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Nº 1495 . 28/10 A 3/11/2021 . CONT. E ILHAS: €3,70 .

SEMANAL
A NEWSMAGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS WWW.VISAO.PT

PS E PCP JOÃO PEDRO


HISTÓRIA MATOS
DE UMA RELAÇÃO FERNANDES
TENSA “AQUELES QUE
ACHAM QUE
COP26 O AMBIENTE
O QUE ESTÁ E A ECONOMIA
EM JOGO ESTÃO DE COSTAS
NA CIMEIRA VOLTADAS
DO CLIMA NÃO TÊM RAZÃO”

ÇÃO VERDE
EDI

A subida do nível das


águas é uma das maiores
ameaças para Portugal
nos próximos anos, além
dos incêndios, das secas
e das ondas de calor

EMERGÊNCIA CLIMÁTICA

O FUTURO QUE NOS ESPERA


OS CENÁRIOS DE RISCO, PARA PORTUGAL E O MUNDO, TRAÇADOS PELOS CIENTISTAS FILIPE
DUARTE SANTOS, CARLOS DA CAMARA, PEDRO MATOS SOARES E CARLOS A. CUPETO
O QUE CADA UM PODE FAZER PARA PROTEGER O PLANETA
VISÃO
28 OUTUBRO 2021 / Nº 1495

10 Entrevista: Johan Rockström

RADAR
15 Raio X
16 A semana em 7 pontos
MARCOS BORGA

18 Holofote
19 Inbox
20 Almanaque
22 Transições
24 Próximos capítulos
26 Oceano de esperança 46 Ministro do Ambiente em discurso direto
A descarbonização vai ter a preciosa ajuda da tecnologia, acredita José
Pedro Matos Fernandes. As metas e os mitos a desfazer para atingir
FOCAR a riqueza de forma sustentável
70 Orçamento: memórias das
velhas lutas entre PS e PCP
76 Alemanha: Habeck, 28 Clima: o diagnóstico dos cientistas
o vice-chanceler verde Quatro renomeados especialistas explicam-nos o que está em causa com
as alterações climáticas e de que forma o aquecimento global vai mudar
80 O negacionismo “wellness” as nossas vidas e o nosso país

VAGAR
82 Entrevista: Gilberto Gil
38 Tudo sobre a COP26
Baixam-se as expectativas para a Conferência das Nações Unidas sobre
88 Manoel de Oliveira, fotógrafo Alterações Climáticas, na Escócia, a partir de 31 de outubro. O que está
por revelar em causa

VISÃO SETE 54 Cinco cenários para o futuro


Entre um mundo em que os países levam a sério o ambiente e o “inferno”
em que o aquecimento global é ignorado, o que pode acontecer ao planeta
conforme as vontades políticas

60 O que está nas nossas mãos


Será possível combatermos as alterações climáticas sem alterações
drásticas no dia a dia? Ou temos mesmo de repensar as nossas escolhas e
consumir menos e melhor? Exemplos de quem já deu os primeiros passos
91 O reino dos cogumelos

OPINIÃO
6 Mia Couto
Online W W W.V I S A O . P T
Últimos artigos na BOLSA DE ESPECIALISTAS VISÃO
8 Mafalda Anjos
14 Pedro Marques Lopes
74 José Carlos de Vasconcelos
90 Capicua
114 Ricardo Araújo Pereira Henrique Costa Santos Manuel Delgado Manuela Niza Ribeiro
CRÓNICAS D.C. SAÚDE IGUALMENTE DESIGUAIS
E depois do adeus As novidades do novo O exemplo de
Interdita a reprodução, mesmo parcial, estatuto do SNS Aristides: heróis
de textos, fotografias ou ilustrações sob póstumos
quaisquer meios, e para quaisquer fins,
inclusive comerciais.
Todos os dias, um novo texto assinado por um dos 28 especialistas convidados

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 3


LINHA DIRETA Correio do leitor

A fotografia é boa, mas não a


frase proferida pelo retratado:
chocou-me ver um
primeiro-ministro tratado
assim, só denigre Paulo Rangel
A Conferência do Clima será crucial Danielle Foucaut Dinis

WORLD PRESS PHOTO


Parabéns pelo prolongamento da

e a VISÃO vai contar-lhe tudo exposição World Press Photo! Grande


sucesso para a VISÃO, Oeiras e Portugal.
Participei num dos workshops e foi muito
educativo e divertido.
O compromisso da VISÃO com os temas do ambiente não é de hoje, vem desde Michael Wrescz
a sua fundação. Mas nunca foi tão essencial como agora trazer o tema para a
agenda mediática. Todos os relatórios e dados científicos indicam que este é o ARISTIDES
momento para agir, a Hora H do “agora ou nunca” – é essencial estabilizar os O exemplo que Aristides de Sousa
Mendes deixou é o máximo de amor
níveis de emissões de gases com efeito de estufa na atmosfera, descarbonizar e ao próximo, devendo, obviamente,
controlar a subida da temperatura com urgência, senão pode ser tarde demais. ter honras de repouso no Panteão
A COP26, a grande Cimeira do Clima que deu o mote a esta edição especial Nacional! Estas singelas palavras
Verde, vai juntar líderes de quase todos os países do mundo, em Glasgow, no também são uma homenagem póstuma
de agradecimento a quem decidiu em
Reino Unido, entre 31 de outubro e 12 de novembro, para se tentar trilhar um consciência e com coração a favor
caminho comum sobre os desafios do planeta e contra o aquecimento global. da Humanidade. A ação de Aristides
O objetivo é claro: conseguir um aumento da temperatura global de apenas 1,5 emociona-nos pela grandeza de alma.
ºC, o único valor que permite manter as aglomerações costeiras, os sítios do Este Homem “não” morreu, continua
vivo no coração de muitos e muitas que
património cultural, os ecossistemas terrestres e marítimos num estado viável querem dar vida à Vida!
na maioria das zonas ameaçadas. Vítor Colaço Santos, São João das Lampas
Durante as próximas semanas, a VISÃO vai, com uma equipa de especialistas, CORREÇÃO
acompanhar esta conferência fundamental num canal próprio no site da VISÃO Na entrevista a Paulo Rangel, na edição
Verde e na edição semanal. Este projeto, chamado Hora de Agir, é uma parceria da semana passada, por lapso, uma
entre a VISÃO e a Galp, e vai contar-lhe todos os avanços, com notícias, análise pergunta feita pela VISÃO saiu com o
tipo de letra idêntico ao que é usado
e diretos de Glasgow. Acompanhe em visao.pt/cop26. nas respostas, dando a falsa impressão
de que se trata de uma afirmação do
entrevistado. A propósito do acordo entre
o PSD e o Chega, nos Açores, o diálogo

Em defesa do planeta foi o que se segue. Pergunta a VISÃO:


“Mas a verdade é que o PSD criou um
precedente nos Açores?” E responde o
Pelo 15º ano consecutivo, a VISÃO mantém entrevistado: “O caso dos Açores é um
vivo o seu compromisso com uma das caso particular.”
causas mais urgentes dos nossos tempos:
a defesa do ambiente e do desenvolvimento Contactos
sustentável. Nesta edição especial, cen- visao@visao.pt
tramos a nossa atenção sobre a urgência As cartas devem ter um máximo
climática, com vários artigos de alguns de 60 palavras e conter nome, morada
dos mais reputados cientistas portugueses e telefone. A revista reserva-se
(Carlos da Câmara, Filipe Duarte Santos, o direito de selecionar os trechos
Pedro Matos Soares e Carlos Cupeto) que considerar mais importantes.
sobre os efeitos do aquecimento global
em Portugal e no mundo, um guia sobre
o que está em jogo na cimeira do clima,
NOVA MORADA
CORREIO: Rua da Fonte da Caspolima
uma entrevista ao ministro do Ambiente Edição Verde Desde
– Quinta da Fonte,
e uma reportagem sobre o que podemos, 2007 que, todos os anos,
Edifício Fernão Magalhães, 8,
individualmente, fazer para tentar mudar o a VISÃO renova o seu
2770-190 Paço de Arcos
nosso futuro comum. compromisso

4 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


MAPEADOR DE ILHAS

Morrer
de raça (1)
POR MIA COUTO
ILUSTRAÇÃO: SUSA MONTEIRO

M
andámos chamar o cego da aldeia para – Xavier? – e foi como se o mundo tombasse no
identificar um homem estranho que foi chão.
surpreendido a cirandar pelas vizinhan- Há uns trinta anos, Xavier tinha ido estudar para
ças. O cego Muoni enfrentou o intruso a cidade. E, agora, apresentava-se tão mudado que
como se lhe farejasse as entranhas e, ninguém antes o tinha reconhecido. Aconteceu o
depois de uma longa pausa, ordenou: que receávamos: saiu daqui muno mutema e voltou
– Quero ouvir a tua voz. murungu. Noutras palavras, quando saiu era dos
E o intruso, todo calado. O cego es- nossos, um negro congénito. Quando regressou, era
perou com a paciência de quem apenas branco. Muitíssimo branco. Tão branco que não ca-
vê para além do tempo. Fazia justiça ao bia em nenhuma palavra já existente. Chamámos-lhe
nome: Muoni quer dizer visionário. Ficámos todos “patrão”. Oficialmente era o “boss” Xavier Anaishe.
em silêncio e era como se escavássemos uma cova Na nossa língua, “Anaishe” é o nome que se dá aos
dentro de um buraco. O cego acendeu um cigarro e que estão com Deus. A arrogância do visitante era
lançou o fumo contra o rosto do estranho, que desa- tanta que parecia o inverso: Deus estava feliz por
tou a tossir. Então, o cego sacudiu os ombros como morar no nome do nosso conterrâneo.
se só assim a voz se soltasse do corpo. O meu tio chamou-nos à parte para avaliarmos o
– Este homem é oficialmente o Xavier Anaishe – mistério daquela mudança. A raça não é uma coi-
anunciou o cego. sa que venha com o parto, começou por dizer o tio.

6 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Apanha-se, a raça apanha-se, sentenciou. E acrescentou: masse os pés. Uma semana depois, o Xavier regressou,
é uma doença contagiosa. Talvez fosse aconselhável não desta vez muitíssimo acompanhado. Parecia o dono
permitir que Xavier ficasse connosco, sugeriu uma mulher. das montanhas do Vumba, que tapam metade do céu e
A aldeia estava cheia de velhos enfermos e mulheres grávi- onde moram os deuses e as chuvas. Trazia com ele uma
das, havia que ter cuidado. Sabe-se lá por onde andou esse delegação completa: na aparência eram bem diversos,
Xavier, avisou a mulher. E ninguém disse mais nada. mas logo se percebia que eram todos murungus. O Xa-
A verdade é que da família dos Anaishes já não resta- vier vinha ladeado por dois jovens que apresentou como
va ninguém. Tinham todos emigrado para o Zimbabwe. seus filhos. Saudámo-los na nossa língua e eles, como
Pensávamos nessa espécie de orfandade enquanto con- esperávamos, não entenderam uma palavra. O rapaz
duzimos Xavier para uma cabana um pouco afastada da era de pele castanho-clara e imaginámos que fosse filho
povoação. Ali, ele repousaria durante a noite, a salvo de de uma mulher europeia. Mas Xavier clarificou: os dois
qualquer contágio. Acompanhou-nos com os seus sapa- são filhos de Mariana Mudiwa, que é daqui da aldeia.
tos empoeirados, todo cheio de ombros e pestanas. De Percebendo a nossa desconfiança, Xavier explicou que a
quando em quando, parava para sacudir violentamente a pele descorada do moço se devia a uns produtos.
areia que lhe entrara nos sapatos. Procedia com tal vigor – Uns produtos? – perguntou o nosso tio, de sobro-
que parecia recear ser sepultado na nossa aldeia. Suspei- lho franzido.
tava o Xavier, e com razão, que perdera a sua terra natal. – Umas pomadas importadas que custam uma fortu-
Na manhã seguinte, havia uma multidão em frente na – esclareceu Xavier.
da cabana onde se hospedara Xavier Anaishe. Os mais Os cabelos do rapaz apresentavam-se lisos e escor-
velhos entraram pelo quarto e sacudiram o homem. reitos graças a uns remédios importados da China. Os
Estremunhado, ele procurou os óculos e, de olhos arre- cabelos têm raiz, mas não são coisa que se semeie. Uma
lampados, sentou-se na esteira onde dormira. parte da alma daquele jovem já estava achinesada, disso
– Então, Xavier? – perguntou o nós tínhamos a certeza. Talvez o pai
meu pai. – E a vida? ainda pudesse voltar a ser muno mu-
– A vida? – reagiu o visitante, esfre- Aconteceu o que tema. Mas o filho tinha levado a alma
gando os olhos. – Olha, a minha vida numa viagem demasiado distante.
quase que acabou ao acordarem-me
receávamos: saiu A filha era ainda mais estranha:
desta maneira. – ajeitou os óculos no daqui muno mutema era escura, mas tinha cabelos loiros,
rosto, estreitou os olhos para vencer a
súbita inundação da luz.
e voltou murungu. olhos azuis, unhas roxas, pestanas
recurvadas.
– Está tudo bem consigo? – per- Noutras palavras, – Não olhem assim para a minha
guntou o meu tio. quando saiu era dos Anodia – implorou o pai, em voz
– Como é que se pode estar bem ciciada. – No corpo dela nada é dela
com esta epidemia? – comentou o en-
nossos, um negro – murmurou Xavier, olhos postos no
sonado visitante. congénito. Quando chão.
– Não respondeu à pergunta –
advertiu o meu tio. E havia um tom
regressou, era branco – É de quem? – perguntou o meu
pai.
policial na sua voz quando voltou a – Como é que se pode saber? –
inquirir. – Responda, Xavier Anaishe, murmurou Xavier com um vago sor-
você está bem? riso. – Agora, em todos os países, todos andam assim.
– Agora, estou – disse ele. – Mas andei uns meses E chegou a vez dos outros visitantes. Antes que o
bem aflito. Xavier lhes desse a palavra, apressámo-nos a chamar
– Vê-se – disse o meu pai. o cego Muoni. Que fosse ele a decifrar a identidade
O Xavier começou a vestir as calças e todos repara- dos que chegavam. O cego pediu então a cada um dos
ram na roupa interior que ele trazia. Eram umas cuecas vientes (é assim que chamamos aos que chegam de fora)
com letras onde se podia ler a palavra “Boss”. Que pessoa que pronunciasse umas tantas palavras. Todos fala-
era aquela que tinha o nome gravado dentro dos panos ram. O cego escutou atentamente e a escuta dele durou
íntimos? Os meus parentes não paravam de olhar para as bem mais que o tempo das falas. Escutava os vazios que
cuecas enquanto Xavier se explicava: tinha chegado, assim sobravam, os olhos baços e fixos como se roessem o
furtivo, porque não queria incomodar ninguém. Estranhá- silêncio.
mos aquelas palavras: na nossa terra, os que regressam não – Os avós destes saíram todos daqui – declarou, en-
incomodam ninguém. Logo à chegada, são abraçados e os fim, o nosso Muoni.
homens da aldeia juntam-se na praça para verter bebida – Daqui de onde? – perguntou alguém.
sobre a areia. Quem regressa, renasce. É o que diz o ditado. – Daqui – reiterou o cego, fazendo rodar o braço em
Como podia Xavier ter receio de nos incomodar? Aquele redor da cabeça.
pudor dele só tinha uma explicação: apanhara a tal doença A conclusão parecia óbvia: se os estranhos saíram da
que faz com que a pele fique dentro da cabeça. nossa terra, então vinham tão doentes que nem os seus
Toda aquela nossa lengalenga era conversa para vadzimu os reconheciam. Os seus antepassados esta-
atordoar moscas. Porque assim como chegou, o homem riam mais desarmados do que o cego Muoni.
partiu: furtivo, apressado, como se a terra lhe quei- (Fim da primeira parte) visao@visao.pt

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 7


OPINIÃO
HISTÓRIAS
DA CAPA
Entre uma rocha
e um lugar difícil
P O R M A F A L D A A N J O S / Diretora

D
1
urante cinco dias, o alpinista Aron Para o Bloco e para o PCP, a jogada é de
Ralston teve de avaliar as suas hi- alto risco – com elevada probabilidade, serão
póteses: morrer irremediavelmente penalizados pelos seus eleitorados, que nas
preso na fenda da rocha para onde autárquicas já lhes passaram sinais claros de
caiu, ou cortar o braço direito. À 127ª descontentamento. Como vão reagir os que re-
hora, conseguiu libertar-se arrancan- cebem o salário mínimo e os pensionistas, que
do a sangue-frio o membro com um seriam aumentados segundo as novas propos-
canivete. Esta história, contada no tas? E os profissionais de saúde com esperança
livro Between a Rock and a Hard Place, que na melhoria das carreiras e condições? E quem
deu um filme, 127 Horas, teve um final feliz. estava abrangido pelos novos mínimos de exis-
Ralston sobreviveu amputado e ainda enri- tência? Podem bem ficar zangados. Mas os dois A conferência
queceu à custa de direitos de autor e palestras partidos, à beira do precipício, optaram por dar COP26 deu o mote
a esta edição. Uma
sobre resiliência e estratégias de sobrevivên- o passo em frente.
capa com o logo
cia. Mas nem todas as tramas de quem fica À direita, as coisas estão a mexer, ainda
que mostra um
preso entre uma rocha e um lugar difícil têm que muito embrulhadas. A vitória de Carlos globo em aque-
desfechos tão otimistas. Sobretudo quando se Moedas agitou as águas paradas e trouxe os cimento é uma
trata de política. challengers à tona. Depois da liderança erráti- hipótese
António Costa é um alpinista preso há ca de Rui Rio, Paulo Rangel apresenta-se com
mais de 127 dias. Conseguiu escalar uma energia e clareza de ideais como há muito
montanha durante anos com habilidade, mas não se via no partido – posiciona-se já como
o cansaço acumula-se e os acidentes aconte-
cem. Está bloqueado, com duas opções difí-
candidato a primeiro-ministro, estabeleceu
metas ambiciosas (uma maioria absoluta),
2
ceis entre mãos: ceder às exigências inamoví- falou para o eleitorado da extrema-direita ao
veis da esquerda ou arriscar ir a eleições numa centro-esquerda e definiu linhas vermelhas
altura que lhe é tudo menos favorável para claras (não fazer coligações ou acordos com
conseguir uma maioria absoluta. É verdade o Chega). Mas as eleições internas são só a 4
que tem a porta da Europa – a Presidência de dezembro, e as eleições antecipadas em
do Conselho Europeu vai vagar em junho – janeiro desfavorecem-no, porque convidam
como solução para uma saída amputada. Mas menos as bases a arriscar aventuras. O Con-
tem de desertar e sair já ou passar primeiro gresso Nacional em que o novo líder tomaria
por uma derrota humilhante. posse está marcado para janeiro, para quando
Escrevo estas linhas antes de saber como o Presidente da República já disse que agen-
fechará a votação do Orçamento do Estado na dará as eleições. Pode sempre ser antecipado Ou uma capa
generalidade. Convém sempre deixar todas as pelo Conselho Nacional, mas os timings são quente, com um
sol a ferver...
hipóteses em aberto, não vá dar-se o caso de, apertados (até mesmo Cavaco Silva, na sua
por obra e graça de um milagre ou mesmo de chegada-relâmpago, foi eleito em maio de
eficaz vudu (já que os rebates de consciência 1985 e só em outubro desse ano foi a votos). O

3
são improváveis), o documento ainda passar. papel de Marcelo Rebelo de Sousa neste im-
Uma coisa é certa: a geringonça, amiga do bróglio também tem que se lhe diga: ao forçar
alpinista e que o poderia salvar, está morta e entendimento ou ameaçar com eleições, está
enterrada. Todos os órgãos entraram em fa- a precipitar ativamente uma crise política, ao
lência, já não há ligação à máquina que a salve. invés de a antever e reagir. E, depois, agendar
As eleições são para o PS, nesta altura, eleições sem ter em conta os calendários dos
um lugar difícil. A maioria absoluta, depois partidos favorece uma das partes, mas fazê-
de uma crise política, do desgaste dos últi- -lo tendo em conta as lutas internas do PSD
mos anos e dos resultados das autárquicas também. A forma como vai gerir esta crise
que trouxeram novo élan à direita, é agora, marcará para sempre o seu mandato.
em teoria, menos possível do que seria, por Para os portugueses, cansados e fartos de
exemplo, daqui a um ano, quando o dinheiro aventuras, manobras de alpinismo e lutas de
do PRR já estivesse a jorrar, a recuperação a equipas, é certo que tudo isto é muito cansati- Mas o melhor é
andar a bom ritmo e o executivo com sangue vo. A esmagadora maioria não quer uma crise algo que nos diga
novo. Com elevada probabilidade, vai-se a política – quer estar sossegada ao centro, es- mais diretamente
votos, mas para o PS fica tudo na mesma – tabilidade e, se não fosse pedir muito, algum respeito e inquiete:
dependente de ex-companheiros com quem bom senso. Mas, chegados aqui, e como tudo uma imagem da
cortou relações. E para subir esta montanha é isto escasseia, venham de lá as eleições. Baixa de Lisboa
preciso uma equipa. manjos@visao.pt
inundada surte
esse efeito

8 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Banco CTT Investimento Sustentável

INVISTA EM SI
E NUM MUNDO
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futuro melhor para todos. Com o Banco CTT
Investimento Sustentável vai poder investir
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Vida, S.A., comercializado através do Banco CTT, S.A., na sua qualidade de agente de seguros. O Documento de Informação Fundamental (DIF)
deste produto encontra-se disponível no site da Zurich - Companhia de Seguros Vida, S.A. em www.zurich.com.pt. O Banco CTT, S.A., sociedade
anónima, com sede em Lisboa, na Avenida D. João II, n.º 13, Edifício Báltico, Piso 11.º, matriculado na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa
sob o número único de matrícula e de pessoa coletiva 513412417, com o capital social de 296.400.000,00 Euros, registado na Autoridade de
Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões sob o n.º 417448775 e autorizado a exercer a atividade de mediação de seguros, na qualidade
de Agente de Seguros, nos Ramos Vida e Não Vida. Os dados do registo estão disponíveis em www.asf.com.pt. O Banco CTT, S.A., enquanto
agente de seguros, não assume a cobertura dos riscos, nem está autorizado a celebrar contratos de seguro em nome do Segurador, nem
a receber prémios de seguro.

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Johan Rockström
diretor do Instituto para a Investigação do Impacto Climático de Potsdam

Temos de parar de falar


sobre a crise ambiental como
se fosse um problema grande
e caro de resolver. Não é.
O que fica realmente caro
é se não fizermos nada
ROSA RUELA MIKAEL AXELSSON

10 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


A
A janela ainda está entreaberta,
mas não há tempo a perder. Esta
é a mensagem que o sueco Johan
Rockström não se cansa de repetir. E
a pandemia veio provar que o mundo
é capaz de se erguer a uma só voz,
lembra o antigo diretor-executivo do
Centro de Resiliência da Universidade
de Estocolmo, exímio, aos 55 anos, a
Um exemplo muito típico é Camberra,
a primeira capital do mundo
completamente livre de combustíveis
fósseis, num país que está a ficar
para trás nas negociações globais.
São Francisco, Londres e Copenhaga
são outros bons exemplos. É natural.
Sabemos que as cidades são os sítios
onde os jovens estudam e onde
nascem muitas das soluções para
padrões de consumo e estilos de vida
mais sustentáveis.
O mundo move-se em ritmos
diferentes. Nós aqui, na Europa,
não corremos o risco de olharmos
para África de forma paternalista?
Está a pôr o dedo num assunto
importante. É verdade que existe o
risco de um estilo antigo de apoio
ao sul, digamos do tipo panfleto
pós-colonial, mas julgo que estamos
para lá dessa fase. Nas negociações
climáticas, já virámos a esquina,
impactos sociais e económicos
muito grandes provocados por
eventos extremos em todo o
mundo, e corremos o risco de
cruzar limiares que podem levar a
mudanças irreversíveis e amplificar
o aquecimento. Não é que estejamos
a cair de um precipício, mas nesta
década temos de cortar as emissões
pela metade, e essa é uma tarefa
enorme. De agora em diante, temos
de reduzir as emissões em 6% ou 7%
ao ano, ou seja, ainda mais do que
conseguimos durante a pandemia
por razões completamente erradas
(porque fechámos a economia global).
Precisamos de manter um ritmo
Covid-19 de redução de emissões
todos os anos até 2030 para termos
a hipótese de uma aterragem segura,
e de uma maneira que não destrua
empregos e a economia.
Não vejo espaço para otimismo.
ver o copo meio cheio. felizmente, reconhecendo que todos De uma perspetiva das ciências
A união faz a força, acredita o os países do mundo precisam de ter o naturais, a minha conclusão é que
cientista, professor e diretor do mesmo nível de ação. E a boa notícia a janela ainda está aberta. A Terra
Instituto para a Investigação do é que a maioria hoje reconhece que o aqueceu 1,1º C, o “orçamento de
Impacto Climático de Potsdam, na caminho para um futuro sustentável, carbono” global é muito limitado,
Alemanha, uma das entidades mais descabornizado, passa por um mas, se reduzirmos as emissões,
prestigiadas do mundo na área das desenvolvimento de alta tecnologia, ainda é possível. Pode haver uma
alterações climáticas e que fez parte do avançado e competitivo. ultrapassagem, de 0,1º C até 0,2º C,
júri que esta semana atribuiu o Prémio O que nos cabe fazer, então? mas ainda há hipótese de manter
Gulbenkian para a Humanidade ao Temos a responsabilidade de apoiar sistemas como a Gronelândia e a
Pacto Global de Autarcas para o Clima com conhecimento e investimentos Amazónia num estado razoável. É, no
e Energia (GcoM), que liga mais de financeiros, mas devemos reconhecer entanto, uma janela muito pequena.
onze mil cidades do mundo. que estamos numa fase em que estão E se juntarmos a isso a geopolítica do
Há um ano, Greta Thunberg distribuiu todos a desenvolver-se. Em África, mundo, então o panorama não parece
o prémio de um milhão de euros aliás, podemos obter saltos evolutivos tão brilhante. Que seja possível é uma
por vários projetos ambientais e muito grandes. Se o Pacto de Autarcas coisa, mas se vamos fazê-lo, é outra.
humanitários. Desta vez, o júri já trabalhar em parceria com as cidades E é aí que entram o GCoM, o Prémio
sabia que o dinheiro será usado para e elas ficarem as melhores do mundo Gulbenkian, a Ciência, os negócios.
melhorar o abastecimento de água para se viver, vale a pena, mas temos Precisamos de manter a dinâmica
potável e a eficiência energética em de respeitar a posição destes países em para que todos os líderes políticos
cidades no Senegal e nos Camarões. desenvolvimento. E também temos de do mundo compreendam que
Estamos todos de olhos na cimeira parar de falar sobre a crise ambiental chegámos a um ponto de não retorno
de Glasgow, quando devíamos estar como se fosse um problema grande e no sentido positivo, ou seja, que
a olhar para as cidades? caro de resolver. Não é. É o caminho nos encaminhamos para um futuro
Sabemos, por exemplo, das para termos êxito no futuro. O que descarbonizado.
negociações de Paris que, ainda antes fica realmente caro é se não fizermos Todos, mesmo?
da parte da conferência dos chefes nada, porque, então, só teremos um Sim, precisamos que todos os países
de Estado, houve um encontro de ambiente cada vez pior para apoiar. deem um passo à frente. E precisamos
presidentes de câmara em que eles Há um ano, numa Ted Talk, alertou que as instituições financeiras parem
disseram aos líderes do mundo: “Nós para o facto de estarmos num ponto de investir em combustíveis fósseis.
estamos prontos a descarbonizar de não retorno, mas acrescentou Todo o dinheiro deve ir para apoiar
e, para os nossos cidadãos e para o que ainda íamos a tempo de fazer esta transição. A União Europeia está
futuro da Humanidade, queremos alguma coisa. Continua otimista? a avançar de uma forma que podemos
um acordo climático baseado na Estamos num ponto de não retorno dizer que é hoje a melhor liderança
Ciência.” E a verdade é que, quando no sentido de existirem evidências do mundo, mas nem todos os países
se olha para o que se passa desde científicas de que entrámos numa estão a avançar.
Paris, encontramos muitos exemplos década decisiva para conseguirmos Está a falar de...
de cidades que estão bastante mais à manter o 1,5º C de limite estabelecido Estou a falar da Indonésia, da Turquia,
frente do que os próprios países. no Acordo de Paris. E esse limite é da Índia, da Rússia, do Brasil, da
Em que cidades está a pensar? real. Se formos além dele, teremos China.

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 11


Quais são as suas expectativas acontece quando 70% é água? Quando
em relação à COP26?
Precisamos aquecemos água, ela evapora-se e,
Devemos ter grandes expectativas de manter um por isso, ficamos com mais água
em relação a Glasgow, porque na atmosfera. Isto é física básica
este é o momento em que as NDC
ritmo Covid-19 do Ensino Secundário. Para cada
[Contribuições Determinadas de redução de aquecimento de 1º C, adicionamos
Nacionalmente – planos de redução mais 70% de água na atmosfera. E,
de emissões] têm de ser atualizadas
emissões todos ao adicionarmos mais quantidade
para se alinharem com a Ciência. os anos até 2030 de vapor de água na atmosfera, não
Estamos a seguir um caminho que estamos apenas a aquecer o planeta,
pode levar-nos a uns desastrosos
para termos mas também a fornecer mais energia.
2,7º C até o final do século, por isso a hipótese de Por isso temos mais secas, mais
precisamos desses planos. tempestades e furacões mais intensos,
Se tivermos as NDC atualizadas, já
uma aterragem ou seja mais eventos extremos.
devemos ficar satisfeitos? segura, e de uma E quando pensamos em eventos
Também precisamos que se comece extremos, o que são eles? Bem, são
a falar seriamente, em público,
maneira que não sempre sobre água. É muita ou pouca
sobre uma data para o fim do carvão destrua empregos água ou água na hora errada. As ondas
e uma data para o fim do motor de calor são causadas por secas. Os
de combustão interna. Temos de
e a economia furacões intensos são o resultado de
apoiar de novo os países que estão tempestades de vapor de água em
a avançar, dizendo-lhes: “Agora, todo o oceano... E também sabemos
estamos realmente a eliminar a era que apenas a água determinará a
dos combustíveis fósseis.” E, talvez o capacidade da Natureza de absorver
mais importante, é preciso reconhecer o carbono, porque as árvores não
que nunca teremos uma aterragem crescem sem água. Se perdemos
segura, a 1,5º C ou bem abaixo de 2º C, água, as árvores ardem; temos água,
a menos que também asseguremos o elas podem sequestrar o carbono.
sequestro de carbono na Natureza. As apenas um entre muitos, e isso não Portanto, a água não é apenas a
negociações climáticas têm de discutir pode acontecer. Garantir um planeta vítima número um, mas também o
políticas e investimentos sobre como sustentável tem de ser a prioridade em determinante número um da nossa
proteger todos os sistemas florestais, todas as áreas políticas. capacidade de manter a saúde e a
as zonas húmidas, os solos, a Que lições devemos retirar sustentabilidade da biosfera.
agricultura, a silvicultura, os sistemas da pandemia? Vê-se como um arauto da desgraça
marinhos... Se perdermos esses A mais importante é que ela mostrou, ou um mensageiro da boa-nova de
sumidouros de carbono, falharemos de uma forma bastante espetacular, que ainda podemos fazer alguma
Paris, mesmo que eliminemos os como somos uma comunidade coisa?
combustíveis fósseis. global. Apesar de todas as diferenças, Não me colocaria em nenhum dos
Fala-se quase sempre só de levantámo-nos juntos face a uma dois papéis. Os cientistas têm a
combustíveis fósseis, mas está tudo crise global, e isso prova que podemos responsabilidade de pôr os factos em
relacionado. A nossa dieta, por resolver a crise climática como cima da mesa. Estamos a enfrentar
exemplo. A mensagem não passa? um só mundo. A segunda lição é o riscos muito grandes e, portanto, o
Tem toda a razão – tendemos a papel da Ciência, que desenvolveu diagnóstico é terrível. Mas não vejo
concentrar as nossas atenções vacinas em ritmo recorde graças a isso como uma condenação, vejo mais
na eliminação progressiva dos décadas de trabalho anterior. Mas o como uma responsabilidade. Se for ao
combustíveis fósseis, mas precisamos mais importante, para mim, foi que médico e tiver uma doença séria, não
de pensar em dietas sustentáveis também provou que, quando algo quer que ele lhe diga que só está com
e saudáveis, em florestas e em corre mal num canto do planeta, pode tosse e que pode ir para casa e tomar
sistemas agrícolas sustentáveis e atingir o mundo inteiro. É exatamente uma aspirina. O diagnóstico tem de
saudáveis, nos grandes cargueiros, a mesma coisa no que diz respeito às ser correto. Ao mesmo tempo, acho
na poluição e no aquecimento global. alterações climáticas e à degradação significativo que os factos por detrás
Está tudo interligado, mas será que da Natureza – se algo corre mal das oportunidades também sejam hoje
percebemos isso? A resposta é: até com o gelo da Antártida Ocidental muito fortes. Há cinco ou seis anos,
certo ponto, sim. E estamos a agir ou o aquecimento do Atlântico ou a a história teria sido: “Temos soluções
como se o percebêssemos? Não. Ainda corrente do Golfo ou o Ártico, pode hipotéticas, mas não podemos dizer
organizamos as nossas políticas, atingir-nos a todos, em todo o mundo. que funcionam.” Hoje, temos soluções
as nossas sociedades e as nossas Claro que não é à mesma velocidade, e elas são competitivas e dão melhores
economias de acordo com canais mas pode ser irreversível. resultados. Se formos sustentáveis, as
setoriais. Nisso estamos a falhar. A água deve ser a nossa maior pessoas ganham melhores empregos,
Qualquer político dirá: “Acho que as preocupação atual? melhor saúde e até menos conflitos.
mudanças climáticas são importantes, Não é preciso ser um cientista Há grandes riscos, mas também há
realmente quero ter uma política boa para concluir o seguinte: estamos grandes oportunidades, e temos de
sobre isso.” Mas o desafio é visto como a aquecer o planeta; então o que agir rapidamente. rruela@visao.pt

12 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


POLITICAMENTE CORRETO

Bloco central,
a única solução?
P O R P E D R O M A R Q U E S L O P E S / Colunista

A
ideia da Geringonça era boa. Trazer do PS e os três partidos não partilham valores
finalmente os representantes de quase fundamentais.
um milhão de portugueses para a esfera A esperança de que o BE se afastasse de uma
da governação fazia e faz sentido. No esquerda revolucionária e contribuísse para soluções
mesmo sentido, reformar o chamado moderadas à esquerda não passou de ilusão e o
arco da governabilidade composto por estertor do PCP matou a responsabilidade que
PS, PSD e CDS. sempre mostrou e mandou-o para as mãos dos
Sendo, no nosso quadro radicais.
constitucional, as maiorias absolutas É assim impossível terem entendimento sobre
extremamente difíceis de obter, as forças medidas de fundo ou reformas em setores como
políticas de cada um dos lados entender-se-iam para Segurança Social, Saúde ou Educação.
formar governo. Escrevo este texto antes da votação final do
Existir um bloco à esquerda e outro à direita, Orçamento do Estado. Mas uma, neste minuto,
ambos comprometidos com os valores da improvável aprovação pouco altera o cenário. Se
democracia liberal, com o projeto europeu, mas, o mais esquerdista orçamento jamais proposto
claro está, com ideias diferentes sobre como atingir pelos socialistas tem estas reações do BE e do PCP,
o melhor para a comunidade, é, no fundo, o modelo um eventual entendimento de última hora será
como as sociedades ocidentais se desenvolveram apenas uma mistificação, mais um passo nas areias
no século passado e atingiram índices de bem-estar movediças do marasmo e no atraso de reformas
jamais atingidos. essenciais para o desenvolvimento do País. António
Claro está que estes entendimentos entre as Costa não derrubou muro nenhum, como anunciou
várias forças políticas, como em qualquer acordo, há seis anos, ele continua lá e agora com arame
têm de partir do princípio de que há um solo farpado.
comum, um conjunto de princípios fundamentais É absolutamente claro que só há, neste momento,
que têm de ser partilhados. dois partidos que coincidem na necessidade de
A Geringonça era assim o anúncio de uma nova reformas nesses setores e percebem a urgência de
fase da nossa democracia. entendimentos para a boa execução do PRR: o PSD
Cavaco Silva, e bem, exigiu acordos escritos, mas (seja qual for o líder que saia das eleições internas) e
a solução nascia coxa: nem o PCP nem o BE foram o PS. Rigorosamente mais nenhum.
para o governo. Houve quem culpasse Cavaco por Com a crise dos combustíveis, os problemas na
não querer essa solução, mas a verdade era só uma: saúde pública, os problemas crónicos da Justiça e
nem um nem outro queriam ser responsabilizados a contestação social que se adivinha, o risco de os
pela governação, mesmo na fase de restituição de extremos crescerem não é pequeno – aproveito para
direitos que a crise financeira retirou. deixar claro que não comparo o radicalismo do BE
Mal acabou essa fase, a Geringonça morreu. Ou e do PCP com o do Chega: há um mundo a separar
seja, não houve início de nenhum novo ciclo no um partido racista, xenófobo, coligado com as piores
nosso quadro político-partidário. A Geringonça forças que apareceram na Europa desde o fim da
não passou de um meio para evitar que o PSD Segunda Guerra Mundial a forças políticas que
aproveitasse o ciclo de prosperidade que se mostraram sempre respeitar os princípios básicos da
avizinhava, salvou o PS do mesmo triste destino de democracia liberal. Um entendimento entre o PS e o
grande parte dos seus congéneres europeus e foi PSD seria um maná para os radicalismos.
uma tentativa de estancar a perda de relevância do
PCP nos sindicatos e nas autarquias (falhada, diga- Não há assim momento pior para um bloco
se). O BE teve de ir atrás. central no governo, mas vai ser a única solução de
Os orçamentos que a esquerda foi viabilizando, governabilidade que pode sair das eleições – sejam
depois de concluídos os acordos, não passaram de elas agora ou daqui a muito pouco tempo. É uma
processos de autorização de executivos de gestão. péssima solução, mas muito provavelmente a única.
A realidade é o que é e não o que gostávamos que Em democracia nunca há ótimas soluções, há as
fosse: BE e PCP não são da mesma família política possíveis. visao@visao.pt

14 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


RAIO X

Responsabilidade de voo A utilização lúdica de drones é cada vez mais


comum e obriga à imposição de regulamentação.
Mas as regras variam muito de país para país

M A N U E L B A R R O S M O U R A mbmoura@visao.pt

A utilização de aeronaves não tripuladas, mais vulgarmente conhecidas por drones, já acontece há
muito tempo, em vários formatos e tamanhos, especialmente pelas Forças Armadas e autoridades
de proteção civil. Mas estas têm vindo a fazer cada vez mais parte da vida quotidiana do cidadão
comum, para fins mais ou menos lúdicos. Essa realidade obriga os países a manter as suas
legislações atualizadas, desenvolvendo regulamentações sob medida para tratar de preocupações
atuais e futuras, especialmente em relação ao impacto potencial dessa tecnologia na privacidade.
Ainda assim, a gravidade das restrições existentes à operação destes aparelhos
varia consideravelmente de país para país. Na América Latina, por exemplo,
as leis sobre o uso de drones vão da proibição total, como é o caso da Nicarágua
e Cuba, a nenhuma restrição, como acontece no Panamá, na Venezuela e Argentina.

Como estão regulados os drones


Extensão de regulamentação de utilização destes aparelhos por país
Sem restrições
Linha de vista experimental*
Linha de vista obrigatória
Proibição efetiva
Proibição total
Restrições aplicáveis
Sem legislação

Voar à vista
A maioria dos países exige que os pilotos sejam capazes de ver
o seu drone durante todo o tempo de voo. Mas já há casos em que
é possível realizar voos além da linha de visão. É o que acontece
em 33% dos países da América do Norte, uma média superior
à que se regista no resto do mundo, que é 22%. Estes voos têm
vindo a aumentar, sobretudo devido à necessidade
de empresas tecnológicas pesquisarem formas
de utilizar os drones como parte das suas operações,
nomeadamente em infraestruturas de entregas.
REQUISITOS LEGAIS
REGISTO
É obrigatório fazer um registo junto da
REGRAS PORTUGUESAS Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC)
► Manter sempre o contacto visual mínima é 30 metros para se poder manobrar drones que pesem
mais de 250 gramas. O registo eletrónico
com o aparelho ► Proibido sobrevoar concentrações é feito numa plataforma digital gerida pela
► Como um drone de brinquedo, o drone com mais de 12 pessoas ANAC, que a mantém atualizada
não pode sobrevoar pessoas, nem a mais ► Pilotar drones com mais de 25 kg de proteção e de socorro, SEGURO
de 30 metros de altura exige autorização da Autoridade Só podem pilotar drones com mais
sem a autorização do comandante
► Voar só com boas condições Nacional da Aviação Civil (ANAC) das operações no local de 900 gramas quem tenha um seguro
meteorológicas e com visibilidade ► Proibido voar à noite, além da linha de responsabilidade civil que cubra
► Proibido voar acima das altitudes os prejuízos causados noutras
► Desviar e dar prioridade a aeronaves de visão ou acima dos 120 metros, definidas nas áreas de proteção
tripuladas sem autorização da ANAC pessoas ou em coisas atingidas
operacional dos aeroportos sem pelo drone
► Respeitar a privacidade de todas ► É interdito sobrevoar áreas restritas, autorização da ANAC
FORMAÇÃO
as pessoas proibidas, perigosas, reservadas ► Não se deve fazer fotografias ou Consoante o peso ou a função
► Manter uma distância segura ou temporariamente reservadas filmagens aéreas sem se contactar dos drones, será necessária
de pessoas e de bens. Com drones ► Proibido sobrevoar zonas de sinistro, previamente a Autoridade Aeronáutica formação específica para se
de brinquedo, a distância onde se encontrem a decorrer ações Nacional – Força Aérea (AAN) poder pilotá-los

*Possibilidade de se realizar voos experimentais sem necessidade de o operador manter o contacto visual com o seu drone
FONTE Autoridade Nacional da Aviação Civil (anac.pt), Autoridade Aeronáutica Nacional – Força Aérea (aan.pt), Surfshark, Statista INFOGRAFIA MT/VISÃO

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 15


7
PONTOS DA SEMANA

POR
R UI TAVARES GUEDES*
FOTOS: GETTY

“SAPIENS” OU “STUPIDUS”?
Com base nos vestígios arqueológicos Passou, portanto, o tempo destinado a
que chegaram até nós, calcula-se que os alertar as pessoas para a necessidade de
primeiros Homo sapiens – uma espécie nos preocuparmos com as alterações
animal de primatas com um cérebro climáticas. Já nada mais há a fazer nesse
capaz de criar linguagem, raciocínio abs- domínio. É preciso, isso, sim, agir, tomar
trato e de resolver problemas complexos as medidas necessárias que impeçam a
– apareceram na Terra há cerca de 300 contínua subida das temperaturas, que
mil anos. De então para cá, nesse espaço nos obriguem a todos, enquanto Huma-
de tempo, que não passa de um instante nidade, a permitir que a nossa espécie
fugaz na vida de um planeta formado há continue a existir na Terra – porque o
4,5 mil milhões de anos, a nossa espécie planeta, connosco ou sem nós, continuará
conseguiu multiplicar-se e espalhar-se a girar à volta do Sol, durante mais uns
por todos os continentes, tornando-se quantos milhões de anos.
a força dominante. O seu imenso poder Nos próximos dias, numa sucessão
foi resultado de uma única característica impressionante de encontros de líderes
que a distingue dos outros animais: a sua mundiais, que inclui reuniões setoriais da
inteligência. A sabedoria a que se refere o União Europeia, das nações do Sudeste
Sapiens latino. Asiático (ASEAN), do G20 e que culmi-
Graças a essa mesma inteligência, atual- na com a grande Cimeira do Clima em
mente sabemos tudo o que precisamos de Glasgow (COP26), ficaremos a perceber se
saber sobre as nossas hipóteses de sobre- o mundo vai conseguir ou não agir para
vivência na Terra. Sabemos também quase garantir que a vida das próximas gera-
tudo sobre o impacto que tivemos nas ou- ções não se vai transformar num autên-
tras espécies existentes no planeta – e nas tico inferno na Terra. Apesar dos avisos
muitas que ajudámos a extinguir. É hoje e das muitas proclamações de datas para
absolutamente consensual que as altera- a descarbonização, têm-se multiplicado,
ções climáticas são fruto do aquecimento recentemente, as incertezas e as dúvi-
global provocado pela industrialização à das sobre o êxito da cimeira. Por uma
base de combustíveis fósseis. Temos igual- razão simples: face à crise energética e à
mente todos os cenários possíveis do que necessidade de retoma da economia no
nos pode acontecer, caso a temperatura pós-pandemia, as preocupações voltaram
média global suba mais um par de graus a ser de curto prazo, e começa-se a perder
nas próximas décadas. Já fomos informa- a inteligência de olhar para o futuro. Se
dos, em cada cenário, de quais serão as persistirmos nesse erro, ficaremos com
consequências, não só para o nosso modo o destino traçado – e em vez de Sapiens,
de vida mas também para os perigos que talvez devêssemos mudar o nome da nos-
podem existir para o nosso organismo. sa espécie para Stupidus.
*Diretor-executivo
rguedes@visao.pt

16 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


NÚMERO FRASE

99,9%
Consenso
científico quanto
“Não quero que os meus netos digam
que o planeta se tornou um inferno e
que eu não fiz o suficiente para o evitar”
António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas,
a justificar o seu empenho para que na Conferência do Clima
às alterações de Glasgow se consiga obter resultados
climáticas serem
provocadas pela
atividade humana J A PÃ O
Uma análise a mais de 88
mil estudos publicados Adeus, princesa
em revistas científicas,
entre 2012 e 2020, A família real japonesa
demonstra que é quase ficou, nesta semana,
total o consenso acerca reduzida a apenas 17
do papel dos humanos membros, dos quais só três
nas mudanças climáticas. podem ascender ao trono,
Estudo semelhante, feito devido ao casamento da
no período entre 1991 e princesa Mako, sobrinha
2012, tinha encontrado do imperador Naruhito.
97% de artigos favoráveis Segundo a lei imperial do
a esta tese. Agora, o Japão, as mulheres estão
número cresceu para impedidas de subir ao topo
muito próximo da máximo da hierarquia e,
unanimidade, de acordo ainda por cima, após o
ÁFRICA casamento, ficam obrigadas
com o estudo publicado
na revista Environmental a deixar a família real. O
Research Letters.
Regressam os golpes de Estado Japão pertence ao restrito
Dois anos depois da revolução de 2019, em que o grupo de monarquias
poder ficou dividido entre civis e militares, o Sudão foi modernas que limita a
surpreendido, nesta semana, com um novo golpe de Estado. sucessão aos homens,
NEGÓCIO à semelhança da Arábia
Os militares passaram a controlar o país para, dizem,
Saudita, Omã e Marrocos.
Multiplicar “corrigir o curso da revolução”. Contas feitas, este é o sexto
golpe militar no continente africano, em pouco mais de No entanto, mesmo que o
milhões um ano: dois no Mali, um na Guiné-Conacri, além de outro imperador quisesse mudar
essa lei, está impedido de
malsucedido no Níger, bem como uma tomada de poder
Uma ordem de compra de arbitrária, por parte dos militares, no Chade, no dia seguinte o fazer: a prerrogativa está
100 mil automóveis Tesla, à morte do Presidente Idriss Déby Itno. Na segunda metade entregue ao governo e ao
por parte da empresa do século XX, a África subsariana registou uma média de Parlamento nipónicos...
de aluguer de carros quatro golpes de Estado por ano. Depois, neste século, esse tradicionalmente
Hertz, teve um efeito número caiu para metade, mas agora voltou a subir. dominados por homens.
dominó raramente visto
nas bolsas: o anúncio
fez subir as ações da ECONOMIA
Tesla em mais de 12% e
acrescentou quase 118
mil milhões de dólares
Preparados para a estagflação?
ao valor de mercado da Nas principais economias tantas vezes brandido
empresa. O aumento das mundiais aumentaram nos debates políticos. No
ações da Tesla solidificou as buscas pela palavra momento em que o mundo
a posição de Elon Musk “estagflação” no Google. mergulha numa crise
como o homem mais rico Embora as opiniões entre os energética e de cadeias de
do planeta, engordando especialistas se dividam a abastecimento, percebe-
o seu património líquido propósito da concretização se o temor de se começar
em 36,2 mil milhões de (ou não) daquele que é a assistir ao aumento da
dólares num único dia. o maior pesadelo dos inflação num período de
A sua fortuna está agora economistas, a verdade é estagnação económica
avaliada em 288 mil que, desde a crise petrolífera – aquilo que se chama,
milhões de dólares. de 1973, o termo não era precisamente, estagflação.

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 17


HOLOFOTE

Paulina Chiziane Contadora de histórias difíceis


PRIMEIRA MULHER
Distinções Juventude Agradecimentos
Mereceu inquieta Chiziane parou de
unanimidade do
júri da 33ª edição
Nascida em Manja-
caze, a 4 de junho MOÇAMBICANA publicar livros em
2016, após O Canto
do Prémio Camões
2021, a decisão
de 1955, Paulina
cresceu numa
A ESCREVER UM dos Escravizados.
“Este prémio é
de distinguir família protestante ROMANCE, DONA DE o resultado de

OBRA MILITANTE,
Paulina Chiziane em Maputo, numa muita luta. Não
com o mais casa onde se Obra completa foi fácil começar
importante prémio
literário da Língua
falavam as línguas
nativas da região RECEBEU O PRÉMIO A sua escrita
nunca procurou
a publicar sendo
mulher e negra.
Portuguesa, no
valor de cem mil
de Gaza, Chope e
Ronga. O idioma CAMÕES 2021, A MAIS zonas de conforto: Depois de tantas
lutas, quando achei
IMPORTANTE DISTINÇÃO
Chiziane explorou a
euros, sucedendo português, esse condição feminina que já estava tudo
a Chico Buarque, aprendeu-o numa acabado, vem esse
em 2019, e a Vítor missão católica. LITERÁRIA DE LÍNGUA africana, os traumas
colonialistas, as prémio. O que

PORTUGUESA
Aguiar e Silva, em Estudante de superstições do eu posso dizer?
2020. O facto de Linguística, na Uni- seu país. Feminista É uma grande
ser igualmente a versidade Eduardo S Í LV I A S O U TO C U N H A e crítica, abordou alegria”, declarou a
primeira mulher Mondlane, nunca práticas como a da autora de 66 anos,
africana a receber concluiu o curso. poligamia, tema surpreendida com
esta distinção Tendo despertado dos celebrados o Prémio Camões
teve relevância cedo a sua cons- romances Balada que contribuirá
na decisão do júri ciência política e de Amor ao Vento para a releitura
internacional. É só social, militou na (1990) e Niketche: e reedição da
a terceira vez que o Frelimo – Frente Uma História de sua obra – cheia
prémio é atribuído de Libertação de Poligamia (2002). de experiências
a um autor Moçambique, mas As vozes de mães fortes, como esta:
moçambicano: trocaria a arena e filhas africanas es- em jovem, Paulina
José Craveirinha política pela literá- tão ainda presentes trabalhou como
recebeu-o em ria, desencantada em O Sétimo Jura- assistente da
1991 e Mia com as opções mento (2000), As Cruz Vermelha
Couto em 2013. partidárias no pós- Andorinhas (2009) em Manjacaze
Primeira mulher -independência, ou O Alegre Canto e, num campo
de Moçambique nomeadamente da Perdiz (2008), de refugiados de
a publicar um no que diz respeito com a chancela da guerra, conheceu
romance, Balada aos direitos e Caminho, em Por- uma mulher que
de Amor ao Vento liberdades das mu- tugal. Iniciou a sua a achou parecida
(1990), ela venceu lheres. A escrita carreira literária em com a filha
o Prémio José transformou- 1984: contos publi- grávida... que fora
Craveirinha de -se, desde cados na Imprensa massacrada. Aí
Literatura 2003 então, na moçambicana. nasceu Ventos
com Niketche: sua ferra- Mas o romance do Apocalipse,
Uma História de menta de marcar-lhe-ia romance em que
Poligamia (2002). interven- a obra ou, nas presta homenagem
ção. suas palavras, a Minosse e a filha
a vontade de Wusheni, usando
contar histó- os seus nomes
rias, inspirada reais.
pelas narra-
tivas ouvidas
à volta da
fogueira.

18 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


INBOX

M O D É S T I A À PA R T E
Não quero
Atores buscam
atenção. Mas
dar lições
eu sou um a ninguém.
introvertido
ADRIEN BRODY
O ator norte-americano participa
Mas temos
no mais recente filme de Wes
Anderson, French Dispatch, que
vai abrir o próximo Lisbon
& Estoril Film Festival,
dentes para
a 10 de novembro
carne e,
por isso,
é natural que
a queiramos
comer
NIGELLA LAWSON
A chef britânica diz que tentou fazer uma
Parece-nos legítimo dieta vegan, mas que, ao fim de duas
semanas, “precisava de comer ovos”
proteger a fronteira
externa [da União
Europeia] de modo a
evitar entradas ilegais FRASE DA SEMANA
HORST SEEHOFER
Ministro alemão do Interior
comenta o desejo da Polónia
de construir um muro na sua
Se for preciso fazer
fronteira com a Bielorrússia reforço de vacinas
C H O Q U E F R O N TA L
a mais idades
A ditadura do e outros grupos
politicamente correto
é insuportável sociais, faremos
MÁRIO DE CARVALHO GRAÇA FREITAS
O escritor, de 77 anos, completa A diretora-geral da Saúde defende que
40 anos de carreira e lança “ainda há muito para saber e em aberto”
um novo livro, De Maneira sobre o vírus e diz que é necessário
que É Claro... estar alerta para novas variantes

No futuro não vamos


precisar de carta de Não vou revelar A mensagem não é
se estou ou não só para Novak. Todos
condução vacinado. É um os que desejam
ALBERTO FERNANDEZ assunto privado visitar a Austrália,
WYTTENBACH
O líder do Segmento de Mercado e uma pergunta precisam de ter
do Transporte Rodoviário e imprópria vacinação completa
Automóvel da Agência da União
Europeia para o Programa NOVAK DJOKOVIC ALEX HAWKE
Espacial defende que os carros Tenista sérvio mantém o Ministro australiano da
autónomos são “o único caminho” tabu sobre o seu estado Imigração deixa aviso aos
para se reduzir a sinistralidade de vacinação e ainda não tenistas que, em janeiro,
nas estradas sabe se vai participar no queiram participar no
Open da Austrália grand slam de Melbourne

Fontes: The Independent, The Guardian, Lusa, Sapo 24, Diário de Notícias, Bild
28 OUTUBRO 2021 VISÃO 19
ALMANAQUE

NÚMEROS DA SEMANA

6-1
O português José Mourinho
sofreu na quinta-feira, 21,
ao comando da AS Roma,
e perante os modestos
noruegueses do Bodo/Glimt,
a sua derrota mais pesada,
com seis golos sofridos. Em
todos os 1 009 jogos oficiais
que o Special One já leva na
carreira, esta foi também a
segunda goleada sofrida por
uma diferença de cinco golos.
A primeira aconteceu em

GETTY
novembro de 2010, quando o
seu Real Madrid saiu de Camp
Nou vergado pelos 5-0

Descoberta com 471 anos de atraso do FC Barcelona.

Um estudo recente mostra que os Vikings terão chegado à América


do Norte há precisamente mil anos, quase cinco séculos antes
de Cristóvão Colombo
€6,6 milhões
O esqueleto de Big John,
tricerátopo de oito metros
Já se sabia que Cristóvão Colombo Centro de Investigação Isotópica da de comprimento, foi leiloado,
achou a América do Norte por Universidade holandesa de Groningen. na quinta-feira, 21, em Paris,
engano, pois, em 1492, pensava estar Nele, os cientistas conseguiram, graças por 6,6 milhões de euros a
a desbravar o caminho marítimo para a métodos avançados de datação de um norte-americano, o que
constitui um recorde na
a Índia. Também já havia sinais de radiação cósmica, concluir que os
Europa para a venda de um
que, antes dele, já os Vikings tinham pedaços de madeira que permanecem
fóssil de dinossauro.
chegado à Terra Nova, no que agora nas fundações de oito construções em
é o Canadá. O que não se sabia era Anse aux Meadows, o que se considera
exatamente quando. Essa incerteza ter sido uma ancestral povoação e
terminou agora, com a publicação,
na revista Nature, de um estudo
coordenado por Michael Dee e Margot
único local conhecido da ocupação
Viking na América do Norte, situada
numa baía no extremo norte da Terra
1h, 2m. e 52s
A atleta etíope Letesenbet
Kuitems, respetivamente professor de Nova, são datados de 1021. Ou seja, há Gidey estabeleceu, no
Cronologia Isotópica e arqueóloga no e te mil aanos.
exatamente os. domingo, 24, a melhor
marca mundial de sempre
numa meia-maratona por
GANA larga margem, ao vencer a
prova realizada em Valência,
O reaparecimento da coruja gigante Espanha, com o tempo
de 1 hora, 2 minutos
Uma coruja gigante, que passou quase despercebida nass florestas e 52 segundos.
tropicais africanas durante mais de 150 anos, foi fotografada
afada em
estado selvagem pela primeira vez por cientistas britânicos,
cos,
no Gana. Um exemplar de coruja-águia de Shelley foi visto
registado em imagens, no último dia 16 de outubro, o que
sto e

saudado como uma “descoberta sensacional” pela comunidade


ecologista. Com uma existência estimada de apenas alguns
e foi
unidade
uns
22,8 milhões
Cerca de 23 milhões de
milhares de exemplares, a espécie é oficialmente classificada
ficada afegãos, mais de metade da
como estando em risco de extinção. Os britânicos Joseph ph Tobias, população do país, estarão
do Departamento de Ciências da Vida do Imperial College ge London, este inverno em situação de
e o ecologista Robert Williams fotografaram um espécime me desta insegurança alimentar aguda,
coruja, do qual não havia registo de avistamentos desde 1870. levando o Afeganistão a uma
Foram apenas 15 segundos, mas foi o suficiente para a das piores crises humanitárias
conseguirem identificar, não só pelo tamanho mas também bém do mundo, alertam
pelos característicos olhos negros e bico amarelo. as Nações Unidas.

20 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


NOVO 3008
HÍBRIDO PLUG-IN
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TRANSIÇÕES

MORTES
Diagnosticado com um
cancro terminal em 2017,
o comediante, guionista e
agente Tiago André Alves
morreu na quarta-feira,
20. Tinha apenas 32 anos.
“Sempre com um sorriso, a
fazer rir ou a ajudar quem
queria trazer gargalhadas
para os palcos, hoje ficamos
com menos um senhor
da comédia nacional”, pode
ler-se no post de Instagram
do Lisbon Comedy Club.

O ator James Michael


Tyler, que ficou conhecido
ao interpretar Gunther
em Friends, morreu neste
domingo, dia 24 de outubro,
aos 59 anos. A notícia foi
confirmada pelo seu agente
à revista Variety. O ator
lutava contra um cancro
A R M A N D A PA S S O S 19 4 4 -2 0 2 1
da próstata que, ao longo

A mulher-pássaro
dos últimos anos, se foi
alastrando para os ossos. De
acordo com a BBC, James
Michael Tyler morreu na sua
casa, em Los Angeles. Na infância, não imaginava vir a ser pintora. Mas a menina
duriense transformou-se numa das artistas plásticas
Escultora, professora contemporâneas fundamentais do nosso tempo, deixando
de Educação Visual, uma obra densa, complexa, mas feliz
Deolinda Rodrigues
morreu, com 77 anos, Sobre o Douro, onde nasceu em 1944, se encontra representada com um
anunciou, na quinta-feira, no Peso da Régua, dizia ter aprendi- conjunto de oito obras, à semelhança
21, a Fundação Bienal de do “a olhar para dois sítios: para o rio da Fundação Calouste Gulbenkian, do
Arte de Cerveira, numa nota
e para o céu”. Da região, guardava a Museu do Oriente ou do Museu do
de pesar publicada na sua
memória dos verões na quinta da avó Chiado, em Lisboa. A artista só pintava
página oficial de Facebook.
A artista era mulher do cheia de glicínias, junto ao rio Cor- durante o dia. Partia da tela em branco
mestre José Rodrigues, go, do frio das adegas, do barulho do (colecionava telas, aliás!), sem uma ideia
falecido em 2016, um dos comboio a vapor... Armanda Passos predefinida, de onde nasciam seres,
impulsionadores da Bienal não sonhava vir a ser pintora. Acordou sobretudo mulheres fora dos cânones –
Internacional de Arte de para o desenho na Escola Superior de grandes, robustas, disformes por vezes
Cerveira e diretor artístico Belas-Artes da Universidade do Porto –, pintadas de cores fortes, com pás-
da iniciativa, em 1986. (ESBAP), já casada e com dois filhos saros e outros elementos da Natureza.
– um deles, Fabíola Valença, também Condecorada com a Ordem de Mérito
artista plástica, foi a sua curadora nos em 2012, representou Portugal em
O ex-futebolista e treinador últimos anos –, onde se licenciou em inúmeras exposições internacionais ao
escocês Walter Smith Artes Plásticas. Foi assistente de Ângelo longo de 40 anos. Em abril, “regressou”
morreu na terça-feira, de Sousa, professora de Tecnologia da às origens doando parte do seu espólio
26, aos 73 anos. Foi Serigrafia, monitora de Tecnologia da (83 obras) ao Museu do Douro, no Peso
selecionador da Escócia, Gravura na ESBAP e membro do grupo da Régua, onde irá nascer um parque
além de treinador e “Série” Artistas Impressores. Começou ribeirinho com elementos escultóri-
presidente do Glasgow a expor em 1976 e individualmente a cos em grande escala inspirados nas
Rangers, clube pelo qual partir de 1981 na Cooperativa Árvo- mulheres da artista. Armanda Passos
venceu 10 campeonatos –
re, no Porto, cidade onde vivia na sua dizia que as suas obras “faziam sorrir”
sete deles seguidos –, cinco
casa-atelier projetada pelo arquiteto quem as observava. A artista faleceu a
taças e seis Taças da Liga.
e amigo Álvaro Siza, a poucos me- 19 de outubro, aos 77 anos, no Porto, na
tros da Fundação de Serralves, onde sequência de doença. F.A.

22 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Hospitais
britânicos
PRÓXIMOS CAPÍTULOS voltam a estar
pressionados
por casos de
Covid-19

PERISCÓPIO

ANACOM do PS, apagou todo


Música no Curaçau o conteúdo dos
O presidente da computadores e
ANACOM, João entregou a gestão
Cadete de Matos, em papel. O autarca
terá ficado com as do PS alegou que,
orelhas a arder, depois assim, a sua sucessora
das violentas críticas pode dar um “cunho
de António Costa, pessoal” aos
sobre a forma como computadores.
o regulador concebeu
o leilão do 5G – na HABILIDADES
Europa, Portugal De pequenino…
e a Lituânia são os Será que houve horas
países com maior agitadas nas casas dos
atraso no processo. líderes parlamentares
Mas quando a crise do BE e do PCP, se
rebentou, Cadete alguém ali assistiu
PA N D E M I A de Matos estava ao programa infantil
completamente ZigZag, no domingo

Sinais de alarme
Numa altura em que o mundo avalia o impacto da
noutra, ao sol do
Caribe, em Curaçau,
num congresso da
UAEP (União Postal
de manhã, em que a
RTP explicou o que
é o Orçamento do
Estado? É que tudo
das Américas, soou bem – com
nova variante, Delta Plus, Graça Freitas admite a Espanha e Portugal). comparações entre
possibilidade de novos confinamentos no inverno Com águas tão a realidade política e
quentes, por aquelas uma gestão familiar
paragens, as orelhas –, até ao momento
Se o último ano e meio nos ensinou alguma coisa, é que, em
não devem ter em que o canal do
questões relacionadas com a pandemia, de pouco ou nada vale Estado rematou com
refrescado muito...
tentar acertar no futuro. Esta semana, numa longa entrevista a pergunta “Porque
ao Diário de Notícias, Graça Freiras voltou a apontar para AUTÁRQUICAS é que o orçamento
os próximos meses, pondo todas as hipóteses em cima Teremos sempre é importante?” A
da mesa, mesmo a de Portugal regressar a um modelo de Ayamonte! resposta mudou o
“confinamentos seletivos ou generalizados”, como, aliás, já se Luís Gomes perdeu tom e quase roçou as
começa a verificar em alguns países, na sequência de novas para o PS Vila Real palavras de António
vagas da Covid-19. A diretora-geral da Saúde recordou que de Santo António, Costa, dois dias antes:
o vírus “é novo”, ainda pode surpreender e, como tal, neste o reduto do PSD “Este orçamento quer
momento, há um plano para o inverno com três cenários no Algarve, a 26 de aumentar os apoios às
possíveis: “O primeiro cenário é o que vivemos, perfeitamente setembro. Então, famílias que passam
estável; o segundo é aquele em que a efetividade da vacina foi vê-lo, no sábado, dificuldades, criar
começa a cair, havendo necessidade de fazer reforços para na TVI, como “Luís um novo apoio para
aumentar a proteção da população – é o que estamos a fazer Gomez”, a apostar jovens em situações
agora com os maiores de 65 anos; e o terceiro, o pior, é aquele numa carreira musical de pobreza e reforçar
em que apareceria uma nova variante, em castelhano, num o SNS com mais
mais agressiva, com capacidade de dueto com um cantor profissionais.” Se Pedro
escapar ao nosso sistema imunitário de Ayamonte – a Filipe Soares deparou
localidade espanhola com dificuldades em
(...). Estas três realidades têm de estar
O PIOR [CENÁRIO] sempre presentes.” As declarações de ao lado de Vila Real,
com eleições locais em
explicar o anúncio
do chumbo pelo BE,
É (...) UMA NOVA Graça Freitas surgem numa altura
em que a subvariante da Delta, 2023. não se sabe; mas
VARIANTE designada Delta Plus, tem alertado FIGUEIRA
imagine-se quão
aborrecida terá ficado
(...) COM os especialistas – segundo o último
relatório do Instituto Ricardo Jorge,
Limpeza a fundo a pequena Gabriela,
que o comunista
CAPACIDADE foram registados nove casos em Portugal O novo executivo de
São Julião, na Figueira João Oliveira teve de
DE ESCAPAR AO associados a esta versão da doença (até
4 de outubro). Desconhecendo ainda o
da Foz, eleito pelo convencer sobre a
posição que o Comité
movimento de Santana
NOSSO SISTEMA seu impacto, o Reino Unido enfrenta Lopes, terá ficado de Central do PCP tomou
horas após o ZigZag.
IMUNITÁRIO um aumento significativo de infeções
e internamentos. Rússia, Alemanha e
queixo caído ao ver que
o presidente cessante, F.L./N.M.R.
GRAÇA FREITAS
Diretora-geral Ucrânia bateram, na última semana,
da Saúde recordes de casos e mortes. J.A.S.

24 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


OCEANO DE ESPERANÇA

Oceano de Esperança é um projeto da VISÃO em parceria com a ROLEX, no âmbito da sua iniciativa Perpetual Planet, para dar
voz a pessoas e a organizações extraordinárias que trabalham para construir um planeta e um futuro mais sustentáveis

“O fitoplâncton
é o verdadeiro
pulmão do planeta”
Filipe Lisboa estuda as alterações climáticas a partir dos satélites da Agência
Espacial Europeia, particularmente os seus efeitos nas microalgas, seres vivos
tão especiais que sem eles a vida na Terra não seria possível
BRUNO LOBO LUÍS BARRA

Quem sabe se não estaremos à conversa com o primeiro as- e quase sempre é consequência da ação direta do Homem.
tronauta português? Filipe Lisboa é um dos candidatos – um Uma das mais recorrentes são os chamados afloramentos
dos dois portugueses – na exclusiva lista da Agência Espacial tóxicos, grandes concentrações de microalgas que esgotam
Europeia (ESA). O processo de seleção ainda deve demorar oxigénio e provocam a morte de todos os seres vivos nessa
um par de anos, e, enquanto decorre, Filipe trabalha como zona. “Existem muitos afloramentos, mas estes fenóme-
Project Officer na Agência Europeia de Segurança Marítima, nos tóxicos ocorrem maioritariamente em rios e lagos ou
onde monitoriza imagens de satélite procurando reduzir o em zonas costeiras perto das bacias hidrográficas, onde se
risco de acidentes marítimos e a pesca ilegal, acompanhar os acumulam desperdícios da atividade agropecuária e ou-
fluxos migratórios ou evitar a poluição marinha. Paralelamen- tras indústrias, que funcionam como nutrientes para estes
te, está a tirar um doutoramento em alterações climáticas e organismos.” Filipe cita ainda um estudo da NASA sobre o
os efeitos da atividade humana no fitoplâncton, um conjunto derrame petrolífero na plataforma Deep Water Horizon, no
de algas marinhas microscópicas que, incrivelmente, também golfo do México. Após o acidente, os níveis de fitoplâncton
são mais bem estudadas a partir do Espaço do que na Terra. na coluna de água desceram para níveis baixíssimos, mas
“Ainda hoje fico impressionado”, admite, referindo-se hoje, passados 11 anos, já suplantaram os números anterio-
ao estudo destes seres microscópicos, que se observam tão res ao acidente. Só que as espécies já não são as mesmas “e
bem a partir do Espaço. Mas a explicação é simples. Como o ecossistema local foi alterado”.
possuem clorofila, têm uma tonalidade esverdeada que os
satélites captam muito bem, conseguindo-se até identifi- O BOM REBELDE
car as espécies precisamente pela sua cor. “O oceano não é Costuma dizer-se que um bom cientista é aquele que sabe
verdadeiramente azul, apenas parece azul”, tal como o céu cada vez mais sobre cada vez menos, mas Filipe Lisboa tem
parece azul, porque reflete melhor esse espectro. O oceano um percurso em contraciclo com esta conceção, intitulan-
tem muitas outras cores, amarelo, castanho, laranja e “maio- do-se com humor de “investigador rebelde”. A sua tese de
ritariamente verde, precisamente por causa do fitoplâncton”. doutoramento está mais relacionada com a Biologia do que
Mas o que são estas microalgas e porque o seu estudo é tão com a sua formação-base, que é a Física, Astronomia e As-
importante? O nome engloba “milhares de espécies, muitas trofísica, mas, curiosamente, é essa multidisciplinaridade
delas ainda não estão sequer identificadas”, mas a sua impor- que o torna um candidato tão interessante para a ESA – e
tância é vital, pois “estão na base de toda a cadeia alimentar aquilo que o atrai também para o projeto. “Sempre tive uma
nos oceanos, absorvem tanto dióxido de carbono como todas paixão enorme pelo Espaço, na mesma medida que tenho
as outras plantas e florestas da Terra juntas e são o verda- pelos oceanos e é engraçado como o meu trabalho acaba por
deiro pulmão do planeta”, explica-nos o cientista climático. estar tão ligado a ambos”.
São responsáveis por produzir 50% a 80% do oxigénio que “A maioria dos candidatos a astronauta quer ir à Lua, viver
respiramos. Aliás, foram estes seres unicelulares que, há 2,5 no Espaço e se calhar ir até à Estação Espacial Internacional.
mil milhões de anos, começaram a produzir o oxigénio que Estamos a entrar numa fase da exploração muito preocupada
transformou a Terra no planeta habitável que hoje conhe- com a forma como replicamos as condições de vida que te-
cemos. Temos, então, uma enorme dívida de gratidão, mas mos na Terra” – e o fitoplâncton desempenha naturalmente
será que estamos a pagar-lhes na mesma moeda? um papel fundamental neste processo. “Estamos a aprender
A questão é complexa, diz, pois “existem diferentes es- a criar no Espaço as mesmas condições que já existem – de
pécies de algas e estas reagem todas de forma diferente forma natural – na Terra. E, em simultâneo, aprendemos
às alterações climáticas e à atividade humana”. Estamos a muito sobre o que podemos fazer para preservar a vida
assistir a uma transformação na atividade do fitoplâncton, aqui.” visao@visao.pt

26 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


28 OUTUBRO 2021 VISÃO 27
ALERTA VERMELHO
28 VISÃO 28 OUTUBRO 2021
Quatro dos mais respeitados cientistas portugueses na área do clima
escrevem, em exclusivo para a VISÃO, sobre o presente e o futuro do País
e do mundo. Um retrato dos riscos, dos desafios e das respostas possíveis
para enfrentarmos uma das maiores ameaças da História da Humanidade
28 OUTUBRO 2021 VISÃO 29
Barragem do Pego
do Altar, Alcácer do Sal
A bacia do Sado é das que
mais têm sofrido com a
escassez de água.
Os cenários preveem que a
situação piore no Sul do País

LUÍS BARRA

A importância da Ciência dada a qualidade ímpar dos laureados,


e, talvez também, por razões de pressão
política, em vésperas da realização da 26ª
Conferência das Partes sobre Mudanças
Climáticas da ONU (COP26), vem dar
É o conhecimento científico que nos mostra todo relevo a um aspeto fundamental que
o impacto das alterações climáticas. E é esse tende a ser esquecido pelo cidadão co-
conhecimento que nos pode também dar as soluções mum: o de que o estudo do clima requer
uma abordagem físico-matemática es-
pecializada, começando por se tratar de
POR CARLOS DA CAMARA um problema científico e técnico, e só
depois um problema socioeconómico,
ambiental e ético.
A necessidade de integrar conceitos
físico-matemáticos surge logo na de-
finição de clima, na medida em que o
termo se refere a uma coletividade de
eventos meteorológicos que tiveram
lugar numa dada região e num dado

A
período de tempo, tomando-se um todo
e sendo a sua individualidade esquecida.
*Climatologista, professor da Faculdade de Ciências
A caracterização do clima e da sua evo-
da Universidade de Lisboa
lução requer, portanto, conhecimentos
avançados de Física, de Estatística e de
sistemas dinâmicos. Acresce que o pró-
A semana dos Nobel vem sempre acom- com o físico teórico Giorgio Parisi. prio conceito é difícil de apreender pelo
panhada por discussões animadas acer- O comité do Nobel já havia selecio- cidadão comum, na medida em que o
ca de quem serão os laureados nas nado o clima em 2007, quando o Painel clima não se vê, podendo apenas apre-
diversas áreas e, este ano, o nome da Intergovernamental para as Alterações ciar-se indiretamente os seus efeitos,
ativista do clima Greta Thunberg vol- Climáticas (IPCC) partilhou o prémio seja nas características da vegetação na-
tou a ser badalado como favorito para da Paz com o vice-presidente dos EUA, tural, seja no tipo de habitação rural, seja
o Prémio Nobel da Paz. O clima acabou Al Gore, e, neste ano, uma repetição na traça das cidades antigas. O facto de,
por ser um dos temas escolhidos pelo do prémio com Greta Thunberg teria com frequência, se ouvir dizer que de-
comité Nobel, mas a distinção deu-se tido, muito provavelmente, maior re- terminado espetáculo foi interrompido
no campo da Física pura e dura, tendo percussão ao nível mediático. No en- devido às “condições climatéricas” é um
os climatologistas, Syukuro Manabe e tanto, a atribuição do Nobel da Física, indicador claro da confusão que ainda
Klaus Hasselmann partilhado o prémio inegavelmente por motivos científicos, existe entre clima (coletividade) e estado

30 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


O que o calor faz Cansaço, tonturas,

ao corpo náuseas, dores de cabeça


e sensação de desmaio.
A temperatura corporal
O aumento do número de dias pode ultrapassar os 40 ºC
acima dos 35 ºC é uma das
consequências mais preocupantes
das alterações climáticas em
Portugal, com efeitos diretos na
mortalidade – a onda de calor de A tensão arterial baixa e o
2003 terá matado cerca de duas ritmo cardíaco aumenta, com o
mil pessoas no País. Estes são os coração a trabalhar mais para
efeitos das altas temperaturas no tentar controlar a temperatura
corpo humano do corpo; essa pressão extra
pode ser fatal em pessoas com
complicações cardíacas
Irritação na pele, sobretudo
nas virilhas, nas axilas, no
pescoço e nos cotovelos

O calor exacerba a poluição do


ar, nomeadamente os níveis de
Os tornozelos tendem a ozono, afetando os pulmões
inchar, devido ao aumento e agravando as doenças
do fluxo sanguíneo pulmonares, como a asma

do tempo (membro da coletividade). elástica, a resposta climática seria pro- em determinados eventos climáticos
São a Física e a Matemática que porcional ao forçamento e a supressão extremos e desastres a eles associados.
permitem explicar por que razão, não da causa forçadora levaria ao retorno Por exemplo, quando se contabilizam
sendo o estado do tempo previsível ao estado anterior ao forçamento. Os as secas, com duração da ordem de um
para além de uma semana a dez dias, cenários de clima futuro, produto de ano, que assolaram a Península Ibéri-
se pode, ainda assim, construir cená- simulações efetuadas por modelos físi- ca no período 1901-2016, observa-se
rios confiáveis do clima a 30, 50 ou 100 co-matemáticos altamente sofisticados que os cinco episódios mais intensos
anos. São a Física e a Matemática que que correm nos mais poderosos super- tiveram lugar no século XXI, em 2005,
permitem reconstituir o clima desde computadores existentes, são, assim, 2012, 2009, 2015 e 2016. E, quando se
há meio milhão de anos, com base em difíceis de assimilar pelo cidadão não compara, para Portugal, o total anual
informação precisa da temperatura, especializado, avesso a tudo o que se de área queimada em incêndios rurais,
dióxido de carbono, metano e poeiras, afaste do senso comum, e as medidas de verifica-se que a média para o período
obtida a partir da análise das camadas mitigação dos impactos das alterações 1980-2000 é de 91 mil hectares, en-
de gelo. São a Física e a Matemática que climáticas, que implicam sacrifícios de quanto para o período 2001-2019 é de
permitem discernir entre a variabilida- toda a ordem, acabam por sofrer re- 139 mil hectares, o que representa um
de interna natural do clima, como o El jeições pelas comunidades, no todo ou aumento de 52%, tendo-se em conta
Niño ou a Oscilação do Atlântico Norte em parte. Cite-se, a título de exemplo, ainda que os três anos com maior área
(NAO), e as mudanças climáticas decor- a dificuldade em explicar a necessida- ardida, 2017, 2003 e 2005, se situam no
rentes de forçamentos externos, sejam de presente de se limitar o aumento da período mais recente.
estes naturais, como o vulcanismo e a temperatura média global em 1,5 ºC aci- O aumento de área queimada não
atividade solar, sejam antropogénicos, ma dos níveis pré-industriais, em vez de se deve, contudo, apenas a uma maior
como os decorrentes da emissão de se manter a meta de 2 ºC estabelecida, frequência de extremos meteorológi-
gases com efeito de estufa. São a Física em 2015, no Acordo de Paris. A razão cos, sejam ondas de calor sejam ventos
e a Matemática que permitem atribuir está no comportamento não linear dos intensos, não podendo ignorar-se fato-
causa humana a um determinado even- extremos climáticos, cujo aumento não res ligados à atividade humana, como
to meteorológico extremo e simular as é proporcional a uma pequena variação as mudanças drásticas da paisagem,
não linearidades do clima, responsáveis de meio grau na temperatura, tendo com mais terrenos abandonados, mais
por “efeitos borboleta” e por feedbacks ainda em conta que os grandes desas- área de mato e mais zonas florestadas,
que podem retardar ou acelerar a res- tres meteorológicos se ficam a dever, na ou à diminuição e envelhecimento da
posta a um dado forçamento. sua esmagadora maioria, à ocorrência população rural. Com efeito, os fato-
de fenómenos extremos, tais como os res antropogénicos do forçamento do
AUMENTO DE 52% DA ÁREA ARDIDA episódios de seca, as ondas de calor, as clima são de tal forma cruciais que se
Devido à sua natureza complexa, o tempestades e as cheias. acrescentou a antroposfera às cinco
clima apresenta, pois, um compor- O comportamento não linear do “esferas” com que tradicionalmente
tamento que se afasta de raciocínios clima explica também o pronunciado se estruturavam o sistema climático: a
simplificados baseados em modelos aumento em frequência que, nos úl- atmosfera, a hidrosfera, a criosfera, a
lineares em que, tal como numa mola timos anos, tem vindo a observar-se litosfera e a biosfera.

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 31


AQUECIMENTO: UMA RESPOSTA
NATURAL DO SISTEMA CLIMÁTICO
A Humanidade tem, portanto, respon- Um Portugal
(muito) mais agreste
sabilidades acrescidas em tudo o que
respeita as alterações climáticas, não só
porque o comportamento humano tem
um papel determinante no forçamento
do clima mas, sobretudo, porque é o
único fator que pode ser modificado me-
diante um processo de consciencialização Da agricultura às florestas, da saúde à erosão
coletiva que leve a uma mudança drástica
de comportamentos à escala global. Tal
costeira, as ameaças para o nosso país já se fazem
mudança é, no entanto, extremamente sentir – e serão bem mais sérias no futuro
difícil de levar a cabo por diversas razões.
Em primeiro lugar, porque o pessimismo POR FILIPE DUARTE SANTOS
do presente século tem levado frações
da população a pôr em causa o método
científico e a seriedade dos cientistas,
preferindo seguir, de forma acrítica,
teorias da conspiração sem qualquer base
de sustentação, tal como recentemente
sucedeu quando diversas vozes puseram
em causa a vacinação contra a Covid-19.
Em segundo lugar, porque os resultados
de uma mudança de comportamento

A
irão demorar muitas dezenas de anos a *Investigador em alterações climáticas e presidente do Conselho
ter efeitos palpáveis, entrando, assim, em Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável
conflito com a mentalidade dominante
que visa o lucro imediato e que tem como
horizonte temporal a duração de uma
legislatura. Em terceiro lugar, porque o
esforço económico requerido é de difícil As alterações climáticas antropogéni- chuvas muito intensas em períodos
aceitação, quer pelos países mais ricos, cas não são uma previsão para o futu- curtos, causadoras de inundações,
que não estão dispostos a sacrificar o ro, mas uma realidade atual que está enxurradas e deslizamentos de ter-
nível de vida que têm, quer pelos mais a agravar-se e que assim continuará ras. Caracterizam-se também por
pobres, que se sentem no direito de vir a até se conseguir atingir a neutralidade causarem mudanças nos regimes de
ter o que os outros já alcançaram. carbónica global. Aliás, as alterações precipitação regional e a subida do
Mostram a Física e a Matemática que climáticas só começarão a retroceder nível médio global do mar.
as alterações climáticas que já vivencia- várias décadas após a neutralidade Por várias razões que não é possí-
mos não são mais do que a resposta do carbónica global. Estamos perante vel detalhar aqui, a Região do Medi-
sistema climático com vista a alcançar o um problema cuja base científica se terrâneo é especialmente vulnerável,
equilíbrio dinâmico que garante a con- conhece desde os artigos de Joseph ou seja, é um hotspot das alterações
tinuidade do seu funcionamento em Fourier (1827), John Tyndall (1863), climáticas, principalmente porque
harmonia com os forçamentos impostos Svante Arrehnius (1896) e Gilbert Plass está a sofrer uma diminuição acen-
pela atividade humana. Ao invés do que (1956). A Humanidade tem atrasado a tuada da precipitação média anual. A
muitos pensam, não se trata de uma “vin- sua resolução, porque a principal cau- partir dos finais da década de 1960,
gança da Natureza”, mas tão-somente de sa resulta das emissões de dióxido de começou a chover menos em Portugal
uma resposta natural do sistema aos no- carbono provenientes da combustão Continental, sobretudo nos meses de
vos condicionalismos externos, tal como dos combustíveis fósseis, que assegu- janeiro, fevereiro e março, muito im-
o corpo humano aumenta o batimento ram cerca de 80% das fontes primárias portantes para a agricultura, florestas
cardíaco após um esforço ou transpira globais de energia. Vamos ter de nos e biodiversidade. Este processo irá
quando a temperatura ambiente se eleva. adaptar às mudanças climáticas du- continuar durante muitas décadas.
Só a Ciência e a técnica são capazes rante muito mais de um século. Esta nova tendência reforça o con-
de produzir cenários credíveis de clima Interessa, pois, conhecer quais são traste entre um Norte húmido, mas
futuro, estabelecer metas de comporta- os principais impactos no mundo e agora menos húmido, e um Sul seco,
mento da Humanidade que permitam especialmente em Portugal. As al- mas agora mais árido. Em Portugal,
mitigar, dentro do possível, os impactos terações climáticas caracterizam-se a área em que a precipitação anual é
das alterações climáticas e delinear estra- por um aumento da temperatura inferior a 400 milímetros por ano tem
tégias de adaptação que possam limitar média global da atmosfera à super- aumentado e inclui já grande parte do
os danos. Não me parece que haja muito fície (aquecimento global) e por uma Alentejo. O clima na Península Ibérica
espaço de manobra nem lugar para mui- maior frequência e intensidade de tornou-se mais quente e mais seco, o
tas ilusões. Se não formos nós a cuidar do eventos meteorológicos extremos, que, em especial nas regiões do Sul,
clima, será o clima que cuidará de nós. tais como ondas de calor, secas e afeta a disponibilidade de recursos

32 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Onde o mar está
a comer Portugal
Entre os impactos das alterações
climáticas, a subida do nível médio
das águas é uma das ameaças
mais sérias para o nosso país

Troços de linha da costa em situação


de erosão (1958-2020)

Locais mais críticos

LUCÍLIA MONTEIRO
VIANA DO CASTELO

Pedrinhas, Esposende A costa do Centro-Norte é a que se tem


mostrado mais vulnerável à erosão costeira, obrigando a intervenções Ofir – Praia das Pedrinhas
de emergência
PORTO

hídricos, prejudica a agricultura, au- ardida nas várias regiões da Península


menta o risco de incêndios florestais Ibérica poderá aumentar para o dobro Esmoriz – Furadouro
e rurais e afeta profundamente a ou o triplo se não forem implementa-
biodiversidade, obrigando a uma mi- das medidas de adaptação adequadas.
gração das espécies demasiado rápida Na saúde, há que considerar a AVEIRO
e muitas vezes impossível. Estima-se crescente intensidade das ondas de Costa Nova (Aveiro)
que o aumento da temperatura média calor, cujo efeito é agravado nas zonas
global de 3° C, relativamente ao perío- urbanas, as doenças transmitidas por
do pré-industrial, elevará os prejuízos artrópodes vetores e roedores (doença
anuais causados pelas secas na Euro- de Lyme, dengue e outras), os efeitos
pa, de €9 400 milhões para €45 mil nocivos da poluição atmosférica pro- Praia de Cova Gala –
– Praia da Leirosa
milhões, sendo o Mediterrâneo uma duzida pelos incêndios florestais, as
das regiões mais afetadas. doenças associadas à má qualidade
da água resultante da sua escassez e LEIRIA
AS NOVAS DOENÇAS muitos outros aspetos.
A agricultura é um dos setores mais A forte erosão que se observa em
vulneráveis, também pelo facto de a alguns troços das zonas costeiras
rápida mudança do clima agravar ou deve-se ao défice de sedimentos
introduzir pragas e doenças nas cul- transportados pelos rios, resultan-
turas, obrigando ao uso mais intensi- te da construção de barragens e de
vo de fitofarmacêuticos. A adaptação dragagens. A subida do nível médio
da agricultura necessita de maior do mar nas zonas costeiras de Por- LISBOA
eficiência na utilização da água por tugal foi apenas de 20 centímetros.
meio de tecnologias apropriadas, mas Porém, a subida do nível do mar está São João da Caparica – Fonte da Telha
SETÚBAL
também de maior disponibilidade de a acelerar-se e será da ordem de 80
água, que se pode obter, por exemplo, centímetros no final deste século, o
por reciclagem das águas residuais que irá obrigar a custos económicos
urbanas. É necessário desenvolver o muito elevados para proteger a costa.
melhoramento genético das plantas e É esta a súmula possível dos impac-
recorrer a novos cultivares mais bem tos em Portugal Continental. Cada país
adaptados a um clima mais quente já elaborou uma lista semelhante dos
e seco. impactos adversos presentes e futuros.
As florestas, por seu lado, são es- Os países com economias avançadas,
senciais para travar a desertificação. entre os quais Portugal, são menos
É imperativo reflorestar e diminuir vulneráveis do que os restantes, por
o risco de incêndio por meio de um terem maior capacidade de adaptação.
ordenamento e de uma gestão mais Seria racional começar a reduzir as
adequada à mudança climática, e emissões globais de gases com efeito de FARO
reduzir o número de ignições. Esti- estufa. É isso que se espera da COP26 Praia de Faro
ma-se que, em 2075, a área florestal em Glasgow. FONTE Agência Portuguesa do Ambiente AR/VISÃO

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 33


Pequenas diferenças
crucial para se limitar o aquecimento
global a 1,5º C no fim de século, ou
será tarde demais.

MEIO GRAU IMPORTA?

aparentes, Num contributo vital para a compreen-


são do que significam para a Humani-
dade os limites do aquecimento global
do Acordo de Paris, o IPCC lançou,

enormes impactos no final de 2018, um relatório especial


(IPCC, 2018: Global Warming of 1,5° C)
centrado na caracterização do quão dife-
rentes serão os impactos associados aos
limiares de aquecimento global de 1,5º C
Com a Cimeira do Clima à porta, é fundamental e 2º C no fim de século. A realidade é os
percebermos que um aumento de temperatura números serem esmagadores para uma
de 2º C tem efeitos muito maiores do que um de aparentemente tão pequena diferença
de 0,5º C, que para muitos de nós não
1,5º C – uma diferença de centenas de milhões de passa de uma abstração.
pessoas a serem afetadas pela escassez de água e De facto, projeta-se que, para um
alimentos, ondas de calor, secas e incêndios aumento de 1,5º C, 14% da população
mundial estará exposta a ondas de calor
severas pelo menos uma vez a cada cinco
POR PEDRO MATOS SOARES anos; este número aumenta para 37%
se os 2º C forem atingidos – refira-se
que estamos a falar de cerca de dois mil
milhões de pessoas. Se focarmos o nú-
mero de pessoas afetadas mais frequen-
temente por ondas de calor extremas,
este número diminui para 420 milhões,
e para 65 milhões se aludirmos a ondas
de calor excecionais, tais como as que te-
mos vindo a testemunhar nestes últimos

O
anos em tantas partes do mundo. Esta
*Investigador principal no Instituto D. Luiz, da Faculdade incidência de extremos de temperatura
de Ciências da Universidade de Lisboa acarretará um acréscimo impressionante
de mortalidade e morbilidade por gol-
pes de calor, doenças cardiovasculares
e respiratórias, alergias, etc.
O último relatório do IPCC, divulgado resultaram em crescentes emissões Se falarmos de água, a fração de
em agosto e baseado em 14 mil artigos de gases de estufa e em modifica- população global exposta a escassez de
científicos, retrata com uma solidez ções do uso do solo; 2) o clima está a água para o limiar de 1,5º C será 50%
ímpar a evolução do sistema climáti- mudar a um ritmo sem precedentes menos do que para o limiar de 2º C, o
co passado e as projeções futuras, de cifrando-se o aquecimento global em que se traduzirá em menos 184 a 270
acordo com diferentes cenários so- 1,1º C relativamente ao período pré- milhões de pessoas. Esta escassez de
cioeconómicos (e as correspondentes -industrial; 3) as novas metodologias água é cumulativamente resultado do
concentrações de CO2). Esta robustez de atribuição e o acelerar da mudança aumento da temperatura e do aumento
alimenta-se numa quantidade sem climática mostram que as atividades da frequência de secas, e não diz respeito
precedentes de observações da Terra, humanas contribuem diretamente só ao mundo rural, de todo. Projeta-se
em modelos físico-matemáticos de para o aumento da frequência e in- que, nas zonas urbanas, mais 61 milhões
nova geração do sistema terra e em tensidade dos extremos, tais como de pessoas estarão sujeitas a seca severa
novas metodologias de atribuição e ondas de calor, precipitação extrema quando se compara os dois níveis de
compreensão dos fenómenos climá- e secas agrícolas e ecológicas; 4) nos aquecimento para o fim do século. Em
ticos, e em particular dos extremos. cinco cenários de emissões avaliados, resultado de um sistema climático mais
O relatório é claríssimo na carac- o limite de 1,5º C será atingido e mes- energético, a frequência e intensidade
terização dos diferentes futuros para mo excedido nos próximos 20 anos. de incêndios e de extremos de preci-
o clima, em resposta às diferentes No cenário mais gravoso, esse limiar pitação também se estenderá a muito
trajetórias de emissões, e na absoluta poderá ser já ultrapassado na presente mais regiões do mundo, no caso do
urgência de mitigação das mesmas. década. No entanto, no cenário com limiar de 2º C.
De uma forma sintética, podem sa- forte mitigação de gases de efeito
lientar-se as seguintes mensagens- estufa, a temperatura global prova- OS POBRES SÃO QUEM MAIS SOFRE
-chave: 1) as alterações climáticas velmente cairá no final do século e O aquecimento global diz também
são indubitavelmente da responsa- estabilizará abaixo de 1,5º C; e, 5) uma respeito aos oceanos, o que provocará
bilidade das atividades humanas, que forte e pronta redução de emissões é uma elevação da acidez e diminuição do

34 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


oxigénio em todas as bacias oceânicas.
Uma projeção mostra que a pesca ma-
rinha perderá cerca de três milhões de
toneladas se se atingir os 2º C, o dobro
da diminuição projetada para 1,5º C.
Esses 0,5º C de aquecimento extra re-
sultarão numa subida do nível do mar
que afetará diretamente mais 10 milhões
de pessoas. Todos estes fatores terão um
impacto incomensurável na segurança
alimentar e escassez de alimentos para
centenas de milhões de pessoas adi-
cionais, quando se comparam ambos
os limiares. A perda dos habitats para
insetos, plantas e vertebrados duplica de
Pedrógão Grande O fogo de 2017 foi uma amostra trágica do que o
um limiar de aquecimento para o outro,
futuro nos reserva – as ondas de calor associadas às secas vão fazer e terá vastas repercussões na biodiversi-
aumentar muito o risco de incêndios dade, e consequências também no setor
alimentar pela importância dos insetos

Mais calor, menos chuva


na polinização das culturas. Este relato
poderia prosseguir e estender-se a todos
os ecossistemas terrestres e marinhos, de
que é exemplo icónico a esperada perda,
Os modelos climáticos do relatório do IPCC mostram bem como o Sul da Europa – e praticamente total, dos recifes de coral se
a Península Ibérica, em particular – é mais afetado do que o resto do continente. o limiar de 2º C for atingido, enquanto
Mesmo num cenário relativamente benigno, de +2 ºC, os impactos são preocupantes,
se salvaguardariam pelo menos 10% se
sobretudo ao nível da precipitação
se mantivesse o aquecimento em 1,5º C.
Por último, estima-se que as per-
Os três cenários com as alterações previstas na temperatura e na precipitação das para a economia resultariam, em
em junho, julho e agosto (JJA), face à média calculada para o período 1995-2014 2100, num PIB per capita 8% menor
para 1,5º C e 13% inferior para 2º C de
aquecimento, quando comparado com
+1,5 °C +1,5 °C a manutenção da temperatura média
atual. Estes duríssimos impactos e perdas
JJA JJA
económicas atingiriam de forma mais
acentuada os países mais pobres, ditos
em desenvolvimento, e claro as pessoas
mais vulneráveis. Perante estes números,
imagine-se o que será um mundo em
que a temperatura média global aumente
3º C ou 4º C, em que todos estes impac-
tos serão exacerbados não linearmente,
+2 °C +2 °C ou seja serão muito mais intensos e, por
isso, terrivelmente nefastos.
JJA JJA
O tempo é de urgência. Um facto ine-
xorável é que, a verificar-se um fiasco na
COP26, em Glasgow, condenaremos se-
guramente milhões de pessoas a impac-
tos devastadores. É de enorme relevância
ter em conta que tudo o que contribua
para um efetivo corte emissões, e a mi-
tigação do aquecimento global, significa
+4 °C +4 °C salvar milhões da desarticulação da sua
vida, da perda do seu modo de subsis-
JJA JJA
tência, quando não da doença e da morte
– e, por isso, importa agir! Por último,
quanto mais robusta for a mitigação
menores serão também os custos de
adaptação para toda a sociedade.
Trilhar um caminho de mitigação não
é de todo irrelevante, seja de que dimen-
são for, uma vez que resultará sempre na
0 1 2 3 4 5 -40 -20 0 20 40 salvaguarda dos meios de subsistência de
Aumento da temperatura (˚C) FONTE IPCC Alterações na precipitação (%) centenas de milhões de pessoas.

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 35


A encruzilhada
tenhamos presente que estas taxas são
pagas pelo petróleo. Não há “tecnologia
verde” que satisfaça as necessidades
energéticas, e falta-nos tempo para que
a Ciência chegue à tecnologia necessária.

da nossa civilização Não há tempo, e vontade, para a inova-


ção de que necessitamos.

VIVER A CRÉDITO
Por quanto mais tempo a insustenta-
Este ano, temos visto pequenas amostras do que aí bilidade em que vivemos é suportável
vem. E falta-nos tempo até que a Ciência chegue pela Terra? Neste ano, a 29 de julho,
à tecnologia necessária para a transição energética atingimos o Earth Overshoot Day (dia
da sobrecarga da Terra). Todos os anos,
este dia ocorre mais cedo. Daí até ao fi-
POR CARLOS A. CUPETO nal do ano, durante cinco longos meses,
vamos viver com o que não temos. Isto
é possível durante mais quantos anos?
Se atendermos que o primeiro semes-
tre de 2021 foi, comparativamente, um
tempo de pouca atividade económica,
este facto é assustador.
E em Portugal? Absurdamente, por
cá este dia atingiu-se dois meses e meio
mais cedo: a 13 de maio, esgotámos os

H
nossos recursos. Dizem-nos que Lisboa
* G eólogo, professor na Universidade de Évora e membro é Capital Verde da Europa, que somos
do Conselho Coordenador da SEDES de Évora “o professor da transição energética na
Europa” (ministro Matos Fernandes),
mas, na verdade, somos pobres e não
suficientes, um País com uma densi-
Há quase uma década, Stephen Em- aumentou 500% e ainda assim a fome é dade populacional cada vez mais baixa,
mott, no seu livro Dez Mil Milhões – um flagelo. Tudo se pode resumir numa e como resultado desta triste equação
Enfrentando o Nosso Futuro, escreveu só palavra: consumo. Consumir cada vez gastamos aquilo a que temos direito
preto no branco sobre a causa de todas mais, com uma enorme intensidade, é em pouco mais de cinco meses. Vamos
as coisas: “Somos muitos.” Ou seja, a um desígnio do nosso modo de vida, estar sete meses a viver do que não te-
explosão demográfica tudo explica. O incapaz de suportar o conceito de “sus- mos e que pertence a outros; gastamos
aumento da população é o único sentido tentabilidade”. A receita, conhecida por e não produzimos. Como é possível
da História da Humanidade e é o que transição energética, que nos soa bem e tal absurdo? Diga-se que, no geral, o
provoca o efeito “alteração climática”. é incontornável, é uma mudança radical desempenho da Europa é miserável.
Afinal, com esta realidade, a sustenta- e abrupta com consequências imprevi- Apesar de tudo, a China atinge o Earth
bilidade, de que há décadas todos fala- síveis; a vida como não a conhecemos. Overshoot Day (7 de junho) bem mais
mos, é insustentável. A agonia da Terra, Há décadas que as consequências são tarde do que a generalidade dos países
devido ao esgotamento de recursos e conhecidas e estão previstas. Os 14 mil europeus; quem diria? O próprio Brasil,
aos significativos impactos irreversí- artigos científicos que sustentam o mais tão questionado pela Amazónia, um
veis nos seus ciclos naturais, é grande recente relatório do IPCC não deixam verdadeiro produtor alimentar do pla-
e real. Como se isto não bastasse, a dúvidas: o difícil é encontrar um só ar- neta, atinge a sobrecarga a 27 de julho.
verdade não é assumida; pelo contrário, tigo que aponte um caminho, um con- Mesmo os mais otimistas, ou dis-
é rodeada por “soluções” que não con- junto de soluções que evite o acidente traídos, deram-se conta de que, nos
duzem a qualquer mudança; fica tudo e que nos situe na tal transição. A China últimos meses, um pouco por todo lado,
na mesma, porque é o essencial para o retirou centenas de milhões de pessoas ocorreram algumas pequenas amostras
modelo vigente. É assim que chegamos da pobreza, essencialmente através do que acontecerá: contingências na-
à Glasgow Climate, a 26ª conferência. de centrais de carvão a baixo custo. É turais nunca antes vistas, de Natureza
É óbvio que Glasgow não vai ser sig- esta tecnologia que anda a exportar imprevisível (o quê? quando? e onde?),
nificativamente diferente, não pode ser pelo mundo, nas zonas mais pobres de cada vez mais frequentes e com efeito
diferente. Alguns cientistas começam a África e da Ásia. Entre 2000 e 2018, a mais significativo. Isto é, ocorrências a
admitir que uma mudança significativa China triplicou a quantidade de carvão roçar o inimaginável. Como sabemos,
do nosso modo de vida não é possível e consumido. Na verdade, apesar de tudo Portugal tem uma localização, geo-
teria consequências ainda mais catastró- o que se propagandeia, os combustíveis gráfica, de grande exposição atlântica
ficas. Assim, o enorme desafio que te- fósseis fornecem cerca de dois terços da e tectónica particularmente sensível.
mos em mãos não tem solução única ou eletricidade mundial, contra os 7% das Estamos numa encruzilhada civi-
simples e exige, no mínimo, a verdade. renováveis. Dizem-nos que mudanças lizacional e temos de responder com
Sabemos que a Terra é finita e que to- de políticas, designadamente através de seriedade: como atingir a neutralidade
dos temos direito a recursos e a alimen- taxas verdes mais consistentes e fortes, carbónica garantindo energia fiável
tos. Em 50 anos, a produção de carne nos conduzirão à transição energética; disponível a toda a hora? visao@visao.pt

36 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


MEO.PT

MOTO GP | PORTIMÃO
1 O QUE SIGNIFICA COP26?
COP é a sigla inglesa para Con-
ference of Parties – Conferência das
Partes. A designação oficial é Confe-
rência das Nações Unidas sobre Al-
terações Climáticas. Esta é a 26ª vez
que os Estados-membros se reúnem
numa COP. A primeira conferên-
cia realizou-se em 1995, em Berlim,
mas foi semeada em 1992, durante a
Cimeira da Terra, no Rio de Janeiro,
quando se criou a Convenção-Quadro
das Nações Unidas para as Altera-
ções Climáticas, no âmbito da qual se
reúnem as “partes”, em conferências
(quase sempre) anuais.

2 SE SÃO ANUAIS, ESTA NÃO


DEVERIA SER A COP27?
Houve duas exceções à regra de uma
conferência por ano, embora só uma
tenha baralhado as contas: a COP26
deveria ter sido realizada em 2020,
mas, pelas razões que bem conhece-
mos e que impossibilitavam reuniões
presenciais, foi adiada para este ano.
Em 2001, por outro lado, deram-
-se duas COP, a primeira em Bona,
Alemanha, em julho, e a segunda em
Marraquexe, mais perto do final do
ano. A conferência de Bona, no en-
tanto, foi apenas uma continuação
das negociações (falhadas) da COP
anterior, a 6, em Haia, na Holanda,
que deveria ter afinado alguns aspe-
tos técnicos do Protocolo de Quioto,
o primeiro acordo internacional de
redução de emissões de gases com Bush, na altura um “cético” das alte- emissor mundial de gases com efeito
efeito de estufa (definido na cidade rações climáticas (por oposição ao seu de estufa em valores absolutos (foi,
japonesa durante a COP3). adversário, Al Gore, que acabaria por entretanto, ultrapassado pela China).
protagonizar Uma Verdade Incon- A decisão de Bush acabou por ser
3 POR QUE RAZÃO AS
NEGOCIAÇÕES FALHARAM?
veniente, o documentário que pôs o
aquecimento global na agenda mediá-
uma sentença de morte do Protocolo
de Quioto, que avançou na mesma
Os EUA quiseram impor um cálculo tica). Chegado à Casa Branca, o repu- mas com muito menos peso do que
para o sequestro de carbono das suas blicano retirou os EUA do Protocolo se pretendia. A COP de Bona acaba-
florestas que, na prática, compensa- de Quioto. O país era, então, o maior ria por ser a primeira em que os EUA
va uma parte muito substancial das entraram apenas como observador.
emissões americanas. Outros paí-
ses desenvolvidos não aceitaram a
“batota”, e a COP6, de Haia, fechou
5 ONDE E QUANDO VAI SER A
COP26?
sem acordo. (A Rússia também ne-
gociou durante anos a capacidade de O RESULTADO DA O Reino Unido, enquanto país organi-
zador, decidiu que a Conferência das
as próprias – e imensas – florestas
absorverem as emissões nacionais, CIMEIRA DO CLIMA Partes seria em Glasgow, Escócia, no
SEC (Scottish Event Campus) Centre,
antes de finalmente ratificar Quioto.)
Na prática, a COP de Bona foi apenas
É UMA INCÓGNITA. de 31 de outubro a 12 de novembro. O
governo de Boris Johnson tem tido o
a continuação da de Haia. JÁ HOUVE MAIS apoio de Itália, país parceiro na orga-
nização pré-COP. Milão foi palco, em
4 NA SEGUNDA PARTE DA
COP6, EM BONA, FICOU
COP FALHADAS setembro, da Youth4Climate: Driving

DO QUE
Ambition (Juventude pelo Clima: Fo-
TUDO RESOLVIDO? mentando a Ambição), evento com a

BEM-SUCEDIDAS
Pelo contrário. Os EUA tinham aca- participação de jovens delegados que
bado de eleger o Presidente George serviu de preparação para a COP26.

40 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Glasgow no centro do
furacão São esperados
milhares de ativistas,
que deverão organizar
manifestações à porta da
cimeira e por toda a cidade

português e que conta com o carvão


como um dos pilares do crescimento
económico.

7 ENTÃO, É UMA
CONFERÊNCIA FECHADA,
SÓ PARA POLÍTICOS?
Não. As COP, sobretudo as mais de-
cisivas (como esta), contam sempre
com milhares de participantes de
organizações não governamentais,
empresas e grupos de cidadãos que
organizam exposições e palestras no
recinto da iniciativa. A ideia é dar a
conhecer problemas relacionados com
as alterações climáticas e/ou apresen-
tar soluções, tentando pressionar os
delegados e influenciando a opinião
pública, através dos (muitos) jornalistas
presentes. Por exemplo, é natural que
haja “banquinhas” de um país como
Vanuatu, a mostrar a quem passa por
ali os problemas com que o pequeno
Estado insular se está a debater face
ao aumento do nível médio do mar.

8 PORTANTO, POSSO
ASSISTIR OU PARTICIPAR?
Depende. As negociações propria-
6 QUEM VAI À COP?
As Conferências das Partes são
mente ditas são à porta fechada. Só
os delegados e representantes das
constituídas por longas reuniões (fe- “partes” (governos e blocos, como a
chadas ao público) entre representan- UE) têm acesso. O público em geral,
tes dos vários países. Para esta COP, por seu lado, não tem sequer a pos-
estão registados mais de 20 mil dele- sibilidade de inscrição que dá acesso
gados que vão negociar uma miríade ao interior do recinto, mas muitas
de pormenores relacionada com a organizações não-governamentais e
mitigação e a adaptação às alterações intergovernamentais, com estatuto
climáticas. A maior parte dos países de entidades observadoras, podem
far-se-á representar também, nos A GRANDE INCÓGNITA inscrever mandatários. A lista tem
primeiros dias, pelos respetivos chefes Xi Jinping deu a entender que
cerca de 2 500 instituições. De Por-
de Estado ou primeiros-ministros (e não vai a Glasgow – um péssimo tugal, só constam duas: a Euronatura
nos últimos dias pelos ministros do sinal para o sucesso da cimeira, e a Faculdade Nova da Universida-
Ambiente), o que poderá dar um fôle- mas, se à última hora decidir ir, de de Lisboa. Os jornalistas podem
go extra às ambições da COP. É quase será um balão de oxigénio para igualmente pedir acreditações, mas os
certo que Joe Biden estará presente. as negociações. O Presidente novos pedidos fecharam no dia 8, por
Xi Jinping, no entanto, ainda não deu chinês não sai do país há quase ter sido atingido o limite de espaço.
qualquer indicação nesse sentido, dois anos, devido sobretudo à
apesar de a China se mostrar arrojada
nas suas metas climáticas – anunciou,
Covid-19 (a China tem restrições
muito apertadas para os seus
9 NESSE CASO, SEM PASSE
PARA O SEC CENTRE, NÃO
por exemplo, a neutralidade carbónica cidadãos), pelo que a sua VALE A PENA IR A GLASGOW?
para 2060 (dez anos depois da União participação colocaria a COP26 Vale, sim. Passa-se muita coisa no
Europeia), o que, a verificar-se, seria ainda mais no centro da política exterior. Aliás, é cá fora que vai estar
notável num país com um PIB per ca- mundial. Os olhos estão todos a maior animação: são esperados mi-
pita que é ainda menos de metade do voltados para Pequim. lhares de ativistas que deverão organi-

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 41


zar grandes manifestações pelo clima “Blá-blá-blá” Na zir as emissões globais de gases com
à porta do SEC Centre e por toda a Youth4Climate, em Milão, efeito de estufa em 12% até 2030, face
cidade. É sempre assim nas COP, e Greta Thunberg resumiu desta a 2010. No entanto, para que o planeta
mais ainda nas COP fundamentais, forma as promessas dos não aqueça mais de 1,5 ºC, a redução
como esta. Outra coisa habitual é líderes para a COP26 teria de ser de 45%. Mesmo para o
haver episódios de violência, seja da teto de 2 ºC, as emissões teriam de
parte de organizações radicais (como a cair 25%. Com as propostas em cima
Extinction Rebellion, que se encontra um princípio em si, não um fim. Fi- da mesa, o mundo encaminha-se para
mesmo na lista de organizações terro- cou definido que, a cada cinco anos, um aumento de temperatura de 2,7 ºC
ristas da unidade de contraterrorismo os Estados têm de apresentar planos (um relatório anterior apontava mes-
do Reino Unido) seja da parte de pro- de descarbonização atualizados, e mo para 3,2 ºC). E estamos a falar de
vocadores “profissionais”. O governo mais ambiciosos, que garantam que processos de intenções – nada garante
britânico destacou dez mil polícias a meta é cumprida. Estes planos são que os países efetivamente cumpram
para patrulharem diariamente a zona. chamados NDC – Nationally Deter- à risca os planos que entregaram.
mined Contributions (contribuições
10 HÁ OUTRA FORMA DE VER
O QUE SE PASSA NA COP?
determinadas nacionalmente).
13 DOIS GRAUS, 1,5 ºC...
A DIFERENÇA É ASSIM TÃO
Sim. Através do UNFCCC Climate
Action Studio, o canal de YouTube da
12 E ESTAMOS NO BOM
CAMINHO?
GRANDE?
Em termos de impacto, é uma enorme
Convenção-Quadro. O site oficial do Longe disso. Num relatório das Na- diferença. No Sexto Relatório de Ava-
organismo (unfccc.int) irá igualmente ções Unidas, tornado público no mês liação do Painel Intergovernamental
publicar, todos os dias, gravações dos passado, calcula-se que as NDC sub- para as Alterações Climáticas (IPCC),
eventos paralelos e disponibilizar press metidas são suficientes para se redu- que saiu em agosto, concluía-se que,
releases. Tendo em conta a falta de alo- apesar de um aumento da temperatura
jamento em Glasgow e arredores, é a média global de 1,5 ºC acarretar efeitos
única opção para muita gente. Na cida- profundos nos extremos climáticos,
de escocesa, há proprietários de casas
a pedir o equivalente a 25 mil euros COM OS PLANOS seria ainda assim uma fração do que
aconteceria com um aumento de 2 ºC.
para as duas semanas da conferência.
CLIMÁTICOS E, recorde-se, com os planos de redu-
ção de emissões anunciados, estamos
11 O ACORDO DE PARIS FOI
DEFINIDO EM 2015. PARA NA MESA, AS mais próximos de atingir os 3 ºC, no
final do século, o que constituiria um
QUE PRECISAMOS DE MAIS
CONFERÊNCIAS DO CLIMA?
EMISSÕES CAEM desastre. Neste momento, a tempe-
ratura estará 1,1 ºC a 1,2 ºC acima da
Na COP21, em Paris, os países signa-
tários do Acordo comprometeram-se
12% ATÉ 2030. média do período pré-industrial.

a implementar medidas de redução PARA A META 14 A QUE PAÍSES DEVEMOS


ESTAR ATENTOS, NAS
DE 1,5 ºC, TERIAM
de emissões, por forma a limitar o
aumento da temperatura média a CONVERSAÇÕES?

DE CAIR 45%
um máximo de 2 ºC, com o objetivo Os olhos vão estar (quase) todos vol-
ótimo de 1,5 ºC. Mas o documento é tados para a China, de longe o maior

42 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


emissor de gases com efeito de estufa
em termos absolutos, sendo respon-
17 RECUARAM NOS SEUS
COMPROMISSOS NOS
A História não nos dá motivos para
otimismos. Em 2009, Copenhaga foi
sável por mais de um quarto do total ÚLTIMOS QUATRO ANOS? palco da COP15, que deveria ter sido
(27%); seguem-se os EUA, com 11%, e Ao nível federal, sim, mas não ao uma das mais decisivas de sempre.
a Índia, com 7%. Apesar de Xi Jinping nível estatal. Vários estados america- Esperava-se que dali saísse um acordo
ter anunciado, no ano passado, até nos continuaram a aprovar medidas global de redução de emissões, que
para alguma surpresa geral, que o de descarbonização ambiciosas, com substituísse o Protocolo de Quioto. A
país atingiria a neutralidade carbóni- grandes investimentos em energias euforia era grande, em parte porque
ca em 2060, com o pico de emissões renováveis e restrições aos combus- Barack Obama tinha acabado de che-
a acontecer em 2030, a verdade é que tíveis fósseis. A Califórnia, o estado gar à Casa Branca. Em vez disso, num
o governo chinês ainda não entregou mais rico e populoso (e um dos mais dos últimos dias da conferência, o
a sua NDC. A tensão geopolítica com afetados pelas alterações climáticas, Presidente americano fechou-se numa
os EUA, o Reino Unido e a Austrália, sobretudo devido ao aumento do risco sala com líderes da China, do Brasil,
devido à escalada do armamento e às de incêndio), tem sido particularmen- da Índia e da África do Sul, e sozinhos
disputas territoriais no mar da China, te proativa. Além disso, Joe Biden decidiram os termos do acordo.
não ajuda a aliviar o clima – em todas reverteu várias políticas “sujas” de
as aceções da palavra. Trump, não só fazendo o país regres-
sar ao Acordo de Paris mas também
19 PELO MENOS FOI UM BOM
ACORDO?
15 TEMOS DE NOS PREOCUPAR
COM MAIS ALGUM?
anulando, por exemplo, os projetos
de exploração de combustíveis fósseis
Uma mão-cheia de nada. Não só não
foi um acordo vinculativo, o que mui-
Sim. Vários países apresentaram NDC em reservas naturais e a construção tos exigiam na altura, como se limitou
que não acrescentam nada aos an- do colossal oleoduto de Keystone XL. a admitir que as alterações climáticas
teriores, sendo que alguns dão até eram um desafio para o futuro e que
passos atrás, com a justificação da
crise provocada pela pandemia. O
18 COM TANTA PRESSÃO SOBRE
OS LÍDERES MUNDIAIS,
as emissões teriam de ser reduzidas.
Além de ser um documento com ter-
Brasil, a Arábia Saudita e a Rússia são E COM O PRESIDENTE DO PAÍS mos vagos, sem metas concretas (com
os pontas-de-lança deste grupo, mas MAIS PODEROSO DO MUNDO a desculpa da crise financeira de 2008),
têm ainda a companhia da Austrália, ALINHADO COM A NECESSIDADE acabou por ser decidido unilateral-
liderada por um governo conservador, DE SE AGIR, ESTA COP SÓ PODE mente por aquele pequeno grupo de
pouco sensível às questões do clima (a SER UM SUCESSO, CERTO? países, um faux pas diplomático que
que não será alheio o facto de o país ser
um grande exportador de carvão e gás).
Scott Morrison, o primeiro-ministro
australiano, tinha dado a entender

XV BIENAL
que não iria a Glasgow, mas a meio de
outubro cedeu à pressão e anunciou
a sua presença. Finalmente, a Índia
continua a ser uma incógnita: o ter-
ceiro maior emissor mundial parecia,
em 2019, preparado para anunciar uma INTERNACIONAL
data para a neutralidade carbónica,
quando a pandemia se abateu e levou CERÂMICA ARTÍSTICA
ao adiamento da promessa. AVEIRO
16 E OS EUA?
Agora, estão aparentemente
comprometidos com a descarboniza-
ção: Joe Biden tem dado sinais muito
sérios nesse sentido, sendo que o mais
relevante é a promessa de cortar para
metade as emissões do país até ao fim
desta década. Mas os americanos já nos
habituaram a dar dois passos à frente e
um passo e meio para trás, nestes as-
suntos do clima, o que acaba por levar AVEIRO MUSEUMS
ao fracasso dos acordos internacionais.
Em 2001, George W. Bush retirou o
país do Protocolo de Quioto (o primei-
ro grande acordo global de combate
às alterações climáticas), que havia
sido assinado pelo seu antecessor, Bill
Clinton. Em 2016, foi a vez de Donald 30.10.2021 > 30.01.2022
Trump rasgar o Acordo de Paris.
Há um
futuro para
abastecer
Um futuro mais verde. Mais sustentável. Um futuro movido a inovação
com energias limpas e recursos que aceleram a transição energética,
como o hidrogénio. É esse futuro que estamos a construir na Galp.
Descubra o caminho que estamos a fazer em galp.com
João Pedro Matos Fernandes
É a investir na
sustentabilidade
que vamos fazer
a economia
crescer
O ministro do Ambiente acredita que a
atual crise energética deve ser um aviso
para se avançar mais na descarbonização
e, com isso, até se criar um novo modelo
de desenvolvimento económico, capaz de
gerar mais riqueza e empregos. Quanto às
alterações climáticas, avisa que Portugal é
um dos países mais ameaçados na Europa.
“Perdemos 13 quilómetros quadrados de
praias nos últimos 30 anos”, lembra
R U I TAVA R E S G U E D E S E L U Í S R I B E I R O MARCOS BORGA
C
Com o clima a aquecer, vamos continuar
a ter fogos. “O que não podemos é ter
grandes incêndios, e para isso temos de
transformar a paisagem”, diz João Pedro
Matos Fernandes, 54 anos, ministro
do Ambiente e da Ação Climática, em
vésperas de partir para Glasgow, onde vai
participar na COP26, a Cimeira do Clima
em que se vai tentar alcançar um acordo
num plano para se reduzir as emissões de
gases com efeito de estufa.
Em vésperas da cimeira de Glasgow,
o mundo está mergulhado numa
crise energética que dá o retrato
exato do quanto somos dependentes
dos combustíveis fósseis. Será
que na COP26, mais uma vez,
os líderes mundiais vão adiar as
grandes decisões para o futuro, por
estarem apenas preocupados com os
problemas do presente?
Não, porque aquilo que está a criar esta
crise energética é a dependência que
o mundo ainda tem dos combustíveis
fósseis. No caso de países como Portugal,
isso é ainda mais evidente, porque não
só não temos nem queremos ter nem
explorar qualquer combustível fóssil,
até porque temos água, sol e vento para
podermos produzir 100% da eletricidade
que consumimos. Já produzimos 60%,
e é também por isso que temos hoje o
terceiro preço mais baixo da eletricidade
no mercado grossista da Europa. Eu sei
que o preço é alto, mas é sempre só isso
que é noticiado. Não é noticiado que
Portugal, precisamente por já ter esta
penetração de renováveis, tem amortecido
o preço da eletricidade.
Não acredita, então, que os altos
preços da energia no mercado
internacional sejam um entrave a uma
COP bem-sucedida?
Antes pelo contrário. Quanto maior for
a percentagem de eletricidade produzida
a partir de fontes renováveis, mais baixo
será o preço da eletricidade. Tiradas as
amortizações, qual é o preço da produção
de eletricidade a partir do solar ou do
vento? Zero! Não tem custo algum.
Mas estamos a ver alguns países a
voltar ao carvão em força. A China
anunciou-o...
Mas isso é devido ao preço do gás. Não
tem nada que ver com a descarbonização.
E o preço do carvão já está igualmente a
bater recordes. Também é mentira, como
já nos tentaram vender, que isto [o preço
da energia] cresceu muito por causa da
taxa de carbono. É falso: a taxa de carbono
representa 10% a 15% do aumento. É

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 47


Portugal pode ser
neutro em carbono
antes de 2050?
financiamento, e este vai ser o grande Copenhaga foi um flop… E Quioto
Pode. Mas acho que tema, para que possamos apoiar foi um acordo entre os ricos. As
não devemos andar quem mais necessita. Sabemos, conclusões de Copenhaga são do
obviamente, que há países que terão mais básico paternalismo, com os
sempre a mudar as uma muito maior responsabilidade ricos a dizerem aos outros o que
nossas metas. Nós já financeira do que nós, e o regresso estes deviam fazer. Por isso é que
dos EUA ao Acordo de Paris é... Paris é, de facto, tão excecional. O
reduzimos 26% das … Uma boa notícia? Laurent Fabius [presidente da COP
nossas emissões e Quando o sr. Trump saiu do Acordo de Paris] ficará para a História como
de Paris, eu disse que a democracia o grande artífice do Acordo, que
temos de reduzi-las americana é muito mais do que a nasceu daquilo que é o entendimento
em 85% até 2050. sua administração, e, aliás, alguns dos povos e a evidência do lado
estados e cidades americanas sempre da Ciência de que o planeta está a
Isto é um esforço se mantiveram no Acordo de Paris... aquecer, mas o papel da diplomacia
enorme Mas a parte do financiamento cabe francesa merece todo o crédito.
ao país, e aqui o regresso dos EUA E acredita que a Europa vai
é muito significativo, porque de conseguir falar a uma só voz ou
outra forma ia ser mesmo complexo alguns países do Leste Europeu
encontrar as verbas necessárias. poderão...
Não teme que a tensão crescente De uma forma muito seca: sim, a
entre a China e os EUA possa Europa vai falar a uma só voz e já
verdade que a taxa de carbono ter influência negativa nas tirou as suas conclusões.
no início deste ano andava pelos negociações? Resumidamente, o que será um
€25 e, no outro dia, ultrapassou Nenhum de nós é ingénuo. Os sucesso para esta COP26 e o que
os €60, mas façamos uma média acordos em torno do clima são será um fracasso?
de €45-€50 por tonelada de CO2. também reflexo das boas relações Um sucesso será a conclusão do
Ora, quando se produz eletricidade que os países têm nesses mesmos livro de regras no que diz respeito às
a partir do solar, quanto se paga momentos. E, nesse aspeto, ações voluntárias, à transparência...
de taxa de carbono? Zero. Vento? Paris foi de facto um momento Será certamente um acordo em torno
Zero. Barragem? Zero. Portanto, excecional. Mas eu não sei o que daquilo que são as necessidades de
o crescimento da taxa de carbono mais pode ser pedido no sentido financiamento, reconhecendo que
é mais uma razão para todos da responsabilização dos Estados. essas necessidades não podem ser só
investirmos na energia renovável. Não sei que mais evidências são destinadas à mitigação mas também
Voltando à COP26. Parte para a necessárias. A Turquia ratificou o têm de incluir, e sobremaneira, a
cimeira como um otimista irritante Acordo de Paris depois dos trágicos adaptação. E é garantir que todos
ou como um pessimista realista? incêndios deste verão. É óbvio que o os países vão entregar as suas
Parto com a consciência da ideal é que não fosse preciso haver NDC, o seu compromisso nacional,
emergência de ter de correr bem. incêndios para que isso acontecesse, significativamente mais exigente do
A emergência climática é uma mas a escatologia também dá, às que as que apresentaram em Paris.
evidência e, por isso, os países têm, vezes, um empurrão na direção certa. O que os países europeus fizeram
uma vez por todas, de dar o passo Xi Jinping ainda não confirmou a antes de Paris, e essa foi a minha
seguinte a Paris. E este é o momento. sua presença na COP. Se a China estreia como ministro do Ambiente,
O Acordo de Paris é claro quando não for representada pelo seu foi uma luta sem quartel para que a
diz que, a cada cinco anos, todos Presidente, isso é logo à partida União Europeia se comprometesse
países, ou as partes, têm de ser mais uma derrota para a cimeira? com uma redução de 40% das
ambiciosos. É com preocupação que Logo à partida não é. Estamos a emissões até 2030. E agora, tendo
eu confesso que, olhando para todas falar de um acordo multilateral, e a havido de facto muita discussão,
as partes, só 119 é que já entregaram China tem os seus compromissos de a luta foi menor, sendo nós muito
a sua nova NDC [Contribuições redução de emissões. Se é indiferente mais ambiciosos: a nossa NDC
Determinadas Nacionalmente – o Presidente da China estar ou passa de uma redução de 40% de
planos de redução de emissões] e não estar? Não, não é. É muito emissões para pelo menos 55% em
75 ainda não o fizeram. Isto não é importante que ele esteja, como 2030. É esta expectativa que temos
um bom começo. E dou-lhe três é importante que todos os líderes relativamente aos outros países, até
exemplos de países que ainda não mundiais estejam para dar o seu porque: todos nos lembramos de
a entregaram: África do Sul, Índia e compromisso. que em Paris ficou acordada uma
China. São três enormes economias. Na COP de Copenhaga, em 2009, meta máxima de 2 ºC e uma ideal de
Isso não é um bom presságio. Agora, Barack Obama apareceu no 1,5 ºC. Porém, se somarmos tudo o
nós temos de acabar rapidamente final e acabou por perturbar as que está em todos os compromissos
o livro de regras que resulta de conversações, ao fazer acordos voluntários, o planeta vai acabar por
Paris, e é óbvio que, por exemplo, bilaterais, nomeadamente com a aquecer mais de 3 °C.
os mecanismos de transparência China, deixando a UE de fora... Foi na presidência portuguesa
têm de ser iguais para todos os O papel do Presidente Obama foi da UE que se aprovou a Lei
países. Depois, temos a dimensão do essencial no Acordo de Paris. Mas do Clima, que oficializa a

48 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


neutralidade climática do bloco que foi um absoluto sucesso, não nós transformámos o Roteiro para
europeu em 2050 (e uma redução é a minha linguagem, mas foi um Neutralidade Carbónica em três
de 55% em 2030). Considera que sucesso muito grande. Somos o fatias de dez anos, nomeadamente
esta foi uma vitória absoluta primeiro continente no mundo a através do PNEC, o Plano Nacional
ou teria sido melhor se todos comprometer-se com a neutralidade de Energia e Clima para 2030,
os Estados-membros ficassem carbónica em 2050. É um fator de dissemos coisas como esta: nós
comprometidos individualmente orgulho. queremos chegar a 2030 com 8 a 9
com as metas, em vez de ser um Portugal foi o primeiro país do gigawatts de eletricidade produzida a
objetivo coletivo? mundo a anunciar a neutralidade
A Lei do Clima é uma lei da carbónica para 2050. Entretanto,
Comissão Europeia e, portanto, já temos muita companhia, e
tem de haver aqui um objetivo vários vão mais longe: Áustria
solidário. Por isso, só faz sentido e Islândia apontam para 2040;
que a lei se aplique ao conjunto dos Finlândia, 2035; Noruega, 2030.
países, os quais têm funcionado Não conseguimos ser mais
solidariamente com os 55% de ambiciosos? Infelizmente,
emissões. Isso quer dizer que há Ser neutro em carbono na Finlândia o risco de cheias
países que vão ter uma redução de é muito mais simples do que em
emissões superior a esse valor e Portugal. Veja-se a dimensão florestal
é cada vez maior.
outros nem tanto. Mas a discussão da Finlândia [as florestas atuam O facto de chover
teve mais que ver com a neutralidade como sumidouro de CO2]. Não há
para 2050: se devia ser da União comparação prática...
menos em Portugal
Europeia ou de cada um dos países. Mas podemos comparar-nos com não reduz
E o mandato que tínhamos do a Áustria...
Conselho Europeu era muito claro: ... Agora, podemos é perguntar se
em nada o risco
devia ser da União Europeia, numa Portugal pode ser neutro em carbono de existência
perspetiva de solidariedade, visto antes de 2050? Pode. Mas acho que
que há países para os quais isso é não devemos andar sempre a mudar
de cheias, porque
extraordinariamente difícil, como as nossas metas. Nós já reduzimos a água, quando
Malta, Chipre... Mas vamos ter, 26% das nossas emissões e temos
em conjunto, emissões negativas de reduzi-las em 85% até 2050.
vem, vem toda
a partir de 2050. Custa-me dizer Isto é um esforço enorme. Quando de uma vez
28 OUTUBRO 2021 VISÃO 49
Quando se produz
eletricidade a
partir do solar,
Mas até 2050 vai haver certamente. para ajudar as famílias com
quanto se paga de Pensámos em aviões elétricos? Não. menores rendimentos a trocar de
taxa de carbono? Pensámos em aviões mais eficientes, carro, uma vez que são elas as que
mas os elétricos vão aparecer, se têm mais dificuldades em pagar o
Zero. Vento? calhar, em menos de dez anos. A combustível aos preços atuais?
Zero. Barragem? tecnologia vai dar-nos uma ajuda Foi coisa em que nunca pensei.
para conseguirmos antecipar as Quem fixa o preço é o mercado,
Zero. Portanto, o metas de descarbonização. e nós estamos a apoiar a compra
crescimento da taxa Está preparado para dizer aos desse mesmo veículo. Parece muito
portugueses que os combustíveis complicado poder fazer isso, porque
de carbono é mais definitivamente não podem o veículo vai sempre custar o mesmo.
uma razão para baixar, por causa dos nossos Podia ser feito através de um
compromissos climáticos? cheque-veículo elétrico para
todos investirmos Não, nem isso faz sentido. O preço essas famílias...
na energia dos combustíveis é ditado no Nós estamos a apoiar a 100% a
mercado global, que obviamente eficiência energética nos edifícios.
renovável tem mais que ver com a oferta do É aí que nós sentimos que devemos
que com a procura. Não me atrevo acudir. Ter um veículo, com todo o
a fazer previsões sobre o preço respeito, por muito importante que
dos combustíveis. Eu insisto no possa ser para muitas pessoas, é uma
seguinte: quanto mais dependermos coisa menos emergente do que o
partir de fonte solar; há três semanas, da eletricidade e quanto mais conforto dentro de uma casa.
a ERSE [Entidade Reguladora dos eletricidade provir de fontes Portugal está exposto às
Serviços Energéticos], de forma renováveis, mais seremos capazes de alterações climáticas em três
completamente independente combater a crise da energia. domínios principais: erosão
(confesso só soube pelo jornal), Esta não devia, então, ser a costeira, risco de incêndio, devido
disse que, com o que está em curso altura de lançar programas mais às ondas de calor, e falta de água.
e licenciado, vamos atingir esse ambiciosos para, por exemplo, O que está a ser feito para se
número em 2025. Quando fizemos apoiar a compra de veículos minimizar estes impactos – até
o roteiro, dissemos que a refinaria elétricos? para não se repetir, por exemplo,
de Sines tem de estar encerrada O que são programas mais o que vimos na Alemanha,
antes de 2040, e a GALP entregou- ambiciosos? Neste momento, este ano, com inundações que
nos um documento técnico em que €135 milhões estão a ser pagos no pareciam impossíveis no país
dizia ser impossível. Ora, fechou em programa dos edifícios eficientes, mais desenvolvido da Europa?
abril de 2021... Dissemos também para a melhoria da eficiência Portugal está mais exposto do que
que deixaríamos de ter produção de energética das habitações; €160 a média europeia às alterações
eletricidade a carvão, em Portugal, a milhões estão a começar a ser climáticas. Por um lado, por causa
partir de 2023. Enganámo-nos: foi pagos para o combate à pobreza da seca no Sul do País e, por outro,
em 2021. A maior central, a de Sines, energética, para que cem mil famílias pela subida do nível médio das
já está fechada e a do Pego fecha possam fazer os seus investimentos águas do mar. Portugal perdeu 13
no dia 30 de novembro. As coisas e melhorar a eficiência energética quilómetros quadrados de praias,
estão a acontecer mais depressa. das suas casas, para terem mais nos últimos 30 anos! É um número
E eu quero acreditar que, quando conforto e uma fatura energética impressionante. Não vou falar dos
se fizer a revisão do Roteiro para a mais baixa. Nós temos posto, a planos de contingência da Proteção
Neutralidade Carbónica, dez anos cada ano, cinco milhões de euros Civil, mas sei o que devemos fazer
depois de 2018, concluiremos que do Fundo Ambiental para o apoio para minimizar o efeito destes
antes de 2050 já seremos neutros. à aquisição de veículos elétricos. eventos: só usar soluções de base
Tem essa ambição? Eu até já disse uma coisa que vai natural. Fizemos intervenções em
A ambição é enorme. É reduzir ao contrário da pergunta (mesmo mil quilómetros de rios e ribeiras,
as nossas emissões em 85%! Isto que neste momento não seja muito que são excelentes linhas corta-fogo,
faz-se sem o esforço de todos? oportuno dizê-lo, e estou disponível só com soluções de base natural;
Não. Faz-se com um investimento para pensar melhor): os apoios não nas praias, deixámos de construir
de dois mil milhões de euros a devem crescer, porque o normal esporões e passámos a fazer recargas
mais, além do business as usual, é que se banalize a aquisição dos com areia e a reforçar os cordões
porque assim só reduziríamos as veículos elétricos. Quando cheguei dunares. E temos de ser muito
nossas emissões em 65%. Por outro a ministro, só 1% dos veículos novos rigorosos com os instrumentos
lado, quando fizemos o roteiro, só eram elétricos e, neste momento, são de gestão do território. Não pode
tivemos em conta tecnologias que 16%. haver ocupação do leito de cheia.
sabíamos maduras ou que estavam A verdade é que as pessoas que Eu sei bem o aqui-d’el-rei que
a amadurecer claramente. Pergunta: compram veículos elétricos são, foi há dois anos quando eu disse
qual é a componente de eletricidade na sua maioria, aquelas que que, paulatinamente, as casas
produzida a partir da energia das têm maiores rendimentos. Não do Baixo Mondego teriam de ser
ondas ou das marés até 2050? Zero. deveria ser criado um programa deslocalizadas... Fui acusado de não

50 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


“Quem quiser confundir a crise climática
com a crise energética
está a confundir os portugueses” é compreendido pelas pessoas.
Teme revoltas? Que as pessoas
digam que este País tão pequeno
A ERSE propôs uma descida de 3,4% das tarifas da eletricidade. está a ir depressa demais?
Como será possível esta descida? O que a sustenta? Confesso que fico satisfeito quando
É possível por duas razões. Primeiro, porque o Governo colocou o dinheiro me acusam de ir depressa demais. O
certo no sítio certo, no sentido de reduzir o défice tarifário e de contribuir meu sonho é ter um título no jornal
com a alocação das verbas disponíveis, para que se pudesse baixar o a dizer: “O ministro do Ambiente
tarifário de acesso às redes. Estas almofadas de €810 milhões têm esse defende o ambiente”. É a melhor
objetivo. Mas também conseguimos chegar aqui pela grande aposta nas acusação que me podem fazer. Esta
renováveis. Quem quiser confundir a crise climática com a crise energética transformação, que é essencial,
está a confundir os portugueses. A crise energética é consequência de o gás tem de ser feita em democracia.
estar a um preço muito elevado. A redução do preço da eletricidade decorre E fazê-lo em democracia obriga
do facto de 60% já ser produzida a partir de fontes renováveis, que são a a tomar medidas à procura da
forma mais barata de se produzir eletricidade. Foi assim que conseguimos maior aceitação popular possível.
que a eletricidade, no caso dos consumidores domésticos do mercado Mas, primeiro, temos um bom
regulado, reduzisse em 3,4%. Não sei o que vai acontecer no mercado não começo: Portugal é o país da
regulado, mas deverá acompanhar a tendência. Europa onde as pessoas têm uma
O desconto de 10 cêntimos por litro até um máximo consciência mais aguda do que são
de 50 litros por mês é o bálsamo possível para se lidar as alterações climáticas. A escatologia
com uma emergência? dos incêndios de 2017 ainda está
É, de facto, um desconto que tem o objetivo de ir à procura da justiça. muito presente na nossa memória.
No último ano, não houve nenhum aumento de impostos, mas, como o Portanto, há uma base de aceitação
combustível está mais caro, o Estado teve uma maior receita de IVA. O que popular para esta transformação.
começámos por fazer foi devolver aos portugueses o IVA cobrado a mais, Segundo, apesar de os arautos
sob a forma de ISP. Agora, reconhecendo que os combustíveis têm atingido do carvão, do petróleo e do gás
preços preocupantes, que complicam a retoma económica e dificultam a natural continuarem a dizer que
deslocação das pessoas, decidimos fazer este desconto de dez cêntimos por ambiente e economia estão de costas
litro, não só para os particulares mas também para os transportes coletivos. voltadas… Ou, enfim, o prof. Jorge
Por que razão o Governo se decidiu pelo modelo do IVAucher, Braga de Macedo dizer uma coisa
em vez de baixar o ISP? Muitos contribuintes, porventura inacreditável, que temos de ir com
os mais necessitados deste apoio, podem ter dificuldades calma nisto da descarbonização...
em lidar com as burocracias eletrónicas, nomeadamente Bom, isto é, com todo respeito, uma
com o registo no site do IVAucher. palermice. Nós não podemos crescer
Essa é uma decisão do Ministério das Finanças e foi certamente com os instrumentos do passado,
uma decisão ponderada. nem nos podemos reindustrializar
pensando na utilização de
combustíveis fósseis e de matérias-

ter coração. Mas, sim, temos mesmo respeitar os locais onde existem
de fazer recuar algumas das casas, cheias. Infelizmente, o risco de
não há volta a dar. cheias é cada vez maior. O facto de
Há planos para avançar com essas chover menos em Portugal não reduz
decisões que serão, naturalmente, em nada o risco de existência de Portugal é um
impopulares? cheias, porque a água, quando vem,
Relativamente ao Litoral, o vem toda de uma vez. país de clima
Ministério do Ambiente tem mais Há alguma situação dessas, de mediterrânico
responsabilidades. Os programas catástrofe iminente, que lhe tire
de ordenamento da orla costeira o sono?
que vai ter sempre
são executados por nós e têm, de Não. Aquilo que fizemos vai fogos. O que não
facto, a previsão de recuo de um ajudando. Todo o sistema de
conjunto de casas que não pode alerta, que não existia, ajuda-nos a
podemos é ter
estar aí. Estamos a falar de uma perceber muito melhor, com horas grandes incêndios,
pequena parcela de Aver-o-Mar, de antecedência, uma eventual
na Póvoa do Varzim, de Pedrinhas, ocorrência de cheias. Além disso, a
e para isso temos
de Cedovém, em Esposende, em articulação com Espanha nos rios de transformar a
Paranhos, em Espinho... Alguns principais é hoje feita ao segundo.
desses aglomerados têm de ser Outro problema desta transição,
paisagem. É o que
deslocalizados. O plano está face às alterações climáticas, é estamos a fazer
aprovado. Quanto às margens das que vamos reformular indústrias
ribeiras, isso é diferente: aí já cabe e criar disrupções no tecido
com os planos de
muito às autarquias, que têm de económico. Isso nem sempre paisagem em curso
28 OUTUBRO 2021 VISÃO 51
A Europa lidera o
mundo na transição
digital? Não.
Perdemos para os
primas baratas. Manifestamente, a sociedade cada vez mais exigente.
americanos e para descarbonização é essencial para se Como podemos avançar na
os chineses. Mas é criar emprego qualificado, riqueza e contabilidade carbónica das
bem-estar. Aqueles que acham que empresas – exatamente com o
o continente mais o ambiente e a economia estão de mesmo rigor com que olhamos
comprometido costas voltadas não têm razão. É a para os seus relatórios de contas?
investir na sustentabilidade que nós Tenho muito boa opinião sobre o
com o combate às vamos fazer a economia crescer, e caminho que a indústria portuguesa
alterações climáticas cumprindo com as nossas metas está e vai fazer. A indústria está
ambientais. Eu sei que às vezes consciente de que, se não reduzir
A descarbonização pede-se ao ministro do Ambiente dramaticamente as suas emissões, vai
é essencial para para não falar disto, que lhe fica ficar fora do mercado. Isso é muito
bem ser agnóstico relativamente claro. Gosto muito das conversas que
se criar emprego ao crescimento da economia. Eu tenho com os industriais, mesmo
qualificado, riqueza não sou. Eu sou pelo crescimento os daqueles setores mais pesados.
da economia. E é investindo na Aliás, as verbas para o próximo
e bem-estar. Aqueles sustentabilidade, em materiais ciclo comunitário, incluindo o PRR,
que acham que que possam durar mais tempo, destinadas à indústria são para a
noutras formas de consumir e de descarbonização e para o aumento
o ambiente e a produzir, na eletricidade a partir da economia circular. É para aí que o
economia estão de de fontes renováveis, em novas dinheiro está canalizado, e também
formas de mobilidade sustentáveis para a transição justa. É essencial
costas voltadas não que a economia vai crescer e gerar criarmos aqui condições para, como
têm razão empregos mais qualificados, numa aconteceu em Leça da Palmeira e
em Sines, apoiar do ponto de vista
social quem está nesses territórios.
Noutros sítios, na indústria com
muitas emissões mas que ainda está
pujante, temos de ser capazes de
apoiar essa mesma transformação
para, por exemplo, deixar de ter um
forno a fuelóleo e passar a ter um
elétrico.
É nessa transição que podem
nascer as crises...
Mas quem andar mais depressa é
quem vai ter vantagem. A Europa
lidera o mundo na transição digital?
Não. Perdemos para os americanos e
para os chineses. Mas é o continente
mais comprometido com o
combate às alterações climáticas,
num compromisso com o cidadão,
num compromisso político e num
compromisso legislativo. E este vai
ser mesmo o segundo driving force
de transformação da economia no
mundo.
O PNEC prevê, até 2030, uma
capacidade instalada de 7 GW
de fotovoltaico centralizado
(parques solares) e de 2 GW
descentralizado (em edifícios
e espaços urbanos). Mas já
começámos a ver casos em que os
parques chocam com os valores
naturais, florestais ou agrícolas.
Não faria sentido uma aposta
maior no descentralizado do que
no centralizado?
Aquilo que vamos ocupar se
fossem os 9 GW seria 0,15% do
território. Conseguir 2 GW nos

52 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


“Não consigo entender
por que razão a palavra lítio
se transformou num palavrão” de gestão de paisagem. Já há mais
de 50 contratadas e temos dinheiro
para pagar cerca de cem. Ora, não
Está preparado para a contestação à exploração do lítio? faz sentido pagar para plantar, só
Não consigo entender por que razão a palavra lítio se transformou num faz sentido pagar para plantar e
palavrão. Estas pessoas sabem para que serve o feldspato? Usa-se na gerir. Ou seja: todos os apoios que
cerâmica. Existem neste país 30 e tal pedreiras de feldspato exatamente serão dados para a reflorestação de
iguais às do lítio, e todos convivem bem com elas. O lítio é essencial para a árvores autóctones têm de ser feitos
digitalização e para a descarbonização. A reserva de eletricidade a partir de sempre com a perspetiva de haver
fontes renováveis faz-se essencialmente em baterias elétricas. Por isso, há de contratos a 20 anos para remunerar
facto um bem público maior na exploração do lítio. os serviços de ecossistema –
Mas quer avançar com a extração de lítio? para pagar o diferencial entre o
Este Governo não tem nenhum projeto de fomento mineiro, ao contrário rendimento bruto e aquilo que
do governo de Passos Coelho – inconsequente, mas teve. Temos um projeto é o serviço público prestado.
metalúrgico: queremos pegar no metal, refiná-lo em Portugal, fabricar as Aqui não se plantam eucaliptos,
células de baterias, reciclá-las, tirar da terra o mínimo lítio possível mas plantam-se outras árvores que
em quantidade suficiente. A Europa só tem 9% das suas matérias-primas vão ter menor rendimento, e o
críticas, ou seja: os outros 91% vêm de fora. A crise energética também diferencial tem de ser pago. Aqueles
é filha disso mesmo, desta enorme dependência. Em cada sítio vamos que são responsáveis pelo ar puro
obviamente fazer uma avaliação do impacto ambiental, e em alguns sítios que respiramos e pela água boa
não haverá exploração de lítio, porque os bens ambientais locais são mais que bebemos têm direito a uma
relevantes. O Governo não quer explorar o lítio a todo custo, mas tenho compensação financeira por esse
alguma dificuldade em ter respeito intelectual por quem, a todo o custo, não encargo.
quer que se explore. Isso eu não consigo entender. Como vê Portugal daqui a 10
Põe o lítio ao nível do sol e do vento como um bem que temos? anos? Com menos costa? Com
Ponho, sim. Mas com uma diferença: a produção da eletricidade só é feita melhor floresta?
quando há sol e vento. Portanto, é essencial haver baterias para se poder Vejo um País que vai ter mais de 80%
armazenar energia. E isso só se faz com baterias a lítio. da sua eletricidade a ser produzida
a partir de fontes renováveis;
um País muito mais eletrificado
e onde o preço da eletricidade
será mais baixo. Vejo um País que
telhados das casas, nos parques plano espetacular na manga? inverteu o paradigma do eterno
de estacionamento, nos telhados É verdade que a redução da importador de energia para passar
das indústrias é mais difícil de área ardida se faz em condições a ser um exportador de energia,
conseguir 7 GW nas solar farms. progressivamente mais difíceis, nomeadamente de renováveis e de
Todos os investimentos são bem- mas ela é essencial para sermos hidrogénio verde. Vejo um País que
vindos e necessários, e vamos ter neutros em carbono. Há países aproveitou o lítio para concentrar
um crescimento muito grande que têm sumidouros de origem cá algumas indústrias de ponta no
da produção de fotovoltaico geológica, superestáveis, mas o único domínio da mobilidade elétrica. Vejo
nos prédios, nas coberturas das sumidouro de Portugal é de origem um País que vai consumir menos
indústrias, dos armazéns e dos florestal. Precisamos de garantir água do que consome atualmente.
centros de logística. Mas é essencial a redução da área ardida para E sobretudo vejo Portugal como
termos uma capacidade concentrada assegurar a estabilidade dos nossos um país onde já houve alguma
de produção de eletricidade. Estes sumidouros. Acredito firmemente transformação de comportamentos
parques têm de ficar em algum sítio. na política para a paisagem que relativamente à mobilidade, mas não
E todos eles, quando têm mais de 50 temos definida. Portugal tem seis tanto como podemos imaginar, num
megawatts, têm avaliação de impacto milhões de hectares de floresta, cenário como o do Espaço 1999, mas
ambiental. Estive recentemente na matos e pastagens, e nós sabemos onde manifestamente a utilização do
inauguração do maior parque do que temos de intervir em 1,2 milhões, transporte coletivo e da mobilidade
País, num solo esquelético na serra ou seja em 20% dessa área, para suave vai ser muito mais intensa do
do Caldeirão: são 300 hectares com assegurarmos que conseguimos que é hoje. Mas vejo Portugal como
imensos corredores verdes no meio, ter a paisagem-mosaico que um país em que as pessoas vão
com ovelhas a fazer de sapadores, a contraria definitivamente os grandes perceber realmente o valor do capital
comer a erva... incêndios. Portugal é um país de natural. Vão perceber que esse capital
O Roteiro para a Neutralidade clima mediterrânico que vai ter natural é essencial, entre outras
Carbónica prevê uma diminuição sempre fogos. O que não podemos coisas, para combater as zoonoses
significativa da área ardida. ter é grandes incêndios, e para isso que resultam em pandemias como
Mas os cenários das alterações temos de transformar a paisagem. esta da qual ainda não saímos. A
climáticas para Portugal apontam É o que estamos a fazer com os valorização do capital natural e da
para um aumento exponencial do planos de paisagem em curso. Um biodiversidade será mesmo o grande
risco de incêndio. Está a contar já está aprovado, e dele está a nascer tema pós-Paris, pós-mitigação e
com um milagre ou tem um um conjunto de áreas integradas adaptação. visao@visao.pt

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 53


OS CINCO
MUNDOS POSSÍVEIS
O último relatório do Painel Intergovernamental para as
Alterações Climáticas analisa como evoluirá o clima, durante
este século, a partir de cinco cenários socioeconómicos possíveis.
Da melhor das hipóteses ao pior que pode acontecer, o futuro
do planeta passa por um destes caminhos
LUÍS RIBEIRO
A A meio do verão, os meios de comunicação so-
cial deram descanso à pandemia e focaram-se
num problema ainda mais difícil de resolver: o
aquecimento global. A 8 de agosto, foi tornado
público o Sexto Relatório de Avaliação do Painel
Intergovernamental para as Alterações Climáti-
cas (IPCC) – 3 949 páginas a analisar os cenários
que nos esperam –, e as manchetes, durante
alguns dias, substituíram a palavra Covid por
outra também de cinco letras.
Estes relatórios do Clima, que o IPCC pu-
blica desde 1988 (o último tinha sido em 2013),
nunca trazem grandes surpresas. O que fazem
é escrever na pedra o que estudos atrás de es-
tudos vão revelando aos poucos. Dão solidez à
melhor Ciência disponível. Neste caso, entre as
conclusões mais importantes, está a certeza de
que vários fenómenos climáticos extremos já são
hoje mais frequentes e intensos. Uma onda de
calor que dantes acontecia uma vez por década
acontece agora 2,8 vezes por década. Agora, não
no futuro. É quase três vezes mais.
Isto com uma subida de temperatura média
global de 1,09 ºC. O aumento previsto de 1,5 ºC,
se o Acordo de Paris fosse respeitado, tornariam
as secas e as ondas de calor ainda mais graves.
Mesmo nesse “menos mal” dos 1,5 ºC, muitas
mudanças serão já irreversíveis a uma escala
razoável. O degelo do Ártico é um exemplo: da-
qui a duas décadas, a região (que está a aquecer
duas a três vezes mais depressa do que a média)
já não deverá ter gelo marinho no verão. O nível
médio do mar, por seu lado, continuará durante
muitas dezenas de anos depois de atingirmos
a neutralidade carbónica. Repita-se: 1,5 ºC é a
melhor das hipóteses. Neste momento, somadas
todas as medidas climáticas prometidas pelos 192
países signatários, o mundo encaminha-se para
um aumento de temperatura de quase o dobro.
Mesmo falhando a meta, o IPCC deixa claro
que cada fração de grau centígrado conta. A
frequência e a intensidade de fenómenos ex-
tremos tendem a aumentar quanto mais alta
for a temperatura média global. 1,7 ºC pode
significar muito mais vidas perdidas em ondas
de calor ou em tempestades do que 1,6 ºC, e por
aí fora. Tempo também é dinheiro: quanto mais
cortarmos nas emissões até 2030, menor será o
custo da mitigação e da adaptação às alterações
climáticas, dizem os investigadores.
Há um lado otimista na avaliação do IPCC:
se o mundo atingir a neutralidade carbónica até
2050, podemos começar depois a fazer descer a
temperatura e chegar a 2100 com um aumento
de apenas 1,4 ºC. Essa não é, no entanto, a dire-
ção que estamos a seguir, mas não nos podemos
queixar de falta de informação. O relatório diz-
-nos exatamente quais são as consequências das
nossas escolhas, mostrando-nos os diferentes
cenários em cima da mesa, os chamados SSP
(shared socioeconomic pathways – trajetórias
socioeconómicas partilhadas). O mundo que
GETTY

nos espera é um destes cinco.


Aumento médio anual da temperatura em relação ao período 1850-1900
Com o aquecimento global, os continentes aquecem mais
do que os oceanos, e o Ártico e a Antártida mais do que os trópicos

Os possíveis cenários para 2100


+1,5 ˚C +2 ˚C +4 ˚C

Variação da temperatura em °C

FONTE Sexto Relatório de Avaliação – IPCC 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 4,5 5 5,5 6 6,5 7 INFOGRAFIA IPCC/(AR) VISÃO

1. O mal menor 2. O realismo otimista


O SSP1-1.9, o cenário mais otimista, pressupõe que todos os países levam No cenário SSP1-2.6, o mundo
1,8 oC
o caminho verde muito a sério. Implica uma mudança gradual e ininterrupta atinge a neutralidade carbónica
das economias, em que a sustentabilidade e o bem-estar humano são já depois de 2050. Ao longo
uma prioridade e o crescimento económico passa para segundo plano. O das próximas décadas, os países cooperam
ooperam
consumo é reorientado, por forma a manufatura gastar menos recursos para reduzir emissões e buscam ativamente a
e energia, com ênfase na economia circular. Mais importante ainda: descarbonização das economias, com planos
todos os países fazem uma aposta sustentada na educação e na saúde, cada vez mais ambiciosos. A população será
e as desigualdades internas e entre países são fortemente reduzidas. A igualmente de 6,9 mil milhões de pessoas no
população mundial atinge o seu pico entre 2050 e 2060, e em 2100 ronda final do século. Em 2100, as emissões já serão
os 6,9 mil milhões de pessoas. Pressupõe-se que o planeta alcance a significativamente negativas (é mais a absorção de
neutralidade carbónica em 2050. gases com efeito de estufa do que a emissão), com
Não é um cenário realista, atendendo à evolução dos acontecimentos. Num uma média de -2 gigatoneladas de CO2 por ano.
relatório do Programa Ambiental das Nações Unidas, publicado na semana Se esta for a evolução dos acontecimentos, é
passada, analisaram-se os planos energéticos atuais dos principais países atingido um aumento da temperatura média
produtores de combustíveis fósseis e concluiu-se que, em 2030, o mundo vai global de 1,5 oC até 2040, com estimativas
estar a produzir mais do dobro (110%) de gás, petróleo e carvão que deveria, mínimas e máximas de 1,2 oC e 1,8 oC; a meio
para ter uma hipótese de cumprir a meta ideal de 1,5 oC do Acordo de Paris. do século, 1,7 oC; à entrada do século XXII, essa
Mesmo o teto máximo está comprometido: os combustíveis que deverão ser subida estará entre 1,3 oC e 2,2 oC, com a melhor
extraídos e queimados, até ao fim desta década, são mais 45% do que seria estimativa calculada em 1,8 oC.
admissível para atingirmos o objetivo de 2 oC. Para lá de mais tempestades, ondas de calor
Além disso, a China, que sozinha é responsável por mais de um quarto das e secas, um aumento de temperatura desta
emissões mundiais, prometeu ser neutra em carbono a partir de 2060. magnitude (apesar de ser talvez o melhor
E esta é uma promessa com pés de barro – o país continua a aumentar, resultado a que podemos realisticamente aspirar)
todos os anos, a exploração de carvão (com uma pequena pausa em 2020, terá pesados efeitos no nível do mar. O IPCC prevê,
causada pela pandemia). neste cenário, que as águas subam entre 30 e 54
Finalmente, sublinhe-se que, mesmo neste centímetros, uma consequência problemática
cenário cor de rosa, o IPCC aponta para uma para muitas regiões do Litoral. Calcula-se que
subida da temperatura média de 1,6 oC, entre 2041 cerca de dez milhões de indivíduos seriam

1,4 oC
e 2060, antes de começar a descer (chegando afetados por inundações costeiras frequentes.
a 1,4 oC, no fim do século). Este aumento já E o mar não ficaria por aqui: mesmo com as
acarreta uma maior frequência de extremos emissões a descer, o nível das águas continuaria
climáticos, mas evita mudanças potencialmente a subir, pelo menos durante mais dois séculos,
catastróficas. ultrapassando os três metros em 2300.

Porque os cenários têm estes números?


Nos seus primeiros quatro Relatórios de Avaliação, o IPCC usava exclusivamente cenários baseados em “trajetórias de concentração
representativas” – RCP, na sigla em inglês. Essas RCP eram identificadas pelo seu forçamento radioativo: diferença entre a radiação
solar que chega à superfície da Terra e a que é devolvida, medida em watts por metro quadrado. O cenário RCP 1.9, por exemplo,
equivalia a um forçamento radioativo de 1,9 W/m2 (o que manteria o aquecimento global abaixo de 1,5 oC). O RCP 2.6 correspondia
a 2,6 W/m2, e por aí fora. A partir do Quinto Relatório de Avaliação, o IPCC passou a incluir as SSP (trajetórias socioeconómicas
partilhadas) como complemento aos RCP. Neste último relatório, é feita uma mescla das duas métricas, em que à numeração
própria das SSP (1 a 5) se acrescenta a original das RCP. Daí os cenários SSP1-1.9, SSP1-2.6, SSP2-4.5, etc.

56 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Subida média global Alteração global da temperatura
3. O meio-termo do nível do mar à superfície em relação a 1850-1900
É provavelmente o cenário mais plausível. No
SSP2-4.5, “as tendências sociais, económicas e
em 2300 Estes são os aumentos esperados,
segundo os cinco cenários do IPCC
tecnológicas não são marcadamente diferentes
dos padrões históricos”, sumariza-se num estudo ALTO IMPACTO °C CENÁRIOS
sobre as SSP, publicado em 2017 na revista As elevadas emissões podem 5
científica Global Environmental Change. As provocar uma subida SSP5-8.5
desigualdades mantêm-se em níveis semelhantes catastrófica do nível do mar
aos de hoje, e o crescimento económico estará 4
SSP3-7.0
longe de ser equitativo. Alguns países cumprem
as suas promessas de descarbonização, outros 3
falham as metas com que se comprometeram. SSP2-4.5
Os desafios ambientais são sensivelmente os METROS
mesmos de hoje. A população mundial atinge o 8 2
seu pico antes do final do século – o planeta terá SSP1-2.6
nove mil milhões de pessoas em 2100.
7 1
SSP1-1.9
O progresso é lento, mas a comunidade
internacional continua a trabalhar para melhorar Os sombreados correspondem
a sustentabilidade das economias, conseguindo CENÁRIO 0 ao intervalo de erro
6
algumas vitórias importantes, como a redução SSP5-8.5
da intensidade energética (energia gasta por
1950 2000 2020 2050 2100
unidade de riqueza) e o consumo de recursos. 5
FONTE Sexto Relatório de Avaliação – IPCC INFOGRAFIA IPCC/(AR) VISÃO
Esta é a direção que o mundo está a tomar. Num
relatório recente das Nações Unidas, conclui-se
4
que as medidas de redução de emissões que
os países já apresentaram levam-nos a um
aumento médio da temperatura global de 2,7oC
(uma estimativa otimista – há cálculos de outras
3 Quanto mais se sabe...
CENÁRIO
entidades que apontam para cerca de 3 oC).
Com este aquecimento, o Ártico já não terá gelo
SSP1-2.6 2 A cada novo relatório, com a evolução
da Ciência, o IPCC tem conseguido
marinho no verão. O degelo dos glaciares da 1,5 melhorar os modelos, dando resultados
Gronelândia poderá enfraquecer a Corrente do
1 cada vez mais rigorosos e melhorando a
Golfo, o que teria implicações profundas no clima
0,5
compreensão da sensibilidade climática.
da Europa. Os fenómenos climáticos extremos
Este é talvez o maior salto qualitativo
serão muitíssimo mais frequentes e intensos, com 0 desta última avaliação. A sensibilidade
as secas e as ondas de calor a porem em causa a FONTE Sexto Relatório de Avaliação – IPCC climática diz-nos qual o aumento estimado
segurança alimentar de milhares de milhões de INFOGRAFIA IPCC/(AR) VISÃO
de temperatura com uma determinada
pessoas. Nas vésperas da COP26, o secretário-
concentração de CO2 na atmosfera. Neste
geral das Nações Unidas, António Guterres,
caso, o objetivo é saber a que aumento
apelidou de “catastrófico” este rumo de 2,7 oC que e
de temperatura corresponde uma

2,7 oC
o planeta está a tomar.
concentração do dobro do CO2, em relação
à era pré-industrial. Os modelos antigos
tinham um intervalo muito grande: de 1,5 a
Emissões de dióxido de carbono 4,5 oC. Os resultados neste relatório foram
Gigatoneladas de CO₂ por ano afinados para 2,5 oC a 4 oC (não pondo,
porém, de parte um aumento de 5 oC). É
140 CENÁRIOS de realçar que o limite mínimo subiu 1
grau e que o máximo apenas desceu meio
120 SSP5-8.5 grau. Ou seja: quanto mais sabemos sobre
o clima, quanto melhor é a Ciência, mais
100
pessimista é o resultado.
80 SSP3-7.0 E em que ponto vamos? Antes de
começarmos a queimar combustíveis
60 fósseis em massa, a concentração de
CO2 era de 280 ppm (partes por milhão).
40
Segundo a NOAA (Administração Oceânica
20 e Atmosférica dos EUA), em 2020 foi batido
o recorde: uma média anual de 412,5 ppm.
0 SSP2-4.5
Apesar dos confinamentos, a subida de
SSP1-2.6 2,6 ppm face a 2019 foi a quinta mais alta
-20 SSP1-1.9 desde que a NOAA tem registos. Só nos
2015 2020 2030 2040 2050 2075 2100 últimos 20 anos, a concentração subiu 12%.
FONTE Sexto Relatório de Avaliação – IPCC INFOGRAFIA IPCC/(AR) VISÃO

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 57


Alteração da temperatura global à superfície
Evolução observada e duas simulações: uma com emissões
antropogénicas e naturais, outra apenas com emissões naturais
5. O inferno
No jargão dos cientistas, o cenário SSP5-
˚C
8.5 é apelidado de “ir pela autoestrada”. O
2.0
aquecimento global desaparece por completo
AUMENTO das prioridades internacionais. Quase todo o
1.5 OBSERVADO
DA TEMPERATURA mundo enriquece economicamente, e são feitos
FATORES HUMANOS grandes investimentos na saúde, na educação
1.0
E NATURAIS e na tecnologia, mas o desenvolvimento está
assente na queima de combustíveis fósseis. Ao
0.5
invés de uma reapreciação das prioridades, que
FATORES NATURAIS leve em conta as limitações físicas do planeta,
0.0 (SOLARES
E VULCÂNICOS) os habitantes dos cinco continentes adotam
-0.5
estilos de vida baseados no ultraconsumismo,
provocando gastos energéticos brutais e uma
1850 1900 1950 2000 2020 corrida sem tréguas à exploração dos recursos
FONTE Sexto Relatório de Avaliação – IPCC INFOGRAFIA IPCC/(AR) VISÃO
naturais. A população mundial começa a cair a
meio do século e chega a 2100 com “apenas”
7,3 mil milhões de pessoas, mas a grande

4. Um “mundo à Trump” maioria tem níveis de consumo insustentáveis.

3,6 oC
Com estes pressupostos, em 2050 já a
concentração de dióxido de carbono na
É aqui que as coisas começam a descarrilar a sério. O atmosfera é duas vezes maior do que a de
cenário SSP3-7.0 prevê que o crescimento do nacionalismo hoje. A consequência é uma subida média da
dinamitará a cooperação internacional. Os tratados do clima temperatura de 4,4 oC, face à segunda metade
vão perdendo força, face aos interesses egoístas dos Estados, do século XIX (subida média, repita-se: na pior
mais preocupados com a própria competitividade imediata do que com o futuro do das hipóteses, pode chegar aos 5,7 oC, o que
planeta e o bem-estar da Humanidade. Os conflitos avolumam-se, as economias seria dantesco).
crescem lentamente, as desigualdades mantêm-se ou aumentam, o investimento O resultado é um planeta literalmente inabitável
em educação e tecnologia cai a pique. Pouco ou nenhum esforço é direcionado para em várias regiões, junto ao equador, onde o calor,
a mitigação do aquecimento global. O único investimento em alterações climáticas no verão, é tanto que o corpo humano não o
é aplicado na adaptação. A população mundial continua a crescer, atingindo os 12,6 consegue suportar. Ondas de calor que se faziam
mil milhões de pessoas em 2100. O investigador Zeke Hausfather, um dos autores sentir duas vezes por século passam a acontecer
do relatório do IPCC, referiu-se a este futuro como um “mundo à Trump”. praticamente todos os anos. Avolumam-se as
As consequências são devastadoras. A concentração de gases com efeito de mortes provocadas pelos fenómenos extremos.
estufa na atmosfera é o dobro da atual, causando um aumento da temperatura O mar continua a subir, imparavelmente, a
média de 3,6 oC (ultrapassando os 2 oC nas próximas duas décadas). Ondas caminho dos sete metros,
de calor extremas, que aconteciam uma vez por década, passam a ocorrer em 2300. Seria um mundo
quase todos os anos. O nível médio do mar sobe entre 46 e 74 centímetros. Os substancialmente diferente

4,4 oC
refugiados climáticos multiplicam-se, o que, por sua vez, torna os países ainda daquele que temos hoje. Um
mais nacionalistas e protecionistas. mundo à beira do colapso.
Este cenário não é, de todo, o mais provável, mas o IPCC não o põe de parte. lribeiro@visao.pt

Ondas de calor extremo


Num mundo 4 °C mais quente, uma vaga de calor que se fazia sentir duas vezes
por século passa a acontecer em quatro de cada cinco anos
CENÁRIOS
Passado (1850-1900) Presente +1,5 °C +2 °C +4 °C

Frequência a cada 50 anos


Agora Provavelmente Provavelmente Provavelmente
Acontecia verifica-se acontecerá acontecerá acontecerá
uma vez
4,8 vezes 8,6 vezes 13,9 vezes 39,2 vezes
°C
+6
Aumento da +4
temperatura +2
0
1,2 °C mais quente 2,0 °C mais quente 2,7 °C mais quente 5,3 °C mais quente
FONTE Sexto Relatório de Avaliação – IPCC INFOGRAFIA IPCC/(AR) VISÃO

58 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


C O N T E Ú D O PAT R O C I N A D O

A Sustentabilidade
é uma prioridade na Savills

NUNO FIDELES
S E N I O R A R C H I T E C T , B R E E A M A P & S U S TA I N A B I L I T Y
C O N S U LTA N T D A S A V I L L S P O R T U G A L

Fundamentados numa agenda de Sustentável, as estratégias de sustentabilidade não se referem


responsabilidade social corporativa, apenas à eficiência energética ou impacto ambiental, mas
também ao bem-estar dos ocupantes dentro e em redor do
a Savills distingue-se por concretizar edifício e no impacto económico e social destas ações.
mudanças nos objetivos ESG E mais que construir novos edifícios, urge reabilitar e mu-
(Responsabilidade Ambiental, Social e de dar a mentalidade na hora de desenvolver as cidades.
A Reabilitação, Eficiência Energética e Sensibilidade Am-
Governance), tanto a nível corporativo, biental não são temas opostos, mas sim uma oportunidade
como dos ativos dos nossos clientes para recuperar o tecido urbano, as áreas históricas das cida-
des ou áreas industriais abandonadas e desativadas das áreas

C
metropolitanas.
oncentramo-nos nos resultados e em melhorias de São uma oportunidade única de transformação com menor
sustentabilidade visíveis, com uma equipa altamente impacto no ambiente e na biodiversidade do que construir de
qualificada de arquitetos, consultores e parceiros, novo, num espaço virgem em termos ambientais.
garantindo uma diversidade de serviços de Con-
sultoria em Sustentabilidade de excelência. PROMOVENDO EDIFÍCIOS SUSTENTÁVEIS
Como acreditamos nas políticas que adotamos, apostámos Na União Europeia, os edifícios são responsáveis por 40%
na mudança de instalações para um edifício por nós projetado das emissões de dióxido de carbono, 35% do consumo de
e reabilitado, com critérios de sustentabilidade e políticas ESG matérias-primas e 50% dos resíduos sólidos que provêm do
que nos vai permitir chegar ao objetivo proposto pela Savills setor da construção.
EMS, que são as EMISSÕES NET ZERO em 2030. Em resposta a esta realidade, os Estados-membros com-
prometeram-se a reduzir, até 2030, as suas emissões em 40%,
TRABALHAR PARA UM FUTURO MAIS SUSTENTÁVEL aumentar a eficiência energética em 32,5% e assegurar 32%
E EFICIENTE de energias renováveis no consumo de energia.
Como membro integrante da BCSD (Empresas pela Sus- O custo acrescido de idealizar e construir um edifício
tentabilidade), a Savills, juntamente com mais 81 empresas sustentável com certificação ao invés de um edifício edifica-
portuguesas, assinou um manifesto no qual se traçam obje- do com as práticas correntes ronda os 4%, segundo estudos
tivos determinantes para a estratégia eficiente de combate ao efetuados na comunidade europeia.
aquecimento global, tendo também como base as orientações
definidas na 26.ª Conferência das Nações Unidas sobre Al- A AUTARQUIAS PODEM E DEVEM INCENTIVAR A FIGURA
terações Climáticas. DOS EDIFÍCIOS SUSTENTÁVEIS QUE MELHORAM ESTA
Estas premissas, transversais a todas as áreas, devem ter um PERFORMANCE, APOIANDO AÇÕES COMO:
foco na neutralidade carbónica, na mitigação e adaptação às • A redução de emissões de gases com efeito de estufa por
alterações climáticas, procurando a conservação e valorização Edifícios, através da majoração dos incentivos fiscais, como
dos recursos naturais. redução de IVA, em edifícios novos e reabilitados perante o
seu grau de sustentabilidade;
MAS O QUE PODE FAZER O SETOR IMOBILIÁRIO? • A fiscalização e implementação de ações de mitigação na
Desde sempre construímos estruturas para nos proteger gestão de resíduos sólidos de obras;
da natureza e de outras forças, passando mais de 90% das • A implementação da Lei NZEB de modo eficaz;
nossas vidas dentro de edifícios. Claramente, a qualidade • A prioridade aos licenciamentos para edifícios sustentáveis.
destes edifícios tem um impacto social e ambiental crítico Assim conseguiremos reabilitar não só
nas nossas vidas. edifícios, mas também as cidades e de um
Em compromisso com os objetivos de Desenvolvimento modo... sustentável!

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 59


UM PASSO
DE CADA VEZ

Solara4, Alcoutim
A central fotovoltaica,
inaugurada no mês passado,
é a maior do País, com mais
de 660 mil painéis. A potência
instalada é de 219 MW – 4,8
vezes mais do que a famosa
central da Amareleja, que
chegou a ser a maior do
mundo, quando abriu, em 2008

60 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Para mudar o mundo, temos de começar por nós próprios.
Repensar as nossas escolhas, consumir menos e melhor, deixar
o carro em casa… Mas poucos aceitam revoluções nas suas
vidas, pelo que a mudança necessária não é possível (apenas)
com voluntarismo. Resta saber se conseguimos combater as
alterações climáticas sem alterações drásticas no dia a dia
– se o capitalismo consciente pode ser uma solução
LUÍS RIBEIRO E LUÍSA OLIVEIRA

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 61


É
Uma moda diferente
Uma tragédia no Bangladesh
fez Marta repensar o seu
futuro profissional

É possível o crescimento infinito num


planeta de recursos finitos? Esta é
a pergunta de um milhão de euros.
Muita gente começa a pôr em causa o
modelo económico atual, que avalia o
desenvolvimento dos países através da
evolução anual do PIB, propondo a in-
trodução de outros fatores na equação
que meçam o bem-estar da população
e o progresso da sociedade. Esse cami-

LUÍS BARRA
nho passaria sempre por uma redução
do consumo, pelo fim do capitalismo
como o conhecemos.
Realisticamente, o mundo não está
MARTA BARATA
preparado para uma mudança tão onde funcionavam cinco plásticos da sua vida,
fábricas de roupa matou comprar um saco para

“A chave é
radical. Mas algo substancial terá de
1 134 pessoas, pondo reter as microfibras nas
ser feito, atendendo aos impactos do
a nu as atrocidades da lavagens e organizar

consumir menos”
aquecimento que se sentem hoje e que feiras de trocas. “Como
indústria têxtil – no dia
serão muito mais vincados no futuro. anterior ao desastre, foi gradual, criou raízes,
“A alternativa já está a acontecer”, avisa haviam sido descobertas em mim e em casa dos
Tiago Domingos, professor de Ambien- rachas no edifício, mas meus pais.”
Do seu saco de pano
te e Energia no Instituto Superior Téc- os trabalhadores foram Agora, a atual estudante
retira um novelo feito
nico. “Certamente não vamos conseguir com restos de fios de obrigados a ir trabalhar. de mestrado, a viver em
limitar o aquecimento a 1,5 ºC, e mes- outras manualidades. Esse acontecimento Lisboa, prefere tratar
mo os 2 ºC não são prováveis. Agora, a Puxa de um páreo que mudou a sua forma de bem das peças de roupa
sociedade tem de começar a ponderar estende na relva e desata pensar. Marta aderiu que compra, em primeira
que tipo de transição quer, para que o a tricotar o cachecol que ao movimento Fashion ou segunda mão – não as
debate não seja hipócrita, para que não irá oferecer a uma amiga. Revolution e deixou lava muito, transforma-
continuemos a ter compromissos dos Enquanto isso, explica imediatamente de as, tapando-lhes as
governos que não vão ser cumpridos.” que “nada se deita fora”, comprar roupa. manchas, cosendo
Seja qual for o grau de mudança que consciência – ainda que Esteve dois anos a invadir buracos ou mudando
estamos dispostos a aceitar, a transição inconsciente – que lhe foi os armários da família botões. “As minhas
para uma sociedade mais sustentável transmitida pela mãe. para encontrar peças decisões podem não
implicará sempre sacrifícios. “Mudar Marta, 25 anos, acabou que ninguém queria, fazer muita diferença,
sem dor já não é possível”, diz Ricardo por se formar em Design personalizando-as e porque essas têm de vir
Morgado, cofundador da Loop, uma de Moda, sonhando ir fazendo com que elas das grandes empresas
parar a um gigante da durassem mais. Hoje está poluidoras, mas talvez
empresa especializada em economia
fast fashion. Durante o menos radical, mas, ao consiga levar mais
circular. “Mesmo com a melhor tran-
curso, em abril de 2013, mesmo tempo, habituou- gente a mudar os seus
sição, uma mudança na forma como a se a outras coisas, como comportamentos. A
economia usa os recursos tem custos, deu-se a tragédia de Rana
Plaza, em Daca, capital comer menos carne, ir chave não é consumir
e são muitas vezes os mais desfavore- aos mercados abastecer- diferente, mas consumir
do Bangladesh, quando
cidos que vão pagar esses custos.” se, dizer não a outros menos.”
o colapso de um prédio
Essa transição será – e tem sido
– acompanhada de contestação. Os
combustíveis são o melhor exemplo
de como a maior parte das pessoas não

62 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


RUI CATALÃO
veganas e com uma
pequena pegada carbóni-
extensão da nossa filoso-
fia, da forma de estarmos A SOCIEDADE TEM
E MARIA ANTUNES ca. A esses encontros, no mundo”, resume o pai,
DE COMEÇAR A
“Não somos
que pareciam aulas de para quem a utilização de
sustentabilidade, chama- fraldas reutilizáveis apa- PONDERAR QUE TIPO
perfeitos,
ram-lhes Kitchen Dates. receu de imediato como a
Quando vieram para única possibilidade. DE TRANSIÇÃO QUER,
mas fazemos PARA QUE O DEBATE
Portugal, trouxeram-nos Em casa deste casal não
na bagagem. entram descartáveis,

o nosso melhor” NÃO SEJA HIPÓCRITA”


De casa passaram para nem de puericultura nem
um restaurante, com outros. A roupa de bebé
características especiais, é, de preferência, em-
TIAGO DOMINGOS, investigador
no bairro lisboeta de Te- prestada, ainda que para
A vida de Rui e Maria já lheiras. Arranjaram uma isso tenham de sensibili-
não é a mesma desde mesa comunitária em que zar as avós, com tendên-
que viviam na Holanda sentavam os clientes que cia para comprar peças está disposta a pagar o custo literal da
e tiveram de começar procuravam aprender que os pais consideram sustentabilidade. Toda a gente é muito
a fazer pão porque não sobre as alternativas à desnecessárias (embora ambientalista até o preço da gasolina
gostavam do pão local. carne e ao peixe e saber já comecem a mostrar começar a subir. A história recente deu-
Daí até mudarem com- mais acerca de uma vida preocupação com a -nos uma lição para o futuro: os pro-
pletamente a forma de quase sem resíduos. Pelo origem e o material da testos dos Coletes Amarelos, em França,
se alimentarem foram meio, veio a pandemia, roupa que oferecem). foram desencadeados pelo aumento das
vários passos – mas condenando toda a faceta “Estamos longe de ser- taxas sobre os combustíveis, uma me-
deram-nos depressa. de partilha do projeto de mos perfeitos, pois não dida ambiental de Emmanuel Macron.
Em 2017, abriram pela Rui Catalão e Maria An- andamos de transportes
primeira vez as portas de
Podemos continuar a apelar para que
tunes. Fecharam portas, e o nosso carro não é elé- as pessoas implementem espontanea-
casa, ainda em Ames- criaram uma horta e, há trico”, confessa Rui. “Mas
terdão, para servirem mente mudanças de comportamento
quatro meses, nasceu a tentamos sempre fazer o
refeições totalmente nas suas vidas. Mas o voluntarismo não
filha, a Alice. “Ela é uma nosso melhor.”
ganha escala suficiente para alavancar a
transformação necessária, e pode até ser
contraproducente: estudos demonstram
que pessoas que fazem pequenos ges-
tos em favor do ambiente estão menos
disponíveis do que quem não faz nada
para pagar mais impostos ambientais,
que são precisamente as medidas com
alto impacto. Uma espécie de “se já faço
a minha parte, que paguem os outros”.
Qual é, então, o caminho?

ENCONTRAR O RITMO CERTO


O essencial, neste momento, é definir a
velocidade da mudança. E a razão não
é apenas a impopularidade de certas
opções ambientais. Evoluções demasia-
do rápidas podem fazer ricochete. Um
artigo publicado, este mês, na Nature
mostra como todos os passos têm de
ser bem medidos: os carros elétricos,
essenciais para a descarbonização da
mobilidade, são em média muito mais
pesados do que os convencionais, devi-
do sobretudo às baterias; não havendo
uma taxação em função do peso, para
incentivar a produção de veículos e
baterias mais leves, o custo-benefício
pode só compensar em países com
LUÍS BARRA

uma grande produção de eletricidade


a partir de fontes limpas, porque uma
Sustentável desde o primeiro dia Alice, a filha do casal, parte da energia consumida pelo carro
é uma extensão da filosofia antidesperdício de Maria e Rui é gasta a transportar o peso extra.
As energias renováveis são outra
questão a considerar, aponta Tiago Do-
mingos. “A intermitência das renová-

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 63


Hoje tenho uma vida de praticava windsurf no
veis não está resolvida. A variabilidade
anual pode ser significativa, sobretudo
FERNANDO PAIVA filme: vou diariamente Mondego, e foi assim que

no vento e na chuva, e o planeamento


não leva em conta esta variabilidade. O
“Já estive ao mar, a minha família
apoia-me e casei-me com
descobriu que os estu-
dantes, durante a semana

Reino Unido tem problemas há meses,


porque o vento foi menor do que o
nesse comboio uma mulher que adoro”,
resume Fernando Paiva,
académica, deitavam car-
rinhos de supermercado

normal.” Obviamente, isto não significa de esgotar 51 anos, com a bicicleta


estacionada. “Já estive
cheios de resíduos para
dentro do rio. Criou a Não
que se deva abandonar a aposta nas re-
nováveis – apenas que tudo tem de ser
pensado ao milímetro. “Em Portugal,
os recursos” nesse comboio de esgotar
os recursos.”
Entretanto, tornou-se
Lixes o Mondego para
impedir que esse com-
portamento continuasse
podíamos aproveitar mais a capacidade Ao primeiro contacto, minimalista, embora em nome da tradição – e
de armazenamento das barragens”, diz apanhámo-lo em cima “não miserabilista”. O conseguiu.
o investigador do Técnico. “As bate- da bicicleta, a caminho seu armário de casa Hoje, aposta na educação.
rias são importantes para um sistema do “escritório”, na Praia guarda sete t-shirts Fernando desloca-se a
baseado em renováveis, para guardar da Barra, em Aveiro – o brancas, dois casacos, escolas num raio de 70
energia de um dia para o outro, mas seu ganha-pão é ensinar duas calças e quatro quilómetros para pre-
ainda são caríssimas para armazena- os outros a equilibra- pares de sapatos, tudo gar o seu modo de vida,
rem-se na prancha de de boa qualidade, para tentando que fique por
mento interanual.”
surf. De resto, dedica-se durar. Também deixou de lá alguma semente de
Da mesma forma, o investimento
a espalhar, através da viajar e optou por não ter consciência ambiental.
no hidrogénio não está, por princípio, filhos (“o planeta já está Confessa que não está
associação Não Lixes, a
errado – é uma fonte energética de fu- sobrelotado de pessoas muito otimista, porque em
sua palavra, a única que
turo, garante Tiago Domingos. Mas há a viverem da mesma ma- alguns sítios nem recicla-
lhe parece adequada à
“argumentos credíveis” de que vamos situação de emergência neira”). Nem vale a pena gem existe e, por vezes,
demasiado depressa. “Somos dos quatro climática e ambiental. salientar que tenta fazer os alunos vêm ao seu
mais rápidos da Europa. Estamos a arcar “Durante muitos anos, fiz pouco lixo. encontro para anunciar
com os custos de uma tecnologia ainda escolhas erradas, estive A sua vida mudou em que já não atiram lixo para
muito cara. É verdade que ganhamos em empregos de que não 2013, quando vivia em o chão, como se fosse um
know-how e marcamos a nossa posição gostava, fumei muito. Coimbra. Nessa altura, grande feito.
no mercado. Mas a Alemanha fez isso
com enormes investimentos em foto-
voltaica, e entretanto a China cilindrou
a Alemanha nos preços dos painéis. Não
é evidente que um país pequeno garanta
a vitória só por ir à frente.”

PAGAR O SERVIÇO PRESTADO


PELA NATUREZA
Há outras escolhas que as sociedades
têm de discutir. Um dos debates mais
acesos neste momento é o papel que a
biomassa deve representar na acele-
ração da transição energética, substi-
tuindo-se ao carvão. Tecnicamente, a
queima de madeira é neutra em carbono
(se descontarmos a energia usada na
produção e no transporte). A diferença
para os combustíveis fósseis é que o
carvão, o gás e o petróleo são fontes de
CO2 armazenadas debaixo da superfície,
e lá continuarão se não as retirarmos e
queimarmos. Queimar biomassa é de-
volver à atmosfera o CO2 que as árvo-
res absorveram durante o processo de
fotossíntese. Uma floresta bem gerida
LUCÍLIA MONTEIRO

substituirá as árvores cortadas por ou-


tras, que vão compensar o CO2 emitido.
O problema é que uma árvore de-
mora décadas a chegar ao ponto em que
absorve tanto dióxido de carbono como Não Lixes Fernando tornou-se minimalista e criou
a árvore que a precedeu, e o mundo uma associação para espalhar a “palavra verde”
precisa de cortar as emissões hoje. Foi
por isso que mais de 500 cientistas
assinaram recentemente uma carta

64 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Uma transição suave Rita adotou
comportamentos mais sustentáveis,
como comer menos carne e deslocar-se
de bicicleta, mas sem radicalismos

MUDAR SEM DOR JÁ


NÃO É POSSÍVEL. UMA
MUDANÇA NA FORMA
COMO A ECONOMIA
USA OS RECURSOS
TEM CUSTOS”
RICARDO MORGADO,
cofundador da Loop

aberta a pedir a líderes mundiais que


não fomentem a queima de biomassa.
“O recrescimento leva tempo, tempo
que o planeta não tem”, escrevem.
O ideal seria, claro, manter os bos-
ques intactos. Mas essa opção também
tem um custo. É confortável para a
Europa dizer ao Brasil e ao Congo que
devem manter as suas florestas virgens,
a bem do planeta, quando a Europa
enriqueceu a desflorestar as suas. Uma
solução é pôr uma etiqueta com o preço
em cada árvore.
O mercado de carbono já cobre
D.R.

parte desse valor. Uma empresa ou


um país mais rico pode pagar a um
Facilmente, passou a “As minhas mudanças proprietário para conservar uma área
RITA MACHADO comer menos carne, são muito normais e
florestal, ou para plantar mais árvores,
“As pessoas nunca mais do que duas
vezes por semana (antes
fáceis, mas também
não sou dura comigo.
de modo a ganhar créditos de carbono,
compensando assim as suas emissões.
da minha idade consumia todos os dias,
alternando apenas com
Aos bocadinhos custa
menos. Se toda a gente Mas uma floresta vale muito mais para
a sociedade do que a sua capacidade
estão abertas à peixe). Decidiu também
apoiar os comerciantes
fizesse o meatless
monday [segundas sem de absorver carbono. Ajuda a reduzir
a poluição do ar, melhora a qualidade
mudança” locais, virando-se
para designers mais
sustentáveis e adeptos
carne], por exemplo,
não era preciso
haver radicalismos”,
da água e do solo, previne a erosão,
mantém a biodiversidade, fomenta
Foi preciso o Tate da slow fashion. Hoje, defende. Rita sabe que uma cadeia alimentar saudável. Se a
declarar a emergência abastece-se de produtos o facto de viver longe sociedade quer usufruir dos serviços
climática e pedir aos de limpeza e higiene da família, menos de ecossistema de uma floresta, tem de
funcionários que numa loja a granel. dada a esse tipo de estar disposta a pagar por eles.
pensassem em formas de Porém, a maior comportamento, facilita
as galerias serem mais transformação foi a as transformações. COMO TER UM IMPACTO POSITIVO
sustentáveis para Rita bicicleta, que adquiriu Quando vem a Portugal, E CRIAR RIQUEZA
Machado, a trabalhar e é hoje o seu principal tenta influenciar os pais, A sociedade de consumo é um fardo
há dois anos e meio no meio de transporte na mas esbarra nalguma para o planeta. Um estudo publicado,
museu londrino de arte cidade – demora 25 resistência. “As pessoas em 2017, no Journal of Cleaner Produc-
moderna, despertar a sua minutos de casa até ao da minha idade estão tion concluiu que a energia consumida
consciência ambiental e Tate, onde trabalha como bastante abertas à para fabricar um telemóvel novo daria
mudar comportamentos. produtora de exposições. mudança porque já
para carregar um velho durante dez
Depois de ler sobre o “Comprei-a por causa perceberam que as
anos. Por outro lado, sem consumo não
assunto e se inteirar do ambiente, mas isso alterações climáticas vão
trouxe-me muito mais. mesmo afetá-las. Mas a
há crescimento económico. Daí que a
da dimensão dessa
Até mudou a forma como geração dos meus pais economia circular e de partilha seja o
emergência, questionou-
vejo Londres”, revela mais dificilmente tem mais aproximado que temos de um ovo
se sobre quais seriam
os seus limites. Rita, 30 anos. consciência disso.” de Colombo: desenvolvimento sem de-
lapidar recursos. “Viver numa socieda-
de em que o PIB cresce é fundamental
para o progresso, para a melhoria da
qualidade de vida”, assegura Ricardo

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 65


Objetivo: ser carbon positive
Tiago quer ter um estilo de vida
que cause uma absorção
de CO2 superior à que emite

Morgado, da Loop. “Mas sabemos que


os recursos são finitos e não podemos
continuar assim. A economia circular
permite tornar o resíduo em substrato
ou dar uma segunda, terceira e quarta
vida a um produto. É, na mesma, um
modelo com crescimento económico,
mas em que os recursos são aproveitados
várias vezes.”
Apesar de lamentar que Portugal ain-
da tenha índices de circularidade muito
baixos, o empresário vê alguns sinais de
esperança. “Para as gerações mais novas,
já é mais importante usar e desfrutar do
que possuir. E, na COP26, a economia
circular será um dos temas.”
A reutilização e, em menor medida, a
reciclagem são importantes para minimi-
zar o efeito negativo dos nossos estilos de
vida. Mas é possível dar um salto ainda
maior: criar riqueza tendo um impacto
líquido positivo. É essa a proposta de
empresas de investimento sustentável.
“Permitem a qualquer pessoa investir em
projetos de sustentabilidade e ganhar di-
nheiro com isso, recebendo juros”, explica
MARCOS BORGA

Nuno Brito Jorge, CEO da GoParity, uma


plataforma de crowdfunding destinada a
conceder empréstimos que contribuam
para os objetivos de desenvolvimento
sustentável. “O dinheiro no banco está
TIAGO MARQUES
o tempo. Quando se para ver que não custa parado, enquanto nós temos taxas médias
apercebeu do que a assim tanto.” de 5,4% ao ano. Além disso, há todo um
“Não custa Ciência determinava a
curto prazo, tornou-se
Quando vem a
Portugal, três vezes
impacto positivo que o investimento tem

assim tanto”
na vida das pessoas.” Através da GoParity,
um ansioso climático. por ano, procura meios
já foram apoiados mais de 120 projetos,
Hoje, já consegue viver alternativos ao avião,
num total superior a 8,5 milhões de
melhor com a realidade como o comboio ou
que o rodeia – para isso o autocarro. Quando
euros. Boa parte destes investimentos
Quando estas linhas consiste em projetos de microgeração
forem impressas em também contribuíram as não consegue, tenta
medidas que tomou no compensar as emissões de eletricidade, como a instalação de
papel, Tiago há de estar
sentido de uma vida mais de CO2. “Todos os meses, painéis fotovoltaicos nas instalações de
algures entre São Pedro
sustentável. dou uma contribuição supermercados, fábricas e armazéns. O
do Estoril, na linha de
Cascais, e Glasgow, em Desde logo, largou os para organizações que retorno é feito através da poupança que
Inglaterra, para onde pratos de carne e peixe me ajudam a compensar a empresa consegue por não ter de com-
partiu, procurando a e passou a ter todo o algum comportamento prar (tanta) eletricidade à rede.
forma mais sustentável cuidado com o que veste, mais nocivo para o Neste caso, o mercado funciona por si
de lá chegar, mesmo a optando quase sempre ambiente.” Respondendo mesmo (sobretudo agora, ao preço que
tempo da COP26. Com ele, por peças em segunda a um questionário está a energia). Para que as mudanças
seguiram mais 11 jovens mão. E até poupa no acerca dos hábitos aconteçam, no entanto, são fundamen-
com o mesmo objetivo. papel higiénico (são de alimentação, de tais incentivos induzidos por políticas
Apesar de ter apenas precisos 140 litros de transporte, consumo e públicas. Por exemplo, no sentido de re-
25 anos, antes de água para produzir um energia, chega-se a uma duzir as emissões da aviação, o governo
entrar neste desafio, só rolo). Mas, para ele, o mensalidade que varia de França pretende banir as viagens de
Tiago Marques, facto de, no seu trabalho, consoante o resultado. avião domésticas, enquanto o da Suécia
atualmente a trabalhar guiar associações e Objetivo número um: ser aposta em viagens noturnas de comboio
como consultor numa empresas no percurso de carbon positive. Ou seja,
para substituir os voos. Na alimentação,
empresa de economia transição para um modo ter um estilo de vida que
estuda-se a implementação de taxas so-
circular em Barcelona, de estar mais ecológico é cause uma absorção de
o que marca a diferença. CO2 superior ao que é
bre a pegada carbónica dos produtos, de
palmilhou muita estrada modo a provocar alterações maciças de
nesta batalha contra “Através do exemplo, dá emitido.
comportamento. Porque as pessoas até
são sensíveis às dores da Terra – mas
precisam de um empurrão na direção
certa. lribeiro@visao.pt

66 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Potência a bateria.
made by .

PRONTO PARA QUALQUER DESAFIO
C O N T E Ú D O PAT R O C I N A D O

Volvo e o objetivo
neutralidade
A Volvo Cars quer ser uma empresa neutra para o clima até 2040. Para atingir este
objetivo quer em pôr em prática um conjunto de medidas. Entre elas, produzir 100%
de automóveis elétricos até 2030, reutilizar peças e eliminar do couro nos automóveis.
Assume, por isso, o compromisso de reduzir em 40% as emissões, ao longo do ciclo
de vida de cada veículo, até 2025

N
ão há tempo a perder quando se trata de de mi- ciclo de vida de cada veículo, até 2025. Para isso, vai aprovi-
nimizar os impactos das alterações climáticas no sionar e produzir energia com impacto neutro no clima, além
planeta em constante mudança. Consciente dessa de melhorar a eficiência energética das fábricas. Lidar com as
necessidade, a Volvo Cars aposta num novo para- emissões ao longo da cadeia de valor é, assim, uma meta a atin-
digma: ser uma empresa neutra para o clima até 2040. Para gir, nomeadamente através do recurso de energia mais neutra
atingir este objetivo, a Volvo Cars delineou uma conjunto de em termos climáticos, seja nas operações ou nos fornecedores,
estratégias, como reduzir em 40% as emissões, ao longo do além de fazer um melhor uso dos materiais e dos componentes.
Maximizar o recurso a peças recondicionadas que utilizam
cerca de 85% menos matérias-primas e menos 80% de
energia é outra das estratégias. Só em 2020 a Volvo poupou
quase 3000 toneladas de CO2 com o recondicionamento de
40 mil peças. Também nesse mesmo ano, reciclou 95% dos
resíduos de produção, o que significa que, além de evitar a
criação de emissões de carbono adicionais, manteve materiais
valiosos em circulação, reduzindo a quantidade de material
virgem para os produzir. Em 2020 reciclou mais de 176 mil
toneladas de aço, por exemplo, evitando, assim, a produção
de quase 640 mil toneladas de CO2. Este contributo foi uma
mais-valia para o planeta.
Outro ponto forte da Volvo é a utilização de cobalto de ori-
gem responsável. Este é um elemento vital na produção de
baterias para automóveis elétricos. A marca optou por uti-
lizar a tecnologia blockchain para aumentar a transparência
e rastreabilidade da cadeia de abastecimento, para assegurar
que as informações sobre a origem dos materiais não são
alteradas. Vai ainda banir o couro nos automóveis elétricos,
sendo este substituído por materiais de alta qualidade, sus-
tentáveis e de base reciclada.

“TEREMOS DE SER PARTE DA SOLUÇÃO”


Existem evidências científicas de que os efeitos das alterações
climáticas se fazem sentir, cada vez mais, a nível mundial
e é preciso agir o quanto antes para evitar um mal maior.
Por isso mesmo, cada vez mais pessoas adotam um estilo
de vida eco-friendly, com preocupações e atitudes amigas
do ambiente. Entre elas estão: a poupança da água, a reci-
clagem, a alimentação mais sustentável, as compras mais
conscientes – prova disso é a crescente procura de artigos
em segunda mão.
A tudo isto junta-se a mobilidade com menor impacto am-
biental onde a Volvo Cars se encaixa que nem uma luva e está
a diligenciar nesse sentido com um conjunto de estratégias
para cumprir essa missão. Partindo do princípio de que
“somos parte do problema, pelo que teremos de ser parte
da solução”, a fabricante de automóveis assume, então, o
compromisso de ter os mais elevados padrões de sustenta-
bilidade na mobilidade. A sustentabilidade anda, assim, de
mãos dadas com a segurança para o bem-estar das pessoas,
dos animais e do ambiente. Urge, por isso, trabalhar em prol
da neutralidade climática e assumir a economia circular para
ajudar o planeta.

OS GRAVES IMPACTOS CLIMÁTICOS


A Volvo está, assim, de olhos postos na crescente problemá-
tica das alterações climáticas que tem um impacto negativo
na população mundial que está, cada vez mais, sensibilizada
para este imbróglio. Se a temperatura do planeta continuar
a disparar, as previsões não são nada otimistas, conclui-se a
partir do IPCC Special Report. Mas os impactos das alterações
climáticas não são iguais em todo o lado, por exemplo a tem-
peratura é mais elevada em zonas interiores do que no litoral.
O aumento já é superior a 1,5ºC, em alguns sítios, durante, pelo
menos, uma estação do ano. Se ocorrer uma subida de de 2ºC
Outra das medidas passa por produzir exclusivamente na temperatura média, em alguns locais, serão mais comuns
veículos elétricos até 2030, de modo a que o mundo atinja fenómenos como dias quentes, secas severas, escassez de
emissões nulas em termos líquidos até 2050. Será, por isso, água, precipitação extrema e consequentes cheias, e extinção
feita uma transição global para os automóveis elétricos. de espécies. A redução das áreas florestais e desflorestação, a
Na prática, a Volvo aspira atingir 50% das vendas com veí- subida do nível do mar, o degelo das calotas
culos totalmente elétricos até 2025 e produzi-los exclusi- polares e a degradação das zonas costeiras
vamente neste formato até 2030. são mais alguns dos graves efeitos.
ESQUERDA
FOCAR

PS e PCP
A longa história
“Os pactos sem
a espada são
apenas palavras
e não têm força
de um conflito
para vincular
ninguém”
Thomas Hobbes
Filósofo político inglês
(1588-1679)

70 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


1º de Maio de 1974 Álvaro Cunhal e Mário Soares
foram dois dos oradores, durante a manifestação

F
histórica que caucionou o golpe dos Capitães de
Abril. Nesse preciso momento, começava uma
guerra surda, que, pouco depois, se tornaria ruidosa

osse qual fosse o desfecho


da votação do Orçamento do
Estado para 2022, os portu-
gueses já tinham percebido
que vivemos o último estertor
da Geringonça, com a última
peça da “maquineta”, o PCP, a
acusar o desgaste de seis anos
A dura negociação entre Governo e PCP, o último de um conflito de baixa inten-
parceiro da Geringonça, tendo, por fundo, o sidade. Ora, por estranho que,
hoje, nos possa parecer, as
Orçamento do Estado para 2022, é o epílogo de um relações entre PS e PCP – cujo
conflito de 47 anos, entre os dois maiores partidos estado degradado o debate parlamentar
da esquerda. O acordo formado em 2015 – e agora terá revelado com eloquência – apenas
voltaram ao “velho normal”: os 47 anos
posto em causa – foi o último de quatro raros de democracia, salvo o interregno dos
“encontros tácitos”. O filme de uma relação tensa últimos seis, ficam marcados pelas di-
vergências historicamente insanáveis,
FILIPE LUÍS sem prejuízo dos episódios de encontros
tácitos, como o de 2015. A linha divisó-
ria, definida, no PREC de 1974/75, entre
Mário Soares e Álvaro Cunhal guiou
sempre ambas as partes. Veja como, em
dez momentos...

1974 TENSÃO NO 1º DE MAIO


Cerca de um milhão de pessoas en-
chem as avenidas de Lisboa – e mais
umas centenas de milhares replicam-no,
noutras cidades. Na tribuna de honra,
sucedem-se os discursos antifascistas.
No alinhamento das intervenções, Má-
rio Soares, líder do Partido Socialista,
fundado um ano antes, em Bad Muns-
tereifel, perto de Bona, na Alemanha
Ocidental, será o penúltimo a falar. A
última palavra pertence a Álvaro Cunhal,
secretário-geral do PCP, desde 1960,
e decano dos resistentes à ditadura.
“Explicaram-me que ele seria o último,
por ser mais velho”, diria Soares, poste-
riormente. “Mas não fiquei convencido.”
Numa jogada de antecipação, Soares
ocupara o terreno, regressando do exílio
a 28 de abril. Ele sabia que o primeiro
a chegar seria o dono do palco. Álvaro
Cunhal, só aterraria na Portela a 30 de
abril. Pouco depois, o duelo PS vs. PCP
começaria.

1974/75 A GUERRA SINDICAL


A lei da unicidade sindical foi o primei-
ro grande braço de ferro. O processo
revolucionário já tinha acelerado. Com
o País abalado por greves inorgânicas,
o PCP inspira a legislação que obriga
todos os sindicatos a inscreverem-se
numa única central sindical, a CGTP,
devidamente controlada pelos comunis-
tas. Numa afirmação contraditória nos
próprios termos, Cunhal proclama que

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 71


ESQUERDA

ra Fria tinha a sua versão portuguesa.


E PS e PCP eram as potências rivais.
DEBATE CUNHAL/
6/11/1975 “OLHE QUE NÃO, DOUTOR...”
Mário Soares ataca Cunhal e encosta às SOARES: DE UM LADO,
cordas o seu antigo professor, no Colé-
gio Moderno, que se defende com a frase A REVOLUÇÃO, O
“olhe que não, doutor, olhe que não”. Em
três horas e 40 minutos de troca acesa
SOCIALISMO REAL,
de argumentos, este é o debate da RTP O COLETIVISMO. DO
OUTRO, A DEMOCRACIA
que vai virar o destino da revolução: de
um lado, um projeto revolucionário,
leninista, e coletivista. Do outro lado,
um projeto europeísta, defensor da de- REPRESENTATIVA, A
“o pluralismo sindical é desfavorável às
liberdades”. E o PS desmonta-o. Com
mocracia representativa e da economia
de mercado. De um lado, a revolução e
ECONOMIA DE MERCADO
eficácia, denuncia a replicação comunista
dos sindicatos autorizados e obedientes
o socialismo real de inspiração soviética.
Do outro lado, a democracia ocidental e
E O MUNDO LIVRE
patrocinados pelo Estado Novo. Está em o chamado mundo livre. Soares ganhou
marcha a criação da UGT, de inspiração – e a rutura entre PS e PCP entrou na
socialista, e com uma tendência afeta ao fase de não retorno. tes ou entrevistas. Na primeira volta, os
PPD (futuro PSD). PS e PCP separavam- comunistas tinham sido o principal alvo
-se, para sempre, agora no movimento 1986 APOIO DE OLHO TAPADO do candidato, que carecia de votos ao
sindical. “Camaradas, se tiveram de tapar um olho, centro. De tal forma que, quando entrou
para não verem a fotografia, tapem-no. na Marinha Grande, um então bastião
19/07/1975 O PREC E A FONTE LUMINOSA Mas ponham lá a cruzinha.” Foi mais ou do PCP, para fazer campanha, havia sido
Depois do golpe de direita frustrado de menos com estas palavras que Álvaro agredido por manifestantes – episódio
11 de março, o processo revolucionário Cunhal, num congresso reunido para que ficou conhecido como “o clique da
acelerara decisivamente. As eleições o efeito, apelou ao voto comunista em Marinha Grande” e lhe terá garantido a
“burguesas” para a Assembleia Consti- Mário Soares, na segunda volta das presi- viragem nas intenções de voto.
tuinte, deram uma clara vitória ao centro denciais, em 1986. No congresso anterior,
e ao centro-esquerda – PS em 1º lugar, os comunistas tinham aprovado uma 20/07/1989 A COLIGAÇÃO POR LISBOA
PPD em segundo – e relegara o PCP para moção recusando que o partido alguma Pelas três da tarde, dois homens de fato
o 3º posto com uns míseros 12,5% dos vez apoiasse Soares para Belém. Só que, escuro tomam o elevador de um velho
votos. Mas os comunistas substituem a chegados àquele beco sem saída, a alter- edifício da Rua da Emenda, em Lisboa.
legitimidade eleitoral pela revolucioná- nativa era Freitas do Amaral, o candidato Estamos na sede nacional do PS e, num
ria. Um choque frontal com o PS, partido da direita que o PCP considerava capaz de dos andares de cima, espera-os Jorge
pró-europeu, adepto da adesão à CEE e fazer regressar o fascismo. Foi o primeiro Sampaio. A delegação do PCP, composta
cultivador da economia de mercado. Esta encontro tácito entre PS e PCP: no Hotel por Rui Godinho e Luís Sá, vem para a
fratura ideológica, nunca renegada por Altis, em Lisboa, duas delegações, uma última ronda de negociações secretas
nenhum dos dois, tornaria impossível do PCP outra da candidatura de Soares, da Coligação Por Lisboa. Pela primeira
qualquer entendimento de governo, en- compostas, respetivamnte, por Carlos vez, desde 1974, abre-se uma brecha
tre PS e PCP, o que faz da Geringonça de Brito e Octávio Pato e por Jorge Sam- no muro: no segundo encontro tácito
2015 uma anomalia implausível. Na Fon- paio (um socialista com bons contactos entre os dois partidos, e, de novo, para
te Luminosa, Lisboa, em julho de 1975, o no PCP ) e Gomes Mota, acordaram os bater a direita, PS e PCP correm juntos
PS responde à afirmação, feita em priva- termos do acordo. Soares comprome- para a Câmara de Lisboa. António Costa,
do, por Cunhal a Soares: “Ou o PS alinha tia-se a não hostilizar os comunistas em estagiário de Sampaio no escritório de
com o PCP ou será implacavelmente quaisquer intervenções, discursos, deba- advogados que este mantém com Vera
esmagado.” O que tinha acontecido, na Jardim, é o jovem artífice de parte da
revolução russa de 1917, ao socialista negociação e diretor de campanha...
moderado Kerensky... Por esta altura,
o malogrado dirigente russo era citado 10/11/1993 “PARABÉNS, DR. CUNHAL”
pelo secretário de Estado norte-ameri- Este é o título do artigo, escrito em jeito
cano, Henry Kissinger, que indentificava de homenagem, pelo Presidente Mário
Soares como o Kerensky português, Soares, ao arquirrival comunista, por
vaticinando-lhe destino idêntico. A pro- ocasião do seu 80º aniversário. Numa
va de força da mobilização de 200 mil linguagem contida, estão lá todas as
pessoas, na Fonte Luminosa, ajudou a divergências históricas, mas também
cimentar a parceria entre o PS e a CIA, o reconhecimento da importância da
através da relação com o embaixador dos icónica figura do movimento comunista
EUA em Lisboa, Frank Carlucci. A Guer- internacional. Soares explica, logo no

72 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Guião para perceber o que aí vem
Como uma matrioska, o futuro que se segue ao chumbo de um Orçamento,
na generalidade ou na votação final, tem capítulos encadeados. No fim, nada
impede que, após umas eleições, se regresse ao impasse

O País começa a contar – de acordo com a lei Orçamento do Estado. A


dias para eleições se eleitoral da Assembleia Assembleia da República
Belém publicar dissolução da República. Se Belém pode ainda autorizar de
do Parlamento. Um novo conseguir receber forma extraordinária o
início, que escreve o artigo na qualidade Orçamento poderia surgir rapidamente quem tem aumento da despesa
de Presidente da República (PR). O que em abril, mas essa é a de ouvir e fizer publicar para a “bazuca” poder ser
lhe confere peso institucional. Fazendo menor certeza deste o decreto, por exemplo, usada – um Orçamento
um esforço para não escrever como processo. As respostas às no dia 15 de novembro, Retificativo é uma dessas
“adversário político”, o PR revisita 50 maiores dúvidas: as legislativas podem ser ferramentas. Há três mil
anos de encontros e de desencontros marcadas para depois milhões de euros do PRR
e, com elegância e distanciamento q.b., O que acontecerá de 9 de janeiro de 2022 – para usar em 2022.
situa a importância de Cunhal na His- nos dias seguintes ao que, por acaso, até é um Como é governar em
tória. Desconhece-se qualquer reação chumbo? domingo. duodécimos?
do velho líder comunista ao documen- Sem Orçamento, o Quando teremos um Até haver um novo
to, mas sabe-se que Cunhal era dado a primeiro-ministro novo Orçamento? Orçamento do Estado, o
embirrações pessoais. Ora, além da luta rumaria a Belém para Marcelo admitiu que anterior mantém-se em
política, Melo Antunes e Mário Soares pedir a demissão. não acredita que antes vigor, tendo a despesa
eram ódios de estimação. É possível Porém, o secretário de abril de 2022 haja mensal do Estado como
que Cunhal não tenha vertido qualquer de Estado Adjunto de um. Todavia, haverá teto, a partir de janeiro,
lágrima de agradecimento... Costa, Tiago Antunes, um partido que saia um duodécimo (1/12) da
avisou que o chefe de das urnas com uma despesa executada em
1996 O CANDIDATO “MAIS À ESQUERDA” Governo não o fará (nem
é, constitucionalmente,
maioria absoluta e possa
depois fazer passar uma
2021.
A direita tem tempo
Uns meses antes das presidenciais de proposta orçamental de se organizar
obrigado). Marcelo
1996, Jorge Sampaio e a sua mulher, não pode dissolver o sem dificuldades no internamente e
Maria José Ritta, recebem em sua casa, Parlamento – como já Parlamento? Ou terá a apresentar-se a
em Lisboa, o proeminente dirigente disse que fará de forma força política vencedora eleições com novos
comunista Carlos Brito, então um dos rápida – sem antes das eleições de negociar líderes?
elementos mais próximos de Cunhal. ouvir o presidente da com outras bancadas – O PSD tem eleições a 4
Sampaio usa as excelentes relações pes- Assembleia da República, como agora – a aprovação de dezembro, com Rui
soais com Brito para o sondar sobre o Ferro Rodrigues, António do documento? Rio e Paulo Rangel na
possível apoio dos comunistas a uma sua Costa, os líderes Objetivamente, não há corrida. Mas o congresso
candidatura a Belém. O homem do PCP das forças políticas uma resposta para esta pode só acontecer em
leva o recado a Cunhal, que se mostra com representação pergunta. meados de janeiro – o que
entusiasmado: “É o candidato mais à parlamentar e ainda o Se o Governo ficar significa ter o partido em
esquerda que é possível vir a ser Presi- Conselho de Estado. a gerir o País em plenas legislativas sem
dente, em Portugal! Temos de fazer tudo Refira-se que é expectável duodécimos, as verbas direção e órgãos diretivos.
para o eleger!” Os comunistas apresen- que Paulo Rangel e do PRR podem ser O Conselho Nacional
tarão um candidato, Jerónimo de Sousa, Nuno Melo, candidatos à usadas? “laranja” pode acelerar
que aproveitará para fazer a sua rodagem liderança do PSD e CDS, Podem, ainda que haja prazos; e é desejável que
em campanha – mas que desiste à boca respetivamente, sejam mais facilidade do uso o faça, porque há que
também ouvidos por dos fundos europeus do ter listas de deputados
das urnas. Eis o terceiro encontro tácito
Belém. Portugal 2020 (cerca entregues 41 dias
entre socialistas e comunistas.
Quando teremos, de 4,2 mil milhões antes das legislativas.
24/11/2015 A GERINGONÇA” então, eleições?
Assim que fosse
de euros no próximo
ano), já que se trata de
O CDS ganha com o
facto de a disputa entre
Antóno Costa já tinha avisado, durante a publicado em Diário da investimentos em curso Rodrigues dos Santos
campanha, em duas importantes entrevis- República o decreto de ou já agendados de forma e Nuno Melo se decidir
tas, à VISÃO, primeiro e, depois, à Antena Marcelo Rebelo de Sousa plurianual, em que a no congresso no final do
1: com ele, não havia arco de governabili- para a dissolução do comparticipação nacional mês de novembro. Mas
dade (PS, PSD e CDS). E estava disposto a Parlamento, começaria em falta no período Marcelo pode esperar, por
responsablizar os partidos à esquerda em a contar um prazo de duodécimos possa exemplo, pela data de 6
soluções de governo. Pelo que a narrativa mínimo de 55 dias para depois ser colmatada de fevereiro, como já foi
de que o líder do PS traiu os eleitores ou a marcação de eleições assim que houver ventilado. N.M.R.
OPINIÃO
ESQUERDA

Ao menos,
bom senso...
P O R J O S É C A R L O S D E VA S C O N C E L O S

E
screvo antes da votação do próximas legislativas, a esquerda, no
Orçamento do Estado (OE), seu conjunto, sairá enfraquecida em
para só ser lido depois dela. relação às anteriores; e que,
E, face ao seu anunciado Quarto, serão o BE e o PCP que
chumbo por BE e PCP, uma mais perderão, correndo o risco de
coisa me ocorre, do domí- ficarem mesmo bastante reduzidos
impôs acordos de surpresa, apenas para nio quase do humor negro: a – não compreendendo como não
garantir o poder é, senão injusta, pelo única forma de o atual Go- aprenderam certas lições (p.ex., o
menos, desatenta. Na própria noite elei- verno do PS se manter seria os par- BE, o resultado de Marisa Matias nas
toral, Jerónimo de Sousa declarava que o tidos à sua direita apresentarem… presidenciais);
PS só não seria governo se não quisesse. uma “moção de censura”! Porque, Quinto, dessa sua menorização po-
As peças uniam-se. António Costa era o se PSD e/ou CDS a apresentas- derá resultar um “voto útil” em favor
único dirigente do PS com capacidade sem, apesar de tudo BE e PCP não do PS, por a única possibilidade de um
para construir uma relação de confiança: votariam a seu favor – e a moção governo de esquerda ser o PS obter
filho de um militante comunista, ele es- não passaria. Só que, sendo o OE uma maioria absoluta – o que, aliás,
teve nos bastidores da coligação PS/PCP, chumbado pelos partidos à direita neste momento se afigura dificílimo,
em Lisboa, em 1989 e sempre execrara o do PS, por ser muito de esquerda, se não impossível;
BE, o que o resguardava dos ciúmes co- chumbando-o também os partidos Sexto, e dado que não serão BE e
munistas face à necessidade de integrar à esquerda do PS fa- PCP a formar governo,
os bloquistas na solução. Neste 24 de zem o mesmo, e com nunca, após eleições,
novembro, um Presidente Cavaco Silva idênticas consequên-
Perece que eles conseguirão o que
contrafeito e com cara de enterro “indica” cias, que fariam se vo- a única forma agora não conseguem.
– evitando o verbo “indigitar”... – António tassem a favor duma de o atual Pelo contrário;
Costa para formar governo, impondo que moção de rejeição... Sétimo, se o PS tiver
os acordos celebrados à esquerda tenham Se m e n t ra r e m
governo do maioria absoluta, quan-
versões escritas. O que se revelará um eventuais anterio- PS se manter do muito manterá o que
seguro de vida para a primeira legislatura res responsabilidades teria sido os neste OE concedeu, em
da Geringonça... Costa era, assim, convi- também do PS, e na partidos à relação à sua proposta
dado na véspera da efeméride do 25 de justeza e viabilidade inicial; se a maioria for
Novembro, que, há precisamente 40 anos, das propostas de BE sua direita de direita, irá à vida
afastara do poder o PCP e os partidos que e PCP não consagra- apresentarem… muito do que o PS ago-
dariam origem ao BE. Não era apenas um das no OE, face à rea- uma “moção ra propõe de melho-
marco histórico: era uma ironia. lidade atual considero rias para trabalhadores
um erro histórico, uma de censura” e mais desprotegidos,
27/10/2021 O DIVÓRCIO enorme falta de visão bem assim o maior in-
À hora a que fechavamos esta edição, só política e até de bom senso, o chum- vestimento no setor público.
um milagre de última hora podia salvar bo do OE por esses partidos. Porque: Será que é isto que BE e PCP dese-
um Orçamento condenado pela rejeição Primeiro, e mais importante, o jam? Claro que não. Mas então não se
do Bloco e, no final, do PCP. Ainda que interesse nacional, incluindo o dos percebe como é possível acontecer o
alguma das posições se tivesse alterado, é mais pobres e desprotegidos, impõe que já poderá ter acontecido quando
manifesto que a Geringonça “implodira” evitar agora uma crise política, após estas linhas estiverem a ser lidas: BE e
e que PS e PCP terão recuado para detrás a terrível crise pandémica, que ainda PCP chumbarem, e logo na votação na
das velhas barricadas. Para o PCP, seria não terminou, e outras redobradas generalidade, o OE. Chumbarem-no,
sempre doloroso libertar-se do abraço dificuldades; inclusive por não verem consagradas
de urso de Costa, ao qual atribui suces- Segundo, poderá ser posta em cau- propostas em matérias que dele não
sivos desaires eleitorais, em europeias, sa a conquista democrática de derrube constam, antes são tratadas em legis-
presidenciais e, sobretudo, autárquicas. do muro do então chamado “arco da lação específica.
Mesmo com o Orçamento aprovado, o governação”, que mantinha numa Ou será que tudo isto foi um pe-
Governo passava a ser um zombie políti- espécie de gueto PCP e BE; sadelo e, à última hora, deixando a
co, alvo da predação dos seus ex-parcei- Terceiro, uma análise objetiva e irracionalidade e a tentação suicida,
ros. No fundo, o interregno de seis anos inteligente de todos os elementos BE e PCP, com a indispensável frieza,
na longa história de desencontros entre disponíveis – entre os quais os re- lucidez e sensatez, se abstiveram e
PS e PCP nunca terá sido um projeto: a sultados das eleições presidenciais e viabilizaram, na generalidade, o OE?
realidade demonstra que apenas foi o seu autárquicas – impõe concluir que, em jcvasconcelos@jornaldeletras.pt
4º encontro tácito. fluis@visao.pt

74 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


C O N T E Ú D O PAT R O C I N A D O

A qualidade à
frente de tudo
– até do seu
tempo
A Miele está a lançar uma campanha, a
nível global, para mostrar que os produtos
que disponibiliza são “Quality Ahead
of its Time” (em português, “Qualidade
à Frente do seu Tempo”). Para reforçar
o seu posicionamento no mercado com
os trunfos de inovação, arte, desempenho
e sustentabilidade

M
ostrar aos consumidores que a marca alemã Miele
oferece “Quality Ahead of its Time” é o grande
propósito da campanha que a líder em eletrodo-
mésticos premium, está a lançar em 49 países de
todo o mundo, incluindo Portugal. A marca pretende, assim,
reforçar as mais-valias que tanto a distinguem e posicionam no
mercado com os mais inovadores produtos. Entre elas estão a
sustentabilidade com aposta na eficiência energética, o inovador
e moderno design, assim como a qualidade, desempenho/per-
formance e durabilidade dos equipamentos que disponibiliza.
Todas estas vantagens fazem parte integrante desta campanha.
“Com Quality Ahead of its Time, estamos a passar do produto
ao marketing da marca, dando vida aos nossos valores funda-
mentais”, sublinha Barbara Castegnaro, vice-presidente sénior
de marca e experiência do consumidor. Mais, nota: “os produtos
da Miele sempre foram conhecidos pela sua qualidade imbatí-
vel, mas isso não acontece por acaso. Compre menos, compre
melhor. É por isso que os nossos produtos são simplesmente
uma expressão dos nossos valores fundamentais como orga-
nização”. Axel Kniehl, diretor executivo de marketing e vendas
do grupo Miele, acrescenta, por seu lado, que “à medida que as
pessoas redescobriam a importância das suas casas, tomaram
decisões de compra conscientes com base nos valores pelos
quais a Miele é conhecida.” Mais importante ainda, reforça, assente, no âmbito de uma exigente estratégia de disponibilizar
“exigiram uma qualidade que está verdadeiramente à frente do equipamentos amigos do ambiente, eficazes, inovadores e tec-
seu tempo”. O que vai ao encontro do mote da campanha que nológicos. “A pandemia global mudou o foco das pessoas, fez
realça, assim, todos esses trunfos da marca que fazem dela o recordar aos consumidores o que é realmente importante - e é
que hoje é, fazendo jus ao lema “Immer Besser” (Sempre Me- por isso que a sustentabilidade é cada vez mais uma prioridade”,
lhor) que foi instituído desde a fundação da Miele, em 1899, e nota, por sua vez, Stefan Breit, diretor executivo da Tecnologia.
que ainda agora se mantém. Esta campanha decorre em vários Confiança e credibilidade são também palavras-chave. Segun-
canais, como pontos de venda, display digital e redes sociais. do Axel Kniehl, diretor executivo de marketing e vendas do grupo
Miele, “o último ano, com a sua enorme volatilidade e incerteza,
ESTRATÉGIA PELO PLANETA tem sido duro para todos. No entanto, os consumidores sabem
A Miele conta com uma longa história de vida em Portugal, onde que podem confiar e depender de uma mar-
já está presente desde 1970. Mas é uma marca premium com 122 ca como a Miele” e com um forte contributo
anos de história cimentados na sustentabilidade como ponto para o meio-ambiente e um planeta saudável.

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 75


Intelectual O ativista doutorado
ALEMANHA em Filosofia, com 52 anos e pose
de estrela rock, pode vir a liderar
um superministério em Berlim

O (vice)
chanceler
verde
Robert Habeck, o
copresidente dos
ecologistas alemães,
ganha protagonismo nas
negociações do novo
governo e prepara-se para

GETTY IMAGES
ocupar uma pasta decisiva

A
FILIPE FIALHO

primeira metade (Gundrem- Se a energia atómica representa 12% e -Holstein – o Land (estado) mais a norte
mingen, Grohnde, Brokdorf) a eólica o dobro, a nova estratégia passa da Alemanha e no qual vive com a mulher
vai fechar já em dezembro. A por investir como nunca nas renováveis, (a escritora Andrea Paluch) e os quatro fi-
outra metade (Isar, Emsland para que estas atinjam 50% quanto antes lhos. Integrando elencos governamentais
e Neckarwestheim) terá o (44,9% atualmente). E um dos responsá- que incluíam conservadores, sociais-de-
mesmo destino ao longo de veis por esse objetivo é Robert Habeck, o mocratas e a minoria frísia, Habeck con-
2022. As centrais nucleares copresidente dos Verdes, cargo que par- venceu toda a gente de que era urgente
alemãs têm os dias contados, tilha desde 2018 com Annalena Baerbock, aproveitar os ventos do mar do Norte e
e nem a vertiginosa subida aquela que foi cabeça de lista do partido instalar turbinas eólicas na região. A reali-
dos preços da energia altera e candidata a chanceler nas legislativas de dade demonstrou que tinha razão, e entre
os planos das autoridades. Depois do de- 26 de setembro. 2012 e 2018 o peso desta energia renovável
sastre de Fukushima, no Japão, em 2011, Este ecologista de 52 anos, que se de- duplicou. A experiência governamental do
a chanceler Angela Merkel decidiu que o dicou à política quando estava prestes a ativista, escritor e tradutor, doutorado em
país tinha de reduzir a dependência do tornar-se quarentão, parece ter o currí- Filosofia, permite-lhe ser agora um ator
átomo, e a promessa está a ser cumprida à culo indicado para tal desafio, se se tiver principal nas negociações em curso para
risca. Desde o início do ano que as famílias em conta o seu desempenho enquanto que a GroKo (a grande coligação liderada
alemãs sentem o aumento dos valores da ministro do Ambiente, da Agricultura e por Merkel) acabe na primeira semana de
eletricidade e do gás natural, mas nenhum da Transição Energética, em Schleswig- dezembro e o novo executivo tripartido
partido se atreve a alterar o calendário de tome posse.

€15 000
encerramento dos reatores germânicos.
“Nenhum político eleito o faria e muito ARTISTA DO COMPROMISSO
menos um governo que inclua os Verdes. Robert Habeck e Annalena Baerbock são
Seria como trair a causa. Poucos temas po- tidos como a dupla realista que se impôs
líticos reunem um consenso tão alargado”, aos fundi, os verdes fundamentalistas que
diz Lion Hirth, especialista em questões ainda defendem a linha original do parti-
energéticas e professor na Hertie School do pacifista e antinuclear dos anos 80 do
de Berlim, à Deutsche Welle. século passado. No entanto, apesar dos
O próximo executivo federal, a designa- 14,8% dos votos recolhidos nas legislativas
da “coligação semáforo” – devido às cores VALOR DA REFORMA DE MERKEL de há cinco semanas, o melhor resultado
dos sociais-democratas (SPD), ecologistas A chanceler deverá manter-se em funções de sempre do movimento que também
(Aliança90/Os Verdes) e liberais (FDP) até 6 de dezembro, data em que pode se reclama ecofeminista, a prestação de
–, vai até acelerar a desnuclearização. tomar posse a “coligação semáforo” Baerbock acabou por desiludir. Este verão,

76 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


as sondagens criaram a expectativa de que
a jurista poderia suceder a Merkel, só que
os erros de campanha, a par de suspeitas
de plágio num livro recente, acabaram
com a sua áurea e obrigaram Habeck a
assumir maior protagonismo nas últimas
semanas, sem nunca secundarizar a mu-
lher que pode vir a ocupar a influente pasta
dos Negócios Estrangeiros. Para ambos, o
importante é continuarem a aproveitar o
zeitgeist (o espírito do tempo), de modo
que o partido seja cada vez mais salon-
fähig (socialmente aceitável). “No nosso
imaginário, o poder sempre foi uma coisa
desprezível, mas se quisermos transfor-
mar a sociedade devemos exercer o poder
e negociar consensos”, afirmou ele há 11
meses, como que a recordar a primeira
experiência dos ecologistas numa coliga-
ção federal, entre 1998 e 2005.
A 15 de outubro, Verdes e liberais anun-
ciaram ter chegado a um acordo com o
SPD, e a quadratura do círculo tornou-se
possível. Num documento de 12 pági-
nas, os três partidos contratualizaram as
grandes linhas de governação até 2025 e
fizeram ainda saber que a dança de ca-
deiras ficará para mais tarde. Com lugar
garantido, o de chanceler, só mesmo Olaf
Scholz. Afinal de contas, os sociais-demo-
cratas foram os mais votados (com 25,7%).
Em aberto, permanecem os outros cargos,
incluindo a pasta das Finanças muito de-
sejada por Christian Lindner, o líder libe-
ral. Quanto a Robert Habeck, também ele
pode reivindicar o mesmo ministério com
o intuito de obter financiamentos para “in-
fraestruturas neutras no plano climático”
e o “projeto de modernização industrial
mais importante dos últimos 100 anos”
– Scholz dixit. Ao contrário de António
Costa, Catarina Martins e Jerónimo de
Sousa, os três líderes da futura geringonça
alemã são verdadeiros artistas na arte de
definir prioridades e de fazer concessões.
O SPD levou avante as suas promessas de
aumentar o salário mínimo (de 9 para 12
€/hora), construir 400 mil novas casas
e atualizar as pensões de reforma pela
inflação. Em contrapartida, renuncia ao
imposto sobre a fortuna e os altos rendi-
mentos, proposta que os Verdes também
defendiam, de maneira a contentar o FDP,
interessado em manter o rigor orçamen-
tal. Já os ecologistas viram reconhecida a
necessidade de reservar 2% da superfície
do país para eólicas, de instalar painéis
solares nos novos edifícios e de se encer-
rarem “idealmente” as centrais a carvão
até ao fim da década. Em contrapartida,
abdicaram de impor limites à velocidade
nas autoestradas alemãs... ffialho@visao.pt
C O N T E Ú D O PAT R O C I N A D O
Fazer parte
da mudança no planeta
RED
com o Novo (500)
A FIAT continua a apostar na sustentabilidade do planeta e na melhoria da vida
das pessoas. Estreia-se, por isso, com o Novo 500 elétrico, o primeiro automóvel
a juntar-se à associação RED - que luta contra grandes pandemias -, contribuindo
para um fundo global que vai mudar vidas. O apelo é no sentido de os consumidores
fazerem parte desta mudança

A
FIAT está a fazer história com a estreia mundial Um carro que cuida da família
do Novo (500)RED, o primeiro automóvel (RED) do Além de os compradores fazerem parte desta mudança, há
mundo a associar-se à associação de Bono, vocalista outras palavras-chave como um futuro melhor ou cuidado
do U2, e de Bobby Shriver, que combate a SIDA que entram logo no ouvido. Ainda que não seja um carro
e a Covid-19. Há uma mensagem subjacente neste (500)RED familiar, este cuida da família, fazendo jus às expressões da
elétrico com o objetivo de “proteger o planeta e a sua gente” campanha: “Feito para o planeta. Feito para as suas pessoas”.
de olhos postos na sustentabilidade ambiental. Com o Uma série especial está, assim, disponível em toda a Fa-
slogan “Made for the Planet, Made for its People”, a mília 500: o Novo (500)RED, (500X)RED e Novo (500e)
RED RED
campanha publicitária do Novo (500) incen- . O vermelha é a característica primordial
tiva potenciais clientes a tornarem-se parte no exterior, desde a carroçaria e logótipos
desta mudança: a proteção do meio ambiente até às tampas dos espelhos e elementos de
e o combate à pandemia. Até porque, cada design nas jantes de liga leve. Esta tonali-
compra de um RED ativa uma doação ao dade também dá cor ao interior: painel de
fundo global para apoiar a prevenção, tra- instrumentos, detalhes de design nos ta-
tamento, aconselhamento, testes, educação petes, e assentos exclusivos feitos com fio
e serviços de atendimento às comunida- Seaqual®, derivados de plásticos recupe-
des mais necessitadas. FIAT, Jeep e RAM rados dos oceanos, com a assinatura FIAT
estabeleceram, assim, uma parceria com a e o logótipo (500)RED no encosto. A paleta de
RED, comprometendo-se com um mínimo de cores da carroçaria abraça outras tonalidades
quatro milhões de dólares, entre 2021 e 2023, específicas para cada modelo.
para apoiar o combate às pandemias, incluindo a Ainda com o propósito da sustentabilidade am-
SIDA e a Covid-19. biental, todos os modelos estão equipados com
Na realidade, “o objetivo não é apenas comer- um filtro de ar tratado com uma substância
cializar automóveis: a nossa nova viagem
tem também a ver com o cuidado e a
A Casa 500 biocida altamente eficaz (>99,9%) contra
vírus e bactérias. Também o volante, os
atenção ao clima, à comunidade e à e La Pista bancos e o interior do porta-bagagens
cultura”, notou Olivier François, CEO A Casa 500 é um novo espaço foram submetidos a um tratamento
da FIAT e CMO da Stellantis, durante de exposição, que faz parte do complexo antimicrobiano eficaz contra vírus e
o evento de apresentação, em Turim. museológico da Pinacoteca Agnelli, com bactérias em prol da segurança.
Mais, sublinhou: “Bono e eu fazemos a pista de Lingotto como pano de fundo. Ao comprar um automóvel da Famí-
também a estreia mundial do Novo Dedicado ao ícone da Fiat, que fez história na lia (500)RED leva para casa um Kit de
(500)RED. A missão deste automóvel indústria automóvel, é também uma viagem Boas-vindas, com um doseador de
é proteger tanto o planeta como as que projeta as raízes da FIAT para o futuro. higienização de mãos e uma capa
pessoas: é elétrico para respeitar o Outro grande trunfo da marca é o La Pista 500, específica de chave para um toque
ambiente e dar um contributo para com mais de 40 mil plantas, sendo final de personalização. Recebe ainda
um futuro mais sustentável”. E rei- o maior jardim suspenso da Europa, uma carta de boas-vindas, assinada
terou ainda que essa missão vai ago- situado na cobertura de uma fábrica por Olivier François e Bono.
ra ainda mais longe em conjunto com do início do século XX. Um pulmão Entre outros trunfos estão o logótipo 500
a RED. “Juntos, queremos combater as dentro da cidade em prol na frente e o logótipo FIAT na porta tra-
pandemias e esta é a dupla mensagem que do planeta. seira, agora em vermelho pela primeira vez
pretendemos transmitir ao mundo”. como uma homenagem à RED. Além do emblema
Há uma década na FIAT, Olivier François realçou que específico na base da janela traseira e o logótipo 500 co-
esta é “atualmente a marca líder da Stellantis em termos de locado ao meio do volante premium com estofos Soft Touch.
volume de vendas, com um milhão de veículos vendidos até A Família (500)RED oferece ainda uma opção extra como
ao momento, em 2021”, anunciando que “a partir de 2023, a contributo para a pegada ambiental:
FIAT revelará pelo menos um novo modelo todos os anos e a scooter elétrica “500 Iride” que é dobrável
cada um deles terá, também, uma versão totalmente elétrica”. e pesa 15 kg.
SAÚDE

Como os “influenciadores wellness”


estão a insuflar o negacionismo
Vender estilos de vida saudáveis e opor-se à inoculação
é um fenómeno antigo, ampliado pela pandemia. A desinformação
é uma realidade, mas há questões legítimas pelo meio

N
CLARA SOARES

ão acredite em tudo o que fundamento: um sistema imunitário ro-


lê, investigue.” Um lema útil
em fases de desorientação, GWYNETH PALTROW busto resiste ao novo coronavírus; uma
alimentação isenta de aditivos e com
que têm sido o prato do dia
desde que o SARS-CoV-2 en-
DIZ QUE TRATOU A probióticos impede a infeção; a vacina tem
efeitos tóxicos e é uma experiência global
trou nas nossas vidas. Entre FADIGA PÓS-COVID-19 que interessa a farmacêuticas e a políticos

COM JEJUM E
as mensagens desacreditadas apostados em manipular cidadãos. Quan-
pela Ciência que circulam nas do veio à tona que havia financiadores a
redes sociais, nem todas per-
tencem aos negacionistas de SUPLEMENTOS. pagar a influenciadores na área da saúde
e do bem-estar para dizerem mal da va-
extrema-direita ou aos adeptos das teorias
da conspiração. Algumas fake news são
FOI DESACREDITADA cina contra a Covid-19, surgiu a inevitável
pergunta: o mundo do bem-estar e o ceti-
propagadas entre o movimento “wellness”
e os seus influenciadores têm “culpas no
POR AUTORIDADES cismo vacinal caminham juntos?
Confrontados com a polémica, os gi-
cartório”. Vejam-se estes exemplos sem MÉDICAS gantes tecnológicos apertaram as regras

80 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Divididos
A “comunidade Yogui”
vive um cisma: vacinar
ou não vacinar

nas plataformas digitais, removendo


conteúdos e grupos que propagassem O QUE DIZEM OS NÚMEROS mar as aulas em regime presencial, “com
metade das pessoas e mais espaço entre
desinformação. O tema mereceu a aten- elas”, admite que é fácil aderir às teorias
ção do Washington Post, que analisou os da conspiração: “A pandemia penalizou
argumentos de figuras influentes no uni- 0,5% os profissionais e as regras de segurança
verso do bem-estar avessas à vacinação. Esta é a percentagem impostas geram revolta, quando outros
Conclusão: as suas alegações alinhavam- de infetados entre as pessoas setores têm menos restrições.”
-se com os resultados de um estudo do com a vacinação completa
Instituto de Dados, Democracia e Política, em Portugal. O risco de NEM HERÓIS NEM VILÕES
da Universidade George Washington – hospitalização é cerca de três A desconfiança vacinal não é homogénea,
havia uma correlação entre a partilha de a seis vezes inferior aos casos mas sim “um espetro que vai da hesitação
links com mensagens contra a vacina e os dos não vacinados ao ativismo vacinofóbico, fruto da adesão
grupos de bem-estar no Facebook, mas a filosofias alternativas sobre a saúde e
não entre grupos de saúde pró-vacina e o bem-estar.” Afirma-o Manuela Ivone
comunidades de bem-estar. Nem todos 99% Cunha, cientista do CRIA – Centro em
os famosos neste campo serão antivaci- Dos óbitos por Covid-19, nos Rede de Investigação em Antropologia,
nas, mas o fenómeno existe. Estados Unidos da América, da Universidade do Minho. Por ter “um
são de pessoas não vacinadas. cunho identitário”, esta fração minúscula
NEGACIONISMO CHIQUE No país onde não faltam da população é impermeável à persuasão
Estados Unidos e Brasil são bons exem- vacinas, apenas 57,7% da com dados científicos. Não é o caso da
plos da polarização entre os “pró” e os população tem o esquema classe média urbana, que tende a ques-
“anti”, geralmente conotados com ideo- vacinal completo tionar decisões e tem dúvidas, seja quanto
logias partidárias e, mais recentemente, aos efeitos alergénicos ou à administração
com as filosofias e práticas de bem-estar, demasiado precoce de vacinas em crian-
que saltaram para a ribalta. Na edição 9 EM CADA 10 ças de baixa idade. São posições “menos
de setembro da revista mensal brasileira Internados por Covid-19 fechadas, mais provisórias, não uma
Piauí, um artigo dava voz a ambientalis- no Brasil não estão vacinados recusa categórica” e pedem “uma comu-
tas, surfistas, modelos e influenciado- nicação que não hostilize as pessoas nem
res que disseram não à inoculação e às as trate como interlocutores ignorantes
medidas restritivas impostas pela crise a quem não são devidas explicações”.
sanitária, em nome da liberdade indivi- A investigadora adverte: “O discurso sobre
dual (a revista chama-lhes “negacionis- com o modelo da medicina ocidental e o heróis cívicos e vilões egoístas é uma es-
tas namastê”). Por exemplo, a modelo sistema Ayurveda, mas tomo remédios tratégia pouco eficaz e contraproducente,
holandesa Doutzen Kroes revelou, no quando preciso.” Reconhece que “um es- porque endurece posições defensivas.”
Instagram, não aceitar a imposição da tilo de vida saudável não impede proble- Na mesma linha, António Pereira, pre-
vacina nem ser excluída em função do seu mas graves, como o cancro ou a infeção sidente da Federação de Yoga de Portugal,
status médico. Carine Farias, professora por Covid-19” e adianta: “Seria egoísta e também se interroga acerca dos efeitos
de yoga e vegetariana, lamentou a cultura cego da minha parte não tomar a vacina; da vacina em certas patologias. “Quase
de cancelamento que a impedia de viajar até por solidariedade para com vizinhos, morri com uma meningoencefalite e não
ou de frequentar sítios públicos. amigos e familiares, não me permito ter tomei.” Desagrada-lhe o pensamento úni-
Num registo, mais “New Age”, Gwyneth essa liberdade falaciosa.” A polarização a co e o “proselitismo, contra ou a favor,
Paltrow, a atriz americana que fundou o que assistiu, sobretudo no Brasil, leva-o a até porque a ciência também tem contra-
império Goop, fez saber que tratou a fa- falar de um cisma na comunidade yogui. dições”. “Deve haver um consentimento
diga e a névoa mental que a afetavam após “Acreditava que defendíamos a natureza, informado, que não existe, pois a respon-
ter contraído Covid-19 com um jejum a medicina e a ciência, mas a divergência sabilidade do que acontecer é sempre do
intuitivo e suplementos (que vende no de posições é real”, lamenta. vacinado.” Veja-se “o risco de miocardites
site). Foi desacreditada por autoridades Após as declarações à revista brasileira e pericardites em adolescentes vacinados,
médicas, mas a mensagem passou, con- Piauí e a partilha de excertos do artigo consensual entre cientistas e pediatras,
firmando o impacto dos influenciadores e no Instagram, foi alvo de insultos online: que não impediu uma decisão política”.
das celebridades nos seguidores, que não “Chamaram-me assassino e responsável Certo é que, antes de ser política, a de-
questionam a veracidade de conselhos cármico pelas futuras mortes das pessoas cisão, na Europa, coube aos especialistas
dos ídolos, mesmo se estes se aproximam vacinadas.” Pior, recebeu duas ameaças, da Agência Europeia do Medicamento,
de correntes negacionistas ou extremis- por mensagem privada. “São extremistas que analisaram os riscos da doença versus
tas. Por outro lado, parece contrapro- políticos com verniz espiritual; vendem, os benefícios da vacina. “O risco de um
ducente olhá-los com desdém como se supostamente, um estilo de vida sau- adolescente ter miocardite com a doença
fossem da “fação inimiga”, apelidada de dável, mas são intolerantes e põem em Covid-19 é bem mais alto do que com
egoísta e inculta. Onde está a sensatez? risco a saúde, deles e dos outros.” Na a vacina”, esclarece o epidemiologista
Pedro Kupfer, um dos mais respeitados sua bolha social, gere a dissonância com Manuel Carmo Gomes. A Ciência tem
professores de yoga, surfista e vegetariano bom senso: “Respeito pontos de vista as suas contradições, sem dúvida, mas
há mais de 40 anos, tem algo a dizer e divergentes, mas evito falar do tema para ainda é com ela que contamos na hora
não teme represálias. “Estou confortável não sacrificar amizades.” Prestes a reto- da aflição. csoares@visao.pt

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 81


VAGA R

E N T R E V I S TA

Gilberto Gil
“Criar é resistir.
Resistir é criar”
Stéphane Hessel
Diplomata e escritor
(1917-2013)

“Tem sido uma grande alegria


poder reencontrar o público”
ANTES DOS CONCERTOS EM PORTUGAL,
A MEIO DUMA DIGRESSÃO EUROPEIA
QUE PREPARA A CELEBRAÇÃO, EM GRANDE,
DOS SEUS 80 ANOS EM 2022, GILBERTO GIL
FALOU COM A VISÃO. E REVELA QUE ACREDITA
QUE LULA DA SILVA PODE MESMO VOLTAR
A SER ELEITO PRESIDENTE DO BRASIL
PEDRO DIAS DE ALMEIDA

82 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Verde Gilberto Gil, fotografado para a revista Elle
do Brasil, em 2020, em nome da Natureza

2 8 O U T U B R O 2 0 2 1 FOTO:
VISÃ BOB 83
O WOLFENSON
E
E N T R E V I S TA

Em 2022, Gilberto Gil vai cumprir 80


anos de vida (e, já agora, o seu grande
amigo e companheiro de muitas lides
musicais Caetano Veloso também). A
Amazon Prime Video vai dedicar, então,
toda uma série ao quotidiano da família
Gil, num ano em que o músico prepara
uma grande digressão mundial. A série,
realizada por Andrucha Waddington,
ainda não tem título definitivo, mas a
partir de um quarto de hotel em Viena,
via Zoom, Gilberto Gil partilha com a
VISÃO uma hipótese: “Há uns nomes
provisórios, ainda vamos decidir com a
Amazon... Mas Nós, a Gente é uma forte
possibilidade.” A série não versará só so-
bre o lado artístico da família, inclui as
FOT: JOÃO WAINER

relações da família toda, várias gerações


– “Mais de 30 pessoas!”, diz o músico.
No centro está Gilberto, uma espécie de
patriarca, um sábio ancião, nascido em
junho de 1942 em Salvador da Bahia,
filho de um médico e de uma professora
primária. Mas quem o vê sambando e VOLTA A PORTUGAL
sorrindo nos palcos por estes dias tem “Estou aguardando com expectativa e curiosidade a chegada a
alguma dificuldade em colar-lhe essa Portugal, vou atuar em cidades onde nunca estive, lugares que não
etiqueta de “ancião” e, mais ainda, em conheço, onde nunca toquei...”, diz-nos Gilberto Gil a partir de Viena,
imaginar que está perante um bisavô em plena digressão europeia. Os concertos em palcos portugueses
(mas Sol de Maria, sua bisneta, neta de começam já nesta sexta-feira, 29, em Vila Real. Segue-se o
Cineteatro Avenida, em Castelo Branco, no domingo, 31; o Coliseu
Preta Gil, já vai fazer 6 anos neste mês de Lisboa nas noites de 2 e 3 de novembro; o Theatro Circo, em
de novembro). Braga, a 5 de novembro; e, finalmente, terminando a digressão, o
A digressão que agora tem percorrido CNEMA, em Santarém, no dia 7.
a Europa e chega a Portugal nesta sexta, Todos os concertos vão contar com a participação especial de
29 (ver caixa) já é, de algum modo, um Adriana Calcanhotto, bem conhecida do público português (noutros
ensaio para esses concertos que, em países ela fez, sozinha, a primeira parte do espetáculo) e vão
2022, levarão a família Gil pelo mundo percorrer a obra de Gilberto Gil, não se centrando em nenhum disco
em celebração do 80º aniversário do em particular. Ou, nas palavras do músico, “a base é um repertório
aberto a todas as épocas”. Estes concertos deveriam ter acontecido
músico. Em palco estão o filho Bem Gil,
em 2020, mas foram adiados devido à pandemia. Para 2022, está
na guitarra, voz e direção musical, e o prometida uma digressão mundial que contará com ainda mais
neto João, também na guitarra; a neta, membros da família Gil em palco (em Portugal, nestas datas, tocarão
Flor, de apenas 13 anos, também tem o filho Bem, e os netos João e Flor, de apenas 13 anos).
direito ao seu momento, “cantando e
tocando um pouco de teclados”. José
Gil, que costuma tratar da bateria e

84 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Em ação A atual digressão europeia de Gilberto Gil
termina com seis concertos em Portugal. Adriana
Calcanhotto também faz parte do programa

percussão, acabou por ficar no Brasil e um mês e meio na sua Salvador da


devido a uma lesão de última hora (foi Bahia. “No Brasil, em particular, a questão
substituído pelo músico Marcelo Costa). EM 2022, UMA SÉRIE exacerbou-se por causa da posição do
governo central, especialmente do Pre-
‘JÁ SEI QUE QUEREM PRODUZIDA PELA sidente da República, com o seu grau de
A MINHA OPINIÃO’
Quando encontrámos Gilberto Gil e AMAZON VAI SER negacionismo muito forte, a sua grande
descrença nas recomendações técnicas
Caetano Veloso em Amesterdão, em 2015,
numa entrevista a pretexto dos concertos
TODA DEDICADA À e científicas, uma posição política muito
reacionária. Houve descuido em relação
que deram juntos por toda a Europa, o
músico explicou que, por causa desses
FAMÍLIA DE GILBERTO às providências que deveriam ter sido
tomadas, à urgência nas decisões sobre
espetáculos com o amigo, tinha adiado a GIL. “HÁ UNS NOMES a futura vacina, por exemplo... Em vários
digressão europeia de Gilbertos Samba,
PROVISÓRIOS, AINDA
lugares houve muitos problemas durante
o disco que editou em 2014 de homena- a pandemia, no Brasil tudo foi ainda mais
gem a João Gilberto. Ficaria adiada para
sempre (mas pode ser ouvida num disco VAMOS DECIDIR... MAS intensificado por causa dessas razões.”
É obrigatório perguntar se, já numa
ao vivo editado no mesmo ano).
Desde 2015 muito mudou... Com a elei-
NÓS, A GENTE É UMA altura de balanços do tumultuoso go-
verno de Bolsonaro, que venceu as
ção para Presidente da República do Brasil, FORTE POSSIBILIDADE”, eleições de outubro de 2018 com uma

REVELA O MÚSICO
em 2019, de um ex-militar conhecido por maioria clara sobre Fernando Haddad
declarações a favor da ditadura militar (do Partido dos Trabalhadores), Gilberto
chamado Jair Bolsonaro e uma pandemia Gil está ansioso pelas eleições de 2022, e
pelo meio, que se tornou especialmente como olha para elas. Resposta, em ritmo
sensível e polémica no Brasil. Na faixa pausado: “Julgo que a sensação geral da
que dava título ao disco de Gilberto Gil sociedade brasileira passa pelo reco-
Ok Ok Ok, lançado em 2018 (o seu mais nhecimento de um certo fracasso desse
recente de originais), os primeiros ver- governo, sobretudo na sua conceção e
sos pareciam dar a adivinhar o interesse execução de políticas públicas, na sua
por ouvir as declarações do artista sobre capacidade para gerir o investimento
questões sensíveis: “Ok Ok Ok Ok Ok Ok... do Estado. E há uma questão pessoal:
Já sei que querem a minha opinião/ Um
papo reto sobre o que eu pensei/ Como
interpreto a tal, a vil situação...” E a verdade

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é que queremos mesmo. Gilberto não se
furta a nenhumas questões, mas é cau-
teloso, e sereno, na escolha das palavras.
Afinal, além de ser um dos artistas mais
respeitados da história da MPB, ele pode
ser visto também como ex-político, já que,
entre 2003 e 2008 foi ministro da Cultura
durante a presidência de Lula da Silva.

A ‘VIL SITUAÇÃO’
E como viu, então, a “vil situação” da
pandemia a partir do Brasil? “Senti mais
pesar do que medo pessoal, temor de
ser afetado pela doença”, diz-nos. “Tive
uma sensação mais pesarosa, pelas mor-
tes, pelo sofrimento geral e uma grande
aflição tomando conta da Europa, dos
EUA, de várias partes da América e do
mundo... A cobertura jornalística foi
muito intensa e estávamos em contacto
permanente com as grandes questões
da pandemia nas vidas das pessoas, nas
cidades e os seus isolamentos... Foi mui-
to intenso.” Gilberto Gil passou a maior
parte do tempo fechado na sua casa de
Copacabana, Rio de Janeiro, com umas
fugas cautelosas a “uma pequena pro-
priedade na região da serra lá do Rio”
E N T R E V I S TA

‘REFLORESTA’ próxima eleição no Brasil, não surgiu


ainda nenhuma terceira via...” E acredita
O Instituto Terra foi fundado em 1998 pelo fotógrafo Sebastião mesmo que Lula da Silva pode vir a ser
Salgado e a sua mulher, Lélia Deluiz Wanick Salgado, com o objetivo o futuro Presidente do Brasil? “Acredito
declarado de “devolver à Natureza o que décadas de degradação que poder ser o próximo Presidente, é
ambiental destruíram.” Para dar visibilidade aos seus projetos de bem possível que isso aconteça.”
reflorestação, já em 2021, encomendaram a Gilberto Gil uma canção.
Refloresta, o mais recente original do músico baiano, não podia estar
mais relacionado com esta edição especial da VISÃO dedicada ao ‘FAZEMOS TODOS PARTE
ambiente. No videoclipe, cheio de fauna e flora a rodear os músicos, DESTA HISTÓRIA’
pode ver-se a banda Gilsons – composta por José Gil, filho de Gilberto, Como aconteceu na vida de muitos
e Francisco e João, seus netos. Desde sempre um grande defensor artistas, os tempos da pandemia não
das causas ambientais, Gilberto Gil, em entrevista à VISÃO, critica a foram muito profícuos nem criativa-
atuação do governo brasileiro nessa matéria nos últimos três anos: mente inspiradores para Gilberto Gil,
“As suas políticas ambientais foram pífias, mínimas, na contramão das mas não esteve parado. “Refugiei-me
expectativas internacionais e mesmo das nossas, brasileiros.” um pouco no contacto com a minha
A letra de Refloresta não podia ser mais direta em nome de um guitarra, o meu violão, tocando, impro-
ativismo ecológico. Começa assim: “Manter em pé o que resta não visando, divagando sobre harmonias e
basta/ Que alguém virá derrubar o que resta/ ritmos. Criei, até, algumas cançonetas
O jeito é convencer quem devasta/ A respeitar a floresta.” instrumentais, sem letras.”
Mas houve duas exceções, uma delas
versando diretamente o tema da pan-
demia. Com o poeta moçambicano Ruy
Guerra compôs uma canção para uma
temporada especial da série da Globo
Sob Pressão (também título da canção,
lançada como single em outubro de
2020). A interpretação não podia ser
mais de luxo, com as vozes de Gilberto
Gil e Chico Buarque. “A peste avança
pelos corredores...”, ouvimos na incon-
fundível voz de Chico. “Fazemos todos
parte desta história/ mesmo que os
tontos blefem com a morte/ num jogo
de verdades e mentiras/ um jogo duplo
de azar e sorte”, canta Gilberto.
Já em 2021, Gilberto Gil compôs ou-
tra música, Refloresta, uma encomenda
do Instituto Terra, do fotógrafo Sebas-
tião Salgado (ver caixa nesta página).
D.R.

Mas, por agora, toda a concentra-


o lado muito conservador, reacioná- ção deste homem de 79 anos está nas
rio, conflituoso do próprio Presiden- noites em que sobe aos grandes palcos
te. Tudo isso acarretou um descrédito europeus. “Tem sido uma grande alegria
que se foi acentuando ao longo destes poder reencontrar o público em vários
três anos. Houve uma desqualificação países. E vejo as pessoas de volta à festa
do governo como um todo... e dificul-
dades acrescidas na hipótese de uma “HÁ UM DESCRÉDITO e ao entusiasmo nesse reencontro com
os seus artistas. Tenho sentido isso em
reeleição em 2022. Ao mesmo tempo,
houve a recuperação de uma figura CRESCENTE EM RELAÇÃO todos os lugares”, diz.
No final, a emoção é garantida com a
importantíssima da vida política brasi-
leira: o ex-Presidente Lula. Assistimos
AO PRESIDENTE, interpretação em coro de Aquele Abraço
e a esperança no futuro não podia estar
à recuperação da sua imagem pública, BOLSONARO, E UM CRÉDITO mais bem representada: Sereno Lomeli-

QUE FOI AUMENTANDO,


um reposicionamento da justiça em no, de 4 anos, neto de Gilberto Gil, filho
relação aos processos que o visavam e de Bem, já se aventura pelo palco, onde
tinham afetado... Resumindo a situação:
há um descrédito crescente em relação DE FORMA MUITO NÍTIDA, estão tantos familiares seus. E é neste
momento da conversa que, no ecrã do
ao Presidente, Bolsonaro, e um crédito
que foi aumentando de forma muito
NOS ÚLTIMOS TEMPOS computador ligado a um quarto de ho-
tel em Viena, o rosto de Gilberto Gil se
nítida nos últimos tempos em relação
ao Presidente Lula. Ambos estabele-
EM RELAÇÃO AO ilumina num franco sorriso: “Sim, ele já
sobe ao palco, gosta de imitar o seu pai
cem a grande polarização atual para a PRESIDENTE LULA” e o primo João!” palmeida@visao.pt

86 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Seja responsável, beba com moderação.

A frescura que apetece descobrir no momento,


as notas leves de frutos e flores, ou o tempo de espera,
o caráter que se apura e amadurece ao longo do tempo.
Tudo o que é autêntico tem uma origem
e esta é Monção e Melgaço.
FOTOGRAFIA

Oliveira, fotógrafo por revelar


Uma “arca” de fotografias descoberta no arquivo pessoal
do realizador de Aniki-Bóbó deu origem a esta exposição com
120 imagens suas na Fundação Gulbenkian. Luz, câmara, inação!

E
S Í LV I A S O U TO C U N H A

stão lá os enquadramentos
medidos com regra e esqua-
dro, personagens fortes, os
rostos expressivos, a experi-
mentação formal, a obsessão
estética. E ainda o preto e
branco sem asperezas, as proezas de luz
e de sombras, as gentes do Douro e do
Porto, o ponto de vista que insuflou a sua
cinematografia premiada... mas tudo em
versão estática. Manoel de Oliveira (1908-
2015), o realizador incansável de filmes
como Vale Abraão (1993) ou Party (1996),
tinha este trunfo escondido no arquivo
pessoal: aí foram encontradas 120 foto-
grafias, captadas entre os finais de 1930 e
o início dos anos 50 – uma interrupção
prolífica, vivida entre o pousio prolongado
a que se sujeitou entre Aniki-Bóbó (1942)
e o seu regresso à cadeira de realizador
com a película O Pintor e a Cidade (1956).
Na sua maioria inéditas, estas fotogra-
fias mostram-se na exposição Manoel de
Oliveira Fotógrafo, patente na Fundação
Calouste Gulbenkian a partir desta sexta-
-feira, 29. Tiradas com a sua fiel Leica, ex-
ploram géneros que, por exemplo, também
Cartier-Bresson (1908-2004) registou: as
paisagens, as naturezas-mortas, os efeitos
óticos, os retratos, os marginalizados, as
invenções da vida moderna como a avia-
ção e a velocidade – a “doença alegre do
século XX” dos jovens de então, aponta a
crítica Maria do Carmo Serén no belíssimo
catálogo bilingue. A fotografia foi também
um laboratório para Manoel de Oliveira.
Escreve o curador António Preto: “O rea-
parecimento destas imagens vem instruir
uma tensão de fundo entre duas formas e
duas linguagens; melhor dito, entre o que
viriam a ser algumas das polaridades fun-
damentais do cinema de Oliveira: tempo e
espaço, estatismo e movimento, narração
e mostração, documento e representação.”
O que mais importa? “Interrogar o modo Paisagem com barcos
como esta convivência entre dois modos
A exposição Manoel de Oliveira Fotógrafo sublinha a influência
de ver e de pensar se corporiza na obra do do amigo e fotógrafo amador António Mendes, que colaborou nos
realizador.” scunha@visao.pt primeiros filmes do mestre, como Douro, Faina Fluvial (1931).

88 VISÃO 28 OUTUBRO 2021


Ensaios
Há documentos que registam as participações de Manoel de Oliveira, em 1939 e 1945, em cinco
dos seis Salões Internacionais de Arte Fotográfica promovidos pelo Grémio Português de Fotografia.
À época, críticos davam conta da “perfeição técnica” e da “elevada conceção” de certas imagens.

Teoria da substituição Arquivo aberto


Laços entre fotografia e cinema estreitam-se, em As fotografias agora patentes no hall
exemplos como os das fotografias no circo, tiradas da Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian
no ano em que Manoel de Oliveira escreveu o correspondem a provas originais, ou a ampliações
argumento d’O Saltimbanco (1944). feitas a partir de negativos.

28 OUTUBRO 2021 VISÃO 89


CRÓNICA

O
convite veio do Miguel Fragata. Tinha em mãos o
objetivo de pôr em cena O Pranto de Maria Parda,
de Gil Vicente, 500 anos depois. Disse-me que tinha
o coração cheio de dúvidas, porque se, por um lado,
nunca tivera simpatia pelo autor, por outro parecia-
lhe importante enquadrar aquele texto nos dias de
hoje. Até porque fazia todo o sentido.
P O R C A P I C U A / Rapper O Pranto de Maria Parda nasceu em 1521, no
rescaldo de um ano de seca, fome e miséria. Maria Parda, mulher,
andrajosa e alcoólica, vagueia pelas ruas de Lisboa em busca de vinho,
incapaz de reconhecer a cidade, desfigurada pela desgraça. Quinhentos

“O Pranto anos depois, no rescaldo de um ano de pandemia, de isolamento, de ruas


desertas e falências, mas também de contínua gentrificação e segregação
espacial, parecemos ter dificuldade em reconhecer o (nosso) mundo.

de Maria Importava também discutir, porque, ao longo da história do teatro


português, Maria Parda tinha sido quase sempre representada como
sendo negra, mesmo não havendo nenhuma indicação de Gil Vicente

Parda” nesse sentido. Importava questionar essa associação entre a negritude


e o infortúnio, na forja de uma simplificação preconceituosa da palavra
“parda”, que aqui tem mais que ver com a invisibilidade do que com a
melanina, apesar da tosca reificação ao longo dos séculos. Importava
debater as questões de género, do racismo, da segregação urbana, numa
nova encenação do texto, à luz da experiência dos últimos meses de
pandemia.
A proposta do Miguel era que se compusesse um tema para a banda
sonora da peça. O desafio implicava participar nas sessões de debate com
especialistas. José Camões, especialista na obra Gil Vicente, ajudou-nos a
perceber o texto e as suas referências históricas e geográficas. Mamadou
Ba, Naki Gaglo, Marta Araújo, Sílvia Maeso, Joana Gorjão Henriques
instigaram-nos a pensar sobre racismo, colonialismo, segregação
espacial e sobre a nossa História e a forma como a reproduzimos,
ensinamos e cristalizamos. Foi uma intensa experiência de reflexão que
resultou em mais dúvidas do que certezas sobre o caminho a seguir.
No fim, decidi escrever uma carta a Maria Parda, num tema que
explora a ideia de que, afinal, o que vivemos, tanto em 1520 como em
2020, não foi apenas um ano mau. Porque se, desde então, houve quem
tivesse de produzir para outros enriquecerem, houve quem tivesse de
viver subjugado para outros dominarem, houve quem tivesse de ser
expulso para outros expandirem os seus impérios, houve quem tivesse
de calar para que outros tivessem a única versão da História, um ano
mau é pouco. Foram 500. Quinhentos anos maus. Quinhentos anos
maus para purgar.
Poder fazer parte de um processo de criação tão interessante foi um
privilégio. Mas como não assisti aos ensaios e nem às últimas decisões
dramatúrgicas, não sei como confluiu em cena a conciliação entre o
texto de Gil Vicente e todas as questões sociais, políticas e históricas
que não podemos ignorar nos idos de XXI. Estou ansiosa para ver,
finalmente (com todos os adiamentos que a pandemia foi impondo), O
Como se trouxe a Pranto de Maria Parda no Teatro Nacional Dona Maria II, no corpo e
figura de Maria Parda na voz de Cirila Bossuet. Ver como se fez o caminho da Lisboa medieval
para a Lisboa turística da atualidade, como se trouxe a figura de Maria
das ruelas sinuosas da Parda das ruelas sinuosas da boémia para o centro da praça pública,
boémia para o centro da invisibilidade para o microfone, da indigência para a dignificação.
da praça pública, Ver como todo aquele intenso processo de debate se traduziu em
espetáculo, na concretização da arte como convite à reflexão, como
da invisibilidade intimação para o questionamento, como desconcerto no sentido do
para o microfone, crescimento, individual e coletivo. Estou certa de que o Miguel, a Cirila e
restante equipa conseguirão purgar os tais 500 anos em 60 minutos de
da indigência espetáculo e de que eu estarei na plateia para aplaudir. Emocionada.
para a dignificação visao@visao.pt

90 VISÃO 28 OUTUBRO 2021

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