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Sinopse
Uma equipe que abrange diferentes especialidades clínicas e que se dedicou nos últimos trinta
anos a atender, em diversos centros hospitalares, assistenciais e educacionais, problemas
graves na infância, expõe aqui alguns aspectos de sua experiência. Neste trabalho se enlaçam
questões psicanalíticas, terapêuticas, médicas e pedagógicas, num campo que, ao ser tratado
com rigor, revela limites de cada prática. A intersecção entre essas disciplinas não é pacífica.
Por isso, embora impere o melhor espírito de colaboração, os profissionais costumam se
confrontar com sérias dificuldades para definir qual é a operação clínica pertinente. A
psicanálise no ato de interrogar acerca da direção da cura do sujeito que ali está em jogo
atravessa o campo clínico tornando-o legível e transformando vigorosamente as chaves de tal
operação.
Psicanalista, presidente da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre), membro da
Association Freudienne Internationale, Mestre em Psicologia Clínica. Autor de Psicanálise do
Autismo e co-autor de Adolescência: entre o passado e o futuro, Laço Conjugal e Educa-se
uma Criança, pela Artes e Ofícios Editora.
COLABORADORES
Carlos Tkach - Psicanalista
Claudia Sykuler - Psicomotricista
Edelma Tadey - Terapeuta de estimulação precoce
Elsa Coriat - Psicanalista
Esteban Levin - Psicomotricista
Evelyn Levy - Psicopedagoga.
Jorge Garbarz - Psicomotricista
Liliana Rainieri - Psicanalista
Lydia Coriat - Neuropediatra
Mariana Groisman - Terapeuta da Linguagem
Mônica Árias - Psicanalista
Owen H. Foster - Neuropediatra
Paulo César Brandão - Terapeuta de estimulação precoce
Raquel Sued - Psicomotricista
Silvia Bruckman - Psicomotricista
Silvia Molina - Psicanalista
Stella Caniza de Paez - Terapeuta de Estimulação Precoce
SUMÁRIO
Prefácio à edição brasileira..............................................................................9
Prefácio à segunda edição em português......................................................11
Introdução......................................................................................................13
Parte I - Questões Psicanalíticas sobre o Desenvolvimento infantil
Desenvolvimento e Psicanálise.....................................................................23
Desenvolvimento: lugar e tempo do organismo versus lugar e tempo do sujeito....32
Falar uma Criança.................................................................................50
A Formação da Imagem Corporal...................................................................63
A Psicanálise e Piaget...........................................................................75
Conhecer............................................................................................85
A Direção da Cura do que não se Cura..........................................................89
Psicanálise e Deficiência Mental..................................................................107
Psicose e Deficiência Mental........................................................................119
A Escolarização de Crianças Psicóticas.......................................................126
A Educação é Terapêutica? (Parte I)............................................................155
A Educação é Terapêutica? (Parte II)...........................................................161
A Sexualidade do deficiente Mental..............................................................169
Parte II - Testemunhos e Propostas de Abordagens Terapêuticas
Quantos Terapeutas para cada Criança?.....................................................177
Terapia Psicomotora em Crianças com Patologia de Desenvolvimento.......192
A Transferência na Terapia Psicomotora......................................................201
Reflexões a propósito da Clínica Psipedagógica e Psicomotora..................218
Terapêutica da Linguagem: Entre a voz e o significante....................................236
Autismo em Neurologia Infantil.....................................................................252
Síndrome de West........................................................................................262
O Possível e o Impossível na Cura da Síndrome de Down...........................271
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Bases Neurofisiológicas da estimulação Precoce........................................275
Análise de um Caso de estimulação precoce...............................................283
A escuta do Indizível.....................................................................................294
Cecília, é de Verdade?.................................................................................299
Reflexões sobre nossa Prática Terapêutica..................................................303
Uma Psicanalista em Paris...........................................................................307
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PREFÁCIO A EDIÇÃO BRASILEIRA
Na problemática do desenvolvimento da criança tropeça-se constantemente com conceitos de
origens marcadamente heterogêneas. Idéias e descrições parciais, referidas a tal ou a qual
mecanismo, a tal ou qual sintoma, encontram às vezes acolhida em teorizações mais vastas
que, porém, enfocam só uma face das questões ali implicadas. Por isso, as diversas
especialidades que se ocupam da criança com problemas de desenvolvimento se vêem
incessantemente confrontadas com as exigências de uma prática que excede os marcos
referenciais que se lhe oferecem. Tal é o problema que abordam estas páginas. Toma-se como
ponto de partida a experiência de uma equipe que, sem contentar-se com o mero somatório de
fragmentos diagnósticos, ou das práticas paralelas de diferentes técnicas, se interroga sobre o
fundamento mesmo de sua clínica. Nessa interrogação aparecem três momentos bem
característicos:
- Inicialmente, e como é inevitável para toda equipe que se inicia, articula-se por simples
justaposição multidisciplinar, na qual as tentativas de compartilhar conceitos acerca da tarefa
esbarram na diversidade de linguagens e formações técnicas.
- A persistência e o respeito pelo verdadeiro protagonista desse trabalho, a criança, provocam
convergências nas quais as práticas se influenciam reciprocamente, produzindo
questionamentos, reformulações e algumas superposições conceituais aparentes. Este segundo
momento é o que poderíamos chamar de interdisciplinar.
- A continuidade da pesquisa clínica, acompanhada por uma tarefa assistencial que dia-a-dia
nos confronta com os limites de nosso saber no campo da problemática mental da criança e
sua família, nos colocou na necessidade de remoldar a especificidade de cada ato clínico à luz
dos efeitos transferenciais em que ficávamos implicados. Daí que aquela prática
multidisciplinar inicial viesse a se transformar numa prática transdisciplinar:
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uma prática na qual, além de conservar-se a especificidade clínica de cada especialidade, a
preocupação pelo sujeito que ali está em curso de se constituir atravessa cada procedimento
técnico, condicionando-o.
A primeira parte deste livro constitui a síntese de alguns dos conceitos que, ainda nos
contrastes, parecem guiar nossa prática.
Na segunda parte expõem-se testemunhas e propostas de diversos autores (todos integrantes
da equipe), que se referem a abordagens terapêuticas específicas com crianças descapacitadas
e suas famílias.
Agradecemos ao Dr. Roberto Harari a cuidadosa leitura do manuscrito, a Esteban Levin, a
recompilação de vários textos da segunda parte, e a Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso,
a excelência da versão para o português.
Também este é um bom momento para lembrar que faz 22 anos a Dra. Lydia F. de Coriat
dava os passos iniciais da equipe que até aqui nos trouxe.
Alfredo Jerusalinsky
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PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO EM PORTUGUÊS
Os textos clínicos medem seu vigor pela sua capacidade de servirem de referência na
orientação de sua prática. Eis nesse ponto onde hoje nos vemos no compromisso de
respondermos pelo valor deste livro.
Pese a ter se esgotado a primeira edição já faz longos anos, continuamos a ver circular entre
as mãos de nossos colegas gastos exemplares. O papel amarelado porém, não enuviou a
leitura, já que os conceitos nele vertidos continuaram a nos interpelar na indagação e demanda
que os colegas, dedicados a este particular campo clínico, atualmente nos endereçam. Para
muito além dessa circunscrição, muitas das idéias aqui contidas foram se amalgamando, em
todos esses anos, com a prática mesma da clínica de crianças e, em muitas oportunidades, nos
surpreenderam retornando para nós como aportações para a psicanálise dos pequenos sujeitos
em questão.
Essa constatação alentou nossa decisão de melhorar sua produção. A necessidade de
preencher algumas lacunas conceituais e operacionais movimentou a incorporação de novos
capítulos. Embora vários deles produzidos originalmente como artigos editados em diversas e
dispersas publicações, certamente todos eles se encontram numa linha de elaboração comum
cuja nervadura central se situa nesta obra. É por isso que consideramos plenamente justificada
sua incorporação a ela, onde, a partir de sua concentração, torna-se mais fácil a sua consulta.
Uma cuidadosa revisão, completando notas e costurando pequenos desacertos da primeira
edição, foi empreendida por Eda Estevanell Tavares a quem, se já tínhamos que agradecer
pela participação na precisa tradução do espanhol realizada junto com Diana Lichtenstein
Corso, Mario Corso e Francisco Settineri.
Mas sobretudo precisamos deixar explícito o quanto cada uma das letras deste livro continuou
durante todos esses anos - e continua ainda -
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a bater na caixa de percussão de nossa prática estendendo incessantemente os círculos
concêntricos de sua ressonância. De fato, algumas que só eram hipóteses no momento de sua
formulação inicial hoje são constatações.
Apoiados nas contribuições dos estudos sobre a maturação neurológica da criança e nas
aportações da psicanálise acerca das condições primordiais da estruturação do sujeito
psíquico, se formulam na obra original as hipóteses de uma direção terapêutica que apostava
na "plasticidade funcional e na capacidade compensatória do sistema nervoso central" 1.
Atualmente, tal "plasticidade" já não mais é uma hipótese, senão que a pesquisa básica
neurobiológica a tem verificado de uma forma incontestável. Em 1987 (ano da primeira
edição em português, mas havendo se editado em espanhol pela primeira vez em 1984)2, os
relatos contidos no texto ofereceram essa comprovação de modo antecipado pela evidente
melhora clínica de nossos pacientes que, para as concepções estáticas de uma neuropsiquiatria
reducionista, estavam desenganados. A esses pacientes, muitos dos quais ainda entrevistamos
como adolescentes ou adultos jovens, de modo muito especial devemos agradecer sua
constância, seu empenho em resgatar seu desejo, e a sinceridade e decisão com que rees-
creveram nas suas vidas o que nossa mão apenas esboçou no papel. Aqui, de novo, estas
letras.
Alfredo Jerusalinsky
Porto Alegre 22 de julho de 1999.
Notas de rodapé:
1 - Coriat L, Jerusalinsky A. - Cuadernos del Desarrollo Infantil, CLC, 1982, e anteriormente -1975/76 - in
boletins da Asociación Argentina para el Estúdio Cintífico de la Deficiência Mental.
2 - Atualmente está prestes a sair a quarta edição em espanhol.
Fim das notas de rodapé.
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INTRODUÇÃO
PEQUENA HISTÓRIA DE UM GRUPO DE TRABALHO CLÍNICO
Organizada por iniciativa e decisão da Dra. Lydia F. de Coriat, há quase trinta anos, no
"Hospital de Niños" de Buenos Aires, a equipe interdisciplinar que hoje decide expor aqui
alguns fragmentos de sua experiência passou por diversos terrenos na história de seu exercício
clínico. Com efeito, o "Hospital Alvarez" (Departamento de Pediatria), o "Hospital Durand",
ambos em Buenos Aires, a "Pequena Casa da Criança", na Vila Conceição, em Porto Alegre,
o lar para crianças abandonadas "Nosso Ninho", em São Paulo, a "Secretaria del Menor y la
Família" do Ministério de Bienestar Social (Servicio de Amas Externas para Ninos
Abandonados), de Buenos Aires, assim como algumas outras instituições, (além do "Hospital
de Niños", que inicialmente serviu como sede, em seu Serviço de Neurologia Infantil e do
Centro particular fundado em 1971) contaram com sua participação e deram lugar a um
trabalho em diversos níveis do fazer clínico com crianças com problemas constitucionais ou
com significativos riscos psicossociais.
A Dra. Lydia F. de Coriat, uma das fundadoras do que poderia ser denominada a "escola sul-
americana de neuropediatria", junto a nomes como Antônio Lefèvre (Brasil), Júlio B. Quirós
(ArgentinaX Maria A. Rebollo (Uruguai), distanciou-se, na prática, das concepções de seus
colegas daquela época, aproximando-se dos questionamentos que costumam ser adiados na
clínica neurológica. Partindo das descobertas da maturação neurológica precoce (em cuja
produção participou ativamente), foi buscar primeiro na genética e depois na psicologia as
respostas àquilo que a neurologia encontrava como limite da sua prática: a produção mental.
Precocemente percebeu que na reabilitação das crianças as atitudes e sentimentos dos pais
tinham uma influência quase sempre decisiva. Isso fez com
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que aqueles que a acompanhavam nesta tarefa (fonoaudiólogos, fisioterapeutas e
reeducadores) voltassem sua atenção para os conhecimentos psicológicos e, pouco tempo
depois, aos conhecimentos psicanalíticos sobre a criança e sua família. Abriu-se, então, um
espaço que nunca mais seria fechado: o espaço do que se ignora no destino de uma criança,
para além da doença que a afete ou do limite que sua deficiência lhe trace.
O que nos preocupa hoje em dia? Preocupam-nos alguns contrastes que aparecem em nossa
prática clínica, entre o que é posto em jogo pelo desejo terapêutico e aquilo que resulta viável
de ser feito com o que os pacientes jogam na transferência. Esse é um problema antigo na
instituição que inspira estes escritos - o "Centro de Diagnóstico y Terapêutica de los
Problemas del Desarrollo Infantil Dra. Lydia Coriat". Antigo porque tem a sua história e não
porque conserve os mesmos contornos. Façamos um pouco de história a respeito dessa linha
de argumentos referida ao desejo de "fazer um bem" onde não é fácil fazê-lo. Fazer um bem
médico quer dizer introduzir saúde aí onde há doenças, mas fazê-lo justamente aí onde há um
tipo de doença que não se pode curar, é um problema. Então, esse desejo médico de fazer um
bem justamente pela via médica tropeça na impossibilidade de realizar, por essa via, o que se
pretendia. Até hoje os neurônios não se curam e tratava-se de neurologia no desejo de curar.
É muito difícil praticar a neurologia no desejo de curar. Necessariamente, hoje sabemos, cai-
se em parte fora da neurologia. Isso teve múltiplos percursos nesta instituição e noutros
lugares. Não se trata de uma exceção, mas o modo como se cai fora da neurologia pode ser
diverso. Pode-se cair na caridade, na catequese há alguns exemplos disso. Por aí, em nosso
meio, há um neurologista que entre seus títulos exibe uma certa aprovação papal e tem uma
relação como de conversação sacerdotal com seus pacientes. Estou falando de um
neurologista que cai fora da neurologia pela via da catequese.
Outra forma de cair fora da neurologia pelo fato de insistir nesse desejo de curar ali onde,
medicamente, não se pode curar, é um certo perseverar que costuma acabar em uma
perseverança reeducativa.
Nós também caímos fora da neurologia ao longo de nossa história. Não é segredo para
ninguém que nosso grupo de trabalho foi se deslocando desde uma prática inicial de
consultório médico até isto que hoje em dia enfatiza muito mais outros aspectos que, diria,
incluem a neurologia em outra leitura, não abdicam desta tarefa, mas a incluem numa leitura
muito diferente.
O assunto é: para que lado caímos fora da neurologia pura? Nós
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pretendemos cair do lado da psicanálise, o que implica uma ética, uma ética que tem a ver
com a dinâmica do desejo daqueles que nos consultam, desejo que se expressa numa
transferência porque assim se articula na relação conosco. No entanto, nem tudo pode ser
deixado cair nessa inclinação e nossa história o demonstra. Nossa história demonstra as
preocupações que nos ocuparam em diferentes momentos. Que incluíram um momento em
que nosso trabalho esteve centrado no educativo, no pedagógico ou no reparador, concernente
a uma tarefa de ensino ou de estimu-lação. Isso demonstra que há um trânsito por algo que
tem a ver com o real e que não desaparece, assim como a neurologia tampouco desaparece em
nossa prática ao longo do tempo, por mais que caiamos fora da neurologia e em certo sentido
fora da pedagogia como tal, entendida em sua forma mais essencial e tradicional, no sentido
de transmitir conhecimentos pré-existentes ou de impor modelos pré-fixados.
O fato de que não se tenha extinguido nem a neurologia nem a pedagogia em nossa prática
indica que em nosso campo clínico impõe-se um real irredutível que deve ser levado em
conta. Real que, por aparecer dilatado, nos reteve parcialmente também fora da psicanálise.
Tivemos que perceber que esta clínica joga particularmente no concernente ao terreno do
Real, que é o irredutível. Mas, especificamente nesta clínica é que fica sublinhada sua
irredutibilidade.
No entanto, ou cai-se fora disso, da prática pura do real, ou não há nada a ser feito. Tivemos,
então, de registrar que aqui há uma operação impossível que está em jogo na dinâmica desta
clínica e o escutamos e nisso estamos. Porque na clínica dos problemas de desenvolvimento, o
Real tende a aparecer como tal, impedindo que a simbolização do destino da criança se
mantenha. Algo da ordem da psicose põe-se em jogo no discurso parental. E os terapeutas,
facilmente arrastados pela força deste buraco, este vazio que irrompe, caem na prática do
Real, isto é, caem em atender a demanda dos pais tal qual ela se apresenta em sua aparência:
ou seja, como demanda de consertar um corpo estragado, em nível do imaginário, abrindo,
assim, o espaço da constante reemergência do impossível. Frente à impotência de curar,
lançam-se na onipotência do discurso científico-técnico, preenchendo os buracos da cadeia
significante parental com um saber que pretende abranger a falha da criança, recobri-la com
um nome e, em certa medida, resolvê-la. Quando se procede assim, embora se tenha a
prudência de dizer que "toda tentativa tem seus limites" ou que não sabemos até onde
chegaremos", a repercussão nos pais elude esta prudência, uma vez que seu desejo de suturar
o que dói é mais poderoso
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que a modéstia do terapeuta. É necessário que se abra ali uma operação de outro tipo: um
atravessamento do ato clínico por uma escuta psicanalítica. Uma escuta que descentre essa
demanda dos pais, em vez de recentrá-la nos passos técnicos que são exercidos como saber
sobre o destruído e sua mecânica e, portanto, sua inversa: sua reconstrução.
Aqui surge um novo problema: o da identidade profissional. Ou melhor, desde que lugar se
exerce esta escuta quando se trata de um médico ou de uma fonoaudióloga ou de um
fisioterapeuta etc? É ali que a prática clínica da reabilitação começa a ser atravessada pela
psicanálise. Um atravessamento que questione cada passo técnico à luz da transferência que
ele suscita. Discussões e conflitos emergentes na equipe a respeito do lugar e da
especificidade de cada disciplina terapêutica e seu encaixe no desdobramento da demanda
parental, a articulação entre o educativo e o psicanalítico, entre o clínico e o adaptativo, entre
o terapêutico e o inter-pretativo (em um sentido estrito, trouxeram consigo verdadeiras crises,
e não somente conceituais, na vida e na prática daqueles que nos colocamos no espaço desta
experiência. Ocorre que, à luz desta proposta e na medida em que fomos conseqüentes com
ela, tornou-se necessário que fôssemos capazes de operar nossa própria transferência, a saber:
que nos interrogássemos sobre o que determina que nos ocupemos destes problemas tão
críticos na experiência humana e o que nossa própria fantasmática está a nos impor sob a
aparência de um discurso cheio de razões científicas e técnicas.
Este descerramento do véu de nossa própria angústia provoca uma verdadeira avalanche de
interrogações que, certamente, em muitos momentos nos fazem vacilar: retornar ao saber
estabelecido (nada desprezível) dos mecanismos e técnicas da reabilitação ou continuar na
tentativa de abrir em cada uma delas a brecha necessária para que aquilo que se ignora
provoque a elaboração deste ato.
Há algo que nos alenta a continuar: o que da criança se perde no olhar do técnico. Assim
como a comprovação de que naquela clínica, a clássica, a de parte por parte, esta que, no
melhor dos casos, chega a ser multidisciplinar, o que é recuperado pelos pais e o que a própria
criança reinstala, costumam ser meros pedaços de um robô. De tal forma que, quando isto não
ocorre, é porque os pais e a criança opuseram-se com êxito às imposições desta clínica
clássica.
Opera-se, assim, um deslocamento de certos eixos de reflexão, certos eixos de preocupação
que vão construindo um campo clínico. Isto é o que vem ocorrendo em nossa história: veio se
construindo nosso campo
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clínico, construindo-se um campo clínico específico da transdisciplinariedade neste tipo de
problemas, justamente porque nos foi possível não aniquilar aquilo fora do qual caíamos. Ou
seja, caíamos fora da neurologia, mas não a aniquilávamos, caíamos fora da prática puramente
pedagógica mas não a aniquilávamos; por outro lado, tentávamos e tentamos, neste jogo
dialético, outra síntese, outro modo de ver as coisas. Assim também nos ocorre com estas
fronteiras da psicanálise nas quais operamos e investigamos.
Esta história conduz a que, hoje em dia, grande parte de nossas preocupações estejam
centradas no campo psicanalítico. E isto se reflete em nossa equipe. E não somente na equipe
de psicologia, que por sua natureza sempre tem esse tipo de preocupações, mas no fato de que
todas as pessoas da equipe estudam psicanálise, para além de sua especialidade técnica. Quase
todos os membros têm sua psicoterapia, ou sua análise, ou já a tiveram. A equipe de
linguagem está estudando psicanálise, a equipe de estimulação precoce está fazendo
supervisão a partir do ângulo psicanalítico, fazemos leituras, revisão de textos, no campo da
psicanálise. A equipe de psicopedagogia também o vem fazendo. A equipe de
psicomotricidade está tendo um ciclo de discussões em torno de alguns problemas
psicanalíticos com a prática que eles realizam, e fazem supervisão com uma psicanalista.
Digamos: a "peste" se propaga. E as dúvidas também. Assim como em certo momento todos
estudávamos maturação neurológica, e depois passamos uma temporada com os estudos de J.
Piaget, assim como ano após ano reatualizamo-nos em tais matérias e também em genética,
hoje a psicanálise nos ocupa. Mas ela nos ocupa do modo como costuma fazê-lo quando se a
deixa atuar: atravessa a prática e modifica sua ética, transforma suas leis conceituais e lhe
denuncia suas falhas; abre, em síntese, um lugar para o sujeito ali onde todo o espaço se lhe
fechava com um saber. Nesta aprendizagem estamos. Nossas preocupações no campo
psicanalítico recortam certos problemas clínicos e se recortam, então, algumas pontuações
provisórias.
Uma que se nos apresenta é a de como operar para que se possa sustentar uma ordem
simbólica, um ordenamento simbólico nos pais dos pacientes que atendemos. Como manter
uma circulação no simbólico quando há um Real que irrompe com sua impossibilidade
absoluta, cortando toda significação ou ressignificação. Como fazer para que aquilo que
lemos na demanda de tratamento possa ser desenvolvido. Porque nós lemos neste pedido dos
pacientes a dupla presença de uma demanda que, por um lado, nos solicita uma reparação
efetiva daquilo que está estragado no
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organismo da criança, o que faz com que não funcione; e, por outro, a demanda de que algo
de seu "desejo de filho", neste bebê deformado que acaba de nascer, possa circular. Quando
os pais vêm nos ver, os escutamos desde esses dois lugares. De um lado, em sua vertente do
real: que não funciona. Ali operamos com as múltiplas técnicas terapêuticas que provam
corresponder ao caso: a neurologia, a psicomotricidade, a fisioterapia, a terapia da linguagem,
etc. E do lado da outra demanda, a que implica uma certa escuta analítica e a que implica,
então, uma certa demanda analítica, a qual não é uma demanda de análise como se demanda
uma psicanálise nas neuroses de transferência, mas que se parece em muito à demanda que
pode ser escutada nas neuroses traumáticas. Nós estamos trabalhando neste desdobramento
clínico, nesta dobra da clínica psicanalítica e interdisciplinar. Vejamos alguns rápidos
exemplos de que tipo de questões desdobramos aqui: uma fonoaudióloga nos dizia: "a palavra
fonoaudiologia me incomoda, prefiro terapia da linguagem". O que quer dizer esta mudança
de nome? Evidentemente está sublinhando que esse assunto de reeducar a fonação não
convém a seu novo referencial conceitual. Não mais encaixa em nossa prática. Já não se trata
tão-somente da voz, que fica no plano do real, trata-se da palavra. Mais ainda: do
significante1.
É obra da psicanálise o surgimento deste interrogante: foniatria? Articular a voz oü
estabelecer a palavra? Está formulado como pergunta porque é a pergunta em cujo
desenvolvimento estamos e sobre isso poderão ler um trabalho na segunda parte deste livro.
Cabem exemplos disto em todas as equipes na especificidade de cada uma de suas práticas.
Na equipe de psicomotricidade, por exemplo, discutimos justamente como se conjuga isto de
que o primeiro lugar onde o significante se inscreve seja o corpo. E como o significante
adquire sua circulação própria para além do corpo. Então, sobre que corpo opera-se no
trabalho psicomotor? Já que, na verdade, qualquer que seja sua postura, o fisioterapeuta e o
psicomotricista forçosamente estarão situados em relação à criança como o Outro, cujo olhar
esquematiza seu corpo no imaginário. Sendo assim, a demanda que o terapeuta opere em
relação a seu corpo deixará marcas simbólicas fundantes da subjetividade desta criança.
Sabendo-o ou não, o terapeuta abre trilhas significativas em um terreno virgem. E costuma
fazê-lo guiado por um discurso técnico que tem como centro de sua operação ou bem o
músculo, ou o tendão, ou uma fisiologia, ou talvez um padrão de conduta ou uma relação
lógica a ser induzida, talvez um fonema a ser articulado, ou uma palavra a ser aprendida,
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e todos os etcéteras do discurso técnico que colocam o sujeito e seu desejo em enésimo lugar.
O que quer dizer isto na prática? O que quer isto dizer quando tocamos uma criança, quando
lhe indicamos um movimento? A cerca de que interroga o terapeuta? Durante um tempo, nos
conformamos com algumas respostas piagetianas a todas essas indagações. Conformávamo-
nos com algumas respostas piagetianas que nos explicavam a constituição do sujeito como
efeito da ação. Era o choque entre um certo organismo e o meio, o que resultava em uma
coordenação progressiva. Isto, nós o sabemos, tem uma parte de verdade, nossa prática de
alguma maneira o confirma. O problema desta visão - hoje também o sabemos -é que toca a
parte menos essencial do que a um sujeito compete. Isto quer dizer, toca somente aquilo que
como processo automático vai se desdobrando, pelo simples efeito das resistências objetivas
que um organismo e um meio se opõe. Mas nisto não há sujeito, já que o sujeito vem de outro
lugar. Então, na prática pedagógica também se inclui a pergunta a respeito de: "De onde vem
o sujeito?". Deste lugar outro, do lado do significante, do lado do simbólico, que tampouco
pode ser chamado (como em uma época se chamava) afetividade, ou "o emocional".
Os afetos não são constitutivos, mas sim meros epifenômenos do que através do significante
se opera no desejo. O que permite que o desejo se constitua é o fato de que Outro coloque em
jogo uma marca (o Nome), que aliena o sujeito de seu objeto, que o separa: essa marca é da
ordem da linguagem. Linguagem não mais como função psicológica, mas sim como estrutura
que captura o sujeito e o situa em relação à cultura. É nessas fraturas do significante que nossa
atenção está se concentrando. Hoje nossa tarefa é continuar nesta interrogação. Continuar na
interrogação de, ante que problemas clínicos este ponto de vista nos coloca, sobre que
problemas clínicos nos lança. Como joga o campo da transferência na especificidade dos
problemas do desenvolvimento infantil e em cada especialidade clínica da reabilitação. Os
trabalhos que seguem tratam deste percurso.
Nota
1 - A palavra, enquanto conjunto de fonemas com uma significação, encontrou, desde F. de Saussure, uma
análise mais detalhada de sua composição e, desde J. Lacan, um conhecimento mais preciso de sua função.
Assim, podemos nos introduzir"... por ali até a distinção fundamental do significado e do significante e começar
a exercitar(nos) com as duas redes que estes organizam de relações que não se recobrem. A primeira rede, a do
significante, é a estrutura sincrônica do material da linguagem na medida em que cada elemento toma nela seu
exemplo exato por ser diferente dos outros; tal é o principio de distribuição que é o único que regula a função
dos elementos da língua
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em seus diferentes níveis, desde o par de oposição fonemática até as locuções compostas... A segunda rede, a do
significado, é o conjunto diacrônico dos discursos concretamente pronunciados... Aqui o que domina é a
unidade de significação, a qual mostra nunca se resolver numa pura indicação do real, mas sim remeter sempre
a outra significação. Quer dizer que a significação não se realiza a não ser a partir de uma apreensão das
coisas que é de conjunto... Só o significante garante a coerência teórica do conjunto como conjunto... Tais são
as bases que distinguem a linguagem do signo." (J. Lacan, La cosa freudiana. In "Escritos". México, Siglo XXI,
1971. pp. 157-8).
Parte 1
Questões Psicanalíticas sobre o Desenvolvimento Infantil
"Há coisas que passam pela idéia mesmo daqueles que não a têm."
Lonesco
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DESENVOLVIMENTO E PSICANÁLISE
Notas
1 - Do lado do real o psíquico tropeça com seu limite e aparece ali "o impossível", do lado do simbólico e do
imaginário a extensão do psíquico é infinita em sua possibilidade.
2 - LAPIÈRRE, A., AUCOUTURIER, B. - "Simbologia del movimiento". Barcelona, Científico-Médica, 1977.
3 - VOYER, P. - "El diálogo corporal". Barcelona, Científico-Médica, 1977.
4 - Há pouco tempo supervisionei o caso de uma jovem mãe com uma psicose gestacional. Tratava-se de uma
adolescente que ficou "inoportunamente" grávida aos 16 anos de idade. Sua família a rejeitou e a isolou por
este fato. No sexto mês de gestação, teve um surto psicótico delirante, que culminou num quadro catatônico
constante. Com a ocorrência do parto, imediatamente saiu desse estado e recuperou a "normalidade" por uns
poucos dias enquanto esteve totalmente separada do bebê. A família decidiu lhe trazer a criança para que a
amamentasse e, ao colocá-la em contato com seu peito, a jovem retornou imediatamente ao estado catatônico.
5 -" ... o homem não tem objeto que se constitua para seu desejo sem alguma mediação." (LACAN, J. - "Acerca
de la causalidad psíquica". Buenos Aires, Homo Sapiens, 1978, p. 98).
6 - "Os estímulos exteriores (umwelt) não colocam mais problemas que o de subtrair-se deles, o que ocorre por
meio de movimentos musculares, um dos quais termina por atingir tal finalidade e se transforma então, como o
mais adequado, na disposição hereditária. No entanto, os estímulos pul-sionais nascidos no interior do soma
(triebreiz) não podem ser suprimidos por meio deste mecanismo. Colocam, então, exigências muito mais
elevadas ao sistema nervoso, o induzem a complicadissimas atividades, intimamente relacionadas entre si, que
modificam amplamente o mundo externo até fazê-lo oferecer a satisfação da fonte de estímulo interna, e
mantendo um inevitável fluxo de estímulos (konstant-kratt) fluxo de tensão constante, diferenciado do biológico
que possui um ritmo. (Ver a esse respeito em LACAN, J. "Seminário XI", pp. 177 e 185) forçam-no a renunciar a
seu propósito ideal de se conservar afastado deles. Podemos, pois, concluir que as pulsões (triebreiz), e não os
estímulos externos, são os verdadeiros motores dos progressos que levaram o sistema nervoso a seu atual
desenvolvimento..." (FREUD, Sigmund. Obras Completas. "Los instintos y sus Destinos". Madrid, Biblioteca
Nueva, 1948. p.1028) (As notas entre parênteses são referências e comentários do autor e erros de tradução que
figuram na tradução ao espanhol, por exemplo: traduzir trieb por "instintos" e triebreiz por "estímulos
instintivos").
7 - A esse respeito são ilustrativos os conhecidos estudos etológicos de K. Lorenz e também podem se ver
citações ilustrativas de J. Lacan em seu texto "Acerca de la Causalidad Psíquica", Homo Sapiens, 1978, p. 112-
117. Neste último texto, encontramos referências tais como: "Primeiramente, 1939, trabalho de Harrison,
publicado nos "Proceedings of the Royal Society". Há muito que se sabe que a pomba fêmea isolada de seus
congêneres não ovula. As experiências de Harrison demonstram
31
que a ovulação está determinada pela visão da forma específica do congênere, com exclusão de toda outra
forma sensorial da percepção e sem que seja necessária a visão de um macho" etc.
8 - Fazemos questão de colocar os termos originalmente usados por S. Freud em alemão porque neles podem
ser notadas as diferenças conceituais que ele queria destacar, diferenças que se diluem nas traduções correntes
em espanhol, inglês e português. Trata-se de algo que a leitura de J. Lacan ensinou-nos a escutar na obra
freudiana.
9 - FREUD, S. - "Mas allá del principio del placer". In: Obras Completas. Madrid, Biblioteca Nueva, p. 1092-
94.
10 - É esta ausência o que coloca a coisa no nível de dingvorstellung (representação de coisa), ou seja, reduzida
ao nome, já que a raiz "vor" mostra que, na questão da imagem da coisa, a palavra cumpria sua função já no
conceito freudiano.
"Se nos pusermos a circunscrever na linguagem a constituição do objeto, não poderemos senão comprovar que
só se encontra a nível do conceito, muito diferente de qualquer nominativo, e que a "coisa", reduzindo-se muito
evidentemente ao nome, quebra-se no duplo raio divergente da causa na que se refugiou nossa língua (J. Lacan
refere-se ao francês: chose-cause, que constitui uma homonímia filológica e do nada (rien) a qual abandonou
em francês sua roupagem latina (rem, coisa)" (LACAN, J. "A Instância da Letra no Inconsciente". In: Escritos
1, México, Siglo XXI, 1971, p. 183-4). Daqui por diante, quando nos referimos à "coisa" no sentido vulgar, o
fazemos com a fórmula plural "as coisas". Quando a referência alude à conceitualização freudiana, o fazemos
no singular "a coisa".
11 - Percepção do próprio corpo originado fundamentalmente nas sensações derivadas do sistema
neuromuscular nas cápsulas neuroarticulares.
12 - SPITZ, R. - "El primer año de vida del niño". Madrid, Aguilar, 1966. p. 48-51.
13 - Aqui, a memória, que também existe nos animais, aparece não como resíduo de signos imaginários, mas
como séries de cadeias significantes em constante deslizamento. Isto é o que faz a diferença entre o reencontro
no presente que se opera no animal, e a reminiscência que desprende o humano de seu presente e o lança a
funcionar em outros tempos.
14 - "Foi indicado, acertadamente, que a criança adquire já a representação de um dano narcísico pela perda a
nível corporal, com a perda do seio materno depois de mamar, pela expulsão diária das fezes, e inclusive já pela
sua separação do corpo da mãe no momento de seu nascimento..." (S. Freud, Obras Completas. Madrid,
Biblioteca Nueva, 1948. La organizador genital infantil, p. 1188).
15 - Ver LACAN, J. - "Seminário XI". Cap. XV. p. 202-3.
16 - JONES, E. - "Vida e obra de Sigmund Freud". Rio de Janeiro, Zahar, 1979. p. 293.
17 - MANNONI, O. - "Freud, El descubrimiento del inconsciente". Buenos Aires, Nueva Vision, 1975. p. 43.
Fim das notas.
32
DESENVOLVIMENTO: LUGAR E TEMPO DO ORGANISMO VERSUS LUGAR E
TEMPO DO SUJEITO
Notas
1 - Referência à obra de Lewis CARROLL, "Alice no País das Maravilhas".
2 - A psicanalista que trabalhou neste caso foi a colega Eda Tavares, que, através da supervisão que
realizamos, ofereceu-me gentilmente este material para publicação.
3 - LACAN, J. - "Seminário XI". Barcelona, Seix Barrai, 1976, p. 185.
4 - LACAN, J. - Idem.
5 - FREUD, S. - Três Ensayos para una Teoria Sexual". In: Obras completas. Madrid, Biblioteca Nueva, 1948.
v. 1, p. 798.
6 - FREUD, S. - "La Organización Genital Infantil". Op. cit., v. 1. p. 1187.
7 - LACAN, J. - "Seminário XX". Buenos Aires, Paidós, 1981, p. 95-9.
8 - FREUD, S. Ibidem.
49
9 - FREUD, S. - "Historiales Clínicos". Op. cit., v. 11. p. 693.
10 - FREUD, S. - "Psicoanálisis Aplicado". Op. cit. v. 11. p. 965.
11 - FREUD, S. Idem, p. 967.
12 - "A matéria que desloca em seus efeitos ultrapassa consideravelmente em extensão à da organização
cerebral, em cujas vicissitudes ficam confinados alguns deles, mas os outros não continuam sendo menos ativos
e estruturados como simbólicos por se materializarem de outra maneira." (LACAN J. "El Seminário sobre la
Carta Robada" In: Escritos 11. México, Siglo XXI, 1975, p. 53.
13 - Lacan, J. Idem.
14 - Para além do fato de que tomemos a psicologia piagetiana como um indicador das possibilidades reais que,
psiconeurologicamente, a criança deve responder. Nesse sentido, surpreendeu-nos gratamente a convergência
que descobrimos recentemente com os textos mais atuais do Dr. Jean Bergés, os quais foram lidos por nós
depois de termos escrito estas páginas.
15 - LACAN, J. - "Seminário XI". Barcelona, Seix Barrai, 1976, p. 185.
16 - Partícula lingüística que, no discurso, indica o lugar do sujeito.
17 - FREUD S. - "Pegan a un Niño" In: Obras completas. Madrid, Biblioteca Nueva, 1948, v. 1 p. 1173.
18 -"... toda brincadeira infantil encontra-se sob a influência do desejo dominante nesta idade: o de ser grande
e poder fazer o que fazem os mais velhos" (FREUD, S. Más Allá del Princípio del Placer. Op. Cit, v. 1, p. 1094.
19 - Realidade: lugar de identificação com o semelhante, portanto, imaginário.
Fim das notas.
50
FALAR UMA CRIANÇA1
Este não é um texto originalmente escrito, mas um texto falado, uma transcrição. Pronunciado
nas jornadas da criança que não fala, Tu-cumán, 1986. Preferi manter o estilo coloquial e
"falar-lhes", já que se trata do falar. O que não quer dizer que devamos falar, porque também
se pode escrever, mas torna-se para mim mais cômodo pôr em ato o falar, quando vou falar do
falar da criança.
Poder-se-ia então pensar que aqui temos em cena o próprio ato: o falar do falar da criança.
Então aqui falará uma criança. Isto é possível, provável, e certamente inevitável, que cada vez
que alguém fale, sem sabê-lo fale uma criança nele, e que seu dizer, sem sabê-lo, tenha
presente o infantil da fala; sendo, sem sabê-lo, obstáculo ou viabilização daquilo que por um
lado deseja, e por outro se opõe a seu desejo, que ele ignora.
Esta primeira e certamente obscura tentativa de reflexão irá se esclarecendo ao longo de nossa
conversa de hoje, já que gostaria que isto fosse uma conversa entre nós, sobre as crianças que
não falam, ou do falar da criança.
Entendo que os que estão aqui reunidos pertencem a diferentes ofícios, com diferentes
ângulos de preocupação em relação a este assunto do falar da criança, então, forçosamente, o
que qualquer um poderia dizer hoje aqui, o que eu diga, o que Mariana Groisman
(fonoaudióloga, membro da equipe do Centro em Buenos Aires) vai dizer, o que já foi dito,
vai ter a ver com tentativas de interpretação sobre o lugar em que já se colocou isto que meu
dizer coloca em ato. Alusão a um discurso em que cada um de vocês está pré-formado, porque
todos os que estão aqui são falantes e não são falantes ingênuos, mas têm um dizer governado
por uma ciência, por uma técnica ou por um saber, e quando assim ocorre, tudo o que se
escuta tende a ser decodificado em consonância ou em oposição, em convergência ou
divergência com aquilo que já está aí operando. Quer dizer que qualquer coisa que se escute
virá a ser conjugada, virá tomar
51
parte numa intercalação no curso de um discurso já estabelecido.
Esta característica da comunicação não é algo que particularize nossa situação de hoje, senão
que é algo que ocorre sempre. Inevitavelmente, qualquer coisa que seja dita, em qualquer
lugar da terra e em qualquer circunstância, vai esbarrar com que já existe algo dito
previamente, e isto fará com que o que se escute se situe de determinada maneira, em
determinada posição, em determinado lugar, e isso vai-lhe mudar o sentido. Isto não é apenas
inevitável, mas também necessário, porque senão, não haveria por que falar.
Então, quando se tenta transmitir algo acerca da questão precisamente da fala, tem-se que
correr este risco: que o que digo seja mal-entendido, porque entender bem, ou seja, no estrito
sentido do que eu quero dizer, é impossível. E não há modo de resolver esta questão, não há
modo de resolver o fato de que qualquer coisa que se diga, em qualquer circunstância, dê
lugar a um mal-entendido, quer dizer, a um deslocamento do lugar original em que tal coisa
foi dita. Na realidade, precisamente, isto é o falar, e o falar não tem outro modo, outra
modalidade senão esta, não tem nenhuma outra possibilidade, o mal-entendido é universal.
Isto quer dizer que, por mais esforço que eu faça, de ser estrito e exato, o que disser terá sua
versão em cada um de vocês, e se eu quiser me comunicar com vocês, terei de correr o risco
de todas as versões que possam ser dadas ao que eu digo. Este é o risco que não estão
dispostos a correr os pais da "criança que não fala", não estão dispostos a correr o risco de
uma versão diferente daquilo que em "strictu sensu" eles quiseram dizer, e se não se está
disposto a correr este risco, o outro não é interpelado na posição de quem escuta, e portanto
fica impedido de falar, porque, vocês sabem, valha o exemplo entre nós, que o que não escuta
não fala.
Isto não quer dizer que o surdo congênito esteja confinado à exclusão do campo da
linguagem, e aqui cabe a distinção entre linguagem e o falar, já que a linguagem é um sistema
que pré-existe ao nascimento da criança, isto quer dizer que a criança nasce e se encontra com
a linguagem feita, e a essa linguagem tem de responder, e este sistema que pré-existe se vale
de signos, mas não na função de signos. Isto quer dizer que a uma diferença entre o signo
como tal e aquilo que compõe o sistema da linguagem; porque a linguagem se vale de signos
não quer dizer que os use em sua pura função de signos. E vamos dar um exemplo: no campo
animal, qualquer percepção, sensação, que se recorta do fundo por obra de uma seleção que
privilegie certas sensações do animal, as recorta por obra um sistema nervoso geneticamente
condicionado a diferenciar tal ou
52
qual sensação do conjunto que se lhe oferece. Por exemplo, a abelha recorta, entre a
infinidade de raios de luz que seu olho recebe, os raios polarizados da luz do sol; entre todos
os odores que o pequeno potrinho experimenta, a poucas horas de nascer, destaca o cheiro de
sua mãe; e assim poderíamos seguir.
Quer dizer que, biologicamente, já de saída, para qualquer animal o mundo está organizado
em função de uma série de signos que ele percebe, e dos quais se dá conta porque já está
organicamente definido o objeto, a coisa, a sensação, em torno da qual seu comportamento
depara.
Aqui, a sensação é o signo, porque o cheiro da teta é o signo da égua, o cheiro da égua para o
potrinho é signo de proteção e de objeto a ser buscado, a teta, as mamas de sua mãe ou o raio
de luz polarizada do sol é signo do ângulo no qual a abelha deverá voar, para retornar à sua
colméia. No reino animal, em todos os animais, os signos são signos, isto quer dizer que
funcionam apenas como tais. Mesmo em comportamentos desiguais, em maturação desigual,
inclusive. Têm tal poder os signos do campo animal que, por exemplo, quando uma pomba
chega à idade em que deveria ocorrer sua maturação gonadal, ou seja, a maturação de seu
aparelho reprodutor, se não vê um pombo, não ovula.
O campo animal tem funções tão estáticas, inamovíveis e determinadas que um pequeno
gatinho, frente a uma garra que se move ante seus olhinhos, não pode resistir nem mudar seu
comportamento para o caso, não pode resistir a se encolher quando se aproxima dele uma
forma de garra, embora a garra não seja garra, mas uma mão contraída, o gatinho se encolhe,
porque é um signo geneticamente estabelecido. Mas sobre a garra, ou sobre as mamas da
égua, ou sobre o raio de luz polarizada, ou sobre o semelhante no espelho, como no caso da
pomba, nem a pomba, nem o potrinho, nem a égua, nem a abelha sabem dizer nada, apenas
podem agir em consonância, mais ainda, eu diria que não é que não possam dizer com
palavras, mas nem sequer com atos. Tampouco podem variar nada do que já está definido;
não podem, os tigres, estabelecer uma discussão sobre qual seria o método ecológico mais
adequado para manter a riqueza de oferta da carne de zebra; embora sintam o cheiro das
zebras, não poderiam deter-se para analisar nada acerca das zebras, as zebras estão aí, caçam-
se e ponto final; não se deslocam para nenhum lugar, não podem se mover dessa posição de
caçadores peremptórios. No ser humano ocorre algo diametralmente diferente, nada funciona
como puro signo, porque tudo corre do lugar. A idéia de que, por um somatório de signos,
pode-se compor uma linguagem, quer dizer que por somar signos chega
53
um momento em que há tal quantidade de signos que se torna complexa a coisa e se deve
tentar uma lógica para ordená-los, esta é uma teoria da linguagem, uma teoria da
aprendizagem da linguagem, que particularmente tem muito a ver com as postulações que
precisamos analisar, acerca da questão que nos ocupa. Pensa-se, segundo esta idéia, em signos
que são regularizações das ações, que funcionam como signos de imagens, e estas imagens,
que se multiplicam e adquirem mobilidade, colocam a criança em xeque, em relação a sua
possibilidade de governar uma quantidade enorme de signos, e tem que apelar então para
organizá-los do ponto de vista lógico, e aí surge uma função, a função semiótica. A função
semiótica aparece na criança, segundo Piaget, em torno dos 18 aos 24 meses. O problema,
para aceitar esta colocação, é que a função semiótica já está desde antes; quer dizer, tudo o
que se oferece à criança não se oferece a ela como signo de nada, porém mudado de lugar.
Detenhamo-nos um momento no que diz uma mãe a seu bebê: se uma mamãe não lhe fala,
pensamos que algo está mal; se o troca e o abriga, e nunca diz nada a seu bebê, nós pensamos
que algo não funciona bem. Pensemos na mamãe que diz a seu bebê: "Que lindo, te pareces
com teu avô!", e todas as coisas que uma mamãe pode dizer. O curioso é que o bebê não
entende nada do que lhe diz. Na verdade, o bebê não entende. Então, por que dizemos que
está bem, se a mamãe faz uma coisa que o bebê não entende? Por que isto se torna tão
importante, a tal ponto que, quando a mamãe não fala a seu bebê, pensamos que algo grave
está ocorrendo? Então, nos perguntamos: para que lhe fala se ele não entende? Ainda mais nas
observações clínicas e os casos clínicos que nos chegam; de imediato a mamãe não gosta
quando o médico lhe diz: "Você não fala com seu bebê". E ela poderia nos responder: "Para
que vou falar com ele se não me entende?".
É uma resposta com uma lógica contundente. Entretanto, sabemos que algo anda mal aí. É a
mesma observação que vale para toda mamãe, em qualquer idioma: fala a seu bebê, o bebê
não entende. Então a pergunta. Para que lhe fala?". Esta é nossa primeira observação.
Segunda observação: disso resulta que, de cada coisa que o bebê f az, a mamãe supõe aí uma
significação. Se chora é porque tem fome,está me chamando". Se alguém se coloca em seu
lugar para imaginar como a criança disse "mamãe", depara com que, na realidade, não disse
nada. Depois de um tempo, ela diz: "Não está se sentindo bem?", e se pode dizer: "De onde
tirou isso?". Ela nos responde: "Bem, está inquieto, algo lhe aconteceu hoje". Como sabe isto,
se ninguém lhe informou nada? O tirou de uma série suposta, uma série de elementos. Volta-
se para atrás,
54
adianta-se e explora: o nenê está mal, estava bem e no Ínterim deve lhe ter acontecido algo
que o deixou mal; ou seja, anda-se no terreno da série do falar, e fazem-se interpretações em
relação a esta série seqüencial, supondo-se que o que se passa agora vem dessa seqüência, que
ocorreu há duas ou três horas. Que quer dizer isto de pôr numa série? Uma série de quê? De
atos que se fazem ao bebê? Não porque os atos que se fazem ao bebê não sejam variáveis,
quer dizer, não é que se lhe faça todos os dias o mesmo, com uma regularidade absoluta.
Ainda mais se observamos uma mamãe que atua de um modo religioso e ritual sobre seu
bebê, repetindo permanentemente exatamente as mesmas operações do mesmo modo, também
essa mulher anda mal, não é verdade? Porque dizemos, às vezes, de um modo fenomênico:
"Vai mal, porque não o está acostumando a variações, a distintas situações". Bem, este é o
campo da linguagem, isto quer dizer que isso que se faz com o bebê, de colocá-lo numa série
significante, é produto de uma série de interpretações. Foi produto de supor que o bebê está
referido a uma seqüência de coisas que têm sentido particular para ele, que se articulam com
um sentido para ele, nessa seqüência. Muito mais que um simples costume de receber uma
série de coisas, trata-se de um sentido que se rompeu, e por isso chora, e isto é o que vai
buscar na mãe, porque ao final dessa investigação, a mãe costuma interrogar: "Claro, se chora
é por algo", e põe aí um sentido: "Eu não estava, se deu conta de minha ausência". Então,
segunda observação: todos os fatos de um bebê são colocados em uma série, no dizer de uma
mãe ou da pessoa que cuida do bebê, tem um percurso de ida e volta no tempo, e o que agora
lhe acontece depende do que lhe aconteceu antes, e do que se supõe que virá depois, no caso
de seguir por tal caminho, no sentido de um caminho, de uma senda de significações.
Terceira observação clínica: nada do que o bebê faz é tomado como tal, senão que é
interpretado como uma significação, isto é o que faz com que a mamãe diga: "Me chama", e
alguém pergunta: "O que é isso que a chama?". Por que, quando o bebê se move, isto não é
tomado apenas como um simples movimento? Por que, ante um grito ou um choro, a mamãe
não diz simplesmente: "Está gritando" ou "está chorando"? As mães não são descritivas em
relação ao que ocorre, são interpretativas. O que o bebê faz é tomado como um signo, mas
este signo não funciona como acontece no campo animal, como algo fixo, como seria se a
mãe dissesse: "Cada vez que o bebê chora, me chama". Isto não ocorre assim, mas
dependendo de em que lugar da série esteja colocado este choro, em função de sua posição na
série significará coisas diferentes.
55
Isto quer dizer que o choro não é signo, mas significante. Esta é a diferença crucial, que nos
permite distinguir que os bebês estão no campo da linguagem, embora não falem, e que isto
ocorre no próprio momento em que pisam este mundo, sem ter outra alternativa, outra
maneira de ser. Tudo o que se faz sobre eles sistematicamente, instante por instante e segundo
por segundo, mesmo quando estejam dormindo, é submetido a esta clivagem da linguagem, e
ninguém escapa disto, a menos que, se escapa, caia então no terreno do mutismo. Porque é
certo que alguém escapa ou é expulso de seu campo temporalmente, e aí então não há
ninguém, como sabemos que ocorre com os autistas. O autismo é um haver ninguém, ali onde
alguém teria de responder há ninguém, porque o "alguém” se constitui por este operar, por
esta clivagem incessante a partir da linguagem que torna o ser humano. E por que esse ser
humano depende da linguagem para ser alguém? Depende da linguagem porque ele, à
diferença dos outros animais, é um deficiente instintivo. Quer dizer que seu instinto não existe
na medida suficiente para definir com que objeto se poderá obter a satisfação de suas
necessidades. O ser humano não sabe o que comer, não sabe qual é o objeto de sua
sexualidade, não sabe o que implica perigo para ele, não sabe o que beber. Vocês sabem que
isto não ocorre com os animais, eles sabem o que comer. Por exemplo um macaco, embora
seja criado num absoluto silêncio, pode agarrar uma banana e não tem nenhuma dúvida,
talvez a possa descascar um pouco melhor ou pior, se viu antes como fazê-lo, porém a come.
Entretanto, se se dá uma banana a um bebê, ele a coloca no olho, e isto ocorre com tudo o que
lhe acontece: não sabe nada.
Então se poderia pensar ingenuamente que a um bebê tem-se de ensinar tudo. Imaginem o
trabalho que seria se se tivesse de fazer um currículo de ensino do mundo a um bebê! Quem
poderia esgotar o universo do que haveria a ensinar? É impossível!! Este único fato demonstra
que não se ensina a um bebê, senão que se transmite a ele. Transmitir e ensinar não é o
mesmo, porque uma coisa é transmitir (operar de modo que o outro se aproprie de algo que já
está feito) e outra coisa é ensinar (construir algo que se supõe como não feito). Então, assim,
não resta dúvida que o mundo deste bebê, desta criança, é do ser humano em geral; não resta
dúvida que onde está feito este mundo, onde está pré-feito, é no que há 3 menos 2.300 anos se
diz sem cessar, sem que, entretanto, se tirem as devidas conseqüências disso. O mundo
humano está pré-feito nisto que vou dizer: "O que diferencia os seres humanos dos animais é
que o ser-humano tem linguagem". Devem ter escutado isto milhões de vezes. Por
56
outro lado, desde o ano 300 A.C. está escrito, entretanto não se tiraram as devidas
conseqüências. E quais são as devidas conseqüências? São estas: que o sujeito humano não é
mais do que linguagem, e fora dela não é nada.
Isto quer dizer que viver é um espírito que anda pelos ares? Não. Se requer um instrumento
material para manifestar-se, que é o corpo, que é seu sistema nervoso, enfim, todas as pré-
condições neurofisiológicas que conhecemos. Mas não é aí que se constitui o falar, não é na
pré-condição, senão que o falar se constitui nesse campo em que o sujeito pode ser tal. É o
único lugar onde o humano pode se articular: é o campo da linguagem. E o campo da
linguagem não é sua neurofisiologia, mas a rede que do mundo ele compõe, que certamente
não representa esse mundo, porque sabemos que entre o que se diz e a realidade há sempre
uma grande distância. Não é que a linguagem represente tudo de um modo acabado. Pelo
contrário, sempre fica algo sem dizer. Por isso, os seres humanos se equivocam
incessantemente, em tudo, sem exceção. Quando digo se equivocam em tudo quero dizer que,
embora tenhamos provisoriamente a razão em algo, isto é provisório. É difícil aceitar que o
ser humano ocorre, transcorre, nesta contingência da linguagem. Mas é necessário aceitar esta
contingência, para que a criança fale. E, que seja necessário, para que uma criança saia
falando, que se parta dessa contingência quer dizer que se deve estar disposto a apoiar-se em
algo que não se sabe bem de todo, que não representa tudo, que não reflete o mundo todo.
Isto, em outros termos, quer dizer que deve-se agüentar, deve-se suportar, se se reconhece
isto, que há uma infinidade de coisas que não se sabem, e que estão sempre rondando por aí.
O que é o que não sabe e está operando aí? O que está pré-feito na linguagem é muito mais
largo e longo do que a história pessoal de cada um, do que cada um pode chegar a dominar.
Então, nesta criança se opera algo muito mais longo e mais largo do que o que, configurando-
o de algum modo, essa criança pode chegar a dominar. Por isso, ninguém pode predizer o
destino. Não se pode predizer o destino de uma criança porque nada pode assegurar o que o
determinou, nem exatamente o lugar que ocupa, nem em que sentido irá correr, por algo que
tem a ver com o campo da linguagem, que vem do campo da linguagem, e que o situou, o
articulou, lhe disse quem é e o lançou no campo das significações, a buscar um sentido para
sua vida.
Porque, se alguém lhe dissesse qual é o sentido de sua vida, e o situasse, então, de um modo
fixo, seria porque esse alguém não estaria disposto a correr o risco de que este bebê se
encontre em transição2, e se não está disposto a correr este risco, a esse bebê restam três
alternativas:
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poderia rebelar-se e fazer um sintoma, (os sintomas não são necessariamente negativos,
podem ter um papel muito importante na vida da criança, não teríamos que nos dedicar a
combater sintomas sem saber o que querem dizer). Outra alternativa é fazer inibição, isto quer
dizer negar-se a responder, numa cisão absoluta. No sintoma alguém faz, dá outra versão ao
imperativo, na inibição não há nenhuma versão. A terceira alternativa é submeter-se,
submeter-se a esse sentido unívoco.
Então, as crianças não falam pelo mero fato de que amadureçam neurologicamente.
Tampouco se dá que falem porque imitem, porque aprendem ou porque cheguem a uma certa
abstração de ações, nem o fazem para representar imagens. Falam porque o único modo de ser
deles é falar. Quando alguém fez este trabalho de privá-los, de articulá-los e ordená-los no
campo da linguagem, então temos sujeitos, porque senão não, embora falem, não nos dizem
nada. E aqui cabe a distinção entre o falar e a linguagem. Então a maturação por si só não
conduz ao campo da linguagem, não basta, porque por mais que a criança amadureça, no
biológico não está contida a linguagem, nem algo que o oriente ao objeto que lhe falta.
Fala-se através de uma cadeia significante, quer dizer que vai enlaçando um dizer, palavra por
palavra. Certamente, qualquer coisa que se diga depois modifica tudo o que se disse antes.
Citamos aqui um exemplo trabalhado por Antônio Godino Cabas em seu livro Curso e
Discurso da Obra de Jacques Lacan (1982):
- ai querida assim não podemos continuar vivendo.
- ai querida assim não podemos continuar.
- ai querida assim não podemos.
- ai querida assim não.
- ai querida assim.
- ai querida.
- ai.
Certamente vocês vêem que o termo que vem depois muda o que se disse antes. Isto quer
dizer que o último termo interposto na série troca o significado de todo o anterior. Isto ocorre
sempre assim, ao dizer. Então: como eu controlo a mudança que vai se introduzir no que disse
a partir do próximo que vou dizer?
É um problema que o sujeito tem incessantemente, porque se ante cipa em seu dizer um efeito
que vai causar no Outro, se ele continua pela senda do dizer pela qual vinha. E é por isso que
vai mudando, articulando o que diz, em função dessa antecipação que se produz,
inconscientemente em seu dizer. O Outro, em seu discurso, produz, neste ponto, que é o
presente,
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o agora, produz uma mudança no que eu vou dizendo, e o que vou dizendo fica determinado
por este suposto inconsciente de encontro com o Outro, através de meu dizer. Isto ocorre
quando se trata de um sujeito neurótico. Com um sujeito psicótico as coisas são diferentes: ele
diz o que diz, delirando, sem que possa regular sua intersecção com o Outro, porque este
encontro está marcado de um modo fixo e inapelável, há uma versão fixa deste encontro, que
só admite uma versão: a certeza, por isso fala de um modo tal que não discute com o Outro,
senão que estabelece o que diz de um modo unívoco, isto é: uma única leitura. A criança, que
não dispõe do domínio do uso da palavra, opera isto de uma maneira, na psicose,
particularmente diferente da dos adultos, quanto aos instrumentos dos quais se vale para
exprimir esta certeza, este não discutir com o Outro, não negociar, não antecipar.
O que faz a criança psicótica que não fala? (Não estou falando de autismo, porque é diferente
da psicose).
A criança psicótica passa de uma coisa a outra, deambula sem cessar num estado de agitação
constante, que implica um delírio motor.
Porque, assim como o adulto delira falando sem cessar e sem consultar, a criança psicótica
tampouco consulta o Outro em seu agir.
As coisas, na criança psicótica, ocupam o lugar da palavra, e cada coisa não é significante, o
que quer dizer que cada coisa não implica, para a criança, um lugar de investigação, de
perguntas, de utilização, de referência. Por isso, a criança não se detém em cada coisa, como
se detém uma criança normal, vendo que papel pode cumprir esta coisa, numa série
imaginária na fantasia de seus jogos, ou no dizer dos outros. A criança passa de uma coisa a
outra, porque cada coisa não lhe diz nada; imagina tudo, mas poderíamos dizer que o
psicótico afirma algo com atos acerca de cada coisa, atira-a, arremessa-a, porque não a utiliza
controladamente, mas obsessivamente numa certa posição, ou digamos que a inclui numa
seqüência delirante e imaginária. O que ocorre então no transcurso do dizer de uma criança
psicótica? No transcurso do dizer de uma criança psicótica, a criança não pergunta, como faria
qualquer criança de sete ou oito anos. Já quando bebê, quando se pára a engatinhar, não
pergunta, com o olhar, a sua mãe, se pode tocar isto ou aquilo, se é perigoso ou não. Porque
embora as crianças desta idade não possuam autonomamente a noção de perigo, mesmo assim
pegam as coisas olhando para a mãe, tomando como referência a atitude materna em relação à
trajetória do que vão fazer. O fazer de uma criança normal é um fazer que consulta o Outro,
portanto é um fazer no campo do significante. Não é um simples acionar, é um
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acionar onde o ato vem a posteriori de uma seqüência construída, e de consultar o Outro com
seu olhar. Por isso se pode diferenciar quando uma criança é psicótica ou não o é
precocemente. Isto não quer dizer que o seja definitivamente, porque a articulação de uma
psicose requer um processo que ainda não se completou aí, mas é certo que se pode detectar
uma psicose em formação. Certamente, o que é psicótico, quando entra em contato com o
Outro, poderíamos dizer que se agita, que o faz de um modo convulsivo, arrancando-lhe as
coisas, olhando-o não para consultar, mas para impor-lhe e obrigar- lhe, ou submeter-se.
Na psicose simbiótica, a criança de dois anos, por exemplo, olha incessantemente para a mãe
para fazer qualquer coisa, suportando o olhar da mãe como um mandato unívoco. Essa mãe
não suporta a versão que essa criança poderia dar ao que ela pede, então a criança tem de
responder univocamente a esse mandato materno. Mas segue olhando-a incessantemente. Um
autista se caracteriza precisamente porque não olha para o outro, porque o autista olha
qualquer coisa: a luz, a água, mas nega-se a olhar para o outro, para o outro pensante, para o
outro ser humano. Isto é uma negativa fundamental. Por outro lado, o autista rechaça quase
sistematicamente tudo o que vem marcado como significando algo. Por exemplo, na mudança
de alimentação é característico. É um sintoma corrente no autismo que o autista resista a
qualquer mudança, nos referimos especialmente às mudanças em que o autista tem de colocar
o alimento em outra posição: porque se o alimento muda, mas a posição simbólica não muda,
o autista aceita a variação do alimento.
Não mudar a posição simbólica equivale a não falar. Por isso a criança autista pequena é
modelo de mutismo.
Em tempo:
Vocês sabem que não há nada como terminar de dizer algo para saber o que é que se teria de
haver dito. O que acontece é que alguém, feito de cortes na língua, não pode senão fazer um
corte em algum momento.
Bem, uma das tantas coisas que ficou ressoando em minha preocupação creio que merece
minutos de conversa a respeito. Eu sei que os que aqui vieram escutar pertencem a diferentes
campos, a tipos distintos de prática em relação à criança, e não se ocupam somente do que não
fala.
A diversidade de campos que se ocupam da infância está representada nesta ampla assistência
de quase 300 inscritos. Encontram-se aqui médicos que se ocupam de problemas da infância,
partindo de diferentes ângulos: neurologia, pediatria, do campo da prevenção, do campo da
ação
60
comunitária. Há psicólogos, psicopedagogos clínicos, fonoaudiólogos, educadores etc.
Das diferentes práticas podem se diferenciar distintas operações clínicas, diferentes operações
em relação à infância: o médico, o psicanalítico e o educativo.
Quando falo de educativo, refiro-me não apenas a professores, mas a todos aqueles que em
sua prática devem se valer de indicações, de um saber constituído que se tem de pedir para o
outro. Por exemplo, quando se diz a um papai e a uma mamãe como tratar este menino,
porque não o sabem, devido a que este filho é efetivamente diferente, e porque o técnico
dispõe efetivamente de conhecimentos acerca de como se deve tratar o menino com tal ou
qual diferença.
Há uma série de disciplinas terapêuticas que estão na metade do caminho, com um pé de um
lado e com o outro em outro, que eu chamaria entre o médico e o educativo, e às vezes entre o
psicanalítico e o educativo.
Ou pelo menos seria desejável que estivessem na metade do caminho, com um pé aqui e um
pé ali. Assim, por exemplo, a psicopedagogia clínica; assim, por exemplo, o modo de
intervenção clínica da fonoaudiologia baseada na psicolingüística.
Certamente, entre o médico e o psicanalítico, também há muita colaboração possível. Ainda
mais quando, em seu progresso, a medicina vem a descobrir que a doença orgânica não é algo
que permanece à margem das questões de significação e de sentido no ser humano.
É possível, assim, compreender que não existe doença que, por mais orgânica que seja, não
combine o psíquico e o orgânico. E isto, às vezes, faz com que médicos e psicanalistas
trabalhem, em muitos lugares, lado a lado.
Assim, por exemplo, em nosso Centro, a admissão de um paciente é conjunta, realizada por
um neurologista e um psicanalista, que pode ser médico ou psicólogo, como existem em
nosso Centro.
Trata-se de uma combinação possível, e que eu entendo como necessária.
Os avanços da pedagogia e da educação deram conta de que há uma série de fenômenos que
escapam ao governo do previamente sabido e que têm a ver com isso que em psicanálise se
chama de transferência.
Ou seja, para dizê-lo de um modo simples: a emergência no campo da relação entre educando
e educador de elementos que vêm de um lugar que não está contido nas disciplinas científicas
que são o objeto neste diálogo.
61
Exemplos há muitos. Em 1799, O jovem lobo de Itard, que é a primeira reeducação científica
da história. Itard, que estava inspirado no método positivista, é um antecessor do condutismo
moderno; fez um cuidadoso e minucioso currículo de ensino do mundo todo, do ponto de
vista do humano, para este jovem.
A única coisa que ficou desconsiderada não foi o que ele tentou ensinar-lhe, mas o que o
jovem tomava de seus jogos "banais" e desnecessários, segundo o doutor Itard: aquilo que nas
horas de recreio fazia com ele a babá. Estes jogos eram ternos, absolutamente desnecessários,
sem finalidade para o médico. Então, o que certamente ocorria ali, concluiu
preconceituosamente Itard, era que a simplicidade de espírito animal do jovem lobo se
entendeu bem com a simplicidade de espírito dos pobres, já que a governanta era uma mulher
pobre.
Trata-se aqui, na realidade, de algo que não tem a ver com nenhuma simplicidade de espírito,
mas, precisamente, com o único humano que ocorreu a este jovem lobo: esses jogos banais.
Porque o humano tem a característica de não necessariamente estar destinado ao útil. Sucede
que a cultura começa, precisamente, quando, na primeira vasilha modelada em argila ou na
pedra, se traça um desenho. Um desenho que certamente não influi em nada na capacidade de
a vasilha conter água, mas põe ali a marca de um autor.
Quando há um autor em jogo, há um sujeito responsável, e isto é o que constitui o âmbito da
cultura. Isto ocorre não no âmbito da pura utilidade, porém no âmbito do ócio, no âmbito da
perda de tempo, no âmbito da criatividade, de dispor de espaço para pensar no Outro; de
dispor de espaço para articular os efeitos supostos que esta gravação produz no Outro. Depois,
isto pode trazer suas derivações no campo do útil, mas somente a posterior de que
inicialmente haja um tempo para perder, em nome de uma ordem Outra, além da utilidade.
Existe algo que se denomina "furor docente", isto quer dizer o furor de ensinar minuciosa e
meticulosamente todo o tempo. Este furor, que atinge alguns educadores, é um obstáculo
decisivo para que a criança aprenda, porque não permite que ali haja silêncio, um espaço, uma
pausa, para que a criança tome conta deste vazio, tentando preenchê-lo com sua própria
versão.
O mesmo ocorre com a atenção médica, quando o médico dispõe de cinco minutos para fazer
a auscultação ou para recolher, na auscultação semiológica, os dados que lhe digam se o
paciente está doente ou não, e corta a consulta no momento em que acabou o exame
semiológico,
62
impedindo que o sujeito que está ali diga como é tomado por, ou toma esta doença. O que,
sabemos, costuma ter um papel decisivo. A esta altura, parece-me necessário dizer que, neste
assunto de perder tempo, a psicanálise é mestra.
Eu diria que a psicanálise ensina a perder o tempo, mas não a perder o tempo de qualquer
maneira, mas perder o tempo para dar lugar a uma interpelação do sujeito, que permanece
oculto para o campo do concreto.
Ao falar da clínica, temos de tomar em conta que a clínica, como um método, tem muito para
oferecer, não somente no terreno da terapêutica estritamente falando, mas no terreno
educativo, no terreno da cultura, do social, no da transmissão global, e aí, qualquer que seja o
caso no qual estejamos situados em relação à criança, eu diria ainda inclusive como pais, aí a
psicanálise tem algo a oferecer. Já que, em qualquer destes terrenos, há sempre um sujeito que
requer que se faça um vazio de saber, para que possa buscar seu próprio saber, ou sua versão
própria, acerca deste saber do Outro. Talvez seja este o ponto no qual podemos falar de
transdisciplina, ou seja, o ponto onde, em qualquer obrigação de trabalho no campo do
humano, em relação a um outro que sofre, a um outro que padece, a uma criança que padece e
ignora, torna-se necessário tomar em conta que o que guia a possível saída deste sofrimento, a
saída deste estado primário, é, antes de mais nada, uma interpelação do sujeito.
Quando o saber médico, psicológico ou o saber educativo tampam com um saber técnico o
que essa criança quer saber, fechamos, a partir da técnica, todo o espaço da subjetividade que
nessa criança está se constituindo.
Essa criança, então, não dirá nada, e seu silêncio fará sintoma no corpo, porque o que não se
diz, de alguma maneira, necessariamente, se manifesta. E quando não se manifesta no
simbólico, ou seja, no dizer, manifesta-se no real de seu corpo. Porque isso, embora seja
silenciado com verborragia técnica, de algum modo fala.
Notas
1 - Texto publicado nos "Escritos da Criança", n°. 1, Centro Lydia Coriat, Porto Alegre, 1987.
2 - Que seja, o bebê, objeto transicional para a mãe.
Fim das notas.
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A FORMAÇÃO DA IMAGEM CORPORAL (PSICANÁLISE E
PSICOMOTRICIDADE)1
"... Não se poderá saber de que goza a ostra ou o castor, ninguém nunca saberá nada disso
porque, pela falta do significante, não há distância entre seu gozo e seu corpo." (J. Lacan, O
Avesso da Psicanálise, Sem. XVII).
Acerca da imagem, o desenho e o significante
Faz já um certo tempo que tem despertado a minha curiosidade um fenômeno que observo na
infância com sugestiva regularidade. Com efeito, quando se pede a uma criança de seis a nove
anos: "Desenha teu corpo", ela produz um desenho notoriamente diferente daquele que ela
mesma faz quando se solicita: "Agora, desenha-te tu". No primeiro caso, se observam
desenhos de corpos nus, onde às vezes o indicador de nudez é a mera presença do umbigo, ou
imaginarizações do interior do corpo, mostrando órgãos como o estômago, os pulmões, tubos
diversos que conduzem o ar, o sangue, o "cocô", o "xixi". Freqüentemente estes desenhos não
têm uma linha perimetral que indique a figura externa do corpo que aloja estes órgãos,
ficando assim ausente a representação de cavidade" (pelo menos no desenho) e aparecendo
essas configurações como um corpo fragmentado.
Na segunda proposta, aparecem corpos vestidos, geralmente diferenciados por sexo (que
costuma corresponder ao autor do desenho) sob a forma de meninas com vestido, meninos
com calça, independentemente que as meninas quase sempre vistam calças, pelo menos na
hora da realização do desenho. Também se evidenciam traços que testemunham q ue ali se
produziu um auto-retrato.
É fácil constatar, a partir desta observação, que, tanto num caso como no outro, o desenhado são
corpos; a diferença da produção está ligada
64
à frase que especifica a solicitação. Nessa frase, a posição do sujeito interpretado pela
demanda muda radicalmente.
Vejamos isto mais detalhadamente. Se tomarmos a produção do desenho como um enunciado,
o que se justifica neste caso por ele estar em continuidade significante com uma demanda
verbal2, o sujeito da enunciação (o desenhante), que é colocado, tanto na primeira como na
segunda solicitação, na posição de dar algo a ver (já que em ambas se pede: desenha), porém é
fortemente deslocado, no seu próprio olhar, para que vá de uma a outra frase.
Evidentemente, o olhar que produz a primeira série de desenhos não está situado no mesmo
lugar que diz respeito à segunda série.
O que produz a mudança de tal posição?
Na primeira frase, desenha seu corpo, o significante "seu" provoca o deslocamento do sujeito
da enunciação, a respeito do seu corpo. Este lhe aparece ali como resto a ser dado a ver; ou
seja, como real. Embora o desenhante, como sujeito da enunciação, permaneça centrado na
produção imaginária do desenho, seu olho é catapultado contra a borda do que não pode ver: o
real. É por isso, por causa da separação entre a sua posição subjetiva e seu corpo, pelo fato de
ser arrastado à condição de mera coisa por obra da violência da consigna, que o sujeito
desenha o que não se vê. Faz ali uma tentativa de capturar o real de seu corpo na dimensão
imaginária, porque, ao mesmo tempo que é separado dele, fica, pelo imperativo da frase,
atrelado a contemplar esse resto dessubjetivado.
E mais um detalhe interessante: com freqüência estes desenhos excluem o rosto, a cabeça.
Acontece que o sujeito está fazendo borda frente ao real de seu corpo ao custo de sua própria
cabeça. Com efeito, quando o sujeito é atrelado ao real do seu corpo, o preço que paga é
ofading (o apagamento) de sua própria subjetividade. O corte da cabeça aparece aqui como
um esforço extremo para deixá-la fora desta transação.
Que outra coisa, senão esta, é o corte que um fóbico coloca em jogo quando subtrai seu corpo
do contato com o objeto fóbico? Bem sabemos que o objeto fóbico sustenta a função paterna
precisamente ali onde ela fraquejou; mas, na medida em que o faz no real, obriga o sujeito a
um trabalho incessante sobre o espaço entre seu corpo e o objeto. Espaço que não pode ser
grande demais, para que a função paterna conserve sua consistência, mas tampouco de menos
porque aí o corpo ficará ameaçado no real.
Que outra coisa, senão esta, diremos também da conversão histérica? Bem sabemos que tanto
a anestesia como a dor, que tanto a paralisia
65
como a agitação, que tanto a astenia quanto a contratura, afetam precisamente o órgão ou
membro ligado pela cadeia significante ao gozo fálico; ali, precisamente, onde a castração
emerge como real. São esses sintomas a defesa extrema contra a angústia, defesa que apela ao
corte sintomático no corpo para manter a subjetividade em pé.
Que outra coisa, senão esta mesma, é a que opera nos rituais da obsessão, nos quais o sujeito
oferece seu corpo ao outro para acalmar sua imaginária fúria castratória, numa tentativa de
salvar a roupagem de sua subjetividade, de manter vigente a sua própria versão da vida e do
mundo?
Os "cortes de cabeça", a "objetivação do corpo" de nossos pequenos desenhantes, não fazem
mais que revelar o estatuto do corpo na neurose, quando o imperativo do Outro coloca o
sujeito no impasse de se desdobrar de sua carne, mas ao mesmo tempo o obriga a ficar o
tempo todo de olho nela porque ela está em perigo. E bem sabemos que o fato de que o perigo
seja simbólico não o torna menos eficaz.
Paradoxalmente, quando o olho é colocado na distância e perspectiva que lhe outorga a maior
objetividade sobre si mesmo, já não vê nada, ou, o que é pior, somente vê a sua própria retina.
O olho tem que se enganar para poder olhar. O raio de luz precisa não somente atravessar a
córnea mas também, e mais decisivamente, atravessar a peneira do significante.
A respeito, é bom dispor de um exemplo clínico. Lembro do desenho realizado por um
menino psicótico de 12 anos. Ele dizia que não desenhava, ele "batia fotografias". E
desenhava um menino, que era ele mesmo, olhando de frente e atrás duma câmera fotográfica,
àquele que olhasse o desenho. Obviamente, o menino do desenho estava batendo a fotografia
do menino que estava fazendo o desenho que, segundo ele, estava batendo a fotografia. A
"fotografia" do desenho era a fotografia que fotografava o fotógrafo. Como vêem, a
objetividade perfeita no olhar acontece quando não há espaço para o Outro.
A esse respeito é que quero introduzi-los na análise dos desenhos derivados da segunda
proposta. Lembro-lhes: o "desenha-te tu". É notável, nestas produções gráficas, a presença da
roupa e os signos da diferença sexual que nela se manifestam. O cuidado demonstrado na
inclusão de detalhes (enfeites, penteados, botões etc.) sugere a preocupação com o olhar do
Outro.
Evidentemente, o corpo aqui desenhado, ainda que na dimensão necessariamente imaginária,
está claramente capturado na posição simbólica. É porque ocupa esta posição que aparece
significada a diferença
66
sexual, apesar da percepção. Aqui tampouco se desenha o que se vê: as meninas desenhantes
usavam calças e no gráfico estão com saias, todos desenham seu rosto que, como sabemos, é
precisamente o que não vemos de nós mesmos. A cabeça é colocada em seu lugar, (Oh!
Surpresa!), pelo olhar do Outro, e não pelo próprio. Agora estamos diante de um corpo
marcado pela lei: tem limites perimetrais, a pulsão não se derrama nem fica como pura pulsão
de órgão. Ela percorre o circuito do olhar do Outro e ali faz o contorno do objeto que falta, o
objeto de desejo (objeto a), cuja posição de ausente no olhar fica explicitada pela roupa que o
cobre. Tanto como no primeiro caso, é o significante que situa a posição do olhar: "desenha-te
tu" é o que diz o observador. O sujeito da enunciação (o desenhante) fica confrontado assim a
um Outro que se faz presente na estrutura da linguagem: se há um Tu, há um Eu que está
falando, e que refere ao Tu um Te, ou seja: sem dessubjetivar o desenhante (TU) lhe demanda
sua versão acerca de sua posição como objeto (Te) do Outro. Por sinal que aqui também
aparecerão, de outros modos, as particulares estruturações da neurose nos traços do desenho,
sob a condição de que eles não sejam meros signos da coisa, mas elementos duma série
significante. Porém não é nessa direção que queremos caminhar. De modo algum poderíamos
atribuir a cada desenhante um particular tipo de neurose, nos guiando pelos seus desenhos. Se
o fizéssemos, seria um percurso em falso. Em falso, precisamente; verfehlt, como o ato falho
que denuncia uma verdade oculta de quem o produz. Um percurso em falso nosso que diria
algo de nossa neurose, mas não da dos desenhantes. Acontece que, para sabermos algo deles,
é necessário deixá-los falar eles mesmos. É necessário que eles cometam seu próprio ato
falho, e não, de modo algum, pretender deduzir de um desenho uma significação acerca da
qual não foram consultados. Nosso interesse é bem mais modesto. Nosso interesse está em
sublinhar que tanto o esquema como a imagem corporal estão produzidos pelo significante. O
real por si mesmo não faz nada, ou melhor, somente faz nada. Não é do real que provém o
esquema, mas tanto este quanto a imagem corporal se articulam mercê à posição diferente
para um e outro caso em que o olho do sujeito é colocado por obra do campo da palavra.
Como acabamos de ver, no primeiro e no segundo dos casos descritos nos desenhos do corpo,
que correspondem respectivamente à posição do olhar para o esquema e à posição do olhar
para a imagem, a variação do produto depende de se o olho do sujeito, situado no imaginário
pela pregnância originária da imagem do semelhante, é catapultado pelo significante em
direção à borda do real ou em direção à borda do simbólico.
67
CORPO REPRESENTAÇÃO
Esquema e imagem
O olho tropeça com o corpo de duas maneiras diferentes. Do lado do real, o corpo é puro
gozar da vida; sem tempo nem limite; o sujeito se apaga, se situa nos automatismos do gozo
que colocam em cena a pulsão de morte através da pura repetição. O corpo ali goza da vida
endereçado sem freio para a morte, da qual a subjetividade, ali em fading, não tem
antecipação nem notícia. A falta de eficácia do significante deixa o sujeito à mercê da
fragmentação corporal. O corpo explode enquanto o sujeito implode.
É diante da angústia produzida por esta dissolução que o sujeito chama o significante (o
Nome-do-Pai) em seu auxilio. O bebê recolhe religiosa, minuciosamente, cada traço, cada
marca, cada emissão da voz materna, cada letra e cada gesto, e os solda ao redor de cada
buraco que nele se manifesta como substância gozante: a boca, o ânus, a orelha, o olho, as
vias aéreas, a manifestação muscular. Tenta, assim, articular um domínio (ao qual S. Freud se
refere como "pulsão de domínio" - bemachtigunstrieb) desse boneco esquartejado, recolhendo
os pedaços no espelho totalizante que a mãe lhe oferece.
Atrelado, neste pendente, ao real de seu corpo; capturado na constância da pulsão (konstant-
kraft = força constante), 5 o sujeito apela a estabelecer ali uma organização que costure os
retalhos corporais, uma alternância que ordene num ritmo de atividade-passividade aquilo que
lhe iparece como pura agitação caótica e gozante. É deste lado que monta seu esquema: pela
intervenção do significante que triunfa, na medida em que engata o circuito pulsional ao redor
da particularização do objeto faltante e ordena, assim, um funcionamento muscular, oral, ótico
etc; mas que, ao mesmo tempo, fracassa, já que não pode introduzir significação nenhuma
onde as sinergias, os automatismos e os produtos corporais fazem seu
68
efeito residual, impondo sua substância como negativo de qualquer modelação. Mas é um
fracasso paradoxal: ali onde o significante bate, faz nó, sendo tal nó o que constitui a peça
elementar do esquema.6 Disto é que se constitui o esquema: enodamento do significante à
mecânica do corpo de encontro aos objetos do mundo; enodamento da palavra ao movimento,
laço na beirada onde o objeto "a" se manifesta na sua qualidade do que escapa e faz vácuo
sem retrocesso possível. Como recuperar o movimento que acaba de acontecer? Ou deter a
voz que acaba de se emitir? Ou o som que no instante anterior bateu no tímpano? Ou o
momento do olhar que acabou de acontecer? Somente uma laçada de tal objetivo perdido é
capaz de reter algo dele na sua irremissível ausência. Somente tal nó tem o poder de colocar a
coisa perdida na série - significante - que lhe outorgue livre deslocamento - imaginário - no
espaço e no tempo. Porque somente tal nó, nascido do caráter significante do toque materno,
tem a capacidade de constituir a lógica das ações, e o poder de transformar movimentos em
praxias, agitação em ação, turbação em ato.
Os psicomotricistas sabem disto: o toque corporal impregnado de significações reordena um
movimento, ali onde uma dispraxia o paralisava. Vemos nisto que o real não engendra
esquema por si mesmo. É no recorte da borda que o significante se impõe ao corpo que se faz
o esquema, efeito do significante na imagem. E é por isto que o esquema corporal não está na
esfera do real mas sim na dimensão imaginária, nessa posição singular que resulta do
rebatimento do olhar do sujeito sobre a borda do impossível. Diferentemente da imagem
corporal, que é resultante do rebatimento do olhar do sujeito no olhar do Outro, ou seja, no
corte simbólico da imagem especular.7
É no ponto de intersecção entre o eixo do imaginário (a-moi) e do simbólico (A-S) que se
constitui a imagem especular do corpo (i [a]) como objeto para o desejo do Outro (A).8
69
É evidente que se, do lado do real, o olho se vê obrigado a esquematizar um resto, do lado do
simbólico, após sofrer o impacto com que a palavra lhe marca a escolha de seu ponto de
perspectiva, o olho pode apontar a sua mira na direção mais arbitrária e fazer do corpo o
espetáculo mais mirabolante. As zonas erógenas, de cuja situação corporal cada sujeito
humano tem seu próprio mapa, constituem um bom exemplo disto.
O olho pictórico tem difratado, através dos tempos, o que o olho humano sofre em impacto
simultâneo. Se no classicismo renascentista transparece o esquema (as longas horas de
estudos sobre ossos, músculos e tendões, sobre o que se adivinha sob a pele, realizadas por
Michelangelo ou por Leonardo Da Vinci), no impressionismo prevalece a imagem, enquanto
produto subjetivo da percepção, seja na versão de decomposição de luzes de Claude Monet ou
na perspectiva circular de Vincent Van Gogh. Mas há uma dimensão pictórica que denuncia a
impossibilidade de conceber como associados esquema e imagem corporal: o surrealismo, que
coloca em jogo o aspecto traumático da imagem (cujo primeiro antecedente remete a
Hieronymus Bosch). Nesta vertente, o olho é flagrado olhando ao mesmo tempo para os dois
lados: para o Outro e para o real, num voyerismo-exibicionismo estrábico que revela no Olhar
sua condição de Ato. Condição dramática esta - nem esquemática, nem centrada na figura -
que revela que o estatuto do Olhar se especifica como fantasma mudo na subjetividade e que,
compulsado incontornavelmente a se manifestar, ora se vale de um resto senso-perceptivo, ora
da palavra do Outro, mas que, na emergência do erótico reprimido, responde em coro
estrábico, dando o corpo a ver muito além do que se vê, situando-o na dimensão histérica. Se,
aqui, o corpo "fala", é precisamente porque o olho enceguece.
A formação da imagem corporal
Por fim, temos os elementos para atingir nosso ponto central.
Se, do lado do real, o olho imaginário (o da suficiência e o domínio muscular reclamado pelo Outro Primordial: a
mãe) fica atrelado a um corpo que insiste em se fazer presente na compulsão à repetição (por isso dizíamos que
faz resto), do lado do simbólico se oferece ao sujeito uma via para escapar daquilo que o faz desvanecer-se
(entrar emfading). Com efeito, se a mãe ou o psicomotricista colassem toda operação à condição física ou
fisiológica, impediriam a criança de esquecer seu corpo e aí teriam o olho da criança colocado na posição do
fotógrafo que fotografa ao
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fotógrafo que o está fotografando a ele mesmo. Armadilha narcisista mortal, porque é sem
objeto e, por sinal, sem sujeito, já que não há Outro que corte o espelho.
Tal o caso de uma mãe que escuta o grito de seu filho e comenta: "Emitiu um som em mi
bemol"; ou, diante do cocô, descreve pediatrica-mente: "pastoso, amarelo-marrom, sem
fragmentos residuais: boa digestão". Ou o caso do psicomotricista que apaga sua condição de
"psico", fixado na pura mecânica muscular. Certamente a subjetivação do corpo abre suas vias
quando o cocô é "presente", quando o grito é "chamada", quando o domínio muscular é
"gracinha" ou a habilidade é "grande futuro". É a dimensão significante a que introduz o
tempo nesse presente inacabável de gozo corporal. É verdade que o significante "mortifica",
corta o gozo, mas, colocando na sua cadeia a antecipação da morte irre-missível (por isso
Lacan a inscreve no simbólico segundo o vimos no nó borromeu), dá significação à vida da
qual se goza.
É nessas operações, onde o toque anoda o significante no real, que o sujeito abre as vias de
imaginarização de seu corpo que se oferece, assim, ao olhar do Outro.
É para o Outro que a nossa imagem no espelho se endereça, e é de seu olhar que
imaginarizamos o que somos enquanto corpo.
Os Psicomotricistas e a Psicanálise
Se o Inconsciente se dá a ouvir no que o discurso cala, o corpo se dá a ver no que no olhar do
Outro falta.
É neste hiato que o psicomotricista trabalha. Perambulando entre o esquema corporal e a
imagem do corpo, ambos no campo do imaginário, 10 o psicomotricista articula a organização
corporal com o toque significante, trabalhando sobre a posição do olhar na báscula imaginária
entre a borda do real e a borda do simbólico. Fazendo pé no esquema, abre as vias para que o
sujeito possa esquecer seu corpo, mantendo-o nas asas de sua imaginação.
Mais aquém, no corte do imaginário, na reemergência do real por retorno do reprimido, no
que já é da ordem do discurso, a psicanálise tem seu campo de escuta, que não é o olhar ou
tocar.
Como vemos, nada impede que os psicomotricistas possam se valer do saber psicanalítico,
com a condição de que situem a especificidade de seu campo. E, precisamente, é no saber
psicanalítico que os próprios psicanalistas deveriam reconhecer os limites de sua operação.
71
É verdade que, de qualquer forma, o corpo, seja no simbólico, no imaginário ou no real, faz o
resto (objeto a), e que, em relação a esse resto, é o ato analítico o que lhe é pertinente.
Porém, se nos situarmos especificamente diante do que do real faz resto, bem valeria a pena
lembrarmos dos três modos de que dispomos para nos confrontar com isso, e que Lacan nos
refere:11 a Ciência, a Religião, a Psicanálise. Ou, dito de outra forma, articular acerca desse
resto:
- um saber que oscila entre a natureza e a técnica;
- um saber que pêndula entre o mundano e o moral;
- um saber que não sabe.
Parece-nos que o psicomotricista se situa fazendo pivô nos dois primeiros. Entre o movimento
e os hábitos, entre a habilidade e o criativo, entre o natural e o normativo (nos dois sentidos: o
jurídico e o normalizante), entre o músculo e o sentido.
A transferência coloca ambos os corpos, o do paciente e o do psicomotricista, numa relação
peneirada por esses saberes, nos quais, porém, a mesma transferência cava a brecha do que se
ignora: impasse no ato terapêutico, momento de suspense e de suspensão, interrogante que
não é dado a se responder na instância corporal e que é necessário deixar à deriva, sob pena de
seduzir o paciente com um saber próprio sobre a vida. Leia-se aqui "sobre a vida própria", já
que saber sobre a vida do paciente é o que não é. Saber, neste lastimável caso,
inevitavelmente colocado em acting, em razão de que se trataria de uma mera sugestão
operada pelo psicomotricista, na pretensão de saber o todo ou de sabe-tudo (o que dá na
mesma).
É a partir disto que podemos situar os limites entre a psicomotricidade e a psicanálise. O
psicomotricista estende seu campo do esquema a imagem corporal, das praxias às ações,
deixando aberta neste extremo a função de ignorar. Difícil arte de suspender seu saber sobre o
movimento, o corpo e o olhar, ali onde o paciente manifesta um excesso de sentido.
Embora opere no imaginário, não é dele que provém a ética do psicomotricista, como se
demonstra no trânsito do classicismo ao impressionismo. Precisamente, se inspira nos dois
cortes que o enodamento produzido pelo significante introduz na dimensão imaginária: de um
lado o corte do simbólico, do outro o corte do real. É nessa báscula que ele tr abalha, entre a
medicina e a psicanálise, as quais vem se empenhando, Pouco ou nenhum direito têm a
disputar-lhe seu campo, ainda que lhe
72
emprestem seu embasamento epistêmico e seus referenciais teóricos, já que, se aquela
trabalha com o que de morte se faz presente a vida, a segunda trabalha com o que de vida faz
"interregno" na morte. Uma e outra, como se vê, trabalham nas beiradas do corpo, e pouco se
metem com ele enquanto tal, na sua expressão fenomênica.
Os médicos, frente ao corpo, o fazem dormir, ouvem seus barulhos, o cortam, o costuram, o
fotografam, o transparecem, o medem, o inibem ou excitam, o - reduzem a partículas ou
sistemas, esqueletos ou fibras, ácidos ou humores, tubos e conexões; e, se o põem em
movimentos, é só para melhor medir ou observar.
Os psicanalistas, por sua parte, o imobilizam, o deitam no divã, o retiram do olhar, o
significam ou insignificam, o distanciam; escutam, quanto mais, seus ecos no discurso.
Mas do corpo que se instala na dimensão do olhar, desse fantasma mudo que mexe e que se
agita, que tropeça e cai, que se inibe e desorienta, que demanda suportes e vetores, quem se
ocupa?
Vã ilusão a dos médicos que supõem que a regulagem do neurônio, por si só, organiza.
Vã ilusão a dos psicanalistas que, situados sem sabê-lo na posição religiosa do "levanta-te e
anda", supõem que a eficácia do significante basta para dessoldar o que o toque, a ferida, a
tatuagem simbólica, chumbaram na carne como estereotipia motora.12
Para concluir: acerca do amor e do corpo
A palavra alemã aggresion, como no espanhol e no português, remete a sua origem ao latim:
aggredi, que significa dirigir-se a alguém, atacá-lo. Esta palavra latina deriva da raiz
semântica gradi, que quer dizer andar."
Isto não deveria surpreender-nos. Precisa-se da agressão para subtrair-se, de um lado, às
urgências da pulsão e, do outro lado, ao imperativo do Outro.
Não é novidade reconhecermos que, se é desde o amor materno que a criança é chamada,
ficaria presa ao corpo materno e ao seu próprio se dissesse sempre sim a esse chamado.
Nesse ponto a indiferenciação colocaria este corpo num continuum imaginário que o deixaria
exposto à invasão do real. A negativa ao gozo real e a negativa a oferecer o corpo para o gozo
do Outro constituem a borda que traça o limite entre o conhecido e o ignorado, entre o
familiar e
73
o estranho. Fronteira que coloca a criança na postura expectante, suas mãos a abrir portas,
seus olhos a vasculhar o horizonte.
Se é pelo amor da mãe que a criança sente-se chamada, é precisamente por dizer não a esse
amor que a criança anda.
Bibliografia
Notas
1 - Publicado nos "Escritos da Criança", n° 3. Centro Lydia Coriat, Porto Alegre, 1990.
2 - Nem sempre um desenho tem este caráter. Precisamente, o erro das chamadas "Técnicas Projetivas" consiste
em atribuir a todo desenho a condição de enunciado, quando, na verdade, para isso se requer que suas imagens
estejam inseridas no estatuto dos traços significantes, ou seja: colocadas em série que cumpra as regras de
cadeia (S1- S2). Além do mais, o excesso das técnicas projetivas se comete pelo lado que a atribuição de sentido
ao desenho provém da mera justaposição desse suposto "enunciado" (o do desenho) com o enunciado da teoria
de referência, em alguns casos simplesmente suprimindo (o desenhante não é sequer interrogado), e em outros
nublando (o manifestado pelo desenhante é enquadrado em "fantasias" estandardizadas) o sujeito da
enunciação. A nosso entender, é precisamente por causa destas propostas que o tomam como teste, ou pelas
utilizações de corte junguiano, que o desenho tem perdido prestígio e precisão no campo da investigação e da
clínica psicanalítica, propriamente dita. E, se conservado na prática da psicanálise, especialmente com
crianças, ali tem dado lugar, não poucas vezes, mercê à contaminação com métodos projetivos, a verdadeiros
delírios interpretativos investidos de saber suposto científico. Bem diferente é o que aqui nos propomos a fazer:
inspirados na metodologia utilizada por por Freud em seu artigo " As lembranças encobridoras", incluído em
"Primeiras Contribuições à Teoria das Neuroses" (1892-1899), em que analisa os resultados da "Enquete sobre
as primeiras recordações da infância, realizada por C eV. Henri (ver Obras Completas vol. 1, p. 157 e ss.),
tomamos estes desenhos meramente no plano da estrutura da diferença da posição subjetiva em relação ao
corpo que eles revelam, e não em relação ao sentido que eles pudessem ter, mas que desconhecemos.
74
3 - Ver J. Lacan, "A terceira", in Rev. "Che Vuoi?", Ano 1, n° zero, 1986, p. 39.
4 - Ver "As pulsões e seus Destinos" in S. Freud, O. C, vol. 1, p. 1027-37.
5 - ibidem, p. 1027-8.
6 - "O estágio do espelho é um drama, cuja direção de força interna se precipita da insuficiência à antecipação;
e que, para o sujeito, presa da alusão da identificação espacial, maquina as formas que se sucederão desde uma
imagem fragmentada do corpo até uma forma (que chamaremos ortopédica) de sua totalidade, e à armadura
por fim assumida duma identidade alienante" (J. Lacan, El estádio del espejo como formador de la función del
yo tal como se nos revela en la experiência psi-coanalitica, in Escritos 1, p. 15).
7 - É Françoise Dolto quem, colhendo, evidentemente, idéias que vão de H. Wallon a J. Lacan, desenvolve a tese
da diferenciação entre a imagem e o esquema. Ela liga o esquema à herança da espécie e às condições
ecológicas. Neste ponto, se distancia das concepções de J. Lacan sobre o corpo e a pulsão. Distanciar-se de J.
Lacan não seria nada, a não ser que nos parece que não existem razões para isso neste ponto. Precisamente se
reconhecêssemos uma instância corporal, o "esquema" no caso, autônoma ao significante, estaríamos
retomando ao dualismo mente-corpo, do qual S. Freud precisou de tantos esforços para escapar. Entendemos
como expressão de homenagem a essa grande psicanalista, recentemente falecida, a manifestação desta nossa
discrepância, fortemente necessária.
8 - Tomamos este esquema do "Seminário sobre a carta roubada", de J. Lacan (Escritos II, p. 54),
propositalmente, porque é ali que J. Lacan coloca o Id (Es) ao lado do significante (S), o que indica que o corpo
é só onde Isso (Das Es) fala.
9 - LACAN, J. - "A terceira". In. Revista "Che Vuoi?", Ano 1, n° zero, 1986, p. 38-40.
10 - Se o esquema fosse do real, seria campo específico dos fisioterapeutas.
11 - Ver "Ciência e Verdade", in Escritos 1, de J. Lacan.
12 - Parece-nos interessante e necessário lembrar aqui que, se o campo do psicomotricista se estende do
esquema corporal ao fantasma mudo do olhar que se plasma na imagem corporal, ou seja, num olhar que
vasculha de borda a borda o imaginário, esse campo certamente encontra seu limite antes de entrar no
território do ato, enquanto drama do estrabismo histérico. Pois aqui o fantasma fala, e o olho, ao mesmo tempo
que pretende ver tudo, fica cego.
13 - MASOTTA, O. - "El modelo Pulsional", p. 65.
Fim das notas.
75
A PSICANÁLISE E PIAGET
O sujeito não se desenvolve por estar antecipado em uma estrutura dada. A posteriori, porque
ele mesmo começa a fazer uso da cadeia significante, recapitula como insuficiência o que, no
momento mesmo de sua ocorrência, em cada momento presente de sua história, apareceu
como suficiência de uma estrutura plena.
Mesmo desde sua prematuridade1, o bebê é tomado numa rede significante que
estruturalmente o contém acabado, embora não contenha, claro está, as contingências do
deslizamento desta estrutura nas vicissitudes do destino de tal sujeito. Mas, justamente, o que
permite falar do destino desse sujeito é que o mesmo está ali desde o começo da vida, e ainda
desde antes.
O que se desenvolve, sim, são as funções instrumentais e também podemos reconhecer uma
cronologia nas "formações clínicas" a que cada momento maturativo da infância dá lugar, em
sua particular articulação ao discurso parental.
Tais "formações clínicas", se bem estão inspiradas em "problemas" comuns a todas as
crianças quanto ao ritmo de sua maturação, que lhes impõe limitações práticas em relação ao
adulto, ficam, no entanto, elas próprias determinadas pela singularidade do discurso parental a
respeito desses "problemas". Certamente as "soluções" que os pais e as diferentes culturas
oferecem às suas crianças para enfrentar sua pequenez e sua incapacidade relativa são
extremamente diversas, no que reside a singularidade da estruturação subjetiva.
As "soluções" oferecidas (às vezes nenhuma) estão constituídas em sua base por ações
significantes relativas às impossibilidades próprias da infância. Ou seja, são fantasmatizações
a respeito da sexuação da criança, que a situam, estruturalmente, já, no campo social do adulto
cumprindo seu papel, por um efeito discursivo de intersecção temporal antecipada, estas ações,
que implicam amarrar seu corpo a formações simbólicas que
76
a confrontam com a imagem de sua insuficiência atual, causam à criança, inevitavelmente,
angústia e conseqüentemente aparecem as tentativas transgressivas a respeito do papel e do
lugar (de circulação social e sexual) que lhe foram designados. A mentira e o segredo têm,
então, que cumprir na criança seu papel necessário: modos de escapar ao controle e ao
imperativo do Outro. Os pais, ou aqueles que exercem a tutela das crianças, habitualmente
oferecem, para recobrir essa distância que separa seu "eu atual" do Ideal que aparece na
estrutura, elementos metonímicos sob a forma de brinquedos (universal em todas as culturas) 2
que se colocam a serviço das tentativas de metaforizar o que neles, nos pequenos, o Nome-do-
Pai demanda.
Vemos que nesse processo não é a cronologia o que caracteriza, nem uma progressão
uniforme, tampouco um ritmo de saltos. O psíquico não tem ritmo, no que se diferencia do
biológico que, ao contrário, o tem. Por isso nesse processo que acabamos de ver não cabe
falar de desenvolvimento.
O que se desenvolve são as funções articuladas em torno do objeto faltante, como cadeias
significantes que lhe dão seu contorno. Bordas do objeto pulsional, que como tal é vazio, já
que só se capta num contorno que promove sua busca. Estas bordas, que contornam o objeto,
organizam-se em parcialidades respectivas aos órgãos em que se produziu a falta do objeto:
no olhar do Outro escavou o contorno do objeto faltante, no ânus o excremento tomado como
presente pela mãe cavou o buraco da analidade, na boca faltou o seio como dom do Outro
primordial, na orelha faltou a voz que foi canto etc. Os sistemas analítico-perceptivos e,
portanto, a libidinização dos objetos de conhecimento se organizam em torno de tais buracos,
desenvolvendo (agora sim) sistemas de significância que revistam, "curioseiam", investigam e
tentam dar conta do que há ali dentro, nesse lugar que só podem, na verdade, contornar, mas
nunca efetivamente penetrar. Assim, a criança, como o adulto, tem três maneiras de tratar esse
vazio que se lhe impõe: 1) a magia ou a crença; 2) procurar domesticar o objeto através da
lógica; 3) ou bem continuar interrogando esse lugar de ignorância, reflexivamente, ou seja:
referindo a uma falha de si mesmo. Em síntese, trata-se das três maneiras que o sujeito tem de
enfrentar o Real (o irredutível): a Religião, a Ciência, a Psicanálise. Sendo assim, o
pensamento mágico-fenomenista, ou o animista, ou o espírito de investigador não são fases
passageiras nem momentos evolutivos, mas sim formas constitutivas do sujeito humano. É
certo que tais formas se efetivam em cada momento da vida da criança com os recursos que
tenha
77
podido constituir. Mas nisso podemos facilmente reconhecer que a evolução (complexização)
lógico-sintática da linguagem sempre leva a dianteira (exceto quando há patologia específica)
com relação às aplicações lógicas a qualquer domínio "estrangeiro" à linguagem mesma
(como por exemplo o conhecimento físico ou o conhecimento lógico-matemático). Assim, as
relações de reciprocidade no parentesco antecedem as relações de reciprocidade numérica, ou
as das transformações físicas. Isto parece se dever a que a alterização da criança constitui a
matriz subjetiva de todo conhecimento, e não a sua ação, como o afirma Piaget.
Com efeito, a alterização constitui, na criança, sistemas signifi-cantes (formações
fantasmáticas) que se ordenam na parcialidade de cada escavação corporal, e desde ali
procedem a novas descentrações, procurando em vão recobrir e penetrar o lugar do objeto.
O que nestes sistemas fracassa, torna-se falha, é reprimido, e trabalha desde o inconsciente,
retomando como verdade (Real que irrompe na cadeia significante) que denuncia a carência
universal no ser humano, estruturada no inconsciente como privação operada pelo Outro3.
O inconsciente é descoberto, por isso, como resíduo da cultura, algo assim como um resíduo
arqueológico: é a operação significante sobre o corpo que lança um resto (o irredutível, em S.
Freud, e o impossível, em J. Lacan). Resto do ato significante do Outro.
O sujeito é, então, em sua determinação inconsciente, "resto arqueológico" atual da ação entre
a operação significante do Outro e o objeto irredutível (Real) que marca seu limite (objeto a).
Este sujeito, resíduo da cultura, é bem diferente do sujeito piagetiano. Este, o de J. Piaget, é
um resíduo biológico, em termos de coordenação de ações.
Para que não nos restem dúvidas a respeito, o próprio Piaget diz:
"Não há fronteira definida entre o sujeito e o objeto: o sujeito se prolonga em seus utensílios,
instrumentos, ou aparelhos inseridos no objeto, da mesma forma que sua lógica e sua
matemática traduzem as estruturas progressivas da coordenação de suas ações, cujas fontes
remontam até as coordenações nervosas e orgânicas"4, (grifo nosso)
Ato e ação parecem ser, para Piaget, a mesma coisa. Esta indiferenciação conceitual coloca a
ação em pleno cenário da instância psíquica, sem nenhuma mediação, a não ser uma mera
virtualização.
O ato significante, sem ser ação (no sentido motor dado por Piaget), é Práxico: possui
conseqüências sobre aquilo que se estrutura na criança, marcando-a para sempre.
78
As ações progridem em sua complexidade, efetivamente, mas não por obra de um processo de
adaptação biologicamente determinado ou fisicamente derivado.
Tal complexização de ações responde não a uma lógica maturativa, mas sim à tentativa da
criança de usar, dispor do significante que o Outro exerce. Nesta tentativa ela se desloca de
lugar, identificando-se não somente ao Outro primordial, que a marcou com seus cuidados,
mas sim a essa instância que exerce a linguagem em toda a sua "soltura". É nesta passagem de
lugar que a criança amplia os percursos e a perspectiva (os entrecruzamentos possíveis) de sua
própria cadeia significante. No princípio, através da ecolalia, a intenção ou a repetição
variável; depois, através da apropriação da lógica própria da linguagem, a criança transita pelo
saber do Outro. Trânsito que, como dizíamos, não é repetição literal, mas articulação lógica
na dimensão simbólica.
A criança luta por se apropriar desta lógica. Então argumenta e explica com a criatividade
derivada do fato de que substitui o significante, que ela não domina, pelo imaginário (a
percepção) que se lhe apresenta. Até que, finalmente, no ápice de sua alteridade, repete
saberes sem sabê-los.
Talvez por esse lado possamos investigar algo acerca da capacidade investigadora e de
invenção dos mais jovens, e o interesse irredutível que nos apresentam as perguntas da
infância; talvez, precisamente, por nos confrontarem com aquele lado do objeto que nossa
lógica reprimiu para concordar com o saber do Outro.
Entre outros, o pai de Schreber (o caso paradigmático da psicose na literatura freudiana) se
irritava com estes questionamentos provenientes de seu pequeno filho e insistia em "demover
a ignorância".5 Certamente, uma pedagogia inspirada na psicologia piagetiana representa um
avanço com relação às monstruosas propostas do Dr. Daniel G. M. Schreber (1880) ou dos
simplismos robotizantes da psicologia condutista. Mas a proposta piagetiana sobre o
desenvolvimento entroniza a lógica como se ela fosse um derivado natural, simples
prolongamento mental das invari-antes biológicas. Propõe-se aqui uma "sabedoria" da
natureza, que oculta a falha de todo saber e identifica saber e verdade, tanto na infância como
na ciência.
Por outro lado, caberia se perguntar se, em última instância, tal postura, pela própria índole da
prática pedagógica, não acabaria conduzindo à "rotinação" de tais métodos, suprimindo a
transferência na relação, fechando o discurso clínico numa nova técnica, só que
"modernizada". Já
79
deveríamos saber com quanta freqüência isto ocorre, como ocorreu com muitos
psicopedagogos e educadores que, adotando o discurso piagetiano, transformaram-no em uma
cadeia de estímulos pré-moldados regulados em sua apresentação por uma ordem de
complexidade crescente, mas agora estruturalmente definida. No entanto (e aqui as últimas
conseqüências de um discurso se impõem), novamente constatamos a ausência do sujeito nas
considerações que dirigem tais atos terapêuticos ou educativos. Seus mentores argumentam
que o sujeito está "presente no método" de um modo geral, uma vez que os estímulos se
organizam de acordo com a evolução lógica suposta como universal desse sujeito. Ali ele
estaria presente: no método. Isto é uma falácia. Por um motivo muito simples: não há sujeito
geral. Precisamente porque o homem aparece universalmente sujeito (sujeitado) de um modo
absolutamente singular.
Precisamente o "método clínico" é o contrário disto que se propõe como sujeito geral, e eis
aqui, no fato de que toda leitura piagetiana de qualquer produção de uma criança nos conduz à
sua regularização lógica, à sua transformação em uma expressão discursiva que se coloca
como uma estrutura que a torna (a tal criança) comparável e equivalente em um todo a outras,
eis aqui, como dizia, a brecha por onde se filtra em Piaget a queda do método clínico. Porque
seu método não insiste na singularidade, mas sim em atingir uma conclusão do sujeito de tal
forma que permita generalizá-lo. Como costuma dizer: sua preocupação não é psíquica, é
epistemológica.
Aqui a psicologia piagetiana obstaculiza a interrogação da criança no campo da transferência
e a interpelação à ciência: coloca-as num lugar de progressivo aperfeiçoamento (aproximação
assintótica ao eixo do real) e sua falha, então, não deriva da impossibilidade do Outro, mas
sim de um obstáculo natural. Nesta linha, as contra-argumentações dos pedagogos Piagetianos
parecem ficar à margem de qualquer suspeita de provocar afluências nas respostas das crianças.
Mas basta olhar a ironia ou o temor aliados nos rostos de algumas destas crianças quando as
interrogamos para a nos darmos conta de que não é mais do que outra variedade do fenômeno
da sugestão. Seria mais interessante reconhecer que, se algo se desenvolvve no conhecimento,
é precisamente a partir dessa resistência à lógica imperativa do Outro, embora o outro a
disfarce de lógica natural. Ali temos um campo rico porque essa resistência se acirra
particularmente na infância. É bem sabido que a criança de segundo e terceiro anos é "toca-
tudo”. Incansavelmente se aproxima e explora os objetos que seu engenho
80
pode alcançar. Mas há aqui algo que pódi escapar à observação daqueles que vêem nisto uma
resultante de uma combinatória de ações que, supostamente, transformam a criança numa
miniatura de cientista.6 Com efeito, o que nos parece o traço mais destacável dessa exploração
é que a criança precede sua apreensão das coisas com um olhar nos olhos daquele que cumpre
o papel do Outro. Olhos de desafio, de interrogação, de demanda de ser olhada, acompanham
cada ato. Assim é cada ato e não cada ação. Porque ali está presente uma práxis: uma
intersecção da ordem da atividade que se situa no campo do Outro.
Por que esse olhar prévio? Porque as coisas advêm ao lugar do objeto para a criança, na
medida em que elas se situam no campo significante do Outro.
As crianças autistas ou psicóticas muito precoces apresentam-nos, como um de seus primeiros
traços inquietantes, precisamente, ou bem a negativa de olhar o outro ou ser olhada por ele
(nos autistas) ou bem reações extremamente passivas frente a esse olhar (nos psicóticos).
Nestes casos, as coisas impõem sua mecânica ao organismo, e o organismo as assimila à sua
atividade, construindo, assim, coordenações de ação para nada. Coordenações que se operam
no domínio da intersecção fortuita da criança com o meio, sem nenhuma outra extensão.
Aqui vemos como pensar no desenvolvimento do conhecimento da criança nos exige que nos
situemos na pedra angular dessa brecha: a da demanda encerrada no olhar do Outro. Olhar
ordenado em um discurso que coloca a criança na oposição entre o saber e a ignorância.
Numa oscilação imaginária que lhe causa angústia. Esta angústia opera a partir de um real:
emergência do objeto (o que em Lacan se denomina "objeto a"), cujo contorno se presentifica
ameaçando a continuidade da cadeia significante. Esta ameaça é sentida pela criança como
perda de referência; perda daquilo que orienta sua penetração no mundo. A angústia de
separação não é mera perda do gozo corporal do outro ou, para dizê-lo de um modo simples, a
criança não se queixa, aos oito ou nove meses, simplesmente da perda do conforto dos braços
do outro (que muitas vezes são menos confortáveis do que qualquer leito); a criança chora
porque ainda não dispõe de um significante suficientemente consistente para colocar no lugar
da emergência desses braços. Paradoxalmente, o outro é captado como ausente, não por mera
falta de contato perceptivo, mas sim porque sua "ausentificação" é brecha na série significante
que ele sustenta. Esta brecha deixa a criança exposta ao objeto mesmo sem ferramentas para
recobri-lo. É ali que a criança demanda um significante: que lhe digam
81
como continuar. Os bebês de oito meses já tomam a brusca ruptura de algo como ruptura de
uma cadeia: algo que se quebra os assusta ou desperta sua curiosidade, uma interrupção
imprevisível do movimento do outro os faz rir, uma rápida agitação da cara do outro (que
suspende assim momentaneamente a captação visual dos traços e provoca um surpreendente
reencontro com o rosto que tinha sido perdido) desperta suas gargalhadas, quando se
encontram com um estranho demonstram sua ambivalência com giros de cabeça que
suprimem a visão do recém-chegado ou a alternância perceptiva entre o rosto da mãe e o do
estranho etc. Não se trata da ausência de algo num quadro estático (como argumenta Piaget),
mas, antes, trata-se daquilo que fica no lugar do vazio na ruptura da série, a saber: o fantasma.
O que fica, então, é esse contorno do objeto, em torno do qual o corpo da criança se dispõe
orientando sua busca, mobilizado por essa angústia inicial.
Sabemos, pela dedução que a própria observação nos impõe, que as coordenações derivadas
das ações são, por si mesmas, incapazes de traçar qualquer direção para o sujeito. É o que
vemos claramente nas crianças autistas ou psicóticas com potencialidade intelectual normal.
Elas desenvolvem coordenações de ações, a níveis de complexidade operatória lógica, muitas
vezes surpreendente para os observadores desprevenidos; só que tais coordenações padecem
de duas inibições cruciais: 1) não se generalizam, permanecendo apegadas ao domínio inicial
em que ocorreu a descoberta; 2) não situam essas operações no campo da significação; elas
não têm outro sentido que o de ser um modo fortuito de capturar o objeto; um modo tão
fortuito, tampouco representativo dessa ação que esquematiza o objeto, que unicamente a
repetição estereotipada garante sua permanência. Estas coordenações "habilidosas",
verdadeiros simulacros adapta-tivos, constituem, em nossa opinião, restos, no campo do Real,
das oposições mecânicas entre um organismo e um meio, sem a mediação da instância do
Outro. A riqueza combinatória de que dispõe o indivíduo da espécie humana, no nível de seu
sistema nervoso, lhe oferece um campo de efeitos psiconeurológicos às resistências que o
organismo e o meio se opõem reciprocamente. A assimilação e a acomodação constituem,
conforme o próprio Piaget7, derivados do funcionamento biológico, assim como seu resultante
"mais nobre": o conhecimento lógico-matemático seria o produto dedutivo da internalização
das ações reguladas por aquelas invariantes biológicas. Portanto, em si mesmas estas
invariantes não 1 oferecem nenhum sujeito que as organize no campo simbólico, a menos qu e
s
e pense que a significância é um mero derivado de um automatismo
82
cerebral hereditário (idéia à qual Chomsky não é totalmente estranho).
Por nosso lado, acedemos à consideração de um fato que, por sua insistência e regular
constância na história da humanidade, nos parece inegável: o fato de que a cultura é sempre a
que engendra o sentido às custas do biológico. A cultura, embora apoiando-se na
complexidade de ações que é capaz de governar, toma este nível como limite (Real) e não
como guia. O significante, uma vez constituído, conquista sua autonomia, lançando, desde ali,
as ações (sejam denominadas "práticas" ou "virtuais", "lógico-matemática" ou "acomodação-
fenotípica")8 ao campo dos restos irredutíveis que lhe fazem limite. De fato, em relação à
lógica, o significante fica em dupla posição: por um lado, ela lhe faz limite no campo
estruturalmente necessário para constituir um sistema de elementos discretos operáveis
(cadeia significante)9; por outro, serve-se arbitrariamente dela para que "lhe faça" o trabalho
próprio dos deslocamentos. Quem é o sujeito que tropeça com esse limite e, ao mesmo tempo,
serve-se dele, isso Piaget não explica, nem aborda, porque para ele o sujeito é essa lógica. Tal
"sujeito" piagetiano é, então, o Real! Por isso, o que se desenvolve nele é espontâneo e tem
uma cronologia, variável quanto ao tempo, mas estrita quanto à sucessão. No conceito de
Piaget, o Outro entorpece essa articulação espontânea entre organismo e meio, a menos que se
dedique, meramente, a favorecer o exercício das ações para as quais o organismo da criança
está originariamente preparado. Neste ponto, J. Piaget é taxativo: "O desenvolvimento
psicossocial subordina-se ao desenvolvimento espontâneo e psicológico"10.
Certamente, para a psicanálise, no entorpecimento dessa espontaneidade biológica é que o
sujeito se une e faz de suas ações objeto de conhecimento.
O conhecimento constitui-se às custas do campo do desejo (daí advém suas falhas) como jogo
dialético entre o saber inconsciente e a ignorância referencial. O sujeito do desejo e, enquanto
tal, tem uma impossibilidade de ser epistêmico, porque é na carência que o desejo supõe e não
no lugar em que a coisa o ocupa impondo-lhe suas "acomodações".
Se em algum lugar, ao nosso ver, Piaget tem bem fundadas suas razões é no fato de que aquilo
que o sujeito ignora ele o preenche com lógica derivada de suas ações. Isto, sob o ponto de
vista psicanalítico, não é mais que capturar no campo significante um resíduo no biológico
toman-do-o como saber. Na psicologia genética, através do artifício de tornar equivalentes
saber e verdade (reunião impossível) localiza-se o produto lógico das ações na hierarquia do
conhecimento.
83
Certamente, o antagonismo das concepções psicológico-genéticas e as psicanalíticas
(inaugurado em 1923, quando S. Freud escuta sem maior interesse uma conferência proferida
por J. Piaget) não nos deve ocultar a tentativa de aproximação da questão do sujeito que em
ambas se sustentam. No entanto, em nossa práxis clínica, nada da ordem do sujeito nos é
revelado na consideração da lógica das ações, a não ser a mera potencialidade biológico-
intelectual que possui uma criança.
Nada em tais considerações ou evoluções nos permite abrir hipóteses a respeito do que será
"inteligido" a partir da aplicação de tais instrumentos, e muito menos saber se eles serão ou
não aplicados.
A concepção de Piaget parece mais dirigida, embora não sejam essas suas intenções, a definir
um conceito de "permeabilidade biológica" à operação significante, do que a definir um
"sujeito de conhecimento". Em nossa prática clínica, aí tomamos o que, remetido a esse lugar
de resto Real, entendemos como uma abjuração piagetiana, ali onde a psicologia como tal
pode sustentar algo de validade."
Notas
1 - O conceito de prematuridade se diferencia, em J. Lacan, do fato de a criança vir a nascer antes da idade
gestacional correspondente, pois designa a insuficiência constitucional do sujeito humano, embora nasça a
termo. Com efeito, entre todas as espécies animais é a que mais demora para obter autonomia.
2 - Ver Huizinga. "Homo Ludens", São Paulo, Perspectiva, 1971.
3 - Este ponto de vista sobre o desenvolvimento intelectual não é, certamente, uma novidade. Já em 1910 S.
Freud, em "Uma Lembrança Infantil de Leonardo da Vinci", sustentava e analisava a questão do
desenvolvimento dos conhecimentos, desde as teorizações infantis até as produções científicas e artísticas, como
sendo inerente ao desdobramento ulterior da matriz edípica. "A curiosidade das crianças pequenas manifesta-se
no prazer incansável que sentem em fazer perguntas; o que deixa o adulto perplexo, até que chegue a
compreender que tais perguntas não passam de meros circunlóquios que nunca cessam, pois a criança os está
usando em substituição àquela única pergunta que nunca faz." Esta pergunta está enlaçada com suas
investigações sexuais infantis, que o levarão a diversas teorizações acerca da origem dos bebês, da relação
sexual, de sua própria constituição sexual etc. "Essa preocupação, essa dúvida, no entanto, torna-se o protótipo
de todo intelectual posterior dirigido à resolução de problemas e o primeiro fracasso produz um efeito danoso
que se fará em todo o futuro da criança". (Todas as citações são de Sigmund Freud, Leonardo da Vinci e uma
lembrança de sua Infância". In: Obras completas, Rio de Janeiro, Imago, 1970, Vol. 11, 72-3.
4 - PIAGET, - ”Logique et Connaissance Scientifique”. In Encyclopédie de la plêiade Paris, Galimard, 1967,
1345.
5 - Ver MANNONI ”La educación imposible. México, Siglo XXI, 1979, 21-35.
6 - Ver PIAGET ”La construcción de lo Real en el Niño” Buenos Aires, Proteo, 1965, 85-6.
7 - Ver PIAGET ”Biologia y Conocimiento”. México, Siglo XXI, 1969 p. 90-115.
8 - Idem, p. 92.
9 - Após analisar o tetraedro da combinatória lógica das presenças e ausências no relativo à letra, Lacan nos
diz- ”Isto poderia figurar um rudimento do percurso subjetivo mostrando que se funda na atualidade que tem
em seu presente o futuro anterior Que no intervalo desse passado que ele já é no que ele se projeta, um buraco
se abre por constituir um certo capuz mortuum do significante (. ) eis o que basta, para suspendê-lo da
ausência, para obrigá-lo a repetir seu contorno
84
A subjetividade na origem não tem nenhuma relação com o real, mas com uma sintaxe que aí engendra a marca
significante (...) Pois é coisa completamente diferente relacionar sua mola à determinação simbólica e às suas
leis, e não aos pressupostos escolásticos de uma inércia imaginária que a suportam no associacionismo,
filosófico ou pseudotal, antes de se pretender experimental. (...)
Esse caráter (o do desejo inconsciente) é, em todo caso, incomensurável com qualquer dos efeitos conhecidos
em psicologia autenticamente experimental, e que, quaisquer que sejam os prazos ou atrasos a que sejam
submetidos, vêm como toda reação vital a se amortecer e a se extinguir." (LACAN, J. El Seminário sobre "La
Carta Robada". In: Escritos II, México, Siglo XXI, 1975. pp. 51-3.
10 - PIAGET, J. "El Tiempo y el Desarrollo Intelectual del Niño". In: Estúdios de psicologia genética. Buenos
Aires, Emece, 1973. p. 11. É pouco ou nada compreensível que na p. 31 desse mesmo estudo J. Piaget diga que
a transmissão social "é determinante no desenvolvimento mas por si mesma insuficiente", Que quer dizer ali
"determinante", quando cinco linhas mais abaixo diz que esta assimilação encontra-se sempre condicionada
pelas leis deste desenvolvimento parcialmente espontâneo? (Esclareça-se que a palavra "parcialmente" está ali
para resguardar o papel da ação e não, de maneira alguma, o papel do social).
11 - Ver J. LACAN. "Acerca de la causalidad psíquica". Buenos Aires, Homo Sapiens, 1978, p. 110.
Fim das notas.
85
CONHECER
Quando se pode afirmar que se produziu esse fenômeno mental que (se chama de conhecimento? O
comportamentalismo afirma que, para que se constate a produção de um conhecimento, é necessário que haja
uma correspondência entre o objeto-estímulo e a resposta suscitada. Essa correspondência consiste, para essa
vertente, em uma adequação fenomênica do ato à natureza e qualidades, supostamente "objetivas", do estímulo.
Para Jean Piaget e seus continuadores, o conhecimento se constata em uma correspondência já não
fenomênica, mas lógica, entre o sujeito e o objeto. Trata-se de um equilíbrio entre o sujeito e as variáveis e
qualidades do objeto, que se supõem estruturadas em reciprocidade ativa, dando como resultado um
conjunto de coordenações lógicas que vão do sujeito para o objeto, ficando este último situado
além dessas coordenações, em uma posição de objetividade inatingível, em sua totalidade. A
subjetividade piagetiana se remete, então, exclusivamente, à regulação lógica da adaptação,
em um duplo movimento simultâneo, que vai do objeto para o sujeito e vice-versa
(assimilação, acomodação), intermediado pela ação. Resumindo: tanto em um como em outro
caso, enuncia-se como conhecimento a resultante de uma correspondência entre o sujeito e o
ob
jeto, sendo que no primeiro caso essa correspondência é externa e diret a, enquanto que no
segundo é interna e de ordem lógica, em que a ação constitui um mediador genético dessa
lógica. Genético, no duplo sentido de ser expressão da herança geral e específica, e também
de uma pressão nos níveis de complexidade das relações operatórias.
Afirmar que, quando ocorrem tais correspondências (a primeira no
a produção executada e a segunda deduzida dessa produção, no nível do pensamento), está em
curso algo da ordem da cognição, não deixa de ter algo de verdade. Ao fim e ao cabo, quando
há conhecimento, essas correspondências de fato são constatadas.
86
Porém, para ambas as concepções, pelo menos em suas formulações originárias e mais típicas,
o conhecimento, então, nada tem a ver com a linguagem, ou, no momento em que passa a ter
a ver, essa relação é secundária ou subsidiária.
No caso do condutismo (ver Hobson), a linguagem vale como estímulo de maior nível de
abstração, ou então como extensão do campo da resposta, até levar esta a uma posição de
resposta virtual, em que as partículas lingüísticas operam como sinais condicionantes. No
caso da psicologia genética, a linguagem condiciona a extensão dos níveis de abstração,
reflexão e generalização, à medida que seu sistema contém e representa o conjunto das
relações lógicas cunhadas na história da humanidade e, portanto, o sistema de conhecimento.
Por isso, no primeiro caso, a importância do outro falante, na transmissão do conhecimento,
resume-se a ser a de um facilitador (ou causador de obstáculos) do estímulo pertinente ao
processo cognitivo, enquanto seu sistema de significações lhe permite limitar e administrar a
ordem e a natureza de apresentação dos estímulos, de acordo com uma associação prevista
como "conveniente". No segundo caso, o próprio exercício da linguagem permite, porque
contém, o acesso a maiores níveis de complexidade operatória, porém, é necessário dizê-lo,
não constitui o núcleo duro do conhecimento, nem de sua transmissão que, como se sabe, para
Piaget depende fundamentalmente da ação (real ou virtual) proposta ou emergente. Em ambos
os casos, então, o outro falante é completamente externo, tanto ao sujeito como ao objeto em
questão, e nada tem a ver com a natureza intrínseca do conhecimento. É aqui que a psicanálise
se separa de tais constatações psicológicas, não porque negue o que ali se constata, mas
porque demonstra o caráter redutor dessas concepções do conhecimento. O fato de que haja
correspondência não informa sobre o caráter do que se corresponde, e muito menos sobre sua
origem, a menos que se pense que a origem do conhecimento é, basicamente, biológica.
Para descartar rapidamente essa suposição, basta recordar a insuficiência instintiva com que o
ser humano nasce, o que o condena a uma ignorância inicial prolongada sobre o objeto em
geral e, se isso não bastasse, é fácil verificar que a relação fundamental do homem não se dá
com o objeto natural (o de sua filogenia), mas com o objeto da cultura, o da invenção
arbitrária, o da série significante.
Falar de conhecimento nos implica imediatamente no terreno da verdade. Este, sem dúvida,
não é um terreno biológico, nem animal. Os tigres certamente não dissertam sobre o
verdadeiro, já que este é um
87
assunto eminentemente simbólico, que, por certo, lhes é completamente alheio, precisamente
porque, para serem constituídos a verdade e a mentira, o verdadeiro e o falso, precisa-se da
linguagem.
Não é o próprio objeto que interroga, mas é o Outro que faz do objeto uma incógnita, porque
o apresenta para o sujeito como fazendo-lhe falta. É na tentativa de resposta a essa
interrogação que provém do Outro (ou seja, do discurso) que o sujeito constitui seu
conhecimento. Conhecimento este que não pode ser reputado como tal, se carece de um
enunciado que o manifeste, embora o enunciado não se expresse em palavras, mas
simplesmente sob a forma de atos significantes.
É o campo do enunciado o que diferencia, por um lado, o conhecimento do saber e, por outro,
o que permite o predicado da verdade ou do engano. Quanto ao primeiro ponto, à medida que,
nascendo da ignorância, o sujeito é informado pelo Outro (como linguagem) do que nele faz
falta, é a esse Outro que deve seu saber. Registro inconsciente de sua posição diante do
objeto, esse saber carece de enunciado, a não ser o de que "nada se sabe". Posição, então,
negativa do objeto no saber que, por insuportável, se recalca.
A esse recalque concorre o conhecimento que, quanto mais reputado como verdadeiro, mais
açode, em sua minúscula certeza, para recobrir aquilo que, em última instância, se ignora.
É por isso que o sujeito, interpelado pelo Outro, não cessa de pendular entre o conhecimento e
a ignorância, entre a dúvida e a certeza, entre o engano e a verdade, entre o conhecimento e a
revelação, entre a confissão e o segredo. É por isso que na psicose o sujeito, carecendo de
ponto de referência em sua relação com o outro, toma como certeza cada fragmento do
discurso, ou cada significante como revelador do real do objeto. Estão ali indistintos saber e
conhecimento, ignorância e engano. No autismo, em troca, diante da ausência absoluta da
linguagem, a relação do autista com o objeto é direta e contingente, estabelecendo na
perseveração único modo de uma certeza que não conhece a dúvida, nem o engano, em a
verdade. Que a lógica se preserve, em alguns casos, isso só permite constatar que se conserva
uma relação direta com o real, mas é difícil sustent ar que as coordenações ou resultados que
dali derivam tenham efetivamente o valor de enunciados, já que carecem de enlace com o
conjunto da da linguagem.
Demonstra-se brevemente, aqui, o preço de reduzir a questão cognitiva a uma relação direta do indivíduo
humano com o objeto, ou então considerá-la como uma derivação da ação. Um preço que é o sujeito que
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paga, na dura moeda de confundir eficácia com verdade, ou lógica com saber.
Apesar de que é certo que na manifestação cognitiva as correspondências de um e outro tipo,
entre o sujeito e o objeto, estão presentes, não é menos certo que a referência a um terceiro é o
que outorga ao conhecimento o caráter de alteridade que lhe é intrínseco. Será que se pode
falar de conhecimento fora da linguagem e da alteridade? Em todo caso, é prudente levar em
conta que, se bem que a cada vez que há tempestade há vento, nem todas as vezes em que se
constata a presença de vento é porque há tempestade.
Nota
1 - Artigo publicado na revista Escritos de la Infância, n.6, F.E.P.I., Buenos Aires.
Fim da nota.
89
A DIREÇÃO DA CURA DO QUE NÃO SE CURA
Colocamos entre parênteses o termo Estimulação, com maiúscula, porque nos parece que hoje
já não designa o próprio de nosso enfoque clínico na "Estimulação Precoce".
Com efeito, não é o estímulo o que ocupa o lugar central de nossas preocupações, porque ele
por si só (entendido como "qualquer mudança no ambiente externo ou interno de um
organismo que provoca uma modificação de sua atividade") 4 é incapaz de produzir
desenvolvimento5. O fato de que o estímulo seja capaz de modificar a atividade do organismo
não garante a direção nem a trama de tais modificações. Pelo contrário: colocar o acento no
estímulo apaga a trama de significações que fazem dele um lugar necessariamente vazio.
Lugar recoberto pelo significante, que captura, organiza e transforma essa atividade, para
além da natureza do estímulo propriamente dito. Ali o estímulo não é mais o que é, nem é
signo direto de outra coisa, mas sim é pequeno traço num discurso que ignora enquanto
estímulo porque se dirige a outro destino, muito mais complexo e distante (distante do próprio
corpo) do que o que está em jogo na mecânica do contraste de uma diferença perceptiva. O
outro não é um estímulo nem um estimulante, mas a instância que, desde seu olhar, organiza
na criança sua auto-imagem corporal e, desde seu discurso, recorta no olho, na boca, em cada
"buraco" da criança, a sombra de um objeto inexistente que, por isso, será incessantemente
buscado.
Como pode se ver, não é absolutamente a relação estímulo-resposta aquilo que conduz ao
desenvolvimento. Mencionamos isso por ser muito freqüente a utilização de métodos
behavioristas neste campo. O roteiro de funções psicológicas a serem estimuladas assume,
nesses métodos, a forma de guia de atividades pontual e detalhadamente pré-programadas,
que são impostas à criança e sua mãe de forma meticulosa e com rigorosas regras de tempo e
espaço (medidas em minutos, centímetros etc.) definindo objetos, cores, percursos e
movimentos. Mesmo as escolas comportamentalistas mais flexíveis, que valorizam afetos e
motivações, acentuam as qualidades do objeto externo e das atividades propostas, como sendo
fator eficaz para auxiliar a criança em seu desenvolvimento.
Seja na primeira ou na segunda modalidade, o behaviorismo opera como reconstrutor da
mecânica da função maternal (afetada pelo impacto traumático do nascimento de uma criança
deficiente), obstaculizando com intromissões tecnicistas a elaboração da crise do laço mãe-
filho. A mãe é submetida à dependência do meticuloso roteiro, e o filho recebe uma
99
seqüência de operações carentes de significação e modulação afetiva. Ao mesmo tempo, os
pais encontram neste tipo de proposta o álibi perfeito para evitar reformular sua disposição
interna, assim como também lhes permite manter a criança à distância, interpondo ante ela
inumeráveis e "autorizadas" técnicas.
Freqüentemente, tais intervenções são validadas de acordo com escalas de avaliação cujos
itens repetem a listagem das funções estimuladas, o que constitui uma verdadeira tautologia,
visto que o sistema nervoso central do ser humano possui tanta flexibilidade (quando não está
profunda e gravissimamente danificado) que resulta quase impossível introduzir uma
estimulação sistemática e não obter algum resultado no nível do comportamento. Porém,
medir o progresso de uma certa discriminação perceptiva, ou o aumento da velocidade e
precisão numa atividade de motricidade fina, nada nos diz acerca de como esses elementos
estão ou não integrados no sistema de significação e, portanto, de articulação do desejo, que é
o que constitui o núcleo fundamental desse sujeito.
Ocorre que a saúde mental não é mensurável em unidades de discriminação perceptiva (por
exemplo). E é essa saúde que está fundamentalmente em risco.
Por isso, nossa proposta de Estimulação Precoce parte precisamente deste lugar negado pela
prática comportamentalista: a função materna entendida como uma estruturação que
proporciona inconscientemente a guia para que os intercâmbios decisivos entre a mãe e seu
filho ocorram de maneira espontânea.
Ao nascer uma criança deficiente, o contraste entre o filho esperado e o que acaba de nascer
afeta centralmente a função materna, já que a mãe se debate com o luto da perda do filho
imaginado, sentindo o recém-chegado como um impostor ou, no melhor dos casos, como um
verdadeiro desconhecido. Não sabe mais o que deve fazer com essa criatura que se tem, é
verdade, dificuldades constitucionais, tem ressonâncias ainda mais estranhas no fantasma
materno.
A eficácia do vínculo inspirado no desejo materno dirigido ao bebê costuma ser suficiente
para guiar as mães em suas atitudes para com o recém-nascido normal. Fixação ocular,
brinquedos, libidinização corporal, variações posturais, mudanças alimentares, tudo vai se
desenvolvendo de forma espontânea entre a mãe e seu filho sem problemas, com umas poucas
intervenções do pediatra e dos familiares, que transmitem suas experiências, facilmente
aproveitadas pela mãe.
No entanto, a sustentação, a manipulação, a tarefa de conectar a
100
criança com o meio, a transmissão da linguagem, o brincar, tudo pode e costuma ficar
profundamente perturbado quando o déficit constitucional do bebê produz um desencontro
precoce entre a mãe e seu filho. Desencontro que, por um lado, aparece como efeito de uma
dor que se instala, suprimindo o gozo do intercâmbio mãe-filho; por outro lado, alimenta-se
com os baixos níveis de registro e resposta do pequeno, ocasionados pelos seus déficits
constitucionais.
A Estimulação Precoce encontra uma brecha neste desencontro e no desejo parental de
solucioná-lo. É necessário, então, reconstituir os aspectos danificados da função materna, às
vezes até substituí-la parcial ou totalmente enquanto dura a crise da mãe, sendo que, muitas
vezes, é possível proporcionar-lhes elementos de sustentação durante sua luta por recompor
sua posição de mulher disposta a criar um filho. É preciso sublinhar que a fragilidade desta
criança não admite muita demora, uma vez que as conseqüências de um distanciamento
materno podem ser graves e, se prolongadas por meses, irreversíveis. Sendo assim, podem se
instalar traços autistas, pode se perder a oportunidade de moderar expressões patológicas no
sistema nervoso e neuromuscular, características hipotônicas podem se acentuar e se
transformar em mais permanentes ou pode se acentuar a lentidão de uma maturação já
originalmente comprometida.
Neste sentido, tomamos os ensinamentos de D. W. Winnicott e suas pontuações acerca da
função materna, complementando-os com análises derivadas de posições freudianas.
A sustentação (holding) como eixo de segurança afetiva, a manipulação (handling)
diferenciada enquanto modo de libidinizar seletivamente o corpo do bebê, o mostrar os
objetos que o rodeiam (to show the world) como forma de dirigir a criança ao mundo externo
e descentrá-lo da relação exclusiva com sua mãe; foram estes os critérios fundamentais de
interpretação e orientação em nosso trabalho junto à dupla mãe-filho.
Vimos que a dupla tradução, ação pela linguagem, linguagem pela ação que toda mãe
normalmente realiza para interpretar os gestos de seu bebê e para lhe fazer chegar expressões
de sua compreensão aparece notoriamente afetada nestes casos, o que resulta na necessidade
de uma minuciosa (mas não pré-formada) tarefa de reinstalação. Para tanto, é imprescindível a
elaboração do luto materno pelo filho imaginário, que é sentido como morto, e a adequação da
mãe às características especiais desta criança com peculiaridades patológicas nos aspectos
instrumentais.
A Função Paterna, cuja representação ante a criança é exercida, durante os primeiros meses,
freqüentemente pela personagem materna,
101
aparece afetada quase sempre da suspensão de toda inscrição simbólica desta criança assim
como pela rejeição afetiva por parte do pai real. Esta fratura abre a perigosa instância da
psicose precoce acrescentada ao déficit orgânico.
Como podemos ver, os tecnicismos dirigidos a "armar" comportamentos como se fossem
quebra-cabeças não sintonizam nem de longe com as necessidades do trio pai-mãe-filho em
tais circunstâncias. Estes tecnicismos, ao contrário, parecem favorecer a desagregação do
sujeito, o que é precisamente o maior risco.
Por isso, as categorias de avaliação não passam de critérios aplicados a posteriori e nunca
guias da ação terapêutica. A guia para esta ação é a leitura do estado da relação mãe-filho.
Aplicar a estimulação por áreas e depois medir os avanços através destas mesmas áreas é uma
tautologia clínica que mais satisfaz aos técnicos do que responde às necessidades da criança e
sua mãe.
A utilização dos princípios interpretativos da psicologia genética (Jean Piaget) permite-nos
intervir no jogo da criança graduando as propostas de acordo com os níveis de complexidade
nas coordenações de ações por ela alcançadas. Tal enfoque não exige que nos submetamos a
seqüências predefinidas de atividades nem a objetos predeterminados. Ao contrário, trata-se
de recolher na atividade espontânea do intercâmbio mãe-filho as possíveis propostas de
pequenos problemas que, apresentados à criança, impulsionam seu desenvolvimento
intelectual e psicomotor na direção de tarefas apoiadas em estruturas mais complexas.
Algumas vicissitudes na psicanálise do deficiente mental e de seus pais
Os "adultos-crianças" - Naquilo que insiste num mesmo sujeito reconhecemos o retorno do
reprimido, a resistência a um desejo. O desejo do filho é tomado numa controvérsia quando os
pais não podem se reconhecer nele. Não se reconhecem porque uma falha o tornou diferente.
Essa falha pode se situar no real ou no imaginário. Em ambos os casos o efeito é o mesmo: o
reconhecimento não se produz porque o destino para o qual este filho foi imaginado torna-se
impossível, de um modo inegável.
No entanto, quando, desde o real, o limite desloca-se mais para cá, estreitando as
possibilidades de uma criança, produz-se um contraste com os outros limites, aqueles aos
quais todo ser humano está submetido: a morte, a fragilidade; enfim, sua corporalidade. No
real, esta criança não é
102
como os outros, e esta irrupção do limite num lugar em que não se espera produz o mesmo
efeito do que se encontrar com o arauto da morte ao dobrar a esquina: um efeito sinistro.
Se o sinistro se impõe, a sombra do filho desejado e partido cairá sobre o eu dos pais abrindo
caminho à depressão melancólica. Então a pergunta "Por que comigo?" os levará uma e outra
vez à autocontem-plação queixosa, deixando o filho de fora deste círculo narcisístico.
Os pais também podem fazer esforços explicativos para suavizar este efeito sinistro. Tornar-
se-ão, então, alternativamente mártires ou vítimas de um castigo, missionários reparatórios,
talvez estóicos e orgulhosamente guerreiros sociais por seus filhos; talvez cheguem até a
ostentar sua criança deficiente como um galardão de heroísmo.
Todas serão formas transitórias de delírio, delírio que tende a restituir o que no narcisismo dos
pais foi danificado, encontrando uma justificativa para o que ocorreu ou um rumo para o que
perdeu sua trajetória.
Esta reidentificação dos pais em outros personagens heróicos, que lhes permita suportar a
carga desta criança, tem suas vantagens, porém tem seus riscos. O que o delírio deixa cair é a
criança, reduzida a nada mais do que seu puro limite real. Ficará investido no imaginário
materno como objeto complementário desta personagem: será uma coisa para ser heróica e
sofridamente reparada, terá um programa e um plano, nada ficará entregue ao'acaso, não
haverá escolha possível porque tudo estará previsto para que não se perca nem um minuto,
para que se chegue ao máximo. Assim, enquanto os pais passam do sinistro à epopéia, a
criança, cujo reconhecimento no humano ficou distanciado, faz sua entrada na psicose, pois
nela não pode aparecer seu desejo, mas só a concordância com o planificado.
Estes pais não esperam que a criança se manifeste, mas que cumpra bem seu papel na cena
heróica, ou na trágica.
A mãe de uma menina mongólica, aos 28 dias de seu nascimento, empreendeu viagem aos
Estados Unidos para investigar tudo o que poderia ser feito para ajudar sua filha. "Não quis
perder tempo - relatava depois - e ao chegar percorri clínicas e universidades, me dediquei 10
dias a fazer um curso de Estimulação Precoce. Não vou deixar de fazer nada (sic) que seja
possível."
O detalhe interessante é que sua viagem de "estudos preparatórios para a grande empresa"
durou 27 dias (talvez um antes do nascimento na contagem regressiva...) e não levou sua filha
com ela. Recordemos que a pequena tinha menos de um mês de vida.
103
Meses depois apareceram evidentes traços autistas na menina.
Outro exemplo: o pai de E. M. decidiu, a partir do nascimento desta criança deficiente, que
deveria trabalhar "o dobro"6 para assegurar seu futuro: "Ele não vai poder se defender
sozinho, por isso eu tenho que prover tudo".
O resultante disso é que nunca via seu filho. Para que filho - que não conhecia - estava
trabalhando? Para que dublê"?
Existem muitos métodos ou atitudes reabilitadoras e reeducativas compulsivas que se
encaixam perfeitamente nesta dinâmica parental e respondem de forma cúmplice, embora
inconscientemente, a sua demanda.
No entanto, apesar da depressão, do recolhimento na reparação nar-cisística, ou do heroísmo
compulsivo que domestica o sinistro na criança; apesar de todas estas alternativas, o desejo
original de filho insiste. Mas como é que insiste? Porque sabemos que o que se repete repete-
se diferente.
Esse filho que não nasceu torna-se presente, uma e outra vez, acoplado a este que vive e cuja
condição de ser resulta mais uma vez insistentemente questionada, para além da boa
consciência parental.
Comprovamos, na clínica, esta repetição que alude a uma estrutura: a do fantasma do desejo
de filho que se torna formação clínica de resignação neste ser percebido como incompleto.
Em grupos de pais ou em intervenções psicanalíticas curtas, ao longo dos últimos 25 anos,
temos constantemente nos reencontrado com certos pontos de elaboração, com perguntas que
adotam diferentes formas, mas que aludem às mesmas questões.
E, para além da suspeita de tê-las induzido através da transferência institucional, temos
encontrado em outros países e instituições as mesmas questões sempre formuladas pelos pais
dos deficientes mentais.
Na medida em que várias destas questões foram desenvolvidas na parte inicial deste capítulo,
aqui somente as enunciaremos quanto à forma temática que costumeiramente adotam no
trabalho clínico:
1) A elaboração do choque traumático do nascimento como a erupção de alguém não
esperado e a perda da criança desejada.
2) A instalação da recusa que permite que coexistam na consciência duas idéias
contraditórias: "É deficiente, mas para nós é como se fosse normal".
3) A equivalência entre bebê e deficiente, que se arma como forma de encobrir na imagem
prolongada de bebê a limitação da criança deficiente.
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Os pais mantêm seu filho em demorada regestação até que literalmente não caiba em seus
braços.
Os pais seguem chamando de "crianças" aos adultos deficientes, expressando sua retenção do
filho num lugar "protegido", o da infância. Assim, são homens e mulheres que não têm
perspectivas para além de sua dependência. A família os encerra em seu temor de que não
possam se valer por si próprios lá fora, mas lhes reclama "que se comportem como gente
grande aqui dentro".
O assunto do trabalho, a sexualidade novamente, a circulação social estão em questão: o
desejo parental tropeça com limitações; porém, às vezes, é esse mesmo desejo que as fabrica,
nas invenções que constitui acerca da deficiência do filho.
4) A identificação sexual torna-se complicada nos deficientes porque há uma fratura na
identificação dos pais com o filho.
Eles não o vêem como igual, surgindo daí o impedimento para que eles não se sintam iguais,
precisamente naquilo que mais os situa como humanos e no que mais complicado resulta
desde a perspectiva parental: a definição do papel sexual do deficiente mental.
Há sempre um fantasma sinistro que acompanha toda manifestação de sua sexualidade.
5) Produz-se uma duplicação em toda consideração em relação ao filho: a função afetada
abrange tudo, mas o desejo interroga para além de sua afecção. Assim surgem perguntas
como: "Apesar de ser deficiente, vai poder falar?".
"Não me importa que não possa ser atleta, conquanto possa se divertir". Assim falam os pais
de sua dupla imagem do filho: o que pode e o que não pode.
6) Tratamento terminável ou interminável? Esta pergunta alude ao contraste entre o desejo de
cura total ("terminável") e a idéia de doença eterna e irreversível ("interminável"). Em relação
ao primeiro, a angústia se torna presente pela impotência e, na segunda, pelo real sinistro. São
dois pontos entre os quais os pais passam ricocheteando sem saída, a menos que encontrem
uma nova simbolização para este filho. Algo de sentido, que não estava antes, terá que ser
criado.
Desde o ponto de vista analítico, as intervenções curtas (modo de operar nestes casos)
terminam quando este novo sentido, em lugar de ser sustentado pela palavra do analista, passa
a ser sustentado pela palavra dos pais.
7) Os irmãos: ajudantes ou vítimas. A duplicidade do filho se projeta
105
nos irmãos, que passam a suportar a identificação projetiva dos pais: heróis salvadores ou
indefesos condenados.
8) O que será dele quando não estivermos?, formulam os pais que curiosamente, não
conseguem articular formas de transição entre o estar nesta casa parental e o estar em outro
lugar.
Esse outro lugar muitas vezes é imaginado como "casa para depois da morte". Como seus
filhos poderiam suportar viver nessa "casa para a morte?". Não é costumeiro que apareça a
idéia de "outra casa para a vida, para agora", porque, então, os pais se auto-acusam de
abandoná-los. Não há transição, ou estão totalmente dentro, ou estão totalmente fora. Aqui
também o desejo do filho normal insiste e expulsa o intruso ou o retém, para refazê-lo. Aqui
sempre se apresenta, desde o início, a demanda de antecipação do futuro "como será?".
9) Talvez a questão que resuma tudo consista no seguinte: "Se o ajudamos e progride, vai ter
consciência da doença, de sua diferença? E isso não o fará sofrer?". Nesta questão, novamente
retorna o reprimido, tentando evadir a castração simbólica: como ser sem sofrer por não ser o
que nele se deseja? Será que os pais não podem tolerar que se descubra... o que
imaginariamente eles sentem que fizeram?
No generoso "que não sofra", esconde-se o "que não seja". Desejo este que só se realiza
quando algo no desejo de filho se perverte; seja por culpa, por persistência e fascínio do
sinistro ou por heroísmo narcisista.
Na Escola de Psicologia Social Enrique Pichon Rivière se reúnem grupos operativos de pais
de adultos mongólicos.
Uma vez me consultaram a respeito das questões que surgiam no grupo. Curiosamente, as
perguntas eram as mesmas que acabamos de assinalar. Prova da insistência na outra criança a
quem não é possível renunciar.
Mas uma pergunta destacou-se como nova e repetida: "Por que falam tanto sozinhos?". Uma
vez que não são psicóticos, cabe perguntar: com quem falam? Não será com esse
companheiro imaginário que se faz presente desde o desejo dos pais?
Como vemos, o desejo original de filho retorna sempre e incide sobre este ser, difratando nele
sua inevitável presença, realizada, e o que devido à sua presença não se realizou.
Vida pesada a deste adulto-criança, que sempre carrega outro em suas costas. Acompanhante
fiel, porém recriminativo, sombra que sempre aPonta para o mesmo lado, apesar do que outros
olhares possam chegar a iluminar.
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Intervenções psicanalíticas nos problemas de desenvolvimento
Às intervenções que fazemos com os pais das crianças, a menos que se trate da psicanálise
formal de uma criança, chamamos de intervenções curtas.
Curtas e não breves, porque sua brevidade depende, porque não estão abreviadas a priori de
qualquer focalização de objetivos. Embora seja certo que costumeiramente estão motivadas
em função de que algo se estanca no desenvolvimento da criança (muitas são outros os
motivos: angústia parental, desorientação frente a uma nova fase da vida da criança, surtos
psicóticos, preocupações com os irmãos, desentendimento com os terapeutas, crises
matrimoniais que suspeitam estarem vinculadas com o problema do filho etc), não é este
estancamento que centra o trabalho. A associação proposta é livre e ela se estende em todo o
espaço que o desenvolvimento da transferência lhe marca, até que se corte. Corte que
aceitamos, para que se reabra no momento oportuno; porque, certamente, não é possível
manter a denegação sobre a deficiência se, por exemplo, fosse mantido o compromisso de
falar dela todas as terças-feiras às 10 horas durante vários anos seguidos.
Ninguém suportaria falar de sua tragédia de um modo imposto com tanta regularidade, sendo
que sua tragédia, como ocorre nestes casos, não está remetida ao passado, mas, sim, continua
ocorrendo dia após dia.
Notas
1 - O caso que aqui se relata foi inicialmente tratado pelo Dr. Paulo C. Brandão, a seguir pela fonoaudióloga e
psicomotricista Zulema Garcia Yanez e depois em psicanálise por mim.
2 - Refere-se ao conhecido gigante verde da série de TV americana. Monstro no qual um homem aprazível,
David, se transforma quando fica bravo.
3 - Parafraseando o escritor João Guimarães Rosa em "Grande Sertão: Veredas": "Eu não sei aonde me dirijo,
só sei por onde vou." Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
4 - Enciclopédia Salvat. Barcelona, Salvat, 1972, v. 5.
5 - Ver cap. 2 a respeito das pulsões e os estímulos. Neste ponto, há convergência com os critérios de Jean
Berges em suas mais recentes publicações. Ver, a respeito, J. Berges. "O Corpo e o Olhar do Outro". Porto
Alegre, Edições "Che Vuoi?" da Cooperativa Cultura Jacques Lacan, 1986.
6 - A palavra doble, em espanhol, comporta dois sentidos - "dobro" e "duble". É importante ressaltar que no
original isto corresponde ao escorregamento significante de uma mesma palavra (N. do T.)
Fim das notas.
107
PSICANÁLISE E DEFICIÊNCIA MENTAL
Psicanálise e Educação Especial1
Tibério Cláudio, imperador de Roma que viveu do ano 10 a.C. até 54 d.C, chamado "Cláudio,
o Gago", "Clau-Clau-Cláudio" e também "O pobre tio Cláudio", foi tido como débil mental
durante toda a sua infância e parte de sua adolescência, não tendo sido mandado à escola
"pela fraqueza de suas pernas", embora, na realidade, não tivesse ido para proteger-se e à sua
família de expor em público sua deficiência. Contudo, chegou ao máximo cargo romano pela
astúcia de outros que pretenderam usá-lo para seus próprios fins.
Em sua autobiografia, datada de 49 d.C, nos fala do drama que foi para ele não ter um Outro
que dele esperasse alguma coisa. Conforme suas próprias palavras: "Minha mãe, Antônia, fez
tudo o que se podia esperar dela em matéria de deveres, porém nada mais. Não me amava.
Não. Sentia uma grande aversão por mim, não só por minhas doenças, mas sim porque teve
uma gravidez muito difícil comigo e um parto muito doloroso do qual quase não saiu viva e
que a deixou mais ou menos inválida durante anos". Nasceu prematuro e, como seu pai
morreu quando jovem, ficou sob a tutela do poderoso Augusto, de quem sempre esperou um
reconhecimento. E assim nos conta o que obteve: "Somente numa ocasião Augusto tentou
dominar a repugnância que sentia por mim, e resultou um esforço tão pouco natural que me
pôs mais nervoso do que de costume... e gaguejei e estremeci como um louco... E na realidade
devo ter sido um desgraçado espantalho, uma desonra para um pai tão vigoroso e magnífico e
para uma mãe tão majestosa".
A partir de seu lugar como Imperador, Cláudio encontra suficientes forças para nos revelar os
ódios e repugnâncias, a marginalização e desprezo
108
de que foi objeto durante toda a sua vida. E também como a falsa estima não conseguia
enganá-lo. Conta-nos, minuciosamente, como o salvam da loucura seus sonhos sobre um pai
morto, com quem, por ser assim, tudo teria sido possível; como o salvam o amor de um irmão
e a percepção de um filósofo estóico, chamado Atenodoro, que se torna seu amigo2.
Recolhe, com paciente mas desesperado regozijo, cada pequeno traço de confiança depositada
nele e com seus retalhos se reconstrói. Para tanto, primeiro se esmera em reconstruir a história
de seu pai. Auxiliado por escribas, dedica vários volumes a um homem obscuro a quem a
história romana dificilmente teria dedicado umas poucas linhas. Logo escreve a história de
sua família na qual tenta situar seu próprio lugar. Depois a sua própria história.
Reconstrução, passo a passo, da história que lhe foi negada. Rear-mação de si mesmo a partir
de escombros, realizada com o suporte de uns poucos que lhe entregam afeto, reconhecimento
e palavras. Como ninguém o inscreveu, Cláudio se escreve numa filiação.
Será que os educadores podem cumprir tal papel de suportes para aqueles que não são
inscritos?
É possível, mas com algumas condições sobre as quais proponho refletir aqui.
Os ensinamentos que o caso de Tibério Cláudio poderiam ter deixado para a educação
especial ficaram, no entanto, obscurecidos e esquecidos.
É assim que, em 1799, o Dr. Itard repete os erros e preconceitos do império romano. Com um
jovem selvagem que foi encontrado errante nos bosques de Aveyron naquele ano, tenta a
primeira reeducação científica da história. Frente ao fracasso de seu insistente trabalho,
rigorosamente planificado dentro da mais pura metodologia positivista de Condilac, Itard
queixa-se amargamente de que as poucas palavras que Vítor (tal é o nome do jovem lobo)
aprendeu foram produto de sua primária, banal e nada científica relação com sua governanta.
Avanços na sociabilidade de Vítor são o produto inesperado de pueris momentos de recreio
entre aula e aula. O próprio Itard às vezes participa destes recreios e se enternece ao relatá-los,
porém os despreza como sendo expressão de suas próprias debilidades, uma vez que ele se
sente obrigado ao dever do trabalho educativo disciplinado, rigoroso e esgotador.
Novamente uma possível lição é desperdiçada.
109
Itard confessa seu fracasso e frustração, mas não se atreve a atribuí-lo à falha do método.
Continua erigindo a bandeira de Condilac e seu positivismo, enquanto os uivos de Vítor e os
pueris jogos com a governanta penetram na história3.
A esta altura, poderiam me perguntar por que estou remexendo no passado. Pois bem,
responderei: porque estes exemplos têm a mais rigorosa atualidade. Eles revelam que algo
decisivo ocorre fora da cena de transmissão imperativa imaginada pelo educador. Algo do
qual ele mesmo, sem o saber, pode ser o agente.
Não é difícil para um educador especial intuir este fato, mas também não é fácil para ele
sustentá-lo em suas conseqüências.
Não é difícil para ele intuí-lo porque a natureza da demanda dos pais e da criança força-o
constantemente a sair de seu papel puramente educativo. Problemas que vão da alimentação à
sexualidade, desde as incertezas até o convívio, lhe são incessantemente consultados. O que
submete o educador a se perguntar desde que saber deve responder, na suposição de que tais
perguntas pudessem ter uma resposta unívoca.
Certamente não é a partir de sua experiência e valores pessoais que ele poderia responder, já
que não se trata da sua vida, mas da de outros, que o consultam partindo do pressuposto de
que ele dispõe de um saber que vai além das circunstâncias de sua própria pessoa. Um saber
suposto, do qual o próprio educador se sabe carente.
É verdade que alguns ficam tentados com estas atribuições e respondem.
Também é verdade que alguns tentaram elaborar listas de comportamentos "recomendáveis",
baseados em modelos sociais construídos estatisticamente. Mas ao dar tanto uma quanto outra
resposta, seja pessoal, seja estatística, está se repudiando o que de mais importante permeia
estas perguntas dos pais. A saber: uma interrogação angustiosa a respeito do destino de seus
filhos. Pergunta que, mais do que uma resposta, requer um jogo simbólico para além do
drama e uma inscrição do sujeito para além de sua impossibilidade. Ou seja: uma operação
que transcende o ensino das letras, hábitos e números.
Ocorre que a educação especial ocupa um lugar necessariamente intermediário entre o
educativo e o terapêutico e qualquer docente com um pouco de experiência neste campo sabe
quão infrutíferas são todas as tentativas de silenciar as diferentes vertentes da demanda da
criança e de seus pais.
110
Demanda que, por um lado, situa os pais na espera de uma prova que humanize seus filhos
ante seus olhos e, por outro lado, situa a criança na expectativa (quando tem estrutura para
tanto) de encontrar, junto a seu educador, o que em algum lugar ficou perdido.
Certamente não é desejável que os educadores abandonem suas funções e se dediquem a
elaborações psicanalíticas. Também é certo que a psicanálise não pode oferecer um método
educativo. No entanto, há algumas contribuições que a psicanálise pode aportar ao educador
especial para fazer frente a tensões a que fica submetido, entre a demanda social de adaptar o
educando e a demanda que, desde os pais e a criança, exige ao mesmo tempo provisão de
conhecimento e deciframento de um destino.
Em primeiro lugar, podemos assinalar o necessário abandono do "furor docendi"4 (impulso
desmedido de ensinar e ensinar, incessantemente) como condição para poder se descentrar do
discurso educativo, operação esta necessária para fazer frente a uma demanda tão complexa
como a que acabamos de descrever.
A redução do sujeito a um conjunto de regularidades lógicas, no caso de Piaget, ou a um
conjunto de comportamentos convenientes, no caso do comportamentalismo, pode tentar o
educador a submeter a criança, constantemente, à apresentação de problemas pré-definidos ou
à adoção de atitudes pré-fixadas.
Tal constância educativa deixa pouco ou nenhum espaço para que o próprio sujeito seja
interpelado sobre suas próprias escolhas e construções de objeto. Neste modo de operar, os
equívocos podem ser desprezados como simples inconvenientes. Desconhece-se, assim, que,
precisamente no equívoco, o educador pode estar fazendo muito mais para promover a
curiosidade do educando do que realmente se produz no cumprimento estrito dos passos
programados.
O educador resulta inevitavelmente tomado neste equívoco, porque dele se espera mais do
que as letras. Sua palavra adquire sempre um peso, mais além do simples conhecimento em
questão.
Quando se sente capturado neste deslizamento inesperado, em que se lhe demanda amor,
saber do oráculo, reparações impossíveis, ele pode reagir de diversas formas. Talvez o mais
conveniente seja deixar que as coisas ocorram com certa liberdade e propor atividades nas
quais se favoreça a criatividade dos próprios sujeitos implicados, para que os fantasmas
atuantes voltem a se articular em torno de novos elementos simbólicos.
111
Porém, uma reação freqüente consiste em se refugiar no aspecto imperativo do ensino,
estabelecendo um guia rígido que limite as manifestações oriundas de tais equívocos.
Refugiar-se neste aspecto imperativo da educação, quando estamos no campo da deficiência,
é particularmente grave. Porque, para o deficiente mental, dizer-lhe tudo o que tem que
aprender, fazer e seus modos não é somente suprimir provisoriamente sua criatividade, como
ocorre com a aplicação do comportamentalismo em uma criança comum. Equivale, o que é
ainda mais grave, a dizer-lhe que dele não se espera que saiba nada por si mesmo, ou que o
deduza ou o invente. Ou seja, repetir o que lhe vem sendo dito em sua casa ou no mundo
externo, suprimindo a esperança, se é que ainda lhe restava alguma, de que na escola lhe
reconheçam outra condição que a de nulidade absoluta.
Poder-se-ia pensar que as imposições mecanicistas terminaram junto com Itard e seu jovem
selvagem. Contudo, rapidamente podemos comprovar que não é assim.
Em um livro de assessoria para educadores de deficientes mentais elaborado por uma
qualificada equipe pedagógica da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, e editado em
1983, encontramos o seguinte. Depois de um capítulo no qual se recomenda gerar um bom
clima, livre, criativo (sic) e agradável de trabalho, eliminando restrições desnecessárias (sic),
vem o capítulo central do livro. Nele se faz uma longuíssima listagem de comportamentos
ordenando-os em duas colunas; uma sob o título "A criança faz" e a outra, ao lado da
primeira, sob o título "Deve fazer e seguir". Curioso é que, depois daquelas declarações em
nome da liberdade, este último capítulo contém a recomendação de "seguir estritamente os
passos descritos", sob pena de tornar inúteis todos os esforços de ensinar 5. Como pode se ver,
esse aspecto imperativo se impõe aqui de um modo tão absoluto que a liberdade, a
criatividade e o bom clima parecem dizer respeito muito mais à cosmética da proposta do que
à própria arte de ensinar.
Também no caso das propostas piagetianas freqüentemente assistimos, com estranheza, a
facilidade com que se produzem reducionismos comportamentalistas de seus postulados
genéticos.
Ocorre que, no caso da deficiência, a experimentação ativa que constitui, sem dúvida, o
núcleo de uma pedagogia piagetiana sofre severos obstáculos derivados da própria dinâmica
cognitiva do deficiente: excepcionalidade, passividade, viscosidade do pensamento, oclusão
das estruturas
112
frente a novas perturbações etc. Por isso é fácil deslizar para uma posição imperativa que
costuma ser, mesmo que menos produtiva, mais cômoda para o educador, a criança e a
instituição.
Como podemos constatar até aqui, o papel do educador especial se desdobra numa posição tal
que se complica, entre o cruzamento de demandas contraditórias e a insuficiência dos
métodos; além de que, como se não bastassem essas dificuldades, a sociedade acrescenta as
suas próprias.
Em especial, temos que assinalar a exigência que tem para com todos os seus membros de
funcionar em harmonia entrópica com o funcionamento social. Sendo assim, o funcionamento
opera por si mesmo como reconhecimento do sujeito, embora nisso esteja em jogo uma
posição perversa. Perversa porque o fato de funcionar em si mesmo basta, sem que seja
necessário se interrogar (pelo menos na sociedade industrial) acerca das conseqüências de
cumprir com tal funcionamento. Esta alienação, no sentido próprio do termo, é a que se exige
de um deficiente para ser reconhecido socialmente.
Para além da vontade, boa ou má, dos que pensam ou operam nestes escritos, a sociedade
industrial engendra esta exigência: funcionar de acordo para ser social. E se o sujeito quer
gozar desta condição do ser, a do ser social, fica obrigado a se alienar na eficácia de uma
função6.
Bem, mas estamos frente a um problema: o deficiente não funciona conforme o esperado.
É aqui que o educador social é também pressionado para obrigar seu educando a assumir uma
condição de peça da engrenagem social. É aqui que se torna máximo o risco de que toda
condição subjetiva fique apagada. Parece-nos que agora fica claro que as propostas de ordem
puramente prática e baseadas na utilidade social trazem consigo um risco importante. Ou seja,
deixar de escutar os aspectos simbólico-subjetivos que, por sê-lo, carecem de toda utilidade,
mas que, paradoxalmente, constituem a única via da criatividade e do descobrimento.
Partindo desta perspectiva, compreendemos que não se deve abandonar, sob circunstância
alguma, nem sob pretexto de método algum, a posição de interpelar o sujeito durante o
processo educativo e paralelamente ao próprio ensino. Interpelá-lo sem lhe impor outra
condição que a de se manifestar na medida em que isso lhe seja possível. Sabemos que não é
fácil sustentar isto, porque implica que a cada instante nos confrontemos com a possibilidade
de um fracasso, que não é um fracasso qualquer.
113
É uma falha radical do ser, muito mais do que a falha que estamos acostumados a suportar.
É por isso que fácil e inadvertidamente deslizamos para refúgios técnicos, baseados num
discurso impecável, científico, mas que desconhece a subjetividade de quem temos diante dos
olhos. Precisamente porque tal subjetividade, a do deficiente mental, nos fere no mais íntimo
e primitivo de nossos temores infantis: os de sermos abandonados, execrados e desprezados
para sempre. Por isto, muitas vezes fazemos esforços para não ser confundidos com aqueles
que educamos. Posição orgulhosa de nossa inteligência, porém no fundo inspirada no temor
de perdê-la, no horror de que não seja reconhecida.
Certamente nisto falta-nos a modéstia de reconhecer que somos muito mais o que não
pensamos e muito menos o que pensamos ser.
A função do sujeito no deficiente mental: o que se antecipa no bebê pode custar um sujeito7.
- Quer dizer que a poesia seria uma forma particular do saber?
- Sim, mas não de saber algo concreto. (Jorge Luis Borges)8
Nesta questão da deficiência mental pareceria que todo mundo está de acordo quanto à
necessidade de transmitir às crianças algo concreto, pensando que no êxito deste ensino
residirão as possibilidades de adaptação social. Pois bem, proponho-me a questionar isto,
mesmo se tratando das idades do início da vida das quais me cabe falar. Particularmente nos
bebês, por sua extrema sensibilidade à intervenção do outro, os projetos e programas
limitados ao concreto e ao útil podem conduzir a uma anulação de sua condição humana.
Embora não seja menos perigosa a insistência neste ponto de vista em idades mais avançadas.
Fazendo um pouco de história: Dizia, em 1928, Watson, o pai do behaviorismo norte-
americano:
"Existe um modo razoável de tratar as crianças. Trate-as como se fossem jovens adultos.
Vista-as e banhe-as com cuidado e circunspecção. Que sua conduta seja sempre objetiva e
amavelmente firme. Nunca as abrace nem as beije. Nunca as sente em seu colo. Se você deve
beijá-las, faça-o uma só vez, na testa, quando lhes dá boa-noite. Dê-lhes um aperto de mão
pela manhã. Dê-lhes uma palmadinha na cabeça se frente a um trabalho difícil tiverem se
desempenhado extraordinariamente bem. Experimente...
114
Em uma semana você descobrirá como é fácil ser perfeitamente objetivo com seu filho e ao
mesmo tempo amável. Você se sentirá profundamente envergonhado do modo nojento e
sentimental como você o vinha tratando."
Entre este desatino da psicologia e as atualíssimas propostas de I. Lovas para reeducar
crianças autistas, não se encontra nenhuma diferença conceitual. Daí que a tentação de
desculpar este texto aberrante baseando-nos em sua antigüidade não pode ser sequer
considerada. Parece ser, na verdade, pela sua persistência ao longo dos anos (passando por
Skinner), a expressão originária de uma ideologia cuja máxima é centrar-se exclusivamente
no útil.
No pólo totalmente oposto, H. M. Skeels relata uma descoberta acidental realizada na década
de 1930. Duas menininhas de 13 e 16 meses, desnutridas, foram separadas de suas mães
deficientes mentais. Os testes e observações evidenciaram que as meninas também eram
retardadas, motivo pelo qual foram enviadas a uma instituição de deficientes mentais. Como
naquela época não existiam instituições para crianças deficientes mentais, o instituto que as
acolheu só tinha adultas, cujas idades mentais oscilavam entre cinco e nove anos.
Ao avaliá-las um ano depois, Skeels descobriu que as duas meninas eram totalmente normais
para suas idades cronológicas. Contentes com a presença das garotinhas, as deficientes
mentais as tinham "adotado", comprando-lhes brinquedos e tratando-as com afeto.
Este fato foi em seguida novamente comprovado com 13 crianças aparentemente deficientes
que foram retiradas de um orfanato e receberam o mesmo "tratamento" que as duas meninas,
obtendo-se exatamente os mesmos incríveis resultados12.
Por um lado, esta "descoberta" colocou em xeque os postulados behavioristas (já então
skinnerianos) que, no entanto, fizeram ouvidos de mercador a "essas subjetividades" e
insistiram ainda mais acirradamente em suas teorias, agora aperfeiçoadas com a consideração
do afeto como parte integrante do mecanismo a que reduzem toda criança. Desse modo, o
afeto passou a ser utilizado como uma mola a mais para a obtenção de uma conduta útil e
concreta, coincidente com o programa do educador. Abria-se, assim, o campo da legalização
da hipocrisia na prática terapêutica. O que, na prática, tem um efeito muito mais arrasador do
que a simples indiferença, já que desqualifica de entrada toda confiabilidade do outro como
ponto de identificação e referência, deixando a criança livre à pura exterioridade real das
ações e reações: um verdadeiro programa de robotização.
115
Por outro lado, a descoberta de Skeels trouxe consigo ilusões de poder superar, através de um
trabalho contumaz e com muito afeto, a deficiência mental nas crianças que efetivamente dela
padeciam.
Assim nasceram os programas de ótimas intenções que insistiam nas letras e nos números,
nos conhecimentos acadêmicos e na aproximação da criança deficiente mental à
aprendizagem realizada nas escolas comuns. A escola diferenciada, depois chamada de
ESpecial, desdobrava os currículos do primário em várias outras séries. A metodologia
didática oscilava entre a contenção afetiva e a repetição comportamentalista. Na realidade,
durante muito tempo, não houve nenhuma outra metodologia de ensino, efetivamente vigente,
a não ser o behaviorismo. Porém, este permanecia oculto, disfarçado, poucas vezes saindo à
luz, pelo caráter vergonhoso que pouco a pouco foram lhe impondo as observações de Ribble
(1944) com seu estudo sobre 600 crianças e suas mães, de L. Kanner (1930-1935) sobre o
autismo, os estudos sobre a depressão psicótica dos macacos Rhesus realizados por J. Somi
(1971) e anteriormente por H. F. Harlow (1962-1967).
Também foram importantes as observações de R. Spitz sobre o quadro de "hospitalismo"
(1951), e os resultados das investigações de Bowlby (1952) acerca dos efeitos negativos
duradouros da privação afetiva na primeira infância.
Paralelamente, avançavam as demonstrações analíticas, penetrando agudamente no coração
das determinações internas do comportamento humano, revelando o insubstituível papel do
outro social na constituição do sujeito. Toda aprendizagem ficava, assim, subordinada a um
efeito de transferência. Primeiro, isto foi revelado, unilateralmente, por Anna Freud, que
assegurou que era impossível qualquer aprendizagem no marco de uma transferência
negativa". Conjuntamente, a controvérsia com M. Klein iluminou a importância da resistência
e da transferência negativa, anteriormente analisada por S. Freud como eixo de todo
tratamento, porém agora valorizada nos processos de aprendizagem14.
De tudo isto resultava a afirmação de quão determinantes eram os Processos internos da
criança na incorporação de qualquer conhecimento, Precisamente aqueles processos que o
comportamentalismo desprezava como "meras especulações que não conduzem a nenhum
resultado prático. Assim, sem outro recurso pedagógico além da insistência e do reforço, a
inibição de "condutas desadaptadas" através do castigo ou a desapro vação, o ensino especial e
a prática terapêutica com deficientes mentais
116
isolou-se da psicanálise andando aos trancos entre a maternagem direta, quase sem mediação
terapêutica, e a fustigação para que se rendessem à verdade das letras.
As descobertas de J. Piaget, a partir de 1919, começam a abrir verdadeiros buracos, no barco
assim armado, do ensino especial. Profundamente crítico do comportamentalismo,
precisamente no seu campo de maior desenvolvimento, o campo cognitivo, desde a década de
60 começa a penetrar nas escolas, valorizando o papel da criança como investigadora e
trazendo à luz diferentes modos de conhecimento anteriormente confundidos com a mera
ignorância.
Assim, as crianças deficientes mentais são paulatinamente resgatadas do indigno território dos
burros e afirmadas como conhecedoras de acordo com seu estilo. As modalidades do ensino
especial vão se transformando de acordo com os processos dinâmicos internos da
aprendizagem.
Na Argentina, assiste-se a este processo nos últimos 10 anos.
As letras e os conhecimentos acadêmicos caem como modelo de incorporação à vida normal.
São substituídas por outra preocupação: a adaptação ao trabalho. "Meu filho, o doutor", como
mito de assimilação social, é substituído por "Meu filho, o trabalhador". Voltam-se, então, as
atenções para preparar a criança para o trabalho: escolas especiais se transformam,
incorporam oficinas e ferramentas; materiais concretos suplantam em importância as letras, as
atividades cedem o espaço acadêmico ao plano prático. Registra-se, indiscutivelmente, um
avanço.
Porém, em toda esta "industrialidade" inscreve-se um novo perigo. A valorização da produção
e a investigação espontânea, introduzidas por Piaget, se especificam na pedagogia como
propostas deliberadas de desequilíbrio cognitivo para estimular a criança a uma reestruturação
mais flexível e abrangente. Na educação especial e ainda mais na pedagogia terapêutica se
definem, cada vez com maior precisão, métodos interpretativos que permitem individualizar
as variáveis efetivamente capazes de perturbar a criança e mobilizá-la em um sentido
ascendente.
As contribuições piagetianas conseguiram cortar o discurso comportamentalista, dando lugar
à produção da própria criança e deixando, embora inadvertidamente, maior espaço para um
jogo mais livre da transferência. Mas agora tornamos a correr o risco de que os tecnicismos
nos tapem novamente as orelhas.
117
Sobre o trabalho dos deficientes mentais
O trabalho elementar, concebido em sua modalidade industrial, parece não necessitar mais do
que operações práticas, para as quais é prescindível todo circuito abstrato. Se confundimos
"inteligência prática" com "saber em ato" (sensório-motor), estamos fazendo programas que,
já desde as primeiras épocas, estão preparando a criança para desligar o ato do pensamento.
Assim, o trabalho do deficiente mental não seria um ato de criação, mas sim uma mera
submissão a um exterior, que o escraviza para lhe conceder a dádiva de sua subsistência.
Embora o procedimento pedagógico possa ser mais sutil e com justificativas teóricas melhor
armadas, trata-se simplesmente da repetição do texto de Watson: deixar em pé apenas o útil.
Tal forma de proceder perde de vista que a criação está na distração, no erro, no momento
improdutivo. Que, para compreender o mundo, até o mais deficiente recorre a opor ao
racional o absurdo. Este recurso ao rodeio exploratório inspirado na especulação interna, para
além do prático, essa oscilação de distanciamento do objeto (contida na pergunta emocional
que interioriza o ato) é o eixo de toda intelecção humana. Remeter todo rodeio a um retorno
compulsivo para o campo do prático significa correr o risco de apagar precisamente o que um
deficiente mental tão trabalhosamente consegue: aplicar seu modesto pensamento à intelecção
do real.
Não é necessário confundir trabalho com inteligência prática, assim como não é necessário
confundir inteligência representativa com aprendizagem acadêmica. Da mesma forma, não é
totalmente separável aquilo que Piaget denomina inteligência prática de um recurso dedutivo
de pensamento, a menos que estejamos nos referindo apenas ao período sensório-motor; e
parece evidente que, se estamos falando de integração ao trabalho, não podemos estar nos
referindo a jovens com uma inteligência somente sensório-motora.
Com que objetivo faríamos trabalhar gente que intelectualmente é bebê? Seria essa uma forma
de que se sentissem bem e queridos? Por quem? Pelo senhor que os faz trabalhar? Seria esse o
exercício de um direito?
O nível de circulação social de uma pessoa com inteligência só sensório-motora é tão restrito
que requer simplesmente proteção.
Portanto, os projetos de aproveitamento da inteligência prática na integração ao trabalho
somente podem ser dirigidos aos deficientes mentais que tenham pelo menos inteligência
intuitiva. Sem dúvida, aqui se impõe o concreto e o prático como o sistema cognitivo mais
estável para
118
referir qualquer atividade produtiva. Porém, o concreto e prático neste nível remetem a
categorias intuitivas que, embora viscosas e lentas nos deficientes mentais, organizam o real
mais além do útil e num plano de abstração-reflexão.
Seria válido propor o retorno aos modos de operar do sensório-motor? Sem dúvida, isto é
possível. B. Inhelder assinalou a extrema repercussão que, sobre o equilíbrio operatório,
podem ter os fatores afetivos e as pressões sociais no débil mental.15
No retardado, "uma vez atingido um nível superior, conserva-se uma marca, um resto do
sistema de raciocínio que acaba de superar" e "corre o risco, maior do que o normal, de
duvidar entre dois sistemas ainda coexistentes de pensamento"16.
Frente a essa dúvida, os pedagogos precisam se perguntar para onde empurrá-los. Se seu
pensamento intuitivo, se sua livre circulação representativa em nível mental está consolidada
e afirmada, a partir daí o sujeito poderá exercer o sensório-motor como uma habilidade.
Porém, se a compulsão para o prático ocupar tudo, ou se o pensamento intuitivo no sujeito
ainda for muito instável, sob a aparência de uma integração social poderia estar se induzindo
um embrutecimento.
Notas
1 - Baseado na conferência proferida na abertura das Jornadas Nacionais de Educação Especial, em Buenos
Aires, nov. 1985.
2 - GRAVES, Robert. "Yo, Cláudio". Madrid, Alianza, 1979.
3 - MANNONI, Octave. "La Otra Escena". Claves de lo imaginário. Buenos Aires, Amorrortu, 1969; pp. 138-50.
4 - Termo utilizado por C. Millot em Freud antipedagogo. Buenos Aires, Paidós, 1975.
5 - BRANTINGLER, E.; KEOUGH, D.; WHITE, R. Assist. "Teacher's Guide", Associate Instructional Support
for Teachers, impresso por Moore Langen Printing, Indiana, EUA, pp. 93 e segs.
6 - Ver C. Calligaris. "A Perversão e o Laço Social". In: Che Vuoi? - Porto Alegre, agosto/1986, n° 1.
7 - Baseado na conferência proferida nas Jornadas Nacionales de FENDIM, Mar del Plata, 1983.
8 - Reportagem acerca do Saber, em Entredichos - Revista - ano I, n° 4, 1983.
9 - WATSON. "Cuidado Psicológico del Infante y del Niño". Rappaport, L. La personalidad de cero a seis anos.
Buenos Aires, Paidós, 1977.
10 - Ver um artigo seu publicado na Revista de Asano, Buenos Aires, n° 1, 1981.
11 - SKEELS, H.M. - "Adults status of Children with contrasing-early life experience". Monographs of the
Society for Research; in Children Development. In: Rapapport, L. La Personalidade de Cero a seis Afios.
Buenos Aires, Paidós, 1977.
12 - LONGSTRETH, L.E. - "Psychological development of the child". New York, The Ronal Press Co., 1968.
13 - FREUD, Anna. - "Introducción a la técnica del psicoanalisis de niños". "El analisis de niños y su
educación", 1926.
14 - KLEIN, M. et alli. - "On bringing up of children". Londres, Routiedge and Kegan Paul, 1936.
15 - INHELDER, B. - "El diagnóstico del razonamiento en los debiles mentales". Barcelona, Nova Terra, 1971.
p. 330.
16 - Idem p. 330-1.
Fim das notas.
119
PSICOSE E DEFICIÊNCIA MENTAL
Notas
1 - HUIZINGA - "Homo Ludens".
2 - AJURIAGUERRA, J. - "Manual de psiquiatria infantil".
3 - Conferência pronunciada em Buenos Aires em 1981.
4 - Ver J. Lacan. "Seminário X", Barcelona, Seix Barrai, 1976. p. 242, acerca da holofrase na deficiência
mental.
5 - Temos a nítida impressão de que chegamos bastante mais longe do que pretendíamos. Talvez tenhamos sido
arrastados pelas lacunas teóricas com que tropeçamos.
6 - CARMICHEL, L. - "Psicologia da criança". EPU, 1975, vol. 10.
7 - Idem, p.263.
8 - Ibidem.
9 - MISÉS, R. - "El Niño Deficiente Mental". Buenos Aires, Amorrortu, 1977, p.62.
10 - FAURE, J. - "Del Retraso y Ia Alienación". In: Mannoni, M. Infância Alienada. Madrid, Sortes, 1967.
11 - Idem, p.47.
Fim das notas.
126
A ESCOLARIZAÇÃO DE CRIANÇAS PSICÓTICAS1
"De que se trata quando falo de Verwerfung?
Trata-se do rechaço, da expulsão, de um significante primordial para as trevas exteriores,
significante que a partir de então faltará nesse nível. Esse é o mecanismo fundamental que
suponho está na base da paranóia. Trata-se de um processo primordial de exclusão de um
interior primitivo, que não é o interior do corpo, mas o interior de um primeiro corpo de
significantes." (Lacan, 1981, p.217)
Por que deve haver escolas para crianças psicóticas? Evidentemente, embora de um modo
interrogativo, estamos fazendo uma afirmação: deve haver escolas para psicóticos. Isso quer
dizer que não consideramos suficiente que existam hospitais-dia, instituições de internação
parcial ou total ou mesmo consultórios para tratamentos ambulatoriais2.
É necessário que existam escolas. Por quê? Há pelo menos três razões. A primeira é a que se
refere às condições de aprendizagem ou às aprendizagens dos psicóticos. A segunda é a que
se refere ao fato de que na infância a psicose, numa proporção muito significativa, não está
ainda totalmente decidida, ou seja, numa proporção muito significativa, nas crianças
psicóticas, a psicose é indecidida. Aliás, é uma classificação que estamos propondo: psicoses
indecididas como uma forma típica das psicoses na infância. Diferentemente do que acontece
no sujeito adulto em quem não há psicoses indecididas, essa parece ser uma formação
psicopatológica própria da infância.
Dizíamos, então, que há uma primeira razão relativa às aprendizagens dos psicóticos. Uma
segunda razão, ou um segundo grupo de razões, a respeito da não decisão ainda da
psicotização definitiva. E uma terceira razão de ordem social, que não por ser social é de
menor importância para o sujeito psicótico individualmente considerado.
127
Sincronia e diacronia. O inato e o adquirido
Vejamos o primeiro grupo de razões. É sabido que a constituição do sujeito psíquico leva
tempo mas não sabemos quanto, não há modo de sabermos a priori, até porque o tempo
requerido é mais de ordem lógica que cronológica. Estamos nos referindo à sincronia da
estruturação, ou seja, ao fato de que a estruturação psíquica se produz pela incidência
sincrônica da maior extensão da cadeia significante, ou seja, do modo em que está organizado
o discurso para marcar a uma determinada criança na sua posição de sujeito; isso acontece de
um modo sincrônico. Poderíamos dizer que todos os pontos da cadeia significante, o modo
como ela está organizada em termos de discurso, tocam ao mesmo tempo a essa criança ainda
que a toquem somente em um ponto. Esse ponto - de enodamento ou de capiton - suporta todo
o peso de cada uma das intersecções virtualmente possíveis entre a cadeia significante e o
discurso, na medida em que em cada ato do dizer os pais e os que rodeiam a criança atualizam
passado e futuro, inscrevendo no presente a filiação e o ideal aos quais se espera que a criança
responda. Se bem que isso é assim, ou seja, sincrônico, é necessário o tempo diacrônico dos
efeitos significantes para que essa estrutura se consolide, se coloque à prova e adquira sua
versão singular. Este enunciado que acabamos de formular apresenta ainda muitos pontos
escuros porque certamente é uma formulação extremamente condensada de um problema
complexo como é a estruturação do sujeito. Mas, na tentativa de esclarecer alguns desses
pontos, vamos nos deter mais um pouco nesta questão da sincronia e da diacronia.
É um problema antigo na psicologia e na psicanálise este paradoxo, esta oposição, este
confronto entre a sincronia e a diacronia. Sabe-se que esta questão é quase tão antiga quanto a
psicologia contemporânea ou a psicologia moderna e, sem dúvida, tão antiga quanto a
psicanálise. Trata-se da problemática conjugação entre a evolução da criança e a inscrição da
posição do sujeito que nela fala. Por exemplo, a oposição entre uma psicologia evolutiva e
uma psicologia genética, tomando-a em sua versão mais apurada, que é a piagetiana.
Evidentemente, para J. Piaget, se há uma diacronia construtiva no desdobramento das
estruturas cognitivas, as condições para esse desdobramento estão sincronicamente inscritas
desde o começo da vida. Isso é que ele chama de invariantes, as invariantes organizacionais e
as invariantes funcionais, ou seja, as invariantes estruturais e as invariantes funcionais. Este
assunto vamos tomá-lo somente como
128
uma ilustração desta questão da oposição na psicologia entre a sincronia e a diacronia.
Piaget (1969) diz que o funcionamento mental está organizado de um modo analógico ao
funcionamento biológico, ou seja, é análogo, segue os mesmos princípios lógicos, pelo menos
no seu fundamento. Então ele diz que todos os organismos vivos têm de um lado algumas
invariantes. Invariantes quer dizer não exatamente constantes, mas formas de funcionar
sempre iguais. Não como uma constante que seria um multiplicador único, mas uma
invariante, uma forma de funcionar que não varia. Podem variar tanto seu valor quanto seu
resultado, mas a forma de funcionar, não.
Assim, por exemplo, ele diferencia dois grupos de igual hierarquia. Um que são as invariantes
estruturais e outro que são as invariantes funcionais. As invariantes organizacionais ou
estruturais consistem, como ponto de partida, no seguinte princípio que afeta a toda matéria
viva: toda matéria viva tem algum modo de organização de seus intercâmbios com o meio, ou
seja, não é que a organização do intercâmbio seja sempre a mesma, mas sempre há alguma
forma de organização.
Nos seres humanos há uma forma de organização também. Essa forma de organização se
caracteriza por três estruturas lógicas. A do grupo prático de deslocamentos, a dos oito
agrupamentos lógicos e as estruturas do grupo lógico das quatro transformações ou a rede de
transformações. São três estruturas lógicas analisadas pelos matemáticos, oriundas da teoria
do grupo matemático dos Bourbakis. Jean Piaget diz que o fato de que os Bourbakis
encontraram, que os matemáticos encontraram, nas suas pesquisas sobre lógica matemática, o
mesmo que ele encontrou nas suas pesquisas sobre o pensamento da criança não é por acaso.
Eles encontraram o que funciona assim. Essas relações lógicas que eles encontraram, que
estão expressas e formalizadas na matemática, eles as descobriram, não são um invento mas
uma descoberta, porque as coisas funcionam assim. Este é o critério de Piaget e, por sinal, o
critério dos estruturalistas3.
Hoje em dia, isso está em discussão a partir fundamentalmente dos teóricos do acontecimento,
ou seja, os que introduzem uma dúvida radical nesta determinação funcional interrogando-a
acerca de que papel tem o acaso, se a determinação é do lado do acaso e não do lado da
estrutura pré-formada4.
Piaget, no entanto, tem esse ponto de vista estritamente estrutura-lista de que há uma estrutura
pré-formada para ordenar, organizar o modo
129
de funcionamento mental a respeito dos intercâmbios com o meio5.
As invariantes funcionais, ele diz, são duas: assimilação e acomodação, princípio fundamental
da invariante funcional é de que todo organismo vivo cumpre funções adaptativas, ou seja,
tem que realizar algum trabalho para se adaptar ao meio. O trabalho que realiza tem duas
direções: uma, transformando o meio para adequá-lo à estrutura interna, e outra
transformando a estrutura interna para adequa-la ao meio. A criatura nasce com essa forma de
funcionar, ou seja, isso é sincrônico; embora os efeitos, as conseqüências desse
funcionamento se desdobrem numa diacronia, a forma de funcionar mesma não vai se
adquirindo aos poucos. Ele pensa que isso é sincrônico e tem razão, isso é sincrônico. Se for
assim, é sincrônico.
Agora, por outro lado, ele diz que a esta sincronia, a tudo isto que está dado ao mesmo tempo
desde o início e funciona ao mesmo tempo, ou seja, não sucessivamente, ele diz que, em
oposição a essa sincronia há processos diacrônicos, ou seja há uma sucessão de estruturas. Ele
diz o seguinte: a estrutura do grupo das quatro transformações, a saber, a idêntica, a recíproca,
a inversa e a complementar, esse grupo, esse sistema de transformações das coisas, a criança
não nasce podendo operar desse modo. Porém, no grupo prático de deslocamentos já está
contido - no nível de uma lógica prática - o grupo das quatro transformações - que se constitui
no nível de uma lógica do possível -, ou seja, há uma certa sincronia. Está contido no sentido
de que se o grupo prático de deslocamentos, que também curiosamente não opera por quatro,
mas por pares que dão oito transformações, ou seja, são quatro pares, se este grupo prático de
deslocamento funciona mal, vai funcionar mal (estamos simplificando um pouco) o grupo das
quatro transformações.
O grupo prático de deslocamentos é dos primeiros dois anos de vida; os agrupamentos lógicos
se constróem desde os três até os 11 e dos 11, 12, 13 em diante mais ou menos o grupo das
quatro transformações. Ou seja, também há uma diacronia, porém, se o último agrupamento já
está contido no primeiro, o fato de ele funcionar de modo autônomo a respeito do modo
prático do primeiro requer um desdobramento da experiência no tempo. Esta formalização
piagetiana do sincrônico, e do diacrônico é a forma mais acabada das inúmeras formas de
desdobramento que esta contradição entre o adquirido e o inato atravessou no campo da
Psicologia. O quanto de inato há já formado na criança e o quanto é adquirido constitui uma
oposição entre diacronia e sincronia.
130
Poderíamos, talvez, situar o início desta discussão em Charles R. Darwin, ou seja, com as
observações de Darwin sobre as diferenças individuais 6. É sabido que Darwin, além de ser o
autor da teoria da evolução, era um pensador filosófico-científico que pretendia estender esta
teoria, como todo grande descobridor, a outros fenômenos da cultura e da natureza humana 7.
É por isso que ele fez algumas observações sobre as diferenças individuais nos seus filhos e as
confrontou com a teoria da evolução. Há textos de Darwin de certo interesse histórico sobre
esta questão.
Esta controvérsia, esta oposição entre a sincronia e a diacronia é quase tão antiga quanto a
psicologia e certamente tão antiga quanto a psicanálise. Controvérsia inevitável porque, na
verdade, esta contraposição entre sincronia e diacronia é própria dos fenômenos humanos por
essa capacidade que temos os humanos de anteciparmo-nos no tempo, anteci-parmo-nos aos
acontecimentos no nível reflexivo ou conservar como presentes episódios do passado. Então
essa oposição entre diacronia, entre historicidade e sincronicidade é própria do funcionamento
humano. Esta contradição ou este modo paradoxal que temos de funcionar no presente, mas
no passado, no passado mas no futuro, no futuro mas no presente. Este modo paradoxal que
temos de funcionar, inevitável para nós, tem adotado formas de controvérsia. Essa é a razão
de terem aparecido, na história da psicologia e da psicanálise, escolas evolutivistas, ou teorias
evolutivas, que adotam o ponto de vista de que tudo é uma aquisição progressiva diacrônica e
outros pontos de vista que adotam a perspectiva de que tudo é sincrônico.
Sincronia e diacronia no discurso. A herança como metáfora
Porém, sincrônico não é sempre, nem na psicologia nem na psicanálise, sinônimo de inato.
Por exemplo Lacan e Freud, de duas maneiras diferentes, elaboraram respectivas teorias de
sincronicidade da inscrição do sujeito ou da produção da estrutura fundamental do sujeito de
um ponto de vista não inatista. Ao mesmo tempo, com seus estudos sobre a estrutura e o
funcionamento da pulsão, sobre a temporalidade do inconsciente, e sobre a lógica do
significante, conseguiram esclarecer pontos cruciais desse impasse entre o diacrônico e o
sincrônico, ou suas formas reducionistas de inato e adquirido. Sobretudo quando colocam os
termos da herança no seu duplo sentido biológico e metafórico8.
131
Por este caminho, chegamos mais longe do que tínhamos nos proposto inicialmente, mas
provavelmente deste modo fique melhor ilustrada a problemática da sincronia e da diacronia.
Falar, esse ato tão simples de falar, também padece do mesmo paradoxo da articulação entre
diacronia e sincronia. A diacronia é fácil percebê-la porque não temos outra possibilidade do
que pronunciar uma palavra depois da outra, portanto falar é inevitavelmente um fenômeno
diacrônico. Mas nós bem sabemos que nada na cadeia significante que vamos pronunciando
está desvinculado do que anteriormente dissemos ou do que depois iremos dizer. Tanto que é
isso que nos permite guardar a correspondência de gênero, número, as correspondências
sintáticas, sem falar das correspondências paradigmáticas, ou seja, de sentido arbitrário. No
que vamos dizendo, cada palavra, embora pronunciada diacronicamente em relação às outras,
do ponto de vista lógico está intrinsecamente relacionada sincronicamente com seus
antecedentes e seus conseqüentes. Quer dizer que no momento em que pronunciamos uma
palavra está presente nela o que já dissemos antes e o que vamos dizer depois. Se assim não
fosse, como faríamos para conservar correspondência de gênero e número, as
correspondências sintáticas em geral e, sobretudo, a correspondência recíproca entre
significantes relativos ao sentido do que pretendemos dizer?
Todos os fenômenos humanos padecem desse paradoxo. É por isso que, a cada coisa que
formos dizer, fica inconscientemente formulada a dúvida de se deveríamos ou não dizê-la,
pelas conseqüências que poderia provocar o ato de dizer ou não dizer tal coisa, em função do
sentido que advirá. Assim, por exemplo, há frases nas quais a supressão do último termo
modifica tão evidentemente o significado de todo o anterior que se precipita ali um sentido
ora cômico ora trágico, sentido do qual o sujeito dificilmente consegue se furtar. Por exemplo,
suprimindo a cada vez a última palavra temos:
jamais a vi com outro vestido senão o da pele arrancada daquele animal.
jamais a vi com outro vestido senão o da pele arrancada daquele.
jamais a vi com outro vestido senão o da pele arrancada.
jamais a vi com outro vestido senão o da pele.
jamais a vi com outro vestido senão...
jamais a vi com outro vestido.
jamais a vi com outro.
jamais a vi.
jamais.
132
Esse exercício pode ser feito com qualquer texto. O que demonstra que estamos
incessantemente confrontados com uma articulação nada pacífica entre a sincronia e a
diacronia de nossa própria estrutura enquanto sujeitos.
É fácil então supor, e quem assim o faz tem toda a razão, que quando não há articulação entre
o sincrônico e o diacrônico as coisas andam mal, algo não funciona, e as conseqüências
costumam ser sérias.
Quando uma criança recebe algo da ordem de uma inscrição, as conseqüências do modo como
isso se produz vão se estender por todo o seu futuro, conseqüências que podem ser mais
espetaculares, mais graves, mais visíveis ou mais sutis, mas que vão se estender por toda a sua
vida. O que não quer dizer que o tipo de marca que nós estamos chamando de inscrição
consista numa predestinação. Não há predestinação no ser humano, não estamos
predestinados a nada - ou, para sermos mais precisos, estamos predestinados ao nada -
justamente este é o nosso problema. Se estivéssemos predestinados a algo, se realmente
acreditássemos nas teorias de predestinação - das quais já se elaboraram muitas e que tiveram
muitos adeptos, pela simples razão de que é uma grande necessidade humana que alguém nos
resolva o destino - nossas preocupações ficariam reduzidas ao mínimo. Por sorte ou desgraça,
todos os que acreditaram e aderiram a essas teorias de predestinação não acreditaram o
suficiente para por-se a dormir, quer dizer, se estou predestinado, não faço nada, as coisas vão
acontecer de todo modo. Ninguém acreditou o suficiente nessa teoria da predestinação, nem
sequer os gregos, para adotar essa postura de passividade absoluta. Na verdade, devemos
dizer que alguns andaram muito próximo, as formas extremas e mais iniciais do budismo
andaram muito perto. De fato algumas formas das religiões brahamânicas hinduístas mais
antigas andaram perto. Geralmente, no nascimento das religiões, as teorias de predestinação
têm mais força, justamente porque um novo deus sempre oferece a esperança de que, de uma
vez por todas, tenha aparecido aquele que resolve nosso destino. Mas com o decorrer da
história essa função dos deuses vai-se debilitando9.
Este conjunto de considerações iniciais acerca do sincrônico e do diacrônico, do inato e do
adquirido, constituem o debate geral no qual se situa a questão das inscrições primordiais.
Aquelas que vão inaugurar a possibilidade da constituição de um sujeito no filhote humano.
Entre a teologia e a biologia, a psicanálise destaca o valor discursivo dessas inscrições. É
necessário compreendermos esses vetores extremos das manifestações
133
da cultura para tentar desfazer as concepções ora mítico-científicas ora mítico-religiosas das
psicoses, e assim termos alguma chance de situar o sujeito face à articulação simbólico-real
que o determina nessa posição impossível.
A inscrição dos significantes primordiais
Então a que denominamos inscrição? Conceito fundamental para quem tenta entender alguma
coisa a respeito das psicoses e do autismo infantil. Comecemos por assinalar que estamos nos
referindo àqueles significantes primordiais constituintes de um primeiro corpo, como assinala
J. Lacan na citação de nossa epígrafe.
Uma inscrição ocorre quando uma mãe diz não. Ao ponto de que se uma mãe não diz não, não
há inscrição. Estamos formulando a questão deste modo tão simples para que não nos escape
a idéia fundamental. É claro, nessa frase, mamãe não é a mamãe de carne e osso mas aquele
agente que se encarrega de colocar em ato isso que se chama discurso materno. É claro,
também, que o bebê não compreende em absoluto a extensão desse não, mas padece de um
modo sideral das conseqüências dessa negativa. A que denominamos, então, discurso
materno? O discurso materno é aquele que opera a palavra de um modo tal que a torna capaz
de recortar o corpo da criança em pedacinhos, que lhe tira e "entressaca" pedaços. É claro, há
maneiras mais cruéis e mais contemplativas de fazer isso, há maneiras simbólicas de fazer
isso ou maneiras reais.
Não estranhem quando falamos de "maneiras reais" porque há, por exemplo, um caso extremo
relatado por Jean Bergès que ilustra esse modo real de produzir essa extração de pedaços, esse
recorte. Esse caso ocorreu quando uma mãe psicótica fez um buraco com uma faca no crânio
de seu bebê. Curiosamente, esse buraco para ela teve um efeito "normalizante" porque ela
cumpriu a sua função. A criança morreu, obviamente, mas ela experimentou culpa. Ou seja,
ela entrou no campo da castração. Solicitou castigo por seu ato e foi castigada. Cumpriu a
prisão e saiu de lá funcionando de um modo relativamente "normal". Evidentemente tão
psicótica quanto antes, mas estabeleceu através deste ato sua simbolização da culpa e do
castigo com uma metáfora que lhe serviu de referência possivelmente Pelo resto da vida.
Continuou trabalhando, circulando socialmente, sob vigilância, já que foi parar, obviamente,
em um hospital psiquiátrico regido pelo sistema penal, um instituto psiquiátrico forense, e
seguramente
134
suas saídas periódicas foram autorizadas quando se comprovou que não havia risco de
periculosidade. Mas sempre foi uma vida, digamos, vigiada10.
Mencionamos este exemplo para que fique em evidência como o discurso materno pode
atravessar vicissitudes e operações das mais estranhas. Quem trabalha com crianças com
problemas graves sabe que o discurso materno pode atravessar momentos de crueldade
impensáveis até nas maiores neuróticas.
Temos até aqui, então, que o discurso materno é aquele que se exerce sob a forma de recortar
o corpo da criança, recorte que se opera dizendo não a esses pequenos objetos cuja extração,
cuja separação, será capaz de um modo imediato e direto de provocar um esvaziamento ou
uma falta. Discurso materno que é geralmente muito mais exeqüível para a mulher, porque se
os homens são especialistas em prometer o que não têm (o falo), as mulheres são especialistas
em não dar o que têm (que obviamente não é o falo, mas o real de seu corpo, que, no ato de
negá-lo, se torna fálico). Por essa razão, as mulheres instaladas do lado da feminilidade
exercem com muito maior comodidade isso que se chama o discurso materno, por isso os
homens estão sempre mais inclinados a prometer e, por isso, exercem este discurso de um
modo muito mais trabalhoso quando se vêem obrigados pelas circunstâncias a exercê-lo. O
discurso materno, precisamente, é aquele que diz não ao cocô, "cocô não", ou seja a instalação
do controle esfincteriano, "xixi não", "peito não", "olhar não". É por isso que esses pequenos
objetos - as fezes, os excrementos, o olhar, a voz - se recortam e se destacam. Escutar não, já
que tem coisas que a criança não deve ouvir; olhar não, pois o olhar está interditado, sendo o
melhor exemplo disso o fato de todos estarmos vestidos.
Somente quando alguém toma a seu cargo dizer "não" estes pequenos objetos adquirem a sua
relevância. É por isso, precisamente, que as fezes, a voz, o olhar, o peito têm tanta relevância
para nós, os humanos. Tanta relevância que quando alguma coisa falha do ponto de vista do
funcionamento mental, com bastante precipitação, com muita freqüência e muito rapidamente
essa falha começa a se exprimir nas dificuldades de manejar esses objetos: se perde o controle
esfincteriano. Se urina onde não se deve e se fala ou se escuta o que não está aí, se escutam
vozes, se vê alucinatoriamente o que não está aí ou se espreita compulsoriamente o que não se
permite ver.
135
Os pequenos objetos dos sintomas psicóticos
Estes pequenos objetos, Lacan os chama de objetos pequenos "a", recortes que representam o
modo que os humanos têm de registrar a falta do objeto. Já que não temos outro, temos esse,
precisamos de uma mamãe que nos diga "cocô não", "peito não", "olhar não". Então, quando
temos uma mãe que nos diz isso, começamos a registrar que algo nos faz falta. E por isso,
quando fica restringida a possibilidade de simbolizar essa falta um pouco mais longe que o
cocô em si mesmo, que a voz em si mesma, que o peito em si mesmo ou que o olho do outro
em si mesmo", quando temos dificuldades de simbolizar isso a uma certa distância do objeto
real, então nos precipitamos na dificuldade de manejar esses objetos no campo do discurso ou
gozamos simplesmente manejando esses objetos tal como eles são. Eis aqui o ABC da
psicopatologia. E se não se procede ao deciframento desse núcleo fundamental da inscrição, a
psicose e o autismo vão permanecer no terreno mítico em que as operações de tentativa de
cura nada têm a ver com a restituição de um sujeito. E tampouco vai-se entender por que uma
criança psicótica brinca com as suas fezes e faz quadrinhos no banheiro, por que um pequeno
bebê faz bolhas de saliva, ou a importância de um autista brincar com a sua baba, ou ainda por
que os garotos se esforçam em descrever pequenas acrobacias com o jato de urina.
Vejamos a esse respeito uma situação clínica: trata-se de um paciente que começou sua
terapia aos quatro anos de idade, e aos seis anos atravessou uma fase que me obrigava a
passar a mangueira no pátio da clínica cada vez que terminava a sessão porque ele encerava o
pátio da clínica com seu cocô. Por sinal, a atendente se negava absolutamente a lavar essa
sujeira, na medida em que ela não compreendia em absoluto por que eu suportava isso.
Mulher enérgica e decidida, interpretava minha tolerância como um signo de debilidade. Mais
ainda, ofereceu-se repetidas vezes para "acabar com essa porqueira em dois toques". Indagada
acerca desses "dois toques", ela os especificava: primeiro chamar a mãe para himpar, segundo
fazê-lo limpar junto com a mãe. Mal suspeitava a prestativa atendente que meu paciente podia
suportar a "perda" de seu objeto (o cocô) na medida em que esse amplo espaço de
acolhimento que a clínica representava ficasse recoberto por ele. Uma equação simples - ainda
que Malcheirosa: ficar envolvido pelo pedaço de seu corpo que se desprendia ele, já que
nenhum outro se constituíra ainda como representante desses
136
objetos, nem como seu depositário simbólico. A atendente confiava na sua eficácia
pedagógica. Nós sabíamos que o menino, todo ele, representava uma sujeira para seus pais.
Essa sujeira operava como seu nome: um ato simbólico que, se fosse tomado como real,
eliminaria uma das poucas chances que tínhamos de situar a palavra na dimensão real da
pulsão: no seu valor de inscrição no corpo. Por isso, continuamos por alguns meses limpando
o pátio com a mangueira no fim das sessões. Evidentemente, ela não sabia - nem era exigível
que soubesse - o que é uma inscrição. E muito menos que ela requer três tempos e não "dois
toques": primeiro tempo, tomar os atos como simbólicos; segundo tempo, instalar a palavra
no real do corpo; terceiro tempo, referir essa palavra no seu valor significante (como
representante não representativo desse recorte no corpo, dessa falta) ao discurso.
A atendente pressupunha já cumprida a operação habitualmente a cargo do Outro Primordial
(neste caso a mãe). E, a partir desse suposto, deduzia que a operação seguinte deveria ser
pedagógica, o que no caso de ser verdadeira sua pressuposição seria totalmente correto.
Ocorre que é assim que chegam as crianças normalmente neuróticas à escola: assujeitadas a
uma inscrição simbolicamente eficaz. Mas não é assim que chegam as crianças psicóticas ou
autistas à escola ou a uma clínica. Essa primeira tarefa está ainda a ser cumprida. Com a
desvantagem de que a criança já padeceu "destempos" nos tempos da tentativa de uma
inscrição.
Justamente todo mundo sabe que a oportunidade da mamãe dizer não a essas pequenas coisas
não é indiferente, ela não pode dizer isso em qualquer momento. Não pode introduzir esse
"não" em qualquer circunstância ou em qualquer momento porque depende de que série e em
que circunstância esse "não" é introduzido o efeito que isto irá causar. Por isso as mães são
extremamente cuidadosas no modo e no momento de introduzir esse não. E de forma alguma
porque saibam de teoria psicanalítica, mas porque há um saber inconsciente que as orienta.
O dialeto íntimo e o nome-do-pai
Nós, os terapeutas, não operamos de modo igual ao das mães, mas temos que nos inspirar no
discurso materno pelo menos quando registramos que as inscrições primordiais faltam ou não
estão constituídas ou estão falhas. Se não se constitui essa inscrição primordial, esta série de
inscrições primordiais não virá a constituir na criança um lugar para falar.
137
Essa série de recortes tem um registro tão delicado na instância da letra que cada família tem
seu sistema de nomes, um dialeto íntimo. E até no discurso social, como bem se sabe, existe
uma terminologia reservada para essas operações de diferenciação pulsional: o pinto, a
perereca, o bumbum, o popô e todas essas simpáticas palavrinhas, esses nomes que são
extremamente relevantes e que são o melhor exemplo do que é o Nome-do-Pai. Vejam só a
que fica reduzido o nome-do-Pai: bumbum, cocô, popô, pipi, perereca, pinto, xexeca etc. Não
é por acaso que Melanie Klein, que costumava ter uma única entrevista inicial com os pais da
criança que analisava e depois nunca mais voltava a vê-los, nessa entrevista inicial perguntava
à mãe quais eram os nomes que familiarmente se davam a essas partes do corpo ou aos
excrementos, a todos esses pequenos objetos. Isso quer dizer que ela, sem ter uma teoria sobre
o Nome-do-Pai nem sobre o discurso materno, (porque ela certamente tinha uma teoria sobre
a relação de objeto mas não sobre o discurso materno nem sobre o Nome-do-Pai), ela,
intuitivamente, por sua sensibilidade clínica, apesar da dificuldade de leitura teórica,
registrava que esses pequenos significantes eram extremamente importantes porque eles eram
representantes dessas inscrições primordiais.
Dito de outro modo, não há nome próprio sem popô, sem xixi, sem perereca ou sem pinto. E
não porque se tenha um ou uma mas porque designa o que se tem em oposição ao que não se
tem. Marca a diferença. Se não fosse por esses pequenos marcadores no corpo, o patronímico
não quereria dizer nada. Embora o nome que se coloca se coloque arbitrariamente, o próprio
nome não é a primeira palavra que uma criança pronuncia. Geralmente é outra palavra:
mamãe, dada, o nome de um irmão ou, às vezes, de seu terapeuta e, muito rapidamente, o
nome desses pequenos objetos porque eles estão associados de modo muito próximo a esses
significantes primordiais do Nome-do-Pai, formam parte dessa constelação denominada
Nome-do-pai, e se chamam assim porque esses significantes suportam a parte mais pesada da
função paterna, ou seja, o trabalho de separar pedaços do corpo para lançar o sujeito a sua
simbolização. Separa o cocô do bumbum para lançar o sujeito para simbolizar o cocô.
As equações freudianas e a substituição de objeto.
É essa uma das grandes descobertas freudianas que se exprimem nas suas famosas equações:
fezes = falo, fezes = presente, fezes dinheiro,
138
ou a outra série substitutiva, pênis = falo = filho, em que o último significante tem uma
potencialidade substitutiva muito mais larga do que o primeiro. Opera-se uma amplificação
semântica ao mesmo tempo em que se produz um certo apagamento do aspecto
representacional do objeto substituído, ou seja, vai-se abrindo a possibilidade simbólica. A
extensão dos efeitos de significância desse objeto evidentemente muda do cocô ao dinheiro.
Assim também acontece do pênis ao falo, e da falta de pênis ou da perereca ao filho.
"Perereca" parece ser uma boa escolha como significante porque no fim das contas ela passa o
tempo todo pulando de uma posição a outra, representando nisso a posição pulsional
feminina: fazer mil acrobacias para disfarçar a castração que ela supõe real. Ou, na frase de J.
Lacan (1984), "fazer tudo e mais um pouco com nada".
Essas equações não operam se não se articula essa inscrição primordial na direção desse
lançamento simbólico. Dito de outro modo, para que o objeto não fique sendo ele mesmo e
somente ele mesmo, é necessário transformar cocô em dádiva. E isso as mães sabem fazer
muito bem... Por isso é que não vacilam, e embora saibam que seu bebê é incapaz de
compreender, o supõem falante. Se ele diz: "Aaaaaah!", a mãe diz: "Está me chamando!".
Onde ela escutou que a estava chamando? Se a mãe diz que ele emitiu um som em Mi Bemol,
estamos diante de um grave problema, porque é necessário que ela tome essa voz como do
âmbito da palavra, ou seja, colocar o seu filho naposição de escuta. Na verdade, ele não sabe
escutar mas apenas ouvir, e escutar seu filho quando na verdade ele não produz realmente
nada que possa ser escutado, apenas ouvido. Essa sutil mas decisiva diferença de função entre
perceber a voz, ouvir, e diferenciar a palavra, escutar.
Diferenças de estrutura entre psicose e autismo
Se a criança não for situada deste modo em relação aos objetos, não haverá diversidade de
objetos, quer dizer, seu interesse ou sua relação ficará toda capturada nesses pequenos
representantes do real do objeto. O que a deixará girando ao redor do cocô, do xixi, de seus
membros, de sua pele, de seu toque, de seu olhar, do impacto da luz em seus olhos ou em sons
reiterativos ou seu labirinto que o informa de seus movimentos etc. É evidente que estamos-
falando do autismo,, esta posição em que não há um sujeito porque não foi produzida essa
separação destes fragmentos do corpo. Porque é assim que a criança vivencia esses cortes;
quando lhe
139
tiram o peito da boca é como se lhe arrancassem a boca, e quando faz cocô é como se
separasse um pedaço de seu corpo. É por isso que as crianças em geral não aceitam
pacificamente o desmame, a hora de fechar os olhos (leia-se: separar-se do olhar do Outro)
para dormir, ou tomam os devidos cuidados para começar seus experimentos esfinkterianos,
pedem penico, ou seja, tentam não perder esses objetos.
As crianças autistas ficam tomadas no corte do objeto e é por isso que se apegam de um modo
absoluto e persistente a quase qualquer coisa que as impacte do ponto de vista físico e que
chame sua atenção, ou seja, que gere uma descontinuidade física na superfície indiferenciada
de seu corpo. É por isso que são capazes de passar um ano inteiro esfregando o dedo sobre
uma pequena ruga de uma folha de papel, sobre a aspereza de uma superfície ou se
balançando na frente de uma luz provocando, assim, uma variação luminosa. Não podem
chegar mais longe do que isso porque não há inscrição desses objetos, eles não têm nome, não
foram separados de seu corpo e, por isso mesmo, não há corpo, pelo menos não há no mesmo
sentido que nós o concebemos. O objeto não é símbolizável, e por isso não há substituição.
É claro que os psicóticos recebem uma certa marca, uma certa inscrição, mas o problema é
que esta inscrição não pode chegar muito longe pois a receberam de um modo tal, esta marca
foi feita com tal material significante que o elástico simbólico não pode se esticar ou se estica
muito pouco. A série que se pode estender a partir do cocô não chega nunca no dinheiro -
tomando a equação freudiana - ou o elástico simbólico que eu posso estender a partir da sua
amarração na castração não chega nunca no filho de um homem, ou seja, a equação pênis-
falo-filho não se constitui. Às vezes, o pênis mal chega no falo, ou o cocô mal chega no
presente. As equações que Freud elaborou assinalam pontos de estação relevantes numa
caminhada significante que é muito mais extensa do que esse trecho de três termos por ele
assinalados. Na verdade, a série significante que vai desse pequeno objeto a ser recortado e
inscrito até o termo mais algébrico que represente esse objeto, essa série é infinita. O que
Freud sublinha é que vale a pena marcar algumas estações delicadas dela, ou seja, momentos
traumáticos da elaboração dessa passagem.
Levando em conta que os psicóticos recebem esta inscrição de tal maneira que o elástico não
se estica muito, se o leitor teve a paciência de nos acompanhar até aqui, seguramente estará se
perguntando, a essas alturas dos desdobramentos de nosso texto, o que tem a ver o sincrônico
e
140
o diacrônico com tudo isso. A razão fundamental de que chamássemos a atenção para o
sincrônico e o diacrônico reside em que no modo como venham se produzir essas inscrições
primordiais já estará contido, até um certo ponto, o nível de possibilidade ou impossibilidade
da extensão semântica, o nível do esticamento simbólico possível. Agora bem, esse modo, ou
seja, as condições introduzidas para que a inscrição possa operar como tal, depende de que os
pais desta criança reconheçam como legítimo o fato de ela estar marcada desse modo. Ou
seja, que o fato de a criança ter incorporado essa inscrição tem que funcionar de um modo tal
que ela se torne legítima agente do exercício das conseqüências dessa inscrição. Essas
condições são de uma natureza, extensão e complexidade tais que podem colocar a criança
numa dificuldade radical de poder fazer exercício de suas conseqüências, apesar de ter
recebido tal inscrição. Dito de modo mais simples, não basta ensinar a manejar os talheres
para que a criança se sinta em condições de comer sozinha. O que vai determinar se a criança
vai se sentir ou não em condições de comer sozinha é o quanto de reconhecimento ou o
quanto de narcisismo ela pode recuperar nesse ato, no reconhecimento de seus pais, o quanto
se reconhece como legítimo agente do exercício da técnica dos talheres. É assim que há
muitas crianças que dominam perfeitamente a técnica de manejo dos talheres mas não comem
sozinhas. E para falarmos do que ilustra isto de um modo escancarado, temos os pacientes
adolescentes com quadros psicóticos anoréxicos em que não há dúvida de que o exercício
técnico do garfo e da faca não falta, mas a mãe tem que dar-lhe de comer na boca porque
senão o paciente não come, e às vezes nem com a intervenção da mãe.
Com isso, pode-se ver que a questão da inscrição é bastante mais complexa do que essa
formulação que propusemos no início de nosso texto, quando, a modo de introdução,
marcamos o ponto de partida da inscrição quando uma mãe diz não. A operação é bastante
mais complexa e tem, evidentemente, conseqüências mais duradouras e mais complicadas do
que simplesmente oportunizar sua contrapartida mais freqüentemente manifesta sob a forma
aparente de uma simples rebeldia.
A estas alturas já é possível perceber que nessa diacronia de colocar uma palavra atrás da
outra, de colocar o significante presente depois do significante cocô, e o significante dinheiro
depois do significante falo e assim sucessivamente, que nessa diacronia do progressivo
distanciamento dessa versão original e primordial do objeto há, porém, uma sincronia que faz
seu efeito. Esta sincronia que se adverte quando registramos
141
que já nos primeiros movimentos dessa inscrição se aninham as condições ou pré-condições
da extensão semântica, do nível de esticamento simbólico que, a partir desse pequeno objeto
recortado de uma tal maneira, poderá vir a se produzir. Não é que nessa inscrição primordial
já esteja contido que o filho será engenheiro químico, isso seria da ordem da predestinação,
nem sequer se ele vai ter condições ou não de chegar a ser engenheiro, se ele vai ser aprovado
na escola secundária, nem tampouco se ele vai aprender a ler.
Nessa inscrição primordial nada de sua aprendizagem está predeterminada. A única coisa que
está estabelecida é algo assim como o vasilhame, pior ainda, uma forma, uma sombra ainda
por cima recalcada. Uma sombra de uma forma do vasilhame onde ele vai encaixando os
objetos que a experiência da vida vai lhe oferecer. Os pais e os mestres, sabendo disso, vão
oferecendo às crianças experiências de vida, porque sabem muito bem que com as inscrições
primordiais, uma vez chegando as condições de simbolização, a aprendizagem não está
garantida. Assim é que os professores se preocupam também em elaborar uma boa didática,
ou seja, uma boa técnica de apresentação dos objetos que permita perceber as suas diferenças,
seus valores, suas qualidades, suas relações, suas analogias, suas características etc. É claro
que em cada objeto que a criança for indagar e investigar vai estar presente essa modalização
que aquela inscrição primária estruturou. Ou seja, que se para uma criança foram colocadas,
nessa inscrição primária, pré-condições e exigências demasiadamente complexas para
reconhecer sua legitimidade, ou seja, se lhe colocaram obstáculos, em cada confronto com um
novo objeto esses obstáculos serão reeditados. Não há outra possibilidade.
Particularidades das aprendizagens nas psicoses
É por isso que os psicóticos têm dificuldade para aprender, e não Porque não são inteligentes.
É sabido que alguns psicóticos são mais inteligentes que muitos neuróticos normais, o que
rapidamente vem demonstrar que a inteligência não é equivalente à simbolização, por mais
que a Piaget pareça que sim12. Não é porque certamente há delírios paranóicos que são de um
nível de abstração maravilhoso, abstração reflexionante da melhor. Há delírios paranóicos que
são do melhor nível de abstração reflexionante mas eles fracassam na simbolização porque
precipitam no real. As alucinações também podem ser governadas por uma
142
lógica reflexionante, é assim que os dispositivos mecânicos e os aparelhos imaginados por
esquizofrênicos reproduzem de um modo surpreendente relações lógicas do aparelho mental
como se fossem uma colocação em máquina do modo como pensamos. Por sinal, em última
instância, essas máquinas não servem para nada, ou seja, são totalmente equivalentes ao real
de nosso pensamento que tampouco serve para coisa alguma. Assim devemos considerar as
coisas se levarmos em conta que o pensamento, é o exercício que fazemos entre o nascimento
e a morte na esperança de que sirva para produzir uma separação infinita entre uma ponta e a
outra. Isso sempre fracassa; assim, daqui a cem anos, quem vai saber o que nós pensamos?
Em última instância, para cada um, sem tomarmos a entidade coletiva do sujeito, para cada
um, o pensamento é exatamente igual a essas máquinas esquizofrênicas, não serve em última
instância para nada.
Isso demonstra a estranha virtude que têm os psicóticos de nos revelar as coisas como elas
são. Enquanto nós, neuróticos, somos mestres em disfarçá-las. É por isso que o psicótico pode
andar nu pela rua, e o neurótico, a não ser que seja uma candidata a atriz no festival de
Cannes, não. Além disso, só o faz se sua "roupagem" for das boas, ou seja, se tem o que
oferecer ao olhar do outro. Então, se na relação com cada objeto vai se reeditar
inevitavelmente a modalização da relação de objeto que se inscreveu de modo primordial, isso
quer dizer que nessa diacronia da apresentação sucessiva dos objetos e dos significantes há
algo de sincrônico porque a mesma estrutura vai se repetir. É o que Freud diz quando analisa
a curiosidade sexual da criança pela cena primária, essa curiosidade que se instala tão
precocemente e que faz com que uma criança de dois anos todas as noites levante de sua cama
e vá até a cama de papai e mamãe querendo entrar no meio, não porque queira separá-los mas
porque quer averiguar o que há no meio, o que acontece ali; essa curiosidade que faz com que
a criança coloque o dedo em todos os buracos e queira espreitar por todas as fechaduras ou
por todas as frestas. Essa espreita é irresistível para elas porque do outro lado, seguramente,
deve estar o segredo do que a mãe lhe diz para não olhar. Então ela vai olhar para ver se vê, e
se não for nessa fresta será na próxima e assim sucessivamente, e também, se não puder ver,
talvez consiga tocar alguma pista relativa ao segredo, que, em última instância - nós o
sabemos - é a cena primária.
Freud (1973) diz que é essa curiosidade que vai inspirar toda inquietação cognoscente, ou
seja, toda curiosidade de conhecer. Seria ali, então, que se organiza qualquer coisa que
pudesse ser chamada de "pulsão
143
epistemofílica". Talvez como uma forma na qual a pulsão generaliza a falta de seu objeto.
Portanto, se há uma falha na inscrição primordial e se ela se realiza sob a forma de forcluir, ou
seja obturar, qualquer curiosidade sobre as transformações simbólicas desse objeto, se não
houver transformações simbólicas, a criança não tem o que perguntar, não tem para onde
dirigir sua interrogação porque o objeto já está aí, cocô é cocô e acabou a história. Não há
espaço para indagar que posição esse objeto tem na cadeia simbólica do Outro. É por isso que
não há conhecimento propriamente dito se o enunciado que o sustenta não tem uma posição
simbólica. É um conhecimento que poderá estar ordenado do ponto de vista da lógica pura
mas oferece a cada passo o equívoco de o outro supor um simbólico, quando, em verdade,
está se referindo a um real. É por isso que um tal conhecimento, assim limitada a extensão
semântica de seu enunciado, não sustenta nenhuma possibilidade de produzir um exercício de
pesquisa. Qualquer indagação sobre as relações do significante com o real é desnecessária
porque o real já está ali. Pelo contrário, se trata de defender o sistema de pensamento das
invasões devastadoras do real. Por isso há psicóticos que não cessam de produzir autônimos,
como também há os que instrumentalizam sua capacidade de raciocínio lógico ao serviço de
construir um sistema fechado de pensamento, que gira ao redor de alguma metáfora, não
paterna, mas de uma certa extensão simbólica. Trata-se, em todos os casos, de estabelecer um
certo status quo com o real. Esse tipo de solução funciona como uma lagartixa devorando seu
próprio rabo. Portanto teríamos que nos perguntar se isso mereceria o nome de conhecimento,
embora, certamente, seja um efeito dessa função imaginária do Eu que chamamos "cognitiva".
Perceba-se que não estamos dizendo que não há conhecimento no psicótico, mas indagando
das dificuldades e especificidades de sua constituição. Por sinal, também estamos assinalando
seus limites.
É aí que surge uma primeira razão para que existam escolas para psicóticos, porque não é o
mesmo que ensinar uma criança que estruturalmente já tem constituída a sua curiosidade. É
claro que aqui surge a pergunta: é possível ensinar alguém que não tenha constituída essa
curiosidade primordial? Prima facie, não. Então, uma segunda pergunta: é possível constituir
formas de promover curiosidades parciais, fragmentárias, que permitam a essa criança assim
constituída como sujeito, falida na sua constituição simbólica, que ela possa aprender algumas
coisas se bem que esses conhecimentos não possam ser generalizados e tenham um uso de
144
uma extensão mais curta? Sim, isso sim. Mas é evidente que um professor que não esteja em
condições especializadas de trabalhar de um modo um pouco diferente, no sentido de que leve
em conta que essa criança não está nessa posição de curiosidade como todas as outras, vai
fracassar.
Então, temos que é difícil para uma criança psicótica aprender em uma escola comum. O que
imediatamente traz à tona a questão de se a criança psicótica deve ser segregada da
comunidade escolar e ir a uma escola onde se reúnam somente todos os psicóticos. A resposta
é: às vezes sim, às vezes não. Depende de que grau de extensão tenham as metáforas não
paternas que cada criança psicótica em particular poderia vir a constituir, para encontrar
pontos de referência que mobilizem seu desejo de aprender, sua curiosidade. O que quer dizer
metáfora não paterna? Quer dizer descobrir uma série significante com suficiente peso de
significância na vida do sujeito psicótico para servir de referência para um conjunto mais ou
menos extenso de significações possíveis, de tal modo que, atuando como substituição parcial
de Nome-do-Pai forcluído, permita ao sujeito em questão um certo nível de circulação social
e, também, de resolução de sua angústia siderativa.
Agora, evidentemente, a substituição não vai funcionar de modo tão extenso, flexível, estável
ou persistente como aquelas originárias. Fabrica-se uma referência que lhe serve para
interpretar uma série de situações e circunstâncias, mas que além desse círculo de situações e
circunstâncias não lhe diz nada. Então temos que fabricar outras e outras e outras.... ou seja,
uma construção delirante, outra construção delirante e outra... Das quais ficamos situados
como garantias, como fiadores, na transferência.
A justificativa ética de apelarmos a esse recurso, a essa montagem, reside em que, em última
instância, até mesmo as construções simbólicas neuróticas (chamadas de normais) são
delirantes.
Acontece que os delírios neuróticos têm duas características que lhes permitem movimentar-
se como se fossem normais na sociedade. A primeira característica é que o delírio neurótico
coincide com o sintoma social prevalecente. Se os neuróticos vivessem em uma sociedade
psicótica seriam seres estranhos. Por isso nos hospitais psiquiátricos, quando trabalhamos ali,
os loucos formam uma comunidade e nos olham como bichos raros porque nós pensamos
num código diferente do deles. A segunda razão que permite aos neuróticos circularem mais
ou menos normalmente na sociedade é que seu delírio é coletivo, eles participam de delírios
145
coletivos. Eles têm esse "cuidado", a religião que praticam é coletiva. Se é uma religião
compartilhada somente por dois já fica suspeito. "Eu e minha mulher inventamos uma
religião", aí fica suspeito.
A inclusão de crianças autistas e psicóticas na escola comum
Bem, dizíamos acerca da inclusão da criança psicótica na escola comum que isso era viável,
às vezes sim, às vezes não, dependendo da extensão, da flexibilidade, da proliferação desses
arremedos de função paterna que ela consiga fabricar, geralmente com a ajuda de outros. É
evidente então que numa escola para psicóticos ou numa escola em que haja psicóticos,
porque não há por que ser somente para eles, é necessário que haja alguém que seja capaz de
interpretar essa fragmentação de sua simbolização e ajudá-lo a constituir novas metáforas ali
onde as suas próprias não alcançam. Por outro lado, devemos considerar que há formas da
psicose tão incômodas para os neuróticos, para as crianças neuróticas, que estas mal suportam
o convívio com essas formas da psicose. E geralmente as crianças neuróticas na escola estão
num momento de sua vida que, embora dentro do normal, do comum e corrente, atravessam
situações delicadas, pelo simples fato de estarem numa idade em que as elaborações
primordiais ainda se encontram em curso, e a possibilidade de se confrontarem com formas
extremamente estranhas e destoantes da própria imagem - situada num semelhante - coloca
em questão os pontos de identificação imaginária, de especularização com o outro. Isso
porque a criança até a puberdade está submetida aos riscos da ruptura do espelho no qual se
reconhece. Risco que se nota muito bem quando uma criança muito nova perde seus pais.
Temos como recente e bem próximo exemplo os seqüestros de filhos de militantes
revolucionários na Argentina durante a ditadura militar, e que agora, na adolescência, estão
chegando às consultas porque o apagamento ou a quebra do espelho no qual estas crianças se
reconheciam acarretou para elas conseqüências psíquicas graves. Nessa mesma direção, é bem
conhecido por nós que quando uma criança, por razões familiares, se encontra obrigada a
conviver com um parente psicótico, isso tem conseqüências para ela. Isto não quer dizer que
ela se transforme em psicótica, mas certamente terá bons padecimentos neuróticos.
Costumamos receber em consultas de adultos os efeitos tardios dessas vicissitudes infantis.
146
Então não parece razoável pensar que não haverá alguma conseqüência para crianças
neuróticas que não têm outra imagem de reconhecimento que aquela do semelhante neurótico
se elas forem submetidas a um convívio cotidiano com formas extremamente agressivas da
psicose. Por mais que sejamos partidários da não segregação dos psicóticos, não podemos,
geralmente, responder a esse questionamento tão comum dos pais, quando uma criança que
tem problemas graves é incluída junto com seu filho "normal" e o pai expressa a preocupação
de se isso não fará mal a seu filho.
Devemos confessar que nós somos partidários da integração, sem dúvida, mas que quando
surge, na turma que nossos próprios filhos freqüentam, uma criança com problemas graves,
imediatamente nos perguntamos se isso não terá conseqüências para nossos filhos.
Geralmente tendemos a subestimar os efeitos, a disfarçá-los ou até a responder para nós
mesmos que a consistência fálica de nossos filhos será suficiente para resistir ao choque.
Como sempre, quando ficamos acuados, a última solução é narcísica. Porque cabe nos
perguntarmos se não será essa uma secreta tentativa de que nossos filhos sejam tão terapeutas
quanto nós. E, como nossos filhos costumam entender muito bem disso, acabam sendo
terapeutas dessas crianças. Nas supervisões e análises de profissionais que se dedicam aos
problemas graves da infância encontramos essas manifestações com farta freqüência e, no que
me diz respeito, confesso que tudo o que acabo de manifestar num tom geral eu poderia dizê-
lo em nome próprio também. Porém, para quem procede de modo psicanalítico, seja analista
ou não, esta observação serve para nos prevenirmos de não nos centrarmos em qualquer
referência narcísica para a tomada de decisões clínicas a este respeito. A pergunta que
precisamos nos formular para orientar nossas prescrições neste campo é a seguinte: em que
posição ficará a criança psicótica ou autista perante o discurso, se ela for incluída numa escola
com tal ou qual característica?
Aqui surge uma necessidade de decidirmos caso a caso quem é que pode participar da vida
escolar comum e quem é que requer uma escola para psicóticos. E os que requerem uma
escola para psicóticos, evidentemente, são uma minoria, mas isso não quer dizer que não
existam em número suficiente para justificar uma atividade específica que os auxilie. Até
aqui, a primeira das razões por que devem existir escolas para psicóticos parece-nos mais ou
menos demonstrada.
147
De como um falso igualitarismo pode acabar em segregação
Preferimos falar agora da terceira razão antes da segunda, para facilitar nossa demonstração.
Essa terceira razão, que qualificamos como de ordem social, é relativamente simples.
Lembremos, para começar, que o hospital psiquiátrico é a estação final do trem da psicose.
Nós, terapeutas, tentamos sempre que o psicótico desembarque antes de chegar à parada final,
mas que ele consiga ou não fazê-lo depende de muitas circunstâncias (o umwelt, na
denominação de S. Freud), mas também, e fundamentalmente, do modo como foram
realizadas aquelas inscrições originárias, do modo cómo elas vieram ou não a se confirmar na
adolescência. E, do ângulo terapêutico, depende da possibilidade de nós encontrarmos alguma
maneira de mudar algo na posição fantasmática que esteve reservada a esse filho no discurso
parental, durante o transcurso de sua infância. Se conseguirmos mudar a posição fantasmática
que esse filho ocupa no discurso parental, teremos uma grande chance de que ele
desembarque bem antes dessa parada final, seja porque a sua estrutura se transformou e ele
deixou, então, de ser psicótico - o que em alguns casos, antes da puberdade, é possível -, seja
porque sua psicose se articulou de um modo tal que não o impede de funcionar socialmente.
Essas opções - que não são fáceis de se produzirem - poderão permitir-lhe descer do trem que
conduz os psicóticos ao exílio manicomial antes de chegar ao fim da linha.
Quando uma criança é pequena e é psicótica, as insuficiências simbólicas ou as restrições de
simbolização (originadas na forclusão, parcial ou total da Função Paterna) que caracterizam a
sua psicose confundem-se ou tendem a se confundir com as insuficiências das aprendizagens,
sobretudo nas crianças pequenas. Que uma criança não saiba fazer isto ou aquilo ou que não
consiga articular sua relação com o outro tende a ser indistintamente explicado por ela ser
ainda pequena e não pela sua psicose. Assim, é comum que algo que não é próprio da
condição de infans, de não falante - por exemplo, uma criança de quatro anos que não fala -
seja tomado como equivalente à condição de infans de uma criança de um ano e meio que
ainda não fala. Como, além do mais, geralmente a criança Psicótica de três ou quatro anos faz
cocô nas calças e usa fraldas, ou não Passou do alimento líquido ao sólido, ou não consegue
se distanciar da mãe etc. há uma tendência em se estabelecer uma série de equivalências entre
essa criança e o infans. Em outros termos, suas manifestações
148
psicóticas são confundidas com expressões normais de um bebê que, na realidade, já não mais
existe.
Paradoxalmente, isto permite que muitas crianças psicóticas e autistas freqüentem as escolas
comuns enturmadas em grupos de crianças menores do que elas, em função dessa suposta
equivalência entre crianças de quatro anos com características autísticas, e portanto com
perturbações no seu desenvolvimento, e crianças, por exemplo, de dois anos com
características neuróticas normais. Os indubitáveis benefícios desse convívio podem se anular
na medida em que tal prática fique ao serviço de mascarar a patologia em curso e, com isso, a
criança fique subtraída à intervenção clínica imprescindível, prolongando desse modo o
retardo em sua estruturação psíquica, cultivando um adiamento que pode acabar no
cancelamento definitivo da sua possibilidade de compartilhar o discurso social.
Os benefícios desse convívio se derivam do fato de que as crianças neuróticas oferecem
chances às psicóticas, às vezes pela via do mimetismo, às vezes pela via da identificação, de
tomar alguns traços circulantes no discurso grupal para articular formas de simbolização,
metáforas não paternas que lhes permitam participar da vida social de um modo um pouco
mais plástico. Isto de fato acontece, ainda que não sempre, pois depende do grau de
isolamento. Isto quer dizer que não se pode generalizar, como uma prescrição universal, para
que todas as crianças autistas ou psicóticas freqüentem o jardim comum. Certamente há
crianças autistas que podem ficar completamente perdidas e brutalmente isoladas, na ausência
de alguém que possa se dedicar exclusivamente a elas. Mas há uma série de crianças
psicóticas e alguns pós-autistas que, graças a intervenções clínicas precoces, conquistam uma
possibilidade de aproveitar de uma certa convivência, de uma certa identificação que, ainda
que contingente, lhes permite circular socialmente. As marcas residuais dessa experiência de
confronto com um discurso que não faz deles objetos de exclusão (no autismo) ou
pertencimento fálico do Outro Primordial (nas psicoses) tendem a constituir uma espécie de
reservatório de significantes que funcionam de modo diferente daqueles até ali inscritos, o que
permite sua implementação para o processo de recuperação e que funcionam como
verdadeiros pontais na direção da cura. Embora as significações possam continuar
determinadas pela forclusão, esse contato com um mundo significante que funciona na
referência a um pai (seja lá qual for) parece funcionar, nas crianças psicóticas, como uma
janela de luz aberta nessas trevas exteriores em que foi lançado aquele significante primordial
que fora rechaçado13.
149
Até aí, então, socialmente não haveria razão para que houvesse escolas para psicóticos, e sim
exatamente o contrário. Porém, quando chegamos à adolescência, a coisa se complica.
Tomamos a adolescência porque é o outro extremo da situação. A coisa se complica
precisamente porque se o psicótico que foi psicótico, sempre, desde criança, ou o autista que
foi autista desde criança e que agora é um pós-autista ou um psicótico, se eles vão produzir
seus atos como infans, ainda, seus atos não serão tomados como os de uma criança pelo
discurso social. Já de outro modo, se uma criança de três anos abaixa as calças no pátio é uma
brincadeira infantil, mas se um psicótico de 18 anos faz a mesma coisa, do ponto de vista do
discurso social, isto já não é mais uma brincadeira. Ainda que nós, terapeutas, sejamos
capazes de perceber quanto de infantil ainda resta nesse ato, nem mesmo as terapeutas mais
heróicas suportam a perseguição de seu excitado paciente de 18 anos pelo pátio da escola.
Estamos nos referindo a uma situação cômica que evocamos facilmente porque se trata, no
caso, de um acontecimento recente numa instituição na qual trabalhamos: um adolescente
psicótico de 18 anos com uma posição completamente infantil, completamente apaixonado
por uma terapeuta ocupacional, a perseguia, sem roupa, pelo corredor. Então, ela perguntou,
na supervisão de equipe: "Até onde devemos suportar?"
Bom, eis aqui o problema do limite que, por sinal, não é meramente o problema de pôr
limites, de dizer não, mas de resolver em que situação esse limite deve ser colocado para que
cumpra alguma função de transformação de uma coisa em outra coisa. Se não for assim, não é
no sentido próprio um limite. D. W. Winnicott dizia que o limite é o que transforma uma
coisa em outra coisa, senão não constitui limite mas somente uma imposição. Nesse ponto ele
tinha toda razão. Ou seja, não é simplesmente dizer que não, porque se dissermos
simplesmente não, a coisa (no sentido propriamente freudiano) continua a mesma e, portanto,
teremos que continuar a dizer que não o tempo todo, ou ter um cassetete na mão.
As questões se complicam na adolescência por esse motivo: porque já não é mais possível
tomar esses atos como brincadeira, ainda que quem os execute os conserve no campo de uma
relação infantil do significante com o real 14. Estamos falando até agora daqueles que foram
reconhecidos como psicóticos desde muito cedo, que atravessaram sua infância como
psicóticos, muitos deles encefalopatas, com problemas de lesões cerebrais etc. Ainda quando
se trata de sujeitos que estão nesta situação, a partir da conclusão da puberdade e início da
adolescência, se suas formas psicóticas
150
forem muito discrepantes das formas que o discurso social suporta, ou seja, se tendem a
produzir situações que são tomadas como atos reais pelo discurso social, as soluções
terapêuticas que se abrem são evidentemente as de internação, ou em casa ou no hospital
psiquiátrico. Porque o jovem psicótico, com toda a sua aparência civilizada, rodeado dos mais
modernos conceitos de integração e não discriminação, tanto da parte de seus pais quanto dos
terapeutas envolvidos, andando pela rua vai levantar o dedo na cara do boxeador que mora na
esquina e levar um soco que fará com que acabe no hospital, vai querer parar o trânsito,
brincando de policial, e será atropelado por um carro, ou vai andar nu e ser preso por atentado
contra a moral. Então, para onde mandá-lo, qual é seu lugar? Se for parar no hospital
psiquiátrico, estaria indo cedo demais porque na adolescência existem chances ainda, em
função do caráter refundante dos traumas próprios da adolescência1 5, de virem a se produzir
novas inscrições que modifiquem até certo ponto o modo do funcionamento psicótico.
A importância do significante escola
É aí que a figura da escola vem a calhar porque a escola não é socialmente um depósito como
o hospital psiquiátrico, a escola é um lugar para entrar e sair. É um lugar de trânsito. Além do
mais, do ponto de vista da representação social, a escola é uma instituição normal da
sociedade, por onde circula, em certa proporção, a normalidade social. Portanto alguém que
freqüenta a escola se sente geralmente mais reconhecido socialmente do que aquele que não
freqüenta. É assim que muitos de nossos psicóticos púberes ou adolescentes reclamam que
querem ir à escola como seus irmãos precisamente porque isso funcionaria para eles como um
signo de reconhecimento de serem capazes de circular numa certa proporção, pela norma
social. E efetivamente isso acaba tendo um efeito terapêutico, porque, do lado do discurso
social, cura esse discurso de seu horror à psicose, ou cura, numa certa proporção, às vezes
mínima, às vezes maior, às vezes num efeito apenas circunscrito à comunidade escolar ou ao
bairro onde a escola está, cura, dizíamos, um certo número de preconceitos. Nesse sentido
podemos lembrar algumas experiências das equipes de escolas para psicóticos ou autistas, ou
mesmo daquelas dedicadas aos deficientes mentais, quando saem a passear pelas vizinhanças
com seus paciente-alunos. Registra-se quase invariavelmente um acolhimento progressivo
151
e uma crescente disponibilidade dos vizinhos para "ajudar" na trabalhosa tarefa de abrir
brechas de comunicação dessas crianças ou adolescentes com o âmbito social. A circulação
por pequenas lojas e "botecos", e até mesmo por prédios e casas de vizinhos vai se tornando
lentamente viável16. A conquista de uma certa popularidade aparece em nome do fato de que
"eles são os da escola aqui do lado", e não há dúvida de que as reações seriam muito
diferentes se se trata de "os do manicômio"; o significante, como sempre, pode ser decisivo.
Porque escola é coisa de criança, no final das contas se esses meninos e meninas têm
problemas, mas estão na escola, seus atos viram artes. Se gritam demais, se aproximam
demais, pulam demais, comem demais, põem a mão onde não devem, são simplesmente
meninos e meninas, seguramente o são porque vão na escola. Quem sai do manicômio não
tem esse benefício na leitura social. Essa razão social muito simples nos leva a pensar que é
interessante que existam escolas para psicóticos.
Agora vejamos a segunda razão. A segunda razão é do seguinte teor, é a razão fundamental
pela qual o tratamento de um psicótico tem que ser necessariamente interdisciplinar e não
multidisciplinar. A cura da psicose não pode passar exclusivamente nem pela psiquiatria, nem
exclusivamente pela psicanálise, nem pela terapia ocupacional, fonoaudiologia, nem
exclusivamente por lugar nenhum, nunca. Isso não quer dizer que um psicótico tenha que ter
15 terapeutas.
A função cognitiva não é autônoma nem automática
Dizíamos que a segunda razão para a existência de escolas terapêuticas para psicóticos reside
num princípio da cura. Vamos dar um exemplo para ficar mais claro. Uma vez um colega
analista, que não trabalha de um modo interdisciplinar e que trabalha com crianças, me contou
por generosidade, para fazer um intercâmbio entre nós, um caso muito interessante de um
menino que começou um tratamento com ele quando tinha quatro anos. Apresentava-se na
época com uma psicose e agora, nesse momento do relato, o menino já tinha oito anos e tinha
deixado de ser psicótico. Essa última afirmação não é cem por cento segura, já que teríamos
que esperar até a adolescência para nos certificarmos disto, mas poderíamos dizer que era uma
afirmação com boas chances de ser verdadeira. Pelo menos, certamente, o menino - ou
melhor, o sujeito - aos oito anos não era o mesmo que aos quatro. Evidentemente, dos quatro
aos
152
oito ele atravessou o momento de iniciação escolar com a idade em que isso acontece. E
efetivamente ele havia começado a ir à pré-escola, mas não tinha ido antes a nenhum jardim
de infância. Então, como era de se esperar, quando começou a freqüentar a pré-escola,
apresentou muitas dificuldades e desajustes, e esse analista optou por indicar aos pais que não
era momento propício para incorporá-lo na escolaridade. E isto permaneceu assim até o
momento daquele relato, aos oito anos.
Ao terminar seu relato de um caso psicanaliticamente tratado - sem dúvida de modo brilhante,
com interpretações invejáveis, que nós teríamos gostado muito de ter feito - eu lhe perguntei:
"E ele vai à escola?" - uma pergunta ingênua, inocente, sem nenhuma intenção interpreta-tiva.
Pensei que ele ia responder "Sim, mas tem dificuldades". Mas não. O analista, como resposta,
contou isso: que ele tinha optado por contra-indicar a freqüência à escola. Então eu indaguei:
"Bom, mas e a aprendizagem dele?". Ele concluiu: "Disso eu não me ocupo". Eu compreendo
isso, porque evidentemente não pode se ocupar de tudo, e além do mais, na posição
transferencial de analista, ele não pode produzir atos pedagógicos. Então ainda insisto: "Mas
eu não pergunto se você se ocupa, eu pergunto se propõe que alguém se ocupe. E vem seu
revide: "Eu considero que a restituição da potencialidade simbólica, ou seja, a restituição da
posição de inscrição sucessiva que lhe permita simbolizar é o fundamental, o resto vai
crescendo". Minha resposta: "Não, não vai crescer". Não é uma derivação automática, porque
o que durante oito anos ficou como saldo negativo na apropriação lógica do objeto, este
déficit lógico que se acumulou durante oito anos, não vai se saldar automaticamente como
num passe de mágica só pelo fato de ele agora dispor de uma posição que lhe permita
simbolizar. Ele vai ter que viver as experiências e passar pela experimentação que não
atravessou, justamente porque não estava em condições de fazê-lo. E se alguém não se ocupa
de abrir-lhe caminho nessa direção, ele sozinho não vai poder. E, o que é ainda pior, vai
tropeçar com uma defasagem com relação às outras crianças de oito anos. Uma defasagem
que pode se transformar numa ferida narcísica, ou numa perda melancolizante. Porque ele vai
tropeçar com o fato de que o objeto do conhecimento que seus pares construíram nesses anos
todos em que ele esteve dedicado a refazer sua posição subjetiva funciona para ele como um
objeto definitivamente perdido, já que essa desvantagem em relação aos outros se lhe
apresenta como se fosse irredutível. Ou seja, um objeto perdido que doravante vai
acompanhá-lo sempre. A partir disto, ele
153
terá boas chances de se transformar num melancólico da aprendizagem, com as subseqüentes
relações agressivas com os representantes imaginários de sua perda, sejam eles objetos de
conhecimento ou pessoas. Bem diferente seria sua situação se alguém tivesse tido a paciência
e dedicação de lhe ensinar na língua estrangeira que, por ser psicótico, ele falava. Nesse caso,
os traços residuais daquele objeto fragmentar de sua psicose, cultivados na dimensão
significante pelos mestres especializados, aquela lógica, embora exercitada numa inevitável
direção delirante ou autônima", poderiam ser capturados no aprés coup dessa função
simbólica nele recentemente inaugurada. A sutura de sua desvantagem em relação a seus
pares seria, então, seguramente mais provável. Esta é uma segunda e, em nosso parecer,
decisiva razão pela qual devem existir escolas para psicóticos.
Uma controvérsia inevitável
Três razões que se conjugam trabalhosamente. Por um lado, com os perigos da discriminação
e da marginalização e, por outro lado, com uma dura resistência familiar e social. Uma dura
resistência freqüentemente formulada ora num falso democratismo que confunde uma questão
de sintoma com uma questão de direito, ora num igualitarismo puramente imaginário, muito
mais destinado a satisfazer o narcisismo dos pais ou as aparências políticas do que as
verdadeiras necessidades clínicas das crianças que padecem destas dificuldades.
Referências Bibliográficas
FREUD. Sigmund - "Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci". In: Obras Completas, v.2.
Madrid. Biblioteca Nueva, 1973.
LACAN, Jacques - "Las Psicosis". Seminário III. Buenos Aires, Paidós, 1981.
LACAN, Jacques - "Seminário XX". Buenos Aires. Paidós, 1984.
PIAGET, Jean - "Biologia y Conocimiento". Madrid. Siglo XXI, 1969.
Notas
1 - Este trabalho foi publicado na Revista "Estilos da Clinica", ano II, n° 2, 1997.
2 - KUPFER, M. Cristina - "A presença da Psicanálise nos dispositivos institucionais de tratamento a psicose".
In: Estilos da Clínica. São Paulo, Instituto de Psicologia da USP, ano 1, n° 1, 1996, pp. 24-30.
3 – Ver em DOSSE, François, "História do Estruturalismo", São Paulo, Ensaio-UNICAMP, 1994. v. 2, PP. 98 e
336, comentário sobre a posição clássica de J. Piaget no estruturalismo e sua proximidade com as Posições de
Lucien Goldmann.
4 - Veja-se BADIOU, Alain, "Sujeito e infinito, filosofia e política". In: Acontecimiento. Buenos Aires,
154
publicação coletiva - A pesar de todo - da Escuela Portela, n° 5, 1973. E também, "Para uma nova teoria do
sujeito", do mesmo autor.
5 - Veja-se GRÉCO, Pierre. "O Estruturalismo". Ciências Humanas. Buenos Aires. CEAL, 1967.
6 - Há pelo menos duas de suas obras que apontam nas direções aqui comentadas: "The variations of Animals
and Plarits under Domestication", de1868. E também "The Repressions of the Emotions in Alan and Animals",
de 1872.
7 - É plausível pensar que esta inquietação darwiniana tem sua origem nas preocupações e na obra de seu avô
Erasmus (1731-1802), médico, naturalista e poeta inglês que sempre oscilou nos limites entre a ciência e a
metafísica, tentando explicar as relações entre a permanência e as mudanças no campo biológico.
8 - Note-se que, neste aspecto, tanto Lacan quanto Freud chegam bem mais longe que J.Piaget no que se refere
aos determinantes do pensamento no sujeito, já que J. Piaget considera a herança somente nos seus
desdobramentos de geral e específica. Veja-se novamente PIAGET, Jean (1969). "Biologia y Conocimiento".
9 - Veja-se CAMPBELL, Joseph. "El héroe de Ias mil caras. Psicoanálisis dei mito". México. Pondo de Cultura
Econômica 1993. E do mesmo autor. "Las máscaras de Dios". Madrid, Alianza Editorial, 1991.
10 - Caso relatado fragmentarmente pelo Dr. Jean Bergès em seminário proferido em Buenos Aires, em 1984.
Não é um caso de exceção já que ele responde à dinâmica freqüente do ato criminoso praticado por psicóticos.
11 - Ou bem da colagem do olho do outro no olho próprio, na formação esquizofrênica. Lembre-se, como
exemplo, o ato de arrancar os próprios olhos praticado pela personagem do filme "Betty Blue". Ou quando a
cena interditada fica colada nos próprios olhos, no caso do pesadelo que revela o auto-engano do neurótico, na
metáfora clássica de Édipo furando seus olhos.
12 - É necessário fazermos notar que o conceito de simbolização ao qual estamos nos referindo é próprio da
psicanálise e se diferencia marcadamente do conceito de simbolização proposto por Jean Piaget.
13 - Ver LACAN, Jacques. "Las psicosis", Seminário 3, op.cit, p. 216 e seguintes.
14 - Considerando a questão de um modo mais estrito, nem sempre que aparece a erótica nas psicoses ela tem
um caráter regressivo. Há momentos em que tais manifestações; constituem tentativas de penetrar no mundo
adulto cavando um lugar de reconhecimento de seu ato (sexual) no discurso social. Por sinal, a forclusão da lei
simbólica, devido à oclusão'da Função Paterna, devolve violentamente esses atos - produzidos inicialmente
como uma tentativa simbólica - a uma dimensão puramente real, o que retoma o gozo às suas formas
primordiais, ou seja novamente infantis. Talvez isso explique parcialmente a cara de satisfação, ou bem de
tranqüilidade beatífica, que se observa em psicóticos quando são punidos juridicamente, após terem cometido
atos que conseguiram horrorizar a seus semelhantes. Trata-se ali de um certo sucesso na tentativa de conseguir
um estatuto simbólico para seu ato.
15 - JERUSALINSKY, Alfredo. "Traumas de Adolescência". In: Jerusalinsky et alli. "Adolescência, entre o
passado e o futuro". Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1997.
16 - Neste ponto tomamos como referência a vasta experiência desenvolvida neste sentido por nosso já falecido
colega Dr. Paulo C. Brandão, que costumava dizer que o verdadeiro limite da clínica ou da escola, quando
trabalhamos com crianças gravemente perturbadas, não são suas paredes mas o bairro. Tomando o bairro, é
claro, como circunscrição discursiva da cultura.
17 - Referimo-nos aqui aos autônimos, ou seja aos significantes que geram seu próprio sentido sem depender
dos outros significantes para estabelecer sua significação.
Fim das notas.
155
A EDUCAÇÃO É TERAPÊUTICA?
SOBRE TRÊS JOGOS CONSTITUINTES DO SUJEITO (Parte I)1
Os terapeutas de crianças, em comparação com os de adultos, têm uma responsabilidade
suplementar.
Os terapeutas de adultos recebem a demanda de curar sintomas e, embora sigam caminhos
indiretos para curá-los, têm que - de uma maneira ou de outra - prestar contas de sua eficácia
com respeito a eles. É também verdade que os benefícios de um tratamento se manifestam
muitas vezes pelo recobrimento desse sintoma, por sua ressituação, pela mudança de sua
significação, e não por sua supressão. As vezes, no próprio curso do tratamento, se descobre
que tal sintoma constitui um eixo fundamental para esse sujeito e que, então, é necessário
respeitar seu lugar, ainda que, para colocar-se em função, o sujeito precise mudar tudo o que o
circunda (ele e o sintoma).
Até aqui podemos afirmar que, neste ponto, terapeutas de adultos ou de crianças se vêem
frente a responsabilidades similares.
Porém, se escutarmos com atenção a demanda endereçada aos terapeutas de crianças, veremos
que, além da preocupação pelos sintomas, manifesta-se claramente o pedido de que nos
ocupemos de que se constitua um sujeito. Ainda mais, podemos registrar facilmente, na
experiência clinica cotidiana, que quando essa demanda de estruturação subjetiva não Se
enc
ontra presente nos pais e na criança, essa preocupação se torna inevitavelmente - nossa.
Ocorre que, em um adulto, embora essa afirmação possa parecer problemática e mereça
maiores precisões, o sujeito está, em geral, constituído. Todavia, nas crianças, embora as
articulações constituintes desse
156
sujeito já estejam previamente configuradas na ordem do discurso, elas padecem, entretanto,
da fragilidade própria dos acontecimentos que ainda são futuros e estão expostas, portanto, às
vicissitudes de sua inscrição. Disso decorre que, com uma certa justiça, possamos afirmar que
se acrescenta aos terapeutas de crianças uma obrigação a mais: se ocuparem do que ainda não
está constituído.
É por isso que, mesmo quando nossa clínica se desenvolve atravessada pelos ensinamentos
que a psicanálise nos oferece, e inclusive na própria prática da psicanálise de crianças, não se
pode cumprir a regra de abstinência em toda a sua extensão. De fato, assistimos à diligência
com que os terapeutas atendem às necessidades de seus pequenos pacientes, quando se trata
de "fazer pipi" (um fecho que se tranca, ou um botão que excede sua incipiente habilidade),
quando saem para o pátio em dias frios e os abrigam, quando precisam ser protegidos de uma
possível queda, quando vão enfiar os dedos em uma tomada, quando têm de lavar suas
mãozinhas depois de uma incursão pela pintura. De fato, também registramos o quão difícil é
para os terapeutas sustentar sua neutralidade: essa tendência quase irrefreável de julgar os
pais, essa tentação de decidir sobre "o melhor" para "essas crianças", a facilidade com que
escapa uma intervenção pedagógica inoportuna.
Sobre a pertinência ou impertinência dessas situações, nos inclinamos a considerá-las no
âmbito da sugestão. Ou seja - no campo específico da prática com crianças -, como aquelas
intervenções que, embora acabem se tornando parasitárias para o próprio desenvolvimento da
terapêutica, e ainda que se configurem como interferências substitutivas dos pais, sustentam o
saber suposto (suporte fundamental da transferência) na posição de estar encarnado em
alguém, o que, ao mesmo tempo, é próprio da infância e imprescindível para ela. É aqui que
devemos reconhecer que Anna Freud tinha suas boas razões para afirmar que as crianças se
dirigem a nós mais como a um adulto do que a um terapeuta, embora não possamos coincidir
com ela quanto a ser essa a posição que devamos cultivar no desenvolvimento da análise de
uma criança.
É precisamente nesse ponto que vem em nosso auxílio uma pequena mas fundamental série de
descobertas que a psicanálise coloca a nossa disposição. Trata-se dos dois jogos considerados
universais, o "fort-da" e os jogos chamados de "transicionais", aos quais podemos acrescentar
outra série - que nos parece tão fundamental quanto estes - que podemos chamar de "jogos de
borda" ou "o jogo da queda".
157
Brincar de "está, não está"
O jogo do "fort-da", descrito e interpretado por S. Freud em Além do princípio do prazer,
assinala um movimento constituinte do sujeito, no qual a pequena criança captura, na
descontinuidade do significante (aqui-lá), a imagem de si mesma vista ou não vista pelo
Outro, o que implica colocar em série a ausência-presença. Esse mommento, que lhe permite
ordenar em palavras o olhar desse Outro Primordial - constituído tipicamente por sua mãe -,
captura, retrospectivamente, os pequenos e minuciosos ensaios que, desde bebê, percorreu nos
jogos de imitação (as "graças" oferecidas aos adultos), nos jogos de ocultamento (o famoso
"esconde-esconde"), as negativas ("virar a cara" para sua mãe quando "ofendido"); e, adiante,
atravessará o brincar de "esconder", o que se dá a ver e se oculta no corpo, o que se descobre
para além do perceptível, a descontinuidade do visível e do não-visível, a oposição e
articulação entre presença e ausência, entre posse e falta. É a enunciação mínima de "Oo-Aa"
(fort-da), que, inscrevendo o olhar no âmbito da linguagem, encadeia todos esses jogos,
descobrimentos-encobrimentos, em uma série que, provavelmente, estende-se até a formação
da mentira.2
Brincar de "este é o outro"
O objeto transicional, que constitui uma descoberta fundamental de D. W. Winnicott,
particulariza o conjunto de fenômenos que, com o mesmo nome de "transicionais", aludem à
substituição de objeto de desejo. J. Lacan, que reconhece a importância dessa observação de
Winnicott, a remete ao registro do falo, no qual - se seguirmos com rigor sua sistemática -
cada brinquedo deve ser tomado como substituto do objeto que causa o desejo (pequeno "a",
na álgebra lacaniana) e, por isso, como objeto de gozo e ao mesmo tempo como significante
da falta (alusão da ausência, insistência da presença por meio da repetição). É aqui que
encontramos muitas das razões dessa curiosa configuração que o brincar apresenta:
insistência, gozo, repetição; essa capacidade representacional do futuro da criança que a cena
do jogo demonstra por excelência. O que abre para a criança o campo de sua
"transicionalidade" é o fato de que a mãe toma a própria criança como transicional para ela, e
não como sua realização fálica definitiva. 3 E aí que se torna possível a dimensão do futuro, ou
seja, como uma ordem para além do fantasma materno, orientado na
158
língua de todos, na inclusão do sujeito no discurso social. Certamente, o jogo das
personificações referido por Melanie Klein já em 1929 denota o destino dos "fenômenos
transicionais".4
Brincar de "cai, não cai"
No que se refere aos jogos de borda, nos detivemos neste ponto quando observamos com
quanta freqüência as crianças autistas situam entre seus primeiros vocábulos a palavra "cai"
ou "caiu". Não é, precisamente, que o façam espontaneamente, senão graças à intervenção
oportuna de algum terapeuta que lhes abre, dos modos mais variados com que isso pode
ocorrer, o registro da descontinuidade, tomada não na ordem do físico, mas na ordem do olhar
do Outro. Dito de outro modo, alguém que se torna Primordial para a criança autista e abre,
então, a dimensão de uma perda possível. Essa observação, por aparecer do lado do revés (o
surgimento tardio de um Outro lança o autista a perceber o objeto que cai como não
sustentado, e daí a palavra "caiu", que comunica ao Outro as conseqüências de não ter
respondido à demanda), colocou em evidência o caráter crucial desse momento estruturante.
Precisamos percorrer apenas um pouco para perceber a série de "jogos de borda": jogar
brinquedos fora do berço, empurrar objetos lentamente até a beira da mesa, até sua
precipitação, espiar pelas frestas, remexer nos buracos e nas pequenas aberturas, andar pelas
beiradas e por todo lugar que ofereça o risco de uma queda pelos quais - a taquicardia dos pais
o sabe muito bem - as crianças sentem uma verdadeira paixão), brincar de cair (em uma
piscina, da poltrona da sala, sobre os colchões), saltar de uma altura "impossível", tocar o que
não se pode, entrar onde não se entra. Enfim, que as crianças são "especialistas" em andar
pela borda, em uma indagação constante sobre a extensão e a aplicabilidade da ruptura que a
palavra introduz na motricidade e no olhar. Dois campos pulsionais 5 que se recortam por meio
desses brinquedos estruturantes e que abrem, ao mesmo tempo, a possibilidade da
estruturação do espaço e as condições da separação. É por essa via que o sujeito, certamente,
encontra as formas de articulação entre o corpo escópico e o corpo significante. Ao fim e ao
cabo, explorar os limites do equilíbrio, as fronteiras de um domínio, sempre levam o sujeito
ao campo da vertigem, da curiosidade ou do recorde. Demonstra-se a paixão do sujeito pelas
bordas até no simples fato de que suas "férias" sempre ocorrem à beira de
159
qualquer coisa: o mar ou a montanha são os que oferecem para serem bor-dejados suas costas
ou seus precipícios, em percursos repetidos. Parece, enfim, que apesar de que as crianças -
como sempre - denunciam as paixões que os adultos ocultam, neste ponto de brincar com as
bordas os adultos costumam perder toda a discrição.
A educação estruturante
O leitor terá notado que já estamos, já a algumas linhas, falando de "brinquedos
estruturantes". Efetivamente, trata-se de brinquedos que possuem essa capacidade de
promover as articulações necessárias para a constituição do sujeito. São certamente
constituintes e, por isso, quando eles aparecem na produção de uma criança, é a duras penas
que os tera-peutas mantêm em silêncio seu júbilo. Com o maior gosto, embora resguardemos
o lugar de gozo para a criança e não para nós, oferecemos o semblante necessário para que
esses brinquedos apareçam, sejam cumpridos e se estendam.
Eles não são destinados a resolver nenhum sintoma (embora às vezes os resolvam), estão
orientados para a constituição do sujeito que, em nossa prática clínica, está em questão.
É através deles que podemos deixar se dar livremente a função educativa. Precisamente
porque ali essa função não pretende ensinar algo em particular, mas permitir o desdobramento
das articulações que, a partir do campo do discurso, antecipam para o sujeito sua posição. É
nesses brinquedos que a linguagem encontrará o modo de produzir suas marcas. Uma função
"educativa" no sentido mais amplo e mais clássico do termo. Em que nada de escolar nela se
registra, nada de um padrão de saber, mas a colocação em ato de uma inscrição.
Nessa direção, nesses três brinquedos, os terapeutas de crianças podem se reencontrar com
tranqüilidade ética com as funções educativas de um tratamento.
Bibliografia
FREUD, Anna: "El psicoanálisis y la crianza del niño". Buenos Aires, Paidós, 1980.
FREUD, Sigmund. "Más allá del principio del placer". In: Obras Completas, Buenos Aires,
Amorrortu, 1988.
JERUSALINSKY, Alfredo. "La infância sin fin". Diários Clínicos, n° 3, Buenos Aires, 1992.
KL
EIN, Melanie. "Principios del análisis infantil". Buenos Aires, Hormé, 1974.
"A educação de crianças à luz da investigação psicanalítica". Rio de Janeiro, Imago, 1973.
160
LACAN, Jacques: "Discurso de clausura en las Jornadas sobre la Psicosis en el Niño". In:
"Infância alienada". Mannoni, M. Madri, Saltes, 1980.
LEVIN, Esteban. "La clinica psicomotriz. El cuerpo en el lenguaje". Buenos Aires, Nueva
Vision, 1991.
Winnicott, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
Notas
1 - Artigo publicado na revista "Escritos de la infância", n.5, F.E.P.I. Buenos Aires.
2 - Podemos considerar a mentira como prova, para a criança, de que o olhar do Outro não se
estende até a verdade do sujeito. De fato, as crianças costumam exercer a mentira como um
recurso primeiro e elementar, para manter em sua intimidade os recursos e circunstâncias de
seu gozo.
3 - Ver o "Discurso de encerramento das Jornadas sobre a Psicose na Criança", de J. Lacan,
de 29-9-1968. Publicado em Infância alienada, Madri, Saltés,1980.
4 - Ver "A personificação no jogo das crianças" (1929). Publicado em "Princípios del análisis
infantil", Buenos Aires, Hormé,1974.
5 - Ver, sobre a pulsão motora, Levi, Esteban: "La clinica psicomotriz", Buenos Aires, Nueva
Vision, 1991.
161
A educação é terapêutica? (Parte II)
"Já sublinhei há muito tempo o procedimento hegeliano dessa inversão das posições da alma
bela, quanto à realidade a que acusa. Não se trata de adaptá-la a ela, mas de mostrar-lhe que
está bem adaptada demais, dado que concorre para sua fabricação."
Jacques Lacan, A direção da cura e os princípios de seu poder, 1958.
Se atentarmos para a origem semântica da palavra terapeuta (do grego therapeutés, cuidador) 2,
nos vemos logo tentados a estabelecer relações diretas com a posição do educador. Afinal de
contas, cuidar também faz parte de sua função. Nos inclinamos mais nessa direção, quando,
na Ilíada de Homero, encontramos o amigo de Aquiles, chamado Pátroclo, na função de
therápon (escudeiro). Surge também, investido como therápon, o velho Mentor (máscara da
deusa Atenas), para assumir a tutela e a educação de Telêmaco, o filho de Ulisses, na Odisséia
(Mario A. Manacorda, 1989).
Quanto ao termo educação, podemos nos remeter ao Estudo comparado da educação na
França, escrito por Compayré (prólogo do enciclopedista D'Alembert) e publicado em meados
do século 19. Segundo este autor, entre os romanos imperava a crença de que, ao concluir o
aleitamento, a alimentação da criança ficava aos cuidados de uma deusa menor que recebia o
nome de Educa, assim como a função de beber ficava sob a responsabilidade de Potina.
Devemos levar em conta que a amamentação, nessa época, costumava estender-se até os três
anos, com o que a função de Educa ficava ligada claramente à saída da posição de bebê e ao,
digamos assim, "afrouxamento" da relação com a mãe.
Uma série de divindades compartilhavam com Educa a tarefa de cuidar da criança: Numéria,
no parto; Cunina, no berço; Rumina, na amamentação; Statanus e Statilinus, em sustentá-lo de
pé e caminhar;
162
Fabulinus e Farinus, nos primeiros balbucios e na aquisição da linguagem (Manacorda, M. A.,
op. cit.). Educar aparece assim ligado a cuidar, sustentar, alimentar. Porém, é necessário
certamente que nos perguntemos sobre de que alimento, de que sustentação, de que cuidados
se trata. Se levarmos em conta que, apesar da semelhança superficial entre a mitologia grega e
a romana, para os gregos os deuses eram supostos em uma posição real, enquanto que para os
romanos funcionavam principalmente como referentes simbólicos, teremos uma boa pista
para respondermos a essa pergunta. Efetivamente, quando algo não funcionava bem com a
criança, no caso dos romanos isso não era concebido como um fato determinado a partir da
história particular dos deuses, mas como o indicador que esse deus utilizava para mostrar ao
adulto encarregado da criança alguma falha em seu proceder. E é a partir dessa posição que se
torna então possível a emergência de um saber sobre o que seria correto na educação de uma
criança. Quintiliano articula suas indicações educativas e suas recomendações no ensino da
retórica, em uma referência simbólica que já prescinde dos deuses. Trata-se de cuidar para
que o jovem tome "o bom caminho", oferecendo-lhe a oportunidade para que se torne hábil no
domínio do discurso; ponto essencial, "na cultura romana", para converter-se em um homem
público.
Entre Educa e o theràpon - entre a alimentadora e o escudeiro, que é ao mesmo tempo um
instrutor para a guerra - se estabelece um ponto em comum: ambos têm a missão de cuidar. E
talvez agora fique um pouco mais claro para nós como a educação se inclina, desde as origens
de nossa cultura, para o cuidado simbólico, enquanto que a esfera do real fica para a
terapêutica.
Entretanto, opera-se na modernidade uma curiosa inversão: a educação passa a supor-se
objetiva - o que a aproxima do pólo do real -, enquanto que a terapêutica se polariza entre a
medicina e a psicanálise, em um contraponto que enlaça a terapêutica física com suas
referências simbólicas. Em particular nos cuidados que a sociedade dispensa às crianças, o
reducionismo racionalista que imperou na educação nos últimos dois séculos,
aproximadamente, confrontou-se, nos últimos cem anos, com o questionamento de seu ensino
puramente utilitário4. Deste modo, no campo da pediatria - e muito acentuadamente nele -
além do modernismo biologista, circulou uma escuta da criança como sujeito de uma
expectativa e não meramente como função de um corpo. Em um "avanço" paradoxal, quanto
mais se acentuavam as propostas de um logicismo puro na
163
educação, e de um biologismo puro, na terapêutica, mais seus efeitos dramáticos convocavam
uma virada que abria terreno para a psicanálise, ou seja, para a consideração dos efeitos
fantasmáticos que, sobre a criança, iam tendo sua captura em cercos biunívocos.
Não sabemos até que ponto Donald W. Winnicott poderia ter coincidido com estas
apreciações históricas, mas na verdade ele sublinha os cuidados maternos primários como
ponto de articulação essencial entre a constituição psíquica do sujeito e suas aquisições
evolutivas - dito de outro modo, a articulação entre o simbólico e o real. Na compilação que
compõe seu livro A criança e o mundo externo, expõe vivamente sua tese de que não há
solução de continuidade entre a transmissão inconsciente e o que se ensina (se mostra) a um
bebê. Os cuidados possuem uma função orientadora e indicativa; e, ao mesmo tempo, o valor
de uma inscrição. É por isso que ele não exime os professores do jardim de infância da
responsabilidade que lhes cabe na saúde mental das crianças das quais se encarregam.
Sabemos, porque a psicanálise o coloca em evidência, que nem tudo que se mostra a uma
criança produz nela marca inconsciente. De fato, o esquecimento de muitas de suas
experiências pode obedecer à sua falta de transcendência, e não à ativação específica do
recalque. Como o próprio Freud advertia: às vezes, fumar um charuto não é mais que fumar
um charuto.
Para que o que se ensina se transforme em marca, não apenas de conhecimento mas também
formadora de desejo, é necessária uma coincidência: a convergência entre o que a criança
imagina e o que o adulto oferece. Esta coincidência, curiosamente, em vez de confirmar à
criança a realidade do que imagina, convence-a exatamente do contrário.
Se nos detivermos em analisar pormenorizadamente o processo que ali se desencadeia,
veremos a lógica rigorosa que conduz a tal resultado. O mero fato de se encontrar com o
mundo dos sonhos materializado gera em qualquer sujeito uma nítida sensação de irrealidade.
Porque não se trata simplesmente de estabelecer a correspondência entre a imagem interna e o
objeto externo, para obter-se a prova de realidade. Se para o comportamentalismo isso é
suficiente (o que não se demonstra, na prática), para a aguda observação psicanalítica revela-se
que entre esses dois elementos joga um terceiro. Esse terceiro, representado em nossa cena
Pelo adulto, é o Outro. E é precisamente quando o Outro diz que não, quando o objeto falta,
que o desejo conduz o sujeito a seus devaneios.
164
Neles, nada indica o limite do real. Somente quando o Outro aparece com "seu" objeto, e
levamos o bom susto de perceber que o que desejamos foi inventado pelo Outro, é que nos
damos conta de que a realidade em que vivemos não é tão real assim.
Para as crianças pequenas, essa prova de realidade está sempre "na ordem do dia". É o que se
manifesta nessa série que se inicia com esconder-se do outro (note-se que o bebê sempre faz
esse jogo de se tapar com um pano, quando está frente a outro que seja significativo para ele,
em geral um adulto), nessa ambivalência diante de outro bebê, que o faz oscilar entre o
estranhamento e o júbilo, nesses intermináveis pedidos de água, à noite, nessa demanda de
repetição das histórias, tal como foram contadas da última vez. É que a criança tropeça
freqüentemente com essa impossibilidade de separar o que se imagina do que se percebe e, ao
mesmo tempo, de perceber sem contaminar seu percepto com o que este significa. Por isso,
pergunta incansavelmente "por que?", pedindo contas ao Outro sobre onde, em definitivo, se
encontra, de uma vez por todas, a verdade.
Como exemplo do que estamos expondo, eis o relato de um fato que presenciamos
recentemente. Uma menina de cinco meses, nos braços de seu pai, percorre a galeria de um
restaurante, enquanto sua mãe vai ao toucador. Encontram-se, no caminho, com uma jovem
senhora, que também leva em seus braços uma menina um pouco mais moça (talvez quatro
meses). Imediatamente, a primeira menina se encanta com a outra e tenta tocá-la, aproximam-
se e o toque se produz, entrando em júbilo a primeira e retraindo-se, com evidente
estranhamento, a segunda. Ao aproximar-se, o pai estava dando para sua filha o duplo
especular que a menina imaginou: a cena sonhada se realiza, ela pode contemplar-se a si
mesma e a "sua mãe" (a que sustentava a outra menina) faltante (era carregada por seu pai).
Olha repetidamente para a outra menina e para a jovem senhora, manifestando interesse e
alegria. Porém, bruscamente, sem que nada o prenuncie, olha para a jovem senhora e vê que
ela não é sua mamãe. Prorrompe em um choro angustiado, negando-se a olhar para "as
outras". Entretanto, pouco depois volta a olhar e faz um gesto de balanceio para a jovem e seu
bebê, como que pedindo novamente para se aproximar. O pai a aproxima, e por três vezes se
repete toda a seqüência.
A interpretação desse episódio surge claramente: a prova de realidade se produz no reencontro
com o que não é. O que significa a descoberta de que não há uma só mãe, para quem a
verdade é que há uma só mãe? É claro que o fato de que o percepto encaixe ou não em sua
correspondência
165
imaginária - o que constitui a prova de realidade - depende de sua concordância ou
discordância com a posição que ocupa esse Outro Primordial, que é a mãe, na estrutura
especular desta menina, no momento contingente de sua percepção. Trata-se da possibilidade
de distinguir entre o espaço virtual e o real, o que apenas é possível à medida que a
continuidade espacial seja interrompida pelo olhar de um Outro. A menina não pode senão
fazer o que todos fazemos, embora o façamos de um modo mais discreto e refinado, ou seja, ir
várias vezes em busca da verdade que, valha o paradoxo, não pode aceitar. Essa verdade que
nos revela que estamos sempre expostos aos espelhismos de nosso desejo; esses que, ao nos
aproximarmos, se desfazem, desmentindo a certeza de nossa percepção.
A psicologia moderna, encarregada de realizar o ideal de Locke e Hume, de encontrar os
caminhos que verifiquem a correspondência entre o objeto real e o objeto mental, munida dos
instrumentos discursivos fornecidos por Descartes, que permitem identificar ser e
pensamento, e armada com as ferramentas darwinistas que justificam situar a criança como
um pequeno animal evolutivo, lança-se à tarefa de modernizar a educação, tornando-a
científica. Investiga assim a infância, como o cenário da progressiva conquista dessa
correspondência - proposta como ideal - entre objeto, percepto e percipiens, supondo desde
uma correspondência meramente imaginária (nas concepções mais ingênuas da pedagogia) até
uma correspondência lógica (nas concepções mais elaboradas, como a piagetiana).
Nessa perspectiva, qual seria o motivo do choro dessa menininha? O que a acalma, de fato, é
que sua mãe a tome nos braços e não que ela surja no lugar do espelho, onde apareceu a "mãe
desconhecida". Dito de outro modo, o que detém sua angústia não é fechar a brecha que se
abriu entre ela como percipiens e a mãe como percepto, mas o fato de que a mãe se situe na
posição de imagem real, a qual não se vê, precisamente porque a carrega nos braços, enquanto
que, agora sim, ela se dirige decididamente Para a outra menina e para a outra mãe. O que
agora lhe permite aproximar-se de seu espelhismo desarmado é que ela mesma já não está
mais em seu próprio espelhismo, mas situada em uma cena de valor simbólico. Pura instância
mental, não representacional), junto a sua mãe. Isto é, a Partir desse "lugar distante" - porque
obedece a outro estatuto - pode sustentar sua proximidade material com o percepto estranho.
Winnicott já havia nos adiantado esta observação em Escritos de Psicanálise e Pediatria, a
propósito de suas observações da conduta dos
166
bebês, diante de sua aproximação com o abaixador de língua. Chamava a sua atenção que
estar sentado no colo da mãe, em uma aproximação gradual, permitia ao bebê suportar uma
relação tão íntima e invasiva com esse objeto desconhecido.
O que acontece aos bebês em tais circunstâncias não é, em absoluto, o efeito de uma
insuficiência evolutiva, que os leve a depender demasiadamente dos afetos de sua mãe. É,
muito pelo contrário, a expressão de que esse pequeno corpo, com sua cabecinha e tudo, está
sendo capturado pelo tecido mais fino e sutil da meada humana: essa estrutura do sujeito que
não reconhece nem evolução, nem temporalidade. Que ela se manifeste de diversas maneiras,
em diferentes idades, não nega que tanto as inscrições como os elos significantes que as
vinculam permaneçam os mesmos, qualquer que seja a idade do sujeito que as suporta e que
delas se toma, inconscientemente, para sê-lo. É facilmente comprovável que a conseqüência
de poder aproximar-se do objeto, apesar do estranhamento que este sempre nos provoca,
permanece durante toda a vida como um efeito desse distanciamento que a inscrição
simbólica (a do sujeito no discurso do Outro) estabelece, a respeito desse eterno desencontro
entre per-cepto e objeto.
Como se vê, não se trata, em absoluto, de corrigir os equívocos do bebê, mas de permitir-lhe
que desdobre os nós de sua significância. Tanto o cuidador do maternal como o professor de
jardim, se por um lado podem propiciar que a criança depare com as mais variadas versões
desse desencontro entre o objeto e sua percepção, e que ensaie todas as soluções lógicas que
seu intelecto permita, por outro lado - que a essas alturas já pode ser percebido como
fundamental - é preciso que tenham consciência de que eles operam como suporte das
inscrições significantes cuja sustentação seus pais, consciente ou inconscientemente, lhes
cederam.
Na via do terapeuta, ele é suposto como apto para reduzir o que entorpece o "animal
evolutivo". Mas os terapeutas há muito reconhecem, pelos próprios efeitos de sua prática, que
os neurônios, os músculos e as funções biológicas, apesar de serem originalmente tomados
em um ritmo temporal preestabelecido, respondem de modo surpreendente à posição
fantasmática em que tal "aparelho" é tomado. Desta óptica, não apenas percebem que as
circunstâncias psíquicas produzem efeitos no neuro-funcional, mas vão incorporando
progressivamente essa potencialidade das significações mentais, que cada ato clínico desperta
em cada criança, como o próprio instrumento de seu ato de cura.
167
Terapeutas e educadores vêem-se assim percorrendo caminhos bastante distantes de seus
redutos originais. São esses caminhos que, por estarem a uma certa distância do próprio
objeto de seu propósito, lhes permitem entrar em contato com a inscrição que tal objeto
produz ou na qual tal objeto se apoia.
É claro que não podemos governar as circunstâncias que conduzem à produção de uma
inscrição, mas é também certo que podemos alimentá-las e servir-lhes de escudeiros.
Porém, o therapeutés dos primórdios vê rapidamente comprometida sua função de cuidar pela
demanda do pathos (sofrimento) que acaba transformando seu ato, do cuidado à cura. A
patologia alude assim, sem sabê-lo, não à objetividade de uma doença, mas à subjetividade de
uma queixa. O terapeuta atende, então, à queixa ou à enfermidade?
Quem responde à tradição de Educa vê-se frente ao compromisso de que seu "alimento"
fundamental é aquele cuja repercussão simbólica vai muito além de uma indigestão
passageira. O compilador medieval M. T. Varrão recolhe, no Catus, sive de liberis educandis,
o preceito romano: "É importante o modo como as crianças começam a ser educadas, porque
quase sempre assim se tornam". Percebe-se nisso o quanto da ordem de uma inscrição
também se joga no papel do educador.
Qual é, então, a relação entre o sujeito que surge e o sujeito que padece? Qual é a relação
entre o sujeito que significa e o sujeito que aprende?
Foram tentados diferentes divórcios: o sujeito psíquico como diferente do cognitivo, do
psicológico, um sujeito da prática e outro da inteligência abstrata, um sujeito da ação e outro
da neurotransmissão, um sujeito lingüístico e outro do desejo etc. As separações absolutas
entre clínica e educação se ampararam fortemente na oposição burocrática entre saúde e
educação, na diferença ética entre o ato psicanalítico e o pedagógico, na distância prática
entre a função médica e a função educativa. De fato, todos esses campos tropeçam com os
efeitos da posição transferencial que ocupam na vida de seus pequenos sujeitos. Para além das
colaborações ou distanciamentos recíprocos, são postas constantemente em evidência as
conseqüências da posição psíquica que uma e outra disciplina cultivam, embora algumas delas
pensem que não estão cultivando nenhuma. As crianças nos devolvem incessantemente ao
campo da interdisciplina, demonstrando-nos a insuficiência dos recortes de nossos respectivos
campos.
168
Somente um artifício poderia separá-los, pois, em seu ato, vão irremediavelmente juntos.
Bibliografia
LACAN, "La dirección de la cura y los princípios de su poder", In: "Lectura estructuralista de
Freud (Escritos, v. 1)". México, Siglo XXI, 1971.
MANACORDA, M. A. - "História da Educação". São Paulo, Cortez/Autores Associados,
1989.
WINNICOTT, D. W. - "El niño y el mundo externo". Buenos Aires, Paidós, 1965.
—. "Escritos de pediatria y psicoanálisis". Barcelona, Laia, 1979.
Notas
1 - Artigo já surgido em Escritos de la Infância n° 5, publicação do Centro Lydia Coriat de Buenos Aires, sob o
título de "La educación, es terapêutica?(II)", em continuação a artigo anterior, de mesmo título, publicado no
número 4 da mesma revista.
2 - Enciclopédia Salvat, Barcelona, Salvat, 1972.
3 - Incunábulo editado em Paris, consultado na biblioteca particular de Contardo Calligaris.
4 - Veja-se desde as novelas escritas para adolescentes, como por exemplo as de Louise M. Alcott, Jane Eyre
etc, até o filme "A Sociedade dos Poetas Mortos".
Fim das notas.
169
A SEXUALIDADE DO DEFICIENTE MENTAL
A sexualidade tem um papel fundamental na estrutura do sujeito psíquico. A mãe provê para o
bebê os objetos satisfatórios que, por sê-lo, se instalarão como objeto da pulsão. O fato de que
eles sejam oferecidos por outro inscreve tais objetos no circuito de dependência desse outro,
ou seja, como objetos não totalmente disponíveis e que só podem ser obtidos na medida em
que o bebê cumpra com a condição de agradar. Como vemos, para que a criança tenha
interesse pelo mundo é necessário que ela mesma seja desejada por outro. Somente assim o
contato com os objetos e pessoas poderá ser psiquicamente prazeroso, desbordando o campo
puramente biológico.
É nesta relação mãe-filho que começa a história da sexualidade: a provisão de um circuito de
simbolização que permitirá ao bebê postergar suas realizações eróticas puramente corporais,
outorgando-lhe uma ordem interna que lhe permita dirigir-se ao mundo social da
comunicação e da aprendizagem.
Quando se produz uma inibição meramente mecânica sem deixar espaço para opções
alternativas e para uma promessa de realização no futuro, aparece o fantasma das neuroses
graves ou as psicoses, já que os impulsos ficam ancorados no nível do corpo e não encontram
derivação possível.
Uma vida sem prazer é uma vida sem desejo e isto equivale à loucura. Este prazer se gesta na
identificação com uma mãe gozosa de ter seu filho e com um pai que lhe abre promessas de
realização sexual futura no mundo externo, em troca da inibição atual. É por isso que
aparecem com tanta freqüência problemas sexuais nos deficientes mentais:
- O desejo da mãe dirigido ao filho fica perturbado, às vezes suspenso ou quebrado.
- A reciprocidade do intercâmbio mãe-filho deixa de ser prazerosa,
170
pela depressão materna, pela comoção familiar, pela sensação de intrusão que produz o
recém-chegado, não coincidente com o filho esperado.
- As promessas de futura realização sexual ficam suprimidas.
Os genitais do bebê, que habitualmente são objetos de curiosidade e de brincadeiras
familiares, nestes casos costumam ser ignorados ou silenciados em sua significação.
A etapa da curiosidade sexual e das teorias sexuais infantis, coincidentemente com as
preocupações da criança com a sua origem, raramente aparece nos deficientes mentais.
Nas crianças de quatro a sete anos, de níveis moderados ou leves de deficiência mental, não se
pode justificar essa ausência por insuficiente inteligência para formular tais questões, visto
serem de nível intuitivo (pré-lógico) elementar e nunca de nível lógico. A ausência de tais
assuntos nas colocações da criança parece ser muito mais atribuível às dificuldades que os
pais sentem para abordar a questão. Os aspectos mais perturbadores para a família estão
constituídos por assustadoras imagens a respeito do futuro desta criança e pela habitual
confusão conceitual entre inteligência e personalidade. A respeito do primeiro fator, observa-
se a presença, em quase todos os casos, de temores de perversão sexual do filho deficiente
mental durante a adolescência, atribuindo-lhe uma natureza particularmente impulsiva, uma
incapacidade de controle ou uma ingenuidade que o transformará em fácil vítima de
"inescrupulosos aproveitadores". Muitos pais perguntam a respeito da maturação sexual, com
a secreta mas perceptível esperança de que esta possa não ocorrer, devido às alterações
biológicas de que seu filho padece.
A demora no controle esfincteriano provoca muito alarme, já que funciona, muitas vezes,
como uma confirmação inconsciente e antecipada dos temores sobre o controle sexual, pela
óbvia associação de regiões erógenas.
O segundo fator perturbador: a confusão entre inteligência e personalidade obedece às antigas
concepções da psicologia da consciência que opõem a razão à emoção e que ainda hoje
impregnam o conhecimento vulgar, tanto das pessoas em geral quanto dos setores
profissionais não especializados neste tema.
O conceito de que a emoção é um efeito de impulsos primitivos irracionais e bestiais e que
somente a força do pensamento lógico pode controlar e introduzir ordem neste hipotético
"animal humano" já não é mais um conceito científico, mas sim um arcaísmo remanescente da
filosofia renascentista que se arrastou através do positivismo até nosso século.
171
Tendo como pressuposto inconsciente este preconceito social, os pais temem que a debilidade
da "razão" não ofereça barreira de contenção suficiente para os primitivos impulsos sexuais.
Na verdade, isto é da dimensão do fantasma que, pelo próprio fato de estar presente, pode, no
entanto, chegar a ter uma eficácia real. Porém está claro que não responde à realidade da
dinâmica da deficiência mental: a contenção dos impulsos sexuais não depende da
inteligência, mas dos processos de identificação e simbolização, sendo que para que estes
últimos ocorram resulta suficiente uma inteligência intuitiva.
Além do mais, de tanto insistir no temor, o filho acaba temendo ser aquilo que horroriza os
pais. O repetitivo olhar dos pais constituindo uma imagem de ser sexualmente assustador
termina empurrando a criança a ocupar este lugar que constantemente, de modo inconsciente,
insinua-se como sendo aquele que lhe pertence.
Embora seja verdade que as limitações da inteligência podem gerar um campo mais restrito
para o deslocamento simbólico, somente nos casos mais graves e profundos de deficiência
mental isto chega a níveis que impossibilitam o processo de elaboração dos impulsos sexuais.
Ocorre porém, precisamente, que a questão do exercício sexual social somente está presente
para os moderados ou leves, porque apenas eles podem atingir um nível de autonomia que
lhes assegure uma certa amplitude de circulação para além da família.
Nos casos mais graves de deficiência mental, a circulação social é mínima e ultraprotegida,
pelo qual a problemática do manejo sexual restringe-se ao âmbito da intimidade institucional
e em muito poucos casos oferece dificuldades mais sérias.
Portanto: os níveis de inteligência raramente oferecem, por si mesmos, riscos para a
elaboração adequada da sexualidade nos casos em que a questão da circulação sexual social
permanece em pé.
Os maiores riscos provêm da resistência parental a enfrentar a obturação total da sexualidade
do filho, que a maioria sente como inevitável.
Este fechamento, que obtura o futuro pessoal da criança e induz a família a antecipar nela um
bebê eterno, constitui um sofrimento de uma dimensão intolerável, tanto para os pais como
para o filho. É por isso que terminam se produzindo sintomas tais como oposicionismo,
masturbação compulsiva, exibicionismo, depressões psicóticas, conversões, somatiza-Ções
etc.
As regressões de tipo autístico podem ser a expressão da busca de
172
complacência no auto-estímulo, reproduzindo um circuito narcísico que denuncia a
impossibilidade de incluir um outro em seu projeto de prazer.
A sexualidade é motivo e veículo pelo qual unimos ou desunimos nosso destino a outra
pessoa, embora não seja nela mesma que se realize ou não esta união, mas sim no que dela
deriva: a ordem psíquica. É na mesma relação a ela que se define a vinda dos filhos, o
resguardo da intimidade, o cobrir o corpo, os laços de parentesco, as diferenciações das
pessoas. O prazer é o mobilizador de grande parte do nosso agir. O deficiente mental não
pode ficar totalmente à margem a priori deste processo, a menos que se pretenda deixá-lo
excluído da condição de pessoa e de toda a circulação social. Como podemos observar, a
questão sexual não é uma mera questão de hábitos mal ou bem administrados.
Existe uma grande tentação de reduzir a problemática da deficiência mental a uma pura
questão de inteligência, porque assim a tarefa terapêutica se daria somente no nível da
estimulação pedagógica. Isto evita o enfrentamento com problemas mais angustiantes no
plano imediato, apesar de que esta atitude termine produzindo dificuldades de limitações mais
sérias a longo prazo.
As propostas de produção de autômatos mais ou menos adaptados, de acordo com as
expectativas dos pais e sem nenhum desejo constituído nas crianças, reduzem a sexualidade a
este conceito de "hábitos", propondo programas de treinamento para o manejo dos genitais
com o mesmo valor de indiferença com que se propõe a aprendizagem de uma classificação
de círculos e triângulos.
Estes enfoques costumam ser muito tentadores: economizam o tempo e a angústia que produz
a formulação e elaboração das perguntas sobre o destino, porque, afinal de contas, para os que
assim pensam o deficiente mental não tem outro "destino" para além do previamente
estabelecido nos programas de ensino e absorção progressiva.
Jean Piaget é mais respeitoso. Para ele, os hábitos não abrangem o terreno da sexualidade,
nem sequer no caso dos deficientes mentais. A sexualidade tem, na psicologia piagetiana, um
lugar próprio na constituição do sujeito psíquico, embora ele não se ocupe disso.
As tendências resistenciais das famílias a abordar este tema muitas vezes se potencializam
com tais enfoques terapêuticos que tratam somente em aparência deste assunto e que reduzem
a problemática da deficiência a uma questão pedagógica.
Além do mais, a preocupação mais consciente da família é a
173
questão intelectual e freqüentemente esta serve para ocultar outros temores menos manifestos
porque resultam mais angustiantes.
Registramos as seguintes formações patogênicas como as que mais freqüentemente aparecem
no campo da sexualidade do deficiente mental:
a) Prolongamento da identidade infantil.
b) Prolongamento excessivo dos cuidados maternos primários que estendem em demasia a
intimidade corporal entre mãe e o filho.
c) Utilização de técnicas de reabilitação compulsivas no nível corporal (como por exemplo a
fisioterapia clássica, que tende à manipulação passiva), obstaculizando o deslocamento no
nível simbólico dos impulsos corporais e que colocam, involuntariamente, num primeiro
plano o corpo da criança.
d) Cortes bruscos e imprevisíveis do contato corporal frente às primeiras manifestações
sexuais genitais da criança, o que inadvertidamente deixa muito sublinhado o acontecimento
sexual, convocando assim seu retorno perseverativo.
e) Fantasias parentais conscientes ou inconscientes de perversão futura do filho deficiente
mental. A mitologia social, confusa, porém abundante, sobre este assunto, contribui
fortemente para afirmar os temores familiares.
Os temores frente à realização sexual do deficiente mental estão com freqüência inspirados
numa rígida e preconceituosa concepção da moral sexual social que, no fundo, responde a
uma tentativa de desconhecer o papel da sexualidade na vida humana. Os pais que concebem
sem problemas a importância destes impulsos na própria vida, muitas vezes, no entanto, têm
dificuldades para reconhecer a equivalência do filho deficiente nas questões fundamentais da
vida.
Existem movimentos tais como o People First nos Estados Unidos, ou propostas de atividade
sexual vigiada como a contida no programa da Universidade de Michigan, além das
inumeráveis experiências isoladas, que mostram a viabilidade do exercício sexual do
deficiente mental, dentro dos bons níveis de segurança individual e social. Porém isso
somente é possível quando se deixam cair por terra os preconceitos e as práticas mecanicistas
que constituem um obstáculo para a abordagem profunda deste problema.
Parte II
Testemunhos e Propostas de Abordagens Terapêuticas
"A extrema complexidade das noções postas em jogo em nosso domínio faz com que nenhum
outro lugar corra um espírito, por expor seu juízo, mais totalmente o risco de descobrir sua
medida". J. Lacan, Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise.
177
QUANTOS TERAPEUTAS PARA CADA CRIANÇA?1
"One little, two líttle, three little indians
Four little, five little, six little indians
Seven little, eight little, nine little indians
Ten little indian boys."2
Os terapeutas são deslocados, situados e distribuídos de acordo com cada versão histórica e
sua multiplicação atual responde às tendências reducionistas de cada especialidade. O enfoque
inter e transdisciplinar, utilizando ferramentas psicanalíticas, permite reformulações clínicas
decisivas na prática com crianças afetadas por transtornos graves.
Um pouco de história
Com seu famoso gesto, no alvorecer da Revolução Francesa, Phillipe Pinei não somente
libera os loucos de seus grilhões. Esse ato, por seu valor de referência para toda a
psicopatologia moderna e contemporânea, constitui o momento mítico de introdução da
doença mental na perspectiva da racionalidade.3
Seus efeitos se verificam no Traité des Maladies Mentales, de Jean Étienne Esquirol (1772-
1844), aparecido em 1838, onde o modelo descritivo já considera não somente os
comportamentos estranhos mas, principalmente, os desvios do pensamento no âmbito da
razão. O eixo racionalidade/irracionalidade impõe, assim, uma determinada acepção inter-
pretativa às considerações relativas a "dentro ou fora da realidade". Por volta da segunda
metade do século 19, a psiquiatria, influenciada pelos avanços do conhecimento da anatomia
neuromuscular (Wundt, em seus
178
Estúdios sobre la conducción nerviosa) e neurosensorial (Von Helmholtz, com seu Tratado de
Óptica), adota o modelo das paralisias nervosas 4 em suas investigações psicopatológicas.
Charcot, primeiro (com suas famosas considerações sobre "a predisposição constitucional" na
etiologia da histeria), e Duprés, depois (com seu Pathologie de Uimagination et de l'é-
motivité5), são representantes desta vertente6.
Nela, as idéias de funciona ou não funciona, flexibilidade ou rigidez, modulado ou paroxístico
e, em última instância, adaptado ou ina-daptado, constituem os critérios que direcionam o
diagnóstico7.
Podem considerar-se como tributárias desta linha de análise as disciplinas que se originam nos
estudos neurofuncionais produzidos em nosso século. Assim, por exemplo, a fonoaudiologia,
a fisioterapia8. Também as que se originam nos estudos neuropsicológicos, como a psicologia
da percepção9, das habilidades10 e do comportamento em seu sentido maturativo".11 Nestas
últimas se enraízam várias especialidades reabilitadoras e diversas técnicas terapêuticas -
algumas mais específicas e outras mais gerais - que apontam à adaptação 12. Todas elas
respondem em maior ou menor grau ao princípio empírico-positivista da correspondência
entre o sujeito e o objeto como o critério fundamental do correto e do verdadeiro. E também
todas elas selecionam suas operações clínicas orientadas pelo espírito pragmático que inspira
nossa época. Uma articulação entre ciência moderna, utilidade e senso comum que obtém
alguns resultados práticos, mas com efeitos subjetivos completamente incertos.
Este amálgama psicopatológico e clínico, que se articula nos cem anos que vão desde meados
do século passado até a metade do atual, se origina fundamentalmente na prática com adultos.
Isso tende a gerar um certo adultomorfismo quando suas categorias são aplicadas ao campo da
infância. Entretanto, esta tendência fica parcialmente contrabalançada pelo surgimento, em
geral dentro dos mesmos moldes, de uma neuropsiquiatria especificamente pediátrica
(Ajuriaguerra, Kanner, Koupernik, Coriat, Lefèvre, Ponces-Verges, entre outros),
fundamentalmente a partir da década de 40. Adiantamo-nos a assinalar que, entre os autores
citados, cabe à Dra. Lydia F. de Coriat o mérito de ter quebrado esses moldes, já que se partiu
do modelo da paralisia e do arco reflexo na concepção psico-patológica, realizou, na prática,
uma crítica desta, ao introduzir uma clínica interdisciplinar. Esta clínica abriu caminho para
que as concepções neuropsiquiátricas imperantes fossem atravessadas por uma psicopatologia
e prática psicanalíticas".
179
Um lobo que mudou a história das crianças
Retomando a questão histórica desde o ângulo da infância, talvez pudéssemos situar como ato
equivalente ao de Pinei a tentativa do Dr. Itard de reeducar cientificamente o jovem "lobo"
chamado Vítor, que fora encontrado nos bosques de UAveyron em 1799.
É importante recordar que este acontecimento surge no âmbito do nascimento da pedagogia
moderna, que, a essas alturas, já contava com um século de desdobramento. A proposta de
Lasalle (fim do século 17 e início do 18) de padronizar a educação 14, ao estabelecer um
rendimento suposto como necessário, determina um eixo com relação ao qual todas as
crianças ficam comparadas. Isso permite o surgimento de um critério de "normalidade" de
cujo contraste emerge tanto uma psicopatologia das aprendizagens como uma psicopatologia
da adaptação escolar, sendo que esta última acaba transformando-se em um paradigma da
adaptação social. Esta origem - parcial da psicopatologia específica da infância encadeia as
crianças a uma posição obrigatória, cujo desvio só se explicava, durante o século 18, como
simples rebeldia, má índole ou, o que dá no mesmo, uma natureza inferior ou indigna
(referindo-se esta última, certamente, aos estamentos sociais). Um século depois, a tentativa
do Dr. Itard quebra esse encadeamento e, apesar de seus erros, propõe que um ato clínico
racionalmente orientado pode fazer funcionar - reeducar - o que não funciona. Nasce aí uma
clínica das aprendizagens que, é claro, tem por objeto a aproximação da criança ao standard.
A idéia que dirige o standard relacionado à função se associa à demanda, formulada pela
gnosiologia positivista, de uma psicologia que se ocupe de medir a correspondência entre
percipiens, perceptuum e objeto. Medida suposta da verdade dos conhecimentos produzidos
(ou adquiridos) que verificaria a eficácia das aprendizagens efetuadas.
Surge, assim, a "bateria de testes", instrumentos de uma psicologia supostamente clínica
porque, ao medir a distância do sujeito em relação à média (representação estatística do
standard), mediria o grau de sua normalidade ou anormalidade.
Neste ponto é inevitável que chamemos a atenção sobre o fato de que o que se está medindo é,
na realidade, a distância que tal sujeito manifesta com relação a uma média que foi construída
a partir de uma população formada por sujeitos educados segundo o ideal cognitivo de uma
sociedade industrial. Devemos reconhecer nisso que uma clínica de tal espécie afunda... pelo
desvio standard.
180
A psicopedagogia clínica - ainda que atualmente possa estar tomada em outros princípios - se
origina nessa psicopatologia racionalista (que tem como substrato a necessidade industrial 15
de uma força de trabalho humano uniformizada em seus conhecimentos) e se contamina
apenas secundariamente com o modelo da paralisia nervosa. Esta "contaminação" se verifica
no suposto das "disfunções cerebrais" (mínimas, perceptivas, de atenção, práxicas, de
lateralização etc.) como causa dos transtornos de aprendizagem e - veja-se o viés que as
coisas podem tomar! - também do "mau comportamento" (leia-se indisciplina escolar).
Andando, andando, retornamos ao mesmo lugar: "a má natureza".
Sempre falta algo
A série histórica dos eixos psicopatológicos - má índole, racionalidade - irracionalidade,
paralisias orgânicas - se prolonga a partir dos anos 50 em um novo rumo: a neuroquímica e
sua expressão complementar, a neurogenética. Antes faltava bondade, depois razão, mais
tarde função, agora falta substância 16. Isso dá nascimento à psiquiatria biológica. Também a
um importante ramo da psicopatologia, situado mais ao lado da biogenética. E se agrega uma
neurologia mais diagnóstica e menos clínica, no sentido clássico do termo (ainda que, é claro,
ambas operações não estejam completamente dissociadas).
Surge, no fim do século, de um modo que estritamente não poderíamos considerar paralelo,
outra psicopatologia que intersecta de forma crítica esta trajetória, transformando uma
substancial parte de suas concepções e colocando o resto delas em xeque. É a psicopatologia
psi-canalítica, que ao mesmo tempo que realiza a crítica diferencial das paralisias orgânicas
em relação às paralisias histéricas (que hoje em dia poderíamos chamar subjetivas 17), introduz
dois conceitos fundamentais para qualquer consideração sobre a patologia mental e sua cura, a
saber, a transferência e o infantil, ambos articulados à descoberta do inconsciente.
A psicopatologia é concebida não através de recursos comparativos (em nossa época
deveríamos dizer estatísticos), e tampouco pela falta de bondade, razão, função ou substância
- ainda que tudo isto por falta ou excesso tenha sua indubitável incidência. O que organiza a
patologia mental é o retorno do infantil, enquanto reprimido, ou seja, em sua condição de
inconsciente ou pela impossibilidade de manter dissociado o inconsciente enquanto tal. Isto se
dá por uma falha na estruturação do sujeito,
181
articulado pela linguagem que, através de suas inscrições, determina seu funcionamento
mental. O cérebro humano, sem linguagem, não articula automaticamente nada do que
caracteriza o humano18. Por isso, disto só se pode saber escutando o sujeito, ou seja, na
relação que se sustenta com ele na transferência. Dito de outra maneira, aquele que sofre,
sustenta e manifesta a psicopatologia, é um no duplo sentido da singularidade - que resiste a
qualquer uniformização ou referência a uma normalidade standard - e do sujeito que se
enuncia a si mesmo, ainfda que ao fazê-lo através do um encubra esse si mesmo sob uma
forma impessoal.
É aqui que surge a possibilidade de uma psicopatologia especificamente infantil. Porque já
não se trata de comparar a criança com os ideais propostos pelo adulto - e, portanto, tampouco
de situá-la nas categorias psicopatológicas estabelecidas; de acordo com os sistemas
adaptativos definidos para a vida adulta -, mas de escutá-la em seu singular modo de
confrontar-se com o que o outro lhe demanda, a partir do que nele se articulou como
inscrição. Esta inscrição lhe permite situar sua posição frente aos outros e diferenciar a
significação das coisas do mundo. Este ponto é o das inscrições primordiais, o lugar e o
momento em que se produzem as condições de sua particular psicopatologia.
Ali, nos momentos iniciais de sua vida, momentos da maior disponibilidade, porque nada foi
ainda marcado19, qualquer operação clínica, de qualquer espécie, adquire o caráter de uma
marca estruturante e, possivelmente, definitiva. Por isto, quando (a infância está ameaçada) a
decisão de quem, quantos e como irão intervir tem conseqüência fundamental.
Note-se que com esta concepção se abre a possibilidade de considerar as conseqüências que
acarretariam, para o pequeno sujeito, ser capturado precocemente por um modelo
psicopatológico que, pela força mesma do discurso que se coloca em jogo - o da bondade, o
da razão, o da função ou o da substância - acabe reduzindo-o a girar em torno de uma marca
maniqueísta, lógica, utilitária ou coisificante.
Note-se também que não estamos falando de neuropatologia nem de patologia genética, mas
de psicopatologia. E apesar de que hoje em dia seja evidente a conexão que há entre estes três
campos, sobretudo para aqueles que nos dedicamos às patologias graves da infância, continua
tendo todo seu peso de verdade aquela frase que J. Ajuriaguerra gostava tanto de enunciar:
"Não se trata de curar neurônios, mas de curar crianças."
182
"Espelho, espelho meu!": qual é a disciplina mais linda?
No mesmo ritmo que surge a diferenciação, de funções afetadas e se investigam causas, vão
se somando as especialidades e disciplinas que se propõem para a cura. Assim se multiplicam
as intervenções, no suposto de que sua adição sistemática contribuiria para completar o
quadro da normalidade. Tal é a origem da multidisciplinariedade na clínica.
Por isso, nas décadas de 60 e de 70, era comum encontrarmo-nos com crianças que recebiam
simultaneamente cinco, seis, e - tropeçamos com isto - até 14 tratamentos. Os terapeutas
faziam, honestamente, cada um a sua parte. A criança, é claro, raramente conseguia juntá-las
todas, ou, dito de outro modo, pouco podia fazer no que lhe dizia respeito.
O que se observava, então, era que essa fragmentação imaginária costumava ter
conseqüências simbólicas. O que corresponde a dizer que a criança, enquanto sujeito, se via
confrontada com tantos discursos apresentados em equivalência que não se constituía nela
uma escolha para determinar seu sistema de significações. Tendo em conta, é claro, que diante
da gravidade e diversidade dos transtornos manifestos os pais já haviam vacilado previamente
em exercer qualquer saber - sobre a criança; muito mais diante do quadro de inúmeros
"saberes" ofertados como competentes para fazer frente, um a um, aos males em questão.
Nada oferecia uma aparência mais racional que esta proposta de resolver um problema por
vez e de acordo com a natureza de cada problema, mas todos ao mesmo tempo, devido à
urgência da situação.
Não se apresentava então a dificuldade de ter que eleger uma terapia entre outras. Todas
podiam atuar simultaneamente20. Restavam para a criança os efeitos dessa fragmentação
discursiva.
Um primeiro passo para reduzir este grande número de competências de saberes (em ambos
os sentidos) foi a proposta que formulamos a partir de 1973, conjuntamente com a Dra. Lydia
Coriat, de trabalhar de forma interdisciplinar para decidir sobre as estratégias terapêuticas.
Mas esta proposição nos confrontou imediatamente com duas questões peremptórias. A
primeira, que era impossível conservar a equivalência absoluta e a independência recíproca
dos discursos técnico-científicos (critérios próprios da multidisciplina) porque isso impedia
efetivar uma estratégia terapêutica que reduzisse o quadro de operadores. A segunda, que a
ampla proporção de bebês e crianças pequenas que chegavam a
183
nossas consultas se mostravam especialmente sensíveis às conseqüências iatrogênicas da
metodologia multidisciplinar.
Em relação à primeira questão, era necessário estabelecer algum modo de definir a
prevalência contingente de um ou outro discurso frente a cada situação clínica concreta.
Também surgia ali, como uma questão ética elementar, a necessária crítica do costume -
naquele momento, de praxe - de que o paciente ficasse retido nas mãos do terapeuta que
inicialmente havia recebido sua demanda. O primeiro critério que emergiu foi pragmático: a
condução clínica se vetorizava pela ou pelas afecções mais notórias apresentadas pelo
paciente. Assim, a eleição do ou dos poucos (em geral não mais de três, nos parecia uma cifra
limite intuitivamente razoável) terapeutas intervenientes ficava indicada pelas funções mais
afetadas, sendo que os outros colegas da equipe traziam seus conhecimentos específicos de
outras áreas para que fossem colocados em prática pelos operadores efetivos. Contudo,
rapidamente comprovamos que raramente as afecções mais notórias constituíam os obstáculos
mais relevantes para o desenvolvimento dos pequenos. Percebemos - porque nossos pacientes
se fizeram ouvir na medida em que os escutamos, ou se fizeram entender na medida em que
os interpretamos - que a proporção em que um sintoma, produzido por uma doença orgânica,
se constitui em um obstáculo para o desenvolvimento depende de que se constitua como
sintoma psíquico. Foi fácil, a partir dali, verificar em nossa prática clínica que quando um
problema orgânico se conserva no plano puramente orgânico e não adquire dimensão
subjetiva para a criança, esse problema, por mais aparente e espetacular que seja, não se
constitui como obstáculo. Porque, paradoxalmente, na medida em que não há uma
determinação subjetiva para atravessar o limite que tal problema impõe, o limite mesmo não
cobra existência para o sujeito em questão. E apesar de que em seus parâmetros e pautas, em
seus padrões e estatísticas, médicos e técnicos comprovem o distanciamento desta criança em
relação à normalidade, a criança mesma está tão distante de tais quadrantes que bem pode
estar tomada por uma "insignificante" luta por diferenciar sua mãe do resto dos mortais na
escuridão que, por exemplo, sua cegueira pode haver lhe imposto. As tentativas ortópticas, os
ensinos sonoros e táteis, embora guardem relação com seu problema, estão tão distantes de
sua preocupação como pode estar uma estatística demográfica de um poeta japonês (embora,
em última instância, é claro - como tudo neste mundo - tenham alguma relação).
184
A partir desta verificação, ficou redimensionada esta perspectiva pragmática, sob a ótica da
posição subjetiva desde a qual a criança suportava seus sintomas. Foi então que a psicanálise
se revelou como hábil para a prática deste deciframento. Já não se tratava, então, da
prevalência de um ou outro discurso, mas da implementação de uma chave que tornasse
legível a situação clínica: o estatuto psíquico do sintoma orgânico. A interpelação recíproca
dos discursos - própria da interdisciplina - continuava, mas agora contávamos com um modo
de ler os efeitos dessa interpelação em termos do destinatário dela: nosso pequeno paciente 21.
A partir deste momento, passou-se a decidir a eleição terapêutica em função de tais efeitos
subjetivos, ou seja, em função deste caráter psíquico do sintoma real. Como, até então, os
outros integrantes da equipe inter-disciplinar continuaram trazendo suas técnicas e
perspectivas específicas a este viés, agora transdisciplinar, da intervenção22.
O que os bebês nos ensinam
A segunda confrontação que nos exigiu decisão peremptória foi a prática com bebês.
Certamente eles mostravam ser os mais prejudicados por essa multiplicação de especialistas a
seu redor. Ali se manifestava um forcejo que não deixava de ter suas boas razões dos dois
lados: de um lado, os pediatras tentavam reter o paciente sob sua tutela que, desde o ângulo do
"médico de família", tendia a manter uma coerência nas orientações a respeito da criação da
criança.
De outro lado, os especialistas esgrimiam suas competências específicas para tratar os
problemas, diversificados em suas concepções, do desenvolvimento dos pequenos. Neste
embate se perdiam contribuições preciosas e necessárias para as condutas terapêuticas, que os
conhecimentos mais recentes podiam oferecer através dos especialistas e, ao mesmo tempo, se
perdia a criteriosa experiência de quem intervinha guiado não somente pelo saber técnico,
mas pelo conhecimento (ainda que intuitivo) das condições "emocionais" (leia-se "a
interpretação que darão") em que uma família recebe um diagnóstico ou uma indicação
terapêutica. Mas o que rapidamente pudemos perceber foi que neste embate ficava estampada
a disputa para determinar quem deteria, em definitivo, a autoridade para a criação da criança.
E nessas duas pontas, certamente, o que se evidenciava como ausente era qualquer apelo a um
saber dos pais. Frente a situações graves, os pais ficavam fora. Como as situações graves
185
das quais tratávamos eram crônicas, os pais, e seu saber, tendiam a ficar cronicamente
excluídos.
Tratando-se de bebês, ou seja, de crianças que estão atravessando este momento em que se
inscrevem as formulações fantasmáticas primordiais que vão instalar e oferecer o código de
todo o deciframento posterior que a criança poderá realizar do mundo em que vive, a
preservação da unicidade (no sentido de único, singular, e não de-unido) desse código se
revelava como essencial.
Tratando-se de bebês, então, se registrava que, ao mesmo tempo, o código da língua ficava
fragmentado em tantos pedaços quantos terapeutas intervinham e que, em sua instalação, os
pais pouco ou nada participavam. Geravam-se, assim, as condições mais propícias para os
fenômenos de estranhamento próprios da psicose. Efetivamente, a exclusão parental e a
tecnificação da língua de referência para a criança, a seleção das operações e procedimentos a
efetuar com a criança segundo o princípio da maior dedicação às condutas de maior eficácia
reabilitadora imediata, colocavam em risco a estruturação da filiação, da sexuação e as
identificações no plano simbólico, lançando-as no plano da fragmentação imaginária ou da
indiferenciação real. E, o pior, é que isto se verificava na clínica e nos fenômenos
psicopatológicos, desde os mais precoces aos mais tardios.
Tendo em conta que os bebês que chegavam a nós estavam já em condições problemáticas por
padecer de transtornos genéticos e/ou neurológicos em uma significativa proporção, tal
fragmentação e tal diversificação de sua imagem especular no Outro provocavam com terrível
facilidade um retraimento do circuito pulsional sobre seu próprio corpo. Tendo em conta que
a preocupação parental inevitavelmente girava de modo imediato em torno do corpo
danificado, capturados, como costumavam estar, os pais, na neurose traumática desencadeada
pelo acontecimento que havia destroçado o ideal em que se havia constituído seu desejo deste
filho. A repetição incontrolável e incessante desse desgarramento frente à presença do filho
em questão impelia os pais (como ainda em dia costuma fazê-lo) nos períodos iniciais da vida
da criança (os primeiros anos) a desconfiar de sua própria condição para orientar a vida do
pequeno a quem, de toda forma, ansiavam em proteger. Por isso, facilmente renunciavam a seu
saber sobre a infância (tomado, indubitavelmente, dos restos inconscientes de sua própria
infância e de sua experiência com outras crianças), a esse saber que, exercido, colocaria a
criança nas vias de
186
sua própria estirpe, nos vetores de seus ideais e desejos, nos contrastes de seus modos de
usufruir a vida e de confrontar-se com a lei social. Este saber, capaz de relativizar a limitação
físico-funcional sob o domínio dos valores simbólicos da vida, ficava assim submerso pelo
trauma e cedia seu lugar com trágica facilidade ao saber técnico-científico.
A ausência de um Outro confiável que encarnasse o código da língua de um modo decifrável,
em um momento em que ainda não se tenha constituído para a criança a diferenciação da
letra, para orientar-se na selva significante, e sua substituição por inúmeros e estranhos
personagens que lhe falam em nome de um saber que nada tem a ver com seu desejo,
lançavam esses pequenos a uma clausura em seu narcisismo primário, ou a um bricolage
precocemente esquizofrênico, quando não a uma depressão que os passivizava transformando-
os em "bons pacientes". Referimo-nos, sob este último termo, a essas carinhosas ou tranqüilas
crianças tão obedientes aos desígnios terapêuticos que, em realidade, se mostram tão dóceis
porque estão totalmente alheias a qualquer confrontação fálica e que, mais tarde, nos
primórdios de sua adolescência, irão revelar sua impossibilidade de fazer frente às mínimas
exigências de sua posição social e sexual. Será então que a crise nos mostrará o pouco que
fizemos quando ainda era possível arrancá-los da forclusão da referência paterna, e quanto
fomos cúmplices de uma maquinização que agora toma conta por inteiro de seu pensamento,
sob a forma de uma lógica sem objetivos, ou de um desvario sem lei ou, o que é pior, de um
ato cujo único princípio é a repetição infinita de seu ritmo?
Era necessário devolver a estas crianças sua chance de entrar na linguagem, além de recuperar
seus diversos handicaps. Ou seja, de entrar no humano, apesar de suas inabilidades. É assim
que surge a idéia do terapeuta único: diante dos efeitos autísticos e psicotizantes provocados
pela intervenção multidisciplinar com bebês.
Terapeuta único e função materna
A mãe, no que se refere a sua função, não é necessariamente a que biologicamente procria,
mas a que sustenta para a criança a possibilidade de seu reconhecimento apesar das variações
semânticas em que o pequeno bebê é incluído. Ao ser levada por ela a atravessar essas
variações, a criança é lançada a compreender que ser reconhecida não depende da repetição
mímica de seu ato, mas da repetição de uma significação apesar da variação
187
da imagem, e que inclusive repetindo-se a imagem, se a significação não se repete, o efeito do
reconhecimento não terá lugar. Assim, ele se reencontra além da imagem que se vê e, ao
mesmo tempo, em uma posição inversa à projeção real de sua auto-imagem. Mas que sua
inermidade real se inverta como potência, e que possa reconhecer-se além da vacuidade da
máscara que contempla, depende de que a mãe lhe devolva, desde o outro lado do espelho,
não precisamente o real, mas o que ele simboliza. É então que o bebê poderá reconhecer-se
mais no ideal que o representa no Outro que no real que o limita à impotência.
Embora não seja a imagem por si mesma que opere este processo, é sobre ela que se suporta
este trâmite. Daí que sua constância constitua um reasseguramento diante do mar de variantes
da série em que ela aparece. Por isso, J. Lacan nos recorda que o Outro para a criança não
pode ser anônimo. Nisso reside a importância da mãe, e esse enredo - no sentido teatral -
constitui a pregnância de seu fantasma na vida de todo o sujeito.
Compreende-se, então, que seja desde um terceiro - a Função Paterna - que esse enredo se
transforme em um quarto termo, a saber, em enigma. Que essa interrogação se enderece ao
Oráculo de Delfos, a Deus e à Maria Santíssima não expressa mais que a intuição de que se
requer um saber superior a si mesmo (ou seja o saber egóico) para decifrá-lo.
A criança concebida em sua inermidade, a mãe em sua função imaginária, a Função Paterna
que devolve um símbolo de reconhecimento desde além do espelho e o enigma que nisso se
constitui estabelecem os quatro termos que permitem que se opere a separação (do sujeito
com relação ao fantasma materno) e a alienação (da criança enquanto sujeito de um Outro).
Processos necessários para que a pulsão desenvolva um percurso que não fique achatado
sobre o real do corpo do bebê, mas que percorra o que o desejo do Outro Primordial lhe marca
como destino23.
A partir desta tensão - ou distensão - em que a pulsão é capturada, é que o real do corpo
encontra seu destino simbólico. O que temi é denominado em outro lugar "estiramento da
corda da pulsão", ponto assinalado por nós como crucial na direção da cura dos problemas
graves da infância. Esse estiramento tão bem caracterizado por esses momentos perfeitamente
observáveis na criança pequena nos quais primeiramente ela simplesmente faz, depois faz o
que os outros lhe fazem mais tarde faz para fazer-se fazer24.
No entanto, o terapeuta único não é alguém que possa substituir
188
esta função quando ausente, já que tal personagem seria ou bem uma mãe adotiva ou bem
uma mãe substituta. Seu desejo é terapêutico e não materno e por isso, se pretendesse realizar
uma substituição desta função especular, o único que conseguiria seria confundir a criança
ainda mais com sua impostura.
Mas se este terapeuta, como dissemos, não é uma mãe, mas sim é alguém que está em
condições de sustentar, naqueles que rodeiam efetivamente a criança em sua vida habitual, as
operações necessárias para o desdobramento deste processo. Ou bem, segundo os casos,
providenciar as substituições necessárias.
O terapeuta único não está só
Como em geral tratam-se de crianças com afecções específicas que tendem a retê-lo, tanto
psíquica como organicamente, no achatamento sobre o real de seu corpo, é necessário que o
terapeuta esteja munido das técnicas e habilidades específicas para direcionar a recuperação
das funções afetadas. Mas, depois de todas estas considerações, fica claro que se trata também
e fundamentalmente de situar a criança como sujeito no desejo do Outro para que ela mesma
possa constituir o desejo que a conduza em seu desenvolvimento, inclusive através dos
obstáculos que sua organicidade possa estabelecer-lhe. Constituído este desejo, a ajuda
específica do terapeuta virá em auxílio da obtenção do objetivo a que a criança se propõe.
Levando em conta que tal desejo opera geralmente de modo inconsciente, o que, neste caso,
significa que a criança opera em sua reabilitação porque o que se propõe, sem sabê-lo, está
além da pauta de habilidade a que se aponta. Dito de modo mais direto: ela não se centra em
que sua perna se mova, ela deseja obter a excelência de seu pai ao caminhar, ou uma
habilidade "maradônica" ao bater com os pés. Como o reconhecimento não se opera na
imitação mas na simbolização, o movimento não precisa ser idêntico ao outro imaginário,
basta que o gesto da criança signifique, no olhar do Outro, uma inclusão na série paterna ou
na série do fantasma "maradônico25.
Isto nos coloca um problema. Visto que geralmente as funções afetadas costumam ser várias
ao mesmo tempo, e que o terapeuta cuja função seja encarada como o propomos (e viemos
realizando) se veria na necessidade de dominar vários campos do saber simultaneamente, já
que deveria atender à família e também aos aspectos psíquicos da criança, além das
189
técnicas específicas, a extensão dos conhecimentos necessários excederia a formação de
qualquer um. Um dos mal-entendidos aos quais esta proposta tem levado mais recentemente é
que se trataria de um terapeuta com uma formação universal.
Nada mais distante de nossa concepção, até pelo fato mesmo de sua irrealizabilidade e,
sobretudo, porque uma tal pretensão confrontaria a criança portadora de uma limitação
precisamente com um ideal encarnado: o de um saber total. Isto equivaleria a produziruma
interpelação fálica, ou seja, o mandato irrecusável de identificar-se com um impossível. Nada
mais enlouquecedor do que isso. Nada mais na contramão de qualquer possibilidade de
elaborar a castração.
Trata-se, muito pelo contrário, de que um terapeuta, enquanto único agente operativo diante
da criança, tradutor em unicidade da língua falada na diversidade dos discursos técnico e
científicos, revele-se portador do que os outros propõem e informam. Que se revele apoiado
em saberes que não lhe pertencem, mas, ao mesmo tempo, preocupado incessantemente em
traduzir os recursos e passos necessários à língua que a criança é capaz de compreender e nos
termos que a transferência em jogo lhe permite registrar.
Como se vê, trata-se de um terapeuta único trabalhando em uma equipe interdisciplinar,
guiado por uma transdisciplina especificamente clínica que lhe permite, primeiro, colocar seu
saber específico a serviço da situação psíquica na qual a criança se encontra e, segundo,
reconhecendo a cada passo os limites de seu saber, tanto do lado do saber clínico como do
lado da subjetividade em jogo. Desta última, ele apenas poderá oferecer lugares vazios de
uma escuta, que unicamente os pais e a criança poderão preencher com suas próprias letras.
Notas
Tradução: Gerson Smiech Pinto.
1
- Artigo publicado em "Escritos da Criança", Porto Alegre, Centro Lydia Coriat, 1998, n° 5.
2 - Antiga canção infantil norte-americana.
3
- Pinei introduz o notável paradoxo de que, ao mesmo tempo que considera os problemas mentais comparáveis
às enfermidades orgânicas, dedica-se ao tratamento moral da loucura. O título mesmo de sua obra fundamental
assim o revela: Nosografia Filosófica (escrita entre 1798 e 1818).
4 - Este ponto e alguns dados que se mencionam em apoio de nossas teses têm sido tomados de Henri Ey,
"Manual de psiquiatria", Toray-Masson, Barcelona, 1969. Especialmente do capítulo destinado à história da
psiquiatria e do Índice remissivo de autores.
5 - Compilação de trabalhos elaborados no principio do século, mas publicados em 1926. 6 - S. Freud refere, em
carta dirigida a Fliess, às extensas jornadas dedicadas à consulta de crianças
190
e jovens pacientes afetados por paralisia cerebral, que sua formação médico-neurológica lhe exigia. Apesar de
certo tom de queixa nesta referência do jovem Freud, certamente esta prática favoreceu seu contato rápido e
direto com os modelos psicopatológicos da época.
7 - Note-se que até este momento os critérios são clínicos, muito distantes todavia da metodologia estatística
que iria prevalecer mais tarde. Atualmente, o "último modelo" em manuais de psiquiatria é constituído pelo
DSM em sua versão mais atualizada, o IV que leva por título, precisamente, "Manual estatístico de la
enfermedad mental".
8 - Veja-se, por exemplo, Dusser de Barenne, "The labyrinthine and postural mechanismus", In: "Handbook of
general experimental psychology", Murchinson, Worcester Clark Univ. Press, 1934. Cit. in: Ivan Esente
"Fisiopatologia oculare delia prima infanzia", Sanzoní Edizioni Scientifiche, Florencia, 1957.
9 - O tão difundido teste de L. Bender se inscreve nesta direção.
10 - Podem ser citados neste ponto os testes de Thurstone e o tradicional de Terman e Merryll.
11 - Aqui temos os estudos clássicos de Kohler e Koffka, sobre a Gestalt perceptiva; os estudos de Luria em
"Las Funciones Cerebrales Superiores del Hombre"; os estudos de mielinização de Minkowski na década de 40;
as investigações de I. Esente sobre a função ocular, ou o mais raro mas ilustrativo desta vertente, "Brain and
Intelligence - A quantitative study of the frontal lobes", de W, Haisted, editado pela University of Chicago Press
em 1947. E, certamente, estamos citando alguns títulos e autores em forma de exemplo, sem pretensão de
hierarquizar ou esgotar as vastíssimas citações possíveis.
12 - Por exemplo, a ortóptica, os recursos pedagógicos e adaptativos para cegos ou amblíopes, os sistemas de
linguagem substitutivos para surdos (que inicialmente tornaram a linguagem reduzida a um sistema de sinais -
veja-se Leontiev entre outros - ) e, em geral, as propostas terapêuticas - sejam cognitivistas ou condutistas - que
estão baseadas no modelo do arco reflexo, como por exemplo a reflexologia (além da "filosofia social" em que a
ampara Rubinstein em "Psicologia de la Conciencia" ou o behaviorismo (levado ao paroxismo por Skinner em
sua proposta de Walden II).
13 - Uma tarefa similar foi a desenvolvida pelo Dr. Jean Bergès na Guidance Enfantile do Hôpital Henri
Rousell, em Saint-Anne, Paris, serviço anteriormente dirigido por J. Ajuriaguerra.
14 - É Lasalle quem propõe substituir "o ensino do espírito" pelo "ensino das coisas", introduzindo um método
uniforme e sistemático na educação, com a intenção de aplicá-lo a todas as crianças. Ver Alain Grorischard, "O
Santo Pedagogo", em Ornicar n° 2.
15 - Distanciando-nos do assunto de outrora, vale a pena perguntar-nos se a atual deterioração da instituição
escolar pública a nível mundial - aumento do abandono, desvalorização da função do professor, redução
relativa ao investimento na área educativa etc. - não obedece, pensada ou impensadamente, à crescente
prescindibilidade da força humana de trabalho. De fato, as grandes empresas têm em seus programas
acelerados processos de substituição de funcionários e obreiros por equipes de robótica, como técnica
fundamental de redução de custos. Dentro desta perspectiva, salvo um pequeno número de especialistas que
requeria conhecimentos mais vastos, a massa que ainda poderia ser convocada apenas precisaria da
aprendizagem de uma técnica muito simples e recortada, cada vez de mais rápida e fácil aquisição. Assim o
modelo escolar tenderia a baixar o standard e aumentar a seleção social para acomodar-se às atuais - e futuras
- circunstâncias. Nasceria aqui uma nova psicopatologia das aprendizagens: a daquele que quer aprender mais
do que necessita? Ou a do que não consegue aceitar a nova estratificação social? De fato, o ideal racionalista
da máxima quantidade e qualidade de conhecimentos para todos, em um modelo standard de máxima, não
parece estar já bem cotado na perspectiva social (Veja-se Jeremy Rifkin, "El fin del trabajo", Buenos Aires,
Paidós, 1996).
16 - Cabe perguntar-se onde estará a falta no dia de amanhã.
17 - Veja-se S. Freud, "Estúdio comparativo de las parálisis motrices orgânicas e histéricas" em Primeras
aportaciones a la teoria de las neurosis (1892-1899), OC, Madrid, Ed. Biblioteca Nueva, 1948, páginas 192-
200.
18 - Certamente nos referimos aqui à linguagem enquanto sistema inscrito de um modo singular e não
necessariamente à linguagem sonora, fonoarticulada, nem a algum modo particular de sua formulação fática.
19 - Período que a neuropediatria atual reconhece - depois de uma extensa história de resistência - sob a
denominação de plasticidade cerebral, ao ter descoberto que os fenômenos de migração neuronal, morte
seletiva por especialização e indiferenciação dos neurônios, multiplicação das conexões sinápticas,
direcionalidade das facilitações na transmissão nervosa e sua persistência ou transitoriedade, o enriquecimento
ou empobrecimento da irrigação sangüínea de determinadas zonas cerebrais, dependem de um modo direto da
incidência do meio externo. Assim os extraordinários
191
avanços em genética e nas técnicas bioquímicas e de transparência para o estudo do Sistema Nervoso Central,
ao mesmo tempo que tem permitido revelar o determinismo biológico de certas doenças neurológicas,
paradoxalmente tem permitido provar e compreender um amplo aspecto das relações intrínsecas que existem
entre o funcionamento e a maturação cerebral, e o sistema de significações que, desde o âmbito externo, ao
inscrever-se modela esses processos sob a forma de uma rede.
20 - Coube novamente a J. Ajuriaguerra uma das primeiras iniciativas em analisar este problema. Já nos anos
60 e concomitantemente com as observações de Maud Mannoni neste terreno, propõe uma integração de
estratégias terapêuticas em uma série de artigos e conferências que a Editorial Paidós publicou em uma
recompilação sob o titulo de "Eleccioogs Terapêuticas en Neurologia Infantil", Buenos Aires, 1973.
21 - Ver "Psicoanálisis en problemas del desarrollo infantil", do autor deste artigo (Buenos Aires, Nueva Vision,
1988). Também as contribuições de Evelyn Levy (em uma série de artigos nesta mesma revista e em Aprendizaje
Hoy, revista de psicopedagogia clínica), de Stella Páez, Elsa Coriat, Oven Foster, Esteban Levin, Zulerna
Garcia Yafiez, Silvia Molina, Clemência Baraldi, entre outros (em diversas publicações especializadas). Podem
também consultar-se os estudos de Ana Izabel Córrea na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda
(Pernambuco, Brasil), ou os de Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem de Recife (Pernambuco,
Brasil). Mais recentemente, as notáveis contribuições de Maria Cristina Kupffer (revista Estilos, Ed.
Universitária de São Paulo, n° 1, dia, 1996) e de Leda Bernardino (revista Amarelinhas, diversos números, dos
anos de 1995 e 1996, editada pela biblioteca Freudiana de Curitiba, Brasil): para mencionar alguns exemplos
que possam dar uma idéia da propagação desta perspectiva clínica na atualidade, e a riqueza conceitual e
prática que nos tem conduzido. Menção à parte para o Dr. Jean Bergès que, por sua posição central neste
campo, de um modo contemporâneo ao nosso, orientou toda uma trajetória neste mesmo sentido através de seu
trabalho de equipe na Guidance Infantile dei Hôpital Henri Rousell, subsidiário do Hôpital Saint-Anne em
Paris.
22 - A respeito deste ponto de articulação da interdisciplina e transdisciplina, alguns autores de outras áreas
nos têm dirigido certas críticas. Elas apontam, em geral, em ver nossa proposta como um suposto de
prevalência universal da psicanálise sobre qualquer outra disciplina do pensamento. Mencionamos, em
especial, a respeitável (e respeitosa) formulação de Antônio Castorina em diversos artigos. A ela queremos
responder desde vários ângulos: o primeiro, que não se tratam de prevalências (muito menos universais) mas de
momentos nas decisões da clínica. E no que se refere à posição do sujeito com relação ao Outro social, é a
psicanálise quem tem provido os instrumentais para sua interpretação em termos de discurso, de um modo tal
que, à diferença do que ocorre com a filosofia (tal era também a queixa de Marx na Tesis de Feuerbach e na
Filosofia Alemana), permite operar sobre o sujeito como tal, na medida em que interpreta o que resta como
reprimido (ou não constituído, nas crianças muito pequenas) do ato da linguagem. Em segundo lugar, que não
se trata de interdisciplina, nem de transdisciplina em qualquer âmbito, mas que nos referimos específica e
circunscritamente ao campo da clínica; nele não basta curar a peça imperfeita ou a função desequilibrada, mas
é essencial que o sujeito se aproprie dela. Em terceiro lugar, o que legitima supor que o mecanismo, seja
cognitivo, motor ou perceptivo, se constitua à margem do desejo com que o sujeito o investe? Em quarto lugar,
J. Lacan já demostrou suficientemente que o discurso psicanalítico precisa dos outros discursos para operar, já
que por si só é completamente incapaz de dizer nada: um sistema de leitura não é uma obra literária; qual
poderia ser, então sua prevalência senão apenas de um modo fugaz e contingente.
23 - Veja-se Marie Cristine Laznik Penot, "Vers Ia Parole", Ed. Denoêl, Paris, 1997. Também do autor deste
artigo, "Psicanálise do autismo", Nueva Vision, Buenos Aires, 1987. Outra referência recente sobre a posição
da mãe: Seminário do Dr. Jean Bergès, "La mère especulaire", transcrição, ditado na Associação Freudiana
internacional, Paris, 1995.
25 - A partir de uma observação de M. C. Laznik Penot exposta em uma conferência na Associação
Psicanalítica de Porto Alegre, agosto de 1996.
- Este neologismo se legitima porque bem sabemos quão sensíveis são as crianças ao que o discurso social lhes
propõe em suas formas difusas. As limitações nas crianças com problemas de desenvolvimento medem-se, para
elas, do mesmo modo que para todas as crianças. Ou seja, com relação ao ideal e para nada com relação ao
"normal".
Fim das notas.
192
TERAPIA PSICOMOTORA EM CRIANÇAS COM PATOLOGIA DE
DESENVOLVIMENTO
Esteban Levin (coord.)
Jorge Garbarz
Claudia Sykuler
Silvia Brukman
Raquel Sued
Objetivamos transmitir aspectos da experiência realizada no Centro Dra. Lydia Coriat pela
equipe de psicomotricidade no atendimento de crianças com diversas patologias do
desenvolvimento. A maioria dos pacientes atendidos apresenta seqüelas de quadros
neurológicos importantes, em idades que vão desde o primeiro ano de vida até a adolescência.
Desenvolveremos aqui algumas reflexões teóricas e técnicas, produto de nossa prática clínica,
enquadrada num enfoque interdisciplinar.
O ponto de partida que guia este trabalho são as seguintes perguntas:
1) Por que e para que instrumentar uma abordagem psicomotora em crianças com patologia
do desenvolvimento?
2) Como é esta abordagem e qual é sua especificidade?
3) Quais são as modalidades de intervenção?
4) Que efeitos produz o tratamento psicomotor?
É necessário que, inicialmente, delimitemos alguns conceitos que sustentam nossa prática.
Como se afirma em "crescimento, maturação e desenvolvimento", estes termos se referem, a
partir de três perspectivas diferentes, aos processos evolutivos da criança. Enquanto
crescimento alude às mudanças pondoestaturais e maturação assinala o completamento das
estruturas biológicas,
193
o termo desenvolvimento resulta entre os três conceitos o mais abrangente, já que remete às
transformações globais que, incluindo o crescimento, a maturação e os aspectos psicológicos,
conduzem a adaptações cada vez mais flexíveis.
Quando dizemos que o desenvolvimento é tanto orgânico quanto mental, não nos referimos a
meros sistemas justapostos, mas também a um processo articulador e mobilizador das
transformações destes sistemas em sua inter-relação com o meio.
Retomaremos, agora, o conceito de aspectos estruturais e instrumentais do desenvolvimento
para chegar à caracterização da estrutura psicomotora.
Lydia Coriat e Alfredo Jerusalinsky sustentam que "ao falar de desenvolvimento é preciso
distinguir entre as articulações que constituem o sujeito e os instrumentos de que esse se vale
para realizar seus intercâmbios com o meio ambiente. Falamos, então, de aspectos estruturais
e instrumentais do desenvolvimento".1
Quando se apresenta um problema que pode comprometer o processo de desenvolvimento da
criança, nosso olhar centra-se em tentar entender como está revestida a estrutura biológica
(que define as condições de possibilidade) e a estrutura psíquica (que abarca os aspectos
psicológicos, cognitivos e o que for próprio da instância subjetiva da criança).
Este olhar permite que nos coloquemos na situação diagnóstica mais além do plano puramente
descritivo-nosográfico. Quando pensamos nos objetivos e estratégias terapêuticas, nos
colocamos a possibilidade de facilitar o melhor uso dos recursos corporais, mas além disso
privilegiamos sustentar com nossa intervenção a constituição do sujeito, precisamente aquele
que virá à posição de "o que faz uso".2
A estrutura psicomotora envolve os aspectos neurológicos e psíquicos do sujeito e das
sucessivas articulações que se produzem entre eles durante o desenvolvimento.
Estes processos se assentam e transcorrem num corpo. Por isso, quando falamos de estrutura
psicomotora, nos referimos centralmente ao corpo e as suas produções.
Estas produções abarcam um sem-número de atividades: o movimento, o tônus, os gestos, as
posturas, os jogos, a palavra etc., desenvolvidas em um espaço e em um tempo e basicamente
em uma relação com um Outro e com o que este Outro produz manifestando nesta produção
seu desejo.
194
No seio desta relação, delineada por intercâmbios de imagens, gestos, formas e posturas, se
vai constituindo o sujeito psicomotor.
Este processo de desenvolvimento diferencia o sujeito humano das outras espécies biológicas
que não têm como determinante a presença sig-nificante do Outro para sua estruturação. Isto
faz com que o corpo adquira um estatuto simbólico expressado em sua inclusão na cultura.
A partir da psicomotricidade, então, tomamos o corpo como instrumento, ferramenta, como
construtor de um espaço e de um tempo, mas também como corpo imaginário e simbólico na
medida em que conduz a um lugar de diferença com o outro e permite a circulação do desejo.
Falamos, assim, de um corpo instrumental, vinculado à realidade corporal: o esquema
corporal. Por outro lado, de um corpo imaginário, determinado inconscientemente em relação
com o desejo: a imagem corporal.
Vemos aqui que o conceito de corpo enlaça aspectos da estrutura e dos instrumentos em um
ponto de confluência dinâmico e interatuante. Nesse lugar de enlace entre o biológico e o
psíquico colocamos a especificidade do enfoque psicomotor.
A perturbação no corpo real
As produções corporais de um paciente-sujeito de avaliação e tratamento psicomotor são
dados que nos falam do corpo real, do corpo imaginário e do corpo simbólico do sujeito em
questão.
Desenvolveremos algumas reflexões acerca da perturbação ao nível do corpo real, para mais
adiante tomá-la no nível dos processos imaginários. Vamos analisar criticamente uma
variante: existem aqueles que se colocam entendendo a patologia do desenvolvimento como
puro efeito de um dano na estrutura biológica do sujeito, e as alterações da produção
instrumental como signo deste dano. A avaliação destas produções (tônus, motricidade,
posturas, coordenações etc.) seria passível de ser quantificada e comparada com os
parâmetros objetivos e subjetivos do que se considera a população normal. Estabelecem,
assim, as diferenças que cada patologia em cada sujeito o distanciam do normal. Deste
modelo conceitual advém a idéia da existência de padrões patológicos do desenvolvimento
como efeito da patologia neurológica, ou seja, caminhos do desenvolvimento que têm um
curso distorcido, limitado ou ocluído, mas em todos os casos caminhos distintos dos normais.
195
A partir desta avaliação estabelecem estratégias de trabalho que apontam a proporcionar os
cuidados necessários para que o aparelho locomotor não sofra os efeitos secundários do dano
neurológico (retrações, deformidades etc.) e tratam de dominar os signos motores da patologia
em questão (hipo, hiper ou distonias, paresias ou paralisias etc.) tentam evitar que se
desenvolvam padrões patológicos (posturais, motores, por exemplo) que afastem o paciente
do curso normal, ensinando, reeducando movimentos, posturas e atividades funcionais.
Esta maneira de dar conta dos problemas de desenvolvimento, instalada, como dissemos, na
ordem do real, envolve necessariamente um olhar particular ao corpo do sujeito e determina
uma série de implicações clínicas no tocante a modos de atuar.
Assinalemos aqui que para a criança este enfoque a afetará também, necessariamente, em sua
constituição como sujeito.
A avaliação exclusiva dos signos que expressam a patologia e sua eventual tarefa de suprimi-
los se coloca como tentar um enfrentamento com o impossível. Impossível na medida em que
na patologia do desenvolvimento o dano orgânico é determinante, ainda que se considerem os
efeitos dos processos de maturação e de estimulação.
Sobre a perturbação psicomotora
Descrevemos anteriormente alguns signos que colocamos na ordem das produções
instrumentais. Mencionaremos agora outro tipo de sintomas psicomotores que temos
observado em nosso trabalho clínico cotidiano. Os mais habituais são os seguintes:
Inibição, instabilidade (no sentido da descontinuidade das produções corporais), lentidão,
dificuldade na comunicação interpessoal, traços estereotipados (perseverações, ritmias),
alterações na gestualidade, hipo ou hiperatividade, movimentos ou ações sem
intencionalidade etc.
Estes sintomas também podem ser lidos ao nível tônico-postural. Observamos paratonias
(dificuldade para relaxar-se), hipo, hiper ou distonias que não têm caráter permanente ou estão
vinculadas a diversos estados emocionais associados. Também se podem descrever reações de
pres-tancia: tiques, crispação, posturas de fechar-se, sudoração etc.
Por sua vez, podem manifestar-se outras alterações vinculadas a hábitos, como transtornos do
sono, da alimentação etc. Se bem que muitas destas manifestações expressem o dano
ocasionado pela patologia orgânica,
196
o momento de aparição, a associação com diversas situações vincu-lares ou de jogo, a
intensidade e a continuidade dos sintomas psicomotores descritos são parte habitual das
formas em que a criança se apresenta.
Estas manifestações habitualmente dificultam a avaliação exata do grau de afecção orgânica e
são os primeiros obstáculos com que nós, os terapeutas, deparamos para iniciar a intervenção.
Dizemos, assim, que os sintomas psicomotores se entrelaçam, se sobreimprimem ao
determinado pelo problema neurológico; pois, simultaneamente a este, inscrevem-se no
discurso psicomotor da criança e formam parte de um modo de relação.
Portanto, a perturbação psicomotora está composta por aquilo que é a expressão do processo
neurológico e por essa série de sintomas nos quais o que está em jogo é a relação com um
Outro, determinando aquilo que chamamos imagem corporal do sujeito.
Partimos, então, de uma patologia ligada ao desenvolvimento que demarca uma forma
particular de se situar frente ao seu próprio corpo e frente ao Outro.
A psicomotricidade tem como objeto central o corpo "como expressão da história pessoal da
criança, de seus modos de relação, de suas estruturas de integração e de ação".3
Dizíamos que a criança se situa frente a si mesma de acordo com o lugar que ocupa ao ser
olhada, tocada, mimada, desejada pelo outro, construindo, assim, a sua imagem. Esta imagem
está ligada às significações que o déficit orgânico adquire para seus pais, já que os remete ao
seu nar-cisismo, à sua própria imagem corporal.
Por outro lado, as perturbações determinadas pela patologia, como as alterações
proprioceptivas, tônico-posturais e motoras constituem igualmente experiências que incidem
no processo de construção do esquema e da imagem corporal da criança.
Ambos os processos, os determinados pela circulação do desejo e os determinados pelas
dificuldades vinculadas à patologia orgânica, se articulam no efeito central: o processo de
simbolização.
A possibilidade de simbolizar implica a representação, o que está necessariamente
determinado pelo discurso e as ações do Outro ao realizar inscrições corporais geradoras de
experiências que vão ordenando e recortando o corpo da criança.
Assim, o corpo real cai encontrando-se no desejo do outro para devir sujeito.
197
O processo de simbolização permite a representação de uma coisa pela outra, atribuindo,
assim, um sentido que excede à gestalt do objeto, podendo, portanto, substituí-lo.
Isto se expressa na possibilidade de brincar de presença-ausência, de como se fosse, de aqui-
lá, de perto-longe: instaura-se um espaço e um tempo no devir do jogo corporal.
A perturbação psicomotora afeta, então, não somente a problemática motora, mas também
esse processo de simbolização. Por exemplo, podem se produzir alterações na discriminação
do dentro-fora corporal, que poderão se expressar, entre outras formas, como dificuldades no
manejo dos limites vinculados ao espaço e ao tempo.
Podem, também, existir dificuldades ao nível do brincar, como a ligação ao objeto real sem o
prolongamento na estrutura simbólica do mesmo: não há antecipação nem projeto, somente
repetição ou estereotipias.
Enquadre e modalidade do tratamento psicomotor
Os pacientes que são derivados à equipe de motricidade apresentam alguma dificuldade no
movimento.
A partir de um primeiro diagnóstico clínico-neurológico e psicológico nos ocupamos de
investigar as formas como essa perturbação psicomotora afeta o corpo do sujeito: como se
move no espaço, como este sujeito circula na história familiar, se se constituíram sintomas
que acompanham o dano neurológico, como se manifesta em seus hábitos, em suas relações,
em suas brincadeiras, ou seja, como se implica essa perturbação no real, no imaginário e no
simbólico.
Essa avaliação integra-se no processo diagnóstico que habitualmente inclui a intervenção
psicanalítica, ou alguma outra intervenção específica (de acordo com a patologia), para logo
decidir a estratégia de abordagem interdisciplinar.
A decisão de que se inicie um tratamento psicomotor dependerá de que a prioridade esteja
centrada, nesse momento, em atender as dificuldades psicomotoras da criança.
Para realizar o diagnóstico psicomotor realizamos uma série de entrevistas nas Quais nos
detemos na observação e investigação de diferentes variáveis: o jogo espontâneo, as
produções corporais, que imagens, que reações tônicas e posturais se manifestam no brincar,
como se relaciona com os objetos, suas possibilidades de construção, de criação, de
198
fazer em relação a um outro, como se comunica nos níveis gestuais, tônicos, verbais, em suma
qual é a característica de seu discurso.
Nestas entrevistas definem-se, também, com mais especificidade, perturbações motoras e seus
efeitos; por exemplo: limitações articulares, existência de retrações e os efeitos biomecânicos
em relação à maturação.
Com relação à família, nos ocupamos em conhecer que lugar ocupa a perturbação
psicomotora da criança dentro da mesma.
Interessa-nos como se relaciona com o corpo da criança nos hábitos diários, como lhe dão
banho, como a tocam, como é sua alimentação, quem é que faz tais coisas: os momentos em
que se relaxa e se tensiona, como são atendidos pelos pais seus pedidos, como se relaciona
com seus pares, como e com quem são seus brinquedos; enfim, procuramos decifrar que
imagens os pais vão construindo do corpo de seu filho. Escutamos nesse processo qual é a
demanda dos pais em relação ao corpo e ao movimento da criança e qual é o pedido dirigido
ao terapeuta.
Quanto à história cronológico-maturativa que já foi recolhida nos estudos neurológicos com
os quais contamos, nos detemos em observar como ela se articula dentro da história familiar e
os efeitos que provocou.
As produções corporais agem determinando uma série de imagens na família vinculadas à
construção da criança como sujeito, sujeitada ao desejo dos pais.
Por exemplo: um momento importante como a aquisição da marcha pode estar investido de
significações pelas quais esta pauta maturativa pode se cumprir, retardar ou não se produzir.
O enquadre do tratamento psicomotor dá-se na particularidade de nos colocarmos num lugar
onde se implicam dialeticamente o corpo real e o corpo imaginário, dentro da relação com
Outro que determina o universo simbólico.
No decorrer das entrevistas diagnósticas com o psicomotricista, produz-se uma série de
situações, de jogos de contato, de atividade com a criança, de conversa, de olhar, de diálogo
com ela e com seus pais, onde participa a dinâmica transferencial, transformando-se, assim,
num eixo central do enquadre psicomotor.
Uma das primeiras situações com que deparamos é com aquela idéia que os pais têm do
psicomotricista e do tratamento psicomotor, anterior à sua chegada ao mesmo. Esta
transferência imaginária, embebida de experiências de tratamentos anteriores, e de outras
situações pelas quais passaram os pais e a criança, enuncia um lugar onde situa o terapeuta.
199
No ponto extremo de uma situação muito fixa e fechada, coloca-se o terapeuta no lugar do
"Senhor", sendo este o possuidor de todos os conhecimentos para "curar" a criança (lugar do
"escravo"). Aqui o terapeuta é dono da técnica, da palavra, dos recursos; posição onipotente
que age de maneira obturadora.
A partir de nossa intervenção nos propomos a que este espaço adquira uma mobilidade tal que
se gerem lugares por conhecer, lugares vazios que serão preenchidos pelo desdobramento
desejante da criança e da família. Os espaços ocupados remetem a novos vazios e estas
sucessivas articulações vão constituindo a própria história.
Há terapeutas e linhas de reeducação psicomotora que aceitam este lugar fixo, seja por estar
determinado desde a família ou porque, a partir de sua própria postura técnica, consideram
como suficiente seu saber para ser transmitido em uma relação subjetiva, afetiva, corpo a
corpo, fusional. Ocupar-se-ão, então, em ter um plano organizado independentemente das
demandas da criança, que pode ficar presa no lugar da ignorância, lugar de impotência frente
a seu mestre que tudo pode e conhece acerca de seu corpo. A única coisa que entra em jogo é
o poder do terapeuta.
Nossa postura é diametralmente oposta. Num tratamento de terapia psicomotora trata-se de
pensar a criança e seu corpo em construção. Neste dinamismo se inscreve o sujeito
psicomotor com seu próprio discurso. A implicação particular da limitação física impõe
alguns obstáculos neste caminho, mas não o desvia da característica de sujeito desejante. Por
isto, o que guia nossa intervenção é descobrir e permitir a circulação de tal desejo conformado
numa relação transferencial onde se significa o discurso corporal da criança. Assim, longe de
desviar ou inibir este discurso, oferecemos um espaço, um tempo, objetos, nosso corpo,
situações que a criança ocupará com seu fazer, com seus sons, com seus ritmos, com seus
movimentos. Ocupação que permite que a criança se coloque em outro lugar simbólico, lugar
do brincar, onde possa construir, criar novos "objetos-imagens" do corpo, significando sua
deficiência a partir dessa posição de sujeito desejante, deixando de ser o pequeno impedido,
para pedir, para demandar.
Muitos dos pacientes que chegam à instituição trazem um diagnóstico médico junto com
laudos ou indicações de tratamento que apontam no sentido da rotulação do sujeito numa
patologia específica, o que implica um diagnóstico, um prognóstico e um tratamento
preestabelecido. Assim, um pai nos diz: "O médico disse-me que tinha uma lesão cerebral,
200
que não vai caminhar e não vai falar; portanto, precisa de tratamento fisioterápico e
fonoaudiológico"; outro traz como indicação num quadro de paraplexia espástica:
"Mobilização passiva de tornozelos e joelho, conseguir dorsiflexão de tornozelos e joelhos e
manter a adução dos quadris".
Por outro lado, a demanda dos pais em geral está relacionada ou associada aos "frutos do
tratamento". Um pai nos pergunta: "Que per-centagem de melhoria tem minha filha, quanto
pode conseguir? Se houve mudança por trazê-la duas sessões semanais, que ocorrerá se a
trouxer três vezes por semana?". Outra mãe diz: "Quero que caminhe reta, que não se apoie
nas paredes, que aprenda a se sentar bem". Frente a estas e outras séries de perguntas
similares, nos interrogamos: que lugar ocupa a perturbação psicomotora nestes discursos?
Estes pedidos, estas demandas, colocam o paciente num único lugar: no do déficit, no da
carência, ali só é necessário "arrumar esse corpo que não funciona, apertar os parafusos (o
corpo) para arrumá-lo".
Esta concepção de reeducação motora delimita uma estratégia centrada nesse déficit, centrada
no real, onde o "preço que paga" o paciente é ser esse déficit: "Valéria, paraplégica espástica".
O nome fica unido ao real, desde sua insuficiência é nomeada, é ela enquanto espástica: lugar
de emergência do real, lugar da psicose.
Frente a tais pedidos que falam de condutas motoras, aquisições adaptativas ou quantidade de
melhoria, que, como dissemos antes, remetem o paciente à dimensão do real, ligando o corpo
ao impossível, inter-viemos procurando gerar uma demanda ali onde havia somente um
pedido. A demanda enuncia o desejo, o que permite aos pais antecipar nessa pura motricidade,
nessa pura conduta, nesse puro corpo, um sujeito.
Esta operação terapêutica possibilita na criança e em sua família ocupar um lugar diferente
em relação ao outro, reencontrando-se com o desejo de fazer, de produzir, descentrando-se,
assim, da patologia, caindo o real para que surja um sujeito. A partir dessa perspectiva,
observamos na clínica diferentes modificações nas produções corporais da criança, como, por
exemplo, novas pautas posturais, incremento da atividade espontânea, assim como também da
gestualidade, da possibilidade de representação, do brincar etc.
Os pais costumam registrar estas mudanças que permitem gerar neles novas perguntas e
posturas, atitudes espontâneas inexistentes até este momento na relação pai-filho
A partir dessa abertura, o curso do tratamento pode readquirir distintas
201
modalidades, o que implicará estratégias adequadas a tais mudanças.
Retomando o que expressamos anteriormente a respeito do enquadre psicomotor,
especificaremos alguns aspectos que diferenciam a terapia psicomotora de outros tipos de
intervenção.
Dissemos antes que na terapia psicomotora o conjunto de produções corporais da criança
constitui um discurso particular que se expressa em relação a um Outro. Assim, qualquer
postura, gesto, reação tônica, olhar etc. constituem significantes que se diferenciam e se
articulam sucessivamente de acordo com o desejo da criança.
A intervenção do psicomotricista se situa em nível do corpo simbólico, não tomando o gesto,
a postura, a ação corporal isolada em si mesma, nem colocando um significado construído
pelo terapeuta, mas sim permitindo por meio de suas atitudes, postura, gestos, movimentos,
objetos, o desdobramento que o leve ao engate significante na cadeia associativa do paciente.
Neste contexto se incluem o brincar, a atividade espontânea, os sons, o grito, o movimento, a
palavra, os objetos etc, como recursos que permitirão construir uma situação onde a criança
poderá investir a mesma com seu desejo.
A partir deste enfoque, a evolução dos pacientes com quadros neurológicos tem sido
favorável nos aspectos psicomotores e nos específicos da perturbação motora.
A terapia psicomotora constitui uma alternativa de abordagem terapêutica em pacientes que
chegam à instituição apresentando transtornos severos de personalidade, onde está forcluído o
estatuto simbólico (autismo-psicose).
Outros transtornos de desenvolvimento infantil, como pseudo-retardo e quadros de inibição,
inestabilidade ou lentidão psicomotora, que obstaculizam os processos de simbolização a
partir de perturbações localizadas no plano corporal, têm sido tratados nesta equipe.
A possibilidade concreta de modificar os efeitos obturantes que desde o corpo afetam os
processos de simbolização permitiu que as crianças atendidas desdobrem suas possibilidades
em diferentes campos, tais Como a aprendizagem, a socialização e a linguagem, entre outros.
Um pai pergunta à sua filha lesionada: "Hoje Enriqueta não funciona? Porque Enriqueta é o
único neurônio4 que tem minha filha Soledad. amos, Enriqueta, mexa-se, funcione!".
202
Que corpo do sujeito estará sujeitado a estas palavras? Que inscreve este pai no corpo de
Soledad?
Soledad está sozinha com Enriqueta. Se deixarmos esta enunciação a deriva, Soledad se
especularizará em Enriqueta: alguém, algo que não fala a não ser pela boca do pai, algo que
não funciona. Enriqueta poderia se escandir no nome escolhido: quieta e só, não há neurônio
que possa se mover com semelhante carga significante em suas costas. De Soledad o pai nos
oferece um resto neuronal. Nosso interrogante terapêutico não é "Como fazer funcionar
Enriqueta?", mas sim "Como desfazer esta Soledad".5
Notas
1 - CORIAT L. e JERUSALINSKY, A. - "Aspectos estructurales e instrumentales del desarrollo". Cuadernos del
desarrollo infantil. Buenos Aires. Ediciones Centro Dra. Lydia Coriat, n° 1.
2 - O sujeito a respeito do corpo está em posição de fazer dele uma ferramenta para o gozo. Tal como se define
o gozo na linguagem jurídica: como usufruto, trata-se do uti ei abuti (uso e abuso), ou seja, do uso e para além
do uso. O que seria este "para além do uso"?
Este "para além" diz respeito, no conceito de gozo, ao plus que se constitui no domínio imaginário do corpo
quando este está marcado pelo trabalho significante do Outro. Algo que, sem dúvida, opera em outro plano que
o da "utilidade industrial". Porque no sujeito a utilidade da coisa se estabelece enquanto ela ADVENHA E
CONVENHA à posição de seu gozo. Aqui, então, torna-se decisiva a relação que o sujeito S mantém com o
gozo. Se o S está efetivamente atravessado pelo Outro, seu corpo estará esquematizado no imaginário pela
operação significante desse Outro, que opera desde o simbólico.
Nessa posição, o gozo está mediatizado pelo Outro, e nela o corpo não só é fonte mas também ferramenta de
significância. Se oS não está verdadeiramente dividido, seja porque ele mesmo está na posição do Ideal
(psicose) ou porque fica completamente excluído dele (autismo), sua relação com o gozo não está mediada pelo
Outro e, portanto, ao não dispor de alguém que diga a respeito desse corpo esse não se esquematiza: a relação
com o corpo, aqui, é direta: ele é fonte e lugar de retorno sem passar por um lugar Outro. O que emerge é puro
real. (Nota de A.J.)
3 - Cuadernos de terapia psicomotriz n° 1, número especial de La Sociedad Internacional de Terapia
Psicomotriz. Buenos Aires, Singeser de Vetadoro, set. 1974.
4 - Em espanhol: "Enriqueta la neurona". (N. do T.)
5 - "Soledad", em espanhol, quer dizer solidão (N. do T).
Fim das notas.
203
A TRANSFERÊNCIA NA TERAPIA PSICOMOTORA
Esteban Levin
Notas
1 - SAMI-ALI - "Cuerpo Real, Cuerpo Imaginário". Buenos Aires, Paidós.
2 - FREUD, S. - "Análisis Fragmentário de una Histeria". In: Obras Completas. Madrid, Biblioteca Nueva,
1967.
3 - SAMI-ALI - "Cuerpo Real, Cuerpo Imaginário". Buenos Aires, Paidós.
4 - WINNICOTT, D. - "Realidad y Juego".
5 - LACAN, J. - "El estádio del espejo como formador del yo tal como se nos presenta en la experiência
psicoanalitica". In: Escritos I, México, Siglo XXI, 1975.
6 - SCHILDER, P. - "Imagem y aparencia del Cuerpo Humano". Buenos Aires, Paidós, 1977.
7 - LACAN, J. - "La agressividad en psicoanálisis". In: Escritos II. México, Siglo XXI, 1975.
8 - A máscara como tal alude sempre a algo faltante, que não se pode apreender. O que se encontra do outro
lado da máscara? Nada, um contorno vazio, um buraco, algo que se perdeu, em que pese nunca ter estado.
9 - GENTIS, R. - "Lecciones del Cuerpo". GEDISA, 1981.
10 - LAPIERRE, A. e AUCOUTURIER, B. - "El cuerpo y el inconsciente en educación y terapia". Barcelona,
Cientifico-Médica, 1980.
11 - JANOU.
12 - LAPIERRE, A. e AUCOUTURIER, B. - "El cuerpo y el inconsciente en educación y terapia". Barcelona,
Cientifico-Médica, 1980.
13 - LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J. B. - "Diccionario de Psicoanálisis". Madrid, Labor, 1971.
14-MILLER, J.A.
15 - GENTIS, R. - "Lecciones del Cuerpo". GEDISA, 1981.
16 - FREUD, S. - "La Represión". In: Obras Completas. Madrid, Biblioteca Nueva, 1967.
17 - SAMI ALI - "Cuerpo real, cuerpo imaginário". Buenos Aires, Paidós.
Fim das notas.
218
REFLEXÕES A PROPÓSITO DA CLÍNICA PSICOPEDAGÓGICA E
PSICOMOTORA
Evelyn Levy
Para situar de alguma forma as reflexões propostas aqui, considero necessário ressaltar que as
mesmas partem de duas concepções teóricas diferentes, tais como a psicanálise e a teoria
psicogenética. Ambas constituirão o suporte a partir do qual as formulações sugeridas
adquirem sentido.
Este trabalho surgiu a propósito da minha participação nas Primeiras Jornadas de
Motricidade, ao ser convidada a abordar em painel os aportes da psicomotricidade à
psicopedagogia. Embora as idéias que aqui desenvolvo tenham sido apresentadas como uma
reflexão a partir destes dois âmbitos terapêuticos, a mesma tem como base de sustentação as
que coloquei ao longo de minha experiência no trabalho transdisciplinar, motivo pelo qual as
disciplinas aqui em questão poderão ser substituídas por outras quaisquer.
Ao longo do texto farei um percurso sobre os seguintes temas:
1) A interrogação ao outro a respeito da própria abordagem terapêutica a partir de uma
perspectiva psicanalítica.
2) A construção do conhecimento no âmbito da reflexão entre profissionais e sua obturação.
3) A construção do conhecimento na interação sócio-cognitiva no intercâmbio
interdisciplinar.
4) Reflexões a respeito de nossas abordagens terapêuticas.
219
A interrogação ao outro a respeito da própria abordagem terapêutica desde uma perspectiva
psicanalítica
A proposta de abordar os aportes da psicomotricidade à psicopedagogia me faz pensar nas
implicações de interrogar a um outro a respeito do próprio campo de ação terapêutica.
Caberia perguntar se a respeito dessa interrogação podemos estabelecer as diferenças que
desde a psicanálise Lacan propõe como dirigidas ao Outro enquanto ordem da linguagem, ou
a um outro, enquanto a relação imaginária que implica uma relação especular com o
semelhante. Tais aspectos que estão em jogo na relação terapêutica também podem ser
pensados no que diz respeito ao intercâmbio que o trabalho transdisciplinar suscita? É desde
esse ponto que quero colocar as seguintes reflexões:
Qual é o sentido dos pedidos que psicomotricistas e pedagogos fazem a uma ou a outra
disciplina? Reformular a pergunta inicial que me colocava desde essa reflexão parecia-me
mais enriquecedor e interessante, pois implicava que nos perguntássemos: o que pretende tal
ou qual disciplina particular ao interrogar e demandar a outra? De que se trata no pedido
emitido? Fora desta interrogação, a teoria, a clínica e o paciente em questão, no seio da
interrogação, podem ficar capturados num mero registro imaginário.
Algumas vezes cada um coloca a partir de seu próprio campo de abordagem que é que pode
aportar a outro (a um outro?) seja desde um "o que lhe pode dar...". Caberia perguntar (-se): a
quem? De quem se trata no lugar do destinatário? Com que pode completá-lo? Completar a
um outro, completar-se? Outras vezes, pede-se, demanda-se a outras disciplinas ou corpos
teóricos uma completude que não só nenhum corpo teórico pode outorgar, senão que dita
solicitude remete a outro lugar. Porventura essa demanda de completude pode ser pensada
fora de uma reflexão psicanalítica e fora de quem a emite? As vezes, aparece personificada
nos enunciados: "a teoria psicanalítica me dá...", "a psicopedagogia...", "a psicomotricidade
poderá...". A partir de uma leitura psicanalítica poderíamos nos perguntar: quem fala? A quem
se escuta? A quem se pede? Por acaso podemos pensar tais "pedidos" fora do imaginário
daquele que fala, pede, demanda ou responde?
A demanda que se articula nos diferentes pedidos e também nos oferecimentos refere, às
vezes, a instâncias que, embora estejam relacionadas com a teoria, pelo próprio fato de que
hoje esteja me referindo a
220
elas, amiúde remetem a outra instância, que pouco tem a ver com um corpo teórico em si,
com o saber teórico de uma disciplina. Considero que amiúde remete aos próprios buracos, à
falta que se nos presentifica freqüentemente como o lugar do insuportável. Caberia perguntar-
se: existe ele em si, fora das palavras dos homens que são os que com suas histórias e dramas
a constituem?
Igualmente a partir da ciência, com a teoria podemos lutar contra o insuportável do vazio.
Isto, às vezes, faz com que deslizemos até lugares e relações insuspeitáveis, de tal maneira
que até nosso trabalho clínico, teórico e científico se tinge dessa ordem faltante.
Tal fato pode se produzir quando escrevemos, quando atendemos a um paciente, quando
escutamos um outro no lugar de sujeito frente a nós, quando escutamos um outro em nossas
supervisões ou frente nossos supervisionados. Podemos cair nele também em nossas leituras,
quando confrontados com um texto escutamos um outro numa relação especular.
Perguntar a outro (a um outro?) a respeito de nosso campo de ação, acerca de nossa
abordagem terapêutica, seja essa psicomotora ou psicope-dagógica, é também pensar que a
construção do conhecimento se constitui em relação ao Outro.
O olhar do Outro, o desejo do Outro marca nosso caminho, assinalando cada rumo de maneira
diferente. Dizer que a construção do conhecimento se dá em relação a Outro significa afirmar,
também, que a construção do conhecimento se constitui numa relação mediada por Outro:
relação mediada no referente ao mundo, aos objetos e, conseqüentemente, no referente aos
objetos do conhecimento fora de toda dualidade e indis-criminação. Essa trama está na base
de todo intercâmbio com os outros e com os objetos de conhecimento.
Conforme Passano1, "a relação criança-docente-conhecimento é uma relação familiar (no
relativo à triangularidade) que se constitui em relação mediada".
No intercâmbio com outros, aos quais dirigimos perguntas, com quem refletimos a respeito de
nosso fazer clínico, estabelecemos também uma relação mediada pelo objeto de
conhecimento, mesmo quando pode se transformar em imaginário como efeito da situação
fantasmática dos personagens em questão, fato esse que se constitui como incontornável por
ser condição do humano.
221
A construção do conhecimento no âmbito da reflexão entre profissionais e sua obturação
Sabemos, a partir da teoria psicogenética, que o conhecimento não se constitui por mera
repetição de saberes, nem é produto acabado de uma vez por todas. Assim como a criança não
é um sujeito passivo que espera estar frente a um adulto que lhe outorgue um saber para
começar a construir seu conhecimento, tampouco os adultos, entre eles os profissionais,
esperam passivamente que o saber lhes seja outorgado por outros.
Assim como a criança formula hipóteses frente aos objetos do mundo que a rodeia, ao longo
de um prolongado processo, também os profissionais o fazem a respeito de seu objeto de
conhecimento. Quando isso não ocorre assim, não podemos deixar de pensar que não é pelo
processo de construção do conhecimento em si, concebido a partir da teoria da equilibração,
mas, sim, por situações que desde os processos inconscientes perturbam referido acesso ao
conhecimento.
É assim que a utilização dos instrumentos de conhecimento, a competência intelectual do
sujeito em questão, nesse caso um profissional, podem ficar capturados num funcionamento
ignorante2, tal como a clínica nos mostrou a respeito das dificuldades de aprendizagem nas
crianças.
Quando falamos de funcionamento ignorante, referimo-nos ao fato de que o aparelho
cognitivo de um sujeito particular pode se obturar a partir dos efeitos que marcam o registro
simbólico. Assim como na histeria um membro pode ficar paralisado, também os processos
cognitivos podem ficar capturados desde a estrutura simbólica, levando o sujeito a um
funcionamento deficitário. Quando o aparelho cognitivo está capturado pelos processos
inconscientes, os aspectos funcionais, próprios do processo de equilibração, são perturbados.
Como profissionais pensantes a respeito de nossos âmbitos terapêuticos, não estamos à
margem de tais situações.
Por outro lado, pensamos que essa situação também pode ser efeito de nossa própria
aprendizagem escolar, a qual nos marcou de tal maneira que, apesar de toda convicção
teórica, não podemos nos safar dos modelos comportamentalistas e empiristas aos quais
estivemos amplamente habituados e submetidos. Eles, às vezes, nos conduzem a situações que
não nos permitem escapar dessa imagem de "dar ao aprendiz" o alimento praticamente
mastigado e quase digerido. A partir de tal posição, omitimos o saber que temos a respeito da
mediatização dos esquemas de cada
222
sujeito particular, em função dos quais tal ou qual acontecimento será ou não assimilável, pois
um estímulo é tal para um sujeito na medida em que, desde o seu sistema de compreensão, lhe
seja significativo. Em uma situação como esta, o sujeito construtor de seu conhecimento fica
então totalmente apagado. Na trama, os profissionais em questão também ficam imersos.
Porém, mais além de toda convicção teórica, a partir de outra perspectiva, pensamos que
igualmente pode ocorrer-nos, por exemplo, que, ao estudarmos com outros, num grupo com
um coordenador, somente nos dirijamos a este como único interlocutor válido, como aquele
que tem a palavra verdadeira. Não poderíamos pensar este acontecimento como
particularidade propriamente humana, para a qual o "saber" sempre está em outro lugar, em
outro ao qual não lhe falta como a nós, mitificando, assim, nossos supervisores e docentes?
Por essa via seguidamente a interrogação e a reflexão ficam também obturadas.
A construção do conhecimento na interação sócio-cognitiva no intercâmbio interdisciplinar.
Desde o modelo da teoria da equilibração, sabemos que o sujeito cognitivo é um sujeito ativo
que se pergunta e indaga a respeito do que o rodeia nos diferentes âmbitos do conhecimento e,
ao fazê-lo, formula hipóteses que busca corroborar no encontro com os outros e com os
objetos. Estas hipóteses, que provêm de um sistema de referência que lhe é próprio, sofrerão
reformulações num longo processo de intercâmbio com os outros e com os objetos.
É a partir das situações de conflito com que um sujeito se encontra, e nos desequilíbrios que
se colocam quando o objeto não é imediatamente assimilável pelos esquemas de que dispõe,
que busca compensar a situação de conflito que se lhe suscita, reformulando suas hipóteses ao
longo de um prolongado processo, modificando as mesmas ou corroborando com elas,
construindo assim sistemas de compreensão cada vez mais abrangentes. Este processo de
construção que caracteriza o sujeito cognitivo é análogo ao processo de construção que
caracterizou e caracteriza as ciências.
Partindo daí e da afirmação de que o conhecimento constitui-se em um intercâmbio com os
outros e os objetos, na resolução de situações problemáticas e significativas, o que implica
pensar no encontro com situações
223
de contradição e conflito cognitivo, considero que a proposta mais pertinente é de que nos
coloquemos algumas reflexões que temos em comum, de forma a repensar a respeito de cada
uma de nossas abordagens terapêuticas e as construções teóricas que as implicam. Questionar
nossos trabalhos, nosso dizer, a partir da sua e da nossa disciplina, interrogar e questionar
nossas práticas, acredito ser o melhor caminho para favorecer a construção teórica de cada
uma de nossas disciplinas, assim como a própria e pessoal de cada um dos que aqui falamos
escutamos.
A partir de Perret Clermot, diria que é o intercâmbio sócio-cogni-tivo a partir do qual será
viável a ampliação de nosso marco de referência, uma vez que outros, desde níveis de
conceitualização mais próximos ou mais distantes, nos colocarão diferentes situações de
conflito cognitivo.
É a partir desses pontos colocados que irei relatando algumas reflexões que dizem respeito a
ambas as abordagens e ambas as práticas, de forma que possamos abrir logo o espaço para a
discussão. Acredito que repensar as afirmações aqui colocadas no marco da discussão
interdisciplinar nos abrirá um espaço diferente.
Reflexões a respeito de nossas abordagens terapêuticas
1° Tanto a psicopedagogia como a psicomotricidade tiveram que recorrer historicamente a
corpos teóricos diferentes para poder, a partir deles, construir os "andaimes" teóricos e
conceituais, descuidando, às vezes, das precauções que, necessariamente, se deve considerar
em ditas elaborações, dado que, em nome da busca de unicidade e coesão, facilmente pode-se
cair numa situação de forçar as teorias, justapondo conceitos não unificáveis.
Cada um recorre a corpos teóricos diferentes. Por meu lado, tomei como ponto de referência a
teoria psicogenética e psicanalítica, dois corpos teóricos que, embora possam se enriquecer
mutuamente, não são articuláveis num todo, como historicamente se tentou unificar numa
teoria mais abrangente, pois cada um remete a sujeitos teóricos distintos. O fato de forçar
teorias em nome de uma articulação - como dizia anteriormente - corre o risco de justapor
conceitos não articuláveis, homologá-los, descuidando da particularidade de cada termo
dentro de seu próprio marco de referência. São, em todo caso, duas reflexões paralelas que
acompanham o meu o pensar a respeito do sujeito do conhecimento, e se me permitem a
expressão do "sujeito psicomotor" nas perturbações que acontecem no
224
caminho de sua construção cognitiva e em seu processo de aprendizagem. O problema seria:
como construir todo um "andaime" teórico coerente? Como pensar na clínica a partir de
diferentes perspectivas? Trata-se aqui de uma reflexão que não podemos descuidar.
2°) Em relação ao tema Como nos situamos frente ao pedido de ajuda que nos fazem?, minha
proposição é que em toda consulta, e no transcurso dos tratamentos em questão, considero
fundamental escutar mais além de toda disfunção corporal, além da dificuldade de
aprendizagem específica, a verdade do sujeito em questão, a palavra emitida no discurso da
criança e os pais. Na criança, se expressa facilmente pela via sintomática, em seu brincar, em
seu corpo, em seu desenho, em seu dizer e nos intercâmbios com o objeto de conhecimento.
Trata-se de escutar sem marcar, sem etiquetar, assim apressadamente, uma suposta verdade,
deixar um espaço para que o significante circule e abrir para eles uma escuta. No espaço
aberto para que a lógica da criança se manifeste, trata-se de poder segui-la e deduzi-la nas
hipóteses implícitas em seu dizer e/ou fazer. Na resolução de situações problemáticas a
resolver, na transferência, fazendo conscientes os mecanismos que desde os processos
inconscientes perturbam o seu acesso ao conhecimento, deslizar de um lugar de escuta para o
da contra-argumentação. Falamos da contra-argumentação no sentido que a partir do método
clínico-crítico4 da psicologia genética, esta é utilizada no diálogo e no intercâmbio clínico
com a criança, quando, a partir de nossa hipótese a respeito de suas construções cognitivas,
queremos verificar a solidez que seus argumentos, a força de suas hipóteses ou colocar-lhe
situações de conflito cognitivo, que a levam a reformular seu sistema de compreensão.
Por outro lado, quando, a partir de uma reflexão psicanalítica, refiro-me a uma clínica sob
transferência, como é necessariamente situável no tratamento psicopedagógico e psicomotor,
o coloco no sentido daquilo que é provocado pela presença do terapeuta (psicomotricista ou
psicopedagogo). Presença no sentido de quem deixa aberto um espaço para que o discurso
circule. Presença que suscita as perguntas que este sujeito particular se formula, espaço onde a
atenção flutuante cumpre uma missão particular. É nesse espaço que do tratamento
psicopedagógico rotamos de um lugar de escuta ao da contra-argumentação no intercâmbio
clínico com a criança, para promover um processo de construção, não somente menos
perturbado, mas de forma a que também favoreça o processo de equilibração das estruturas e
sistemas cognitivos5.
225
3°) As implicações da situação familiar no processo de aprendizagem da criança e o trabalho
com os pais - Conforme o ponto de vista teórico em que nos colocarmos, será diferente a
compreensão a respeito das "personagens" implicadas no processo terapêutico e a
conceitualização que fizermos dos discursos em questão marcará abordagens clínicas
particularmente diferentes.
A partir de uma perspectiva psicanalítica tem-se dito que o acesso do sujeito à ordem da
cultura está relacionado corrm uma situação prévia, estruturante, que é o acesso do sujeito à
ordem simbólica. O sujeito desejante está marcado por um a priori simbólico que o pré-existe
e o constitui. A dinâmica triangular opera na criança desde as vicissitudes da problemática
edípica de ambos os genitores e as peculiaridades dessa que marcarão o seu surgimento como
sujeito em relação ao desejo do Outro. O complexo de Édipo constitui o eixo do acesso do
sujeito à ordem da cultura e à ordem simbólica que se constitui marca modalidades
particulares no acesso ao conhecimento. A transformação de uma relação dual e o acesso a
uma ordem simbólica tornam-se possíveis graças à existência de um terceiro termo: a função
paterna. Quando essa criança ascende a essa ordem simbólica, há uma legalidade que o
constitui, na ordem da linguagem pré-existente, a qual marca uma bateria de significantes
possíveis para esse sujeito que o determina como tal. Fora desta ordem estruturante, sabemos
que o acesso ao conhecimento estará perturbado, ficando total ou parcialmente fraturada a
possibilidade de uma adequada construção cognitiva ou a possibilidade de utilizar seus
instrumentos de conhecimento.
É nesse sentido que a mítica e fantasmática familiares marcam a construção cognitiva da
criança.
Historicamente, tem-se colocado, a partir de diferentes postulados teóricos, que a modalidade
de intercâmbio que uma família propõe à criança influi em sua modalidade de intercâmbio
com os outros e os objetos de conhecimento, o que era compreendido como um fator a mais
que incidia nesse processo. No entanto, nos últimos anos tem-se comprovado, a partir de
diferentes investigações em psicologia genética, que a interação social e, neste caso,
especificamente, a interação familiar não é um fator a mais que se acrescenta, mas é em si
mesma estruturante do desenvolvimento cognitivo da criança, no sentido de estar engajada no
próprio processo de equilibração.
Jacques Lautrey6, analisou como as práticas educativas familiares desempenham um papel
fundamental na estruturação do conhecimento e
226
no desenvolvimento intelectual da criança, na medida em que elas, ao favorecerem uma maior
e melhor sensibilização da criança frente às situações de conflito e perturbação, favorecem
uma maior mobilidade intelectual. Nesse sentido, para além da fantasmática familiar, embora
considere que também em relação a ela e às condições sócio-econômicas de uma família há
uma modalidade de intercâmbio particular que circula nas mensagens familiares cotidianas,
nas propostas feitas à criança, nas normas de comportamento que determinam uma
modalidade de relação com o outro e com o objeto de conhecimento. Uma vez que o motor do
conhecimento está na resolução de situações de conflito com que o sujeito se encontra, e dado
que um sujeito, ao longo de seu processo de construção cognitiva, busca estabelecer
regularidades, é de fundamental importância que o meio ambiente familiar as apresente a ele.
Um meio sem nenhuma regularidade, mesmo que isto seja uma impossibilidade, pois sempre
há alguma, do contrário não haveria intercâmbio, torna-se impróprio para favorecer à
construção cognitiva da criança, o que pode ser freqüentemente observado nas mensagens
fortuitas, caprichosas que as famílias psicotizantes colocam à criança.
Lautrey analisa as características do meio suscetíveis de serem "ingredientes críticos" do
desenvolvimento cognitivo. Conforme esse autor, um meio ambiente familiar pode favorecer
mais o desenvolvimento cognitivo na medida em que: a) é origem de perturbações, no sentido
de colocar resistências aos esquemas de assimilação do sujeito e b) oferece também as
condições necessárias para as reequilibrações. Conforme ocorram ambos componentes, ou
somente o primeiro ou o segundo, o meio ambiente familiar terá uma estrutura mais flexível,
mais fraca ou mais rígida, respectivamente. Em função de cada uma destas três modalidades,
ficarão marcados de maneiras diferentes os aspectos funcionais do processo de equilibração,
gerando encontros mais ou menos móveis frente às situações de perturbações.
Quando na clínica nos encontramos frente a crianças cuja mobilidade intelectual está
perturbada, acredito que analisar as características da estruturação do meio ambiente familiar
desde esta perspectiva nos permitirá compreender mais adequadamente as particularidades do
funcionamento cognitivo da criança.
Os processos de intercâmbio com os objetos mais ou menos perturbados, as hiper ou
hipoassimilações, as hiper ou hipoacomodações com que nos encontramos nas diferentes
respostas das crianças às situações de
227
perturbações, estão em relação direta com a estruturação do meio ambiente familiar quanto à
mobilidade cognitiva que a mesma favoreceu. Tal processo também pode estar marcado de
forma paralela por um funcionamento ignorante pelo efeito da fantasmática familiar.
É a partir desses dois pontos de vista que se considera necessário analisar as particularidades
cognitivas da criança, caminho pelo qual procuramos escutar seu discurso e sua lógica.
É desde a fantasmática familiar, desde a interação familiar e desde a lógica da criança que
pensamos a respeito da fratura dos processos de conhecimento da criança, o valor da ação, do
movimento, da aprendizagem, o lugar do corpo e a palavra da criança em e para a família,
consideramos necessário, desde o psicopedagogo e o psicomotricista, uma reflexão a respeito
da criança como sujeito desejante, corporal e cognitivo na palavra da criança e seus pais, sob
os dois pontos de vista.
Por outro lado, em nossas entrevistas com os pais, não nos interessam tanto os fatos das
aquisições e acontecimentos históricos em si, mesmo quando necessitamos deles, mas, sim,
fundamentalmente, compreender o valor que os mesmos adquiriram para estes sujeitos em
questão. Nossas entradas e saídas, o dizer e o calar no trabalho com os pais, acredito que só
são pensáveis na transferência7. Nosso lugar é particular, pois não se trata, em nossa
abordagem, de uma relação analítica nem docente. Qual é, então, nossa função no trabalho
com os pais? É também o de oferecer um espaço para que se escutem, para que se encontrem
com a palavra da criança e com a própria.
As vezes, não há no pedido de atendimento demanda alguma, trazem o filho meramente
porque assim lhes indicaram, outras vezes para que lhe "façamos", para restituir uma função
faltante, sem se deter para perguntar. De nada serve forçar ali palavras, confissões e
sofrimentos. O importante é oferecer um espaço para que uma demanda se constitua. As
v
ezes, nos encontramos com situações patológicas que nos preocupam e, preocupados,
queremos mandá-los consultar um psicanalista. Que sentido tem num contexto de não-
interrogação por parte dos pais mandá-los consultar um psicanalista, ou mandá-los a uma
"terapia" como se costuma fazer, como anos atrás eu própria fazia? Naquelas situações era eu
que me perguntava, mas não havia neles demanda a um outro que pudesse saber algo acerca
desse filho, algo da ordem da estranheza, da interrogação a um outro "sujeito suposto ao
saber"8 que sabe acerca do inconsciente. Em tais casos, minha experiência clínica mostrou-me
que o mais indicado é abrir
228
um espaço em entrevistas para escutá-los e que se escutem, pontuando o pontuável, desde a
atenção flutuante e no espaço aberto ao lapso, à associação livre, abrir uma instância para que
a demanda se constitua e ali o encaminhamento não será tal, mas haverá uma demanda a
canalizar ante a solicitação. As tentativas apressadas correm o risco de fracassar. Trata-se de
confiar no inconsciente. Voltaremos sobre esse ponto de mediação frente aos pais mais
adiante.
4°) Quanto à relação criança-terapeuta - Segundo a forma como essa seja conceitualizada é
que serão marcadas as diferentes abordagens, as diferentes clínicas, suportadas a partir de
distintas perspectivas teóricas. Mas por que coloco que também nesse ponto temos um nexo?
É porque penso que há certos paralelismos com os quais historicamente tenho me encontrado,
na medida em que considero que a reeducação está para a psicopedagogia clínica da mesma
forma que a reeducação motora está para a psicomotricidade. Conforme seja nosso ponto de
vista a respeito do sujeito, de seu corpo, de seu conhecimento, será a perspectiva clínica
particular que adotaremos.
Nesse sentido, a interrogação a respeito da intervenção do terapeuta, seja esse psicopedagogo
ou psicomotricista, implica que perguntemos a respeito de nossa prática: qual é a função do
psicomotricista ou do psicopedagogo em sua abordagem clínica?
Alguns psicopedagogos responderam a esta interrogação ensinando a criança, dando-lhe
aquilo que ela não tem, aquilo de que carece, conteúdos, aquisições, centrando-se na
reprodução de produtos acabados. Outros, a partir da reeducação motora, atuaram
movimentando a criança, pautando seu movimento, marcando exercícios programados,
implementando técnicas de mobilização ou de direção do movimento em função das
diferentes áreas a abordar a partir destas perspectivas, centravam ambos, psicomotricista e
reeducadores, a atenção em meras deficiências instrumentais, como funções isoladas de um
corpo ou uma cabeça que não funciona bem. Isto, no entanto, não implica negar, por exemplo,
que em certos casos torna-se necessário efetuar mobilizações com o corpo da criança por
parte do terapeuta físico, tal como o trabalho interdisciplinar com fisioterapeutas e terapeutas
físicos com respeito à terapêutica de crianças com paralisia cerebral mostrou-me que eram
necessárias. Que não seja puro corpo a movimentar é o que quero marcar, mas também torna-
se necessário enfatizar que abrir um espaço para o sujeito não implica nada propor, esperar
que a criança se manifeste e enquanto isso ficar de braços cruzados.
229
Isso foi um erro de interpretação tanto da teoria psicogenética como psicanalítica. Respeitar o
tempo da criança e sua condição de sujeito desejante não implica não oferecer-oferecer-se
para que circule seu corpo, sua palavra e sua reflexão lógica. Desde uma compreensão
psicogenética, respeitar o sistema da criança não significa deixá-la que faça e meramente
observar, mas sim participar ativamente, analisando no dizer e fazer da criança sua lógica para
saber que nova situação propiciar, seguir as suas hipóteses e encaminhar a reformulação das
mesmas a partir de diferentes situações a propor. Trata-se de saber quando dizer, quando
calar, quando propor, quando oferecer, quando nos oferecer. Trata-se de saber nas situações
de construção cognitiva que contra-argumentação propor, seguindo a hipótese da criança.
Como analisar a reformulação das mesmas? Isso implica, obviamente, uma longa
aprendizagem da nossa parte e por outro lado, com respeito à criança, um longo caminho a
percorrer, pois o simples fato de propor situações de conflito a um sujeito não o leva a
reformular seu sistema de compreensão. Não é a todo momento que um sujeito é sensível às
situações de conflito, só quando se produz a tomada de consciência do mesmo é possível que
a dita reformulação do sistema tenha cabimento.
Por outro lado, nem todo momento é oportuno para propor situações de conflito. O
desconhecimento desse fato implica uma inadequada leitura dos postulados psicogenéticos,
uma empirização dos mesmos e a ilusão de que é possível por essa via dominar o processo de
aprendizagem da criança9.
Nada mais distante disso, é possível favorecer, sim, mas em determinadas situações. Provocar
um bombardeio de situações conflitivas pode acarretar uma paralisação no processo
construtivo da criança, seja porque as situações ultrapassam muito suas possibilidades de
assimilação, ou porque, frente à palavra insistente do adulto que interroga, a criança chegue a
deixar de fora sua reflexão, afirmando aquilo que é esperado pelo interlocutor, produzindo-se
então uma pseudo-adaptação, na medida em que se trata meramente de acatar a palavra do
adulto.
Colocar o acento em medidas compensatórias ao ensinar, seja aprendizagem no sentido
amplo, lógico-matemático, espacial, lectoescrito ou motor, sem compreender o que, desde sua
lógica e seu discurso, a criança manifesta, assim como pela via sintomática, implica o risco de
deixar a criança fora de sua palavra, de seu corpo e até de sua lógica.
Quando a lógica da criança é omitida colocando-lhe um estímulo
230
particular para provocar determinada resposta, supõe-se que o observável é único e igual para
todos os sujeitos, desconhecendo que um observável constitui-se como tal à medida que o
sujeito possa ir lhe outorgando significação desde seus próprios esquemas.
O corpo deslocado, o corpo pautado pelo reeducador, o corpo dirigido, a aprendizagem
pautada pelo psicopedagogo, numa corrida desvairada cujo furor curandis não deixa espaço
para além da planificação, obtura a possibilidade de que apareçam as palavras da criança, e
seu corpo como protagonista, suas hipóteses e seu erro cognitivo, na medida em que sua
palavra e seu corpo ficam aprisionados na técnica e na planificação do terapeuta, enquanto a
mesma se impõe sobre o sujeito, fica obturada e perturbada a dialética da relação da criança
com o seu corpo, e com o conhecimento. Mais do que sujeito há ali uma técnica a aplicar,
mais do que sujeito, uma perna, um braço a movimentar.
Que o terapeuta fique situado nessa utilização de sua técnica como aquele que tudo tem e tudo
sabe, colocando a criança num lugar de nada saber e a quem deve se dirigir e outorgar, para
além de toda postulação teórica acredito que devemos pensá-la a partir do efeito que a
impossibilidade, o mal-estar da criança, produz em nós, desde a dimensão faltante do
terapeuta e das vicissitudes que o levaram a essa prática profissional. Preencher na criança
uma carência acaso não a remeteria à especularidade que está em jogo desde o terapeuta numa
relação imaginária?
Na prática clínica, para além de toda postulação teórica e/ou terapêutica, pode-se filtrar nosso
imaginário que, em busca da almejada totalidade, às vezes pode nos levar a remendar,
acalmar, acalmar-nos, produzindo, inclusive, por vezes um forçamento do material que se os
apresenta e a oclusão do discurso do paciente. Fato que podemos constatar après-coup na
solidão com o material ao ser supervisionado, em nossa própria análise, ao supervisionar
outros e às vezes nunca, o que está intimamente ligado com as reflexões e interrogações que
colocava no começo: qual é a relação que podemos estabelecer com o conhecimento, com o
saber, no sentido de mediação ou totalidade? Qual seria o caminho possível a tomar? Como se
colocar frente a tal sujeito a atender? A partir de minha experiência clínica cheguei a pensar
esta relação como possível de ser sintetizada com a fórmula: "alterar um saber com um não
saber". Que significa esta relação paradoxal? Por um lado, desde uma leitura psi-canalítica,
"não saber" no sentido de evitar a queda numa posição narcisista alienada frente ao paciente.
Não saber, no sentido de suspender toda
231
a verdade do terapeuta a respeito do mal-estar da criança e da constituição de um espaço para
que sua verdade aconteça num discurso próprio.
Para além de uma construção teórica na qual se procure ancorar o paciente, trata-se de se
deixar surpreender pela palavra deste sujeito particular no sentido que Lacan formula "eu não
procuro, encontro"10. A premissa do não saber é o que define a posição do terapeuta. Neste
sentido, trata-se de respeitar a fórmula que corresponde ao terapeuta: a atenção flutuante
frente a todo dizer do paciente.
Por outro lado, desde uma perspectiva psicogenética, trata-se de um saber no sentido de um
saber particular a respeito da construção cognitiva, o que implica inferir nas palavras, nas
ações e estratégias da criança as hipóteses subjacentes às mesmas a fim de favorecer o
processo de construção cognitiva, o que supõe, ponderadamente, um não saber, no sentido de
não marcar nas situações problemáticas a resolver, um caminho pre-estabelecido, centrado na
busca de soluções corretas.
Se o terapeuta estabelece uma relação que se completa com a técnica, com a teoria, se se erige
em juiz ou defensor, a criança e os pais ficam fora de toda palavra própria. A reação no nível
do imaginário, então, pode se colocar tanto no que diz respeito à criança como aos pais. Nesse
ponto caberia que nos perguntássemos: o que significa aqui o trabalho numa clínica sob
transferência? Significa que a palavra pronunciada não é meramente a de uma pessoa
particular, deste pai ou criança dirigida a esse terapeuta pessoa como de eu a eu, mas sim o
discurso de um "sujeito do inconsciente" cuja palavra o representa e que se remete a Outro
representado na figura do terapeuta, o qual, quando a transferência se constitui, constitui-se
como "sujeito suposto saber", alguém que sabe sobre o inconsciente e poderá... Embora tanto
os pais quanto a criança possam se dirigir a um outro, é importante que o terapeuta deslize
desse lugar, "faça-se de morto"". Já que não é a seu eu que tal mensagem se dirige; caso
contrário ficaria enredado numa relação especular. O trabalho com os pais e a criança não se
dá numa relação meramente interpessoal, não é ao eu do terapeuta que a palavra vai sempre
dirigida, não é uma relação simétrica, mas assimétrica. Neste sentido, os pais e as crianças
podem dizer tudo, o que já não é o nosso caso; nós devemos cuidar o que pontuar, o que calar
e, especialmente, não responder a partir de um lugar imaginário especularmente de eu a eu, o
que significa manejar a transferência, não se trata de interpretá-la pelo que o paciente me
provoca, isso nada tem a ver provavelmente com o paciente, com o seu discurso, mas
232
com nossas vicissitudes que, se não foram suficientemente analisadas em nossa análise,
podem se transformar em nosso ponto cego. Por isso, Lacan diz que a contratransferência
corresponde a pontos cegos ou preconceituosos do terapeuta. Ficar à espera, sem pressa, para
que os significantes apareçam tanto no trabalho com os pais como com a criança não significa
fazer psicoterapia, pois nosso trabalho é particularmente diferente. Se bem é certo que o
discurso é ouvido, não pontuamos como um analista num tratamento psicanalítico. Manejar a
transferência permite saber como situar-nos, como nos colocarmos, como abrir novos
espaços, o que calar, o que dizer, mas tendo claro que nosso ponto de mira é ajudar a criança a
que consiga desde sua abordagem um manejo mais adequado do corpo para si, ou, desde
nossa abordagem, a possibilidade que se constitua num sujeito de aprendizagem mais
autônomo, menos perturbado. Nesse sentido, em nossas mediações, em nossas entradas, às
vezes há propostas específicas e concretas para a criança. Embora se trate de uma prática
sustentada por uma reflexão psicanalítica, não é psicanálise.
Se o terapeuta, como dizia anteriormente, estabelece uma relação de se completar com a
técnica ou com o conhecimento, ao se interpor entre a criança e o objeto de conhecimento,
entre a criança e seu corpo, perturba a constituição de um sujeito autônomo, estruturando-se
uma relação de passividade relacional, intelectual e corporal.
Se, como dizia no começo, a aprendizagem (e desta se trata em ambas abordagens mesmo que
o acento esteja colocado em diferentes aspectos em cada uma delas) se dá numa relação de
intercâmbio, o lugar em que se instale o terapeuta a respeito do conhecimento e do corpo da
criança é fundamental.
Submeter-se a uma experiência em que os passos não estejam prefixados por uma
planificação estruturada, seja essa psicopedagógica ou psicomotora, não é fácil, pois implica
saber como a criança constrói seu conhecimento nos diferentes âmbitos, quais são os sistemas
de compreensão que subjazem a sua ação, como se manifesta seu corpo, compreender suas
hipóteses, a significação das mesmas, seu erro cognitivo, assim como, muitas vezes,
confrontar-se com um não-saber.
Lançar-se a uma situação sem ter as certezas técnicas pautadas que só podem ser presenciadas
em função das situações que se suscitem, é como se encontrar frente a um jogo de xadrez no
qual se podem saber algumas jogadas, mas que sempre estarão determinadas a partir da ação e
verbalização da criança em cada momento. A partir de uma perspectiva
233
psicogenética, isso implica poder seguir as hipóteses que subjazem nas ações e verbalizações
da criança, o que é complexo.
Segundo uma compreensão psicanalítica diríamos que implica poder tolerar o não-saber que
se nos presentifica quando não podemos, ainda, dar conta da obturação do conhecimento da
criança e, neste caso, teremos que esperar o dizer da criança, seu discurso, para poder ligar a
partir de uma cadeia de significantes aquilo que dê conta do funcionar ignorante da criança
em questão.
Quando uma criança se confronta com uma situação de perturbação, quando a realidade não
pode ser assimilada desde seu sistema de compreensão, embora a teoria psicogenética dê
conta das possíveis reações de uma criança frente à situação de perturbação, não podemos
deixar de pensar, desde uma leitura psicanalítica, desde o narcisismo do sujeito em questão,
como se joga esse vazio que se produz frente ao encontro com a impossibilidade. Qual é o
efeito que essa impossibilidade de ajuste provoca na criança? Para poder aprender algo novo,
torna-se necessário poder tolerar o não-saber, o vazio que aí fica marcado, o que,
necessariamente, remete à castração, e constitui o acontecimento propriamente humano,
estando em jogo tanto para a criança como para o terapeuta.
A partir de uma compreensão psicanalítica, podemos dizer que se trata de tornar este vazio
tolerável, o que, necessariamente, implica, para a criança, a própria tolerância frente ao
desconhecimento. O arcabouço pedagógico ou técnico e o narcisismo do terapeuta às vezes a
impossibilitam ainda mais. O inconsciente do terapeuta pesa na relação terapêutica tanto ou
mais que sua técnica.
Conforme Catherine Millot, "quando o docente (quando o terapeuta, acrescentaríamos nós)
acredita estar se dirigindo à criança, sem que ele o saiba, o que foi atingido é o inconsciente
desta e isso nem sequer por aquilo que ele acredita estar lhe comunicando, mas, sim, pelo que
de seu próprio inconsciente passa através de suas palavras".12
Para terminar com estas reflexões, considero que na prática psico-pedagógica e psicomotora é
importante marcar que é ilusório pretender o domínio da situação terapêutica.
Nesse sentido, considero válida a colocação de Millot: "O processo educativo (e o processo de
aprendizagem, acrescentaríamos nós) descansa numa relação imaginária, narcisista e
alienante..." (...) "o educador (o terapeuta, psicopedagogo ou psicomotricista,
acrescentaríamos nós) deveria renunciar a se apoiar no registro do imaginário, mas, ao fazê-
lo, renunciaria
234
também a seus métodos de ação como educador (acrescentaríamos como terapeuta no que diz
respeito ao futuro da criança) é uma contradição estrutural". "Em todo caso, é importante
sobreavisar a respeito dos abusos (riscos)13 nos quais sua posição o faria deslizar
facilmente".14
A neutralidade no trabalho psicopedagógico e psicomotor é, em certa medida, impossível, e
suspender todo desejo a respeito da criança, impraticável.
Em todo caso, o importante é reduzir a influência do imaginário, desprendendo-se de uma
posição narcisista, ao colocar a criança no lugar de ideal do ego. Torna-se necessário remeter
a criança a outro objeto diferente de nós mesmos.
É nesse sentido que a psicanálise pode nos aportar uma ética na qual nossas práticas possam
se inspirar. Essa implica a desmitificação do lugar enganoso de possuidor de um saber e de ser
completo. Ética que se constitui no respeito pela palavra do paciente, na verdade de seu
discurso. Por outro lado, poderíamos pensar, a partir de uma compreensão dos postulados
psicogenéticos, numa ética no sentido da atitude que o terapeuta assuma frente ao processo do
conhecimento da criança. A ambas éticas referia-me quando asseverava a alternância de um
saber com um não saber.
A desmitificação do lugar enganoso torna-se possível para além dos postulados teóricos que
guiem nossa ação terapêutica a partir do reconhecimento da carência. Sem ignorância, sem
falta, não há acesso ao conhecimento, ao a fazer com a criança no espaço terapêutico
psicomotor ou psicopedagógico. Na medida em que tal situação imaginária possa ser
simbolizada pelos terapeutas, e na medida em que haja um respeito pela construção cognitiva
da criança, estas éticas terão a possibilidade de se constituir.
Desejaria que estas reflexões e algumas das propostas colocadas nos sirvam para poder
começar a discutir acerca de nossas práticas. Deixá-las como elaborações fechadas seria ocluir
nosso pensar e nossa reflexão clínica e teórica.
Notas
1 - PASSANO, Jorge - "Placer y displacer en el proceso de aprendizaje", Revista de Psicopedagogia, n° 33,
Instituto de Investigación de la Facultad de Psicologia, Universidad del Salvador, p. 14-15.
2 - PAÍN, Sara - "Estructuras inconscientes del pensamiento". La fúnción de la ignorância. Buenos Aires, Nueva
Vision, 1979.
3 - PERRET, Clermont e NEILY, Anne - "La construcción de la inteligência en la ínteracción social."
235
Madrid, Aprendizaje-Visor, 1984.
4 - CASTORINA et alli. - "Alcances del método de exploración crítica en psicologia genética". In: psicologia
genética. Buenos Aires, Mino y Dávila, 1984.
5 - PIAGET, Jean - "La equilibraciôn de las estructuras cognoscitivas", México, Siglo XXI, 1978.
6 - LAUTREY, Jacques - "Clase social, médio ambiente familiar e inteligência", Madrid, Aprendizaje-Visor,
1985.
7 - FREUD, Sigmund - "Sobre la dinâmica, de la transferencia", "Consejos al médico en el tratamiento
psicoanalitico", "Sobre la iniciación del tratamiento", "Recordar, repetir y elaborar". Obras Completas, Buenos
Aires, Amorrortu, t. XII.
8 - MILLER, Jacques Alain - "La transferencia". "El sujeto supuesto saber". "Cinco conferências caraquefias
sobre Lacan". El ateneo de Caracas.
9 - CASTORINA, José A - "Psicogénesis e ilusiones pedagógica e psicologia genética. Aspectos metodológicos e
implicâncias pedagógicas". In: Psicologia genética. Buenos Aires, Mino y Dávila, 1984.
10 - LACAN, Jacques - "Seminário XI, Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis", cap. XVIII,
Barcelona, Barrai, p. 2351.
11 —. - "La dirección de la cura". In: Lectura estructuralista de Freud. México, Siglo XXI, p. 221.
12 - MILLOT, Catherine - "Freud antipedagogo". Buenos Aires, Paidós, 1982, p. 198.
13 - Esclarecimento do autor.
14 - Idem, p. 202-204.
Fim das notas.
236
TERAPÊUTICA DA LINGUAGEM: ENTRE A VOZ E O SIGNIFICANTE
ser desejante e pensante, que é a única garantia de uma real integração na sociedade. Veremos
agora de que maneira se articula nossa prática clínica na criança com deficiência mental, em
relação ao marco teórico já desenvolvido. Na terapêutica da linguagem, partimos da tarefa
dirigida para a constituição de um campo delimitado, onde o verbal fique privilegiado. Para
tanto todas as intenções comunicativas da criança, verbais ou gestuais, são guardadas,
tratando de incluí-las numa estrutura de diálogo, marcada por um destinador e um
destinatário.
Podemos dizer que somente a partir da configuração deste campo poderá estabelecer-se o ato
lingüístico.
Em nosso trabalho, a abordagem terapêutica da linguagem centra-se em três eixos
fundamentais:
a) o lugar ocupado pela criança no discurso de seus pais, discurso que o significa como
sujeito;
b) a escuta do discurso da criança, discurso que o recorta ou não como sujeito, discurso que
aparece em seus gestos, jogos, vocalizações, palavras, frases, enfim, em toda a atividade e,
por que não, em sua passividade;
c) a criação de um espaço lingüístico entre o terapeuta e a criança, a partir do qual se irá
produzindo um diálogo. Ali, poderão introduzir, caso necessário, as diferentes técnicas,
correspondentes a cada patologia.
A relação dialética entre estes três eixos origina oscilações caracterizadas por momentos de
evolução ou de estancamento no desenvolvimento da linguagem.
O trabalho com os pais da criança estará dirigido a tratar de desarticular os fatores que, a
partir da ordem simbólica, obturem o processo de aquisição da linguagem.
Na criança, a tarefa girará sobre o material 3 que traga em cada sessão, pois somente ele
mesmo poderá mostrar-nos o ponto que marca a abertura pela qual poderemos penetrar.
Colocaremos, ademais, os transtornos da atividade neurofisiológica, que muito
freqüentemente acompanham a deficiência mental e que configuram dois quadros básicos: de
alterações na compreensão (componentes afásicos) e na elocução (componentes anártricos).
Passaremos a descrever brevemente sua abordagem.
248
Sabemos que, nas alterações de tipo afásico, a criança apresenta dificuldades para a análise e
síntese verbais, pode chegar a compreender situações não verbais muito melhor que quando
intervém a palavra articulada. As dificuldades na compreensão passam pelos transtornos na
descodifi cação e posterior organização semântica. Observam-se, também, dificuldades na
elocução, correspondentes a este quadro. Nestas crianças, o trabalho sobre o analisador
auditivo é central e se realiza através do desenvolvimento da audivilização nos diferentes
planos lingüísticos (fonemático, silábico, palavra, frase), atingindo níveis de integração
progressiva numa relação semântica.
Nas alterações de tipo anártrico, as dificuldades aparecem sobretudo em nível fonológico.
Observa-se um atraso especial nos aspectos fonemático, sintático e gramatical. O grau de
incidência destes transtornos é extremamente variável, mas podemos dizer que, em todos os
casos, nossa abordagem terapêutica leva em consideração a criança como sujeito, parte de
uma série significante que a atravessa e que se desdobra numa relação transferencial com o
terapeuta.
Tomando a articulação das duas linhas de coordenadas (eixos sintagmático e paradigmático),
podemos colocar sobre elas o discurso e analisar, assim, as dificuldades que aparecem no
enunciado. Na linha vertical, ou do paradigma, podemos situar a extensão da linguagem
(vocabulário), enquanto na horizontal, o do sintagma, a organização sintática.
Na criança com transtornos de tipo afásico, se operará no sentido de facilitar a evocação das
partículas verbais da palavra e da frase, num trabalho de análise e síntese verbais, em função
da linha sintagmática da seqüência, desde o auditivo e com um importante apoio visual
(material concreto e gráfico).
Na criança com alterações predominantemente anártricas, a tarefa estará dirigida para a
evocação das estruturas motrizes da produção verbal. Aqui se implementa o trabalho
fonoarticulatório e se realiza a partir do desenvolvimento da imagem visual-auditiva dos
pontos de articulação.
A técnica só pode ser efetiva no marco de um permanente deslocamento de lugar de escuta do
terapeuta, que determinará o momento adequado para oferecer a ocasião do bom 4 e do bem
dizer. Dito de outra maneira, a linguagem se oferece à criança, está ali, mas é ela que deve
descobri-la, será ela que se apropriará da linguagem baseada na trama significante que a
sustenta e que a pontua como sujeito sujeitado a Outro.
Penetrar na relação transferencial com o objetivo de conhecer o
249
Terreno no qual se desenvolve a problemática da criança é parte de uma tarefa. A terapêutica da
linguagem, vista sob esta ótica, tende a favorecer Ha apropriação da linguagem pela criança,
num discurso individual através de um Outro (neste caso, o terapeuta) que provoca que se
manifeste. Esta intervenção deverá ter a característica de constituir um lugar de registro sobre
o qual se instale o desejo do descobrimento próprio.
Redefinição do campo da terapêutica da linguagem a partir das contribuições da lingüística e
da psicanálise
A partir da psicanálise, a questão do significante nos coloca uma interrogação acerca do lugar
do sujeito e do lugar do Outro articulados pela função da demanda e da função do desejo,
onde a linguagem aparece como o sistema que suporta esta articulação. Assim, a linguagem
não é um mero sistema instrumental de expressão de idéias, mas o constitutivo e o
constituinte da possibilidade de que se articule o sujeito em relação ao Outro neste campo de
desejo e de demanda.
Assim, as perguntas: "o que pede?", em relação à demanda, e "o que quer?", em relação ao
desejo, são as perguntas-chave que nos permitem operar no campo da transferência, em
qualquer ato clínico, ou seja, em qualquer ato que se proponha a uma função terapêutica, que
nos permita operar na medida em que todo terapeuta é colocado no lugar do saber e em
função deste saber se vai consultá-lo. Mas este saber, que nos campos da neurofisiologia é
efetivo, nos campos do significante é suposto: esta é a heterogeneidade na qual se vê
confrontada uma operação terapêutica no campo da linguagem, ou seja, uma heterogeneidade
entre um saber efetivo de um lado, e um saber que é suposto, por outro. Fica estabelecida,
então, a necessidade de oscilar entre isto que se sabe e isto que se supõe a ele como sabendo,
já que, a respeito da significância, nada pode ser previamente afirmado, nada se constitui
como um saber efetivo, a não ser o saber do deslizamento incessante deste significante.
Portanto, o terapêuta da linguagem, que por um lado está numa função indicativa acerca do
exercício que corresponde que a criança faça para que saia o fonema que tem que sair (e deste
lado está o saber efetivo, porque conhece o exercício e conhece a neurofisiologia do aparelho
fonatório), do outro, a instância da letra que se articula no campo do inconsciente pode não lhe
sair ou se lhe sair em certa posição por algo que o terapeuta ignora e, a partir deste lugar, só o
que pode fazer é interrogar-se; interrogar-se a
250
respeito da demanda e a respeito do desejo, e aí abrir um campo de escuta, campo de escuta
este que é similar ao que um psicanalista pode ter, o assunto é o que opera um terapeuta da
linguagem a partir desta escuta não é o mesmo que opera um analista a partir desta escuta. É
aqui que a especificidade da linguagem se conserva, enquanto função terapêutica, ou lugar de
uma função terapêutica específica.
Isto se vê mais claramente na questão de como os antigos operadores no campo da terapia da
linguagem se vêem transformados por este atravessamento da escuta psicanalítica; assim, o
que na terapia clássica, centrada nas funções neurofisiológicas da palavra, se centrava na
repetição ginástica do aparelho fonatório, de certos exercícios, bem como na automatização
(assim se dizia) da produção de certa letra, hoje se trabalha pela via da redundância, que, se de
um lado é trabalhada na fonoarticulação, de outro tem que ser situada em diferentes campos
associativos para que essa letra não seja uma mera reprodução robotizada, uma mera
expressão do automatismo, mas um lugar de articulação associativa do sujeito.
O que vai da repetição à redundância é o que vai de uma operação terapêutica da linguagem
determinada a partir do campo da neurofisiologia, ao que, hoje, é, no campo da terapia da
linguagem, uma operação determinada pelo campo da psicanálise e da lingüística moderna.
Certamente a redundância é repetir de outra maneira o mesmo, mas este repetir o mesmo não
tem as mesmas implicações, sob os pontos de vista psíquico e da associação de idéias.
Digamos que o inconsciente opera por meio da redundância: que é, então, a repetição? A
repetição, na neurose, não é mais que uma redundância em termos de discurso, se faz o
mesmo de outra maneira, mas é o mesmo, se quer dizer o mesmo sucessivas vezes, de
diferentes maneiras, é o mesmo que dizer: "no que segue, "à continuação", "estabeleceremos a
seqüência" etc. (três maneiras de dizer o mesmo sem que fique demasiado evidente que se diz
o mesmo). Mas esta maneira de insistir na idéia, ou no lugar da letra, ou no lugar da
significância em que se esteja trabalhando, é insistir a partir de diferentes posições na
linguagem, ou seja, de diferentes formações discursivas, que é o que na estrutura do sujeito
efetivamente ocorre, desde sua própria neurose, o que quer dizer respeitar, por analogia, o
modo como a linguagem se instala em termos de estrutura nas funções da subjetividade, ou
seja, respeitar, por analogia, em nosso trabalho de terapeuta da linguagem, o modo como a
linguagem opera no campo da estruturação do sujeito, por redundância e não por repetição
ginástica.
251
Assim como a redundância se opõe a repetição, poderíamos dizer que a pontuação, a pausa, o
intervalo e a interpelação se colocam como forma s de atividade discursiva do terapeuta na
posição de evocação, de produção, de situação associativa e articulada da palavra, da palavra
que lhe surja, ou da palavra que se lhe pede, ou que se supõe que virá no lugar do silêncio, ou
no lugar daquele que é interpelado, se lhe provoca um vazio em cujo lugar vem a palavra,
operação terapêutica esta que se diferencia por oposição ao oferecimento de ummodelo onde,
antigamente, se insistia, pedindo simplesmente a imitação.
Digamos, então, que a imitação e o modelo, como operadores terapêuticos por obra do
atravessamento da psicanálise e da lingüística no campo da fonoaudiologia, mudam de
posição, cedem, cedem o lugar em importância à pontuação, à pausa, à interpelação, ao
intervalo.
Se bem, aqui, aparecem a pontuação, o intervalo, a pausa e a interpelação, assim aparecem
também outros operadores, mas não o modelo e a imitação. Claro que estes operadores devem
ser eficazes somente na medida em que a terapêutica da linguagem esteja inspirada numa
pergunta prévia que está situada, pela importância que se lhe concede hoje à transferência, em
qualquer ato clínico. E esta pergunta é: interessa a palavra ao sujeito desta operação
terapêutica? Esta é a pré-condição para operar deste modo, e nós cremos que por ora a
resposta ou o trabalho relativo a esta pergunta inicial é o trabalho-chave para entrar na
linguagem. Se assim não se opera, tudo mais que se faça é no campo da fala, mas não no da
linguagem, a fala no sentido mais elementar e primitivo, sem conseqüências e sem efeitos no
campo da subjetividade, que é o que, em última instância, mais importa, o campo do sujeito,
em qualquer ato clínico que nos proponhamos fazer.5
Notas
1 - Centro "Lydia Coriat"
2 - O que supõe estar sujeitado ao Outro. Assim, a instância bipolar se desdobra: um que fala, o que escuta, o
Outro do sujeitamento e a instância do significante: estrutura quaternária que a linguagem articula e na qual
ela mesma cava seu lugar de aparência bipolar.
3 - Denominamos "material" à situação que a criança arma ou desenvolve no transcurso da sessão.
4 - Ou seja, que a criança possa dizer aquilo que deseja numa formulação adequada.
5 - Colaboraram na discussão dos temas aqui desenvolvidos as fonoaudiólogas Noemi Giuiiani e Ana Maria
Greggori.
Fim das notas.
252
AUTISMO EM NEUROLOGIA INFANTIL
Owen H. Foster
Notas
1 - JERUSALINSKY, Alfredo - "Psicanálise do autismo". Porto Alegre, Artes Médicas, 1984.
2 - MANNONI, Maud - "El niño retrasado y su madre", Madrid, Fox, 1971.
Fim das notas.
271
O POSSÍVEL E O IMPOSSÍVEL NA CURA DA SÍNDROME DE DOWN
Alfredo Jerusalinsky
"Não me discriminam.
Só não consideram importante o que faço."
(M. R, 25 anos, com Síndrome de Down)
Quando começamos, faz mais de 25 anos, de um modo pragmático, com as primeiras
formulações da estimulação precoce, sua colocação em prática (inicialmente no Hospital de
Niños de Buenos Aires, era vacilantemente aceita. Uma atitude entre tolerante e cética
passava entre os profissionais das mais diversas áreas. Desde neurologistas até psicanalistas,
passando por fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, professores especiais
etc, manifestavam alternadamente um cauteloso interesse ou uma defensiva ironia.
Era lógico que raciocinassem deste modo. Propúnhamo-nos tratar bebês afetados por
enfermidades incuráveis ou portadores de seqüelas crônicas que comprometiam de um modo
definitivo seu desenvolvimento. Não se pretendia certamente uma cura total, mas, sim,
formulávamos a hipótese de que uma intervenção adequada em épocas tão precoces da vida
poderia modificar substancialmente as deficiências e a condição psicossocial do indivíduo,
embora vitimado por uma constituição desvantajosa para sua normal evolução e desempenho.
E devemos salientar que, por mais plausível que hoje em dia nos pareça ter formulado tal
hipótese, muito poucas e dispersas investigações (inespecíficas) podiam, na época, ser
chamadas em seu apoio.
Ainda mais, pelo que a clínica com crianças pequenas havia nos
272
ensinado até ali, tínhamos chegado à convicção de que os bebês, mesmo aqueles com
handicap, não eram meramente passivos no registro do que se oferecia e que podiam ser
conduzidos a ser passivos pelo conjunto de atitudes dos que os rodeiam, quando elas estão
inspiradas, precisamente, em supô-los passivos. Fazer de um bebê incapacitado e incurável
alguém ativo e participante em sua própria terapia, convenhamos, era, para a época, um sapo
difícil de engolir.
Porém, encontramos fôlego para continuar em três fontes:
1) nos resultados que dia após dia nos surpreendiam, desmentindo o imodificável dos aspectos
funcionais de diversas patologias genéticas e neurológicas (ainda que, evidentemente, nos
encontrávamos com limites reais nos alcances terapêuticos);
2) no fato de que, nas disciplinas básicas da clínica, tais como a psicologia, a psicanálise e a
neurologia, se operassem demonstrações cada vez mais contundentes do papel marcante e
transformador que têm as experiências precoces da vida quando se trata de experiências
prolongadas e sustentadas;
3) nas manifestações dos pais e das crianças, que, apesar do tormentoso labirinto de desejos e
repúdios em que se vêem sumidos pelo choque com uma realidade cerceadora, empenhavam-
se decididamente até o encontro de uma saída quando se lhes ofereciam meios de enfrentar-se,
de algum modo, com sua desgraça.
Estas três considerações - 1) a modificabilidade parcial ou funcional dos danos causados por
diversas patologias genéticas ou neurológicas, que, em geral, são consideradas como
completamente irreparáveis; 2) a necessidade de começar o tratamento o mais cedo possível; e
3) a importância do desejo dos pais - adquirem tal consistência em nossa prática ao longo dos
anos que hoje em dia se têm transformado em fundamentos, tanto para a determinação dos
níveis possíveis de cura como para sua orientação.
No curso de todos estes anos, acrescentaram-se cada vez mais argumentos para questionar as
posições dualistas e dissociativas entre o orgânico e o psíquico. Apesar das reações
corporativistas dos diferentes grupos profissionais parece, hoje em dia, estar bastante claro
que qualquer tentativa de cura de um sistema neuronal afetado obtém resultados muito
melhores se ela se exerce não só no terreno químico ou cirúrgico, senão no curso mesmo do
exercício da função para o qual tal sistema está potencialmente constituído. Melhor ainda é o
efeito terapêutico quando se põe em jogo a marca, a inscrição, que diferencia a função e a
articula ao conjunto do sistema psíquico. Assim, inscrição, função, estrutura neuronal
273
aparecem como indissociáveis em uma boa prática clínica referida às enfermidades ou
condições desvantajosas para o desenvolvimento.
Esta forte articulação, que obriga os terapeutas à interconsulta e quebra a autonomia do
exercício profissional, provocou formações reativas na direção de reduzir estas três caras do
desenvolvimento e sua patologia a uma só. Não faltam os psicanalistas, que sustentam que,
com uma modificação na posição subjetiva da criança, o resto vem sozinho. Existem também
os terapeutas específicos (psicopedagogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas etc), que realizam
sua prática como se, com o simples exercício da função (intelectual, lingüística, motriz etc), a
tarefa estivesse cumprida. Tampouco faltam os neurologistas, ou psiquiatras, que reduzem o
ato clínico ao campo do químico e do descritivo, ou bem articulam simplesmente uma terapia
funcional (a mais assimilável à concepção médica do corpo), descuidando ou menosprezando
a inscrição da função no campo subjetivo.
No caso da Síndrome de Down, por exemplo, qualquer reducionismo costuma ter
conseqüências graves. A redução da síndrome a uma expressão puramente orgânica coloca os
afetados simplesmente no terreno do incurável. A redução a uma perspectiva puramente
funcional lança esta pessoa a um campo de habilidades e performances que sempre a situarão
como perdedora. A redução a uma concepção exclusivamente psicanalítica deixará um sujeito
capaz de pensar sua posição social à mercê de suas fraquezas e déficits, na angústia de carecer
de ajuda específica para lidar com suas limitações.
É por isso que insistimos na interdisciplina como meio de pôr em jogo o que de melhor se tem
encontrado até agora no campo desta clínica. Mas não se trata de uma mera justaposição de
práticas diferentes ou de uma apressada composição entre teorias divergentes; trata-se de um
paciente e demorado trabalho de decifrar e tomar em cada caso os detalhes de suas
dificuldades, as limitações de seu corpo e a disposição de seu desejo para encontrar o modo
em que os conceitos das disciplinas diferentes se coloquem a serviço de um sujeito que,
embora sendo portador de uma síndrome, demanda ser alguém.
Se a "cura" se dirige a este último ponto, certamente estamos no terreno do que é
perfeitamente possível de obter no trabalho terapêutico com os afetados pela Síndrome de
Down. O fato de que dominem, em maior ou menor grau, a escritura e a leitura, ou que suas
habilidades lingüísticas produzam alguns inconvenientes em sua comunicação social,
274
ou a existência de um teto de abstração que os obrigue a restringir a complexidade do cálculo
ou a manter referenciais simbólicos na ordem do concreto, não chega, na imensa maioria dos
casos, a constituir obstáculos decisivos para sua livre circulação social.
As complicações - tanto psíquicas como orgânicas - que podem apresentar-se em uma parte
significativa dos casos não podem ser consideradas em bloco como patognomônicas da
Síndrome de Down. Em primeiro lugar, porque não afetam a maioria; em segundo lugar,
porque várias delas aparecem como supervenientes, cuja evolução e destino dependem do
modo de proceder do meio; e, em terceiro lugar, porque a maioria destas complicações são
tratáveis do mesmo modo que o são em outros indivíduos que não padecem da síndrome
(referimo-nos, por exemplo, às perturbações psíquicas, aos déficits auditivos ou visuais, às
deficiências cardíacas etc). Mas, sem dúvida, quando se associam à síndrome várias destas
complicações, as energias com que pode contar este sujeito para fazer frente a sua situação
desvantajosa para encarar seu desenvolvimento vêem-se severamente minadas.
Quando falamos dos níveis de cura e sua repercussão estamos referindo-nos a quanto do
hipoteticamente perdido pode uma pessoa com Síndrome de Down restabelecer em sua vida.
Como ocorre com qualquer um, o hipoteticamente perdido remete a um ideal do qual nunca
nenhum de nós teve qualquer experiência. Trata-se, então, de encontrarmo-nos com o
reconhecimento dos outros, apesar de nosso fracasso em realizar esse ideal, isto é, a "cura".
Por que a qualquer um se perdoariam mais seus fracassos que a quem leva na cara o selo de
sua limitação? Talvez seja precisamente porque nos devolve em espelho a marca de nossas
próprias limitações. Talvez por isto a comicidade dos afetados pela Síndrome de Down torne-
se sarcasmo com tanta facilidade.
O possível nesta cura está em proporção direta com a capacidade dos que rodeiam este
"paciente" de escutar sua risada como riso, sua irritação como irritação, sua queixa como
queixa, sua dor como dor. Simplesmente dar importância àquilo que ele tem para dizer.
Nota
Tradução: Ricardo Vianna Martins
Fim da nota.
275
BASES NEUROFISIOLÓGICAS DA ESTIMULAÇÃO PRECOCE
Owen H. Foster e Alfredo Jerusalinsky
Notas
1 - Concepts of development. The biopsychology of development, 1971.
2 - Systemogenesis as a general regulator of brain development. Progress in Brain Research. Amsterdam, 1964.
3 - In: Barraquer Bordas. "Neurologia fundamental", cap. XVIII.
4 - Esente. Tratado de oftalmologia.
5 - Regional development of the brain in early life, 1967.
6 - J. Altman, "Postriatal neurogenesis and the problems of neural plasticity". In: Developmental Neurology,
1970.
7 - SMITHIES. In: Baraquer Bordas. Neurologia fundamental, cap. XVIII.
8 - Em Baraquer Bordas. Neurologia fundamental, 1976.
9 - Neurology of early childhood. Baltimore, Williams & Wilkins, 1970.
10 - John Hopkins Medical Journal. 1975; Sherington Memorial Lecture, 1977.
11 - "The visual cortex of the Brain" Scientific American. 1963.
Fim das notas.
283
ANÁLISE DE UM CASO DE ESTIMULAÇÃO PRECOCE
Edelma Tadey
“Eles são de mentirinha...", aclara Cecília, uma menina mongólica de 10 anos, assim que me
nomeou uma lista de amigos - imaginários, segundo seus pais e professores. Cecília
queixa-se porque sua professora não a ensina a escrever seu nome,
enquanto sua professora queixa-se porque Cecília não pode aprender a
escrever. Quem diz a verdade?
Cecília tenta demonstrá-lo: toma um papel e escreve suas "notas". No desarticulado destes
traços sem sentido - que observados a uma prudente distância conservam a gestalt de uma
sucessão de palavras - sua escrita parecia se articular, mas uma escrita enganosa, de
mentirinha. Mente-me Cecília?
Mas Cecília prossegue na sua demonstração e decide, agora, que eu escreva por ela. Dita: "Me
canso / Porque estou mal, velhinha / Estou mal / É certo / Dou pena / Sou muito má / escuro /
Sombra de sol / Pena de tamília /... / Eu quero um lápis para apagar". Foi uma sorte que minha
caneta escrevera em vez de apagar o que esta menina dizia. Que me faz escrever Cecília?
São muitos os que podem me dizer: "Mas é uma mongólica, o que pode fazer um psicanalista
com uma criança assim?". O cromossoma a mais que afeta cada uma das células do corpo de
um mongólico nos permite incluí-lo dentro da categoria do humano? E, sendo assim, que tem
de vida psíquica, que tem do inconsciente? E se o tem... terá seu inconsciente também um
"cromossoma a mais"?
Desde a antigüidade, os homens decidiram colocar o deficiente num lugar de segregação, seja
marcando-o como depositário do mal, o possuído pelo demônio, separando-o da comunidade
junto com os loucos
300
e criminosos, sem descartar a possibilidade de matá-lo; seja, supervalorizando-o, atribuindo-
lhe poderes extraordinários: o tonto como possuidor da santidade.
Enquanto nas cidades eram esses indivíduos escondidos, no Egito eram adorados. Em
Esparta, um conselho de anciãos ordenava empurrá-los do alto dos montes Taigeto. Na Idade
Média eram recluídos em hospitais gerais com características de prisão, e Santo Agostinho
defendia a idéia de que estas crianças nasciam para expiar as faltas daqueles que os
precederam, um castigo divino à humanidade, enquanto ao mesmo tempo expressava: "São,
às vezes, tão repulsivos que não têm mais espírito que as bestas". Já no Renascimento,
Martinho Lutero proferiu sua maldição e instigava a rezar para que o Senhor saísse à caça do
Demônio que habitava nestes seres, que não são outra coisa que uma masa carnis sem alma.
E a segregação continuou ao longo da história: com o assassinato "científico" dos retardados
pelos nazistas, com as postulações fantasiosas de uma raça que vem de outro lugar, com as
mães que, hoje em dia, retiram seus filhos normais das praças quando vêem acercar-se uma
criança com os olhos puxados e lingüinha pra fora, pois temem o contágio.
Nossa cultura traçou uma fronteira para aqueles indivíduos cujo quociente intelectual não
ultrapassa certo número e lhes delineou um país, um mundo. Mas nós, que estamos "do outro
lado", os que podemos pensar e escrever sobre eles, os que podemos produzir teorias sobre
como aproximá-los mais da fronteira, os que nos esforçamos por estimular, ensinar, educar os
que tentamos escutar..., nós pertencemos a um mundo de verdade e eles a um de mentira?
Cecília, não mintas, tua professora quer ensinar-te a escrever!
Mas Cecília me diz: "Eu minto", e isto não pode menos que me reenviar a meu lugar de
psicanalista.
Diz Lacan no Seminário XI: "É primeiro como se instituindo numa, e mesmo por, certa
mentira, que vemos instaurar-se a dimensão da verdade, no que ela não é, falando
propriamente, abalada, pois a mentira como tal se põe, ela própria, nessa dimensão da
verdade".
Poderíamos contestar Cecília: "Se dizes que mentes, e isto é verdade, então... não mentes."
Para sair deste paradoxo, sem tirar a validade da mentira, Lacan recorre a diferenciar um eu
que enuncia, sujeito do processo da enunciação - inconsciente - de um sujeito, processo do
enunciado - eu do enunciado -, de onde o Ego narcisista se propõe autor do que diz.
301
Assim, o "Eu minto" no nível da cadeia do enunciado é produto do que se produz no nível da
enunciação, engendrado como significação no nível do enunciado.
Não é senão o discurso do Outro, o lugar a partir de onde se enuncia.
É assim que, no ponto onde o sujeito é esperado, aparece um "EU te engano". Mas a função
do analista implica formular: "Nesse “eu te engano”, o que tu envias como mensagem é o que
eu te expresso e, sendo assim, tu dizes a verdade".
Continua Lacan: "Nesse caminho de tapeação em que o sujeito se aventura, o analista está em
posição de formular esse “você diz a verdade”, nossa interpretação jamais tem sentido senão
nessa dimensão".
Mas ali onde há uma enunciação que se denuncia, um sujeito se produz, e um eu (a verdade
fala), sempre evanescente. A verdade, reprimida, retorna numa aparência enganosa.
Retornemos a Cecília, uma mongólica que me reenvia a meu lugar de analista... e o
cromossoma a mais, onde está? Sem dúvida, quando uma criança neurótica, cujo corpo não
sofreu um dano, chega à análise, não me ocorre questionar-me pela realidade de seus olhos,
de sua boca, de suas pernas, ou de seus braços. Faz tempo, li em Freud acerca do conceito de
realidade psíquica, e como este corpo real desaparece ao se sustentar nas redes significantes.
Quando um corpo biológico, com danos ou não, é jogado ao mundo, alguém espera para fazer
de cada borda, desejo de um desejo (o da mãe), e ali se produz o primeiro encontro com o
Outro que ela encarna, primeiro encontro com o significante na mãe. A partir desta matriz
simbólica, instala-se uma dimensão de espelhamento na qual algo se desprende da mera
satisfação da necessidade biológica. Estes olhos, esta boca, estes braços, se perdem na medida
em que são nomeados pela mãe, quem, assim, inicia-o no seu destino em se constituir como
sujeito desejante, sujeito configurado por antecipação a respeito de sua existência biológica a
partir dos ideais de seus pais.
A esta altura, pergunto-me o que se fez dos ideais dos pais de Cecília, quando receberam este
corpo danificado. Terá sido possível inscrever, escrever, ou seja, instalar na dimensão
simbólica este cromossoma a mais? Terá chegado a ser este corpo (masa carnis) um sujeito?
Cecília me fala de suas mentiras e me faz brigar com Lutero.
O caminho do engano em que esta menina se aventura lembra que é precisamente numa
dimensão enganosa que o Ego fica constituído, na
302
catequização libidinal que o toma por objeto. Disto é que trata o narcisismo, de uma situação
de captura na imagem em que o Ego se constitui e, ao mesmo tempo, se manifesta numa
forma usurpadora e enganosa pois, ao mesmo tempo em que é objeto, pretende mostrar-se
como sujeito que ama e deseja. A imagem de si mesmo se confunde com a do outro, fundando
assim a dialética entre a alienação e a subjetivação.
Recordemos as palavras que Narciso dizia a si mesmo, presa do desespero: "Insensato! Como
te apaixonaste por um vão fantasma? Tua paixão é uma quimera. Retira-te desta fonte e verás
como a imagem desaparece. E, no entanto, contigo está, contigo veio, contigo vai... e não a
possuirás nunca!... Mas, se me amais, por que vos sirvo de zombaria? Vos estendo meus
braços e me estendeis os vossos. Vos aproximo minha boca e vossos lábios se me oferecem.
Por que permanecer mais tempo no erro? Deve ser minha própria imagem a que me engana.
Amo a mim mesmo..."
A função imaginária do Ego faz com que sua relação com os objetos tenha a característica de
ser ilusória. É a partir da dialética das identificações narcisísticas com imagos exteriores que
podemos extrair a natureza do Ego, que é só um dado de que dispomos sobre nós mesmos.
Por um lado, concentra os ideais (Ideal do Eu) e, por outro, se assume como lugar das
identificações imaginárias de todo sujeito (Eu Ideal), sendo, portanto, um personagem, um
efeito, uma aparência, função de desconhecimento.
É assim que o corpo encontra seu lugar: lugar imaginário capturado no simbólico.
Que terá encontrado Cecília ao ser capturada por sua imagem na fonte? Seu cromossoma a
mais?... Estava escuro para sabê-lo, o sol fazia sombra... Seus pais tiveram que trocar o trono
para His Majesty the Baby: como se escreve o nome desta menina, se perguntariam,
cromossoma ou Cecília?
Bibliografia
"Hay golpes en la vida, tan fuertes...1 Yo no sé!" Los heraldos negros (César Vallejo)
Trabalhamos com desgraças. E com as conseqüências delas. Aqui se inscreve nossa prática.
Não importa de que área profissional se trate. Houve uma catástrofe, e os pais vêm a nós com
seus escombros. Trazem-nos o filho, que não é nem será aquele outro. Este é um ponto de
não-retorno. Fica marcado um impossível-real, que fica ali e não pode modificar-se. Tudo o
que virá será a partir disto como inamovível.
Quando se precisavam de mais garantias, o golpe os sacudiu, mostrando-lhes que não
existem, e então menos podemos assegurá-las. Involucram a nós nestes pedidos.
O que se sacudiu foi uma estrutura simbólica desejante. E a índole da comoção será também
função da assimilação particular que tenha esta estrutura. Das ramificações e recolocações
posteriores que sejam realizadas, que darão um lugar à criança, aos pais e a tudo isto.
Inevitavelmente, o futuro da criança que é posta em nossas mãos dependerá destas atribuições
simbólicas futuras, que irão marcando no tempo a humanidade da criança.
Situa-se aqui qualquer terapêutica. Sua eficácia estará em estreita conexão com algo que lhe
escapará constantemente. E a eficácia da família, em suas funções de maternidade e
paternidade, o que possam fazer, estará além deles mesmos ainda que através deles mesmos.
É algo próprio, o que se destruiu. Aquilo que se busca realizar num
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filho. A continuidade numa filiação. A transcendência na descendência, apesar da morte. O
narcisismo e a transmissão em outra geração.
Este filho, corpo disforme, amorfo, feio, torpe, lento, monstruoso ou imóvel, não concretizará
nenhum destes sonhos e ilusões. É uma limitada transcendência. Não é esta a herança que se
buscava. Não se pode reconhecer nele. Então, não há onde situá-lo. E o primeiro lugar
atribuído pode ser o de um refugo. Por isto, toda a conquista e sucesso é a partir dali. Com os
pedaços quebrados, com os restos, com enfoques novos que irão surgindo nos pais, e que a
partir de nosso lugar terapêutico os ajudaremos a ir construindo. Com inevitáveis ortopedias.
Os reconhecimentos e as incorporações terão sempre como fundo este buraco. Mas a
reconstrução pode ser firme e situar-se à distância desse vazio, que, entretanto, sempre estará
ali.
Esta é a ferida nos pais. Pode ser grande ou pequena. Sangrar muito tempo ou, às vezes,
fechar-se e voltar a se abrir em diferentes épocas da vida, quando o impossível se reatualiza.
Pode-se aproveitar esta ferida para derivar através dela outras histórias que a enlaçaram. Vai
tomar algum lugar na mitologia familiar. Alguma causa se situará como origem. Será Deus,
uma maldição, um destino.
E a ferida também pode cicatrizar. Mas a cicatriz é uma marca que ali está. Se vê. Embora se
queira ocultá-la. Acompanhar-los-á em todas as partes.
Aos pais, impõe-se a tarefa de uma renúncia. Renunciar a que este filho seja e lhes brinde com
o que desejavam. Neste filho é impossível. Poderá ser outro ou nenhum. Outro espaço no qual
recompor estes desejos. Mas nele deverão renunciar. E assumir isto pode ser imposto
lentamente. E isto nem sempre ocorre. Muitas vezes, renunciam a renunciar, e iniciam longas
marchas em busca da resposta ou da salvação, na crença de que alguém as têm. A falta de
esperança e a desilusão podem assim ocupar todo o espectro.
As práticas terapêuticas que têm este pano de fundo de seu trabalho específico devem ser
suportes que favoreçam a instalação desta renúncia. E também ser suportes do início de
alguma ilusão. Que algum futuro, outro, comece a ser possível. Que algo diferente se
inscreva. Que algum anseio comece a se realizar. Que a reconstrução tome forma como algo
próprio e reconhecido, dando lugar a que um ser emerja. E será por esta via, não há outra.
Nenhuma terapêutica pode atuar como reposição neste ponto. Mas, insistimos, sermos
suportes e sustentáculos para que esta
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construção dê um lugar para que a criança possa ir se efetivando. Nem apenas renúncia, que
fixe uma família numa inércia paralisante de impotência, nem ilusão vazia.
Nossa prática não é inócua. Os pais desenvolvem intensas transferências com o meio
terapêutico, com os terapeutas. Colocam-nos e nos tiram de lugares que muitas vezes
desconhecemos ou tardiamente descobrimos. E nossos atos repercutem nesse campo assim
constituído.
Atribuem a nós um saber em tudo isto, e possibilidade de prover respostas diante de cada
buraco. Necessitam acreditar que é assim. E o risco é que o terapeuta se identifique com esta
posição demandada. É o envaidecimento profissional, que se apresenta como uma máquina de
fazer e dar respostas, acreditados absolutamente e assim instalados.
Estamos nos referindo ao furor reabilitador. A aparição da impossibilidade de renúncia, em
nosso meio de trabalho. As exigências de perfeccionismo que incrementam as dos pais.
Assinalamos que o risco de desconhecer e não se encarregar destas verdades, entre as quais
transita nossa ação terapêutica, equivale a condenar-se a uma mecânica amestradora.
As técnicas - e existem algumas sofisticadas neste nível - podem assim se converter em
verdadeiras resistências a serviço da evitação do contato do profissional com o real disforme,
amorfo, feio, torpe, lento, monstruoso ou imóvel de sua prática.
Ou não se suscita em nós, como nos pais, a fronteira com o subu-mano? Também se
mobilizam essas imagens em nós. Não estamos isentos do horror, do desgosto e da angústia,
na aproximação com as crianças. Por isto, desconfiamos do altruísmo. Nossa prática não lhes
restaurará essa falha original. Este impossível está situado no começo de nossa intervenção, e
estará marcado ao final. Enfrentamos com mal-estar a frustração em nossos pacientes filho-
produto. Não nos devolvem a melhor imagem de nossa eficácia profissional. Mas, para
podermos intervir, necessitamos distância e negação, da mesma forma que os pais. E
transitamos pelos limites destes caminhos.
Estas alternativas também guiam nossa prática, abrindo caminhos ou obstaculizando-os,
introduzindo conflitos e iatrogenia. E também os pais inscrevem em nós suas demandas e
impotências. Ficamos colocados num lugar real que nos involucra. Lugar no qual nossos
desejos nos mantêm e dirigem. É o preço de sermos suportes destas transferências. Trata-se de
fazê-las objeto de nosso trabalho. É o insalubre de nossa atividade,
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mas também a fonte de nossa eficácia possível, pois nossos desejos estão em jogo. Aqui,
devemos nos colocar como pacientes. Não esqueçamos de que trabalhamos numa área que, na
antigüidade, na Grécia, se resumia nos montes Taigeto. Aceitar o sofrimento que nos provoca,
aprofundar na indagação e interrogação de nossos desejos terapêuticos, desdobrando as
verdades que eles põem em jogo. O que queremos de nossos pacientes?
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UMA PSICANALISTA EM PARIS
Elsa Coriat
Nota
1 - A autora refere-se com esse "Voltar" ao conhecido tango argentino "Volver", de Carlos Gardel e
Alfredo Le Pera, parafraseando sua temática, durante o parágrafo. (N. do T.)
Fim da nota.
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Data de conclusão da leitura: 28-12-2007.