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br

Cana transgênica
desenvolvida
no país
agosto de 2017 | Ano 18, n. 258 combate praga

Técnica de edição
de genes
corrige mutação
em embriões
humanos

Atlas indica áreas


prioritárias para
explorar
energia solar

Vida pode
ter surgido
em terra firme
há 4 bilhões
de anos

Videoativistas da
periferia mostram
sua própria visão
Automóveis movidos a eletricidade deverão de São Paulo
representar 16% da frota mundial até 2030.
Entrevista
No Brasil, a difusão ainda é pequena por causa
O antropólogo
do preço e da ausência de rede de recarga Eduardo Brondizio
destaca a
vulnerabilidade da

carros
Amazônia urbana

létricos
> Biossensor faz diagnóstico de dengue em 20 minutos
PROFESSORES E ESTUDANTES DE TODO O BRASIL

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ORGANIZAÇÃO / REALIZAÇÃO
fotolab A beleza do conhecimento

Sua pesquisa rende imagens bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Movimento rastreado
Mais de 2 mil robalos que nadam pela bacia do rio Ribeira, que
inclui o estuário de Cananéia, no sul do litoral paulista, têm um
curioso pino amarelo no dorso. Trata-se de uma marcação feita pelo
grupo do biólogo Domingos Garrone Neto, que permite o
reconhecimento dos peixes quando são recapturados. Por meio
de expedições de coleta e da colaboração de pescadores, a equipe já
verificou deslocamentos entre São Paulo e Paraná, estados com
legislação distinta para a pesca dos robalos, e investiga o uso das
águas dos rios e do mar por esses animais.

Imagem enviada por Domingos Garrone Neto, professor no


campus de Registro da Universidade Estadual Paulista (Unesp)

PESQUISA FAPESP 258 | 3


agosto  258

POLÍTICA DE C&T 55 Ecologia 80 Biotecnologia


Peixes-limpadores do atol Cana-de-açúcar transgênica
34 Atlas das Rocas conseguem é aprovada para plantio no
Estudo indica áreas alimento ao remover Brasil
favoráveis para explorar parasitas de peixes maiores
a energia solar no Brasil  
  58 Geoquímica HUMANIDADES
38 Indicadores Experimentos com
Relatório revela que a bactérias sugerem que a 88 Psicologia social
CAPA FAPESP manteve ritmo de vida pode ter surgido em Para Ecléa Bosi, memória
Automóveis investimentos em 2016 terra firme é usada também para
    reconstruir e repensar o
elétricos devem
42 Obituário 62 Entrevista presente
representar 16% A contribuição de Nicholas Suntzeff,
da frota mundial Maryam Mirzakhani, astrofísico norte-americano,
em 2030 primeira mulher a mede a distância de galáxias
ganhar a Medalha Fields nos confins do Universo
p. 18  
  66 Astrofísica
No Brasil, preço CIÊNCIA Comportamento caótico do
plasma ajuda a explicar
alto e falta de
50 Entrevista ciclo magnético de estrelas
rede de recarga A física Yvonne Mascarenhas semelhantes ao Sol
dificultam começou a usar difração
disseminação de raios X para verificar
estruturas moleculares TECNOLOGIA
p. 22
nos anos 1960
    68 Engenharia
Objetivo da 54 Biologia Biossesores portáteis
indústria é Pesquisadores usam facilitam o diagnóstico de
edição gênica para corrigir doenças como a dengue ENTREVISTA
aumentar mutação em embriões   Eduardo
a autonomia humanos 72 Pesquisa empresarial Brondizio
da bateria   Stefanini investe em P&D Antropólogo fala
para obter 85% de seu sobre a
p.26
faturamento com soluções vulnerabilidade
digitais das cidades da
  Amazônia
76 IBM é um dos mais p. 28
produtivos centros de
inovação do país

p. 58
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No site de Pesquisa Fapesp estão disponíveis
gratuitamente todos os textos da revista em português,
inglês e espanhol, além de conteúdo exclusivo

SEÇÕES vídeos
youtube.com/user/pesquisafapesp
3 Fotolab

6 Comentários

7 Carta da editora

8 Boas práticas
Levantamento aponta
frequência e gravidade
de 60 condutas
antiéticas ou duvidosas

11 Dados Experimento reproduz fenômeno que pode ocorrer


Dispêndios em P&D perto de buracos negros bit.ly/vAstrofbagno

12 Notas
Medicina
Exercícios podem 90 Memória
deter a caquexia, Etnógrafa Wanda Hanke
inflamação que induz viajou sozinha pela
à perda de peso e América do Sul nos anos
agrava o câncer 1930 para estudar
p. 44 indígenas

92 Resenha
Vida caipira, de Pedro
Ribeiro. Por Neusa de
Fátima Mariano Softwares colaboram nas inspeções de árvores
Audiovisual das cidades bit.ly/vArvores
Videoativistas da 94 Carreiras
periferia de São Paulo Saber coordenar grupos
mostram como de pesquisa ajuda a criar
veem a metrópole uma agenda de trabalho
p. 82 sustentável rádio  bit.ly/PesquisaBr

98 Classificados Educador físico


Fabio Bertapelli
explica as novas
curvas de
crescimento para
monitorar o peso e
a altura de jovens
com Down 
bit.ly/PodcastDown

Foto da capa
Léo Ramos Chaves
Conteúdo a que a
comentários cartas@fapesp.br
mensagem se refere:

Revista impressa

Reportagem on-line Belas adormecidas Nível do mar


A respeito da reportagem “Artigos ador­ Sobre a nota “Nível do mar na costa brasi­
Galeria de imagens
mecidos” (edição 256), não vejo sentido leira deve subir” (edição 256), tudo tende a
Vídeo em avaliar o número de citações limitando a ficar pior: destruição de ecossistemas inteiros,
somente os últimos anos. Isso é querer obrigar mudança nas correntes marinhas e bilhões de
Rádio
a publicar sobre algo incremental do momento vidas perdidas. Esse cenário pode ainda ficar
e não em pesquisa básica. O número total de pior se nada fizermos.
citações mostra a trajetória sem limitações, Marcelo Prado Felice

contatos se se quiser dividir pelo número de anos em


atividade, até que poderia ser um critério mais
revistapesquisa.fapesp.br razoável. Um fator que vem mudando a si­ Vídeos
tuação são as redes sociais de cientistas, nas Lindo trabalho, que traz o conhecimento
redacao@fapesp.br
quais se pode colocar livremente artigos sem de forma clara e objetiva (“A saúde das
PesquisaFapesp
que fiquem na clausura do acesso restrito. árvores urbanas”).
PesquisaFapesp José Joaquín Lunazzi Cleide M. Fuhlendorf
pesquisa_fapesp IFGW/Unicamp

Pesquisa Fapesp Campinas, SP Muito bom este vídeo. Esclarecedor.


Ibirá Lucas
pesquisafapesp

cartas@fapesp.br Ciência sem Fronteiras Qual o status atual da saúde das árvores de
R. Joaquim Antunes, 727 Custo alto com retorno perto do zero (“Ex­ São Paulo? As entrevistas foram genéricas
10º andar
periência encerrada”, edição 256). Mais e só se falou de projetos em andamento. Faltou
CEP 05415-012
São Paulo, SP
uma ação populista sem nenhum controle. mostrar resultados dos estudos dos grupos.
Fabrício Vilas Boas Thais Mauad
Assinaturas, renovação
e mudança de endereço R$ 13,2 bilhões? Com esse dinheiro dá para Muito importante a discussão do vídeo
Envie um e-mail para trazer quantos professores de fora do país “Vale quanto pesa”. A indústria farma­
assinaturaspesquisa@
para darem aula aqui? E financiar quantos cêutica, por exemplo, depende desse padrão.
fapesp.br
ou ligue para projetos? Luzianderson Ramos
(11) 3087-4237, Matheus Grossi
de segunda a sexta,
das 9h às 19h O programa foi ótimo. O maior erro foi na Correção
execução. Mas ainda assim acredito que Na reportagem “Na selva de pedra” (edição 255),
Para anunciar 
Contate: Paula Iliadis 
quem teve essa oportunidade poderá fazer a a araponga é uma ave típica da Mata Atlântica,
Por e-mail: diferença. Eu fui bolsista do Ciência sem Fron­ e não do Cerrado, como foi publicado.
publicidade@fapesp.br teiras. Estou iniciando o doutorado em agosto
Por telefone: e espero poder dar retorno de alguma forma
(11) 3087-4212 à sociedade pelo investimento que recebi. Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas
Gustavo Anndré por motivo de espaço e clareza.
Edições anteriores
Preço atual de capa
acrescido do custo de
postagem.
Peça pelo e-mail: A mais lida de julho no Facebook
clair@fapesp.br
POLÍTICA
Licenciamento Experiência encerrada bit.ly/2toriUH
de conteúdo
Adquira os direitos
de reprodução de 54.387 pessoas alcançadas
textos e imagens
411 reações
ilustração fabio otubo

de Pesquisa FAPESP.
Por e-mail:
mpiliadis@fapesp.br 133 compartilhamentos
Por telefone:
(11) 3087-4212 128 comentários

6 | agosto DE 2017
fundação de amparo à pesquisa do
carta da editora
estado de são Paulo

José Goldemberg
Presidente

Eduardo Moacyr Krieger


vice-Presidente

Conselho Superior

Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr


Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando
A alternativa elétrica
Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José
Goldemberg, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de
Souza Martins, julio cezar durigan, Pedro Luiz
Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely
Vilela Sampaio
Alexandra Ozorio de Almeida | diretora de redação

Conselho Técnico-Administrativo

Carlos américo pacheco


Diretor-presidente

A
Carlos Henrique de Brito Cruz
Diretor Científico busca por alternativas aos com- conta o ciclo completo: a matéria-prima,
fernando menezes de almeida
Diretor administrativo bustíveis fósseis ganhou ímpeto o dispêndio energético e a emissão de
nos anos 1970, quando o mun- poluentes na sua fabricação, sua efi-
do sofreu os efeitos de dois choques no ciência e os impactos de seu descarte,
mercado de petróleo. No Brasil, país de entre outros pontos. Devem, também,
issn 1519-8774 matriz energética maciçamente de ori- ser pensados em termos mais amplos,
gem hidráulica, o principal resultado no contexto de políticas públicas, dos
Conselho editorial
Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa,
desses esforços foi o desenvolvimento incentivos ao transporte individual,
Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger,
Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de de veículos movidos a um biocombus- como defendem alguns grupos, ou de
Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira
tível que se tornaria um diferencial bra- prioridade ao transporte público, como
comitê científico
Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), sileiro – o etanol. Nas últimas décadas, pedem outros.
Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida,
Carlos Américo Pacheco, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon,
Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Francisco Rafael Martins
o interesse por outras fontes tem sido Essas questões vão ao encontro do
Laurindo, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda,
José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luiz Nunes de
impulsionado por uma preocupação tema de uma entrevista desta edição.
Oliveira, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves,
Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio crescente: o aquecimento global. O antropólogo brasileiro radicado nos
Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli
Carros elétricos são apresentados Estados Unidos Eduardo Brondizio é
como uma alternativa amigável ao am- um dos coordenadores de um painel da
Coordenador científico
Luiz Henrique Lopes dos Santos

diretora de redação
Alexandra Ozorio de Almeida
biente, mesmo quando alimentados ONU que trabalham em uma avaliação
editor-chefe
com eletricidade gerada por termelé- sobre biodiversidade e suas contribui-
Neldson Marcolin
tricas poluentes, por serem muito efi- ções para a sociedade (página 28). O
Editores Fabrício Marques (Política de C&T),
Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência), cientes. O alto custo associado às bate- grupo estuda questões que aliam proble-
rias, cuja eficiência está ainda aquém do mas ambientais e sociais, como a con-
Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais),
Bruno de Pierro (Editor-assistente)

revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro desejável, é um problema, assim como ciliação de políticas contra a pobreza
arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos
(Editora de infografia), Júlia Cherem Rodrigues
a necessidade de uma infraestrutura com políticas de conservação. Um dos
e Maria Cecilia Felli (Assistentes)
de abastecimento para que essa opção objetivos é ampliar a discussão sobre
fotógrafos Eduardo Cesar e Léo Ramos Chaves
seja de fato viável. mudanças climáticas de forma que seu
Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador)
A reportagem de capa desta edição combate não seja visto como um fim
em si mesmo, mas como parte de um
Internet Pesquisa FAPESP on-line
Maria Guimarães (Editora) (página 18) oferece um panorama atual
Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter)
Jayne Oliveira (Redatora)
Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais)
dos carros elétricos: os desafios tecnoló- processo de mudança.
banco de imagens Valter Rodrigues
gicos, os diferentes tipos, o cenário in- A edição também traz uma presença
Colaboradores Alexandre Affonso, Christina Queiroz, ternacional e as perspectivas no Brasil. feminina de peso, algumas como reco-
Daniel Almeida, Diego Freire, Domingos Zaparolli, Evanildo
da Silveira, Haroldo Ceravolo Sereza, Igor Zolnerkevic, No caso brasileiro, uma possibilidade nhecimento póstumo por sua atuação
seria o desenvolvimento de uma versão na ciência, como a matemática iraniana
Maurício Pierro, Neusa de Fátima Mariano, Pedro Hamdan,
Reinaldo José Lopes, Renato Pedrosa, Sandro Castelli,
Yuri Vasconcelos, Zansky
híbrida que aproveite as vantagens dos Maryam Mirzakhani, primeira mulher
É proibida a reprodução total ou parcial de
textos, fotos, ilustrações e infográficos elétricos sem, contudo, descartar o eta- a receber a Medalha Fields (página 42),
sem prévia autorização
nol e a sua importância para a indústria a psicóloga Ecléa Bosi, que se dedicou a
estudar a coletividade e a memória (pá-
Tiragem 25.400 exemplares
IMPRESSão Plural Indústria Gráfica automobilística e a economia. Para isso,
será necessário um extensivo trabalho gina 88), e a etnógrafa austríaca Wanda
distribuição Dinap

de pesquisa e desenvolvimento. Hanke (página 90), que se aventurou


GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO
À UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727,
10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP
Substituir carros poluentes por não sozinha pelo Brasil na década de 1930.
FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901,
Alto da Lapa, São Paulo-SP
poluentes é desejável, mas há outros Recentemente premiada pela União In-
fatores em jogo, como os congestio- ternacional de Química Pura e Aplicada
Secretaria de Desenvolvimento Econômico, namentos urbanos e os investimentos (Iupac), a cristalógrafa Yvonne Masca-
Ciência e Tecnologia
Governo do Estado de São Paulo necessários para as novas estruturas renhas, 86 anos, contou em entrevista
de distribuição de energia. No quesito sobre o início no país da área de conhe-
sustentabilidade, avanços tecnológicos cimento que usa raios X para investigar
devem ser analisados levando-se em a estrutura de moléculas (página 50).

PESQUISA FAPESP 258 | 7


Boas práticas

Sessenta tons de má conduta


Levantamento sugere que frequência elevada de omissões e deslizes pode
causar mais danos à integridade científica do que casos ocasionais de fraude

Pesquisadores e instituições se mobilizam para pelo levantamento, os que medem a percepção sobre
prevenir as formas mais graves de má conduta os impactos da má conduta na validade da pesquisa e
científica, como fraudes e manipulação de dados, mas na confiança que ela inspira, o problema campeão em
não combatem com tanto vigor comportamentos respostas foi a fabricação de dados – que na lista dos
duvidosos ou negligentes que, embora não produzam mais frequentes aparece em penúltimo lugar. Em
escândalos, comprometem a integridade da pesquisa segundo lugar, aparece o expediente de modificar,
pela elevada frequência com que ocorrem. Para fabricar ou remover dados depois que eles já foram
avaliar se essa premissa é verdadeira, um grupo analisados pela primeira vez e, em terceiro, a
coordenado pelo psiquiatra Joeri Tijdink, da manipulação de conclusões por pressão do
Universidade Livre de Amsterdã, Holanda, ouviu patrocinador do estudo. O plágio foi considerado
227 especialistas de vários países que participaram comum (ficou em 12º lugar entre os mais frequentes),
das quatro primeiras conferências mundiais de mas com impacto limitado (42º na lista dos que mais
integridade científica, realizadas entre 2007 e 2015. causam impacto na validade da pesquisa). “Práticas
Os entrevistados responderam a um questionário questionáveis ou indesejadas, que às vezes nem são
eletrônico que os convidava a opinar sobre uma intencionais, podem ter um impacto acumulado
lista de 60 tipos diferentes de condutas antiéticas maior do que os casos de fraude”, disse Tijdink
ou controversas. Eles atribuíram pontos a certas ao site da publicação Nature Index.
características de cada um dos itens, como a Alguns dos problemas corriqueiros, observa Tijdink,
gravidade e a regularidade com que ocorrem, e são muito difíceis de eliminar. Ele cita como exemplo
isso resultou em vários rankings. No ranking dos o terceiro tipo mais frequente de problema apontado
problemas mais frequentes, o primeiro da lista foi no levantamento: não divulgar pesquisas cujo
um viés que não necessariamente compromete a resultado foi negativo. Dar publicidade a eventuais
consistência de um artigo científico, que é citar dados resultados negativos obtidos ao longo do processo
selecionados a fim de realçar descobertas ou de investigação é importante para compreender
convicções do autor. Em segundo lugar, foi o quanto são representativos os resultados positivos
mencionada a falta de supervisão e orientação registrados. “Mas resultados negativos não rendem
adequadas para estudantes e pesquisadores artigos em revista de alto impacto nem ajudam a
em início de carreira, deslize que pode ser obter financiamento para pesquisa. É
produto de negligência ou de excesso de difícil superar esse círculo vicioso”,
tarefas de um líder de pesquisa. diz o psiquiatra.
Já em outros dois O levantamento foi
rankings produzidos publicado na revista

8 | agosto DE 2017
Comportamentos antiéticos ou negligentes
Levantamento com 227 especialistas em integridade científica apontou os tipos
de má conduta mais frequentes e os que causam mais impacto na validade das pesquisas

Os mais frequentes Os de mais impacto

1 Citar dados selecionados a fim de realçar 1 Fabricação de dados


descobertas ou convicções do autor
2 Remover ou modificar informações,
2 Supervisionar de forma insuficiente estudantes ou adicionar dados fabricados, depois que
e pesquisadores em início de carreira uma primeira análise dos dados foi realizada

3 Deixar de publicar resultados negativos válidos 3 Mudar resultados ou conclusões de


um estudo por pressão do patrocinador
4 Solicitar ou atribuir a coautoria de
um artigo científico sem haver 4 Escolher metodologias de
contribuição efetiva pesquisa ou instrumentos de avaliação
de resultados claramente inadequados
5 Citar artigos com o objetivo de
agradar a editores, revisores e colegas 5 Ocultar resultados que contradizem
descobertas anteriores

Research Integrity and Peer Review no Nas ciências naturais, o problema que especialistas foi a forma que
final de 2016 e apresentado em maio mais compromete a validade da encontrou de avaliar a amplitude do
na 5ª Conferência Mundial de pesquisa seria, segundo entrevistados fenômeno. Esse recurso também foi
Integridade Científica, realizada em da área, o arredondamento incorreto utilizado por uma pesquisa que
Amsterdã – o autor principal do artigo de resultados estatísticos, enquanto comparou as percepções sobre
é o epidemiologista Lex Bouter, reitor na área de ciências biomédicas seria a integridade científica entre 1.200
da Universidade Livre entre 2006 e fabricação de dados e, nas ciências pesquisadores da área biomédica na
2013 e um dos organizadores da sociais, a possibilidade de revisar os China em 2015 com as obtidas
conferência. “Fica claro, na nossa próprios papers. em um levantamento feito em 2010.
avaliação, que devemos transferir a Durante o processo de revisão do O paper, publicado em abril na
atenção dos casos de fabricação e artigo de Tijdink e Bouter feito pela revista Science and Engineering Ethics,
falsificação de dados, que são Research Integrity and Peer Review, sugere que 40% da produção científica
ocasionais, para os casos menores de o trabalho recebeu críticas pelas chinesa nessa área do conhecimento
má conduta, como arredondamentos características da amostra de está associada a alguma forma de má
estatísticos e seleção de dados, que são entrevistados. Dos 1.131 que receberam conduta, mas reforça a ideia de que
muito mais frequentes”, disse Bouter, o questionário, apenas 227 tipos mais brandos são os mais
que é professor de metodologia e responderam – e nesse grupo havia disseminados. Os mais prevalentes,
integridade científica, ao apresentar o uma prevalência de professores e segundo os entrevistados chineses, são
levantamento na conferência. pesquisadores seniores, o que poderia o plágio e a atribuição imprópria de
Um quarto ranking foi produzido a levar a conclusões enviesadas. O autoria a pesquisadores que não
partir da opinião dos entrevistados caráter subjetivo dos resultados – deram uma contribuição efetiva à
sobre quais problemas de má conduta baseados em opiniões pessoais dos pesquisa publicada – bem à frente das
seriam mais fáceis de prevenir. Em pesquisadores balizadas por um fraudes e da fabricação de dados.
primeiro, despontou a atitude de conjunto de 60 comportamentos
ignorar riscos impostos a participantes predeterminados – também foi
do estudo e, em segundo, os truques apontado como uma limitação, Artigos científicos
ilustrações maurício pierro

que permitiram a alguns reconhecida pelos autores. Tijdink BOUTER, L. et al. Ranking major and minor research mis-
behaviors: Results from a survey among participants of
pesquisadores terem controle sobre o argumentou, contudo, que é muito four World Conferences on Research Integrity. Research
processo de revisão de seus próprios difícil mensurar objetivamente o Integrity and Peer Review. 21 nov. 2016.

papers. O trabalho também apontou impacto dos casos mais brandos de LIAO, Q.-J. et al. Perceptions of chinese biomedical re-
searchers towards academic misconduct: A comparison
nuanças sobre a percepção em má conduta científica e explicou que between 2015 and 2010. Science and Engineering Ethics.
diferentes campos do conhecimento. o levantamento das opiniões de 10 abr. 2017.

PESQUISA FAPESP 258 | 9


Denúncia
atrasa premiação
na Alemanha
Com quatro meses de atraso,
a Sociedade Alemã de Amparo à
Pesquisa (DFG) concedeu Britta Nestler,
à matemática e cientista de entre o
presidente
materiais Britta Nestler, 45 anos, o da DFG, Peter
Prêmio Leibniz, que todos os anos Strohschneider,
reconhece o trabalho de cerca e a ministra
de uma dezena de líderes de da Educação,
Johanna
pesquisa no país oferecendo Wanka, recebe
a cada um deles € 2,5 milhões o Prêmio
para investir em seus projetos Leibniz
ao longo de sete anos. Enquanto
os outros nove ganhadores do A entrega do Prêmio Leibniz Segundo a revista Der Spiegel, em
prêmio foram agraciados ocorreu na reunião anual da DFG 2005 a professora de medicina
no dia 15 de março, Nestler, na cidade de Halle, na presença da Stefanie Dimmeler também teve
pesquisadora do Instituto de ministra da Educação e Pesquisa o prêmio suspenso após ser
Tecnologia de Karlsruhe, só da Alemanha, Johanna Wanka. acusada de fraude. Comprovou-se
pôde receber a condecoração “É importante para a DFG que a que ela usou uma mesma imagem
no dia 4 de julho. Nesse intervalo, Britta Nestler receba esse prêmio em vários artigos como se
ela enfrentou uma investigação em uma cerimônia formal e na representassem experimentos
por má conduta científica presença de quem toma decisões diferentes. A DFG concluiu que
na DFG – e foi inocentada. políticas”, disse Dzwonnek. ela não agiu de má-fé, tampouco
A lista dos agraciados havia sido Nestler não se pronunciou. o equívoco comprometeu a
divulgada em dezembro Não é a primeira vez que a DFG veracidade dos trabalhos
e, em março, poucos dias antes passa por uma situação desse tipo. publicados. Ela recebeu o prêmio.
da cerimônia, uma denúncia
anônima acusou a pesquisadora
de fraude em projetos de pesquisa
financiados pela DFG, que é a A geografia da autocitação
principal agência de
apoio à pesquisa básica da Um truque desonesto utilizado cria condições para se reforçar
Alemanha. O teor da denúncia por pesquisadores para inflar práticas de autopromoção”,
foi mantido em sigilo pela DFG, o impacto de sua produção escreveu Nick Deschacht, autor
que abriu uma investigação e científica é o abuso da autocitação. principal do estudo, em um post
decidiu suspender Isso ocorre quando o autor, ao no blog da London School of
temporariamente a premiação escrever um artigo, menciona sem Economics and Political Science,
já anunciada. “Embora tenha sido necessidade vários de seus no Reino Unido.
uma decisão difícil, ela foi feita trabalhos anteriores, a fim de A autocitação é menos
para preservar os interesses de aumentar o número de citações. frequente, segundo o estudo, em
Britta Nestler, da DFG e do Um estudo publicado no países onde predomina uma
Prêmio Leibniz”, disse Dorothee Journal of Occupational and cultura classificada como mais
Dzwonnek, secretária-geral da Organizational Psychology por coletivista, como China e Coreia
agência, na cerimônia de pesquisadores da Universidade do Sul. Deschacht e sua equipe
premiação. “Em seguida, de Leuven, na Bélgica, sugere que analisaram o número de
trabalhamos arduamente para o excesso de autocitação é um autocitações em 1.346 artigos
investigar todos os aspectos das fenômeno mais detectado entre publicados entre 2009 e 2014 nas
alegações, ouvimos Nestler autores que residem em países áreas de gestão e negócios.
e contratamos um revisor externo em que o individualismo e a Em países “individualistas”,
antes que o nosso comitê de competitividade se acentuam 13% fizeram cinco ou mais
inquérito de alegações de má como traços culturais, como autocitações nos trabalhos
DFG / Falk Wenzel

conduta abordasse o assunto. Estados Unidos e Reino Unido. analisados, em oposição a apenas
Essa investigação não revelou “Nesses países, há uma ênfase no 7% dos autores de países
evidências de má conduta.” desenvolvimento pessoal, o que apontados como “coletivistas”.

10 | agosto DE 2017
Dados Dispêndios em P&D

Desembolso de recursos para p&D em São Paulo


Dispêndios em P&D em São Paulo cresceram 44% nas duas últimas décadas,
passando de R$ 19,5 bilhões para R$ 28,0 bilhões1. Instituições de ensino superior
(IES) ampliaram sua participação, de 19% para 22%, enquanto agências de 28.033
fomento e institutos de pesquisa (IP) perderam espaço.

Dispêndios em P&D em São Paulo por setor da fonte 20.934


19.471
em milhões R$ constantes (2016) 16.885
60%
As empresas atingiram 60% do total dos 12.350
dispêndios em 2016. Esse valor é próximo 11.290
59%
da média dos países industrializados2 58%
(61%), e acima da brasileira, de 45%3.
4.934
3.941 18%
4.561
19%
23%
n Instituições de ensino superior (IES) 6.213
n Agências de fomento e institutos de pesquisa (IP) 3.620 4.643
22%
n Empresas 19% 22%

1996 2006 2016

composição dos recursos de fontes governamentais


As IES estaduais responderam por 72% dos dispêndios do governo estadual, em 2016. Os IPs do estado apresentaram queda nos últimos
20 anos e a FAPESP mostrou estabilidade. As agências de fomento lideraram, em 2016, os dispêndios de fontes federais em São Paulo. O maior
crescimento vem ocorrendo nas universidades, que representam 9% do total.

Dispêndios em P&D em SP em milhões Participação federal nos dispêndios públicos


R$ constantes (2016) em P&D em São Paulo e no Brasil (2014)

O governo federal financiou 39%


Governo federal dos dispêndios públicos em
Governo estadual
São Paulo, fração muito menor 67%
n Instituições de ensino superior estaduais n Instituições de ensino superior federais do que sua participação em nível
n Ag. de fomento e inst. de pesquisa estaduais n Ag. de fomento e inst. de pesquisa federais nacional, de 67%3.
n FAPESP n Agências federais

6.357 n SP 39%
5.497 n Brasil
5.018 1.137
993 667
1.014 4.072
732
837 3.072
2.748 1.650
1.357 1.039
3.167 3.772 4.553
1.481
1.354 1.177
361 531 941

1996 2006 2016 1996 2006 2016 Total

1 Valores constantes em R$ de 2016 (deflacionados pelo IGP-DI).  2 A média da participação de empresas (como fonte) de países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em
2015, foi de 61% do total de dispêndios em P&D.  3 Valores para 2014, último ano com dados disponíveis (MCTIc).  Fontes Indicadores de CT&I da Fapesp (SP), Indicadores de CT&I do MCTic (Brasil), Main
Science and Technology Indicators, OCDE (OCDE).

PESQUISA FAPESP 258 | 11


Notas
Estoques de tambaqui
em declínio
Entrevistas com 392 pescadores de comunidades rurais
dos arredores de Manaus sugerem que a captura exces-
siva do tambaqui (Colossoma macropomum) está afetando
os estoques desse peixe ao longo de até mil quilômetros
do rio Purus, um afluente do rio Solimões. O tambaqui é
um dos pratos preferidos na capital amazonense, uma
metrópole com mais de 2 milhões de habitantes imersa
na floresta. O tamanho do peixe reduziu-se pela metade
e a frequência de sua captura também diminuiu, segundo
estudo feito por pesquisadores de universidades brasilei-
ras e do Reino Unido (PNAS, 24 de julho). Eles perguntaram
aos pescadores o tamanho e a quantidade de tambaquis
capturados nos dias anteriores à entrevista para obter
uma estimativa das características das populações do
peixe à medida que se afastava da metrópole. Em média,
os tambaquis pescados no Purus a distâncias de até 500
quilômetros (km) de Manaus pesavam cerca de 2,5 quilos
(kg). A mil km da capital amazonense, atingiam 4,5 kg. A
diminuição dos tambaquis de grande porte representa um
problema econômico para os pescadores das comunidades
próximas a Manaus. Com a redução do número de exem-
plares maiores, que alcançam preços mais altos no mer-
cado, a renda cai. Além disso, o aumento da captura dos
peixes menores, que nem sempre alcançaram a idade
reprodutiva, pode prejudicar a capacidade de renovação
dos estoques e tornar sua pesca insustentável no longo
prazo. A sobrepesca do tambaqui também pode afetar
seu papel ecológico de dispersor de sementes, uma vez
que os peixes menores as transportam por distâncias
também menores. Os autores do estudo atribuem o de-
clínio nos estoques na região de Manaus à demanda ele-
vada e à facilidade de conservação e transporte propor-
cionada por barcos de grande porte, que abastecem com Tambaqui, um
gelo os pequenos pescadores e deles compram o peixe. dos preferidos
nas mesas
de Manaus

Brasil
Tamanho do maior tambaqui já
pescado nas comunidades (kg)

MANaus Lábrea 7,9 a 11


Tapauá
Canutama
11,1 a 15
Ri beruri
So 15,1 a 18
o

li m õ es Rio P
u
18,1 a 19
Rio

ru

So
s

li m
õ 19,1 a 24
es
1

0 500 1000 1500 fonte TREGIDGO, D. J. et al. PNAS. 2017

Distância fluvial em kilômetros


12 | agosto DE 2017
2

O próton e o anti-hidrogênio DNA, agora para descendentes. A seguir,


registrar filmes os pesquisadores
Duas notícias do mundo atômico. recuperaram os dados
A primeira é que aumentou a codificados no genoma
precisão com que se mede a A imagem da pessoa das bactérias e
massa do próton, a partícula de cavalgando abaixo faz reconstituíram o filme
carga elétrica positiva que é um parte de um pequeno com 90% de precisão
dos componentes básicos do vídeo feito com a (Nature, 12 de julho).
núcleo de todos os átomos. informação recuperada O experimento indica a
A massa do próton é um dos fa- de um material nunca possibilidade de usar
tores que determinam o movi- usado antes com essa células vivas para
3
mento dos elétrons ao redor do finalidade: a molécula de armazenar informações.
núcleo atômico. Equipes do Ins- DNA. Geneticistas da Bactérias poderiam
tituto Max Planck de Física Nuclear, da Alemanha, e As trajetórias do Universidade Harvard, ajudar no monitoramento
dos Laboratórios Riken, do Japão, obtiveram um valor átomo de Estados Unidos, usaram ambiental ao guardar
anti-hidrogênio em
três vezes mais preciso do que nas medições anteriores. trechos de DNA para registros de metais
experimento
A nova medição foi realizada por meio da comparação realizado em 2016, codificar os pontos pesados e outros
de um único próton em movimento em um campo mag- no Cern (no alto), escuros e claros de poluentes. “Estamos
fotos 1 Léo Ramos Chaves / foto feita no Aquário de São Paulo 2 Chukman So / Universidade da Califórnia,

nético com a massa de um núcleo de carbono 12, for- e a armadilha imagens de um homem tentando desenvolver
Penning, usada
mado por seis prótons e seis nêutrons e usado como galopando, feitas em um gravador molecular
para aprisionar
padrão de massa atômica. Com uma precisão de 32 prótons (acima) 1878 pelo fotógrafo que possa ser inserido
Berkeley  3 instituto max planck de física nuclear 4 seth shipman / universidade harvard

partes por trilhão, o novo valor da massa do próton é inglês Eadweard nas células para
1,007276466583 unidade de massa atômica, um pou- Muybridge (1830-1904). coletar informação
co menor do que a medida anteriormente (Physical Depois, implantaram ao longo do tempo”,
Review Letters, 18 de julho). A segunda notícia é que um esses trechos no DNA disse o geneticista
grupo de 50 físicos de 17 instituições de pesquisa co- de bactérias usando a Seth Shipman, autor
municou ter feito a primeira observação detalhada das técnica de edição de do estudo, ao jornal
linhas espectrais finas de um átomo de antimatéria, o genes CRISPR-Cas britânico The Guardian.
anti-hidrogênio – ele tem as mesmas características (ver Pesquisa FAPESP Assim, talvez se torne
que o hidrogênio, mas é formado por partículas com no 240). Ao se possível programar
carga elétrica oposta –, em um dos equipamentos da reproduzirem, as neurônios para registrar
Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern), bactérias transmitiram a informação do cérebro
na fronteira da Suíça com a França. Os pesquisadores informação para seus em desenvolvimento.
irradiaram átomos de anti-hidrogênio com micro-ondas.
Em resposta, os antiátomos revelaram sua identidade A imagem
emitindo ou absorvendo energia em frequências espe- original
(à esq.) e a
cíficas – são as linhas espectrais, características para
reconstituída
cada átomo, como as impressões digitais das pessoas. com dados
Como se esperava, as linhas espectrais do anti-hidro- recuperados do
gênio corresponderam muito bem às do hidrogênio, já DNA das
bactérias (à dir.)
bem conhecidas (Nature, 3 de agosto). 4

PESQUISA FAPESP 258 | 13


Cerca de 30% menor do que a
Trappist-1, a estrela EBLM
J0555-57Ab é pouco maior do
que Saturno e tem 85 vezes
mais massa do que Júpiter

JúPITER saturno EBLM J0555-57Ab TRAPPIST-I

A menor estrela possível


Avanços Também em julho, a Pouco maior do que Saturno e com massa 85 vezes su-
contra a Aids Organização Mundial da perior à de Júpiter, o objeto celeste denominado EBLM
Saúde (OMS) divulgou J0555-57Ab é a menor estrela já identificada e medida
um relatório indicando (Astronomy & Astrophysics, no prelo). Distante cerca de
Uma vacina que o total de mortes 600 anos-luz da Terra, a EBLM J0555-57Ab faz parte de
experimental contra o causadas pela Aids por um sistema binário, composto por duas estrelas, das quais
HIV foi bem tolerada e ano caiu de 1,9 milhão, ela é a menor. Sua massa equivale a 8% da do Sol e é
gerou anticorpos nos em 2005, para 1 milhão, semelhante à da estrela Trappist-1, que abriga um sistema
quase 400 voluntários em 2016, porque mais com sete planetas rochosos, três deles na chamada zona
saudáveis de Ruanda, da metade das pessoas habitável, em que, teoricamente, algum tipo de vida po-
de Uganda, da África infectadas no mundo deria se desenvolver. Seu raio, no entanto, é 30% menor
do Sul, da Tailândia recebe tratamento do que o da Trappist-1. A força gravitacional em sua su-
e dos Estados Unidos, antirretroviral, embora perfície é cerca de 300 vezes maior do que na Terra. Para
comunicaram o ritmo de transmissão a equipe internacional de astrofísicos envolvida na des-
pesquisadores dos do vírus ainda seja coberta, dificilmente será encontrada uma estrela menor
Institutos Nacionais de considerado alto. No ano do que essa. “Nosso achado revela o quão pequenas as
Saúde (NIH) dos Estados passado, 1,8 milhão de estrelas podem ser”, diz Alexander Boetticher, aluno de
Unidos durante um pessoas foram infectadas mestrado do Instituto de Astronomia da Universidade de
congresso realizado em com o HIV, o equivalente Cambridge, na Inglaterra, primeiro autor do artigo que
fotos 1 Universidade de Cambridge 2 léo ramos chaves

julho em Paris. Outro a uma pessoa a cada descreve o objeto celeste, no material de divulgação do
teste conduzido pelos 17 segundos. Um dado estudo. “Se essa estrela tivesse se formado com um pou-
NIH indicou que o uso preocupante do relatório co menos de massa, as reações de fusão do hidrogênio
de um anel vaginal é que 10% das pessoas em seu núcleo não poderiam se sustentar, e ela teria se
renovado mensalmente que hoje começam o transformado em uma anã-marrom.” Opaca e fria, uma
ou de um comprimido tratamento antirretroviral anã-marrom é um objeto astronômico com massa inter-
diário, ambos contendo na África, na Ásia e na mediária entre a de um planeta e a de uma estrela. A EBLM
antirretrovirais, são América Latina estão J0555-57Ab foi classificada como anã-superfria, como a
estratégias seguras e infectadas com uma Trappist-1. Ela foi encontrada pelo projeto Wide Angle
eficazes para prevenir cepa do HIV resistente Search for Planets (Wasp), que procura exoplanetas em
a transmissão do vírus a algum dos remédios nossa galáxia e é coordenado pelas universidades britâ-
entre adolescentes. mais usados. nicas de Keele, Warwick, Leicester e Saint Andrews.

14 | agosto DE 2017
Elsevier já aconteceu em 2013,
avança em quando a editora
comprou a Mendeley,
repositórios uma popular rede social
em que pesquisadores
A holandesa Elsevier, a compartilham artigos.
maior editora científica No ano passado, adquiriu
do mundo, torna-se a Social Science
dominante também no Research Network
segmento dos (SSRN), repositório de
repositórios em acesso preprints na área de
aberto. No mês passado, ciências humanas e
ela anunciou a compra sociais, e a empresa de
da bepress, empresa indicadores de pesquisa
com sede em Berkeley, Plum Analytics. “A
na Califórnia, cujo bepress tem contribuído
portfólio inclui o Digital para que instituições de
Commons, uma pesquisa divulguem sua
plataforma utilizada produção. Estamos
por mais de 500 ansiosos para trabalhar
universidades e juntos”, afirmou em um
institutos de pesquisa comunicado Oliver
para gerenciar Dumon, diretor-geral de
seus repositórios Produtos de Pesquisa
institucionais, da Elsevier.
que reúnem mais de
2,3 milhões de
documentos
armazenados em nuvem.
O valor do negócio não
foi divulgado. Com a O silenciamento
temporário de um
aquisição, a Elsevier
gene gera sementes
busca reforçar sua residuais na
presença digital e variedade Sultanina 2

ampliar o número de
clientes de seus serviços
de análise de
informações de ciência e O segredo das uvas sem semente
tecnologia, como a base
de dados de periódicos Conhecidas nos Estados Unidos e no Brasil gene estivesse envolvido na formação de se-
Scopus e o Elsevier's pelo nome de Thompson Seedless, as uvas- mentes, mas a hipótese ainda não havia sido
Research Intelligence, -brancas da variedade Sultanina são resultado demonstrada. Revers e seus colaboradores
que serão interligados ao de uma mutação natural que as deixou sem constataram que, na Chardonnay, o VviAGL11
Digital Commons e sementes. Originárias provavelmente da região é expresso em momentos cruciais para a for-
disponibilizados a seus Logomarca entre a Turquia e a Grécia, são consumidas mação da casca que reveste as sementes. Na
usuários. Essa integração da Elsevier, preferencialmente in natura ou como passas Sultanina, o gene simplesmente não é ativado
fundada
e seu vinho não é visto como de qualidade. nessa fase e isso resulta em sementes residuais
em 1880
Pesquisadores brasileiros liderados pelo bió- – na prática, em uvas sem semente. A deter-
logo molecular Luís Fernando Revers, da Em- minação do papel desse gene pode ser útil
brapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, no para manipular a formação de sementes nas
Rio Grande do Sul, comprovou o mecanismo variedades plantadas. “A expectativa é de
molecular que leva essas uvas a não terem transformar esse conhecimento em uma fer-
sementes (Journal of Experimental Botany, 28 ramenta para, antes mesmo de produzir o
de março). Eles compararam o padrão de ati- fruto, saber, por meio de testes de DNA, se a
vação do gene VviAGL11 durante o desenvol- uva irá ou não ter sementes”, diz o biólogo
vimento de frutos de uma uva com sementes, molecular. Segundo o pesquisador, essa seria
a branca Chardonnay, usada para fazer vinho, uma forma de acelerar o desenvolvimento de
e da Sultanina. Há anos, suspeita-se que esse novos cultivares.

PESQUISA FAPESP 258 | 15


1 2

Cabeça de
Chegando mais cedo à Austrália machado (à esq.)
encontrada em
escavação no sítio
arqueológico de
A descoberta de cerca de 11 mil artefatos, como pe- trália. O coordenador do estudo, Chris Clarkson, Madjedbebe
dras de moagem e cabeças de machados, escavados professor da Universidade de Queensland, Austrália, (à dir.), no Parque
Nacional Kakadu,
a uma profundidade de 2,6 metros no Parque Na- encontrou os artefatos em 2015, escavando uma
na Austrália
cional de Kakadu, norte da Austrália, indica que a área já explorada do sítio arqueológico de Madjed-
ocupação do continente pelos aborígenes vindos da bebe. Segundo ele, os resíduos de rochas e restos de
África pode ter começado há pelo menos 65 mil anos. fósseis sugerem a exploração da madeira como com-
Datados por meio de uma técnica chamada lumines- bustível e o consumo de sementes e raízes. Esse
cência opticamente estimulada, usada para deter- trabalho também indica que os primeiros seres hu-
minar a data da última vez em que um objeto foi manos a chegarem à Austrália teriam convivido com
exposto à luz do sol antes de ser coberto pela terra, animais como os marsupiais gigantes, do porte de
alguns artefatos poderiam ter 80 mil anos. Essa um pequeno urso, durante cerca de 25 mil anos,
descoberta antecipa em cerca de 20 mil anos a es- antes de gradativamente causarem a extinção da
timativa da chegada dos primeiros habitantes à Aus- megafauna (Nature, 20 de julho).

Fertilidade Não houve declínio na 25 de julho). Onde mililitro (ml), em 1973, sugerem que as baixas
masculina cai América do Sul, na África houve redução, para 47 milhões por ml, contagens estariam
e na Ásia. A conclusão a concentração de em 2011 – uma queda de associadas a um estilo
à metade suscita preocupação espermatozoides 52,4%. Embora não se de vida pouco saudável
em 40 anos sobre a capacidade despencou, em média, saiba a causa dessa e à exposição a
reprodutiva masculina. de 99 milhões por redução, os autores produtos químicos.
O número de Sob a coordenação
espermatozoides do epidemiologista
produzidos pelos homens Hagai Levine, da
Concentração de espermatozoides (milhões /ml)

100

de algumas regiões do Universidade Hebraica 99 Redução média na


mundo caiu pela de Jerusalém, em 90 concentração de
metade nos últimos Israel, os pesquisadores 52,4% de queda espermatozoides
80
40 anos. De 1973 a realizaram uma na América
2011, a concentração meta-análise de 185 do Norte, Europa,
70
de espermatozoides em estudos publicados ao Austrália
indivíduos que vivem longo das últimas três e Nova Zelândia
60
na América do Norte, décadas envolvendo
Europa, Austrália e Nova 43 mil homens de 50
47
Zelândia diminuiu, em 50 países (Human
média, 1,4% ao ano. Reproduction Update, 1970 1980 1990 2000 2010 Ano

fonte  levine, h. et al. human reproduction update, 2017

16 | agosto DE 2017
3

Unicamp, a
primeira da
América Latina

A Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp)
foi classificada como a
melhor da América
Latina na edição de 2017
do ranking da revista
britânica Times Higher
Education. A instituição
recebeu um total de
87,9 pontos, ante 87,5
da Universidade de São
Paulo (USP). A Pontifícia
Universidade Católica do
fotos 1 Chris Clarkson / Copyright Gundjeihmi Aboriginal Corporation 2015 2 Dominic O'Brien / Copyright Gundjeihmi Aboriginal Corporation 2015 3 Hervé Sauquet e Jürg Schönenberger

Chile foi a terceira


colocada. Na edição de
2016, a USP ficou em
primeiro lugar, com 84,6
pontos e a Unicamp em
segundo, com 83,7. A
dianteira da instituição
de Campinas pode ser
explicada pela evolução
em duas categorias. Uma
é a de pesquisa, que tem
um peso de 34%. A
pontuação da Unicamp No centro desta
subiu de 95,1 para 98,3, reprodução artística,
a flor ancestral das
enquanto a da USP
angiospermas atuais,
manteve-se em 100. que deve ter vivido
Essa categoria inclui os entre 250 milhões e
resultados de uma 140 milhões de anos atrás​

pesquisa de reputação
feita com cientistas de A mãe de todas as flores
mais de 100 países
atualizada anualmente,
os números da produção A
​ ancestral das angiospermas (plantas com e de fósseis e em dados filogenéticos mole-
científica e a proporção flores) atuais provavelmente tinha flores culares de 792 espécies de angiospermas
de staff acadêmico. bissexuais e de simetria radial, com pelo me- (Nature Communications, 1º de agosto). Ape-
A segunda categoria, nos 10 sépalas (estruturas semelhantes a sar das incertezas remanescentes sobre
com peso de 2,5%, folhas, externas às pétalas) e cinco carpelos alguns aspectos da reconstrução da flor
é a de transferência de (folhas modificadas que abrigam os óvulos primordial, esse estudo sugere as possíveis
conhecimento, que da flor) arranjados em forma de espiral. As transformações das estruturas das flores ao
avalia a capacidade cores, formas e tamanhos da flor primordial, longo da evolução com base em uma amos-
de uma instituição obter no centro da imagem acima, são criações tragem ampla e métodos de análise refinados.
recursos para pesquisa artísticas, mas as informações sobre sua O ancestral comum mais recente das espécies
com o setor empresarial. provável estrutura resultam de um estudo atuais de angiospermas deve ter vivido entre
Nela, a Unicamp obteve sobre evolução floral de angiospermas que 250 milhões e 140 milhões de anos atrás. Já
17 pontos a mais do reuniu botânicos da França, Áustria, Estados o ancestral das plantas com sementes, que
que a USP – em 2016, Unidos e Brasil (Juliana El Ottra, da Univer- inclui as angiospermas e as gimnospermas
a diferença foi de sidade de São Paulo). O estudo se baseou na (sem flores), deve ter vivido entre 350 mi-
11 pontos. Nas demais análise da estrutura floral de espécies atuais lhões e 310 milhões de anos atrás. 
categorias, a pontuação
flutuou pouco.

PESQUISA FAPESP 258 | 17


capa

divulgação nissan
A ascensão dos

elétricos
Automóveis movidos a
eletricidade deverão representar
16% da frota mundial até 2030

Yuri Vasconcelos

18 | agosto DE 2017
Modelos da Nissan
são recarregados
no centro
de pesquisa da
montadora
na Inglaterra

A
produção de carros A onda global chega lentamente ao Brasil, que pre-
movidos a energia cisa superar vários obstáculos para fazer a transição
elétrica acelera pelo do carro a combustão interna para o elétrico. “A falta
mundo, já provoca de política pública e de uma infraestrutura de recarga
mudanças na indústria auto- são os principais entraves à massificação desses carros
mobilística e promete transfor- no país”, relata Ricardo Guggisberg, presidente-exe-
mações na mobilidade urbana. cutivo da Associação Brasileira do Veículo Elétrico
A frota global de automóveis (ABVE). Segundo ele, assim como ocorreu em outras
elétricos e híbridos, denomi- nações, a mobilidade elétrica precisa de incentivos do
nação dada aos modelos que governo para se estabelecer (ver mais sobre os desafios
utilizam um motor elétrico em conjunto com um do carro elétrico no Brasil na página 22).
de combustão interna, superou 2 milhões de uni- Atualmente, circulam nas ruas do planeta por vol-
dades em 2016, um aumento de 60% em relação ta de 50 diferentes modelos de automóveis elétricos,
ao ano anterior. China, Japão, Estados Unidos e número que deve saltar para 120 nos próximos três
Europa são os principais mercados e concentram anos. Esses veículos podem ser classificados em três
os maiores fabricantes. O estoque de automóveis grupos, segundo a forma de suprimento de energia.
elétricos no mundo poderá chegar a 70 milhões O primeiro reúne os chamados elétricos puros ou a
de unidades em 2025, de acordo com o relatório bateria (VEB). Tracionados por um ou mais moto-
Global EV Outlook 2017, da Agência Internacional res elétricos, eles empregam apenas baterias como
de Energia (AIE). Outra projeção, da consultoria fonte de energia. “A bateria deve ser recarregada na
Morgan Stanley, indica que em 2030 cerca de 16% rede elétrica, mas também pode aproveitar a energia
da frota global de veículos de passeio será movida a regenerada pelo carro durante as desacelerações e
baterias. Hoje, eles representam 0,2% do mercado, frenagens”, explica o engenheiro eletricista Raul
que totaliza 947 milhões de automóveis. Fernando Beck, responsável pela Área de Sistemas
O avanço dos elétricos, um fenômeno por enquanto
mais presente em nações ricas em razão do elevado
custo dessa tecnologia, é motivado por preocupações
ambientais e pela perspectiva de esgotamento de
petróleo. A fumaça liberada pelo escapamento dos
veículos movidos a combustíveis fósseis é a princi-
pal causa da poluição nos grandes centros urbanos e
responde por um quinto de toda a emissão de dióxido
de carbono (CO2) do planeta, o principal gás de efeito
estufa (GEE). Para lidar com essa situação, governos
de diversos países têm proposto limites à circulação
desses veículos e estimulado o uso dos elétricos, em
tese menos agressivos ao ambiente.
Recentemente, autoridades francesas e britâni-
cas anunciaram a intenção de proibir a venda de
modelos a gasolina ou diesel a partir de 2040. Na
Noruega, onde 37% dos carros novos vendidos em
janeiro deste ano eram movidos a eletricidade, e na
Holanda, a proibição da comercialização deve ocor-
rer ainda mais cedo, em 2025, enquanto na Alemanha
léo ramos chaves

o banimento está previsto para 2030. Do lado da in- Conector para recarga
de carros elétricos: a
dústria, as maiores fabricantes já oferecem modelos principal vantagem é
elétricos e híbridos. A Volvo anunciou que a partir a emissão nula ou muito
de 2019 todos os seus carros terão motores elétricos. reduzida de poluentes

PESQUISA FAPESP 258 | 19


Model 3: as
primeiras unidades
do carro “popular”
da Tesla (à esq.)
foram entregues
em julho deste ano

de Energia da Fundação Centro de Pesquisa e baixo –, a energia que alimenta suas baterias foi
Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), produzida por uma fonte “suja”. Com isso, a pe-
de Campinas (SP), e coordenador da Comissão gada de carbono deles aumenta. Pegada de car-
Técnica de Veículos Elétricos e Híbridos da Socie- bono é um índice que mede o impacto de certa
dade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil). atividade humana ou tecnologia sobre o ambiente
São ideais para uso urbano, pois têm autonomia a partir da quantificação do CO2 emitido.
limitada. “As baterias atuais permitem que os A questão é polêmica e divide os especialistas.
carros rodem em média 250 quilômetros (km) Se, no cálculo da pegada de carbono, considerar-
sem necessidade de recarregamento”, diz Beck. mos também a energia gasta na fabricação do car-
O segundo conjunto é dos veículos elétricos ro e seus componentes, a vantagem dos elétricos
híbridos (VEH), que têm pelo menos um motor diminui mais ainda. “Gasta-se muita energia na
elétrico e um motor a combustão interna. Nesse fabricação das baterias. Se essa energia é gerada
caso, não é preciso recarregar a bateria em um ele- por combustíveis fósseis, as emissões de CO2 são
troposto, nome dado ao ponto de recarga, pois ela consideráveis e a pegada global do carro elétrico se
é alimentada exclusivamente por um gerador acio- eleva”, explica o engenheiro mecânico Francisco
nado pelo motor a combustão, também usado para Emílio Baccaro Nigro, professor da Escola Politéc-
mover o carro. O veículo, portanto, é abastecido em nica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) e
postos de combustível. A vantagem dos híbridos é assessor da Secretaria de Energia e Mineração do
a maior autonomia. Por outro lado, não são total- Estado de São Paulo. Ainda assim, destaca Nigro,
mente isentos de emissões. O terceiro grupo é dos entre queimar combustíveis fósseis em motores
híbridos plug-in (VEHP), uma combinação entre a combustão ou para gerar energia elétrica que
os elétricos puros e os híbridos. Esses modelos alimentará veículos elétricos, a segunda opção é
também têm dois motores distintos (a combus- mais ambientalmente amigável, pois esses carros
tão e elétrico) e podem ser alimentados tanto com são mais eficientes no uso de energia do que os
combustíveis tradicionais, como gasolina e diesel automóveis com motores a combustíveis fósseis.
(ainda não existem plug-ins a álcool), como a par- Mas há quem ache o contrário. Para o físico José
tir da rede elétrica (ver gráfico na página ao lado). Goldemberg, especialista em energia, a fabricação
de carro elétrico só vale a pena para o país que for
matriz energética fabricá-lo se a maior parte da matriz energética for
O maior diferencial dos veículos elétricos é a renovável, como no Brasil. “Para os Estados Uni-
emissão nula ou reduzida de poluentes e de gases dos, que têm a maior parte da produção elétrica
de efeito estufa no seu funcionamento. Essa van- originária do combustível fóssil, não vejo vantagem
tagem, entretanto, pode ser diluída dependendo em substituir o motor a combustão. Aqui, haveria
da matriz energética do país em que a frota circu- benefícios”, diz Goldemberg, que é presidente da
la. Em muitas nações europeias, a maior parte da FAPESP. A matriz energética brasileira é baseada
eletricidade é gerada por fontes não renováveis na fonte hidráulica, considerada limpa e renovável
e poluentes, como o carvão queimado em usinas e que responde por 64% da eletricidade gerada.
termelétricas. Assim, mesmo que os elétricos não Por isso, os carros elétricos tendem a se manter
contribuam diretamente para o aumento da po- vantajosos do ponto de vista ambiental quando
luição atmosférica e o aquecimento do planeta comparados aos movidos a gasolina ou diesel. Essa
– já que seu nível de emissões é nulo ou muito vantagem permanece mesmo quando a compara-

20 | agosto DE 2017
DIFERENTES
Crescimento acelerado TECNOLOGIAS
Os carros elétricos são
Frota aumenta no mundo movida por preocupações ambientais classificados conforme o
suprimento de energia

VENDAS EM ALTA MAIORES MERCADOS


Estimativas apontam que o estoque global de carros elétricos deve Chineses detêm o maior número de veículos
chegar a 70 milhões em 2025. Hoje, eles somam 2 milhões de unidades elétricos e híbridos (dados de 2016)

FROTA (em milhões de unidades) China

80 648 mil ELÉTRICO A BATERIA


EUA (VEB)
60
563 mil Também conhecido como
Japão puro elétrico, usa
40
exclusivamente energia
151 mil
da bateria, que precisa
20 Noruega
ser recarregada na rede
133 mil elétrica. Não emite
0
2010 2015 2020 2025 Holanda poluentes e é ideal para
trajetos urbanos curtos
Fonte Global EV Outlook 2017/AIE
112 mil
Modelos Tesla Model 3,
Nissan Leaf, Renault Zoe,
Chevrolet Bolt, BYD e6
ção é feita com os veículos a etanol, um combus- mente usada para mover o veículo. Nesse proces-
tível sustentável menos agressivo ao ambiente. so, parte da energia é perdida em forma de calor.
“A pegada de carbono da eletricidade gerada no Apesar do apelo ecológico e do boom de vendas
Brasil é muito semelhante à do etanol. Mas essa no exterior, nem tudo são boas notícias no seg-
relação pode mudar se o país passar a usar mais mento dos elétricos. “As baterias são o calcanhar
usinas termelétricas para complementar a geração de Aquiles desses modelos. As atuais são pouco
das hidrelétricas”, relata Nigro. eficientes por conferir uma autonomia limitada
Para ele, um carro híbrido a etanol pode ser aos veículos, são pesadas, caras de produzir e ELÉTRICO HÍBRIDO (VEH)
a melhor solução para o país. “Um modelo com representam boa parte do custo do carro”, es- Combina um motor a
essas características faz todo o sentido”, afirma clarece o engenheiro mecânico Marcelo Augusto combustão com um
Nigro. O engenheiro eletricista Ricardo Takahira, Leal Alves, do Centro de Engenharia Automotiva elétrico – o carro alterna
entre os dois buscando
diretor do Núcleo de Pesquisas da ABVE e mem- (CEA) da Poli-USP (saiba mais sobre os estudos
maior eficiência. A bateria
bro da Comissão Técnica de Veículos Elétricos e relativos a baterias na página 26). é recarregada somente
Híbridos da SAE Brasil, tem opinião semelhante. Os principais fabricantes globais de bateria, pelo motor convencional
“Apoiar a hibridização flex fuel é dar um passo entre eles Panasonic, Samsung, LG e NEC, cor- e pela energia gerada
nas desacelerações
adiante em termos tecnológicos. Mas sem volu- rem para superar esse gargalo. A empresa norte-
e nas frenagens
mes expressivos de venda de elétricos no país é -americana de elétricos Tesla, que se tornou uma
Modelos Toyota Prius,
difícil que as multinacionais autorizem investi- das montadoras mais valorizadas do mundo pro- Ford Fusion, Lexus CT200h
mentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) duzindo carros de luxo (o topo de linha Model X
e produção por aqui”, opina Takahira. custa a partir de US$ 83 mil nos Estados Unidos
e é vendido por quase R$ 1 milhão no Brasil), en-
trou nesse mercado e construiu com a Panasonic
fotos  tesla infográfico ana paula campos ilustração alexandre affonso

silencioso e eficiente
A reduzida emissão de ruídos – já que no carro uma fábrica de baterias no estado de Nevada, a
elétrico não há queima de combustível, a princi- Gigafactory, que começou a operar este ano. A
pal causa do ruído dos motores a combustão – e expectativa de Elon Musk, dono da companhia, é
o baixo custo para rodar são outras vantagens dos de que a fábrica provoque uma redução no custo ELÉTRICO HÍBRIDO
elétricos. Um estudo da CPFL Energia mostrou de produção das baterias superior a 30% quando PLUG-IN (VEHP)

que o custo por quilômetro rodado de um carro a estiver operando em plena carga, no ano que vem. Versátil, é um híbrido no
Para os especialistas, a vantagem ambiental ofe- qual a bateria do motor
combustão é de R$ 0,31, enquanto o de um veícu-
elétrico pode ser
lo elétrico é de R$ 0,11, ou seja, três vezes menor. recida pelos elétricos ao lado das preocupações recarregada tanto pela
O elevado rendimento energético também é um com o esgotamento dos combustíveis fósseis faz rede elétrica quanto pelo
diferencial desses modelos. “Enquanto a eficiên- da mobilidade elétrica uma forte promessa para o motor a combustão.
futuro. “O mundo ruma na direção dos elétricos”, Assim como o híbrido,
cia energética dos carros a combustão interna é
tem maior autonomia do
de cerca de 25%, nos carros elétricos ela começa diz Nigro. Mas essa tecnologia ainda precisa su- que o elétrico puro
em 85%, a depender do modelo”, destaca o espe- perar desafios – como a limitada autonomia ofe-
Modelos BMW i8,
cialista da ABVE. O consumo energético de um recida pelas baterias e o seu preço, ainda elevado Mitsubishi Out­­lander,
veículo é a quantidade de energia fornecida pela demais para a maioria dos consumidores – para Volvo V60
fonte (bateria, gasolina, diesel, álcool etc.) efetiva- que seja difundida em larga escala no mundo. n

PESQUISA FAPESP 258 | 21


Os desafios siva de ônibus e acesso a áreas restritas da cidade
são medidas que podem estimular tanto a utiliza-
ção massiva desses veículos pela população como
influenciar sua produção no Brasil”, recomenda

no Brasil
Ricardo Guggisberg, presidente-executivo da
ABVE. “Os elétricos e os híbridos são mais caros
do que um veículo comum por causa da tecnologia
empregada, mas a alta carga tributária contribui
para que os valores finais sejam maiores.”
Difusão dos modelos elétricos Algumas das reivindicações da ABVE já foram
atendidas. Em 2015, o governo reduziu o imposto
no país depende da superação de importação para carros elétricos e híbridos de
35% para uma alíquota máxima de 7%. Vários es-
de diversos obstáculos tados, entre eles Ceará, Rio de Janeiro, Rio Gran-

O
de do Sul e São Paulo, isentaram ou reduziram a
s carros movidos a bateria já são uma alíquota de IPVA, o Imposto sobre a Proprieda-
realidade nas ruas de cidades euro- de de Veículos Automotores, desses veículos, e
peias, americanas, chinesas e japonesas, a prefeitura de São Paulo dispensa do rodízio os
mas no Brasil pouco se vê esses veícu- automóveis movidos a eletricidade.
los. Entre 2011 e 2016, cerca de 4 mil automóveis Especialistas, no entanto, questionam a efetivi-
elétricos ou híbridos foram licenciados – no ano dade de conferir incentivos para uma indústria que
passado, apenas 1.091 unidades, um número insig- sempre teve ajuda do governo. Um estudo do Ins-
nificante diante do 1,68 milhão de carros vendidos tituto Econômico de Montreal (MEI), do Canadá,
ao todo no Brasil. Como as montadoras instaladas mostrou que o estímulo aos veículos elétricos nem
no país não fabricam veículos de passeio com sempre é eficiente. Lá, o governo da província de
essa tecnologia, todas as vendas são de impor- Ontário oferece ao consumidor até 14 mil dólares
tados, bem mais caros do que os automóveis a canadenses (R$ 34,9 mil) para a compra de um
O motor dos
combustão. O Toyota Prius, um dos mais baratos automóveis híbrido ou elétrico, enquanto em Quebec a quan-
comercializados no país, custa a partir de R$ 120 elétricos é mais tia chega a 8 mil dólares canadenses (R$ 20 mil).
mil. Além dele, cerca de uma dezena de modelos simples e tem bem O pesquisador Germain Belzile, do MEI, e o con-
menos peças do
estão à disposição do consumidor brasileiro. sultor independente Mark Milke fizeram as contas
que os de modelos
“Redução de impostos, incentivos para a com- a combustão e concluíram que o incentivo em Ontário custa 523
pra, liberação do rodízio e do uso da faixa exclu- interna dólares canadenses (R$ 1.320) por tonelada de CO2

22 | agosto DE 2017
não emitido – equivalente ao total de gás de efeito
estufa (GEE) –, enquanto em Quebec esse valor cai
para 288 dólares canadenses (R$ 730). Para chegar
a esses valores, eles consideraram que os modelos
elétricos emitem 30 toneladas de CO2 a menos do
que os veículos a combustível fóssil, em uma década.
Como o preço no mercado de crédito de carbono
de cada tonelada de GEE eliminada é de 18 dólares
canadenses, ao subsidiar a compra do carro elétri-
co, os governos de Ontário e de Quebec gastam,
respectivamente, até 29 vezes e 16 vezes mais. No
mercado de carbono, empresas e países negociam
certificados que equivalem a cada tonelada de GEE
não emitida ou retirada da atmosfera.

malha de recarga
Outro desafio a ser vencido pela mobilidade elétri-
ca é a criação de uma infraestrutura para recarga Laboratório
das baterias, com a implantação de eletropostos de Mobilidade em eletropostos públicos, pois só concessionárias
Elétrica do CPqD
em centros urbanos e estradas. “Em um país com registradas na Agência Nacional de Energia Elétri-
e da CPFL Energia,
dimensões continentais como o Brasil, esse é um em Campinas: ca (Aneel) podem comercializar energia. “A Aneel
grande desafio. Já pensou se uma pessoa quiser avaliação de abriu este ano uma audiência pública para discutir o
fazer uma viagem de São Paulo a Belém com um pontos de recarga tema, já que o marco regulatório impõe restrições à
carro elétrico? Ele vai precisar encontrar muitos execução de recarga pública de veículos elétricos por
eletropostos ao longo do caminho”, pontua o en- órgãos e empresas que não sejam os distribuidores
genheiro mecânico Marcelo Alves, do CEA/USP. de energia”, destaca o engenheiro eletricista Danilo
Não existem dados oficiais, mas estima-se que do Nascimento Leite, coordenador do Programa de
a rede nacional de recarga não chegue hoje a 100 Mobilidade Elétrica – Emotive, da CPFL Energia.
unidades. Para solucionar esse problema, uma Um dos modelos em debate é aquele em que os
proposta em tramitação no Senado obriga a insta- quilowatts consumidos na recarga são cobrados na
lação de eletropostos em estacionamentos públi- conta de luz do dono do carro. “O motorista passa-
cos e garagens de prédios. A medida, entretanto, ria um cartão para liberar o abastecimento e o valor
é questionada até pelos defensores dos veículos iria para sua conta de energia”, sugere Takahira.
elétricos. “Será que é certo exigirmos a instala-
ção de eletropostos sem termos ainda uma frota velocidade de abastecimento
consolidada? O importante é fazer com que o au- A indústria também trabalha para acelerar o tempo
mento do número de elétricos seja natural, e que de recarga. Enquanto os veículos a gasolina e álcool
essa evolução seja acompanhada de eletropostos são abastecidos em minutos, os elétricos precisam
onde for necessário”, defende o engenheiro ele- Diferentes de pelo menos uma hora. Existem três sistemas de
tricista Ricardo Takahira, da ABVE. padrões de plugs alimentação. Os de recarga rápida recarregam 80%
e conectores em
A regulamentação da venda da energia para re- da bateria em 30 minutos e precisam de mais 30
eletroposto de
carregar as baterias é outro assunto em discussão. recarga rápida de para completar os 20% restantes; os semirrápidos
A legislação proíbe a cobrança de reabastecimento veículos elétricos levam até três horas; e os normais demoram de 6 a
22 horas para deixar a bateria carregada.
“A lógica do sistema é que eletropostos de re-
carga rápida e semirrápida sejam instalados em
locais públicos, como shopping centers, para que o
usuário reabasteça o carro enquanto faz compras.
Já os pontos de recarga normal devem ficar em
residências, para recarregar as baterias de ma-
drugada”, explica o engenheiro eletricista Vitor
Torquato Arioli, pesquisador da Área de Sistemas
de Energia da Fundação Centro de Pesquisa e
Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD).
fotos  léo ramos chaves

Em parceria com a CPFL Energia, o CPqD man-


tém uma unidade de pesquisa, o Laboratório de
Mobilidade Elétrica, que estuda eletropostos co-
merciais usados ao redor do planeta. A exemplo do
que ocorre com os plugues de tomadas elétricas,

PESQUISA FAPESP 258 | 23


1

Estudo da CPFL
Energia indica
que veículos a
bateria causam
baixo impacto
na rede elétrica

2
Técnico do centro
de P&D da Itaipu
Binacional trabalha no
desenvolvimento de
uma bateria para
carros a eletricidade
(acima). Mais de 80 2
protótipos elétricos já
foram montados pela
usina (à dir.)

nacional. “É o conceito de smart grid. Embora o


veículo elétrico não seja um produtor de energia,
ele tem o potencial de funcionar como um pul-
mão em horários de pico, como no fim da tarde.
Conectado a um eletroposto, poderia devolver à
cujo padrão varia conforme o país, os pontos de Modelo em rede a energia não utilizada, suprindo o sistema”,
recarga têm uma diversidade de conectores (peça escala reduzida do sugere o engenheiro eletricista Celso Novais, coor-
superesportivo
na extremidade do cabo que se encaixa no carro denador do Programa Veículo Elétrico da Itaipu
da Electric Dreams:
para fazer a recarga). “Existem vários fabricantes ensaios são Binacional, um dos principais centros de estudo
de eletropostos no mundo, como a chinesa BYD e realizados em sobre mobilidade elétrica no país.
a alemã Siemens, mas é importante que o Brasil túnel de vento Criado em 2006, o programa pesquisa soluções
desenvolva eletropostos para não haver depen- na área de mobilidade elétrica. Mais de 80 protó-

fotos 1 Alexandre Marchetti / Itaipu Binacional 2 eletric dreams 3 Caio Coronel / Itaipu Binacional
dência internacional desse equipamento”, opina tipos elétricos já foram montados no Centro de
Arioli. Há uma discussão no mundo sobre padro- Pesquisa, Desenvolvimento e Montagem de Veí-
nizar os conectores para simplificar o processo culos Elétricos (CPDM-VE) da usina. “No início,
de recarga das baterias dos diversos modelos de obtivemos know-how por meio da parceria com
carros existentes, de modo a evitar a necessidade a suíça Kraftwerke Oberhasli AG, controladora
de duplicar a infraestrutura necessária. de hidrelétricas na região dos Alpes, para reali-
O Laboratório de Mobilidade Elétrica também zar a transformação de veículos a combustão em
pesquisa o impacto dos veículos a bateria sobre a elétricos. Na época, boa parte dos componentes
rede elétrica. Há dois anos, a CPFL Energia fez um era de importados. Hoje, cerca de 60% são pro-
estudo para verificar os reflexos do uso em massa de duzidos no Brasil”, conta Novais.
veículos elétricos no consumo de energia no país. Em 2014, a Itaipu iniciou a montagem do com-
“Estimamos que a expansão dos modelos elétricos pacto elétrico Renault Twizy, fruto de um acordo
teria impacto limitado na demanda de energia”, afir- com a montadora francesa. O carro chega parcial-
ma Danilo Leite. “Nossas projeções iniciais apontam mente desmontado e os técnicos fazem a integra-
que o uso dessa tecnologia ampliaria o consumo ção do sistema de tração, baterias e motor elétrico,
de energia entre 0,6% e 1,7% no Sistema Interliga- somando cerca de 90 itens. O objetivo da iniciati-
do Nacional (SIN) em 2030, quando as previsões va é aprofundar os estudos de nacionalização dos
indicam que a frota de elétricos no país poderá al- componentes e preparar fornecedores de autope-
cançar entre 5 milhões e 13 milhões de unidades.” ças para o mercado. “Não temos a intenção de nos
Segundo especialistas, além de causar baixo tornarmos uma fábrica de veículos elétricos – este
impacto na rede elétrica, os carros a bateria pode- é o papel das montadoras de automóveis –, mas
riam ser usados para equalizar o sistema elétrico queremos dominar essa tecnologia”, relata Novais.

24 | agosto DE 2017
“Quando houver demanda, a indústria local pode-
rá produzir os principais sistemas, como motores
elétricos e inversores.” O programa de Itaipu tem
como parceiros fabricantes de componentes au-
tomotivos, como a Weg, que produz motores elé-
tricos, e a Moura, indústria de baterias, além de
institutos de pesquisa e concessionárias de energia.

modelo nacional
Nos últimos anos, houve no país várias iniciati-
vas visando à construção de um veículo elétrico
nacional em larga escala, mas nenhuma vingou.
Uma pequena empresa de São José dos Campos
(SP), a Electric Dreams, persegue essa meta. Ela
investe há seis anos no projeto de um superes-
portivo capaz de acelerar de 0 a 100 km/h em
apenas 2,7 segundos. Com quatro motores, um
para cada roda, o modelo foi desenvolvido com
3 base em simulações computacionais e ensaios em
túneis de vento usados pela indústria aeronáutica.
“Desenvolvemos o carro do zero. Criamos todos
os sistemas, algoritmos de controle e softwares
3 embarcados, e já temos um modelo em escala re-
duzida. Nossa intenção é que nosso superespor-
tivo sirva de laboratório para gerar carros elétri-
cos mais simples, ônibus e caminhões”, declara o
Por dentro de um elétrico engenheiro aeronáutico Fábio Zilse Guillaumon,
ex-funcionário da Embraer que deixou a fabri-
Sem ruídos da combustão e do cano de escape, condução cante de aviões para montar a Electric Dreams.
dos modelos movidos a bateria é suave e silenciosa O projeto tem recursos do programa Pesquisa
Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FA-
PESP e do Fundo Tecnológico (Funtec) do Banco
1 BATERIA Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
O conjunto de baterias armazena a energia usada no (BNDES). O CPqD colaborou no desenvolvimen-
funcionamento do motor elétrico. Pesa a partir de 250 quilos
to da bateria. “O sistema de armazenamento de
e em alguns veículos fica alojado no assoalho
energia é o coração e um dos grandes desafios
técnicos do carro”, avalia Guillaumon. “A solução
proposta foi uma bateria com dois tipos de célu-
Ponto de las de lítio, que fornece energia para os motores
carregamento
e proporciona autonomia de 400 km, similar à
dos carros a combustão”, conta. A previsão é de
que um protótipo seja finalizado no próximo ano.
Apesar dos esforços de pesquisa, ainda deve
levar algum tempo para o Brasil se inserir na ca-
1
2 deia produtiva mundial dos veículos elétricos, se-
infográfico ana paula campos ilustração alexandre affonso

3 ja fabricando carros localmente, seja fornecendo


componentes para as montadoras globais. “O Brasil
4 tem uma matriz energética limpa e um combustí-
vel renovável líquido vantajoso, o etanol”, afirma
Francisco Nigro, da Poli-USP. “Não temos necessi-
dade de incentivar a cadeia do elétrico com o mes-
mo ímpeto de Europa, China e Estados Unidos.” n
2 3 4
Inversor Motor elétrico Freio regenerativo Projeto
Também chamado de O motor converte a Transforma a energia Desenvolvimento do assoalho de um veículo elétrico puro em função
módulo de controle, eletricidade das baterias cinética do movimento de suas características aerodinâmicas, térmicas e mecânicas (nº
gerencia a energia elétrica em movimento, que gira do carro em energia 12/51376-8); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas
gerada pela bateria o eixo das rodas e faz o elétrica, que reabastece (Pipe); Pesquisador Responsável Fábio Zilse Guillaumon (Electric
e enviada ao motor veículo se mover as baterias Dreams); Investimento R$ 152.690,00.

PESQUISA FAPESP 258 | 25


Baterias mais
Ensaios de
resistência das
baterias
lítio-íon do
CPqD usadas
em veículos

eficientes
elétricos

usada para medição de energia elétrica, ao passo


que litro (L) refere-se ao volume da bateria.
O estado da arte em termos de bateria são as de
A maior limitação tecnológica do carro elétrico lítio-íon, similares às usadas em celulares e note-
books. “A grande vantagem dessas baterias é sua
é o sistema de armazenamento de energia, que alta densidade energética. Por ser um metal leve,
o lítio é capaz de armazenar maior quantidade de
tem relação direta com a autonomia energia em espaços menores”, destaca a química
Maria de Fátima Rosolem, pesquisadora da Área

C
de Sistema de Energia do CPqD. “Além disso, tem
onsórcios de pesquisa da Ásia, Europa e um elevado eletropotencial, isto é, a capacidade
Estados Unidos, formados por fabricantes de ganhar ou perder elétrons, que é o princípio
de baterias, montadoras de automóveis, básico da geração de corrente elétrica”, pontua.
universidades e centros de inovação, travam As baterias são constituídas por uma ou várias
uma corrida na busca de uma bateria que apresente células de lítio-íon interligadas num mesmo con-
maior densidade de energia (quantidade de energia junto. Os tipos mais comuns são as cilíndricas, pa-
armazenada por seu volume), tenha vida útil mais recidas a pilhas pequenas, medindo 18 milímetros
extensa, possua menor custo e seja mais segura. (mm) de diâmetro por 65 mm de altura. O segun-
Hoje, o valor da bateria corresponde a até 50% do do modelo, conhecido como pouch, tem formato
preço do automóvel, mas seu custo vem caindo de plano e achatado. Há, por fim, as prismáticas, que
forma consistente. O preço da bateria, em termos lembram uma caixa retangular do tamanho de um
de sua capacidade de armazenamento, está próximo livro. Como a célula tem uma tensão média de 3,6
de US$ 300 por quilowatt-hora (kWh) – cerca de volts (V) e um carro elétrico precisa de 300 a 600 V
R$ 960 por kWh. Há sete anos era três vezes maior. para funcionar, centenas ou milhares de células de
Paralelamente, ela tem se tornado mais eficien- lítio são usadas na bateria para gerar energia . Os
te do ponto de vista energético, proporcionando modelos da Tesla, por exemplo, têm 7,4 mil células
maior autonomia aos veículos – quanto mais ener- cilíndricas, empacotadas em módulos menores e
gia a bateria acumula, maior quilometragem o veí- acomodadas no assoalho do veículo.
culo pode rodar. Sua densidade energética mais O problema do lítio é sua segurança de operação.
do que triplicou nos últimos sete anos, atingindo “As baterias trabalham bem numa temperatura de
cerca de 350 watts-hora por litro (ver infográfico até 25 graus Celsius. Acima disso, é preciso mantê-
na página 27). Um watt-hora (Wh) corresponde -las refrigeradas. O superaquecimento pode causar
à potência de 1 watt por uma hora e é a unidade sua explosão”, afirma o engenheiro eletricista Cel-

26 | agosto DE 2017
O segredo das baterias de lítio 1 sustenta Maria de Fátima. “Como não contêm me-
Por serem feitas com um metal leve, elas conseguem CARGA E DESCARGA tais pesados, podem ser recicladas.” Quando as
armazenar mais energia em menos espaço Os íons de lítio se baterias se esgotam, os donos de carros elétricos
deslocam do ânodo precisam repô-las ou trocar de veículo, dado que
para o cátodo, gerando
uma corrente elétrica,
a bateria representa metade de seu valor. Este é
descarga
infográfico ana paula campos ilustração alexandre affonso

que alimenta o motor mais um fator a encarecer os carros elétricos.


Corrente e–
do carro. Na hora da As baterias modernas empregam óxidos metá-
recarga, os íons de lítio licos de lítio na confecção da placa positiva (cáto-
carga fazem o movimento
inverso, acumulando
do) e grafite na negativa (ânodo) (ver infográfico
energia na bateria ao lado). “A composição das placas é o elemento-­
-chave para melhorar o desempenho da bateria”,
2 diz Maria de Fátima. Cientistas buscam identificar
NO FUTURO novos metais e a melhor combinação de lítio com
Para elevar sua outros materiais para otimizar sua densidade ener-
densidade energética gética. Duas apostas são as baterias de zinco-ar
e capacidade de gerar
energia, pesquisadores
e lítio-ar, que conseguem armazenar quase duas
buscam aumentar a vezes mais energia do que os modelos de lítio-íon,
Ânodo: a placa Cátodo: a placa quantidade de íons de mas ainda estão em estágio de desenvolvimento.
negativa é composta positiva é formada por lítio que se deslocam de
por grafite óxidos metálicos de lítio uma placa para outra.
Recarga por indução
Há também estudos
Separador: permeável, Eletrólito: solvente com outros metais em Em maio deste ano, a fabricante de chips para
impede o contato das orgânico com sais de lítio substituição ao lítio smartphones Qualcomm apresentou uma tecno-
duas placas, mas permite a em estado líquido por logia de carregamento de bateria com o carro em
passagem dos íons onde os íons se movem Fonte cpqd
movimento. Batizada de Dynamic Electric Vehicle
Charging System (DEVC), ela fornece energia para
a bateria por indução (sem que haja contato entre
so Novais, do Programa Veículo Elétrico da Itaipu o carro e o carregador, instalado no solo) durante
Binacional. Para contornar essa limitação, a bateria o deslocamento do veículo sobre um pavimento
conta com um circuito eletrônico que faz seu ge- especial, dotado de uma espécie de trilho eletrifica-
renciamento e a mantém funcionando em condi- do. A vantagem do DEVC é que os carros poderão
ções adequadas de temperatura, corrente e tensão. ter baterias menores, sem perda de autonomia.
O desbalanceamento da bateria, que ocorre No Brasil, são poucos os estudos básicos so-
quando suas células trabalham em ritmo diferente, bre a química de baterias para carros elétricos.
também diminui seu poder de ciclagem (número O mais comum são testes de tecnologias prontas
possível de descargas e recargas) e sua vida útil, e pesquisas incrementais envolvendo células já
hoje em torno de oito anos. “Após esse período, existentes. “Fazemos estudos de caracterização e
elas perdem até 30% da capacidade inicial. Mas envelhecimento em células e desenvolvemos ba-
podem ser reaproveitadas em outras aplicações, terias completas, com células de lítio-íon comer-
como armazenamento de energia fotovoltaica ciais, porém projetando a eletrônica de controle,
em residências e centrais de telecomunicações”, o sistema de refrigeração e o empacotamento me-
cânico”, conta o pesquisador Raul Beck, do CPqD.
Em Foz do Iguaçu (PR), a equipe do Programa
CUSTO EM BAIXA, DENSIDADE EM ALTA Veículo Elétrico de Itaipu conseguiu criar uma
Confira a evolução do valor e da densidade energética das baterias bateria de sódio, níquel e cloro, 100% reciclável.
“Nosso modelo tem características equivalentes
1.000 500 à de lítio em termos de capacidade de armaze-
Custo
900 450 namento e potência”, explica Celso Novais. “No
Densidade energética
entanto, ela tem o formato de um monobloco, que
custo da bateria (dólares por kWh)

800 400
densidade energética (Wh/L)

não pode ser dividido em módulos menores. Por


700 350
isso, é mais adequada a veículos elétricos maiores,
600 300
como ônibus, trens e caminhões.”
250 O projeto de nacionalização da bateria de sódio
Fonte Global EV Outlook 2017 / AIE

500
Projeção
400 200 de Itaipu teve início em 2012. “Agora, estamos traba-
300 150 lhando com empresas suíças e alemãs em uma ver-
são avançada do modelo. Caracterizada por células
200 100
planas e compactas, poderá ser dividida em módu-
100 50
los menores. Nossa expectativa é de que seja mais
0 0 competitiva do que as baterias à base de lítio e que
2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2022
comece a ser produzida em 2019”, declara Novais. n

PESQUISA FAPESP 258 | 27


entrevista Eduardo S. Brondizio

A Amazônia
urbana é invisível
Antropólogo propõe diálogo para aproximar
o debate ambiental e a discussão
sobre o desenvolvimento socioeconômico

Fabrício Marques  |  retrato  Léo Ramos Chaves

O
antropólogo paulista Eduardo S. Bron- criminalidade. Tais questões, ele observa, são rele-
dizio vive desde o início dos anos 1990 gadas nas discussões sobre o futuro da Amazônia,
nos Estados Unidos, onde fez carreira que é valorizada internacionalmente como grande
como professor da Universidade de In- estoque de carbono e santuário da biodiversidade.
diana, em Bloomington. Seus interesses Nascido em São José dos Campos há 54 anos,
de pesquisa, porém, jamais deixaram o Brasil. Per- Brondizio estudou agronomia na Universidade de
maneceram ancorados em áreas da Amazônia como Taubaté, onde se interessou pela mudança no padrão
nos municípios da região da Ilha de Marajó, no Pa- de uso da terra de comunidades rurais. Passou pelo
rá, ou nas franjas das rodovias Cuiabá-Santarém e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)
Transamazônica, que ele visita periodicamente. Ali, e coordenou pela Fundação SOS Mata Atlântica o
Brondizio e seus alunos, muitos deles brasileiros, primeiro atlas do domínio da Mata Atlântica, de-
comparam dados estatísticos e de sensoriamento e senvolvido em colaboração com o Inpe. Em 1991,
entrevistam famílias de ribeirinhos e de imigrantes foi fazer doutorado em antropologia ambiental na
recém-chegados, para compreender como elas tomam Universidade de Indiana, orientado pelo antropólo-
decisões sobre migração e uso da terra com impac- go Emilio Moran, mas não conseguiu voltar para o
to na transformação social e na paisagem regional. Brasil como planejara: sua formação interdisciplinar
O acompanhamento de parte das famílias é feito de agrônomo, especialista em sensoriamento remoto
há quase 30 anos. Várias delas não vivem mais em e antropólogo não se encaixava em programas dis-
áreas rurais. São encontradas nas periferias das ciplinares das universidades. Depois de um ano na
cidades, para onde se transferiram em busca de Universidade do Arizona, foi contratado em 1998 pela
oportunidades, num processo de transformação própria Universidade de Indiana, onde é professor
da Amazônia que se acelerou de forma exponen- titular e foi chefe do Departamento de Antropolo-
cial desde os anos 1970. Perto de 80% da população gia, um dos mais tradicionais do país, por sete anos.
da região habita cidades e padece de problemas Desde 2015 é diretor do interdisciplinar Centro de
clássicos como falta de saneamento, desemprego e Análise de Paisagens Socioecológicas (Casel).

28 | agosto DE 2017
idade 54 anos

especialidade
Antropologia ambiental

formação
Graduação em
agronomia (1987) pela
Universidade
de Taubaté; doutorado
em antropologia
ambiental (1996)
pela Universidade
de Indiana

instituição
Universidade
de Indiana

produção
científica
190 artigos e capítulos
de livros, 7 livros e
periódicos especiais;
12 orientações ou
co-orientações de
doutorado e
4 de mestrado,
7 supervisões de
pós-doutorado

PESQUISA FAPESP 2xx | 29


De passagem pelo Brasil, antes de se- A questão norte-americana é muito com-
guir para trabalho de campo no Pará e plexa. Alguns levantamentos mostram
no Maranhão, Brondizio deu a Pesquisa que a maioria da população se preocupa
FAPESP a entrevista a seguir, em que fa- com as mudanças climáticas e apoia mu-
la da sua trajetória e de sua missão mais Há inabilidade danças na sociedade. Há, porém, divisões
recente: ele é um dos coordenadores, partidárias e ideológicas que manipulam
ao lado da argentina Sandra Diaz e do em valorizar os questões de maneira a polarizar agendas
alemão Josef Settele, de um painel que políticas alinhadas a interesses de certos
está produzindo para a Plataforma Inter-
governamental de Biodiversidade e Ser-
recursos setores econômicos. Essa polarização
cria um debate de certa maneira falso
viços Ecossistêmicos (IPBES), ligada às
Nações Unidas, a mais abrangente avalia- regionais da entre oportunidades e ameaças ao estilo
de vida americano. Em parte, isso reflete
ção sobre biodiversidade e ecossistemas como a questão climática tem sido tra-
e suas contribuições para a sociedade. Amazônia e em tada separadamente da realidade social
e ambiental das pessoas. Nos Estados
Como evolui o trabalho do painel de es- promover uma Unidos ou no Brasil, precisamos sair de
pecialistas que está preparando a Ava- um debate simplista e confrontar a com-
liação Global sobre Biodiversidade e
Serviços Ecossistêmicos?
economia plexidade dos dilemas coletivos que a
mudança climática nos obriga a encarar.
É um projeto ambicioso, que busca fazer
uma síntese do que aconteceu nos últi-
transformativa e O que se pode esperar concretamente
mos 50 anos do ponto de vista ambiental
e municiar a nova fase da agenda global não extrativista do levantamento?
Além de apresentar um retrato atual do
de biodiversidade e desenvolvimento sus- planeta, vamos avaliar a agenda global
tentável para o período de 2020 a 2030. de biodiversidade colocada em prática
Estamos terminando a primeira versão e entre 2011 e 2020. Há uma parte do le-
há mais dois anos de trabalho pela fren- vantamento mais reflexiva, que é pensar
te. São 150 autores de mais de 60 países. em objetivos e futuros desejáveis. Como
A análise tem uma agenda inovadora de preservar a floresta e manter a necessária
inclusão de conhecimento e práticas in- comuns globais de maneira sustentável. produção alimentar de maneira mais in-
dígenas e locais, e de problemas enfren- São grandes questões de interesse para clusiva? Como é possível resolver proble-
tados por essas populações. É a primeira políticas públicas, que servem para orien- mas urbanos de uma maneira socialmente
vez que se consegue em um levantamento tar uma síntese relevante e útil para di- justa e ambientalmente adequada? Como
dessa escala uma representatividade das ferentes regiões e setores da sociedade. governar os recursos comuns globais co-
ciências sociais e das ciências naturais mo os oceanos, a biodiversidade e todos
mais ou menos equivalente. E o objetivo é apontar caminhos para os benefícios “invisíveis” que tiramos da
os próximos 20 anos... natureza? Talvez uma das partes mais
Quais são as dificuldades de produzir Além de uma análise das mudanças nos inovadoras seja refletir sobre caminhos
um trabalho como esse? últimos 50 anos, um dos objetivos é am- alternativos para chegar a objetivos de-
Houve um esforço grande para montar pliar a discussão sobre mudanças cli- sejados. O momento é oportuno, pois há
um time diverso, do ponto de vista geo- máticas não como um fim em si mesma, vários debates que se encontram trava-
gráfico, disciplinar e de gênero. Essa é mas como parte de um processo de mu- dos em parte por falta de diálogo entre
uma parte importante do trabalho: tra- danças sociais e ambientais maior, com as ciências e entre elas e diferentes se-
zer pessoas reconhecidas em suas áreas, diferentes visões de desenvolvimento e tores da sociedade. Um levantamento
capazes de falar sobre problemas que de futuro. Promover, de modo isolado, a como esse permite fazer perguntas que
transcendem suas disciplinas. Usamos energia renovável ou políticas de capta- nos forçam a considerar diferentes pontos
um modelo conceitual que explicita me- ção de carbono não necessariamente vai de vista, assim como reconhecer que, do
canismos de inter-relação entre natureza trazer soluções para as vulnerabilidades ponto de vista ambiental e de desenvol-
e sociedade e suas implicações para o ambientais e o desenvolvimento de di- vimento socioeconômico, nossas inter-
bem-estar das pessoas e para a biodiver- ferentes regiões. Esperamos contribuir dependências transcendem fronteiras,
sidade. Começamos bem, alinhavando te- para aproximar a discussão ambiental culturas e classes sociais.
mas que aglutinam problemas ambientais e climática do debate social e de desen-
de uma maneira que eles se encontrem volvimento socioeconômico. E onde se encaixa o debate sobre o fu-
com as demandas sociais. Por exemplo, turo da Amazônia?
a implicação das trajetórias atuais de ur- O descompasso entre o debate das mu- Nos países do hemisfério Norte, houve
banização para os próximos 20 anos; ou a danças climáticas e políticas de desen- uma aceleração muito forte da transfor-
conciliação de políticas contra a pobreza volvimento foi um dos motes para a saí- mação ambiental e social desde a Segun-
com as políticas de conservação; ou ain- da dos Estados Unidos do Acordo de Pa- da Guerra. E o que se viu depois foi um
da os desafios de governar os recursos ris. Isso está contemplado no trabalho? deslocamento regional desse fenômeno

30 | agosto DE 2017
A economia do açaí, que o senhor estu-
arquivo Pessoal

dou, seria um exemplo disso?


O açaí é emblemático. A indústria do
açaí que vemos hoje vem das mãos dos
pequenos produtores e ribeirinhos da re-
gião. Vem de um conhecimento local e da
tecnologia de intensificação agroflorestal
deles que permitiu responder primeiro a
uma demanda urbana regional. A partir
disso é que cresceu para atender o mer-
cado nacional e global. Toda a região do
estuário-delta do Amazonas está imersa
em uma economia produtiva florestal
que é inclusiva, ambientalmente favo-
rável, tem um mercado forte e ligado à
identidade regional. O açaí movimenta
uma economia informal imensa e impor-
Brondizio com colonos em trabalho de campo na Transamazônica em 2001 tante. Mesmo assim, não se valorizam os
produtores como agentes ativos do pro-
cesso de globalização dessa economia e
para outras partes do globo. Esses des- fraestrutura, de extração, de consumo os municípios como locais onde deveria
locamentos de impacto também acon- e de poluição, vê-se que a Amazônia é acontecer a agregação de valores. Assim
tecem dentro de países como o Brasil. um microcosmo da aceleração global e como outros recursos regionais, a cadeia
Por isso, mesmo observando melhorias dos problemas decorrentes. Há muitos produtiva do açaí tem um sistema de
em algumas regiões, o ambiente global exemplos de iniciativas positivas de in- agregação de valor que é proporcional à
se deteriora. O que vemos hoje na Ama- divíduos, grupos, municípios que, porém, distância da área produtora. Como con-
zônia é a reprodução de um processo de nadam contra uma correnteza de proble- sequência, os produtores não levam os
expansão de extração de recursos que se mas estruturais, interesses corporativos benefícios. O que eles ganham é pouco
alinha a visões políticas nacionais e for- e políticas públicas contraditórias. Há em comparação ao valor agregado longe
tes interesses econômicos e que desen- ainda uma inabilidade em valorizar os dali. Nos nossos levantamentos nessa re-
cadeia uma transformação intensa para recursos regionais e promover uma eco- gião, uma porcentagem pequena, em tor-
alimentar cadeias de mercado regionais e nomia transformativa e não extrativista, no de 20% das famílias, consegue viver
globais. Continuaremos a ver mudanças para beneficiar a região e sua população. do açaí como primeira renda. A maior
intensas na Amazônia, assim como em parte depende de aposentadoria e de
partes da América Latina, Ásia e África. Qual é o prejuízo? programas de transferência de renda,
Áreas de conservação e indígenas estão como o Bolsa Família. Isso é um retrato
Como o que sucede hoje na Amazônia tem virando ilhas de diversidade biológica e da realidade regional.
a ver com o que ocorreu globalmente? cultural, a poluição dos rios e problemas
A Amazônia é emblemática por ser pos- urbanos aumentam e conflitos sociais se O quanto as cidades estão vulneráveis?
sível enxergar a confluência de várias multiplicam. Há um processo muito rá- O que me chama mais a atenção, e tenho
forças na região, como a pressão do mer- pido de urbanização e os municípios não tentado expor o máximo possível em ar-
cado global para obter matérias-primas, conseguem acompanhar as demandas por tigos ou apresentações, é a invisibilida-
a pressão promovida pela visão desen- serviços públicos e sociais e por manejo de do problema urbano na Amazônia, o
volvimentista agressiva nacional ou a ambiental criadas pela transformação. “elefante na sala” do desenvolvimento
urbanização generalizada. Mas também A Amazônia também é emblemática do sustentável. Me refiro a problemas ur-
reações a esses processos e contradições Brasil e de outras regiões no que tange à banos relacionados à pobreza e à vulne-
entre essas forças operando lado a lado. violência. A região tem uma longa his- rabilidade ambiental, como inundações
A Amazônia vem passando por fases de tória de violência indígena e agrária que e carências sanitárias, e violência. Mais
transformações ambientais e sociopolí- continua, mas agora também a trajetória da metade da população de Belém está
ticas. Houve uma mudança na configu- de violência urbana é assustadora, afetan- vulnerável a inundações, que trazem li-
ração regional a partir do final dos anos do cidades grandes e pequenas. Além da xo e esgoto. Ninguém fala de poluição na
1980 e começo dos anos 1990, e que se expansão do tráfico de drogas, ela reflete Amazônia, da poluição orgânica domés-
intensificou nos últimos 10 anos, quan- a falta de uma economia transformativa tica ou dejetos industriais ou de pestici-
do processos que aconteciam de forma capaz de criar mais renda e oportunida- das. Isso é incrível. Quase a totalidade
desarticulada começam a interagir fisi- des para a população. A maioria dos mu- do esgoto e boa parte do lixo gerado nas
ca, social e virtualmente. As transfor- nicípios está insolvente e dependente de mais de 700 cidades da região vão para os
mações não envolvem só flutuações em transferências federais, assim como mui- rios. E ninguém fala nisso. Prevalece uma
taxas de desmatamento. Quando se ana- tas famílias. Há a reprodução histórica mentalidade segundo a qual o rio absor-
lisam as tendências demográfica, de in- de uma economia política extrativista. ve tudo e que a população é “adaptada”

PESQUISA FAPESP 258 | 31


como objetivo manter um “pé dentro da

arquivo Pessoal
casa”, entrevistando as famílias e enten-
dendo o processo de baixo para cima, e
com uma visão regional, trabalhando com
informações mais agregadas, como dados
censitários de setores e municípios, e de
sensoriamento remoto. Nosso trabalho
hoje se estende a estudos sobre a inte-
ração entre áreas indígenas, expansão
agropastoril e as redes interurbanas que
se expandem na região.

Como decisões tomadas por famílias


influenciam transformações regionais?
Vamos tomar o exemplo da urbanização
no estuário-delta do Amazonas. A região
tinha e ainda tem uma hierarquia social
Estudioso da cultura do açaí, o pesquisador acompanha produtores no Amapá, em 2006 muito forte, que foi de certa forma que-
brada com a ampliação das possibilidades
de transporte, melhor acesso à comu-
a uma realidade sanitária brutal. A escala ríodo tenho trabalhado em colaboração nicação, à mídia e a direitos. As pessoas
da natureza regional esconde problemas com minha esposa, também antropóloga, passaram a enxergar outras opções na
tão grandes quanto o desmatamento. Te- Andrea D. Siqueira. Nossas filhas, Mai- vida além das disponíveis para as gera-
nho orientado o meu trabalho para esta ra e Julia, sempre nos acompanharam ções anteriores, que se viam dependentes
questão: enxergar os efeitos da urbaniza- na região. Minha perspectiva inicial era de donos de terras, em geral, ausentes.
ção que se manifestam nas cidades e seus bem local e sempre trabalhei em nível de As respostas de cada família ao mercado
entornos, na vida de milhões de pessoas, unidade doméstica para entender como do açaí levaram a uma transformação da
e as implicações das redes interurbanas as famílias tomam decisões envolvendo paisagem regional para uma economia
para a configuração da paisagem regio- o uso da terra, migração, produção, como agroflorestal. Essas possibilidades de
nal nas próximas décadas. Aceita-se uma formam comunidades. transporte, de comunicação e mercado,
realidade social cruel como se fosse natu- e a renda que começou a vir com o açaí,
ralizada. Sem falar da violência. Grandes Por que as famílias? alinhado com a falta de serviços na zona
áreas de cidades como Manaus e Belém, Vejo a família como a unidade mais de- rural, levaram as pessoas a tomar deci-
assim como rios no entorno, são contro- sagregada para entender o processo de sões: as famílias começaram a comprar
ladas por criminosos e piratas e esta rea- transformação. Antes de ir para a Ama- um lote na cidade e a fazer sua casinha,
lidade se espalha para pequenas cidades. zônia, meu primeiro trabalho de pesqui- que se tornou uma opção para os filhos
sa foi avaliar em meados dos anos 1980 estudarem, para buscar atendimento de
Como evoluiu sua pesquisa na região? o impacto da construção da rodovia Rio- saúde e trabalho. A transformação urbana
Comecei a trabalhar na região em 1989 -Santos na comunidade de Trindade. Meu regional é resultado da interação entre
com o Emilio Moran, estudando comu- interesse era estudar como uma estrada e expectativas e decisões individuais, pres-
nidades ribeirinhas do Marajó e as suas o processo imobiliário que seguiu trans- sões sofridas nas áreas rurais e indígenas
formas de adaptação ao ambiente lo- formaram a paisagem de uma comunida- e oportunidades criadas por mudanças
cal e interações com o processo de de- de pesqueira e desenvolver metodologias na infraestrutura regional. Vimos uma
senvolvimento. Ter tido o Emilio como de sensoriamento remoto para análise reorganização familiar muito interessan-
orientador e colaborador de longo prazo local. Essa é uma pergunta que norteia o te nessa e em outras áreas da Amazônia,
no Anthropological Center for Training meu trabalho desde o começo: entender que é o que chamamos de famílias mul-
and Research on Global Environmental a transformação das famílias rurais do tilocalizadas. Para se adaptar a limita-
Change (ACT) em Indiana foi um privi- Brasil, o que agora, seguindo essas famí- ções econômicas e sociais, as famílias se
légio. Esse trabalho continuou em cola- lias, me levou à análise da transformação organizam de maneira a ter membros na
boração com o Walter Neves, recém-apo- urbana. Quando comecei a trabalhar na cidade e na zona rural.
sentado da USP, Rui Murrieta, também Amazônia, desenvolvi em colaboração
professor na USP, e vários colegas dentro com colegas uma metodologia através O senhor dirigiu o conselho do Work-
do grupo de ecologia e biologia humana da qual nós pudéssemos examinar co- shop em Teoria Política e Análise de
na época no Museu Emilio Goeldi em mo o processo de decisão das famílias Políticas da Universidade de Indiana,
Belém. O Walter liderou um projeto de tem implicações para paisagem regional. criado em 1975 pela cientista política
antropologia ecológica interdisciplinar e Trabalhei nessa linha em várias regiões e ganhadora do Nobel Elinor Ostrom e
inovador apoiado pelo CNPq [Conselho da Amazônia em um gradiente de popula- conhecido por promover um ambiente
Nacional de Desenvolvimento Científico ções rurais, de populações históricas a co- de colaboração interdisciplinar. Que
e Tecnológico]. Durante todo esse pe- lonos recém-chegados. Mas sempre tendo estratégias são usadas?

32 | agosto DE 2017
Vincent e Lin Ostrom criaram o work- laboro com colegas do Inpe, da Embrapa,
shop com a intenção de trabalhar com da Fiocruz, da USP, das universidades
ideias de forma colaborativa, como em federais do Pará, Maranhão, Brasília e ou-
uma oficina onde há mestres e apren- tras. Também tem sido produtiva a cola-
dizes que lapidam ideias conjuntamen- Grandes áreas boração com colegas da Universidade do
te. As questões principais do workshop Vale do Paraíba, junto ao laboratório da
são em torno de compreender dilemas de cidades geógrafa Sandra Costa, que com apoio da
de ação coletiva e da governança de re- FAPESP tem permitido continuar nossos
cursos comuns e bens públicos. Um dos
esforços da Lin foi criar arcabouços con-
como Manaus levantamentos de populações ribeirinhas
e entender a transformação das pequenas
ceituais, como o Institutional Analysis
and Development (IAD) e o de Sistemas e Belém, assim cidades da região estuarina.

Socioecológicos (SES), que se tornam O senhor trabalhou no Inpe antes de


ferramentas para colaboração interdis- como os rios ir para os Estados Unidos. O que fez?
ciplinar em torno de problemas comple- Com a abertura civil do Inpe, em 1985,
xos, não importando a escala. Trabalhar no seu procurei treinamento em sensoriamen-
com ela foi um dos maiores privilégios to remoto para entender como a estrada
que tive. Recebo em Indiana muitos bra- entorno, são Rio-Santos influenciou a vida dos pes-
sileiros para serem treinados no IAD e cadores de Trindade. Passei dois anos
SES e nas metodologias que desenvolve-
mos. Esses arcabouços permitem anali-
controladas no Inpe, privilegiado pela orientação do
Dalton Valeriano, desenvolvendo uma
sar de maneira sistemática e comparativa
problemas de ação coletiva, como arenas por criminosos metodologia de uso de sensoriamento
para análise de transformação do uso da
que envolvem participantes com dife- terra em escala local. Fui membro fun-
rentes visões, posições e poderes. Eles dador e parte do corpo técnico da Fun-
interagem em um processo de negocia- dação SOS Mata Atlântica e usei essas
ção influenciado por regras formais e in- experiências para analisar a transforma-
formais, pelo ambiente biofísico e social. ção histórica da Mata Atlântica no Brasil.

Poderia dar exemplos dessas arenas? nomia familiar e na saúde de mulheres e Como foi o doutorado em Indiana?
Por exemplo, a governança de um rio que crianças no oeste amazônico, e a outra, a Desenvolvi um doutorado com con-
atravessa propriedades agroindustriais vulnerabilidade de populações urbanas à centração em antropologia ambiental
e áreas indígenas. Ou as decisões da po- inundação nas cidades do estuário-delta e ciências do ambiente, trabalhando em
pulação sobre os danos e benefícios da do Amazonas. Temos estudantes traba- uma tese sobre a globalização do açaí e
construção de um empreendimento. To- lhando sobre globalização de quinoa, ma- as dimensões humanas do uso da terra.
dos esses problemas lidam com recursos nejo e governança de recursos comuns em Passamos, eu e Andrea, boa parte desse
comuns sobre os quais a apropriação de diferentes países, a atitude ambiental de período morando na Amazônia, princi-
uns limita o benefício de outros, onde se pequenos e grandes produtores, o impac- palmente no Marajó. Estávamos pron-
pode ver tanto cooperação como confli- to de hidrelétricas, conservação e áreas tos para voltar, mas não encontramos
tos, dependendo dos atores, suas visões, indígenas, etnobotânica. A lista é longa. oportunidades interessantes em con-
poderes e o contexto no qual operam. cursos. Acabei indo para a Universida-
Como vai o trabalho com o Núcleo de de do Arizona. Voltamos para Indiana
O senhor tem orientandos de vários Estudos e Pesquisas Ambientais da para trabalhar com a Elinor Ostrom e o
países. Que problemas eles estudam? Universidade Estadual de Campinas Emilio Moran em um novo centro de ex-
Meus estudantes trabalham com diversos (Nepam-Unicamp), onde o senhor é pro- celência interdisciplinar financiado pela
problemas sobre interação socioambien- fessor colaborador? National Science Foundation. A Univer-
tal, uso da terra, instituições e governança, Temos um fluxo constante, em parte sidade de Indiana deu em contrapartida
relações rural-urbano, a globalização de graças à FAPESP, de estudantes entre a cinco posições de professores para os
produtos locais, o impacto de políticas Unicamp e Indiana. Construímos parce- departamentos disputarem, uma delas
públicas, identidade cultural de popu- rias muito produtivas, por exemplo, com na minha especialidade. Foi supercon-
lações rurais, assim como as dimensões a equipe da socióloga Lucia da Costa Fer- corrido e minhas chances eram pequenas
sociais das mudanças climáticas. Tenho reira, que trabalha com uma perspectiva porque nos Estados Unidos raramente se
a oportunidade de trabalhar com alunos de arenas e conflitos que tem ajudado a contrata acadêmico formado na própria
e pós-doutores em diferentes partes da expandir nossas ferramentas analíticas. universidade. Ganhei a posição no De-
Amazônia e Brasil, nos Andes, na África, E também com a equipe da antropóloga partamento de Antropologia, o que me
na Europa e na Ásia. Minhas duas últimas Celia Futemma, com a qual estamos es- permitiu conciliar ensino e pesquisa dis-
doutorandas, Ana de Lima e Andressa tudando a cooperação entre pequenos ciplinar e interdisciplinar. Um caminho
Mansur, ambas brasileiras, estudaram, produtores rurais e o papel da ação co- na época desafiante, mas que hoje está
uma, o impacto do Bolsa Família na eco- letiva para conservação. Além disso, co- se tornando mais regra que exceção. n

PESQUISA FAPESP 258 | 33


política c&T  Atlas y

Para
aproveitar

o Sol
A
Estudo indica áreas favoráveis para produção de energia elétrica por meio
de tecnologia solar fotovoltaica no Bra-
explorar a energia solar no Brasil sil está crescendo em ritmo acelera-
do, embora ainda represente menos de
Bruno de Pierro 0,02% da matriz de energia elétrica do
país. Segundo dados da Agência Nacional de Energia
Elétrica (Aneel), a potência instalada no território
nacional no primeiro trimestre deste ano atingiu
107,6 megawatts (MW), 15 vezes mais do que a re-
gistrada no mesmo período em 2015. Para orientar
a expansão da exploração desse tipo de energia no
país, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe) lançou a segunda edição do Atlas brasileiro
de energia solar, que reúne um conjunto de infor-
mações acumuladas nos últimos 17 anos sobre a
incidência de radiação e os locais mais propícios
para a instalação de módulos fotovoltaicos. O docu-
mento substitui a primeira versão do Atlas, lançada
em 2006, que reunia um espectro de informações
menor, referentes à década anterior.
Produzido em colaboração com instituições como
as universidades federais de São Paulo e de Santa Ca-
tarina, a Tecnológica Federal do Paraná e o Instituto
<600 800 1.000 1.200 1.400 1.600 1.800 2.000 >2.200 Federal de Santa Catarina, o Atlas identificou um
potencial de geração de energia solar no Brasil que
kWh/m2/ano chega a 2.281 quilowatts-hora por metro quadrado
O continente europeu apresenta uma por ano (kWh/m²/ano), o suficiente para produzir
grande gama de valores e ampla variabilidade o equivalente a três vezes o consumo residencial
dos índices de irradiação ao longo do ano,
anual nos estados da Bahia e de Pernambuco. O es-
ao contrário do que ocorre no Brasil
tudo reafirma que os maiores valores de irradiação
solar ocorrem no chamado Cinturão Solar, faixa que
fonte  enio pereira/inpe vai do Nordeste ao Pantanal (ver mapa), em espe-
O potencial brasileiro
Conheça algumas conclusões do Atlas feito pelo Inpe com base em 17 anos
de observação do território nacional

Cinturão O sertão da Bahia e


Solar boa parte de Minas
Gerais ostentam as
maiores taxas de
irradiação dentro do
chamado Cinturão
Solar, faixa que vai do
Nordeste ao Pantanal

A Amazônia tem muitas


chuvas e nebulosidade
durante o ano e é
considerada a menos
atrativa do país para
grandes empreendimentos
em energia solar

O Rio Grande do Sul apresenta


índices de irradiação excelentes
nos meses de verão. No inverno, é Minas Gerais é o estado
o estado que registra os menores com o maior número de
valores de irradiação solar do país sistemas de microgeração
de energia solar instalados
no país. São 2.263,
segundo a Aneel

Escala dos níveis de irradiação solar em quilowatts-hora O sudoeste de Minas Gerais, o noroeste de
por metro quadrado por ano São Paulo e o norte do Paraná são áreas
1.277 1.368 1.460 1.551 1.642 1.733 1.825 1.916 2.007 2.098 2.190 2.281 kWh/m2 / ano
prioritárias para investimentos, em razão da
maior facilidade de conexão ao sistema
nacional de transmissão de energia, embora
fonte  atlas brasileiro de energia solar, com valores convertidos por enio pereira não tenham os níveis de irradiação mais altos

pESQUISA FAPESP 258  z  35


cial no sertão da Bahia e em boa parte de Minas
Gerais. Uma novidade é a recomendação de que Matriz de energia elétrica
os investimentos em novas plantas de geração
de energia fotovoltaica busquem também áreas Participação de centrais solares na produção de eletricidade
mais ao sul, que abranjam o sudoeste de Minas no Brasil ainda é pequena
Gerais, passando pelo noroeste de São Paulo e o
norte do Paraná. Embora apresentem níveis de
irradiação solar um pouco mais baixos que os do
Nordeste, essas áreas têm acesso a mais pontos Hidrelétrica Termelétrica
de conexão com o sistema interligado de trans- 61,27% 26,92%
missão de energia elétrica do país.
“Os estados do Nordeste têm alta incidência so-
lar, mas estão em uma região com menos opções
de conexão com a rede nacional de distribuição de
energia elétrica . Isso pode inviabilizar projetos na
região, porque torna mais cara a interligação dos
sistemas fotovoltaicos às redes de distribuição”, Central eólica
explica o físico Enio Pereira, pesquisador do La- Central solar 6,86%
fotovoltaica
boratório de Modelagem e Estudos de Recursos
0,02% Pequena hidrelétrica
Renováveis de Energia do Inpe e coordenador do
3,27%
estudo. Procura-se com isso evitar problemas como
os enfrentados na produção de energia eólica no Central hidrelétrica Termonuclear
país. “Alguns parques eólicos foram instalados no 0,35% 1,31% fonte  aneel

Nordeste sem linhas de transmissão suficientes.


Essa situação acabou impondo a necessidade de
novos investimentos no transporte de energia.” O pouco na geografia do país. Uma exceção é a região
custo de implantação da energia solar ainda é alto. amazônica, que tem muitas chuvas durante o ano e,
Atualmente, são necessários aproximadamente por isso, não desperta interesse para grandes em-
R$ 8 milhões para erguer uma central solar com preendimentos em energia solar. “A nebulosidade
potência instalada de 1 megawatt (MW). Esse in- na Amazônia tem impacto negativo sobre a geração
vestimento representa em média três vezes mais de energia em centrais solares”, afirma Pereira.
do que o necessário para construir uma central eó- Isso não impede que projetos de microgeração
lica com a mesma capacidade. O Brasil conta com fotovoltaica, modelo baseado em painéis instala-
algumas centrais solares, como a Usina Solar de dos nos telhados das casas, sejam implementados
Tauá, no sertão cearense, e a Usina Solar Cidade na região, alerta. A física Izete Zanesco, pesquisa-
Azul, no município de Tubarão, em Santa Catarina. dora do Núcleo de Tecnologia em Energia Solar
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Gran-
monitoramento atualizado de do Sul (PUC-RS), salienta que o planejamen-
Assim como aconteceu com o Atlas de 2006, a to do setor deve levar em consideração as áreas
nova edição se propõe a orientar a elaboração de que ficaram de fora do Cinturão Solar. “Como o
políticas para o setor de energia solar. “O primeiro Brasil tem níveis favoráveis de irradiação solar
Atlas foi lançado em uma época em que a energia em todo o território, módulos fotovoltaicos po-
solar fotovoltaica dava seus primeiros passos e dem ser instalados em residências ou empresas
ajudou a Empresa de Pesquisa Energética [EPE, em qualquer lugar do país”, afirma. Já no caso de
empresa pública vinculada ao Ministério de Mi- grandes centrais fotovoltaicas, ela reconhece que
nas e Energia] a implementar os primeiros proje- é mais produtivo seguir as informações do Atlas e
tos”, afirma Pereira. O novo estudo traz um con- instalá-las nas regiões com maior incidência solar.
junto maior de dados e análises. “Refinamos os A Aneel projeta para 2024 mais de 800 mil
dados e aperfeiçoamos as metodologias. O Atlas residências no Brasil produzindo a própria ener-
funciona como uma ferramenta para incentivar gia elétrica por meio de fonte solar. No caso da
os investidores a implementar mais projetos de microgeração, com potência instalada menor ou
energia solar, agora com uma base mais confiável igual a 75 kW, havia, no primeiro trimestre de
de evidências”, ressalta. As informações foram 2015, 556 sistemas de microgeração de energia
coletadas em mais de 500 estações solarimétricas solar instalados no país. Em agosto de 2017, esse
espalhadas pelo território nacional e no moni- número havia saltado para 12.977. A maioria des-
toramento por satélite dos índices de irradiação ses sistemas concentra-se nos estados de Minas
solar dos últimos 17 anos. Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná.
O Brasil, mostra o estudo, tem uma distribuição Um dos motivos do crescimento são as recentes
bastante uniforme de irradiação solar, que varia mudanças na legislação e a regulamentação do

36  z  agosto DE 2017


Com potência
instalada de 3 MW,
a Usina Solar
Cidade Azul, no
município de
Tubarão, em Santa
Catarina, é uma
das maiores
centrais do país
foto  plinio bordin

quem quer instalar um sistema fotovoltaico de 2


kilowatts na residência é de aproximadamente R$
15 mil”, estima Izete Zanesco. Isso representaria,
O Nordeste tem alta irradiação, mas em média, uma economia de aproximadamente
R$ 200 reais por mês na conta de luz, variando
está distante das redes de transmissão de acordo com o estado.
O Atlas identificou uma tendência de aumento
de energia, diz Enio Pereira da irradiação solar em quase todas as regiões do
país. No Sudeste, por exemplo, a média diária de
irradiação solar em 2006 foi de 5 kWh/m²/ano; em
2014 houve um leve aumento, para 5,2 kWh/m²/
setor, que permitiram que o excedente de cap- ano. A exceção é a região Sul, que apresentou uma
tação de energia solar gerado, por exemplo, em redução da incidência de radiação solar. Em 2006,
residências, possa ser distribuído para a rede de a média era de 4,7 kWh/m²/ano e, em 2014, havia
eletricidade, gerando um desconto na fatura de caído para aproximadamente 4,5 kWh/m²/ano.
energia dos produtores domésticos. Algumas “Ainda assim, mesmo no local menos ensolarado
empresas já transformam esse excedente em um do Brasil é possível gerar mais eletricidade solar
crédito a favor do consumidor, como é o caso da do que no local mais ensolarado da Alemanha, um
CPFL Energia na região de Campinas. dos países mais avançados no uso dessa energia”,
Outro fator é que o preço dos sistemas fotovol- afirma Enio Pereira. De acordo com o pesquisador,
taicos caiu significativamente na última década, os mecanismos físicos associados ao fenômeno
em parte devido à entrada da China no mercado ainda são pouco compreendidos.
fornecedor. “Hoje, mais de 80% dos módulos fo- O estudo do Inpe também aponta tendências
tovoltaicos são produzidos na Ásia, especialmente tecnológicas ligadas à energia solar que pode-
na China, que também é o país que mais instala riam ser mais exploradas no país. Uma delas é a
esses equipamentos”, explica o físico Arno Kren- energia heliotérmica, em que a radiação solar é
zinger, pesquisador da Universidade Federal do captada e armazenada em forma de calor – Espa-
Rio Grande do Sul (UFRGS). De acordo com ele, nha e Estados Unidos são alguns dos países que
o barateamento das placas pode favorecer a con- usam essa tecnologia. “Trata-se de um processo
solidação de mais empreendimentos no país, caso em que se utiliza a energia solar para aquecer um
haja também políticas de incentivos mais fortes. fluido, que passa por uma caldeira e gera vapor
“O Brasil depende da importação de células sola- na usina termelétrica”, explica Enio Pereira, do
res, um componente tecnológico dos módulos. Há Inpe. O Atlas também recomenda a expansão do
grupos de pesquisa desenvolvendo esse material uso da energia solar para aquecimento de água
no país, mas não em escala industrial.” Mesmo a temperaturas abaixo de 100 °C, em substitui-
mais acessível, trata-se de uma tecnologia cara ção a sistemas de aquecimento elétrico ou a gás,
para o consumidor comum. “O investimento para como chuveiros. n

pESQUISA FAPESP 258  z  37


INDICaDORes  Colaboração OsGeMeOs e
Blu, 2010, Lisboa, portugal

i ê n c i a
Resil
na crise
apesar da conjuntura econômica adversa, estão sínteses anuais sobre as atividades
da FAPESP desde 1962, ano em que co-
Fapesp manteve ritmo de investimentos, meçou a operar. O documento de 2016 é
estampado com obras dos artistas de rua
mostra Relatório de atividades 2016 Gustavo e Otávio Pandolfo, conhecidos
como OSGEMEOS – algumas delas tam-
Fabrício Marques bém ilustram esta reportagem.
O crescimento da cooperação com o
setor empresarial é um dos destaques

A
positivos do relatório. O programa Pes-
FAPESP investiu em 2016 sendo 5.491 bolsas no Brasil, 1.162 bolsas quisa Inovativa em Pequenas Empresas
um total de R$ 1.137.355.628 no exterior e 3.827 auxílios à pesquisa. (Pipe) teve o melhor ano desde a sua
em 24.685 projetos de pes- “A Fundação foi capaz de manter seus criação, em 1997: foram 228 novas pro-
quisa. O valor foi um pouco compromissos e seu ritmo de atuação postas contratadas, ou mais de quatro
inferior ao desembolso de no financiamento da pesquisa, apesar por semana – quase uma por dia útil –,
2015, de R$ 1.188.693.702 para 26.445 dos problemas econômicos que o Brasil e investimentos de R$ 55,5 milhões (ver
projetos então em andamento. Apesar enfrentou em 2016”, afirma o presidente Pesquisa FAPESP nº 257). Em 2015, 159
da conjuntura adversa, fruto da dimi- da FAPESP, o físico José Goldemberg. projetos foram contratados e o desem-
nuição das receitas tributárias estaduais O desempenho da Fundação no ano bolso total do programa foi de R$ 29,9
FOTO OsGeMeOs

resultante da crise econômica do país, passado compõe o Relatório de ativida- milhões. O Pipe foi a primeira iniciativa
foram contratados no ano 10.480 novos des 2016, lançado em agosto e disponível de uma agência brasileira a oferecer re-
projetos – 4% mais do que em 2015 –, em fapesp.br/publicacoes, onde também cursos não reembolsáveis para pequenas

38 z AGOSTO DE 2017
e médias empresas desenvolverem ino-
Como os recursos foram investidos vações em fases iniciais. “É um programa
que tem dado uma enorme contribuição
Desembolso da Fapesp em 2016 segundo quatro classificações ao desenvolvimento científico, tecnoló-
gico e econômico do estado de São Paulo,
estimulando a criação de empresas que
prosperam e geram empregos e rique-
R$ 1.137.355.628 za”, avalia o físico Carlos Henrique de
Brito Cruz, diretor científico da FAPESP.
Desembolso da FAPESP em apoio A criação de centros de pesquisa em
a projetos de pesquisa engenharia em cooperação com empre-
sas também recebeu impulso em 2016
Segundo a natureza da aplicação
com a implantação do Centro de Pes-
53% 39% 8% quisa Aplicada em Bem-Estar e Com-
Apoio à pesquisa com Apoio ao avanço Apoio à portamento Humano, parceria da FA-
vistas a aplicações do conhecimento infraestrutura PESP com a Natura e as universidades
de pesquisa
de São Paulo (USP), Federal de São Paulo
segundo a área do conhecimento
(Unifesp) e Mackenzie. Sediado na USP,
40,5% 37% 11,5% 11% o centro se dedica a estudos multidis-
Ciências da vida Ciências exatas e da Interdisciplinar Ciências ciplinares sobre comportamento hu-
Terra e engenharias humanas mano, em um investimento conjunto de
segundo o vínculo institucional do pesquisador e sociais
R$ 40 milhões em 10 anos. A proposta
47% 13% 13% 12% 5% 5% 4% é reunir conhecimento, metodologias e
USP Unesp Unicamp Instituições Instituições tecnologias em áreas como psicologia
federais particulares experimental e neurociência que criem
Instituições Empresas indicadores de bem-estar da população
estaduais particulares brasileira e ajudem a criar produtos ino-
segundo os programas da fundação
vadores. Andrea Álvares, vice-presidente
39,5% 34,1% 14,3% 12,1% de marketing e inovação da Natura, afir-
Bolsas regulares no Auxílios regulares Programas Programas de mou que o modelo está na vanguarda da
país e no exterior especiais pesquisa para inovação aberta. “Quanto maior a diver-
inovação
sidade dos pesquisadores envolvidos,
tecnológica
mais ricos serão os resultados”, disse
ela no evento de lançamento do centro.
o crescimento do pipe 2011 49 A parceria com a Natura se somou a
Evolução do número de projetos contratados no outros quatro centros criados em anos
2012 54
programa pesquisa inovativa em pequenas anteriores, dois deles com a farmacêutica
empresas* 2013 130 GSK, um com a montadora Peugeot-Ci-
troën e outro com a empresa de petróleo
2014 124
e gás BG. Nesse modelo, cada R$ 1 inves-
4 projetos 2015 159 tido pela FAPESP terá mobilizado mais
por semana R$ 1 da empresa e R$ 2 da universidade
em 2016 2016 228
ou instituto de pesquisa que sedia o cen-
* Não inclui bolsas tro. Juntos, esses cinco centros recebe-
rão R$ 259 milhões em investimentos.
Outro destaque do relatório foi o cres-
cimento do apoio à pesquisa interdis-
a evolução dos ciplinar, campo responsável por 11,5%
recursos investidos nos
projetos temáticos projetos e em auxílios e bolsas do desembolso da Fundação em 2016,
a eles vinculados (em R$) atrás das Ciências da Vida (40,5%) e das
Ciências Exatas e da Terra e Engenharias
número de projetos contratados 2016 256.266.138 (37%), e à frente das Ciências Humanas e
2015 250.586.553 Sociais (11%). O desempenho é superior
2016 88
ao de 2015, quando 10,4% do desembolso
2015 82 2014 219.410.613
da Fundação foi para projetos interdisci-
2014 83 2013 194.588.658 plinares, e muito à frente do registrado
2013 75 em 2006 (7,78%) ou em 2013 (3,08%).
2012 181.623.404
2012 84 A FAPESP também manteve inves-
2011 149.329.075
2011 77 timentos consistentes em modalidades

pESQUISA FAPESP 258  z  39


Fachada do Museu de
arte Moderna, 2010,
são paulo
dual em 2016 atingiu R$ 1.057.714.553 e
foi 1,2% superior, em valores nominais,
de fomento que financiam projetos de à transferência feita no ano anterior. Já
pesquisa competitivos mundialmente. em valores corrigidos pelo Índice Na-
Os projetos temáticos, que envolvem cional de Preços ao Consumidor Amplo
objetivos ousados capazes de justificar (IPCA), houve queda de 5% em relação
um financiamento com duração de até a 2015. Esse repasse foi responsável por
cinco anos e com frequência reúnem pes- 78,7% da receita da Fundação. O desem-
quisadores de várias instituições, rece- bolso de 2016 foi complementado com
beram R$ 256.266.138 em 2016, ante R$ R$ 215.154.402, provenientes de acordos
250.586.553 em 2015. O montante inclui The carnival e convênios com outras agências, insti-
recursos desembolsados nos projetos e is over, 2016, tuições e empresas, e com R$ 71.328.947
são paulo,
em auxílios e bolsas no país e no exterior Brasil
oriundos de receitas da própria Funda-
vinculados a eles. A quantidade de pro- ção, que mantém um patrimônio rentável
jetos contratados foi a maior dos últimos para complementar os recursos recebidos
seis anos – chegou a 88, seis a mais do do Tesouro. Essas receitas complemen-
que em 2015 (ver quadro na página 39). tares foram 6% menores em 2016, em
Havia 477 temáticos em andamento em termos nominais, que as de 2015.
2016. Da mesma forma, o programa Jo- É possível enxergar o alcance do inves-
vens Pesquisadores em Centros Emer- timento segundo diferentes perspectivas.
gentes manteve seu fôlego: recebeu R$ Uma delas é a divisão dos recursos pe-
68,2 milhões em 2016, contando tam- los programas da FAPESP: 39,5% do de-
bém com auxílios e bolsas vinculados, sembolso se destinou a bolsas no Brasil
para 313 projetos em andamento, ante e no exterior, 34,1% a auxílios regulares
R$ 67,3 milhões de 2015. Cinquenta e à pesquisa, 14,3% a programas especiais,
oito desses projetos foram contratados como os que apoiam Jovens Pesquisa-
FOTOS 1 LOsTaRT / IGNaCIO aRONOVICH 2 FILIpe BeRNDT

no ano passado. O programa financia, dores e pesquisas em eScience, e 12,1%


por até quatro anos, a formação de nú- a programas de inovação tecnológica.
cleos liderados por jovens pesquisadores No caso dos auxílios regulares, os re-
com nível de doutorado e alto potencial, cursos foram 9% menores do que em
preferencialmente em instituições ainda 2015 e o volume de projetos contrata-
com pouca tradição no tema do projeto. dos, 3% inferior. A queda foi mais notada
Conforme está previsto na Constitui- em modalidades como a participação ou
ção estadual de 1989, a FAPESP recebe organização de reuniões científicas, en-
1% da receita tributária paulista para in- quanto os auxílios regulares – projetos
vestir em pesquisa científica e tecnoló- financiados por até dois anos – aumen-
gica. O repasse feito pelo Tesouro Esta- 2
taram 17% e os projetos temáticos, 9%.

40 z AGOSTO DE 2017
Outra forma de analisar o investimen-
to da Fundação distingue os objetivos do
o investimento em bolsas apoio à pesquisa. Por esse critério, vê-se
contratações de bolsas no país pela FAPESP que 53% dos recursos foram destinados
a pesquisas de caráter aplicado. Essa ru-
brica inclui o investimento em auxílios
e bolsas em áreas como agronomia e ve-
Iniciação científica
terinária, engenharia e saúde, que quase
2.287 sempre resultam em aplicações, além de
2.036 programas que estimulam a inovação nas
universidades e empresas e de alguns
Mestrado
programas especiais da Fundação. Ou-
731 tros 39% foram investidos em apoio ao
728 avanço do conhecimento, por meio de
n 2016 programas que formam recursos huma-
Doutorado n 2015
nos e estimulam a pesquisa acadêmica, o
697 que inclui bolsas e auxílios. Por fim, 8%
644 apoiaram a infraestrutura de pesquisa,
permitindo recuperar, modernizar e ad-
Doutorado direto
quirir equipamentos para laboratórios,
1 136 ampliar o acervo de bibliotecas de insti-
112 tuições de ensino e pesquisa e garantir a
O desembolso com bolsas foi de R$ pesquisadores acesso rápido à internet.
Pós-doutorado
448,9 milhões, 6% menor em valores Os investimentos no programa de
nominais que o de 2015. Mesmo assim, 634 Equipamentos Multiusuários (EMU),
houve aumento de 4% no número de 684 voltados para a compra de equipamentos
novas bolsas contratadas e as vigentes de alto valor e que se tornam disponíveis
tiveram reajustes de 11%. O principal para um amplo número de pesquisado-
destaque entre as bolsas no país foi em res, foram de R$ 37,5 milhões em 2016,
iniciação científica: foram contratadas incluindo os 134 projetos concedidos
2.287 bolsas, 12% mais do que as 2.036 números da inovação em 2016 como vinculados a auxílios regulares,
no ano anterior. O número de bolsas de Temáticos e ao programa Jovens Pes-
mestrado, doutorado e doutorado dire- quisadores. Esse montante também con-
to cresceu, respectivamente, 0,4%, 8% e templa os quatro projetos específicos do
21%. No pós-doutorado, houve redução 1.599 EMU, que custaram R$ 1,3 milhão.
de 684 bolsas em 2015 para 634 em 2016. patentes de invenção Ao longo de 2016, estavam vigentes
A contratação de bolsas no exterior caiu foram solicitadas ao inpi acordos de cooperação entre a FAPESP
7%: foram 1.162 no ano passado, ante por residentes do estado e 94 organizações, 28 deles firmados no
1.244 em 2015. A redução se concentrou (31% do total) ano. Entre os novos acordos com agências
nas bolsas para estágios no exterior, com de fomento e instituições acadêmicas,
até um ano de duração, dependendo da apenas um foi celebrado com uma insti-
modalidade. Já a contratação de bolsas tuição brasileira – o Instituto Nacional de
de pesquisa no exterior subiu de 254 em cidades com 654  são paulo Pesquisas Espaciais (Inpe). Os outros 24
2015 para 258 em 2016. maior número
142  campinas foram acordos internacionais firmados
de patentes
O número de pesquisadores do exte- com 7 organizações dos Estados Uni-
44  são carlos
rior que obtiveram bolsas de pós-douto- dos, 3 do Reino Unido, 3 da Austrália, 2
rado no Brasil financiadas pela FAPESP 37  S. J. dos campos do Canadá, 2 da França, 2 da China, 1 da
caiu de 123 em 2015 para 93 em 2016. 36  sorocaba Holanda, 1 da Itália, 1 da Noruega, 1 do
Mas a proporção de bolsas concedidas a Chile, e um com 1 agência multinacional.
pesquisadores que vieram de fora ficou Foram assinados acordos com três em-
estável: elas representaram 19% do total presas: a Statoil, de origem norueguesa, a
de bolsas de pós-doutorado no país, pou- entidades com 62  unicamp holandesa Koppert e a norte-americana
co abaixo dos 21% de 2015, mas acima maior número
60  usp IBM. Dois simpósios científicos da série
de patentes
do nível dos cinco anos anteriores, que FAPESP Week, que buscam estimular
31  whirlpool
oscilou de 13% a 18%. Os bolsistas, em colaborações científicas entre pesqui-
geral estrangeiros, estavam vinculados às 30  unesp sadores de São Paulo e de outros países,
áreas de ciências exatas e da Terra (36%), 24  natura
foram realizados em 2016: um deles nos
engenharias (26%), ciências humanas Estados Unidos, em março, e outro no
19  fundação cpqd
(26%) e ciências sociais aplicadas (25%). Uruguai, em novembro. n

pESQUISA FAPESP 258  z  41


obituário y

Exploradora dos
espaços curvos
A matemática iraniana
Maryam Mirzakhani, primeira
mulher a ganhar a Medalha
Fields, morre aos 40 anos
e deixa legado original

E
ntregue a cada quatro anos, a Me- telefone, precisou expor um problema teoremas surpreendentes sobre esses
dalha Fields reconhece até qua- particular. Vítima de câncer de mama, caminhos mais curtos em superfícies
tro matemáticos com no máximo ela convalescia de um ciclo de sessões curvas, chamados geodésicas”, explicou
40 anos de idade que produzi- de quimioterapia. Não tinha certeza de ele à revista The New Yorker.
ram contribuições excepcionais para que poderia ir à cerimônia nem se se sen- Bhargava e Maryam nunca foram par-
a disciplina. Nas primeiras 17 edições tiria disposta para enfrentar o assédio ceiros de pesquisa, mas, em uma situa-
do prêmio, entre 1936 e 2010, a União da imprensa. Mas ela compareceu. Um ção engraçada, resolveram juntos um
Internacional de Matemática (IMU) cordão de proteção formado por amigas problema combinatório simples. Depois
distribuiu 51 medalhas – todas elas para poupou-a de assédio na solenidade reali- de receberem as medalhas em Seul, per-
homens, numa evidência de que a pre- zada em Seul, na Coreia do Sul, no dia 13 ceberam que a organização ignorara o
dominância masculina nessa área do de agosto de 2014. Trinta e cinco meses fato de o nome de cada vencedor ter sido
conhecimento pode ser avassaladora em depois, Maryam Mirzakhani morreu em gravado na honraria. Bhargava ganhara
estratos mais competitivos da carreira. um hospital nos Estados Unidos, no dia 14 a medalha que pertencia ao britânico
A escrita se quebrou pela primeira vez de julho, em consequência de uma recidi- Martin Hairer, que por sua vez recebe-
em 2014, quando Maryam Mirzakhani, va do câncer, agora instalado na medula ra a de Maryam, que levara a de Artur
iraniana radicada nos Estados Unidos e óssea. Tinha 40 anos de idade. Ávila, primeiro brasileiro a conquistar a
professora da Universidade de Stanford, A iraniana foi definida como a “mes- honraria (ver Pesquisa FAPESP nº 223).
tornou-se a primeira mulher agraciada tre dos espaços curvos” pelo canadense Ávila ostentava a medalha de Bhargava.
com a honraria. Manjul Bhargava, da Universidade Prin- O ambiente festivo dificultava a tarefa de
Responsável por contribuições origi- ceton, que também ganhou a Medalha reunir os quatro em um mesmo lugar.
nais sobre a dinâmica e a geometria de Fields em 2014. “Todo mundo sabe que Entre risadas, Bhargava e Maryam dis-
foto universidade de stanford

superfícies complexas e descrita como a menor distância entre dois pontos de cutiram qual seria a forma mais rápida
uma figura serena e de enorme ambição uma superfície plana é uma reta, mas para que cada dupla se encontrasse e
intelectual, Maryam foi surpreendida pe- se a superfície for curva – por exemplo, destrocasse as medalhas.
la premiação. Ignorou o primeiro aviso a de uma bola ou de uma rosquinha – a Graduada em Matemática na Univer-
da IMU de que receberia a medalha – distância mais curta será o percurso de sidade Tecnológica de Sharif, em Teerã,
achou que o e-mail fosse uma brincadeira. um caminho curvo, o que pode se tor- Maryam Mirzakhani transferiu-se para
Quando foi comunicada oficialmente por nar complicado. Maryam provou muitos os Estados Unidos para fazer doutorado

42 | agosto DE 2017
Maryam Mirzakhani
produziu contribuições
sobre a dinâmica e a
pertencer a um livro-texto”, disse à re- Rio de Janeiro. A disparidade de gêne-
geometria de superfícies
complexas. Ao lado, vista Quanta Alex Eskin, matemático da ro na matemática, um problema que o
anotações da pesquisadora Universidade de Chicago. Eskin, Maryam exemplo de Maryam buscava combater,
e o matemático Amir Mohammadi, da também foi uma preocupação do evento,
Universidade da Califórnia, San Diego, que premiou pela primeira vez com um
em Harvard e trabalhava em Stanford trabalharam juntos em um projeto sobre troféu as cinco garotas que mais contri-
desde 2009. Na casa em que vivia com o a dinâmica de superfícies abstratas co- buíram para o sucesso de suas equipes.
marido, o cientista da computação checo nectadas a mesas de bilhar que culminou Dos 623 alunos do ensino médio de 112
Jan Vondrák, e a filha, Anahyta, hoje com com a solução do chamado “teorema da países que participaram da olimpíada,
6 anos, ela costumava usar o chão para varinha mágica”, sobre espaços inteiros apenas 65 eram garotas. Entre os repre-
escrever em enormes telas de papel, nas compostos por superfícies hiperbólicas. sentantes do Brasil, só havia homens.
quais esboçava ideias, fórmulas e diagra- De acordo com Marcelo Viana, di-
mas de superfícies hiperbólicas – super- talentos excepcionais retor do Instituto de Matemática Pura
fícies abstratas com formas semelhantes Maryam nasceu e cresceu no Irã. No en- e Aplicada (Impa), a pressão cultural
a rosquinhas, com um ou mais buracos, sino fundamental, um dos professores contrária às mulheres da matemática é
nas quais distâncias e ângulos são me- desencorajou-a a se tornar matemática, resistente e se alimenta da falsa ideia de
didos de acordo com um certo conjunto dizendo que ela não tinha um talento que elas teriam uma propensão natural
de equações. Em algumas superfícies particular para a disciplina. Mas ela fez por algumas áreas do conhecimento,
hiperbólicas, o caminho mais curto en- o ensino médio numa escola para garotas como as ciências humanas, mas não por
tre dois pontos pode ser uma geodésica em Teerã administrada pela Organiza- áreas mais duras ou abstratas do conhe-
longa, enquanto em outras pode ser um ção Nacional para o Desenvolvimento cimento. “Essa é uma besteira que se
laço curto, como o círculo de uma esfera. de Talentos Excepcionais do país. Em perpetua. Temos que atuar e acreditar
Sua tese de doutorado, justamente so- 1995, aos 18 anos, ganhou uma medalha que seja possível reverter o quadro em
bre essas voltas em superfícies de geo- de ouro na 36a Olimpíada Internacional médio e longo prazos”, afirma. “Se são
metria hiperbólica, foi definida como de Matemática, em Toronto, no Canadá. poucos os exemplos de inspiração, as
uma contribuição altamente original. Três dias depois de sua morte, Maryam garotas acabam achando que a mate-
“É o tipo de matemática que você reco- Mirzakhani foi lembrada na abertura da mática não é para elas, alimentando um
nhece imediatamente como algo que vai 58ª edição da Olimpíada, realizada no círculo vicioso.” n Fabrício Marques

pESQUISA FAPESP 258 | 43


ciência  MEDICINA y

Magreza
reversível H á cinco anos, o cirurgião
Paulo Alcântara ficou in-
trigado ao ver que dois
pacientes que atendera na
mesma semana no Hospital Universitário
da Universidade de São Paulo (HU-USP),
com a mesma idade e o mesmo tipo de
câncer avançado de intestino, reagiam
de modo diferente ao tratamento. Um era
obeso e o outro, muito magro. A magreza
Exercício físico pode deter a era uma expressão da caquexia, síndro-
me caracterizada pela perda contínua de
caquexia, inflamação que massa muscular e de apetite que pode
acompanhar – e agravar – não apenas o
induz à perda de peso e agrava câncer, mas também a Aids, a insuficiência
o câncer e outras doenças cardíaca e a doença pulmonar obstrutiva
crônica (DPOC). Verificada em 40% das
pessoas com câncer e em 80% das hospita-
lizadas com tumores malignos, a caquexia
Carlos Fioravanti dificulta o tratamento e responde por 20%
das mortes causadas por essa doença. O pa-
ciente magro morreu um ano e meio depois
em consequência do câncer e da caquexia,
enquanto o outro viveu mais quatro anos.
Intrigado com essa situação, Alcântara
procurou a bióloga Marília Seelander, que
trabalha com exercício físico, inflamação e
câncer há 25 anos no Instituto de Ciências
Biomédicas (ICB) da USP (ver Pesquisa
FAPESP no 89). Com base nos resultados
de experimentos em modelos animais, os
dois pesquisadores planejaram um estudo
para avaliar os possíveis efeitos da atividade
física em pessoas com câncer e caquexia.
Os resultados preliminares dos testes no
HU indicam que um programa de exercí-
cios físicos – andar ou correr em uma es-
teira durante uma hora por dia, durante
seis semanas, no próprio hospital – pode
reduzir os processos inflamatórios que re-
sultam em perda de peso. Os participantes
Trois hommes qui com câncer e caquexia recuperaram massa
marchent, Alberto muscular e apetite e apresentaram uma
Giacometti, bronze
com pátina
melhor recuperação pós-operatória, em
marrom, 1948 comparação com os sem caquexia. Notou-
-se também uma mudança do perfil de ci-

44  z  agosto DE 2017


Zak Hussein / Corbis / Getty Images

pESQUISA FAPESP 258  z  45


tocinas, proteínas que ativam as células de defe- 1

sa: os níveis de citocinas pró-inflamatórias, que


causam e agravam a caquexia, caíram e os de
citocinas anti-inflamatórias subiram.
Até agora, 332 pacientes com câncer de estôma-
go, pâncreas e intestino – com e sem caquexia –
participaram do estudo; 272 formaram o grupo dos
sedentários e 50 o dos que se submeteram ao trei-
namento físico. “O bloqueio da caquexia poderia
permitir um tratamento mais intensivo, favore-
cer a qualidade de vida e ampliar a sobrevida dos
pacientes”, diz Alcântara. “Mas temos de chegar
a 100 casos em cada grupo de pessoas com e sem
câncer e com e sem caquexia para termos resulta-
dos com significância estatística.” Os estudos em
andamento, propostos em um artigo de 2015 na
revista Current Opinion in Supportive and Palliati-
ve Care, integram equipes da USP, do Instituto do
Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), da Santa Sala de treinamento do Hospital Universitário da USP usada na recuperação de peso
Casa de São Paulo e do hospital Santa Marcelina.
Ainda não há pesquisas científicas concluídas
sobre a ação do exercício físico em pessoas com
câncer e caquexia, mas seus efeitos foram ob- O exercício físico se mostrou benéfico
servados em pessoas com DPOC. Um grupo da
Alemanha e da Holanda verificou que exercícios para deter a inflamação em pessoas
intensos durante quatro meses favoreceram a re-
cuperação do estado de saúde e da força muscular
com doença pulmonar crônica
em pessoas com DPOC e caquexia, em compara-
ção com os que receberam suplementação nutri-
cional e com o grupo controle. O estudo foi feito
com 81 pacientes e publicado em junho deste ano lamo, região do sistema nervoso central que con-
na Journal of Cachexia, Sarcopenia and Muscle. trola a fome, mostrou-se alterado. As comunidades
“As alterações metabólicas características da bacterianas do intestino, que poderiam causar ou
caquexia debilitam o organismo, favorecem o agravar processos inflamatórios, mudaram, e os
crescimento tumoral e dificultam o tratamento”, músculos, incluindo o do coração, haviam enfra-
sintetizou Alcântara. Na tarde de 13 de junho, quecido. “O desequilíbrio causado pela caquexia
ele acompanhou uma reunião no ICB, em que é tão intenso que as pessoas continuam perdendo
os pesquisadores da equipe de Marília Seelan- peso, mesmo quando recebem complementação
der apresentaram os resultados das análises de nutricional, porque as células não conseguem
sangue e tecidos coletados dos participantes do mais absorver os nutrientes”, comentou Marília.
HU. Os indivíduos com caquexia apresentaram A caquexia foi registrada pela primeira vez pe-
uma redução no metabolismo de proteínas e nos lo médico e filósofo grego Hipócrates (460-370
níveis de dois hormônios – a leptina, que regula a.C) e descrita como um abatimento profundo
o apetite, e a insulina, que favorece a absorção de pelo médico francês Paul Broca (1824-1880) em
glicose pelas células. O funcionamento do hipotá- seu tratado sobre tumores publicado em 1866.

2 A produção da
proteína colágeno
(em vermelho) se
intensifica nas
pessoas com câncer
e com caquexia,
resultando na
formação de fibras
que prejudicam o
funcionamento das
células de gordura
(à esq.). Pacientes
com câncer e sem
caquexia têm menos
colágeno (à dir.)

46  z  agosto DE 2017


Descontrole crescente
A caquexia evolui a partir de uma inflamação que se espalha pelo organismo

origem consequências
Em resposta a um tumor, O hipotálamo reduz a
as células de defesa produção de hormônios
produzem proteínas que ativam o apetite
inflamatórias, como a
interleucina-6 (IL-6), que
entram na circulação O fígado aumenta a produção
Tumor de proteínas que intensificam
a inflamação
primeiras reações
O tecido adiposo subcutâneo O tecido muscular começa
acumula IL-6 e células de defesa, a se atrofiar
que causam inflamação local

As células de gordura liberam resultado


ácidos graxos, que espalham O desequilíbrio do
a reação inflamatória para organismo se intensifica
outros tecidos e órgãos e torna-se irreversível

O médico paraense Alfredo Leal Pimenta Bue- esteira diariamente, durante 15 dias, começando
no (1886-?) a apresentou como um dos sinais do no dia seguinte à injeção das células tumorais.
período final do câncer, cuja origem analisou em Os animais que fizeram exercício apresentaram
uma série de artigos publicados na revista Brasil uma sobrevida 31% maior que os do outro gru-
Médico de 1926 a 1928. po, embora sem redução no ritmo da progressão
“A caquexia favorece o crescimento dos tumo- desse tipo de tumor, bastante agressivo.
fotos 1 léo ramos chaves 2 Miguel Luis Batista Jr. /UMC infográfico ana paula campos  ilustraçãO Zansky

res e pode avançar a ponto de se tornar irrever- Patrícia encontrou indicações de que o exer-
sível”, observou o oncologista Gilberto de Castro cício aeróbico pode melhorar o funcionamento
Jr., do Icesp. Nem sempre tratar o tumor resolve a das células musculares em animais com tumor
caquexia. “O exercício físico, de alguma maneira, de Walker 256. “O treinamento físico pode não
pode bloqueá-la e ser uma terapia de suporte”, diz atuar diretamente sobre o tumor, mas deixa os
ele. “Ainda temos de definir a intensidade, a fre- Fonte USP e UMC músculos mais funcionais”, diz ela. Seu grupo
quência e a duração do exercício mais adequadas, também verificou que a atividade física prévia
mas precisamos fazer os pacientes com câncer se pode retardar o início do tumor de pele e de ma-
movimentarem mais.” Vários estudos já indicaram ma em camundongos. No laboratório de Marília
os benefícios do exercício físico na luta contra o no ICB os resultados foram mais expressivos:
câncer (ver quadro na página 48). nos animais que tiveram de fazer esteira ou na-
dar em um programa mais longo de exercícios,
Em laboratório o tamanho do tumor de Walker apresentou uma
“O treinamento físico minimiza a caquexia”, cor- redução da ordem de 50%.
robora a professora de educação física Patrícia A perda de massa muscular, embora seja a ex-
Chakur Brum, com base em seus experimentos pressão mais visível, não é a causa, mas uma das
com modelos animais na Escola de Educação consequências do processo que leva o organismo a
Física e Esporte da USP. Com sua equipe, ela consumir-se. “Ainda não sabemos como e quando
usou dois grupos de ratos com tumor de Walker a caquexia começa”, reconhece o educador físico
256, utilizado em estudos experimentais porque Miguel Luiz Batista Júnior, professor da Univer-
cresce com rapidez e induz a atrofia muscular sidade de Mogi das Cruzes. O início deve ser uma
característica da caquexia. Um era de animais se- inflamação ativada por uma produção intensa
dentários e outro teve de fazer exercícios em uma de citocinas pró-inflamatórias, principalmente

pESQUISA FAPESP 258  z  47


Suar, parte da prevenção
O exercício físico ajuda a prevenir o câncer,
favorece a recuperação pós-cirúrgica e
reduz os efeitos colaterais dos
medicamentos, a reincidência dos tumores
e a mortalidade, de acordo com estudos
realizados nos Estados Unidos. Em um
artigo de junho de 2016 no Journal
of American Medical Association (Jama),
Steven Moore e sua equipe de
epidemiologia do Instituto Nacional do
Câncer, nos Estados Unidos, apresentaram
uma análise de 12 estudos sobre os efeitos
da atividade física em 26 tipos de câncer,
realizados nos Estados Unidos e na Europa,
com 1,4 milhão de pessoas, acompanhadas
durante 11 anos. Os pesquisadores
associaram a prática de atividade física
moderada ou intensa nas horas de lazer,
como a caminhada, a um menor risco
de 13 tipos de câncer, com a queda mais
acentuada nos tumores de esôfago Exercícios Coração (InCor), também da USP. “Até a
(incidência 42% menor) e menos nos de aeróbicos como década de 1970, o aconselhado às pessoas
correr e andar de
mama (queda de 10%), mesmo entre com insuficiência cardíaca era não fazer
bicicleta são
obesos e fumantes. indicados para exercício físico, que depois começou
Se os médicos e as pessoas com câncer ajudar a evitar a ser recomendado e hoje é uma parte
adotassem o exercício físico como parte do o câncer e reduzir importante do tratamento”, lembra
os efeitos
tratamento, poderia ocorrer o mesmo (ver Pesquisa FAPESP no 238). “Em câncer,
indesejados de
fenômeno verificado no tratamento de medicamentos muito provavelmente vamos trilhar um
doenças do coração, na visão do educador caminho semelhante.”
físico Carlos Eduardo Negrão, professor Dois estudos recentes de seu grupo no
da Escola de Educação Física e Esporte da InCor publicados em 2014 e 2016 na
Faculdade de Medicina e diretor da American Journal of Physiology – Heart
Unidade de Reabilitação Cardiovascular and Circulatory Physiology mostraram que
e Fisiologia do Exercício do Instituto do o exercício físico em pessoas com
problemas cardíacos pode desativar os
processos de degradação de proteínas
das células dos músculos, estimular a
produção de citocinas anti-inflamatórias e
melhorar o fluxo de cálcio, fundamental
para o bom funcionamento dos músculos,
principalmente do coração, cujo
funcionamento pode ser prejudicado
pelos medicamentos antitumorais e pela
caquexia. Em um artigo de maio deste
ano na Oncology Reports, pesquisadores
da França argumentaram que
“o exercício físico desponta como uma
estratégia não farmacológica interessante
para contrabalançar as deficiências do
coração induzidas pela caquexia”,
fotos  léo ramos chaves

já que o treinamento aeróbico, como


também eles reconheceram,
tem efeitos anti-inflamatórios
e evita a atrofia do músculo cardíaco.

48  z  agosto DE 2017


a interleucina-6 (IL-6), como resultado da ação níveis da proteína c-reativa (PCR) do fígado e
das células de defesa contra os tumores. “O nível duas outras do sangue, a hemoglobina e a albu-
de IL-6 em circulação na corrente sanguínea au- mina. Segundo ela, valores da PCR muito acima
menta de duas a três vezes em pessoas com cân- e de albumina e hemoglobina muito abaixo dos
cer e de cinco a seis vezes nas com caquexia”, diz normais poderiam indicar o início da caquexia
Batista, que estuda os mecanismos da caquexia antes da perda de massa muscular. Além disso,
desde 2008 em colaboração com o grupo da USP manchas claras nos músculos nas imagens de
e da Universidade de Boston, Estados Unidos (ver tomografia poderiam indicar infiltração de gor-
infográfico na página 47). dura ou de células do tecido adiposo, sinalizando
o início de um processo inflamatório capaz de
outras estratégias levar à perda muscular.
Com base em amostras de tecidos de pessoas À medida que avançarem, essas propostas de-
com câncer, as equipes da UMC e da USP con- vem ajudar a deter um problema que só aparece
cluíram que o tecido adiposo branco subcutâneo quando a perda de massa muscular já é evidente.
atrofia e se torna fibroso, em consequência do Nos próximos anos, é possível que o tratamento
acúmulo de células de defesa e da formação de da caquexia combine várias estratégias, concilian-
uma malha externa da proteína colágeno sobre do suplementação alimentar, exercícios físicos
os adipócitos, como detalhado em um artigo de e novos medicamentos, para deter os desequilí-
2016 na Journal of Cachexia, Sarcopenia and Mus- brios orgânicos que agravam a evolução do cân-
cle. “Em consequência, o tecido adiposo perde a cer e outras doenças. O que permanece aberto,
função de armazenar energia para o organismo”, sem soluções à vista, é uma das perguntas que
ressalta Batista. motivaram o médico Paulo Alcântara há cinco
Em seu laboratório, Batista tes- anos. Até agora existem apenas hipóteses de di-
tou a pioglitazona, já usada contra fícil comprovação para explicar por que algumas
diabetes, para deter a caquexia. O pessoas têm caquexia e outras não, ainda que com
fármaco deteve a redução da massa a mesma idade e o mesmo estágio de câncer. n
Níveis baixos muscular e aumentou em 27% a so-
brevida de ratos com tumor de Wal-
de albumina e ker 256, em comparação com os ani-
altos da proteína mais do grupo-controle. Descrito em
2015 na PLOS ONE, esse estudo su-
Projetos
1. Inflamação sistêmica em pacientes com caquexia associada ao

c-reativa gere que a pioglitazona poderia ser câncer: Mecanismos e estratégias terapêuticas, uma abordagem
em medicina translacional (nº 12/50079-0); Modalidade Projeto
usada nos estágios iniciais e finais da
poderiam indicar
Temático; Pesquisadora responsável Marília Cerqueira Leite Seelander
caquexia, por reduzir a resistência (USP); Investimento R$ 2.246.952,23.
à insulina e facilitar a absorção de 2. Bases moleculares da caquexia: Adipogênese e remodelagem da
o início da glicose pelas células, embora possa
matriz extracelular do tecido adiposo branco de pacientes com câncer
gastrointestinal (nº 10/51078-1); Modalidade Jovem Pesquisador;
causar danos ao coração. Estudos
caquexia clínicos em andamento nos Estados
Pesquisador responsável Miguel Luiz Batista Jr. (UMC); Investimento
R$ 910.407,63.

Unidos avaliam também as possibili- Artigos científicos


dades de uso de um antidiabético, a ANTUNES-CORREA, L. M. et al. Molecular basis for the improvement
metformina, e outros medicamentos in muscle metaboreflex and mechanoreflex control in exercise-trained
como a grelina e anamorelina. humans with chronic heart failure. American Journal of Physiology. v. 307,
n. 11, p. 1655-66. 2014.
No Instituto de Biologia da Universidade Esta- BATISTA, M. L. Jr., Cachexia-associated adipose tissue morphological
dual de Campinas (IB-Unicamp), a bióloga Maria rearrangement in gastrointestinal cancer patients. Journal of Cachexia,
Cristina Marcondes verificou que a leucina, ami- Sarcopenia and Muscle. v. 7, n. 1, p. 37-47. 2016.
BELLOUM, Y. et al. Cancer-induced cardiac cachexia: Pathogen-
noácido com ação anti-inflamatória, evita a degra- esis and impact of physical activity. Oncology Reports. v. 37, n. 5,
dação muscular em ratos com tumor de Walker p. 2543-52. 2017.
256. “O tumor continua a crescer, mas os animais BELUZI, M. et al. Pioglitazone treatment increases survival and pre-
vents body weight loss in tumor– bearing animals: Possible anti-
recuperam pelo menos 25% da massa muscular”, cachectic effect. PLoS One. V. 10, n. 3, p. 1-16. 2015.
ela observou. Seu grupo também está buscando LIRA, F.S. et al. The therapeutic potential of exercise to treat cachexia.
marcadores moleculares que alertem para o início Current Opinion in Supportive and Palliative Care. v. 9, n. 4, p. 317-
24. 2015.
dessa síndrome, em sintonia com a preocupação MOORE, S. C. et al. Association of leisure-time physical activity with
das equipes médicas que atendem pessoas com risk of 26 types of cancer in 1.44 million adults. Jama Internal Medi-
câncer e caquexia e gostariam de fazer um diag- cine. v. 176, n. 6, p. 816-25. 2016.
NOBRE, T. S. et al. Exercise training improves neurovascular control
nóstico e agir o mais cedo possível para deter a and calcium cycling gene expression in patients with heart failure with
perda de peso e o desequilíbrio orgânico. cardiac resynchronization therapy. American Journal of Physiology.
Marília Seelander lembra que, como a medição v. 311, n. 5, p. 1180-88. 2016.
VAN DE BOOL, C. et al. A randomized clinical trial investigating the
de IL-6 e outras citocinas inflamatórias é cara, efficacy of targeted nutrition as adjunct to exercise training in COPD.
uma alternativa seria se valer dos exames dos Journal of Cachexia, Sarcopenia and Muscle. 2017 (no prelo).

pESQUISA FAPESP 258  z  49


Entrevista Yvonne Primerano Mascarenhas y

A senhora
dos cristais
Física homenageada em congresso mundial de
química começou na década de 1960 a estudar
estruturas moleculares por meio de difração de raios X

Reinaldo José Lopes

Y
vonne Primerano Mascarenhas colocou os refere ao empacotamento das moléculas no cristal. Por
pés pela primeira vez em São Carlos em feve- meio dessa técnica, um feixe de raios X incide sobre o
reiro de 1956, com o primeiro filho no colo e cristal e gera outros feixes; os valores dos desvios des-
a segunda filha na barriga. Para quem vinha ses feixes indicam as posições dos átomos da molécula.
do Rio de Janeiro com a família, era uma Aos 86 anos, com quatro filhos, 10 netos e sete bis-
aventura chegar à pequena cidade do interior paulista. netos, ela continua publicando artigos científicos. Um
Gastavam-se 24 horas a bordo de dois trens diferentes – a dos recentes trata de uma substância extraída das fo-
estrada asfaltada terminava em Rio Claro, a 65 quilôme- lhas do jaborandi com ação contra o verme cau­sador
tros de São Carlos. Paulista de Pederneiras, Yvonne tinha da esquistossomose. Outro trata da caracterização de
concluído duas graduações, uma em química e outra em uma proteína isolada da bactéria Bacillus thurigiensis
física, poucos anos antes na Universidade do Brasil, atual que poderia ser usada como inseticida.
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela e o então marido, Em julho, Yvonne foi uma das 12 cientistas a receber
o físico carioca Sérgio Mascarenhas de Oliveira, tinham o prêmio oferecido pela União Internacional de Quími-
sido contratados como professores do nascente campus ca Pura e Aplicada (Iupac) a mulheres com realizações
da Universidade de São Paulo (USP) na cidade, que na de impacto na pesquisa em química ou engenharia quí-
época tinha apenas uma escola de engenharia. mica. Ela recebeu Pesquisa FAPESP em seu laboratório
Ao longo das décadas seguintes, Yvonne e o marido da USP em São Carlos poucos dias antes de viajar para
teriam um papel crucial na criação do Instituto de Fí- São Paulo para receber o prêmio na abertura do 46º
sica de São Carlos (IFSC-USP) e na transformação do Congresso Mundial de Química da Iupac.
campus da cidade em um dos mais importantes polos
de pesquisa da América Latina. Combinando seus in- Qual o significado desse seu primeiro prêmio inter-
teresses em química e física, ela se tornou a matriarca nacional?
da cristalografia no país, ensinando gerações de alunos Foi interessante porque, embora eu trabalhe num ins-
a investigar a estrutura dos mais variados tipos de mo- tituto de física, minha atividade é interdisciplinar. Lido
Léo Ramos Chaves

léculas. A cristalografia consiste no uso da difração de muito com os químicos e a química foi a minha primeira
raios X para determinar tanto a estrutura molecular de graduação. Minha relação com a química começou quan-
uma substância quanto sua estrutura cristalina, que se do eu estava com 14 ou 15 anos e fazia o curso clássico

50  z  agosto DE 2017


Física de São Carlos
identificou a estrutura
do hormônio oxitocina
e de substâncias com
potencial terapêutico
extraídas de plantas

[na época, uma das variantes do atual


ensino médio] num colégio particular
muito bom, o Mello e Souza, no Rio de
Janeiro. Nessa época meu grande amor
era pelas letras. Eu pensava em fazer le-
tras clássicas e planejava aprender grego
assim que chegasse à faculdade. Os alu-
nos do clássico tinham disciplinas como
latim, literatura portuguesa e brasileira,
francês etc. e também aprendiam o es-
sencial de física, química e matemática.
Foi então que cursei a disciplina de quí-
mica com um professor jovem, médico
de formação, Albert Ebert [1916-2016].
Foi ele que despertou meu interesse so-
bretudo pela química orgânica.

O que chamou sua atenção?


Foi a possibilidade de estudar os com-
postos que formam todas as substâncias,
inclusive os seres vivos, e a maneira muito
lógica como o professor Ebert apresen-
tava tudo isso. Com ele, vi diante de mim
um universo de aplicações, uma ciência
extremamente importante. Logo que me
formei, Ebert me ajudou a arrumar um
emprego no Liceu Franco-Brasileiro, no
Rio. Anos depois ele se tornou diretor da
Faculdade de Educação da UFRJ.

Quando a senhora estava na graduação,


em 1953, foi desvendada e publicada a
estrutura da molécula de DNA com ba-
se no trabalho de cristalografia de uma
química britânica, Rosalind Franklin.
Como esse fato chegou até vocês? Te-
ria sido uma inspiração para se tornar
cristalógrafa?
Minha introdução à cristalografia ocor-
reu de um jeito mais simples. No curso
de química, a disciplina de cristalografia
era dada por professores do curso de his-
tória natural, mineralogistas que usavam
apenas técnicas ópticas, com luz visível,
para analisar e classificar os minerais.
Por sorte, Elisiário Távora tinha come-
çado a lecionar um ano antes na UFRJ,
depois de fazer o doutorado no Instituto
de Tecnologia de Massachusetts (MIT)

pESQUISA FAPESP 258  z  51


com um grande cristalógrafo, Martin ção de raios X, é cada vez mais fácil es-
Buerger. Távora chegou com as ideias tudar moléculas pequenas, com até 200
fresquinhas da cristalografia moderna átomos, sem contar hidrogênios. Para
e aí sim realmente vi a potencialidade Com bons macromoléculas como as proteínas, ain-
da área, com o uso de técnicas como a da existe o problema de como purificar,
difração de raios X. No início eu sabia cristais e obter monocristais e inserir átomos pe-
muito pouco de biologia e bioquímica; sados; às vezes, levam-se anos tentando
a físico-química é que me impressio-
programas todo esse processo, o que é indispensável
nava, tanto que fui fazer graduação em de computador, para determinar a estrutura molecular.
física porque achei que precisava dis- Por sorte, hoje existem equipamentos
so para me inteirar melhor dessa área. é cada vez automáticos que ajudam muito a prepa-
Naquela época era muito difícil obter rar soluções variando simultaneamente
a estrutura de moléculas com difração mais fácil vários parâmetros, tais como a acidez, a
de raios X, mas essa possibilidade ficou viscosidade e o solvente.
na minha cabeça como algo que valia a
estudar
pena tentar. Quando eu e Sérgio viemos moléculas Um bom cristal também é esteticamen-
para São Carlos, em 1956, encontramos te atraente?
um bom laboratório de ensino de física, pequenas, Sem dúvida é! Eu os observo ao micros-
com equipamentos de origem alemã, e cópio e considero bons os que não têm
um aparelho de raios X médico no porão. com até defeito. Às vezes, o cristal tem forma
Sérgio conseguiu trocá-lo por outro, mais externa bonita, mas defeitos que com-
adequado aos nossos objetivos, e come-
200 átomos plicam a análise, ou então é geminado,
çamos a fazer experimentos para obter a o que também atrapalha. Uma estrutura
orientação de monocristais. Depois, em desejável é a que aparece quando a dis-
1959, fui com Sérgio, que já era profes- tribuição das celas unitárias [as unidades
sor catedrático, para a Universidade de cristalográficas com forma e simetria de-
Pittsburgh, nos Estados Unidos, e fiz um finidas que compõem o cristal] é a mais
estágio de pesquisa em cristalografia. Foi Não é nem artística nem intuitiva. Temos perfeita possível. Defeitos sempre exis-
lá que comecei a usar técnicas de análise uma porção de informações a partir da tirão, mas a prova final de que o cristal
usando monocristais e aprendi a inter- difração dos raios X pelos elétrons do é bom vem quando usamos o feixe de
pretar os difratogramas [diagramas de material. No início a determinação de raios X e obtemos dados que permitem
difração de raios X em cristais] e a usar estruturas era feita pelo método de tenta- determinar, sem sombra de dúvida, uma
computadores, que ainda eram muito tiva e erro, propondo-se um modelo para cela unitária com simetria definida. Há
simples e enormes. Usávamos cartões a estrutura e calculando as intensidades cristais de quartzo e outros materiais
perfurados para inserir os dados expe- dos feixes difratados; se concordassem com muitas geminações em formatos
rimentais e realizar uma parte do cálcu- com os dados experimentais se estabele- maravilhosos, mas que não servem pa-
lo com os programas disponíveis nessa cia a veracidade do modelo. Depois foram ra a análise da estrutura molecular nem
época, depois outra parte com outros criados vários métodos para o tratamento para aplicações tecnológicas.
cartões, e assim por diante. Cada cartão dos dados experimentais. O primeiro era
tinha uma perfuração na última coluna o método do átomo pesado. Um átomo Quais são seus trabalhos mais impor-
para indicar que precisávamos somar relativamente mais pesado de uma mo- tantes?
o resultado com o do próximo cartão. lécula vai dominar a difração e dar um As estruturas que eu estudei foram im-
pico no mapa de densidade eletrônica, portantes para os químicos ou físicos, com
Por que os monocristais são importantes? calculado a partir das intensidades dos quem sempre colaborei. Lembro de uma
Para conhecer a estrutura de uma mo- feixes difratados, e isso é uma pista so- colaboração com Otto Gottlieb [quími-
lécula, temos de obter um monocristal a bre a estrutura molecular. A partir daí se co tcheco radicado no Brasil, 1920-2011],
partir de uma solução. Um monocristal consegue calcular os mapas de densidade que trabalhava com compostos obtidos de
bom possui uma forma geométrica de eletrônica e atribuir os picos que vão sen- plantas no Instituto de Química da USP
acordo com a sua simetria e é transpa- do obtidos a átomos leves, como oxigênio e na UFRJ (ver Pesquisa FAPESP no 43).
rente, mas deve ser pequeno. Cada vez e carbono. É óbvio que esse processo só Ele estudava as substâncias da planta Ani-
mais, é possível usar cristais menores, começou a funcionar com eficiência com ba gardineri e não conseguia esclarecer
com até centésimos de milímetro, à me- a ajuda de computadores; antes todos os o mecanismo de dimerização [formação
dida que melhoram as fontes e detecto- cálculos eram feitos à mão com máqui- de uma estrutura dupla, pela união de
res de raios X. na de calcular. Hoje o maior problema é duas unidades similares] de uma de suas
obter um bom cristal. Vale a regra GI = moléculas, a 5,6-dehidrocavaína. Gos-
A interpretação das imagens de cris- GO, ou seja, garbage in, garbage out [“se tei muito de fazer esse trabalho, porque
talografia parece ter um quê de intui- entra lixo, sai lixo”]. Com bons cristais e Otto ficou feliz quando viu o resultado.
tiva ou até artística. Essa impressão bons programas para obter a estrutura a Ele tinha muito interesse nas plantas da
está certa? partir de dados experimentais de difra- família Lauraceae, que apresentam uma

52  z  agosto DE 2017


mas não temos monocristal aí dentro”.
arquivo pessoal

Yvonne (à dir.) com Olhando o pó dentro do vidro, vi partícu-


o físico Herbert las brilhando, o que significava que havia
Hauptman e sua
cristais ali, sim. Eles permitiram que eu
esposa, Edith
Citrynell, em trouxesse para São Carlos uma amostra
uma visita a uma dessa substância, que atua sobre o ver-
fazenda em me Schistosoma mansoni, causador da
Descalvado, após
esquistossomose. Usando os monocristais
um curso em São
Carlos, em 1976 que de fato existiam no pó, determinamos
sua estrutura. Como a forma natural dela
não é o ideal para a administração como
fármaco, por ser insolúvel em água, Ana
Maria sintetizou vários derivados dessa
substância, complexando-a com zinco e
cobre, o que a torna mais solúvel em água.
As estruturas moleculares desses com-
plexos também foram determinadas em
nosso grupo. A partir, em grande parte, do
grupo de cristalografia de nosso instituto,
formaram-se muitos mestres e doutores,
que, por sua vez, orientaram seus próprios
alunos. Existem hoje cerca de 100 pesqui-
sadores com sólida formação em cristalo-
grafia estrutural em várias universidades
e centros de pesquisa no Brasil.

Seu prêmio no congresso da Iupac era


dirigido para mulheres cientistas. Co-
grande diversidade de usos medicinais e condutora como isolante. Meu interesse mo vê as dificuldades de participação
industriais. O primeiro trabalho que fiz por produtos naturais ressurgiu quando das mulheres no mundo da pesquisa?
nos Estados Unidos foi a determinação coordenei para a Capes [Coordenação As universidades mais tradicionais do
da estrutura molecular de um barbitura- de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível mundo negavam o ingresso das mulheres
to, o ácido violúrico. A determinação de Superior] o projeto Avanços, Benefícios até meados do século XX. Na Faculdade
sua estrutura apresentou um resultado e Riscos da Nanotecnologia Aplicada à Nacional de Filosofia da antiga Univer-
inédito na área de ligações de hidrogênio, Saúde no âmbito da rede NanoBiotec que sidade do Brasil, atual UFRJ, esse tipo de
devido ao fato de uma molécula de água versou, em parte, sobre substâncias de ori- barreira não existia, embora houvesse um
de cristalização apresentar uma ligação gem natural com ação farmacológica. Uma número reduzido de mulheres nos cursos
bifurcada, isto é, um de seu hidrogênios das plantas estudadas foi o jaborandi. Um de ciências exatas; havia mais no curso de
faz ligação com dois átomos diferentes dos componentes extraídos de suas folhas química do que no de física. Ainda hoje,
da molécula de ácido violúrico. Por essa já está em uso medicinal, para tratamen- por razões a meu ver históricas e cultu-
razão o artigo publicado teve um núme- to de problemas oftálmicos. Entretanto, rais, os homens é que ocupam os cargos
ro razoável de citações. Esse é a meu ver o resíduo da extração, constituído por de liderança e decisão, e a sociedade é
mais um exemplo de um achado cientí- outros componentes da planta diluídos feita de maneira a conservar o poder nas
fico proporcionado pela boa sorte! Outro em solventes orgânicos, não deveria ser mãos dos grupos dominantes. Uma amiga
trabalho que considero importante foi a simplesmente jogado no ambiente. Veio minha ficou muito revoltada quando os
determinação da estrutura da oxitocina, daí a ideia de analisar todos os compostos integrantes de uma banca de um concur-
hormônio de grande importância biológi- do extrato em busca de outras substâncias so que ela estava prestando, longe daqui,
ca, durante uma visita ao Departamento com propriedades interessantes. Esse era perguntaram como ela resolveria o fato
de Cristalografia do Birbeck College, em o tema de um grupo de pesquisa do cam- de o marido dela já ser professor em São
Londres, em colaboração com Sir Tom pus de Delta do Parnaíba da Universidade Carlos. É o tipo de coisa que ninguém
Blundell. Passei a me interessar na ca- Federal do Piauí, onde realizamos um dos perguntaria a um candidato homem. Cos-
racterização de materiais semicristalinos nossos workshops. Incidentalmente notei tumo dizer que a luta pelos direitos das
ao participar do INCT [Instituto Nacio- que os pesquisadores desse grupo esta- mulheres, em tese, já foi vencida. A ques-
nal de Ciência e Tecnologia] em políme- vam entregando amostras de um desses tão é aprender a exercer esses direitos.
ros condutores, coordenado por Roberto componentes do resíduo para Ana Maria Na política e no governo, a maioria de
Mendonça Faria, aqui do IFSC. Durante o da Costa Ferreira, professora do Instituto nossos representantes são homens. Em
doutoramento de meu aluno Edgar San- de Química da USP, e perguntei: “Vocês quem as mulheres votam? Em geral em
ches, conseguimos esclarecer vários de- sabem a estrutura dessa molécula?”. En- homens, como o resultado das eleições
talhes da polianilina, tanto sob sua forma tão eles disseram: “A gente adoraria saber, revela claramente. n

pESQUISA FAPESP 258  z  53


BIOLOGIA y

A era da
edição gênica
Pesquisadores corrigem
em embriões humanos mutação
associada a uma doença cardíaca

Ricardo Zorzetto

P
esquisadores liderados pelo ge- fita dupla de DNA e ativa nos embriões os
neticista Shoukhrat Mitalipov, da mecanismos de reparo que produziram
Universidade de Saúde e Ciência uma cópia íntegra do MYBPC3 – as célu- Embriões nos estágios
de Oregon, nos Estados Unidos, las humanas têm duas, mas uma mutada iniciais de multiplicação
após reparo de gene
usaram uma técnica de edição de genes já causa problemas. Antes das equipes feito com CRISPR-Cas9
para corrigir em embriões humanos uma de Mitalipov e de Liu, outros grupos na
mutação responsável pelo desenvolvi- China haviam tentado usar a técnica para
mento tardio de uma doença cardíaca. editar embriões humanos, sem sucesso. na Suécia, na Nature. E levanta questões
Essa é a primeira demonstração feita nos Mitalipov e seu grupo conseguiram éticas. Teme-se, por exemplo, que a edi-
Estados Unidos de que é possível eliminar aumentar a eficiência e a segurança da ção de genes possa ser usada para gerar
uma cópia defeituosa de um gene e subs- técnica ao identificar o momento e o mo- pessoas mais fortes ou inteligentes.
tituí-la por uma versão íntegra nas células do mais adequados de adotá-la. Eles in- “A CRISPR-Cas9 é uma técnica pode-
do embrião sem, aparentemente, preju- jetaram a Cas9 no óvulo com o esperma- rosa, que pode corrigir uma mutação”,
dicar o seu desenvolvimento. Valendo-se tozoide na fecundação – mesmo assim, afirma a bióloga Ângela Saito, pesquisa-
da mesma técnica, em março deste ano, a ela só funcionou em metade dos casos. dora do Laboratório de Modificação do
equipe de Jianqiao Liu, da Universidade Quando foi inserida após a fecundação, Genoma (LMG) no Laboratório Nacio-
Médica de Guangzhou, na China, já havia os embriões apresentaram um problema nal de Biociências (LNBio), em Cam-
restaurado em embriões humanos dois chamado mosaicismo: metade de suas pinas. “Como há o risco de alterações
genes ligados a duas formas de anemia, células tinha o gene corrigido e metade, inespecíficas e resultados indesejáveis,
mas com um índice menor de sucesso. a versão defeituosa. mais estudos precisam ser feitos antes
No estudo publicado em 2 de agosto na Inicialmente, os pesquisadores sus- que possa ser usada para tratar doenças
revista Nature, Mitalipov e outros 30 pes- peitaram que, mesmo quando corrigiu hereditárias humanas.” Para o embrio-
quisadores dos Estados Unidos, da Coreia o problema do embrião, a Cas9 tivesse logista José Xavier Neto, coordenador
do Sul e da China usaram uma técnica atuado sobre 15 regiões diferentes da do LMG do LNBio, “por ora, a edição
de edição de genes chamada CRISPR- originalmente prevista. Uma análise pos- de genes apresenta uma solução para
Versão atualizada em 29/08/2017

-Cas9 para eliminar a cópia alterada do terior não encontrou defeitos nessas re- um problema que pode ser resolvido de
gene MYBPC3, que codifica uma proteína giões, sugerindo que o problema estava modo mais seguro com a seleção de em-
descoberta nos anos 1980 pelo biólogo na técnica de verificação usada. Nenhum briões obtidos por fertilização in vitro
brasileiro Fernando Reinach. Esses sis- embrião foi implantado em mulheres, antes da implantação no útero”. n
tema de edição é formado por uma pro- algo não permitido nos Estados Unidos.
teína (Cas9) ligada a uma molécula que a O trabalho prepara o caminho para o
direciona a uma região de repetições do uso clínico de terapias baseadas nessa Artigo científico
DNA conhecida pela sigla CRISPR (ver ferramenta, escreveram Nerges Winblad MA, H. et al. Correction of a pathogenic gene mutation
ohsu

Pesquisa FAPESP nº 240). A Cas9 corta a e Fredrik Lanner, do Instituto Karolinska, in human embryos. Nature. 2 ago. 2017.

54  z  agosto DE 2017


ecologia y
ivan sazima

Aliança no fundo do mar


A
As seis espécies de s águas do atol das Rocas, a 267 quilômetros (km)
de Natal, Rio Grande do Norte, abrigam um dos
peixes-limpadores fenômenos mais chamativos dos recifes, quando
os peixes predadores se concedem momentos de
do atol das Rocas trégua e se submetem à limpeza realizada por outros peixes
conseguem alimento e camarões. Em um dos levantamentos mais abrangentes já
realizados no atol, biólogos da Universidade Federal de Santa
ao remover parasitas Catarina (UFSC) identificaram oito espécies limpadoras – seis
de peixes e duas de camarões – nessa área de conservação
de peixes maiores biológica, fechada para visitação pública, com área de 5,5
quilômetros quadrados (km2).
Os peixes-limpadores se especializaram em comer parasi-
Carlos Fioravanti tas, tecidos doentes ou muco de peixes maiores e tartarugas,
que os especialistas chamam de clientes. “Como resultado
dessas interações, os clientes mantêm a saúde e o limpador
consegue alimento, mas os dois lados tiveram que evoluir até
se reconhecerem e não se atacarem na hora da limpeza”, re-
Elacatinus sume o biólogo colombiano Juan Pablo Quimbayo Agreda,
phthirophagus
(amarelo e preto)
pesquisador da UFSC. Ele integra a Rede Nacional de Pes-
limpando quisa em Biodiversidade Marinha (Sisbiota-Mar), que reúne
Cephalopholis fulva 30 pesquisadores de nove instituições, com o propósito de

pESQUISA FAPESP 258  z  55


avaliar a biodiversidade das quatro ilhas de espécies de clientes, 18, de um total de
oceânicas do Brasil: o atol das Rocas, o 22 espécies de peixe e uma de tartaruga
arquipélago de Fernando de Noronha e que procuraram os serviços dos limpa-
o de São Pedro e São Paulo e as ilhas de dores. Em um artigo publicado em ju-
Trindade e Martim Vaz. No atol, o lho deste ano na revista Environmental
“Os peixes-limpadores evoluíram a Biology of Fishes, os biólogos atribuem
partir de outros peixes que comiam pe- bodião prefere o número elevado de sessões de limpeza
quenos crustáceos e outros invertebra- ao fato de a maioria (82%) dos clientes
dos”, comenta o biólogo Carlos Ferreira,
os clientes ser herbívoros; além disso, o bodião era
professor da Universidade Federal Flu- herbívoros e a espécie mais abundante por lá.
minense (UFF) e um dos coordenado- Os três biólogos observaram compor-
res da Sisbiota-Mar. Segundo ele, ao se evita os tamentos peculiares dos peixes-limpa-
especializarem em comer parasitas, um dores do atol. Em Fernando de Noronha,
recurso alimentar pouco abundante, os predadores, apenas os bodiões jovens se alimentam
peixes que vivem principalmente em re- de parasitas dos outros peixes, mas no
cifes “evitaram a competição por outros
que poderiam atol o hábito se mantém também entre
alimentos”. comê-lo se a os adultos. No atol, o bodião evita se
Em maio de 2016, sob a orientação de aproximar de espécies que poderiam
Ferreira e dos biólogos Sérgio Floeter, limpeza não comê-lo. “Supomos que essa espécie,
da UFSC, e Ivan Sazima, da Universi- de algum modo, consegue identificar as
dade Estadual de Campinas (Unicamp), fosse bem-feita espécies perigosas, provavelmente por
Quimbayo e os biólogos Lucas Nunes e um processo evolutivo que eliminou os
Renan Ozekoski, também da Sisbiota- imprudentes”, diz Quimbayo.
-Mar, observaram 318 interações de lim- O neon apresentou uma dieta flexível,
peza entre os peixes, em profundidades abandonando os hábitos herbívoros de
variando de 1 metro (m) a 5 m, durante outros lugares para, no atol, saciar-se
44 horas ao longo de 22 dias. com vermes, até mesmo arriscando-se
Duas espécies exclusivas da região ao se aproximar de clientes carnívoros,
foram as mais atuantes: o bodião-de- como o tubarão-lixa (Ginglymostoma
-noronha (Thalassoma noronhanum), que cirratum), que chega a 4 m de compri-
atinge 12 cm quando adulto, e o neon- mento e 100 quilogramas (kg) de peso.
O camarão Lysmata, de
-cata-piolho (Elacatinus phthirophagus), Ao redor da ilha Malpelo, a 400 km a
antenas brancas, entre
de até 4 cm. O bodião participou de 75% as nadadeiras ventrais oeste da costa da Colômbia, entre agosto
das faxinas e atendeu ao maior número de um Holocentrus de 2010 e abril de 2015, Quimbayo iden-

56  z  agosto DE 2017


Atol das Rocas,
a 267 km a
nordeste de Natal,
RN: oito espécies
limpadoras entre
os recifes

tificou cinco espécies de peixe agindo


como limpadores, nenhuma delas espe-
cializada nessa atividade como no atol.
Em metade (56%) das 120 interações, os
clientes eram espécies predadoras, como
garoupas, raias e tubarões.

Rituais de limpeza
Mais frequentes no início e final do dia,
as limpezas podem durar de poucos se-
gundos a vários minutos. As sessões de
limpeza ocorrem em geral em espaços es-
pecíficos, as chamadas estações de limpe- Pomacanthus paru
za, próximas a rochas ou corais, e seguem (preto com listras do parque em que são permitidas ativi-
amarelas) limpando
rituais próprios (ver Pesquisa FAPESP no Acanthurus
dades como a pesca”, observa Ferreira.
79). Os clientes entram nas estações de Segundo ele, os peixes da área protegida
limpeza e assumem cores mais vivas ou podem nadar para a não protegida, onde
nadam de boca para baixo, indicando que são pescados.
se deixarão limpar e não atacarão. “Eles comprimento, e Stenopus hispidus, com No arquipélago de São Pedro e São Pau-
estão em uma zona de trégua, ninguém corpo malhado de branco e vermelho, lo, a mil km de Natal, já não há tubarões
vai comer ninguém”, relata Quimbayo. antenas brancas e até 10 cm de compri- e os cardumes de atum foram bastante
Ele já viu que os limpadores não devem mento. Eles responderam por apenas reduzidos por causa da pesca excessiva,
abusar da sorte para não correr o risco 3,7% e 2,7%, respectivamente, de todos segundo Ferreira. Nos últimos anos, a ilha
de serem comidos durante o serviço. “Se os episódios de limpeza registrados e en- de Trindade, a 1,2 mil km a leste de Vitó-
o limpador tirar um pedaço de pele ou traram em ação principalmente quando ria, capital do Espírito Santo, tem sofrido
muco, o cliente pode não gostar e reagir os peixes-limpadores não estavam por a ameaça da pesca submarina, “por não
com uma mordida brusca.” perto, como Quimbayo já havia observado ter nenhum status de proteção”, diz ele.
Dispersas pelas baías e ilhas do mundo, em um estudo de 2012 nas ilhas de Cabo Em agosto deste ano, na quinta expedi-
circulam 208 espécies de peixe-limpador, Verde e São Tomé, na costa da África. ção do projeto, a equipe da Sisbiota-Mar
o equivalente a cerca de 3% das 6.500 pretende voltar a Trindade para fazer o
espécies de peixe de recifes e menos de Ilhas em perigo monitoramento anual das comunidades
1% do total das 30 mil espécies de peixe, Os levantamentos da Sisbiota-Mar indi- de organismos marinhos. n
de acordo com um levantamento coor- caram que o atol das Rocas é a mais pre-
denado por David Brendan Vaughan, da servada das quatro ilhas oceânicas brasi-
Universidade James Cook, da Austrália, leiras, por ser uma reserva biológica com Artigos científicos
publicado em 2016 na revista Fish and Fi- acesso permitido somente a pesquisado-
fotos  juan quimbayo

QUIMBAYO, J. P. et al. Cleaning interactions at the only


sheries. Camarões-limpadores são ainda res. “Mesmo em Fernando de Noronha, atoll in the South Atlantic. Environmental Biology of
mais raros. Das 51 espécies já identifica- que possui status de parque nacional, a Fishes. v. 100, n. 7, p. 865-73. 2017.
VAUGHAN, D. B. et al. Cleaner fishes and shrimp diver-
das, duas vivem no atol: Lysmata grabha- área protegida sustenta uma população sity and a re-evaluation of cleaning symbioses. Fish and
mi, com antenas brancas e até 6 cm de humana crescente e existe uma área fora Fisheries. v. 18, p. 698-716. 2017.

pESQUISA FAPESP 258  z  57


Geoquímica y

Refúgios aprazíveis em

um mundo
de
Experimentos com bactérias
sugerem que a vida
pode ter surgido em terra firme

vulcoes
Maria Guimarães

D
iversas representações artís- cios para impulsionar reações químicas resolveram ver o que bactérias e outros
ticas mostram a Terra repleta pouco triviais capazes de formar molé- seres unicelulares atuais têm a dizer
de vulcões sob um verdadeiro culas complexas autorreplicantes: a base sobre o período e chegaram a uma con-
bombardeio de meteoros du- da vida. Não há consenso sobre isso, em clusão diferente. “O surgimento da vida
rante o Hadeano, o período geológico parte porque restam poucos indícios que também em terras emersas é uma pos-
que durou de 4,6 bilhões a 4 bilhões de permitam reconstruir, tanto do ponto de sibilidade forte”, defende Souza Filho,
anos atrás. Esse seria o cenário do surgi- vista geológico como biológico, esse pe- com base em resultados publicados em
mento da vida, em formas ainda simples. ríodo da história do planeta. Em geral se junho na revista Scientific Reports.
A ideia corrente é que oceanos de magma procuram indícios sobre o Hadeano nas O trabalho é consequência de um en-
ou fontes hidrotermais, frestas na crosta rochas, mas o engenheiro geólogo Carlos contro entre geoquímica e biologia. Du-
terrestre que espirram água quentíssima Roberto de Souza Filho e sua equipe no rante um estágio de pós-doutorado no
no fundo dos mares ou na superfície do Instituto de Geociências da Universidade laboratório de Souza Filho, o geoquímico
planeta, poderiam ser ambientes propí- Estadual de Campinas (IGe-Unicamp) Alexey Novoselov fez simulações numé-

58  z  agosto DE 2017


Bombardeio tardio
Formação de asteroides
Primeiras
da Terra células com
Cristais de Surgimento dos
núcleo Era dos
zircão de seres humanos
dinossauros
Jack Hills modernos

a evolução 4,56 4,4 4,1 a 3,8 2,7 2,3 0,5 0,2 bilhões de
anos atrás

no Planeta Hadeano arqueano

Primeiros fósseis de
Aumento
do oxigênio
proterozoico fanerozoico

seres vivos na atmosfera


Formação Primeiros
do núcleo animais com
da Terra esqueleto

FONTE baseado em infográfico de andree valley /


Formação universidade de wisconsin-madison
da Lua

ricas usando informações sobre algumas tos componentes químicos inorgânicos, cristais de zircão encontrados em Jack
características químicas das bactérias e como óxido de silício (SiO2) e hidróxido Hills, na Austrália, formados há cerca de
arqueias atuais. Formadas por uma só de titânio (Ti(OH)4) e os íons de cálcio 4,4 bilhões de anos. Muito estudados, eles
célula, as bactérias e as arqueias exis- (Ca2+), de magnésio (Mg2+), de sulfato indicam que havia oxidação no manto
tentes hoje descendem de um ancestral (SO42-), entre outros. Uma corrente res- terrestre e sugerem a existência de água
comum – possivelmente o último ances- trita de pesquisadores começou a sugerir líquida naquela época. Em parceria com
tral comum universal ou Luca, na sigla nos últimos anos que essa similaridade pesquisadores do Chile, da Argentina, dos
ilustração  sandro castelli

em inglês – que teria existido há cerca seria um indicador da composição quí- Estados Unidos e da Alemanha, Novose-
de 4 bilhões de anos, pouco após o sur- mica do ancestral comum, que, por sua lov, Souza Filho e outros colaboradores
gimento da vida na Terra. Mesmo ten- vez, refletiria as condições químicas do da Unicamp tentaram obter informa-
do divergido há tanto tempo, esses dois ambiente em que existiu. ções adicionais sobre essa Terra primi-
grupos de seres vivos preservam con- O pouco que se conhece do Hadea- tiva examinando a composição química
centrações muito semelhantes de cer- no vem da análise química de pequenos compartilhada por bactérias e arqueias.

pESQUISA FAPESP 258  z  59


Estas últimas são seres unicelulares que Colônia de
já foram classificados no mesmo grupo Escherichia coli,
bactérias que
que reúne as bactérias, mas, no final dos podem ter
anos 1970, passaram a integrar um grupo compartilhado
à parte. “Tentamos identificar as carac- um ancestral
terísticas minerais do ambiente no Ha- comum com as
arqueias
deano preservadas no metabolismo das
bactérias e das arqueias, os organismos
mais primitivos que existem hoje”, ex-
plica o professor da Unicamp.
As escolhidas foram cinco espécies de
bactérias (Acetobacter aceti, Alicycloba­
cillus acidoterrestris, Escherichia coli, Nes­
terenkonia lacusekhoensis e Vibrio cho­
lerae) e duas de arqueias que vivem em
ambientes hipersalinos (Haloferax vol­
canii e Natrialba magadii). Eles optaram
por trabalhar com bactérias e arqueias
porque não há representantes vivos de
1

seres do Hadeano e os fósseis mais antigos Exemplares 2

preservados são de algas de um perío­do de arqueia da


espécie
mais recente, o Arqueano, que durou de
Haloferax
4 bilhões a 2,5 bilhões de anos atrás. volcanii,
Por meio de análises geoquímicas encontrada em
de alta precisão feitas com um espec- ambientes
hipersalinos
trômetro de massa, os pesquisadores
quantificaram os elementos químicos
inorgânicos compartilhados por essas
espécies de bactérias e arqueias. O gru-
po também cultivou os microrganismos
em meios de cultura com composições
distintas, o que permitiu medir quanto
eles absorvem dos elementos químicos
do ambiente e quanto é passado de uma
geração para outra. Segundo os pesqui-
sadores, essa informação possibilitaria
inferir as condições em que se formou
o suposto ancestral comum a todos os
organismos, como havia sido proposto
alguns anos atrás pelo biólogo Jack Tre- “O ancestral se formou na presença de
vors, professor emérito da Universidade rochas basálticas, de rochas komatiíticas
de Guelph, no Canadá. ou de algum outro tipo de lava vulcâni-
Os resultados obtidos pela equipe de Possivelmente, ca?”, pergunta Souza Filho, exemplifi-
Souza Filho indicam que o metabolis- cando os questionamentos que fizeram.
mo das bactérias e das arqueias de fato obtivemos os Se bactérias e arqueias adquiriram de-
conserva uma assinatura química do am- terminados elementos, significa que os
biente em que se desenvolveram. Como
indícios mais minerais que os contêm deveriam estar
esses seres vivos compartilham vias me- antigos de uma presentes no ambiente original. Os re-
tabólicas que provavelmente surgiram sultados corroboram o que era previsto
há bilhões de anos e usam os mesmos conexão entre pelos modelos baseados nos cristais de
componentes inorgânicos, ao olhar pa- zircão e sugerem que as formas iniciais
ra esses componentes, os pesquisadores os seres vivos de vida surgiram em um clima mode-
estariam enxergando o passado distante rado, com estações secas e úmidas, em
do planeta. “Possivelmente, obtivemos
e o mundo uma atmosfera menos rica em gás carbô-
os indícios mais antigos da existência mineral, diz nico (CO2) do que a atual. O palco teria
de uma conexão entre os seres vivos e o sido um ambiente de terra firme, como
mundo mineral”, conta Novoselov, atual­ Novoselov cavidades em rochas (provavelmente
mente pesquisador no Instituto de Geo­ basaltos) nas quais os microrganismos
logia Econômica e Aplicada do Chile. pudessem se proteger.

60  z  agosto DE 2017


Esse resultado favorece a hipótese de Austrália
que a vida poderia ter surgido em rochas Jack Hills
expostas a intempéries como chuva e Canberra
vento; em um pequeno lago quente, co-
mo propôs o naturalista inglês Charles
Darwin no século XIX; ou em fontes hi-
drotermais em terra firme, segundo uma
hipótese mais recente apoiada por alguns
pesquisadores. Em todos esses casos, as
moléculas características dos seres vivos
– proteínas, lipídios e DNA, por exem-
plo – necessitam de alternância entre a
umidade e a aridez para se formarem, o
fotos 1 Eric Erbe e Christopher Pooley / USDA, ARS, EMU 2 Jerry eichler / ben-gurion university  3 NASA/GSFC/METI/ERSDAC/JAROS, and U.S./Japan ASTER Science Team  4 John W. Valley ​/ University of Wisconsin – Madison

que só poderia ocorrer em terra emersa,


e não no mar. Outros grupos discordam
e apostam que a vida teria se originado
no oceano primitivo ou, como se pas-
sou a propor nas últimas décadas, em
regiões ainda mais inóspitas, como as
fontes hidrotermais de regiões profun-
das do oceano. 4
Souza Filho reconhece que o cenário 3

imaginado a partir desses resultados é Região de Jack Hills, na


hipotético e não exclui que formas pri- Austrália, onde foram partículas para que possam encontrar-se
encontrados os cristais
mordiais de vida também tenham sur- e formar polímeros”, explica. Na água 4
de zircão mais antigos,
gido em altas temperaturas. “Os extre- como o do detalhe, com bi, vários outros minerais, além da argila,
mófilos, seres que vivem em condições 4,4 bilhões de anos mantêm-se estáveis tanto em tempera-
muito adversas, trazem uma lição inte- tura ambiente como a 80 graus Celsius
ressante da qual afloram várias ideias, e abrigam íons de magnésio e potássio
como a de que lugares ultraquentes ou em sua superfície – condições propícias
ultrassalinos são cheios de vida e um necessariamente, reproduzir o passado. à formação de polímeros, conforme in-
grande nicho de exploração científica”, “Nunca vamos saber exatamente como a dica artigo publicado on-line no final de
conta. Ele também vê algumas possíveis vida surgiu, pois não dispomos de infor- 2016 na revista Origins of Life and Evolu­
consequências extraplanetárias de suas mações precisas sobre a Terra daquele tion of the Biosphere. Os fragmentos de
conclusões. “O ambiente de Marte foi período”, afirma. “Mas podemos mostrar minerais funcionam como catalisadores
parecido com o da Terra mais antiga”, que existe a possibilidade de sintetizar que também protegem as moléculas da
conta. “Um melhor entendimento de vida a partir de matéria inanimada.” radiação ultravioleta (não havia camada
como a vida surgiu e evoluiu na Terra Para isso, ele desenvolveu uma água do de ozônio na fase inicial do planeta) e da
coloca em perspectiva a possibilidade mar que chama de água 4 bi, por incluir degradação por hidrólise.
de haver vida em condições externas ao compostos e íons que, supõe-se, eram Em conjunto, experimentos com bac-
nosso planeta e, por analogia, selecionar abundantes naquele momento, como térias e reações químicas na água podem
planetas e regiões mais favoráveis para os íons de sulfato, de magnésio e de cál- ajudar a reconstruir ambientes pretéritos
encontrá-la”, afirma. cio. “Tudo o que tenho feito nos últimos e sugerir como eles podem ter conduzi-
três anos é com essa água.” Os experi- do à formação da vida. n
Oceano de laboratório mentos envolvem dissolver substâncias
A reflexão pode ser relevante tanto pa- nessa água, em diferentes condições, e
ra a possibilidade de haver vida extra- observar o que acontece do ponto de Projeto
terrestre, como pela noção de que ela vista químico. Quantifying the constraints on the environment of early
Earth: the cradle for emerging life on a young planet
pode ter vindo para a Terra a partir de Recentemente, seu grupo mostrou que (nº 11/12682-3); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado;
outros pontos do Universo, uma hipó- a água marinha atual causa o colapso de Pesquisador responsável Carlos Roberto de Souza Filho
tese conhecida como panspermia (ver cavidades manométricas existentes nas (Unicamp); Bolsista Alexey Novoselov; Investimento
R$ 249.462,97.
Pesquisa FAPESP nº 193). “Por enquanto, partículas de argila, o que reduz a possi-
é impossível dizer se a vida surgiu em bilidade de ocorrerem reações químicas Artigos científicos
nosso planeta ou em outro lugar”, diz o entre moléculas aderidas a elas. Já a água NOVOSELOV, A. A. et al. Geochemical constraints on
the Hadean environment from mineral fingerprints of
químico Dimas Zaia, professor da Uni- 4 bi não degrada o mineral, uma obser- prokaryotes. Scientific Reports. v. 7, 4008. 21 jun. 2017.
versidade Estadual de Londrina (UEL). vação que corrobora a hipótese de que CARNEIRO, C. E. A. et al. Interaction at ambient tempera-

Na suposição de que tenha surgido aqui, seria propícia à origem da vida. “As mo- ture and 80 °C, between minerals and artificial seawaters
resembling the present ocean composition and that of
ele tenta recriar em laboratório as condi- léculas orgânicas estão muito diluídas no 4.0 billion years ago. Origins of Life and Evolution of the
ções para que a vida surja. Não significa, mar, por isso precisam concentrar-se em Biosphere. On-line. 14 out. 2016.

pESQUISA FAPESP 258  z  61


Entrevista Nicholas Suntzeff y

Observador do
Universo distante
Um dos descobridores da expansão acelerada
do Cosmo fala sobre o desafio de encontrar
pistas sobre o que é a misteriosa energia escura

Igor Zolnerkevic

O
astrônomo norte-americano Nicho- Schimdt quanto as da equipe concorrente, co-
las Suntzeff, pesquisador da Univer- mandada pelo norte-americano Saul Perlmutter,
sidade do Texas A&M, nos Estados sugeriam o contrário: com o tempo, o espaço en-
Unidos, observa estrelas distantes tre as galáxias expandia de forma acelerada. Por
explodirem há mais de 30 anos. Em esse achado, Perlmutter, Schmidt e Adam Riess
1986, ele e colaboradores do Observatório Intera- foram laureados com o Nobel de Física de 2011.
mericano de Cerro Tololo (CTIO), no Chile, mos- Confirmado por observações posteriores, esse
traram como utilizar o brilho de um tipo especial achado transformou a cosmologia. Hoje os pes-
de explosão estelar, as supernovas do tipo Ia, quisadores dessa área só conseguem explicar a
para medir com precisão a distância de galáxias estrutura atual do Cosmo quando consideram
que se encontram quase no limite do Universo. a expansão acelerada e atribuem esse efeito à
Essas medições levaram à descoberta, em existência da energia escura.
1998, de que o Universo se encontra em expan- Caso a energia escura – que repeliria a matéria,
são acelerada. Isso significa que as galáxias estão ao contrário da força gravitacional – de fato exista
se afastando umas das outras a velocidades ca- e seja responsável pela expansão acelerada, ainda
da vez maiores. Até aquele momento, a maioria restarão perguntas a responder. Ninguém sabe o
dos astrônomos concordava com a ideia de que que ela é. Alguns modelos teóricos propõem que
esse afastamento, iniciado há pouco mais de 13 seja uma forma de energia intrínseca ao espaço
bilhões de anos, após o Big Bang, a explosão que vazio, chamada de constante cosmológica. Outros
teria gerado o Cosmo, estaria ocorrendo a velo- sugerem que seja uma quinta força fundamen-
cidades decrescentes. A causa da desaceleração tal, diferente das quatro outras conhecidas pela
seria a atração gravitacional que os aglomerados física – gravitacional, eletromagnética, nuclear
de galáxias, as maiores estruturas encontradas forte e nuclear fraca.
Léo ramos chaves

no Universo, exercem entre si. Para descobrir qual dessas propostas expli-
Tanto as observações feitas pela equipe de ca melhor o Universo, os físicos necessitam de
Suntzeff e do astrônomo australiano Brian medições mais precisas das distâncias entre as

62  z  agosto DE 2017


Nicholas Suntzeff
colabora com
o principal projeto
de observação do Cosmo
em grande escala,
o Dark Energy Survey

galáxias. O problema é que ainda não


se sabe qual grau de precisão seria ne-
cessário atingir para eliminar algumas
hipóteses. Suntzeff colabora com o prin-
cipal projeto de observação do Universo
em grande escala em andamento, o Dark
Energy Survey (DES), e nos projetos de
construção do telescópio espacial Wilde
Field Infrared Survey Telescope (Wfirst),
da Nasa, e do Large Synoptic Survey Te-
lescope (LSST), no Chile. Em julho, ele
apresentou seminários na Universidade
de São Paulo (USP) em São Carlos e no
Instituto Sul-americano de Pesquisa
Fundamental do Centro Internacional de
Física Teórica (ICTP-SAIFR), que fun-
ciona em São Paulo no Instituto de Física
Teórica da Universidade Estadual Pau-
lista (Unesp). Abaixo, a entrevista que
Suntzeff concedeu a Pesquisa FAPESP.

Como foi descobrir que o Universo se


encontrava em expansão acelerada?
Foi inesperado. O objetivo era medir uma
desaceleração na expansão do Universo.
Esperávamos um número positivo para
a desaceleração, mas medimos um va-
lor negativo. Ficamos animados. Eu era
o encarregado das observações. Os ou-
tros pesquisadores vinham a mim para
saber se o telescópio estava funcionan-
do bem e se os instrumentos estavam
calibrados. Minha assinatura garantia a
qualidade dos dados. A maior preocupa-
ção era saber se havia cometido algum
erro que pudesse levar a informações
enganosas. O grupo de Saul Perlmutter
também estava em Cerro Tololo, reali-
zando as mesmas medições que nós, com
o mesmo telescópio e os mesmos instru-
mentos. Eu os ajudava em uma noite e,
na seguinte, tomava dados para a minha
equipe. Havia uma competição científi-
ca, não pessoal. Gostávamos deles. E eles
chegaram ao mesmo resultado que nós.

O que é essa energia escura que causa a


expansão acelerada do Universo?

pESQUISA FAPESP 258  z  63


Energia escura é um termo que usamos depois de nossas medições, tive certeza
para algo que não entendemos. Não gos- de que não tínhamos cometido engano.
to do termo. Não medimos a energia es-
cura. Nossas medições mostraram que Se tivéssemos Que nível de precisão as medições te-
supernovas, cujo brilho intrínseco co- riam de alcançar para se saber qual
nhecemos, estão muito mais distantes errado ao medir teoria explicaria melhor o que é a ener-
do que seria esperado caso o Universo gia escura?
fosse feito só de matéria. Quanto maior
a distância A energia das flutuações no vácuo pre-
a quantidade de matéria do Universo, das supernovas, vista pela teoria quântica de campos não
mais próximas de nós elas deveriam es- bate com o que vemos. Ela prediz valores
tar. Mas o brilho delas é 20% mais fraco as medições enormes, e observamos um valor muito
do que deveria ser. Essa foi a descoberta. pequeno. A energia escura, seja lá o que
com outras for, tem um efeito desprezível em peque-
O que explicaria esse resultado? nas escalas e é quase impossível medi-la
A primeira interpretação é que se elas
técnicas em um laboratório na Terra. É o seu efeito
estão mais distantes do que deveriam não levariam acumulado por todo o espaço que a faz
estar, caso sofressem apenas a influên- dominar a dinâmica do Universo. Os físi-
cia da força gravitacional, algo as deve à mesma cos não fazem ideia de qual deveria ser o
ter empurrado contra a gravidade. Uma valor da constante cosmológica, por isso
espécie de antigravidade deve tê-las afas- conclusão não sabem dizer com que grau de preci-
tado tanto. A única forma aceitável de são teríamos de medir a expansão do Uni-
produzir uma antigravidade na teoria da verso. Sem um valor teórico, não há com
relatividade geral é acrescentar às equa- o que comparar os dados das observações
ções de Einstein um termo constante, a e dizer se determinado modelo está cor-
chamada constante cosmológica. Qual reto. Os físicos nos pedem para fazermos
fenômeno justificaria a existência da lerada do Universo dificulta a formação medições com a maior precisão possível.
constante cosmológica? Não sabemos. dos aglomerados pela atração gravitacio- Fazemos isso, mas o que vamos testar?
Talvez seja consequência das mesmas nal entre as galáxias. Há ainda o método Eles precisam nos dizer qual o nível de
flutuações na energia do vácuo que faz que investiga as oscilações acústicas ba- precisão a ser alcançado nas medições
surgir as partículas elementares. Foi a riônicas. São ondas no gás ionizado que para que se comece a ver um desvio en-
partir dessa ideia que o físico Michael preenchia o universo primordial e, 300 tre os valores previstos para a constante
Turner, da Universidade de Chicago, mil anos depois do Big Bang, originaram a cosmológica e os medidos. Aumentar a
cunhou o termo energia escura. Não gos- radiação cósmica de fundo, uma forma precisão é cada vez mais difícil. Quero
to do termo porque introduz um viés no de radiação na faixa das micro-ondas que testar alguma teoria, e não me dedicar a
modo de pensar uma explicação para o permeia o Universo. Essas oscilações dei- uma busca ilimitada por medições mais e
fenômeno. Medimos que galáxias dis- xaram marcas circulares, com 400 mil mais precisas. Um resultado interessante
tantes estão muito mais longe do que anos-luz de raio, na distribuição de tem- seria mostrar que o aumento no ritmo de
deveriam. Constante cosmológica e flu- peratura da radiação cósmica de fundo. expansão do Universo não é constante
tuações no vácuo são interpretações para Esses círculos se expandiram com o Uni- ao longo do tempo. Isso não indicaria o
o que observamos. Acredito que meus verso, influenciando a formação de ga- que é a energia escura, mas mostraria
dados estão corretos porque outros ex- láxias, e, hoje, têm 500 milhões de anos- que precisamos de uma nova teoria da
perimentos, usando técnicas diferentes, -luz. No Universo atual, observamos um física para explicá-la. Enquanto existir a
encontraram a mesma coisa. pequeno incremento na probabilidade de possibilidade de que seja uma constante
uma galáxia ter vizinhas a uma distância cosmológica, não podemos atribuir esse
Quais são? de 500 milhões de anos-luz. É preciso ob- efeito a uma força desconhecida.
Há quatro técnicas. Além de medir a dis- servar milhões de galáxias para notar esse
tância das supernovas, podemos buscar aumento de probabilidade, que é muito Como se interessou por cosmologia?
pequenas distorções nas imagens de galá- tênue. A comparação da distribuição das Após o doutorado, fui trabalhar no Ob-
xias muito longínquas. A luz vinda dessas manchas na radiação cósmica de fundo servatório Palomar, no Monte Wilson,
galáxias atravessa o Universo e é distorci- com a distribuição das galáxias fornece na Califórnia. Queria estudar a estrutura
da pela massa de aglomerados de galáxias uma estimativa acurada para a quantidade da Via Láctea e entender como a nossa
do caminho. É a chamada lente gravita- de energia escura. É maravilhoso o fato galáxia se formou a partir de observa-
cional. As lentes gravitacionais permitem de que todos os métodos dão o mesmo ções de suas estrelas mais antigas. Um
medir como o efeito acumulado da massa resultado. Se tivéssemos cometido erros dos astrônomos do observatório, Allan
e da energia do Universo afeta a sua ex- ao medir a distância das supernovas, as Sandage [1926-2010], ficou interessado
pansão. Outra técnica consiste em exami- medições usando as outras técnicas não nas estrelas que eu observava porque ele
nar a estrutura em grande escala, ou seja, permitiriam chegar à mesma conclusão. as usava em seus estudos cosmológicos.
a forma e o tamanho dos aglomerados de Quando os resultados da estrutura em Sandage havia sido assistente de Edwin
galáxia, e medir o quanto a expansão ace- larga escala começaram a chegar, anos Hubble [1889-1953], o primeiro a medir a

64  z  agosto DE 2017


dizendo: “Nick, esse foi o maior erro que
cometi na vida, me desculpe por ter es-
crito aquela carta, considero que fez um
grande trabalho e me orgulho de você”.
É um absurdo que a relação entre duas
pessoas possa depender do valor da taxa
de expansão do Universo, mas essas me-
didas eram importantes para ele.

Sua família possui uma história inco-


mum. Seu avô era dono de uma fábrica
de armas na Rússia czarista e fugiu do
país durante a Revolução Russa.
Cresci em São Francisco, na Califórnia.
Todos os meus parentes falavam russo. Eu
tinha um tio que se vestia com um unifor-
me cossaco, totalmente inapropriado para
São Francisco. Era uma jaqueta vermelha
com botões de latão, botas até o joelho e
esporas, como se a qualquer momento
fosse montar em um cavalo. Parecia que
acabara de sair do palco de uma ópera.
Eu morria de medo de ser visto na rua
ao lado dele. Queria ser um adolescente
normal. Só mais tarde me dei conta de
quão maravilhosas eram essas pessoas
e passei a valorizar a história da família.

Sempre foi fascinado por


taxa de expansão do Universo em 1929, a com quem estudei na observatórios?
chamada constante de Hubble. Sandage pós-graduação, traba- Imagem da supernova No começo, queria ser ma-
era o principal cosmólogo observacio- lhava em Cerro Tololo SN 1994D, embaixo temático. Me graduei em
à esquerda, um dos
nal da época. Eu nunca havia pensado com supernovas e co- matemática, na Universida-
objetos estudados
em trabalhar com cosmologia, mas, ao meçamos a colaborar. pelo astrofísico de de Stanford, na Califór-
nos conhecermos melhor, ele me enco- Foi assim que a coisa nia. Depois decidi que não
rajou dizendo que, em última instância, decolou. Quando final- era um matemático bom o
tudo se resumia a fazer cosmologia e, mente medimos a de- suficiente. Mas sempre fui
em sua opinião, só havia dois números saceleração, que se revelou na verdade bom em realizar experimentos e sempre
importantes para se medir: a constante uma aceleração, Sandage ficou zangado. gostei de construir coisas. Meu colega
de Hubble e a taxa de desaceleração da de graduação Michael Kast e eu cons-
expansão do Universo. Seu objetivo de Zangado? truímos o Observatório Estudantil de
vida era medir essas duas grandezas. Na Talvez tenha sentido inveja. Sandage ha- Stanford, que ainda funciona. Fiz então
época, eu não me achava inteligente o via obtido o valor da constante de Hubble, pós-graduação em física experimental lá.
NASA / ESA / THE Hubble Key Project Team E The High-Z Supernova Search Team

bastante para fazer o que Sandage fazia. mas não conseguira medir a taxa de desa- O forte de Stanford eram os aceleradores
Passei muitas noites com ele no observa- celeração. Quando publicamos nossos da- de partículas, mas não gostei da cultura
tório de Las Campanas. Nas noites nu- dos, em 1998, ele começou a nos criticar e do departamento, do pessoal que achava
bladas, comecei a estudar a literatura e a a buscar furos no nosso argumento. Acho saber mais do que todo mundo. Quando
conversar com Sandage sobre cosmolo- que ele acreditava em nosso resultado, decidi fazer doutorado em astronomia, o
gia. Percebi que não era tão difícil e que mas desejava que fosse ele quem o tivesse chefe do Departamento de Física ficou
eu poderia atuar nessa área. Trabalha- obtido. Na mesma época, publiquei um horrorizado. Disse que físicos de Stan-
mos juntos quando ele começou a usar novo valor para a constante de Hubble, ford não iam para a astronomia, uma
supernovas para medir a desaceleração do qual ele também discordou. Ele me área para físicos fracassados. Era desse
do Universo. Mas não deu certo. Quando escreveu uma carta dizendo que estava ego que eu não gostava nos físicos expe-
fui para Cerro Tololo, ele disse: “Nick, desapontado, que a qualidade do meu tra- rimentais. Hoje sei que me enganei. Te-
você está indo para esse outro observató- balho tinha decaído e que eu havia cedido nho muitos amigos físicos experimentais,
rio onde desenvolverá novos detectores ao diabo. Afirmava que aquela seria nossa gente muito boa. A verdade é que não me
digitais. Você deveria usar as supernovas última conversa. Ele não falou comigo por dei bem com aquele pessoal e fui fazer
para medir a desaceleração do Univer- 10 anos, até se convencer de que estáva- doutorado em astronomia na Univer-
so”. Um amigo próximo, Mark Phillips, mos certos. Depois, escreveu outra carta, sidade da Califórnia, em Santa Cruz. n

pESQUISA FAPESP 258  z  65


ASTROFÍSICA y

A diferença que iguala o

Sol a suas irmãs


U
Comportamento m grupo internacional de as- Um estudo publicado por Nascimento
trofísicos do qual participou e seus colaboradores em julho na revis-
caótico do plasma o brasileiro José-Dias do Nas- ta Science ajuda a desfazer o mistério e
cimento Júnior, professor da indica que nada no Sol o torna diferente
ajuda a explicar Universidade Federal do Rio Grande do de suas irmãs.
variações no ciclo Norte (UFRN), parece ter encontrado a “A duração do ciclo magnético das aná-
resposta para uma questão que há quase logas solares varia muito, alguns são mais
magnético das duas décadas intriga quem estuda o Sol longos e outros mais curtos, mas nenhum
e as estrelas muito semelhantes a ele, as coincide com o do Sol”, conta o astrofísi-
estrelas análogas análogas solares. Exceto pelas idades, que co brasileiro, que também é pesquisador
podem variar bastante, esses astros se visitante do Centro de Astrofísica da Uni-
solares parecem em quase tudo com o Sol. Apre- versidade Harvard, nos Estados Unidos.
sentam massa, tamanho, temperatura e Um dos trabalhos que colaboraram para
luminosidade similares. Tantas semelhan- fortalecer a reputação do Sol como estre-
ças fazem os pesquisadores imaginar que la única em sua categoria foi publicado
esses astros possam ajudar a reconstituir em 2007 na revista Astrophysical Jour-
o passado e a projetar o futuro da estrela nal pela astrofísica alemã Erika Böhm-
que aquece e ilumina a Terra e os planetas -Vitense (1923-2017), então professora
vizinhos. Até recentemente, a dificuldade na Universidade de Washington, Estados
em entender as variações na duração do Unidos. Uma figura do artigo deixava cla-
ciclo de atividade magnética desses astros ra a diferença. O gráfico correlacionando
fazia o Sol parecer uma estrela ímpar. o tempo em que a estrela completa uma

66  z  agosto DE 2017


iniciais, mesmo que elas sejam muito consideram as estrelas preenchidas por
parecidas, os resultados podem ser bem um fluido condutor de eletricidade, até
distintos. Assim, só haveria dois ciclos conseguiam reproduzir as inversões de
magnéticos coincidentes se as estrelas campo magnético, mas não geravam de
fossem iguais em tudo, algo extrema- modo fiel o ciclo completo de muitas
mente raro na natureza. delas. Nascimento e os astrofísicos fran-
“Essa componente caótica explica por ceses Allan Sacha Brun, do Laboratório
que dificilmente conseguiremos encon- de Astrofísica, Instrumentação e Mode-
trar duas estrelas com ciclo magnético lagem Paris-Saclay, e Antoine Strugarek,
de mesma duração”, relata o pesquisa- da Universidade de Montreal, no Cana-
dor. Ela também permite compreender dá, melhoraram a capacidade de previ-
por que, no caso do Sol, a duração desse são desses modelos ao acrescentar a eles
ciclo pode variar. “Nossos resultados in- equações da teoria do caos que descre-
dicam que o Sol é uma estrela comum, vem o movimento turbulento do plasma.
como qualquer outra de sua categoria.”
Estrelas como o Sol são esferas de gás simulações 3d
superaquecido e eletricamente carrega- Usando o novo modelo, eles realizaram
do (plasma), composto basicamente por simulações tridimensionais do interior
hidrogênio e hélio. Seu campo magnéti- do Sol e de 30 análogas solares, obten-
co é gerado no terço mais superficial da do ciclos muito semelhantes aos me-
Manchas estrela pelo movimento do plasma, que didos pelas observações astronômicas.
registradas por é transportado das regiões mais profun- Também notaram que a duração do ciclo
Galileu Galilei
das e quentes dessa camada para as mais magnético depende da velocidade de
entre 9 e 12 de
junho de 1613 superficiais e frias, ao mesmo tempo rotação da estrela: os astros que giram
que gira arrastado pela rotação da estre- mais rapidamente apresentam ciclos
la. Toda essa movimentação distorce as mais curtos. “A tendência que encon-
linhas do campo magnético amplifican- tramos é diferente da obtida pelos mo-
do-o. De tempos em tempos, esse campo delos do passado”, afirmou Strugarek,
sofre uma inversão de polaridade: o po- primeiro autor do artigo da Science, em
sitivo se torna negativo e vice-versa. No um comunicado à imprensa.
caso do Sol, que dá uma volta em torno “Já era esperado que a atividade mag-
de seu eixo em 28 dias, a inversão de nética da estrela fosse influenciada por
polaridade ocorre aproximadamente sua velocidade de rotação”, conta a astro-
uma vez a cada 11 anos. São necessários física Elisabete Dal Pino, da Universidade
outros 11 anos para os polos retornarem de São Paulo (USP), que não participou
à configuração magnética inicial e com- do estudo. “O resultado que obtiveram”,
pletar o ciclo, num total de 22 anos. Já continua ela, “é relevante por mostrar
volta em torno de seu eixo (período de foram observadas, no entanto, inversões que estrelas semelhantes ao Sol, mas com
rotação) com a duração do ciclo magné- a cada 9 e até 14 anos. Essas inversões de rotação diferente, podem apresentar ci-
tico separava em dois grupos as quase 30 polaridade coincidem com o período de clos magnéticos de duração distinta”.
estrelas analisadas: as mais jovens, com mínima atividade da estrela, enquanto os Conhecer a duração do ciclo magnéti-
ciclo magnético mais curto, ficavam de períodos de máxima atividade são mar- co das estrelas é importante para a iden-
um lado; e as mais velhas, de ciclo longo, cados pelo surgimento das manchas (re- tificação de planetas e orientar a busca
de outro. No meio, isolado, aparecia o Sol. giões escuras e mais frias) na superfície de vida ao redor de estrelas como o Sol.
O trabalho publicado agora na Scien- do Sol, registradas pela primeira vez no “A atividade magnética das estrelas gera
ce retira o Sol dessa posição especial ao século XVII pelo matemático e astrôno- um sinal que pode ser confundido com
explicar a origem das variações nos ci- mo Galileu Galilei (ver imagens acima). um planeta em sua órbita”, conta Nasci-
clos magnéticos e indicar que é muito O físico e matemático irlandês Jose- mento. Segundo o pesquisador, estima-
improvável – se não impossível – en- ph Larmor propôs em 1919, na chamada -se que parte dos planetas extrassolares
contrar dois desses ciclos iguais, mes- teoria do dínamo, que a origem do campo encontrados por uma das técnicas possa
mo que todas as outras características magnético contínuo do Sol seria o mo- não existir e, em alguns casos, representar
das estrelas sejam quase idênticas. A ra- vimento de partículas elétricas em seu um resultado falso, causado por manifes-
ilustraçãO the galileo project

zão dessa improbabilidade é que alguns interior, algo válido também para outras tações magnéticas. n Ricardo Zorzetto
fenômenos envolvidos na geração dos estrelas. Projetos que monitoraram a
campos magnéticos estelares parecem atividade estelar por longos períodos
seguir as regras da chamada teoria dos indicaram, no entanto, que o comporta-
Artigo científico
sistemas dinâmicos ou teoria do caos. mento dos ciclos magnéticos seria mais
STRUGAREK, A. et al. Reconciling solar and stellar mag-
Como os fenômenos descritos por essa complexo. Modelos de magneto-hidro- netic cycles with nonlinear dynamo simulations. Science.
teoria são muito sensíveis às condições dinâmica, que são mais sofisticados e 14 jul. 2017.

pESQUISA FAPESP 258  z  67


tecnologia  Engenharia y

Biossensores
na medicina
Portáteis e precisos, dispositivos
pretendem aprimorar diagnóstico
de doenças infecciosas e genéticas

Rodrigo de Oliveira Andrade

A
vanços recentes no campo infecciosas negligenciadas, associadas à
da biologia molecular estão pobreza e à falta de saneamento básico.
ampliando as possibilidades É o caso dos pesquisadores do Grupo de
de uso de biossensores no Nanomedicina e Nanotoxicologia do Ins-
diagnóstico e na prevenção de doenças. tituto de Física de São Carlos da Univer-
Desenvolvidos com base em elementos sidade de São Paulo (IFSC-USP). Desde
de reconhecimento biológico, como an- 2010 eles trabalham no desenvolvimento
tígenos e anticorpos, esses dispositivos de um conjunto de sensores capazes de
podem se tornar aparelhos portáteis e identificar sinais de doenças diversas.
baratos, semelhantes aos utilizados na Caso se mostrem eficazes nos próximos
medição das taxas de glicose no sangue. estágios de avaliação, esses aparelhos
Amplamente usados em outros países, podem se tornar uma alternativa aos
os biossensores atraem cada vez mais exames realizados em laboratórios de
a atenção de grupos de pesquisa brasi- análises clínicas e ser usados em consul-
leiros, que nos últimos anos passaram a tórios médicos ou por agentes de saúde
investir em dispositivos voltados espe- em visitas às residências de pessoas que
cificamente para a detecção de doenças vivem em regiões remotas do país.

68  z  agosto DE 2017


Eletrodo usado na
concepção de
dispositivos para
detecção de antígenos
e anticorpos

Nos Estados Unidos, os biossensores No IFSC-USP, um dos biossensores Alessandra Figueiredo, sob coordenação
há algum tempo estão sendo usados por médicos em estágio mais avançado de do engenheiro de materiais Valtencir Zu-
médicos para acelerar os resultados de desenvolvimento é o de diagnóstico da colotto e do físico Francisco Guimarães,
exames ou no monitoramento das con- dengue, doença que acomete 390 mi- desenvolveram um sistema de diagnósti-
dições de saúde de indivíduos acometi- lhões de pessoas no mundo por ano, se- co da dengue com base na imunoglobu-
dos por doenças como Aids e hepatite C. gundo a Organização Mundial da Saú- lina IgY, anticorpo que combate a NS1.
Em outras situações, ajudam a medir os de (OMS). O dispositivo baseia-se na A IgY foi isolada de galinhas inocu-
níveis de oxigênio ou álcool no sangue, identificação elétrica da proteína NS1, ladas com NS1 e, em seguida, imobili-
como no caso de um biossensor flexível secretada pelo vírus na corrente sanguí- zada em um eletrodo de ouro acoplado
criado por pesquisadores da Universida- nea nos primeiros dias após a infecção. a um circuito, sobre o qual há um fluxo
de da Califórnia em San Diego. Também Essa proteína, um antígeno, induz uma constante de elétrons. A ideia é que o
os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) resposta imune no organismo humano exame seja feito por meio de uma gota
daquele país investem em pesquisas pa- para produzir anticorpos contra ela. O de sangue sobre o dispositivo. Se hou-
ra a concepção de biossensores médicos problema é que isso acontece somente ver infecção, ao entrar em contato com a
léo ramos chaves

baseados em sistemas diversos, seja de após o quinto dia, o que dificulta a de- NS1, a imunoglobulina IgY altera o fluxo
atração química, correntes elétricas, de- tecção precoce da doença. Para acelerar de elétrons, produzindo um sinal que é
tecção de luz, entre outros. esse processo, os físicos Nirton Cristi e registrado e processado por um softwa-

pESQUISA FAPESP 258  z  69


1 2

Microbalança de cristal de quartzo utilizada pelos pesquisadores da UFPR no desenvolvimento de equipamento para diagnóstico da dengue

re. O resultado sai em até 20 minutos.


“Quanto maior a concentração de NS1 Estima-se que o mercado
no eletrodo, mais intensa será a alteração
do potencial elétrico”, explica Nirton, mundial de biossensores alcance
hoje professor no Instituto de Ciência e
Tecnologia da Universidade Federal de
US$ 27 bilhões até 2022
São Paulo (Unifesp), em São José dos
Campos. O projeto foi desenvolvido com
a empresa DNApta Biotecnologia, de São
José do Rio Preto, que compartilha os O biossensor para diagnostico de den- Brasil, ou Trypanosoma cruzi, causador
direitos da patente da tecnologia. gue integra uma série de outros disposi- da doença de Chagas, que acomete cerca
Por meio de uma abordagem distinta, tivos criados pelos pesquisadores de São de 8 milhões de pessoas no mundo por
a professora Maria Rita Sierakowski e o Carlos. Todos baseiam-se em sistemas ano, segundo a OMS. “Se o anticorpo de
doutorando Cleverton Luiz Pirich, do eletroquímicos que alteram padrões de interesse estiver presente na amostra
grupo BioPol da Universidade Federal sinais elétricos ao detectarem eventos analisada, a ligação entre ele e a proteí-
do Paraná (UFPR), criaram um biodis- biológicos específicos. Um dos primei- na antigênica produz uma alteração na
positivo de detecção da NS1 baseado em ros biossensores concebidos por eles é resposta elétrica do eletrodo, acusando a
uma microbalança de quartzo com sen- capaz de identificar e distinguir anti- presença do patógeno”, explica Zucolot-
sores piezoelétricos, capazes de gerar corpos de leishmaniose e da doença de to. O biodispositivo do IFSC, em fase de
corrente elétrica quando deformados Chagas, hoje diagnosticadas com o au- protótipo, demora cerca de 20 minutos
por uma pressão mecânica. O sistema xílio do teste Elisa, que permite detec- para apresentar a resposta e teve paten-
foi desenvolvido em colaboração com o tar anticorpos específicos em amostras te depositada no Instituto Nacional de
Instituto de Química da USP. É composto de sangue. Apesar de ser amplamente Propriedade Industrial (INPI).
por um cristal de quartzo, um eletrodo usado pelos laboratórios de análise clí-
de ouro revestido com polietilenimina e nica, o Elisa é incapaz de diferenciar os Análises genéticas
nanofilmes de nanocristais de celulose anticorpos produzidos contra infecções Mais recentemente, a equipe de São Car-
bacteriana, modificados para reagir qui- causadas por essas doenças, o que leva à los também começou a trabalhar na con-
micamente ao entrar em contato com a necessidade de exames complementares. cepção de genossensores para reconhe-
NS1, alterando os padrões de frequência O biodispositivo foi desenvolvido em cer sequências específicas do material
e dissipação de energia nos nanocristais. parceria com diversas instituições de genético de vírus e mutações associadas
“Desse modo, quando uma amostra de pesquisa do país. É composto de circui- a tumores. Em 2016, Zucolotto, a física
soro contendo NS1 é colocada sobre o tos elétricos impressos em pequenos Laís Ribovski e o químico Bruno Campos
biossensor, é possível verificar, a partir eletrodos, sobre os quais é depositado Janegitz, do Centro de Ciências Agrárias
de um software, se a proteína se ligou à um conjunto de proteínas antigênicas da Universidade Federal de São Carlos
superfície do material por meio da de- isoladas do protozoário Leishmania ama- (UFSCar), criaram um sensor capaz de
tecção de microvibrações mecânicas”, zonensis, uma das espécies que causam identificar a mutação 185delAG, asso-
explica Maria Rita. a forma tegumentar da leishmaniose no ciada aos tumores de mama e ovário. No

70  z  agosto DE 2017


experimento que fizeram, eles imobili-
zaram na superfície do dispositivo um Um dos eletrodos
trecho da sequência complementar à re- desenvolvidos pelo
grupo do Instituto de
gião do DNA onde ocorre essa mutação, Física de São Carlos
de modo que, quando a sequência cor-
respondente fosse colocada no eletrodo,
a ligação desencadeasse uma alteração
na resposta elétrica do equipamento,
indicando a presença da sequência-alvo
ligada à mutação. Os resultados dos tes-
tes com o dispositivo foram descritos em
um artigo publicado na Microchemical 3
Journal. Por ora, foram usadas apenas
sequências sintetizadas em laboratório.
A mesma técnica foi usada para dife-
renciar infecções causadas pelos vírus
zika e da dengue. Tal como acontece nas
infecções por dengue, o zika também se- a maioria dos dispositivos desenvolvidos
creta quantidades expressivas de NS1 na no Brasil encontra-se em fase de protó-
corrente sanguínea nos primeiros dias tipo, sem aprovação da Agência Nacio-
após a infecção, o que pode comprometer No Brasil, ainda nal de Vigilância Sanitária (Anvisa). Há
a análise feita pelos biossensores desen- também um longo caminho até que esses
volvidos para dengue até aqui. Usando há um longo dispositivos sejam capazes de dar conta
ferramentas de bioinformática, eles iden- do grande volume de amostras que todos
tificaram regiões específicas do material
caminho até os dias são analisadas nos laboratórios.
genético dos dois vírus para serem imo- que esses “Para além do potencial de aplicação des-
bilizadas, cada um, na superfície de um sa tecnologia em grandes laboratórios, é
eletrodo. A ligação entre a sequência que aparelhos sejam preciso que os biossensores sejam capa-
está no dispositivo e a da amostra produz zes de analisar, identificar e quantificar
uma alteração no sinal elétrico, indican- produzidos em elementos de interesse clínico em gran-
do a presença do material genético dos des quantidades de amostras”, diz a mé-
vírus. O sensor mostrou bons resulta-
larga escala dica Jeane Tsutsui, diretora-executiva do
dos em testes preliminares envolvendo Fleury Medicina e Saúde. “Para que os
sequências sintetizadas em laboratório. biossensores possam chegar aos consul-
tórios médicos e agentes de saúde é pre-
Transferência de tecnologia ciso investimento em projetos conjuntos
Os biossensores constituem uma tecno- Os Estados Unidos é o principal mer- entre empresas e universidades para sua
logia em ascensão no mundo. De acordo cado de biossensores, resultado de uma validação clínica”, conclui. n
com dados da Markets and Markets, em- cultura de rápida adoção de produtos
presa de pesquisa e consultoria norte- tecnologicamente avançados por médi-
-americana na área de tecnologia da in- cos e pesquisadores. No Brasil ainda há Projetos
formação, o mercado de biossensores foi um longo caminho até que eles sejam 1. Desenvolvimento de sensores e biossensores eletro-
avaliado em cerca de US$ 16 bilhões em produzidos e comercializados em larga químicos para diversos fins analíticos (nº 15/19099-2);
Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador
2016. Estima-se que alcance US$ 27 bi- escala. Esses equipamentos são desen- responsável Bruno Campos Janegitz (UFSCAR); Investi-
lhões até 2022. Os biossensores médicos volvidos majoritariamente em univer- mento R$ 169.539,83.
detêm 66% desse mercado. As principais sidades e centros públicos de pesquisa. 2. Estudo da interação entre materiais nanoestrutu-
rados e sistemas biológicos: Aplicações ao estudo de
empresas que investem na concepção Após sua concepção em laboratório, eles nanotoxicidade e desenvolvimento de sensores para
desses equipamentos são as norte-ame- precisam ainda passar por testes de segu- diagnóstico (nº 08/08639-2); Modalidade Auxílio à
ricanas Abbott Laboratories e Johnson rança e eficácia, ser patenteados e, espe- Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Valtencir
fotos  1 e 3 léo ramos chaves 2 cleverton pirich

Zucolotto (IFSC-USP); Investimento R$ 368.230,90.


& Johnson, e a alemã Bayer Healthcare. cialmente, atrair o interesse de empresas
A demanda por esses dispositivos deve dispostas a fazer com que cheguem ao Artigos científicos
ser catapultada nos próximos anos, de- mercado consumidor. RIBOVSKI, L. A. label-free electrochemical DNA sensor
vido sobretudo à crescente prevalência Estima-se que o custo de produção to identify breast cancer susceptibility. Microchemical
Journal. v. 133, p. 37-42. jul. 2017.
de doenças como diabetes e à necessi- dos eletrodos usados em biossensores, FIGUEIREDO, A. et al. Electrical detection of dengue
dade de dispositivos que monitorem os em escala de laboratório, seja de cerca biomarker using egg yolk immunoglobulin as the biolo-
níveis de glicose no sangue. Segundo a de US$ 2. “A ideia é desenvolver apa- gical recognition element. Scientific Reports. jan. 2015.
PIRICH, C. L. et al. Piezoelectric immunochip coated with
Federação Internacional de Diabetes, a relhos completos cujo valor da unida- thin films of bacterial cellulose nanocrystals for dengue
doença deverá acometer 552 milhões de de não ultrapasse US$ 100 (cerca de R$ detection. Biosensors and Bioelectronics. v. 15, n. 92,
pessoas no mundo em 2030. 315)”, comenta Zucolotto. Ainda assim, p. 47-53. jun. 2015.

pESQUISA FAPESP 258  z  71


pesquisa empresarial

Inovar para
se reinventar
Multinacional brasileira de serviços de TI,
Stefanini aposta em P&D para obter 85%
de seu faturamento com soluções digitais

Domingos Zaparolli

A
Stefanini, empresa brasileira de pres- “Concluímos que precisávamos mudar nosso
tação de serviços de Tecnologia da foco de atuação ou a companhia não estaria mais
Informação (TI) com faturamento ativa em um prazo entre cinco e 10 anos”, conta
anual de R$ 2,6 bilhões, está sendo Breno Barros, diretor de Inovação e Negócios
reinventada. A empresa é identifi- Digitais da empresa. A estratégia de reestrutu-
cada hoje como fornecedora de serviços de su- ração da Stefanini, iniciada no ano passado, está
porte e manutenção, o service desk, serviços de alicerçada em investimentos em pesquisa e de-
engenharia em campo denominados field servi- senvolvimento e na aquisição de startups e em-
ce e terceirização de processos que fazem uso presas com foco em inovação que possam com-
intenso de TI, o business process outsourcing plementar o portfólio da companhia.
(BPO). Em cinco anos, seus gestores querem Desde 2011, 14 empresas já foram incorporadas,
que ela seja reconhecida como uma companhia entre elas a Document Solutions, especializada
de soluções digitais para os setores financeiro, em digitalização e processamento de documen-
varejo, administração pública, além de ser capaz tos, a Orbitall, que atua no segmento de meios
de apoiar a transição das indústrias para o uni- de pagamento, a Top Systems, de soluções em
verso 4.0, no qual os processos produtivos uti- transações financeiras, a Woopi, no desenvolvi-
lizam tecnologias avançadas como inteligência mento de sistemas de autoatendimento com base
artificial, internet das coisas, computação em em inteligência artificial, e a IHM Engenharia,
nuvem e sistemas ciberfísicos, que é a interação especializada em automação industrial.
de componentes de informática e de máquinas A Diretoria de Inovação comandada por Bar-
ou equipamentos. A meta da empresa, cuja se- ros foi criada no início de 2016 com o objetivo
de fica em São Paulo, é que os negócios digitais de coordenar esse processo de reestruturação.
respondam por 85% das receitas em 2022. Em Em seu primeiro ano, contou com um orçamen-
2016, essa participação foi de 26%. to equivalente a 5% do faturamento global para

72  z  agosto DE 2017


empresa

stefanini

Centro de P&D
São Paulo (SP)

Nº de pesquisadores
140 (Brasil e exterior)

Principais produtos
Plataformas de banco
digital, sistemas
de atendimento
cognitivo, soluções em
automação industrial

juntos responderam por 57% das transa-


ções bancárias realizadas no país e a pro-
jeção é de que chegue a 80% em 10 anos.
Em abril de 2016, o Banco Central au-
torizou a abertura de contas correntes
totalmente digitais, sem contato presen-
cial entre clientes e instituições bancá-
rias. Em um ano, já existe quase 1 milhão
de contas totalmente digitais no país e a
expectativa é de que esse número chegue
a 3,3 milhões até o final de 2017. Além
da comodidade, as estruturas digitais
oferecem menores taxas aos clientes.
Wander Cunha, diretor-executivo da
área de Business Consulting da Stefanini,
relata que os planos da companhia em
desenvolver uma plataforma bancária
digital integrada tiveram início em 2015.
Em setembro daquele ano, a empresa
solicitou um financiamento de R$ 21 mi-
lhões à Financiadora de Estudos e Pro-
jetos (Finep), mas iniciou os trabalhos
com recursos próprios antes mesmo do
investimentos em pesquisa, desenvol- integradas de banco digital do mercado financiamento ser aprovado, o que só
vimento e inovação (PD&I). Em 2017, brasileiro, composta de solução para o ocorreu em 2017.
a verba subiu para 7% e deverá evoluir core banking, que é o gerenciamento das Na avaliação de Cunha, o pioneiris-
gradualmente para 10% ao ano, embo- transações financeiras, plataforma de mo pode gerar uma boa oportunidade
ra esse patamar possa ser ainda maior. crédito e abertura de contas, análise de para a Stefanini se posicionar nesse seg-
“Estamos analisando abrir o capital da fraude documental, automação de canais mento de mercado. “Trabalhamos com
companhia como forma de obter mais de contato com clientes, como os ATMs a perspectiva de conquistar entre 30% e
recursos para inovar.” (caixas automáticos) e as operações dos 40% do mercado brasileiro de platafor-
departamentos de retaguarda. ma bancária digital”, estima. O primeiro
Alex Williamson / getty images

BANCO DIGITAL “Somos capazes de colocar em funcio- contrato já foi estabelecido com o Sis-
Os primeiros resultados do trabalho de namento um banco digital completo em tema de Crédito Cooperativo (Sicredi),
P&D da Stefanini e suas empresas de até seis meses, enquanto os concorrentes que reúne 3 milhões de associados em
base tecnológica já começam a aparecer. vendem soluções digitais específicas para 20 estados brasileiros.
Em setembro de 2016, a companhia cada atividade bancária”, afirma Barros. A implementação da plataforma digi-
lançou uma das primeiras plataformas Em 2016, a internet e o mobile banking tal do Sicredi está sendo realizada pelo

pESQUISA FAPESP 258  z  73


escritório da Stefanini de Porto Alegre e
conta com o apoio do Parque Científico
e Tecnológico da Pontifícia Universida-
de Católica (PUC-RS) do Rio Grande do
Sul (Tecnopuc). A companhia foi uma
das primeiras a realizar uma parceria
com o parque tecnológico, logo que foi
inaugurado em 2003. Segundo Marcelo
Barradas, diretor da Stefanini para a re-
gião Sul, o ambiente de inovação criado
pela Tecnopuc teve papel importante na
adequação de soluções globais para o pro-
jeto do banco digital brasileiro – já que
as normas regulatórias, a contabilidade
bancária, o processo de abertura de con-
tas e os instrumentos de segurança são
diferentes de um país para outro.
Em 2016, a relação da Stefanini com a
Tecnopuc se tornou mais estreita com o
estabelecimento de um laboratório con- 1

junto com a Faculdade de Informática da


PUC-RS. A instalação tem uma equipe nos e sistemas por meio de um conjunto Assistente virtual gerada
fixa composta por três pesquisadores crescente de interfaces de texto e voz, pela plataforma de
atendimento cognitivo
e deverá ser reforçada por mais dois, geridos por meio de algoritmos de In-
Sophie: utilização
além de três alunos estagiários. “A par- teligência Artificial (IA). Como todas as em call centers
ceria é muito positiva para a empresa, plataformas de IA disponíveis no merca-
que agrega valor aos seus produtos com do, a Sophie utiliza redes neurais capa-
a colaboração dos especialistas da uni- zes de reconhecer padrões e realizar o igualmente com dados, fotos e imagens,
versidade, e também é muito boa para aprendizado de máquina, ou seja, evoluir nossa abordagem foi concentrar esforços
a academia, uma vez que professores e sem ser especificamente programada. na linguagem humana, na busca semân-
alunos têm oportunidade de aplicar seus IBM, Google e Microsoft já oferecem tica e no processamento da linguagem
conhecimentos para solucionar proble- ferramentas com essas características. natural”, esclarece.
mas reais e gerar inovações que cheguem A Sophie, porém, é uma das primeiras A plataforma foi desenvolvida em por-
ao mercado”, explica Ricardo Bastos, plataformas criadas especificamente pa- tuguês e está ganhando duas novas ver-
diretor da Agência de Gestão Tecnoló- ra sistemas de atendimento ao público, sões, em inglês e espanhol. A Sophie já
gica da PUC-RS. como call centers, relata Alexandre Wi- está em processo de homologação em 20
Outra inovação recente é a platafor- netzki, fundador e presidente da Woo- potenciais clientes, sendo 18 no Brasil,
ma de atendimento cognitivo Sophie, pi, empresa responsável pela solução. um nos Estados Unidos e outro na Euro-
capaz de interagir com usuários huma- “Enquanto as demais plataformas lidam pa. O primeiro contrato foi fechado com
a Emprel, Empresa Municipal de Infor-
mática da Prefeitura de Recife.
equipe de pesquisadores

Conheça alguns profissionais da equipe de P&D da Stefanini e saiba quais instituições FOCO NA AUTOMAÇÃO
foram responsáveis por sua formação Automação industrial é outro segmento
de negócio em que a Stefanini investe
Breno Barros, cientista da computação, diretor de Universidade Federal do Pará (UFPA): graduação para expandir suas atividades em solu-
Inovação e Negócios Digitais
ções digitais. Em 2015 a companhia ad-
quiriu o controle da IHM Engenharia,
Byron Leite Dantas Bezerra, engenheiro da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE):
computação, cientista-chefe da Document Solutions graduação, mestrado e doutorado empresa com sede em Belo Horizon-
te criada em 1994 e que já desenvolveu
Cleber Zanchettin, engenheiro da computação, Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc): mais de 800 projetos de automação em
pesquisador da Document Solutions graduação diversos segmentos industriais. A IHM
UFPE: mestrado e doutorado
tem uma equipe de P&D composta por
Augusto dos Santos Moura Junior, engenheiro Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG): 15 pesquisadores em automação e inte-
eletricista, presidente da IHM Engenharia graduação, mestrado e doutorado
ligência artificial que agora se dedica
Fabio Caversan, engenheiro da computação, Faculdade de Engenharia de Sorocaba: graduação principalmente a desenvolver soluções
diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da Woopi Universidade de São Paulo (USP): mestrado
voltadas para a indústria 4.0.
Paulo André Perez, engenheiro eletricista, líder da área USP: graduação, mestrado e doutorado A IHM Engenharia foi a responsável
de Intelligence Solutions
por desenvolver um sistema para mitigar

74  z  agosto DE 2017


Vista da unidade de
fotos 1 divulgação stefanini  2 Anglo American

beneficiamento
do mineroduto
Minas-Rio, que
conta com uma
solução de
automação da IHM
Engenharia,
empresa do grupo.
O sistema foi
projetado para
tornar mais segura
a operação nos
529 km de duto

riscos e evitar paralisações no minero- em 1987 por Marco Stefanini, um geó-


duto do Sistema Minas-Rio, da Anglo logo formado pela USP que encontrou
American. O duto de 529 quilômetros, o oportunidade de trabalho na área de tec-
maior do mundo para minérios, conecta nologia bancária. A proposta inicial era a
uma mina de ferro em Conceição do Ma- A Stefanini está oferta de treinamento e cursos de forma-
to Dentro (MG) ao Porto de Açu, em São ção profissional para o setor financeiro.
João da Barra (RJ). O sistema da IHM presente em No início dos anos 1990, a empresa se
verifica automaticamente cada etapa da posicionou como prestadora de serviços
operação e encaminha informações para
40 países, possui terceirizados em TI.
uma sala de controle, sem a necessidade 65 escritórios Os serviços de suporte e manuten-
de funcionários caminharem ao longo ção da Stefanini responderam por 74%
do trecho para saber como está o bom- no Brasil e do faturamento da companhia em 2016
beamento pelo duto. O processo reduz e sustentam uma folha de pagamento
o tempo de resposta em caso de necessi- tem 21 mil formada por mais de 21 mil funcionários
dade de intervenção e inibe ocorrências. em 65 escritórios no Brasil e em outros
“Utilizamos técnicas de deep learning
funcionários 40 países na América do Norte, Ásia,
para desenvolver um modelo matemático América Latina e Europa. A estrutura no
a partir de dados históricos do processo exterior responde por 40% da receita e
para prever anomalias, como entupimen- permitiu a Stefanini tornar-se a quinta
tos ou vazamentos no duto, e com isso companhia brasileira mais internacio-
reduzimos riscos de acidentes ambien- nalizada, segundo o Ranking das Mul-
tais ou perda significativa de produtivi- tinacionais Brasileiras 2016, elaborado
dade”, diz Breno Barros. Deep learning é composta por cerca de 140 pesquisado- pela Fundação Dom Cabral.
o processo de aprendizado da máquina. res, que se dedicam em tempo integral Essas atividades, no entanto, são clas-
ou parcial aos projetos de inovação do sificadas no mundo corporativo como
NOVO PARADIGMA grupo no Brasil e no exterior. Além da “comoditizadas”, ou seja, não existem
A estrutura e as atividades de inovação Tecnopuc, a empresa mantém parcerias diferenças significativas entre as ofer-
do grupo Stefanini são descentralizadas, com a Fundação Getulio Vargas (FGV), tas de mercado e a lucratividade depen-
sendo que cada uma das empresas incor- Universidade de São Paulo (USP), Ins- de de grandes volumes negociados. A
poradas desenvolve projetos próprios e tituto de Tecnologia de Massachusetts demanda global por esses serviços, po-
conta com sua equipe dedicada à pes- (MIT), nos Estados Unidos, além das rém, é declinante. “A revolução digital
quisa e ao desenvolvimento de produtos universidades de Administração e Na- está mudando os conceitos de suporte
e serviços. Cabe ao núcleo comandado cional de Singapura. e manutenção e irá tornar dispensável
por Breno Barros a tarefa de coordenar A prioridade em inovação é uma mu- a engenharia de campo”, diz Barros. Foi
o trabalho e buscar sinergias entre as dança significativa de paradigma na his- essa constatação que levou a Stefanini a
diversas unidades. Ao todo, a equipe é tória da Stefanini. A empresa foi criada buscar novos rumos. n

pESQUISA FAPESP 258  z  75


folha

a unidade de P&d brasileira é líder


global na multinacional na criação de
soluções em computação cognitiva
voltadas à área de recursos naturais

Elevada
produtividade
O
Laboratório de Pesquisas da IBM no Brasil,
Com 250 solicitações criado em 2011, acumula 250 solicitações de
patentes submetidas ao Escritório de Patentes
de patentes e 412 e Marcas dos Estados Unidos (USPTO), sendo
40 já concedidas, e 412 artigos publicados em revistas
artigos publicados, científicas. As patentes são relacionadas às áreas de
unidade de P&D da nanotecnologia, computação em nuvem, computação
cognitiva e internet das coisas, com aplicações princi-
IBM é um dos mais palmente na indústria de óleo e gás, mineração, agro-
negócio, finanças e saúde. O desempenho estabelece
profícuos centros de a multinacional norte-americana como um dos mais
produtivos centros de inovação empresarial do Brasil.
inovação do país A área de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da em-
presa conta com duas estruturas laboratoriais no país,
em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde trabalham 140
pessoas dedicadas à inovação. Segundo Ulisses Mello,
diretor de pesquisas da IBM Brasil, o país é líder global

Nos laboratórios em
São Paulo e no Rio de janeiro, inovação
trabalham 140 pessoas
dedicadas à inovação

76  z  agosto DE 2017


Flora brasiliensis
utilizada no setor da saúde, a plataforma
de serviços cognitivos watson permite que
os médicos insiram no sistema informações
clínicas de seus pacientes, como histórico
saúde do tratamento e resultado de exames
4

investigações mais promissoras


tenta determinar como ex-
pandir a extração de pe-
tróleo nos reservatórios
desenvolvida no brasil,
a plataforma de a partir do estudo do
inovação aberta ibm comportamento de
agritech pode moléculas de óleo
contribuir para elevar líquido em contato
a produtividade com um material
agrícola nacional sólido, represen-
tando rochas, em
nanoescala.
A equipe do Na-
noLab se dedica ao
estudo de diferentes
técnicas e materiais
que podem ampliar a
extração de óleo. Mathias
Steiner, gerente do labora-
tório, diz que 60% do óleo de
5
um reservatório permanece em
6 capilares nas rochas, que às vezes têm
apenas dezenas de nanômetros de largura. “Um
do grupo no desenvolvimento de soluções em aumento de produção de apenas 1%, usando os
computação cognitiva na área de recursos na- resultados da pesquisa em nanociências e nano-
turais, e o propósito do Laboratório de Pesqui- tecnologia, significaria quase 1 milhão de barris
sas, instalado há seis anos, continua sendo o de de óleo adicionais a cada dia no mundo”, relata
“aproveitar a vocação brasileira para a produção Steiner, que coordena a pesquisa. No Brasil, a
um novo laboratório de produtos agropecuários, minérios e petróleo
experimental para agregar valor em conhecimento e produzir
de nanotecnologia e exportar, além de commodities, tecnologia”.
foi inaugurado no rio Em abril deste ano, a companhia ampliou sua A empresa conta com 12 laboratórios
4 reprodução do livro lebensfluten – tatensturm 5 IBM Watson Health 6 Léo ramos chaves
fotos 1 ibm 2 e 7 PEDRO GUERMANDI PAVANATO / ibm 3 reprodução do livro flora brasiliensis

em abril deste ano atividade de P&D com um investimento de US$ globais e tem 50 mil patentes ativas.
4 milhões em um novo laboratório experimental em 2016, a companhia investiu
em nanotecnologia, o NanoLab, sediado no Rio. US$ 6 bilhões em p&D no mundo
A IBM brasileira já realizava havia quatro anos
pesquisas na área de nanotecnologia e o país é
referência na multinacional em investigação de
microfluidos, o estudo dos fluidos em microesca-
la, e no desenvolvimento de microdispositivos,
similares a chips de computadores, para análi-
ses químicas. O novo laboratório oferecerá aos
pesquisadores uma estrutura de equipamentos
para caracterização, manipulação e teste de na-
nopartículas, como microscópios ópticos e de
força atômica de alta precisão, impressoras 3D
e ferramentas de testes de hardware e software.
As pesquisas em nanotecnologia e microflui-
dos são voltadas principalmente para os setores
de saúde, agronegócio e petrolífero e resultaram 7

em 25 pedidos de patentes na USPTO. Uma das


Com auxílio de computação
cognitiva e internet das
coisas, os pesquisadores
desenvolvem modelos de
agricultura de precisão
usando previsão do clima

dados de faturamento e gastos em ino-


vação no Brasil. No total, o grupo conta
com 12 laboratórios globais, 8 mil in-
ventores, sendo 3 mil cientistas (os ou-
tros 5 mil são funcionários com outras
funções que participaram de inovações
que geraram patentes), e soma 50 mil
1
patentes ativas. Parte do trabalho de pes-
quisa feito pela companhia é realizada
com parceiros acadêmicos. No Brasil, a
elevação de 1% em sua produção diária multinacional mantém acordos com a
de 2,4 milhões de barris resultaria em Pontifícia Universidade Católica do Rio
uma expansão da produção em 8,8 mi- (PUC-Rio), o Instituto de Matemática e
lhões de barris por ano. IBM e FAPESP Estatística da Universidade de São Paulo
Os trabalhos de pesquisa básica ocor- (IME-USP), a Escola Politécnica da USP,
rem em paralelo com os de pesquisa apli- possuem um além da UFMG.
cada. Ao mesmo tempo que o NanoLab Uma linha de trabalho importante do
investiga o fluxo de óleo em nanocapi-
acordo de laboratório no país é a tecnologia con-
lares e estuda qual a pressão necessária cooperação para versacional. A ideia é utilizar o sistema
para bombear água de modo a melhorar cognitivo Watson para reunir dados, aná-
o desempenho do reservatório, o labo- financiamento lises e opiniões de diferentes especialis-
ratório usa o Watson, uma plataforma tas num determinado campo de especia-
de serviços cognitivos em nuvem, para de pesquisas lização, publicadas ou divulgadas nos
analisar polímeros existentes no merca- mais diferentes formatos (texto, vídeo
do que possam ser usados em sistemas
em computação e imagens), e oferecer aos usuários um
para extração do óleo dos capilares das cognitiva conjunto organizado de informações por
rochas. Sistemas cognitivos são capazes meio de um aplicativo. Na área rural,
de processar informações não estrutu- o aplicativo conversacional, ainda em
radas e estruturadas e têm a capacida- desenvolvimento, foi batizado de Agria.
de de criar probabilidades e hipóteses Uma solução similar também está sendo
com base nos dados e conhecimentos feita para o setor financeiro, denominada
assimilados. possibilitam medidas de óptica na escala Finch. “Até mesmo um pequeno poupa-
Ado Jorio, professor titular do Depar- nanométrica. A IBM, por outro lado, tem dor poderá ter acesso a vários analistas
tamento de Física e pró-reitor de Pes- competência na produção de nanodispo- antes de tomar a decisão sobre seu in-
quisa da Universidade Federal de Minas sitivos para aplicações diversas no sen- vestimento”, conta Ulisses Mello.
Gerais (UFMG), diz que a nanotecnolo- soriamento para agricultura e em óleo e O desenvolvimento de inovações bra-
fotos 1 eduardo cesar 2 PEDRO GUERMANDI PAVANATO  3 ibm

gia está no seu início e contar com um gás. “Vamos unir essas duas tecnologias sileiras em computação cognitiva moti-
laboratório como o NanoLab no Brasil para procurar na escala nanométrica vou a IBM a estabelecer um acordo de
gera numerosas oportunidades para a possíveis soluções para a melhoria do cooperação com a FAPESP na modalida-
pesquisa no país. O Laboratório de Na- custo energético da extração de petróleo de Pesquisa em Parceria para Inovação
noespectroscopia (LabNS) da UFMG e para o desenvolvimento de grãos para Tecnológica (Pite). IBM e FAPESP irão
possui um convênio de pesquisa com a agronomia”, conta. custear, meio a meio, um investimento
o NanoLab. de US$ 500 mil em 10 anos para o finan-
Segundo Jorio, há uma complementa- TECNOLOGIA CONVERSACIONAL ciamento de pesquisas conjuntas entre
ridade entre os dois centros de pesquisa. A IBM, que celebra seu centenário no universidades paulistas e o centro de
O LabNS tem desenvolvido equipamen- Brasil, obteve em 2016 uma receita glo- P&D da IBM no país.
tos de medida para nanoespectroscopia bal de US$ 79,9 bilhões e investiu US$ 6 Uma primeira chamada pública já foi
óptica que ainda não são comerciais e bilhões em P&D – a empresa não divulga realizada e sete projetos foram aprova-

78  z  agosto DE 2017


2

Imagens em 3D
(à esq.) e de tomografia
computadorizada
(abaixo) para análise de
fluidos em microescala

desenvolvimento ocorre no Hospital do


A equipe do NanoLab Câncer Mãe de Deus, em Porto Alegre
3
realiza estudos para elevar (RS). Segundo Márcia Ito, cientista da
a produtividade dos
campos de petróleo do país
IBM no segmento de saúde, a solução
Watson for Oncology permitirá aos mé-
dicos incluir no sistema as informações
clínicas de seu paciente, como histórico
e resultados de exames, e o programa comercialização global. Entre os proje-
dos e contratados em março deste ano. apresentará opções de tratamento ba- tos em desenvolvimento no laboratório
Entre eles estão projetos para estimar seadas em evidências científicas mun- estão modelos de agricultura de precisão
automaticamente a faixa etária pelo pro- diais. “É um sistema de apoio à decisão usando previsão do clima, que permite a
cessamento do sinal de voz, estudos so- clínica. Mas a palavra final sempre será empresas parceiras criar ferramentas pa-
bre aprendizado avançado de máquina, do médico”, destaca Márcia. ra informação no campo, com orientação
desenvolvimento de técnicas para infe- Para os médicos, uma vantagem do sobre o melhor dia e hora para plantio,
rência e aprendizado de programas lógi- sistema é obter informações atualizadas colheita, irrigação e aplicação de defen-
cos probabilísticos, descrição e solução sobre novas comprovações científicas. sivos agrícolas.
de jogos espaciais e computação de lin- Quando se trata da área oncológica, por Outro campo de pesquisa é a com-
guagem com neurônios-espelho. exemplo, a tarefa é especialmente difí- preensão cognitiva de imagem, permi-
Os serviços cognitivos do Watson já cil diante dos cerca de 50 mil trabalhos tindo a análise de fotos feitas no campo
são usados no setor financeiro brasileiro de estudos sobre câncer publicados por por drones com base em inteligência
desde 2015, quando o Bradesco adotou o ano no Brasil e no mundo. No momento, artificial. O objetivo é conceber ferra-
sistema para o call center interno do ban- a equipe brasileira trabalha na adaptação mentas que, por exemplo, detectem o
co. Primeiro, o laboratório brasileiro da do Watson para lidar com a linguagem início do avanço de pragas na lavoura,
IBM teve de inserir a língua portuguesa, e a terminologia clínica do país, com os ou softwares que façam a contagem de
com suas nuances regionais, no Watson. protocolos clínicos locais e com as re- frutas em um pomar ou o inventário de
No segundo momento, o banco alimen- gulamentações da Agência Nacional de árvores de uma floresta de eucaliptos
tou o sistema com seus dados sobre roti- Vigilância Sanitária (Anvisa). para uma empresa de papel e celulo-
nas de trabalho e produtos do Bradesco, se. Lançado recentemente, o IBM Agri-
permitindo ao sistema oferecer respostas FOCO NO AGRONEGóCIO Tech foi desenvolvido em parceria com
para mais de 200 mil questões sobre 59 A importância do agronegócio na eco- companhias que atuam no agronegócio
produtos e serviços do banco. Em 2016 nomia brasileira levou a IBM a pensar e com empresas do setor de tecnologia
foi a vez do Banco do Brasil contratar o em soluções para o setor. Surgiu, assim, agrícola do país. n Domingos Zaparolli
sistema para atender aos seus clientes de a plataforma de inovação aberta IBM
internet banking, por onde são realiza- AgriTech, que usa tecnologias da em-
das 60% das transações da instituição. presa, como computação cognitiva, in- Artigo científico
Com o sistema já é possível realizar 144 ternet das coisas e blockchain – registro Giro, R. et al. Adsorption energy as a metric for wetta-
transações diferentes. de transações digitais com garantia de bility at the nanoscale. Scientific Reports. 11 abr. 2017.

O Watson também está sendo empre- autenticidade –, para desenvolver no Os sete projetos do acordo IBM-FAPESP estão listados
gado na área da saúde. Uma iniciativa em país soluções locais com potencial de na versão on-line desta reportagem.

pESQUISA FAPESP 258 z  79


biotecnologia y

Canaviais mais
resistentes
Variedade de cana-de-açúcar transgênica
desenvolvida por empresa de
Piracicaba é aprovada para plantio

Evanildo da Silveira

O
Brasil é líder mundial na pro- modificadas no mercado, os produtores o engenheiro-agrônomo William Lee
dução de cana-de-açúcar, com terão canaviais mais rentáveis e resisten- Burnquist, diretor de Melhoramento Ge-
8,9 milhões de hectares plan- tes a doenças e pragas”, informou a Unica nético do CTC.
tados e uma safra estimada por meio de nota. O ciclo da broca se inicia quando a ma-
de 647 milhões de toneladas este ano. Com a aprovação pela CTNBio, a ca- riposa põe seus ovos nas folhas da cana.
Esse número só não é maior por causa da na transgênica será introduzida de for- Ao eclodirem, as larvas passam a comer
broca-da-cana, a fase larval da mariposa ma gradual com o acompanhamento das a polpa do colmo (caule). Os furos fei-
Diatraea saccharalis, a principal praga áreas plantadas. Ela será inicialmente tos por elas fragilizam a planta, que fica
dos canaviais. As perdas provocadas no vendida para produtores selecionados, sujeita a ser derrubada pelo vento. Além
país pelo inseto geram um prejuízo anual principalmente do Centro-Sul, onde a disso, permitem o ataque de fungos, co-
de quase R$ 5 bilhões, incluindo o gasto variedade se adapta melhor, que se com- mo Colletotrichum falcatum e Fusarium
com medidas de controle, e comprome- prometerem a seguir padrões de con- moniliforme, causadores da podridão
tem uma área de 521 mil hectares. Para trole e multiplicação, sem a industria- vermelha, doença que reduz a pureza
tentar reverter esse quadro, o Centro de lização. Durante dois a três anos, toda a do caldo e a qualidade do açúcar e do
Tecnologia Canavieira (CTC), uma em- cana produzida será usada como muda. álcool produzidos.
presa nacional localizada em Piracicaba “Vamos desenvolver também variedades A cana transgênica foi desenvolvida
(SP), desenvolveu uma cana transgênica geneticamente modificadas para outras para enfrentar esses problemas. “Intro-
resistente à praga. Batizada de CTC 20 regiões e diferentes tipos de solo”, diz duzimos no genoma da planta o gene
Bt, a variedade foi aprovada em junho
deste ano pela Comissão Técnica Nacio-
nal de Biossegurança (CTNBio), órgão O processo
responsável pela análise da avaliação
de biossegurança de organismos gene- de transgenia
ticamente modificados (OGM) no Brasil.
Para Antonio de Padua Rodrigues, di- Como os Gene
Bacillus Cry1Ab
retor técnico da União da Indústria de pesquisadores thuringiensis
Cana-de-Açúcar (Unica), entidade cujos brasileiros criaram
associados respondem por mais da me- a variedade
tade da produção nacional, o desenvol- CTC 20 Bt
vimento da cana transgênica do CTC re- 1 2
O gene Cry1Ab da bactéria
flete os avanços tecnológicos do setor su- Em seguida,
Bacillus thuringiensis é micropartículas de
croenergético brasileiro. “Com a entrada clonado em laboratório. ouro são recobertas
definitiva dessas versões geneticamente Fonte ctc Várias cópias são produzidas com cópias do gene

80  z  agosto DE 2017


A broca-da-cana causa
prejuízo de R$ 5
bilhões e compromete
521 mil hectares de
canaviais no país

Cry1Ab da bactéria de solo Bacillus thu-


ringiensis, a mesma usada para desenvol-
ver milho, soja e algodão geneticamente
modificados resistentes a insetos”, relata
Burnquist. O Cry1Ab é clonado em la-
boratório por engenharia genética. Em
seguida, micropartículas de ouro são
recobertas com cópias do gene e intro-
duzidas no genoma da cana, que passa
a produzir uma proteína tóxica para a
broca (ver infográfico abaixo). A planta
modificada é multiplicada em viveiro e,
em seguida, cultivada no campo.
“Assim que nasce, a larva tem conta-
to com essa toxina”, conta Burnquist.
“Quando ela sai do ovo, começa a se ali-
mentar da planta, ingere a proteína e mor-
re antes de furar o colmo.” Hoje, os pro- aulas com aqueles que participaram”, produto, cerca de 40% impõem barreiras
dutores combatem a broca-da-cana com conta Burnquist. ao açúcar oriundo de cana transgênica.
inseticidas químicos e controle biológico No fim de 2015, a empresa protoco- Outra pesquisa para tornar a cana
foto eduardo cesar  infográfico ana paula campos  ilustraçãO pedro hamdan

– pequenas vespas da espécie Cotesia fla- lou na CTNBio o pedido de liberação imune a pragas é feita na Escola Supe-
vipes são soltas no campo para parasitar comercial. A biossegurança da planta rior de Agricultura Luiz de Queiroz da
as lagartas (ver Pesquisa FAPESP nº 195). geneticamente modificada foi analisada Universidade de São Paulo (Esalq-USP),
As pesquisas do centro começaram por várias subcomissões do órgão, que em Piracicaba. Lá, o engenheiro-agrôno-
em 1994 e posteriormente receberam consideraram a nova variedade segura mo Márcio de Castro Silva Filho se de-
o impacto da capacitação profissional sob os aspectos ambiental, vegetal, de dica desde a década de 1990 a entender
promovida pelo Projeto Genoma Cana, saúde humana e animal. Os estudos do como a cana reage ao ataque de insetos
entre 1998 e 2004, realizado por vários CTC mostraram que o gene Cry1Ab é eli- (ver Pesquisa FAPESP nº 125).
grupos em universidades e institutos de minado dos derivados da cana, durante O pesquisador descobriu há alguns
pesquisa e financiado pela FAPESP e a fabricação do açúcar e do etanol, e não anos um gene na própria cana com ação
pelo CTC. “Nesse período, a capacitação causa danos ao solo. antifúngica. Batizado de sugarina, ele
profissional em biotecnologia canavieira O CTC já solicitou a autoridades dos estimula a produção de substâncias tó-
foi muito grande. Aqui no CTC, muitos Estados Unidos, Canadá e outros países xicas que matam os fungos causadores
dos profissionais colaboraram no Pro- a liberação da venda de açúcar produ- da podridão vermelha. “Notamos que os
jeto Genoma Cana, na Alellyx [empre- zido a partir da cana transgênica, o que genes que expressam proteínas contra
sa spin-out do projeto genoma, depois só deve ocorrer em alguns anos. Das 150 a Diatraea saccharalis quando ela ataca
comprada pela Monsanto] ou tiveram nações para as quais o Brasil exporta o a planta o fazem de forma sistêmica, ou
seja, todos os tecidos do vegetal produ-
zem essas proteínas”, explica Silva Filho.
“No caso do sugarina é diferente, ele só
se expressa no ponto que a broca atacou.”
A descoberta levou o pesquisador a
estudar o fenômeno. “Vimos que a pro-
teína expressa pelo sugarina não tem
efeito sobre a lagarta, mas contra os fun-
gos C. falcatum e F. Moniliforme”, conta.
4 5
“Recentemente, verificamos que varie-
As células O gene promove
bombardeadas são a produção de dades de cana com maior expressão dos
3 cultivadas em meio uma proteína que sugarinas apresentam menores níveis de
de cultura. Os destrói o sistema
Com um canhão biobalístico, as infestação de fungos. Essa descoberta
micropartículas são bombardeadas embriões resultantes digestivo da
contra células do calo embriogênico, darão origem à cana broca, causando poderá auxiliar o desenvolvimento de
um tecido do caule da cana transgênica sua morte variedades mais tolerantes.” n

pESQUISA FAPESP 258  z  81


humanidades   AUDIOVISUAL y

Integrante do coletivo
Cinescadão grava imagens
de prédio ocupado em
2007 na rua Mauá, no
centro da capital paulista

82  z  agosto DE 2017


A periferia
por
ela m esm a
Grupos de jovens usam vídeos para
reivindicações sociais, expressões
culturais e mostrar como veem a
metrópole paulistana

Christina Queiroz

N
a década de 2000, vídeos produzidos por mora-
dores de áreas periféricas da cidade de São Pau-
lo chamaram a atenção de pesquisadores para
uma nova expressão do videoativismo. Tratava-
-se do trabalho de grupos que questionavam as
representações da periferia e de seus moradores. A redução
nos preços e a fácil portabilidade dos equipamentos audiovi-
suais, aliadas à ampliação do acesso a cursos de formação e
a linhas de financiamento para produção, motivaram jovens
a se unir e criar coletivos dedicados a mostrar uma nova vi-
são da metrópole paulistana. Diferentemente dos chamados
vídeos populares dos anos 1970 e 1980, que tinham um di-
recionamento político afinado com as lutas operárias e os
fotos  Guilhermo Aderaldo

movimentos contra a ditadura, o videoativismo do século


XXI aborda reivindicações sociais, expressões culturais e
demandas identitárias das populações da periferia.
O antropólogo Guilhermo Aderaldo, pós-doutorando no
Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

pESQUISA FAPESP 258  z  83


(FFLCH-USP) e que, atualmente, realiza estágio
de pesquisa na Universidade de Buenos Aires, lan-
çou recentemente o livro Reinventando a cidade
– Uma etnografia das lutas simbólicas entre cole-
tivos culturais videoativistas nas “periferias” de
São Paulo; resultado de sua tese de doutorado de-
fendida na USP. O pesquisador relaciona o surgi-
mento dos coletivos ao trabalho de organizações –
principalmente as não governamentais (ONGs)
– que passaram a oferecer cursos e oficinas de
educação audiovisual para populações jovens nas
regiões periféricas paulistanas. “Esses cursos se
proliferaram e influenciaram o surgimento de
festivais e mostras. O poder público criou linhas
de financiamento para fomentar um modelo de
produção que passou a receber nomes como ci-
nema ‘de favela’, ‘de periferia’, ‘comunitário’,
‘divergente’, ‘popular’ ou ‘de quebrada’”, conta.
O Programa para a Valorização de Iniciativas
Culturais (VAI), desenvolvido pela prefeitura de 1

São Paulo desde 2003, fez parte desse processo, Gravação do


ao financiar atividades artístico-culturais de jo- coletivo os jovens como atores políticos reivindicando
Cinescadão
vens de baixa renda. O VAI subsidiou 956 pro- direitos, pode acabar por enxergá-los apenas na
realizada com
jetos em ações de grupos juvenis da periferia de crianças condição moral de “vítimas vulneráveis” à es-
São Paulo, o que corresponde a R$ 18 milhões, de pera de oportunidades no mercado. Outro pro-
acordo com dados oficiais do munícipio. Para a blema é que algumas organizações provedoras
parte de audiovisual foram apoiadas 143 inicia- dos cursos, mais tarde, contratavam esses jovens
tivas. As demais se referiam a outras linguagens formados sem registro profissional e mediante
culturais, como teatro e música. salários inferiores aos valores de mercado. Para o
pesquisador, o descontentamento com esse tipo

A
deraldo analisou a condição ambivalente de situação foi um dos fatores que levou vários
de alguns desses programas de formação jovens, principalmente os mais escolarizados ou
criados por ONGs, uma vez que, por um com histórico de participação em movimentos
lado, essas instituições oferecem capacitação Rappers do grupo sociais, a se organizarem em torno dos coletivos
CaGeBe durante
técnica para a realização de vídeos e, por outro, “ocupação
voltados à produção audiovisual independente,
costumam empregar uma linguagem institucio- audiovisual” em como forma de utilizar os conhecimentos apreen-
nal baseada na lógica da responsabilidade social. prédio no centro didos para além do escopo das organizações do
Segundo ele, essa linguagem, em vez de pensar de São Paulo terceiro setor.
A pesquisa dialoga com trabalhos de etnógrafos
urbanos como o norte-americano William Foo-
te-White (1914-2000) e o francês Michel Agier
(1953), além de teóricos dos estudos culturais que
propõem análises interdisciplinares de aspectos
da cultura, entre eles o jamaicano Stuart Hall
(1932-2014) e o indiano Homi Bhabha (1949).
Aderaldo chegou às constatações a partir de uma
pesquisa centrada na observação das experiências
cotidianas dos jovens que participavam de cole-
tivos. Um dos grupos estudados foi o Cinescadão,
formado por moradores da região norte de São
Paulo e que promoviam intervenções culturais
na favela Peri, onde reside a maior parte dos seus
integrantes. Entre essas intervenções estavam a
criação e a projeção de vídeos, apresentações de
grupos de rap e a pintura de grafite em diferentes
áreas da cidade. Um dos filmes produzidos pelo
coletivo foi Imagens Peri Féricas, que mostra uma
série de ações praticadas pelo coletivo, sobretudo
2 as intervenções culturais realizadas na mencio-

84  z  agosto DE 2017


Ação promovida
pelo coletivo
Núcleo de
Comunicação
Alternativa em
uma quadra na
região do Grajaú,
em São Paulo

nada favela. Esse vídeo foi depois assistido por com registros, discussões e manifestações do
parte da comunidade da favela Peri. cotidiano das reivindicações no campo”, conta
Aderaldo acompanhou, ainda, a atuação da Sotomaior, que mantém o site Cinemovimento
rede Coletivo de Vídeo Popular (CVP), que reu­ com trabalhos sobre audiovisual e lutas sociais
nia diferentes grupos interessados na produção (cinemovimento.wordpress.com).
audiovisual e da qual também faziam parte nú- A partir da construção dessas “pontes comuni-
cleos de mídia vinculados a movimentos sociais. cativas” entre coletivos e movimentos sociais de
“A rede integrou o trabalho audiovisual e a reali- diferentes regiões da cidade, Aderaldo defende
dade social de populações que, mesmo distantes que emergiu um novo tipo de interpretação da
geograficamente, possuíam proximidade simbó- paisagem e das desigualdades da metrópole. “O
lica”, relata o pesquisador. Esse era o caso, por conceito de periferia, que nas mídias corporati-
exemplo, de uma ocupação mobilizada pela luta vas costuma ser representado como sinônimo de
por moradia na área central da cidade e uma fa- áreas fixas marcadas por uma situação de carên-
vela no extremo norte da capital paulista. cia, cedeu lugar a novas representações”, conta.
Nessas novas interpretações, a periferia passou a

G
abriel de Barcelos Sotomaior, jornalis- designar processos móveis em que pessoas e lu-
ta com doutorado em multimeios pe- gares se conectam por causa do acesso desigual
la Universidade Estadual de Campinas a direitos. Para o pesquisador, as experiências
(Unicamp) e estudioso da cinematografia pro- audiovisuais permitiram a esses jovens redefinir
duzida por movimentos sociais, conta que o vi- o sentido da paisagem urbana, na medida em que
deoativismo está presente também entre orga- eles romperam com a linguagem institucional
nizações rurais. Um exemplo é o trabalho do que os concebe somente como sujeitos tutela-
núcleo Brigada de Audiovisual da Via Campesi- dos. Aderaldo lembra que o sentido das palavras
na, que também participava do CVP. Criado na “periferia” e “favela” muda conforme o contexto
primeira metade dos anos 2000, o grupo reunia em que são utilizadas. “Enquanto alguns agentes
fotos 1 e 2  Guilhermo Aderaldo  3 Erick Diniz

organizações como o Movimento dos Trabalha- institucionais podem falar da ‘periferia’ como
dores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento equivalente a lugares carentes e violentos, um
dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Pasto- rapper utiliza o termo para designar noções co-
ral da Terra. A proposta era mostrar uma nova mo luta, honra ou resistência”, analisa.
perspectiva de representação da luta pelo solo. O sociólogo Noel dos Santos Carvalho, coorde-
“O coletivo se originou a partir de um curso em nador do curso de Comunicação Social – Midia-
que os participantes se mostraram insatisfeitos logia do Instituto de Artes da Universidade Esta-
com a abordagem dos temas no audiovisual do- dual de Campinas (IA-Unicamp), contextualiza
minante, criando uma série de documentários em um movimento mais amplo o argumento dos

pESQUISA FAPESP 258  z  85


Com 30 minutos, jovens que se posicionam como protagonistas nas Paik (1932-2006). Já as práticas de videoativis-
A luta do povo (1980), representações audiovisuais sobre a periferia e a mo como são conhecidas hoje têm a chamada
de Renato Tapajós,
cidade. Para o pesquisador, com a emergência dos Batalha de Seattle, de 1999, como marco histórico.
procurou traçar
um resumo novos movimentos sociais a partir da década de Naquele ano, ativistas de várias frentes se reu-
dos movimentos 1960, grupos minoritários lentamente ganharam niram na cidade norte-americana para protestar
populares voz e o poder de se autorrepresentar, entre eles contra as ideias neoliberais que permeariam o
dos anos 1970
gays, negros, mulheres e índios, deslocando os encontro da Organização Mundial do Comércio
limites entre o centro e a periferia. “Onde está o (OMC). A manifestação derivou na criação do
centro e a periferia se falamos dos grupos indí- Independent Media Center (Indymedia), uma
genas em relação aos negros?”, indaga. plataforma para o carregamento de vídeos in-
dependentes que ofereciam conteúdo do ponto
História entrelaçada de vista dos manifestantes, com o objetivo de ser
Apesar de a eclosão dos coletivos estudados por uma alternativa às narrativas dos grandes meios
Aderaldo se situar especialmente na primeira me- de comunicação.
tade dos anos 2000, o videoativismo é uma prática “Hoje, a Indymedia é uma rede de plataformas
anterior às plataformas digitais e às redes sociais. espalhadas pelo mundo. No Brasil, chama-se
“O videoativismo se confunde com a história do Central de Mídia Independente”, explica Tor-
documentário e da videoarte. Se entendida como res. Quando a plataforma de vídeos YouTube
forma de gerar visibilidade para um fato, um povo foi lançada, em 2005, já havia uma ampla rede
ou uma determinada situação, essa prática existe de conteúdo ativista organizada. “O novo canal
desde o próprio surgimento do documentário”, representou uma possibilidade de divulgação do
observa Tarcísio Torres, professor no Programa que já estava sendo feito e a melhoria da potência
de Pós-graduação em Linguagens, Mídia e Arte do sinal de internet criou a possibilidade de um
da Pontifícia Universidade Católica de Campinas compartilhamento dinâmico e imediato”, pontua
(PUC-Campinas) e autor do livro Ativismo digital o professor da PUC-Campinas.
e imagem – Estratégias de engajamento e mobili-

N
zação em rede. O surgimento do documentário é o Brasil, o documentarista Denis Porto
associado aos filmes do norte-americano Robert Renó, professor no Departamento de Co-
Flaherty (1884-1951), em especial Nanook of the municação Social da Universidade Esta-
North e Moana, produzidos nos anos 1920 (ver dual Paulista (Unesp), campus de Bauru, aloca
Pesquisa FAPESP nº 255). os primórdios do videoativismo entre os anos
Torres lembra que o lançamento da câmera 1970 e 1980, quando a prática era chamada de ví-
Portapak nos anos 1960, mais leve e barata do deo popular. Na linha de frente desse movimento
que suas antecessoras, proporcionou uma sé- estava a Associação Brasileira de Vídeo Popular
rie de experiências por parte dos primeiros vi- (ABVP), que teve como um de seus fundadores
deoartistas, entre eles o norte-americano Andy Luiz Fernando Santoro, professor na Escola de Co-
Warhol (1928-1987) e o sul-coreano Nam June municação e Artes (ECA) da USP. Nos anos 1980,

A luta pela moradia


foi retratada em Há
lugar – Ocupações
na zona leste (1987),
de Julio Wainer
e Juraci de Souza

86  z  agosto DE 2017


Santoro desenvolveu uma tese pioneira sobre a especializadas de direitos sociais e cidadania”,
presença do videoativismo no país. “No final da compara Noel Carvalho, professor da Unicamp.
década de 1970, sindicatos e movimentos sociais
passaram a financiar a produção de trabalhos para Cenário de desmonte
combater o regime militar. Os vídeos populares O fenômeno dos coletivos da década de 2000
não tinham preocupação com a linguagem cine- passou por transformações. Hoje, diante de um
matográfica e seu propósito era fazer cenário de recessão econômica e cortes nos gastos
as ideias circularem na sociedade”, públicos, a situação se tornou pouco favorável. A
conta Santoro, diferenciando essas rede CVP, por exemplo, foi desmobilizada. “Além
produções dos filmes elaborados pe- de questões pessoais entre os participantes dos
O videoativismo los coletivos atuais. grupos, mudanças políticas e econômicas do país
Santoro afirma que se os grupos também impactaram a produção de vídeos na
como é conhecido recentes manifestam uma preocu- medida em que há menos verbas, editais e espaço
pação com a linguagem audiovisual para interlocução com o poder público”, avalia
hoje teve a inexistente no passado, eles também Aderaldo. De acordo com ele, o Cinescadão foi
chamada Batalha apresentam pouca circulação nos reconfigurado de forma diferente da época em
espaços de formação da opinião pú- que ele o estudou, porém segue atuando. O pes-
de Seattle, de blica. Por outro lado, a ABVP criava quisador identifica, no entanto, o surgimento
políticas para disseminar o vídeo de novos coletivos, alguns formados apenas por
1999, como popular em todo o país nas décadas mulheres e que adotam como questão central a
de 1970 e 1980. Entre essas políti- desigualdade de gênero e a temática racial. “O
marco histórico cas estavam projeções nas sedes de videoativismo é um campo dinâmico, que muda
sindicatos e entidades sociais e por conforme a temperatura política dos tempos”,
meio da TV dos Trabalhadores. A conclui o pesquisador. n
associação também mantinha par-
cerias com escolas para que os pro-
fessores pudessem alugar os vídeos produzidos
Livros
e projetar em sala de aula. ADERALDO, G. Reinventando a cidade – Uma etnografia das lutas
Além disso, Santoro lembra que nas décadas simbólicas entre coletivos culturais videoativistas nas “periferias”
de 1970 e 1980 o videoativismo mostrava, por de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2017.
SANTORO, L. F. A imagem nas mãos – O vídeo popular no Brasil.
fotos  reprodução youtube.com

Versão atualizada em 30/08/2017


exemplo, as lutas pelo aumento do salário dos São Paulo: Summus, 1989.
metalúrgicos, enquanto hoje os coletivos seguem SILVA, T. T. Ativismo digital e imagem – Estratégias de engajamento
e mobilização em rede. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.
pelo caminho da expressão cultural e da repre-
sentação de identidades. “Em um ambiente de Filmes
maior participação democrática, o arco de rei- Cinescadão. Imagens Peri Féricas: bit.ly/2unxLP8.
Brigada Audiovisual da Via Campesina. Ensaio sobre a crise:
vindicações é mais amplo e abarca questões mais bit.ly/2vmOjLs.

pESQUISA FAPESP 258  z  87


PSICOLOGIA SOCIAL y

O passado vivo
Ecléa Bosi trabalhou
para mostrar
que a memória é usada
também para
reconstruir e repensar
o presente

Haroldo Ceravolo Sereza

P
rofessora do Instituto de Psicologia da marrado das ideologias, pode levar o passado a A pesquisadora e
Universidade de São Paulo (IP-USP), falar mais do que pôde falar aos grupos.” seus livros (à dir.):
prosa científica
Ecléa Bosi, morta em julho aos 80 anos, No artigo “Memória e sociedade: Ciência poé- marcada por
deu um novo relevo para sua disciplina no tica e referência de humanismo”, Paulo de Sal- referências literárias
panorama intelectual brasileiro ao desenvolver les, do Departamento de Psicologia Social e do e mitológicas
pesquisas sobre a coletividade e a memória. Nes- Trabalho do IP, registra alguns dos nomes que
sa trajetória, Memória e sociedade – Lembrança levaram a obra de Ecléa para além das fronteiras
de velhos (1973) se tornaria referência obrigatória da psicologia. “Octavio Ianni [1926-2004], da so-
ao articular a entrevista de idosos com a obra de ciologia, encontrou no livro ‘uma linda lição de
sociólogos como Maurice Halbwachs (1877-1945) vida’. Paulo Sérgio Pinheiro, cientista político,
e filósofos como Henri Bergson (1859-1941). apontou que ‘a história social de São Paulo sal-
“Em diálogo com Halbwachs, Ecléa traz o pas- tou léguas com este mergulho magistral’.” O livro
sado tal como foi vivido e sentido pelos grupos, repercutiu fora do Brasil, continua Salles: Pierre
descoberto e também filtrado pela memória cole- Bourdieu (1930-2002) “propunha capítulos de
tiva”, explica José Moura Gonçalves Filho, colega Memória e sociedade para leitura e debate com
da psicóloga no IP. “Com Bergson, ela mostrou a seus alunos de pós-graduação, nos seminários
memória como reaparição do passado profundo que organizava”, e o psicólogo Karl Scheibe, da
e não domado, quase livre dos filtros e só ouvido Universidade Wesleyan, Connecticutt, nos Es-
por pessoas”, diz. “A memória, que é originalmen- tados Unidos, em Self studies (1995), “saúda em
te um trabalho coletivo, quando se desenvolve Memória e sociedade o encontro milagroso entre
como um trabalho pessoal mais ou menos desa- idosos solitários, à espera da doença ou da hora

88  z  agosto DE 2017


extrema, e uma pesquisadora, que irá se tornar Longe de se preocupar em achar uma verdade,
para eles amiga verdadeira”. o que interessava a Ecléa era entender como as
Explicando seu método de pesquisa em Memó- diferentes observações sobre o mesmo fato se
ria e sociedade, Ecléa escreveu que seu objetivo complementam e se contrapõem. “Para locali-
era “registrar a voz e, através dela, a vida e o pen- zar uma lembrança não basta um fio de Ariadne
samento dos seres que já trabalharam por seus [Ariadne, na mitologia grega, dá um fio de lã ao
contemporâneos e por nós”. A memória, assim, herói Teseu, para que ele possa sair do labirinto
não se confunde com a “história”, embora dela após enfrentar o Minotauro]; é preciso desenro-
participe. E não é, ainda, um simples “reviver”: lar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto
a memória é também um recurso ativo para re- de encontro de vários caminhos”, escreveu ela.
construir e repensar o presente a partir de ima- “Ecléa trouxe para a compreensão das relações
gens do passado. Essa forma de refletir sobre a entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa
relação especial do indivíduo com o passado foi uma ideia muito profunda, a de comunidade de
sintetizada no título do livro O tempo vivo da destino”, explica José Moura. “Isso supõe que
memória – Ensaios de psicologia social (2003). o pesquisador, para compreender o sujeito da
Ecléa buscou entender como se constrói a me- pesquisa, participe em alguma medida do azar
mória social e sua complexa relação com a memó- e da sorte, do fardo e da fortuna dos sujeitos da
ria individual. Como se inter-relacionam? O que pesquisa.” No caso do livro Memória e sociedade,
é lembrando e o que é esquecido? Que significado a comunidade de destino é o envelhecimento; a
as lembranças têm para os dias que correm? O partir desse ponto comum é que o pesquisador
que significa a velhice na sociedade capitalista? deve falar aos sujeitos da pesquisa e ouvi-los.
A perguntas do gênero, Ecléa respondia com Outra obra marcante de Ecléa foi a que resul-
histórias recontadas pelos informantes, a partir tou no livro Cultura de massa e cultura popular:
de uma análise profundamente ética e de uma Leituras de operárias (1972). Ecléa realizou en-
prosa científica marcada, também, por referên- trevistas com trabalhadoras fabris e encontrou
cias literárias e mitológicas. mulheres expressando um forte desejo de ter
acesso à instrução para si ou para os filhos, mu-
Recordações lheres que despendiam parte significativa dos
Um exemplo: comparando a narrativa de duas salários em pesadas prestações para comprar
irmãs, Brites e Lavínia, entrevistadas para Me- livros. Livros que eram, muitas vezes, refugos
mória e sociedade, Ecléa mostrou como há uma das editoras, mas que iam parar num lugar de
diferença significativa na forma como elas se honra nas casas. Um exemplar chegava a custar
recordam do fim da Primeira Guerra Mundial: mais de oito dias de trabalho.
Brites se lembrava da irmã, seis anos mais velha, Odair Furtado, professor do Programa de Pós-
chegando em casa e acordando o pai para contar -graduação em psicologia social da Pontifícia
o evento e o fato de que um baile no Trianon foi Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
interrompido para que se tocasse o Hino Na- afirma que essa obra de Ecléa – orientada por
cional: “era o dia 11 de novembro”. Lavínia, por Dante Moreira Leite (1927-1976), pioneiro dessa
sua vez, não se recordava do fato – para ela, “foi área no Brasil – provocou um enorme impacto
uma coisa sem repercussão”, ainda que, provavel- entre os alunos no início dos anos 1970. “A psi-
mente, a família, francófila, tenha comemorado. cologia sempre teve um recorte mais elitizado,
dentro de consultórios particulares ou na uni-
versidade. Na época, os órgãos públicos quase
não contratavam psicólogos”, lembra.
Os recortes sociais dados por Ecléa e pela tam-
bém psicóloga Arakcy Martins Rodrigues, autora
de Operário, operária (1978), rompiam, em plena
ditadura, com essa lógica. O compromisso social
e político de Ecléa Bosi com seus entrevistados
permitiu que ela pudesse projetar e concretizar
mudanças para além das pesquisas e orientações
tradicionais. Nesse sentido, sua atuação de maior
alcance foi a concepção e a coordenação até o fim
de 2016 do programa Universidade Aberta à Ter-
fotos  léo ramos chaves

ceira Idade. Criado em 1994, o programa permi-


tiu que mais de 100 mil idosos participassem de
disciplinas de graduação, seminários, palestras
e trocas de informações e experiências com os
alunos da USP. n

pESQUISA FAPESP 258  z  89


memória

Coletora autônoma
Etnógrafa austríaca Wanda Hanke viajou sozinha pelo interior da América do Sul
nos anos 1930 para estudar grupos indígenas  |  Rodrigo de Oliveira Andrade

A
etnógrafa austríaca Wanda Hanke ia registros sobre sua vida na Europa sugerem que
pelos seus 40 anos quando embarcou tenha se graduado em medicina na Alemanha
para a América do Sul para estudar e, mais tarde, cursado direito e filosofia. Sabe-se
populações indígenas. Sem apoio que trabalhou como médica por alguns anos
institucional, ela passou os últimos 25 anos de antes de se interessar pela etnologia, então uma
sua vida embrenhando-se sozinha em florestas no ciência incipiente. “A falta de perspectiva de
interior da Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai, trabalho como etnógrafa na Europa a levou a se
reunindo, fotografando e registrando artefatos e aventurar em expedições pela América Latina,
povos ainda não estudados. Suas expedições em uma época em que as mulheres que
resultaram em uma profusão de estudos excursionavam pelo Brasil o faziam com seus
linguísticos, objetos da cultura material e registros maridos ou corriam o risco de serem malvistas
iconográficos de várias etnias. Pouco conhecidos, pelos locais”, explica a historiadora Mariana
os trabalhos de Wanda constituem um registro Moraes de Oliveira Sombrio, do Programa de
histórico sobre a diversidade indígena Pós-graduação Interunidades em Museologia Fotos feitas pela
sul-americana, tendo também contribuído da Universidade de São Paulo (USP). pesquisadora
à época em que
para a consolidação da etnologia na região. Mariana estuda a trajetória de mulheres que viveu entre os
Wanda Hanke (1893-1958) nasceu em Opava, incursionaram pelo Brasil na primeira metade do índios Bororo,
cidade da atual República Tcheca. Os raros século XX. Com base na análise de documentos em Mato Grosso

90 | agosto DE 2017
do Conselho de Fiscalização 1934 para documentar os 2

das Expedições Artísticas e índios Cainguá, no norte


Científicas do Brasil (CFE), da Argentina. De lá, seguiu
órgão federal criado em para o Paraguai para
1933 para fiscalizar e estudar os Guayaki. “Sem
licenciar o trabalho de apoio econômico, Wanda
pesquisadores estrangeiros financiava suas próprias
no país, ela e a historiadora expedições atuando como
Maria Margaret Lopes, médica em pequenos
do Núcleo de Estudos de vilarejos”, diz Mariana.
Gênero da Universidade A etnógrafa voltou à Europa
Estadual de Campinas em 1936 para angariar
(Unicamp), encontraram recursos para suas
registros de pedido de excursões. Sem sucesso,
licença de 38 mulheres retornou à América do Sul
expedicionárias. A maioria no ano seguinte para outra
era estrangeira, como a expedição. A viagem deveria
antropóloga austríaca Etta durar dois anos, mas se
Becker-Donner (1911-1975), estendeu por duas décadas.
do Museu Etnológico de De volta à Argentina,
Viena, que desbravou parte dedicou-se à arqueologia, Entre um casal de na Amazônia. Foi quando
do Brasil nos anos 1940, e a coletando objetos de povos índios da etnia contraiu malária. Morreu
Kaingang, em
arqueóloga norte-americana como Matako e Toba. Em aos 65 anos, em Benjamin
Faxinal, Paraná
Betty Meggers (1921-2012), 1939, debruçou-se sobre os Constant, no Amazonas.
do Instituto Smithsonian, Botocudos, de Santa Wanda publicou artigos
que nos anos 1950 Catarina. Anos antes, a Mesmo assim, Wanda científicos em revistas do
mostrou que os povos da foz etnógrafa havia enviado um entrou no Brasil. Em Brasil e do exterior. “Ela
do Amazonas tinham uma ofício ao CFE comunicando Santa Catarina, coletou também registrou relatos
cultura material complexa. a vinda ao Brasil de uma artefatos e anotou palavras sobre a narrativa mítica sobre
Diferentemente de Etta e expedição chefiada por ela e dados antropométricos a criação do mundo entre os
Betty, Wanda viajava para fazer pesquisas étnicas, sobre os Botocudos. Pouco Botocudos, fez listas de
sozinha. Era uma coletora sociológicas e linguísticas depois, seguiu para palavras indígenas com suas
autônoma, sem vínculo em regiões próximas aos Curitiba, onde conheceu o traduções aproximadas e,
fixo com nenhuma rios Xingu e Tapajós. O médico e antropólogo José no caso dos Kaingang, um
instituição. Articulava-se pedido, no entanto, foi Loureiro Fernandes, diretor ensaio de gramática”, conta
em atividades científicas negado — possivelmente do Museu Paranaense, o linguista Wilmar da Rocha
e comerciais, reunindo e porque ela não tinha com quem passou a se D’Angelis, do Instituto de
vendendo coleções, vínculo com nenhuma corresponder e a negociar Estudos da Linguagem (IEL)
escrevendo artigos, instituição de pesquisa ou artefatos coletados em suas da Unicamp. Algumas foram
fotografando e registrando ensino e não demonstrava viagens, o que a ajudou a publicadas, outras, não. Suas
suas viagens. Veio à América ter condições de arcar com financiar suas expedições. anotações eram imprecisas
do Sul pela primeira vez em os custos da expedição. Wanda fez o mesmo e suas traduções, não
quando esteve na Bolívia. raro, bastante simplificadas.
3
Com o tempo, no entanto, Também escreveu dois livros,
suas condições de pesquisa Dos años entre los cainguá
tornaram-se cada vez mais e A pesquisa etnográfica na
fotos 1 e 2 acervo do museu paranaense  3 Stefanie Liener, 2010

precárias. Escreveu América do Sul, publicado em


várias vezes à Universidade 1964, após sua morte.
Mayor de San Simón, em A falta de treinamento
Cochabamba, pedindo que em antropologia prejudicou
lhe pagassem pelas peças as análises dos objetos
que havia negociado. Com o que coletou. Ainda assim,
que conseguiu juntar, viajou segundo D’Angelis, o
à Europa em 1955 para, mais material que reuniu, hoje em
uma vez, tentar levantar museus, representa uma
fundos para suas viagens. fonte pouco explorada em
Voltou ao Brasil em 1957 etnologia indígena que, aos
para estudar os índios dos poucos, começa a ser
Etnógrafa deixou a Europa em 1934 para estudar índios na América Latina rios Nhamundá e Yatapu, redescoberta. n

PESQUISA FAPESP 258 | 91


resenha

Simples e pleno
Neusa de Fátima Mariano

C
omo a própria cultura caipira, o título do
livro assim se revela, simples e pleno: Vi-
da caipira, de Pedro Ribeiro. Resultado
de sua tese de doutorado, defendida na Facul-
dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP),
neste livro são encontradas não só palavras que
Vida caipira expressam o dia a dia de uma família caipira, a
Pedro Ribeiro da dona Dita, “seu” Maurílio e seus filhos, mas
Edusp
152 páginas
também imagens fotográficas que revelam a ple-
R$ 59,90 nitude da vida no campo.
Mas o que há de diferente das demais famí-
lias? O autor surpreende ao elucidar que o con-
ceito de família aqui apresentado envolve lar e
patrimônio. Isso significa dizer que há, no in-
terior dessa forma, conteúdos que tomam a di-
mensão totalizadora da vida. Assim está inserido
o seu cotidiano, em diálogo direto com a natu-
reza, não apenas no sentido do conhecimento,
do saber fazer, do aproveitamento sustentável
dos recursos e respeito a eles, mas de uma cons-
ciência de pertencimento e de identidade com
a própria natureza: seus ciclos temporais, suas Dona Dita e “seu” Maurílio, em 1998
condições físico-espaciais, suas características
singulares e ao mesmo tempo simples.
Diante da narrativa de processos históricos so- No que concerne ao masculino, o trabalho espa-
bre a região de Cunha, no Vale do Paraíba, onde cializado para além do terreiro da casa, ainda que
está localizado o sítio da família de “seu” Mau- solitário, muitas vezes se confunde com o ócio.
rílio, e de conceitos acadêmicos, a comunidade, Mas, sobretudo em situações de coletividade co-
o sítio, a família, o caipira e o caboclo vão sendo mo é o mutirão, o trabalho pode ser interpretado
desvendados pelo autor. Mas também o são por pelo leitor desavisado como atividade de pouca
meio das fotografias que, apesar de serem cenas dedicação e muita festa. Nesse sentido, nas pe-
estáticas, trazem o movimento do cotidiano per- gadas do pensamento de Monteiro Lobato, o cai-
fazendo ou complementando, ou melhor dizendo, pira é visto como preguiçoso e ignorante. Pedro
reafirmando tais conceitos científicos. Ribeiro depõe a favor do modo de ser, pensar e
Desta forma, à luz das panelas areadas, as len- agir da família caipira ao narrar o seu cotidiano
tes do fotógrafo e etnógrafo captam o olhar longe no sítio e seus afazeres, desde o cantar do galo
da mãe, da mulher Benedita, debruçada sobre a até o pôr do sol: roçar, carpir, arar, plantar e co-
janela quadrada que filtra seus pensamentos, em- lher, tratar do pouco gado para o queijo e para a
reprodução da capa eduardo cesar

balados pela sonoridade do quintal. O feminino distribuição do leite à comunidade. Nos dias de
retratado como a fonte da vida, a manutenção da descanso, “seu” Maurílio dedica-se à manutenção
família, o guardião da reprodução, tal qual sim- do sítio ora tecendo jacás, ora fazendo pequenos
bolismo trazido pelo milho colhido, a abundância reparos nos cercados e nas ferramentas, no pou-
do alimento. A prosperidade torna-se mais prós- co discernimento entre trabalho e diversão. Na
pera quando a colheita é misturada às crianças entressafra, trabalha por empreitada para outros.
de futuro ainda incerto quanto à permanência Há que enaltecer também o encontro, a socia-
ou não no sítio, na vida caipira. bilidade caipira que propicia as trocas (informa-

92 | agosto DE 2017
Francislene, Pricila e André em meio às espigas de milho no sítio de Ditinho Teixeira, em 1997

ções, favores, olhares, compromissos e alegrias). do modo de ser, pensar e agir da família caipira,
A religiosidade revestida de catolicismo popu- mas que a colocam no mundo.
lar, tão bem retratada no livro, convida o leitor a Ainda que alguns jovens se vão na aventura
entrar no ritmo do moçambique, dançado sob o urbana, outros tantos ( já não mais tão jovens)
comando dos mestres, ao som dos bastões e dos retornam, talvez como vencedores deste urbano,
chocalhos. E assim as famílias se estendem para mas com o coração apertado na busca de suas
fora da casa, do sítio, misturam-se, enriquecem- origens, para revivificar a cumplicidade orgânica
-se e se confundem sob a regência da fé, da devo- com a natureza, naquilo que é simples e pleno.
ção e da comunhão: as Festas do Divino, de São
José da Boa Vista, do Milho; o tapete de Corpus Neusa de Fátima Mariano é geógrafa e professora do Centro de
Christi; a romaria, a missa, e a novena semanal; Ciências Humanas e Biológicas da UFSCar, campus de Sorocaba.
É especializada nos temas que envolvem a cultura caipira, a
o aniversário infantil. No ritmo do calendário religiosidade popular e a geografia cultural.
agrícola-religioso, a “naçãozinha”, como diria
Antonio Candido, espalha-se e se reúne na cen-
tralidade do bairro rural, na quase vila, na quase
ponte para o urbano.
O autor chama a atenção para a interpretação
equivocadamente linear sobre o desenvolvimento
da cultura caipira, como se esta estivesse cami-
nhando para o seu fim a partir do processo de ur-
banização. Há formas diferenciadas de viver, ver
e sentir o mundo, sendo que o universo caipira se
encontra em constante diálogo com os processos
Fotos Pedro Ribeiro / Vida caipira

de modernização, anunciando as contradições


socioespaciais. As alterações da paisagem mos-
tram isso, em que há uma atenção à pecuária em
detrimento da agricultura, em que o terreno da
capela é tomado pelos “fuscas”, em que o chapéu
de palha cede lugar ao chapéu de cowboy. São
transformações que não interferem na estrutura Participantes da festa de São José da Boa Vista dançam ao ritmo do moçambique, em 1999

PESQUISA FAPESP 258 | 93


carreiras

Liderança científica

Gestão de laboratório
Saber coordenar grupos de pesquisa é importante para criar uma agenda de trabalho
sustentável envolvendo grandes projetos

Liderar um grupo de pesquisa exige formação acadêmica mais sofisticada, com


responsabilidade para coordenar e planejar os ideias aprimoradas e capacidade analítica mais
trabalhos da equipe, capacidade para conceber apurada, diferentemente dos alunos de
novas linhas de investigação e buscar iniciação científica e de mestrado, ainda no
financiamento para projetos. É preciso que início de sua trajetória acadêmica”, compara
todas as ações sejam articuladas, com objetivos a cientista política Renata Mirandola Bichir,
claros e bem definidos, e que o líder tenha professora do curso de gestão de políticas
consciência de suas próprias limitações, de públicas da Escola de Artes, Ciências e
forma a delegar as atividades adequadamente. Humanidades da Universidade de São Paulo
Construir um ambiente saudável de trabalho é (EACH-USP), a USP Leste, em São Paulo.
importante para estimular a criatividade da “Desse modo, é importante que o líder do
equipe, otimizar os esforços de pesquisa e grupo invista na construção de uma linguagem
proporcionar bons resultados. comum entre todos os membros da equipe, de
Os grupos de investigação constituem, ao modo a evitar relações assimétricas”, completa.
mesmo tempo, um ambiente de produção de Renata coordena 10 pesquisadores em um
conhecimento e de formação de recursos grupo de pesquisa do Centro de Estudos
humanos. Costumam reunir indivíduos em da Metrópole (CEM), um dos Centros
diferentes estágios de desenvolvimento de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da
profissional, de alunos de iniciação científica a FAPESP, cujo objetivo é entender o papel
pesquisadores de pós-doutorado. “Estudantes das políticas públicas e das instituições nos
de doutorado e pós-doutorandos têm processos de desenvolvimento econômico e de

94 | agosto DE 2017
redução da pobreza em grandes o conhecimento é transmitido em pesquisa”, ressalta. Por isso,
centros urbanos. Para a cadeia”, conta Euripedes Miguel, também é recomendável que os
pesquisadora, é importante que o destacando que, nos projetos que líderes incentivem os pós-doutores
coordenador identifique as lidera, os pesquisadores mais a participarem de cursos de gestão
características de cada integrante graduados são direcionados a e liderança, para que aprendam
da equipe, avalie suas capacidades e atividades que agregam maior a distribuir os trabalhos no
limitações e distribua as atividades valor à pesquisa, como a realização laboratório, a motivar colegas e
de pesquisa de acordo com o nível dos experimentos e análise e dissolver tensões, a manter as
de formação de cada um. “Isso interpretação dos resultados. atividades dentro do orçamento
ajudará a manter o grupo motivado É o que acontece também no e cronograma estipulados e a
e comprometido com os trabalhos Laboratório de Genética Molecular assegurar que todos trabalhem em
em desenvolvimento”, ela destaca. do Instituto de Biociências (IB) da prol do mesmo objetivo.
Um dos desafios dos líderes é a USP, chefiado pela geneticista Lygia
articulação entre os processos de da Veiga Pereira. Como em muitos Reuniões de acompanhamento
ensino e pesquisa e as exigências laboratórios norte-americanos e Para que as atividades sejam
de produtividade e apresentação europeus, os pós-doutores são um desenvolvidas adequadamente,
de resultados. A publicação de elemento-chave em sua equipe. aconselha-se que os coordenadores
artigos científicos, sobretudo em Além de coordenar tarefas, escrever realizem reuniões periódicas com
revistas de qualidade, tende a ser artigos científicos e ajudar a os membros de sua equipe para
um objetivo comum à maioria dos conceber e executar novas discussão das metas estabelecidas
projetos. Mas, para chegar lá, há linhas de pesquisa, eles também e identificação de problemas e
um longo processo. Exige-se uma coorientam alunos de iniciação soluções. “Esses encontros são
atividade consistente e contínua de científica, mestrado e doutorado. essenciais para o sucesso dos
revisão da literatura, a formulação Para Renata Bichir, o projetos e, por isso, precisam ser
de perguntas científicas relevantes coordenador do grupo deve realizados regularmente”, explica
e o estabelecimento de propostas enfatizar aos pós-doutorandos a Lygia, do IB-USP. Ela sugere que
metodológicas adequadas para que importância de auxiliar os alunos durante essas reuniões todos os
as hipóteses sejam testadas e os em início de formação. “Essa pesquisadores façam apresentações
resultados, apresentados e experiência os ajuda a aprimorar sobre as atividades que
discutidos em artigo ou livro. “Para suas habilidades científicas, desenvolveram na semana anterior,
manter a produtividade do grupo, fazendo com que adquiram ressaltando sua importância
tocamos vários projetos ao mesmo experiência que mais tarde será para o andamento do projeto
tempo, todos interconectados, importante para dar autonomia no principal, independentemente se se
o que implica cooperação entre os estabelecimento e gerenciamento trata de uma pesquisa de iniciação
membros da equipe”, diz o de seus próprios grupos de científica ou doutorado.
psiquiatra Euripedes Constantino
Miguel, do Departamento
de Psiquiatria da Faculdade de
Medicina (FM) da USP.
Euripedes Miguel é responsável
pela coordenação de vários projetos
no Instituto Nacional de Psiquiatria
do Desenvolvimento para Crianças
e Adolescentes (INPD). Segundo
ele, para que as atividades sejam
desempenhadas de modo integrado
e alinhadas aos objetivos de cada
projeto, o coordenador precisa criar
um ambiente de cooperação, para
que todos possam se desenvolver
em conjunto. “O processo de
ensino não envolve apenas aspectos
técnicos, mas o aprimoramento
ilustrações  daniel almeida

de habilidades sociais”,
comenta. Para isso, ele envolve
alunos em início de formação
acadêmica com estudantes de
pós-graduação. “Assim, os mais
preparados instruem os iniciantes e

PESQUISA FAPESP 258 | 95


“Essa também é uma forma de
manter todos motivados e 1 Distribua os trabalhos no laboratório
de acordo com o nível de formação
comprometidos com o trabalho”, de cada membro da equipe. Isso
conta a bióloga Lúcia Lohmann. ajudará a manter o grupo motivado
Também do IB-USP, ela coordena e comprometido com as pesquisas
vários projetos, sendo o principal em desenvolvimento
desenvolvido no âmbito da
cooperação entre os programas
Biota-FAPESP e Dimensions of
Biodiversity, da National Science
Foundation, uma das principais 2 Envolva os pesquisadores em estágio inicial
de formação acadêmica com estudantes
agências norte-americanas de experientes, de modo que os mais
fomento à ciência. “Essas reuniões preparados instruam os iniciantes e que o
ajudam os alunos a entender como conhecimento seja transmitido em cadeia
suas contribuições individuais são
fundamentais para o andamento
do projeto como um todo.”
Lúcia realiza semanalmente
3 Tente criar um ambiente de cooperação
entre os pesquisadores, para que um
reuniões com sua equipe para ajude a alavancar a carreira do outro e
discutir artigos científicos que todos possam crescer em conjunto
relevantes para os trabalhos em
andamento, avaliar manuscritos,
propostas de auxílio, preparação
de palestras, entre outras 4
atividades. Para manter a Incentive os pós-doutorandos a
produtividade do grupo, ela participarem de cursos de gestão
estabelece cronogramas e liderança para que aprendam a distribuir a
envolvendo todos os subprojetos. carga de trabalho no laboratório, motivar
“Com esses dados em mãos, avalio seus colegas e desarmar tensões
o que foi feito em cada ano e
estipulo objetivos para o próximo”,
explica. Ao mesmo tempo, para dar
conta das exigências de
produtividade e publicação de
5 Realize reuniões periódicas para acompanhamento
das metas estabelecidas, identificação de
resultados, Lúcia orienta seus dificuldades e busca de soluções. Esses encontros
mestrandos e doutorandos a podem ser fundamentais para o sucesso dos
escreverem os capítulos de suas projetos desenvolvidos pelo grupo
dissertações e teses na forma de
artigo científico e a submeterem
esses manuscritos às revistas
científicas à medida que trabalham ficar aquém do que é solicitado, anseios dos pesquisadores e
nos projetos. “Cada aluno no cabendo ao coordenador se demonstrar preocupação com a
laboratório publica pelo menos reorganizar para atingir os objetivos carreira de cada um, colocando-nos
um artigo científico como primeiro iniciais do projeto com menos à disposição para discutir qualquer
autor por ano.” dinheiro do que o previsto. “Na falta assunto que ajude a garantir o
de recursos, pode-se recorrer a desenvolvimento profissional dos
Busca por recursos editais e outras fontes alternativas membros da equipe”, destaca
Outro desafio comum aos gestores de receita, como promoção de Euripedes Miguel. Para que isso
envolve a busca por financiamento cursos pagos e parcerias com aconteça, o coordenador deve
para os projetos de pesquisa. instituições privadas”, sugere exercer seu papel de liderança de
A fim de conseguir recursos, Euripedes Miguel, da FM-USP. forma distribuída e descentralizada,
principalmente de agências de “O coordenador precisa usar sem recorrer a estruturas
fomento, os pesquisadores sua experiência para se antecipar hierárquicas muito rígidas. “Um
precisam apresentar um projeto a essas e outras dificuldades.” bom coordenador precisa ser capaz
que é submetido ao processo de Tão importante quanto garantir de deixar o protagonismo de lado
análise por pares (ver Pesquisa recursos para o projeto é o sempre que isso contribuir para o
FAPESP nº 254). Mesmo que relacionamento saudável aprimoramento do trabalho em
a solicitação seja atendida, pode do coordenador com sua equipe. equipe”, recomenda o pesquisador. n
acontecer de o valor concedido “Temos de ouvir e entender os Rodrigo de Oliveira Andrade

96 | agosto DE 2017
perfil Foi o que fez. Graduou-se em 2004,
mas não voltou imediatamente ao
Do verbo às máquinas Texas. Entrou no mestrado no
Departamento de Psicologia da
Formado em letras, cientista cognitivo André Souza transitou pela UFMG e estudou como crianças na
psicologia, estatística e hoje trabalha com novas tecnologias nos EUA primeira infância aprendem a falar,
flexionando os verbos. O trabalho
ampliou seu horizonte de pesquisa
para o doutorado. Souza elaborou
então um projeto para comparar o
mesmo processo em crianças
brasileiras e norte-americanas, que
foi aceito pela Universidade do Texas.
Ele embarcou em 2007 para fazer
o doutorado. Durante o curso,
envolveu-se em vários projetos,
deu aula, orientou alunos e
publicou artigos. Também mudou
de orientador e tema de pesquisa.
“Estudei como certos sotaques
influenciam as decisões que tomamos
no dia a dia”, explica. Em seguida, fez
dois pós-doutorados, no Canadá e no
No Google, Souza trabalha no desenvolvimento de produtos que mimetizam a cognição humana Texas, onde começou a trabalhar
com eye tracking, técnica usada para
avaliar o comportamento de
Quando adolescente, o cientista cognitiva. “Entrei em contato para indivíduos a partir do monitoramento
cognitivo André Souza, hoje com 36 saber se tinha algum projeto com o de seus movimentos oculares.
anos, tinha apenas um objetivo: qual poderia colaborar”, ele conta. Em 2014, foi para a Universidade
morar nos Estados Unidos. À época, Meier, por sua vez, indicou-lhe do Alabama, também nos Estados
disseram-lhe que precisaria primeiro outra pesquisadora, Catharine Unidos, trabalhar como professor de
ter um diploma universitário e Echols, do Departamento de estatística avançada. Criou uma linha
aprender inglês. Sem condições de Psicologia da mesma universidade, de pesquisa para estudar como
arcar com os custos de um curso de que estudava psicologia da linguagem alteramos nossas habilidades
idioma ou de uma universidade e orientava uma doutoranda cognitivas à medida que interagimos
privada, tentou a sorte no vestibular brasileira chamada Débora Souza. com novas tecnologias. Para viabilizar
de letras na Universidade Federal de “Catharine aceitou que eu trabalhasse suas pesquisas, submeteu, com
Minas Gerais (UFMG). A ideia era, como voluntário em seu laboratório”, sucesso, um pedido de financiamento
gratuitamente, graduar-se em um relembra Souza. “No fim do a um fundo do Google para pesquisas
curso superior e aprender inglês. intercâmbio, sugeriu que eu tecnológicas em universidades.
A estratégia deu certo. voltasse ao Brasil e ajudasse sua Ainda no Alabama, Souza foi
A oportunidade de ir aos Estados orientanda na coleta de dados. Desse convidado para apresentar os
Unidos surgiu na graduação, modo, criaria uma oportunidade resultados de sua pesquisa na sede do
a partir de um intercâmbio de para retornar aos Estados Unidos.” Google, na Califórnia. Ficou
alguns meses na Universidade encantado com a dinâmica de
do Texas. À época, Souza trabalho da empresa e resolveu tentar
estava interessado por algo novo. Mandou currículos para
linguística cognitiva, segundo Google, Twitter, Facebook, entre
a qual o contexto orienta ou outras empresas de tecnologia. “Em
influencia a construção fins de 2016, o Google me convidou
semântica das palavras. Ao para participar de um processo
pesquisar sobre o tema, seletivo para pesquisador”, conta.
descobriu que Richard Meier, Foram várias entrevistas até que,
do Departamento de semanas depois, recebeu a notícia de
fotos arquivo pessoal

Linguística da Universidade que tinha sido aprovado. Hoje ele


do Texas, havia se formado coordena uma equipe que pesquisa
na Universidade da Califórnia o uso de inteligência artificial na
em San Diego, referência Equipamento usado pelo pesquisador para monitorar os concepção de produtos que
mundial em linguística movimentos oculares de usuários de novas tecnologias mimetizem a cognição humana. R.O.A.

PESQUISA FAPESP 258 | 97


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98 | agosto DE 2017
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