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OLAVO DE CARVALHO

O mundo
como jamais
funcionou
Cartas de um Terráqueo ao Planeta Brasil

VOLUME II
Sumário

Capa
Folha de Rosto
Nota do Editor
Autoridade moral da mentira
Mundo maravilhoso
Presunção afirmativa
Guerras culturais
A América brasilianizada
O grande rombo
A esquerda americanizada
Notinha horrível
Abramoff para brasileiros
Duas estratégias
Saudades da literatura
A guerra contra as religiões
Fundamentalismo?
Realizando um sonho de infância
Sugestão aos bem-pensantes: Internem-se
Envolvimento implícito
Dines X Mainardi
Fora do tempo
Assassinato de Kennedy: enfim, o óbvio
Os dois McCarthys
Generosidade
Notícias da China real
De Lay: o fim
O novo império Mongol
A tragédia do estudante sério no Brasil
Puro teatro, nada mais
O Estado covarde
O absurdo pode favorecer a disseminação de uma idéia
Se você ainda quer ser um estudante sério...
O avesso do avesso
A consciência humana em perigo
O estupro das soberanias nacionais
Derrota completa
Honra ao mérito
Saudades do Mensalão
O guru da Nova Ordem Mundial
Cabeça de esquerdista
Meios e fins
Contra a universidade
Apelo humanitário
Miguel Reale vive
A chacota geral do mundo
Os mestres do fracasso
Os inventores do mundo futuro
Detalhe esclarecedor
Traição anunciada
O dever que nos espera
A eloqüência dos fatos
Experimento sociológico
Sorman está por fora
O parteiro do mal
O socialismo dos ricos
Por trás da subversão
Saindo pela esquerda
A fossa de Babel
Dormindo profundamente
A luta dos monstros
Da ignorância à mentira
A carta dos militares
Ainda a luta dos monstros
Banditismo e revolução
Em plena guerra assimétrica
Proposta indecente
A fraude do populismo continental
O paradoxo esquerdista
O futuro da pústula
Ensaio de patifaria comparada
O modo de raciocinio do prof. Coyne
A direita autocastrada
Palhaçada ao quadrado
Valei-me, Alborghetti!
Pela restauração intelectual do Brasil
Da fantasia deprimente à realidade temível
Justiça social e injustiça pessoal
Mais um capítulo da luta dos monstros
Falsos amigos
Oficialmente
Geração maldita
Pergunta e resposta
A arte da acusação invertida
O chuchu que virou pepino
O boneco
A prova cabal da mentira
O ridículo mata
Sociopatia e revolução
Passado e presente do dr. Greenhalgh
Acordo secreto
Sem novidades, exceto as piores
Tá tudo dominado
Raça de víboras, ou: o Marquês de Sader na prisão
A vitória ambígüa dos democratas
Jorge Gerdau
Vida dura
O advogado do Marquês
Anistia?
Mais um advogado do marquês
O sucesso do fracasso
Enquanto a Zé-Lite dorme
O mundo como jamais funcionou
Fariseu hipócrita
A nova era das ditaduras
Por baixo da mesa
Créditos
Sobre a Obra
NOTA DO EDITOR

A
MILITÂNCIA JORNALÍSTICA DE OLAVO DE CARVALHO É INTENSA, mas não
se confunde com o mero comentário opinioso das notícias do dia.
Pelo contrário, seu trabalho como jornalista é a exemplificação
episódica de uma profunda e longa investigação filosófica, que se
desenvolve longe da agitação cotidiana, no silêncio meditativo em que o
filósofo se guarda não somente para observar os fatos, mas também para
contemplar os princípios e conceitos que lhes dão inteligibilidade.
Olavo de Carvalho elaborou ao longo de duas décadas, apesar de uma vida
agitada de jornalista, escritor, conferencista e professor, uma sofisticada
filosofia política, cuja aplicação prática encontramos em seus artigos para o
Diário do Comércio, que a VIDE Editorial reuniu nessas Cartas de um
terráqueo ao planeta Brasil.
Neste segundo volume, O mundo como jamais funcionou, apresentamos
todos artigos e editoriais publicados entre janeiro e dezembro de 2006. O
leitor encontrará aqui alguns textos que, se não podemos chamar de
clássicos, são exemplares do pensamento e método do autor. Mesmo no
espaço limitado de uma coluna de jornal, Olavo de Carvalho logra desnudar
as forças políticas e culturais que se agitam na superfície do globo em uma
guerra infernal pelo governo dos destinos humanos. Começando pelo artigo
que dá título a este livro, descobriremos em “A nova era das ditaduras”, “A
autoridade moral da mentira”, “A guerra contra as religiões”, “A
consciência humana em perigo”, “Sociopatia e revolução”, “A luta dos
monstros” e muitos outros, lições fundamentais e permanentes, que nos
fazem emergir da confusão geral reinante no Brasil, permitindo-nos
enxergar o mundo com mais clareza e inteligência.
Aproveite estas Cartas, leitor, enquanto organizamos as outras que o autor
continua remetendo a este estranho planeta Brasil. Boa leitura!
Autoridade moral da mentira

D
URANTE DÉCADAS OS REGIMES COMUNISTAS e islâmicos praticaram a
tortura em massa de prisioneiros políticos, usando métodos que iam
das camisas-de-força e choques elétricos até à mutilação e à morte. A
quase totalidade dos intelectuais esquerdistas e a mídia chique (a começar,
entre nós, pela Folha de S. Paulo, nos EUA pelo New York Times, na
Inglaterra pela BBC) não apenas se omitiram de denunciar esses crimes, ao
menos com alguma ênfase, mas na maioria dos casos se esforçaram para
minimizá-los e até para ocultá-los por completo.
Bastou, porém, a notícia de que os militares americanos gritavam com
terroristas iraquianos presos, vestiam calcinhas nas cabeças deles para
humilhá-los ou os obrigavam a ouvir CDs de heavy metal, para que uma
onda gigante de protestos varresse o planeta, gritando contra a “tortura” e
apresentando-se com ares de nobilíssimo apelo aos mais altos sentimentos
da humanidade.
São justamente os mais cínicos e brutais que com maior facilidade
envergam o manto da autoridade moral, impressionando pelas caretas de
compunção e dignidade em que só a parte sonsa da platéia não reconhece o
fingimento, a macaqueação histriônica, as lágrimas de crocodilo.
Não espanta que o modelo supremo de virtudes cultuado por essa gente
seja Noam Chomsky, um monstro de mendacidade capaz de fazer a
apologia do regime Pol-Pot no auge da matança sistemática de dois milhões
de civis e logo em seguida acusar de genocídio nazista o seu próprio país
por conta de feitos macabros incomparavelmente mais modestos praticados,
aliás, nem mesmo pelos EUA, mas por um seu aliado remoto, a Indonésia
(ele insiste nisso num recente artigo da revista inglesa Prospect).
Os critérios perversos instituídos pelos Chomskys na mídia internacional,
onde pelo menos encontram alguma oposição, são copiados servilmente
pelos jornais brasileiros, onde praticamente ninguém os contesta. Com
exceções que se tornam tanto mais honrosas porque se contam nos dedos,
jornalismo, no Brasil, é militância esquerdista e nada mais. Militância
esquerdista subsidiada por empresários covardes, irresponsáveis,
oportunistas. Sobretudo incultos, incapazes de informar-se por si próprios e
por isto dependentes dos gurus esquerdistas a quem entregam o poder total
sobre suas redações, tratam com devoção subserviente e pagam salários
indecentemente elevados.
Nessas condições, não há critério de honestidade jornalística que
sobreviva.
Argemiro Ferreira, o correspondente da Globonews em Nova York, tem a
imensurável cara de pau de negar que haja um esforço organizado para
erradicar o cristianismo da cultura americana, e atribui a inocentes
considerações mercadológicas a substituição do tradicional Merry
Christmas por Happy Holidays nos cartazes do Walmart, do Target etc.,
substituição que na verdade atendeu a pressões crescentes exercidas pela
ACLU e por outras organizações anti-religiosas desde há mais de cinco
décadas. Ele está tão satisfeito com a própria ignorância que chega a
escrever que os evolucionistas “não vetam a teoria bíblica ou o intelligent
design, mas acham que deve ser ensinada na aula de religião, não de
ciências”. Bem pago para viver nos EUA e informar-se do que aí se passa,
não sabe sequer que aulas de religião não existem no ensino público
americano. E depois disso ainda se sente à vontade para chamar de “semi-
analfabeto” o comentarista da Fox News, John Gibson, que comparado a ele
é Isaac Newton.
Alberto Dines, como comentei na semana passada, proclama que a direita
católica domina os jornais, mas desafiado por Diogo Mainardi a citar um
potentado católico imperando sobre alguma redação, não consegue
encontrar um só. Mainardi, em resposta, mencionou dúzias de comuno-
petistas nos altos postos da mídia. Como reage Dines agora? Confessa a
derrota? Nada. Acusa o adversário de fazer “perseguição macartista” aos
senhores da mídia, como se a desproporção numérica entre um só Mainardi
e a multidão dos que o odeiam já não bastasse para mostrar quem é o
perseguidor, quem o perseguido.
A entrega das redações ao guiamento desses iluminados explica por que a
circulação dos jornais diários continua mais ou menos a mesma dos anos
50, enquanto a população do país dobrou, o analfabetismo foi praticamente
erradicado e o número de revistas empresariais e especializadas quase
centuplicou. A TV, é claro, tem outros atrativos, inclusive a exploração
sexual, e vive deles. Mas jornais não sobrevivem à ocultação
ideologicamente seletiva das noticias.
MUNDO MARAVILHOSO
Duas dicas que você não encontrará em nenhum jornal brasileiro:
1) Ramsey Clark, o ex-procurador geral que está atuando voluntariamente
na defesa de Saddam Hussein, foi advogado do governo comunista do
Vietnã do Norte na época em que este torturava prisioneiros americanos a
granel. Depois trabalhou também para a ditadura dos aiatolás do Irã, e
organizou uma campanha em favor de Slobodan Milosevic. A revista Salon
publicou sua biografia sob o título “Ramsey Clark, o melhor amigo dos
criminosos de guerra”. A ONG que ele fundou, International Action Center,
é constituída quase que inteiramente de membros do Workers World Party,
marxista-leninista.
2) O Canadá acaba de se tornar o paraíso dos pedófilos. A idade mínima
para o cidadãozinho poder ser convidado, sem crime, para participar de
qualquer atividade sexual, incluindo sadomasoquismo, foi baixada para 14
anos. Prestem atenção: a liberação mundial da pedofilia está no programa
das ONGs milionárias e se tornará realidade antes de transcorrida uma
década. O filme em louvor de Alfred Kinsey, estrelado por Liam Neeson, já
é pura preparação psicológica das massas para que aceitem isso sem
reclamar. As pesquisas de Kinsey foram patrocinadas pela Fundação
Rockefeller, que as impôs como verdade científica a todo o establishment
universitário. Hoje sabe-se que Kinsey era pedófilo praticante, que abusou
até de recém-nascidos e que subsidiou as “pesquisas de campo” feitas por
um criminoso de guerra nazista, contratado por ele para ter relações sexuais
com meninos e depois descrever suas reações. Descobriu-se também que
suas descrições do comportamento sexual dos americanos não se basearam
em pesquisas com pessoas comuns, mas com estupradores e molestadores
de crianças, sendo depois falsamente apresentadas como retratos fiéis da
média normal dos cidadãos. Em suma, Kinsey era um monstro, um
psicopata perigoso. Depois de todas essas descobertas, jamais seriamente
contestadas, fazer um filme glorificando o sujeito é, obviamente, estratégia
de dessensibilização.
PRESUNÇÃO AFIRMATIVA
No jornal O Globo do último dia 24, Letícia Sardas, desembargadora no
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, atribui aos juízes a função
de “ transformar direitos” por meio de “ações afirmativas” e, assim,
“reescrever a história do ser humano, colocando as novas questões de
acordo com nossa experiência e sensibilidade”.
Essa senhora já está grandinha o bastante para saber que “transformar
direitos”, assim como instituí-los e revogá-los, é função de legisladores
eleitos pelo povo e não de qualquer funcionário público que se arrogue essa
função.
Do mesmo modo, “colocar as novas questões de acordo com a nossa
experiência e sensibilidade”, na medida em que dessa discussão podem
nascer ou perecer, ampliar-se ou restringir-se direitos, é também
incumbência do Parlamento eleito. A tarefa dos juízes começa justamente
quando essa discussão terminou.
Funcionários públicos que prometem eliminar as injustiças sociais foram
Robespierre e Lênin, Stalin e Hitler, Mao e Pol-pot. O Brasil não chegou a
tanto, mas já tem Letícia Sardas.
Não há desigualdade maior que a do funcionário que se investe da
autoridade de definir a seu belprazer sua própria função, seus próprios
poderes e seus próprios direitos, enquanto todos os demais funcionários e
cidadãos devem ater-se ao que lhes prescreve a lei. Se, por exemplo, os
jornalistas, num acesso de autoadoração grupal semelhante àquele em que
se embriagam certos juízes, resolvessem decretar que a função do
jornalismo não é contar o que se passou ontem, mas “reescrever a história
de acordo com a nossa experiência e sensibilidade” (e não tenho dúvidas de
que muitos fazem precisamente isso), a população perceberia
imediatamente estar lidando com charlatães ambiciosos. Por que o critério
deveria ser diferente com juízes que, de repente, decidem criar e revogar
direitos como se fossem legisladores?
GUERRAS CULTURAIS
“O segredo é da natureza mesma do poder”, dizia René Guénon. Quem
ignore essa regra hoje em dia está condenado a servir de instrumento cego e
dócil para a realização de planos políticos de enorme envergadura que lhe
permanecem totalmente invisíveis e inacessíveis. Isso é particularmente
verdadeiro no caso das chamadas “guerras culturais”, cujos movimentos,
sutis e de longuíssimo prazo, escapam à percepção não só das massas como
da quase totalidade das elites políticas, econômicas e militares. Todos
sofrem o seu impacto e são profundamente alterados no curso do processo,
inclusive nas suas reações mais íntimas e pessoais, mas geralmente
atribuem esse efeito à espontaneidade do processo histórico ou a uma
fatalidade inerente à natureza das coisas, sem ter a menor idéia de que até
mesmo essa reação foi calculada e produzida de antemão por planejadores
estratégicos.
A idéia de ter sido usado inconscientemente por outro mais esperto é tão
humilhante que cada um instintivamente a rejeita indignado, sem notar que
a recusa de enxergar os fios que o movem o torna ainda mais facilmente
manejável. O medo de ser ridicularizado como crédulo é um poderoso
estimulante da ingenuidade política, e na guerra cultural a exploração desse
medo se tornou um dos procedimentos retóricos mais disseminados,
erguendo uma muralha de preconceitos e reflexos condicionados contra a
percepção de realidades que de outro modo seriam óbvias e patentes.
Uma longa tradição de lendas urbanas em torno de “teorias da
conspiração” também ajudou a sedimentar essa reação. A guerra cultural
não é, evidentemente, uma “conspiração”, mas a sutileza das suas
operações, raiando a invisibilidade, faz com que a impressão confusa
suscitada pelo conceito em quem ouça falar dele pela primeira vez seja
exatamente essa, produzindo quase infalivelmente aquele tipo de resposta
que mereceria o nome de suspicácia ingênua, ou incredulidade caipira.
Outra dificuldade é que as armas usadas na guerra cultural são, por
definição, uma propriedade quase monopolística da classe dos intelectuais e
estudiosos, escapando não só à compreensão como aos interesses do
cidadão comum, mesmo de elite, não envolvido em complexos estudos de
história literária e cultural, filosofia, lingüística, semiologia, arte retórica,
psicologia e até mesmo sociologia da arte. Em todo o Congresso Nacional,
na direção das grandes empresas e nos comandos militares não se
encontrará meia dúzia de portadores dos conhecimentos requeridos para a
compreensão do conceito, quanto mais para a percepção concreta das
operações de guerra cultural. Sobretudo em países do Terceiro Mundo, a
formação das elites governantes é maciçamente concentrada em estudos de
economia, administração, direito, ciência política e diplomacia. Para esses
indivíduos, as letras e artes são, na melhor das hipóteses, um adorno
elegante, um complemento lúdico às atividades “peso-pesado” da política,
da vida militar e da economia. Suas incursões de fim de semana em teatros
e concertos podem alimentar conversas interessantes, mas jamais lhe darão
aquela visão abrangente do universo cultural sem a qual a idéia mesma de
uma ação organizada e controlada sobre o conjunto da cultura de um país
(ou mais ainda de vários) seria impensável. De fato, para essas pessoas, ela
é impensável. A cultura lhes aparece como o florescimento autônomo e
incontrolável de “tendências”, de impulsos criativos, de inspirações
multitudinárias que expressam o “senso comum”, o fundo de opiniões e
sentimentos compartilhados por todos, a visão espontânea e “natural” da
realidade. Que, para o estrategista da guerra cultural, o “senso comum” seja
um produto social como qualquer outro, sujeito a ser moldado e alterado
pela ação organizada de uma elite militante; que sentimentos e reações que
para o cidadão comum constituem a expressão personalíssima da sua
liberdade interior sejam para o planejador social apenas cópias mecânicas
de moldes coletivos que ele mesmo fabricou; que a direção de conjunto das
transformações culturais não seja a expressão dos desejos espontâneos da
comunidade mas o efeito calculado de planos concebidos por uma elite
intelectual desconhecida da maioria da população – tudo isso lhe parece ao
mesmo tempo um insulto à sua liberdade de consciência e um atentado
contra a ordem do mundo tal como ele a concebe. Mas essa reação está em
profundo descompasso com o tempo histórico. A característica essencial da
nossa época é justamente a transformação cultural planejada, e quem não
seja capaz de percebê-la estará privado da possibilidade de lhe oferecer uma
reação consciente: por mais dinheiro que tenha no bolso ou por mais alto
cargo que ocupe na hierarquia política, jurídica ou militar, estará reduzido à
condição de “massa de manobra” no sentido mais desprezível do termo. O
sonho dos iluministas do século XVIII – uma sociedade inteira à mercê dos
planos da elite “esclarecida” – tornou-se realizável dois séculos depois
graças a três fatores: a expansão do ensino universitário, criando uma massa
de intelectuais sem funções definidas na sociedade e prontos para ser
arregimentados em tarefas militantes; o progresso dos meios de
comunicação, que permite atingir populações inteiras a partir de uns poucos
centros emissores; e a enorme concentração de riquezas nas mãos de alguns
grupos oligárquicos imbuídos de ambições messiânicas. Explicarei mais
sobre isso nos próximos artigos.
2 de janeiro de 2006
A América brasilianizada

N
OS EUA, OS IMIGRANTES BRASILEIROS são conhecidos como eméritos
falsificadores de documentos. Achando muito natural e sempre justo
resolver qualquer dificuldadezinha mediante a alteração de datas,
nomes, números e fatos, eles têm sido um poderoso estimulante à corrosão
da velha “sociedade de confiança” americana e à sua substituição por um
sistema rígido de controles estatais e burocráticos. Esse sistema quadra bem
com a mentalidade do nosso povo, que prefere ser controlado de fora para
não ter de assumir as responsabilidades da vida adulta. Mas, para o
americano, que vê sua orgulhosa autonomia individual dissolver-se numa
sopa de regulamentos e proibições, ele é a morte. A “democracia na
América”, como bem viu Tocqueville, fundava-se na síntese indissolúvel de
liberdade externa e self control moral e religioso. O burocratismo
socializante inverte a fórmula, fomentando a irresponsabilidade pueril que
suscita a proliferação de bedéis, fiscais e sargentos de polícia. O americano
tradicional sabia que podia haver governo limitado e liberdade para todos se
cada um se governasse a si próprio, lesse a Bíblia e abdicasse de cobiçar a
mulher ou os bens do próximo. O estatismo cresce estimulando a inveja e a
cobiça generalizadas, adornando de pretextos sofisticados a recusa do
autocontrole e a proclamação arrogante do primado do prazer sobre o dever.
Por toda parte, aqui, observa-se o avanço implacável do infantilismo
socialista sobre a antiga liberdade americana, cujos defensores se batem
contra a aliança quase onipotente da burocracia estatal com as fundações
bilionárias e a multidão dos ativistas enragés.
Não resta dúvida: os EUA brasilianizam-se.
Os avanços do controle estatal, não é preciso dizer, vêm sempre por
iniciativa da esquerda, mas por duas vias opostas, uma positiva, outra
negativa, operando segundo o consagrado esquema de uma “pressão de
cima” que se opõe dialeticamente a uma “pressão de baixo” para produzir o
desejado efeito de conjunto (a estratégia é descrita num famoso documento
do Partido Comunista da Tchecoslováquia, escrito por Jan Kozak e
divulgado no Ocidente sob o título And Not a Shot Is Fired ). Positivamente
e “desde cima”, os esquerdistas tornam o aumento do controle estatal sobre
a sociedade uma idéia aceitável em nome de programas sociais soi disant
beneméritos. Negativamente, “desde baixo”, estimulam o ódio, a revolta e
exigências anarquizantes que começam nas puerilidades do “sex’ lib” e
culminam na defesa aberta da espionagem e do terrorismo, criando a
permanente ameaça do caos que, naturalmente, só pode ser enfrentada por
meio de novos acréscimos do poder estatal. A dupla estratégia articula-se,
por sua vez, com a duplicidade de discursos. Quando o acréscimo do poder
estatal vem pelas mãos da própria esquerda, é utilizado como símbolo de
“moderação” e “equilíbrio” para seduzir a parte não-esquerdista do
eleitorado. Quando, ao contrário, é a direita que está no poder e se vê
obrigada a lançar mão do mesmo mecanismo para deter o avanço do caos
alimentado “em baixo” pela esquerda, isso é explicado como sintoma do
“totalitarismo” do governo conservador. Bill Clinton era louvado por
defender o direito presidencial de mandar espionar terroristas sem ordem
judicial, enquanto George W. Bush é chamado de fascista por fazer
exatamente a mesma coisa. Num caso, a pretensão presidencial funcionava
como prova de que a esquerda não era tão amiga de terroristas quanto se
dizia; no outro, como prova de que os conservadores se utilizam do pretexto
do terrorismo para ampliar os mecanismos repressivos sobre a sociedade
inteira.
O efeito de conjunto dessa quádruplo ataque é devastador, e pode ser
explorado ainda, secundariamente, como alimento da propaganda anti-
americana nos países periféricos. Observando por alto os avanços do
controle estatal nos EUA sem saber como foram produzidos, a platéia do
Terceiro Mundo pode ser facilmente persuadida a enxergá-los como provas
do “fascismo conservador”.
Muito do que no Brasil se chama de “análise política” consiste somente na
repetição desesperadoramente mecânica desse engodo. Carreiras
universitárias inteiras constroem-se em cima disso. Os brasileiros, que nos
EUA ajudam a fomentar a intromissão da autoridade governamental em
tudo, em casa se autolisonjeiam falando mal do governo americano por
meter-se em tudo. Não falsificam só documentos, para tirar proveito ilícito
do país hospitaleiro que odeiam. Falsificam a imagem inteira desse país,
para sentir-se mais honestos que a vítima da fraude que praticam.
4 de janeiro de 2006
O grande rombo

R
EAGINDO COM FÚRIA BURLESCA AO MEU ARTIGO DA SEMANA retrasada, o
general Andrade Nery, por extenso Durval Antunes Machado Pereira
de Andrade Nery, vice-presidente da Associação dos Diplomados da
Escola Superior de Guerra, está fazendo circular pela internet uma nota
repleta de solecismos, na qual me chama de “pseudojornalista dissimulado,
entreguista, antipatriota, peitado, defensor intransigente de uma política
globalizante que prioriza uma só nação dando-lhe o direito de explorar
todos os povos” (sic).
Eu não solicitaria a atenção do leitor para semelhante estupidez se esta
fosse apenas um insulto pessoal e não, como de fato é, um sintoma
elucidativo daquilo mesmo que denunciei no meu artigo: o esforço maciço
de traidores e usurpadores para colocar as nossas Forças Armadas a serviço
de tudo o que elas combateram no passado. Pela sua posição na Adesg,
Andrade Nery está bem equipado para dar uma substantiva contribuição a
esse esforço, e é só isto o que torna as suas palavras dignas de exame.
O teor mesmo das imputações é tão ridículo, tão inverso ao conteúdo
expresso de tudo o que escrevi, disse e fiz ao longo da minha carreira
jornalística, que nenhuma dificuldade séria impedirá o leitor de perceber, à
primeira vista, que o general não tem a menor idéia do que está dizendo: é
apenas um papagaio de bordel a repetir mecanicamente coisas feias que
ouviu de prostitutas. Com efeito, o encanecido oficial, nos intervalos
furtivos do seu convívio perfeitamente respeitável com velhos
companheiros de farda, freqüenta o círculo de redatores da Hora do Povo,
aquela publicação eminentemente fecal que, no centenário de Stálin,
celebrou o ogro genocida como “o maior democrata da humanidade” (sic),
e cuja misteriosa sobrevivência com tão poucos leitores e anúncios só veio
a ser cabalmente explicada mediante a revelação das propinas que, por
conta do tristemente célebre projeto “oil for food”, recebera de Saddam
Hussein. Nas horas sombrias em que o peso da dignidade castrense se torna
excessivo e os instintos baixos da mendacidade atávica clamam por soltar a
franga, é nesse submundo mental que o general Nery busca alívio e
reconforto, não só intoxicando-se daquela droga impressa, mas ajudando a
produzi-la sob a forma de invencionices convenientemente anti-americanas,
bem ao gosto de seus camaradas de farra ideológica, publicadas em
confraternização promíscua com as de outras macacas de auditório de Mao
Tsé-tung, Fidel Castro e Pol-Pot.
O que se ouve num ambiente desses não se repete em casa. Deposita-se
discretamente na privada do esquecimento. A não ser, é claro, quando se
tem a vocação incoercível da papagaiada. Aí o que o sujeito faz é
empoleirar-se na janela do prostíbulo e repetir o discurso inteiro que ouviu
lá dentro, surpreendendo-se de que os transeuntes distraídos não parem para
aplaudi-lo.
O que o general Nery escreveu de mim só fica bem no recinto fechado da
redação da Hora do Povo. Fora daí, alardeado para o mundo, a céu aberto, é
uma gafe medonha, um vexame colossal, além de delito previsto nas leis
penais do país.
O general chama-me de todos aqueles nomes para dar a impressão de ser
um tribuno indignado, erguido em defesa de uma nobre instituição, a Escola
Superior de Guerra, que teria sido atacada por mim. Bela comédia. Na
verdade, eu nada disse contra a ESG, mas tudo contra o estado atual em que
se encontra. Nada contra a instituição, tudo contra os que hoje se servem
dela para finalidades opostas às suas metas originárias. Defender esses
farsantes e usurpadores não é defender a instituição: é aviltá-la, é cuspir na
sua história, fingindo-se de seu advogado. Atacá-los não é falar mal dela: é
honrar os que a criaram, é dar voz aos mortos que já não podem se
defender. Tal a diferença entre o empreendimento do general Nery e o meu.
A ESG de hoje não é mais a de ontem. Mas não é a sua continuação, o
fruto de uma evolução normal. É a sua negação, o seu oposto simétrico.
Não há conciliação entre elas. Quem ama a primeira, odeia a segunda, e
vice-versa. O próprio general Nery fornece a prova dessa transformação.
Leiam o seguinte parágrafo (transcrevo sem correções):
Assim foram encomendados (à ESG) planos de governo na área energética, planos para
melhoria das comunicações – o que à época era um caos, pois se demorava quatro dias para falar
do Rio de Janeiro para Manaus- domínio da energia nuclear, tecnologia para agroindústria,
tecnologia de ponta na área de engenharia. desta forma, nasceram a Usina de Tucuruí, Itaipu,
ampliação da Usina de Paulo Afonso, Furnas, a Usina Nuclear de Angra dos Reis, Embrapa,
I.T.A, Embraer, bem como o desenvolvimento dos motores a álcool, plano hoje oferecido a Cuba
para solução de suas carências, face ao atual valor do petróleo, e o embargo pelos Estados Unidos
da América.
Tudo o que ele diz aí é verdade. A ESG realizou grandes trabalhos para o
país. Só que todos eles – com exceção do último, e já veremos por quê –
foram realizados entre a fundação da Escola e o fim do chamado “governo
militar”, em 1988. Nesse período, a instituição, com sua “doutrina da
segurança nacional”, servia ao Brasil e aos valores tradicionais da
civilização cristã que nortearam a construção do país. Ela era o centro
intelectual da defesa da nacionalidade – e da segurança continental – contra
a ameaça comunista vinda de Cuba. Por isso os comunistas a odiavam,
tanto quanto hoje odeiam a mim, e falavam dela nos mesmos termos que o
general agora usa contra mim. Consideravam-na o templo do entreguismo,
chamavam-na de vendida ao imperialismo ianque, de servidora da
exploração internacional. Nesse tempo, a ESG recebeu vultosas tarefas do
governo e se desincumbiu delas com eficiência e patriotismo inigualáveis.
Não é estranho que tantas coisas boas para o país fossem feitas por uma
instituição acusada de trabalhar a serviço de interesses estrangeiros, como
representante local de uma concepção de segurança continental “imposta
por Wall Street”? O general não faz idéia de quanto me honra ao
macaquear, contra mim, o discurso com que os inimigos do Brasil tentaram
enlamear a imagem da instituição que hoje ele finge servir para melhor
servir-se dela.
Não por coincidência, de todas as realizações da ESG que constam da sua
lista, só uma corresponde ao período atual, à chamada redemocratização ou
Nova República: trata-se de um plano para o desenvolvimento de motores a
álcool, já antigo, mas agora – surprise! – “oferecido a Cuba para solução de
suas carências, face ao atual valor do petróleo, e o embargo pelos Estados
Unidos da América”. Não liguem para a regência preposicional capenga. O
homenzinho apenas exerce seu direito ao analfabetismo funcional. O que
importa é a informação: o apologista da nova ESG não tem a alegar em
favor dela senão o que a velha ESG fez pelo do Brasil e o que ela, agora,
faz em benefício de Cuba. Para ele, já se vê, as duas coisas são igualmente
patrióticas. Tanto faz defender o Brasil contra uma ditadura estrangeira que
financiava a subversão armada no nosso território, nas décadas de 60-70, ou
ajudar essa ditadura a fazer exatamente o mesmo, agora. Com um agravante
formidável: comparadas aos feitos das FARC, as guerrilhas dos anos 70
eram uma escaramuça de moleques; ao lado do Foro de São Paulo, a velha
OLAS de Fidel Castro (Organización Latino-Americana de Solidariedad)
era um clube de futebol de botão. Se naquela época a ESG serviu como um
poderoso cimento para dar solidez à “grande barreira” erguida contra as
ambições cubanas, muito mais obrigação teria de fazê-lo hoje, em vez de
dar força a uma ditadura que subsidiou e orientou a matança de tantos
soldados brasileiros.
Fazer de conta que a ESG não mudou, que dá na mesma servir ao Brasil ou
a Cuba, é uma fraude tão manifesta, tão despudorada, que só por endossá-la
o general já faria jus ao estatuto de inimigo da pátria, de traidor das Forças
Armadas, de agente de influência a serviço – gratuito ou remunerado, pouco
importa – daquilo que existe de pior no mundo. E sua atuação na ESG é a
prova mais evidente de que a entidade, para dizer o mínimo, traiu a si
própria e hoje se empenha em cortejar seus inimigos de ontem.
Saber como se deu essa transformação é outro problema. Não freqüento a
Escola, só observo suas manifestações exteriores, assustando-me com o
espaço cada vez maior ali concedido a agentes de influência dedicados a
fazer das Forças Armadas brasileiras um instrumento do comunismo
internacional. Quando, alguns anos atrás, o sr. Márcio Moreira Alves
chegou a ser cogitado para reitor civil da instituição, a mudança que ela
sofrera ao longo dos anos se tornou visível demais para ser ignorada. O sr.
Moreira Alves, pouco antes, tinha voltado de uma viagem à Amazônia,
entusiasmado com a transformação ideológica das nossas tropas de
fronteira, que, dizia ele, varavam noites estudando as obras de Ho Chi Mihn
e sonhando com uma guerra na selva... contra os narcotraficantes? Não.
Contra os guerrilheiros das Farc, que entravam e saíam do nosso território
como se fosse sua própria casa? Não. Sonhavam com uma guerra contra os
marines americanos.
Era esse o mesmo Exército das décadas de 60 e 70? Quantos soldados
brasileiros a Marinha americana havia matado, para que nossos jovens
oficiais a odiassem tanto? Que extraordinários benefícios o Brasil havia
recebido do movimento comunista internacional, para que nossas tropas se
oferecessem para morrer a serviço dele?
Não acompanhei a transformação da ESG capítulo por capítulo, mas
observei que, tão logo veio abaixo a ditadura soviética, intelectuais
iluminados, civis e militares, se aproveitaram da impressão do momento
para proclamar que o movimento comunista internacional já não era
problema e que nosso inimigo potencial, daí por diante, eram os EUA.
Como prova disso, alegavam a presença constante de ONGs americanas na
Amazônia e, naturalmente, a expansão do “imperialismo americano”
através do Plano Colômbia e atividades similares.
A falsidade desse diagnóstico saltava aos olhos de quem quer que
conhecesse algo do movimento comunista. Desde logo, a extinção da URSS
não foi acompanhada de nenhuma modificação substancial na velha KGB,
que só mudou de nome mas nem sofreu cortes no seu orçamento, nem foi
expurgada de seus velhos quadros comunistas, nem teve alteradas as suas
funções tradicionais. Falar em “fim do comunismo”, nessas circunstâncias,
era tão ridículo quanto teria sido proclamar a extinção do nazismo se, morto
o Führer, a Gestapo continuasse a funcionar sem ser incomodada.
Desde o começo dos anos 90, era previsível a qualquer momento a
revivescência do comunismo sob outro nome qualquer. Quando a IV
Assembléia do Foro de São Paulo proclamou seu objetivo de “reconquistar
na América Latina tudo o que perdemos no Leste Europeu”, ignorar esse
perigo tornou-se cegueira suicida. Hoje, quando o poder no continente está
nas mãos dos Chávez, dos Evos Morales, dos Kirchners e dos Lulas,
continuar a ignorá-lo é cumplicidade criminosa. Mas, na ESG, os Andrades
Nerys estão preocupados é com o “avanço do imperialismo americano”.
Ora, só um observador perverso e mal intencionado, ou ainda mais burro
do que o próprio Andrade Nery jamais conseguiria ser, não percebe que as
entidades americanas que interferem na Amazônia, como por exemplo o
Conselho Mundial das Igrejas, a Fundação Rockefeller e agentes de George
Soros, não representam de maneira alguma os interesses nacionais dos
EUA, mas, ao contrário, estão profundamente associadas ao movimento
esquerdista e anti-americano que se esforça para quebrar a espinha do poder
nacional americano e transferir a soberania do país para organismos
internacionais. Não há ninguém que ignore isso nos EUA – mas, graças a
onipresença de agentes de influência na mídia nacional e em entidades
como a ESG, essa informação ainda não chegou ao Brasil. Claro: é preciso
ocultá-la a qualquer preço, pois ela modifica radicalmente a visão do
quadro estratégico internacional e dilui perigosamente o empenho de juntar
forças no mundo inteiro para um ataque multilateral aos EUA – empenho
apoiado pelas mesmas organizações que os intelectuais iluminados
descrevem como pontas-de-lança do “imperialismo ianque”.
Quanto ao Plano Colômbia, obra de um presidente cujas conexões
ideológicas não escapam nem a velhinhos com Alzheimer desde que ele se
elegeu com a ajuda do governo da China e depois se tornou protetor da
espionagem chinesa em Los Alamos, o seu único efeito, previsível demais
para ser coincidência, foi desarmantelar os velhos cartéis e transferir todo o
seu poder às Farc. Se isso é imperialismo americano, eu sou o Andrade
Nery em pessoa.
Dentro dos EUA, até as crianças de escola sabem que há uma briga de
foice entre o nacionalismo americano, tradicionalista e conservador, e o
esquema globalista associado às fundações bilionárias, à intelectualidade
enragée, ao movimento neocomunista e aos organismos administrativos
internacionais. Juntar tudo no mesmo saco e catalogá-lo sob o rótulo geral
de “imperialismo americano” só é possível no Terceiro Mundo, onde a
população ignora tudo da política interna americana e pode ser facilmente
ludibriada para desviar seu ressentimento das verdadeiras centrais
globalistas e despejá-lo sobre os EUA. Patifes como Andrade Nery não
fazem outra coisa na vida senão colaborar com esse gigantesco esquema de
desinformação, no qual se depositam as mais altas esperanças de
“reconquistar na América Latina o que perdemos no Leste Europeu”. Se
para isso tentam parasitar as glórias da velha ESG, é porque sabem que só
por meio do engodo podem manipular as Forças Armadas, transformando a
“grande barreira” no “grande rombo” por onde a tropa inteira dos
tradicionais inimigos do Brasil vem entrando para galgar todos os altos
postos e cobrir-se de glórias usurpadas.
Durante anos fui, na grande mídia brasileira, o único jornalista empenhado
em defender as Forças Armadas contra o bombardeio de calúnias, sabendo
que este, no fundo, vinha das mesmas fontes da “nova doutrina estratégica”
que ia ganhando terreno na ESG e por toda parte. Por ter assumido essa
posição, sofri toda sorte de ataques e boicotes, recebi inumeráveis ameaças
de morte, vi minha família ser difamada e perdi três empregos. Recebi duas
condecorações, uma do Exército, outra da Aeronáutica. Senti que
compensavam tudo aquilo. Não tenho estômago para assistir a esse
espetáculo grotesco de um agente de influência comunista posar de
advogado da honra militar enquanto eu faço o papel do malvadinho, do
inimigo, do bandido. É absurdo demais, é insano demais. É o mundo de
Pirandello, de Kafka, de Ionesco, o mundo da Rainha de Copas. É a
realidade transformando-se em sátira de si mesma. Um engenheiro do
rombo falando em nome da “grande barreira”! Valha-me Deus! Até que
ponto este país vai consentir em deleitar-se no fingimento, na farsa, na burla
geral?
***
PS – No terceiro parágrafo deste artigo, o leitor não deve enxergar
nenhuma insinuação maldosa contra as prostitutas, essas boas moças que
tanto alegraram a nossa juventude. Como diria o eminente Agamenon
Mendes Pedreira, o jornalista mais sério do Globo, a única coisa em comum
entre elas e os Andrades Nerys é que elas mudam de posição a pedido do
freguês.
9 de janeiro de 2006
A esquerda americanizada

N
O TEMPO DA DITADURA, OS ESQUERDISTAS DA MÍDIA, embora
conservassem o poder sobre as redações, se sentiam isolados e
constrangidos. Não tanto pela censura quanto pela hostilidade geral
da população às guerrilhas. Deprimia-os que o povo não gostasse de ver
recrutas e civis brasileiros ser feitos em pedaços por carros-bombas.
Magoava-os profundamente que ninguém visse nada de heróico em
“justiçar” com tiros nas costas homens desarmados, que ninguém admirasse
a nobreza de sentimentos com que o capitão Lamarca esmagava a
coronhadas a cabeça de um prisioneiro amarrado.
Hoje, esses episódios sumiram tão completamente dos mesmos jornais que
os denunciavam, que já parecem invencionices retroativas da direita. Na
época, os próprios jornalistas de esquerda eram obrigados a contar tudo tim-
tim por tim-tim, sem poder em contrapartida expor ao menos em detalhes a
sua parte, os padecimentos que seus amigos terrorristas sofriam – oh, quão
injustamente! – em retribuição das bombas e das emboscadas. Tinham os
mais altos cargos e os melhores salários, mas eram tão incompreendidos e
infelizes que precisavam consolar-se mediante festinhas de embalo no
Copacabana Palace. Terminaram achando que drogas e surubas tinham um
alto potencial revolucionário, e não estavam de todo errados, já que
acabaram conseguindo mais eficazmente corromper as gerações seguintes
do que ganhar alguma simpatia dos contemporâneos para a violência
revolucionária. Vindo a calhar com a estratégia gramsciana que então
começava a ser importada, o modelo americano de “guerra cultural” da New
Left, que no início julgavam desprezível e burguês na comparação com as
propostas truculentas de Che Guevara e Régis Débray, acabou sendo a tábua
de salvação que lhes permitiu sobreviver para reinventar depois a história
daquele período, fazendo da derrota das guerrilhas uma espetacular vitória
publicitária e uma fonte inesgotável de verbas consoladoras.
Mas não foi só nisso que a esquerda midiática se americanizou. A época
foi também a do afluxo maciço de brazilianists, que embora fossem
também quase todos de esquerda – alguns deles tão enragés quanto
qualquer guerrilheiro –, eram bem recebidos pelo governo por conta das
instituições que os patrocinavam. Muita coisa que a esquerda local não
podia dizer era dita pela boca desses medalhões, de onde o discurso
esquerdista saía perfumado com o aroma da superior neutralidade
acadêmica da Ivy League.
Aos poucos, o hábito de respaldar-se em declarações de americanos
apresentados como insuspeitos tornou-se um dispositivo usual da retórica
esquerdista. Na verdade homens como Ramsey Clark, John K. Galbraith,
Jimmy Carter ou Ted Kennedy eram a fina flor do esquerdismo chique.
Estavam comprometidos até a goela com a ajuda à subversão no Terceiro
Mundo. Mas a simples insistência geral da esquerda na lenda de que o
golpe militar viera de Washington dava a qualquer americano, por contraste,
a autoridade para falar contra a direita latino-americana sem parecer nem
um pouquinho esquerdista. O mesmo acontecia com jornais
patologicamente mentirosos em favor da esquerda, como New York Times e
Washington Post, que ante a platéia tupiniquim ignorante, podiam ser
citados como modelos de isenção profissional pelo simples fato de ser
americanos.
A geração seguinte de esquerdistas continuou usando o mesmo truque,
mas por automatismo paspalho e sem saber que era truque. Quando um
Eliakim Araújo, ardido de dores petistas e embriagado de alegria vingativa
pela demissão de Boris Casoy, compara desvantajosamente o ex-âncora da
Record a “respeitados jornalistas do horário nobre” da TV americana,
incluindo entre estes últimos dois notórios vigaristas de esquerda como
Peter Jennings e Dan Rather, ele parece acreditar mesmo no que diz,
coitado. A malícia dos gurus impregnou-se em seus discípulos sob a forma
de ingenuidade perversa. Eles já não mentem por astúcia. Mentem porque
ninguém os ensinou a fazer outra coisa.
NOTINHA HORRÍVEL
Quanto às festinhas no Copacabana Palace, não falo genericamente. Há
uma crônica inesquecível de Daniel Más sobre isso, publicada na extinta
revista Visão. Segundo o cronista, até a expressão “Anos Dourados”, usada
para designar de maneira aparentemente paradoxal uma época também
carimbada como “Anos de Chumbo”, se originou entre o pessoal da mídia e
do show business por alusão a uns pacotinhos dourados em que vinha a
cocaína. O episódio é edificante. Um dia, turistas estavam brincando de
jogar-se uns aos outros na piscina do hotel, enquanto a turminha esperta dos
brasileiros, nas mesas em torno, aguardava a chegada de um boliviano que
trazia o pó. De repente, aterrorizados, viram o sujeito entrando e sendo
agarrado pelos brincalhões. Não houve tempo nem de gritar. Foi o
desespero geral: todo mundo pulando na água, atrás dos papeizinhos
dourados...
ABRAMOFF PARA BRASILEIROS
Vocês devem ter lido na mídia brasileira que o caso das verbas ilegais do
lobista Jack Abramoff é “um escândalo republicano”, que a investigação vai
arrasar a base parlamentar de George W. Bush etc. e tal.
Tudo besteira.
O noticiário internacional que se publica no Brasil copia servilmente o
New York Times, o Washington Post, a Reuters e demais fontes da “grande
mídia” americana, mas o fato é que essa mídia, vista desde aí, fica bem
maior que aqui. O NY Times, aos domingos, pico de vendas, tira pouco mais
de um milhão de exemplares. Que é isso, perto dos 38 milhões de ouvintes
diários do conservador Rush Limbaugh? Se você somar as platéias de
Limbaugh com as de outros comentaristas conservadores de sucesso, como
o elegante Bill O’Reilly, ou o explosivo Michael Savage, mais as colunas
semanais de articulistas de direita distribuídos a centenas de jornais, como
as de David Horowitz, Don Feder, Thomas Sowell, Ann Coulter, verá que,
na disputa de público, a “grande mídia” é titica de galinha (sem contar o
fato de que a credibilidade dos jornalões está muito baixa entre seus
próprios leitores, não passa de 30 por cento). Por isso ela pode mentir à
vontade, e quanto mais impopular mais mente, em puro desespero, em pura
apelação. É o crepúsculo dos ídolos. Berrando e apanhando. Aqui todo
mundo sabe que as coisas são assim. O pessoal só lê esses jornais para saber
qual a opinião dos democratas, não a verdade do que está acontecendo.
Quem quer a verdade compara o jornalismo de esquerda com o de direita e
tira suas próprias conclusões.
O problema é que no Brasil (1) a mídia esquerdista chique americana ainda
tem prestígio, o pessoal das redações acredita mesmo que o NY Times seja
uma fonte confiável; (2) não existe aí nenhum Rush Limbaugh; o
jornalismo de direita é raquítico. Resultado: Tudo o que no Brasil se aceita
como verdade factual sobre a política dos EUA é apenas a versão
esquerdista, conscientemente deformada, conscientemente militante e cada
vez mais fanática, cada vez mais descarada.
O noticiário sobre o caso Abramoff é um exemplo típico. Aqui os
republicanos riem quando lêem que o escândalo é para o lado deles. Riem
porque conhecem a lista dos políticos de oposição que embolsaram dinheiro
do mega-vigarista. Nada menos de noventa por cento dos senadores
democratas estão nela[ 1 ]. John Kerry, por exemplo, levou cem mil dólares.
Hillary Clinton, mais modestamente, doze mil. E assim por diante. Quando
ligarem o ventilador judicial, o grosso da sustância fecal vai para esse lado.
Os democratas só estão fazendo onda na mídia. Na hora H, terão de
escolher entre a pizzaria e a cadeia. Ninguém na própria esquerda ignora
isso, mas para que estragar prematuramente um prazer que, por natureza, já
está condenado a ser breve?
É por essas coisas que, quando o NY Times alardeia a queda de
popularidade do presidente, jamais a compara com a sua própria, para não
admitir o vexame. Bush, no ponto mais baixo, ainda tinha mais
credibilidade do que toda a grande mídia americana somada.
Infelizmente, no Brasil, ninguém tem a menor idéia disso. Os EUA que se
vêem daí só existem na imaginação esquerdista. São uma entidade fantasma
fabricada pela esquerda americana para consumo próprio, e que acaba
sendo mais consumida no Terceiro Mundo do que aqui, como todo produto
americano que o mercado interno rejeita como demodé.
DUAS ESTRATÉGIAS
Há hoje em dia pelo menos duas maneiras de inserir um país do Terceiro
Mundo na estratégia comunista internacional. A primeira é usar os
instrumentos clássicos do populismo radical, declarando guerra à iniciativa
privada e ao capital estrangeiro. A segunda é transferir a guerra do campo
econômico para o cultural e jurídico, anestesiando os investidores
internacionais por meio de uma política econômica mais ou menos
“ortodoxa” e assim ganhar tempo para ir minando as crenças tradicionais do
povo e implantando discretamente, em lugar delas, novas leis e costumes
“politicamente corretos” que, no prazo devido, acabarão inevitavelmente
rendendo frutos ainda mais explosivos que qualquer espalhafato “anti-
imperialista” de Hugo Chávez e Evo Morales.
Qualquer profissional do comunismo que tenha alguma competência e
seriedade sabe que não faz sentido preferir uma via ou a outra. A escolha
não depende de preferências individuais, mas da sábia adaptação às
circunstâncias, mudando de rumo quantas vezes seja necessário para
desorientar as vítimas e, no conjunto, fazer avançar o processo de maneira
irreversível. Ter não uma, mas duas estratégias alternadas ou combinadas é,
aliás, o mínimo que se poderia esperar de cérebros versados na dialética de
Marx, onde a revolução avança por meio da administração inteligente das
contradições.
No Brasil, as duas estratégias citadas correspondem à via petista originária
e à via tucana. Por ter sido eleito para implantar a primeira e depois adotado
a segunda, o sr. Luís Inácio Lula da Silva é chamado de traidor pela massa
ignara. Nos altos círculos do Foro de São Paulo, Fidel Castro e Hugo
Chávez riem dessa indignação histérica porque sabem que Lula nunca foi
tão fiel à estratégia global do movimento.
A duplicidade de vias permite que, nas horas de aperto, a esquerda tire
proveito publicitário até de seus próprios crimes e desvarios. Quando algum
corrupto de esquerda é pego em flagrante, basta acusá-lo de traidor, de
vendido para a direita, mesmo quando ele não tenha roubado para si próprio
e sim para o esquema partidário, o que é precisamente o caso do Mensalão.
O Fórum Social Brasileiro, que se anuncia para breve, está programado
exatamente para esse fim: capitalizar a roubalheira petista, explicando-a
retroativamente como delito de “neoliberalismo”...
Outro exemplo: a esquerda americana envia à Amazônia uns
“missionários” do Conselho Mundial das Igrejas para fomentar entre os
índios ambições politicamente corretíssimas de “nações indígenas”
independentes, enquanto a esquerda brasileira, explorando a ignorância
nacional de que essa entidade é pró-comunista, aproveita o caso para
denunciar o “imperialismo americano”.
Mais caracteristicamente ainda, presidentes americanos notoriamente pró-
esquedistas como Jimmy Carter e Bill Clinton incentivam a destruição das
forças armadas latino-americanas, último baluarte de resistência
anticomunista no continente, enquanto agitadores locais se infiltram nas
academias militares e em think tanks como a Escola Superior de Guerra
para incitar na oficialidade, com base nisso, o ódio anti-americano. A
operação completa-se quando em seguida aparecem líderes tradicionais da
esquerda afagando os militares e insinuando que está na hora de “superar
velhos ressentimentos” e unir-se “contra o inimigo da pátria”.
Multiplicados ad infinitum, ardis como esse acabam não apenas surtindo
efeito, mas consolidando-se como esquemas de raciocínio padronizados,
que proliferam espontanemente e se adaptam por automatismo a mil e uma
circunstâncias diversas. Para militantes comunistas tarimbados, essas
operações são pura rotina.
16 de janeiro de 2006

[ 1 ] Ver a lista inteira em http://www.newsmax.com/archives/ic/2006/1/6/100900.shtml.


Saudades da literatura

T
ENDO EM CONTA A DISTINÇÃO DE ALLEN TATE entre a mera
“comunicação” e a genuína “comunhão” de experiências
fundamentais, a primeira caracterizando a mídia em geral e a segunda
a arte do escritor, é difícil escapar à conclusão de que a literatura no Brasil,
se ainda existe, desapareceu do cenário público. Há, é claro, um Bruno
Tolentino, mas o espaço que ocupa é demasiado pequeno, quase nulo para o
seu tamanho. Há um Alberto da Cunha Melo, mas quem já ouviu falar dele
fora do Nordeste? Há mais dois ou três que ninguém conhece e, pelo que
vêem em torno, preferem mesmo não ser conhecidos. Nada do que em geral
se publica e se comenta sob rótulo literário nos suplementos ditos
“culturais” (faz-me rir) corresponde à exigência fundamental da literatura,
que é a de conservar o poder da linguagem enquanto veículo de
autoconhecimento humano (e por isso mesmo de comunhão) contra a
invasão da “língua de pau” ideológica, destinada à sedução, manipulação e
controle sutil da opinião popular. Que linguagem autêntica pode sobreviver
aos códigos “politicamente corretos”? Não dar má impressão a fiscais
paranoicamente maliciosos, empenhados em ver em tudo sinais de
“racismo”, “machismo”, “sexismo”, “homofobia”, “fundamentalismo”,
“etnocentrismo” etc. etc. etc., – eis a primeira preocupação de quem escreve
hoje em dia, isto se ele (ou he-she, pombas) não for pessoalmente um
desses fiscais. A simples naturalidade da comunicação foi embora – como
poderia subsistir a veracidade da comunhão? Nada se acomoda tão
confortavelmente aos novos códigos quanto a vacuidade, a inconsciência
balofa, a mesquinharia que vê num atestado de petismo (ou, pior ainda, de
psolismo) o substitutivo cabal e até superior das virtudes evangélicas,
descartadas como criações ideológicas peremptas ou, na melhor das
hipóteses, como antecipações toscas e precárias do Homo guevarianus,
encarnação máxima das perfeições humanas, angélicas, divinas e
motoqueiras. Tal é a condição para ser um escritor brasileiro hoje em dia: a
total incapacidade para qualquer experiência humana genuína, a perfeito
ajuste da vida interior à forma dos estereótipos, a adequação harmônica,
artística, entre a percepção falsa e a linguagem fraudulenta.
Dos crimes da esquerda triunfante, nenhum se compara à total destruição
da literatura no Brasil. Como esse não se mede em reais, nem tem como
vítima o patrimônio do Estado, ninguém liga. Mas o patrimônio do Estado
recupera-se com uma boa safra de soja e uns impostos. A experiência
interior e a comunhão, uma vez perdidas, não voltam mais, porque são duas
coisas que, quanto menos você tem, menos sente falta delas, até o ponto de
supor que jamais existiram, que foram apenas palavras ilusórias de um
extinto vocabulário ideológico. Em épocas muito mais ricas,
espiritualmente, do que a nossa, erguiam-se, ao menor sinal de decréscimo
da qualidade literária, debates intensos sobre “a crise da literatura
nacional”. Hoje as discussões sumiram, pela simples razão de que aquilo
que cessou de existir não pode mais decrescer. E aquilo que nem existe nem
decresce não pode ser problema de maneira alguma.
23 de janeiro de 2006
A guerra contra as religiões

E
MBORA DESDE A REVOLUÇÃO FRANCESA o grosso da violência militante
tenha se originado sempre nas ideologias materialistas e escolhido
como vítima preferencial a população religiosa; embora a perseguição
aos católicos, ortodoxos, protestantes e judeus tenha matado mais gente só
no período de 1917 a 1990 do que todas as guerras religiosas somadas
mataram ao longo da história universal; embora nas duas últimas décadas o
morticínio de cristãos tenha voltado a ser rotina nos países comunistas e
islâmicos, chegando a fazer 150 mil vítimas por ano; embora todos esses
fatos sejam de facílima comprovação e de domínio público (v. nota no fim
deste artigo); e embora nas próprias nações democráticas o acúmulo de
legislações restritivas exponha os religiosos ao perigo constante das
perseguições judiciais, – a grande mídia e o sistema de ensino na maior
parte dos países insistem em continuar usando uma linguagem na qual
religião é sinônimo de violência fanática e na qual a eliminação de todas as
religiões é sugerida ao menos implicitamente como a mais bela esperança
de paz e liberdade para a humanidade sofrida.
A mentira gigantesca em que se sustenta essa campanha é tão patente, tão
ostensiva, tão cínica, que combatê-la só no campo das discussões públicas é
o mesmo que querer parar um assassino, ladrão ou estuprador mediante a
alegação polida de que seus atos são ilegais. Os mentores e autores da
campanha anti-religiosa universal sabem perfeitamente que estão mentindo.
Não precisam ser avisados disso. Precisam é ser detidos, desprovidos de
seus meios de agressão, reduzidos à impotência e tornados inofensivos
como tigres empalhados.
A propaganda insistente contra uma comunidade exposta a risco não é
simples expressão de opiniões: é ação criminosa, é cumplicidade ostensiva
ou disfarçada com o genocídio. Aqueles que a praticam não devem ser
apenas contestados educadamente, como se tudo não passasse de um
pacífico debate de idéias: devem ser responsabilizados judicialmente por
crimes contra a humanidade. A jurisprudência acumulada em torno das
atrocidades nazistas, unânime em condenar a cumplicidade moral mesmo
retroativa, fornece base mais que suficiente para condenar, por exemplo, um
Richard Dawkins quando sai alardeando que o judaísmo e o cristianismo
são “abuso de menores”, como se a noção mesma da proteção à infância
não tivesse sido trazida ao mundo por essas religiões e como se elas não
fossem, hoje, o último obstáculo à erotização total da infância e à
subseqüente legalização universal da pedofilia (já praticamente
institucionalizada no Canadá, um dos países mais ateus do universo).
Quando o sr. Dawkins se diz avesso ao uso de meios violentos para
extinguir as religiões, mas propõe os mesmos objetivos ateísticos que há
dois séculos buscam realizar-se precisamente por esses meios, ele sabe
perfeitamente que a ênfase do seu discurso, e portanto seu efeito sobre a
platéia, está na promoção dos fins e não na seleção dos meios. Voltaire,
quando bradava “esmagai a infame”, negava estar incitando quem quer que
fosse à violência física contra a Igreja Católica. Mas, quando os
revolucionários de 1789 saíram incendiando conventos, destripando freiras
e decapitando bispos, era esse grito que ecoava nos seus ouvidos e saía
pelas suas bocas. Se a religião é, segundo o sr. Dawkins, “o maior de todos
os crimes”, a matança de todos os religiosos terá sempre o atenuante da
gravidade menor e o da sublime intenção libertadora. Quando no começo
do século XX Edouard Drumont escrevia “ La France Juive”, ele não tinha
em mente nenhuma crueldade a ser praticada coletivamente contra os
judeus. Mas é impossível ler hoje suas páginas sem sentir o cheiro das
câmaras de gás. Uma única e breve página vagamente anti-semita escrita
por Winston Churchill na juventude precipitou-o numa tal crise de
arrependimento, diante da ascensão do nazismo, que isso decidiu o restante
da sua vida de líder e combatente. Drumont, que morreu em 1917, não
poderia ter adivinhado o destino que os leitores dos seus livros dariam aos
judeus. Mas o sr. Dawkins não precisa adivinhar o futuro para calcular o
efeito de suas palavras: ele conhece a história do século XX, ele sabe a que
resultados levam não somente as propostas explícitas como a de Lênin,
“varrer o cristianismo da face da Terra”, mas também o anticristianismo
mais sutil, mais sofisticado de um Heidegger, que, pretendendo expulsar
Deus para fora da metafísica, convocou Adolf Hitler para dentro da
História. O homem que, sabendo de tudo isso, se oferece para gravar
programas de TV que apresentam a religião como a raiz de todos os males,
como se os mais amplos morticínios da História não fossem males de
maneira alguma, esse homem é simplesmente um apologista do genocídio,
um criminoso vulgar como qualquer neonazista de arrabalde.
O sr. Dawkins já ultrapassou aquele limite da truculência mental e do
desprezo à verdade, para além do qual toda a discussão de idéias se torna
inútil. Não se trata de provar nada para o sr. Dawkins. Trata-se de provar
seu crime perante os tribunais. O dele e o de inumeráveis organizações
militantes, subsidiadas por fundações bilionárias, dedicadas a fomentar por
todos os meios o ódio às religiões.
Todas as organizações religiosas que não se mobilizarem para a defesa
comum não só no campo midiático, mas no judicial, devem ser
consideradas traidoras, colaboracionistas e vendidas ao inimigo. E não
espanta que usem para legitimar sua covardia abominável o pretexto do
perdão e da caridade, prostituindo o sentido da mensagem evangélica que
manda cada um de nós perdoar as ofensas feitas a ele próprio, nunca
pavonear-se de cristão mediante o expediente fácil de perdoar crimes
cometidos contra terceiros, que aliás nunca lhe deram procuração para isso.
Não é um discípulo de Jesus aquele que, vendo seu irmão ser esbofeteado,
se apressa em cortejar o agressor oferecendo-lhe a outra face da vítima.
FUNDAMENTALISMO?
O mais extraordinário é que as forças anticristãs e antijudaicas, mal
escondendo seu apoio à ocupação islâmica do mundo ocidental,
prevalecem-se da própria imagem sangrenta do radicalismo islâmico para
projetá-la sobre todas as comunidades religiosas, sobretudo aquelas que são
vítimas usuais da violência muçulmana, e transmitir ao mundo a noção de
que todas são, no fundo, terroristas. O manejo astuto do termo
“fundamentalismo” tem servido para esse ardil, que desonra qualquer
língua culta. Esse termo designava originariamente certas seitas protestantes
afeitas a uma leitura literal da Bíblia ou, mais genericamente, qualquer
comunidade religiosa decidida a conservar o apego às suas tradições (um
direito que hoje se reserva para muçulmanos, índios, africanos e seus
descendentes, negando-o a todo o restante da espécie humana). Ao
transferir o uso desse qualificativo para os terroristas islâmicos, a grande
mídia e os intelectuais ativistas que a freqüentam cometeram uma
impropriedade proposital. De um lado, esse uso camuflava o fato de que
esses radicais não eram de maneira alguma tradicionalistas: eram
revolucionários profundamente influenciados pelas ideologias de massa
ocidentais – comunismo e nazifascismo –, bem como pelo pensamento
“vanguardista” de Heidegger, Foucault, Derrida e tutti quanti. De outro
lado, e por isso mesmo, o termo assim empregado ia-se imantando de
conotações repugnantes, preparando seu uso futuro como arma de guerra
psicológica contra as mesmas comunidades religiosas que o radicalismo
islâmico tomava e toma como suas vítimas preferenciais: os cristãos e os
judeus. Numa terceira fase, o qualificativo passou a ser usado
ostensivamente contra essas comunidades, ao mesmo tempo que se
espalhava pelo mundo a campanha de difamação anti-religiosa da qual o sr.
Richard Dawkins é agora o mais espalhafatoso garoto-propaganda. Durante
a invasão do Iraque, rotular como “fundamentalistas” o presidente Bush
(cristão) e o secretário Rumsfeld (judeu) tornou-se repentinamente
obrigatório em toda a mídia chique, com uma uniformidade que comprova,
uma vez mais, a presteza da classe jornalística em colaborar com a reforma
orwelliana do vocabulário.
REALIZANDO UM SONHO DE INFÂNCIA
Desde pequenos, os membros da futura Comissão de Desconstituição e
Injustiça da Câmara Federal nutriam profunda revolta contra as palmadas
que levavam de seus progenitores em represália ao exercício de direitos
humanos fundamentais, como o de tentar furar os olhos de seus
irmãozinhos, atear fogo à casa, esganar os periquitos da vizinha, esticar um
barbante entre os degraus da escada só para ver a vovó rolando ou praticar
qualquer outra daquelas truculências encantadoras que prenunciam uma
brilhante maturidade de discípulos de Che Guevara.
Na adolescência, ainda parcialmente oprimidos sob a autoridade familiar,
comoviam-se até às lágrimas com a perspectiva de tornar-se, à imagem do
mestre, “eficientes e frias máquinas de matar” e sair massacrando padres,
burgueses, pais, mães e demais autoridades, “pero sín perder la ternura
jamás”.
O sonho kitsch do morticínio meigo encantou sua juventude e tornou-se o
ideal orientador de sua formação moral. Infelizmente, durante todo esse
longo período, nada puderam fazer de substantivo contra a autoridade
opressora, da qual dependiam para seu sustento, vestuário, educação, lazer e
outras maldades a que se submetiam com paciência de verdadeiros mártires
do socialismo. Em segredo, juravam que um dia iam acabar com toda
aquela injustiça capitalista.
Agora, crescidinhos, tiveram finalmente uma oportunidade da vingança
redentora contra papai & mamãe. Ainda não puderam mandá-los para a
cadeia, mas já quebraram a espinha dorsal da sua autoridade. Aprovaram,
em caráter conclusivo, o Projeto de Lei 2654/03, que proíbe qualquer forma
de castigo físico em crianças e adolescentes. O projeto será encaminhado ao
Senado, sem precisar ser votado pelo Plenário da Câmara.
O incentivo direto e indireto à delinquência infanto-juvenil tem sido, há
quase um século, um dos instrumentos fundamentais usados pelos ativistas
de esquerda para minar a ordem social capitalista, gerando dentro dela um
caos infernal para em seguida poder acusá-la de ser precisamente isso e
propor a salvação geral mediante o acréscimo de controles estatais e
burocráticos, exercidos, é claro, por eles mesmos. Intimamente associada a
essa estratégia, a transferência progressiva de todas as formas de controle
social para o grupo politicamente ativo é também um objetivo constante da
subversão comunista. Todos os meios são usados para isso, sempre sob
pretextos edificantes que colocam o eventual adversário na posição
incômoda de parecer um defensor do mal. As mães que derem uma palmada
no bumbum de seus filhos, por exemplo, serão agora encaminhadas
compulsoriamente a um “programa comunitário de proteção à família”.
Quem pode ser contra a proteção à família? Na URSS, os dissidentes eram
encaminhados à “assistência psiquiátrica gratuita”. Quem pode ser contra o
tratamento gratuito dos doentes mentais?
Nos EUA, já se tornou impossível ignorar o vínculo de causa e efeito entre
as reformas educacionais “progressistas” adotadas desde John Dewey
(1859-1952) e o crescimento avassalador da delinqüencia infanto-juvenil,
um problema que o Estado já desistiu de eliminar, contentando-se agora em
dedicar-se ao “gerenciamento de danos”, isto é, em adestrar a sociedade
para que aceite o estado de coisas como fatalidade inevitável. (Sugiro,
quanto a esse ponto, a leitura de Joel Turtel, Public Schools, Public
Menace: How Public Schools lie to Parents and Betray our Children,
Charlotte T. Iserbyt, The Deliberate Dumbing Down of America, Berit Kjos,
Brave New Schools: Guiding Your Child Through the Dangers of the
Changing School System, Brenda Scott, Children No More: How We Lost a
Generation, Bob Whitaker, Why Johnny Can’t Think e John Taylor Gatto,
Dumbing Us Down: The Hidden Curriculum of Compulsory Schooling.
Simultaneamente, a intelectualidade ativista tira proveito da situação que
ela própria criou, imputando a violência adolescente, por exemplo, às
fábricas de armas, que já existiam no tempo em que as crianças se
contentavam com traquinagens domésticas inofensivas.
A relatora do projeto na Comissão, Sandra Rosado (PSB-RN), justificou a
nova lei afirmando que “educar pela violência é uma abominação,
incompatível com o atual estágio de evolução da sociedade”. Decerto:
quando um país, governado pelos gangsters do Mensalão intimamente
associados aos narcotraficantes das Farc, chega aos 50 mil homicídios por
ano e ainda se preocupa mais em amarrar as mãos dos policiais do que em
deter os criminosos, isso é um estágio de evolução incompatível com
palmadas educativas nos bumbuns das crianças travessas. O tempo de tentar
educar as safadinhas já passou: elas já estão todas na Câmara Federal.
Somada às demais medidas concomitantes tomadas pelo Estado-babá para
a proteção dos delinqüentes e a criminalização de todas as formas
tradicionais de autoridade, a nova lei promete ter efeitos culturais que farão
Antonio Gramsci e os fundadores da Escola de Frankfurt ter orgasmos no
túmulo. Deve ser – por fim! – a liberação sexual dos mortos.
FONTES SOBRE A PERSEGUIÇÃO ANTI-RELIGIOSA
LIVROS:
· David Limbaugh, Persecution: How Liberals Are Waging War Against Christianity
(Washington, Regnery, 2003).
· Roy Moore, So Help Me God: The Ten Commandments, Judicial Tyranny, and The Battle for
Religions Freedom (Nashville, Tennessee, Broadman & Holman, 2005).
· Janet L. Folger, The Criminalization of Christianity (Systers, Oregon, Multnomah, 2005).
· Rabbi David G. Dalin, The Myth of Hitler›s Pope (Washington DC, Regnery, 2005).
· David B. Barrett & Todd Johnson, World Christian Trends, Ad 30-Ad 2200: Interpreting the
Annual Christian Megacensus. William Carey Library, Send the Light Inc, 2003.
· E. Michael Jones, Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control (South Bend,
Indiana, St. Augustine’s Press, 2000).
INTERNET:
· http://www.christianpersecution.info/
· http://zbh.com/links/martyred.htm
· http://www.freedomhouse.org /religion/
· http://www.christianmonitor.org/
· http://www.worship.com/help/
· http://www.wayoflife.org/fbns/state.htm
· http://www.thegreatseparation.com/newsfront/christian _persecution/
· http://www.persecution.com/
· http://www.jews4fairness.org/index.php
· http://www.wnd.com (site de notícias em geral, acompanha regularmente as notícias de
perseguição religiosa no mundo).
Sugestão aos bem-pensantes: Internem-se

P
ASSOU DESPERCEBIDO À GRANDE MÍDIA, e eu mesmo só reparei agora:
durante a conferência Axis for Peace 2005, promovida em novembro
do ano passado pela rede www.voltaire.net com o apoio da Al-Jazeera
e do canal chavista Telesur, o general russo Leonid Ivashov afirmou que o
terrorismo internacional não existe, que é tudo invencionice de Washington.
Os atentados ao World Trade Center e ao Pentágono, segundo ele, foram
encenações, montagens criadas por George W. Bush para desestabilizar a
ordem mundial da ONU e impor o domínio americano a todo o planeta.
Não, perplexo leitor, isso não é propaganda de vodca. Ivashov é vice-
presidente da Academia Russa de Problemas Geopolíticos, foi secretário do
Conselho de Ministros da Defesa da Comunidade de Estados Independentes
(CEI) e, por ocasião do 11 de setembro, era chefe do Estado-Maior das
Forças Armadas russas. Bêbado ou sóbrio, ele é a voz de Vladimir Putin. E
não consta que estivesse bêbado. Pela sua boca, foi o próprio governo russo
que saiu alardeando a boa e velha explicação conspiratória da guerra contra
o terrorismo.
Lançada originariamente pelos próprios organizadores da conferência, a
teoria, em si, não tem pé nem cabeça. Nenhum governo democrático tão
fiscalizado pela oposição e vasculhado pela mídia xereta como o dos EUA
poderia montar em segredo uma farsa desse tamanho, desafio temível até
para ditaduras com absoluto controle dos meios de informação.
Mas o que importa não é a teoria, na qual seus inventores jamais
acreditaram. É o fato de que seja aprovada, ao menos da boca para fora, por
tão ilustre hierarca de um país que, nominalmente, continua aliado dos EUA
na guerra contra o terrorismo. Indícios de que a Rússia fazia jogo duplo
nunca faltaram. As armas apreendidas com terroristas islâmicos são quase
sempre russas, quando não são chinesas. Putin tem acalmado as suspeitas
com a desculpa do contrabando. A fala do general assinala uma mudança de
tática, bem ao velho estilo soviético, passando dialeticamente da ocultação
à ostentação: se não existe terrorismo, as armas russas não precisam mais
ser desmentidas; podem ser alardeadas como ajuda meritória prestada a
puros heróis libertários. Aí a adesão à teoria psicótica começa a fazer
sentido.
Mas a mudança de clave do discurso publicitário não é um capricho
isolado. O próprio Ivashov deixou isso claro, ao usá-la como prefácio à
idéia bem mais substantiva que defendeu em seguida: o fortalecimento da
ONU, alicerçado numa “união geoestratégica da civilização”, para deter a
“expansão do imperialismo”. Distraidamente, como quem não quer nada,
ele sugeriu que essa nova estrutura de poder militar mundial deveria ter
como centro a Organização de Cooperação de Shangai, que reúne Rússia,
China, Cazaquistão, Quirziguistão, Tajiquistão e Uzbequistão. Que importa
uma mentirinha a mais ou a menos, se é para servir a um plano tão
grandioso? Uma ONU transformada em instrumento da Rússia e da China e
devotada a paralisar ou destruir o poderio americano: esse é o único
objetivo que logicamente condensa e explica toda a conduta recente não só
dessas duas potências, mas de seus aliados e servidores conscientes ou
inconscientes nos organismos internacionais, nos partidos de esquerda, nas
organizações terroristas, nas quadrilhas de narcotraficantes hoje quase todas
unificadas sob o comando da máfia russa (que é o próprio governo russo),
na rede de ONGs ativistas espalhadas pelo mundo, na mídia elegante e até
nos círculos alegadamente “nacionalistas” das nações periféricas (está
vendo, Andrade Nery? Não me esqueci de você). O desertor da KGB
Anatoliy Golytsin já tinha revelado esse plano na década de 80. Vários
estudiosos, como Stanislav Lunev, Jeffrey R. Nyquist, Constantine C.
Menges, Jack Wheeler e até eu que sou mais bobo, concordávamos que,
adivinhação ou não, Golitsyn não estava de todo errado. Foi fácil aos bem-
pensantes livrar-se de nós chamando-nos malucos e “teóricos da
conspiração”. Mas, agora, que é que eles que vão fazer com o general
Ivashov? Ou mandam interná-lo, ou nos dão alta do hospício. De quebra,
sugiro que se internem a si próprios, como Simão Bacamarte.
NOTA E FONTES
* Anatoly Golitsyn, que mencionei acima, é um alto funcionário da KGB que no início da década
de 80 fugiu para os EUA e tentou alertar a CIA para uma espetacular mudança estratégica do
movimento comunista internacional, de cuja preparação ele tinha sido testemunha direta em
reuniões do Comitê Central do PCUS com os comandantes dos serviços secretos soviéticos.
Explicarei isso com mais detalhe em algum dos próximos artigos, mas, em essência, a idéia era
sacrificar a unidade do Estado soviético em favor da diversificação e expansão do movimento
comunista mundial, que paralelamente deveria abdicar de toda unidade doutrinal e dedicar-se à
formação de um cerco mundial anti-americano, tomando como centros articuladores os grandes
organismos internacionais. Na época, pouca gente acreditou, mas hoje sabe-se que, das previsões
feitas por Golitsyn com base nas informações de que dispunha, 95 por cento já se realizaram,
incluindo a queda do Muro de Berlim. V. Anatoly Golitsyn, New Lies For Old: The Communist
Strategy of Deception and Disinformation (Dodd, Mead & Company, 1984).
* Em 1998, no seu livro Through the Eyes of the Enemy (Washington, Regnery), o coronel
Stanislav Lunev, o desertor de mais alta patente do serviço secreto militar soviético, afirmou: “A
guerra fria não terminou. Agora ela é entre a Máfia russa e os EUA.” A máfia russa tem duas
características distintivas: (1) Ela está tão bem infiltrada nos altos escalões oficiais que é impossível
distingui-la do próprio governo russo. (2) Desde pelo menos 1993 ela conseguiu unificar sob o seu
comando todas as máfias do mundo, tornando-se uma espécie de Comitê Central do crime
organizado (v. Claire Sterling, Thieves’ World: The Threat of the New Global Network of Organized
Crime, New York, Simon & Schuster 1994). Até hoje a chamada “grande mídia” (mais
própriamente grande mérdia) não registrou o fim das guerras entre máfias, o fenômeno mais
importante da década de 90, sem o qual a montagem do cerco anti-americano teria sido impossível
por falta de verbas. Hoje em dia, um terço do dinheiro que circula nas bolsas dos grandes centros
vem do crime organizado, o que basta para explicar as boas relações entre a elite financeira e as
Farc (lembrem-se da visita amável de Richard Grasso, presidente da New York Stock Exchange, ao
comandante da narcoguerrilha colombiana, Raul Reyes, em 26 de junho de 1999).
* Em perfeita harmonia com o general Ivashov, o New York Times condena a hipótese de ações
militares contra o Irã e propõe, em lugar delas, o plano da Rússia: transferir as pesquisas iranianas
de urânio enriquecido para seu próprio território, onde a fiscalização de oficiais russos bastaria para
dar ao mundo uma “garantia suficiente” (!!!) de que o material não seria usado para fins bélicos
contra os EUA. Não é à toa que muita gente no movimento conservador tem esse velho diário
novaiorquino na conta de órgão oficial da quinta-coluna anti-americana nos EUA.
ENVOLVIMENTO IMPLÍCITO
Não conseguindo descobrir nenhum Mensalão de direita, o semanário
Época denuncia: algumas pessoas devotadas à vida religiosa no Opus Dei
fazem exercícios espirituais, vivem uma disciplina quase monástica e –
supremo horror! – praticam a castidade. Para cúmulo do escândalo, informa
a revista, “Geraldo Alckmin, pré-candidato à Presidência pelo PSDB,
recebe formação cristã em encontros noturnos no Palácio dos
Bandeirantes.”
Já pensaram uma coisa dessas? Encontros noturnos, porca miséria. A que
ponto chegamos, hein? Por que o governador não trata de fazer algo
decente, por exemplo sair-se requebrando todo em encontros diplomáticos
como o ministro Gilberto Gil ou entornar garrafas de uísque presidencial?
E essa arraia-miúda do Opus Dei, então, que movida pelo mau exemplo do
chefe do executivo estadual se segura e se reprime em vez de se masturbar
honestamente como, a julgar pela lógica da denúncia, o fazem com
regularidade os redatores de Época e os demais cidadãos de bem?
Nunca vi um esforço tão patético para extrair uma denúncia do nada como
essa matéria contra a Opus Dei. Jamais tive a menor simpatia por essa
organização, nem muito menos pelo sr. Alckmin. Ela me parece uma devota
perda de tempo, ele uma reencarnação yuppie do seu célebre homônimo
mineiro, que entrou para a História como campeão nacional de murismo,
indefinição, nulidade e piedosa abstinência de qualquer atitude pessoal no
que quer que fosse.
Mas tudo o que a reportagem nos informa contra o governador é que ele
procede como um membro qualquer da Opus Dei e que a organização, por
seu lado, faz tudo o que seu regulamento professa fazer, ajudando os
interessados a viver como discípulos de Sto. Ignacio de Loyola no meio de
carreiras mundanas embriagantes e tentadoras, coisa que é obviamente
impossível sem alguns hiperbolismos disciplinares só capazes de espantar
quem não saiba nada sobre práticas ascéticas, mais ou menos idênticas em
todas as religiões, épocas e civilizações.
Bella robba! No entanto, a matéria é notável precisamente pelo tratamento
verbal que dá à ausência de conteúdo, transformando-o em coisa vagamente
assustadora por meio da exploração hábil do preconceito anti-religioso,
tomado como critério universalmente aceito. À luz desse preconceito, não
precisa haver mesmo nada de anormal na conduta de pessoas cristãs, pois
serem cristãs já é supremamente anormal e condenável.
O truque funciona assim. Suponha uma platéia inteiramente composta de
inimigos do espiritismo. Se, ali, você sai acusando alguém de espírita, a
denúncia é ouvida como coisa grave e digna de atenção. A mesma
denúncia, perante uma platéia de espíritas, soaria como puro nonsense, já
que ninguém ali está predisposto a achar que ser espírita é coisa ruim.
Suponha agora uma platéia indecisa, nem amiga nem inimiga do
espiritismo. A pura acusação de “espírita”, desacompanhada de qualquer
prova da suposta ruindade do espiritismo, só serviria para uma coisa: para
enganar cada membro individual da platéia, levando-o a crer que todos os
demais já conhecem as maldades do espiritismo de cor e salteado, sendo ele
o único ignorante no assunto. Pegos nessa armadinha, noventa por cento
dos seres humanos adeririam mais que depressa à denúncia, só para não
confessar ignorância. Assim, sem nada dizer de substantivo contra o coitado
do espírita, você induziria uma boa parte do público a pensar mal dele sem
saber por que.
Dou a essa técnica o nome de “envolvimento implícito”. Ela é um dos usos
mais calhordas que se pode fazer da linguagem. Sem dizer nada de
substantivo contra a Opus Dei ou o governador Geraldo Alckmin, Época
conseguiu induzir o público a pensar mal dos dois e até do catolicismo em
geral, resguardando-se ainda de qualquer suspeita de havê-los acusado do
que quer que seja.
Criar uma situação do nada, por meras palavras, pode ser uma arte. Pode
ser teatro, poesia, ficção, até mesmo de alta qualidade. Pode ser até hipnose.
Mas jornalismo não é. Como, porém, Época se alardeia nacionalmente uma
publicação jornalística exemplar, cada leitor leigo, que até o momento não
imaginava ser isso jornalismo, suporá que ele próprio era o único a ignorá-
lo e, mais que depressa, admitirá que jornalismo é precisamente isso. Donde
tirará facilmente a conclusão de que algo de muito grave, efetivamente,
pesa contra o governador Geraldo Alckmin, o Opus Dei e a Igreja Católica,
embora ele não saiba o quê.
O envolvimento implícito é um truque temível porque tem o dom de
confirmar-se a si mesmo. Ele não é jornalismo, mas é preciso um hábil
domínio da técnica jornalística para praticá-lo – e, nesse sentido puramente
formal, ele é jornalismo, e até de alto nível. Alto nível de safadeza, mas alto
nível de qualquer modo.
Quando uma revista semanal com o prestígio de Época se permite fazer do
seu leitor o alvo desse tipo de gozação maquiavélica, e usá-lo como arma de
guerra contra a religião da maioria dos brasileiros, é porque o senso do
certo e do errado já desapareceu por completo do horizonte visível da classe
jornalística.
DINES X MAINARDI
Ainda mais desavergonhado que Época é o Observatório da Imprensa, que
já começou a cantar vitória contra Diogo Mainardi quando um dirigente do
Opus Dei apareceu gabando-se de que duzentos jornalistas de elite haviam
freqüentado encontros da organização. Estava aí a prova, berrou Alberto
Dines, de que o Opus Dei, e não o petismo-comunismo, mandava na mídia
brasileira. Haja paciência. Desde logo, o sujeito não citou um único nome: o
placar ainda está cem a zero para Marnardi. Em segundo lugar, entre um
jornalista participar de um retiro de fim se semana e tornar-se um militante
a distância é longa. Em terceiro, duzentos jornalistas não bastam para suprir
sequer as vagas de chefia em revistas especializadas e house organs só na
cidade de São Paulo. Para exercer alguma influência na mídia seria preciso
começar de mil, pelo menos. O Opus Dei está entrando no mercado dos
altos cargos na imprensa com meio século de atraso em relação ao Partido
Comunista, cujo legado de posições foi transferido em parte para o PT na
década de 80. Por fim, quem disse que todo militante do Opus Dei é uma
cabeça feita, fiel ao Papa e às tradições da Igreja? Está aí o próprio sr.
Alckmin, politicamente corretíssimo, adepto do casamento gay e, no
mínimo, membro de um partido pertencente à Internacional Socialista,
comprometido até à medula, portanto, com a estratégia do globalismo de
esquerda. Apostar em Alckmin (ou de novo no próprio Serra) como
alternativa “direitista” ao petismo é repetir a farsa das eleições de 2002.
30 de janeiro de 2006
Fora do tempo

T
ENHO DITO E REPETIDO, DESDE HÁ ALGUNS ANOS, que o socialismo como
modelo econômico foi adiado sine die, que o movimento comunista
internacional se diluiu ideologicamente de propósito para ampliar sua
base de apoio e consagrar-se por inteiro ao objetivo imediato: a formação da
aliança mundial anti-americana e anti-israelense. Não creio que seja uma
coisa difícil de entender, nem problemática de averiguar. A idéia é simples e
as fontes que a comprovam são muitas. No entanto, cada vez que volto a
esse tópico, aparece alguém com a mesma resposta: “Não sou comunista,
mas não quero os americanos mandando no Brasil.”
O sujeito endossa a tese dos comunistas – que o “imperialismo americano”
manda no Brasil –, toma partido deles na única luta em que estão
empenhados no momento, e em seguida bate no peito verde-amarelamente:
“Não sou comunista!”
Mas quem está ligando para o cidadão “ser” comunista ou não? Tudo o
que querem dele é que faça exatamente o que está fazendo: que acredite na
balela oficial “anti-imperialista”, junte forças com a esquerda internacional,
ajude a colocar o mundo sob o domínio da China, da Rússia e das ditaduras
islâmicas e, em seguida, bata no peito, gritando: “Não sou comunista!”
Muita gente pensa que ainda está no tempo de Charles de Gaule, em que
era viável ser conservador e anti-americano ao mesmo tempo. Naquela
época, a Europa disputava com os EUA quem teria a honra de ser o protetor
da civilização ocidental contra o avanço do comunismo. Os americanos
achavam os europeus uns ladrões, os europeus desprezavam os americanos
como bárbaros iletrados, e ambos os lados estavam de acordo num ponto:
ceder à Rússia e à China, nunca. Mesmo os governos islâmicos eram uma
garantia contra o comunismo. Você tinha três maneiras de ser
anticomunista: era americanista, gaulista ou muçulmano.
Agora tudo mudou: a Rússia e a China não falam mais em “comunismo”.
Deixaram isso para depois. Aliaram-se aos muçulmanos, ajudaram-nos a
descristianizar, emascular e subjugar a Europa, e agora só têm um problema
pela frente: destruir os EUA (e, de quebra, Israel). Enquanto não
conseguirem isso, não voltarão a discutir “comunismo”. Para que haveriam
de criar atrito com seus parceiros muçulmanos? Se o mundo será socialista,
muçulmano ou socialista-muçulmano é assunto que só vai voltar à pauta
quando americanos e judeus forem tirados do caminho. Para isso, a
complexa parafernália da doutrina marxista sofreu um enxugamento brutal,
reduzindo-se a um só item, capaz de unificar sem discussões toda a
esquerda mundial: o “anti-imperialismo”, quer dizer, anti-americanismo.
É aí que o brasileirinho entra em cena, gritando contra os EUA e jurando
que não é comunista. Como se alguém estivesse ligando para a sua
ideologia, para as suas crenças subjetivas. Idéias só importam quando estão
em grandes cabeças. De microcéfalos só se espera que ajudem a fazer
número, pouco importando as diferenças subjetivas que cada um carregue,
para uso próprio, no seu cérebro entorpecido.
1º de fevereiro de 2006
Assassinato de Kennedy: enfim, o óbvio

S
EXTA-FEIRA PASSADA, A TELEVISÃO ALEMÃ exibiu o documentário
“Encontro com a Morte”, em que o diretor e jornalista Wilfried
Huismann, após cinco anos de pesquisas, mostra que o assassinato de
John F. Kennedy só pode ter sido encomendado por um único mandante:
Fidel Castro.
Essa hipótese sempre foi a mais plausível, já que Lee Harvey Oswald tinha
sido agente do serviço secreto cubano desde pelo menos novembro de 1962
e voltou aos EUA após ter vivido na União Soviética por muitos anos. A
ligação é até óbvia demais, mas por isso mesmo houve tanta agitação na
mídia e nos meios políticos para abafá-la o mais rápido possível e substituí-
la por uma onda estonteante de conjeturações absurdas. Imagino se alguém
ficaria buscando mandantes alternativos no caso de Fidel Castro ser morto
por um agente da CIA.
O motivo apresentado pelo filme também é mais que suficiente para
explicar o assassinato. Segundo o documentário, Kennedy e Castro
passaram anos tramando cada um a morte do outro: “Foi um duelo que,
como numa tragédia grega, deixou um dos duelistas morto”, afirma
Huismann.
Mas o mais espantoso da história talvez não seja nem isso. O ex-secretário
de Estado Alexander Haig aparece no filme dizendo que, logo após o
assassinato, o presidente Lyndon B. Johnson recebeu informações que o
levaram a concluir que Fidel Castro fora mesmo o responsável pelo crime:
“Johnson estava persuadido de que Castro matara Kenedy, mas levou esse
segredo para o túmulo.” Na época ele disse a Haig que era preciso evitar a
todo o preço a divulgação da verdade: “Ele temia que, se o povo americano
soubesse o nome do verdadeiro culpado, haveria uma guinada para a direita
e o Partido Democrata ficaria fora do poder por muitos anos.”
Essa é provavelmente a acusação mais grave que um funcionário de tal
envergadura já fez a um presidente americano falecido. O documentário
ainda não foi exibido nos EUA, mas a mídia republicana já está chamando a
atenção do público para o assunto, e não tenho dúvida de que o filme de
Huismann pode ter algum peso nas próximas eleições parlamentares, senão
na eleição presidencial de 2008.
Qualquer que seja o caso, é importante lembrar que Johnson foi um dos
presidentes americanos mais esquerdistas, não só pelo seu intervencionismo
estatal desenfreado, mas pelo derrotismo proposital com que conduziu a
guerra do Vietnã, limitando de tal modo a ação das tropas americanas que
só faltou mesmo pintar um alvo na cabeça de cada soldado, e também pela
pressa indecente em admitir derrota movido pela pura impressão de um
noticiário de TV, antes de saber que, de fato, o exército do Vietnã do Norte
tinha sido quase que totalmente destruído ao longo da ofensiva. Isso não
impediu que, pelo simples fato de presidir os EUA em época de guerra,
fosse pintado como um verdadeiro monstro imperialista pela mídia
esquerdista internacional. Agora, postumamente, vai receber uma quota
idêntica de insultos da mídia conservadora. Isso deveria servir de
advertência para tucanos e muristas de todos os continentes e gerações.
OS DOIS MCCARTHYS
A abertura dos Arquivos de Moscou, no começo da década passada, e a
publicação dos códigos Venona, no fim dela, trouxeram a prova definitiva
de que, com a possível exceção do general Marshall, praticamente nenhum
dos americanos acusados de colaboração com a espionagem soviética nos
anos 50 era realmente inocente (v. John Earl Haynes & Harvey Klehr,
Venona: Decoding Soviet Espionage in America, Yale University Press,
1999). Depois disso, é injusto e absurdo continuar usando a figura do
senador Joe McCarthy como protótipo do acusador injusto e símbolo da
maldade encarnada. O mínimo de satisfação que escritores e jornalistas
devem à realidade histórica é riscar do seu vocabulário o termo
“macartismo”.
Analogamente, a retirada das tropas americanas do Vietnã, pela qual tanto
se bateu o outro McCarthy, Eugene, só serviu para dar aos comunistas o
espaço livre de que necessitavam para praticar ali, e estender até o vizinho
Camboja, um dos mais vastos genocídios do século XX, exatamente como
previam os execrados “falcões” do Pentágono (v. Nguyen Van Cahn,
Vietnam Under Communism, 1975-1982, Stanford University, 1983).
Depois disso, só um esquerdista doente ou um vaidoso incontrolável, capaz
de sobrepor sua nostalgia de juventude às exigências mais incontornáveis
da verdade, pode continuar celebrando o movimento “pacifista” daquela
época como um momento glorioso da história da consciência humana. Foi
um momento glorioso, isto sim, da história da propaganda comunista, que
conseguiu ludibriar toda a população americana, transformando um volume
colossal de bons sentimentos em arma de guerra a serviço do mal e da
mentira. O que um homem adulto escreve hoje sobre a década de 60 é um
teste do seu caráter. A insistência no estereótipo que opõe “pacifistas” a
“macartistas” é um instrumento retórico vicioso usado para encobrir a
colaboração com um dos maiores crimes de todos os tempos. Nenhum
alemão decente que tivesse escrito uma palavra contra os judeus em 1920,
sem a menor intenção de lhes trazer dano físico, se recusaria a acusar-se de
cumplicidade involuntária com o nazismo ao ver o que lhes aconteceu vinte
anos depois. Decorridas quase quatro décadas do genocídio na Indochina,
aqueles que organizaram passeatas para ajudar a produzi-lo ainda posam de
bons meninos e depositam flores regularmente no altar dos “anos
dourados”. O culto do recém falecido Eugene McCarthy é parte integrante
dessa liturgia do auto-engano.
Como não acredito que a burrice e a malícia sejam contraditórias, e como
sei que ambas estão distribuídas democraticamente numa geração de
jornalistas que se formou sob a influência do Partido Comunista e da Ação
Popular, não vou gastar neurônios perguntando por que Luís Eduardo Lins
da Silva, diante de fatos tão amplamente comprovados, imagina estar
fazendo algo de honesto e inteligente ao forçar um paralelismo inverso e, na
última edição da revista Primeira Leitura, chamar o senador Eugene
McCarthy de “o McCarthy do bem” pelo simples fato de ele ter ajudado a
amarrar as mãos do governo americano ao mesmo tempo que liberava as de
Ho-Chi-Minh e Pol-Pot para a matança que se seguiu. Repito apenas o que,
uma semana antes da publicação da matéria, mas quase adivinhando-a,
escrevi sobre o jornalismo brasileiro:
Aos poucos, o hábito de respaldar-se em declarações de americanos apresentados como
insuspeitos tornou-se um dispositivo usual da retórica esquerdista. Na verdade homens como
Ramsey Clark, John K. Galbraith, Jimmy Carter ou Ted Kennedy eram a fina flor do
esquerdismo chique. Estavam comprometidos até a goela com a ajuda à subversão no Terceiro
Mundo. Mas a simples insistência geral da esquerda na lenda de que o golpe militar viera de
Washington dava a qualquer americano, por contraste, a autoridade para falar contra a direita
latino-americana sem parecer nem um pouquinho esquerdista. O mesmo acontecia com jornais
patologicamente mentirosos em favor da esquerda, como New York Times e Washington Post, que
ante a platéia tupiniquim ignorante, podiam ser citados como modelos de isenção profissional
pelo simples fato de ser americanos. A geração seguinte de esquerdistas continuou usando o
mesmo truque, mas por automatismo paspalho e sem saber que era truque... A malícia dos gurus
impregnou-se em seus discípulos sob a forma de ingenuidade perversa. Eles já não mentem por
astúcia. Mentem porque ninguém os ensinou a fazer outra coisa.
Só faltou, para que a antecipação fosse completa, o nome do senador
Eugene McCarthy entre os oficialmente insuspeitos.
Algum paralelismo entre ele e o outro McCarthy existe, de fato, mas não
no sentido de Lins da Silva. Para descrevê-lo, pode-se partir desta
declaração do radialista Garrison Keillor, democrata histórico, odiador
emérito de um McCarthy nos anos 50 e seguidor entusiasta do outro nas
décadas seguintes:
É reconfortante descobrir a verdade e concluir que você estava mirando fora do alvo. [Nos anos
50] havia uma rede de espionagem soviética no nosso governo, e o fato de que Joseph McCarthy
fosse um bêbado, mata-mouros e oportunista cínico não muda isso em nada. Junto com um
punhado de outros democratas, eu, de fato, estava errado nessa questão. Estou feliz de poder
corrigir-me.
A época que se seguiu pode ser descrita quase com as mesmas palavras:
Havia um genocídio comunista à espera da população civil tão logo os
soldados americanos saíssem do Vietnã, e o fato de que Eugene McCarthy
fosse capaz de citar Yeats e Eliot de cor não muda isso em nada. Junto com
um punhado de outros democratas, ele estava errado em julgar que a
retirada das tropas americanas seria boa para o Vietnã, não se arrependeu do
seu erro quando viu a paz matar mais gente que a guerra, persistiu no erro
até o fim e seus admiradores continuam badalando como herói um bobão
perfumado incapaz de perceber o óbvio.
Joseph McCarthy foi um grosseirão e um pinguço turbulento que alertou
seu país contra um perigo real e denunciou os culpados verdadeiros, mas
com tanto espalhafato que os fez passar por vítimas inocentes. Eugene
McCarthy foi um sujeito culto, fino, elegante e de bons sentimentos que
ajudou seu país a humilhar-se sem necessidade, só para deixar que os
comunistas, em tempo de paz, matassem um milhão de civis no Vietnã e
mais dois milhões no Camboja.
Se os políticos não devem ser julgados por suas intenções hipotéticas e sim
pela substância real de seus atos, não é difícil avaliar os dois McCarthys:
Joseph, que parecia destinado ao sucesso, foi um fracasso na luta por uma
causa justa, enquanto Eugene, aparentemente condenado ao fracasso, foi
um sucesso retumbante a serviço involuntário do genocídio e da tirania.
Essa é a realidade objetiva de suas biografias. Subjetivamente, ambos
estavam bastante enganados quanto às dimensões de suas respectivas
pessoas. Joseph presumia-se habilitado a vencer a KGB no grito. Eugene,
com modéstia exemplar, confessava que teria preferido ficar em casa mas
que não pudera resistir ao apelo de sua filha para que “salvasse o mundo”
(sic) . Essa é só uma das muitas ironias de suas existências, inclusive
póstumas. Joseph, apesar das provas esmagadoras de que acertara em
praticamente tudo exceto na tática publicitária, foi ainda mais difamado
depois de morto do que o foi enquanto vivo, ao passo que Eugene, morto, é
ainda mais badalado do que em vida. Ao chamar a este último “o McCarthy
do bem”, Lins da Silva toma por pressuposto que a espionagem soviética
dos anos 50 e o genocídio indochinês da década de 70 fossem o bem. O mal
é opor-se a Josef Stalin, Ho-Chi-Minh e Pol-Pot. O fato de que essa
estupidez monstruosa seja publicada em Primeira Leitura, revista insuspeita
de qualquer contaminação esquerdista, mostra até que ponto a propaganda
comunista de meio século atrás se impregnou no subconsciente da classe
jornalística, ao ponto de já não ser percebida como tal e poder se perpetuar
como sabedoria convencional.
GENEROSIDADE
Um amigo me chama a atenção para o seguinte fenômeno: o investidor que
em 1º. de janeiro de 2005 tenha aplicado mil dólares em reais, com juros à
taxa do CDI, resgatou em 1º. de janeiro de 2006 aproximadamente 1.400
dólares. Os juros da CDI foram de 19 por cento; mais a diferença cambial, e
pronto: 40 por cento de retorno, em dólar, com garantia do governo para
pelo menos metade desse lucro. É óbvio que o afluxo contínuo de
investimentos estrangeiros, do qual o establishment petista tanto se gaba,
não reflete nenhum suposto progresso da nossa economia, mas a esplêndida
generosidade dos pobres para com os ricos.
NOTÍCIAS DA CHINA REAL
Durante o ano passado, 87.000 protestos e rebeliões eclodiram na China.
Nenhum foi noticiado pela mídia nacional. Em compensação, qualquer
passeata anti-Bush em Nova York ou na Califórnia é alardeada como sinal
de queda iminente do “império americano”.
Numa pesquisa realizada pelo Programa de Atitudes em Política
Internacional da Universidade de Maryland, abrangendo 20.791 pessoas em
vinte países,[ 2 ] 74 por cento dos cidadãos chineses (três por cento a mais
até do que os americanos!) julgaram que o livre mercado é o melhor sistema
econômico para o mundo. Nem uma linha a respeito saiu no Brasil.
Se na formação de suas opiniões pessoais ou na tomada de decisões
políticas e empresariais você se deixa guiar pela imagem do mundo que
aparece nos nossos jornais, você está completamente fora da realidade.
DE LAY: O FIM
Exatamente como anunciei aqui semanas atrás, as denúncias contra Tom
De Lay não estão surtindo nenhum efeito judiciário, mas um efeito eleitoral
devastador. Após 21 anos na Câmara dos Representantes, o ex-líder
republicano, em plena campanha pela reeleição, foi informado pelas
pesquisas de que só metade de seus eleitores usuais pretende votar nele de
novo. Claro: nada estando provado contra ou a favor do acusado, votar nele
é correr um risco de cinqüenta por cento. No Brasil, onde o pessoal vota às
cegas e nem lembra em quem votou, todo mundo correria esse risco sem
ligar a mínima. Nos EUA, o eleitor quer segurança, porque se vê como um
chefe de pessoal examinando a ficha de um candidato a emprego. Culpado
ou inocente, De Lay está politicamente liquidado. Só muito viagra para
levantá-lo, mas não há dinheiro para isso. A campanha contra o homem é da
MoveOn.org, afilhada de George Soros, enquanto os republicanos
dependem de milhões de pequenos contribuintes e ainda arcam com a fama
de “partido dos ricos”.
6 de fevereiro de 2006

[ 2 ] Ver http://www.complusalliance.org/plugins/ComPlusDoc/details.asp?type=DocDet&ObjectId
=MTc4NTg
O novo império Mongol

S
E VOCÊ ESCREVE UMA CARTINHA AOS JORNAIS contra a proibição das
preces nas escolas públicas, contra peças de teatro que mostram um
Cristo gay ou mesmo contra as matanças de cristãos na China, no
Sudão e na Coréia do Norte, você é um fanático fundamentalista, um
extremista de direita. Mas, se você ateia fogo em embaixadas e sai pelas
ruas ameaçando matar meio mundo para mostrar quanto você odeia uma
caricatura de Maomé publicada num pequeno jornal dinamarquês, você é
um cidadão de bem no pleno uso do direito de protestar contra um insulto
sacrílego. Tal é o critério de julgamento que a mídia internacional acaba de
impor à humanidade, com a aprovação explícita ou implícita de vários
governos europeus, da ONU, do presidente George W. Bush e até – mas
será o Benedito? – do Papa. A unanimidade mundial dos bem-pensantes
contra os dinamarqueses brotou na mesma semana em que o Congresso
americano está votando uma lei – mais uma, na escalada da repressão
anticristã inaugurada seis décadas atrás por Franklin D. Roosevelt – que
suprime toda ajuda estatal para internação em asilo no caso de qualquer
velhinho com Alzheimer que, nos cinco anos anteriores, tenha cometido o
pecado de dar contribuição em dinheiro a alguma igreja, mesmo no
montante de um dólar ou dois. Não consta que S. Santidade tenha
protestado contra essa discriminação ostentiva – mas desenhar o Profeta,
ah, isto o Vaticano não tolera.
O mais interessante no episódio é que as explosões de ódio
antidinamarquês não foram suscitadas pelo conteúdo específico da charge –
que a rigor nada diz contra o Islam enquanto tal, apenas contra o terrorismo
– e sim pelo simples fato de que ela mostre o Profeta Maomé, o qual pela
lei islâmica só pode ser representado com o rosto encoberto. Ao endossar a
legitimidade do violento protesto muçulmano, a alta hierarquia católica está
simplesmente forçando os fiéis da sua Igreja a obedecer o mandamento de
uma religião alheia. De quebra, estende essa mesma obrigação aos
protestantes, aos judeus, aos budistas, aos ateus e a tutti quanti. O Islam
deve ser mesmo uma religião muito especial, já que suas leis não são
obrigatórias só para os muçulmanos, mas para toda a humanidade.
O velho Império Mongol não reconhecia a existência de outros impérios
ou de nações independentes. Na sua lei, só existiam duas áreas no mundo:
as obedientes e as desobedientes. Estas não passavam de territórios mongóis
provisoriamente rebelados, destinados a ser punidos e subjugados mais dia
menos dia. O Islam reconhece, oficialmente, a legitimidade de algumas
outras religiões, entre as quais o cristianismo e o judaísmo. Mas esse
reconhecimento se torna mero formalismo oco a partir do momento em que
os fiéis dessas religiões já não podem decidir suas próprias ações de acordo
com os mandamentos delas, e em vez disto se vêm obrigados a cumprir
mandamentos islâmicos. Para o cristão não há nada de mau em desenhar o
rosto de Cristo, nem para o budista em pintar uma imagem do Buda. Pelos
critérios de suas religiões respectivas, não pode portanto haver erro ou
crime em desenhar o profeta de uma outra religião. Mas quem disse que
eles têm o direito de julgar isso de acordo com sua própria religião? Que
sigam o Corão e não reclamem.
A imposição da shari’a como lei obrigatória para toda a espécie humana,
com a concomitante supressão de todas as leis religiosas concorrentes, é
uma das metas mais óbvias do imperialismo cultural islâmico, ponta de
lança do imperialismo político e militar. Com a ajuda de praticamente toda
a elite ocidental, a luta por objetivo alcançou durante esta semana uma
vitória formidável.
9 de fevereiro de 2006
A tragédia do estudante sério no Brasil

T
ODA SEMANA, RECEBO DEZENAS DE CARTAS DE ESTUDANTES que, em busca
de alguma formação intelectual, encontraram nas universidades que
freqüentam apenas propaganda comunista rasteira, porca,
subginasiana.
Não são, como em geral imaginam, vítimas de puras circunstâncias
políticas imediatas. Gemem sob uma montanha de fatores adversos à
inteligência humana, que foram se acumulando no mundo, e não só no
Brasil, ao longo das últimas décadas. Se a primeira metade do século XX
trouxe um florescimento intelectual incomum, a segunda foi uma
devastação geral como raramente se viu na História. A queda foi tão
profunda que já não se pode medi-la. Num panorama inteiramente
dominado por charlatães caricatos como Noam Chomsky, Richard
Dawkins, Edward Said, Jacques Derrida, Julia Kristeva, a época em que
floresceram quase que simultaneamente Edmund Husserl, Karl Jaspers,
Louis Lavelle, Alfred North Whitehead, Benedetto Croce, Jan Huizinga,
Arnold Toynbee – e na literatura T. S. Eliot, W. B. Yeats, Ezra Pound,
Thomas Mann, Franz Kafka, Jacob Wassermann, Robert Musil, Hermann
Broch, Heimito von Doderer – já se tornou invisível, inalcançável à
imaginação dos nossos contemporâneos. Toda comparação é entre alguma
coisa e alguma outra coisa. Não se pode comparar tudo com nada.
Isso não quer dizer que as fontes do conhecimento tenham secado.
Pensadores de grande envergadura – um Eric Voegelin, um Bernard
Lonergan, um Xavier Zubiri – sobreviveram à debacle dos anos 60 e
continuaram atuantes, o primeiro até 1985, o segundo até 1984, o terceiro
até 1983. Mas seus ensinamentos são ainda a posse exclusiva de círculos
seletos. Não entram na corrente geral das idéias, nem poderiam entrar sem
sujar-se, sem transformar-se em matéria de discussões idiotas como vem
acontecendo, graças à ascensão política de alguns de seus discípulos, com o
infeliz Leo Strauss.
Pois a desgraça se deu justamente na “corrente geral”. O fim da II Guerra
Mundial trouxe uma prodigiosa reorganização das bases sociais e
econômicas da vida intelectual no mundo. Novas instituições, novas redes
de comunicação, novos mecanismos de estocagem e distribuição das
informações acadêmicas, novos públicos e, sobretudo, a ampliação inaudita
do apoio estatal e privado à cultura e a formação dos grandes organismos
internacionais como a ONU e a Unesco. Tudo isso veio junto com o
descrédito do marxismo soviético e a profunda mutação interna da
militância esquerdista internacional, a essa altura já plenamente imbuída
das duas lições aprendidas da Escola de Frankfurt e de Georg Lukacs (mas
também, mais discretamente, de Martin Heidegger): (1) a luta essencial não
era propriamente contra o capitalismo, mas contra “a civilização ocidental”;
(2) o agente principal do processo era a classe dos intelectuais.
Nessas condições, o crescimento fabuloso dos meios de atuação veio junto
com o esforço multilateral de apropriação desses meios por parte de grupos
militantes bem pouco interessados em “compreender o mundo” mas
totalmente devotados a “transformá-lo”. A redução drástica da atividade
intelectual ao ativismo político foi a conseqüência desejada e planejada
dessa operação, realizada em escala mundial a partir dos anos 60.
Não que o fenômeno fosse totalmente desconhecido antes disso. Um vasto
ensaio geral já vinha sendo realizado nos EUA desde a década de 30 pelo
menos, através das grandes fundações “não lucrativas” que descobriram seu
poder de orientar e manipular a seu belprazer a atividade intelectual,
científica e educacional mediante a simples seleção ideologicamente
orientada dos destinatários de suas verbas bilionárias.
Em 1954, uma comissão de investigações do Congresso americano já
havia descoberto que fundações como Rockefeller, Carnegie e Ford
exerciam controle indevido sobre as universidades, as instituições de
pesquisa e a cultura em geral, orientando-as num sentido francamente anti-
americano, anticristão e até anticapitalista. (Não me perguntem pela
milésima vez com que interesse os grandes capitalistas podem agir contra o
capitalismo. A explicação está resumida nos artigos “História de quinze
séculos” [ 3 ] e no debate “Marxismo, direito e sociedade”, que tive com o
professor da USP Alaor Caffé Alves).[ 4 ] Inevitavelmente, a influência
exercida por essas organizações não consistiu só em introduzir uma
determinada cor política na produção cultural, mas em alterá-la e corrompê-
la até às raízes, subordinando aos objetivos políticos e publicitários visados
todas as exigências de honestidade, veracidade e rigor. Sem essa
interferência, fraudes cabeludas como o Relatório Kinsey ou a pseudo-
antropologia de Margaret Mead jamais teriam conseguido impor-se ao meio
acadêmico e à mídia cultural como produtos respeitáveis de uma atividade
científica normal.
A comissão foi alvo de ataques virulentos de toda a grande mídia, e seu
trabalho acabou por ser esquecido, mas ele ainda é uma das melhores fontes
de consulta sobre a instrumentalização política da cultura (v. René
Wormser, Foundations, Their Power and Influence, New York, Devin-
Adair, 1958). Na verdade, sem ele não se pode compreender nada do que se
passou em seguida, pois o que se passou foi que o experimento tentado em
escala americana foi ampliado para o mundo todo: a apropriação dos meios
de ação cultural pelas organizações militantes e o sacrifício integral da
inteligência humana no altar da “vontade de poder” simplesmente se
globalizaram.
Recursos incalculavelmente vastos, que poderiam ter sido utilizados para o
progresso do conhecimento e a melhoria da condição de vida da espécie
humana foram assim desperdiçados para sustentar a guerra geral da
estupidez militante contra a “civilização ocidental” que havia gerado esses
mesmos recursos.
Embora esse processo seja de alcance mundial, é claro que o seu peso se
fez sentir mais densamente em países novos do Terceiro Mundo, onde as
criações das épocas anteriores não tinham sido assimiladas com muita
profundidade e as raízes da civilização podiam ser mais facilmente
cortadas. No Brasil, da década de 60 em diante, os progressos da barbárie
foram talvez mais rápidos do que em qualquer outro lugar, destruindo com
espantosa facilidade as sementes de cultura que, embora frágeis, vinham
dando alguns frutos promissores. A comparação impossível entre as duas
épocas, que mencionei acima, é ainda mais impossível no caso brasileiro.
Na década de 50, tínhamos, vivos e atuantes, Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Àlvaro
Lins, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux, Mário Ferreira dos Santos,
Vicente Ferreira da Silva, Herberto Sales, Cornélio Penna, Gustavo Corção,
Nelson Rodrigues, Lúcio Cardoso, Heitor Villa-Lobos, Augusto Frederico
Schmidt, a lista não acaba mais. Hoje, quem representa na mídia a imagem
da “cultura brasileira”? Paulo Coelho, Luís Fernando Veríssimo, Gilberto
Gil, Arnaldo Jabor, Emir Sader, Frei Betto e Leonardo Boff. Perto desses,
Chomsky é Aristóteles. É o grau mais alto pelo qual se medem. Chamar
isso de crise, ou mesmo de decadência, é de um otimismo delirante. A
cultura brasileira tornou-se a caricatura de uma palhaçada. É uma coisa oca,
besta, disforme, doente, incalculavelmente irrisória.
A inteligência, ao contrário do dinheiro ou da saúde, tem esta
peculiaridade: quanto mais você a perde, menos dá pela falta dela. O
homem inteligente, afeito a estudos pesados, logo acha que emburreceu
quando, cansado, nervoso ou mal dormido, sente dificuldade em
compreender algo. Aquele que nunca entendeu grande coisa se acha
perfeitamente normal quando entende menos ainda, pois esqueceu o pouco
que entendia e já não tem como comparar. Uma das coisas que me deliciam,
que me levam ao êxtase quando contemplo o Brasil de hoje, é o ar de
seriedade com que as pessoas discutem e pretendem sanar os males
econômicos, políticos e administrativos do Brasil, sem ligar a mínima para
a destruição da cultura, como se a inteligencia prática subsistisse incólume
ao emburrecimento geral, como se inteligência fosse um adorno a ser
acrescentado ao sucesso depois de resolvidos todos os problemas ou como
se a inépcia absoluta não fosse de maneira alguma um obstáculo à conquista
da felicidade geral. A prova mais evidente da insensibilidade torpe é o
sujeito já nem sentir saudade da consciência que teve um dia.
Mas não, a inteligência nacional não acabou no dia em que os nossos
estudantes tiraram o último lugar numa avaliação entre alunos do curso
secundário de 32 países: acabou logo em seguida, quando o ministro da
Educação disse que o resultado poderia ter sido pior.
Num sentido mais profundo do que o ministro imaginava, poderia mesmo.
Na eleição seguinte, o país colocou na presidência um carreirista
enriquecido, de terno Armani e unhas polidas, que, por orgulhar-se de
jamais ler livros, foi proclamado um símbolo da autenticidade popular. A
imagem era falsa, grotesca e insultuosa, mas ninguém percebeu. Se existe
um grau abaixo do grotesco, porém, ele foi atingido logo em seguida,
quando o escritor Raymundo Faoro, quanto mais bobo mais celebrado nas
esquerdas como inteligência luminosa, sugeriu o nome do então
presidenciável para ocupar uma vaga na Academia Brasileira de Letras.
Perto disso, tirar o último lugar num teste chegava a ser meritório.
Se o desespero dos estudantes que me escrevem viesse só da situação
política, haveria esperança de saná-lo por meio da ação política. Mas a ação
política é um subproduto da cultura e, no estado em que as coisas estão,
nenhuma ação política inteligente, ao menos em escala federal, é previsível
nas próximas duas ou três gerações. Nas próximas eleições, por exemplo, o
país terá de optar novamente entre PT e PSDB, isto é, os dois filhotes
monstruosos gerados no ventre da USP, a mãe da esterilidade nacional, ou
como bem a sintetizou o poeta Bruno Tolentino, a “p... que não pariu”. Sim,
a política brasileira virou uma imensa assembléia de estudantes da USP,
com o Partido Comunista de um lado, a Ação Popular de outro, num torneio
de arrogância, presunção, hipocrisia, sadismo mental, mendacidade
ilimitada e estupidez sem fim. A USP levou meio século para chegar ao
poder, e ainda não parou de gerar pseudo-intelectuais ambiciosos, ávidos de
mandar, sedentos de ministérios. Sua obra de destruição está longe de
haver-se completado.
Da política nada de bom se pode esperar num prazo humanamente
suportável. Uma ação cultural de grande escala – a fundação de uma
autêntica instituição de ensino superior, para contrabalançar a desgraça
uspiana – também não é nada provável, dada a omissão das chamadas
“elites”, sempre de rabo entre as pernas, oscilando entre lamber mais um
pouco os pés da canalha petista ou apegar-se ao primeiro zesserra que
apareça.
Ao estudante que consiga ainda vislumbrar o que é vida intelectual e faça
dela o objetivo de sua existência, restam dois caminhos: o exílio, que pode
levar ao lugar errado (a miséria brasileira nasce em Paris), e o isolamento,
que pode levar os mais fracos a um desespero ainda mais profundo do que
aquele em que se encontram.
A única solução viável, que enxergo, é a formação de pequenos grupos
solidários, firmemente decididos a obter uma formação intelectual sólida,
de início sem nenhum reconhecimento oficial ou acadêmico, mas forçando
mais tarde a obtenção desse reconhecimento mediante prova de
superioridade acachapante. Já não leciono no Brasil, mas a experiência
mostrou que muito aluno meu, com alguns anos de aulas e bastante estudo
em casa, já está pronto para dar de dez a zero, não digo em alunos, mas em
professores da USP do calibrinho de Demétrio Magnoli e Emir Sader, o
que, bem feitas as contas, é até luta desigual, é até covardia.
O processo é trabalhoso, mas simples: cumprir as tarefas tradicionais do
estudo acadêmico, dominar o trivium, aprender a escrever lendo e imitando
os clássicos de três idiomas pelo menos, estudar muito Aristóteles, muito
Platão, muito Tomás de Aquino, muito Leibniz, Schelling e Husserl,
absorver o quanto possível o legado da universidade alemã e austríaca da
primeira metade do século XX, conhecer muito bem a história comparada
de duas ou três civilizações, absorver os clássicos da teologia e da mística
de pelo menos três religiões, e então, só então, ler Marx, Nietzsche,
Foucault. Se depois desse regime você ainda se impressionar com esses
três, é porque é burro mesmo e eu nada posso fazer por você.
Mas o ambiente universitário brasileiro de hoje é tão baixo, tão torpe, que
só de a gente apresentar essa lista – o mínimo requerido para uma formação
séria de filósofo ou erudito –, o pessoal já arregala os olhos de susto. Na
verdade, o estudante brasileiro não lê nada, só resumo e orelha, além de
Emir Sader e da dupla Betto & Boff, que não valem o resumo de uma
orelha. É tudo farsa, chanchada, pose. Não há quem não saiba disso e não
há quem não acabe se acomodando a essa situação como se fosse natural e
inevitável. A abjeção intelectual deste país é sem fim.
12 de fevereiro de 2006

[ 3 ] Ver em http://www.olavodecarvalho.org/semana/040617jt.htm
[ 4 ] Ver transcrição do debate em http://www.olavodecarvalho.org/textos/debate_usp_4.htm
Puro teatro, nada mais

Q
UARTA-FEIRA, DIA 15, A FOLHA DE S. PAULO publicou uma entrevista
minha, apresentando-me como o “decano”, entre merecidíssimas
aspas, de uma nova corrente política de direita que estaria surgindo
no país, e convocando, naturalmente, meia dúzia de tagarelas de esquerda
para sondar as causas de tão alarmante fenômeno.
O fato mesmo de que ele tenha de ser explicado mostra o quanto parece
anormal e surpreendente no Brasil de hoje.
Sou testemunha direta e pessoal da estranheza, mista de terror pânico, que
a simples hipótese de alguma resistência, mesmo isolada, mínima e
solitária, suscitava entre os esquerdistas uns anos atrás. Lembro-me
perfeitamente bem da brutalidade mental psicótica com que reagiram ao
meu ingresso em cena, reunindo-se instantaneamente em esquadrões de
emergência para repelir o intruso. Os métodos usados revelavam a
gravidade apocalíptica que enxergavam no episódio: xingar histericamente
o recém-chegado, fingindo ao mesmo tempo superior desprezo olímpico;
criminalizá-lo, atribuindo-lhe toda sorte de ligações sombrias com pessoas e
entidades que ele ignorava por completo; acusá-lo alternadamente de ser
um agente bem pago de potentados internacionais e um pé-rapado a quem
ninguém jamais pagaria coisa alguma; suprimir toda menção aos seus livros
e aulas de filosofia, para dar a impressão de que se tratava de um mero
polemista de mídia; espalhar toda sorte de invencionices contra ele nas salas
de aula, longe da possibilidade de uma resposta; por fim, mobilizar
estudantes fanatizados para que o agredissem e matassem, e ao mesmo
tempo chamá-lo de “raivoso”, como se numa competição de hidrofobia eu
fosse páreo para terroristas e assassinos.
Tais foram os procedimentos de critica literária usados para o meu livro O
Imbecil Coletivo.
Tudo isso revela até que ponto o esquerdismo era e é ainda o estado
normal e obrigatório em toda a mídia, em todo o movimento editorial,
devendo qualquer exceção ser denunciada como ameaça à ordem pública ou
sintoma de desarranjo mental. À imagem e semelhança do que as placas nos
botequins nos advertem quanto à condição de corintiano, o ser humano
nasce, cresce, vive e morre esquerdista. Quando ele se recusa a fazer isso e
já não se pode dar um sumiço no desgraçado, então é preciso chamar uma
junta médica para diagnosticá-lo.
Dada a situação premente, alguns dos diagnósticos assumem a forma de
uma busca de culpados pelo advento de semelhante descalabro.
Culpados não são difíceis de encontrar. O ambiente doméstico da esquerda
tem hoje uma superpopulação de sacos de pancada. Se não fosse o “tombo
ético” (sic) da administração petista, conjetura o jornal, parece que Olavo
de Carvalho e quejandos jamais emergiriam das trevas do anonimato onde
jaziam soterrados por um decreto da justiça cósmica.
Da minha parte, jamais vi “tombo ético” algum. Originado da
promiscuidade entre o movimento sindical e a pseudo-intelectualidade
uspiana, o PT é filho de um vigarista com uma prostituta. Nasceu ladrão e
só evoluiu nos métodos. Exemplo da conduta de seu pai é a confissão da
CUT, já em 1993, de que tinha oitocentos jornalistas na sua folha de
pagamentos – uma compra de consciências por atacado que só encontra
paralelo, talvez, no orçamento da KGB. Quanto à mamãe, tem vivido da
impostura intelectual e do corporativismo mafioso da esquerda pelo menos
desde os anos 50.
As denúncias de corrupção grossa no PT já datam de 1990. O único
resultado que produziram foi a expulsão do denunciante. Atribuir a
roubalheira atual a um “tombo” é um truque de linguagem usado pelos
gerenciadores de danos para limpar o passado na imagem de um presente
que já não se pode salvar. Sabem que no momento perderam toda
credibilidade, mas querem guardar para o futuro os dividendos de uma
lenda de santidade laboriosamente construída com a ajuda dos oitocentos
empregadinhos da CUT.
O expediente serve também para cada um tirar o corpo fora da
responsabilidade pela criação do monstro vexaminoso que é o PT no poder.
Não havia nessa droga de partido um só militante ou simpatizante
medianamente alfabetizado que, em 2002, ignorasse as denúncias de Paulo
de Tarso Venceslau ou do irmão do prefeito Celso Daniel, nem os esforços
da cúpula partidária para abafar ambos esses escândalos, esforços que, no
segundo desses casos, vieram a ocorrer – por coincidência, por pura
coincidência, é claro – junto com o assassinato de seis testemunhas do
processo. Se todos se recusaram a ver aí qualquer sinal de bandidagem no
partido; se não só continuaram a confiar nele mas redobraram a aposta na
sua idoneidade, ao ponto de fazer da eleição de Lula um acontecimento
comparável ao Segundo Advento, por que foi? Só pode ter sido por uma
destas duas razões: ou apegaram-se tão fanaticamente ao mito da santidade
petista que mesmo fatos visíveis com os olhos da cara não podiam abalar
sua fé; ou, ao contrário, sentiam perfeitamente o mau cheiro mas preferiram
tampar o nariz para não perder a oportunidade de ter amigos e
correligionários no poder, por mais fedidos que fossem. Na primeira
hipótese, mostraram-se obstinados na credulidade até o limite da estupidez
criminosa. Na segunda, provaram ser tão maldosos e vigaristas quanto
qualquer José Dirceu. Em ambos os casos, desqualificaram-se
completamente para qualquer ofício intelectual que se preze.
Duvido que, no fundo, muito no fundo, cada um deles não saiba disso
perfeitamente bem e, ao contemplar-se solitário no espelho, não se veja com
orelhas de burro ou feições de criminoso.
Como atenuar semelhante desconforto? Apelando, é claro, ao mesmo
recurso de sempre: fingimento, pose, histrionismo. O intelectual ativista do
Terceiro Mundo é, por tradição, um ator, um palhaço, um tipo caricato que,
no esforço de ocultar seu próprio ridículo, se torna patético. É alguém que
se alimenta da mentira e do auto-engano em doses que, para o cidadão
comum, seriam letais.
Para camuflar ao mesmo tempo sua própria desmoralização e, de modo
geral, a debacle irreversível do pensamento de esquerda no mundo, os
diagnosticadores do neodireitismo empinam o narizinho, levantam
professoralmente o dedo indicador, e, ante um público que presumem
ignorar tudo, imitam seus próprios trejeitos de superioridade acadêmica de
outras épocas, tentando mostrar que ainda são os donos do pedaço, os juízes
supremos de toda aspiração intelectual possível, imbuídos da autoridade de
barrar na porta os pretendentes novatos.
É claro que essa superioridade, mesmo em tempos passados, já era pura
propaganda enganosa. O boicote geral a um Gustavo Corção ou a um
Gilberto Freyre, o silêncio obsceno em torno da obra de um João Camilo de
Oliveira Torres, já provavam que não havia ninguém na esquerda com
cacife para discutir com qualquer dos três.
Mas, não podendo arrogar-se ostensivamente uma qualidade que já sabem
duvidosa, limitam-se a dá-la como pressuposto implícito, na esperança de
que seja aceita por distração. E, fazendo-se de juízes justos que só medem o
similar pelo similar, tratam de ostentar desprezo à “nova direita” por meio
de comparação com a “velha”, proclamando que já não há na praça nenhum
Mário Henrique Simonsen, nenhum Roberto Campos, nenhum José
Guilherme Merquior.
O grotesco da performance não tem limites. Desde logo, se esses três são
até hoje os modelos de intelectuais conservadores mais citados pela
esquerda, é graças apenas à afinidade que têm com ela, os dois primeiros
por serem economistas e argumentarem numa clave bastante acessível ao
cérebro esquerdista médio, o terceiro por ter raízes no esquerdismo
acadêmico e jamais tê-las cortado para valer, ao ponto de só ter trocado o
seu marxismo cultural de juventude por um ateísmo burguês de molde
iluminista bem típico, inteiramente compreensível à mentalidade de seus
adversários. O esquerdismo é uma cultura tribal, um círculo etnológico
fechado que, no universo em torno, só reconhece o que lhe é semelhante.
Mesmo o antagonismo já tem de vir catalogado, senão é tido por
inexistente. Ninguém da tribo se aventurou jamais, por exemplo, a uma
discussão com Miguel Reale, espírito incalculavelmente superior aos três
citados, porque isso obrigaria a leituras que escapavam, de longe, à esfera
de percepções habituais da esquerda na época. Muito menos havia na taba
quem pudesse entender, mesmo por alto, a obra de um Vicente Ferreira da
Silva, de um Vilém Flusser, de um João Camilo, de um Paulo Mercadante.
Nem menciono Mário Ferreira dos Santos, tão grande que escapa não
apenas à visão, mas à imaginação esquerdista. Não que o desconhecessem.
Conheciam-no perfeitamente, e passaram por tantas humilhações na
presença dele que por fim o excluíram do seu horizonte de consciência,
como se faz com um trauma que não se consegue superar. Amputados os
andares superiores, a cultura conservadora recortada à escala do QI
esquerdista compõe-se de dois economistas e um crítico literário – muito
bons os três, cada um no seu domínio, mas nenhum necessário, em termos
absolutos, à formação de um pensamento conservador intelectualmente
relevante.
Ao escolher essa régua para medir a “nova direita”, os saberetas
consultados pela Folha mediram-se tão somente a si mesmos.
No mais, o fenômeno conservador que assinalam, abstraída a minha obra
pessoal da qual não se aventuram a dizer um “a”, pois não são bobos de dar
a cara a tapa, se limita até agora à crítica jornalística, o que torna ainda mais
extemporâneo o julgamento que fazem. Esse neoconservadorismo, ainda no
berço, não tem sequer expressão política, quanto mais uma produção
bibliográfica que pudesse ser confrontada com as de Merquior, Simonsen e
Campos, acumuladas ao longo de décadas de trabalho. As próprias
condições adversas em que surgiu, incomparáveis com o conforto e a
segurança de que desfrutaram esses três, tornam o paralelo esboçado na
Folha apenas um exercício de cinismo e impropriedade, bem ao feitio de
quem, não tendo a menor idéia de onde está, quer dar a impressão de que
está por cima.
Mas não imaginem que empreendimentos diagnósticos dessa natureza
sejam exclusividade brasileira. Nos EUA pululam hoje em dia estudos
sobre a “direita religiosa”, procurando caracterizá-la como um fenômeno
inédito, estranhíssimo e necessitado de explicação científica, como se os
primeiros Founding Fathers já não fossem conservadores religiosos, como
se a América não tivesse sido sempre o país mais cristão e pró-capitalista do
universo, como se tivesse sido desde a origem uma nação de socialistas
ateus que, de repente, com susto enorme, vissem descer do Mayflower o
primeiro pregador protestante.
Esquerdismo é teatro, nada mais.
20 de fevereiro de 2006
O Estado covarde

U
MA COISA ESPANTOSA NO BRASIL DE HOJE É A CANDURA, a inocência
pueril ou mongolóide com que, num país onde ocorrem 50 mil
homicídios por ano, as pessoas se acomodam à violência como uma
fatalidade inevitável, dizendo de si para si que aquilo que não tem remédio
remediado está, e saem buscando soluções para outros problemas em volta.
Digo cinqüenta mil porque é a estatística oficial da ONU. Segundo o
repórter espanhol Luís Mir são 150 mil. Mas, se fossem cinqüenta mil, já
seria o equivalente a três guerras do Iraque por ano, em tempo de paz.
Quem pode fazer a economia render, ampliar o mercado de empregos,
aumentar a produção de bens, melhorar a distribuição, numa sociedade
onde ninguém tem o mínimo de segurança física para saber se vai voltar
vivo do trabalho? Quem pode pensar em educação, saúde, habitação,
vestuário, se está sob ameaça de morte 24 horas por dia?
Isso é tudo ilusão, besteira, desconversa. Sem segurança não há progresso,
educação, saúde, nem coisa nenhuma. Todo mundo sabe disto e faz de conta
que não sabe. Faz de conta porque tem medo de enfrentar o problema
fundamental, e então sai brincando de resolver os problemas periféricos só
para dar “a si mesmo ou à platéia” a impressão de que está fazendo alguma
coisa.
A taxa anual de homicídios no Brasil significa, pura e simplesmente, que
não há ordem pública, não há lei nem direito, não há Estado, não há
administração, há apenas um esquema estatal de dar emprego para
vagabundos, sanguessugas, farsantes. O Estado brasileiro é uma instituição
de auto-ajuda dos incapazes. E você, brasileiro, paga. Paga a pantomima
toda. Paga para o sr. Gilberto Gil fazer de conta que é culto, paga para o sr.
Nelson Jobim fazer de conta que é honesto, até para o sr. Lula da Silva fazer
de conta que preside alguma coisa.
O Brasil, na verdade, só tem dois problemas: a insegurança geral e a
inépcia da classe dirigente. O primeiro não deixa ninguém viver e o
segundo anestesia a galera para que não ligue e trate de pensar em outra
coisa.
Desaparecidos esses dois problemas, a sociedade encontraria sozinha as
soluções dos demais, sem precisar da ajuda de governo nenhum. A
sociedade pode perfeitamente criar e distribuir riqueza, dar educação às
crianças, encontrar meios de que todos tenham uma renda decente, moradia,
saúde, assistência na velhice.
O que a sociedade não pode é garantir a ordem pública pela força das
armas e educar os governantes para que governem. Isso tem de vir do
Estado. Mas o Estado, justamente para não ter de fazer o que lhe compete,
prefere se meter em todo o mais. É o Estado educador, o Estado médico, o
Estado assistente social, o Estado onissapiente. Só não é o Estado-Estado.
Só não é o que tem de ser.
É o Estado que tem cada vez mais poder sobre os cidadãos e menos poder
contra os inimigos do cidadão. É o Estado santarrão, pomposo,
grandiloqüente e covarde.
21 de fevereiro de 2006
O absurdo pode favorecer a disseminação de uma
idéia

A
CABO DE VER, NUM MURO DE UNIVERSIDADE aqui perto, um cartaz em
homenagem ao black pride, com frases de líderes e intelectuais
negros famosos. Duas atraíram especialmente a minha atenção:
A raça é o menos importante elemento de informação que temos sobre uma pessoa. Forçar as
pessoas a terem reações baseadas na raça é perder de vista a noção mesma de humanidade.
Tenham tanto orgulho da sua raça hoje em dia quanto seus pais tiveram antigamente. Temos
uma história magnífica, e ainda faremos outra no futuro que há de assombrar o mundo.
A primeira é da romancista Toni Morrison, Prêmio Nobel de Literatura de
1993. A segunda é de Marcus Garvey, jornalista e líder cultural jamaicano,
criador, na década de 20, do movimento “Volta para a África”. As duas
exortações vão em sentido contrário. Morrison diz que os seres humanos
não devem ser induzidos a agir segundo uma identidade racial; Garvey, que
eles devem fazer precisamente isso.
A contradição pode ser resolvida dialeticamente, mas isso dá um bocado
de trabalho e exige o apelo a premissas que, uma vez trazidas à luz, podem
por sua vez ser contestadas, impugnando a resolução obtida. O espectador
do cartaz, em geral, não vai parar para fazer essa análise. Vai absorver a
mensagem toda de uma vez, chutando para o automatismo inconsciente a
tarefa de resolver a contradição.
Mas o inconsciente desconhece as sutilezas da dialética. Para ele não
existe contradição, não existe sequer a palavra “não”: só imagens
afirmativas. O que ele vai fazer portanto é ignorar a contradição e superpor
simplesmente as duas idéias, gerando uma terceira que as acomode da
maneira perfeitamente confortável. O resultado é mais ou menos assim: “Os
brancos nos impuseram reações baseadas na raça. Temos o direito de reagir
afirmando o orgulho da nossa raça.” Pela mágica do inconsciente, ficam
assim harmonizados numa síntese indissolúvel o anti-racismo e o racismo.
Aquilo que, num debate científico, seria a impugnação completa de um
argumento, torna-se em propaganda uma força psicológica inconsciente
trabalhando a favor dele.
Longe de constituir um obstáculo à disseminação de uma idéia, o absurdo
pode favorecê-la, justamente porque a estimulação contraditória, quando
persistente e em doses maciças, amortece a inteligência do destinatário e o
predispõe a uma apatetada passividade na qual ele está pronto para
entregar-se, de joelhos, ao guiamento do espertalhão que o deixou nesse
estado. A paralisia da razão não deixa ao indivíduo outra saída senão buscar
na pura entrega emocional o alívio da indecisão.
A linguagem da propaganda política hoje em dia não tem nada a ver com
as antigas artes retóricas, cujo fundamento, em última análise, era a
persuasão racional. A manipulação tornou-se tão geral e disseminada que,
com frequência, a tentativa de persuasão racional é rejeitada como
“autoritária”. Raciocinar tornou-se um esforço dolorido que passa por
trabalho escravo. A conclusão inelutável das provas é ressentida como
imposição de fora, não como o término natural de um percurso da
inteligência. A massa, viciada, exige a dose habitual de absurdidade, fora da
qual se sente solta e desamparada como um cãozinho de apartamento
perdido na rua. A liberdade não é só uma questão de leis e instituições.
Exige um adestramento da inteligência para a responsabilidade das
decisões. O desconforto do aprendizado pode ser vivenciado como
escravidão, ao passo que a submissão emotiva, justamente por ser tão fácil,
pode passar como puro exercício da liberdade.
23 de fevereiro de 2006
Se você ainda quer ser um estudante sério...

BRASIL” resultou em tantas cartas,


“A queTRAGÉDIA DO ESTUDANTE SÉRIO NO
acho melhor completar, com algumas dicas baseadas na
experiência pessoal, as indicações de estudo que dei no final do
artigo.
Começo com um exemplo casual.
Outro dia recebi de amigos a cópia de uma mensagem interessantíssima,
postada em algum site da internet por uma senhorita, aparentemente culta e
universitária, que, indecisa entre me admirar e me detestar, exigia uma
explicação para o fato de eu acertar tantas previsões ao longo de quase duas
décadas, apostando quase sempre no contrário do que anunciava a opinião
geral dos bem-pensantes. No entender da remetente, bem como de outros
participantes do debate, a hipótese mais plausível era a de eu ser um agente
da CIA, conectado portanto a uma rede de informantes secretos espalhados
por toda parte...
Guardei a mensagem com o carinho historiográfico que merece um
eloqüente sinal dos tempos.
Que época mais adorável, esta, em que o sujeito não é cobrado por seus
erros, mas por seus acertos! Se o normal é errar sempre, para que serviriam
então os milhares de cientistas sociais, historiadores, jornalistas,
economistas e doutores em filosofia que as universidades, sustentadas pelo
trabalho suado de milhões de contribuintes que jamais as freqüentaram,
despejam anualmente no mercado da tagarelice nacional? Resposta: não
servem para entender o mundo, mas para transformá-lo. Não podendo,
porém, conhecê-lo, já que não acreditam em verdade objetiva, levam-no
sempre num rumo diferente do que pretendiam, sentindo-se – por isso
mesmo, raios! – inocentes dos resultados monstruosos que produzem e
sempre merecedores de um redobrado crédito de confiança para começar
tudo de novo e de novo e de novo. A revolução, afinal, não seria
revolucionária se não revolucionasse a si mesma e à sua própria história,
mudando de identidade após cada novo crime e cada novo fracasso e não
tendo satisfações a prestar senão a um futuro que, quando chega, já não é
mais futuro e não tem portanto qualquer autoridade para cobrá-la do que
quer que seja. Tal é, brutalmente resumida mas nem um pouco deformada, a
essência da mentalidade que se pode adquirir em qualquer universidade
deste país e em muitas do exterior. Equivale a um atestado de
impecabilidade congênita, que confere o direito à estupidez laureada, ao
amor-próprio ilimitado e ao crime inocente. Não espanta que tantos a
desejem, mesmo sabendo que a remuneração dos ofícios universitários já
não é lá essas coisas. Aliás, ganhar abaixo do que desejam reforça ainda o
seu sentimento de méritos incalculáveis e sua revolta contra a malvada
sociedade capitalista que não recompensa adequadamente as pessoas
empenhadas em destruí-la.
É natural que, num ambiente assim formado, o sujeito acertar previsões
políticas em série deva ser mesmo uma coisa muito esquisita, muito
suspeita, denotando poderes demoníacos ou no mínimo algum truque sujo.
Entendo mesmo que, no desespero, alguns apelem até à suposição “CIA”,
sem ter em conta que essa entidade, há pelo menos quarenta anos, tem se
especializado mais é em produzir informações erradas.
A hipótese de que exista uma realidade objetiva da vida política, de que ela
possa ser conhecida, de que o indivíduo em questão tenha estudado muito
com o objetivo de conhecê-la e de que depois de quatro décadas de esforço
ele tenha conseguido montar um conjunto de critérios científicos razoáveis
para fazer previsões acertadas dentro de um quadro definido de
possibilidades, ah!, isso não ocorre a ninguém. É absurdo demais. É
escandaloso. É repugnante. É impossível.
E eu lhes direi no entanto: foi precisamente isso o que aconteceu, patetas.
Enquanto vocês enchiam sua cabeça de cocô universitário, tentando menos
buscar conhecimento do que imitar trejeitos verbais para parecer bons
meninos no ambiente ideológico em torno[ 5 ], preferi ficar em casa
estudando, por achar que assim faria melhor uso das horas que o pessoal
uspiano gastava em condução, papo furado, assembléias, greves, festinhas
de embalo e surubas gerais no CRUSP, totalizando essas várias ocupações
aproximadamente noventa e oito por cento da vida acadêmica útil.
Preservando minha inteligência dessa centrifugação mortífera e da
influência corruptora de orientadores ignorantes, estudei para saber, para
aplacar minhas dúvidas, sem nenhuma esperança fútil de glórias escolares
provincianas. Não nego que ganhei algo além do puro conhecimento.
Ganhei o prazer de poder chamar os fulanos de burros sem nenhuma
intenção insultuosa e com estrito realismo científico. Enquanto eles se
intoxicavam de Eduardo Galeano, Noam Chomsky, Foucault, Derrida, e na
melhor das hipóteses Nietzsche e Heidegger, brilhantes professores de
confusão mental, coloquei para mim mesmo as questões fundamentais da
filosofia política – que é ao mesmo tempo filosofia da História – e busquei
respondê-las com toda a seriedade, cercando-me ainda de toda a ajuda
disponível em livros de várias épocas, revistas científicas e contatos
pessoais com estudiosos de vários países.
Os resultados foram sendo apresentados, aqui e ali, sob a forma de aulas e
apostilas, sem a menor preocupação de publicá-los em livros. Livros para
que? No Brasil de hoje, quanto mais sério o livro, maior a certeza de que
será totalmente ignorado exceto pelo círculo de estudiosos que já o
conheciam pela audição direta do autor. Numa época em que a literatura é
personificada pelo sr. Luís Fernando Veríssimo, a filosofia por dona
Marilena e a ciência política pelo dr. Emir Sader, qualquer esforço científico
mais sério fica um pouco constrangido de se mostrar em público. Voltamos
à era da difusão oral. Todo conhecimento efetivo tornou-se esotérico. O
essencial do que aprendi e ensinei sobre a filosofia política está nas
gravações dos meus cursos dados na PUC do Paraná, bem como nas
apostilas “Ser e Poder”, “Que é a Psique?” e “O Método nas Ciências
Humanas”. Quem teve acesso a esse material – que publicarei quando os
afazeres jornalísticos me derem um descanso para poder editá-lo –, sabe
que existem meios para descrever objetivamente uma situação político-
social qualquer e prever com grande margem de acerto suas possibilidades
de desenvolvimento. É isso, e nada mais, o mistério por trás das minhas
previsões. Quanto aos erros alheios, não me cabe explicá-los.
Das questões a que me referi acima, algumas das mais importantes para a
análise das situações políticas eram as seguintes:
1. Qual é a natureza do poder, não só na política mas em todas as relações
humanas, e qual a diferença específica entre o poder político e as demais
formas de poder?
2. Que é propriamente a “ação” em escala histórica? Em que condições a
expressão “história disto” ou “história daquilo” se refere a uma entidade
real, capaz de ação contínua ao longo do tempo, e quando se refere apenas,
metonimicamente, a um sujeito ideal, sem unidade de ação própria, como
por exemplo quando se fala em “História do Brasil”, ou “história da
burguesia”? Em suma: quem é o sujeito da História?
3. Qual a relação entre as “intenções” subjetivas dos agentes históricos e
os efeitos reais de suas ações? Qual a equação que se forma entre o
conhecimento objetivo dos dados da situação, as decisões tomadas, a
execução, os resultados específicos e sua diluição num quadro maior onde
outros fatores entram em jogo? Existe uma ação histórica eficiente, na qual
os efeitos reproduzam mais ou menos fielmente as intenções? Ou, ao
contrário, a História humana estará sempre condenada a ser, como dizia
Weber, “o conjunto das conseqüências impremeditadas das nossas ações”?
4. Dando por pressuposto que ninguém pode se colocar fora do quadro
comum da vida humana para observá-lo “de cima”, e que portanto toda
observação é uma forma de participação, não é possível isolar totalmente
observação e confissão. Qual a relação entre autoconhecimento e
conhecimento histórico? Em que medida o conhecimento da história pode e
deve ser um meio de integração da consciência pessoal do estudioso, e em
que medida esta se reflete na veracidade da descrição histórica obtida? Em
que medida toda história é autobiografia e, portanto, toda descrição de uma
situação política, social e cultural determinada é uma confissão pessoal?
5. Em que medida, portanto, o estudo das ciências humanas é uma prática
“ascética” de autoconhecimento, e em que medida as disciplinas ascéticas e
místicas desenvolvidas pelas religiões tradicionais, bem como as técnicas
modernas de psicoterapia e auto-ajuda, podem desempenhar nesse estudo
uma função essencial?
6. Como é a psicologia do conhecimento na História e nas ciências
humanas em geral? Da percepção dos dados sensíveis (documentos,
monumentos, ações observadas) até as sínteses interpretativas gerais, qual o
trajeto psicológico percorrido e como dirigi-lo para diminuir a possibilidade
de erros?
Os filósofos que mais estudei para encontrar as respostas (e ficam aí como
sugestões para os interessados) foram Platão, Aristóteles, Sto. Agostinho,
Sto, Tomás, S. Boaventura, Duns Scot, Leibniz, Schelling, Husserl, Scheler,
Lavelle, Croce, Ortega, Zubiri, Marías, Voegelin, Lonergan, o nosso Mário
Ferreira dos Santos e o Albert Camus de L’Homme Révolté. Os grandes
historiadores da filosofia, como Gomperz, Ueberweg e Zeller, devem ser
lidos com devoção. Outros autores da área de ciências humanas que muito
me ajudaram foram Ibn Khaldun, Vico, Ranke, Taine, Huizinga, Weber,
Böhm-Bawerk, von Mises, Sorokin, Victor Frankl, Paul Diel, Eugen
Rosenstock-Huessy, Franz Rosenzweig, Lipot Szondi, Maurice Pradines,
Alois Dempf, Max Dvorak, Rudolf Arnheim, Erwin Panofsky, A. D.
Sertillanges, Mortimer J. Adler, Oliveira Martins, Gilberto Freyre e Otto
Maria Carpeaux. Apesar de inumeráveis erros de informação, Life of
Napoleon de Walter Scott também foi de muito proveito pela acuidade da
sua psicologia histórica. O maior historiador vivo hoje em dia é Modris
Eksteins (sabe o que significa “tem de ler”?). Dos poetas e ficcionistas,
aqueles que produziram verdadeiras descrições científicas da condição
humana, muito úteis nos meus estudos, foram Sófocles, Dante,
Shakespeare, Camões, Cervantes, Goethe, Dostoiévski, Alessandro
Manzoni, Pío Baroja, T. S. Eliot, W. B. Yeats, Antonio Machado, Thomas
Mann, Jacob Wassermann, Robert Musil, Hermann Broch, Heimito von
Doderer, Julien Green, Georges Bernanos e François Mauriac. A Bíblia tem
de ser relida o tempo todo (não leia o Evangelho em busca de “religião”:
leia como narrativa de alguma coisa que realmente aconteceu; atenção
especial para Mateus 11:1-6, onde o próprio Jesus ensina o critério para
você tirar as dúvidas a respeito d’Ele; penso nisso o tempo todo). O Corão,
os Vedas, o Tao-Te-King e o I-Ching, assim como os escritos de Confúcio,
Shânkara e Ibn’Arabi, merecem consultas periódicas. Dos conselhos
pessoais que recebi de mestres generosos, a quem incomodei por meio de
cartas, telefonemas e visitas, falarei outro dia.
O importante é você não estudar por estudar, para “adquirir cultura” ou
seguir carreira universitária, mas para encontrar respostas a questões
determinadas, que tenham importância existencial para você, para sua
formação de ser humano e não só de estudioso. É claro que as questões vão
se definindo aos poucos, no curso das leituras mesmas, mas à medida que
isso acontece elas vão definindo melhor o rumo dos estudos. E é essencial
que, na ânsia de ler, você não deixe sua acumulação de conhecimento
ultrapassar o seu nível de autoconsciência, de maturidade, de
responsabilidade pessoal em todos os domínios da vida. Se você não é
capaz de tirar de um livro conseqüências válidas para sua orientação moral
no mundo, você não está pronto para ler esse livro. Não esqueça nunca o
conselho de Goethe: “O talento se aprimora na solidão, o caráter na
agitação do mundo.”
27 de fevereiro de 2006

[ 5 ] Ver meu artigo “O imbecil juvenil” em http://www.olavodecarvalho.org/textos/juvenil.htm.


O avesso do avesso

A
TÉ O COMEÇO DOS ANOS 90 AINDA ERA POSSÍVEL ACREDITAR,
honestamente, que a Nova Ordem Mundial que se formava ante os
olhos de todos após a queda da URSS era, em essência, a
mundialização do poder americano, a realização dos sonhos mais
ambiciosos dos imperialistas do Norte.
Todas as aparências indicavam isso, e estudiosos tão isentos de viés
esquerdista como o Pe. Michel Schooyans e o historiador espanhol Ricardo
de La Cierva afirmavam categoricamente que a ONU, governo mundial em
germe, não era senão a expressão e instrumento do Estado americano
ampliado à escala global.
Hoje, quem quer que continue acreditando nisso, depois de tudo o que
aconteceu nessa década e meia e com todas as informações que se tornaram
acessíveis a respeito, é um autêntico homem de Neanderthal, se não for seu
antepassado mais próximo, o dr. Emir Sader em pessoa.
Na visão dessas criaturas primevas, a Nova Ordem Mundial é o bom e
velho imperialismo americano que, mal camuflado, estende suas asas sobre
o globo terrestre, pondo em risco a soberania das nações pobres, cuja
esperança então se volta para os poucos núcleos de resistência espalhados
pelo mundo, como Cuba, a Coréia do Norte e os terroristas islâmicos,
bravos pigmeus em luta contra o gigante, à imagem e semelhança da
Princesa Léa e Luke Skywalker enfrentando aos trancos e barrancos as
tropas imperiais sob o comando de Darth Vader (não inventei a
comparação; ela já se tornou um lugar-comum do imaginário esquerdista).
Hoje em dia, o material disponível com as provas cabais de que não é nada
disso que está acontecendo é tão vasto, tão abundante e tão consistente, que
a única desculpa razoável que alguém pode apresentar para continuar
apegado a essa idéia é ser pessoalmente o dr. Emir Sader e nada poder fazer
contra tão cruel destino. Todos os demais são culpados de negligência
proposital.
Digo isso com a ressalva de que, as informações pertinentes sendo talvez
menos acessíveis no Brasil do que em qualquer outro lugar do mundo com
exceção dos países islâmicos e comunistas, a ignorância geral dos fatos
explica a subsistência residual, neste país, de lendas e estereótipos já
desmoralizados pelo tempo e em toda parte.
Mas mesmo ignorantes profissionais não podem ter deixado de notar, nos
últimos anos, o conflito aberto entre a ONU e os EUA, seguido de uma
explosão mundial de anti-americanismo, cujas manifestações nas ruas e na
mídia, simultâneas, súbitas e organizadíssimas, não poderiam ter surgido do
nada, sem longa e dispendiosíssima preparação secreta. De repente, os
pobres e esfarrapados tinham a seu serviço o New York Times, o Washington
Post, a CBS, a CNN e praticamente todo o restante da grande mídia
internacional (a brasileira, então, nem se fala), enquanto os ricaços
imperalistas mal conseguiam uma entrevistinha na Fox, uns minutos no
programa de rádio do Rush Limbaugh, sem a menor repercussão fora dos
EUA, e dois parágrafos em sua defesa na coluna da Mary O’Grady no Wall
Street Journal. A desproporção contrastava tão dramaticamente com a visão
convencional dos coitadinhos em luta contra as forças tentaculares do
império financeiro intergalático, que parecia mesmo a coluna do dr. Emir,
“O Mundo pelo Avesso”.
Para quem ainda tivesse alguma dúvida, bastava, para eliminá-la, olhar a
lista dos financiadores da gritaria anti-americana, entre os quais brilhavam,
junto com George Soros, as fundações Ford e Rockefeller e outras fortunas
do mesmo porte. Depois disso, só mesmo o cérebro geneticamente lesado
dos apreciadores daquela coluna poderia, imune ao gritante paradoxo,
continuar acreditando piamente na identidade de americanismo e
globalismo. Nem falo dos discípulos do sr. Lyndon La Rouche, os quais,
admitindo o paradoxo, tentavam explicá-lo como rebuscado truque do
maquiavelismo ianque, como se rebuscada não fosse antes essa explicação e
como se atrair todos contra si fosse astúcia digna do governo americano e
não, mais apropriadamente, do saudoso Chapolín Colorado.
Não obstante, a afirmação absoluta dessa identidade é não apenas a crença
unânime do esquerdismo local, para o qual ela tem ao menos a utilidade de
fomentar o ódio ao seu inimigo tradicional, mas é também o fundamento de
uma “nova doutrina militar brasileira” que vem se esboçando desde os anos
90, firmemente empenhada em criar, com base em informação deficiente,
uma estratégia desastrosa que arrisca fazer das Forças Armadas brasileiras,
amanhã ou depois, o instrumento servil da revolução continental, seja como
aliadas da esquerda lulo-chavista que tanto as difamou e humilhou ao longo
das décadas, seja, na melhor das hipóteses, como suas concorrentes na
liderança do anti-americanismo nacional.
Essa visão das coisas não expressa nenhuma realidade objetiva; expressa
apenas, indiretamente, o estado de total alienação da elite falante brasileira,
separada do mundo por um muro de fantasias obsessivas e complexos
incapacitantes, agravados por uma indolência intelectual verdadeiramente
criminosa e pela compulsão irresistível de complicar ainda mais as coisas
tentando mostrar boniteza em vez de exercer a única virtude que, numa hora
dessas, poderia ser salvadora: a sinceridade.
Se entre todos os políticos, oficiais de alta patente, grandes empresários,
professores de universidade, juristas e economistas de uma nação não se
encontra um só que seja capaz de descrever corretamente o estado de coisas
no mundo e enquadrar nele a posição do país – e a realidade é que não se
encontra praticamente nenhum –, é claro que esse país está perdido e
desorientado no espaço e no tempo, condenado a erros descomunais de
política externa e administração interna que só por milagre não tornarão
inviável sua existência de Estado independente num prazo mais veloz do
que a imaginação desses indivíduos e grupos pode alcançar.
Os planos de grandeza e discursos patrióticos que saem da boca dessa
gente são um coral de marinheiros bêbados num barco prestes a afundar.
São sintomas psicóticos de uma total falta de senso da realidade.
Na verdade, ao tentar lhes explicar que as coisas não são como eles
pensam, eu mesmo me sinto um pouco psicótico. Esperar que entendam
alguma coisa é tão louco, no fundo, quanto apostar no futuro de um país
liderado por eles. Mas, como essa esperança se recusa a morrer, vamos lá.
Vamos tentar outra vez.
Os EUA são mesmo a potência hegemônica, mas é ridículo imaginar que
todas as ações que os projetam no mundo sejam o resultado de um cálculo
unitário fundado no seu “interesse nacional” (no sentido que o termo tem na
ESG). Com mais freqüência, isto sim, exteriorizam o conflito interno
americano, conflito que, por força da própria hegemonia dos EUA, expressa
por sua vez a essencial divisão de forças no mundo. Dito de outro modo: a
política americana, o drama americano, a guerra cultural americana, são o
modelo em miniatura do conflito global. O problema é que, entre os
palpiteiros midiáticos, acadêmicos, empresariais e militares do Brasil,
ninguém entende coisíssima nenhuma do que acontece nos EUA, portanto
enxerga menos ainda o que se passa no mundo.
Duas visões padronizadas, ambas falsas e profundamente idiotas, se
alternam no imaginário nacional como pretensas descrições do cenário
americano:
Visão 1 – As duas correntes em disputa ali são apenas duas faces da
mesma moeda imperialista. Nos EUA não existe esquerda politicamente
atuante, apenas uma direita capitalista durona e outra mais molinha.
Visão 2 – Existem, sim, uma direita e uma esquerda: a direita, republicana,
é fundamentalista, imperialista e militarista, representando os interesses
calhordas da elite financeira e industrial: a esquerda, democrata, representa
os pobres e oprimidos do mundo, os direitos humanos, a democracia
iluminista e, enfim, tudo o que é lindo desde o ponto de vista do Fórum
Social Mundial.
Quanta besteira, porca pipa!
A divisão americana, em primeiro lugar, não é entre republicanos e
democratas. É entre conservadores e globalistas. Estes estão nos dois
partidos, os primeiros estão em parte no republicano, em parte órfãos de
agremiação partidária, sem por isto deixar de constituir uma força política e
cultural considerável.
O programa globalista, longe de ser imperialismo americano, consiste
essencialmente em quebrar a soberania dos EUA, submetendo cada vez
mais o país a organismos internacionais, sendo necessário, para esse fim,
diluir a cultura e a identidade nacionais numa pasta “multiculturalista”.
O globalismo não tem finalidades essencialmente econômicas ou mesmo
político-militares: é todo um conceito integral de civilização, uma
verdadeira mutação revolucionária da espécie humana, incluindo a total
erradicação das religiões tradicionais ou sua diluição numa religião biônica
universal cuja expressão mais visível é o movimento da “Nova Era”. Seus
ideais são tão opostos aos valores e interesses da nação americana que os
conservadores, sem pestanejar, os consideram inimigos tão perigosos
quanto a Al-Qaeda. Os poderosos grupos econômicos que apóiam o
globalismo são os mesmos que elegeram Bill Clinton e sustentaram a
campanha de John Kerry. Apóiam o aborto, o casamento gay, a liberação
das drogas e tudo o mais que possa dissolver rapidamente a unidade
histórica da cultura nacional americana. Fazem uso maciço do ativismo
judicial para mudar completamente o sentido da Constituição através de
sentenças que permitem o que era proibido e proibem o que era permitido.
Patrocinam maciçamente a esquerda do Terceiro Mundo e as manifestações
anti-americanas, mas, lutando para enfraquecer o país enquanto Estado
independente, buscam ao mesmo tempo fortalecê-lo como instrumento da
ONU. Daí a ambigüidade de suas tomadas de posição quanto ao terrorismo,
por exemplo.
Os conservadores, cuja base de apoio econômico está essencialmente na
prodigiosa capacidade de coleta de fundos de milhares de organizações
populares (grassroots), mas que têm algum respaldo na indústria nacional
acossada pela concorrência chinesa, defendem o predomínio americano no
mundo, mas não querem a diluição do país num império transnacional. Suas
ambições “imperialistas”, incomparavelmente mais modestas que as de seus
concorrentes, consistem apenas em manter uma relativa superioridade
econômica e militar dos EUA (numa inversão patética, é este plano, e não o
globalista, que a mídia brasileira denuncia como grande perigo para a nossa
soberania). Não aceitam a ingerência de organismos internacionais em
assuntos de soberania, defendem as interpretações consagradas da
Constituição, a restrição dos poderes do governo central, o liberalismo
econômico clássico, os direitos das religiões tradicionais – protestantismo,
catolicismo e judaísmo – e a preservação da identidade cultural americana.
Cada palavra que se ouve em debates na mídia, no parlamento, nas
universidades dos EUA, ecoa essa divisão, da qual o Brasil em peso
continua ignorando praticamente tudo, graças aos bons préstimos de uma
elite falante mentirosa, corrupta, vaidosa e radicalmente estúpida (e não
estou me referindo a governo, não; a elite governante é só uma parcela da
elite falante).
É absolutamente impossível entender o jogo de forças no mundo – e
portanto tomar uma posição consistente dentro dele – sem ter em conta a
luta de concepções civilizacionais por trás do conflito partidário americano
que a reflete de maneira irregular e parcial. O presidente Bush, por
exemplo, é moralmente um conservador, mas atado por mil e um
compromissos globalistas que tornam suas ações freqüentemente ambíguas
e não raro incompreensíveis nos termos usuais do debate político.
Entender essas coisas dá algum trabalho, requer muito estudo e o mergulho
numa infinidade de dúvidas, mas é imensamente recompensador para quem,
com sinceridade, queira encontrar uma esperança para o Brasil nesse mare
ignotum. Em vista disso, peço aos distintos jornalistas, empresários,
professores etc., que, por favor, por caridade, por misericórdia, não saiam
dando palpites sobre o presente artigo antes de estudar pelo menos estes três
livros:
* Carroll Quigley, Tragedy and Hope: A History of the World in Our Time,
New York & London, Macmillan, 1966. É a Bíblia do globalismo. Não
existe uma do antiglobalismo; as objeções estão espalhadas; aqui vão duas
amostras:
* Cliff Kincaid, Global Bondage: The U. N. Plan to Rule the World,
Lafayette, Louisiana, Huntington House, 1995.
* Lee Penn, False Dawn: The United Religions Initiative, Globalism and
the Quest for a One-World Religion, Hillsdale, NY, Sophia Perennis, 2004.
* Vale a pena também examinar o artigo de Steven Yates, “From Carroll
Quigley to the UN Millennium Summit: Thoughts on the New World
Order”.[ 6 ]
Os que não quiserem ler nada disso, então, por gentileza, queiram
freqüentar a coluna do dr. Emir Sader e continuar entendendo tudo às
avessas, como já se tornou costume nacional.
6 de março de 2006

[ 6 ] Ver em http://www.lewrockwell.com/yates/yates14.html.
A consciência humana em perigo

N
OVAMENTE, CONVIDO OS LEITORES A ME ACOMPANHAR numa rápida
investigação filosófica. O assunto – os fundamentos, ou falta de
fundamentos, da autoconsciência humana – parece estar longe da
atualidade política imediata, mas quem tiver a paciência de chegar ao fim
do artigo verá que não é assim. Nunca, como hoje, quando uma elite de
burocratas iluminados remexe a seu belprazer os pilares da civilização
como uma tropa de evadidos do hospício brincando de cientistas num
laboratório nuclear, foi vital para cada habitante do planeta adquirir uma
idéia clara das constantes que definem a condição humana, antes que o
desenho mesmo da hominidade, sob o impacto de experimentos
deformantes impostos em escala mundial, desapareça da sua lembrança.
Mas uma dessas constantes é, precisamente, que toda constância humana só
se revela, como em filigrana, sob o fundo da incessante mutação histórica.
Só o conhecimento da história comparada das civilizações e culturas
mostra, sob a variedade quase alucinante das formas, a durabilidade da
estrutura geral do espírito humano. E, como aquilo que se encontra sob
risco de perda imediata na voragem das transformações forçadas é
sobretudo a unidade mesma da autoconsciência de cada indivíduo – a
fragmentação da cultura resultando em estilhaçamento das almas –, nunca
foi tão importante conhecer as mutações históricas da imagem do “eu” ao
longo das épocas, para distinguir nela o que é acidental e transitório e o que
é essencial, permanente e indispensável à defesa última da dignidade
humana.
Um dos depósitos mais ricos de materiais para esse estudo são as
autobiografias. O desenvolvimento histórico desse gênero literário
evidencia de maneira particularmente clara as transformações da
autoconsciência individual ao longo das épocas, paralelamente às
modificações sobrevindas nas vivências respectivas do tempo, da memória
e do próprio ato de narrar.
Dentre as muitas obras que têm saído a respeito, Memory and Narrative:
The Weave of Life-Writing (The University of Chicago Press, 1998), de
James Olney, professor de Inglês na Universidade Estadual da Louisiana, é
uma das mais úteis, porque, concentrando-se na história do gênero
autobiográfico no período que vai das Confissões de Agostinho (397) até o
monólogo cênico de Samuel Beckett, Company (1979), delineia muito
claramente, no percurso entre esses dois extremos, a progressiva perda do
sentido de unidade da autoconsciência, sem a qual a intenção mesma de
narrar a própria vida se torna absurda.
O modelo estrutural da narrativa é o mesmo nos dois casos. Agostinho
resume-o com o exemplo da prece. Quando ele vai recitar um salmo, já o
sabe de cor, inteiro, de antemão. Enquanto o recita, as palavras que se
sucedem em voz alta vão-se atualizando no tempo sobre o fundo estático do
texto completo que permanece na memória. Terminada a recitação, o salmo
se completou no tempo e é devolvido à memória, pronto para ser recitado
de novo e de novo e de novo. Toda escrita autobiográfica tem mais ou
menos essa estrutura. A vida que vai ser contada está completa na memória,
mas prossegue no ato de recordá-la e continua depois de terminada a
narração, devolvida à memória para ser narrada de novo, lida ou ouvida.
Qual a “substância” dessa narrativa? O tempo, mas qual tempo? O passado,
que já não existe mais? O presente, instante atomístico infinitesimal que se
dissolve tão logo aparece? O futuro, que tem uma existência meramente
conjetural? O enigma aparece mais ou menos igual nas Confissões e em
Company.
Irmanados na preocupação comum com o tempo, a memória e o eu, os
dois livros não poderiam ser mais antagônicos nas suas respectivas visões a
respeito.
As memórias de Agostinho são a confissão formal de uma alma que,
assumindo plenamente a autoria, a responsabilidade e as conseqüências de
cada um de seus atos, pensamentos e estados interiores, mesmo os mais
obscuros e remotos no tempo, comparece ao seu próprio julgamento como
que ostentando uma identidade inteiriça, na qual as várias forças internas
em conflito não fazem senão realçar a unidade tensional do todo. Agostinho
consegue fazer isso porque compõe sua narrativa diante de uma platéia
onisciente, o próprio Deus. “Caminhar diante de Deus” não significa outra
coisa senão agir e pensar em confronto permanente com o símbolo
“onisciência” – a fonte inalcançável e incontornável de toda consciência, a
única garantia da sinceridade dos pensamentos, dos atos e da sua
rememoração. Embora a expressão apareça na Bíblia, Agostinho foi o
primeiro a explicitar em palavras o sentido da experiência aí resumida. O
homem que caminha diante de Deus se governa e se concebe, a cada
instante, como se estivesse diante do Juízo Final, na forma completa do seu
ser individual conscientemente responsável pela escolha do seu próprio
destino eterno. A vida completa do futuro é, pois, a medida da
rememoração do passado, que o narrador empreende no presente.
É daí também que Agostinho extrai a solução do problema da
insubstancialidade do tempo. Deus não é apenas onisciente: é eterno.
Boécio, mais tarde, definirá a eternidade como “a posse plena e simultânea
de todos os seus momentos”, mas o conceito já está implícito em
Agostinho. Se os vários momentos não tem nenhuma unidade entre si, só
lhes resta esfarelar-se num imenso nada. Só a sua unidade total e simultânea
tem existência, mas essa unidade é a própria eternidade, e nada mais. O
tempo, em si, não tem mesmo substancialidade nenhuma. É apenas uma
miragem, uma “imagem móvel da eternidade”. Se Agostinho pode dominar
intelectualmente o seu passado é porque o expõe ante o olhar da
onisciência. Se pode ter a intuição da continuidade da sua existência, é
porque a enxerga como um reflexo temporal da eternidade. A articulação da
autoconsciência moral é a mesma articulação dos três tempos no eixo da
eternidade.
A idéia do indivíduo como uma unidade complexa e dramática que se
forma e se assume na encruzilhada dos três tempos incorporou-se de tal
modo à tradição ocidental que veio a inspirar toda a moderna psicologia da
personalidade. Dezesseis séculos depois de Agostinho, Maurice Pradines,
no seu Traité de Psychologie Générale (1948), definiria a consciência como
“a memória do passado preparada para as tarefas do futuro”. Mesmo em
Freud, ao qual se atribui erroneamente muito da culpa (ou do mérito) pela
dissolução da unidade do eu, a personalidade é a resultante de uma
arbitragem progressivamente imposta pela consciência aos impulsos
antagônicos do Id e do Super-ego. Nada poderia celebrar mais claramente a
vitória final da unidade do que a célebre profecia do pai da psicanálise:
“Onde há Id, haverá Ego.”
Totalmente diversa é a perspectiva em Company. Aqui, um velho
entrevado, no palco, ouve episódios da sua vida – a vida do próprio Samuel
Beckett – narrados e comentados, em monólogo, por uma voz sem rosto.
Será a “voz da consciência”? Sim e não. Ela lhe fala dele próprio ora na
segunda pessoa, ora na terceira. Aquele que, no presente, recorda o passado,
já não sabe se esse passado é seu, de um terceiro ou de um personagem
inventado. E a voz lança ao senso de identidade do ancião um temível
desafio: se você não se recorda do seu nascimento, como pode ter a certeza
de que essa vida que está recordando é a mesma daquele que cujo
nascimento você acha que é o seu?
Tal como Agostinho, o personagem de Beckett – indiscernível do autor –
desenha suas memórias sobre a superfície de contraste fornecida por um
interlocutor invisível que transcende o narrador e tem sobre ele a autoridade
de uma instância formadora. O resultado, por isso, difere conforme a
identidade desse interlocutor. A eternidade e onissapiência de Deus
conferem à auto-imagem biográfica de Agostinho a unidade de uma história
assumida como criação pessoal responsável. Mas o interlocutor de Beckett
não é onissapiente: é apenas mais arguto que o personagem. Ele é a razão
crítica, poção corrosiva que dissolve o sentimento de unidade temporal do
eu por meio de exigências epistemológicas que ele não tem como atender. O
ancião entrevado não tem sequer o poder de dizer “eu” com consciência de
causa, mas por isso talvez não lhe caibam também a culpa de seus pecados
ou o mérito de suas realizações. O eu esfarelado, incapaz de contar sua
própria história, é vítima de sua própria existência e não tem portanto
nenhuma responsabilidade sobre ela. A narrativa de Agostinho sobe do
fundo obscuro do coração para a luz divina que, em resposta, lhe confere a
participação na sua própria unidade e claridade. A de Beckett vem de uma
treva externa que obscurece o pouco de luz que o ego julgava possuir.
Na passagem de um extremo a outro, Olsey documenta algumas etapas da
“crise da memória narrativa” que, como um fio condutor, atravessa toda a
história da mentalidade ocidental moderna. Ele data das Confissões de Jean-
Jacques Rousseau (1782) o começo da “crise”, mas está errado. Ela já
estava plenamente instalada nas Meditações de Filosofia Primeira de René
Descartes (1641), que se apresenta como uma autobiografia interior, a
narrativa de um experimento cognitivo[ 7 ]. A confusão medonha que o
filósofo aí produz entre o eu existencial concreto e o conceito abstrato do eu
como autoconsciência absoluta (cogito ergo sum), passando do primeiro ao
segundo sem notar que saltou da ordem temporal para a ordem dedutiva, é
uma das mais prodigiosas mutilações já impostas à consciência
autobiográfica do homem ocidental. Todo o problema de Beckett já estava
aí. Como bem observou Jean Onimus (Beckett, un Écrivain devant Dieu,
Desclée de Brouwer, 1967): “Instalai-vos no cogito cartesiano em seu ponto
de origem,... e vereis o homem de Beckett em toda a extensão do seu
infortúnio.”
O eu cartesiano não pode narrar sua história porque é apenas uma forma
abstrata isolada no espaço, amputada da experiência temporal. Se o filósofo,
no entanto, o apresenta sob forma narrativa, é porque, literalmente, não
percebe o que está fazendo. O cartesianismo não é o capítulo inaugural da
dissolução da autoconsciência narrativa (numa apostila inédita do meu
Seminário de Filosofia atribuí essa duvidosa honra aos fragmentos
autobiográficos de Nicolau Maquiavel), mas é um episódio importante do
processo. A incongruência de Descartes será formidavelmente ampliada por
Immanuel Kant mediante a idéia do “eu transcendental”. Esta assombrosa
criatura da filosofia alemã tem a autoridade de demarcar as fronteiras da
experiência acessível ao pobre eu existencial sem ser ela própria limitada
por elas, mas sem por isso abrir ao eu existencial nem mesmo uma estreita
frestinha por onde ele pudesse enxergar o que está para além dessas
fronteiras. Ele é chamado “transcendental” precisamente porque fecha as
portas de acesso ao “transcendente”. Instalado nas alturas medianas do eu
transcendental, que fica só um pouco acima do eu existencial, o filósofo não
permite que ninguém suba acima dele. A satisfação perversa com que ele
crê determinar os “limites do conhecimento humano” mostra que ele tinha a
consciência de ser algo assim como, nas escaladas iniciáticas, o “guardião
do portal”, uma espécie de Pasionária metafísica, gritando aos buscadores
da eternidade: No pasarán! No pasarán! Não tenho a menor dúvida de que
o interlocutor de Beckett é o eu transcendental kantiano. Kant, por um lado,
acreditava que o conhecimento humano está limitado à experiência
sensível, ao espaço e ao tempo; por outro, dizia que os dados da experiência
são um farelo caótico, ao qual a consciência impõe sua própria unidade.
Mas, deixada a si mesma, sem o pano de fundo da eternidade, a própria
consciência se esfarela. Mais claramente ainda do que em Descartes, o
homem isolado e desesperado de Samuel Beckett está presente e manifesto
na Crítica da Razão Pura de Kant (1781). Ao proibir o acesso da
consciência à eternidade, o eu transcendental torna a própria consciência
inacessível e evanescente. Daí a lógica aparente e a absurdidade profunda
da cobrança que vem das trevas: a idéia de que só o eu que recordasse
claramente o seu próprio nascimento teria autoridade para afirmar que sua
história é sua própria história se baseia inteiramente numa pegadinha
kantiana, e esta pegadinha, por sua vez, tem como premissa uma inépcia
colossal: resulta em supor que a única autoconsciência legítima seria a de
um ente que pudesse observar conscientemente seu próprio nascimento. Só
que para isso ele teria de existir temporalmente antes de entrar na existência
temporal. Na experiência real, todo começo, toda gestação, se dá na
obscuridade: a luz é uma conquista progressiva. Narrar a própria vida sem
ser testemunha do próprio nascimento não é uma pretensão indevida: é
simplesmente a condição real da experiência humana. O eu transcendental,
pretendendo fazer a crítica da experiência, estabelece premissas que negam
a possibilidade de toda experiência e, portanto, da própria crítica. Beckett
está consciente do caráter humorístico de suas especulações. Mas o
humorismo kantiano é pateticamente involuntário. O estudo de Olsey
guarda o mérito de elaborar o conceito fundamental da “crise”, mas, ao
exemplificá-lo, é muito incompleto. Descartes só é mencionado de
passagem, e o nome de Kant nem aparece. Imperdoável é a omissão de
Proust, que passou a vida tentando resolver o problema agostiniano do
tempo, assim como a de Arthur Koestler, que, em Darkness at Noon (1940),
documentou a redução da autoconsciência, sob a pressão do totalitarismo
moderno, a uma “ficção gramatical”. O autor também não dá sinal de
associar a “crise da memória” a um processo paralelo e inseparável: a
epidemia de narrativas autobiográficas e biográficas conscientemente
falseadas para fins de propaganda política, fenômeno observado na França
desde pelo menos um século antes desse mentiroso não muito consciente
que foi Rousseau. Seria impossível, de fato, que a dissolução da
autoconsciência não viesse junto com a perda progressiva do sentido de
responsabilidade intelectual e a expansão formidável da amoralidade, do
cinismo manipulador, da crueldade sádica. A destruição das bases
civilizacionais da existência humana não começa nos campos de batalha
nem nas bolsas de valores: começa nos tranqüilos gabinetes onde homens
aparentemente inofensivos – quer se trate de filósofos ou de burocratas da
ONU – tentam ser mais sábios que Deus. Não tem cabimento dissociar da
crise da autoconsciência a progressiva rejeição moderna do senso de
eternidade, e não é possível aceitar a dissolução da autoconsciência
tentando preservar, ao mesmo tempo, altos padrões morais de conduta.
Neste fim de era, as conseqüências históricas de decisões intelectuais
tomadas três, quatro, cinco séculos atrás assumem a forma do totalitarismo,
da violência generalizada, do genocídio e, sobretudo, do império universal
da mentira. Aqueles que buscam na ação política um remédio para esses
males vão ter de compreender, mais dia menos dia, que a raiz deles está nas
regiões etéreas do pensamento abstrato. E aqueles que, por afeição pessoal,
se dedicam ao pensamento abstrato, devem examinar com toda a seriedade
de consciência os efeitos devastadores dos abstratismos aparentemente
inócuos criados pelos filósofos dos séculos passados. Nesse sentido, a
filosofia é política, e a política é filosofia.
13 de março de 2006

[ 7 ] Ver meu Visões de Descartes – entre o gênio mau e o espírito da verdade. Vide Editorial,
Campinas, 2013.
O estupro das soberanias nacionais

A ONU ESTÁ FIRMEMENTE DECIDIDAa tornar o abortismo obrigatório em


todas as nações do mundo, sob pena de sanções econômicas. É a mais
vasta e brutal interferência uniformizante que um poder transnacional já
ousou fazer em países nominalmente soberanos. A intromissão vai furar a
casca jurídica e administrativa e ir direto aos fundamentos de cada
sociedade. Será a extirpação completa das raízes morais e religiosas
milenares de culturas inteiras – e não é preciso dizer que junto com esses
fundamentos irão embora as respectivas identidades nacionais.
Nomeada e paga por Estados independentes, a burocracia internacional da
ONU e da CE se empenha ativamente em destruí-los e em erguer-se acima
deles como governo mundial. A decisão explícita nesse sentido já está
tomada desde 1994: “Os problemas da humanidade já não podem ser
resolvidos pelos governos nacionais. O que é preciso é um Governo
Mundial. A melhor maneira de realizá-lo é fortalecendo as Nações Unidas”
(Relatório sobre o Desenvolvimento Humano).
Até o momento, a imposição desse novo poder era camuflada e sutil.
Decisões da alçada dos governos e parlamentos iam sendo, pouco a pouco,
transferidas para comissões técnicas transnacionais, inteiramente protegidas
de qualquer fiscalização pelos eleitorados. A soberania política, jurídica,
econômica e militar das nações ia sendo cortada fatia por fatia, lentamente,
sem que os povos afetados recebessem informação em tempo de organizar-
se para reagir. Uma autêntica “operação salame” em escala global. Foi
assim que a burocracia internacional conseguiu impor programas uniformes
em matéria de educação, saúde, economia, etc., até mesmo às nações mais
fortes e orgulhosas (a total devastação do ensino público americano foi obra
da ONU, implantada com a cumplicidade de Jimmy Carter e George Bush
pai). A obra-prima do maquiavelismo anestésico veio quando a Inglaterra,
tradicionalmente refratária à promiscuidade internacional, consentiu em
ceder ao escritório da Comunidade Européia, em Bruxelas, os poderes de
decisão do governo de Londres quanto a orçamento, comércio, transportes,
defesa nacional, relações internacionais, imigração, justiça e direitos
humanos, reduzindo o Parlamento à condição de assembléia local
subordinada[ 8 ]. Uma pesquisa do jornal The Sun mostrou que 84 por
cento dos ingleses ignoravam tudo a respeito.
A decisão quanto ao aborto assinala o que Mao Tsé-tung chamaria “salto
qualitativo”: uma lenta acumulação quantitativa de fatores homogêneos
muda, de repente, a natureza do processo. Décadas de manipulação
sorrateira tornaram as nações suficientemente passivas para curvar-se, sem
o mais mínimo questionamento, à imposição ostensiva de uma nova lei
moral, contrária a tudo em que acreditaram durante séculos ou milênios.
Se há uma situação em que faz sentido falar de “genocídio cultural”, é
essa. E não é preciso dizer que novas medidas do mesmo teor virão nos
próximos anos, varrendo do mapa símbolos, valores, costumes e tradições
que desagradem ao autonomeado governo do mundo. A profundidade e
abrangência da mutação planejada vai além de tudo o que a imaginação
banal dos politólogos acadêmicos e dos analistas econômicos da mídia pode
hoje conceber.
De um lado, a substância ideológica dessa revolução é extraída
diretamente do materialismo revolucionário do século XVIII: trata-se de
criar uma sociedade global totalmente administrada e controlada por uma
elite de intelectuais iluminados, porta-vozes da razão científica contra o
obscurantismo das religiões e culturas tradicionais.
Mas todo esse racionalismo é somente uma casca brilhante construída para
engodo das multidões (nisto incluído o “proletariado intelectual” das
universidades). Por dentro, o iluminismo inteiro foi um amálgama
tenebroso de ocultismo, magia, gnosticismo, sociedades secretas, rituais
entre cômicos e macabros. Não há um só historiador sério que ignore isso.
Do mesmo modo, o laicismo “esclarecido” da nova ordem global é puro
teatro. Suas fontes são as mesmas do ocultismo da “Nova Era”. Seus gurus
são Helena Petrovna Blavatsky, Alice Bailey, Aleister Crowley e outros
saídos do mesmo esgoto espiritual. Se duvidam, informem-se sobre um
movimento denominado United Religions Initiative. Já mencionei aqui o
livro de Lee Penn, False Dawn: The United Religions Initiative, Globalism
and the Quest for a One-World Religion, Hillsdale, NY, Sophia Perennis,
2004. Está tudo lá. Apelo ao leitor para que estude essa obra enquanto é
tempo. São centenas de páginas de documentos de fonte primária, que não
deixam a menor margem a dúvidas. O governo mundial que se forma diante
dos nossos olhos tem um programa “religioso” bem definido: criar uma
nova “espiritualidade global” biônica que domestique as religiões
tradicionais e as nivele a qualquer seita ocultista, mágica, ufológica ou
satanista, e na qual o objetivo essencial da atividade religiosa não seja o
culto a Deus, mas a “reforma social” – na linha, é claro, escolhida pela
burocracia.
A intelectualidade brasileira está radicalmente desqualificada para discutir
essas mutações e suas conseqüências para o país. O destino nacional está
sendo decidido por forças que ninguém, no Congresso, na mídia, nas
universidades ou nas Forças Armadas, entende nem mesmo por alto. Nunca
os cérebros foram tão pequenos para desafios tão grandes. As discussões a
respeito são meros concursos de literatice provinciana, enquanto em volta
tudo é arrastado na voragem de uma revolução que não é compreendida
nem pelos seus próprios agentes locais.
Notícias do mundo real
Quem quiser saber o que se passa no país e no mundo, que pare de ler os
jornalões e comece a vasculhar a internet. Três exemplos:
Primeiro. Leio no site www.alertabrasil.blogspot.com que, segundo
Leonardo Attuch, autor do livro A CPI que Abalou o Brasil, Mino Carta
recebeu R$ 2,5 milhões do Mensalão para sua revista Carta Capital, cujo
petismo fiel e intransigente fica assim explicado. O dinheiro saiu por ordem
direta de Luiz Gushiken. Attuch informa que uma lista extensiva de
jornalistas “amiguinhos do governo” está para vazar a qualquer momento.
Que acontecerá a esses mensaleiros da mídia? O mesmo que aconteceu a
seus oitocentos colegas subsidiados pela CUT em 1993. Nada. Continuarão
posando de fiscais impolutos da moralidade alheia.
Segundo. No site www.vcrisis.com, você encontra tudo sobre a Venezuela
– desde listas de presos, mortos e desaparecidos até acordos secretos de
colaboração atômica entre Hugo Chávez e o governo da Coréia do Norte.
Em represália contra essa mania de jornalismo, seu editor, Alexander Boyd,
cidadão venezuelano auto-exilado na Inglaterra, é acusado pelos agentes
chavistas de representar uma “conexão anglo-venezuelana” subsidiada pelo
governo americano. Ameaçam até pedir sua extradição ao governo
britânico, sob alegações que até o momento não consigo imaginar. Boyd é
meu amigo, passou uns dias aqui em casa e asseguro que ele não tem onde
cair morto. Se o governo americano o subsidia, o raio do cheque deve estar
atrasado há anos.
Terceiro. Partindo de uma informação divulgada por mim tempos atrás, o
blog www.cacom.blogspot.com cobrou da senadora Heloísa Helena uma
explicação das relações perigosas entre seu partido e o terrorista italiano
Achille Lollo, condenado pela justiça de seu país pelo assassinato dos dois
filhos de seu inimigo político Mario Mattei, um deles de oito anos de idade,
ambos queimados vivos num incêndio proposital. Com uma sentença de
dezoito anos de prisão a cumprir na Itália, o terrorista vive no Brasil, sob
proteção do governo ao qual a sra. Heloísa Helena finge fazer oposição ao
mesmo tempo que continua a colaborar com ele no Foro de São Paulo.
Lollo é co-fundador do PSOL e publica artigos de teoria marxista no jornal
do partido da senadora.
Gabriel Castro, editor do blog, achou com razão que uma candidata à
Presidência da República não poderia andar de mãos dadas com um
parceiro tão sujo sem dar ao menos alguma satisfação à opinião pública.
Ante a pergunta, a assessoria da senadora, que antes havia concordado com
a entrevista, reagiu com quatro pedras na mão, fazendo pose de dignidade
ofendida e espalhando no ar toda sorte de insinuações perversas para fugir
de dar uma resposta. O jornal então avisou que iria publicar as perguntas
sem as respostas, e a senadora, agora em pessoa, não perdeu a ocasião de se
fazer de vítima, uma das técnicas de desconversa mais usuais nos meios
esquerdistas: “Ameaça? Acha V.Sa. que eu tenho medo de alguma coisa?
Passei a vida como sobrevivente tendo que engolir meus próprios medos,
entendeu?” Performance comovente, senadora. Mas, encerrado o
espetáculo, cadê a explicação? Nada. Silêncio total. O blog então publicou
as provas da participação de Lollo no PSOL, acompanhadas de um
documento aterrorizante: a foto de uma das vítimas do incêndio, queimada
mas ainda viva, tentando em vão escapar pela janela da casa em chamas.
O que achei mais bonito na reação da assessoria foi a pergunta insolente
enviada a Gabriel Castro: “O seu público sabe quem é Olavo de Carvalho?
Assim fica difícil agente (sic) fazer alguma coisa.” Que é que seus
ajudantes querem dizer com isso, senadora? Que a senhora me conhece, que
sabe a meu respeito algo de terrivelmente comprometedor que o editor do
blog ignora? Pois então diga logo, madame. Na verdade, você não vai dizer
é nada, nem contra mim nem a seu favor. Não vai dizer, porque não tem
nada a dizer. Já está suja pela parceria com esse assassino monstruoso,
sujou-se mais ainda por fugir da pergunta e, ao defender-se por trás de
alusões difamatórias a um terceiro, completou a porcaria. O valente Gabriel
Castro encerra o relato do episódio com uma conclusão incontornável:
“Quando um entrevistado foge e não responde a uma pergunta, sem querer
ele diz muito mais do que se houvesse respondido.”
DERROTA COMPLETA
Os soldados do Exército voltando aos quartéis, sob uma chuva de
cusparadas da mídia, após uma frustrada incursão nos morros cariocas, são
a imagem da derrocada aparentemente irremediável das nossas Forças
Armadas. Desde o tempo em que optaram por responder às sucessivas
ondas de calúnias com tímidas notinhas oficiais em vez dos processos
judiciais devidos e moralmente obrigatórios, os comandantes das três armas
mostraram sua disposição de sacrificar a dignidade das suas corporações no
altar de uma simulação gramsciana de democracia e ordem. Depois
passaram da omissão ao masoquismo explícito, condecorando os detratores
das Forças Armadas, mostrando reverência indevida a um governo
cúmplice das Farc e submetendo-se alegremente à ordem de transformar
soldados em cavouqueiros a serviço do MST. Negando contra toda
evidência o alcance militar e estratégico do narcotráfico no continente,
deixaram crescer impunemente o inimigo, enquanto se vangloriavam de não
se rebaixar a “funções policiais”. Fugindo à luta maior, à luta para salvar o
país da trama continental urdida pela aliança macabra de comunistas e
traficantes, agora só lhes resta tentar mostrar serviço saindo à cata de
bandidinhos avulsos e provando que já não estão capacitadas nem para isso.
Mas, se nossas tropas têm capacidade para sufocar a bandidagem no Haiti,
por que mostram um desempenho tão chinfrim no Rio de Janeiro? É
simples: no Haiti não havia mídia hostil, não havia ONGs e políticos
maliciando tudo, não havia a pressão de uma elite cheia de ódio e despeito à
classe militar. Tiros e bombas não assustam o soldado brasileiro. O que o
amedronta é o olhar perverso do beautiful people, a malícia difusa dos
falsos moralistas, a língua pérfida dos maiores fofoqueiros do universo. É a
esses que as nossas Forças Armadas, tão valorosas sob outros aspectos,
foram cedendo tudo. Caluniadas, aviltadas, achincalhadas, sabotadas por
todos os meios imagináveis, não souberam reagir com eficácia enquanto era
tempo, e agora têm de inventar às pressas algum pretexto edificante para
justificar sua transformação em tropa auxiliar do Foro de São Paulo. Quanto
falta para isso? Depois que nossos soldados foram submetidos à tarefa
humilhante de montar estandes para o Fórum Social Mundial, falta
realmente muito pouco.
Nada disso teria acontecido se ao menos uma parte da alta oficialidade não
se tivesse deixado induzir por pseudo-intelectuais fardados e civis a
acreditar que, com a queda da URSS, a luta ideológica era coisa do passado
e daí por diante o conflito Leste-Oeste tinha cedido lugar à concorrência
Norte-Sul, ou países ricos contra países pobres. Engolindo essa estupidez
infame, não percebiam – ou fingiam não perceber – que se tornavam
instrumentos ao menos passivos da estratégia comunista internacional no
instante mesmo em que proclamavam a morte do comunismo.
Bem sei que a maioria absoluta dos militares não quer nada disso. Já
escrevi, e repito, que só na classe dos homens de armas encontrei no Brasil
um genuíno patriotismo, um sentimento profundo da continuidade histórica
do país como um legado de heroísmo e de sacrifícios. Sei que eles
continuam fiéis ao seu primeiro amor. Mas o que pode haver de mais
perturbador que o conflito de lealdades? Ser um militar brasileiro, hoje, é
ter o coração dilacerado entre a obediência formal a um regulamento e o
apego aos valores que o originaram. Normalmente, as leis são a expressão
dos valores. Mas, quando estes são subvertidos por baixo da carapaça legal
enquanto esta permanece intacta, aí se instaura a luta entre a forma e o
conteúdo. Criar e explorar esse antagonismo, levando o país à confusão, ao
cansaço, ao desespero e por fim à rendição, eis a obra da “revolução
cultural” gramsciana. Ela não tem preferência pela farda do soldado, pela
toga do magistrado, pelo terno do executivo ou pelo macacão do operário:
ela divide e enfraquece todas as almas. Por sobre a derrota de todos, só o
Partido se fortalece. E quando digo “partido”, não me refiro ao PT, mas ao
complexo de partidos de esquerda bem articulados, por trás de suas
divergências de superfície, na estratégia continental da subversão e do
roubo. Se o sr. Luís Inácio da Silva, para assumir a presidência do país,
abandonou a do Foro de São Paulo, isso é apenas uma formalidade
administrativa sem alcance político nenhum. Depois que esse indivíduo
confessou tomar decisões estratégicas em encontros secretos com ditadores
estrangeiros, sem dar ciência delas ao Congresso ou à população, só
mentalidades covardes demais para admitir a realidade podem continuar
negando que o Brasil é governado desde o Foro de São Paulo, que Hugo
Chávez e Fidel Castro mandam aqui dentro mais que qualquer ministro de
Estado ou comandante militar. O país sabe que está de quatro, mas continua
fazendo de conta que sua humilhação é motivo de orgulho. Decididamente,
está havendo alguma confusão entre orgulho nacional e orgulho gay.
Ainda há tempo para salvar a dignidade das Forças Armadas? Há, mas
encurta velozmente. Se querem uma fórmula, a lição 1 é simples: que os
militares parem de acariciar os inimigos que os bajulam com doces palavras
e aprendam a ouvir os amigos que os desagradam com verdades duras. A
verdade é boa em si. Não tem por que tentar ser agradável. Quem prefere
antes agrado do que sinceridade, é porque já está fraco demais para admitir
a gravidade da sua própria situação. Homens de valor não pedem agrado.
Pedem o conhecimento necessário para tomar decisões viris. Se é isso o que
querem, contem comigo. Se querem agradinho, que vão pedir aos seus
falsos amigos interesseiros.
20 de março de 2006

[ 8 ] Ver Golpe de Estado no mundo, em


http://www.olavodecarvalho.org/semana/030524globo.htm.
Honra ao mérito

L
EIO NO SITE DO MEU CARO POLÍBIO BRAGA,[ 9 ] um dos melhores
comentaristas políticos do Rio Grande, o seguinte:
Se você tem conta na Caixa Econômica Federal, muita atenção: a Caixa viola o sigilo
bancário dos seus clientes. Saia da Caixa Federal enquanto é tempo e fuja de repartições públicas
ocupadas por trotsquistas ou ex-trotsquistas enquistados no PT, porque eles são capazes de tudo e
não têm compromisso algum com a chamada ‘ordem burguesa’. Ficou comprovado que a
violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa partiu da própria Caixa
Econômica Federal. O formulário de extração de dados da movimentação bancária de
Francenildo é exclusivo do sistema interno da estatal, ao qual nem clientes têm acesso. As duas
pessoas, em última instância, responsáveis pelo sigilo dos dados dos clientes são gaúchas. São o
próprio presidente, Jorge Mattoso, conhecido trotsquista de Porto Alegre, amigo de Luís Favre, o
marido de Marta Suplicy, também ele um trotskista histórico, além de Clarisse Copetti, a guardiã
da área de segurança da informação da Caixa, que antes de ir para Brasília ocupou uma das
Diretorias da Procempa, à época presidida pelo trotsquista Jorge Mazzoni. São todos enfezados
militantes do PT. Clarice Copetti é mulher de César Alvarez, do PT gaúcho, homem que
despacha ao lado do gabinete do Presidente Lula, no Palácio do Planalto.
Não sejamos injustos com a Caixa Econômica Federal. Ela não é uma ilha
de espionagem comunista num mar de confiabilidade e decência. Todas as
estatais, todos os órgãos da administração federal, estadual e municipal,
todos os sindicatos, todos os bancos, todas as grandes empresas privadas,
todas as escolas privadas e públicas de qualquer grau, todas as instituições
de cultura, todos os jornais, revistas e canais de TV, todos os partidos
políticos sem exceção têm hoje um, dois, vinte, trinta agentes infiltrados a
serviço da máquina esquerdista de informação e contra-informação.
Essa “ocupação de espaços” começou quarenta anos atrás e prosseguiu
discretamente, imperturbavelmente, sem encontrar a menor resistência, ao
longo de duas gerações de brasileiros. Ela nasceu da mutação estratégica
sucedida nos partidos de esquerda a partir da publicação das obras de
Antonio Gramsci pela Editora Civilização Brasileira, na década de 60. Vou
resumir brevemente essa mutação e em seguida analisar criticamente o seu
estado atual. Quem depois disso não entenda o que está acontecendo e ainda
se iluda quanto à possibilidade de reverter o estado de coisas pela via
eleitoral normal, sem uma contra-estratégia de conjunto e um combate
anticomunista explícito, será um caso de ingenuidade política irreversível e
fatal.
1. No entender de Gramsci, o “poder” não se constitui apenas do aparelho
estatal, mas de uma complexa trama de organizações espalhadas pela
sociedade civil, por meio das quais a “ideologia” dominante se perpetua
através das gerações, criando uma barreira de proteção invisível contra a
ação revolucionária.
2. Portanto, o principal objetivo do Partido revolucionário não deve ser a
tomada do poder político, mas a conquista do controle – “hegemonia” –
sobre essa rede informal de organizações que produzem a “cultura”, isto é, a
ideologia dominante. (O Partido não precisa ser formalmente um só,
reconhecido como tal nos registros eleitorais “burgueses”, mas pode ser um
amálgama de organizações diversas e sem estratégia nominal unificada,
algumas até sem existência legal, como acontece com o MST).
3. A hegemonia não é apenas um meio de obter suporte social para a
conquista do poder político. Isso seria reduzi-la a um apêndice da velha
estratégia leninista. Ao contrário, ela é, desde já, a transição revolucionária
para o socialismo, operada por meios tão difusos e onipresentes que se torna
difícil combatê-los ou mesmo reconhecê-los. Daí o nome “revolução
passiva”. É a revolução que acontece sem que ninguém possa ser apontado
como seu autor e mesmo sem que as vítimas do processo tomem
consciência clara do que está acontecendo.
4. No esquema leninista, a transição para o regime comunista se faria por
meio de uma etapa intermediária socialista. O Estado, nessa perspectiva,
seria fortalecido e ampliado até apropriar-se de todos os meios de ação
social existentes. Quando nada mais restasse fora da esfera do Estado, este
desapareceria como tal: onde tudo é Estado, nada é Estado. Pelo menos a
dialética hegeliana ensina a raciocinar assim. Marx, Lenin e tutti quanti
tomavam como dissolução real do poder de Estado essa pura transmutação
semântica do tudo em nada. Foi por meio dessa grotesca mágica verbal que
o totalitarismo perfeito pôde ser aceito como a perfeita democracia. O
esquema de Gramsci é bem diferente. Nada tem de um engodo dialético. É
uma transformação material, efetiva, da estrutura de poder. A conquista da
hegemonia, conforme ele a encarava, já viria a constituir, em si e
imediatamente, a dissolução da ordem estatal, substituída pela obediência
espontânea das massas aos estímulos acionados pelos comandos culturais
espalhados por todo o corpo da sociedade. A burocracia estatal é uma
expressão da cultura dominante e nada pode contra ela. Ainda que
continuasse formalmente vigente, a ordem estatal, inerme ante a força
onipresente e invisível da “cultura”, se tornaria um adorno inócuo e se
dissolveria por si mesma. Seria o comunismo não declarado, implantado
sem a etapa intermediária socialista.
5. Nesse processo, a submissão coercitiva à autoridade estatal seria
substituída pela obediência inconsciente e irreversível à “cultura”, isto é, ao
conjunto de estímulos, slogans e cacoetes mentais injetados sutilmente na
sociedade pelos “intelectuais”, a vanguarda partidária espalhada
informalmente nos milhares de organizações da sociedade civil. A
profundidade e abrangência dessa penetração pode ser medida pelo fato de
que a rede de organizações a ser conquistada abrangia até escolas maternais,
igrejas e confessionários, consultórios de psicologia clínica e
aconselhamento matrimonial: nada na atividade psíquica da sociedade
poderia escapar à influência do Partido, que adquiriria assim, segundo as
palavras do próprio Gramsci, “a autoridade onipresente e invisível de um
imperativo categórico, de um mandamento divino”.
6. No esquema gramsciano, a identificação do perfeito controle totalitário
com a perfeita liberdade democrática, que em Lênin era apenas um giro
semântico demagógico, se torna um processo psicológico real vivenciado
pelas multidões, que, não percebendo nenhuma autoridade estatal a coagi-
las ou atemorizá-las por meios visíveis, acreditam piamente estar vivendo
na mais libertária das democracias, no instante mesmo em que se curvam à
mais completa obediência, incapazes até mesmo de conceber algum tipo de
ação que escape à conduta que o Partido espera delas.
7. A subversão ativa por meio dos mecanismos tradicionais de ação
comunista – greves, invasões de terras, protestos de toda ordem – não seria
abandonada, mas articulada à conquista da hegemonia pela elite
“intelectual”, formando o “bloco histórico”, isto é, a perfeita convergência
da “pressão de cima” com a “pressão de baixo”. Operando sobre um fundo
psicológico preparado pela hegemonia, a subversão já não encontraria
resistência e nem mesmo seria nominalmente reconhecida como tal, pois
corresponderia à simples realização de expectativas “normais” já
prefiguradas e legitimadas na “cultura”.
Nenhum ser humano com QI superior a 12 pode deixar de perceber que a
transformação revolucionária gramsciana não é um risco que se abre diante
de nós, mas a situação em que o país já vive desde há muitos anos, um
processo tão geral, profundo e avassalador que ninguém mais pensa em lhe
oferecer resistência de conjunto: mesmo os descontentes com o estado de
coisas só reagem a pontos de detalhe. Suas ações se dissolvem
espontaneamente no oceano da hegemonia cultural e com a maior facilidade
são reaproveitadas para o fortalecimento do controle partidário
monopolístico.
Alguns exemplos especialmente deprimentes:
A. Aqueles que se revoltam contra a prepotência do MST já não têm
sequer a força interior de lutar contra os objetivos do movimento e se
limitam a protestar contra um ou outro meio de ação isolado. Contra a
subversão agrária, o máximo que conseguem propor é a “reforma agrária
dentro da lei”, isto é, a reforma agrária conduzida pelos agentes do mesmo
movimento que só se diferenciam dos invasores de terras porque ocupam
cargos na burocracia estatal. O ponto que ainda resta em disputa é apenas
uma diferença quanto aos meios de fortalecer o MST: deixando-o invadir e
queimar fazendas ou entregando-lhe oficialmente tudo o que ele exige e
mais alguma coisa.
B. É mais que evidente que os organismos policiais e de inteligência não
foram deixados de lado na conquista da hegemonia. Eles estão hoje sob o
controle completo da organização partidária que, ao mesmo tempo, fomenta
o banditismo através de legislações propositadamente liberalizantes e
sobretudo da intensa colaboração entre as quadrilhas de traficantes e as
organizações subversivas estrangeiras associadas ao partido governante
através do Foro de São Paulo. É a perfeita articulação da “pressão de baixo”
com a “pressão de cima”. Espremida entre esses polos, a sociedade não tem
alternativa: ou se conforma com a violência criminosa descontrolada, ou
fortalece o partido governante confiando-se à sua proteção, sem ousar
confessar a si mesmo que assim só está se entregando oficialmente aos
próprios bandidos.
C. Durante anos, a elite partidária articulou violentas campanhas de
combate à corrupção com a construção discreta e abrangente de uma
máquina de corrupção incomparavelmente maior e mais destrutiva do que
todas aquelas que ia desmantelando pelo caminho. Pressão de cima e
pressão de baixo. Durante esse período, os feitos mais espetaculares do
moralismo acusador deviam-se exclusivamente ao progressivo controle que
os partidos de esquerda iam adquirindo sobre os meios de informação e
contra-informação através de uma infinidade de “arapongas” infiltrados em
toda parte. Na época, a sociedade já estava tão estupidificada e submissa
que fechava os olhos a essa monstruosa destruição da ordem legal desde
dentro e só se enfezava contra os corruptos avulsos que a máquina de
subversão esquerdista apontava à execração popular. A situação descrita por
Políbio Braga no parágrafo citado acima não é nova. O esquema esquerdista
tem toda a máquina de informações na mão, podendo usá-la à vontade tanto
para enriquecer ilicitamente como para intimidar, assassinar moralmente ou
mesmo mandar para a cadeia quem quer que ouse denunciar o que está
fazendo. A esta altura, qualquer político anti-esquerdista que ache possível
vencer esse esquema por meio de acusações isoladas de corrupção,
apegando-se a esse ponto para fugir a um confronto com a estratégia geral
gramsciana, é evidentemente um bocó inofensivo que só merece, de seus
inimigos esquerdistas, um riso de desprezo.
No Brasil atual, a autodemolição do Estado e sua substituição pela
onipotência do Partido já são fatos consumados e, nesse sentido, a profecia
gramsciana se revelou perfeitamente veraz. O problema com Gramsci não é
a falta de realismo. Gramsci nunca foi vitima de utopismo revolucionário.
Ele sempre foi atento aos fatos e sensível à hierarquia das forças objetivas
que movem a sociedade. O problema com ele não está nos fatos, mas nos
valores. Tal como seu guru Maquiavel, ele tinha uma consciência moral
doente, disforme, incapaz de sentir o mal mesmo nas suas expressões mais
óbvias e escandalosas. Por exemplo, ele via a dissolução do Estado como o
advento de uma era de liberdade jamais sonhada. Mas o Estado é uma
ordem explícita sobre a qual sempre se pode exercer um controle crítico. Já
a rede de operadores da hegemonia é oculta, inacessível ao público. É uma
elite onipotente como uma casta de deuses, controlando o processo desde
alturas inatingíveis. Só uma mente perversa pode conceber isso como um
reino da liberdade. Ao mesmo tempo, é óbvio que a elite esquerdista pode
dissolver o Estado por meio do fomento ao banditismo, mas com isso
entrega a população à sanha de traficantes e assassinos, sem lhe deixar
esperança de refúgio exceto por meio de um retorno ao Estado forte,
dominado, é claro, pela mesma elite que criou, protegeu e alimentou o
império do crime.
Gramsci sabia como funcionava a estrutura de poder. Só não sabia
diferenciar o bem do mal. Era um gênio da engenharia social com a
consciência moral de um rato de esgoto. Se o Brasil é hoje a nação
recordista mundial de homicídios no mundo e ao mesmo tempo o único país
em que a estratégia gramsciana foi aplicada de maneira integral e bem
sucedida, só tipos patéticos nos quais a impotência e a cretinice tenham
chegado à síntese perfeita da estupidez superior podem achar que uma coisa
não tem nada a ver com a outra. Ora, praticamente toda a política “de
oposição”, no momento, consiste precisamente em agir como se uma coisa
não tivesse nada a ver com a outra.
Quando observo esse estado de coisas e me lembro de que, ao longo das
décadas, todas as minhas tentativas de denunciar o processo antes que ele
chegasse às suas últimas conseqüências foram recebidas com bocejos de
indiferença ou com aquela franca hostilidade que os preguiçosos e
comodistas reservam para os portadores de notícias desagradáveis, não
posso escapar à conclusão de que as vítimas da opressão esquerdista
receberam exatamente aquilo que fizeram por merecer. No fundo do caos,
da violência, do cinismo triunfante e da mais formidável degradação moral
que qualquer nação do mundo já vivenciou, reina, no fim das contas, uma
certa justiça. Todos estão sendo recompensados pelos méritos da sua
covardia moral e da sua indolência intelectual. Parabéns.
***
NOTA – Na análise dos fatos, Gramsci só falhou num ponto decisivo. Ele não entendia
absolutamente nada de economia, e por isso imaginou que a aplicação bem sucedida da sua
estratégia produziria automaticamente a transfiguração mágica do sistema econômico. Ao contrário,
a evolução posterior dos acontecimentos mostrou que a implantação de um sistema de poder
comunista gramsciano é inteiramente compatível com a subsistência do capitalismo monopolístico.
Na verdade, ela até exige isso, porque, a economia comunista sendo inviável em si (a demonstração
cabal disto já foi feita desde 1928 por Ludwig von Mises), o esquema gramsciano precisa de uma
certa quota de capitalismo para manter-se de pé, exatamente como acontece na economia nazista ou
fascista. Daí a parceria infernal do partido governante com os bancos. Mantendo satisfeita uma
parcela da burguesia, esse esquema pode durar indefinidamente. E, se alguém acha ruim, o protesto
mesmo pode ser canalizado em favor da propaganda esquerdista, lançando-se as culpas do mal
sobre o “sistema”, como se o sistema não fosse o próprio gramscismo realizado.

27 de março de 2006

[ 9 ] Ver http://www.polibiobraga.com.br.
Saudades do Mensalão

Q
UANDO TUCANOS E “LIBERAIS” INSISTEM em tentar derrubar o esquema
petista mediante puras imputações criminais, abstendo-se
pudicamente de fazer oposição político-ideológica, já confessam
antecipadamente uma fraqueza que prenuncia desastres imensuráveis.
Se o grupo petista atualmente no poder sustenta-se no desvio sistemático
de dinheiro público, a esquerda continental, da qual esse grupo não é senão
um pseudópodo especialmente saliente, apóia-se num aparato muito mais
vasto e temível: a narcoguerrilha das Farc, o banditismo organizado do MIR
chileno e outras entidades criminosas pertencentes ao Foro de São Paulo.
A corrupção instalada no governo federal, preparada desde o começo da
década de 90, é apenas uma engrenagem ínfima da máquina criminosa
montada pelo movimento comunista para “reconquistar na América Latina
o que foi perdido no Leste europeu”.
A concentração do ataque oposicionista em denúncias apolíticas pode
parecer, no momento, um ardil inteligente, porque atrai para as trincheiras
do antilulismo uma parcela da esquerda. Mas essa parcela só se volta contra
os corruptos pegos com as calças na mão, queimados, indefensáveis. Por
baixo, continua firmemente unida à máquina continental que os gerou. Ela
só consente em juntar sua voz à gritaria moralizante porque acredita que,
substituídas as peças que o escândalo tornou inutilizáveis, a máquina
ganhará nova credibilidade para poder continuar delinqüindo em escala
incomparavelmente maior. Como já aconteceu inúmeras vezes na História,
a esquerda se subdivide para tirar proveito publicitário de seus próprios
crimes, e o faz servindo-se da ajuda de adversários ingênuos e débeis.
Insistindo em combater num campo limitado, mais proporcional à sua
minguada coragem e à sua inteligência estratégica provinciana, esses
adversários lhe entregam antecipadamente o controle do território maior.
Tucanos e liberais estão tentando vencer num jogo simulado, enquanto
fogem do combate real. Quando estiverem comemorando a vitória obtida
nessa brincadeira, despertarão no meio de um campo de batalha, onde já
não terão de enfrentar demagogos corruptos, mas guerrilheiros e
narcotraficantes furiosos.
Aí terão saudades do Mensalão.
31 de março de 2006
O guru da Nova Ordem Mundial

A
LGUNS LEITORES ESTRANHAM QUE, EM PLENA ASCENSÃO do comunismo
na América Latina, eu me desvie da atualidade explosiva para me
empenhar, aqui e em outras publicações, num combate aparentemente
extemporâneo contra Immanuel Kant e o iluminismo[ 10 ].
Há quem chegue a imaginar que criei birra do anãozinho corcunda de
Koenisberg por sua semelhança física com o de Turim (Antonio Gramci).
Mas nada tenho contra anõezinhos, exceto quando por dentro são monstros
enormes. No artigo anterior descrevi brevemente o segundo. Seu antecessor
alemão parece bem menos perigoso. Com freqüência, surge na mídia com
as feições risonhas de um amante da paz e da liberdade. Ninguém pode
negar que isso ele era realmente, mas em filosofia as palavras não valem
pelo seu sentido-padrão dicionarizado, e sim pelo conceito específico e
plenamente desenvolvido que nomeiam. Quando examinamos o que Kant
entendia por paz e liberdade, sabendo que assim as entendem também os
atuais candidatos a governantes do mundo, não podemos deixar de perceber
que a parecença do filósofo com o fundador do Partido Comunista Italiano
não é só anatômica, mas também moral, sobretudo na capacidade que
ambos tinham de embelezar com uma linguagem idealística as mais feias
realidades históricas que estavam plantando no solo do futuro.
De modo geral, a influência cada vez maior e mais organizada dos
intelectuais nos centros de poder mundial e a adoção generalizada da
“guerra cultural” como instrumento primordial de dominação tornam a
política incompreensível a quem não consiga acompanhar de perto a
marcha das idéias. É uma ilusão mortífera imaginar que ainda existe uma
esfera “prática” separada do debate cultural, religioso e filosófico. Os
políticos ou líderes empresariais soi-disant “pragmáticos”, que se gabavam
de olhar com desprezo as discussões aparentemente bizantinas dos
acadêmicos, são hoje uma raça em extinção. Para destruí-los, basta à
intelectualidade ativista conceber estratégias que passem longe do horizonte
de visão do seu imediatismo praticista. A vitória do gramscismo no Brasil
explica-se, em boa parte, pela indolência intelectual dos líderes políticos e
empresariais de fora da esquerda. Nos EUA, nada se debate no parlamento,
se decide no judiciário ou se empreende no executivo sem ter passado,
muito antes, pelo crivo dos think tanks, onde intelectuais de grosso calibre
criam as categorias de pensamento que depois orientam toda a discussão
subseqüente. Se você tenta acompanhar o desenrolar dos acontecimentos
sem conhecer os pressupostos intelectuais mais remotos por trás dos
conflitos de poder, acaba não entendendo nada. Um desses pressupostos é a
filosofia de Kant. Exposta num estilo abstruso que repele até os estudantes
de filosofia, ela é a última coisa pela qual um “homem prático” poderia se
interessar. Por isto mesmo, ela vai se tornando realidade bem diante dos
narizes deles, sem que tenham a menor idéia de para onde ela ameaça levá-
los.
Umas poucas observações bastam para realçar a gravidade do assunto.
Em primeiro lugar, a noção kantiana de “paz eterna”, tão própria a seduzir
os sentimentais pela sua vaga ressonância bíblica, não significa outra coisa
senão “governo mundial”. Num estudo importantíssimo (La face cachée de
l’ONU, Paris, Ed. Sarment Fayard, 2000), o Pe. Michael Schooyans,
filósofo belga que já lecionou no Brasil, mostra que as novas legislações
uniformizantes que a ONU vem impondo ao mundo, como por exemplo o
abortismo obrigatório a que me referi num dos artigos anteriores, são de
inspiração diretamente kantiana. O governo global que a ONU está
construindo com rapidez desnorteante é a tradução jurídica exata do que
Kant entendia como “comunidade humana”. Essa comunidade, segundo o
filósofo, emergia espontaneamente do fato de que os homens são todos
dotados da mesma faculdade da “razão”. Mas a razão, para Kant, não é a
mesma coisa que era para os antigos e medievais. Estes a entendiam como o
simples dom da fala e do raciocínio coerente, reflexo longínquo da Razão
divina que criou e sustenta o mundo. Graças a esse dom, o ser humano
podia apreender algo da ordem divina e cósmica do mundo, ordenando por
ela, na medida de suas limitadas capacidades, a vida da sua própria alma.
Para Kant, ao contrário, a razão é a autoridade legisladora suprema e
insuperável, que não tem satisfações a prestar nem a uma ordem divina pré-
existente, nem a quaisquer fatos do mundo real que não se enquadrem na
sua auto-regulação soberana. Os estudantes de história da filosofia não
ignoram que o iluminismo, de um modo geral, se caracterizara pela
apologia da universalidade abstrata, com pleno desprezo da variedade dos
fatos singulares. Na Revolução Francesa, milhares de cabeças singulares
foram decepadas para enquadrar as restantes na linda universalidade da
razão. Kant adorou isso. A rigidez do seu moralismo abstrato não tinha
limites. Imaginem agora o que pode resultar da transformação disso em
princípio regulador da ordem mundial. Eliminar do mapa as nações que não
se enquadrarem na perfeição da nova ordem global será tão fácil quanto
guilhotinar dissidentes. Se a cultura colombiana, por exemplo, é refratária
ao aborto por querer permanecer fiel às suas origens cristãs, corta-se o
crédito internacional da Colômbia como outrora se cortou a cabeça do poeta
André Chenier ou do físico Lavoisier. Isso está de fato acontecendo, e é
uma solução tanto mais tentadora porque o governo colombiano move uma
bem sucedida guerra contra o narcotráfico, que a ordem global em gestação
preferiria, ao contrário, liberar como comércio legítimo (uma vasta
campanha nesse sentido é subsidiada pelo sr. George Soros, que ao mesmo
tempo investe pesadamente na construção da nova ordem e na compra de
terras... na Colômbia). Para quem quer enquadrar o planeta num modelo
jurídico uniforme, esmagando os adversos e recalcitrantes com a boa
consciência de um apóstolo da paz eterna, nada mais inspirador do que os
abstratismos de Kant.
Mas, muito antes de insuflar essas idéias malignas nas cabeças dos
burocratas de Genebra, Kant já havia feito um mal irreparável à inteligência
humana. Ao consagrar o império da “razão” uniforme sobre a
multiplicidade dos fatos, ele criou o dogmatismo cientificista que permite
abolir continentes inteiros da realidade, sob o pretexto de que são refratários
ao estudo científico, dando em seguida, a essa mesma ciência que admite
sua incapacidade de estudá-los, a autoridade de declarar que não existem.
Essa idolatria do método produziu resultados tragicômicos. A epidemia de
charlatanismo antropológico no século XX esteve entre eles. Baseando-se
na premissa kantiana de que de um juízo de fato não se pode deduzir um
juízo de valor, nem do valor um fato, cientistas sociais bisonhos
professaram abster-se asceticamente de proferir julgamentos de valor sobre
as realidades culturais que estudavam e acabaram tirando desse voto de
castidade a conclusão de que, nesse campo, as diferenças de valor não
existiam mesmo. A igualdade das culturas perante a suprema Razão
kantiana é hoje um dogma imposto a todas as nações pelos pedagogos
politicamente corretos da ONU. É imensurável a bibliografia destinada a
persuadir o mundo de que, por exemplo, os rituais astecas de sacrifícios
humanos eram um costume tão decente quanto a caridade franciscana.
Quando o Prof. Peter Singer afirma resolutamente os direitos humanos das
galinhas, estendendo às diferenças entre espécies animais o mesmo preceito
que obteve tanto sucesso no que diz respeito às diferenças entre culturas, ele
está sendo rigorosamente kantiano.
Da mesma inspiração vem aquela regra sublime de que, como a ciência
genética não consegue perceber nenhuma diferença entre um ser humano e
um chipanzé aos três meses de gestação, os seres humanos não são
realmente diferentes dos chipanzés. Fortalecida pela autoridade de Kant,
cada ciência se crê autorizada a proclamar que tudo aquilo que está fora do
alcance dos seus métodos é perfeitamente inexistente. Qualquer faxineiro
sabe que um embrião humano, uma vez crescido, pode se tornar Platão ou
Michelangelo, e que nenhum embrião de chipanzé pode esperar um futuro
igualmente promissor. Mas, como a embriologia não estuda nada do que
sucede aos embriões depois que eles deixam de ser embriões, essa diferença
é kantianamente abolida em prol da soberania do método. E há muito tempo
a supressão dessa diferença deixou de ser uma pura especulação acadêmica;
ela já virou lei, e as cabeças que sua aplicação vai arrancando pelo caminho
não são de chipanzés nem de galinhas.
Outro malefício incalculável que o kantismo trouxe à humanidade é a
separação rígida e estereotipada entre “ciência” e “religião”. Segundo Kant,
a primeira diz respeito àquilo que podemos “saber”, a segunda áquilo que
podemos apenas “esperar”, quer dizer, desejar e imaginar. Em suma, vigora
aí a diferença entre “conhecimento” e “crença”. Uma teoria científica você
prova ou contesta. Numa doutrina religiosa, você apenas crê ou não crê,
sem possibilidade de arbitragem racional. Essa distinção impregnou-se tão
profundamente na alma ocidental que acabou por determinar o uso diário
das palavras respectivas na mídia, nas escolas, nas discussões públicas e
privadas. Esse é talvez o dogma terminológico de maior sucesso em todos
os tempos. Até no automatismo do inconsciente a religião tornou-se “fé”, e
ponto final. Mas isso é um conceito pueril e insustentável, uma idiotice
completa. Nenhuma religião do mundo começa com “crença”. Começa
sempre com uma sucessão de fatos que assinalam a súbita e humanamente
inexplicável penetração coletiva numa esfera de realidade mais alta, de
onde toda a existência aparece transfigurada por um novo sentido. Digo
“fatos” porque é disso que se trata. A travessia do Mar Vermelho pode ter se
transformado em objeto de “crença” para as gerações subseqüentes, mas,
para aqueles que viveram o acontecimento, não foi nada disso. Jesus Cristo
podia dizer ao cego e ao paralítico curados: “Tua fé te salvou.” Mas é pura
metonímia: a cura, se fosse pura matéria de fé e não um fato da ordem
física, seria fraude e nada mais. Com a passagem do tempo, esfumando-se a
memória viva dos testemunhos, o acesso a esses fatos pode requerer alguma
“fé”, mas não tem sentido confundir a natureza de um fato com o modo de
conhecê-lo séculos depois. Ou esses milagres aconteceram, ou não
aconteceram. E deslocar o problema para um passado remoto é só fugir do
problema. Setenta e seis por cento dos médicos americanos acreditam hoje
em curas miraculosas, porque as vêem acontecer diariamente e sabem que
elas são até mais freqüentes do que a cura pelos meios terapêuticos usuais.
O próprio Jesus Cristo, quando perguntaram se Ele era mesmo o enviado de
Deus ou se seria preciso esperar por algum outro, não respondeu com uma
“doutrina” para ser crida ou descrida, mas com fatos para ser confirmados
ou impugnados (confira em Mateus, 11:1-6). As religiões só se transformam
em matéria de “crença” para um público que está muito afastado, no espaço
ou no tempo, das suas fontes originárias. O conhecimento direto e o estudo
cientificamente responsável dos acontecimentos miraculosos são as únicas
vias de acesso intelectualmente válido à religião. O resto é uma discussão
oca entre ignorantes tagarelas sentados na periferia da realidade. Hoje em
dia, porém, qualquer fato tido por miraculoso está afastado,
automaticamente, da discussão oficial, a não ser quando é uma fraude ou
uma ilusão, isto é, quando, precisamente por não ser miraculoso de maneira
alguma, pode ser explicado por algum psicologismo ou sociologismo fácil.
Expulsos os dados inconvenientes, a “razão” kantiana impera absoluta no
seu buraco de toupeira. O kantismo, consagração da covardia intelectual
que foge de tudo aquilo que não conhece, bloqueia a possibilidade de vir a
conhecê-lo. Nenhum autoritarismo dogmático, ao longo da história, foi tão
mesquinho e tão danoso quanto esse. Em artigos subseqüentes darei
exemplos de seus efeitos desastrosos na cultura, na história e na vida moral.
Por enquanto, peço apenas que não me venham com aquela conversa mole
de que Kant tinha a melhor das intenções, de que foi tudo culpa do zelo
exagerado de discípulos incompreensivos. As conseqüências perversas do
kantismo, como as do hegelianismo e do marxismo, não vieram séculos ou
milênios depois: foram quase imediatamente subseqüentes. Um pensador
que se acha capaz de virar do avesso o universo inteiro dos conhecimentos
humanos não tem desculpa para ignorar os efeitos mais obviamente
previsíveis da difusão de suas idéias. É indecente passar da arrogância
intelectual suprema aos gemidos de inocência fingida. Não se pode
conceder esse direito a Kant, como não se pode concedê-lo a Hegel, a Karl
Marx ou mesmo a Nietzsche, malgrado o atenuante da loucura. Quem quer
que anuncie ter compreendido o sentido integral da História humana tem a
obrigação estrita de prever com acerto o próximo episódio, ao menos no
que diz respeito ao seu próprio campo limitado de atuação pessoal. Se nem
isso o cidadão consegue fazer, é porque não alcançou a plenitude da
autoconsciência filosófica de um Platão, de um Aristóteles, de um Tomás de
Aquino ou de um Leibniz. E, nesse caso, é só por devoção idolátrica que
continuamos a considerá-lo um grande filósofo e não apenas um pensador
interessante.
3 de abril de 2006

[ 10 ] Ver meu livro A Filosofia e Seu Inverso. Vide Editorial, Campinas, 2012.
Cabeça de esquerdista

E
M ARTIGO DO MONDE REPRODUZIDO NA FOLHA DE S. PAULO do dia 2, os
críticos Michel Guerrin e Jacques Mandelbaum apontam algumas
fraudes montadas pelo diretor austríaco Hubert Sauper no
documentário “Os Infernos de Darwin” para impressionar a platéia com os
malefícios imaginários da globalização capitalista, mas acabam louvando o
filme sob a alegação de que a tese ali defendida por meios desonestos é
certa e adequada. Reconhecem que, se a propaganda ideológica não se
apresenta honestamente como tal, “aquilo que se pretende um projeto
alegórico pode ser apreendido pelo público como um acúmulo de fatos
irrefutáveis”; admitem até que “com o filme de Sauper, não estamos
distantes do princípio segundo o qual o fim justifica os meios”, mas no fim
desculpam o diretor na base de que “é preciso avaliar o filme pelo olhar da
subjetividade do cineasta” e alegam em favor dele o lema de outro vigarista
cinematográfico, Johan van der Keuken, segundo o qual “pouco importa a
trapaça – a base precisa ser justa”.
A iniciativa de Sauper não é nova. Reflete a tradição essencial do
documentarismo esquerdista, que começou a mentir com o “cinema-
verdade” de Dziga Vertov, prosseguiu com Jean Rouch e recentemente
chegou à apoteose da mendacidade com Michael Moore. A atividade da
moderna elite artística do Ocidente, nesse sentido, pouco se diferenciou da
indústria de fraudes da KGB. Ao contrário, com freqüência não consistiu
senão na comercialização elegante dos produtos dela.
A justificativa apresentada também não é nova. “Mentir em prol da
verdade”, dizia Brecht, é o dever fundamental do militante comunista. Com
igual boa consciência os funcionários da KGB apagavam a cada ano os
trechos inconvenientes da memória coletiva depositados nas enciclopédias e
dicionários, remoldando o passado à luz do futuro desejado.
Mas, cá entre nós, se alguém tem uma tese geral e abstrata sobre a
realidade – o tal “fundo justo” – e se para argumentar em favor dela reúne
imagens singulares e concretas num filme, essas imagens estão para a tese
exatamente como a prova está para a teoria. A prova artística não precisa
ser completa, exata, rigorosa, mas, que é um tipo de prova, é. Se o filme não
pretendesse provar nada, nem mesmo implicitamente, não seria obra de
tese, não seria a favor nem contra coisa nenhuma, não poderia portanto ter o
sentido de um argumento político, que é justamente o que esses
documentários pretendem ser. Ora, num cérebro normal humano, a prova
reforça a veracidade da tese, a veracidade da tese sustenta-se na prova. Na
lógica dos srs. Michel Guerrin e Jacques Mandelbaum, como também na de
Dziga Vertov, Rouch, Michael Moore e Sauper, o que sucede é o contrário:
a prova, mesmo mentirosa, deve ser aceita como boa porque a tese é dada
por verdadeira. A tese não é provada pela prova, mas a prova é que é
provada pela tese que, ao mesmo tempo, ela simula demonstrar.
Imagine um rapaz tentando entrar numa balada, às três da manhã, e
mostrando como prova de maioridade um documento obviamente
falsificado.
– Este documento não serve, diz o porteiro.
– Serve. Como sou maior de idade, isso prova que o documento prova isso.
Esse raciocínio imita aqueles desenhos de Escher, em que uma mão,
parecendo emergir do papel, se desenha a si mesma. Mas esse truque requer
um desenhista de carne e osso que, desde fora do papel, crie a ilusão. O que
a vigarice intelectual esquerdista dos Moores e tutti quanti pretende nos
impingir é que a mão, se está desenhada, realmente se criou a si própria.
Quando o psiquiatra Joseph Gabel disse que as ideologias de massa têm
uma estrutura lógica idêntica à dos delírios psicóticos, era a esse tipo de
raciocínios que se referia. A que respeitabilidade intelectual pode aspirar o
charlatão que os produz ou, pior ainda, o semilouco que se deixa levar por
eles, arrebatado para o sétimo céu da estupidez no instante mesmo em que
acredita estar sendo muito esperto e profundo?
Toda a militância esquerdista, sem exceção, compõe-se de quatro tipos de
pessoas: vigaristas, otários, vigaristas que estão se tornando otários sem
largar da vigarice e otários que estão se transmutando em vigaristas sem
deixar de ser otários. Os dois extremos são raros, são na verdade puros tipos
ideais weberianos que não existem na realidade: a população esquerdista
efetiva compõe-se de vigaristas otários e otários vigaristas, num perpétuo
intercâmbio de posições. O sr. Palocci, que não era muito otário, entrou em
transição quando começou a freqüentar a casa da sra. Jeanne Mary Corner.
O sr. Lula, que não era muito vigarista, progrediu depressa.
Tanto faz, sob esse aspecto, o nível cultural do cidadão. Safadeza e idiotice
em doses iguais às de um Lula ou de um Palocci observam-se nos mais
sofisticados intelectuais esquerdistas, como os srs. Michel Guerrin e
Jacques Mandelbaum. Quando Roberto Campos dizia não haver esquerdista
que fosse ao mesmo tempo inteligente e honesto, ele ainda tinha a
esperança de que alguns conseguissem ter uma dessas duas qualidades
separadamente. Mas malícia não é inteligência, e sonsice não é honestidade.
Cabeça de esquerdista é isso: ser esperto na fraude e cretino na ilusão de
probidade.
Os srs. Guerrin e Mandelbaum não têm, é claro, a menor noção de que seu
conceito de honestidade artística é apenas um sintoma psicótico. Estão de
tal modo imbuídos do sentimento de ser pensadores sublimes, que não
enxergam a estupidez maciça do que dizem. O público de pseudo-
intelectuais pedantes que se deleita com as seções inculturais da Folha
embarca na canoa deles, sentindo-se inteligentíssimo. Estão vendo como a
inteligência, quanto mais definha, menos o cidadão se dá conta da sua falta?
O fato de que o artigo dessa dupla de idiotas saia no Monde e na Folha é
aliás muito natural, já que a noção de veracidade que eles enunciam é a
expressão literal do conceito de jornalismo que ali se pratica.
MEIOS E FINS
Uma ideologia revolucionária não é uma teoria sobre a realidade, muito
menos um plano de ação. É um enredo ficcional, uma história imaginária da
qual o adepto, militante ou crente tenta acreditar que está participando, e
cuja unidade aparente dá um simulacro de coerência e de sentido à sua vida
dispersa e fragmentária.
Toda ideologia revolucionária identifica o bem com o futuro, com um vago
estado de plenitude a ser atingido em data incerta por meios não muito bem
esclarecidos. A indefinição nebulosa da imagem visada não perturba em
nada a consciência do crente. Ao contrário, é essencial à eficácia persuasiva
do discurso ideológico. Se o futuro que se busca fosse objeto de definição
racional e descrição meticulosa, se tornaria imediatamente alvo de
discussão, perdendo o prestígio do mistério, fonte da sua autoridade sacral.
O objetivo permanece indefinido não somente quanto à sua consistência,
mas também, é claro, quanto à sua data. Mas não se trata apenas da natural
incerteza do futuro. É antes uma incerteza dupla e retroativa. Quando, por
exemplo, se instaura um regime socialista na Rússia ou em Cuba, toda a
militância universal proclama o advento vitorioso do socialismo. Mas,
como esses regimes só podem subsistir na base da violência e do crime e
isso pega muito mal, é preciso proclamar também que esse vexame só
acontece porque ainda não se trata de verdadeiros regimes socialistas. Deste
modo, a chegada do socialismo não somente é incerta no futuro, como
também no passado. Não sabemos quando ele chegará, mas, quando chega,
também não podemos saber se chegou.
Por essas razões é que, quando o sr. Luís Inácio confessa a seus
companheiros do Foro de São Paulo: “Não sabemos como é o socialismo
que buscamos”, ninguém dentre eles o chama de irresponsável por convocá-
los a uma viagem com destino ignorado. O indefinido não pode ser
contestado, e atrai ainda sobre o portador da mensagem uma aura
encantadora de modéstia e realismo. O guia é confiável precisamente
porque não sabe para onde leva a caravana e porque nem mesmo pretende
ter a menor idéia a respeito.
A indefinição dos fins não espalha entre os fiéis nenhuma insegurança
porque lhe corresponde, em oposição dialética, a organização estrita dos
meios e a disciplina rígida do corpo de agentes. Quanto menos a militância
sabe para onde vai, mais se apega à certeza presente das tarefas e da
solidariedade grupal. Todos se dedicam com maior intensidade quanto
menos sabem a que raio de coisa estão afinal se dedicando. Tão frágil é o
equilíbrio entre esses extremos, que qualquer intromissão da realidade
externa, qualquer adversidade, por mais passageira e fátua que seja,
desperta imediatamente o pânico, o horror, a revolta paroxística contra a
abolição do sentido do enredo. Nenhuma exclamação, nenhuma hipérbole,
nenhuma fantasia paranóica, nenhuma calúnua aberrante deve então ser
poupada no esforço de exorcizar o perigo. A segurança psicológica da
comunidade é tudo. Em sua defesa, qualquer coisa que se diga contra o
atacante é válida. Como a raiz da segurança consiste em continuar
acreditando no enredo, a mentira empregada para restaurá-la vale como
símbolo da “verdade”. É por isso que o esquerdista “mente em prol da
verdade”: quanto mais cabeluda a mentira, maior a prova de fidelidade na
defesa do enredo. Daí o sentimento de personificar a verdade em pleno
paroxismo da mentira.
CONTRA A UNIVERSIDADE
Obviamente um dos fatores que mais contribuem para idiotizar as pessoas
a esse ponto é a formação universitária que recebem. No Brasil, isso chega
a uma perfeição raramente igualada. Com trinta anos de experiência na
direção de grupos de estudo de filosofia, com incursões ocasionais em
instituições universitárias onde meus alunos não encontraram a educação
que desejavam e de onde por isso mesmo saíram e vieram parar nos meus
cursos, posso lhes assegurar que a universidade brasileira na sua quase
totalidade é hoje uma entidade inútil e lesiva ao interesse público, dedicada
à pseudocultura, à propaganda política e à exploração da boa fé popular. A
diferença entre escola privada e pública, desse ponto de vista, é irrisória.
Consiste apenas em que a primeira é paga em mensalidades por aqueles que
a freqüentam, a segunda em impostos pela multidão dos trabalhadores que
não podem freqüentá-la. Nenhuma delas presta serviço digno de ser pago,
mas uma explora a sua própria clientela, a outra o restante da população. Se
algumas pessoas ainda acreditam que esta última hipótese é a menos
indecente das duas, isso só se explica pelo coeficiente de estupidez que
adquiriram no curso da sua própria formação universitária.
A honrosa folha de realizações de umas poucas escolas técnicas e
científicas, especialmente militares, nada prova contra o que estou dizendo.
Exatamente ao inverso: a desproporção entre essas ilhotas de sinceridade e
o mar de fingimento que as cerca é tanta, que o sucesso da parte só torna
ainda mais deprimente o fracasso do todo.
Alguns de meus alunos, reconhecendo esse estado de coisas, não ousam
porém admitir que tudo está perdido. Acreditam que vale a pena submeter-
se ao massacre das suas inteligências durante alguns anos em troca de um
emprego universitário que lhes permitirá, mais tarde, atuar dentro do
próprio ventre do monstro e tentar reconduzi-lo a um comportamento
decente. Assim, depois de alguns anos nos meus cursos, onde aprendem o
que ninguém lhes ensinou nas instituições universitárias, voltam a alguma
faculdade na esperança de que a educação que adquiriram comigo lhes dará
forças para sair ilesos da freqüentação diuturna desses templos da estupidez,
ao ponto de um dia poderem lutar aí dentro por um ensino autêntico e um
Brasil melhor. Estão iludidos. Nem eu mesmo sobreviveria a essa
experiência. Entrar numa dessas instituições com o intuito de transformá-la
numa universidade genuína é o mesmo que entrar numa jaula de leões na
esperança de convertê-los ao vegetarianismo.
A universidade brasileira não pode ser melhorada. Ela deve ser
abandonada, desprezada, esquecida. A quase totalidade da produção
intelectual mais alta neste país já vem de fora dessa instituição presunçosa,
dispendiosa e inútil. Em filosofia isso é ainda mais visível do que em outros
ramos da atividade intelectual. Mário Ferreira dos Santos, Vicente Ferreira
da Silva, Vilém Flusser e o próprio Miguel Reale, malgrado seu cargo na
Faculdade de Direito, jamais foram aceitos pelo establishment acadêmico
que, ao mesmo tempo, admitia sua impotência de criar um só filósofo que
fosse. Mas nos estudos literários é a mesma coisa. A crítica literária
brasileira definhou, secou e morreu sem deixar herdeiros a partir do instante
em que a presunção universitária houve por bem apropriar-se dela,
gabando-se de substituir o império da ciência ao reino do “amadorismo”.
Nas ciências sociais, a marginalização de talentos fulgurantes como
Gilberto Freyre, Oliveira Vianna e Guerreiro Ramos já basta para mostrar
que a universidade brasileira já fez há tempos a opção preferencial pelos
medíocres e lesados, que por força da sua própria inépcia cedem mais
facilmente à chantagem dos superiores e à gritaria da massa militante.
Está na hora de fazer com que a independência da vida do espírito em
relação ao estamento burocrático universitário, já longamente praticada
entre nós, seja assumida publicamente, ostentada como um orgulho e
legitimada como um direito fundamental, do qual depende a própria
sobrevivência da cultura brasileira.
APELO HUMANITÁRIO
Três jornalistas brasileiros que vivem em Londres, Chico Nader, Morgana
White e Alberto Salvador, do site do CMI, Centro de Mídia Independente (o
mesmo que divulgava convocações ao meu assassinato), informam a um
estupefato mundo que uma conspiração foi urdida entre os serviços secretos
americanos, a polícia inglesa, eu, o Reinaldo Azevedo, o Diogo Mainardi, o
Ricardo Noblat, o Cláudio Humberto, a Lilian Witte Fibe, o Merval Pereira
e mais uns quantos, para derrubar o governo Lula e, de quebra, infernizar a
vida desses seus gentis servidores londrinos. Já violamos a correspondência
deles, grampeamos seus computadores, invadimos seu escritório e até, com
a ajuda do MI-5 e do Mossad, matamos um dos infelizes.
Entre outras informações preciosas postas em circulação pelos três
anjinhos, descubro que a vítima fatal da nossa trama foi o eletricista Jean
Charles de Menezes, aquele que a polícia baleou por engano no metrô de
Londres. Na verdade ele era um agente lulista disfarçado, e foi morto não
por acidente, mas sim por ordem do sr. Donald Rumsfeld, aquele sacana.
Novos homicídios aguardam-se a qualquer momento, em edição
extraordinária.
Enfim, um rolo dos demônios. E vocês ficam aí, de braços cruzados, sem
mover uma palha em defesa dos coitadinhos. Quanta frieza! Quanta
indiferença! Quanta maldade! Se vocês continuarem assim, não vão ganhar
sorvete de sobremesa.
10 de abril de 2006
Miguel Reale vive

T
RANQÜILA E DIGNA FOI A MORTE DO FILÓSOFO que atravessou digno e
tranqüilo todos os percalços de uma vida longa e repleta de desafios.
Miguel Reale honrou como poucos a vocação de pensador e erudito,
colocando também na sua atuação de advogado e homem público a mesma
seriedade, o mesmo peso de cada uma das palavras que escreveu em livros
essenciais como a “Filosofia do Direito”, “Pluralismo e Liberdade” ou
“Experiência e Cultura”. Não encontro em sua imensa obra um só deslize,
um chute, um palpite leviano emitido mesmo por distração. Tudo ali é
meditado, pensado com enorme senso de responsabilidade, com criteriosa
atenção ao status quaestionis e, sobretudo, com uma aguda consciência do
caráter experimental da investigação filosófica.
Li quase tudo o que ele publicou e, tendo sido honrado com a sua amizade
na última década da sua existência, lamentei sempre a raridade dos nossos
encontros, nos quais ele foi passando de octogenário a nonagenário sem
nada perder da lucidez, da força intelectual e da calma tolerância que eram
as suas marcas mais salientes. Não digo que terei saudades dele, pois nunca
senti saudades dos amigos mortos: posso estar maluco, mas tenho o nítido
sentimento de que ainda estão comigo, tão vivos na minha paisagem
interior quanto o estão na memória de Deus que a todos nos abrange e
sustenta. O que quer que tenha entrado na existência, mesmo que por um só
instante, não pode nunca mais retornar ao nada, que é alheio a toda
existência. Só pode transpor-se a uma outra escala de tempo, imóvel e fixo
na eternidade, mais autêntico e real do que nunca. “Tel qu’en lui-même
enfin l’éternité le change.”
Não digo, pois, adeus ao Dr. Miguel. Lanço-lhe um aceno na eternidade e
asseguro-lhe que o amor e a admiração que tantos lhe votaram em vida
continuarão inalterados.
17 de abril de 2006
A chacota geral do mundo

Q
UEM QUER QUE SAIBA O QUE É LÓGICA tem a obrigação de saber também
que, se a demonstração da existência de Deus pode ser difícil, a da
Sua inexistência é absolutamente impossível. Tanto é impossível que
nenhum ateu jamais tentou sequer formulá-la. Todos limitam-se a
argumentos periféricos e ocasionais, voltados antes a detalhes de doutrina
religiosa, perfeitamente discutíveis em si mesmos, do que ao centro
inexpugnável da questão.
Essa impossibilidade não era desconhecida dos maiores pensadores ateus
do passado, que a contornavam sem poder enfrentá-la. A quase totalidade
dos que polemizam hoje em favor do ateísmo – e eles ultimamente se
multiplicam como ratos de esgoto – não têm o menor pressentimento dela,
embora esbarrem nas suas fronteiras a cada instante. A maioria apela em
última instância ao argumentum ad ignorantiam, declarando com patética
inocência que aquilo que desconhecem não pode existir. Esses são
invencíveis na discussão, pois nenhum argumento tem o poder de infundir
inteligência no ouvinte que uma sólida aliança da genética com a má
educação tornou irremediavelmente estúpido. Sob esse ponto de vista, o
ateísmo parece ter um futuro brilhante.
A tese ateística não sendo logicamente defensável até suas últimas
conseqüências, os inimigos de Deus acabaram-se distribuindo em tribos
diversamente localizadas, cada qual atacando o problema por um pedacinho
da borda, não na esperança de chegar um dia ao centro, mas na de vencer a
platéia pelo cansaço, persuadindo-a enganosamente de que a soma
infindável de argumentos relativos tem o valor e a autoridade de uma prova
absoluta.
As principais dentre essas tribos são as seguintes:
a) Os ateus propriamente ditos, que mesmo não sabendo disto são
campeões da fé, na medida em que apostam naquilo que ninguém jamais
poderá provar. Muitos deles, abdicando previamente de enfrentar a
dificuldade intransponível inerente à sua tese, dispendem energias colossais
em operações diversionistas como a do dr. Richard Dawkins, apegado à
esperança de que a simples hipótese de poder o mundo ter surgido sem
Deus, se formulada com sofisticação matemática bastante, já venha a
resolver o problema inteiro, como se uma possibilidade teórica pudesse, por
si, ser prova de realidade efetiva.
b) Os deístas, que, cientes da impossibilidade de livrar-se completamente
de Deus, tratam de diluí-Lo numa noção tão geral, tão vaga e tão abstrata
que, no fim das contas, é como se Ele não existisse. A melhor solução para
eles é a teoria do deus ocioso – muito em voga no tempo do mecanicismo
renascentista – o qual teria criado o mundo segundo regras tão fixas e
imutáveis que toda interferência do criador se tornou desnecessária uma vez
pronto o mecanismo do mundo. É a imagem do relojoeiro que, terminada a
construção, dá corda no relógio e vai dormir. Não precisamos discutir essa
puerilidade.
c) Os agnósticos, que professam voltar as costas ao problema de Deus e,
modestamente, lidar apenas com questões acessíveis aos métodos da
moderna ciência natural, mas, feito isso, proíbem a investigação de
qualquer objeto que esteja fora do alcance desses métodos ou proclamam
abertamente a inexistência dele, mostrando ser ateus disfarçados que
optaram por dificultar o acesso àquilo cuja inexistência não puderam
provar.
d) Os gnósticos, que admitem a existência do criador mas proclamam que
ele é mau, que fez o mundo contra a vontade do verdadeiro deus, ente
espiritual puríssimo que jamais sujaria suas excelsas mãos numa porcaria
dessas; donde se segue a obrigação máxima do crente gnóstico, a qual
consiste em destruir o mundo ou modificá-lo radicalmente, de preferência
destruindo-o primeiro para depois substituí-lo por algo de totalmente
diferente. Dessa proposta dupla do movimento gnóstico nasceu uma
pluralidade caótica de seitas, das quais algumas se transformaram em
movimentos de massa a partir do século XVIII, gerando as ideologias
revolucionárias do anarquismo, do comunismo, do nazismo, do fascismo,
do positivismo e da tecnocracia, bem como, para além delas, a proliferação
de ocultismos da “Nova Era” e o plano da “Nova Ordem Mundial” ao qual
esses ocultismos não servem senão de instrumento provisório.
O gnosticismo é a ideologia suprema do nosso tempo, destinada a reinar
soberana sobre uma humanidade idiotizada tão logo as religiões tradicionais
se tornem incompreensíveis para as multidões e possam ser sintetizadas
num culto biônico sob a administração das Nações Unidas ou órgão
equivalente auto-incumbido das funções de governo do mundo. A proposta
é tão virulenta, absurda e infame que, embora já esteja em fase avançada de
implementação (v. o livro de Lee Penn já várias vezes citado aqui, False
Dawn), jamais é apresentada em público com franqueza, apenas difundida
indiretamente através de eufemismos anestésicos.
Na verdade, o ateísmo, o deísmo e o agnosticismo já não têm qualquer
energia própria. Propugnados por saudosistas do iluminismo voltaireano e
do cientificismo positivista, tornaram-se instrumentos auxiliares que
concorrem para criar a confusão necessária à implantação da nova religião
universal, sendo por isso fomentados e subsidiados pelas mesmas fontes
que a originam, entidades perfeitamente respeitáveis em aparência que são
também as forças propulsoras de movimentos revolucionários e subversivos
em várias partes do mundo.
Até há algum tempo, tudo isso era apenas uma suspeita, e a investigação
dos fatos por trás dela se misturava inevitavelmente a doses maciças de
especulação imaginária, preconceitos monstruosos, desinformação
proposital e um bocado de pseudociência. Foi a época das “teorias da
conspiração”.
Hoje, os mesmos avanços tecnológicos que deram a esse movimento o
impulso formidável da organização em “redes” tornaram fácil identificar
essas redes e todas as suas conexões internas e externas, apreendendo a
unidade por trás de uma multiplicidade que de outro modo seria
desnorteante. O simples estudo da circulação de dinheiro entre fundações,
governos, ONGs, movimentos terroristas e quadrilhas de narcotraficantes
basta para tornar a realidade da subversão gnóstica mundial demasiado
visível para que se possa continuar a ocultá-la mediante o apelo a evasivas
difamatórias destinadas a intimidar o investigador. Um exame acurado dos
sites www.activistcash.com e www.discoverthenetwork.org dará ao leitor
uma idéia precisa do que estou dizendo. Estudos como The Marketing of
Evil, de David Kupelian (Nashville, Tennessee, WND books, 2005),
Machiavel Pedagogue, de Pascal Bernardin (Cannes, Édition Notre-Dame
das Graces, 1995), Good Bye, Good Men, de Michael S. Rose (Washington
DC, Regnery, 2002), The Deliberate Dumbing Down of America, de
Charlotte Thomson Iserbit (Ravenna, Ohio, The Conscience Press, 1999) e
The ACLU vs. America, de Alan Sears e Craig Osten (Nashville, Tennessee,
Broadman & Holman, 2005), tirarão o restante da dúvida. Os nomes das
mesmas organizações – a “Ford Foundation”, o “Open Society Institute de
George Soros”, a “John D. & Catherine T. MacArthur Foundation”, a
“Carnegie Corporation of New York” e o “Council on Foundations”, entre
uma centena de outras – aparecem com tão obsessiva freqüência entre os
financiadores de movimentos subversivos e os do governo mundial, que já
não é possível deixar de enxergar a ligação entre essas duas forças
aparentemente díspares, uma voltada para a disseminação do caos, outra
para a cristalização da Nova Ordem, tão articuladas entre si quanto as duas
operações alquímicas da dissolução e da coagulação.
Contra esse assalto geral às bases da civilização, os pontos de resistência
são hoje as religiões tradicionais, o Estado constitucional americano e o
Estado de Israel.
Das religiões, cada uma está mais corroída que a outra. O cristianismo,
ainda forte nos EUA e no Leste Europeu e em plena expansão na Ásia e na
África, está praticamente destruído na Europa ocidental e dominado pelo
esquerdismo na América Latina. O Islã tradicional, evaporado, tornou-se
apenas uma figura de retórica no discurso radical que a mídia do Ocidente,
confundindo propositadamente as coisas, rotula de “fundamentalista”. O
judaísmo está assolado daqueles tipos que Don Feder chama de “judeus
Seinfeld”, para os quais as três solenidades judaicas fundamentais são o
Bar-Mitzvah, o Rosh-Hashaná e o aniversário da Barbara Streisand.
A América está ameaçada desde dentro pela potente simbiose das
fundações milionárias com o esquerdismo revolucionário, solidificada pela
mídia chique e hoje mentora inconteste do Partido Democrata.
Israel, cercada de três dezenas de países hostis, e talvez recordista mundial
de traidores e muristas per capita, sobrevive não se sabe como. Voltado à
sua destruição urgente, o anti-semitismo adquire novos contornos, mais
sutis e enganadores, que não podem talvez ser compreendidos senão à luz
do estudo empreendido pelo rabino Marvin S. Antelman, To Eliminate the
Opiate (Jerusalem, Zionist Book Club, 2 vols., 1988 e 2002), que um dia
comentarei aqui em detalhe.
Minar esses três pontos de resistência é obviamente prioritário para a Nova
Ordem Mundial. Daí fenômenos estranhos como a súbita revivescência do
cientificismo, já totalmente demolido pelos maiores filósofos da primeira
metade do século XX – Husserl, Jaspers, Lavelle, Berdiaev, entre outros –
mas facílimo de impingir a novas gerações que não tiveram acesso
universitário às obras desses pensadores ou que foram preventivamente
imunizadas contra eles por injeções maciças de desconstrucionismo,
chomskismo, multiculturalismo e outros estupefacientes. Na esteira desse
fenômeno vem o crescente anticristianismo da mídia e do show business,
cada vez mais brutal e descarado, atuando sobretudo através do expediente
orwelliano da “reforma do vocabulário”, na qual antigos rótulos pejorativos
reservados a extremismos insanos são repentinamente ampliados para
atingir a massa inteira dos fiéis, bastando, por exemplo, um cidadão de hoje
em dia ser contrário ao aborto para receber o epíteto de “fundamentalista”
ou “fanático teocrata”. Acompanha esse cerco a escalada judicial, impondo
cada vez mais restrições à liberdade de culto, estrangulando organizações
religiosas mediante proibição de contribuições e criminalizando a simples
expressão da fé em lugares públicos. Na mesma linha vem a súbita
proliferação de pretensas obras de arte que se notabilizam exclusivamente
pela astúcia da blasfêmia proposital destinada dessensibilizar a população
mediante o truque sórdido do escândalo repetido. Não é necessário dizer
que esses empreendimentos vêm geralmente subsidiados pelas mesmas
fontes acima citadas.
A onda antiamericanista e antiisraelense, a mais vasta campanha de ódio
que já se viu no mundo, subindo no tom até a perda completa do senso das
proporções, abriu as portas da grande mídia a um tipo de jornalismo porco
que décadas atrás só se via na imprensa partidária comunista. O
desinformante profissional e o agente de influência são hoje aceitos como
modelos de jornalismo, dominando não só as redações como também os
órgãos sindicais da classe, donde exercem sobre o conjunto da profissão um
controle monopolístico que torna a censura desnecessária.
Nesse panorama, não é de espantar que ateus de velho estilo,
reencarnações de Haeckel e Renan, reapareçam brandindo os mesmos
velhos argumentos já mil vezes desmoralizados, mas agora reencorajados
em suas pretensões “científicas” pela produção editorial de lixo gnóstico e
ocultista em doses avassaladoras, sufocando a oposição pela força da
gritaria ricamente subsidiada, facilmente ecoada pelo trabalho voluntário de
uma multidão de chimpanzés no Terceiro Mundo.
Que o pretenso materialismo científico apareça tão intimamente aliado à
onda ocultista e satanista não deveria surpreender a ninguém. Hoje sabe-se
que a fonte mesma do cientificismo – a rebelião iluminista – não brotou
senão da mesma fonte gnóstica de onde nasceram o teosofismo e a Nova
Era.
Fenômenos como “O Código da Vinci” e “O Evangelho de Judas”, tão
manifestamente subsidiários da pseudo-religião mundial em preparação,
não têm nenhum significado intelectual em si mesmos e não podem ser
discutidos exceto como dados sociológicos de uma época que dá
testemunho contra a inteligência humana. Os velhos ateísmos cientificistas
que emergem das tumbas não são senão um detalhe patético a mais na
chacota geral.
17 de abril de 2006
Os mestres do fracasso

G
EORGE F. KENNAN E HANS J. MORGENTHAU nasceram ambos em 1904,
o primeiro em Milwaukee, Wisconsin, o segundo em Coburg,
Francônia, Alemanha, emigrando para a América em 1937. Kennan
ultrapassou o centenário, vivendo até 2005; Morgenthau morreu em 1980.
Alcançando sua maturidade intelectual nos anos 40, eles estavam
destinados a criar então as duas teorias que, em essência, determinariam a
política exterior americana ao longo da segunda metade do século XX: a
doutrina da “contenção” e a do “realismo político” respectivamente. A
primeira orientou continuamente as relações dos EUA com os países
comunistas, só sendo abandonada, informal e temporariamente, durante o
governo Reagan. A segunda, mais abrangente, forneceu os conceitos gerais
com que o Departamento de Estado pensa o mundo. O governo Bush
afastou-se dela em aspectos parciais, mas continua raciocinando dentro da
moldura intelectual que ela criou.
Que aconteceria se essas duas doutrinas estivessem substancialmente
erradas? Travada por uma política internacional imprópria, a América, a
potência mais rica e poderosa do universo, com recursos naturais
inesgotáveis e o povo mais patriota, devotado e criativo que o mundo já viu,
desempenharia no espaço global um papel bem inferior àquele a que parecia
destinada pelas circunstâncias da sua fundação e pelo sucesso absoluto do
seu sistema econômico e político. Seus méritos mais óbvios, em vez de
impor-se ao mundo com a autoridade do exemplo, seriam negados em favor
do anti-exemplo de regimes tirânicos desumanos e economicamente
fracassados. Seus inimigos, incapazes de vencê-la por engenho próprio,
viveriam da exploração de suas fraquezas, conquistando no campo do
maquiavelismo e do embuste as vantagens que lhes fossem negadas na
concorrência econômica, militar, científica. Mesmo derrotados no campo
político e militar, alcançariam vitórias ideológicas e publicitárias. Um fluxo
contínuo de ajuda prestada a outros países – até mesmo hostis –, a mais
formidável efusão de generosidade nacional que a humanidade já conheceu,
exercida não raro contra os interesses materiais do próprio povo americano,
não despertaria nenhuma simpatia pela América. Ao contrário: fomentaria
entre os beneficiados um sentimento de inferioridade que eles buscariam
compensar mediante uma noção grotescamente hipertrofiada dos seus
próprios “direitos”. Por toda parte a ingratidão se transformaria em símbolo
patriótico, a inveja em virtude e o ódio anti-americano em obrigação moral.
Nações inteiras que tivessem devido sua sobrevivência à ajuda americana
prefeririam antes aproximar-se de vizinhos agressores e exploradores – aos
quais se sentiriam iguais e irmanados pela comunidade do mal – do que do
benfeitor em cuja presença se sentiriam humilhadas, não só pela diferença
de bens materiais mas pela própria inferioridade moral.
Pois bem, não são precisamente essas coisas que estão acontecendo? Não
são elas a descrição exata da posição que os EUA ocupam no mundo? Não
está portanto na hora de submeter as idéias de Kennan e Morgenthau a uma
crítica radical?
A principal fraqueza delas vem da sua origem disciplinar. Não parece
haver nada de anormal em que os teóricos de Relações Internacionais
sejam, é claro, estudiosos de Relações Internacionais. Mas a abordagem que
Kennan e Morgenthau fazem dos problemas da área reflete a tendência
dominante do mundo acadêmico europeu e americano na época da sua
formação universitária, as primeiras décadas do século XX. A moda então
era cada disciplina científica buscar a independência, recortando seu
território de acordo com a natureza autônoma, puríssima e incontaminada
do seu objeto de estudos. Foi a época da “lógica pura” de Edmund Husserl,
da “teoria pura do direito” de Hans Kelsen, da “economia política pura” de
Léon Walras, da “política pura” de Carl Schmitt. Essa obsessão de pureza
nasceu de um impulso saudável de respeitar os limites dos vários domínios
da realidade (as “ontologias regionais” como as chamava Husserl), reagindo
contra a mania oitocentista de fazer da ciência de maior sucesso no
momento o modelo e padrão de todas as outras, mania que foi rotulada de
“imperialismo cientifico” por José Ortega y Gasset (ele próprio um
batalhador pela “sociologia pura”, embora sem esse nome explícito).
A reação diferenciadora era bastante sensata, mas gerou uma espécie de
patriotada científica, um orgulho autonomista: cada ciência, uma vez
constituída, permitia-se ignorar solenemente aquilo que as vizinhas
tivessem a dizer sobre o seu campo ciumentamente recortado e guardado.
Kelsen, por exemplo, era particularmente feroz na sua recusa de permitir
que considerações sociológicas, psicológicas ou morais interviessem no
“direito puro” (mais tarde ele teve de ceder). O resultado foi que muitas
áreas de intersecção vieram a ser ignoradas por não se enquadrarem em
nenhuma disciplina em particular. Somadas, elas formam continentes
inteiros da realidade. O que quer que se passasse nessa zona era tido por
irrelevante ou inexistente.
Na produção desse fenômeno houve também a interferência de um outro
fator. Se os leitores se lembram do que escrevi sobre Kant aqui e em outras
publicações, não terão dificuldade de perceber o quanto o primado kantiano
do método pode ter contribuído para que voltar as costas aos fatos se
tornasse então uma questão de honra para muitos cientistas.
Kennan e Morgenthau (este último, não por coincidência, discípulo de
Kelsen e Schmitt) foram afetados profundamente por esse vício.
Formalmente e por definição – portanto na perspectiva da pureza disciplinar
–, as relações internacionais são relações entre Estados. Mas quem disse
que na trama real da história do mundo os Estados são os agentes principais
do processo? Estados formam-se e desfazem-se como nuvens. Guerras e
acordos fazem-nos aparecer e desaparecer do mapa. Às vezes eles são
meras ficções diplomáticas criadas por arranjos entre outros Estados.
Ademais, Estados não agem: quem age, em nome deles, são os governos; e
governos mudam de objetivos ao sabor de forças que não são de ordem
estatal, freqüentemente nem nacional. Para agir, diziam os escolásticos, é
preciso ser. E ser significa, entre outras coisas, ter unidade e conservá-la ao
longo do tempo. Por trás dos Estados, há agentes muito mais coesos,
duradouros e contínuos, como por exemplo a Igreja Católica, o Islam (por
caridade, revisor, não troque para “Islã”, com til, o aportuguesamento mais
errado que algum filólogo bêbado já inventou), a Maçonaria, o Partido
Comunista ou certas famílias nobres e ricas. Essas entidades têm objetivos
permanentes que ultrapassam a duração dos Estados e não raro o horizonte
de visão dos agentes estatais. Sua ação se sobrepõe às divisões entre
Estados e com freqüência as determina. Ao descrever o jogo de poder no
mundo essencialmente como uma trama de relações entre Estados, tanto
Kennan quanto Morgenthau acabam confundindo, kantianamente, a
definição de uma disciplina científica com a ordem objetiva da realidade.
Mal orientada por eles, a América cometeu erro em cima de erro, primeiro
no confronto com o comunismo, e agora com o terrorismo internacional.
No célebre “longo telegrama” que enviou da Embaixada Americana em
Moscou ao Departamento de Estado em 22 de fevereiro de 1946, George F.
Kennan, reconhecendo a natureza imutavelmente agressiva do regime
soviético, propunha uma “duradoura, paciente, firme e vigilante contenção
das tendências expansivas da Rússia”. A “contenção” (containment) tornou-
se a base permanente da estratégia americana na Guerra Fria.
Ora, no fim da II Guerra, a economia da URSS estava em frangalhos.
Dependia inteiramente da ajuda americana, que lhe foi dada mais
generosamente do que a qualquer outros país aliado. Os EUA, ao contrário,
tinham saído do combate enriquecidos e estavam numa expansão industrial
formidável. Tinham do seu lado o prestígio universal da democracia e ainda
a vantagem da bomba atômica, um pesadelo que aterrorizava Stalin.
Estavam em condições de quebrar a espinha do regime soviético, de reduzi-
lo à completa impotência e docilidade, até mesmo sem pressão militar,
mediante a simples recusa – ou ameaça de recusa – de ajuda econômica. Se
há algo que está bem provado em História, é que a economia soviética
sempre foi capenga, sempre dependeu do socorro americano e, depois da
guerra, passou a depender mais ainda. A URSS só se tornou uma ameaça
para os americanos porque eles mesmos a reergueram e a armaram contra si
próprios (v. National Suicide. Military Aid to the Soviet Union, de Anthony
Sutton, New Rochelle, N. Y., Arlington House, 1973 – um clássico). Além
de arranjar assim “o melhor inimigo que o dinheiro podia comprar”, como o
chamou Anthony Sutton, eles ainda fomentaram suas ambições mais
paranóicas mediante as concessões excessivas feitas a Stalin por Franklin
Roosevelt, nos acordos de Yalta, sob a direta influência de um assessor,
Harry Dexter White, que mais tarde se descobriu ser um agente soviético.
A proposta de “contenção”, a essa altura, era de uma modéstia e de uma
benevolência anormais. Serviu apenas para encorajar os soviéticos, que
desencadearam contra ela uma de suas campanhas de propaganda mais
virulentas e mentirosas. Em setembro, um telegrama de Nikolai Novikov,
embaixador soviético em Washington, encomendado e ditado pelo próprio
Stalin para ser usado nessa campanha, “informava” que “a política externa
dos EUA reflete as tendências imperialistas do capitalismo monopolista e
caracteriza-se por um esforço para obter a supremacia mundial”. Ora, a
“contenção” americana não era um slogan publicitário, era a expressão
literal do princípio adotado na prática, que reconhecia a legitimidade das
fronteiras alcançadas até então pela brutal expansão soviética e se propunha
apenas impedir que fossem mais além. A idéia refletia não só a sugestão de
Kennan, mas também a influente doutrina do “equilíbrio de poderes” que
Hans J. Morgenthau estava ensinando na Universidade de Chicago e que
viria a compor o seu livro de 1948, Politics among Nations: The Struggle
for Power and Peace. Habilitados a conquistar a hegemonia, os americanos
queriam apenas “contenção” e “equilíbrio de poderes”. A maior prova disso
foi que retiraram suas tropas da Europa no prazo prometido, enquanto a
União Soviética tratava de manter as suas por lá indefinidamente. A
modéstia das pretensões americanas e a ambição ilimitada dos soviéticos
apareciam rigorosamente invertidas no telegrama de Novikov e em toda a
campanha de propaganda anti-americana que se seguiu.
Concentrados no esforço de deter a expansão territorial do Estado
soviético, os serviços de segurança americanos descuidaram do movimento
comunista enquanto tal, que enquanto isso infiltrou algumas centenas de
agentes no governo dos EUA, dominou quase que por completo o
establishment cultural e artístico, espalhou agentes de influência em toda a
grande mídia ocidental e preparou a rebelião interna que, nos anos 60,
levaria os EUA à derrota no Vietnã. Bem observou o general Giap,
comandante das forças do Vietnã do Norte, que enquanto os americanos
tratavam a guerra como assunto estritamente militar, eles, os comunistas,
combatiam simultaneamente em todas as frentes: moral, cultural,
jornalística etc. E foi justamente nessas frentes que venceram a última
batalha, por meio da própria New Left americana, num momento em que o
exército vietcongue já estava praticamente destruído após a famosa ofensiva
do Tet.
Limitado pela obsessão estatal, o governo americano, durante muito
tempo, seguiu a norma de só se preocupar com algum indivíduo ou grupo
comunista quando ele tivesse ligação direta com a espionagem soviética.
Fora disso, a militância comunista era considerada uma simples expressão
de opiniões individuais, sem periculosidade maior. Na New Left dos anos 60
e 70, as ligações da militância com governos comunistas eram tênues
demais para chamar a atenção. A explicação disso não era uma autêntica
independência do esquerdismo em relação à estratégia soviética e chinesa.
Era que o movimento comunista já começava então a evoluir da rígida
estrutura hierárquica para a organização informal e flexível em “redes”
multinacionais, que nas décadas seguintes viriam a acossar os EUA desde
muitos lados simultaneamente com uma campanha de hostilidade global
que o governo americano não estava e não está até agora preparado para
enfrentar. Só a partir do governo Bush veio o reconhecimento tardio de que
os EUA estavam agora lidando com um novo tipo de guerra, impossível de
enquadrar nas doutrinas usuais.
Tudo isso poderia ter sido evitado se os EUA não tivessem concentrado
sua política exterior no esforço de conter a expansão das fronteiras
territoriais soviéticas, em vez de combater o movimento comunista
internacional em todas as frentes. Para fazer uma idéia de quanto os EUA
foram passados para trás, basta comparar a amplitude do esforço que os
soviéticos fizeram para dominar o ambiente intelectual e artístico da Europa
e dos EUA desde a década de 20 (v. Frederick C. Barghoorn, The Soviet
Cultural Offensive, Princeton Univ. Press,. 1960, e sobretudo Stephen
Koch, Double Lives. Spies and Writers in the Secret Soviet War of Ideas
Against the West, New York, Free Press, 1994), com a modéstia reação
americana, vinda só nos anos 50 e praticamente limitada ao Congresso pela
Liberdade da Cultura realizado em Berlim Ocidental em 1956. Não deixa
de ser interessante observar que, graças à hegemonia cultural comunista
dentro do próprio ambiente acadêmico americano, até mesmo essa singela e
módica resposta não deixou de ser condenada, dentro dos EUA, como uma
ação imperialista moralmente repugnante (v. por exemplo Frances Stonor
Saunders, The Cultural Cold War. The CIA and the World of Arts and
Letters, New York, The New Press, 1999).
Quanto à doutrina Morgenthau, sua autodenominação de “realismo
político” parece quase um lance de humorismo involuntário. Definindo as
relações internacionais como um campo constituído essencialmente da
concorrência entre interesses nacionais e enfatizando o nacionalismo como
força ideológica predominante, o morgenthauísmo serviu para obscurecer
os três principais fatores em ação no panorama histórico do último meio
século: a unidade estratégica do esquerdismo internacional, sua
reorganização em redes informais para o esforço de guerra cultural e sua
atuação simultânea numa multiplicidade inabarcável de fronts –
precisamente os três fatores que foram acumulando força desde os anos 50
para hoje colocar os EUA sob assédio multilateral permanente.
Morgenthau subestimava a unidade da estratégia comunista ao ponto de
propor que os EUA tentassem fazer alianças com países comunistas contra
a URSS e a China, um plano do qual, obviamente, os soviéticos e chineses
tiraram proveito quase ilimitado
Estes dois parágrafos que ele publicou no New York Times Magazine em
18 de abril de 1965 dão uma idéia de até onde iam o irrealismo e a
imprevidência de Morgenthau:
Estamos sob uma compulsão psicológica de dar continuidade à nossa presença militar no
Vietnam do Sul como parte da contenção militar periférica da China. Fomos estimulados nesse
curso de ação pela identificação do inimigo como ‘comunista’, vendo em cada partido comunista
uma extensão do poder hostil soviético ou chinês. Essa identificação era justificada quinze ou
vinte anos atrás, quando o comunismo ainda tinha um caráter monolítico, Aqui, como em outros
campos, nossos modos de pensamento e ação foram tornados obsoletos pelos novos
desenvolvimentos. É irônico que a simples justaposição de ‘comunismo’ e ‘mundo livre’ tenha
sido erigida pela cruzada moralista de John Foster Dulles em princípio guiador da política
externa americana numa época em que o comunismo nacional da Iugoslávia, o neutralismo do
Terceiro Mundo e incipiente ruptura entre a URSS e a China estavam tornando essa justaposição
inválida.
Ora, hoje sabemos que: Primeiro, o movimento “neutralista” do Terceiro
Mundo foi todo ele articulado pela KGB, com o intuito bastante razoável de
criar frentes anti-americanas que não pudessem ser facilmente identificadas
como comunistas (v. Christopher Andrew and Vasili Mitrokhin, The World
Was Going Our Way. The KGB and the Battle for the Third World, New
York, Basic Books, 2005). Segundo, que a pretensa independência do
comunismo iugoslavo fez dele um instrumento maravilhosamente eficaz
que os soviéticos usaram para criar esse engodo “neutralista”. Terceiro, que
o chamado conflito sino-soviético nunca foi para valer, foi apenas uma
encenação montada para camuflar a unidade global da estratégia comunista
e levar os americanos a pensar exatamente o que Morgenthau pensou.
(Sobre esses dois últimos pontos, v. Anatoliy Golitsyn, New Lies for Old.
The Communist Strategy of Deception and Disinformation, Atlanta, GA,
Clarion House, 1990.)
A ineficiência do morgenthauismo tem, no entanto, raízes mais profundas
e obscuras do que o mero irrealismo. Ela nasce de uma contradição interna
insanável. De um lado, toda a descrição que Morgenthau oferece do mundo
político é baseada nas idéias de Estado-Nação, interesse nacional e
nacionalismo. Por outro lado, ele acreditava na viabilidade de um governo
mundial e trabalhava por essa idéia. Foi justamente isso que o tornou tão
querido nos círculos globalistas do CFR, Council on Foreign Relations.
Esses círculos eram e são dominados por grupos de bilionários
metacapitalistas, cujos planos, globais e de escala mais civilizacional do
que político-militar, vão muito além do horizonte de qualquer Nação-
Estado, para não dizer de qualquer governo. Vivendo e pensando dentro
dessa atmosfera, Morgenthau tinha ali mesmo a prova inequívoca de que as
Nações-Estados não são o sujeito agente principal da História, mas com
freqüência o objeto inerme nas mãos de agentes mais unitários e coerentes.
Escamoteando a atuação desses agentes, dos quais ele próprio era um
colaborador intelectual de grande valia, o morgenthauismo é um caso
extremo de “paralaxe cognitiva”, no qual as próprias condições existenciais
nas quais a teoria brotou e se desenvolveu trazem o desmentido completo
do conteúdo da teoria.
O velho John Foster Dulles não estava errado ao desejar que a luta dos
americanos não fosse contra Estados em particular, mas contra o
movimento comunista enquanto tal. Apenas, limitado pela perspectiva de
Kennan, ele ainda enxergava essa luta em termos de contenção e não de
guerra cultural global, numa época em que os comunistas já estavam
empenhados nessa guerra fazia muito tempo. Se errou, foi por modéstia e
não por pretensão excessiva da sua “cruzada moralista” – hoje mais
necessária do que nunca.
O efeito conjugado das teorias de Kenan e Morgenthau sobre a política
exterior americana pode ser medido pela formidável ampliação do anti-
americanismo depois da queda da URSS e pelo presente estado de cerco
moral em que os EUA se encontram, incapazes de defender até mesmo os
direitos mais elementares da sua soberania sem suscitar imediatamente uma
onda mundial de revolta contra isso.
24 de abril de 2006
Os inventores do mundo futuro

P
ARA AQUELES QUE ESTÃO ACOSTUMADOS a desprezar como “teoria da
conspiração” a hipótese de que o Council of Foreign Relations trama
com o Grupo Bilderberg e outros círculos de milionários a implantação
progressiva mas rápida de um governo mundial, o próprio CFR acaba de
dar uma resposta definitiva, num documento oficial em que assume de vez
o projeto e a parceria tão longamente descartados pelos onissapientes
comentaristas da mídia. No relatório “Building a North American
Community”, recentemente divulgado, o mais poderoso think tank
globalista dos EUA propõe nada menos que a abolição das fronteiras entre
Canadá, México e EUA e a transformação do continente numa “área onde o
comércio, o capital e as pessoas circulem livremente”, a base para “o
ingresso mais fácil no território americano”.
Num momento em que a população americana em peso clama por um
controle mais rigoroso das fronteiras e os especialistas militares alertam
para os perigos incalculáveis do fluxo contínuo de terroristas e
narcotraficantes camuflados de imigrantes ilegais chicanos, a declaração
mostra o total desprezo da elite globalista bilionária pela segurança
nacional. Não resta a menor dúvida de que o CFR planeja sacrificar
friamente a nação americana no altar da unificação administrativa do
mundo, a ser atingida, segundo a idéia do velho Morgenthau, por meio de
progressivas integrações regionais.
Porém o mais surpreendente no relatório é a admissão de que a fusão dos
três países deve ser feita “segundo as linhas propostas pelas conferências de
Bilderberg e Wehrkunde, organizadas para fomentar as relações
transatlânticas”.
Até agora, esses nomes jamais tinham aparecido num documento oficial
do CFR. Bilderberg e Wehrkunde são grupos altamente secretos de
potentados da política e da economia que se reúnem periodicamente, sob
precauções de segurança maiores que as de qualquer encontro de chefes de
Estado, para planejar a implantação de um governo mundial e inaugurar
uma nova civilização planetária, incluindo, segundo seus críticos, a fusão de
todas as religiões num novo culto biônico inspirado no lixo teosófico de
Madame Blavatsky e Alice Bailey. Na última reunião dos Bildergergers, em
Sintra, Portugal, a cidade inteira foi bloqueada à entrada de repórteres,
enquanto, fechados a sete chaves, longe de toda fiscalização crítica, tipos
como os Rockefellers, Gorbachov, George Soros e, modéstia à parte, o
nosso Fernando Henrique Cardoso, inventavam o mundo em que vão viver
nossos netos.
Ao proclamar sua adesão aos objetivos das conferências Bilderberg e
Wehrkunde, o CFR confirma ao menos uma parte do que foi denunciado em
alguns clássicos da “teoria da conspiração”, como None Dare Call It
Conspiracy, de Gary Allen e Larry Abraham (Sealbeach, California,
Concord Press, 1972), e sobretudo o mais recente e informado The
Brotherhood of Darkness, de Stanley Montieth (Oklahoma City,
Hearthstone Publishing, 2000).
Essa confissão basta para explicar por que, arriscando atrair o ódio da base
conservadora que o elegeu, o presidente George W. Bush, pertencente a
uma família tradicionalmente ligada ao CFR, insiste em dar seu apoio ao
projeto de anistia para doze milhões de imigrantes ilegais, elevando ao nível
de uma ameaça apocalíptica os riscos de segurança que, por outro lado, ele
anuncia querer controlar com mão de ferro. O projeto não só conta com a
rejeição maciça do eleitorado americano, mas foi apresentado por dois
políticos que Bush teria razões de sobra para considerar seus inimigos: Ted
Kennedy, o mais devotado patrono de todas as causas esquerdistas, e John
McCain, um republicano que mesmo examinado em microscópio não se
distingue facilmente de um democrata.
Os interesses maiores do globalismo, evidentemente, transcendem as
considerações eleitorais, o respeito pela vontade popular e a profunda
inimizade política. Segundo o documento do CFR, George W. Bush, o
presidente mexicano Vicente Fox e o primeiro-ministro canadense Paul
Martin já se declararam “comprometidos” com a causa ali anunciada,
quando do seu encontro no Texas em 23 de março de 2005.
No entanto, seria ingenuidade imaginar que o apoio da elite globalista ao
estupro das fronteiras se limita a declarações de intenções. Ele inclui o
planejamento e a sustentação financeira de ações políticas decisivas.
O relatório “Building a North American Community” foi publicado sob o
patrocínio de um grupo de grandes empresas, entre as quais a Archer
Daniels Midland Corp., ADM, o maior suporte financeiro do senador Sam
Brownback. Logo após receber uma bolada de dinheiro da ADM, esse
republicano do Kansas saiu alardeando apoio ao programa de anistia para os
ilegais, anunciando que o fazia por piedade cristã.
A luta dos globalistas pela causa mais impopular que já se apresentou na
arena política dos EUA também não se contenta com subsidiar manobras
parlamentares. Inclui a arregimentação das massas e a ajuda a protestos
violentamente antiamericanos. O Boletim G-2, publicado pelo assombroso
repórter Joseph Farah como apêndice de seu jornal eletrônico
WorldNetDaily, revela na sua última edição os principais suportes
financeiros por trás dos movimentos que, para muito além da anistia aos
ilegais, visam a entregar ao México os territórios do Texas e da Califórnia.
Os mais poderosos entre esses movimentos são “La Raza”, “Lulac” (League
of United Latin American Citizens) “Maldef” (Mexican American Legal
Defense and Educational Fund) e “Mecha” (Movimiento Estudiantil
Chicano de Aztlan). Os quatro são financiados por fundações e corporações
milionárias associadas ao CFR, como Rockefeller e Ford, Bristol-Meyers
Squibb, Chemical Bank, Chevron, Chrysler, General Motors, General
Electric, Lockheed, Rockwell, Southwestern Bell, Quaker Oats, Verizon
Foundation, AT&T Foundation e o Open Society Institute de George Soros.
“La Raza” foi praticamente criada pela Fundação Ford.
Esses quatro movimentos organizaram os recentes protestos que hastearam
bandeiras mexicanas pelas ruas dos EUA e anunciaram, nas palavras de
Mario Obeldo, líder histórico da Mecha, condecorado em 1998 por Bill
Clinton, que “a Califórnia vai ser um Estado hispânico: quem não gostar vai
ter de sair”.
A alta elite financeira e a militância vociferante, que os iluminados
comentaristas da nossa mídia apresentam como os dois pólos de um conflito
de vida e morte causado pela “desigualdade” e pela “injustiça social”, são
exatamente uma só e mesma força. E o que move o conjunto não é
nenhuma das “causas sociais” impessoais e anônimas que a pseudociência
ensina serem os motores da história humana: é o planejamento vindo de
cima, acompanhado dos meios financeiros, publicitários e políticos de
realizá-lo.
Espero que o leitor mais desperto compreenda, à primeira vista, o quanto
esses fatos tornam inviável e suicida o empenho de continuar pensando o
mundo segundo as linhas usuais propostas pela tagarelice intelectual
dominante. A identificação de globalismo e americanismo, por exemplo,
que a totalidade das nossas classes falantes dá por pressuposta como
elemento básico para a compreensão da política internacional, é uma
besteira sem mais tamanho, e quem quer que insista nela depois do
documento do CFR deve ser considerado um desinformante profissional ou
um idiota incurável.
O aspecto mais deplorável em tudo isso não é somente que a humanidade
seja arrastada por elites ferozmente ambiciosas em direção a objetivos que
não lhe são sequer informados. É que as próprias ciências sociais,
intoxicadas de conceitos explicativos que não explicam nada, estejam tão
desarmadas para dar conta dos fatos de magnitude incomparável que estão,
neste momento, determinando os destinos do mundo. Quando os agentes
maiores do processo histórico têm planos que vão além da compreensão da
intelectualidade média – para não falar da opinião pública em geral –, é
inevitável que esses planos sejam postos em prática sem qualquer
possibilidade de discussão crítica. Da noite para o dia, a humanidade atônita
despertará num mundo novo, sem saber como foi parar ali nem quais são
precisamente as regras do jogo. A ignorância geral terá se tornado um dos
pilares do poder constituído. E o grupo dominante estará separado do povo
por uma distância similar à que existe entre os deuses do Olimpo e uma
multidão de cupins no subsolo.
Meus alunos são testemunhas do esforço que tenho feito para substituir
noções pré-históricas de sociologia e ciência política por ferramentas
descritivas mais adequadas à presente situação do mundo. Esforços
similares vêm-se desenvolvendo em vários centros, mas sempre à margem
da corrente acadêmica principal, congelada num verbalismo obsoleto e
presunçoso que, se serve de alguma coisa, é de instrumento publicitário
para a implantação de políticas que os próprios porta-vozes desse discurso
não enxergam nem compreendem.
Não é preciso dizer que, baixando do plano internacional ao nacional, nada
dos acontecimentos políticos locais pode ser explicado sem referência ao
novo esquema de poder que está se formando no planeta. O apoio descarado
das fundações globais bilionárias a movimentos revolucionários como o
MST é o fato fundamental que vai determinar o destino nacional nos
próximos anos, e os poucos que costumam mencioná-lo, como o sr. Lyndon
LaRouche, só o fazem pelo viés de seus próprios planos, que não têm nada
a ver com um desejo sincero de compreensão do processo.
Se a esquerda continua obscurecendo suas próprias ações com o discurso
padronizado que camufla as verdadeiras relações de poder, nos círculos
liberais e conservadores a discussão atém-se obsessivamente a
proclamações doutrinais gerais que não ajudam em nada a esclarecer o que
está se passando.
Para mim já se tornou evidente, por exemplo, que o sucesso no plano do
Foro de São Paulo, a implantação da URSAL, União das Repúblicas
Socialistas da América Latina, não somente não se opõe em nada aos
objetivos do globalismo, mas contribui decisivamente para eles,
fomentando uma integração regional que provocaria orgasmos em Hans
Morgenthau e que, a longo prazo, só tornaria a América Latina ainda mais
dependente dos bancos internacionais.
E não me venham com a ilusão risível de que o petróleo venezuelano é
uma temível arma antiimperialista. Ninguém no CFR ou nos círculos
governamentais americanos ignora que o Estado do Colorado tem reservas
de petróleo jamais exploradas, equivalentes a vinte vezes o total das
reservas da Arábia Saudita. No Brasil ninguém sabe disso, porque não saiu
naquela porcaria do New York Times. Mas o pessoal que em Washington lê
revistas especializadas sabe que, se existe um país imune a chantagens
petrolíficas (e, de quebra totalmente desnecessitado do petróleo do Iraque,
para não falar da Venezuela), são os EUA.
Isso não quer dizer, é claro, que os planejadores globalistas sejam mentes
geniais capazes de acertar em tudo. O Tratado Norte-Americano de Livre
Comércio (North American Free Trade Agreement, Nafta), concebido pelo
próprio CFR como um prefácio à integração total de EUA, Canadá e
México, foi um fracasso sublime, e nem por isso os planejadores globalistas
se deram por achados. Desde o Nafta, segundo dados da ONU, o número de
lares mexicanos abaixo da linha de pobreza (menos de 60 dólares por mês)
subiu de 60 para 76 por cento, enquanto o preço das tortillas, alimento
básico da população, aumentou em 40 por cento. Os contribuintes
americanos também não ganharam nada com isso, tendo hoje em dia de
arcar com subsídios de 40 por cento para sua produção nacional de milho. E
daí? Quando um sujeito acredita que tem na cabeça a solução para os males
do mundo, nada detém sua volúpia de remexer os pilares do cosmos em
nome de sua esplêndida utopia. Miséria e prejuízo são detalhes desprezíveis
ante a grandiosidade épica dos planos globalistas.
***
Um artigo do sr. Arnaldo Jabor publicado no Caderno 2 do Estadão do dia
25 está, segundo me informam, obtendo grande repercussão em São Paulo.
Nele o comentarista do Jornal Nacional queixa-se de que a
superabundância de provas e documentos da criminalidade petista não é
suficiente para tirar o judiciário da sua renitente indiferença. Todos “riem da
verdade, viram-lhe as costas, passam-lhe a mão na bunda”. Tão profundo é
o contraste entre os fatos conhecidos e o cinismo da sua negação oficial,
que isso, diz o cronista, está resultando até numa “desmoralização do
pensamento”: “A existência desses tipos de mentirosos está dissolvendo a
nossa mídia. Esse neo-cinismo está a desmoralizar as palavras, os
raciocínios. A língua portuguesa, os textos nos jornais, nos blogs, na TV,
rádio, tudo fica ridículo diante da ditadura do lulo-petismo... as palavras
estão sendo esvaziadas de sentido... o Lula reeleito será a prova de que os
delitos compensaram. A mentira será verdade e a novilíngua estará
consagrada.”
Lembro-me claramente de ter escrito tudo isso, quase nos mesmos termos,
numa época em que o sr. Jabor estava ocupadíssimo embelezando a imagem
de São Lulinha e ajudando a preparar o advento do estado de coisas que
agora ele mesmo deplora.
A dissolução do idioma, por exemplo, não é um efeito da ditadura petista,
mas uma condição prévia, criada propositadamente por uma vasta ação
cultural sem a qual ela jamais teria vindo poder a implantar-se. Uma coisa é
diagnosticar o processo desde os indícios sociais que denotam o seu curso
em formação, outra completamente diferente é constatar o fato consumado
que, se discutido abertamente em tempo, teria podido ser evitado. Na época
em que escrevi textos como “Língua petista” (Zero Hora, 20 de outubro de
2002), “Língua dupla e estratégia”, O Globo, 2 fev. 2002), “Reclamação
inútil” (Zero Hora, 14 de dezembro de 2003) ou “A clareza do processo”
(Zero Hora, 15 de junho de 2003), para não falar do meu livro de 1993
(sim, 1993), A Nova Era e a Revolução Cultural,[ 11 ] a irresponsabilidade
geral das classes falantes, incluindo o sr. Jabor, me respondeu com a mesma
indiferença cínica que agora elas se queixam de encontrar no judiciário.
Se o sr. Jabor quisesse mesmo saber como chegamos ao descalabro que
hoje o escandaliza, bastaria que prestasse atenção aos programas da mesma
TV onde trabalha, que ao longo dos anos prepararam a Nação para cair na
fraude da superioridade moral da esquerda e para embriagar-se no mito da
pureza lulista. A Rede Globo de Televisão foi a grande responsável pela
implantação da novilíngua no país. E, se hoje o sr. João Roberto Marinho dá
um discreto apoio a organizações conservadoras, seu jornal e sua TV
continuam a serviço do mais descarado esquerdismo. Compreendo que o sr.
Jabor não possa denunciar seus próprios patrões. Eu mesmo não podia fazê-
lo quando escrevia para O Globo, limitando-me então a diagnósticos gerais
na esperança de que o leitor, com base nas descrições suficientemente claras
que eu lhe fornecia, desse nome aos bois. Mas o sr. Jabor, ao denunciar com
atraso aquilo que um seu colega sacrificou o emprego (aliás dois) para
denunciar em tempo, poderia, sem citar o antecessor, o que seria mesmo
demasiado doloroso para sua vaidade, ao menos reconhecer genericamente
que está chegando tarde, que está falando na condição de cúmplice moral
arrependido e não na de vítima inocente escandalizada. Lembro-me de que
tanto falei das coisas que agora ele proclama, que, na época (quer dizer, no
tempo e na revista Época), cheguei a ser acusado de obsessivo e
redundante.
A capacidade do sr. Jabor como diagnosticador de males nacionais
consiste apenas no seu timing oportunista de só dizer as coisas quando todo
mundo já sabe delas e posar, então, de profeta do acontecido. O sr. Jabor
não é solução: é parte do problema. A frouxidão cômoda da sua consciência
moral, no entanto, não é característica individual dele (se fosse, eu nem
tocaria no assunto nesta coluna, que não tem nada a ver com a vida pessoal
de quem quer que seja): é um vício geral da classe jornalística, empenhada
em exigir dos políticos uma correção ética superior à que ela própria é
capaz de manter.
DETALHE ESCLARECEDOR
Eu mal tinha enviado este artigo ao Diário do Comércio, quando chegou
um despacho da Associated Press com a informação de que o parlamento
mexicano acabava de aprovar a liberação do porte e uso de cocaína,
maconha, heroína, LSD, anfetaminas, ecstasy e até 2,2 libras (sim, quase
um quilo!) de peiote, o cacto alucinógeno que a empulhação literária de
Carlos Castañeda celebrizou nos anos 70 como uma fonte de
conhecimentos espirituais, porca miséria. A lei precisa ainda do aval do
presidente Fox, mas, acrescenta a agência, “isso não parece ser um
obstáculo”. Um porta-voz de Fox já demonstrou a satisfação do presidente
com a medida, anunciando, com cinismo exemplar, que ela facilitará o
combate ao narcotráfico.
A nova lei aumentará incalculavelmente o afluxo de jovens americanos
viciados ao território mexicano, e é vista com maus olhos pelas autoridades
políciais dos EUA, mas não resta dúvida de que ela dá um passo enorme em
direção à supressão das fronteiras nacionais, pretendida pelo CFR e pelos
Bilderbergers. Nos círculos globalistas, o maior financiador das campanhas
pela liberação das drogas no mundo é George Soros – não por coincidência,
também um dos mais generosos doadores de dinheiro para os movimentos
de mexicanização da Califórnia e do Texas. Por enquanto, a multidão ainda
não atinou com a unidade estratégica por trás de mutações catastróficas de
escala global que aparecem na mídia idiota como frutos espontâneos da
metafísica do progresso. Aos poucos, a identidade dos agentes por trás do
processo vai aparecendo – e, no fim, como anuncia a Bíblia, “sua loucura se
tornará visível aos olhos de todos”.

[ 11 ] Todos esses artigos, assim como o livro, estão publicado em meu site
www.olavodecarvalho.org.
Traição anunciada

P
ELA PRIMEIRA VEZ NA HISTÓRIA HUMANA, animal, vegetal ou mineral,
um presidente, vendo as propriedades nacionais no exterior invadidas e
confiscadas manu militari pelo governo local, se abstém por completo
de defender os interesses e a honra da nação e, bem ao contrário, sai
elogiando os autores da brutalidade. E o detalhe mais extravagante no caso
é que o homem tenta dar a impressão de que, ao fazer isso, age como um
cristão exemplar, voltando humildemente a outra face em vez de revidar o
insulto. Seria assim, de fato, se não houvesse alguma diferença entre
oferecer a própria face e a face dos outros – a face de um povo inteiro. A
resposta do sr. Luís Ignácio Lula da Silva à agressão boliviana não é
nenhuma efusão de bons sentimentos. É o ato de entreguismo mais
explícito, mais descarado, mais cínico e mais subserviente que já se viu
neste país ou em qualquer outro.
Se causas faltassem para um impeachment, só essa conduta, isolada, já
bastaria para justificá-lo com sobra de fundamento e razão. Nunca a traição
foi tão clara, nunca tão patente a redução do patrimônio comum dos
brasileiros a instrumento dócil de objetivos transnacionais sobre os quais os
eleitores não foram consultados, aliás nem informados.
Não seria certo, porém, dizer que foi acontecimento desprovido de
conseqüências pedagógicas úteis. Numa só alocução, com breves palavras,
o sr. presidente rasgou de uma vez a fachada de “nacionalismo” com que a
esquerda brasileira vinha enganando aqueles que não conhecem a sua
história ou que não conseguem lembrá-la no momento apropriado. Espero
que agora pelo menos alguns dos militares com que andei discutindo aqui
semanas atrás, tão propensos a acreditar nas afeições patrióticas de quem
quer que as proclame do alto de um palanque, entendam onde foi que se
meteram ao buscar uma aproximação com a esquerda com base na confusão
entre patriotismo e anti-americanismo.
Também seria injusto dizer, no entanto, que foi ato inesperado, de
improviso, surgido do nada.
Num texto publicado em 2003, bem lembrado pelo articulista Cristiano
Romero no jornal Valor, o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro
Guimarães, expunha o que tem sido a diretriz básica da política externa do
governo Lula. Diz Romero:
‘Generosidade’ nas relações com os vizinhos sul-americanos é um conceito caro a Samuel
Pinheiro Guimarães. Num texto intitulado ‘O Gato e a Onça: ameaças e estratégia’, ele defende,
como ‘objetivo fundamental’ da política externa, a construção do que chama de espaço
econômico e político sul-americano. Diz que o Brasil deve fazer isso sem qualquer pretensão
hegemônica e com base na generosidade ‘decorrente das extraordinárias assimetrias entre o
Brasil e cada um de seus vizinhos’. ‘É necessário praticar o princípio do tratamento especial e
diferenciado quase que na proporção das assimetrias reais’.
Isso já era, antecipadamente, o nosso presidente defendendo o direito que
“um povo sofrido” tem de romper contratos e assaltar seus parceiros de
negócios.
Vendo a teoria de Guimarães ser levada à prática de maneira tão literal, o
embaixador Rubens Barbosa, lembrando uma frase do ex-secretário de
Estado americano John Foster Dulles, declarou que “essa é uma visão
ingênua, porque países não têm amigos; têm interesses”. Mas o que é
ingenuidade à luz dos interesses nacionais manifestos pode ser esperteza
desde o ponto de vista de interesses supranacionais ocultos. Quem leu o
meu artigo no Diário do Comércio de 26 de setembro de 2005 [ 12 ] já
sabia, desde então, que o sr. presidente, eleito em nome da “transparência”,
tomava decisões de governo em reuniões secretas com ditadores e
criminosos estrangeiros, longe dos olhos do povo, do parlamento, da mídia
e da justiça. Ele próprio, de porre ou sóbrio, tinha confessado isso no seu
discurso de 2 de julho de 2005, pronunciado na celebração dos quinze anos
de existência do Foro de São Paulo. Nesse documento fundamental, cujo
significado a grande mídia nacional em peso fez questão de amortecer ou
omitir completamente, Lula admitia que o Foro de São Paulo, fundado por
ele e Fidel Castro, era uma entidade secreta ou pelo menos camuflada
(“construída... para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem
que as pessoas entendessem qualquer interferência política”), criada para
imiscuir-se ativamente na política interna de várias nações latino-
americanas, tomando decisões e determinando o rumo dos acontecimentos,
à margem de toda fiscalização de governos, parlamentos, justiça e opinião
pública. Ele admitia também haver decidido pontos fundamentais da
política externa brasileira não enquanto presidente da República em reunião
com seu ministério, mas enquanto participante e orientador de reuniões
clandestinas com agentes políticos estrangeiros (“foi uma ação política de
companheiros, não uma ação política de um Estado com outro Estado, ou
de um presidente com outro presidente”). Não seria possível uma confissão
mais explícita de que, para esse homem, os interesses nacionais que
nominalmente ele estava incumbido de representar deviam submeter-se a
considerações mais altas, isto é, à estratégia de dominação continental
comunista delineada pelo Foro de São Paulo. O compromisso dele não era
para com seus eleitores brasileiros: era para com seus “companheiros” da
Venezuela e de Cuba.
Meses depois, em 12 de dezembro de 2005, mais explicitamente ainda, o
Plano de Trabalho da Secretaria de Relações Internacionais do PT
informava a “linha justa” a ser seguida pelo Partido: “Aprofundar a prática
internacionalista do Partido, nos vários sentidos desta palavra: a
solidariedade, as relações com organizações comprometidas com o
socialismo e com outra ordem internacional, a mobilização interna e
externa em torno de temas de nosso interesse, a ação parlamentar e de
governos no plano internacional.” Para que não pairassem dúvidas quanto
ao tipo de ligações aí aludidas, o documento esclarecia: “Este é o motivo
principal pelo qual o PT seguirá investindo suas energias na existência e
consolidação do Foro de São Paulo, organização criada em 1990.”
Sabendo-se que desde os tempos da sua campanha eleitoral o próprio sr.
Evo Imorales anunciava seu propósito de estatizar todos os campos de
petróleo da Bolívia, as fontes nacionais já forneciam material mais que
suficiente para que, delas, qualquer pessoa medianamente acordada
concluísse qual seria a reação do nosso governo quando o presidente
boliviano transformasse suas palavras em ações: afagar-lhe o ego
paternalmente, como há décadas o partido dominante vem fazendo com
todos os delinqüentes e transgressores, desculpando-os como vítimas da
“desigualdade” e da “exclusão social”. O princípio que se aplica aos
indivíduos serve, com muito mais razão, a povos inteiros: a “generosidade”
do sr. Samuel Pinheiro Guimarães não é senão a “política de direitos
humanos” do governo, transposta à escala internacional. A evolução da
caridade petista, nesse sentido, é notavelmente coerente: começou
defendendo o direito de os trombadinhas da praça da Sé meterem as mãos
nos bolsos dos transeuntes, depois foi gradativamente ensinando à nação
estupefata que os invasores de terras eram vítimas em vez de agressores,
que os únicos grupos criminosos merecedores de punição eram os policiais,
os empresários e os políticos ditos conservadores, que o Estado deve
indenizar os seqüestradores em vez dos seqüestrados, que os traficantes de
cocaína são heróis da liberdade e que o combate ao narcotráfico é
terrorismo de Estado. Que mais faltava, senão oferecer as garantias da alta
moralidade ao assalto entre nações?
Deixemo-nos, portanto, de nhem-nhem-nhem, como diria FHC. Ninguém
foi surpreendido pelo imprevisível. Todo mundo sabia o que ia acontecer e
como o sr. Lula ia reagir. O único aspecto surpreendente no episódio foi a
falta completa do elemento surpresa.
Mas, se foi assim, por que ninguém alertou para o perigo nem fez algo
para evitá-lo? E, uma vez consumado o delito, por que tantos ainda hesitam
em condená-lo como tal, por que se sentem ainda entorpecidos por dúvidas
insanáveis, por que relutam em admitir a evidência da escalada criminosa,
protelando por meio de tergiversações sem fim a conclusão de um
silogismo incontornável?
A resposta é simples: para apreender o sentido de uma sucessão de
acontecimentos, não basta conhecer os fatos. É preciso ter os conceitos, os
termos gerais capazes de iluminar o desenho exato dos detalhes e permitir
unificá-los num quadro coerente. No caso, o termo geral era “estratégia
revolucionária continental”, ou, mais sinteticamente, “Foro de São Paulo”.
Só vista nessa perspectiva a multidão dos detalhes soltos adquiria uma
forma, uma direção, um sentido. Ora, esse elemento articulador foi
sistematicamente suprimido dos debates nacionais ao longo de dezesseis
anos por um decreto unânime dos donos da opinião pública. Quem quer que
ousasse falar disso, nos jornais, na TV ou no Parlamento, tornava-se
primeiro alvo de chacota, depois era rotulado de louco, depois abertamente
difamado, depois boicotado profissionalmente, por fim calado por meio da
intimidação direta, como o sr. Lula fez no ar com o âncora da TV Record,
Boris Casoy, ou da demissão pura e simples, como veio a acontecer comigo
e com o próprio Boris.
Nunca, na história universal da manipulação de notícias, se viu um esforço
tão vasto, tão geral, tão uniforme de ocultar o essencial, de desviar as
atenções, de paralisar a inteligência da vítima para que não sentisse de onde
vinha o ataque.
Todos os chefes de redação e donos de empresas jornalísticas deste país,
com raríssimas e louváveis exceções que no conjunto acabaram não
fazendo diferença prática, acumpliciaram-se ativamente, persistentemente
ao projeto petista de anestesiar e estupidificar a opinião pública,
preparando-a para aceitar com apatetada e ignóbil passividade o confisco
progressivo dos seus direitos, da sua liberdade e do seu patrimônio.
Sem o silêncio cúmplice da mídia, jamais o projeto continental de poder,
urdido por Fidel Castro, Hugo Chávez e Luís Ignácio Lula da Silva em
reuniões que não precisavam nem mesmo ser secretas, já que ninguém
queria divulgá-las, poderia ter chegado ao ponto em que chegou.
Agora, é tarde para revertê-lo. Imaginar que resistências pontuais, que
protestos avulsos contra abusos isolados possam deter a marcha do monstro
ou aplacar sua voracidade é apegar-se a uma ilusão pateticamente
impotente. Uma estratégia abrangente só pode ser combatida por outra
estratégia abrangente, e a idéia mesma de conceber uma é coisa que ainda
nem passa pela cabeça da maioria dos liberais e conservadores,
persistentemente ocupados, depois de tudo o que aconteceu, em ater-se a
elegantes declarações doutrinais genéricas e em evitar cuidadosamente o
rótulo de “anticomunistas”.
Durante uma década e meia tentei fazer com que essa gente acordasse.
Agora começo a achar que despertá-la seria uma crueldade, tão feio é o
panorama que se abriria ante seus olhos quando isso acontecesse. O melhor
mesmo é deixar que durma. O que a aguarda, em qualquer das hipóteses, é
o sono eterno. Seu fim está decretado e é quase tão irreversível quanto o
giro da Terra em torno do Sol. Uns vinte anos atrás, Roberto Campos
perguntado sobre qual seria o destino do Brasil no caso de Lula ser eleito
presidente, disse que haveria duas saídas: Galeão e Cumbica. Não sei se a
vida imita a arte. Mas no Brasil ela imita cada vez mais o humorismo. Já
começo a me abster de ouvir piadas, por medo de que se tornem realidade.
Não me acusem, porém, de derrotismo, de matar as esperanças dos
brasileiros. Ao contrário: o que tem matado os brasileiros é a esperança.
Recusar-se a admitir uma situação desesperadora é recusar-se às ações
desesperadas que poderiam, contra toda a esperança, reverter o quadro da
tragédia. O Brasil não precisa de esperança. Precisa é de coragem inflexível
e lucidez heróica. Não me chamem de derrotista por recusar-me a afagar
cabeças moralmente covardes e intelectualmente indolentes.
Vejo-me no dever de dizer essas coisas principalmente porque se aproxima
a data do Seminário “Democracia, Liberdade e o Império das Leis”, que a
Associação Comercial de São Paulo vai promover no Hotel Cesar Business
nos dias 15 e 16 de maio, e porque tenho a certeza de que ali, pela primeira
vez, intelectuais liberais e conservadores vão olhar de frente a questão da
estratégia comunista continental em vez de refugiar-se nas teorizações
usuais, tão corretas no conteúdo geral quanto deslocadas da situação
política especial.
O Seminário é uma antiga idéia minha que tive a sorte de soprar nos
ouvidos certos e, sem grande ajuda da minha parte, frutificou graças à
tenacidade do líder empresarial Guilherme Afif Domingos, do psiquiatra
Heitor de Paola e dos combativos redatores do jornal eletrônico Mídia Sem
Máscara (Paulo Diniz Zamboni, Edward Wolff, Graça Salgueiro e tantos
outros), bem como da colaboração da Atlas Foundation for Economic
Studies.
Voltarei a escrever sobre o assunto durante a semana, mas desde já
asseguro que, pelo menos entre os participantes brasileiros do evento, todos
estão muito conscientes da urgência desesperadora de uma rejeição firme e
inflexível do comunismo continental, quaisquer que sejam as diferentes
versões com que ele se apresente, todas forjadas e articuladas no Foro de
São Paulo.
E não digo isso para criar esperanças, mas para lembrar que o dever está
acima da diferença entre esperança e desesperança. Com enorme satisfação
vejo que ainda há brasileiros capazes de cumprir o dever.
8 de maio de 2006

[ 12 ] http://www.olavodecarvalho.org/semana/050926dc.htm
O dever que nos espera

N
OS ÚLTIMOS ANOS CHEGARAM AO MEU CONHECIMENTO várias dúzias de
projetos de Estado democrático liberal, de Constituição federalista, de
reforma fiscal e judiciária, etc. etc. Por um vício herdado da tradição
bacharelesca, os brasileiros adoram as definições doutrinais, sobretudo de
coisas que não existem. Liberais e conservadores não escapam à regra.
Quando sonham com um futuro melhor, buscam logo transmutá-lo num
código e recheá-lo de comentários eruditos, esmiuçando-lhe as mais
delicadas nuances conceptuais e fundamentando sua construção ideal em
citações de John Locke, Friedrich Hayek, Hannah Arendt e não sei mais
quantos luminares do pensamento democrático.
Tão intensamente se entregam a esses respeitáveis afazeres, que se
esquecem de pensar em três detalhes. Primeiro: Como vamos tirar do
caminho os malditos comunistas que ocuparam o espaço inteiro e nos
separam do belo ideal a que aspiramos? Segundo: Supondo-se que esse
obstáculo já tivesse sido removido, para que serviria ter uma concepção
prontinha do Estado democrático, se o próprio exercício da liberdade
haveria de produzir, na prática diária, soluções novas e mais apropriadas à
situação? Terceiro: Os homens podem matar e morrer por um sonho, mas
não o farão por um código. Reduzido à formulação racional de uma
proposta jurídica explícita, o ideal já não impele à ação, mas à contradição e
ao debate. Quanto mais detalhada a proposta, mais discussão e menos ação.
Enquanto os liberais e conservadores brasileiros criam doutrinas, os
comunistas dominam o país e aumentam dia a dia o seu poder. E fazem isso
sem nenhuma unidade doutrinal, antes curtindo gostosamente a
nebulosidade e a indefinição cuja fecundidade estratégica e tática
aprenderam com Antonio Gramsci.
Por isso é que, se me pedem uma definição de democracia liberal, saco do
meu revólver.
Não digo isso por ser um praticista avesso a teorias. Adoro teorias, mas
não quando se transformam em fetiches. Teorias só são boas quando se
contentam em ser expressões provisórias da realidade apreendida na
experiência. E, como estudei um pouquinho de Hegel, sei que, no domínio
das coisas humanas, o sentido real de um conceito não está no significado
nominal da sua expressão verbal: está naquilo que se opõe a ele, não
enquanto idéia, mas enquanto realidade. Para sabermos o que pode e deve
ser a democracia liberal no Brasil, não temos de formulá-la doutrinalmente,
mas de olhar em torno e entender as causas que levaram ao triunfo do seu
oposto. Da própria dialética histórica que produziu a hegemonia esquerdista
é que temos de obter o sentido e a direção dos nossos esforços.
Essa dialética mostra, desde logo, que a mixórdia doutrinal da esquerda
foi, de maneira aparentemente paradoxal, um dos segredos da sua vitória.
Diluindo numa pasta confusa a antiga ideologia monolítica dos partidos
comunistas, a esquerda continental ampliou formidavelmente sua base de
apoio e obteve os meios de sugar o prestígio dos ideais democráticos, dos
valores morais e até do cristianismo. Esse inimigo informe e onipresente é o
avesso daquilo que queremos. Invertê-lo não é fácil, mas é o único meio de
vislumbrar um futuro democrático para o Brasil. E isso é uma questão de
estratégia e tática, não de doutrina.
Não podemos esquecer, desde logo, que a base da hegemonia comunista
neste país foi construída sobre o prestígio mágico de umas quantas dezenas
de intelectuais de esquerda. Digo “mágico” porque há algo de feitiço no
modo como tantos charlatães semicultos puderam adquirir a autoridade
quase sacerdotal que os transformou em juízes supremos da moralidade
pública. Sem destruir primeiro o encanto desses ídolos de papier mâché,
nenhum futuro terá a democracia liberal no Brasil. Ele foi o cimento
psicológico que deu solidez ao edifício do poder petista e tornou possível
que um bando de delinqüentes dominasse o país em nome da moral. Mais
urgente do que definir a democracia liberal é destruir um a um os falsos
prestígios que bloqueiam o acesso da juventude universitária ao
conhecimento dela. Não falo propriamente de “guerra cultural”. Guerra
cultural é luta de idéias. Desmascarar vigaristas é algo ao mesmo tempo
mais simples e mais dificultoso que uma luta de idéias. Trata-se de
contestar, na base, qualquer pretensão de autoridade intelectual dos
usurpadores e charlatães que dominaram o universo cultural brasileiro. Para
isso não é preciso expor as nossas idéias nem discutir as deles. É preciso
apenas demonstrar que não têm idéia nenhuma, apenas “ideologia” no
sentido antigo e pejorativo do termo, isto é, um “vestido de idéias”
(Ideenkleid) encobrindo o desejo de poder e os mais sórdidos interesses
grupais. Desprovida de seus ídolos acadêmicos, a juventude sairá em busca
de novos polos de orientação. Esse sim será o momento de expor e discutir
doutrinas.
O segundo pilar de sustentação da hegemonia esquerdista é o controle da
informação. O povo brasileiro pouco ou nada sabe do Foro de São Paulo, da
estratégia criminosa continental, dos nexos secretos entre narcotráfico,
seqüestros, assassinatos, revolução e petróleo, sem cujo conhecimento é
impossível entender o que se passa hoje. Por exemplo, a recente denúncia
dos crimes petistas pôde ser facilmente reaproveitada em prol do mito da
superioridade moral esquerdista mediante o artifício de imputar as culpas a
“um grupo”, encobrindo a articulação maior que o colocou no poder e que,
expurgada de dois ou três ladrões de galinha mais notórios, continuará a
operar com redobrado prestígio moral. Estudar, conhecer e divulgar o
alcance e o funcionamento do esquema inteiro é muito mais urgente para os
liberais e conservadores do que definir e expor suas doutrinas. A difusão de
idéias pressupõe um ambiente de clareza e sinceridade, que não existe nas
presentes condições de ocultação geral e mentiras cruzadas. É preciso antes
limpar a atmosfera, diluir a névoa infernal que cega e estupidifica a
audiência.
O terceiro sustentáculo do império do crime é a rede de apoios que a
ignomínia esquerdista conseguiu tecer entre banqueiros, empresários,
investidores da bolsa e potentados da mídia, na base de interesses
imediatistas em nome dos quais essa gente vende a honra que nunca teve e
a pátria que ainda tem. A extensão dessa rede é quase impossível de
calcular. Um indício eloqüente obtém-se pelas reações de algumas dessas
criaturas ao ato de guerra empreendido pelo sr. Evo Imorales contra o
patrimônio nacional. Desculpam-no e celebram-no sob os pretextos mais
fúteis, postiços e absurdos. Querem até que tenhamos peninha de um “povo
sofrido”, como se a massa de cocaleros não vivesse, há décadas, de espalhar
o vício e a morte entre os jovens do continente. Um pai que, na miséria,
prostitui suas filhas, merece mais respeito do que aquele que sobrevive de
desgraçar os filhos dos outros. Cocaína é isso, não é outra coisa. Evo
Imorales é isso, não é outra coisa. A economia boliviana é isso, não é outra
coisa. E se precisam tanto de petróleo, não é para encher o tanque dos
carros que não têm: é porque daí sai o único solvente para o processamento
da cocaína. Os poços brasileiros vão servir é para fazer um upgrade na
indústria boliviana da morte. Muita gente sabe disso. Mas, se pedimos o
apoio de certos donos do capital financeiro à nossa luta contra o maior
crime de que o Brasil foi vítima nas últimas décadas, eles nos respondem
que estão contentinhos, que nunca ganharam tanto dinheiro, que o governo
Lula tem um sex appeal irresistível. Isso é um bando de criminosos tão
abominável quanto a turma do Mensalão. Identificá-los e desmascará-los é
uma providência sem a qual nenhuma esperança sensata se pode depositar
na futura democracia liberal brasileira. É, ademais, tarefa pedagógica, que
nos esclarecerá, no curso da sua execução, sobre as estruturas de poder em
que se assenta a pax luliana, o sorridente domínio do mal neste país. É
derrubando os obstáculos que a democracia liberal irá tomando forma ante
os nossos olhos.
Essas são as três primeiras etapas de uma autodefinição da democracia
liberal no Brasil. Definição que não deve surgir de especulações teóricas
prévias, mas da própria prática das virtudes essenciais do debate
democrático: transparência, sinceridade e idoneidade. É preciso por em
ação estas armas temíveis. Elas nos ensinarão – a nós e a nossos ouvintes –
o que é a democracia liberal.
Cortar as línguas dos falsos profetas, dissipar a treva que espalharam com
suas bocas mentirosas, destruir as muralhas da antidemocracia que nos
oprime – estas são as tarefas primordiais da intelectualidade conservadora e
liberal no Brasil. Para exercê-las, não é preciso ter nenhuma definição clara
e final da fórmula democrática com que sonhamos. É preciso apenas ter
vivo nos nossos corações o ideal da liberdade e do império das leis. Esse
ideal pode continuar vago e impreciso durante todo o período inicial da luta,
que equivale àquilo que os antigos retóricos chamavam a pars destruens, a
parte destrutiva do serviço, o longo e dificultoso “trabalho do negativo”,
como o chamava Hegel: os ideais se esclarecerão e se transformarão em
fórmulas práticas no próprio curso do combate.
Raciocinar na pura atmosfera abstrata e rarefeita das formulações
doutrinais é para acadêmicos e beletristas. Tanto o filósofo genuíno quanto
o líder político sério raciocinam, isto sim, desde dentro do próprio fluxo da
realidade, agindo e experimentando, aprendendo com a experiência e
fazendo a cada momento os ajustes necessários a manter a intuição clara do
rumo das coisas.
É este o apelo que, na auspiciosa abertura do nosso seminário
“Democracia, Liberdade e o Império das Leis”, faço aos meus colegas de
debate e a todos aqueles que ainda crêem na possibilidade de salvar o Brasil
e o continente latino-americano da armadilha cruel e estúpida em que
estamos caindo. Fujam das fórmulas, atenham-se aos fatos e às ações.
Tentem compreender o que está acontecendo. Busquem informação. Não
temam as hipóteses arrojadas. Testem-nas na experiência. Aprendam e
lutem. O conhecimento que não vem de um “saber de experiência feito” é
um luxo inútil, um fardo pesado que oprime a inteligência e debilita os
ânimos.
15 de maio de 2006
A eloqüência dos fatos

M
ESMO DEPOIS QUE A INSURREIÇÃO GERAL do crime organizado, com o
apoio do MST e das Farc, subjugou e humilhou a maior capital
latino-americana, ainda haverá quem negue o avanço da subversão
comunista no continente e, desviando a atenção pública das verdadeiras
forças ativas por trás desse descalabro, busque entorpecer as consciências
com as explicações “sociológicas” de sempre.
Mas, apesar de todo o prestimoso diversionismo da mídia e dos bem-
falantes, é muito difícil não enxergar, nos acontecimentos das últimas
semanas, um complexo de ações coordenadas do Foro de São Paulo para
quebrar a espinha da nação brasileira e entregar o nosso povo, de joelhos,
aos agentes da revolução continental.
Se os líderes da insurreição criminosa que espalhou o terror na cidade de
São Paulo admitem francamente ter sido treinados e ajudados pelo MST, e
se o dirigente máximo deste movimento, ao mesmo tempo, oferece
ostensivamente a ajuda da sua militância ao agressor estrangeiro que sob os
olhos complacentes do nosso presidente invadiu os postos da Petrobrás, a
mensagem dessa conjunção de fatores é bem nítida: não há autoridade, não
há soberania, não há ordem nem lei acima do comando subversivo
continental.
Pouco falta para que a Nação, atônita e amedrontada, aceite essa
mensagem com a naturalidade de quem se curva a “um imperativo
categórico, um mandamento divino”, para usar as palavras com que
Antonio Gramsci definia a autoridade do partido revolucionário.
A articulação e o timing foram perfeitos: com poucos dias de distância, o
governo da República ensina o país a curvar-se servilmente ao insulto que
venha da fonte ideológica apropriada, o MST proclama orgulhosamente seu
direito de lutar contra o país, o indulto presidencial solta 12 mil presos e a
“democracia direta” dos homens armados impõe o toque de recolher a vinte
milhões de brasileiros. Alguém ainda é idiota o bastante para achar que foi
tudo uma coincidência fortuita, que ações enormemente complexas como
essas que estamos vendo podem ser improvisadas do dia para a noite, sem
nenhuma comunicação entre os vários focos geradores da revolução
continental?
Pelo menos o líder dos criminosos rebelados, que confessa ter estudado
muito Lênin, sabe que isso é impossível. Também o sabe o fundador e
presidente crônico do Foro de São Paulo, temporariamente afastado para
exercer o papel de presidente do Brasil.
Os fatos estão visíveis, mas muitos brasileiros ainda insistem em não tirar
deles as conclusões mais óbvias e incontornáveis. É que, nessas criaturas, o
medo da chacota cínica superou o instinto de sobrevivência. O cérebro
delas está chegando àquele ponto de entorpecimento em que já não é
possível distinguir o vivo do morto.
Psicologicamente, é esclarecedor que essa explosão de brutalidade e
arrogância sobreviesse nos mesmos dias em que o seminário Democracia,
Liberdade e o Império das Leis rompia um silêncio de décadas. A longa e
sistemática supressão das idéias liberais e conservadoras criou o vazio no
qual o establishment esquerdista plantou o complexo de preconceitos e
inibições que desarma a sociedade e instila nos delinqüentes a confiança
ilimitada – e, como bem se viu, justificada – no seu poder de ação.
Nós todos, participantes do seminário, estávamos conscientes de que é
nosso dever tirar o País das mãos dos criminosos que o desgovernam e o
atormentam. Cada palavra que ali se disse refletia um sentimento de
urgência quase desesperada. Em torno de nós, os fatos, com a eloqüencia
cruel dos tiros e do sangue, nos davam mais razão do que desejaríamos ter.
17 de maio de 2006
Experimento sociológico

A
MAIORIA DOS CIENTISTAS SOCIAIS NÃO SE DEDICA A OUTRA COISA senão a
explicar os acontecimentos como efeitos de “causas” impessoais e
anônimas, como por exemplo a “luta de classes” (com todas as
variações aí introduzidas pela moda e pelas conveniências táticas),
escamoteando a ação concreta dos indivíduos e grupos que dirigem o
processo. Tudo aí parece derivar de estruturas, de leis, de estatísticas,
reduzindo-se os agentes reais a meros instrumentos, quase sempre
inconscientes, de forças coletivas que os transcendem imensuravelmente. A
principal utilidade dessa construção fantasiosa é encobrir sob um manto de
invisibilidade a força dos próprios cientistas sociais enquanto “agentes de
transformação”, bem como a dos grupos e entidades que lhes dão
sustentação editorial e financeira.
Os exemplos sucedem-se a cada semana, mas tornam-se mais enfáticos
nos momentos de confusão e pânico, quando essas criaturas das trevas
emergem de seus sepulcros acadêmicos para vir explicar ao mundo que não
há nada de novo sob o Sol, que está tudo sob o controle infalível da ciência
que professam. Assim, diante do estado insurrecional triunfante produzido
em São Paulo por uma iniciativa estratégica bem articulada entre o governo
brasileiro e três organizações milionárias, PCC, MST e FARC, o sociólogo
francês Loïc Wacquant, professor da Universidade da Califórnia em
Berkeley, foi convocado às pressas pela Folha de S. Paulo do dia 15 para
acusar os culpados de sempre e ajudar as vítimas a não enxergar os agentes
efetivos por trás do processo.
A principal glória curricular do prof. Wacquant é ser autor de dois livros
que explicam a criminalidade como efeito da guerra dos ricos contra os
pobrezinhos e ter recebido, em função de suas obras, um prêmio da
paupérrima John D. & Catherine T. MacArthur Foundation, badalado como
“o prêmio dos gênios”.
Felizmente, a ciência social às vezes nos fornece o antídoto à sua própria
vigarice. No caso, o antídoto é o “experimento imaginário” sugerido por
Max Weber para comparar a importância relativa de vários fatores causais
numa dada situação. Trata-se de fazer abstração mental de determinado
fator e averiguar se, sem ele, os acontecimentos teriam sido possíveis.
Suponhamos a miséria e a desigualdade. Elas estão presentes por igual em
sociedades assoladas pela violência criminosa e entre povos mais pacíficos
como os indianos e os romenos. Mutatis mutandis, a criminalidade no
Brasil não se expandiu nas áreas mais pobres, mas justamente naquelas que,
ao longo das últimas décadas, passaram da miséria absoluta a um padrão de
vida que, na Índia, seria considerado de classe média, como por exemplo as
favelas cariocas. Omitida a comparação, porém, restam dentro de cada área
isolada sinais aparentes em quantidade bastante para manter viva a
impressão de que o crime é efeito da miséria. Acoplada a outro topos da
retórica esquerdista, o de que a miséria é causada pelo imperialismo
americano, essa crença tem por efeito despertar o ódio aos EUA e fomentar
esperanças messiânicas numa nova ordem internacional paradisíaca, a ser
instaurada sob os auspícios da ONU, da China e da Rússia. Para a
realização desse objetivo trabalham incansavelmente várias fundações
bilionárias, entre as quais Rockefeller, Carnegie, Soros e, é claro,
MacArthur. Seus esforços nesse sentido já foram bem documentados meio
século atrás por uma comissão do Congresso americano (v. René A.
Wormser, Foundations: Their Power and Influence, New York, Devin-
Adair, 1958) e desde então não fizeram senão multiplicar-se em
abrangência e quantidade de recursos, incluindo dotações de dinheiro do
próprio governo de Washington, que essas entidades sugam e utilizam para
seus próprios fins (de modo que esse governo acaba aparecendo como o
culpado do que fazem contra ele). Premiar uns quantos “gênios” que
ajudem a revestir de honorabilidade científica a trapaça essencial em que se
assenta a operação é a parte menos dispendiosa do orçamento. O grosso do
dinheiro vai para fomentar diretamente movimentos subversivos e
organizações pró-terroristas.[ 13 ]
Se, de acordo com o experimento weberiano, abstrairmos do quadro
presente a atuação dessas fundações, o resultado será simplesmente que a
esquerda revolucionária do Terceiro Mundo não teria podido continuar a
existir e prosperar depois da queda da URSS e, portanto, a utilização do
crime como instrumento da subversão organizada, que é o seu principal
modus operandi na última década, se tornaria inviável.
O banditismo, assim, cresceu junto com o prestígio oficial da tese mesma
que o explica pela luta de classes. Alegando razões fundadas nessa teoria, o
prof. Wacquant prevê um aumento da violência no Brasil. Mas essas razões
são desnecessárias. A violência crescerá junto com o número de idiotas que
acreditam no prof. Wacquant.
***
Se os praticantes da ciência wacquântica fossem sérios, estudariam um
pouco de lógica da investigação científica e saberiam que nenhuma
correlação causal (entre pobreza e crime ou entre qualquer coisa e qualquer
outra) pode ser generalizada para um grupo abrangente de casos sem que
esteja muito bem provada ao menos em alguns deles individualmente. Ora,
na escala individual a pobreza só pode ser justificação direta e determinante
do crime em exemplos excepcionais e raros – tão excepcionais e raros, na
verdade, que em todo país civilizado a lei os isenta da qualificação mesma
de crimes. São os chamados “crimes famélicos” – o desnutrido que rouba
um frango, ou o pai sem tostão que furta um remédio para dar ao filho
doente. Em todos os demais casos, a pobreza, se está presente, é um
elemento motivacional que, para produzir o crime, tem de se combinar com
uma multidão de outros, de ordem cultural e psicológica, entre os quais, é
claro, a persuasão pessoal de que delinqüir é a coisa mais vantajosa a fazer
nas circunstâncias dadas. Quando o hábito da delinqüência se espalha
rapidamente numa ampla faixa populacional, é claro que, antes dele, essa
persuasão se tornou crença geral nesse meio, reforçando-se à medida que as
vantagens esperadas eram confirmadas pela experiência e pelo falatório.
Ora, é de conhecimento público que, entre a mesma população pobre, por
exemplo das favelas cariocas ou da periferia paulistana, duas crenças
opostas se disseminaram concorrentemente nas últimas três décadas: de um
lado, o apelo do crime; de outro, a fé evangélica. Numa população
uniformemente pobre, o número de evangélicos praticantes que delinqüem
é irrisório. Basta esse fato para provar que a correlação entre pobreza e
crime é uma fraude, um sofisma estatístico da espécie mais
intoleravelmente suína que se pode imaginar. Nenhuma ação humana é
determinada diretamente pela situação econômica, mas pela interpretação
que o agente faz dela, interpretação que depende de crenças e valores.
Estes, por sua vez, vêm da cultura em torno, cujos agentes criadores
pertencem maciçamente à camada letrada, como por exemplo os bispos
evangélicos e os cientistas sociais. Os bispos ensinam que, mesmo para o
pobre, o crime é um pecado. Os cientistas sociais, que os criminosos,
agindo em razão da pobreza, são sempre menos condenáveis do que os ricos
e capitalistas que (também por uma correlação geral mágica) criaram a
pobreza e são por isso os verdadeiros culpados de todos os crimes. Essas
duas crenças disputam a alma da população pobre. Não é preciso dizer qual
delas estimula à vida honesta, qual à prática do crime. Nos bairros mais
miseráveis e desassistidos, qualquer um pode fazer esta observação direta e
simples: as pessoas de bem repetem o discurso dos bispos, os meliantes o
dos cientistas sociais (do sr. Marcola nem preciso dizer nada, já que ele
próprio é meio cientista social). Quando, do alto das cátedras, esses
senhores pregam a doutrina de que a pobreza produz o crime, não estão
cometendo um inocente erro de diagnóstico. Estão ocultando, com maior ou
menor consciência, a colaboração ativa que eles próprios, por meio dessa
mesma doutrina, dão ao crescimento irrefreado da criminalidade. E, quando
são premiados por uma organização ostensivamente interessada em
disseminar a subversão, como é o caso notório da Fundação MacArthur, eu
seria o último a negar que mereceram o prêmio.
***
Se, deixando de lado as generalizações etéreas, nos atemos à seqüência
real dos fatos, a ordem temporal de produção dos acontecimentos da
semana passada aparece com o seguinte desenho:
1º. Desde a década de 30, atendendo a uma ordem de Stalin, a
intelectualidade esquerdista mundial, onde há mais cientistas sociais per
capita do que lobos numa alcatéia, se dedicou ativamente a infundir em
todas as patologias sociais, como o crime e o racismo, a substância
universalmente explicativa da luta de classes. O esforço dos teóricos foi aí
secundado por uma multidão inumerável de romances, filmes, peças de
teatro e canções populares que faziam a idéia penetrar profundamente no
imaginário popular ao ponto de se tornar um dogma inabalável. Nos países
do Terceiro Mundo, justamente graças à profusão de patologias sociais
existentes, essa doutrina se impregnou com aderência maior ainda,
tornando-se o tema dominante, senão único, de várias culturas nacionais,
entre as quais a brasileira (dediquei a esse tema uma série de artigos
publicados em 1994 sob o título “Bandidos e letrados”).
2º. Quando o ambiente cultural estava suficientemente preparado, a
transformação do banditismo em instrumento da luta de classes
revolucionária passou da teoria à prática. No Brasil, especialmente, o
empenho organizado dos militantes de esquerda para arregimentar a serviço
da subversão as gangues de delinqüentes já é um fato abundantemente
documentado desde a década de 60. Da esquerda o banditismo absorveu
não somente a doutrina e o discurso, mas também as técnicas de guerrilha
urbana que empregou, por exemplo, no movimento insurrecional da semana
passada. O contato entre as gangues e os grupos terroristas intensificou-se
ao ponto de tornar-se institucional. A presença de técnicos das FARC e das
organizações terroristas islâmicas em vários grupos criminosos do Brasil já
se tornou tão freqüente que não suscita mais nenhuma reação de escândalo.
Acostumamo-nos a isso como a um dado da natureza.
3º. Quando a esquerda latino-americana, em 1990, passou por um
formidável upgrade com a fundação do Foro de São Paulo, as organizações
de narcotraficantes, seqüestradores e assaltantes acompanharam-na na sua
ascensão social, assentando-se ao lado de partidos legais como o PT e o PC
do B nas assembléias do Foro, coordenação estratégica do movimento
comunista latino-americano. Desde então, todo empreendimento subversivo
de larga escala, no continente, é realizado sob a supervisão ao menos
indireta do Foro de São Paulo. Não há mais iniciativas isoladas: o
banditismo avulso vai sendo sepultado na memória coletiva como um
resíduo de eras extintas. Por toda a parte o que se vê é integração, conexão,
unidade ideológica e estratégica.
4º. Como fundador e principal líder do Foro de São Paulo, o sr. Luiz Inácio
Lula da Silva sempre esteve muito bem informado do grau de organização
que seus colegas de militância haviam conseguido transmitir aos grupos de
delinqüentes, nas cadeias ou fora delas. Mais informado ainda encontrava-
se esse cidadão pelo fato de ser presidente da República, tendo sob seu
serviço direto os órgãos de inteligência e a Polícia Federal, além, é claro, da
figura insubstituível do seu ministro da Justiça, cuja convivência íntima
com os líderes maiores do banditismo nacional tem representado, para ele,
mais que um estilo de vida, um meio de próspera subsistência.
5º. Em vista disso, é absolutamente impossível que essas duas excelências
ignorassem a preparação do mais vasto movimento insurrecional já
planejado neste país no último meio século, e que, portanto, fosse com
cândida inocência e desconhecimento das conseqüências que a primeira
autorizou e a segunda pôs em prática o indulto que colocou na rua, livres,
armados e bem articulados, doze mil delinqüentes, entre os quais os autores
da carnificina.
6º. Mais impossível ainda é que os excelentíssimos ignorassem o detalhe
mais lindamente perverso da situação que geraram. Todo mundo sabe que,
neste país, os policiais recebem uma quantidade irrisória de munições,
tendo de dispender do próprio bolso para garantir-se em situações de risco
de vida. Ao ver-se acossados, nas ruas, nos batalhões e nos postos, por
inimigos decididos a tudo e incomparavelmente mais armados e
municiados, os policiais paulistas, naturalmente, correram às lojas de
armamentos para trocar o leite das crianças por meios elementares de
defesa. Com enorme surpresa, descobriram que um determinado item da lei
do desarmamento, que até então jazia inerte num papel, tinha acabado de
entrar em vigor: não podiam comprar munição nenhuma sem autorização
escrita da Polícia Federal. Comerciantes de armas relatam que viram
policiais saírem de suas lojas chorando, conscientes de que estavam
condenados à morte sem apelação. Se me disserem que o sr. ministro da
Justiça ignorava essa armadilha, responderei então que ele é o mais
estúpido incompetente que já passou pelo seu cargo, já que a entidade
encarregada de fornecer as autorizações repentinamente exigidas e faltantes
está sob o seu comando direto. Mas somente um país muito louco, muito
alienado, mantém nesse cargo, numa hora dessas, o advogado pessoal do
próprio chefe da insurreição. Como defensor de Marcola, o sr. Márcio
Thomaz Bastos tem confiabilidade zero até mesmo para dar uma opinião
imparcial quanto aos acontecimentos da semana passada, quanto mais para
reter em suas mãos, com avareza assassina, os meios de defesa que teriam
podido salvar centenas de pessoas.
7º. Aqueles que acima da suspeita racional coloquem a crença dogmática
na idoneidade do governo petista podem apostar numa conjunção fortuita
de fatores, na santa e pura coincidência. Eu é que não.
22 de maio de 2006

[ 13 ] Ver a estrutura da rede em www.discoverthenetwork.com.


Sorman está por fora

R
OBERTO FENDT (“SAMBA DO CRIOULO DOIDO”, no DC de ontem) está
montado na razão quando reclama da palestra de Guy Sorman no
seminário Democracia, Liberdade e o Império das Leis. Sorman, que
era um sujeito lúcido até umas semanas atrás, de repente apareceu
proclamando, com a cara mais bisonha do mundo, que Lula é o remédio
anti-Chávez e que só não concordam com isso os “liberais de direita”. Mas
os senhores não reparem: o cidadão é sociólogo e é francês. Dificilmente
um cérebro humano escapa por muito tempo à debilitação resultante desse
destino duplamente cruel, por mais nutrido que esteja de von Mises e
Hayek.
Lula, fundador do Foro de São Paulo, só não pode ser dito o pai de Chávez
porque essa honra cabe a Fidel Castro. Lula tem sua glória própria: é a mãe.
E ele mesmo, no discurso com que celebrou os quinze anos de fundação
dessa entidade criminosa, admitiu o desvelo maternal com que ajudou a
colocar e manter o filhinho no poder por vias secretas e fraudulentas.
Depois de tão longo trabalho de parto, ele não vai querer agora pôr tudo a
perder mediante um aborto retroativo.
O erro de Sorman é o mesmo dos iluminados “especialistas” do
Departamento de Estado: vêem Lula só pela orientação econômica do seu
governo, fazendo abstração dos compromissos que ele tem com a revolução
continental e com a subversão local, inclusive armada e sangrenta. Visto só
pelo lado econômico, Vladimir I. Lênin pareceria um antepassado
ideológico de Margaret Thatcher, porque deu chance à livre iniciativa e
abriu o mercado russo aos investidores estrangeiros. Tanto ele quanto Lula,
porém, guardadas as devidas diferenças e proporções, encobriram com o
manto da economia bem comportada uma política voltada à centralização
do poder, à internacionalização do movimento revolucionário, à eliminação
das oposições e à subjugação da sociedade por meio do caos e do terror.
Por uma ironia bem significativa, a voz de Sorman ecoou no auditório do
Hotel Caesar Business ao mesmo tempo que, nas ruas de São Paulo, se
ouviam os tiros do PCC. Nada, absolutamente nada pode camuflar a
evidência de que a rebelião dos bandidos, empreendida em associação com
o MST e chefiada por um protegido do sr. Márcio Thomas Bastos, foi obra
direta ou indireta do governo federal. Milhões de Sormans gritando
bobagens pró-Lula não poderiam suprimir essa obviedade.
Quanto à divisão do liberalismo em esquerdista e direitista, nada preciso
dizer. Fendt já a depositou na privada e puxou a descarga. Só devo fazer um
pequeno reparo às classificações com que ele a substitui. Não é verdade que
os conservadores se diferenciem dos liberais por preferirem a ordem à
liberdade. Mil páginas da recém publicada American Conservatism: An
Enclyclopedia (ISI Books, 2006) provam que não é nada disso, pelo menos
no contexto anglo-saxônico. O conservatism é acima de tudo o amor às
liberdades individuais, ao ponto de em suas expressões mais extremadas ter
gerado a facção dos libertarians, quase anarquistas na sua recusa de toda
interferência estatal na economia ou na vida moral. O amor unilateral à
“ordem” caracteriza, isto sim, a direita francesa, que por sinal não se
autodenominou “conservadora” quase nunca, pelo simples fato de ser
tecnocrática e positivista. Tirando esse detalhe, subscrevo cada palavra do
artigo de Roberto Fendt.
25 de maio de 2006
O parteiro do mal

U
M LEITOR ME ENVIA A PERGUNTA MAIS URGENTE e mais temível dos
últimos tempos: Será que todo mundo já esqueceu a gravação,
transcrita meses atrás na revista Veja, na qual um líder do PCC
confessava que o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, havia ajudado
a organização a obter o apoio do MST?
É claro que, sem esse apoio, a matança do dia 15 não teria chegado a
acontecer. Ela resultou diretamente da ponte entre as duas organizações
criminosas. E quem construiu essa ponte foi o sr. ministro. Se ele não foi o
pai da criança, foi pelo menos o parteiro.
Quando vemos, porém, que a mídia e a opinião pública em geral
continuam inocentemente tratando S. Excia. como se fosse um virtual
portador de soluções em vez de parte do problema, a pergunta é irresistível:
Será que todo mundo esqueceu quem é esse cidadão? Será que as galinhas
já não sabem – ou não querem – distinguir entre o granjeiro e a raposa?
Não tenho resposta. E não tenho um remédio mágico para curar a amnésia
coletiva dos brasileiros. Em compensação, acho que não é só amnésia.
Também não é só incapacidade de juntar os fatos e tirar conclusões. A
percepção mesma dos fatos singulares, na hora em que acontecem, já é
deficiente. No trajeto do olho ao cérebro, são tantos os neurônios
dorminhocos estendidos pelo caminho, que a coitada da informação vai
tropeçando, tropeçando, e não chega nunca. Em qualquer país
medianamente acordado, um ministro suspeito de colaborar tão
intimamente com duas gangues de criminosos seria bombardeado na mídia,
afastado do cargo e investigado. No Brasil, a denúncia não ecoou nem nos
jornais: morreu ali mesmo, nas páginas de Veja, como se nunca tivesse sido
publicada. O sr. Bastos continuou no seu posto, imperturbado e solene
como um cavalo de bronze indiferente aos cocôs de passarinhos.
Antes disso, a declaração do sr. Olivério Medina, de que havia trazido
cinco milhões de dólares das Farc para a campanha do PT, também foi
amortecida com reconfortante facilidade. Alguém alegou que fôra apenas
uma bravata, e imediatamente a explicação foi aceita como um motivo
razoável para não perturbar o sr. Medina, mesmo depois de preso, com
perguntas inquietantes.
Em compensação, qualquer especulação idiota contra os militares
brasileiros, mesmo quando contraria a lógica e o senso de realidade, é
alardeada como se fosse uma verdade definitiva, uma revelação dos céus.
Jamais esquecerei a história do terrorista que, assassinado e colocado por
malvados milicos num automóvel em velocidade para simular acidente,
emergiu do além para frear o veículo em tempo de não morrer de novo.
Essa estupidez foi trombeteada pela Rede Globo durante uma semana
inteira e, mesmo depois de demonstrada a sua absoluta impossibilidade
física, rendeu dois prêmios jornalísticos ao seu inventor, Caco Barcelos.
Nem sai dos meus pesadelos o episódio do soldadinho que, na urgência de
sumir com documentos comprometedores, vendo que não tinha cinco
minutos para lhes atear fogo, optou por passar algumas horas cavando um
vasto buraco para enterrá-los.
E, por mais desmemoriada que esteja a nação, talvez ainda recorde por alto
as fotos do falso Vladimir Herzog, fartamente exibidas como provas da
crueldade militar até ser demonstrado que as imagens do preso cabisbaixo e
deprimido na beira da cama eram, de fato, as de um padre num bordel,
recuperando forças após o extenuante exercício da cópula em doses
cardinalícias.
Os casos dessa natureza são centenas. Mas, em sã consciência, não posso
atribuí-los à pura incompetência jornalística, por mais disseminada que
esteja. Nenhuma incompetência é ideologicamente seletiva. Incompetentes
genuínos errariam, de vez em quando, contra a esquerda. Façam uma
revisão dos jornais dos últimos trinta anos e verão que isso jamais
aconteceu. Lapsos, distrações, burradas, inconseqüências, são sempre
contra os mesmos alvos – os militares, o “imperialismo”, a “direita”.
Outro detalhe que me chama a atenção nesse assalto persistente e
sistemático à honra das Forças Armadas é a reação sempre tímida, quase
envergonhada, dos comandos militares. No máximo soltam uma notinha
oficial de protesto, que ninguém lê. Nunca processam ninguém, nunca
fazem nenhum engraçadinho pagar pelo crime de calúnia dolosa. O
resultado dessa circunspecção paralítica é bastante pedagógico: ano após
ano os detratores aprendem, diretamente dos próprios comandos das três
armas, que a mentira antimilitar é barata e rentável.
Quando estreei na prática do jornalismo aprendi que a essência da técnica
profissional era a capacidade de apreender a importância relativa dos fatos e
de discernir entre os verdadeiros e os falsos. Na época, isso não parecia ser
objeto de dúvida entre meus colegas. Transcorridos quarenta anos, noto que
essa capacidade distintiva elementar foi atrofiada, sufocada e por fim
proibida no jornalismo nacional. Não por coincidência, isso aconteceu
precisamente nos anos em que os jornalistas passaram a falar
obsessivamente de “ética”. É claro que a única ética imperante no
jornalismo nacional consiste em mentir a favor do lado certo. A chave do
enigma reside portanto em saber o que é que entendem por “lado certo”.
Que as crenças e valores gerais recortam e determinam em grande parte a
percepção dos fatos, é algo que nenhum psicólogo jamais colocou em
dúvida. Os antigos retóricos romanos já sabiam que a boa fama de um
cidadão às vezes pesa mais do que centenas de provas contra ele. Quando a
mentira se torna hábito e prática sistêmica de toda uma corporação
profissional, é porque houve, antes disso, alguma mudança profunda na
índole dos seus sentimentos morais. O império da mentira esquerdista na
mídia brasileira tem de ser explicado, portanto, como efeito de uma
mudança geral do código de valores imperante na sociedade brasileira.
Essa mudança de fato ocorreu e não foi nenhum fenômeno social
espontâneo. Há mais de meio século o conjunto de fundações bilionárias e
organizações subversivas empenhadas em criar uma nova ordem global
paradisíaca vem usando de todo o poder de controle que o dinheiro tem
sobre a mídia, o movimento editorial e as escolas, para operar uma mutação
radical dos sentimentos morais da humanidade inteira. O fenômeno está
hoje tão fartamente documentado que só botocudos isolados da civilização
pensariam em negá-lo (não digo que eles não existam mas, por economia de
tempo, permito-me não levar suas opiniões em consideração).
O fundo doutrinal dessa mudança vem do ódio milenar que certas seitas
ocultistas devotam às religiões tradicionais e aos valores morais que elas
ensinaram à humanidade. Entre os séculos XVIII e XIX, algumas dessas
organizações saíram do isolamento e se transformaram em movimentos
revolucionários de massa. Tal é a origem do comunismo, do fascismo e do
nazismo, cujos discursos econômico-sociais não são senão puras
construções pretextuais destinadas a encobrir as ambições civilizacionais
muito mais vastas e profundas. Esse processo foi bem descrito em clássicos
da historiografia e da ciência política como Fire in the Minds of Men, de
James H. Billington (1980) e The New Science of Politics de Eric Voegelin
(1950). Só a partir de fins do século XIX, no entanto, aparece
comprovadamente a penetração da influência gnóstica em círculos de
bilionários que então se transfiguram em reformadores do mundo e acabam
dando aos mãos aos movimentos revolucionários.
No vasto documentário que reuniram sobre as ambições espirituais do
projeto globalista, os pesquisadores Lee Penn, Stanley Montieth, Pascal
Bernardin e Ted Flynn, entre dezenas de outros, demonstraram, acima de
qualquer possibilidade de dúvida, que as organizações financiadoras da
subversão mundial se inspiram diretamente em crenças ocultistas e
gnósticas de uma grosseria sem par. Os maiores charlatães espirituais de
todos os tempos – Madame Blavatski, Aleister Crowley, Albert Pike, Alice
Bailey – são cultuados em altos círculos de potentados financeiros e
planejadores sociais como portadores da mensagem celeste destinada a
forjar a utopia do Terceiro Milênio. É horrível ver tão descomunal poder
político e financeiro ser posto a serviço de ideais tão imbecis e destrutivos,
mas quem disse que o dinheiro traz sabedoria? Se dois milênios atrás o
destino espiritual da humanidade dependesse do gosto das classes
abastadas, a Europa teria sido educada por Simão o Mago e não por Simão
Pedro. A novidade do mundo moderno é que a tradição judaico-cristã foi
sendo perdida de vista pelas multidões ao mesmo tempo que o veloz
enriquecimento capitalista elevava ao sétimo céu do poder famílias inteiras
de idiotas presunçosos que acreditam ter no bolso a solução de todos os
males humanos. Se não fosse a vaidade insana de Morgans e Carnegies,
aberrações ideológicas como o comunismo e o nazismo teriam morrido no
berço, por falta de suporte financeiro. Hoje em dia, se não fossem pelas
fundações Soros, Ford e MacArthur, não haveria a estupidez neocomunista
no Terceiro Mundo, nem tanta inermidade ante o terrorismo no Primeiro.
Muito menos haveria o surto mundial de ódio gnóstico ao cristianismo.
Dentre os itens fundamentais da mutação civilizacional em curso, destaca-
se a idéia de desviar o culto religioso dos seus alvos espirituais tradicionais
e canalizá-lo no sentido de “ideais sociais” oferecidos como o nec plus ultra
da bondade humana.
Ao longo de milênios a humanidade foi educada na base da devoção à
bondade infinita, da prática das virtudes e do senso do dever. Um ataque
maciço e simultâneo através de livros, filmes, espetáculos de teatro e TV,
programas educacionais e ativismo judicial está tratando de abolir
rapidamente esse quadro de referência e substituí-lo por slogans casuísticos
como “ inclusão”, “justiça social”, “igualdade”, etc. No curso de duas
gerações, esses novos símbolos de bom-mocismo lograram penetrar tão
profundamente na alma das classes letradas, que hoje têm aí o mesmo valor
emocional coercitivo dos Dez Mandamentos. Quem os infringe sente-se um
pecador, um réprobo, um inimigo da espécie humana. Na classe jornalística,
por exemplo, não há mais quase ninguém que não esteja persuadido de que
esses estereótipos constituem a mensagem essencial das grandes religiões,
cuja doutrina efetiva já escapa por completo ao seu horizonte de visão.
Quando anos atrás a revista Veja propôs, a sério, a beatificação do sr.
Herbert de Souza – o estrategista revolucionário espertalhão que
gramscianamente sugou o prestígio do cristianismo para esvaziá-lo do seu
conteúdo espiritual e usá-lo como canal de agitação revolucionária –, não
fez senão comprovar até que ponto a moral comunista, já tão assimilada que
nem se reconhecia como tal, havia ocupado na mente da classe jornalística
brasileira o lugar das crenças religiosas mais antigas e fundamentais.
A “revolução cultural” gramsciana é, decerto, apenas uma expressão
parcial e localizada de uma mutação muito mais vasta empreendida por um
exército de poderes entre os quais se destacam a ONU, a Unesco e as
fundações bilionárias. As revoluções morais ali planejadas sucedem-se em
rapidez alucinante e em escala tão gigantesca que o cidadão comum não
tem sequer os meios de acompanhá-las, quanto mais de apreciá-las
criticamente e defender a sua integridade psíquica pessoal que elas violam
incessantemente. Em cada terreno, a escalada de novas exigências e
cobranças que se substituem aos antigos deveres morais é veloz e
prepotente. Só para dar um exemplo, aqueles que ainda estão
escandalizados com a idéia do casamento gay, devem agora de se preparar
para a etapa seguinte: a Fundação Ford está lançando uma vasta campanha
em favor não do simples casamento, mas da poligamia homossexual. A
força dessas empreendimentos é irresistível: em menos de uma geração,
quem quer que se oponha à idéia de crianças serem criadas por uma tropa
de marmanjos entre uma suruba e outra será considerado um sujeito cruel e
sem sentimentos, um perseguidor dos oprimidos, um nazista. Projetos do
mesmo teor com relação à pedofilia já estão em avançado estado de
implementação. O ardil é apelar à liberdade individual como legitimador de
“relações consentidas” entre adultos e crianças. Que a coisa é uma mera
bolha de sabão verbal, é claro que é. Todo ato de pedofilia é consentido,
caso contrário não seria mera pedofilia e sim estupro. Legitimar a pedofilia
consentida é legitimar toda e qualquer pedofilia. Isso está no programa e
vocês dificilmente sairão desse mundo antes de ver a rejeição do “amor
entre homens e meninos” ser condenada como atitude socialmente
inaceitável.
Muito antes de se disseminar na sociedade em geral, essas mutações
afetam a cabeça das classes letradas, dos “intelectuais” no sentido
gramsciano do termo. E os jornalistas são, entre os “intelectuais”, um alvo
prioritário das lutas pela conquista das consciências. Especialmente no
Brasil, país sem quaisquer tradições culturais sólidas que possam oferecer
resistência ao assalto da utopia globalista, essas coisas penetram e se
arraigam com impressionante facilidade, tornando-se o próprio cimento
para a construção de personalidades adaptadas à “nova civilização”. Vocês
podem ter a certeza de que, entre os jornalistas brasileiros, essa é a crença,
essa é a moral, esse é o sentimento orientador. A perversão cultural que os
afetou é funda e letal ao ponto de abolir em suas mentes o próprio senso de
realidade, quanto mais a habilidade jornalística de distinguir o verdadeiro
do falso. Toda uma geração de jornalistas, independentemente das
convicções políticas nominais de cada um, enxerga o mundo por um prisma
onde o único pecado é violar os mandamentos da sensibilidade
politicamente correta. Para evitar a experiência de isolamento e exclusão
decorrente de eventuais transgressões, eles fazem tudo. Até esquecer que o
ministro da Justiça é o padrinho da aliança PCC-MST.
29 de maio de 2006
O socialismo dos ricos

T
ODA DISCUSSÃO OU ESCOLHA POLÍTICA FUNDA-SE EM VALORES, critérios e
esquemas de pensamento previamente disseminados na cultura
circundante. A política eleitoral é como um barco que tem de se
orientar pelas ondas marítimas em torno: com jeito, pode atravessá-las para
chegar aonde quer, mas não pode afetá-las ou mudá-las no mais mínimo que
seja. Tem de contar com elas como um dado da realidade. A cultura é o mar
onde navega ou se perde, bóia ou naufraga o barco da política partidária. A
ação cultural é enormemente mais complexa, abrangente e de longo prazo
que a ação política. Esta pode acompanhá-la com vantagem ou
desvantagem, mas não pode alterar o seu curso, que a predetermina e limita
seu horizonte de possibilidades.
Toda a estratégia da “revolução cultural” gramsciana baseia-se nesses
princípios óbvios e irrefutáveis. Na verdade, antes de Gramci o próprio
Stalin já os havia percebido e posto em prática. Para qualquer ativista de
esquerda, eles são tão auto-evidentes que ele nem precisa lhes conceder
atenção consciente: eles se impregnaram tão profundamente na estrutura do
movimento esquerdista e na psique de cada militante individual, que se
tornaram reflexos condicionados. Isso dá ao conjunto da estratégia
esquerdista uma rapidez de ação alucinante, uma eficácia monstruosa, à
qual seus adversários, pelo menos no Brasil, não têm a opor senão táticas
eleitorais avulsas e de improviso, isto é, tentativas ridiculamente impotentes
de fazer com que o barco mude a maré.
A ação cultural organizada do movimento esquerdista começou nos anos
20 (v. Frederick C. Barghoorn, The Soviet Cultural Offensive, Princeton
University Press, 1960). Malgrado a imensa variedade dos acréscimos e
modificações que veio sofrendo desde então, ela não perdeu nada da sua
unidade, abrangência e senso de direção, nem mesmo depois da queda do
regime soviético.
Mas seria tolice imaginar que essa ofensiva partiu apenas do bloco
soviético, com ou sem a colaboração chinesa. Tão decisiva quanto a ação
cultural do comunismo explícito foi a do establishment “progressista” euro-
americano, inspirado nas idéias do socialismo fabiano e entrincheirado nas
grandes fundações bilionárias que há quase um século usam as armas do
capitalismo para fomentar, por meios pacíficos e anestésicos, a hegemonia
esquerdista, o controle estatal da economia, a destruição da cultura
ocidental e tudo o mais que os comunistas buscam alcançar por outras vias.
As investigações da Comissão Reece do Congresso americano na década
de 50, os estudos meticulosos do economista Anthony Sutton sobre a ajuda
americana ao regime soviético, a decifração dos códigos Venona e, mais
recentemente, a abertura temporária dos arquivos do Partido Comunista da
URSS, mostraram, acima de qualquer possibilidade de dúvida razoável, que
entre o comunismo soviético-chinês e a elite “progressista” bilionária do
Ocidente há algo mais que uma convergência fortuita de interesses: há uma
unidade estratégica profunda, sistemática, abrangente. Na verdade, a
direção do processo está menos nas mãos das organizações comunistas que
nas dos bilionários fabianos. Uma das premissas que orientam essa elite na
sua parceria de muitas décadas com o comunismo é que, a total abolição da
propriedade privada dos meios de produção sendo tecnicamente impossível
(Ludwig von Mises o demonstrou em 1928, e desde então os próprios
dirigentes soviéticos estiveram muito conscientes dessa impossibilidade),
todo esforço bem sucedido de socialização da economia resulta sempre num
produto híbrido, a divisão do poder entre o Estado gigante e os monopólios
privados. A crença popular de que os capitalistas jamais poderiam colaborar
seriamente com o comunismo é uma lenda diversionista difundida pelos
próprios círculos monopolistas. Na verdade, eles têm absoluta segurança de
poder fomentar o comunismo ilimitadamente, nada tendo a perder e tudo a
ganhar com isso. Não precisam sequer tentar controlá-lo diretamente,
porque ele vai por sua própria dinâmica interna na direção dos interesses
deles. A cada dia fica mais nítido que o filósofo Oswald Spengler acertou
na mosca ao escrever: “Não há movimento comunista que não opere no
interesse do dinheiro, na direção indicada pelo dinheiro e pelo prazo
permitido pelo dinheiro.”
Cercadas pela ofensiva soviético-chinesa, de um lado, de outro pelas
fundações bilionárias que dominam as universidades, a mídia e as
instituições culturais e têm o grosso da intelectualidade a seu serviço tanto
na Europa quanto nos EUA, as sociedades ocidentais foram caindo, uma a
uma, sob o fascínio de crenças, símbolos e estilos de pensar e dizer que as
arrastam na direção do socialismo meia-bomba, o socialismo dos ricos, que
é o único economicamente possível e para cuja instauração os movimentos
comunistas não são senão instrumentos parciais e provisórios.
Num próximo artigo explicarei as fontes de resistência que têm operado, às
vezes com notável eficácia pelo menos regional, contra a ascensão
aparentemente irresistível da ditadura socialista global.
1º de junho de 2006
Por trás da subversão

N
O COMEÇO DE 2001, O COUNCIL ON FOREIGN RELATIONS (CFR), bilionário
think tank de onde já emergiram tantos presidentes e secretários de
Estado que há quem o considere uma espécie de metagoverno dos
EUA, criou uma “força-tarefa”, transbordante de Ph.-Ds, presidida pelo
historiador Kenneth Maxwell e encarregada de sugerir modificações na
política de Washington para com o Brasil. A primeira lista de sábios
conselhos, publicada logo em 12 de fevereiro, enfatizava “a urgência de
trabalhar com o Brasil no combate à praga das drogas e à sua influência
corruptora sobre os governos”.
Naquele momento, destruídos os antigos cartéis, emergiam como
dominadoras do mercado de drogas na América Latina as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia, deliberadamente poupadas pelo Plano
Colômbia do governo Clinton sob o pretexto de que o combate ao
narcotráfico deveria ser apolítico. As Farc, uma organização comunista,
haviam entrado no mercado das drogas para financiar suas operações
terroristas e a tomada do poder. Desde 1990 faziam parte do Foro de São
Paulo, onde articulavam suas ações com a estratégia geral da esquerda
latino-americana, garantindo apoios políticos que a tornavam virtualmente
imunes a perseguições em vários países onde operavam. No Brasil, por
exemplo, a despeito das centenas de toneladas de cocaína que por meio do
seu sócio Fernandinho Beira-Mar elas despejavam anualmente no mercado,
e apesar dos tiros que de vez em quando trocavam com o Exército na
floresta amazônica, as Farc eram bem tratadas: seus líderes circulavam
livremente pelas ruas sob a proteção das autoridades federais e eram
recebidos como hóspedes oficiais pelo governo petista do Estado do Rio
Grande. Nunca, portanto, as relações entre narcotráfico e política tinham
sido mais íntimas. Arriscavam tornar-se ainda mais intensas porque Luís
Inácio Lula da Silva, fundador do Foro e portanto orquestrador maior da
estratégia comum entre partidos legais de esquerda e organizações
criminosas, parecia destinado a ser o próximo presidente do Brasil.
A integração crescente de narcotráfico e política tornava portanto urgente
combater “a praga das drogas e sua influência sobre os governos”. E a única
maneira de fazer isso era, evidentemente, desmantelar o Foro de São Paulo.
Vista nessa perspectiva, a sugestão da “força-tarefa” parecia mesmo
oportuna. Mas só a interpreta assim quem não entende as sutilezas do
metagoverno. O sentido literal da frase expressava, de fato, o oposto
simétrico do que o CFR pretendia.
Desde logo, o Foro de São Paulo, para continuar se imiscuindo
impunemente na política interna de várias nações latino-americanas,
necessitava manter sua condição de entidade discreta ou semi-secreta, e o
próprio chefe da força-tarefa o ajudava nisso. Em artigo publicado na New
York Review of Books – e, é claro, reproduzido na Folha –, Maxwell
declarava que o Foro simplesmente não existia, porque “nem os mais bem
informados especialistas com quem conversei no Brasil jamais ouviram
falar dele”.
Para um historiador profissional, confiar-se à opinião de terceiros em vez
de averiguar as fontes primárias, então fartamente disponíveis no próprio
site do Foro, era uma escandalosa prova de inépcia. Na época, o sr.
Maxwell pertencia (pertence ainda) ao círculo de iluminados que costumava
(costuma ainda) ser ouvido com o máximo respeito pela mídia brasileira,
especialmente pela Folha de S. Paulo. Isso parecia dar uma prova
incontestável de que ele era de fato um jumento, tendo agido de maneira tão
extravagante em pura obediência à sua natureza animal. Mas agora noto que
isso não explicava tudo. Logo depois, outro intelectual de grande reputação
nos círculos asininos, Luiz Felipe de Alencastro, professor de História do
Brasil na Sorbonne e colunista da Veja, brilhava num debate do CFR
emprestando à tese da inexistência do Foro de São Paulo o aval da sua
formidável autoridade e ainda acrescentava ter sido eu o criador da lendária
organização... Dar sumiço na coordenação continental do movimento
comunista latino-americano parecia ter-se tornado um hábito consagrado no
CFR.
Isso poderia ser apenas um inocente acúmulo de erros de interpretação se a
entidade não tivesse cultivado simultaneamente um outro hábito: o das boas
relações com as Farc. Em 1999, o presidente da Bolsa de Valores de Nova
York, Richard Grasso, membro do CFR, fez uma visita de cortesia ao
comandante das Farc, Raul Reyes, e saiu dali festejando a comunidade de
interesses entre a quadrilha colombiana e a elite financeira “progressista”
dos EUA. Logo em seguida, outros dois membros do CFR, James Kimsey,
presidente emérito da America Online, e Joseph Robert, chefe do
conglomerado imobiliário J. E. Robert, tinham um animado encontro com o
próprio fundador das Farc, o velho Manuel Marulanda, e em seguida iam ao
presidente colombiano Pastrana para tentar convencê-lo, com sucesso, a
ficar de bem com a narcoguerrilha.
A divisão de trabalho era nítida: os potentados do CFR negociavam com a
pricipal força de sustentação militar e financeira do Foro de São Paulo,
enquanto seus office-boys intelectuais cuidavam de despistar a operação
proclamando que o Foro nem sequer existia. O CFR alardeava a intenção de
eliminar a influência do narcotráfico nos governos ao mesmo tempo que
contribuía ativamente para que essa influência se tornasse mais vasta e
fecunda do que nunca.
Ao CFR pertencia também o presidente Clinton, cujo famigerado Plano
Colômbia tinha tido por principal resultado eliminar os concorrentes e
entregar às Farc o quase monopólio do mercado de drogas na América
Latina. Em 2002, a política latino-americana dos grão-senhores globalistas
sofria um upgrade: ao esforço de embelezar as Farc somava-se agora o
empenho de fazer do presidente do Foro de São Paulo o presidente do
Brasil. Poucos dias antes da eleição de 2002, a embaixadora americana
Donna Hrinak, que não sei se pertence pessoalmente ao CFR mas está entre
os fundadores de uma entidade estreitamente associada a ele, o Diálogo
Interamericano, fazia propaganda descarada do candidato petista,
proclamando-o “uma encarnação do sonho americano”. Embora fosse uma
interferência ilegal e indecente de autoridade estrangeira numa eleição
nacional – só não causando escândalo porque até a prepotência imperialista
se torna amável quando trabalha para o lado politicamente correto –, e
embora a fórmula verbal escolhida para realizá-la fosse uma absurdidade
sem par (pois não consta que muitos americanos tivessem como suprema
ambição parar de trabalhar aos 24 anos para fazer carreira num partido
comunista), a expressão fez tanto sucesso que, logo em seguida, foi repetida
ipsis litteris, sem citação de fonte, num artigo da New York Review of Books
que celebrava entusiasticamente a vitória de Lula. Adivinhem quem
assinava o artigo? O indefectível Kenneth Maxwell.
Diante desses fatos, alguém ainda hesitará em perceber que as ligações
entre o esquerdismo pó-de-arroz do CFR e o esquerdismo sangue-e-fezes
dos Marulandas e Reyes são mais íntimas do que caberia na imagem
estereotipada de uma hostilidade essencial e irredutível entre capitalistas
reacionários e comunistas revolucionários? O sentido dos acontecimentos é
transparente demais, mas o cérebro das nossas elites ainda é capaz de
projetar sobre eles a sua própria obscuridade para esquivar-se de tirar as
conclusões que eles impõem.
É claro que não endosso a idéia de que o CFR, como instituição, seja uma
central conspiratória pró-comunista. Muitos de seus membros são patriotas
americanos que jamais endossariam conscientemente uma política
prejudicial ao seu país. Mas não dá para esconder que, ali dentro, um grupo
de bilionários reformadores do mundo, incalculavelmente poderosos, tem
induzido a entidade a influenciar o governo de Washington, quase sempre
com sucesso, no sentido mais esquerdista e anti-americano que se pode
imaginar. Nos EUA isso é um fato de conhecimento geral. Ninguém o
coloca em dúvida. Só o que se discute é a “teoria da conspiração” usada
para explicá-lo. Essa teoria tem entre seus defensores alguns intelectuais de
primeira ordem como Carroll Quigley, professor de História em Harvard e
mentor de Bill Clinton, ou o economista Anthony Sutton, autor do clássico
Western Technology and Soviet Economic Development (4 vols.). Contribui
ainda mais para a credibilidade da tese o fato de que o primeiro é um adepto
entusiasta e o segundo um crítico devastador da elite globalista. E o que a
torna ainda mais atraente é o fato de que o CFR, reconhecendo a sua
existência ao ponto de lhe oferecer um desmentido explícito no seu site
oficial, se esquive de debater com esses dois pesos-pesados e com dezenas
de outros estudiosos sérios que escreveram a respeito, e prefira em vez
disso ostentar uma vitória fácil e postiça num confronto com as versões
popularescas e caricaturais da tese conspirativa, inventadas por tipos como
Lyndon LaRouche e o pastor Pat Robertson. Este é um bom sujeito que
jamais mentiria de caso pensado, mas é um boquirroto, campeão continental
de gafes eclesiásticas. Discutir com ele é a coisa mais fácil, porque ele
sempre vai acabar dizendo alguma inconveniência e pondo sua opinião a
perder, mesmo quando está com a razão. LaRouche, que chegou a ser pré-
candidato presidencial pelo Partido Democrata, é ele próprio um
conspirador que só enxerga as conspirações dos outros pelo prisma
deformante dos seus objetivos e interesses próprios. Tomar esses dois como
porta-vozes representativos das acusações de conspiração contra o CFR é o
mesmo que derrubar o dr. Emir Sader e sair cantando vitória sobre Karl
Marx. Que o CFR use desse expediente esquivo para se safar das denúncias
é um sério indício de que elas têm pelo menos algum fundo de verdade.
Para vocês avaliarem o quanto a nossa elite econômica, política e militar
está alienada e por fora do mundo, basta notar que sua principal fonte de
informação sobre o CFR, o Diálogo Interamericano e outros organismos
globalistas tem sido justamente o sr. Lyndon LaRouche, cuja Executive
Intelligence Review é lida pelos luminares da Escola Superior de Guerra
como se fosse o exemplar mais puro de inside information (ele está tão bem
informado que chegou a me classificar – logo a mim, porca miséria – como
apóstolo do globalismo, pelo fato de eu escrever então num jornal chamado
O Globo). As outras fontes conhecidas no país são todas de esquerda, e o
que elas têm em comum com o boletim do sr. LaRouche é que distorcem
monstruosamente os fatos ao apresentar os círculos globalistas como
representantes do bom e velho “imperialismo americano” em luta desigual
contra as soberanias nacionais dos países pobrezinhos. Não sei se rio ou se
choro ao ver quantos brasileiros, que de esquerdistas não têm nada, levam
essa versão a sério e baseiam nela suas análises estratégicas e propostas de
governo. É ridículo e trágico ao mesmo tempo. Com tantas fontes primárias
e diagnósticos de alto nível à disposição, por que comer lixo e arrotar o
cardápio do Tour d’Argent? Do lamaçal cultural subdesenvolvido só brotam
flores de ignorância e auto-engano.
O site www.vermelho.org, por exemplo, apresenta o Diálogo
Interamericano como repleto de “personalidades da direita mais
conservadora”, e estas como “representantes do Establishment americano”.
Nos EUA, até crianças de escola sabem que Establishment quer dizer
“esquerda chique”, que não há nem pode haver ali dentro “personalidades
da direita mais conservadora”, e que, se alguma soberania nacional é posta
em risco pelo Establishment, é a dos EUA em primeiríssimo lugar. A longa
e feroz polêmica movida pelos conservadores e nacionalistas contra o CFR,
o Diálogo Interamericano e os círculos globalistas em geral é
completamente desconhecida pelos tagarelas da ESG e pelo “bando de
generais” que acredita nas fontes esquerdistas e no sr. LaRouche. Nessa
multidão de caipiras crédulos há inúmeros patriotas sinceros. Mas a
destruição de um país começa quando seus patriotas se idiotizam, deixando
aos traidores, conspiradores e revolucionários o monopólio da esperteza.
A história da manipulação dos patriotas brasileiros por espertalhões de
esquerda é em si mesma uma tragicomédia. Desde há décadas, a liderança
esquerdista vem submetendo essa gente a um tratamento pavloviano, na
base de um-choque-um-queijo, que se demonstrou eficaz ao ponto de
muitos oficiais de alta patente, ideologicamente anticomunistas, acharem
hoje que é uma lindeza sumamente honrosa transformar os nossos soldados
em cavouqueiros e tratoristas a serviço do MST. Como é que se leva um
cérebro humano a mergulhar nesse abismo de estupidez? É simples: basta
criar uma equipe selecionada entre esquerdistas bem falantes e dividi-la em
duas alas, encarregadas de tarefas opostas – uma infiltrada na mídia,
incumbida de espalhar mentiras escabrosas, fomentando o ódio anti-militar;
outra, bem colocada nos próprios círculos militares e na ESG, encarregada
de afagar o ego das Forças Armadas e induzi-las à conciliação e à
colaboração com a estratégia comunista continental por força do seu
próprio patriotismo, facilmente convertido em anti-americanismo por meio
de um fluxo habilmente planejado de informações falsas (entre as quais é
claro, as fornecidas pelo sr. LaRouche). Na primeira equipe, destacam-se
Caco Barcelos, Cecília Coimbra e Luiz Eduardo Greenhalgh. Na segunda,
Márcio Moreira Alves, Mário Augusto Jacobskind e Cesar Benjamin. A
duplicidade de tratamento deixa a vítima desnorteada e acaba por subjugá-
la. Entre tapas e beijos, boa parte da nossa oficialidade se deixou facilmente
cair no engodo, mostrando ter mesmo QI de ratinho de laboratório. A
recente palestra do comandante do Exército em Porto Alegre mostra até que
ponto uma instituição caluniada, marginalizada e espezinhada sente alívio e
reconforto ante a oferta humilhante de um lugarzinho no banquete de seus
tradicionais detratores.
Ardis semelhantes foram aplicados entre empresários e políticos, com
igual eficácia.
É por isso que se tornou tão difícil explicar aos brasileiros aquilo que,
entre os conservadores americanos, até os mais lerdos de inteligência como
Pat Robertson entendem perfeitamente bem: que a elite globalista é o
inimigo número um da soberania nacional americana e, por tabela, mas
somente por tabela, de todas as demais soberanias.
5 de junho de 2006
Saindo pela esquerda

A
DESCOBERTA DE UM DEPÓSITO DE CABEÇAS CORTADAS, no Iraque, foi
noticiada com relativa discrição pela mídia chique de Nova York e
Washington e não provocou nenhuma reação indignada de Hillary
Clinton, Ted Kennedy, John Kerry, John Murtha e outros autores de
protestos apopléticos contra as “violências” cometidas pelos americanos em
Abu-Ghraib. Com toda a evidência, a moral politicamente correta considera
mais humano cortar uma cabeça do que vestir-lhe uma calcinha.
A apropriação do discurso moralizante pelos adeptos de ideologias
amorais e genocidas só poderia levar mesmo à deformação caricatural do
próprio sentido da moralidade, culminando na completa inversão dos
critérios de julgamento.
Para os que, no meio da confusão psicótica, ainda se conservam capazes de
apreender as coisas como são, a nova revelação da crueldade dos terroristas
iraquianos leva a duas conclusões incontornáveis: (1) ou o governo
constitucional do Iraque, com a ajuda americana, prossegue a luta até a
destruição total do inimigo, ou será preciso entregar o país a uma gangue de
assassinos de mentalidade incalculavelmente monstruosa; (2) se George W.
Bush cometeu erros, invadir o Iraque não foi um deles.
Na verdade, a queda de popularidade do presidente não se deve a nada que
possa ter desagradado a elite esquerdista. Deve-se justamente ao fato de que
esse mandatário, tão firme e decidido nas ações que empreende no Oriente
Médio, é tímido e acomodatício ante as exigências da oposição interna, não
hesitando em sacrificar o futuro do seu partido no altar de concessões
vexatórias. A mais escandalosa dessas concessões é decerto, o projeto de
anistia para doze milhões de imigrantes ilegais, contra a vontade da maioria
da população e praticamente a totalidade do eleitorado conservador. O
acordo parece tanto mais repugnante porque a proposta de anistia veio
justamente de dois inimigos tradicionais do presidente, um democrata, Ted
Kennedy, o outro republicano, John McCain.
Depois de uma política de gastos públicos megalômanos que foi uma
inversão exata de suas promessas de campanha, a aproximação com
Kennedy e McCain parece, aos eleitores de Bush, uma traição intolerável.
Se, às vésperas da votação do projeto de anistia, o presidente tenta aplacar a
multidão conservadora com a oferta de uma emenda constitucional
proibindo os casamentos gays, a multidão não vai se deixar comprar por
esse agradinho de improviso: vai aplaudir a proibição e continuar malhando
Bush. Os políticos republicanos, que dominam o Senado e a Câmara, sabem
que o presidente está vendendo suas cadeiras para a oposição e muitos deles
já decidiram que gostam mais de seus postos do que dele. Mas o presidente
em pessoa parece ainda não ter entendido que um parlamento com maioria
democrata significará quase que inevitavelmente o seu processo de
impeachment.
Não é a primeira vez que um presidente americano eleito com plataforma
conservadora decepciona seus eleitores e joga sua carreira pela janela em
troca de uns sorrisos hipócritas dos adversários. Richard Nixon entrou na
presidência pela direita e saiu pela esquerda. O atual presidente parece
inspirado nesse fantasma ilustre. O problema dos republicanos agora é:
salvar George W. Bush dele próprio ou salvar-se entregando George W.
Bush aos leões.
8 de junho de 2006
A fossa de Babel

O
S DOIS HEROIZINHOS DA SEMANA foram os srs. Fernando Gabeira e
Antonio Carlos Magalhães – o primeiro, por ter cumprido o dever
banal de ser gentil com os seguranças que, para defendê-lo, tiveram
braços quebrados e cabeças rachadas na invasão da Câmara; o segundo, por
ter clamado por uma intervenção necessária, tardia e mais que improvável
das Forças Armadas no circo sangrento da realidade nacional.
“Pobre do país que precisa de heróis”, dizia Brecht. Mas Brecht era um
mentiroso cínico. Todo país precisa de heróis. Tanto precisa que, quando na
hora do aperto não encontra nenhum, inventa logo algum simulacro patético
e se apega a ele com aquela esperança histérica que nasce do matrimônio da
covardia com a estupidez.
Heróis genuínos fazem-se desde dentro, na luta da alma pela verdade da
existência. Antes de brilhar em ações espetaculares, têm de vencer a
mentira interior e pagar, com a solidão moral extrema, o preço da
sinceridade.
Os que não podem fazer isso aproveitam os momentos de desespero geral
para dizer umas palavrinhas oportunas que os façam parecer o que não são.
Os srs. Gabeira e Magalhães, como pais fundadores do próprio estado de
coisas que denunciam, deveriam limpar-se do seu passado antes de
apresentar-se como salvadores do presente. A Igreja, inspirada na sabedoria
eterna, instituiu a confissão antes da comunhão. Os dois heróis de
chanchada da Atlântida querem subir aos céus da glória nacional antes de
descer aos infernos da sua miséria interior. Querem ser exaltados sem
precisar humilhar-se.
O sr. Gabeira classifica a atual prepotência petista como uma traição aos
belos ideais da aurora da sua vida. Que ideais eram esses, que segundo o
seqüestrador e terrorista aposentado os anos não trazem mais? Eram os dos
socialismo continental de Fidel Castro, modelados pelo regime cubano e
espalhados no continente, sob a forma de bombas e assassinatos, pela
Organização Latino-Americana de Solidariedade, OLAS, a primeira edição
do Foro de São Paulo. Ninguém metido nisso podia dizer honestamente que
lutava pela liberdade de expressão. Agora o sr. Gabeira se queixa de que o
partido lhe impõe decisões prontas, não o deixa votar como bem entende.
Mas em Cuba, no tempo em que ele desfrutava da hospitalidade e proteção
do regime castrista, alguém podia votar como bem lhe parecia? Sob esse
aspecto, o PT de hoje (como aliás a Cuba de hoje) não é o avesso dos
sonhos de juventude do sr. Gabeira: é a sua realização. Quanto à violência
física, o deputado verde não há de querer nos persuadir de que os
arruaceiros do MST sejam páreo para a polícia secreta cubana. Na ilha onde
o sr. Gabeira encontrou abrigo contra uma ditadura que matara duas
centenas de terroristas armados, outra ditadura já havia matado, até então,
mais de dez mil civis desarmados, mas ele a achava linda. Não é possível
que umas dúzias de policiais mortos pelo PCC sejam uma realidade
demasiado chocante em comparação com o modelo que ele então cultuava.
Ademais, foram os companheiros de ideal do sr. Gabeira que começaram a
preparar a bandidagem vulgar, na Ilha Grande, para o upgrade
ideologicamente adestrado que a transfigurou em guerrilha urbana. Ele
nunca disse sequer: “Não deveríamos ter feito isso.” Ao contrário, ele se
orgulha dos feitos da sua geração. Como pode então sentir-se escandalizado
de que, no devido tempo, eles dêem frutos? Resta ainda o aspecto da
honestidade, da lisura. Fidel Castro, nos anos 70, já começara a amealhar,
mediante acordos com narcotraficantes para que seus aviões atravessassem
impunemente o espaço aéreo cubano, a fortuna que o colocaria na lista da
Forbes entre os homens mais ricos do mundo. Se Gabeira nunca se
arrependeu de ter servido ao gangster máximo da América Latina, não é
verossímil que se sinta tão envergonhado de haver contribuído para a
ascensão de bandidinhos chinfrins como Delúbio e Valério.
Não, não há um pingo de sinceridade nas críticas do sr. Gabeira, como não
há nas suas autocríticas. Há apenas o desejo de explorar a debilidade da
memória popular, para espalhar a impressão de que a causa foi mais nobre
que o efeito, de que os construtores da desgraça presente são, na verdade,
suas pobres vítimas desiludidas ou seus denunciadores heróicos.
Isso não é, decerto, grande novidade. Desde a decapitação de Luís XVI o
movimento revolucionário mundial vive de proxenetar seus próprios crimes
e vexames, atribuindo-os às suas vítimas, a circunstâncias fortuitas ou à
ação de traidores. Tantas confissões repetidas da incapacidade de governar
o curso das coisas já bastam, é claro para impugnar a presunção do poder
absoluto e infalível de forjar um futuro melhor. Mas o público que as ouve
não parece relacionar umas com as outras: toma cada uma isoladamente,
como se fosse a primeira, e investe de novo e de novo na serpente do Éden.
Quanto ao sr. Magalhães, o sentimento que inspira sua explosão de cólera
não é o zelo do patriota: é o ressentimento do bajulador rejeitado. Em 2002,
acossado pela hostilidade esquerdista, esmagado sob denúncias sem fim,
antevendo o fim próximo dos seus dias de glória, o senador baiano, in
extremis, apostou tudo na cartada do adesismo e da lisonja. Apostou e
perdeu. De nada lhe adiantou lamber as botas daqueles que ainda na véspera
o chamavam dos piores nomes. Desprezado e humilhado pelo objeto de
suas afeições repentinas, recolheu-se a um silêncio rancoroso, preparando a
vingancinha.
Quatro anos atrás, a denúncia da máquina de corrupção petista já era velha
de mais de uma década, o MST já incendiava fazendas, as ligações entre a
elite esquerdista nacional, a espionagem cubana, os narcotraficantes das
Farc e o crime organizado local já eram uma tradição consolidada, meia
dúzia de testemunhas do processo Celso Daniel já tinham sido
providencialmente assassinadas e o sr. Luís Inácio Lula da Silva, como
oficiante-mor dos ritos macabros do Foro de São Paulo, já era o coveiro da
dignidade e da soberania nacionais. Por que achar tudo isso merecedor de
aplauso na ocasião, e agora subir à tribuna do Senado, com ares de
escândalo no rosto, para denunciar algo que então já era sabido e mais que
provado?
A mudança de atitude do sr. Magalhães para com Lula não veio de repente,
sob o impacto de uns socos e pontapés desferidos nos seguranças do
Congresso. Veio logo depois das eleições, quando, frustrado seu intento de
vencer por meio da adesão, o ex-governador da Bahia teve de descer do seu
pedestal de árbitro supremo da política brasileira e, exatamente como eu
previra num artigo publicado mais de um ano antes, recolher-se à modesta
posição de líder provinciano, de onde nunca deveria ter saído.
Descendentes de Macunaíma e Tartufo, Magalhães e Gabeira são o Gordo
e o Magro do grande épico do anti-heroísmo nacional.
Mas o que me irrita e deprime não é que tipos como esses brotem, como
cogumelos, da decomposição geral. É a pressa obscena com que são
aplaudidos por gente letrada, que deveria ao menos ter um pouco de
memória, e se tornam modelos de conduta patriótica. Notem bem: eu disse
que isso me irrita e deprime, não que me espanta. Há décadas venho
observando a progressiva, firme e aparentemente irreversível descida de
nível dos padrões de julgamento moral, intelectual e estético neste país,
uma degradação – no sentido estrito e etimológico do termo – jamais
observada em parte alguma e época nenhuma da história do mundo. Não faz
muito tempo, um estrategista espertalhão, o sr. Herbert de Souza, foi tido
como uma reedição melhorada de S. Francisco de Assis pelo mérito divino
de haver conseguido transformar as instituições de caridade em
instrumentos da propaganda esquerdista. Nas eleições de 2002 o jornalista
Hélio Fernandes, que jamais se notabilizara pela ingenuidade crédula,
escreveu, com toda a seriedade, que Lula era o salvador providencial
anunciado na profecia de S. João Bosco. Falastrões bobocas como os srs.
Leandro Konder, Emir Sader, Luís Eduardo Soares e Gilberto Felisberto de
Vasconcelos (Gilberto Felisberto, vê se pode!) brilhavam no céu como
astros supremos da inteligência. Simples testemunhas judiciais que diziam a
verdade para evitar um processo de perjúrio eram canonizadas como
pináculos da honestidade. E logo em seguida um cantorzinho como
qualquer outro, cuja máxima originalidade era ter posado de collant ao lado
de Roberta Close e respectivo maridão no baile gay do Scala, era
consagrado por um cargo ministerial como epítome da “cultura nacional” –
seja isso lá o que for.
Vendo tudo isso, eu não podia senão lembrar o hai-kai de Antonio
Machado:
Cuán dificil es
Cuando todo baja
No bajar también.
Pior que a degradação da realidade era a descida das próprias expectativas
ideais. A medida de altitude máxima concebível pela imaginação popular ia
baixando, baixando, para adaptar-se ao material disponível cada vez mais
ordinário.
Não que as aspirações brasileiras tivessem algum dia sido muito elevadas.
Sempre estivemos, sob esse aspecto, muito abaixo da média humana – ao
ponto de não conseguir conceber os heróis, santos e sábios de outras épocas
e culturas senão sob o prisma redutivo e caricatural que nos era próprio. Por
isso considero Desenvolvimento e Cultura. O Problema do Estetismo no
Brasil, de Mário Vieira de Mello (São Paulo, Nacional, 1958), e Psicologia
do Subdesenvolvimento, de José Osvaldo de Meira Penna (Apec, 1972), os
estudos mais úteis que alguém já escreveu sobre a índole da cultura
nacional. O primeiro discerne, nas fontes européias que mais nos
influenciaram, o predomínio do prazer estético sobre a consciência moral.
O segundo mostra que esse prazer nem chega a ser estético: é lúdico e
erótico. O brasileiro em geral, mesmo culto, não capta as exigências
específicas do domínio moral, intelectual e religioso: decide as questões
mais graves do destino humano pelo mesmo critério de atração e repulsa
imediatos com que julga a qualidade da pinga ou avalia o perfil dos
bumbuns na praia. Daí sua tendência incoercível de tomar a simpatia
pessoal, a identidade de gostos ou a adequação às preferências da moda na
classe artística como sinais infalíveis de alta qualificação moral. O sr.
Gabeira, por exemplo, sai por aí de tanguinha e diz que fuma maconha.
Logo, só pode ser “bom sujeito”. Magalhães cai no samba e é amigo das
mães-de-santo. Por mais que seja odiado politicamente, permanece um tipo
popular, íntimo de todos. Inversa e complementarmente, homens da mais
elevada estatura moral, como Gustavo Corção ou o príncipe D. Bertrand,
foram odiados e desprezados, menos pelo conteúdo de suas crenças
políticas (as mesmas de Nélson Rodrigues, do qual todo mundo gosta) do
que pela rigidez hierática do seu estilo de viver, incompatível com aquele
mínimo de esculacho promíscuo que é preciso para ser admitido no panteão
dos “bons sujeitos”.
Agora imaginem o que pode acontecer a um país assim desguarnecido
psicologicamente quando uma geração inteira de intelectuais ativistas,
ambiciosos como a peste, decide sugar o pouquinho de valores morais ainda
disseminados na sociedade como resíduos de épocas mais nobres e rebaixá-
los a instrumentos de doutrinação comunista, senão a slogans de
propaganda eleitoral. Aí é, como diria Raymond Abellio, “a fossa de
Babel”: é a competição geral pela taça da baixaria universal, cada um
tentando mostrar que é mais podre, mais sórdido, mais esculhambado que o
vizinho, e chamando isso de ética, patriotismo e cultura. É assim que se
explica o contraste, aqui assinalado em artigo anterior, entre o Brasil de
agora e o dos anos 50. Naquela época, já era a meleca geral, mas nela
algumas centenas de escritores e artistas ainda bracejavam para manter-se à
tona, resguardando a dignidade da inteligência. Agora, o próprio sentido
medicinal da cultura superior está perdido: os que ainda têm um pouquinho
de estudo envergonham-se dele, querem ser “povão” como Lula, cortejar os
afagos da massa, adaptar-se o mais rápido possível ao bunda-le-lê
imperante, como o chama esse sobrevivente pré-histórico que é Bruno
Tolentino.
Creio que com isso respondi, meio involuntariamente, à carta gentil e
perplexa que recebi de um leitor gaúcho:
Já há bastante tempo venho lendo seus artigos na imprensa e acompanhando semanalmente a
exposição de suas opiniões no blog que mantém na Internet. Todos os textos de sua autoria vêm
sempre acompanhados de uma advertência ou de uma previsão futura. É tudo de uma clareza
impressionante, a tal ponto de parecer que você possui bola de cristal, joga tarô ou sonha feito
profeta, de tanto que acerta. Mesmo um simples título, como ‘Aguardem o pior’, publicado no JB
de 6 de maio deste ano, (tendo em vista esse ataque ao Congresso) revela a sua capacidade de
acerto sobre os acontecimentos futuros, embasadamente lúcida e probante. Mas algo me intriga...
Por que, mesmo com toda essa clareza com que você expõe os fatos políticos que irão se
desenrolar, ninguém lhe dá ouvidos ou leva seus artigos em consideração? Será que no Brasil
existe um ódio satânico à verdade?
Se eu fosse um político de direita, ocultaria o que sei de Gabeira e
Magalhães e trataria de tirar proveito tático de suas performances
antipetistas. Mas não fui treinado para isso. Todo o adestramento que
adquiri foi para perceber o curso dos fatos no meio da confusão e das
mentiras, e expressá-lo da maneira mais clara e direta que pudesse. Nunca
estudei para brilhar, para fazer carreira, mas para enxergar a realidade,
talvez para superar o sentimento opressivo de ignorância e confusão que me
atormentava na infância. Desde que me entendo por gente, repeti
diariamente a prece de Maomé: “Senhor, mostra-me as coisas como são”. E,
tão logo aprendi a me expressar como escritor, me dei conta de que, se
sacrificasse minha inteligência verbal a outras finalidades, dizendo o que
parecia conveniente e não o que enxergava, ela acabaria se perdendo por
completo e eu seria mais um cabo eleitoral, mais um sedutor barato, mais
um beletrista de partido. Logo na adolescência, uma leitura que me inspirou
muito foi a página em que Julián Marías, na sua adorável Introducción a la
Filosofía, mostrava a conexão essencial entre os três termos básicos da
filosofia grega: theoréin, ón e logos – “ver”, “ser” e “linguagem”. O
filósofo, originariamente, não se entendia como um autor de discursos
complicados, mas como alguém que tinha uma função precisa: enxergar o
ser e dizer as coisas exatamente como são. Quando li essa página, disse para
mim mesmo: “É isso o que eu quero ser quando crescer” – o sujeito que
sabe o que está acontecendo e o explica da melhor maneira que pode. Não
sei fazer outra coisa. Se minhas habilidades são menos prezadas que as dos
Gabeiras, Magalhães, Sáderes e Gilbertos Felisbertos em geral, isso faz
parte da própria realidade que estou tentando apreender, e não me
impressiona mais do que o restante do panorama de miséria espiritual no
qual o aplauso, se o recebesse, não poderia ter sobre mim senão o efeito de
uma cusparada, e vice-versa.
É verdade que nem todo mundo reclama do que escrevo. Há quem goste.
Mas uma boa parte gosta naquela mesma clave lúdica em que o
conhecimento adquirido é uma forma de diversão, sem alcance sobre a vida
prática e as decisões reais. Quando dou conselhos a essa gente, quase
sempre me sinto como um médico que, tendo receitado uma medicação de
emergência, depois a encontra esquecida num canto da sala onde a família
presta sua última homenagem ao cadáver do paciente. Não me sinto um
gênio incompreendido, não tenho nem um pouco de dó de mim mesmo:
tenho dó daqueles a quem estendi o socorro dos meus conhecimentos e que
só os aproveitaram como deslumbre passageiro. Não entenderam que eu
não queria os seus aplausos, mas a sua salvação.
12 de junho de 2006
Dormindo profundamente

A
LGUNS LEITORES RECLAMAM QUE DESCREVO O PROBLEMA mas não indico
solução. Sabem por que faço isso? É que as únicas soluções possíveis
são tão difíceis e remotas que só de pensar nelas a visão do problema
se torna ainda mais insuportável. Cada vez que volto ao assunto ecoa na
minha memória o verso de Manuel Bandeira, o mais triste da literatura
universal, que resume a história do Brasil nas últimas décadas: “A vida
inteira que poderia ter sido e que não foi.”
Em 2002, numa reunião internacional, os estrategistas da revolução latino-
americana já haviam chegado à conclusão de que nenhuma força de direita
tinha condições de erguer-se para enfrentá-los. Desde então o poder da
esquerda veio crescendo formidavelmente, especialmente no Brasil, e seus
eventuais adversários não fizeram senão ceder terreno, acomodar seu
discurso ao do inimigo, abdicar de toda identidade ideológica e gastar
energias preciosas em alianças debilitantes, em campanhas de bom-
mocismo sem teor ideológico e em esforços eleitorais perfeitamente fúteis.
É claro que antevejo soluções. Mas tenho a quase certeza de que ninguém
vai colocá-las em prática. Todos os que poderiam fazê-lo estão demasiado
fracos, demasiado sonsos para poder reagir. Oito, dez anos atrás andei
sugerindo soluções. Falei a empresários, políticos, religiosos, intelectuais,
militares. Em geral não consegui persuadi-los nem mesmo de que havia um
problema – o mesmo problema sob cujo peso agora estão gemendo. Todos,
sem exceção, avaliavam a situação baseados somente no que liam na mídia,
prescindindo solenemente de qualquer conhecimento das fontes diretas, da
bibliografia especializada ou mesmo dos clássicos do marxismo. E
julgavam com uma segurança, com uma pose! Uns confiavam nos seus
galões, outros no seu saldo bancário, outros nos seus diplominhas da USP
como se fossem garantias de infalibilidade, incomparavelmente superiores a
décadas de estudo e montanhas de documentos. Uns diziam que eu estava
açoitando cavalos mortos, outros estavam tão despreocupados que tinham
tempo para criticar detalhes de estilo que os incomodavam nos meus
artigos, outros, ainda, davam-me conselhos jornalísticos, recomendando-me
temas mais agradáveis para conquistar os coraçõezinhos das leitoras em vez
de assustá-las com advertências apocalípticas. Assim o tempo passou.
Acabei-me recolhendo à minha insignificância, e hoje me dedico à função
que me resta: analisar o mais objetivamente possível a agonia do Brasil,
para uso dos futuros historiadores. Larguei a prática da medicina de
urgência para dedicar-me ao estudo das patologias terminais. É um assunto
inesgotável e, para quem observa o moribundo de longe, interessantíssimo.
Se eu estivesse no Brasil, morreria de depressão. À distância em que estou,
a melancolia do declínio se torna quase uma experiência estética.
Vou lhes dar só um exemplo de como a esquerda está adiantada na
conquista de seus objetivos e a direita, ou o que resta dela, ainda nem
começou a se dar conta do estado de coisas.
No fim dos anos 70, o presidente Jimmy Carter, fiel às diretrizes do CFR,
decretou que a melhor maneira de combater o avanço do comunismo na
América Latina era apoiar a “esquerda moderada”. Quem conhece a figura
sabe precisamente o que ele queria dizer com isso: tratava-se de fomentar o
comunismo alegando combatê-lo. Os brasileiros estão (até hoje) tão por
fora do que acontece nos EUA, que a simples hipótese de um presidente
americano pró-comunista ainda lhes parece absurda e fantasiosa. Falta-lhes
o conhecimento de pelo menos setenta anos de história. Ainda nem se
tocaram de que o braço-direito de Franklin D. Roosevelt em Yalta era um
espião soviético, de que na gestão Truman o Departamento de Estado foi
entregue a um advogado chiquíssimo cujo escritório representava
oficialmente o governo da URSS nos EUA, de que todas as acusações de
espionagem nos altos círculos lançadas pelo senador Joe McCarthy
acabaram sendo confirmadas (com uma única exceção) e de que, enfim, o
lugar mais seguro para os comunistas, depois da redação do New York
Times, é o governo americano. É horrível conversar com pessoas que,
precisamente por não saber nada, acreditam saber tudo. Principalmente
quando elas têm dinheiro bastante para pagar consultores que as conservam
na ilusão.
Graças à ação conjugada da ignorância e dos consultores, até hoje o
empresariado brasileiro acredita piamente na lenda esquerdista de que os
americanos deram o golpe de 64 e não sabem que a verdade é precisamente
o contrário, que o governo de Washington não ajudou em nada a criar o
regime militar mas sim foi o principal responsável pela sua destruição.
“Fortalecer a esquerda moderada” significava, desde logo, eliminar a
direita, radical ou moderada, como alternativa válida ao esquerdismo. A
morte da direita nacional foi decretada por Jimmy Carter, pelo CFR e pelas
fundações Ford e Rockefeller (peço que consultem os meus artigos “Por
trás da subversão” [ 14 ] e “Quem foi que inventou o Brasil” [ 15 ] para
esclarecimentos de ordem teórica). O programa foi cumprido à risca, com
sucesso total. Como a política de Washington para com a América Latina
não mudou substancialmente desde então (exceto parcialmente e por breve
tempo na gestão Reagan), e como a atuação das fundações bilionárias em
prol da esquerda continental se intensificou enormemente nas últimas
décadas, a direita brasileira não só perdeu qualquer apoio americano
residual mas ainda nem sequer se deu conta do tamanho dos inimigos que a
cercam e estrangulam hoje em dia.
A esquerda encobriu tão bem essas informações elementares, essenciais
para a compreensão do que se passa no Brasil, que até agora elas são
radicalmente ignoradas por quem mais precisaria delas. Refiro-me
especialmente ao empresariado. Os militares, por sua vez, não desconhecem
os fatos, mas, bem trabalhados por agentes de desinformação, interpretam
tudo às avessas: enxergam os Carters e os Clintons como agentes do
“imperialismo americano” (e não do globalismo anti-americano) e acabam
sendo levados pela tentação de se aliar à esquerda para se vingar das
humilhações sofridas pelas forças armadas nas últimas décadas. Os
aplausos dos homens de farda à recem-constituída “Comissão de Defesa das
Forças Armadas” – mais um ardil da esquerda inventado para integrar as
nossas tropas na revolução chavista – mostra que o horizonte de consciência
dos nossos militares, pelo menos os de comando, é tão estreito quanto o do
empresariado.
Entre a esquerda e a direita, no Brasil, não há só uma monstruosa
desproporção de forças: há um desnível de consciência imensurável. De um
lado, informação abundante e integrada, intercâmbio constante,
flexibilidade estratégica, conhecimento e domínio dos meios de ação. Do
outro, fragmentos soltos mal compreendidos, amadorismo bem pago,
opiniões arbitrárias e bobas voando para todo lado, desperdício das últimas
energias em esperanças eleitorais insensatas e projetos “anti-corrupção”
ideologicamente inócuos, facilmente absorvidos e instrumentalizados pela
própria esquerda. Os esquerdistas absorveram profundamente o preceito de
Sun-Tzu: conhecer o inimigo melhor do que ele conhece você. A esta
altura, o general chinês, se consultado por algum direitista brasileiro
interessado em “soluções”, responderia: “Não converso com defuntos.” Por
que eu deveria ser menos realista que Sun-Tzu?
A direita não está somente esmagada politicamente sob as patas da
esquerda. Está dominada psicologicamente por ela, ao ponto de repelir com
ojeriza a simples hipótese de fazer algo de efetivo contra a adversária.
Exemplo? Façam a lista de todas as ONGs, departamentos do governo,
cátedras universitárias, empresas de produções artísticas e órgãos de mídia
empenhados, há trinta anos, em investigar, divulgar e ampliar até dimensões
extraplanetárias os crimes reais e imaginários da “direita”. A quantidade de
dinheiro e mão-de-obra envolvida nisso é incalculável. Agora
experimentem ir falar com algum empresário soi disant liberal ou
conservador, e sugiram ao desgraçado fundar uma ONG, mesmo
pequenininha, para informar o público sobre torturas e assassinatos de
prisioneiros políticos em Cuba, sobre os feitos macabros das Farc e do
MIR, sobre as conexões entre esquerdismo e narcotráfico. A resposta é
infalível: ou o sujeito rotula você de extremista, de louco, de fanático, ou
desconversa dizendo que não se deve tocar em assuntos indigestos, que é
mais bonito circunscrever-nos a assuntos inofensivos de economia e
administração. Se um dos lados tem o monopólio do direito de fazer a
caveira do outro, e o outro ainda reconhece esse monopólio como legítimo e
inquestionável, a briga já está decidida. A própria direita concede à
esquerda o direito de matar, torturar, ludibriar, e ainda posar de detentora
exclusiva das mais altas qualidades morais. Depois disso, que alternativa
resta aos partidos direitistas, senão tornar-se subseções dos de esquerda?
Vejam o PFL. Esse partido, que um dia chegou a ter alguma perspectiva de
futuro, se autodestruiu mediante sucessivas alianças com a “esquerda
moderada” tucana. Em vez de afirmar sua independência, de reforçar sua
ideologia, de criar e expandir a militância, preferiu dissolver-se em troca de
carguinhos que só lhe davam o poder de fazer o que o sócio mandasse. A
experiência de mais de uma década não lhe ensinou nada. Continua
ingerindo doses cada vez maiores do remédio suicida.
Querem soluções? Elas existem, mas os homens influentes deste país, tão
logo acabem de ler a lista, já vão querer atenuá-las, adaptá-las ao nível de
covardia e preguiça requerido para ser direitistas “do bem” ou então diluí-
las em objeções sem fim até que se transformem nos seus contrários, mui
dialeticamente.
Se querem saber, essas soluções são as seguintes:
1. Aceitar a luta ideológica com toda a extensão das suas conseqüências.
Não fazer campanhas genéricas “contra a corrupção”, salvando a cara do
comunismo, mas mostrar que a corrupção vem diretamente da estratégia
comunista continental voltada à demolição das instituições.
2. Criar uma rede de entidades para divulgar os crimes do comunismo e
mostrar ao público o total comprometimento da esquerda atual com aqueles
que os praticaram. A simples comparação quantitativa fará o general
Pinochet parecer Madre Teresa.
3. Criar uma rede de ONGs tipo media watch para denunciar e criminalizar
a desinformação esquerdista na mídia nacional, a supressão proposital de
notícias, a propaganda camuflada em jornalismo.
4. Desmantelar o monopólio esquerdista do movimento editorial,
colocando à disposição do público milhares de livros anticomunistas e
conservadores que lhe têm sido sonegados há quatro décadas.
5. Formar uma geração de intelectuais liberais e conservadores habilitados
a desmascarar impiedosamente os trapaceiros e usurpadores esquerdistas
que dominaram a educação superior e os órgãos de cultura em geral.
6. Formar e adestrar militância para manifestações de rua.
7. Durante pelo menos dez anos enfatizar antes o fortalecimento interno do
movimento do que a conquista de cargos eleitorais.
8. Criar um vasto sistema de informações sobre a estratégia continental
esquerdista e suas conexões com os centros do poder globalista, de modo a
esclarecer o empresariado, os intelectuais e as Forças Armadas.
Essas são as soluções. Tudo o mais é desconversa. Ou os brasileiros fazem
o que tem de ser feito, ou, por favor, que parem de choradeira. Que
aprendam a morrer com decência. Se o Brasil cessar de existir, ninguém no
mundo vai sentir falta dele. E se todos os brasileiros não inscritos no PT, no
PSOL, na CUT e similares entrarem na próxima lista de falecidos do Livro
Negro do Comunismo, talvez só eu mesmo ache isso um pouco ruim. Em
todo caso, o fim do Brasil não vai abalar as estruturas do cosmos. Os
esforços da direita nacional para a conquista da perfeita inocuidade estão
perto de alcançar o sucesso definitivo. Quem em vida se esforçou para não
fazer diferença, não há de fazer muita depois de morto.
Se escrevo essas coisas no jornal da Associação Comercial, faço-o com
dupla razão, porque vejo o esforço dessa entidade para fazer alguma coisa
com bravura num país onde todo mundo está procurando um lugarzinho
para se esconder em baixo da cama e até a mulher do presidente já tratou de
se garantir com um passaporte italiano. Assisto aos vídeos daqueles
combatentes reunidos no seminário “Liberdade, Democracia e o Império
das Leis”, e me pergunto: Cadê o resto do país? Cadê os donos da mídia,
que lambem os sapatos dos comunistas aos quais entregaram suas redações?
Cadê os banqueiros, que têm um orgasmo a cada novo aumento dos
impostos e sabem que lucram com a destruição da liberdade, da segurança,
das leis? Imaginam por acaso que trogloditas capazes de depredar o
Congresso vão, miraculosamente, respeitar amanhã as sedes dos bancos
privados? Cadê os homens da indústria, que estão de quatro, sem fôlego, e
ainda insistem em bajular seus algozes? Cadê a Igreja Católica – ou a
entidade que ainda leva esse nome –, autotransfigurada em órgão auxiliar
do Foro de São Paulo? Cadê a tal “classe dominante”, cuja única ocupação
nas últimas décadas é deixar-se dominar? Cadê os militares, cujo mais alto
sonho de glória parece ser a aposentadoria sob as asas do Estado
previdenciário socialista? Pergunto isso ao vento, e a resposta vem em outro
verso de Manuel Bandeira:
“Estão todos dormindo, dormindo profundamente.”

19 de junho de 2006

[ 14 ] Acima, neste livro.


[ 15 ] Ver em http://www.olavodecarvalho.org/semana/060611zh.html.
A luta dos monstros

Q
UE TAL DESCANSAR POR UNS INSTANTES DO CAOS político nacional,
contemplando o caos intelectual do mundo? Quem sabe um breve
rodeio pela confusão alheia não acabará esclarecendo um pouco a
confusão local?
Semanas atrás, a TV educativa estatal americana PBS, fazendo eco a uma
declaração conjunta de 67 sociedades científicas, proclamou que
“praticamente todos os cientistas do mundo acreditam na teoria da
evolução”. Poucos dias depois, seiscentos cientistas, pertencentes a essas
sociedades e a outras tantas, divulgaram um manifesto dizendo que não
acreditavam nessa teoria de maneira alguma.
O debate, evidentemente, já não é mais científico: é político, é ideológico.
Carl Schmitt definia o reino da política como aquele campo de conflitos em
que nenhuma arbitragem racional é possível, só restando a cada um dos
contendores reunir os “amigos” contra os “inimigos”. O número de
partidários de cada corrente e a manifesta inexistência de critérios de
arbitragem aceitos por ambos os lados mostram que a disputa de
evolucionistas e anti-evolucionistas é política, nada mais que política. No
confronto, a vantagem institucional está com os primeiros. Eles dominam a
maior parte dos órgãos de pesquisa e ensino, têm o apoio dos governos e o
respaldo da grande mídia. Os segundos, em minoria, têm uma militância
mais ativa e vêm logrando abrir espaços que, trinta anos atrás, pareciam
definitivamente conquistados pelo adversário. Mas ainda estão longe de
obter o que mais querem: que suas objeções sejam ensinadas nas escolas,
junto com os argumentos evolucionistas. Se a evolução fosse uma teoria
científica, seu próprio ensino abrangeria necessariamente o estudo dessas
objeções. Mas os evolucionistas não se contentam com isso: querem que
sua doutrina seja universalmente proclamada um “fato”, uma verdade
terminal cuja contestação, em nada ajudando o progresso do conhecimento,
deve ser suprimida como uma provocação intolerável, uma heresia, um
crime.
Intelectualmente, os anti-evolucionistas têm um trunfo notável. Ao
contrário do que sucede na arte militar, onde a batalha defensiva é mais
fácil do que a ofensiva, nos confrontos de doutrinas o atacante entra em
campo com vantagem: contra qualquer teoria que pretenda ter autoridade
explicativa universal, um único exemplum in contrarium, devidamente
confirmado, é de uma força explosiva ilimitada – e contra o evolucionismo
esses exemplos são tantos quantas as formas intermediárias, infinitas em
princípio, faltantes para provar a evolução contínua de uma única espécie
animal. Durante quase um século o evolucionismo conseguiu escapar dessa
dificuldade letal por meio de dois expedientes: forjar criaturas
intermediárias, vendendo-as como provas científicas, e alegar a inexistência
de teorias concorrentes. Mas, com o primeiro desses truques, expôs-se ao
ridículo, e com o segundo atraiu inevitavelmente a objeção de que o
desconhecimento da verdade não é um argumento válido em favor da
mentira.
Enquanto se mantiveram numa posição puramente crítica, os inimigos do
evolucionismo podiam se considerar intelectualmente invencíveis, mas isso
não os satisfazia, porque a crítica não tem sobre a psicologia das massas o
poder sugestivo que têm as crenças afirmativas, mesmo falsas. Enquanto o
anti-evolucionismo se refugiava na torre-de-marfim das superioridades
incompreendidas, seu adversário, incapaz de fornecer em seu próprio favor
senão indícios que eram invariavelmente impugnados por outros indícios,
conseguia no entanto um sucesso estrondoso como “concepção do mundo”,
como mito fundador do moderno Estado leigo – seja comunista ou
democrático. À medida que dinossauros e antropóides emergiam dos livros
de paleontologia para os filmes de ficção científica, a imaginação popular
tornou-se decisivamente “evolucionista”, e tanto mais satisfeita com a sua
visão mitológica quanto mais persuadida de falar em nome da “ciência” e
não da mera “fé” (no sentido mais vulgar e estereotipado destes termos).
Um dia, cansados de buscar no isolamento um abrigo contra os risos fáceis
do populacho, os anti-evolucionistas decidiram trocar a certeza intelectual
da crítica pela construção de um mito científico reativo, que hoje opõem ao
evolucionismo sob o título de “design inteligente”. Segundo essa doutrina,
o universo é coerente e harmônico demais para ter-se formado pela mera
conjunção fortuita de causas físicas: deve haver uma intenção, um propósito
consciente por trás de tudo. Tanto quanto o próprio evolucionismo, o design
inteligente não é uma teoria científica: é uma concepção do mundo, que
mistura a elementos de argumentação científica requintada o atrativo
nostálgico da fé religiosa, do mesmo modo que o evolucionismo mistura
pedaços de boa ciência com o apelo quase irresistível do ódio anti-religioso,
portador de ofertas sedutoras como a liberação sexual, o casamento gay, a
satisfação de todas as exigências do feminismo enragé e a distribuição
estatal de drogas para os aficionados.
Quando Darwin ainda não existia nem como espermatozóide, Immanuel
Kant já havia notado que toda teoria evolutiva das espécies animais
esbarraria no problema das séries infinitas, insolúvel por definição. Os
evolucionistas não perceberam isso até hoje, mas não estão nem aí. Para o
seu nível de exigência intelectual, esse problema é demasiado “metafísico”.
Não por coincidência, a doutrina de seus adversários também tropeça num
problema “metafísico” para o qual eles não estão nem ligando. É que
nenhuma coleta de indícios físicos, por mais vasta e meticulosa, pode
provar a existência de um “sentido” por trás do que quer que seja. Se existe
um Deus criador infinitamente perfeito, bondoso e inteligente, Ele não pode
ter transmitido à criação senão uma parcela ínfima das Suas perfeições: o
exame do tecido do cosmos revelará sempre tantos indícios de ordem e
harmonia quanto de desordem e absurdidade. Ainda que os primeiros
sejam, em princípio, superiores em número, a prova final disso requereria o
conhecimento quantitativo integral de todos os fatos cósmicos sem exceção.
O “significado” está sempre para além da estrutura material do significante.
Se isso acontece na linguagem humana, não há razão para que seja diferente
na linguagem divina. O significado de um livro, por exemplo, não pode ser
alcançado pela análise físico-química do papel e da tinta, pela medição do
seu formato ou pelo desenho geométrico das letras. Ele não está “no” livro:
está na mente do autor e do leitor, unidos pela posse comum de
procedimentos de codificação e decodificação. O sentido é, por definição,
“transcendente”. Não pode ser apreendido pelo conhecimento anatômico,
fisiológico ou físico-químico da imanência.
O significado do cosmos está para além do cosmos, para além do espaço e
do tempo. Longe de poder ser demonstrado pela ordem racional da natureza
ou da história, ele tem de ser pressuposto para que a idéia mesma dessa
ordem racional se torne pensável. O filosofo americano Glenn Hughes,
nesse livro maravilhoso que é Transcendence and History (University of
Missouri Press, 2003), observa que, sem a idéia de um Deus transcendente,
a própria concepção de uma unidade da espécie humana – para não falar da
unidade da história – seria inalcançável por falta de um molde superior
unificante. O curso integral da história não pode provar ou desprovar Deus,
mas sem Deus não teríamos a visão de um curso integral da história. O
design inteligente não pode provar Deus porque Deus não pode ser
espremido para dentro do corpo imanente do cosmos. Por mais sinais da
Sua presença que se observem no universo, eles nunca provarão nada, pela
simples razão de que estarão sempre misturados a sinais da Sua ausência e
incomensurabilidade. Sto. Tomás já havia observado que a relação entre o
conhecimento do mundo e o conhecimento de Deus não é lógica, mas
analógica. A analogia é uma síntese ordenada de semelhanças e diferenças.
Para que o design inteligente provasse Deus, seria preciso que as
semelhanças engolissem as diferenças. O céu e a terra podem “celebrar” a
glória de Deus, mas não podem contê-la em si materialmente ao ponto de
tornar possível prová-la em laboratório.
Criando seu próprio mito científico, os críticos do evolucionismo
abdicaram da autoridade intelectual para poder concorrer com o adversário
no seu próprio terreno. Não resta dúvida de que com isso conseguiram
espaço na mídia, atenção de governos e algumas vitórias judiciais modestas
mas promissoras. Se isso ajudar a quebrar a carapaça dogmática de uma
doutrina que pretende continuar científica sem admitir discussão científica,
o resultado pode ser proveitoso. Mas, se for para reduzir o sentido do
cosmos a um elemento do próprio cosmos, então o efeito último da
empreitada será levar a humanidade para mais longe de Deus do que jamais
poderia levá-la o materialismo puro e simples. Proclamar a divindade da
imanência seria encerrar definitivamente a humanidade na prisão cósmica,
seria fechar a porta dos céus.
A seriedade aparente do debate entre os evolucionistas e os adeptos do
design inteligente revela, na intelectualidade acadêmica mundial – para não
falar da mídia “cultural” –, uma assustadora incapacidade para a análise
filosófica e uma confiança excessiva na autoridade da “ciência” como
árbitro final de todas as disputas humanas.
Que é uma “ciência”, afinal? É um esforço contínuo e sistemático de
reduzir a uns quantos princípios explicativos comuns, por meio de
procedimentos de verificação consensualmente admitidos, os fenômenos
observados dentro de um campo de realidade recortado segundo o que, de
início – e antes de que se pudesse ter qualquer prova disso –, parecia ser a
esfera de validade possível desses mesmos princípios. Resultado: quando a
observação empírica não confirma os princípios, quase nunca se pode estar
seguro de que não virão a fazê-lo amanhã ou depois; quando confirma, é
muito difícil garantir que o campo não foi recortado de propósito para
produzir artificialmente esse efeito. Na melhor das hipóteses, uma boa
descoberta científica é um meio-termo sensato entre uma aposta no escuro e
uma profecia auto-realizável. Buscar esse meio-termo é um desafio que está
acima das forças de qualquer ciência em particular e transcende os limites
de toda “metodologia científica” usual. Depende inteiramente da análise
filosófica, para a qual a maioria dos cientistas de ofício não recebe qualquer
treinamento apreciável. Sem o filtro dessa análise, a “ciência” não é uma
atividade intelectualmente muito séria. Com ele, ela é freqüentemente
obrigada a admitir que seu trabalho consiste num estudo cada vez mais
preciso de objetos cada vez mais hipotéticos, evanescentes e inapreensíveis.
Se pessoas dedicadas a um empreendimento tão incerto aparecem de
repente enrijecidas em suas posições e inflamadas em suas crenças como se
fossem teólogos medievais a disparar anátemas recíprocos, isso se explica
pela mesma causa psicológica que incendiava as disputas medievais. Um
teólogo do século XII, como um cientista de hoje, não era um simples
buscador de conhecimento: era ao mesmo tempo o representante do
establishment, do poder cultural supremo. O poder não discute, não
dialetiza: afirma e dá ordens. Dizer que ele reprime as contradições é
pouco: ele nega a existência delas. Seu ideal é tornar-se indiscernível da
estrutura da realidade, personificar a força do inevitável, a lei da natureza
ou a vontade de Deus. Quando o homem incumbido disso é um intelectual,
um letrado, logo ele se vê prisioneiro de um conflito interior dilacerante. De
um lado, a consciência que ele tem das ambigüidades, das contradições, das
perguntas insolúveis. De outro, a necessidade de fingir em público uma
certeza inabalável. O dilema é geralmente resolvido pelo expediente
neurotizante de exagerar histericamente a ostentação de certeza. Teólogos
defendendo aos gritos hipóteses que só poderiam ser confirmadas por uma
nova revelação divina faziam exatamente o mesmo que os zelotes
evolucionistas fazem hoje, ao demitir da profissão acadêmica o adversário
propugnador de uma objeção para a qual sabem perfeitamente que não têm
nenhuma resposta definitiva. Transpondo o debate da esfera racional para as
decisões de autoridade, encontram uma solução política para um problema
que, na origem, era intelectual e científico.
A brutalidade crescente das proclamações dogmáticas evolucionistas não é
mera coincidência: ela vem junto com a instauração progressiva de uma
Nova Ordem global cujo discurso legitimador é eminentemente de ordem
“científica”. Prepotência globalista e autoritarismo científico são uma só e
mesma coisa. A pretensão ao poder mundial absoluto tem de passar pelo
desafio preliminar de dar à profissão científica uma autoridade final
comparável à dos concílios. Por exemplo, é preciso impor à população a
mentira idiota de que a falta de provas científicas de alguma coisa é prova
cabal da inexistência dessa coisa. Esse preceito, para se sustentar de pé,
exige a anuência geral a dois axiomas psicóticos: (1) a ciência já sabe tudo;
(2) nada do que ela vier a descobrir amanhã pode impugnar o que ela diz
hoje. A autoridade da ciência para afirmar a inexistência do que ela
desconhece baseia-se na negação radical do próprio conceito de ciência,
mas isso não impede que o apelo a essa autoridade tenha, na perspectiva do
establishment global, uma validade jurídica inapelável. Quando um sujeito
vai para a cadeia por ter dito que o homossexualismo é doença, a lei que o
pune é inteiramente baseada no pressuposto de que, não havendo provas
científicas do que ele diz, ele não tem o direito de conjeturar em voz alta
que essas provas possam vir a ser encontradas amanhã ou depois.
A situação torna-se ainda mais desesperadoramente absurda quando a
autoridade da ignorância científica é alegada como prova de algo que, por
definição, está excluído do campo de investigação dessa mesma ciência. A
embriologia, por exemplo, confessa não ter como distinguir entre um feto
humano e um feto de chimpanzé aos três meses de gestação. Isso prova uma
limitação da ciência embriológica, e não do potencial que homens e
chimpanzés, já desde o início da gestação, têm para continuar a
desenvolver-se e diferenciar-se depois de encerrado o processo
embriológico, isto é, depois de saírem da alçada da embriologia. Não
obstante, a autoridade da embriologia é usada como prova de que abortar
um feto humano até os três meses não é mais grave do que fazer o mesmo
com um macaquinho da mesma idade – com a diferença de que provocar o
aborto de um macaquinho dá cadeia, sem que se possa alegar nem mesmo
que ele é um feto humano de três meses, descartável como uma camisinha
usada. Mutatis mutandis, a antropologia exclui do seu campo o estudo das
diferenças de valor entre as várias culturas, mas sua autoridade é em
seguida usada pelos relativistas e multiculturalistas como prova de que
essas diferenças não existem. Em suma: cada ciência fica tanto mais
habilitada a emitir sentenças finais no debate público quanto mais o assunto
do debate é alheio ao seu domínio de estudos.
Entre os anos 20 e 60 do século XX, as discussões entre evolucionistas e
anti-evolucionistas eram polidas como qualquer outra discussão acadêmica,
contrastando com as inflamadas disputas científico-teológicas oitocentistas.
A Nova Ordem mundial, na sua ambição de suprimir as tradições religiosas
ou subjugá-las a uma nova religião de cunho gnóstico improvisada por
planejadores sociais, adotou o evolucionismo como uma de suas principais
armas de ataque. Daí que o debate, subitamente politizado, tenha se tornado
ainda mais feroz do que era no século XIX. Mas nem tudo é ordem e
coerência no projeto globalista. Sua afeição nominal ao compromisso
democrático dá margem a que os inimigos do evolucionismo também se
organizem politicamente para impor a vigência do seu próprio mito.
A luta formidável dos poderes mitológicos repete a imagem bíblica de
Leviatã e Behemoth, o crocodilo da rebelião que se agita no fundo das
águas e o hipopótamo da ordem divina que o esmaga sob seus pés. Na
Bíblia, Deus aponta de longe as duas criaturas ao perplexo Jó, advertindo-
lhe que ambos são monstros temíveis. Se confinado no interior da alma, o
conflito espiritual poderia levar à sabedoria. Materializado sob a forma dos
poderes políticos que se entrechocam no cenário da história, torna-se fonte
de sofrimento e obscuridade sem fim.
26 de junho de 2006
Da ignorância à mentira

U
M SIMPÁTICO LEITOR ENVIOU O MEU ARTIGO “Dormindo Profundamente”
a um círculo de empresários de bastante peso em São Paulo, e
recebeu de um deles, em resposta, um compêndio de chavões pueris,
irresponsáveis e presunçosos cuja autoridade nesse meio basta, por si, para
explicar a desgraça do Brasil, mesmo abstraída a obra petista de destruição.
A carta merece ser examinada porque reflete menos a opinião de um
indivíduo do que um conjunto de crenças compartilhadas por uma parcela
ativa da classe empresarial, crenças que contrariam flagrantemente a
realidade mas são reforçadas todo dia pela mídia bem-pensante. Sócrates
dizia que a ignorância é a raiz de todos os males. Mas o ignorante pobre só
faz o mal a si mesmo, no máximo a mais meia dúzia em torno. Transformar
a ignorância em autoridade pública é empreendimento dispendioso: o
sujeito tem de pagar muito bem para que as pessoas ouçam com reverência
bobagens que sem isso nem mereceriam atenção. Groucho Marx dizia a um
desses opinadores milionários: “É preciso ter mesmo muito dinheiro, para
sobreviver com essa sua cabeça.”
Mas a ignorância, como tudo o mais nesta vida, não permanece estável:
evolui. Nasce como pura falta de conhecimentos, mas transmuta-se em
incapacidade e por fim em recusa absoluta de adquiri-los, mesmo quando
disso dependa a sobrevivência do interessado. Começa como um estado
natural e transforma-se numa requintada forma de perversidade.
Mais ainda: se o ignorante ocupa um lugar de destaque na sociedade, se ele
é o que hoje se chama um “formador de opinião”, então deve ter à mão um
estoque de declarações requeridas para as diferentes ocasiões de uma vida
social variada: jantares, reuniões de diretoria, entrevistas na mídia,
discursos de posse, homenagens etc. Sem disposição ou paciência para criar
opiniões mediante estudo, só lhe resta preencher as lacunas voluntárias do
conhecimento com os produtos espontâneos da sua fantasia pessoal. Não
sendo, porém, verossímil que a mente imune ao conhecimento seja ao
mesmo tempo dotada de grande vivacidade imaginativa, o mais provável é
que o sujeito não crie suas fantasias, mas as absorva passivamente do
falatório em torno, repetindo-as como se fossem suas e legitimando-as com
a autoridade da sua posição na sociedade. É assim que milhares de mentiras
tolas, vindas de uma multidão de pequenos fofoqueiros e desinformantes, se
condensam num sistema de cretinices respeitáveis, oficiais, cuja
contestação se expõe à repulsa e ao desprezo gerais.
Em todo caso, estou muito grato ao palpiteiro, por ter resumido em poucos
parágrafos o conjunto das lendas e ilusões que entorpecem boa parte da
nossa classe empresarial e a incapacitam para uma reação eficaz ao presente
estado de coisas.
Ele começa sua exposição apelando a dois chavões consagrados: “Tão
atrasado e fora de contexto quanto qualquer projeto revolucionário
marxista em qualquer parte do mundo, é o temor e a neurose permanente
em combatê-los.” Em outras palavras: (1) O anticomunismo está fora de
moda. (2) Ele é um sintoma neurótico.
Discutir com o ignorante é uma das tarefas mais difíceis deste mundo. As
razões do debatedor inteligente, culto, são transparentes: exibem-se no
conteúdo do seu discurso, porque ele mesmo as pensou e as colocou ali. As
do ignorante, sendo desconhecidas dele próprio, vêm de uma atmosfera
social difusa, entre obscuras associações de idéias, automatismos de
linguagem e mil e um pressupostos mal conscientizados. Desencavá-las é
como analisar um sonho. Você tem de mergulhar fundo no inconsciente
coletivo para descobrir de onde o cidadão tirou os motivos de crer naquilo
que afirma.
A origem das duas idéias expostas é diferente. Uma espalhou-se pela mídia
como reação imediata do triunfalismo liberal ante a queda da URSS. A
outra é bem anterior: é um slogan inventado pela KGB nos anos 40 e tão
intensamente repetido ao longo das décadas que acabou por disseminar
entre os próprios liberais e conservadores a inibição de declarar-se e mais
ainda de ser anticomunistas. São, ambas, puras expressões emotivas, que
nem mesmo podem ser discutidas como juízos de realidade. A primeira
expressa um desejo, a segunda uma autodefesa preventiva contra a ameaça
do riso e da chacota, propositadamente espalhada no ar pelos próprios
inventores do slogan.
No primeiro caso, o que tenho a observar é que a moda local está um tanto
atrasada em relação ao debate de idéias nas áreas mais civilizadas do
planeta. No ano 2000, Jean-François Revel já publicava La Grande Parade.
Essai sur la Survie de l’Utopie Socialiste (Paris, Plon), expressando a
tomada de consciência dos liberais franceses de que o movimento
comunista, aparentemente defunto em 1990, se havia reerguido mais
poderoso do que nunca, organizado mundialmente e com uma rede de
apoios muito mais vasta do que jamais tivera. Esta constatação é
uniformemente compartilhada por todos os estudiosos do assunto nos EUA
e na Europa. A bibliografia a respeito é esmagadora, mas, no Brasil, como
ninguém lê nada, ainda se pode alegar manchetes do Economist de quinze
anos atrás como se fossem a última palavra. A ignorância tem seu tempo
histórico próprio, imune aos fatos do mundo.
Quanto à difamação do anticomunismo como “neurose”, sua eficácia
paralisante tende a diminuir no resto do universo, à medida que a direita
européia e americana descobre que foi vítima desse engodo para muito além
do que poderia admitir a honorabilidade da sua inteligência. Em 1956, o
preconceito contra o anticomunismo fez com que os EUA aceitassem Fidel
Castro como um grande líder democrático, ajudando-o a consolidar-se no
poder. Em 1973, quando Henry Kissinger recebia o Prêmio Nobel da Paz
por ter retirado as tropas americanas no Vietnã, quem dissesse que o efeito
da festejada obra diplomática seria o genocídio da população civil era
objeto de riso. Três milhões de cadáveres depois, é preciso muita teimosia
para não enxergar que a pax kissingeriana ocasionou a tomada do Vietnã do
Sul pelo Vietnã do Norte, a ascensão de Pol-Pot no vizinho Camboja e
todos os horrores que transcenderam em muito os males da guerra. Em
2002, o analista estratégico Constantine Menges, do Hudson Institute, foi
alvo de toda sorte de gracejos maliciosos na mídia nacional por ter dito que
a América Latina caminhava para a formação de um eixo anti-americano.
Hoje o eixo está visível diante de todos, e aqueles que riram de Constantine
Menges já tiraram a máscara, confessando que queriam apenas o silêncio e
a discrição necessários para chegar exatamente a isso. O que o cidadão nos
propõe é cairmos de novo no mesmo truque, só para não corrermos o risco
temível de sermos alvo de gozações comunistas. Não há nada mais ridículo
do que o medo do ridículo.
Prossegue o indigitado:
Clinton e Jimmy Carter como agentes do comunismo internacional??? A criação de teorias
conspiratórias sempre desperta curiosidade e por mais absurdas e não fundamentadas que sejam,
apenas por contrariarem radicalmente o senso comum e o que é de domínio público, já conferem
a seus autores uma aura de inteligência superior ou informação privilegiada...
Deixo de comentar a elipse enganosa que, para gerar uma falsa impressão
de comicidade, substitui “agentes do CFR” por “agentes do comunismo”. É
um tipo de truque estilístico que também remonta ao jornalismo comunista
dos anos 40. Seu contínuo poder de impregnação na linguagem dos próprios
adversários nominais do comunismo é uma das glórias da estupidez
humana.
Também nada digo dos três pontos de interrogação. Seria realmente o
cúmulo da genialidade retórica, destruir um edifício de fatos e documentos
mediante um simples aceno ortográfico. O sujeito acha que conseguiu isso.
Só falta chamar a mãe para contemplar o filhinho em seu momento de
triunfo. A vaidade da ignorância é um abismo de miséria humana.
Quanto à depreciação do meu artigo como “teoria conspiratória”, era
infalível e já estava prevista nele mesmo. Chavões têm sobre certas
mentalidades o poder persuasivo de uma revelação divina. Muito
significativamente, após alegar a “falta de fundamentos” da minha
exposição, o indivíduo apresenta os da sua: “o senso comum e o que é de
domínio público”. Muito bem: contra informações diretas da fonte,
prevalece a autoridade do que a patota diz e do que sai no jornal. Mais
explícita confissão de credulidade beócia não se poderia esperar. Pergunto-
me o que pode ser de um país onde a liderança empresarial se deixa guiar
por gente assim, inflada de desprezo pela inteligência e pelos estudos sérios.
Foi essa mentalidade, afinal, que elegeu Lula. Não vejo como ela pode tirá-
lo do poder que lhe deu.
Baseado no que lê na Folha e no Globo, o indivíduo sentencia: “Acredito
sinceramente que estamos em outro momento histórico, sem espaço para
qualquer coisa semelhante a uma revolução esquerdista...” Ele deveria
informar isso ao Fórum Social Mundial, ao Foro de São Paulo, à
Organização de Cooperação de Shangai, à rede mundial de ONGs ativistas
e ao movimento terrorista internacional. Em todos esses lugares prevalece a
crença oposta: a de que a direita está desmantelada politicamente por toda
parte, exceto nos EUA, e de que nunca o projeto da revolução mundial foi
tão viável como neste momento. Evidentemente, as atas e documentos
dessas entidades, suas discussões internas e as análises feitas por seus
estrategistas não saem no Jornal Nacional. Muito menos nas novelas. São
um material difícil, tedioso, que só interessa aos envolvidos ou a estudiosos.
Se depender de líderes como o autor dessa carta, a classe empresarial jamais
conhecerá os planos que seus inimigos estão fazendo contra ela.
Em seguida o sujeito parte para a negação explícita de que os líderes
articulados no Foro de São Paulo – Lula, Chavez, Evo Morales, o próprio
Fidel Castro – sejam agentes de uma estratégia esquerdista comum. No seu
entender, são apenas tipos singulares agindo em função de preferências,
idiossincrasias e interesses pessoais. Chavez, por exemplo:
Há muito pouco de ideológico nele, sua orientação é apenas e tão somente populista e seu
projeto é pessoal... Ele sabe que a adoção de qualquer discurso ou convicção ideológica mais
sólida (principalmente a comunista) colocariam seu governo a perigo, reduziriam seu apoio e
colocariam sua própria figura em segundo plano... Por isso adota como discurso ideológico o
mais óbvio e vazio, mas tão caro aos pobres latino-americanos: o anti-americanismo. Sua
semelhança com Lula? Total. Chaves, Lula, Dirceu e companhia leram Maquiavel de cabo a
rabo, e aí reside o problema... Não há nem em Lula nem no PT mais nada de ideológico.
Acreditar no contrário, é cair na armadilha criada por eles de tentar implicitamente justificar, sob
argumentos ideológicos, a bandalheira praticada. O ‘Projeto’ não é à esquerda ou à direita. É de
perpetuar-se no poder, pura e simplesmente. Ideologia tem o Bruno Maranhão, que está preso.
Ideologia tem a Heloisa Helena e a Luciana Genro, que fundaram um partido nanico...
Cada uma dessas opiniões pode ser rastreada até suas origens na própria
mídia esquerdista que as pôs a circular como pura desinformação. Desde
logo, a identificação, muito caracteristicamente pequeno-burguesa, de
“ideologia” com “idealismo” ou “esperança utópica” em oposição a
“interesses”, “maquiavelismo” e “desejo de poder”. Todo esquerdista com
QI superior a 12 sabe que essa identificação é falsa, mas por isso mesmo
boa para ser espalhada entre direitistas idiotas. Ideologia, segundo a
tradição marxista, é precisamente um vestido de idéias encobrindo
interesses político-econômicos determinados. Longe de opor-se aos
interesses, ela é seu instrumento e é concebida para atendê-los, para
conquistar e ampliar o poder. Se o adversário boboca vê uma oposição
inconciliável onde o esquerdista sabe haver uma unidade dialética, tanto
melhor para este último: pode bater com duas mãos num adversário que só
enxerga uma de cada vez.
Mais ingênuo ainda é tentar explicar tudo pelo maquiavelismo pessoal dos
líderes esquerdistas, como se a estratégia da revolução gramsciana na sua
totalidade não fosse ela própria baseada em Maquiavel. Lula, Chávez e
Dirceu, se chegaram a ler Maquiavel, o leram através de Gramsci, e sabem
que nas condições do mundo moderno o maquiavelismo individual nada
pode: o novo “Príncipe” é o partido revolucionário. As dimensões
majestosas da corrupção petista, superando incomparavelmente os delitos
avulsos de políticos individuais, são a melhor prova disso.
Quanto à crença de que Chavez ou Lula tenham estratégias pessoais
independentes, inconexas entre si, é uma bobagem descomunal que não
resiste ao mínimo confronto com os documentos. As atas do Foro de São
Paulo atestam abundantemente a estratégia comum – e a unidade dessa
estratégia se torna visível nos momentos em que sua realização ameaça
estender até à ruptura o conflito de interesses nacionais, como se viu no
caso da Petrobrás, no dos lavradores brasileiros expulsos da Bolívia ou nos
tiroteios entre as Farc e o Exército nacional. Nada disso, que normalmente
resultaria em guerra, abala a firmeza dos acordos estratégicos firmados no
Foro de São Paulo. Mais unidade que isso, só na fórmula 1 = 1.
O diagnóstico flagrantemente errado produz uma terapêutica ainda mais
alienada da realidade. Contra a marcha avassaladora do esquerdismo
continental, o homenzinho propõe o moralismo apolítico, a recusa
obsequiosa de atacar a esquerda como tal, a persistência no erro já velho de
uma década: “melhor seria se a direita conseguisse fazer um contraponto
moral àquilo que hoje está aí, o que não consegue porque está contaminada
até a alma de interesses espúrios e associada a práticas políticas
abomináveis”.
Mas se a falta de ideologia, o oportunismo sujo e o império dos interesses
pessoais fizeram tão bem ao PT, por que teriam sido a causa do fracasso do
PFL? Por puro instinto lógico, toda criança de dez anos percebe isto: um
fator que permanece constante e idêntico em dois processos opostos não
pode ser a causa da sua diferenciação. Não é interessante que o apóstolo do
“senso comum” o maltrate tão desapiedadamente ao exigir que ele engula
como verdade tranqüila uma contradição intolerável?
Sugerir que a direita, para vencer o PT, se dedique a novos e ampliados
rituais de auto-sacrifício purificador é querer que ela entregue de bandeja
mais algumas cabeças de líderes, como já entregou tantas, na inútil e
covarde esperança de assim escapar às críticas maliciosas de petistas que
enquanto isso roubavam e delinqüiam incomparavelmente mais que os
acusados. Basta comparar as miúdas ilicitudes de um Collor à grandeza
imperial do Mensalão ou à violência do caso Celso Daniel para
compreender que o apelo à penitência moralista só serve para tornar a
direita uma vítima inerme da “guerra assimétrica”, onde um dos lados tem a
obrigação de se prosternar no altar da moralidade, enquanto o outro, quando
ameaçado por denúncias, aproveita a ocasião para buscar fortalecer sua
unidade na defesa comum contra o atacante. A direita nacional começou a
destruir-se quando, após ter depositado suas melhores esperanças em
Fernando Collor, correu para ajudar o inimigo comum a destruí-lo, mesmo
antes de ter contra o suspeito qualquer prova juridicamente válida. Com
anos de antecedência, em 1993, expliquei que a “Campanha pela Ética na
Política” tinha sido concebida exatamente para isso, que qualquer
concessão à versão brasileira da “Operação Mãos Limpas” (ela própria um
truque esquerdista sujo) seria apenas cumplicidade suicida com a estratégia
mais perversa e astuta já adotada pela esquerda nacional ao longo de toda a
sua existência. Collor, mais tarde, foi absolvido pela Justiça, mas sua fama
de ladrão, criada pela esquerda, persiste inabalável, mesmo diante da
comparação com tudo o que de infinitamente pior veio depois. Para
conservá-la viva, a direita consiste em mentir contra si mesma e ainda se
oferece para humilhar-se mais um pouco diante do adversário.
Aí a ignorância se transcende, se transforma em apego irracional à
mentira. “Liberais” como o signatário dessa carta são a praga que debilita o
liberalismo e o impede de se tornar uma força política à altura dos desafios
colocados pela ascensão geral do esquerdismo. O serviço que ele presta à
esquerda é tão grande, que tornaria razoável a suspeita de tratar-se de um
agente provocador ou desinformante infiltrado, se fosse preciso essa
hipótese para dar razão de uma conduta que, no entanto, o amor patológico
à mentira basta para explicar perfeitamente bem.
O pior dos mentirosos não é aquele que mente uma vez, duas vezes, mil
vezes. Não é aquele que mente muito, quase sempre ou até mesmo sempre.
Não é aquele que mente tão bem que chega a se enganar a si próprio. É
aquele que, em prol da mentira, destrói tão completamente a sua própria
inteligência que se torna incapaz de perceber a verdade até mesmo quando
ele próprio, por desatenção ou inabilidade, a proclama diante de todos.
3 de julho de 2006
A carta dos militares

A
CARTA ENVIADA PELOS COMANDANTES das três Forças Armadas aos
líderes do Senado, divulgada pelo Alerta Total,[ 16 ] é decerto um
documento significativo, mas não só pela razão mais imediata
apontada pelo editor do site, Jorge Serrão: “Dá a impressão de ter vindo em
resposta sincronizada ao polêmico e censurado (pelas tevês)
pronunciamento do senador baiano Antônio Carlos Magalhães, no último
dia 6 de junho.”
O discurso veio da reação compreensivelmente indignada do senador ante
a invasão da Câmara Federal pelos agitadores do MLST. O trecho aludido
pelo jornalista é o seguinte:
Eu pergunto: as Forças Armadas do Brasil, onde é que estão agora? Foi uma circular do
presidente Castelo Branco, em março de 64, mostrando que o presidente da República não
poderia dominar o povo sem respeitar a Constituição, que deu margem ao movimento de 64. As
Forças Armadas não podem ficar caladas. Esses comandantes estão aí a obedecer a quem? A um
subversivo? Quero dizer, neste instante, aos comandantes militares, não ao ministro da Defesa
porque ele não defende coisa nenhuma: reajam, comandantes militares, reajam enquanto é tempo,
antes que o País caia na desgraça de uma ditadura sindical presidida pelo homem mais corrupto
que já chegou à Presidência da República.
É bem possível que esse apelo tenha influenciado os comandantes,
induzindo-os a mostrar ao presidente da República que as Forças Armadas
não estão de todo adormecidas. Mas a melhor maneira de analisar um
documento histórico não é conjeturar suas motivações subjetivas. É
desencavar do seu texto, por análise lógica, as premissas e conclusões
implícitas que necessariamente seus autores deveriam ter em mente para
poder escrever o que escreveram.
Nesse sentido, o trecho mais importante da carta é aquele segundo o qual,
dos quarenta denunciados por formar a quadrilha do Mensalão, “36 já
tinham sido autuados por nosso sistema de informações e pelo antigo
DOPS, como agitadores e até envolvidos com situações de corrupção e
roubos”, durante o regime militar.
É inverossímil que quem afirma isso não esteja consciente da seguinte
implicação imediata do que acaba de dizer: Partindo da premissa de que 36
delinqüentes praticaram juntos, durante décadas, crimes intrinsecamente
ligados a um projeto de subversão revolucionária continental, qual é a
possibilidade de que continuem a praticá-los como equipe por mero desejo
de enriquecimento pessoal e fora de toda ambição revolucionária? A
pergunta se torna ainda mais incontornável porque: (1) em vez de
desaparecer nas brumas do passado, aquele projeto sofreu um upgrade
formidável com a fundação do Foro de São Paulo e a rearticulação geral
que permitiu a ascensão dos grupos esquerdistas ao comando de várias
nações da América Latina; (2) esses grupos são os mesmos de antes, e
aqueles delinqüentes continuam ligados a eles como sempre estiveram.
Qual a possibilidade, então, de que os crimes agora denunciados sejam
“desvios” individuais da linha geral da esquerda, em vez da sua consecução
fiel pelos mesmos meios criminosos já usados com sucesso em outras
épocas? Logicamente falando, essa possibilidade é quase nula, e menor
ainda a probabilidade de que os signatários do documento não percebessem
que estavam afirmando implicitamente essa nulidade.
Tal como no passado, corrupção e subversão não são fenômenos
separados: são os dois braços da revolução continental. São os mesmos
braços que fomentaram a gandaia financeira e a anarquia política no
governo João Goulart; os mesmos que, derrubado o esquema janguista,
instalaram por toda parte o império dos atentados a bomba, dos assaltos a
bancos e dos seqüestros. Os mesmos de sempre, com algumas diferenças:
1. Em comparação com as dimensões majestosas do Foro de São Paulo, a
OLAS, Organização Latino-Americana de Solidariedade, que coordenava a
subversão continental na década de 70, era um clube de futebol de várzea.
2. Naquele tempo o narcotráfico ainda era incipiente e, na sua maior parte,
continuava sob o domínio de quadrilhas autônomas, depois organizadas em
cartéis. Agora até mesmo os cartéis desapareceram. Está tudo sob o
comando das Farc, o que é o mesmo que dizer: do Foro de São Paulo.
Ninguém cheira coca na América Latina sem contribuir para a revolução
continental.
3. Fora os recursos locais obtidos de atividades criminosas, as
organizações de esquerda recebiam ajuda clandestina dos partidos
comunistas da URSS e da China. Com a queda do regime soviético e a
abertura comercial da China, essa ajuda não cessou, mas legalizou-se e
ampliou-se através de empresas constituídas no Ocidente já no tempo de
Gorbachev, cujas ligações com a espionagem russa ou chinesa são
conhecidas genericamente, mas dificílimas de rastrear em cada caso
concreto. Mais ainda, desde os anos 50 o respaldo financeiro concedido
pelas fundações bilionárias à esquerda latino-americana cresceu
incalculavelmente.
4. Na década de 60, havia ainda um poderoso e organizado movimento
anticomunista internacional e nacional, cuja simpatia fluiu naturalmente
para a reação anti-Goulart. Hoje ele não existe mais. No ambiente de
hegemonia cultural esquerdista, o anticomunismo desapareceu como atitude
social legítima, castrando ideologicamente a “direita” e não lhe deixando
espaço senão para um discurso moralizante genérico e apolítico.
5. A Igreja Católica, que era a mais forte barreira ao avanço do
comunismo, tornou-se instrumento servil da propaganda esquerdista,
deixando a população incapaz de resistir ao engodo gramsciano que suga e
parasita em prol da política de esquerda o prestígio do cristianismo.
6. As próprias Forças Armadas, humilhadas e aviltadas, já começam a ver
com alívio as ofertas sedutoras do seu agressor que promete verbas e
tratamento digno em troca da sua adesão, camuflada ou ostensiva, à “guerra
anti-imperialista”.
Da análise do texto, pode-se concluir sem grande margem de erro que seus
signatários estavam conscientes da continuidade do processo revolucionário
e de sua ligação íntima e essencial com a expansão da criminalidade no
país. Quer o confessem ou não, eles sabem que não estão lidando com casos
avulsos de corrupção, mas com a destruição sistemática das leis e
instituições, condição para que o partido revolucionário se coloque acima
do Estado e o absorva. O que permanece em aberto é saber se estão
igualmente conscientes das diferenças acima apontadas. Essa questão é
vital. No seu discurso, o senador Magalhães equiparou o descalabro da era
Lula aos últimos meses do governo Goulart. A evocação é nítida na
expressão “república sindicalista”, então correntemente usada pelos
adversários para qualificar o governo. Seu uso, agora, denota o intuito de
reduzir o atual estado de coisas à semelhança com o seu precedente
histórico. Será isso o máximo de periculosidade que os signatários da carta
conseguem enxergar na situação presente? O futuro do Brasil depende de
que reste algum senso de proporções na mente de seus comandantes
militares. Mesmo o estado de alerta tem graus, e um alerta parcial no meio
da catástrofe é quase um sono letárgico.
AINDA A LUTA DOS MONSTROS
Minha posição no debate entre adeptos da evolução e do intelligent design
é nítida: não há provas conclusivas em favor de nenhuma dessas teorias, e
há objeções razoáveis contra ambas. A única atitude cientificamente
defensável é admitir que tudo não passa, por enquanto, de um confronto de
hipóteses. Enquanto propostas de investigação, tanto o evolucionismo
quanto sua alternativa são disciplinas perfeitamente respeitáveis: é tão lícito
e obrigatório investigar traços de continuidade evolutiva na história das
espécies animais quanto buscar na estrutura do cosmos os sinais de uma
intencionalidade racional. O próprio Darwin, como o declara expressamente
nos parágrafos finais de A Origem das Espécies, apostava resolutamente
nas duas hipóteses ao mesmo tempo: a evolução, para ele, era a maior prova
de um propósito inteligente na origem do cosmos. Ninguém o acusou, por
isso, de fazer pregação religiosa em vez de ciência. Também não é demais
lembrar que as duas hipóteses são velhíssimas: rudimentos de uma teoria
evolutiva encontram-se em Sto. Agostinho e Aristóteles, junto com a
afirmação explícita de um design inteligente. Entre as duas áreas de
investigação, cada uma tão ampla que até a possibilidade de seu confronto
total é bastante problemática, não deveriam ocorrer maiores choques, o que
só não acontece por causa das implicações ideológicas que mencionei no
artigo anterior.
Na história das idéias, porém, há alguns conjuntos de fatos bem
estabelecidos que deveriam induzir o evolucionista a entrar na conversa
com um pouco de humildade em vez de fazê-lo com a prepotência fanática
de quem não admite discussão:
1. Nenhuma outra teoria deste mundo, com as notórias exceções do
marxismo e da psicanálise, teve tantas versões diferentes, contraditórias
entre si, criadas num intervalo de pouco mais de um século. Desde o
determinismo integral até o império do acaso absoluto e incontrolável,
desde o gradualismo das alterações microscópicas acumuladas de geração
em geração até as mutações repentinas e catastróficas de espécies inteiras,
desde o materialismo intransigente até a especulação teilhardiana do plano
divino, o evolucionismo adotou camaleonicamente as formas mais díspares
e incompatíveis entre si. Basta esse fato para caracterizá-lo desde logo
como uma ideologia e não como uma teoria científica. Cada uma das suas
versões isoladas tem, em princípío, o direito de se pretender mais científica
que as outras, mas seu conjunto é inconfundivelmente ideológico. E quem
quer que fale em nome de uma delas deve primeiro vencer as outras no seu
próprio terreno antes de exigir que o público em geral a aceite como única
versão autorizada. Não tem sentido alegar a multiplicidade de igrejas como
argumento contra a fé religiosa, ao mesmo tempo que se concede o direito
de variedade plurissensa a uma teoria que, por suas pretensões científicas,
tem a obrigação estrita de ser um discurso unívoco.
2. Nenhuma outra teoria, no esforço de se impor à credulidade da
população, produziu tantas provas fraudulentas em tão breve transcurso de
tempo. Desde as formas intermediárias forjadas por Haeckel até o vexame
do homem de Piltdown, passando pelas falsas medições de cérebros na
década de 20 e pelas brutais acusações mútuas de charlatanismo entre
Richard Dawkins e Stephen Jay Gould, a história da argumentação
evolucionista está tão entremeada à história da vigarice que distinguir
claramente uma da outra, caso se possa fazê-lo, ainda é um desafio
historiográfico à espera de quem o enfrente.
3. Desde seu surgimento, o evolucionismo já inspirou três ideologias
notoriamente genocidas: o evolucionismo social, o comunismo e o nazismo.
Em nenhum dos três casos se pode alegar que isso foi mero uso retórico de
argumentos extraídos de uma teoria em favor de idéias que lhe eram
estranhas. Ao contrário, o evolucionismo está nos fundamentos mesmos de
cada uma dessas doutrinas, cuja argumentação evolucionista, para
completar, nunca foi obra de amadores intrometidos, mas sempre de
cientistas de alto prestígio nos círculos darwinianos e similares. No caso do
evolucionismo social, não cabe nem mesmo imaginar que tenha sido
subproduto ideológico acidental de uma teoria científica, de vez que, na sua
versão spenceriana, ele antecedeu a obra de Darwin e foi uma das fontes
diretas da sua inspiração.
4. Antes de resolvidas quaisquer das suas divergências internas e antes de
extinta a memória das suas contribuições a ideologias totalitárias, o
evolucionismo, ao mesmo tempo que pretende conservar suas imunidades
de hipótese biológica estrita, já ampliou suas pretensões ao ponto de se
apresentar como explicação da história cultural na sua totalidade e de fazer
um esforço organizado para se impor como substitutivo das tradições
religiosas na orientação moral, social, jurídica e política da humanidade. E
nada disso é empreendido por palpiteiros leigos, mas pelos líderes mesmos
das várias e concorrentes escolas evolucionistas. Quem poderia esperar uma
prova mais evidente de que se trata de uma ideologia, com ou sem pedaços
de ciência dentro dela?
5. Muito antes de se constituir como hipótese biológica, o evolucionismo
era defendido como doutrina gnóstica pelo avô de Charles Darwin, Erasmus
Darwin, e como tal circulou amplamente em sociedades ocultistas da
Escócia e da Inglaterra. É impossível que a influência do avô não ajudasse a
inspirar o neto. Em perfeita continuidade, após a publicação de A Origem
das Espécies a idéia foi retomada pela doutrina teosófica de Helena P.
Blavatski e em seguida pela escola esotérica de Alice Bailey. Foi através
desta vertente, representada pelo pedagogo ocultista Robert Müller, que o
evolucionismo se incorporou oficialmente aos parâmetros educacionais da
ONU, tornando-se mundialmente obrigatório como preparação da
juventude para “a civilização do Terceiro Milênio”. O componente gnóstico
do evolucionismo transparece também claramente nos escritos de Teilhard
de Chardin e, depois de tantos estudos que demonstram a identidade
profunda do gnosticismo com os movimentos ideológicos de massa que
culminam na utopia do “governo mundial”, é excesso de ingenuidade
imaginar que uma idéia que aparece tanto nas origens quanto nos efeitos
históricos de um processo cultural e político possa lhe ser totalmente alheia
na sua constituição interna.
A ciência natural não é feita por anjos, e a hipótese de que suas bases
possam ser totalmente isoladas de motivações culturais pré-científicas é
pueril e besta demais para ser discutida. No mínimo, é confundir a ciência
historicamente existente com a definição abstrata de um ideal científico
jamais atingido e, a rigor, inatingível.
As cinco séries de fatos que apontei estão bem documentadas. Pode-se
discutir a sua significação histórica, mas não negar a materialidade dos
dados. Se tudo o que eles representam são acidentes marginais que em nada
comprometem o núcleo científico puríssimo do evolucionismo, cabe ao
evolucionista prová-lo muito bem provado em vez de exigir, pela mera
força das proclamações autoritárias, que o interlocutor aceite a priori como
ciência incontaminada uma doutrina que historicamente se apresenta tão
carregada de comprometimentos e implicações ideológicas. Se, por outro
lado, alguém lograsse provar a total ausência de elementos extracientíficos
em alguma das versões do evolucionismo, ou mesmo numa parte dela,
nesse mesmo momento teria desacreditado como pura excrecências
ideológicas todas as conclusões metafísicas, sociológicas, morais, culturais,
religiosas e anti-religiosas que os mais célebres porta-vozes da teoria,
incluindo Gould e Dawkins, para não falar do próprio Darwin, jamais
cessaram de extrair dela. O evolucionismo apareceria então como um
imenso discurso ideológico gerado a partir de um pequeno núcleo de
ciência genuína, que é aliás precisamente o que suspeito que ele seja. Mas
quem pode negar categoricamente que um núcleo semelhante exista no
marxismo, na psicanálise, no mecanicismo setecentista, no historicismo ou
no próprio “design inteligente”?
Que um modelo explicativo obtenha sucesso em coletar fatos que o
comprovem não significa, de maneira alguma, que ele não possa ter defeitos
teóricos monstruosos e que os mesmos fatos, amanhã ou depois, não
possam ser absorvidos num modelo mais vasto que o supere, o impugne ou
o neutralize. Só a livre investigação e discussão pode elucidar isso, num
prazo que decerto se contará em séculos. O esforço dos evolucionistas para
bloquear as pesquisas no sentido do design inteligente é a exata repetição
do decreto dogmático com que Leonhard Euler, em 1748, vetou como
anticientíficas as investigações que implicassem a negação, mesmo
hipotética, da doutrina newtoniana do “espaço absoluto”, doutrina que
desde Einstein ninguém mais ousa defender em voz alta, mas que poderia
ter caído muito antes, abrindo caminho para a física relativista em pleno
século XVIII, se o partido de Euler, dominante nas academias como é hoje
o evolucionismo, não prevalecesse sobre as sábias advertências do pioneiro
minoritário G. W. von Leibniz. O design inteligente é uma hipótese
científica como outra qualquer, e tentar proibir sua investigação sob o
pretexto de que ela é anticientífíca por ter talvez uma remota inspiração
religiosa é esquecer que o próprio evolucionismo nasceu de origem similar,
com a ressalva de que há uma imensurável diferença de qualidade
intelectual entre as doutrinas das grandes tradições monoteístas e o lixo
ocultista de Erasmus Darwin.
Que meninos de ginásio posem de campeões do evolucionismo
acreditando-se imbuídos da autoridade da pura “ciência” em oposição
heróica à fé cega e às crenças ideológicas, é coisa que se entende facilmente
pela natural prepotência juvenil e pelo atrativo mágico das eras primitivas
(meu próprio quarto de adolescente era repleto de miniaturas de dinossauros
e tinha um retrato de Darwin na parede). Mas que cientistas adultos entrem
em campo com a mesma arrogância ingênua é fenômeno que só se pode
explicar pelo fato de que sua cultura histórica é tão ginasiana quanto a
daqueles meninos.
10 de julho de 2006

[ 16 ] Ver em http://alertatotal.blogspot.com/2006/06/chefes-militares-mandam-carta.html.
Banditismo e revolução

U
M PORTA-VOZ DO EXÉRCITO, POR TELEFONE, informou ao Diário do
Comércio, e prometeu confirmar oficialmente, que a carta publicada
no Alerta Total, aqui comentada no artigo anterior, não é autêntica ou
pelo menos não partiu dos comandantes militares. Eu deveria portanto
escrever ao editor daquele site, Jorge Serrão, reclamando de ele me fazer
gastar neurônios à toa com a análise de um documento forjado. Se não o
faço, é porque não considero que o meu esforço tenha sido tempo perdido.
Se os comandantes não escreveram a carta, alguém a escreveu em lugar
deles e, espalhando-a pela internet até chegar ao Alerta Total, conseguiu lhe
dar tão ampla divulgação que dezenas de leitores, perplexos, me enviaram
cópias dela, pedindo que a comentasse. Não é preciso ser muito esperto
para perceber que esse fato é tão significativo do presente estado de coisas
quanto o seria o próprio documento, se autêntico. Também, quem quer que
leia o meu artigo com atenção notará que a análise de significado, ali
empreendida, enfocou apenas o texto em si, sem entrar no mérito dos
objetivos políticos visados pelos seus presumidos autores. O resultado da
análise, pois, permanece intacto a despeito da revelação da falsa autoria.
Esse resultado, caso o leitor não se recorde, consistiu na afirmativa de que
os remetentes da carta, que eu então acreditava serem os comandantes
militares, transmitiam nela uma idéia atenuada da situação presente,
raciocinando segundo uma falsa analogia com os tempos finais do governo
Goulart e escamoteando o poderio e a agressividade infinitamente maiores
da esquerda revolucionária hoje em dia. Não há o que mudar nessa
conclusão. Só o que é preciso fazer agora é ampliar a análise levando em
conta o desmentido da autoria e colocando o documento no seu efetivo
contexto político. E aí a coisa fica ainda mais interessante.
Se algum anônimo tentou dar a impressão de que o primeiro escalão
militar estava preocupado com as ligações entre a atual corrupção no
governo e as velhas maquinações revolucionárias da esquerda continental,
mas quis fazer isso sem dar com a língua nos dentes quanto ao agravamento
dramático da situação entre 1964 e agora, está claro que o objetivo do
farsante foi atrair a atenção do público para uma possível e talvez genuína
irritação militar com o governo, mas abafando, ao mesmo tempo, os
motivos que a tornariam ainda mais justa e razoável. Ora, que raio de coisa
é isso senão desinformação alarmista, preparação dos espíritos para que se
encham de hostilidade profilática contra um golpe militar que não está
sendo tramado de maneira alguma? E para que haveria alguém de alertar
contra uma trama golpista inexistente, senão para dar preventivamente ares
de contragolpe a alguma trama existente?
A pergunta revela-se ainda mais pertinente quando se considera que todo
golpe é contra alguma coisa e que, para descobrir quais tendências golpistas
podem existir dentro de um grupo social, basta saber contra quem se fala
usualmente nesse grupo. Se tomarmos as declarações oficiais dos srs.
comandantes, os exemplares da revista da Escola Superior de Guerra
(Defesa Nacional) e os discursos pronunciados nos clubes militares como
amostras significativas do pensamento castrense, notaremos que nesse meio
só se fala contra três coisas: (1) o baixo orçamento das Forças Armadas (e a
conseqüente míngua dos soldos militares); (2) a corrupção dos políticos; (3)
a “cobiça internacional” (subentende-se: americana). Com exceção de
pequenos grupos de oficiais da reserva que representam antes o passado do
que o presente, e que a meu ver são o que de melhor e mais quixotesco
ainda resta nas Forças Armadas, em parte alguma do meio militar se ouve
ou se lê uma só palavra contra o Foro de São Paulo, contra o esquema
revolucionário continental, contra Fidel Castro ou contra Hugo Chávez.
Quem quer que, hoje, tentasse unir num empreendimento golpista a classe
militar, teria enorme dificuldade de fazê-lo em nome do anticomunismo de
1964. Desaparelhados para compreender a ameaça comunista desde que o
governo Sarney retirou a disciplina de “guerra revolucionária” do currículo
das escolas militares, castrados coletivamente por um sistema de promoções
que favorece antes os burocratas bem comportadinhos do que os
verdadeiros líderes, desmoralizados, atemorizados e esgotados pela
hostilidade da mídia inteira, os militares brasileiros, hoje, anseiam mais por
um sorriso paternal da esquerda triunfante do que por uma oportunidade de
lutar contra ela. Iniciativas golpistas podem florescer, é claro, alimentadas
pelo caos em torno. Mas não se voltarão, como em 1964, contra o
comunismo internacional, mesmo que este seja hoje muito mais perigoso,
mais forte e mais agressivo que o daquela época.
O levante militar de 1964 refletiu uma cultura impregnada de
conservadorismo cristão e anticomunismo tradicional – raízes que foram
extirpadas da mentalidade nacional por quarenta anos de revolução cultural
gramsciana. A “ideologia militar” subsistente compõe-se de moralismo
politicamente neutro, ressentimento corporativo e nacionalismo: desses três
fatores, nenhum é intrinsecamente anti-esquerdista e os três podem ser
absorvidos e instrumentalizados pela estratégia da esquerda. Podem ser,
não: já estão sendo, e há bastante tempo. Quem viu, como eu, centenas de
oficiais brasileiros inflamados de entusiasmo lulista quando da visita do
candidato do PT ao Clube da Aeronáutica logo antes da eleição de 2002,
sabe que as Forças Armadas brasileiras já não são as de antigamente. Em
1964, a tendência do espírito militar era exagerar o perigo comunista, o qual
nem era tão ameaçador quanto ele próprio se alardeava, se tivermos em
vista a facilidade incruenta com que em seguida se desmantelou da noite
para o dia o esquema subversivo de João Goulart; hoje, quando esse perigo
é incomparavelmente maior, a tendência é minimizá-lo ao ponto de o tornar
invisível – e quem conhece a importância estratégica que Antonio Gramsci
dava à invisibilidade sabe que isso é a melhor colaboração que o esquema
comunista continental poderia receber.
Há ainda outro aspecto que deve ser levado em conta. Ao longo de trinta
anos ou mais, a esquerda fez tudo o que podia para favorecer a ascensão do
banditismo: ensinou técnicas de guerrilha urbana aos delinqüentes presos na
Ilha Grande, integrou quadrilhas de criminosos no esquema do Foro de São
Paulo; cultivou com devoção fiel a fantasia ideológica que desculpa o
criminoso e inculpa a sociedade; promoveu líderes do narcotráfico à
condição de “líderes comunitários” e “intelectuais populares”; glamurizou
as drogas como meio de “libertação psicológica”; promoveu o massacre
moral da polícia através da mídia, do show business e das escolas, ao ponto
de tornar os policiais uma classe inibida e atemorizada, persuadida de que o
cumprimento fiel das suas funções legais só lhe trará novas perseguições e
punições; debilitou o senso moral dos formadores de opinião por meio de
engodos acadêmicos como o multiculturalismo, o relativismo, a maliciosa
exploração psicológica das frustrações raciais e sexuais das minorias;
garantiu a impunidade para os delinqüentes menores de idade; promoveu
por todos os meios a desmoralização do direito de propriedade; e por fim
diminuiu as penas para os crimes hediondos. Sua ação no sentido de
fortalecer o crime e debilitar a sociedade foi tão coerente, tão contínua e tão
abrangente que ela basta para explicar a desordem e a violência atuais, para
as quais ela própria fabrica, ex post facto, pretextos diversionistas
destinados a agravar ainda mais o estado de coisas. O resultado desse
esforço sistemático e perverso está hoje ante os olhos de todos, e ele é a
maior prova de que o esquerdismo é criminoso em si, por essência e
vocação.
Alcançado esse resultado, só restam ao esquema esquerdista dominante
duas alternativas: ou governar em aliança com a bandidagem, tentando
organizá-la como força armada paralegal e subjugando a ela o que resta do
aparato policial e militar do Estado; ou dar a volta por cima, usando como
pretexto a atmosfera geral de pavor, criando um Estado repressivo com a
ajuda das forças militares, aparecendo como salvador da pátria e angariando
o apoio maciço de uma população amedrontada, desmoralizada, disposta a
aceitar todas as exigências ditatoriais em troca de uma promessa de alívio.
É cedo ainda para a liderança esquerdista optar por uma dessas vias. Por
enquanto, ela pode prosseguir no entretenimento dialético de acirrar as
contradições, apostando nos dois cavalos ao mesmo tempo e esperando para
ver qual das alternativas será a mais vantajosa no instante temível da
mutação revolucionária.
No trato com as duas forças opostas, ela tem sabido até agora conduzir
com habilidade notável a manipulação perigosa do “duplo jogo duplo”, de
um lado fomentando o banditismo sem lhe ceder o controle total da
situação, do outro estonteando e subjugando as forças armadas por meio da
bem dosada alternância de pancadas difamatórias e lisonjas sedutoras.
Por mais sofisticada que seja a brincadeira, ela não é original: é o
procedimento-padrão da estratégia revolucionária desde o século XVIII.
Num ponto qualquer do processo, será preciso escolher. A experiência
histórica ensina que, no fim, a aliança com os militares predomina sempre.
É mais fácil utilizar as forças estatais já existentes do que organizar uma
nova com elementos anárquicos, rebeldes e ilimitadamente ambiciosos. É
absolutamente impossível que, entre os estrategistas do Foro de São Paulo,
nenhum esteja consciente disso. O momento de trair os amigos delinqüentes
e esmagá-los entre aplausos da população está chegando, como chegou para
Robespierre, para Lênin, para Hitler, para Mao Dzedong e para Fidel
Castro. A massa tem de ser preparada para vivenciar o advento da ditadura
sangrenta como um consolo e uma libertação. O regime criminoso, como
sempre aconteceu, será cimentado com o sangue dos criminosos. O
socialismo não admite delinqüentes porque ele é o monopólio estatal da
delinqüência.
Ainda há tempo para as forças liberais e conservadoras abortarem a
gestação desse feto hediondo. Mas só o conseguirão por um ataque direto
ao coração mesmo da estratégia maligna. É preciso mostrar ao povo a
unidade profunda de banditismo, corrupção e revolução comunista. É
preciso conscientizar as Forças Armadas do engodo trágico em que estão
caindo quando se desorientam e cedem ante a alternância pavloviana de
afagos e pancadas. Durante muito tempo até os políticos e empresários mais
antipetistas resistiram a essas obviedades. Mas a declaração recente do
senador Jorge Bornhausen sobre a epidemia de assassinatos em São Paulo
mostra que, por fim, uma luz parece ter brilhado no cérebro da oposição: “O
PT pode estar manuseando, manipulando essas ações. O PT vive no
submundo de Santo André, vive no submundo do mensalão e vive no
submundo do MLST. Então, tudo é possível, nada seria surpresa.”
Essa foi a coisa mais importante que algum líder liberal-conservador
brasileiro disse nos últimos trinta anos. Importante, mas não nova. O que os
políticos levam décadas para perceber é às vezes anunciado com muita
antecedência pelo observador atento. Depois de insistir desde 1993 no tema
da unidade de revolução e crime, resumi tudo num artigo publicado em O
Globo em 7 de maio de 2005, que quase com certeza apressou a minha
demissão daquele ex-grande jornal rebaixado a house organ do PT: a taxa
anual de homicídios que o Brasil havia alcançado – cinqüenta mil por ano
segundo a ONU, cento e cinqüenta mil segundo o livro do jornalista Luís
Mir, Guerra Civil – bastava, dizia eu, “para fazer de um país um bicho
amestrado, pronto para curvar-se docilmente, como os alemães do período
entre guerras, àquele novo tipo de autoridade anunciado por Fritz Lang no
seu filme profético de 1933, O Testamento do Dr. Mabuse: ‘Quando a
humanidade, subjugada pelo temor da delinqüência, se tornar louca por
efeito do medo e do horror, e quando o caos se converter em lei suprema,
então terá chegado o tempo para o Império do Crime.’”
***
Na página do Ministério do Trabalho,[ 17 ] encontra-se um manual de
ensino distribuído oficialmente pelo governo brasileiro a interessadas e
interessados em seguir carreira no oficio de prostituta ou prostituto. Muitos
visitantes do site se escandalizam com o conteúdo das instruções. Eu não.
Vejo nelas um auspicioso sinal de restauração da moralidade. Num país
onde todos pontificam sobre o que ignoram, nossos governantes dão um
exemplo de probidade intelectual lecionando matéria na qual têm a
autoridade da longa prática.
Curiosamente, entre as habilidades requeridas para a exercício
profissional, meticulosamente listadas pelo site, como por exemplo
“capacidade de persuasão”, “capacidade de expressão gestual”, “conquistar
o cliente” etc., não consta a prática do sexo oral, anal ou mesmo vaginal.
Não consta sequer aquilo que os anúncios de massagistas denominam
pudicamente “finalização manual”. Convenhamos que, sem esses
elementos, a atividade nos lupanares se reduzirá à cobrança de
emolumentos em troca de serviços inexistentes, etéreos ou meramente
simbólicos, em nada se distinguindo, portanto, das sessões do Congresso
Nacional ou das reuniões ministeriais no Palácio do Planalto. Invertendo a
ordem natural das gerações, as mães seguirão o exemplo dos filhos em vez
de lhes servir de modelos.
Mas a originalidade da situação não pára por aí. Como a lei penal
brasileira não proíbe o exercício da prostituição mas pune o ganho extraído
dela por terceiros, nosso governo, ao regulamentar o ofício das marafonas e
cobrar-lhes impostos, instituiu o monopólio estatal do lenocínio, de modo
que os cafetões e cafetinas, doravante, não serão criminalmente
responsabilizados pela natureza das suas atividades, mas somente porque se
entregam a elas por iniciativa privada. O Estado, segundo Hegel, é a mais
sublime encarnação da razão. Passando para a esfera estatal, amoldando-se
aos ditames da ética socialista e deixando de ser uma hedionda exploração
burguesa, a cafetinagem se livra do seu ranço pecaminoso milenar e ganha
um lugar de honra entre as mais altas e nobres atividades humanas.
***
O escritor mineiro Júlio Severo, autor do livro O Movimento Homossexual
que fez dele um alvo preferencial do ódio das ONGs bilionárias auto-
incumbidas de orientar moralmente o Brasil, tem sofrido toda sorte de
perseguições e humilhações judiciais por querer educar seu filho em casa
em vez de entregá-lo aos cuidados de pedagogos iluminados, e também por
julgar que o menino deve ser dispensado de tomar vacinas que, na opinião
de seus pais, possam ser danosas à sua saúde.
Sem surpresa, noto que até alguns dos melhores articulistas conservadores,
incapazes de negar solidariedade a esse combatente solitário e valoroso
numa hora difícil, divergem dele no tópico das vacinas, argumentando que,
em questões que envolvam decisões científicas, a autoridade do Estado
deve prevalecer sobre a vontade dos pais.
É perfeitamente possível ser conservador, com sinceridade, sem jamais ter
levado até o fundo a crítica cultural conservadora e libertária às crenças da
modernidade. Esses articulistas, obviamente, não se deram conta da
absurdidade intrínseca da premissa subentendida, segundo a qual as idéias
científicas legitimadas institucionalmente devem ter alguma autoridade
sobre a vida social. Se a ciência se propõe ser a livre investigação racional
dos dados da realidade, nenhuma conclusão que ela ofereça sobre o que
quer que seja pode estar isenta de crítica e portanto nenhuma pode ter
“autoridade”, exceto no sentido do prestígio intelectual desprovido de
respaldo privilegiado do poder estatal. A estatização da autoridade
científica, em qualquer grau que seja, prenuncia a morte da ciência e o
advento da “ditadura científica” preconizada por Auguste Comte, que aliás
morreu maluco. A autoridade estatal é o refúgio do cientificismo, não da
ciência.
Não tenho a menor convicção pessoal quanto às vacinas. Já li provas
científicas eloqüentes de que são úteis e de que são perniciosas, e me
considero humildemente em dúvida até segunda ordem. Alguns de meus
oito filhos tomaram vacinas, outros não. Todos foram abençoados com
saúde, força e vigor extraordinários, e nenhum deles deve isso aos méritos
da ciência estatal, mas a Deus e a ninguém mais. Tenho o direito às minhas
dúvidas, tanto quanto Júlio Severo tem direito às suas certezas. O Estado e
sua burocracia científica que vão para o diabo, que é pai dos dois.
17 de julho de 2006

[ 17 ] Ver http://www.mtecbo.gov.br/busca/competencias.asp?codigo=5198.
Em plena guerra assimétrica

Q
UANDO O SR. HUGO CHÁVEZ PROCLAMA que sua estratégia contra os
EUA é a da “guerra assimétrica”, já não há como negar que esse
conceito é o instrumento essencial para a descrição e compreensão do
estado de coisas na América Latina. Se nossos comentaristas internacionais,
analistas estratégicos, politólogos e tutti quanti continuam a usá-lo com
parcimônia ou a abster-se por completo de usá-lo, não é só por preguiça
mental: é porque um dos elementos fundamentais da assimetria é a desigual
iluminação do quadro. Esses cavalheiros jamais desejariam ver o seu
querido mentor bolivariano mostrado à mesma luz implacável e crua com
que seus inimigos são exibidos e dissecados diariamente na mídia.
Conceder a um dos lados o direito à penumbra protetora e obrigar o outro a
um contínuo strip-tease ante a curiosidade sádica dos holofotes não é
descrever nem analisar a guerra assimétrica: é praticá-la. Jornalistas,
professores e similares, os “formadores de opinião” ou “intelectuais”, no
sentido calculadamente elástico que Antonio Gramsci dá ao termo, são a
vanguarda da revolução. Sua função não consiste em mostrar o mundo
como ele é, mas transformá-lo naquilo que ele não é. Deformar
propositadamente o quadro, portanto, é seu dever profissional número um.
Mas a palavra mesma “deformação” é um tanto enganosa. Deformar por
meio do fluxo de informações uma realidade preexistente é uma coisa; outra
bem diversa é criar praticamente do nada uma nova realidade constituída de
puro fluxo de informações. Mentir em situações de guerra, para favorecer
um dos lados, é tão antigo quanto a própria guerra. Mas mesmo o
formidável desenvolvimento da técnica da desinformação ao longo de duas
guerras mundiais e inumeráveis revoluções do século XX não dá uma
imagem adequada do que hoje se passa. Em todos esses casos, os
“formadores de opinião” desempenhavam um papel auxiliar: a parte
substantiva dos conflitos desenrolava-se nos campos de batalha. Os
protagonistas da narrativa bélica eram os militares, os guerrilheiros, os
terroristas, os partiggiani. Jornalistas e tagarelas em geral formavam apenas
o coro. Nas últimas décadas, as proporções inverteram-se. A integração
mundial das comunicações e a conseqüente reorganização da militância
revolucionária em “redes” de extensão planetária permitiram reduzir ao
mínimo a função bélica das armas e ampliar ao máximo a da guerra de
informações. O princípio subjacente a essa mudança é simples e baseia-se
na regra clássica da arte militar que mede a eficácia da ação armada
segundo a relação custo-benefício que ela guarda com os resultados
políticos visados. Quanto mais ampla a repercussão política que se pode
obter com um esforço militar reduzido, tanto melhor. Nesse sentido,
batalhas inteiras da II Guerra Mundial, com centenas de milhares de mortos,
foram politicamente menos relevantes do que alguns ataques terroristas
comparativamente modestos realizados nas últimas décadas, pela simples
razão de que neste caso havia meios de alcançar repercussão jornalística
mais vasta e mais imediata, determinando decisões de governo que em
outras épocas necessitariam de um estímulo sangrento muito mais
eloqüente. Exemplos característicos foram a guerrilha mexicana de
Chiapas, militarmente irrisória, que graças ao apoio instantâneo da mídia
internacional conseguia transformar em vitória política cada nova derrota
que sofria em combate, e o atentado à estação férrea de Madri, que do dia
para a noite fez a Espanha mudar de lado na guerra contra o terrorismo.
Napoleão, Rommel, Zhukov ou MacArthur jamais sonharam em obter
resultados tão espetaculares com investimentos bélicos tão minguados.
O fenômeno ao qual estou me referindo recebe às vezes o nome de “guerra
informática” (netwar). A bibliografia a respeito já é bem extensa e foi
inaugurada em 1996 com a excelente monografia da Rand Corporation
sobre a guerrilha de Chiapas, The Zapatista ‘Social Netwar’ in Mexico, que
pode ser comprada ou descarregada gratuitamente em PDF no site
www.rand.org,[ 18 ] mas nunca encontrei entre as elites brasileiras, seja
intelectuais, empresariais, políticas ou militares, quem a tivesse lido. Menos
ainda encontrei quem tivesse alguma consciência clara da ligação entre
guerra informática e guerra assimétrica, embora essa ligação seja a chave
mesma para a compreensão do quadro internacional hoje em dia. A fórmula
do negócio pode ser enunciada numa frase: A guerra assimétrica não é
outra coisa senão uma estratégia destinada a compensar a desproporção
de força e capacidade militares por meio da guerra informática. Uma
sugestão para quem deseje entender o funcionamento da coisa é ler a
monografia da Rand junto com o livro de Jacques Baud, La Guerre
asymétrique, ou la défaite du vainqueur, Paris, Editions du Rocher, 2003.
Uma vez que se entendeu a unidade de guerra informática e guerra
assimétrica – e quem não entendeu está fora do mundo –, torna-se
inevitável tirar dessa convergência de estratégias algumas conclusões
óbvias:
1. Os alvos da guerra assimétrica são três e sempre os mesmos: os EUA,
Israel e aquilo que, nesses países ou em quaisquer outros, ainda reste da
civilização judaico-cristã. A “guerra cultural” é parte integrante da guerra
assimétrica.
2. Se a identidade dos alvos é nítida e bem conhecida, a das forças
atacantes permanece difusa e nebulosa ao ponto de que a noção mesma de
sua unidade estratégica continua impensável até para o público mais culto.
Para apreendê-la é preciso ter estudado a estrutura das “redes”, mapeando a
circulação de dinheiro, de informações e de palavras-de-ordem entre
governos, fundações, partidos políticos, ONGs, banditismo organizado e
mídia no mundo inteiro. Elementos para esse estudo podem ser encontrados
nos sites www.discoverthenetworks.org e www.activistcash.com, que já citei
aqui, bem como na recém-inaugurada seção “Mapas Visuais” do jornal
eletrônico brasileiro www.midiasemmascara.com.br. Quem quer que
examine esse material com a devida atenção sabe que a existência de um
eixo anti-americano, anti-israelense e anticristão formado pelos governos da
Rússia e da China, pelas fundações globalistas bilionárias, pela grande
mídia esquerdista chique, pela rede terrorista internacional e por milhares
de organizações militantes espalhadas pelo mundo não é uma hipótese ou
uma teoria: é um fato brutalmente real – o fato essencial do nosso tempo.
Mas as informações que o evidenciam não saem, é claro, no “Jornal
Nacional” nem na “Folha”, não são alardeadas desde o alto das cátedras
universitárias e, enfim, não chegam de maneira alguma ao público maior. O
resultado é que a hostilidade contra os EUA, Israel e o cristianismo,
meticulosamente fabricada a um custo de muitos bilhões de dólares, parece
surgir do nada, como manifestação espontânea dos belos sentimentos
morais da humanidade – e qualquer tentativa de contestar essa hipótese
logicamente insustentável e supremamente imbecil é rejeitada, mesmo por
pessoas cultas, como “teoria da conspiração”. O sucesso psicológico da
guerra assimétrica pode medir-se pela facilidade com que histórias da
carochinha acabam parecendo mais verossímeis do que os fatos mais
abundantemente comprovados.
3. A função da mídia e dos “formadores de opinião” em geral, no novo
quadro estratégico, é bem diversa daquele papel meramente auxiliar que
tiveram em outras ocasiões, incluindo nisto as vastas campanhas de
desinformação e manipulação montadas pelo governo soviético desde a
década de 30 até o fim da Guerra Fria (campanhas cuja amplitude
permanece ainda desconhecida fora do círculo dos estudiosos, por ter sido
revelada só a partir da abertura temporária dos Arquivos de Moscou). Se a
orientação geral é inverter as proporções recíprocas do esforço bélico e da
manipulação informática que o transmuta em resultados políticos, os
militares e terroristas é que se tornam força auxiliar, enquanto o papel
principal incumbe aos manipuladores da opinião pública. Uma vez que você
percebeu isso, sabe que é uma ingenuidade suicida continuar interpretando
a situação como se os únicos agentes revolucionários que importam fossem
os terroristas e os militantes mais descarados a serviço de organizações
subversivas e como se os formadores de opinião fossem apenas cidadãos
inofensivos exercendo candidamente o seu direito à liberdade de expressão.
Ao contrário: jornais, rádios, noticiários de TV, aulas, livros, espetáculos de
teatro são hoje as principais armas de guerra, sua função essencial ou única
é serem armas de guerra, e por isso mesmo o controle planejado do
noticiário deixou de ser uma exceção para se tornar a regra. Um dos sinais
mais alarmantes dessa mudança é o fato de que a exclusão de notícias
indesejáveis, um recurso extremo antes usado com parcimônia até por
censores oficiais, se tornou procedimento normal e rotineiro da maioria dos
órgãos da chamada “grande mídia” (no Brasil, em todos eles, sem exceção).
A supressão é tão vasta e tão sistemática que continentes inteiros da
realidade contemporânea se tornaram invisíveis para o público. Notícias
sobre torturas e assassinatos políticos em Cuba, na China, no Vietnã ou na
Coréia do Norte, por exemplo, desapareceram por completo há mais de
vinte anos, embora nesse período o número das vítimas nesses países não
esteja abaixo dos dez milhões de pessoas. É só quando projetados sobre
esse fundo vazio que episódios inócuos como as humilhações ocasionais e
incruentas sofridas por terroristas em Abu-Ghraib ou Guantánamo podem
despertar atenção. É só nesse quadro totalmente deformado que centenas de
mísseis lançados diariamente contra Israel podem parecer menos chocantes
do que a tardia reação israelense. É só nesse mundo de fantasia que o
simples pedido de uma congressista da Flórida para que o governo
americano estude a possibilidade de alguma ação militar na Tríplice
Fronteira pode parecer uma intervenção estrangeira mais perigosa, e mais
insultuosa à dignidade nacional, do que a movimentação efetiva e
constante, naquela área, de bandos de terroristas armados atuando em
parceria estreita com quadrilhas de narcotraficantes, sob os olhos
complacentes das nossas autoridades federais. É só no reino da mentira total
que a presença amazônica de agentes do Conselho Mundial das Igrejas, um
órgão acentuadamente pró-comunista e anti-americano, pode ser vendida ao
público como prova de intervenção imperialista ianque. Não, já não se trata
de censurar esta ou aquela notícia, mas de modificar radicalmente a
estrutura e as proporções do panorama inteiro. Já não se trata de enganar o
público quanto a um ou outro episódio em particular, mas de modificar sua
percepção integral da realidade.
Por isso é que a “guerra assimétrica”, tão constantemente presente no
mundo dos fatos, raras vezes ou nunca dá o ar da sua graça no universo de
discurso da mídia brasileira. É que aí não se trata de falar da assimetria, mas
sim de criá-la.
24 de julho de 2006

[ 18 ] Ver http://www.rand.org/pubs/monograph_reports/MR994/index.html.
Proposta indecente

S
E HÁ UM ASSUNTO SOBRE O QUAL NÃO FALTAM INFORMAÇÕES, é o MST. Há
os livros e discursos do sr. João Pedro Stedile. Há uma infinidade de
panfletos, sites da internet, notícias, artigos e entrevistas de jornal, bem
como documentários da TV nacional e internacional. Há os relatórios da
polícia e do Ministério da Reforma Agrária. Há, para quem deseje saber
algo contra, os livros de Xico Graziano (O Carma da Terra no Brasil) e
Nelson Ramos Barreto (Reforma Agrária — O Mito e a Realidade), sem
contar os relatos de observação direta do advogado paulista Cândido
Prunes.
Mesmo supondo-se, para raciocinar por absurdo, que nenhum dos militares
que freqüentam a Escola Superior de Guerra tivesse jamais acesso a dados
colhidos pelos órgãos de inteligência, ainda assim o material existente sobre
os sem-terra é abundante, e o tempo que todos os interessados tiveram para
estudá-lo foi bem longo. O general Barros Moreira, comandante da ESG,
está e sempre esteve ciente de que uma simples palestra, pronunciada por
uma criatura que não prima pela erudição nem pela criatividade da
inteligência, não poderia acrescentar algo de substancial e novo ao que ele
próprio e os demais membros da Escola já sabiam de cor e salteado. Não
poderia e não acrescentou: o sr. João Pedro Stedile nada disse ali que já não
tivesse dito pelo menos uma dúzia de vezes. Em compensação, acrescentou
um novo brilho ao seu próprio curriculum: de chefe de uma organização
ilegal e criminosa, foi elevado à condição de porta-voz de uma corrente de
opinião legítima, merecedora não só de discussão respeitosa nos altos
círculos intelectuais da nação como também dos aplausos entusiásticos que
a platéia esguiana não lhe regateou. O general sabe hoje, como sabia ao
formular o convite, que esse seria o único efeito previsível da recepção dada
ao chefe do MST numa instituição que, afinal, já foi bastante respeitável no
passado.
Ao alegar que “a ESG tem de ouvir os dois lados” e que se Stedile é
criminoso “isso é problema da Justiça e não da ESG”, o general só forneceu
a prova cabal de que, na sua opinião, entre o lado da Justiça e lado do crime
a instituição que ele preside deve ser imparcial e soberanamente indiferente.
Ele apenas se esqueceu de esclarecer que esse nivelamento é a essência
mesma do crime, o qual não seria crime se respeitasse o primado da lei em
vez de ombrear-se com ela.
Apagar a diferença entre a legalidade e a ilegalidade é aliás a estratégia
deliberada e constante do próprio MST, conforme expliquei em artigo
recém-publicado:
O MST poderia, sem dificuldade, ter-se registrado como ONG e solicitado legalmente a ajuda
financeira do Estado. Se não o fez, não foi tanto para escapar à responsabilidade civil e penal,
mas por um cálculo estratégico muito preciso: mais importante até do que instituir a violência e o
terror como meios válidos de acesso à propriedade da terra era subjugar e usar o próprio Estado
como instrumento legitimador do processo... Essa inversão radical do critério de legitimidade é
muito mais decisiva do que a subseqüente tomada do poder, que não faz senão dar expressão
visível ao fato consumado[ 19 ].
Que um governo que coloca suas alianças revolucionárias acima das leis e
da Constituição ajude o MST a implementar essa transição não é, em si,
nada de estranho. A novidade é que um alto oficial das Forças Armadas,
personificando uma instituição reconhecida como expressão do pensamento
militar, se disponha tão bisonhamente a colaborar nessa empreitada sinistra,
fundada num dos mais pérfidos cálculos estratégicos da elite gramsciana
que conduz o processo da revolução continental.
Segundo o Art. 142 da Constituição, incumbe às Forças Armadas garantir
os poderes constitucionais, e não ajudar a corroê-los por meio de ardis
maliciosos como esse no qual o sr. Stedile se tornou o supremo expert.
Mas o general Barros Moreira não se limitou a passar por cima da
Constituição. Tomando uma decisão que ele não podia deixar de saber que
iria chocar a sensibilidade de quase todos os seus companheiros de farda,
ele infringiu ostensiva e conscientemente o Regulamento Disciplinar do
Exército, que, no seu Anexo 1, proíbe “concorrer para a discórdia ou a
desarmonia ou cultivar inimizade entre militares”.
Se ele o fez com cara de inocência, das duas uma: ou foi por ser idiota o
bastante para acreditar que não havia nisso nada de mais, ou foi por saber
que a camuflagem anestésica é indispensável à transição indolor pretendida
pelo MST. Nos dois casos a indignação que tantos oficiais militares vêm
mostrando contra ele é mais do que justa: é moralmente obrigatória. O que
esse homem lhes pediu foi que se curvassem alegremente à desonra
consentida, depois de tantas humilhações já impostas às Forças Armadas.
Foi a proposta mais indecente que um oficial brasileiro já fez à corporação
militar.
27 de julho de 2006

[ 19 ] Ver http://www.olavodecarvalho.org/semana/060720jb.html.
A fraude do populismo continental

N
O NÚMERO DE AGOSTO DA REVISTA cultural britânica Prospect, Jorge
Castañeda retoma e elabora sua tese das “duas esquerdas” latino-
americanas, apresentada na edição maio-junho de Foreign Affairs,
publicação oficial do CFR.
A tese foi impugnada pelo historiador Kenneth Maxwell, guru do CFR
para assuntos brasileiros, mediante o argumento de que não pode haver uma
esquerda malvada e outra boazinha porque tudo o que é esquerdista é bom.
Castañeda está realmente enganado, mas, é claro, não por esse motivo.
Como Maxwell é aquele sujeito segundo o qual o Foro de São Paulo não
existe e Lula é um típico self-made man americano, é vantajoso para a
saúde do cérebro humano ignorar o que quer que ele diga, sobre esse
assunto ou qualquer outro.
A tese das “duas esquerdas” é interessante porque do fundo do seu erro
transparece, em filigrana, a verdade sobre a situação política do continente.
Castañeda começa dizendo que desde o início da década de 90 previa a
ascensão da esquerda na América Latina, baseado em duas razões: (1) Com
a queda do regime soviético, os EUA não podiam mais acusar os partidos
esquerdistas latino-americanos de ser paus-mandados de Moscou. Livre
desse estigma, a esquerda podia se apresentar em público com nova cara.
(2) A América Latina permanecia uma das regiões mais afetadas pela
desigualdade social, “e a combinação de desigualdade e democracia tende a
causar uma guinada para a esquerda”.
Em seguida confessa ter imaginado, erroneamente, que a esquerda cujo
sucesso ele vislumbrava seria toda democrática, modernizada, consciente
das lições adquiridas com o fracasso dos regimes comunistas no Leste
europeu, aberta aos benefícios da economia de mercado e disposta, em
última instância, a abdicar de seu velho ódio aos EUA.
Se isso não aconteceu, se por toda parte emergiram ambições ditatoriais e
as relações da América Latina com os EUA se tornaram piores do que
nunca, foi porque a esquerdização geral levou ao poder não uma, mas duas
esquerdas. “Uma é moderna, de mente aberta, reformista e
internacionalista... A outra é nacionalista, barulhenta e de mente fechada.”
Castañeda completa esse diagnóstico expondo aquilo que, no seu entender,
constitui a origem histórica dessas duas esquerdas e a razão das suas
diferenças. A esquerda latino-americana esclarecida, diz ele, “nasceu da
Revolução bolchevique e seguiu um caminho similar ao da esquerda no
resto do mundo. Os partidos comunistas chileno, uruguaio, brasileiro,
salvadorenho e, antes da revolução de Castro, o cubano, obtiveram parcelas
significativas do voto popular, participaram de governos de ‘unidade
nacional’ nos anos 30 e 40, estabeleceram uma presença sólida e exerceram
uma forte influência nos círculos acadêmicos e intelectuais”.
A origem da outra esquerda, a burra, é especificamente local: ela não
nasceu do comunismo, mas do populismo latino-americano. Suas
divindades tutelares não são Marx, Lênin e Che Guevara, mas tipos como o
argentino Juan Perón, o peruano Victor Raúl Haya de la Torre, o
equatoriano José Velasco Ibarra e o brasileiro Getúlio Vargas.
Além de nacionalistas extremados, “os populistas são, com freqüência,
virulentamente anticomunistas, sempre autoritários e mais interessados em
obter e conservar o poder do que em formular políticas”.
A culpa de toda a confusão atual na América Latina é desses malditos
populistas, que não evoluíram intelectualmente junto com os comunistas.
Essa é a teoria de Castañeda. Na verdade não é uma teoria. É a simples
projeção mecânica da receita tradicional do CFR para os males do mundo:
converter os comunistas ao socialismo reformista, fabiano, e construir com
eles a utopia globalista que eliminará do planeta as soberanias nacionais, o
capitalismo clássico, a democracia constitucional americana e a cultura
judaico-cristã, unificando a espécie humana sob o governo de uma casta de
planejadores sociais iluminados. Se a América Latina deu errado, foi
porque alguns esquerdistas não aderiram a tão lindo programa, preferindo
apegar-se a velhos populismos nacionalistas... e anticomunistas.
Mas vamos por partes.
No início da década de 90, eu também previ a ascensão da esquerda, mas
por motivos bem diversos dos alegados por Castañeda. Equações genéricas,
por mais realistas que sejam, nunca dão fundamento a previsões sobre o
desenrolar dos fatos. Fatos não são evoluções espontâneas de “tendências
dominantes”, mas o resultado de ações concretas de seres humanos. Prevê-
los com acerto não depende de farejar “tendências” no falatório da moda,
mas de observar quem está fazendo o que. No início da década de 90, a
esquerda estava tratando de se unificar, de se organizar em escala
continental, de se articular localmente com as quadrilhas de
narcotraficantes, internacionalmente com as “redes” globais de informação
e com os movimentos radicais islâmicos, de comprar armas e juntar
recursos financeiros em escala jamais pensada por qualquer outro
movimento político ao longo de toda a história humana, entrando aí o
comércio de drogas e a luta pelo domínio quase monopolístico das fontes de
subsídios estatais e privados nos EUA e na Europa através de uma
infinidade de ONGs. Enquanto isso, a direita continental ocupava-se apenas
de (1) desarmar-se ideologicamente, imbuindo-se da crença de que o
comunismo morrera e portanto reprimindo em suas fileiras qualquer
veleidade anticomunista, acusada de passadista e reacionária; (2) diluir-se
politicamente, apostando tudo no sucesso da “esquerda modernizada” e
adaptando-se a ela ao ponto de tornar-se mera força auxiliar a serviço dela,
como aconteceu nas eleições brasileiras de 1994, 1998 e 2002. Era como se
às vésperas de uma luta pelo título mundial de boxe, um dos contendores
estivesse tomando proteínas e se adestrando espartanamente, enquanto o
outro varasse as noites em farras com mulheres enviadas pelo adversário, a
quem por isso considerasse seu bom amigo, encarando com crescente
repugnância a perspectiva de esmurrá-lo.
Descritos os fatos, não era preciso ser muito esperto para prever o
desenrolar da situação. Os elementos apontados por Castañeda eram, nisso,
secundários ou mesmo irrelevantes. O próprio Castañeda é que não era. Sua
pessoa e suas idéias forneceram um poderoso anestésico para a direita, que
via nelas a prova de que a esquerda se tornara civilizada e inofensiva (ele
não dá o menor sinal de perceber o quanto colaborou para que sua previsão
não se realizasse por completo).
Mas a minha perspectiva ainda diferia da dele num ponto essencial.
Que havia na esquerda uma ala modernizada, disposta até a abdicar do
marxismo como acontecera com os partidos socialistas europeus, era coisa
óbvia. Durante algum tempo os porta-vozes mais tagarelas dessa corrente –
Eduardo Mascarenhas, José Arthur Gianotti, Arnaldo Jabor, o próprio
Fernando Henrique – brilharam nos jornais e na TV como se fossem a
encarnação viva dos novos tempos. Cada novo comunista ou pró-comunista
que se tucanizava era motivo de festa entre os direitistas, mas,
significativamente, o sentimento com que estes o recebiam não era de
triunfo: era de alívio. Não festejavam a derrota do adversário, mas um vago
arremedo de empate técnico que, pro forma, os dispensava de lutar.
Comemoravam, antecipadamente, a aposentadoria ideológica da qual em
breve estariam desfrutando.
Numa data que não recordo bem, após a vitória de Fernando Henrique,
creio que em 1996, tomei parte de um dos célebres almoços de aniversário
do jornalista Aristóteles Drummond, um direitista histórico, veterano da
Revolução de 64. Essas reuniões eram, na verdade, encontros políticos,
ocasiões para tomar o pulso da direita nacional. Nesse dia, sentado ao lado
de Eduardo Mascarenhas, ídolo intelectual da esquerda recém-convertido ao
tucanismo, observei que a atmosfera geral era de afetuosa abertura aos
esquerdistas presentes, quase tão numerosos quanto seus adversários
tradicionais. Todos tomavam cuidado para que uma apologia demasiado
ostensiva da economia de mercado não parecesse provocação ou acinte aos
convidados, ainda mal refeitos da queda da URSS. O único que cantava
vitória era Roberto Campos, mas, acrescentava ele, fazendo troça com sua
idade avançada, “vitória póstuma”. O gracejo atenuava o contraste e
reforçava o sentido geral do encontro: ali não se comemorava uma vitória,
mas a paz. Paz unilateral, demissionária, suicida. Enquanto a milhares de
quilômetros dali Fidel Castro, Lula e Frei Betto montavam a maior
articulação política da história continental, juntando partidos legais e
bandos de criminosos armados para o assalto ao poder, a direita cansada de
guerra erguia um brinde ao seu direito de voltar para casa e viver de
lembranças. Voltei do encontro dizendo para os meus botões: “Hoje a
direita nacional festejou seu próprio sepultamento.”
Com a abdicação geral da direita, o cenário passava a dividir-se entre as
duas esquerdas, separadas, como observou o próprio Fernando Henrique,
apenas por diferenças políticas de ocasião, mas unidas pelo mesmo fundo
ideológico, pelas mesmas referências culturais e pelo sentimento de
solidariedade mútua alicerçado numa longa história de lutas contra o
inimigo comum que, justamente, acabava de abandonar o campo.
Num lapso de tempo brevíssimo, as idéias conservadoras desapareceram
do cenário e a uniformidade ideológica total espalhou-se pelo país,
formando o panorama que descrevi em O Imbecil Coletivo e cuja expressão
eleitoral perfeita se viu em 2002, com uma eleição disputada entre quatro
candidatos esquerdistas que, na falta de divergências efetivas, travaram um
campeonato de pureza ideológica, cada um tratando de provar que os outros
eram menos fiéis às suas origens (situação análoga à que viria a ocorrer no
Peru entre Ollanta Humala e Alan García).
Como o unanimismo reinante era indecente demais para ser proclamado
oficialmente, a solução espontânea foi nomear a esquerda moderada como
“direita” ad hoc e remover os poucos remanescentes da direita genuína para
a “extrema direita”, situada em algum lugar incerto entre o passado
abominável, o crime hediondo e o nada absoluto.
Fazendo entre as duas esquerdas a mesma comparação de ações
respectivas que eu fizera entre a direita e a esquerda no começo da década,
notei que a ala radical tratava de expandir formidavelmente sua militância,
consolidar sua hegemonia cultural, preparar-se para grandes ações de massa
e fortalecer suas alianças continentais no Foro de São Paulo, enquanto a
moderada, tucana, se contentava com política eleitoral local e manobras de
gabinete. Mais ainda, a esquerda tucana, no poder, fortalecia sua adversária,
alimentando o MST com verbas federais, espalhando a propaganda
esquerdista nas escolas e atraindo contra si o ódio das Forças Armadas por
meio de cortes orçamentários e de prêmios em dinheiro público oferecidos a
terroristas aposentados. Era impossível, diante disso, não perceber qual das
duas acabaria vencendo.
Que a esquerda radical seja populista em vez de comunista ou pró-
comunista, como pretende Castañeda, é uma idéia tão boba que nem
mereceria atenção, se o CFR não a usasse como instrumento para induzir a
direita norte-americana a se desarmar ideologicamente a exemplo do que
fez a latino-americana. O sr. Castañeda foi útil num caso como está sendo
no outro. A palavra “populismo” espalhou-se, como um mantra, pelos
círculos do Partido Republicano, ali exercendo um considerável efeito
entorpecente. Ninguém jamais viu um cartaz de Getúlio Vargas ou Velasco
Ibarra, em vez de Che Guevara e Fidel, brandido pelos jovens enragés do
Fórum Social Mundial. Ninguém leu jamais uma única sentença
anticomunista – muito menos “virulentamente anticomunista” – nas atas do
Foro de São Paulo, nas cartilhas do MST, nos anais de congressos do PT ou
dos movimentos chavistas. A analogia entre Chávez e os velhos “pais dos
pobres” é puramente estética, não política ou ideológica. Seu estilo bufão
aliás foi copiado menos de Perón ou Batista que do próprio Fidel Castro. A
unidade ideológica e estratégica do Foro de São Paulo é uma realidade
poderosa, a única realidade política que tem peso no continente. Chamar o
neocomunismo de “populismo” só é útil a ele próprio, ajudando-o a crescer
mais um pouco sob a camuflagem protetora e a adquirir até algum encanto
suplementar aos olhos de alguns militares molengas que, não tendo fibra
para suportar com honra as cusparadas da mídia e o desprezo do ambiente
impregnado de esquerdismo, já se sentem coitadinhos ao ponto de suspirar,
como vagabunda surrada, por um olhar de simpatia do agressor.
Cá entre nós, duvido muito que o próprio Castañeda não saiba de tudo
isso. Há idéias que, precisamente por não valerem nada como descrições da
realidade, valem muito como instrumentos de manipulação. Não são idéias,
são ações políticas. Castañeda sabe quem perde e quem ganha por acreditar
na sua versão dos fatos. Ela não tem nada a ver com a realidade, mas serve
para aproximar mais ainda o CFR e os comunistas latino-americanos.
Afinal, ele só critica neles o nacionalismo, um resíduo direitista. Mas todos
sabemos e ele também sabe que esse nacionalismo é só uma fachada para
ludibriar militares e induzi-los a colaborar com a absorção das soberanias
nacionais no quadro da grande América Latina socialista. A abertura de
todas as fronteiras continentais às Farc e aos seqüestradores do MIR
chileno, a extensão da jurisdição cubana ao território da Venezuela, as
intervenções crescentes e unanimemente aplaudidas do sr. Hugo Chávez na
política dos países em torno e a confissão do sr. Lula de que governa o
Brasil em parceria secreta com estrangeiros, são provas cabais de que
ninguém no Foro de São Paulo liga a mínima para nações e nacionalismo,
exceto como instrumentos ocasionais de um anti-americanismo que não
contraria em nada os objetivos do CFR. E quando Hugo Chávez adotou
como divisa o “bolivarianismo”, ele conhecia o sentido simbólico profundo
dessa bandeira, ignorado pela massa que o segue e até pelos “formadores de
opinião” da grande mídia nacional e internacional, todos eles, como é
notório, cultíssimos e sapientíssimos. Simón Bolívar escreveu em 1832:
“As nações que fundei serão eclipsadas após uma demorada e amarga
agonia, depois reemergirão como Estados de uma grande república, a
América.” É esse o programa do Foro de São Paulo, como aliás é o do CFR.
Os Castañedas e similares só fazem onda contra o “populismo nacionalista”
porque sabem que ele não existe, mas que, se a direita americana acreditar
que ele existe, nada fará contra aquilo que existe.
31 de julho de 2006
O paradoxo esquerdista

V
IVENCIAR CONSCIENTEMENTE O TEMPO HISTÓRICO em que transcorre a
nossa existência é um privilégio, um dever e um direito da
inteligência individual, que não alcança sua plenitude senão
absorvendo e integrando as tensões e mutações do ambiente maior em
torno. Desde o início do século XX, esse direito foi negado a várias
gerações de seres humanos, induzidos a viver uma história fictícia no
mundo paralelo das militâncias ideológicas e a atravessar a existência em
pleno estado de ignorância quanto aos fatores reais que determinaram o seu
destino. A ilusão socialista não consiste somente num erro de previsão
quanto aos objetivos finais. Se fosse assim ela seria apenas o final trágico
de existências nobres. Mas a expectativa falsa quanto ao futuro já falsifica a
vida presente: ela perpassa toda a biografia de cada militante, tingindo de
farsa e auto-engano cada um de seus atos e pensamentos, mesmo os mais
íntimos, pessoais e aparentemente alheios à luta política.
É só estudar as vidas de Marx, de Lênin, de Stalin, de Mao, de Guevara, de
Fidel Castro, de Yasser Arafat (ou de seus acólitos intelectuais, os Sartres,
Brechts, Althussers e tutti quanti) para entender do que estou falando: cada
um desses homens que tiveram nas mãos os destinos de milhões de pessoas
foi um deficiente emocional, cronicamente imaturo, incapaz de criar uma
família, de arcar com uma responsabilidade econômica ou de manter
relações pessoais normais com quem quer que fosse. Em compensação do
aborto moral de suas vidas, criaram a idealização pomposa do
“revolucionário” (isto é, deles próprios), como encarnação de um tipo
superior de humanidade, adornando com um toque de estética kitsch a
mentira existencial total.
Eles não são personagens de tragédia. A regra essencial da tragédia é a
ausência de culpa. O herói trágico não pode estar abaixo das circunstâncias,
não pode ser um perverso, um fraco, um idiota incapaz de arcar com a
própria vida. Ele fracassa porque entra em choque com as exigências
superiores de uma ordem cósmica invisível. Seu único delito é não ser
sobre-humano numa situação que lhe impõe desafios sobre-humanos. Mas
perceber a falácia intrínseca da promessa socialista não é um desafio sobre-
humano.[ 20 ] É um dever elementar de qualquer inteligência média que se
disponha a examinar o assunto objetivamente. Aqueles que fogem a esse
exame, transferindo a partidos, a movimentos ou à “opinião pública” as
responsabilidades da sua consciência individual, renunciam ipso facto à
dignidade da inteligência e se consagram a uma luta obstinada e fútil contra
a estrutura da realidade. Vai nisso uma mistura de vaidade adolescente, de
revolta gnóstica e daquele orgulho satânico que é a compensação quase
automática da covardia existencial. Tudo isso é lamentável, mas não é
trágico: é grotesco. Não há tragédia no fracasso do socialismo: há apenas
uma palhaçada sangrenta.
O modelo dos líderes e dos ídolos intelectuais é repetido, em série
ilimitada, nas vidas de militantes, simpatizantes e “companheiros de
viagem”, acabando por espalhar-se entre o público geral. O rancor sem fim
contra pais e mães, a destruição da unidade familiar, o ódio às exigências
morais das tradições religiosas, a busca desesperada de sensações por meio
do consumo de drogas, a reivindicação pueril do “direito ao prazer”, a
transformação do erotismo numa escalada de exigências egolátricas que
começa no protesto feminista e culmina na apologia aberta da pedofilia e do
incesto, a disseminação de técnicas pedagógicas que estimulam a
delinqüencia infanto-juvenil – tudo isso é a projeção ampliada do estilo de
vida dos “grandes revolucionários”, espraiada no tecido da sociedade ao
ponto de já não reconhecer-se como tal e transfigurada num sistema de
obrigações “éticas”, base de julgamentos, acusações, cobranças e
chantagens.
O fundo de tudo é o ódio à realidade, a recusa de arcar com o peso da
existência, o sonho gnóstico de transfigurar a ordem das coisas por meio da
auto-exaltação psicótica e de truques mágicos como a “reforma do
vocabulário”.
Não espanta que a política produzida por essas pessoas seja uma
contradição viva, uma imensa engenhoca entrópica que cresce por meio da
autodestruição e se inebria de vanglória na contemplação das próprias
derrotas. Nenhuma exploração capitalista, por mais “selvagem” que a
rotulassem, conseguiu matar de fome multidões tão vastas quanto as que
pereceram durante a estatização da agricultura na URSS, o “Grande Salto
para a Frente” de Mao Dzedong ou os experimentos socialistas em vários
países da África. A “luta contra a miséria” continua sendo o principal
pretexto moral do socialismo, mas a verdade é que a maior contribuição do
socialismo à vitória nessa luta seria simplesmente cessar de existir. Do
mesmo modo, o protesto inflamado contra qualquer violência anti-socialista
é um persistente Leitmotiv do discurso de esquerda, mas nenhum regime
direitista jamais matou, prendeu ou torturou tantos militantes esquerdistas
quanto Stalin, Mao, Pol-Pot ou Fidel Castro. É uma simples questão de
fazer as contas. Se os socialistas tivessem um pingo de respeito por seus
próprios direitos humanos, voltariam para suas casas e deixariam que a boa
e velha democracia burguesa os protegesse contra a tentação suicida de
implantar o socialismo.
Do mesmo modo, quando os esquerdistas começam a falar em “paz”, a
prudência recomendaria que começassem a estocar comida no porão para a
próxima guerra em que seus líderes os estão metendo naquele mesmo
momento. O movimento pacifista encabeçado pelos partidos comunistas da
Europa nos anos 30 foi um truque concebido por Stalin para dar tempo à
Alemanha de se rearmar com a ajuda soviética e destruir a “ordem
burguesa” do velho mundo (leiam o clássico Stalin’s War, de Ernst
Topitsch). Milhões de franceses idiotas gritaram em passeatas e agitaram
bandeirinhas brancas sem saber que isso era o passaporte para o matadouro.
Os tratados que, atendendo ao clamor de uma geração inteira de jovens
enragés, puseram fim aos combates no Vietnã em 1972, deram um salvo-
conduto para que os comunistas invadissem o Vietnã do Sul e o vizinho
Camboja e matassem aí três milhões de civis – quatro vezes o número total
de vitimas civis e militares da guerra.
Enganam-se aqueles que enxergam na novilíngua (newspeak) de George
Orwell apenas um truque publicitário concebido por líderes maquiavélicos
para induzir militantes estúpidos a aceitar a guerra como paz, a tirania como
liberdade. Esses líderes maquiavélicos não têm nenhum controle sobre o
processo, que, com raras e inevitáveis exceções, termina por arrastá-los e
destruí-los no meio de suas vítimas. O paradoxo autodestrutivo está na
centro de cada alma militante porque está na raiz mesma do movimento
socialista, que nasce da aspiração gnóstica à supressão do mundo físico e se
condensa na proclamação absurda de Hegel: “O ser, na sua indeterminação,
é o nada” – uma confusão patética entre discurso e existência, destinada a
ter as mais monstruosas conseqüências intelectuais e históricas. O puro
newspeak já marca sua presença ostensiva na fórmula de Engels, «A
liberdade é o reconhecimento da necessidade», que inspirou tantas auto-
acusações falsas nos Processos de Moscou e cujo sentido último, de ironia
verdadeiramente demoníaca, aparece com nitidez fulgurante no comentário
de Bertolt Brecht: «Se eram inocentes, mais ainda mereciam ser
condenados.» Brecht, aliás, foi aquele mesmo que resumiu com cinismo
exemplar a essência da moral socialista: «Mentir em favor da verdade.»
Experimente fazer isso e, é claro, você nunca mais vai parar de mentir.
Algumas regras usuais do leninismo ilustram esse cinismo na prática
diária: “Fomentar a corrupção e denunciá-la” e “Acuse-os do que você faz,
xingue-os do que você é” resumem às mil maravilhas a história do nosso
PT, que cresceu pelo discurso de acusação moralista ao mesmo tempo que
montava uma máquina de corrupção de dimensões faraônicas, perto da qual
os velhos políticos ladrões começam a parecer meninos de escola culpados
de roubar chicletes.
Era inevitável que, com o tempo, a forma mentis autonegativa do
movimento esquerdista se cristalizasse numa fórmula estratégica simples,
ingênua até, que por sua simploriedade mesma fosse de aplicação fácil e
lucrativa, reprodutível em escala mundial por simples automatismo.
Essa estratégia, cujo nome é hoje proclamado abertamente pelo sr. Hugo
Chávez, é a guerra assimétrica.
Ela consiste, como explica Jacques Baud em La Guerre Asymétrique ou la
Défaite du Vainqueur (Éditions du Rocher, 2003), em transformar as
derrotas militares em vitórias políticas por meio de um ardil psicológico:
outorgar a um dos lados, sob pretextos edificantes, o direito incondicional a
todos os crimes, a todas as brutalidades, a todas as baixezas, e desarmar o
outro por meio de cobranças morais paralisantes.
O que nem os praticantes nem os colaboradores passivos nem as vítimas
desse ardil parecem perceber é que ele traz em si a prova definitiva da
superioridade moral do adversário no mesmo momento em que acusa seus
supostos crimes e iniqüidades. É claro: se o acusado não fosse moralmente
sensível, consciencioso, escrupuloso, seria impossível inibi-lo mediante o
apelo a seus deveres éticos. E, se o acusador fosse por sua vez aberto a
esses mesmos deveres no plano da sua própria conduta, ele se sentiria
igualmente travado por escrúpulos e não haveria assimetria nenhuma. É
justamente o fato de dispensar-se das obrigações morais exigidas do
inimigo que dá ao praticante da guerra assimétrica a vantagem estratégica
da sua posição. É essencial para o sucesso desse ardil que o discurso de
acusação seja feito sempre pelo culpado contra o inocente, pelo criminoso
contra a vítima. O público e a totalidade dos colaboradores passivos usados
como caixas de ressonância do moralismo indignado nem de longe se dão
conta disso, mas o fato é que, quanto mais veemente a acusação, maior a
malícia do acusador e mais irrefutável a prova de seus crimes. A assimetria
consiste precisamente nisso.
Um exemplo didático, colhido da guerra entre Israel e o Hezbollah,
aparece no contraste entre as atitudes dos dois lados no que diz respeito às
vítimas civis. Enquanto na mídia ocidental os israelenses são condenados
como monstros porque mataram acidentalmente trinta civis num
bombardeio, em países islâmicos as matanças deliberadas de civis
israelenses pelos mísseis do Hezbollah são comemoradas como atos
meritórios. Se o leitor duvida, veja o documentário.[ 21 ] Os terroristas
sabem que as nações ditas infiéis, pecadoras, têm sentimentos morais,
enquanto eles próprios, os santos, os eleitos, não têm nenhum e não
precisam ter nenhum. Sua moral consiste apenas na glorificação descarada
dos próprios crimes – e é ela que lhes dá a vitória na guerra assimétrica.
Outros exemplos, ainda mais eloqüentes, estão nas fotos que ilustram esta
página. Tiradas numa passeata de militantes palestinos em Londres, foram
enviadas pela escritora Bella Jozef, uma judia brasileira residente na
Inglaterra, a amigos seus em várias partes do mundo, e vieram parar na
minha caixa postal. Enquanto na própria comunidade judaica muitos se
sentem inibidos de desejar em público a vitória de Israel, preferindo fazer
discursos tímidos e genéricos em favor da “paz”, elas mostram a verdadeira
face da ideologia radical islâmica, que a mídia ocidental, colaborando na
guerra assimétrica, esconde para dar feições mais humanas aos terroristas e
criar no mínimo uma impressão enganosa de equivalência moral. As
inscrições nestes cartazes dizem tudo. O que o “outro mundo possível”
promete conscientemente à humanidade, sob os pretextos mais sublimes, é
um novo Holocausto, de proporções colossais, e a liquidação de tudo o que
conhecemos como liberdade e direitos humanos.
7 de agosto de 2006
[ 20 ] Ver http://www.olavodecarvalho.org/semana/060611zh.html.
[ 21 ] O filme pode ser assistido em http://pmw.org.il/bulletins_Aug2006.htm#b020806.
O futuro da pústula

“Ah! Les idéaux, les idéaux! Les intentions, les intentions!”


(SERGIU CELIBIDACHE, regente de orquestra, ouvindo em Paris a narrativa de novas
brutalidades cometidas pelo regime comunista na sua Romênia natal.)

C
IRCULA PELA INTERNET – E ACABO DE RECEBER DE UM AMIGO – uma lista
dos crimes que envolvem de algum modo o PT e o sr. presidente da
República. São 190. Cento e noventa. Com um curriculum
delinqüencial trinta vezes menor, Fernando Collor já estava no olho da rua,
com a família em frangalhos, odiado pela população, humilhado pela mídia.
A diferença ostensiva de tratamento, amostra singela da guerra assimétrica
em escala local, é a prova mais evidente de que a “grande mídia” brasileira
perdeu os últimos escrúpulos de veracidade e já não tenta nem mesmo
fingir equilíbrio, imparcialidade, senso de justiça.
Mesmo depois de absolvido pela Justiça, anos após o seu impeachment,
Collor continuou sendo tratado como um delinqüente, um inimigo da pátria,
um réprobo. O sr. Luís Inácio, mesmo quando confessa abertamente seus
crimes,[ 22 ] ainda merece o respeito, a confiança e o carinho de todos.
Entre os formadores de opinião, mesmo aqueles que dizem fazer oposição
ao establishment petista têm o raciocínio travado por um preconceito, um
bloqueio íntimo, uma proibição absoluta de pensar mal da esquerda, do
partido governante e sobretudo do sr. presidente da República.
O sintoma mais alarmante desse preconceito é que a própria lista
mencionada acima, por mais impressionante que seja, não inclui o maior
delito de todos, a fundação do Foro de São Paulo, gigantesca societas
sceleris em que os grupos criminosos entram com o dinheiro do
narcotráfico e dos seqüestros enquanto os partidos oficiais lhes oferecem a
proteção de que precisam para circular pelo continente sem o menor risco
de prisão, exceto na Colômbia, o último país da América Latina onde ainda
existem leis.
O motivo dessa omissão é auto-evidente: a revolução cultural gramsciana
foi tão bem sucedida que já não há outro critério de julgamento a que se
possa apelar senão o conjunto de chavões esquerdistas que se impôs como
eficiente Ersatz de moralidade. Por mais que a elite esquerdista se esmere
em delinqüir, em mentir, em roubar, em matar, o máximo que se ousa fazer
contra ela é acusá-la de ser infiel a seus belos ideais. O dogma da pureza de
intenções tem de ser preservado a todo preço, mesmo diante das evidências
incontestáveis de maquiavelismo cínico, de total ausência de sentimentos
morais. Se até os inimigos do governo se apegam a essa última ilusão, é
porque sentem que, se desistirem dela, o chão se abrirá sob os seus pés. Mas
o chão já está aberto. Se ainda bóiam sobre o abismo, numa redoma de
sonhos, é pela força dos vapores infernais que sobem do fundo. Isto não é
um floreio de linguagem. É a fórmula exata de uma equação política na
qual o anseio de fingir confiança na estabilidade de instituições extintas,
assumindo a forma paradoxal de um culto ao governante que as destrói, só
ajuda a destruir ainda mais rapidamente o que resta delas.
Também não uso a palavra “paradoxo” a esmo. A lógica paradoxal não é
uma lógica de maneira alguma, mas é uma psicologia. Ela não apreende os
nexos entre proposições, mas as ligações irracionais que o cérebro sonso faz
entre semelhanças aparentes. Quem a domina faz do cérebro alheio o que
bem entender. Uma de suas aplicações mais notórias é o velho esquema
comunista de conquistar o poder absoluto mediante a “pressão de baixo”
articulada com a “pressão de cima”, aprisionando a vítima numa armadilha
de incongruências onde ela se debate em vão, desorientada e inerme. Os
acontecimentos da semana passada ilustram isso de maneira exemplar. De
um lado, o secretário da segurança pública de São Paulo acusou
publicamente o governo federal de fomentar e utilizar a onda de crimes do
PCC. O sr. presidente da República, se fosse inocente e honrado,
processaria imediatamente o acusador. Mas ele se limita a resmungar, ao
mesmo tempo que, oferecendo tropas federais ao governo estadual acossado
pela violência, coloca o adversário na posição humilhante de aceitar socorro
do bandido, ajudando-o a tirar proveito eleitoral da sua própria perfídia, ou
a arcar com as culpas do mal que ele lhe faz. O petismo triunfante nem tem
de lutar: basta-lhe deixar que o adversário se estapeie a si próprio.
O Brasil tornou-se uma pústula que se acomodou ao estado de pústula e se
recusa obstinadamente a estourar.
Não cabe nem mesmo ver nisso a derrota do sistema, a fraqueza das
instituições. O Brasil só tem uma instituição: a pústula. Ela é o sistema, ela
é as instituições. Ela impera, ela manda, ela sobrevive a tudo, alimentando-
se gostosamente da sua própria podridão e crescendo sem parar. Uma
vitória nada impossível do sr. Alckmin nas eleições pode trazer um alívio
temporário, mas esse alívio será inútil se a oposição não o aproveitar para
limpar-se da mitologia esquerdista que a paralisa e organizar-se para uma
luta ideológica em regra. Fora essa hipótese, na qual não acredito, o futuro
está garantido: Todo o poder à pústula!
***
Há anos venho investigando um fenômeno da história das idéias na
modernidade ocidental, ao qual dei o nome de “paralaxe cognitiva” e que
defino como o deslocamento entre o eixo da experiência real de um filósofo
e o eixo da sua construção teórica. Desde o início do estudo, cujos
resultados comecei a expor nos meus cursos em 2001 e nos meus artigos de
jornal em 2002, deixei claro que considerava esse fenômeno uma
anormalidade, um desvio da inteligência humana, que nele se mostrava
inferior ao padrão de exigência fixado pelos filósofos antigos. Entre os dois
eixos aparecia um escotoma, um ponto cego, evidenciando uma grave falha
de consciência que não seria de esperar nem mesmo em pessoas comuns,
quanto mais em pensadores de grande prestígio. O resultado era que, na
teoria, surgiam descontinuidades arbitrárias, abismos epistemológicos entre
aspectos da realidade que na própria experiência pessoal do pensador
respectivo se mostravam perfeitamente contínuos. O sintoma mais grotesco
era o filósofo enunciar teorias gerais sobre a espécie humana que,
miraculosamente, não se aplicavam à sua própria pessoa ou, pior ainda,
eram incompatíveis com o fato mesmo de ele estar escrevendo o que
escrevia.
Quando Kant, por exemplo, afirmava que só conhecemos as aparências
fenomênicas, mas não as coisas em si, essa asserção era incompatível com a
sua expectativa ingênua de que, partindo de um mero sinal sensível – as
letras impressas –, o leitor chegasse a apreender o núcleo do seu
pensamento. Se não podíamos saltar dos fenômenos sensíveis às suas
próprias substâncias, muito menos conseguiríamos, através deles, captar a
substância de uma intenção subjetiva significada por eles – um salto ainda
maior do que o requerido para apreender numa aparência de elefante a
realidade de um elefante. Se as palavras de Kant significavam alguma coisa,
a teoria enunciada por elas não significava nada, e vice-versa. A filosofia de
Kant, em suma, era incompatível com o fato de que podíamos lê-la nos
livros do autor.
Platão, Aristóteles ou Agostinho jamais pagaram mico semelhante. Talvez
por terem a noção clara de que a filosofia não era só uma disciplina escolar
mas uma regra de vida, eles nunca raciocinavam contra os dados da sua
própria consciência. Quando enfocavam um objeto, não o faziam só com a
habilidade raciocinante, mas com a totalidade operante da sua consciência
individual concreta. Dito de outro modo, falavam perfeitamente a sério.
Quando Platão situava os seres humanos entre os anjos e as bestas, ele sabia
que ele próprio estava lá. Quando Aristóteles definia o homem como animal
racional, ele deixava claro que ele próprio era um animal racional. Quando
Agostinho falava da inclinação natural do homem ao pecado, ele oferecia
como exemplo os seus próprios pecados. A realidade da qual esses filósofos
falavam era a mesma na qual viviam. Sua filosofia era uma reflexão sobre a
experiência, não a construção hipotética de um mundo inventado que, por
definição, não poderia conter a pessoa real do seu inventor. Não que nada
inventassem. Mas, quando inventavam, não vendiam sua invenção como
realidade. O que me surpreendeu foi descobrir a freqüência cada vez maior
com que os filósofos modernos foram se permitindo faltar com essa
obrigação, ensinando do alto de suas cátedras teorias com que, na sua vida
real, não poderiam concordar de maneira alguma, mas pretendendo que
seus ouvintes as recebessem como realidade pura.
A paralaxe assim definida é um fenômeno específico, perfeitamente
distinto, identificável historicamente.
Por isso mesmo convém explicar que esse fenômeno não tem nada a ver
com aquilo a que o filósofo esloveno Slavoj Zizek (creio que isto se
pronuncia Tchitchék) dá o mesmo nome no seu recente livro The Parallax
View (MIT, 2006), que ele próprio considera o seu magnum opus. Paralaxe,
para Zizek – autor bem conhecido no Brasil desde a edição de duas das suas
obras pela Boitempo –, é a descontinuidade entre uma coisa e a mesma
coisa vista sob outro aspecto qualquer. Por exemplo, as regras monásticas
de São Bento e a conta de telefone de um mosteiro beneditino. Ou o
conteúdo deste artigo e os problemas matrimoniais do jornaleiro da esquina.
Ou a filosofia de Slavoj Zizek e a fórmula da tinta com que seu livro foi
impresso. Zizek acredita piamente que o exame de qualquer idéia sob um
ângulo paralático tem o poder de revelar os pressupostos ocultos dessa idéia
– um método que subentende a total indistinção entre as conexões lógicas e
as curiosas coincidências. Entre os moleques da minha escola, chamávamos
a esse tipo de investigação “o estudo da influência das barbatanas de
tubarão nas marés”, mas creio que nisso ainda estávamos mais perto de
alguma continuidade efetiva.
A paralaxe como a entende Zizek já era conhecida pelos antigos gregos,
que a denominavam “metábasis eis allo guénos”, confusão de gêneros, e
abandonaram o seu estudo por não querer dispersar neurônios com uma
coleção infinita de semelhanças e diferenças irrelevantes. Aristóteles, com
sua distinção entre os significados múltiplos do ser, e Leibniz, com a
observação de que cada mônada contém em si a infinidade de suas
diferenças para com todas as outras, disseram tudo o que havia para dizer
de importante a respeito. Mas Zizek acredita ver em cada exemplo de
paralaxe (no sentido dele) uma antinomia absoluta, insuperável
dialeticamente, o que leva, em última instância, a admitir que a
impossibilidade de fazer um gato empalhado miar é um problema filosófico
tragicamente sério.
Para alívio geral da inteligência humana, no entanto, em muitos casos a
descontinuidade alegada por Zizek não existe a não ser para quem imagina
que ela existe. O exemplo mais lindo é o que ele chama de “paralaxe
vaginal”. Sob esse nome ele designa a existência de um “abismo ontológico
absoluto” entre a vagina considerada como canal do prazer e como conduto
do parto. Esse abismo pode ser um problema para quem sinta dificuldade de
ereção quando pensa em tornar-se pai, mas, nós, que já nos acostumamos
com a idéia, não precisamos nos preocupar com ele de maneira alguma, de
vez que até as prostitutas de rua se permitem ignorá-lo solenemente quando
nos convidam a fazer nenéns. Na verdade, a síntese dialética entre os dois
aspectos da vagina não somente existe como também – quem diria? – já foi
descoberta pela ciência: chama-se “gravidez”.
No fundo, porém, acho a filosofia de Zizek perfeitamente razoável. Como
o objetivo que ele busca declaradamente atingir com ela é a restauração do
materialismo dialético, o apelo a um método desesperado é uma simples
questão de lógica. E, como ele mesmo afirma que a única razão para adotar
esse método é “a decisão política” de fazer isso, temos de admitir que ele
está no pleno uso das suas garantias constitucionais. Nos tempos em que o
materialismo dialético era doutrina oficial na Eslovênia, ele seria fuzilado
se dissesse que para justificá-lo era preciso ir tão longe. Mas, numa
democracia, é direito do cidadão fazer o que bem entenda com a sua própria
filosofia.
O que não creio de maneira alguma é que exista descontinuidade
ontológica absoluta, ou mesmo relativa, entre as doutrinas de Slavoj Zizek e
o fato de que ele seja um dos filósofos prediletos do dr. Emir Sader, mentor
da Boitempo. Ao contrário: eu diria até que eles foram feitos um para o
outro.
14 de agosto de 2006

[ 22 ] Ver http://www.olavodecarvalho.org/semana/050926dc.htm.
Ensaio de patifaria comparada

A
SITUAÇÃO NA TERRINHA ANDA TÃO DEPRIMENTE que se tornou uma
questão de auxílio humanitário lembrar aos brasileiros, de tempos em
tempos, que o nosso país não tem o monopólio da patifaria universal.
A propaganda anti-religiosa espalhada por ONGs milionárias, por
intelectuais ativistas e pela mídia chique nos EUA tem apelado a
expedientes tão mesquinhos, tão sórdidos, que às vezes chego a me
perguntar se não fui demasiado impiedoso com os vigaristas nacionais em
O Imbecil Coletivo.
O artigo que reproduzo abaixo foi escrito originariamente em inglês para
um público americano, mas, tão logo botei nele um ponto final, achei que
seria útil para os meus compatriotas, não só pelo que informa da guerra
cultural nos EUA, mas por fornecer um exemplo de como as sociedades
altamente desenvolvidas são também altamente desenvolvidas no que não
presta. Espero que sirva de consolo aos leitores do noticiário nacional da
semana.
O motivo que me levou a escrevê-lo foi um artigo cheio de golpes baixos
publicado pelo prestigioso biólogo Jerry Coyne em The New Republic, uma
revista esquerdista que, em geral, é anormalmente decente. O autor da
coisa, irritado com a articulista conservadora Ann Coulter, tentava
desmoralizá-la esfregando no nariz dela suas credenciais acadêmicas de
professor da Universidade de Chicago; mas, levado pelo ódio
emburrecedor, acabava apresentando argumentos que fariam corar de
vergonha o próprio dr. Emir Sader, se não padecesse de icterícia mental.
A sra. Coulter disputa com Rush Limbaugh e Michael Savage o primeiro
lugar na lista dos colunistas mais odiados pelo establishment de esquerda. O
currículo que ela apresenta para isso constitui-se de uma língua ferina
vitaminada por um senso de humor desconcertante e uma capacidade de
pesquisa fora do comum. Além disso, como a mulher é bonitona, fica mais
irritante ainda. Sua popularidade cresceu a tal ponto que uma fábrica de
brinquedos fez dela o modelo para uma bonequinha da série Barbie: você
aperta a barriguinha dela e ela diz coisas horríveis contra os esquerdistas.
O prof. Coyne ficou especialmente revoltado com o último livro da sra.
Coulter, Godless: The Church of Liberalism, “Os Sem Deus: A Igreja do
Esquerdismo” (Crown Forum, 2006), que submete a seita esquerdista-
materialista-evolucionista a um tratamento tão sádico quanto merecido.
Para insinuar que a dona estava enfeitiçada, o cientista de Chicago deu a
seu artigo de protesto o título trocadilhesco de “Coultergeist” e anunciou
solenemente sua intenção de exorcizar a sra. Coulter mediante a água benta
da sua erudição biológica. Infelizmente, a raiva foi tanta que o capeta
acabou se apossando é da mente do professor, induzindo-o a exibições de
raivinha mais próprias da inveja feminina do que da investigação científica.
Mas não pensem que esse artigo constitui uma exceção aberrante. O que
me chamou a atenção nele foi, ao contrário, a sua tipicidade: querendo
contestar o retrato cruel que Ann Coulter fizera da tribo intelectual
esquerdista, o prof Coyne o ilustra com exatidão milimétrica.
Esperei uns dias e, como ninguém respondesse ao professor, resolvi fazê-
lo eu mesmo, escrevendo, a duras penas, em língua de gringo, que aqui
retraduzo em português:
O MODO DE RACIOCINIO DO PROF. COYNE
Ao comentar o artigo do prof. Jerry Coyne, “Coultergeist” (The New
Republic, online, 31 july 2006) não tentarei defender Ann Coulter – eu
poderia antes tomar lições dela sobre como defender-me a mim mesmo.
Nem prodigalizarei aos gentis leitores as minhas eruditíssimas opiniões
sobre evolução, design inteligente, etc., pela simples razão de que não tenho
nenhuma. Concedendo à minha irresoluta pessoa o direito de permanecer
em dúvida em questões nas quais as certezas absolutas são tão abundantes
hoje em dia, deixarei de lado essas altas matérias, limitando-me a enfocar
alguns dos argumentos do prof. Coyne, os quais ilustram de maneira muito
didática como a profunda ignorância de um assunto não é jamais obstáculo
a que alguém o discuta com elevada autoridade científica.
De modo geral, boa parte da atividade acadêmica hoje em dia consiste em
delimitar com cuidadosa precisão as fronteiras de um campo especializado
de pesquisas e, com base na autoridade adquirida no seu estudo, dar
opiniões sobre tudo o mais.
Como tarimbado professor de ecologia e evolução da Universidade de
Chicago, o prof. Coyne está habilitado a afirmar que faltam à sra. Coulter as
habilidades acadêmicas requeridas para a discussão desses assuntos. Mas,
das 2432 palavras do artigo que ele escreveu contra ela, só 179 são
argumentos científicos especializados. Ao longo das restantes 2253, o prof.
Coyne, que tão modestamente havia se furtou a nos oferecer uma exibição
plena da sua alegada superioridade profissional, presenteia os leitores com
suas idéias sobre história, filosofia, política e religiões comparadas, entre
outros campos nos quais suas credenciais acadêmicas são tão minguadas
quanto as da sra. Coulter em biologia.
A falta de educação acadêmica numa área especializada não é em si prova
de ignorância total nessa área. O que distingue o prof. Coyne é que ele
condensa na sua pessoa ambas essas carências ao mesmo tempo. Ele
realmente não sabe nada de assuntos que não pertencem à sua esfera de
competência universitária, e esta é precisamente a razão pela qual ele
imagina que pertencem.
O seguinte parágrafo fornece um exemplo do que estou dizendo:
O erro de igualar o darwinismo a um código de conduta leva Coulter a formular a sua acusação
mais idiota: a de que o Holocausto e os inumeráveis crimes de Stalin podem ser jogados na cara
de Darwin. ‘De Marx a Hitler, os homens responsáveis pelos maiores morticínios em massa do
século XX foram ávidos darwinistas.’ Quem quer que seja religioso deve tomar muito cuidado ao
dizer uma coisa dessas, porque, ao longo da história, mais matanças foram feitas em nome da
religião do que de qualquer outra coisa.
Poucos autores poderiam superar o prof. Coyne em sua habilidade de
comprimir tanta ignorância histórica em tão escasso número de linhas. É
claro que a biologia evolucionária e a ideologia evolucionária podem ser
distinguidas conceptualmente, e de fato o são para fins práticos e
pedagógicos. É igualmente óbvio que a primeira pode ser defendida nos
seus próprios termos, sem necessidade de recorrer a argumentos extraídos
da segunda. Mas isso não significa que na sua origem elas fossem campos
separados e irrelacionados, que só vieram a ser unidos por um artifício
retórico concebido ex post facto pela malvada sra. Coulter. Nenhum
historiador sério ignora que a ideologia evolucionária, tal como concebida
por Herbert Spencer, precedeu e inspirou Charles Darwin.[ 23 ] Nem ignora
que Darwin, como biólogo, aceitava de bom grado a conseqüência prática
mais terrível daquela ideologia, isto é, a necessidade de exterminar raças e
povos inteiros em proveito da “evolução”[ 24 ]; nem que, imediatamente
após ter sido formulado como teoria biológica, o evolucionismo foi posto
de novo a serviço da ideologia, e isto por obra de biólogos evolucionistas
eminentes e não de algum doutrinário alheio aos estudos científicos.[ 25 ]
Historicamente, a evolução como ideologia e a evolução como teoria
biológica estão tão entrelaçadas que só puderam ser separadas por uma
distinção abstrativa posterior e pela conseqüente decisão administrativa de
enviar uma delas ao departamento de História e a outra ao departamento de
Ciências Naturais. Como o prof. Coyne é demasiado preguiçoso para
atravessar a distância entre esses dois edifícios universitários, ele termina
por tomar uma abstração mental como realidade histórica, e depois inverte
os termos da sua própria confusão para debitá-la na conta da sra. Coulter.
Fortalecido pelo sucesso imaginário do seu argumento ginasiano, o prof.
Coyne rapidamente descarta a afirmativa da sra. Coulter de que “os maiores
assassinos em massa do século XX foram ávidos darwinistas”, como se
fosse demasiado estúpida para ser discutida, quando, na verdade, ela é um
fato histórico bem estabelecido. Entre os muitos livros que eliminam toda
dúvida razoável quanto às crenças evolucionistas de Marx, Lenin, Stalin,
Hitler e Mao Tse Tung, o prof. Coyne poderia ao menos ter checado alguns
poucos,[ 26 ] se ele não fosse antes inclinado a respaldar-se na sua própria
imaginação como fonte historicamente confiável.
No entanto, não seria justo dizer que o prof. Coyne nem mesmo tenta
raciocinar contra a afirmativa da sra. Coulter. Ele chega a construir contra
ela uma sentença inteira: “Não me lembro de qualquer menção ao
darwinismo no julgamento dos Médicos de Moscou.” Infelizmente, a
tentativa erra o alvo por muitas milhas. O fato de um determinado princípio
geral não ser alegado em defesa de um certo argumento específico não
prova que ele não seja uma das premissas em que esse argumento se baseia.
Ao contrário, quanto mais um princípio é geralmente aceito como senso
comum, menos necessidade há de apelar explicitamente a ele em qualquer
discussão específica. Na circunstância precisa apontada pelo prof. Coyne, o
recurso a argumentos evolucionistas estaria aliás bastante fora do lugar, de
vez que os réus (acusados de tentar envenenar Stalin) não eram membros da
classe burguesa “atrasada” mas traidores pertencentes à própria elite
partidária “progressista”. Quem quer que tenha se beneficiado de uma
formação científica deveria estar apto a distinguir entre o argumento
pertinente e uma desconversa extravagante. O prof. Coyne não está.
Mas, antes de encerrar o seu parágrafo, o prof. Coyne ainda teve tempo
para enriquecê-lo com um mantra que, embora ele não o saiba, foi
originariamente concebido para ser repetido pelos iletrados do mundo:
“Mais matanças foram feitas em nome da religião do que de qualquer outra
coisa.” Tanto quanto a evolução animal, o fenômeno dos homicídios em
massa é objeto de investigação científica que requer observação acurada e
rigoroso método lógico, aos quais deve-se acrescentar o alto nível de
seriedade moral comproporcionado à natureza do assunto. Nenhum
historiador profissional ignora que os homicídios em massa devidos a
conflitos religiosos, por mais horror que nos inspirem, jamais produziram
um número de vítimas nem mesmo remotamente comparável ao dos
modernos movimentos revolucionários inspirados em ideologias
“científicas”. O mais completo estudo quantitativo do assunto foi feito por
R. J. Rummel, professor emérito de ciência política na Universidade do
Havaí. As conclusões de sua pesquisa de quatro décadas são apresentadas
nos livros Understanding Conflict and War, 5 vols., Thousand Oaks (CA),
Sage Publications, 1975-1981, e Death By Government, New Brunswick
(NJ), Transaction Publications, 1994. Ampliando o conceito para além da
nuance racial implícita na palavra “genocídio”, o prof. Rummel propõe o
termo “democídio” para descrever de maneira mais genérica as matanças de
povos inteiros. O desenho que ele obtem do estudo dos homicídios em
massa ao redor do mundo não difere, em substância, do consenso usual dos
historiadores, mas lhe acrescenta a precisão do método quantitativo e a
nitidez das escalas comparativas. Em suma, o número de seres humanos
mortos em menos de oito décadas pelas duas ideologias evolucionistas,
nazismo e comunismo (140 milhões de pessoas), ultrapassa em dez milhões
a taxa total de mortos dos homicídios em massa conhecidos no mundo
desde 221 a.C. até o começo do século XX, dos quais os resultantes de
motivos religiosos são apenas uma fração, e a parte devida aos cristãos uma
fração da fração.
É absolutamente inútil alegar, como alguns inevitavelmente farão, que as
ideologias evolucionistas não são pura ciência, na medida em que a mesma
falta de pureza original pode ser legitimamente imputada às motivações
religiosas dos cruzados ou dos inquisidores. Ademais, no que concerne ao
cristianismo em especial, nenhum sinal de anuência à necessidade de
homicídios em qualquer número que fosse está nem remotamente presente
no Evangelho, ao passo que o pai fundador do evolucionismo científico foi
suficientemente explícito ao declarar que as matanças em massa deveriam
ser aceitas como um fenômeno evolutivo normal como qualquer outro.
Mais significativo ainda é o fato de que a Igreja não apelou a nenhum tipo
de brutalidade antes de decorridos muitos séculos da sua fundação, ao passo
que o evolucionismo já serviu de estimulante a uma das ideologias
revolucionárias logo após a publicação de A Origem das Espécies, e à outra
umas décadas depois, graças sobretudo aos esforços do segundo-no-
comando das hostes evolucionistas, Ernst Haeckel. A afirmação do prof.
Coyne de que “Se Darwin é culpado de genocídio, Jesus Cristo também é”
não passa de um aberrante jogo de palavras nascido de uma mistura de
ignorância histórica e ódio anti-religioso vulgar.
Essa mesma mistura leva o prof. Coyne a ostentar, como prova de que a
religião é a causa universal das violências, a afirmação ridícula de que “a
razão pela qual Hitler escolheu os judeus (como alvos de perseguição) foi
que os cristãos os encaravam como assassinos de Cristo”. Bem, como
Hitler, segundo declarou a Hermann Rauschning, estava abertamente
interessado em “esmagar a Igreja como quem pisa num sapo”, é difícil
acreditar que estivesse também ansioso por vingar-se do assassinato de
Cristo, já que isso implicaria logicamente que além dos judeus ele atacasse
também os herdeiros professos do Império Romano, isto é, os fascistas
italianos, que no entanto ele escolheu como seus mais queridos aliados.
Nenhum historiador especializado do período tendo jamais sustentado a
idéia de que o Evangelho fosse uma influência importante na formação da
mente de Hitler, a maioria deles reconhece no entanto que autores
evolucionistas como Houston Stewart Chamberlain, Edgar Dacqué, Ernst
Haeckel e Fritz Lenz tiveram um papel essencial na origem da futura
ideologia nazista. Chamberlain apela explicitamente a motivos darwinianos
como argumentos contra os judeus. Mais significativamente ainda, a maior
parte das doutrinas racistas alemãs já estava pronta para uso antes mesmo
de que Hitler estreasse na política. Elas foram criadas por importantes
biólogos evolucionistas da Liga Monista Alemã, cujas doutrinas foram
subseqüentemente incorporadas pelo Partido Nazista. O fundador da Liga,
Hawckel, fazia pregação anti-semita desde pelo menos 1893. Ele era um
materialista que via o cristianismo como “o principal obstáculo à vitória da
ciência”.[ 27 ] Obviamente o prof. Coyne não tem a capacidade (ou a
vontade) de distinguir entre uma crença doutrinal genuína e uma frase-de-
efeito adotada hipocritamente muito depois como incidental e secundário
artifício de propaganda, usado, aliás, menos como um meio de seduzir a
platéia religiosa séria (Hitler não tinha ilusões quanto a isso), do que como
camuflagem para desviar a atenção popular das perseguições em massa
impostas aos cristãos.
Não comentarei as linhas que o prof. Coyne gasta em falsear as credenciais
acadêmicas alheias para enaltecer as suas próprias, nem as insinuações
mesquinhas com que ele tenta ferir a Sra. Coulter na sua dignidade
feminina. O modo de raciocínio do prof. Coyne já fornece prova suficiente
da sua baixeza de caráter e da sua total falta de integridade intelectual, de
modo que posso me dispensar de sondar as camadas mais profundas de uma
mentalidade fedorenta.
21 de agosto de 2006

[ 23 ] O evolucionismo social de Spencer, que inclui rudimentos de uma teoria da evolução


biológica semelhante à de Darwin, foi exposto no seu livro Social Statics, publicado em 1850, nove
anos antes de The Origin of Species. Foi Spencer, não Darwin, quem criou a expressão
“sobrevivência do mais apto”. Darwin leu e elogiou o livro, e muito do seu trabalho posterior é uma
longa discussão amigável com Spencer. V. Robert J. Richards, “The Relation of Spencer’s
Evolutionary Theory to Darwin’s”, em http://home.uchicago.edu/~rjr6/articles/Spencer-London.doc –
um trabalho que o prof. Coyne deveria conhecer, já que o autor é seu colega na Universidade de
Chicago.
[ 24 ] “Em algum período futuro, não muito distante se medido em séculos, as raças civilizadas do
homem quase que com certeza exterminarão e substituirão as raças selvagens ao redor do mundo. Ao
mesmo tempo, os macacos antropomorfos serão sem dúvida exterminados. A distância entre o
homem e seus parceiros mais próximos será então maior.” (Charles Darwin, The Descent of Man, 2nd
ed., New York, A. L. Burt Co., 1874, p. 178).
[ 25 ] Por exemplo, Thomas Huxley, o mais importante evolucionista inglês depois de Darwin,
escreve: “Nenhum homem racional, conhecendo os fatos, acredita que o negro médio seja igual, e
muito menos superior, ao homem branco.” (Thomas H. Huxley, Lay Sermons, Addresses and
Reviews, New York, Appleton, 1871, p. 20.)
[ 26 ] Sugiro: Daniel Gasman, The Scientific Origins of National-Socialism, New Brunswick (NJ),
Transaction Publishers, 2004; James Reeeve Pusey, China and Charles Darwin, Harvard University
Press, 1983; Richard Weikart, Socialist Darwinism. Evolution in German Socialist Thought From
Marx to Bernstein, San Francisco (CA), International Scholars Publications, 1999; Richard Weikart,
From Darwin to Hitler. Evolutionary Ethuics, Eugenics and Racism in Germany, New York,
Palgrave, 2004.
[ 27 ] Gasman, p. 55.
A direita autocastrada

Q
UANDO ME PERGUNTAM COMO QUEBRAR A HEGEMONIA esquerdista, a
primeira fórmula que me ocorre é a do poeta austríaco Hugo von
Hofmannsthal: “Nada se torna realidade na política de um país se
antes não está presente, como espírito, na sua literatura.” A palavra
“literatura”, aí, tem a acepção ampla de cultura superior escrita. Criem uma
cultura superior na qual predominem os valores liberais e conservadores, e
a esquerda não terá mais chance na política. Este resultado não se seguirá
automaticamente, é claro, mas sem essa limpeza prévia do terreno mental
nenhuma iniciativa política poderá prosperar contra o esquerdismo
triunfante e monopolístico.
Entrem numa livraria qualquer e verão nas prateleiras a demonstração
clara do que estou dizendo: a ascensão do império petista foi precedida de
meio século de ocupação do espaço cultural. Antes de o Estado ser engolido
pelo PT, impregnaram-se de esquerdismo militante as idéias, os juízos de
valor, as palavras, os sentimentos, até as reações automáticas de aplauso e
rejeição. A esquerda dominou de tal modo o imaginário nacional que até
quem a detesta não ousa criticá-la senão nos termos dela, como se fosse
possível derrotar politicamente o inimigo fortalecendo o controle ideológico
que ele exerce sobre a sociedade. Políticos tarimbados como os srs. Marco
Maciel, José Sarney ou Cláudio Lembo mimetizam o discurso
politicamente correto, esperando atenuar sua imagem de “direitistas” e só
conseguindo com isso atrair, junto com o ódio usual, uma boa dose de
desprezo.
Essa falsa esperteza, tão miúda e provinciana quanto suicida, é o máximo
de inteligência estratégica que um exame histológico atento revelará nos
cérebros dos políticos “de direita” neste país. Com a colaboração
prestimosa e servil dessas criaturas, os critérios e juízos de valor
esquerdistas se impregnaram tão profundamente na mentalidade das classes
falantes que já não são reconhecidos como tais: tornaram-se dogmas do
senso comum. Nessa atmosfera, não é de estranhar que os eventuais
opositores do governo já nem mesmo consigam imaginar o que é uma luta
política, mas entendam sob esse termo a mera concorrência eleitoral. Essa é
a diferença, no Brasil, entre a esquerda e a “direita”: a primeira quer o
poder, a segunda quer apenas mandatos. Mandatos conquistam-se nas
eleições; a luta pelo poder abrange um território muito mais amplo. Eleição
não é política, é o resultado de uma política preexistente que começa no
fundo anônimo e obscuro da sociedade, naquela camada quase invisível
onde a hegemonia cultural se traduz como influência sutil exercida sobre as
emoções básicas da população.
A esquerda sabe disso, a “direita” não. Os partidos de esquerda marcam
sua presença numa variedade impressionante de campos da vida social –
escolas, sindicatos, campanhas humanitárias, clínicas de psicoterapia e
aconselhamento, telas de cinema, exposições de arte, novelas, programas
culturais e educativos da TV, o diabo. A direita só é visível nos comitês
eleitorais, às vésperas da votação. Isso é assim já faz muitos anos. Quem
quer que tivesse observado esse fenômeno, como eu observei, teria
chegado, como cheguei há mais de uma década, à conclusão de que a total
esquerdização da vida política nacional era não só previsível como
inevitável a prazo mais ou menos curto. Os inumeráveis idiotas – políticos,
empresários, intelectuais, oficiais militares – a quem expus essa conclusão
em tempo de reverter o processo, e que riram dela do alto de sua ignorância
presunçosa, olhavam apenas o panorama eleitoral e, vendo ali a vitória fácil
de um Collor, de um Fernando Henrique, proclamavam: a esquerda jamais
dominará este país.
Ainda às vésperas das eleições de 2002, algumas dúzias desses sábios,
selecionados entre brasileiros e brazilianists, consultados pelo Los Angeles
Times, asseguravam que Lula não teria mais de trinta por cento dos votos.
Não entendiam que os resultados das eleições anteriores refletiam apenas o
conservadorismo residual da população brasileira, o qual, desprovido de
canais de expressão cultural e partidária, acabaria por ceder terreno à
invasão esquerdista. Tanto mais que esta última tomava o cuidado de não se
apresentar ostensivamente como tal, camuflando-se de “populismo”
ideologicamente neutro e ludibriando até observadores estrangeiros
experientes como Mário Vargas Llosa.
Chamemos de direita, para fins de raciocínio, o conjunto heterogêneo e
inorganizado dos que não querem viver sob o socialismo. Eles constituem,
segundo uma pesquisa da Folha de S. Paulo, 47 por cento da população
brasileira, face a 30 por cento de esquerdistas professos. Os restantes 23 por
centro definem-se como centristas, com a ressalva de que aquilo que
imaginam como centrismo inclui o apoio ostensivo a propostas
conservadoras em matéria de moral e segurança pública. Com ou sem
nome, a direita é 70 por cento dos brasileiros. Um programa político
ostensivamente conservador teria portanto sucesso eleitoral garantido. Mas,
como esse programa não existe – e se tentasse existir teria de vencer em
primeiro lugar o desafio de criar uma linguagem própria num panorama
semântico já totalmente impregnado de esquerdismo –, o resultado é que a
população conservadora acaba votando em candidatos de esquerda nos
quais não percebe esquerdismo nenhum mas apenas as qualidades externas
mais afins à exigência conservadora, a começar, é claro, pela honestidade e
honradez. Mas que honestidade e honradez pode haver em políticos que
passam o tempo todo tentando parecer o que não são? E qual político
brasileiro, de esquerda ou “direita”, se ocupa hoje de alguma coisa que não
seja precisamente isso?
Assim, toda a política brasileira tornou-se um sistema de armadilhas e
auto-enganos: o eleitorado vota maciçamente em candidatos que
representam o contrário simétrico das suas aspirações, os políticos que
poderiam representar essas aspirações recusam-se obstinadamente a fazê-lo
e se apegam à busca de uma sobrevivência degradante por meio da
parasitagem servil do discurso adversário. É tudo fingimento, hipocrisia,
teatro, camuflagem, desconversa. Nenhuma discussão objetiva do que quer
que seja é possível nessas condições. Os tais “problemas nacionais” podem
esperar sentados: nenhuma discussão política, pelos próximos anos, tocará
em nada que tenha algo a ver com a realidade. Nossa única esperança de um
despertar coletivo é o programa comunista do Foro de São Paulo alcançar
sucesso total e, tranquilizado pela ausência de oposições, arrancar
finalmente a máscara e dizer a que veio. Aí a platéia chocada perceberá que,
por décadas, viveu entre as névoas de uma fantasia entorpecente. Mas essa
tomada de consciência tardia já não servirá para nada, exceto para produzir
lágrimas inúteis em torno da vida que poderia ter sido e que não foi.
Entre os homens da “direita”, muitos teimaram em recusar os meus
diagnósticos, ao longo dos anos, sob o pretexto de que eu era demasiado
pessimista. Nem percebiam o quanto sua resposta provava o que eu dizia.
Pessimismo e otimismo são atitudes da mente, são estados subjetivos. Não
têm nada a ver com a situação externa, com a realidade das coisas. É
possível ser pessimista diante de uma situação objetivamente positiva e
otimista quando tudo está perdido. Quando uma descrição do estado de
coisas é rejeitada por ser “pessimista”, é claro que o ouvinte está
respondendo na clave dos seus estados emocionais e não no da percepção
da realidade. Ele não está impugnando um diagnóstico: está reagindo contra
os sentimentos desagradáveis que ele lhe infunde. É uma mera reação de
autodefesa psicológica, uma autovacina contra a depressão pressentida. Só
reage assim quem está fragilizado demais para abstrair-se de estados
emocionais e concentrar a atenção na realidade. Os fortes não têm medo de
encarar o pior: os fracos fogem dele porque sua mera visão os esmaga.
Aquelas afetações de otimismo, fingindo desprezo superior ante as minhas
análises deprimentes, não eram senão sintomas de debilidade terminal. A
liderança “direitista” já não tinha força nem para admitir sua própria
fraqueza.
Um pouco mais adiante, ela agravou mais ainda a sua situação, quando,
após a revelação dos crimes do PT, perdeu a oportunidade de denunciar
toda a trama comunista do Foro de São Paulo e, por covardia e comodismo,
se limitou a críticas moralistas genéricas e sem conteúdo ideológico. Estas
podiam facilmente ser apropriadas pela esquerda, e de fato o foram.
Rapidamente alguns ratos abandonaram o navio petista e trataram de tirar
proveito do naufrágio, sendo ajudados nisso pela recusa obstinada da
“direita” de falar de assuntos politicamente incorretos O único resultado
objetivo alcançado pelas denúncias de corrupção no governo foi a ascensão
da sra. Heloísa Helena nas pesquisas eleitorais. Agradeçam esse resultado à
autocastração voluntária da liderança “direitista”.
28 de agosto de 2006
Palhaçada ao quadrado

N
ÃO ENTENDO POR QUE TANTAS PESSOAS SE ESCANDALIZARAM com as
coisas que Luis Carlos Barreto, Paulo Betti, José de Abreu e outros
que tais disseram, numa festinha do ministro Gil, em louvor de
mensalões e mensaleiros.
Desde logo, o que quer que esses sujeitos digam tem o peso cultural de
uma descarga de gases intestinais. Não há entre eles um só intelectual de
verdade, um só homem de estudos cuja opinião mereça ser ouvida. São
todos semiletrados, bobos, provincianos e desesperadoramente irrelevantes
(o único que tinha alguma inteligência, Ariano Suassuna, está
completamente gagá).
Em segundo lugar, são todos comedores vorazes de verbas estatais, e não
poderiam senão admirar e invejar os que conseguiram ingerir quantidades
dessa substância ainda maiores, talvez, do que aquelas que eles próprios
absorveram (o sr. Barreto, aliás, desde os tempos da ditadura).
Em terceiro, não creio que sua atitude seja substantivamente pior que a
daqueles que, tendo impingido à nação a mentira estúpida da santidade do
PT, e condenado às penas do inferno quem quer que não jurasse pela sua
bíblia, de repente saem com um discurso antipetista no mesmo tom de
pureza moral e autoridade infalível, sem ao menos pedir desculpas pela
enormidade do mal que fizeram. Talvez os Barretos e Bettis sejam até um
pouco mais respeitáveis, no sentido de que são maquiavelistas assumidos,
adeptos confessos do crime bem sucedido, como o foram Marx, Lênin,
Stálin, Che Guevara e Carlos Lamarca. Em comparação com eles, como
julgar, por exemplo, um João Ubaldo Ribeiro, que num dia choraminga no
túmulo de suas esperanças lulistas perdidas, e no dia seguinte, mais que
depressa, trata de se fazer de bom menino ante o alto escalão do PT
assinando um manifesto contra o fim da ditadura comunista em Cuba?
Guardadas as devidas proporções, os Bettis estão para os Ubaldos como o
sr. Marcola está para o dr. Márcio Thomaz Bastos. Entre o cinismo e a
hipocrisia, qual a virtude mais admirável? Entre les deux mon coeur
balance.
Resta, por fim, analisar a conduta dos comensais do sr. Gil como expressão
local, exageradamente caricatural portanto, da debacle geral da
intelectualidade esquerdista no mundo. Trinta ou quarenta anos atrás, havia
um Jean-Paul Sartre, um Lucien Goldmann, um Herbert Marcuse. Eram
picaretas, mentirosos e farsantes como todos os intelectuais de esquerda,
mas tinham algum talento, alguma substância. Hoje em dia os esquerdistas
mais inteligentes que sobraram são Slavoj Zizek, Antonio Negri e István
Mészáros (excluo Noam Chomsky, cujos livros políticos são apenas
propaganda enganosa, sem elaboração intelectual por mais mínima que
seja). Nenhum deles suportaria dez minutos de debate com o mais humilde
discípulo de Leo Strauss, Eric Voegelin, Thomas Sowell ou Roger Scruton
(por isso mesmo têm a prudência de só discutir entre si, guardando distancia
dos conservadores). A média dos intelectuais esquerdistas na Europa e nos
EUA está na altura de Michael Moore ou Al Franken. Para fazer picadinho
deles não é preciso um filósofo. Ann Coulter e Rush Limbaugh dão conta
do recado.
Com alimento importado tão escasso, não é de espantar que a esquerda
falante brasileira descesse de Caio Prado Júnior a Emir Sader, de Álvaro
Lins a Gilberto Felisberto de Vasconcelos e de Glauber Rocha a Gilberto
Gil. Esses sobreviventes são casos desesperados de raquitismo intelectual,
mas os Bettis e Barretos, como discípulos deles, estão em estado ainda mais
alarmante.
O próprio Gil, chamado certa vez por José Guilherme Merquior de
“pseudo-intelectual de miolo mole” junto com Caetano Veloso, disse que,
aplicado a Caetano, o rótulo era “quase injusto”, subentendendo que no seu
próprio caso era de uma exatidão impecável. Prestadores de homenagens a
um pseudo-intelectual de miolo mole são aspirantes a pseudo-intelectuais
de miolo mole. São caricaturas de uma caricatura.
Escandalizar-se com o que disseram é esperar que representassem com
alguma dignidade o papel de intelectuais. Mas ninguém pode representar
com dignidade uma palhaçada em segunda potência.
29 de agosto de 2006
Valei-me, Alborghetti!

N
O MOMENTO EM QUE ESCREVO, DOMINGO À TARDE, ainda não sei se
amanhã o pedido de impeachment presidencial apresentado pela
empresária paulista Ana Prudente será lido da tribuna da Câmara,
como exige a lei, ou será encoberto por densas camadas de silêncio e
desconversa, como já se tornou de praxe. É o empreendimento mais sério e
corajoso que já se tentou para acabar com a orgia petista (macheza, no
Brasil de hoje, só de saias), mas não creio que chegue a tocar a
sensibilidade moral dos parlamentares, que não têm moral nenhuma e são
sensíveis como uma casca de tartaruga empalhada. Caso venha a ser lido,
provavelmente será abafado na mídia. Já nada espero, da quase totalidade
das nossas lideranças políticas, militares, jornalísticas ou empresariais (não
falo das intelectuais porque não existem) senão atitudes cada vez mais
covardes e cínicas, numa progressão geométrica de abjeções jamais vista
em parte alguma ao longo de toda a História da sem-vergonhice universal.
O povo não apenas consente em tudo, mas quase infalivelmente dará sua
aprovação ostensiva ao estado de coisas, reelegendo essa criatura
mentalmente disforme e fisicamente desprezível cujo traseiro ocupa a vaga
que um dia foi de Juscelino Kubitscheck e Humberto Castelo Branco.
Os brasileiros desceram tanto que já não têm a medida de quanto se
tornaram mesquinhos, torpes, miseráveis. Têm até o desplante de achar que
são normais, que o restante da humanidade é igual a eles.
A sujeira em que se meteram é tão funda, que já não sabem onde foi parar
a superfície. Ouvem falar do dia claro e acham que é propaganda
imperialista. Ficam com medo da escuridão que eles próprios geraram e,
para fugir dela, fecham os olhos. O Pythecanthropus erectus já havia
descoberto que isso não funciona, mas esse conhecimento, no Brasil de
hoje, tornou-se um segredo esotérico só acessível a meia dúzia de iniciados.
A única linguagem na qual ainda cabe falar deste país e do povo que o
habita é a do repórter policial Luiz Carlos Alborghetti, um tipo admirável
mas, infelizmente para mim, inimitável.[ 28 ] Sei dizer palavrões, como ele,
mas odeio gritar. Prefiro rosnar impropérios direto no ouvido dos
destinatários, poupando de constrangimentos os circunstantes inocentes.
Juro que, se encontrar por aqui algum ministro de Estado, deputado,
senador, comandante militar, alto magistrado da Justiça ou o próprio sr.
presidente, de preferência em alguma ocasião solene, na presença de
autoridades americanas, puxarei o desgraçado a um canto e lhe lançarei em
voz baixa, discreta, serena, educadíssima, insultos e maldições apocalípticas
que nem mesmo existem na língua portuguesa e que inventarei
especialmente para essa doce ocasião. Direi coisas tão horríveis que o
próprio Alborghetti, se as ouvisse, coraria como donzela pudica.
Só não me sinto envergonhado de haver nascido no Brasil porque não tive
a menor parcela de responsabilidade nesse infausto acontecimento. Meus
antepassados portugueses e alemães, uns burros, achavam que estavam indo
para a América.
1º de setembro de 2006

[ 28 ] Veja em http://www.youtube.com/results?search_query=Alborghetti&sm=3
Pela restauração intelectual do Brasil

O
S ARTIGOS QUE AQUI PUBLIQUEI em 13 e 27 de fevereiro rendem até
hoje cartas e perguntas que não posso responder uma a uma. Elas
refletem não só o anseio inatendido de conhecimento por parte de
tantos estudantes brasileiros, mas uma necessidade mais profunda e geral.
Um país não pode sobreviver por muito tempo sem alguma vida intelectual
na qual ele se enxergue e se reconheça como unidade histórica, cultural e
espiritual. Isso falta totalmente no Brasil de hoje. As discussões públicas
entre pessoas supostamente letradas perdem-se em fatos isolados, em
tagarelice ideológica sem nenhum proveito ou na exteriorização fortuita de
impressões grupais totalmente alienadas. Já não apreendem nem a nação
como conjunto, nem muito menos a sua situação no mundo, na civilização,
na História. O Brasil tornou-se invisível a si mesmo, e na treva geral
crescem monstros. Talvez o mais feio deles seja justamente a esperança
cretina de livrar-se de todos os outros a curto prazo, mediante ações práticas
na esfera política, saltando sobre a necessidade prévia da restauração
intelectual. Nenhum ser humano ou país está mais louco do que aquele que
acredita poder resolver todos os seus problemas primeiro, para tornar-se
inteligente depois. A inteligência não é o adorno do vitorioso, é o caminho
da vitória. Não é a cereja do bolo, é a fórmula do bolo. Quando chegarão os
brasileiros a compreender uma coisa tão óbvia? Quando chegarão a
compreender que nem tudo pode ser resolvido com formulinhas prontas,
com pragmatismos rotineiros, com improvisos imediatistas ou mesmo com
técnicas da moda, por avançadas que sejam, se não há por trás delas uma
inteligência bem formada, poderosa, capaz de transcendê-las infinitamente
e por isso, só por isso, capaz de manejá-las com acerto? A sólida estupidez
do petismo triunfante é a culminação de pelo menos cem anos de desprezo
ao conhecimento. A aposta obsessivamente repetida no poder mágico da
ignorância esperta levou finalmente ao resultado inevitável: a bancarrota
cultural, moral e política.
Não há nada, nada mais urgente, neste país, do que criar uma geração de
estudantes à altura das responsabilidades da inteligência. Ao dizer isso,
estou consciente de pedir urgência para uma tarefa que, por sua natureza, é
de longuíssimo prazo. A vida intelectual não se improvisa: ela resulta da
confluência feliz de inumeráveis trajetos existenciais pessoais numa nova
linguagem comum laboriosamente construída com materiais absorvidos, a
duras penas, de tradições milenares. Quando a urgência imperiosa vem
amarrada à demora invencível, o espírito humano é testado até o máximo da
sua resistência. Nada mais difícil do que aliar a intensidade do esforço
contínuo à longa espera de resultados incertos. Contra o desespero em tais
circunstâncias, o único remédio está na fórmula de Goethe: “É urgente ter
paciência.”
Aos leitores deste jornal, empresários na maioria, digo sem rodeios: a
responsabilidade de vocês nisso é enorme. As universidades tornaram-se
instrumentos do crime organizado, empenhados em tapar bocas, paralisar
consciências, destruir talentos, perverter vocações, secar todas as fontes de
uma restauração possível e, é claro, gastar dinheiro público. Custam caro e
só servem para o mal. É preciso inventar o quanto antes novas formas de
estruturação social da vida intelectual e torná-las economicamente viáveis.
Só o empresariado pode tomar essa iniciativa. Só ele tem capacidade de
organização e de aglutinação de recursos para isso. O sistema dos think
tanks talvez funcione, se assimilado com a devida seriedade e adaptado
eficazmente às condições brasileiras. Os modelos da Heritage Foundation,
da Atlas Foundation, do Hudson Institute estão aí para ser estudados. Nos
EUA eles tornaram-se centros irradiantes de energia positiva capaz de
contrabalançar, e com freqüência vencer, o ativismo imbecilizante dos
comissários-do-povo universitários.
***
Enquanto isso, posso sugerir, aos candidatos a membros de uma hipotética
intelectualidade brasileira do futuro, algumas normas gerais que talvez os
ajudem, na escuridão ambiente, a encontrar o caminho.
A formação da inteligência se dá em dois planos simultâneos: o
propriamente intelectual, ou cognitivo, e o espiritual, ou inspiracional. O
que você sabe depende de quem você quer ser; o modelo do que você pode
ser depende do que você sabe. A ligação entre os dois planos é ignorada
pelo ensino atual porque ele nem mesmo entende que existe uma dimensão
espiritual, embora às vezes fale dela, até demais, confundindo-a com o
simples culto religioso, com a moral ou com a psicologia.
***
No plano intelectual, o estudante deve esforçar-se para obter a mais alta
qualificação possível, adotando como modelos da sua auto-educação as
práticas melhores registradas historicamente: as da Academia platônica, do
Liceu aristotélico, da universidade européia no século XIII (com seus ecos
residuais na filosofia cristã moderna, por exemplo La Vie Intellectuelle de
A. D. Sertillanges e Conseils sur la Vie Intellectuelle de Jean Guitton), da
intelectualidade superior alemã no século XIX e austríaca no começo do
século XX (tal como descrita, por exemplo, nos depoimentos de Eric
Voegelin, Otto Maria Carpeaux e Marjorie Perloff) e, last not least, da
tradição americana de liberal education (v., além do clássico How to Read a
Book de Mortimer J. Adler, The Trivium, de Sister Miriam Joseph, Another
Sort of Learning, de James V. Schall, e The House of Intellect, de Jacques
Barzun).
O objetivo primeiro da educação superior é negativo e dissolvente:
consiste em “desaculturar”, no sentido antropológico do termo: desfazer os
laços que prendem o estudante à sua cultura de origem, às noções
consagradas do “nosso tempo”, à ilusão corrente da superioridade do atual,
e fazer dele um habitante de todos os tempos, de todas as culturas e
civilizações. Não se pode chegar a nada sem um período de confusão e
relativismo devido à ampliação ilimitada dos horizontes. Não basta saber o
que pensaram Abrahão e Moisés, Confúcio e Lao-Tseu, Péricles e Sócrates,
ou os monges da Era Patrística: é preciso um esforço para perceber o que
eles perceberam, imaginar o que eles imaginaram, sentir o que eles
sentiram. Não se preocupe em arbitrar, julgar e concluir. Em todas as idéias
que resistiram ao tempo o bastante para chegar até nós há um fundo de
verdade. Apegue-se a esse fundo e faça sua coleção de verdades, não se
impressionando muito com as contradições aparentes ou reais. Aprenda a
desejar e amar a verdade como quer que ela se apresente. Acostume-se a
conviver com as contradições, já que você não terá tempo, nesta vida, para
resolver senão um número insignificante delas.
A educação universitária brasileira é toda ela anti-educação, já que visa
somente a inculcar no aluno a mentalidade dominante da classe acadêmica
atual (quando não o slogan partidário da semana), julgando o passado à luz
do presente e nunca o presente à luz do passado. Isso é prender o estudante
num provincianismo temporal – ou cronocentrismo, como costumo chamá-
lo – ainda mais lesivo do que qualquer etnocentrismo geográfico, racial,
religioso ou político. “Todas as épocas são iguais perante Deus”, ensinava
Leopold von Ranke. A inteligência humana tende poderosamente à
universalidade, mas só se aproxima dela vencendo as barreiras culturais do
espaço e do tempo, uma por uma. Resista ao triunfalismo presunçoso da
atualidade. Quando ler o que algum pensador de hoje acha de Platão,
pergunte o que Platão acharia dele. Em noventa e nove por cento dos casos
você verá que o suposto progresso do conhecimento veio amplamente
neutralizado por um concomitante progresso da ignorância. Jean Fourastié,
em Les Conditions de l’Esprit Scientifique, observava que, ao lado da
história do saber, seria preciso escrever a história do esquecimento. Comece
já.
Não digo isso genericamente. É de uma norma muito prática que estou
falando. Quando ler os clássicos, use tudo, absolutamente tudo o que vier a
aprender com eles como instrumento analítico para a compreensão do
presente, incluída nisso a sua própria vida pessoal. Fora o conteúdo
filosófico e sapiencial mais geral, há tesouros de sociologia, de psicologia e
de ciência política em Confúcio, em Shânkara, em Platão, em Aristóteles,
em Dante, em Sto. Tomás, em Shakespeare. Uma longa convivência com
esses sábios lhe dará uma idéia do que seja a verdadeira autoridade
intelectual, da qual seus professores na universidade são caricaturas
grotescas. Não se deixe iludir por erros de detalhe que a ciência moderna se
gaba de ter “superado”. Quase sempre a superação é ilusória e só serve
para, logo adiante, ser superada por sua vez. Você lê nos manuais, por
exemplo, que Galileu “superou” a física de Aristóteles. Durante quatro
séculos essa bobagem foi repetida como verdade terminal. Só por volta de
1950 os estudiosos perceberam que a física de Aristóteles não era uma
física, mas uma metodologia científica geral, bem mais sutil do que Galileu
poderia jamais ter percebido, e muito bem adequada às necessidades da
ciência mais recente. Os famosos erros assinalados por Galileu existiam,
mas eram detalhes secundários que não afetavam de maneira alguma o
conjunto da proposta.
Qualquer que seja a questão em estudo, busque atender a três condições:
(1) a abrangência máxima da informação básica, (2) o conhecimento do
status quaestionis (já explico) e (3) a variedade das perspectivas.
A abrangência da informação obtém-se trocando a absorção casual pela
pesquisa sistemática das fontes. Uma lista bibliográfica o mais completa
possível é o melhor começo em qualquer investigação. Se você souber
somente os títulos e datas dos livros publicados sobre determinado assunto,
já terá uma visão inicial bem apropriada do problema antes mesmo de ler o
primeiro deles. Não se perca, porém, na multidão de trabalhos acadêmicos
atuais, a maioria deles produzida só por exigência administrativa ou
carreirismo. Comece com as obras mais antigas, e isso facilitará a seleção
das mais recentes.
O status quaestionis, “estado da questão” é a evolução dos debates sobre
um determinado ponto desde a origem da discussão até hoje. O
conhecimento do status quaestionis distingue o erudito profissional do
palpiteiro amador. (Todos os professores universitários que conheço no
Brasil, com exceções que não chegam a meia dúzia, são palpiteiros
amadores. Esqueça-os. Aprenda três ou quatro línguas e só use o português
para ler material universitário de Portugal, que é muito bom em todas as
áreas. Se não puder sair do Brasil fisicamente, saia intelectualmente. O que
há de valioso na nossa cultura passada assimila-se em dois anos no máximo,
com exceção da obra de Mário Ferreira dos Santos, que leva uma vida
inteira, mas que você pode carregar debaixo do braço na sua fuga para fora
do país ou para dentro de si mesmo.)
A variedade das perspectivas consiste na habilidade de pensar um
problema exatamente como o pensaram os diversos autores que trataram
dele. Isso exige algo mais que leitura inteligente. Exige a capacidade de
você se identificar imaginativamente com a visão de cada um enquanto a
está estudando, sem se preocupar em julgá-la ou contestá-la, mas sabendo
que mais cedo ou mais tarde ela será julgada e contestada automaticamente
quando você passar à leitura de outros autores. Deixe que a discussão, na
sua mente, vá se montando sozinha, aos poucos, com os vários materiais
contraditórios que você colhe das leituras. No momento em que a
acumulação de material chegar a abranger o campo inteiro do status
quaestionis, você terá uma experiência intelectual maravilhosa: quando os
vários ângulos pelos quais você enxerga um problema não refletem apenas
a sua imaginação, mas tudo aquilo que de melhor e mais inteligente se
escreveu a respeito ao longo dos tempos, as conclusões a que você chega já
não são meras opiniões pessoais – elas já são conhecimento em sentido
pleno. Isso não quer dizer que você descobriu “a verdade”, é claro, mas
significa que se aproximou dela tanto quanto possível à parte mais dedicada
e mais séria da humanidade. Seu horizonte já não será o da subjetividade
individual, será o do conhecimento humano. Você talvez ainda seja um
anão. Mas já estará sentado sobre os ombros de gigantes.
***
Para avançar no plano espiritual, o estudante deve estar aberto à realidade
do transcendente e do infinito, tendo ante essa dimensão a atitude
gnoseologicamente apropriada e psicologicamente obrigatória de admiração
contemplativa, temor reverencial e confiança existencial.
Para muitas pessoas hoje em dia, sobretudo os ditos “intelectuais”, essa
percepção é inacessível e até inconcebível. Não por coincidência, são as
pessoas que mais opinam a respeito, umas teorizando a sua própria
incapacidade sob a forma de tagarelice materialista, cientificista, agnóstica
etc., outras tratando de disfarçá-la por meio de conversas estereotipadas
sobre religião, estados místicos, esoterismo, alquimia etc. Essas duas
modalidades de tergiversação podem requerer muito estudo, e vidas inteiras
se gastam no seu cultivo. O estudante deve aprender a reconhecer ambas à
distância e fugir delas mais que depressa.
Caso pertença a alguma confissão religiosa, o estudante deve tomar seus
ensinamentos como mistérios simbólicos cujo conteúdo não é fácil de
discernir e cujo influxo vivificante pode secar pela adesão prematura a
interpretações dogmáticas e receituários morais prontos. A religião não é
uma doutrina para ser “acreditada” ou uma tábua de mandamentos morais
exteriores como um código civil. Ela é um conjunto de acontecimentos de
ordem histórico-espiritual cuja notícia nos chega pelas escrituras sagradas e
pela tradição. Esses acontecimentos podem, em parte, ser confirmados
historicamente, mas não podem ser historicamente compreendidos, pois
prosseguem até hoje e seu sentido só se elucida nesse prosseguimento, na
medida em que você toma ciência de que eles o envolvem pessoalmente.
Você pode participar deles através dos ritos, da prece, da fé e sobretudo dos
milagres. A fé não significa adesão a uma doutrina, mas confiança numa
Pessoa em cuja humanidade transparece, de maneira ao mesmo tempo auto-
evidente e misteriosa, a presença do transcendente e do infinito. Milagres
acontecem o tempo todo, mas a maioria das pessoas é estúpida, distraída ou
fechada demais para percebê-los (leiam James Rutz, Megashif). Mesmo a
experiência reiterada das preces atendidas, carregada do inevitável
desconforto cognitivo da desproporção entre a causa aparente e o efeito
real, pode ser neutralizada ex post facto por meio de racionalizações de um
puerilismo atroz, que muitos chamam de “ciência”. Mas talvez pior do que
a falta de experiência, ou do que a experiência neutralizada, é a substituição
da experiência objetiva do milagre por um sucedâneo psíquico – uma
emoção, um subjetivo não-sei-quê – a que alguns dão o nome pomposo de
“meu encontro com Jesus”, “minha fé” ou coisa assim, sem entender que
com isso sobrepõem os seus estados de alma à realidade suprema do
próprio Deus. Deus se manifesta nos fatos do mundo, da natureza, da
história, e no curso objetivo da vida de cada um, não fazendo afagos na
alma de quem quer que seja. Por incrível que pareça, são esses afagos o
máximo que alguns esperam encontrar na religião, enquanto outros, ateus
ou até sacerdotes, acreditam piamente que ela consiste nisso na melhor das
hipóteses e tiram daí conseqüências que lhes parecem muito científicas,
como fez o clássico da cretinice antropológica americana, Edward Sapir, ao
definir a religião como busca da “paz de espírito”, que se também pode
alcançar com um comprimido de Valium. O estudante tem de aprender a
fugir dessas vulgaridades, mesmo ao preço de colocar entre parênteses toda
a questão “religiosa” até melhor entendimento.
***
Num próximo artigo, se nada acontecer nesse ínterim que exija mudança
de assunto, exporei algumas condições da ordem moral e política para o
desenvolvimento da vida intelectual.
4 de setembro de 2006
Da fantasia deprimente à realidade temível

A
SENTENÇA DE HUGO VON HOFMANNSTHAL já citada nesta coluna –
“Nada está na realidade política de um país se não estiver primeiro na
sua literatura” – é tão verdadeira e profunda, que pode ser aplicada à
análise das situações políticas desde vários ângulos diferentes, sempre
rendendo algum conhecimento.
Vejam, por exemplo, o que aconteceu na Rússia entre a metade do século
XIX e a queda da URSS. Por volta de 1860-70 a cultura russa, até então
raquítica em comparação com as da Europa ocidental, começava a tomar
impulso para lançar-se a grandes realizações. A inspiração que a movia era
sobretudo a confiança mística no destino da nação como portadora de uma
importante mensagem espiritual a um Velho Mundo debilitado pelo
materialismo cientificista. Preservada da corrosão revolucionária por um
regime político fortemente teocrático em que as crenças oficiais da côrte e a
religiosidade popular se confirmavam e se reforçavam mutuamente, a
Rússia contrastava de maneira dramática com as nações ocidentais onde a
elite e as massas viviam num divórcio ideológico permanente e que por isso
só se modernizavam à custa de reprimir e marginalizar os sentimentos
religiosos da população. O regime tzarista, não obstante o peso da sua
burocracia emperrada, havia conseguido encontrar o caminho para reformas
que não iam contra os ensinamentos da igreja ortodoxa, mas, bem ao
contrário, nasciam deles. O futuro da Rússia parecia emergir diretamente do
messianismo cristão das duas figuras máximas da intelectualidade russa, o
romancista F. M. Dostoiévski e o filósofo Vladimir Soloviev.
Em comparação com a grande cultura nacional do período, a contribuição
do movimento comunista russo consistiu sumariamente em rebaixar tudo ao
nível de um automatismo dialético miserável, quando não da pura literatura
de propaganda. A redução da cultura superior a instrumento de formação da
militância neutralizou os efeitos benéficos das reformas universitárias
empreendidas pelo governo e transformou grande parte da juventude letrada
russa naquela multidão de tagarelas alucinados que povoam os romances de
Dostoiévski, especialmente Crime e Castigo e Os Demônios. Experimentem
ler qualquer página de Vladimir Soloviev ou do próprio Dostoiévski, depois
comparem com as platitudes revolucionárias de George Plekhanov – tido na
ocasião como o mais capacitado intelectual comunista russo – ou com as
filosofices grotescas de V. I. Lênin em Materialismo e Empiriocriticismo, e
saberão do que estou falando. Os comunistas começaram por destruir a
inteligência superior de uma grande nação antes de criar o regime político
mais estúpido e animalesco de que se tivera notícia na História. Quem, na
época, quisesse prever o futuro da economia russa sob os comunistas
poderia fazê-lo facilmente por meio da simples avaliação da literatura que
eles produziam. Mesmo o mais talentoso ficcionista nas hostes
revolucionárias, Maxim Gorki, estava formidavelmente abaixo da geração
anterior. Hoje em dia já não se pode lê-lo senão como documento histórico.
Nem é preciso dizer que o mesmo se aplica à literatura produzida sob os
governos de Lênin, Stálin, Kruschev e tutti quanti. Até os melhores
romances do período – os de Sholokhov – se tornaram ilegíveis por excesso
de babaquice revolucionária. Nem falo dos filósofos e ensaístas, uma
multidão subsidiada que o tempo de encarregou de jogar na lata de lixo. O
pensamento russo só sobreviveu no exterior, integrado na cultura européia
ou americana, com Berdiaev, Chestov, Sorokin. A imaginação literária só
veio a se recuperar a partir anos 50, mas no subterrâneo, longe da cultura
oficial, com Soljenítsin, Bukovski, Zinoviev. E não é preciso dizer que a
inspiração para isso veio principalmente do antigo messianismo de
Dostoiévski e Soloviev.
O que sucedeu na cultura literária e filosófica reproduziu-se, com exatidão
milimétrica, na economia. Aqueles que se acostumaram a imaginar o
tzarismo sob o aspecto estereotipado da “repressão”, do “atraso” e da
“decadência” ignoram solenemente os fatos principais do período: a
progressiva abertura da burocracia para elementos vindos de fora da
camada aristocrática (inclusive judeus) e a industrialização acelerada. Nos
cinqüenta anos que antecederam a revolução comunista, a economia russa
foi a que mais cresceu na Europa, deixando longe a Inglaterra e a Alemanha
que então pareciam ser as encarnações mesmas do progresso e das luzes, e
só encontrando rival do outro lado do oceano, nos Estados Unidos da
América. Se o regime tzarista não tivesse sido destruído pela I Guerra
Mundial e pela subseqüente ascensão dos comunistas, o simples
crescimento vegetativo da economia teria acabado por dar aos russos, por
volta de 1940, um padrão de vida comparável ao dos americanos. Em
contraste com isso, na União Soviética dos anos 80 o cidadão médio
consumia menos carne do que um súdito pobre do tzar um século antes e
tinha menos acesso a automóveis, assistência médica e serviços públicos em
geral do que os negros sul-africanos vivendo sob o regime humilhante do
apartheid. Nada está na realidade política de um país que não esteja
primeiro na sua literatura.
O exemplo russo é só um entre muitos. O utopismo abstrato da Revolução
Francesa, que num choque de realidade acabou levando a resultados tão
paradoxais quanto o terror, a ditadura napoleônica e a restauração
monárquica, foi antecedido de pelo menos meio século de linguagem
abstratista, forçada, artificial e artificiosa, que sufocava a experiência direta
sob toneladas de construções idealísticas sem pé nem cabeça. O processo
foi descrito e analisado com muita acuidade por Hyppolite Taine em Les
Origines de la France Contemporaine (6 vols, 1888-1894), uma das obras
históricas mais notáveis de todos os tempos. Na Alemanha e na Áustria, a
longa degradação da linguagem pública, contra a qual em vão reagiram
Karl Kraus e Stefan George, é hoje reconhecida como um dos fatores que
tornaram possível a ascensão do irracionalismo nazista. De modo geral, a
explosão de cacofonias na literatura modernista anunciou e preparou o
caminho para a invasão dos totalitarismos: já não há como negar isso depois
desse tour de force historiográfico que é Rites of Spring. The Great War and
the Birth of the Modern Age, de Modris Eksteins (Boston, Houghton
Mifflin, 1989). Não, Hofmannsthal não deu um palpite a esmo: se nada está
na política que não esteja antes na literatura, é pela simples razão de que a
imaginação vem antes da ação. Se há uma “lei histórica” que funcione, é
essa. Digo-o entre aspas porque não é uma lei histórica, é um dado
estrutural da ação humana que nenhuma mutação histórica pode alterar.
Se o leitor compreendeu isso, com muita facilidade perceberá a loucura
suicida que foi confiar os destinos do Brasil a uma corrente político-
ideológica que, dos anos 70 até hoje, se empenhou sistematicamente em
destruir a cultura superior do país e de modo especial a sua literatura,
mediante a submissão de tudo às exigências estratégicas e táticas da
“revolução cultural” de Antonio Gramsci.
O entorpecente gramsciano penetrou no cérebro nacional a partir da
publicação das obras do ideólogo italiano pelo editor comunista Ênio
Silveira logo depois do golpe de 1964. Na confusão geral que se apossou
das esquerdas ante o fracasso de suas esperanças de cubanização rápida e
indolor da sociedade brasileira, uma ala mergulhou na leitura das idiotices
de Régis Débray e Che Guevara, torrando suas energias na “revolução
impossível” das guerrilhas. Outra, mais esperta, recuou e apostou na
estratégia de longo prazo que propunha ir conquistando o universo inteiro
das artes, do ensino, da cultura, do jornalismo – discretamente, como quem
não quer nada – antes de arriscar a sorte na luta direta contra o inimigo
político. O governo militar, obsediado pelo empenho de reprimir as
guerrilhas, não ligou a mínima para esses empreendimentos pacíficos,
aparentemente inofensivos. Fez vista grossa e até os apoiou como
derivativo e alternativa aceitável à oposição violenta. A idéia gramsciana
foi tão bem sucedida que, já em plena ditadura militar, a esquerda mandava
nas redações, marginalizando os direitistas mais salientes – Gustavo
Corção, Lenildo Tabosa Pessoa – até excluí-los totalmente das colunas de
jornais. O esquerdismo controlava tão eficazmente o sistema de ensino, que
a própria disciplina de Educação Moral e Cívica, timidamente instituída por
um governo que se abstinha de estender ao campo cultural a autoridade de
que desfrutava na área policial-militar, acabou fornecendo uma tribuna para
a disseminação das concepções “politicamente corretas” que vieram a forjar
a mentalidade das gerações seguintes. No teatro, no cinema e na TV, a
autoridade da esquerda pode ser medida pelo poder inconteste de veto
ideológico exercido, na seleção das novelas da Globo – o mais vasto
aparato de formação do imaginário popular – pelo casal de militantes
comunistas Dias Gomes e Janete Clair. Idêntica filtragem aconteceu no
movimento editorial. Aos poucos, todos os autores não aprovados pelo
Partido Comunista desapareceram das livrarias, das bibliotecas escolares,
dos programas universitários, e isto ainda na vigência de um regime cuja
fama de anticomunista intolerante era apregoada aos quatro ventos pelos
próprios comunistas que se beneficiavam de sua sonsa tolerância e omissão
ideológica. Em toda a esfera cultural, artística, escolar e jornalística, a única
diferença que se viu, com o fim da ditadura, foi a passagem da hegemonia
tácita da esquerda ao domínio explícito e, agora sim, intolerante. A
confortável hospitalidade com que, no tempo dos militares, esquerdistas
notórios eram aceitos nos mais altos postos do jornalismo, do ensino e do
show business contrasta de tal modo com a exclusão radical dos direitistas
hoje em dia, que a aplicação do termo “ditadura” à primeira dessas épocas e
“democracia” à segunda acaba soando singularmente irônica. Na época
havia, é claro, o jornalismo “nanico”, soi disant alternativo à grande mídia.
Mas esta última estava quase que inteiramente nas mãos de esquerdistas
como Cláudio Abramo, Luiz Alberto Bahia, Alberto Dines, Luiz Garcia e
outros tantos, de modo que a diferença com os nanicos era antes de estilo
que de conteúdo. Hoje, os jornalistas “de direita” estão todos na mídia
nanica. Os poucos que ainda aparecem nas páginas dos grandes jornais são
apenas colaboradores contratados. Nem entram nas redações.
O total domínio da cultura por uma corrente política, qualquer que seja,
constitui já um mal em si. Mas o que aconteceu no Brasil foi muito mais
grave:
1. Aquele domínio implicava, desde logo, o rebaixamento proposital do
nível de exigência, em vista da ampliação semântica do termo “intelectual”,
que no contexto gramsciano abrange a totalidade dos indivíduos, com
qualquer nível de instrução ou QI, que possam atuar na propaganda
ideológica. Daí derivou a promoção de sambistas, roqueiros, publicitários e
strip-teasers ao estatuto de “intelectuais”, que resultou em última análise
nesse descalabro da promoção do sr. Gilberto Gil ao cargo de ministro “da
cultura”.
2. O próprio termo «cultura» perdeu toda acepção qualitativa e
pedagógica, reduzindo-se ao seu uso antropológico como denominação
neutra e geral das «formas de expressão» populares. Nesse sentido, o
samba-de-roda do Recôncavo Baiano deve ser incluído, segundo aquele
ministro, entre os grandes tesouros culturais da humanidade, junto com a
filosofia de Aristóteles, a Catedral de Chartres e a mecânica quântica. Todo
es igual, nada es mejor.
3. De maneira mais genérica, toda diferenciação do melhor e do pior, do
mais alto e do mais baixo acabou sendo condenada como discriminatória e
até racista. Milhares de livros e teses universitárias foram produzidos para
consagrar como fundamento da cultura brasileira a proibição de distinguir
(que não obstante continuou sendo usada contra “a direita”).
4. Para legitimar o estado de total confusão mental daí decorrente,
introduziram-se os princípios do relativismo e do desconstrucionismo, que,
a pretexto de promover um pensamento supralógico, destroem nos
estudantes até mesmo a capacidade de raciocínio lógico elementar,
substituída por uma verborréia presunçosa que lhes dá uma ilusão de
superioridade justamente no momento em que mergulham no mais fundo da
estupidez.
5. Uma vez amortecida a capacidade de distinção, foi fácil disseminar por
toda a sociedade os contravalores que deram forma ao Estatuto da Criança e
a outros instrumentos legais que protegem os criminosos contra a
sociedade, criando propositadamente o estado de violência, terror e anomia
em que hoje vivemos, e do qual a própria esquerda se aproveita como
atmosfera propícia para o comércio de novas propostas salvadoras.
Uma corrente política capaz de rebaixar a esse ponto a inteligência e a
capacidade de discernimento de um povo não hesitará em destruir o país
inteiro para conquistar mais poder e realizar os planos concebidos em
encontros semi-secretos com movimentos revolucionários e organizações
criminosas do exterior.
A esquerda brasileira – toda ela – é um bando de patifes ambiciosos,
amorais, maquiavélicos, mentirosos e absolutamente incapazes de
responder por seus atos ante o tribunal de uma consciência que não têm.
Está na hora de o país retirar de uma vez o voto de confiança que deu a
essa gente num momento de fraqueza fabricado por ela própria.
11 de setembro de 2006
Justiça social e injustiça pessoal

E
IS UM BOM TÓPICO DE MEDITAÇÃO ante o bombardeio de discursos
eleitorais: esses sujeitos que vivem falando de “construir uma
sociedade mais justa” praticam apenas a modalidade mais imperdoável
de burrice, que é confundir palavras com coisas. Os termos que designam
qualidades morais só se aplicam realisticamente a indivíduos humanos, não
a estruturas sociais. Um homem pode ser mais justo que outro; uma
sociedade, não, pelo simples fato de que a sociedade abrange tanto os
autores quanto as vítimas de injustiças, e chamá-la de injusta ou justa seria
colocá-los no mesmo saco. Uma sociedade pode fomentar a prática da
justiça ou da injustiça, mas isso não tem nada a ver com ela ser justa ou
injusta em si mesma. A criminalidade é notoriamente menor em ditaduras
truculentas como a China ou o Irã. Tão logo suprimida a injustiça do regime
vem o esculacho geral em que os cidadãos se regozijam e se desrecalcam na
democratização da injustiça. Qual é a sociedade mais justa: aquela que
suprime a criminalidade mantendo igualmente aterrorizados os bandidos e
os cidadãos honestos, ou aquela que protege os cidadãos honestos ao ponto
de ajudá-los a se tornar bandidos sem que precisem temer punições? O
extremismo desses dois exemplos pode convidar o automatismo mental a
buscar um hipotético meio-termo entre a repressão total e a libertinagem,
mas é óbvio que não há justiça nenhuma no mero equilíbrio estatístico de
dois erros. Aliás a revolta contra as injustiças é sempre maior nas
sociedades que não são o bastante injustas para reprimi-la. Tal como o
demonstra a paz social chinesa ou iraniana em contraste com as explosões
de ódio anti-Bush nos EUA, a quantidade de injustiça real é inversamente
proporcional ao desejo de erradicá-la. Mutatis mutandis, a nossa esquerda
dos anos 60 berrava contra o autoritarismo brando e chinfrim dos nossos
militares mas babava de admiração pela mais sangrenta ditadura latino-
americana.
Toda idéia de justiça pressupõe não apenas uma distinção de mérito e
demérito, mas também as diferenças escalares dentro de um e do outro.
Homenagens, cargos, premiações escolares, hierarquias burocráticas, civis e
militares refletem a escala do mérito, o Código Penal e os vários
mecanismos de exclusão social a dos deméritos. É inútil falar em
“meritocracia”, pois todas as hierarquias sociais são meritocráticas,
divergindo apenas no critério de aferição dos méritos. Mesmo essa
divergência é mínima. Nenhuma sociedade é tão fortemente apegada a
prestígios de família que negue toda possibilidade de merecimento
individual autônomo, nem é tão desapegada deles que não reconheça
diferença entre ser filho de um herói nacional ou de um assassino
estuprador.
Suponham uma rígida sociedade de castas e uma democracia igualitária.
Qual das duas é mais justa? A sociedade de castas alega que é justa porque
busca refletir na sua estrutura a ordem hierárquica dos valores, premiando
em primeiro lugar os homens espirituais e santos, depois os valentes e
combativos, depois os esforçados e industriosos e por fim os meramente
obedientes e cordatos. Quem chamaria isso de injustiça? O igualitarismo
democrático baseia-se na idéia igualmente justa de que ninguém pode
prever de antemão os méritos de ninguém, sendo portanto melhor assegurar
a igualdade de oportunidades para todos em vez de encaixilhá-los por
nascimento em lugares estanques da hierarquia. A sociedade de castas falha
porque não é garantido que os filhos de santos sejam santos, de modo que
aos poucos a hierarquia social se torna apenas um símbolo remoto em vez
de expressão direta da hierarquia de valores. De símbolo remoto pode
mesmo passar a caricatura invertida. A democracia, por sua vez, na medida
em que nivela os indivíduos nivela também suas opiniões e, portanto, os
valores que elas expressam. O resultado é o achatamento de todos os
valores, que favorece a ascensão dos maus, egoístas e prepotentes pela
simples razão de que já não há critérios para considerá-los piores do que os
mansos e generosos. Daí a observação de Georges Bernanos: a democracia
não é o oposto da ditadura – é a causa da ditadura.
Pela mesma razão, todo aquele que promete eliminar as exclusões sociais
começa por excluir os que não acreditam nele, e aquele que promete uma
hierarquia aristocrática perfeita começa por invertê-la quando, ao
reivindicar o poder necessário para construí-la, se coloca a si próprio no
topo da escala e se torna a medida dela em vez de ser medido por ela.
Na alma do indivíduo bem formado é sempre possível conciliar o senso da
hierarquia de valores com o sentimento da igualdade profunda entre os
membros da espécie humana. O próprio amor aos valores mais elevados
infundirá nele necessariamente um pouco de humildade igualitária, da qual
Jesus deu exemplo constante. O indivíduo tem sempre a flexibilidade
psíquica para buscar o equilíbrio dinâmico entre valores opostos. Mas
nenhuma sociedade pode ser ao mesmo tempo uma sociedade de castas e
uma democracia igualitária, nem muito menos ter a elasticidade necessária
para passar de uma coisa à outra conforme as exigências morais de cada
situação. Os valores morais existem somente na alma do indivíduo
concreto. As diferentes estruturas sociais podem apenas macaqueá-los de
longe, sempre sacrificando uns em proveito de outros, isto é,
institucionalizando uma quota inevitável de erro e de injustiça. Os seres
humanos podem ser justos ou injustos – as sociedades só podem sê-lo de
maneira simbólica e convencional, eminentemente precária e relativa.
Essas distinções são elementares, e nenhum indivíduo incapaz de percebê-
las intuitivamente à primeira vista está qualificado para julgar a sociedade
ou muito menos propor sua substituição por outra “mais justa”.
Infelizmente, essa incapacidade é precisamente a qualificação requerida
hoje em dia de todos os doutrinários de partido, parlamentares, líderes de
movimentos sociais etc., porque cada um deles só consegue subir na vida na
medida em que personifique a “sociedade mais justa” em nome da qual
legitima suas propostas. Ou seja: são sempre os homens injustos que se
incumbem de promover a “justiça social”, julgando e condenando aquilo
que nem mesmo compreendem. Se em vez de buscar uma “sociedade mais
justa” começássemos por derrubar de seus pedestais os homens injustos, um
a um, a sociedade em si não se tornaria mais justa, mas haveria mais justiça
na sociedade injusta – e isto é o máximo a que seres humanos razoáveis e
justos podem aspirar.
MAIS UM CAPÍTULO DA LUTA DOS MONSTROS
No último número de American Scholar (outono de 2006), Bryan Boyd,
professor de inglês na Universidade de Auckland, Nova Zelândia, desce o
pau nos seus colegas de teoria literária por continuarem apegados aos
dogmas do desconstrucionismo, que se reduzem a pó de traque quando
confrontados com as descobertas mais recentes da ciência biológica.
Esses dogmas são dois, o “antifundamentismo” e a “diferença”. O primeiro
afirma que nenhum conhecimento humano tem fundamento universal. O
segundo diz que todas as afirmativas aparentemente universais são apenas
produtos locais nascidos de interesses malignos e do desejo de poder.
Enfim, não há realidade objetiva. Tudo é “cultura”, isto é, invenção mais ou
menos arbitrária de signos para camuflar alguma bela sacanagem da classe
dominante.
Boyd lembra que a possibilidade mesma da cultura – nesse ou em qualquer
outro sentido da palavra – nasce de certas características biológicas
humanas que, por sua vez, não são invenções culturais mas dados da
natureza. Para piorar, a biologia vem descobrindo aspectos “culturais” –
símbolos, regras, atos ritualizados – na conduta de inúmeras espécies
animais, dos hipopótamos aos passarinhos. A “cultura” não é uma negação
da natureza: é uma extensão dela. Enquanto os mandarins dos “estudos
culturais” perseverarem na sua ignorância científica radical (mais que
demonstrada no clássico episódio Alan Sokal), sua empáfia de
onissapientes continuará sendo objeto de chacota entre o pessoal da
biologia, da física, etc., os quais realmente sabem alguma coisa.
Até aí, tudo bem. O argumento é irrespondível. Só que, uma vez
humilhado o desconstrucionismo, Boyd coloca no lugar dele o seu próprio
dogma. O “antifundamentismo” e a “diferença” não estão errados em si
mesmos, diz ele. Seu único problema é que opõem natureza e cultura,
quando as verdadeiras razões em favor deles estão na natureza tal como
compreendida pelos evolucionistas. “Quase um século antes de Derrida, a
teoria darwiniana da evolução por seleção natural já havia tornado o
antifundamentismo uma conseqüência inevitável.” Claro: se tudo o que
acontece na cultura vem da natureza, e se esta é conduzida por mutações
randômicas consolidadas pela seleção natural e pela repetição, é
incontornável a conclusão de que nada que o ser humano pense tem
qualquer fundamento universal – é apenas um produto local e passageiro da
evolução natural. Tudo neste mundo é pois incerto e vacilante – exceto, é
claro, o fator que o tornou incerto e vacilante: pode-se duvidar de tudo,
exceto da evolução darwiniana. Tal como no desconstrucionismo, a suposta
razão da falta de fundamentos absolutos torna-se o novo fundamento
absoluto.
A simetria oposta, a igualdade dos contrários, torna-se aí mais do que
visível. Para o desconstrucionismo, a total inexistência de fundamentos
objetivos instaura imediatamente o reinado do fundamento metodológico
único, que é ele próprio. Daí a intolerância dogmática com que os gurus
desconstrucionistas recusam dialogar com seus críticos – quando chegam a
reconhecer que há algum. O desconstrucionismo é tão autoritário e
prepotente que se autodenomina “a Teoria”, com ênfase no artigo e na
inicial maiúscula, quer dizer, a única teoria que existe ou tem o direito de
existir. Boyd cita a propósito o crítico Christopher Ricks: “O império da
Teoria é zelosamente inquisitorial com relação a todos os outros impérios
exceto o dele próprio.”
Se a ausência de fundamento objetivo gera o império da Teoria, Boyd
derruba esse império restaurando um fundamento objetivo incapaz de ser
neutralizado por ele, mas com base nesse fundamento ergue um novo
império: o do evolucionismo. Só que, se o desconstrucionismo não podia
ser discutido porque era a única teoria possível, o evolucionismo também
não pode ser discutido, mas por uma razão ainda mais forte: ele não quer
ser mera “teoria” – exige ser aceito como “um fato”. Qualquer objeção
possível fica assim descartada a priori, já que todas as discussões têm de
começar com o reconhecimento unânime do fato, ou melhor, “do” Fato –
com ênfase verdadeiramente derridática no artigo e na inicial maiúscula.
Não é de espantar que o clero evolucionista seja ainda mais intolerante do
que o desconstrucionista, não apenas desprezando os adversários como
inexistentes mas demitindo-os de seus cargos, ameaçando interná-los em
hospícios, negando suas credenciais acadêmicas por mais respeitáveis que
sejam e tentando impor a proibição legal de colocar em dúvida “o Fato”.
O ardil retórico com que duas idéias, tão falíveis como quaisquer outras,
usam o pretexto da falibilidade geral como artifício para impor-se como
infalíveis, é o mesmo em ambos os casos. Se o desconstrucionismo se
arvorou em dono da cultura negando a existência da natureza, o movimento
que hoje se conhece como “darwinização da cultura” (v. uma discussão
favorável em Robert Aunger, ed., Darwinizing Culture, Oxford University
Press, 2000) vai um pouco mais longe: restaura a natureza para proclamar-
se a um tempo senhor absoluto dela e da cultura. Dois de seus apóstolos
mais fanáticos, Richard Dawkins e Daniel C. Dennett, proclamam que o
evolucionismo deve mesmo suprimir as religiões e tomar o lugar delas
como orientador moral e espiritual da humanidade. Tudo isso, é claro, em
nome da modéstia científica.
Um dia a humanidade vai rir dessas coisas, como hoje ri do positivismo
comtiano, da filosofia marxista da História ou do cientificismo racista de
Ernst Haeckel e Thomas Huxley. Mas até lá ainda haverá muito o que
chorar ante a devastação que a luta dos monstros vai produzindo na
inteligência humana.
FALSOS AMIGOS
Um detalhe especialmente deprimente nesse panorama é a filiação política
mal disfarçada dos desconstrutores e darwinizantes. Os primeiros estão em
geral na extrema-esquerda, torcendo pelos terroristas, pedindo a cabeça de
George W. Bush, a extinção de Israel e, de modo geral, o fim do Ocidente.
O partido darwinista está mais próximo dos “liberal-revolucionários”, que
se dizem adeptos do Ocidente, mas de um Ocidente amputado de suas
raízes judaico-cristãs, e favoráveis à liberdade de mercado, que eles vêem,
no entanto, não como expressão dos valores religiosos e morais que a
criaram, mas como o meio mais fácil de promover, sem perdas econômicas
traumáticas, o avanço da agenda cultural do movimento revolucionário:
abortismo, casamento gay, cotas raciais, o diabo.
Não é preciso dizer que desde suas origens o movimento revolucionário
sempre agiu com esses dois braços, usando um ou o outro conforme as
conveniências do momento. Na presente situação brasileira, a tentação que
pode deitar a perder as parcas energias do nascente movimento conservador
é a de submeter-se ao partido liberal-revolucionário e, sob o pretexto de
“concessões inevitáveis”, ajudar a fomentar a agenda cultural esquerdista
em troca de um pouquinho de liberdade econômica, exorcizando Belzebu
em nome de Satanás. Neste momento, os liberal-revolucionários mal
perceberam a emergência do movimento conservador e já trataram de se
organizar, juntando recursos milionários, para parasitá-lo, desviá-lo de seus
fins e usá-lo em benefício próprio. Quando vocês ouvirem alguém pregando
liberdade de mercado separada dos valores judaico-cristãos e associada a
propostas “politicamente corretas” na esfera cultural e moral, justificadas a
título de concessões espertalhonas ou sob qualquer outro pretexto, saibam
que não estão na presença de um conservador, mas de um agente infiltrado
ou de um idiota útil a serviço daquilo que ele diz combater. O futuro do
movimento conservador no Brasil depende de que esses seus falsos amigos
sejam identificados e desmascarados, como o foram nos EUA por uma
militância conservadora que ganhou muita força ao expeli-los.
Por enquanto estas explicações podem parecer um tanto genéricas, mas
num dos próximos artigos darei nomes a bois e vacas, se é que no fundo
vocês já não adivinharam a identidade do rebanho inteiro.
18 de setembro de 2006
Oficialmente

U
M AMIGO, A QUEM CONSIDERO O MAIOR E MAIS SÉRIO conhecedor do
problema do aborto no Brasil, me abre os olhos para esta seqüência
de informações, cuja lógica implacável acaba diluída no fluxo diário
de notícias:
1. Em dezembro de 2004, Lula colocou oficialmente a legalização do
aborto entre as prioridades do seu governo.
2. Em abril de 2005, comprometeu-se com a ONU, oficialmente, a
legalizar o aborto no país.
3. Em agosto, escreveu uma carta à CNBB negando oficialmente qualquer
intenção de realizar as promessas 1 e 2.
4. Em setembro, começou a realizar ambas, enviando à Câmara um projeto
de lei que descriminalizava oficialmente o aborto.
5. Em dezembro, incluiu oficialmente a legalização do aborto entre as
diretrizes do seu programa de governo para o segundo mandato.
Como a população brasileira é maciçamente contra o aborto, toda menção
ao assunto, que por si só bastaria para arruinar a candidatura do
engraçadinho, é meticulosamente evitada na sua campanha eleitoral. A
grande mídia, obsequiosa e, aliás, comprometida por mil e um acordos com
ONGs bilionárias e organismos internacionais abortistas, não faz ao
candidato nenhuma pergunta a respeito.
É, portanto, oficial:
1. Lula não tem o menor respeito pela sua própria palavra e pela sua
própria assinatura, que ele põe oficialmente em qualquer papel que lhe
interesse no momento, sem qualquer intenção de honrá-la. O critério do
cronista José Simão para distinguir entre Lula candidato e Lula presidente
continua portanto válido e infalível: “Quando ele promete merda, é
candidato; quando faz merda, é presidente”. O caso do abortismo sugere
apenas que nem sempre a matéria excrementícia prometida é aquela que
vem a ser realizada: Lula não é confiável nem mesmo na sua produção
fecal.
2. Lula não tem o menor respeito pela religião que diz professar. Mas não
me espanta que seja cínico ao ponto de tentar enganar a Igreja, uma vez que
se acha esperto o bastante para enganar o próprio Deus, como o fez ao
alegar que podia comungar sem confessar por ser “homem sem pecados”.[
29 ]
3. Lula não tem o menor respeito pelo eleitorado, ao qual ele sonega
informação essencial sobre seus planos de governo.
4. Da minha parte, não tenho o menor respeito por Lula, que os fatos aqui
relatados provam ser um farsante maquiavélico e perigoso. Qualquer
palavrinha que eu tenha escrito em favor dele, mesmo décadas atrás e antes
que eu soubesse da existência do Foro de São Paulo, deve ser-me perdoada
como expressão da minha profunda estupidez e substituída por um palavrão
equivalente e contrário.
5. Muito menos tenho algum respeito pela grande mídia brasileira, que,
com exceções, se tornou uma vasta societas sceleris empenhada em ocultar,
por dinheiro ou por ambição de poder, tudo o que possa obstar a realização
dos planos criminosos do Foro de São Paulo.
Peço a todos os leitores deste artigo que dêem a máxima divulgação, por
todos os meios ao seu alcance, aos fatos que ele revela. Nossa única
esperança de que as eleições deste ano não sejam uma farsa petista como as
de 2002 é criar de improviso uma rede alternativa de informações que se
sobreponha ao poder do crime organizado em que se transformou o
jornalismo nacional.
20 de setembro de 2006

[ 29 ] Veja http://www.olavodecarvalho.org/semana/050416globo.htm.
Geração maldita

O
S CRIMES DO PARTIDO GOVERNANTE E DO SEU INOCENTÍSSIMO chefe
ultrapassam tudo o que a imaginação maligna de seus mais odiosos
opositores teria podido inventar. As revelações dos últimos dias
impõem a conclusão incontornável de que a administração federal,
subjugada aos interesses de uma organização partidária auto-idolátrica, se
transformou em instrumento para uma variedade alucinante de esquemas
delinqüenciais, postos em ação numa escala jamais vista em qualquer parte
do mundo ou época da história.
Quando o PT, no início da década de 90, adotou a prática do moralismo
acusador que até então tinha sido mais típica da direita (v. Carlos Lacerda,
Jânio Quadros e a própria Revolução de 1964), percebi e anunciei
claramente que se tratava de um ardil baseado no mais puro cinismo
leninista: “Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é.” O estilo
mesmo das invectivas petistas era tão inflado, tão hiperbólico, tão teatral,
que se autodenunciava no ato como camuflagem de alguma perversidade
superlativa em curso de preparação. Qualquer ridícula tramóia de políticos
de interior para ciscar uns tostões do governo federal, qualquer miúda
negociata entre barnabés endividados e financistas ladrões, era denunciada
imediatamente como uma “manobra golpista”, um “Estado dentro do
Estado”, uma ferida mortal no coração da ordem pública, um perigo
apocalíptico para o futuro da nação. Ninguém que desejasse apenas tirar
proveito publicitário da desmoralização de seus inimigos exageraria a tal
ponto a ênfase da acusação. Tinha de haver algo mais por trás desse
esbanjamento retórico.
Investigações que fiz na ocasião levaram-me a concluir que o serviço
secreto petista, então denunciado pelo governador Esperidião Amin sob o
nome humorístico de “PT-POL”, era uma realidade. Milhares de militantes
e olheiros espalhados em partidos, empresas privadas, bancos, organismos
da administração federal, alimentavam de informações colhidas ilegalmente
a central chefiada pelo sr. José Dirceu, que então as usava para brilhar nas
CPIs com revelações espetaculares vindas de fontes anônimas e
irreveláveis. Não se tratava, é claro, apenas de brincar de Eliott Ness. O
serviço secreto petista já era, por si, uma máquina criminosa de dimensões
incomparavelmente maiores do que aquelas que o sr. José Dirceu, em
patéticos êxtases de hiperbolismo verbal, atribuía aos réus do momento. Era
o Estado dentro do Estado, no sentido literal da expressão, que, camuflando
seus crimes sob os alheios, se usava a si próprio como figura de linguagem
para ampliar os medíocres delitos dos adversários e lhes dar uma
significação política que não tinham. Nada mais interessante do que
comparar estilisticamente os discursos da época com as notícias de hoje: os
tribunos da moralidade petista nada imputaram a seus microscópicos
adversários que eles próprios já não estivessem fazendo ou preparando em
dimensão macroscópica. Pequenos delinqüentes eles próprios, tornaram-se
gigantes do crime ao erguer-se sobre os ombros dos Anões do Orçamento.
Mais ou menos na mesma época, um dirigente do PT, César Benjamin, era
expulso da agremiação por denunciar a criação, pela cúpula do partido, de
um esquema de corrupção então ainda em estado germinal. Paralelamente,
o PT articulava-se com organizações revolucionárias e gangues de
criminosos de vários países do continente, montando o “Foro de São Paulo”
como central estratégica devotada ao projeto de “reconquistar na América
Latina tudo o que foi perdido no Leste Europeu”, isto é, de reconstruir no
continente o regime mais corrupto que já existira no mundo (v. Nota, no fim
do artigo).
Completava o esquema uma rede de apoios jornalísticos solidamente
cimentados em lealdades partidárias secretas e na farta distribuição de
dinheiro e empregos. A CUT, braço sindical do PT, confessava ter
oitocentos jornalistas na sua folha de pagamentos, o bastante para tirar duas
edições diárias da Folha, do Estadão e do Globo, embora não publicasse
um tablóide semanal sequer.
Como todas essas iniciativas envolviam sempre os mesmos indivíduos – o
comando e estado-maior do PT –, era óbvio que elas não constituíam ações
separadas e inconexas, mas aspectos da construção integrada de um sistema
de poder destinado a engolir o Estado brasileiro e usá-lo para a consecução
dos objetivos do Foro de São Paulo.
A existência desse sistema já era visível em 1993, quando José Dirceu e
Aloysio Mercadante posavam na CPI das empreiteiras como restauradores
da moralidade pública. Quem quer que depois disso ainda tenha confiado na
honorabilidade do PT e na sua disposição de disputar eleições lealmente e
governar o país em rodízio democrático com os outros partidos, é um
irresponsável, um burro, um palpiteiro fanfarrão que, diante das atuais
revelações, deve ser excluído do círculo de formadores sérios da opinião
nacional e recolher-se à vida privada, senão à privada da vida. Incluo nisto
políticos, professores universitários, consultores empresariais pagos a preço
de ouro, donos de jornais, chefes de redação e uma coleção inteira de
“intelectuais e artistas” de todos os tipos e formatos. Toda essa gente,
quando não foi cúmplice consciente do que se tramava contra o Brasil,
mostrou ao menos uma futilidade palavrosa que, em matéria de tal
gravidade, é um crime tão grande quanto os do PT.
Tudo o que está acontecendo no Brasil de hoje poderia ter sido evitado.
Poderia e deveria. Não foi – e, mais do que os próprios delitos petistas, isso
ficará como mancha indelével na história da alma nacional. Haja o que
houver no futuro, o Brasil terá sido durante quase duas décadas um país de
tagarelas levianos, covardes, intelectualmente ineptos, dispostos a sacrificar
o futuro do povo no altar de um otimismo vaidoso e da recusa obstinada de
enxergar a realidade. O Brasil não foi vítima só de “um grupo”, “uma
camarilha”, “uma elite”. Foi vítima de toda uma geração, a mais presunçosa
e fútil de todas quantas já nasceram aqui. Essa geração é a minha. Agora
entendo retroativamente por que, ao longo de toda minha vida adulta, quase
só tive amigos trinta anos mais jovens ou trinta anos mais velhos. Uma
desconfiança irracional, instintiva, me afastava dos colegas da minha idade,
com exceção de quatro ou cinco puros de coração, visceralmente incapazes
de baixeza, alguns dos quais, por significativa coincidência, hoje
trabalhando neste Diário do Comércio. Ficar longe dos meus coetâneos foi
deprimente e, para a minha carreira nas redações, letal. Mas me livrou de
ser cúmplice do maior delito intelectual da nossa história.
Agora, quando a verdadeira índole do petismo já não pode mais ser
ocultada ou disfarçada, a presente geração de formadores da opinião pública
(refiro-me aos que não foram comprados ou seduzidos pelo PT) corre o
risco de repetir esse crime, se presumir que a mera concorrência eleitoral ou
mesmo a punição judicial de algumas dúzias dos culpados mais óbvios
livrará o país do flagelo e lhe abrirá as portas de um futuro mais digno.
O esquema de corrupção que se apossou do governo federal não é
fenômeno isolado. Não é iniciativa de um grupelho autônomo, separado das
raízes partidárias. Não é um caso de pura delinqüência avulsa. É parte
integrante da máquina revolucionária cuja montagem, se entrou em ritmo
acelerado no início dos anos 90, remonta a pelo menos duas décadas antes
disso, quando ao fracasso das guerrilhas se seguiu um esforço generalizado
de rearticulação da esquerda continental nas linhas circunspectas e
pacientes preconizadas por Antonio Gramsci em substituição aos delírios
belicosos de Régis Débray, Che Guevara e Carlos Marighela. Quem quer
que não conheça essa história com detalhes está por fora do que se passa na
América Latina e não tem nenhum direito de solicitar a atenção pública
para as opiniõezinhas com que deseje se exibir em colunas de jornal ou
encontros empresariais. Está na hora de calar a boca dos palpiteiros
irresponsáveis e começar a estudar o assunto que eles ignoram. Incluo entre
esses tagarelas o ex-presidente José Sarney e seu ministro do Exército,
Leônidas Pires Gonçalves, que, em plena época de gestação da nova
estratégia revolucionária continental, retiraram do currículo das academias
militares a disciplina de “Guerra Revolucionária” sob o pretexto de que “os
tempos mudaram”, deixando duas gerações de oficiais brasileiros
desguarnecidos contra as manobras estratégicas que hoje os usam como
instrumentos. Incluo na mesma classificação todos os que, numa fase muito
mais avançada do processo de tomada da América Latina pelas forças da
esquerda revolucionária, diziam que alertar contra as maquinações do Foro
de São Paulo era “açoitar calavos mortos”. Incluo os chefetes de redação
que tentaram tapar a minha boca para que eu não perturbasse o lazer de seus
leitores com advertências de que viria a acontecer precisamente o que veio
a acontecer. Incluo os “liberais” que, vendo montar-se à sua volta a maior
organização revolucionária e criminosa já registrada na história da América
Latina, insistiam em ater-se a miúdas críticas de ordem econômica e
administrativa, como se toda sua diferença com o PT consistisse de polidas
divergências doutrinais e estratégicas entre homens igualmente sérios,
igualmente honestos, igualmente devotados ao bem do Brasil. O número
dos cretinos auto-satisfeitos, que não precisam estudar nada para julgar tudo
e ter opiniões definitivas, é grande o suficiente para que o peso do seus
rechonchudos traseiros esmague a nação inteira. Toda essa gente é culpada
por ter dado ao povo a ilusão de que o PT era um partido normal,
respeitador das leis, ordeiro e pacífico. Ele não é nada disso e nunca foi
nada disso. Ele já era o partido das Farc, ele já era o partido dos
seqüestradores do MIR chileno, muito antes de ser o partido do Mensalão.
Muito antes de que brotasse dinheiro em cuécas, a CUT já carregava nas
calcinhas seus oitocentos jornalistas, sem que alguém ligasse a mínima
quando denunciei isso como a maior compra de consciências na história da
mídia universal desde a década de 30. Parafraseando Nelson Rodrigues: a
desmoralização nacional não se improvisa, é obra de décadas.
Se, agora, alguém pensa que vai se livrar dessa encrenca com uma eleição
e dois ou três processos, está muito enganado. Ninguém empenha décadas
da sua vida na construção de um gigantesco esquema de poder, para depois
deixá-lo derreter-se e escorrer por entre seus dedos ao primeiro sinal de
mudança das preferências da opinião pública.
O que é, substantivamente, o esquema de poder petista? Ele não é apenas
uma conspiração de gabinete. Ele se assenta na força da militância
organizada que, a qualquer momento, pode colocar nas ruas alguns milhões
de manifestantes furiosos, com o apoio de quadrilhas de delinqüentes
armados, para impor o que bem entenda a uma nação inerme e aterrorizada.
Durante quatro décadas a esquerda desfrutou do monopólio absoluto da
formação e adestramento de militantes para a ação permanente em todos os
campos da vida social, enquanto seus opositores, confiantes no poder
mágico do automatismo institucional, se contentavam com mobilizar
auxiliares contratados às pressas para exibir uns cartazes de candidatos nas
épocas de eleição. Hoje, a desproporção de força física entre a esquerda e
seus opositores é tão grande, que esses últimos têm até medo de pensar no
assunto. Novamente, eles se arriscam a confiar no abstratismo das
instituições e em vagas “tendências da opinião pública”, contra a massa
organizada, adestrada e armada. E novamente eu me arrisco a ser chamado
de maluco por advertir contra o perigo óbvio. Qualquer que seja o resultado
das eleições, qualquer que seja o desenlace das presentes investigações de
corrupção, a gangue petista não vai largar gentilmente a rapadura.
NOTA
Quem quer que estude um pouco a corrupção no regime soviético notará, de um lado, a
desproporção entre seu tamanho e o de seus equivalentes nominais no mundo capitalista; de outro, a
sua perfeita continuidade organizacional e hierárquica com a presente “máfia russa”, senhora
absoluta do crime organizado no mundo e participante ativa dos atuais esquemas revolucionários no
Terceiro Mundo. Não creio que seja possível entender nada do que se passa no mundo sem dar
alguma atenção a esse assunto. Os livros básicos a respeito são:
Konstantin Simis, USSR: The Corrupt Society. The Secret World of Soviet Capitalism, New York,
Simon & Schuster, 1982.
Alena V. Ledeneva, Russia’s Economy of Favours. “Blat”, Networking and Informal Exchange,
Cambridge Unversity Press, 1998.
Joseph D. Douglass, Red Cocaine. The Drugging of America and the West, London, Edward
Harle, 1995.
Claire Sterling, Thieves’ World. The Threat of the New Global Network of Organized Crime,
New York, Simon & Schuster, 1994.

25 de setembro de 2006
Pergunta e resposta

P
ERGUNTA: POR QUE, ENTRE OS ESQUERDISTAS decepcionados com Lula, há
tantos que aparecem na mídia explicando os crimes dele como efeito
de uma “guinada à direita” e nenhum, nem um único sequer, para dizer
a mesma coisa nas assembléias e grupos de trabalho do Foro de São Paulo?
Por que tantos querem convencer o eleitorado de que Lula os abandonou,
mas não se mexem para repassar tão preciosa informação aos líderes
máximos da esquerda latino-americana, Hugo Chávez e Fidel Castro, que,
coitadinhos, ainda continuam iludidos confiando nele? Por que todos têm
tanta pressa em denunciar o traidor ante o público em geral mas nem
pensam em avisar as supostas vítimas da suposta traição? Por que permitem
que o renegado, o vendido, o apóstata, continue desfrutando do prestígio de
militante fiel e honrado nos círculos internos da esquerda, enquanto o
desmascaram perante o resto da humanidade?
Resposta: agem assim porque são todos uns farsantes, mentirosos,
salafrários como o próprio Lula. Agem assim porque, vendo que o homem
está sujo demais perante a opinião pública, só lhes resta tentar limpar nele o
projeto criminal-revolucionário que o criou, que o colocou no poder, que
montou para ele a máquina de roubar e o adestrou no uso do equipamento.
Estão apenas sacrificando o produto para salvar a fábrica. Sabem
perfeitamente que estão mentindo. Contam, para isso, com a cumplicidade
do próprio Lula. Quando o acusam diante do consumidor, mas não na
reunião de diretoria, é porque sabem que em último caso ele é capaz até de
sacrificar sua carreira pessoal pela salvação geral do plano. Chamam-no de
infiel porque sabem que é fiel. Fiel o bastante para aceitar humilhações em
prol da causa. Fiel o bastante para acobertar seus velhos cúmplices mesmo
quando o acusam. Fiel o bastante para aceitar com igualdade de ânimo o
papel que lhe destinem – de santo ou de réprobo, de herói ou de traidor –,
sabendo que no círculo dos iniciados ninguém dá a mínima para a diferença
e todo mundo sabe que ele é apenas um “companheiro”, um militante como
qualquer outro. Dentro da fábrica de onde ele veio estão estocados, ou em
linha de produção, milhares de outros Lulas, e Dirceus, e Paloccis,
aguardando para ser lançados no varejo. Não vale a pena jogar fora o
estoque inteiro por causa de uns quantos produtos que se desmoralizaram..
Não vale a pena perder clientes por causa de umas quantas vendas mal
sucedidas. Ao contrário: pode-se até ampliar o mercado, lançando as culpas
do fracasso no concorrente. Aliás, direitista existe para isso. Existe para ser
xingado, cuspido, acusado do que não fez – principalmente dos crimes de
seus inimigos. Existe para ser removido do emprego, proibido de trabalhar,
reduzido à mendicância e depois ainda xingado de explorador capitalista,
como se faz com os escritores de oposição em Cuba. Existe para para ser
preso, torturado, assassinado às centenas de milhões, e depois ainda
acusado de genocida. Existe para dar anistia aos que tentaram matá-lo e
depois passar o resto da vida sendo difamado, caluniado, chamado de
homicida e torturador. Direitista não é gente. Direitista é uma forma animal
com aparência humana, criada pela evolução biológica só para ser
sacrificada no altar do progresso, das luzes, do socialismo ou até da justiça
poética, a única justiça que interessa quando os crimes da esquerda, como
aliás sempre acontece, não rimam com o dogma da impecância essencial do
esquerdismo.
P. S. – Os desiludidos a que se refere este artigo são tantos, que citá-los nominalmente
ultrapassaria a extensão do Diário do Comércio. Mas, para não dizerem que falei só genericamente,
dou o nome de três entre os mais famosos: Luiz Fernando Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro e Luiz
Eduardo Lins e Silva. Este último usou para fins de lavagem da esquerda até a resenha, no mais
elogiosa, que fez do meu livro O Imbecil Coletivo na Folha de S.Paulo. Ser esquerdista, afinal, é ter
todos os direitos – e não perder a mais mínima oportunidade de usá-los.

29 de setembro de 2006
A arte da acusação invertida

C
OMUNISTA, QUANDO QUER CALUNIAR ALGUÉM, não precisa inventar
crimes: atribui-lhe um dos seus, e pronto. Resolve dois problemas de
uma vez: queima a reputação do infeliz e ainda esconde as suas
próprias culpas sob as cinzas do cadáver. Isso é assim desde os tempos de
Lênin. O método é simples, prático, brutal e descarado. Tão descarado que
a platéia, recusando-se instintivamente a acreditar que alguém seja mau o
bastante para usá-lo, cai no engodo de novo e de novo e de novo.
O exemplo mais espetacular, em escala nacional, foi aquele que citei aqui
no artigo anterior: o hiperbolismo retórico dos Dirceus e Mercadantes, na
CPI de 1993, transformando os Anões do Orçamento em gigantes do crime
e acusando-os de montar “um Estado dentro do Estado”, coisa que ia muito
além das possibilidades e até da imaginação daquelas diminutas criaturas,
tudo para camuflar a montagem de um genuíno “Estado acima do Estado”,
obra-prima de maquiavelismo, que o próprio PT já ia construindo com a
ajuda das mais ricas e temíveis organizações criminais do continente, e cuja
potência continua e continuará produzindo efeitos devastadores, pouco
influindo nisso o resultado das eleições de ontem.
No plano internacional, exemplos ainda mais edificantes brotam em
profusão cornucópica. O caso mais célebre talvez tenha sido a matança de
20 mil oficiais poloneses num campo de prisioneiros da II Guerra,
executados por nada, por frescura, por divertimento. Os soviéticos
levantaram a denúncia no Tribunal de Nuremberg. O mundo ficou chocado
ante as fotos de cadáveres que não paravam de surgir do fundo da floresta
de Katyn. Anos depois, vieram provas concludentes de que os autores do
massacre tinham sido os próprios acusadores. Notem bem o detalhe: haveria
escassez de crimes praticados pelos nazistas, para que os soviéticos
tivessem de lhes emprestar um? Não, é claro. Mas a coisa parece que está
no sangue: é uma comichão, uma volúpia irresistível, uma compulsão
avassaladora. O gostinho da dupla mentira leva esses sujeitos ao orgasmo.
Não é delicioso, por exemplo, xingar os judeus em todos os jornais do
mundo e depois sair choramingando que eles são os donos da mídia? É
melhor que sexo. O sujeito fez isso uma vez, não quer parar nunca mais.
Pos isso mesmo, essa conduta não se limita aos comunistas professos. Ela
espalhou-se na esquerda em geral ao ponto de constituir um reflexo
condicionado, um estilo de vida, um modo de ser, um traço permanente da
cultura “progressista”. Mais recentemente, veio a onda de denúncias contra
os padres pedófilos. Foi uma tempestade mundial, uma epidemia planetária.
Por toda parte, os homens comprometidos com o voto de castidade
pareciam não ter outra ocupação na vida senão bolinar meninos. Mas havia
na acusação alguns detalhes estranhos. Desde logo, embora na quase
totalidade dos casos as vítimas fossem do sexo masculino, as palavras
“homossexual”, gay ou mesmo “pederasta”, que era o termo técnico exato
para descrever a conduta dos criminosos, não aparecia nunca no noticiário.
Nunca mesmo. A uniformidade global da omissão sugeria que os pedófilos
eram pedófilos não por serem homossexuais, mas por serem padres. A idéia
subjacente era persuadir o público de que a culpa de tudo estava no
cristianismo, não numa cultura anticristã intoxicada de estímulos a toda
sorte de sacanagem lícita ou ilícita, cultura da qual a própria mídia
internacional era a expressão mais vasta e permanente.
A intenção canalha tornava-se ainda mais evidente porque o número de
pedófilos entre os padres era muito menor do que entre os assistentes
sociais da ONU, uma classe politicamente correta que havia devastado duas
gerações de meninos na África e na Ásia, com o agravante cruel de
aproveitar-se da situação local de miséria e dependência, própria a induzir
as vítimas a que se submetessem a qualquer exigência despótica em troca
de comida e abrigo. Ora, estes casos eram divulgados apenas em livros, em
sites de organizações filantrópicas e em pesquisas acadêmicas: nem uma
palavra sobre os campeões mundiais do abuso de menores aparecia
naqueles mesmos jornais e noticiários de TV que ostentavam tanta
indignação contra os padres. A seletividade deformante era tão óbvia, que
tinha de haver alguma perversão maior por trás de tudo. Só entendi o
fenômeno quando li o livro do repórter Michael S. Rose, Goodbye, Good
Men: How Liberals Brought Corruption into the Catholic Church
(Washington DC, Regnery, 2002). Era a história de como organizações
ligadas ao movimento gay haviam infiltrado psicólogos nos seminários,
durante duas décadas, para que vetassem o ingresso de homens
vocacionalmente dotados para o sacerdócio e, em contrapartida, dessem
preferência a candidatos homossexuais. Fontes citadas pelo autor: os
próprios psicólogos, muitos deles arrependidos de haver colaborado com
essa maldade descomunal. A operação havia mudado radicalmente a
composição do clero americano, produzindo artificialmente a situação que
depois seria imputada à Igreja Católica pelos próprios autores do crime. É
claro que esse efeito não depende de um acordo prévio, de uma conspiração
entre os planejadores originais e a mídia que anos depois completa a
operação. Nesses casos, pode-se contar sempre com aquilo que Willi
Munzenberg, o gênio comunista da desinformação midiática, chamava
“criação de coelhos”. Basta dar o empurrão inicial, e o resto vem pelo
automatismo imitativo – o processo mental mais característico do
“proletariado intelectual” que espalha as modas culturais. Hoje em dia
qualquer engenheiro social de quinta categoria domina a técnica de gerar
esses efeitos. O mundo cultural está agora repleto não somente de coelhos,
mas de milhões de pequenos Willis Munzenbergs com orelhas de coelho.
Por meio deles a arte de usar os próprios crimes como instrumento de
difamação dos inimigos deixou de ser privilégio da elite comunista para
tornar-se patrimônio geral da esquerda.
E não venham com a bobagem de que estou contando isso por
“preconceito”, “homofobia” ou coisas assim. Jamais abri minha boca para
criticar as preferências sexuais de quem quer que seja. Apenas não sou
idiota o suficiente para confundir preferência sexual com crime. Muito
menos crime comum com uma operação de calúnia em larga escala,
montada como camuflagem perversa de uma trama ainda mais perversa
voltada contra a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A desvantagem do ardil é que, pela sua própria tendência de reproduzir-se
mecanicamente ad infinitum, ele só serve para ludibriar ignorantes. Quem
conheça a história do movimento comunista logo acaba apreendendo a
fórmula do truque e reagindo ao automatismo com outro automatismo: onde
quer que ouça um comunista acusando alguém de qualquer coisa, já sabe
que alguma o comunista fez. O outro pode também ter feito, mas não é por
isso que o comunista o acusa. É porque ele próprio fez, e quase com certeza
fez pior. Posso testemunhar que, no meu caso, esse reflexo imunizante
jamais falhou: todas as vezes que busquei algum crime por trás do discurso
de acusação esquerdista, encontrei. E em geral encontrei mais de um.
O sr. Marco Aurélio Garcia acaba de me fornecer mais um exemplo, ao
chamar de “violação da Justiça e da vontade popular” a divulgação das
imagens do dinheiro usado na compra do dossiê anti-PSDB, comparando o
episódio ao seqüestro do empresário Abílio Diniz em 1989, quando, diz ele,
os malvados direitistas “tentaram identificar seqüestradores com o PT” por
meio de uma foto dos delinqüentes com camisetas do partido.
A inversão é patente, para quem se lembra do caso. Quem “identificou o
PT com os seqüestradores” não foi a foto. Não foram os direitistas. Foi o
próprio PT, com a desavergonhada campanha que moveu para proteger e
libertar os bandidos. Essa campanha mobilizou rapidamente todo o
beautiful people paulista, a tropa inteira das garotas-propaganda do
comunismo local, mostrando a extraordinária importância política que a
causa tinha para o partido, tradicional amigo do MIR chileno, a quadrilha
dos seqüestradores. Maior prova de cumplicidade não poderia haver.
Cumplicidade não quer dizer necessariamente ajuda material na execução
do delito, nem participação nos seus lucros financeiros. Dar suporte político
ao crime é crime, e o suporte dado pelo PT aos seqüestradores de Abílio
Diniz repetiu-se igualzinho no seqüestro de Washington Olivetto, praticado
pela mesma gangue. No ano seguinte ao do primeiro seqüestro, a aliança do
PT com o MIR, com as Farc e com outras organizações criminosas foi
formalizada com a fundação do Foro de São Paulo, que articula ações
políticas com a prática de delitos para a vantagem mútua dos dois braços da
revolução comunista, o “legal” e o “ilegal”. Quando veio o caso Olivetto, a
mobilização do suporte político foi mais rápida e eficiente, porque já estava
tudo pré-arranjado no Foro. O PT estava tão profundamente comprometido
com os autores do seqüestro, que além de socorrê-los na mídia e na Justiça
ainda tratou de livrar a cara do MIR, dizendo que os bandidos eram “ex-
membros” da organização, mentira que uma vez passado o perigo foi
desmascarada por um dentre eles mesmos, Mauricio Norambuena,
ostentando num jornal chileno uma bandeira do MIR e afirmando que era,
sim, membro da quadrilha e não um extraviado free lancer como o
rotulavam seus protetores petistas para descaracterizar a origem comunista
do crime. Mais impressionante ainda foi a operação montada para livrar da
justiça brasileira o falso padre Olivério Medina, para que não esclarecesse
em público o que havia revelado a amigos numa festa petista: que havia
trazido dinheiro das Farc para a campanha do PT em 2002. O PT está, sim,
envolvido com narcotráfico e seqüestros, está envolvido com as Farc, com o
MIR, com tudo quanto é bandido esquerdista no continente. Se ganha ou
não dinheiro com isso, é indiferente. Ganha politicamente, e sabe que
ganha. Isto já basta para qualificá-lo, acima de qualquer possibilidade de
dúvida, como beneficiário de uma série interminável de crimes hediondos,
como o partido mais criminoso que já existiu neste país. O sr. Garcia sabe
de tudo isso, e se ele vier com desconversa esfrego-lhe no nariz os
documentos do Foro de São Paulo que provam a unidade estratégica das
ações empreendidas em escala continental por partidos legais de esquerda e
organizações criminosas, tudo sob o comando direto do delinqüente-mor,
fundador e mentor da porcaria toda, Luís Inácio Lula da Silva.
Um detalhe especialmente elegante da fala do sr. Garcia é a singela cara de
pau com que ele sugere que a “vontade popular” é não saber nada sobre o
dinheiro do dossiê antitucano. Informar os eleitores é insultá-los. Mentir
para eles, mantê-los na ignorância como menores de idade, isto sim é que é
respeitá-los. Cabeça de comunista é assim. Não se contenta com a
perversão. Parte logo para a inversão. E não estou falando de inversão
sexual, que é um fenômeno corriqueiro na sociedade. Comunista não se
satisfaz com tão pouco: quer praticar veadagem é com o traseiro dos outros.
O traseiro da pátria. O traseiro da humanidade.
Mas, no caso de agora, a inversão da ordem dos fatores não começou com
o sr. Garcia, nem se limitou à esfera verbal. Investigar o delegado que
divulgou o crime, em vez dos delinqüentes que o praticaram, não foi
invenção do sr. Garcia, mas de outro ainda mais farsante e malicioso do que
ele. Outros ainda piores fizeram o mesmo no caso Celso Daniel. Como é
possível que, com tantas testemunhas assassinadas e tantas provas da
operação-abafa arranjada pelo PT, a relação entre uma coisa e outra ainda
não tenha sido esclarecida? Se foi o partido queridinho de Fidel Castro que
mandou matar o boquirroto Daniel e deu sumiço nas testemunhas, que é que
poderia haver de estranho nisso, sendo esse partido tão repleto de terroristas
e assassinos treinados pelo serviço secreto mais homicida do continente,
que já matou mais de cem mil pessoas em Cuba sob os aplausos – se não
com a colaboração pessoal – desses mesmos indivíduos? Para gente como
Fidel Castro, dar cabo dos inconvenientes é simples questão de rotina. Por
que não o seria também para seus discípulos?
2 de outubro de 2006
O chuchu que virou pepino

C
OMEÇO POR CHAMAR A ATENÇÃO dos leitores para a seguinte nota
publicada na coluna de Mônica Bérgamo.[ 30 ]
De um dos parlamentares mais bem votados do PT em jantar com empresários, anteontem:
‘Vamos ser claros. Existia um acordo entre nós [PT] e o PSDB: o próximo governo era nosso, do
Lula. O de 2010 seria do José Serra ou do Aécio Neves, sem problemas. Com a vitória do
Alckmin, esse acordo será rompido. E o Alckmin vai ter derrotado o Serra, o Aécio, o Fernando
Henrique Cardoso, o Lula, todo mundo.’ A platéia ouvia, algo perplexa. O parlamentar
continuou: ‘O Alckmin, se eleito, não vai governar. O PT não vai dar trégua no Congresso. A
CUT, o MST, os movimentos sociais, não vão dar trégua nas ruas.’ A perplexidade só aumentou.
No mesmo jantar foi dito que o PT está preparado para uma má notícia nas próximas pesquisas: a
de que Alckmin tenha empatado ou até superado o presidente Lula nas intenções de votos. ‘Mas
o PT vai para as ruas’, disse o parlamentar.
Se a informação é veraz (e confesso que sinto dificuldade em contestá-la),
ela significa que:
1) Os dois partidos fingem enfrentar-se em público, quando em segredo já
dividiram o bolo do poder. Isso seria a maior fraude eleitoral de todos os
tempos.
2) O acordo criminoso tem autoridade superior à decisão do eleitorado,
que pode ser revogada à força caso venha a se desviar do que ele determina.
Isso seria mais que uma ameaça de golpe. Seria a confissão de que o golpe
já está armado.
A informação pode parecer chocante demais para ser verdadeira, mas, no
país do Mensalão, do dinheiro na cueca, dos 50 mil homicídios por ano, das
testemunhas judiciais assassinadas em série e dos narcotraficantes recebidos
como hóspedes oficiais de um governador de Estado, a diferença entre o
chocante e o banal se tornou um detalhe filológico sem maior interesse.
A notícia, aliás, tem antecedentes, e bastante numerosos.
Tempos atrás, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o então
teórico petista Cristovam Buarque reconheceram, numa declaração
conjunta, que seus respectivos partidos não tinham nenhuma divergência no
que diz respeito a ideologia e metas; que a única disputa ali existente era de
cargos. Em qualquer país decente, essas duas belezinhas teriam sido
imediatamente aposentadas da atividade política. No Brasil, receberam
mimos e afagos como se tivessem acabado de recitar “Batatinha quando
nasce”. Já naquela época ninguém se escandalizava ante a confissão de que
a mais vistosa disputa em cartaz no circo político nacional era uma farsa. A
identidade de política e farsa parecia, ao contrário, uma lei da natureza. Por
que deveríamos então surpreender-nos com sua confirmação tardia?
A suspeita explícita de algum acordo secreto remonta pelo menos à
declaração de Fernando Henrique, feita ao candidato Lula poucos dias antes
da eleição de 2002: “Você sabe que esta cadeira é sua.” Por que o
presidente, em vez de ajudar o seu candidato nominal, apostava tudo no
cavalo do adversário? Não sei, mas o fato é que, eleito para deter o avanço
da extrema esquerda, Fernando Henrique havia tratado é de favorecê-lo por
todos os meios, alimentando o MST com as verbas federais que o
transmutaram de grupelho folclórico em temível organização de massas,
desmoralizando e demolindo as Forças Armadas, institucionalizando o
assalto revanchista aos cofres do Estado e oficializando a doutrinação
politicamente correta nas escolas. Não é de espantar que a direita militar
tenha acabado por nutrir mais ódio aos tucanos do que aos petistas,
oferecendo a estes o seu apoio eleitoral em 2002. Nada no mundo me
convencerá de que tudo isso foram resultados imprevistos de erros
inocentes, cometidos com a mais pura intenção de sepultar o comunismo
sob as glórias de uma democracia capitalista. No instante mesmo em que os
cometia, Fernando Henrique gabava-se de ser melhor conhecedor da
estratégia revolucionária gramsciana do que seus concorrentes petistas. E
era mesmo. Mas, nesse sentido, seus erros não foram erros. foram uma
espertíssima política de esquerda camuflada como política direitista sonsa.
Todos os aparentes paradoxos do governo Fernando Henrique se resolvem
quando os encaramos sob esse prisma. Inclusive as famosas privatizações,
conduzidas com espírito premeditadamente clientelista que as inutilizou
como instrumentos de higiene administrativa e comprometeu para sempre a
imagem do “liberalismo” aos olhos do eleitorado, dando um poderoso
reforço ao discurso estatista da esquerda – resultado óbvio que um cientista
político habilitado como Fernando Henrique jamais teria podido deixar de
prever, e do qual, aliás, tirou ainda um belo proveito secundário, o
enriquecimento de seus amigos.
A existência da parceria oculta entre as duas agremiações pareceu
confirmada por um sinal indireto nas eleições de 2002, quando o candidato
José Serra, alimentado de informações sobre o Foro de São Paulo capazes
de fazer em cacos o prestígio do oponente, se recusou a divulgá-las,
preferindo antes ser usado como sparring para o maior sucesso do
adversário e tornando-se, por omissão, cúmplice dos crimes inumeráveis
cometidos por aquela organização subversiva.
O mesmo silêncio é observado agora pelo sr. Geraldo Alckmin, cuja
imagem de conservador e católico só engana a quem desconheça a
contribuição dada por ele ao avanço da ditadura politicamente correta entre
nós, mediante um decreto abominável que proíbe padres, pastores ou
rabinos de vetarem o ingresso de homens vestidos de mulheres nos seus
templos, como se cultos religiosos fossem bailes do Scala Gay.
Como se isso não bastasse, o candidato ainda sai proclamando que Lula
está à sua direita, dando assim um formidável impulso a que a identificação
do esquerdismo com a vontade de Deus se arraigue um pouco mais na
imaginação popular, e confessando que, à imagem do seu antecessor de
2002, não enfrenta o oponente como a direita enfrenta a esquerda, mas
apenas concorre com ele num campeonato de esquerdismo. Se é verdade
que o contrato secreto sugerido na notícia da Folha não compromete o
PSDB inteiro, mas apenas alguns grupos dentro dele, é claro que entre a
facção de Alckmin e o grupo Serra-Aécio-FHC a divergência também não é
ideológica, mas mera disputa de poder, reproduzindo em miniatura, na
escala tucana, a concorrência entre PSDB e PT.
Ambos esses partidos, no fim das contas, vêm da mesma origem social e
cultural. Nasceram do mesmo grupo uspiano intoxicado de marxismo, cujos
membros menos ortodoxos, mesmo após a queda da URSS, não abdicaram
em nada de seu compromisso materialista e esquerdista, no máximo
consentindo numa modernização cosmética, da qual não resultou nenhuma
tomada de posição efetiva contra as ditaduras comunistas e nem sequer o
despertar de algum interesse, por mínimo que fosse, pelo pensamento da
“direita”. Fernando Henrique, Serra, Gianotti e tutti quanti continuam tão
ignorantes do conservadorismo anglo-saxônico ou da economia austríaca
quanto o eram na década de 60. Que sentido faz, então, rotulá-los de
“direitistas”? Como podem esses indivíduos representar, mesmo de longe,
uma corrente de idéias pela qual não têm sequer um interesse teórico, um
interesse intelectual, um interesse de meros leitores? O cientista Bolívar
Lamounier voltou a insistir recentemente, e é o milésimo a dizê-lo: “O
PSDB é uma organização de centro-esquerda.” Fazer dos líderes tucanos a
encarnação da direita nacional é evidentemente uma fraude. Se
perguntarmos a quem beneficia essa fraude, a resposta é óbvia: beneficia
por igual aos tucanos e petistas, ajudando-os a dividir o espaço inteiro da
política nacional entre a “esquerda” e a “direita da esquerda”, deslocando
para o mundo do não-ser todas as forças que poderiam legitimamente
reivindicar, em graus variados, o título de direitistas, conservadoras ou
liberais. Tenho explicado isso desde o ano de 2000 pelo menos, e não vejo
por que continuar repetindo o óbvio.
Quem disse que em briga de marido e mulher não se mete a colher tinha
em vista precisamente o fato de que, por trás dos bate-bocas domésticos
restando sempre um fundo de amor secreto, qualquer veleidade de tomar
partido de um dos lados acabará fortalecendo a união dos cônjuges em
prejuízo do intrometido. Duas forças que se acharam espertas o bastante
para usar o PSDB contra o PT ou vice-versa saíram quebradas e
desmoralizadas dessa tentativa supremamente idiota. A primeira foi o PFL.
Pouco restou dele depois da aliança com FHC, e agora está mais fraco ainda
depois do esfarelamento político de Antonio Carlos Magalhães, um
fenômeno que previ como inevitável mais de três anos atrás. A segunda foi
a vasta parcela de oficiais das Forças Armadas, que, em 2002, no empenho
de vingar-se dos tucanos que tanto haviam humilhado suas corporações,
votaram maciçamente no PT acreditando poder servir-se dele e jogá-lo fora.
Foram eles os usados e jogados, exatamente como anunciei que seriam.
Onde erraram? Erraram, primeiro, pela mania brasileira de tentar resolver
tudo com manhas sorrateiras em vez de coragem e franqueza. Napoleão
ensinava: entre a esperteza e a força, a força sempre vence. O corolário é
incontornável: se você não tem força, adquira-a. Essa é a única esperteza
que vale. Um único ato de coragem multiplica a força por mil. E nada
enfraquece mais do que tentar usar a esperteza como substitutivo da
coragem. Com mais alguns passos nessa direção, a Frente Liberal se tornará
a entrada dos fundos do esquerdismo. E as Forças Armadas se tornarão
Fraquezas Desarmadas.
Erraram, também, por subestimar a unidade profunda da esquerda
nacional, unidade forjada na luta precisamente contra a elite pefelista e as
Forças Armadas. Civil ou militar, o sujeito precisa ser muito besta para
achar que de repente, em troca de dois ou três agradinhos, esquerdistas
históricos vão romper lealdades de quatro décadas para se tornar amigos de
seus inimigos de ontem. Mesmo se não existisse a aliança formal a que se
refere a colunista da Folha, restaria o espírito de solidariedade
revolucionária, uma força psicológica tremenda. Um comunista pode
retalhar ou assar vivo outro comunista. Mas jamais permitirá que um
estranho, um reacionário, o faça em lugar dele. Entre comunistas, as
divergências são políticas ou estratégicas. Entre os comunistas e o resto, a
diferença é um abismo ontológico intransponível. Notem o ar de infinita
superioridade com que eles se referem a vocês, e verão que nesses
ambientes vocês jamais terão sequer o estatuto de seres humanos enquanto
não se converterem ao esquerdismo. Para o comunista, só há amigos e
inimigos – e nesta última classificação entram os aliados oportunistas como
o PFL e os oficiais “nacionalistas”.
Há também o fato de que bater com duas mãos, articulando a “pressão de
cima” com a “pressão de baixo” como se viessem de fontes separadas e
inconexas, é a mais velha e sólida tradição estratégica do esquerdismo
internacional – uma tradição que dificilmente seria desconhecida por
homens muito versados em marxismo e em praticamente mais nada.
Por fim, é evidente que nem PT nem PSDB são organizações nacionais
independentes, criadoras de suas próprias idéias. Ambos são instrumentos
passivos de estratégias globais que seus dirigentes nem mesmo enxergam
com clareza, pois não têm QI para isso, e às quais servem com o
deslumbramento de caipiras para quem um sorrisinho da mídia
novaiorquina ou uns aplausos de ocasião na Assembléia Geral da ONU
representam a culminação suprema da existência humana. Para os criadores
da política mundial, os planejadores estratégicos da Nova Ordem Mundial,
articular um partido de esquerda com um de centro-esquerda em mais um
país de tagarelas semiletrados no Terceiro Mundo, depois de tantos onde
isso se fez com sucesso desde a primeira década do século XX, não é
certamente o grande desafio de suas vidas.
Em face desses antecedentes, a noticia dada por Mônica Bérgamo faz tanto
sentido que negar sua veracidade in limine, como o faz indignado o meu
caro Reinaldo Azevedo, só se explica como natural reação do homem
honesto ante o temor de que sua última esperança de restaurar a ordem
moral se transfigure na mais intolerável das decepções. Quando a derradeira
tábua de salvação começa a nadar como um crocodilo, mostrar dentes de
crocodilo e agitar o rabo como um crocodilo, o cérebro humano tende a
apegar-se à idéia reconfortante de que as árvores às vezes assumem
estranhas formas animais. Mas a situação do Brasil se tornou tão
ameaçadora, que recuar ante as hipóteses escabrosas pode ser um meio de
apressar a sua realização. Os piores instintos humanos assumem o comando
justamente quando rejeitados para a escuridão do inconsciente. É melhor,
pois, levar a hipótese a sério, e começar a investigá-la.
Também não há por que supor, como Reinaldo, que a notícia seja
desinformação calculada para queimar a candidatura anti-Lula. Se o acordo
secreto existe, e se Alckmin tomou a iniciativa de traí-lo, eis aí uma bela
razão para votar em Alckmin. O princípio do ladrão que rouba ladrão vale
também para o traidor paradoxal, que trai o pacto abominável dos
conspiradores. Eu, que não tenho a menor apreciação pelo sr. Alckmin,
confesso que, se ele fez o que Mônica Bérgamo diz que ele fez, já vejo aí
um começo de motivo para admirá-lo. Num país de carneirices,
papagaiadas e macaqueações, ele terá optado por um caminho próprio, não
obstante os riscos. Já não se poderá chamá-lo de “chuchu”. Ao menos do
ponto de vista dos conspiradores, ele terá se transformado em pepino. Há
quem goste e quem não goste de pepino. Mas ninguém dirá que é
digestivamente inócuo.
10 de outubro de 2006

[ 30 ] Ver http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0410200609.htm.
O boneco

A
SUPERIORIDADE MORAL, INTELECTUAL E PRÁTICA do candidato Alckmin
em relação a seu concorrente é imensurável, e a única coisa que se
pode alegar para depreciá-la é que não há nenhum mérito notável em
ser melhor que um delinqüente malicioso e cínico.
Eu diria mesmo que o padrão Alckmin é o mínimo aceitável na classe
política de qualquer país decente. Lula não é aceitável nem como suplente
de vereador. Não é aceitável como contínuo de repartição pública. Não é
aceitável como varredor de rua. Só é aceitável como presidiário, porque
lugar de delinqüente é na cadeia. E quando o chamo de delinqüente não
estou me referindo ao Mensalão, ao dinheiro na cueca, a sanguessugas e a
valdomiragens diversas. Em tudo isso as provas contra ele existem, mas são
indiretas e circunstanciais. Refiro-me, sim, à sua longa parceria política
com duas das organizações criminosas mais perversas e violentas que já
existiram no continente: as Farc, que distribuem cocaína a crianças nas
nossas escolas e treinam assassinos para que matem mais e mais brasileiros,
e o MIR chileno, acionista majoritário da indústria dos seqüestros no nosso
país. Aí a prova é direta, documental e superabundante: centenas de páginas
de atas de assembléias e grupos de trabalho do Foro de São Paulo, assinadas
pelo seu fundador e presidente, Luís Inácio Lula da Silva, mais o discurso
que ele fez no décimo-quinto aniversário da entidade, no qual se gaba
daquilo que deveria envergonhá-lo, se ele tivesse a capacidade de
envergonhar-se.
Durante doze anos esse sujeito tramou a estratégia comum do seu partido
com narcotraficantes, seqüestradores e assassinos, calculando a vantagem
mútua que, para a conquista do poder total na América Latina pelos
herdeiros ideológicos de Lênin e Stálin, deveria resultar da colaboração
entre o crime e a aparência de legalidade, esta encobrindo e protegendo
aquele, recebendo em troca dinheiro e a garantia da violência armada em
caso de aperto.
Se dar respaldo político ao crime não é crime, Lula é inocente, exceto do
Mensalão e outros delitos menores. Se beneficiar-se politicamente da
parceria com o crime não é crime, Lula é inocente, exceto daquelas
falcatruas banais que a mídia educadamente lhe imputa na intenção de
reduzir esse monstro de amoralidade e maquiavelismo às proporções de um
João Alves de esquerda, desprezível por ser João Alves, perdoável por ser
de esquerda.
No debate de domingo, ele foi chamado de mau administrador, perdulário
do dinheiro público e mentiroso. Para quem fundou, inspirou e dirigiu a
maior organização subversiva e criminosa que já existiu no continente
latino-americano, tudo isso é elogio. Apenas deixa na platéia a impressão de
que ele é tão ruim quanto seu adversário, no máximo um pouquinho pior.
Mesmo que esse pouquinho lhe roube a reeleição, a perda será tão mais
tênue, mais doce do que o castigo que ele merece, que ela terá sido, no fim
das contas, um prêmio. E, para o PT, reconhecer que um dos seus é “um
político como qualquer outro” terá sido um prodígio de humildade tão
excelso, tão deslumbrante, que bastará para dar reforço dobrado à crença
dogmática na santidade partidária.
Protegido de si mesmo até pelos seus adversários, assegurado, por algum
pacto sinistro, de que seus crimes supremos não serão mencionados em
público, isolado assepticamente da realidade macabra que veio construindo
em segredo ao longo de uma década e meia, ele comparece aos debates com
a segurança, a empáfia, a pose agressiva e triunfante de quem conta, na
mais catastrófica das hipóteses, com uma perda honrosa.
Ele é, na verdade, o político mais vulnerável que já ousou se mostrar ao
eleitorado neste país. Sua história é uma sucessão de abominações cuja
narrativa bastaria para escorraçá-lo da vida pública e trancafiá-lo para
sempre na galeria subterrânea das vergonhas nacionais.
Ele sabe que sua afetação de superioridade é mera pose, erguida e mantida
com muita cola, muito verniz, muita fita crepe. Rasguem-lhe o invólucro de
proteção, digam-lhe a verdade na cara, perante a platéia, e ele se
desmanchará como um boneco de papelão na chuva.
11 de outubro de 2006
A prova cabal da mentira

S
OB O TÍTULO “PARANÓIA”, encontro no site oficial da campanha lulista
uma declaração sobre o Foro de São Paulo[ 31 ] que deve ser analisada
com a maior atenção e rigor, porque fornece a prova cabal de que o PT
é um partido de sociopatas cínicos, amorais, sem escrúpulos, mentirosos até
à alucinação.
Publicado sem assinatura de autor, portanto endossado pelos chefes
mesmos da campanha presidencial de Lula, o documento começa
anunciando que “alguns artigos na imprensa e muitas mensagens na internet
divulgam uma ‘denúncia’ seríssima: a de que o PT seria integrante de uma
perigosa organização internacional chamada Foro de São Paulo.”
As aspas na palavra “denúncia” dão a entender que ela não é uma denúncia
de maneira alguma, não é a revelação de ações graves e malignas, mas sim
apenas uma tentativa artificiosa de fazer onda em torno de fatos já
amplamente conhecidos ou inócuos. Veremos adiante se esses fatos são
realmente assim.
“Pois bem: a tal organização existe, chama-se mesmo Foro de São Paulo
mas só oferece perigo para os partidos neoliberais.”
Como não faz nenhum sentido reconhecer publicamente a existência de
algo que já é publicamente reconhecido como existente, este parágrafo é
uma confissão de que o Foro de São Paulo, a mais vasta e poderosa
organização política já existente na América Latina, fundada por duas
celebridades mundiais (Lula e Fidel Castro) e composta por todos os líderes
da esquerda continental, continua desconhecido do público geral após
dezesseis anos de atividade.
Mas será normal, inócuo e indigno de denúncia o fato de que tantos chefes
de Estado, tantos líderes de partidos, tantos comandantes de guerrilhas
tenham reuniões periódicas para discutir assuntos políticos durante mais de
uma década e meia sem que ninguém fora do círculo dos eleitos fique
sabendo de nada?
Ou, ao contrário, a denúncia não tem nada de artificioso, é a revelação
jornalística obrigatória de um fato importante e colocá-la entre aspas é que
é uma tentativa pueril de esconder um elefante por baixo de um pires?
Raciocinem um pouco. Mesmo que aqueles indivíduos se reunissem sem
qualquer intuito político, mesmo que fossem ali apenas para beber cerveja e
jogar futebol-de-botão, o número e a magnitude deles já faria do
acontecimento um alvo necessário e indispensável de atenção jornalística.
O silêncio total da mídia a respeito assinalaria, no mínimo, uma falha
profissional imperdoável, mesmo que o encontro se realizasse uma única
vez. A persistência da omissão por dezesseis anos seguidos, mesmo se não
levarmos em conta suas implicações políticas e a considerarmos apenas do
ponto de vista técnico-jornalístico, já seria por si um fenômeno alarmante
no mais alto grau. Ainda supondo-se que não houvesse nisso nenhum
esforço de ocultação, apenas um lapso de atenção profissional, é evidente
que uma gigantesca falha de cobertura, repetida uniformemente por todos
os jornais, canais de TV e noticiários de rádio ao longo de tanto tempo,
comprovaria uma epidemia geral de inépcia jornalística como nunca se viu
na história da mídia mundial. Dizer que isso não constitui motivo de
denúncia ultrapassa a margem do que se pode conceder à hipótese da
estupidez. É cinismo puro e simples. É mentira consciente, produzida no
intuito de ludibriar os votantes às vésperas de uma eleição.
Mas quem, em sã consciência, pode acreditar numa tão vasta, geral e
duradoura conjunção de inépcias jornalísticas acumuladas em todas as
redações, em todas as cabeças de jornalistas do país ao longo de dezesseis
anos por mero acaso, por pura coincidência? Se essa coincidência tivesse
realmente acontecido, sua improbabilidade matemática seria tão gigantesca
que, por si, o fenômeno mereceria estudo científico. Querer que
acreditemos nisso é esperar que abdiquemos totalmente da inteligência
racional e do senso das proporções, para apostar na palavra sacrossanta de
um redator de aluguel a serviço de um partido de ladrões.
Para qualquer observador com QI superior a 12, é claro que houve
ocultação deliberada do Foro de São Paulo e, uma vez vazado o segredo,
um esforço proposital de abafar o escândalo por meio de evasivas,
desconversas e novas ocultações. Essas duas etapas da fraude se
evidenciaram, respectivamente, no sumiço completo do site do Foro de São
Paulo logo após eu começar a divulgar trechos das atas de suas assembléias,
e na nota oficial do PT, assinada por seu assessor de imprensa Giancarlo
Summa, que afirmava ser o Foro apenas um inofensivo centro de debates,
sem intuito decisório, afirmativa que desmenti, com provas cabais, em
artigo publicado em O Globo em 19 de outubro de 2002.
Não sei como o acordo de sumir com a notícia veio a ser obedecido tão
fielmente por todos os órgãos de mídia (se bem que no Brasil eles não
sejam tantos que não se possa suborná-los, ou intimidá-los, ou
simplesmente seduzi-los por atacado). Mas sei de onde partiu a ordem de
sumiço: partiu do próprio Foro de São Paulo, na pessoa do seu fundador e
dirigente máximo, Luís Inácio Lula da Silva. Quem me contou isso? Foi ele
mesmo, ora bolas! Ele próprio, no seu discurso de 26 de setembro de 2005,
comemorativo dos quinze anos de fundação do Foro, declarou que essa
entidade era um sistema de relações construído entre ele e outros líderes
esquerdistas “para que pudéssemos conversar sem que parecesse e sem que
as pessoas entendessem qualquer interferência política”. Pergunto ao autor
do documento: Você não sabe ler, desgraçado? Não entende o que o seu
próprio chefe admite com clareza máxima? Entende sim, e porque entende,
esconde. No caso, esconder se torna ainda mais fácil porque o discurso com
a confissão explícita da ocultação proposital também foi ocultado por sua
vez: publicado no site oficial do governo[ 32 ] não foi citado por nenhum
jornal, revista, canal de TV ou estação de rádio deste país, mesmo depois
que o denunciei nas minhas colunas, aqui, no Jornal do Brasil e no Mídia
Sem Máscara. Vai me dizer, moleque idiota, que isso também foi
coincidência, mera coincidência?
A segunda frase do parágrafo admite que o Foro é perigoso, “mas só para
os partidos neoliberais”. Não interessa, no momento, discutir o sentido
objetivo do termo “neoliberal”, que já investiguei em artigo anterior.[ 33 ]
Interessa que, para os esquerdistas em geral, incluindo o autor do
documento, o termo designa pessoas e entidades que eles parecem não ter a
menor dificuldade de identificar, tal o sentimento de certeza com que o
aplicam a esses alvos. As duas perguntas que a afirmação suscita são,
portanto: (a) Que tipo de perigo, concretamente falando, o Foro apresenta
para os partidos que tenham a infelicidade de enquadrar-se na classificação
de “neoliberais”?; (b) É realmente só esse o grupo ameaçado, ou os perigos
aludidos se estendem também a outros grupos não mencionados?
Com relação ao item “a”, o autor nada esclarece. Como o documento se
constitui de palavras escritas em defesa das ações do Foro, devemos
portanto recorrer a estas para esclarecer o sentido daquelas. O que o Foro
tem feito contra os neoliberais mostrará a quais novos perigos o autor do
documento promete agora submetê-los. Por outro lado, o Foro não age
diretamente, mas através das entidades que cumprem suas resoluções. Ora,
as ações que essas entidades têm empreendido contra os chamados
“neoliberais” constituem-se, em grande parte, de guerra cultural e combate
político. O objetivo com que as empreendem foi declarado explicitamente
pelo próprio inventor e mentor do Foro de São Paulo, Fidel Castro:
“Erradicar o neoliberalismo.”[ 34 ] Não se trata, portanto, de concorrer com
o neoliberalismo nas eleições, alternando-se com ele no poder,
democraticamente: trata-se de eliminá-lo, de varrê-lo do círculo das
possibilidades socialmente admissíveis. O primeiro perigo que o Foro
promete para os partidos inimigos é este: torná-los inviáveis como força
política e cultural. A promessa é clara, e exclui in limine a possibilidade do
rodízio no poder por via eleitoral, que supõe a existência política e cultural
do adversário como força organizada. Pode-se concorrer com esse
adversário, é claro, mas só como meio temporário destinado, em última
instância, a “erradicá-lo”. Nenhum partido ou organização rotulada como
“neoliberal” jamais ambicionou “erradicar a esquerda”. Limitam-se a tentar
vencê-la nas eleições, quando podem, e em seguida aceitá-la como oposição
democrática sem perspectiva de extinção. A assimetria é evidente.
Se, porém, “ser erradicado” política e culturalmente já é temível o
bastante, expondo milhões de pessoas ao perigo de ficar sem representação
política ou meios de autodefesa coletiva, as entidades filiadas ao Foro não
se contentam com perigo tão modesto. Entre elas constam organizações
armadas como as Farc, o MIR chileno, os Tupamaros, que já enviaram para
o beleléu, fisicamente, uma quantidade considerável de “neoliberais”. O
número exato é de cálculo difícil, mas já passou de algumas dezenas de
milhares.
O “perigo” anunciado é portanto bem claro: Neoliberais (seja isto lá o que
for), nós vamos matar vocês. Os que sobrarem, nós vamos excluir da
política e da vida social decente.
O autor do documento é pérfido o bastante para deixar essa ameaça no ar
com a certeza quase infalível de que fala em código, só para os do círculo
interno, já que os de fora tomarão automaticamente a palavra “perigo”
como mera hipérbole vazia, sem que lhes ocorra interpretar as palavras
pelas ações e descobrir a presença explosiva da ameaça velada.
Quanto à pergunta “b”, isto é, se o perigo se circunscreve aos grupos
neoliberais, não creio que seja possível enquadrar nessa classificação os
milhares de jovens e crianças que morrem anualmente de drogas
distribuídas pelas Farc no Brasil, na Colômbia, na Venezuela e nos EUA.
Também não creio que haja algum neoliberalismo na mente de todas as
vítimas de seqüestros realizados pelo MIR chileno, como por exemplo o
publicitário Washington Olivetto, que não esconde suas simpatias
esquerdistas. Mais rebuscado ainda seria chamar de neoliberais todas as
vítimas assassinadas, em fuzilarias a esmo ou em disputas de quadrilhas,
por bandidos que a Farc instruiu e treinou em técnicas de guerrilha urbana.
Cá entre nós, que o autor do documento não nos ouça, a afirmativa de que o
Foro de São Paulo “só oferece perigo para os partidos neoliberais” é um
eufemismo pérfido e mentiroso. O Foro de São Paulo oferece perigo para
qualquer um que atravesse o seu caminho, não só no sentido de oposição
política, mas até no de ficar plantado, por acaso, na direção de onde venha
uma bala perdida disparada por qualquer discípulo local das Farc. O Foro
de São Paulo oferece perigo para toda a população.
Prossegue o documento:
O Foro de São Paulo, como diz o nome, é um ‘foro’ ou ‘fórum’, que faz reuniões anuais de que
participam não apenas partidos latino-americanos, mas também partidos socialistas e
progressistas da Europa, África e Ásia.
Agora o fulano quer nos fazer engolir que as Farc são um partido político,
não a quadrilha armada que vende cocaína no Brasil através de seu sócio
Fernandinho Beira-Mar, atira nos soldados do nosso Exército e treina
assassinos para que aterrorizem a população. O MIR chileno é um partido
político, não uma quadrilha de seqüestradores armados? Para quem esse
sujeito pensa que está escrevendo? Para crianças de sete anos? Para bobocas
ludibriáveis ad infinitum? Se essa óbvia fraude publicitária não é crime
eleitoral, eu sou o Lula em pessoa.
A explicação acaciana de que o foro é um foro, “ou fórum”, é uma
papagaiada incumbida de revender, abreviadamente, a mentira boba
inventada pelo sr. Giancarlo Summa, de que a entidade “é um foro de
debates, e não uma estrutura de coordenação política internacional”, à qual
não preciso responder porque já respondi em 2002: “Porca miséria, quem já
viu um mero foro de debates emitir ‘resoluções’ ao fim das assembléias?
Resolução é decisão, é diretriz prática, é norma de ação. Uma assembléia
que emite resoluções, subscritas unanimemente por organizações de vários
países, não pode estar fazendo outra coisa senão coordená-las
politicamente. É, aliás, o que afirma a resolução final do I Foro (São Paulo,
4 de julho de 1990), ao expressar seu intuito de ‘avanzar propuestas de
unidad de acción consensuales’. O esforço comum para formular uma
‘unidade de ação’ não pode ser puro debate, sobretudo quando se cristaliza
em ‘resoluções’: ele é, no mais pleno sentido do termo, coordenação
política.”
Mas o mais bonito do documento vem no anúncio do XIII encontro do
Foro (San Salvador, janeiro de 2007), quando será discutido, entre outros
temas, o “combate ao crime organizado, ao narcotráfico e à militarização”.
Chega a ser maravilhoso. Que é que os mentores do Mensalão, os maiores
narcotraficantes do continente e o único governante latino-americano
empenhado em militarizar seu país para a “guerra del pueblo entero” (nos
termos dele mesmo) podem sugerir para combate aos três males que eles
próprios personificam eminentemente? Não sei, mas eu sugiro aos
interessados: prendam todos os participantes do XIII encontro do Foro de
São Paulo, e verão o crime organizado, o narcotráfico e a militarização
diminuírem consideravelmente na América Latina. Eles próprios é que não
vão trancafiar-se a si mesmos, como o Dr. Simão Bacamarte. O psiquiatra
de Itaguaí era louco, mas teve a honestidade científica de reconhecer que o
era. Libertou a população que ele próprio internara e foi para o hospício em
lugar dela. Mutatis mutandis, os homens do Foro são bandidos, mas jamais
hão de reconhecer que o são. Vão combater o crime metendo na cadeia
quem não é seu cúmplice, reprimir o narcotráfico ampliando a clientela das
Farc e eliminar o militarismo alistando todo mundo no exército de Hugo
Chávez.
A declaração do PT foi publicada um dia depois de sair no Jornal do
Brasil o artigo em que eu sugeria ao candidato Alckmin cobrar do oponente
explicações sobre suas atividades no Foro de São Paulo. Ela é um arremedo
grotesco de antídoto, preparado às pressas por puro temor de um vexame
politicamente catastrófico, a revelação, em pleno debate eleitoral, das ações
clandestinas do sr. Luís Inácio Lula da Silva como parceiro e protetor dos
maiores criminosos do continente.
Em matéria de confronto polêmico, a denúncia do Foro de São Paulo é um
autêntico roto-rooter capaz de trazer à tona crimes e perfídias em
comparação com os quais tudo o que se denunciou do PT até hoje é
agradinho.
Não sei se o sr. Alckmin terá a coragem de usar o equipamento. Mas sei
que a extrusão total da sujeira petista enterrada é inevitável, seja nesta
eleição ou depois dela. Entendo o desespero da campanha petista. Mesmo
que seja vencedor nesta eleição, Lula um dia sairá do poder pelo esgoto. O
PT se acha esperto ao ponto de ser o “Partido Príncipe” sugerido por
Antonio Gramsci. Mas terá sido o primeiro Príncipe, na História, que foi
presunçoso e tolo o bastante para tentar enganar todo mundo
indefinidamente. No fim, como diz a Bíblia, sua loucura será exposta aos
olhos de todos. No outro mundo, Maquiavel está chorando e Abraham
Lincoln está rindo, porque já conhecem o final da novela.
16 de outubro de 2006

[ 31 ] Ver http://www.lulapresidente.org.br/boletim.php?codigo=21.
[ 32 ] Ver em http://www.info.planalto.gov.br/download/discursos/pr812a.doc.
[ 33 ] Ver em http://www.olavodecarvalho.org/semana/050725dc.htm.
[ 34 ] Ver http://www.pt.org.br/site/secretarias_def/secretarias_int.asp?cod=2255&cod_sis=9&cat=7
O ridículo mata

E
M 25 DE SETEMBRO ESCREVI NESTE DIÁRIO DO COMÉRCIO: “Qualquer que
seja o resultado das eleições, qualquer que seja o desenlace das
presentes investigações de corrupção, a gangue petista não vai largar
gentilmente a rapadura.”
Não se passaram quinze dias e a quadrilha confirmou minha previsão,
como aliás costuma fazê-lo há anos, com a regularidade de um cuco. As
ameaças explícitas ou veladas de represália violenta à possível derrota de
Lula nas eleições são algo mais do que a “chantagem psicológica” que a
assessoria de Geraldo Alckmin acredita ver nelas. São o anúncio de um
ataque geral à ordem democrática que já está planejado há décadas por
todas as organizações de esquerda – PT inclusive, é claro – como
alternativa em caso de fracasso da transição pacífica para o socialismo. A
coisa já foi proclamada mil vezes e, não tenham dúvidas, vai acontecer. O
próprio Lula, um dos que a aprovaram com freqüência no passado, voltou a
ela após um período de abstinência forçada e desde sexta-feira passada já
está aquecendo os motores da engenhoca subversiva, incitando ao crime os
militantes do MST, uma das entidades que prometem vingança golpista em
caso de vitória de Alckmin.[ 35 ]
O contraste falso e artificioso que a mídia chique estabeleceu entre os
chamados “setores radicais” do PT e o petismo supostamente ordeiro e
legalista de Lula é ele mesmo um instrumento da trama esquerdista, à qual
serve para encobrir a unidade da estratégia revolucionária dando uma
aparência de dualismo substantivo ao que nunca passou de mera
duplicidade de táticas, alternadas ou mescladas conforme as necessidades
do momento.
Se, enquanto isso, o sr. Marco Aurélio Garcia chama de “terrorismo” a
simples divulgação jornalística de fatos que o partido preferiria esconder, é
porque é um comunista cínico, empenhado em ocultar a truculência
irrefreável da esquerda revolucionária sob uma patética afetação de
coitadice.
Terrorismo, no vocabulário dessa gente, não é colocar tropas de agitadores
nas ruas para espalhar o pânico entre a população e anular pela força a
decisão popular. Terrorismo é contar ao público que o presidente da
República está comprometido oficialmente a legalizar o aborto no país –
uma verdade banal abundantemente registrada em documentos do próprio
PT.[ 36 ]
Seria ingênuo esperar racionalidade e senso das proporções da parte de
pessoas dispostas a apelar à violência por incapacidade de submeter-se ao
ciclo democrático normal do qual ainda ontem diziam ser a encarnação
mais pura e elevada; mas o grotesco das alegações estapafúrdias surgidas do
cérebro petista em desespero, nas últimas semanas, ultrapassa tudo o que se
conhece historicamente em matéria de besteirol comunista.
Karl Marx dizia que a tragédia histórica se repete como comédia, mas,
sinceramente, é horrível ver que o nosso país foi escolhido pelo demônio
como palco da comédia revolucionária. Todo o potencial da esquerda para o
ridículo parece que se concentrou no Brasil. A vergonha que isso traz é até
possível de suportar. Insuportável é saber que o sangue que vai correr no
palco da comédia é o mesmo da tragédia: não é massa de tomate, é sangue
de verdade. Dizem que o ridículo mata, mas na palhaçada brasileira ele
arrisca fazer isso em sentido literal, físico. Personagens de carne e osso,
tornados ridículos por sua recusa obstinada e sonsa de enxergar um perigo
óbvio, serão mortos nas ruas por outros personagens, que a incapacidade de
suportar seu próprio ridículo transformou em loucos furiosos.
O romancista Georges Bernanos, que viveu no Brasil e o amava como sua
segunda pátria, temia que o país viesse a sucumbir, um dia, na mais
sangrenta das revoluções. Nunca foi mais urgente do que hoje a advertência
dele: “O perigo que nos ameaça não é somente o de morrer, mas de morrer
como idiotas.”
17 de outubro de 2006

[ 35 ] Ver v. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1410200612.htm.
[ 36 ] Se têm dúvidas, vejam tudo em
http://www.olavodecarvalho.org/textos/mensagem_aborto.html.
Sociopatia e revolução

C
OM TODA A SUA PRESUNÇÃO E ARROGÂNCIA, A CIÊNCIA SOCIAL moderna
não conseguiu produzir nenhuma descoberta que se aproximasse, em
exatidão e força explicativa, da doutrina hindu das quatro castas, da
qual a concepção marxista da luta de classes é uma imitação caricatural e
remota, daí derivando a impressão de veracidade que possa exercer sobre a
mente simplória do “proletariado intelectual” universitário.
É impossível, a quem tenha se dado o trabalho de estudar um pouco a
explicação hinduísta do processo histórico, observar a seqüência das
estruturas de poder que se sucedem ao longo da história ocidental sem notar
que ela repete ipsis litteris a transição do governo brâhmana para o
kshatryia, deste para o váishyia e deste para o desgoverno shudra e para a
confusão dos párias que prenuncia ou o fim da sociedade ou o retorno à
ordem inicial.
Vou aqui resumir brevemente essa doutrina, não como ela é em sua pura
formulação originária, mas na adaptação que lhe dei, em cursos e
conferências proferidos desde 1980, para torná-la mais flexível como
instrumento explicativo de processos histórico-culturais mais recentes.
Os brâhmana são a casta intelectual, voltada à busca do conhecimento
espiritual e à construção de uma ordem social que reflita mais ou menos a
“vontade de Deus” – as leis que determinam a estrutura inteira da realidade.
Os kshatryia são os guerreiros e aristocratas, que sobrepõem à estrutura da
realidade a glorificação das suas próprias tradições dinásticas e a expansão
do seu poder militar.
Os váishyia são os burgueses e comerciantes. Buscam em tudo o lucro e a
eficácia econômica, que tomam ilusoriamente como um poder efetivo,
ignorando as bases militares e espirituais da sociedade e terminando por ser
rapidamente destruídos pelos shudra. Estes são os “proletários”, no sentido
romano do termo. Incapazes de governar-se a si mesmos, importam
somente pelo poder do número, pela extensão quantitativa da “prole”.
Os brâhmana caem pela sua dificuldade de manter-se fiéis à intuição
espiritual originária, esfarelada entropicamente em confrontações doutrinais
de um artificialismo sufocante, cada vez mais insolúveis e violentas.
A ascensão do poder aristocrático, com a formação dos modernos Estados
nacionais, nasceu diretamente da necessidade de apaziguar os conflitos
religiosos por meio de uma força externa, político-militar.
O governo kshatryia cai porque o establishment aristocrático-militar é um
poder essencialmente centralizador e expansionista, que tem de se apoiar
numa burocracia crescente cujos funcionários ele próprio não pode
continuar fornecendo indefinidamente e que ele colherá, portanto, entre os
membros mais talentosos das duas castas inferiores, aos quais dará o
adestramento necessário para o exercício de suas novas funções
administrativas, judiciais, diplomáticas etc. Daí nasce a “intelectualidade”
moderna, como subproduto de um sistema de ensino voltado à formação de
funcionários para o Estado. Por outro lado, tão logo a burocracia se
consolida como meio de ascensão social, os candidatos a ela são sempre em
número maior do que os cargos disponíveis, ao mesmo tempo que o ensino,
sendo ele próprio um instrumento de seleção, tem necessariamente de
atingir um círculo maior de alunos do que aqueles aos quais pode garantir
um cargo no funcionalismo público. A burocracia com que o Estado
kshatryia controla a sociedade torna-se assim uma bomba de efeito
retardado. De um lado, não é preciso dizer que a intelectualidade
burocrática logo tem em suas mãos o controle efetivo do Estado, sonhando
em sacudir de seus ombros o jugo de uma casta aristocrática cada vez mais
ociosa e dispendiosa. De outro lado, há a multidão dos rejeitados. Suas
ambições foram despertadas pelo ensino, frustradas pela seleção
profissional. Eles formam o contingente daquilo que denominei “burocracia
virtual” – o exército crescente daqueles indivíduos relativamente
adestrados, mas sem função. Seu único lugar possível na sociedade é dentro
do Estado, mas o Estado não tem lugar para eles. Eles são a classe
revolucionária por excelência, o personagem central da aventura moderna.
Não demorarão a sonhar com um Estado amoldado às suas necessidades.
Enquanto não conseguem criá-lo, ocupam-se de tagarelar infindavelmente
sobre todos os assuntos, espalhando por toda a sociedade seu rancor e suas
frustrações e, sobretudo, adornando-se usurpatoriamente do prestígio dos
antigos brâhmana, dos quais constituem a caricatura invertida. Os
“intelectuais” são o clero leigo da Revolução. Se vocês já ouviram falar em
PT, sabem do que estou falando. Mais adiante voltarei a isso.
Por outro lado, o Estado aristocrático custa caro e não pode se manter
indefinidamente com os recursos de uma economia agrária tradicional e
simplória; a expansão econômica requer a mobilização de capacidades
específicas que são as dos váishya. Os banqueiros e industriais fornecem a
nova base econômica do Estado, arregimentando a mão-de-obra shudra em
proporções jamais sonhadas antes e substituindo à antiga economia agrária
o moderno capitalismo.
É nesse momento – e só sob esse aspecto – que a diferença entre dois
sistemas de propriedade dos meios de produção se torna determinante
historicamente, criando uma situação peculiar que Karl Marx projetará
enganosamente sobre todo o curso da História. Mas também é claro que a
ascensão do capitalismo, em si, não apresenta risco para a classe
aristocrática, a qual facilmente se adapta aos novos modos de adquirir
riqueza e integra nas suas fileiras, por meio de casamentos e da distribuição
de títulos nobiliárquicos, os novos ricos ascendidos sem nobreza ancestral,
sine nobilitate (abreviatura s. nob., donde o termo “esnobe”). A essa
adaptação corresponde, politicamente, a passagem do Estado monárquico
absoluto à moderna monarquia parlamentar, um processo que não tem por
que ser violento ou traumático, só vindo a sê-lo na França porque o
crescimento excessivo da burocracia estatal tinha ocasionado fatalmente um
crescimento ainda maior da “burocracia virtual” e transformado em puro
rancor revolucionário as ambições frustradas da intelectualidade. Foi esta
que fez a revolução. Não havia um só capitalista entre os líderes
revolucionários, e a burguesia, como se viu na Inglaterra, jamais precisou
de revolução nenhuma para se elevar socialmente a um status ao qual a
própria aristocracia a convidava insistentemente. O conceito de “revolução
burguesa” é uma das maiores fraudes da história das ciências sociais. Os
componentes da burocracia virtual, por sua vez, não podem ser definidos
economicamente. Seu único traço em comum era a educação que os
diferenciava da massa. Vinham de todas as classes – do campesinato, do
antigo clero, da pequena burguesia, dos setores empobrecidos da própria
aristocracia. Não tinham unidade de origem, mas de situação social e
ambições. A fórmula verdadeira da sua unidade residia no futuro: na
imagem do Estado perfeito, investido de todas as virtudes que eles próprios
julgavam encarnar. Vivendo de fantasia autoglorificante, compensação
psicológica de sua posição social vexatória, não é de estranhar que se
concebessem como herdeiros da autoridade intelectual dos brâhmana mas
também se imaginassem os sucessores naturais da Igreja como porta-vozes
e protetores dos pobres e oprimidos, os shudra. Por toda parte falam em
nome da “ciência”, mas também da “justiça social”. Imaginam encarnar ao
mesmo tempo a autoridade espiritual mais alta e os direitos espezinhados da
casta mais baixa. Mas assim como não houve burgueses na vanguarda da
“revolução burguesa”, não haverá proletários entre os líderes da “revolução
proletária”. Toda a sociologia revolucionária é uma fraude ideológica
destinada a encobrir o poder dos “intelectuais”. Estes não são casta
nenhuma. São uma interface nascida acidentalmente do inchaço canceroso
da burocracia, e por isso mesmo lutarão para fazê-la crescer ainda mais
onde quer que adquiram os meios para isso. São, a rigor, párias – uma
mescla confusa e delirante de fragmentos de discursos das várias castas.
São a pseudo-casta sem função nem eixo, sociopática por nascimento e
vocação.
A ascensão da burguesia capitalista não é um processo revolucionário. É
um longo e complexo processo de incorporação e adaptação. O capitalismo
francês nasceu e permaneceu raquítico por causa da Revolução, que veio
com a expansão burocrática e continuou vivendo dela até hoje, numa nação
que é, por excelência, o paraíso dos “intelectuais”. O capitalismo
desenvolveu-se, isto sim, na Inglaterra, onde a aristocracia se adaptou
suavemente às suas novas funções capitalistas, e na América, onde, sendo
rala a presença da aristocracia de sangue, a própria burguesia capitalista se
investiu do ethos heróico-aristocrático, gerando uma nova casta kshatryia.
Observo, de passagem, que essa transfiguração da burguesia americana em
aristocracia – o fenômeno mais importante e vigoroso da história moderna –
jamais teria sido possível sem a profunda impregnação cristã da nova
classe, que fazia dela, em contraste com a farsa dos “intelectuais”, a
herdeira parcial e longínqua, mas autêntica, da autoridade brâhmana.
Na doutrina hindu, não há jamais um governo shudra. Os shudra são, por
definição, governados e não governantes. O sujeito pode nascer shudra mas
ao ascender a funções de importância já é um “intelectual” (se Lula
continuasse torneiro mecânico, seria apenas torneiro mecânico). O que pode
haver é o governo dos intelectuais fazendo-se passar por vanguarda shudra
e, é claro, oprimindo os shudra mais do que nunca, para que criem a base
econômica de uma burocracia estatal ilimitadamente expansiva.
Economicamente, o governo shudra, ou socialismo, só tem existência
verbal. Em 1921, Ludwig von Mises deu a demonstração cabal de que a
economia totalmente estatizada é inviável e de que, portanto, todo regime
autonomeado socialista nunca passaria de um capitalismo disfarçado sob a
carapaça de ferro da burocracia estatal. A história não cessou de lhe dar
razão desde então.
Dessa breve exposição é possível tirar algumas conclusões que a
experiência histórica comprova abundantemente:
1. Onde quer que a burocracia estatal se torne a via predominante de
ascensão social, como aconteceu na França do século XVIII ou na Rússia
do século XIX, a burocracia virtual tende a crescer indefinidamente e a
tornar-se geradora de pressões revolucionárias. Muitas nações modernas
aliviam essas pressões criando um número indefinido de sinecuras culturais
e universitárias para integrar e “oficializar” de algum modo a burocracia
virtual, mas isso, por um lado, é um paliativo caríssimo, que só pode ser
custeado por um capitalismo pujante, o que supõe, precisamente, que a
Revolução seja abortada em tempo; por outro lado, a burocracia virtual
oficializada pode se satisfazer por algum tempo com suas novas funções na
sociedade capitalista, mas a ascensão social mesma acabará por torná-la
ainda mais presunçosa e arrogante. Isso explica que precisamente nas
nações onde os intelectuais têm as melhores condições de vida eles sejam
os mais rancorosos inimigos da sociedade que os nutre e lisonjeia, mas em
compensação não consigam ou talvez nem queiram desferir o golpe mortal
nessa sociedade, limitando-se a constituir um fator de corrosão estrutural
permanente, neutralizado, no conjunto, pelo progresso técnico e pelo
crescimento capitalista.
2. Onde a burocracia virtual ainda não perfeitamente oficializada tenha
como principal veículo de integração social um partido político, esse
partido, encarnando a seus próprios olhos ao mesmo tempo a suprema
autoridade intelectual e os direitos de todas as vítimas reais ou imaginárias
da injustiça social, se colocará necessariamente acima das leis e
instituições, arrogando-se todos os direitos e todas as virtudes e não
reconhecendo julgamento superior ao seu.
3. Toda esperança de integrar esse partido no processo democrático normal
será repetidamente frustrada, pois ele jamais entenderá sua participação
nesse processo senão como concessão temporária – e, em si mesma,
repugnante – às condições que impedem a consecução dos seus objetivos.
4. A conquista do poder total será sempre o objetivo e a única razão de ser
desse partido, que tentará toda sorte de golpes de Estado e ao mesmo tempo
verá como golpe de Estado qualquer tentativa, por mais tímida e limitada,
de impedi-lo de chegar a seus objetivos. Exemplos não faltam no Brasil. O
mais recente é aquele em que os líderes do partido dominante pregam
abertamente a resistência violenta a uma possível derrota nas eleições, ao
mesmo tempo que denunciam literalmente como “golpe de Estado” a
simples revelação jornalística do dinheiro que usaram num truque sujo
contra o adversário.[ 37 ]
5. Como a função primordial do partido revolucionário, por baixo dos mais
variados pretextos ideológicos, é justamente criar um Estado burocrático
para servir a seus próprios membros, é normal e inevitável que esse partido,
uma vez investido do poder estatal, encare o Estado como sua propriedade,
usando-o para seus próprios fins e não vendo nisso a menor imoralidade. A
burocracia virtual é sociopática por nascimento e por definição; e sua forma
de governo, tão logo tenha as condições de implantá-la, é e será sempre a
sociopatia organizada.
6. A afinidade do partido revolucionário com o banditismo comum é algo
mais que conjunção temporária de interesses. Na perspectiva da burocracia
virtual, o único mal no mundo é ela não ter o poder absoluto, é existir uma
sociedade que a transcende e não a obedece. Todos os outros males, se
enfraquecem essa sociedade e favorecem a conquista do poder total pelo
partido revolucionário, são bens. A auto-idolatria solipsística do chefe de
gangue e a do líder revolucionário são exatamente a mesma, com a leve
diferença do requinte intelectual um pouco maior a favor desta última. É
ridículo dizer que um partido como o PT “se transformou” numa quadrilha
de delinqüentes. Ele nasceu delinqüente.
7. A insistência dos adversários em fazer de conta que esse partido pode
participar honradamente do processo político normal levará sempre a
condições de “guerra assimétrica”, em que um dos lados terá todos os
encargos, e o outro, todos os direitos.
***
PS – Para aqueles que tiveram a infelicidade de nascer membros da burocracia virtual, só há três
caminhos de vida possíveis: (1) integrar-se na farsa revolucionária e sair alardeando que são
benfeitores da humanidade; (2) cair para a marginalidade, a doença mental, a autodestruição ou o
banditismo; (3) compreender sua situação histórica, lutar para escapar a uma condição social
essencialmente farsesca e para adquirir, por meio do estudo e da autodisciplina espiritual, a
dignidade do verdadeiro estatuto brâhmana, o que implica renunciar a todo poder político e a todas
as vantagens psico-sociais da participação na intelectualidade revolucionária. Economicamente,
sobreviver da atividade intelectual fora do esquema revolucionário de proteção mútua é um desafio
temível.
Para os que nasceram váishyas, o desafio é resistir ao canto-de-sereia revolucionário e impor o
capitalismo como modo de vida moralmente superior. Isto não é possível sem o cultivo da
disciplina kshatryia e a aceitação dos encargos heróicos de uma nova casta nobre, o que implica a
absorção, mesmo longínqua, do legado brâhmana. A luta no mundo moderno é entre os váishyia e
os burocratas virtuais – isto é, entre aqueles que alimentam o Estado e aqueles que se alimentam
dele. Se os primeiros se deixam hipnotizar pela cultura revolucionária, estão liquidados, e, com
eles, os shudra, que perdem o estatuto de trabalhadores livres para ser escravos da burocracia
comunista.

23 de outubro de 2006

[ 37 ] Vejam a maravilha de retórica invertida em http://conversa-afiada.ig.com.br/materias/394501-


395000/394778/394778_1.html
Passado e presente do dr. Greenhalgh

O
DEPUTADO LUIZ EDUARDO GREENHALGH ACABA DE ENVIAR ao site
Mídia Sem Máscara uma “notificação extrajudicial” na qual, com a
autoridade que acha que tem, ordena sejam retirados do ar vários
artigos, entre os quais o meu “Aids, Brasil e Uganda”, em cujo rodapé há
algumas referências dolorosamente verídicas à sua empombada e
hipersensível pessoa.
Como o artigo foi publicado originariamente no Diário do Comércio de 17
de outubro de 2005, em cujo site continua acessível ao público sem que isto
incomode em nada o enfezado notificante, é óbvio que a iniciativa
autoritária, voltada seletivamente contra o pequeno jornal eletrônico que
apenas reproduziu a matéria, é uma abjeta tentativa de intimidação
discriminatória que muito revela sobre o caráter do dr. Greenhalgh.
Para piorar ainda mais as coisas, cada uma das informações transmitidas
no artigo é baseada na coluna de Cláudio Humberto e no livro de Adolpho
João de Paula Couto, A Face Oculta da Estrela, as quais fontes também
continuam à disposição dos leitores sem sofrer qualquer constrangimento da
parte do referido.
Essas informações – repito-as para tirar desse censor autoconstituído a
ilusão de poder ocultá-las – são as seguintes:
Em plena legalidade democrática, um ano depois de assinada a Constituição de 1988, o dr. Luiz
Eduardo Greenhalgh pregava a revolução pelas armas, o desmanche do Exército, da Marinha e
da Aeronáutica e a revisão da Lei de Anistia para transformá-la num instrumento de vingança
jurídica contra todos os que cometeram o crime eternamente imprescritível de opor-se ao
terrorismo comunista no Brasil... O programa do homenzinho, simples e brutal, abrangia:
- Remanejamento das Forças Armadas, transferindo para o Norte os oficiais que serviam no Sul
e vice-versa, para afastá-los das frações por eles comandadas, prevenindo possíveis ações
armadas contra os planos revolucionários do futuro governo de esquerda.
- Reformar metade dos oficiais da ativa (ele já tinha a lista dos selecionados).
- Extinguir todos os órgãos de Inteligência e abrir seus arquivos para exame de uma ‘Comissão
Popular’.
- Revisão da Lei de Anistia e processo em cima de todos os ex-colaboradores da repressão ao
terrorismo.
Para maior claridade do esquema, Greenhalgh concluía: ‘Só através da luta armada é que
conseguiremos garantir a realização do plano.’
Se na sua notificação ele alega agir em defesa da sua “boa fama e
reputação profissional”, não creio que a tentativa de apagar à força os
rastros de um passado abominável do qual jamais se arrependeu confirme
uma coisa ou a outra, principalmente porque em grande parte essa fama e
essa reputação advêm do seu sucesso em abafar o inquérito sobre o
assassinato do prefeito Celso Daniel, coisa que não é propriamente boa nem
aliás profissional. Ele diz também proteger a sua “honra”. Não precisa e não
adianta. Um monumento à sua honorabilidade já se encontra em vídeo no
Youtube.[ 38 ] É a conversa grampeada dele com o assessor presidencial
Gilberto Carvalho, discutindo detalhes da operação-abafa. Mas todo esse
empenho de esconder, camuflar, escamotear e apagar, no qual o dr.
Greenhalgh gasta as melhores energias do seu profissionalismo, é
perfeitamente vão. Mil vezes o deputado dará sumiço no seu passado e mil
vezes ele reaparecerá no presente, já que a diferença entre esses dois
momentos é mínima: o dr. Greenhalgh era e é um adepto fanático e auxiliar
fiel do terrorismo revolucionário, tanto quanto qualquer colaborador
político da Al-Qaeda, do Hezbollah, das Farc ou do Mir chileno. Não cito
estas duas últimas organizações por acaso. Seus agentes operam no Brasil,
vendendo drogas e seqüestrando nossos compatriotas, seguros de que, se
forem presos, o dr. Greenhalg tudo fará para libertá-los, como fez com os
seqüestradores de Abílio Diniz e de Washington Olivetto e com o falso
padre Olivério Medina, aquele mesmo que informou ter trazido cinco
milhões de dólares da narcoguerrilha colombiana para a campanha
presidencial de Lula em 2002. O dr. Greenhalgh adquiriu ainda mais fama e
reputação quando o deputado Jair Bolsonaro disse que ele sofria de
tendinite de tanto contar dinheiro, recebido das indenizações políticas que
patrocina. Não sei se havia nisso alguma verdade, mas duvido que dos
seqüestradores estrangeiros ele receba alguma coisa. Ele os ajuda por puro
amor à truculência comunista.
Ciente de que o Mídia Sem Máscara nada publicou que não possa provar,
recomendei ao site, do qual sou fundador e uma espécie de editor platônico,
que ignore solenemente a notificação e mande o presunçoso queixar-se à
Justiça, caso seja louco de levar a sério seu próprio blefe.
25 de outubro de 2013

[ 38 ] Ver http://www.youtube.com/watch?v=GPDodHSol0w.
Acordo secreto

Da nossa geração não se pode dizer que viveu, mas que rastejou em silêncio: os jovens rumo à
decrepitude, os velhos rumo a sepulturas sem honra.
(Tácito, historiador romano, c. 56 – c. 117 a. D.)

O
PONTO ALTO DO DEBATE DE SEXTA-FEIRA foi a declaração de Lula de que
nenhum governo anterior investigou tão a fundo ou esteve tão bem
informado sobre os crimes de corrupção quanto o seu. Não é mesmo
maravilhoso que o mais avisado dos presidentes nada saiba dos crimes
cometidos por cinco de seus próprios ministros? Não é uma delícia que o
governo que enxerga tudo da delinqüência espalhada no país inteiro ignore
o que se passa no Palácio do Planalto?
Mas não pensem que a inconsistência do seu próprio discurso seja motivo
de preocupação para Lula. Estontear a platéia com um bombardeio de
afirmações contraditórias tem sido há anos a técnica essencial da
propaganda lulista. Na eleição de 2002, explorou-se até o limite da
alucinação o paradoxo de um personagem que merecia ao mesmo tempo a
compaixão devida aos iletrados e a reverência devida a um sábio,
conhecedor profundo dos problemas brasileiros, doutor honoris causa e
candidato virtual à Academia Brasileira de Letras. Agora, ele é
simultaneamente o homem da visão de raios-x, a quem nenhum delito
escapa, e o pobre ingênuo ludibriado por seus mais próximos amigos e
colaboradores.
Mais ingênuo ainda, porém, é quem vê nisso uma prova de confusão
mental e incompetência petista. Que incompetência mais estranha, essa que
sempre vence a competência alheia! Na verdade, é impossível acreditar que,
com tantos cientistas sociais, psicólogos, estrategistas e engenheiros
comportamentais a serviço do PT e do Foro de São Paulo, ninguém ali
tenha ensinado aos chefes da campanha petista as virtudes estupefacientes
da estimulação contraditória e da dissonância cognitiva. Mas nem isso seria
preciso: qualquer militante, minimamente treinado na dialética de Hegel e
Marx para raciocinar segundo duas linhas de dedução opostas e explorar o
duplo sentido das palavras e situações, está habilitado para fazer de trouxa
os mais espertos empresários, políticos tradicionais e oficiais das Forças
Armadas, viciados numa semântica literalista e num raciocínio
desesperadoramente linear.
Outro detalhe especialmente suculento do debate foi Alckmin enfatizar
que os membros do PCC não são do seu partido, como quem diz que são do
outro. Com isso ele mostrou saber da ligação íntima entre PT e PCC. Mas,
se sabia, por que se calou? E, se preferiu calar, por que não o fez por
completo? Por que deixou escapar uma alusão velada que pelo menos os
telespectadores informados entenderam perfeitamente bem? O discurso de
Alckmin está obviamente travado por algum controle oculto, a que ele, sem
apreciá-lo, se curva por necessidade ou oportunismo.
Mas não é preciso sondar conspirações para explicar isso. Tanto o PT
quanto o PSDB – e a quase totalidade das carreiras políticas nos outros
partidos – nasceram da resistência à ditadura militar, quando a cumplicidade
implícita da oposição moderada com a esquerda terrorista era condição
indispensável à sobrevivência de ambas. Removido o inimigo comum,
perseverou a obediência ao pacto de lealdade: a disputa é legítima, mas
denunciar a trama revolucionária da esquerda radical é “fazer o jogo da
direita”. Por mais que a esquerda assanhada os rotule de direitistas – e é um
alívio para ela tê-los como extremo limite do direitismo admissível –, os
tucanos e tutti quanti ainda são, no seu próprio entender, herdeiros morais
da tradição esquerdista, de vinte anos de luta que culminaram na lei de
anistia e nas “Diretas Já”. A nação inteira está sendo enganada por esse
acordo secreto entre irmãos inimigos. Tucanos e similares podem acusar a
petezada de crimes menores, mas denunciar a criminalidade pesada, o
narcotráfico, os seqüestros, os homicídios, seria trair a causa comum, o
objetivo mútuo de varrer a direita do mapa mediante a total ocupação do
espaço pelas disputas internas entre a esquerda e a direita da esquerda.
Pode ter havido um acordo explícito nesse sentido, e informações recentes
sugerem que houve. Mas nem era preciso: o ódio comum ao fantasma da
“direita”, somado à origem uspiana comum das duas esquerdas, é suficiente
para persuadir a ala moderada das vantagens de uma luta fingida, travada
sobre um fundo de cumplicidade tácita com a ala revolucionária, terrorista,
seqüestradora e narcotraficante. Sem contar, é claro, o fato de que muitos
dos moderados do tempo da ditadura não o eram senão em aparência, já que
pertenciam às mesmas organizações dos terroristas, apenas desempenhando
nelas as funções de camuflagem legal, de acordo com a técnica da
duplicidade de vias que é uma constante da estratégia comunista desde
Lênin.
A geração inteira dos políticos que fizeram carreira na “luta contra a
ditadura”, em suma, está comprometida a ocultar e proteger a violência da
esquerda radical. Pode-se combater a “corrupção”, usando a mesma
linguagem com que se denunciaria a “direita” se no poder ela estivesse.
“Colarinho branco”, afinal, é expressão que tem óbvias ressonâncias de luta
de classes. Serve para ser usada pelas duas alas. Mas seqüestros, homicídios
e narcotráfico são sacrossantos: são as armas da revolução. Denunciá-los
seria traição à causa comum de todas as esquerdas. Por isso o pacto de
silêncio domina não só a política partidária, mas a grande mídia inteira,
dirigida por gente da mesma geração e da mesma extração ideológica de
tucanos e petistas. Alckmin pode odiar esse pacto, mas sabe que violá-lo às
escâncaras seria condenar-se ao ostracismo definitivo entre os “filhotes da
ditadura”. Ele pode sussurrar insinuações entre dentes, mas jamais revelará
em voz alta o segredo tenebroso em que assenta, há vinte anos, toda a
política nacional.
A conjunção dos dois fatores aqui assinalados – o uso maciço da
estimulação contraditória e o pacto geracional de silêncio em torno dos
crimes maiores da esquerda – basta para explicar toda a decadência moral e
intelectual do Brasil ao longo de duas décadas. A geração de políticos,
jornalistas e intelectuais que hoje está por volta dos sessenta anos – a minha
geração – é a mais perversa e criminosa de todas quantas já nasceram neste
país. Ela é culpada da idiotização e dessensibilização moral do país, origem
de todos os crimes que hoje culminam na matança anual de cinqüenta mil
brasileiros. Comparados a essa geração, os mais bárbaros torturadores do
Dói-Codi eram apenas aprendizes na escola da delinqüência.
29 de outubro de 2006
Sem novidades, exceto as piores

C
OM A REELEIÇÃO DE LULA, O BRASIL CONTINUARÁ SENDO governado
diretamente das assembléias e grupos de trabalho do Foro de São
Paulo, sem a mínima necessidade de consultar o Parlamento ou dar
satisfações à opinião pública; o direito da esquerda ao crime e à mentira, já
exercido sem maiores restrições, será consagrado como cláusula pétrea da
moral política nacional, e os que a infringirem se sentirão pecadores e
réprobos; os representantes das Farc e do Mir continuarão circulando
livremente pelo território onde vendem drogas e seqüestram brasileiros; os
cinqüenta mil homicídios anuais subirão para sessenta ou setenta, mas a
liquidação de quadrilhas locais concorrentes da narcoguerrilha colombiana
continuará sendo apresentada como vitória esplêndida da lei e da ordem; o
MST continuará ditando a política agrária federal; e os empresários que não
participem de mensalões ou esquemas similares continuarão sendo
criminalizados pela Receita. Até aí, tudo será como antes, exceto do ponto
de vista quantitativo, no sentido de que o ruim ficará incalculavelmente
pior. As únicas novidades substantivas previsíveis são as seguintes:
(1) Nossas Forças Armadas, que até agora conseguiram adiar um
confronto com a realidade, terão de escolher entre continuar definhando ou
integrar-se alegremente na preparação de uma guerra continental contra os
EUA, ao lado das Farc e sob o comando de Hugo Chávez.
(2) Como Lula promete para o seu segundo mandato a “democratização
dos meios de comunicação”, os órgãos de mídia que se calaram quanto aos
crimes maiores do presidente serão recompensados mediante a oficialização
da mordaça. Não deixa de ser um upgrade.
(3) Alguns políticos com veleidades legalistas, que faziam alarde de querer
punir os crimes do PT, partirão para o adesismo retroativo e inventarão para
isso justificativas sublimes. Tudo o que ficou impune será esquecido ou
premiado.
Geraldo Alckmin perdeu porque sacrificou sua candidatura, sua
consciência e até sua religião ao voto de silêncio no que diz respeito ao
abortismo, ao Foro de São Paulo, às ligações de Lula com as Farc e do PT
paulista com o PCC. No último debate, uma insinuação velada – ou ato
falho – mostrou que ele estava bem avisado pelo menos quanto a este
último ponto, mas não queria passar a informação aos eleitores. Gastou seus
quinze minutos de fama empregando nisso o melhor da sua covardia, e não
se pode dizer que se esforçou em vão. Simultaneamente, um artigo meu
sobre o Foro de São Paulo era censurado na Zero Hora de Porto Alegre e o
deputado Luiz Eduardo Greenhalgh fazia o que podia para calar o jornal
eletrônico Mídia Sem Máscara. No tópico do abortismo, pela primeira vez
na história das eleições no mundo um partido proibiu, com sucesso, toda
menção pública a um item do seu próprio programa oficial. Os que
violaram o voto de censura pagaram pela audácia: o arcebispo do Rio de
Janeiro teve sua casa invadida pela polícia e, em Belo Horizonte, dois
jovens foram presos por distribuir folhetos sobre o compromisso firmado
por Lula no sentido de legalizar o aborto no país. Nunca um partido teve um
controle tão completo sobre a lista dos argumentos permitidos e proibidos
na propaganda eleitoral. Os últimos dias da campanha deram uma amostra
do que o segundo mandato de Lula promete ao Brasil
30 de outubro 2013
Tá tudo dominado

A
SITUAÇÃO MILITAR DO BRASIL É MUITO SIMPLES E CLARA. Hugo Chávez
está montando um exército de um milhão e meio de homens bem
armados, a maior força aérea da América Latina, e vinte bases
militares em território boliviano, todas na fronteira com o Brasil. Seus
aliados são, de um lado, o exército argentino de Kirchner, de outro lado as
FARC e o ELN, cujo número de combatentes é hoje difícil de calcular mas
que têm um orçamento militar incomparavelmente maior que de qualquer
país latino-americano, com exceção da Venezuela.
O Brasil é hoje um país inerme e virtualmente cercado. Desaparelhadas,
politicamente intimidadas, reduzidas à míngua pelos cortes orçamentários e
à subserviência humilhante por vinte anos de bombardeio difamatório,
nossas Forças Armadas não têm a mínima condição de defender o País
contra as tropas empenhadas em garantir pelas armas a consecução do plano
do Foro de São Paulo : a integração continental sob a bandeira
neocomunista.
Nunca a soberania e a própria integridade da nação estiveram tão
ameaçadas. Não há nenhum motivo razoável para duvidar de que, tendo
chegado tão perto de realizar seu sonho de poder total, a esquerda
revolucionária latino-americana destruirá pela força qualquer obstáculo que
não possa remover pelo engodo e pela manipulação. Isso não quer dizer, é
claro, que deixá-la vencer eleições nos livrará do perigo de morte. A única
diferença entre a “via pacífica” e a “via armada” é que nesta a violência é
usada como meio de chegar ao poder, naquela como meio de destruição da
classe inimiga uma vez garantido o domínio total do Estado. Exemplos
respectivos são Cuba e a Tchecoslováquia – a ascensão ao poder por meio
da guerra revolucionária e por meio do golpe parlamentar, seguida de igual
violência repressiva num caso como no outro.
Aqueles que imaginam que o sucesso eleitoral da esquerda no continente
haverá de curá-la da tentação guerreira são imbecis iludidos ou mentirosos
espertos. O sucesso eleitoral foi precisamente o meio do qual a esquerda se
serviu para proteger as facções armadas, garantir-lhes a impunidade e
ajudá-las a crescer. A unificação e expansão das forças armadas
revolucionárias continentais sob o comando de Hugo Chávez é a etapa atual
do processo. O capítulo seguinte é usar essas forças para derrubar as últimas
resistências que venham a se opor seja à conquista do Estado, seja à
expansão indefinida do poder estatal uma vez conquistado.
A dissolução das soberanias já é uma realidade, como se vê pela fusão dos
aparatos jurídico-policiais cubanos e venezuelanos e pela utilização do
território boliviano como cabeça de ponte para a eventual invasão do
território brasileiro.
Vocês ouviram uma palavra sobre esse perigo nos debates presidenciais?
Não. Leram alguma nos grandes jornais? Não. Mas leram, é claro,
inumeráveis artigos alertando contra o perigo de uma agressão dos EUA ao
continente latino e apontando como prova desse risco iminente a existência
de uma base militar americana no Paraguai... fundada em 1948. Leram e até
acreditaram. Se não chegaram a tanto, pelo menos não se deram conta de
que esses artigos, todos eles subscritos por agentes de influência
diretamente ligados a organismos chavistas, já eram a preparação
psicológica da opinião pública para que aceitasse o advento do aparato
militar comuno-chavista de dominação como um acontecimento banal e
inofensivo, se não como o despertar de uma bela esperança patriótica.
O silêncio em torno do perigo real e iminente é tão geral, persistente e
sistemático quanto o falatório alarmista em torno do perigo imaginário e
fantasioso.
A norma vigente em todas as redações deste país é, nesse ponto, a mesma
que se adotou quanto ao Foro de São Paulo. Toda a mídia brasileira –
inclusive antilulista – transformou-se numa engrenagem da máquina de
desinformação revolucionária empenhada em demonizar os Estados Unidos
ao ponto de legitimar, em nome do temor a uma invasão americana
impossível, a conivência ao menos passiva com a ocupação do continente
pelas forças armadas da virtual União das Repúblicas Socialistas Latino-
Americanas. Um jornalista colabora com esse processo cada vez que faz
alarde em torno de violências imaginárias cometidas contra terroristas na
prisão americana de Guantánamo e encobre de silêncio a brutalidade real e
ininterrupta a que estão expostos os prisioneiros de consciência no vizinho
cárcere cubano. Essa dupla e concomitante regra de desinformação é
seguida hoje fielmente por todos os órgãos de mídia deste país, incluindo os
mais antilulistas.
A própria Veja, nas páginas internacionais, fornece semanalmente a sua
quota de mentiras anti-americanas, em penitência por ter dito a verdade
contra o PT na seção nacional.
Os planos do Foro de São Paulo vêm de longe, e o Brasil, em vez de se
preparar para defender-se contra eles, chegou a reeleger presidente o
homem que os concebeu. Nunca uma nação se rendeu com tanta docilidade
– e com tanta antecedência – a um inimigo tão obviamente mal
intencionado.
1º de novembro de 2006
Raça de víboras, ou: o Marquês de Sader na prisão

N
INGUÉM DEVE REGOZIJAR-SE COM A DESGRAÇA ALHEIA, mas mostrar ao
dr. Emir Sader que ele não está acima das leis era uma questão de
saneamento básico. Apenas não concordo com a Justiça catarinense
ao desprovê-lo de suas funções oficiais na USP. Onde mais haveria lugar
para um tipo como ele? Nas ruas, ele espalhará a mentira e a loucura entre a
população. Na cadeia, corromperá os presidiários. Só na Cidade
Universitária do Butantã é que ele pode estar entre seus iguais ou piores,
sem chance de fazer o mal a quem não o mereça. Prova disso é a
solidariedade que seus pares acabam de lhe hipotecar em mais um
“Manifesto de Intelectuais”, o único gênero em que a produção literária
nacional tem alcançado algum destaque no mundo.
Sabemos como tudo começou. Tendo o senador Jorge Bornhausen dito que
o voto era a maneira natural de expelir da vida pública a “raça petista”, o dr.
Sader, fazendo-se de criancinha e fingindo ignorar a acepção do termo
“raça” como coletivo usado para designar pejorativamente ou
laudatoriamente qualquer grupo de pessoas sem o menor parentesco
genético (como no xingamento “raça ruim” ou no título do famoso poema
de Cassiano Ricardo), acusou o senador de racista e nazista. Sendo o
racismo delito inafiançável, a imputação de crime, forçada até o extremo
limite do ridículo, era ela própria crime doloso, e tinha de render a seu autor
o prêmio judicial merecido.
Talvez se pudesse alegar em favor do réu o fato de que essa micagem
semântica, por boboca que seja, é o único procedimento retórico que ele
conhece, sendo possível reduzir a ela, por análise estilística, absolutamente
todos os argumentos que ele apresenta na sua coluna internética “O Mundo
às Avessas”, na qual, como já se vê pelo título, a verdade pode em geral ser
obtida mediante simples inversão das assertivas do autor. Se, portanto, ele
acusou o senador de racista, foi precisamente por saber que ele não era
racista de maneira alguma. No início, o colunista pode ter feito essas coisas
com a satisfação sádica da calúnia consciente, mas, com o tempo, parece
que o hábito se incorporou de tal modo à sua pessoa que acabou por se
tornar um cacoete, um reflexo instintivo e, por fim, uma cosmovisão e um
estilo de vida: o mero sadismo transfigurou-se em saderismo.
Mas eu seria injusto se visse nisso uma idiossincrasia pessoal saderiana.
“Inversão” é a premissa universal do movimento revolucionário desde
muitos séculos. Apenas, de Diderot e Hegel até Jacques Derrida, o
procedimento geral era encobri-la sob alguma aparência requintada de
coerência e sensatez, induzindo os leitores a engolir a enormidade sem
percebê-la. Foi apenas no Brasil dos últimos anos que, reduzida a nada a
capacidade literária por excesso de indulgência no vício do jargão
partidário, e devidamente rebaixado o QI do público em iguais proporções,
a inversão começou a se exibir em estado puro, pelada, nuinha, sem pejo,
com toda a sua mecanicidade bárbara e o orgulho obsceno da estupidez
triunfante. A esquerda inteira, em suma, começou a escrever, falar e pensar
como o marquês de Sader.
A prova disso, como eu ia dizendo, era o manifesto em favor do referido.
Assinado por pessoas que se imaginam ilustres e são mantidas nessa crença
pelos agradinhos mútuos e intenso troca-troca de subsídios oficiais sob os
pretextos mais variados, essa peça literária copia tão exatamente o modus
argüendi do referido, que parece ter sido escrita por ele em pessoa.
Não digo isso pela pletora de solecismos, já demonstrada no estilo do dr.
Sader pela Profa. Norma Braga[ 39 ] e agora meticulosamente confirmada
pelo Reinaldo Azevedo no texto do documento coletivo (v. as mensagens
“Nos Emirados Sáderes”, “A palavra ‘escorchante’ e ProUni para Sader”,
“Intelectuais, relembrem o texto de Sader” e “Luminares das letras em
manifesto solecista pró-Sader” no seu blog.[ 40 ] Se é verdade que o estilo é
o homem, o estilo do manifesto é “usômi”.
Mas o analfabetismo endêmico da classe dita intelectual neste país já é fato
notório no qual não pretendo insistir. O caracteristicamente sadérico no
manifesto é mesmo o seu conteúdo.
A inversão já começa quando os signatários acusam a sentença
condenatória de ser um atentado contra a liberdade de expressão. A
demissão de Boris Casoy, a supressão de meus artigos no Jornal da Tarde,
no Globo, na revista Época e na Zero Hora, as ameaças judiciais do
deputado Greenhalgh ao jornal eletrônico Mídia Sem Máscara, as agressões
a repórteres, a pressão policial contra a Folha de São Paulo e sessenta e três
processos movidos contra Diogo Mainardi por ter dito verdades óbvias e
arquiprovadas não atentam de maneira alguma contra a liberdade de
expressão, mas proibir que o dr. Sader atribua crimes a quem não os
cometeu, ah!, isto sim atenta, isto sim agride, isto sim fere a consciência
libertária de Flávio Aguiar, Antônio Cândido e similares.
Mas o inversionismo em todo o seu esplendor aparece é na comparação
entre esse documento e o seu antecedente internacional. Em janeiro, tão
logo anunciado o processo aberto contra o dr. Sader, uma vasta patota
global constituída de Eduardo Galeano (escritor uruguaio), Anibal Quijano
(sociólogo peruano), Ignacio Ramonet (Le Monde Diplomatique), Samir
Amin (Fórum Mundial das Alternativas), Walden Bello (Focus on the
Global South) e outros tantos já tomou partido do acusado e, sem ter a
menor idéia do uso do termo “raça” em português, endossou a acusação ao
senador Bornhausen, tachando-o de “fascista e racista”.
O manifesto de agora, assinado por brasileiros que ao menos teoricamente
falam a língua do senador, esperneia em todas as direções na defesa do dr.
Sader, mas abstém-se meticulosamente de subscrever aquela acusação e até
mesmo de transcrevê-la. Por que? Se a sentença judicial contra as palavras
do dr. Sader é injusta, elas são obviamente justas. Por que defender o
denunciante ocultando ao mesmo tempo o conteúdo da denúncia?
A resposta é óbvia: por mais amigos que sejam do dr. Sader, os autores do
manifesto não quiseram ser seus cúmplices retroativos, sujeitando-se eles
próprios à penalidade que o atingiu. Confessam, portanto, que ele é
culpado, no instante mesmo em que o proclamam inocente, e tiram o corpo
fora da encrenca no ato mesmo de fingir que entram nela corajosamente em
defesa do condenado. É mesmo “o mundo às avessas”.
Que tenham assim procedido por desatenção e inocentemente, é hipótese
que se exclui desde logo pelo fato de que alguns deles, a começar pelo
próprio Flávio Aguiar, já tinham assinado antes o manifesto de janeiro, no
qual se fizeram cúmplices do crime cometido pelo dr. Sader, tentando agora
apagar as pistas da sua participação no episódio, fazendo-se de advogados
neutros para camuflar sua condição de co-autores do delito.
Esforço inútil. Está tudo bem documentado, e, se faltassem provas patentes
da má-fé dos “intelectuais de esquerda” em geral, essa já diria tudo. O
senador Bornhausen não apenas obteve justiça no seu confronto com o dr.
Sader, mas tem direito ainda a reparações, por danos morais, da parte de
uma infinidade de estrelas e estrelos do elenco internacional e local do
ativismo esquerdista, a começar pela Agência Carta Maior, que publicou
originariamente a patifaria saderiana no seu site.[ 41 ] Creio mesmo que o
senador tem a obrigação de lhes mover o devido processo cível, ferindo-os
no único ponto sensível das suas consciências – o bolso – e ajudando o país
a livrar-se dessa raça.
Qual raça, exatamente?
Em janeiro, o dr. Plínio de Arruda Sampaio, elegante esquerdista
quatrocentão e um dos mais assanhados partidários do dr. Sader, chegou a
tentar justificar o truque semântico pueril concebido contra o senador
Bornhausen, proclamando que “não se pode aceitar o uso do termo ‘raça’
para referir-se a uma parte da população”. Esse critério lingüístico, se
adotado oficialmente, obrigaria as autoridades a recolher como propaganda
racista todos os exemplares do Evangelho, onde Jesus constantemente se
refere a uma parte da população como “raça de víboras”. Mas, assim como
o termo “raça petista” não ofende a nenhuma raça biológica, e sim somente
à raça política petista, a expressão de Jesus não soa ofensiva e inaceitável
senão às próprias víboras. Eis a resposta à minha pergunta. É a essa raça
que pertencem o marquês de Sader e todo o cortejo dos seus admiradores.
Por isso o lugar mais apropriado para eles é na USP, no bairro do Butantã,
ao lado de um serpentário e dentro de outro.
Com a reeleição de Lula, o Brasil continuará sendo governado diretamente
das assembléias e grupos de trabalho do Foro de São Paulo, sem a mínima
necessidade de consultar o Parlamento ou dar satisfações à opinião pública;
o direito da esquerda ao crime e à mentira, já exercido sem maiores
restrições, será consagrado como cláusula pétrea da moral política nacional,
e os que a infringirem se sentirão pecadores e réprobos; os representantes
das Farc e do Mir continuarão circulando livremente pelo território onde
vendem drogas e seqüestram brasileiros; os cinqüenta mil homicídios
anuais subirão para sessenta ou setenta, mas a liquidação de quadrilhas
locais concorrentes da narcoguerrilha colombiana continuará sendo
apresentada como vitória esplêndida da lei e da ordem; o MST continuará
ditando a política agrária federal; e os empresários que não participem de
mensalões ou esquemas similares continuarão sendo criminalizados pela
Receita. Até aí, tudo será como antes, exceto do ponto de vista quantitativo,
no sentido de que o ruim ficará incalculavelmente pior. As únicas novidades
substantivas previsíveis são as seguintes:
(1) Nossas Forças Armadas, que até agora conseguiram adiar um
confronto com a realidade, terão de escolher entre continuar definhando ou
integrar-se alegremente na preparação de uma guerra continental contra os
EUA, ao lado das Farc e sob o comando de Hugo Chávez.
(2) Como Lula promete para o seu segundo mandato a “democratização
dos meios de comunicação”, os órgãos de mídia que se calaram quanto aos
crimes maiores do presidente serão recompensados mediante a oficialização
da mordaça. Não deixa de ser um upgrade.
(3) Alguns políticos com veleidades legalistas, que faziam alarde de querer
punir os crimes do PT, partirão para o adesismo retroativo e inventarão para
isso justificativas sublimes. Tudo o que ficou impune será esquecido ou
premiado.
Geraldo Alckmin perdeu porque sacrificou sua candidatura, sua
consciência e até sua religião ao voto de silêncio no que diz respeito ao
abortismo, ao Foro de São Paulo, às ligações de Lula com as Farc e do PT
paulista com o PCC. No último debate, uma insinuação velada – ou ato
falho – mostrou que ele estava bem avisado pelo menos quanto a este
último ponto, mas não queria passar a informação aos eleitores. Gastou seus
quinze minutos de fama empregando nisso o melhor da sua covardia, e não
se pode dizer que se esforçou em vão. Simultaneamente, um artigo meu
sobre o Foro de São Paulo era censurado na Zero Hora de Porto Alegre e o
deputado Luiz Eduardo Greenhalgh fazia o que podia para calar o jornal
eletrônico Mídia Sem Máscara. No tópico do abortismo, pela primeira vez
na história das eleições no mundo um partido proibiu, com sucesso, toda
menção pública a um item do seu próprio programa oficial. Os que
violaram o voto de censura pagaram pela audácia: o arcebispo do Rio de
Janeiro teve sua casa invadida pela polícia e, em Belo Horizonte, dois
jovens foram presos por distribuir folhetos sobre o compromisso firmado
por Lula no sentido de legalizar o aborto no país. Nunca um partido teve um
controle tão completo sobre a lista dos argumentos permitidos e proibidos
na propaganda eleitoral. Os últimos dias da campanha deram uma amostra
do que o segundo mandato de Lula promete ao Brasil.
6 de novembro de 2006

[ 39 ] Ver http://normabraga.blogspot.com/2006_06_01_normabraga_archive.html
[ 40 ] http://veja.abril.com.br/blogs/reinaldo
[ 41 ] Ver http://cartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=2171
A vitória ambígüa dos democratas

O
MARQUÊS DE SADER DIZ QUE A ESQUERDA é “responsável pelos
melhores momentos da história da humanidade”. Vou lhes dar um
exemplo entre outros inumeráveis. Em 1974, os soldados americanos
se retiraram do Vietnã, deixando o campo livre para os comunistas, que
então promoveram a matança de três milhões de civis vietnamitas e
cambojanos, o mais hediondo episódio de genocídio da segunda metade do
século XX, superando em mais de três vezes o total de mortos da guerra. O
resultado era mais que previsível, mas os amorosos pacifistas que se
esforçaram para torná-lo realidade jamais foram cobrados na grande mídia
pelo crime imensurável que ajudaram a praticar. Alguns, como Noam
Chomsky, ainda fizeram o possível para ocultá-lo, e por isso são honrados
até hoje como exemplos de honestidade intelectual.
Outro belo momento, que poderá levar o marquês ao êxtase, anuncia-se
para breve no Iraque, caso os radicais de esquerda do Partido Democrata
americano, embriagados pela vitória fácil na Câmara e no Senado, se
deixem levar pelo entusiasmo pacifista de John Murtha, Nanci Pelosi e
outros que tais.
É difícil que isso chegue a acontecer, pois, quando tiveram a chance de
levar à prática a proposta de retirada imediata que advogavam da boca para
fora, os democratas recuaram mais que depressa. Eles sabem perfeitamente
que o Irã, atualmente já o maior fornecedor de recrutas para o terrorismo
iraquiano, está pronto para ocupar o território do país vizinho ou pelo
menos para realizar ali uma matança sem precedentes tão logo veja os
soldados americanos pelas costas. E uma coisa é falar mal do governo,
outra é compartilhar das responsabilidades de governo. Uma dessas
responsabilidades, que George W. Bush agora se sente aliviado de poder
dividir com seus críticos mais ferozes, é a de decidir o que fazer com Kim
Il-Jung. Mais provável e mais iminente do que uma retirada do Iraque é um
ataque à Coréia do Norte. Neste momento, os EUA estão reforçando suas
tropas na Ásia e dando os retoques finais ao plano de bombardear com
mísseis Tomahawk as instalações coreanas de processamento de plutônio
em Yongbyon. Há outras opções militares menos devastadoras, mas alguma
delas terá de ser levada à prática em breve, a não ser na hipótese de que
Kim volte atrás nos seus planos já anunciados de atacar os EUA. Entre os
democratas, alguns esperam ou dizem esperar que ele seja induzido a isso
pelas pressões da Coréia do Sul e sobretudo da China. Mas aí a coisa se
complica espetacularmente, porque, segundo o relatório em preparo pela
U.S.-China Economic Security Review Commission (Comissão de Revisão
da Segurança EUA-China), cuja versão oficial deverá ser divulgada ainda
este mês, a China, ao mesmo tempo que fingia apoio aos EUA, ajudava
secretamente o programa norte-coreano de armas nucleares. O relatório
baseia-se em informações de testemunhas diretas. Partes do documento
foram passadas ao jornalista Bill Gertz por assessores parlamentares, de
modo que ninguém no Congresso pode verossimilmente alegar completa
ignorância a respeito. No tempo em que os democratas eram apenas
oposição, informações como essa os ajudavam a espremer o pobre George
W. Bush na parede, obrigando-o a escolher entre o risco de ignorar a
ameaça e o de tomar sozinho uma decisão impopular. Agora, quem está na
parede são eles.
Esse é só um dos motivos por que, nos círculos conservadores, ninguém
está lamentando muito a derrota republicana. É verdade que os jornalistas
brasileiros nem falam disso. Apanhar de petistas enragés não há de tê-los
tornado mais inteligentes, nem extinguido em seus corações as afeições
esquerdistas que já se tornaram a sua segunda natureza. A esta altura, eles
estão comemorando a dupla vitória democrata nos EUA como se fosse o
começo do fim da “direita religiosa”, se não do abominável Império
americano inteiro.
Mas, se é verdade que o povo americano está mesmo cansado da guerra no
Iraque, nunca a política internacional, sozinha, decidiu uma eleição nos
EUA. Ninguém duvida de que o Partido Republicano pagou pelos pecados
de George W. Bush, mas a rejeição nacional ao presidente tem muito menos
a ver com a guerra do que com as atitudes dele com relação a gastos
públicos, imigração e legislação eleitoral – e, nessas três áreas, ele não
errou contra os democratas, e sim com o apoio entusiástico deles. Deles e
dos chamados Rinos (republicans in name only, “republicanos só no
nome”), como John McCain e Lincoln Chafee.
O exemplo mais notório foi a lei de imigração. Enquanto o país inteiro
clamava por medidas drásticas contra a imigração ilegal, o presidente
tramava com os rinos e os democratas um plano ridículo que não só
anistiava os invasores mas lhes dava mais direitos do que os imigrantes
legais jamais tiveram. A proposta despertou tanta revolta que os
republicanos conservadores na Câmara dos Deputados frustraram o
esquema, trabalhando contra seu próprio presidente e suprimindo da lei
contra a imigração ilegal o dispositivo de anistia. Isso foi em dezembro.
Então já havia conservadores chamando Bush abertamente de “traidor”.
Bush complicou muito sua própria situação quando deu apoio a uma nova
legislação eleitoral que limitava severamente a ação das ONGs não
partidárias. Ora, essas ONGs como por exemplo a National Rifle
Association, a American Family Foundation e sobretudo os think tanks
como a Heritage Foundation ou a Claremont Foundation, são a principal
força do movimento conservador americano. É claro que os democratas,
que nunca conseguiram montar um think tank que funcionasse, adoraram a
nova regra e os conservadores viram nela uma traição explícita de Bush à
causa que professou defender.
Mais motivo ainda para revolta o presidente deu quando violou ao mesmo
tempo duas leis sagradas do conservadorismo, gastando um dinheirão do
governo para aumentar a interferência estatal na educação infantil, com a
ajuda, é claro, dos democratas. A repugnância dos conservadores ao
excesso nos gastos públicos é tradicional, mas sua resistência à educação
estatal, que era apenas moderada, se transformou em ódio ostensivo quando
ficou claro que as escolas americanas estavam se tornando centros de
doutrinação politicamente correta orientados... pela ONU.
O pior de tudo foi a súbita revelação dos planos secretos do Council on
Foreign Relations para dissolver as fronteiras entre os EUA, o Canadá e o
México, praticamente eliminando a nação americana como unidade política
independente. A idéia já era antiga, mas quando alguém levantou a lebre e
um cidadão apelou ao FOIA (Freedom of Information Act), obrigando o
governo a divulgar os documentos sobre o assunto, o que se descobriu foi
que Bush já estava formalmente comprometido com os governos do Canadá
e do México a realizar o plano. O Partido Republicano, onde há tantos
membros do CFR quando no Democrata, não podia nem aprovar uma coisa
dessas nem romper abertamente com o presidente. Confuso e indeciso,
optou por fazer-se de morto, o que era o mesmo que pedir aos eleitores que
o sepultassem.
Mas é claro que nem toda a justa irritação dos conservadores contra Bush
poderia transformá-los em esquerdistas. O que eles fizeram foi o que havia
de mais inteligente a fazer: escolheram os mais conservadores entre os
candidatos democratas, e votaram neles. Deste modo, o sucesso do Partido
Democrata não foi nem uma vitória da esquerda nem uma derrota do
conservadorismo. Foi uma derrota de um presidente ambiguamente
“tucano” e de seus aliados rinos.
Entre os republicanos, o comentário geral é que o partido tem de
abandonar o bushismo e voltar à boa e velha linha conservadora de
Goldwater e Reagan, que Bush, por momentos, fingiu representar.
JORGE GERDAU
Meus efusivos cumprimentos ao dr. Jorge Gerdau por haver recusado um
ministério no governo Lula. Como empresário, como líder e sobretudo
como pai espiritual do Fórum da Liberdade, ele já fez mais pelo bem do
Brasil do que todos os ministros deste e de vários outros governos. Fez e
continuará fazendo. Um ministério, para ele, não seria promoção, seria
rebaixamento. “Ministro”, afinal, vem do latim minus, como complemento
oposto de magis. Um homem como Jorge Gerdau não pode ter chefe, muito
menos ser o minus do magister Lula. No governo, ele daria o melhor de si
pelo progresso nacional, mas teria de acomodar-se à simbiose monstruosa
de economia capitalista e centralização política socialista, que é a fórmula
da administração luliana. Um empresariado forte e independente é a base da
democracia capitalista. Quando vinte de nossos grandes empresários
compreenderem isso como Jorge Gerdau compreende, o Brasil entrará no
bom caminho.
VIDA DURA
Se vocês querem me deixar contente, vão ao blog do Reinaldo Azevedo e
leiam a nota “Nos Emirados Sáderes: Lula se solidariza com Sader, que
agora quer título em clube da burguesia carioca”. É imperdível.
O ADVOGADO DO MARQUÊS
Sob o título “Emir Sader e o terror judicial”, em documento distribuído
através da internet por uma tal “Rede de Cristãos” (não sei que raio de coisa
é isso), um professor de nome Bajonas Teixeira de Brito Júnior empreende
a apologia do marquês de Sader, mas, em contraste com o ambíguo e
recalcitrante manifesto que aqui comentei na semana passada, não tenta
escapar das implicações do que diz. Bem ao contrário, busca levá-las às
últimas conseqüências, solidarizando-se não somente com o criminoso mas
com o crime, ao ponto de cometê-lo de novo por sua própria conta e risco.
Repetindo e assumindo como sua a imputação criminal indevida que o
marquês dirigiu ao senador Bornhausen, o prof. Teixeira transcende
portanto os limites da mera solidariedade, entrando com fé e orgulho no
terreno da cumplicidade ativa.
Se o marquês, diante de tão fraterna atitude, não der pelo menos um beijo
na testa do sujeito, direi que não tem coração. Muitos falaram em defesa do
réu condenado – mas só o prof. Teixeira se dispôs a ir para a cadeia com
ele. Não é todo dia que se encontra um amigo assim.
Tamanha afeição, em verdade, não é gratuita. Nasce da profunda afinidade
entre a forma mentis do acusado e a do seu defensor, se é que esta se pode
medir por uma amostra tão breve quanto a que ele nos oferece nesta peça
magistral de saderismo aplicado que é a circular da “Rede de Cristãos” (não
adianta perguntar: eu já disse que não sei o que é isso). Sou também
induzido a crer nessa hipótese mediante a ponderação de que ambos, réu e
advogado, têm em comum o fato de serem professores de filosofia
formados por universidades brasileiras, o que já bastaria para torná-los
metafisicamente indiscerníveis entre si.
Se o leitor permanece incrédulo, sugiro-lhe que leia o seguinte parágrafo
do prof. Teixeira e verifique por si mesmo se o modus argüendi aí
empregado não é exatamente o mesmo de “O Mundo às Avessas”:
A expressão usada por Jorge Bornhausen é racista e extremamente ofensiva, visto o contexto
negativo em que a palavra ‘raça’ aparece aplicada ao PT, ao que se deve somar o histórico
sombrio e mesmo tenebroso que o termo ostenta. Em primeiro lugar, a função da palavra não é
classificatória, não sendo empregada como um mero substantivo, antes servindo a uma
substantivação que busca inferiorizar e humilhar aquele a quem se refere. Ora, em um país que
inicia sua luta contra a discriminação racial, o emprego de forma vexatória da palavra ‘raça’ não
pode ser admitida sob nenhuma condição. Condenar quem percebe e repudia esse emprego é
ofender a capacidade de julgamento e discernimento de milhões de brasileiros. E punir a
inteligência de muita gente.
Desde logo, designar como “raça” um grupo humano unido por laços não
raciais é de fato pejorativo. É pejorativo justamente porque degrada esses
laços, desprezando sua natureza específica de nexos políticos, religiosos,
espirituais ou éticos e reduzindo-os a uma mera afinidade corporal,
biológica, genética, como a que existe entre os vários membros de uma raça
de porcos, de patos ou de galinhas. Dizer que os petistas são uma raça é
dizer que eles não se reúnem movidos por ideais éticos ou políticos, bons
ou maus, mas sim pela simples força da programação genética hereditária,
como os gansos se reúnem com gansos e os macacos com macacos. E é
claro que quem diz isso não o enuncia literalmente como verdade objetiva
cientificamente comprovável, mas como exagero deformante e caricatura
verbal, como figura de linguagem usada com propósito insultuoso, como
bem viu o prof. Teixeira, para “inferiorizar e humilhar aquele a quem se
refere”, isto é, no caso, o grupo petista. Mas a força do insulto reside
precisamente na depreciação da natureza dos laços que unem esse grupo.
Está patentemente implicada nessa depreciação a crença de que, entre seres
humanos, a pura ligação racial é inferior a outros tipos de afinidades,
sociais, culturais e suprabiológicas, pelas quais eles possam estar unidos.
Ora, acontece que essa crença, em vez de ser racista, é manifestamente o
oposto do racismo. Para o racista, os nexos raciais, em si, não são inferiores
nem desprezíveis: são o elo essencial que une os seres humanos e determina
a sua conduta social e histórica. Hitler e Goering não poderiam jamais se
sentir ofendidos se ouvissem dizer que sua colaboração política nascia
diretamente da sua afinidade racial de arianos. Ao contrário, proclamavam-
no abertamente e com orgulho. A palavra “raça”, para o racista, nada tem de
pejorativo: é um conceito filosófico e científico respeitabilíssimo, na
verdade o conceito fundamental da sua visão do mundo e o ponto mais alto
que, no seu entender, a capacidade explicativa humana pode alcançar.
Desprezível, sim, é não ter raça, é ser mestiço, estar portanto desprovido de
afinidades genéticas com o grupo e reduzido portanto a só poder travar com
os demais membros da sociedade relações espirituais, ideológicas, etc., isto
é, relações sem fundamento racial. Desprezíveis são também, nessa
perspectiva, as raças ditas inferiores, mas é claro que aí a inferioridade
delas não consiste em serem raças, pois a superior também o é, mas sim em
não terem tais ou quais virtudes que a raça superior, com modéstia
exemplar, atribui a si mesma. Dada a simples relação lógica imediata entre
os conceitos, não é possível depreciar ao mesmo tempo uma raça como
geneticamente inferior e os nexos raciais como forma de afinidade inferior
entre os seres humanos. Exaltar uma raça e depreciar outra é, na mesma
medida, exaltar as relações raciais como importantes, valiosas e
significativas. Pela mesmíssima razão, depreciar um grupo não racial
chamando-o de raça é, obviamente, usar contra ele o mais anti-racista dos
insultos.
Tais considerações nascem da pura compreensão do sentido textual,
contextual e dicionarizado das palavras, compreensão que deveria ser
imediata e instintiva para qualquer pessoa alfabetizada, mas que, a julgar
pelo documento citado, está incalculavelmente acima da capacidade do
prof. Teixeira. O que ele faz não é um deslize de interpretação, é uma
inversão tão drástica e radical do sentido das palavras interpretadas, que lhe
bastaria um pouquinho de capacidade de leitura, um pouquinho só, para
preservá-lo de erro tão medonho e imperdoável.
O prof. Teixeira, tal como seu amado marquês de Sader, é um analfabeto
funcional sem as qualificações lingüísticas mínimas para lecionar em escola
primária, embora suficientes talvez para freqüentá-la. Na verdade, chamá-lo
de analfabeto funcional é bondade minha. Ele é semi-analfabeto no sentido
literal e estrito do termo. Se não o fosse, não poderia escrever que, na
declaração do senador Bornhausen, a palavra “raça” “não é empregada
como um mero substantivo, antes servindo a uma substantivação”. É
simplesmente impossível substantivar o que quer que seja sem empregar o
termo respectivo como substantivo ou, se quiserem, “mero substantivo”.
Ademais, a conotação semântica de um substantivo não muda a categoria
morfológica a que ele pertence. O termo “raça” é substantivo e só pode ser
usado como tal, seja em sentido racista ou anti-racista, insultuoso ou
laudatório. O homenzinho, evidentemente, não tem a menor idéia do que
seja um substantivo, muito menos uma substantivação. Também não
conhece sequer a concordância de gênero, já que diz que o “o emprego...
não pode ser admitida”. Nem discuto a ignorância histórica um tanto
proposital do referido, que suprime um século e meio de lutas em prol dos
negros e atribui ao PT a inauguração triunfal do anti-racismo brasileiro.
Também não discuto os precedentes a que ele apela, “xingamentos que
mereceriam punição imediata”, entre os quais falta, é claro, toda menção ao
célebre rap de Gabriel o Pensador, “polícia, raça do caralho”, que, malgrado
o insulto duplo e o apelo explícito à matança de policiais, foi defendido na
ocasião por toda a esquerda falante, embora o povão fosse de opinião
diversa, apedrejando o cantor. Não discuto isso. Aliás nem discuto nada.
Discutir com ignorante é lavar cabeça de jumento. Eles que discutam entre
si, já que para isso receberam a habilitação oficial que lhes dá acesso aos
ócios acadêmicos e a proventos extraídos da bolsa do povo. Asinum asinus
fricat: que os asnos esfreguem os asnos. Mesmo que a esponja seja de
dinheiro público.
13 de novembro de 2006
Anistia?

O
PROCESSO DE INDENIZAÇÃO MOVIDO POR CÉSAR TELES e sua esposa
Maria Amélia contra o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra é
confessadamente um ato político, calculado para estimular outros
militantes esquerdistas presos durante o regime militar, bem como seus
descendentes, a que abram processos similares e mantenham acesa por
tempo ilimitado a chama da “luta contra a ditadura”, que há vinte anos vem
rendendo às organizações de esquerda incalculáveis lucros publicitários,
políticos e financeiros.
A tática jurídica adotada é restringir ex post facto a aplicação da lei de
Anistia, mediante a alegação de que ela só preserva contra a punição penal,
não contra ações cíveis, uma nuance que nunca foi explorada antes por ser
demasiado rebuscada para ocorrer de maneira natural e espontânea seja ao
legislador, seja aos possíveis acusados ou eventuais beneficiários. A idéia
do processo nasceu claramente de uma artificiosa investigação de brechas
possíveis que permitam eternizar os ganhos da autovitimização esquerdista.
Para os que combateram o terrorismo, bem como para os familiares dos que
morreram nesse combate, tudo é um passado doloroso que deve ser
esquecido. Para os esquerdistas, é um futuro repleto de promessas: há muito
dinheiro nos cofres públicos que ainda não foi gasto em indenizações e
muitas manchetes que ainda não foram escritas para a glória do terrorismo
nacional. Há uma diferença substantiva entre a reivindicação sincera de
quem se sente prejudicado e o ativismo judicial que visa a espremer até
depois da última gota o limão das vantagens possíveis. Não é preciso
colocar em suspeita a lisura de intenções do casal Telles em particular, pois
a má-fé é o pressuposto geral de toda a instrumentalização esquerdista dos
“anos de chumbo”.
O que ninguém parece ter notado é que, se o argumento da acusação for
aceito pela Justiça, ele abrirá um precedente para que as vítimas e familiares
de vítimas de atentados terroristas movam ações similares contra os
membros de organizações esquerdistas que apoiaram a “luta armada”,
inclusive, é claro César Telles e Maria Amélia Telles. Como diretores da
gráfica do PC do B, partido maoísta, os Telles foram, além de auxiliares do
terrorismo nacional, também cúmplices morais do genocídio chinês,
podendo ser acusados, pelas leis internacionais, de crimes contra a
humanidade, como acontece com os apologistas até mesmo retroativos do
regime nazista. Só escaparam disso até hoje porque não existem no Brasil
organizações de direita e, se existissem, dificilmente seriam mesquinhas ao
ponto de tentar explorar politicamente cada crime real ou imaginário
cometido pelos comunistas quatro décadas atrás, como os comunistas não
se vexam de fazer, com tenacidade incansável, contra seus adversários.
No caso em particular da reclamação contra o coronel Brilhante Ustra, o
juiz encarregado do processo terá de ser um campeão de autocontrole, um
verdadeiro asceta espiritual, para resistir à pressão da mídia que já
prejulgou e condenou o acusado. Mesmo aquelas raras publicações que não
chamam o militar diretamente de “torturador”, negando-lhe o direito de ser
considerado inocente até prova em contrário, recusam-se obstinadamente a
publicar qualquer das alegações que ele apresenta em sua defesa no livro A
Verdade Sufocada. Entrevistá-lo, então, é hipótese proibida e impensável
nesses primores de idoneidade que são os grandes jornais e canais de TV
deste país. Quando eles choramingam que estão sendo oprimidos pela
militância petista, fazem-no com sobra de razão, exatamente como a esposa
fiel que, depois de fazer todos os sacrifícios possíveis pelo bem do marido,
ainda leva uns tapas do sem-vergonha.
Mas, de modo geral, as vítimas do terrorismo estão colocadas numa
posição juridicamente mais que favorável para exigir indenizações de seus
algozes, já que o dano que sofreram foi imensuravelmente maior que o de
qualquer comunista ou pró-comunista dos anos 60-70.
Em primeiro lugar, na época não agiam em nome de organizações ilegais,
mas em obediência aos códigos militares e policiais que regiam o combate
ao terrorismo. Mesmo que tenham cometido abusos e devam pagar por eles,
resta o fato inquestionável de que esses desvios criminalmente imputáveis
ocorreram no exercício de funções que eram, em si, perfeitamente legais, ao
passo que os terroristas, mesmo quando se comportavam com honra e se
esquivavam de participar de atrocidades como o assassinato de um
prisioneiro a coronhadas pelo chefe guerrilheiro Carlos Lamarca, estavam
envolvidos numa atividade essencialmente ilegal e criminosa, com o
agravante de agir a mando de organizações internacionais como a OLAS,
Organización Latino-Americana de Solidariedad, fundadas e subsidiadas
por algumas das ditaduras mais genocidas que já existiram no planeta.
Em segundo lugar, as vítimas e familiares de vítimas do terrorismo foram
alvo de tratamento abjetamente discriminatório por parte do governo
esquerdista, que lhes recusou toda assistência e, quando lhes deu
indenizações, tardiamente como aconteceu no caso da família do falecido
sargento Mário Kozel Filho, foi mediante quantias miseráveis que, na
comparação com a orgia financeira dos prêmios concedidos aos
esquerdistas, somavam ao dano material o agravante moral da injúria. Isso
quer dizer que, além de exigir indenização dos próprios terroristas, que hoje
são poderosos e ricos, essas vítimas podem cobrá-la também do governo.
Em terceiro lugar, a disparidade de tratamento que os mortos dos dois
lados receberam na mídia é tamanha e tão patente, que ninguém pode em sã
consciência deixar de enxergar nela uma das causas da injustiça
governamental na distribuição de indenizações – o que significa que os
órgãos de mídia também podem ser acionados como autores dos imensos
danos morais infligidos às vítimas e descendentes de vítimas do terrorismo.
Em suma: para cada processo cível que os terroristas e seus parceiros
possam mover contra seus supostos algozes, as vítimas do terrorismo têm
munição para mover pelo menos três: contra os terroristas, contra o
governo, contra as grandes empresas de mídia.
Se houvesse organizações militantes de direita, e se estivessem conscientes
da força do ativismo judicial como arma política, a dor que os esquerdistas
sentiriam no bolso seria tão insuportável que, com imenso alívio,
desistiriam de iniciativas como a do casal Telles e prefeririam investir suas
energias na indústria nacional dos panos quentes.
Enquanto os perseguidos pelo petismo não decidirem se organizar para um
ataque judicial a seus algozes, em vão pedirão socorro divino. Até Deus
precisa de motivação. Se você mesmo tem preguiça de reconhecer a
gravidade da sua situação, e de agir em conseqüência, por que haveria o
Altíssimo de se preocupar com você?
14 de novembro de 2006
Mais um advogado do marquês

O
MARQUÊS DE SADER TEM UM BLOG em cuja seção de comentários
publica democraticamente todos os elogios que recebe. No último dia
18, logo de manhãzinha, postei lá a seguinte mensagem:
Desculpe-me por imiscuir a minha nefanda pessoa em ambiente tão seleto, mas tenho duas
perguntinhas: (1) Você imputou ou não ao senador Bornhausen a prática de crime inafiançável?
(2) Imputação de crime é mera opinião ou é denúncia de um fato? Peço que você responda com a
brevidade direta que as perguntas exigem.
Até o momento, a mensagem não foi respondida, aliás nem publicada.
Claro: o marquês não é besta de querer que o núcleo mesmo da questão que
o envolve venha à luz, quando há tantos subterfúgios interessantes para
alimentar uma desconversa sem fim.
Mas a prova de que minhas perguntinhas eram decisivas vêm dos próprios
argumentos da sua defesa que, descontados os floreios ideológicos e as
lacrimejações publicitárias, são dois:
1) O marquês está sendo punido por um delito de opinião.
2) O senador Bornhausen é racista mesmo, portanto a acusação que o
marquês lhe lançou traduz uma verdade de fato.
Como esses argumentos se contradizem um ao outro, julguei-me no dever
de pedir ao marquês que esclarecesse a dúvida em torno da qual gira toda
controvérsia judicial possível quanto à sua culpa ou inocência. Mas para
que esclarecê-la, quando é muito mais lindo jogar tinta na água para que
ninguém enxergue nada com clareza?
O promotor Renato Eugênio de Freitas Peres, no recurso que apresentou
contra a sentença do juiz Rodrigo César Muller Valente, faz isso com a
potência de um exército de polvos, compondo uma petição-camuflagem
onde não se encontra uma só afirmação unívoca entre batalhões de indiretas
capciosas.
Ele argumenta, por exemplo, que jamais viu uma condenação por crime
contra a honra – mas não esclarece se com isso quer dizer que foi inépcia
judicial, que esses crimes não existem ou que eles não devem ser punidos.
Ele alega também que juízes não lêem petições, mas não esclarece se está
se referindo ao juiz que condenou o marquês, ao juiz que vai julgar o seu
recurso ou aos juízes em geral. Também não diz se espera que a sua petição
desfrute da atenção legente que os juízes sonegam às demais ou se aposta
na sorte de que ela seja deferida sem leitura.
Não querendo insistir abertamente na alegação de que Bornhausen é
mesmo racista, mas não querendo prescindir dela por completo, ele
transmuta-a de afirmação explícita em sugestão indireta, alegando que o
senador “efetivamente tem o hábito de utilizar o conceito de raça”. A
ambigüidade é aí levada ao extremo do confusionismo, pois, de um lado, o
promotor não cita um único exemplo extra de utilização da palavra “raça”
pelo senador, donde se conclui que ato habitual, para S. Excia,, é o ato
praticado uma vez só. De outro lado, faz de conta que não sabe que utilizar
uma palavra em sentido impróprio ou figurado é precisamente o contrário
de usar o conceito correspondente. Chamar de jumento um animal que
caiba na classe dos jumentos é usar o conceito de jumento. Chamar de
jumento o marquês de Sader ou o promotor Freitas é usar a palavra
totalmente fora do conceito que ela nomeia, pois nada, na definição de
jumento, admite a inclusão de animais de outra espécie que só se
jumentalizam por vontade própria. Deste modo, ao atribuir ao senador um
hábito, o promotor não apenas se absteve de provar a reiteração de atos
necessária para configurar um hábito, mas se absteve de provar até mesmo
um único ato, solitário e isolado que fosse. Está claro, portanto, que o único
motivo que ele pode ter tido para atribuir ao senador o uso habitual do
conceito de raça é seu desejo de carimbar o senador como racista sem ter de
afirmar explicitamente que ele é racista. Aí fica difícil distinguir se o
promotor é advogado do marquês ou se é o próprio marquês.
Diz ainda o referido que os demais insultos lançados contra o senador,
como “repulsivo, fascista, mente suja, abjeto, mesquinho, desprezível” – ele
omitiu gentilmente “assassino de trabalhadores” – são apenas expressões de
“um debate acalorado”, não cabendo pois ação judicial para puni-los.
Diante do exposto, e data vênia de S. Excia., deixo aqui registrada a minha
acaloradíssima opinião de que o promotor Renato Eugênio de Freitas Peres
é um chicaneiro, malicioso, mentiroso, trapaceiro na argumentação e
fofoqueiro de cortiço na escala de valores morais, além de jumento em
sentido arquifigurado, que em nada depõe contra a espécie jumenta.
Quanto ao marquês, professor universitário que escreve “Getulho” e
“opróbio” e usa da solidariedade ideológica como gazua para tirar
vantagem ilícita de seus companheiros, o gajo é tão ruim que não pode ser
qualificado. Já o xinguei de tudo quanto é nome, e sinto que ainda não
consegui expressar a quintessência da sua personalidade excrementícia. Ele
é uma espécie de cocô metafísico, transcendental, inefável e inexprimível.
Nem todos os demônios do inferno defecando juntos poderiam produzi-lo.
Talvez só ele próprio, em agonias intestinais dantescas, conseguisse se gerar
a si mesmo por propulsão gasosa, invertendo-se todo na saída do jato pelo
orifício anal e, com as tripas no lugar do cérebro, julgasse por isso ver o
mundo às avessas.
Opinião por opinião, deixo também registrada aqui a minha sobre o tal de
minhocarta. Se ele dissesse ou publicasse de um filho meu o que publicou e
disse do filho do Diogo Mainardi, eu só não quebraria a cabeça do
desgraçado a pauladas caso não conseguisse distingui-la do rabo. Neste
último caso, que pelo que li da sua autoria é o mais provável, meter-lhe-ia
um rojão aceso com o cano para dentro e daria o problema por resolvido
sem maiores discussões. Mesmo no auge da fúria, sou um sujeito
educadíssimo.
23 de novembro de 2006
O sucesso do fracasso

T
ODOS OS “MOVIMENTOS SOCIAIS” ATUANTES NO BRASIL, sem exceção,
bem como as entidades que os representam e as leis baseadas nas suas
reivindicações, nasceram da seguinte maneira:
1. Com dez, vinte, trinta anos de antecedência, os intelectuais esquerdistas
de maior peso discutem e elaboram os conceitos e a linguagem das novas
idéias destinadas a revigorar e ampliar o movimento revolucionário
mundial.
2. Em seguida essas propostas passam à alçada das grandes fundações
bilionárias e organismos internacionais, onde o segundo escalão intelectual
– técnicos, planejadores sociais, publicitários, ativistas – lhes dá o formato
operacional para transmutá-las em propostas concretas.
3. Essas propostas são então espalhadas pelo mundo por meio de uma
infinidade de livros, artigos, conferências, filmes, espetáculos de teatro,
sempre subsidiados pelas mesmas fontes, mas apresentados como
iniciativas independentes, de modo a dar a impressão de que a mudança
planejada provém de uma fatalidade histórica impessoal e não de uma ação
organizada. Ao mesmo tempo, desencadeia-se um conjunto de operações
preventivas destinadas a neutralizar, reprimir e, se necessário, criminalizar
toda resistência.
4. Só então as propostas chegam aos países do Terceiro Mundo, por meio
de ONGs e agentes pagos que as inoculam primeiro nos círculos de
intelectuais mais ativos, que as retransmitem aos estudantes e à mídia, não
raro apresentando-as como suas criações pessoais e originalíssimas, de
modo que a multidão dos aderentes não tenha a mais mínima idéia da
existência de um empreendimento internacional organizado por trás dos
efeitos políticos que se seguem inexoravelmente.
5. A última etapa é a produção desses efeitos, por meio dos agentes
políticos – militância organizada, agentes de influência, legisladores – que
transformam as propostas em leis e instituições.
Na última etapa, as origens intelectuais das propostas, bem como sua base
internacional de sustentação financeira e organizacional, já se tornaram
praticamente invisíveis para a população em geral, de modo que toda a
discussão a respeito, destinada a fazer com que a adoção das novas medidas
pareça surgir do fluxo normal e espontâneo da vida democrática, se atenha
às definições nominais e aos aspectos mais periféricos das questões
respectivas, sem possibilidade de examinar seja o esquema de poder que
articulou a seu belprazer a situação de debate, seja as implicações históricas
de longo prazo que advirão das transformações pretendidas. Quando essas
conseqüências se revelam catastróficas, a culpa pelo erro que as produziu já
está tão disseminada pela sociedade que toda tentativa de rastrear e
responsabilizar os autores das propostas iniciais, caso ainda ocorra a alguém
a tentação de empreendê-la, começa a parecer rebuscada e artificiosa como
uma “teoria da conspiração”.
A primeira condição para a existência de um movimento conservador ou
liberal é a formação de equipes de estudiosos qualificados para fazer esse
rastreamento e expor aos olhos da multidão o processo inteiro da
“transformação social”, para que ela perca seu prestígio místico de
fatalidade histórica ou vontade divina e possa ser discutida às claras como
qualquer outro projeto de poder.
Infelizmente, as forças econômico-sociais cuja sobrevivência a longo
prazo depende do sucesso de um movimento liberal-conservador –
principalmente a classe empresarial que é a concorrente número um dos
planejadores e burocratas iluminados – têm um horizonte de visão histórica
muito restrito e dificilmente compreendem a necessidade de uma estratégia
de longo prazo. Concentram-se na defesa dos seus interesses imediatos reais
ou imaginários e, sem perceber, acabam colaborando com os planos mais
vastos e gerais da esquerda, seja por meio de concessões conscientes que
lhes parecem muito espertas na hora, seja por meio de resistências pontuais
arbitrárias e inconexas que sempre podem ser absorvidas e neutralizadas no
quadro maior da estratégia esquerdista, seja por meio da adaptação passiva,
lenta e quase imperceptível à linguagem e à cosmovisão de seus inimigos.
O domínio do tempo histórico das transformações político-sociais tornou-
se monopólio da elite esquerdista internacional. O mero fracasso econômico
das propostas socialistas não diminui em nada o poder hipnótico que
exercem sobre a multidão nem o controle hegemônico da esquerda sobre o
processo histórico, porque esse fracasso é apenas um fato, e os fatos não se
transformam por si em elementos de persuasão quando não integrados
como símbolos num universo imaginário, isto é, quando não trabalhados
dentro de um plano cultural abrangente e de longo prazo, precisamente o
que falta por completo às forças liberal-conservadoras.
O próprio preconceito economicista que se apossou dessas forças,
induzindo-as a esperar que a fraqueza econômica do socialismo se
transmute automaticamente em fracasso político-cultural do movimento
esquerdista, já mostra o quanto o imaginário liberal-conservador foi
infectado e moldado pela cosmovisão esquerdista, hoje “onipresente e
invisível” como a desejava Antonio Gramsci.
Desse preconceito, em simbiose com o imediatismo político, nasce o
profundo desinteresse que os liberais e conservadores têm pelo debate
interno de idéias na esquerda. Como o conteúdo desse debate lhes parece
falso e alucinatório e por isso supremamente tedioso, não percebem que por
trás dessa falsidade e alucinação há um método e uma estratégia. Nem
muito menos que a falsidade louca de uma idéia jamais foi obstáculo ao seu
sucesso político. Enquanto os liberais e conservadores discutem economia,
criando esquemas saudáveis e racionais que jamais serão levados à prática,
os esquerdistas, a salvo de qualquer fiscalização crítica da parte de seus
adversários, inventam as mentiras e alucinações com que dominarão a
consciência das multidões e conduzirão o processo histórico para onde bem
entendam, com a facilidade com que um menino-pastor puxa um búfalo de
uma tonelada pela argola do nariz.
Vou dar aqui um único exemplo de doutrina alucinatória que jamais vi
despertar o interesse dos liberais e conservadores brasileiros e que por isso
mesmo consegue praticamente dominar o ambiente universitário, cultural e
midiático nacional, influenciando o curso dos acontecimentos e impondo
derrotas humilhantes à racionalidade econômica liberal-conservadora.
Refiro-me à escola “desconstrucionista” de Jacques Derrida, Jean-François
Lyotard, Paul de Man, Gianni Vattimo e outros, que torna inviável toda
idéia de veracidade objetiva e instaura em seu lugar o primado da ficção
militante.
Como em artigos vindouros pretendo abordar aqui vários fenômenos da
política brasileira que jamais teriam podido produzir-se exceto num
ambiente intelectual dominado por essa escola, a utilidade essencial de
conhecê-la se tornará mais evidente nas próximas semanas.
Usei o termo “escola”, mas os próprios desconstrucionistas o rejeitam.
Também não aceitam que o desconstrucionismo seja definido como uma
filosofia, um método de interpretação, um projeto acadêmico ou qualquer
outra coisa. Não aceitam definição nenhuma, o que já coloca o recém-
chegado na obrigação de escolher entre embarcar às cegas na aventura sem
nome ou, ficando de fora, não poder criticá-la sem ser acusado de
incompreensão leiga. À entrada do templo desconstrucionista, portanto, um
cartaz em letras de fogo já anuncia: “Ame-o ou deixe-o.” Mas deixá-lo
significa excluir-se a si próprio da comunidade acadêmica e ser considerado
um ignorante ou reacionário, um escravo do universo lingüístico pré-
desconstrucionista e, portanto, um virtual objeto de desconstrução. Não há
terceira alternativa entre desconstruir e ser desconstruído – e esta última
hipótese não significa apenas ser objeto de análise corrosiva, mas de
destruição social e profissional.
A desconstrução parte da premissa lingüística de Ferdinand de Saussure de
que a língua é um sistema no qual o sentido de cada palavra é a diferença
entre ela e todas as outras. O sacerdote supremo do desconstrucionismo,
Jacques Derrida, joga essa premissa contra as pretensões científicas da
própria lingüística, ao concluir daí que, se a língua é um sistema de
diferenças entre signos, ela não tem qualquer referência a um “significado”
externo. Tudo o que o ser humano diz, escreve ou pensa é apenas a
exploração das possibilidades internas do sistema. Não tem nada a ver com
“realidade”, “fatos” etc. O universo inteiro ao alcance do pensamento
humano é constituído de “textos” ou “discursos”, mas, como não há
nenhuma realidade externa pela qual esses discursos possam ser aferidos,
não tem sentido falar de discursos “verdadeiros” ou “falsos”. Não existe
representação da realidade. Todo discurso é livre invenção de significados.
Obtida essa conclusão, Derrida interpreta-a em sentido nietzscheano,
afirmando que, se o dircurso não é representação da realidade, é expressão
da “vontade de poder”. Mas isso não quer dizer que por trás do discurso
exista um “eu” manifestando sua vontade de poder. A idéia de um eu
estável e autoconsciente é ela própria uma representação da realidade.
Como nenhuma representação da realidade pode funcionar, o eu também
não existe: só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada
“eu”. Se a língua estava totalmente separada da realidade por ser apenas um
sistema de diferenças, o desconstrucionista vai agora separá-la do próprio
sujeito pensante, acrescentando à mera “différence” a “différance”, com
“a”, termo criado por Derrida para designar o intervalo de tempo entre o
sujeito como autor do discurso e o mesmo sujeito considerado enquanto
assunto do discurso. Em português ele não precisaria inventar esse
trocadilho medonho, pois aí existe a palavra “diferição”, sinônima de
“adiamento”, que, por aquela mistura de pedantismo e ignorância, típica do
meio acadêmico nacional, os tradutores brasileiros se recusam a usar,
preferindo o neologismo francês para dar a impressão de que se trata de
uma nuance sutilíssima. Qualquer que seja o caso, Derrida está falando
simplesmente de uma diferição, de um lapso de tempo: o eu do qual você
fala não é nunca o eu que está falando. Mas, se é assim, o eu como assunto
do discurso não está nunca presente a si mesmo. Separado do objeto pela
circularidade do sistema, o discurso está também separado do sujeito pela
diferição, ou, se preferem, “différance” (como diria Dirty Harry: Cazzo!).
Diga você o que disser, ou pense o que pensar, será sempre uma ausência
falando de outra ausência.
Se o eu não existe e o objeto que ele pensa também não existe, só o que
existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu” e outra ficção
chamada “objeto”. O motivo que produz a necessidade de criar essa ficção é
o desejo de escapar da morte, da aniquilação. Mas a morte é inescapável, é
a “realidade”. Portanto a função de todos os discursos é negar a realidade e
a sua tradução cognitiva, a verdade. Nisso consiste o poder, a genuína
liberdade. O Evangelho (João, VIII:32) dizia que a liberdade nasce do
conhecimento da verdade. Para Derrida e os desconstrucionistas em geral, a
liberdade consiste em negar a verdade, afirmando, com isso, o próprio
poder.
No início alguns marxistas ficaram alarmados com a nova filosofia, que,
ao negar a realidade, punha em xeque toda pretensão de conhecer as leis
objetivas do processo histórico. Mas Derrida logo conseguiu acalmá-los,
mostrando que, se o desconstrucionismo era ruim para a teoria marxista, era
bom para o movimento revolucionário, dando-lhe não só os meios de
corroer toda a cultura ocidental por meio da negação do significado em
geral, mas também de afirmar o seu próprio poder ilimitadamente: livre das
coerções da realidade objetiva, imune portanto a qualquer cobrança na
esfera dos argumentos racionais, ele poderia impor sua vontade por todos os
meios ficcionais possíveis, enquanto seus adversários, travados por
escrúpulos de realidade e lógica, observariam inermes a sua ascensão
irresistível.
Todo o empreendimento desconstrucionista é, de fato, uma resposta prática
ao apelo formulado pelo marxista húngaro Georg Lukacs, ao perceber que o
grande obstáculo ao comunismo não era o poder econômico da burguesia,
mas dois milênios de civilização judaico-cristã. “Quem nos livrará da
civilização ocidental?”, perguntava angustiado Lukacs. Quem logo se
apresentou como primeirão da fila foi o nazista Martin Heidegger.
Destruição – Destruktion – é a palavra-chave de tudo o que ele fez na vida:
desde escrever e depois desescrever Ser e Tempo até aplaudir a ascensão do
Führer e recusar-se a esclarecer o assunto depois da II Guerra, deixando
seus fãs numa dúvida perturbadora que dava à sua filosofia ainda mais sex
appeal. A essência da filosofia de Martin Heidegger consiste em abolir o
Logos, o verbo divino que faz a ponte entre o pensamento humano e a
realidade externa, e colocar em seu lugar a “vontade de poder” do Führer.
Heidegger foi o primeiro herói da guerra contra o “logocentrismo”. A
convergência entre seus esforços filosóficos e os objetivos de Georg Lukacs
foi o pacto Ribbentropp-Molotov da filosofia. Mas Heidegger, afinal, não
criou como substitutivo para a civilização judaico-cristã nada além da
filosofia de Martin Heidegger, que só serve para quem a entende. Derrida et
caterva transmutaram essa filosofia num projeto acadêmico
indefinidamente subsidiável e num movimento político do qual milhões
podem participar sem entender coisa nenhuma do que estão fazendo. Tinha
de ser mesmo um sucesso triunfal.
Ainda mais triunfal foi essa ascensão no Brasil, onde o temor reverencial à
moda acadêmica francesa, o prestígio sacral do discurso incompreensível e
a síntese de pedantismo e ignorância que constitui a forma mentis
inconfundível da nossa classe universitária erigiram o desconstrucionismo
num culto fanático que não apenas repele contestações mas nem mesmo
admite a existência delas.
Um traço peculiar do desconstrucionismo, que no Brasil foi acentuado até
suas últimas conseqüências, é que, ao negar a existência da verdade, ele não
abdica de atacar a “mentira”. Quando ele o faz perante um público que
desconhece a nuance específica que o termo tem para um
desconstrucionista, a platéia acredita que ele está defendendo a “verdade”.
Mas, no círculo interno, sabe-se que não existe verdade. “Mentira”, pois, é
apenas aquilo que se opõe à ficção preferida do grupo desconstrucionista, à
sua “vontade de poder”. Inversa e complementarmente, o termo “verdade”,
ao ser usado pelo desconstrucionista perante os leigos, significará para estes
uma representação adequada da realidade comprovável, mas, entre os
iniciados, sabe-se que isto não existe e que o emprego do termo se destina
apenas a explorar as ilusões do público para induzi-lo a submeter-se às
ilusões e desejos do grupo ativista. Nesse sentido, pode-se e deve-se
estigmatizar como “mentira” os fatos mais amplamente comprovados e
impor como “verdade” qualquer mentirinha boba conscientemente
inventada para vitaminar a “vontade de poder” do movimento.
Objetivamente falando, o valor inteiro do projeto desconstrucionista
depende da premissa saussuriana de que o sentido de uma palavra é apenas
a diferença entre ela e todas as outras. Essa premissa é falsa. Suponham a
frase: “Jacques Derrida morreu.” A diferença entre Jacques Derrida e todos
os outros seres dotados de nomes humanos é a mesma quer ele esteja vivo
ou morto. A diferença entre morrer e estar vivo, por sua vez, é a mesma
quer você esteja vivo ou morto. Mas, se Jacques Derrida morreu, a
diferença entre ele e todos os outros continua intacta, enquanto ele, o
indivíduo Jacques Derrida, não será mais visto por aí dando palestras e
encantando milhões de idiotas. Ou a expressão “Jacques Derrida” significa
algo mais do que a diferença entre ela e todas as outras, ou tabnto faz
Jacques Derrida estar morto ou vivo. Do mesmo modo, uma frase como
“Não há mais comida” é a mesma – e suas diferenças em relação a todas as
outras são as mesmas – quer você a diga como puro exemplo verbal ou
como expressão de um estado de fato. A diferença neste último caso está na
presença ou ausência física de comida, que não é a mesma coisa que a
“ausência do objeto” na mera formulação saussuriana do significado como
diferença entre uma frase e todas as demais. Esta diferença é a mesma com
comida ou sem comida. A falta de comida não é bem isso.
Reparando em detalhes como esse, o próprio Jacques Derrida foi obrigado
a moderar as pretensões do seu método, reconhecendo a existência de
“indesconstruíveis” e, no fim, admitindo que entre eles estava – que raiva,
pô! – o próprio Logos. Desconstrua você o que desconstruir, estará sempre,
pelo simples fato de pensar e falar, dentro de um quadro de referências
balizado pelo Verbo Divino ou por seus reflexos na tradição metafísica. No
fim das contas, a Destruktion, como o projeto nazista, pode destruir muitas
coisas em torno, mas se destrói a si mesma – e àqueles que embarcaram na
sua proposta – em escala infinitamente maior. Proclamando que a liberdade
consiste em negar a verdade, o desconstrucionista só exerce sua liberdade
de viver da ficção e sentir um gostinho de poder até o momento em que a
morte substitui todas as ficções por uma verdade “indesconstruível” e a
vontade de poder pela impotência definitiva dos cadáveres. Expressão
modernizada da revolta gnóstica contra a estrutura da realidade, o projeto
desconstrucionista está destinado ao fracasso, mas o fracasso cognitivo
pode ser um sucesso político-social, na medida em que arraste na sua
voragem milhões de idiotas hipnotizados pela atração do abismo.
27 de novembro de 2006
Enquanto a Zé-Lite dorme

S
E TENHO INSISTIDO NO TEMA DO DESCONSTRUCIONISMO, é para mostrar
que toda tentativa de discussão democrática com intelectuais ou líderes
esquerdistas, hoje em dia, é tempo perdido. Eles criaram instrumentos
verbais altamente sofisticados para escapar de toda cobrança racional e
impor seus desejos e caprichos sem ter de dar satisfações senão à sua
vontade de poder. Mais ainda: inventaram um sistema de pretextos
infalíveis para sentir que, ao fazer isso, são as melhores pessoas do
universo, contra as quais só monstros de egoísmo e crueldade poderiam
objetar alguma coisa. Pior: transmitiram essas atitudes e sentimentos a duas
gerações de estudantes universitários, que hoje ocupam os espaços
fundamentais na educação, na mídia, na administração pública, na justiça e,
é claro, numa infinidade de ONGs e “movimentos sociais”.
Hegel dizia que aquele que nas discussões públicas se abstém de razões e
apela à autoridade secreta da sua “voz interior” é um inimigo da espécie
humana. Extinta a possibilidade de aferição objetiva, suprimidos os
instrumentos de prova, reduzido o debate a um confronto de vontades, a
única autoridade que resta é a pura habilidade de impressionar, de
assombrar, de seduzir, de hipnotizar. E para isso vale tudo: desde o sex
appeal até a intimidação autoritária, passando pela ostentação de títulos e
cargos, a forma mais tosca e besta do argumento de autoridade,
característica do bacharelismo provinciano que volta à moda meio século
depois de parecer definitivamente superado. Uma vez conquistada a adesão
estudantil pelo fascínio vulgar de charlatães bem-falantes, a autoridade se
transfere a gerações inteiras de jovens enragés que saem da faculdade
imbuídos do dever de “transformar o mundo” por meio da mentira e do
engodo.
Por toda parte, esses “agentes de transformação social” se empenham em
fazer com que as engrenagens da sociedade funcionem ao contrário das suas
finalidades nominais, criando o caos em lugar da ordem, a revolta e o ódio
em vez da paz, a malícia em vez da confiança. Em suma, caro leitor, você
está rodeado de ativistas cínicos, capazes de mentir e trapacear
ilimitadamente no interesse do seu grupo político. Se você abre um jornal,
não pode ter a certeza de ler fatos em vez de balelas interesseiras. Se tem
uma demanda na justiça, não pode estar seguro de que não cairá nas mãos
de um comissário do povo, decidido a julgar não segundo as razões do
processo, mas segundo a classe social das partes. Se envia a esposa nervosa
a um consultório de psicoterapia, não sabe se ela será tratada dos seus males
ou envenenada de ódio ao marido. Se envia os filhos à escola, sabe que eles
voltarão de lá tatuados e viciados, admirando bandidos e abominando as
leis, falando alto, dando ordens ao pai e à mãe, indignados com a proibição
das drogas, cheios de revolta sacrossanta contra a instituição familiar que os
sustenta e protege.
E ainda há quem, no meio disso, acredite poder confiar nas leis e
instituições, no funcionamento normal da sociedade, na sanidade do
processo democrático.
A classe empresarial, os políticos pragmáticos e os analistas econômicos
têm uma dificuldade quase intransponível de compreender o alcance
político de modas culturais que, de início, parecem limitadas a um círculo
de professores excêntricos e estudantes amalucados. Quase um século
depois de Lukács, Gramsci, a Escola de Frankfurt e o próprio Stálin
haverem descoberto que a cultura, e não a economia, é a força que move o
processo revolucionário, esses observadores vesgos ainda acreditam que
existe um abismo entre o mundo “prático” e a esfera dos interesses
“abstratos”, “estratosféricos”, da intelectualidade acadêmica e artística.
Estratosféricos são eles, habitantes do mundo da Lua. Quando o general
Golbery do Couto e Silva inventou a teoria da “panela de pressão”,
pontificando que a atividade repressiva do Estado deveria limitar-se à
oposição armada, deixando as universidades e as instituições de cultura
livres como válvula para o escoamento das pressões subversivas, mal sabia
ele que, àquela altura, os esquerdistas mais avisados já haviam abandonado
o projeto guerrilheiro e depositado todas as suas esperanças na “revolução
cultural” gramsciana: a única arma de que precisavam era, precisamente,
uma válvula. Ao optar implicitamente por não resistir ao comunismo em
geral, mas só ao comunismo “violento”, o governo lhes forneceu essa arma.
Um pouco de estudo teria bastado para mostrar ao sapientíssimo general
que a “via pacífica” para o comunismo era nada mais que o adiamento da
violência crua para depois da tomada do poder por meios anestésicos. Mas,
no calor da luta contra as guerrilhas, a imagem de uma futura esquerda
“pacífica” e “legalista” pareceu à elite militar uma alternativa roseamente
desejável. Em poucos anos, essa esquerda, nascida das conversações
gramscianas na USP, estava montada e em pleno funcionamento. Não
houve, na “direita”, quem não celebrasse o seu advento como um
formidável progresso da democracia. O general Golbery foi o pai da
ascensão petista, restando apenas saber se o foi por pura presunção e
ignorância ou se houve da sua parte um pouco de cegueira voluntária,
alimentada por ambições nasseristas de absorver a esquerda continental
num esquema militar nacionalista e anti-americano. Hoje sabemos que o
esquema militar é que foi absorvido, subjugado e posto a serviço dos planos
do Foro de São Paulo. Isso era perfeitamente previsível, mas não a quem
alimentasse, como o general, a ilusão de poder manipular e “civilizar” o
movimento comunista. A “queda” da URSS e a embriaguez triunfal dos
liberais no início dos anos 90 levaram essa ilusão às últimas conseqüências,
fazendo com que as “elites” (ou a Zé-Lite) celebrassem o sucesso do PT
como uma promessa de melhores dias para a democracia capitalista. Frases
como “o comunismo acabou” e “Lula mudou” adquiriram então o prestígio
de dogmas inabaláveis, e quem sugerisse que as coisas não eram bem assim
se tornava objeto de chacota da parte de banqueiros, empresários, políticos
“de direita”, capitães da mídia e altos oficiais militares – a pura nata da Zé-
Lite.
Hoje, quando esses senhores, de rabo entre as pernas, já entrevêem no
colaboracionismo servil e trêmulo a sua única chance de sobrevivência,
sinto-me até um tanto constrangido de lhes explicar, de novo, que os
estrategistas da revolução comunista, por mais que lhes pareçam meros
intelectuais avoados, de paletó sebento e barba por fazer, são um pouco
mais espertos que eles. Um “homem prático” vive de olho nas cotações da
bolsa e ri da sugestão de que algo tão abstrato e academicamente rebuscado
como uma teoria literária possa ter alguma periculosidade política. O
intelectual comunista aproveita-se dessa falsa sensação de segurança para
fazer da teoria literária um instrumento de ação capaz de virar o mundo do
avesso.
Vou contar, em linhas gerais, como isso aconteceu.
Na década de 30, Stálin estava persuadido de que a única função da arte e
da literatura era a propaganda revolucionária. Parida às pressas pela
Academia Soviética, a teoria estética do “realismo socialista” impregnou
massas de escritores e artistas em todo o mundo comunista. Só não chegou
a tornar-se um dogma universal porque, no Ocidente, Stálin reservava às
celebridades das letras e artes uma função mais sutil. Queria usá-las como
instrumentos de camuflagem: deviam abster-se da filiação explícita ao
Partido Comunista (e portanto também às suas opções estéticas) e,
conservando uma fachada de neutralidade, colocar o seu prestígio a serviço
de causas específicas de interesse do Partido nos momentos decisivos. Isso
deu aos escritores esquerdistas da Europa e das Américas a margem de
liberdade que lhes permitiu escapar do realismo socialista e continuar
fazendo literatura em sentido estrito. Por toda parte, poetas, romancistas e
críticos – a começar pelo príncipe da crítica marxista, Georg Lukács em
pessoa e seu fiel escudeiro Lucien Goldmann – desprezavam a estética
oficial soviética e faziam a apologia dos cânones literários que construíram
a grandeza de Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac e Dostoiévsky.
Lukács escreveu páginas notáveis em defesa do “grande realismo burguês”,
alegando que a representação fiel da realidade histórica era uma força
revolucionária em si, sem necessidade de concessões à propaganda. Até em
congressos do Partido a hostilidade ao realismo socialista acabava se
mostrando, às vezes de maneira explosiva. Referindo-se ao chefe da escola,
o nosso Graciliano Ramos exclamava: “Esse Jdanov é um cavalo.” Assim a
literatura foi salva do embrutecimento ideológico. Os anos 30-50 acabaram
sendo uma época de criatividade literária incomum. No Brasil, então, nem
se fala. Nunca tivemos tantos escritores bons e ótimos ao mesmo tempo.
Mas foi uma salvação provisória. Aqui e ali, discretamente, intelectuais
iluminados se davam conta de que a preservação dos cânones do realismo e,
de modo geral, a concepção da literatura como conhecimento, eram
incompatíveis com a meta escolhida pelo próprio Lukács: a destruição da
civilização ocidental. Puseram-se então a trabalhar na idéia de que a
literatura não podia conhecer a realidade, já que – segundo entendiam – a
própria realidade era uma invenção literária. Para dar a essa idéia um
arremedo de consistência, apelaram a um formidável arsenal de recursos
extraídos da língüística, da antropologia, da lógica formal, da “teoria
crítica” frankfurtiana e das filosofias de Nietzsche e Heidegger. Em menos
de uma década a proposta havia evoluído para a formulação radical do
desconstrucionismo: não existe realidade nem conhecimento, nenhum
discurso tem significado, o significado é livremente inventado por
“comunidades interpretativas” que aí projetam como bem entendem seus
desejos e interesses, portanto tudo o que há para fazer é reunir a
comunidade e ensinar-lhe os meios de usurpar o sentido dos textos em
benefício próprio.
De súbito, a doutrina de Stálin-Jdanov era restaurada em todo o esplendor
da sua brutalidade, mas agora resgatada da sua pobreza teórica originária e
paramentada com todos os adornos da sofisticação acadêmica. O desprezo
pela verdade, a legitimação da mentira politicamente útil, o cinismo das
interpretações forçadas, enfim a prostituição total das atividades intelectuais
superiores aos interesses de grupos de pressão tornaram-se não só legítimos
e recomendáveis, mas intelectualmente elegantes e moralmente
obrigatórios. Na mesma onda, as distinções entre o verdadeiro e o falso,
entre cultura e incultura, entre o esteticamente superior e inferior, foram
condenadas como instrumentos de opressão e substituídas pelo culto de
qualquer bobagem politicamente oportuna que se apresentasse. Toni
Morrison foi igualada a Shakespeare, as novelas de Gilberto Braga
celebradas como portadoras da “universalidade de um Balzac” por ser bem
aceitas em todos os mercados. Considerar Bach superior a Gilberto Gil
tornou-se algo assim como um crime de racismo.
Não é preciso dizer que o primeiro resultado foi a pura e simples
desaparição da grande literatura. A segunda metade do século XX não
gerou nada que se comparasse nem de longe a um Thomas Mann, a um
Proust, a um Jacob Wassermann, a um Hermann Broch, a um Robert Musil,
a um Antonio Machado, a um Bernanos, a um Mauriac. Nas nações do
Terceiro Mundo, as sementes da cultura superior em gestação foram
impiedosamente arrancadas. O país que cinqüenta anos atrás tinha Manuel
Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Annibal M.
Machado, Marques Rebelo, José Lins do Rego, agora lê Luís Fernando
Veríssimo e acha o máximo.
Se os efeitos se limitassem à esfera das letras, já seriam suficientemente
perversos. À retração da criatividade literária corresponde, pari passu, a
degradação da linguagem pública, a progressiva incapacidade de expressar
a experiência real e, conseqüentemente, a fixação dos debates em
estereótipos alienados, prenunciando a ascensão da loucura geral como
alternativa política.
Mas, como não poderia deixar de ser, os procedimentos interpretativos da
escola desconstrucionista e similares logo foram estendidos para as ciências
humanas em geral, afetando todas as esferas do debate público. Aí os
efeitos foram muito além do mero sucesso propagandístico. Ampliaram-se
até à destruição de todo princípio de ordem e racionalidade na vida social.
Avaliar, mesmo sumariamente, a extensão do dano, ocupará muitos artigos
nas próximas semanas. Vou aqui dar um único exemplo, que depois
explicarei melhor.
Um dos setores onde a influência desconstrucionista penetrou mais fundo é
o Direito. Aí se evidencia como uma teoria literária pode ter conseqüências
devastadoras sobre toda a ordem social. Juízes, promotores e advogados são
hoje formados sob a crença dominante de que as leis, como qualquer outro
texto, não têm nenhum significado originário objetivamente válido. Toda
significação que elas possam ter é mera projeção de fora, vinda dos setores
politicamente interessados. Só o que resta portanto é organizar uma
“comunidade interpretativa” e impor a sua leitura dos textos legais por meio
da gritaria, da chantagem, da intimidação. De um só golpe, a Justiça inteira
se transforma em instrumento de subversão revolucionária. Para virar de
cabeça para baixo a ordem pública, não é preciso mudar as leis: basta
inverter-lhes o sentido.
Nos EUA, o alucinógeno desconstrucionista chegou até à Suprema Corte,
transformando-a numa frente de combate contra a religião, os valores
americanos tradicionais e a própria Constituição. Amparado em teóricos
acadêmicos da reputação de Ronald Dworkin e Stanley Fish, o juiz William
Brennan, ex-presidente da Suprema Corte, proclama abertamente que tentar
ater-se ao significado originário da Constituição é “falsa humildade”: o
verdadeiro sentido do texto constitucional tem de ser livremente inventado
conforme as pressões dos grupos abortistas, feministas, gays etc. É isso o
que o ex-vice-presidente Albert Gore entende por “Constituição viva”. A
profundidade da subversão judicial ocorrida nos EUA já não pode ser
medida. Um pequeno indício é que, em plena guerra contra o terrorismo
islâmico, crianças de escola pública, em vários Estados, são obrigadas a
ouvir horas e horas de louvações à religião muçulmana, sendo ao mesmo
tempo proibidas de expressar em voz alta sua fé cristã, sob pena de
expulsão ou de medidas policiais mais graves. É a guerra psicologia ao
contrário, movida não contra o inimigo mas contra o próprio país, sob a
proteção da Suprema Corte.
4 de dezembro de 2006
O mundo como jamais funcionou

T
ENHO DIANTE DE MIM UM EXEMPLAR de How The World Really Works,
“Como o Mundo Realmente Funciona”, de Alan B. Jones (Paradise,
CA, ABJ Press, 1996), que é muito badalado entre os estudiosos
americanos de hierarquias secretas e poderes globais como uma boa e
confiável introdução ao assunto. O título é uma sinédoque: não se trata do
mundo em geral, mas da esfera político-social apenas, encarada sob o
prisma da pergunta clássica de Ortega y Gasset: “Quem manda no mundo?”
A chave do seu sucesso é a simplicidade do projeto, que, sem aspirar à mais
mínima originalidade, busca resumir doze livros considerados importantes
nessa área de estudos: A Century of War, de F. William Engdahl (1993),
Tragedy and Hope, de Carrol Quigley (1996), The Naked Capitalist, de W.
Cleon Skousen (1970), The Tax-Exempt Foundations, de William H.
McIlhany (1980), The Creature From Jekyll Island, de G. Edward Griffin
(1994), 1984, de George Orwell (1949), Report From Iron Mountain, vários
autores, editado por Leonard Lewin (1967), The Greening, de Larry
Abraham (1993), The Politics of Heroin, de Alfred W. McCoy (1991), Final
Judgement, de Michael Collins Piper (1995), Dope, Inc., pelos editores da
Executive Intelligence Review do sr. Lyndon LaRouche (1978, reed. 1992),
e Let’s Fix América, do próprio Alan Jones (1994).
Não é preciso dizer que, com a possível exceção de 1984, um clássico
literário que pode ser lido como pura ficção, e do material da E.I.R., que é
divulgado também em boletins avulsos traduzidos em português, jamais
encontrei entre líderes políticos, militares, empresariais ou midiáticos
brasileiros quem houvesse lido esses livros. Também jamais encontrei um
que não tivesse opiniões acabadas e taxativas a respeito do assunto,
acompanhadas de uma tremenda indisposição de discuti-las.
Mas, mesmo supondo-se que alguma dessas criaturas onissapientes
houvesse lido os doze, ou pelo menos o resumo aqui considerado, ainda
assim estaria muito mal aparelhada para saber quem manda no mundo, pois
a seleção feita por Alan Jones é deficiente sob muitos aspectos.
Desde logo, a escolha privilegia alguns títulos de segunda mão em vez das
fontes essenciais. The Naked Capitalist, por exemplo, é apenas uma boa
obra de polêmica que nada acrescenta às pesquisas volumosas e pioneiras
do economista inglês Anthony Sutton. Sutton começou estudando a ajuda
militar americana à URSS durante a II Guerra Mundial e acabou
descobrindo que toda a indústria pesada soviética era uma fachada de
papelão só mantida em pé pela força do dinheiro ocidental. Espantado, pôs-
se a investigar por que os maiorais das finanças nos EUA haviam gastado
tanto só pelo prazer de fornecer ao seu país “o melhor inimigo que o
dinheiro podia comprar” (The Best Enemy Money Can Buy, título de um de
seus melhores livros). De quebra, descobriu que ajuda igualmente generosa
havia escoado para o III Reich, comprando não só um inimigo, mas dois.
No intuito de resolver o enigma, passou a estudar as origens históricas da
elite americana. Por pura sorte, vieram parar nas suas mãos os documentos
originais de uma sociedade secreta fundada no século XIX, mas ainda em
funcionamento, que reunia as famílias mais ricas e poderosas dos EUA.
Sutton acrescenta à inflexível probidade científica um irritante
comedimento britânico. Ele reproduz esses documentos em An Introduction
to “The Order” (1983) com o máximo cuidado de ater-se aos fatos e evitar
conclusões precipitadas, mas toda essa precaução não impediu que a
publicação do livro pusesse um abrupto ponto final numa brilhante carreira
universitária. Qualquer que seja o caso, esse grande estudioso, que viveu
uma das aventuras intelectuais mais fascinantes do século XX, foi muito
odiado, xingado e amaldiçoado, mas jamais contestado formalmente. O
leitor interessado em saber quem manda no mundo não pode se dispensar
de ler os livros dele.
The Tax-Exempt Foundations, de William H. McIlhany (1980), é apenas
uma extensão de Foundations: Their Power and Influence, de René A.
Wormser (1958), que tem a vantagem de ser praticamente um traslado
direto das conclusões da comissão parlamentar de inquérito chefiada pelo
deputado B. Carroll Reece, incumbida de averiguar a ajuda fornecida por
fundações isentas de impostos, como Rockefeller, Ford e Carnegie, a
movimentos subversivos e totalitários. Os depoimentos prestados à
comissão evidenciavam, já naquela época, a simbiose macabra do
comunismo com o grande capital, que duas décadas antes o economista
austríaco Ludwig von Mises havia explicado como natural e inevitável, mas
que nas cabecinhas dos nossos compatriotas mais falantes continua soando
como uma absurdidade inaceitável, já que brasileiro só acredita em
palavras, não em fatos, e quando os sentidos dicionarizados de duas
palavras se contradizem ele não admite que os fatos correspondentes
possam coexistir na realidade. Comprovando em toda a linha a teoria de
von Mises,[ 42 ] a Comissão Reece mostrou que o movimento comunista só
existia nos EUA graças à generosidade de seus inimigos nominais. Ao
longo dos cinqüenta anos seguintes, as fundações bilionárias não só
continuaram vitaminando a subversão interna nos EUA, produzindo
inclusive a resolução suicida do conflito vietnamita e o subseqüente
genocídio no Vietnã e no Camboja, mas estenderam sua ajuda a
praticamente todos os movimentos de esquerda no Terceiro Mundo e
cobriram o planeta com uma rede de ONGs adestradas para promover
“transformações sociais”. O modus operandi dessas ONGs é bastante
uniforme. Primeiro, lançam uma moda cultural, subsidiando intelectuais
para que a imponham nos meios universitários e jornalísticos como norma
obrigatória e inquestionável, reprimindo por meio da chacota, da
intimidação e do boicote profissional qualquer tentativa de discussão séria.
Obtido o consenso da intelectualidade mais tagarela, o novo critério
escolhido pela minoria iluminada contra as preferências óbvias da maioria
da população é subitamente adotado pela totalidade da mídia como se fosse
a tradução banal e improblemática da crença majoritária, tratando toda
resistência como aberração mental isolada. Assim, por exemplo, no Brasil a
população é maciçamente contra o aborto, mas a mídia nacional inteira fala
dos anti-abortistas como se fossem tipos exóticos e anormais, teimosamente
apegados a crenças antigas de há muito já abandonadas pela maioria
saudável. Não é preciso dizer que, nessas condições, a imagem esquemática
do mundo transmitida pelo jornalismo se transforma em pura inversão e
fantasmagoria, criando um estado geral de alienação que, por si, é fonte de
insegurança, conflitos sociais e desequilíbrios sem fim. A etapa final do
processo é dar força de lei à opinião da elite iluminada, elevando da simples
marginalização à criminalização explícita o tratamento dado aos
descontentes. Da noite para o dia, a imagem postiça transforma-se em
realidade oficial.
Esse é o processo legislativo geral e usual hoje em dia, transformando a
democracia num pretexto nominal para a imposição tirânica das decisões de
uma minoria ativista descarada e cínica. A imensurável cara de pau com
que a ONU impõe o aborto como direito humano, penalizando toda
oposição como crime comparável ao racismo, mostra que, na “democracia
ampliada”, tão do gosto dos Bobbios, a coisa mais fácil do mundo é
marginalizar e criminalizar a maioria.
Nos países do Terceiro Mundo, praticamente todas as novas leis que
introduzem modificações sociais profundas vêm prontas da ONU ou
diretamente das fundações bilionárias, e sua discussão pública é
inteiramente pré-moldada para ater-se a aspectos gerais, formais e de
princípio, evitando cuidadosamente tocar na questão substantiva do poder
que as originou e das finalidades a que servem dentro da estratégia global
de seus criadores. Mas como poderia alguém tentar discutir isso, ignorando
por completo a bibliografia básica sobre a origem, formação e métodos do
poder global? Comparem o número assombroso de pessoas que opinam
publicamente sobre aborto, casamento gay, quotas raciais, etc., com a
míngua ou inexistência de leitores das obras aqui mencionadas, e terão uma
idéia aproximada do abismo epistêmico que se abriu entre as nossas elites
falantes e o mundo real. Não creio que fenômeno tão geral e profundo de
ignorância dos fatores básicos que decidem os destinos de uma nação possa
ser encontrado em qualquer outra época ou país. Ao eleger um semi-
analfabeto para a presidência da República, o Brasil não fez senão
oficializar um símbolo da sua opção radical e intransigente pelo
desconhecimento da realidade.
The Politics of Heroin, de Alfred W. McCoy (1991), e Final Judgement, de
Michael Collins Piper (1995) tratam do envolvimento de agentes dos
serviços secretos americanos no tráfico de drogas. O enfoque é importante,
mas escolhê-los como as obras mais representativas sobre a relação de
poder global e narcotráfico é deformar o quadro com uma seletividade
enviezada quase psicótica. Em 1993 a notável repórter do Reader’s Digest,
Claire Sterling, já havia fornecido um retrato muito mais completo da
situação no seu livro Thieves’ World, ao descrever a rápida arregimentação
mundial das máfias dos diversos países sob o comando unificado russo. Só
cidadãos muito atentos devem ter percebido, ao longo da última década, o
fim das velhas guerras entre máfias internacionais. O fenômeno, inédito na
História, mal foi comentado na grande mídia, mas sua importância não
precisa ser enfatizada. A partir daí a expressão “crime organizado” passou a
fazer mais sentido do que nunca. A internacional do crime repartiu o
planeta em áreas e setores, dando uma estrutura racional à divisão do
trabalho entre as quadrilhas maiores de delinqüentes nas várias regiões,
mantendo em tudo uma ordem admirável e matando instantaneamente os
rebeldes e recalcitrantes. Foi só isso que deu origem, por exemplo, à
carreira espetacular do nosso Fernandinho Beira-Mar. O sujeito comprava
armas russas no Líbano, trazia-as para o Paraguai, onde as trocava por
duzentas toneladas anuais de cocaína vindas da Colômbia, as quais eram em
seguida comercializadas no Brasil e nos EUA. Operações dessa
complexidade, abrangendo quatro continentes, supõem uma estrita
colaboração internacional que, é óbvio, não surgiu espontaneamente mas foi
montada, a ferro e fogo, pela prepotência e habilidade dos russos, fazendo
de Moscou a capital mundial do crime.
É claro, também, que isso não teria sido possível na base do puro
improviso. Os russos preparavam-se para essa operação desde os anos 50,
quando a KGB começou a treinar agentes para que se infiltrassem nas
várias quadrilhas de narcotraficantes no Terceiro Mundo, na Europa
ocidental e nos EUA. A idéia era dominar o mercado mundial, para criar
uma multiplicidade de fontes locais de financiamento para os movimentos
revolucionários, poupando ao governo soviético uma despesa considerável.
Verdadeiras universidades do crime foram criadas em vários pontos do
território soviético, elevando o narcotráfico às alturas de uma especialidade
acadêmica. A operação, com base no testemunho direto de um de seus
próprios articuladores principais, o general tcheco Jan Sejna, é descrita com
minúcia no livro de Joseph D. Douglass, Red Cocaine: The Drugging of
América And The West (1999), outro clássico imperdoavelmente omitido na
lista de Alan B. Jones. Por volta de 1980 o sistema estava em pleno
funcionamento. Sua implantação passou, é claro, pelo suborno e
arregimentação de inumeráveis agentes e funcionários de diversos serviços
secretos ocidentais, especialmente da CIA, o que se tornou ainda mais fácil
quando, nas últimas semanas do governo Reagan, uma parte dos serviços
dessa agência foi privatizada pelo mesmo presidente que se notabilizara
como o demolidor máximo do “Império do Mal”, donde se conclui que os
grandes homens também pisam no tomate. Foi a partir daí que começaram a
pipocar os casos de envolvimento de agentes da CIA no narcotráfico
internacional, fornecendo a McCoy e Piper o material para os seus dois
livros. Estes tratam, portanto, só dos efeitos locais e parciais de um
processo enormemente mais vasto e de raízes mais fundas.
Se fatos de tamanha envergadura não são quase nunca apresentados ou
discutidos na “grande mídia”, deixando os povos portanto na posição de
vítimas inermes de processos históricos invisíveis, também não é sem
razão. O escritor russo Vladimir Bukovski, dissidente exilado que voltou à
Rússia na condição de primeiro pesquisador não-soviético admitido nos
Arquivos de Moscou, trouxe daí as provas de que praticamente todos os
jornais da grande mídia “progressista” da Europa ocidental eram
diretamente subsidiados pela KGB. O relato está no livro de Bukovski,
Jugement à Moscou: Un Dissident Dans Les Archives du Kremlin (Paris,
1995). Quem não leu não sabe em que mundo vive, por mais que siga as
lições de Alan B. Jones. Muitas das informações de Bukovski, acrescidas de
outras ainda mais reveladoras, são confirmadas pelas duas obras igualmente
indispensáveis escritas pelo historiador britânico Christopher Andrew em
colaboração com o ex-agente da KGB Vasili Mitrokhin: The Sword And The
Shield: The Mitrokhin Archive And The Secret History of the KGB (1999) e
The World Was Going Our Way: The KGB And The Battle For The Third
World (2005). Mitrokhin era o alto funcionário encarregado de fiscalizar a
transferência dos documentos da KGB quando a organização mudou de
prédio. Eram oito bilhões de dossiês, o maior arquivo de informações que já
existiu no universo, o que explica que a mudança tenha levado dez anos,
durante os quais Mitrokhin, planejando fugir para o Ocidente, copiou o que
podia – uma fração infinitesimal – dos documentos mais importantes.
Por essas e outras é que me pareceu surpreendente que, no livro de Alan B.
Jones, nominalmente incumbido de dar um panorama geral da estrutura de
poder no mundo, a KGB só fosse mencionada duas vezes, de passagem, e a
propósito de detalhes irrelevantes. Quem tome esse livro como guia básico
para o conhecimento do tema ficará mesmo com a impressão de que o
dinheiro anglo-americano é a “mão secreta” que move o mundo. Existem
mãos secretas, é claro, mas são muitas e vivem se estapeando umas às
outras, às vezes até a si próprias. Ninguém tem o controle hegemônico do
processo histórico mundial, embora muitos busquem obtê-lo, não raro
cometendo erros catastróficos que levam seus planos a resultados opostos
aos pretendidos. Santo Agostinho dizia que os demônios têm orgasmos de
prazer quando alguém exagera os seus poderes. Amadores
incompreensivos, remexendo um tema que está infinitamente acima dos
seus recursos intelectuais, fazem do estudo do poder secreto um verdadeiro
sistema mitológico, ao passo que a historiografia acadêmica, em parte por
ser quase toda dependente de subsídios que vêm das mesmas fundações
bilionárias acima mencionadas, em parte por estar intoxicada por
preconceitos ideológicos que enfatizam magicamente os fatores coletivos
impessoais, em parte por lhe faltarem os instrumentos analíticos necessários
para uma abordagem séria do fenômeno, acaba se dissolvendo em
generalidades sociológicas e escamoteando a identidade dos agentes
históricos concretos. (Tentei remediar essa situação nos meus cursos sobre
“Quem é o sujeito da História?”, mas a sobrecarga de atividades
jornalísticas e pedagógicas me impediu até hoje de dar um formato editorial
aceitável a essas lições. Darei um resumo numa das próximas colunas.)
Um erro maior que se comete nessa área de estudos é hipertrofiar a
importância do poder econômico. O dinheiro não é uma forma primária e
essencial de poder: é um poder secundário e derivado, que depende da
proteção de organizações legais ou ilegais investidas dos meios de matar. O
poder empresarial e bancário pode dar origem a essas organizações, mas
não pode controlá-las uma vez que elas adquiram vida própria, como
aconteceu com a Ordem dos Assassinos, no Oriente Médio, ou com a KGB.
Omitida a KGB, o estudante fica persuadido de que os únicos centros de
poder no mundo são o sistema bancário internacional e as “Sete Irmãs”, as
maiores companhias de petróleo americanas. Engdahl, o primeirão da lista
de Jones, chega a explicar todas as guerras do século XX como um efeito
direto das decisões dessa elite. Mas essas decisões não bóiam sozinhas no
ar, elas concorrem e se articulam com as de outras fontes de poder, de base
não essencialmente econômica, entre as quais, é claro, a KHB. Para você
fazer uma idéia das proporções aí envolvidas, basta saber que o maior
empregador do mundo capitalista, o Walmart, tem um milhão e oitocentos
mil empregados, seguido da China Petroleum com pouco mais de um
milhão. Quantos funcionários ou agentes terceirizados pode a Standart Oil,
por exemplo, liberar de suas funções na exploração e comercialização de
petróleo para lhes delegar funções de espionagem, subversão e articulação
política? A mesma pergunta vale para a Ford, o banco Rothschild, etc. Já a
KGB, só na sua sede territorial, tinha quinhentos mil funcionários, e
nenhum deles estava ocupado em perfurar poços de petróleo ou negociar
empréstimos. Espalhados pelo mundo, os militantes do Partido Comunista,
acionáveis a qualquer momento para operações clandestinas coordenadas de
Moscou, colocavam à disposição da KGB não menos de trinta milhões de
recrutas. Bancos e grandes empresas podem tentar manipular as situações
por meio do dinheiro, mas nunca tiveram a seu serviço uma organização
desse porte. A KGB, que era o centro e topo do governo soviético, como
sua sucessora FSB é hoje na Rússia, foi simplesmente a maior força secreta
que já existiu no mundo em qualquer época ou país. (As relações entre a
KGB-FSB e a elite financeira ocidental são complexas e cheias de
ambigüidades. Seu estudo constitui toda uma área à espera de maiores
investigações.) Do ponto de vista financeiro, o orçamento da KGB-FSB era
e é absolutamente ilimitado e livre de qualquer fiscalização externa,
enquanto as grandes empresas ocidentais não têm um minuto de descanso
sob o olhar suspicaz da mídia, dos políticos e do fisco. Fazer dos grandes
banqueiros e empresas internacionais o centro único do poder mundial é
elevar a desinformação às alturas de um culto religioso. Agora compare, por
outro lado, a bibliografia sobre o poder econômico e sobre a KGB. Só para
dar uma amostra, não existe um único livro sobre a atuação da KGB no
Brasil, enquanto a produção editorial sobre a ação do establishment anglo-
americano nesta parte do mundo superlota as bibliotecas universitárias.
Análoga desproporção, apenas não tão acentuada, existe no mercado
editorial americano e europeu. Afinal, a maior prova da eficácia de um
poder secreto é seu sucesso em se manter secreto.
11 de dezembro de 2006

[ 42 ] Ver http://www.olavodecarvalho.org/semana/060611zh.html.
Fariseu hipócrita

O
USO PEJORATIVO DA PALAVRA “RAÇA” para designar um grupo não racial
é o inverso de um insulto racista, pois deprecia os elos raciais que o
racismo, por definição, exalta. A expressão é pejorativa precisamente
porque reduz a afinidade política, espiritual ou cultural entre os membros de
uma comunidade a um mero parentesco biológico, como se se tratasse de
um grupo de galinhas ou macacos. A intenção sarcástica se anularia
automaticamente a si mesma se o falante, pensando como racista,
considerasse a identidade racial um elo superior e não inferior àqueles que
de fato unem o grupo. A expressão só é pejorativa porque não é racista.
Qualquer pessoa que saiba ler tem de entender isso num relance, sem
precisar nem pensar.
Já expliquei isso dias atrás, mas agora notei que os detratores do sr. Jorge
Bornhausen, além de lhe atribuir uma intenção racista incompatível com o
sentido mesmo das suas palavras, ainda a explicam reiteradamente pela
origem racial e geográfica do senador catarinense, fomentando o
preconceito contra os imigrantes germânicos e contra um Estado da
federação e cometendo assim eles próprios, da maneira mais inequívoca, o
crime de racismo. Raramente a receita de Lênin, “xingue-os do que você é,
acuse-os do que você faz” foi posta em prática de maneira tão
exemplarmente literal.
Se o senador não os processar por isso, deixando fora da cadeia esses
deliqüentes, terá se rebaixado à condição de cúmplice passivo de seus
próprios difamadores, além de cometer a injustiça de punir só o primeiro
deles e deixar à solta a multidão de seus cúmplices, que nem têm como
aquele a escusa da emoção momentânea, já que escrevem em parceria, após
longas deliberações coletivas.
Penso aqui num deles em especial, o sr. Dalmo Dallari. Escrevendo no
Jornal do Brasil do dia 9, esse jurista de palanque afirma que o sr.
Bornhausen, ao designar seus inimigos petistas como “raça”, agiu “bem ao
estilo dos nazistas quando se referiam aos judeus”. Mentira suja. Os
nazistas jamais atacaram o povo judeu por ser uma raça, mas por não ser da
raça deles. Nenhum nazista, aliás nenhum racista de qualquer filiação,
jamais depreciou a identidade de raça enquanto tal. Fazê-lo seria deixar ipso
facto de ser racista. E chega a ser comovente que esse coroinha intelectual
do untuoso demagogo Dom Paulo Evaristo Arns, tendo feito carreira na
ostentação de catolicismo, rotule de nazista o mesmo giro semântico
utilizado por Jesus para qualificar seus discípulos relapsos de “raça de
víboras”.
Mas não pensem que a hipocrisia desse fariseu desprezível se contente
com isso. No meu próximo artigo comentarei mais dois ou três feitos dele
que igualam ou superam os do próprio marquês de Sader.
14 de dezembro de 2006
A nova era das ditaduras

H
Á QUEM ACREDITE QUE, COM A MORTE DE AUGUSTO PINOCHET e o
próximo desaparecimento de Fidel Castro, a era dos ditadores estará
extinta na América Latina. É esperança louca. O que está em vias de
acabar é a era dos ditadores nacionais, prenunciando o advento da ditadura
continental. Não estamos vendo o fim, mas um upgrade da tirania latino-
americana.
Começo com uma distinção óbvia. Excluindo as tiranias dinásticas,
oligárquicas e populistas, que realmente pertencem a uma fase histórica
extinta, há ditaduras reacionárias e revolucionárias. As primeiras são
temporárias por natureza, pois têm ambições limitadas, visam à restauração
de um estado anterior e se diluem tão logo alcancem seus objetivos. As
ditaduras revolucionárias arrancam as raízes do passado e criam do nada um
mundo novo. Não raro, pretendem modificar não só a estrutura da
sociedade, mas a própria natureza humana. Promovem transformações tão
profundas – e tão perversas –, que, quando se extinguem, já não é possível
nem restaurar o que existia nem criar um novo padrão de normalidade.
Muitas ditaduras reacionárias, passado o pesadelo, deixaram saldos
positivos. O Chile, a Espanha e Portugal, quando se desvencilharam de
Pinochet, Franco e Salazar, eram países livres e prósperos. As ditaduras
revolucionárias não deixam outra coisa senão um rastro macabro de
devastação e morte que só pode resultar em novas ditaduras ou numa
decadência longa e irreversível. A França do Antigo Regime era a nação
mais rica e poderosa do mundo. Depois da Revolução, veio de queda em
queda até reduzir-se a uma burocracia falida, dependente da ajuda
americana, subserviente a ditadores estrangeiros e incapaz de resistir à
invasão cultural islâmica. O Vietnã e a Coréia do Norte são cemitérios mal
administrados. A China pós-Mao é a festa permanente dos generais em
meio à miséria do povo. A Rússia mergulhou no caos e na corrupção. A
única esperança de uma nação, após a experiência da ditadura
revolucionária, é ser salva desde fora, como o foi a Alemanha. Mas
ninguém pode querer isso e depois ter o direito de choramingar que os EUA
são a polícia do mundo.
As ditaduras em formação na América Latina definem-se por duas
características: (1) são todas revolucionárias, prometendo a mutação radical
e a militarização integral da sociedade; (2) não são fenômenos isolados,
nacionais, mas o resultado de uma articulação continental que começou na
década de 60, com a OLAS (Organização de Solidariedade Latino-
Americana) e colheu seus primeiros frutos após a criação do Foro de São
Paulo em 1990. Desde então o projeto da revolução latino-americana vem
alcançando vitória em cima de vitória, sem encontrar qualquer resistência
senão da parte de esquerdistas light que, malgrado seus escrúpulos
democráticos ao menos formais, são no fim das contas escravos ideológicos
do mito revolucionário e, por isso mesmo, meros colaboracionistas
disfarçados.
A possibilidade de que o processo venha a ser detido pela emergência de
ditaduras reacionárias, mesmo locais e isoladas, é praticamente nula. Os
poderes internacionais e a grande mídia européia e americana oscilam entre
os protestos fingidos e a cumplicidade explícita. E a máquina democrática
em cada país foi tão bem alterada desde dentro, que já não pode servir
senão para legitimar a tirania por meio da aprovação popular.
A era das ditaduras no continente não acabou. Está apenas começando.
Como diria o saudoso Paulo Francis, there’s coming a shitstorm.
***
Alexei Bueno, um bobão que no presente estado de coisas é tido nos
círculos editoriais como poeta e até como erudito, está fazendo circular pela
internet uma comparação entre Augusto Pinochet e Fidel Castro na qual
exemplifica às mil maravilhas a capacidade que a esquerda tem de mentir,
depois esquecer que mentiu e por fim acreditar apaixonadamente na
mentira.
Pinochet – começa ele – é, antes de tudo, um traidor, essa coisa asquerosa, de um presidente
eleito que o colocou, ingenuamente, como Ministro do Exército. Não me consta que Fidel tenha
sido jamais ministro de Fulgencio Batista, muito ao contrário foi sempre seu figadal e público
opositor.
Se Fernando Collor de Melo, diante da iminência do impeachment, se
fechasse no palácio com guardas armados, bradando ameaças, que fariam
os poderes legislativo e judiciário? Convocariam o Exército para tirá-lo de
lá à força. Pinochet fez exatamente isso: cercou o Palácio de La Moneda
por ordem do Congresso e da Suprema Corte que já haviam condenado o
presidente corrupto, golpista e assassino. Sim, assassino. As centenas de
homicídios praticados pelos cubanos da guarda pessoal de Allende são
meticulosamente omitidas pela mídia nacional há décadas, assim como o
fato hoje bem comprovado de que o presidente chileno era agente pago da
KGB. Era obrigação estrita do exército chileno prender esse criminoso e,
caso resistisse, matá-lo como a um cachorro louco. Chamar isso de “golpe”
já é um abuso semântico intolerável. Na cabeça de Alexei Bueno, porém,
foi mais que golpe: foi “traição”. Para ser um bom sujeito, Pinochet deveria
desprezar a ordem legal e pegar em armas contra o Congresso e a Suprema
Corte em troca de ser mantido no cargo ministerial. Com base nesse
princípio, Alexei poderia concluir que só quem agiu errado no caso do
Mensalão foi o Roberto Jefferson, ao romper o pacto de lealdade mafiosa.
Os outros foram exemplos de moralidade superior.
Enquanto o generaleco-agente da CIA armou uma quartelada na qual não pegou pessoalmente
num canivete, Fidel comandou o ataque a Moncada, foi preso, exilou-se para não ser morto,
realizou o quixotesco desembarque do Granma e a epopéia de Sierra Maestra.
Conversa mole. Fidel Castro, enquanto seus companheiros morriam no
ataque frustrado ao quartel de Moncada, fugia covardemente. Quanto à
“epopéia de Sierra Maestra”, foi de cabo a rabo uma criação literária de
Herbert L. Mathews, inventivo repórter esquerdista do New York Times já
totalmente desmoralizado pela pesquisa histórica. O comandante Huber
Matos, que esteve ao lado de Fidel o tempo todo ao longo dos combates,
atesta que ele jamais deu um tiro. Che Guevara deu muitos, mas
principalmente em prisioneiros amarrados. Aliás a “epopéia” padece de
uma deplorável escassez de feitos militares: o total de anticastristas mortos
em combate foi de pouco mais de mil pessoas (incluindo o posterior
episódio da Baía dos Porcos) e, quando os guerrilheiros desceram para
ocupar Havana, já não encontraram resistência nenhuma, pois Batista,
derrubado pela pressão norte-americana, já havia fugido com seus
cúmplices principais. O grosso do heroísmo castrista foi mesmo praticado
contra civis desarmados (veja os números mais adiante).
Quanto a ditaduras sanguinárias, não me consta que em Cuba tenham posto crianças e velhos
vivos em fornos, como na Argentina.
O que a mim não me consta, em primeiro lugar, é que Pinochet tenha
governado a Argentina. Consta, sim, o hábito esquerdista de inculpar por
associação de idéias. Pinochet é um milico de direita, os governantes da
Argentina eram milicos de direita, logo Pinochet é culpado do que quer que
tenha acontecido na Argentina. Quanto aos hediondos fornos crematórios
portenhos, Alexei fica nos devendo alguma indicação documental, por
mínima que seja, que comprove a existência deles. Ele também poderia nos
explicar por que um detalhe tão pitoresco jamais apareceu na grande mídia
antimilica.
Todos os que foram para o célebre ‘paredón’, muitos deles torturadores e assassinos de Batista,
foram julgados e condenados em tribunais revolucionários, mas não ‘desaparecerem’ jogados no
mar, ou metidos em buracos cheios de dinamite.
Pela primeira vez na vida vejo alguém insinuar que tribunais
revolucionários – onde o sujeito entra condenado e em quinze minutos sai
morto – são uma forma de justiça superior ao homicídio. Mas, qualquer que
seja o caso, essas mimosas instituições só foram criadas numa fase
avançada da revolução cubana. No começo, Che Guevara, dispensando esse
luxo, assinava sem ler pilhas e pilhas de sentenças de morte e não raro as
executava pessoalmente. Ademais, no total de vítimas da revolução cubana,
as que passaram por algum julgamento, mesmo simulado, são uma fração
ínfima em comparação com a quota de “desaparecidos”. O monopólio
esquerdista do uso dessa palavra na mídia só tem servido para fazê-los
desaparecer uma segunda vez, ocultando o fato de que eles foram em maior
número em Cuba do que em qualquer outra ditadura latino-americana. Os
números totais do morticínio cubano, reunidos ao longo de vinte anos de
pesquisas pelo economista Armando M. Lago, presidente da Câmara Ibero-
Americana de Comércio e consultor do Stanford Research Institute, são os
seguintes:
Fuzilados: 5.621. Assassinados extrajudicialmente: 1.163. Presos políticos
mortos no cárcere por maus-tratos, falta de assistência médica ou causas
naturais: 1.081. Guerrilheiros anticastristas mortos em combate: 1.258.
Soldados cubanos mortos em missões no exterior: 14.160. Mortos ou
desaparecidos em tentativas de fuga do país: 77.824. Civis mortos em
ataques químicos em Mavinga, Angola: 5.000. Guerrilheiros da Unita
mortos em combate contra tropas cubanas: 9.380. Total: 115.127 (não inclui
mortes causadas por atividades subversivas no exterior, como por exemplo
as vítimas do terrorismo brasileiro subsidiado pelo governo cubano).
Sugiro ao leitor que disse ser a ditadura cubana a mais sanguinária da América Latina ler um
pouco de História ou aprender aritmética.
Da minha parte não sugiro a Alexei Bueno nem uma coisa nem a outra,
pois estão ambas formidavelmente acima não só de sua capacidade, como
também de suas intenções. Um exemplo de sua idoneidade histórico-
aritmética ele nos fornece neste seu parágrafo de encerramento:
Podem todos carpir, guaiar e gemer, mas o fato é que Fidel Castro ficará como um dos maiores
líderes antiimperialistas do século XX, ao lado de um Mustafá Kemal Atatürk ou de um Ho Chi
Min. Todos foram ditadores, prefiro qualquer um deles ao grande democrata George W. Bush,
que matou muito mais gente que os três juntos.
Descontemos o uso despropositado do verbo “guaiar”, que é pura
veadagem léxica. Mesmo que aceitássemos os números mais exagerados
fornecidos pela propaganda esquerdista quanto à guerra do Iraque – pois
não consta que George W. Bush tenha iniciado outras guerras –, a
comparação, em matéria de fidelidade histórica e exatidão aritmética, basta
para nivelar historicamente Alexei Bueno à precisa soma aritmética da
besta quadrada com a besta ao quadrado. Hoje entendo por que o Bruno
Tolentino costumava chamá-lo de Dislexei Bueno.
***
O restante do artigo do sr. Dalmo Dallari, cujo início comentei quinta-feira
passada, é de uma mendacidade tão despudorada que mais justo seria xingá-
lo de tudo quanto é nome em vez de honrá-lo com um comentário.
Desde logo, não há atitude que eu mais despreze, num articulista, do que
macaquear, com finalidade leviana, expressões verbais que usei para
transmitir conteúdo sério. Não estou aqui para alimentar parasitas. Se
querem mentir, que pelo menos tenham a bondade de fazê-lo com suas
próprias palavras, em vez de sugar as minhas para depois vomitá-las como
farsa.
Quando comecei a falar de “ocultação de notícias”, anos atrás, eu me
referia a fatos de importância universal, cuja longa e obstinada ausência nos
jornais denunciava um intuito consciente de ludibriar os leitores.
Fenômenos como a matança de mais de um milhão de cristãos nos países
comunistas e islâmicos, ou como as assembléias do Foro de São Paulo, que
reuniam anualmente os mais poderosos líderes da esquerda latino-
americana, não eram coisinhas de somenos, que pudessem ser ignoradas
unanimemente por articulistas, pauteiros, repórteres e chefes de redação do
país inteiro ao longo de mais de uma década, sem que houvesse nisso algo
de monstruosamente anormal segundo todos os cânones da profissão
jornalística.
De uns meses para cá, uma multidão de cabos eleitorais, agentes de
influência e mentirosos compulsivos, a serviço do partido governante, se
apossaram do tema e passaram a tocá-lo, com leves variações, a propósito
de qualquer noticinha vagabunda, de qualquer zunzum de comadres, de
qualquer factóide de interesse do petismo, casualmente omitidos pela
grande mídia na correria dos fechamentos.
Criaram assim a lenda da mídia direitista, reacionária, empenhada em
sufocar, como no tempo dos censores, a voz heróica da esquerda nacional.
Tão fantástica inversão da realidade arriscaria expor seus autores ao riso
geral, se não tratassem de empacotá-la numa linguagem que, por ter sido
usada ao longo de uma década para expressar verdades comprovadas,
adquiriu uma espécie de credibilidade automática apta a ser usurpada para
dizer precisamente o contrário, com eficácia multiplicada por aquela
capacidade tão própria da mente esquerdista, de simular nobreza moral por
meio de esgares de dor e revolta desesperadoramente postiços.
Se o leitor se recorda do que escrevi aqui sobre os efeitos psico-sociais do
desconstrucionismo, compreenderá facilmente que ativistas com longa
prática em esvaziar as palavras de todo significado objetivo estão
equipadíssimos para mais esse assalto entrópico e obscurecedor à
inteligibilidade da linguagem.
O sr. Dallari só se distingue dos demais pela dose extra de cara de pau com
que comprime, num só artigo, gesticulações indignadas ante três exemplos
de “supressão de notícias” dos quais um é materialmente falso e os outros
dois são absurdos.
O primeiro é o manifesto pró-Sader, que, segundo ele, a mídia omitiu por
completo. Como eu mesmo vi esse manifesto transcrito com espalhafato em
alguns dos maiores jornais do país, não creio estar errado em concluir que
ou o sr. Dallari é um irresponsável que ataca sem nem mesmo buscar
provas, ou é um mentiroso contumaz que, com as provas na mão, afirma o
contrário do que elas atestam. Nos dois casos a única resposta que ele
merece é algum palavrão bem cabeludo, que não registro aqui mas que lhe
direi na cara se tiver o desgosto de encontrá-lo um dia.
A segunda notícia injustamente suprimida é a mensagem, subscrita por
ativistas de “direitos humanos” (entre sólidas aspas), em louvor de policiais
mortos e feridos no cumprimento do dever. Isso, de fato, não li em parte
alguma, mas que importância objetiva tem esse documento? Segundo
Dallari, ele prova que é falsa a noção geral de que os tais ativistas só
servem para boicotar a polícia e ajudar os bandidos, devendo por isso ser
publicado. Mas, por favor, comparem: contra a polícia, essa gente fez
campanhas milionárias, produziu filmes e programas de TV, publicou
centenas de livros e teses universitárias, fez dúzias e dúzias de discursos no
parlamento, espalhou milhões de mentiras e, por fim, promulgou leis que
detêm a ação dos policiais e os entregam inermes nas mãos dos bandidos. O
resultado é uma polícia desarmada, acossada, temerosa de cumprir o dever
para não ser desancada na mídia e conformada, enfim, com seu novo papel
de fornecedora de alvos para os bandidos equipados de fuzis Kalashnikov e
metralhadoras UZI. Depois de consumada essa grande obra, que fazem os
seus autores? Assinam um miserável manifestinho, um factóide, uma
simulação ridícula de solidariedade que não serve nem para desencargo de
consciência, e ainda querem cobertura, repercussão, câmeras, holofotes,
reconhecimento público! E, se a mídia não lhes serve o que desejam, saem
choramingando que foram censurados. Ora, que vão para o diabo. Sob
qualquer critério jornalístico que se examine, o lugar dessa notícia é o lixo.
Por fim, queixa-se o ilustríssimo de que a mídia, fazendo alarde do dossiê
ilegal comprado pelo PT para desgraçar seus concorrentes eleitorais, se
omitiu, criminosamente, de divulgar o mais importante: o conteúdo do
documento, as acusações levantadas nele contra o tucanato. Aí o fingimento
hipócrita já se eleva às alturas de um arrebatamento místico. Pois se o
dossiê foi forjado justamente para ser divulgado e fazer barulho na mídia, e
se a polícia comprovou o caráter criminoso da operação, divulgar seu
conteúdo seria simplesmente dar execução cabal ao plano depois de
denunciado e condenado, neutralizando a ação policial que o abortou em
tempo. Para fazer isso, a mídia, originariamente escolhida pelo PT como
instrumento passivo do delito, teria de consentir em praticá-lo, agora, como
cúmplice ativa e consciente.
O sr. Dallari não tem, em si, a mínima importância. É um puro ninguém de
toga e cátedra. Mas, com esse seu artigo, ele se tornou o importante sintoma
denunciador de males cuja dimensão mastodôntica talvez escape à sua
própria percepção. Quando um sujeito que a sociedade aceita como jurista
denuncia como crime a recusa de praticar um crime, é porque de há muito
já nos evadimos do antigo território denominado “realidade”: tornamo-nos
personagens da fantasia insana do marquês de Sader, habitantes do “mundo
às avessas”.
Por baixo da mesa

I
RMÃO SIAMÊS DO DESCONSTRUCIONISMO, O MULTICULTURALISMO é assim
definido por um professor uspiano: “Não tem sentido falar de verdade
tout court, só de verdade para um determinado grupo cultural. O
multiculturalismo apregoa uma visão caleidoscópica da vida e da fertilidade
do espírito humano, na qual cada indivíduo transcende o marco estreito da
sua própria formação cultural e é capaz de ver, sentir e interpretar por meio
de outras apreciações culturais. O modelo humano resultante é tolerante,
compreensivo, amplo, sensível e fundamentalmente rico: a capacidade
interpretativa, de observação e até emotiva, se multiplica.”[ 43 ]
Qualquer pessoa que saiba ler e não tenha passado pela USP percebe que o
projeto multiculturalista, assim definido (e essa definição não diverge de
outras tantas que circulam nos meios universitários), se estrangula a si
próprio no bercinho. Se toda verdade está condicionada à visão de um
determinado grupo cultural, ninguém pode “transcender o marco estreito da
sua própria formação cultural” e muito menos “ver, sentir e interpretar por
meio de outras apreciações culturais”. Se alguém consegue saltar por cima
das fronteiras culturais, é porque há uma verdade acima de todas elas e essa
verdade é acessível à inteligência humana. O multiculturalismo consiste
portanto em fazer na prática aquilo mesmo que na teoria ele proclama ser
impossível. É um caso extremo de paralaxe cognitiva, em que o sujeito
afirma precisamente o contrário daquilo que o seu próprio ato de afirmar
demonstra da maneira mais patente. É o deslocamento radical entre o eixo
da experiência intelectual efetiva e o da construção teórica supostamente
baseada nela.
A incongruência é tão patente, tão grosseira, que não posso acreditar seja
filha da distração, gerada no leito das meras coincidências. Com efeito, a
contradição aí embutida só permanece levemente camuflada pelo fato de
que seus dois pólos se situam em planos diferentes: a teoria e a prática. O
estudante, portanto, só pode continuar envolvido nessa prática se for
induzido a jamais confrontá-la com a teoria, isto é, se ele se tornar incapaz
de cotejar a expressão verbal da teoria com o conteúdo teorético afirmado
implicitamente pela prática. Dito de outro modo: o adestramento no
multiculturalismo consiste em habilitar o aluno para se persuadir de que
sabe alguma coisa sempre que não sabe o que está fazendo com ela. O
multiculturalismo é uma técnica de auto-embotamento intelectual baseada
na estimulação contraditória rotinizada.
Não tem sentido, portanto, discuti-lo como teoria nem como prática. Só o
que cabe é revelar o ardil psicológico por trás da articulação de ambas, e em
seguida denunciar o conjunto como aquilo que é: um instrumento de
dominação criado para transformar milhões de universitários em idiotas
militantes, hipnotizados e postos a serviço de seus professores.
Às vezes fico até consternado de ver o esforço que brilhantes intelectuais
conservadores, como o nosso José Guilherme Merquior, dispenderam em
impugnar idéias esquerdistas. Ser bem sucedido nesse esforço não significa
nada, quando as idéias não valem por si e são só a camuflagem de alguma
operação mais discreta. Se um vizinho safado vai jogar baralho na sua casa
com a intenção de ficar passando a mão na perna da sua esposa por baixo da
mesa, não é vantagem nenhuma você vencê-lo no jogo. O que importa é
virar a mesa e encher o sujeito de porrada.
19 de dezembro de 2006

[ 43 ] Roberto Fernández, “Multiculturalismo intelectual”, Revista USP, 42, junho-agosto 1999, pp.
84-95.
O mundo como jamais funcionou: Cartas de um terráqueo ao Planeta Brasil (Vol. II)
Olavo de Carvalho
Publicado no Brasil
1º Edição – março de 2014
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Carvalho, Olavo de
O mundo como jamais funcionou: Cartas de um terráqueo ao Planeta Brasil – vol. II [recurso eletrônico] / Olavo de Carvalho –
Campinas, SP: VIDE Editorial, 2014.
eISBN: 978-85-67394-30-5
1. Filosofia Moderna 2. Ensaios e Estudos Filosóficos I. Olavo de Carvalho II. Título.
CDD – 190.2
501.01
Índice para Catálogo Sistemático
1. Filosofia Moderna: Ensaios – 190.2
2. Ensaios e Estudos Filosóficos – 501.01
Sobre a Obra

A série Cartas de um terráqueo ao planeta Brasil traz ao leitor todos os


artigos do filósofo Olavo de Carvalho publicados em sua coluna Mundo
Real, no Diário do Comércio de São Paulo. Neste segundo volume, O
mundo como jamais funcionou, estão reunidos os artigos e editoriais que o
autor escreveu em 2006.
O leitor encontrará nessas páginas as notícias que a nossa grande imprensa
não deu, além de exposições da política americana e mundial que por aqui
não se viu, algumas análises da cultura brasileira e também lições de ciência
política nas quais jamais se pensou, tudo fundamentado nos princípios de
uma filosofia que o autor vem desenvolvendo há pelo menos duas décadas.

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