
PIERUCCI, A.F. Ciladas da diferença. Tempo Social. 2/2, 1990, p. 7-33. Disponí-
vel em: <http://www.google.com.br/sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=
web&cd=1&ved=0CC4QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.fflch.usp.br%
2Fsociolologia%2Ftemposocial%2Fsite%2Fimages%2Fstories%2Fedicoes%
2Fv022%2FCILADAS.pdf&ei=9x3cUtrYE9LisASr84CwBA&usg=AFQiCNF_HqTw
KzbS35zF7MuqreGRV1QanA&sig2=PS46aRemei9QV316r5u7jQ&bmv=bv.59
568121,d.&bvm=bv.59568121,d.eW0>. Acesso em: 05 maio 2008.
▪ 55 ▪
português. Campinas: Campus/Elsevier, 2006.
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