Você está na página 1de 4

ESPECIAL | Veículos Autônomos

24 Computação
01 / 2014
Revista da
Sociedade Brasileira
de Computação Brasil
VEÍCULOS AUTÔNOMOS E

DEFESA
NACIONAL
Os riscos e os desafios em
um mundo em transformação
por Alexandre Fuccille

EM ESPECIAL NO PERÍODO PÓS-MURO DE BERLIM E FINDA


A GUERRA FRIA, NA PASSAGEM DOS ANOS 1980 PARA
1990, CRESCEU FORTEMENTE UM DISCURSO ACERCA DA
VEÍCULOS EROSÃO DAS FRONTEIRAS NACIONAIS EM UM MUNDO

AUTÔNOMOS CRESCENTEMENTE GLOBALIZADO. APRESENTADA MUITAS


VEZES COMO UMA REALIDADE INEXORÁVEL, A FORÇA DO

NÃO TRIPULADOS CAPITAL – PRODUTIVO E FINANCEIRO – PARECIA QUERER


VARRER AS ANTIGAS DIVISÕES QUE MARCAVAM O ESTADO
Conheça esta nova tecnologia que MODERNO DESDE O ADVENTO DA PAZ DE VESTFÁLIA EM 1648.
começa a ganhar força no Brasil.

1 / 155 14 / 155
ESPECIAL | Veículos Autônomos ESPECIAL | Veículos Autônomos
OM OS TRISTES ACONTECIMENTOS de 11 de Desde então, constantes violações de soberania territorial, exe-
TFUFNCSPEFOBNBJPSQPUÐODJBFDPOÙNJDB  cuções sumárias e seletivas na casa dos milhares (incluindo
política e militar do planeta, os Estados Unidos da mulheres e crianças, sem o devido processo legal e o mínimo
América (EUA), cai por terra junto com as torres direito de defesa que qualquer cidadão possui), ataques a alvos
gêmeas a cantilena do fim da história à la Fukuyama combina- físicos, entre outros “efeitos colaterais”, têm sido uma constante.
C
da ao ingênuo ideário de uma paz perpétua idealizado por Kant Ao mesmo tempo, de domínio exclusivo dos países centrais e/
havia mais de dois séculos. Para fazer frente à ameaça do terror, ou avançados científica e tecnologicamente, as nações periféri-
elemento que surgia com intensidade na alvorada do presen- cas do sistema internacional pouco ou quase nada podem fazer
te século, controle e vigilância de fronteiras, bem como uma com respeito à crescente utilização do que tem sido chamado
nova estratégia de Defesa, ganhavam revigora- de “o futuro da guerra”, em razão da rarefeita possibilidade de
da centralidade contrastando com o período pressão e voz limitada que possuem. Longe de aqui querermos
Aparentemente uma imediatamente anterior. É neste contexto que, sugerir uma ação do tipo ludista em pleno século XXI, a ques-
tecnologia apenas de apesar de anterior, emerge com força o debate tão de fundo é a falta de um regramento no tocante a esta maté-
aspectos positivos, sobre o emprego de veículos autônomos em ria.
(...) a utilização dos Defesa Nacional – em especial os Veículos Aé- O que assistimos recentemente no escândalo de megaespiona-
veículos autônomos reos Não Tripulados/VANTs, os Veículos Ter- HFNQFSQFUSBEPQFMPT&6"FSFWFMBEPQPS&EXBSE4OPXEFO
suscita um conjunto restres Autônomos/VTAs e os Veículos Náuti- foi, na ausência de uma clara regulamentação internacional
de questões que cos Autônomos/VNAs. em torno da utilização e emprego das novas tecnologias da in-
não pode ser Aparentemente uma tecnologia apenas de as- formação e comunicação (TICs), um Estado nacional agir de
negligenciado pela pectos positivos, como poupar vidas humanas forma imperial, bisbilhotando tudo e todos que julgasse conve-
Academia. em uma das atividades mais antigas da huma- OJFOUF3FDFOUFNFOUF FNTFUFNCSPEF OBBCFSUVSBEB‹
nidade, o fazer a guerra, garantindo alcance/
1 Assembleia Geral das Nações Unidas – tradicionalmente reali-
penetrabilidade, autonomia e uma incrível manobrabilida- Dados da Columbia
zada pelo Brasil –, a presidente Dilma Rousseff (também alvo
de, a utilização dos veículos autônomos suscita um conjunto University estimam dos grampos pelo grande irmão do Norte) foi dura ao afirmar
de questões que não pode ser negligenciado pela Academia. que pelo menos 1/3 dos que “o que temos diante de nós é um sério caso de violação dos
mortos são civis. Em um
De número significativo já no governo George Walker Bush artigo publicado por direitos humanos e desrespeito à soberania”. A instrumentali-
 oOPFTUFJPEBEPVUSJOBEFBUBRVFTQSFWFOUJWPTF David Kilcullen e Andrew zação do ciberespaço em prol da defesa de interesses nacionais
McDonald Exum no New
em especial nos conflitos do Afeganistão e Iraque –, as opera- (ainda que legítimos) redundou em ação ilegal e antidemocrá-
York Times – ambos oficiais
ções militares empregando veículos autônomos explodiriam na da Reserva Remunerada tica, por violarem o direito internacional, os direitos humanos,
administração Barack Obama, ironicamente o presidente ven- dos EUA –, lê-se que a soberania dos países e as liberdades civis. Foi nesse contexto
no Paquistão os VANTs
DFEPSEP1SÐNJP/PCFMEB1B[EF NFTNPBOPFNRVFTF matavam 50 civis para que a mandatária brasileira propôs um “marco civil multilateral
inicia seu mandato. cada militante. para a governança e o uso da internet”. Urge trabalharmos na
15 / 155 16 / 155
ESPECIAL | Veículos Autônomos ESPECIAL | Veículos Autônomos

mesma direção com respeito aos veículos autônomos e os des- mericano da ação militar, enfraquecendo
e as restrições políticas
dobramentos que estes trazem, em especial na esfera da políti- sobre (...) a guerra sem fim”.
fim Ou ainda, conforme Noel Sharkey
2 ca pensada de forma ampla. (cientista da computação da She-
Por mais paradoxal que possa parecer, os ataques de aviões ffield University e presidente do
Recordemos que, não tripulados dos modelos Predator e Reaper contra suspei- Comitê Internacional para o Con-
etimologicamente, política
tos de terrorismo fora dos EUA fizeram acender a luz ama- trole de Armas Robóticas), é preciso se
trol
vem de “pólis”, ou seja,
de tudo aquilo que era rela em Washington. Nos primeiros meses do ano passado o evitar que tecnologias como os veículos
vinculado à cidade, ao que presidente Obama começou a dar sinalizações de que a Casa autônomos representem “o passo final
é citadino, enfim, ao espaço
público.
Branca, receando o domínio de veículos autônomos e o seu na revolução industrial da guerra – uma fábrica limpa de
emprego em combate por parte de Forças Armadas como as matança, sem a presença física do sangue em nossas mãos e
chinesas e a russas, pretende tomar a liderança na definição sem qualquer baixa no nosso lado”. Cabe ainda recordar, como
de possíveis diretrizes mundiais para o emprego de drones. FTDSFWFV$MBVTFXJU[FNTVBDMÈTTJDBPCSBEPTÏDVMP9*9JOUJUV-
Notem, não são as execuções extrajudiciais em um sistema lada Da Guerra, que por mais estranha, irracional e sem razão
internacional por definição anárquico, nem que estas mesmas que pareça a guerra, ela nada mais é do que a continuação da
ocorram fora dos teatros de guerra/operação, que sensibilizam política, só que por outros meios. Assim, é por meio da política,
as lideranças mundiais. Infelizmente, a realpolitik e o pesado igualmente, que devem ser reguladas e definidas as tarefas a ela
jogo de poder mundial parecem falar mais afeitas.
Infelizmente, a alto. No Brasil, em razão do papel que este almeja em um mundo
realpolitik e o pesado Ainda que isto seja um fato, essa realidade em acelerada transformação, com o surgimento de novos vér-
jogo de poder não pode eclipsar a necessidade de se avançar tices de poder, nossas Forças Armadas têm, muitas vezes em
mundial parecem na definição de um arcabouço normativo-le- parceria com nossas Universidades, buscado se inserir no seleto
falar mais alto. gal para as questões envolvendo os veículos grupo de detentores da tecnologia de veículos autônomos. Esse
autônomos e a Defesa Nacional dos países (a LOPXIPXFFYQFSUJTFTÍPGVOEBNFOUBJTEBEPPNFUBNPSGPTF-
exemplo do que hoje se passa com relação às TICs), e a Or- ante cenário da guerra neste século XXI. Ainda que tecnologia
ganização das Nações Unidas/ONU é por excelência o palco superior não seja sinônimo de vitória – e a História está repleta
para a ampliação desse atrasado e urgente debate, com parti- de exemplos mostrando como o acaso, as considerações polí-
cular destaque para as esferas do direito e da ética. A severa ticas e a estratégia militar podem mudar o curso dos conflitos
DSJTFFDPOÙNJDBJOUFSOBDJPOBMFNDVSTPEFTEFQBSFDFUFS –, ela pode influenciar decisivamente os desdobramentos re-
anestesiado consciências e responsabilidades planeta afora. definindo os termos políticos da disputa em questão. Temos
Mas o desafio segue colocado. massa crítica e desejo de influir nos rumos deste debate, sendo
Como a socióloga Mary L. Dudziak destacou, “os VANTs são para tanto necessário a coadunação de esforços do Itamaraty,
um passo tecnológico que isola ainda mais o povo norte-a- de nossa Academia e Associações Científicas, das três Forças

17 / 155 18 / 155
ESPECIAL | Veículos Autônomos ESPECIAL | Veículos Autônomos
(Exército, Marinha e Aeronáutica), bem como da sociedade ci- trulhamento de nossas águas jurisdicionais marítimas e interio-
vil interessada em aportar reflexões à construção de um quadro res. Em tempos de Pré-Sal, com uma Amazônia riquíssima em
normativo-institucional internacional. reservas de minério, madeira, fauna e flora (a maior biodiver-
Enfim, os veículos autônomos vieram para ficar e não se pode sidade do planeta), de crescimento dos ilícitos trans-
girar para trás a roda da história. Mesmo dentro da Defesa Na- nacionais (sobretudo armas e drogas), com grandes
cional, os ganhos que este tipo de tecnologia podem trazer são Em tempos de eventos esportivos pela frente, entre outros pontos, o
imensuráveis, podendo evitar que milhares ou milhões de vidas Pré-Sal, com uma Brasil não pode abdicar desse tipo de tecnologia.
humanas venham a ser ceifadas ao longo das próximas décadas. Amazônia riquíssima Inúmeras outras facetas poderiam aqui ser aventadas,
Não obstante, é preciso que cesse seu emprego indiscrimina- em reservas de mas, dadas as limitações de espaço deste artigo, o as-
do, com assassinatos seletivos em larga escala, e que as cadeias minério, madeira, pecto central para o qual estamos querendo chamar a
de comando e responsabilidade sejam clarifi- fauna e flora (a maior atenção é o de que, em tempos de aceleradas transfor-
cadas. As máquinas não podem substituir as biodiversidade mações geopolíticas no sistema internacional e sem
Mesmo dentro da
decisões humanas, como vem ocorrendo em do planeta), (...) uma regulamentação normativo-legal democrática de
Defesa Nacional, os
uma base recente em vários armamentos de o Brasil não pode amplo espectro – sob os auspícios da ONU –, os veí-
ganhos que este tipo
defesa capazes de identificar, perseguir e elimi- abdicar desse tipo de culos autônomos, instrumentos capazes de sintetizar
de tecnologia podem nar o que julgam “ameaças próximas”. Apenas o sonho de executar tarefas em prol da humanidade
tecnologia.
trazer são imensurá- para ilustrar, Israel acaba de vender à China e sem colocar vidas em risco, podem se transformar em
veis, podendo evitar á Índia (entre outros países) uma arma capaz um enorme pesadelo para essa mesma civilização.
que milhares ou mi- de executar missões independentemente do
lhões de vidas hu- ser humano. Para tanto, o VANT conta com
manas venham a ser um sistema capaz de identificar e lançar uma
ceifadas ao longo das bomba contra qualquer sinal de radar que não
próximas décadas. conste em seu banco de dados como “amigo”.
Já imaginaram os possíveis estragos sob o eu-
femismo de “danos colaterais” em tempos de guerra eletrônica?
É forçoso lembrar que, do arco e flecha às armas inteligentes, a
ALEXANDRE FUCCILLE | É Doutor em Ciência Política (UNI-
decisão do emprego é fundamentalmente política, humana, e
CAMP), professor da UNESP (Universidade Estadual Paulista) e
não se pode renunciar a essa responsabilidade.
membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacio-
Voltando ao nosso país, de dimensões continentais, os veículos
OBM (&%&4 5SBCBMIPVOP.JOJTUÏSJPEB%FGFTBEFB
autônomos podem jogar um papel imenso na tarefa da Defe-
sa Nacional, seja na vigilância e monitoramento das fronteiras
terrestres, na proteção de nosso espaço aéreo ou ainda no pa-
19 / 155 

Você também pode gostar