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JOÃO FURTADO
é economista e
professor da Escola
Politécnica da USP.
As relações
tecnológicas
do Brasil com o
mundo exterior:
passado,
presente e
perspectivas
RESUMO
ABSTRACT
This article presents a reflection on the relation between Brazilian economy and
the world outside under a technological perspective. To do so, it makes uses the
main dimensions of the balance of payments, seeking to explore its relations
throughout time. It is grounded on previous works which developed the indica-
tors of technological balance of payments, but if focus on the conceptual aspects,
on the relations between the many dimensions, and on the understanding of the
change process. The reflection is based on supporting documents from diverse
industries and economic activities, and makes use of known elements of the
Brazilian reality. That enables us to start the argumentation and to enrich the
discussion with new perspectives so that we can have a debate which can make
a wealth of contribution to the Brazilian development.
E
setor primário e as suas exportações. Essa
expansão ofereceu um espaço privilegiado
para as empresas estrangeiras (multinacio-
nais, sobretudo) de todas as origens. Capitais
europeus, estadunidenses e japoneses aqui
lançaram bases de sua expansão internacio-
ste ensaio toma como pon- nal desde meados dos anos 1950. A forte
to de partida os estudos de- presença de capitais e empresas de origem
senvolvidos anteriormente estrangeira conviveu desde então com um
no quadro dos Indicadores forte setor empresarial de origem estatal e
de Ciência, Tecnologia com uma regulação pública que ajudou, du-
e Inovação, um volume rante vários decênios, a moldar as relações
editado regularmente pela das empresas (de todas as origens) com os
Fundação de Amparo à fornecedores estrangeiros de tecnologia. O
Pesquisa do Estado de São Paulo1. Nas três tripé de capitais – privado nacional, privado
últimas edições dessa publicação que a Fa- estrangeiro e estatal – desenvolveu três
pesp oferece à comunidade de ciência, tec- dinâmicas particulares com relação à tec-
nologia e inovação, o escopo do capítulo que nologia e ao desenvolvimento. As grandes
trata do balanço de pagamentos tecnológico empresas de origem estrangeira contaram,
foi sendo redefinido para ganhar contornos durante muito tempo, com a suficiência da
coerentes com a seguinte questão principal: matriz como fonte segura para o seu prota-
como se descreve, de modo abrangente e gonismo industrial; e para a liderança que
sintético, o conjunto de relações de natureza facilmente conquistaram em grande número
tecnológica que existem entre um país e os de setores, que se viu reforçada nos prin-
demais? Este artigo dá continuidade a essa cipais períodos de crescimento acelerado3.
reflexão, agora com ênfase nos aspectos As empresas privadas nacionais, por seu
qualitativos (e não nos indicadores e nos lado, puderam recorrer à importação (de
elementos quantitativos). Entende-se que máquinas, equipamentos) e à contratação
os elementos empíricos (e as estatísticas de projetos e serviços de assistência técnica
sistemáticas) são mais bem explorados para viabilizarem os seus investimentos e
naquele outro contexto. ocuparem os novos mercados, em formação
O tema principal deste artigo é a discus- pelo crescimento acelerado da indústria e
são sobre as relações – de natureza tecno- das cidades. As empresas estatais desenvol-
lógica – de uma economia com o mundo veram estratégias híbridas, com importação 1 Fapesp, Indicadores de Ci-
exterior. Considerações de ordem geral são de tecnologia complementada por esforços ência, Tecnologia e Inovação,
São Paulo, Fapesp, edições
feitas, mas a preocupação central, explícita, próprios. Esse quadro variado define um de 2001, 2004 e 2010.
envolve principalmente a economia brasi- sistema bastante complexo, e nele prolife- 2 O café ainda representava,
leira, ou situações que permitam pensar a ram ideias e teses variadas sobre o quadro no início dos anos 1960, mais
natureza e as características – muito espe- desejável para a tecnologia no Brasil e o da metade das exportações
brasileiras. Atualmente mal
ciais – de uma economia como a brasileira. seu papel no desenvolvimento. Entre os representa 3%.
Que características da economia brasi- economistas de formação mais ortodoxa, a 3 M. L. Possas, Estrutura Indus-
leira a tornam um caso especial de desen- visão era de que o Brasil deveria deixar-se trial Brasileira: Base Produtiva
e Liderança dos Mercados
volvimento e de relacionamento – tecnoló- guiar pela sua dotação de fatores e atrair (1970), dissertação de mes-
gico – com o mundo exterior? Economia capitais e tecnologias. Entre os economistas trado, Unicamp, 1977.
de convicções mais heterodoxas, a indus- sobre a proteção contribuíram para a União
trialização deveria ser perseguida lançando Aduaneira dos Estados Alemães de 1834
mão de esforços essencialmente internos, (Zollverein). Essa união aduaneira subs-
aí incluindo o mercado (interno). O modelo tituiu os pequenos estados que vieram a
híbrido finalmente alcançado combinou compor a nação alemã por um território
industrialização (e não especialização unificado, com barreiras internas reduzi-
primária) com ampla entrada de capitais das e barreiras externas mais elevadas. O
estrangeiros (e não esforços essencialmente binômio representado por um espaço ale-
autônomos). mão unificado pela remoção das barreiras
internas em simultâneo às barreiras externas
contra importações é muito frequentemente
ignorado pelos defensores incondicionais
PROTECIONISMO, CRESCIMENTO da proteção, e esse descaso possui efeitos
muito importantes sobre o modo como
E APRENDIZAGEM compreendem o funcionamento do sistema
e o teor das suas preocupações com relação
Uma das características mais frequen- ao desenvolvimento tecnológico5.
temente destacadas no debate sobre o A elevação das barreiras comerciais ex-
desenvolvimento tecnológico limitado da ternas e a remoção das barreiras comerciais
economia brasileira (e, sobretudo, da sua internas (entre os estados alemães desde
indústria de transformação) envolve a sua então reunidos no Zollverein) contribuíram
relação com o protecionismo, quer dizer, para colocar em marcha poderosas forças
com a prevalência de um elevado nível de competitivas, entre empresas com graus
proteção da produção nacional com relação de desenvolvimento relativamente mais
aos produtos importados. Se para uns o pro- parecidos do que, por exemplo, o existente
tecionismo é indispensável, para outros ele entre qualquer empresa de um reino alemão
está na raiz de todos os males. Para aqueles, e a sua congênere inglesa. A competição
seus efeitos são secundários perto dos seus entre os mais iguais pode ser considerada
benefícios; e para estes ele produz uma dis- um antídoto contra os elementos estéreis
torção incorrigível no sistema econômico. ou mesmo nocivos do protecionismo, mes-
Os defensores incondicionais da proteção mo que ocorra a partir de um patamar de
dirão que o crescimento econômico e a desenvolvimento tecnológico e industrial
industrialização dos cinquenta gloriosos inferior ao que prevalece em outros espaços
(1930-80) demonstram o acerto da escolha, nacionais ou no âmbito internacional: a
ao passo que os críticos do protecionismo dinâmica competitiva é mais importante do
apresentarão como apoio aos seus argumen- que o patamar em que o padrão de produção
4 F. List, The National System of tos as fragilidades e as mazelas do modelo. se encontra em determinado momento. Di-
Political Economy, publicado
originalmente (em alemão) A proteção é um ingrediente presente ferentemente das suas versões extremadas,
em 1841. em todos os projetos nacionais de desen- propugnadas pelos ultraliberais e pelos
5 Na formulação original volvimento, desde o pioneiro, inglês. Foi desenvolvimentistas hiperprotecionistas, a
da Cepal, com o texto
fundador de Raúl Prebisch
defendida teoricamente como instrumento proteção não é um mal em si mesma nem
sobre “O Desenvolvimento para o desenvolvimento industrial no início um bem sem efeitos colaterais. A proteção
Econômico da América
do século XIX, principalmente por List4: é um ingrediente de um modelo, que pode
Latina e Alguns dos seus
Principais Problemas” (pu- ajudado por sua experiência nos Estados resultar em diferentes processos, com
blicado em 1949), havia Unidos, refletiu sobre o problema do desen- resultados muito distintos, a depender da
uma preocupação explícita
com relação ao tema da volvimento dos países que, como os reinos sua complexa interação com os demais
complementaridade das alemães, não acompanharam o movimento elementos.
economias da América
Latina, mas ela teve pouca original da revolução industrial inglesa A proteção foi tudo menos um elemento
repercussão prática e as bar- no século XVIII e sucumbiriam, se nada isolado no desenvolvimento alemão. As
reiras subsistiram durante o
período de industrialização
fizessem, ao imenso poderio do sistema dores das derrotas para os exércitos napo-
acelerada. industrial britânico. As suas proposições leônicos e a humilhação que elas represen-