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Maio 2023
NÚMERO 327 | MENSAL |

ÍNDIA
O DESAFIO GIGANTE
O país mais populoso do mundo, após ultrapassar a China,
estará à altura do seu potencial demográfico
e económico? e a sua democracia irá sobreviver?
SCROLL.IN, FINANCIAL TIMES, THE HINDU, THE ECONOMIST
ÍNDIA: O DESAFIO GIGANTE

FRANÇA EUROPA MÁLAGA

É PRECISO OS NOVOS MUROS A CIDADE
REPENSAR QUE NOS QUE SOUBE
A REPÚBLICA? DIVIDEM REINVENTAR-SE
Maio 2023

FINANCIAL TIMES, THE LOCAL EL PAÍS, IL FOGLIO EL PAÍS SEMANAL

S SUMÁRIO

MAIO 2023
04 Editorial

06 Cartoons

08 Retrato
Bola Tinubu

Atual
FRANÇA
Capa
36 Índia, o despertar
do gigante

38 O potencial da imensa
população jovem

42 Empregos, por favor!

44 Os negócios
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Courrier internacional

12 A caminho em primeiro lugar DIRETOR Rui Tavares Guedes

EDIÇÃO N.º 327
da VI República?
PROTESTOS
18 Violência sem controlo
EUROPA
20 Estes muros
que nos dividem
UE
22 A ilusão
da fortaleza europeia
PAÍSES BAIXOS
24 Revolta contra as elites
ALEMANHA
26 Os céticos da guerra
Capa BRASIL
Gravura indiana do século XVI 28 Ianomâmis, vítimas
FOTO DE GETTY IMAGES dos militares
e de Bolsonaro
AMÉRICA
30 “Mão de ferro”
em El Salvador
Courrier
Internacional
TELEGRAMA CONTROVÉRSIA
34 Ainda devemos
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46 Uma democracia à deriva Maria Alves, Margarida Bak Gordon
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49 Um país imenso Claire Carrard (Diretora de Redação),
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74 Málaga, o íman espanhol Assine a Courrier internacional

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82 Flashback
MAIO 2023 - N.º 327 3
E
A

EDITORIAL
R U I T AVA R E S G U E D E S A AMBIGUIDADE É UMA ARMA
rguedes@visao.pt
Logo após a proclamação da independência da Índia, em 1947, quando o mundo
já se dividia em dois blocos vencedores da II Guerra Mundial, o primeiro-ministro
Jawaharlal Nehru proferiu a frase que, desde então, tem marcado a política externa
de Nova Deli: “Não somos pró-russos nem pró-americanos. Somos pró-indianos.”
Com essa declaração, Nehru abriu caminho para a formação do Movimento dos
Países Não Alinhados, que, no caso da Índia, lhe permitiu atravessar a Guerra Fria
sem se envolver nos conflitos por procuração, que marcaram esse período e com
consequências dramáticas para muitos outros países.
Nesses primeiros tempos de independência, a Índia, herdada do império
britânico por Nehru, era muito diferente da atual. A sua população rondava os 370
milhões de pessoas, a maioria em pobreza extrema e com uma taxa de literacia que
não ultrapassava os 12%, e a economia encontrava-se em declínio absoluto: o país
que, em meados do século XVIII, representava cerca de 30% da riqueza mundial,
estava então reduzido a um quinhão inferior a 3%, quando os britânicos entregaram
aquela que classificavam como a “joia da coroa”.
Nessas condições e à frente da nação que já era, à data, a segunda mais populosa
do mundo, a estratégia dos novos dirigentes da União Indiana passou por procurar
alianças com os novos países que, entretanto, surgiam das cinzas dos impérios
coloniais, ao mesmo tempo que se esforçava por manter relacionamentos cordiais
com as potências mundiais – todas as ajudas, viessem elas de onde viessem, eram
bem-vindas, fosse para resolver emergências alimentares (como sucedeu com os
EUA) fosse para reforçar as Forças Armadas indianas perante a ameaça do vizinho
Paquistão (e daí o facto de, atualmente, a maior parte do armamento indiano ainda
ser de origem russa). Tudo isto foi feito com um objetivo sempre em mente e que
se mantém até hoje: afirmar-se como um polo independente de poder global,
manter uma voz própria em todos os assuntos e ser um líder entre os países em
desenvolvimento.
Ao longo de décadas, a Índia tem conseguido uma proeza única: manter relações
cordiais com todos os principais atores da política mundial, uma postura sempre
assente numa ambiguidade estratégica, capaz de confundir tanto os aliados como
os adversários. Essa estratégia é hoje levada ao extremo. Num mundo em ebulição
devido à invasão russa na Ucrânia, a Índia consegue quase a quadratura do círculo:
recusou os apelos para se juntar às sanções económicas à Rússia e, pelo contrário,
aumentou o volume de negócios com Moscovo, ao ponto de estar prestes a concluir
um acordo de livre comércio entre os dois países; continua a ser um membro ativo
na Quad, a aliança promovida pelos EUA com o Japão, Índia e Austrália, para tentar
conter o avanço da China na região do Indo-Pacífico; e mantém uma postura cordial
com a China, no âmbito dos BRICS, apesar da rivalidade histórica e de algumas
tensões recentes nos Himalaias, procurando que os seus problemas com Pequim não
sejam contaminados pela retórica habitual do Ocidente.
A estratégia indiana, sempre assente numa neutralidade cuidadosamente
COURRIER INTERNACIONAL coreografada em todas as grandes cimeiras internacionais, foi bem descrita pelo
App para tablets. atual ministro dos Negócios Estrangeiros, Subrahmanyam Jaishankar, num livro
Disponíveis na Applestore publicado um ano antes do início da guerra na Ucrânia. Nele, aquele que é o
e na Googleplay principal homem de confiança do primeiro-ministro, Narendra Modi, escreve que a
as aplicações necessárias. grande estratégia indiana, num mundo mais multipolarizado e repleto de incertezas,
deve saber “explorar as oportunidades criadas pelas contradições globais”,
por forma a tentar “extrair o máximo de ganhos do maior número de empates
possíveis”. Essa estratégia era depois descrita numa frase exemplar: “Este é um
momento para nos envolvermos com os EUA, sabermos administrar a tensão com
a China, cultivarmos a relação com a Europa, tranquilizarmos a Rússia, trazermos
o Japão para o jogo, atrairmos vizinhos e ampliarmos a vizinhança.” O plano, pelos
vistos, está a ser cumprido a preceito.

4 MAIO 2023 - N.º 327 ILUSTRAÇÃO: GETTYIMAGES

C CARTOONS

Neutralidade
indecisa
“Então? Posso enviar as granadas
para a Ucrânia? Responda sim ou
não”, pede o militar alemão. “Sim A ver o mundo a arder
ou não”, responde o funcionário A inércia dos dirigentes políticos mundiais perante
suíço acerca do armamento de a emergência climática: mais a assistir do que a agir
fabrico... alemão COST, PARA LE SOIR, BRUXELAS, BÉLGICA
CHAPPATTE, PARA NZZ AM
SONNTAG, ZURIQUE, SUÍÇA

6 MAIO 2023 - N.º 327

 Sempre
no centro
das notícias
O banho mediático é
o favorito de Donald
Trump, em qualquer
circunstância, como
sucedeu quando foi,
recentemente, acusado
pela Justiça,
em Nova Iorque
OLIVER, PARA DER
STANDARD, VIENA,
ÁUSTRIA

Dor de cabeça
O primeiro-ministro
israelita Benjamin
Netanyahu ficou
à beira do abismo
com as manifestações
populares em defesa
da democracia no país
KICHKA, PARA
I24NEWS,TELAVIVE, ISRAEL

MAIO 2023 - N.º 327 7

R R E T R ATO
Dançar à beira
do abismo
MAL FOI DECLARADO PRESIDENTE DA “MAIOR DEMOCRACIA
DE ÁFRICA”, BOLA TINUBU VIU A SUA VITÓRIA SER CONTESTADA PELOS DOIS
PRINCIPAIS RIVAIS. O PAÍS PARECE TER FICADO EM SUSPENSO
A 1 de março, Bola Tinubu, o
candidato presidencial de um dos dois
maiores partidos políticos da Nigéria, All
Progressives Congress (APC, Congresso
de Todos os Progressistas), foi declarado
vencedor das eleições realizadas a 25 de
fevereiro – mas o seu mandato é fraco e
está a ser contestado.
As votações atrasaram-se e ficaram
manchadas por questões técnicas e, em
alguns lugares, por violência e intimida-
ção dos eleitores. Observadores locais e
internacionais confirmaram os incidentes,
mas não há certeza sobre se estes afeta-
ram os resultados, como foi amplamente
denunciado por apoiantes da oposição.
Na véspera do anúncio da vitória de
Tinubu, o People’s Democratic Party (PDP,
Partido Democrático Popular, centro-di-
reita, o outro parceiro do “sistema biparti-
dário” nigeriano) e o Labour Party (Partido
Trabalhista, que apoiou a candidatura do
banqueiro, empresário e político Peter Obi)
exortaram a Comissão Eleitoral Indepen-
dente (INEC) a anular a eleição. No dia
seguinte, quer Atiku Abubakar, candidato
do PDP, quer Peter Obi proclamaram-se
JORNAL AUTORA
R Africa Is a Country Camilla Houeland
Nova Iorque
8 MAIO 2023 - N.º 327
NIGÉRIA
vencedores e prometeram contestar os
resultados em tribunal.
Diferentes interpretações da lei elei-
toral também podem dar origem a litígios
judiciais. Para vencer, um candidato pre-
sidencial precisa não só do maior número
de votos, mas também de mais de 25% dos
votos em “dois terços de todos os estados
da federação e no Território da Capital Fe-
deral, Abuja”. Tinubu não obteve os 25%
exigidos em Abuja. O INEC não interpretou
a lei dessa forma e reconheceu a sua vitória.
Tinubu admitiu que os 37% que ob-
teve, com uma taxa de participação de
apenas 29% dos eleitores inscritos (a
mais baixa na Quarta República, como
o Estado nigeriano é conhecido desde o
fim da ditadura, em 1999), é um mandato
fraco. No seu primeiro discurso, apelou
à unidade nacional e a uma reconstrução
coletiva do país.
Quanto à candidatura de Peter Obi,
há muitas lições a tirar desta eleição. Em
2019, o Partido Trabalhista só obteve 5 000
votos. Desta vez, conquistou 25%, ou seja,
mais de seis milhões. É uma mudança ra-
dical em comparação com as duas últimas
DATA TRADUTORA
02.03.2023 Maria Alves
eleições nigerianas, dominadas pelos dois
maiores partidos.
Além disso, Obi obteve maiorias em
12 dos 36 estados da federação, particu-
larmente em Lagos (a capital económica
e cultural e a maior cidade do país) e em
Abuja (a capital federal). A vitória de Obi
em Lagos é também significativa por ser
o bastião político de Tinubu.
A campanha de Tinubu centrou-se
no que ele conseguiu realizar quando foi
governador de Lagos, entre 1999 e 2007.
Lagos e Abuja são também os lugares geo-
gráficos privilegiados pelos média e pelas
equipas das campanhas eleitorais, assim
como pelas redes sociais.
Frustração dos “Obidients”
É possível que as elevadas expectativas
de que Obi [antigo governador do estado
de Anambra] seria o Presidente estejam
ligadas a esse domínio regional, que levou
muitos a sobrestimar os níveis de apoio
do candidato dos trabalhistas. Esta eleição
provou, uma vez mais, aqui como noutras
regiões, que o apoio dos meios de comuni-
cação social não se traduz necessariamente
numa votação maciça, e que campanhas
eleitorais independentes, que beneficiam
da energia da juventude, ainda não trans-
formam tuítes e publicações no Instagram
em eleitores devidamente registados.
 Presidente da Nigéria recentemente eleito
“Asiwaju” Bola Ahmed Tinubu
De acordo com a Comissão
Nacional Eleitoral Independente, ER
G
Tinubu, líder do partido Congresso NÍ
de Todos os Progressistas (APC),
foi eleito Presidente da Nigéria,
com cerca de 8,8 milhões de votos
N
BOLA BE
NI
Abuja ES
AHMED Õ
AR
TINUBU NIGÉRIA CA
M
(70)
Golfo
da Guiné
1952
Nasceu a 29 de março, na cidade
costeira de Lagos
É apelidado de “Asiwaju”, que Foi um dos grandes responsáveis
significa, na língua ioruba da África pelo desenvolvimento e transformação
Ocidental, “aquele que lidera” de Lagos num polo comercial
2013
1994 Fundou o APC, com Muhammadu Buhari,
Abandona o país e vai para o exílio, que veio a ser eleito Presidente em 2015
após a intervenção da junta militar
sob o comando de Sani Abacha, 2023
que se proclamaria Presidente É eleito Presidente nas eleições
de 25-26 de fevereiro
1999
Depois de regressar à Nigéria, é eleito,
por oito anos, governador de Lagos

Em todo o caso, a mobilização a favor
de Obi – por parte das classes trabalha-
doras, da esquerda e de uma multidão de
jovens – representa um compromisso para
com a democracia e um desafio à ordem
estabelecida. De ora em diante, será in-
teressante observar se Obi se manterá fiel
ao Labour (ele já mudou de partido várias
vezes no passado – foi o “número dois” de
Atiku Abubakar na candidatura às presi-
denciais de 2019, na lista do PDP) e se dará
prioridade, nos próximos quatro anos, à
mobilização dos jovens e dos sindicatos,
tendo em vista futuros atos eleitorais.
...
Tinubu vai assumir
as rédeas do poder
numa altura em que o
país está mergulhado
numa profunda crise
social, económica e de
segurança – um país que
é também o maior do
continente africano em
termos de economia
e de população
Resta ainda saber se os apoiantes de
Obi transformarão a energia dos últimos
seis meses num processo de mobilização
política de longo prazo. (Obi tem 60 anos;
daqui a quatro, ainda será um jovem em
comparação com o Presidente eleito e com
o Presidente cessante, Muhammadu Bu-
hari, que tem 80. A idade real de Tinubu
é um mistério e tem sido alvo de muita
especulação na Nigéria. Ele diz que tem
70 anos. Muitos nigerianos garantem que
ele é, pelo menos, dez anos mais velho.)
Há um certo receio de que a fúria e a
frustração dos “Obidients” – os apoiantes
de Obi, a maior parte deles jovens – em
relação ao processo eleitoral venham a dei-
xar a juventude mais apática, a intensificar
a desconfiança face ao sistema e de que
tudo isto resulte num maior desinteresse
pela política.
Tinubu vai assumir as rédeas do poder
numa altura em que o país está mergulhado
numa profunda crise social, económica e
de segurança – um país que é também o
maior do continente africano em termos
de economia e de população [213,4 milhões
de habitantes – um em cada seis africanos é
nigeriano]. O que acontece na Nigéria tem
repercussões para lá das suas fronteiras.
No curto prazo, há necessidade de en-
frentar um défice de tesouraria e a escassez
de combustível que trava a mobilidade das
pessoas e os fluxos económicos. A taxa de
inflação subiu aos 21% e encareceu o custo
de vida, endividando o país.
Tinubu pretende cortar os subsídios à
energia, para aliviar as finanças públicas,
mas isso arrisca-se a agravar ainda mais a
crise e a causar, potencialmente, protes-
tos populares (como já aconteceu muitas
vezes no passado, quando se reduziram
subvenções sociais, principalmente os que
foram incentivados pelo movimento Oc-
cupy Nigeria, em 2011).
Vai ser necessário um trabalho mais
sistemático para acabar com a corrup-
ção. Tinubu não fez grande coisa enquanto
governador de Lagos, em matéria de luta
contra a fraude fiscal e combate à corrup-
ção. O seu próprio historial em termos de
transparência e corrupção nos negócios
não é um bom exemplo para os nigerianos.
Vamos assistir novamente a uma caça
seletiva aos corruptos: alguns ficarão isen-
tos e os opositores estarão mais expostos.
A maioria dos nigerianos, cansados da
corrupção, concorda que, seja qual for a
ideologia, é preciso acabar com este flagelo.
Escapar ao precipício
Há uma necessidade profunda de, e um
potencial enorme para, revitalizar a eco-
nomia. A taxa de desemprego é de 33%
(e é ainda mais alta entre os jovens) num

MAIO 2023 - N.º 327 9

 R E T R ATO
país com imensos recursos, naturais e hu-
manos. Durante o boom da exploração de
petróleo, de 2000 a 2014, aumentaram o
crescimento e os investimentos na Nigé-
ria, em particular na Lagos de Tinubu. No
entanto, o país não conseguiu recuperar
da queda dos preços do crude em 2014,
nem está a saber aproveitar o atual au-
mento da procura e a subida dos preços
dos hidrocarbonetos.
Há ainda uma enorme necessidade de
diversificar a economia, dado que a Ni-
géria é extremamente dependente de um
recurso natural cuja importância tende a
diminuir na economia mundial, com uma
indústria prejudicada pela corrupção, pela
criminalidade e por desastres ambientais
que alimentam profundas desigualdades
no país.
...
A Nigéria tem sido
gravemente afetada pelas
alterações climáticas
e está a ser devastada
pela desertificação no
Norte, pelo aumento do
nível das águas do mar e
por múltiplas e terríveis
inundações
10 MAIO 2023 - N.º 327
É preciso salientar que a Nigéria tem
sido gravemente afetada pelas alterações
climáticas e está a ser devastada pela deser-
tificação no Norte, pelo aumento do nível
das águas do mar e por múltiplas e terríveis
inundações (que causaram centenas de
mortes e mais de um milhão de deslocados
internos no delta do Níger). Tinubu recusa
adotar medidas de luta contra os efeitos
das alterações climáticas, a menos que os
países ocidentais financiem essa política.
Outra questão fundamental é a inse-
gurança: a violência, as insurreições e a
criminalidade continuam a aumentar, e
são alimentadas pela crise social e por uma
desconfiança profunda no Estado, nos seus
representantes e nas suas instituições.
Por fim, os leitores poderão interro-
gar-se se a eleição presidencial poderá
remediar, de uma maneira ou de outra, a
crise nigeriana no seu conjunto. A maioria
dos observadores (nigerianos ou amigos
que se preocupam com o nosso país e o seu
povo) acredita que, nesta fase, qualquer
mudança é bem-vinda.
Não há uma solução miraculosa nem
uma solução a curto prazo. Além disso, a
Nigéria é um país de destinos espetaculares.
Por vezes, subestimam-se as boas histórias
e a política normal e informal do dia a dia.
Recorde-se que muitas vezes se disse que a
Nigéria estava “à beira do abismo”, mas a
realidade é que, à última da hora, sempre
conseguiu afastar-se do precipício.
A PUBLICAÇÃO
Criado em 2009 pelo
académico sul-africano Sean
Jacobs, Africa is a Country
(África é um País) é um
site de notícias, opinião e
análise sobre o continente.
O seu objetivo é desafiar os
estereótipos tradicionais que
prevalecem nos meios de
comunicação social ocidentais
sobre os 54 países africanos.
É uma plataforma que acolhe
muitos intelectuais africanos
e reivindica uma orientação
política de esquerda. Todo o seu
conteúdo pode ser reproduzido
ao abrigo da licença Creative
Commons. Jacobs, o fundador,
é autor do livro Media in
Postapartheid South Africa:
Postcolonial Politics in the age
of Globalization.
ILUSTRAÇÃO DE GADO, QUÉNIA
 O fundadoR
do

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A VIDA E A OBRA DE UM DOS PAIS DA ARTE MODERNA

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 FRANÇA
A caminho
da VI República?
À MEDIDA QUE A FÚRIA CONTRA A REFORMA DO SISTEMA DE
PENSÕES INCENDEIA AS RUAS DE PARIS E DE OUTRAS CIDADES,
TALVEZ TENHA CHEGADO A HORA DE REPENSAR UMA
PRESIDÊNCIA ATÉ AGORA OMNIPOTENTE E AUTOCRÁTICA

Financial Times (excertos)

Londres
ILUSTRAÇÃO DE ALEX, PARA LA LIBERTÉ, FRIBURGO
 França
O
Os manifestantes na Praça da República, de mínima de reforma dos 62 para os 64
em Paris, entoavam, curiosamente em anos, pois não conseguiu aprovar o seu
italiano, siamo tutti antifascisti – “somos plano na Assembleia Nacional [precisava
todos antifascistas”. Já em francês, ata- de uma maioria de 287 votos favoráveis e
cavam o principal inimigo, o Presidente: a coligação, que apoia o governo, só tem
Nous, on est là, même si Macron ne veut 250 deputados].
pas, nous, on est là [Estamos aqui, mesmo Em Paris, depois de um inverno sal-
que Macron não queira; estamos aqui]. picado de greves ininterruptas, o metro-
Vigiavam-nos cordões de agentes politano revela-se um conceito teórico,
da polícia de choque (CRS, Compagnies enquanto, nos passeios, ratos vasculham
Républicaines de Sécurité), que, de acor- as montanhas de lixo por recolher. Em
do com a tradição francesa, não faziam Paris, atingiu-se indiscutivelmente o clí-
qualquer esforço para se misturarem max no sábado, 18 de março, com uma
na multidão e acalmar a situação, mas manifestação a favor dos ratos. “NÃO,
esperavam pelo momento de usar o seu os ratos não são responsáveis por todos
gás lacrimogéneo e os seus bastões. Os os males da França!”, proclamou a as-
manifestantes também aguardavam por sociação organizadora, Paris Animaux
esse momento. “ACAB”, exclamaram, Zoopolis.
usando a abreviatura inglesa de All Cops A fúria dos franceses transcende as
Are Bastards [“Todos os polícias são ca- pensões e a arrogância de Macron. Há
brões”]. Na boca de um francês, ela soa uma raiva generalizada e duradoura con-
a “A-ca-buh!” tra o Estado e a figura que o personifica:
Entretanto, alguém incendiou um o Presidente. A viver aqui há 20 anos,
contentor de lixo – uma imagem perfeita habituei-me à suspeita dos franceses de
para o Instagram –, e os que participavam que, independentemente de quem for o
no protesto começaram a filmar. Sabiam eleito para a presidência, este é neces-
que, ao fazer isso, estavam a seguir uma sariamente um vilão imbecil, e o Estado,
gloriosa tradição parisiense, de 1789 em vez de ser a emanação do coletivo, é
[Revolução Francesa] até 1968 [a crise o seu opressor.
de Maio de 68], passando por 1944 [li- No entanto, a decisão de Macron
bertação de Paris da ocupação nazi]. Os forçar a aprovação do novo sistema de
polícias avançaram e os manifestantes pensões, sem o submeter à votação no
começaram a atirar garrafas. Parlamento, aumenta o risco de os fran-
A França já estava em crise mesmo ceses imitarem os EUA, o Reino Unido e a
antes da decisão unilateral de Emmanuel Itália e de elegerem Marine Le Pen para a
Macron de, em março, aumentar a ida- presidência em 2027. O voto extremista
AUTOR DATA TRADUTORA
F Simon Kuper 24.03.2023 Maria Alves
14 MAIO 2023 - N.º 327
na segunda volta das presidenciais tem
vindo a subir neste século, tendo chegado
aos 41% em 2022.
Servidores do Estado
A França não pode continuar assim. Che-
gou a hora de acabar com a V República, e
a sua presidência omnipotente – o que de
mais próximo há de um ditador eleito no
mundo industrializado –, e inaugurar uma
VI República, menos autocrática. Macron
bem poderá ser a pessoa certa para essa
missão.
A V República foi proclamada em 1958,
entre o caos da guerra da Argélia e receios
de um golpe de Estado militar. A Consti-
tuição foi redigida para, e em parte por,
Charles de Gaulle, o herói de 1,96 metros de
altura, “o homem providencial”, que per-
sonifica a velha França. De Gaulle aceitou
regressar ao poder se o país amordaçasse
os partidos e os deputados (detestava até o
próprio partido, Rassemblement du Peuple
Français/RPF – União do Povo Francês,
dissolvido em 1955).
Foi assim que a Constituição criou um
executivo forte, ainda que não centrado na
pessoa do Presidente. O Artigo 49.3 permi-
te que o governo aprove leis sem votação
na Assembleia Nacional. Para aprovar a
reforma do sistema de pensões, Élisabeth
Borne, a primeira-ministra de Emmanuel
Macron, teve de invocar aquele artigo – o
que fez pela décima primeira vez, em 10
meses no cargo.
A filosofia subjacente à V República
tornou-se uma espécie de regra franco-
-confucionista promulgada por gente de
primeira classe, oriunda de todos os estra-
tos da população. O pai do primeiro-mi-
nistro, Pierre Mendès France [descendente
de uma família judaico-portuguesa sefar-
dita, forçada a fugir depois do massacre
de Lisboa de 1506], vendia roupa interior
barata; o de Georges Pompidou foi pro-
fessor numa cidadezinha; e o de François
Mitterrand foi chefe da estação de com-
boios de Angoulême. Tradicionalmente,
nas cimeiras do G7, o líder com o QI mais
elevado e com mais conhecimentos fora
do campo político é o Presidente francês.
Os tecnocratas da República foram,
gradualmente, alargando a sua autoridade
às aldeias mais isoladas. Quase tudo o que
se movimentava no maior país da Euro-
pa Ocidental era administrado a partir de
uma área exígua de alguns quilómetros
quadrados em Paris.
Múltiplas vagas de “descentralização”,
desde 1982, nunca foram longe. O princípio
orientador dos tecnocratas parisienses,
segundo o filósofo, escritor e político li-
beral Gaspard Koenig, é o estatismo ou
 A FÚRIA DOS FRANCESES TRANSCENDE AS PENSÕES
E A ARROGÂNCIA DE MACRON. HÁ UMA RAIVA
GENERALIZADA E DURADOURA CONTRA O ESTADO
E A FIGURA QUE O PERSONIFICA: O PRESIDENTE.
PARA OS FRANCESES, INDEPENDENTEMENTE
DE QUEM FOR O ELEITO PARA A PRESIDÊNCIA,
ESTE É NECESSARIAMENTE UM VILÃO IMBECIL
estadismo. Esses tecnocratas, acrescenta,
são geralmente identificados como “ser-
vidores do Estado” e não do povo.
Ficou decidido que os franceses con-
fiariam uma boa parte do seu rendimento
ao Estado e aceitariam navegar pelo labi-
rinto da burocracia, que é tantas vezes um
pesadelo, recebendo em troca educação
gratuita, um serviço nacional de saúde,
pensões de reforma e até, frequentemente,
férias subsidiadas.
Perder o brilho
Até à década de 1990, o sistema funcio-
nou mais ou menos. A França teve os seus
Trente Glorieuses – 30 anos gloriosos de
crescimento económico, de 1945 a 1975.
Construiu os comboios mais rápidos da
Europa, o TGV; coprojetou o avião mais
rápido do mundo, o Concorde; inventou
o precursor da internet, o Minitel, que
os franceses usavam para reservar um
court de ténis ou subscrever um serviço
FOTO: GETTYIMAGES
telefónico de conversas eróticas; pressio-
nou a Alemanha a criar o euro; tornou-
-se independente no palco internacional.
Uma presidência omnipotente fortalece
a posição da França internacionalmente:
o governo fala a uma só voz, e os líderes
estrangeiros sabem sempre para que nú-
mero ligar em França.
O momento em que a V República per-
deu o brilho terá sido aquando do choque
petrolífero de 1973 – a partir de então,
a economia praticamente estagnou – ou
talvez tivesse sido a 21 de abril de 2002,
quando o então líder da Frente Nacional
(FN, extrema-direita), Jean-Marie Le
Pen, chegou à segunda volta das eleições
presidenciais. Foi derrotado por Jacques
Chirac, mas, desde então, sob o efeito
das preocupações dos franceses com a
imigração e o desemprego, uma ameaça
crível paira sobre a República de França.
O desencanto com os Presidentes
transparece nos índices de aprovação.
Mitterrand (de 1981 a 1995) e Chirac (de
1995 a 2007) tinham geralmente avalia-
ções entre os 40% e os 60%, segundo a
empresa de sondagens Kantar Sofres. No
entanto, os três últimos Chefes de Esta-
do – Nicolas Sarkozy, François Hollande
e Emmanuel Macron – têm oscilado, na
maior parte do tempo, entre os 20% e os
40%. A popularidade de Hollande num
desses inquéritos à opinião pública caiu
para 4% (não é um erro de digitação). Estas
figuras da era pós-heroica são muito fracas
para erguerem a tocha de um De Gaulle.
Os tecnocratas também perderam o
seu brilho, sobretudo porque parecem es-
tar presos a uma casta que se perpetua. A
classe dominante de hoje é constituída,
desproporcionalmente, por filhos brancos
da alta burguesia, com bibliotecas, que fo-
ram juntos desde a creche, na Rive Gauche
[margem esquerda do rio Sena], até aos
estudos preparatórios, ainda na margem
esquerda, em que estudam para os exames
de admissão nas grandes faculdades, antes
de comprarem o próprio apartamento,
também na margem esquerda. Se não vi-
nham de Paris, geralmente para aqui se
mudavam na adolescência, como acon-
teceu com François Hollande, filho de um
rico médico da Normandia, ou Macron,
filho de um neurologista da Picardia.
MAIO 2023 - N.º 327 15
 França

A elite e a colónia
Os tecnocratas franceses passaram a maior
parte das suas vidas profissionais num pu-
nhado de bairros localizados no Boulevard
Périphérique, um anel rodoviário [de 35
quilómetros] que se estende como um fosso
[em redor e sobre as antigas fortificações
de Paris, que marcavam as fronteiras da
cidade]. Eles tratam o resto da França
como uma colónia ou quase, povoada de
camponeses fedorentos, incapazes de as-
similar a cultura parisiense, ensinada na
escola, e que votam nos extremos, direita
ou esquerda.
Os fundamentos da vida nas províncias
escapam aos decisores. Quando Macron
decidiu acrescentar alguns cêntimos aos
impostos sobre os combustíveis, em 2018,
estava longe de imaginar que a sua de-
cisão iria desencadear o movimento de
sublevação nacional dos coletes amare-
los, que haveria de durar vários meses,
porque ele e os tecnocratas à sua volta
não faziam ideia do quanto as pessoas do
outro lado do Périphérique precisavam
dos seus carros.
Quando as coisas dão para o torto,
os franceses culpam os tecnocratas – e
principalmente o Presidente, que toma
decisões sem os consultar. A vida do ci-
dadão comum parece estar determinada,
até ao dia em que se reforma, por uma falsa
meritocracia parisiense da qual é excluí- QUANDO AS COISAS DÃO PARA O TORTO, OS FRANCESES
do desde o nascimento. Três quartos das
pessoas que afirmam pertencer às “classes CULPAM OS TECNOCRATAS – E PRINCIPALMENTE
trabalhadoras” queixam-se de ser objeto
de desprezo social e de falta de reconhe- O PRESIDENTE, QUE TOMA DECISÕES SEM
cimento, constata Luc Rouban, cientista
político em Sciences Po, uma universidade
OS CONSULTAR. A VIDA DO CIDADÃO COMUM PARECE
de elite em Paris. ESTAR DETERMINADA, ATÉ AO DIA EM QUE SE REFORMA,
Isto é particularmente irritante, dado
que o lema do país, espalhado nas facha- POR UMA FALSA MERITOCRACIA PARISIENSE, DA QUAL
das de todas as estações de correios e das
escolas primárias, é Liberdade, Igualdade, É EXCLUÍDO DESDE O NASCIMENTO
Fraternidade. A França não é o Reino Unido
ou os Estados Unidos da América, onde problema residisse na incapacidade de os o voto nunca gostaram dele nem achavam
é mais direto o poder da classe social e cidadãos entenderem a realidade. que, ao fazê-lo, estavam a apoiar o seu
do dinheiro. programa, que já continha a promessa de
Se o povo desconfia dos tecnocratas, os Macron, o sabe-tudo aumentar a idade da reforma. Só que, na
tecnocratas também desconfiam do povo, Emmanuel Macron tem sido alvo da ira segunda volta das presidenciais de 2017
diagnostica Chantal Jouanno, que acaba popular desde que foi eleito Chefe de e de 2022, a outra opção era Marine Le
de cumprir um mandato de cinco anos Estado, em 2017. Dizia-se que o Presi- Pen. Em França, o Chefe de Estado passou,
como diretora da Comissão Nacional para dente norte-americano George H. W. em 60 anos, de “homem providencial”
o Debate Público (CNDP). Os “decisores” Bush lembrava às mulheres os primeiros a “escolha que permite evitar o diabo”.
franceses descrevem muitas vezes a so- maridos. Macron lembra aos franceses o A breve passagem de Macron pelo
ciedade como “conflituosa, incontrolável, seu chefe: um sabe-tudo, muito culto, que Banco Rothschild & Co. gerou, inevita-
irreformável”, disse ao diário Le Monde. menospreza a sua equipa. Ele percebeu velmente, teorias de conspiração antis-
Talvez se estivesse aqui a referir à piada que a Hollande [de quem foi conselheiro semitas entre os que confundem o que é
de Macron sobre os “gauleses refratá- económico] faltava grandeza presidencial hoje um banco parisiense especializado em
rios”. [Numa entrevista à televisão, em e denominava-se “jupiteriano”. investimentos e o império pan-europeu do
22 de março], ele lamentou: “Ainda não A maior parte dos eleitores via em Ma- século XIX. Macron é muitas vezes acusado
conseguimos convencer [os franceses] da cron apenas um ex-banqueiro promissor de ser um “neoliberal” ou, pior, um “ul-
necessidade desta reforma.” Como se o disfarçado de rei. Muitos dos que lhe deram traliberal”: muito ocupado a desmantelar

16 MAIO 2023 - N.º 327


a rede de Segurança Social francesa, em
benefício das forças obscuras do grande
capital internacional.
A acusação é absurda: a França é, in-
discutivelmente, o lugar menos neoliberal
do mundo. Em 2021, as despesas públicas
totalizaram 59% do produto interno bruto
(PIB), o maior da OCDE, o clube dos países
ricos. O constante medo do povo francês
em perder o que conquistou – acima de
tudo, os 25 [melhores] anos de contribui-
ções fiscais – atesta a facilidade com que
vivem. Por outro lado, as pessoas pagam
tantos impostos ao Estado que, para mui-
tos, o dinheiro não chega ao proverbial
“fim do mês”. O rendimento líquido médio
dos franceses – €22 732 em 2021 – é infe-
rior ao dos Estados da Europa do Norte,
os quais a França considera seus pares.
Sobretudo depois dos coletes amare-
los, Macron tem procurado diminuir os
privilégios das elites. O antigo Presidente
Sarkozy e o seu ex-primeiro-ministro,
François Fillon, foram condenados por
corrupção, embora, até ao momento, nem
um nem outro tenham sido presos e ambos
tenham recorrido das sentenças.
Uma nova sobriedade impôs-se tam-
bém na Assembleia Nacional: acabou-se
o tempo em que os deputados levavam
FOTO: GETTYIMAGES
belas estagiárias para almoçar no Château
Lafitte, à custa do erário público. Os mi-
nistros de Macron viram ser-lhes retirados
dossiers devido a conflitos de interesses
– ainda que isso deixasse à vista o número
impressionante de tais dissonâncias no
pequeno microcosmo do poder parisiense.
Seja como for, nem estas concessões
nem sequer o desaparecimento de um
antigo flagelo francês, o desemprego,
apaziguaram os ânimos. A taxa de de-
semprego atingiu 7,2%, o número mais
baixo desde 2008, sem que ninguém se
lembre de agradecer a Macron por isso.
A revolta com a aprovação forçada da re-
forma do sistema de pensões é tanta que
o Presidente poderá ter dificuldades em
aprovar outras leis, nos próximos quatro
anos, a menos que, mais uma vez, ouse
fazê-las passar sem as submeter à votação
na Assembleia Nacional.
A rua e o Presidente
Os frutos da V República não são muito
maus, mas o sistema tornou-se obsoleto,
comenta Catherine Fieschi, fundadora do
think-tank Counterpoint. A natureza au-
tocrática do Estado explica a ira dos fran-
ceses, embora estes vivam relativamente
bem. Poder-se-ia rever o funcionamento
interno da República, sem mencionar um
Parlamento que é, por assim dizer, irre-
levante.
Hoje, o poder assenta em três pilares:
a Presidência, a Justiça e a Rua. Se o Chefe
de Estado decidir fazer alguma coisa, só
a rua o consegue travar – paralisando o
país com greves e manifestações. A rua
e o Presidente raramente chegam a um
compromisso. Um ganha, o outro perde.
Tradicionalmente, são os sindicatos
que controlam a rua. Mas, numa altura
em que também eles estão a perder ter-
reno – Macron mal os consultou sobre o
dossier das pensões –, a rua está a tor-
nar-se mais violenta e mais incontrolável,
desde o movimento sem líderes dos coletes
amarelos aos caixotes do lixo que hoje são
incendiados.
A escola secundária da minha filha está
intermitentemente bloqueada por alu-
nos que erguem bandeiras com slogans
como “Contra o capital!”. Noutro estabe-
lecimento de ensino nas redondezas, um
grupo de estudantes e de professores está
a organizar-se para fazer do bloqueio uma
ocupação, que irá durar várias semanas
– tencionam dormir no local e oferecer
atividades lúdicas, como a confeção de
estandartes e oficinas de pintura em pare-
des. Uma amiga da minha filha tencionava
participar na iniciativa: “Depois, vou gozar
o fim de semana.”
Não é assim que se governa um país. Na
última eleição presidencial, o candidato
da extrema-esquerda, Jean-Luc Mélen-
chon, fez campanha com a promessa de
uma VI República. Apelou a uma nova
Constituição, que reduza os poderes do
“Presidente-monarca”. Porém, não há
ninguém mais habilitado a inaugurar esta
VI República do que Macron. Ele é um pe-
so-pesado da política, observa Catherine
Fieschi.
Macron já tentou, por várias vezes,
encantar Donald Trump e Vladimir Putin,
bem como reformar o mercado de tra-
balho francês, a defesa europeia e a UE.
Se a maioria dos seus planos fracassar,
ele tem, pelo menos, o mérito de sonhar
alto. Uma VI República é uma ideia à escala
macroniana e, sugere Catherine Fieschi,
este até pode ser o seu legado, o que, talvez,
possa pôr o comboio tricolor de de novo
sobre os carris.
Vidas magníficas
Em março, o partido de Macron, que
atualmente se chama Renaissance [Re-
nascimento], enviou aos membros um
email intitulado: “Sobre a reforma das
instituições”. Os militantes foram con-
vidados a partilhar ideias sobre eleições
para o Parlamento, o recurso ou não a
referendos e sobre os poderes locais. A
isto juntou-se uma pergunta aberta: “Em
poucas palavras, sobre que tema(s) acha
que seria útil organizar uma convenção
de cidadãos?”
Um dos pontos fortes de França passa
por atualizar-se, revendo a sua Constitui-
ção – como fez por 24 vezes, durante a V
República. Como seria uma VI República
reformada? O filósofo Gaspard Koenig su-
gere descartar a inovação de Charles de
Gaulle, a do presidente-eleito. Isso per-
mitiria “esvaziar” esse papel e dar mais
espaço ao Parlamento. Koenig é também
a favor de delegar mais poderes aos 35 mil
municípios [communes]. Várias sonda-
gens têm mostrado, repetidamente, que
os franceses têm muito mais confiança
nos autarcas do que nos líderes nacionais.
Em 2022, num ato meramente sim-
bólico, Koenig candidatou-se à chefia do
Estado, com um programa liberal baseado
numa presidência mais pequena. Depois
de ter percorrido o país, mostrou-se en-
tusiasmado: muitos franceses habitam em
lugares magníficos, no sopé das monta-
nhas, perto de praias ou entre ovelhas.
Vivem e comem bem, sobrando-lhes tem-
po para satisfazer paixões pós-laborais.
Talvez se sentissem ainda melhor sem
um tipo em Paris a intrometer-se nas suas
vidas.
MAIO 2023 - N.º 327 17
 França

PROTESTOS
claros – vindo principalmente da extrema-
-esquerda, mas também da extrema-direi-

Violência sem
ta e da fração brutal do movimento Gilets
Jaunes [Coletes Amarelos] de 2018-2019.
O problema agravou-se com o incon-

controlo
sistente comportamento das unidades da
polícia de choque francesa, que oscila en-
tre o profissionalismo estoico perante as
Num país onde até os motins costumavam ter regras, agressões ferinas de que são alvo e os seus
as imagens de manifestações de protesto cada vez mais ataques e detenções injustificados quando
truculentas e caóticas suscitam receios de que a cultura enfrentam multidões relativamente pací-
ficas.
do conflito está numa espiral Uma parte da classe política e dos mé-
The Local dia em França adota uma atitude estranha-
Paris mente ambígua – para não dizer hipócrita
– diante da violência terrível a que Paris e
outras cidades assistiram em 23 de março (e
A França tem um problema misso [rules of engagement, ferramentas no dia 29, em menor escala). A destruição de

A com a violência. Não é, em

geral, um país violento. E, no
entanto, demonstra uma es-
tranha tolerância – até mesmo um certo
gosto – pela violência política. Apesar de eu
ser correspondente em França há 26 anos,
tenho dificuldade em explicar ou definir
este fenómeno.
No passado, a violência tinha um lado
teatral, mas obedecia a regras de compro-
AUTOR DATA
F John Lichfield 29.03.2023
de controlo do uso da força], como acon-
tecia nas manifestações de agricultores e
noutras. Fui testemunha de protestos de
viticultores em Languedoc [região costeira
no Sul], eventos agendados com semanas
de antecedência, como se fossem jogos de
râguebi ou touradas. Aquele tipo de violência
política de baixa intensidade foi suplanta-
do, nos últimos anos, por um novo tipo de
violência insurgente, sem regras ou limites
TRADUTORA
Maria Alves
lojas e bancos, a queima de contentores de
lixo e de quiosques – mais de 900 pequenos
incêndios criminosos numa só noite e ape-
nas na capital – foram sobretudo obra de
aproximadamente 1 500 autoproclamados
revolucionários da ultraesquerda e da classe
média (os chamados Black Blocs).
A reforma do sistema de pensões não in-
teressa nada a estes ativistas. Eles odeiam os
sindicatos e os partidos radicais de esquerda
tanto quanto odeiam o Presidente, Emma-
nuel Macron. Homens jovens (porque são,
na sua maioria, homens) da classe média
têm sido vistos a bombardear, com garrafas,
pedras, ácido, bolas [metálicas do jogo] da

18 MAIO 2023 - N.º 327

 petanca e morteiros artesanais, agentes da
polícia antimotim da classe trabalhadora
(que agora inclui muitas mulheres nas suas
fileiras), em nome de uma revolução popular
contra o capitalismo e a burguesia.
Não obstante tudo isto, esta violência
tem sido descrita pelos meios de comuni-
cação social franceses como débordements
(excessos) ou tensions (tensões), como se
se tratasse de uma forma de expressão, la-
mentável sim, mas compreensível, de uma
genuína raiva popular contra o modesto
plano do Presidente Macron, que pretende
aumentar a idade da reforma de 62 para
64 anos.
O incitamento de Mélenchon
Será que existe aqui uma ligação? Talvez.
Os Black Blocs nunca se manifestam sozi-
nhos. Aproveitam-se, como parasitas, de
qualquer expressão de descontentamento
nas ruas, desde o movimento amorfo, rural
e suburbano dos Coletes Amarelos até às
manifestações lideradas por sindicatos con-
tra a reforma das pensões. Sabem quando
podem agitar ao máximo o clima de crise
e criar a impressão de caos.
OS BLACK BLOCS NUNCA SE MANIFESTAM SOZINHOS.
APROVEITAM-SE, COMO PARASITAS, DE QUALQUER
EXPRESSÃO DE DESCONTENTAMENTO NAS RUAS, DESDE
O MOVIMENTO AMORFO, RURAL E SUBURBANO
DOS COLETES AMARELOS ATÉ ÀS MANIFESTAÇÕES
LIDERADAS POR SINDICATOS CONTRA A REFORMA
DAS PENSÕES. SABEM QUANDO PODEM AGITAR AO MÁXIMO
O CLIMA DE CRISE E CRIAR A IMPRESSÃO DE CAOS
Isto também se aplica, em grande parte,
às cenas de batalha apocalíticas, travadas em
março, em torno de uma disputada reserva
de água para a agricultura que está a ser
construída em Sainte-Soline, departamento
de Deux-Sèvres, no Centro-Oeste da Fran-
ça. Até pode ser perfeitamente justificável,
do ponto de vista ecológico, a oposição a
estas “megabacias”, mas entre os milhares
de pessoas [seis mil, segundo a autarquia,
ou 25 mil, de acordo com os organizadores]
que se juntaram para participar numa ma-
nifestação, não autorizada, a 25 de março,
muitas chegaram armadas com a intenção
de agredir e ferir homens e mulheres po-
lícias [tinham sido mobilizados cerca de 3
200 agentes].
Políticos ecologistas e de esquerda,
incluindo Jean-Luc Mélenchon, líder do
partido A França Insubmissa (LFI), suge-
riram que a polícia atacou um piquenique
familiar no campo. Não é nada normal levar
bombas incendiárias e tacos de beisebol para
um piquenique. A verdade é que políticos e
dirigentes sindicais têm uma atitude am-
bivalente em relação à violência nas ruas.
Condenam-na baixinho e, depois, culpam
a polícia. Apreciam a crescente sensação de
crise nacional que a violência gera.
Ao mesmo tempo, temem que a dita
violência mine o apoio ao seu movimento
e venha a fazer baixar o número de parti-
cipantes em manifestações pacíficas (como
aconteceu durante os protestos dos Coletes
Amarelos, e talvez também no décimo dia
de manifestações e greves contra a reforma
da previdência, a 28 de março [que, estima
a central sindical CGT, mobilizou 400 mil
pessoas ou, segundo as autoridades, apenas
93 mil]).
Quanto ao governo, tem sentimentos
secretamente contraditórios sobre a violên-
cia política. Os tumultos em Paris e noutras
localidades envergonharam o país nos média
internacionais. O cancelamento da visita
do rei Carlos III foi uma humilhação para
Macron – e para a França. Por outro lado,
os débordements [“excessos”] oferecem ao
executivo a possibilidade de se apresentar
como defensor da democracia e do Direito
republicano contra a intolerância e o ex-
tremismo. Isso não significa, todavia, que
os responsáveis governamentais tenham
ordenado à polícia que provocasse a violên-
cia, como alegam, cinicamente, Jean-Luc
Mélenchon e outros.
Longo e doloroso impasse
Os exemplos do mau comportamento da
polícia são abundantes. Muitas detenções
não têm outro objetivo senão aumentar os
números. Algumas das armas usadas para
aplicar a lei são desnecessariamente peri-
gosas. Mas houve dez dias de manifestações
pacíficas desde o início de janeiro. Tratou-se
de uma supressão do direito ao protesto?
Longe disso.
Contexto
Quem são
os radicais
Os Black Blocs integram o Movimento
Interlutas Independente (Mili), um grupo de
pessoas que se define como “antifascista e
anticapitalista”, explica o site da Radio France
International (RFI). Vestem-se habitualmente
de negro e usam capuzes e máscaras, agindo
à margem das manifestações sociais e contra
a polícia, durante as quais atacam o que
consideram “símbolos do capitalismo e da
sociedade de consumo”, como bancos e lojas.
Inspiram-se nos Black Blocs que surgiram na
Alemanha, na década de 1980, “num meio de
contracultura”, entre os que queriam viver e
organizar-se à margem do Estado, protestando
contra os neonazis ou as centrais nucleares. Em
França, os “novos anarquistas”, sem estrutura
hierárquica e um plano de ação, dizem que
o seu propósito é “romper o isolamento dos
jovens, oferecendo-lhes a possibilidade de
encontrar uma luta coletiva contra a violência
do mundo, existencial e material”.
A relativa ausência de violência nas
primeiras manifestações deveu-se, em
parte, às táticas da polícia, que conseguiu
separar uma minoria agressiva dos restan-
tes participantes. Se a situação degenerou
nos últimos dias, isso deve-se, em parte, a
Mélenchon e outros, que durante semanas
usaram uma retórica belicista. No início de
março, por exemplo, Mélenchon aventou
que seria necessário bloquear “pela força”
a reforma do sistema das pensões.
Da parte dos radicais nos sindicatos,
também há uma tentação de terrorismo de
baixa intensidade, que vai do vandalismo
estratégico, sabotando sistemas de sinaliza-
ção das ferrovias, até ataques contra sedes
eleitorais de deputados pró-Macron ou fa-
voráveis à reforma do sistema de pensões.
O que pensar de um país onde é possível
enviar uma mensagem a Aurore Bergé, a
admirável presidente do grupo parlamentar
do partido de Macron na Assembleia Na-
cional, ameaçando assassinar o seu bebé
de 4 meses porque ela apoia o plano para
aumentar a idade da reforma de 62 para
64 anos? Como é que tudo isto vai acabar?
Tenho a sensação de que precisamos de
nos preparar para um longo e doloroso im-
passe, e não para uma escalada da violência.
Os Black Blocs são, fundamentalmente, uns
revolucionários diletantes. Não têm energia
nem recursos para provocar indefinidamen-
te o caos. Mas a bizarra propensão francesa
para brincar com a violência política é per-
turbadora. Costumava haver regras táticas.
Hoje, parece que já não se aplicam.
MAIO 2023 - N.º 327 19
 Europa
EUROPA
Estes muros
que nos dividem
O financiamento de novas barreiras físicas nas fronteiras
externas da UE, para impedir a entrada de refugiados e migrantes
clandestinos, volta a azedar o debate sobre uma questão
que divide os Estados-membros
El País
Madrid
O espectro de uma Europa-for-
O taleza assombra mais uma vez o
continente. Três décadas depois
da queda do Muro de Berlim,
o debate ressurge: deve a União Europeia
erguer barreiras e vedações para proteger
as suas fronteiras? Isso já é uma realidade.
Nos últimos oito anos, vários Estados-
-membros construíram mais de 1 700 qui-
lómetros de muros, não para se protegerem
de carros de combate ou de soldados, mas
sim de migrantes e refugiados. A questão
essencial é saber quem vai pagar. Será que
fundos europeus devem financiar muros
de cimento, aço e arame farpado, tal como
já financiam a compra de radares ou dro-
nes? As discussões são acaloradas, mas as
conclusões do Conselho Europeu de 9 de
fevereiro sugerem que os defensores de mais
restrições estão a ganhar terreno.
A Comissão Europeia e alguns países,
como Espanha e a Alemanha, recusam usar
dinheiro da UE para construir novos mu-
ros. Acreditam que existem maneiras mais
eficazes de conter a imigração clandestina.
Mas um movimento a favor dos muros fron-
teiriços, liderado pelo Grupo de Visegrado
(Eslováquia, Hungria, Polónia e República
Checa), com o apoio da Áustria, de Itália e
da Grécia, quer ser pragmático: temos de
construir portas se quisermos fechá-las.
Basicamente, o problema ultrapassa a
questão dos muros. Trata-se de saber qual
a posição que a Europa irá adotar face aos
desafios da imigração, do presente e do
futuro, e se está disposta a endurecer a sua
política para os enfrentar. Atualmente, tudo
leva a crer que sim.
A União Europeia pode ter sido funda-
da para suprimir fronteiras internas, mas
sempre reforçou as fronteiras externas.
AUTORAS
F María Martín, Silvia Ayuso,
Yolanda Clemente
20 MAIO 2023 - N.º 327
O nervosismo sobre a segurança destas
fronteiras surge regularmente. Antes da
reunião de 9 de fevereiro, já em outubro de
2021 os ministros da Administração Inter-
na ou do Interior de 12 Estados-membros
haviam enviado uma carta à Comissão Eu-
ropeia pedindo que contemplasse, “com
prioridade”, o financiamento de “barreiras
físicas” nas fronteiras externas.
Há décadas que barreiras físicas pro-
tegem as fronteiras externas da Europa.
Os muros de Ceuta (1993) e Melilla (1996)
foram dos primeiros a ser erigidos, mas
outros multiplicaram-se posteriormente,
cobrindo agora mais de 2 000 quilómetros
de território. A Bulgária, por exemplo, o
país mais pobre da UE [na qual entrou em
2007], instalou uma vedação em 97% da
sua fronteira com a Turquia.
Um financiamento tabu
A crise dos refugiados de 2015, com a che-
gada de mais de um milhão de pessoas, a
maioria delas em fuga da guerra civil na
Síria, foi usada como justificação para im-
pulsionar novas construções, com o objetivo
de impedir a entrada de mais migrantes
no continente europeu. Surgiram então
novos muros na Hungria, na Letónia, na
Eslovénia, na Áustria e até em França.
Alguns anos mais tarde, quando os flu-
xos migratórios eram relativamente baixos,
a UE deparou-se com a instrumentaliza-
ção da imigração por parte de parceiros e
vizinhos interessados em desestabilizar o
continente e/ou exigir concessões.
Foi o que aconteceu em 2020, quando
a Turquia [furiosa, depois de o Parlamento
Europeu ter votado a favor da suspensão
temporária das conversações sobre a sua
adesão à UE] ameaçou deixar passar “mi-
DATA TRADUTORA
20.02.2023 Maria Alves
Um barco de borracha, usado
por imigrantes, na costa da ilha
de Lesbos, Grécia
FOTO: GETTY IMAGES
lhões de refugiados” que pretendem chegar
à Europa. Ou quando Marrocos [indignado
por o líder da Frente Polisário, que luta
pela autodeterminação do Sara Ociden-
tal, ter recebido tratamento num hospital
espanhol] facilitou a chegada ao enclave
de Ceuta de mais de dez mil pessoas, em
maio de 2021.
O episódio mais recente, classificado
como “ameaça híbrida”, segundo o vo-
cabulário militar, ocorreu no verão e no
outono de 2021, quando o governo de Minsk
autorizou a saída de dezenas de milhares
de pessoas para a Polónia, a Lituânia e a
Letónia. A resposta destes três países foi
construir muralhas de várias centenas de
quilómetros de extensão nas suas fronteiras
com a Bielorrússia.
Hoje, a guerra na Ucrânia reaviva temo-
res, e alguns Estados receiam que Moscovo
use a imigração como arma contra a Eu-
ropa. A Finlândia, o país que tem a maior
fronteira com a Rússia [1 340 quilómetros],
anunciou planos para construir um muro
que a separe da antiga União Soviética. [Até
 Mais de 3 000 quilómetros de vedações
ou de muros construídos na Europa, após a queda 2016
do Muro de Berlim
Primeiros muros (antes de 2015)
Muros construídos devido à crise
dos refugiados (2015-2017) Vedações
em construção
Muros construídos após o confronto
Suécia
com a Rússia (desde 2018) Finlândia
Noruega
Estados-membros da UE27
Rússia
Estónia 2018

Letónia 2018
Dinamarca 2021
Irlanda 2017 Lituânia
Abreviaturas: Rússia 1999
Al. Albânia, Reino
Unido Países Bielorrússia
Be. Bélgica, 2021
B-H Bósnia e Herzegovina, 2015 Baixos Polónia
Cr. Croácia, Alemanha
Be.
Ko. Kosovo,
Lux. Luxemburgo, Lux. Rep.
MdN Macedónia do Norte, Ucrânia
Checa
Mo Montenegro Eslováquia
Mold. Moldávia França
Esl. Eslovénia Áustria Mold.
Suíça Hungria
2015
2015
Esl. Roménia
2015
Portugal 2015
Cr. B-H Sérvia
Mo Ko. Bulgária
Espanha Itália 2014
MdN
2012
Al. 2015

Grécia
1993
1996 1974
500 km Malta Chipre
FONTE: ELPAIS.COM

agora, esta fronteira era apenas delimita-
da por cercas de madeira, para impedir a
passagem de gado; depois da invasão da
Ucrânia, aumentou o número de russos
que por ali tentam entrar, para fugir ao
recrutamento militar obrigatório. O muro
de 200 quilómetros que começou a ser er-
guido em março visa “travar a entrada em
massa de imigrantes russos”, confirmaram
as autoridades em Helsínquia.]
A União Europeia não hesita em investir
quantias desmedidas para conter os fluxos
migratórios: para gerir as fronteiras de 2021
até 2027, a Comissão disponibilizou 6,7 mil
milhões de euros. No entanto, até agora,
o financiamento da construção de muros
...
A União Europeia pode
ter sido fundada para
suprimir fronteiras
internas, mas sempre
reforçou as fronteiras
externas. O nervosismo
sobre a segurança
destas fronteiras surge
regularmente
e da colocação de arame farpado tem sido
um tabu. A diretiva europeia é ambígua e,
embora várias fontes da UE acreditem que
não haveria obstáculos legais, a Comissão
recusa-se a fazê-lo.
A 9 de fevereiro, a presidente do exe-
cutivo europeu, Ursula von der Leyen,
voltou a insistir na necessidade de uma
“abordagem integrada”, envolvendo a
mobilização – e o reforço, se necessário –
da Frontex nas fronteiras europeias, assim
como o financiamento de infraestruturas
móveis e estáticas, torres equipadas com
equipamentos de vigilância e veículos. A
Comissão fala de “infraestruturas”, mas
não de “muros” ou “cercas”, considerando
estes inadmissíveis sempre que são mencio-
nados, como se verificou durante o último
Conselho Europeu.
Ferida que não cicatriza
Em todo o caso, os muros já dividem ideo-
logicamente a Europa. Ursula von der Leyen
está, de facto, a desviar-se da linha da sua
família política, o Partido Popular Europeu
(PPE), que gostaria de relançar o debate
sobre os muros. Mas a recusa da Comissão
em atribuir fundos europeus à sua cons-
trução também é uma posição pragmática,
segundo algumas fontes na União Europeia.
Erigir muros ao longo de vários milha-
res de quilómetros custará uma fortuna, e
esse dinheiro poderia ser aplicado noutros
projetos. Bruxelas considera muito mais
eficaz investir em acordos com os países
de onde são originários os migrantes para
que aceitem os seus cidadãos que entraram
ilegalmente na UE.
Os que se opõem às barreiras físicas são
inflexíveis: erguer muros é dispendioso, cria
tensões, não impede os migrantes de virem
para a Europa e, pelo contrário, encoraja a
criação de novas rotas, mais longas, mais
caras e mais perigosas. E os únicos vence-
dores são as empresas que constroem os
muros e os traficantes que os contornam.
A este respeito, diz Klaus Dodds, pro-
fessor de Geopolítica na Universidade Royal
Holloway, em Londres: “Muros e barreiras
raramente são eficazes. Agastam os migran-
tes e dão falsas esperanças aos habitantes
das localidades onde eles tentam entrar.”
Os muros têm “uma dimensão sim-
bólica excessiva”, acrescenta Dodds. “Se
os governos querem dar a impressão de
fazer alguma coisa, para as comunidades
que vivem num e noutro lado da fronteira,
como acontece com os Estados Unidos e
o México, isso é mais complicado, porque
famílias e habitantes têm laços nos dois
lados. O muro é como uma ferida que não
cicatriza.”
O espanhol Gil Arias, que foi vice-dire-
tor da Frontex, também se mostra cético:

MAIO 2023 - N.º 327 21

 Europa

“Os obstáculos físicos nunca tiveram um

efeito dissuasor definitivo. Temos visto isso
em Ceuta e em Melilla ao longo dos anos:
se [os migrantes] tiverem a oportunidade
de dar o salto, estarão dispostos a fazê-lo,
mesmo correndo o risco de morrer, como
aconteceu a 24 de junho em Melilla. [Nesse
dia, pelo menos 23 de um grupo de cerca
de 2 000 pessoas morreram e outras 76
ficaram gravemente feridas ao tentar en-
trar à força, cortando com alicates a grade
de acesso a um posto de controlo naquela
cidade autónoma.] Arias prefere apostar
nas informações dos serviços secretos para
defender as fronteiras e não em rolos de
arame farpado.
Espanha alinha com a posição da Co-
missão Europeia e reconhece que os mu-
ros não resolvem o problema da migração
clandestina. Mas o discurso oficial de Ma-
drid nem sempre está em sintonia com a
realidade no terreno. Há muitos anos que
Espanha investe continuamente no reforço
e na modernização dos quase 21 quilómetros
de vedação erguidos em Ceuta e em Melilla.
O mais recente investimento neste equipa-
mento foi para remover o arame farpado
afiado em que os migrantes cortavam a pele
quando tentavam escalá-lo. segura entre a Bulgária e a Turquia. O con-
texto é propício ao nervosismo. Segundo a
Cuidar dos que sofrem Frontex, quase metade das 330 mil entra-
Seja como for, os argumentos de Bruxelas das ilegais em território europeu, em 2022,
não convencem os países que pedem mais ocorreram através dos Balcãs Ocidentais,
restrições. Isso ficou evidente na cimeira provenientes da Albânia, da Bósnia-Her-
informal de 9 de fevereiro. Liderados pela zegovina, do Kosovo, de Montenegro e da

Áustria e pela Grécia, oito países – incluin-
do a Dinamarca, a Eslováquia, a Estónia, a
Letónia e a Lituânia (que ergueu a barreira
de separação mais longa da Europa, 550
quilómetros, ao longo da sua fronteira com
a Bielorrússia) – exigiram avanços “tangí-
veis” para reforçar as fronteiras comuns.
A Áustria requereu, nomeadamente,
que a Comissão Europeia conceda dois mil
milhões de euros em fundos de emergência
para a reconstrução de uma barreira mais
...
Espanha alinha com a
posição da Comissão
Europeia e reconhece
que os muros não
resolvem o problema da
migração clandestina.
Mas o discurso oficial
de Madrid nem sempre
está em sintonia com
a realidade no terreno
UE
Sérvia, o que representou um aumento de
136% em relação a 2021.
“Não faz sentido a UE financiar drones,
tecnologia ou equipamentos de vigilância
e, ao mesmo tempo, recusar financiar os
A ilusão da
meios para nos protegermos”, indignou-se
o primeiro-ministro grego, o conserva-
dor Kyriakos Mitsotakis. “É preciso uma
fortaleza
reflexão a nível global. Os muros têm de
fazer parte do orçamento comunitário.”
europeia
A Áustria “é um país que considera úteis Ao erigir muros e contratar guardas
as barreiras fronteiriças”, sublinhou, por costeiros, a União Europeia gasta
seu turno, o chanceler, Karl Nehammer.
Este debate não vai ter um desfecho
quantias colossais para impedir
fácil. Para o professor Dodds, o risco de a chegada de migrantes ilegais.
uma decisão sobre muros e vedações é de É um desperdício. Para este
que estes “despertem ainda mais paixões” jornalista italiano, a chave
enquanto continuam a adiar-se discussões é a integração
mais urgentes sobre como cuidar das po-
pulações que, em vários pontos do mundo, Il Foglio (excertos)
Milão
são afetadas pela guerra, por catástrofes
naturais ou pelo aquecimento do planeta.
Esta questão, que a União Europeia
deveria abordar no seu novo pacto sobre
migração e asilo, avança a passos muito
AUTOR DATA TRADUTORA
lentos, em grande medida devido à relu-
tância daqueles que se sentem mais seguros
F David 10.03.2023 Maria Alves
Carretta
atrás de uma muralha.

22 MAIO 2023 - N.º 327


O primeiro-ministro grego,
Kyriakos Mitsotakis, junto do
muro na fronteira com a Turquia
FOTO: GETTY IMAGES
Na sua deriva em direção a uma
N “Europa-fortaleza”, a União
Europeia e os seus Estados-
-membros estão a esquecer-se
de um dos elementos principais da ges-
tão de migrações: a integração. Durante
o Conselho (Justiça e Assuntos Internos),
realizado a 9 de março, repetiu-se a habitual
hipocrisia a que se assiste desde o início
da crise dos refugiados de 2015-2016. O
naufrágio em Steccato di Cutro [em que
morreram, pelo menos, 92 das 180 pes-
soas a bordo de uma barcaça de madeira
proveniente da Turquia], a 26 de fevereiro,
já tinha sido esquecido.
E o novo pacto sobre migração e asilo
também não avançou um passo. Mais uma
vez, a UE está empenhada em forçar repa-
triamentos, em lutar contra os traficantes e
em impedir as partidas [de embarcações de
migrantes] através de uma série de medidas
que já foram testadas no passado, em vão.
É hipócrita prometer uma solução que
não existe – e só insistir em deportações em
massa, proibidas pelo Direito Internacional.
Os ministros até podem alegar que estamos
perante uma emergência, mas os números
mostram outra realidade. Em 2022, é um
facto, a Frontex [agência que controla as
fronteiras externas da UE] registou 330
mil entradas clandestinas no continente
europeu – um continente em plena crise
demográfica.
É igualmente verdade que a UE e a
Comissão Europeia têm feito muito para
ajudar os Estados-membros a gerir esta
crise que começou em 2015 [quando, so-
bretudo em consequência de guerras na
Síria, no Iraque e no Afeganistão, entraram
em território europeu mais de 1,3 milhões
de requerentes de asilo, tendo morrido no
mar Mediterrâneo mais de 3 700 pessoas].
A assistência oferecida beneficiou prin-
cipalmente Itália e a Grécia. A UE pagou
navios de patrulha da “guarda costeira”
líbia e atribuiu à Frontex novas missões e
poderes, tornando-a a maior agência da
União. No entanto, fechando os olhos às
violações dos direitos humanos, a Comis-
são Europeia também deu pequenos passos
no sentido de haver repatriamentos para
países terceiros.
O naufrágio em Steccato di Cutro é fruto
das promessas falsas de uma UE que cultiva
a ilusão de poder fechar-se como uma for-
taleza. [A tragédia naquela pequena cidade
da Calábria, no Sul, chocou Itália e gerou
fortes críticas ao governo de extrema-di-
reita da primeira-ministra, Giorgia Meloni,
eleita com base num programa político que
endurece as políticas contra a imigração.]
O exemplo dos ucranianos
A Europa suprimiu alguns dispositivos de
busca e salvamento no mar, e usa os que
restam o mínimo possível. As operações
policiais desapareceram e as operações de
socorro são cada vez mais raras. Além dis-
so, não foi aberta nenhuma via legal para
a imigração de refugiados (os náufragos
em Steccato di Cutro eram na sua maioria
afegãos).
Sempre que a Europa fecha uma rota,
está a desviar migrantes para outras rotas.
Quando o mar Egeu é menos acessível, há
o mar Jónico. Da Turquia, foram reabertas
as rotas terrestres para a Grécia e a Bulgá-
ria, e as rotas marítimas para a República
do Chipre e Itália. Assim que a situação se
complica na Líbia, o trânsito é feito pelo
Egito e pela Tunísia. Se os migrantes não
passam por Marrocos, a alternativa é a rota
...
Os traficantes são
mais rápidos do
que os ministros da
Administração Interna,
e é uma quimera querer
erradicá-los, a não ser
que enviemos exércitos
europeus para países
terceiros
atlântica, desde a costa de África Ocidental
até às ilhas Canárias.
Os traficantes são mais rápidos do que
os ministros da Administração Interna, e
é uma quimera querer erradicá-los, a não
ser que enviemos exércitos europeus para
países terceiros. Mais: ao subcontratar a
gestão das suas fronteiras a esses países
terceiros, a Europa corre o risco de ficar
à mercê da chantagem de regimes nem
sempre amigáveis, como o de Recep Tayyip
Erdogan, na Turquia.
A Comissão Europeia insiste em cum-
prir a sua vontade de construir uma for-
taleza. A carta que, a 6 de março, Ursula
von der Leyen enviou a Giorgia Meloni
é um exemplo claro disso: a UE vai dar
mais dinheiro à Tunísia e ao Egito, além
de impor um dispositivo de coordenação
aos navios das organizações não governa-
mentais (ONG).
No dia 9 de março, também os ministros
do Interior da União Europeia discutiram
critérios para suspender a concessão de vis-
tos a países terceiros que não cooperem com
os repatriamentos. Quanto aos canais legais
para a imigração, Von der Leyen admite a
possibilidade de financiar o realojamento
de 50 mil refugiados em três anos – isso é
muito pouco, se compararmos com quase
um milhão de pedidos de asilo registados
na UE só em 2022.
A abordagem “holística” promovida
pela Comissão Europeia ignora a integra-
ção. Esta é uma chave para gerir as mi-
grações. Desde 2015, na Alemanha, mais
de dois milhões de pedidos de asilo foram
apresentados por migrantes que ali che-
garam de forma clandestina. Após a sua
chegada, eles puderam aprender a língua
e a cultura [do país de acolhimento], ti-
veram o direito de começar a trabalhar,
os seus filhos entraram na escola e, hoje,
contribuem para a prosperidade alemã.
[A 2 de abril, Ryyan Alshebl, um refugiado
sírio que chegou à Alemanha em 2015, vindo
da ilha grega de Lesbos, onde, aos 21 anos,
procurou guarida para não ser recrutado
pelo regime para combater na guerra civil,
foi eleito, com maioria absoluta, presiden-
te da câmara de Ostelsheim, no estado de
Baden-Württemberg.]
[Esta integração] é exatamente o que
está a ser concedido aos quatro milhões
de refugiados ucranianos que receberam o
estatuto de “proteção temporária” [desde a
invasão russa, em fevereiro de 2022]. A 8 de
março, a própria Comissão elogiou o êxito
desta proteção temporária, que permite
aos ucranianos trabalhar, estudar, ter uma
casa e beneficiar de cuidados de saúde,
sem terem de esperar anos e anos por uma
resposta aos seus pedidos de asilo.
MAIO 2023 - N.º 327 23
 Europa

de [reduzir em 50%, até 2030, as emissões

PAÍSES BAIXOS de] nitrogénio, esconde-se uma crise de
representatividade dos partidos no poder,

Revolta contra mas também uma crise de confiança nas

suas capacidades.
A política atual sofre de um problema
as elites que os cientistas políticos qualificam de
“legitimidade de entrada”: os cidadãos
O Movimento Agricultor-Cidadão surpreendeu ao tornar-se sentem-se como objetos de um governo
a principal força política em todos os conselhos regionais e no tecnocrático; o país é governado apesar
deles, não com eles. Sofre ainda de um
Senado em Haia. Os resultados das eleições de 15 de março problema de “legitimidade de saída”: os
mostraram que muitos holandeses mais desfavorecidos rejeitam cidadãos têm a impressão de que o gover-
a elite urbana dominante, diz este historiador no pouca coisa faz de bom. A realidade é
que, sob a liderança do primeiro-ministro
NRC Handelsblad
Amesterdão
liberal, Mark Rutte, vem-se dissipando a
imagem positiva que os Países Baixos ti-
nham de si mesmos, como um Estado bem
No conflito sobre políticas am- regiões e das comunidades que se sentem organizado e razoavelmente justo.

N bientais que opõe o governo

aos agricultores, os eleitores
holandeses escolheram os
últimos. Criado em 2019, o Movimento
Agricultor-Cidadão (BoerBurgerBewe-
ging, BBB) é agora o principal partido nas
12 províncias do reino e na primeira câ-
mara, o Senado.
Trata-se de um partido que faz jus ao
seu nome: os cidadãos têm estado ao lado
dos agricultores – ao lado do campo, das
AUTOR DATA
F René Cuperus 17.03.2023
abandonados. Em suma, nas últimas elei-
ções, cidadãos e agricultores assumiram
a mesma posição em relação às questões
climáticas.
O veredito que saiu das urnas foi uma
chapada na cara do governo Rutte IV [este
é o quarto mandato do primeiro-ministro,
Mark Rutte, no poder desde 2010]: o des-
contentamento que ele desperta foi o que
mais motivou os eleitores. Além disso, por
detrás da revolta contra o plano do governo
TRADUTORA
Maria Alves
Nos tempos que correm, grandes seto-
res da sociedade holandesa já não se sen-
tem representados ou respeitados pelos
seus líderes. Quanto mais longe moram
de Randstad, a grande área metropolita-
na Amesterdão-Roterdão-Haia-Utrecht, e
quanto menos estudos universitários têm,
mais se sentem esquecidos e incompreen-
didos.
Nesse sentido, o triunfo do BBB pode
ser visto como um “Brexit interno”: um
movimento que visa “retirar o poder” a
forças externas que minam o modo de
vida da comunidade. Na província rural
de Overijssel, no Leste do país, o cabeça
de lista do BBB disto faz eco: “Overijssel

24 MAIO 2023 - N.º 327 CAROLINE VAN DER PLAS, DIRIGENTE DO BBB, NUMA ILUSTRAÇÃO DE SCHOT, HOLANDA
é bela demais para deixarmos que Bruxe-
las [União Europeia] e Haia ditem o modo
como vivemos.”
Uma nação dividida
Não se trata apenas de um problema de
energia e clima. O sistema político também
está a passar por uma grande transição. A
sociedade vive sob alta tensão e o sistema
tradicional de grandes partidos vacila.
Mudanças rápidas criam tensões perigo-
sas entre os que sairão como derrotados
destas transições. E a pressão avassaladora
que o governo exerce sobre a população
para responder às crises climática e mi-
gratória está a gerar “stresse social”. Em
particular, porque os efeitos das políticas
sobre ambiente e migração irão afetar os
diferentes segmentos da população de uma
forma desigual.
Os líderes holandeses, alheados da rea-
lidade no terreno, decidem como os agri-
cultores devem reduzir as suas emissões
de nitrogénio. Soma-se a isso o facto de
Bruxelas exigir muito em termos de clima,
mas permitir pouca margem de manobra no
que toca à imigração. [Em 2022, a imigração
fez aumentar para o dobro – 17,8 milhões
(mais 227 mil) – o número de habitantes
face a 2021, segundo estatísticas oficiais.]
Em tudo isto, as classes altas progres-
sistas gostam de assumir um papel de des-
taque: veem o clima e a imigração como
campos de batalha moral, mas oferecem
garantias mínimas quanto às consequências
a longo prazo das políticas que defendem
para a economia e a coesão social.
Vários estudos indicam que os Paí-
ses Baixos estão cada vez mais divididos.
Divididos entre “pessoas satisfeitas, que
possuem um capital social, económico
e cultural significativo”, e pessoas insa-
tisfeitas, que dispõem de menos recursos
para encontrar o seu lugar num mundo em
rápida mudança. Divididos entre os que
acham que a nação está no caminho certo
e os que estão convencidos do contrário.
...
Grandes setores
da sociedade holandesa
já não se sentem
representados ou
respeitados pelos seus
líderes. Quanto menos
estudos universitários
têm, mais se sentem
esquecidos
e incompreendidos
Estas linhas de fratura coincidem com di-
visões geográficas e níveis de educação, em
grande detrimento da democracia.
Numa década, os Países Baixos evoluí-
ram para uma democracia da elite urbana
e culta, cujos valores e gostos prevalecem
sobre os valores e gostos de outros. De res-
to, como regra geral, os holandeses com
mais estudos situam-se economicamente
à direita e culturalmente à esquerda, en-
quanto a maioria da população está um
pouco mais à esquerda economicamente
(devido a um contrato social mais justo) e
é culturalmente mais conservadora.
A vitória do BBB também deve ser en-
carada sob este prisma. Penaliza o último
governo de Rutte, que deu um lugar de
destaque aos Democratas 66 (D66 [centro
liberal, um dos quatro partidos da coligação
no poder]). Este foi o sacrifício que o Parti-
do Popular para a Liberdade e Democracia
(VVD, direita liberal) teve de fazer para que
Rutte, o seu líder, se mantivesse no cargo
de primeiro-ministro. A verdade é que a
aliança governamental de quatro partidos
tem sido desastrosa para a confiança da
população nos seus dirigentes políticos.
Uma elite presunçosa
No capítulo do clima, a cruzada do D66 em
fazer das emissões de nitrogénio o seu novo
cavalo-de-batalha exacerbou as divisões
políticas e sociais no reino. Divide os Paí-
ses Baixos entre bons alunos e poluidores,
entre metrópoles e regiões, entre cidades
glamorosas e bairros carenciados, entre
gente feliz e infeliz.
O Partido Trabalhista (PvdA) e o Apelo
Democrata Cristão (CDA) devem sentir-
-se muito envergonhados por se verem
assim catapultados para o campo da elite
presunçosa, que está totalmente desligada
da outra parte dos Países Baixos.
No dia seguinte às eleições, colocou-se
uma questão premente: o BBB vai construir
pontes entre o país dos satisfeitos e dos
insatisfeitos? A inesperada afluência às
urnas, de 58%, enviou um sinal positivo.
Poderá augurar um regresso, mesmo que
cauteloso, da confiança do povo nos seus
quadros políticos: os eleitores que tinham
desistido estão de volta às assembleias de
voto.
As eleições de março também podem
revelar-se cruciais: talvez com o BBB tenha
nascido finalmente o partido antissistema
indispensável para restabelecer o equilí-
brio na nossa democracia da elite urbana
e culta, e para que os que se distanciaram
da política por ela se interessem de novo.
De certa forma, o BBB é o irmão ho-
landês da Aliança Neoflamenga (N-VA)
que, na Bélgica [onde governa Antuérpia
A voz do mundo
rural
Nascido em novembro de 2019, o partido
BoerBurgerBeweging (BBB, Movimento
Agricultor-Cidadão) assume que quer levar
a voz do mundo rural para Haia. Foi fundado
logo após as primeiras manifestações de
agricultores contra as políticas ambientais do
governo holandês, em particular um plano para
forçar a compra (e o eventual encerramento)
dum grande número de explorações
agropecuárias no país, com o objetivo de reduzir
para metade as emissões de nitrogénio no solo
e na água que, nos Países Baixos, excedem os
limites impostos pela União Europeia.
Os “ruralistas” do BBB não se opõem apenas
aos cortes nas emissões de nitrogénio, mas
também à proibição dos neonicotinoides,
inseticidas que são quimicamente semelhantes
à nicotina, com efeitos nocivos que afetam
abelhas e aves. Eles contestam as propostas
de mitigação das alterações climáticas e
insurgem-se contra a elite urbana do país,
usando uma retórica eurocética semelhante à
de outros partidos conservadores e populistas.
O BBB tinha apenas uma deputada a nível
nacional – a fundadora e líder, Caroline van der
Plas, política e jornalista, eleita em 2021. No
entanto, depois das eleições regionais de 15
de março, o partido foi, surpreendentemente,
o mais votado em todas as 12 províncias do
reino, desse modo conquistando 15 lugares
no Senado. “Nunca pensei que isto pudesse
acontecer”, exultou Van der Plas ao celebrar a
vitória com os apoiantes. “Chegou a hora de
nos levarem a sério.”
desde 2014 e apoia a causa da autonomia
da Flandres, no contexto de uma “confe-
deração”], conseguiu suprimir a influência
da extrema-direita populista flamenga.
Uma pesada responsabilidade está so-
bre os ombros das autoridades nos Países
Baixos. Têm de enfrentar a crise do poder
público: o abismo entre a política e o meio
rural, os efeitos perversos de uma socieda-
de da eficiência que se apoia em sistemas
tecnocráticos e jurídicos em prejuízo das
pessoas e das comunidades. Uma imensa
responsabilidade pesa também sobre os
ombros da fundadora do BBB, Caroline van
der Plas. É preciso que o seu partido seja
mais do que um lobby do agronegócio e
que se mantenha longe da franja obscura
e conspiratória do protesto camponês.
Vamos fazer figas para que este terra-
moto de agricultores-cidadãos nos condu-
za à reconciliação e permita que os Países
Baixos voltem a ser um Estado organizado
e justo. Mesmo que isso implique uma crise
governamental e o fim da era Rutte.
MAIO 2023 - N.º 327 25
 Europa
Os céticos da guerra
Mostram-se cautelosos, preocupados, indecisos. Muitos exprimem dúvidas quanto
à política ocidental de ajuda militar para que Kiev se defenda da invasão russa
Assim que atendeu o telefone,
A Klaus Wagner pergunta-nos
sem hesitar se pode começar
por contar “o principal motivo
da [sua] raiva”. Ele acaba de cancelar a
assinatura do Die Zeit – por isso, só po-
deríamos saber mais, certo?
Para já, só conhecemos Klaus Wagner
graças a uma breve mensagem. Enviou um
email à redação, queixando-se: “Os que
estão contra o fornecimento de armas [à
Ucrânia] vão ter uma palavra a dizer na
vossa próxima edição? Mais de metade dos
alemães opõe-se a essa ajuda.”
Wagner, de 73 anos, reside em Frank-
furt. Atrás de si tem uma carreira de “co-
mandante da aviação” na transportadora
Lufthansa, incluindo como piloto. Viveu
AUTOR
F Martin Machowecz
26 MAIO 2023 - N.º 327
ALEMANHA
Die Zeit (excertos)
Hamburgo
regularmente nos Estados Unidos, onde
completou a sua formação profissional.
Um homem que atravessou o Atlântico
com mais frequência do que as pessoas
que se afirmam transatlânticas. A América
é um bom país, acredita.
No entanto, Klaus Wagner também
clarifica: “Sou crítico em relação às políti-
cas da grande potência norte-americana.
Condeno a guerra que a Rússia iniciou na
Ucrânia [em fevereiro de 2022], mas estou
convencido de que isso poderia ter sido
evitado.” O Ocidente, acrescenta, tem a
sua parcela de responsabilidade.
A NATO terá pisado o pé de Moscovo,
ao dar as boas-vindas a países da Europa
de Leste e ao posicionar armas pesadas
mais perto das fronteiras da Rússia, o que
DATA TRADUTORA
10.04.2023 Maria Alves
preocupou os russos. [Em 1999, após a
queda da União Soviética, três países que
haviam integrado o Pacto de Varsóvia (a
Checoslováquia, a Hungria e a Polónia)
entraram na Aliança Atlântica. Nos anos
seguintes, a eles se juntaram a Bulgária,
a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Romé-
nia, a Eslováquia, a Albânia, a Croácia,
o Montenegro e a Macedónia do Norte.]
“É claro que esta guerra é terrível”,
afirma Wagner. “Mas temo que os ucra-
nianos não conseguirão vencê-la. Ou
então que ela venha a transformar-se na
Terceira Guerra Mundial. E é isso que eu
quero evitar a todo o custo; é por isso que
sou a favor de negociações. Já.”
Chegámos aqui ao “motivo principal
da [sua] raiva”: Klaus Wagner considera
que este é um ângulo que o Zeit não aborda
o suficiente. “Acho que as convicções e a
opinião de grande parte da população não
estão representadas na imprensa. Vocês
dececionam-me, digo-vos francamente.”
ILUSTRAÇÃO DE DE ANGELIS, ITÁLIA
 Nas sondagens, um número considerá-
vel de cidadãos [alemães] diz ter um olhar
crítico em relação à entrega de armas à
Ucrânia, em particular possantes carros
de combate [sobretudo os Leopard 2 que,
armados com um canhão de diâmetro liso
de 120 mm e podendo atingir velocida-
des até 70 km/hora, têm capacidade para
enfrentar os tanques mais avançados da
Rússia]. Segundo o barómetro político ZDF,
publicado em fevereiro, 32% dos inqui-
ridos acreditam que o fornecimento de
armas a Kiev deve aumentar, mas 23% é a
favor de menos apoio. “Eu sou um deles”,
garante Wagner.
Pelo menos 40% estão convencidos
de que o governo alemão tomou a decisão
certa, mas resta saber se equiparam essa
decisão às hesitações do chanceler, o so-
cial-democrata Olaf Scholz, ou à atitude
mais aguerrida da ministra dos Negó-
cios Estrangeiros, a ecologista Annalena
Baerbock [que pertence à Aliança 90/Os
Verdes]. E os alemães do Leste são muito
mais céticos do que os do Ocidente.
Vozes pela paz
Neste ambiente que oscila entre o pessi-
mismo, o medo e a lassidão, vai surgin-
do a contestação, um ano após o início
da guerra. O filósofo Jürgen Habermas
publicou um artigo de opinião no Süd-
deutsche Zeitung a apelar a negociações
de paz. A jornalista Alice Schwarzer e a
deputada Sahra Wagenknecht, do partido
de extrema-esquerda Die Linke, também
publicaram um “manifesto pela paz”, con-
vocando uma manifestação para Berlim
[que juntou, no dia 24 de fevereiro, cerca
de 13 mil pessoas, estima a polícia, 50 mil,
segundo os organizadores].
Foi uma iniciativa que lhes valeu crí-
ticas, principalmente porque nada fize-
ram para impedir que a extrema-direita
participasse na manifestação. A verdade é
que os signatários que vêm deste espectro
político são raros. Até 7 de março, mais de
740 mil pessoas haviam assinado a petição
pela paz. “Eu também”, reitera Wagner.
...
O que incomoda
neste debate é que
podemos defender
ambos os pontos
de vista – a favor
ou contra a entrega
de armas –, mas ambos
têm pontos fracos
É impossível prever o curso de uma
guerra. Ninguém, nenhum especialista,
pode dizer até que ponto o Presidente
russo, Vladimir Putin, irá permitir uma
escalada do conflito. Portanto, a resposta
sobre o que fazer depende, geralmente,
da orientação de cada um.
Petra Würdig, de 66 anos, analisa a si-
tuação com o que podemos descrever como
uma perspetiva da Alemanha Oriental.
Conhecemo-la através do Facebook: na
página do ministro-presidente da Saxónia,
o conservador Michael Kretschmer, que
declarou, numa entrevista ao Berliner
Zeitung: “Os alemães do Leste sabem do
que a Rússia é capaz para não perder uma
guerra.” Petra Würdig deu-lhe os para-
béns: “Respeito. O senhor diz em voz alta
o que muitos pensam baixinho. Devemos
conversar e não continuar a alimentar a
guerra com armas.”
Esta sexagenária mora em Bad Düben,
na Saxónia, e trabalha como representante
comercial. Ela explica que tinha acabado
de abandonar o seu partido, Os Verdes,
porque “adotou uma posição pró-guerra”.
Durante a campanha para as legislativas
de 2021, Petra Würdig ainda distribuía
panfletos dos ecologistas nos quais se lia:
“Não ao fornecimento de armas a regiões
em guerra e em crise.” Na sua opinião, “o
que antes era um partido pacifista passou
a ser um partido que defende e instiga a
guerra”.
Como alemã do Leste, Petra Würdig
explica que olha para a Rússia de uma ma-
neira diferente. “Condeno todas as formas
de guerra. Também condeno o que Putin
faz [na Ucrânia]. Mas, para mim, retratar
os russos tão unilateralmente como ban-
didos não faz sentido.” Ela considera que o
comportamento dos Estados Unidos prova
que há dois pesos e duas medidas, pois se a
guerra no Iraque, por exemplo, foi iniciada
sob o pretexto de que este país possuía
armas de destruição maciça, “porque é
que, naquela época, não foram impostas
sanções aos norte-americanos?”
Mas, senhora Würdig, o que podemos
fazer senão ajudar, dado que a Rússia tem
cometido crimes de guerra graves e trava
combates que podem levar à destruição da
Ucrânia? Ela responde: “É como na escola.
Há um grupo de crianças que avista um
colega e quer intimidá-lo. O que devemos
fazer é separar, arbitrar e conversar. Di-
zem-nos: Pessoal, isto não funciona as-
sim! Mas é agora que cabe à comunidade
internacional intervir.”
Há algo de sombrio na comparação,
dado que, neste momento, crianças estão
mesmo a ser mortas na Ucrânia. E isso
leva-nos a questionar: os que se opõem
à entrega de armas devem propor uma
Berlim
Um tanque russo
coberto
de flores
Uma praça em Berlim tornou-se
recentemente o símbolo da divisão dos
alemães no que toca à guerra na Ucrânia.
No primeiro aniversário da invasão russa,
manifestantes que se opõem à entrega de
armas a Kiev ali instalaram um carro de
combate russo danificado.
O tanque foi exposto em frente à Embaixada
da Rússia na Alemanha, para “desmistificar”
a ação bélica do Kremlin e denunciar as ações
de Vladimir Putin, explica o FRANKFURTER
ALLGEMEINE ZEITUNG. “Desde o verão passado
que se organizam estas ‘exposições’ nas
capitais de países vizinhos situados a oeste
[da Ucrânia], como Varsóvia ou Praga.”
Mas a instalação em Berlim tem sido objeto
de controvérsia. Inicialmente, as autoridades
distritais proibiram-na, mas o Tribunal
Administrativo da cidade anulou a decisão.
“As autoridades distritais justificaram a
proibição com o facto de pessoas terem
morrido naquele tanque.”
Hoje, “um dos organizadores da instalação
suspeita de que a embaixada russa esteja
por detrás de decisão de colocar flores
no veículo”. Por seu turno, os media em
Moscovo consideram que a exposição prova
que a população de Berlim não apoia os
ucranianos. O tanque foi, entretanto, enviado
para Amesterdão, nos Países Baixos.
solução? Ou, inversamente: Podem eles
opor-se à entrega de armas apenas se
forem capazes de apresentar um plano
para acabar com a guerra? Fizemos, por
isso, estas perguntas a Mathias Siekmeier.
Residente em Colónia, de 61 anos, Siek-
meier também escreveu ao Zeit, porque
estava chateado com o facto de a oposição
ao fornecimento de armas ser apresentada
como irracional – quando a avaliação de
risco como um todo deveria ser “o pri-
meiro mandamento de qualquer política
responsável”. Siekmeier é doutorado em
História, e a Ostpolitik [“Política do Les-
te”] do FDP [Partido Liberal] era a sua
matéria preferida. Atualmente, trabalha
numa editora especializada em Direito,
onde também é delegado sindical.
“De um modo geral, não sou contra o
fornecimento de armas”, diz. “Mas tam-
bém não sou a favor, de um modo geral.
Acho que as armas não vão permitir acabar
com a guerra.” Porquê? “Porque penso
que a Rússia será sempre capaz de mobi-
lizar mais recursos, mais equipamentos,
mais tropas. A Rússia será sempre capaz
de atingir parte dos seus objetivos.”
MAIO 2023 - N.º 327 27
 Brasil

Fonte de tormento
O que incomoda neste debate é que pode-
mos defender ambos os pontos de vista – a
favor ou contra a entrega de armas –, mas
ambos têm pontos fracos. “Ora, só nos in-
teressam os ângulos mortos nos discursos
daqueles que criticam [o fornecimento de
armamento]”, assinala Siekmeier. “La-
mento o facto de não haver, na Alemanha,
um debate sério sobre um plano B.”
Na preparação deste artigo, temos de
reconhecer, deparámo-nos com formas
curiosas de pensar. Como um professor
de shiatsu no estado de Hesse, que acha
possível pôr fim à guerra com a ajuda da
“pedagogia da paz”, da justiça social e de
uma carta endereçada a Putin. Bastou-
-nos lembrar-lhe que estava a dar um mau
exemplo aos seus próprios filhos para ele
mudar de ideias.
Também encontrámos um professor
de História que argumentou o seguinte:
não só termos a obrigação de ajudar a
Ucrânia, como também devemos garantir
que sabemos o que acontece às armas que
fornecemos. Disse ainda que o Ocidente
deve ter voz – e desde já – nas decisões
relativas ao fim da guerra. IANOMÂMIS
“A nossa política deve ter como missão
estancar o derramamento de sangue”, co-
mentou aquele professor. “Terminar uma
guerra sob certas condições, por exemplo,
Vítimas dos
pagando o preço de ceder determinados
territórios, não significa que isto seja imu-
militares
tável para sempre.” Muitos daqueles para
quem a entrega de armas é um problema
admitem não ter uma solução simples para
e de Bolsonaro
o fim do conflito. Para eles, esta guerra é O ex-Presidente de extrema-direita prosseguiu a mesma
uma verdadeira fonte de tormento. política que a ditadura: integração forçada ou extinção
Houve até quem mudasse de opinião.
Em 2022, Carola Wendt-Kettenburg, uma The Intercept Brasil
Rio de Janeiro
personal trainer, de 65 anos, residente em
Berlim, também ela, sim, signatária do
apelo de Schwarzer-Wagenknecht, estava É um facto: a tragédia dos ia- de Integração Nacional, com o objetivo de
convencida de que a Ucrânia precisava de
ajuda. “Devo dizer que fizemos bem em É nomâmis não é simplesmente
consequência da negligência
alargar as fronteiras internas do país, de
construir estradas e de criar novas cidades.
fornecer as armas. Quem teria pensado que do governo de Jair Bolsonaro. Isto passou pela perseguição, pela prisão,
os ucranianos poderiam lutar tão bem e Ela vem de muito mais longe, inclusive pela tortura e pelo assassinato de impor-
por tanto tempo? Isso só foi possível com de um velho projeto do exército brasi- tantes figuras ameríndias que defendiam as
o apoio de todo o mundo. E é ótimo o que leiro lançado logo no início da ditadura suas terras. Em 1972, o general Ismarth de
as pessoas fazem na Ucrânia.” militar. A Fundação Nacional dos Povos Araújo, presidente da Funai, declarou que
Agora, um ano depois, Carola Wend- Indígenas (Funai) foi criada três anos após “o índio integrado é aquele que se torna
t-Kettenburg está convencida de que os o golpe de Estado de 1964 por militares mão de obra”. Os ameríndios que se re-
ucranianos nunca serão capazes de derrotar guiados pelo lema da bandeira do Brasil, belaram contra este projeto pagaram com
a Rússia. Talvez consigam derrubar Putin, Ordem e Progresso. A política indigenis- as suas vidas. O capitão aposentado Jair
mas quem pode saber se ele os deixará em ta da ditadura pretendia trazer os povos Bolsonaro, deputado de notória preguiça,
paz? Putin, adianta, é imprevisível, san- indígenas para o “mundo civilizado”. Em fez muito contra os povos ameríndios, e
guinário, raivoso. “Apesar de tudo, eu 1970, o regime militar lança o Programa em particular os ianomâmis, durante o
recomendo: negoceiem com o inimigo.
Perguntem-lhe o que ele quer. Há centenas
de milhares de pessoas a morrer em com- AUTOR DATA TRADUTORA
bate. Há milhões de refugiados. Mortes. F João Filho 28.01.2023 Helena Araújo
Destruição. São muitos horrores.”

28 MAIO 2023 - N.º 327


seu tempo nas bancadas da Assembleia
[a partir de 1990]. Trabalhou incansa-
velmente para a extinção deste povo. Em
1992, lançou um projeto de lei que previa
o desaparecimento da reserva ianomâmi,
cujos limites tinham sido oficialmente
estabelecidos no ano anterior. O projeto
foi abandonado, mas Bolsonaro tentará
reanimá-lo quatro vezes. Durante um
dos seus discursos em plenário para de-
fender a iniciativa, declarou: “A cavalaria
brasileira tem demonstrado uma grande
incompetência. Ao contrário da cavalaria
dos Estados Unidos, que dizimou os seus
índios – e hoje este país não tem qualquer
problema.”
A presidência bolsonarista [janeiro de
2019-janeiro de 2023] permitiu a conti-
nuação deste projeto militar. Tal como
sob a ditadura, o governo de Bolsonaro
resumiu a sua política indigenista a uma
alternativa simples para o povo: integra-
ção forçada ou extinção. As imagens de
...
O genocídio ianomâmi
não foi simplesmente
devido à incompetência
ou à negligência de um
determinado governo;
para os militares, foi
um verdadeiro e vasto
projeto governamental
VENEZUELA GUIANA
SURINAME
Legal [a região brasileira que une os nove
RORAIMA estados amazónicos] durante três anos.
Em nenhum momento o general propôs
que funcionários da Funai entrassem para
PARÁ o conselho: nomeou 19 soldados da sua
Território
Ianomâmi confiança.
AMAZONAS
Embora a função da instituição seja
Manaus ajudar as populações ameríndias da Ama-
Amazonas
zónia, Mourão e os seus oficiais afirmaram
não ter visto nenhuma catástrofe. Numa
COURRIER INTERNATIONAL
BRASIL entrevista à TV Globo, o porta-voz ia-
nomâmi, Dário Kopenawa, contou que
tinha falado pessoalmente com Mourão em
julho de 2020. A sua principal exigência
500 km era o desmantelamento de minas de ouro
ilegais localizadas em território índio. A
grande maioria desta atividade é reali-
homens, mulheres e crianças ianomâmis zada por empresas clandestinas ligadas
desnutridos, esqueléticos, com ossos sa- ao contrabando e ao crime organizado.
lientes sob a pele, são a prova do sucesso O general Mourão ouviu as exigências e
deste projeto. teve o cuidado de publicar uma foto sua
A desnutrição e a fome são as con- com Kopenawa – sem tomar, em momento
sequências diretas da ocupação das suas algum, qualquer medida.
terras pelos garimpeiros, os exploradores E não é só a reivindicação que não foi
ilegais do ouro. A extração de ouro na re- seguida. Os militares bolsonaristas tra-
gião impede os ianomâmis de realizarem balharam inclusive para legalizar a ga-
as suas atividades básicas de produção. rimpagem nas terras ianomâmis. No final
É uma tragédia anunciada como jamais do mandato de Bolsonaro, o general de
nenhuma outra foi. Durante os últimos reserva Augusto Heleno, que chefiou o
quatro anos, a disseminação da extração gabinete de segurança presidencial, au-
ilegal de ouro e a saúde dos povos ame- torizou precipitadamente a extração de
ríndios têm sido questões importantes no ouro numa área adjacente ao território
debate nacional. ianomâmi.
Em 2020, a procuradoria-geral do Os militares não só autorizaram a mi-
Brasil (Ministério Público Federal, MPF) neração de ouro em terras indígenas, mas
lançou o primeiro alerta ao governo sobre também conspiraram com os garimpeiros.
a fome do povo ianomâmi no estado de Por exemplo, os membros do 7.º Batalhão
Roraima [no extremo norte do país], di- de Infantaria Florestal tinham um grupo
zendo que a Secretaria Especial de Saúde no WhatsApp com mineiros de ouro na
Indígena (Sesai) deveria providenciar a região ianomâmi para que estes pudessem
compra de alimentos para esta comuni- avisá-los das operações no terreno. E é
dade. Nada foi feito. Em vez disso, a Sesai apenas um dos muitos exemplos.
foi colocada ao serviço do antigo projeto A ministra dos Povos Indígenas [do
do regime militar. Militares sem qualquer Presidente de esquerda Lula da Silva],
conhecimento sobre questões de saúde Sônia Guajajara, tem estado a trabalhar
nas populações ameríndias foram então na desmilitarização da Funai. Até à data,
colocados ao seu comando. 43 soldados que se opuseram à proteção
Postos e serviços-chave foram abo- da população ameríndia foram demitidos.
lidos. Mecanismos de controlo e partici- É apenas o início do longo processo de
pação, tais como os Conselhos Distritais reconstrução deste corpo. O Brasil deve
de Saúde Indígena (Condisi) e o Conselho punir rápida e severamente os militares
Nacional de Política Indigenista (CNPI) e todos aqueles que participaram neste
desapareceram. A fome que está a dizi- projeto para eliminar os povos amerín-
mar os ianomâmis é o resultado de uma dios, concebido durante a ditadura militar.
política planeada por parte do exército e Este é um crime contra a humanidade. O
do governo de Bolsonaro. exército deve ser supervisionado de forma
a nunca mais relançar este projeto.
Crime contra a humanidade Deve ser dito sem ambiguidade: o ge-
A mão dos militares é evidente em todas nocídio ianomâmi não foi simplesmente
as fases da tragédia que os ianomâmis es- devido à incompetência ou à negligência
tão a viver. O senador Hamilton Mourão, de um determinado governo; para os mi-
vice-presidente de Bolsonaro, foi presi- litares, foi um verdadeiro e vasto projeto
dente do Conselho Nacional da Amazónia governamental.
MAIO 2023 - N.º 327 29
 América

CRIME
Para os seus críticos, e são mui-

P tos, o Presidente de El Salvador,

Nayib Bukele, tornou-se um

‘‘Mão de ferro’’ chefe de Estado implacável e

autoritário que espezinha os procedimentos
judiciais e as liberdades civis. No entanto,
em El Salvador na América Latina, a sua repressão militar
contra os gangues ganhou-lhe um clube de
O estado de emergência declarado há um ano pelo Presidente fãs que não para de crescer. Dos vizinhos
Nayib Bukele reduziu a criminalidade. Os países da América da América Central aos países distantes do
Latina estão a considerar seguir-lhe o exemplo Peru e do Chile, políticos proeminentes e
cidadãos comuns expressam admiração pe-
Americas Quarterly las suas escolhas – e o desejo de ver os seus
Nova Iorque próprios países seguirem-lhe o exemplo.
A política de segurança “tolerância zero”
de Bukele, que tem vindo a aumentar des-
de que declarou o estado de emergência
AUTOR DATA TRADUTORA em março de 2022, resultou numa queda
F Will Freeman 23.03.2023 Helena Araújo dramática da taxa de homicídios no país e
permitiu o regresso a uma relativa segurança

30 MAIO 2023 - N.º 327 ILUSTRAÇÃO: GETTY IMAGES

em áreas devastadas pela violência desde
há vários anos.
Mas também eliminou o direito a um
julgamento justo para todos os que são acu-
sados de pertencer a gangues, e muitos estão
agora presos sob acusações muito vastas,
parcial ou totalmente privados do seu direito
de acesso a um advogado. Em pouco menos
de um ano, cerca de 60 000 salvadorenhos
foram detidos. Washington indignou-se e
sancionou o governo de Bukele, que também
foi condenado por organizações de defe-
sa dos direitos humanos. Mas na América
Latina, em geral, as reações são muito mais
entusiásticas.
Na Guatemala e nas Honduras, dois
países abalados pela violência, viram-se
manifestações pró-Bukele e um Presiden-
te salvadorenho aplaudido durante as suas
visitas. Na Costa Rica, o ministro da Segu-
rança Pública, Jorge Torres, apelou ao seu
governo para que se inspirasse em Bukele.
No Peru, o presidente da câmara de Lima,
Rafael López Aliaga, candidato presidencial
de direita, prometeu um “plano Bukele”
para combater o crime na cidade. E até no
Chile, que também está a viver um aumento
da criminalidade, os desfiles pró-Bukele
têm vindo a agitar as redes sociais.
Ao mesmo tempo, houve poucas críticas
ao “plano Bukele” no continente sul-ame-
ricano. Quando o Presidente do Equador,
Guillermo Lasso, foi pressionado pelos
seus críticos para explicar a deterioração
da situação de segurança no seu país, ele
argumentou que o salvadorenho tinha ido
longe demais, mas pareceu estar isolado. E
percebeu-se bem porquê: de acordo com
uma sondagem recente, Bukele é duas
vezes mais popular entre os equatorianos
Um grupo de 2 000 prisioneiros
a ser transferido para uma prisão
de alta segurança em Tecoluca
FOTO: GETTY IMAGES
do que qualquer figura política nacional.
Bukele goza de uma aura inigualável para
um Presidente de um país tão pequeno,
que deve a anos de trabalho diplomático
paciente. Se em 2019, antes de ganhar as
eleições presidenciais, tinha dito que queria
aproximar-se dos seus vizinhos, foi só mais
tarde que a oportunidade se lhe apresentou
realmente. A pandemia de Covid-19, que foi
a morte de muitos presidentes em exercício
na região, revelou-se um trampolim para
o salvadorenho.
Nayib Bukele conseguiu tirar partido da
relativa eficácia da sua gestão (draconiana)
da Covid-19 para cultivar a imagem a nível
MAIO 2023 - N.º 327 31
 América
internacional. Em maio de 2021, El Salvador
encenou a doação de 34 000 vacinas a uma
multidão em júbilo nas Honduras, onde a
corrupção e a má gestão tinham levado a
uma escassez de injeções. Quando fura-
cões devastadores atingiram a região, o país
também enviou ajuda alimentar e médica
de emergência para as vizinhas Honduras
e Guatemala.
Obstáculos à imitação
E agora, em 2023, Bukele parece insistir
na mesma tecla, exceto que passou para
outro produto de exportação: a sua política
de segurança. No final de 2022, no diário
hondurenho El Heraldo, o seu ministro
da Segurança, Gustavo Villatoro, infor-
mou que as autoridades salvadorenhas,
guatemaltecas e hondurenhas se tinham
reunido regularmente desde março para
32 MAIO 2023 - N.º 327
trocar informações sobre o movimento de
presumíveis membros de gangues entre os
três países.
Em dezembro, a Guatemala entregou
a El Salvador um líder de gangue com um
mandado de prisão por homicídios múlti-
plos, enquanto a Presidente hondurenha, ...
Xiomara Castro, enviou a sua polícia militar
à fronteira salvadorenha para bloquear a Em menos de um
passagem de suspeitos de crimes. “O que ano, cerca de 60 000
estamos a fazer em El Salvador pode ser
replicado em todos os países”, disse Villato- salvadorenhos foram
ro após uma reunião em fevereiro, na qual detidos. O governo de
os ministros da Segurança do México, da
República Dominicana e de vários países da
Bukele foi condenado por
América Central concordaram em coor- organizações de defesa dos
denar as suas estratégias antigangues. Os direitos humanos. Mas na
adversários de Bukele no estrangeiro não
fizeram senão manifestas considerações
América Latina as reações
ideológicas. são entusiásticas

A hondurenha Xiomara Castro, que fez
campanha à esquerda e prometeu lutar con-
tra os abusos da polícia no seu país, tomou
Bukele como modelo e declarou estado de
emergência em 16 dos 18 departamentos das
Honduras, apesar de ainda não ter havido
uma grande onda de detenções.
E o salvadorenho está a espalhar ainda
mais a sua influência. Em janeiro, o seu vi-
ce-presidente, Félix Ulloa, informou que
funcionários do governo se tinham encon-
trado com o primeiro-ministro haitiano,
Ariel Henry, para estabelecer um escritório
em Porto Príncipe destinado a trabalhar
numa estratégia antigangues para o Haiti.
As ideias e a retórica de Bukele conti-
nuam a seduzir. Resta saber até que ponto
elas podem ser traduzidas em políticas fora
de El Salvador. Nem tudo funciona a seu
favor. Em primeiro lugar, El Salvador está
O crime e a violência alimentam o desejo de políticas intransigentes
ao estilo Bukele em quase toda a América Latina
FOTO: GETTY IMAGES
a experimentar um crescimento econó-
mico lento e uma dívida externa colossal.
De acordo com o Fundo Monetário Inter-
nacional, a dívida de El Salvador (que foi
agravada por uma campanha antigangues
e por medidas económicas populistas mui-
to dispendiosas) atingirá 97,5% do PIB até
2027. Mas se os cofres do Estado estiverem
vazios, é pouco provável que a polícia e os
militares continuem a patrulhar as ruas de
El Salvador gratuitamente.
Outro obstáculo potencial é a grande
diversidade da América Central, que já
frustrou muitas tentativas de integração.
A Guatemala e as Honduras, que têm elas
próprias territórios maiores, geografia mais
contrastante e sociedades civis mais mobi-
lizadas, podem ter dificuldade em copiar
a estratégia agressiva de policiamento de
Bukele. Na Costa Rica, e provavelmente
também na República Dominicana e no
Panamá, existem instituições do Estado de
direito bastante fortes que deverão refrear
as tentações de Bukele. E, acima de tudo, a
resistência pode vir dos próprios cidadãos.
Mas as ambições de Bukele na América
Latina encontraram demasiadas ressonân-
cias para serem simplesmente ignoradas. O
crime e a violência alimentam o desejo de
políticas intransigentes ao estilo Bukele, e
quase toda a América Latina é flagelada por
crimes violentos. Desde os oásis pacíficos do
Chile e do Equador até à violência crónica
no Haiti, nas Honduras e na Colômbia, as
populações descontentes têm visto dema-
siados planos de segurança convencionais
falharem. A abordagem dura contra o crime
de Bukele só pode ser apelativa. Por todo
o continente, os seus homólogos estão a
observar, e a tomar notas.
MAIO 2023 - N.º 327 33
 Controvérsia
AINDA DEVEMOS
ENSINAR AS
NOSSAS CRIANÇAS
A ESQUIAR?
Com temperaturas-recorde no início deste ano
e estâncias de inverno a terem de recorrer cada vez
mais ao uso de canhões de neve, este diário bávaro
interroga-se sobre o futuro do esqui
SIM,
É UMA
EXPERIÊNCIA
MÁGICA
Süddeutsche Zeitung
Munique
É
É segunda-feira de manhã, segunda semana de janeiro,
bem cedo, e estamos na zona este de Munique. O ter-
mómetro marca 8 °C. Uma espécie de rajada outonal,
fria e húmida, abana os pompons dos barretes. O miniautocarro
Volkswagen cinza antracite da escola de esqui, que transporta
seis alunos do jardim de infância, está pronto a arrancar para
uma estância de esqui… na Áustria. O motivo? Na Baviera, não
se avista um único floco de neve nas montanhas.
Aprender a esquiar, comer pizza e batatas fritas e andar
de tapete rolante são as novidades que esperam esta pequena
pessoa de 4 anos. O programa foi reservado logo após as férias
de verão: no inverno anterior, ficou com uma inveja profunda
do irmão mais velho, que foi deslizar nas pistas com a ajuda
do telesqui. Mas, hoje em dia, coloca-se a seguinte questão:
com as alterações climáticas e a crise energética que vivemos,
com glaciares a derreter e a utilização cada vez mais frequente
de neve artificial, será que ainda se justifica ensinar mais uma
geração a esquiar?
A verdade é que, se os pais deste pequeno “pompom” de 4
anos respondem a esta pergunta pela positiva, não o fazem por
motivos razoáveis ou depois de muito refletir. Se ensinamos as
crianças a nadar e a andar de bicicleta, é para que elas não se
afoguem e para que não tenhamos de lhes dar boleia de carro
para os treinos de futebol. Já o esqui não se inclui nesse leque
AUTORA DATA TRADUTORA
F Katharina Riehl 13.01.2023 Margarida Bak Gordon
34 MAIO 2023 - N.º 327
de aprendizagens elementares, sem as quais seríamos conside-
rados pouco instruídos na Europa. Se ainda respondemos pela
positiva a esta pergunta em 2023, é porque acreditamos que
não se deve ser sempre razoável em tudo, na vida. E porque
queremos viver uma experiência mágica com os nossos filhos.
É que o esqui é um desporto maravilhoso: está-se ao ar livre
o dia todo; aliás, idealmente, ao sol. Nele, juntam-se elegância
e rapidez de uma forma que não acontece na maioria das outras
modalidades. E, quando a neve cai vigorosamente, transformando
as encostas em pistas, o esqui torna-se também um desporto
de Natureza – com vistas de cortar a respiração sobre vales co-
bertos de neve e cumes pintados de branco, é um desporto que
se pratica em família, a partir do momento em que os miúdos
já não precisam de andar agarrados ao telesqui. Um desposto
dispendioso, se se quiser subir as pistas altas num grupo de
oito pessoas, e fazê-lo sentado em telecadeiras aquecidas. Mas
pode ser mais acessível, se a família optar por uma estância mais
pequena e menos cara. E ainda mais acessível será, claro, se se
calçar esquis de fundo para ir lá acima. É evidente que podemos
viver sem isto. Porém, seria uma pena recusar a oportunidade.
A questão de saber qual é o futuro do esqui inclui-se num
debate maior, fundamental, política e socialmente, que de-
correrá nos próximos anos e ao longo das próximas décadas.
O facto de que cada um terá de renunciar a certas coisas, que
devemos mudar a nossa forma de agir se quisermos combater a
crise climática, parece óbvio. Mas renunciar a quê, exatamente?
E quem é que decide isso? Somos nós, individualmente, dando
provas de um bom senso elementar, ou são os políticos, proi-
bindo, por exemplo, o motor térmico?
O esqui não é o principal responsável pelas alterações cli-
máticas, é uma causa, entre outras. Trata-se de uma prática
de lazer que está a passar de moda e que deixará de ser viável
brevemente num número significativo de estâncias, porque,
com o termómetro nos 12 °C, nem os próprios canhões de neve
de Hubert Aiwanger [homem-forte da Baviera, que defende a
neve artificial] têm qualquer utilidade. Se algum dia chegarmos
ao ponto em que não é possível esquiar nem na Baviera nem na
Áustria, ou em que não somos autorizados a fazê-lo, os entu-
siastas da neve terão de se conformar.

NÃO,
É UMA ABERRAÇÃO
ECOLÓGICA
Der Tagesspiegel
Berlim
A As férias na neve não estão necessariamente associadas
às melhores recordações de infância. Pelo menos, para
os pais de hoje em dia, que cresceram nos anos 70 e no início
dos anos 80, é provável que essas memórias venham acompa-
nhadas de um calafrio.
Naquele tempo, não havia ainda todos os equipamentos
lúdicos que atualmente facilitam um processo de aprendizagem
apimentado com uns “trambolhões” à mistura. Os sapatos eram
como dois tornos que nos apertavam os pés, tínhamos os dedos
dormentes e gelados, e ninguém nos levava a um chalé à hora
do almoço para comer kaiserschmarrn [sobremesa típica em-
blemática das estâncias de esqui austríacas, feita com massa de
panqueca e compota] e tomar um chocolate quente. Tínhamos
direito a comer uma sanduíche de queijo meio enregelada, em
pé, no meio da encosta. As crianças, hoje, têm mais sorte do
AUTOR DATA TRADUTORA
F Jochen Temsch 13.01.2023 Margarida Bak Gordon
FOTO: GETTY IMAGES
que nós tivemos. O que nos impede de as inscrever nas aulas
de esqui é outra coisa: para praticar esta atividade, temos de
poder contar com o ingrediente principal.
Andamos de t-shirt no Natal; na passagem de ano, sen-
timo-nos na primavera; e beliscamo-nos ao ver o Neujahr-
sskispringen na televisão [competição de salto de esqui que
acontece no primeiro dia do ano, em Garmisch-Partenkirchen,
na Baviera]: avista-se uma fina faixa branca numa paisagem
sobretudo castanha – podemos falar de uma aberração ou de-
vemos já assumir que vivemos numa distopia? Em muitas es-
tâncias, a neve que cai é armazenada para poder ser utilizada
mais tarde. Para que os canhões de neve funcionem, é preciso
que o termómetro desça até -2 °C. No primeiro dia do ano, o
termómetro marcava 20 °C.
Quando forem grandes, estas crianças olharão para os esquis
como nós olhamos, hoje em dia, para as cabinas telefónicas:
serviam para quê, exatamente?
Para uma pessoa sensata e que tenha uma relação próxima
com a Natureza, a solução pode parecer relativamente simples.
Para disfrutar de uma atividade ao ar livre, seja qual for, é preciso
que estejam reunidas as condições. Senão, nada feito. Não se
faz canoagem no deserto, nem kitesurf na floresta, e, a médio
prazo, também já ninguém esquiará abaixo dos três mil me-
tros. Considerando as consequências aterradoras das alterações
climáticas, pelas quais somos responsáveis, esta é, na verdade,
a menor das preocupações da Humanidade, sobretudo porque
o esqui, ao contrário de outros desportos, como a natação (que
serve também para evitar afogamentos) e o ciclismo (forma de
mobilidade ecológica), não nos ajuda a progredir na vida, mas
cumpre apenas o objetivo de nos entreter.
Porém, quando se vive no Sul da Alemanha, no sopé das
montanhas, a tendência é olhar o assunto por um prisma di-
ferente. Ali, atravessamos as pistas, com os esquis nos pés,
desde os 2 anos de idade. E, no dia em que cultivarem quivis na
Kampenwand [montanha bávara com 1 669 metros de altura],
o jardim de infância irá organizar idas à neve, na Áustria, nas
estâncias mais altas. É a política do canhão de neve: quando
algo não está a funcionar, dá-se a volta para que volte a fun-
cionar. Pomos a economia local a funcionar “ligada à máquina”
e continuamos a esquiar, custe o que custar. Os exploradores
dos aparelhos mecânicos de elevação injetam milhões para que
a montanha seja cada vez mais alta e para fundir estâncias e,
assim, vencer a concorrência, apresentando mais quilómetros
de pistas. Os esquiadores chegam de carro, e esse vaivém emite
mais CO₂ por pessoa e por dia do que a própria preparação das
pistas, veio confirmar a Agência Austríaca do Ambiente. Deci-
dir não ir esquiar é já, portanto, uma forma de agir ecológica.
Aquelas e aqueles que querem agir de forma ecologicamente
responsável vêm de comboio, e não apenas para passar o dia.
Mas apenas os pais que não precisem de descansar, que amem
aventuras – entre crianças a choramingar e todo o material que
é preciso transportar – e que tenham uma estrutura inabalável
poderão aguentar tal suplício. Não poder esquiar é um problema
de ricos, porque o esqui é um luxo. Os passes diários a custar
50 ou 60 euros são comuns nas estâncias maiores – que ainda
podem ter a certeza de contar com alguma neve –, e aquelas e
aqueles que se instalarem num bom hotel em período de férias
escolares acabarão por gastar, com a sua pequena família, uma
soma total que, num passado não muito distante, lhes teria
permitido comprar um carro simples em segunda mão. O facto
de se poder fazer tudo não significa que se deva fazer tudo.
Há certamente outras maneiras de entreter as crianças no
inverno.
MAIO 2023 - N.º 327 35
 ÍNDIA
O despertar
do gigante
A 14 DE ABRIL, A ÍNDIA PASSOU A SER OFICIALMENTE
O PAÍS MAIS POPULOSO DO MUNDO. COM UMA
POPULAÇÃO JOVEM E UMA BOA IMAGEM ENTRE
OS INVESTIDORES OCIDENTAIS – QUE FAZEM
VISTA GROSSA ÀS POLÍTICAS NACIONALISTAS E
REPRESSIVAS DO GOVERNO DE MODI –, A ÍNDIA
PODERÁ TORNAR-SE UM PODEROSO RIVAL
DA CHINA. NO ENTANTO, AINDA PRECISA DE
RESOLVER OS SEUS PRINCIPAIS PROBLEMAS: UMA
POBREZA ENDÉMICA, UMA JUVENTUDE SEM
EMPREGO E UMA DEMOCRACIA À DERIVA

FOTOS: GETTYIMAGES
 Índia

O potencial
da imensa
população jovem
Saberá a Índia aproveitar o dinamismo da sua população
em idade de trabalhar? Para isso, terá de melhorar
os setores-chave da Educação e da Saúde
Scroll.in
Nova Deli

A Índia está prestes a tornar- aliás, ao Parlamento, em abril de 2022,

A -se o país mais populoso do

mundo e, provavelmente, já
ultrapassou a China. A World
Population Review, uma organização inde-
pendente especializada em recenseamento
e demografia, estimava que a Índia teria
1,41 mil milhões de pessoas até ao final
de 2022, cerca de cinco milhões a mais do
que a China. Este anúncio chegou poucos
dias depois de a China ter revelado um
declínio na sua população, pela primeira
vez em mais de 60 anos. As Nações Unidas,
por sua vez, tinham previsto que a Índia
atingiria o primeiro lugar por volta do dia
14 de abril.
Alguns apelos têm sido lançados pe-
los políticos para que a Índia introduza
medidas de controlo populacional [tais
como o limite de duas crianças por ca-
sal, inspirado no agora extinto exemplo
chinês], mas os especialistas dizem que
as preocupações quanto ao risco de so-
brepopulação são geralmente exageradas.
Segundo eles, uma população numerosa e
jovem pode ser uma oportunidade para a
Índia. No entanto, ela só poderá colher este
dividendo demográfico se forem tomadas
medidas, o mais rapidamente possível,
para melhorar a educação, os cuidados
de saúde e a formação profissional. O
país pode também enfrentar novos pro-
blemas, tais como o aumento da pressão
sobre as cidades, devido ao aumento do
êxodo rural.
O governo, por seu lado, não acre-
dita que a Índia precise de medidas [de
controlo demográfico], uma vez que as
tendências das curvas demográficas são
encorajadoras. O ministro da Saúde da
União Indiana, Mansukh Mandaviya, disse,
AUTOR
F Nachiket
Deuskar
que o controlo da natalidade não deveria
ser alcançado pela força, mas através da
sensibilização e da educação dos cidadãos.
Como sublinhou, graças ao sucesso
das medidas políticas tomadas, a taxa de
crescimento populacional caiu em relação
aos níveis dos anos 70 e 80: “Conseguimos
resultados, uma vez que a taxa de fecun-
didade caiu para cerca de dois filhos por
mulher. Isto mostra que a nossa missão
no controlo da natalidade está a caminho
de ser bem-sucedida.” Desde as décadas
de 1970 e 1980 que têm vindo a ser im-
plementadas medidas para melhorar os
serviços de planeamento familiar e de
contraceção.
Quando o índice sintético de fecundi-
dade (o número médio de filhos que uma
mulher num determinado país dará à luz
durante a sua idade fértil) se fixar em 2,1
filhos por mulher, ele assegura a estabili-
dade da população do país, independen-
temente das circunstâncias.
Poonam Muttreja, diretor-executivo
da Fundação de População da Índia, con-
corda com esta abordagem: “A Índia não
tem qualquer necessidade de introduzir A ONU prevê que a população
medidas rigorosas de controlo popula- da Índia atingirá um pico de 1,7 mil
cional. Estamos no bom caminho para milhões na década de 2060
estabilizar a nossa população, até meados FOTO GETTYIMAGES
do século (2048).” E acrescenta: “Assim,
estaremos muito próximos do objetivo a
longo prazo da política nacional indiana No entanto, especialistas, como
de 2000, que era alcançar uma população Aparajita Chattopadhyay, professora
estável até 2045.” no Instituto Internacional de Ciências
A ONU, entretanto, prevê que a po- Populacionais em Bombaim (Mumbai),
pulação da Índia atingirá um pico de 1,7 salientam que, embora as medidas de con-
mil milhões na década de 2060, antes de trolo populacional não sejam necessárias
voltar a cair para 1,5 mil milhões até ao em todo o país, alguns estados precisam
final do século. de especial atenção. “Há certas ilhotas
onde [o índice de fecundidade] é de três
ou mais. Precisamos de descobrir porquê,
e como lidar com isto. As estratégias a
DATA TRADUTORA adotar podem variar de lugar para lugar”,
01.02.2023 Helena Araújo diz Aparajita Chattopadhyay. Em Bihar,

38 MAIO 2023 - N.º 327

Número

1,4 MIL
milhões de pessoas
É o número que terá atingido a população da Índia no dia 14 de abril, de acordo com as projeções das
Nações Unidas. A Índia ultrapassou assim a China, tornando-se o país mais populoso do mundo.
Um estatuto que ela pode, na verdade, reivindicar há algum tempo. De facto, o país não conta a sua
população desde 2011. Deveria ter havido um censo em 2021, mas foi adiado devido à pandemia
Covid-19. No entanto, esta contagem “é necessária, pois constitui a base de todos os planos e
programas que o governo quer implementar”, particularmente em termos de apoios sociais, recorda
THE INDIAN EXPRESS. Poderá haver até 100 milhões de pessoas atualmente excluídos do programa de
distribuição de alimentos do governo aos mais pobres, sendo os números da população utilizados
para calcular o número de beneficiários provenientes do censo de 2011.

MAIO 2023 - N.º 327 39

 Índia
Territórios disputados:
reclamados pela Índia
Território disputado: e administrados pela China
reclamado pela Índia
e administrado
por exemplo, é provável que seja devido pelo Paquistão
à falta de infraestruturas de saúde, en-
quanto em Bengala Ocidental ou Assam
estão outros fatores em jogo. Zimbabwe Islândia
Jammu & Caxemira Ladakh
Sul à frente 15 milhões 0,3 milhões
Além disso, de acordo com os especialistas,
espera-se que os estados atinjam o pico
populacional em momentos diferentes,
Austrália Hong Kong
e não todos ao mesmo tempo. De acordo Himachal Pradesh
com Aparajita Chattopadhyay, os estados + Nova Zelândia
Punjab 8 milhões
do Sul começaram a apresentar um enve- 31 milhões Bolívia
lhecimento da população prematuramen- Uttarakhand
te e, por isso, irão enfrentar problemas 12 milhões

PARA SE APROVEITAR AO MÁXIMO A GRANDE Chipre Venezuela

Chandigar Haryana
PRESENÇA DE JOVENS, O NÍVEL 1 milhão 29 milhões

DE EDUCAÇÃO E DE COMPETÊNCIAS,
E A PRESTAÇÃO DE CUIDADOS DE SAÚDE PRECISAM
DE SER RAPIDAMENTE MELHORADOS Ucrânia + Polónia
Rajastão
80 milhões
relacionados com a idade mais depressa
do que os do Norte. Por exemplo, Kerala
atingiu esta fase em 1998, enquanto não
se espera que o crescimento populacional
de Bihar estabilize até 2039.
Isto também significa que a melhor Turquia
altura para colher os benefícios do divi- Tailândia Madhya Pradesh
dendo demográfico varia de estado para Gujarat 85 milhões
estado. Por “dividendo demográfico” en- 70 milhões
tende-se capacidade de alcançar um bom
crescimento económico devido à presença
de uma elevada percentagem de pessoas
em idade ativa, mais elevada do que a de
Japão
pessoas em idade não ativa. Maharashtra
Deste ponto de vista, os estados do Sul Guiana
Dadra 125 milhões
estão à frente dos do Norte, explica Poonam e Nagar Haveli
e Damão e Diu
Malásia +
A grande ultrapassagem 0,8 milhões
Singapura
Telangana
38 milhões
Depois de anos com um crescimento quase paralelo, a Índia
suplantou a China – que entrou agora em declínio populacional
1,70
mil milhões Guiné Equatorial
Índia Goa Myanmar
1,6
1,43 2 milhões Andhra Pradesh
mil milhões 54 milhões
1,4
1,53 Reino Unido
1,2 mil milhões Karnataka
70 milhões
1,0 1,16
mil milhões
China
800

600
766,67
330 milhões Alemanha
400 milhões Tamil Nadu
Ilhas Caimão 84 milhões
200 Laquedivas
200,73 0,1 milhões Arábia Saudita
0 milhões
Kerala
1800 1850 1900 1950 2000 2023 2050 2064 2100 35 milhões
FONTE Our World in Data MT/VISÃO

40 MAIO 2023 - N.º 327

 Quantos países
Pobreza regressa
cabem namundial
População Índia? “A pandemia Covid-19 interrompeu o
comparada com a Índia
Dentro do agora país mais populoso do mundo vive o equivalente aos
habitantes de mais de três dezenas de países. Nesta escala, em comparação
declínio da pobreza em todo o mundo,
incluindo na Índia”, revelava THE PRINT, em
Com
com cerca
a Índia,dea18% da população
população mundial,
de países comoa aÍndia tem, atualmente,
Alemanha, Tailândia, México,
1,4 mil milhões de habitantes. Em 2023, o país vai ultrapassar a China outubro de 2022. Em 2020, 71 milhões
Brasil ou Japão até parece diminuta de pessoas à escala global tornaram-se
e tornar-se a nação mais populosa do mundo
pobres, e pelo menos um terço encontra-
se na Índia. Estima-se que entre 23 e 56
Território disputado:
reclamado pela China milhões de pessoas caíram na pobreza
e administrado pela Índia extrema na Índia – um número que
Letónia
Arunachal Pradesh não é muito exato, devido à ausência da
2 milhões realização de um censo nos últimos 12
Roménia
Deli Macau anos –, e esta auscultação é a primeira
19 milhões Sikkim vez que acontece desde 2011, revelou o
0,7 milhões
Canadá site de notícias. De acordo com o Banco
Assam Eslovénia Mundial, considera-se pobreza extrema
36 milhões Nagaland
2 milhões quando uma pessoa vive com menos de
2,15 dólares (€2,29) por dia.
Brasil + Equador México Uruguai
Uttar Pradesh Binar Manipur
232 milhões 129 milhões 3 milhões Muttreja, com uma transição demográfica
Eritreia
Meghalaya iniciada mais cedo. Esta transição refere-
4 milhões -se à mudança nas taxas de natalidade e
Iraque
Jarcanda Estónia de mortalidade de um nível alto para um
40 milhões Egito Mizoram nível baixo. “Os estados que estão à frente
Bengala Ocidental 1 milhão na transição demográfica começaram a
Peru 101 milhões colher dividendos cedo, mas vão perder
Chatisgar dividendos nos próximos 30 a 40 anos”,
32 milhões Croácia
Tripura acrescenta. “Kerala e Tamil Nadu [estados
4 milhões do Sul da Índia], que lideraram o caminho,
Espanha perderão os seus dividendos mais cedo do
Odisha que outros estados, tais como os de Uttar
47 milhões
Pradesh, Bihar [no leste] e os estados do
Norte da Índia”.
Para ajudar a colocar a população indiana
em perspetiva, este mapa compara as populações Na opinião dos especialistas, o cres-
dos vários estados que compõe o país com outras cimento populacional da Índia é uma
nações mundiais com populações similares oportunidade. Poonam Muttreja acredita
EXEMPLO que a grande presença de jovens no país
pode dar uma enorme contribuição para
a economia e para o crescimento do país.
Porém, para se aproveitar ao máximo esta
oportunidade, o nível de educação e de
Karnataka Reino Unido competências, e a prestação de cuidados
70 milhões = 68 milhões de saúde, devem ser rapidamente melho-
rados. “Há uma janela de oportunidade
para a Índia”, diz Muttreja, mas só se o país
investir nos setores da Saúde e Educação,
bem como na alimentação, competências
e empregabilidade, antes que essa janela
se feche.
Bahrein Outra advertência: a explosão demo-
Puducherry Bahamas
Andaman e ilhas Nicobar gráfica deverá acentuar a pressão sobre os
2 milhões
0,4 milhões centros urbanos do país. As Nações Unidas
preveem que a população urbana da Índia
cresça de 483 milhões, em 2020, para 675
milhões, em 2035. A população de Nova
Deli poderá aumentar, passando de apro-
ximadamente 20,6 milhões, em 2021, para
30,9 milhões em 2041, de acordo com um
FONTE Worldometer, indiacensus.net, Visual Capitalist e Project Syndicat MT/VISÃO cenário de crescimento elevado.

MAIO 2023 - N.º 327 41

 Índia

6,8%, em 2024. Mas a taxa de desemprego

Empregos, continua a aumentar. Era de 7,45% em

fevereiro de 2023, face aos 7,14% do mês
anterior, de acordo com dados do Centro

por favor! de Monitorização da Economia Indiana

(CMIE, sigla inglesa). “O crescimento a
que estamos a assistir é principalmente
Apesar das previsões de uma das taxas de crescimento do setor privado, e as empresas indianas
mais elevadas do mundo, o emprego não está à vista. não estão a empregar assim tantas pessoas
por unidade de produção”, disse Pronab
Nem a indústria nem o Estado estão a absorver a Sen, economista e ex-consultor sénior da
quantidade disponível no mercado de trabalho de jovens Comissão de Planeamento da Economia
licenciados indiana.
“Por um lado, veem-se jovens que não
Financial Times conseguem encontrar trabalho; por outro,
Londres
há empresas que se queixam de não con-
seguirem encontrar pessoas qualificadas.”
Kiran VB, de 29 anos, vive em emprego ou são vendedores ou estafetas.” Quanto aos empregos na Função Pú-

K Bangalore, a capital indiana

das novas tecnologias. Espe-
rava trabalhar numa fábrica
do setor depois da escola secundária, mas
teve dificuldade em encontrar um emprego
e começou a trabalhar como motorista.
Depois, teve de poupar durante mais de dez
anos para finalmente comprar o próprio
táxi. “O mercado é muito difícil, as pessoas
vagueiam por casa sem fazer nada”, diz, a
propósito dos familiares que se formaram
em Engenharia ou em escolas de negó-
cios, mas que também não encontraram
bons empregos. “Mesmo as pessoas que
se formaram no Ensino Superior não têm
AUTOR
F John Reed
O seu testemunho é sintomático de
um problema de fundo na Índia e de uma
dificuldade crescente para o primeiro-
-ministro, Narendra Modi, que vai recan-
didatar-se em 2024: a economia indiana,
embora apresente um forte crescimento,
não está a criar empregos suficientes,
especialmente para os jovens indianos,
muitos dos quais estão desempregados
ou são relegados para empregos que não
correspondem às suas competências. O
Fundo Monetário Internacional (FMI) pre-
vê que a economia indiana cresça 6,1%, em
2023 – uma das taxas mais elevadas entre
as potências económicas mundiais –, e
DATA TRADUTORA
19.03.2023 Helena Araújo
blica, cobiçados pela segurança que con-
ferem, segundo Pronab Sen, são poucos
em comparação com a população da Índia,
que ascende a 1,4 mil milhões de pessoas.
A disponibilidade de competências é
igualmente problemática: muitas empresas
preferem contratar candidatos mais ve-
lhos, que adquiriram competências muito
procuradas. “Muito do crescimento da
Índia é impulsionado pelos setores das
finanças, seguros, imobiliário, serviços
subcontratados, telecomunicações e in-
formática”, diz Amit Basole, professor de
Economia na Universidade Azim Premji,
Bangalore. “São setores de alto crescimen-
to, mas que não estão a criar empregos.”
Impulsionar a criação de emprego, espe-
cialmente entre os jovens, é crucial se a
Índia quiser capitalizar o seu dividendo
demográfico e geopolítico.

42
 Há falta de bons empregos
para os mais jovens, na Índia
FOTO GETTYIMAGES
Desemprego, raiva e medo
O país tem uma população jovem que, em
2023, ultrapassa a China como a maior
do mundo. Um número crescente de
empresas procura reduzir a sua depen-
dência dos fornecedores e consumidores
chineses, tanto em termos de cadeias de
abastecimento como de vendas. Na Índia,
tanto o governo central como os governos
estaduais, como o de Karnataka, do qual
Bangalore é a capital, estão a gastar mi-
lhares de milhões de dólares para atrair
investidores em indústrias como a ele-
trónica e a produção de baterias de última
geração no âmbito da campanha Made in
India, liderada pelo governo Modi.
Recentemente, as autoridades tam-
bém flexibilizaram o direito laboral para
o tornar mais semelhante aos regulamen-
tos chineses, na sequência de pressões de
empresas, como a Apple e o seu subcon-
A INDÚSTRIA EMPREGA SÓ PERTO DE 35 MILHÕES
DE PESSOAS, E AS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO
APENAS DOIS MILHÕES, NUMA POPULAÇÃO ATIVA
DE CERCA DE 410 MILHÕES NA ECONOMIA FORMAL
tratante Foxconn, que planeia fabricar
iPhones no estado de Karnataka, no Su-
doeste do país.
Acresce ainda que a produção indus-
trial indiana está a crescer mais lentamente
do que outros setores, por isso é pouco
provável que se torne um grande cria-
dor de emprego a curto prazo. A indústria
emprega apenas cerca de 35 milhões de
pessoas, e as tecnologias de informação
apenas dois milhões, numa população ati-
va de cerca de 410 milhões na economia
formal, de acordo com o último inquérito
do CMIE, que abrange os dois primeiros
meses de 2023.
Segundo um alto-funcionário de Kar-
nataka, jovens extremamente qualificados
e instruídos estão a candidatar-se a agentes
da polícia.
O governo de Narendra Modi parece
estar consciente do assunto. Em outubro
de 2022, o primeiro-ministro presidiu a
uma campanha de recrutamento, durante
a qual entregou cartas de recomendação
a 75 mil jovens, para mostrar que o seu
governo estava seriamente empenhado
em criar empregos e em “dar à juventude
da Índia competências essenciais para um
futuro melhor”.
Algumas figuras da oposição ridiculari-
zaram a iniciativa. O presidente do partido
do Congresso, Mallikarjun Kharge, disse
que as medidas eram “muito insuficientes”.
Outro político afirmou que esta feira de em-
prego foi “uma piada cruel para os jovens
desempregados”. Rahul Gandhi, herdeiro
da família fundadora do partido do Con-
gresso, sublinhou a sua intenção de criticar
o primeiro-ministro quanto à questão do
desemprego durante a campanha eleitoral,
quando o mais provável é que Modi ganhe
um terceiro mandato.
“O verdadeiro problema é o desemprego,
e é isso que está a causar muita raiva e medo”,
disse Rahul Gandhi numa entrevista com o
think-tank londrino Chatham House, em
fevereiro. “Não acho que um país como a
Índia possa empregar toda a sua população
no setor dos serviços.”
Ashoka Mody, economista indiano da
Universidade de Princeton, nos Estados
Unidos da América, refere o termo time-
pass, que em inglês da Índia significa “matar
tempo de uma forma não produtiva”, para
explicar outro fenómeno que está a dificultar
o mercado de trabalho: o subemprego de
pessoas em trabalhos que não se encaixam
no seu perfil. “Há centenas de milhões de
jovens indianos que estão a ‘matar tempo’
no trabalho”, diz Ashoka Mody, autor do
ensaio India Is Broken (Stanford University
Press, 2023), no qual critica as políticas
económicas dos governos indianos desde
a independência. “Muitos deles estão nesta
situação, apesar de terem vários diplomas
e frequentado várias universidades.”
Dildar Sekh, de 21 anos, mudou-se de
Calcutá para Bangalore, depois de completar
um curso informático no Secundário. Após
não conseguir assegurar um dos poucos
empregos do governo, acabou a trabalhar
no aeroporto de Bangalore, para um su-
bempreiteiro que ajuda os passageiros em
cadeira de rodas. O emprego dá-lhe 13 mil
rupias por mês (€145).
“O trabalho é bom, mas o salário não”,
diz Dildar Sekh, que sonha em poupar di-
nheiro suficiente para comprar um iPhone
e oferecer aos pais um voo de helicóptero.
“Não há um bom emprego para uma pessoa
jovem. As pessoas com dinheiro e uma rede
de contactos conseguem ter bons empre-
gos; os outros têm de continuar na labuta
até morrer.”
Não há mulheres
suficientes
“A Índia está a enfrentar um declínio
espantoso na participação das
mulheres no mercado de trabalho”,
adverte o MONEYCONTROL. O site indiano
de notícias de negócios indica que as
mulheres representavam apenas 19%
da força de trabalho, em 2021, face
aos mais de 40% no início dos anos
90. Milhões de mulheres desistiram
de trabalhar, nas últimas décadas, e a
Índia tem uma das mais baixas taxas
de participação feminina no mercado
laboral do mundo. As razões incluem
a segurança no local de trabalho, a
discriminação e o sexismo.
À medida que os rendimentos
domésticos aumentam, as mulheres
abandonam o mercado de trabalho
como sinal de prosperidade. “A
Índia não pode dar-se ao luxo de
deixar as mulheres educadas fora do
mercado de trabalho”, adverte um
artigo de opinião, publicado no The
INDIAN EXPRESS. Os três académicos
que assinaram o texto apelam a uma
mudança nas normas e atitudes
masculinas. De acordo com as suas
pesquisas num site de encontros,
os homens preferem uma mulher
que fique em casa, e no “mercado
matrimonial” as mulheres
3,470 mil
milhões de
dólares
É o PIB da Índia em 2022, com um
crescimento de 6,8%, de acordo
com o FMI. Este indicador parece ter
explodido desde o início dos anos 2000,
posicionando a Índia como a quinta
maior economia do mundo. O país
parece ainda estar muito atrás da China
(classificada em segundo no ranking) e
dos seus 18,320 mil milhões de dólares
do PIB em 2022, de acordo com o FMI.
O crescimento da China foi apenas de
3,2% em 2022.
MAIO 2023 - N.º 327 43
 Índia

Os negócios
em primeiro lugar
A estratégia económica da Índia é baseada em democracia,
demografia e desenvolvimento. O país quer atrair investimento
ocidental e, tanto para o governo como para os investidores
estrangeiros, a procura é o mais importante... muito à frente
da democracia
The Hindu
Madras
No mesmo dia em que a Air partidos da oposição [depois de ter sido
N India (do grupo Tata) anunciou
uma encomenda de 470 aviões
exibido um documentário sobre o papel
de Modi nos motins de Gujarat, em 2002].
aos construtores aeronáuticos Modi encontrou-se em videocon-
Boeing e Airbus, o fisco indiano chegou ferência com Emmanuel Macron, e Joe
aos escritórios da BBC [em Nova Deli e Biden felicitou-o ao telefone pelo negócio
Bombaim]. Quando o primeiro-ministro da Boeing. Entretanto, o primeiro-mi-
Narendra Modi falou do reforço das par- nistro britânico, Rishi Sunak, cujo país
cerias estratégicas com os Estados Unidos é um dos beneficiários do contrato com
da América e a França, os funcionários a Airbus (Rolls-Royce fará os motores),
do BJP [Partido Bharatiya Janata, partido publicou um tweet entusiástico. Tudo isto
nacionalista hindu do governo de Narendra diz muito sobre o papel que a Índia pre-
Modi], incluindo os ministros da União tende desempenhar perante o Ocidente,
[indiana], acusaram a televisão britânica um papel definido na “doutrina estratégica
de atividades anti-Índia com o apoio dos do hindutva” [a forma predominante de
AUTOR DATA TRADUTORA
F Varghese K. 15.02.2023 Helena Araújo
George
A próxima fábrica
do mundo?
O primeiro-ministro indiano, Narendra
Modi, repete-o até à exaustão: a
Índia tem todos os trunfos para se
tornar o novo centro de produção do
mundo. As autoridades querem atrair
investimento estrangeiro a todo o custo,
nomeadamente através de uma série
de programas de incentivo em setores-
chave, como o dos semicondutores.
Foxconn prevê, assim, a criação de
duas fábricas no Sul do país, revelou THE
ECONOMIC TIMES, a 9 de março. O gigante
taiwanês já ali fabrica iPhones e monta
telefones Xiaomi.
Os Estados Unidos da América e a Índia
assinaram igualmente um memorando
de entendimento, no dia 10 de março, para
coordenarem a sua estratégia em matéria
de semicondutores. Os dois países
“procuram colaborar nas políticas de
semicondutores”, por forma a enfrentar
os desafios da cadeia de fornecimento
e “reduzir a dependência em relação à
China”, sublinha, por sua vez, o Mint.
A Índia continua a ser um pequeno
ator no mercado dos semicondutores,
mas o país está a emergir como um
centro mundial de produção eletrónica,
impulsionado pelas estratégias de
gigantes como a Apple e a Dell, que estão
a estabelecer-se no país.

44 MAIO 2023 - N.º 327

 O potencial de crescimento
económico da Índia ainda está
por explorar
FOTO GETTYIMAGES

nacionalismo hindu na Índia]. Modi citou

repetidamente os três “D” – democracia,
demografia e procura (demand) – como os
três fatores que fazem da Índia um destino
privilegiado para o investimento ocidental.
Quando Modi começou a falar sobre os
três “D”, em 2014, os norte-americanos
estavam satisfeitos com as parcerias co-
merciais com a China. Porém, nos anos que
se seguiram, as relações entre os Estados
Unidos da América e a China deteriora-
ram-se drasticamente, e a Rússia invadiu
a Ucrânia. A administração Biden quer
agora definir a política internacional como G20, um grande golpe publicitário
uma divisão ideológica fundamental entre A Índia está a jogar com toda a força. O país detém a presidência rotativa do
democracia e autocracia. G20, e o primeiro-ministro Narendra Modi está a aproveitar a oportunidade
A 14 de fevereiro, Modi convidou as para lançar uma campanha publicitária a promover a crescente influência
companhias ocidentais a aproveitarem de Nova Deli na cena mundial, diz THE WASHINGTON POST. O rosto de Modi
as oportunidades no crescente mercado foi afixado em todas as principais cidades do país, que acolherão as várias
da aviação civil da Índia. No primeiro D
iniciativas ao longo do ano, antes da reunião dos Chefes de Estado em
[democracia], os governos ocidentais, por
vezes, expressam, em tons abafados, al-
setembro: um total de 215 encontros em 56 cidades a um custo de mais
gumas reservas, mas não escondem o seu de 100 milhões de dólares. “De Nova Deli a Bombaim, há cartazes pelas
entusiasmo quando se trata da procura. estradas, bloqueando a vista dos bairros de lata, ao mesmo tempo que
A encomenda da Air India foi a terceira lembram aos transeuntes que a Índia, a ‘mãe da democracia’, acolhe
melhor venda de sempre da Boeing (em importantes líderes mundiais”, relata o diário norte-americano.

A ÍNDIA DEPENDE DA TECNOLOGIA E DO INVESTIMENTO
OCIDENTAIS, AO MESMO TEMPO QUE RESISTE
ÀS IMPOSIÇÕES OCIDENTAIS SOBRE QUESTÕES
DE POLÍTICA INTERNA
termos de dólares), e a segunda melhor
em volume.
“Esta compra resultará em mais de 1
milhão de empregos norte-americanos
em 44 estados, muitos dos quais não exi-
girão os quatro anos de faculdade”, disse
o Presidente Joe Biden em comunicado.
“Este contrato é uma prova da força dos
laços económicos entre os nossos dois
países”, acrescentou. “Estou ansioso por
levar a nossa parceria económica com o
primeiro-ministro Modi ainda mais lon-
ge e enfrentar os desafios globais que se
avizinham.”
De acordo com Sunak, esta encomenda
de aviões irá criar “empregos mais bem
pagos e novas oportunidades nos nossos
polos industriais, desde Derby [onde a
Rolls-Royce está sediada] até ao País de
Gales”, o que ajudará “a crescer a eco-
nomia e a defender melhor a política” do
Reino Unido.
Negócio à frente da democracia
Macron apresentou Modi como um amigo,
e ambos saudaram a “parceria estratégi-
ca” entre os dois países. A atratividade
do mercado indiano, sustentada na sua
demografia, parece mais importante do
que o primeiro D, a democracia.
Embora o governo britânico não te-
nha feito, até ao momento, qualquer co-
mentário sobre a busca nas instalações
da BBC pelas autoridades fiscais indianas,
o porta-voz do Departamento de Estado
norte-americano, Ned Price, recusou-se a
comentar, reiterando apenas a importân-
cia da liberdade dos media numa demo-
cracia. Interrogado sobre se estas medidas
se opunham aos valores democráticos,
Price disse: “Sabemos que estas buscas
ocorreram, mas eu não estou em posição
de fazer uma avaliação.”
BJP defende que a BBC não é uma Im-
prensa livre, mas um agente estrangeiro
que leva a cabo ações anti-Índia. De facto,
as democracias ocidentais não são estra-
nhas a esta lógica: os Estados Unidos da
América e a União Europeia impuseram
uma série de restrições aos media russos
pelos mesmos motivos.
Quando questionado pelos norte-a-
mericanos sobre a violência policial contra
os agricultores que protestavam em Nova
Deli, em janeiro de 2021, o governo Modi
lembrou-os do assalto ao Capitólio. De
facto, a retórica de um confronto global
entre democracias e autocracias está re-
pleta de contradições, e a agitação nos
países democráticos é significativa, pelo
que o Ocidente não pode reivindicar su-
perioridade nesta matéria.
A doutrina estratégica do hindutva
quer pôr o Ocidente ao serviço das suas
ambições nacionalistas. Como resulta-
do, a Índia depende da tecnologia e do
investimento ocidentais, ao mesmo tem-
po que resiste às imposições ocidentais
sobre questões de política interna. Além
disso, quando confrontados com uma es-
colha entre uma oportunidade de negócio
concreta e um objetivo moral abstrato,
os ocidentais nunca hesitam: primeiro a
economia.

MAIO 2023 - N.º 327 45

 Índia

A ‘voz’ de modi
Uma democracia “S. Jaishankar, a voz da política externa na-
cionalista hindu de Modi”, titula THE CARAVAN,

à deriva na sua edição de março de 2023. O órgão de

comunicação mensal indiano faz um longo
perfil, de várias páginas, a Subrahmanyam
Desde que Narendra Modi e o seu partido, o BJP, Jaishankar, o ministro dos Negócios Es-
trangeiros. Na primeira página, um dese-
chegaram ao poder em 2014, a situação tem vindo a piorar nho mostra o elegante
para a oposição, para a Imprensa mas, sobretudo, para as diplomata, com uma
minorias religiosas carreira ilustre, a segurar
um megafone em forma
REVISTa de imprensa de flor de lótus, o símbolo
dos nacionalistas hindus.
“O sistema indiano está a gresso, perdeu o mandato como membro O antigo embaixador in-

O transformar-se numa tirania

total”, critica o famoso cien-
tista político indiano Pratap
Bhanu Mehta, numa das suas colunas
publicadas pelo The Indian Express. A
provar isso mesmo, a exclusão “absur-
da” e “politicamente orquestrada” do
oponente Rahul Gandhi do Parlamento,
“a perseguição a membros da sociedade
civil e de organizações de pesquisa, bem
como a censura da informação”. O único
objetivo do regime, escreve, é “criar um
medo generalizado”.
Rahul Gandhi, líder do partido do Con-
AUTOR DATA
F Sem autor 02.04.2023
do Parlamento a 24 de março, após ter
sido condenado por alegadamente difa-
mar o primeiro-ministro, Narendra Modi.
Em janeiro, o governo também proibiu a
emissão de um documentário da BBC, que
questionava o papel de Narendra Modi nos
pogroms antimuçulmanos de Gujarat, em
2002. Pouco tempo depois, a emissora bri-
tânica teve a visita das autoridades fiscais
indianas, em Deli e Bombaim.
O Partido Bharatiya Janata (BJP), do
primeiro-ministro indiano Narendra
Modi, já não tolera qualquer forma de
oposição, escreve Mehta, no The Indian
TRADUTORA
Helena Araújo
diano nos Estados Unidos
da América, nomeado
ministro dos Negócios
Estrangeiros em 2019,
adaptou-se ao que os
nacionalistas hindus
esperam dele. “Jaishankar está a ajudar [o
primeiro-ministro Narendra] Modi a re-
pensar a política externa indiana em termos
nacionalistas hindus.”
Este anglófono, oriundo de uma casta alta,
“defende entusiasticamente os valores
civilizacionais indianos e protege ferozmente
o governo de questões e críticas”. Com-
preende o que o “mestre quer”, porque “o sr.
Jaishankar parece ser mais um mensageiro
do que um decisor na Índia”, onde a política
externa é agora largamente moldada pelo
primeiro-ministro e os seus tenentes.

46 MAIO 2023 - N.º 327

 As ligações entre o milionário Mukesh
Ambani e o primeiro-ministro Narendra
Modi têm suscitado muita contestação
FOTO GETTYIMAGES
Express. Para ele, estes sinais são ainda
mais preocupantes porque significam que
os nacionalistas hindus não vão permi-
tir uma transição de poder em nenhuma
circunstância.
V-Dem, um instituto da Universidade
de Gotemburgo na Suécia, adverte, no seu
último relatório publicado em 2023, para
o facto de a Índia estar à deriva rumo à au-
tocracia. Os indicadores de autocracias, de
acordo com o V-Dem, incluem a censura
dos media, a repressão da sociedade civil
e as restrições na Academia e na cultura (o
V-Dem posicionou a Índia em 108.º lugar
no mundo em democracia eleitoral, atrás
de países como Tanzânia, Bolívia, México,
Singapura e Nigéria).
Desde que os nacionalistas hindus che-
garam ao poder, em 2014, que a liberdade
religiosa também foi posta em causa. Os
crimes de ódio contra minorias religiosas,
especialmente os 200 milhões de muçul-
manos que constituem 14% da população,
aumentaram. HindutvaWatch.org, um
site que rastreia as violações de direitos
na Índia e mantém um registo dos crimes
de ódio contra minorias, documentou
mais de mil casos de ataques violentos e
de discursos de ódio, desde abril de 2021,
revelou The Washington Post.
Linchamentos de muçulmanos em
nome da proteção de vacas sagradas,
ataques a igrejas, repetidos apelos ao ge-
nocídio de muçulmanos por extremistas
hindus, incluindo membros do BJP... En-
tre 2014 e 2019, os crimes de ódio contra
minorias teriam aumentado 300%, disse
o diário norte-americano.
O Artigo 14, um site de notícias que
investiga as falhas do sistema de Justiça
indiano, denuncia o contexto de impuni-
dade em relação aos extremistas hindus,
que organizaram iniciativas em que foram
proferidos apelos ao genocídio.
“Será que a psicologia da tirania foi
agora interiorizada por um número su-
ficiente de indianos, tornando a resis-
tência mais difícil?”, pergunta Pratap
Bhanu Mehta, no The Indian Express. A
verdade é que a violência religiosa tem
eclodido, sem que tal tenha desencadeado
uma reação. A liberdade de informação e
o sistema judicial estão a ser minados pela
indiferença. “Tal é a lógica da tirania que os
ogres da opressão vagueiam em liberdade,
enquanto nós observamos com indiferença
a justiça e a liberdade a serem presas em
cadeias”, lamenta o académico.
Liberdade
sob ameaça
O partido de Narendra Modi parece ansioso
por eliminar qualquer dissidência significativa
The Economist
Londres
A maior democracia do mundo
A sofreu um sério golpe. Em 24
de março, Rahul Gandhi, lí-
der do partido do Congresso
da Índia e de longe a figura de oposição
mais conhecida do país, foi expulso do
Parlamento, depois de um tribunal o ter
condenado a dois anos de prisão, por
aquilo que Gandhi diz ser uma acusação
de difamação espúria. Filho, neto e bis-
neto de primeiros-ministros, Rahul Gan-
dhi prometeu recorrer da condenação,
proferida por um tribunal distrital em
Gujarat, estado natal de Narendra Modi,
primeiro-ministro da Índia. No entanto,
mesmo que escape da prisão, Gandhi pode
não conseguir limpar o seu nome a tempo
de liderar o seu partido nas eleições gerais
previstas para o ano que vem.
A decisão do tribunal ocorreu após se-
manas de disputa entre Gandhi e membros
do partido Bharatiya Janata (BJP) de Modi.
Gandhi pediu, repetidas vezes, que se in-
FILHO, NETO E BISNETO DE PRIMEIROS-MINISTROS,
RAHUL GANDHI, MESMO QUE ESCAPE DA PRISÃO,
PODE NÃO CONSEGUIR LIMPAR O SEU NOME A TEMPO
DE LIDERAR O SEU PARTIDO DE OPOSIÇÃO A MODI,
NAS ELEIÇÕES DO PRÓXIMO ANO
vestigasse o relacionamento entre Modi
e Gautam Adani, um magnata bilionário
cujas práticas comerciais e proximidade
com o poder estão sob escrutínio. Numa
série de discursos proferidos na Grã-Bre-
tanha, também criticou o estado da demo-
cracia indiana, levando o BJP a suspendê-
-lo do Parlamento, enquanto exigia que
Gandhi se desculpasse por supostamente
insultar a Índia no exterior.
O líder do histórico Partido do Con-
gresso foi processado por difamação, em
Gujarat, por causa de um comentário sar-
cástico que fez em 2019, quando afirmou
que dois fugitivos conhecidos da Justiça
indiana tinham o nome Modi, um apeli-
do muito comum no Oeste da Índia. Para
qualquer observador da habitual violên-
cia existente nos discursos políticos do
país, aquele reparo não parece ter grande
importância. No entanto, Purnesh Modi,
um político menor do BJP, sem qualquer
relação familiar com o primeiro-ministro,
considerou-se profundamente ofendi-
do com o comentário de Gandhi e, por
isso, decidiu apresentar queixa contra o
opositor.
Sentença extraordinariamente dura
O tribunal decidiu a favor de Purnesh
Modi, em 23 de março. A sentença im-
posta a Gandhi foi extraordinariamente
dura, segundo os especialistas jurídicos,
e Gandhi foi expulso do Parlamento, logo
no dia seguinte.
Os líderes da oposição da Índia têm en-
frentado cada vez mais dificuldades legais.
Dois líderes do partido Aam Aadmi, outro
importante grupo de oposição, estão a ser
investigados pela direção de fiscalização do
governo, que investiga crimes económi-
cos. No entanto, os problemas de Gandhi
parecem provar que o BJP está decidido a
aumentar a força da sua perseguição aos
líderes da oposição.
Mesmo que seja bem-sucedido, o re-
curso de Gandhi acabará por demorar, o
que irá deixá-lo ainda com muito me-
nos margem de manobra no comando
do Partido do Congresso. Além disso, o
que está a acontecer com Gandhi pode
MAIO 2023 - N.º 327 47
 Índia

Negócio
Sem TikTok, a Índia Manifestação de apoio a Rahul
vira-se para outras Gandhi, líder da oposição,
expulso do Parlamento
aplicações FOTO GETTYIMAGES
Desde que a Índia proibiu a aplicação chinesa,
os criadores voltaram-se para o Instagram
Reels e para o YouTube Shorts, bem como
para uma multiplicidade de novas plataformas
feitas na Índia. Em 30 de junho de 2020, em
Haiderabade, em apoio à proibição indiana do
TikTok, membros de uma organização juvenil
queimaram cartazes com o logótipo da aplica-
ção chinesa. Nesta altura, milhões de utiliza-
dores ficaram órfãos. A aplicação chinesa tinha
vindo a crescer a uma velocidade vertiginosa.
“O TikTok foi banido a 29 de junho de 2020,
por razões de segurança nacional”, recorda o
INDIA TODAY. Após um confronto mortal entre
os exércitos chinês e indiano, ao longo da sua
disputada fronteira em Ladhak, a Índia baniu
cerca de 200 aplicações chinesas.
O TikTok era uma fonte de entretenimento, mas
também uma fonte de rendimento para muitos
indianos, que se tornaram celebridades na pla-
taforma de partilha de vídeos. Qual o segredo
do sucesso da aplicação ByteDance na Índia?
Estava disponível em 15 línguas regionais,
tornando-a amplamente acessível neste país OS LÍDERES DA OPOSIÇÃO NA ÍNDIA TÊM ENFRENTADO
com mais de 1,3 mil milhões de pessoas.
A proibição reduziu a cinzas meses de tra- CADA VEZ MAIS DIFICULDADES LEGAIS. DOIS LÍDERES
balho para criadores de conteúdos como o
Geet. “Num estalar de dedos, perdeu cerca DO PARTIDO AAM AADMI, OUTRO IMPORTANTE
de 8 milhões de assinantes”, diz o INDIA TODAY. GRUPO DE OPOSIÇÃO, ESTÃO A SER INVESTIGADOS
Durante a noite, cerca de 200 milhões de
utilizadores perderam o acesso às suas contas, PELA DIREÇÃO DE FISCALIZAÇÃO DO GOVERNO,
adiantou o BUSINESS STANDARD. QUE INVESTIGA CRIMES ECONÓMICOS
Mas a proibição beneficiou outros, a come-
çar pela Meta, que estava prestes a lançar o
ser visto, por outros líderes da oposição, É possível que o tratamento duro dado
Instagram Reels e o YouTube Shorts. Muito como um aviso para não serem muito a Gandhi saia pela culatra. A sua expulsão
rapidamente surgiram aplicações feitas na diretos nas críticas a Modi e ao BJP. Esta do Parlamento foi condenada por outros
Índia, tais como Josh, Moj e Chingari, que violência pode ser considerada gratuita, líderes da oposição nacional, numa rara
estão entre as dez mais usadas no país. Estas tendo em conta a fraca a ameaça que, até demonstração de solidariedade. No en-
últimas conseguiram angariar grandes somas ao momento, Gandhi tem sido para Modi. tanto, o príncipe Gandhi é uma vítima
de dinheiro. Por exemplo, a VerSe Innovation, O Partido do Congresso foi derrotado pelo improvável. Até agora, os ativistas do seu
que é proprietária do Josh, angariou mais de BJP, nas duas últimas eleições gerais, e partido não conseguiram reunir protestos
805 milhões de dólares no ano passado, relata mostra poucos sinais de renascimento. na rua em seu nome, e os líderes dos maio-
o Business Standard. “A Mohalla Tech, que O governo também não se esforçou por res partidos regionais, os adversários mais
gere a Moj [...] e a ShareChat, angariou 266 desmentir as exigências de Gandhi para sérios de Modi, mostram pouca vontade
milhões de dólares de um consórcio liderado que se abrisse uma investigação sobre o de trabalhar com ele.
pela Google. Estas três plataformas já atraíram envolvimento de Modi na saga de Adani. O mais provável é que o longo processo
Mesmo assim, sugere Milan Vaishnav, do legal que Gandhi terá de enfrentar bene-
400 milhões de utilizadores”, continua o diário
Carnegie Endowment for International ficie o governo do BJP. O seu caso conti-
empresarial indiano.
Peace, um think-tank em Washington, nuará a dominar as manchetes, tornando
Enquanto os norte-americanos refletem as alfinetadas de Gandhi foram longe de- difícil para o Congresso ou qualquer outro
quanto a uma proibição total e estão preo- mais para os membros seniores do BJP se partido de oposição sustentar um ataque
cupados com as consequências económicas conterem: “Uma razão do seu sucesso é sério ao seu líder histórico. A única vítima
e políticas, a experiência indiana pode servir que, para eles, nenhuma ameaça é pe- indiscutível nesta lamentável farsa será a
como uma lição, diz a REST OF WORLD. quena demais.” democracia da Índia.

48 MAIO 2023 - N.º 327

 opinião / Eugénio Viassa Monteiro

Um país imenso (também)

de talento para exportar
Nos últimos tempos, houve E assim chegamos à Índia, um colosso

O três tipos de movimentos que

chamaram a atenção e que le-
demográfico, que a ONU espera que ultrapasse
a China como o país mais populoso do mundo.
varam a atitudes bem diferentes Já com 1,4 milhões de habitantes, deve assistir
perante os que queriam emigrar para novos nas próximas décadas à explosão da popula-
continentes ou para países vizinhos. Numa Autor ção urbana, e os jovens com menos de 25 anos
atitude fechada e isolacionista, houve quem representam mais de 40% da população.
Eugénio Viassa Monteiro nasceu
tirasse partido da mão de obra qualifica- De Mumbai, assisto com particular inte-
em Goa, na Índia. É doutorado
da, sendo muito restrito nos direitos que resse a este marco, até porque tenho vindo a
pela Universidade de Navarra
concediam aos imigrantes, sobretudo em presenciar uma forte atração de outros países
(Espanha) e licenciado em
termos de cidadania, mesmo após anos e pela juventude indiana, “vendendo-se” como
Engenharia Eletrotécnica pelo
anos de trabalho nesses territórios. Parece seguros e democráticos, onde estes jovens
IST de Lisboa. Atualmente,
haver uma vontade implícita de preservar podem trabalhar bem, usando todas as suas
leciona na AESE Business School
as caraterísticas da sua população, não potencialidades. E, sobretudo, podem desen-
(Portugal) e no Indian Institute of
deixando que adquiram direitos, ou que os volver as capacidades nos domínios tecnológi-
Management em Rohtak (Índia).
adquiram apenas dentro de estritos limites. cos e de empreendedorismo, como a popula-
É autor de, entre outros, The Rise
Vejo, entre estes, o Japão e a Suíça. ção indiana tão bem sabe fazer.
of India. The Free-Initiative, basis
Outros países, em dado momento, im- Hoje, algumas das empresas mais (re)
of Economic Miracle.
pediram a imigração de cidadãos de certas conhecidas em todo o mundo têm um deno-
origens e etnias, sem um motivo entendível minador comum: à frente dos seus destinos
que o justificasse. Um vasto país asiático, quase vazio, dificul- está um CEO de origem indiana. São, por exemplo, os casos
tava a imigração de cidadãos oriundos da China, por exemplo. da Microsoft com Satya Nadella, da Adobe Inc. com Shantanu
Houve ainda outros, mais abertos por necessidade, que Narayen, da Alphabet (que tem como subsidiária a Google)
impuseram restrições. Estes países verificaram, na prática, com Sundar Pichai, da PepsiCo com Indra Nooyi, da FedEx
que fora uma boa aposta, pois a variedade de proveniências, a com Raj Subramaniam, do Barclays com C.S. Venkatakrishnan
sua formação e, sobretudo, os hábitos de trabalho mostraram e da IBM com Arvind Krishna.
como isso era importante para o desenvolvimento nacional. Paralelamente, vejo também como positivo alguns países,
Hoje, que forças estão a influir nos processos migrató- como a Austrália, já começarem a reconhecer os cursos e
rios? A atitude dos povos das zonas mais ricas foi limitadora licenciaturas da Índia. Espera-se que, depressa, os outros
do crescimento da população interna, durante um longo possam seguir este exemplo.
período. Não apenas a China mas também o Japão, a Europa Por tudo isto, fica uma pergunta importante no ar: quem
e outros países ditos avançados. Isso levou a que muitos deles paga a formação dos que emigram, por vezes com cursos
fossem incapazes de continuar a gerar riqueza, por falta de universitários muito exigentes e dispendiosos? Parece que
mão de obra manual e intelectual no país, tendo de abrir a o país recetor faz um grande favor ao receber engenheiros,
mão à imigração, com boas qualificações profissionais. E esse dirigentes de empresas, empreendedores, investigadores e
fenómeno está a tornar-se mais agudo, pois são muitos os médicos da Índia. Se calhar, até certo ponto, faz. Mas falta ver
países abastados que necessitam de mão de obra qualificada. este assunto na outra perspetiva, a do país de acolhimento que
A Alemanha já fez saber que precisa de mais de meio milhão nada gastou para a formação desses imigrantes – e aqui tam-
de jovens engenheiros, todos os anos, para trabalhar na sua bém não podemos deixar de pensar em Portugal. Deveriam os
indústria. Além disso, criou um fundo para permitir aos países de acolhimento tentar compensar o país que investiu na
jovens irem estudar para lá. formação dos que emigram com um montante para ser usado
Talvez por esses constrangimentos, países ocupando em muitas bolsas de estudo, para estudantes bem preparados,
áreas imensas, com possibilidade de desenvolverem uma em centros de investigação, nas bibliotecas, etc.
rica agricultura e a exploração de recursos do subsolo, veem No estudo Êxodo de Competências e Mobilidade Acadé-
a imigração numa perspetiva totalmente diferente: como mica de Portugal para a Europa, abordava-se a emigração
condição para se afirmarem no contexto mundial, na geopo- de portugueses com habilitações superiores, que nos países
lítica, pois a extensão da terra, só por si, não confere estatuto recetores chegam a ganhar três vezes mais. Por lá, também
de importância, mas, sim, a sua população, com preparação conseguem empregos estáveis e progressão profissional,
intelectual e científica capaz de dominar e de explorar os ficando para trás a precariedade. O regresso a Portugal, con-
recursos ao seu dispor. trariamente à emigração de outros tempos, não é um objetivo.
Nesta linha, alguns Estados abriram-se muito à imigra- Ao Diário de Notícias, um dos investigadores responsáveis
ção, primeiro de pessoas com formação superior muito avan- pelo estudo afirmava, no final do ano passado: “Faz-se um
çada, descendo daí para outros tipos de formação que per- investimento na formação dos jovens, que depois não têm o
mitam cada pessoa integrar-se na economia local, gerando devido reconhecimento na sociedade portuguesa e acabam
riqueza com o saber e a experiência. Entre estes países muito por emigrar. Não há o devido retorno para o desenvolvimento
vastos incluem-se os EUA, o Brasil, o Canadá, a Austrália, a do País.”
Nova Zelândia. Portugal e Índia, sempre tão longe, sempre tão perto.

MAIO 2023 - N.º 327 49

 Índia
Índia em movimento
Pequenos retratos atuais de um país imenso
INDÚSTRIA
ESCASSEZ DE MADEIRA
AMEAÇA TACOS DE CRÍQUETE
A indústria do taco de críquete
sustenta cerca de 100 mil pessoas no
Norte da Índia. Mas a desflorestação
em massa deixou muitas empresas
na região sem matéria-prima.
Se alguma vez segurou um taco de
críquete nas suas mãos, é provável
que tenha sido feito de madeira de
salgueiro de Caxemira. “Durante
décadas, os salgueiros de Caxemira
levaram à construção de milhares
de tacos de críquete, utilizados por
jogadores de todo o mundo”, escreve
THE HINDU.
Mas a indústria dos tacos de críque-
te, com receitas estimadas em 34
milhões de euros, enfrenta um futuro
incerto, adverte o diário indiano de
língua inglesa. A causa é a escassez
50 MAIO 2023 - N.º 327
e sempre em transformação
de madeira de salgueiro, um material
essencial ao fabrico destes bastões.
“As razões para a escassez podem
ser atribuídas à desflorestação em
massa de salgueiros, há alguns anos,
perto do lago Wular, em Caxemira,
para reanimar a maior bacia de inun-
dação da região.” O lago Wular é um
dos maiores lagos de água doce da
Ásia. Localizado perto da cidade de
Srinagar, tem sofrido um grave as-
soreamento e falta de água durante
A INDÚSTRIA DE TACOS DE CRÍQUETE DE CAXEMIRA,
COM 100 ANOS, FORNECE UM MEIO DE SUBSISTÊNCIA
PARA MAIS DE 100 MIL PESSOAS, INCLUINDO
TRABALHADORES MIGRANTES DE OUTRAS PARTES DA ÍNDIA
décadas. A culpa foi da presença de
salgueiros.
A indústria de tacos de críquete de
Caxemira, com 100 anos, fornece um
meio de subsistência para mais de
100 mil pessoas, incluindo trabalha-
dores migrantes de outras partes da
Índia, explica a VOICE OF AMERICA. Cerca
de 400 fábricas estão localizadas ao
longo da rota que liga Caxemira, uma
região dos Himalaias no Norte da
Índia, ao resto do país.
A escassez de matéria-prima co-
meçou há cinco anos, segundo Fayaz
Ahmad Dar, presidente do sindicato
dos fabricantes de tacos de Caxemi-
ra. Dezenas de fábricas já fecharam
devido à falta de madeira. Os bas-
tões feitos de salgueiro de Caxemira
fornecem cerca de 70% do mercado
mundial, uma vez que são mais
acessíveis do que os fabricados de
salgueiro inglês, disse Fayaz Ahmad
Dar à VOICE OF AMERICA. “O preço de
um bastão de salgueiro inglês de
boa qualidade começa em $300 e
pode ir até $1,500, mas os produzidos
localmente com a mesma qualidade
começam em $50 e podem ir até
$500.” De acordo com a AL-JAZEERA,
o problema não afetará os jogadores
internacionais, que em grande parte
utilizam bastões ingleses importa-
dos, mas os jogadores regionais e os
fãs de críquete de todo o mundo, que
preferem estes tacos mais baratos.
FRAUDE

BATOTA NOS EXAMES DA FUNÇÃO PÚBLICA

Os empregos no governo são
altamente cobiçados na Índia,
onde milhões de jovens tentam,
todos os anos, entrar no mercado
de trabalho. A Imprensa relata
regularmente casos de fraude.
A batota, desporto nacional? “Na
Índia, onde os empregos estatais
são altamente cobiçados, não
são raros os casos de aspirantes
a candidatos que recorrem a
meios injustos”, adverte a BBC
num artigo publicado no seu
site. Muitos são os que tentam
alcançar os seus objetivos através
da fraude, “incluindo comprar os
questionários ou pagar a outra
pessoa para fazer o teste”.
A BBC revela um caso ocorrido
em dezembro de 2022. A polícia NA ÍNDIA, A COMPETIÇÃO POR EMPREGOS ESTATAIS
estatal do Rajastão temia que É FEROZ. MILHÕES DE JOVENS POR VEZES PREPARAM-SE
as perguntas para o exame de
recrutamento de professores
DURANTE ANOS PARA EXAMES COMPETITIVOS,
fossem alvo de fuga. No dia do NA ESPERANÇA DE CONSEGUIREM UM EMPREGO
exame, a polícia, obviamente bem
informada, seguiu um autocarro
QUE GARANTA SEGURANÇA
a caminho de um dos centros de
exame. “No interior, encontramos quatro professores competitivos na esperança de conseguir um emprego
da escola que respondiam a perguntas em nome de que garanta segurança, numa altura em que se assiste a
pelo menos 20 candidatos”, disse um oficial, que quis uma grave falta de oportunidades de trabalho.
permanecer anónimo, aos meios de comunicação No estado de Uttarakhand, para combater a fraude,
britânicos. Os candidatos alegadamente pagaram aos o chefe do executivo propôs a introdução da “lei mais
professores encarregados de os vigiar para fazerem o rigorosa do país”, relatou THE INDIAN EXPRESS. A lei proposta
teste por eles. prevê a prisão perpétua e uma multa de até 100 milhões
“Desde 2018, pelo menos 12 processos de recrutamento de rupias, ou mais de um milhão de euros. O anúncio
foram cancelados no estado [do Rajastão]” devido a surgiu quando eclodiram confrontos entre estudantes,
fraude. “Acho que não vou candidatar-me novamente que protestavam contra as burlas, e a polícia.
a este exame”, disse à BBC Santosh Kumawat, uma mãe Em Gujarat, na Índia Ocidental, THE TIMES OF INDIA relata
de família de 30 anos que veio do estado vizinho de que os próximos exames universitários serão realizados
Maharashtra para fazer o exame. “Na primeira vez, o sob o olhar atento das câmaras de segurança. “Em Bihar,
exame foi cancelado. Na segunda vez, a nossa folha de os estudantes por vezes não estão autorizados a usar
respostas foi abruptamente arrancada das nossas mãos sapatos e meias nos centros de exame, uma forma de os
a meio do tempo limite, porque os testes tinham sido impedir de fazer batota”, acrescenta a BBC.
divulgados.” Até o primeiro-ministro Narendra Modi falou sobre o
O problema não é exclusivo do Rajastão. O flagelo da assunto durante o seu discurso anual aos estudantes
batota nos exames para a Função Pública está a perturbar indianos. “Copiar pode ajudar alguém num exame
os processos de recrutamento em todo o país. Na Índia, ou dois, mas não a longo prazo. Nunca vão por esse
a competição por empregos estatais é feroz. Milhões de caminho. O trabalho árduo irá sempre ajudar a progredir
jovens por vezes preparam-se durante anos para exames na vida”, disse, segundo revela THE ECONOMIC TIMES.

MAIO 2023 - N.º 327 51

 Índia
CULTURA
MUSEU DE ARTE E FOTOGRAFIA
EM BANGALORE
O Museu de Arte e Fotografia (MAP)
abriu recentemente as suas portas no
Sul do país. Um espaço invulgar num
país onde os milhares de museus
existentes são na sua maioria
relíquias do Raj britânico.
Entrou em grande na cena artística
indiana. Inaugurado recentemente
em Bangalore, no Sul da Índia, o
MAP tem uma coleção formidável
de arte indiana, diz THE INDIAN EXPRESS.
“Equipado com espaço para artistas
e curadores através do seu centro
de pesquisa e conservação, alberga
também mais de cinco mil livros”,
continua o diário indiano.
A Índia já tem galerias de arte
privadas como a Sree Chitra Art
Gallery (em Thiruvananthapuram) e
o Museu de Arte Kiran Nadar (em
Nova Deli), e muitos mais museus
estão atualmente em preparação.
Para Abhishek Poddar, o filantropo
de 55 anos atrás do MAP, museus e
instituições de arte não competem
uns com os outros, especialmente
52 MAIO 2023 - N.º 327
porque os milhares de museus que
existem na Índia são na sua maioria
relíquias do Raj britânico, diz nas
colunas da plataforma especializada
ART BASEL, que classifica o MAP como
o primeiro grande museu privado em
Bangalore, a capital tecnológica da
Índia.
Neste contexto, “o objetivo tornou-
se: como se faz um museu sobre
cultura na Índia? Como tornar a arte
novamente relevante, em vez de ser
vista apenas como uma mais-valia?
Estas perguntas inspiraram a visão
do MAP: um museu que acolhe
todos e dá prioridade à educação e à
inclusão”, diz a Art Basel.
“Queremos tornar as nossas
exposições e conteúdos mais
“A ÍNDIA TEM ALGUMA DA ARTE MAIS SURPREENDENTE,
TANTO EM TERMOS DO QUE FOI FEITO NO PASSADO
COMO DO QUE ESTÁ A SER FEITO HOJE”, DIZ PODDAR,
QUE DOOU SETE MIL OBRAS DA SUA COLEÇÃO PRIVADA
PARA FUNDAR O MAP
Legenda
FOTO GETTYIMAGES
acessíveis, para que as pessoas não
se sintam intimidadas a entrar neste
espaço. Esperamos dar ao nosso
público novas formas de interação e
envolvimento com a arte, tornando-a
divertida e envolvente e, ao mesmo
tempo, educativa e relevante”,
nota Poddar, um dos maiores
colecionadores do país, citado pelo
THE INDIAN EXPRESS.
O objetivo do empresário é fomentar
o que ele chama “cultura de museu”
na Índia, nota a CNN. “O acesso a
grande parte do MAP é gratuito, e,
numa tarde por semana, a entrada
é livre para exposições pagas.” O
museu é particularmente dirigido aos
jovens, num país onde mais de um
quarto da população tem menos de
14 anos.
“A Índia tem alguma da arte mais
surpreendente, tanto em termos do
que foi feito no passado como do que
está a ser feito hoje”, diz Poddar, que
doou sete mil obras da sua coleção
privada para fundar o MAP. “Porque
não vamos a museus indianos,
quando, sempre que viajamos para o
estrangeiro, uma das primeiras coisas
que fazemos é ir a um museu?”,
pergunta.
As artes e a cultura estão apenas
a começar a enquadrar-se no que
Abhishek Poddar chama “hierarquia
de necessidades” da Índia. Mas, para
ele, é essencial investir no setor por
forma a se preservar o património
cultural e as tradições artísticas da
Índia.
POLUIÇÃO

NEGÓCIO DE PURIFICADORES
EM CRESCIMENTO
Com o Estado a não conseguir encontrar uma solução para
o flagelo da poluição do ar, a necessidade de purificadores
de ar está a crescer, e o seu elevado custo está a gerar novas
desigualdades, adverte a WIRED.
Os meses de inverno são sempre agitados para Revathy K.,
pneumologista de Bombaim (Mumbai), neste ano ainda mais
do que o habitual, revela a WIRED. Entre novembro e janeiro,
os médicos em Mumbai verificaram um aumento na tosse
crónica persistente e sintomas semelhantes aos da bronquite
aguda. “A poluição do ar na Índia é um desastre contínuo, que AVIAÇÃO
não mostra sinais de melhoria”, adverte a revista.
“Em novembro, uma súbita queda na temperatura do AIR INDIA FAZ HISTÓRIA
oceano abrandou os ventos que normalmente sopram o A companhia aérea indiana pela Casa Branca, enquanto
pó da construção, detritos e gases de escape para fora da assinou contratos com a o acordo com a Airbus foi
cidade”, explica a WIRED. A icónica ponte marítima Bandra- Boeing e com a Airbus para revelado pelo primeiro-mi-
Worli, que atravessa o mar Arábico e liga o centro da cidade a entrega de 470 aeronaves, nistro indiano Narendra
aos subúrbios do Norte, chegou mesmo a desaparecer por um recorde na História Modi e pelo Presidente
detrás de uma densa névoa de poluição. da aviação comercial. O francês Emmanuel Ma-
Um relatório de 2022 do Centre for Research on Energy fabricante de aeronaves, cron” numa conferência
and Clean Air descobriu que praticamente toda a população privatizado no ano passado de Imprensa. Um sinal da
indiana estava exposta à poluição do ar acima das diretrizes e propriedade do conglo- importância estratégica
estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde. Em 2019, merado Tata, aposta no destes contratos.
a poluição do ar matou cerca de 1,6 milhões de indianos. crescimento expressivo do Esta operação “faz parte da
“Como as tentativas de resolver o problema falham, um novo transporte aéreo no país. remodelação da Air India,
tipo de desigualdade está a instalar-se nas cidades indianas”, A Air India acaba de a transportadora privatiza-
continua a WIRED. Os indianos mais ricos estão a pagar para anunciar “o maior contrato da no ano passado”, nota
respirar livremente, criando um mercado para purificadores para companhias aéreas da FINANCIAL TIMES. Em 2022, a
de ar – já em expansão – que deverá crescer 35%, atingindo História”, de acordo com Tata Sons tinha “comprado
cerca de 5 555 milhões de euros até 2027. Num país já THE WALL STREET JOURNAL. A a Air India ao governo”,
muito desigual, respirar ar puro está a tornar-se um luxo que companhia indiana está recuperando a empresa que
apenas uma fração da população pode pagar. a comprar 470 aviões da o conglomerado familiar
“Estamos a normalizar um mundo que não valoriza a Airbus e da Boeing, 250 ao tinha vendido quando foi
Natureza e os direitos naturais: necessidades básicas como fabricante europeu e 220 ao nacionalizada em 1953. “A
água limpa, ar limpo e não poluído, e espaço para andar a norte-americano. Tata prometeu modernizar
pé fazem parte das políticas de planeamento urbano”, diz Esta encomenda ex- a outrora glamorosa trans-
Suryakant Waghmore, professor de Sociologia no Instituto traordinária, avaliada por portadora”, explica o diário
Indiano de Tecnologia em Mumbai, citado pela WIRED. Além especialistas em 85 biliões de negócios britânico.
disso, ele acredita que as pessoas mais ricas podem respirar de dólares (€79 biliões), O diretor comercial da
melhor o ar graças aos purificadores, enquanto o resto da destina-se “a fornecer mais Airbus, Christian Scherer,
população é deixada à sua sorte. aviões para servir a Índia, disse que era “a primeira
Os purificadores mais baratos custam cerca de seis mil que se espera vir a tornar- vez que o A350 sobrevoava
rupias indianas (cerca de 68 euros), enquanto 60% da -se o mercado de aviação a Índia”, um país que está
população da Índia vive abaixo da linha média de pobreza, de mais rápido crescimento “à beira de uma revolução
segundo o Banco Mundial, de 3,10 dólares (€2,88) por dia. do mundo”, salienta o diário do transporte aéreo
norte-americano. internacional”. Por sua
O contrato com a Boeing, vez, a Boeing espera que
no valor de 45,9 mil mi- a Índia se torne “o terceiro
lhões de dólares (€43 mil maior mercado de aviação,
milhões) de acordo com a atrás dos Estados Unidos
lista de preços do fabrican- da América e da China”,
te, foi “anunciado primeiro dentro de dez anos.

MAIO 2023 - N.º 327 53

 Capitalismo
financeiro entra
numa nova era
O CAOS QUE SE REGISTOU EM MARÇO, ENVOLVENDO O SILICON
VALLEY BANK E O CREDIT SUISSE, MOSTRA COMO OS BANCOS SE
TORNARAM ESTRATEGICAMENTE IMPORTANTES NA NOVA ORDEM
GEOPOLÍTICA. ABANDONAM-SE AS IDEIAS DE ADAM SMITH
E REGRESSAM AS DE JEAN-BAPTISTE COLBERT

Bloomberg Opinion (excertos)

Nova Iorque
 Q
Que sítio melhor para refletir sobre o caos
bancário da primavera do que este lugar
discreto no bairro financeiro de Edimburgo
(Escócia) – não muito longe de onde viveu
[no século XVIII] o teórico do liberalis-
mo económico Adam Smith? A Library of
Mistakes (Biblioteca dos Erros) é o museu
dos desastres capitalistas: há uma camisa
autografada de Nick Leeson, o corretor vilão
que levou à falência o Barings Bank [insti-
tuição britânica, em 1995], e há também um
retrato do lendário vigarista Charles Ponzi.
Esta biblioteca tem como lema um di-
tado de James Grant [fundador da revista
de mercados financeiros Grant’s Interest
Rate Observer]: “O progresso é cumulati-
vo na ciência e na engenharia, mas cíclico
nas finanças.” Ficamos com a impressão
de que a História vacila ao observarmos
o que aconteceu em março deste ano: as
autoridades reguladoras criaram uma nova
crise ao tentar combater a anterior; os in-
trépidos financeiros dos mercados livres
descobriram repentinamente as virtudes
da intervenção pública; os defensores da
luta de classes disseram que o capitalismo
é injusto e/ou está morto.
E, uma vez mais, temos de enfrentar
uma realidade: as regras das finanças vão
mudar. O atual Federal Reserve System
[Fed, banco central dos Estados Unidos da
América] foi criado depois de John Pier-
pont Morgan ter necessitado de organizar
o resgate de emergência da economia pelo
setor privado, em 1907, trancando os co-
legas banqueiros na sua casa, no número
219 da Madison Avenue, em Manhattan,
Nova Iorque.
AUTORES
F John Micklethwait e
Adrian Wooldridge
ILUSTRAÇÃO DE BALABAN, LUXEMBURGO
A Lei Glass-Steagall, que determinou a
separação dos produtos financeiros entre
bancos comerciais, companhias de seguros
e bancos de investimento, entrou em vigor
em 1933, sob a liderança do Presidente,
Franklin Roosevelt, depois da queda da
Bolsa de Valores de Wall Street [em 1929,
que ficou conhecida como “Quinta-Feira
Negra”]. Em 1999, as restrições bancárias
foram revogadas por Bill Clinton, por-
que encorajavam, alegadamente, uma
inovação irresponsável noutros ramos
do setor financeiro. A mesma separação
seria parcialmente restaurada pela Lei
Dodd-Frank, que se seguiu à falência do
banco Lehman Brothers, em 2008.
Desta vez, a restruturação das finanças
parece assentar menos num conjunto de
regras e mais numa mudança de menta-
lidade política: a aceitação de uma forma
mercantil de financiamento que Adam
Smith teria odiado, mas que está em per-
feita sintonia com as políticas estatistas
da atual geopolítica.
Erros vários
Poderemos estar a deslizar para uma nova
forma de capitalismo financeiro. Isso não
irá acontecer da noite para o dia. Den-
tro dos próprios bancos, neste momento,
pensa-se mais na sobrevivência do que
em ideias revolucionárias. Além disso,
para os patrões das finanças, mais do que
para a classe política, a nova realidade
pode ser resumida a uma expressão: o
regresso aos fundamentos.
Se a crise de 2008-2009 [que se ficou
a dever a uma bolha imobiliária nos EUA]
DATA TRADUTORA
22.03.2023 Maria Alves
 Dinheiro
assentou na qualidade dos ativos (todas
aquelas hipotecas duvidosas e pilhas ver-
tiginosas de produtos derivados apoiados
por tão poucos capitais), desta vez, o foco
está na liquidez.
Em teoria, o Silicon Valley Bank (SVB),
que foi encerrado a 10 de março, e o Credit
Suisse, resgatado pelo grupo UBS [no dia
9, por mais de três mil milhões de euros,
para evitar uma bancarrota], tinham um
património relativamente elevado para
cobrir as suas eventuais dívidas. Mas não
tinham dinheiro suficiente para respon-
der a longas filas de depositantes que, de
repente, iriam exigir o seu dinheiro de
volta. Se é certo que tudo aconteceu nos
ecrãs dos computadores, essas corridas
dos clientes seriam semelhantes às da
época das filas de espera junto aos bal-
cões dos bancos.
Pôr toda a culpa numa súbita falta de
liquidez isenta o SVB e o Credit Suisse de
qualquer responsabilidade. Mas os depo-
sitantes só querem apressar a recupera-
ção do seu dinheiro e não confiam nos
banqueiros. E, nesta matéria, o SVB e o
Credit Suisse erraram em vários aspetos.
No início das nossas carreiras no jor-
nalismo, o Credit Suisse era sinónimo de
uma extraordinária integridade bancária.
Quando o presidente (era sempre um ho-
mem) do principal banco suíço discursava
num congresso financeiro, ele limpava a
sala. Mas a virtude cardeal do tédio foi-se
perdendo. Desde o início do século XXI, o
Credit Suisse foi prejudicado por uma série
de casos embaraçosos, apresentados pela
sua administração como erros isolados
e não como um problema de cultura de
risco sistémico. O seu nome continuou
a aparecer, escândalo após escândalo, de
Moçambique à Rússia. Pouco a pouco, a
amplitude dos levantamentos já não se
assemelhava a um fio de água, mas a um
rio torrencial.
No caso do SVB, a implosão foi mais
brutal e o erro humano, ainda mais
grosseiro. Todos os tipos espertos deste
banco californiano pareciam dedicar-se
a empréstimos de luxo para capitalistas
de risco. Comprar obrigações do tesouro
de longo prazo e taxa fixa quando se tem
passivos de curto prazo e taxa variável é
uma assimetria gritante. Com a subida
das taxas de juro, o valor da “cautelosa”
carteira de títulos do SVB derreteu – e o
banco viu-se à beira do abismo.
O que iriam fazer os políticos e re-
guladores? Apontaram-se vários bodes
expiatórios. No caso do SVB, foi o wokismo
[um movimento de consciência social em
que ideias inaceitáveis, como o racismo,
são consideradas imorais]. Os conserva-
56 MAIO 2023 - N.º 327
dores criticaram o banco de São Francisco
por ter estado sete meses sem um diretor
de gestão de risco, mas ter encontrado
tempo para divulgar os seus resultados em
questões como as comunidades LGBTQI
ou o ambiente, designadamente a pro-
messa de investir cinco mil milhões de
dólares [mais de 4 500 milhões de euros]
na sustentabilidade até 2027. Sem dúvi-
da que os seus banqueiros poderiam ter
encontrado alguns minutos para vigiar
o mercado obrigacionista.
Os principais alvos são, porém, os
bancos centrais, acusados de manter as
taxas de juro baixas por muito tempo, para
depois as aumentar depressa demais. Sim,
eles mantiveram as taxas muito baixas
durante muito tempo. O dinheiro barato
criou bolhas e encorajou os bancos a correr
DESTA VEZ, A RESTRUTURAÇÃO DAS FINANÇAS PARECE
ASSENTAR MENOS NUM CONJUNTO DE REGRAS E MAIS
NUMA MUDANÇA DE MENTALIDADE POLÍTICA: A ACEITAÇÃO
DE UMA FORMA MERCANTIL DE FINANCIAMENTO QUE ADAM
SMITH TERIA ODIADO, MAS QUE ESTÁ EM PERFEITA SINTONIA
COM AS POLÍTICAS ESTATISTAS DA ATUAL GEOPOLÍTICA
atrás de rendimentos questionáveis. E,
sim, se o Fed não se tivesse apressado a
aumentar as taxas tão rapidamente, os
imbecis do SVB continuariam a colecionar
troféus bancários e o Credit Suisse estaria
a planear outra remodelação. A missão do
Fed é, no entanto, proteger a economia
como um todo, isto é, controlar a inflação
e não manter as taxas baixas para salvar
alguns bancos mal geridos.
“Too big to fail”
A verdadeira questão é, mais uma vez,
saber se existe uma maneira melhor de
administrar estes bancos. Já ressurgiu uma
velha querela entre os que defendem uma
proteção ainda maior para os depositantes
e os que querem acabar com o risco moral
criado pela impunidade dos banqueiros
quando estes cometem erros.
Na nossa opinião, haverá novas leis,
mas não na mesma escala das que surgi-
ram depois da crise de 2008, porque os
bancos têm hoje muito mais capital. A
evolução mais interessante poderia ser
a redefinição do que é um banco. Des-
de 2008 que os reguladores nos Estados
Unidos da América têm optado por se
concentrar nos inventários patrimoniais
das grandes instituições de importância
sistémica. Surpreendentemente, eles li-
mitaram os seus stress-tests [“testes de
esforço”, para avaliar o capital interno
e a liquidez] a bancos com mais de 250
mil milhões de dólares [cerca de 230 mil
milhões de euros] de ativos.
Assim, bancos como SVB (com um ca-
pital de pouco mais de 200 mil milhões
de dólares/183 mil milhões de euros) não
foram obrigados a respeitar o mesmo ín-
dice de liquidez, graças a uma novidade
que entrou em vigor durante a presidência
de Donald Trump, sob pressão de vários
CEO, incluindo o do SVB. E descobrimos
agora que o SVB era também too big to
fail [demasiado grande para falir].
O principal ajuste terá de ser uma mu-
dança de mentalidade. Provavelmente,
as recentes decisões dos reguladores não
teriam agradado a Adam Smith, mas te-
riam feito sorrir o francês Jean-Baptiste
Colbert, ministro das Finanças do rei Luís
XIV e pai do intervencionismo. Está de
regresso a ideia de que as finanças são um
braço do Estado.
Esperava-se isso há algum tempo.
Os mercados financeiros podem alegar
que são livres e internacionais, mas são
limitados por regulamentações nacio-
nais: basta olhar para o número muito
pequeno de aquisições transfronteiriças.
E há alguma novidade em relação aos
resgates nacionais? Mervyn King, go-
vernador do Banco de Inglaterra durante
a crise de 2008, gostava de destacar que
as empresas capitalistas têm uma vida
internacional e uma morte nacional, e
contam sempre com as autoridades do
país onde têm a sua sede quando as coisas
dão para o torto.
Só que a musiquinha dos planos de
resgate mudou muito. Em 2008, as três
maiores economias do mundo – Estados
Unidos da América, União Europeia e Chi-
na – atuaram em conjunto. A aquisição
de bancos foi entendida como um desvio
temporário antes do estabelecimento de
um sistema financeiro global liberal. Hoje,
a economia mundial está a desintegrar-se
em vários blocos regionais concorrentes.
É o regresso do mercantilismo. O SVB não
 Rendimento?
“Vai ficar tudo bem!”
representava uma ameaça “sistémica” às
finanças dos Estados Unidos da América,
mas o seu colapso teria desferido um golpe
no setor das novas tecnologias norte-a-
mericano, reduto da competitividade
do país (especialmente contra a China).
Se o banco tivesse sido criado no estado
do Oklahoma, teria sem dúvida atraído
menos atenção. A decisão de garantir os
ativos foi mais uma questão de política
industrial do que de prudência financeira.
Entretanto, a decisão da Suíça de
forçar o grupo UBS a assumir o controlo
do Credit Suisse equivale a admitir que o
setor bancário é uma indústria estratégica.
Em qualquer contexto normal ligado à
livre concorrência e à defesa do consu-
midor, deixar que o maior banco de um
país compre o seu principal concorrente
não faria muito sentido. Mas se, acima
de tudo, se deseja que as finanças suíças
ILUSTRAÇÃO DE CÔTÉ, PARA LE SOLEIL, CANADÁ
permaneçam suíças, confiar um terço do
setor bancário a um único investidor faz
todo o sentido.
Convém lembrar que vários estrangei-
ros, designadamente catarenses e sauditas,
tinham investido quantias prodigiosas no
Credit Suisse [depois de este ter perdido
5,5 milhões de dólares/cinco mil milhões
de euros com o colapso da Archegos Ca-
pital Management; em janeiro deste ano,
o Qatar Investment Authority – fundo
soberano do Qatar – aumentara a sua
participação de 5,6% para 6,87%, tor-
nando-se o segundo maior acionista do
gigante suíço, depois do Banco Nacional
saudita.]
Fusões mais prováveis
Tudo isto parece o início de uma mudança
colbertista nas finanças. Veja-se o caso da
União Europeia. Para os líderes de todo
o continente, as finanças sempre foram
uma terrível provocação. Por um lado,
devido ao seu potencial anárquico; por
outro, por serem totalmente dominadas
pelos Estados Unidos da América. Os
cinco bancos ocidentais mais poderosos
são norte-americanos – JPMorgan Chase,
Goldman Sachs, Morgan Stanley, Bank of
America e Citigroup.
Esta situação, relativamente recente
(em 1980, apenas dois dos dez maiores
bancos mundiais tinham sede nos EUA),
sempre incomodou os descendentes de
Colbert em Paris, mas hoje outros políticos
veem-na com melhores olhos.
A Alemanha até pode ser o motor
industrial da Europa, mas falta-lhe in-
fluência financeira. Atualmente, o ban-
co de maior sucesso na UE é francês (o
BNP Paribas), estando os seus principais
concorrentes virados para o continente
americano (o espanhol Santander) ou pre-
sos do outro lado do Brexit, em Londres
(o HSBC e o Barclays). A chegada de um
novo campeão suíço deverá, mais uma
MAIO 2023 - N.º 327 57
 Dinheiro
vez, levar Berlim a considerar uma fu-
são do Deutsche Bank (que rivaliza com o
Credit Suisse em vários escândalos) com
o Commerzbank.
Uma outra solução, para a Alemanha,
é aliar-se aos seus vizinhos e gigantes eu-
ropeus. Porque não uma fusão do Com-
merzbank com o italiano UniCredit? É
difícil manter uma união monetária sem
uma união fiscal ou bancária. Cada di-
retor de um banco na UE tem uma lista
de possíveis candidatos a fusões noutros
países europeus, caso as regras mudem
e as alianças transfronteiriças se tornem
possíveis. Depois do que se verificou em
março, estas fusões tornaram-se ainda
mais prováveis.
Os banqueiros norte-americanos irão,
inquestionavelmente, encorajar a conso-
lidação europeia em nome do “antes tarde
do que nunca”. Mas, nos Estados Unidos
da América, o mercado bancário é, em
muitos aspetos, ainda mais instável. E os
EMBORA OS BANCOS “DEMASIADO GRANDES PARA FALIR”
RECEBAM TODA A ATENÇÃO, OS EUA CONTINUAM A TER
MUITOS BANCOS PEQUENOS DEMAIS PARA FUNCIONAREM
BEM. O PAÍS TEM QUATRO MIL BANCOS, A MAIORIA PEQUENAS
INSTITUIÇÕES LOCAIS, POR VEZES PROTEGIDAS POR LÓBIS
POLÍTICOS LOCAIS E EXCESSIVAMENTE DEPENDENTES
DE EMPRESAS LOCAIS. NA NOVA ERA DO CAPITALISMO
FINANCEIRO DOMÉSTICO, ISSO PARECE MAIS UMA FRAQUEZA
DO QUE UMA FORÇA
consumidores estão em situações piores
em termos de serviços básicos, como co-
missões cobradas sobre cartões de débito
e contas à ordem.
Embora os bancos “demasiado grandes
para falir” recebam toda a atenção, os
Estados Unidos da América continuam a
ter muitos bancos pequenos demais para
funcionarem bem. O país tem quatro mil
bancos, a maioria pequenas instituições
locais, por vezes protegidas por lóbis polí-
ticos locais e excessivamente dependentes
de empresas locais. Na nova era do capi-
talismo financeiro doméstico, isso parece
mais uma fraqueza do que uma força.
Viragem protecionista
Nos Estados Unidos da América, faz sen-
tido levar as finanças para uma nova era
de mercantilismo. Se, tal como a Admi-
nistração de Joe Biden, você já estiver a
subornar as empresas de semicondutores
para entrarem em território norte-ame-
58 MAIO 2023 - N.º 327
ricano e a persuadir os consumidores a
comprar produtos fabricados nos EUA,
independentemente da sua qualidade,
então aceita-se que o financiamento seja
concebido como um pilar da economia.
Se esses microchips são um recurso vital
para a nação, também o são os credores
dos seus fabricantes.
A viragem protecionista dos Estados
Unidos da América deu a outros países
a oportunidade de seguirem o exemplo.
As capitais europeias estão furiosas com
a Lei da Redução da Inflação aprovada
por Biden – e têm todo o tipo de ideias
para erigir também a sua própria forta-
leza. [Esta lei, que entrou em vigor em
agosto de 2022, prevê subsidiar direta-
mente empresas norte-americanas com
o equivalente a 350 mil milhões de euros
se produzirem localmente tecnologias
limpas, o que coloca as companhias da
UE em desvantagem – algumas poderão
abandonar o continente.]
Apesar da sua reputação de cosmopo-
litas desenraizados, os bancos mundiais
ficarão muito contentes por seguir o cami-
nho do mercantilismo. Como diria Adam
Smith, os banqueiros já eram oportunistas
muito antes de serem cosmopolitas. Se
a classe política ocidental quer gigantes
nacionais, então os banqueiros financiá-
-los-ão de bom grado. Se a classe políti-
ca quer substituir o comércio livre pelo
mercantilismo, irá oferecer atalhos para
lá chegar. E se lhes pedirem para comprar
um dos seus concorrentes, não verão nisso
necessariamente um inconveniente.
Deste ponto de vista, é bem possível
que o UBS acabe por ser visto como aquele
que deu o primeiro passo. Agarrou o seu
principal rival por um vigésimo do que
valia há dez anos; conseguiu imensas ga-
rantias do Estado, incluindo uma garantia
de financiamento de 100 mil milhões de
dólares [mais de 91 mil milhões de eu-
ros]. Nos Estados Unidos da América,
note-se que [o investidor e filantropo]
Warren Buffett, rei dos bons negócios, está
novamente a oferecer os seus serviços ao
governo norte-americano para o ajudar
a organizar o setor financeiro.
Hoje, assistimos ao nascimento de uma
nova forma de capitalismo financeiro – os
bancos estão mais ligados aos governos,
que escolhem os vencedores e tentam
apoiar as indústrias do futuro. Alguns
terão muito êxito, mas, ao olharmos para
os volumes guardados na Biblioteca dos
Erros, vemos que o colbertismo também
teve as suas falhas. Basta observar os limi-
tes do sistema bancário chinês, dirigido
pelo Estado.
ILUSTRAÇÃO GETTYIMAGES
 Economia
INDÚSTRIA
Não, o papel ainda
não está morto
Na era digital, a indústria do papel parecia não ter futuro.
Mas está a recuperar o seu dinamismo graças ao cartão
necessário para o comércio eletrónico
El Confidencial
Madrid
O mês de janeiro marcou um
O ponto de viragem histórico nas
bancas de jornais espanholas.
Pela primeira vez em 45 anos,
foi impossível encontrar uma nova edição
do semanário satírico El Jueves. “A revista
que sai às quartas-feiras” [embora se chame
El Jueves] tinha deixado de ser feita: os seus
editores anunciaram que se tornaria uma
revista mensal. A razão? Algo tão simples
como o preço do papel. O custo deste ma-
terial e dos seus derivados aumentou tanto
que acabou por asfixiar alguns jornais.
Desde a pandemia, e ainda mais desde
o início da guerra na Ucrânia, tudo o que
está relacionado com o setor do papel “en-
louqueceu”, de acordo com várias fontes
consultadas pelo El Confidencial. Numa
economia globalizada que depende de tantos
atores, a cadeia de abastecimento foi afeta-
da, em primeiro lugar, pelo encerramento
de empresas e pelos confinamentos. Mais
recentemente, a subida dos preços da ener-
gia colocou o último prego no caixão. Um
ano após o início do conflito, os especia-
listas estão divididos: alguns preveem um
regresso à normalidade, outros anunciam
tempos difíceis.
“A guerra tem sido devastadora para o
setor”, diz Melchor Torres, diretor da Atlan-
tic Distribution, uma empresa grossista de
papel sediada em Tenerife [nas Canárias].
“Na Europa, depois de todas as complicações
associadas à pandemia, voltámos a virar-nos
para os produtores locais, apesar de estes
serem um pouco mais caros. Mas o aumento
dos preços da energia foi o golpe final.”
Nos seus 30 anos de carreira, Melchor
Torres nunca tinha vivido uma situação
como esta. “Além disso, é um mercado onde
há cada vez menos procura, por causa da
tecnologia digital. E, nos últimos meses,
AUTOR DATA
F Guillermo Cid 08.02.2023
60 MAIO 2023 - N.º 327
muitas empresas tiveram de comprar pa-
pel a preços variáveis, o que nunca tinha
acontecido antes. Compramos o papel, e
quando ele chega, o preço já subiu três ve-
zes. É impossível fazer de outra forma.” A
sua empresa vendia uma tonelada de papel
por 900 euros; agora, ultrapassa os dois
mil euros.
Até há alguns anos, anunciava-se a
morte do papel. A mudança para o digital
estava em curso, e tudo indicava que seria
menos usado. A acreditar nos números,
isso é parcialmente verdade. Mas as últimas
convulsões mostraram que o mercado está
longe de estar morto. Se juntarmos a isto
a concentração da produção, começa-se
a compreender o que estamos a testemu-
nhar hoje.
Enquanto algumas empresas estão
a afundar-se ou a resistir, outras estão a
sair-se bem. Por exemplo, a Ence, uma
empresa galega de papel, já vendeu toda
a sua produção para o ano de 2023. A sua
fábrica de Pontevedra foi ameaçada de
encerramento, mas, na sequência de uma
decisão judicial, conseguiu permanecer
aberta. Quanto à empresa norte-ameri-
cana International Paper, o maior fabricante
de papel do mundo, fundada há 125 anos,
alcançou um dos melhores resultados [no
quarto trimestre] entre as empresas do
índice bolsista S&P 500.
O mais curioso é que esta não é a única
multinacional a obter lucros recorde. Vá-
rias empresas suecas e finlandesas do setor
também registaram grandes lucros com a
subida dos preços da energia, sem contar
que o impacto da Covid-19 foi menor do
que o esperado.
“É importante compreender que a in-
dústria do papel opera num mercado global
e requer matérias-primas e processos de
TRADUTORA
Helena Araújo
conversão complexos. Além disso, consome
muitos recursos, ocupa o quinto lugar em
termos de consumo de energia”, diz Paco
Lorente, professor na Esic Business School
[em Espanha]. “É compreensível que esteja
a passar por momentos de crise, depois de
tudo o que aconteceu.”
“Além disso, a mudança para o digital
deveria reduzir drasticamente a dimensão
do setor, e isso tem sido parcialmente o
caso, com muitas fábricas a fechar. Mas
as vendas de cartão dispararam graças ao
aumento do comércio eletrónico. Agora, é
usado para tudo, o que apanhou a indústria
um pouco desprevenida.”
Para Paco Lorente, o papel está preso
numa espiral que é difícil de estabilizar.
“Os custos de fabrico estão a subir. Por
isso, o preço à saída da fábrica [antes do
transporte] sobe”, assinala. Por outro lado,
“como há menos produtores, a procura,
que aumentou com a pandemia, está a tor-
nar-se mais concentrada. O elo seguinte da
cadeia também tem custos mais elevados,
ao qual se junta o preço mais elevado da
matéria-prima, e tudo isto se repercute em
cada etapa, até ao utilizador final. À medida
que se avança na cadeia, o ator seguinte
pode não ter dinheiro suficiente para fazer
face a esses aumentos, pelo que reduz o seu
consumo, o que, por sua vez, afeta toda a
cadeia”. E acrescenta: “Penso que, agora,
a indústria vai enfrentar este problema.”
Entre os que começam a sentir o impac-
to do aumento, além do El Jueves, citemos
os jornais da Estónia, que não são publicados
em papel [desde 16 de janeiro], e as tipo-
grafias que produzem notas, como a nova
fábrica Imbisa (a empresa responsável pela
impressão em Espanha), que permanecerá
fechada devido à falta de fornecimento.
Junta-se ainda a administração [espanhola],
com a aproximação das eleições [previstas
para maio e dezembro]: os primeiros con-
tratos de compra e impressão de boletins
de voto já estão a revelar o aumento dos
preços.
Excesso de produção
A Ásia está no centro do sistema. Para o
percebermos, é preciso saber como fun-
ciona. Tudo começa com a celulose, que é
produzida em todo o mundo com a ajuda de
toros de mais baixa qualidade, aqueles que
não são utilizados na indústria da madeira.
Os principais centros de produção de celu-
lose encontram-se na China, nos Estados
Unidos da América, no Brasil e na Rússia.
Neste último país, muitas empresas ociden-
tais tiveram de vender as suas fábricas por
causa da guerra. A Europa desempenha um
papel importante, com grandes empresas
na Finlândia ou na Suécia, mas, como ex-
plica Melchor Torres, o mercado asiático
 é a chave para o ajustamento dos preços,
devido aos volumes que pode mobilizar.
“Desde a pandemia, a produção asiática
dificilmente deixou a região. E o que foi ex-
portado foi muito caro, por causa do preço
do frete, que, no nosso setor, é primordial.”
Mas atualmente as exportações aumen-
taram. Com as tarifas de frete em queda
significativa, empresas como a Atlantic
Distribution estão a beneficiar de tréguas,
mesmo confrontadas com outra situação
complicada. “Produtos muito mais compe-
titivos começam a ser importados da Ásia ou
do Brasil, o que vai fazer baixar o preço do
papel”, explica Melchor Torres. “Contudo,
isto também pode ter um impacto negativo
no nosso sistema.”
Tanto na fase de distribuição como nas
seguintes, há muitas empresas que se abas-
teceram o melhor que puderam em 2022, a
preços muito elevados, e que estão agora a
enfrentar novas dificuldades: se o preço do
papel cair drasticamente, terão de vender
os seus stocks com prejuízo, assumindo
que conseguem escoá-los.
Outros setores que ultrapassaram a
crise da Covid-19 enfrentam os mesmos
problemas. Por exemplo, o transporte de
mercadorias e a alta tecnologia tinham tido
um bom desempenho, mas hoje estão numa
péssima fase. No espaço de alguns meses,
depois de terem gerado grandes lucros e
ILUSTRAÇÃO DE CÔTÉ, PARA “LE SOLEIL”, CANADÁ
feito prever um futuro promissor, entraram
num período em que a economia está a meia
haste e o excesso de produção é ameaçador,
o que pode forçá-los a despedir pessoal. Os
meios de comunicação norte-americanos
como a Bloomberg alertam para a queda no
consumo de cartão, no país, e as possíveis
consequências para a economia em geral.
Em Espanha, a empresa Torraspapel
começou a recorrer ao trabalho a tempo
parcial em muitas das suas fábricas, para
compensar a descida registada na procura.
“A ideia é vender todo o stock e esperar
que o mercado se estabilize”, diz Melchor
Torres. “Para fazer isso, temos de colocar
um bom número de empregados a trabalhar
a tempo reduzido, reduzir a produção, e,
quando a situação regressar à normalidade,
colocá-los de volta ao trabalho.”
Cartão tem futuro
Apesar do ajustamento atual, Melchor
Torres e Paco Lorente estão convencidos
de que o cartão tem um belo futuro. A in-
dústria do papel prepara-se para aumentar
significativamente a produção deste ma-
terial, que se vem tornando cada vez mais
presente no nosso quotidiano. “Muitas
fábricas europeias já concentraram quase
toda a sua produção neste tipo de produto
e estão a afastar-se do papel gráfico”, diz
Melchor Torres.
Esta é também a opinião de Manuel
Fernández, CEO da Defesa, uma empresa
espanhola especializada no tratamento de
resíduos. “Estamos a assistir a uma queda
significativa na recolha de certas qualidades
de papel (branco e papel gráfico) e a um
ligeiro aumento do cartão e seus derivados”,
explica. Naturalmente, tudo depende do
comércio, principalmente do eletrónico:
“As compras online levaram a um aumento
na recolha de cartão, principalmente atra-
vés da triagem de resíduos municipais. Se
as compras pela internet aumentarem, a
recolha irá aumentar.”
Apesar deste desenvolvimento no setor,
há outro problema no horizonte, particu-
larmente no Canadá. A Canfor, uma das
principais empresas de papel da Colúmbia
Britânica, reduziu a produção numa das
suas fábricas, provocando um grande de-
bate nacional.
A razão para o encerramento? A empresa
fala de uma falta de matéria-prima para a
celulose. Mas, segundo os especialistas, a
explicação é ainda mais simples: a região
encontra-se sem florestas. Esta desflores-
tação vem juntar-se às perdas de empregos
das últimas décadas. Neste contexto, a pro-
víncia e o país estão a debater o que fazer
no futuro. A transição do plástico para o
cartão parecia resolver um problema, mas
acabou por criar outros.
MAIO 2023 - N.º 327 61
 Ciência

Na próxima década, assisti-

N remos a um renascimento da
exploração lunar. O programa
inclui o envio de dezenas de
missões e a construção de bases perma-
nentes na Lua. Os desafios a enfrentar serão
muitos. Entre eles está uma pergunta que
pode parecer trivial, mas a que os me-
trologistas estão a tentar responder: que
horas são na Lua?
“Estamos apenas a começar a defi-
ni-la”, adverte a engenheira aeroespa-
cial Cheryl Gramling, responsável pelos
sistemas de navegação, posicionamento
e cronometragem no Centro de Voo Es-
pacial Goddard da NASA, em Greenbelt,
Maryland.
Atualmente, a Lua não tem um sis-
tema horário específico. Cada missão
usa a sua própria medição, baseada no
Tempo Universal Coordenado (abrevia-
do internacionalmente como UTC), que
é uma referência na Terra para acertar
os relógios. Mas este método é relativa-
mente impreciso, e as naves espaciais que
exploram a Lua não estão sincronizadas
umas com as outras, obedecendo antes ao
tempo dos seus patrocinadores. Isto não é
um problema enquanto a Lua receber um
punhado de missões independentes, mas
pode vir a sê-lo quando várias tripulações
quiserem trabalhar em conjunto. As agên-
cias espaciais também vão querer seguir os
movimentos dos seus veículos, utilizando
sistemas de navegação por satélite, que
se baseiam em sinais de tempo precisos.
A definição do tempo lunar universal
está longe de ser óbvia. Os relógios não
correm à mesma velocidade na Terra e na
Lua, porque os dois astros têm campos
gravitacionais diferentes. Um tempo lunar
oficial terá, portanto, de ser baseado num
sistema sincronizado com o UTC ou ser
independente do tempo da Terra.
ESPAÇO Representantes de agências espaciais e
universidades de todo o mundo reuniram-

Que horas são -se, em novembro, no Centro Europeu de

Investigação e Tecnologia Espacial (Estec)
da Agência Espacial Europeia (ESA) em

na Lua? Noordwijk, nos Países Baixos, para fazer

recomendações sobre o tempo lunar.
Patrizia Tavella, diretora do Departa-
Com a multiplicação de missões para explorar mento do Tempo no Gabinete Internacio-
o nosso satélite natural durante os próximos dez anos, nal de Pesos e Medidas em Sèvres, França,
definir um sistema de referência do tempo lunar diz que terá de ser tomada uma decisão em
está a tornar-se essencial breve. Se uma hora lunar oficial não for
definida, as agências espaciais e empresas
Nature privadas implementarão, cada uma, a sua
Londres própria solução. E insiste: “É por isso que
estamos agora a chamar a atenção para
AUTORA DATA TRADUTORA esta questão e para a necessidade de tra-
F Elizabeth 02.02.2023 Helena Araújo balharmos em conjunto, de modo a tomar
Gibney uma decisão comum.”

62 MAIO 2023 - N.º 327 ILUSTRAÇÃO DE VASQUEZ, PARA EL PAÍS, MADRID, ESPANHA
 Trabalho
...
A duração de um
dia terrestre será
importante para os
astronautas por causa
do ritmo biológico
humano, que exige que
eles durmam um certo
número de horas num
ciclo de 24 horas
Neste último cenário, os dias lunares
podem mesmo ser definidos de forma di-
ferente dos da Terra, tendo em conta que
um dia lunar [correspondente à duração
da rotação no seu eixo] dura, em média,
29,5 dias terrestres. A duração de um dia
terrestre ainda será importante para os
astronautas por causa do ritmo biológi-
co humano, que exige que eles durmam
um certo número de horas num ciclo de
24 horas. Mas os metrologistas terão de
chegar a acordo sobre a definição desta
hora lunar.
E terão igualmente de decidir onde se-
rão colocados os relógios mestres. Tal como
na Terra, a altitude irá afetar a velocidade
a que eles rodam. Podem ser colocados em
órbita ou no chão, acrescenta Jörg Hahn:
“Começámos agora a discutir isto com os
nossos colegas da NASA.”
As agências espaciais estão também
a trabalhar noutros sistemas de refe-
rência comuns necessários – como ma-
pas da Lua e sistemas de coordenadas a
serem utilizados para a navegação – no
Interagency Operations Advisory Group
[Grupo Consultivo de Operações Intera-
gências], um agrupamento de agências
espaciais governamentais, e no Comité
Internacional sobre GNSS da ONU. Para
que os sistemas de diferentes países sejam
interoperáveis, os repositórios terão de
ser acordados internacionalmente, insiste
Cheryl Gramling.
Com a ajuda da ESA, a NASA está a
desenvolver uma rede de comunicações,
a LunaNet, que espera que venha a ser
adotada pela comunidade internacional. É
um conjunto de normas e protocolos que
permitiria a todos os sistemas de navegação
e comunicação por satélite dedicados à Lua
formarem uma rede única, semelhante
à internet, independentemente do país
que os instale. A definição do tempo lu-
nar é apenas um tijolo num muro muito
mais vasto. “A ideia é criar uma internet
que cubra todo o sistema solar”, explica
Gramling. “E a primeira parte será na
Lua.”
64 MAIO 2023 - N.º 327
PRODUTIVIDADE
O vírus
das reuniões
O crescimento do teletrabalho levou a uma explosão
no número de reuniões – e ao desperdício de tempo.
Algumas empresas querem pôr um ponto final a isto
The Wall Street Journal
Nova Iorque
“Obrigado a todos pelo vos- em mais do dobro o número de reuniões
O so tempo. Iremos diretos ao
assunto.” Para informar os
semanais entre fevereiro de 2020 e fe-
vereiro de 2022, enquanto o seu tempo
seus empregados dos planos gasto em reuniões mais do que triplicou.
de reestruturação em janeiro, a Reynolds E, sim, com ou sem “tempo de cére-
American, uma subsidiária da British bro disponível”, havia uma necessidade
American Tobacco, pensou em realizar frenética de “nos vermos”, de “rever”,
uma reunião de 90 minutos numa grande de “fazer uma proposta”, a menos que
sala. Em vez disso, passou um vídeo de fosse estabelecida uma data-limite, caso
dez minutos. em que o próximo passo era rapidamente
As empresas têm um novo lema: planeado: “Vamos lá falar disso!” (Ah,
“Acabar com as reuniões.” Na Shopify, espere, alguém levantou a mão).
Wayfair [plataformas de compras online] e “Na segunda-feira passada, tive 13
noutros locais, os gestores garantem que, reuniões”, diz Jennifer Wakefield, CEO
devido ao aumento do teletrabalho, que da Greater Richmond Partnership, uma
já não permite trocas rápidas e informais, organização de desenvolvimento econó-
as agendas estão a transbordar e milhares mico em Richmond, Virgínia. A maioria
de horas estão a ser desperdiçadas, em das reuniões tinha 30 minutos de duração.
detrimento da produtividade. Ao longo do dia, das 7h30 às 18h, teve dois
Quanto exatamente? Desde que anun- intervalos de meia hora. E o que fez ela
ciou, no início de janeiro, que certos tipos com estes preciosos momentos de pausa?
de reuniões seriam temporariamente re- Recuperou o atraso na leitura dos emails.
movidos, a Shopify eliminou 12 mil eventos A reunião que mais tem aborrecido Jenni-
da agenda dos seus empregados e libertou fer Wakefield ultimamente é aquela que,
95 mil horas, conta a direção. “Estamos a todas as semanas, parece ter como único
começar o ano mais leves, livrando-nos do objetivo… fazer uma reunião. “Deixa-me
tempo excessivo e absurdo de reuniões, e louca. Por vezes, é só para ouvir alguém
enriquecidos com mais tempo de ação”, a agitar o ar. Se não há agenda, eu não
escreveu o presidente da Shopify, Kaz quero ir.”
Nejatian, aos seus empregados. No Shopify, as reuniões de todas as
Intermináveis e incontáveis, as reu- equipas foram suspensas, as reuniões de
niões são uma velha praga da vida de quarta-feira, proibidas (tirando circuns-
escritório. Para as tornar mais concisas tâncias excecionais) e as reuniões de 50 ou
e produtivas, os empregadores já tinham mais pessoas, restringidas a um horário
tentado outros métodos, como discussões de seis horas à quinta-feira.
em pé ou a andar. Mas, como muitos es- De acordo com um porta-voz, a Rey-
tudos mostram, a quantidade de tempo nolds American fez a mudança para um
gasto em reuniões explodiu durante a pequeno vídeo em janeiro, depois de se
pandemia. Usando os dados recolhidos ter apercebido de que a informação a ser
através do seu conjunto de software transmitida não justificava uma reunião
empresarial, a Microsoft descobriu que longa. A experiência é considerada um
o utilizador médio do Teams viu aumentar sucesso. “Tivemos uma série de boas
AUTORA DATA TRADUTORA
F Lauren Weber 01.02.2023 Helena Araújo
 ideias, durante o último ano, para sim-
plificar as nossas interações e reduzir as
reuniões sempre que possível”, explicou
Chris Zona, responsável pela comunicação
interna, no início do vídeo, que o The Wall
Street Journal teve oportunidade de ver.
A “reunionite” acaba por constranger
as pessoas a trabalharem mais à noite.
Num outro estudo, a Microsoft descobriu
que muitos dos seus utilizadores fizeram
login entre as 20 e as 23 horas, quer para
assistir a outras reuniões, em particular
com colegas que trabalham noutros fu-
sos horários, quer para adiantar as suas
tarefas.
Sem razão real
Quando chegou a hora de passar para o
teletrabalho, os gestores preocuparam-se:
‘Mas como sei se as pessoas estão a fazer
o seu trabalho?’ E as pessoas preocupa-
ram-se: ‘Mas como posso provar ao meu
gestor que estou a fazer o meu trabalho?’
E as reuniões foram vistas como uma res-
posta a ambas as perguntas”, diz Jared
Spataro, vice-presidente da Microsoft
responsável pelos produtos de cloud para
os negócios. Resultado: “As pessoas estão
sobrecarregadas.” E isto gera tensão entre
as equipas e os seus gestores.
ILUSTRAÇÃO: GETTYIMAGES
Brian Frye, professor na Faculdade
de Direito da Universidade do Kentucky,
resume: “A pior reunião é aquela a que
você vai sem uma razão real.”
No mundo académico, “conta-se
consigo para lá estar, exceto que muitas
vezes o tema não lhe interessa, e você
não tem nenhuma contribuição a dar.
Todos se queixam disso, mas as vítimas
são muitas vezes também os executores!”
Ora, com os cortes de pessoal, está
a tornar-se mais urgente, para a gerên-
cia, reduzir o tempo gasto em reuniões.
A Shopify, que apoia as empresas que
procuram mudar para o comércio onli-
...
A “reunionite” acaba por
constranger as pessoas a
trabalharem mais à noite.
A Microsoft descobriu
que muitos dos seus
utilizadores fizeram login
entre as 20 e as 23 horas,
para assistir a reuniões
ne, despediu mil pessoas em julho [cer-
ca de 10% dos seus trabalhadores]. E na
Wayfair, retalhista de mobiliário online,
que anunciou recentemente 1 750 des-
pedimentos, o CEO disse ao seu pessoal
que os despedimentos faziam parte de
um plano de reorganização, que visava
“uma maior eficiência” e que pretendia
“reduzir o tempo gasto em reuniões”,
entre outras medidas.
Sarah Williams, gerente de Marke-
ting da Stride Health, especializada em
seguros de saúde para trabalhadores
independentes, acredita que o seu em-
pregador encontrou a fórmula certa.
A empresa, que emprega cerca de 100
pessoas, tentou uma experiência inicial
em 2017, que acabou de reintegrar, com
uma quarta-feira sem reuniões. Um dia
de concentração que Sarah Williams usa,
em particular, para analisar dados que lhe
permitirão informar as reuniões dos dias
seguintes sobre as campanhas de email
marketing da empresa. “As reuniões de
quinta e sexta-feira teriam menos sucesso
se eu não tivesse uma quarta-feira sem
uma reunião para fazer esta análise”, diz.
“Caso contrário, estaríamos a patinar e
a arriscar-nos a cometer novamente os
mesmos erros.”
MAIO 2023 - N.º 327 65
planeta
360
CIÊNCIA
Sim, os gatos
gostam de nós!
Têm fama de ser sociopatas, mas vários estudos mostram que os gatos
estão mais atentos aos humanos do que aquilo que pensamos
New Scientist Londres
Interrogo-me, muitas vezes,
I porque temos um gato. Muito
recentemente, Peggy saltou
para uma cómoda e deixou cair
uma taça de cerâmica, que se partiu. Na
altura em que estiverem a ler isto, outro
incidente me fará questionar, novamente,
a minha escolha de animal de estimação.
Ao contrário dos cães, que depen-
dem de nós para tudo, incluindo para o
seu bem-estar emocional, os gatos dão
a impressão de ser sociopatas. A maio-
ria dos donos de gatos (se é que se lhes
pode chamar donos) suspeita de que os
nossos amigos felinos nos abandonariam
se um dia não lhes abríssemos a saca da
ração. É verdade que às vezes Peggy vem
procurar uns abraços, mas talvez o faça
apenas para se manter quente. Além dis-
so, apesar de os gatos terem coexistido
com os humanos durante milhares de
anos, perguntamo-nos se tem havido um
processo de domesticação. A menos que
os gatos sejam simplesmente mal com-
preendidos.
Os gatos e os cães são os animais de
estimação mais populares do mundo, mas
os dois comportam-se de forma bastante
diferente em relação a nós. Os cães correm
para a porta, porque estão tão felizes por
nos verem de volta a casa, enquanto os
gatos parecem distantes e indiferentes. A
forma como os humanos e estas espécies
se juntaram dá algumas respostas.
Primeiro, os antepassados selvagens
dos gatos eram relativamente solitários,
enquanto que os cães evoluíram a partir
do lobo, uma criatura particularmente
sociável. Os felinos parecem ter come-
çado a ser domesticados há 10 mil anos, no
Mediterrâneo Oriental, também conhecido
como o Próximo Oriente. Entre as pro-
AUTOR DATA
F Michael Marshall 07.03.2023
66 MAIO 2023 - N.º 327
vas arqueológicas, citemos um estudo de
2004 que mostra que um gato foi enterrado
com um cipriota numa tumba de 9 500
anos. Esta ligação ancestral entre gatos
e humanos é suportada por um número
crescente de dados genéticos.
Leslie A. Lyons, na Universidade do
Missouri, recolheu ADN de gatos durante
30 anos e analisou uma série de marcado-
res genéticos, para explorar a sua história
evolutiva. “A maior diversidade é geral-
mente encontrada no Próximo Oriente”,
diz, o que indica que este é o berço desta
população. Da mesma forma, num estudo
publicado em novembro de 2022, Lyons
e os seus colegas obtiveram ADN de mil
gatos e concluíram novamente que a sua
domesticação começou no Mediterrâneo
Oriental.
A cronologia não é casual. Os gatos
começaram a associar-se com os humanos
no Próximo Oriente, nos primeiros tempos
da agricultura, que substituiu a atividade
de caçador-coletor. Como resultado deste
novo modo de vida, as pessoas acumu-
laram fornecimentos de cereais como o
trigo. “Isto atraiu roedores e outras pragas,
a que se seguiram os gatos”, diz Danijela
Popovic, investigadora da Universidade
de Varsóvia, na Polónia.
Por outras palavras, não há razão para completa de um felino doméstico a partir
presumir que os humanos domesticaram de um gato abissínio chamado Canela.
deliberadamente os gatos. A cientista Em comparação com os gatos selvagens,
precisa: “Os gatos viram o benefício de vários fragmentos deste genoma reve-
estarem perto dos humanos porque era laram a evolução por seleção natural. O
aí que estava a comida. Por outro lado, ponto de viragem parece ter sido quando
as pessoas também viram o valor de ter alguns gatos desenvolveram uma maior
gatos.” tolerância para com os humanos, talvez
Finalmente, diremos que os gatos pa- porque eram mais descarados ou menos
recem ter-se domesticado a si próprios. assustados. Estes gatos podiam banque-
Em 2014, uma equipa que incluía Leslie tear-se com ratos, e a evolução favoreceu
Lyons fez a primeira sequência genómica assim os gatos que tinham menos medo
dos humanos.
Comunicam… quando querem
TRADUTORA
Helena Araújo Com o tempo, os laços entre felinos e hu-
manos estreitaram-se. Os antigos egípcios

mumificaram muitas vezes os gatos. Leslie
Lyons e os colegas usavam o ADN destas
múmias para mostrar que eram animais
domesticados, não selvagens. Mais tarde,
a expansão do Império Romano levou à
propagação do gato doméstico.
No entanto, só há dois séculos é que
os humanos têm vindo a praticar a se-
leção artificial dos gatos, normalmente
por razões estéticas e não práticas. Mas
a maioria dos gatos não faz parte deste
tipo de criação e acasalam livremente – ao
contrário dos cães, que durante séculos
foram selecionados artificialmente por vá-
rias razões, desde a caça ao seu tamanho
compatível com uma mala. E, também,
ao contrário dos cães, a maioria dos gatos
ILUSTRAÇÃO DE PUDLES, PARA “THE WOMEN’S JOURNAL”, BROMLEY, REINO UNIDO
sai e mantém comportamentos naturais,
nomeadamente o da caça.
Na verdade, os gatos organizam o seu
dia muito mais livremente do que outros
animais domesticados. “Daí o termo ‘se-
midomesticados’ para descrever gatos”,
diz Leslie Lyons. “Se todos eles fossem
libertados, provavelmente sair-se-iam
muito bem: iriam viver por conta pró-
pria, sair, caçar aves, ratos e lagartos, e
sobreviver.” Deduz-se de tudo isto que
não é vital os gatos estarem em sintonia
com os humanos.
Isto não nos impede de os antropomor-
fizar enormemente. Já alguma vez se per-
guntou se é o único a falar com o seu gato
com aquela voz mimada que reservamos
Só há dois séculos é que os
humanos têm vindo a praticar
a seleção artificial dos gatos,
normalmente por razões
estéticas e não práticas. Mas
a maioria dos gatos não faz
parte deste tipo de criação
e acasalam livremente – ao
contrário dos cães
para bebés e crianças? As pessoas com cães
falam assim com os seus animais de esti-
mação. E, num estudo publicado em 2022,
Charlotte de Mouzon, na Universidade de
Nanterre, mostrou que os donos de gatos
também o fazem. “Gravámos humanos a
falar com os seus gatos, e todos falavam
assim”, resumiu.
E os gatos sabem quando estão a falar
para eles. Num estudo de outubro de 2022,
Charlotte de Mouzon e a sua equipa gra-
varam humanos a falar com os seus gatos,
tanto com uma voz aguda como normal-
mente. E também gravaram estranhos a
dizer as mesmas coisas. Quando os gatos
ouviram o seu dono a falar com uma voz
aguda, eles mudavam o seu comporta-
mento: olhavam em volta, paravam ou
mexiam as orelhas e as caudas. No entan-
to, eles não reagiram aos estranhos que
falavam em voz aguda. “Nem todos veem
os humanos da mesma maneira, explica
a investigadora. Eles têm realmente um
sentimento especial, quando o seu dono
se dirige a eles.”
Esta é apenas uma abordagem, entre
muitas, que realça as capacidades sociais
dos felinos. Nos últimos anos, um grupo
de investigadores japoneses tem feito uma
série de descobertas surpreendentes. Em
2019, o trabalho codirigido por Atsuko
Saito, da Universidade de Tóquio, concluiu
que os gatos de estimação reconheciam os
seus nomes; as orelhas e caudas moviam-
-se de forma diferente quando ouviam as
gravações do ser humano a dizer o seu
nome, por oposição a outras palavras fa-
miliares. Isto não vai impedir o seu gato de
o ignorar quando o chamar. Atsuko Saito
disse à New Scientist na altura:
“Os gatos não evoluíram para respon-
der a sinais humanos. Eles comunicam
com os humanos quando o querem fazer.”
Subtis e hábeis
Outras pesquisas revelaram que os gatos
estão sintonizados com os seus donos de
outras formas. Em 2021, a equipa japonesa,
MAIO 2023 - N.º 327 67
planeta
360
desta vez liderada por Saho Takagi da Uni-
versidade de Quioto, mostrou que os gatos
tinham um “mapa” mental da localização
do seu humano na sala, apenas ao ouvi-lo.
Quando as vozes gravadas eram emitidas
por vários altifalantes, dando a impressão
de que o humano se tinha teletranspor-
tado de um lado da sala para o outro, os
gatos mexiam as orelhas e olhavam à volta,
como se estivessem surpreendidos. “Isto
mostra como eles ouvem com atenção os
humanos”, diz Saho Takagi.
Talvez os dados mais impressionantes
venham de Kristyn Vitale da Unity College,
nos EUA. Num estudo de 2017, ela e a sua
equipa apresentaram aos gatos quatro op-
ções de estímulos: comida, um brinquedo,
um cheiro ou interação com um humano.
A maioria dos gatos escolheu o humano,
com a comida a chegar em segundo lugar.
Kristyn Vitale prosseguiu o trabalho
com outro estudo, em 2019, onde explo-
rava a natureza da ligação emocional dos
gatos aos seus humanos. Usou um teste que
também é oferecido, numa versão modifi-
cada, aos recém-nascidos humanos. Um a
um, 70 gatinhos, com idades entre os três
e os oito meses, foram levados pelos seus
donos para um quarto desconhecido. Após
dois minutos, o humano saiu e o gatinho
foi deixado sozinho durante outros dois
minutos. Depois o humano voltou para o
quarto. A maior parte dos gatinhos (64%)
mostrou apego emocional.
Quando os donos voltaram, os gatos
correram para interagir com eles e parece-
ram felizes em vê-los. Depois, tranquilos,
retomaram a sua exploração do quarto.
“Os gatos, que estão confiantes, veem o
seu humano como uma fonte de confor-
to e segurança”, diz Kristyn Vitale. “Este
estudo mostra que os gatos podem formar
fortes laços com os humanos.”
Por isso, talvez nos tenhamos enganado
sobre os nossos gatos. Parte da confusão
veio do facto de eles não serem tão efu-
sivos como os cães, explica Charlotte de
Mouzon. “São animais muito subtis.” Os
gatos não desenvolveram os músculos para
levantar as sobrancelhas e nos enternecer,
como um cachorro faria. No entanto, os
dados recolhidos ao longo da última déca-
da mostram que os gatos desenvolveram,
apesar das aparências, muitas habilidades
sociais para se integrarem num mundo
dominado pelo Homem.
Pergunto-me se os gatos estão a mudar
e a tornar-se mais domesticados, à medida
que se deslocam do campo para a sala de
estar. No entanto, é claro que gatos como
Peggy estão presos aos seus donos, e este
pensamento conforta-me enquanto pego
nos pedaços da taça que ela partiu.
68 MAIO 2023 - N.º 327
AMBIENTE
Na sombra dos
petroleiros
No estreito de Ormuz, os pescadores fazem parte de um esquema
complexo em que a indústria petrolífera transforma o seu ambiente,
fornecendo-lhe os utensílios necessários à sua atividade
Sapiens Nova Iorque
Desligamos o motor no mo-
D mento em que os primeiros
raios de sol surgem no hori-
zonte e deixamos o pequeno
barco à deriva em direção ao nosso alvo:
um enorme navio carregado de gás na-
tural liquefeito que ancorou a poucos
quilómetros da costa. Acompanho o meu
amigo Abu Abdullah (pseudónimo), que
foi pescar com a sua tripulação habitual – o
irmão, um dos filhos e um primo. Ao pé
do petroleiro, que se ergue sobre as nossas
cabeças e faz a nossa pequena embarcação
parecer minúscula, conversamos enquanto
apanhamos oumas e simas (“sardinhas”
e “carapaus”) às centenas.
Nas águas quentes do golfo Árabe e
do golfo de Omã, a extração de petróleo
e a pesca estão intimamente ligadas – um
assunto que conheço bem, pois estudo a
exploração dos recursos naturais (pei-
xes, pérolas, esponjas, hidrocarbonetos)
na região.
Esta manhã, Abu Abdullah e a sua tri-
pulação estão a tentar apanhar pequenos
peixes em quantidade suficiente para atrair
uma captura muito mais rentável: atum (e
eu estou a tentar não os perturbar dema-
siado na sua tarefa). Os bancos de pequenos
peixes aprenderam a refugiar-se na sombra
de grandes barcos, para escapar aos seus
predadores, mas os pescadores aprenderam
a encontrá-los, aventurando-se (muitas
vezes ilegalmente) nas águas frias, à sombra
das plataformas petrolíferas e dos navios.
O atum, capturado graças a estes iscos,
será então vendido nos mercados locais – e
constitui a principal fonte de rendimento
para a tripulação.
Antes do boom petrolífero dos anos 60,
a pesca artesanal era o maior empregador
AUTOR DATA
F Scott T. Erich 05.01.2023
da região e o seu orgulho. Mas depois da
perfuração dos primeiros poços, rapida-
mente foi eclipsada pela extração de hi-
drocarbonetos – um setor de dimensão
internacional. Os pescadores tiveram de
aprender a lidar com mares ensombrados
pelo petróleo e invadidos por engenhos
industriais. Hoje, pescar na região é pescar
à sombra dos combustíveis fósseis – no
sentido literal e figurado.
A supremacia do ouro negro na eco-
nomia local levou a uma recomposição da
paisagem marítima de toda a Península
Arábica. O petróleo e as suas questões fi-
nanceiras estão agora omnipresentes. As
plataformas petrolíferas cobriram áreas
onde os mergulhadores costumavam
procurar pérolas não há muito tempo, e
os barcos de pesca têm de fazer slalom
cuidadosamente entre os petroleiros que
enchem o perímetro do estreito de Ormuz,
através do qual passam, todos os dias, 20%
da produção mundial de petróleo.
Plataformas, petroleiros, terminais e
bacias são protegidos por enormes dispo-
sitivos de segurança, e os pescadores, por
vezes, colocam-se em perigo ao aventu-
rarem-se a chegar perto deles. O preço de
um barril de petróleo também se reflete no
preço do peixe. “Se o preço do atum sobe,
é principalmente por causa do petróleo”,
explicava um pescador de Omã, no TikTok,
no ano passado.
Mas a sombra do ouro negro também
paira sobre os pescadores locais de outras
formas menos percetíveis. Nessa manhã,
no barco, reparei como os produtos pe-
trolíferos estão omnipresentes. A nossa
pequena embarcação de plástico reforçado
com fibra de vidro está cheia de fios de
nylon, baldes de plástico, boias e geleiras de
TRADUTORA
Helena Araújo

poliestireno, iscas em forma de lula feitas
de plastisol. Isto provavelmente explica
porque a maior parte do plástico que po-
lui os oceanos, especialmente no “sétimo
continente”, no oceano Pacífico, provém
de artes de pesca perdidas ou abandonadas.
No entanto, os pescadores do golfo
também têm sido criativos na apropriação
de outros objetos retirados da petroquími-
ca, fabricados pela, mas também para a,
indústria petrolífera. Eles sempre usaram
tudo aquilo a que puderam deitar a mão.
No passado, foram as fibras de tamareiras
e coqueiros, mas desde o advento da era
do petróleo, materiais derivados do ouro
negro proliferaram: plástico, nylon, po-
liestireno extrudido ou poliéster. Ao longo
das costas de Omã e dos Emirados Árabes
Unidos, não é raro ver barris de plástico
convertidos em armadilhas para peixes.
Eles são usados para capturar ouma, a isca
favorita do atum, que não consegue resistir
ao seu cheiro pungente.
Inter-relações
No convés do nosso barco, naquela manhã,
com o petroleiro à cabeça, a sardinha de-
baixo do nosso casco e todo o lixo derivado
do petróleo aos nossos pés, participamos
num estranho bailado, em que se cruzam
ritmos, coisas, espécies e indivíduos muito
diferentes.
Os antropólogos e outros cientistas so-
ciais chamam a isto “arranjos”. O ritmo
dos navios que saem ou entram no porto,
assim como o destino da sua carga – pe-
tróleo bruto, gasolina ou plástico – é di-
tado pelas exigências do capitalismo. Ao
mesmo tempo, o movimento dos bancos
de sardinhas que ondulam entre os cascos
é governado pela biologia, as marés e as
estações do ano. Segundo a antropóloga
Anna Lowenhaupt Tsing, estes arranjos,
em que “natureza” e “cultura” conver-
gem, oferecem um posto de observação
privilegiado: permitem-nos vislumbrar os
FOTO: GETTYIMAGES
contornos políticos e económicos do nosso
tempo e desvendar “eventuais páginas de
história em construção”.
Um dos pontos fortes desta teoria dos
arranjos é que ela altera a dinâmica do po-
der, reorientando a nossa atenção para os
atores (e fatores) capazes de influenciar o
curso dos acontecimentos. À medida que
os desastres naturais se tornam mais in-
tensos e frequentes, devido às alterações
climáticas antropogénicas, o planeta parece
por vezes destinado à destruição total. A
influência do petróleo sobre o futuro pa-
rece inabalável.
Mas é possível uma abordagem mais
abrangente, a longo prazo. Se tivermos em
conta o que acontece nos “limites indis-
ciplinados” da extração de petróleo – nas
palavras de Anna Lowenhaupt Tsing [“un-
ruly edges”] –, então a própria indústria
petrolífera, apesar da sua omnipotência,
é apenas um ator na multidão de criatu-
ras e modos de vida que interagem neste
ambiente.
E na sombra do petróleo, a história
ainda está a ser escrita.
Tal como o tiktokeur, os pescadores
estão bem cientes das múltiplas inter-
-relações entre a sua atividade e o setor
petrolífero. Eles têm um olhar aguçado
e feroz para as convulsões causadas pela
extração de combustíveis fósseis.
As próprias gerações mais jovens lem-
bram-se dos velhos tempos, quanto mais
não seja pelas histórias que ouviram. Elas
sabem que os danos causados ao oceano
pelos resíduos plásticos, os derrames de
petróleo e a poluição industrial estão a
ameaçar o frágil ecossistema marinho e
a sua subsistência. Mas também estão bem
conscientes de que os seus barcos, redes e
fios são feitos de petróleo. Por isso tentam
utilizá-los o máximo de tempo possível,
mesmo que isso signifique encontrar-lhes
novas funções. A história, as iniciativas e a
filosofia dos pescadores do golfo lembram-
Os pescadores tiveram de
aprender a lidar com mares
ensombrados pelo petróleo
e invadidos por engenhos
industriais. Hoje, pescar na
região é pescar à sombra dos
combustíveis fósseis – no
sentido literal e figurado
-nos que a indústria petrolífera é relati-
vamente jovem, e que não é nem eterna
nem invulnerável. As técnicas ousadas,
mesmo impertinentes, que estes homens
encontraram para continuar a ganhar a
vida à sombra das companhias petrolíferas
realçam as falhas na imagem de omnipo-
tência e imortalidade que os magnatas do
petróleo projetam.
E mesmo que a reapropriação dos pro-
dutos derivados do petróleo pelos pesca-
dores tenha nascido da necessidade, não
deixa de ser rica em ensinamentos: a lon-
gevidade única dos petroquímicos pode ser
igualmente uma coisa boa. Os plásticos e
outros materiais derivados do petróleo que
devastam o ecossistema marinho também
vêm contradizer a necessidade de extrair
cada vez mais petróleo. Uma vez que estes
produtos são infinitamente reutilizáveis, a
procura de petróleo está a diminuir, pelo
menos entre os pescadores.
No barco, estamos prestes a deixar a
sombra do enorme navio e a afastar-nos
mais da costa para os cardumes de atum,
a 50 milhas [80 quilómetros] de distância.
O Sol está cada vez mais alto no céu e, à
medida que preparamos as nossas linhas
e o isco que apanhámos mais cedo, um
marinheiro filipino chama-nos a partir
do navio. Gritando em inglês, pede um
chumbo para a sua linha de pesca. Tam-
bém ele quer pescar nas águas frias que se
estendem sob o casco.
“O que ele quer?”, pergunta Abu Ab-
dullah em árabe. Eu traduzo. O meu amigo
desfaz um dos pesos da sua própria linha
e atira-o em direção ao enorme navio.
Ele salta do convés. O filipino pega nele,
segura-o e escorrega para preparar a sua
linha. Para este marinheiro, como para nós,
a indústria petrolífera é apenas um pano
de fundo que lança a sua sombra sobre um
ambiente saturado de petróleo, mas não
totalmente destruído. Uma sombra em que
agora pescamos lado a lado.
MAIO 2023 - N.º 327 69
planeta
360
JAPÃO
E se o “haiku” não
tiver estação?
Pode a cultura tradicional japonesa, tão sensível às estações
do ano, sobreviver ao aquecimento global? Na época das cerejeiras
em flor, cresce essa preocupação
Nikkei Asia Tóquio
Apesar da modernização e ur-
A banização inexoráveis do país,
a vida quotidiana japonesa ain-
da está cheia de referências às
estações. Cantores pop elogiam o amor e
a sakura (flor de cerejeira), restaurantes
valorizam produtos sazonais, e até mesmo
cartas oficiais abrem com referências à be-
leza dourada das árvores no sol de outono
ou ao rodopio da neve na brisa de inverno.
Se estes momentos me trazem uma
grande alegria, pois admiro esta arte de
prestar homenagem às estações, também
me trazem de volta a uma triste realidade,
que descobri no decurso da minha repor-
tagem sobre as repercussões das altera-
ções climáticas: estes toques de cor que
pontilham as tradições japonesas estão
progressivamente a desvanecer-se sob o
efeito do aquecimento global.
Apesar do crescente consenso sobre
a necessidade de limitar o aumento da
temperatura a 1,5 °C em relação à era pré-
-industrial, um grupo de peritos da ONU
partilhou recentemente uma descoberta
alarmante: se não intensificarmos os nos-
sos esforços, a temperatura média global
aumentará 2,6 °C até ao final do século.
As estações do ano, especialmente a
primavera e o outono, são uma das inú-
meras coisas cuja existência está ameaçada
por estas mudanças. A menos que sejam
tomadas medidas suficientes para reduzir
as emissões de CO2, os verões no hemis-
fério norte poderão durar seis meses até
2100, de acordo com um estudo realizado
por investigadores chineses em 2021. Os
invernos, por sua vez, durariam apenas
dois meses, enquanto a primavera e o ou-
AUTORA DATA
F Sayumi Take 01.03.2023
70 MAIO 2023 - N.º 327
tono seriam drasticamente reduzidos. Tais
mudanças colocariam em perigo a cultura
japonesa, que atribui um lugar fundamental
às estações do ano, da literatura à gastro-
nomia, passando pelas artes. Diz-se que
este conhecimento e admiração das es-
tações se deve à localização geográfica do
país, que sempre lhe permitiu desfrutar
de quatro estações distintas, com duração
semelhante.
Os primeiros efeitos das convulsões
climáticas já se fazem sentir na cultura,
particularmente no haiku, os poemas ja-
poneses muito curtos, nos quais as estações
desempenham um papel crucial.
Cada haiku deve incluir um kigo, uma
“palavra de estação” indicando a época do
ano em que ocorre. Embora ninguém possa
decidir oficialmente que palavras podem
ser usadas como kigo, as mais frequente-
mente usadas – e as estações associadas
– são listadas num saijiki, um dicionário
específico.
Qualquer palavra que evoca uma época
pode ser um kigo, incluindo o nome de um
vento, um fenómeno meteorológico, uma
planta ou um animal. Mas alguns destes
conceitos são cada vez mais difíceis de
observar na Natureza. “O termo koharu-
biyori, por exemplo, refere-se a um dia
suave, ensolarado, quase primaveril, que
interrompe um período de frio no final do
outono ou início do inverno. Está associado
a uma sensação de calma e de conforto”,
diz o poeta Etsuya Hirose. “Mas à medida
que as temperaturas se tornam cada vez
mais amenas nesta altura do ano, torna-se
difícil identificar-se com este kigo, esta
estação e estes sentimentos.”
TRADUTORA
Helena Araújo
O mesmo se aplica
Sinal de à palavra shinryoku,
primavera, que se refere ao verde
no cenário das folhas jovens no
do monte Fuji início do verão. Tam-
bém está a perder ter-
reno para outras pala-
vras como sakura ou aoba, o verde intenso
das folhas no pico do verão, quando o calor
varreu a tepidez da primavera, forçando
a vegetação a adaptar-se para sobreviver.
“Uma solução possível é procurar novas
formas de expressão para descrever este
clima mais quente”, explica Etsuya Hirose.
“Mas o haiku vai perder a sua diversidade,
e este empobrecimento pode levar, na sua
esteira, a uma padronização da cultura e
mentalidade japonesas, transmitidas de
geração em geração.”
Cozinheiros sem ingredientes
E os haikus são apenas um exemplo das
terríveis perdas intangíveis que ameaçam
o país devido às alterações climáticas. Em
2013, a Unesco listou o washoku, as tra-
dições culinárias dos japoneses, como
Património Imaterial da Humanidade. O
organismo da ONU descreve-o como “uma
prática social [...] associada a um princípio
fundamental de respeito pela natureza in-
timamente ligado à utilização sustentável
dos recursos naturais”.
Um dos exemplos emblemáticos desta
gastronomia é o osechi – um sortido de
pratos típicos do Ano Novo. Nesta ocasião,
os japoneses servem tradicionalmente pra-
tos apresentados com requinte, elabora-
dos a partir de ingredientes específicos,
cada um com uma dimensão simbólica.
Mas devido às alterações climáticas, que
estão a perturbar os ecossistemas, alguns
destes ingredientes são agora difíceis de
encontrar. “A passagem de ano de 2023
será sem precedentes, uma vez que já não
conseguimos encontrar certos produtos que
antes eram banais”, lamentavam no seu
blogue, em dezembro, os cozinheiros de um
restaurante tradicional. “Teremos de aceitar
o facto de que as alterações climáticas são
agora um parâmetro incontornável.”
A mensagem sublinhava a escassez
de polvo, um dos ingredientes-chave do
osechi. Este molusco proporciona um belo
contraste entre o vermelho e o branco, e
é um símbolo de festividade e boa sorte.
Outra vítima das alterações climáticas é o
karasumi (ovas de peixe salgadas e secas),
uma iguaria popular do Ano Novo, símbolo
de uma vida matrimonial e familiar feliz.
Os cozinheiros estão, de facto, a ter cada
vez mais dificuldades em encontrar certos
tipos de peixe e marisco devido à poluição,
à acidificação e ao aumento da tempera-
tura do oceano, para além do declínio da
indústria pesqueira. O impacto já está a ser
sentido na confeção de sushi – um prato
extremamente popular em todo o mundo.
A cerimónia do chá – sado – também
é afetada por estas mudanças. Algumas
plantas sazonais, usadas como decoração
simbólica, são agora difíceis de cultivar.
As alterações climáticas estão gradual-
mente a infiltrar-se nas nossas culturas e
tradições, alterando-as irreversivelmente.
Este é um facto assustador. E mesmo que
algumas destas mudanças pudessem ser
vistas como uma forma de evolução, acho
este fenómeno lamentável e escandaloso,
porque poderíamos tê-lo evitado, ou pelo
menos mitigado, se tivéssemos feito mais
para preservar o clima.
Embora o desafio seja internacional, o
Japão, em particular, precisa de intensificar
os seus esforços, desenvolver as energias
renováveis e afastar-se do carvão para
encorajar as empresas a descarbonizar as
suas operações e aumentar a sensibilização
Os primeiros efeitos das
convulsões climáticas já
se fazem sentir na cultura,
particularmente no haiku,
os poemas japoneses muito
curtos, nos quais as estações
desempenham um papel
crucial
dos consumidores para a sustentabilidade.
A alienação cultural está a fazer-se len-
tamente, mas pode ser dramática a nível
pessoal e espiritual. E ainda que a luta contra
as alterações climáticas seja exigente e de-
safiadora, a beleza e a fragilidade da nossa
cultura deveriam estimular-nos a todos
a mobilizar a nossa força e entusiasmo e
a fazer tudo o que pudermos para tentar
preservá-la – especialmente no Japão,
onde o simbolismo das estações do ano
está omnipresente.
MAIO 2023 - N.º 327 71
 ECOBREVES
planeta
360
AS GRANDES E AS PEQUENAS HISTÓRIAS SOBRE O MEIO AMBIENTE
BIODIVERSIDADE
CAÇA À ARANHA AJUDA CIENTISTAS
Nos últimos anos, a caça à aranha tem-se tornado cada vez mais popular
no Reino Unido. Este passatempo invulgar fornece aos cientistas informações
valiosas sobre a fauna do país.
O THE GUARDIAN acompanhou o sexagenário Mike Waite, “especialista na caça à
aranha” numa pesquisa pela reserva natural de Brentmoor Heath em Surrey, no
Sudeste de Inglaterra, propriedade do Ministério da Defesa do Reino Unido. Trata-
se de uma época do ano particularmente boa para as aranhas saírem da hibernação.
“Observamos um espécime da família Lycosidae, uma Evarcha arcuata e uma
Dolomedes fimbriatus”, revela o diário britânico. Tudo isto numa única manhã.
O objetivo de Mike Waite era encontrar o maior número possível de aranhas,
“montando uma série de ‘armadilhas’ à noite”. Esta prática, algo invulgar, tem
conhecido um ressurgimento no Reino Unido nos últimos anos. “A British
Arachnological Society já recebeu 57 mil relatos de avistamentos de aranhas desde
o início do ano”, revela o THE GUARDIAN.
O Ministério da Defesa é um dos maiores proprietários de terras no Reino Unido.
Possui “169 sítios de especial interesse científico, o que significa que a natureza é
mais protegida lá.” E entre eles está Brentmoor Heath, um dos melhores lugares
para caçar aranhas. O Reino Unido é um local de reprodução de aracnídeos: mais
de 650 espécies diferentes vivem aqui, e algumas variedades estão provavelmente
apenas à espera de serem descobertas. Ou redescobertas.
“A maior descoberta de Waite foi em 2020, quando avistou uma Alopecosa fabrilis,
uma das maiores aranhas do Reino Unido, mas presumiu-se que estava extinta
porque ninguém a tinha visto desde 1999.”
Para além de ser um passatempo invulgar, a caça à aranha pode ser útil para os
cientistas. “Sem a dedicação destes observadores, simplesmente não saberíamos
como está a nossa fauna de aranhas”, diz Richard Gallon, membro da Sociedade
Britânica de Aracnologia.
As aranhas são conhecidas por darem indicações sobre a saúde do ambiente.
De acordo com o THE GUARDIAN, uma melhor compreensão de como estes
animais funcionam é também a compreensão de “como o ambiente poderá
evoluir face à crise climática”.
72 MAIO 2023 - N.º 327
ENERGIA
“VIRAGEM” NA PRODUÇÃO
DE ELETRICIDADE
As emissões de gases com efeito de estufa da
produção global de eletricidade podem começar
a diminuir já este ano, impulsionadas por uma
dependência crescente das energias renováveis, de
acordo com o grupo de reflexão Ember. “É provável
que o mundo utilize menos combustível fóssil para
a produção de eletricidade neste ano, marcando
um ‘ponto de viragem’ para a energia amiga do
planeta”, relata a BBC. De acordo com o último
relatório do think tank de energia Ember, as emissões
globais de gases com efeito de estufa da produção
de eletricidade atingiram o seu pico em 2022 e
começarão a diminuir.
Para a sua quarta Revisão Global da Eletricidade
anual, a Ember utilizou dados de 78 países que
representam 93% da procura global de eletricidade.
O documento mostra que as emissões da produção
de eletricidade aumentaram 1,3%, no ano passado,
para um valor recorde, alimentadas por um ligeiro
aumento na utilização do carvão, para satisfazer
a crescente procura de eletricidade após o fim da
contenção relacionada com a Covid-19.
Globalmente, as energias renováveis atingiram um
novo recorde: o vento e a energia solar forneceram
12% da produção global de eletricidade em 2022,
representando 10% da produção global de eletricidade
no ano anterior, contra apenas 5% em 2015. “A União
Europeia está à frente, com 22% da eletricidade
proveniente de fontes renováveis e um crescimento
de 24% na energia solar, em comparação com o ano
anterior”, relata o LE TEMPS.
Outro ator com um efeito importante na tendência
geral é a China. “Cerca de 50% da energia eólica extra
produzida em todo o mundo tem estado na China,
e cerca de 40% da energia solar extra tem vindo do
país que é também o maior consumidor mundial de
carvão”, observa a BBC.
Estes dados sugerem que a transição energética
global está realmente em curso. O analista e coautor
do relatório Malgorzata Wiatros-Motyka afirma:
“Nesta década decisiva para o clima, este é o início
do fim da era fóssil.” James Glynn da Universidade
de Columbia de Nova Iorque, entrevistado pela NEW
SCIENTIST, acredita que a tendência descendente das
emissões não será confirmada por mais um ou dois
anos. “É possível que 2022 tenha visto o pico das
emissões globais da geração de energia, mas não
saberemos até 2024 ou 2025 [se é realmente um pico
ou o início de um planalto]”, diz.

POLUIÇÃO
TEMPESTADES DE AREIA AFETAM
400 MILHÕES DE CHINESES
Desde o início de 2023, a China sofreu oito ondas de
tempestades de areia, cinco das quais varreram o triângulo
Pequim-Tianjin-Hebei. Pensa-se que cerca de 400 milhões
de pessoas, desde 9 de abril, tenham sido afetadas por
estes episódios.
“Cerca de 400 milhões de chineses estão a engolir
areia”, alerta Zhigu Qushi Pro, um blogue de negócios
na plataforma WECHAT. O artigo relata os testemunhos dos
habitantes de Pequim, que dizem ter-se transformado
gradualmente em soldados de barro no seu caminho para
o trabalho. E em algumas partes da Mongólia Interior,
sublinha, a situação é preocupante, pois “a visibilidade não
chega aos 50 metros”.
“O céu amarelo e arenoso costumava ser uma visão comum
em Pequim. Mas, durante mais de uma década, este
tempo poeirento desapareceu, em grande parte do Norte
da China”, observa o artigo, lembrando que um temporal
espetacular atingiu a capital em março de 2021.
Estas tempestades de areia “significam que estas dezenas
de províncias do Norte, incluindo Pequim, estão sob um
duplo ataque de PM10 e PM2,5 [partículas menores que 10
e 2,5 micrómetros de diâmetro]”, prossegue o artigo.
De acordo com os meios de comunicação social de
Hong Kong, a qualidade do ar está severamente degradada:
as PM10 excederam 1 500 microgramas por metro cúbico e
o pico de concentração atingiu o limiar de poluição
mais elevado (6).
“Dados publicados pela OMS indicam que as PM10 e PM2,5
são particularmente nocivas para as crianças e os idosos,
que sofrem efeitos duradouros após 24 horas de exposição”,
adverte o artigo. “A exposição a curto prazo, particularmente
às PM2.5, pode levar a doenças, tais como insuficiência
cardíaca, pneumonia e ataque cardíaco”, acrescenta.
FOTOS: GETTYIMAGES
CLIMA
A AMEAÇA DAS SECAS RÁPIDAS
Os fenómenos de seca, capazes de se instalarem
no espaço de algumas semanas, causados
nomeadamente por uma rápida perda de
humidade dos solos, serão cada vez mais
frequentes em toda a Terra se o aquecimento
global não for infletido.
“As secas são os períodos em que persiste
um défice de água, o que pode afetar, a prazo,
a economia e o ambiente regional.” É com
essas palavras simples que começa um estudo
publicado na SCIENCE sobre secas, especialmente
as chamadas secas “relâmpago”. Capazes de
se instalar no espaço de algumas semanas, ao
contrário das secas ditas “lentas” ou “clássicas”,
são causadas por uma falta de precipitação, mas
também por uma evapotranspiração importante,
que gera, entre outros, perda rápida de humidade
do solo. “Quase três quartos do planeta viram
esses períodos de secas repentinas aumentarem
nos últimos 64 anos”, de acordo com o modelo
descrito no artigo científico, revela a NEW SCIENTIST.
Para Xing Yuan, principal autor do estudo
e hidrologista da Universidade de Ciência
e Tecnologia da Informação em Nanquim,
China, este aumento na versão rápida da seca
é obviamente devido ao aquecimento do ar. O
défice pluviométrico associado ao aumento das
temperaturas catalisa o seu aparecimento em
todas as latitudes. “A Europa, o Norte e o Sudeste
da Ásia, o Leste e o Noroeste da América do
Norte e a Amazónia são as áreas de maior risco”,
sublinham os cientistas.”
Entre 2050 e 2100, a proporção destas secas
poderá aumentar entre 15% e 20% [no cenário SSP
2,5-4 °C do Painel Intergovernamental sobre
as Alterações Climáticas], em comparação
com os dados obtidos entre 1950 e 2000”,
explica a NEW SCIENTIST.
Infelizmente, poucas ferramentas foram
desenvolvidas para monitorar essas secas
específicas, muitas vezes deixando as áreas de
risco desprotegidas. Outro problema identificado
pelo cientista chinês e seus colegas é a fauna e
a flora selvagens. Ambas podem ter dificuldade
em se adaptar a essas condições, que mudam
muito rapidamente. “No que diz respeito às secas
tradicionais, as plantas adaptaram-se”, mas se
elas ocorrerem num período de tempo mais curto,
“ainda não está claro se os ecossistemas terão
tempo suficiente para reagir e adaptar-se”, diz
Xing Yuan à NEW SCIENTIST.
MAIO 2023 - N.º 327 73
FOTOS: GETTYIMAGES
 MÁLAGA
O íman espanhol
A CIDADE NATAL DE PICASSO ERA CONHECIDA PELAS SUAS PRAIAS.
HOJE, COM 579 MIL HABITANTES, ESTÁ A VIVER UM NOVO “BOOM”,
COM O AFLUXO DE TRABALHADORES DA TECNOLOGIA QUE GOSTAM
DO TELETRABALHO AO SOL, ALÉM DE PODEREM BENEFICIAR DE BOA
QUALIDADE DE VIDA E DE UMA GRANDE OFERTA CULTURAL.
O PREÇO DESTE ÊXITO PODERÁ SER A PERDA DA SUA ALMA?

El País Semanal
Madrid
 Viagem
H
Há dois dias que chegara a Málaga. Tinha minuto 39 da nossa entrevista para o ou-
vindo para tentar compreender as razões vir falar do que, na sua opinião, explica a
da inegável popularidade de que a cidade crescente popularidade de Málaga junto de
tem desfrutado nos últimos anos. Ouvira empresas e trabalhadores especializados:
a versão de Francisco de la Torre, o presi- “O que temos dado às pessoas aqui, tanto
dente da câmara há mais de 22 anos, e que no parque como na cidade, é afeto. Tanto
é considerado por muitos como o grande às empresas como aos visitantes. E, como
responsável pelo milagre. Também vira o sabe, o afeto é gratuito, mas é a coisa mais
franzir de olhos com que muitos habitantes difícil de dar.”
locais acolhem o sucesso que encheu Mála-
ga de turistas e fez subir as rendas. E, pela Risco de parque temático?
quarta vez, tinham-me perguntado: “Já te Melina Frías confessa uma vontade obs-
encontraste com o Felipe Romera? – Não, tinada de aprender a dançar flamenco.
ainda não. – Bem, devias falar com ele.” “Porque faz sofrer.” A rapariga de 39 anos,
Então, no dia seguinte, apanhei um que passa muito tempo no estrangeiro no
táxi. “Pode levar-me até ao parque tec- âmbito do seu trabalho, também sofre pela
nológico, por favor? – Claro que sim. Vai sua cidade. Até recentemente, Melina era
ver o Felipe Romera?” uma das poucas vozes discordantes que
Toda a cidade parece convencida de questionava o enorme sucesso da cidade
que este homem de 68 anos guarda o se- – um grito solitário no meio dos aplausos.
gredo do sucesso de Málaga. Numa sala Agora, porém, com a mudança nos hábitos
adjacente ao seu escritório, refastelado de trabalho provocada pela pandemia, há
numa cadeira, o diretor do parque tec- cada vez mais vozes a fazerem-se ouvir.
nológico de Málaga [Málaga TechPark, Porque Málaga está na boca de todos.
de seu nome oficial Parque Tecnológico Em Espanha, é claro, mas também no es-
de Andalucía] mal espera que eu lhe faça trangeiro. É o lugar perfeito para ir feste-
uma pergunta para começar a falar. Sem jar num fim de semana, a tal ponto que a
omitir um detalhe, um nome ou uma data, câmara municipal está a tentar travar as
conta a história de como um terreno vazio despedidas de solteiro mais desmedidas,
situado na periferia da cidade se tornou, mas também para uma escapadela cultural
no espaço de 30 anos, o que é hoje: um (pode escolher entre o Museu Picasso, o
parque tecnológico onde se juntam, e co- Centro Pompidou e o Thyssen, entre ou-
laboram, 600 empresas com mais de 20 tros).
mil empregados originários dos quatro É também uma paragem gastronómica:
cantos do mundo. come-se nos seus restaurantes estrelas
O seu relato é mais apaixonante do que Michelin ou apreciam-se espetadas nas
o meu resumo, mas tive de esperar até ao praias de Pedregalejo ou El Palo. E pode-se
AUTOR DATA TRADUTORA
F Pablo Ordaz 04.12.2022 Helena Araújo
76 MAIO 2023 - N.º 327
também vir aqui simplesmente para dar
um longa e agradável caminhada desde
o miradouro de Gibralfaro até ao passeio
de La Farola, por ruas que têm pouco em
comum com as decadentes e até perigosas
de há 20 anos. E como se isso não fosse
suficiente, a última moda não é com-
prar um bilhete de comboio ou avião de
alta velocidade para chegar a Málaga na
sexta-feira e regressar no domingo, mas
comprar um bilhete único.
Melina Frías teme que este afluxo de
turistas e trabalhadores estrangeiros, todos
com um poder de compra fora do alcance
da maioria dos habitantes da cidade, aca-
be por transformar Málaga numa espécie
de parque temático, como Barcelona ou
Veneza. Há já algum tempo que ela tem
a impressão de que Málaga se está a tor-
nar cada vez mais uma espécie de grande
aeroporto.
“Eu trato da logística da rodagem de
alguns dos grandes filmes, por isso passo
muito tempo nos aeroportos”, diz Melina.
“São terras que não pertencem a ninguém,
que estão no limbo, por assim dizer. Os
milhares de pessoas que vemos naquele
espaço num momento serão catapultadas
para outras partes do mundo e substi-
tuídas, três ou quatro horas depois, por
milhares de outras. Os aeroportos são
lugares que, embora sempre lotados,
não têm caráter nem memória. Quando
regresso a Málaga depois de uma longa
ausência, sinto que as referências que lá
tenho estão a desaparecer.” E continua:
“É um produto concebido para turistas,
não para aqueles que lá vivem. A cidade
é bonita, é verdade, mas fica-se com a
impressão de que se está a tornar bonita
só para a vender depois.”
 “MÁLAGA É UMA CIDADE ABERTA E HOSPITALEIRA. Unida [um agrupamento de partidos de
esquerda], do Podemos [a esquerda ra-
DURANTE SÉCULOS, ACOLHEU O TALENTO dical]... E, antes de mais, do presidente
da câmara. “O que importa não é que a
EMPREENDEDOR. E ESTAMOS A TRABALHAR PARA Google tenha instalado um centro de se-
COLOCAR A CIDADE NO MAPA, PARA QUE VENHAM gurança cibernética em Málaga, mas antes
por que razão o fez. E fê-lo porque antes
EMPRESAS MULTINACIONAIS DE OUTROS PAÍSES E, veio uma startup, depois outra e outra, e
todas foram tratadas como se fossem uma
CLARO, PARA QUE O TALENTO LOCAL POSSA FLORESCER”, grande empresa. Isso, posso dizer-vos, é
CONSIDERA O SEU PRESIDENTE DE CÂMARA o tipo de coisas que só acontece aqui.”
A cidade espera agora que os seus
esforços sejam recompensados e que se
“Cavalheiro” do “afeto” de Málaga, quase octogenário, tem uma torne a escolhida para acolher a Exposição
O presidente da câmara não tenta negar sólida formação universitária em sociologia Internacional de 2027. O presidente da
esta preocupação crescente, que se mistura e engenharia agrícola, e as suas disposi- câmara esteve em Paris nos dias 28 e 29 de
sem dúvida com o orgulho de ver Málaga ções progressistas vão por vezes contra as novembro para apresentar a proposta da
finalmente entre as cidades mais atrativas, posições mais conservadoras do Partido cidade sobre o tema A Era Urbana: Rumo
ainda mais do que a própria Sevilha, com Popular [PP, direita] de que é membro à Cidade Sustentável.
a qual mantém uma rivalidade antiga. desde 1995. Sentado numa sala do Centro Pompi-
Mas antes de deixarmos Francisco de Todos aqueles com quem falei, incluin- dou, abordou calmamente as preocupações
la Torre responder, vamos dar uma olhada do os que não partilham das suas ideias, dos céticos. “Málaga é uma cidade aberta
ao personagem. O presidente da câmara reconhecem que o presidente da câmara e hospitaleira. Durante séculos, acolheu o
“é um cavalheiro” e recordam a atenção talento empreendedor. E estamos a traba-
que teve com eles, especialmente quando lhar para colocar a cidade no mapa, para
FRANÇA
tiveram dificuldades pessoais. Isto pode que venham empresas multinacionais de
fazer parte do “afeto” que caracteriza a outros países e, claro, para que o talento
cidade, segundo o diretor do parque tec- local possa florescer.”
Barcelona
nológico, mas a verdade é que a atitude “Tudo isto levou a Google a decidir
E S P A N H A do presidente da câmara e o seu conheci- instalar aqui uma das suas sedes, mas não
mento profundo de cada dossier desarma devemos esquecer que há uns anos a Goo-
Madrid
PORTUGAL os seus oponentes. gle já estava interessada numa empresa
2 h 28 m
pela linha Tanto Felipe Romera como Francisco local de cibersegurança, a Virus Total, e
Lisboa de alta de la Torre praticam esta antiga forma de os seus proprietários tinham insistido em
velocidade
fazer política, segundo a qual é essencial, e ficar aqui [quando a empresa foi adquiri-
Mar
D A L U Z I A Mediterrâneo não apenas desejável, manter boas relações da em 2012], o que a Google acabou por
A N
COURRIER INTERNATIONAL

com os adversários. “Sem uma cooperação aceitar. E essa capacidade de atrair e reter
Málaga
Território constante e duradoura entre as institui- talentos tem sido crucial, uma vez que nos
britânico ta del Sol ções, este projeto nunca se poderia ter tem permitido evitar sermos mantidos
de Gibraltar Cos Enclave
espanhol ARGÉLIA realizado”, sublinha Romera. Mas rece- reféns da tecnologia americana ocidental.
150 km de Melilla beu o apoio do PSOE [Partido Socialista Ao longo dos anos, Málaga tornou-se não
MARROCOS Operário Espanhol], do PP, da Izquierda só um destino cultural e turístico de eleição

MAIO 2023 - N.º 327 77

 Viagem
mas também uma cidade que tem um apelo
inegável para as empresas tecnológicas e
especialmente para os seus empregados.”
Ganhar menos, mas apanhar sol
O jornalista Nacho Sánchez, que se mudou
de Antequera [uma cidade vizinha], em
1999, para estudar na universidade em
Málaga, assistiu na primeira linha a este
tipo de êxodo inverso. Em vez de exportar
mão de obra a baixo custo, Málaga acolhe
há vários anos os principais especialistas
em tecnologia de ponta. Mais recente-
mente, os operadores do setor financeiro
também começaram a afluir a Málaga.
“Sempre houve praias e um clima
agradável, mas isso não era suficiente
para atrair grandes empresas, diz. Mui-
tos fatores fizeram evoluir as coisas, sen-
do um deles a pandemia. Cada vez mais
pessoas querem mudar-se para um lugar
onde possam ter uma boa vida sem de-
sistir de uma carreira profissional. Fiquei
particularmente surpreendido ao ver que
os empregados do Citigroup [a empre-
sa de serviços financeiros com sede em
Nova Iorque abriu um centro para os seus
analistas juniores em Málaga, em 2022],
todos eles na casa dos vinte anos, membros
da Geração Z, não vêm com a intenção
de ganhar mais dinheiro. Eles preferem
ganhar menos, 30% a 40% menos do que
os seus colegas em Londres, e ser capazes
de caminhar até ao escritório, andar de
bicicleta ou apanhar sol em meados de
novembro.”
“Málaga combina benefícios naturais
com as vantagens de uma cidade de ta-
manho médio, onde não existem grandes
engarrafamentos e em que os transportes
públicos funcionam bem, prossegue Nacho
Sánchez. Não se encontra isso em todo o
lado. O facto do Citigroup ter recebido
3 700 currículos, para 27 empregos em
Málaga, no espaço de poucos dias, diz mui-
to sobre a atração da cidade... E quando
conheci alguns dos que conseguiram um
emprego, todos eles sublinharam a loca-
lização estratégica da cidade em relação
a outros lugares interessantes. Isadora
Sunderhus, uma brasileira de 23 anos,
disse-me que em apenas dois meses já
tinha visitado Praga e Paris. O Aeroporto
de Málaga-Costa del Sol, que fica a pouco
mais de 15 minutos de carro ou comboio
do centro, é um fator decisivo.”
A capacidade de ir e voltar rapidamente
para Madrid ou para qualquer outro lu-
gar é, efetivamente, um fator importan-
te, tanto para aqueles que vêm viver para
cá como para aqueles que, não há muito
tempo, tiveram de escolher entre partir
para o estrangeiro ou mudar de emprego.
78 MAIO 2023 - N.º 327
Javier Calleja, um artista de 51 anos cujo
trabalho faz furor em todo o mundo, re-
corda aqueles dias: “Antes, não tinha outra
escolha senão ir viver para Paris, Londres
ou Berlim... Ou, no mínimo, para Madrid
ou Barcelona. Todos falavam sobre a fuga
de cérebros, mas ninguém mencionava a
emigração cultural. De facto, eu fui viver
para Nova Iorque até me aperceber de que,
graças primeiro ao aeroporto e depois ao
comboio de alta velocidade, eu podia vi-
ver muito bem em Málaga. É verdade que
se tem a impressão de que Málaga está a
tornar-se uma cidade cara, mas depende
daquilo a que se compara. O custo de vida
é muito mais baixo do que em Nova Ior-
que ou mesmo Madrid. E a oferta cultural
em Málaga é suficiente para fazer inveja
a qualquer outra cidade. É verdade que
teria de ser desenvolvida uma política
para assegurar que as pessoas em certos
bairros não sejam desfavorecidas, mas, de
uma maneira geral, há mais vantagens do
que desvantagens.”
Melhor que Hollywood
Antonio Banderas é um daqueles artistas
que teve que sair de Málaga para prosseguir
a sua carreira. Quase 40 anos depois de ter
partido, o ator voltou para se estabelecer
na sua cidade natal, onde se tornou um
ícone. Na noite [de 2015], quando recebeu
o Goya de Honra, descreveu aos membros
da indústria cinematográfica reunidos para
a ocasião uma memória que sempre lhe
ficou na mente: a da plataforma da esta-
ção ferroviária de Málaga, a 3 de agosto
de 1980, às 18 horas. Duas silhuetas, as
dos seus pais, a encolher à medida que o
comboio da Costa del Sol se afastava em
direção a Madrid, onde o jovem Anto-
nio pretendia realizar o seu sonho de se
tornar ator.
“Têm de acreditar em mim, quando
digo que cada vez que acabava um take
ou um filme pensava em Espanha. Não no
Arizona, não em Cleveland. Para mim, o
mais importante era saber como o meu
trabalho seria recebido no meu país e, mais
especificamente, em Málaga e na minha vi-
zinhança”, acrescentou. Antonio Banderas
é agora um produtor de teatro de sucesso,
mas também uma importante atração tu-
rística. A sua casa é uma paragem obriga-
tória no circuito turístico. “Quando estou
no terraço, há pessoas que gritam a plenos
pulmões o meu nome desde a Alcazaba [a
fortaleza]: ‘Antonioooo!’ Acho que vou ter
de colocar uma silhueta de cartão.”
Mais sério, diz que a cidade mudou
muito desde que ele partiu, mas que tam-
bém evoluiu a sua maneira de ver: “É ine-
gável que Málaga está a viver um grande
momento. Os múltiplos museus da cidade,
o Teatro Soho [de que é proprietário] e o
Festival de Cinema, que serve de montra
para todo o cinema latino-americano, são
exemplos claros desta pátina cultural que o
ADN da cidade adquiriu e que se espalhou
a todos os seus habitantes.”
Esta última afirmação, no entanto, é
mais difícil de corroborar. Basta visitar
as zonas periféricas, aquelas que não se
encontram à beira-mar, aquelas das quais
não se pode ver os grandes navios de cru-
zeiro que atracam no porto todos os dias,
para constatar que o horizonte permanece
bloqueado para alguns dos habitantes.
A outra cidade
No bairro de La Palmilla, eleva-se uma
voz, a de José Miguel Santos. Este professor
de Matemática tem a impressão de que
nada está a mudar e que ele continua a
gritar no deserto. “Esta é a outra cida-
de. Mas esquecemo-nos que esta outra
cidade existe. Se compararmos os dados
recolhidos nestes bairros há 20 anos, há 10
anos e hoje, quando Málaga está em plena
expansão, podemos ver que os problemas
de insucesso, absentismo e abandono es-
colar e a falta de interesse nos estudos e
no futuro ainda lá estão. O que tem sido
feito para resolver o problema? O que é
que pretendemos fazer? Seria assim tão
difícil assegurar que o sucesso da cidade
beneficie, até certo ponto, os mais desfa-
vorecidos, que os ajude a sair destes becos
sem saída?”
Durante a nossa entrevista, anotei três
números no meu caderno – 30, 15, 8 – e
um gesto. O primeiro, 30, é o número de
jovens que começam o primeiro ano do
Ensino Secundário obrigatório na escola
onde ele ensina; 15 é o número de alunos
que ainda lá estão, quatro anos mais tar-
de, e 8 é o número daqueles que entram

MÁLAGA DEVE O SEU ENCANTO NÃO SÓ AO NOVO MÁRMORE
DAS RUAS DO CENTRO, ÀS LUZES DE NÉON DAS LOJAS
DA CALLE LARIOS E ÀS FESTAS QUE LÁ ACONTECEM AOS
FINS DE SEMANA, MAS TAMBÉM ÀQUELES QUE AJUDARAM
A TORNÁ-LO ÚNICO. ENTRE ELES, RAFAEL MARTÍN DELGADO
E ISABEL CÁMARA, OS ARQUITETOS DO MUSEU PICASSO
no Ensino Secundário ou na formação
profissional. Não se sabe quantos deles
completam os seus estudos, mas o gesto
de impotência de José Miguel Santos não
dá muita esperança.
Felipe Romera insiste, contudo, que
um jovem que fala inglês e aprende a pro-
gramar poderá sempre encontrar trabalho
em Málaga. O presidente da câmara, Fran-
cisco de la Torre, acredita que a procura
da excelência é a chave para assegurar que
a popularidade atual de Málaga perdure.
“Devemos procurar a excelência em todas
as áreas, acrescenta, incluindo o turis-
mo. Prefiro um hotel de cinco estrelas a
um estabelecimento de quatro, e um de
quatro a um de três estrelas... Gera mais
rendimentos para a cidade e para os em-
pregados da indústria do turismo. Por esta
razão, é também muito importante que
nos concentremos na formação.”
Joaquín Cuenca é de certa forma a en-
carnação do sucesso da cidade. Em 2007,
quando tinha apenas 29 anos, o físico da
província de Alicante [no Sudeste de Es-
panha] tornou-se o primeiro espanhol a
vender uma empresa à Google. Hoje, como
CEO da Freepik, ainda é um membro ativo
de uma linha de jovens empreendedores
no mundo da tecnologia. Uma das coisas
que os distingue é a sua extraordinária
capacidade de transformar tudo em ouro,
mas também o seu foco em Málaga e na
sua independência, incluindo a do parque
tecnológico.
As instalações da empresa de Joaquín
Cuenca ocupam quase todo o edifício ao
lado da catedral. A sua mensagem é cla-
ra: “Em termos de tecnologia e inovação,
Málaga conseguiu tornar-se um exemplo
de uma cidade onde a vida é boa. Mas tam-
bém tem havido um aumento acentuado
do turismo, o que igualmente pode ter
um impacto negativo. As medidas que são
tomadas para melhorar a cidade têm por
vezes o efeito de arruinar o que a tornava
atrativa em primeiro lugar.”
Esta última frase resume bem o cerne
do problema. Como pode esta cidade que
deslumbra, esta cidade de que todos falam,
esta cidade que é agradável para passear e
para a qual, graças ao transporte de alta ve-
locidade, dezenas de milhares de pessoas se
reúnem todos os fins de semana, continuar
a brilhar sem perder a sua alma? Este é um
debate muito real, um debate enriquecedor
cujos argumentos devem ser examinados,
especialmente quando vemos como outras
cidades – Barcelona, por exemplo – são
vítimas do seu próprio sucesso.
Málaga deve o seu encanto não só ao
novo mármore das ruas do centro, às luzes
de néon das lojas da Calle Larios e às festas
que lá acontecem aos fins de semana, mas
também àqueles que ajudaram a torná-lo
único. Entre eles, Rafael Martín Delgado
e Isabel Cámara, os arquitetos do Museu
Picasso [inaugurado em 2003 num palácio
renovado do século XVI], que também di-
rigiu a restauração da Alcazaba, e Miguel
Ángel Oeste, que trabalha no Festival de
Cinema e escreveu um romance envolvente
chamado Vengo de ese miedo [publicado
em 2022].
Depois há Lucía Vázquez, que recebeu
uma chamada há vários anos quando se
tinha instalado em Filadélfia para estu-
dar museologia “numa altura em que não
existiam museus em Málaga”. Foi con-
vidada a juntar-se à equipa do Museu
Picasso: “Ainda não recuperei da minha
surpresa.” Ou María Jesús Bernet e José
Antonio Mesa Toré, que graças ao Centro
Generación del 27 e a outras iniciativas
culturais, mantiveram viva a chama da
poesia, numa época em que Málaga não
significava nada.
Ou Melina Frías, que, numa quarta-
-feira de novembro com temperaturas
estivais, vagueia longe das ruas do centro,
ainda cheio de turistas, entra num discreto
tablao perto do Centro Pompidou e pede
um copo de um vinho chamado La Ola del
Melillero. “Sabe de onde vem esse nome?”
Sorrindo, fala-me da onda provocada
pelo barco que viajava entre Melilla [um
enclave espanhol em Marrocos] e o porto
de Málaga ao passar em frente à cidade,
uma onda [ola, em espanhol] que molhava
as toalhas daqueles que não tinham visão
suficiente. Bastava olhar para onde os ba-
nhistas colocavam as suas toalhas a uma
determinada hora da tarde para ver quem
era de Málaga e quem era de fora. Não seria
surpreendente ver um finlandês a retirar
a sua toalha mesmo a tempo.
“E porque é que o flamenco lhe faz
mal? – Isso é outra história.”
MAIO 2023 - N.º 327 79
L L I V RO S
Leituras que nos ajudam
a compreender o mundo atual
Um homem
com um plano
No início deste século, os turcos estavam cansados
do Estado autoritário que os governava e eram
fervorosos a exigir que fossem cumpridas as
mudanças que lhes permitiriam cumprir o sonho
partilhado pela maioria da população: aderir à União
Europeia. Foi nesse cenário e apresentando-se
como um “democrata muçulmano” reformador
que Recep Erdogan chegou ao poder, com grande
apoio popular. Nos primeiros anos, ele foi a
personificação do sonho europeu da Turquia, ao
mesmo tempo que o país crescia economicamente,
numa sábia gestão das relações entre o Oriente e
o Ocidente. Por que motivo, então, a Turquia, anos
mais tarde, acabou por sucumbir ao autoritarismo,
regressou ao nacionalismo e virou as costas ao
Ocidente? A resposta é a razão de ser deste livro.
E começa por aqui: “Para muitas pessoas, como é
evidente, existe uma resposta simples: Recep Tayyip
Erdogan. Como manipulador astuto, aproveitou a
democracia eleitoral para se apoderar de cada vez
mais autoridade e, consequentemente, instalar um
regime de um homem só.” É essa história, passo a
passo, que aqui se conta – uma lição para todos os
que pensam que as democracias são eternas.
A Turquia sob Erdogan
DE DIMITAR BECHEV
Tradução de Inês Vaz Pinto
CASA DAS LETRAS
80 MAIO 2023 - N.º 327
Histórias
de coragem
“É mais fácil, nestes tempos
confusos, admirar a bravura
física do que a coragem moral,
a coragem da vida intelectual,
ou de figuras públicas”, escreve
Salman Rushdie a abrir um dos
muitos ensaios agora reunidos.
“O herói de uns é o vilão de
outros. Já não conseguimos
chegar facilmente a acordo
sobre o que significa ser bom, ou
ter princípios, ou ser corajoso”,
acrescenta ainda o autor, num
escrito, com mais de uma
década, sobre a coragem, e que
hoje está ainda mais atual. E se
há caraterística que depressa
associamos a Rushdie é
precisamente a da coragem – a
mesma que se manifesta em
quase todos estes ensaios,
publicados entre 2003 e 2020,
e que nos permitem uma
viagem fascinante por alguns
dos temas e acontecimentos
mais importantes deste século
em que, como sabemos, se
tem revelado cada vez mais
difícil distinguir os bons dos
maus. Salman Rushdie é,
definitivamente, um dos bons
– mesmo que seja odiado por
muitos maus.
Linguagens
da Verdade – Ensaios
2003-2020
DE SALMAN RUSHDIE
Tradução de Isabel Lucas
D. QUIXOTE
Com a verdade
nos enganam
Dois séculos antes da invenção
das redes sociais, o filósofo alemão
Arthur Schopenhauer já tinha
escrito o livro que, sem saber,
poderia ser o manual perfeito para
a escolha das melhores armas
durante um debate, seja sobre
que tema for. Este livro é, por si
só, nas suas curtas páginas que
se leem num par de horas, um
tratado maravilhoso acerca de
perversidade da mente humana.
Nele percebemos, claramente,
como somos capazes de tudo
só para não reconhecer que
podemos estar errados. E como,
numa discussão, o que se procura,
na maior parte dos casos, não
é a busca da verdade, mas tão-
somente manter intacta a nossa
vaidade inata. Aquela que, como
explica Schopenhauer, é sempre
“acompanhada por loquacidade e
uma desonestidade inatas”. E se
há lição que podemos confirmar
através da leitura deste livro é
aquela que qualquer espírito ainda
com um mínimo de sanidade já
teria descoberto ao olhar para o que
corre nas redes sociais: “São poucos
os que querem pensar, mas todos
querem ter uma opinião.”
A ARTE DE VENCER UMA
DISCUSSÃO SEM PRECISAR
DE TER RAZÃO
DE ARTHUR
SCHOPENHAUER
Tradução de Alexandra Cardoso
ALMA DOS LIVROS
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Monte do Vilar. Trata-se de um agroturismo de charme próximo de
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DIÁSPORA DE LÍDERES
O que têm em comum
Sundar Pichai, Satya Nadella,
Shantanu Narayen e Arvind
Krishna, para além de serem
os CEO de grandes empresas
tecnológicas como a Alphabet
(Google), Microsoft, Adobe
e IBM, respetivamente?
Todos eles nasceram na
Índia e distinguiram-se em
universidades indianas antes
de partirem para os EUA, onde
prosseguiram os seus estudos
e, mais tarde, construíram
carreiras sólidas em empresas
líderes. Sundar Pichai e Satya
Nadella, devido ao poder da
Google e da Microsoft, surgem
com frequência nas capas das
principais revistas económicas
e de tecnologia. Mas há muitos
outros CEO indianos a dar
cartas nas grandes empresas,
como Leena Nair (Chanel),
Amrapali Gan (OnlyFans),
Jayshree Ullal (Arista), Nikesh
Arora (Palo Alto Networks),
Punit Renjen (Delloite), Anjali
Sud (Vimeo), entre outros.

82 MAIO 2023 - N.º 327

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