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João Furtado

JOÃO FURTADO
é economista e
professor da Escola
Politécnica da USP.
As relações
tecnológicas
do Brasil com o
mundo exterior:
passado,
presente e
perspectivas
RESUMO

Este ensaio apresenta uma reflexão sobre as relações entre a economia


brasileira e o mundo exterior numa perspectiva tecnológica. Utiliza para isso
as principais dimensões do balanço de pagamentos, procurando explorar
as suas relações ao longo do tempo. Ele apoia-se em trabalhos anteriores
que desenvolveram os indicadores do balanço de pagamentos tecnológico,
mas volta-se para os aspectos conceituais, para as relações entre as várias
dimensões e para a compreensão dos processos de mudança. A reflexão
produzida apoia-se em evidências de variadas indústrias e atividades
econômicas e lança mão de elementos conhecidos da realidade brasileira, o
que permite abrir a argumentação e facilitar o enriquecimento da discussão
com novas perspectivas para um debate que tem muito a contribuir para o
desenvolvimento brasileiro.

Palavras-chave: tecnologia, indústria, economia, realidade brasileira.

ABSTRACT

This article presents a reflection on the relation between Brazilian economy and
the world outside under a technological perspective. To do so, it makes uses the
main dimensions of the balance of payments, seeking to explore its relations
throughout time. It is grounded on previous works which developed the indica-
tors of technological balance of payments, but if focus on the conceptual aspects,
on the relations between the many dimensions, and on the understanding of the
change process. The reflection is based on supporting documents from diverse
industries and economic activities, and makes use of known elements of the
Brazilian reality. That enables us to start the argumentation and to enrich the
discussion with new perspectives so that we can have a debate which can make
a wealth of contribution to the Brazilian development.

Keywords: technology, industry, economy, Brazilian reality.


continental, com um desenvolvimento
fortemente baseado em recursos naturais até
meados do século XX2, o Brasil apresentou
durante pelo menos meio século uma forte
expansão econômica liderada pelo setor in-
dustrial, que progressivamente foi tornando
menos importante (em termos relativos) o

E
setor primário e as suas exportações. Essa
expansão ofereceu um espaço privilegiado
para as empresas estrangeiras (multinacio-
nais, sobretudo) de todas as origens. Capitais
europeus, estadunidenses e japoneses aqui
lançaram bases de sua expansão internacio-
ste ensaio toma como pon- nal desde meados dos anos 1950. A forte
to de partida os estudos de- presença de capitais e empresas de origem
senvolvidos anteriormente estrangeira conviveu desde então com um
no quadro dos Indicadores forte setor empresarial de origem estatal e
de Ciência, Tecnologia com uma regulação pública que ajudou, du-
e Inovação, um volume rante vários decênios, a moldar as relações
editado regularmente pela das empresas (de todas as origens) com os
Fundação de Amparo à fornecedores estrangeiros de tecnologia. O
Pesquisa do Estado de São Paulo1. Nas três tripé de capitais – privado nacional, privado
últimas edições dessa publicação que a Fa- estrangeiro e estatal – desenvolveu três
pesp oferece à comunidade de ciência, tec- dinâmicas particulares com relação à tec-
nologia e inovação, o escopo do capítulo que nologia e ao desenvolvimento. As grandes
trata do balanço de pagamentos tecnológico empresas de origem estrangeira contaram,
foi sendo redefinido para ganhar contornos durante muito tempo, com a suficiência da
coerentes com a seguinte questão principal: matriz como fonte segura para o seu prota-
como se descreve, de modo abrangente e gonismo industrial; e para a liderança que
sintético, o conjunto de relações de natureza facilmente conquistaram em grande número
tecnológica que existem entre um país e os de setores, que se viu reforçada nos prin-
demais? Este artigo dá continuidade a essa cipais períodos de crescimento acelerado3.
reflexão, agora com ênfase nos aspectos As empresas privadas nacionais, por seu
qualitativos (e não nos indicadores e nos lado, puderam recorrer à importação (de
elementos quantitativos). Entende-se que máquinas, equipamentos) e à contratação
os elementos empíricos (e as estatísticas de projetos e serviços de assistência técnica
sistemáticas) são mais bem explorados para viabilizarem os seus investimentos e
naquele outro contexto. ocuparem os novos mercados, em formação
O tema principal deste artigo é a discus- pelo crescimento acelerado da indústria e
são sobre as relações – de natureza tecno- das cidades. As empresas estatais desenvol-
lógica – de uma economia com o mundo veram estratégias híbridas, com importação 1 Fapesp, Indicadores de Ci-
exterior. Considerações de ordem geral são de tecnologia complementada por esforços ência, Tecnologia e Inovação,
São Paulo, Fapesp, edições
feitas, mas a preocupação central, explícita, próprios. Esse quadro variado define um de 2001, 2004 e 2010.
envolve principalmente a economia brasi- sistema bastante complexo, e nele prolife- 2 O café ainda representava,
leira, ou situações que permitam pensar a ram ideias e teses variadas sobre o quadro no início dos anos 1960, mais
natureza e as características – muito espe- desejável para a tecnologia no Brasil e o da metade das exportações
brasileiras. Atualmente mal
ciais – de uma economia como a brasileira. seu papel no desenvolvimento. Entre os representa 3%.
Que características da economia brasi- economistas de formação mais ortodoxa, a 3 M. L. Possas, Estrutura Indus-
leira a tornam um caso especial de desen- visão era de que o Brasil deveria deixar-se trial Brasileira: Base Produtiva
e Liderança dos Mercados
volvimento e de relacionamento – tecnoló- guiar pela sua dotação de fatores e atrair (1970), dissertação de mes-
gico – com o mundo exterior? Economia capitais e tecnologias. Entre os economistas trado, Unicamp, 1977.
de convicções mais heterodoxas, a indus- sobre a proteção contribuíram para a União
trialização deveria ser perseguida lançando Aduaneira dos Estados Alemães de 1834
mão de esforços essencialmente internos, (Zollverein). Essa união aduaneira subs-
aí incluindo o mercado (interno). O modelo tituiu os pequenos estados que vieram a
híbrido finalmente alcançado combinou compor a nação alemã por um território
industrialização (e não especialização unificado, com barreiras internas reduzi-
primária) com ampla entrada de capitais das e barreiras externas mais elevadas. O
estrangeiros (e não esforços essencialmente binômio representado por um espaço ale-
autônomos). mão unificado pela remoção das barreiras
internas em simultâneo às barreiras externas
contra importações é muito frequentemente
ignorado pelos defensores incondicionais
PROTECIONISMO, CRESCIMENTO da proteção, e esse descaso possui efeitos
muito importantes sobre o modo como
E APRENDIZAGEM compreendem o funcionamento do sistema
e o teor das suas preocupações com relação
Uma das características mais frequen- ao desenvolvimento tecnológico5.
temente destacadas no debate sobre o A elevação das barreiras comerciais ex-
desenvolvimento tecnológico limitado da ternas e a remoção das barreiras comerciais
economia brasileira (e, sobretudo, da sua internas (entre os estados alemães desde
indústria de transformação) envolve a sua então reunidos no Zollverein) contribuíram
relação com o protecionismo, quer dizer, para colocar em marcha poderosas forças
com a prevalência de um elevado nível de competitivas, entre empresas com graus
proteção da produção nacional com relação de desenvolvimento relativamente mais
aos produtos importados. Se para uns o pro- parecidos do que, por exemplo, o existente
tecionismo é indispensável, para outros ele entre qualquer empresa de um reino alemão
está na raiz de todos os males. Para aqueles, e a sua congênere inglesa. A competição
seus efeitos são secundários perto dos seus entre os mais iguais pode ser considerada
benefícios; e para estes ele produz uma dis- um antídoto contra os elementos estéreis
torção incorrigível no sistema econômico. ou mesmo nocivos do protecionismo, mes-
Os defensores incondicionais da proteção mo que ocorra a partir de um patamar de
dirão que o crescimento econômico e a desenvolvimento tecnológico e industrial
industrialização dos cinquenta gloriosos inferior ao que prevalece em outros espaços
(1930-80) demonstram o acerto da escolha, nacionais ou no âmbito internacional: a
ao passo que os críticos do protecionismo dinâmica competitiva é mais importante do
apresentarão como apoio aos seus argumen- que o patamar em que o padrão de produção
4 F. List, The National System of tos as fragilidades e as mazelas do modelo. se encontra em determinado momento. Di-
Political Economy, publicado
originalmente (em alemão) A proteção é um ingrediente presente ferentemente das suas versões extremadas,
em 1841. em todos os projetos nacionais de desen- propugnadas pelos ultraliberais e pelos
5 Na formulação original volvimento, desde o pioneiro, inglês. Foi desenvolvimentistas hiperprotecionistas, a
da Cepal, com o texto
fundador de Raúl Prebisch
defendida teoricamente como instrumento proteção não é um mal em si mesma nem
sobre “O Desenvolvimento para o desenvolvimento industrial no início um bem sem efeitos colaterais. A proteção
Econômico da América
do século XIX, principalmente por List4: é um ingrediente de um modelo, que pode
Latina e Alguns dos seus
Principais Problemas” (pu- ajudado por sua experiência nos Estados resultar em diferentes processos, com
blicado em 1949), havia Unidos, refletiu sobre o problema do desen- resultados muito distintos, a depender da
uma preocupação explícita
com relação ao tema da volvimento dos países que, como os reinos sua complexa interação com os demais
complementaridade das alemães, não acompanharam o movimento elementos.
economias da América
Latina, mas ela teve pouca original da revolução industrial inglesa A proteção foi tudo menos um elemento
repercussão prática e as bar- no século XVIII e sucumbiriam, se nada isolado no desenvolvimento alemão. As
reiras subsistiram durante o
período de industrialização
fizessem, ao imenso poderio do sistema dores das derrotas para os exércitos napo-
acelerada. industrial britânico. As suas proposições leônicos e a humilhação que elas represen-

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taram para os alemães estão no centro de componentes tem grande força simbólica: 6 A Prússia tornou o ensino
um projeto de reconstrução e de superação. no final do século XIX, entre 1886 e 1900, elementar obrigatório em
A criação das estruturas universitárias e de as seis maiores empresas químicas alemãs 1772, algo que a Inglater-
ra faria apenas 130 anos
pesquisa científica que representam a maior requereram quase um milhar de patentes depois. Essa instituição aju-
contribuição da Alemanha às instituições e as suas congêneres inglesas solicitaram dou a criar uma massa de
estudantes candidatos ao
ocidentais faz parte dessa refundação. A menos de uma centena (948 contra 86)7: sistema de ensino superior
proteção tem que ser compreendida nesse que, a partir de 1830, seria o
mais importante do mundo
conjunto, junto com a importância central “Quando as famílias dos fundadores das por um século. Johann Peter
da pesquisa científica e do desenvolvimento empresas alemãs de pigmentos transferi- Murmann e Ralph Laudau,
“Early Growth in the Che-
educacional: a Alemanha introduziu a edu- ram a responsabilidade dos negócios para mical Industry, 1850-1914”,
cação obrigatória muito antes que outros a primeira geração de administradores in Asish Arora; Ralph Landau
países o tivessem feito (por exemplo, muito profissionais, eles selecionaram químicos e Nathan Rosenberg, Chemi-
cals and Long-Term Economic
antes que a Inglaterra6). O mesmo pode ser para serem dirigentes, porque pensaram que Growth, p. 36.
dito com relação à educação formal em dirigentes com treinamento científico esta- 7 Johann Peter Murmann e
atividades empresariais (negócios), em riam em melhor posição para compreender Ralph Laudau, op. cit., p. 35.
A escolha da química para
contraposição à tradição familiar e à herança os riscos e as oportunidades enfrentados efeitos de comparação não
que prevaleciam nas empresas inglesas. O pelas empresas em crescimento. A visão ra- é fortuita, prende-se ao fato
de ser ela uma das primei-
resultado desse processo de estruturação de cional de dirigentes competentes em termos ras atividades industriais
um sistema industrial que tem no protecio- técnicos poderia infundir na organização fortemente vinculadas ao
nismo um ingrediente ativo pode ser apre- toda práticas empresariais racionais com desenvolvimento científico,
e nesse sentido prenunciar
ciado de diferentes modos, mas um de seus o propósito de assegurar o crescimento e a uma prolongada superio-
rentabilidade das empresas”. ridade do primeiro país
que colocou a ciência e a
formação de numerosos
A “superação” da condição de atraso profissionais com conhe-
cimento e treinamento
envolveu a mobilização de diversos fatores, científico como objetivo
e todos eles contribuíram para que o modelo nacional e alicerce do de-
senvolvimento industrial e
deliberadamente protecionista evitasse os empresarial.
seus eventuais efeitos nocivos.
8 Em seu Formação Econômi-
A Alemanha unificada do século XIX ca do Brasil, p. 152, Celso
não é o único exemplo de proteção externa Furtado afirmou:“O prote-
cionismo surgiu nos Estados
como ingrediente – central, diga-se – de um Unidos, como sistema geral
modelo dinâmico, capaz de estruturar um de política econômica, em
etapa já bem avançada do
tecido econômico rico, diversificado e muito século XIX, quando as bases
competitivo, em condições de assegurar ao da economia já se haviam
mesmo tempo elevado índice de desenvol- consolidado. Pela primeira
tarifa norte-americana de
vimento e capacidade de enfrentamento 1789, os tecidos de algodão
da concorrência em outros mercados. Os pagavam tão somente 5%
ad valorem, e a média para
Estados Unidos praticaram políticas forte- todas as mercadorias era
mente protecionistas durante uma grande 8,5%. Vários ajustamentos
permitiram que a tarifa para
parte do século XIX, até depois que sua tecidos de algodão alcanças-
força industrial se afirmasse de modo in- se 17,5% em 1808, época
em que a indústria têxtil
discutível8. O Japão, que também recorreu norte-americana já se podia
ao protecionismo durante longo período, considerar consolidada”.
desenvolveu uma indústria automobilística 9 “Prior to World War II, U.S.
que é amplamente considerada como mui- auto companies were the
major force in Japan’s auto
to competitiva, quiçá a mais competitiva industry. The U.S. presence in
entre todas. Na origem desse processo de Japan started in 1909, when
Ford first established an
constituição está um hiperfechamento, que agent to handle its imports
incluiu não apenas a barreira comercial into Japan. General Motors
followed in 1915, Dodge and
intransponível para os produtos importa- Chrysler started Japanese
dos como a literal expulsão das empresas operations in the 1920s. The

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Japanese Government began montadoras de origem estadunidense9. Nem mercado, leva à redução das margens de
to restrict activities of foreign por isso o mercado fechado e desprovido lucro e conduziria inevitavelmente a uma
automakers in Japan in the
mid-1930s. In 1935, Ford was
de investimentos externos impediu que se redução das taxas de lucro se tudo perma-
prevented from carrying out estabelecesse uma competição muito inten- necesse constante.
a planned expansion. Shortly
sa e com resultados muito efetivos, como É nesse ponto que entra em campo a
after that, the Automotive
Manufacturing Industries Law comprova a ascensão da indústria automo- mais poderosa das forças da concorrência
was passed, which protected bilística japonesa à condição de liderança capitalista – aquilo a que os economistas
the domestic industry and
limited production by foreign- a partir dos anos 1980. Proteção externa e mais importantes, desde Smith, e possi-
-owned plants. Nissan and competitividade podem coadunar-se, mas velmente com a exceção única de Keynes,
Toyota became the only au-
thorized domestic manufactu- também podem produzir resultados muito dedicaram atenção, mesmo que o tenham
rers. By 1939, foreign-owned pouco saudáveis, como se sabe. feito sob diferentes denominações. Smith
production had stopped in
Japan, and remaining U.S.
A proteção externa da economia brasi- destacou a divisão do trabalho como força de
assets were expropriated by leira possui três características que a torna- transformação12. Marx chamou mais-valia
the Japanese Government in
ram um ingrediente com diversos efeitos relativa aos lucros advindos das mudanças
December 1941”. Disponível
em: http://www.fairimage. adversos. Intensa, abrangente, duradoura10, que estão no âmago da concorrência dos
org/tradewithjapan.htm. o aparato de proteção esteve associado a capitalistas pelos lucros extraordinários e
10 Assim a caracterizou Suzi- um elevado dinamismo econômico, com isso colocou em marcha as forças do pro-
gan, em seu trabalho sobre
a política industrial brasileira. crescimento intenso e prolongado. Essas gresso técnico e das transformações que
Ver W. Suzigan, 1975.“Indus- altas taxas de crescimento dos mercados, fizeram do capitalismo, na sua visão, a mais
trialização e Política Econô-
alimentadas pelo processo de substituição poderosa força de produção e acumulação
mica: Uma Interpretação
em Perspectiva Histórica”, de importações, permitiram que as empresas de riquezas. Meio século mais tarde, foi
in Pesquisa e Planejamento encontrassem sistematicamente na captura
Econômico 5(2):331-384,
dez. 1975. de novas fatias de mercado (antes ocupadas
11 Steindl prosseguiu uma dis- por importações) e em outras atividades
cussão que ocupou anterior- (diversificação) escoamento para os seus
mente a tradição marxista
e foi sintetizada em termos
lucros e para o seu potencial de expansão.
teóricos por Kalecki, que As forças expansivas do sistema econô-
resume a discussão entre
mico capitalista possuem no ciclo da acu-
Tugan-Baranowsky e Rosa
Luxemburgo. Michal Kalecki, mulação ampliada o seu elemento básico: ao
“As Equações Marxistas de final de cada ciclo de produção, a empresa
Reprodução e a Economia
Moderna”, in J. Miglioli (org.), (cada empresa) tende a ter mais recursos (e
Crescimento e Ciclo das mais capital) do que tinha no início. Para
Economias Capitalistas, São
Paulo, Hucitec, 1983. Para onde se dirigem esses capitais adicionais?
Steindl, a diversificação não Para a acumulação, para a expansão da
pode ser uma saída: os
capitais terão sempre no
produção, para novos investimentos. Se os
seu setor de origem uma mercados não crescem na mesma proporção,
posição mais favorável do se o potencial de acumulação das empresas
que em outros setores.
Evidentemente, o grande excede o ritmo de crescimento do mercado,
ausente dessa discussão é necessário encontrar novas áreas para
é o progresso técnico e
a inovação. Ver J. Steindl, investir esse excedente. Historicamente, o
Maturidade e Estagnação acirramento da concorrência, a diversifica-
no Capitalismo Americano,
São Paulo, Abril Cultural ção e a internacionalização das empresas
(coleção Os Economistas), cumpriram esse papel. A diversificação e
1983.
a internacionalização são saídas apenas
12 “All the improvements in temporárias para esse mal do excesso11,
machinery, however, have by
no means been the inventions pois cedo ou tarde a diversificação simples
of those who had occasion (expansão para mercados de produtos que já
to use the machines. Many
improvements have been existem) e a internacionalização (expansão
made by the ingenuity of the para outros territórios) também alcançam
makers of the machines, when
to make them became the
os seus limites. O acirramento da concor-
business of a peculiar trade; rência, a luta pelos espaços (restritos) de

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Schumpeter quem colocou a criação de de ativos exclusivos. Todas as empresas
novos produtos, processos, mercados e procuraram, é verdade, meios de produção
formas de organização da vida econômica mais modernos, normalmente representados
como núcleo dinâmico do sistema, dando- por máquinas e equipamentos importados.
-lhe um nome próprio – inovação13. Mas aí se esgota o processo tecnológico
ditado pelos padrões competitivos: a con-
corrência não exige mais16. As iniciativas
que vão além desse padrão são, por isso,
O MODELO BRASILEIRO: facultativas.
É assim que é possível encontrar, no
SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES mesmo sistema econômico, um núcleo de
empresas estatais que até meados dos anos
E CRESCIMENTO ACELERADO 1980 possuíam estratégias muito ativas and some by that of those
de aquisição e de desenvolvimento tecno- who are called philosophers
O modelo de substituição de importações lógico, ao lado de empresas estrangeiras or men of speculation, whose
trade it is not to do any thing,
no Brasil (e na América Latina) permitiu e empresas nacionais de todos os tipos e but to observe every thing; and
que a indústria ocupasse gradativamente o portes, que se contentavam, no mais das who, upon that account, are
often capable of combining
novo terreno oferecido pelo alargamento da vezes, em recorrer à fonte original de tec- together the powers of the
proteção. Sempre que um item importado nologia: a matriz (no caso das empresas de most distant and dissimilar
objects”, A. Smith, A Riqueza
entrava na pauta dos candidatos a substitui- origem estrangeira), ou os fornecedores de das Nações, 1776, Livro I, cap.
ção, a empresa postulante a fazê-lo podia bens de capital e de tecnologia (no caso das I,“Of the Division of Labor”.
imediatamente solicitar que sua importação empresas nacionais). Só em circunstâncias 13 Embora tenham ambos
fosse barrada. Assim, a sobreacumulação, excepcionais é que essas empresas foram tratado do fenômeno da
mudança tecnológica, as
esse fenômeno que no sistema econômico levadas a desenvolver esforços próprios diferenças entre Marx e
capitalista costuma produzir acirramento para além do aprendizado incremental e Schumpeter dificilmente
podem ser exageradas.
de concorrência ou extroversão, foi evitada relativamente modesto a partir do “pacote” Para Marx o capitalista é
pela criação sucessiva de novos espaços de recebido ou adquirido. Mesmo empresas “de um escravo da concorrência
que faz o que faz porque as
aplicação dos capitais, que assim escapa- tecnologia” ou reconhecidas como empresas leis da concorrência assim o
vam de ser excessivos e ademais estavam com alicerces tecnológicos próprios são impõem. Para Schumpeter,
de modo muito diferente,
protegidos. Esse processo esteve associado compradoras de tecnologias de terceiros; e
o empreendedor é um
a um crescimento industrial extremamente isso vale no Brasil e no mundo. A diferença indivíduo com caracterís-
acelerado, que propiciou oportunidades para não está em “depender” de outros, está em ticas virtuosas singulares,
e é graças a elas que ele
a expansão do capital privado nacional, das desenvolver relações de compra e venda e impulsiona o sistema e
empresas de origem estrangeira, sem deixar de venda e compra, com graus de assime- assegura a prosperidade
típica do capitalismo.
de oferecer um papel de relevo às empresas de tria incomparavelmente menores do que
14 M. C.Tavares, Da Substituição
capital estatal. A substituição de importações, ocorre quando as empresas não possuem de Importações ao Capitalis-
esse processo que já foi definido como a re- capacidades próprias. mo Financeiro.
dução da dependência externa e a mudança Entre as circunstâncias excepcionais que 15 Essa afirmação já foi for-
na natureza dessa dependência14, significou motivaram esse comportamento fora da nor- temente contestada por
diversos autores, incluindo
também um alívio forte e duradouro das ma, é possível tipificar algumas situações. alguns de grande prestígio,
pressões competitivas que a acumulação Em meados dos anos 1960, em meio à fase como A. B. Castro.
tende a exercer sobre as empresas15. recessiva que se seguiu à forte expansão 16 Essa afirmação já foi for-
Foi nesse contexto que as empresas industrial dos anos 1950, algumas empresas temente contestada por
diversos autores, incluindo
puderam adotar – de modo facultativo brasileiras descobriram que os seus con- alguns de grande prestígio,
– práticas tecnológicas mais passivas e tratos de fornecimento de tecnologia lhes como Ricardo Bielschowsky.
Para Bielschowsky, a indús-
menos incisivas. O termo é empregado vedavam o acesso aos mercados externos, tria brasileira encontrava-se
aqui em oposição à necessidade, imposta reservados aos licenciadores. Esse fato, em em fase de forte crescimen-
to e consistente acúmulo de
pela concorrência, de construir estratégias alguns casos, ocasionou esforços genuínos competências tecnológicas
tecnológicas mais robustas, dotadas de de desenvolvimento de competências, de quando foi atingida pela
crise internacional que ir-
recursos próprios, de pessoal dedicado, de modo a propiciar, no futuro, autonomia com rompeu no início dos anos
visões de longo prazo construídas com apoio relação à sua estratégia comercial. 1980.

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Destaque-se, nesse caso, que não foi regime comercial vigente. Várias delas, no
o padrão competitivo do mercado interno entanto, desarticularam tão logo puderam
que ocasionou esse movimento, mas as (no início dos anos 1990) esse sistema que
restrições comerciais impostas externamen- era, do ponto de vista empresarial privado,
te17. Durante as décadas de 1970 e 1980, extremamente ineficaz, embora contribuísse
empresas que enfrentaram essa situação para um certo nível de competências (e cus-
foram levadas a desenvolver estratégias de tos mais elevados) no sistema industrial20.
crescente autonomia tecnológica. Algumas O sucesso empresarial excepcional de
poucas empresas do setor químico, nascidas empresas com fortes componentes tecno-
no bojo dos grandes projetos petroquímicos lógicos, como a Embraer e a Petrobras,
brasileiros (Mauá, Camaçari, Triunfo), constitui uma oportunidade para refletir
foram também levadas a desenvolver ca- sobre os fatores que os determinaram ou
pacidade tecnológica própria, para evitar a pelo menos sobre as circunstâncias que os
dependência, que consideravam excessiva, propiciaram. O primeiro elemento a consi-
com relação aos seus detentores originais derar é que ambas as empresas nasceram
de tecnologia18. na esfera estatal e muito mais marcadas
17 Cf. José Mindlin, acionista e Uma segunda circunstância motivou por elementos estratégicos do que exclu-
dirigente da Metal Leve, em- comportamentos tecnológicos diferencia- sivamente sob determinantes econômicos.
presa brasileira do segmen-
to de peças para a indústria dos com relação ao padrão que constituiu Essa afirmação vale tanto para os fatores do
automobilística, em seu a norma no setor industrial: considerações mercado para os seus produtos como dos
depoimento à “Comissão
Parlamentar de Inquérito de caráter estratégico, quer dizer, extraeco- acionistas para os seus capitais. A fundação
destinada a investigar as nômicas, frequentemente motivadas com a de ambas as empresas é muito posterior às
causas e as consequências
indução exercida pelo setor estatal ou por ideias e aos debates que culminaram em
do atraso industrial e tecno-
lógico brasileiro”. Congresso círculos governamentais. Foi esse o caso, sua criação e na orientação que vieram
Nacional, 1991. por exemplo, de uma empresa siderúrgi- a ter. No caso da Embraer, em que pese
18 Entre os casos notáveis, ca com vínculos com o setor nuclear19. a sua fundação oficial no final dos anos
destaque-se a Oxiteno,
entre as empresas privadas, Várias outras empresas nessa condição 1960, a sua origem verdadeira está nos
e a Polialden, entre aquelas desenvolveram estratégias tecnológicas anos 1930, ou mesmo antes. O primeiro
com for te influência do
relativamente autônomas. Os seus limites, Congresso Brasileiro da Aeronáutica, que
setor público (Petroquisa,
subsidiária da Petrobras entretanto, estiveram condicionados pela foi realizado em 1934, teve como elemento
para a petroquímica). A própria estratégia do demandante estatal deflagrador uma reunião realizada alguns
Oxiteno desenvolveu co-
nhecimentos e capacidades e raramente puderam desdobrar-se para anos antes (em 1928), quando se iniciou
que lhe permitiram enfren- mercados mais amplos. a reflexão estratégica sobre a necessidade
tar momentos bastante
adversos e manter-se com Existem também filiais de empresas de contar o Brasil com meios de transporte
autonomia e resultados estrangeiras que ao longo da sua trajetória velozes e capazes de cobrir o vasto territó-
invejáveis; e a Polialden,
mais tarde absorvida pela desenvolveram, com graus variados, alguma rio nacional. A essa questão aparentemente
hoje Braskem, conseguiu autonomia tecnológica localmente. Essa singela seguiram-se intensos debates e
desenvolver um plástico
terá sido, muitas vezes, uma alternativa deles emergiram, como sói acontecer no
de ultra-alta densidade que
a afastou do mundo das residual (second best), frente à impossibi- Brasil ao longo do século XX, dois grandes
commodities com margens lidade de simplesmente adotarem a estra- partidos (por assim dizer), duas correntes
estreitas.
tégia de divisão de trabalho típica com a de pensamento. De um lado, todos aqueles
19 http://www.arqanalagoa.
ufscar.br/pdf/recor tes/ matriz. Foi esse o caso de muitas empresas que sustentavam a necessidade impe-
R00529.pdf em setores com produção diversificada e riosa de dotar o Brasil de uma indústria
20 A Abiquim mantém um dificuldades para realizar importações de aeronáutica, de fazê-lo de modo rápido e
registro das produções que modo sistemático (sobretudo quando, além seguro, para o que defendiam recorrer à
foram descontinuadas. Ela
totaliza mais de uma centena das barreiras tarifárias, vigorava também o atração de investimentos de empresa(s)
de produtos. Agradeço à impedimento das licenças prévias). Muitas estrangeira(s). A esse grupo se opunha,
Comissão de Economia da
Abiquim pelo acesso aos empresas do setor químico possuíam no do outro lado, um grupo que insistiu na
resultados de um trabalho Brasil unidades dotadas de capacidades tese de dotar o Brasil de uma indústria
(muito meticuloso) ainda
em andamento na área de produtivas e capacitações tecnológicas autônoma, desenvolvida a partir de capitais
economia da Associação. que se tornaram necessárias em razão do brasileiros, capaz de criar e acumular co-

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nhecimentos e competências. As duas teses tância relativa dos ativos tecnológicos em
e suas estratégias puderam conviver, nesse comparação com os comerciais. Em que
caso, porque inexistia qualquer pressão de pese o esforço muito modesto (quiçá nulo,
demanda, do mercado, a impor a solução em muitos casos) das empresas nacionais
mais viável no curto prazo. Foi ela que se com relação ao desenvolvimento de novos
impôs em muitas outras oportunidades: na produtos, e mesmo com relação ao desen-
implantação da indústria automobilística, volvimento de capacidades tecnológicas na
nos anos 1950; na transição do padrão de produção de farmoquímicos, elas consegui-
televisão em preto e branco para o padrão ram manter sempre posições de mercado
em cores, nos anos 1970; e na transição muito sólidas e em diversos momentos
para a telefonia móvel, nos anos 1990. Em apresentaram excelentes indicadores de
cada um desses três casos, o mercado, a desempenho. Valeram-se de capacidades
pressão da demanda, ou simplesmente o comerciais e de uma percepção muito
vislumbre, pelos atores relevantes, de uma singular dos aparatos institucionais (por
demanda a ser criada e satisfeita, levou à exemplo, os regulatórios; ou o papel das
adoção da solução mais pronta que propi- farmácias junto à população com acesso
ciava a resposta mais imediata. O padrão limitado) para constituírem ativos que
industrial brasileiro subordinou muitas sistematicamente se tornam valiosos para
vezes o desenvolvimento da produção aos as empresas internacionais com ativos
ditames do consumo e da disponibilidade tecnológicos, sejam aquelas que desejam
da produção doméstica no mais curto in- entrar no mercado, ou estejam já presen-
tervalo possível; e raramente fez o inverso. tes21. Mesmo num setor “de tecnologia”, é
Em meados dos anos 1980, antes que possível que os ativos tecnológicos ocupem
as privatizações europeias alcançassem posições de dependência com relação aos
boa parte dos sistemas de radiodifusão e comerciais. Muitas empresas de origem
canais privados passassem a veicular publi- estrangeira detentoras de ativos tecnoló-
cidade em padrões que se aproximam dos gicos relevantes optaram por associar-se
vigentes nos Estados Unidos, o coeficiente (por diferentes mecanismos) a empresas
de publicidade e propaganda com relação nacionais com escassos recursos tecnoló-
ao PIB era, em todos os países europeus, gicos como forma de verem valorizados
inferior ao que se verificava no Brasil. Já os seus produtos e tecnologias no mercado
o índice de pesquisa e desenvolvimento brasileiro.
com relação ao PIB, como é amplamente Embora muito distinto da Embraer, o
sabido, é muito inferior no Brasil do que caso da Petrobras enseja também reflexões
é em quase todos os países europeus, com sobre o padrão tecnológico e sobre os modos
exceções pontuais. O padrão competitivo da de relacionamento da economia nacional
economia brasileira é muito mais intensivo com o mundo exterior. Fundada, como se
em sedução e persuasão dos consumidores sabe, no bojo de lutas intensas no campo das
pela via da publicidade do que pela via do ideias sobre o desenvolvimento brasileiro
desenvolvimento de soluções técnicas e e as suas possibilidades e necessidades,
tecnológicas mais avançadas e dependentes a Petrobras foi um marco no desenvolvi-
de esforços genuínos. É possível que esse mento de diversas atividades – e entre elas
padrão esteja mudando com o advento de cabe destacar, pela sua importância para
grandes contingentes de consumidores re- o padrão tecnológico e industrial, o setor
gulares, mas talvez seja possível sustentar de equipamentos, ou de “bens de capital”.
que houve sempre consumidores para quem As trajetórias tão singulares dessas duas
o preço era a única consideração e outros empresas de destaque no mundo brasileiro 21 Eduardo Urias, A Indústria
Farmacêutica Brasileira : um
para quem o preço não era uma considera- da tecnologia são reveladoras precisamente Processo de Coevolução de
ção relevante. da relativa desimportância dessa dimensão Instituições, Organizações In-
dustriais, Ciência eTecnologia,
O caso da indústria farmacêutica bra- durante um longo período da industrializa- dissertação de mestrado,
sileira é muito eloquente sobre a impor- ção brasileira. Unicamp, 2010.

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tecnológica”, beneficiaram-se muito pouco
AS RELAÇÕES EXTERNAS E AS da onda de investimentos externos que ga-
nhou impulso nos anos 1950 e foi retomado
RELAÇÕES EXTERNAS DE CUNHO depois nos anos 1970.
As empresas privadas nacionais que
TECNOLÓGICO tradicionalmente confiaram na importação
de máquinas e equipamentos também recor-
As relações externas de caráter tec- reram a licenciamentos e transferências de
nológico da economia brasileira estão tecnologia em projetos que ultrapassavam
marcadas por esse processo histórico de os contornos passíveis de atendimento
desenvolvimento do sistema econômico com a máquina ou conjunto de máquinas
e do setor industrial. A despeito de sus- importados. Nas suas negociações com os
citar alguma contrariedade e polêmica, é fornecedores de tecnologia (em que pesem
possível sustentar que a tecnologia nunca os termos pouco rigorosos que expressam
ocupou o centro do sistema econômico e essa relação tão complexa), as empresas
das estratégias empresariais, com exce- brasileiras foram assistidas e apoiadas por
ções pontuais (algumas já mencionadas, legislação pertinente e contaram com apoio
a título de ilustração dos argumentos). O negocial do Inpi, com o propósito declarado
modelo de desenvolvimento construído de evitar que as assimetrias típicas desse
propiciou que assim fosse. A acumulação mercado pudessem acarretar maiores perdas
foi acelerada pelo subsídio à importação de (preços excessivos, transferência delibera-
bens de capital durante um período inicial, damente truncada, cláusulas restritivas)22.
reforçada pelo papel desempenhado pelas Cada uma dessas condições enseja algu-
empresas estatais e fortemente estimulada mas relações típicas. Empresas privadas na-
pelo concurso do capital estrangeiro. Aliás, cionais são modestas ou pífias demandantes
está nesse recurso ao capital estrangeiro de tecnologia, de um modo geral23. As suas
uma dimensão relevante do caráter marginal demandas (em que pesem as necessidades
do desenvolvimento tecnológico: tendo muito superiores) resumem-se quase sempre
ocupado desde meados dos anos 1950 as à compra de máquinas e equipamentos. Em-
principais posições dinâmicas do sistema in- bora venham descobrindo mais recentemen-
dustrial brasileiro com seus pacotes e fluxos te as oportunidades oferecidas pelo mundo
favorecidos pelo acesso seguro à matriz, as da tecnologia e da inovação, elas ainda são
empresas de origem estrangeira contribuí- demandantes pontuais e episódicas. No
22 Essa legislação foi revogada ram para consolidar padrões de desempenho vértice da pirâmide, empresas brasileiras
e as suas práticas associadas
foram banidas durante o
industrial relativamente elevados, mas com que desenvolveram competências para o
curto governo de Fernando recurso sistemático a fontes externas de aprendizado e consolidaram capacitações
Collor. Elas não foram pos-
tecnologia. Com isso, elas deixaram, em sólidas e esforços consistentes vêm in-
teriormente reinstauradas.
setores dinâmicos tecnologicamente, de vertendo a sua relação de dependência e o
23 Disso dá provas a vocação
da principal escola brasileira contribuir para a implantação de padrões caráter unilateral dos fluxos de tecnologia,
de formação técnica para a mais elevados de esforço tecnológico local, tornando-se progressivamente vendedoras
indústria: muito eficaz na
formação de trabalhadores
para a formação de pesquisadores e de um e licenciadoras de tecnologias próprias. Até
com dotes técnicos, do mercado de trabalho de engenheiros, tecnó- mesmo pela sua origem nacional e pela fa-
básico ao técnico completo,
logos e cientistas nas empresas, assim como cilidade com que conseguem jogar de modo
a instituição revelou sempre
uma certa rejeição à funda- para o desenvolvimento de mecanismos de mais equilibrado o jogo da transferência,
mentação tecnológica (o incorporação de diálogo entre as empresas essas empresas conseguem desenvolver
que dizer da científica) no
aprendizado. A endogenia e as instituições formadoras de recursos boas parcerias em transferências com países
dos seus quadros técnicos e humanos e produtoras de conhecimento em desenvolvimento.
dos seus gestores contribuiu
também para as fronteiras científico. O quadro e a atitude pouco favo- Empresas estatais foram, no passado,
que separam o Senai do ráveis à pesquisa científica e tecnológica nas demandantes e desenvolvedoras de tec-
conhecimento de base cien-
tífica e da tecnologia como
empresas, de um modelo que pôde recorrer nologia em graus muito variados e com
prática fundamentada. à importação de máquinas como “solução resultados igualmente diversos. Puderam

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fazê-lo por um misto de interesse econômico de conhecimentos, competências e tecnolo-
e considerações de cunho dito estratégico. gia. A atração dos cérebros originais, entre
O termo estratégico é, quase sempre, um os quais o professor Richard H. Smith, que
escape para a inexistência de razões obje- fora chefe do Departamento de Aeronáutica
tivas e claramente definidas para justificar do Instituto de Tecnologia de Massachusetts
escolhas, sobretudo quando os seus custos (MIT), contou com diversas colaborações,
são elevados e os benefícios remotos (mes- entre elas a indicação do seu nome por um
mo que se afigurem promissores). Sempre estudante brasileiro naquela instituição
que o pêndulo desse binômio econômico- (major-aviador Oswaldo Nascimento Leal).
-estratégico pendeu excessivamente para o A conjunção de circunstâncias favoráveis
segundo termo, o resultado foi a perda de dificilmente pode ser creditada ao acaso ou
consistência da estratégia e da própria área a sucessivos golpes de sorte: pessoas certas
de desenvolvimento tecnológico. Os custos nos lugares certos também são uma cons-
econômicos de uma opção que promete mas trução laboriosa que o acaso dificilmente
não entrega na mesma proporção e veloci- produz, mesmo quando dela se beneficia.
dade das expectativas criadas terminam por O CTA – Centro Técnico da Aeronáutica
desgastar-se frente às partes relacionadas e os seus dois alicerces (ITA – Instituto 24 “Cada país, dizia ele [Santos
(os chamados stake-holders). Tecnológico da Aeronáutica e IPD – Insti- Dumont], deveria desenvol-
ver sua própria tecnologia,
Existem diversos trade-offs entre de- tuto de Pesquisa e Desenvolvimento) são a par com o avanço da
cisões com custos e benefícios de curto investimentos de longo prazo de maturação ciência aeronáutica, dirigida
para projetos e produção
e de longo prazo. Esses trade-offs são es- que se iniciam com a semente da importação de aparelhos, e também
pecialmente relevantes quando envolvem de conhecimentos. Ela está presente na ida como desenvolver produ-
tos e materiais, de acordo
decisões sobre a escolha de caminhos mais de pessoas para adquirirem conhecimentos com processos e métodos
fáceis ou mais difíceis (no curto prazo) com e competências (Oswaldo Nascimento Leal) técnicos dos respectivos
resultados imediatos ou diferidos. e na atração de cérebros e competências de parques industriais.
Essas recomendações fo-
O investimento feito na Imperial Es- planejamento e gestão (Richard Smith). ram repetidas por Santos-
tação Agronômica de Campinas (1887), O balanço de pagamentos tecnológico -Dumont no Congresso
Científico Pan-americano,
que precedeu o Instituto Agronômico do retrata o conjunto de relações de natureza em 1915, e, no Brasil, no
Estado de São Paulo (1897) e o Instituto tecnológica entre uma economia e o mundo período de 1915 a 1918,
em seus pronunciamentos
Agronômico de Campinas (que ainda externo. Os cafés que o Brasil exporta há orais e em seus escritos,
mantém a denominação), foi certamente um século para o mundo todo possuem procurando atrair a atenção
dos membros do Governo,
um custo econômico por um certo tempo elementos do conhecimento que o país com profética antevisão do
(e portanto um ônus social, pelos gastos vem criando desde pelo menos a criação do futuro sobre o importante
alternativos que deixaram de ser feitos), instituto de pesquisa agrícola de Campinas; papel que os aerostatos e os
aviões iriam desempenhar
antes que produzisse efeitos positivos para e uma parte desse conhecimento é impor- no mundo.
a cafeicultura e a agricultura de São Paulo tada – nas revistas de botânica e fisiologia Foi em seu livro O que Vi,
o que Veremos, editado em
e do Brasil. Quando os conhecimentos e as vegetal, nas bolsas dos estudantes que foram 1918 pela Editora A Encan-
competências começaram a maturar, eles ao mundo aprender coisas novas, nos cien- tada, que Santos-Dumont
registrou a ideia de criação
passaram a participar de um fluxo regular tistas que o Brasil atraiu de vários países, de uma escola técnica, no
de riquezas que já dura mais de um século nos equipamentos e insumos de pesquisa Brasil, voltada para a avia-
ção, antevendo um centro
e se nutre e renova pelos vínculos que que importamos de tantos lugares, nas de tecnologia que só se
estabelece com o campo e com a ciência. visitas técnicas, congressos e missões inter- efetivaria cerca de 30 anos
Meio século mais tarde o Brasil iniciou nacionais que realizamos... Os aviões que mais tarde. Eis o parágrafo
do livro: ‘Eu, que tenho
os primeiros passos que culminariam na o Brasil exporta hoje possuem frações das algo de sonhador, nunca
criação do seu setor aeronáutico24: a escola visitas técnicas de Montenegro aos Estados imaginei o que tive ocasião
de observar, quando visitei
de engenharia, o centro tecnológico e depois Unidos nos anos 1940... Nenhuma relação uma enorme fábrica nos
a fabricação industrial. Os aviões que hoje tecnológica se esgota no seu instante, não EUA. Vi milhares de hábeis
mecânicos ocupados na
representam o principal produto de “alta é uma compra sem história, sem passado construção de aeroplanos,
tecnologia” das exportações brasileiras fo- e sem futuro. O balanço de pagamentos produzindo diariamente
de 12 a 18’”. Disponível
ram iniciados com pequenos investimentos tecnológico ajuda a compreender esses em: http://www.cta.br/ori-
e com um esforço de aquisição internacional fluxos, que envolvem defasagens intrínsecas gemconceitual.php.

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25 Eis uma expressão que e efeitos amplificados. no segundo, pelo aumento do preço obtido
suscita espaço para inter- Quando o Brasil decidiu ter aviões, (margem superior pela mesma quantidade
pretações equivocadas:
valor agregado. Há mais houve momentos de indecisão entre os ca- de insumos).
valor agregado num real minhos que poderiam ser escolhidos. Entre A escolha brasileira com relação aos
de soja ou de medicamento,
num real de minério de a fábrica importada e o desenvolvimento automóveis foi distinta. O processo de
ferro ou de automóvel? de conhecimento havia trade-offs de várias montagem e progressiva fabricação evoluía
Há exatamente o mesmo
valor agregado. O valor naturezas. Importar a fábrica (e o fabricante) a passos lentos e, em meados dos anos 1950,
agregado corresponde à seria possivelmente mais seguro, na opinião escolheu-se acelerar a nacionalização da
soma das remunerações
dos fatores de produção
de muitos. Os resultados – a fabricação de fabricação e para isso capitais e empresas
que participaram da ativi- aviões – seriam alcançados mais rapida- de capital estrangeiro foram atraídos26.
dade produtiva, diretamente
(trabalho) e indiretamente
mente. Criar – ou mesmo apenas reunir O salto da produção ocorre de modo
(os equipamentos, por meio – competências científicas, tecnológicas, rápido, com a nacionalização de insumos,
de sua depreciação), acres-
industriais, empresariais e mercadológicas peças, partes, componentes e montagem.
cidos das remunerações do
capital (o lucro).Tudo o mais levaria (e de fato levou) muito tempo e os A transferência de capitais e capacidades
constante, todas as ativida-
seus resultados seriam incertos num hori- industriais e empresariais elevou o pata-
des agregaram o mesmo
valor. A diferença não está zonte temporal bastante longo. Quando a mar de produção e de competência, mas
no valor agregado, mas na crise econômica (e fiscal) dos anos 1980 a trajetória encetada marginalizou os es-
intensidade dessa agregação:
se qualquer atividade pro- colheu o Brasil em rota de investimentos forços próprios em favor de um complexo
dução (de soja, de minério por maturar, críticas exacerbadas se volta- automobilístico com presença dominante
de ferro, de medicamento
ou de automóvel) possui ram contra esses projetos ditos faraônicos de empresas de capital estrangeiro. Os ca-
“x” horas de trabalho, a e sem sentido. A perseverança na escolha pitais que ingressaram para essa finalidade
intensidade da agregação é
o valor adicionado dividido de um caminho permitiu que mais de meio expandiram-se e ensejam, desde então, uma
por “x” horas. A intensidade século depois dos investimentos pioneiros remuneração (e eventualmente remessas)
da agregação por unidade
de fator produtivo é o tenham começado a surgir os resultados progressivamente maiores, pois a base de
quociente entre o valor e mais tangíveis do processo. Antes disso se sua incidência cresceu.
as horas despendidas nes-
sa atividade, sendo maior formaram pessoas e conhecimentos foram Os modelos industriais automobilístico
na atividade em que o desenvolvidos e incorporados a outras ati- e aeronáutico propiciam reflexões sobre
denominador for menor.
Se a produção de soja for vidades e setores econômicos, numa insti- as suas diferentes trajetórias e sobre as
feita em bases competiti- tuição que até os dias de hoje é amplamente razões de tamanha divergência. Em um
vas, resultando em elevada
produtividade e eficiência, a reconhecida por sua excelência. caso, o investimento em aprendizagem foi
mesma agregação de valor No plano dos fluxos de entrada e de saída possível pelo sentido estratégico atribuído
resultará numa rentabilida-
de maior (e portanto em
de divisas relacionados com a importação à atividade, que no outro caso foi conside-
possibilidades maiores de e a exportação de elementos de natureza rado um produto comercial menos sensível.
expansão) do que numa
atividade em que a maior
tecnológica, houve durante muitos anos Ocorreu diferentemente em outras experi-
intensidade de agregação uma sucessão de modestas saídas; e, junto ências históricas: além do caso japonês,
de valor for feita em bases
com os investimentos que foram realizados já mencionado, também a Coreia do Sul
tais que a rentabilidade da
atividade resultar inferior ano após ano nas instituições, propiciaram a adiou sucessivamente a implantação de uma
(e por tanto oferecendo consolidação dos institutos e a emergência indústria automobilística até ter alcançado
menores oportunidades de
expansão). da empresa aeronáutica. Os investimen- um nível de desenvolvimento empresarial
26 Muitos segmentos atuantes tos externos (ou as compras externas de e industrial autônomo suficiente para nego-
na vida política nacional sus- conhecimento) por intermédio da ida de ciar com as empresas estrangeiras acordos
tentavam que as empresas
estrangeiras nunca estariam estudantes, pesquisadores e profissionais satisfatórios e de absorver de modo efetivo
dispostas a participar de brasileiros ao exterior redundaram no mais as transferências de tecnologia envolvidas
modo ativo do esforço de
industrialização. A incom- sólido e diferenciado fluxo de exportações, em um produto complexo com relação ao
preensão sobre o momento com elevada intensidade de valor agrega- qual não possuía experiência anterior27.
histórico de internacionali-
zação do capital industrial do25. Quando se aplica conhecimento a uma Sempre que a pressão de mercado expôs
europeu e estadunidense atividade, é possível que essa atividade a trajetória de aprendizagem da indústria
terá também contribuído
para a entrega simples de
apresente um aumento de produtividade brasileira à necessidade de alcançar resul-
vários núcleos dinâmicos e de rendimento no mercado, no primeiro tados em intervalo de tempo curto, o que se
da indústria e da tecnologia
em condições muito mais
caso pelo aumento da eficiência produtiva viu foi uma retração das empresas de capital
favoráveis do que seria ne- (menos insumos por unidade de produto), nacional e o avanço decidido das empresas

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de origem estrangeira. Foi assim com a produção doméstica de muitos países. To- cessário.A Instrução 113 (da
Superintendência da Moeda
indústria automobilística (nos anos 1950), das essas são atividades agrícolas, pode-se e Crédito) foi o principal ins-
foi assim com a indústria de receptores de argumentar: possuem vantagens iniciais trumento cambial-financeiro
para essa atração. Instituída
televisão (anos 1970) e foi assim com as (“naturais”, ao menos pelo preço de um no interregno Café Filho,
empresas de equipamentos de telecomuni- dos fatores) e não representam o núcleo foi amplamente utilizada
posteriormente.
cações (nos anos 1990). Mas a reserva de do problema da competitividade, que se
27 Existe uma detalhada crono-
mercado para empresas nacionais não se dá em bases industriais. Ademais, nessas logia da indústria automo-
mostrou, em outras ocasiões, instrumento atividades, coube a um ator extraempresarial bilística coreana na página
suficiente para assegurar os esforços e os a função de realizar os esforços que criam do Wikipedia (em inglês):
http://en.wikipedia.org/ wiki/
resultados almejados28. O debate sobre as progresso técnico. Automotive_industry_in_
razões dessa trajetória dominante na maior O Brasil é competitivo também na South_Korea#1950s. Ela
mostra de modo detalhado
parte das atividades industriais caracteriza- produção de aço e em vários tipos de os esforços de absorção e a
das por forte dinamismo tecnológico não máquinas e equipamentos. Construiu essa busca muito ativa de desen-
volvimento de capacidades
está encerrado, mas duas hipóteses expli- competitividade ainda sob fechamento, com autônomas. É evidente que,
cativas podem ser identificadas. A primeira investimentos apoiados por recursos públi- por suas características de
produção em larga escala,
indica um desenvolvimento tecnológico cos e voltados inicialmente para o mercado competição intensa e dinâmi-
insuficiente dessas empresas e a sua rela- doméstico. A extroversão veio depois, de ca de mercado com elemen-
tos de diferenciação muito
tiva incapacidade de acompanharem – de uma especialização que revelou capacida- pronunciados, a indústria
modo competitivo – o desenvolvimento da de de ir além do atendimento do mercado automobilística possui efeitos
de aprendizado e de difusão
fronteira internacional ou simplesmente o doméstico. Em todos esses casos, os pro- tecnológica que a aproximam
alcance de seus patamares de desenvolvi- dutos e as atividades industriais possuem de um número de setores
industriais muito maior do
mento tecnológico, industrial e comercial. uma densidade tecnológica relativamente que uma indústria estratégica
A segunda sustenta a necessidade de contar modesta e o seu horizonte desloca-se de (no sentido militar).
com instituições e políticas adequadas, modo relativamente lento. A maior parte 28 O caso notório é a política
dirigidas para a consecução de objetivos dos setores metal-mecânicos em que o (de reserva de mercado)
de informática que vigorou
claramente definidos e perseguidos de modo Brasil ostenta competitividade internacional sobretudo nos anos 1980.
consistente. Na matriz teórica da primeira encaixa-se nessa categorização31. Seus excessos são julgados
uma causa de atraso por
explicação é comum considerar-se que a uns e suas insuficiências
proteção resvalou para o protecionismo são vistas por outros como
explicação da frustração de
e que este assumiu um caráter frívolo29 suas promessas.
ou tornou-se uma ação deliberadamente AS RELAÇÕES EXTERNAS 29 F. Fajnzylber formulou essa
rentista (rent-seeking)30. hipótese e comparou esse
Proteção resvala inexoravelmente em DE CUNHO TECNOLÓGICO E protecionismo com aquele
que prevaleceu no modelo
protecionismo frívolo ou ação delibe- asiático. F. Fajnzylber, La Indus-
radamente rentista? Nem a experiência O DESENVOLVIMENTO DE trializaciónTrunca de América
Latina, México, D.F., Editorial
internacional, nem a experiência brasileira Nueva Imagem, 1983.
permitem essa afirmação. A realidade ofe- COMPETITIVIDADE 30 Essa a hipótese que foi
rece apoios – circunstanciais – a ambas as tradicionalmente sustentada
por todos aqueles que se
afirmações. A produção agrícola brasileira A economia brasileira apresenta relações opunham às políticas indus-
sustenta há muito tempo um nível de com- tecnológicas variadas com o mundo exterior, triais ativas e que granjearam
progressivamente apoios
petitividade crescente. O Brasil sustenta a produto das suas trajetórias históricas de de- mais amplos.
posição de maior produtor mundial de café e senvolvimento. A industrialização e o modo 31 Siderurgia (de ferrosos e
permanece como grande exportador há mais que assumiu, com participação relevante não ferrosos), mecânica
(motores elétricos, equi-
de um século. Ao café juntaram-se o suco de empresas de capital estrangeiro e um pamentos de refrigeração),
de laranja, a soja e as carnes, com níveis de interesse modesto das empresas nacionais aparelhos e máquinas com
baixo conteúdo eletrônico
competitividade que mobilizam os aparatos por esforços tecnológicos próprios, ajuda- (incluindo máquinas de ter-
de proteção de vários países (desenvolvidos ram a moldar as relações entre o Brasil e os raplenagem) são exemplos
evidentes.A competitividade
e com tradição nessas atividades). O caso demais países nesse quesito. Por um lado, a em alguns segmentos com
mais eloquente é o do açúcar e do etanol, internalização de capacidades industriais e maior conteúdo eletrônico
e informático apoiam-se nos
em que a competitividade brasileira alcança a competição entre as empresas apoiaram- regimes de proteção e nas
níveis extremamente elevados e ameaça a -se bastante na importação de máquinas e especificidades institucionais.

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equipamentos, com apoio da assistência mais de meio século de produção local por
técnica dos fornecedores. Por outro lado, empresas que lideraram por tanto tempo o
as empresas de capital estrangeiro puderam oligopólio automobilístico mundial, secun-
estabelecer uma clara supremacia industrial dadas por entrantes mais recentes. Indícios
e tecnológica recorrendo à fonte segura da recentes parecem apontar para um reforço
sua matriz e reproduzindo localmente as das equipes locais de engenharia das empre-
suas posições relativas do cenário interna- sas estabelecidas, mas o termo “pesquisa”
cional. Experiências tecnológicas diferen- do trinômio PD&I está ainda longe de ter
ciadas foram entabuladas sobretudo pelas uma expressão mais significativa. Isso será
empresas estatais, em diferentes contextos: tão mais importante quando se considerar
pesquisa agrícola (Institutos Agronômicos, que a indústria automobilística parece estar
Embrapa), Petrobras, Embraer, Programa no advento de uma transição motivada pela
Nuclear, Pesquisas Espaciais, Proálcool energia. Embora tenha contribuído durante
são exemplos de esforços conduzidos ou muito tempo para substituir importações, o
patrocinados pelo Estado. setor não parece preparado para participar
Vistas em retrospectiva, várias das es- de modo ativo do duplo esforço que se avi-
colhas produziram efeitos que nem sempre zinha – combater o avanço muito agressivo
foram antecipados. A Petrobras ajudou a da indústria chinesa e indiana e construir
construir um setor de bens de capital rele- uma posição sólida na nova indústria au-
vante desde os anos 1950, mas sem projeção tomobilística em gestação.
internacional digna de maior registro. É Por um caminho inteiramente distinto,
possível que essa experiência possa suscitar sem preocupações tão estritas com relação
reflexões sobre a nova onda de investimen- ao conteúdo nacional da produção, par-
tos que se avizinha: a mera criação de um tindo mais do elemento intangível do que
setor fornecedor para a Petrobras e o setor da produção material, o setor aeronáutico
de petróleo no Brasil poderá contribuir para alcançou uma projeção internacional a partir
criar uma indústria dinâmica e com projeção de um prolongado esforço de capacitação.
internacional? A atração, motivada pelos É impossível afirmar que a exportação de
investimentos em curso e sobretudo os proje- aviões é o principal resultado daquele es-
tados, bastará para criar um setor industrial (e forço de capacitação tecnológica iniciado
de serviços associados) competitivo e capaz há tanto tempo. Sucessivas gerações de
de alçar a indústria brasileira a um novo engenheiros, com sólida formação cien-
patamar de capacitações, competitividade tífica e tecnológica, preocupados com as
e desenvolvimento? trajetórias de desenvolvimento da indústria
Pelo mesmo caminho das preocupações e com a tecnologia, são um coproduto de
com a nacionalização da produção (embora importância incomensurável.
o termo mais adequado pudesse ser terri- Uma das lições que a perspectiva adotada
torialização ou internalização), a indústria neste ensaio propicia consiste em considerar
automobilística alcançou um patamar de modo mais efetivo o tempo e os seus efei-
elevado de produção e um certo grau de tos. Investimentos tecnológicos são, por sua
sofisticação dos processos e dos produtos. natureza, mais difíceis de construir do que
Apesar disso, a sua balança comercial investimentos em capacidades de produção,
não se apresenta hoje tão robusta e – mais mormente quando os elementos tangíveis
grave – continua dependente de uma tarifa dos processos e produtos estabelecidos estão
externa muito elevada. A base ampliada do disponíveis. Demorou muito mais tempo
comércio regional e a divisão de trabalho para construir uma indústria aeronáutica
com a indústria argentina no âmbito do Mer- do que a automobilística, mas uma e outra
cosul ajudaram a consolidar uma atividade possuem trajetórias muito distintas. Esta
de grande importância e impactos plurais, baseou-se na importação de máquinas,
mas de conteúdo tecnológico ainda muito equipamentos, tecnologias, projetos e know-
distante do que seria esperável depois de -how e aquela na construção dos elementos

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de conhecimento e só progressivamente nas mundial para uma economia mais sustentá-
suas derivações tangíveis. vel, com peso destacado nas energias e nas
Esses dois caminhos exemplificam esco- matérias-primas renováveis. Visivelmente,
lhas que a sociedade brasileira vem fazendo o Brasil possui um veículo mais poderoso
há muito tempo e que já foram debatidas, para construir essa trajetória da exploração
com diferentes matizes e conotações, ao do petróleo em condições de grande difi-
longo da sua história, inclusive da história culdade tecnológica e operacional do que
recente, desde o início dos anos 1990. Por para avançar em direção aos renováveis.
detrás dessas escolhas há forças sociais e A capacitação tecnológica (e industrial) da
projetos de nação muito diferentes. Um estatal de petróleo é incomparavelmente
dos elementos que parece desempenhar um superior à capacitação das empresas bra-
papel relevante, mas não tem sido destacado sileiras nas áreas de renováveis. Seja no
de modo suficiente, é o consumo e a pressão complexo sucroalcooleiro, seja no setor
do consumo mais imediato, da disponibili- químico tradicional, as forças empresariais
dade dos “bens”. Esse elemento enseja um estão surpreendentemente apáticas em face
trade-off evidente: o desenvolvimento de da vastidão e pluralidade das oportunidades
uma indústria para atender um mercado é que o território e o desenvolvimento brasi-
um processo que leva tempo e tem incertezas leiro oferecem.
intrínsecas ao longo da sua trajetória. Por Sustentabilidade, recursos renováveis,
isso, é sempre mais fácil recorrer a soluções biotecnologia para a valorização dos recur-
prontas. Mais fácil, mas também menos sos naturais e para a sustentabilidade são
produtivo, ensejando um leque inferior vetores fundamentais a considerar. A con-
de efeitos dinâmicos. E uma vez adotado tribuição de cada setor ao desenvolvimento
um pacote industrial pronto, é evidente deverá ser avaliada por sua capacidade de
que as possibilidades de aprendizado e de articular-se com esses vetores. O Brasil
diferenciação das soluções reduzem-se de pode navegar por mais uma década na
modo substancial. demanda imensa que o crescimento rápido
O Brasil encontra-se numa encruzilhada criado no período recente criou, reforçada
neste terreno – não apenas o das tecnologias, ainda pelo crescimento que a China e as
mas o das escolhas da sociedade. O cres- economias congêneres (vastas populações,
cimento acelerado dos últimos anos enseja crescimento com urbanização e consumo
uma oportunidade de prosseguimento de material) vão propiciar; mas a reconstrução
um modelo industrial e tecnológico que se das capacidades competitivas para além
encontra, em muitos aspectos, numa fase desse horizonte curto de dez anos ou pouco
de auge e esgotamento. Muito mais do que mais depende de definições que devem ser
elevar as capacidades de produção, é tarefa tomadas desde já.
do desenvolvimento industrial brasileiro O momento da transição é o das defi-
construir a transição para uma nova fase. nições de maior impacto. Mas transição é
Mais do que perseguir a miragem das altas incerteza, e por isso as definições tendem
tecnologias com liderança consolidada a ser adiadas. O passado brasileiro agrava
(como a eletrônica e farmacêutica), é neces- esse quadro: fomos exímios seguidores,
sário construir por todos os lados ligações raramente definimos a trajetória. Quando
dinâmicas da produção com a tecnologia, o fizemos, foi muito mais nas atividades
sustentando-os em padrões contemporâneos com menor densidade e menor dinamismo
e emergentes. Aparece aqui uma ambigui- tecnológico. Pode ser esta a oportunidade de
dade que será necessário equacionar: o mudar. Afinal, raramente o Brasil teve diante
petróleo brasileiro abundante emerge de de seu desenvolvimento um tal arsenal de
forma coetânea com a transição da economia recursos e oportunidades.

REVISTA USP, São Paulo, n.89, p. 218-233, março/maio 2011 233

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