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Janeiro 2024
NÚMERO 335 | MENSAL | €5,20 (Cont.)
A EPIDEMIA DA INSÓNIA

A EPIDEMIA DA INSÓNIA
O stresse no trabalho, as pandemias, as guerras
e a emergência climática estão a estragar-nos o sono.
Como o número de horas que dormimos se tornou uma obsessão
– e o preço que pagamos pela falta de repouso
FALTER, THE GUARDIAN, THE NEW YORK TIMES

ISRAEL-PALESTINA ALIMENTAÇÃO CHINA


UMA LONGA HISTÓRIA ESCASSEZ DE ARROZ PEQUIM DE OLHOS
Janeiro 2024

DE OPORTUNIDADES AMEAÇA EM ÁFRICA


PERDIDAS O MUNDO E NA AMÉRICA LATINA
L’ORIENT-LE JOUR FINANCIAL TIMES, DE VOLKSKRANT SOUTH CHINA MORNING POST, AMERICAS QUARTERLY
S SUMÁRIO

JANEIRO 2024
06 Editorial

08 Cartoons

Atual
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CONFLITO ISRAELO-
EDIÇÃO N.º 335
-PALESTINIANO
Courrier internacional

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25 Nas minas da
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4 JANEIRO 2024 - N.º 335


E
A

EdITORIAL
DE OLHOS MAL FECHADOS
R U I TAVA R E S G U E D E S
rguedes@visao.pt Se há algo que os grandes e mais competitivos atletas do mundo sabem é que tão
importante como treinar bem é conseguir dormir melhor. A quantidade e qualidade
das horas de sono desempenham, na sua preparação, um papel relevante em
todos os planos e são mesmo decisivos nas vésperas de uma grande competição
internacional. Quando, por exemplo, os Jogos Olímpicos decorrem num fuso
horário distante, torna-se obrigatório delinear uma estratégia, com várias semanas
de antecedência, para evitar qualquer perturbação no sono. Os corpos dos atletas
são estudados ao pormenor e monitorizados em permanência, procuram-se todos
os dados sobre as condições atmosféricas que se vão encontrar e, geralmente,
tenta-se simular, à distância, tudo aquilo que o organismo vai enfrentar. Sempre
com um objetivo central: procurar que nada perturbe a “máquina perfeita” que
andou anos e anos a ser treinada, constantemente em busca da superação dos
supostos limites físicos.
Sabemos, também, que os atletas que prolongam por mais tempo as suas
carreiras desportivas são aqueles que, no dia a dia, procuram proteger o seu corpo e,
dessa forma, conseguir atenuar os sinais inevitáveis de envelhecimento. São os que
se alimentam melhor e, não haja dúvidas, os que mais tempo dormem. Aqueles para
quem o sono faz parte do treino.
Sabendo tudo isto sobre as estrelas atléticas e desportivas que admiramos,
não deixa de ser paradoxal que, na cultura empresarial e até em certas visões da
sociedade, exista tão pouca preocupação com o sono e
o descanso obrigatório de quem trabalha. Muitas vezes,
até, o que se glorifica são as personalidades que se
ufanam de dormir pouco, de conseguirem passar noites
acordados a trabalhar. Como se fossem uma espécie
de super-heróis, para quem a melatonina é quase uma
kryptonite que lhes iria retirar os poderes milagrosos e,
assim, tornarem-se meros mortais.
O outro paradoxo é que o aumento de pessoas com
insónias tem ajudado a criar uma autêntica indústria
em redor do sono. Para nos ajudar a dormir melhor,
há de tudo um pouco: camas desenhadas pelos
melhores designers, colchões ergonómicos, lençóis e
cobertores que nos são apresentados como científicos
e milagrosos, além de uma série de produtos farmacêuticos – muitos deles com o
rótulo de “natural” – e uma infinidade de aparelhos eletrónicos, aplicações para o
telemóvel e até listas de música infalíveis para um “sono retemperador”.
Sem retirar credibilidade a muitos destes produtos – alguns criados com
as melhores intenções, uns até beneficiando das experiências dos astronautas
no espaço –, temos de reconhecer que grande parte do problema do sono está
hoje mais relacionado com a pressão existente nas sociedades atuais do que com
qualquer “evolução negativa” ocorrida nos nossos organismos. Dormir, quer se
COURRIER INTERNACIONAL queira quer não, é um dos atos mais naturais do mundo – e essencial, aliás, à nossa
Disponíveis nas lojas sobrevivência. E, se quisermos dormir melhor, a primeira coisa que temos de fazer
da Apple e da Google é melhorar a nossa vida: carregar menos preocupações na hora de nos deitarmos,
as aplicações necessárias livrar-nos das pressões e dos stresses que nos baralham a cabeça.
Dormir bem, de forma retemperadora, faz parte do descanso obrigatório que o
nosso organismo necessita. Por isso, os grandes campeões do desporto encaram o
descanso com o mesmo rigor e entusiasmo com que puxam pelo físico. Dentro de
uma velha máxima: quanto mais puxado for o treino, maior terá de ser também o
período de repouso. Aquilo que é comprovado pelos superatletas devia ser a regra
para as pessoas normais. Para que isso aconteça, precisamos de decisores mais
interessados no bem-estar das pessoas do que na métrica simples da produtividade
ou dos índices de desempenho. E, de preferência, com noites mais bem dormidas.

6 JANEIRO 2024 - N.º 335


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C CARTOONS

Festa ou terror?
Félix Tshisekedi foi reeleito
Presidente da República
Democrática do Congo.
“E o povo está contente”, diz ele…
apesar dos motins registados
no país africano
SONDRON, PARA L’AVENIR, Sósia e sucessor?
NAMUR, BÉLGICA Gabriel Attal foi nomeado primeiro-ministro de França, e Emmanuel
Macron espera ter feito uma boa escolha… e não ser ofuscado pelo seu jovem delfim
SONDRON, PARA L’AVENIR, NAMUR, BÉLGICA

8 JANEIRO 2024 - N.º 335


Em nome do povo?
Donald Trump a voar entre os apoiantes… e os processos judiciais. Quem o deixará cair?
CÔTÉ, PARA LE SOLEIL, CANADÁ

Justiça para
todos?
“Impeçam-nos de
cometer genocídio”,
afirma o representante da
África do Sul. “Proíbam
essa palavra”, responde
o de Israel
CHAPPATTE, PARA LE TEMPS,
GENEBRA, SUÍÇA

JANEIRO 2024 - N.º 335 9


CONFLITO ISRAELO-PALESTINIANO

Uma longa
história
de oportunidades
perdidas
DESDE QUE COMEÇOU, HÁ UM SÉCULO, O
PRINCIPAL CONFLITO NO MÉDIO ORIENTE TEM
FICADO MUITAS VEZES REFÉM DE EXTREMISTAS
ISRAELITAS E PALESTINIANOS. MAS TAMBÉM DE
FALSOS AMIGOS DO MUNDO ÁRABE E DO IRÃO.
EM TEORIA, HÁ UMA SOLUÇÃO – A CRIAÇÃO
DE DOIS ESTADOS –, MAS A SUA APLICAÇÃO
EXIGE BOA VONTADE, QUE NÃO EXISTE

L’Orient-Le Jour
Beirute
Campo de refugiados palestiniano, em 1948,
após a formação do Estado de Israel
FOTO GETTYIMAGES
Conflito

E
Em janeiro de 1992, o inverno em Wa- tantes da sociedade civil nos territórios
shington D.C. foi tudo menos rigoroso. ocupados, os chamados palestinianos “do
A delegação palestiniana, preparada para interior” – de Jerusalém Leste, da Cisjordâ-
negociações de paz israelo-árabes, aca- nia e da Faixa de Gaza. Composta por acadé-
bava de se hospedar num luxuoso hotel micos, juristas, médicos, filósofos e outros
de cinco estrelas nas margens do rio Po- profissionais, a delegação em Washington
tomac. As delegações jordana, síria e li- não correspondia ao que o mundo conhecia
banesa também escolheram acomodações até então sobre a Palestina.
sumptuosas, estrategicamente distantes Até a sua indumentária sinalizava uma
umas das outras. transformação. Não se viam keffiyehs, ócu-
Um pormenor curioso: os israelitas op- los escuros e barbas desalinhadas [a “marca
taram por um hotel de três estrelas, mais registada” de Yasser Arafat], que lembravam
modesto. Por pouco tempo. Mais tarde, à a década de 1970 e a era da pirataria aérea
medida que as negociações se prolongavam [protagonizada por George Habash]. Os
– duraram um ano e meio –, também eles delegados palestinianos apareceram de fato
se mudariam para um lugar mais pomposo. e gravata e tailleurs elegantes. Ainda não o
Entre os palestinianos, o ambiente era sabíamos, mas esta metamorfose exerceria
de entusiasmo. Tratava-se da primeira ses- influência psicológica considerável – sobre
são na capital norte-americana do processo os delegados israelitas ou, pelo menos, so-
de paz [iniciado na Conferência de Madrid bre os interlocutores norte-americanos.
de 30 de outubro – 1 de novembro de 1991], e Paradoxalmente, foi o então primeiro-
as apresentações corriam bem. Os delegados -ministro israelita, Yitzhak Shamir, quem
esboçavam largos sorrisos aos jornalistas, impôs que a delegação incluísse apenas os
que retribuíam. palestinianos “do interior”. Numa deci- Palestina. Neste aspeto, o facto de estarem
É preciso dizer que, naquela altura, são que poderia ter feito descarrilar todo fisicamente separados das delegações árabes
a causa palestiniana tinha uma grande o processo – e que os EUA tiveram grande em hotéis diferentes funcionou convenien-
cobertura nos meios comunicação social dificuldade em pôr em marcha –, Shamir, temente como álibi.
internacionais, o que não é hoje o caso. alegando que a Palestina não era um Estado, Já a delegação libanesa foi um caso
Tanto assim que um jornalista, particular- exigiu que a representação palestiniana fos- diferente. Apesar de fisicamente separa-
mente entusiasmado e distraído, escreveu: se uma subdelegação da comitiva jordana. da dos homólogos sírios, não foi possível
“Numa entrevista à OLP, em vez de ‘à AFP’ Numa curiosa dança diplomática, disfarçar o facto inegável de que Beirute
[Agência France-Presse].” Washington fez de conta que cedeu. Desde dependia totalmente de Damasco naquela
A realidade é que, naqueles dias, havia o início que os responsáveis norte-ameri- altura. [As tropas sírias, que entraram no
caras novas, em Washington, a representar canos fecharam os olhos à circunstância de Líbano em 1976, durante a guerra civil, só
a Palestina. Desapareceram Abu Jihad, Abu Faisal Husseini, Saeb Erekat, Sari Nussei- abandonaram o “país do cedro” em 2005,
Iyad, George Habash, Nayef Hawatmeh e beh, Hanan Ashrawi, Nabil Shaath, Ghas- e forçadas.]
Abu Nidal. Estes veteranos de um outro san Khatib e os seus companheiros serem, Shamir era, inquestionavelmente, uma
tempo foram substituídos por represen- na realidade, os únicos representantes da personalidade temível e amarga. Defensor
de um “Grande Israel” [“do rio Jordão ao
mar Mediterrâneo”], usava o termo bíblico
AUTOR DATA TRADUTORA “Judeia-Samaria” para referir a Cisjordâ-
F Élie Fayad 06.11.2023 Maria Alves nia ocupada Antigo líder de dois grupos
terroristas, Irgun e Stern, conseguiu es-

12 JANEIRO 2024 - N.º 335


GOLDA MEIR CRITICOU HENRY KISSINGER POR
SE MOSTRAR DISTANTE, APESAR DE UMA HERANÇA
Yitzhak Rabin, Hosni Mubarak, Hussein da
JUDAICA PARTILHADA. KISSINGER RESPONDEU-LHE: Jordânia, Bill Clinton e Yasser Arafat ajeitam
“GOLDA, LEMBRA-TE DE QUE, EM PRIMEIRO LUGAR, SOU os seus fatos antes da assinatura dos
tratados de paz, em setembro de 1995
AMERICANO; EM SEGUNDO, SOU SECRETÁRIO DE ESTADO; FOTO GETTYIMAGES

EM TERCEIRO, E APENAS EM TERCEIRO LUGAR, SOU JUDEU”


capar de um campo britânico de detenção depois do sucesso retumbante da coliga- ção é o obstáculo principal à paz”, repetia
na Eritreia, em 1947, para depois planear ção árabe-ocidental, que formaram para Washington, quase diariamente, em 1991.
ou levar a cabo ataques violentos contra as expulsar Saddam Hussein do Kuwait [em Sobretudo porque Sharon, com fama de
forças do Mandato Britânico da Palestina. 1990], os Estados Unidos da América es- provocador, construía expandia os colo-
Não teria participado nas negociações em tavam decididos a impedir que qualquer natos sempre que Baker visitava o Médio
Washington se a Administração de Geor- extremista, judeu ou não, desperdiçasse Oriente para preparar as negociações.
ge H. W. Bush (1988-1992) não estivesse a oportunidade de se apresentarem como Em setembro de 1991, o Presidente dos
determinada a obrigá-lo. pacificadores do Médio Oriente. EUA queixou-se: “Há mil lobistas no Con-
Perante a dupla Yitzhak Shamir-Ariel gresso a fazer pressão para garantirmos os
Golda e Henry Sharon [este era ministro da Habitação], empréstimos a Israel, e eu sou um rapaz,
Confortados pela sua vitória na Guerra Fria, que acelerava a colonização da Cisjordânia, pequeno e solitário, a pedir aos congres-
após o colapso da União Soviética, e com Bush pai e o seu secretário de Estado, James sistas que as garantias sejam adiadas por
uma auréola de prestígio quase universal Baker, passaram à ofensiva. “A coloniza- 120 dias.”

JANEIRO 2024 - N.º 335 13


Conflito

na Universidade de Birzeit, na Cisjordâ-


nia, fez a sua estreia pública, granjeando
reputação internacional como oradora
carismática em defesa de uma causa justa.

Tempos de esperança
No dia da inauguração da conferência,
Ashrawi respondia a perguntas de jor-
nalistas, tantos que o encontro teve de
ser transferido para o exterior, quando foi
interpelada pelo repórter de uma publica-
ção cristã fundamentalista norte-ameri-
cana: “Vocês, muçulmanos… não percebo
como podem exigir a Israel que troque
território por paz se a Judeia e Samaria
estava nas vossas mãos quando Israel foi
atacado três vezes.”
Ashrawi deixou-o falar e depois escla-
receu: “Sou cristã palestiniana e conheço
bem o cristianismo. Sou descendente dos
primeiros cristãos; Jesus Cristo nasceu
no meu país, na minha terra. Não acei-
to a superioridade e o monopólio do seu
PARECIA IMPLAUSÍVEL QUE ARAFAT PUDESSE TER PISADO cristianismo.” Todos os presentes riram à
OS JARDINS DA CASA BRANCA, EM SETEMBRO DE 1993, gargalhada. O Médio Oriente é realmente
muito complexo.
PARA ASSINAR UM ACORDO DE PAZ E APERTAR A MÃO Um ano e três meses depois de Ma-
drid, a capital federal dos EUA emergia
A CLINTON, RABIN E SHIMON PERES SE O TRABALHO do inverno enfeitada com flores de cere-
jeira. O ambiente era de otimismo entre
DE BASE NÃO TIVESSE SIDO CONCLUÍDO DE ANTEMÃO, as várias delegações. Mas, entretanto, o
PARA TORNAR A OLP E O SEU LÍDER “ACEITÁVEIS” mundo mudou. O democrata Bill Clin-
ton, que sucedeu ao republicano George
H. W. Bush, acreditava firmemente, tal
A queixa obteve o apoio do Congresso, para um domínio momentâneo do discur- como o antecessor, que os Estados Unidos
que ameaçou reter ajuda financeira crucial so moderado sobre a retórica extremista, da América deveriam ser um “mediador
a Israel, mas diz-se que Bush sénior foi o numa região habituada ao oposto. honesto” no Médio Oriente. Mas Yitzhak
último inquilino da Casa Branca a criticar Por vezes, acontece os EUA, firmes no Rabin, que substituiu Shamir em Israel,
publicamente o lóbi pró-israelita. [A sua apoio a Israel, permitirem algumas nuan- estava prestes a mudar profundamente a
ousadia contribuiu para que cumprisse um ces na sua política e relações intrincadas política do seu país.
só mandato, porque o poderoso American com o Estado judaico. Na década de 1970, Pela primeira vez, um chefe do gover-
Israel Public Affairs Committee (AIPAC) a então primeira-ministra israelita, Gol- no de Telavive endossava uma política de
não apoiou a sua reeleição em 1993.] da Meir, criticou o chefe da diplomacia “separação física” entre israelitas e pales-
O braço de ferro Bush-Shamir ilus- de Washington, Henry Kissinger, por se tinianos, especificamente os árabes que
trou vividamente que, quando os Estados mostrar distante, apesar de uma herança residem na Cisjordânia e Faixa de Gaza –
Unidos da América desejam alguma coisa, judaica partilhada. Kissinger respondeu- territórios ocupados, mas não anexados
Israel acaba por alinhar. Basta que Wa- -lhe: “Golda, lembra-te de que, em pri- – e não os árabes que vivem em território
shington faça a sua parte. Mas esta dinâ- meiro lugar, sou americano; em segundo, israelita e têm cidadania israelita.
mica também pressupõe um compromisso sou secretário de Estado; em terceiro, e O que havia de novo nesta abordagem
recíproco do outro lado da arena, ou seja, apenas em terceiro lugar, sou judeu.” Ela era o facto de sugerir a existência de um
que os protagonistas árabes e palestinianos retorquiu: “Henry, esqueces-te de que, povo palestiniano distinto, separado dos
tenham vontade de fazer o mesmo. em Israel, lemos [em hebraico] da direita restantes árabes (jordanos, sírios, egípcios,
No início dos anos 90, as coisas cami- para a esquerda?” etc.), e dos outros habitantes da Palestina
nhavam aparentemente nessa direção. A Regressemos ao hotel luxuoso em Wa- histórica, fossem eles judeus ou árabes.
exaustão sentida depois de mais de três shington onde se hospedara a delegação Até então, a filosofia dominante do
anos de revolta nos territórios ocupados palestiniana. Findas as sessões prelimina- sionismo negava qualquer singularidade
(a Primeira Intifada, 1987-1993), as conse- res, Hanan Mikhail Ashrawi, a verdadeira aos árabes palestinianos. O mais irónico é
quências da invasão iraquiana do Kuwait, a “estrela” do grupo do qual era porta-voz que esta negação – que levava os sionistas
insatisfação das monarquias petrolíferas do oficial, convocou os jornalistas para uma mais irredutíveis a dizer que tinham vindo
Golfo Pérsico com Arafat [por ter apoiado conferência de imprensa, um exercício dos quatro cantos da Europa e de outras
Saddam Hussein] e a perda de influência para o qual era inegavelmente talentosa. regiões para reclamar “uma terra sem povo
dos grupos palestinianos mais radicais – Três meses antes, na Conferência de Ma- para um povo sem terra” – coincidiu com
tudo isto contribuiu, pela primeira vez, drid, esta professora de Literatura Inglesa outra negação. O nacionalismo árabe, em

14 JANEIRO 2024 - N.º 335


nome do qual a Palestina era considera- ruega, onde emissários de Yasser Arafat e muito resistia a qualquer noção de mudança
da não uma pátria para os palestinianos de Yitzhak Rabin discutiam um acordo no sob o regime do Presidente, Hafez al-Assad.
mas apenas uma província da nação árabe, maior secretismo. Um milagre aconteceu: seguindo o con-
perpetuou esta contranarrativa. Tentemos agora imaginar Oslo sem selho do então primeiro-ministro libanês,
Diz muito sobre a evolução do Partido Washington. É que a diplomacia também Rafic Hariri, com a ajuda do recém-eleito
Trabalhista e da esquerda em Israel como envolve psicologia. Parecia implausível Presidente francês, Jacques Chirac, Assad
um todo que Yitzhak Rabin, um militar que Arafat pudesse ter pisado os jardins aceitou aderir a uma nova coligação geo-
até então considerado um “falcão” que, da Casa Branca, em setembro de 1993, para política inteiramente ligada ao Ocidente,
quando era ministro da Defesa, ameaçara assinar um acordo de paz e apertar a mão conhecida como Euromed – uma decisão
“quebrar a espinha” dos miúdos palesti- a Clinton, Rabin e Shimon Peres [ministro totalmente inconcebível meses antes.
nianos que lançavam pedras aos soldados, israelita dos Negócios Estrangeiros], se o Primeiro, porque, ao nível mediterrâni-
se tornasse subitamente apóstolo de um trabalho de base não tivesse sido concluído co, o processo de paz israelo-palestinia-
processo de paz suscetível de conduzir à de antemão, para tornar a OLP e o seu líder no estagnara. Segundo, porque, na frente
criação de dois Estados. “aceitáveis” aos olhos da opinião pública europeia, a Alemanha mudara o seu foco,
Infelizmente, no momento em que esta norte-americana e ocidental. obrigando os aliados a dar prioridade ao
metamorfose ocorria, uma outra mudança, Numerosos comentadores criticaram alargamento da UE em direção à Europa
mais ampla e estrutural, começava a emer- as falhas dos Acordos de Oslo, e é uma do Leste, em vez estabelecer parcerias ro-
gir na sociedade israelita. Desde meados da crítica que persiste. Não estão totalmente bustas – e muito necessárias – com o Sul. O
década de 1980 que as comportas da imigra- errados, pois o próprio texto está longe de acordo Euromed foi assinado em Barcelona,
ção judaica, em particular as que se abriram cobrir todos os aspetos do problema, mas em novembro de 1995 – mês fatídico, que
na Rússia, despejavam no Estado hebraico não propuseram alternativas conclusivas. testemunhou as fases iniciais da morte do
um fluxo de imigrantes menos instruídos e No entanto, o significado histórico reside processo de paz.
mais fervorosos nas suas crenças do que as no facto de, pela primeira vez, aqueles O primeiro ato desta morte registou-se
gerações anteriores. Isto contribuiu para acordos terem dado origem ao esboço de em 4 de novembro, quando Yitzhak Rabin
que a paisagem política virasse à direita. um governo palestiniano, conhecido como foi assassinado, em Telavive, por um colono
Em apenas 15 anos, o Partido Trabalhista Autoridade Palestiniana. E, apesar de, ao judeu da extrema-direita, o que deixou o
praticamente desaparecia. longo dos anos, ter sido desacreditada [acu- mundo em estado de choque. Momenta-
Com Rabin na liderança, delegados e sada de corrupção], a AP não só perdura neamente, os apoiantes da paz tranqui-
jornalistas de todo o mundo, reunidos dia- como será componente crucial em qualquer lizaram-se porque o trabalhista Shimon
riamente à volta do gigantesco edifício onde solução do problema palestiniano. Peres iria suceder a Rabin e continuar o
funciona o Departamento de Estado, come- seu trabalho. Contudo, Peres, um mode-
çaram a acreditar sinceramente que a paz Morte em três atos rado com fraco peso político, dificilmente
era possível. Quase não prestavam atenção O mais importante a reter é que, entre conseguiu atrair as fações ainda hesitantes
a uma multidão crescente de excêntricos 1993 e 1996, começou no Médio Oriente da esquerda e do centro em Israel.
concentrados nas proximidades, agitando um inédito processo de paz. Este processo Segundo ato: nos meses seguintes, entre
cartazes com palavras de ordem cada vez até se estendeu às margens do rio Barada, 25 de fevereiro e 4 de março de 1996, o
mais violentas: “Rabin, traidor”; “Morte a em Damasco, capital de um país que há Hamas e a Jihad islâmica cometeram quatro
Rabin”; “Rabin, carrasco de Israel”.
Nos salões silenciosos dos hotéis luxuo-
sos de Washington, as línguas dos diploma- DIZ MUITO SOBRE A EVOLUÇÃO DO PARTIDO
tas norte-americanos soltavam-se. “Que
ideia excelente ter permitido que pessoas da
TRABALHISTA E DA ESQUERDA EM ISRAEL COMO
sociedade civil representassem a Palestina”, UM TODO QUE YITZHAK RABIN, UM MILITAR ATÉ ENTÃO
exultou um jovem prodígio do Departa-
mento de Estado. “Antes, para o mundo CONSIDERADO UM “FALCÃO”, SE TORNASSE APÓSTOLO
inteiro, os palestinianos eram sinónimo de
terrorismo, desvio de aviões, sequestro de DE UM PROCESSO DE PAZ SUSCETÍVEL DE CONDUZIR
atletas israelitas nos Jogos Olímpicos de Mu- À CRIAÇÃO DE DOIS ESTADOS
nique [em 1972]. Agora, a América descobre
homens e mulheres decentes que nos dizem
‘somos palestinianos, Israel espoliou-nos;
chegou a hora de reconhecerem o nosso
direito a um Estado’. E nós podemos aceitar
perfeitamente esta mensagem, porque é
expressa por eles.”
Isto resume bem o caminho percorri-
do desde a primeira sessão de negociações
bilaterais em Washington. É verdade que,
no final, elas não passaram de uma mera
fachada do processo de paz, pelo menos no
que diz respeito aos palestinianos. Porque os
“assuntos sérios” seriam discutidos numa
zona rural próxima de Oslo, capital da No-

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Conflito

A GUERRA ISRAELO-ÁRABE QUE REBENTOU APÓS


atentados suicidas em Jerusalém e Telavive. A PROCLAMAÇÃO DO ESTADO DE ISRAEL, A 14 DE MAIO
Peres foi vaiado na rua por uma multidão
israelita enquanto inspecionava o local dos DE 1948, DEU AOS JUDEUS UM TERRITÓRIO MAIS VASTO
atentados. Yasser Arafat, que assumira a
presidência da Autoridade Palestiniana,
DO QUE O PREVISTO, INCLUINDO JERUSALÉM OCIDENTAL
condenou os ataques e pronunciou-se a
favor de uma cooperação com Israel em do direito de retorno dos refugiados]. Cada “estatuto especial” reservado a Jerusalém.
matéria de segurança, mas também ele se vez mais agitados, os extremistas saíram Além disso, o território que teoricamente
viu rapidamente esmagado pela chantagem à rua. Mas será que alguma vez a abando- lhes foi atribuído, um pouco maior do que
dos seus extremistas. naram? Nem por isso. o reservado aos árabes, consistia em quase
Terceiro ato: nas eleições de 29 de maio Já na década de 1930 a maior parte dos 40% do deserto do Neguev.
de 1996, Peres foi derrotado por um triz movimentos e organizações sionistas na Os judeus hostis à partilha não preci-
por... Benjamin Netanyahu [que incentivara Palestina se opunha veementemente aos saram sequer de manifestar publicamente
os insultos a Rabin]. Israel vira à direita. O compromissos sugeridos pela Grã-Breta- a sua objeção. Sabiam que os árabes fariam
governo de Netanyahu passaria três anos nha, a potência mandatária, para resolver tudo para obstruir a aplicação da resolução
a minar o processo de paz. Em 1999, aos o problema árabe-judaico. Para agravar a da ONU. Não era uma expectativa infunda-
trabalhistas foi oferecido um interlúdio fi- situação, estes grupos abstiveram-se de da, considerando que o Alto Comité Ára-
nal com a eleição para primeiro-ministro assumir uma posição e mantiveram-se em be Palestiniano [o organismo político que
de Ehud Barak. Este, que um dia afirmara silêncio, plenamente conscientes de que os representou os palestinianos entre 1936 e
“se eu fosse palestiniano, na idade certa, extremistas árabes, rápidos a reagir, rejei- 1948] era dominado por uma linha dura e
acabaria por me juntar a um dos grupos tariam também qualquer compromisso. presidido por um velho conhecido [o grande
terroristas”, tentou, com a cumplicida- Assim aconteceu, apesar de, nos últimos mufti de Jerusalém], Haj Amin al-Husseini.
de de Bill Clinton, reanimar o moribundo anos do Mandato Britânico, antes e até de- A este nacionalista, que desejava arden-
processo de paz. pois da II Guerra Mundial, as autoridades de temente a vitória de Hitler na II Guerra
Desta vez, Arafat já não era um ator- Londres terem sido, objetivamente, muito Mundial, não interessava a cooperação.
-chave, apesar de o seu principal lugar- mais favoráveis aos árabes do que aos judeus. Claro que, no campo árabe, também
-tenente, Yasser Abed Rabbo, se ter juntado havia gente dissimulada. O rei Abdullah
ao negociador trabalhista Yossi Beilin, para Manobras de rejeição da Transjordânia (bisavô e homónimo do
formular um plano de paz mais ambicioso O plano de partilha da Palestina, aprovado atual rei da Jordânia) manifestara secre-
do que os Acordos de Oslo. Enfraquecido, o pela Assembleia Geral das Nações Unidas tamente apoio ao plano de partilha. Mas
Presidente palestiniano rejeitaria a proposta em novembro de 1947, teve um destino não tencionava aceitar um Estado pales-
israelo-americana [de um Estado em 77,5- semelhante. Oficialmente, foi aceite pelos tiniano independente, pois considerava
81% da Cisjordânia, onde Israel anexaria judeus (31,8% da população) e rejeitado que a parte árabe do território era sua
áreas estratégicas e garantiria soberania pelos árabes (68,2%). A realidade tinha mais por direito. Em última análise, Abdullah
sobre os maiores colonatos; um Estado que matizes: sabe-se agora que muitos judeus concretizaria parcialmente este objetivo
não incluiria Jerusalém Leste e que abdicaria não eram a favor, principalmente devido ao seis meses depois, no rescaldo da Nakba

16
OLP: “Representante legítima”
dos palestinianos
[“catástrofe”, termo árabe utilizado para Fundada pela Liga Árabe em 1964, em Jerusalém, quando o setor oriental da cidade
descrever o êxodo de, pelo menos, 750 mil estava sob administração jordana, a Organização de Libertação da Palestina, nacionalista
palestinianos de 530 aldeias e cidades da e secular, descreve-se como “representante legítima do povo palestiniano” – um título
Palestina histórica, entre 1948 e 1949]. que o movimento islamista Hamas não lhe reconhece. O objetivo da OLP é “libertar os
A Palestina acabou por ser dividida, territórios ocupados por Israel e criar um Estado soberano nas fronteiras de 1967”.
mas não como estipulava o plano das Na- Depois da Naksa, a “derrota” na chamada Guerra dos Seis Dias, em que Israel
ções Unidas. A guerra israelo-árabe que conquistou a Cisjordânia, Jerusalém Oriental, a Faixa de Gaza, a península do Sinai
rebentou após a proclamação do Estado (devolvida ao Egito em 1991) e os montes Golã, na Síria, vários grupos de resistência
de Israel, a 14 de maio de 1948, deu aos armada juntaram-se à OLP. O maior continua a ser a Fatah (acrónimo invertido de
judeus um território mais vasto do que o Harakat al-Tahrir al-Watani I-Filastin, Movimento de Libertação Nacional da Palestina),
previsto, incluindo Jerusalém Ocidental. formada em 1959, por Yasser Arafat (Abu Ammar), Salah Khalaf (Abu Iyad) e Khalil
Quanto à restante parte árabe – Jerusa- al-Wazir (Abu Jihad), quando eram emigrantes palestinianos no Kuwait.
lém Oriental, a Cisjordânia e a Faixa de A segunda maior fação é a Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP, marxista-
Gaza –, nunca chegou a ser uma Palestina leninista), criada pelo médico cristão George Habash, que perdeu a sua casa em Lydda
independente. Por causa de Israel? Não, (atual Lod) durante a Nakba (o êxodo imposto por Israel), em 1948. Na década de
pelo menos não diretamente. Por causa 1960-1970, para “pôr a causa palestiniana no mapa”, Habash foi responsável por vários
dos árabes? Infelizmente, sim. desvios de aviões internacionais, que, por sua vez, conduziram a uma guerra civil na
A Transjordânia tornou-se oficialmen- Jordânia. Com o trono em perigo, o rei Hussein expulsou milhares de combatentes da
te Jordânia ao anexar Jerusalém Oriental OLP para o Líbano, numa ofensiva que ficou conhecida como Setembro Negro. Habash
e a Cisjordânia; o Egito apropriou-se da morreu em Amã, em 2008, aos 81 anos. Sucedeu-lhe Ahmad Sa’adat, condenado por
Faixa de Gaza. Porquê esta anexação? Por- Israel, em 2006, a 30 anos de prisão.
que os Estados árabes vizinhos de Israel Dissidente da FPLP, a Frente Democrática de Libertação da Palestina (FDLP) é a terceira
não queriam uma Palestina independen- fação da OLP, dirigida pelo católico Nayef Hawatmeh, que nasceu em 1938, em Salt, na
te e incontrolável que os arrastasse para antiga Transjordânia, mas continua a viver na Síria, o seu patrono. A ala militar da FDLP,
conflitos com Israel, que eles não queriam Brigadas da Resistência Nacional, aliou-se ao Hamas em Gaza.
nem planeavam. Graças a Yasser Arafat, que a liderou desde 1969 (o primeiro presidente foi Ahmad
Ainda só estamos em 1948 e já tantas Shukeiri) até à sua morte, em 2004, a OLP conseguiu um lugar na ONU em 1974,
oportunidades se perderam. Lamenta- renunciou ao terrorismo em 1988 e reconheceu Israel no âmbito dos Acordos de Oslo,
velmente, muitas mais se seguiriam. Uma em 1993. Mahmoud Abbas (Abu Mazen) sucedeu a Arafat na liderança e foi eleito,
onda fervorosa de nacionalismo árabe var- em 2005, presidente da Autoridade Nacional Palestiniana, mas é muito impopular na
reu, entretanto, os países do Próximo e Cisjordânia, a sua base, e em Gaza, onde o Hamas governa sozinho desde 2006.
Médio Oriente (já para não mencionar os
do Magrebe). Esta onda apanharia a causa
palestiniana apenas para a suprimir de egípcio Saad Zaghloul, antigo primeiro- Foi naquela altura, em meados da déca-
uma maneira mais eficaz. Por toda a parte -ministro, fundador do Partido Wafd e da de 1960, que as organizações palestinia-
surgiram regimes militaristas e ditatoriais, herói da libertação do Cairo, respondeu nas começaram a ganhar importância e, aci-
que governavam segundo um princípio assim a um jornalista que lhe perguntou ma de tudo, começaram a oferecer os seus
supressivo: “Nenhuma voz deve abafar o o que pensava da unidade árabe: “Zero + serviços às potências árabes que pagassem
ruído da batalha.” zero + zero = zero.” mais. Um homem de grande inteligência e
Mas que batalha? A campanha do Suez Se tivessem feito a mesma pergunta carisma, Yasser Arafat, tentou pôr ordem
de 1956? Este foi um conflito tipicamente a Nasser, ele teria ajustado um pouco a nesta desordem, esperando centralizar as
pós-colonial, em que Israel teve a má ideia fórmula; “um zero + zero + zero = um”. decisões palestinianas, mas os seus esforços
de se aliar a franceses e britânicos con- Porque puniu qualquer Estado árabe que revelaram-se inúteis. Muitas vezes, viu-se
tra o Egito de Nasser [que nacionalizou o não conseguiu subjugar. Foi o caso da Síria, enredado na armadilha de uma incessante
canal], mas que não teve absolutamente que, depois de ter sido um aluno com- superioridade, modo de expressão domi-
nada que ver com a questão palestiniana. placente entre 1958 e 1961, se revoltou nante entre estas organizações.
Os israelitas foram obrigados a recuar, não contra o domínio do Egito e se retirou da Só em 1974 é que os Estados árabes
devido a uma derrota militar mas porque “República Árabe Unida”. Com a cum- concordaram em reconhecer a OLP como
os EUA ficaram furiosos. Pouco lhes im- plicidade do “segundo bureau” libanês, “única e legítima representante do povo
portavam as reivindicações de Londres isto é, dos serviços secretos da embaixada palestiniano”, 26 anos após a criação do
e Paris, que queriam preservar as suas do Egito em Beirute, Nasser envolveu-se Estado de Israel. Contudo, já era demasiado
conquistas coloniais, mas não queriam impunemente em atividades contra a Síria, tarde para o projeto “civilizado” que, na-
ver o seu pequeno protegido israelita deixando Damasco com um sentimento quele ano, Arafat levou à Assembleia Geral
juntar-se a esta luta... duradouro de amargura e ressentimento da ONU: um Estado único e democrático de
em relação ao Líbano. Depois de castigar judeus e árabes. Para muitos, em meados,
Nasser e Sadat a Síria, voltou a sua ira para o rei Faisal da na década de 1970, a noção de um Estado
Quanto a Gamal Abdel Nasser, estava mais Arábia Saudita, que se atreveu a desafiar democrático era idealista e ingénua.
preocupado com a hegemonia do Egito os seus planos para garantir uma posição Algo impensável tinha acontecido an-
sobre o mundo árabe, e esta era a sua prio- segura na Península Arábica, exercendo tes: de 5 a 10 de junho de 1967, o mundo
ridade. Consequentemente, procurou na influência sobre o Iémen. Dezenas de árabe recebeu um golpe colossal. O que há
causa palestiniana e apenas valorizou o milhares de soldados egípcios pagariam muito deveria ter sido o Estado da Palestina
que pudesse servir os seus objetivos. Um com as suas vidas este empreendimento desapareceu em seis dias. Jerusalém Leste,
dos seus antecessores, o célebre patriota ambicioso, mas malfadado. a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, bem como

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Conflito

INTELECTUAIS DE ESQUERDA DO TERCEIRO MUNDO,


AGORA CONHECIDOS COMO ALTERGLOBALISTAS,
os montes Golã, foram conquistados por
Israel no final de uma guerra-relâmpago, CUNHARAM O CONCEITO DE CENTRALIDADE DA
que derrotou os exércitos de três Estados
árabes: Jordânia, Egito e Síria. QUESTÃO PALESTINIANA. MAS SÓ FOI CENTRAL PARA
Como é que isto aconteceu? Nasser [que
se demitiu a 9 de junho, mas voltou ao poder
ELES, NÃO PARA OS ÁRABES, OS ISRAELITAS, O OCIDENTE
depois de milhões de egípcios o apoiarem OU QUAISQUER OUTROS. PORÉM, ESTA QUESTÃO AINDA
nas ruas] diria que a culpa foi dos sírios
e também do chefe do Estado-Maior das CARREGA UM IMPORTANTE PESO SIMBÓLICO
forças armadas egípcias, marechal Abdel
Hakim Amer, que se suicidou, segundo a egípcio teria de conseguir algo que neutra- seu regime, um ator influente na região,
versão oficial. Os sírios apontariam o dedo lizasse a humilhação de 1967. Este esforço porque, até então, a Síria estava sujeita a
aos palestinianos... Em setembro de 1967, materializou-se na Guerra de Outubro ou manipulações externas.
realizou-se uma cimeira árabe, em Cartum, Guerra do Yom Kippur [porque ocorreu no Se o Presidente sírio também queria
capital do Sudão. Daqui, saíram os famosos dia mais sagrado do calendário judaico], apagar a humilhação de 1967 [até porque
“três nãos”: não à paz com Israel; não ao lançada conjuntamente por Sadat e Hafez era sua a pasta da Defesa quando perdeu
reconhecimento de Israel; não a negoci- al-Assad. O raïs egípcio conseguiu o que os Golã], não era para se aproximar de Is-
ações com Israel. E sim a quê? queria: um sucesso inicial inegável. rael ou servir melhor a causa palestiniana,
Foi só com Anwar el-Sadat que o Egito que pouco lhe importava. Pelo contrário, o
levantou a cabeça e tentou fazer progressos. Uma causa abandonada seu intuito era, teoricamente, posicionar
Em 1972, num gesto que revelou a natureza A ofensiva sírio-egípcia comprometeu a Síria como defensor da causa, sem ter
de um homem a quem não faltava cora- eficazmente o sistema de alerta israeli- de suportar quaisquer custos associados.
gem e audácia, o sucessor de Nasser deu ta. O Estado hebraico precisou de alguns O que Assad fez foi transferir esses custos
abruptamente uma volta de 180 graus. dias para corrigir a situação e recuperar para outros – os libaneses, os palestinia-
Numa manhã, ordenou a expulsão do Egi- a vantagem. Mas, para Sadat, o essencial nos e, sempre que possível, os jordanos.
to de todos os conselheiros soviéticos ao estava feito: o Cairo podia agora gabar-se Foi bem-sucedido com os primeiros, em
serviço do predecessor (que morrera em de ter apagado a vergonha da guerra de menor grau com os segundos e falhou com
1970) e voltou-se para os Estados Unidos 1967. A partir daí, tudo parecia possível, os terceiros.
da América, reconhecendo que só eles o incluindo a reabertura do Canal do Suez, A consequência destas manobras foi a
ajudariam a atingir os seus objetivos. uma visita a Jerusalém, negociações de paz exclusão do Egito da Liga Árabe [cuja sede
No ano seguinte, Sadat preparou-se di- e a eventual restituição do Sinai. Tudo isto foi transferida para a Tunísia] por ter fir-
ligentemente, mas em segredo, para um entre 1975 e 1979. mado um tratado de paz com Israel. Isto
conflito limitado com Israel, com o pro- Hafez al-Assad tinha outros objetivos. equivalia a dizer que os EUA, sob proposta
pósito de encetar negociações de paz em A paz não lhe interessava. O que ele que- do Dakota do Norte, decidiram excluir a
condições honrosas. Para isso, o exército ria era fazer do seu país, ou melhor, do Califórnia ou Nova Iorque.

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Como Israel se desviou
para a extrema-direita
Anwar el-Sadat, o homem que de- Comandado por David Ben-Gurion, o Partido Trabalhista de Israel (Mifleget
volveu o orgulho ao seu país e restaurou a HaAvoda HaYisraelit), ou melhor, o seu antepassado, foi a força motriz que,
dignidade de um mundo árabe humilhado durante o Mandato Britânico da Palestina, abriu caminho à fundação do Estado
pela arrogância israelita, foi assassinado a judaico. O “pai da nação” proclamou a independência em 1948 e foi primeiro-
6 de outubro de 1981, no oitavo aniversário ministro até 1963, com exceção de alguns meses.
da Guerra do Yom Kippur. O assassino era Posteriormente, outras figuras do partido nascido, em 1968, da fusão entre o
um fanático que acreditava, como muitos Mapai, o Ahdut HaAvoda (de Ben-Gurion) e o Rafi assumiram a liderança,
árabes, que Sadat foi um traidor. Já Nas- designadamente Golda Meir (1969-1974), Yitzhak Rabin (1974-1977; 1992-1995)
ser, que teve uma enorme responsabilidade e Shimon Peres (1984-1986; 1995-1996). Ehud Barak (1999-2001) foi o último
pelo desaire de 1967, ainda hoje é venerado chefe de um governo trabalhista.
como um herói. Se isto não é um sintoma A direita nacionalista israelita nasceu na década de 1970, em parte graças ao peso
da doença de que padece o mundo árabe, eleitoral crescente dos judeus mizrahim (provenientes de países árabes, como
perguntamo-nos o que será. Marrocos, Iraque e Iémen, ou de maioria islâmica, como o Irão), durante muito tempo
Sadat foi acusado de ter abandonado desprezados por uma esquerda asquenaze (de origem europeia), que lhes impunha
a Palestina ao fazer a paz com Israel. Sim, uma política paternalista.
abandonou [porque Israel só aceitou ofe- Menachem Begin foi o primeiro chefe de um governo do Likud (uma aliança que
recer autonomia e não um Estado inde- juntou os conservadores direitistas do Herut e do Gahal), entre 1977 e 1983. Na altura,
pendente], mas não mais do que outros. a vitória dos discípulos de Zeev Jabotinsky, ideólogo do sionismo revisionista, foi
Não mais do que os palestinianos que, de descrita pela Imprensa em Telavive como “um terramoto”.
uma maneira geral, abandonaram também Depois de Begin, vieram Yitzhak Shamir (1983-1984; 1986-1992), Ariel Sharon
a Palestina, com notáveis exceções, como (2001-2006) e Benjamin Netanyahu (1996-1999; 2009-2021; 2022-...). Uma vaga
as de alguns delegados da sociedade civil de imigrantes judeus russófonos que chegou após o colapso da União Soviética, em
às negociações em Washington e, ocasio- 1991, foi o último prego no caixão do Partido Trabalhista, que nunca mais recuperou.
nalmente – mas apenas ocasionalmente –, Se uns caem, outros sobem, principalmente os partidos ultraortodoxos supremacistas,
de Yasser Arafat. Sadat não os abandonou que têm vindo a ganhar terreno nos últimos anos. Um dos mais poderosos é o
mais do que Abdullah da Transjordânia, Otzma Yehudit (Poder Judaico), herdeiro do Kach (ilegalizado em 1994), chefiado pelo
Gamal Abdel Nasser, Hafez al-Assad e Sa- ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, que encoraja uma colonização
ddam Hussein. violenta da Cisjordânia, quer impor “testes de lealdade” aos palestinianos de cidadania
israelita e defende publicamente uma limpeza étnica na Faixa de Gaza.
Nem Hamas nem Hezbollah Outro partido extremista, cujo apoio permitiu a Netanyahu sobreviver
Intelectuais de esquerda do Terceiro Mundo, politicamente a um processo judicial por corrupção, é o Mafdal-Sionismo
agora conhecidos como alterglobalistas, Religioso, de Bezalel Smotrich, ministro das Finanças, um colono da Cisjordânia,
cunharam o conceito de centralidade da tal como Ben-Gvir, que nega a existência de um povo palestiniano e faz
questão palestiniana. Mas só foi central repetidamente declarações racistas e homofóbicas.
para eles, não para os árabes, os israelitas,
o Ocidente ou quaisquer outros. Porém,
esta questão ainda carrega um importante palestiniana. Teerão e os seus representan- massacre de civis em Gaza, em resposta
peso simbólico. tes árabes [as milícias que apoia no Líbano, à sórdida orgia de 7 de outubro [quando
É um peso que afeta as opiniões pú- no Iraque ou no Iémen], cujas agendas são o Hamas matou 1 300 israelitas e raptou
blicas árabe e internacional, e não apenas bem conhecidas, aproveitam-se da causa 240] – é acreditar que a matança em Gaza
os protagonistas do conflito. Pode ser um palestiniana, mas não a servem. pode ser cometida sem um projeto claro
fardo ideológico e romântico, focado na A esmagadora maioria dos árabes reco- ou uma proposta política.
luta dos nacionalistas árabes e dos seus nhece esta verdade e sente-se consternada. A solução existe. Foi apresentada, em
aliados terceiro-mundistas contra o que No entanto, a sua aversão ao imperialismo 2002, numa cimeira em Beirute. E [a Ini-
consideram ser uma herança colonial; ou persa e ao revanchismo xiita manifestado ciativa de Paz Árabe, também conhecida
pode ser identitário, porque afeta judeus, pelos protegidos de Teerão não os impe- como Iniciativa Saudita] é apoiada por mui-
muçulmanos e cristãos em todo o mundo. de de se deixarem cativar pela postura (ou tas pessoas em Israel, nos EUA, na Europa
Seja como for, quando este peso se torna melhor, pela impostura) do “eixo muma- e no resto do mundo. Este compromisso
efetivo, distorce o que está verdadeiramente naa” (da “resistência”) sempre que a frente histórico, baseado no princípio de dois Es-
em jogo na causa palestiniana. Hoje, por palestiniana entra em ebulição. A razão é tados e nas fronteiras de 1967, continua a
exemplo, o fervor que se vê nas ruas de simples: a petulância da direita israelita ser o único plano racional, porque rejeita
França e de outros países nada têm que ver ofende profundamente a opinião árabe, os niilistas de ambos os campos.
com o debate sobre a relevância de uma so- obrigando-a a ceder à assertividade ira- Naturalmente que vai ser preciso bra-
lução de dois Estados. Pelo contrário, reflete niana. vura e perseverança para concretizar um
sobretudo divisões identitárias crescentes, O Hamas não pode ser o futuro da compromisso que exige a retirada de cente-
que derivam dos desafios de integração de Palestina. O Hezbollah também não pode nas de milhares de colonos judeus instalados
grandes setores da população imigrante. moldar o destino do Líbano. Mas, para com- na Cisjordânia. [Estima-se que totalizem
Por conseguinte, esta é atualmente uma bater eficazmente ambos e o seu patrono 700 mil em mais de 200 comunidades.] É
questão de política interna, que diverge iraniano, os líderes árabes têm primeiro uma missão impossível? Não, se os Estados
significativamente da questão central pales- de deixar de confundir moderação com Unidos da América colocarem o seu peso
tiniana. De igual modo, os acontecimentos mansidão. Devem estar prontos para ações na balança. Tal como nos tempos de George
correntes no Médio Oriente, hoje vistos resolutas contra o governo extremista de H. W. Bush, temos de os encorajar a seguir
pelo prisma iraniano, estão longe da causa Israel, cujo maior crime – mais do que o este caminho.

JANEIRO 2024 - N.º 335 19


Conflito

Hamas: Rival
da Fatah,
“criatura de Israel”
A Irmandade Muçulmana de Gaza, de onde emergiu
o Movimento de Resistência Islâmica, nasceu em 1946,
num cinema, não numa mesquita. Israel admite ter financiado
os islamistas nos anos 1970-1980, para marginalizar
“a OLP e os comunistas”.

Acrónimo árabe de Movi- que, na mesma década, foi responsável O conflito israelo-palestiniano entrou

A mento de Resistência Islâmica


(Harakat al-Muqawama al-Is-
pelos assuntos religiosos em Gaza, disse,
em 2009, ao Wall Street Journal: “Para
numa nova fase, a mais violenta de sempre,
após os ataques de 7 de outubro de 2023
lamiya), o Hamas foi criado na meu desgosto, o Hamas é uma criação FOTO GETTYIMAGES
Faixa de Gaza, quando eclodiu a Primeira de Israel.” Cohen referiu ter enviado um
Intifada, em 1987. O seu fundador, Ahmed relatório aos seus superiores, pedindo
Yassin, era um apóstolo do ideólogo da que “evitassem a política de ‘dividir para clarado era “a destruição de Israel” e a
Irmandade Muçulmana, Sayyid Qutb, reinar’ e se concentrassem em ‘destruir rejeição de qualquer compromisso com
executado pelo Egito, em 1966. este monstro antes que a realidade [nos] a “entidade sionista”.
Desde o início que o xeque Yassin rebente na cara’”.
impôs aos seguidores “um perfil dis- Através de uma rede que incluía não Fracasso de Dahlan
creto”, informa o historiador francês apenas mesquitas mas escolas, a primeira Em 1988, enquanto a OLP de Yasser Ara-
Jean-Pierre Filiu em Gaza: A History, de várias universidades, clínicas e as- fat aceitava um Estado palestiniano nas
obra de referência sobre um território sociações de apoio social, o Mujamma fronteiras de 1967, o Hamas reforçava o
que foi controlado por vários impérios – al-Islami (Centro Islâmico), de Yassin, foi seu “serviço de segurança interna” – Majd
assírio, babilónio, persa, grego, romano, conquistando adeptos à Fatah e à FPLP, as –, dirigido por Yahya Sinwar (um dos ar-
islâmico, otomano – e que, em 1948, sob maiores fações da OLP. Em 1977, quan- quitetos do massacre de 7 de outubro de
domínio egípcio, foi sede de um Governo do o Egito assinou o primeiro tratado de 2023) – e criava a “Unidade 101”, dedicada
de Toda a Palestina – o primeiro e único paz israelo-árabe, Yassin absteve-se de ao rapto de soldados israelitas.
da História. criticar o Presidente Anwar el-Sadat, e Em 1991, após a Conferência de Paz de
Para o professor e pregador Yassin, as autoridades israelitas permitiram ao Madrid, o Hamas decidiu criar um “bra-
nascido em 1936, na aldeia de Al-Jura, Mujamma continuar as “ações de cari- ço armado”, um conjunto de “células”,
despovoada durante a guerra de 1948, os dade”, fechando os olhos à perseguição constituídas por fugitivos às autoridades
palestinianos perderam a pátria por “não aos adversários do xeque. israelitas que, em alguns casos, “viviam
serem suficientemente muçulmanos”, e No seu livro Arab and Jew: Wounded meses ou anos na clandestinidade”, explica
só poderiam recuperar terras e direitos Spirits in a Promised Land, Shipler conta Filiu. Estas katai’b (“brigadas”) adotaram
se revigorassem a fé – posição contrária à como o exército israelita “permitiu que o nome de Izzeddin al-Qassam, em ho-
da secular e marxista Organização de Li- grupos islamistas incendiassem a Socie- menagem a um xeque sírio otomano que
bertação da Palestina (OLP), empenhada dade do Crescente Vermelho, presidida morreu em combate contra as tropas do
na luta armada. A 7 de setembro de 1973, pelo médico Haidar Abdel Shafi, comu- Mandato Britânico da Palestina, em 1935. A
seis anos após a ocupação de Gaza por nista e apoiante da OLP, só intervindo referência a al-Qassam “foi uma tentativa
Israel, Yassin inaugurou uma mesquita quando a turba avançou para sua casa, de retirar legitimidade histórica à OLP, re-
não muito longe da sua antiga casa. “O ameaçando-o pessoalmente”. Esta “cam- cuando a um passado ainda mais distante,
governador militar israelita participou panha agressiva”, adianta Jean-Pierre prestando tributo aos sacrifícios pioneiros
na cerimónia – um ato de grande impor- Filiu, incluiu um ataque ao Cinema Sa- da Grande Revolta Árabe de 1936-1939”.
tância política”, destaca Filiu, professor mer – “onde, ironicamente, se realizou Inicialmente secretas, as Brigadas al-
de Estudos do Médio Oriente na Univer- a conferência fundadora da Irmandade -Qassam eram lideradas por Imad Aqel,
sidade Sciences Po, em Paris. Muçulmana local, em 1946”. nascido em 1971 no campo de refugiados
Na década de 1980, um outro governa- Só em 14 de dezembro de 1987, quan- de Jabalia, o mesmo lugar onde, a 14 de
dor, o brigadeiro Yitzhak Segev, revelou do começou a Revolta das Pedras, é que a dezembro de 1991, apareceriam em pú-
a David K. Shipler, correspondente do Irmandade Muçulmana de Gaza decidiu blico, pela primeira vez. Em setembro de
New York Times, que usava o seu orça- juntar-se à “luta contra a ocupação”, 1993, o ano da assinatura dos Acordos de
mento para “financiar as mesquitas” e transformando o Mujamma em Hamas, Oslo, o Hamas levou a cabo o seu primeiro
fazer dos islamistas “um contrapeso à nome que significa “zelo, entusiasmo, atentado suicida em Gaza. A 24 de no-
OLP e aos comunistas”. Avner Cohen, fervor ou exaltação”. O objetivo de- vembro, Israel matou Imad Aqel. A seguir,

20 JANEIRO 2024 - N.º 335


O HAMAS NÃO PODE SER O FUTURO DA PALESTINA.
O HEZBOLLAH TAMBÉM NÃO PODE MOLDAR O DESTINO
de estabelecer um Estado palestiniano nas
DO LÍBANO. MAS, PARA COMBATER EFICAZMENTE fronteiras de 1967”. O cessar-fogo iniciado
a 26 de novembro não resistiu, porém, a
AMBOS E O SEU PATRONO IRANIANO, OS LÍDERES ÁRABES uma luta fratricida entre milícias.
TÊM PRIMEIRO DE DEIXAR DE CONFUNDIR MODERAÇÃO A 13 de março de 2007, depois de uma
promessa da Arábia Saudita de investir
COM MANSIDÃO “mil milhões de dólares” nos territórios
ocupados, os rivais entenderam-se: Haniya
tornou-se chefe do governo e Azzam al-
o Hamas cometeu os primeiros ataques os 8 500 colonos judeus de Gaza, para se -Ahmad, da Fatah, o seu adjunto. O Hamas
suicidas em território israelita. concentrar na Cisjordânia. Em janeiro de comprometeu-se a respeitar a lei interna-
Para travar o Hamas, Arafat nomeou 2006, realizaram-se eleições legislativas cional e os acordos já assinados, mas não
um dos seus “homens-fortes”, nativo de nos dois territórios. fez referência ao reconhecimento de Israel.
Gaza e interlocutor de Israel, Mohammed O Hamas concorreu sob o lema “Mu- O novo ministro do Interior propôs
Dahlan, para comandar um serviço de “se- dança e Reforma”, com uma lista enca- a fusão dos combatentes do Hamas e
gurança preventiva”, uma polícia criminal beçada por Ismail Haniya. Conquistou 74 da Autoridade Palestiniana. Mahmoud
e uma guarda costeira. Mas Dahlan não dos 132 lugares no Parlamento. Os EUA e Abbas, herdeiro de Arafat, recusou, por-
conseguiu pacificar o território onde ga- a União Europeia, a Rússia e a ONU, que que Dahlan recebera ajuda dos EUA para
nhava força a mais radical Jihad Islâmica não haviam previsto este resultado, im- formar uma força de 1 400 homens encar-
da Palestina. puseram de imediato três condições para regada de “conter o Hamas”, indica Filiu.
Em 2000, o Hamas intensificou os cooperar com o governo eleito: renegar a Em maio de 2007, já com Gaza sujeita a
atentados suicidas em Israel; a Fatah, luta armada, reconhecer Israel e respeitar um bloqueio israelita por terra, mar e ar, o
através da milícia Brigadas dos Mártires os acordos já firmados. governo de Ehud Olmert atacou posições
de Al-Aqsa, caiu na tentação de seguir Ismail Haniya propôs um compromis- do Hamas, que respeitava uma trégua. Em
a mesma estratégia. Em 2002, o Hamas so: a criação de um executivo de unidade junho, circulavam rumores de que Dahlan
iniciou a produção, em Gaza, e o lança- nacional, aceitando “estabelecer a paz por esperava um grande carregamento de ar-
mento contra Israel de mísseis Qassam-2 etapas, se Israel se retirasse para as fron- mas proveniente de Washington. Ajustes
e Qassam-3, com alcance de dois e 12 qui- teiras de 1967”, mas as negociações com a de contas nas ruas tornaram-se rotineiros,
lómetros, respetivamente. OLP fracassaram. Haniya criou então um com os inimigos de um lado e do outro a
Em 2004, ignorando apelos do Hamas governo palestiniano sem a Fatah. serem lançados de arranha-céus.
a uma “trégua por dez anos”, Israel as- Os confrontos entre os dois rivais tor- A 11 de junho, Abbas e Haniya acei-
sassinou o xeque Yassin (março) e o su- naram-se constantes, tal como as ofensivas taram mais um cessar-fogo, mas as Bri-
cessor deste, Abdel Aziz al-Rantisi (abril). militares israelitas. A 12 de julho de 2006, gadas Qassam, realça Jean-Pierre Filiu,
O historiador Filiu lembra que Rantisi, após o rapto do soldado Gilad Shalit, o líder “aproveitaram o vazio de poder deixado
nascido no campo de Khan Yunis, “era um das Brigadas al-Qassam, Mohammed Deif por Dahlan (no Cairo, para uma cirur-
miúdo de 8 anos quando tropas israelitas (outro dos artífices do massacre de 7 de gia) e, apesar da superioridade da Fatah,
cometeram um massacre, a 3 de novembro outubro de 2023), escapou ileso quando lançaram uma ofensiva a que era impos-
de 1956, ao executarem à queima-roupa duas bombas de 250 quilos caíram sobre sível resistir”. Polícias e milicianos leais
cerca de 500 combatentes e civis”. o edifício onde vivia. a Dahlan renderam-se, fugiram para o
Os EUA exigiram novas eleições, pro- Egito ou foram mortos.
Vitória total metendo 42 milhões de dólares à Fatah, Com uma “vitória total”, agora com as
Em 2005, numa decisão unilateral sem mas o caos instalou-se em Gaza, com armas da Fatah, apoiado pelo Irão e pelo
coordenação com as forças de seguran- vários clãs em luta pelo poder. O Hamas Qatar, o Hamas – “uma criatura de Israel”,
ça palestinianas, o primeiro-ministro deu a Israel “um período de graça de seis como Arafat o descrevia – tornou-se “o
israelita, Ariel Sharon, mandou retirar meses para haver progressos no sentido único senhor de Gaza”.

JANEIRO 2024 - N.º 335 21


África

Em frente à base militar fran-


E cesa em Abéché, uma cidade
poeirenta no Leste do Chade,

CHADE
Mohamed Adam espera pelos
dois filhos pequenos. Ambos têm manchas
no rosto e foi por isso que ele os trouxe

Um aliado até aqui. “Quando estamos doentes, por


vezes ajudam-nos.”
Adam, motorista de táxi, está agra-
frágil decido, mas até ele questiona o papel da
França no Chade. “Não somos totalmente
Este país no centro-norte de África continua independentes”, lastima-se. “É 50% para
a ser um parceiro da França e do Ocidente, nós e 50% para a França.” Muitas outras
mas está à beira da explosão. Enfraquecido pessoas em Abéché são mais hostis do que
Adam. Em 2022, manifestantes tentaram
internamente por um poder sem verdadeira invadir a base e arrancaram a bandeira
legitimidade, situa-se no coração do Sahel francesa, substituindo-a pela do Chade.
– uma região perigosamente instável O sentimento antifrancês está a cres-
cer no Sahel, a longa faixa árida a sul do
The Economist deserto do Sara, depois do fracasso de
Londres
sucessivas ofensivas de contrainsurreição,
lideradas pela França [desde a Operação
Barkhane, iniciada em 2014 e formal-
mente terminada em 2022], para travar
a violência de grupos jihadistas no Mali,
no Níger e no Burkina Faso.
Desde 2020 que se sucedem golpes de
AUTOR DATA TRADUTORA Estado em Bamaco, Uagadugu e Niamey.
F Sem assinatura 23.11.2023 Maria Alves Nestes países, os militares golpistas afir-
mam que as suas ações são cruciais para

22 JANEIRO 2024 - N.º 335 ILUSTRAÇÃO: GADO, QUÉNIA


mada que levou Déby-pai ao poder, em
Chade, o último aliado do Ocidente no Sahel dezembro de 1990 [quando derrubou o
governo de Hissène Habré de quem foi
chefe do Exército]. A Constituição proibia
LIBYE
LÍBIA que o filho fosse o sucessor, mas a França

FONTES: ACLED, BBC, THE ECONOMIST, THE INTERCEPT, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (OIM, UNHCR)
ARGÉLIA
ALGÉRIE (e também a União Africana) não levantou
objeções.
[A Constituição de 4 de maio de 2018
determina que, em caso de vazio de po-
der, o presidente do Senado ascende a
CHADE
TCHAD Presidente interino, até ser eleito um
NÍGER
NIGER novo Chefe do Estado. No entanto, no dia
Amdjarass SOUDAN
SUDÃO seguinte à morte do pai, em 20 de abril
de 2021, Mahamat Idriss Déby assumiu
Abéché 879 771
700 500
a presidência de um Conselho Militar de
N’Djamena Transição e suspendeu a Constituição.]
528
21 300
O Presidente francês Emmanuel Ma-
cron apanhou de imediato um avião para
NIGÉRIA ir ao funeral de Idriss Déby e afirmou,
130 600
128 966
SUDÃO
SOUDAN alto e bom som, que Paris interviria se
813
26 500 RÉPUBLIQUE
REPÚBLICA
CENTRAFRICAINE
CENTRO-AFRICANA DO SUD
DU SUL os rebeldes voltassem a atacar. Há muito
que a França apoia os ditadores em N’Dja-
500 km
CAMARÕES
CAMEROUN mena, em troca da presença de soldados
chadianos ao lado do Exército gaulês na
Guerra civil, conflito político Forte atividade de grupos jihadistas região e de bases militares em território
Incidentes violentos registados desde 2022 26 813 Refugiados estrangeiros no Chade chadiano.
Principais atores estrangeiros presentes (bases militares, envio de tropas) Este apoio chegou até a envolver o
França EUA Nações Unidas Hungria (a partir de março de 2024) Grupo Wagner bombardeamento da aviação francesa a
forças rebeldes, como aconteceu, em 2018,
a um grupo de insurretos [da União das
Forças da Resistência (UFR), proveniente
do Sul da Líbia].

se restabelecer um clima de segurança e agitações nesta parte do mundo: guerra Promessas de Déby
todos fizeram da França o bode expia- civil e genocídio no Sudão; terrorismo de Inicialmente, Mahamat Idriss Déby pro-
tório que mobiliza a população em prol grupos jihadistas no Sahel, conflitos san- meteu organizar eleições, no final de um
desta causa. grentos na República Centro-Africana e período de transição de 18 meses, e garan-
O quartel-general das operações na Líbia – dois países onde os mercenários tiu que não seria candidato. No entanto,
francesas no Sahel é atualmente o Chade, do grupo russo Wagner têm expressão e em outubro de 2022, prolongou o período
aliado próximo e de longa data, com uma presença. de transição por mais dois anos e anunciou
base militar permanente em N’Djamena, O Chade é governado por Mahamat que, afinal, se candidataria. Revoltados,
a capital. A retirada das tropas francesas Idriss Déby Itno, desde 2021, quando o pai, os partidos da oposição saíram à rua em
do Níger [iniciada em outubro de 2023] Idriss Déby, morreu a combater rebeldes manifestações de protesto. Num só dia, as
permitiu a entrada na cidade de impo- no Norte do país. Foi uma insurreição ar- forças de segurança chadianas mataram
nentes colunas militares. [Em dezembro, a tiro, pelo menos, 128 pessoas [algumas
a oposição chadiana e grupos da sociedade ONG de direitos humanos falam em 300]
civil pediram a Paris que retirasse “ime- e prenderam centenas de outras.
diatamente” os seus soldados.] As mais [Em 24 de dezembro último, realizou-
recentes sondagens mostram que o apoio
... -se um referendo para se aprovar a nova
à antiga potência colonial está a decair, Constituição. Votaram a favor 86% dos
enquanto sobe a popularidade da Rússia, Desde 2020 que se 64% de eleitores que afluíram às urnas,
constata um responsável ocidental. sucedem golpes de segundo resultados apurados por uma
Outro dos receios é a tensão políti- Estado em Bamaco, comissão governamental. Críticos, so-
ca, além das ameaças nas fronteiras do bretudo entre os que boicotaram a vo-
Chade, e que isto possa conduzir a uma Uagadugu e Niamey. tação, disseram à agência Reuters que o
guerra civil. “É um barril de pólvora que Os golpistas afirmam resultado irá ajudar a cimentar o poder da
vai explodir”, prevê Cameron Hudson, junta militar dirigida por Mahamat Idriss
investigador no Center for Strategic and
que as suas ações Déby. Este prometeu realizar eleições no
International Studies, um think-tank com são cruciais para se final de 2024, mas poucos acreditam que
sede em Washington. restabelecer um clima serão livres. A nova Constituição mantém
Trata-se de um cenário de verdadei- o Chade como Estado unitário, apesar de
ro pesadelo geopolítico, porque o Chade de segurança e atiram alguns opositores defenderem a criação
funciona como uma barreira contra várias as culpas para a França de um Estado federal.]

JANEIRO 2024 - N.º 335 23


África

Era muito improvável uma derrota paramilitar via aeroporto em Amdjarass coligação no poder, não estão satisfeitos
de Mahamat Idriss Déby no referendo. O [no Leste do país, perto da fronteira su- com a gestão de Déby, observa Picco.
principal líder da oposição, presidente do danesa], o bastião dos Déby. Os EUA, que Também há a possibilidade de grupos
partido Les Transformateurs [Os Trans- insistem na ideia de que os seus aviões armados invadirem o Chade a partir do
formadores], Succès Masra, que abando- transportam ajuda humanitária e não ar- estrangeiro e derrubarem Déby. Recorde-
nou o país após o massacre de outubro de mas para as RSF, deram claramente um -se que, em 2021, quem matou o pai foram
2022 e que era alvo de um mandado de apoio financeiro substancial ao governo combatentes líbios [da Frente para a Alter-
captura internacional emitido pela Jus- de Mahamat Idriss Déby. nância e a Concórdia no Chade] e que, no
tiça chadiana, regressou à pátria a 3 de Ora, muitas das elites dirigentes do início de 2023, uma fuga de documentos
novembro, depois de assinar um acordo Chade têm laços militares e tribais com dos serviços secretos norte-americanos
[“de reconciliação”, em Kinshasa] com rebeldes zagauas da região sudanesa do deu a entender que mercenários da Líbia
o governo de Déby. Darfur. Em meados de novembro de 2023, estão a ajudar os rebeldes do sul do Chade,
Muitos temiam que Succès Masra, sem os grupos armados mais poderosos de- na República Centro-Africana, a elaborar
dinheiro e sem o apoio de Washington e clararam guerra às RSF. Isto aumentou mais um plano para destituir Déby.
de Paris, “fosse comprado” pelo regime, a tensão nos círculos de poder zagauas Mahamat Idriss Déby Itno está, pois,
com a promessa, por exemplo, de uma em N’Djamena. “O apoio às RSF ameaça à procura de novas formas de consolidar
função governativa. [E foi isso exatamente dividir a família Déby e o Exército”, alerta o poder. Em novembro de 2023, o Parla-
que aconteceu, em 1 de janeiro de 2024: um diplomata ocidental. mento húngaro aprovou o envio de 200
Déby nomeou-o primeiro-ministro de um “Na minha opinião, Déby não conse- soldados para o Chade, oficialmente para
Executivo de transição. Vários dirigentes guirá aguentar-se mais do que um ano”, combater o terrorismo e a migração ile-
da oposição distanciaram-se de Masra e afirma o investigador Cameron Hudson. gal. Contudo, segundo alguns analistas, o
criticaram a decisão de Déby de amnistiar Mas não há qualquer certeza. Apesar de objetivo desta presença militar consistirá
“todos os chadianos, civis e militares” enfrentar muitas ameaças, Déby é também em ajudar o líder chadiano a garantir a
envolvidos na matança de 2022, conhecida um político surpreendentemente hábil”, segurança das jazidas de ouro, no Norte
como a “Quinta-Feira Negra”.] destaca Enrica Picco, diretora do projeto do país, uma região particularmente in-
“Quando Nelson Mandela assinou um da África Central do International Crisis tratável, ou a proteção do Estado de um
acordo com o regime de Apartheid [na Group (ICG), think-tank com sede em eventual golpe militar.
África do Sul], disseram que ele tinha Bruxelas. Um acordo assinado com Khalifa
sido comprado?”, defendeu-se o político Haftar, homem-forte do Leste da Líbia,
e economista Masra, quando lhe falaram Perigo à espreita permitiu-lhe, em agosto, atacar contra
das suspeitas, especificando que firmou Uma revolução palaciana não conduzirá bases de rebeldes chadianos, que operam
um “acordo pró-democrático”. [No dia necessariamente a uma guerra civil nem a partir do sul. Déby, que visitou recen-
10 de janeiro, na sua primeira entrevista à partida forçada das tropas francesas, temente Paris, mantém também relações
à Imprensa internacional, Succès Masra embora os riscos sejam elevados. Por amistosas com Macron. Esta relação, e
declarou: “Confio plenamente no Pre- outro lado, um golpe militar de oficiais o facto de o Chade ser o último aliado
sidente, Mahamat Idriss Déby Itno. (...) não zagauas poderá levar a um banho de da França numa região vasta e instável,
Acredito na reconciliação nacional.”] sangue em todo o país e à expulsão pela poderá levar os franceses a bombardear
força dos franceses. Alguns árabes [9,7% de novo os rebeldes que atacam a partir
Ameaças internas da população], mesmo os que integram a da Líbia.
O maior perigo para Mahamat Idriss Déby No Sul do Chade, apesar das suspeitas
poderá vir do seu círculo, mais do que que pairam sobre o grupo Wagner, Déby
das urnas. Após a morte do pai, a de- terá conseguido chegar a um acordo com
cisão de Déby ocupar a presidência não Faustin-Archange Touadéra, Presidente
foi unânime. O poder no Chade está nas da República Centro-Africana, que aceitou
mãos dos zagauas, um grupo étnico do autorizar as forças chadianas a perseguir
Nordeste [também presente no Sudoeste aí os rebeldes.
da Líbia e no Leste do Sudão], que repre- Outra fonte de preocupação para Déby
senta apenas uma minoria [1,1% dos 14 são as possíveis consequências da guerra
milhões de habitantes]. Ao contrário do
... civil no Sudão, o que já lhe está a causar
pai, a mãe de Déby não é zagaua, o que dores de cabeça. O fim deste conflito
gera preocupação. Os meios-irmãos do
Uma das fontes de também pode agravar os seus problemas.
Presidente certamente que também têm preocupação para Apesar do recente apoio tácito de Déby às
ambições à chefia do Estado. Déby são as possíveis RSF, muitos dos combatentes têm ligações
Déby irritou muita gente ao afastar e interesses no Chade.
um grande número de generais. O Chade consequências da Se as RSF derrotarem o Exército na-
tem uma posição oficial de neutralidade guerra civil no Sudão, o cional sudanês, alguns dos seus homens
na guerra civil no Sudão, mas Déby tem poderão querer ajustar contas no Chade.
apoiado, implicitamente, as RSF [Forças de
que já lhe está a causar Os alvos seriam refugiados ou combatentes
Apoio Rápido, antiga milícia Janjaweed], dores de cabeça. O fim que terão atravessado a fronteira. Se as RSF
do general Mohamed Hamdan Dagalo, deste conflito também forem derrotadas, um grande número de
conhecido como Hemedti. Também terá combatentes armados poderá igualmente
permitido que os Emirados Árabes Uni- pode agravar os seus entrar no Chade, dirigindo-se diretamente
dos enviassem armas para aquele grupo problemas até N’Djamena para tomarem o poder.

24 JANEIRO 2024 - N.º 335


Ásia

Uma descida rápida num

U elevador de carga chamado


“a gaiola”, e eis-nos a 1 300
metros de profundidade, sob
o imenso deserto de Gobi. O calor e o pó
são avassaladores, tal como a sensação de
claustrofobia, mas Ganbat Tuvshinbat,
um engenheiro de minas, exibe um lar-
go sorriso. “Este é o sítio mais quente da
Mongólia”, diz. “Aqui, é verão, durante
o ano inteiro.” A temperatura média na
Mongólia é inferior a zero.
Por isso, Tuvshinbat e o empregador, a
multinacional anglo-australiana Rio Tinto,
têm razões de regozijo. Até ao final desta
década, a empresa planeia extrair 500 mil
toneladas de cobre por ano da mina de
Oyu Tolgoi, o suficiente para fabricar seis
milhões de veículos elétricos. Uma vez em
funcionamento, será a quarta maior mina
de cobre do mundo – um maná para o Es-
tado mongol, que detém 34% da empresa.
Nunca antes a Mongólia havia rece-
bido um investimento estrangeiro com a
dimensão da mina de Oyu Tolgoi. Apesar
dos contratempos e dos atrasos, o projeto
é emblemático do que o Partido Popular
da Mongólia considera ser o caminho para
a prosperidade. O primeiro-ministro,
Luvsannamsrain Oyun-Erdene, um re-
formista formado em Harvard [no cargo
desde janeiro de 2021], tenciona autorizar
as empresas mineiras ocidentais a explo-
rar as imensas reservas de cobre, urânio
e outros minerais do país, essenciais ao
combate das alterações climáticas.
Muito está em jogo neste país com 3,4
milhões de habitantes, que só se liber-
tou de um regime socialista de partido
único na década de 90. Se a política de
Oyun-Erdene for bem-sucedida, este país
em desenvolvimento poderá beneficiar,
durante muitos anos, do maná que re-
MONGÓLIA presentam os seus recursos naturais. O

Nas minas da
governo espera triplicar o PIB, de 15 mil
milhões de dólares, no ano passado, para
quase 50 mil milhões de dólares até 2030

prosperidade
e reduzir 15% da taxa de pobreza, ou seja
para metade.
Estes projetos cumprem também ou-
Para convencer o Ocidente a explorar os recursos minerais tro objetivo. Uma vaga de investimentos
da Mongólia, o primeiro-ministro reformista Luvsannamsrain ocidentais prometeria proteger Ulan Bator
de Pequim e de Moscovo, os dois únicos
Oyun-Erdene “lançou uma grande limpeza” vizinhos, dos quais este país sem litoral é
Financial Times extremamente dependente: a China re-
Londres presenta 84% das exportações, nomea-
damente de cobre e de carvão, e a Rússia
cerca de 30% das importações, incluindo
todos os produtos petrolíferos.
“A Mongólia tem de lutar para proteger
AUTOR DATA TRADUTORA a democracia. A nossa situação geográfica
F Edward White 27.07.2023 Helena Araújo e geopolítica é muito delicada”, confessa
Oyun-Erdene ao Financial Times. Oyun-

ILUSTRAÇÃO: GETTYIMAGES JANEIRO 2024 - N.º 335 25


Ásia

-Erdene exorta os investidores a “estu- para o programa económico: fazer da


dar atentamente a questão”, por forma Mongólia um destino para os investidores.
a compreenderem os desafios específicos Encarregou o ministro da Justiça, Khishgee
que o país enfrenta. Nyambaatar, o seu braço-direito, de lançar
Oyun-Erdene está consciente de que uma campanha agressiva contra a corrup-
está perante uma oportunidade rara. Os ção. Dezassete pessoas foram extraditadas
compromissos internacionais em matéria para a Mongólia para serem julgadas, e o
de clima promovem uma transição históri- país pediu à Interpol que emitisse alerta
ca para as tecnologias limpas, alimentando vermelhos para 92 outras.
ao mesmo tempo uma corrida frenética Uma reforma constitucional, adotada
de empresas e governos de todo o mundo em maio último, aumentou o número de
para garantirem o acesso sustentável aos deputados, que passaram de 76 para 126, e
minerais. Locais, até à data considerados introduziu um sistema de voto proporcio-
demasiado isolados ou arriscados para se- nal misto: 78 deputados serão eleitos [por
rem explorados, estão agora no centro sufrágio universal] em círculos eleitorais,
das atenções. sendo os restantes eleitos em função dos
No entanto, para conquistar os investi- votos obtidos por cada partido. O objetivo
dores, Oyun-Erdene tem de convencê-los deste novo sistema, semelhante ao da Ale-
de que os dias das políticas complicadas e manha e ao da Nova Zelândia, passa por
da corrupção em grande escala acabaram. reforçar o controlo do governo e aumentar
Terá também de apaziguar os receios de a representação da sociedade civil. Simul-
conflito entre a exploração mineira e as taneamente, foram introduzidas novas
tradições nómadas do país e de responder regras sobre a nomeação e demissão de
às críticas dos ambientalistas. Por fim, terá juízes, a obrigação de prestar informações,
de ultrapassar uma falta desesperada de a proteção dos denunciantes, a governa-
dados geológicos modernos. ção das empresas públicas e o controlo de que a mensagem de Oyun-Erdene está
Por forma a apresentar o país como um do financiamento dos partidos políticos. a começar a dar resultados. Centenas de
destino seguro para as empresas minei- Tudo isto mostra que a Mongólia está investidores, representantes do setor mi-
ras ocidentais, Oyun-Erdene deu início “a caminhar na direção certa”, garante o neiro, diplomatas e políticos participaram
a um importante exercício de limpeza: ministro da Justiça. “Algumas informações na festa anual de Naadam [que celebra a
reformas constitucionais e judiciais abran- costumavam ser secretas, por exemplo o independência do país da China], a 10 de
gentes, luta contra a corrupção e revisão processo de licenciamento, a atribuição de julho, no Shangri-La, um hotel de luxo no
das políticas e regulamentos, que regem terrenos e os empréstimos concessionais centro de Ulan Bator. A presença destas
os recursos naturais. “O nosso principal [em condições preferenciais], o que pro- personalidades foi vista como prova de um
objetivo, neste momento, centra-se na vocava raiva e frustração entre os concida- interesse renovado nos recursos naturais
transparência”, explica. “Depois disso, dãos, afirma. Além disso, pensamos agora da Mongólia.
podemos discutir o investimento estran- que o Estado deve reduzir a intervenção De acordo com Megan Clark, es-
geiro e os países com os quais podemos em muitos setores económicos.” pecialista em minerais, que preside ao
cooperar.” Embora seja ainda muito cedo para sa- conselho consultivo da Agência Espacial
O primeiro-ministro não é o primeiro ber se estas reformas vão vingar, há sinais Australiana, a Mongólia é “muito rica”
dirigente mongol a ter estas ambições.
Resta saber se será capaz de concretizá-las.

Campanha contra a corrupção RÚSSIA

Oyun-Erdene estava a meio do primeiro FONTE: MINISTÉRIO DAS MINAS E DA INDÚSTRIA PESADA DA MONGÁLIA

mandato quando enfrentou o seu maior


teste. Em dezembro de 2022, sob tempera-
turas negativas, saiu do palácio presiden- Ulan Bator

cial e deparou com a maior manifestação a M O N G Ó L I A


que o país tinha assistido desde a revolução
democrática, 30 anos antes. Os números
oficiais haviam acabado de ser publicados,
Mina de Oyou Tolgoi
confirmando o que muitos manifestantes,
D e s e r t o
reunidos na Praça Sükhbaatar, há mui-
d e
to suspeitavam: a corrupção gangrena- G o b i
va a indústria do carvão nacionalizada.
Milhares de milhões de dólares tinham
CHINA
sido desviados, incluindo por membros
do parlamento. Tianjin
Perante os protestos, tanto dentro
como fora da Mongólia, e decidido a não Principais jazidas exploradas Zonas metalíferas com potenciais
contrair empréstimos no estrangeiro, Minas de cobre Minas de urânio depósitos de cobre
Oyun-Erdene definiu uma prioridade

26 JANEIRO 2024 - N.º 335


A multinacional anglo-australiana
Rio Tinto planeia extrair 500 mil toneladas
de cobre por ano da mina de Oyu Tolgoi
FOTO: GETTYIMAGES

Fernandez, relativo a uma parceria para


o fornecimento de minerais essenciais.
Estes acordos simultâneos com os Es-
tados Unidos da América e a China de-
monstram o pragmatismo do dirigente
mongol, segundo os diplomatas. Foi no
âmbito desta estratégia que a Mongólia se
absteve na votação das resoluções das Na-
ções Unidas sobre a Ucrânia. Para Leif-Eric
Easley, professor de Estudos Internacio-
nais na Universidade Ewha para Mulheres,
em Seul, a melhor maneira de a Mongólia
se proteger de Moscovo e de Pequim é
atrair investidores. “O fator-chave para
Ulan Bator é um governo democrático,
que mostre aos parceiros diplomáticos e
às organizações internacionais que a de-
terminação mongol em fazer reformas é
genuína”, precisa.
Em Ulan Bator, a urgência é palpável.
Três anos de restrições comerciais, ao lon-
em reservas minerais. Tem um grande ao carvão e ao ouro, mas a profundidades go dos 4 630 quilómetros de fronteira com
potencial em cobre, urânio e terras raras relativamente reduzidas. Assim, embora a China, devido à pandemia, destruíram
e poderá verificar-se o aparecimento de o país seja apresentado como uma terra uma economia já de si frágil. A invasão
“novas indústrias de nicho” no proces- virgem com um enorme potencial, a falta russa da Ucrânia esfriou, depois, todas as
samento de materiais de alta tecnologia. de dados é um grande obstáculo: as em- esperanças de uma recuperação vigorosa
Os defensores da energia nuclear estão presas mineiras têm de começar do zero. – a inflação atingiu uma média de 15%,
igualmente otimistas quanto ao potencial A Mongólia, devido ao potencial, é no ano passado. O início das operações
do país a longo prazo. Olivier Thoumyre, muitas vezes comparada à Coreia do Sul na mina subterrânea de Oyu Tolgoi, em
representante do grupo francês Orano, e ao caminho que esta tomou para se tornar março, deverá impulsionar a economia,
que está a desenvolver a primeira mina um peso-pesado no fabrico de produtos permitindo um crescimento de 4,7%, em
de urânio na Mongólia, considera que “é eletrónicos. Na década de 70, a Coreia 2022, para 5,2%, neste ano.
uma grande fonte de diversificação para a do Sul “tinha muito pouca produção de No entanto, os altos e baixos da mina
Mongólia...” e que “a crise climática deu, energia... não tinha mercado industrial de Oyu Tolgoi denunciam as dificuldades
incontestavelmente, um novo impulso à e muito pouco acesso ao capital”, recor- que se avizinham. Em 2001, a descoberta
energia nuclear”. da Dominic Barton, antigo executivo da destas reservas de cobre entusiasmou a
Na realidade, os garimpeiros que se McKinsey e antigo diplomata canadiano indústria mineira mundial. Mas, desde
deslocam até à Mongólia deparam rapi- na China, atualmente à frente da Rio Tinto. então, o projeto estagnou, com derrapa-
damente com toneladas de sondagens que “Tudo leva a crer que a Mongólia po- gens orçamentais de milhares de milhões
remontam à era soviética e que se referiam derá transformar-se da mesma forma, nos de dólares, anos de atrasos e uma relação
próximos 30 anos.” por vezes tóxica entre Ulan Bator e a Rio
Tinto, inclusive durante a presidência de
... Tensões políticas Jean-Sébastien Jacques, de 2016 a 2020.
Mas, ao voltar-se para o Ocidente, para O sucessor, Jakob Stausholm, procurou
A Mongólia é “muito impulsionar o crescimento, a Mongó- suavizar a situação, nomeadamente com
lia deve também ter cuidado para não um acordo para anular 2,3 mil milhões de
rica” em reservas inflamar as tensões geopolíticas. E esta dólares de dívidas do Estado mongol. A
minerais. Tem um grande cautela ficou bem clara em 27 de junho, Rio Tinto assumiu também parte do con-
potencial em cobre, em Pequim, quando Oyun-Erdene foi re- trolo das operações da empresa canadiana
cebido, no Palácio da Assembleia do Povo, Turquoise Hill, que explora a mina.
urânio e terras raras, e pelo Presidente chinês Xi Jinping. Desta Embora a saga da mina de Oyu Tolgoi
poderá verificar-se o visita resultou um acordo, que triplica o seja, no essencial, anterior ao mandato
número de postos fronteiriços entre os de Oyun-Erdene, o primeiro-ministro
aparecimento de “novas dois países, e a abertura de negociações considera que estas peripécias sublinham
indústrias de nicho” sobre o acesso ao porto de Tianjin, a su- a necessidade de transparência e de rigor
no processamento deste da capital chinesa. No mesmo dia, nos estudos de viabilidade e nos planos
a Mongólia assinava um memorando de de financiamento e está determinado a
de materiais de alta entendimento com o subsecretário de Es- garantir que a História não se repete: “Já
tecnologia tado do Ambiente norte-americano, José aprendemos as nossas lições.”

JANEIRO 2024 - N.º 335 27


FOTOS: GETTYIMAGES
ÁFRICA
Como Pequim
exporta a cultura
militar
A CHINA APOSTA, AGORA, NA SUA ATRAÇÃO MILITAR EM ÁFRICA.
ESTÁ A DAR FORMAÇÃO ACADÉMICA A UM NÚMERO CRESCENTE
DE AMBICIOSOS OFICIAIS MILITARES AFRICANOS

South China Morning Post


Hong Kong
China

sigla em inglês) recebe várias centenas de


oficiais africanos, todos os anos.

D
De acordo com um relatório da Usip
relativo à formação chinesa de Exércitos
africanos, publicado [em julho], também
pela NDU passaram muitos africanos emi-
nentes, incluindo Joseph Kabila, antigo
Presidente da República Democrática
do Congo, e o general David Muhoozi,
antigo chefe de Estado-Maior das Forças
Armadas do Uganda e atual ministro dos
Assuntos Internos.
Desde 2015 que a Etiópia também
envia regularmente para a China oficiais
que, após completarem a formação, serão
nomeados generais. Segundo o mesmo
inquérito, antes da crise da Covid-19, a
China captava milhares de oficiais africa-
nos para as suas escolas militares, atraí-
dos pela vasta campanha de promoção
orquestrada pelo governo chinês.
Durante uma visita oficial a Pequim, em gagwa, que assumiu o cargo após um Nessa altura, das cerca de 100 mil
maio, o Presidente da Eritreia, Isaias golpe de Estado, em novembro de 2017, ofertas de formação, disponíveis para os
Afwerki, recordou com carinho a sua for- destituindo Robert Mugabe, que estava países africanos, de três em três anos,
mação militar na China, em 1967 – apenas no poder há largos anos. Fazia parte da através do Fórum para a Cooperação Chi-
um ano após o início da Grande Revolu- elite militar treinada em Nanjing e de- na-África (Focac), cerca de seis mil, ou
ção Cultural. Esta experiência ajudou-o sempenhou um papel central na luta de seja 6%, eram no setor militar, segundo
muito a liderar a luta pela independência libertação do seu país. Paul Nantulya, especialista em questões
da Eritreia, conquistada em 1993, após De acordo com o Instituto da Paz dos chinesas, no Centro de Estudos Estra-
30 anos de luta. Estados Unidos da América (Usip), muitos tégicos sobre África, em Washington, e
“Afwerki continua muito ligado à africanos tiveram formação na Academia autor do relatório.
China, e os seus métodos de governo, Militar do ELP, incluindo dez chefes de A pandemia, porém, pôs fim a este
tanto ao nível nacional como ao nível Estado-Maior, oito ministros da Defesa comércio. Perante a incerteza causada
internacional, são inspirados nas dé- e quatro antigos Presidentes: Laurent- pela crise sanitária, o Focac decidiu, na
cadas de experiência enquanto líder de -Désiré Kabila, da República Democrá- sua edição de 2021, reduzir para 10 mil o
guerrilha e na interpretação pessoal do tica do Congo; João Bernardo Vieira, da número de lugares de formação.
maoísmo”, afirmava-se num documento Guiné-Bissau; Sam Nujoma, da Namíbia, Ainda segundo a Usip, vários diplo-
diplomático confidencial da Embaixada e Jakaya Kikwete, da Tanzânia. matas chineses sugerem que o fluxo devia
Norte-Americana na Eritreia, em 2009, Entre os antigos alunos desta escola, voltar ao normal “o mais rapidamente
publicada por um informador na plata- também constam muitos oficiais milita- possível”. Durante uma viagem a África,
forma WikiLeaks. res moçambicanos, incluindo o general em janeiro, durante a qual visitou cinco
“O povo da Eritreia nunca esquecerá Lagos Lidimo – o chefe de Estado-Maior países, Qin Gang, então ministro dos Ne-
o inestimável apoio moral e logístico do mais antigo – e oficiais ugandeses, como o gócios Estrangeiros, anunciou que Pequim
povo chinês na luta pela independên- major-general Fred Mugisha, que liderou tinha definido como uma das prioridades
cia e libertação do nosso país”, afirmou a Missão da União Africana na Somália, “acelerar a promoção de intercâmbios
Afwerki num encontro com Xi Jinping, de 2009 a 2011, antes de se tornar chefe entre cidadãos chineses e africanos, so-
na primavera. O Presidente chinês, por de Estado-Maior do seu país. bretudo no setor da formação militar”.
seu lado, saudou Afwerki como “um velho No entanto, em termos de presença
amigo da China”. Escola reconhecida militar em África, os chineses estão muito
Além do Chefe de Estado da Eritreia, A Academia de Nanjing, que é uma das aquém dos homólogos ocidentais, e isto
várias dezenas de líderes africanos, anti- mais reputadas da China, fez do Reino a quase todos os níveis, afirma Paul Nan-
gos e atuais, frequentaram escolas milita- do Meio um destino de topo para os tulya. Washington, Londres e Paris têm,
res chinesas, nomeadamente a Academia soldados africanos, que cada vez mais a cada um, pelo menos 50 adidos de Defesa
Militar do Exército de Libertação Popular frequentam. O Colégio Internacional de no continente, face aos 21 de Pequim. O
(ELP), em Nanjing – o principal destino Estudos de Defesa (ICDS) do ELP, outra Ocidente também tem mais de 50 bases e
dos recrutas africanos em formação. academia militar, tem quase 50% de es- outras infraestruturas no terreno – só os
A Academia também treinou o Presi- tudantes africanos, em certas turmas, e a Estados Unidos da América contam com
dente do Zimbabwe, Emmerson Mnan- Universidade de Defesa Nacional (NDU, 27 postos militares avançados –, enquanto
os chineses têm apenas uma [em Djibuti].

AUTOR DATA TRADUTORA Mais rentável


F Jevans Nyabiage 02.05.2023 Helena Araújo No que diz respeito à formação militar,
o Império do Meio também tem menos

30 JANEIRO 2024 - N.º 335


Alternativa ao Ocidente
“A China é cada vez mais vista como
uma alternativa ao Ocidente no que diz
respeito à formação militar”, refere.
Ora, como o equipamento chinês está a
generalizar-se nos Exércitos africanos,
parece lógico que o treino se realize com
os mesmos dispositivos.
“Tal como os ocidentais antes deles,
os chineses aperceberam-se de que é do
seu interesse proporcionar esta formação.
Isto fortalece os laços entre os soldados
dos dois países e reforça a influência de
Pequim no continente africano.”
Segundo David Shinn, há outro fator
que também faz pender a balança a favor
dos chineses: os instrutores não pregam
aos oficiais africanos a necessidade de
assegurarem o controlo civil do Exérci-
to e de evitarem violações dos direitos
humanos.
Estes cursos de formação permitem
aos dirigentes chineses mostrar aos ho-
PEQUIM COMPREENDEU CLARAMENTE QUE A mólogos africanos um modelo político
e económico diferente, na esperança de
FORMAÇÃO E A COOPERAÇÃO MILITARES SÃO PILARES que este se adapte a eles. É também uma
oportunidade para apresentar o equi-
INDISPENSÁVEIS À SUA EXPANSÃO NO CONTINENTE pamento chinês e assegurar potenciais
AFRICANO. A CHINA ESTÁ A TENTAR EXPORTAR A SUA contratos no futuro.
“Além disso, soldados mais bem trei-
CULTURA MILITAR E A SUA ESTRUTURA DE GOVERNO nados que tenham estado em contacto
com a China tenderam mais a defender
PARA ÁFRICA, E UMA FORMA DE O FAZER É ATRAVÉS os cidadãos e os interesses chineses em
África”, sublinha.
DO DESENVOLVIMENTO DE PROGRAMAS Pequim compreendeu claramente que
DE FORMAÇÃO PARA OS SOLDADOS LOCAIS a formação e a cooperação militares são
pilares indispensáveis à sua expansão no
continente africano, diz Ngboawaji Daniel
presença no terreno. Entre si, a França, [na Carolina do Norte], e especialista em Nte, um investigador especializado em
os EUA e o Reino Unido têm cerca de 40 relações sino-africanas. Informações e Segurança, na Universidade
programas anuais com estabelecimentos “Enviar uma equipa de instrutores de Novena, na Nigéria. E acrescenta: “A
de Defesa especializados, enquanto os ins- para África para dar formação no local China está a tentar exportar a sua cultura
trutores chineses do ELP e as respetivas custa muito menos do que trazer cente- militar e a sua estrutura de governo para
“missões de treino” estão oficialmente nas de oficiais africanos para os Estados África, e uma forma de o fazer é através
presentes em apenas dois países africanos, Unidos da América, com alimentação e do desenvolvimento de programas de
o Zimbabwe e a Tanzânia – a acreditar nos alojamento incluídos”, explica. “E, claro, formação para os soldados locais.”
dados publicamente disponíveis. esta é também uma oportunidade para Além disso, estas formações são mui-
No entanto, segundo Paul Nantulya, se conhecer o local.” tas vezes menos dispendiosas do que no
Pequim oferece muito mais bolsas de Mas ao convidarem soldados africanos Ocidente, segundo o nigeriano, que con-
estudo do que os países ocidentais, e os para o seu país, os chineses estão também a clui: “A maioria dos governos africanos,
Exércitos africanos são particularmente “manter a influência diplomática”. Estes ofi- preocupada com o facto de não debilitar a
sensíveis a este facto. “Nas escolas mili- ciais aproveitam a estada para visitar o país, sua economia, opta por escolas militares
tares chinesas, os processos dos oficiais descobrir as infraestruturas locais, as escolas chinesas por razões financeiras. Estes es-
africanos não estão sujeitos às mesmas do partido e as bases militares, e conhecer tabelecimentos oferecem uma formação
investigações do que nas academias oci- muito mais pessoas do que os cinco possíveis praticamente idêntica à do Ocidente mas
dentais.” instrutores chineses enviados para África. A a um custo muito inferior.”
Se os EUA, a Índia e a União Europeia, pandemia Covid-19 paralisou praticamente Na sua opinião, alguns países africa-
entre outros, preferem formar soldados o treino militar na China, mas os governos nos também fazem esta escolha porque
africanos diretamente no seu território africanos estão a tirar o máximo partido já contraíram dívidas chinesas em vários
é porque o consideram mais rentável, do regresso à normalidade, salienta David domínios e outros esperam vir a assinar
explica Lina Benabdallah, professora Shinn, especialista em Relações Internaci- novos acordos com Pequim e desenvolver
de Ciências Políticas e Assuntos Inter- onais na Universidade George Washington programas de intercâmbio militar com
nacionais, na Universidade Wake Forest [nos Estados Unidos da América]. o Império do Meio.

JANEIRO 2024 - N.º 335 31


China

Em julho de 2022, quando se


AMÉRICA LATINA E deslocou a Buenos Aires na

O homem-sombra
qualidade de diretor-geral do
Departamento de Assuntos
da América Latina e das Caraíbas do Mi-

de Pequim
nistério dos Negócios Estrangeiros da
China, Cai Wei, acompanhado por um
responsável argentino, fez uma visita
Cai Wei, um discreto alto-funcionário chinês, está a atravessar, a controversa ao Museu das Malvinas. É ali
uma velocidade vertiginosa, a região em busca de novos aliados – que a Argentina comemora a guerra de
1982, durante a qual o país tentou fazer
uma conquista com objetivos económicos mas também políticos valer os seus direitos sobre o arquipéla-
Americas Quarterly go. O responsável argentino agradeceu à
Nova Iorque China por apoiar as reivindicações terri-
toriais do seu país, que continuam a ser
contestadas pelo Reino Unido.
AUTOR DATA TRADUTORA Desde então, as relações entre a
F Rich Brown 28.08.2023 Helena Araújo Argentina e a China não pararam de se
estreitar. Em abril de 2023, a Argentina

32 JANEIRO 2024 - N.º 335 ILUSTRAÇÃO: ARCADIO, COSTA RICA


aceitou pagar as importações chinesas de fornecimento de lítio, tanto a mon- Mercosul [de que o Uruguai é membro]
em yuans e não em dólares. Em junho tante como a jusante”, salienta Mitch negociar esses acordos coletivamente.
desse ano, o banco central anunciou que Hayes, fundador do boletim informa- Estas visitas demonstram igualmente
os argentinos podiam abrir contas em tivo The China Signal: “As autoridades o desejo da China de reforçar as rela-
moeda chinesa, o que constituiu um novo argentinas mostraram-se, deste modo, ções com os países mais pequenos. Cai
revés para o dólar. muito entusiasmadas, pois querem o Wei visitou as Bahamas e o Suriname,
Como se pode ver, desde o fim da envolvimento dos parceiros chineses, por ocasião das cimeiras dos chefes de
pandemia que a China tem firmado a tanto nas minas como nas fábricas de governo da Comunidade das Caraíbas
sua influência por toda a América La- baterias.” (Caricom), e, em março de 2023, quando
tina, incluindo as Caraíbas. O Brasil, a A estratégia da China é muito bem se encontrava nas Honduras, aprovei-
Argentina e a Bolívia utilizam atualmente recebida em países que estão a tentar tou para organizar uma conferência de
com regularidade o yuan [nas trocas co- desenvolver a indústria local, por forma Imprensa com jornalistas das Caraíbas,
merciais com Pequim]. Estão em curso a deixarem de ser apenas exportadores instando os respetivos países a porem
conversações para acordos bilaterais de de produtos alimentares. fim às relações com Taiwan, o que só lhes
comércio livre no Uruguai, Honduras traria vantagens.
e Nicarágua, e a China afirma que os Parcerias com os mais pequenos Pouco depois, já em Pequim, Cai or-
seus investimentos estão a melhorar Simultaneamente, a China também ganizou outra conferência de Imprensa
as “cadeias de valor”, desde a extração registou progressos significativos na com jornalistas das Caraíbas. Salientou
de lítio ao fabrico de veículos elétricos questão de Taiwan. Em 21 de agosto, o que estavam em curso novas parcerias,
no México, passando pela produção de Parlamento centro-americano [Parlacen, em especial o Centro de Desenvolvimento
vacinas no Chile. com representantes eleitos da Guate- China-Caraíbas (CCDC), em Jinan, lan-
Cai Wei, de 52 anos, lidera esta ofen- mala, de El Salvador, das Honduras, da çado em 2022, bem como projetos para
siva de charme. O diplomata experiente Nicarágua, do Panamá e da República ajudar a Guiana e o Suriname a aumentar
e de voz doce, que se formou em advo- Dominicana] votou a favor da anulação a produção agrícola, por forma a me-
cacia, tem viajado muito pela região, do estatuto de observador permanente lhorar a segurança alimentar na região.
desde que foi nomeado para o cargo, no de Taiwan, para que a China pudesse Segundo Mitch Hayes, Cai promove este
início de 2021. As suas declarações e vi- beneficiar do mesmo. tipo de investimentos porque, em pe-
sitas revelam as prioridades da China na Em dezembro de 2021, a Nicarágua quenas economias, iniciativas modestas
América Latina, diz Yanran Xu, professor pôs fim às relações com Taiwan – recebeu podem ter um impacto significativo em
assistente na Escola de Estudos Inter- milhões de vacinas chinesas, alguns dias questões fundamentais como Taiwan e
nacionais da Universidade Renmin, em depois – e as Honduras seguiram-lhe o também em termos de votos em orga-
Pequim. Numa altura em que os investi- exemplo, em março de 2023. Cai Wei nismos internacionais como a ONU.
mentos chineses na região estão a dimi- deslocou-se imediatamente às Honduras A criação do CCDC foi anunciada num
nuir, a presença de Cai Wei testemunha para lançar as bases de uma nova rela- fórum entre a Comunidade de Estados
o facto de a China estar a concentrar os ção, que envolve um projeto de acordo Latino-Americanos e Caribenhos (CE-
seus esforços em acordos bilaterais e no de comércio livre. De seguida, visitou a LAC) e a China, um dos vários organiza-
acesso a recursos naturais, favorecendo Nicarágua, onde as negociações de um dos por Pequim. Em 2022, realizaram-se
as relações com Estados mais pequenos possível acordo de comércio livre tam- pelo menos cinco fóruns CELAC-China,
e utilizando fóruns multilaterais para bém parecem estar a avançar. sobre temas que vão desde a política de
reforçar a sua diplomacia. A China assinou acordos de comércio transportes à prevenção de catástrofes.
Para conseguirem interpretar as inten- livre com o Chile, a Costa Rica, o Peru Apesar de tudo, a proliferação des-
ções do alto-funcionário, os observadores e, em 2023, com o Equador, e está inte- tas conferências – bem como o apoio da
precisam de estar muito atentos: o homem ressada em acrescentar outros países à China a países como a Argentina para se
é discreto e não se sabe muito sobre ele. lista. Em julho de 2022, pouco antes da juntarem ao grupo BRICS (Brasil, Rús-
No papel atual, ele tem mais em comum visita a Buenos Aires, Cai deslocou-se sia, Índia, China e África do Sul) – não
com os dirigentes políticos de Pequim do ao Uruguai para discutir outro possível deverá mudar a política internacional,
que com os embaixadores no terreno, diz tratado bilateral, apesar de ser suposto o num futuro próximo, de acordo com
Yanran Xu: “Os diretores-gerais não que- Neil Thomas, especialista em Políti-
rem estar na ribalta.” Na verdade, devem ca, no Centro de Análise da China em
respeitar rigorosamente as diretivas e o Washington: “No entanto, generaliza
discurso da hierarquia de Pequim. ... a presença da China na região, que até
Em março de 2023, Cai Wei interveio agora tem sido apanágio dos EUA e de
no Fórum de Cooperação e Desenvol- Alguns dos outros países ocidentais.”
vimento China-México e sublinhou as investimentos Estas iniciativas multilaterais lançam
prioridades da China nas relações com as bases para relações que podem ser
a segunda maior economia da América promovidos por Cai reforçadas em resposta a acontecimentos
Latina. “O México é convidado a parti- Wei em pequenas globais, explica Hayes: “Quando ocorre
cipar no projeto Belt and Road Initiative uma crise, por vezes os fóruns ou as ci-
[Nova Rota da Seda] em áreas como as
economias podem meiras assumem uma importância muito
finanças, o 5G, o lítio e os veículos elétri- parecer modestos, maior.” Enquanto trabalha para reforçar
cos, por forma a melhorarmos as cadeias mas têm um impacto as relações de Pequim com os países da
de abastecimento”, afirmou. região, as visitas e as declarações de Cai
A China “pretende trabalhar com
significativo em continuarão a espelhar a evolução das
parceiros locais na construção de cadeias questões fundamentais prioridades da China.

JANEIRO 2024 - N.º 335 33


China

DIREITOS HUMANOS
Tragédia uigur
No romance The Backstreets, de Perhat Tursun, a errância
de um anónimo simboliza os sofrimentos do povo uigur.
Vítimas da política repressiva de Pequim no Sinquião, o autor
e o tradutor do livro desapareceram. Uma poetisa uigur
no exílio presta-lhes homenagem
Mekong Review
Sydney

A personagem principal do cidade sempre tenha atraído jovens licen-


romance The Backstreets [As
A Ruelas, publicado pela Colum-
ciados uigures, as restrições impostas pelo
governo estão a tornar cada vez mais difícil
bia University Press e inédito a vida ali. Os uigures que não nasceram na
em português], de Perhat Tursun, é um cidade são impedidos de alugar ou de com- não é uma novidade. Em janeiro de 1942,
estudante de Matemática. Este chega a prar um imóvel, enquanto os chineses da o poeta Lutpulla Mutellip, uma das gran-
Urumqui, a capital da região autónoma etnia han são recebidos de braços abertos. des figuras da literatura uigur moderna,
de Sinquião [Turquestão Oriental, para À falta de um lugar onde se sentir em casa, escrevia: “As lágrimas de sangue não se
os uigures], para ocupar um posto de o jovem vagueia pelas ruas em busca de um infiltrarão no solo/ Elas não se infiltrarão,
trabalho temporário num escritório. É sítio para descansar e dormir. elas brilham.” Naquela altura, os uigures
obcecado por números, que utiliza para O autor de The Backstreets demorou foram alvo de um massacre orquestrado
tentar dar sentido à vida. Não tem nome. 25 anos a terminar o livro, quase como se pelo chefe militar chinês Sheng Shicai
Não há nada de embaraçoso nisso, pois estivesse à espera de que a repressão do [que, entre 1933 e 1944, governou a re-
este herói representa os jovens uigures, povo uigur acabasse antes de ele poisar a gião, então bastante autónoma]. Apoiado
toda uma geração que tenta construir uma caneta. Três anos após ter terminado de durante algum tempo pela União Soviética,
vida em Urumqui, depois de terminar a escrever a obra, o próprio Tursun foi vítima juntou-se mais tarde ao governo nacio-
universidade. É esta a cruz, e a bandeira, do horror que centenas de milhares de nalista chinês, que se opunha ao Partido
dos jovens uigures, que procuram um em- uigures enfrentam. Em 2018, também ele Comunista. Cem mil pessoas, a maioria das
prego na capital do Turquestão Oriental [a foi alvo de um desaparecimento forçado. quais uigur, foram executadas ou presas.
autora deste texto, poetisa uigur exilada na Terá sido condenado a 16 anos de prisão. O No ano em que escrevia aquelas linhas,
Turquia desde 2013, toma a decisão política tradutor (anónimo), que trabalhou com o Lutpulla Mutellip foi exilado à força para
de se referir à província do Sinquião com académico norte-americano Darren Byler Acsu [a 800 quilómetros de Urumqui] e
este nome]. Nestes últimos anos, muitos na tradução da obra para inglês, também encarcerado. Viria a ser executado pelas
postos de trabalho têm sido atribuídos ex- foi detido em 2017. Uma vez que os dois autoridades chinesas dois anos mais tarde,
clusivamente a chineses da etnia han [o homens foram “arrastados” à força para o com apenas 23 anos.
grupo étnico maioritário], o que constitui sistema distópico do Estado chinês, cons- Embora atualmente a discriminação
uma discriminação flagrante dos uigures truído para vigiar, controlar e punir os étnica seja mais visível, o povo uigur está
no próprio país. uigures do Turquestão Oriental, Darren submetido a este tipo de violência há ge-
Perhat Tursun transmite este sentimento Byler achou que era chegado o momento rações e gerações e está habituado a ser
de alienação numa frase que repete, por vá- de publicar o trabalho de ambos. considerado uma ameaça para o governo
rias vezes, ao longo do livro: “Não conheço A opressão do povo uigur no Turques- chinês.
ninguém nesta cidade estranha, por isso não tão Oriental está presente tanto na ficção Não nos esqueçamos de que, na época
posso ser amigo nem inimigo de ninguém.” como na realidade, nomeadamente nos de- em que se passa a história de The Backs-
Esta frase, acompanhada de vários símbolos, saparecimentos do autor e do tradutor. Os treets, a situação no Turquestão Oriental
pontua os capítulos do livro. O essencial da esforços diligentes de ativistas uigures, de não era tão má nem tão conhecida como é
ação desenrola-se em Urumqui, havendo associações de defesa dos direitos humanos atualmente. Por mais desafortunada que
também alguns episódios que se passam em e de jornalistas de investigação revelaram seja a personagem, o romance fala de uma
Pequim, mas o herói não se sente em casa novos casos de violação dos direitos hu- época anterior à massificação das prisões,
em nenhuma destas duas cidades. Sente-se manos, nos últimos anos, à medida que o das detenções e da vigilância tecnológica
estrangeiro na capital chinesa e sozinho no Partido Comunista Chinês intensificou a a que os uigures estão agora sujeitos.
Turquestão Oriental. vigilância e a repressão. [Estima-se que um Incapaz de falar aberta e diretamen-
O protagonista tem dificuldade em en- milhão de uigures esteja detido em campos te sobre a repressão, devido ao próprio
contrar alojamento em Urumqui. Embora a de trabalho forçado]. Mas o clima de terror ambiente político repressivo, Tursun
recorreu ao simbolismo. As suas descri-
ções, repletas de emoções e de evocações
AUTORA DATA TRADUTORA sensoriais, transmitem uma sensação de
F Muyesser Abdul’ehed 11.05.2023 Margarida Bak Gordon desespero e de desorientação. Os cheiros
são sistematicamente descritos, desde os

34 JANEIRO 2024 - N.º 335


Xijiang, a capital histórica
dos uigures
FOTO: GETTYIMAGES

guimos acordar. A personagem anónima Fazer


vagueia, tal como os uigures, à procura
de abrigo. Está desligado do presente e desaparecer
desorientado pelas próprias recordações, um povo
ecoando a angústia do seu povo à medida
que a vida se torna mais difícil a cada dia Desde 2017 que circulam
que passa. O único alojamento que lhe é informações sobre a criação de
oferecido é uma gaveta, tal como acontece “campos de reeducação” para
aos uigures que não têm dinheiro nem os uigures, minoria muçulmana
outros bens. Tenta fugir, mas é atirado que habita a região autónoma
para trás das grades, que “aprisionam a de Sinquião, no Oeste da China.
imaginação”, como as centenas de milha- Pequim nega estas informações,
res de pessoas detidas e encarceradas. Fala mas reconhece a existência
muito pouco, o que reflete mais uma vez a de “centros de educação
mais agradáveis, que evocam memórias realidade dos uigures, privados de língua profissional”.
preciosas da vida na aldeia, até ao mau e de voz. Este homem perdido, alienado e À medida que as investigações
odor do fumo, das casas de banho e dos anónimo partilha o nosso destino. Todos prosseguem, vai sendo desvelada
produtos químicos em combustão. “A hi- nós somos este herói. a envergadura do sistema utilizado
persensibilidade do meu nariz dava-me A obra de Perhat Tursun testemunha pelo Partido Comunista Chinês
ânimo para viver”, constata a persona- a sua admiração pela filosofia e literatura (PCC) para apagar os vestígios da
gem principal – perante a adversidade, os ocidentais. Antes de ser preso, dedicou identidade e da cultura uigures.
sentidos recordam-no de que está vivo. muito tempo à investigação. Ao ler The Estima-se que quase um milhão
As ruas estão envoltas num “nevoeiro Backstreets em língua uigur e em inglês, de pessoas tenha sido detido
[em que as janelas iluminadas dos edifícios não consigo convencer-me de que tenha arbitrariamente. Com base nos
são como] manchas de sangue vermelho- sido escrito originalmente em uigur – o depoimentos e nas informações
-vivo, que se recusam a desaparecer”. O estilo não se assemelha ao da literatura divulgadas, verifica-se que os
nevoeiro é uma alusão à poluição indus- naquela língua, de tal modo que o origi- “centros de educação profissional”
trial de Urumqui, mas representa bem nal parece uma tradução. Inversamente, têm regimes de detenção sem
mais do que isso: a cobiça “que não pode dir-se-ia que o texto em inglês é a versão recurso a julgamento, muito
ser saciada, mesmo depois de devorar o original. semelhantes aos das prisões
mundo”, a lavagem ao cérebro “que se Todavia, o subtítulo em inglês intri- “oficiais”, nas quais os detidos são
apoderou da minha cabeça e está a ab- ga-me – A Novel from Xinjiang [Um ro- presos já condenados.
sorver os meus pensamentos”, uma força mance do Sinquião]. É óbvio que este não Enviados para a Imprensa
“que me engole inteiro”, como as práticas consta da edição original. Embora possa ocidental, em maio de 2022, os
de assimilação forçada, que obliteram os compreender os motivos da editora e a Xinjiang Police Files, documentos
antigos costumes, a cultura e a tradição necessidade de apelar a um público in- da polícia do Sinquião divulgados
uigures. Por fim, este nevoeiro pode ser ternacional que ouve falar do Sinquião em grande escala, revelam os
visto como uma metáfora do estado de (o termo significa “nova fronteira”, em mecanismos implementados sob
espírito da personagem, atormentada por mandarim), a verdade é que muitos ui- a liderança do secretário-geral
uma confusão crescente ao ponto de ela gures rejeitam esta designação e preferem do PCC, Xi Jinping. Para o PCC,
própria ficar alienada. Sentimo-nos mal referir-se à nossa terra como Turquestão trata-se de uma “luta contra o
por ela; sentimo-nos como se estivéssemos Oriental. A infeliz escolha da editora, ao terrorismo”.
num pesadelo terrível em que não conse- incluir a palavra “Xinjiang” na capa da O relatório do Alto-Comissariado
versão inglesa, representa uma aprovação das Nações Unidas para os
... da posição chinesa, apesar de se tratar de Direitos Humanos, publicado
um livro sobre o sofrimento dos uigures em 31 de agosto de 2022, sobre
O autor de “The sob o jugo do governo chinês. esta questão no Sinquião, conclui
Backstreets” demorou A detenção de Perhat Tursun e de mui- que houve “graves violações
tos intelectuais uigures cortou as asas da dos direitos humanos”. Há
25 anos a terminar arte e da literatura deste povo. É pouco testemunhos de tortura e de
o livro, quase como provável que a situação melhore, num fu- maus-tratos. Como era de
turo próximo, e estou preocupada com esperar, Pequim referiu-se a este
se estivesse à espera todos os escritores, pensadores e artistas relatório como uma “invenção
de que acabasse a presos. Tenho receio de que a história esteja inteiramente ilegal e sem
repressão do povo a repetir-se, de que, tal como no passado, validade”.
com a perda de Lutpulla Mutellip e dos
uigur antes de ele amigos, o sofrimento se multiplique em
poisar a caneta território uigur.

JANEIRO 2024 - N.º 335 35


A insustentável
leveza do sono
DORMIR PODE PARECER A ATIVIDADE MAIS NATURAL DO
MUNDO, MAS, PARA DOIS TERÇOS DOS ADULTOS DOS PAÍSES RICOS,
REPRESENTA UM PROBLEMA, A PONTO DE SE TORNAR, POR VEZES,
UMA OBSESSÃO. MERGULHAMOS NO MUNDO DA INSÓNIA, DO
ACORDAR EM SOBRESSALTO E DOS COACHS DE SONO

Falter
FOTOS: GETTYIMAGES
Viena
Sono

A
Até há alguns anos, a sra. Steiner tomava inquéritos, e as pessoas interrogadas não
chás de ervas para dormir, mas só muito são, em geral, objetivas na análise do sono.
raramente. No outono de 2022, apanhou No entanto, Stefan Seidel tem a certeza
um vírus grave que lhe deixou uma terrível de uma coisa: dormimos cada vez menos.
sequela: tornou-se insone (como o tema Os seres humanos são os únicos ani-
do sono é algo íntimo, o nome Steiner é mais que se privam voluntariamente do
fictício). sono. Isto deve-se sobretudo aos ecrãs que
Todos nós já tivemos essa sensação invadiram os quartos e que impedem as
terrível: ficar acordado sem conseguir pessoas de usufruir dos benefícios de uma
fechar os olhos, com o cérebro cheio de boa noite de sono. Consultar um tablet em
pensamentos, que desfilam sem parar e vez de ler um livro reduz para metade a
impedem o corpo de descansar; revirar-se, secreção de melatonina, a hormona que
suar, olhar para o despertador e fustigar- diz ao corpo que está na altura de fechar
-se por mais uma hora perdida de sono. os olhos.
Se acontecer duas ou três vezes por Mas os ecrãs não são os únicos cul-
mês, isto é normal, mas se, como a sra. pados: as pandemias, as guerras, as cri-
Steiner, passar semanas sem conseguir ses climáticas, os imprevistos e o stresse
dormir uma noite inteira, se acordar re- também afetam o sono. A preocupação
gularmente e não conseguir voltar a ador- e o medo são as duas principais causas
mecer, então tem um problema grave. Um de insónia. A extraordinária inteligência
problema de sono. do cérebro humano é ao mesmo tempo esta especialista do sono], as essências de
Quase metade dos austríacos não tem uma bênção e uma maldição: quando nos pinheiro e as pilhas de edredões cumprem
uma noite de sono reparador, segundo um enfiamos debaixo do edredão, temos fi- na perfeição o seu propósito. Ao fim de
estudo realizado pela Universidade de Me- nalmente tempo para fazer um balanço apenas cinco minutos, um participante da
dicina de Viena, em 2018. Dois terços dos da vida, mas isso acontece na pior altura segunda fila começa a dormitar. A mulher
adultos que vivem nos países do Norte não possível. dá-lhe um toque para ele se manter atento.
dormem o suficiente, ou seja pelo menos E não há nada pior para o sono do que “Quantos de vós diriam que dormem
oito horas diárias. A OMS refere-se mesmo preocupar-se com o facto de não o ter! A bem?”, pergunta Melanie Pesendorfer. Por
a este défice de sono como uma epidemia. sra. Steiner sabe bem disso: “Eu já estava outras palavras: quantos conseguem cair
Segundo Stefan Seidel, diretor da Clí- preocupada”. O médico, porém, aumentou nos braços de Morfeu em menos de 15 mi-
nica Pirawarth [em Bad Pirawarth, perto as suas preocupações ao dizer-lhe que, se nutos e não acordam mais do que duas
de Viena] e antigo diretor do Serviço de não dormisse, poderia morrer em breve. vezes por noite? Duas mãos levantam-se,
Perturbações do Sono, do Hospital Geral Impossibilitada de trabalhar nestas condi- timidamente. “E quantos de vós têm difi-
de Viena (AKH), cerca de 8% dos austría- ções, ficou de baixa durante seis semanas, culdade em dormir bem, mais de três vezes
cos sofrem de insónia patológica. Deve-se até que a situação se tornou insuportável por semana? Levantam-se outras mãos e,
olhar para estes números com alguma pru- e decidiu contactar Melanie Pesendorfer. desta vez, a secção de roupa de cama da
dência: a maior parte dos dados provém de [Durante as sessões de coaching com loja, onde o grupo se acomodou, parece
uma turma de alunos zelosos.

AUTORA DATA TRADUTORA Incapazes de relaxar


F Katharina Kropshofer 02.05.2023 Helena Araújo Melanie Pesendorfer, de 40 anos, é uma
das poucas coachs especializadas em sono,

38 JANEIRO 2024 - N.º 335


Um calor de
perder o sono
Com as alterações climáticas,
“as boas noites de sono estão a
tornar-se cada vez mais raras”,
diz THE WASHINGTON POST. Vários
estudos associam o aumento
das temperaturas noturnas a
uma redução do tempo de sono.
Um deles, que analisou dados
de sete milhões de utilizadores
de relógios digitais, em 68 países,
estima que as pessoas dormem
por noite menos 14 minutos,
aproximadamente, quando a
temperatura é superior a 30°C.
“Com o passar do tempo, o défice
acumulado é colossal: estima-
se que, em média, já estamos a
perder 44 horas de sono por ano.”
Os cientistas esperam que este
fenómeno aumente e que afete
particularmente os idosos e os
mais desfavorecidos. “Em 2100,
esta realidade poderá representar
anualmente entre 50 e 58 horas de
sono perdidas por pessoa.”

Cura impossível
Desde sempre que o medo de
sofrerem de insónias “tem impedido
as pessoas de dormir”, diz a
historiadora Amanda Foreman, no
THE WALL STREET JOURNAL. No Egito e na
Grécia antigos, realizavam-se rituais
religiosos de indução do sono. Os
egípcios, mas também os indianos
OS ECRÃS NÃO SÃO OS ÚNICOS CULPADOS DAQUILO e os chineses, utilizavam soluções
QUE A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE medicinais: óleo com essência de
lavanda, chá de camomila e ópio,
JÁ CLASSIFICOU COMO A EPIDEMIA DO SONO: no caso dos primeiros; cereja-de-
inverno e ginseng-vermelho-
AS PANDEMIAS, AS GUERRAS, AS CRISES CLIMÁTICAS, coreano, nos segundos.
A partir do século XVI, o láudano
OS IMPREVISTOS E O STRESSE TAMBÉM AFETAM tornou-se “o remédio de excelência”
O SONO. A PREOCUPAÇÃO E O MEDO SÃO AS DUAS no Ocidente. A substância, porém,
era viciante e pouco se sabia
PRINCIPAIS CAUSAS DE INSÓNIA sobre o funcionamento do sono.
Só no início do século XX é que
o investigador norte-americano
formadas na Universidade de Medicina de smartphone. O cérebro está constante- Nathaniel Kleitman compreendeu
Viena. Há 15 anos que escuta atentamente mente a analisar a informação nos ecrãs, que o sono era uma atividade
os problemas noturnos dos austríacos e dá à procura de potenciais perigos, e, ao fa- cíclica – mas não encontrou uma
formação a empresas e a autarquias. Este zê-lo, cria a própria prisão: esta moder- solução milagrosa para a insónia. “Ele
outono, vai organizar a primeira feira do nidade torna-nos incapazes de relaxar. desvendou os mecanismos do sono,
sono do país. “É bem visível que as pessoas estão mais mas infelizmente não descobriu os
“Este é o mais novo grande predador”, irritáveis e menos resistentes do que an- ingredientes necessários a uma boa
explica a formadora, segurando no seu tigamente.” noite de sono.”

JANEIRO 2024 - N.º 335 39


Sono

Steiner procurou Melanie Pesendorfer. “O seu dia é condicionado pela qualidade


Sono virtual Aconselhada pela coach, habituou-se do sono”, explica a coach. Ouvem pod-
a ir para a cama às 22h30 e estabeleceu casts sobre o assunto, analisam as noites
Até nos jogos de vídeo se fala rituais noturnos, como dar um passeio com pulseiras digitais – que estão erradas
de sesta. Em julho de 2023, o ou tricotar. Nada de trabalhar ou de ver quase metade das vezes.
estúdio japonês Select Button televisão na cama. É o que designamos Stefan Seidel também está familiariza-
lançou o Pokémon Sleep, uma por cuidar do sono. do com este tipo de pacientes: “Passam o
aplicação móvel com um duplo Dario, de 30 anos (nome também é dia a pensar em como poderiam ter pro-
objetivo: melhorar o sono, fictício), conhece bem estes conselhos longado a fase de sono profundo, e isto ao
enquanto se investiga a forma e até já os deu a si próprio, já que até é ponto de ficarem obcecados.” Entre 10% e
como os Pokémons dormem. neurologista num hospital austríaco. Mas 30% dos seus pacientes, frequentemente
Para isso, segundo Maddy talvez seja esse o cerne do problema: os jovens, têm um relógio de fitness ligado.
Myers, do Polygon, os jogadores horários de trabalho, nomeadamente as Para alguns, é quase um vício.
têm de dormir junto a um noites em que está de serviço, não se coa- É aqui que entra a dimensão social
Ronflex – ou seja, têm de pousar dunam com o seu cronotipo. do problema. Trabalho, lazer, família: na
o telemóvel junto à almofada, “Quando sei que tenho de me levantar nossa sociedade orientada para o desem-
para que este recolha dados às seis da manhã, começo a stressar na penho, é preciso conseguir conciliar tudo
sobre a forma como dormem noite anterior.” Mas o jovem continua a no espaço de 24 horas – e na perfeição,
e assim atrair a observação de querer gozar a vida, e isso não o impede por favor. Músculos bem definidos, uma
outros Pokémons. de ficar acordado até tarde. “Depois tomo alimentação equilibrada, uma família feliz,
O jogo em si é desinteressante, comprimidos para dormir – com bastante um trabalho gratificante e, agora, também
segundo a jornalista, que lhe regularidade, de facto.” temos de racionalizar as nossas noites.
reconhece uma qualidade: Em 2022, a indústria farmacêutica Afinal de contas, dormiremos quando
graças a ele, “acorda de manhã, vendeu o equivalente a €2,6 milhões de estivermos mortos.
sem estar sempre a desligar analgésicos e de comprimidos para dormir, Matthew Walker, [investigador de
o despertador até ao último segundo estimativas da IQVIA, especialista Neurociências] e guru do sono, con-
segundo”. Tudo para poder “clicar em dados de saúde. São mais €600 mil fidenciou recentemente num podcast
naqueles idiotas Pokémons”. do que em 2019. Também Dario constata que, se tivesse de reescrever o seu livro
uma mudança: “É um problema pouco Why We Sleep [Porque Dormimos, ed.
conhecido, mas é uma verdadeira pan- Desassossego, 2019], optaria por um tom
demia, sobretudo entre as pessoas com menos moralista. Toda esta insistência na
mais de 70 anos.” qualidade do sono submete-nos a grande
Uma semana mais tarde, encontra- pressão. “Eu devia ser aquele que con-
mo-nos com Melanie Pesendorfer no Obsessão e pressão trola totalmente o seu sono”, diz. Mas,
seu escritório em Viena. A decoração faz Minimizado, subestimado, mal diagnosti- na realidade, também ele passa horas a
lembrar uma casa de férias, pontuada por cado: os médicos raramente questionam o fio, na cama, com os olhos bem abertos.
citações sobre desenvolvimento pessoal. uso de comprimidos para dormir, em parte Sono negligenciado, uso excessivo
Vende remédios naturais e recebe pacien- porque eles próprios são particularmente de medicamentos... Como chegámos até
tes; um dos colegas propõe massagens. propensos à privação de sono. Ironia do aqui? Poder-se-ia [no entanto] inverter o
“A falta de sono está na origem de muitos destino, o cirurgião norte-americano, que argumento: nunca dormimos tanto nem
problemas.” introduziu o sistema de turnos noturnos em tão boas condições como atualmente
Melanie Pesendorfer começa sempre no final do século XIX, William Halsted, – pelo menos nos países do Norte.
por determinar o cronotipo dos pacientes: era viciado em cocaína. A maior parte dos nossos antepassados
cerca de 40% são “cotovias” – uma ave Além dos insones, Melanie Pesendorfer só teve os próprios quartos e camas há
conhecida por começar a cantar muito recebe outra categoria de pacientes: oito relativamente pouco tempo – há 150 ou
cedo. A sua composição genética torna-os em cada dez são hoje os “perfecionistas”. 200 anos. Na Idade da Pedra, os primeiros
madrugadores, mas têm pouca resistência
à fadiga, no final do dia; 30% são “corujas”,
pelo que são particularmente produtivas O SONO, E A IMPORTÂNCIA QUE LHE ATRIBUÍMOS,
à noite; os restantes são “pombas” e po-
sicionam-se algures no meio. SEMPRE FOI INDICADOR DOS TEMPOS E DA SOCIEDADE
Quando obrigadas a levantar-se cedo, EM QUE VIVEMOS. TALVEZ ESTEJAMOS NO INÍCIO DE UMA
as personalidades do tipo “coruja” pre-
cisam de um certo tempo para recuperar NOVA ERA: MULTIPLICAM-SE OS APELOS À REDUÇÃO
energia. Durante muito tempo, acusaram-
-nas de preguiça, mas atualmente sabemos DO HORÁRIO DE TRABALHO E A NOVA GERAÇÃO
que a sociedade não foi concebida para
elas. Os coachs de sono podem ajudar os
APOSTA NO “MINDFULNESS”, EM VEZ DO CONSUMO
pacientes a reorganizar o dia, definindo COMPULSIVO DE COMPRIMIDOS PARA DORMIR, MAS
as horas das refeições, os picos de produ-
tividade e a hora ideal para se deitarem. TAMBÉM NOS ACESSÓRIOS DIGITAIS, QUE REFORÇAM
Após seis semanas sem uma boa noite
de sono, e já no auge do desespero, a sra. O PERFECIONISMO DO “HOMO DIGITALIS”

40 JANEIRO 2024 - N.º 335


O tormento
da insónia
“Insónia.” Na primeira página,
o SÜDDEUTSCHE ZEITUNG MAGAZIN
adota códigos cinematográficos
para falar do “tormento da insónia”.
Publica dois rostos – um em
repouso e outro acordado por
um carro – para exemplificar o
sofrimento das pessoas com graves
perturbações de sono. Estas “gastam
frequentemente muita energia” a
esconder os problemas noturnos,
são pessoas stressadas e, por vezes,
sofrem de depressão. Acima de
tudo, ninguém as compreende.
“Falar de insónia é sempre um
desafio impossível.”

O sono é
inimigo da
produtividade?
“A falta de sono geralmente não
é vista como algo negativo pelos
sul-coreanos. Pelo contrário, é
um sinal de produtividade e de
assiduidade.” A conclusão do THE
KOREA HERALD é esclarecedora:
a duração média do sono, por
humanos dormiam no chão, à volta da horas de atividade uma das forças motrizes noite, na Coreia do Sul é de sete
fogueira – um sítio bastante arriscado para do movimento iluminista. Depois, com o horas e 40 minutos, menos três
se descansar. Foi assim que os diferentes advento da industrialização, os académicos quartos de hora do que a média
cronotipos evoluíram: os nossos ante- decretaram que as horas passadas a dormir dos países desenvolvidos. A
passados dividiam os turnos de guarda, eram “tempo perdido”. causa, “voluntária e involuntária”,
e o facto de alguns preferirem vigiar de O sono, e a importância que lhe atri- está ligada, nomeadamente, ao
manhã, bem cedo, enquanto outros per- buímos, sempre foi indicador dos tempos fenómeno da procrastinação do
maneciam vigilantes até tarde, à noite, e da sociedade em que vivemos. sono, que consiste em adiar a
era uma verdadeira vantagem evolutiva. Talvez estejamos mesmo no início de hora de ir para a cama, libertando
Na Idade Média, a maioria das pessoas uma nova era: multiplicam-se os apelos tempo para outras atividades
dormia sentada, porque as muitas doenças à redução do horário de trabalho, a nova mais “produtivas” – trabalho,
pulmonares – causadas pelo pó, pelo frio geração aposta no mindfulness em vez estudo ou lazer. Os preconceitos
e pelo fumo das chaminés das casas – di- do consumo compulsivo de comprimidos ultrapassam a Ciência,
ficultavam a respiração, quando se estava para dormir – mas também nos acessórios prossegue o diário, que cita um
deitado, e, sobretudo, nunca se dormia digitais, que reforçam o perfecionismo do estudo segundo o qual uma hora
de uma só vez. Em 2001, o investigador Homo digitalis. a menos de sono poderia levar
norte-americano do sono, Roger Ekirch, A sra. Steiner, por sua vez, está a à redução do funcionamento do
descobriu que os europeus pré-industriais dormir melhor. Os novos rituais, acom- cérebro – “e, por conseguinte, da
dividiam as noites em duas fases: o primei- panhados de uma mistura inteligente de produtividade” – em 30%. “Quer
ro e o segundo sono. O tempo intermédio plantas medicinais, produziram um efeito desafiar o sono? Pense duas
era consagrado às tarefas domésticas, às benéfico no seu sono – pelo menos, a maior vezes”, adverte o jornal.
orações ou às relações sexuais. parte das vezes. “Cada noite em que eu
No século XVII, com o aparecimen- durmo mais de seis ou de sete horas é uma
to dos primeiros candeeiros nas ruas, as vitória. E quando não consigo dormir mais
ocupações vespertinas passaram para a de quatro horas, já não perco a cabeça.”
noite – há quem considere estas novas Um grande passo em frente.

FOTOS: GETTYIMAGES JANEIRO 2024 - N.º 335 41


Sono

Russell Foster a proferir uma


conferência sobre o sono, durante
a London Fashion Week
FOTO GETTYIMAGES
Para uma sociedade
descansada
O neurocientista britânico Russell Foster dedicou grande parte
da carreira aos problemas do sono. A sua investigação aponta
para questões sociais e políticas de grande alcance
The Guardian Londres

O professor Russell Foster, você é adaptável, se consegue aceitar que

O diretor do Instituto de Neu-


rociência do Sono e do Ritmo
Circadiano da Universidade de
o seu parceiro não tem o mesmo padrão
que o seu.”
Estamos a saborear uma chávena de
Oxford, tem alguns conselhos para os ca- chá à margem do festival de literatura de
sais. O que deve fazer, por exemplo, se Hay-on-Wye [no País de Gales], onde o
o seu parceiro ressona? Esta é uma das amável professor foi convidado a falar
perguntas mais frequentes durante as suas sobre o relógio biológico, tema do seu
intervenções públicas. Primeiro, responde, bestseller Life Time [Mais Tempo de Vida,
faça um check-up para excluir qualquer ed. Presença) Escreveu o livro, em grande
patologia subjacente, como a apneia do parte, como resposta à “terrível ansiedade
sono. Depois, invista num par de tampões sobre o sono” – uma ansiedade que atribui
para os ouvidos. E, por fim, “se tiver um às vertiginosas provas que ligam o sono a
segundo quarto disponível, utilize-o. Ter uma boa saúde.
um quarto separado não é, de forma al- Embora esta informação seja incon-
guma, um sinal de que a sua relação está testavelmente útil, pode ter efeitos per-
a correr mal”. “Em muitos casos, diria versos, nomeadamente quando não é bem
mesmo que é uma forma de a fortalecer.” compreendida. Por exemplo, as pessoas
Está a falar por experiência própria? “É tendem a pedir uma resposta exata à ques-
possível...”, confessa. Quem é que ressona tão de quantas horas de sono precisam. “É
no casal? “Não vale a pena pensar nisso”, impossível dizer, porque isso depende do
atira, com um sorriso. Então e os diferentes indivíduo, da sua idade e de muitos outros
cronotipos? É possível um casamento entre fatores”, responde Foster. Por outro lado,
um madrugador e uma notívaga funcio- continua, não é muito complicado saber
nar? “Oh sim”, garante-nos, mais uma se está ou não a dormir o suficiente.
vez com base na sua experiência pessoal. “Está totalmente operacional durante
De facto, os estudos mostram que essas o dia? Tem a impressão de estar a traba-
uniões tendem a resistir melhor ao teste do lhar em excesso? Demora muito tempo a
tempo. “Segundo alguns dos meus colegas acordar de manhã? Sente-se enevoado?
cínicos, isso deve-se ao facto de as duas Precisa de uma sesta à tarde? Está irritá-
pessoas não passarem muito tempo juntas. vel? E, sobretudo, dorme mais aos fins de
Eu prefiro ver isso como uma prova de que semana e nos dias de folga?”

OS DISTÚRBIOS DO SONO TAMBÉM PODEM AFETAR


A NOSSA CAPACIDADE DE SENTIR EMPATIA, O QUE
PODERÁ EXPLICAR POR QUE RAZÃO A TAXA
DE DIVÓRCIO ENTRE OS TRABALHADORES NOTURNOS
É APARENTEMENTE SEIS VEZES SUPERIOR À MÉDIA

AUTOR DATA TRADUTORA


F David Shariatmadari 15.07.2021 Helena Araújo

JANEIRO 2024 - N.º 335 43


Sono

A indústria do sono a acordar Embora o tema do sono tenda a domi-


nar as sessões de perguntas e respostas nas
Perante a procura crescente de melhores soluções para o sono, suas palestras, esta não foi a sua primeira
os setores da tecnologia e do turismo estão a reinventar-se área de investigação. Foster é também di-
– com diferentes graus de sucesso. retor de um laboratório de oftalmologia, e
foi o fascínio pelos olhos que o levou a inte-
O negócio do sono atrai empresas, previa já o THE ECONOMIST em 2022. A Google, ressar-se posteriormente pelo sono. Além
a Huawei e a Apple estão agora a incorporar “sensores minúsculos para observar de nos permitirem ver, os olhos regulam
os utilizadores durante a noite” e software para os ajudar a adormecer. E não são as o nosso ritmo circadiano e influenciam as
únicas a posicionarem-se neste mercado. As startups especializadas em tecnologia nossas capacidades cognitivas, o humor,
do sono oferecem soluções ainda mais surpreendentes. o sistema imunitário e a reprodução – a
A empresa finlandesa Oura Health, por exemplo, vende anéis de titânio caros, lista continua.
que medem o pulso e a saturação de oxigénio. “Kim Kardashian é fã.” A empresa O ponto alto da sua carreira científica
britânica Kokoon oferece auscultadores sem fios capazes de reproduzir sons foi a descoberta de células fotossensíveis
relaxantes ligados à fase do sono em que se encontra. A empresa norte-americana na retina, responsáveis pela sincroniza-
Eight Sleep fabrica colchões que se adaptam à temperatura do corpo da pessoa que ção da alternância entre o dia e a noite,
dorme e vende-os por mais de 2 500 euros. mas que nada têm que ver com a visão.
Estas empresas dirigem-se às pessoas que sofrem de perturbações do sono, O desaparecimento ou a deterioração
mas também àquelas para quem “a metrologia do sono se tornou um desporto”. destas células pode ter consequências
Segundo o WALL STREET JOURNAL, esta tendência “envolve o controlo da ‘pontuação graves (Foster cita o caso de um antigo
do sono’ e até estratégias para ganhar o concurso de ‘melhor dormidor’”. Para ter combatente cego, que começou a cortar
uma boa noite de sono, os seus adeptos estão dispostos a recorrer a produtos caros, a relva às três da manhã). É por isso que,
como “emissores de ruído branco, simuladores de amanhecer (e anoitecer) ou robôs quando estas células estão funcionais, é
que pode segurar nos braços para relaxar”. importante expor-se sempre à luz do dia,
De acordo com a Global Market Insights, citada pelo THE ECONOMIST, “[as vendas] mesmo no caso das pessoas cegas.
deste tipo de aparelhos representaram um volume de negócios global de 12 mil Porque é que não se tornou médico?
milhões de dólares [11,3 mil milhões de euros] em 2020, e este valor poderá, pelo Porque se considera “demasiado sensí-
menos, triplicar nos próximos cinco anos”. vel” para essa profissão. Concentrou-se
O sono vende. O setor do turismo também se apercebeu disso. “As redes hoteleiras na investigação fundamental. E só quando
da moda equiparam-se para se tornarem oásis do bom sono”, relata o THE GUARDIAN. teve a certeza de que podia transmitir os
Algumas oferecem mesmo “retiros do sono”, dando aos hóspedes a oportunidade seus conhecimentos especializados, ou
de, por vários milhares de euros, “se tornarem mestres na arte de dormir”. seja, encontrar aplicações práticas para
Um jornalista do TELEGRAPH visitou um desses estabelecimentos na Suíça. Com eles, é que aceitou o seu lugar em Oxford.
roupa de cama que se adapta à morfologia de quem dorme, sessões de ioga, Algumas aplicações podem ser muito
medicina chinesa e refeições ligeiras sem álcool, a abordagem suíça é “séria”, específicas – como um possível tratamento
considera. “Mas, paradoxalmente, [...] a coisa mais importante que lá aprendi é que é [que descobriu] para ressincronizar o re-
preciso levar as coisas com mais ligeireza”, confessa. lógio biológico – ou extraordinariamente
Uma lição importante, especialmente para aqueles que não podem pagar a vastas, com possíveis repercussões nos
experiência. Os preços praticados pela indústria do sono continuam a ser proibitivos nossos padrões de trabalho ou mesmo na
para o grande público, segundo o THE ECONOMIST. estrutura familiar. As investigações que
O título britânico considera ainda que os aparelhos para dormir melhor estão Foster decidiu explicar ao mundo sugerem
“longe de ser perfeitos”. Podem “ajudar os insones ligeiros e os que dormem mal a abrangentes questões sociais, políticas e
determinar se precisam de procurar assistência médica”, mas não podem resolver de desenvolvimento pessoal.
problemas mais graves. “Se os consumidores exaustos se aperceberem disso, os
sonhos do metal sonante e líquido da tecnologia do sono podem transformar-se Comportamentos irrefletidos
num pesadelo ruinoso.” Vejamos o exemplo do trabalho noturno.
O facto de estar ativo durante as horas em
que o nosso corpo deveria estar a descansar
e a reparar-se tem consequências terríveis
para a nossa fisiologia. Os efeitos a longo
prazo podem ser nefastos – da diabetes às
doenças cardiovasculares e ao cancro. Os
distúrbios do sono também podem afetar a
nossa capacidade de sentir empatia, o que
poderá explicar por que razão a taxa de
divórcio entre os trabalhadores noturnos é
aparentemente seis vezes superior à média.
É bom saber, mas o que fazer quando
trabalhar à noite é a única forma de ganhar
a vida? “Os empregadores têm o dever de
proteger os seus empregados”, responde
Foster. Estas empresas devem oferecer
exames médicos suplementares, refeições
Um best-seller sobre o sono
FOTO GETTYIMAGES

estão menos expostos à luz natural do que


a média das pessoas. O resultado é que
“o seu sistema de sono-vigília começa a
falhar, dando origem a todo o tipo de pro-
blemas”. E cita “um estudo extraordinário
efetuado nos Países Baixos”, segundo o
qual uma exposição mais prolongada à
luz natural provoca um aumento de 9% a
10% da capacidade cognitiva dos idosos.
Tem consciência de que algumas destas
descobertas podem ter implicações sociais
e políticas de grande alcance? “Não vejo
NA CRISE FINANCEIRA DE 2008, OS MERCADOS as coisas dessa forma. O meu ponto de
partida é mais a questão: ‘Qual é o pro-
ESTAVAM CHEIOS DE PESSOAS COM PRIVAÇÃO blema?’ Mas tem razão: pode ter reper-
CRÓNICA DE SONO. E A CIÊNCIA DIZ-NOS QUE cussões importantes em muitos domínios
da sociedade.” Incluindo em áreas em que
ESTE TIPO DE DEFICIÊNCIA ESTÁ NA ORIGEM DE nunca pensámos.
A falta de sono é, em parte, respon-
COMPORTAMENTOS PARTICULARMENTE IMPULSIVOS sável pela crise económica? “Para mim, o
E IRREFLETIDOS, ALGO DE QUE REALMENTE NÃO setor bancário é um caso exemplar, como
a crise financeira de 2008. Os mercados
PRECISAMOS. PRECISAMOS DE PESSOAS QUE SEJAM estavam cheios de pessoas com privação
crónica de sono. E a Ciência diz-nos que
EMPÁTICAS E CIRCUNSPETAS este tipo de deficiência está na origem de
comportamentos particularmente impul-
sivos e irrefletidos. Algo de que realmente
nutritivas e serviços de transporte (nos dos casos clínicos. Depois, a maior parte não precisamos. Precisamos de pessoas
Estados Unidos da América, estima-se que deles estava dentro da média normal.” que sejam empáticas e circunspetas. E a
mais de 100 mil acidentes de viação por No entanto, os investigadores depressa qualidade do nosso sono tem uma enorme
ano estejam relacionados com a sonolência descobriram que a consciência não era o influência sobre estas capacidades.”
dos condutores). Devem ainda oferecer único aspeto a trabalhar. “Fizemos-lhes Como seria uma sociedade povoada por
longos períodos sem trabalho noturno: uma lista de perguntas, incluindo se dor- pessoas mais descansadas? “Atrevo-me a
cinco anos de trabalho noturno, seguidos miam em quartos partilhados – pensando dizer que seria mais gentil, mais ponde-
de cinco anos de trabalho diurno. que sim, porque isso é comum nas crian- rada, mais construtiva e mais inteligen-
“Com o tempo, as mentalidades vão ças. Mas não lhes perguntámos se tinham te... Somos tão arrogantes. Pensamos que
mudar, como aconteceu com o tabaco”, uma cama. E descobrimos que muitos não podemos fazer o que quisermos, quando
prevê Foster. A sensibilização será um tinham. Dormiam no sofá da sala de estar. quisermos, como se não fôssemos o pro-
ponto crucial, acrescenta, admitindo Por isso, o seu sono era de má qualidade duto de 200 milhões de anos de evolução.
estar desiludido com o facto de as suas e começavam cada dia com um défice Leia Shakespeare mais uma vez: ‘Ó sono, ó
descobertas não terem sido mais am- crónico de sono.” É um círculo vicioso: bom sono, suave restaurador da natureza,
plamente divulgadas e aplicadas. Entre a pobreza afeta o sono, que, por sua vez, como é que eu te assustei, para que não
outros, conduziu um estudo-piloto nas afeta o sucesso escolar e as perspetivas mais refreasses as minhas pálpebras.’ Ele
escolas, introduzindo oito aulas de 30 so- profissionais. Os problemas relacionados sabia instintivamente toda a importância
bre os ritmos circadianos. “Antes [destas com o sono atingem pessoas de todas as do sono. Portanto, sim, fomos capazes de
aulas], cerca de 20% dos alunos apresen- idades e em todas as áreas da vida. Os grandes feitos, mas precisamos de equi-
tavam sinais de insónia semelhantes aos idosos que vivem em lares, por exemplo, líbrio.”

JANEIRO 2024 - N.º 335 45


Sono

A arte subversiva
de se dormir bem
O descanso sempre foi uma fonte de inspiração para
os artistas. Uma nova geração está comprometida a
apropriar-se mais uma vez deste tema, que considera
eminentemente político
The New York Times
Nova Iorque

Nesta tarde de maio, no com entradas gratuitas disponíveis todos

N Museu de Arte Moderna de


Nova Iorque (MoMA), numa
os dias [de janeiro a maio de 2023], os
criadores conceberam o trabalho espe-
pequena galeria a dois passos cificamente para os visitantes negros.
do átrio, onde a multidão se aglomera Um cartaz à entrada anuncia:
para ver os quadros de Ellsworth Kelly, “Se vir uma pessoa negra a descansar,
há uma dúzia de pessoas estendidas ao não chame a polícia!”
comprido. Estes visitantes ocuparam Em março, os funcionários do museu
o seu lugar, horizontalmente, em ca- pediram à artista ganesa Heather Agye-
mas redondas, pontilhadas por colchas pong que abandonasse o local, depois
tie-dye, e em tapetes com as palavras de outro visitante ter denunciado a sua
Rest in power [numa alusão à expres- “agressividade” [ela tinha frisado que a
são “Repouse em paz”]. Uma música de performance se destinava sobretudo ao
meditação invade o local com um suave público negro] – uma decisão que levou
zumbido. Uma das camas balança suave- o museu a pedir desculpa mais tarde.
mente, como um barco no mar. Alguns Aquando da visita da instalação a Madrid,
visitantes percorrem os conteúdos nos um grupo de homens brancos destruiu
ecrãs dos seus telemóveis, mas a maioria esculturas e estripou as almofadas. Al-
está a dormir. guns críticos conservadores acusaram
Esta instalação é uma obra criada em Navild Acosta e Fannie Sosa de racismo.
2023 por Navild Acosta, de 27 anos, e Mas a criação de Black Power Naps
Fannie Sosa, de 29, que estão por de- faz parte de um movimento mais alar-
trás de uma série, que alguns poderão gado de reanálise da nossa relação com
classificar como antiperformance, com o trabalho. Na China, o movimento Tang
o título Black Power Naps [Sestas Black Ping, que incentiva os jovens a reduzir o
Power]. Estes artistas multimédia em- tempo que passam no trabalho, cresceu,
barcaram neste projeto em resposta a desde 2021, a ponto de suscitar uma re-
vários estudos científicos, incluindo um preensão oficial por parte do Presidente
artigo publicado, em 2015, na revista Xi Jinping. Também nos Estados Unidos
científica Sleep. Os afro-americanos, da América, em 2022, um número re-
mostram as pesquisas, têm cinco ve- corde de trabalhadores demitiu-se. Já
zes mais probabilidades de sofrerem de ninguém se orgulha de ser workaholic.
privação de sono (menos de seis horas Por isso, é natural que os artistas ques- rogativa dos privilegiados. As indústrias
por noite) do que os seus compatriotas tionem: “E se não fizéssemos... nada?” de luxo e de bem-estar valorizam o sono,
brancos. que também é frequentemente visto
Embora o MoMA quisesse que estas Apelo à inércia como uma das chaves para o sucesso
sestas Black Power estivessem abertas É um facto que, ao longo da História, a no local de trabalho. Basta recordar o
ao maior número possível de pessoas, escolha da inação foi sempre uma prer- título do livro em que Arianna Huffington
se propôs, ao melhorar o nosso sono,
a ajudar-nos a ser mais produtivos: A
AUTORA DATA TRADUTORA Revolução do Sono. Transforme a Sua
F Julia Halperin 01.05.2023 Helena Araújo Vida, Uma Noite de Cada Vez (ed. Ma-
téria-Prima).

46 JANEIRO 2024 - N.º 335 ILUSTRAÇÃO: GETTYIMAGES


Depois veio a pandemia, que per-
turbou gravemente as nossas noites de
sono e os nossos dias de trabalho. Artistas
e instituições como o MoMA fazem do
descanso um ato revolucionário, e não é
por acaso que isto acontece exatamente
quando a própria ideia de produtivida-
de está a ser repensada. A ação já não é
considerada necessária, e é mesmo en-
carada com desconfiança, como ilustram
os trabalhos das pintoras norte-ameri-
canas Jennifer Packer e Alina Perez que,
há muito adeptas de figuras deitadas e
sonolentas, adotaram recentemente uma
paleta de cores saturadas mais sugestiva
de um estado de paz, quase onírico.
Esta tendência também pode ser
vista no trabalho da artista norte-a-
mericana Tricia Hersey: fundou o Nap
Ministry [Ministério da Sesta], que
promove o sono como uma ferramenta
para a libertação negra. Há também a
coreógrafa porto-riquenha Nibia Pas-
trana Santiago, conhecida pelo mani-
festo The Lazy Dancer [O Dançarino
Preguiçoso], uma espécie de apelo à
inércia, perante um público exausto.
Embora esta rejeição do trabalho
sem parar seja um fenómeno bastante
recente, há séculos que os artistas oci-
dentais retratam os seus semelhantes
em repouso. Matisse, Modigliani, Pi-
casso e Van Gogh, entre outros, pro-
duziram um ou mais nus deitados. Em
1972, Bed Piece, [Peça de Cama], do
artista norte-americano Chris Burden,
era uma performance baseada no sono,
em que o autor se mostrava a dormir
durante as horas de trabalho, por 22
dias consecutivos, numa galeria de arte
quase vazia em Veneza, na Califórnia.
A imobilidade é também um ato há
muito defendido pelos movimentos de
resistência. São disso exemplos os sit-
-ins, die-ins e bed-ins, que, na década
de 1960, Yoko Ono e John Lennon torna-
ram famosos, e explorados pela inves-
tigadora e autora Franny Nudelman, no
livro Fighting Sleep (2019). [Nele, ana-
lisa-se a batalha pelo sono como uma
luta pelo poder no Ocidente pós-1945].
ARTISTAS E INSTITUIÇÕES COMO O MOMA FAZEM Hoje, os artistas dão continuidade
a esta tradição antiga, adaptando-a às
DO DESCANSO UM ATO REVOLUCIONÁRIO, E NÃO exigências dos tempos: a esfera pessoal
é cada vez mais política, e o cuidado
É POR ACASO QUE ISTO ACONTECE EXATAMENTE que uma pessoa dedica a si própria é
visto como uma importante dimensão
QUANDO A PRÓPRIA IDEIA DE PRODUTIVIDADE ESTÁ de ativismo a longo prazo. Estar a dor-
A SER REPENSADA. A AÇÃO JÁ NÃO É mir, e ainda mais em público, significa
expor a vulnerabilidade, mas também
CONSIDERADA NECESSÁRIA E É MESMO ENCARADA reivindicar a dignidade e assumir a
responsabilidade, não de o fazer, mas
COM DESCONFIANÇA de o ser.

JANEIRO 2024 - N.º 335 47


Dinheiro

Os aperitivos estão cobertos

O a folha de ouro, tal como os


dançarinos. As fontes de cham-
panhe são infinitas e estamos

REINO UNIDO
rodeados por uma selva de arranjos florais
dignos de um funeral de Estado. Estou na
inauguração do Raffles, um novo hotel no

Os anos loucos coração de Londres, onde uma noite de


estada custará à sua carteira mil libras
[cerca de 1 150 euros], para o quarto mais
dos milionários modesto, ou 25 000 libras [mais de 28 700
euros] se optar pelo mais caro.
Em Londres, apesar do Brexit e das crises internacionais e A princesa real [Ana, irmã de Carlos III]
nacionais, o dinheiro circula livremente. Esta jornalista foi ver está presente. Não reconheço muitas outras
com os próprios olhos o que se passa caras na multidão, além das dos deputados
conservadores que parecem tão desconfor-
The Sunday Times táveis como eu. Sem dúvida de que muitos
Londres dos presentes estão a pagar bom dinheiro
para não serem reconhecidos por pessoas
como eu. O embaixador do Usbequistão
apresenta-se e o meu copo enche-se de
champanhe. Um pouco mais à frente, na
zona leste da capital, o lixo acumula-se nos
passeios: os homens do lixo estão em greve.
AUTORA DATA TRADUTORA Há algo de estranho a acontecer hoje no
F Charlotte Ivers 01.10.2023 Helena Araújo Reino Unido e, mais especificamente, em
Londres, embora também esteja a aconte-

48 JANEIRO 2024 - N.º 335


cer em algumas das zonas mais nobres de A fraqueza da libra esterlina em relação
Oxfordshire e de Buckinghamshire. En- ao dólar permite aos plutocratas norte-a-
quanto o comum dos mortais se debate com mericanos obter uma boa relação qualida-
comboios cancelados, escolas em ruínas e de-preço numa viagem ao Reino Unido,
a incapacidade de conseguir uma consulta neste momento. Após o Brexit, “tivemos os
no médico de família, os milionários estão nossos melhores seis meses de sempre”, diz
a sair-se ainda melhor do que o habitual. Chris Richmond, funcionário da empresa
Embora reine um ambiente crepuscular na norte-americana de serviços financeiros
City, onde nos últimos 14 anos se fizeram CIT Group.
mais negócios do que em qualquer outro
momento, se estiver com vontade de se Cheiro a riqueza
divertir sem olhar a custos, Londres é o A nossa conversa ocorre depois de ter ido
lugar ideal. visitar o novo empreendimento do CIT,
Para a maioria de nós, a vida pós-Co- Lancer Square, a dois passos da estação
vid está mais cara e mais difícil, mas para de metro de High Street Kensington, onde
algumas elites, os loucos anos estão mesmo um apartamento mínimo de quatro quar-
de volta. “Tal como nos anos 20, há muita tos custa mais de 17 milhões de euros e
pobreza e privação social, mas, nos escalões o jacuzzi da cave é maior do que o meu
superiores, as elites transatlânticas nunca quarto. Quando vejo a casa de banho em
viveram de forma tão luxuosa”, diz Alex mármore de um dos apartamentos, não
Lawrie, consultor de relações públicas para consigo conter um assobio de admiração.
os milionários no setor imobiliário. Quando Sente-se o cheiro da riqueza até no ar que
lhe pergunto se uma casa de 10 milhões de se respira aqui. Os ricos recusam-se a viver
libras é uma propriedade “ultraexclusiva” em casas que não tenham um certo nível
para os milionários, Alex, com um anel de ar condicionado, explica-me um outro
e um relógio Bulgari no pulso, olha para promotor imobiliário um pouco mais tarde.
mim com admiração antes de me dizer: Eles não respiram literalmente o mesmo
“Querida, abaixo dos 10 milhões, é a casa ar que nós.
do cozinheiro.” Se isso ainda lhe parece um pouco ple-
Se você é cozinheiro, ou exerce qualquer beu, há uma casa geminada um pouco mais
outra atividade profissional com a modesta abaixo, vendida por mais de 37 milhões de
ambição de fazer parte da classe média, euros. E se isso ainda não for suficiente para
Londres é cada vez mais inacessível. Exceto si, existem atualmente seis propriedades
para os milionários, que claramente não se “superexclusivas”, avaliadas em mais de
preocupam em reduzir o seu estilo de vida. 115 milhões de euros, em Londres.
O Raffles é o segundo hotel de mais de mil Mas porque os milionários continuam
Iates, hotéis e carros de milhões de libras a abrir portas este ano na a gostar tanto da cidade? “A atração por
luxo são cada vez mais capital britânica. E nada menos do que 13 Londres baseia-se em coisas que não mu-
frequentes em Londres outros estabelecimentos de luxo deverão daram realmente”, responde Richmond.
FOTOS: GETTYIMAGES ser inaugurados em Londres até 2025. “E a maior parte delas nunca vai mudar.
No Aeroporto de Farnborough, a su- Quando se têm interesses comerciais em
doeste da capital, o número de jatos pri- todo o mundo e um jato privado à mão,
vados aumentou 27% no ano passado. Os Londres continua a ser um importante
serviços públicos britânicos podem estar centro internacional. A cidade está situada
em estado de degradação crónica, mas os num fuso horário que facilita a realização
milionários estão a milhas de distância des- de negócios com Los Angeles, Moscovo ou
ses problemas. Não utilizam os transportes Dubai. Tem também uma localização pri-
públicos. Não precisam da segurança social. vilegiada. A partir de Londres, tem acesso
... Não fazem fila como o resto de nós, meros fácil a Nova Iorque ou à sua casa de campo
mortais, para mostrar o passaporte. Porque, no Sul de França. Pode ir às compras em
Enquanto o comum dos de facto, a maioria dos aborrecimentos que Milão ou a uma festa em Mykonos”, ex-
mortais se debate com faz parte do nosso quotidiano dissolvem-se plica Lawrie.
nos fluxos de dinheiro. Além disso, para os bilionários com
comboios cancelados, Além disso, muitos dos milionários de algumas manchas embaraçosas que pre-
escolas em ruínas e hoje estão a prosperar por causa ‒ e não cisam de limpar a sua reputação, o Reino
a incapacidade de apesar ‒ dos acontecimentos globais que Unido continua a ser o local ideal para
viraram as nossas vidas de pernas para o esconder alguns ganhos ilícitos ou ganhar
conseguir uma consulta ar. Muitos colheram enormes lucros com um processo por difamação.
no médico de família, a pandemia de Covid-19 ou com a guerra Tudo isto pode parecer obsceno para
os milionários estão a na Ucrânia. Se tem interesses nos setores alguns, mas a presença destes milionários
da energia, da saúde, da tecnologia ou do tem algumas vantagens. Os 1% mais ricos
sair-se ainda melhor do armamento, é provável que os últimos anos são responsáveis por quase um terço das
que o habitual tenham sido muito proveitosos. receitas fiscais do Estado e os seus hábitos

JANEIRO 2024 - N.º 335 49


Dinheiro

1% dos mais ricos são


responsáveis por quase um terço
das receitas fiscais do Estado
FOTO: GETTYIMAGES

custam atualmente quase 58 000 euros


por ano, contra 38 000 euros em 2013.

Capital do mundo
Londres é também uma forma de escapa-
tória. Para muitos jovens de origens mais
rígidas, Londres é o local onde se podem
divertir e viver como bem entendem,
sublinha Lawrie, citando o caso de duas
filhas de homens de negócios do golfo que
têm uma relação em Londres, mas que
escondem a relação no seu país.
“Eu adoro o Dubai. Tenho lá uma casa.
Mas não há cultura”, confessa Kam Babaee,
um promotor imobiliário e multimilioná-
rio, que deixou o Irão e vive com a família
no Reino Unido desde os 10 anos.
“Aqui pode passar um ano a ir a um
restaurante diferente todas as noites. E
depois há o melhor dos melhores em Lon-
dres: é a capital do mundo.”
Já para não falar dos laços de longa
data entre os ultrarricos e este país. “As
gerações anteriores frequentaram as nossas
escolas”, recorda Alex Cheatle, responsá-
vel por uma empresa de concierge.
“Também encontram aqui os seus pa-
res. Conhecem a cidade. Se não consegue
dizer se prefere Kensington, Mayfair ou
Hampstead [zonas abastadas de Londres], é
como se não tivesse uma estância de esqui
preferida.”
Eu não sou cliente do Cheatle: a evidên-
cia tornou-se clara numa segunda-feira à
noite. Tentei jantar em quatro restaurantes
diferentes de Mayfair, antes de encontrar
uma mesa. “Só os imbecis tentam a sua
sorte sem reserva”, pareciam dizer-me as
sobrancelhas do chefe de mesa, enquanto
eu implorava por um lugar junto à casa
de banho. Os restaurantes de todo o país
de consumo exuberantes criam empre- estão agora fechados às segundas-feiras
go ‒ advogados e contabilistas, sim, mas por falta de movimento, mas os de May-
também empregados domésticos. “Hoje fair continuam cheios. A conta para três
em dia, no Reino Unido, há mais arruma- ... pessoas foi de 444 euros. Sem sobremesa.
dores e empregados domésticos do que Enquanto, neste mundo de luxo, es-
na época georgiana ou vitoriana”, diz “Tal como nos anos perava com os meus guias que nos fosse
Lawrie, e os britânicos não ficam atrás 20, há muita pobreza atribuída uma mesa, lamentámos não
de ninguém neste domínio. “É 50% de ter ficado no Maison Estelle, o novo clu-
prestígio social e 50% de efeito Mary Po- e privação social, mas, be privado da moda de que todos falam,
ppins, as pessoas adoram.” É também o nos escalões superiores, onde tínhamos tomado uma bebida mais
que leva os milionários a inscreverem os cedo. Lá, uma sanduíche custa 25 euros e,
seus filhos nas melhores escolas britânicas.
as elites transatlânticas à chegada, colocam-nos um autocolante
Com a escola privada para rapazes Eton e nunca viveram de na câmara do telemóvel, para o caso de
outras instituições de topo a manterem a forma tão luxuosa”, diz entrar uma celebridade. A discoteca estava
sua reputação, o sistema educativo britâ- mais cheia do que o bar do meu bairro. Os
nico continua a ser uma referência para Alex Lawrie, consultor loucos anos vinte estão aqui. Pelo menos
as elites mundiais. Na Eton, as propinas de relações públicas para aqueles que podem.

50 JANEIRO 2024 - N.º 335


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Campo de cultivo de arroz no Japão
FOTO GETTYIMAGES
ARROZ
A crise que aí vem
ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS, CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO, TENTAÇÕES
PROTECIONISTAS... DESDE O VERÃO DE 2023 QUE OS SINAIS SÃO
DE ALERTA. ISTO SUGERE QUE UMA NOVA CRISE ALIMENTAR SERÁ
EQUIVALENTE À DE 2008, QUE CAUSOU UMA SÉRIE DE CONVULSÕES
POLÍTICAS EM VÁRIOS PAÍSES. OU AINDA PIOR

Financial Times (excertos)


Londres
Arroz

A
Arroz frito é normalmente uma escolha países mais pobres, entre eles o Bangla-
popular entre os comensais em Lagos, a desh, que faz fronteira com cinco estados
capital económica da Nigéria. No entanto, indianos, e o Benim, na África Ocidental.
muitas pessoas deixaram de o pedir, diz A proibição continua em vigor em 2024.
Toni Aladerkomo, gerente do restauran- No final de julho de 2023, a Índia já
te Grey Matter Social Space, no elegante havia proibido as exportações de “arroz
bairro comercial de Victoria Island. “Com branco não basmati”, medida acompa-
o preço de uma dose a disparar para 4 nhada, em agosto, pela imposição de um
000 nairas, [4,40 euros] quando custava preço mínimo para o “arroz basmati” e
1 400 há um ano, deixou de ser acessível uma tarifa de 20% sobre o “arroz vapo- O fenómeno meteorológico El Niño ameaça
a muitas pessoas”, especifica. rizado” [resultante de um processo de prejudicar a produção de arroz em 2024
Na Nigéria, o arroz é o alimento mais fervura parcial ainda em casca antes da FOTO GETTYIMAGES
consumido – e a base do prato nacional, moagem, e que representa cerca de 1/3
o arroz jollof. Mas o preço de um quilo de das vendas ao estrangeiro].
grão importado aumentou, em agosto de “Quando um país que representa 40% mais do que vendem] esperavam que,
2023, 46,34% face ao mesmo período do do comércio mundial de arroz deixa de com uma melhor produção, o governo de
ano anterior, segundo dados da Agência exportar metade e impõe um imposto Modi aliviasse as restrições. Mas as eleições
Nacional de Estatística. sobre a outra metade, está a criar uma aproximam-se neste país da Ásia do Sul e
Embora os preços tenham subido em situação muito difícil”, salienta Joseph os preços dos alimentos são uma questão
todos os setores, porque a Nigéria se debate Glauber, ex-economista no Departamen- explosiva para o primeiro-ministro [que
com a taxa de inflação mais elevada das to de Agricultura dos Estados Unidos e aspira a um terceiro mandato]. O fenó-
últimas duas décadas [atingiu 28,7% no atualmente investigador no International meno meteorológico El Niño, associado
final de 2023], o aumento acentuado do Food Policy Research Institute (IFPRI), à subida das temperaturas e a uma seca
custo de um produto alimentar de pri- organização sediada em Washington que severa em todo o oceano Pacífico, também
meira necessidade pode ser atribuído às promove políticas destinadas a combater ameaça prejudicar a produção em 2024.
restrições impostas pela Índia, o maior a fome e a pobreza.
exportador mundial de arroz [o maior Uma das consequências imediatas da Uma pressão constante
produtor é a China], que teme um défice proibição de julho foi o pânico entre os Analistas deixam um alerta: se a Índia
de produção e um aumento de preços no consumidores na Ásia e na América do mantiver as atuais restrições e outros paí-
seu mercado interno. Norte e medidas semelhantes tomadas por ses produtores seguirem o seu exemplo,
Tudo começou em 2022, quando o outros grandes países produtores para se poderá ser inevitável uma crise como a
governo do primeiro-ministro Narendra adaptarem à nova situação. de 2008, quando o contágio de políticas
Modi deixou de exportar “arroz bran- A colheita de arroz na Índia começou protecionistas contribuiu para que os pre-
queado” [diferente do integral por con- em outubro [com a expectativa de atingir ços do arroz triplicassem em apenas seis
ter menos nutrientes – proteínas, lípidos, a meta de 128 milhões de toneladas mé- meses, provocando um aumento da in-
fibras, vitaminas e minerais], um produto tricas até setembro de 2024] e os países flação em todo o mundo e desencadeando
barato, comprado principalmente pelos importadores líquidos [os que compram motins do Norte de África ao Sul da Ásia
e nas Caraíbas.
Desta vez, uma nova crise poderá ser
AUTORES DATA TRADUTORA ainda mais grave, porque o aumento da
F Susannah Savage, Jyotsna Singh, 23.10.2023 Maria Alves procura, impulsionado pelo crescimento
Benjamin Parkin e Aanu Adeoye
demográfico, colide com os efeitos cada vez

54 JANEIRO 2024 - N.º 335


Uma “cintura
coreana
de arroz”
para África
Partindo do princípio de que, em
2020-2021, África consumiu mais
de 399 milhões de toneladas de
arroz, mas produziu apenas 24
milhões [total que terá diminuído
para 23 milhões em 2021-2022],
a Coreia do Sul lançou, em julho
do ano passado, uma iniciativa
denominada K-Rice Belt
[“Cintura Coreana de Arroz”].
A ideia, explica o jornal THE KOREA
TIMES, é fornecer a oito países
africanos (Guiné-Bissau e Guiné-
Conacri, Senegal, Gâmbia, Gana,
SE A ÍNDIA MANTIVER AS RESTRIÇÕES E OUTROS Camarões, Quénia e Uganda)
variedades de arroz de alto
PAÍSES PRODUTORES SEGUIREM O SEU EXEMPLO, rendimento, mas também know-
PODERÁ SER INEVITÁVEL UMA CRISE COMO A DE 2008, how e maquinaria agrícola.
Este projeto, cuja primeira fase
QUANDO O CONTÁGIO DE POLÍTICAS PROTECIONISTAS irá decorrer até 2027, terá um
orçamento de 80 milhões de
CONTRIBUIU PARA QUE OS PREÇOS DO ARROZ dólares [cerca de 73 milhões de
TRIPLICASSEM EM APENAS SEIS MESES, PROVOCANDO euros]. O objetivo é produzir 10
000 toneladas de sementes até
UM AUMENTO DA INFLAÇÃO EM TODO O MUNDO àquela data e fazer chegar arroz a
30 milhões de pessoas.
O arroz é cultivado em África há
mais extremos das alterações climáticas. A Índia já é nisto repetente. Em 2007, mais de 3 000 anos, segundo o
Os preços do arroz não sobem apenas foi o primeiro país a reagir quando os pre- site AFRICA RICE, sendo o “arroz
na Índia. Na Tailândia e no Vietname, hoje o ços de produtos alimentares básicos, como africano”, cujo nome científico
segundo e o terceiro maiores exportadores o trigo e o milho, subiram acentuadamente é Oryza glaberrima, único no
mundiais de arroz, os preços de referência devido a más condições climáticas que continente e parte integral da
aumentaram 14% e 22%, respetivamente, ameaçaram a produção. A oferta de arroz cultura de várias comunidades.
desde que Nova Deli impôs a proibição era abundante, mas a pressão ascendente Dos 54 países africanos, 40
de venda. sobre os preços dos alimentos deixou em plantam arroz, sendo este cereal
Arif Husain, economista-chefe do pânico vários governos. O de Nova Deli foi a principal fonte de atividade
Programa Alimentar Mundial (PAM) das rápido a decretar restrições à exportação. e rendimento de mais de 35
Nações Unidas, anota que os países que O Vietname – que era então o segundo milhões de pequenos agricultores,
provavelmente irão ser mais afetados já maior fornecedor mundial de arroz depois sobretudo na África subsariana.
enfrentam uma série de problemas: preços da Tailândia – seguiu o exemplo da Índia
elevadíssimos dos produtos alimentares, e ordenou uma proibição em janeiro de
uma dívida galopante e a desvalorização 2008, enquanto exportadores mais peque-
das suas moedas. “Quando olhamos para o nos, como o Egito e o Paquistão, faziam
efeito cumulativo, estamos essencialmente o mesmo. À medida que se enchiam os
a falar de um bem de primeira necessidade armazéns dos agricultores e governos e
que não é acessível a milhões e milhões consumidores se abasteciam, os preços
de famílias”, avalia Husain. nos mercados internacionais disparavam,

JANEIRO 2024 - N.º 335 55


Arroz

A Índia arrisca-se a
exportar a insegurança 19 500
A poucos meses das eleições legislativas, previstas para abril-maio

FONTES: DEPARTAMENTO DE AGRICULTURA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA (USDA), AL JAZEERA, OCDE/FAO (2022), CIRAD
deste ano, o primeiro-ministro, Narendra Modi, tenta controlar
a inflação a todo o custo. Correndo o risco de pôr em perigo O arroz em números
o abastecimento alimentar mundial.
Juntamente com o trigo e o milho,
Nova Deli tem vindo, pouco a pouco, a “reforçar o controlo do mercado o arroz é um dos três cereais mais
mundial de arroz”, constata Mihir Sharma, economista indiano, num artigo cultivados no mundo.
publicado no site BLOOMBERG e amplamente divulgado pela imprensa indiana.
“A Índia gosta de se apresentar como um líder do Sul global, capaz de sentir
empatia pelos países em desenvolvimento, o que muito contrasta com o 90% do arroz
Ocidente ou a China, pouco preocupados com o impacto das suas políticas é produzido na Ásia.
nos Estados mais vulneráveis, mas não é o Ocidente que irá sofrer com a
proibição de exportar arroz não basmati”, critica o colunista.
Num discurso à nação, por ocasião do Dia da Independência, em 15 de agosto Produção por país
de 2023, o primeiro-ministro, Narendra Modi, “comprometeu-se a reduzir (outubro de 2023-outubro de 2024, em milhões de toneladas)

a inflação, parte da sua estratégia para conquistar um terceiro mandato” nas

BANGLADESH
36,5
eleições legislativas de abril-maio deste ano, refere o diário económico MINT, CHINA OUTROS
com sede em Bangalore. 149 139
“Como a inflação continua a subir [5,69% em dezembro de 2023 contra
5,55% em novembro – o maior aumento em quatro meses], a Índia tomou
várias medidas, designadamente, restrições à exportação de determinados

INDONÉSIA
34,5
alimentos, para controlar o aumento dos preços, acrescenta o MINT. O governo
mantém a proibição de venda ao estrangeiro de arroz branco que não seja
basmati e sobre certas variedades impôs uma taxa de exportação de 20%. ÍNDIA
Em maio de 2022, as autoridades já haviam proibido a exportação de trigo, 132

VIETNAME
apesar de o país ter garantido que conseguiria alimentar o mundo, recorda o
27
jornal THE HINDU. Em agosto de 2023, foi também imposta uma tarifa de 40%
sobre a cebola, para limitar a exportação deste alimento básico da cozinha
indiana, que se diz ter o poder de derrubar governos. A medida é, no entanto, TOTAL MUNDIAL: 518 MILHÕES DE TONELADAS
onerosa para os consumidores do Bangladesh e do Nepal, Estados vizinhos, A China, o Bangladesh e a Indonésia não exportam o seu arroz,
que dependem da Índia para o seu aprovisionamento de bolbos. Nova Deli que é reservado ao mercado interno.
restringiu, de igual modo, as exportações de açúcar, para tentar travar o
aumento dos preços internos, associado a más colheitas.
“Se mantivermos os alimentos no interior das nossas fronteiras, estaremos chegando aos 1 000 dólares por tonelada,
a exportar insegurança e instabilidade”, avisou Mihir Sharma, investigador algo até então sem precedentes.
associado no think tank Observer Research Foundation, com sede em Nova Frederic Neumann, economista-che-
Deli. Durante a última crise de produção e de stock de cereais, em 2007- fe para a Ásia no banco britânico HSBC,
2008, pelo menos 14 países africanos registaram motins porque grande parte recorda-se das prateleiras dos supermer-
das populações enfrentava situações de fome. cados em Hong Kong sem um pacote de
arroz. Em vários países, cidadãos famin-
tos protestaram nas ruas. No Haiti, por
exemplo, em abril de 2008, “motins da
fome” derrubaram o primeiro-ministro,
Jacques-Édouard Alexis.
A fúria face ao aumento dos preços
dos alimentos persistiu e fomentou o
descontentamento político. Três anos
depois, contribuiu para as revoluções
da “primavera árabe” que conduziram à
queda de quatro líderes no Médio Oriente
e no Norte de África [Zine El Abidine Ben
Ali, da Tunísia, Hosni Mubarak, do Egito,
Muammar Kadhafi, da Líbia, em 2011, e
Abdullah Saleh, do Iémen, em 2012].
A lição ficou gravada na memória
de muitos dirigentes atuais. Na Índia, o
Bharatiya Janata Party (BJP), partido de
Narendra Modi, fez do controlo dos preços
a prioridade máxima antes das eleições da

56 JANEIRO 2024 - N.º 335


“ninguém quer tentar o diabo” quando
Consumo de arroz per capita (kg por pessoa, por ano, 2020-2022)
os eleitores forem às urnas.
O arroz representa 15%
das terras cultivadas no mundo.
74,2 Críticas do mundo
400 milhões Para os produtores indianos de arroz, a
de pequenos produtores cultivam-no. 26,5 25,7 proibição de exportar foi um duro golpe.
Sandeep Kumar, 37 anos, e o seu tio Satish
Exportações de arroz Kumar sentiam-se com sorte depois de
(janeiro de 2022 a dezembro de 2023, o fértil estado de Haryana, no Norte, ter
em milhões de toneladas) escapado às inundações que destruíram as
ÁSIA ÁFRICA AMÉRICA LATINA
ÍNDIA 19,5 E CARAÍBAS colheitas noutras regiões do país. Depois,
19,7 Modi proibiu a venda ao estrangeiro de
TAILÂNDIA 8,5 11,9 7,2 arroz não basmati que os Kumar haviam
VIETNAME 8,4 cultivado na esperança de uma forte pro-
cura mundial.
PAQUISTÃO 3,6 OCEÂNIA AMÉRICA EUROPA Os preços caíram rapidamente em
DO NORTE
EUA 2,3 mercado aberto, lamenta Satish. “O go-
verno não valoriza o trabalho dos agricul-
Importações de arroz indiano, O arroz é o alimento básico de tores. Tem os olhos postos nas eleições e
com exceção do arroz Basmati não quer que os preços subam.” Outros
(janeiro a julho de 2023, em milhões de toneladas) 4 mil milhões de pessoas. argumentam que a proibição abrupta or-
BENIM 1,17 Representa 27% do consumo de calorias denada por Modi irá abalar a reputação do
nos países de baixo e médio rendimento. país como um parceiro comercial fiável
SENEGAL 0,87 do Sul global.
QUÉNIA 0,69 A decisão da Índia também gerou críti-
Todos os anos, a África Subsariana consome cas no resto do mundo. O Fundo Monetário
TOGO 0,68 38,3 milhões de toneladas de arroz Internacional (FMI) apelou a Nova Deli
GUINÉ 0,58 para que revertesse a medida “prejudi-
cial” e, em setembro de 2023, os Estados
Cada quilograma colhido requer Unidos e outros países questionaram, na
dos quais Organização Mundial do Comércio (OMC),
3 000 a 5 000 a necessidade de restrições, uma vez que,
litros de água.
Isto é três vezes mais do que o trigo.
45%
são importados.
segundo eles, as reservas públicas da Índia
[estimadas em 24,6 milhões de toneladas
métricas de arroz] são adequadas.
Segundo dados do Departamento de
Agricultura dos Estados Unidos analisados
pelo HSBC, não só cresceu a quota da Índia
UM ESTUDO REALIZADO EM 2017 MOSTROU QUE nas exportações globais de arroz, como
O AQUECIMENTO GLOBAL DE 1oC REDUZIRIA duplicou o volume de arroz comercializado
entre países, de cerca de 5% em 1999 para
A PRODUÇÃO DE ARROZ EM 3,3% EM MÉDIA. os atuais mais de 10%. Isto aumenta os
riscos de contágio de uma crise, previne
AS TEMPERATURAS DA SUPERFÍCIE GLOBAL JÁ Frederic Neumann: “A ameaça de uma
AUMENTARAM, PELO MENOS, 1,1oC DESDE OS TEMPOS repetição do que aconteceu em 2008 é
muito real.”
PRÉ-INDUSTRIAIS. OS PRINCIPAIS PAÍSES DA ÁSIA Outros países asiáticos decidiram
imitar a Índia. No final de agosto, a Bir-
EXPORTADORES DE ARROZ VÃO EXPERIMENTAR mânia/Myanmar, o quinto maior ex-
portador, anunciou uma suspensão das
TEMPERATURAS CADA VEZ MAIS ELEVADAS exportações “durante cerca de 45 dias”.
Pouco depois, as Filipinas impuseram um
próxima primavera. A inflação dos alimen- dia debate-se com pobreza e subnutrição. limite máximo aos preços do arroz, para
tos foi sempre uma questão muito sensível Cerca de 800 milhões de pessoas recebem minorar o impacto do aumento entre os
no país onde o arroz é o produto básico cereais gratuitamente, no âmbito de um consumidores.
mais consumido. programa de ajuda alimentar. A região procura proteger as suas re-
O governo indiano justifica as restri- “Os responsáveis políticos estão a to- servas. Em setembro, os dez membros da
ções às exportações com a necessidade de mar precauções extra por causa das elei- Associação das Nações do Sudeste Asiático
proteger a segurança alimentar do país ções estaduais [de novembro-dezembro de (ASEAN, que representa mais de 600 mi-
num contexto preocupante de inflação e 2023] e gerais [em abril-maio de 2024]”, lhões de habitantes), entre os quais três
de colheitas mais fracas exacerbadas por justificou Avinash Kishore, investigador dos cinco maiores exportadores de arroz,
temperaturas erráticas. Uma grande parte do IFPRI em Nova Deli. Porque o preço comprometeram-se a não utilizar barreiras
dos 1,4 mil milhões de habitantes da Ín- dos combustíveis também aumentou, comerciais “injustificadas”. Mas, em outu-

JANEIRO 2024 - N.º 335 57


Arroz

em 2022 veio da Índia, bem como 61% do do International Rice Research Institute,
Custo preços disparam que é consumido pelo Benim – o maior IRRI, com sede em Manila, Filipinas]. Não
importador mundial de arroz branqueado é este o caso. Acima de uma determinada
Preço do arroz branco (em dólares por tonelada) indiano. temperatura, explica Sander, os campos
650 No Senegal, onde 47% das importações agrícolas ressentem-se. E o arroz é es-
de arroz provêm da Índia, Cheikh Bam- pecialmente sensível ao calor noturno.
Índia ba Ndaw, um dos diretores do Ministério Um estudo realizado em 2017 mos-
600 Tailândia do Comércio, acha que as dificuldades de trou que o aquecimento global de 1ºC
Vietname abastecimento do seu país “não se devem reduziria a produção de arroz em 3,3%
550 a um problema de arroz, mas de preço”. em média. As temperaturas da superfí-
Por enquanto, o Senegal tem stocks cie global já aumentaram, pelo menos,
500 suficientes, mas se a Índia mantiver as suas 1,1ºC desde os tempos pré-industriais. Os
fronteiras cerradas e os preços internacio- principais países da Ásia exportadores de
450 nais não baixarem, o país será obrigado a arroz registarão, até 2100, um número
importar outras variedades de arroz, do significativamente maior de dias com
Brasil ou dos Estados Unidos, que são mui- temperaturas acima dos 35ºC, segundo
400
to mais caras do que as provenientes da previsões da empresa de dados de maté-
Índia, e isso pode desencadear uma crise rias-primas Gro Intelligence. O cenário
350 alimentar, enfatiza Ndaw. mais pessimista dá 188 dias ou mais acima
deste limiar à Tailândia.
300 Bom senso precisa-se Nos deltas produtores de arroz da Ásia,
2021 2022 2023 A situação assemelha-se à que se viveu na do Mekong ao Ganges, as alterações cli-
primavera de 2023 com o trigo, destaca máticas causarão outras complicações.
Fontes: FINANCIAL TIMES, MINTEC Arif Husain. Quando a Rússia invadiu a Sob o efeito de temperaturas elevadas,
Ucrânia, que representava 10% das ex- sobe o nível dos oceanos e a água salgada
portações mundiais, o preço deste cereal entra nos rios, canais de irrigação e solos,
Ameaça aos rendimentos disparou e colocou em risco a segurança reduzindo a produção ou impossibilitando
Dias acima de 35 °C em áreas de campos alimentar em muitos países. totalmente o cultivo.
de arroz dos principais produtores A última crise de arroz terminou quan- Em 2023, os agricultores também en-
2021 2098 (projeção) do o Japão, a Tailândia e o Vietname se frentaram o fenómeno El Niño, que agrava
comprometeram a retomar as exportações os efeitos das alterações climáticas e pode
e os custos do transporte caíram. Mas, causar precipitação [chuva, neve, granizo]
Vietname
alertam analistas, a situação atual não será nas regiões produtoras de arroz, adianta
tão simples de resolver. Ole Sander. Menos chuva significa menos
Há 15 anos, o mundo não tinha escassez água doce vinda dos rios para remover o
Birmânia
de cereais. Hoje, já não é esse o caso. A excesso de sal.
população do planeta deverá atingir os Em 2023, enquanto a Índia continuava
Tailândia dez mil milhões em 2050, sendo África e à espera de avaliar o impacto do clima nas
a Ásia os principais impulsionadores deste suas colheitas, a Tailândia anunciava que
aumento, que, estimam investigadores, a sua produção seria inferior à esperada,
Índia poderá acelerar a procura de arroz em devido a chuvas abaixo da média em se-
quase um terço. A produção não acom- tembro e outubro.
panhará, todavia, este ritmo. Dizem os meteorologistas que o fenó-
Paquistão Depois de décadas de crescimento meno El Niño persistirá durante boa parte
rápido, graças à plantação de novas va- de 2024. Se assim for, corre-se o risco de
0 50 100 150 200 250 riedades de arroz, a produção tem vindo uma grande diminuição da oferta global
O modelo utiliza o cenário SSP 5-8.5 do IPCC. a estagnar nos quatro maiores países for- de arroz, alerta o economista do HSBC
FONTES: FINANCIAL TIMES, GRO INTELLIGENCE
necedores do Sudeste Asiático, segundo Frederic Neumann. O que aqui está em
um estudo recente publicado pela revista jogo, acrescenta, não é apenas o preço do
académica Nature Food. Globalmente, a arroz num futuro imediato. Na verdade,
bro, o ministro da Agricultura da Malásia produção aumentou uma média de 0,9%, trata-se de uma amostra de como o mundo
disse à sua imprensa estatal que os líderes ao ano, entre 2011 e 2021, o que representa poderá reagir a condições climáticas cada
da ASEAN também tinham concordado um abrandamento em relação aos 1,2% vez mais imprevisíveis que aumentam a
em dar prioridade às exportações de arroz anuais, entre 2001 e 2011, de acordo com volatilidade dos preços dos alimentos.
para outros países deste bloco. as Nações Unidas. Para Arif Husain, do PAM, a solução
O protecionismo representa uma As alterações climáticas são a principal reside na intensificação do comércio para
ameaça significativa para os Estados da causa deste declínio. Porque o arroz se melhor distribuir os alimentos por todo o
África Ocidental, que se arriscam a ficar produz em climas quentes (90% do que planeta. Mas ele teme que o agravamento
de fora do mercado devido aos preços ele- é consumido mundialmente é cultivado das alterações climáticas encoraje os go-
vados. Estes países estão particularmente na Ásia), pensa-se, com frequência, que vernos a fechar fronteiras e a virar costas
expostos à proibição de exportação orde- não haverá impacto se a temperatura subir aos mercados globais. A crise atual pode
nada pela Índia, salienta Husain, do PAM. apenas alguns graus, refere Bjoern Ole San- tornar-se “uma megacrise”, adverte, a
Quase 88% do arroz importado pelo Togo der, climatologista na Tailândia [e diretor menos que “prevaleça o bom senso”.

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Arroz

No delta
do Mekong, a água
salgada prejudica
as culturas
No Sul do Vietname, a salinidade da água nos campos
de arroz está a obrigar cada vez mais agricultores
a optar por outras culturas
de Volkskrant
Amesterdão

Os antigos campos de arroz de -se: o solo baixa quatro centímetros por O Vietname é o terceiro maior

O Dinh Cong Chien assemelham-


-se a uma selva. Onde outro-
ano. Desde há cerca de dez anos, as secas,
as inundações e a salinização ameaçam o
exportador de arroz do mundo
FOTO GETTYIMAGES
ra os caules verdes se erguiam seu equilíbrio. Esta tendência deve-se em
sobre a água cintilante do vasto delta do parte à atividade humana. Vários centros de
Mekong, existe agora um denso pomar investigação e organizações humanitárias
de carambolas, mangas e maçãs amare- de todo o mundo estão a estudar as causas menos, segundo os padrões vietnamitas,
las. Num barco de madeira, o agricultor exatas e a propor várias soluções. onde os longos dias de trabalho são a regra).
de 63 anos atravessa a rede de pequenos “O tempo está estranho”, diz Duon Aqui, o mais pequeno snack-bar à beira
canais para verificar a sua colheita. “Toda Truong Giang, 34 anos, à porta da sua casa da estrada oferece aos seus clientes uma
a aldeia passou a dedicar-se à fruta. Não junto ao mar. “Sabe que aqui os tornados dúzia de camas de rede e, depois do dia
tivemos escolha quando, em 2016, a água já danificaram 44 casas? Além disso, des- de trabalho, muitos agricultores relaxam
começou a ficar amarelada.” de que caiu o raio, a minha televisão não em frente às suas casas com um cachimbo
Nessa altura, bastou-lhe pôr uma gota liga.” Mas as mudanças são mais visíveis nos de água de bambu na mão. Mas esta paisa-
na língua para confirmar os seus receios: a campos. “Agora cultivo arroz em metade gem idílica está ameaçada pela seca, pelas
água estava salgada. “O durião foi a primeira do ano e camarão na outra metade.” Os inundações e pela salinização.
árvore a murchar. Depois, pouco a pouco, grandes camarões azuis prosperam nesta “Os agricultores do delta do Mekong
as plantas de arroz ficaram amarelas e aca- água salgada e, além disso, rendem “qua- estão habituados a inundações e secas pe-
baram por morrer também.” Dinh Cong tro vezes mais do que o arroz”. Aqui, no riódicas, mas, atualmente, há demasiados
Chien estima atualmente que o teor de sal é distrito de Gia Hoa 2, os campos de arroz fatores que perturbam a região ao mesmo
de 0,5% (o limiar da água salobra). Aponta inundados estão a dar lugar à criação de tempo, ao ponto de ameaçarem a subsistên-
para um grande tubo que sai de um dique camarões. Aqui e ali, redes de pesca pendem cia das pessoas”, resume Dang Kieu Nhan,
lamacento. “A 4%, recebo uma notificação de uma cabana. diretor do Instituto de Investigação para o
no meu telemóvel e tenho de me apressar a Visto do ar, o delta do Mekong faz lem- Desenvolvimento do Delta do Mekong da
fechar a comporta. Caso contrário, as mi- brar Ha Lan – a Holanda. Rios largos correm Universidade de Can Tho. E enumera as
nhas árvores de fruto também morrem.” lentamente através de planícies que se es- principais causas do problema. A come-
Por todo o planeta, os agricultores estão tendem até onde a vista alcança; bosques çar pelas alterações climáticas, que estão
a ter de se adaptar às perturbações climá- e aldeias erguem-se num conjunto mag- a tornar as condições meteorológicas cada
ticas. Mas em nenhum outro lugar os seus nífico. Apenas os coqueiros substituem os vez mais imprevisíveis e extremas.
efeitos parecem ser tão rápidos e abrangen- olmos holandeses. O delta foi gradualmente Depois, há os vizinhos China, Laos e
tes como no delta do Mekong. Esta região moldado pelo poderoso rio Mekong, que Camboja, que estão a construir dezenas de
agrária do Sul do Vietname, do tamanho dos todos os anos se ergue das suas margens, barragens ao longo do Mekong para pro-
Países Baixos, desempenha um papel central deixando atrás de si solos férteis. duzir eletricidade, reduzindo a quantidade
no abastecimento alimentar de toda a Ásia. Os mais de 20 milhões de habitantes de água e de sedimentos que correm para o
O país, o terceiro maior exportador de arroz desta região, alguns dos quais fazem parte delta. Por último, a indústria da construção
do mundo, fornece milhões de toneladas da minoria étnica Khmer, são conhecidos civil, que extrai areia em grande escala,
a países como as Filipinas e a China. Mas pelos seus excelentes produtos agrícolas e escavando o leito do Mekong (que, nalguns
o seu delta está literalmente a afundar- pelo seu estilo de vida descontraído (pelo locais, tem 90 metros de profundidade) e
baixando o nível da água; a agricultura e a
indústria, que captam as águas superficiais,
baixando ainda mais o nível da água; e a
F AUTORA
Noël van
DATA
07.10.2023
TRADUTORA
Helena Araújo destruição dos mangais, que permite que o
Bemmel mar avance sem obstáculos para as terras.

60 JANEIRO 2024 - N.º 335


O delta do Mekong
CAMBOJA
VIETNAME
Cidade d
Cidade eH
de ô Ch
Ho Chii Mi
Chi M
Minh
i h
Me
ko
ng
H
au

Can
C Tho
ann T ho
ho
Raach Gi
R
Rach G
Giaa

Co Chien

Golfo da
Tailândia
Mar da China
Meridional

FONTE: TUOI TRE NEWS


Salinidade da água (em gramas/litro)
0 1 2 4 8 16 24

A partir de 5 gramas de sal/litro


50 km (ou 0,5%), a água é salobra

POR TODO O PLANETA, OS AGRICULTORES ESTÃO


A TER DE SE ADAPTAR ÀS PERTURBAÇÕES CLIMÁTICAS. Por uma maior
MAS EM NENHUM OUTRO LUGAR OS SEUS EFEITOS diversificação
PARECEM SER TÃO RÁPIDOS E ABRANGENTES COMO alimentar
A Indonésia consumiu 30,2
NO DELTA DO MEKONG. ESTA REGIÃO AGRÁRIA DO SUL milhões de toneladas de arroz
DO VIETNAME DESEMPENHA UM PAPEL CENTRAL em 2022, ou seja, uma média de
6,8 quilos por pessoa e por mês,
NO ABASTECIMENTO ALIMENTAR DE TODA A ÁSIA segundo a Agência Nacional
de Estatística. O consumo tem
vindo a aumentar, de forma
“A salinização, por outro lado, deve-se legumes, de melhor qualidade, com muito constante, mas a produção
sobretudo à bombagem em grande escala menos fertilizantes e água, ficam muito diminuiu 1,7% ao ano nos últimos
de águas subterrâneas pela agricultura, pela interessados.” cinco anos. Em 2023, o quarto
indústria e pelo setor doméstico. Assim, Segundo as suas informações, uma ins- país mais populoso do mundo
todos os anos, o solo afunda-se considera- talação hidropónica custa até 40 euros por terá importado dois milhões
velmente, enquanto o nível do mar sobe.” metro quadrado (ou 400 000 euros por de toneladas para satisfazer a
“A água salgada”, explica Dang Kieu Nhan, hectare). Para a maior parte dos agricultores procura dos seus mais de 278
“penetra cada vez mais no delta. E a armada vietnamitas, isso é demasiado caro, consi- milhões de habitantes.
de comportas e diques pouco pode fazer, dera Dang Kieu Nhan. Quando questionado Importar não é uma solução
pois a água salgada infiltra-se no subsolo. sobre o estado do delta daqui a 20 anos, sustentável, alerta o diário
Isto obriga os agricultores a adaptarem-se responde: “Não creio que vá desaparecer KOMPAS, até porque há cada vez
cada vez mais.” debaixo de água, como algumas pessoas mais países a restringirem as
O investigador dá o exemplo de um mé- pensam.” Na sua opinião, os produtores suas exportações. O problema
todo moderno, a hidroponia. Agricultores de arroz ao longo da costa começarão a é particularmente grave nas
de toda a região vêm visitar a quinta-mo- produzir camarões em massa, os que se ilhas mais remotas. “Em todas
delo nos arredores da capital da província, encontram mais a montante produzirão estas ilhotas, encontrámos
Can Tho. Aqui, a terra castanha e os canais fruta e, no interior (onde as inundações dezenas de fontes alimentares
sinuosos do delta deram lugar a filas e filas e as secas são os principais perigos), os ricas em hidratos de carbono,
de mesas cobertas com plástico transpa- agricultores alternarão entre o cultivo de como milho e milho-painço,
rente. Alface-romana, radicchio, mostar- arroz e a criação de peixes de água doce. sorgo, batata-doce, taro, cevada,
da e outros crescem em copos de plástico. “A produção de arroz vai diminuir, é ine- abóbora, mandioca e vários tipos
Os seus sistemas radiculares pálidos são vitável.” de banana”, observa o jornal de
alimentados com água enriquecida com Dang Kieu Nhan está convencido de Jacarta, exortando as autoridades
nutrientes. que o delta do Mekong voltará ao seu an- públicas a promover uma maior
Nesta quinta, que mais parece um labo- tigo estado, antes de o governo vietnamita diversificação da agricultura. Esta,
ratório, a jovem diretora, Le Thi Kieu Danh, ter decidido cultivar toda a região para a sublinha, é a chave para “alcançar
explica: “No início, muitos agricultores fi- tornar um dos celeiros de arroz do mundo. a soberania alimentar em todas
cam desconfiados. Mas quando lhes explico “Porque hoje, este modelo está a revelar-se as regiões” do arquipélago, “o
que este método nos permite cultivar mais insustentável.” mais rapidamente possível”.

JANEIRO 2024 - N.º 335 61


Tuvalu será um dos primeiros países
do mundo a ser completamente
engolido pelas alterações climáticas
FOTO GETTYIMAGES
Em Tuvalu,
o futuro será virtual
PERANTE A SUBIDA DO NÍVEL DO MAR, É PROVÁVEL O
DESAPARECIMENTO DESTE PEQUENO ARQUIPÉLAGO DO
PACÍFICO SUL. OS SEUS 12 MIL HABITANTES ESTÃO A FAZER
TUDO PARA ANTECIPAR O INEVITÁVEL. INCLUINDO A
CONSTRUÇÃO DE UM CLONE DIGITAL DAS SUAS TERRAS,
LAGOAS, TRADIÇÕES E MODO DE VIDA

The Guardian
Londres
Clima

E
Em Tuvalu, quando Lily Teafa era criança, terras e iniciativas para se preservar online
os seus tios iam pescar, todos os dias, e a cultura e a História, graças a projetos
regressavam com grandes capturas para inovadores que poderão fazer de Tuvalu
partilhar com os vizinhos. Hoje, quando a primeira nação totalmente desmateria-
regressam, costumam dizer “Sei poa”, a lizada no metaverso.
pesca foi má. A capital, Funafuti, cobre todo o atol As três ilhas de coral e os seis atóis, que compõem
Aos 28 anos, Lily trabalha num coletivo em que se situa, e uma estrada principal este país, têm uma área total de 26 km²
de jovens, na pequena nação do Pacífico, atravessa o centro da ilha. A certa altu- FOTO GETTYIMAGES
em projetos relacionados com as alterações ra, há apenas 20 metros de cada lado da
climáticas, como a reabilitação de corais. estrada antes da costa. A maior parte dos
Na sua opinião, os sinais que prenunciam edifícios já se encontra agrupada, tanto salinidade, e as alterações climáticas são
o desaparecimento da sua terra natal estão quanto possível, no centro da ilha. Casas, acompanhadas por ciclones devastado-
por todo o lado. “Aonde quer que se vá lojas, igrejas e centros sociais ladeiam a res, temperaturas recorde e secas cada vez
fazer um piquenique, especialmente nos estrada. Ao passarmos por ali, veem-se as mais frequentes. Os alimentos frescos são
extremos norte e sul desta ilha sumptuosa, pessoas em casa – na cozinha, no chur- quase inexistentes, tornando a população
repara-se sempre que um pedaço de terra rasco, a arranjar o carro –, enquanto as mais dependente dos produtos importa-
foi arrastado pelo oceano.” crianças brincam no jardim. dos, caros e com pouco valor nutritivo.
Tuvalu será um dos primeiros países do A subida das águas é tão rápida que O capataz Uilla Poliata lembra-se
mundo a ser completamente engolido pelas todos os habitantes de Tuvalu podem de pescar e de caçar com o pai, quan-
alterações climáticas. As três ilhas de coral testemunhar as vezes em que se viram do criança. “Era o nosso único meio de
e os seis atóis, que compõem este país, têm “mergulhados”, até aos joelhos, pela água sobrevivência, comer alimentos locais.
uma área total de 26 km². Ao ritmo atual do mar, que sobe através do solo poroso Atualmente, porém, é muito difícil obter
da subida do nível do mar, estima-se que, do centro da ilha. A erosão e as grandes alimentos da terra. As plantações estão
no espaço de 30 anos, metade da capital, quantidades de detritos, arrastados pelo danificadas pela água salgada e até o solo
Funafuti, ficará submersa na maré alta. Em oceano, são inegáveis na costa exterior. está a ser arrastado pelo oceano.”
2100, 95% da sua superfície será engolida Os restos de abandonadas habitações e Cerca de um quinto da população de
pelas marés altas periódicas, tornando a infraestruturas estão ao longo das mar- Tuvalu, 12 mil pessoas no total, já se reins-
área inabitável. Tudo isto durante o tempo gens. Os cemitérios são progressivamente talou noutros locais, muitas vezes na Nova
de vida de Lily Teafa. destruídos, e os habitantes decidiram cavar Zelândia, graças ao esquema de Acesso ao
O momento de decidir como vamos sepulturas junto às casas. Pacífico, que permite que 150 cidadãos do
todos sobreviver é agora. Lily diz que são A subida do nível do mar, devido à arquipélago obtenham residência perma-
sobretudo os jovens que lutam contra o crise climática, constitui também uma nente naquele país, todos os anos. Muitos
medo. “Não há pior emoção. É pior do que séria ameaça ao acesso à água potável, à têm dificuldade em ganhar a vida e receiam
ter vertigens, do que ter medo do escuro. segurança alimentar e ao abastecimento perder a identidade cultural.
Agora, é o futuro que nos assusta.” de energia. As culturas de subsistência, Kelesoma Saloa vive na Nova Zelândia,
Face a esta realidade, estão em curso como o coco e a pulaka (ou taro), não há mais de dez anos, e ainda se sente muito
em Tuvalu trabalhos de recuperação de conseguem crescer nos solos com elevada desenraizado. “Passar de uma sociedade
autossuficiente para uma sociedade al-
tamente comercializada é extremamente
difícil”, diz. “Aqui, não se consegue so-
AUTORA
F Kalolaine DATA TRADUTORA breviver sem dinheiro. Não é como nas
Fainu 27.06.2023 Helena Araújo ilhas, onde, sem dinheiro, temos a nossa

64 JANEIRO 2024 - N.º 335


AO RITMO ATUAL DA SUBIDA DO NÍVEL DO MAR,
ESTIMA-SE QUE, NO ESPAÇO DE 30 ANOS, METADE
DA CAPITAL, FUNAFUTI, FICARÁ SUBMERSA mas este enfrenta igualmente as ameaças
das alterações climáticas. Na ausência de
NA MARÉ ALTA. EM 2100, 95% DA SUA SUPERFÍCIE disposições para a proteção e ajuda aos
refugiados climáticos, na Convenção das
SERÁ ENGOLIDA PELAS MARÉS ALTAS PERIÓDICAS, Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Re-
fugiados de 1951, o povo de Tuvalu está a
TORNANDO A ÁREA INABITÁVEL procurar outras soluções.
Não há terrenos altos para reconstruir,
família, a nossa pequena parcela de terra, mas muitos dos habitantes não querem
o nosso peixe.” Kelesoma Saloa, antigo abandonar as terras ancestrais. Já co-
PAPUA-NOVA Oceano oficial de pescas em Tuvalu, é agora guia meçaram os trabalhos de recuperação de
GUINÉ Pacífico
e mediador, no Auckland War Memorial metros quadrados, no âmbito do projeto
ILHAS SALOMÃO
Museum [um importante museu dedicado de adaptação costeira de Tuvalu. Lança-
TUVALU à História da Nova Zelândia]. “Por vezes, do em 2017, com o apoio do Fundo Verde
SAMOA sinto que traí o meu povo, que lhe virei do Clima [um fundo global para ajudar
FIJI as costas, mas aqui tenho a oportunidade os países mais frágeis, administrado pela
AUSTRÁLIA
VANUATU de falar sobre a sua situação.” ONU] e em parceria com o Programa das
Embora tenha emigrado para garan- Nações Unidas para o Desenvolvimento
NOVA ZELÂNDIA
tir um futuro mais estável para a família, (PNUD), o projeto visa limitar os danos
Funafuti, principal atol de Tuvalu Kelesoma não acredita que a reinstalação causados pelos riscos costeiros e dotar
seja a resposta. “A minha terceira filha o país de uma estratégia de adaptação,
nasceu na Nova Zelândia, por isso não sabe a longo prazo, denominada Te Lafiga o
Ilha de
nada sobre Tuvalu. Perdeu algo de crucial. Tuvalu (O Refúgio dos Tuvalu).
Fongafale Entristece-me que não conheça os belos A recolha e análise de dados de alta
valores de Tuvalu, que deveriam ter sido resolução sobre a elevação do terreno
Recifes os seus: respeito, entreajuda, cooperação e a profundidade dos fundos marinhos
Funafuti – isso não existe aqui. Ensinam-lhe na revelam que 46% da área construída no
SOURCE : OPENSTREETMAP ET CONTRIBUTEURS

Lagoa escola, mas não tem nada que ver". centro do maior ilhéu de Funafuti, Fon-
gafale, já se encontra abaixo do nível do
mar. Estes dados são cruciais na prosse-
“Estamos a afundar-nos” cução de uma estratégia a longo prazo.
A Austrália ofereceu terras para a reins- Esta visa a criação de 3,6 km² de terrenos
talação, mas apenas em troca de direitos seguros e elevados, com a reinstalação fa-
Ilha de Funafala marítimos e de pesca, o que foi recusado seada de pessoas e de infraestruturas; um
4 km pelo governo de Tuvalu. O arquipélago abastecimento sustentável de água; uma
vizinho das Fiji também ofereceu terras, maior segurança alimentar e energética, e

JANEIRO 2024 - N.º 335 65


Clima

áreas para a expansão de espaços cívicos e Tuvalu continua um Estado e que as suas Não há terrenos altos para reconstruir,
comerciais, incluindo edifícios governa- fronteiras marítimas se mantenham em mas muitos dos habitantes não querem
mentais, escolas e hospitais. O ministro conformidade com o direito internacional, abandonar as terras ancestrais
das Finanças e do Desenvolvimento Eco- no caso de as suas terras (submersas) dei- FOTO GETTYIMAGES
nómico, que é também responsável pelas xarem de existir. Por último, é imperioso
alterações climáticas, Seve Paeniu, afirma criar uma nação desmaterializada.
que o objetivo é demonstrar às atuais e Parte do processo de digitalização lo a partir do qual todas as ilhas de Tuvalu
potenciais instituições financeiras inter- envolve a disponibilização de serviços e a sua geografia serão desmaterializadas:
nacionais a viabilidade do investimento públicos e consulares online, bem como os recifes de coral e os atóis, a lagoa, o solo
no projeto a longo prazo. a transferência de todos os sistemas admi- arenoso e poroso, as palmeiras e o que
Em 2021, o ministro da Justiça, das Co- nistrativos correspondentes para a nuvem. resta das árvores do género Pandanus, a
municações e dos Negócios Estrangeiros, Desta forma, as eleições poderão reali- fruta-pão e o taro – uma paisagem que se
Simon Kofe, deixou a sua marca quando zar-se como até agora e a Administração arrisca a desaparecer da Terra. Singapura,
se dirigiu à COP26 com água do mar até Pública continuará a desempenhar as suas que também está ameaçada pela subida
aos joelhos: “Estamos a afundar-nos”, missões. “Se o governo for deslocado ou do nível do mar, já se clonou digitalmen-
disse ao mundo. se a população se dispersar pelo mundo, te, o que permite tomar decisões sobre
Perante o risco de extinção, Tuvalu teremos um quadro para garantir a nossa planeamento urbano e imobiliário tendo
elaborou o projeto Future Now, composto coordenação, a continuidade dos serviços, em conta o risco de catástrofes naturais.
por três grandes iniciativas destinadas a a gestão dos recursos naturais, das nossas
preservar a nação, a sua governação e a sua águas territoriais e de todos os nossos bens Laços digitais
cultura, caso aconteça o pior. Em primeiro soberanos”, explica Simon Kofe. Mas Tuvalu está a levar o conceito um pou-
lugar, há que encorajar a comunidade in- O discurso do ministro na COP27, em co mais longe. Com a identidade cultural
ternacional a cooperar na implementação 2022, foi gravado em frente a uma versão ameaçada de extinção, o governo procura
de adaptações às alterações climáticas, em virtual de Te Afualiku, a primeira ilha de utilizar a realidade virtual e aumentada
conformidade com os valores culturais de Tuvalu a ser reconstruída digitalmente com para garantir que as futuras gerações
Tuvalu de olaga fakafenua (estilos de vida recurso a imagens de satélite, a fotografias deslocadas de tuvaluanos mantenham a
coletivos), kaitasi (responsabilidades par- e a imagens tiradas por drones, para captar sua existência enquanto cultura e nação,
tilhadas) e fale-pili (ser um bom vizinho). os grãos de areia da praia e a direção das incluindo os conhecimentos ancestrais e
Em segundo lugar, é preciso garantir que correntes oceânicas. Te Afualiku é o mode- os sistemas de valores. Se este conceito

66 JANEIRO 2024 - N.º 335


lheres mais velhas ensinam as mais novas
a cumprimentar os mais velhos, no fale
kaupule, um local de encontro tradicional.
É isto que Tuvalu quer imortalizar e
preservar: histórias e experiências vividas
no contexto cultural e socio-histórico, e a
forma como estas evoluíram ao longo do
tempo. Para a diáspora, em particular, uma
nação desmaterializada permitiria fazer
tudo, desde as cerimónias de casamento
tradicionais até à aprendizagem da lín-
gua, que as sucessivas gerações começam
a perder.
Kelesoma Saloa congratula-se com a
criação de um duplo digital (doppelgan-
ger), que colmata à profunda saudade de
casa que ele sente. “Parece uma loucura,
mas acho que é uma ótima ideia”, diz.
“Tuvalu está na encruzilhada da Polinésia,
da Micronésia e da Melanésia, e apren-
demos muito uns com os outros: somos
todos irmãos e irmãs. O povoamento destas
pequenas ilhas, onde vivemos há dois mil
anos, o cultivo da terra, a sobrevivência
apesar da seca, da fome e das doenças, a
evolução da nossa cultura após a chegada
dos palangi [os brancos], a influência dos
pastores de Samoa na nossa língua. E o
mar. O mar sempre foi a nossa fonte de
vida, mas agora é uma ameaça... Então,
o que podemos fazer? Criar este espaço!”
Há pessoas que estão preocupadas
COM A IDENTIDADE CULTURAL AMEAÇADA com quem irá deter e controlar os seus
dados. Simon Kofe descreve o projeto
DE EXTINÇÃO, O GOVERNO PROCURA UTILIZAR Future Now como o plano B, mas reitera
que o plano A é fazer tudo o que estiver
A REALIDADE VIRTUAL PARA GARANTIR QUE AS ao seu alcance para preservar o arqui-
FUTURAS GERAÇÕES DESLOCADAS DE TUVALUANOS pélago, durante o maior tempo possível.
“Estamos na vanguarda das alterações
MANTENHAM A SUA EXISTÊNCIA ENQUANTO climáticas, mas, em termos de emissões,
a nossa contribuição para as alterações
CULTURA E NAÇÃO, INCLUINDO OS CONHECIMENTOS climáticas é mínima. Por conseguinte, a
responsabilidade de ações pró-ativas e
ANCESTRAIS E OS SISTEMAS DE VALORES ambiciosas deve recair nos ombros dos
países mais poluentes”, declarou Seve
se concretizar, o povo de Tuvalu poderá discurso na COP27, e menciona uma pró- Paeniu, ministro das Finanças e do De-
manter laços numa dimensão digital, de xima viagem à Coreia do Sul para avançar senvolvimento Económico, responsável
uma forma que é possível imitar a vida com o projeto. pelas alterações climáticas.
real e preservar a língua e os costumes. Tal como a maioria das nações do Pa- Para já, o pastor Fitilau Puapua, que
“Temos uma ligação muito forte às nossas cífico, Tuvalu é um país cristão pratican- preside à Igreja Cristã de Tuvalu, reitera a
terras e oceanos. Os nossos antepassados te. Todos os dias, às 18h45, os veículos importância de se preservar a cultura, os
estão aqui enterrados, pelo que a ligação é e pessoas na rua param completamente valores e a religião, independentemente
também espiritual”, explica Simon Kofe. até às 19h, para um momento de oração do que acontecer. “É isto que procuramos
“Queremos imortalizar a nossa cultura tal nacional. Os hinos são cantados em coro, ensinar ao nosso povo, para que esteja pre-
como ela existe atualmente.” e as congregações reúnem-se em salões parado para enfrentar o inesperado – um
Ainda ninguém demonstrou que os comunitários para festejar e dançar. A fa- mundo muito diferente do que sempre
Estados-nação podem ser transpostos para tele é uma dança tradicional, executada ao conheceu.”
o mundo virtual desta forma. Os desafios ritmo da percussão, numa lata de biscoitos Ou, como resume Kelesoma Saloa:
técnicos, sociais e políticos são imensos, e velha e vazia; os músicos batem as mãos “As pessoas guardam os conhecimentos
Simon Kofe sublinha que o projeto ainda ritmicamente num tambor coletivo de ma- [tradicionais] apenas para as famílias, mas
está a dar os primeiros passos. Acrescen- deira, acelerando até que os dançarinos está na altura de revelá-los ao mundo,
ta que várias empresas que trabalham no já não consigam acompanhar o ritmo e o porque, em breve, ninguém se lembrará
metaverso contactaram Tuvalu, após o seu grupo se desfaça em gargalhadas. As mu- de que nós somos tuvaluanos.”

JANEIRO 2024 - N.º 335 67


ECOBREVES
planeta

360
AS GRANDES E AS PEQUENAS HISTÓRIAS SOBRE O MEIO AMBIENTE

POLUIÇÃO
MAIORIA DAS CAPITAIS
ULTRAPASSA LIMITE

A concentração de partículas finas,


potencialmente nocivas para a saúde,
ultrapassa o limiar fixado pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) na grande
maioria das capitais do mundo. As piores
são as asiáticas.
O site PLANET ANOMALY foi criado, em
março de 2023, por Bhabna Banerjee,
uma jornalista de dados e ilustradora
canadiana que trabalhou para a VISUAL
CAPITALIST e a FORBES, entre outros. O seu
objetivo: transformar dados científicos
sobre a poluição e a crise climática em
“histórias visuais e digeríveis”. Desta vez,
baseou-se em dados do relatório IQAir
2022 sobre a qualidade do ar em todo o
mundo e apresentou dados de 75 capitais
mundiais. Embora a amostra representada
não permita uma comparação exaustiva,
reflete as disparidades que existem entre
as cidades.
Esta representação realça o facto de a
ALPES concentração média de partículas finas, na
CABRA SELVAGEM TORNA-SE NOTURNA maioria das capitais, ultrapassar o limiar de
referência estabelecido pela Organização
Para se protegerem do tempo quente, os íbexes alpinos (cabra selvagem que vive nas Mundial de Saúde (OMS), limiar a partir do
montanhas dos Alpes europeus, reconhecida pelos seus longos chifres curvados qual é possível um efeito na saúde humana.
para trás) estão a tornar-se cada vez mais ativos durante a noite. A mudança de Conhecidas como PM2,5 - porque
comportamento, observada por uma equipa de investigadores em Itália e na Suíça, pode têm um diâmetro igual ou inferior a 2,5
ser acompanhada por um aumento do risco destes animais serem comidos por lobos. micrómetros, muito mais pequeno do que
“O aquecimento global está a colocar o íbex alpino em perigo”, alerta o o de um cabelo humano -, estas partículas
GAZETTA DI REGGIO. O diário regional italiano faz eco de um estudo publicado a 17 de finas são capazes de entrar nos pulmões
janeiro na revista PROCEEDINGS OF THE ROYAL SOCIETY B, dirigido por Stefano Grignolio, e viajar através da corrente sanguínea,
investigador da Universidade de Ferrara. “Para escapar ao aumento das temperaturas, podendo ser responsáveis por uma série de
este animal alpino está a tornar-se noturno, tanto nas zonas onde há lobos (no doenças, incluindo o cancro do pulmão.
Parque Nacional do Gran Paradiso [em Itália]) como nas zonas onde este predador O relatório sobre a qualidade do ar também
ainda não está presente (no Parque Nacional Suíço)”, explica o diário italiano, ou seja, classifica as cidades - e não apenas as
o íbex alpino (Capra ibex) está a adaptar-se ao aquecimento global, alterando o seu capitais - com as concentrações mais
comportamento, apesar do risco acrescido de encontrar predadores durante a noite. elevadas de partículas finas. A maioria das
Para chegar a estas conclusões, os investigadores monitorizaram 47 cabras em 20 primeiras cidades situa-se na Ásia, com
dois parques nacionais, em Itália e na Suíça, entre 2006 e 2019 (os animais foram Laore, no Paquistão, a encabeçar a lista.
equipados com sensores de movimento e GPS). Segundo os investigadores,
quando as temperaturas eram particularmente elevadas durante o dia, os
animais eram mais ativos à noite.
Acresce ainda que esta mudança de hábito, embora permita ao íbex lidar com
temperaturas elevadas, não constitui uma adaptação viável a longo prazo. Estes
animais “podem deixar de conseguir satisfazer as suas necessidades [alimentares] se
se tornarem demasiado noturnos”, sublinha Niels Martin Schmidt, da Universidade de
Aarhus, na Dinamarca, que não participou na investigação.
A Gazetta di Reggio, por seu lado, tira duas lições deste trabalho. “Se os animais
mudarem a hora do dia em que estão ativos, teremos de rever as nossas atividades de
gestão da vida selvagem.” Além disso, é essencial controlar outras fontes de stresse,
designadamente “reduzir o número de turistas nas zonas mais frequentadas pelos íbex
ou evitar sobrevoá-las em helicópteros”.

68 JANEIRO 2024 - N.º 335


BONAIRE
ILHA LUTA CONTRA
SUBIDA DO MAR

Oito habitantes de Bonaire e a ONG


Greenpeace estão a levar o governo
holandês a tribunal para o obrigar a tomar
medidas de proteção face às alterações
climáticas. É que, embora a pequena ilha
das Caraíbas tenha um estatuto semelhante
ao de outros municípios holandeses, não
está incluída nos planos do governo para
combater a subida do nível do mar.
Como grande parte dos Países Baixos está
abaixo do nível do mar, “há anos que o
país se prepara para as consequências das
alterações climáticas”, explica o jornal DE
VOLKSKRANT. E prossegue: “Submersão,
subida do nível do mar, secagem, salinização
[da água doce]: todos os cenários estão a ser
cuidadosamente estudados. Mas há uma
ressalva: a parte caribenha dos Países Baixos
nunca é tida em conta.”
GRONELÂNDIA Além do seu território europeu, o reino
possui três territórios autónomos nas
DEGELO MAIOR DO QUE SE PENSAVA Caraíbas (Aruba, Curaçau e São Martinho),
bem como três municípios com estatuto
O degelo na região autónoma da Dinamarca foi, especial: Bonaire, Saba e Santo Eustáquio.
entre 1985 e 2022, muito maior do que se acreditava, Os habitantes destes três municípios “são
segundo um estudo publicado na revista científica cidadãos dos Países Baixos; o Estado tem um
NATURE. “A calota glaciar da Gronelândia recuou 5 000 dever de proteção para com eles”, sublinha o
km2 em 40 anos”, foi o título do LA REPUBBLICA, enquanto jornal holandês.
o THE GUARDIAN alertava que “a Gronelândia está a A ilha de Bonaire, ao largo da costa da
perder 30 milhões de toneladas de gelo por hora”. Venezuela, é “o município holandês mais
A constatação de base é a mesma: o derretimento vulnerável às alterações climáticas”. De
do gelo neste território está a decorrer a um ritmo acordo com um estudo da Universidade
Livre de Amesterdão, “Bonaire poderá ver um
muito elevado e, como revela um estudo do Instituto quinto do seu território engolido pelas águas,
de Tecnologia da Califórnia, publicado no semanário até ao final do século”.
científico NATURE, o processo está, de facto, a ser muito É por isso que oito residentes de Bonaire,
mais rápido do que se estimava. juntamente com a ONG Greenpeace,
Resultado: “A Gronelândia está a perder 20% mais levaram o governo holandês a tribunal com o
gelo do que se pensava”, resume o THE GUARDIAN, que objetivo de obrigar Haia a tomar medidas de
explica a nova metodologia utilizada para obter esta adaptação para este município, onde vivem
estatística. “As técnicas utilizadas até agora, como cerca de 24 000 pessoas.
a medição da altura da calota de gelo ou do seu
peso através de dados gravimétricos, permitiram
determinar as perdas que acabam no oceano e
provocam a subida do nível do mar. No entanto,
não podem explicar o recuo dos glaciares, que já se
encontram em grande parte abaixo do nível do mar
nos estreitos fiordes que rodeiam a ilha.”
Uma “falha” corrigida pelo estudo em questão, em
que os cientistas “analisaram fotografias de satélite
para determinar a posição dos numerosos glaciares
da Gronelândia em cada mês, entre 1985 e 2022”,
explica o THE GUARDIAN. Assim, graças a estes novos
cálculos, a equipa responsável pelo estudo conseguiu
determinar que a Gronelândia está a perder muito
mais gelo do que se pensava.

FOTOS: GETTYIMAGES JANEIRO 2024 - N.º 335 69


Palácio de Alhambra, em Granada
FOTO GETTYIMAGES
O paraíso
de Al-Andalus
para os poetas
MAIS DE 500 ANOS APÓS A SUA QUEDA, A ESPANHA MUÇULMANA
CONTINUA A INSPIRAR POETAS EM TODO O MUNDO ISLÂMICO, QUE
RECORREM À NOSTALGIA DESTA ÉPOCA DOURADA E ÀS PALAVRAS
PARA DENUNCIAR AS REALIDADES SOMBRIAS DO PRESENTE

Middle East Eye


Londres
Cultura

N
No seu poema Granada, de 1961, que deve la polar que poderia guiar as civilizações
o seu nome à cidade espanhola no coração árabes e muçulmanas de volta às suas gló-
da Andaluzia, o grande poeta sírio Nizar rias passadas, depois dos danos infligidos Condado de
Reino Barcelona
Qabbani [1923-1998] diz à sua amada: “À pela colonização e pelos regimes árabes de Leão
entrada da Alhambra, encontrámo-nos.” modernos.
Esta referência ao complexo palaciano Embora os muçulmanos tenham perdi-
fortificado da cidade recorda uma época do o controlo físico dos seus territórios em
Califado de Córdova

FONTE : HISTOIRE À LA CARTE


que, para muitos árabes, constitui a idade Espanha, em 1492, e os cristãos vitoriosos
de ouro da sua cultura. Na sua memória, se tenham esforçado por apagar a sua me- Córdova Mar
Granada Mediterrâneo
Al-Andalus [nome dado aos territórios da mória, a profundidade da cultura islâmica
Península Ibérica e do Sul de França que na Península Ibérica tem-se revelado difícil
ficaram sob domínio muçulmano entre de apagar da memória cultural europeia.
711 e 1492] era um farol, num continente Isto deve-se, em parte, ao profundo im-
mergulhado na escuridão. Um lugar de pacto que a Espanha muçulmana teve no
maravilhas arquitetónicas, onde existia pensamento europeu, com intelectuais
Califado de Córdova no final do século X
uma vida intelectual florescente e um como Ibn Rushd (Averróis) a influenciarem
Reinos cristãos
grau de tolerância religiosa raramente posteriormente pensadores cristãos como
Extensão máxima do território
visto noutros locais da Idade Média. Tomás de Aquino. muçulmano em 715
Qabbani, tal como outros poetas de A existência de uma civilização mu-
origem muçulmana e árabe, encontrou çulmana avançada em Espanha, registada
refúgio nesta história; na memória de Al- pelos próprios europeus, constituiu um
-Andalus, o esplendor árabe permanece poderoso contra-argumento para os impe-
intacto, apesar das realidades sombrias do rialistas do continente, que justificaram os
presente. O seu sentimento de orgulho é seus esforços coloniais no mundo islâmico,
refletido de forma sucinta neste poema: nos séculos XIX e XX, com a necessidade
“Ela disse: Alhambra! Resplandecente or- de civilizar as populações indígenas sub-
gulho dos meus antepassados, / Nas suas desenvolvidas.
paredes leiam-se as minhas glórias que “A Grã-Bretanha e a França justifi-
brilham e se exibem.” caram as suas conquistas alegando que
De Abd Al-Wahhab Al-Bayati [Iraque, estavam, de facto, a libertar os povos co-
1926-1999] a Muhammad Iqbal [atual Pa- lonizados... e a oferecer-lhes civilização,
quistão, 1877-1938], passando por Ahmed desenvolvimento económico, direitos e
Shawqi [Egito,1868-1932] , Adonis [Síria, educação”, comenta Yaseen Noorani,
nascido em 1930] e Mahmoud Darwish professor da Universidade do Arizona.
[Palestina, 1941-2008]: Al-Andalus era Al-Andalus tinha “realmente consegui-
como a Atlântida, a imagem de uma joia do tudo o que os europeus pretendiam
perdida, mas, acima de tudo, uma estre- [alcançar] nas suas colónias”, afirma.

AUTOR DATA TRADUTORA


F Bianca Carrera 27.08.2023 Helena Araújo

72 JANEIRO 2024 - N.º 335


Não é, pois, surpreendente que tantos
poetas, da Índia ao Egito, países assolados EMBORA OS MUÇULMANOS TENHAM PERDIDO O CONTROLO
pela ingerência europeia, tenham encontra- FÍSICO DOS SEUS TERRITÓRIOS EM ESPANHA, EM 1492,
do consolo no ideal de Al-Andalus e invo-
quem a sua memória para recordar aos seus E OS CRISTÃOS VITORIOSOS SE TENHAM ESFORÇADO POR
povos um passado árabe e islâmico glorioso.
Como escreve Yaseen Noorani [num ar- ELIMINAR A SUA MEMÓRIA, A PROFUNDIDADE DA CULTURA
tigo publicado, em 1999, no International
Journal of Middle East Studies], esta memória
ISLÂMICA NA PENÍNSULA IBÉRICA TEM-SE REVELADO DIFÍCIL
ultrapassou largamente o mundo árabe. DE APAGAR DA MEMÓRIA CULTURAL EUROPEIA
O paraíso perdido
Muhammad Iqbal, poeta de língua persa e solver a crise palestiniana e de assegurar o “Há quem diga [...] que o mundo
urdu e pai espiritual do Estado do Paquistão, desenvolvimento económico dos seus países. árabe está a viver como no tempo das
visitou a Andaluzia em 1933, no auge da Neste contexto, Al-Andalus tornou- taïfas. Alguns países árabes estão a aliar-
luta pela independência da Índia, e rezou -se um símbolo daquilo que poderia ser. -se a potências estrangeiras para dividir
na Grande Mesquita de Córdova, há muito Waed Athamneh, professor no Connecticut e ocupar outros países árabes.”
convertida em catedral. College e autor, escreve que “Al-Andalus Este confronto com a realidade re-
Esta visita inspirou o seu poema Masjid-i sempre foi e sempre será as [ruínas] sobre lativiza a memória de Al-Andalus, não
Qurtubah, no qual descreve o impacto ins- as quais alguns poetas árabes chorarão, a tanto como um objetivo histórico a re-
trutivo do Islão andaluz na Europa. “Flutuam casa do ente querido que já não existe... produzir, mas como um instrumento li-
as águas do Guadalquivir / nas tuas margens Espanha é o paraíso perdido”. terário perfeito para evocar os problemas
está alguém a sonhar com outro tempo; / Este desejo de uma vida melhor, enrai- contemporâneos.
um novo mundo está por detrás da cortina zado na nostalgia de Al-Andalus, continua Realidade à parte, esta ferramenta li-
do decreto divino; / a sua aurora revela-se a influenciar as obras de poetas e escritores terária é frequentemente utilizada pelos
ao meu olhar; / se eu levantasse o véu da árabes. No entanto, as idealizações de Al- poetas para falar da colonização ou da
face dos meus pensamentos / a Europa não -Andalus não passam disso mesmo: idea- perda da sua pátria, como fez Mahmoud
resistiria ao génio do meu filho.” lizações. Até que ponto a realidade de Al- Darwish, estabelecendo paralelos entre
A ideia de Al-Andalus, reforçada pelos -Andalus corresponde a essa nostalgia e é a perda da Palestina e a de Al-Andalus.
poetas que viveram o seu apogeu, contrasta objeto de debate entre os intelectuais árabes. “Em todos os poetas há um andaluz”,
com as circunstâncias em que se encontram Abdelkhak Najmi, investigador e tra- disse Darwish numa entrevista em 1991,
muitos escritores árabes no século XX. dutor marroquino que vive em Granada, e no seu poema Os Violinos escreve: “Os
Para os poetas árabes do tempo de Qab- estabelece um paralelo entre a política violinos choram a partida dos árabes da
bani, havia poucas fontes de alegria e de de Al-Andalus e os fracassos dos Estados Andaluzia / Os violinos choram um tempo
orgulho, uma vez que os Estados árabes árabes atuais: “Sabemos que, na altura, perdido que não volta / Os violinos cho-
estavam atrasados, em relação à Europa, Al-Andalus também tinha taïfas [unida- ram uma pátria perdida que talvez volte.”
em termos de desenvolvimento material e des políticas muçulmanas independentes], Na perda da Espanha árabe, em 1492,
de estabilidade política. Apesar de ter sido governantes muçulmanos divididos que e na nostalgia nascida dessa perda, Mah-
diplomata na sua juventude, o poeta sírio estavam sempre a lutar entre si e, em alguns moud Darwish vislumbra o destino da
tornou-se um crítico declarado dos gover- casos, a aliar-se a inimigos castelhanos”, sua própria pátria palestiniana. “Eu sou
nos árabes pela forma como sufocavam as explica. “É o que se passa hoje na Líbia, por o Adão dos dois Édens / Um e outro per-
liberdades, pela sua incapacidade de re- exemplo, ou no Iémen”, continua. didos.”

JANEIRO 2024 - N.º 335 73


Entretenimento

CINEMA
Um século de fascínio
pelos zulus
Desde a era muda, a figura do guerreiro zulu tem aparecido em muitos filmes realizados
por ocidentais. Imbuída de um imaginário colonial que está na hora de abandonar
Mail and Guardian
Joanesburgo

AUTORA DATA TRADUTORA


F Anna-Marie Jansen van Vuuren 17.06.2023 Helena Araújo
74 JANEIRO 2024 - N.º 335
Desde que a indústria cine-

D matográfica sul-africana deu


os seus primeiros passos, no
início do século XX, a palavra
“zulu” tem figurado de forma proeminente
nos títulos dos filmes produzidos no nosso
país. Desde o primeiro filme etnográfico
sul-africano, Sports of the Zulus (1898),
seguido de A Zulu's Devotion (1916), A Zulu
Drama (1916) e Zulutown (1917), é evidente
que a indústria cinematográfica sempre foi
absolutamente fascinada pelo povo zulu.
Neil Parsons, antigo professor de His-
tória na Universidade do Botswana, atual-
mente investigador independente, vê esta
tendência como um processo de “redução
de todos os africanos negros à taxinomia
exótica dos zulus”. No seu livro Black and
White Bioscope. Making Movies in Africa,
1899 to 1925, explica que os cineastas bri-
tânicos e norte-americanos empregados
na altura pela African Film Productions, o
primeiro estúdio cinematográfico africano,
fundado em Joanesburgo em 1915, realiza-
ram estas obras tendo em vista um público
maioritariamente estrangeiro. Uma opi-
nião partilhada pelo historiador Charles
van Onselen, professor na Universidade
de Pretória, que escreve que estes filmes
pioneiros “influenciaram a forma como
os europeus, presos ao seu ponto de vista
imperial, tentaram compreender o que
consideravam ser ‘África’”.
Ao mesmo tempo, os negros sul-afri-
canos foram denegridos, confinados ao
papel de atores e figurantes nestes filmes,
que apresentavam histórias que tinham
como pano de fundo a cultura e as socieda-
des zulu. Outro historiador, [o britânico]
Peter Davis, descreveu mais tarde estas
histórias como “zuluology” (“zuluologia”).
Por outras palavras, uma versão dos acon-
tecimentos que retrata a “domesticação
dos zulus” pelos europeus. O novo filme “Zulu” e a
O filme [sul-africano] De Voor- produção britânica de 1963,
trekkers, realizado em 1916 pelo [cineasta com Michael Caine
norte-americano] Harold Shaw, recons- ... FOTO: GETTYIMAGES
titui o confronto entre os voortrekkers,
pioneiros africanos que se aventuraram no A África do Sul conta
interior, e o exército do rei zulu Dingane.
Este confronto é conhecido como “Impi com onze línguas união das colónias britânicas e das antigas
Yasencome” ou Batalha do Rio de Sangue oficiais, cada uma repúblicas afrikaner numa única entidade;
[que, em dezembro de 1838, foi um banho ligada a um grupo isto deu origem, em 1961, à atual República
de sangue para os zulus e reforçou o desejo da África do Sul, que permaneceu sob o
de colonização dos afrikaners]. étnico e a uma cultura. regime do apartheid até 1991].
Os investigadores, incluindo eu pró- Mas nenhum destes Atualmente, a África do Sul conta com
prio, têm refletido frequentemente sobre a onze línguas oficiais, cada uma ligada a um
forma como estes primeiros filmes mudos
grupos ocupa um lugar grupo étnico e a uma cultura. Mas, até à
não serviam apenas para entretenimento. tão importante na data, nenhum destes grupos pode afirmar
Eram também instrumentos de propa- cultura popular e no ocupar um lugar tão importante na cultura
ganda para a criação de uma “nova nação popular e no imaginário mediático como
sul-africana branca”, após a criação da imaginário mediático a nação zulu. Porquê? Há várias respostas
União da África do Sul em 1910 [que selou a como a nação zulu a esta pergunta.

FOTOS: GETTYIMAGES JANEIRO 2024 - N.º 335 75


Entretenimento

A influência de Shaka
Mpho Maripane-Manaka, professor do Nation, constituída por rappers empe-
Departamento de Antropologia e Arqueo- nhados social e politicamente. Esta or-
logia da Universidade da África do Sul, ganização espalhou-se depois pelo resto
salienta que a população zulu é uma das do mundo, nomeadamente pela Europa,
maiores da África do Sul e que o zulu é a América do Sul e Central, mas também
língua mais falada no país. Este domínio pela Cidade do Cabo.
explica-se em parte pelo Mfecane [uma
vaga de guerras entre tribos negras e de Africanizar a História
migrações que acompanhou a emergência “Não é por acaso que Shaka inspirou tanto
do reino zulu no início do século XIX]. fascínio e que foram escritos vários livros
“O Mfecane revolucionou a demografia e feitos muitos filmes sobre a nação zulu”,
e a situação política de certas regiões do diz Sithole.
continente africano. Diz-se que foi lançado “Estamos a falar de um povo que pôs
por Shaka Zulu [o fundador do reino zulu] fim a uma linhagem da dinastia napoleóni-
e pelos seus guerreiros. Sob o comando de ca com a morte de Napoleão Eugène Louis
Shaka, estes guerreiros venceram todas Jean Joseph Bonaparte [filho único de Na-
as batalhas contra os outros clãs. Como poleão III], que foi morto durante a Guerra
resultado, os amazulu [o povo zulu, literal- O regresso de Shaka Anglo-Zulu, a 1 de junho de 1879.”
mente ‘o povo do céu’] foram reconhecidos Zulu ao cinema A loucura internacional por Shaka
como a nação mais poderosa e corajosa FOTO: GETTYIMAGES pode também ser atribuída ao impacto de
de África, especialmente no século XIX.” filmes de sucesso estrangeiros como Zulu
Estas vitórias fizeram de Shaka kaSen- [realizado pelo britânico Cyril R. Endfield,
zangakhona [1787-1828] uma personagem sempre obcecaram os países do Norte e 1964] e The Ultimate Attack [realizado pelo
que encontrou o seu lugar em todas as do Sul, em particular os académicos e britânico Douglas Hickox, 1979]. Estes dois
formas de cultura popular, a começar cineastas ocidentais.” filmes, que retratam a guerra anglo-zulu
pelo romance Chaka, de Thomas Mofolo Entre outras coisas, Sithole destaca a de 1879, continuam a ser regularmente
[escritor do Lesoto], apresentado como influência que Shaka e a nação zulu tiveram projetados na televisão britânica. A mi-
“um relato mítico e ficcional da ascensão [mais de 150 anos depois] na cena musi- nissérie Shaka Zulu, realizada pelo [sul-
e queda do imperador-rei zulu Shaka”. cal hip-hop e na cultura rap dos Estados -africano] William Faure e transmitida na
Publicado, em 1925, em sesoto, foi tradu- Unidos da América. Recorda que o rapper televisão pública sul-africana em 1985 e
zido e publicado em inglês, em 1931, e em e DJ norte-americano Lance Taylor [um 1986, foi igualmente popular no estran-
francês, em 1940, e desde então tem sido dos fundadores do movimento hip-hop] geiro [pelo menos no mundo anglófono].
vendido e distribuído em todo o mundo adotou o nome artístico de Afrika Bam- Shaka Zulu teve um impacto tão grande
ocidental. Com o tempo, como escreveu [o baataa ‒ em homenagem ao chefe zulu no público norte-americano e internacio-
académico sul-africano] Keyan Tomaselli Bhambatha Ka Mancinza que, em 1906, nal que Hollywood revisitou a história no
em 2003, no Journal of Southern African liderou uma revolta contra os novos im- filme para televisão Shaka Zulu: A Cida-
Humanities, “o mito de Shaka passou a postos [exigidos pelos colonos britânicos] dela. Nesta versão [totalmente fantasio-
ser visto como o principal símbolo das ‒ e que criou [em 1973] a Universal Zulu sa], Shaka atravessa o continente com o
realizações e aspirações africanas e da objetivo de colonizar o Norte de África.
formidável resistência de África ao co- Uma das cenas principais do filme é uma
lonialismo”. batalha entre os guerreiros zulus e os seus
Atualmente, as táticas de Shaka são adversários árabes-berberes.
estudadas em escolas militares de todo o Em 2001, ano em que Shaka Zulu: A
mundo [tal como a estratégia que permitiu Cidadela foi transmitido diretamente na
aos zulus, após a sua morte, vencer a Bata- televisão, a minissérie Shaka Zulu voltou a
lha de Isandlwana, a 22 de janeiro de 1879, ser exibida na televisão pública sul-africa-
contra um exército vitoriano equipado na. No entanto, por ocasião desta retrans-
com pistolas e espingardas Martini-Henry, missão, os telespectadores sul-africanos
a arma inseparável da expansão colonial Autora queixaram-se de que a série adotava uma
britânica]. Ao pesquisar para uma futura perspetiva histórica eurocêntrica e enfa-
publicação sobre a cultura zulu, o doutor Anna-Marie Jansen tizava a crueldade de Shaka.
em antropologia Sipho Sithole, do Instituto A nova série televisiva e de streaming
de Estudos Avançados de Joanesburgo,
van Vuuren Shaka iLembe [transmitida na África do Sul
encontrou numerosos textos académi- É uma académica especializada em junho] oferece aos realizadores negros
cos sobre os zulus, bem como acerca das no cinema sul-africano e ensina sul-africanos a oportunidade de contar a
proezas militares e da estratégia de Shaka. na Universidade de Tecnologia de história a partir do seu próprio ponto de
Sipho Sithole acredita que o reinado Tshwane, em Pretória, África do Sul. vista autêntico, que não lhes foi imposto
de Shaka, que durou apenas doze anos [de Atualmente, está a escrever uma por ninguém. Como conclui Mpho Mari-
1816 a 1828], mudou o curso da história biografia de Koos Roets, um dos pane-Manaka: “Em termos académicos,
na região. “Shaka foi um estratega e líder pioneiros do cinema sul-africano, podemos considerar que Shaka iLembe se
militar de renome, apenas igualado por nascido em 1943. É também esforça por africanizar e descolonizar as
Napoleão I. A sua ascensão e a dos zulus argumentista. narrativas históricas do passado no ecrã.”

76 JANEIRO 2024 - N.º 335


A SUA ESCOLHA
É O NOSSO
MELHOR PRÉMIO

A Trust in News foi distinguida em 2024


com 5 das suas publicações.

OBRIGADO AOS NOSSOS LEITORES


Vida

abandonada, a cujo charme se rendeu


durante as suas expedições. A intenção
JAPÃO era viver naquele lugar de forma autos-

A arte de viver
suficiente. Na entrevista, não nos revelou
a localização dessa aldeia.
A sua mulher e os seus filhos perma-

livre
necem em Yokohama [a Sul de Tóquio].
No local, vai buscar água aos ribei-
ros, recolhe lenha para se aquecer e
Instalado numa aldeia abandonada, o alpinista e aventureiro para abastecer o forno que construiu,
japonês Bunsho Hattori exercita uma forma de vida em rutura e recorre à energia solar para produzir
a pouca eletricidade de que necessita,
quase total com o capitalismo principalmente para a iluminação e para
Mainichi Shimbun carregar o seu computador. Para se ali-
Tóquio mentar, pratica agricultura no verão e
caça no inverno.
Até que ponto podemos ser Segundo o seu novo livro, Àqueles que
livres? É possível viver sem Desejam Viver sem Depender do Dinheiro [não
A depender de nada, incluindo traduzido para português], mesmo que
dinheiro, nem de ninguém? seja impossível não precisar nunca de
Perguntei ao alpinista e autor de livros dinheiro, foi demonstrado que é possí-
Bunsho Hattori, de 53 anos, o que entende vel viver com 500 mil ienes [cerca de 3
por “libertação da vida”. 200 euros] por ano, que é o orçamento
Antes de completar 30 anos de ida- necessário para as contribuições para a
de, Bunsho Hattori já alcançara o K2, o reforma e para o seguro de saúde.
segundo cume mais alto do planeta [8 Há pouco mais de um ano, a convite de
611 metros], e escalara o monte Tsurugi Norihiko Matsubara, grande escalador de
[2 999 metros] e as montanhas de Ku- cascatas, ajudei Hattori a limpar um terre-
robe [nos Alpes japoneses] – e fê-lo no no; para me agradecer, ofereceu-me uma
inverno. Desde aí, pratica o “alpinismo perna de veado fumada. Depois de ter ad-
de sobrevivência”, sem levar tenda, quirido, por 300 mil ienes [por volta de 1
nem combustível, nem mantimentos, 300 euros] uma casa construída na era Meiji
dependente apenas da caça e da pesca. [1868-1912] num terreno com cerca de um
Há quatro anos, começou a recuperar hectare num vale, acabara de comprar uma
uma velha casa tradicional numa aldeia outra um pouco maior lá perto.

AUTOR DATA TRADUTORA


F Akio Fujiwara 13.04.2023 Margarida Bak Gordon

78 JANEIRO
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JJAN
A
ANE
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De vez em quando, a sua família e sozinho, comecei a praticar alpinismo revista Gakujin, mas despediu-se dessa
amigos vêm ajudá-lo, mas no resto do de sobrevivência para ‘libertar’ rochas vida em junho do ano passado. “Como
tempo permanece sozinho na aldeia e montanhas inteiras no Japão e noutros não bebo nem fumo e já paguei a mi-
abandonada com o seu cão. É a vida locais. Foi nessa altura que as coisas co- nha casa em Yokohama, só tenho de me
com que sonhara, entre cortar toros, meçaram a ficar interessantes.” preocupar com a educação dos meus três
cultivar campos e construir vedações. Nos anos 1980, era prática comum filhos. Como a minha filha mais nova já
Gostaríamos de seguir as suas pisadas, passar dez dias a escalar, por exemplo, está no último ano do Ensino Secundá-
mas na prática as coisas não são assim tão nas ravinas de Hidaka, em Hokkaido [uma rio, acho absurdo ainda ter de ganhar
simples. O seu sonho já vem dos tempos ilha no Norte do Japão], sem levar tenda dinheiro.” Também deixará de caçar no
da escola primária, como me explica em nem combustível, comendo a todas as dia em que decidir que já não precisa de
sua casa, em Yokohama. refeições arroz temperado, e apanhando providenciar uma fonte de proteínas aos
“A minha mãe é de Fujishima (atual- truta, plantas da família das petasites e filhos. Foi quando os viu tornarem-se
mente denominada Tsuruoka), que fica na cebolas selvagens na Natureza para sa- autónomos que começou a questionar-se
região de Shonai e pertence à província ciar a fome. sobre o sentido da vida.
de Yamagata [no Nordeste do Japão]. A A diferença entre Hattori e os ou- No seu livro Sobreviver da Caça [que
sua antiga casa de família foi utilizada tros aventureiros? O seu objetivo é tentar não está traduzido para português], es-
para as filmagens do filme Departures obter tudo sozinho, inclusive na “vida creve: “Na realidade, quando escalamos
(Yojiro Takita, 2008). Tendo crescido real”. Ainda que, ao deixar as montanhas, montanhas, aprendemos mais sobre nós
num complexo residencial em Yokoha- tenha acabado por comer três tigelas de próprios do que sobre os monges que
ma, quando lá fui pela primeira vez, em tendon [arroz e tempura] e um gelado lá vivem. Conseguimos vislumbrar um
estudante, achei que era um sítio fantás- de chocolate. mundo mais profundo. O medo da morte
tico. Os campos de arroz eram a perder A ideia de se instalar numa aldeia acompanha-nos semana após semana.
de vista e podia comer-se todo o milho abandonada surgiu-lhe muito natu- Quando se leva uma vida normal, não é
e edamame [feijão de soja fresco] que ralmente: assim, mas é preciso perguntarmo-nos
se quisesse. Cheguei à conclusão de que “Disse para comigo: sendo o alpinis- o que significa viver. Antes, quando via
preferia viver lá [do que em Yokohama].” mo livre tão estimulante, assim deverá os perdedores do Koshien [campeonato
Esta ideia nunca mais o abandonou. ser também uma vida livre.” japonês de basebol do liceu] chorar, não
Enquanto estudava na Universidade Contudo, a sua viagem à tundra com entendia porque é que choravam, mas
Metropolitana de Tóquio, desenvolveu Misha, o seu companheiro de caça, foi um depois de ter usado tudo o que tinha para
uma paixão pelo alpinismo. “O espíri- elemento decisivo. Este estava em total sobreviver a um nevão nas montanhas,
to da escalada livre, que nasceu com o harmonia com a Natureza, tal como o passei a perceber o que sentiam. Ou seja,
movimento hippie, é o eixo da minha herói do filme de Akira Kurosawa Dersu até àquele momento eu não estava ver-
vida”, afirma. Uzala (1975) [inspirado num homem de dadeiramente a viver. Pode dizer-se que
“Livre” significa sem nenhum equi- uma tribo indígena siberiana que levava descobri a vontade de viver.”
pamento. Quando se escala uma rocha uma vida completamente autónoma]. Por instantes, teve a impressão de se
utilizando apenas as mãos e os pés pela “Estes homens, tal como os hippies, fundir na paisagem, de se transformar
primeira vez – e até aí, se escalara sempre vivem em harmonia com o planeta, o num elemento da montanha, e o seu ego
com a ajuda de estribos, ou seja, pequenas que me pareceu porreiro. Uma vez que e os seus desejos haviam desaparecido.
escadas de corda –, diz-se que essa pessoa caçam com armas, não se pode falar pro- Foi uma sensação pura e nítida. Era aquilo
se “libertou”. A prática foi popularizada priamente de uma vida ‘livre’, mas foi que ele procurava. Mas assim que tentou
na década de 1970 por alpinistas hippies a ideia de se viver pelos próprios meios compreender a essência dessa sensação,
no Parque Nacional de Yosemite, nos EUA. que me atraiu.” veio logo ao de cima o seu ego habitual.
Na década de 1990, Hattori dedicou- No entanto, quando se tem uma fa- Quando lhe li esta passagem do livro,
-se à escalada livre a solo, ou seja, esca- mília, não é assim tão simples. Bunsho ele comentou: “Acho que é a isso que os
lava sozinho sem usar cordas. Durante as Hattori ganhava dinheiro a escrever li- hippies aspiram. Veem-se a si próprios
suas expedições, houve uma coisa que o vros, a aparecer na televisão e editar a como meros hóspedes no planeta, corpos
deixou profundamente impressionado: estranhos. Por isso, tentam, na medida
“Enquanto carregava 30 quilos às do possível, viver o mais próximo que
costas através dos Alpes japoneses do podem da Natureza, sem participar nos
Norte, cruzei-me com homens e mu- excessos humanos e na civilização do pe-
lheres que faziam caminhadas leves e ... tróleo. A dureza da Natureza liberta-nos
paravam em abrigos.” dos nossos desejos.”
Nos anos 80, os abrigos de alta mon- “Quando escalamos A revelação que teve nas montanhas
tanha do arquipélago, que até então eram fê-lo ir viver para uma aldeia abandona-
simples chalés que serviam de refúgio montanhas, da. Tem a sensação de que, num futuro
durante a noite, foram transformados conseguimos próximo, haverá cada vez mais pessoas
em verdadeiros hotéis e complexos ho- como ele. “Se pensarmos bem, era assim
teleiros.
vislumbrar um mundo que se vivia no Japão rural, não há muito
Hattori apercebeu-se do grau de mais profundo. O medo tempo. Esta é a paisagem reluzente de
dependência dos alpinistas, que não da morte acompanha- Shonai que eu via quando era criança.”
levavam tenda nem comida: “‘É isto o Não se trata de viver na nostalgia do pas-
alpinismo?’, questionei-me. Aperce- -nos, semana após sado, mas de redescobrir um modo de
bendo-me da importância de escalar semana” vida simples e sem artifícios supérfluos.

JANEIRO 2024 - N.º 335 79


ILUSTRAÇÃO: GETTYIMAGES
L L I V RO S
O mundo mudou
Em tempos recentes,
reconheçamos, era fácil perceber
o estado do mundo. A “coisa”
dividia-se entre um conflito de
superpotências e o “inevitável
triunfo” do modelo ocidental,
baseado numa unipolaridade
norte-americana. E, ainda
por cima, tudo parecia ter
um desenvolvimento lógico
e, portanto, fácil de prever.
Sabemos hoje que a esmagadora
Ideias desfeitas
Se há algo de que não se pode
Leituras que nos ajudam maioria dos “adivinhos” se
acusar a filósofa e escritora Susan
a compreender o mundo atual enganou. Vivemos, isso sim,
no início de uma era multipolar, Neiman é de ter medo das palavras.
com surpresas constantes e Por isso, logo na primeira página, ela
um nível de imprevisibilidade avisa que “este livro não é um apelo
que confunde académicos, ao bipartidarismo ou um discurso
estadistas e todos os produtores contra a cultura do cancelamento”.
de “ideias feitas”. A ordem Logo em seguida, destrói, de
mundial transformou-se numa forma inteligente, a razão por que
autêntica desordem. A guerra conceitos como “liberal”, “libertário”
voltou a ser um recurso comum e até “socialista” podem ter vários
e ao alcance de qualquer poder significados. E ainda como, no meio
regional emergente ou em de tantas discussões, “coisas como
busca de reconhecimento, práticas laborais justas, educação,
a democracia entrou em cuidados de saúde e habitação”
retrocesso, ao mesmo tempo possam parecer “questões de
caridade e não de justiça”. Tudo
Confrontar a História que os choques económicos
têm efeitos cada vez mais isto para sublinhar, de forma
“A escravatura foi uma guerra de séculos contra os globais. É nestes momentos que contundente, como o wokismo,
africanos. E as emancipações – os atos que eram supostos precisamos de quem nos ajude que foi “inventado” pela esquerda,
pôr fim à escravidão – só serviram para prolongar essa a olhar o mundo em toda a sua acabou por entrar em conflito
guerra no tempo.” Logo nas primeiras páginas deste livro, dimensão geopolítica. E, mais com as ideias que guiam a própria
Kris Manjapra demonstra que a sua visão sobre o fim da importante, com a redobrada esquerda há mais de dois séculos
escravatura tem poucas semelhanças com a narrativa dose de realismo face aos e que se consubstanciam no
a que nos habituámos. Na sua visão, os historiadores acontecimentos, sem ceder a compromisso com o universalismo,
habituaram-se a realçar os esforços dos abolicionistas preconceitos nem à facilidade numa distinção objetiva entre
brancos de ambos os lados do Atlântico e as campanhas de querer moldar o mundo à justiça e poder, bem como na
antiescravistas que organizaram. Nessa medida, todo rigidez do seu olhar. Nestes crença de que há esperança no
esse movimento ocorrido entre os finais do século XVIII 25 capítulos, o leitor tem o progresso. “É uma ironia amarga
e o início do século XX, e condensado nos escritos de mais importante: a justificação o facto de os tribalistas de hoje
Seymour Drescher, preocupou-se em apresentar a para o fim da “paz ” e diversas conseguirem mais facilmente
emancipação dos escravos como uma sucessão de êxitos explicações para as “guerras” encontrar uma causa comum do
globais que, segundo ele, ajudaram a “criar a arquitetura que se aproximam. que aqueles cujos compromissos
das modernas ideias sobre direitos humanos”. Esta derivam do universalismo, quer o
perspetiva, no entanto, “ignora ou mascara o facto de que, reconheçam ou não”, lamenta. Este
O FIM DA PAZ PERPÉTUA é, portanto, um livro que pode criar
quando as sociedades brancas começaram realmente DE JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
a implementar as suas ideias antiescravistas, o fizeram reações díspares e aparentemente
FERNANDES
de maneiras que prolongaram e ampliaram o cativeiro contraditórias: inquietar os leitores
ZIGURATE de esquerda e sossegar os de
e a opressão dos negros em todo o mundo”. O mais
importante, neste caso, é que toda a reflexão é assente direita, mesmo que seja pelas
numa cuidadosa investigação e apresentada numa escrita razões contrárias a cada um. O
analítica e não de combate. Por isso mesmo, este é um mais importante: é um livro que nos
livro que nos faz pensar e, acima de tudo, nos convida a obriga a “acordar” contra as ideias
questionar muitas certezas que alimentámos sobre o fim feitas – o woke de que precisamos.
da escravatura.
A ESQUERDA
O FANTASMA NEGRO DO IMPÉRIO NÃO É WOKE
DE KRIS MANJAPRA DE SUSAN NEIMAN
Tradução de Mário Dias Correia Tradução de António Costa Santos
TEMAS & DEBATES PRESENÇA

80 JANEIRO 2024 - N.º 335


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K-TOWER ABRE ESTE ANO


E RECEBE EMPRESAS DE RENOME
A K-TOWER desenvolvida pela promotora imobiliária belga,
Krest Real Estate Investments abriu as portas este ano e integra
os escritórios da Critical TechWorks, considerada a empresa de
IT com maior nível de crescimento em Portugal, e da Spaces
Oriente, a segunda unidade da marca International Workplace
Group, o maior operador mundial de espaços de trabalho flexível
e coworking no país, que ocupa 3.000 m2 do edifício.

PATRÓN OFERECE UMA EXPERIÊNCIA ÚNICA


COM A TEQUILA SUPER PREMIUM PATRÓN EL CIELO™
PATRÓN El CIELO™, a mais recente novidade de Tequila PATRÓN®,
KTM REVELATOR
a Tequila super premium número um do mundo, promete fazer
A 3.ª geração da bicicleta KTM Revelador Alto absorveu, fibra-a-fibra,
brilhar e dar outro sabor a cada momento especial, estejamos
a realidade do ciclismo contemporâneo. A Revelator nasceu para a
onde estivermos. Lançada recentemente em Portugal, PATRÓN
nova escola, com novas técnicas de condução, com os atletas de elite
El CIELO™, é a primeira tequila de prestígio quatro vezes destilada
mais agressivos do que nunca que deixam 100% na estrada confiam a
do mercado, que revela as notas doces naturais do agave,
101% na bicicleta.
proporcionando um sabor incomparável com um final brilhante,
fresco e radiantemente suave.

SANTA VITÓRIA E VAL MOREIRA


LANÇAM DOIS NOVOS VINHOS
A Casa de Santa Vitória e a XVINUS, empresas participadas do grupo Vila
Galé, acabam de lançar novos vinhos, topo de gama, o Santa Vitória Syrah
2021, do Alentejo, e o Val Moreira Vinha D’Arte 2018, do Douro.
Produzido a partir de uma parcela de vinha com 20 anos, o Santa Vitória
Syrah 2021 esteve quatro dias em maceração a frio, seguindo-se a
fermentação alcoólica durante nove dias. Estagiou em barricas de carvalho
francês de 2º e 3º ano durante 14 meses. É um vinho que resulta da seleção
das cinco melhores barricas de Syrah de 2021. E foi engarrafado a 7 de junho
de 2023, pertencendo a uma edição limitada de 1.444 garrafas, da autoria
dos enólogos de Santa Vitória, Marta Maia e Bernardo Cabral.
F FLASHBACK

H
AMEAÇA CRESCENTE
O partido de extrema-direita
AfD começou por ser uma
espécie de curiosidade na
Alemanha – à semelhança
do que aconteceu com
organizações similares noutros
países. A subida à tona ocorreu
no rescaldo da crise financeira,
com uma agenda eurocética,
mas ganhou maior notoriedade
com a política violenta e
autoritária de anti-imigração,
o que lhe possibilitou entrar
no Bundestag, nas eleições
federais de 2017, com 12,6% dos
votos e 94 deputados. Desde
o início, as grandes revistas
alemãs têm investigado as
verdadeiras motivações dos
líderes de extrema-direita e,
nalguns casos, recorreram a
soluções criativas e de grande
impacto. Foi o que aconteceu
com a capa da revista WOCHE
da FRANKFURTER ALLGEMEINER,
que mostrou a radicalização dos
alemães através de uma foto
de família com reminiscências
nazis. Polémica foi também a
entrevista à líder da AfD, Alice
Weidel, feita pela STERN e em
que, na capa, a palavra “ódio”
surgiu com a fonte Fraktur,
claramente associada aos nazis.
Agora, segundo a FOCUS, é a
democracia que está em risco.

82 JANEIRO 2024 - N.º 335


TURISMO RURAL EM
ALVEGA

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SUPERAR OS SEUS LIMITES

Gama Land Rover Defender PHEV 24MY: consumo combinado WLTP 2,5-3,1 l/100 km, emissões combinadas de CO₂ WLTP 57-70 g/km e autonomia elétrica EV combinada 51-58 km.
Valores obtidos nos testes oficiais do fabricante com uma bateria carregada de acordo com a legislação da UE. As emissões de CO₂, o consumo de combustível, o
consumo de energia e a autonomia podem variar em condições reais e em função de fatores como o estilo de condução, as condições ambientais, o equipamento, a
carga, o estado da bateria e o percurso. Valores de autonomia baseados num veículo standard num percurso normalizado.

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