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Janeiro 2024
NÚMERO 335 | MENSAL | €5,20 (Cont.)
A EPIDEMIA DA INSÓNIA
A EPIDEMIA DA INSÓNIA
O stresse no trabalho, as pandemias, as guerras
e a emergência climática estão a estragar-nos o sono.
Como o número de horas que dormimos se tornou uma obsessão
– e o preço que pagamos pela falta de repouso
FALTER, THE GUARDIAN, THE NEW YORK TIMES
JANEIRO 2024
06 Editorial
08 Cartoons
Atual
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CONFLITO ISRAELO-
EDIÇÃO N.º 335
-PALESTINIANO
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EdITORIAL
DE OLHOS MAL FECHADOS
R U I TAVA R E S G U E D E S
rguedes@visao.pt Se há algo que os grandes e mais competitivos atletas do mundo sabem é que tão
importante como treinar bem é conseguir dormir melhor. A quantidade e qualidade
das horas de sono desempenham, na sua preparação, um papel relevante em
todos os planos e são mesmo decisivos nas vésperas de uma grande competição
internacional. Quando, por exemplo, os Jogos Olímpicos decorrem num fuso
horário distante, torna-se obrigatório delinear uma estratégia, com várias semanas
de antecedência, para evitar qualquer perturbação no sono. Os corpos dos atletas
são estudados ao pormenor e monitorizados em permanência, procuram-se todos
os dados sobre as condições atmosféricas que se vão encontrar e, geralmente,
tenta-se simular, à distância, tudo aquilo que o organismo vai enfrentar. Sempre
com um objetivo central: procurar que nada perturbe a “máquina perfeita” que
andou anos e anos a ser treinada, constantemente em busca da superação dos
supostos limites físicos.
Sabemos, também, que os atletas que prolongam por mais tempo as suas
carreiras desportivas são aqueles que, no dia a dia, procuram proteger o seu corpo e,
dessa forma, conseguir atenuar os sinais inevitáveis de envelhecimento. São os que
se alimentam melhor e, não haja dúvidas, os que mais tempo dormem. Aqueles para
quem o sono faz parte do treino.
Sabendo tudo isto sobre as estrelas atléticas e desportivas que admiramos,
não deixa de ser paradoxal que, na cultura empresarial e até em certas visões da
sociedade, exista tão pouca preocupação com o sono e
o descanso obrigatório de quem trabalha. Muitas vezes,
até, o que se glorifica são as personalidades que se
ufanam de dormir pouco, de conseguirem passar noites
acordados a trabalhar. Como se fossem uma espécie
de super-heróis, para quem a melatonina é quase uma
kryptonite que lhes iria retirar os poderes milagrosos e,
assim, tornarem-se meros mortais.
O outro paradoxo é que o aumento de pessoas com
insónias tem ajudado a criar uma autêntica indústria
em redor do sono. Para nos ajudar a dormir melhor,
há de tudo um pouco: camas desenhadas pelos
melhores designers, colchões ergonómicos, lençóis e
cobertores que nos são apresentados como científicos
e milagrosos, além de uma série de produtos farmacêuticos – muitos deles com o
rótulo de “natural” – e uma infinidade de aparelhos eletrónicos, aplicações para o
telemóvel e até listas de música infalíveis para um “sono retemperador”.
Sem retirar credibilidade a muitos destes produtos – alguns criados com
as melhores intenções, uns até beneficiando das experiências dos astronautas
no espaço –, temos de reconhecer que grande parte do problema do sono está
hoje mais relacionado com a pressão existente nas sociedades atuais do que com
qualquer “evolução negativa” ocorrida nos nossos organismos. Dormir, quer se
COURRIER INTERNACIONAL queira quer não, é um dos atos mais naturais do mundo – e essencial, aliás, à nossa
Disponíveis nas lojas sobrevivência. E, se quisermos dormir melhor, a primeira coisa que temos de fazer
da Apple e da Google é melhorar a nossa vida: carregar menos preocupações na hora de nos deitarmos,
as aplicações necessárias livrar-nos das pressões e dos stresses que nos baralham a cabeça.
Dormir bem, de forma retemperadora, faz parte do descanso obrigatório que o
nosso organismo necessita. Por isso, os grandes campeões do desporto encaram o
descanso com o mesmo rigor e entusiasmo com que puxam pelo físico. Dentro de
uma velha máxima: quanto mais puxado for o treino, maior terá de ser também o
período de repouso. Aquilo que é comprovado pelos superatletas devia ser a regra
para as pessoas normais. Para que isso aconteça, precisamos de decisores mais
interessados no bem-estar das pessoas do que na métrica simples da produtividade
ou dos índices de desempenho. E, de preferência, com noites mais bem dormidas.
ASSINAR:
Festa ou terror?
Félix Tshisekedi foi reeleito
Presidente da República
Democrática do Congo.
“E o povo está contente”, diz ele…
apesar dos motins registados
no país africano
SONDRON, PARA L’AVENIR, Sósia e sucessor?
NAMUR, BÉLGICA Gabriel Attal foi nomeado primeiro-ministro de França, e Emmanuel
Macron espera ter feito uma boa escolha… e não ser ofuscado pelo seu jovem delfim
SONDRON, PARA L’AVENIR, NAMUR, BÉLGICA
Justiça para
todos?
“Impeçam-nos de
cometer genocídio”,
afirma o representante da
África do Sul. “Proíbam
essa palavra”, responde
o de Israel
CHAPPATTE, PARA LE TEMPS,
GENEBRA, SUÍÇA
Uma longa
história
de oportunidades
perdidas
DESDE QUE COMEÇOU, HÁ UM SÉCULO, O
PRINCIPAL CONFLITO NO MÉDIO ORIENTE TEM
FICADO MUITAS VEZES REFÉM DE EXTREMISTAS
ISRAELITAS E PALESTINIANOS. MAS TAMBÉM DE
FALSOS AMIGOS DO MUNDO ÁRABE E DO IRÃO.
EM TEORIA, HÁ UMA SOLUÇÃO – A CRIAÇÃO
DE DOIS ESTADOS –, MAS A SUA APLICAÇÃO
EXIGE BOA VONTADE, QUE NÃO EXISTE
L’Orient-Le Jour
Beirute
Campo de refugiados palestiniano, em 1948,
após a formação do Estado de Israel
FOTO GETTYIMAGES
Conflito
E
Em janeiro de 1992, o inverno em Wa- tantes da sociedade civil nos territórios
shington D.C. foi tudo menos rigoroso. ocupados, os chamados palestinianos “do
A delegação palestiniana, preparada para interior” – de Jerusalém Leste, da Cisjordâ-
negociações de paz israelo-árabes, aca- nia e da Faixa de Gaza. Composta por acadé-
bava de se hospedar num luxuoso hotel micos, juristas, médicos, filósofos e outros
de cinco estrelas nas margens do rio Po- profissionais, a delegação em Washington
tomac. As delegações jordana, síria e li- não correspondia ao que o mundo conhecia
banesa também escolheram acomodações até então sobre a Palestina.
sumptuosas, estrategicamente distantes Até a sua indumentária sinalizava uma
umas das outras. transformação. Não se viam keffiyehs, ócu-
Um pormenor curioso: os israelitas op- los escuros e barbas desalinhadas [a “marca
taram por um hotel de três estrelas, mais registada” de Yasser Arafat], que lembravam
modesto. Por pouco tempo. Mais tarde, à a década de 1970 e a era da pirataria aérea
medida que as negociações se prolongavam [protagonizada por George Habash]. Os
– duraram um ano e meio –, também eles delegados palestinianos apareceram de fato
se mudariam para um lugar mais pomposo. e gravata e tailleurs elegantes. Ainda não o
Entre os palestinianos, o ambiente era sabíamos, mas esta metamorfose exerceria
de entusiasmo. Tratava-se da primeira ses- influência psicológica considerável – sobre
são na capital norte-americana do processo os delegados israelitas ou, pelo menos, so-
de paz [iniciado na Conferência de Madrid bre os interlocutores norte-americanos.
de 30 de outubro – 1 de novembro de 1991], e Paradoxalmente, foi o então primeiro-
as apresentações corriam bem. Os delegados -ministro israelita, Yitzhak Shamir, quem
esboçavam largos sorrisos aos jornalistas, impôs que a delegação incluísse apenas os
que retribuíam. palestinianos “do interior”. Numa deci- Palestina. Neste aspeto, o facto de estarem
É preciso dizer que, naquela altura, são que poderia ter feito descarrilar todo fisicamente separados das delegações árabes
a causa palestiniana tinha uma grande o processo – e que os EUA tiveram grande em hotéis diferentes funcionou convenien-
cobertura nos meios comunicação social dificuldade em pôr em marcha –, Shamir, temente como álibi.
internacionais, o que não é hoje o caso. alegando que a Palestina não era um Estado, Já a delegação libanesa foi um caso
Tanto assim que um jornalista, particular- exigiu que a representação palestiniana fos- diferente. Apesar de fisicamente separa-
mente entusiasmado e distraído, escreveu: se uma subdelegação da comitiva jordana. da dos homólogos sírios, não foi possível
“Numa entrevista à OLP, em vez de ‘à AFP’ Numa curiosa dança diplomática, disfarçar o facto inegável de que Beirute
[Agência France-Presse].” Washington fez de conta que cedeu. Desde dependia totalmente de Damasco naquela
A realidade é que, naqueles dias, havia o início que os responsáveis norte-ameri- altura. [As tropas sírias, que entraram no
caras novas, em Washington, a representar canos fecharam os olhos à circunstância de Líbano em 1976, durante a guerra civil, só
a Palestina. Desapareceram Abu Jihad, Abu Faisal Husseini, Saeb Erekat, Sari Nussei- abandonaram o “país do cedro” em 2005,
Iyad, George Habash, Nayef Hawatmeh e beh, Hanan Ashrawi, Nabil Shaath, Ghas- e forçadas.]
Abu Nidal. Estes veteranos de um outro san Khatib e os seus companheiros serem, Shamir era, inquestionavelmente, uma
tempo foram substituídos por represen- na realidade, os únicos representantes da personalidade temível e amarga. Defensor
de um “Grande Israel” [“do rio Jordão ao
mar Mediterrâneo”], usava o termo bíblico
AUTOR DATA TRADUTORA “Judeia-Samaria” para referir a Cisjordâ-
F Élie Fayad 06.11.2023 Maria Alves nia ocupada Antigo líder de dois grupos
terroristas, Irgun e Stern, conseguiu es-
Tempos de esperança
No dia da inauguração da conferência,
Ashrawi respondia a perguntas de jor-
nalistas, tantos que o encontro teve de
ser transferido para o exterior, quando foi
interpelada pelo repórter de uma publica-
ção cristã fundamentalista norte-ameri-
cana: “Vocês, muçulmanos… não percebo
como podem exigir a Israel que troque
território por paz se a Judeia e Samaria
estava nas vossas mãos quando Israel foi
atacado três vezes.”
Ashrawi deixou-o falar e depois escla-
receu: “Sou cristã palestiniana e conheço
bem o cristianismo. Sou descendente dos
primeiros cristãos; Jesus Cristo nasceu
no meu país, na minha terra. Não acei-
to a superioridade e o monopólio do seu
PARECIA IMPLAUSÍVEL QUE ARAFAT PUDESSE TER PISADO cristianismo.” Todos os presentes riram à
OS JARDINS DA CASA BRANCA, EM SETEMBRO DE 1993, gargalhada. O Médio Oriente é realmente
muito complexo.
PARA ASSINAR UM ACORDO DE PAZ E APERTAR A MÃO Um ano e três meses depois de Ma-
drid, a capital federal dos EUA emergia
A CLINTON, RABIN E SHIMON PERES SE O TRABALHO do inverno enfeitada com flores de cere-
jeira. O ambiente era de otimismo entre
DE BASE NÃO TIVESSE SIDO CONCLUÍDO DE ANTEMÃO, as várias delegações. Mas, entretanto, o
PARA TORNAR A OLP E O SEU LÍDER “ACEITÁVEIS” mundo mudou. O democrata Bill Clin-
ton, que sucedeu ao republicano George
H. W. Bush, acreditava firmemente, tal
A queixa obteve o apoio do Congresso, para um domínio momentâneo do discur- como o antecessor, que os Estados Unidos
que ameaçou reter ajuda financeira crucial so moderado sobre a retórica extremista, da América deveriam ser um “mediador
a Israel, mas diz-se que Bush sénior foi o numa região habituada ao oposto. honesto” no Médio Oriente. Mas Yitzhak
último inquilino da Casa Branca a criticar Por vezes, acontece os EUA, firmes no Rabin, que substituiu Shamir em Israel,
publicamente o lóbi pró-israelita. [A sua apoio a Israel, permitirem algumas nuan- estava prestes a mudar profundamente a
ousadia contribuiu para que cumprisse um ces na sua política e relações intrincadas política do seu país.
só mandato, porque o poderoso American com o Estado judaico. Na década de 1970, Pela primeira vez, um chefe do gover-
Israel Public Affairs Committee (AIPAC) a então primeira-ministra israelita, Gol- no de Telavive endossava uma política de
não apoiou a sua reeleição em 1993.] da Meir, criticou o chefe da diplomacia “separação física” entre israelitas e pales-
O braço de ferro Bush-Shamir ilus- de Washington, Henry Kissinger, por se tinianos, especificamente os árabes que
trou vividamente que, quando os Estados mostrar distante, apesar de uma herança residem na Cisjordânia e Faixa de Gaza –
Unidos da América desejam alguma coisa, judaica partilhada. Kissinger respondeu- territórios ocupados, mas não anexados
Israel acaba por alinhar. Basta que Wa- -lhe: “Golda, lembra-te de que, em pri- – e não os árabes que vivem em território
shington faça a sua parte. Mas esta dinâ- meiro lugar, sou americano; em segundo, israelita e têm cidadania israelita.
mica também pressupõe um compromisso sou secretário de Estado; em terceiro, e O que havia de novo nesta abordagem
recíproco do outro lado da arena, ou seja, apenas em terceiro lugar, sou judeu.” Ela era o facto de sugerir a existência de um
que os protagonistas árabes e palestinianos retorquiu: “Henry, esqueces-te de que, povo palestiniano distinto, separado dos
tenham vontade de fazer o mesmo. em Israel, lemos [em hebraico] da direita restantes árabes (jordanos, sírios, egípcios,
No início dos anos 90, as coisas cami- para a esquerda?” etc.), e dos outros habitantes da Palestina
nhavam aparentemente nessa direção. A Regressemos ao hotel luxuoso em Wa- histórica, fossem eles judeus ou árabes.
exaustão sentida depois de mais de três shington onde se hospedara a delegação Até então, a filosofia dominante do
anos de revolta nos territórios ocupados palestiniana. Findas as sessões prelimina- sionismo negava qualquer singularidade
(a Primeira Intifada, 1987-1993), as conse- res, Hanan Mikhail Ashrawi, a verdadeira aos árabes palestinianos. O mais irónico é
quências da invasão iraquiana do Kuwait, a “estrela” do grupo do qual era porta-voz que esta negação – que levava os sionistas
insatisfação das monarquias petrolíferas do oficial, convocou os jornalistas para uma mais irredutíveis a dizer que tinham vindo
Golfo Pérsico com Arafat [por ter apoiado conferência de imprensa, um exercício dos quatro cantos da Europa e de outras
Saddam Hussein] e a perda de influência para o qual era inegavelmente talentosa. regiões para reclamar “uma terra sem povo
dos grupos palestinianos mais radicais – Três meses antes, na Conferência de Ma- para um povo sem terra” – coincidiu com
tudo isto contribuiu, pela primeira vez, drid, esta professora de Literatura Inglesa outra negação. O nacionalismo árabe, em
16
OLP: “Representante legítima”
dos palestinianos
[“catástrofe”, termo árabe utilizado para Fundada pela Liga Árabe em 1964, em Jerusalém, quando o setor oriental da cidade
descrever o êxodo de, pelo menos, 750 mil estava sob administração jordana, a Organização de Libertação da Palestina, nacionalista
palestinianos de 530 aldeias e cidades da e secular, descreve-se como “representante legítima do povo palestiniano” – um título
Palestina histórica, entre 1948 e 1949]. que o movimento islamista Hamas não lhe reconhece. O objetivo da OLP é “libertar os
A Palestina acabou por ser dividida, territórios ocupados por Israel e criar um Estado soberano nas fronteiras de 1967”.
mas não como estipulava o plano das Na- Depois da Naksa, a “derrota” na chamada Guerra dos Seis Dias, em que Israel
ções Unidas. A guerra israelo-árabe que conquistou a Cisjordânia, Jerusalém Oriental, a Faixa de Gaza, a península do Sinai
rebentou após a proclamação do Estado (devolvida ao Egito em 1991) e os montes Golã, na Síria, vários grupos de resistência
de Israel, a 14 de maio de 1948, deu aos armada juntaram-se à OLP. O maior continua a ser a Fatah (acrónimo invertido de
judeus um território mais vasto do que o Harakat al-Tahrir al-Watani I-Filastin, Movimento de Libertação Nacional da Palestina),
previsto, incluindo Jerusalém Ocidental. formada em 1959, por Yasser Arafat (Abu Ammar), Salah Khalaf (Abu Iyad) e Khalil
Quanto à restante parte árabe – Jerusa- al-Wazir (Abu Jihad), quando eram emigrantes palestinianos no Kuwait.
lém Oriental, a Cisjordânia e a Faixa de A segunda maior fação é a Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP, marxista-
Gaza –, nunca chegou a ser uma Palestina leninista), criada pelo médico cristão George Habash, que perdeu a sua casa em Lydda
independente. Por causa de Israel? Não, (atual Lod) durante a Nakba (o êxodo imposto por Israel), em 1948. Na década de
pelo menos não diretamente. Por causa 1960-1970, para “pôr a causa palestiniana no mapa”, Habash foi responsável por vários
dos árabes? Infelizmente, sim. desvios de aviões internacionais, que, por sua vez, conduziram a uma guerra civil na
A Transjordânia tornou-se oficialmen- Jordânia. Com o trono em perigo, o rei Hussein expulsou milhares de combatentes da
te Jordânia ao anexar Jerusalém Oriental OLP para o Líbano, numa ofensiva que ficou conhecida como Setembro Negro. Habash
e a Cisjordânia; o Egito apropriou-se da morreu em Amã, em 2008, aos 81 anos. Sucedeu-lhe Ahmad Sa’adat, condenado por
Faixa de Gaza. Porquê esta anexação? Por- Israel, em 2006, a 30 anos de prisão.
que os Estados árabes vizinhos de Israel Dissidente da FPLP, a Frente Democrática de Libertação da Palestina (FDLP) é a terceira
não queriam uma Palestina independen- fação da OLP, dirigida pelo católico Nayef Hawatmeh, que nasceu em 1938, em Salt, na
te e incontrolável que os arrastasse para antiga Transjordânia, mas continua a viver na Síria, o seu patrono. A ala militar da FDLP,
conflitos com Israel, que eles não queriam Brigadas da Resistência Nacional, aliou-se ao Hamas em Gaza.
nem planeavam. Graças a Yasser Arafat, que a liderou desde 1969 (o primeiro presidente foi Ahmad
Ainda só estamos em 1948 e já tantas Shukeiri) até à sua morte, em 2004, a OLP conseguiu um lugar na ONU em 1974,
oportunidades se perderam. Lamenta- renunciou ao terrorismo em 1988 e reconheceu Israel no âmbito dos Acordos de Oslo,
velmente, muitas mais se seguiriam. Uma em 1993. Mahmoud Abbas (Abu Mazen) sucedeu a Arafat na liderança e foi eleito,
onda fervorosa de nacionalismo árabe var- em 2005, presidente da Autoridade Nacional Palestiniana, mas é muito impopular na
reu, entretanto, os países do Próximo e Cisjordânia, a sua base, e em Gaza, onde o Hamas governa sozinho desde 2006.
Médio Oriente (já para não mencionar os
do Magrebe). Esta onda apanharia a causa
palestiniana apenas para a suprimir de egípcio Saad Zaghloul, antigo primeiro- Foi naquela altura, em meados da déca-
uma maneira mais eficaz. Por toda a parte -ministro, fundador do Partido Wafd e da de 1960, que as organizações palestinia-
surgiram regimes militaristas e ditatoriais, herói da libertação do Cairo, respondeu nas começaram a ganhar importância e, aci-
que governavam segundo um princípio assim a um jornalista que lhe perguntou ma de tudo, começaram a oferecer os seus
supressivo: “Nenhuma voz deve abafar o o que pensava da unidade árabe: “Zero + serviços às potências árabes que pagassem
ruído da batalha.” zero + zero = zero.” mais. Um homem de grande inteligência e
Mas que batalha? A campanha do Suez Se tivessem feito a mesma pergunta carisma, Yasser Arafat, tentou pôr ordem
de 1956? Este foi um conflito tipicamente a Nasser, ele teria ajustado um pouco a nesta desordem, esperando centralizar as
pós-colonial, em que Israel teve a má ideia fórmula; “um zero + zero + zero = um”. decisões palestinianas, mas os seus esforços
de se aliar a franceses e britânicos con- Porque puniu qualquer Estado árabe que revelaram-se inúteis. Muitas vezes, viu-se
tra o Egito de Nasser [que nacionalizou o não conseguiu subjugar. Foi o caso da Síria, enredado na armadilha de uma incessante
canal], mas que não teve absolutamente que, depois de ter sido um aluno com- superioridade, modo de expressão domi-
nada que ver com a questão palestiniana. placente entre 1958 e 1961, se revoltou nante entre estas organizações.
Os israelitas foram obrigados a recuar, não contra o domínio do Egito e se retirou da Só em 1974 é que os Estados árabes
devido a uma derrota militar mas porque “República Árabe Unida”. Com a cum- concordaram em reconhecer a OLP como
os EUA ficaram furiosos. Pouco lhes im- plicidade do “segundo bureau” libanês, “única e legítima representante do povo
portavam as reivindicações de Londres isto é, dos serviços secretos da embaixada palestiniano”, 26 anos após a criação do
e Paris, que queriam preservar as suas do Egito em Beirute, Nasser envolveu-se Estado de Israel. Contudo, já era demasiado
conquistas coloniais, mas não queriam impunemente em atividades contra a Síria, tarde para o projeto “civilizado” que, na-
ver o seu pequeno protegido israelita deixando Damasco com um sentimento quele ano, Arafat levou à Assembleia Geral
juntar-se a esta luta... duradouro de amargura e ressentimento da ONU: um Estado único e democrático de
em relação ao Líbano. Depois de castigar judeus e árabes. Para muitos, em meados,
Nasser e Sadat a Síria, voltou a sua ira para o rei Faisal da na década de 1970, a noção de um Estado
Quanto a Gamal Abdel Nasser, estava mais Arábia Saudita, que se atreveu a desafiar democrático era idealista e ingénua.
preocupado com a hegemonia do Egito os seus planos para garantir uma posição Algo impensável tinha acontecido an-
sobre o mundo árabe, e esta era a sua prio- segura na Península Arábica, exercendo tes: de 5 a 10 de junho de 1967, o mundo
ridade. Consequentemente, procurou na influência sobre o Iémen. Dezenas de árabe recebeu um golpe colossal. O que há
causa palestiniana e apenas valorizou o milhares de soldados egípcios pagariam muito deveria ter sido o Estado da Palestina
que pudesse servir os seus objetivos. Um com as suas vidas este empreendimento desapareceu em seis dias. Jerusalém Leste,
dos seus antecessores, o célebre patriota ambicioso, mas malfadado. a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, bem como
Hamas: Rival
da Fatah,
“criatura de Israel”
A Irmandade Muçulmana de Gaza, de onde emergiu
o Movimento de Resistência Islâmica, nasceu em 1946,
num cinema, não numa mesquita. Israel admite ter financiado
os islamistas nos anos 1970-1980, para marginalizar
“a OLP e os comunistas”.
Acrónimo árabe de Movi- que, na mesma década, foi responsável O conflito israelo-palestiniano entrou
CHADE
Mohamed Adam espera pelos
dois filhos pequenos. Ambos têm manchas
no rosto e foi por isso que ele os trouxe
FONTES: ACLED, BBC, THE ECONOMIST, THE INTERCEPT, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (OIM, UNHCR)
ARGÉLIA
ALGÉRIE (e também a União Africana) não levantou
objeções.
[A Constituição de 4 de maio de 2018
determina que, em caso de vazio de po-
der, o presidente do Senado ascende a
CHADE
TCHAD Presidente interino, até ser eleito um
NÍGER
NIGER novo Chefe do Estado. No entanto, no dia
Amdjarass SOUDAN
SUDÃO seguinte à morte do pai, em 20 de abril
de 2021, Mahamat Idriss Déby assumiu
Abéché 879 771
700 500
a presidência de um Conselho Militar de
N’Djamena Transição e suspendeu a Constituição.]
528
21 300
O Presidente francês Emmanuel Ma-
cron apanhou de imediato um avião para
NIGÉRIA ir ao funeral de Idriss Déby e afirmou,
130 600
128 966
SUDÃO
SOUDAN alto e bom som, que Paris interviria se
813
26 500 RÉPUBLIQUE
REPÚBLICA
CENTRAFRICAINE
CENTRO-AFRICANA DO SUD
DU SUL os rebeldes voltassem a atacar. Há muito
que a França apoia os ditadores em N’Dja-
500 km
CAMARÕES
CAMEROUN mena, em troca da presença de soldados
chadianos ao lado do Exército gaulês na
Guerra civil, conflito político Forte atividade de grupos jihadistas região e de bases militares em território
Incidentes violentos registados desde 2022 26 813 Refugiados estrangeiros no Chade chadiano.
Principais atores estrangeiros presentes (bases militares, envio de tropas) Este apoio chegou até a envolver o
França EUA Nações Unidas Hungria (a partir de março de 2024) Grupo Wagner bombardeamento da aviação francesa a
forças rebeldes, como aconteceu, em 2018,
a um grupo de insurretos [da União das
Forças da Resistência (UFR), proveniente
do Sul da Líbia].
se restabelecer um clima de segurança e agitações nesta parte do mundo: guerra Promessas de Déby
todos fizeram da França o bode expia- civil e genocídio no Sudão; terrorismo de Inicialmente, Mahamat Idriss Déby pro-
tório que mobiliza a população em prol grupos jihadistas no Sahel, conflitos san- meteu organizar eleições, no final de um
desta causa. grentos na República Centro-Africana e período de transição de 18 meses, e garan-
O quartel-general das operações na Líbia – dois países onde os mercenários tiu que não seria candidato. No entanto,
francesas no Sahel é atualmente o Chade, do grupo russo Wagner têm expressão e em outubro de 2022, prolongou o período
aliado próximo e de longa data, com uma presença. de transição por mais dois anos e anunciou
base militar permanente em N’Djamena, O Chade é governado por Mahamat que, afinal, se candidataria. Revoltados,
a capital. A retirada das tropas francesas Idriss Déby Itno, desde 2021, quando o pai, os partidos da oposição saíram à rua em
do Níger [iniciada em outubro de 2023] Idriss Déby, morreu a combater rebeldes manifestações de protesto. Num só dia, as
permitiu a entrada na cidade de impo- no Norte do país. Foi uma insurreição ar- forças de segurança chadianas mataram
nentes colunas militares. [Em dezembro, a tiro, pelo menos, 128 pessoas [algumas
a oposição chadiana e grupos da sociedade ONG de direitos humanos falam em 300]
civil pediram a Paris que retirasse “ime- e prenderam centenas de outras.
diatamente” os seus soldados.] As mais [Em 24 de dezembro último, realizou-
recentes sondagens mostram que o apoio
... -se um referendo para se aprovar a nova
à antiga potência colonial está a decair, Constituição. Votaram a favor 86% dos
enquanto sobe a popularidade da Rússia, Desde 2020 que se 64% de eleitores que afluíram às urnas,
constata um responsável ocidental. sucedem golpes de segundo resultados apurados por uma
Outro dos receios é a tensão políti- Estado em Bamaco, comissão governamental. Críticos, so-
ca, além das ameaças nas fronteiras do bretudo entre os que boicotaram a vo-
Chade, e que isto possa conduzir a uma Uagadugu e Niamey. tação, disseram à agência Reuters que o
guerra civil. “É um barril de pólvora que Os golpistas afirmam resultado irá ajudar a cimentar o poder da
vai explodir”, prevê Cameron Hudson, junta militar dirigida por Mahamat Idriss
investigador no Center for Strategic and
que as suas ações Déby. Este prometeu realizar eleições no
International Studies, um think-tank com são cruciais para se final de 2024, mas poucos acreditam que
sede em Washington. restabelecer um clima serão livres. A nova Constituição mantém
Trata-se de um cenário de verdadei- o Chade como Estado unitário, apesar de
ro pesadelo geopolítico, porque o Chade de segurança e atiram alguns opositores defenderem a criação
funciona como uma barreira contra várias as culpas para a França de um Estado federal.]
Era muito improvável uma derrota paramilitar via aeroporto em Amdjarass coligação no poder, não estão satisfeitos
de Mahamat Idriss Déby no referendo. O [no Leste do país, perto da fronteira su- com a gestão de Déby, observa Picco.
principal líder da oposição, presidente do danesa], o bastião dos Déby. Os EUA, que Também há a possibilidade de grupos
partido Les Transformateurs [Os Trans- insistem na ideia de que os seus aviões armados invadirem o Chade a partir do
formadores], Succès Masra, que abando- transportam ajuda humanitária e não ar- estrangeiro e derrubarem Déby. Recorde-
nou o país após o massacre de outubro de mas para as RSF, deram claramente um -se que, em 2021, quem matou o pai foram
2022 e que era alvo de um mandado de apoio financeiro substancial ao governo combatentes líbios [da Frente para a Alter-
captura internacional emitido pela Jus- de Mahamat Idriss Déby. nância e a Concórdia no Chade] e que, no
tiça chadiana, regressou à pátria a 3 de Ora, muitas das elites dirigentes do início de 2023, uma fuga de documentos
novembro, depois de assinar um acordo Chade têm laços militares e tribais com dos serviços secretos norte-americanos
[“de reconciliação”, em Kinshasa] com rebeldes zagauas da região sudanesa do deu a entender que mercenários da Líbia
o governo de Déby. Darfur. Em meados de novembro de 2023, estão a ajudar os rebeldes do sul do Chade,
Muitos temiam que Succès Masra, sem os grupos armados mais poderosos de- na República Centro-Africana, a elaborar
dinheiro e sem o apoio de Washington e clararam guerra às RSF. Isto aumentou mais um plano para destituir Déby.
de Paris, “fosse comprado” pelo regime, a tensão nos círculos de poder zagauas Mahamat Idriss Déby Itno está, pois,
com a promessa, por exemplo, de uma em N’Djamena. “O apoio às RSF ameaça à procura de novas formas de consolidar
função governativa. [E foi isso exatamente dividir a família Déby e o Exército”, alerta o poder. Em novembro de 2023, o Parla-
que aconteceu, em 1 de janeiro de 2024: um diplomata ocidental. mento húngaro aprovou o envio de 200
Déby nomeou-o primeiro-ministro de um “Na minha opinião, Déby não conse- soldados para o Chade, oficialmente para
Executivo de transição. Vários dirigentes guirá aguentar-se mais do que um ano”, combater o terrorismo e a migração ile-
da oposição distanciaram-se de Masra e afirma o investigador Cameron Hudson. gal. Contudo, segundo alguns analistas, o
criticaram a decisão de Déby de amnistiar Mas não há qualquer certeza. Apesar de objetivo desta presença militar consistirá
“todos os chadianos, civis e militares” enfrentar muitas ameaças, Déby é também em ajudar o líder chadiano a garantir a
envolvidos na matança de 2022, conhecida um político surpreendentemente hábil”, segurança das jazidas de ouro, no Norte
como a “Quinta-Feira Negra”.] destaca Enrica Picco, diretora do projeto do país, uma região particularmente in-
“Quando Nelson Mandela assinou um da África Central do International Crisis tratável, ou a proteção do Estado de um
acordo com o regime de Apartheid [na Group (ICG), think-tank com sede em eventual golpe militar.
África do Sul], disseram que ele tinha Bruxelas. Um acordo assinado com Khalifa
sido comprado?”, defendeu-se o político Haftar, homem-forte do Leste da Líbia,
e economista Masra, quando lhe falaram Perigo à espreita permitiu-lhe, em agosto, atacar contra
das suspeitas, especificando que firmou Uma revolução palaciana não conduzirá bases de rebeldes chadianos, que operam
um “acordo pró-democrático”. [No dia necessariamente a uma guerra civil nem a partir do sul. Déby, que visitou recen-
10 de janeiro, na sua primeira entrevista à partida forçada das tropas francesas, temente Paris, mantém também relações
à Imprensa internacional, Succès Masra embora os riscos sejam elevados. Por amistosas com Macron. Esta relação, e
declarou: “Confio plenamente no Pre- outro lado, um golpe militar de oficiais o facto de o Chade ser o último aliado
sidente, Mahamat Idriss Déby Itno. (...) não zagauas poderá levar a um banho de da França numa região vasta e instável,
Acredito na reconciliação nacional.”] sangue em todo o país e à expulsão pela poderá levar os franceses a bombardear
força dos franceses. Alguns árabes [9,7% de novo os rebeldes que atacam a partir
Ameaças internas da população], mesmo os que integram a da Líbia.
O maior perigo para Mahamat Idriss Déby No Sul do Chade, apesar das suspeitas
poderá vir do seu círculo, mais do que que pairam sobre o grupo Wagner, Déby
das urnas. Após a morte do pai, a de- terá conseguido chegar a um acordo com
cisão de Déby ocupar a presidência não Faustin-Archange Touadéra, Presidente
foi unânime. O poder no Chade está nas da República Centro-Africana, que aceitou
mãos dos zagauas, um grupo étnico do autorizar as forças chadianas a perseguir
Nordeste [também presente no Sudoeste aí os rebeldes.
da Líbia e no Leste do Sudão], que repre- Outra fonte de preocupação para Déby
senta apenas uma minoria [1,1% dos 14 são as possíveis consequências da guerra
milhões de habitantes]. Ao contrário do
... civil no Sudão, o que já lhe está a causar
pai, a mãe de Déby não é zagaua, o que dores de cabeça. O fim deste conflito
gera preocupação. Os meios-irmãos do
Uma das fontes de também pode agravar os seus problemas.
Presidente certamente que também têm preocupação para Apesar do recente apoio tácito de Déby às
ambições à chefia do Estado. Déby são as possíveis RSF, muitos dos combatentes têm ligações
Déby irritou muita gente ao afastar e interesses no Chade.
um grande número de generais. O Chade consequências da Se as RSF derrotarem o Exército na-
tem uma posição oficial de neutralidade guerra civil no Sudão, o cional sudanês, alguns dos seus homens
na guerra civil no Sudão, mas Déby tem poderão querer ajustar contas no Chade.
apoiado, implicitamente, as RSF [Forças de
que já lhe está a causar Os alvos seriam refugiados ou combatentes
Apoio Rápido, antiga milícia Janjaweed], dores de cabeça. O fim que terão atravessado a fronteira. Se as RSF
do general Mohamed Hamdan Dagalo, deste conflito também forem derrotadas, um grande número de
conhecido como Hemedti. Também terá combatentes armados poderá igualmente
permitido que os Emirados Árabes Uni- pode agravar os seus entrar no Chade, dirigindo-se diretamente
dos enviassem armas para aquele grupo problemas até N’Djamena para tomarem o poder.
Nas minas da
governo espera triplicar o PIB, de 15 mil
milhões de dólares, no ano passado, para
quase 50 mil milhões de dólares até 2030
prosperidade
e reduzir 15% da taxa de pobreza, ou seja
para metade.
Estes projetos cumprem também ou-
Para convencer o Ocidente a explorar os recursos minerais tro objetivo. Uma vaga de investimentos
da Mongólia, o primeiro-ministro reformista Luvsannamsrain ocidentais prometeria proteger Ulan Bator
de Pequim e de Moscovo, os dois únicos
Oyun-Erdene “lançou uma grande limpeza” vizinhos, dos quais este país sem litoral é
Financial Times extremamente dependente: a China re-
Londres presenta 84% das exportações, nomea-
damente de cobre e de carvão, e a Rússia
cerca de 30% das importações, incluindo
todos os produtos petrolíferos.
“A Mongólia tem de lutar para proteger
AUTOR DATA TRADUTORA a democracia. A nossa situação geográfica
F Edward White 27.07.2023 Helena Araújo e geopolítica é muito delicada”, confessa
Oyun-Erdene ao Financial Times. Oyun-
Oyun-Erdene estava a meio do primeiro FONTE: MINISTÉRIO DAS MINAS E DA INDÚSTRIA PESADA DA MONGÁLIA
D
De acordo com um relatório da Usip
relativo à formação chinesa de Exércitos
africanos, publicado [em julho], também
pela NDU passaram muitos africanos emi-
nentes, incluindo Joseph Kabila, antigo
Presidente da República Democrática
do Congo, e o general David Muhoozi,
antigo chefe de Estado-Maior das Forças
Armadas do Uganda e atual ministro dos
Assuntos Internos.
Desde 2015 que a Etiópia também
envia regularmente para a China oficiais
que, após completarem a formação, serão
nomeados generais. Segundo o mesmo
inquérito, antes da crise da Covid-19, a
China captava milhares de oficiais africa-
nos para as suas escolas militares, atraí-
dos pela vasta campanha de promoção
orquestrada pelo governo chinês.
Durante uma visita oficial a Pequim, em gagwa, que assumiu o cargo após um Nessa altura, das cerca de 100 mil
maio, o Presidente da Eritreia, Isaias golpe de Estado, em novembro de 2017, ofertas de formação, disponíveis para os
Afwerki, recordou com carinho a sua for- destituindo Robert Mugabe, que estava países africanos, de três em três anos,
mação militar na China, em 1967 – apenas no poder há largos anos. Fazia parte da através do Fórum para a Cooperação Chi-
um ano após o início da Grande Revolu- elite militar treinada em Nanjing e de- na-África (Focac), cerca de seis mil, ou
ção Cultural. Esta experiência ajudou-o sempenhou um papel central na luta de seja 6%, eram no setor militar, segundo
muito a liderar a luta pela independência libertação do seu país. Paul Nantulya, especialista em questões
da Eritreia, conquistada em 1993, após De acordo com o Instituto da Paz dos chinesas, no Centro de Estudos Estra-
30 anos de luta. Estados Unidos da América (Usip), muitos tégicos sobre África, em Washington, e
“Afwerki continua muito ligado à africanos tiveram formação na Academia autor do relatório.
China, e os seus métodos de governo, Militar do ELP, incluindo dez chefes de A pandemia, porém, pôs fim a este
tanto ao nível nacional como ao nível Estado-Maior, oito ministros da Defesa comércio. Perante a incerteza causada
internacional, são inspirados nas dé- e quatro antigos Presidentes: Laurent- pela crise sanitária, o Focac decidiu, na
cadas de experiência enquanto líder de -Désiré Kabila, da República Democrá- sua edição de 2021, reduzir para 10 mil o
guerrilha e na interpretação pessoal do tica do Congo; João Bernardo Vieira, da número de lugares de formação.
maoísmo”, afirmava-se num documento Guiné-Bissau; Sam Nujoma, da Namíbia, Ainda segundo a Usip, vários diplo-
diplomático confidencial da Embaixada e Jakaya Kikwete, da Tanzânia. matas chineses sugerem que o fluxo devia
Norte-Americana na Eritreia, em 2009, Entre os antigos alunos desta escola, voltar ao normal “o mais rapidamente
publicada por um informador na plata- também constam muitos oficiais milita- possível”. Durante uma viagem a África,
forma WikiLeaks. res moçambicanos, incluindo o general em janeiro, durante a qual visitou cinco
“O povo da Eritreia nunca esquecerá Lagos Lidimo – o chefe de Estado-Maior países, Qin Gang, então ministro dos Ne-
o inestimável apoio moral e logístico do mais antigo – e oficiais ugandeses, como o gócios Estrangeiros, anunciou que Pequim
povo chinês na luta pela independên- major-general Fred Mugisha, que liderou tinha definido como uma das prioridades
cia e libertação do nosso país”, afirmou a Missão da União Africana na Somália, “acelerar a promoção de intercâmbios
Afwerki num encontro com Xi Jinping, de 2009 a 2011, antes de se tornar chefe entre cidadãos chineses e africanos, so-
na primavera. O Presidente chinês, por de Estado-Maior do seu país. bretudo no setor da formação militar”.
seu lado, saudou Afwerki como “um velho No entanto, em termos de presença
amigo da China”. Escola reconhecida militar em África, os chineses estão muito
Além do Chefe de Estado da Eritreia, A Academia de Nanjing, que é uma das aquém dos homólogos ocidentais, e isto
várias dezenas de líderes africanos, anti- mais reputadas da China, fez do Reino a quase todos os níveis, afirma Paul Nan-
gos e atuais, frequentaram escolas milita- do Meio um destino de topo para os tulya. Washington, Londres e Paris têm,
res chinesas, nomeadamente a Academia soldados africanos, que cada vez mais a cada um, pelo menos 50 adidos de Defesa
Militar do Exército de Libertação Popular frequentam. O Colégio Internacional de no continente, face aos 21 de Pequim. O
(ELP), em Nanjing – o principal destino Estudos de Defesa (ICDS) do ELP, outra Ocidente também tem mais de 50 bases e
dos recrutas africanos em formação. academia militar, tem quase 50% de es- outras infraestruturas no terreno – só os
A Academia também treinou o Presi- tudantes africanos, em certas turmas, e a Estados Unidos da América contam com
dente do Zimbabwe, Emmerson Mnan- Universidade de Defesa Nacional (NDU, 27 postos militares avançados –, enquanto
os chineses têm apenas uma [em Djibuti].
O homem-sombra
qualidade de diretor-geral do
Departamento de Assuntos
da América Latina e das Caraíbas do Mi-
de Pequim
nistério dos Negócios Estrangeiros da
China, Cai Wei, acompanhado por um
responsável argentino, fez uma visita
Cai Wei, um discreto alto-funcionário chinês, está a atravessar, a controversa ao Museu das Malvinas. É ali
uma velocidade vertiginosa, a região em busca de novos aliados – que a Argentina comemora a guerra de
1982, durante a qual o país tentou fazer
uma conquista com objetivos económicos mas também políticos valer os seus direitos sobre o arquipéla-
Americas Quarterly go. O responsável argentino agradeceu à
Nova Iorque China por apoiar as reivindicações terri-
toriais do seu país, que continuam a ser
contestadas pelo Reino Unido.
AUTOR DATA TRADUTORA Desde então, as relações entre a
F Rich Brown 28.08.2023 Helena Araújo Argentina e a China não pararam de se
estreitar. Em abril de 2023, a Argentina
DIREITOS HUMANOS
Tragédia uigur
No romance The Backstreets, de Perhat Tursun, a errância
de um anónimo simboliza os sofrimentos do povo uigur.
Vítimas da política repressiva de Pequim no Sinquião, o autor
e o tradutor do livro desapareceram. Uma poetisa uigur
no exílio presta-lhes homenagem
Mekong Review
Sydney
Falter
FOTOS: GETTYIMAGES
Viena
Sono
A
Até há alguns anos, a sra. Steiner tomava inquéritos, e as pessoas interrogadas não
chás de ervas para dormir, mas só muito são, em geral, objetivas na análise do sono.
raramente. No outono de 2022, apanhou No entanto, Stefan Seidel tem a certeza
um vírus grave que lhe deixou uma terrível de uma coisa: dormimos cada vez menos.
sequela: tornou-se insone (como o tema Os seres humanos são os únicos ani-
do sono é algo íntimo, o nome Steiner é mais que se privam voluntariamente do
fictício). sono. Isto deve-se sobretudo aos ecrãs que
Todos nós já tivemos essa sensação invadiram os quartos e que impedem as
terrível: ficar acordado sem conseguir pessoas de usufruir dos benefícios de uma
fechar os olhos, com o cérebro cheio de boa noite de sono. Consultar um tablet em
pensamentos, que desfilam sem parar e vez de ler um livro reduz para metade a
impedem o corpo de descansar; revirar-se, secreção de melatonina, a hormona que
suar, olhar para o despertador e fustigar- diz ao corpo que está na altura de fechar
-se por mais uma hora perdida de sono. os olhos.
Se acontecer duas ou três vezes por Mas os ecrãs não são os únicos cul-
mês, isto é normal, mas se, como a sra. pados: as pandemias, as guerras, as cri-
Steiner, passar semanas sem conseguir ses climáticas, os imprevistos e o stresse
dormir uma noite inteira, se acordar re- também afetam o sono. A preocupação
gularmente e não conseguir voltar a ador- e o medo são as duas principais causas
mecer, então tem um problema grave. Um de insónia. A extraordinária inteligência
problema de sono. do cérebro humano é ao mesmo tempo esta especialista do sono], as essências de
Quase metade dos austríacos não tem uma bênção e uma maldição: quando nos pinheiro e as pilhas de edredões cumprem
uma noite de sono reparador, segundo um enfiamos debaixo do edredão, temos fi- na perfeição o seu propósito. Ao fim de
estudo realizado pela Universidade de Me- nalmente tempo para fazer um balanço apenas cinco minutos, um participante da
dicina de Viena, em 2018. Dois terços dos da vida, mas isso acontece na pior altura segunda fila começa a dormitar. A mulher
adultos que vivem nos países do Norte não possível. dá-lhe um toque para ele se manter atento.
dormem o suficiente, ou seja pelo menos E não há nada pior para o sono do que “Quantos de vós diriam que dormem
oito horas diárias. A OMS refere-se mesmo preocupar-se com o facto de não o ter! A bem?”, pergunta Melanie Pesendorfer. Por
a este défice de sono como uma epidemia. sra. Steiner sabe bem disso: “Eu já estava outras palavras: quantos conseguem cair
Segundo Stefan Seidel, diretor da Clí- preocupada”. O médico, porém, aumentou nos braços de Morfeu em menos de 15 mi-
nica Pirawarth [em Bad Pirawarth, perto as suas preocupações ao dizer-lhe que, se nutos e não acordam mais do que duas
de Viena] e antigo diretor do Serviço de não dormisse, poderia morrer em breve. vezes por noite? Duas mãos levantam-se,
Perturbações do Sono, do Hospital Geral Impossibilitada de trabalhar nestas condi- timidamente. “E quantos de vós têm difi-
de Viena (AKH), cerca de 8% dos austría- ções, ficou de baixa durante seis semanas, culdade em dormir bem, mais de três vezes
cos sofrem de insónia patológica. Deve-se até que a situação se tornou insuportável por semana? Levantam-se outras mãos e,
olhar para estes números com alguma pru- e decidiu contactar Melanie Pesendorfer. desta vez, a secção de roupa de cama da
dência: a maior parte dos dados provém de [Durante as sessões de coaching com loja, onde o grupo se acomodou, parece
uma turma de alunos zelosos.
Cura impossível
Desde sempre que o medo de
sofrerem de insónias “tem impedido
as pessoas de dormir”, diz a
historiadora Amanda Foreman, no
THE WALL STREET JOURNAL. No Egito e na
Grécia antigos, realizavam-se rituais
religiosos de indução do sono. Os
egípcios, mas também os indianos
OS ECRÃS NÃO SÃO OS ÚNICOS CULPADOS DAQUILO e os chineses, utilizavam soluções
QUE A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE medicinais: óleo com essência de
lavanda, chá de camomila e ópio,
JÁ CLASSIFICOU COMO A EPIDEMIA DO SONO: no caso dos primeiros; cereja-de-
inverno e ginseng-vermelho-
AS PANDEMIAS, AS GUERRAS, AS CRISES CLIMÁTICAS, coreano, nos segundos.
A partir do século XVI, o láudano
OS IMPREVISTOS E O STRESSE TAMBÉM AFETAM tornou-se “o remédio de excelência”
O SONO. A PREOCUPAÇÃO E O MEDO SÃO AS DUAS no Ocidente. A substância, porém,
era viciante e pouco se sabia
PRINCIPAIS CAUSAS DE INSÓNIA sobre o funcionamento do sono.
Só no início do século XX é que
o investigador norte-americano
formadas na Universidade de Medicina de smartphone. O cérebro está constante- Nathaniel Kleitman compreendeu
Viena. Há 15 anos que escuta atentamente mente a analisar a informação nos ecrãs, que o sono era uma atividade
os problemas noturnos dos austríacos e dá à procura de potenciais perigos, e, ao fa- cíclica – mas não encontrou uma
formação a empresas e a autarquias. Este zê-lo, cria a própria prisão: esta moder- solução milagrosa para a insónia. “Ele
outono, vai organizar a primeira feira do nidade torna-nos incapazes de relaxar. desvendou os mecanismos do sono,
sono do país. “É bem visível que as pessoas estão mais mas infelizmente não descobriu os
“Este é o mais novo grande predador”, irritáveis e menos resistentes do que an- ingredientes necessários a uma boa
explica a formadora, segurando no seu tigamente.” noite de sono.”
O sono é
inimigo da
produtividade?
“A falta de sono geralmente não
é vista como algo negativo pelos
sul-coreanos. Pelo contrário, é
um sinal de produtividade e de
assiduidade.” A conclusão do THE
KOREA HERALD é esclarecedora:
a duração média do sono, por
humanos dormiam no chão, à volta da horas de atividade uma das forças motrizes noite, na Coreia do Sul é de sete
fogueira – um sítio bastante arriscado para do movimento iluminista. Depois, com o horas e 40 minutos, menos três
se descansar. Foi assim que os diferentes advento da industrialização, os académicos quartos de hora do que a média
cronotipos evoluíram: os nossos ante- decretaram que as horas passadas a dormir dos países desenvolvidos. A
passados dividiam os turnos de guarda, eram “tempo perdido”. causa, “voluntária e involuntária”,
e o facto de alguns preferirem vigiar de O sono, e a importância que lhe atri- está ligada, nomeadamente, ao
manhã, bem cedo, enquanto outros per- buímos, sempre foi indicador dos tempos fenómeno da procrastinação do
maneciam vigilantes até tarde, à noite, e da sociedade em que vivemos. sono, que consiste em adiar a
era uma verdadeira vantagem evolutiva. Talvez estejamos mesmo no início de hora de ir para a cama, libertando
Na Idade Média, a maioria das pessoas uma nova era: multiplicam-se os apelos tempo para outras atividades
dormia sentada, porque as muitas doenças à redução do horário de trabalho, a nova mais “produtivas” – trabalho,
pulmonares – causadas pelo pó, pelo frio geração aposta no mindfulness em vez estudo ou lazer. Os preconceitos
e pelo fumo das chaminés das casas – di- do consumo compulsivo de comprimidos ultrapassam a Ciência,
ficultavam a respiração, quando se estava para dormir – mas também nos acessórios prossegue o diário, que cita um
deitado, e, sobretudo, nunca se dormia digitais, que reforçam o perfecionismo do estudo segundo o qual uma hora
de uma só vez. Em 2001, o investigador Homo digitalis. a menos de sono poderia levar
norte-americano do sono, Roger Ekirch, A sra. Steiner, por sua vez, está a à redução do funcionamento do
descobriu que os europeus pré-industriais dormir melhor. Os novos rituais, acom- cérebro – “e, por conseguinte, da
dividiam as noites em duas fases: o primei- panhados de uma mistura inteligente de produtividade” – em 30%. “Quer
ro e o segundo sono. O tempo intermédio plantas medicinais, produziram um efeito desafiar o sono? Pense duas
era consagrado às tarefas domésticas, às benéfico no seu sono – pelo menos, a maior vezes”, adverte o jornal.
orações ou às relações sexuais. parte das vezes. “Cada noite em que eu
No século XVII, com o aparecimen- durmo mais de seis ou de sete horas é uma
to dos primeiros candeeiros nas ruas, as vitória. E quando não consigo dormir mais
ocupações vespertinas passaram para a de quatro horas, já não perco a cabeça.”
noite – há quem considere estas novas Um grande passo em frente.
A arte subversiva
de se dormir bem
O descanso sempre foi uma fonte de inspiração para
os artistas. Uma nova geração está comprometida a
apropriar-se mais uma vez deste tema, que considera
eminentemente político
The New York Times
Nova Iorque
REINO UNIDO
rodeados por uma selva de arranjos florais
dignos de um funeral de Estado. Estou na
inauguração do Raffles, um novo hotel no
Capital do mundo
Londres é também uma forma de escapa-
tória. Para muitos jovens de origens mais
rígidas, Londres é o local onde se podem
divertir e viver como bem entendem,
sublinha Lawrie, citando o caso de duas
filhas de homens de negócios do golfo que
têm uma relação em Londres, mas que
escondem a relação no seu país.
“Eu adoro o Dubai. Tenho lá uma casa.
Mas não há cultura”, confessa Kam Babaee,
um promotor imobiliário e multimilioná-
rio, que deixou o Irão e vive com a família
no Reino Unido desde os 10 anos.
“Aqui pode passar um ano a ir a um
restaurante diferente todas as noites. E
depois há o melhor dos melhores em Lon-
dres: é a capital do mundo.”
Já para não falar dos laços de longa
data entre os ultrarricos e este país. “As
gerações anteriores frequentaram as nossas
escolas”, recorda Alex Cheatle, responsá-
vel por uma empresa de concierge.
“Também encontram aqui os seus pa-
res. Conhecem a cidade. Se não consegue
dizer se prefere Kensington, Mayfair ou
Hampstead [zonas abastadas de Londres], é
como se não tivesse uma estância de esqui
preferida.”
Eu não sou cliente do Cheatle: a evidên-
cia tornou-se clara numa segunda-feira à
noite. Tentei jantar em quatro restaurantes
diferentes de Mayfair, antes de encontrar
uma mesa. “Só os imbecis tentam a sua
sorte sem reserva”, pareciam dizer-me as
sobrancelhas do chefe de mesa, enquanto
eu implorava por um lugar junto à casa
de banho. Os restaurantes de todo o país
de consumo exuberantes criam empre- estão agora fechados às segundas-feiras
go ‒ advogados e contabilistas, sim, mas por falta de movimento, mas os de May-
também empregados domésticos. “Hoje fair continuam cheios. A conta para três
em dia, no Reino Unido, há mais arruma- ... pessoas foi de 444 euros. Sem sobremesa.
dores e empregados domésticos do que Enquanto, neste mundo de luxo, es-
na época georgiana ou vitoriana”, diz “Tal como nos anos perava com os meus guias que nos fosse
Lawrie, e os britânicos não ficam atrás 20, há muita pobreza atribuída uma mesa, lamentámos não
de ninguém neste domínio. “É 50% de ter ficado no Maison Estelle, o novo clu-
prestígio social e 50% de efeito Mary Po- e privação social, mas, be privado da moda de que todos falam,
ppins, as pessoas adoram.” É também o nos escalões superiores, onde tínhamos tomado uma bebida mais
que leva os milionários a inscreverem os cedo. Lá, uma sanduíche custa 25 euros e,
seus filhos nas melhores escolas britânicas.
as elites transatlânticas à chegada, colocam-nos um autocolante
Com a escola privada para rapazes Eton e nunca viveram de na câmara do telemóvel, para o caso de
outras instituições de topo a manterem a forma tão luxuosa”, diz entrar uma celebridade. A discoteca estava
sua reputação, o sistema educativo britâ- mais cheia do que o bar do meu bairro. Os
nico continua a ser uma referência para Alex Lawrie, consultor loucos anos vinte estão aqui. Pelo menos
as elites mundiais. Na Eton, as propinas de relações públicas para aqueles que podem.
3194ª ESEDPEIÇCIÃOAL
89-2023
C O M P R E E STA E D I Ç ÃO E T E N H A AC E S S O E XC LU S I VO
AO S DA D O S F I N A N C E I R O S D E TO DA S A S E M P R E SA S
ACEDA A LOJA.TRUSTINNEWS.PT
OU LIGUE 21 870 50 50
Dias úteis das 9h às 19h | Custo de chamada para a rede fixa,
de acordo com o seu tarifário
Campo de cultivo de arroz no Japão
FOTO GETTYIMAGES
ARROZ
A crise que aí vem
ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS, CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO, TENTAÇÕES
PROTECIONISTAS... DESDE O VERÃO DE 2023 QUE OS SINAIS SÃO
DE ALERTA. ISTO SUGERE QUE UMA NOVA CRISE ALIMENTAR SERÁ
EQUIVALENTE À DE 2008, QUE CAUSOU UMA SÉRIE DE CONVULSÕES
POLÍTICAS EM VÁRIOS PAÍSES. OU AINDA PIOR
A
Arroz frito é normalmente uma escolha países mais pobres, entre eles o Bangla-
popular entre os comensais em Lagos, a desh, que faz fronteira com cinco estados
capital económica da Nigéria. No entanto, indianos, e o Benim, na África Ocidental.
muitas pessoas deixaram de o pedir, diz A proibição continua em vigor em 2024.
Toni Aladerkomo, gerente do restauran- No final de julho de 2023, a Índia já
te Grey Matter Social Space, no elegante havia proibido as exportações de “arroz
bairro comercial de Victoria Island. “Com branco não basmati”, medida acompa-
o preço de uma dose a disparar para 4 nhada, em agosto, pela imposição de um
000 nairas, [4,40 euros] quando custava preço mínimo para o “arroz basmati” e
1 400 há um ano, deixou de ser acessível uma tarifa de 20% sobre o “arroz vapo- O fenómeno meteorológico El Niño ameaça
a muitas pessoas”, especifica. rizado” [resultante de um processo de prejudicar a produção de arroz em 2024
Na Nigéria, o arroz é o alimento mais fervura parcial ainda em casca antes da FOTO GETTYIMAGES
consumido – e a base do prato nacional, moagem, e que representa cerca de 1/3
o arroz jollof. Mas o preço de um quilo de das vendas ao estrangeiro].
grão importado aumentou, em agosto de “Quando um país que representa 40% mais do que vendem] esperavam que,
2023, 46,34% face ao mesmo período do do comércio mundial de arroz deixa de com uma melhor produção, o governo de
ano anterior, segundo dados da Agência exportar metade e impõe um imposto Modi aliviasse as restrições. Mas as eleições
Nacional de Estatística. sobre a outra metade, está a criar uma aproximam-se neste país da Ásia do Sul e
Embora os preços tenham subido em situação muito difícil”, salienta Joseph os preços dos alimentos são uma questão
todos os setores, porque a Nigéria se debate Glauber, ex-economista no Departamen- explosiva para o primeiro-ministro [que
com a taxa de inflação mais elevada das to de Agricultura dos Estados Unidos e aspira a um terceiro mandato]. O fenó-
últimas duas décadas [atingiu 28,7% no atualmente investigador no International meno meteorológico El Niño, associado
final de 2023], o aumento acentuado do Food Policy Research Institute (IFPRI), à subida das temperaturas e a uma seca
custo de um produto alimentar de pri- organização sediada em Washington que severa em todo o oceano Pacífico, também
meira necessidade pode ser atribuído às promove políticas destinadas a combater ameaça prejudicar a produção em 2024.
restrições impostas pela Índia, o maior a fome e a pobreza.
exportador mundial de arroz [o maior Uma das consequências imediatas da Uma pressão constante
produtor é a China], que teme um défice proibição de julho foi o pânico entre os Analistas deixam um alerta: se a Índia
de produção e um aumento de preços no consumidores na Ásia e na América do mantiver as atuais restrições e outros paí-
seu mercado interno. Norte e medidas semelhantes tomadas por ses produtores seguirem o seu exemplo,
Tudo começou em 2022, quando o outros grandes países produtores para se poderá ser inevitável uma crise como a
governo do primeiro-ministro Narendra adaptarem à nova situação. de 2008, quando o contágio de políticas
Modi deixou de exportar “arroz bran- A colheita de arroz na Índia começou protecionistas contribuiu para que os pre-
queado” [diferente do integral por con- em outubro [com a expectativa de atingir ços do arroz triplicassem em apenas seis
ter menos nutrientes – proteínas, lípidos, a meta de 128 milhões de toneladas mé- meses, provocando um aumento da in-
fibras, vitaminas e minerais], um produto tricas até setembro de 2024] e os países flação em todo o mundo e desencadeando
barato, comprado principalmente pelos importadores líquidos [os que compram motins do Norte de África ao Sul da Ásia
e nas Caraíbas.
Desta vez, uma nova crise poderá ser
AUTORES DATA TRADUTORA ainda mais grave, porque o aumento da
F Susannah Savage, Jyotsna Singh, 23.10.2023 Maria Alves procura, impulsionado pelo crescimento
Benjamin Parkin e Aanu Adeoye
demográfico, colide com os efeitos cada vez
A Índia arrisca-se a
exportar a insegurança 19 500
A poucos meses das eleições legislativas, previstas para abril-maio
FONTES: DEPARTAMENTO DE AGRICULTURA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA (USDA), AL JAZEERA, OCDE/FAO (2022), CIRAD
deste ano, o primeiro-ministro, Narendra Modi, tenta controlar
a inflação a todo o custo. Correndo o risco de pôr em perigo O arroz em números
o abastecimento alimentar mundial.
Juntamente com o trigo e o milho,
Nova Deli tem vindo, pouco a pouco, a “reforçar o controlo do mercado o arroz é um dos três cereais mais
mundial de arroz”, constata Mihir Sharma, economista indiano, num artigo cultivados no mundo.
publicado no site BLOOMBERG e amplamente divulgado pela imprensa indiana.
“A Índia gosta de se apresentar como um líder do Sul global, capaz de sentir
empatia pelos países em desenvolvimento, o que muito contrasta com o 90% do arroz
Ocidente ou a China, pouco preocupados com o impacto das suas políticas é produzido na Ásia.
nos Estados mais vulneráveis, mas não é o Ocidente que irá sofrer com a
proibição de exportar arroz não basmati”, critica o colunista.
Num discurso à nação, por ocasião do Dia da Independência, em 15 de agosto Produção por país
de 2023, o primeiro-ministro, Narendra Modi, “comprometeu-se a reduzir (outubro de 2023-outubro de 2024, em milhões de toneladas)
BANGLADESH
36,5
eleições legislativas de abril-maio deste ano, refere o diário económico MINT, CHINA OUTROS
com sede em Bangalore. 149 139
“Como a inflação continua a subir [5,69% em dezembro de 2023 contra
5,55% em novembro – o maior aumento em quatro meses], a Índia tomou
várias medidas, designadamente, restrições à exportação de determinados
INDONÉSIA
34,5
alimentos, para controlar o aumento dos preços, acrescenta o MINT. O governo
mantém a proibição de venda ao estrangeiro de arroz branco que não seja
basmati e sobre certas variedades impôs uma taxa de exportação de 20%. ÍNDIA
Em maio de 2022, as autoridades já haviam proibido a exportação de trigo, 132
VIETNAME
apesar de o país ter garantido que conseguiria alimentar o mundo, recorda o
27
jornal THE HINDU. Em agosto de 2023, foi também imposta uma tarifa de 40%
sobre a cebola, para limitar a exportação deste alimento básico da cozinha
indiana, que se diz ter o poder de derrubar governos. A medida é, no entanto, TOTAL MUNDIAL: 518 MILHÕES DE TONELADAS
onerosa para os consumidores do Bangladesh e do Nepal, Estados vizinhos, A China, o Bangladesh e a Indonésia não exportam o seu arroz,
que dependem da Índia para o seu aprovisionamento de bolbos. Nova Deli que é reservado ao mercado interno.
restringiu, de igual modo, as exportações de açúcar, para tentar travar o
aumento dos preços internos, associado a más colheitas.
“Se mantivermos os alimentos no interior das nossas fronteiras, estaremos chegando aos 1 000 dólares por tonelada,
a exportar insegurança e instabilidade”, avisou Mihir Sharma, investigador algo até então sem precedentes.
associado no think tank Observer Research Foundation, com sede em Nova Frederic Neumann, economista-che-
Deli. Durante a última crise de produção e de stock de cereais, em 2007- fe para a Ásia no banco britânico HSBC,
2008, pelo menos 14 países africanos registaram motins porque grande parte recorda-se das prateleiras dos supermer-
das populações enfrentava situações de fome. cados em Hong Kong sem um pacote de
arroz. Em vários países, cidadãos famin-
tos protestaram nas ruas. No Haiti, por
exemplo, em abril de 2008, “motins da
fome” derrubaram o primeiro-ministro,
Jacques-Édouard Alexis.
A fúria face ao aumento dos preços
dos alimentos persistiu e fomentou o
descontentamento político. Três anos
depois, contribuiu para as revoluções
da “primavera árabe” que conduziram à
queda de quatro líderes no Médio Oriente
e no Norte de África [Zine El Abidine Ben
Ali, da Tunísia, Hosni Mubarak, do Egito,
Muammar Kadhafi, da Líbia, em 2011, e
Abdullah Saleh, do Iémen, em 2012].
A lição ficou gravada na memória
de muitos dirigentes atuais. Na Índia, o
Bharatiya Janata Party (BJP), partido de
Narendra Modi, fez do controlo dos preços
a prioridade máxima antes das eleições da
em 2022 veio da Índia, bem como 61% do do International Rice Research Institute,
Custo preços disparam que é consumido pelo Benim – o maior IRRI, com sede em Manila, Filipinas]. Não
importador mundial de arroz branqueado é este o caso. Acima de uma determinada
Preço do arroz branco (em dólares por tonelada) indiano. temperatura, explica Sander, os campos
650 No Senegal, onde 47% das importações agrícolas ressentem-se. E o arroz é es-
de arroz provêm da Índia, Cheikh Bam- pecialmente sensível ao calor noturno.
Índia ba Ndaw, um dos diretores do Ministério Um estudo realizado em 2017 mos-
600 Tailândia do Comércio, acha que as dificuldades de trou que o aquecimento global de 1ºC
Vietname abastecimento do seu país “não se devem reduziria a produção de arroz em 3,3%
550 a um problema de arroz, mas de preço”. em média. As temperaturas da superfí-
Por enquanto, o Senegal tem stocks cie global já aumentaram, pelo menos,
500 suficientes, mas se a Índia mantiver as suas 1,1ºC desde os tempos pré-industriais. Os
fronteiras cerradas e os preços internacio- principais países da Ásia exportadores de
450 nais não baixarem, o país será obrigado a arroz registarão, até 2100, um número
importar outras variedades de arroz, do significativamente maior de dias com
Brasil ou dos Estados Unidos, que são mui- temperaturas acima dos 35ºC, segundo
400
to mais caras do que as provenientes da previsões da empresa de dados de maté-
Índia, e isso pode desencadear uma crise rias-primas Gro Intelligence. O cenário
350 alimentar, enfatiza Ndaw. mais pessimista dá 188 dias ou mais acima
deste limiar à Tailândia.
300 Bom senso precisa-se Nos deltas produtores de arroz da Ásia,
2021 2022 2023 A situação assemelha-se à que se viveu na do Mekong ao Ganges, as alterações cli-
primavera de 2023 com o trigo, destaca máticas causarão outras complicações.
Fontes: FINANCIAL TIMES, MINTEC Arif Husain. Quando a Rússia invadiu a Sob o efeito de temperaturas elevadas,
Ucrânia, que representava 10% das ex- sobe o nível dos oceanos e a água salgada
portações mundiais, o preço deste cereal entra nos rios, canais de irrigação e solos,
Ameaça aos rendimentos disparou e colocou em risco a segurança reduzindo a produção ou impossibilitando
Dias acima de 35 °C em áreas de campos alimentar em muitos países. totalmente o cultivo.
de arroz dos principais produtores A última crise de arroz terminou quan- Em 2023, os agricultores também en-
2021 2098 (projeção) do o Japão, a Tailândia e o Vietname se frentaram o fenómeno El Niño, que agrava
comprometeram a retomar as exportações os efeitos das alterações climáticas e pode
e os custos do transporte caíram. Mas, causar precipitação [chuva, neve, granizo]
Vietname
alertam analistas, a situação atual não será nas regiões produtoras de arroz, adianta
tão simples de resolver. Ole Sander. Menos chuva significa menos
Há 15 anos, o mundo não tinha escassez água doce vinda dos rios para remover o
Birmânia
de cereais. Hoje, já não é esse o caso. A excesso de sal.
população do planeta deverá atingir os Em 2023, enquanto a Índia continuava
Tailândia dez mil milhões em 2050, sendo África e à espera de avaliar o impacto do clima nas
a Ásia os principais impulsionadores deste suas colheitas, a Tailândia anunciava que
aumento, que, estimam investigadores, a sua produção seria inferior à esperada,
Índia poderá acelerar a procura de arroz em devido a chuvas abaixo da média em se-
quase um terço. A produção não acom- tembro e outubro.
panhará, todavia, este ritmo. Dizem os meteorologistas que o fenó-
Paquistão Depois de décadas de crescimento meno El Niño persistirá durante boa parte
rápido, graças à plantação de novas va- de 2024. Se assim for, corre-se o risco de
0 50 100 150 200 250 riedades de arroz, a produção tem vindo uma grande diminuição da oferta global
O modelo utiliza o cenário SSP 5-8.5 do IPCC. a estagnar nos quatro maiores países for- de arroz, alerta o economista do HSBC
FONTES: FINANCIAL TIMES, GRO INTELLIGENCE
necedores do Sudeste Asiático, segundo Frederic Neumann. O que aqui está em
um estudo recente publicado pela revista jogo, acrescenta, não é apenas o preço do
académica Nature Food. Globalmente, a arroz num futuro imediato. Na verdade,
bro, o ministro da Agricultura da Malásia produção aumentou uma média de 0,9%, trata-se de uma amostra de como o mundo
disse à sua imprensa estatal que os líderes ao ano, entre 2011 e 2021, o que representa poderá reagir a condições climáticas cada
da ASEAN também tinham concordado um abrandamento em relação aos 1,2% vez mais imprevisíveis que aumentam a
em dar prioridade às exportações de arroz anuais, entre 2001 e 2011, de acordo com volatilidade dos preços dos alimentos.
para outros países deste bloco. as Nações Unidas. Para Arif Husain, do PAM, a solução
O protecionismo representa uma As alterações climáticas são a principal reside na intensificação do comércio para
ameaça significativa para os Estados da causa deste declínio. Porque o arroz se melhor distribuir os alimentos por todo o
África Ocidental, que se arriscam a ficar produz em climas quentes (90% do que planeta. Mas ele teme que o agravamento
de fora do mercado devido aos preços ele- é consumido mundialmente é cultivado das alterações climáticas encoraje os go-
vados. Estes países estão particularmente na Ásia), pensa-se, com frequência, que vernos a fechar fronteiras e a virar costas
expostos à proibição de exportação orde- não haverá impacto se a temperatura subir aos mercados globais. A crise atual pode
nada pela Índia, salienta Husain, do PAM. apenas alguns graus, refere Bjoern Ole San- tornar-se “uma megacrise”, adverte, a
Quase 88% do arroz importado pelo Togo der, climatologista na Tailândia [e diretor menos que “prevaleça o bom senso”.
58
CONVERSAS
QUE IMPORTAM
ASSISTA AOS PODCASTS
CONVERSAS
Mensal Semanal
ECONOMIA M O B IL I D A D E E L É T R I C A
No delta
do Mekong, a água
salgada prejudica
as culturas
No Sul do Vietname, a salinidade da água nos campos
de arroz está a obrigar cada vez mais agricultores
a optar por outras culturas
de Volkskrant
Amesterdão
Os antigos campos de arroz de -se: o solo baixa quatro centímetros por O Vietname é o terceiro maior
Can
C Tho
ann T ho
ho
Raach Gi
R
Rach G
Giaa
Co Chien
Golfo da
Tailândia
Mar da China
Meridional
The Guardian
Londres
Clima
E
Em Tuvalu, quando Lily Teafa era criança, terras e iniciativas para se preservar online
os seus tios iam pescar, todos os dias, e a cultura e a História, graças a projetos
regressavam com grandes capturas para inovadores que poderão fazer de Tuvalu
partilhar com os vizinhos. Hoje, quando a primeira nação totalmente desmateria-
regressam, costumam dizer “Sei poa”, a lizada no metaverso.
pesca foi má. A capital, Funafuti, cobre todo o atol As três ilhas de coral e os seis atóis, que compõem
Aos 28 anos, Lily trabalha num coletivo em que se situa, e uma estrada principal este país, têm uma área total de 26 km²
de jovens, na pequena nação do Pacífico, atravessa o centro da ilha. A certa altu- FOTO GETTYIMAGES
em projetos relacionados com as alterações ra, há apenas 20 metros de cada lado da
climáticas, como a reabilitação de corais. estrada antes da costa. A maior parte dos
Na sua opinião, os sinais que prenunciam edifícios já se encontra agrupada, tanto salinidade, e as alterações climáticas são
o desaparecimento da sua terra natal estão quanto possível, no centro da ilha. Casas, acompanhadas por ciclones devastado-
por todo o lado. “Aonde quer que se vá lojas, igrejas e centros sociais ladeiam a res, temperaturas recorde e secas cada vez
fazer um piquenique, especialmente nos estrada. Ao passarmos por ali, veem-se as mais frequentes. Os alimentos frescos são
extremos norte e sul desta ilha sumptuosa, pessoas em casa – na cozinha, no chur- quase inexistentes, tornando a população
repara-se sempre que um pedaço de terra rasco, a arranjar o carro –, enquanto as mais dependente dos produtos importa-
foi arrastado pelo oceano.” crianças brincam no jardim. dos, caros e com pouco valor nutritivo.
Tuvalu será um dos primeiros países do A subida das águas é tão rápida que O capataz Uilla Poliata lembra-se
mundo a ser completamente engolido pelas todos os habitantes de Tuvalu podem de pescar e de caçar com o pai, quan-
alterações climáticas. As três ilhas de coral testemunhar as vezes em que se viram do criança. “Era o nosso único meio de
e os seis atóis, que compõem este país, têm “mergulhados”, até aos joelhos, pela água sobrevivência, comer alimentos locais.
uma área total de 26 km². Ao ritmo atual do mar, que sobe através do solo poroso Atualmente, porém, é muito difícil obter
da subida do nível do mar, estima-se que, do centro da ilha. A erosão e as grandes alimentos da terra. As plantações estão
no espaço de 30 anos, metade da capital, quantidades de detritos, arrastados pelo danificadas pela água salgada e até o solo
Funafuti, ficará submersa na maré alta. Em oceano, são inegáveis na costa exterior. está a ser arrastado pelo oceano.”
2100, 95% da sua superfície será engolida Os restos de abandonadas habitações e Cerca de um quinto da população de
pelas marés altas periódicas, tornando a infraestruturas estão ao longo das mar- Tuvalu, 12 mil pessoas no total, já se reins-
área inabitável. Tudo isto durante o tempo gens. Os cemitérios são progressivamente talou noutros locais, muitas vezes na Nova
de vida de Lily Teafa. destruídos, e os habitantes decidiram cavar Zelândia, graças ao esquema de Acesso ao
O momento de decidir como vamos sepulturas junto às casas. Pacífico, que permite que 150 cidadãos do
todos sobreviver é agora. Lily diz que são A subida do nível do mar, devido à arquipélago obtenham residência perma-
sobretudo os jovens que lutam contra o crise climática, constitui também uma nente naquele país, todos os anos. Muitos
medo. “Não há pior emoção. É pior do que séria ameaça ao acesso à água potável, à têm dificuldade em ganhar a vida e receiam
ter vertigens, do que ter medo do escuro. segurança alimentar e ao abastecimento perder a identidade cultural.
Agora, é o futuro que nos assusta.” de energia. As culturas de subsistência, Kelesoma Saloa vive na Nova Zelândia,
Face a esta realidade, estão em curso como o coco e a pulaka (ou taro), não há mais de dez anos, e ainda se sente muito
em Tuvalu trabalhos de recuperação de conseguem crescer nos solos com elevada desenraizado. “Passar de uma sociedade
autossuficiente para uma sociedade al-
tamente comercializada é extremamente
difícil”, diz. “Aqui, não se consegue so-
AUTORA
F Kalolaine DATA TRADUTORA breviver sem dinheiro. Não é como nas
Fainu 27.06.2023 Helena Araújo ilhas, onde, sem dinheiro, temos a nossa
Lagoa escola, mas não tem nada que ver". centro do maior ilhéu de Funafuti, Fon-
gafale, já se encontra abaixo do nível do
mar. Estes dados são cruciais na prosse-
“Estamos a afundar-nos” cução de uma estratégia a longo prazo.
A Austrália ofereceu terras para a reins- Esta visa a criação de 3,6 km² de terrenos
talação, mas apenas em troca de direitos seguros e elevados, com a reinstalação fa-
Ilha de Funafala marítimos e de pesca, o que foi recusado seada de pessoas e de infraestruturas; um
4 km pelo governo de Tuvalu. O arquipélago abastecimento sustentável de água; uma
vizinho das Fiji também ofereceu terras, maior segurança alimentar e energética, e
áreas para a expansão de espaços cívicos e Tuvalu continua um Estado e que as suas Não há terrenos altos para reconstruir,
comerciais, incluindo edifícios governa- fronteiras marítimas se mantenham em mas muitos dos habitantes não querem
mentais, escolas e hospitais. O ministro conformidade com o direito internacional, abandonar as terras ancestrais
das Finanças e do Desenvolvimento Eco- no caso de as suas terras (submersas) dei- FOTO GETTYIMAGES
nómico, que é também responsável pelas xarem de existir. Por último, é imperioso
alterações climáticas, Seve Paeniu, afirma criar uma nação desmaterializada.
que o objetivo é demonstrar às atuais e Parte do processo de digitalização lo a partir do qual todas as ilhas de Tuvalu
potenciais instituições financeiras inter- envolve a disponibilização de serviços e a sua geografia serão desmaterializadas:
nacionais a viabilidade do investimento públicos e consulares online, bem como os recifes de coral e os atóis, a lagoa, o solo
no projeto a longo prazo. a transferência de todos os sistemas admi- arenoso e poroso, as palmeiras e o que
Em 2021, o ministro da Justiça, das Co- nistrativos correspondentes para a nuvem. resta das árvores do género Pandanus, a
municações e dos Negócios Estrangeiros, Desta forma, as eleições poderão reali- fruta-pão e o taro – uma paisagem que se
Simon Kofe, deixou a sua marca quando zar-se como até agora e a Administração arrisca a desaparecer da Terra. Singapura,
se dirigiu à COP26 com água do mar até Pública continuará a desempenhar as suas que também está ameaçada pela subida
aos joelhos: “Estamos a afundar-nos”, missões. “Se o governo for deslocado ou do nível do mar, já se clonou digitalmen-
disse ao mundo. se a população se dispersar pelo mundo, te, o que permite tomar decisões sobre
Perante o risco de extinção, Tuvalu teremos um quadro para garantir a nossa planeamento urbano e imobiliário tendo
elaborou o projeto Future Now, composto coordenação, a continuidade dos serviços, em conta o risco de catástrofes naturais.
por três grandes iniciativas destinadas a a gestão dos recursos naturais, das nossas
preservar a nação, a sua governação e a sua águas territoriais e de todos os nossos bens Laços digitais
cultura, caso aconteça o pior. Em primeiro soberanos”, explica Simon Kofe. Mas Tuvalu está a levar o conceito um pou-
lugar, há que encorajar a comunidade in- O discurso do ministro na COP27, em co mais longe. Com a identidade cultural
ternacional a cooperar na implementação 2022, foi gravado em frente a uma versão ameaçada de extinção, o governo procura
de adaptações às alterações climáticas, em virtual de Te Afualiku, a primeira ilha de utilizar a realidade virtual e aumentada
conformidade com os valores culturais de Tuvalu a ser reconstruída digitalmente com para garantir que as futuras gerações
Tuvalu de olaga fakafenua (estilos de vida recurso a imagens de satélite, a fotografias deslocadas de tuvaluanos mantenham a
coletivos), kaitasi (responsabilidades par- e a imagens tiradas por drones, para captar sua existência enquanto cultura e nação,
tilhadas) e fale-pili (ser um bom vizinho). os grãos de areia da praia e a direção das incluindo os conhecimentos ancestrais e
Em segundo lugar, é preciso garantir que correntes oceânicas. Te Afualiku é o mode- os sistemas de valores. Se este conceito
360
AS GRANDES E AS PEQUENAS HISTÓRIAS SOBRE O MEIO AMBIENTE
POLUIÇÃO
MAIORIA DAS CAPITAIS
ULTRAPASSA LIMITE
N
No seu poema Granada, de 1961, que deve la polar que poderia guiar as civilizações
o seu nome à cidade espanhola no coração árabes e muçulmanas de volta às suas gló-
da Andaluzia, o grande poeta sírio Nizar rias passadas, depois dos danos infligidos Condado de
Reino Barcelona
Qabbani [1923-1998] diz à sua amada: “À pela colonização e pelos regimes árabes de Leão
entrada da Alhambra, encontrámo-nos.” modernos.
Esta referência ao complexo palaciano Embora os muçulmanos tenham perdi-
fortificado da cidade recorda uma época do o controlo físico dos seus territórios em
Califado de Córdova
CINEMA
Um século de fascínio
pelos zulus
Desde a era muda, a figura do guerreiro zulu tem aparecido em muitos filmes realizados
por ocidentais. Imbuída de um imaginário colonial que está na hora de abandonar
Mail and Guardian
Joanesburgo
A influência de Shaka
Mpho Maripane-Manaka, professor do Nation, constituída por rappers empe-
Departamento de Antropologia e Arqueo- nhados social e politicamente. Esta or-
logia da Universidade da África do Sul, ganização espalhou-se depois pelo resto
salienta que a população zulu é uma das do mundo, nomeadamente pela Europa,
maiores da África do Sul e que o zulu é a América do Sul e Central, mas também
língua mais falada no país. Este domínio pela Cidade do Cabo.
explica-se em parte pelo Mfecane [uma
vaga de guerras entre tribos negras e de Africanizar a História
migrações que acompanhou a emergência “Não é por acaso que Shaka inspirou tanto
do reino zulu no início do século XIX]. fascínio e que foram escritos vários livros
“O Mfecane revolucionou a demografia e feitos muitos filmes sobre a nação zulu”,
e a situação política de certas regiões do diz Sithole.
continente africano. Diz-se que foi lançado “Estamos a falar de um povo que pôs
por Shaka Zulu [o fundador do reino zulu] fim a uma linhagem da dinastia napoleóni-
e pelos seus guerreiros. Sob o comando de ca com a morte de Napoleão Eugène Louis
Shaka, estes guerreiros venceram todas Jean Joseph Bonaparte [filho único de Na-
as batalhas contra os outros clãs. Como poleão III], que foi morto durante a Guerra
resultado, os amazulu [o povo zulu, literal- O regresso de Shaka Anglo-Zulu, a 1 de junho de 1879.”
mente ‘o povo do céu’] foram reconhecidos Zulu ao cinema A loucura internacional por Shaka
como a nação mais poderosa e corajosa FOTO: GETTYIMAGES pode também ser atribuída ao impacto de
de África, especialmente no século XIX.” filmes de sucesso estrangeiros como Zulu
Estas vitórias fizeram de Shaka kaSen- [realizado pelo britânico Cyril R. Endfield,
zangakhona [1787-1828] uma personagem sempre obcecaram os países do Norte e 1964] e The Ultimate Attack [realizado pelo
que encontrou o seu lugar em todas as do Sul, em particular os académicos e britânico Douglas Hickox, 1979]. Estes dois
formas de cultura popular, a começar cineastas ocidentais.” filmes, que retratam a guerra anglo-zulu
pelo romance Chaka, de Thomas Mofolo Entre outras coisas, Sithole destaca a de 1879, continuam a ser regularmente
[escritor do Lesoto], apresentado como influência que Shaka e a nação zulu tiveram projetados na televisão britânica. A mi-
“um relato mítico e ficcional da ascensão [mais de 150 anos depois] na cena musi- nissérie Shaka Zulu, realizada pelo [sul-
e queda do imperador-rei zulu Shaka”. cal hip-hop e na cultura rap dos Estados -africano] William Faure e transmitida na
Publicado, em 1925, em sesoto, foi tradu- Unidos da América. Recorda que o rapper televisão pública sul-africana em 1985 e
zido e publicado em inglês, em 1931, e em e DJ norte-americano Lance Taylor [um 1986, foi igualmente popular no estran-
francês, em 1940, e desde então tem sido dos fundadores do movimento hip-hop] geiro [pelo menos no mundo anglófono].
vendido e distribuído em todo o mundo adotou o nome artístico de Afrika Bam- Shaka Zulu teve um impacto tão grande
ocidental. Com o tempo, como escreveu [o baataa ‒ em homenagem ao chefe zulu no público norte-americano e internacio-
académico sul-africano] Keyan Tomaselli Bhambatha Ka Mancinza que, em 1906, nal que Hollywood revisitou a história no
em 2003, no Journal of Southern African liderou uma revolta contra os novos im- filme para televisão Shaka Zulu: A Cida-
Humanities, “o mito de Shaka passou a postos [exigidos pelos colonos britânicos] dela. Nesta versão [totalmente fantasio-
ser visto como o principal símbolo das ‒ e que criou [em 1973] a Universal Zulu sa], Shaka atravessa o continente com o
realizações e aspirações africanas e da objetivo de colonizar o Norte de África.
formidável resistência de África ao co- Uma das cenas principais do filme é uma
lonialismo”. batalha entre os guerreiros zulus e os seus
Atualmente, as táticas de Shaka são adversários árabes-berberes.
estudadas em escolas militares de todo o Em 2001, ano em que Shaka Zulu: A
mundo [tal como a estratégia que permitiu Cidadela foi transmitido diretamente na
aos zulus, após a sua morte, vencer a Bata- televisão, a minissérie Shaka Zulu voltou a
lha de Isandlwana, a 22 de janeiro de 1879, ser exibida na televisão pública sul-africa-
contra um exército vitoriano equipado na. No entanto, por ocasião desta retrans-
com pistolas e espingardas Martini-Henry, missão, os telespectadores sul-africanos
a arma inseparável da expansão colonial Autora queixaram-se de que a série adotava uma
britânica]. Ao pesquisar para uma futura perspetiva histórica eurocêntrica e enfa-
publicação sobre a cultura zulu, o doutor Anna-Marie Jansen tizava a crueldade de Shaka.
em antropologia Sipho Sithole, do Instituto A nova série televisiva e de streaming
de Estudos Avançados de Joanesburgo,
van Vuuren Shaka iLembe [transmitida na África do Sul
encontrou numerosos textos académi- É uma académica especializada em junho] oferece aos realizadores negros
cos sobre os zulus, bem como acerca das no cinema sul-africano e ensina sul-africanos a oportunidade de contar a
proezas militares e da estratégia de Shaka. na Universidade de Tecnologia de história a partir do seu próprio ponto de
Sipho Sithole acredita que o reinado Tshwane, em Pretória, África do Sul. vista autêntico, que não lhes foi imposto
de Shaka, que durou apenas doze anos [de Atualmente, está a escrever uma por ninguém. Como conclui Mpho Mari-
1816 a 1828], mudou o curso da história biografia de Koos Roets, um dos pane-Manaka: “Em termos académicos,
na região. “Shaka foi um estratega e líder pioneiros do cinema sul-africano, podemos considerar que Shaka iLembe se
militar de renome, apenas igualado por nascido em 1943. É também esforça por africanizar e descolonizar as
Napoleão I. A sua ascensão e a dos zulus argumentista. narrativas históricas do passado no ecrã.”
A arte de viver
suficiente. Na entrevista, não nos revelou
a localização dessa aldeia.
A sua mulher e os seus filhos perma-
livre
necem em Yokohama [a Sul de Tóquio].
No local, vai buscar água aos ribei-
ros, recolhe lenha para se aquecer e
Instalado numa aldeia abandonada, o alpinista e aventureiro para abastecer o forno que construiu,
japonês Bunsho Hattori exercita uma forma de vida em rutura e recorre à energia solar para produzir
a pouca eletricidade de que necessita,
quase total com o capitalismo principalmente para a iluminação e para
Mainichi Shimbun carregar o seu computador. Para se ali-
Tóquio mentar, pratica agricultura no verão e
caça no inverno.
Até que ponto podemos ser Segundo o seu novo livro, Àqueles que
livres? É possível viver sem Desejam Viver sem Depender do Dinheiro [não
A depender de nada, incluindo traduzido para português], mesmo que
dinheiro, nem de ninguém? seja impossível não precisar nunca de
Perguntei ao alpinista e autor de livros dinheiro, foi demonstrado que é possí-
Bunsho Hattori, de 53 anos, o que entende vel viver com 500 mil ienes [cerca de 3
por “libertação da vida”. 200 euros] por ano, que é o orçamento
Antes de completar 30 anos de ida- necessário para as contribuições para a
de, Bunsho Hattori já alcançara o K2, o reforma e para o seguro de saúde.
segundo cume mais alto do planeta [8 Há pouco mais de um ano, a convite de
611 metros], e escalara o monte Tsurugi Norihiko Matsubara, grande escalador de
[2 999 metros] e as montanhas de Ku- cascatas, ajudei Hattori a limpar um terre-
robe [nos Alpes japoneses] – e fê-lo no no; para me agradecer, ofereceu-me uma
inverno. Desde aí, pratica o “alpinismo perna de veado fumada. Depois de ter ad-
de sobrevivência”, sem levar tenda, quirido, por 300 mil ienes [por volta de 1
nem combustível, nem mantimentos, 300 euros] uma casa construída na era Meiji
dependente apenas da caça e da pesca. [1868-1912] num terreno com cerca de um
Há quatro anos, começou a recuperar hectare num vale, acabara de comprar uma
uma velha casa tradicional numa aldeia outra um pouco maior lá perto.
78 JANEIRO
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De vez em quando, a sua família e sozinho, comecei a praticar alpinismo revista Gakujin, mas despediu-se dessa
amigos vêm ajudá-lo, mas no resto do de sobrevivência para ‘libertar’ rochas vida em junho do ano passado. “Como
tempo permanece sozinho na aldeia e montanhas inteiras no Japão e noutros não bebo nem fumo e já paguei a mi-
abandonada com o seu cão. É a vida locais. Foi nessa altura que as coisas co- nha casa em Yokohama, só tenho de me
com que sonhara, entre cortar toros, meçaram a ficar interessantes.” preocupar com a educação dos meus três
cultivar campos e construir vedações. Nos anos 1980, era prática comum filhos. Como a minha filha mais nova já
Gostaríamos de seguir as suas pisadas, passar dez dias a escalar, por exemplo, está no último ano do Ensino Secundá-
mas na prática as coisas não são assim tão nas ravinas de Hidaka, em Hokkaido [uma rio, acho absurdo ainda ter de ganhar
simples. O seu sonho já vem dos tempos ilha no Norte do Japão], sem levar tenda dinheiro.” Também deixará de caçar no
da escola primária, como me explica em nem combustível, comendo a todas as dia em que decidir que já não precisa de
sua casa, em Yokohama. refeições arroz temperado, e apanhando providenciar uma fonte de proteínas aos
“A minha mãe é de Fujishima (atual- truta, plantas da família das petasites e filhos. Foi quando os viu tornarem-se
mente denominada Tsuruoka), que fica na cebolas selvagens na Natureza para sa- autónomos que começou a questionar-se
região de Shonai e pertence à província ciar a fome. sobre o sentido da vida.
de Yamagata [no Nordeste do Japão]. A A diferença entre Hattori e os ou- No seu livro Sobreviver da Caça [que
sua antiga casa de família foi utilizada tros aventureiros? O seu objetivo é tentar não está traduzido para português], es-
para as filmagens do filme Departures obter tudo sozinho, inclusive na “vida creve: “Na realidade, quando escalamos
(Yojiro Takita, 2008). Tendo crescido real”. Ainda que, ao deixar as montanhas, montanhas, aprendemos mais sobre nós
num complexo residencial em Yokoha- tenha acabado por comer três tigelas de próprios do que sobre os monges que
ma, quando lá fui pela primeira vez, em tendon [arroz e tempura] e um gelado lá vivem. Conseguimos vislumbrar um
estudante, achei que era um sítio fantás- de chocolate. mundo mais profundo. O medo da morte
tico. Os campos de arroz eram a perder A ideia de se instalar numa aldeia acompanha-nos semana após semana.
de vista e podia comer-se todo o milho abandonada surgiu-lhe muito natu- Quando se leva uma vida normal, não é
e edamame [feijão de soja fresco] que ralmente: assim, mas é preciso perguntarmo-nos
se quisesse. Cheguei à conclusão de que “Disse para comigo: sendo o alpinis- o que significa viver. Antes, quando via
preferia viver lá [do que em Yokohama].” mo livre tão estimulante, assim deverá os perdedores do Koshien [campeonato
Esta ideia nunca mais o abandonou. ser também uma vida livre.” japonês de basebol do liceu] chorar, não
Enquanto estudava na Universidade Contudo, a sua viagem à tundra com entendia porque é que choravam, mas
Metropolitana de Tóquio, desenvolveu Misha, o seu companheiro de caça, foi um depois de ter usado tudo o que tinha para
uma paixão pelo alpinismo. “O espíri- elemento decisivo. Este estava em total sobreviver a um nevão nas montanhas,
to da escalada livre, que nasceu com o harmonia com a Natureza, tal como o passei a perceber o que sentiam. Ou seja,
movimento hippie, é o eixo da minha herói do filme de Akira Kurosawa Dersu até àquele momento eu não estava ver-
vida”, afirma. Uzala (1975) [inspirado num homem de dadeiramente a viver. Pode dizer-se que
“Livre” significa sem nenhum equi- uma tribo indígena siberiana que levava descobri a vontade de viver.”
pamento. Quando se escala uma rocha uma vida completamente autónoma]. Por instantes, teve a impressão de se
utilizando apenas as mãos e os pés pela “Estes homens, tal como os hippies, fundir na paisagem, de se transformar
primeira vez – e até aí, se escalara sempre vivem em harmonia com o planeta, o num elemento da montanha, e o seu ego
com a ajuda de estribos, ou seja, pequenas que me pareceu porreiro. Uma vez que e os seus desejos haviam desaparecido.
escadas de corda –, diz-se que essa pessoa caçam com armas, não se pode falar pro- Foi uma sensação pura e nítida. Era aquilo
se “libertou”. A prática foi popularizada priamente de uma vida ‘livre’, mas foi que ele procurava. Mas assim que tentou
na década de 1970 por alpinistas hippies a ideia de se viver pelos próprios meios compreender a essência dessa sensação,
no Parque Nacional de Yosemite, nos EUA. que me atraiu.” veio logo ao de cima o seu ego habitual.
Na década de 1990, Hattori dedicou- No entanto, quando se tem uma fa- Quando lhe li esta passagem do livro,
-se à escalada livre a solo, ou seja, esca- mília, não é assim tão simples. Bunsho ele comentou: “Acho que é a isso que os
lava sozinho sem usar cordas. Durante as Hattori ganhava dinheiro a escrever li- hippies aspiram. Veem-se a si próprios
suas expedições, houve uma coisa que o vros, a aparecer na televisão e editar a como meros hóspedes no planeta, corpos
deixou profundamente impressionado: estranhos. Por isso, tentam, na medida
“Enquanto carregava 30 quilos às do possível, viver o mais próximo que
costas através dos Alpes japoneses do podem da Natureza, sem participar nos
Norte, cruzei-me com homens e mu- excessos humanos e na civilização do pe-
lheres que faziam caminhadas leves e ... tróleo. A dureza da Natureza liberta-nos
paravam em abrigos.” dos nossos desejos.”
Nos anos 80, os abrigos de alta mon- “Quando escalamos A revelação que teve nas montanhas
tanha do arquipélago, que até então eram fê-lo ir viver para uma aldeia abandona-
simples chalés que serviam de refúgio montanhas, da. Tem a sensação de que, num futuro
durante a noite, foram transformados conseguimos próximo, haverá cada vez mais pessoas
em verdadeiros hotéis e complexos ho- como ele. “Se pensarmos bem, era assim
teleiros.
vislumbrar um mundo que se vivia no Japão rural, não há muito
Hattori apercebeu-se do grau de mais profundo. O medo tempo. Esta é a paisagem reluzente de
dependência dos alpinistas, que não da morte acompanha- Shonai que eu via quando era criança.”
levavam tenda nem comida: “‘É isto o Não se trata de viver na nostalgia do pas-
alpinismo?’, questionei-me. Aperce- -nos, semana após sado, mas de redescobrir um modo de
bendo-me da importância de escalar semana” vida simples e sem artifícios supérfluos.
H
AMEAÇA CRESCENTE
O partido de extrema-direita
AfD começou por ser uma
espécie de curiosidade na
Alemanha – à semelhança
do que aconteceu com
organizações similares noutros
países. A subida à tona ocorreu
no rescaldo da crise financeira,
com uma agenda eurocética,
mas ganhou maior notoriedade
com a política violenta e
autoritária de anti-imigração,
o que lhe possibilitou entrar
no Bundestag, nas eleições
federais de 2017, com 12,6% dos
votos e 94 deputados. Desde
o início, as grandes revistas
alemãs têm investigado as
verdadeiras motivações dos
líderes de extrema-direita e,
nalguns casos, recorreram a
soluções criativas e de grande
impacto. Foi o que aconteceu
com a capa da revista WOCHE
da FRANKFURTER ALLGEMEINER,
que mostrou a radicalização dos
alemães através de uma foto
de família com reminiscências
nazis. Polémica foi também a
entrevista à líder da AfD, Alice
Weidel, feita pela STERN e em
que, na capa, a palavra “ódio”
surgiu com a fonte Fraktur,
claramente associada aos nazis.
Agora, segundo a FOCUS, é a
democracia que está em risco.
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Gama Land Rover Defender PHEV 24MY: consumo combinado WLTP 2,5-3,1 l/100 km, emissões combinadas de CO₂ WLTP 57-70 g/km e autonomia elétrica EV combinada 51-58 km.
Valores obtidos nos testes oficiais do fabricante com uma bateria carregada de acordo com a legislação da UE. As emissões de CO₂, o consumo de combustível, o
consumo de energia e a autonomia podem variar em condições reais e em função de fatores como o estilo de condução, as condições ambientais, o equipamento, a
carga, o estado da bateria e o percurso. Valores de autonomia baseados num veículo standard num percurso normalizado.