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A Revista do Expresso

EDIÇÃO 2606
7/OUTUBRO/2022

A hora vai mudar


no fim do mês
e a nossa saúde é que
paga. Os recentes
avanços da ciência
mostram que o corpo
humano tem ciclos
temporais bem
definidos. Atrasar
ou adiantar
esse cronómetro
pode ameaçar
decididamente
o nosso bem-estar.
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revolucionário Speedmaster, lançado em 1957. Nesta última
atualização, a Omega elevou o espírito vintage a outro patamar,
com um design mais fino, cores extraordinárias e um movimento
Co-Axial Master Chronometer que eleva a precisão a um nível
superior. Este relógio eterno é o companheiro de viagem de
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CONHEÇO UMA PESSOA


A DEMOCRACIA LIBERAL AVANÇOU PARA O SÉCULO XXI SEM CUIDAR DE SABER SE NA CAUDA DA FILA HAVIA GENTE

C
QUE NÃO CONSEGUIA CAMINHAR AO MESMO RITMO E IA CAMBALEANDO E MORRENDO PELA BEIRA DA ESTRADA

evitar o preço das meias-solas. Esta gente odiava gastar A guerra da Ucrânia, “outra guerra, meu Deus, e que
dinheiro. As coisas iam para conserto. Um chapéu de temos nós com aquilo dos russos”, só serve para ser
chuva tinha sete vidas. traduzida numa frase, “vamos ficar ainda com menos
A ideia do campo vinha embrulhada num vago idílio dinheiro, mais uma coisa para nos atentar”. O mundo
virgiliano, aurea mediocritas dos destituídos, um lugar tornou-se um enigma, um quebra-cabeças que não são
onde trabalhava de sol a sol uma família camponesa, capazes de resolver. O mundo mudou demais.
um lugar onde cresciam laranjas, maçãs, uvas e peras, Muita desta gente desistiu de votar, “os políticos
pêssegos na estação, cerejas e figos bravos, um lugar são todos iguais”, e sentem-se abandonados pela
onde abundava a fruta como um presente da natureza. modernidade do tempo presente. Vivem no vácuo do
Um lugar onde se praticava uma agricultura de medo. Não espanta que o “Correio da Manhã”, com o
subsistência, se semeava na leira e se matava um porco elenco de crimes e corrupções, e a retórica simplificada
onheço uma pessoa que vive num prédio desgrenhado uma vez por ano, com a carne a salgar e os enchidos do Chega e de André Ventura sejam cativantes. A
dos subúrbios de Lisboa. Não o subúrbio duro dos para a duração. Um lugar sem médicos nem lojas, mas democracia liberal avançou para o século XXI sem
arrabaldes de Sintra e da Amadora, cidades que criaram com comida que chegava em tabuleiros e abastecia os cuidar de saber se na cauda da fila havia gente que não
os próprios subúrbios, uma zona periférica a resvalar citadinos, quando os primos da província visitavam conseguia caminhar ao mesmo ritmo e ia cambaleando
para as cercanias. Não é assim tão longe do centro, ou vinham ao médico, o “especialista do hospital”, à e morrendo pela beira da estrada.
com acesso dificultado pela irracionalidade logística cidade. Os liberais como eu, seguros da convicção democrática
dos transportes públicos. A pessoa recebe uma reforma Muitos dos velhos que agora jazem em apartamentos e dos ideais internacionalistas e generosos para com
que junta a uma pensão de sobrevivência, tudo não gélidos, aspirando o fumo do churrasco brasileiro, ou a diferença, não conseguiram perceber o passado, ao
chega a mil euros. Nem perto disso. Estando numa convivendo com africanos que evitam olhar julgando- qual foi oferecida a incerteza de um futuro impossível
idade avançada e vivendo sozinha, quase não sai de os potenciais criminosos, vêm daqui. Da vida dos de enfrentar. Enquanto navegamos na Amazon, eles
casa nem gasta um cêntimo. Usa o SNS, que a deixou anos de Salazar, homem que cultivava a modéstia e a arrastam-se ao Minipreço da esquina, que destronou
tanto tempo sem tratamento de doença que ia ficando frugalidade e que olhava para os africanos como fruto a mercearia e o lugar da conversa humana. A
cega. Tudo a enerva, vive no terror dos acontecimentos colonial para ser digerido na metrópole imperial. desumanização do presente tecnológico e digital deixou
inesperados. Que julgava acalmados a seguir à covid. É A democracia educou este povo, sem apagar a memória os velhos iletrados e desprovidos para trás. E muitos
uma existência de amargura e sacrifício. dos tempos antigos, memória que teima em regressar dos descendentes. Os velhos que têm netos atentos, que
Num dos andares do prédio vivem imigrantes na velhice com uma acuidade superior à memória do não emigraram por sua vez, são mais felizes. Os netos
brasileiros, muitos, num único apartamento que que se fez ontem. A epidemia de covid matou muita descodificam o presente. Os outros estão por sua conta.
dividem para pagar a renda. Mais do que o apartamento desta gente, a esmo, mas os solitários, os que vivem Vamos ficando chocados com a falência da democracia
comporta. Os imigrantes ouvem música aos berros, longe da família ou com famílias que os ignoram, liberal, enquanto respiramos dentro da câmara de
nordestina, e fazem churrascos dentro de casa. também por falta de tempo e dinheiro e porque eco, vemos os mesmos liberais, lemos os mesmos
Os habitantes mais antigos do prédio convivem a família tradicional se desagregou com os novos liberais, ouvimos os mesmos liberais, movemo-nos
com o bulício com dificuldade, e têm medo dos tempos e costumes, sentem-se exilados no seu país. A dentro da bolha das nossas certezas liberais. Temos
imigrantes, mesmo que o medo não tenha justificação economia digital é terra incógnita, não sabem usar um falta de atenção e temos sempre razão. A esquerda
e plausibilidade. A juntar aos terrores da velhice e da smartphone, palavra impronunciável, e aprenderam a continua amarrada a ideologias do princípio do século
doença, da falta de dinheiro que se transforma noutra usar o multibanco ao cabo de muita resistência. Têm XX e nunca percebeu o anacronismo da matriz ou o
doença crónica, junta-se a modificação do meio saudades das estações de correios, onde iam receber as logaritmo do capitalismo tecnológico. A proletarização
ambiente, uma modificação que levou os moradores reformas em dinheiro vivo, nada de contas bancárias da classe média é uma constante deste século e muitos
mais habilitados a mudarem de casa, enquanto o porque “os bancos são todos uns ladrões”, e evitam o proletários escolherão a direita e a autocracia que lhes
senhorio prefere aumentar as rendas mesmo que enfie Estado e a burocracia, que se tornou mais um elemento promete uma atenção.
cem pessoas num quarto. Nem os senhorios nem os do terror quotidiano. São chamados à consulta por um Convinha perceber como vivem os outros. Os que não
inquilinos são abonados e tudo se processa numa SMS, que têm dificuldade em ler porque não gastam marcham como nós. Os que não votarão como nós. b
espécie de marginalidade legal que não pretende mais dinheiro em óculos de ver ao perto. Pedem à menina
do que explorar o problema da falta de habitação. do supermercado que lhes leia a mensagem, ou a um
No prédio houve um incêndio. Um andar, talvez o vizinho do antigamente, nunca aos brasileiros ou
dos imigrantes, ardeu todo por incúria e má cabeça. africanos, esses “não são de fiar”.
Os residentes abandonaram o prédio e fugiram, sem Nem precisam de óculos ou de cuidar dos dentes, dois
saberem se teriam casa no rescaldo. Era verão e não supérfluos que o SNS comparticipou com esforço.
ficaram ao frio com a roupa no corpo, como acontecerá Muitos movem-se numa espécie de cegueira da qual
no inverno. nunca se queixam, ou reparam. Outros são quase
As pessoas de idade não têm aquecimento porque não surdos, e não se importam porque a cidade é barulhenta
o podem pagar e tiritam de novembro a abril, achando e a televisão é “mais ouvir do que ver”, caras que
o frio um teste de resistência. “Dantes ninguém tinha
luxos, era a lareira ou o forno na província. Saudades
“só falam de política noite fora”. A televisão é uma
companhia, um som de fundo para abafar o silêncio
/ CLARA
do pão feito em casa. E nem gosto do cheiro a gás, só da casa. A música nordestina que se solta do andar FERREIRA
ALVES
preciso da bilha para o fogão, é para isto que servem do bailinho, afogando os ruídos do hábito, não os
as mantas.” Muitas destas pessoas, e não tomemos a alegra. Inquieta-os. Para esta gente, o hábito e a rotina
pessoa que conheço como singular, ela é um exemplo são aquilo de que não prescindem, mantêm-
de reformado miserável que se repete por toda a cidade nos vivos e despertos. Gostam de encontrar
e por todo o país, lembram-se dos relatos da II Guerra todos os dias as mesmas coisas no mesmo
Mundial, recordam as histórias dos pais e avós, a ração sítio, as coisas habituais servem de guia,
de açúcar e farinha, a mercearia fiada, a longínqua detestam surpresas. E têm terror ao lar e à
farmácia, a ausência de meias, os sapatos rotos para misericórdia.

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EDIÇÃO 2606 | 7/OUTUBRO/2022
O

NUNO BOTELHO
fisga +E Culturas Vícios

44
Hugo van der Ding
9 | Redes sociais
Os jovens estão a deixar
o Facebook. Apesar
de ainda reinar na internet,
o movimento segue agora
para os encantos
22 | Relógio biológico
O que muda quando muda
a hora? Os investigadores
estão a tentar descobrir
o momento certo do dia
para fazer tudo. Podem os
53 | Doclisboa
Colonialismo e Brasil em
destaque na 20ª edição
56 | Steve McCurry
Grande retrospetiva na
75 | Cerâmica portuguesa
O crescente interesse
pela cerâmica traduz-se
em novas marcas, formas
de expressão e na
redescoberta dos clássicos
Grande entrevista
de lugares como o TikTok. seus estudos sincronizar-nos Cordoaria Nacional
sobre os erros, os O que está a mudar? com uma saúde melhor? 78 | Receita
medos e o talento de A Medicina Circadiana 58 | Livros “Junto ao Mar”, Por João Rodrigues
12 | Os Cadernos e os Dias de Abdulrazak Gurnah
manter o humor sem ser tem uma missão
79 | Restaurantes
O que os meus olhos viram
humorista. “A escrita é Por Gonçalo M. Tavares 32 | Defesa planetária 62 | Cinema “A Mulher Rei”, Por Fortunato da Câmara
onde me sinto tranquilo A NASA já identificou de Gina Prince-Bythewood
14 | Passeio Público 80 | Vinhos
e completamente 30 mil objetos próximos 64 | Televisão “DAHMER Por João Paulo Martins
20 Minutos com da Terra, dos quais 2 mil são
à vontade”, diz Fanny Ardant: — Monstro: A História
potencialmente perigosos. de Jeffrey Dahmer”, 81 | Recomendações
“Sou demasiado Asteroides e cometas
desarrumada para ter de Ryan Murphy e Ian De “Boa Cama Boa Mesa”
podem ser grandes pedras Brennan, na Netflix
uma vida racional” no sapato. As primeiras 82 | Design
18 | Planetário
missões tentam resolver 66 | Música “Doggerel”, Por Guta Moura Guedes
FICHA o problema dos Pixies
Os mistérios da frente 83 | Moda
TÉCNICA Por João Pacheco 38 | Cortez de Lobão 70 | Teatro & Dança “Zoo Por Gabriela Pinheiro
Quantos portugueses Story”, de Edward Albee,
Diretor 84 | Tecnologia
João Vieira Pereira têm um Van Dyck na sala encenada por Marco Paiva
de estar? Maria e João Por Hugo Séneca
Diretor-Adjunto 72 | Exposições “Black
Miguel Cadete têm. E contam com mais
mcadete@impresa.pt pinturas que fazem inveja Light”, de Margaret 87 | Passatempos
a importantes instituições Watkins, no Centro Cultural Por Marcos Cruz
Diretor de Arte
Marco Grieco nacionais. A maioria de Cascais
Editor está em armazéns
Ricardo Marques
rmarques@expresso.impresa.pt
Editor de Fotografia
João Carlos Santos
Coordenadores CRÓNICAS
João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt 3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 16 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes
Luís Guerra 20 Cartas Abertas por Comendador Marques de Correia | 52 Que Coisa São as Nuvens por José Tolentino Mendonça
61 O Outro Lado dos Livros por Manuel Alberto Valente | 74 Fraco Consolo por Pedro Mexia
lguerra@blitz.impresa.pt

Coordenadores Gerais de Arte


Jaime Figueiredo (Infografia) 86 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro | 88 Deixar o Mundo Melhor por Francisco Pinto Balsemão
Mário Henriques (Desenho) 90 Estranho Ofício por Ricardo Araújo Pereira
ILUSTRAÇÃO DA CAPA: GONÇALO VIANA

E 6
E SE UM DE NÓS
LHE BATESSE À PORTA?
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fisga
“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”

T
udo começou no início dos anos 2000,

Redes sociais, uma quando surgiram as primeiras plataformas


que moldaram os sítios que hoje dominam
a internet. Fotolog, MySpace, Orkut, até mesmo o

dança em crescendo saudoso criador de polémicas Hi5. Todos lugares


comuns para quem cresceu a usar a web nesses
anos de ouro, mas seria em 2006, dois anos
depois de ser criado, que o Facebook dominava.
OS JOVENS ESTÃO A DEIXAR O FACEBOOK. APESAR DE AINDA REINAR NA Foram os mais novos que começaram por ditar a
INTERNET, O MOVIMENTO SEGUE AGORA PARA OS ENCANTOS DE LUGARES tendência — e todos os seguiram. 16 anos depois,
COMO O TIKTOK. O QUE ESTÁ A MUDAR NO MUNDO DAS REDES SOCIAIS? a rede social vale milhares de milhões e é, para
muitos, praticamente um sinónimo de internet.
TEXTO TIAGO SERRA CUNHA INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES Apesar de vários prenúncios do fim, o Facebook
ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO continua a ser a rede social mais utilizada no

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fisga
mundo (são quase 3 mil milhões de utilizadores).
TEMPO DIÁRIO USADO A ACEDER A REDES SOCIAIS REDES SOCIAIS MAIS UTILIZADAS EM PORTUGAL
O mesmo acontece em Portugal, com uma taxa de
A NÍVEL GLOBAL 2022 (16-64 ANOS) Dos 16-24 anos — geração Z
penetração de 94,4% entre o total de utilizadores
Em horas
da internet. Segue-se o WhatsApp e o Instagram.
No caso dos mais jovens, o caso dança para 2021 91,8
Instagram
outras paragens, mas só ligeiramente; e a tabela África do Sul 10h46 2022 94,1
inverte-se. Segundo o relatório “Os Portugueses Filipinas 10h27 92,4
WhatsApp
e as Redes Sociais” para 2022, da Marktest, o Brasil 10h19 93,2
Facebook caiu para terceiro lugar das redes Colômbia 10h03 94,4
Facebook
sociais mais usadas entre os 15 e os 24 anos. O Argentina 9h38 89,4
pódio, no entanto, continua a ser todo da Meta Malásia 9h10 86,2
YouTube
(a empresa dona do Facebook). O Instagram Tailândia 9h06 86,1
passou a dominar, com 94,1% de utilizadores, México 8h55 89
Messenger
seguido do WhatsApp (93,2%). O Facebook Indonésia 8h36 83,2
fica-se “apenas” pelos 89,4%, algo que “não é EAU 8h36 48,3
Twitter
novidade” para Luís António Santos, professor de Taiwan 8h07 64,5
Ciências da Comunicação e diretor-adjunto do Arábia Saudita 8h05 49
TikTok
Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade Egito 8h02 63,6
na Universidade do Minho (UM). “O Facebook Turquia 8h 51,3
Pinterest
tem um prazo. Ninguém está a prever que Portugal 7h56 52,2
desapareça daqui a dois ou três anos, mas, a cada Rússia 7h50 57,7
Linkedin
nova geração, sendo identificado como uma rede Israel 7h35 47,9
social para pessoas mais velhas, a probabilidade Singapura 7h29 46,9
Discord
de entrarem pessoas novas diminui. É uma Índia 7h19 45,9
tendência internacional”, refere. Roménia 7h09
O número de utilizadores de redes sociais em EUA 7h05
Portugal aumenta de ano para ano e mais que Média global 6h58
Hong Kong 6h46 TODAS AS IDADES
duplicou desde o início da década passada; a
Marktest coloca-o pelos seis milhões. Segundo o Canadá 6h45
Eurostat, são os jovens que mais as usam — 96% Polónia 6h39 2021 93,4
Facebook
dos que têm entre 16-24 anos têm perfis em redes, Vietname 6h38 2022 94,4
contra 23% dos mais velhos (65-74). É, também, Irlanda 6h30 82,6
WhatsApp
um dos países do mundo onde mais horas se Nova Zelândia 6h23 83,8
passa a usá-las, num claro contraste com outros Suécia 6h22 76,1
Instagram
países europeus. Dados “preocupantes”, alerta Austrália 6h13 79,4
Luís António Santos, ao dizer que Portugal “não Reino Unido 6h12 74,1
Messenger
sai bem desta fotografia”. Em nota positiva, os Itália 6h09 72,7
portugueses dizem que as usam principalmente Grécia 6h06 58,7
YouTube
para contacto com amigos e família ou preencher Espanha 6h04 57
o tempo livre, mas também ler notícias, partilhar Bélgica 5h45 44,6
LinkedIn
opiniões ou seguir celebridades. Suíça 5h44 45
Áustria 5h42 34,5
Pinterest
CAI UMA, NASCE OUTRA França 5h34 36,2
O Facebook, mesmo com a sua hegemonia, é a Coreia do Sul 5h29 27,2
Alemanha Twitter
rede social com a mais larga taxa de abandono, 5h22 30,3
refere a Marktest. Há casos quase opostos, China 5h15 24,4
Países Baixos TikTok
que podem vir a inverter o cenário, um deles 5h11 29,9
inevitável: está por todo o lado e influencia o que Dinamarca 5h02 21,9
Japão Telegram
os jovens (e também os menos jovens, que nem 4h26 26,8
FONTE: DATAREPORTAL FONTE: “OS PORTUGUESES E AS REDES SOCIAIS 2022”, MARKTEST
sempre gostam de admitir) vestem, veem, ouvem
e fazem. Depois de uma explosão durante a
pandemia, o TikTok voltou a ser a rede social que chega a praticamente um terço dos utilizadores expressão por permitirem criar ‘grupos’ de
mais cresceu de 2021 para 2022, em especial na de internet. Poderemos ver o TikTok no pódio pessoas com interesse em temas comuns mais
chamada geração Z. em breve? “A não ser que os Estados Unidos e a facilmente. Iremos ver gigantes como as redes
O fenómeno é indiscutível. Pelo meio de União Europeia tomem decisões radicais [no que da Meta (com quatro dos seus produtos entre os
coreografias, êxitos musicais e um algoritmo toca a dados pessoais], será o percurso lógico”, mais usados) ir a algum lado? Não será de um dia
imprevisível, o TikTok anunciou no ano salienta o professor. para o outro, mas sim. “As pessoas querem outros
passado ter atingido mil milhões de utilizadores Mudanças “lentas, mas continuadas” em que modelos de organização das relações sociais.
globalmente, um feito insólito para uma rede figuram, também, outras redes como o Telegram Não quer dizer que abandonemos totalmente os
social que apareceu em 2016. Em Portugal, serão (que oferece mais privacidade na troca de antigos, mas querem alternativas”, sustenta.
quase três milhões e, segundo o DataReportal, mensagens), a Twitch ou o Discord, que ganham Num mundo em que tudo é conteúdo, mesmo a
banalidade de um momento (onde espaços como
o Instagram ou o BeReal, recente fenómeno,
O NÚMERO DE UTILIZADORES DE REDES SOCIAIS EM PORTUGAL ganham por isso mesmo), “as redes sociais, que
começaram por ser um sítio onde as pessoas
AUMENTA DE ANO PARA ANO E MAIS QUE DUPLICOU DESDE O INÍCIO estavam, passaram a ser parte absolutamente vital
DA DÉCADA PASSADA. SERÃO CERCA DE SEIS MILHÕES das nossas vidas”, assevera Luís António Santos. b

E 10
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GEORGETOWN
Relações Internacionais
ou Ciência Política
Ano Letivo 2023/2024 u r as a t é
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OS CADERNOS E OS DIAS
HISTÓRIA FRAGMENTADA DO MUNDO

POR
GONÇALO
M. TAVARES

O que os meus olhos viram


1. 7.
Uma notícia: “Florinda Queiroz, de 86 anos, Somos irmãos em ADN, mas completamente Para mim é claro, eu não queria ver aquela
morreu a 24 de julho.” estranhos em termos de experiências visuais. imagem. A da senhora idosa, lar, formigas.
Uma idosa, num lar. Temos olhos anatomicamente iguais aos dos Ela foi-me atirada para a frente dos olhos como
O que vem antes assusta — as causas, os dias habitantes do século XVI (igual ADN), mas se atira algo frágil para a frente de um comboio
anteriores. os nossos olhos vêem mais em cinco minutos que já não tem tempo para parar.
E uma imagem. Formigas em redor de uma ferida na internet ou na televisão do que os nossos Viu, está visto; entra na memória visual e aí
humana, perto da face. antepassados viam na vida inteira. Experiências faz o seu trabalho junto com os pensamentos
Os corpos que não são capazes de se defender nem absolutamente distintas, portanto. Seremos ainda e os biliões de outras imagens que já por ali
dos mais pequenos dos animais, abandonados como da mesma espécie dos nossos antepassados do andam. E mais tarde a psicanálise poderá dizer
alguém que se esquece de um objecto num quarto. século XVI? algo sobre o que resultou da infinita mistura
das infinitas imagens que fomos vendo. Umas

2. 5.
porque decidimos ver, outras porque alguém as
colocou à nossa frente.
Mas falemos também das imagens. Será que o olho humano tem um limite ou estará

8.
Poucas imagens recentes são tão violentas sempre disponível para receber?
como essa, a de uma senhora idosa, de 86 anos, E não é um exagero, é isto mesmo.
abandonada num lar, com uma ferida que atrai Uma vida visual mais rica?, mais acelerada?, mais E, sim, é evidente que as imagens que vemos
as formigas — e ninguém para a defender no pobre?, mais forte? em 5 minutos do que os nossos têm importância.
momento mais frágil. companheiros humanos do século XVI na vida Já há muito não é possível um direito, que
O olho humano tem um limite, eis uma hipótese, inteira. E o número de imagens por vida continua parecia básico, ligado à democracia e ao
e talvez o olho que veja terror demais chegue a a acelerar. humano: eu tenho o direito de escolher as
essa linha de fronteira e rebente, como se de uma imagens que quero ver.

6.
doença física se tratasse. Já sabemos que na vida e na realidade isso
Um olho que não suporta mais ver imagens também não é assim.
terríveis e morre, suicida-se, explode — como Lembro-me de um filme a que assisti na infância, O destino daquilo que os nossos olhos vão ver
se o olho fosse um sujeito inteiro e tivesse a julgo que se chamava “O que os Meus Olhos Viram”. na vida real não é decidido exclusivamente por
possibilidade de consciência e desespero. Não Um miúdo que vê um assassinato, cometido por nós. A vida não é assim tão simples e linear,
quero ver mais, diria o olho. Uma utopia ou uma um vizinho, conta aos próprios pais, mas eles felizmente e infelizmente, infelizmente e
distopia: um olho desesperado. não acreditam no filho e vão contar ao vizinho, felizmente.
ao assassino. O filme a seguir anda em redor do

3. 9.
pânico da criança diante do vizinho que se vai
insinuando para ficar sozinho com ele.
Seria importante também pensar como em certas Muitos pesadelos a partir daí; eu era uma criança. A história de Édipo em parte fala disto e os
situações as televisões multiplicam estas imagens Estou a relatar de memória, talvez não seja gregos que sabiam tudo continuam a saber
que fazem, por vezes, quem vê querer ser cego. exactamente assim, mas marcou-me. O que os tudo.
E seria também importante fazer uma estatística meus olhos viram. Há coisas que vês que dão vontade de arrancar,
dos olhos que aí estão a ver, no século XXI, desde E desde aí isto: eu não quero que os meus olhos com as tuas mãos, os teus próprios olhos.
cedo, desde menininhos, e o que vêem. Que vejam certas coisas.

10.
imagens recebem.

TEMOS OLHOS ANATOMICAMENTE


4.
A alegria? Infinitas possibilidades de definição,
IGUAIS AOS DOS HABITANTES eis uma. Alegre é aquele que nunca teve
Se o que vemos vai formando uma memória visual, vontade de arrancar os próprios olhos, mesmo
a memória visual dos habitantes dos séculos XX DO SÉCULO XVI (IGUAL ADN) MAS que apenas por um instante.
e XXI mudou por completo, como é óbvio, com a OS NOSSOS OLHOS VÊEM MAIS Nesta semana que passou, é óbvio que quem viu
fotografia, a internet, etc. EM CINCO MINUTOS NA INTERNET essa imagem não conseguiu ser alegre. b
A memória visual dos humanos dos séculos mais
tecnológicos é completamente distinta da dos OU NA TELEVISÃO DO QUE OS NOSSOS Gonçalo M. Tavares escreve de acordo
nossos antigos companheiros de espécie humana. ANTEPASSADOS VIAM NA VIDA INTEIRA com a antiga ortografia

E 12
fisga
PASSEIO PÚBLICO
20 MINUTOS COM

FANNY ARDANT
“SOU DEMASIADO
DESARRUMADA PARA TER
UMA VIDA RACIONAL”
É UMA HISTÓRIA DE AMOR QUE NÃO SE VÊ TODOS OS DIAS NO ECRÃ. ELA TEM 70 ANOS, ESTÁ HÁ MUITO SOLITÁRIA.
ELE É CASADO E PAI DE FAMÍLIA, MÉDICO, TEM 45. APAIXONAM-SE EM “OS JOVENS AMANTES”, EM EXIBIÇÃO NOS
CINEMAS. E O AMOR NÃO TEM IDADE, COMO NOS EXPLICA A CÉLEBRE ATRIZ DO CINEMA FRANCÊS

ENTREVISTA FRANCISCO FERREIRA apaixonar-se por ela. Mas volto à pergunta: se foi fácil. Acho que quando
digo sim a um papel é porque o quero.
Fanny Ardant, eterna sedutora, chama-se Shauna em “Os Jovens
Amantes”. Melvil Poupaud é Pierre, o médico que se cruza por acaso no seu O receio termina com esse desejo?
caminho. São os protagonistas desta história, realizada por Carine Tardieu, O desejo torna-me disponível. Quando chego a um plateau não trago
sem medo de ser livre e que fica a olhar à distância para o melodrama certezas nem construções. Gosto de dizer à pessoa que me vai dirigir: “Faça
clássico hollywoodiano. Conversámos com a atriz por videochamada de mim o que quiser.” Agrada-me a ideia de poder participar na obsessão
de um realizador ou de uma realizadora. Participar na sua visão das coisas.
Teve alguma hesitação em aceitar este projeto? Aquilo que me interessa nas histórias não são as histórias em si. Sobretudo
Não, gostei do argumento imediatamente. Li-o de uma só vez, como se as de amor, que já foram todas contadas há milhares de anos. O que me
bebe um copo de água. À medida que folheava as páginas crescia a vontade interessa são as nuances. Os detalhes que a realização traz.
de saber como a história terminava. Lembro-me de ter receado não
poder entrar no filme caso fosse preciso aparecer completamente nua em Continua muitíssimo ativa nesta fase da sua vida como atriz, roda em média,
determinada cena. A intimidade aumenta com o desenrolar da história. E eu e há vários anos, três a quatro filmes por ano. Parar nunca fez parte dos seus
não queria aparecer nua. planos?
Jamais. Escolhi sempre papéis que amei. Fiz muitos filmes, alguns falhados,
O que aconteceu em seguida? alguns muito bons mas que não tiveram qualquer êxito, outros que correram
Disse-o à realizadora, Carine Tardieu. Perguntei-lhe como estava ela a bem, mas para mim tanto me dá porque, no arco de uma vida, ninguém
pensar filmar as cenas de amor. Garantiu-me que a nudez completa não era me arrancará os bons momentos que passei. Os momentos em que, num
necessária. determinado tempo, num determinado lugar, eu interpretei este ou aquele
papel com outros atores e fui feliz.
SAMANTHA ZUCCHI/INSIDEFOTO/MONDADORI PORTFOLIO/GETTY IMAGES

Uma bela história de amor não tem idade?


Não se ama um homem em função da idade. Os homens amam-se Mesmo no caso dos filmes falhados?
quando menos esperamos, sejam eles mais velhos ou novos, do Polo Estou-me nas tintas. Com toda a franqueza: não tenho memória de
Norte ou do Polo Sul, pouco importa. Mas não é isso que acontece entre um papel recusado — e recusei muitos — que me tenha causado
a minha personagem e o papel de Melvil Poupaud. São dois seres que não arrependimento uma vez visto o filme terminado na tela. Nem nunca me
conseguem resistir um ao outro. refugiei na defesa de só trabalhar com este ou aquele cineasta consagrado;
para mim é igual, pouco importa se o realizador é experiente ou debutante.
Foi fácil encontrar o tom da interpretação? Há entre ambos uma intimidade Se gosto do papel, atiro-me. Não tenho um pensamento estratégico. Sou
quase adolescente, devido à situação. Ele é casado, o amor torna-se um jogo demasiado desarrumada para ter uma vida racional.
de escondidas...
Completamente. Por isso, quando me perguntam se é diferente descobrir Era o que este papel pedia.
o amor na velhice e numa fase da vida em que já não é suposto encontrá- E Carine Tardieu é uma jovem cineasta.
lo, eu digo que não, pois encontramos exatamente o que nos aconteceu
na idade adolescente. A idade em que ainda éramos tímidos, em que Há um segredo para se manter jovem na cabeça?
ainda tínhamos medo do nosso corpo e tudo era complicado porque não Ah, ah. Na verdade sou pessimista, mas amo a vida. Não sei como explicar
estávamos a vestir a nossa própria pele. isto. Tenho ideias sombrias sobre o estado do mundo, mas há em mim uma
energia que as ultrapassa. Gosto muito de viver. Quero sentir-me assim
É uma boa descrição da Shauna quando o filme começa. até ao dia em que espero tombar depressa, como uma árvore que caiu.
Verdade. Ela não pensa nem por um minuto que algum homem possa Prefiro os grandes desgostos de amor a uma vida sem interesse. Sempre

E 14
PASSEIO
“TENHO IDEIAS SOMBRIAS PÚBLICO
SOBRE O ESTADO
DO MUNDO, MAS HÁ EM MIM UMA ENERGIA QUE AS
ULTRAPASSA. GOSTO MUITO DE VIVER. QUERO
SENTIR-ME ASSIM ATÉ AO DIA EM QUE ESPERO
TOMBAR DEPRESSA, COMO UMA ÁRVORE QUE CAIU”

fui a favor dos sentimentos excessivos. Das grandes cóleras e dos grandes
entusiasmos. Já me disseram que podia tornar-me muito cansativa. Para
os outros, quero dizer. E é verdade. Para mim não há vidas fracassadas nem
vidas conseguidas. Vivemo-las simplesmente. E vivendo, fazemos asneiras,
enganamo-nos, concretizamos desejos, e é nessa desordem que a vida
existe.

Foi por isso que se tornou atriz?


Gostei sempre muito deste métier por causa disso, sim. Do tumulto dos
sentimentos. Daquela ideia de que as pessoas felizes não têm história. E
que é preciso contar as paixões, as violências, os desafios. Nada que ver
com a vida prudente, sensata. Se tivesse sido uma investigadora científica,
ou Presidente da República, talvez pensasse de outra maneira, mas agora é
demasiado tarde para voltar atrás.

O facto de contracenar com Melvil Poupaud, ele que disse ansiar há muito por
trabalhar consigo, foi importante?
Acho que não devemos ter quaisquer expectativas sobre um ator ou atriz
antes do trabalho começar. Uma grande admiração pode redundar num
grande desapontamento. A primeira vez que encontrei o Melvil foi nos
ensaios do filme, e por causa desta pandemia, perguntei-lhe: “Você tem
medo de mim?” Ao que ele respondeu: “Não, acredito em Deus!” Ora, aqui
está um tipo livre, inteligente, que tem ironia, pensei. Isto foi fundamental
porque, no filme, a Shauna é iluminada pela personalidade daquele homem
[Pierre] e ele não cai nos clichés que aos homens se colam. Pelo contrário,
é uma grande personagem masculina. Vai contra a corrente das normas da
sociedade. E durante a rodagem sentia-me bem com ele, em segurança.
Mais do que um ator, Melvil é um verdadeiro ser humano.

Uma das coisas mais conseguidas do filme é que os preconceitos, ou as


normas sociais que é suposto alguém seguir, vêm sempre das personagens
secundárias, nunca do casal enamorado, Shauna e Pierre. A audiência que
escolha de que lado quer estar...
E é uma questão de responsabilidade de cada um de nós: a quem ou ao quê
queremos pertencer? Apaixonamo-nos e se queremos ser levados por
esse sentimento não podemos pensar no olhar da sociedade que nos julga.
Mas há uma personagem secundária que acho muito interessante, a mulher
de Pierre [Jeanne/Cécile de France], que a uma dada altura se dá conta do
sofrimento do marido e abandona a sua própria rigidez. Ela abre-se. Entende
que há lugar para a família, para o amor conjugal e também para a paixão,
que é sempre um risco.

Realizou três filmes nestes últimos 12 anos, noto agora que o seu trabalho
volta a estar mais concentrado na interpretação. O que é que ganhou com a
experiência?
Sempre escrevi muito, porque faço muito teatro e habituei-me a isso, a
escrever para mim, durante a tarde, nos tempos de espera, antes de subir
ao palco. E criei muitas histórias ao longo destes anos, um pouco loucas,
impossíveis. Até que um dia um produtor de que gosto muito, Paulo Branco,
me encorajou a realizar. Fiz os meus filmes como objetos pessoais, não
para entrar na indústria do cinema. E eles não tiveram sucesso. Mas aprendi
coisas importantes e a dar-me conta, por exemplo, de como é difícil falar
com atores. Estava do outro lado da câmara, com as histórias que eu tinha
escrito. E julgava que, para os atores, era evidente aquilo que eu lhes pedia.
Mas não era. Descobri então que era preciso falar com eles com doçura.
Ao passo que o meu temperamento é o contrário disso: violento, nervoso.
Aprendi a não perder o sono por julgar não ter conseguido filmar a cena que
tinha imaginado. E a esperar pelo amanhã, com energia e otimismo. b

E 15
fisga
O MITO LÓGICO
catfishing, falsos perfis), mas no processo de O Tinder mudou também a forma como alguém
match (ambos querem) não há humilhação na se apresenta para ser “vendido”. Homens e
rejeição e há mil maneiras de fugir às relações mulheres uniformizaram-se numa estética-cliché:
(do ghosting ao slowfading — do desparecer ao eles muitas vezes de peitaça ao léu, rodeados
POR ir desparecendo), e também novas e variadas de simbolismo de hipermasculinidade (o cão, o
LUÍS maneiras de ser canalha; e sim, o algoritmo não carro, a prancha, etc.); elas criaram mesmo uma
PEDRO é justo, nem neutro, e pode ser viciante e levar a imagética nova para se representarem — as caras,
NUNES nada. Nem a sexo. Acaba-se a juntar no telemóvel as pestanas, os lábios estão formatados para um
uma centena de matches com quem nunca se determinado ângulo. Isto é obviamente uma
trocou uma palavra e se exibe como troféus de generalização, dado que o sim/não se faz numa

Uma década caça. De pessoas que podiam ter sido alguma


coisa. É a nova linguagem, das relações e do
amor. Mas é o que se realça. Enquanto aplicações
questão de segundos e em que a primeira foto
é que “vende”. Mente-se muito nos perfis. Eles
mais sobre a sua altura (mais cinco centímetros),

de Tinder similares, como o Grindr (só para gays, também


com GPS), continuam exclusivas para sexo, o
Tinder evoluiu para quem quer descobrir uma
elas sobre o peso (menos cinco quilos). Essas
imagens, se observadas com atenção, revelam
muito da pessoa, o que querem dizer.
relação séria. Todos estes comportamentos têm E há quem diga que o Tinder, numa primeira
COMO PASSOU DE UMA APP termos ingleses, que se usam na linguagem e aproximação, é um jogo em que o indivíduo vai
MANHOSA DE SEXO PARA O “MAIOR acabam por se tornar verbos. tentar perceber o seu valor no sistema de valores
FENÓMENO DE ACASALAMENTO Ao longo da década, a aplicação mudou. Criou relacionais. Um termómetro do seu peso no
features pagos para subverter as regras. Se pagar mercado do amor (muitos ou pouco matches? que
DESDE O SEDENTARISMO HUMANO” X por mês, posso rever os erros cometidos tipo de pessoa faz match comigo?). Estabeleceu-se
quando me engano e recuso uma pessoa e faço nesta década que não é sensato ir ter com alguém
O Tinder, a outrora denominada “aplicação swipe para a esquerda (muuuuito comum). Se sem antes ter visto a pessoa (há quem ainda o
de engate”, fez 10 anos de existência. E pelo pagar Y, posso saber antecipadamente quem já faça). O Tinder criou a possibilidade de se fazer um
que pude constatar em dezenas de artigos fez match comigo. E se pagar W, posso alargar vídeo chat. Já que estamos em balanços, o Tinder
celebratórios na imprensa internacional, o para o mundo inteiro a regra dos 160 quilómetros foi de facto um grande impulsionador das dick pics
Tinder estabeleceu-se como ‘o’ agregador das como máximo de “zona de caça”. Mas ser não solicitadas e é culpado de grandes catástrofes
relações no mundo contemporâneo. Ganhou homem e velho no Tinder é ser-se indesejado emocionais e até criminais (o Netflix já contou um
respeitabilidade, a sua importância é mais do (no limite, também se pode subverter isto). A caso). Mas há que reconhecer: o Tinder permite que
que reconhecida, mesmo com todos os defeitos aplicação privilegia mulheres jovens para quem pessoas que nunca teriam hipótese de se conhecer
e perigos e canalhices e mentiras que lhes estão tudo é grátis. Consta que 75% dos utilizadores se conheçam. Abre um mundo de possibilidades
associadas. A última vez que escrevi um texto são homens, mas a empresa não divulga estes ao quebrar regras geográficas e sociais (sim) numa
para o Expresso acerca do Tinder, de um lote dados. O que divulga é que foram feitos 530 sociedade cada vez mais isolada. O que fazem com
desde o seu surgimento, foi há uns cinco anos: milhões de downloads da aplicação e 75 mil isso é outra coisa. Na melhor das hipóteses, pode
uma possibilidade paga permitia falsamente milhões de matches, o que terá resultado em ser mau sexo ou casamento.
saltar para qualquer lugar do mundo e conhecer 1,5 mil milhões de encontros por semana. Este Voltarei ao tema dentro de 10 anos. b
pessoas como se estivesse lá. Marquei encontros último número não sei como foi obtido. lpnunesxxx@gmail.com
de Sydney a Miami do meu sofá. Aborreci-me
com o assunto. Desde então, a app foi estudada
e dissecada. “O Tinder foi tão determinante na
transformação da cultura contemporânea como
a pílula o foi para a revolução sexual dos anos
60”, diz uma sexóloga inglesa. Leram? Agora, um
investigador do Kinsey Institute, Justin Garcia:
“O Tinder é uma das duas grandes mudanças
no acasalamento nos últimos quatro milhões de
anos.” Estão a ver? “A primeira ocorreu há 10/15
mil anos quando a agricultura nos fez sedentários
e o casamento se estabeleceu como contrato
cultural, e a outra com as apps como o Tinder,
AVISHEK DAS/SOPA IMAGES/LIGHTROCKET/GETTY IMAGES

com geolocalização, que transformou a busca


por um parceiro num processo similar a pedir
comida ou um voo barato.”
Em Portugal, este é um assunto de que se tem
uma certa aversão falar — tem estigma —,
embora haja muitos casamentos e filhos Tinder,
e ele responda a necessidades: há quem use a
app porque lhe parece o óbvio, e há pessoas,
muitas pessoas, que não sabem, não podem,
não conseguem, não têm outra alternativa para
encontrar um parceir@. Já não vão sair à noite,
nem a jantares, nem a blind dates. O Tinder é a
solução. Está formatado para ter a decisão em
quem escolhe, mas também tem de ser escolhido.
Tem perigos (stalkers, perseguidores obsessivos,

E 16
fisga
PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS

POR
JOÃO
PACHECO

LIVRO

A timidez poética
de Alfredo Cunha
Lisboa, 1975. Debaixo de um céu nublado, o fotógrafo captou
a fanfarronice branca do Padrão dos Descobrimentos. O
monumento choca aqui com o monte precário de caixotes.
Somos convidados a imaginar lá dentro os pertences dos
chamados retornados, que apesar de se verem enquadrados
por essa palavra são em muitos casos pessoas que nunca
tinham posto os pés na Europa. Dentro dos caixotes poderá
haver álbuns de família cheios de sol, receitas datilografadas MADRID — NOVA IORQUE
que incluem cerveja Cuca e outros ingredientes que agora
faltam. E vestidos e sapatos e móveis e loiças. Tudo ali a
esperar junto ao rio Tejo.
Longe destes caixotes, o país habitua-se à nova vida sem
Os mistérios da frente
guerra e sem a magia de Lourenço Marques, cantada por
João Maria Tudela. É uma vida com democracia e crise
económica, a seguir ao 25 de Abril de 1974. Estas caixas Estes rapazes devem conhecer bem barricada para conter o avanço dos
parecem ter ficado para trás, como restos do império colonial a tabuada, caso tenham passado pela rebeldes fascistas, que acabariam
português. Entre as letras que gritam, vemos as palavras escola. Lá atrás, as letras grandes por ganhar a guerra civil com a
“Desalojados Lisboa”. Sim, há sinais de superação nesta servem para publicitar espumante. ajuda alemã do líder nazi Adolf
imagem do fotógrafo Alfredo Cunha, que é também o autor E podemos imaginar como seria Hitler e com o apoio do regime
de algumas das fotografias mais inesquecíveis da Revolução melhor a vida sem guerra, se agora fascista italiano de Benito Mussolini.
de 1974. fosse de noite em Barcelona e aquela Pelo caminho, os rebeldes de
Alfredo publicidade estivesse iluminada. direita semearam valas comuns. E
Cunha fará Mas não é altura de pensar em ao vencer deixaram como ditador
amanhã 69 espumante, nem no próximo Ano o general Francisco Franco (1892-
anos e lança Novo, nem no último Carnaval. 1975). Correção: numa guerra quase
hoje em Nem sequer importa muito o todos acabam por perder, a começar
Lisboa um dia da semana, porque o ritmo pelos civis. Quer sejam homens e
ALFREDO CUNHA

novo livro, mudou. Os dois rapazes olham- mulheres em idade de combater


às 18h30, na nos a partir de uma barricada, do ou pessoas demasiado velhas ou
Biblioteca alto de agosto de 1936. São duas demasiado novas para entrar nessa
da Imprensa crianças numa guerra, embora não engrenagem.
Nacional. O livro é o nono da ótima série Ph, da Imprensa vejamos armas nem sangue nesta Antes de existir fotografia, o
Nacional — Casa da Moeda, dedicada a fotógrafos imagem de Gerda Taro (1910-1937). genialíssimo pintor Francisco de
portugueses conceituados. Helena Almeida, Jorge Molder Talvez os miúdos estejam ali a Goya (1746-1828) tinha mostrado
e Paulo Nozolino estão entre os anteriores fotógrafos brincar, talvez a fotógrafa queira ao mundo os horrores da guerra e
escolhidos para esta coleção bilingue, com textos em transmitir otimismo. Para já, estes em particular o sofrimento vivido
português e em inglês. Neste novo volume, o sociólogo rapazes desarmados sabem escalar pelos civis. Já sobre a guerra civil
António Barreto escreve sobre os mais de 50 anos de a barricada e usam na cabeça espanhola, a obra de arte mais
trabalho de Cunha, identificando como marca transversal da barretes omnipresentes em crianças incontornável é “Guernica”. Pablo
obra “uma timidez indiscutível” na forma como fotografa os fotografadas por estes tempos. Picasso pintou-a em Paris, em 1937.
acontecimentos e as pessoas. São os primeiros tempos da guerra Depois, foi levada para Nova Iorque
É uma timidez poética, feita de atenção. O fotógrafo sempre civil espanhola (1936-1939) e durante a II Guerra Mundial. E só
olhou para os problemas de frente, evitando a exploração um dos rapazes parece ter no aterrou em Espanha em 1981, com
visual da intimidade alheia. Em vez de apenas mostrar, as chapéu a sigla de um sindicato a democratização do país. Pode e
fotografias de Alfredo Cunha pedem-nos que pensemos. anarcossindicalista que está do deve ser vista em Madrid, no Museo
Venham mais. lado republicano. Esta seria uma Reina Sofía.

E 18
Quando Picasso pintou “Guernica”, FLASHES LONDRES
a fotografia de guerra estava a
aproximar a realidade das frentes
de batalha das páginas das revistas
Lucian Freud e a égua “Sioux”
e dos jornais. Antes, com o início da
fotografia no século XIX, as imagens
de guerra tinham começado
a chegar longe das frentes de
combate. Mas fotografar exigia o
uso de equipamentos muito pesados
e lentos, impossíveis de conjugar
com os repentes das batalhas.
LOS ANGELES
Durante a Guerra da Secessão
Este figurino sexy foi criado para o

THE LUCIAN FREUD ARCHIVE _ BRIDGEMAN IMAGES


(1861-1865), nos Estados Unidos,
filme de 1954 “Carmen Jones”, onde
as fotografias de guerra mostravam
vestiu a personagem interpretada
GERDA TARO/INTERNATIONAL CENTER OF PHOTOGRAPHY

os momentos antes e depois das


pela atriz Dorothy Dandridge (1922-
batalhas, quando havia condições 1965). Poderia ser só mais uma roupa
para fotografar. usada por uma atriz bonita, neste caso
Já depois da I Guerra Mundial, com afro-americana. Mas o histórico de
a chegada ao mercado de câmaras racismo e também de promoção de
fotográficas pequenas e muito racismo que está ligado a Hollywood
portáteis, a fotografia passou a poder é um assunto doloroso. Até 9 de abril
ser feita de forma muito mais rápida, em Las Vegas, a exposição “Regene-
acompanhando de perto os soldados ration: Black Cinema 1898-1971” está
no terreno. Foi nesse contexto no Academy Museum. Para contar uma
tecnológico que a fotógrafa alemã parte desta história.
de origem judia Gerda Taro chegou
à guerra civil espanhola, optando Quando Lucian Freud morreu há 11 anos, conheceu a égua “Sioux”. Nesse ano
de forma militante pelo lado “Sioux” assistiu à última missa dentro da de início da II Guerra Mundial, o neto
republicano. E formando na linha da igreja. Depois, a égua acompanhou o que viria a ser pintor ganhou cidadania
frente uma dupla com Robert Capa, cortejo até ao sítio onde foi sepultado britânica, anos depois de a família ter
que tem todos os ingredientes de um o pintor britânico de origem alemã. A saído da Alemanha a seguir à chegada
bom romance de amor e de guerra. égua “Sioux” morava no Wormwood ao poder do ditador nazi Adolf Hitler.
Antes de chegarem a Espanha, Taro Scrubs Pony Centre, onde Freud Lucian Freud foi um dos grandes
e Capa tinham abandonado no exílio instalou um estúdio temporário entre pintores do séc. XX. E a tela “Mare
parisiense os nomes de nascença 2003 e 2006. Quem apresentou ao Eating Hay” (“Égua a Comer Feno”) está
Gerta Pohorylle e André Friedmann, pintor esta égua (na imagem) foi uma agora a ser exibida pela primeira vez, na
trocando-os por nomes com pinta freira que dirigia a instituição. E “Sioux” pequena exposição “Horses & Freud”,
CIDADE DO CABO — LONDRES
de Hollywood. Gerda Taro morreu tornou-se a preferida de Freud. Não se até 16 de dezembro na galeria Ordovas,
— VENEZA
depois de ter sido ferida por um tratava de fervor religioso, mas antes em Londres. Também em Londres, a
Grada Kilomba tem conquistado o
tanque republicano desgovernado, de amor a estes animais e às apostas grande exposição “Lucian Freud: New
mundo. Até 9 de janeiro, a exposição
11 meses depois do dia em que em corridas de cavalos. Talvez esta Perspectives” está até 22 de janeiro na
“A World of Illusions” está na Cidade
retratou em Barcelona estes rapazes do Cabo, na Norval Foundation. Já em ligação sentimental entre o pintor, a National Gallery. O pretexto para estas
empoleirados numa barricada. Agora Londres, na Somerset House, a artista égua e o jogo pudesse ter interesse e outras exposições ligadas a Lucian
e até 9 de janeiro, o International nascida em Portugal e radicada na Ale- para o psicanalista Sigmund Freud. Mas Freud é uma data redonda. Se fosse vivo,
Center of Photography tem em Nova manha tem agora e até 20 de outubro o avô do pintor não chegou a analisar a o pintor faria 100 anos no próximo mês
Iorque a exposição “Death in the “O Barco”. E em Veneza, na Fondazione questão porque morreu em 1939 e não de dezembro.
Making: Reexamining the Iconic Giorgio Cini, Kilomba é uma das artistas
Spanish Civil War Photobook”. e intelectuais negras convidadas para
A exposição conta com imagens o congresso “Loophole of Retreat:
da guerra civil espanhola dos Venice”, que começa hoje, termina no
repórteres fotográficos Gerda Taro, domingo e é uma extensão da expo-
sição “Simone Leigh: Sovereignty”, do PHOTO
Robert Capa e David Seymour, mais
pavilhão dos Estados Unidos na Bienal MATON
conhecido como Chim. São dos três
de Veneza.
as fotografias do livro “Death in
the Making”, que Capa dedicou a
Gerda Taro um ano depois da morte
da primeira repórter fotográfica de MADRID
guerra da História. Mais importante O Museo del Prado tem em Madrid
do que ter sido pioneira, são de Taro outras estrelas muito mais importantes
algumas das melhores imagens da para a História de Arte, mas há 25 obras
guerra civil espanhola. Trouxe-nos já identificadas que podem significar
muito para os descendentes dos anti-
a morte, através dos corpos caídos.
gos proprietários, espoliados durante
O medo, nas caras incrédulas de
a guerra civil espanhola. O museu
crianças e mulheres refugiadas. Os madrileno decidiu abrir uma investiga-
olhares de homens e mulheres mal ção para descobrir se há mais peças na
vestidos e mal armados, que queriam coleção que tenham esta proveniência Esta imagem integra a série “How to Rejuvenate an Eagle”, dos fotógrafos
parecer invencíveis. E trouxe-nos indigna. O objetivo é agora devolver polacos Adam e Dyba Lach. E faz agora parte da exposição de fotografia
estes rapazes numa barricada, entre estas obras de arte aos familiares de polaca “Ausnahmezustand. Polnische Fotokunst heute”. Até 1 de janeiro no
outros mistérios da frente. b quem foi roubado. Zentrum für Aktuelle Kunst, em Berlim. Quem chegará primeiro?

E 19
C A RTA S A B E RTA S

CELEBREMOS O FIM DA PANDEMIA,


MAS NÃO DE MODO EFUSIVO;
OU O PUTIN CARREGA NO BOTÃO

N
A PANDEMIA ACABOU, A COVID FOI DERROTADA E SERIA ALTURA DE VIRMOS
PARA A RUA ABRAÇAR-NOS E BEIJAR-NOS. MAS ESTAMOS EM GUERRA...

o dia em que Sua Excelência Pelo contrário, doravante, e se não queremos que o homem
o ministro da Saúde, com os puxe ou empurre ou lá o que se faz no botão, teremos de ter
seus elevados conhecimentos, muito mais tino.
cogitações e estudos, decidiu — Não podemos fazer festas imorais, nem dar beijos na rua,
que a pandemia tinha nem permitir que dois homens se casem, a menos que pelo
acabado, pensei ser altura menos um seja homossexual;
de darmos largas à alegria, — Não podemos permitir que as crianças tenham duas mães
soltarmos a franga e fazer ou dois pais e devemos, até por motivos económico-religiosos,
uma parada trans/gay/hetero cortar para metade a parentalidade dessas crianças. Cada
para manifestarmos o infante terá um pai ou uma mãe, de modo a não haver
nosso júbilo. Algo que nos desperdícios;
devolvesse os anos em que — Não podemos permitir que homens usem saias, a menos
andámos afastados, a curvar-nos uns perante os outros, qual que sejam assessores de Joacine Katar Moreira, que por acaso
coreanos, com a máscara a cobrir-nos as feições. Os tempos de desapareceu com esta crise, o que não deixa de ser intrigante;
chumbo foram declarados encerrados e, doravante, como diz o — Não podemos ser ateus estúpidos nem libertinos irreligiosos,
hino do PCP, “o Sol brilhará para todos nós”. pelo que as orgias acabaram, a menos que sejam secretas;
Partilhei esta minha ideia da parada com alguns amigos de — A nossa Igreja deve converter-se ao patriarca Cirilo e, por sua
várias tendências, mas todos eles se manifestaram contra. O via, ao Presidente Putin, pois só desta maneira saberemos o que
discurso de Putin, a que eu, miserável e descuidadamente, é justo e injusto, de acordo com a vontade dos citados estadistas;
não prestara atenção, tinha-nos prevenido para essa — Não podemos acolher os cultos satânicos americanos,
hipótese. No Ocidente — disse ele claramente referindo-se devendo repudiá-los com firmeza, começando por exorcizar
a Portugal — são uns depravados que só pensam em festas os nossos políticos e membros do clero, de modo que o diabo
e orgias. Não falou do vodka e de outras bebidas alcoólicas saia deles e acabem as práticas de assédio sexual que tanto
que se consomem nessas orgias, apenas porque isso poderia incomodam o Kremlin;
prejudicar as exportações da Federação Russa, que ele ama — Temos de deixar de apoiar a Ucrânia e outros países
acima de qualquer outra coisa. Mas no seu diagnóstico não esquisitos, devolvendo a parte alemã que foi pró-russa ao país
faltou o essencial: de origem, assim como a Polónia, a Ucrânia, os Bálticos, a
1) Nós permitimos festas imorais; Hungria, a Chéquia, a Eslováquia, tudo o que era Jugoslávia e,
2) Aceitamos que homens se casem com outros homens; de brinde, a Itália e a Albânia.
3) Não nos importamos que crianças, em vez de um pai e uma Se nem assim o grandioso Presidente Putin ficar satisfeito,
mãe, tenham dois pais ou duas mães; nada podemos fazer. Mas eu penso que ao Kremlin bastaria que
4) Damos beijos na rua; tomássemos estas medidas simples para que lá em Moscovo
5) Usamos minissaia; voltassem a gostar de nós. E já sem pandemia! b
6) Há homens que vestem saia e não são escoceses;
7) Somos depravados e só pensamos em orgias, onde é tudo ao
molho sem sequer ter fé em Deus;
8) A nosso Igreja, manifestamente, não presta, se comparada
com a Santa Igreja Ortodoxa Russa e com o patriarca Cirilo, que
é um santo;
9) Submetemo-nos aos Estados Unidos e permitimos que as
suas conhecidas tendências satânicas entrem nos nossos lares;
10) Invadimos países soberanos, como a Rússia, ao fornecer
armas a países russos que, por qualquer motivo, não querem / COMENDADOR
ser russos e preferem ser uma coisa esquisita, como ucranianos
ou letões.
MARQUES
Ora, assim sendo — e não deixando de dar alguma razão ao DE CORREIA
Presidente russo, até porque os loucos não se devem contrariar
—, não há condições para festejar a alegria que nos deu Sua
Excelência o ministro da Saúde e Sua Não Menos Excelência a
diretora-geral da Saúde.

E 20
As horas
que o corpo dá
O que muda quando muda a hora? Os investigadores
estão a tentar descobrir o momento certo do dia para
fazer tudo. Podem os seus estudos sincronizar-nos com
uma saúde melhor? A missão da Medicina Circadiana
para regular os relógios biológicos das nossas células

TEXTO
KIM TINGLEY
“THE NEW YORK TIMES”

ILUSTRAÇÕES
GONÇALO VIANA

E 22
E 23
e pensarmos bem nisso, o “tempo” tende a parecer- nos fazem sentir sonolentos; de manhã, o cortisol e

S
-nos como extrínseco, uma característica do nosso outras hormonas tornam-nos vigilantes, aquecem
ambiente: rastreamos a nossa passagem através dele o nosso corpo e aumentam a pressão arterial. Acre-
como se atravessássemos uma geografia invisível, o dita-se que o pico da manhã na pressão arterial seja
nosso progresso é cartografado por relógios de pul- uma das razões pela qual os ataques cardíacos ocor-
so, relógios de parede, calendários. Os seres huma- rem mais frequentemente de manhã do que depois
nos não inventaram o tempo, claro, mas podemos do meio-dia.
racionalmente argumentar que, como inventámos Nas últimas duas décadas, porém, investigado-
as unidades que usamos para o controlar — horas, res descobriram que o relógio no cérebro não é, de
minutos, segundos — temos todo o direito de mexer modo algum, o único no nosso corpo. Acontece que
com elas quando queremos. Esta foi, pelo menos, a a maioria das nossas células contém um grupo de
posição que o Senado americano tomou em 15 de genes que podem ser vistos como engrenagens num
março, quando, de surpresa, e surpreendentemen- relógio mecânico, trabalhando internamente com
te sem contestação, votou a Lei de Proteção Solar precisão em todo o lado. Esses “genes relógio” (há
(Sunshine Protection Act). A nova lei, se a Câmara pelo menos seis que são considerados parte integran-
dos Representantes concordar e o presidente pro- te da operação do relógio) trabalham juntos da mes-
mulgar, tornará o horário de verão permanente, a ma maneira em cada célula. E assim como causam a
partir de 5 de novembro de 2023. libertação de hormonas no cérebro, impõem outros
A mudança é há muito desejada pela indústria processos noutras partes do corpo. No início da dé-
de retalho, que está convencida de que os consumi- cada de 2000, os avanços na capacidade de detetar a
dores gastam mais dinheiro quando fica de dia até atividade dos genes em vários tecidos revelaram que
mais tarde. Mas parece que os legisladores também os relógios das células estão organizados em relógios
encaram o atraso do relógio como uma afronta pes- separados ao nível dos órgãos, representando cada
soal: manhãs sonolentas que resultam da passagem sistema fisiológico: há um relógio da pele, um reló-
das 6h para as 5h, o assassino da moral em Boston e gio do fígado e um relógio do sistema imunitário; há
Billings [NT: a maior cidade do estado de Montana], um relógio para o rim, coração, pulmões, músculos
quando a escuridão cai abruptamente, pouco depois e sistema reprodutivo. Cada um desses relógios sin-
das 16h. Quando o sim triunfou, houve aplausos dos croniza-se por si só com o relógio central no cére-
dois partidos, como se um adversário estrangeiro bro como uma secção de orquestra que segue o seu
particularmente hostil tivesse sido derrotado. maestro. Mas essas secções também ajustam o como
O que a maioria desses legisladores muito prova- e o quando funcionam com base na orientação que
velmente não percebeu era que o inimigo não estava recebem tanto do ambiente quanto umas das outras
apenas fora de nós — um acordo social sobre como e o seu tempo pode dar feedback ao relógio central e
rotular cada momento da nossa existência em re- fazer com que este também ajuste o seu próprio tem-
lação ao sol —, também estava dentro de nós, onde po. O fígado, por exemplo, determina quando acelera
os nossos órgãos internos também trabalham com o nosso metabolismo com base no que comemos; se
precisão. Na verdade, a maioria das nossas funções o fizermos a meio da noite, o fígado estará a receber
fisiológicas são governadas por um número incalcu- indicações contraditórias do cérebro, que lhe está a
lável de relógios biológicos cuidadosamente sincro- dizer para descansar. Assim, quando o fígado começa
nizados onde cada um completa um ciclo a cada 24 a processar a comida que comemos a meio da noite,
horas. Esses ciclos são conhecidos como ritmos cir- fá-lo-á de forma menos eficiente do que faria após
cadianos, do latim circa (por volta de) e dies (dias). uma refeição diurna e envia sinais contraditórios de
Muitos de nós estamos familiarizados com rit- volta ao cérebro e a outros sistemas de órgãos.
mos circadianos como uma maneira de se referir Tal desalinhamento interno, ou desregulamen-
ao nosso ciclo de sono. Em 1972, os cientistas des- to, pode desequilibrar completamente a nossa fisio-
cobriram que esse ciclo é mediado por uma área logia. A maneira mais familiar como vivemos este
no hipotálamo do cérebro chamada núcleo supra- tipo de caos interno talvez seja quando viajamos por
quiasmático. Essa estrutura coordena a libertação vários fusos horários: à medida que comemos, dor-
de hormonas — entre elas a dopamina — que re- mimos ou nos envolvemos em outras atividades com
duzem a temperatura corporal e a pressão arterial e base na hora local, os nossos relógios central e peri-
férico reiniciam-se a diferentes níveis para se ade-
quarem ao novo ambiente. Os sintomas do jet lag,

Acredita-se que o pico da como insónia, exaustão e problemas de estômago,


lentidão e distração, são exemplos do tipo de mal-

manhã na pressão arterial seja -estar geral causado pela confusão circadiana. Ficar
acordado até mais tarde ao fim de semana do que

uma das razões pela qual os durante a semana tem o mesmo efeito: de tal forma
que foi apelidado de “jet lag social”.
Ou seja, os ritmos circadianos não são só rele-
ataques cardíacos ocorrem vantes para dormir. Mas poucos perceberam o quão
relevantes são até que, em 2014, um professor de far-
mais frequentemente de manhã macologia da Universidade da Pensilvânia, chama-
do John Hogenesch, publicou um artigo com os seus
do que depois do meio-dia colegas, mostrando que quase metade dos genes nos

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ratos produzem proteínas num calendário de 24 ho-
ras. Isto significa que à medida que os genes relógio
passam pelas suas funções, o seu trabalho está a ati-
var ou desativar milhares de outros genes, que não
são relógio, em padrões diários consistentes. A des-
coberta surpreendeu os peritos circadianos. Depois
de apresentar o artigo científico numa conferência,
Hogenesch foi à casa de banho e encontrou, no uri-
nol, Horacio de la Iglesia, um biólogo proeminente
da Universidade de Washington com décadas de in-
vestigação circadiana. Este não queria acreditar no
que tinha acabado de ouvir. Até então, pensava-se
que, no máximo, 30% do nosso genoma estava sob
regulação circadiana. O estudo dos ratos implica-
va que esse número era muito maior. “Esta era uma
ideia arrebatadora”, diz.
Hogenesch, uma figura imponente, com 1,85
m, uma indiferença relativamente aos costumes da
moda e uma expressão naturalmente duvidosa, sen-
tiu-se embaraçado, mas obrigado a envolver-se logo
ali. Lembra-se de explicar ainda que centenas dos
genes regulados pelo tempo que tinha identificado
nos ratos já estavam a ser alvo dos seus equivalentes
humanos por medicamentos existentes ou eram po-
tenciais alvos para medicamentos. O facto de os ge-
nes oscilarem, tornarem-se ativos ou inativos num
padrão previsível, significava que esses medicamen-
tos poderiam ser muito eficazes em certas horas do
dia e menos noutras. E podem desencadear efeitos
secundários em determinadas alturas, mas não nou-
tras, dependendo da fase dos relógios nos tecidos
afetados. Descobriu, desde então, que 50% dos nos-
sos genes são controlados pelo relógio. Isso equivale a
cerca de 10 mil dos cerca de 20 mil genes que temos.
“Foi muito difícil aceitar”, disse-me recente-
mente o biólogo da Universidade de Washington,
que também é presidente da Sociedade para a In-
vestigação dos Ritmos Biológicos, recordando essa
conversa. “Adoro a ideia, porque sou um biólogo cir-
cadiano. Mas é difícil de acreditar.”
Desde então, o professor de farmacologia tem
vindo a explicar-se e à relevância dos genes relógio
para a medicina. Em 2018, mudou-se para o Centro
Médico do Hospital Pediátrico de Cincinnati, onde
lhe foi atribuído um laboratório na divisão da gené-
tica humana. (Antes da sua nomeação em Penn, teve
um papel de liderança no Genomics Institute na em-
presa farmacêutica Novartis, que lançou a carreira de
inúmeros líderes em biologia molecular.) Hogenesch
esperava que estar diariamente próximo de pacientes
e médicos lhe daria uma oportunidade de usar a pes-
quisa circadiana para ajudar as pessoas diretamente.
A medicina ocidental é, há muito, cética de es-
tudos que promovem os benefícios para a saúde de
sincronizar tratamentos com ciclos biológicos, como
faz a medicina tradicional chinesa, em grande parte
porque não havia nenhuma explicação científica para
os resultados. A revelação relativamente recente dos
fundamentos genéticos dos ritmos circadianos pro-
vocou uma reavaliação de muitas ideias antigas. An-
teriormente, essas ideias eram testadas observando
se as pessoas que receberam um determinado pro-
cedimento médico tinham resultados diferentes, de-
pendendo de quando o receberam, ou ao observarem

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associações entre o momento de determinados com- surgiam à hora errada do dia. Produziram três linha-
portamentos, como dormir e o risco de doença. gens: uma emergiu aparentemente de forma aleató-
Agora os cientistas possuem a tecnologia para ver ria; outra emergiu demasiado cedo e outra emergiu
como os ritmos circadianos oscilam a um nível mole- demasiado tarde. Surpreendentemente, todas as
cular com base no comportamento e na hora do dia três tiveram mutações no mesmo gene. Nas moscas
tanto em ratos como em pessoas. Hogenesch é um normais, parecia que o gene tinha um relógio de 24
desses cientistas, e o seu esforço para preencher o va- horas que era reposto a cada dia; o período do reló-
zio entre o laboratório e a clínica tem sido o seu pró- gio nas mutações era demasiado curto, demasiado
prio tipo de experiência que transporta a biologia cir- longo ou inexistente.
cadiana das franjas para o centro do tratamento mé- Gradualmente ficou claro que os humanos e ou-
dico convencional. Em última análise, ele e os outros tros mamíferos haviam desenvolvido genes relógio
esperam que descobrir como os relógios internos tra- semelhantes que lhes permitiam antecipar, em vez
balham nos irá permitir controlá-los de formas que de simplesmente reagir, o dia e a noite. Os cientis-
melhorem a nossa saúde, mantendo-nos dinâmicos tas estão agora confiantes de que sabem basicamen-
durante mais tempo. Neste momento, movem-se im- te como funcionam. “É um pouco como olhar para
placavelmente para um fim. Conceptualmente falan- algo mecânico, um motor num carro — há pistões e
do, pelo menos, se fosse possível retardá-los ou pa- uma manivela”, diz Michael Young, professor de ge-
rá-los à nossa vontade, estaríamos a alterar a relação nética na Universidade Rockefeller, que partilhou o
da Humanidade com o próprio tempo. Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2017 pelo circadianos ou uma diminuição da sua amplitude.
seu trabalho em mecanismos circadianos. Dois ge- Isto resulta em menos contraste entre a fase ativa
À NOITE A DIFERENÇA nes (um dos quais Hogenesch identificou no início e a fase de repouso, que, no caso do sono, pode po-
Todas as criaturas, incluindo os seres humanos, ten- da sua carreira) produzem proteínas que ativam ou- tencialmente traduzir-se em sentir-se mais cansado
dem a comportar-se de forma diferente durante o tro par de genes, fazendo com que comecem a criar durante o dia e acordar mais frequentemente à noi-
dia e durante a noite. Os dois períodos compensam proteínas próprias. Quando estas atingem um certo te. Ritmos robustos, no entanto, exigem que o cére-
forças sensoriais opostas quando se trata de caça e nível na célula, interferem com as engrenagens, por bro não receba sinais luminosos à noite. Alguns es-
ocultação. Durante a maior parte da história mo- assim dizer, impedindo-as de se mexerem. Por fim, tudos mostram que mesmo enquanto dorme, a luz
derna, antes de compreendermos que o núcleo su- as proteínas degradam-se e o processo (em que vá- fraca pode penetrar nas pálpebras fechadas e con-
praquiasmático guia o ciclo do sono-despertar, as- rios outros genes também participam) começa no- fundir o relógio.
sumiu-se que nós e outras criaturas simplesmente vamente. Cada ciclo de ativação demora cerca de Manter ritmos circadianos saudáveis no cérebro
íamos apanhando algumas indicações do ambiente 24 horas. Os nossos relógios celulares funcionam pode melhorar a duração e a qualidade do sono, e
à nossa volta — Está de dia lá fora? Está escuro? — essencialmente da mesma maneira numa célula do um melhor sono correlaciona-se com uma melhor
no que dizia respeito a estar ativo ou em repouso. fígado como num neurónio, mas o resultado que função neurológica e um risco reduzido da doen-
Mas em 1971, Ronald Konopka, um estudante de aquelas células conseguem é completamente di- ça de Alzheimer, que tem sido associada a um sono
pós-graduação no Instituto de Tecnologia da Cali- ferente. Como Joseph S. Takahashi, presidente do fragmentado. No entanto, ajustar o relógio central
fórnia, começou a testar uma teoria de que determi- departamento de neurociência do O’Donnell Brain também pode deslocar o ciclo de sono para coinci-
nado comportamento era, na verdade, inato, guia- Institute do Centro Médico da Universidade Texas dir com o tempo ideal para a reparação neurológica
do por genes e não por sinais externos. Para muitos, Southwestern, que identificou o primeiro gene reló- durante o ciclo de 24 horas do cérebro.
essa noção parecia uma loucura; o comportamento gio em mamíferos, me disse: “Quando descobrirmos Scott Killgore, professor da Universidade do
era demasiado complexo para ser hereditário. No que todas as células no nosso corpo têm um relógio Arizona, explorou a luz como um tratamento para
entanto, Konopka observou que as pupas da mosca- vamos depois querer saber o que fazem. De certa veteranos das forças armadas que sofreram trau-
-da-fruta emergiam geralmente do seu casulo tipo forma, ainda estamos nessa fase.” matismos cerebrais ou que têm sintomas de stresse
crisálida ao alvorecer, quando a humidade permitia O núcleo supraquiasmático está ligado direta- pós-traumático (SPT). Os seus resultados sugerem
que abrissem as suas asas. Como poderiam as pupas mente à retina, e na década de 1980 foi confirma- que a exposição à luz azul (um substituto para a luz
saber quando era de dia, sem um temporizador du- do que o relógio cerebral poderia ser calibrado pela solar) de manhã poderia tornar a terapia para o SPT
rante a sua metamorfose de dentro de um casulo? luz solar ou luz artificial, que sinaliza quando é dia. mais eficaz, melhorando o sono dos participantes
Konopka e o seu professor Seymour Benzer, um bió- Obter luz de forma consistente quando acordamos, do estudo. Mas quando os veteranos dormem, e não
logo molecular na vanguarda do campo que se tor- e acordar ao mesmo tempo todos os dias pode aju- apenas a quantidade e qualidade, também parece
nou conhecido como genética comportamental, co- dar a manter o relógio no bom caminho para que, ser importante. A luz azul da manhã (em oposição
meçaram a induzir mutações aleatórias de ADN em por sua vez, adormeça a uma hora ideal; pode tam- a um placebo de luz âmbar) ajudou as pessoas a re-
moscas-da-fruta e observavam para ver se as pupas bém prevenir um enfraquecimento dos seus ritmos cuperar de lesões cerebrais e de traumatismos, em
grande parte, ao fazê-las adormecer uma hora mais
cedo e despertar uma hora mais cedo, que, segundo

A exposição à luz brilhante Killgore, parecia ser igual à “melhor altura da noite”
para a reparação cerebral. Após seis semanas, indi-

durante a noite só foi possível víduos com traumatismos cerebrais sentiram-se


menos sonolentos, tiveram melhor equilíbrio e tive-

nos últimos 100 anos. Até à ram melhores resultados nos testes de planeamento
e sequenciação; ressonâncias magnéticas funcio-
nais mostraram que uma região cerebral associada à
invenção da eletricidade, teria atenção visual tinha crescido mais e tinha acelerado
a comunicação entre neurónios.
sido difícil desalinhar o relógio Pelo contrário, ser exposto à luz quando o seu
corpo deve estar a descansar, pode ter um impac-
do cérebro em relação ao sol to negativo significativo. Em março, Phyllis Zee,

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neurologista da Universidade Northwestern, e os na Universidade do Colorado, colocou voluntários clínica, da mesma forma que a medicina do sono foi
seus colegas relataram no PNAS que bastava uma saudáveis a dormir durante o dia e a ficarem acorda- desenvolvida há meio século.”
noite de exposição moderada à luz durante o sono dos durante toda a noite. Não demorou muito tempo
(aproximadamente o equivalente a deixar as cortinas para que esse calendário alterasse significativamen- O RISCO DOS HOSPITAIS
do quarto abertas às luzes da rua) para prejudicar a te o tipo de proteínas que os seus corpos criam e que Os hospitais são, talvez paradoxalmente, um dos pio-
regulação da glucose e regulação cardiovascular em aumentam o risco de doenças crónicas. “O trabalho res ambientes imagináveis para manter a saúde cir-
jovens participantes saudáveis; ao longo do tempo, por turnos vai contra a nossa biologia fundamental”, cadiana ideal. Isso é válido tanto para os trabalhado-
estas alterações poderiam aumentar o risco de do- diz Wright. “Isso não vai desaparecer. Então, o que res quanto para os pacientes. Normalmente, há pouca
ença cardíaca e diabetes. No mês passado, uma pu- podemos fazer? Temos de arranjar estratégias efica- luz natural e a que há é muito mais escura no interior
blicação no “Sleep”, da coautoria de Zee, associou zes para ajudar as pessoas.” do que no exterior; o sono dos pacientes é constan-
qualquer exposição noturna à luz durante o sono a Isso, acreditam, incluirá muito provavelmente temente interrompido por ruídos e procedimentos
um risco substancial de obesidade, diabetes e hiper- conselhos sobre como comer, exercitar e, por vezes, médicos, muitos dos quais ocorrem durante a noi-
tensão em adultos mais velhos. As descobertas cor- obter o tipo certo de luz que compensam alguns dos te e são, portanto, realizados por trabalhadores por
roboram grandes estudos epidemiológicos que mos- riscos de saúde que enfrentam. Por exemplo, pen- turnos. Quando Hogenesch chegou ao seu hospital de
traram que a luz durante o sono, particularmente de sar na altura das refeições. Comer à noite aumenta o Cincinnati há quatro anos, viu oportunidades de me-
uma televisão deixada no quarto, é um fator de risco risco de intolerância à glicose, o que causa diabetes, lhoria em todo o lado, começando pelas luzes. Cin-
para a obesidade. (Cerca de 40% dos americanos diz porque os rins, o pâncreas e o fígado estão prepara- cinnati estava a projetar um novo edifício e ele envol-
deixar uma televisão ou uma luz de cabeceira ligada dos para estar a descansar nessa altura. Mas um es- veu-se no planeamento de um sistema de iluminação
à noite.) Um estudo de 2019 no “The Journal of He- tudo de 2021 sobre avanços da ciência demonstrou para a sua unidade de cuidados intensivos neona-
alth Economics” analisou as pessoas que vivem em que quando os participantes eram obrigados a ficar tais que poderia imitar todo o espectro de luz do dia
distritos adjacentes em ambos os lados da fronteira acordados à noite, como acontece com os trabalha- no exterior a qualquer hora. Neste momento, as lu-
de um fuso horário, uma circunstância parecida com dores por turnos, mas eram acordados durante o dia zes não são consideradas “dispositivos médicos”, o
a comparação dos impactos do horário de verão com para comer, não sofriam de intolerância à glicose.(É que significa que não são reguladas pela Food and
o padrão. Os do lado ocidental, para quem era escu- possível ser-se eficazmente noturno manipulando o Drug Administration (FDA) da mesma forma como,
ro de manhã e tinham mais uma hora de luz à noite, tempo em que obtém luz, melatonina e outras pistas por exemplo, os pacemakers ou as ligaduras são. Em
dormiam menos, tinham mais probabilidades de ter circadianas, para que a fase ativa do seu fígado, cé- vez disso, os esquemas de iluminação baseiam-se
excesso de peso ou ser obesos e tinham riscos mais rebro e outros órgãos ocorra à noite, mas isto é fre- em grande parte no hábito e na suposição, em vez
elevados de ter diabetes, ataques cardíacos e cancro. quentemente impraticável para trabalhadores por de provas dos seus efeitos na saúde dos pacientes.
A exposição generalizada à luz brilhante duran- turnos que querem ou necessitam estar acordados “A cultura dos cuidados intensivos neonatais é que
te a noite só foi possível nos últimos 100 anos. Até à durante o dia metade da semana.) Charles Czeisler, mais escuro é melhor”, diz Jim Greenberg, codire-
invenção da eletricidade e das viagens aéreas, teria um dos autores do estudo e chefe da divisão de dis- tor da unidade perinatal do hospital. “Há uma ideia
sido relativamente difícil desalinhar o relógio do cé- túrbios do sono e circadianos no Brigham and Wo- errada de que o útero é um lugar escuro e sossegado.
rebro em relação ao sol. Agora, contudo, pelo menos men’s Hospital em Boston, também dirige o depar- Parte da prática habitual consiste em colocar prote-
20% dos americanos trabalham num turno que exi- tamento da medicina do sono na Harvard Medical ções sobre as incubadoras para as manter no escuro.”
ge dormir durante o dia e estar ativo durante a noite School. Começou a sua carreira como investigador Contudo, várias pesquisas têm repetidamente
numa parte da semana; isto significa que é provável do sono no início da década de 1970, antes da im- mostrado que os prematuros que recebem 12 horas
que estejam expostos à luz do dia quando devem portância do sono para a saúde geral ser tão ampla- de luz, seguidas de 12 horas de escuridão, recebem
estar em repouso e, muitas vezes, não tenham luz mente apreciada como é agora. Atualmente, a apli- alta, em média, duas semanas antes daqueles que
comparável quando estão acordados e em atividade. cação de ritmos circadianos nos cuidados de saúde estão expostos à escuridão quase constante ou estão
Esse trabalho por turnos, exigido aos trabalhadores (alguns falam em “medicina circadiana”, enquanto perto de luz constante. O novo sistema permitirá ao
de hospitais e fábricas, aos trabalhadores de restau- outros utilizam a “cronomedicina”) é muitas vezes hospital ir mais longe e investigar pela primeira vez
rantes, aos fornecedores de transportes, aos milita- considerada apenas como uma faceta da medicina as condições de iluminação ideais para prematuros.
res, aos socorristas, aos novos pais, tem sido associ- do sono e não tem a coesão e a influência que a dis- Este outono, os médicos pretendem testar o efeito
ado a uma ampla variedade de doenças. Para des- ciplina conseguiu. “A medicina circadiana estende- de vários espectros e ciclos de luz-escuridão sobre
cobrir o porquê de isso acontecer, Kenneth Wright, -se além da medicina do sono”, disse-me Czeisler. o metabolismo e crescimento de recém-nascidos
que dirige o Laboratório do Sono e de Cronobiologia “Precisamos desenvolver uma nova especialidade com distúrbios gastrointestinais. É fácil imaginar

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experiências semelhantes a revolucionar as melho- descreveram um esforço que tinham feito para me- controlo. A nutricionista da unidade, Cindy Taggart,
res práticas para iluminar casas de repouso, escolas lhorar o sono na unidade, limitando o ruído disrup- estava inicialmente cética de que a logística funcio-
e edifícios de escritórios. Muitas vezes, como acon- tivo à noite — alarmes desnecessários de monitores, naria. (Por vezes, 14 horas de alimentação é o melhor
tece nas Unidades de Cuidados Intensivos Neonatais serviços de limpeza, o som das portas a bater em ba- que ela consegue fazer.) Empiricamente, pensa que
(UCIN), existe uma presunção de que as cortinas fe- tentes de metal. está a ajudar. “Sinto que os meus pacientes voltam
chadas e a escuridão trazem tranquilidade aos ido- Curioso, Hogenesch seguiu-os até ao seu de- a comer mais rapidamente”, afirma.
sos e aos que sofrem de dor ou doença, quando, na partamento na esperança de poder sugerir alguns
verdade, a ausência de luz resulta muito provavel- ajustes adicionais úteis. Visitei o hospital em 2020, MELHORAR MUDANDO
mente em piores estados de espírito, sono e saúde. e, enquanto lá estive, ele e um dos investigadores da O metabolismo não se refere apenas à digestão dos
Depois do seu encontro com De la Iglesia, Ho- área dos transplantes, Christopher Dandoy, recria- alimentos. Também se trata de como todas as nos-
gensch decidiu avançar para uma ofensiva de rela- ram este momento. Dentro de uma sala vazia, Dan- sas células utilizam energia para executar as tare-
ções públicas. Se os cientistas circadianos ficavam doy acendeu um interruptor ao lado da porta. “Tinha fas necessárias para nos manter vivos e a funcionar.
assustados com o trabalho uns dos outros, não era a certeza de que a iluminação seria uma porcaria e Quanto mais eficientemente o fizerem, enquanto se
de admirar que os médicos de outras especialida- vocês não me desiludiram”, afirmou Hogenesch de replicam e reparam a si mesmas, melhor nos senti-
des não estivessem cientes da sua investigação e, forma alegre. Para confirmar, abriu uma aplicação remos. Phyllis Zee, a neurologista que, em 2014, fun-
por conseguinte, não a estivessem a utilizar para para medir a luz no telemóvel e acenou-a às luzes dou o Centro de Medicina Circadiana e do Sono na
ajudar os pacientes. Ouvi-o incentivar uma série de de teto anémicas e a uma janela do tamanho de uma Feinberg School of Medicine, o primeiro lugar nos
investigadores circadianos num almoço no início de caixa de pizza. Apontou para todas as luzes azuis que Estados Unidos a considerar a medicina circadiana
2020. “Chegou a hora de sairmos dos nossos labo- brilhavam em vários dispositivos médicos. “Repo- como uma especialidade separada, pensa que pa-
ratórios”, disse-lhes, “e de ir para os gabinetes dos sitores de relógios”, anunciou. (Ele tapou as luzes cientes com muitas doenças crónicas comuns (da
nossos colegas”. azuis que não piscam dos aparelhos eletrónicos na diabetes à doença cardíaca, ao declínio cognitivo)
David Smith, otorrinolaringologista pediátrico sua própria casa e viaja com um rolo de fita-co- podem ver melhorias alterando os seus comporta-
de Cincinnati, diz que Hogenesch estava a falar lite- la para poder fazer o mesmo em quartos de hotel.) mentos para melhorar a sincronização dos seus re-
ralmente. “É como um candidato político que vai de Uma televisão, que os pacientes podiam deixar ace- lógios internos. “Não é preciso fazer muita coisa”,
casa em casa. O John já falou comigo não sei quan- sa toda a noite, estava colocada por cima da cama. diz. Manter um registo de quando dorme e acorda,
tas vezes.” Isto requereu uma determinada disposi- A fraca iluminação do quarto e a falta de escuri- come e toma medicamentos, bem como de como
ção para pôr de lado o seu ego. Hogenesch é inter- dão total não surpreenderam Hogenesch, mas ficou passa a noite e como se sente, pode dar-lhe a si e ao
nacionalmente conhecido na sua área. Mas, diz, a assustado ao saber que os pacientes eram alimen- seu médico de família muitas informações para agir.
reação dos especialistas do hospital quando entrou tados por via intravenosa 24 horas por dia, um pro- Na verdade, uma das grandes promessas da me-
pelas suas unidades adentro com slides em Power- tocolo baseado, em parte, nos tempos de entrega e dicina circadiana é o seu apelo ao ‘faça você mes-
Point e um conhecimento enciclopédico da inves- data de validade da fórmula nutricional. Hogenesch mo’: se pudéssemos descobrir o momento ideal para
tigação circadiana relevante para as suas disciplinas explicou aos seus colegas que muitas vezes as pes- comer ou fazer exercício, por exemplo, poderíamos
acabava por ser recebido com um: “Quem é o tipo soas desenvolvem hipertensão e outros problemas se mudar o nosso comportamento imediatamente, de
da Häagen-Dazs?” comerem durante a sua fase de repouso circadiano, forma gratuita, não só para minimizar os danos mas
Foi numa dessas conversas que descobriu um que é normalmente à noite. “Nunca tínhamos pen- também para maximizar os benefícios de uma de-
provável mau funcionamento do ritmo circadiano sado nisso de uma forma clínica”, disse Dandoy. terminada atividade para a saúde. Os atletas profis-
que não era causado por luz fraca ou sono fragmen- Demorou um ano para que Hogenesch, Dandoy e sionais e os seus treinadores, por exemplo, sabem
tado. Por acaso, vários médicos do departamento de outros conseguissem que o departamento de trans- que o desempenho físico atinge um pico no final da
transplante de medula óssea e imunodeficiência de plantes concordasse em realizar um ensaio no qual tarde ou no início da noite. (A maioria dos recordes
Cincinnati estavam presentes. Na sua unidade, as alguns pacientes seriam alimentados por apenas 12 mundiais foram quebrados à noite.) Em fevereiro, o
crianças com leucemia recebem quimioterapia para horas durante o dia, em vez de constantemente. O Cell Metabolism publicou um “atlas do metabolis-
matar células anormais e suprimir o sistema imuno- pressuposto era de que essas crianças iriam expe- mo do exercício” que mostrava como, para os ratos,
lógico antes de um transplante, para que não rejei- rienciar uma melhor regulação metabólica e do sis- os efeitos metabólicos da corrida nas miniesteiras
tem a medula de um doador. O procedimento muitas tema imunológico do que aquelas que recebiam o mudavam ao longo de 24 horas. Pode ser, diz Juleen
vezes resulta em complicações potencialmente fa- atual padrão de cuidados. “Poderia ser um enorme Zierath, fisiologista do Instituto Karolinska, na Sué-
tais. Posteriormente, os pacientes geralmente passam fator decisivo”, disse Dandoy. No final do ano passa- cia, e um dos autores do estudo, que certos tipos de
entre três a oito semanas a recuperar no hospital. do, uma dúzia de pacientes já tinha experimentado atividade — como o exercício de baixa intensidade
Os médicos disseram a Hogenesch que duran- o regime de 12 horas sem efeitos adversos, embora versus de alta intensidade — são idealmente realiza-
te esse tempo as crianças desenvolviam muitas ve- seja muito cedo para dizer quantos pacientes podem dos em determinadas alturas, dependendo do resul-
zes hipertensão que era difícil de medicar. Também beneficiar em relação aos seus pares num grupo de tado que prioriza (perda de peso, controlo do açúcar
no sangue, força). “Trata-se de pequenas alterações
para pequenas melhorias”, afirma. “Chamaria isso

À medida que envelhecemos, de aperfeiçoamento.”


Para atletas de elite, no entanto, a menor vanta-

estamos mais vulneráveis ao gem pode fazer a diferença entre uma derrota e uma
vitória. Charles Czeisler é, desde 2009, consultor do

cancro, à doença de Alzheimer, à sono para equipas profissionais de desporto, inclu-


indo os Boston Celtics e os Red Sox. O calendário dos
Celtics, diz ele, a título de exemplo, “induzia inad-
diabetes e à hipertensão. E a força vertidamente uma tremenda perturbação circadia-
na”. Os seus jogos frequentemente terminavam às
dos nossos ritmos circadianos 23h; acabavam o jogo no estádio, jantavam e che-
gavam a casa às 4h. Depois, muitos tinham de co-
enfraquece com a idade meçar fisioterapia para cuidar de lesões às 7h antes

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do treino das 9h. Resolver o problema não necessi- Isto sugere que a hora do dia em que os ratos
tou de nenhuma terapia especial ou equipamento comiam era tão importante para a sua longevida-
muito tecnológico. Czeisler apenas os convenceu a de como qualquer outro fator. Para tentar descobrir
manter horários consistentes no que dizia respeito porquê, Takahashi e a sua equipa examinaram o te-
ao dormir e acordar durante toda a semana e ao fim cido hepático depois dos ratos terem morrido. Des-
de semana: treinando à tarde, indo para a cama às cobriram que quanto mais tempo os ratos viviam,
3h e dormindo até às 11h. Insistiu para que não ti- mais ativos eram os genes que regulam a função
vessem voos muito cedo. Quando viajavam para a imunológica e a inflamação; os genes associados ao
Costa Oeste, aconselhava-os a alterar o horário em metabolismo eram menos ativos. “Podemos ver o
três horas para manter os seus corpos no fuso ho- envelhecimento como uma doença inflamatória”,
rário da Costa Leste. É impossível quantificar o im- disse Takahashi. Consequentemente, ao descobrir a
pacto exato que os ajustes de Czeisler tiveram no seu relação entre os nossos genes relógio e os genes que
desempenho, mas um estudo de 2017 publicado na governam o metabolismo e a inflamação — e mo-
PNAS analisou 20 anos de estatísticas da primeira dificando o funcionamento dos genes relógio para
liga de basebol e conseguiu atribuir uma queda na acelerar ou retardar esses processos em todo o corpo
percentagem de vitórias de uma equipa às interrup- — podemos ser capazes de prevenir doenças e assim
ções circadianas que causam o jet lag. permanecer saudáveis na velhice.
Os não atletas e investigadores circadianos têm- Há muito que os investigadores sabem que o sis-
-se concentrado mais no interesse pela questão de tema imunitário, que gera inflamação em resposta
saber quando comer ou jejuar, por exemplo, saltar o a estímulos prejudiciais como lesões, toxinas e ger-
pequeno-almoço ou o jantar. Algumas das respos- mes, oscila num ritmo de 24 horas. Desde 1960, es-
tas mais convincentes vieram de ensaios aleatórios tudos em ratos têm demonstrado repetidamente que
controlados por investigadores da Universidade de a hora do dia em que são injetados com uma toxina
Telavive e da Universidade Hebraica de Jerusalém. bacteriana que provoca uma reação de imunidade
Ensaios separados com participantes que estavam afeta significativamente a sua mortalidade: a infeção
com excesso de peso e que tinham diabetes mostra- mata cerca de 80% dos ratos expostos ao patógeno
ram que consumir a maioria das suas calorias cedo durante a fase de repouso; mata apenas 30% dos ra-
— fazendo um pequeno-almoço grande, um almo- tos expostos no meio do seu período ativo.
ço médio e um jantar pequeno — leva a níveis mais Quando estamos acordados, as células imuni-
baixos de açúcar no sangue e maior perda de peso tárias estão preparadas para responder aos danos
comparado com o dimensionamento das refeições nos nossos tecidos; à noite, circulam na corrente
em ordem inversa. sanguínea e recolhem informações sobre quaisquer
Em média, os norte-americanos comem dentro ameaças encontradas nesse dia. As feridas cicatri-
de uma janela de 12 horas. Mas Courtney Peterson, zam mais rapidamente durante o dia. As vacinas da
professora associada de ciências da nutrição na Uni- gripe são mais eficazes se dadas de manhã. Em 2015,
versidade do Alabama, em Birmingham, descobriu Aziz Sancar, professor da Faculdade de Medicina da
que encolher isso para uma janela de seis a oito ho- Universidade da Carolina do Norte, ganhou o Pré-
ras e comer as calorias do dia mais cedo pode dimi- mio Nobel pela sua descoberta de que uma proteína
nuir a pressão arterial e o açúcar no sangue, o que da pele que repara os danos causados pela exposi-
pode ajudar as pessoas com diabetes e tensão arte- ção ultravioleta é controlada por um gene relógio e,
rial elevada. assim, opera com um ritmo circadiano. Os roedores
Privar células de nutrientes pode iniciar diferen- expostos à radiação UV às 4h, por exemplo, têm cin-
tes processos metabólicos. Estudos envolvendo ra- co vezes mais probabilidades de desenvolver can-
tos descobriram que quando se restringe em 30% a cro invasivo da pele do que aqueles expostos às 16h.
ingestão de calorias nos animais, estes vivem 30% Há um interesse crescente em explorar ritmos
mais do que o habitual. Olhando para estas expe- circadianos — alinhando o nosso comportamento
riências, Joseph Takahashi, neurocientista da Texas com os nossos relógios ou os nossos relógios com o
Southwestern, que é também investigador no Insti- nosso comportamento — para melhorar a eficácia e
tuto Médico Howard Hughes, questionou o quanto reduzir os efeitos secundários dos tratamentos para
a influência dos ritmos circadianos teve na longevi- algumas doenças, especialmente cancro. Mudar o
dade dos ratos, por oposição à restrição calórica e ao nosso comportamento, claro, é muito mais fácil.
período de jejum. Num estudo publicado na “Scien- Há décadas, estudos conduzidos por Francis Lévi,
ce” no mês passado, Takahashi e os seus colegas especialista em oncologia médica na Universidade
conseguiram destrinçar essa correlação. Quando a Paris-Saclay, realizados antes de os mecanismos das
dieta restrita foi imposta 24 horas por dia, a espe- células relógio serem bem compreendidos, desco-
rança média de vida só aumentou 10% em relação à briram que a toxicidade dos medicamentos para o
esperança média de vida dos ratos de um grupo de cancro, responsáveis pelos efeitos secundários no-
controlo que comiam o que quisessem sempre que civos que acompanham a quimioterapia, poderia
quisessem. Os ratos com uma dieta restrita que re- ser reduzida e a eficácia dos medicamentos contra
cebiam a comida toda de uma só vez ingeriam to- as células cancerígenas aumentaria se os medica-
das as calorias numa janela de tempo de duas horas mentos fossem administrados em determinadas al-
e viviam 10% mais tempo. Por fim, quando os ratos turas do dia. Mas os estudos subsequentes mostra-
comiam durante a sua fase ativa, por oposição à sua ram que um cronograma específico de administra-
fase de descanso, ainda viviam mais 15%. ção dos medicamentos melhorava a esperança de

E 29
sobrevivência para homens com cancro colorretal agosto de 2019, juntamente com os seus colegas, pu- de atribuir pacientes a horários aleatórios e não está
em quase 40%, visto que o mesmo cronograma re- blicou um artigo na “Science”, mostrando que a me- seguro de que algum deles esteja disposto a aceitar
duzia a sobrevivência para mulheres em 25%. Desde tade circadiana do nosso genoma inclui muitos alvos isso. Já é suficientemente difícil chegarem a uma
então, Lévi descobriu que outro medicamento color- dos cerca de 2 mil medicamentos prescritos disponí- hora à sua escolha. E se o timing afetar a sobrevivên-
retal era menos tóxico para os homens às 9h, quando veis nos Estados Unidos. Muito poucos desses medi- cia, o que o radioncologista quer é um medicamen-
era mais tóxico para as mulheres; a sua janela menos camentos foram testados clinicamente a várias horas to que possa ser administrado pouco antes de uma
tóxica era entre as 15h e as 16h. do dia. Apenas quatro dos 50 medicamentos mais injeção que altere o relógio no sistema imunitário e
Lévi está agora a realizar ensaios em França para prescritos têm recomendações aprovadas pela FDA nos tecidos afetados para o tempo ideal. Sem isso,
descobrir mais precisamente como o género e outros relativas à hora do dia em que devem ser tomados. parece difícil determinar as fases do relógio de cada
fatores influenciam a resposta dos pacientes e a tole- Hogenesch esperava que os executivos das em- paciente para identificar o melhor tempo para uma
rância à quimioterapia. Está também a estudar como presas farmacêuticas lessem o artigo da “Science” e medicação e, em seguida, levar o paciente à clínica
o tempo circadiano dos tumores pode ser diferente ficassem inspirados para testar os seus medicamen- nesse intervalo, diz. “Uma hora aqui ou ali — se é
dos seus hospedeiros, o que pode revelar quando são tos existentes em diferentes alturas do dia. Além de isso que importa, estamos condenados ao fracasso.”
mais vulneráveis à destruição. O especialista acre- melhorar os que estão no mercado, as farmacêuticas O dilema que Buchwald, Hogenesch e outros
dita que este trabalho pode ajudar os pacientes em também podem descobrir que alguns medicamen- enfrentam é que para determinar o quão crítico é o
breve. Sancar, que também está a fazer investigação tos experimentais que não funcionavam bem o sufi- momento de tomar os medicamentos, é necessário
sobre tumores, é mais cauteloso. “Infelizmente, es- ciente para obter a aprovação federal anteriormente, grandes conjuntos de dados com centenas (prefe-
távamos muito esperançosos na nossa área de tra- poderiam funcionar melhor se fossem administrados rencialmente milhares) de pacientes diferentes que
balho”, afirma. “Temos de ser realistas com o que numa hora diferente. O neurologista diz que levou tomam um medicamento ao longo de 24 horas. Caso
temos. Não podemos ser otimistas.” pessoalmente as conclusões do artigo a executivos de contrário, corremos o risco de não ver pequenos efei-
À medida que envelhecemos, estamos mais vul- pelo menos duas grandes empresas farmacêuticas. tos ou de acreditar que um efeito demasiado grande
neráveis ao cancro, bem como à doença de Alzheimer, A sua resposta foi: “Isso é realmente interessante. É é representativo. Mas antes que as instituições com
à diabetes e à hipertensão. E é claro que a força dos um artigo excelente”, afirma Hogenesch. “E depois os recursos para gerir esses estudos os empreen-
nossos ritmos circadianos, como as nossas fases ati- não alteraram nada.” Isso pode ser porque é mais fá- dam, querem a prova de que fazê-lo irá valer a pena.
vas e de descanso são distintas, enfraquece com a ida- cil fazer medicamentos que permanecem ativos no Takahashi salienta que a investigação sobre o cancro
de. “Se olharmos para crianças pequenas, vemos que corpo durante todo o dia do que levar as pessoas a é a maior área biomédica dos Estados Unidos, mas
correm o dia todo e dormem como uma pedra à noi- tomar um comprimido, ou vários, a horas específicas. relativamente poucas pessoas trabalham com ritmos
te”, diz Erik Musiek, neurologista e diretor do Centro Este é talvez o maior obstáculo na transposição da circadianos e cancro. “Para que tenham qualquer
de Ritmos Biológicos e Sono da Faculdade de Medi- investigação circadiana para a prática que nos pode- impacto na área do cancro nos EUA, que tem mais
cina da Universidade de Washington, em St. Louis. ria ajudar agora: se soubéssemos qual era o momento de 5 mil laboratórios, é como uma gota no oceano.”
Uma pessoa de 80 anos, pelo contrário, pode acordar ideal para tomar medicamentos ou para receber tra- Incapaz de persuadir as empresas farmacêuticas
15 vezes por noite e fazer sestas frequentemente du- tamentos, atingiríamos, poderíamos atingir, essa ja- de que testar medicamentos será do seu interesse fi-
rante o dia. “Não sabemos como melhorar isso”, diz nela temporal? “É uma grande questão”, diz Zachary nanceiro, Hogenesch forçou o seu caso no seu hospi-
Musiek, exceto aconselhando os doentes mais idosos Buchwald, radioncologista do Instituto do Cancro de tal e outros. A sua equipa aprendeu que as doses ini-
a receberem luz solar e a manterem-se em movimen- Vinthip, no Centro Médico da Universidade Emory. ciais de medicamentos dadas nos hospitais são mais
to durante o dia e a evitarem a luz durante a noite. A Segundo um estudo de 2010, metade de todos os me- prováveis de acontecer em momentos específicos do
ideia é: se conseguíssemos compreender a relação dicamentos prescritos já é tomado incorretamente. dia, normalmente correspondentes a mudanças de
entre os genes relógio e as doenças do envelhecimen- No ano passado, Buchwald e os seus colegas pu- turno e quando as equipas médicas fazem as rondas.
to poderíamos mudar a forma como esses genes fun- blicaram um artigo na “Lancet Oncology” mostran- “As decisões clínicas devem ser tomadas a qualquer
cionam, direcionando-os de forma mais precisa e efi- do que pacientes com melanoma metastático que hora”, escreveu em conjunto com outros coautores
caz com os medicamentos, diz Musiek. “Não sabemos receberam pelo menos 20% dos seus medicamen- numa publicação do PNAS de 2019. “A dor, a infeção,
como fazê-lo agora sem confundir completamente os tos de imunoterapia após as 16h30 não viviam tanto a crise hipertensiva e outras condições não ocorrem
ritmos circadianos de uma pessoa.” tempo, em média, como aqueles que os receberam seletivamente de manhã.” Pessoalmente, é menos
mais cedo. Mas o estudo foi puramente observacio- subtil: “Não importa o quão estúpida seja”, diz, re-
TESTAR MEDICAMENTOS nal. Para ter a certeza de que foi o momento de ad- ferindo-se a práticas hospitalares convencionais que
Um novo medicamento demora, em regra, pelo me- ministração do medicamento que afetou a sobrevi- envolvem iluminação, por exemplo, ou administra-
nos uma década para ser desenvolvido. Hogenesch vência (e não, por exemplo, porque os pacientes ti- ção de medicamentos, “não a querem alterar”.
pensa que poderíamos aproveitar os nossos relógios nham outras desvantagens de saúde, como menos As suas observações ressoaram junto de cientis-
biológicos para melhorar a eficácia e reduzir os efei- recursos financeiros ou com tendência para marcar tas circadianos que lutam para avançar nas próprias
tos secundários dos medicamentos já existentes. Em consultas mais tarde) Buchwald precisa ser capaz instituições. “O John conseguiu elevar a discussão
ou a consciência da discussão que precisava acon-
tecer”, diz Elizabeth Klerman, professora de neu-

A aspirina de dose baixa, que rologia da Harvard Medical School que trabalha na
divisão de sono do Hospital Geral de Massachusetts.

milhões de pessoas tomam Frank Scheer, diretor do Programa de Cronobiologia


Médica do Brigham and Women’s Hospital, também

para prevenir doenças ficou impressionado. “Estamos a tentar melhorar a


saúde dos mais vulneráveis, temos a responsabilida-
de de cuidar deles e, apesar disso, deixamo-los em
cardiovasculares, é mais ambientes pouco propícios ao sono”, afirma, sobre
os pacientes do hospital. “Acho que o seu trabalho
eficaz quando tomada à noite, é belo. Está a fazer grandes progressos nesta área.”
Embora os dados da PNAS revelem que quando
em vez de pela manhã os hospitais administram medicamentos o fazem

E 30
que provoca dor e convulsões, atrasos de desenvol-
vimento, autismo e uma disposição para a automu-
tilação. Na sua carta, Mike e Kristen Groseclose ex-
plicaram que Jack estava a tomar um medicamen-
to para desligar o gene. Tinha melhorado muitos os
seus sintomas, mas o seu sono tinha ficado com um
padrão bizarro. Durante mais de uma semana, não
dormia mais de uma hora ou duas por noite e, em
vez disso, andava constantemente de um lado para
o outro. (Um Fitbit que os seus pais compraram
para monitorizar a sua atividade, estava sempre a
congratulá-lo.) Depois, durante sete a 10 dias, dor-
mia durante 14 horas. “Depois de 10 dias de pouco
ou nenhum sono, o seu corpo começa a dar de si”,
escreveram. “Torna-se débil e instável, fica cheio
de eczema.” Os médicos de Jack estavam perplexos.
Na esperança de conseguir uma explicação, a famí-
lia tinha incluído no seu e-mail um gráfico de barras
do ciclo de sono de Jack e uma fotografia dele. “Ele
estava com mau aspeto”, disse Mike. Kristen acres-
centou: “Pensámos que uma ajuda visual seria útil.”
Hogenesch viu o nome do especialista de Jack,
levantou-se, foi pelo corredor e bateu à porta do es-
muito provavelmente por questões operacionais e O AMANHÃ DA MEDICINA pecialista. Carlos Prada era especialista em doenças
não médicas, não foi possível mostrar se esse tempo A medicina circadiana personalizada pode ser o fu- genéticas raras na própria divisão de Hogenesch em
prejudica os pacientes. Se isso não acontece, porquê turo. O timing dos nossos relógios varia de indivíduo Cincinnati. “Estava a 60 metros do meu gabinete”,
mudar? A equipa de Hogenesch e colaboradores de para indivíduo, e é definido pelo sol, iluminação in- diz, “e nunca tínhamos falado disso”.
outros hospitais estão agora a analisar os registos terior, predisposição genética, o nosso comporta- Por acaso, Hogenesch havia descoberto recente-
médicos eletrónicos para ver se conseguem mostrar mento, a nossa idade, relação uns com os outros. Os mente que desligar o mesmo gene em ratos aumen-
que a altura em que certos medicamentos comuns cientistas ainda estão a tentar desenvolver um méto- tava o período do seu ritmo circadiano, fazendo um
são administrados afeta o seu bom funcionamento. do rápido e fácil para dizer em que fase, ou fases, os ciclo com mais de 24 horas, e atenuava a sua ampli-
Isto é mais difícil do que parece, porque os dados re- seus órgãos estão. Mas por enquanto não é necessária tude, esbatendo os limites entre as fases de atividade
colhidos pelo hospital são principalmente para fa- uma precisão absoluta para melhorar a coordenação e repouso. Explicou a Prada que o medicamento que
turação, não para investigação, e quando os pacien- e a força dos seus ritmos biológicos. Os investigado- Jack estava a tomar poderia ter um efeito semelhante
tes recebem tratamentos e medicamentos isso nem res circadianos geralmente sugerem que apanhe a sobre ele. Prada, que, entretanto, foi para o Hospital
sempre é registado. Se registar a hora dos tratamen- maior quantidade de luz solar possível durante o dia, Pediátrico Lurie de Chicago, e os seus colegas co-
tos, como colheitas de sangue, vacinas, urina e ou- especialmente ao acordar, diminuindo as luzes antes meçaram a mudar gradualmente a dose de Jack até
tras amostras, nos registos médicos eletrónicos dos de dormir e tornando o seu quarto escuro. (Colocar os terem encontrado uma que mantinha os benefícios
pacientes fosse uma prática padrão, poderia melho- Estados Unidos num horário padrão, não segundo a do medicamento sem desregular o sono. Quando
rar muito o nosso entendimento, observa Zee. “Em luz do dia, ajudaria a conseguir isso.) Ingira a maior falei com a família, Jack tinha dormido toda a noi-
lado nenhum do seu boletim de vacinas diz a hora quantidade de calorias mais cedo no dia. E, princi- te durante 30 dias consecutivos. Ele tinha 17 anos e
a que foi administrada”. Mas fazê-lo deve ser “tão palmente, tente manter o seu horário igual ao longo aquele foi o período que todos mais dormiram desde
fácil”, acrescenta. “É tudo eletrónico.” da semana, incluindo fins de semana. “Há espaço que os três eram uma família.
Quaisquer dados obtidos a partir de registos mé- para pensar na otimização geral da saúde, melhoran- Isso, diz Hogenesch, é o tipo de mudança signifi-
dicos ainda serão observacionais, mas quanto mais do o humor, melhorando a saúde em geral”, disse- cativa e real para que tem insistido. Inspirado, fundou
desses dados tivermos de uma variedade de fontes, -me Helen Burgess, professora de psiquiatria e codi- e começou a dirigir um centro de medicina circadia-
mais convincentes serão. Enquanto isso, os investi- retora do Laboratório de Investigação Circadiana e do na e do sono no hospital para tratar casos complexos,
gadores podem criar amostras maiores e mais re- Sono da Universidade de Michigan. “Estamos todos que incluem avaliar os perfis genéticos dos pacien-
presentativas, examinando vários pequenos estu- a ficar mais velhos. Muitos de nós sentimos que esta- tes. O centro abriu em 2020 e tem estado cheio desde
dos coletivamente no que é chamado de metanálise. mos a definhar”, acrescentou. “Quais são as peque- então. Em maio, Hogenesch foi eleito presidente da
No ano passado, para ajudar a provar que o timing nas coisas que posso fazer para me sentir melhor?” Sociedade de Pesquisa sobre Ritmos Biológicos; vai
da medicação poderia ter um grande impacto, Ho- A medicina circadiana pode melhorar o nosso assumir o comando em 2024. Disse-me, que muitos
genesch e os colegas lançaram como pré-publica- bem-estar, por outras palavras, mas a maioria de novos investigadores estão a juntar-se à área de in-
ção, antes da revisão pelos pares, uma metanálise nós não deve esperar que vá transformar as nos- vestigação e espera usar o seu papel para promover o
de ensaios clínicos anteriores que incluíam a hora sas vidas em breve. No entanto, existem exceções a seu trabalho, para o tornar relevante não apenas para
do dia em que os sujeitos receberam um dos 48 tra- essa regra, cujas circunstâncias invulgares podem médicos e pacientes, mas para todos. Para si.
tamentos farmacológicos ou cirúrgicos. Inespera- apontar posteriormente para aplicações mais am- “Acho que este é o nosso tempo”, afirma. b
damente, a aspirina de dose baixa, que milhões de plas. Como Hogenesch disse: “Aprendemos com os
pessoas tomam diariamente para prevenir doenças casos marginais.” e@expresso.impresa.pt
cardiovasculares e que não vem com indicações so- Logo após ter chegado a Cincinnati, um cole-
bre quando deve ser tomada, verificou-se ser a mais ga em Boston enviou-lhe um e-mail dos pais de Este artigo foi publicado originalmente
sensível ao tempo: oito dos 10 estudos mostraram Jack Groseclose, um adolescente com síndrome de no “The New York Times”
que é mais eficaz quando tomada à noite, em vez de Smith-Kingsmore, uma condição extremamen-
pela manhã. te rara causada por uma mutação num único gene Tradução Joana Henriques

E 31
A NASA já identificou 30 mil objetos próximos da Terra,
dos quais 2 mil são potencialmente perigosos. Asteroides e cometas
podem ser grandes pedras no sapato. As primeiras missões de defesa
planetária tentam resolver o problema

COLISÃO Imagem
do sistema binário
de asteroides captada
pela câmara DRACO,
instalada na sonda DART,
momentos antes do
impacto com o pequeno
Dimorphos

E 32
NASA/JOHNS HOPKINS APL
QUANDO
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TEXTO
ANDRÉ MANUEL CORREIA

U
E 33
O
NASA/ESA/CSA/STSCI

Lacerda e o Peixinho são os astros mais portugueses


do Universo, um par de “calhaus” que durante mi-
lhares de milhões de anos vão continuar às voltas no
Sistema Solar. E nem precisaram de viajar para o Es-
paço numa nave, porque, na verdade, sempre mora-
ram numa região onde meio milhão de objetos ro-
chosos ou metálicos já catalogados giram em torno
do Sol, entre as órbitas de Marte e de Júpiter. São dois
asteroides com 11 e 10 quilómetros de diâmetro, res-
petivamente, batizados com os sobrenomes dos as-
trofísicos Pedro Lacerda e Nuno Peixinho. “É como
um prémio de carreira para quem já anda nisto há
muito tempo a partir pedra”, explica ao Expresso Pe-
dro Lacerda, investigador do Instituto Pedro Nunes e
do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA).
“Somos dois calhaus. O dele é maior do que o meu, o
NASA

que me irrita muito”, começa por dizer, entre risos,


Nuno Peixinho, também investigador do IA e da Uni-
versidade de Coimbra. “O dele é maior, mas o meu
está um nadinha mais perto”, brinca o especialista na semelhante em tamanho ao Chicxulub — aquele que
caracterização física e química de pequenos corpos, há 66 milhões de anos provocou a quinta extinção
como asteroides, cometas e objetos transneptunianos. em massa e dizimou 80% das espécies animais —,
Tanto o (10694) Lacerda como o (40210) Peixi- estivesse atualmente em rota de colisão com a Terra?
nho estão localizados na cintura de asteroides e ne- Continuaremos vulneráveis quando o inferno cair
nhum dos dois representa uma ameaça para a vida do céu? “Se agora descobríssemos que um asteroide
na Terra, “nem hoje nem daqui a um milhão de com 10 quilómetros bateria na Terra, não consegui-
anos”. “Não vamos colidir um com o outro, o que ríamos fazer absolutamente nada. Seríamos meros
seria algo muito hilariante”, atira Nuno Peixinho, espectadores impotentes da tragédia”, antevê Nuno
ressalvando que “são dois bicharocos inofensivos e Peixinho. “Se uma coisa desse tamanho já estivesse
muito tranquilos”. Todavia, nota o divulgador cien- a caminho e o impacto ocorresse dentro de dois ou
tífico, se por alguma perturbação gravitacional um três anos, não teríamos nenhuma hipótese”, concor-
asteroide destas dimensões acabasse por ser lança- da o colega Pedro Lacerda.
do em direção ao nosso planeta, “a força do impacto “Para que uma catástrofe possa ser evitada é
varreria completamente uma zona com pelo menos preciso detetar o objeto com pelo menos uma dé-
mil quilómetros de diâmetro, e depois toda a poei- cada de antecedência antes da possível colisão”,
ra que se levantaria no ar iria tapar completamente avisa Peixinho. “Por isso é que, recentemente, in-
o céu no planeta todo durante muito tempo, o que tensificaram-se os programas de rastreio do céu,
mudaria radicalmente o clima”. Calma, ainda há com vários pequenos telescópios robotizados a ten-
mais: “A onda de choque provocaria tsunamis gi- tar identificar tudo o que mexe, precisamente para
gantescos e catastróficos”, além de que “o grande descobrir todos os objetos próximos da Terra”, real-
abanão iria reativar um intenso vulcanismo”. Isso, ça o astrofísico, referindo-se aos chamados, em in-
garante Peixinho, “aniquilaria grande parte das for- glês, Near-Earth Objects (NEO). Este grupo abarca
mas de vida, e os sobreviventes voltariam à Idade asteroides, cometas e meteoritos com órbitas que os
da Pedra”. E, como nos avisa a Lei de Murphy, “se fazem aproximar-se até 195 milhões de quilómetros
alguma coisa pode dar errado, vai dar”, mais tarde do Sol, o que significa que podem passar a cerca de
ou mais cedo. Mesmo os cenários mais hollywoo- 50 milhões de quilómetros da Terra.
descos de um apocalipse vindouro podem tornar- Até hoje, de acordo com dados do NEO Obser-
-se, um dia, numa obliterante realidade, até porque, vations Program, da NASA, já foram catalogados
realça Nuno Peixinho, “a ficção científica, apesar de 90% dos objetos próximos da Terra com 140 me-
ser romantizada, tem sempre uma base científica”. tros ou mais de diâmetro. “As estimativas apontam
O que poderia ser feito, então, se um asteroide ou para a existência de 30 mil Near-Earth Objects, em
um cometa com 10 ou 11 quilómetros de diâmetro, que cerca de 2 mil são considerados potencialmente

E 34
DART A sonda da
NASA colidiu com
Dimorphos a 22,5 mil
km/h, suficiente para
desviar a sua órbita.
O impacto foi captado
pelo Hubble e
pelo James Webb

NASA/JOHNS HOPKINS APL


“Se agora perigosos, porque já se viu que a órbita deles pas-
sa a menos de 7,5 milhões de quilómetros do nosso
da explosão provocada pela bomba nuclear que ar-
rasou Hiroxima.
descobríssemos planeta, o que corresponde a aproximadamente 20
vezes a distância da Terra à Lua”, aponta o inves-
“O que aconteceu em Chelyabinsk provocou
mais de mil feridos, porque as pessoas, quando vi-
que um tigador do IA e da Universidade de Coimbra. “Os
programas de rastreio tentam atualmente descobrir
ram o grande clarão, correram para as janelas e fica-
ram todas a olhar para aquilo. Cerca de dois minutos

asteroide com 10 objetos com um diâmetro entre 100 e 200 metros. O


problema é que, como são muito pequenos e refle-
depois do impacto veio uma onda de choque supe-
rintensa que partiu os vidros todos. Os ferimentos,

km [semelhante tem pouquíssima luz solar, são extremamente difí-


ceis de detetar”, reconhece o cientista.
quase todos ligeiros, foram provocados sobretudo
pelos estilhaços. Felizmente, não houve mortos, mas

ao que dizimou Localizar estas rochas espaciais de menor di-


mensão é, no entanto, fundamental, até porque “é
foi um grande alerta para um perigo que é real”, re-
corda Nuno Peixinho.

os dinossauros] muito mais provável que o objeto que um dia po-


derá atingir a Terra seja pequeno, uma vez que os
Chelyabinsk foi um ponto de viragem. Foi o mo-
mento em que as agências espaciais russa, norte-a-

bateria asteroides maiores são mais raros, logo têm menos


probabilidades de acertarem no nosso planeta”, fri-
mericana e europeia começaram a elaborar, com a
maior urgência, estratégias de defesa planetária. “Já

na Terra, não sa Pedro Lacerda. havia muita gente interessada e a trabalhar na área
da defesa planetária, mas eram considerados malu-
O ABANÃO DE CHELYABINSK
conseguiríamos ACORDOU O MUNDO
quinhos, e o financiamento para esses projetos era
quase nulo, porque isso depende sempre dos deci-

fazer nada. Diariamente, 100 toneladas de material extraterres-


tre entram na atmosfera, embora grande parte seja
sores políticos, que até então acreditavam que esse
tema era coisa de ficção científica. Aquele impacto

Seríamos incinerada, mas um objeto com 30 ou 50 metros já


é suficiente para resistir às elevadas temperaturas
veio mudar tudo. Percebeu-se que não se tratava
de ficção científica e que isto é a sério”, diz Nuno

espectadores da e atingir a superfície, podendo provocar vários es-


tragos nas imediações do impacto. Em 15 de feve-
Peixinho.

PEDRAS NO CAMINHO? DART COM FORÇA


tragédia”, antevê reiro de 2013, a população russa de Chelyabinsk foi
apanhada de surpresa pela queda de um meteori- A missão kamikaze Double Asteroid Redirection Test

Nuno Peixinho to que não tinha sido detetado e chegou sem avi-
so prévio. O gigante pedregulho com 17 metros de
(DART), lançada em 24 de novembro de 2021 e em-
purrada até ao Espaço por um foguetão Falcon 9, da
diâmetro e com um peso de 10 mil toneladas atin- empresa SpaceX, simbolizou a primeira tentativa de
giu a cidade, libertando uma energia equivalente a chocar contra um asteroide e dar-lhe um ‘chega para
440 quilotoneladas, quase 30 vezes superior à força lá’. “Começou a pensar-se nesta hipótese de desviar

E 35
um asteroide, desde que haja tempo para enviar uma
sonda para colidir com ele e afastá-lo o suficiente
para não acertar na Terra. Essa é a hipótese mais pro- CHELYABINSK
missora, e foi isso que a DART lá foi testar. Foi apenas Um meteorito atingiu
o primeiro passinho”, sintetiza Pedro Lacerda. Chelyabinsk e
provocou mais de mil
O alvo escolhido para ser atingido pela sonda
feridos. A energia
DART foi um sistema binário de asteroides, compos-
libertada foi quase
to por Didymos (que, em grego, significa “gémeo”), 30 vezes superior à da
com 780 metros de diâmetro, em torno do qual gira, bomba de Hiroxima
como se fosse uma lua, o asteroide Dimorphos, bem
menor, com 160 metros de diâmetro, o equivalen-
te a um estádio de futebol — e olhe que levar com o
Maracanã na cabeça ainda aleija. É claro que a NASA
apontou a mira ao mais pequeno, por ser muito mais
simples dar um encontrão no menos corpulento dos
dois irmãos. “Acredita-se que cerca de 5% dos as-
teroides sejam binários, o que é um número, ainda
assim, muito grande, dada a elevada quantidade”,
destaca Lacerda, para quem “acertar num asteroide
é relativamente simples, basta que o impacto ocorra
na velocidade correta e no ângulo certo”. Ainda as-
ELIZAVETA BECKER/ULLSTEIN BILD VIA GETTY IMAGES

sim, acrescenta o astrofísico, “isto não é como me-


ter a primeira, arrancar, chegar ao asteroide, travar,
fazer pontaria e depois disparar”.
A 27 de setembro, após 10 meses de viagem, tem-
po suficiente para percorrer 11 milhões de quilóme-
tros, a sonda DART — uma pequena caixa de 570
quilos e que pesou 325 milhões de dólares nos im-
postos dos contribuintes norte-americanos — atin-
giu o seu objetivo: espatifou-se propositadamen-
te contra Dimorphos a uma velocidade de 22,5 mil
km/h. A aproximação fatal ao impacto foi filmada
pela câmara DRACO, instalada na sonda que serviu
como mártir para a NASA verificar se este método
é eficaz para provocar um desvio na órbita de um
asteroide. “A força do impacto é uma coisa ridícu-
la, mas chega para alterar um bocadinho a órbita. A
sonda, ao bater no pequeno asteroide, que orbita um afetada. É como ter um metrónomo a marcar o tem- fragmenta-se no ar e incendeia-se, o que dá origem
outro maior, vai desviar a órbita deste calhau. Agora, po, que agora vai estar num ritmo diferente. Essa al- a uma estrela cadente gigante, chamada de bólide”,
o que vai ser estudado é como evolui a nova órbita teração é que nos vai mostrar detalhadamente qual elucida Peixinho. “Mas para um objeto de um qui-
para onde foi lançado o Dimorphos após o embate”, foi o desvio da órbita”, simplifica Pedro Lacerda. Na lómetro a entrada na atmosfera não significa nada
clarifica Nuno Peixinho, que recorre a uma metáfora opinião do astrofísico, “é uma boa ideia testar num e iria chegar inteiro ao solo”, antecipa o astrofísico.
para simplificar: “Imagine um número de circo em objeto com 100 ou 200 metros de diâmetro, porque A missão DART provou ser eficaz quando se tra-
que estou a andar de bicicleta enquanto faço rodar à será uma coisa desse género que provavelmente po- ta de desviar um objeto com 160 metros de diâme-
volta da minha cabeça uma pedra presa por um cor- derá colidir com a Terra, já suficiente para causar tro, mas será que a mesma técnica poderia surtir al-
del. Se eu fizer rodar a pedra mais depressa ou mais muitos danos”. gum efeito contra um colosso extraterrestre? “Sim,
devagar, a curva que a bicicleta faz vai ser alterada, Quer mesmo saber o que aconteceria se algo do é possível”, afiança Pedro Lacerda, reconhecendo,
mudando a trajetória.” tamanho de um estádio de futebol caísse do céu? contudo, que “a partir de uma certa escala torna-se
Para aferir exatamente a força do empurrão orbi- Bem, seria mau, pior do que mau. “Se um asteroi- difícil” utilizar este método. Basta aplicar matemá-
tal originado pelo impacto cinético, a Agência Espa- de semelhante ao Dimorphos chocasse com a Ter- tica de algibeira para perceber: “Se quisermos afas-
cial Europeia (ESA) vai lançar, em outubro de 2024, ra, provocaria um desastre à escala continental. Se tar um objeto dez vezes mais massivo do que este
a missão HERA, com destino ao sistema binário de caísse na Europa, todo o continente ficaria às escu- pequeno asteroide, é preciso enviar uma sonda dez
asteroides, onde só deverá chegar em setembro de ras com a nuvem de poeira que se levantaria após o vezes mais pesada contra o objeto.”
2026, para fazer uma caracterização detalhada das impacto”, pressagia Pedro Lacerda. Além disso, o
propriedades físicas dos dois “gémeos” e medir o ta- mal poderia ser distribuído pelas aldeias, o que não DIVIDIR UM ASTEROIDE
manho da cratera provocada pelo embate da DART seria de todo reconfortante. “Uma coisa de 100 me- SÓ MULTIPLICA O PROBLEMA
no pequeno Dimorphos. “A missão HERA vai lá es- tros, conforme o ângulo e a velocidade em que entra Caso não seja possível desviar um asteroide ou um
tudar muito bem como evoluiu o sistema de asteroi- na atmosfera, pode fragmentar-se em pedaços, al- cometa que esteja em rota de colisão com a Terra,
des e determinar, com precisão, a energia do impac- guns deles possivelmente grandes, antes de bater no existem outras opções que podem ser usadas em
to”, esclarece Nuno Peixinho. chão. Em vez de provocar apenas uma cratera gigan- desespero, muito mais cinematográficas do que pro-
Sabe-se que Dimorphos demorava 11h55 para te, provocaria várias crateras mais pequenas, o que priamente eficientes. “Uma das hipóteses em cima
completar uma volta ao redor de Didymos, e os in- afetaria bastante as áreas onde cada um dos pedaços da mesa, muito à filme, seria rebentar o objeto com
vestigadores que integram esta missão têm a expec- cairia”, salienta Nuno Peixinho. Pior é impossível? uma bomba nuclear, mas isso não seria boa ideia,
tativa de que, após o choque da sonda DART, haja Olhe que não, olhe que não. “Se fosse um objeto da porque simplesmente iria parti-lo em bocados mais
uma ligeira alteração de 1% na órbita do pequeno escala do Didymos, com 780 metros, já provocaria pequenos que continuariam a mover-se na nossa
asteroide, o bastante para fazer com que o período uma catástrofe global, semelhante ao que aconteceu direção. Em vez de termos de lidar com uma úni-
orbital se torne 10 minutos mais rápido. “Sempre com os dinossauros”, adverte Lacerda. ca colisão, poderíamos ter um cenário de múltiplos
que o Dimorphos passa em frente do Didymos há A atmosfera terrestre só nos protege de qual- impactos, com um pedaço a cair nos EUA, outro na
uma diminuição no brilho do Didymos, o que per- quer objeto até 5 metros de diâmetro. “Tudo o que Europa, outro no Médio Oriente, por aí fora”, indi-
mite perceber o quanto a órbita do mais pequeno foi vem do Espaço dentro desse tamanho tipicamente ca Pedro Lacerda.

E 36
Ao enorme risco junta-se também uma difi- Sistema Solar, refugiados em regiões menos agitadas
culdade logística de outro mundo. “A parte mais gravitacionalmente pelos gigantes gasosos. “Os pe-
difícil é conseguir enviar um míssil balístico com quenos objetos que não conseguiram crescer foram
ogivas nucleares para bater num asteroide ou num empurrados para zonas em que os planetas não os
cometa. Todos os mísseis balísticos existentes não perturbam, principalmente na cintura de asteroi-
foram feitos para sair da órbita da Terra. Os mísseis des, no Cinturão de Kuiper — abrigo para cometas e
americanos têm capacidade máxima para atingir planetas anões, como Plutão — e na remota Nuvem
a Rússia, da mesma forma que o alcance máximo de Oort, 100 mil vezes mais distante do Sol do que a
dos foguetes russos chega aos Estados Unidos. Não Terra”, detalha o cientista.
foram feitos para chegar à Lua ou algo do género”, “Os pequenos objetos do Cinturão de Kuiper,
sublinha Nuno Peixinho. E nem mesmo os potentes para lá da órbita de Neptuno, são fósseis congelados
foguetões lunares, como o Saturn V ou o novo SLS, da formação dos planetas. Alguns são planetas be-
poderiam resolver o problema. “Não há foguetes bés que nunca passaram daquilo. Já os asteroides são
desses em stock e não se consegue criar um num fósseis não só do processo de formação dos planetas
mês ou dois, isso demoraria vários anos”, constata mas também do processo de destruição e da colisão
o investigador. de protoplanetas”, explica Pedro Lacerda.
Há, no entanto, no Sistema Solar um gigante es-
cudo gravitacional que repele ou esmaga muitos dos BOMBARDEIROS QUE DESPEJARAM
objetos que poderiam encaminhar-se para a Terra. INGREDIENTES VITAIS
“Júpiter protege bastante os planetas rochosos, ao O que pode acabar com a vida pode ter sido igual-
engolir ou ejetar do Sistema Solar muitos asteroides mente determinante para o seu surgimento. No
e cometas”, comenta Pedro Lacerda. passado, quando a Terra estava ainda na sua infân-
“Temos a sorte de ter o grande Júpiter, que aca- cia turbulenta, “há cerca de 4 mil milhões de anos,
bou por limpar os pequenos corpos muito depres- pouco depois da formação dos planetas, era muito
sa da zona mais interna do Sistema Solar. Se Júpiter frequente o impacto de cometas e asteroides”, diz
não existisse, teríamos estado sujeitos à queda de Nuno Peixinho. E tudo aponta para que a queda des-
muitos asteroides durante demasiado tempo e pro- sas rochas espaciais no nosso mundo tenha acabado
vavelmente ainda hoje estaríamos a ser alvo de su- por trazer grande parte da água que hoje cobre 70%
cessivos impactos. Era muito complicado que a vida do globo. “Chegou a pensar-se que toda a água exis-
tivesse evoluído se Júpiter não estivesse cá”, senten- tente na Terra tinha sido trazida por cometas, mas
cia Nuno Peixinho. pelos dados mais recentes talvez só 10% da água é
que veio de cometas. A maior parte foi trazida essen-
FÓSSEIS DE PLANETAS FALHADOS cialmente por asteroides, muito ricos em moléculas
Há 4600 milhões de anos, quando nasceu o Siste- de água”, garante o astrofísico.
ma Solar, o ambiente era ainda extremamente caó- A água é fundamental para a existência de vida,
tico. “Quando tudo era uma nuvem de gás e poei- mas esse não é o único ingrediente imprescindível
ra a rodar no disco protoplanetário, a gravidade fez que pode ter sido despejado na Terra através destes

“Júpiter acabou com que a matéria se fosse concentrando em corpos


cada vez maiores. Primeiro, eram como pequenos
bombardeiros extraterrestres. “Há asteroides que
também são muito ricos em carbono, e sabemos que

por limpar berlindes, e alguns foram crescendo cada vez mais.


Os maiores foram ‘comendo’ os mais pequenos e
a vida, tal como a conhecemos, é baseada em carbo-
no”, enaltece Nuno Peixinho.

os pequenos cresceram até se tornarem planetas”, contextuali-


za Peixinho.
Além disso, prossegue o divulgador científico,
“os astrobiólogos interessam-se muito pelos gelos

corpos muito Nesse período, houve mesmo uma dança de gi-


gantes, quando as órbitas de Júpiter, Saturno, Úra-
dos cometas, muito ricos em carbono, hidrogénio,
oxigénio e azoto, ingredientes indispensáveis para o

depressa no e Neptuno eram ainda muito irrequietas. “Júpiter


formou-se mais longe do Sol do que está atualmen-
surgimento da vida”, moléculas que “provavelmen-
te não existiam na Terra e podem ter sido entregues

da zona mais te e depois migrou para uma região mais interna,


ao contrário dos outros três gigantes gasosos, que
por cometas”. Até mesmo aminoácidos essenciais à
vida já foram descobertos em cometas.

interna do nasceram mais próximos da nossa estrela e se fo-


ram posteriormente afastando”, especifica Pedro
A ideia de que a vida pode ter sido importada do
Espaço não é propriamente nova e encaixa na teoria

Sistema Solar. Lacerda.


Era tudo tão volátil que Neptuno e Úrano até tro-
da panspermia. Esta tese defende que os elementos
necessários para a vida estão espalhados por todo o

Era muito caram de posição a dada altura, pois inicialmente


Úrano era o planeta mais distante. Os quatro gran-
Universo e são distribuídos por asteroides, meteori-
tos e cometas. “Há muitos cientistas que defendem

complicado que des do Sistema Solar foram também os primeiros


a formar-se, muito antes de Mercúrio, de Vénus,
que a vida veio do Espaço, uma teoria conhecida
como panspermia. No entanto, o cenário mais unâ-
da Terra e de Marte. E, como se sabe, a antiguida- nime é que os cometas tiveram um papel importan-
a vida tivesse de é um posto, e por isso é que os gigantes gasosos
cresceram tanto. “Júpiter, Saturno, Úrano e Neptu-
te, não para trazer a vida para a Terra, porque não se
acredita que trouxessem já organismos, mas podem
evoluído se no formaram-se muito rapidamente e conseguiram
reter muito do gás existente no disco protoplanetá-
ter acelerado o processo de desenvolvimento bioló-
gico na Terra”, admite Nuno Peixinho.
Júpiter não rio”, explica o investigador do IA e do Instituto Pe-
dro Nunes.
“Fica a dúvida se a vida teria surgido mesmo sem
esses ingredientes trazidos por cometas e asteroides
estivesse cá”, “A partir do momento em que há objetos mui-
to maiores do que outros, isso torna-se uma oligar-
ou se estes apenas fizeram com que a vida brotas-
se mais depressa. Certo é que trouxeram elementos
sentencia quia, em que os grandes prevalecem e conseguem
agitar as órbitas dos mais pequenos”, refere Lacer-
fundamentais, e isso faz as delícias da astrobiolo-
gia”, conclui o astrofísico. b
Nuno Peixinho da. Ainda hoje existem esses embriões de planetas
falhados, autênticos fósseis de uma fase primitiva do amcorreia@expresso.impresa.pt

E 37
JOÃO E MARIA O casal
junto a um autorretrato
de Élisabeth Vigée Le
Brun (1794)

E 38
A casa que
falta à coleção
Quantos portugueses têm um Van Dyck na sala
de estar? Maria e João Cortez de Lobão têm. E
contam ainda com mais um conjunto de pinturas
que faz inveja a importantes instituições
nacionais. A maioria está em armazéns em
Portugal, no Reino Unido e nos Estados Unidos
porque falta-lhes um museu a que chamem seu

TEXTO
CHRISTIANA MARTINS
FOTOGRAFIAS
NUNO BOTELHO

E 39
N
EM CASA Por trás, o Van
Dyck, à frente, sentados no
sofá, João e Maria Cortez
de Lobão, com Henrique
Leitão. De pé, José Maria
Cortes, Jaime Nogueira
Pinto e José Pedro Tavares

o centro de Lisboa, no tradicional bairro da Estrela, em Economia, João Cortez de Lobão, 60 anos, já foi
numa moradia antiga com direito a capela particu- jornalista do Expresso, onde trabalhava na área do
lar, à nossa espera no átrio está um manequim em mercado de capitais. Mais tarde, casado, mudou-se
tamanho real a quem apetece dar os bons-dias. De- com Maria para Nova Iorque, onde o gosto natural
pois de se subir uma escadaria de mármore, ladeada pelas artes começou a ganhar nova ambição. Acaba-
pelas folhagens ilusórias de uma pintura em trompe- ria por criar uma empresa gestora de património em
-l’oeil, chega-se à sala de estar e, na parede, por cima Londres, onde também tem casa. Maria é licencia-
do sofá de um azul acinzentado, cercado por outros da em Teologia, mas é quando fala sobre o acompa-
quadros, está uma pintura de um gabarito que nem nhamento da coleção de arte que os seus olhos mais
as do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) têm: brilham. “Desde sempre temos comprado obras, mas
“A Família de Cornelis de Vos”, pintada por Antoon não somos especialistas, somos colecionadores, apai-
van Dyck no fim do século XVI. São assim as peque- xonados, e a coleção acaba por falar por ela própria”,
nas grandes surpresas da casa de Maria e João Cortez resume. Não são especialistas mas sabem bem o que
de Lobão, que nos últimos anos se dedicaram a cons- querem e fazem. “Eles têm um Van Dyck”, comentou
truir uma já importante coleção de pintura de mes- com o Expresso Joaquim Caetano, diretor do Museu
tres antigos. Uma coleção que querem partilhar com Nacional de Arte Antiga. O próprio museu só tem um
os portugueses. Além do Van Dyck, têm Luca Gior- quadro do mesmo pintor — “o outro é uma cópia”,
dano, Élisabeth Vigée Le Brun, Giovanni Baglione, assume Caetano. É muito, mas quem entra na casa
Bartolomeo Manfredi, Sigmund Holbein, Hans Hol- da Estrela percebe que a razão do espanto vai para lá
bein, o Jovem, Álvaro Pires d’Évora, Domingos An- do quadro pendurado sobre o sofá na sala de estar.
tónio de Sequeira, Baltazar Gomes Figueira e Josefa Segundo a leiloeira Sotheby’s, o retrato da famí-
d’Óbidos, entre muitos outros. Falta-lhes, contudo, lia De Vos foi vendido por sir John Charles Robinson
o espaço ideal para os mostrar. em 1868 a sir Francis Cook, visconde de Monserra-
O Van Dyck ainda não foi exibido, mas alguns te. Na década de 30 foi adquirido pelo negociante de
dos quadros estão a ser mostrados ao público numa arte holandês Nathan Katz, mas acabou nas mãos
sala do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). Sob de Hermann Göring em 1941, o mesmo ano em que
o título “O Belo, a Sedução e a Partilha”, a mostra Hitler nomeou este militar e ex-líder do Partido Na- ali representada”, assume Maria, sob o olhar con-
vai sinalizando as obras que o casal tem comprado cional-Socialista para seu sucessor. Recuperado pe- cordante de João. E é este o segredo da coleção.
nos últimos anos. Uma coleção particular, a que os los Monuments Men (MFAA) — programa criado por “A Rainha Isabel II tem a maior coleção de Van
promotores imprimiram as suas impressões digi- diretores de museus, curadores e historiadores para Dycks do mundo. Para nós foi importante adqui-
tais. Não é inocente que na tela daquele quadro de encontrar arte saqueada pelos nazis — foi entregue rir um quadro em que este pintor, ainda muito jo-
Van Dyck sobre o sofá — uma pintura que foi rouba- ao Governo neerlandês em 1945 e enviado ao Stich- vem, foi escolhido por outro pintor [Cornelis de Vos]
da pelos nazis durante a II Guerra Mundial — esteja ting Nederlands Kunstbezit [conjunto de obras de para retratar a própria família. A moldura ainda será
reproduzida a imagem de uma família. A mãe, Su- arte recuperadas pelo Estado neerlandês após o con- a mesma e a cena é exemplar, com toda a força das
sanna Cock, com as roupas típicas dos Países Bai- flito], no ano seguinte. Em 1948 o quadro foi devol- crianças a se movimentarem”, comenta entusias-
xos no período seiscentista, segura no colo o filho, vido à família Katz, e dez anos mais tarde vendido a mada Maria Cortez de Lobão diz que, muitas vezes,
um bebé irrequieto, abraçado pela irmã mais velha. Emil Georg Bührle, um alemão, emigrado na Suíça, senta-se no sofá em frente à pintura e “quase con-
Por trás de todos, com um gesto protetor, está o pai. fabricante de armas, que fez fortuna vendendo ar- versa com os quadros”. Tudo ali foi escolhido a dedo,
Pintor e negociante de arte, Cornelis de Vos, nasceu mas para a Alemanha durante a II Guerra Mundial e as pinturas valiosas dividem o espaço com retratos
em 1584 numa família de artistas e foi influenciado tornou-se um controverso negociador de arte. Des- dos filhos, fotografias de vários Papas, de D. Duar-
pela técnica de Van Dyck, tendo-lhe pedido mesmo de a década de 80, o quadro estava numa coleção te de Bragança e de Isabel de Herédia. Aquele não
que fizesse um retrato da família. A pintura a óleo particular na Ilha de Jersey. É facilmente encontra- é, garante o casal, um conjunto de peças de arte se-
de 117 por 111 centímetros foi leiloada pela Sotheby’s do no Google, mas a última vez que tinha sido visto lecionado por curadores e especialistas, é a coleção
por muitos milhões de euros, um valor que o casal em público foi em 1996, no Museu de Arte de Tela- deles. Na parede em frente ao Van Dyck, uma gran-
não quer revelar. Hoje, o quadro faz parte da famí- vive. Há menos de dois anos o quadro foi comprado de tapeçaria da série “Sucesso e Triunfo de D. João de
lia Cortez de Lobão, como se fosse mais um membro pelo casal Cortez de Lobão não se sabe exatamente Castro”, o vice-rei, herói militar e homem de grande
daquele núcleo. por que valor e desde então está na sala de estar da cultura que foi uma das principais figuras do Renas-
João e Maria estão casados há 34 anos, têm oito casa da Estrela. A última venda registada no site da cimento português. Encomendada no século XV por
filhos, entre os 32 e os 10 anos, e já quatro netos, e é a Sotheby’s refere 2,4 milhões de libras (cerca de €2,7 D. Manuel I (1455-1495) não há muitas semelhantes,
família a pedra de toque que os identifica. Licenciado milhões). “O que nos cativou foi a relação familiar apenas mais uma dezena, entregues a monarcas na

E 40
Europa. Esta foi a última a ser encomendada, D. Ma-
nuel já tinha morrido, não foi para nenhuma corte e Tudo foi “Menina de Turbante”, de Govert Flinck, “o melhor
discípulo de Rembrandt”. Questionada, Maria revela
João e Maria encontraram-na nos Estados Unidos.
O que representa? Uma cena de família, um encon- escolhido a dedo: pragmatismo: “É melhor ter o melhor quadro do me-
lhor discípulo do que ter o pior original de um artista.”
tro de culturas, entre portugueses e um vice-rei in-
diano. “É muito nosso, acolhemos em família, é um pinturas valiosas Desde sempre que Maria e João se lembram de ter
comprado obras de arte, especialmente pinturas. Co-
manancial”, explica Maria.
Mas não basta ter obras daquela craveira na sala dividem o meçaram pela arte contemporânea para o T2 no Esto-
ril onde, recém-casados, moraram. Mas foi em Nova
de estar. O casal quer mais. “Este protocolo [com o
MNAA] não é a solução ideal, o grande desafio é mos- espaço com Iorque que deram o salto, com a imensidão da oferta
disponível, Maria fez-se amiga do Metropolitan, mu-
trar a coleção ao público”, defende João Cortez de Lo-
bão. Pendurado do lado esquerdo do Van Dyck está retratos dos seu que faz questão de visitar sempre que regressa à
cidade. “Começámos a ir aos leilões e nunca mais pa-
uma pintura de Giuliano Bugiardini, pintor nascido
em Florença e que terá vivido entre 1475 e 1554. Um filhos, fotografias rámos”, confessa a cofundadora da Fundação Gau-
dium Magnum, instituição que acolhe a coleção de
retrato de meio corpo de um jovem, de camisa bran-
ca, com um chapéu preto. Imagina-se que o homem de Papas e arte, mas a transcende com atividades de apoio edu-
cativo e à investigação. Apesar de denunciar um gosto,
retratado possa ser Rafael e, dada a qualidade da pin-
tura, referida por vários estudiosos, há quem defenda, de D. Duarte o casal reconhece que não são profissionais e que por
isso cercaram-se de peritos. “Este é um processo que
inclusive, que aquela pintura possa ser um autorre- se tem de aprender e, sobretudo, temos de conhecer
trato executado pelo próprio Rafael. Mas, para Maria,
determinante no momento da aquisição foi a inten-
de Bragança os nossos limites, que não são necessariamente ape-
nas financeiros, passa também pela lógica da coleção
sidade do olhar do jovem. “Um olhar que nos segue,
fixa-se em nós”, sublinha a colecionadora. Outra
e de Isabel e do valor que se atribui a cada peça”, explica Maria.
Desde que começaram as aquisições mais espe-
pintura de destaque, noutra ponta da sala de estar, é de Herédia cializadas, Maria percebeu que é necessário “educar

E 41
PERCURSO A última vez
que “A Família de Cornelis
de Vos” tinha sido visto
em público foi em 1996,
no Museu de Arte
de Telavive. Há menos
de dois anos foi comprado
pelo casal Cortez
de Lobão, não se sabe
exatamente por que valor

o gosto”, aprendizagem que passa pelo muito tempo leilões, exposições)”. Quando Kientz foi nomeado di- — página eletrónica gerida pela Faculdade de Ciên-
dedicado à pesquisa, às visitas e ao aconselhamento. retor da sociedade, procurou imediatamente Maria cias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lis-
E, apesar do percurso, não terão sido assim tão raros e João: “Como Portugal fazia parte da visão do nosso boa em que podem ser consultados os tratamentos
“os amargos de boca” que resultaram de presenças fundador, Archer Huntington, quando criou o museu arquivísticos normalizados realizados no âmbito das
em leilões concluídos sem a desejada compra. Ago- em 1904, queria absolutamente que estivesse repre- teses de doutoramento da área — que, “natural de
ra, evitam estar presentes nas licitações e preferem sentado na governação.” Serpa, filho do capitão-mor António Cortez Bermeo
acompanhar as ofertas pelo telefone, assumindo a Sobre as pinturas da coleção Gaudium Magnum, de Lobão e D. Joana Francisca Hipólita Vieira, desem-
satisfação de ouvir o martelo bater a seu favor. Mas, Kientz é claro: “Tive o privilégio de testemunhar o penhou cargos nas instituições de poder em Serpa;
nem tudo é tão lógico quanto parece, com o casal a crescimento ao longo dos anos e estou realmente im- andou fugido em Espanha com seus irmãos António e
assumir um desígnio quase místico: “As peças vêm pressionado com o importante número de obras — e Sebastião Casqueiro, depois do seu pai ter sido detido
ter connosco.” Por trás do objetivo de partilhar a co- a sua grande qualidade — que reuniram em tempo em maio de 1828 por o conotarem com os liberais”.
leção, dizem estar o “imenso sentimento de alegria” recorde. Muitas vezes, eles saíram-se melhor do que Apesar das raízes alentejanas, o cérebro da cole-
quando veem o impacto das obras em quem os visita. muitos museus. As obras portuguesas são de primei- ção está em Lisboa, na Fundação Gaudium Magnum,
“Percebemos que os mestres antigos apresentavam ra qualidade e extrema raridade. Os recém-adquiri- constituída em 2018, e de cujos conselhos de admi-
respostas às grandes perguntas da vida”, conta João dos Bugiardini e Van Dyck são duas obras-primas do nistração e de curadores fazem parte João Pedro Ta-
Cortez de Lobão. Renascimento e do Barroco.” E conclui, resumindo vares, vice-presidente da Accenture Portugal e pre-
Uma certeza que decorre da forte fé católica que a atitude do casal: “Esta é a marca dos grandes cole- sidente da ACEGE (Associação Cristã de Empresários
une os Cortezes de Lobão. Guillaume Kientz, diretor cionadores: raízes e asas. Eles sabem para onde que- e Gestores), o físico, historiador de ciência e Prémio
da Hispanic Society Museum and Library, conheceu rem ir, mas estão abertos à exploração.” Pessoa, Henrique Leitão, e os advogados Jaime No-
o casal em 2015, por ocasião da abertura de uma ex- gueira Pinto e José Maria Cortes. Estruturada sobre
posição de Josefa d’Óbidos em Lisboa. Na época era NO ALENTEJO E EM ROMA quatro eixos fundamentais — cultura, investigação,
curador do Louvre, responsável pela arte espanhola e Outro dos espaços de eleição dos Cortezes de Lobão educação e caridade — de forma a cumprir o desíg-
portuguesa na instituição que tinha acabado de rece- é a Herdade Maria da Guarda, que está na família nio que o casal Cortez de Lobão diz ter: “Mostrar o
ber um quadro da pintora. Ao Expresso recorda que, desde o século XVIII, em Serpa, no Alentejo. Ali em que Portugal fez e pode fazer de melhor.”
“em conversa”, partilhou com Maria e João “o entu- 700 hectares, entre 1,3 milhões de oliveiras que pro- O mais jovem dos administradores, José Maria
siasmo por Portugal e pela arte portuguesa” e acabou duzem cerca de 2 milhões de quilos anuais de azei- Cortes, tem nas mãos o pilar da educação, que visa
por ser convidado, juntamente com outros amigos e te, quase integralmente vocacionados para a expor- promover a excelência do ensino, conjugando “a
colegas, para jantar. “Instantaneamente afeiçoámo- tação, há espaço para mais peças de arte, embora lá grandeza de Portugal com a tradição cristã”, junta-
-nos uns aos outros”, conta por e-mail. Ao longo dos não tenham nada de muito significativo. mente com os alunos de três instituições de ensino
anos, tornaram-se amigos, encontravam-se regular- Entre 1798 e 1892 por aquelas terras andou outro de base católica, os colégios Planalto, Mira Rio e São
mente “em todos os lugares do mundo da arte (feiras, João Cortez de Lobão. Conta a “Arquivística Histórica” Tomás, todos na região de Lisboa. Henrique Leitão é

E 42
um dos pensadores da atuação e do posicionamen- é representativa daquilo que nós queremos dizer pelas mensagens veiculadas pelas obras de arte e pe-
to da Gaudium Magnum, estratégia que, faz ques- através da arte e o que atrai as pessoas é que não seja los valores pedagógicos e morais promovidos pelas
tão de frisar, está muito colada à personalidade dos sempre tudo igual, embora seja fácil fascinarmo-nos mesmas, isto é, resumindo numa fórmula, ‘o belo,
fundadores. “Estão vivos e de boa saúde e se a arte é por coisas bonitas.” o bom e o verdadeiro’”. Explica por escrito ao Ex-
estruturante da fundação, a questão de a disponibi- “Não é qualquer lugar que serve para receber esta presso que “é preocupação dos colecionadores que
lizar para o bem comum também o é. A genética da coleção de grande qualidade e sabemos que este não é todas as peças que entram na coleção sejam objeto
Gaudium Magnum é o que se faz com o que se tem”, um problema de solução fácil. O ponto fundamental de estudo, convidando especialistas, nacionais e es-
explica o cientista. é dar a conhecer o que existe e que se quer mostrar a trangeiros, para investigar e aprofundar a ‘vida’ das
E este é o ponto que neste momento ocupa grande todo o país. Estamos no princípio do princípio”, afir- suas obras”. E destaca como “particularmente me-
parte do conselho de curadores: encontrar a melhor ma Henrique Leitão. Muitos passos já estão pensa- recedora de consideração” a presença na coleção de
forma de tornar público aquilo a que o casal Cortez dos, como a estratégia das entradas, em que preten- pintores primitivos portugueses e italianos, “tão di-
de Lobão diz “ter tido a sorte de ter acesso”. “A fun- dem inovar de forma a permitir um maior acesso às fíceis de encontrar no mercado antiquário”. E Giu-
dação nasceu de uma paixão pelo belo e o que me ca- imagens digitalizadas das obras. “O nosso sonho é a lia Rossi Vairo não tem dúvidas quanto à importância
tivou foi encontrar pessoas na sociedade portuguesa partilha”, sublinha Maria. Outro ponto sobre a mesa da coleção. “Reúne obras valiosas e prestigiadas que
que o podem partilhar”, completa Henrique Leitão, é a quantidade das obras em exposição. De um total poderiam ficar expostas em qualquer museu, dentro
que, embora assuma que a fundação “não é um cen- que rondará as três centenas e que inclui até arte con- e fora de Portugal. Portanto seria desejável a criação
tro de investigação, quer ter um papel catalisador de temporânea portuguesa, o casal fala em expor cer- de um museu ad hoc para esta coleção, para que as
potenciar o estudo”. Daí a ligação estabelecida entre ca de cem obras, sobretudo dos séculos XIV a XVIII. obras fossem conhecidas não só pelos especialistas,
a Biblioteca do Vaticano e a Gaudium Magnum para Na base da coleção está sempre a ideia de famí- mas também por um público mais geral.”
promover a análise de documentos relacionados com lia, a pedra fundamental sobre a qual foi construída
a história de Portugal que estejam em Roma. A pro- a Fundação Gaudium Magnum. Uma família portu- ESTADO DIZ-SE DISPONÍVEL
ximidade institucional é tal que, se se revelar impos- guesa e de convicção cristã. “A coleção resulta de um Maria e João Cortez de Lobão já se reuniram com o
sível encontrar a desejada morada em Lisboa para a olhar de um homem e de uma mulher que têm uma presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos
coleção de arte, Roma não seria um destino desprovi- família e que acreditam que a vida é magnífica”, en- Moedas, a quem explicaram a necessidade de en-
do de sentido. Mas, confrontada com essa possibili- sina Maria Cortez de Lobão. Daí o próprio nome es- contrar um local adequado para depositar a cole-
dade, Maria hesita: “Não cumpriríamos o objetivo de colhido para a fundação: Grande Alegria. “Este olhar ção, e também já se encontraram com o ministro da
que Portugal tenha à disposição dos portugueses e de não é uma imposição, é um convite. Porque acredi- Cultura. Ao Expresso, Pedro Adão e Silva disse que
quem visita o país um conjunto de obras relevantes.” tamos que as grandes alegrias são contagiantes”, fi- o casal construiu “uma coleção notável e com um
José Pedro Tavares, diretor-executivo do conselho naliza a cofundadora. perfil pouco comum no contexto das coleções pri-
de administração, detém-se na explicação ao Expres- Quem já conheceu de perto a linha orientado- vadas portuguesas” e que “existindo disponibilidade
so de como em causa não está apenas encontrar um ra da fundação foi Giulia Rossi Vairo, investigadora para viabilizar a fruição pública de tão extraordinário
local para abrigar a coleção de arte, mas, principal- do Instituto de Estudos Medievais da Faculdade de acervo privado, naturalmente que por parte do Esta-
mente, a definição de uma ideia de como estas obras Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova do existe o interesse em trabalhar em conjunto com
devem ser disponibilizadas aos visitantes. “Procura- de Lisboa. Há um ano esta italiana que fala português os proprietários na procura de uma solução de expo-
mos promover a capacidade de transformação, atra- com à vontade conheceu o casal Cortez de Lobão. sição adequada”. Uma resposta que vai ao encontro
vés do cruzamento da educação, da cultura e da be- Contactada por Luísa Arruda, historiadora de arte e do que diz o casal. “Todos têm sido muito acolhedo-
neficência, os grandes pilares da fundação. Mas ainda professora reformada da Faculdade de Belas-Artes res, mas o sistema português é lento e não temos nada
somos uma startup. Não queremos ser apenas mais da Universidade de Lisboa, acabou por ser convi- definido”, afiança João, que também já se encontrou
um museu, queremos ser uma fundação do século dada para colaborar na organização de uma expo- com responsáveis da Fundação Gulbenkian.
XXI, e para isso teremos de estabelecer parcerias.” sição em Roma sobre a coleção Gaudium Magnum “Sou uma mulher de grande esperança e sei que
Uma das ideias é estabelecer uma atitude de iti- e ao longo desta relação, também já percebeu que quando tiver de acontecer, vai acontecer”, simplifi-
nerância para as obras de arte, algo que, na realidade João e Maria “atuam orientados pelo gosto pessoal, ca Maria, encaminhando a conversa para o seu fim.
já acontece, como consequência da política de em- Enquanto espera pelo espaço desejado, vai visitando
préstimos promovida pelos fundadores. Outro ob- museus pelo mundo, coleções institucionais e esta-
jetivo é ter capacidade para construir “roteiros di-
gitais”, disponibilizando ao observador o contexto Na base da tais ou nascidas, como a deles, da paixão de cole-
cionadores privados. Vai pensando em como pode-
que envolve e fundamenta cada obra em exposição.
“Vamos precisar de parceiros tecnológicos e a nossa coleção está ria facilitar as visitas das crianças, que muitas vezes
não conseguem chegar à altura das legendas com as
ambição é muito grande para chegar com impacto,
através de um acesso democratizado à cultura, pro- sempre a explicações das obras de arte, também estas sempre
mais resumidas do que seria desejável, e que, diz,
vocando uma experiência marcante e imersiva, ca-
paz de fazer com que a pessoa queira voltar”, expli- ideia de família, ganhariam em poder tocar nas texturas dos tecidos
representados nas pinturas ou até — quem sabe? —
ca José Pedro Tavares. Mas, por mais relevância que
a equipa pretenda dar às potencialidades digitais, a pedra sentir os perfumes de outra época. Nada lhe parece
impossível quando em causa está o objetivo de mos-
ninguém ali tem dúvidas de que é necessário um
espaço concreto para receber a coleção. “O proces- fundamental trar os old masters de forma inovadora. No fundo,
mais do que um museu, a Gaudium Magnum pro-
so de fruição digital não substitui o contacto físico”,
esclarece o diretor-executivo, para quem a pandemia sobre a qual põe-se criar um centro de conhecimento. E, provo-
cado, João abre um sorriso quando tem de responder
trouxe ensinamentos que não podem ser esquecidos.
“Temos de saber ler os sinais do tempo”, completa. foi construída sobre o que ainda gostaria de ter na coleção: “Um
quadro de um Papa, pintado por um bom pintor.”

NÃO BASTAM AS PAREDES a Gaudium A síntese que fica é a de que a religião, a arte e a
História de Portugal são o amálgama que cola todo o
Quanto às características da desejada casa de abri-
go da coleção, há pontos incontornáveis: ser em Lis- Magnum. percurso de uma família que tenta transformar con-
ceitos em obra, através de uma coleção de arte e da
boa, numa zona central e com ressonâncias históri- casa que a venha a abrigar. Falta-lhes a montra para
cas, como as redondezas do próprio Museu Nacional
de Arte Antiga ou a Praça do Comércio. E quando se
Uma família que todos possam ver aquilo em que acreditam, dei-
xando uma marca, fazendo-se perenes. No fundo, é
começa a tentar perceber exatamente como seria
este novo museu da capital, Maria torna-se cautelo-
portuguesa e de disso que falam: de eternidade. b

sa, sem conseguir esconder a excitação: “A coleção convicção cristã camartins@expresso.impresa.pt

E 43
Entrevista
Hugo van der Ding

A escrita é onde
me sinto
tranquilo
e à vontade”
Tem alguns livros na gaveta, milhares de tiras publicadas e milhões
de palavras ditas nas ondas da rádio. Estudou Direito, mas não acabou
o curso, viveu nos Países Baixos e regressou. Uma conversa sobre os erros,
os medos e o talento de manter o humor sem ser humorista

POR ANA SOROMENHO (TEXTO)


E NUNO BOTELHO (FOTOGRAFIAS)

E 44
E 45
T
entanto, ainda não publicou nenhum
romance e tornou-se conhecido pela
sua capacidade de provocar o riso. O
que o incomoda nessa classificação?
Classificar, rotular, é sempre difícil. A
verdade é que, desde muito novo, es-
crevo. Embora ainda não tenha pu-
blicado nenhum romance, já escrevi
muito. Tenho alguns livros prontos e
várias editoras que os querem publi-
car. A questão é que ando sempre tão
ocupado a fazer esta quantidade de ta-
refas que me têm permitido fazer que
acabo sempre por ser desviado dessa
incumbência.
em 46 anos, mas ainda parece um ra-
paz. Nasceu dois anos depois da re- O que escreve nos romances?
volução de Abril. Filho único de pais Escrevo sempre na primeira pessoa.
muito novos, sempre foi irrequieto e Agora estou a escrever sobre um ho-
delirante na capacidade incisiva de mem que, aparentemente, não tem
ver “o duplo sentido do mundo dos nada de especial. Todos em volta dele
adultos” e de não conseguir parar fazem coisas, são alguém, mas ele pas-
de fazer trocadilhos — como aqueles sa tão despercebido como um papel
que nos deu a conhecer nas páginas de parede. Interessa-me explorar o
das redes sociais. “Um incontinen- que é essencialmente humano, o que
te verbal” ou larger than life, como é transversal a todos nós e se pode en-
nos dirá. Estas coisas marcam. Antes contrar em qualquer pessoa, em qual-
de Hugo Sousa Tavares ser Hugo van quer parte do mundo. Quando come-
der Ding, como escolheu chamar-se cei a escrever, tinha uma escrita muito
quando se tornou um fenómeno viral negra que ao longo do tempo fui afi-
no Facebook, já lá vão 10 anos, andou nando. Nesse sentido, o humor ter-se
à procura do seu caminho. Estudou tornado também uma coisa que faço
Direito, que não acabou, foi morar publicamente, permitiu-me perceber
para fora, primeiro Londres, depois que posso igualmente usar essa lin-
Amesterdão, regressou, fez traduções guagem nos livros.
e então parou. Durante dois anos não
fez rigorosamente nada. Até ser diag- E são bons?
nosticado com bipolaridade. Quan- São. Há uma altura na vida em que já
do finalmente conseguiu “organizar não podemos continuar a dizer que
a vida”, arrancou em velocidade es- não sabemos se são bons, porque sei
tonteante, como se quisesse recupe- que esse é o meu talento. Aliás, a pa-
rar o tempo e engolir a vida, como lavra certa nem é talento. Esse é o meu
sempre quis, mas agora de outra ma- lugar. Por exemplo, eu sei que não sei
neira, presenteando-nos com a sua desenhar. Há uma linha entre o que
sensibilidade e sentido de humor nas nós consideramos bom, o que as pes-
múltiplas plataformas onde trabalha. soas gostam e aquilo que no nosso
Entre elas destacamos o “Vamos To- íntimo sabemos que é o melhor que
dos Morrer”, o podcast de maior au- podemos fazer. O Van Gogh nunca desenhos, ou teatro, ou rádio, ou tele- tudo o que faz, seja escrever um texto
diência da Antena 3, onde, nos úl- vendeu um quadro nem fez uma ex- visão, mas a questão é que só comecei ou criar um show, a intenção é sem-
timos dois anos, diariamente e em posição, no entanto não duvidava de aos 30 e tal. E não me posso queixar, pre provocar o riso. Esse é o veículo
10 minutos, faz uma necrologia das que era essa a sua natureza. Para mim, tenho tido muita sorte. para chegar ao público. Eu sei que te-
mais diversas personalidades; ou as a escrita tem essa vertente. É onde me nho graça, tenho essa noção, mas no
tiras — mais de mil — agora reunidas sinto tranquilo e completamente à O que é que aconteceu entre os 20 e que faço não existe uma intenção de
no livro “O Lixo na Minha Cabeça”. vontade. Portanto, quando digo que os 30 e tal? fazer rir a audiência, o que é, aliás,
Encontramo-nos num jardim da ci- são bons, o que quero dizer é: “Isto é o Estava a tentar encontrar o meu ca- uma coisa muito difícil de se conse-
dade com o Tejo ao fundo, na véspe- melhor que sei fazer!” E depois, como minho. E como nunca tive nenhu- guir. No meu podcast na Antena 3, no
ra de viajar para Paris — vai estar em sou um leitor compulsivo e já li muito, ma compulsão de fazer, ou de apare- “Vamos Todos Morrer”, por exemplo,
cena na peça “Pais & Filhos”, de Pe- consigo perceber se a escrita tem qua- cer, nem nunca procurei nada, fui-me o que quero é falar de história, nos
dro Penim —, e durante duas horas lidade ou não tem. desviando dessa vocação. Tudo o que textos que escrevo para o programa
conversamos sobre estes e outros as- me foi acontecendo neste lugar das não escrevo nenhuma graça. Quando
suntos, tentando percebe o seu des- Porque não começou logo por aí? coisas mais criativas que ando a fazer os leio, as piadas acontecem de uma
concertante universo criativo. Quando regressei da Holanda, em foi por acaso. forma espontânea. Nunca fiz um es-
2005, durante algum tempo fiz tra- petáculo com o propósito de pôr toda
Quando estava a preparar esta en- duções. A partir da segunda fui incen- Porque é que mantém a recusa em a gente a rir. Já fiz programas ao vivo,
trevista, percebi que tem alguma tivado por algumas editoras a escrever dizer que é humorista, já que foi por que foram uma espécie de aulas de
relutância com a palavra humoris- um livro. Mas toda a gente tem o seu esse veículo que se tornou conhecido história, e se não fizer um bocado de
ta. Quando lhe pedem para definir o ritmo. Comecei a explorar estas coisas nesse lugar criativo? humor ninguém aguenta. A verdade
que faz, opta por dizer que é escri- todas que faço, e que gosto muito de Pela mesma razão que não diria, por é que as pessoas estão ali duas horas
tor e às vezes até responde: “Quando fazer, bastante tarde. Poderia ter co- exemplo, que sou ginecologista ou of- e às vezes riem-se. Isto é um espetá-
for grande, quero ser escritor.” No meçado aos 20 e poucos anos a fazer talmologista. Para um humorista, em culo de humor? Creio que não. Tenho

E 46
muitas dimensões. Quando as pessoas O lugar de contenção?
são mais tímidas, é uma forma de nos Sim. Essa ideia de me fechar no meu
aproximarmos dos outros. De certa mundo. E cada vez preciso mais des-
maneira, é um escudo. se lugar que ao longo destes anos me
fui negando. A escrita funciona como
Contra a vulnerabilidade? essa bolha, esse farol na Escócia no
Claro. Em criança, há sempre um mo- meio da ilha e do mar violento. Só que,
mento na escola em que somos víti- entretanto, sem eu querer, foi acon-
mas de um certo bullying, que pode ser tecendo todo este outro lado que me
mais ou menos agressivo. Ser o palha- ocupa o tempo inteiro e não deixa es-
ço da turma, o mais engraçado, é uma paço para mais nada. Apesar de ser in-
couraça absoluta. Ninguém se mete crível ter tido a oportunidade de poder
com o bobo da corte. Eu era intocá- experimentar tudo isto.
vel. Mas também me causou embates
gravíssimos com os adultos. Ser uma A palavra cartoonista também o inco-
criança engraçada é giro, os amigos moda? Dizia que não sabe desenhar...
dos pais acham graça e tal, mas depois Com essa palavra não tenho problema
há uma altura a partir da qual deixa de nenhum, identifico-me: “Estou a fa-
ser aceitável e torna-se inconveniente. zer cartoons.” E as tiras são humorísti-
Durante as aulas, tornou-se altamen- cas, sem dúvida... Na verdade, não sei
te prejudicial não conseguir parar de porque tenho essa relutância. É uma
fazer trocadilhos quando os professo- chatice as pessoas precisarem de nos
res estavam a falar. Era tido como in- rotular e de nos encaixar em sítios.
disciplina. Mesmo as gargalhadas que Estamos num momento em que po-
dou, e que sempre dei, não só nas au- demos experimentar tantas coisas e
las como em todo o lado, eram vistas sermos tantas coisas diferentes. E isso
como um despropósito. é maravilhoso!

Essas suas gargalhadas fazem lembrar Falando nos tais acasos, o primei-
as do Mozart na versão do filme de ro foi “A Criada Malcriada”. Como
Milos Forman... aconteceu?
Já mo disseram várias vezes. Mas não o Aconteceu há cerca de 10 anos. Era
imitei, sempre me ri assim. Este riso é só para ser uma graça entre amigos
quase uma espécie de grito do Ipiran- e de repente tornou-se um fenóme-
ga, funciona como libertação. Rir não no. Adoro trocadilhos, estou sempre
é uma coisa bem aceite socialmente. a fazê-los. Um dia combinei almoçar
Sobretudo rir desbragadamente. com um amigo e, enquanto ia ter com
ele, comecei a pensar: “Se uma cria-
Causa muito embaraço. da for despedida por ser malcriada, é
Muito. Os meus pais diziam-me para despedimento sem justa causa, por-
não me rir desta maneira, e a minha que é mal criada...” [faz o gesto com
avó dizia que era uma vergonha. a mão e uma expressão a sublinhar
o trocadilho óbvio e rimo-nos] Está
“Profissionalmente, faço tudo o que ver? Ele teve exatamente essa reação,
os adultos me dizem para não fazer.” eu comecei a rir-me histericamente,
A frase é sua. Tem a ver com essa ideia e ele, assim como quem diz “não me
de quebrar uma censura? chateies”, disse: “Olha, vai para casa e
muito respeito pelos humoristas, há precisamente se explica que muitas Pode ser. Em criança, a censura come- faz uma página no Facebook.” Quando
muitos que admiro, mas não me re- vezes a origem está ancorada nessa ça sempre com o facto de se ter uma cheguei a casa fiz um desenho, com-
vejo nesse lugar. necessidade de espantar a tragédia personalidade larger than life, e eu era pus a página e mandei-lha.
da nossa perenidade, ou do nosso de- muito intenso. Tinha uma sede enor-
No entanto, a sua capacidade de ela- samparo existencial, e que tem a ver me de explorar o mundo e era incon- Como era a piada?
borar sobre o nonsense, que é uma com o que acabou de dizer. Numa en- tinente verbal. Qualquer ideia que me Era uma coisa muito básica, com a
forma muito particular de olhar para trevista que deu ao Expresso, Ricardo passava pela cabeça verbalizava ime- senhora a dizer: “Não precisas de me
o mundo e o ponto de partida para se Araújo Pereira usou exatamente essa diatamente. Imagine esta pessoa, ou tratar por você, minha senhora está
fazer humor, também é a sua matriz. frase, “virar o mundo ao contrário”, esta criança, que está a crescer no seu bom.” Só que o meu amigo mandou
Cultiva-se? explicando que, na vida real, virar o caminho e vai pensando na sua forma para outro amigo, que mandou para
Penso que não. Sempre tive essa coisa mundo de pernas para o ar é a atitu- própria, que na maioria das vezes não outro, começaram a partilhar e tor-
de ver o mundo ao contrário. Ou pelo de mais destrutiva que existe, mas na se encaixa com aquilo que os adultos nou-se viral. De repente, já estava a fa-
menos conseguir ver os bastidores de comédia não só é possível como é o estão à espera... A frase que mais ouvia zer uma tira semanal na revista “Sába-
todas as coisas. Deve estar ligado à ma- motor da criatividade para tornar o entre as pessoas mais próximas era: do”, que ainda durou três anos, a Fox
neira de como olhamos a própria vida. mundo a seu gosto e fazer dele um lu- “Isso não é normal.” Comedy fez uma série de animação e
Sou responsável pelo que me acontece, gar menos inóspito. publiquei um livro. Hoje, a esta dis-
mas, simultaneamente, acho que nada Concordo inteiramente. Incomodava-o? tância, percebo que não era costume
tem consequências muito graves. Por- Nunca me deteve, mas de alguma ma- fazer-se por cá aquele género de tiras
tanto, se vamos todos morrer no final, O que é que virou ao contrário? neira isola. E aqui voltamos à escrita, e transformou-se um fenómeno. Pro-
nada é particularmente grave. Acho que sempre vi o mundo ao con- porque, precisamente, desde mui- vavelmente, era mesmo original.
trário, nem precisei de o virar. Sempre to cedo descobri que escrever era o
Existem algumas teorias sobre a ca- percebi o duplo sentido das coisas no que me permitia criar silêncio à mi- Esse livro foi apresentado por um
pacidade de produzir humor, onde mundo dos adultos. Em tudo isto há nha volta. ator. Não ter revelado a autoria

E 47
foi uma estratégia para criar mais
impacto?
Não! Não foi nada calculado. Já nem
me lembrava de ter ido anónimo ao
lançamento. Quase um mês depois
de as tiras terem começado a apare-
cer, já tinham tantos seguidores que
houve um jornal que quis saber quem
É uma chatice as pessoas
eu era para me entrevistar. Achei que
não fazia sentido apresentar-me com
o meu nome, muito menos a fotogra-
precisarem de nos rotular e de
fia, porque, quando há uma cara e um
autor, os bonecos deixam de ter vida
própria. Passa a ser aquela pessoa a fa-
nos encaixar em sítios. Podemos
zer aquilo, e a coisa morre um bocadi-
nho. Havia ali uma certa ideia voyeu- experimentar tantas coisas”
rista, como se tivéssemos entrado na
sala de alguém e escutado uma con-
versa. Essas primeiras entrevistas até
foram feitas em personagem, como se “O que é que estiveste a fazer?” Di- e um mundo cheio de vida. Estou a a casa quase sempre na penumbra e
fosse a senhora a responder às ques- ziam: “Desapareceste.” Senti que o pensar no Quino, no Schulz, no Bill muitas coisas que tem foram herda-
tões. Aliás, era eu quem escrevia as meu tempo na Holanda não podia ser Watterson... das, não lhe interessa nada decoração,
perguntas e dava as respostas. A gra- só uma nota de rodapé na minha vida: O Quino é um dos meus heróis. Foi ou design, nem esse tipo de coisas.
ça era exatamente essa, de as tiras se- “Ah, é verdade, ele viveu na Holan- com ele que aprendi o ritmo da piada
rem as personagens a falar. Depois de da.” E como desde miúdo as pessoas numa tira. Ele fazia sempre em três: Quando acabou a série da “Cavaca a
ter aparecido o livro e a série na Fox, o acham que sou estrangeiro e me falam “Tau, tau e punch line.” Presidente” disse que ficou cheio de
Pedro Penim convidou-me para parti- em inglês nas lojas, tornou-se perfeito. saudades dela.
cipar na peça “O Nome da Rosa”. Nes- Do Quino, qual é o seu preferido? É verdade.
sa altura decidi que não fazia sentido E a rábula com o lado holandês ainda A Susaninha tem imensa graça. Não,
continuar a não dar a cara. funciona? não, a Susaninha é mesmo incrível Conhece a Maria Cavaco Silva?
Sim, sim. Ainda me perguntam: “Mas [desata a rir-se]. Foi minha professora na Universidade
Mas não usou o seu nome, Hugo Sou- tens mesmo família holandesa? E é do Católica quando andei por lá a estu-
sa Tavares. Apareceu como Hugo lado do teu pai ou da tua mãe?” Tam- As suas composições, sobretudo as dar Direito, um curso que não acabei.
van der Ding, nome a partir do qual bém me perguntam: “Estás a torcer que têm continuidade e criam uma Mas a “Cavaca” é uma personagem. O
também construiu um personagem e pela Holanda ou por Portugal?” Cla- relação com os leitores, e também engraçado é que a Maria Cavaco Sil-
criou uma ficção sobre a origem. Por- ro que esta construção é ridícula, mas têm imensa graça, como a “Juliana va, que até é uma figura antipática,
que não quis usar o seu nome? Estava a verdade é que a Holanda continua Savedra, a psicanalista que deixa os ou não é propriamente simpática, foi
reservado para as coisas mais sérias, presente. Se tivesse optado por usar o pacientes na merda”, ou a “Celeste transformada numa personagem qua-
como escrever livros? meu nome, teria desaparecido. É tão da Encarnação, velha mas moderna”, se pop. Até é querida, não é?
Talvez. Mas hoje em dia já não faz sen- bom podermos reinventar-nos. não são mais do que uma piada por
tido, este nome colou-se-me e será as- tira. São bidimensionais. Teve alguma reação da parte dela?
sim que vou assinar. É isso que o atrai quando faz teatro? Acha? Eu por acaso gosto de imaginar Odeia-me. Tem muito pouco sentido
Boa pergunta... Quando se é filho úni- que elas têm vida própria para além de humor. Nunca me disse nada, mas
Van der Ding tem grande sonoridade. co — pelo menos comigo aconteceu das tiras. Pode não aparecer, mas o fez questão que eu o soubesse através
“Ding” é como o thing em inglês. Sig- —, há uma tendência para se cons- mundo delas existe. Mesmo que não de outras pessoas. Também soube que
nifica “coisa”, não quer dizer nada e truir um mundo próprio e criar imen- seja revelado nos desenhos, tenho muitos políticos seguiam religiosa-
nem existe na Holanda nenhuma fa- sos personagens. Eu tinha milhões de na minha cabeça esse ambiente, e é mente aquela página, e foi das coisas
mília com este apelido. amigos imaginários, famílias inteiras. importante. que mais me diverti a fazer. Durante
Sempre tive essa coisa de imaginar si- os dois anos que durou, quando acor-
Porque escolheu um nome que soa a tuações, de fingir que fazia programas Como lhe aparecem? dava, a primeira coisa que fazia era ir
“holandês”? de rádio, de televisão... Quando criei essas personagens, que espreitar a página da Presidência da
Vivi na Holanda entre os 23 e os 28 depois se tornaram recorrentes, não República. Como ela estava sempre a
anos. São anos formativos, muito im- Uma das maiores dificuldades em sabia que iam ser mais do que uma fazer coisas, todos os dias havia foto-
portantes, e de algum modo queria escrever romances é criar persona- tira. A Juliana Savedra, por exemplo, grafias novas. Enquanto bebia o meu
manter viva essa herança holandesa gens credíveis e tornar real aquele nasceu assim: “Era giro uma psicana- café, olhava para elas até haver uma
na minha vida em Portugal. Isto tem mundo... lista dizer uma coisa que não é espe- que me falava com aquela voz, e só de-
a ver com um fenómeno que aconte- Para mim, não é nada complicado... rado nem é suposto.” Fiz uma tira e, pois escrevia a frase. Não me dava tra-
ce muito a pessoas que transportam [pausa] De facto, isto é muito estra- quando olhei para ela, pensei: “Esta balho nenhum, porque nem era grá-
um sentimento de exílio. Depois de nho, um tipo estar a dar uma entre- mulher é tão awesome. Quero conti- fico. Era só o título. Antes de publicar,
se estar fora durante um período lon- vista como se fosse um escritor sendo nuar.” São sempre os desenhos que fa- era capaz de estar meia hora a rir-me.
go, quando regressamos, as pessoas à que ninguém ainda leu o que ele está lam, que me apaixonam e me criam a
nossa volta tentam, inconscientemen- a escrever... “Nos meus livros, o que ligação. A partir daí consigo imaginar Neste livro que lançou recentemente,
te, preencher os espaços em branco exploro nas minhas personagens...” onde moram, o carro que têm... “O Lixo na Minha Cabeça”, publicou
das coisas que aconteceram durante [tapa a boca] Desculpe, desculpe, isto cerca de mil tiras. Ainda se diverte a
a nossa ausência. Essa coisa de apa- é surreal! Como é a vida da Juliana Savedra? fazê-las?
gar a vida, como se durante aqueles Vive sozinha num apartamento, odeia Muito. Guardo tudo o que faço em cai-
anos não tivéssemos existido ou como Vamos lá tentar compor. Por exem- o que faz e bebe um bocado. Não é xas e, quando estava a fazer a seleção,
se a nossa ausência representasse um plo, no universo da BD, ou dos car- propriamente alcoólica, mas vejo- voltei a ver as tiras e ri-me imenso. Lá
congelamento na vida real, é muito toons, existem autores que a partir -a chegar a casa depois do trabalho está, não há essa intenção de escrever
estranho. Era raro perguntarem-me: dos “bonecos” criaram personagens e chocalhar um copo de whisky. Tem uma coisa para fazer rir. Saem assim.

E 48
São o meu passatempo. Ideias que me que recebi uma enxurrada de mensa- gente, que depois se torna muito can- que houvesse ali um diagnóstico. Não
passam pela cabeça ao longo do dia. E gens que ainda hoje continuam. Hou- sativo e que tem a ver com as chama- sei como seria a minha vida se tives-
vou tomando notas. Com as tiras criei ve pessoas que me disseram que não das fase maníacas, que são eufóricas, se sido obrigado a ser mais formatado
uma relação com as pessoas que é ma- sabiam que se podia procurar ajuda, deixavam-me completamente exaus- e a precisar de trabalhar todos os dias
ravilhosa. Durante a pandemia, quan- imagine o grau de alienamento em to interiormente. Mas nunca tive sur- para sustentar uma família. Há 10 anos
do estávamos em isolamento, para que se pode viver. Fui contactado por tos psicóticos. E depois há o reverso da tive uma grande depressão, felizmen-
muita gente que estava deprimida, as muitas mães de filhos adolescentes a medalha, as depressões, que provo- te foi a última, e fiquei dois anos sem
tiras foram a alegria do seu dia. Houve pedirem o contacto da minha tera- cam um sofrimento horrível. Ao lon- fazer rigorosamente nada.
histórias muito comoventes. peuta e de outros psiquiatras, porque go da vida tive quatro ou cinco episó-
os filhos tinham sido diagnostica- dios bastante prolongados. Sentia uma Em criança tinha sido acompanhado?
Pode contar? dos, ou porque ainda não se sabia mas tristeza muito forte, muito profunda, Muito vagamente, por causa da in-
[hesita] Isto dito por mim até fica desconfiavam que fossem. A mensa- que não era igual a outras que tam- disciplina escolar. A minha avó, por
mal... Houve um homem que me dis- gem que mais me tocou foi a de uma bém fazem parte da vida, como a mor- exemplo, passava o tempo a dizer à
se que quando visitava o pai, que esta- mulher que me escreveu a contar que te de um familiar ou um desgosto de minha mãe: “Este miúdo precisa de
va a morrer no hospital, mostrava-lhe a mãe era bipolar e que tinham tido amor. Não é desse tipo de tristeza que ser tratado.” Era a frase que eu mais
sempre uma tira. Era o único momen- uma relação muito complicada. Dis- estamos a falar, embora também pos- ouvia... Hoje percebo. Faço 22 anos
to do dia em que se riam juntos. Saber se que a mãe se tinha matado e que sam ser catalisadoras. É mesmo uma de diferença da minha mãe. Às vezes,
disto foi brutal. Podia até morrer no só quando viu a entrevista é que con- coisa clínica. Ao longo do tempo, os penso o que seria ter naquela idade um
dia seguinte que já tinha feito alguma seguiu fazer as pazes com ela. Perce- episódios eram cada vez mais inten- filho adolescente tão intenso como eu
coisa na vida que tivesse valido real- beu? [pausa] sos e foram-se agravando. Houve um era. Ainda por cima, ela era professo-
mente a pena... E tudo começou com momento, quando ainda estava em ra. Chegava a casa cansada da passar
um desenho que é uma merda de uma A sua mãe nunca comentou a entre- Amesterdão, em que a ideia da morte o dia inteiro a aturar miúdos e tinha a
brincadeira. vista? Expô-la bastante. começou a deixar de ser triste. Poderia casa virada de pernas para o ar, com
Não. Nunca comentou. Foi por isso que até ser um alívio. A bipolaridade tem a sala toda mudada, porque eu esta-
Há cerca de dois anos deu uma en- me arrependi de ter ido tão longe. E só uma relação grande com o suicídio. va a “rodar um filme”. Incendiei o
trevista ao “Labirinto”, o podcast do o fiz porque tive de contar o meu per- Tudo isto é horrível de se dizer, mas meu quarto três vezes. Coitada. E de-
“Observador”, sobre saúde mental, curso e nesse contexto os pais são im- quem já viveu momentos de tristeza pois os professores estavam sempre a
onde falou sobre a experiência de ser portantes. Houve um período em que profunda pode percebe que a ideia da chamá-la. “Ele tem ótimas notas, mas
bipolar. Fê-lo porque quis assumir ela viveu em negação. Compreendo. morte pode ser uma coisa redentora, não se cala!” Portanto, era óbvio que
que faz parte da sua história ou teve a Era muito difícil lidar com aquilo. até no sentido de descansar. Às vezes, havia ali um problema. Analisando
intenção de a partilhar no sentido de é só isso. Uma necessidade profunda hoje, percebo que não conseguia lidar
prestar um serviço público? Para si, era uma evidência? Há pouco de dormir e descansar, porque a bipo- com aquilo.
É importante primeiro dizer isto: nós falávamos da diferença que sempre laridade afeta muito o sono. Era possí-
só questionamos a nossa natureza, sentiu, de lhe dizerem que o que fazia vel estar três dias sem dormir e depois Percebe a negação?
seja ela qual for, quando o mundo nos não era normal... passar 20 horas a dormir. Tudo isto é Não, isso não. Percebo que a relação
faz sentir que somos diferentes e que Que havia alguma coisa que não es- viver sobre a pressão de um vulcão. fosse complexa. A minha mãe é uma
essa diferença pode ser errada. Isto tava bem eu sabia. Mas talvez só por Estamos sempre a falar de situações pessoa informada, talvez não soubesse
aplica-se à sexualidade, à saúde men- volta dos 15 anos percebi que poderia não medicadas, claro. exatamente o que era, mas sabia que
tal ou a qualquer outra coisa fora da ser bipolar. Cheguei a falar com alguns o meu comportamento não era nor-
norma. Além dos dramas interiores amigos mais íntimos sobre isso. Isso pode ser hereditário? Hoje per- mal. Se tivesse havido uma insistên-
que provocam, só se tornam verdadei- cebe que nas histórias de família já cia muito mais cedo num diagnóstico,
ramente problemáticas quando cau- Conhecia outras pessoas? havia casos? eu teria sido acompanhado, medicado
sam um embate. Pontualmente, se o Não. Sabia de algumas histórias de Antigamente, quando as pessoas eram e poupado a bastante sofrimento. Aí
assunto viesse a propósito, eu já fala- pessoas muito disfuncionais. Mas o pobres, havia sempre o louco da al- acho que houve uma falha.
va sobre a minha bipolaridade. Nes- estigma ainda é gigantesco. deia. Quando não eram pobres, podia
se dia esqueci-me de que estava dar ser uma tia “neurasténica” que pin- Quando foi pedir ajuda, não ficou
uma entrevista e expus-me muito e O que é que sabia? tava quadros de manhã à noite e não surpreendido como o diagnóstico?
até me arrependi de ter ido tão longe. Esses picos de exuberância, essa coisa dormia. Há umas figuras excêntricas, e Nada. A história foi um bocadinho
Comovi-me mesmo. A coisa incrível é de ser mais exuberante do que toda a hoje consigo perceber que era possível triste. Quando tive a minha última de-
pressão, já com 30 e tal anos, percebi
que até ali tinha conseguido ultrapas-
sar sozinho todas as anteriores, mes-
mo com comportamentos muito pre-
judiciais, o que é muito comum na bi-
polaridade. Mas, dessa vez, sabia que
ia ser pior, porque não só tinha havido
uma regularidade como era cada vez
mais intensa. No sofrimento, há sem-
pre a esperança de que “isto vai pas-
sar”. Por isso, aguentamos. Ter a per-

Não sei como seria a minha ceção de que é um sofrimento cíclico,


que a qualquer momento pode voltar
a acontecer, torna-se insuportável. Sa-

vida se tivesse sido obrigado bia que na Suécia, onde há uma gran-
de taxa de suicídio, as pessoas se ma-
tam no verão?
a ser mais formatado e a precisar Não.

de trabalhar todos os dias” Mas é assim. E a razão é porque as


pessoas sabem que vem aí o inverno,

E 49
essa noite escura que dura meses. Não
se matam no inverno, quando estão
a atravessar o sofrimento, mas com
a perspetiva inevitável de que a noi-
te escura vai chegar... Tudo isto é um
bocado indizível, mas na essência de
todas as coisas estamos indizivelmen-
te sós. Não sei quem escreveu isto, li-o
[Maria Cavaco Silva] odeia-me.
quando era criança, mas percebi logo
que era mesmo assim. A linguagem é
demasiado pobre para explicar o uni-
Tem muito pouco sentido de
verso das emoções. Mas também, fe-
lizmente, o nosso cérebro não guarda a
memória da intensidade da dor. É im-
humor. Nunca me disse nada,
possível reviver, e ainda bem. Se não,
não conseguiríamos sobreviver. mas fez questão que eu soubesse”
Antes de chegar a essa última depres-
são percebeu que poderia fazer qual-
quer coisa radical e por isso procurou casa de família. Ainda me espanta Deixava-me guiar o carro dela para Ainda é comum ouvir: “Não quero dar
ajuda? nunca acabar o papel higiénico ou sair à noite e ainda hoje não tenho car- esse desgosto aos meus pais.” Ouço
Foi a minha mãe que me perguntou: de haver sempre laranjas para fazer ta... São tudo figuras um bocadinho muitas histórias dessas, até a gen-
“Está tudo bem?” Porque as mães um sumo e esse tipo de coisas. Tenho fora. O ambiente era oposto ao am- te mais nova do que eu, e revolta-me
sabem sempre. E eu, que respondia máquinas para tudo e, quando olho biente em casa da minha mãe, onde imenso. É a maior violência que se
sempre: “Sim está tudo bem”, na- para aquilo, penso: “A minha casa é havia muitas regras e horas para tudo. pode fazer sobre alguém. E, quando
quela vez resolvi dizer que estava tudo ridícula.” Lembro-me de ouvir histórias de o me dizem isso, o conselho que dou é:
péssimo. No dia seguinte marcou-me meu irmão, muito miúdo, ter de acor- “Conta. Também estás a tirar a opor-
uma consulta com uma terapeuta, Apesar de ter começado a viver sozi- dar os pais para o levarem à escola. tunidade ou o direito de eles serem
que é a mesma até hoje, e com um nho a partir dos sues 16 anos, como já Houve uma altura em que o meu irmão pessoas fixes.” Porque às vezes nem
psiquiatra. Com ele correu muito mal. contou... estava com más notas e era eu que di- é pelo preconceito, é pelo medo que
Disse que o que eu tinha era uma de- Mas era outra situação. Tinha um zia à minha madrasta que tinham de cause sofrimento. Quero acreditar que
pressão crónica e encharcou-me em apartamento só para mim, mas era o mandar estudar e terem autoridade as pessoas fazem tudo por amor.
remédios. Eu cheguei a dizer-lhe vá- dependente da vida familiar. Essa foi e essas coisas. Já morava sozinho nes-
rias vezes que achava que era bipolar, uma das primeiras formas que arran- se apartamento, e então lembraram- A sua capacidade de refletir sobre si é
porque lia coisas e identificava-me jamos para não entrarmos em colapso, -se de que o melhor era ele vir viver resultado de um treino destes anos de
com o padrão. e até não correu mal. A minha mãe le- comigo, para eu o ajudar a estudar. Eu análise?
vava-me o almoço e o jantar em caixi- com 17 anos e ele com 11! Eu até achei Sim, muitas coisas de que falámos são
Numa das suas necrologias no “Va- nhas e a roupa vinha toda engomada. boa ideia, mas, quando contei à mi- evidências sobre as quais tomei cons-
mos Todos Morrer”, na biografia Estávamos muito próximos e víamo- nha mãe, ela começou a gritar: “São ciência depois de começar a terapia.
sobre Amalia Freud, falou bastante -nos todos os dias. todos malucos.” Mas a verdade é que sempre fui mui-
sobre a relação entre Freud e a mãe, to analítico. Mesmo a minha terapeu-
que era muito próxima, e citou-o, E o seu pai? Não fala dele. Nasceu em 1976, na pós-revolução. ta diz-me que rapidamente identifico
dizendo que um homem só atinge a Os meus pais divorciaram-se quando Pelo que conta, os seus pais fazem as questões. O problema é que não te-
maioridade quando faz o corte com a eu tinha 4 anos e ainda é mais novo do parte dessa geração muito experi- mos as ferramentas para quebrar cer-
mãe. Uma das suas blagues recor- que a minha mãe. Quando nasci tinha mental em matéria de educação? tos ciclos.
rentes — já a disse nesta conversa — 21 anos e nenhum talento para a pa- Eram muito novos. E é verdade que
é “quando eu for grande...” Não fez ternidade. É ótima pessoa, tem imen- eles estavam a fazer um corte radi- E terá de ser seguido toda a vida...
o corte? sa graça, mas não foi uma presença no cal com tudo o que foram as regras da É o que está prescrito pela psiquia-
Sabe, quando a infância é muito con- meu crescimento. É muito irónico, até geração dos meus avós, que era uma tra. É uma doença crónica, não há um
turbada, os pais — no meu caso a mi- com essa falta de jeito. Era capaz de gente muito formal. E aí tive muita momento em que se pode dizer: “Este
nha mãe — tentam compensar essa dizer que não tinha nada para me en- sorte. Nunca senti por parte da minha trabalho está feito.” A bipolaridade
falha com uma superproteção, que na sinar como pai e que era péssimo pai. família qualquer pressão para ser nor- controla-se de duas maneiras: com
maioria das vezes é já fora do tempo O que não deixa de ter graça e de ser mal, no sentido normativo. fármacos e através de terapia. Ain-
em que deveria ter sido feita, o que super sweet. da em relação à bipolaridade, há uma
se torna pernicioso para ambos. Não Nunca sentiu a homossexualidade co- coisa que pode ser interessante saber.
há aqui culpas. Os pais também são Não o via? mo um estigma ou um tabu? Depois do diagnóstico, vivi durante
pessoas e estão nos seus processos Ia lá passar os fins de semana, era Há um lado da minha personalidade muito tempo com o drama de tentar
de aprendizagem e de crescimento. obrigado, mas não gostava nada. Não que até pode ser arrogante, mas não compreender, através dessa análise,
Mas, para os filhos, aquilo que uma gostava de sair do meu quarto, das sou suscetível à opinião dos outros. onde acabava a bipolaridade e come-
mãe muito protetora faz sem querer é minhas coisas. Aí sou universo fecha- Portanto, nunca senti isso como uma çava o “eu”. “Como seria eu se?...”
transmitir mensagens de que somos do. Quando tinha 13 anos, a minha vulnerabilidade. Não era um assunto. E um dia, estava no duche, tive uma
incapazes. Levei muito tempo a or- mãe voltou a casar. O meu padrasto é Quando me apaixonei, contei à minha epifania. Percebi que era inseparável
ganizar a minha vida e a tomar conta a minha figura paterna. Já tinha dois mãe que estava apaixonado, mas nem da minha personalidade. Foi tão bom
das minhas coisas. Depois de ter sido filhos do casamento anterior, e ain- sequer procurei aceitação, não for- esse momento. Não posso não gostar
diagnosticado e começado a arrumar da hoje nos tratamos como irmãos. mulei a história à espera que houves- da minha vida, seria de uma enorme
a minha cabeça, a minha casa tor- Depois tive um meio-irmão do lado se uma resposta do outro lado. Apenas ingratidão. Portanto, é ótima, e e óti-
nou-se muito organizada. Ainda hoje do meu pai. A coisa engraçada é que informei. Era assim. mo ser bipolar. Não sei quem é que
tenho uma casa onde podiam morar me tornei muito amigo da minha ma- decide estas coisas, mas... obrigado. b
seis pessoas, no sentido em que tudo drasta, e nessa altura era divertido ir Na sua geração, ou no seu círculo, ho-
funciona tão bem que podia ser uma passar os fins de semana a casa deles. je não é mais fácil? asoromenho@expresso.impresa.pt

E 50
MANUAL

Em
Hotéis
e Spas
QUE COISA SÃO AS NUVENS

IRON BROTHERS

U
SÓ QUANDO PARTILHAMOS AS DIFICULDADES
ELAS SE RECONFIGURAM EM HORIZONTES

ma das histórias portuguesas deste O Pedro fez isto pelo APCL (Associação de Paralisia Cerebral
ano é aquela protagonizada pelos de Lisboa). Eu fiz isto pelo Pedro. E juntos vamos continuar a
irmãos Ferreira Pinto. O Miguel, que lutar pela inclusão de pessoas com deficiência no desporto e
gosta de se apresentar simplesmente na sociedade.” É impossível não notar que o segredo deles é
como alguém que pratica desporto, e aquele “por”. O Pedro que meteu no coração que pode ajudar
o Pedro, que tem paralisia cerebral, a comprar a carrinha de que a APCL precisa; o Miguel que se
decidiram fazer caminho e história põe ao lado do irmão para confirmá-lo no seu desejo. Por isso,
enfrentando uma das provas mais juntos são maiores do que eles próprios. Não vivem apenas uma
exigentes de longa distância, o história de superação numa duríssima prova de resistência física:
Ironman Triathlon: cerca de 3,8 km protagonizam juntos uma luta. Uma luta para que construamos
em natação, 180 km no ciclismo todos uma sociedade mais colaborativa, inclusiva e humana.
e os últimos 42 km na corrida. Tornou-me estes dias ao pensamento a história dos Ferreiras
A história aconteceu no início do verão em Hamburgo, mas Pinto ao conversar com Luca Pancalli, presidente do comité
começou certamente há mais tempo: começou na coragem paraolímpico italiano. Pancalli teve, desde a juventude,
de uma família que interpreta a sua missão como serviço uma vida dedicada ao desporto, nomeadamente no pentatlo
indiscutível ao amor; começou no potenciar dessa amizade que, moderno, vencendo diversos campeonatos. Em 1981, o seu
desde a infância, pode ligar para sempre os irmãos; teve início percurso altera-se radicalmente: em consequência de um
na resiliente sabedoria de quem quotidianamente transforma grave acidente desportivo fica tetraplégico. Providencial será
os limites aprendendo a escutá-los mais fundo e a partilhá- então o encontro com um treinador, que lhe diz: “Amas o
los. É verdade: só quando partilhamos as dificuldades elas se desporto, és um atleta e não continuas? O que tens a fazer agora
reconfiguram em horizontes. Só desse modo, o que primeiro se é recomeçar.” E assim acontece. Luca Pancalli tornar-se-á um
considera um inultrapassável motivo de bloqueio se converte em histórico nadador paraolímpico, estabelecendo vários recordes
possibilidade e estrada. mundiais da modalidade. A mim, explicou-me deste modo a
A dupla Miguel e Pedro transmite a quem a segue uma força sua visão: “Em vez de nos fixarmos no que não temos ou no que
incrível, mas sem truques espetaculares, sem maquilhagem perdemos, importa valorizar o que está ao nosso alcance.”
nem pretensões, mostrando como a vulnerabilidade nua e a Para lá do estrito campo desportivo, os irmãos portugueses
persistência se abraçam. Claro que os dois irmãos são heróis, são também mestres na arte da fraternidade. Uma das
mas sem outros poderes extraordinários que a genuína doação imagens icónicas da competição de Hamburgo é a de Miguel
de si mesmos, lutando pelo bem dos outros, protegendo os transportando, no final da prova de natação, Pedro nos seus
seus sonhos, sorrindo por isso. No canal de YouTube onde braços. Aquela imagem, porém, é circular. Ao ouvirmos Miguel
foram relatando os detalhes da sua aventura (“Iron Brothers”), Ferreira Pinto contar o que viveram quase se diria que todo
resumem assim aquilo que os moveu: “Estamos muito felizes. o tempo era o Pedro quem o transportava a ele. Quem nos
Conseguimos levar a nossa mensagem mais uma vez até ao fim. transporta a nós. b

JUNTOS SÃO MAIORES


DO QUE ELES PRÓPRIOS.
NÃO VIVEM APENAS UMA
HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO
NUMA DURÍSSIMA
PROVA DE RESISTÊNCIA / JOSÉ
FÍSICA: PROTAGONIZAM TOLENTINO
JUNTOS UMA LUTA MENDONÇA

E 52
Questionar
o passado
no presente

O DocLisboa volta
com uma proposta que
dialoga com os tempos.
Colonialismo e Brasil
estão em destaque
na 20ª edição
TEXTO CATARINA BRITES SOARES

“Black Girl”, de
Ousmane Sembène,
figura na retrospetiva
A Questão Colonial

E 53
“Quem Tem Medo?”, de
Dellani Lima, Henrique
Zanoni e Ricardo Alves Jr.,
e “Onde Fica Esta Rua?
Ou Sem Antes nem Depois”,
de João Pedro Rodrigues
e Guerra da Mata, são duas
das propostas do festival

N
“Há muito tempo que esta questão Novo de avançar para a Guerra realizador que o protagonizou — é
está presente e de várias formas Colonial e assinala o termo das a primeira retrospetiva destinada
no DocLisboa. Através do cinema colónias francófonas — é o ponto ao brasileiro fora do país natal —
contemporâneo, dos registos de partida do diálogo entre os foram os escolhidos, porque assim
históricos e trazendo novas formas dois países. Portugal e França não exige a altura. “O festival não
de ‘colonialidade’. Não chamamos só coincidem no tempo no que existe separado do tempo em que
a esta retrospetiva ‘pós-colonial’ toca a guerras e independências acontece. As questões do mundo
por isso. Parece-nos que o exercício coloniais como são protagonistas interessam-nos”, afirma Miguel
agora é pensar sobre as persistências da Temporada Portugal/França Ribeiro. “Tínhamos muito claro
e continuidades através de 2022, a decorrer em simultâneo que era importante falar do Brasil
as Histórias há sempre feridas exercícios coloniais”, explica nos dois Estados. “Respondemos a e de uma ideia de Brasil que fosse
abertas: as que nunca se fecharam Ribeiro. esta proposta com uma discussão suficientemente livre e combativa
e as que se reabriram. É aí que o Este ano, mostram-se filmes da profunda que envolve os países”, para fazer sentido nos tempos
DocLisboa sempre quis ter o dedo. História recente sobre o continente vinca o codiretor do DocLisboa, que vivemos. O pós-eleições será
Não é ao acaso que A Questão africano e antigas colónias que realça o papel do cinema na um momento de novas etapas.
Colonial e o Cinema Marginal portuguesas e francesas, que têm criação de novas identidades e As imagens de Reichenbach, nas
do Brasil, pelos olhos de Carlos estado fora do debate e que foram territorialidades no que foram as quais o lado lúdico da vida está
Reichenbach, são os temas fortes gravados com o propósito claro colónias portuguesas e francesas. muito associado a uma existência
do festival que arrancou ontem de criar comunidades e lugares profundamente política e engajada
(6 de outubro) e termina a 16, de discussão, e essa, acrescenta, é E AGORA, BRASIL? nas questões socioeconómicas,
numa edição com mais de 280 uma proposta “nova, necessária e A par da retrospetiva que reúne é um grande mote para repensar
filmes — 47 estreias mundiais atual”. “Os Comprometidos”, de René Vautier, Margarida Cardoso, caminhos futuros”, sublinha.
e 28 obras nacionais. As duas Ruy Guerra, sobre o julgamento José Cardoso, Licínio Azevedo, O cineasta viveu num tempo
retrospetivas ocupam grande parte dos moçambicanos que lutaram Assia Djebar e a dupla Filipa em que era proibido ousar,
do evento. Mas, se o que procura do lado do Estado português, é um César e Sónia Vaz-Borges, entre experimentar e criar em liberdade.
são respostas, não as vai encontrar, dos que integra a categoria. “É o outros nomes, há outra dedicada Pagou com a censura da ditadura
avisa o codiretor. No DocLisboa momento para se ter esta conversa a Carlos Reichenbach (1945-2012) militar [1964 e 1985], recuperada
levantam-se questões, reflete-se com os filmes que foram gravados e ao Cinema Marginal. Também com a liderança de Bolsonaro.
e pensa-se o mundo, sem limites naqueles lugares. Muitos caíram conhecido como Cinema de “Quem Tem Medo?”, de Dellani
e tabus e de todas as perspetivas. no esquecimento e têm dados Invenção ou Udigrudi, o movimento Lima, Henrique Zanoni e Ricardo
É assim há 20 anos e assim relevantes para os debates de hoje”, artístico nasceu nos anos 60, em Alves Jr., faz um registo dos
continuará, promete Miguel Ribeiro. insiste. plena ditadura militar brasileira, em tempos através de trabalho,
“Questão Colonial” dá nome à O fim da Guerra da Argélia — que resposta à instabilidade no país. material de arquivo e entrevistas
secção que volta ao tema no evento. coincide com a decisão do Estado O movimento cinematográfico e o a artistas censurados durante a

E 54
“É o momento — só com estreias mundiais e
internacionais —, Ribeiro sublinha
com todas as nuances que o made
in pode abarcar. “É cada vez
Numa altura em que os cinemas
escasseiam na capital e mais
para se ter esta a pluralidade de temas e formatos. mais interessante pensar nesta ainda noutras partes do país,
conversa com Põe a tónica nos cineastas que
usam outros mundos artísticos
competição como uma redefinição
ou uma indefinição do que pode ser o
lamenta Ribeiro, os festivais são
entre outras coisas oportunidades
os filmes que foram para chegar ao que querem retratar. cinema português. Se há uns tempos — “muitas vezes únicas” —
“Pierre Guyotat, le don de soi”, se limitava muito aos cineastas de ver determinados filmes
gravados naqueles de Jacques Kébadian, “Elfriede portugueses que estão a fazer cinema e propostas, vinca. “O que o
lugares [antigas Jelinek — Language Unleashed”,
de Claudia Müller, e “In Fields
em Portugal, neste momento é
uma competição com tão poucas
público do DocLisboa sempre
pôde contar e assim continuará é
colónias]. of Words: Conversations with fronteiras como as da internacional”, com uma contínua investigação
Muitos caíram Samar Yazbek”, de Rania Stephan,
fazem-no. As exibições contam com
salienta Miguel Ribeiro.
A par dos que realizam cá e são de
sobre o inesperado. O que
nos interessa é criar diálogos,
no esquecimento” a presença dos realizadores assim fora e dos que são de cá e realizam de forma a proporcionar um
como acontece com “Se’-back”, fora há outros trabalhos que processo de acumulação e de
MIGUEL RIBEIRO do japonês Shichiri Kei, e “Date merecem atenção, não competem e tensão. Não procuramos filmes
DIRETOR DO DOCLISBOA in Minsk”, de Nikita Lavretski, são de portugueses. Miguel Ribeiro que respondam, expliquem ou
incontornável no novo cinema sugere o novo filme de Catarina solucionem o mundo mas antes
bielorrusso. Camille Degeye também Alves Costa, que visita a cultura que continuem a alimentar
estará em Lisboa para apresentar makonde em Moçambique através inquietação e acesso à sua
“Almost a Kiss”, curta-metragem do trabalho da antropóloga Margot complexidade. É essa defesa que
rodada em 16 mm e que conclui Dias. A Margot acrescenta a nova fazemos do documental”, afirma.
era bolsonarista; “Amigo Secreto”, o díptico iniciado com “Journey produção de João Pedro Rodrigues e “Não sei se é o que nos diferencia,
uma das estreias internacionais Through the Body”. “Pensa o luto, Guerra da Mata. Ainda no rescaldo mas é o que se encontra
que Miguel Ribeiro releva, também mas vai além da perda. A ideia do de “Fogo-Fátuo”, a dupla estreia garantidamente aqui e não se
retrata os efeitos dos últimos anos. cinema documental que regista o “Onde Fica Esta Rua? Ou Sem encontra em muitos lugares.” b
Posterior ao filme sobre o caso íntimo e o torna público, e como tal Antes nem Depois”, que revisita
Vaza Jato, que levou à prisão de discutível e logo político, interessa- o cenário de “Os Verdes Anos”,
Lula da Silva, haverá debate com a nos muito”, afirma Miguel Ribeiro. de Paulo Rocha. “Apesar de serem
realizadora Maria Augusta Ramos exatamente os mesmos lugares e
e Leandro Demori, ex-editor HÁ TENSÃO NO DOCLISBOA filmados da mesma perspetiva, DOCLISBOA: FESTIVAL
executivo de “The Intercept Brasil” e As fronteiras também são revela-se uma outra Lisboa, e daí INTERNACIONAL
que protagoniza o documentário. questionadas na competição surgem novas questões. É aí que DE CINEMA
Na competição internacional portuguesa, que inclui 12 filmes estamos.” Vários locais, Lisboa, até dia 16

E 55
Steve
McCurry,
o iconógrafo
A Cordoaria Nacional recebe uma
grande retrospetiva do ex-fotojornalista.
Duplo vencedor do World Press Photo,
membro da Magnum e autor de capas
nos grandes títulos mundiais, o também
repórter de guerra revela-se em “Icons”
TEXTO TIAGO MIRANDA FOTOJORNALISTA

A
de indignados investigadores digitais McCurry, autodenominava-se agora intimista e orienta o nosso olhar
descobriram mais incongruências um storyteller (contador de estórias) e apenas para as imagens. Tudo está
nas fotografias de Steve McCurry, nessa condição estava em crer poder desenhado ao pormenor e o resul-
pessoas, braços e objetos indesejados fazer o que quisesse com as suas tado é soberbo. São cerca de 100
que tinham desaparecido de foto- imagens. Rematava que o problema imagens apresentadas num tamanho
grafias em nome da perfeição visual. é que o mundo ainda o via como generoso. A impressão é do melhor
Outros que não existiam tinham sido fotojornalista, que já não era, mas que se consegue atualmente e a luz
adicionados. prometia no futuro conter-se de usar que as serve, perfeita. A lógica expo-
McCurry, que começou por culpar técnicas de manipulação digital. sitiva não é linear nem temporal, é
um funcionário do seu estúdio pelo De lá para cá, o regresso de Steve outra, não imediatamente evidente.
vida de Steve McCurry compli- sucedido, que teria feito alterações McCury tem sido lento. No nosso país, À entrada, é-nos enviado um e-mail
cou-se consideravelmente há seis nas imagens sem a sua autorização, ainda no polémico ano, expõe na com um endereço de internet que
anos depois de ter provocado uma veio depois redimir-se, da forma galeria Barbado e em 2017 leva a sua nos serve com a explicação áudio
hecatombe no meio do fotojornalis- possível. Primeiro através de um exposição “The World of Steve Mc- de cada imagem, isto pela voz do
mo quando numa exposição sua em comunicado e depois em declara- Cury” à Alfândega do Porto, aproveita autor. Exatamente a meio do que se
Itália, um fotógrafo reparou que uma ções à revista “Time”. Nas breves para dar entrevistas em Lisboa e, a prevê demorar uma hora a ver, é-nos
das imagens tinha sido alterada di- declarações, renunciava a sua bem de um projeto futuro, convida proposto uma pausa e um vídeo
gitalmente. No cliché feito em Cuba condição de fotojornalista pela qual uma série de personalidades e altas surge numa tela gigante. Mais meia
faltava um pé a um transeunte e um era conhecido há décadas no mundo individualidades portuguesas a serem hora e chegamos à zona de loja onde
poste flutuava no ar. inteiro. O seu mercado já não eram retratadas por ele. “Icons” abriu este são disponibilizados livros, postais,
O que até então era considerado um os jornais e revistas, mas os leilões de mês com a pompa que a circunstância cartazes do autor e o catálogo da
dos maiores fotojornalistas dos finais arte onde as suas imagens andavam e o investimento neste nível expositi- exposição. O catálogo, de tamanho
do século XX tinha sucumbido ao a ser vendidas por milhares de euros, vo exigem. Os VIP foram informados modesto, parece ter um preço hones-
pecado capital do fotojornalismo, os museus ou a publicidade. Canais que os que aparecessem teriam direito to, mas a impressão acompanha essa
em nenhuma situação é permitido de distribuição bem mais lucrativos e a receber o seu retrato impresso. poupança, sentimos uma diferença
adicionar ou subtrair elementos das deontologicamente menos exigentes Na Cordoaria Nacional foi instalada significativa para com o que acabá-
fotografias. Rapidamente uma legião do que o fotojornalismo. uma Black Box que torna a exposição mos de ver nas paredes.

E 56
“Icons” não desilude, como qualquer personagem traja corretamente e de
grande retrospetiva estão lá as ima- forma expectável, as situações são
gens que tornaram Steve McCurry as ideais para a prática da arte, os
conhecido a nível mundial. A meni- enquadramentos irrepreensíveis e
na afegã, o comboio a vapor que pas- as cores competem com os melho-
sa em frente ao Taj Mahal, o homem res quadros a óleo do romantismo
e a sua máquina de costura durante francês.
uma cheia na Índia, o templo em “Icons” conforta-nos e mexe con-
Burma que parece ter sido cortado nosco mostrando-nos um mundo
em dois por um raio, as crianças que que já não existe e que em parte
se divertem a brincar num tanque provavelmente nunca existiu. Steve
de guerra no Líbano, só para citar McCurry, que começou no fotojor-
algumas. São dezenas as imagens nalismo, mas que se redefiniu como
que conhecemos, reconhecemos contador de estórias é e será para
ou já vimos algures. Percebemos ao sempre, sem dúvida alguma, um dos
longo da exposição que o trabalho de maiores iconografistas dos nossos
Steve McCurry é em parte respon- tempos e a exposição é prova maior
sável pela nossa memória visual e disso. b
entendimento do mundo nos finais tmiranda@impresa.pt
do século passado e início deste. É
esse o poder da fotografia e quanto
mais conhecida for, mais intensa será
a sua responsabilidade sobre o nosso
imaginário. ICONS
De Uttar Pradesh, na Índia, que fotografou em 1983 (em cima, à esq.), aos retratos vivos As imagens presentes em “Icons” Steve McCurry
que mostrou ao mundo — como este de uma mulher e uma criança a caminho são todas elas perfeitas, em todos os Cordoaria Nacional, Lisboa,
de Kolkata (em cima, à dir.) ou o deste homem (acima) — Steve McCurry deixa a sua marca sentidos possíveis, em cada país a até 13 de novembro

E 57
Li
vros
Coordenação Luciana Leiderfarb
lleiderfarb@expresso.impresa.pt

Em janeiro de 1964, John


Gideon Okello foi nomeado
Presidente de Zanzibar, após
a revolução que depôs o
sultão Jamshid bin Abdullah
STRINGER/AFP VIA GETTY IMAGES

Uma caixa
de incenso
QQQQ Num romance com ecos das narrativas intrincadas de “As Mil
JUNTO AO MAR e Uma Noites”, Gurnah faz convergir as agruras do exílio com
Abdulrazak Gurnah
Cavalo de Ferro, 2022, trad. de
Eugénia Antunes, 293 págs., €20,95
a memória da vida em Zanzibar no estertor do império britânico
Romance TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA

E 58
No arranque do livro, o narrador
começa justamente por contar as
uma remessa que durara décadas,
essa derradeira ligação olfativa e
“Antes da
circunstâncias da sua chegada a afetiva ao país que se viu forçado a existência dos
Inglaterra e a uma nova vida, aos
65 anos, numa idade em que não
abandonar. Um poder autoritário
e cego a ignorar a vulnerabilidade
mapas, o mundo
é vulgar as pessoas abandonarem muda de quem abdicou de ter voz era ilimitado. Foram
a sua terra, por muito precária que (com medo de ser logo recambiado
seja a sua condição, para procurar no voo seguinte) — é difícil os mapas que lhe
abrigo num país onde nunca
estiveram. Mas é precisamente isso
imaginar um retrato mais incisivo
do persistente lastro deletério do
deram forma
que faz Saleh Omar, em trânsito de colonialismo. e o aspeto de um
uma cidade junto às águas cálidas
do Índico, na costa oriental de
Desaparece a caixa de mogno, com
seus finos aromas, mas de certa
território, de uma
África, para outra junto às gélidas maneira, ao instaurar um vazio coisa que podia ser
águas britânicas. Antes de partir, na vida de Omar, ela permite o
o homem que lhe vendeu o bilhete surgimento de um longo cordão possuída, e não
de avião aconselhou-o a simular o
desconhecimento da língua inglesa,
de narrativas emaranhadas que
acaba por dar forma e um eixo
apenas arrasada
de forma a não se comprometer nos ao romance. A dado momento, e saqueada”,
primeiros interrogatórios. Começa, o narrador admite ter lido
portanto, a sua jornada europeia “demasiadas histórias de ‘As Mil e
afirma Saleh Omar
numa espécie de mutismo, de Uma Noites’” e a estrutura do relato
silêncio cuidadoso e temerário. de Saleh aproxima-se efetivamente
Já instalado num pequeno desse universo ficcional. Uma e
apartamento, que uma diligente outra vez, acontece mencionar-se
associação de apoio aos refugiados uma personagem de fugida, para seguir à independência, com destino
lhe arranjou, Omar cria novas logo de seguida mergulharmos no à RDA, de onde escapou para o
rotinas, visita todas as manhãs caudal dessa vida paralela. E o ponto ocidente. Também ele terá direito à
as lojas de mobiliário vazias nas de partida, o fio inicial que nos sua história imbricada de infelicidade
redondezas (um vínculo com a loja adentra no labirinto, é, talvez não na pátria e exílio, com personagens
do mesmo tipo, só que muito mais por acaso, o comerciante Hussein, que por sua vez contam as suas
próspera, que em tempos teve em o homem a quem Omar comprou histórias. Mas dessa miríade de fios
Zanzibar), e estende aos poucos o em tempos o ud-al-qamari e a caixa narrativos, o principal nunca deixa
mapa da sua existência diante de de mogno, figura ao mesmo tempo de ser o que une os dois homens
nós. Ou não tivesse a cartografia fascinante e ominosa, que chegava que se encontram, por fim, frente
sido desde sempre, para ele, uma todos os anos com o musim, o vento a frente, no outro lado do mundo,
paixão. “Falo com os mapas. E às das monções que trazia os navios do para dirimir uma disputa entre
vezes eles respondem-me. Não é tão Golfo Pérsico até à costa de África, famílias sobre a posse de uma casa,
estranho quanto parece, nem é tão- para mercadejar. há décadas por resolver. Para lá das
pouco inaudito. Antes da existência Ao recordar-se da sua vida antiga questiúnculas, gestos mesquinhos,
dos mapas, o mundo era ilimitado. e das circunstâncias que o levaram apropriações, calúnias e vinganças,
Foram os mapas que lhe deram até ali, Omar “reabre feridas” e de parte a parte, ergue-se a certeza
forma e o aspeto de um território, de confronta-se com a precariedade da de que para chegar à verdade seria
uma coisa que podia ser possuída, sua própria memória, da sua visão necessário ouvir todas as histórias,
e não apenas arrasada e saqueada. sobre factos e ações que ocorreram aceitar todos os pontos de vista,
Os mapas tornaram os lugares na há décadas, cuja veracidade se torna abranger todos os ângulos, e que
orla da imaginação alcançáveis e muito difícil de aferir: “É como se os se isso é impossível até no campo
domesticáveis.” detalhes da nossa vida se tivessem aberto da ficção, onde cabe tudo,

H
á precisamente um ano, Ainda na alfândega, pouco depois estratificado e agora alguns estratos mais impossível ainda será na vida
a 7 de outubro de 2021, a de aterrar no aeroporto de Gatwick, se fossem deslocando pela fricção real.
Academia Sueca atribuiu ao ser interrogado pelo funcionário de outros acontecimentos, deixando No discurso de aceitação do Nobel,
o Nobel de Literatura a um do serviço de fronteiras, Omar vê-se para trás fragmentos espalhados Abdulrazak Gurnah afirmou:
escritor discreto e praticamente espoliado do seu único tesouro. Ao ao acaso.” Dito de outro modo: “Acredito que a escrita também
desconhecido, Abdulrazak Gurnah, revistar a parca bagagem, o inspetor “É um lugar severo, o reino da tem de mostrar o que pode ser de
tanzaniano a viver no Reino Unido pergunta-lhe pelo conteúdo de uma memória, um armazém esventrado e outra maneira, aquilo que o olho
há várias décadas, “pela forma caixa de mogno, de onde emana sombrio de tábuas podres e escadas dos dominadores não alcança,
intransigente e compassiva como um perfume requintadíssimo. Será enferrujadas.” aquilo que preserva as pessoas
descreveu penetrantemente os incenso? É incenso, sim, mas não O olhar que lança para trás ganha aparentemente pequenas do desdém
efeitos do colonialismo e o destino um qualquer. O nariz ocidental outra espessura quando se encontra, dos outros. Por isso acho necessário
dos refugiados no abismo que nunca o saberia identificar, mas na nova terra de exílio, com Latif escrever também sobre isto, e
separa culturas e continentes”. A trata-se de ud-al-qamari da melhor Mahmud, filho do seu maior inimigo, fazê-lo da maneira mais sincera,
frase justificativa do Comité Nobel, qualidade, um incenso feito a Rajab Shaaban Mahmud, o homem para revelar tanto o que é feio
lapidar como é seu apanágio, partir da madeira de um tipo de cujo nome usurpou para conseguir a como o que é virtuoso, e resgatar
podia ser a sinopse de vários aquilária que só existe no Camboja. fuga. Latif é o outro refugiado desta o ser humano das simplificações
dos romances de Gurnah — e Sem consciência da violência do história, agora a viver em Londres, e dos estereótipos. Quando isso
particularmente de “Junto ao Mar”, seu gesto, o funcionário fica com onde é professor universitário e acontece, emerge uma espécie
publicado pela primeira vez em a caixa, roubando a Omar o seu poeta ocasional, depois de ter saído de beleza.” Como “Junto ao Mar”
2001. maior bem, esse resto final de da Tanzânia, nos primeiros anos a eloquentemente demonstra. b

E 59
Dramas minúsculos

E ainda...
SCHIFFER-FUCHS/ULLSTEIN BILD/GETTY IMAGES
QQQQ O PENSAMENTO
DINHEIRO SUJO ESOTÉRICO
Bill Browder
DE FERNANDO PESSOA
Vogais, 2022, trad. de Jorge Mourinha, Ivette K. Centeno
367 págs., €21,95 Companhia das Ilhas, 2022, 108 págs.,
Não-ficção €16
Nathalie Sarraute
nasceu Natalia Ilinichna Entender o esoterismo de Pessoa,
Tcherniak, foi russa e para a autora, implica deslindar
francesa, e viveu 99 anos Como Mikhail Khodorkosvky, outro os seus textos herméticos. “O
crítico frequente de Vladimir Putin, simultaneísmo da heteronímia é um
Bill Browder ganhou muito dinheiro na verdadeiro exercício espiritual não

O
mais extraordinário no de dinheiro, a dialéctica do Rússia antes de desentendimentos confessado”, lê-se na página 7.
romance de estreia de desprezo e do masoquismo, com o Presidente o obrigarem a sair de
Nathalie Sarraute (1900- mas não nos dá um plano de cena — Khodorkosvky para a cadeia em
1999) é o seu método. Podemos conjunto, um enquadramento 2003, Browder expulso em 2005. Neto O DIABO
dar muitos exemplos práticos, dos factos. Estamos dentro e de um líder do partido comunista nos Gonçalo M. Tavares
Bertrand, 2022,
mas como o método supõe uma fora da cabeça das personagens, EUA, Browder conservou algo do ati-
200 págs., €17,70
teoria, as citações mais a propósito ou numa zona cinzenta. E se vismo moral familiar. Em “Dinheiro Sujo”,
vêm de uma nota da autora e do as personagens romanescas explica que no tempo em que geria o É o terceiro e premia-
prefácio de Jean-Paul Sartre. Diz costumam parecer-nos muito Hermitage, o seu fundo de investimen- díssimo livro do projeto a que o
a primeira que o livro procura ‘vivas’, aqui mostram-se mortas- tos russo, “as empresas em que investi- escritor deu o nome de Mitologias.
conhecer duas personagens “para vivas, até porque, e voltando ao mos estavam a ser roubadas à luz do dia Neste caso, trata-se do retrato de
lá do seu monólogo interior”, prefácio, são inautênticas e baças pelos oligarcas e funcionários um mundo sem espaço nem tempo.
investigar “esses movimentos vistas de fora e autênticas mas corruptos russos”. Ele decidiu investigar
secretos, inconfessados, que mal inapreensíveis vistas de dentro, os roubos e denunciá-los. “Os preços Top Livros Semana 38
chegam a ser conscientes, esses demasiado convencionais ou das ações das empresas estavam tão De 19/9 a 25/9
Ficção
sentimentos em estado nascente, demasiado individuais. Dando subavaliados que qualquer melhoria
Semana
que não têm nome, e que formam a continuidade às ficções breves de faria subir dramaticamente as suas ava- anterior

trama invisível das nossas relações “Tropismes” (edição original 1939), liações”, justifica. Infelizmente, as auto- Um Sonho Só Nosso
1 -
com outrem”, enquanto Sartre Sarraute ilustra em “Retrato de ridades eram parte interessada, ao mais Nicholas Sparks
define o texto como uma tentativa um Desconhecido” (1948) a sua alto nível, e não apreciaram. “Dinheiro 2 1
Isto Acaba Aqui
de “escrever o romance de um famosa tese acerca dos estímulos e Sujo” prolonga a história inicialmente Colleen Hoover
romance que não se faz, que não das reacções, ainda que a matéria apresentada em “Alerta Vermelho”, 3 -
O Amor Faz Milagres
pode fazer-se”. empírica entediante prejudique sobre o assassínio do seu advogado, Sveva Casati Modignani
A história é quase nenhuma, os um tanto ou quanto o livro, em Sergei Magnitsky, e a aprovação da lei 4 - O Cavaleiro da Dinamarca
Sophia de Melo Breyner Andresen
“dramas minúsculos” de um pai comparação com romances mais que leva o seu nome. É uma história de
colérico e avarento e de uma filha sofisticados como “Les Fruits d’or” perseguições paralelas: uma, promovida 5 3 A Viúva e o Papagaio
Virginia Woolf
sofredora e desinteressante. O (1963), já todo ele “cosa mentale”. por Browder e os seus aliados, ao rasto
As categorias consideradas para a elaboração deste top
narrador não sabemos bem quem é, / PEDRO MEXIA do dinheiro roubado na fraude fiscal que foram: Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada
um amigo da família, um detective, levou à morte de Magnitsky; outra, a
em qualquer caso alguém não- Pedro Mexia escreve de acordo perseguição a Browder pelo Kremlin. O Não ficção
verídico, que vê coisas quando não com a antiga ortografia. livro abre com a detenção do financeiro Semana
anterior
está presente nesse lugar e ouve em Madrid, a pedido da Rússia. A Inter-
Nunca Fiques Onde Já Não Estás
outras que não conseguiria ter pol percebeu que estava a ser usada 1 1 Manuel Clemente
ouvido, e que por isso forçosamente com fins políticos, e Browder foi logo Contas Poupanças
as inventa. Os diálogos, poucos, são libertado. Como noutros casos, o crime 2 2 Pedro Andersson
melodrama ou tagarelice, lugares- que lhe imputavam era aquele de que Conversando Com o Inimigo
3 3
comuns, “subconversação”. Onde os próprios acusadores eram culpados. Henrique Cymerman
detectamos então o trabalho Além do abuso de mecanismos policiais Constituição da República Portu-
romanesco? Não naquilo que é e judiciais, outras estratégias de ataque 4 - guesa Edição Académica
Isabel Rocha
diálogo, narração, história, mas nas terão incluído subornos de políticos,
Código Civil Edição Universitária
sensações, hesitações, não-ditos, uma armadilha sexual e até a utilização 5 -
QQQ
VA
ruminações, desvios microscópicos de pessoas (deliberadamente?) mortas As categorias consideradas para a elaboração deste top
descritos como se fossem RETRATO DE UM como bodes expiatórios de crimes. foram: Ciências; História e Política; Arte; Direito,
Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda
observáveis ou explicáveis. DESCONHECIDO Tudo isto contado com um sentido
Sarraute, francesa de origem Nathalie Sarraute claro do bem e do mal e da importância Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal, através
do estudo de um grupo estável de pontos de venda
russa, recupera alguns aspectos Minotauro, 2022, trad. de Miguel Serras das personagens — a começar pela do pertencentes a dois canais de distribuição: hipermercados/
supermercados e livrarias/outros. Esta monitorização
interiores e exteriores da ficção de Pereira, 200 págs., €16,90 autor. Não é surpresa que acabe como é feita semanalmente, após a recolha da informação
eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda.
Dostoiévski, diatribes, questões Romance série de televisão. / LUÍS M. FARIA A cobertura estimada do painel GfK de livros é de 85%.

E 60
O outro lado
dos livros
POR MANUEL
ALBERTO VALENTE

A leitora real
O elogio da leitura
e do seu poder transgressor

E
m 2001, as Edições ASA revelaram aos leitores portugueses o autor
inglês Alan Bennett (Leeds, 1934), publicando na coleção “Pequenos
Prazeres” um curto romance intitulado “Só Lhes Deixaram as
Roupas que Vestiam...”, a sua estreia como ficcionista. Bennett, no entanto,
já era então o mais popular dos dramaturgos britânicos e tinha sido
inclusivamente nomeado para um Óscar da Academia pelo seu guião para o
filme “A Loucura do Rei Jorge”, de Nicholas Hytner, que adaptava uma peça
da sua autoria.
Em 2009, saiu na mesma editora um outro livro seu, “A Leitora Real”.
Sem grande repercussão à época, o livro ganhou uma inesperada atualidade
com a morte recente da Rainha Isabel II. Alguém dizia, a propósito dela,
num comentário televisivo, que a sua grande qualidade fora a discrição,
não se sabendo o que realmente pensara sobre tudo o que acontecera ao
longo dos seus 70 anos de reinado. Ora, no romance referido, Bennett cria
uma situação difícil de imaginar: Sua Alteza, a Rainha, requisitando livros
numa biblioteca pública itinerante,
estacionada junto às cozinhas do
Palácio de Buckingham, aonde fora

noite
dar ao perseguir os seus famosos
cães corgi. Transformada em leitora
obsessiva, Isabel II introduz as
referências literárias nas conversas

de reis
de Estado e chega ao ponto de tentar
convencer o Presidente francês
a dissertar sobre a obra de Jean
Genet... Texto
Percebe-se que Bennett não é William
MARCO SECCHI/GETTY IMAGES

propriamente um grande defensor Shakespeare


da instituição monárquica (aliás, em
1988, recusou a Ordem do Império Encenação
Britânico e, mais recentemente, foi Peter
um apoiante do líder trabalhista Kleinert
Jeremy Corbyn). Mas o que repassa
nesta sua obra, escrita no registo
cómico, é sobretudo o elogio da
O dramaturgo britânico Alan Bennett leitura e do seu poder transgressor.
Num texto que escreveu à
época, Maria José Nogueira Pinto afirmava: “Assim, se a leitura persistente
e consistente é sempre subversiva, no caso da Rainha isso foi visto como
incómodo, despropositado, prejudicial ao seu estatuto e função.” E mais
à frente: “Tinha-se tornado uma leitora compulsiva e sem remédio e isso
criação
levara-a ao mais fundo da condição humana, a observar em vez de ser
observada, a ver em vez de ser vista, a atender em vez de ser atendida,
numa mistura de atitudes e sentimentos absolutamente incompatíveis com 7 a 30 de Outubro
Qui. a sáb. às 21h • Qua. e dom. às 16h
o seu estado.” A leitura é sempre subversiva, escrevia M.J.N.P. E a função
Sala Principal • M/12
da literatura, mesmo num registo de humor e distopia, como neste livro, é
levar-nos a refletir sobre os absurdos do mundo e da vida. Com um título
diferente, “A Leitora Incomum”, e uma nova tradução, o livro veio a ser
Av. Prof. Egas Moniz, Almada
reeditado em 2018 pela Imprensa da Universidade de Lisboa. É uma boa 21 2739360 • www.ctalmada.pt
altura para ser lido. b
Viola Davis é Nanisca, capitã
do principal destacamento
de combate do reino

Ci
ne
ma
Coordenação João Miguel Salvador
jmsalvador@expresso.impresa.pt

Um épico africano
Um filme de ação de
Q
uem veja a embalagem — o aos traficantes portugueses que o não se faz a glorificação dos valores
cartaz, o trailer, o aparato próprio rei promove. Quando o filme bélicos, os combates são sempre
grande espetáculo e promocional — percebe logo começa, o principal fito de Nanisca é uma tormenta de extremo furor
tudo: é um filme afro, centrado num a libertação do jugo Oyo, ao mesmo (coreografados, sim, mas brutais
fundo histórico grupo de guerreiras chefiadas por tempo que tenta convencer o rei a e produtores de monstros, como
revela-se uma Viola Davis — ferocíssima — num
tempo ainda de comércio negreiro.
cessar com o tráfico humano e a fazer
uma reconversão económica do país.
Nanisca reconhecerá lá para o fim).
Onde “A Mulher Rei” se firma não
surpreendente ficção O combate, diz-se, é pela liberdade. Com este quadro histórico como é no militarismo nem na negritude,
O dispositivo é de grande produção fundo, o filme organiza-se em é no feminismo. O histórico jugo
sobre o americana, um épico para estreia torno da jovem Nawi/Thuso Mbedu, masculino está, aliás, marcadamente
empoderamento quase simultânea por todo o lado, dos
Estados Unidos à África do Sul, da
rebelde da autoridade paterna que
a queria vender para casar com um
visível e o que o filme proclama,
através de múltiplos apontamentos,
feminino Argentina a Taiwan. “A Mulher Rei” é homem muito mais velho, rico e é a tenacidade das mulheres em dele
um dos blockbusters deste outono. cruel; oferecida pelo pai ao rei, passa se libertar, a urgência de ter voz na
TEXTO JORGE LEITÃO RAMOS Quem veja a embalagem percebe a integrar a recruta das Agojie, sob definição do seu destino. O que o
logo tudo? Engano. Porque aquilo a asa disciplinadora e educativa filme mostra é o empoderamento
que parece um filme de ação, com de uma veterana, Izogie/Lashana das mulheres — as que não desistem,
cimitarras e lanças, cheio de sangue e Lynch. É a partir deste personagem as que têm valores e espírito de
fúria, é outra coisa mais complicada. que irradia uma teia ficcional que entreajuda, as que se sacrificam,
Entendamo-nos: não digo que o tem a habilidade bastante para ser, as que não vergam, as que,
público esteja a ser ludibriado, com dentro de um tipo de filmes muito tendo medo, o superam. O corpo
uma qualquer promessa de lebre e padronizado, bastante complexo. criativo de “A Mulher Rei” é, aliás,
serviço de gato. Aliás, é mesmo o Para começar não há qualquer predominantemente feminino. Da
contrário, se se tratasse apenas de simplismo na definição dos ‘bons’ e realização (Gina Prince-Bythewood)
um filme de ação a promessa seria de dos ‘maus’ da fita. Se as Agojie são as ao argumento (Dana Stevens, Maria
gato e o que nos dão é lebre. heroínas, não se poupa na descrição Bello), da direção de fotografia
A história? Tudo se passa em 1823 dos sacrifícios que as mulheres fazem (Polly Morgan) à produção (também
no Daomé, perto da costa onde os para lhes pertencer — a violência maioritariamente assinada por
portugueses tinham construído a dos treinos e das provas, a renúncia mulheres), o filme é um objeto
Fortaleza de São João Baptista de aos homens e à maternidade, o pacto invulgar quanto à dominância
Ajudá como entreposto para o tráfico de vitória ou morte para que são de género que, então, no campo
de escravos. Estamos no reinado de adestradas. No tráfico de escravos dos intérpretes é, naturalmente,
Ghezo/John Boyega cuja força militar tanto são responsáveis os clientes avassalador. Viola Davis é quem
inclui uma falange de mulheres — as portugueses/brasileiros como os tem todos os focos (e um trabalho
Agojie — capitaneada por Nanisca/ fornecedores africanos — nenhum pujante). Mas quem me apetece
QQQ Viola Davis e que, na ficção, parece maniqueismo étnico, a este respeito. destacar é Lashana Lynch (lembram-
A MULHER REI ser o principal destacamento de A luta de Nanisca é, aliás, mais contra se dela do último James Bond?) pela
De Gina Prince-Bythewood combate do reino. Longamente os Oyo (chefiados pelo sanguinário quantidade de cambiantes que a
Com Viola Davis, Thuso Mbedu, subjugado pelo império Oyo, o Oba/Jimmy Odukoya, outrora seu sua personagem vai revelando, uma
Lashana Lynch (EUA) Daomé tem como principal atividade captor, violador e verdugo) que subtileza de atriz que os filmes de
Drama histórico M/14 económica a venda de escravos contra os brancos. Por outro lado, ação usualmente não comportam. b

E 62
E ainda...
A FADA DO LAR
RAINER WERNER FASSBINDER Q De João Maia
— A FÚRIA DE VIVER NUNCA NADA ACONTECEU Mãe solteira com dois filhos, dias
Cinema Nimas, Lisboa, até dia 26 De Gonçalo Galvão Teles passados no supermercado e noites
Com Filipe Duarte, Ana Moreira, numa casa de strip, Vera (Joana
Rui Morisson (Portugal) Metrass) acaba condenada depois
Drama M/16 DAS PROFUNDEZAS de agredir um cliente no segundo
De Michelangelo Frammartino emprego. Vai cumprir serviço co-
CICLO Porque correu Fassbinder tão Após vários adiamentos, eis que estreia É da competição do 78º Festival de munitário num lar de idosos. E nada
depressa, com a mesma energia louca e enfim nas salas a terceira longa de Gon- Veneza (vence o Prémio Especial do será como dantes. Em estreia.
a mesma aura escandalosa que tam- çalo Galvão Teles, “Nunca Nada Aconte- Júri) que chega “Il Buco”, sobre a ex-
bém colou à vida, senão pelo desejo de ceu” (cujo argumento teve por base um ploração da caverna mais profunda
recompor uma Alemanha fragmentada texto original de Luís Filipe Rocha). Nela, da Europa, no interior intocado da
após o III Reich e o traumatismo do nazis- começamos por seguir António (Mo- região italiana da Calábria. Chegam
mo? Fassbinder nasce em 1945, no ano risson): um velho viúvo que abandona a ao fundo do abismo de Bifurto, a
em que a guerra acaba. A sua obra devo- sua propriedade rural para se instalar nos 700 metros de profundidade. Em
ra as contradições dessa herança como subúrbios de Lisboa. Nomeadamente no cartaz.
um ogre. Todos os seus filmes, todos os apartamento onde o seu filho (Duarte)
assuntos, motivos, lugares e personagens vive com a mulher (Moreira) e o seu filho
que ele cria passam pelo destino da Ale- adolescente (Bernardo Lobo Faria). É
manha e por uma interrogação constante com a lenta implosão desta família —
de si próprio nesse contexto de martírio cujos membros se vão deixando devorar
e ansiedade extrema. Com a História, pelo desemprego (o pai), a frustração
vai ele manter uma relação de parricida: (a mãe), o desenraizamento (o avô) e a
denúncias viscerais do poder, ataques depressão (o filho) — que, ao longo de
violentos ao Estado, pulsões criminosas duas horas, se ocupará este filme. Nas OS INOCENTES BANDIDO
do desejo, paixões dilaceradas. Até que cenas iniciais, a primeira coisa que se nota De Eskil Vogt De Allan Ungar
a vida se interrompe brutalmente aos é o esforço que Galvão Teles faz para Estreado mundialmente em Cannes, O livro “The Flying Bandit”, de Hea-
37 anos, por todo o tipo de excessos, já projetar no espaço a tristeza calada que na secção Un Certain Regard, o ther Robertson, é o ponto de partida
levava ele mais de 40 longas-metragens. parece ligar entre si as personagens, en- novo de Vogt (argumentista de para um drama criminal, com traços
Oito delas, realizadas entre 1971 e 1979, cerrando desde logo as suas interações “A Pior Pessoa do Mundo”) apre- de thriller, sobre um criminoso eva-
podem agora ser revistas no grande no interior de um apartamento acanhado senta-nos a quatro crianças que dido de uma prisão norte-america-
ecrã em cópias digitais restauradas. “Effi e pintado em cores sombrias (a noite é, se tornam amigas em pleno verão. na que — sob uma nova identidade
Briest” (1974) e “Petra von Kant” (1972) aliás, a única altura em que aqueles cor- Juntas, descobrem que têm pode- – rouba 59 bancos e joalharias no
são histórias de mulheres cercadas pos se encontram). Saliente é, também, res escondidos. Em exibição. Canadá. Em sala.
por casulos. “O Casamento de Maria o modo como se procura emprestar
Braun” (1979) observa o pós-nazismo elevação ao drama, por via de uma rea-
pelo ponto de vista de uma mulher que lização e de uma montagem que evitam ESTRELAS DA SEMANA
lhe sobrevive e se adapta a uma nova as soluções mais óbvias. Será por aqui, no Jorge Vasco
Francisco
economia. “Mamã Küster Vai para o Céu” entanto, que “Nunca Nada Aconteceu” Ferreira
Leitão Baptista
Ramos Marques
(1975) e “Roleta Chinesa” (1976) são me- começará a derrapar, impondo uma série
ditações nada isentas de ironia sobre a de marcas de estilo que para nada ser- 1618 QQ
vida conjugal na Alemanha. Muito tempo vem: desde aqueles grandes planos des- Boa Sorte, Leo Grande QQQ QQQQ
desconsiderado, visto como obra menor, tituídos de força emocional até àquelas A Conferência QQ
“Cuidado Com Essa Puta Sagrada” (1971), elipses que, de tão abruptas, se limitam a
história de uma rodagem en panne (com chamar a atenção para si mesmas. Tudo A Fada do Lar QQ
Lou Castel no alter ego de Fassbinder), isto seria de somenos importância se o Fogo-Fátuo QQQQQ QQQ Q
é um filme fabuloso sobre a produção de filme se mostrasse capaz de aprofundar Os Jovens Amantes QQQ Q
cinema e uma inércia no trabalho que o as histórias das personagens, que, infe-
Moonage Daydream QQ
realizador detestava. Mas se só puder lizmente, ficam sempre numa espécie de
ver um dos oito filmes que agora chegam ‘estado larvar’, isto é, mais esboçadas do A Mulher Rei QQQ
ao Nimas não perca o extraordinário “O que desenhadas: veja-se, por exemplo, Não Te Preocupes Querida QQ QQQ
Medo Come a Alma” (1974, na foto) e como se trabalha mal todo o subenredo
Nunca Nada Aconteceu Q Q
aquela solitária viúva que se apaixona por que diz respeito à pulsão de morte do fi-
um imigrante magrebino muito mais novo lho do casal e dos seus amigos de escola, Das Profundezas QQQQ
que ela, causando alarme na sociedade cujo desespero nunca se materializa A Rapariga Selvagem QQQ Q
preconceituosa que os rodeia. Este me- nos planos. O resultado é um filme Restos do Vento QQQ QQQ
lodrama inspirado em Sirk é Fassbinder sem centro e demasiado longo para
no mais apurado grau do seu talento. aquilo que tem para oferecer. Três Mil Anos de Desejo QQQ QQQ
/ FRANCISCO FERREIRA / VASCO BAPTISTA MARQUES DE b MÍNIMO A QQQQQ MÁXIMO EXPRESSO

E 63
H
á um contraste que vale a sem promoção adicional digna Dito isto, acrescente-se que
pena assinalar na nova série de nota nem estreia condizente. “DAHMER — Monstro: A História
de Ryan Murphy, escrita Lamentou a dita imprensa do lado de de Jeffrey Dahmer” está no extremo
em parceria com Ian Brennan, lá do Atlântico que não tenha havido oposto da ideia de entretenimento
e que parece pôr em causa a igualmente qualquer acesso prévio à prazenteiro de final de noite a que o
estratégia de lançamento da própria visualização dos episódios, tal como streaming é geralmente associado.
Netflix. “Dahmer” começou por é hábito acontecer, muito menos É um trabalho biográfico em 10
ser anunciada como um next hit, propostas de entrevistas com os seus episódios sobre Jeffrey Dahmer
tanto pelo assunto escabroso que principais intervenientes. (1960-1994), mais conhecido por
aborda como pela reputação de Tudo o que desse teor foi entretanto “Canibal de Milwaukee”, serial
Murphy como superprodutor, mas publicado pelos media (e sobretudo em killer responsável pela morte de
logo o cortejo se abafou sem que a torno de Evan Peters, o protagonista) 17 pessoas, todos eles homens,
plataforma tenha adiantado mais surgiu quando a série já estava à mão alguns ainda adolescentes,
explicações. dos assinantes. Mas está a ser um êxito, maioritariamente negros, ao longo
Coordenação João Miguel Salvador Tal como foi notado pela imprensa por mais doentio que seja o resultado, de 13 anos, entre 1978 e julho de
jmsalvador@expresso.impresa.pt anglo-saxónica, a série chegou enfim já que outra coisa não se podia esperar 1991, data da sua captura.
à grelha de programação da Netflix do que aqui está em causa. Dahmer atraía frequentemente as

Para duros
de estômago
A história do “monstro
de Milwaukee” — o serial
killer Jeffrey Dahmer
— traz à tona um trauma
americano que
está a trepar nas
audiências da Netflix
TEXTO FRANCISCO FERREIRA
NETFLIX

E 64
vítimas ao seu apartamento com
propósitos sexuais sob a promessa
de dinheiro e sedava-as antes de as
a 16 prisões perpétuas. Morreu
assassinado à bastonada três anos
depois, às mãos de outro recluso.
Deixar
eliminar. Desmembrava e decapitava
cadáveres com fins necrófilos e por
vezes comia-os, guardando órgãos,
“Dahmer” é um character study
centrado no papel exigente de Evan
Peters e uma série mosaico sem linha
o Mundo Melhor
genitais, até cabeças inteiras, no narrativa cronológica, com saltos
congelador, como se fossem troféus, incessantes no tempo que rodeiam
desfazendo-se dos restos num bidão
de ácido. Também fotografava este
o assassino por todos os lados. A
série escava ainda mais do que a Podcast
Por Francisco Pinto Balsemão
macabro extremo com polaroides longa página da Wikipédia dedicada
que guardava na gaveta da mesa de à criatura, vai procurar motivações
cabeceira, sem despertar atenção de à infância, ao berço e até ao pré-
maior na vizinhança, que se queixava nascimento: a desordem emocional
contudo do cheiro nauseabundo. da mãe (Molly Ringwald), viciada em
Os 534 minutos da série de Murphy e fármacos e com tendências suicidas;
Brennan oferecem tempo suficiente a violência psicológica exercida pelo
para que se documente ao detalhe pai (Richard Jenkins), que o introduz
esta história grotesca, já antes levada à primeira dissecação do cadáver de
ao cinema, no limite do insuportável. um animal; a presença incómoda
E não é seguramente por acaso que do irmão mais novo, tantas vezes
o primeiro episódio tenta suavizar a deixado ao abandono; o divórcio
audiência para o que depois a espera, posterior dos progenitores após anos
começando quando a matança de discussões, etc.
acaba, na noite em que o último Se este levantamento do legado
engate de Dahmer, face à morte biográfico de Dahmer permite à
iminente, consegue manter a cabeça série ir acumulando informação q.b.
fria e entrar no jogo do homem de episódio em episódio, a verdade
“que lhe quer comer o coração”, é que, devido a isso, a narrativa
evadindo-se depois da casa dos tende sempre a partir das vítimas
horrores até encontrar a polícia. em apuros ou dos vizinhos, que
Os inspetores forenses que olham de soslaio para o assassino
analisaram o apartamento 213 (destaque para Glenda Cleveland, Podcasts já disponíveis
daquele bloco residencial sombrio a personagem que Niecy Nash
diriam que a análise ao local do interpreta), ou da polícia, que com
J.M. Durão Barroso J. Germano de Sousa Leonor Beleza
crime foi como “desmantelar desleixo e desprezo se afasta de
o museu de alguém.” Após a homossexuais e da comunidade Manuel Alegre Mariza António Damásio
confissão e julgamento, Dahmer negra em que Dahmer seleciona as
seria condenado ao equivalente suas presas.
Também os familiares ganham
J.B. Mota Amaral Isabel Mota Isabel Jonet
uma importância exagerada a cada
salto temporal e à medida que a Joana Carneiro António Vitorino Rui Chafes
série avança, já que os efeitos dos
crimes de Dahmer nos seus pais
Tiago Pitta e Cunha Luís Tinoco Emílio Rui Vilar
DAHMER — MONSTRO: A
HISTÓRIA DE JEFFREY DAHMER também são contabilizados. A série
De Ryan Murphy e Ian Brennan ganha com isso outra perspetiva, José Tolentino de Mendonça Maria Manuel Mota Clara Ferreira Alves
Com Evan Peters, Richard Jenkins, com o ‘monstro’ a ser menos
Molly Ringwald enquadrado nos seus atos do que nas Joana Vasconcelos Luís Marques Mendes António Horta Osório
Netflix, em streaming circunstâncias familiares e sociais
(Temporada 1) que o formaram. Miguel Albuquerque Simone de Oliveira Patrícia Mamona
Falta contudo aqui ‘mais mundo’
a Dahmer, mais quotidiano, como Marcelo Rebelo de Sousa Arlindo Oliveira José Maria Neves
na conseguida cena do segundo
episódio, em que ele se esconde Carlos Monjardino Manuel Aires Mateus Ana Pinho
da segurança daquela boutique
de pronto a vestir e espera que Nuno Maulide Vasco de Mello Carlos Pimenta
a noite caia, roubando depois
(desmembrando-o...) o manequim Artur Santos Silva Paula Amorim Daniel Oliveira
masculino que o atraíra. Falta um
ponto de vista a Dahmer, algo que,
admita-se, é muito mais difícil de Ricardo Costa
tratar dramaticamente mas que
pode atingir ótimos resultados, tal
como aconteceu em obras maiores Dísponível em expresso.pt/podcasts/
do cinema, como “O Estrangulador
de Boston”, de Richard Fleischer,
e em todas as plataformas de podcasts
ou “Henry: A Sombra de Um
Assassino”, de John McNaughton. b

Com o apoio:
Coordenação Luís Guerra
lguerra@blitz.impresa.pt

Sandes de rock
“Doggerel” é o oitavo
E
ntre 1998 e 1991, os Pixies este ponto final pouco parágrafo feito com que a banda se tenha
lançaram quatro discos e o regresso aos palcos, em 2004, mantido presente no imaginário
álbum dos Pixies, que ajudaram a construir passou-se um pouco mais de uma coletivo durante o pousio de 11
o rock independente norte- década: tempo suficiente, portanto, anos (lembramo-nos, por exemplo,
quarto nesta sua americano. À razão de um álbum para discos como “Surfer Rosa” da cena final do filme “Clube de
segunda vida. por ano, desenharam também a sua
trajetória, tão incandescente como
ou “Doolittle” terem fermentado
tanto na nostalgia de quem os
Combate” ao som de ‘Where Is My
Mind?’). Se o regresso aos concertos
Os ingredientes efémera, antes de fazerem as contas conheceu em tempo real como não abanou as estruturas das salas
e fecharem a loja (a terminologia é na imaginação de quem não teve que os receberam, como reza a
não se alteraram, burocrática, mas o adeus também oportunidade de viver na altura em lenda que terá sucedido no dia de
o foi: em 1993, o final da banda foi que os Pixies lançavam um álbum Santo António de 1991, no Coliseu de
a frescura sim anunciado pelo seu timoneiro, Black por ano. Durante uma década, esta Lisboa, essas primeiras digressões
TEXTO LIA PEREIRA Francis, em entrevista à BBC Radio, ressurreição nos palcos teve como post mortem também não fizeram
e só mais tarde os restantes músicos único combustível o fortíssimo e grande mossa na reputação de Black
tomariam conhecimento da sua nova longevo catálogo do grupo; além do Francis e companhia, que se têm
situação laboral — o guitarrista Joey ‘apadrinhamento’ de Kurt Cobain, mantido na estrada desde então (em
Santiago através de um telefonema, que nunca deixou de manifestar Portugal, entre concertos de sala e
a baixista Kim Deal e o baterista a sua paixão pelo quarteto de festivais, já lá vão nove espetáculos
David Lovering por fax). Entre Boston, outros fenómenos terão desde o ano da reunião — e

E 66
David Lovering, Black Francis, Paz Lenchantin
e Joey Santiago, membros dos Pixies

regressarão a Lisboa em 2023, para Ever Seen The Rain’, dos Creedence
tocarem no Campo Pequeno). Clearwater Revival’; já ‘There’s
As regras do jogo alteraram-se em a Moon On’ leva-nos para ‘Gone
2014. Um ano depois da saída de Baby Gone’, dos Violent Femmes).
Kim Deal do seu posto como baixista Ainda que faça parte da ‘família’ há
e peça da história da banda, os Pixies menos de dez anos, Paz Lechantin 63 Artistas de 55 Nacionalidades
voltaram a gravar. “Indie Cindy”, cumpre a responsabilidade de levar em 7 Salas!
em 2014, inaugurou a discografia da o baixo mais alto, e as letras de Black
segunda vida dos norte-americanos, Francis continuam a transportar
que começaram por substituir Deal alguma bem-vinda estranheza. Em 20 Quinta 21 Sexta 22 Sábado
por Kim Shattuck, contratando em entrevista ao site Consequence of
PASSES À VENDA NA TICKETLINE E BLUETICKET
2014 Paz Lechantin para o cargo. Sound, a voz dos Pixies explica que
Ainda que sem o ritmo editorial que tenta que as suas palavras sejam Teatro Tivoli BBVA Theater Stage →21h30
os animava há coisa de 30 anos, e abertas à interpretação e dotadas de
SARA CORREIA (PT) NGULMIYA (AU) FIRAS ZREIK (PR/USA)
certamente sem causar o mesmo universalidade, o que rende frutos ISRAEL FERNÁNDEZ (ES) AGUAMADERA (AR/FR) DANIEL HERSKEDAL (NO)
frenesim junto dos fãs, continuaram curiosos. “Na canção ‘Thunder and MARK ELIYAHU (IL) RANGAMATIR BAUL (IN) GROOVE& (KR)
a lançar discos, concretizando Lightning’, um dos versos diz algo
mesmo um feito algo impensável como ‘They started a war today in Cinema São Jorge Lusofónica Stage →21h45
há uns anos: “Doggerel”, o álbum another land/ Everything went the SHEILA PATRICIA (ES) DUARTE (PT) KARYNA GOMES (GW/PT)
apresentado no final de setembro, way that it all was planned’. Ora, eu PEDRO JÓIA (PT) BIA FERREIRA (BR) ANA LUA CAIANO (PT)
é o quarto longa-duração desde escrevi essa canção em dezembro KASTRUP QUARTET (BR) TITO PARIS (CB/PT) PRÉTU (CB/PT)
o regresso, ou seja, em 2022 os do ano passado. Não estava a pensar:
Pixies têm tantos discos lançados ‘os russos vão invadir a Ucrânia.’ Parque Mayer OffWomex Stage →21h00
no pós-reforma como nos seus Mas claro que, quando fomos MARCO MEZQUIDA (ES) CORINA SÎRGHI STEFANO SALETTI
verdes anos. Gravado num estúdio gravar o disco, essa era a história do SI TARAFUL JEAN & BANDA IKONA (IT)
amigo do ambiente no estado do momento. Então parece que a escrevi AMERICANU (RO)
Vermont, o sucessor de “Beneath naquele momento, mas não. Só a ISKWE (CA) PERIJA (MKD) SUONNO D'AJERE (IT)
the Eyrie” (2019) não envergonha mantive suficientemente aberta, para LE DIABLE À CINQ (CA) ORATNITZA (BG) KALÀSCIMA (IT)
os pergaminhos de uma das bandas não ficar presa ao calendário.”
Cineteatro Capitólio Capitólio Stage →21h45
mais influentes do indie tal como Na mesma entrevista, Black Francis
hoje o conhecemos. Segundo Joey — que nasceu Charles Michael LIA DE ITAMARACÁ (BR) DJAZIA SATOUR (DZ/FR) AYWA (MA/FR)
Santiago, que é guitarrista desde Kittridge Thompson IV e, a solo, POIL UEDA (JP/FR) AL BILALI SOUDAN (ML) DERYA YILDIRIM
o primeiro dia mas que se estreia, assina Frank Black — é friamente & GRUP SIMSEK
, , (TR/DE)
em “Doggerel”, a escrever uma realista quanto à motivação de SELMA UAMUSSE (MZ/PT) SON ROMPE PERA (MX) STARTIJENN (FR)
canção, os temas cresceram — continuar a fazer música nova.
PASSES À VENDA NA BOL
literalmente, tornando-se mais Lembrando os primeiros anos da
longos —, mantendo as reviengas banda, em que os seus companheiros Coliseu dos Recreios Coliseu Stage →21h00
típicas dos Pixies. Na canção que tinham de ter empregos “em
ETUK UBONG & AFROTRONIX (TD/CA) BRENDA NAVARRETE (CU)
ajudou a escrever, ‘Dregs of the armazéns ou a descarregar camiões” THE ETUK PHILOSOPHY (NG)
Wine’, há uma influência dos The para, nos tempos livres, tentarem DJELY TAPA (ML/CA) THE DIZZY BRAINS (MG) FRA! (GH)
Who, assumida pelo próprio Black a sorte no rock, chama a atenção TEGIE
, CHLOPY (PL) LA MAMBANEGRA (CO) LA BRIGIDA
Francis, que em comunicado disse para uma evidência: há muito que os ORQUESTA (CL)
ter procurado uma sonoridade Pixies fazem da música o seu ganha-
“maior, mais ousada e mais pão. “Então temos de fazer discos, LAV – Lisboa Ao Vivo Club Summit →01h00
orquestrada. Adoro tocar aquelas porque temos de andar em digressão. SAVAN (CO) IMED ALIBI
coisas mais apunkalhadas, mas Vender umas t-shirts, dar uns FEAT. KHALIL EPI (TN/FR)
não dá para criar esse tipo de cena concertos, dizer que ainda estamos DJ DIAKI (ML) AUNTY RAYZOR (NG)
artificialmente”. O que também vivos.” Não é a visão mais romântica, ALLIGATORZ (FR)
é complicado de replicar é, nesta mas faz sentido vinda de alguém
altura do campeonato, a sensação que, à mesma publicação, compara AMBOS OS PASSES DÃO ACESSO
de novidade. Em “Doggerel”, o estilo de composição dos Pixies a À CINEMATECA PORTUGUESA
várias canções esticam a cabeça, “fazer uma sanduíche. É assim que Cinemateca Portuguesa Night Film Room →19h00
destacando-se ou por serem belos pensamos na música pop: encaixar
QQQ temas rock, prometendo fazer blocos que depois podemos arrumar THIS LIFE AND THE OTHER SINGING IN THE
by Luis Rojas WILDERNESS
GIDAM, DRUMS OF PROTEST
IN KHARTOUM
brilharete ao vivo (‘Nomatterday’), de formas diferentes”. E a verdade é
DOGGEREL FOR REAL by Dongnan Chen by Arthur Larie & Bastien Massa
ou pelo tempero surf rock que nunca que a receita de “Doggerel” contém by Ugo Mangin
Pixies THIS IS NATIONAL WAKE
BMG
foi estranho à banda (‘Vault of todos os ingredientes da sanduíche by Mirissa Neff
Heaven’, ‘Who’s More Sorry Now?’), Pixies, dos coros saborosos ao
ou pela contagiante doçura de baixo descarado, passando pela voz CONSULTA TODO O PROGRAMA EM
WOMEX.COM/PROGRAMME/SHOWCASES
‘Haunted House’, que Black Francis inconfundível de Black Francis. Só
diz ser uma espécie de pastiche falta mesmo a frescura, pecadilho MAIN SPONSORS INSTITUTIONAL PARTNER
da pop dos anos 60, ‘The Lord Has compreensível numa banda que foi
Come Back Today’ ou ‘Pagan Man’ ‘descongelada’ há 18 anos. b
(algo reminiscente de ‘Have You lipereira@blitz.impresa.pt
MEDIA PARTNER PRODUCER ORGANIZED BY

E 67
Marianne Faithfull,
fotografada em
Liverpool em 1965

QQQQ
DIRT SODA
AJ Lambert
IGIB LLC

Com Angela Jennifer Lambert


(aliás, AJ Lambert) nada é,
realmente, como se imagina. Após
uma “juventude perdida” a bordo
de ilustres bandas desconhecidas
(ou quase) — Sleepington, Looker,
Here We Go Magic —, com quem
se dirigiria ela para os estúdios de
Steve Albini, em Chicago, com o

TERRY MEALY/MIRRORPIX/GETTY IMAGES


objetivo de gravar um EP (“Lonely
Songs”, 2018) comemorativo dos 60
anos de “Only The Lonely” (1958),
de Frank Sinatra? Evidentemente,
Greg Ahee, dos Protomartyr,
escolha instantânea de AJ que, não
escondamos mais o jogo, é neta
de Frank e filha de Nancy Sinatra.
E, quando, aos 44 anos, se decidiu,
enfim, por um percurso de cantora,
além de concertos de voz e piano

A Fabulosa Besta
em que interpretava os clássicos do
avô, que reportório escolheu para si
no álbum de estreia, “Careful You”
(2019)? John Cale, Chris Bell, TV
On The Radio, Spoon, Billie Holiday,

H
oras antes de subir ao 1965-1995” cobre: os 30 anos dos gravar, não me deixaram usá-la. e duas pepitas de Ol’ Blue Eyes,
palco do Coliseu de dois primeiros atos da carreira O que se ouvia era falso.” Seria de entre uma lista de candidatos
Lisboa, no qual, em 1993, de Marianne Evelyn Faithful, apenas após a descida junkie aos onde se incluíam também Robert
se apresentaria pela primeira vez baronesa Erisso Von Sacher- infernos que, com o avassalador Wyatt, Elvis Costello e David Bowie
em Portugal, no bar do hotel onde Masoch. No primeiro, gravou “Broken English” (1979) — “Foi (“Para mim, é tudo exatamente
ficara instalada, Marianne Faithfull 6 álbuns de refinado ecletismo muito difícil mas fi-lo. Era o igual a quando Alan Lomax andava
recordava os primeiros passos, pop/folk/country — Bacharach, resultado de tanta frustração, por todo o mundo a descobrir as
em meados dos anos 60, de modo Beatles, Rolling Stones, Phil Ochs, ressentimento e fúria que tinha músicas locais. As canções estão
muito pouco nostálgico: “Nessa Dylan, Tom Paxton, Bert Jansch, de ser mesmo assim. Na altura, aí para ser colhidas”, dizia ela à
altura, eu tinha um tremendo Ewan MacColl, Serge Gainsbourg, estava convencida de que iria WNYC). Isto, enquanto, com Greg
desprezo pela música pop. Quando Donovan, Tim Hardin, Waylon ser a última coisa que faria” Ahee e Michael Wallace, alimentava
jovem, artisticamente, era uma Jennings — que, no entanto, nunca —, as comportas se abririam e a fogueira dos Bloodslide, trio
enorme snob. Queria ser atriz, tinha a satisfizeram: “A minha ‘primeira Marianne, a partir de “Strange pós-punk de incandescências
uma excelente voz que me fazia voz’ não era a verdadeira, tinha Weather” (1987) e “A Secret elétricas. Agora, em “Dirt Soda”,
pensar numa carreira na ópera, uma voz muito melhor do que Life” (1995) caminharia, de mãos continuando rodeada de gente dos
queria dedicar-me a qualquer coisa isso. Era mezzo-soprano, tinha dadas, com a nata pop/rock. Com círculos privados de Bill Laswell,
séria. E, não sei muito bem como, tido uma educação musical preciosos 22 inéditos em edição Julia Holter, Yves Tumor e Joan As
acabei por ser desviada (de certo clássica e, quando comecei a vinil e 9 no duplo CD, “Songs Policewoman, à exceção de ‘Strings
modo, por engano) para a pop. of Innocence and Experience” of Nashville’, dos Pavement, e
Agora, sinto-me muito satisfeita detém-se naquele propósito que, ‘Broken Hearted Wine’, dos Codeine
e reconhecida por isso. Mas, na há 10 anos, Marianne descrevia (fundidas numa liga metálica
altura, o que cantava parecia-me ao “Guardian”: “Nestes últimos única), e de ‘Then You Can Tell
puro lixo. Em certa medida, foi só anos, o meu objetivo tem sido o de Me Goodbye’, de The Casinos, AJ
quando comecei a entender o Andy encontrar alguma harmonia entre assina todos os outros temas. E o
Warhol que realmente compreendi mim e Marianne Faithfull. Era que se escuta é coisa hipnótica de
que a pop também era arte. Até aí, ela que utilizava drogas e bebia, essência medularmente lynchiana,
não passava de matéria descartável, QQQQ era ela dentro da minha cabeça. traduzida e expandida para o
pronta para usar e deitar fora.” SONGS OF INNOCENCE Ela, a Fabulosa Besta, como eu lhe vocabulário já antes, em várias
É, praticamente, essa mesma AND EXPERIENCE 1965-1995 chamo. Não posso dar-lhe ouvidos, tonalidades, ensaiado por Julee
extensão de vida que “Songs Marianne Faithfull tenho de ter sempre muito Cruise, PJ Harvey, Nick Cave, Kate
of Innocence and Experience 2 CD UMC cuidado”. / JOÃO LISBOA Bush ou Chrysta Bell. / J.L.

E 68
Estão lá a voz e a guitarra, também estão SAM THE KID

E ainda...
os coros e as letras socialmente consci- Super Bock Arena, Porto, amanhã, 21h
entes a marcar o tom logo no arranque do
disco com ‘Below Sea Level’ e ‘We Need Acompanhado por uma orquestra
to Talk About’. Mas se as suas causas de 24 elementos, dirigida pelo
atravessam todo o disco, não são os maestro Pedro Moreira, e os seus
versos que fazem do “Bloodline Mainte-
QQQQ nance” o melhor trabalho de Harper em
Orelha Negra, Sam The Kid revisita
os melhores momentos de um
BLOODLINE MAINTENANCE muitos anos. Talvez tenha sido a sobrie- percurso com mais de duas décadas
Ben Harper dade (anunciada em 2018), a segurança MACY GRAY ao serviço do hip-hop nacional.
Chrysalis de já ter espaço e público cimentados Coliseu dos Recreios, Lisboa, quarta,
21h30; Coliseu, Porto, quinta, 21h30
ou, talvez, a tranquilidade que os 52 anos
Foi herói nos tempos em que a música se de vida lhe deram. A explicação pode 23 anos depois de se tornar um
dizia alternativa, porta-bandeira quan- ser ainda mais simples e, afinal, Harper fenómeno de popularidade com
do a moda do surf se instalou nas rádios apenas está a confirmar o que há muito se a canção ‘I Try’, a norte-americana
abrindo caminho para tantos outros, de ouvia: um talento para canções, desprovi- Macy Gray traz a Portugal a
Donavon Frankenreiter a Jack Johnson, das de presunção e ainda assim carre- digressão “The Reset”, na qual
deslumbrou-se e a música ressentiu-se. gadas de marcas que as tornam indiscu- se faz acompanhar pelo trio
Mesmo que evitando sempre um des- tivelmente suas. Sem floreados, e com California Jet Club.
piste espalhafatoso, Ben Harper acabaria pouco mais de meia hora de duração,
por se fechar, como se apostado em fugir “Bloodline Maintenance” foi composto RAVI COLTRANE
ao mainstream onde chegou perto do por Ben Harper ao baixo, quem sabe se JOÃO DONATO Centro Cultural de Belém, Lisboa,
Teatro Tivoli BBVA, Lisboa, quinta, 21h
topo da cadeia alimentar. Gravou discos em homenagem ao amigo falecido em
segunda, 21h
com coros gospel, com a mãe, outro de 2021, Juan Nelson, o carismático baixis- Filho de Alice e John Coltrane, o
baladas e até um com Charlie Mus- ta dos Innocent Criminals e seu com- O lendário compositor e pianista saxofonista norte-americano Ravi
selwhite, lenda da harmónica do blues. panheiro de palco durante perto de três brasileiro João Donato sobe ao Coltrane, colaborador de nomes
Agora, perto de celebrar os 30 anos do décadas. Talvez por isso, ao longo das 11 palco do Tivoli, em Lisboa, para como Steve Coleman, Art Davis
primeiro disco (“Welcome to the Cruel músicas nunca falte um toque a funk. Um apresentar o espetáculo “A bossa ou Flying Lotus, traz a Lisboa o
World”, de 1994) em “Bloodline Mainte- grande disco de um músico a quem, nem de João Donato e seu trio”, com espetáculo “Cosmic Music”, no qual
nance” ouve-se música de ancião. Dos sempre, são dados os devidos créditos. a participação especial da fadista se propõe explorar a música dos pais
bons, dos que sabem como envelhecer. / FILIPE GARCIA Carminho. numa abordagem contemporânea.

Agustina p (a) Colóquio


100 anos
Programa — Auditório 2
10:00 Abertura
Guilherme d’Oliveira Martins | Inês Fonseca Santos |
Mónica Baldaque

O riso de todas 10:30 “O riso de todas as palavras”


António M. Feijó | Clara Ferreira Alves | Pedro Mexia

l as palavras Moderação: Susana Moreira Marques

14:30 “O rio da infância”


Rita Taborda Duarte | José António Gomes
Moderação: Sara Figueiredo Costa

16:30 Mísia canta “Garras dos Sentidos”, de Agustina Bessa-Luís

16:45 Mulher: “ser completo, princípio e fim”


Maria João Seixas | Catherine Dumas

(a)
Moderação: Clara Caldeira

19:00 Leitura encenada A Ronda da Noite


Uma criação de João Sousa Cardoso | com Ana Deus

18 out Texto de Agustina Bessa-Luís

(as)
+ 12 anos

2022 Zona de Congressos

vr
Exposição Reflexos duma luz
10 retratos de personagens femininas de Agustina
por 10 ilustradores

Entrada livre
A peça é interpretada
exclusivamente por dois
atores surdos (Marta Sales
e Tony Weaver), em língua
gestual portuguesa

Coordenação Cristina Margato


cmargato@expresso.impresa.pt

A urgência da comunicação
Marco Paiva
“A
té que ponto conseguimos 1979, exatamente 20 anos depois de vocacionada para a inclusão. A
mergulhar a fundo numa Edward Albee estrear ‘The Zoo Story’ experiência que tem nesta causa é
encena “Zoo língua que é física e até que em Nova Iorque e apenas um ano muito anterior à tendência atual de
ponto isso transforma a relação com antes de eu nascer, em 1980. (...) Era trabalhos participativos e/ou com
Story”, de Edward o teatro enquanto objeto artístico?” urgente começar esta relação. Muito comunidades marginalizadas. Desde
Albee, em versão A questão é exposta pelo encenador
Marco Paiva no final do ensaio de
urgente. Já vos explico melhor. O
meu desejo de aqui estar, hoje, neste
esses anos 2000 que os artistas surdos
e a língua gestual sempre estiverem
língua gestual “Zoo Story”, peça criada a partir palco, é falar-vos de algo que tem presentes. Por via deste percurso
do texto de Edward Albee (1959), muito a ver comigo...” Marco Paiva tem vindo a pensar a predominância
portuguesa interpretada exclusivamente por dois explica depois ao Expresso que todas da palavra dita no teatro. “Já com o
TEXTO CLAUDIA GALHÓS atores surdos (Marta Sales e Tony estas referências partilham o facto de Crinabel Teatro, a presença da palavra
Weaver) em língua gestual portuguesa serem exercícios de ficção, discutirem dita era muito distinta da convenção
e que leva mais longe a interrogação uma questão que é fundamental teatral, por questões intelectuais ou
que já havia explorado em “Calígula no enredo da peça e ainda o facto morfológicas, e isso sempre me fez
Morreu” (2021), em quatro línguas: de ser muito pessoal para os dois refletir até que ponto o teatro não
português, espanhol, língua gestual atores. A história original de Albee vive muito para além do que é a
portuguesa e língua gestual espanhola. passa-se num jardim zoológico, que palavra dita.” O que Marco descobre
Os ensaios ainda acontecem a cru, a é, segundo Marco, “um instrumento é um poder da língua gestual, que foi
mais de uma semana da estreia. Não para perceber como é que as pessoas tentando levar mais longe enquanto
há cenário, música ou figurinos. Tudo se relacionam quando já tudo falhou”. linguagem teatral. “Zoo Story” surge
será diferente, entretanto, quando for Essa referência mantém-se. Até porque neste terreno de interrogações. Um
estreada. Quem for assistir poderá para Marco Paiva há um paralelismo texto contemporâneo, poético e
deixar-se perder na coreografia, que estabelece entre o zoo e o teatro: filosófico, que permite explorar as
que implica todo o corpo e a muita ambos são ambientes artificiais que se potencialidades da língua gestual,
expressividade de rosto que compõe a revelam fundamentais para entender com “a sua gramática, o seu léxico
língua gestual. Mas quem quiser seguir as relações humanas. “Temos de trazer e esta característica de viver num
a conversa ao detalhe pode ir lendo a o público aqui para se confrontar corpo inteiro”. Do texto original, diz
legendagem. Sendo este um projeto com uma língua, com outra proposta Marco, “arrancámos o coração, que
a todos os níveis inclusivo, conta cénica, para pensar que relação temos tem a ver com a questão de como é
ZOO STORY também com audiodescrição. com as artes performativas, mas que se encontram linhas de diálogo
“Zoo Story” começa com a cena final também com esta língua e com estes e comunicação entre estas duas
De Edward Albee
Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, do filme “Alien”, de Ridley Scott. artistas que estão aqui.” personagens”. O espectador surge
até dia 23; Cineteatro Louletano, Loulé, Logo a seguir, Tony cumprimenta É sobre estas questões que Marco como uma terceira personagem,
30 de novembro e 1 de dezembro; o público, apresenta-se e revela a Paiva tem vindo a trabalhar desde os “provocando-lhe também esta
Teatro José Lúcia da Silva, Leiria, relação que existe entre aquele filme anos 2000, primeiro com o projeto sensação de que ele tem de encontrar
4 de dezembro; Centro de Artes, de Hollywood e a razão por que está Crinabel Teatro e, desde 2018, com um caminho de diálogo com o que
Águeda, de 9 a 11 de dezembro ali. “Estas imagens foram feitas em a sua estrutura Terra Amarela, está a ver”. b

E 70
a experienciar presenças hiper-realistas

E ainda...
manipuladas por marionetistas que ex- artista multimédia João Cristó-
põem em cena a ténue linha que separa vão Leitão para criar um espetá-

VALÉRIO ROMÃO
vida e morte. A performance-instalação culo sobre a violência. A peça faz
“Arquivo Zombie — O Arquivo Morto- parte do Momento II do festival
-Vivo do Teatro do Ferro” (Espaço Teatro Temps d’Images, que comemora
do Ferro, dia 16) também entra nesta 20 anos.
discussão, ao propor reanimar objetos
que constam do espólio desta compa- AQUI, AINDA — UM LUGAR
nhia. A partir de um percurso dedicado
QUE SEJA DELAS
FIMP à dança apresenta-se pela primeira vez De Teresa Coutinho
Vários locais, Porto e Matosinhos, Clube Estefânia/Escola de Mulheres,
em Portugal o catalão Jordí Galí, com “T”
até dia 16 Lisboa, até dia 30
(Teatro do Campo Alegre, 8 e 9). Depois

ESTELLE VALENTE
Na 33ª edição, o FIMP — Festival de ter dançado com nomes como Wim Com texto de Teresa Coutinho e
Internacional de Marionetas do Porto Vandekeybus, Anne Teresa De Keers- encenação de Ruy Malheiro, este
encerra o tríptico dedicado às Ciências maeker e Maguy Marin, tem vindo a espetáculo, em formato cabaret e
e Políticas da Matéria Animada, com desenvolver as relações entre corpo e de celebração, debruça um olhar
o subtítulo “O Mistério da Vida”. Num material, gesto e objeto. Este “T” refor- sobre o património artístico da
programa muito diverso, Igor Gandra, mula essa pesquisa, agora colocando o Escola de Mulheres e do “Manifes- A RECONQUISTA
diretor artístico do FIMP — também corpo em relação com vigas, escadas e to” que substancia a sua criação
DE OLIVENZA
De Ricardo Neves-Neves
diretor do Teatro do Ferro juntamente pneus. Até 16 de outubro há muito mais em 1995, com o foco no papel da
e Filipe Raposo
com Carla Veloso —, lança algumas para ver, como por exemplo “Cuckoo” mulher nas artes.
Teatro São Luiz, Lisboa, até dia 16
questões: “O que define o vivo? O que é (Rivoli, 13 e 14), do coreano Jaha Koo,
estar vivo nas vidas que vivemos?” “Still “Spirals” (Teatro do Campo Alegre, 14 e “Exercício fantasioso sobre o Poder
Life_Nove Tentativas para Preservar a 15), do belga Tim Oelbrandt, ou “Maia- PAISAGEM e a Política, com muito muito humor
Vida” (na foto), de Tin Grabnar, do Teatro kovski — O Regresso do Futuro” (TeCA, De Rodrigo Teixeira e muito muito pouco nacionalismo...”
e João Cristóvão Leitão
de Marionetas de Liubliana (Teatro 12), numa criação conjunta do Teatro do É assim “A Reconquista de
Centro Cultural de Belém, Lisboa,
Rivoli, hoje e amanhã), é um exemplo da Ferro e Teatro de Marionetas do Porto. Olivenza”, uma peça criada pelo
amanhã e sábado
abordagem destas interrogações. As Além disso, há documentários, master- dramaturgo e encenador Ricardo
marionetas aqui são também animais classes e programa WOK (Workshop) e O bailarino e coreógrafo Rodrigo Neves-Neves e o pianista e
preservados por via da taxidermia, dando WIK (Work In Progress). / C.G. Teixeira juntou-se desta vez ao compositor Filipe Raposo.
e@expresso.impresa.pt

“Untitled (Verna
Skelton Posing for Cutex
Advertisement)”,
Nova Iorque, 1924

MARGARET WATKINS
O sistema dos objetos
Revisitação de uma
D
epois de apresentar a permanente. Depois de estudar na universo feminino e doméstico
fotografia de rua de Vivian escola de Clarence White (por onde marcado por tons sombrios e o rigor
pioneira da fotografia Maier, a Fundação Dom Luís passaram, por exemplo, Georgia da natureza morta. Na forma e no
em Cascais continua a mostrar um O’Keeffe ou Max Weber) haveria de espírito, a fotografia de Watkins é
publicitária que particular interesse pela obra de desenvolver uma breve carreira na essencialmente moderna; seja pela
reflexão sobre o próprio medium (a
deixou secreta boa fotógrafas cujo reconhecimento
tardou, desta vez com Margaret
fotografia comercial, trabalhando em
Boston e Nova Iorque. fotografia, a câmara, o fotógrafo são
parte de uma original Watkins, uma canadiana que foi uma Esta exposição reúne um conjunto com frequência o tema da imagem);
das primeiras mulheres a trabalhar na de 136 fotografias e colagens em pelo modo como aborda a rua onde
obra de autor indústria publicitária. provas vintage que mostram o seu vê uma constelação de sinais gráficos
Como no caso da pintora abstrata trabalho publicitário enquadrado ou no experimentalismo das suas
TEXTO CELSO MARTINS Hilma af Klint ou da poetisa sua numa produção muito mais ampla. colagens abstratizantes.
conterrânea, Emily Dickinson, uma Margaret não se movimentou apenas Um capítulo debruça-se sobre
parte importante do seu trabalho só entre campos distintos da utilização a fotografia que realizou em
foi conhecido postumamente. Dois fotográfica. A sua obra mostra uma viagem, nomeadamente, através
anos antes da sua morte, Watkins abordagem porosa a diferentes de fotos captadas em Londres,
entregou uma caixa ao seu vizinho estéticas mas atravessada por uma Paris e Moscovo. As imagens na
Joseph Mulholland, dando-lhe sensibilidade individual madura e capital soviética revelam uma
instruções para só revelar o seu bem definida com uma abordagem fascinação evidente pela iconografia
conteúdo após a sua morte, em rigorosa às coisas e às suas relações revolucionária, pela face industrialista
Glasgow onde procurou uma espécie com os espaços. Algumas imagens do país e mais ainda pelos
de exílio. Ao abri-la, Mulholland trazem a influência de um certo processos fotográficos estruturais
descobriu um acervo de mais de 1200 pictorialismo de origem escandinava e arquitetónicos de Rodchenko ou
imagens que cobriam uma grande (de Vilhelm Hammershoi a Munch) Lissitzky. Uma extensa secção deixa
diversidade de géneros e, sobretudo, que lhe chegou através de White, uma ainda ver a forma diversificada como
revelam a originalidade de um olhar melancolia que pousa nos objetos encarou o retrato, entre a empatia
sobre o mundo. domésticos ou espreita um lago a emocional, a admiração intelectual e
Watkins cresceu em Hamilton, no partir de uma vidraça. a sensualidade da nudez. Mas, como
QQQQ Ontário, no seio de uma família Outras fotografias cultivam uma se descobre em Cascais, essa é apenas
BLACK LIGHT instruída. A sua curiosidade omnívora maior ambiguidade, seja promovendo uma das facetas de uma fotógrafa
Margaret Watkins aproximou-a da escrita e da música uma desorientação surreal da particularmente atenta aos mais
Centro Cultural de Cascais, (tocava piano e cantou em coros) mas imagem (como em “Domestic silenciosos indícios na presença dos
até 8 de janeiro de 2023 a fotografia tornou-se uma obsessão Symphony”, 1919), revelando um objetos, dos espaços ou das pessoas. b

E 72
com ela, aliás os cabos e o vidro são ma- exposição que testemunha o modo

E ainda...
teriais de suporte e defesa de uma obra como a sua produção artística se
de arte tradicional, desenho ou pintura. desenvolveu em diálogo com a sua
A matéria, e o modo como olhamos para obra cinematográfica.
ela e como ela pode enganar o nosso
olhar, é o tema oculto desta exposição,
onde as peças mais pequenas têm um
funcionamento oposto ao das já referi-
das, pois representam uma acumulação
e concentração de forças, dispostas em EXIST/RESIST — OBRAS
QQQQ longas barras quadrangulares utilizando o
DE DIDIER FIÚZA FAUSTINO:
WE ARE ALSO THE GHOSTS 1995-2022
vidro e o ferro, e, noutro caso, “Mortalhas”,
Catarina Mil-Homens MAAT, Lisboa, até 6 de março
finos fragmentos de casca de árvore que
Uma Lulik, Lisboa, até dia 22 de 2023
vemos também, filmados um a um, no ví-
deo “Cascas de Mim” como o desvendar A exposição reúne uma vasta sele-
“Também Somos os Fantasmas” o do segredo que se mantinha oculto nas ção de obras, materiais preparatóri-
título, agora em português, desta ex- “Mortalhas”. A matéria destas obras des- os e protótipos do experimentalista TRIENAL DE ARQUITECTURA
posição, é também o título de uma das dobra-se no espaço, onde a encontramos franco-português. Desta fazem MNAC, MAAT, Garagem Sul
do CCB e Culturgest, Lisboa,
obras apresentadas, a maior em área em força, no “Regresso”, e, em leveza, nos parte peças antigas e recém-cria-
até 5 de dezembro
300x800x20 cm, mas não a maior no es- “Fantasmas”; a matéria também se con- das, empréstimos de coleções
paço ocupado, pois se trata de uma peça centra e se dobra sobre si própria, criando internacionais e documentação São quatro as exposições que
parietal, enquanto “Regresso”, a obra que uma massa crítica e densa que já não se nunca antes vista. compõem a dimensão expositiva da
nos recebe no espaço de entrada com vê, mas que facilmente se adivinha, se in- Trienal. Oportunidade para conhe-
260x300x500 cm, vive da fortíssima venta, ou se imagina nas “Mortalhas” com cer o trabalho de Tau Tavengwa e
presença de um tapete de carvão que as suas cascas e nas outras duas barras de AGNÈS VARDA: Vyjayanthi Rao (Multiplicidade, no
condiciona tudo o que a envolve. Volte- vidro e ferro (“Lâminas” e “In Between”),
LUZ E SOMBRA MNAC), Loreta Castro Reguera e
Casa do Cinema Manoel de Oliveira,
mos a “Fantasmas” e à sua transparência ou ainda se desdobra nos 4’ 44’ do vídeo. Jose Pablo Ambrosi (Retroactivar,
Porto, até 22 de janeiro de 2023
e leveza aparente, ao relevo de cabos de Catarina Mil-Homens (n. 1979), de no MAAT), Pamela Prado e Pedro
aço e vidro de uma materialidade translú- regresso de oito anos na Austrália, soube Fotógrafa, cineasta, artista plás- Ignacio Alonso (Ciclos, na Garagem
cida que a constitui, mas que é sobretudo criar um espaço de dúvida e de contradi- tica. A belga Agnès Varda (1928- Sul) e Anastassia Smirnova com
um logro intencional para quem se depara ção assumida. / JOSÉ LUÍS PORFÍRIO 2019) revela-se completa numa SVESMI (Visionárias, na Culturgest)

CONCESSIONÁRIO TOYOTA
SEIXAL- ALMADA

WWW.AMGONCALVES.PT
FRACO CONSOLO

Javier Marías
(1951-2022)

J. P. GANDUL/EPA
JAVIER MARÍAS

A
NÃO PERTENCIA À ESCOLA DOS TRANSPARENTES, MAS À DOS
ENIGMÁTICOS. O QUE LHE INTERESSAVA ERA O MISTÉRIO, A MEMÓRIA,
A ESPECULAÇÃO, A INCERTEZA, A DUPLICIDADE, ATÉ A TRAIÇÃO
conteceu-me tentar convencer (1989), ainda que sempre em diferido (o meu castelhano é insuficiente,
interlocutores pouco convencidos e esperava pelas traduções). Creio que só passei ao lado de “O Teu Rosto
de que Javier Marías era o maior Amanhã”, pelo gigantismo, e ainda não li “Tomás Nevinson”, que saiu há
romancista vivo. Enquanto menos de um ano. A ter um romance preferido, é “Coração Tão Branco”
argumentava com eles, argumentava (1992), ou os dois que se lhe seguiram, mas também me entusiasmei com os
comigo, questionando um paradoxo: ensaios de “Paixões Passadas” (1991) ou os perfis de “Vidas Escritas” (1992).
por que motivo gosto tanto de alguém Já quando o lia no “El País”, percebia porque é que alguns dos seus pares o
que adopta a frase longuíssima, olhavam de esguelha. Marías, que nos deixou uma vintena de colectâneas
intrincada, proustiana, o tom de de crónicas, seria um sucesso de crítica e de livraria, um membro da Real
homem vivido e altivo, e que joga Academia Espanhola, um nobelizável (quem terá vencido ontem em
com o policial e com a espionagem, Estocolmo, quando devia ter sido ele?), mas era do contra quando defendia
nada que interesse assim muito? A justificação, parece-me, é a seguinte: a dignidade da linguagem e a liberdade de expressão, ou quando verberava
a abordagem de Marías à ficção convinha perfeitamente àquilo que ele o “wokismo” e o “cancelamento” (um rezingão, talvez, mas um rezingão
era enquanto romancista, àquilo de que queria falar, que queria trazer à progressista liberal, agora que estes dois termos se tornaram antónimos).
conversa connosco. Gostava desse Marías corajoso e desassombrado, desse escritor zangado
Marías não pertencia à escola dos transparentes, mas à dos enigmáticos. O com o seu tempo, mas mais ainda daquele, mais contido, mas não menos
que lhe interessava era o mistério, a memória, a especulação, a incerteza, intransigente, que vivia no “tempo sem tempo” da ficção.
a duplicidade, até a traição. Não me lembro se gostava ou não de Graham Deixou-nos com apenas 70 anos. Parafraseando o Bardo, “he should have
Greene, mas tinha tudo para gostar: em Greene os “entertainments” died hereafter”. Numa crónica de 2020, Marías reagiu a uma falsa notícia
(expressão que o próprio utilizava) não eram na verdade menos do que as da sua morte, afirmando, enquanto exímio ficcionista, que aquela era uma
“novels”: a seriedade moral era a mesma. Greene era um escritor-espião, história “sem imaginação”, primeiro falsa, mas depois verdadeira. Agora foi
por razões em parte profissionais e em parte teológicas. Marías era um verdadeira, e antes fosse falsa outra vez. b
escritor-tradutor, não apenas porque ensinou teoria da tradução e publicou, pedromexia@gmail.com
entre outras, uma versão espanhola do “Tristram Shandy”, mas porque a Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia.
transição entre “língua de origem” e “língua de chegada” servia muitíssimo
bem os universos que o fascinavam, fosse a História, a conspiração, a
conjugalidade ou o quotidiano dos académicos e eruditos.
A frase de Javier Marías, expansiva, especulativa, elegante na sua
perfeita articulação, o estilo discursivo e interrogativo, que incorporava
contradições, hesitações e hiatos, esse estilo era o homem: o burguês
nascido em meio intelectual, o cosmopolita anglófilo, o céptico, o
misantropo ma non troppo, o homem que admirava tanto Shakespeare (a
quem foi buscar muitos títulos) como Stevenson, tanto Nabokov como o
cinema americano série B. Se andava para trás e para a frente, se era assim
que pensava o romance, isso espelhava um modo de ser, uma ambiguidade
e uma infinita curiosidade. É muito citada, e muito certeira, uma citação
/ PEDRO
que fazia do seu amado Sterne, que definia a digressão como uma forma de MEXIA
progressão.
Não conheço a obra de juventude, ao que dizem menos interessante, mas
seguia-o desde que se tornou conhecido com o oxoniano “Todas as Almas”

E 74
vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”

O crescente
interesse pela
cerâmica traduz-se
em novas marcas,
formas de expressão
e na redescoberta
dos clássicos
TEXTO MARKUS ALMEIDA

São cerâmicas, senhor.


São cerâmicas
E 75
O
renascimento da cerâmica
portuguesa assume diferentes
formas e feitios. Vê-se em jo-
vens ceramistas dedicados a criar ele-
gantes peças utilitárias e decorativas,
em artistas de diferentes afinidades
que descobrem em antigas técnicas e
processos novas formas de expressão,
e em quem, sem qualquer pretensão
artística, não prescinde, no seu tem-
po livre, de pôr as mãos na argila, em
workshops, cursos ou oficinas. A vita-
lidade atual da cerâmica expressa-se
ainda numa indústria efervescente —
Portugal é dos maiores exportadores
do mundo e teve em 2021 o melhor
ano de sempre. Entre empresas de ce-
râmica utilitária e decorativa, de usos
sanitários, de usos técnicos e ainda
de cerâmica estrutural (isto é, tijolos,
telhas, revestimentos e pavimentos),
operam neste sector, de acordo com
a APICER (Associação Portuguesa das
Indústrias de Cerâmica), mais de mil
companhias, a esmagadora maioria
das quais são microempresas (ou seja,
com menos de 10 trabalhadores).
Descortinam-se alguns parale- mas hoje a capacidade produtiva está ancestrais são aplicadas a uma esté- Na última década, muitas marcas
los ao percurso de Carlos Oliveira (n. muito mais reduzida.” Carlos não es- tica apurada e um desenho contem- ganharam nome e renome na cerâ-
1963), ceramista e escultor, há 40 anos capou às dificuldades, mas adaptou-se porâneo — eis o que têm em comum mica portuguesa. Foi o caso do ate-
a “fazer bonecos”, como refere, des- e mantém hoje um pequeno estúdio algumas das novas marcas portugue- lier MALGA, de Anna Westerlund,
de a cerâmica tradicional das Caldas (carlosoliveiraescultor.com) nas Caldas sas, que por vezes se confundem com Cecile*M ou até do estúdio de design
da Rainha, por onde começou, à arte da Rainha. Um dos seus projetos mais a própria identidade de quem as cri- Vicara, fundado por Paulo Sellmayer,
pública na forma de esculturas com recentes? Réplicas perfeitas em cerâ- ou. Como a Margarida Fabrica, fun- e que no verão de 2022 voltou a pôr
que nos últimos anos tem embeleza- mica de ténis emblemáticos, como os dada em 2010 pela designer Margarida designers e ilustradores em diálo-
do praças e rotundas por esse Portu- Nike Air Max One, de 1987, que produz M. Fernandes, e que se notabiliza pe- go com oleiros e artesão tradicio-
gal fora. Carlos tinha apenas 14 anos na OSICA Official — marca criada em los copos, taças, fruteiras, saladeiras, nais em Viana do Alentejo — daqui
quando começou a trabalhar numa 2021 com o amigo (e enteado) Gonçalo pratos de sopa — praticamente tudo resultará uma nova edição da Tasco
fábrica nas Caldas da Rainha, cidade Esteves Ribeiro, aficionado dos snea- o que, sendo cerâmica, possa (e deva) Tableware, coleção que cruza olaria
de fortes tradições na cerâmica. Foi kers. “Nunca me passaria pela cabeça acomodar comida. O estúdio na Lx com autores contemporâneos. Na in-
dos primeiros a inscrever-se no CEN- fazer ténis”, admite, mas quando Gon- Factory, em Lisboa, pode ser visitado tersecção entre tecnologia e artesa-
CAL — Centro de Formação Profissio- çalo lhe lançou o desafio, não hesitou por marcação (margaridafabrica.com). nato refira-se ainda o estúdio Drama
nal para a Indústria Cerâmica, onde em “conjugar a técnica, o bem fazer e o No mesmo tom, mas afinando o Lisboa (dramalisboa.com), cujas pe-
voltaria para dar aulas, e na década conhecimento de cerâmica à contem- registo para o da alta gastronomia, ças de cerâmica são desenhadas no
de 80 fez modelação, design e mol- poraneidade, rasgo e ousadia de um jo- surge o Studioneves, dos brasileiros computador e impressas numa im-
des antes de criar o seu próprio atelier, vem”. As edições limitadas, com séries Gabi Neves e Alex Hell. Alguns dos pressora 3D.
onde chegou a ter 17 empregados e 200 a custar entre 300 e 1500 euros, estão melhores restaurantes do mundo, A ponte entre o passado e o pre-
clientes um pouco por todo o país. à venda na loja online osicaofficial.com. como o DOM (São Paulo), o El Celler sente — com um olho no futuro — é
A globalização e as crises trouxeram De Can Roca (Catalunha) ou o Cen- também atravessada pelo Estúdio —
tempos difíceis para a indústria, como A NOVA CERÂMICA DE AUTOR tral (Peru), servem as suas refeições Caldas da Rainha, que desenvolve o
recorda ao Expresso: “Havia quase Peças únicas, feitas à mão em peque- em loiça desenhada pelo casal no seu trabalho a partir da investigação
7000 fábricas a trabalhar em cerâmica, nos ateliês ou estúdios onde técnicas seu estúdio em Alcabideche, Cascais. da história da cerâmica portuguesa

E 76
Dos clássicos revisitados
de Bordalo Pinheiro (à esq.),
o regresso da cerâmica
portuguesa faz-se também
com recurso à tecnologia e
com a ajuda de impressoras 3D,
na Drama Lisboa (ao centro),
e com as réplicas de ténis da
OSICA Official, que podem
custar centenas de euros (dir.)

nessa senda.” O projeto mais recente


saiu do forno há três semanas. “Love
Eternal” (ver pág. 75) mede 24 cm
de altura, custa 500 euros (anabeta-
nia.com/shop) e pretende “celebrar
o amor eterno enquanto um buquê
em forma de gelado: uma explosão
de flores”.
O regresso da cerâmica portu-
guesa passa pelos artistas, artesãos
e marcas supracitados, mas tam-
bém por todos aqueles — e são cada
vez mais — que fazem de cursos,
workshops e ateliers de cerâmi-
ca autênticos retiros espirituais de
duas horas. Para Sofia Magalhães (n.
1981), que faz da cerâmica o seu mé-
tier artístico, pautado pelo trabalho
com miniaturas e pelo uso de rele-
vo e ilustração, a crescente procura
por cursos e workshops é um dado
assente: “Quando estudei cerâmica
na Ar.Co, há 15 anos, éramos cinco
ou seis; hoje as turmas têm 50 alu-
nos”, recorda.
Sofia também dá aulas no Atelier
das Madres, que partilha com o ar-
A vitalidade atual da “em conjunto com os núcleos cerâ-
micos portugueses de criação e fa-
atual da cerâmica não poderia ser
mais gritante. Foi na faculdade de
tista Thierry Simões no bairro da Ma-
dragoa, em Lisboa. Os seus alunos
cerâmica expressa-se brico”, como explicam em estudio- Belas Artes que a dupla Ana + Betâ- têm um perfil diverso, mas há algo
numa indústria -caldasdarainha.com. Desta abor-
dagem resultam coleções que se
nia (Ana Cruz e Maria de Betânia),
na altura estudantes de pintura, teve
que todos têm em comum: traba-
lham no digital, vivem ligados à rede
efervescente: parecem com as da defunta SECLA o seu primeiro contacto com o que e passam o dia a olhar para ecrãs. “As
(Sociedade de Exportação e Cerâ- então era visto como uma “técnica aulas de cerâmica têm um efeito te-
Portugal é dos mica, S.A.), mas que, na verdade, obsoleta”, como recordam ao Ex- rapêutico. É uma forma de abrandar
maiores exportadores são reedições a partir de moldes das
décadas de 50 a 70 que o estúdio
presso. “No contexto da universida-
de, em que deveríamos ser expostas
e de nos trazer para o aqui e agora.”
Para se transformar em cerâmi-
do mundo e teve em adquiriu. às últimas tendências e vanguardas, ca, o barro precisa de tecnologia, de
2021 o melhor ano de Outras fábricas importantes no
século XX houve que não chegaram
que na altura se desenvolviam no
campo da media arte e arte digital, a
tempo e de vários passos (modela-
ção, secagem, cozedura, vidragem)
sempre. Na última aos nossos dias, como as Loiças Saca- cerâmica era olhada de lado por co- que podem demorar dias. E é pre-
vém ou a Fábrica do Rato. A Bordallo legas e professores, que ainda a asso- ciso um forno capaz de ultrapassar
década, muitas Pinheiro, pelo contrário, parece ser ciavam à pintura de azulejos ou mera temperaturas de mil graus. “Quan-
marcas ganharam um exemplo de vitalidade, tanto que
em 2018 o grupo que detém a mar-
arte aplicada.”
A primeira vez que a dupla apre-
do uma peça vai ao forno, dá-se um
processo irreversível ao nível das
nome e renome na ca foi adquirido pela Vista Alegre por sentou um projeto de cerâmica foi moléculas. O que é A, passa a B”, diz
48,5 milhões de euros. em 2012, em Espanha. Ana + Betânia Sofia. A avaliar pela procura, dedu-
cerâmica portuguesa nunca mais olharam para trás. “Foi z-se que o processo seja igualmen-
MÃOS NA ARGILA o período em que houve um boom te transformador para quem põe as
Para a geração que concluiu os estu- internacional”, contam. “O cres- mãos na massa pela primeira vez. A
dos há 10 ou 15 anos, a diferença para cimento do interesse na cerâmica partir de 25 euros por aula de duas
o que veem à sua volta no panorama em Portugal vem, como é habitual, horas (patiodotejolo.tumblr.com). b

E 77
R ECE I TA
POR JOÃO RODRIGUES
(PROJECTO MATÉRIA)

PRODUTOS
& PRODUTORES
Mestre Jacinto
Filho e neto de pescadores, Jacinto Silva
não teve propriamente escolha de pro-
fissão. “Quando acabei a escola fui para o
mar”, conta, sem grande emoção, como se
estivesse apenas a relatar o facto de o sol
ter nascido naquele dia. Algo inevitável,
portanto. Era assim no Caniçal, a ponta
este da ilha da Madeira, de onde é natural
e de onde continuam a partir, ainda hoje,
a grande maioria dos atuneiros madei-
renses ou registados no arquipélago. São
embarcações que, como o nome indica, se
dedicam à pesca do atum, o mais nobre dos
peixes que se apanham na costa da Madei-
ra. A época dura geralmente entre abril e
outubro e tem de ser aproveitada ao limite.
Os atuneiros ficam durante cinco a seis dias
consecutivos no mar, voltam a terra para
descarregar o material e partem novamen-
te. “Os homens chegam, tomam um banho
quente em casa e voltam a partir”, explica.
Os maiores animais não chegam, sequer,
a ir à lota: “Já está encomendado, temos
contratos com o preço previamente defini-
do.” A pesca do atum, na Madeira, continua
a recorrer a uma técnica antiga, completa-
TIAGO MIRANDA

mente artesanal e mais amiga do ambiente,


por ser completamente seletiva. Chamam-
-lhe salto e vara. “Fazemos um engodo para
atrair o peixe, ele vem à superfície e depois
fazemo-lo saltar com a vara.” A explicação

Atum e cebola parece simples, mas imagine-se isto em


pleno alto mar, com atuns que chegam a
pesar várias dezenas de quilos, quando não
mais. Não é para todos. E também não é
Tempo de preparação 20 minutos | Tempo de confeção 30 minutos para o mestre Jacinto, que ele já não vai ao
mar faz tempo. Além de ser armador, e res-
peitado, tornou-se, entretanto, presidente
da Coopescamadeira — Cooperativa de
INGREDIENTES Cortar o atum em nacos de 120 g cozinhar, adicionar o açúcar e Pescadores do Arquipélago da Madeira. A
500 g de lombo de atum / 4 cebolas cada. Temperar de sal e pimenta. deixar caramelizar um pouco. sua grande luta agora é por dar melhores
/ 3 dentes de alho / 1 molho pequeno Numa frigideira antiaderente Refrescar com o vinho branco e condições de trabalho aos homens do mar.
de salsa / 6 colheres de sopa de azeite aquecer bem o azeite e saltear deixar evaporar o álcool. Deixar
/ 2 colheres de sopa de vinho branco os nacos de um lado e do outro cozinhar até a cebola ‘compotar’
/ 1 colher de sopa de açúcar / 1 colher PROJECTO MATÉRIA
para que fiquem com uma ligeiramente. Temperar de sal e
de café de sal / 1/3 de colher de café É um projeto sem fins lucrativos, desenvolvido
de pimenta preta / 1 folha de louro cor dourada. Retirar e deixar pimenta. Retirar o preparado do
pelo chefe João Rodrigues, que pretende
/ Alcaparras q.b. / Vinagre de vinho tinto descansar. Cortar as cebolas em lume, juntar salsa picada. Juntar
promover os produtores nacionais com boas
(opcional) meias luas e, logo de seguida, as alcaparras e um pouco de práticas agrícolas e produção animal em
refogar lentamente num tacho vinagre. respeito pela natureza e meio ambiente,
com azeite com a folha de louro. Verter este preparado sobre os enquanto elementos fundamentais da cultura
Juntar o alho picado e deixar nacos de atum e servir. b portuguesa. Ler mais em projectomateria.pt

E 78
R ESTAU RAN T ES
POR FORTUNATO DA CÂMARA

Porto, com sabor clientes para ‘fish and chips’ em mais


de meia dúzia de visitas. Filetes com ar-
roz e uma boa salada talvez fosse mais
ACEPIPE

e memória equilibrado. Com lugar marcado à se-


gunda-feira, o “Bacalhau à Zé do Pipo”
(€11) traz uma boa posta gadídea, alta
Con(pro)
gressos
e bem dessalgada, tirinhas de pimento
A caminho de um século de história, há um cantinho no topo e batatas chips ao redor. Comi-
Quem já foi ou assistiu
online a congressos de
a saborear, abrigado da avalancha turística da maternal e emocional nas “Tranches gastronomia sabe que
de vitela com puré” (€8), com nacos o modelo clássico (e
tenros estufados lentamente num mo- enfadonho) são chefes de
cozinha a apresentarem ou
lho rico em cenouras e tomate, tritu-
apenas a finalizarem pratos
rado e sedoso, onde os castelinhos de na frente da assistência,
puré vão lindamente banhar-se a cada com um vídeo de apoio
garfada. Excelente o “Anho assado no a explicar o trabalho que
forno à moda do Marco” (€11/€21), desenvolvem. Desde 2021
prato estrela dos sábados, esgota com que o Congresso dos Cozi-
facilidade, pela qualidade da carne e nheiros tem uma “Conexão
tempero suave com batatinhas rijadas Africana” trazendo um lado
pouco valorizado da nossa
e assadas no tabuleiro de barro, grelos
cultura gastronómica, põe
salteados, e um arroz saboroso com o o foco sob a saúde mental
caldinho ovino. dos profissionais do sector,
Muito boas as “Tripas à moda do
RUI DUARTE SILVA

além de acrescentar
Porto” (€8), servidas às quintas-feiras e programação cultural afri-
sábados, com os três tipos de folhos bo- cana. Está de parabéns a
vinos, impecavelmente limpos e arran- organização, pela visão em
jados, bem perfumadas de cominhos, envolver chefes de cozinha
africanos e ao incluir temas
com rodelinhas de chouriço de carne e
sensíveis. Só com diversi-

A
Invicta conquista, mas também começou a fazer em 1928. Um balcão- de sangue, num tachinho generoso. À dade e respeito haverá algo
se deixa largamente conquis- zinho com petiscos e copos de vinho. parte, o arroz seco e soltinho, da praxe. diferente no futuro, e uma
tar por hordas de turistas que Tabiques e pipas, e a família gerente A carta de vinhos é residual e tem história mais completa da
já não conseguem cingir-se a um cen- a viver por cima do negócio. Em 1997 apenas as referências básicas e para gastronomia lusa.
tro de interesse específico na cidade. chegaram uns irmãos do Marco de Ca- acompanhar uma refeição, a preços mó- Este fim de semana em
O movimento e rejuvenescimento da naveses e ficaram com a casa para lhe dicos, como é o tom geral da casa. O ser- Menorca, que este ano é
atividade comercial tornou-se endo- darem a feição de restauração. Saíram viço é à moda antiga no melhor senti- região europeia de gastro-
nomia, há o 1º Congresso
gâmico, com lojas, restaurantes e pe- as pipas, ficaram à vista as belíssimas do. Dos anfitriões, a irmã na cozinha,
de Jornalistas e Escritores
quenos negócios alimentares a surgi- paredes de pedra que fazem desta sala o irmão na sala com o restante staff, a Gastronómicos. “A crítica
rem no prolongamento das zonas mais um abrigo aconchegante. conhecerem os clientes pelo nome. A gastronómica, o fenómeno
movimentadas do centro portuense. A A mesa abre sempre com um ces- ajudarem os seniores a descerem os de- dos influenciadores e das
recente reabertura do histórico Merca- tinho de broa e um papo seco, estilo graus, e a receberem bem os passantes. redes sociais, a falta de
do do Bolhão é mais uma força impul- ‘bijou’, e a ementa é de casa familiar, Na doçaria também não há amargos de independência associada a
sionadora para manter vivo o cada vez com alguns pratos fixos e algumas es- boca, pois uma improvável “Sericaia” grupos de media e patroci-
nadores”, o papel pioneiro
mais ativo Porto turístico. Entre a de- pecialidades a dias certos. As entradas (€3) surge esponjosa, húmida e macia,
das mulheres como “escri-
coração exuberante ou sofisticada de são escassas e à base de enchidos, com com a ameixa em bela calda, generoso e toras e jornalistas gastro-
cada espaço, os menus cosmopolitas o “Pratinho de presunto” (€4,50) a bem cremoso o belíssimo “Leite-creme” nómicas”, ou “uma visão
ou de autor que se oferecem aos mi- destacar-se pelo corte fino e sal equili- (€3,50), sem excessos farináceos, e a de- de futuro do jornalismo
lhares de clientes diários que exploram brado, numa relação qualidade-felici- liciosa “Tarte de amêndoa” (€3) com um gastronómico” são alguns
cada morada, todas as formas de atrair dade-preço bem ajustada. Há sempre creme amendoado a servir de base à rica dos temas. Os oradores são
são possíveis. sopa, mas o forte são os pratos. É um cobertura do fruto caramelizado no topo. críticos e jornalistas espa-
Só quem sabe é que, mal saído da restaurante do dia a dia, ou de almoço Entrar aqui é uma viagem delicio- nhóis e franceses. Numa
das vezes que os jornalistas
Praça Carlos Alberto, segue na zona descontraído em família. sa e generosa pela boa cozinha e ser-
foram chamados a refletir,
pedonal da Rua de Cedofeita, vira à Nos pratos fixos, os “Filetes de pes- viço familiar de um Porto que não se a iniciativa foi... do chefe
esquerda numa circunspecta travessa cada dourados com arroz de ervilhas” deve perder. A Adega do Carregal está Ferran Adriá!? Congressos
para entrar na Adega do Carregal e des- (€8,50/€15) são de pescado de calibre a completar um quarto de século, com com progressos, portanto,
cer uns quantos degraus. Tal como se médio, sendo as postas de altura média, discrição e a servir os seus clientes de e a seguir com atenção.
albardadas em fritura enxuta, de lascas todos os dias com qualidade e a preços
brancas, húmidas e suculentas no in- que quase parecem do século passado.
terior. O arroz pode ser de ervilhas ou Isto deve ser acarinhado e enaltecido. b
ADEGA DO CARREGAL outro, mas dispensava-se a redundân-
Travessa do Carregal, 102 — Porto cia de trazerem batatas fritas na traves- Desde 1976, a crítica gastronómica
Telefone: 222 081 200 sa. Além de um ou outro turista asiáti- do Expresso é feita a partir de visitas
Encerra ao domingo. co, deslumbrado com a qualidade e o anónimas, sendo pagas pelo jornal
preço propostos, não se vislumbraram todas as refeições e deslocações

E 79
VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS

O charme
da velha
quinta

GETTY IMAGES
Assim até dá gosto

V
isitei há uma semana a Quinta proprietários, eram famosos, desde os anos e a casa de família em Avintes — não é de es-
d’Aguieira. Está incluída na Bairrada 20 e 30 do século passado. Sem recuar tanto tranhar o que aqui aconteceu: o interior foi
mas, provavelmente, não por mérito no tempo, recordo-me que nos anos 70 e 80 minuciosamente recuperado mas com a in-
mas por outras razões (políticas?, pessoais?), era normal encontrar estes vinhos no merca- tenção, concretizada, de manter o ‘espírito
não se sabe bem. O facto de ter pertencido ao do e na restauração. Eu próprio, então jovem do lugar’; tudo tem o ar antigo que é suposto
Conde de Águeda poderá ter tido alguma in- entusiasta sem formação ou ‘escola’, recor- mas com o conforto que nos levaria a pensar
fluência. A verdade é que, quando, ainda no do-me de ter a marca em conta como sendo qualquer coisa do género: passavam-se aqui
séc. XIX, António Augusto de Aguiar dese- das mais sofisticadas (e caras) que eu conse- umas belas férias! Em casa e nos jardins. Di-
nhou o mapa a que chamou o Paiz Vinhatei- guia comprar. Na minha coleção de rótulos nheiro e bom gosto nem sempre andam jun-
ro da Bairrada, a região terminava imedia- constam, divididos em Colheita e Garrafeira, tos, mas às vezes andam juntos e até casam...!
tamente acima de Sangalhos, em Oliveira os tintos dos anos 1959, 65, 66, 70, 74 e 77. A Na hora, após inesperado trambolhão na cave
do Bairro, povoação vizinha. Considerava-se graduação vinha impressa no rótulo e em to- escura que me deixou a coxear e pulso dorido,
que, sendo a casta emblemática a Baga, em dos era 11,5%; em alguns deles vinha a indi- provámos um desses tintos antigos, eventual-
tintos, o norte da região já não produzia vi- cação Produit et Mis en Bouteilles en Domai- mente de 65 (rótulo em muito mau estado)
nhos de embarque (os melhores), mas sim ne e Estate Produced and Bottled. Nem mais! que deu um prazer enorme. Todo ele em de-
vinhos de consumo e, mesmo estes, estavam Em todos e em letras bem visíveis: Vinho Ve- licadeza, com grande frescura ácida, leve, fino
organizados em várias classes. Quanto mais lho. Longe ainda estavam os tempos em que e cheio de caráter. Um tinto e tanto. Tive sorte:
nos afastamos do centro da região, dizia A. os consumidores desataram numa correria a não há bons vinhos velhos, há boas garrafas
A. Aguiar, mais variações se encontram em beber vinhos novos, com muito álcool e muita de vinhos velhos! Naquele ambiente de velho
termos de solos e, consequentemente, de vi- madeira. A quinta teve os seus sobressaltos a solar onde se sente o peso da História, este vi-
nhos. Ficamos então a saber que a Quinta seguir à revolução e, depois de várias vicissi- nho, e provavelmente nenhum outro, se ade-
d’Aguieira lá ficou inserida na região, quan- tudes, acabou comprada pela família Guedes, quaria melhor. Há dias assim. Agora que aca-
do foi feita a demarcação em 1979. Os seus vi- da Aveleda. Com o bom gosto que se lhes re- bei de escrever vou voltar a pôr a ligadura no
nhos, provavelmente associados aos ilustres conhece — basta visitar a quinta em Penafiel pulso, qu’isto ainda vai demorar a passar... b
(OS PREÇOS FORAM INDICADOS PELOS PRODUTORES)

Quinta de Monforte Altitude by Duorum Maçanita irmãos e


branco 2021 tinto 2020 enólogos tinto 2020
Região: Vinho Verde (Penafiel) Região: Douro Região: Douro
Produtor: Daniel Rocha Produtor: Duorum Vinhos Produtor: Maçanita Vinhos
Casta: Loureiro Castas: Touriga Nacional, Castas: Touriga Nacional, Sousão e
Enologia: Francisco Gonçalves Touriga Francesa e Tinta Roriz 25% mistura de castas na vinha
PVP: €11 Enologia: João Maria Portugal Ramos Enologia: Joana e António Maçanita
Quinta de 100 ha com 40 ha de vinha, PVP: €8 PVP: €11,85
muita dela em socalcos como no Douro. Uvas das cotas mais altas da Quinta de Castelo As uvas têm origem no Cima Corgo, o
Plantações de 2014. O portefólio inclui Melhor (Douro Superior). Mais leve (quer o coração da região. Fermenta e estagia
outros vinhos. 3000 garrafas de Loureiro. vinho quer a garrafa) e mais fresco. Estágio em em inox. 15.000 garrafas produzidas.
Dica: Citrino na cor, muito verde inox. Só disponível em garrafeiras e restauração. Contrarrótulo quase ilegível.
no aroma (louro e limão), excelente Dica: Muito atrativo no aroma, frutos vermelhos Dica: Clássicos aromas do Douro, com
frescura de boca. Equilibrado muito vivos, sem máscara. Boa harmonia abundantes notas vegetais secas
e intensamente gastronómico. na boca, elegante, cheio de fruta. secundadas pela fruta. Taninos
Boa aposta. Absolutamente consensual. polidos, médio corpo. A beber jovem.

E 80
as nossas recomendações Saiba mais sobre estas e outras sugestões em
boacamaboamesa.expresso.pt

Beiras Alojamentos
Açafrão Pena D’Água Boutique
Rua de São Francisco Álvares, Hotel & Vilas
Covilhã. Tel. 275 334 168 Rua de São Francisco, 25, Covilhã.
Prove o “Ceviche de truta”, o “Con- Tel. 275 334 168
sommé de vitela, massa folhada,
caldo de vinagre, açafrão e salsa”, o
“Folhado de perdiz com castanhas
e Porto” e ainda a “Rabanada de
bolo da festa de Tortosendo”.
Preço médio €30.

Abrigo da Montanha
Rua do Comércio, 46, Sabugueiro. No restauro do edifício do século
Tel. 238 315 329 XIX percebe-se o cuidado aos
pormenores na idealização dos
espaços. Acrescentou valências
como o restaurante Açafrão, de
alta gastronomia, com enfoque
nos produtos locais, e um maior
número de quartos, perfazendo
agora 33, entre os quais oito villas
e uma penthouse. A partir de €115.
Sugerem-se o “Polvo despen-
teado em cama de lagareiro”, o 50 ANOS, 50 RESTAURANTES Casas da Lapa
“Borrego beirão DOP de pastagem 1983: Dos pratinhos de arroz de cabidela — Nature & Spa Hotel
de altitude, esmagada de batata” e a instituição gastronómica de Viana do Castelo Rua da Eira da Costa, 10, Lapa
uma original sobremesa, o “Leite- Confiando na qualidade dos produtos, nas receitas regionais antigas e nas cozinheiras da família, António dos Pinheiros. Tel. 911 851 895
-creme queimado com Encru- Camelo arrisca na abertura de um restaurante. Hoje, o Camelo é uma instituição gastronómica do Minho,
zado e bola de gelado de Touriga com um segundo espaço na Apúlia. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, viajamos
Nacional”. Preço médio €30. no tempo para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal.

O Príncipe do Alva
Rua Desembargador Abel Pereira Casa da Ínsua Oxalá Quatro Estações
do Vale, Côja. Tel. 935 203 913 Penalva do Castelo. Rua Família Colares Pinto, 1695, Avenida 5 de Outubro, 23,
Comece com o “Croquete serra- Tel. 232 640 110 Ovar. Tel. 256 591 371 Anadia. Tel. 231 504 396
no” ou “Croquete de cogumelos” Orgulha-se de levar à mesa, As recomendações são a “Feijoada Comece com uma “Bolinha de Nos 15 quartos destacam-se
como entrada. Depois, a “Feijoada sempre que possível, propostas de marisco”, a “Sinfonia marítima” e alheira” e espreite as opções diá- pormenores como as claraboias,
de chocos com gambas e chouri- baseadas na filosofia “km zero”, ga- a famosa “Maionese de camarão”. rias, onde podem constar “Filetes os terraços, as namoradeiras e um
ço”, “Bacalhau da Ti Emília”, “Bucho rantindo a frescura dos alimentos A carne também tem o seu espa- de pescada com arroz malandrinho telescópio para ver melhor o céu
regional” ou “Pernil de cabrito com produzidos na quinta. Termine com ço para brilhar nesta casa, com os de tomate”. “Folhado de perdiz”, estrelado. Mergulhe na vizinha
arroz de grelos e batata assada”. um falso “Queijo da Serra”, de cho- “Miminhos à Oxalá”. “Magret de pato com risoto de Praia Fluvial do Souto da Lapa e
Preço médio €25. colate branco. Preço médio €30. Preço médio €35. cogumelos”. Preço médio €15. visite o museu. A partir de €155.

A BELEZA DO OUTONO NA Retiro do Castiço


DESLUMBRANTE SERRA DA ESTRELA Rua de São João,
Trancoso.
Destino para qualquer estação Tel. 919 188 129
do ano, a passagem do verão Uma taberna tradicional
como já existem poucas. Os
para o outono oferece paisa-
petiscos começam com enchidos
gens únicas na serra da Estrela.
e queijos da região, continuam nas
Reencontre-se com um desti- carnes grelhadas a preceito, “Ca-
no que se mantém em estado rapaus fritos”, “Pica-pau”, “Saladas
puro, a partir de um roteiro de de polvo e de orelha”, mas também
imersão na montanha, com famoso Queijo Serra da Estrela especialidades como o “Arroz de
novidades e surpresas. Terra DOP, que recentemente, ga- cabidela”, a “Desfeita de bacalhau”
de pastos e tradições, a região nhou um espaço de exposição e a “Feijoada de carne à Castiço”.
da Serra da Estrela dedica-se mesmo ao lado da Torre, que A lista de vinhos é rica em propos-
à pastorícia desde o princípio assinala o cume da montanha. tas nacionais. Preço médio €20.
dos tempos. Aqui, a ovelha Conheça ainda novos projetos
bordaleira, raça nacional de hoteleiros que recuperam edi- SELO DE QUALIDADE Em parceria com o Recheio, este
melhor aptidão leiteira, for- fícios e convidam a observar a símbolo é a garantia de que o restaurante em destaque utiliza
produtos das melhores origens e criteriosamente selecionados
nece a matéria-prima para o paisagem.

E 81
D ESI GN
POR GUTA MOURA GUEDES

A designer Sabine Marcelis


desenhou a instalação “Swivel”,
um dos Landmark Projects,
colocada em St Giles Square,
uma zona de transição
em Londres, perto da nova linha
de metro Elizabeth Line.
Feita em mármore, de cores
e texturas contrastantes,
criou um novo espaço
para repouso e convívio. R FOR REPAIR

Os 20 anos do London Duas imagens do projecto “R for


Repair”, apresentado no Victoria &
Albert Museum, parceiro já de

Design Festival longa data do LDF. Trata-se da


segunda edição de uma
exposição desenvolvida pelo
DesignSingapore Council, pelo
Os tempos que correm reforçam o papel do design National Design Centre (SG) e
pelo V&A, comissariada pelo
na área da sustentabilidade ambiental e social Hans Tan Studio e pelo Jane
Withers Studio, sobre o tema da

A
terrar em Londres um dia depois tão importantes com o Victoria & Albert sustentabilidade e da reutilização.
Também em pedra,
mas portuguesa, Henge foi do funeral da Rainha Isabel II não Museum, às activações dos vários Design
um dos Festival Commissions do foi a experiência mais entusias- District e a todo o programa paralelo que
LDF, desenhado pelos mante deste mês de Setembro que pas- se desenvolve nestes cerca de dez dias,
arquitectos Stanton Williams sou. A cidade estava ainda sob o senti- foram variados os motivos que levaram
em colaboração com os mento da perda daquela que foi uma das público de todo o mundo a Londres.
engenheiros Webb Yates e a figuras incontornáveis do século XX e do Os tempos que correm reforçam o pa-
empresa portuguesa LSI Stone. início deste século — mas não só. O im- pel do design na área da sustentabilidade
Colocado no centro pacto dos milhares de pessoas que inun- ambiental e social e são inúmeras as for-
de um dos centros financeiros daram a capital do Reino Unido ao nível mas de o demonstrar, como provaram a
de Londres, trouxe o tema da da mobilidade e da organização do espa- exposições e eventos em Londres, onde se
reunião e do uso dos materiais São vários os projectos
ço público foi enorme. E era ainda visível percebe também a energia das novas ge- apresentados durante o LDF
sustentáveis para os milhares
no dia 20, quando lá cheguei. rações relativamente a estes temas. Mes- com um carácter mais ligado
de pessoas que por ali passam.
Como muitos outros eventos que ti- mo focado numa visão mais exploratória ao quotidiano, na área do design
veram lugar em Londres nesta semana, sobre o design e o seu futuro, o LDF nun- de interiores. Aqui neste caso
o London Design Festival, que celebrou ca deixa de ter uma componente ligada o novo sofá, com materiais
os seus 20 anos de existência, adaptou- às marcas, aos editores e produtores, com sustentáveis, dos designers
-se à inevitável mudança que a morte da uma vertente assumidamente comercial. Raw Edges com a Cozmo,
rainha provocou, provando uma vez mais As cidades ganham com os grandes numa instalação no Brompton
o impecável profissionalismo e a fleuma eventos, já sabíamos. Mas acima de tudo Design District.
dos ingleses nestas situações. E aquele se esses eventos forem desenhados de
que continua a ser um dos mais impor- forma a não interferirem negativamente
tantes festivais de design do mundo foi, com o modo de vida de quem nelas tra-
também, um sucesso. balha quotidianamente. O LDF flui por
Into Sight, uma plataforma Sob a égide dos 20 anos, o progra- Londres com delicadeza e inteligência.
media onde a Sony Design ma teve vários momentos que se podem Reúne e convoca, investe na criatividade
explorou a dimensão destacar, num evento cuja penetração e nas indústrias culturais, celebra e par-
visual e sensorial, bem no tecido urbano da cidade é cada vez tilha, mas não se impõe nem desestabi-
como a compreensão e uso
maior. Desde a organização do Global liza a cidade em si.
do espaço partilhado através
Design Fórum, onde estiveram nomes Um bom exemplo de design em si
da luz, da cor e do som.
como Li Hu, fundador do estúdio Open mesmo. b
Architecture, ou o artista Thomas J Price,
até às Festival Commissions, aos Land- Guta Moura Guedes escreve de acordo
mark Projects, às parcerias com museus com a antiga ortografia

E 82
M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO

Dicas & Regras

Efeito pele
Aqui não há que ter cuidado
com as imitações, muito pelo contrário

P
orque a moda dita e, ao mesmo cores são luminosas, vibrantes e lus-
tempo, reflete mudanças na soci- trosas e, embora funcione bem em
edade, as peles animais têm, aos look total, o grande desafio é a combi-
longo dos anos, vindo a cair em desu- nação de materiais, quanto mais exu-
so. A evolução tecnológica permite e berante melhor. A palavra de ordem é
justifica a procura de alternativas arti- contraste! Bons exemplos: saia pencil
ficiais, com resultados absolutamente em napa brilhante com uma camisola
surpreendentes. Em particular, a imi- oversized em malha grossa; corpete em
tação do couro conheceu tal inovação pele artificial com umas calças cargo
que os designers se empolgam a dese- em ganga bastante descaídas; fato de
nhar novas silhuetas, a criar brilhos, e calças e blazer em cabedal com um
até efeitos molhados, com estas novas tank top em algodão desgastado. Si-
matérias-primas. Vestidos supercolan- lhuetas justas com silhuetas largas,

FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES


tes, tops assimétricos, gabardines ma- tecidos luxuosos e brilhantes com te-
jestosas, calças de inspiração motard e cidos opacos e naturais...
blazers oversized — todas peças criadas As combinações improváveis e fora
com materiais que passam perfeita- da caixa vão compor um look original,
mente por peles verdadeiras. com a grande vantagem de estarmos
Não é — como nunca foi — uma a proteger a natureza. Quem disse que
tendência para as mais recatadas. As não era possível ter tudo? b

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E 83
T ECN O LOGIA
POR HUGO SÉNECA

MultiGoogle
Diz a empresa que detém o Google que
há oito mil milhões de pesquisas men-
sais com a inserção de imagens através
do serviço Lens. E não será de admirar
que o número cresça
nos próximos meses.
A Alphabet anunciou
que o serviço Lens
do Google vai deixar
de ficar confinado ao
inglês para passar a
contemplar “multi-
pesquisas” que usam
imagens e palavras
em 70 idiomas, para
ajudar a refinar os
resultados apurados.
As multipesquisas
também deverão
passar a integrar uma

A realidade a quem trabalha funcionalidade que permite indicar


produtos e serviços nas imediações
com recurso a pesquisas que combinam
imagens e texto. Estas duas novidades
A Lenovo está apostada em fazer da realidade virtual das multipesquisas deverão estrear-se
nos próximos meses. Mas há mais ino-
uma ferramenta de formação vações que prometem mudar as rotinas

O
de quase todos os internautas deste
s óculos de realidade virtual servem para todo o virtuais imersivos, como pode garantir informação adicio- mundo: o Google vai passar a contar
com tópicos que permitem encaminhar
tipo de entretenimento, mas os ThinkReality RVX, nal em realidade aumentada, para apresentar sugestões,
para diferentes opções dentro de um
da Lenovo, têm por objetivo mudar a forma como instruções ou alertas virtuais sobre os objetos ou seres tema; e também deverá avançar nos
se trabalha — ou se aprende a trabalhar. Por poupança reais que vão sendo visionados. A Lenovo estima que a próximos tempos com novas funciona-
nas palavras os óculos da marca asiática são apresenta- realidade virtual quadruplica a velocidade da aprendiza- lidades que facilitam pesquisas através
dos como de realidade virtual, mas manda a verdade di- gem e garante 275% da maior confiança dos profissionais de perguntas escritas. As traduções de
zer que também disponibilizam tecnologia para realidade que a formação tradicional. Os novos óculos estão equipa- imagem para texto, que são espe-
aumentada (ou realidade mesclada) que permite projetar, dos com quatro câmaras que acompanham movimentos cialmente úteis para comunicar com
nas lentes, artefactos virtuais que acrescentam informação em seis eixos de movimentação e ainda mais duas de alta falantes de idiomas desconhecidos,
também deverão acelerar a ponto de
em tempo real às imagens reais que o utilizador vai per- resolução para a captação de imagens a cores. Também é
garantir resultados em 100 milisse-
cecionando a cada momento. possível uma conexão à internet para adicionar capacida- gundos. A apresentação de resultados
Com os novos óculos, a Lenovo conta disponibilizar ao de de computação, numa lógica de cloud computing. A Le- de pesquisas é outra das áreas que vai
segmento empresarial uma ferramenta que tanto pode ser novo conta estrear os ThinkReality RVX no início de 2023. sofrer reformulações, a fim de garantir
usada para formação e treino profissional com ambientes Só nessa altura se saberá o preço. b maior eficácia.

VÍDEOS A PEDIDO CUIDADO COM O ASTRO! SOMOS TODOS CAMPEÕES CINEMA NA MÃO
Make-a-Video pode ser o primeiro passo A Amazon já confirmou que está em vias de O lançamento de “FIFA 23” promete Para a Sony, chegou a hora de captar a
para quem quer fazer filmes e não tem fazer o lançamento alargado do robô disrupções nas rotinas familiares e até atenção dos aspirantes a cineastas com a
câmara ou ferramenta de edição. O projeto doméstico Astro, que tem vindo a ser festejos de adeptos que nunca conseguem câmara FX30 (modelo ILME-FX30).
da Meta usa inteligência artificial para gerar disponibilizado mediante convite. Ainda o campeonato da vida real: é um dos A nova câmara cinematográfica está apta
vídeos de acordo com as descrições antes desse lançamento, a gigante do clássicos dos videojogos que acaba de a filmar em ultraelevada resolução (4K)
textuais que os internautas vão inserindo. comércio eletrónico fez saber que vai chegar às lojas – e tem o atrativo adicional e formato Super 35, tirando partido
Não será a ferramenta mais indicada para disponibilizar uma atualização de software de ser o último título de FIFA que deverá ser do sensor retroiluminado de 20,1
produzir longas metragens, mas os pequenos que dá aos pequenos robôs a capacidade produzido pela Electronic Arts. Além de megapíxeis. Dispõe das tecnologias dual
vídeos revelados pela empresa que detém o para rondas de segurança por quartos e equipas de futebol feminino, destaque para base ISO (800/2500), e mais de 14
Facebook levam a crer que poderá ter algum portas, e captação e envio de imagens de o realismo prometido pelo aumento do pontos de latitude. Consegue fazer filmes
sucesso, quando estiver pronto para animais de estimação. Nos EUA, o robô tem número de capturas de movimentos. Preço: a 60 diagramas por segundo.
disponibilização ao público. sido comercializado a 1000 dólares. a partir de €69,99. Preço a rondar os €2300.

E 84
DIÁRIO DE UM
PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO

EDIÇÃO
LIMITADA
Daqui fala o morto
A Adega de Borba lançou a nova
colheita do Adega de Borba ‘Rótulo
Demorou a perceber que não era um “clone”

O
de Cortiça’ Grande Reserva 2014, título parece chocante, até macabro, mas irão ver que não é

SEJA RESPONSÁVEL. BEBA COM MODERAÇÃO.


uma edição limitada e premiada em completamente descabido, nem é a descrição de um filme de terror. O
concursos e revistas internacionais, nosso trabalho psicológico é lidar com os vivos, mas frequentemente
incluindo duas medalhas de ouro no temos um, ou mais, mortos na sala.
Canadá e em França. De cor granada Os processos de luto, que na minha opinião só devem ser acompanhados
com nuances vermelhas, este vinho algum tempo depois da morte, a não ser que a sintomatologia seja muito
apresenta uma boa intensidade grave, são dolorosos, mas o tempo ajuda-nos muito neste trabalho. Pode-se
aromática com destaque a frutos do dizer, com as devidas reservas, que são benignos.
bosque, chocolate, tabaco e tosta. Os mortos deixam-nos mais ou menos saudades. Têm a extraordinária
É ideal para acompanhar pratos capacidade de nos omitir as suas características menos boas, como se nos
elaborados de carne, como porco protegessem de “maus olhados”. São lembrados, enquanto por cá anda quem
preto e vitela alentejana. deles foi próximo, mas passado uns tempos deixam de influenciar a nossa vida
adegaborba.pt de uma forma ativa, ficam as saudades e as recordações.
Estes são os mortos bons. Mas na vida como na morte há bons e maus.
EXPEDIÇÃO Não se trata de acreditar que há vida além da partida, como agora se diz para
evitar a palavra morte. Nada vem do lado de lá, tudo o que chega ficou por cá,
ÉPICA mais ou menos latente ou expresso.
A palavra lealdade é bonita e mostra um sentimento nobre. Mas deve ser
Esta estação outono-inverno,
conjugada com outra bem importante: a diferenciação. Podemos ser muito
a Sanjo parte numa expedição
próximos de alguém e de uma lealdade inquebrantável, mas há uma diferença
única pelos glaciares, explorando
significativa entre isto e o seguimento cego do outro.
a paisagem, em busca do
As crianças acreditam, sem reservas, nos seus pais. Mesmo quando não
desconhecido. "The Epic
o fazem, fingem. Só mais tarde, a partir da juventude, são capazes de se
Expedition" é o nome da nova
distanciarem, até, por vezes, de uma forma brutal.
coleção da marca portuguesa, Na vida adulta estes movimentos de colagem ou de rejeição são feitos de
que explora os sonhos, a fuga à sentimentos, mas também de muitas falsas memórias, que preenchem as
rotina e pretende tornar a fantasia lacunas, que ajudam a justificar emoções tão intensas.
realidade. A união do conforto e Quantas vezes ouvimos dizer: o meu pai ou a minha mãe fez, ou não
praticidade do sportswear funde-se fez, isto e aquilo. Se não fosse ele ou ela, eu era um desgraçadinho... O meu
com detalhes únicos do universo marido, a minha mulher aturaram-me coisas que mais ninguém o faz.
da moda numa simbiose perfeita. Nas ruturas conjugais tudo isto se pode agravar. A capacidade de alguns
As cores neutras e contrastantes, adultos pressionarem e influenciarem as atitudes dos filhos e do ex-cônjuge
com alguns apontamentos de cor, quando se sentem rejeitados, é muito grande. O sofrimento transforma-se em
estão presentes em toda a coleção setas de grande precisão, de quem conhece bem o alvo. A situação agrava-
desta temporada e são perfeitas se se quando da parte do outro há uma atitude de reserva, recusando-se a
para combinar com qualquer look. entrar num jogo de passa culpas e a revelar factos que iriam pôr em causa a
sanjo.pt santificação que é transmitida. Mas, ao contrário do que se possa pensar, há
cada vez mais ética nas separações.
Se durante a vida esta complexidade pode ser gerível, com bom senso e
afeto e, se possível, algumas conversas cuidadosas, mas firmes, com a morte
tudo se pode complicar.
JAZZ Pode ficar a pairar uma espécie de nuvem negra, ameaçadora, sempre
NO SEIXAL pronta a disparar raios e coriscos, em alvos mais ou menos fáceis. É como que,
quem cá fica, seja intérprete de desejos malévolos daquele que sempre quis
O Festival Internacional SeixalJazz inundações de lama e tsunamis, que destroem famílias.
2022, promovido pela Câmara Passei muitas horas a trabalhar com um casal a má e destrutiva relação
Municipal do Seixal, está de que o pai dela tinha com o genro, tentando sempre destruir o casal. Com a
regresso entre 13 e 22 de sua morte, a filha “incorporou” este desejo ao invocar, sistematicamente, os
outubro, de novo com diferentes argumentos do pai para atacar o marido. Demorou muito tempo a perceber
estilos e linguagens do jazz. Os que não era um “clone”, conseguiu diferenciar-se.
espetáculos vão decorrer no palco A desconstrução da agressividade e do mito de um morto é um trabalho
principal no Auditório Municipal lento, difícil, sem garantia de resultados positivos. É trabalhar em cima de
do Fórum Cultural do Seixal e falsas convicções, lealdades fortíssimas, sentimentos de “traição” a quem
no SeixalJazz Clube, instalado já não se pode defender, apesar de não ser atacado, tão-só ser posto no seu
na Sociedade Filarmónica devido lugar.
Democrática Timbre Seixalense. Nunca se está taco a taco com um morto. b
Os bilhetes estão à venda na rede josemanuelgameiro@sapo.pt
Ticketline e nas bilheteiras do
Fórum Cultural do Seixal.
cm-seixal.pt
PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ

Sudoku Fácil Palavras cruzadas nº 2435

4 2 1
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
3 9 6
5 1
2 1 3 6 8 9
2
6 8 5 7 3 1
3 4 9 1 2 8 3
7
4
8 9 6
5 2 1 5

Sudoku Médio 6
8 1 5
7
4 3 7
9 2 7 8
8 4 6
9
6 7
5 2 3 10
5 4 8
3 2 7 11
6 3 1
Horizontais Verticais Soluções nº 2434
1. Registam tremores 2. Faz como 1. Artista popular itinerante HORIZONTAIS
Soluções o namorado. Raptada por Zeus 2. São os membros da Academia 1. progressivo 2. Lepanto;
Fácil Médio disfarçado de touro 3. Apelido do autor Francesa 3. Passava para cis 3. eles; natas
7 3 9 4 1 2 6 5 8 1 3 5 6 8 9 4 2 7
de “Amadis de Gaula”. No meio das um plano mais alto. Nos dos pés para 4. bolota; orla 5. ig; ler;
6 5 4 9 3 8 2 7 1 4 7 2 5 3 1 8 9 6
panelas 4. Inseparável de Isolda. Como não fazer barulho 4. As de Bragança loup 6. silêncio; me
2 8 1 5 7 6 3 4 9 8 9 6 2 4 7 5 3 1
8 2 6 1 9 4 5 3 7 7 1 8 4 9 3 2 6 5 começam as histórias da Carochinha uniram-se para fechar casas 7. conota; Sabá 8. nri
9. tenacidade 10. Otava;
1 4 3 7 2 5 8 9 6 9 2 3 7 5 6 1 8 4 5. Um extremo de Itália. Acompanha de alterne. A primeira luz da
ace 11. ooo; sósia
5 9 7 8 6 3 4 1 2 6 5 4 8 1 2 9 7 3 datas muito antigas. Ligam 6. A bruxa madrugada 5. Têm fama de usar as
9 6 2 3 5 1 7 8 4 3 8 7 1 2 4 6 5 9
do Oeste no Feiticeiro de Oz. Os mãos a falar 6. A x é pós-baby boom VERTICAIS
4 7 5 6 8 9 1 2 3 5 6 1 9 7 8 3 4 2
muçulmanos adoram-no. Na Baía dos 7. Cidade da Normandia. Comida 1. Plebiscitos 2. relógio;
3 1 8 2 4 7 9 6 5 2 4 9 3 6 5 7 1 8
Anjos 7. Segundo Fernando Pessoa mexicana 8. Falta ao asmático. ET 3. Opel; ln; não
Jesus Cristo não a tinha 8. Quem Narração breve de um fato cómico 4. gasóleo; avô 5. rn;
o faz é amigo ao contrário. Comeu 9. Ciência dos sons. Romanos tentação 6. etnarca
o fruto proibido 9. Chapéu asiático 10. Foi uma militar especial que, 7. soa; idas 8. tolos; aço
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2433 9. Ícaro; Andes
10. Provocado por tristeza segundo Putin, levou a Rússia a invadir
“O Segredo do nº 9”, de Claire Douglas, para 10. vislumbre 11. os;
ou resultado de emoção forte. a Ucrânia 11. Salsichão italiano.
João Leite, de Cernache; “Matriz”, de Lauren Groff, apeai; aa
para Augusto Santos, de Leiria; “A Bíblia das Inflama o ouvido 11. Fibra rígida Lua de noivos
Crianças”, de Lydia Millet, para Maria Teresa
Portugal, de Castelo Branco. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt

E 87
DEIXAR O MUNDO MELHOR

14 SEMANAS PARA OS 50 ANOS DO EXPRESSO

RICARDO
COSTA
“NÃO FALO
DE POLÍTICA
COM O MEU

ANA BAIÃO
IRMÃO”
Nasceu em Lisboa e estudou estava rodeado por alguns dos jornalistas que mais Gin” maravilhosos e divertidos. Achei que o Mário-
em Lisboa? admirava. Trabalhei com o José António Saraiva e com Henrique Leiria era uma espécie de Woody Allen
Nasci em Lisboa e fiz os primeiros o José António Lima, que foram pessoas importantes avant la lettre. Deu-me o “Memorial do Convento”
anos na Escola da Torre, onde também na minha formação inicial. Eu e o Reinaldo Serrano quando o livro saiu, eu na altura não sabia quem era o
andaram os meus três filhos mais velhos fomos os primeiros estagiários do Expresso a quem foi Saramago, e fiquei surpreendido porque nunca tinha
e o mais novo anda agora. Em 1974, permitido ir às reuniões da Política à segunda-feira. lido nada assim. Há coisas que uma pessoa só mais
OUÇA O PODCAST quando entrei, era uma escola muito tarde percebe a sorte que teve. Pude cruzar-me com
EM EXPRESSO.PT vanguardista, da Ana Maria Vieira de Começou no Expresso, foi para a SIC, no início desta amigos do meu pai como o José Lima de Freitas, o
Almeida e da Zoé, que era casada há 30 anos, regressou ao Expresso uns anos depois David Mourão-Ferreira, o João Gaspar Simões, que era
com o [médico e pedagogo] João dos Santos. Depois fui e voltou à SIC. Quando põe o Expresso num prato da mais velho, e eu não tinha a noção de que ele era — e
para a Escola Fernão Lopes, e a seguir para o Liceu Passos balança e a SIC no outro, de qual gosta mais? talvez seja — o crítico literário mais importante do
Manuel. O percurso clássico do Bairro Alto, tal como o meu É complicado... gosto dos dois. A SIC, sobretudo na século XX. Era muito miúdo, mas lembro-me dessas
irmão. Gostei muito do Passos Manuel, a professora Anaíza SIC Notícias, há muita tensão vertical. Temos temas noites, desse meio, e eu andava por ali porque era filho,
Peres Coelho, que era de História marcou-me, tal como em que pegamos às 8h para os largar à meia-noite. e convivi com muita gente que só mais tarde percebi a
um professor de Filosofia de quem não consigo recordar o No Expresso, [antigamente] as coisas eram mais importância e o relevo cultural que tinham.
nome. A seguir, fui para Comunicação Social na Faculdade horizontais e as crises e acontecimentos cruzavam
de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de a semana. Mas o Expresso transformou-se por Como é o seu relacionamento com o
Lisboa, mas não acabei o curso. causa do online numa coisa diferente, e acho que primeiro-ministro António Costa, que é seu irmão?
esta transformação foi o desafio mais interessante Como se entendem sem falar de política?
Porque escolheu esse curso? do [segundo] período em que lá estive. Regressei Não falo de política com o meu irmão, nem de nada
A ideia de ser jornalista surgiu pelos meus 12 ou 13 quando o jornal começou a vender abaixo dos 100 que tenha a ver com a área da comunicação. Quando
anos. O meu pai lia muitos jornais: o “Diário de Lisboa” mil exemplares, muita gente estava em estado de ele vem à SIC, nunca estou para o receber. Mas
diariamente, mas também lia o Expresso e o “Jornal” choque, era preciso começar a fazer o que agora convivemos, ainda jantámos há duas semanas quando
e, mais tarde, quando eu já estava na Faculdade, pomposamente se chama transformação digital. esteve cá a nossa prima direita de Goa. Em ambiente
começou a ler “O Independente”, que era um projeto Foi um período muito interessante para se estar no familiar, ele é a mesma pessoa [de sempre], não noto
muito diferente do ponto de vista político. Vivi sempre jornal. Agora, a televisão está a passar pelos mesmos nenhuma mudança. E eu sou muito independente, e
rodeado de jornais, gostava de jornais e revistas, nas problemas que os jornais viveram há uns anos. Neste sempre gostei de ver a política de fora. O meu pai era
casas da família que frequentava havia jornais. Houve momento, estou muito mais concentrado na SIC, militante do PCP, tive um tio que foi quase fundador
uma altura em que achei que poderia ser jornalista ou mas acompanho o Expresso, sobretudo, as contas, as do PSD, e o meu irmão está no PS desde os 14 anos.
diplomata, porque tinha mais interesse pela política vendas, e a questão digital. É a minha tarefa. Ele tem mais sete anos do que eu, desde muito miúdo
Internacional. Parece estranho, mas quando fui estagiar que assisto a discussões épicas e grandes conversas
para o Expresso, queria ir para o Internacional, e isso O seu pai — o escritor e poeta Orlando da Costa — sobre política. b
só não aconteceu porque, quando lá cheguei, numa teve muita influência na sua formação cultural?
segunda de manhã, para ser entrevistado, pelo Carlos Sim, teve. O meu pai viveu em Goa até vir estudar
Santos Pereira, perguntei por ele e responderam-me Histórico-Filosóficas para Portugal, e isso contribuiu
— “ele não está cá, foi trabalhar para o ‘Público’”. Fiquei para que falasse e escrevesse muito bem em inglês, o
completamente perdido. O José António Lima disse que era raro na geração dele, que era muito francófona
que eu iria estagiar para a Política, e fui. Acabei a fazer e muito marcada pela literatura francesa. O meu pai
jornalismo político, embora goste de Internacional, e tinha uma grande biblioteca, e ter crescido numa
sou viciado em eleições, um tema de que gosto muito. casa onde existia uma grande biblioteca e um pai
sempre a ler marcou-me muito. O meu pai não me POR
Porque não terminou o curso de Comunicação Social? catequizava, não me dizia “tens de ler isto ou ler FRANCISCO
Porque comecei a estagiar no Expresso quando estava aquilo”. Deu-me livros do Mário-Henrique Leiria, de PINTO
no terceiro ano. Correu bem, tinha muito trabalho, e quem foi muito amigo, e eu achei os “Novos Contos do BALSEMÃO

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APOCALIPSE WHY?

S
ESTOU CONVENCIDO DE QUE MORRER É BASTANTE DESAGRADÁVEL.
MAS NÃO NOS DAREM UMA JUSTIFICAÇÃO ATENDÍVEL PARECE-ME AINDA MAIS PERTURBADOR

empre que, nos filmes, um assassino mata missões impossíveis e arranjou mesmo tempo para morrer, demonstrando
alguém sem lhe explicar claramente porquê, que, quando a gente se organiza, acaba por haver tempo para tudo. Ora,
sofro pela vítima. Estou convencido de que pouco mais de um ano depois da morte do 007, a Rússia invadiu a Ucrânia
morrer é bastante desagradável, não me e agora a Coreia do Norte testa mísseis em território japonês. Isto não era
interpretem mal. Mas não nos darem uma assim enquanto James Bond estava vivo. Tenho estado atento às análises
justificação atendível parece-me ainda mais dos majores-generais Agostinho Costa e Carlos Branco e, até agora,
perturbador. Por que razão estou a levar estas nenhum chamou a atenção para este facto. É certo que eu fui dado como
dezassete facadas? Dormi acidentalmente inapto para o serviço militar e eles são majores-generais, mas fica muito
com a mulher do assassino? Ele não aprecia claro qual de nós é o mais perspicaz nesta questão. Se a CNN me convidar,
pessoas cujo nome começa por r? Dormi terei todo o gosto em aprofundar o tema. b
propositadamente com a mulher do assassino? Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia
Haverá um motivo para ser assassinado e julgo
que morreria mais descansado se soubesse qual é. Essa é a situação em
que nos encontramos quanto à Coreia do Norte. Se o mundo acabar na
sequência de um conflito nuclear provocado pela invasão da Ucrânia,
eu percebo. Morro sabendo que o fim se deve à ambição de Putin de
conquistar território, e os militantes do PCP morrem sabendo que o fim
se deve aos impulsos imperialistas da NATO, e tal. Sempre é um consolo.
Mas se o mundo acabar por causa dos mísseis balísticos da Coreia do
Norte que têm sobrevoado o Japão, eu serei como aquelas vítimas que
morrem sem saber porquê. Uma coisa é invadir outro país ou matar um
arquiduque, outra é fazer umas habilidades fanfarronas sobre o espaço
aéreo de uma potência estrangeira. Não se percebe o objectivo.
Como sempre, há especialistas que tentam explicar o fenómeno, mas
parece-me que sem grande sucesso. Sobretudo, todos esquecem um
pormenor geopolítico que é evidentemente fundamental: os conflitos / RICARDO
internacionais agravaram-se muitíssimo desde que (spoiler alert!) o
007 morreu. Se bem se lembram, em 2021, no filme “Sem Tempo para
ARAÚJO
Morrer”, James Bond exibiu mais uma vez a sua capacidade para cumprir PEREIRA

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Diretor de Arte: Marco Grieco

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24h Abuso de menores Função Pública


perde até 8,8%
Cabaz alimentar
Só um terço dos em dois anos
aumentou 15%
O custo de um cabaz básico
de bens alimentares subiu condenados cumpre Governo tenta tirar do, o Governo tenta conseguir

pena de prisão
15% entre outubro de 2021 e peso ao Orçamento um acordo na concertação e
agosto deste ano, com alguns e empurra recuperação apresentou já propostas para
produtos a dispararem 20%, de rendimentos para o aumento do salário míni-
segundo as estimativas do fim da legislatura mo de €705 para €760, bem
Banco de Portugal. Cereais e como a atualização dos esca-
carne estão entre os produtos Apenas uma pequena parte lões do IRS tendo por base au-
com maiores subidas. dos funcionários públicos não mentos salariais na ordem dos
vai ver o seu salário encolher 5,1% e ainda uma majoração
em termos reais até final do no IRC em 50% dos custos das
TAP recua e já > Maioria dos réus fica em liberdade com pena próximo ano com a propos- empresas com valorização sa-
não adquire BMW
A Comissão Executiva da suspensa > Diversidade de crimes sexuais explica ta de aumentos apresentada
pelo Governo. Professores,
larial. Finalmente, prevê criar
um regime de incentivos ao
TAP informou que vai procu-
rar manter a atual frota auto-
discrepância > Antigo diretor de natação de clubes médicos e quadros superiores
estão entre os mais afetados.
investimento e avança para a
redução progressiva das tribu-
móvel pelo período máximo lisboetas condenado a 5 anos com pena suspensa P14 Antes de o OE ser apresenta- tações autónomas. E8eP6
de um ano, por compreender
o “sentimento geral dos por-
tugueses”, após polémica so-
bre a encomenda de 50 BMW
para as chefias. ÚLTIMA
FALTA DE CASAS PROVOCA PRÁTICAS ILEGAIS NOS ARRENDAMENTOS E18

Crédito à habitação
sem comissões
Os proprietários poderão Algarve Francisca Van Dunem Ódio a Lula
amortizar crédito à habita-
ção em 2023 sem pagar co- só tem “UM MINISTRO e fé explicam
missões à banca. A revelação
foi feita pelo secretário de Es- água para NÃO GANHA resultado de
tado do Tesouro, que adian-
tou tratar-se de uma medida um ano PARA O Bolsonaro
para os empréstimos com
taxa variável. QUE FAZ”
Integram esta edição semanal, além deste
corpo principal, os seguintes cadernos:
O alerta é do presidente Porque resiste
ECONOMIA, REVISTA E e Guia ‘SER’ Nº 4 da Comunidade o bolsonarismo?
Intermunicipal. Reportagem no Rio
Abastecimento público de Janeiro, onde Lula
pode ficar em causa P21 foi derrotado P26

Peça na sua
farmácia
Porque não há Governo quer
golos de livre empresas
direto na liga
portuguesa P32
a facilitar
mobilidade
Como Está em estudo criação
a mudança de Cartão de Mobilidade
para os trabalhadores
da hora usarem em transportes
afeta a nossa alternativos aos carros P18
FOTO JOSÉ FERNANDES

saúde R22

Fernando
Sniper Santos pode
de Peniche ENTREVISTA Seis meses depois de deixar o Governo, a ex-ministra da Justiça, Francisca
ter de pagar
combate Van Dunem, agora jubilada, dá a sua primeira grande entrevista. Fala da corrupção, do ra- IRS sobre mais
www.mantovani.pt na Ucrânia P29
cismo e dos olhares populistas sobre os ministros. Hoje, dedica-se ao seu jardim, à família
e aos livros, e afirma estar a viver a fase mais “feliz” e “livre” da sua vida. P12 €20 milhões E6

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Ricardo ( ( (
Últimas
Hugo van der Cortez de Lobão Teresa Ribera
Costa Ding Manter o Quantos Entrevista com a
humor sem ser portugueses têm vice do Governo
Vaticano não comenta
humorista R44 um Van Dyck? R38 espanhol E16 caso Ornelas A Nunciatura
Apostólica em Portugal recu-
sa comentar o caso que envol-
Orçamento
em tempo TAP recua e já não troca ve o bispo José Ornelas sobre
o alegado encobrimento de
casos de pedofilia de padres

Peugeot por BMW


numa missão em Moçambi-
de guerra que, em 2011. Em entrevista
à RTP, José Ornelas disse ter
falado com o Papa Francisco
sobre o assunto e que o San-

O
to Padre lhe deu um voto de
padrão de discus- Polémica e crítica dente da República a falar de te condenável” e apelaram a confiança.
são sobre o Orça- feroz dos sindicatos um “problema de bom senso”. que não houvesse tratamen-
mento do Estado leva companhia a A nova frota destinava-se à to diferenciado e dual entre Transmissão de covid-19
para 2023 repete decidir que gestores Comissão Executiva e aos di- os trabalhadores — se é para baixa O valor médio do índi-
a papel químico e diretores mantêm retores — cinco administrado- cumprir os contratos com os ce de transmissibilidade [R(t)]
o debate sobre o frota por mais um ano res executivos e 45 diretores, quadros de topo, cumpram-se do coronavírus SARS-CoV-2
aumento das pensões. Discu- cujo número cresceu nos úl- com todos, exigiam. baixou para os 0,98 em Portu-
tem-se margens orçamentais, A notícia caiu como uma bom- timos anos. A onda de contes- O Sindicato dos Pilotos da gal, com uma média de 2644
justiça das decisões, falta de ba, interna e externamente, tação foi crescendo ao longo Aviação Civil (SPAC) pôs o novos casos por dia, segundo
palavra, etc. Está tudo certo, e a gestão da TAP decidiu re- de quarta-feira, com a notícia dedo na ferida, questionando dados do Instituto Nacional de
só que, na essência, está tudo cuar na decisão de renovação avançada pela CNN Portugal. se a renovação da frota seria Saúde Doutor Ricardo Jorge.
errado. Tal como seria comple- da frota em 2023: a troca dos A TAP é uma companhia 100% “paga com os cortes brutais
tamente imprudente atualizar antigos Peugeot por 50 novos nos salários dos trabalhado- Saúde exige mais dinheiro
as pensões pelo valor de uma BMW. Vai ficar tudo como está, res”. A decisão tinha aberto O impacto da inflação na saú-
lei (que, não por acaso, esteve pelo menos durante um ano. Sindicatos exigiram uma nova frente de batalha de torna obrigatória a atua-
quase sempre suspensa), seria “A Comissão Executiva da tratamento igual dentro da empresa, com os sin- lização imediata e automática
um absurdo antecipar 2023, TAP compreende o sentimen- para trabalhadores, dicatos a exigir o cumprimento dos preços e convenções en-
esquecendo a incerteza geopo- to geral dos portugueses e, dos contratos em relação aos tre público, privado e social,
lítica da guerra e o lento rede- apesar de a decisão que tomou pedindo cumprimento salários, alvos de um corte de dizem um conjunto de asso-
senhar da globalização. quanto à frota automóvel ser dos contratos e 25% (acima de dois salários ciações representativas do
Ainda esta semana assistimos a menos onerosa para a com- reposição de salários mínimos) até ao final de 2024. sector, que alegam que sem a
a um histórico alinhamento da panhia nas atuais condições É que a gestão da TAP justifi- correção imediata dos valores
Arábia Saudita com a Rússia de mercado, procurará man- cou a decisão de renovação da fica em risco a continuidade
— em claro choque com a Ad- ter a atual frota durante um pública, está a ser alvo de uma frota alegando que permitiria do abastecimento de medica-
ministração Biden —, para que período máximo de um ano, ajuda de Estado de €3,2 mil não só fazer uma poupança de mentos, dispositivos médicos
a OPEP corte a produção de enquanto reavalia a política milhões e de um plano de €630 mil anuais como também e também a prestação de cui-
petróleo em reação a uma ten- de mobilidade da empresa”, reestruturação que obrigou cumprir os compromissos com dados de saúde e diagnósticos.
tativa do G7 e da UE de criar afirma a transportadora em a cortes salariais e ao fim do os trabalhadores — neste caso
um teto para o petróleo russo. comunicado. É com esta decla- contrato de cerca de três mil com os administradores exe- Gouveia e Melo fala sobre
Antes de 24 de fevereiro, Ria- ração, feita ao início da tarde trabalhadores. cutivos e diretores de primeira estado do país O almirante
de não arriscaria este braço de de quinta-feira, que a gestão e segunda linhas —, já que os Gouveia e Melo, Chefe do Es-
ferro com Washington. Mas da TAP, liderada por Christine Guerra à desigualdade contratos com a Peugeot, feitos tado-Maior da Armada, par-
com uma guerra de energia em Ourmières-Widener, veio ten- em 2017, iriam acabar em 2023 ticipa terça-feira no 5º Open
curso, escolheu um lado. tar pôr um ponto final numa Os sindicatos reagiram de ime- e não poderiam ser renovados. Day da Câmara de Comér-
Choques como este vão polémica que levou o Chega diato. Consideraram a decisão E estes quadros de topo têm cio e Indústria Portuguesa,
marcar todo o ano de 2023. A a pedir explicações e o Presi- da gestão “ética e moralmen- direito a carro de serviço. falando, no painel dedicado
agressividade diplomática do a empresas, na economia e
chamado Global South — um energia.
conceito muito lato agregado Barbárie em escola mata dezenas de crianças
em torno dos BRICS — é evi- Cascais dá 44 milhões de
dente. O empenho dos países euros contra a crise A Câ-
ocidentais em derrotar a Rússia mara Municipal de Cascais
enquanto aceleram a transição aprovou por unanimidade um
energética é imenso. pacote de 44 milhões de euros
de ajuda às famílias no comba-
te à inflação. São 70 medidas
O OE de 2023 não destinadas sobretudo aos mais
vulneráveis (incluindo famí-
é apenas mais um. lias até ao 4º escalão).
A incerteza e as
ondas de choque Alberto do Mónaco em
da guerra obrigam Portugal O príncipe Alberto
II do Mónaco e o Presidente
a extrema cautela da República participam sex-
ta-feira na inauguração, no
Museu da Marinha de Lisboa,
São demasiadas placas tectó- de uma exposição de homena-
nicas em movimento para que gem aos laços entre o príncipe
alguém comece a fazer um or- Alberto I do Mónaco (1848-
çamento sem deixar almofadas 1922) e o Rei Dom Carlos I de
significativas para acorrer a Portugal (1863-1908).
emergências. Ao contrário de
outros países, Portugal não pode Expresso vence prémio de
aumentar o seu endividamento. TAILÂNDIA Esta imagem, obtida de uma captura de ecrã, mostra o jardim de infância tai- Rede Europeia Antipobre-
Este ano teremos gasto €5 landês onde um antigo agente da polícia matou pelo menos 37 pessoas, incluindo 24 crian- za Reportagem sobre mão de
mil milhões só em juros da ças, esta quinta-feira, à hora de almoço, fugindo em seguida. O autor do ataque, de 34 anos, obra migrante nas estufas de
dívida. Qualquer subida de tem uma criança naquele estabelecimento. Foi despedido em junho por consumo de dro- Torres Vedras foi distinguida
meio ponto faz a fatura subir gas, informa a BBC. Usou armas brancas e de fogo no ataque à escola, que fica na província com o 3º lugar no prémio da
facilmente mil milhões por ano. de Nong Bua Lam Phu, no Norte do país. Entre as vítimas estão uma professora grávida e EAPN Portugal/Rede Euro-
Numa situação de subida de alunos de dois anos que dormiam a sesta. FOTO FUNDAÇÃO RUAMKATANYU ANADULY/GETTY IMAGES peia Antipobreza.
juros — que já se verifica no
mercado secundário — a mar-
gem orçamental é engolida em TEMPO FIM DE SEMANA
três tempos.
As loucuras de Sócrates ati- UE aprova novas Opto chega SEXTA-FEIRA SÁBADO
raram-nos para um buraco às boxes de
profundo em 2011. Apesar da
extrema dificuldade e incer-
teza dessa época, as variáveis
sanções à Rússia televisão
Bragança

Porto
28° 11°

21° 13°
26°

22°
13°

13°

que estavam em cima da mesa Guarda 23° 16° 23° 13°


eram, na altura, essencialmen- Sexta-feira
te financeiras, económicas e Oitavo pacote proíbe nação em parar a máquina Serviço de streaming 7 de outubro Lisboa 29° 16° 30° 15°

07
monetárias. Uma guerra arras- transações em de guerra de Putin e reagir à da SIC passa a estar de 2022
ta fatores diversos, avassalado- criptomoedas e alarga sua escalada, com falsos ‘refe- disponível através da Évora 31° 15° 32° 16°
res e com pouca racionalidade. restrições às trocas rendos’ e a anexação ilegal de MEO, NOS e Vodafone
Muitos economistas costu- comerciais com Moscovo territórios ucranianos”, que o Faro 28° 17° 27° 17°
mavam brincar sobre o facto Presidente russo formalizou A plataforma de streaming do
de nunca lhes terem ensinado A União Europeia (UE) apro- quarta-feira. grupo Impresa (proprietário

10
P. Delgada 23° 19° 25° 19°
o que era um mundo com ju- vou ontem o oitavo pacote de As sanções alargam a proibi- da SIC e do Expresso) chega
ros negativos. Agora, muitos sanções à Rússia. Além de ção de comprar produtos side- agora às boxes de televisão Funchal 27°20° 27° 21°
estarão a tentar perceber que castigar indivíduos ligados ao rúrgicos à Rússia e trava ainda dos principais operadores.
variáveis sobrevivem a uma processo da pretensa anexa- a importação de papel, cigar- Os clientes MEO (com boxes MARÉS SEXTA-FEIRA SÁBADO
Baixa Alta Baixa Alta
guerra desta escala. ção das regiões ucranianas de ros, cosméticos e joalharia. A Apple ou Android) e NOS (box
Os políticos não fazem pia- Donetsk, Lugansk, Kherson UE não exportará carvão e UMA) já podem aceder à nova Porto 7:52 14:04 8:35 14:47
das, preferem viver em ne- e Zaporíjia, Bruxelas proibiu armamento ligeiro e impede aplicação, que estará disponí- Lisboa 7:54 14:20 8:39 15:05
gação. O Governo recusa a transações em criptomoedas os seus cidadãos de ocuparem vel na Vodafone (através da #2606 Faro 7:22 13:42 8:04 14:27
FONTES: IPMA E INSTITUTO HIDROGRÁFICO
palavra “cortes”, a oposição com cidadãos e residentes da cargos na administração de VBox) em data a anunciar. A expresso.pt
procura “folgas” e consigna o Rússia e aplicará um teto ao certas empresas estatais rus- app da Opto está ainda dis- Encoberto “Só há uma ma-
último tostão. Nenhum eleitor preço do petróleo russo. sas. As medidas aplicam-se ponível para smartphones na neira de viver até aos 100 anos:
quer ouvir isto, mas a guerra O chefe da diplomacia dos tanto à Rússia como às zonas App Store, Google Play e App- ter o máximo cuidado aos 99”,
obriga a enorme prudência. 27, Josep Borrell, garante que da Ucrânia controladas pelas Gallery e para televisões das escreveu o catalão Noel Carisó.
rcosta@expresso.impresa.pt a decisão mostra “determi- tropas invasoras. marcas LG e Samsung. Nuvens por aí.

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