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Ficha Técnica

Título: A SOMA DE TODOS OS BEIJOS


Título original: THE SUM OF ALL KISSES
Autor: Julie Cotler Pottinger
Tradução: Helena Ruão
Revisão: Rita Almeida Simões
Fotografia da autora: Rex Rystedtseattlephoto.com
ISBN: 9789892345758

Edições ASA II, S.A.


uma editora do Grupo LeYa
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2160-038 Alfragide – Portugal
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© 2013, Julie Cotler Pottinger


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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


JULIA QUINN
A SOMA DE
TODOS OS BEIJOS
Este é para mim.
E também para o Paul.
Mas principalmente para mim.
Prólogo

Londres
Tarde na noite
Primavera de 1821

piquete é um bom jogo para quem tem uma excelente


–O memória – afirmou o conde de Chatteris, sem se dirigir a
ninguém em particular.
Lord Hugh Prentice não ouviu, por duas razões: estava não só
distante, na mesa junto à janela, como, acima de tudo, embriagado.
No entanto, se tivesse ouvido a observação de Chatteris – e se não
estivesse tão bêbedo –, Hugh teria pensado:
É por isso que prefiro jogar piquete.
Nunca o teria dito em voz alta, pois Hugh não era o tipo de pessoa
de falar só por falar. Mas tê-lo-ia pensado. E a sua expressão teria
mudado. Um estremecimento do canto da boca, um ligeiro erguer da
sobrancelha direita... um movimento ténue, mas suficiente para um
observador atento o julgar presunçoso.
Na verdade, contudo, a alta sociedade londrina era
extraordinariamente desprovida de observadores atentos.
Com exceção de Hugh.
Hugh Prentice reparava em tudo. E nunca se esquecia de nada.
Se assim o desejasse, podia recitar a peça Romeu e Julieta, palavra
por palavra. Hamlet também. Já Júlio César não, mas apenas
porque nunca se dera ao trabalho de a ler.
Era um talento tão raro, que Hugh fora castigado seis vezes por
copiar, durante os dois primeiros meses em Eton. Depressa
percebeu que a sua vida seria infinitamente mais fácil se errasse
deliberadamente uma pergunta ou duas em cada exame. Não eram
tanto as acusações de copiar que o incomodavam, pois ele sabia
que não o tinha feito e pouco se importava com o que os outros
pensavam, mas era um aborrecimento ser levado à presença dos
professores e obrigado a regurgitar informações até eles ficarem
convencidos da sua inocência.
Por outro lado, a sua capacidade de memória era-lhe muito útil às
cartas. Como filho mais novo do marquês de Ramsgate, Hugh sabia
que não herdaria nada. Para manter a tradição, devia ter escolhido o
exército, o clero ou ter-se juntado às fileiras dos caçadores de dotes.
No entanto, uma vez que nenhuma dessas carreiras o atraía, Hugh
vira-se forçado a encontrar outra forma de sustento. E o jogo era
uma via extremamente fácil para quem tinha a capacidade de se
lembrar, por ordem, de cada carta jogada durante toda a noite.
A questão é que a sua notável habilidade para o piquete se
tornara lendária e, portanto, era difícil encontrar companheiros
dispostos a jogar com ele. No entanto, quando atingiam um nível de
embriaguez suficiente, os mais jovens não hesitavam em tentar a
sua sorte. Todos aspiravam a ser aquele que venceria Hugh
Prentice às cartas.
O problema desta noite era que Hugh também estava ébrio o
suficiente. Não acontecia com frequência, pois nunca lhe agradara o
descontrolo associado ao consumo de álcool. Mas saíra com
amigos e fora parar a uma taberna de má reputação onde os copos
eram generosos, a multidão ruidosa e as mulheres particularmente
roliças.
Quando finalmente chegaram ao clube para jogar cartas, Daniel
Smythe-Smith, que se tornara recentemente conde de Winstead, já
se encontrava muito embriagado. O estado era bem evidente na
forma como descrevia com detalhes bem vívidos a empregada com
que acabara de acasalar, Charles Dunwoody prometia voltar à
taberna para melhorar a prestação de Daniel, e Marcus Holroyd – o
jovem conde de Chatteris, que sempre fora um pouco mais sisudo
do que os outros – ria a bandeiras despregadas, quase caindo da
cadeira.
Hugh preferira a empregada que lhe calhara, um pouco menos
carnuda e mais flexível, à de Daniel, mas limitava-se a sorrir quando
alguém tentava arrancar-lhe mais pormenores. Lembrava-se de
cada centímetro dela, é claro, mas sempre fora discreto sobre as
suas façanhas amorosas.
– Vou ganhar-te desta vez, Prentice! – vangloriou-se Daniel,
inclinando-se descuidadamente sobre a mesa e abrindo o seu típico
sorriso ofuscante.
Daniel sempre fora o sedutor do grupo.
– Pelo amor de Deus, Daniel – resmungou Marcus –, outra vez,
não.
– Sim, sim. Desta vez, vou conseguir – assegurou Daniel,
agitando o dedo indicador, antes de soltar uma risada, quando o
gesto quase o fez desequilibrar-se. – Desta vez, sei que vou
conseguir.
– Consegues, pois! – exclamou Charles Dunwoody. – Eu sei que
sim!
Ninguém lhe deu atenção. Mesmo sóbrio, Charles Dunwoody
parecia saber muitas coisas que não eram verdade.
– Acreditem que sim – insistiu Daniel –, porque tu... – e agitou um
dedo na direção de Hugh – bebeste muito.
– Não tanto como tu – salientou Marcus, com um soluço ébrio.
– Eu contei – declarou Daniel, triunfante. – Ele bebeu mais do que
eu.
– Fui eu quem bebeu mais – gabou-se Dunwoody.
– Então devias mesmo jogar – disse Daniel.
As cartas foram dadas, o vinho foi servido em todos os lugares e
todos se divertiram até ao momento em que...
Daniel ganhou.
Hugh pestanejou, olhando estupefacto para as cartas na mesa.
– Ganhei! – exclamou Daniel, incrédulo. – Como é possível?
Hugh repetiu o jogo mentalmente, ignorando a evidência de a
visualização de algumas cartas ser estranhamente enevoada.
– Ganhei – repetiu Daniel, desta vez para Marcus, o seu melhor
amigo e de longa data.
– Não – contestou Hugh, quase como se pensasse alto.
Não era possível. Era simplesmente impossível. Ele nunca perdia
às cartas. À noite, quando tentava dormir, quando tentava esvaziar a
mente, lembrava-se de todas as cartas que jogara nesse dia. Nessa
semana, até.
– Nem sequer sei como fiz – espantou-se Daniel. – Foi o rei, mas
depois foi o sete e eu...
– Foi o ás – interrompeu Hugh, incapaz de suportar mais aquela
idiotice.
– Hum... – Daniel piscou os olhos. – Talvez tenhas razão.
– Pelo amor de Deus – bradou Hugh –, alguém o cale!
Precisava de silêncio para se concentrar e se lembrar das cartas.
Se o fizesse, ficaria tudo resolvido. Como daquela vez em que
chegara a casa tarde, acompanhado de Freddie, e o pai deles os
esperava com...
Não, não. Essa situação fora muito diferente. Isto eram cartas.
Piquete. Ele nunca perdia. Era a única coisa com que podia contar.
Dunwoody analisava as cartas espalhadas na mesa, enquanto
coçava a cabeça e fazia as contas em voz alta.
– Acho que ele...
– Winstead, és um maldito batoteiro! – berrou Hugh.
As palavras escaparam-lhe desenfreadas da garganta. Não sabia
de onde vinham nem o que o levara a proferi-las, mas, assim que as
expulsou, elas trepidaram com violência no ambiente da sala.
Hugh começou a tremer.
– Não – afirmou Daniel.
Um simples monossílabo. Apenas não, uma palavra dita com um
gesto incerto da mão e uma expressão confusa. Perplexa, até, como
se...
Mas Hugh não queria pensar nisso. Recusava-se a fazê-lo, por
isso empurrou a mesa e levantou-se abruptamente, agarrando-se à
única verdade que julgava irrefutável: nunca perdia às cartas.
– Eu não fiz batota – defendeu-se Daniel e, pestanejando
furiosamente, repetiu virado para Marcus: – Eu não faço batota.
Mas era impossível que não o tivesse feito, pensou Hugh,
visualizando mais uma vez as cartas na mente, ignorando o facto de
o valete de paus estar realmente a empunhar um pau e a perseguir
o dez, que bebia vinho de um copo semelhante ao que acabara de
se partir a seus pés...
Hugh desatou a bradar. Não sabia o que dizia, só que Daniel tinha
feito batota, que a rainha de copas já tinha saído, e que 42 vezes
306 eram sempre 12 852, não que ele soubesse o que tinha esse
facto a ver com o resto, mas agora havia vinho derramado no chão,
as cartas espalhadas por toda a parte, e Daniel estava ali de pé a
abanar a cabeça e a dizer: «De que está ele a falar?»
– Era impossível teres o ás – protestou Hugh.
O ás tinha saído depois do valete, que, por sua vez, se seguira ao
dez...
– Mas eu tinha-o – respondeu Daniel, com um encolher de
ombros... seguido de um arroto.
– É impossível – ripostou Hugh, quase perdendo o equilíbrio. –
Conheço cada carta do baralho.
Daniel olhou para as cartas na mesa. Hugh imitou-o, fixando a
rainha de ouros, de cujo pescoço escorria vinho da Madeira, como
sangue.
– Extraordinário! – murmurou Daniel e, encarando Hugh,
acrescentou: – Ganhei. Quem diria?
Estaria a fazer troça? Estaria Daniel Smythe-Smith, o tão
venerável conde de Winstead, a gozar com a cara dele?
– Quero uma satisfação – rosnou Hugh.
– O quê?! – exclamou Daniel, levantando a cabeça de repente.
– Escolhe os teus padrinhos.
– Estás a desafiar-me para um duelo? – perguntou Daniel e
virando-se, incrédulo, para Marcus, repetiu: – Acho que ele está a
desafiar-me para um duelo.
– Daniel, cala-te! – disse Marcus, que, subitamente, parecia bem
mais sóbrio do que todos os outros.
Mas Daniel dispensou-o com um gesto da mão, antes de dizer:
– Hugh, não sejas imbecil.
Sem pensar duas vezes, Hugh atirou-se a Daniel, que se desviou
para o lado. Contudo, o movimento não foi rápido o suficiente e os
dois caíram ao chão. Hugh mal sentiu a perna da mesa que se
enterrava no seu flanco, ocupado em dar socos – um, dois, três,
quatro – a Daniel, até que dois pares de mãos o agarraram e o
levantaram, mal conseguindo segurá-lo enquanto ele gritava:
– És um maldito batoteiro!
Disso, tinha a certeza. E de que Winstead troçara dele.
– És um idiota – replicou Daniel, enquanto limpava o sangue que
lhe escorria pelo rosto.
– Exijo uma satisfação.
– Oh, não, nem penses – cuspiu Daniel. – Eu é que exijo uma
satisfação.
– Encontro no relvado? – sugeriu Hugh, friamente.
– Ao amanhecer.
Um silêncio pesado caiu na sala, todos à espera de que os dois
homens recuperassem o juízo.
Mas tal não aconteceu. É claro que não.
Hugh sentiu-se sorrir, sem saber porquê, pois não havia razão
para isso e, quando olhou para Daniel Smythe-Smith, foi o rosto de
outro homem que viu.
– Assim seja – respondeu Hugh.

– Não tens de fazer isto – disse Charles Dunwoody, com uma


careta, enquanto terminava de inspecionar a arma de Hugh.
Hugh absteve-se de responder. Doía-lhe demasiado a cabeça.
– Quero dizer, eu acredito que ele tenha feito batota. Só pode ter
feito, porque, afinal de contas, é de ti que se trata... e tu ganhas
sempre. Não sei como consegues, mas a verdade é essa.
Quase sem mexer a cabeça, Hugh voltou os olhos para
Dunwoody. Estaria também ele agora a acusá-lo de fazer batota?
– Acho que é por causa da matemática – continuou Dunwoody,
alheio à expressão sardónica de Hugh. – Sempre foste uma
aberração a matemática...
Que agradável... era sempre agradável ser chamado de
aberração.
– ...e eu sei que nunca copiaste a Matemática. Deus sabe quantas
vezes foste interrogado no colégio. – Dunwoody levantou a cabeça
com uma expressão intrigada e perguntou: – Mas como é que
consegues?
Hugh fitou-o com frieza.
– Estás a perguntar-me agora?
– Oh, não, claro que não – gaguejou Dunwoody, pigarreando e
recuando um passo.
Marcus Holroyd caminhava em direção a eles, talvez com a
intenção de cancelar o duelo. Hugh ficou a observar as passadas
largas de Marcus, reparando como a passada esquerda era um
pouco mais longa do que a direita. Provavelmente, teria de dar mais
quinze passos para se juntar a eles, ou dezasseis, se estivesse mal-
humorado e com vontade de invadir o espaço alheio.
Pensando melhor, não. Sendo Marcus, pararia aos quinze.
Marcus e Dunwoody trocaram as pistolas, para inspeção mútua. O
cirurgião, ao lado de Hugh, aproveitou a oportunidade para os
encher de informações úteis.
– Bem aqui – disse o cirurgião, batendo na coxa. – Já vi
acontecer. Na artéria femoral. Sangra-se como um porco.
Hugh não comentou. Ele não ia realmente atingir Daniel com um
tiro. Já tivera algumas horas para se acalmar e, apesar de ainda
estar furioso, não via motivo para tentar matá-lo.
– Mas, se quer apenas algo realmente doloroso – continuou o
cirurgião –, aponte para uma mão ou um pé. Os ossos são fáceis de
partir e são zonas cheias de nervos. Além disso, não mata e fica
muito longe de um órgão vital.
Hugh, apesar de ser muito bom a ignorar pessoas, não conseguiu
deixar de comentar:
– A mão não é importante?
Depois de passar a língua pelos dentes, o cirurgião fez um ruído
de sucção, certamente para desalojar qualquer resíduo de comida,
e, com um encolher de ombros, respondeu:
– Não é o coração.
Verdade, reconheceu Hugh a custo, pois detestava quando gente
exasperante tinha razão. No entanto, se o homem tivesse bom
senso, fecharia a maldita matraca.
– Evite a cabeça – aconselhou o cirurgião, com um arrepio
ostensivo. – Ninguém quer isso. E não me refiro apenas ao pobre
idiota que leva o tiro. Ficam miolos espalhados por toda a parte, a
cara, irreconhecível, e transforma o funeral num inferno.
– Foi este o cirurgião da tua escolha? – perguntou Marcus.
Hugh fez um sinal de cabeça na direção de Dunwoody.
– Foi ele que o encontrou.
– Eu sou barbeiro – defendeu-se o cirurgião.
Marcus abanou a cabeça e regressou para junto de Daniel.
– Cavalheiros, preparar!
Hugh não identificou a pessoa que deu a ordem. Sem dúvida
alguém que ouvira falar do duelo e que queria gabar-se, depois, de
ter sido testemunha. Poucas frases eram tão invejadas em Londres
como a afirmação «vi com os meus próprios olhos».
– Apontar!
Hugh levantou o braço e fez pontaria. Dez centímetros para a
direita do ombro de Daniel.
– Um!
Santo Deus, tinha-se esquecido da contagem!
– Dois!
Hugh sentiu um aperto no peito. A contagem. A voz gritante. Era a
única circunstância em que os números se transformavam no
inimigo. A voz do pai, rouca de triunfo, e Hugh a tentar não ouvir...
– Três!
Hugh encolheu-se.
E premiu o gatilho.
– Aaaaaauuuuuu!
Hugh olhou, atónito, para Daniel.
– Porra, deste-me um tiro! – gritou Daniel, agarrado ao ombro, a
camisa branca amarrotada já manchada de vermelho.
– O quê?! Não – contestou Hugh, quase como se pensasse alto.
Tinha apontado para o lado. Não desviara muito, é certo, mas era
um excelente atirador.
– Oh, céus! – murmurou o cirurgião, antes de desatar a correr pelo
relvado.
– Acertaste-lhe – disse Dunwoody, incrédulo. – Porque fizeste
uma coisa destas?
Hugh ficou petrificado. Daniel estava ferido, talvez mortalmente, e
a culpa era dele. A culpa era toda dele. Ninguém o forçara. E, agora,
vendo Daniel levantar o braço ensanguentado...
Hugh uivou de dor, quando sentiu a perna explodir em mil
pedaços.
Porque julgara ouvir o tiro antes de o sentir? Sabia como a coisa
funcionava. Se Sir Isaac Newton não estava enganado, o som
propagava-se a uma velocidade de duzentos e noventa e oito
metros por segundo. Hugh estava a cerca de dezoito metros de
Daniel, o que significava que a bala teria de se ter deslocado a...
Pensou. E pensou.
Mas, por mais contas que fizesse, não conseguia encontrar a
resposta.
– Hugh! Hugh! – veio a chamada aflita de Dunwoody. – Hugh,
estás bem?
Hugh viu o rosto desfocado de Charles Dunwoody. Se olhava para
cima, é porque devia estar deitado no chão. Piscou os olhos, para
tentar ver mais claramente. Estaria ainda embriagado? É verdade
que bebera uma enorme quantidade de álcool na noite anterior,
tanto antes como depois da altercação com Daniel.
Não, não era embriaguez. Pelo menos, essa não era a principal
razão. Estava ferido. Ou, pelo menos, julgava que sim. A sensação
era a de que tinha sido baleado, mas já quase não sentia dor. No
entanto, isso explicaria por que razão estava estendido no chão.
Engoliu em seco, tentando respirar. Porque era tão difícil respirar?
Não tinha sido atingido na perna? Se tinha sido atingido, pois ainda
não sabia exatamente o que acontecera.
– Oh, meu Deus! – exclamou outra voz.
Era Marcus Holroyd, ofegante, o rosto pálido.
– Faça compressão nisso! – bradou o cirurgião. – E cuidado com o
osso.
Hugh tentou falar, mas alguém disse:
– Um torniquete! Não devíamos fazer um torniquete?
– Tragam-me a minha mala! – comandou o cirurgião.
Mais uma vez, Hugh tentou falar.
– Não desperdices energia – aconselhou Marcus, pegando-lhe na
mão.
– Mas não adormeças! – acrescentou Dunwoody, aflito. – Mantém
os olhos abertos.
– A coxa – articulou Hugh.
– O quê?
– Diz ao cirurgião... – Hugh fez uma pausa, tentando respirar. – A
coxa... Sangra como um porco.
– O que quer ele dizer? – perguntou Marcus.
– Eu... eu... – gaguejou Dunwoody, a voz ficando-lhe presa na
garganta.
– O quê? – insistiu Marcus.
Hugh olhou para Dunwoody. Este tinha o rosto lívido, como se
estivesse doente.
– Acho que ele está a tentar fazer uma piada – disse finalmente
Dunwoody.
– Porra! – praguejou Marcus, virando-se para Hugh com uma
expressão que ele teve dificuldade em interpretar. – És um
estúpido... impossível... Uma piada. Queres fazer uma piada!
– Não chores – sussurrou Hugh, porque, pela voz de Marcus,
parecia prestes a fazê-lo.
– Aperte o máximo que puder – disse alguém, e Hugh sentiu
qualquer coisa puxar-lhe a perna, apertar com força e, em seguida,
novamente a voz de Marcus:
– É melhor manteres-te afastado...
E não ouviu mais nada.

Quando Hugh abriu os olhos, estava escuro. Encontrava-se numa


cama. Será que se passara um dia inteiro? Mais? O duelo fora ao
amanhecer, o céu ainda estava cor-de-rosa.
– Hugh?
Freddie? Que fazia ele ali? Hugh não se lembrava da última vez
que o irmão entrara em casa do pai de ambos. Hugh queria dizer o
nome dele, dizer-lhe como estava feliz em vê-lo, mas tinha a boca
incrivelmente seca.
– Não tentes falar – aconselhou Freddie.
Ele inclinou-se para a frente, a luz da vela iluminando-lhe a
familiar cabeleira loira. Os dois sempre tinham sido muito parecidos
fisicamente, mais do que muitos irmãos. Freddie era um pouco mais
baixo, um pouco mais magro e um pouco mais loiro, mas tinham os
mesmos olhos verdes e o mesmo rosto anguloso. E o mesmo
sorriso... quando sorriam.
– Deixa-me dar-te um bocado de água – disse Freddie.
Com todo o cuidado, levou uma colher aos lábios de Hugh e
verteu o líquido para a boca do irmão.
– Mais – pediu Hugh com voz fraca, pois a secura da boca era tal,
que não restou água para engolir.
Freddie deu-lhe mais algumas colheres e disse:
– Vamos esperar um instante. Não quero dar-te demasiado de
uma só vez.
Hugh assentiu. Não sabia porquê, mas assentiu.
– Estás com dores?
Sim, mas Hugh teve a estranha sensação de que a dor piorara
depois de Freddie fazer a pergunta.
– Ainda a tens, sabias? – disse o irmão, apontando para o fundo
da cama. – A perna.
É claro que ainda a tinha. A dor que sentia na perna era
excruciante. Onde poderia ela estar?
– Às vezes, sentimos a dor mesmo depois de perdermos um
membro – explicou Freddie, em tom nervoso. – Chama-se dor-
fantasma. Li algo sobre isso, não sei quando. Já foi há certo tempo.
Era provavelmente verdade. Freddie também tinha uma excelente
memória, mas era a biologia que o fascinava. Quando eram
crianças, o irmão praticamente vivia nos campos, a esgravatar na
terra e a recolher espécimes. Hugh acompanhava-o às vezes, mas,
para ele, era um tédio de morte.
Rapidamente descobriu que o seu interesse por besouros não
aumentava na mesma proporção da quantidade de besouros
encontrados. O mesmo acontecia com os sapos.
– O pai está lá em baixo – disse Freddie.
Hugh fechou os olhos, demasiado fraco para um aceno.
– Eu devia ir chamá-lo... – continuou, sem convicção.
– Não.
Passou um minuto ou dois até Freddie voltar a falar:
– Bebe mais água. Perdeste muito sangue. Deve ser por isso que
te sentes tão fraco.
Hugh esforçou-se por beber mais alguns goles, mas doía-lhe
engolir.
– Também partiste a perna. O fémur. O médico endireitou-a, mas
disse que o osso estilhaçou. – Freddie pigarreou. – Lamento
informar-te de que vais ficar preso a esta cama durante um bom
tempo. O fémur é o maior osso do corpo humano. Vai demorar
alguns meses a sarar.
Pelo tom, Hugh percebeu que o irmão estava a mentir. O que
significava que a recuperação demoraria mais do que alguns meses.
Ou talvez nunca chegasse a recuperar. Talvez ficasse inválido.
Isso é que seria uma ironia do destino.
– Que dia é hoje? – perguntou Hugh, rouco.
– Estás inconsciente há três dias – explicou Freddie, interpretando
corretamente a pergunta.
– Três dias! – repetiu Hugh, assustado.
– Eu cheguei ontem. Foi o Corville que me avisou.
Hugh assentiu. Era típico daquela família ter de ser o mordomo a
avisar Freddie de que o irmão estava às portas da morte.
– Como está o Daniel? – quis saber Hugh.
– Lord Winstead? – Freddie engoliu em seco e respondeu: – Foi-
se.
Hugh arregalou muito os olhos.
– Não no sentido literal. Não morreu – apressou-se a explicar
Freddie. – Tem um ferimento no ombro, mas vai ficar bem. Foi-se
embora de Inglaterra, queria eu dizer. O nosso pai tentou que o
prendessem, mas como ainda não estavas morto...
Ainda. Seria uma piada?
– ...e depois... bem, não sei o que o pai lhe disse. Lord Winstead
veio ver-te no dia a seguir ao duelo. Eu não estava cá, mas o
Corville disse-me que ele tentou pedir desculpa. É claro que o pai
não aceitou as desculpas... sabes bem como ele é. – Freddie
engoliu em seco e, depois de pigarrear, acrescentou: – Creio que
Lord Winstead foi para França.
– Ele devia voltar – comentou Hugh, naquela voz rouca.
Não era culpa de Daniel. Não fora ele a desafiá-lo para um duelo.
– Sim, bem, isso é um assunto que tens de falar com o pai –
respondeu Freddie, com ar desconfortável. – Ele tem falado em
lançar uma caça ao homem.
– Em França?
– Eu não tentei dissuadi-lo.
– Não, claro que não.
Quem é que se atrevia a discutir com um louco?
– Disseram-nos que podias morrer – explicou Freddie.
– Percebo.
Isso era o pior de tudo. Hugh realmente percebia.
O marquês de Ramsgate não podia escolher o seu herdeiro. O
direito de primogenitura obrigá-lo-ia a deixar o título, as terras e a
fortuna a Freddie. Mas todos sabiam que, se o pai tivesse escolha,
seria Hugh o sucessor.
Aos vinte e sete anos, Freddie ainda não era casado. Hugh queria
acreditar que não era tarde de mais, mas sabia que não havia
mulher no mundo capaz de chamar a atenção do irmão. Era algo
que não compreendia, mas que aprendera a aceitar. Só gostaria que
Freddie reconhecesse que ainda poderia casar e cumprir o seu
dever, o que aliviaria muito o fardo de Hugh. Sem dúvida que muitas
mulheres agradeceriam o facto de o marido se manter bem longe do
leito nupcial, assim que o berçário estivesse suficientemente
povoado.
No entanto, o pai estava tão indignado, que dissera a Freddie para
não se preocupar em casar. O título poderia ser de Freddie durante
alguns anos, mas, aos olhos de Lord Ramsgate, um dia voltaria para
Hugh ou para os seus futuros filhos.
Isso não significava que o pai demonstrasse particular afeição
pelo filho mais novo.
Lord Ramsgate não era o único aristocrata a julgar normal não
dedicar especial carinho aos próprios filhos. Hugh era mais
adequado, logo, Hugh era melhor.
Todos sabiam que a prioridade de afeto do marquês era
Ramsgate, Hugh e depois Freddie.
Aliás, Freddie talvez nem entrasse na lista de prioridades.
– Queres láudano? – perguntou o irmão, bruscamente. – O
médico disse que podíamos dar-te um pouco, se acordasses.
Se. Tinha ainda menos piada do que o ainda.
Hugh assentiu e deixou o irmão mais velho ajudá-lo a colocar-se
numa posição mais ou menos sentada.
– Credo, que sabor horrível – disse Hugh, entregando o copo a
Freddie depois de engolir o conteúdo.
Freddie cheirou o copo e confirmou:
– É álcool. A morfina é dissolvida em álcool.
– Era o que me faltava – ironizou Hugh. – Mais álcool.
– Perdão? – inquiriu o irmão, sem perceber.
Mas Hugh limitou-se a abanar a cabeça.
– Estou feliz que tenhas acordado – disse Freddie, e Hugh notou
que o irmão não voltara a sentar-se. – Vou pedir ao Corville para
avisar o pai. Preferia não ser eu a fazê-lo, se puder evitar...
– É claro – concordou Hugh.
Era melhor para todos que Freddie evitasse o pai. A vida também
corria melhor a Hugh se evitasse o pai, mas alguém tinha de o
enfrentar de vez em quando, e ambos sabiam que tinha de ser
Hugh. O facto de Freddie ter vindo a casa do pai em St. James era
prova inabalável do seu amor pelo irmão.
– Venho ver-te outra vez amanhã – disse Freddie, parando à
porta.
– Não precisas – disse Hugh.
Freddie engoliu em seco e desviou o olhar.
– Talvez depois de amanhã, então.
Ou no dia a seguir. Hugh não o censuraria se ele nunca mais
voltasse.

Freddie deve ter aconselhado o mordomo a esperar um pouco


antes de contar ao pai sobre Hugh, pois passou-se quase um dia
até que Lord Ramsgate invadisse o quarto com um vociferante:
– Estás acordado!
Era espantoso como, dito por ele, parecia quase uma acusação.
– Que estúpido imbecil! – sibilou o marquês. – Quase morreste. E
para quê? Para quê?
– Também estou feliz em vê-lo, pai – respondeu Hugh.
Hugh já estava sentado. A perna, apoiada por talas, estendia-se
diante dele como um tronco. Tentava parecer melhor do que
realmente se sentia, pois, na presença do marquês de Ramsgate,
era aconselhável nunca demonstrar fraqueza.
Uma lição que Hugh tinha aprendido bem cedo na vida.
O pai limitou-se a lançar-lhe um olhar desdenhoso, ignorando o
sarcasmo.
– Podias ter morrido.
– É o que me dizem.
– Achas engraçado? – protestou o marquês.
– Para dizer a verdade, não – respondeu Hugh.
– Sabes o que aconteceria se morresses, não sabes?
Hugh abriu um sorriu tépido.
– Pensei nisso, claro, mas ninguém sabe realmente o que
acontece depois da morte.
Era um prazer ver os olhos esbugalhados do pai no rosto
subitamente vermelho de fúria.
Desde que não começasse a cuspir...
– Levas alguma coisa a sério? – replicou o marquês.
– Eu levo muitas coisas a sério, mas não esta.
A tremer de raiva, Lord Ramsgate respirou fundo.
– Ambos sabemos que o teu irmão nunca se vai casar.
– Oh, é disso que se trata? – indagou Hugh, tentando mostrar
surpresa.
– Não vou permitir que a nossa família perca Ramsgate!
– Oh, não seja assim – respondeu Hugh, depois de um silêncio
cuidadosamente estudado –, o primo Robert não é mau tipo. Até o
deixaram regressar a Oxford. Pelo menos, da primeira vez.
– Então, é isso? Estás a tentar morrer só para me irritar? – cuspiu
o marquês.
– Creio que seria capaz de o aborrecer com muito menos esforço.
E com um resultado menos nefasto para mim.
– Se queres ver-te livre de mim, sabes bem o que tens a fazer –
disse Lord Ramsgate.
– Matá-lo?
– Maldito...
– Se soubesse que seria tão fácil, eu teria...
– Basta casares com uma idiota qualquer e dares-me um herdeiro!
– rugiu o pai.
– Se posso escolher – disse Hugh com calma deliberada –,
preferia que ela não fosse idiota.
A fúria do marquês foi tal, que ele permaneceu um bom minuto
incapaz de pronunciar uma palavra.
– Preciso de saber que Ramsgate vai ficar na família – disse,
finalmente.
– Eu nunca disse que não me casava – esclareceu Hugh, embora
sem perceber que necessidade teria de o fazer. – Mas não será o
pai a decidir quando e com quem. Além disso, não sou herdeiro.
– Frederick...
– ...ainda pode vir a casar – cortou Hugh, marcando cada sílaba.
O pai bufou com desprezo antes de caminhar para a porta.
– Pai! – chamou Hugh, antes de ele sair. – Avisa a família de Lord
Winstead de que ele pode regressar a Inglaterra sem medos?
– Era o que faltava! Esse maldito pode apodrecer no inferno. Ou
em França – acrescentou o marquês, com uma risada trocista. –
Para mim, é praticamente a mesma coisa.
– Não há razão para ele não voltar – argumentou Hugh com mais
paciência do que se julgava capaz. – Como ambos vemos, ele não
me matou.
– Deu-te um tiro.
– Eu disparei primeiro.
– No ombro!
Hugh rangeu os dentes de frustração. Discutir com o pai era
sempre exaustivo. E ainda mais quando já há muito passara a hora
de tomar a dose de láudano.
– A culpa foi minha! – ainda tentou dizer.
– Não quero saber – respondeu o marquês. – Ele saiu pelo seu
próprio pé, ao passo que tu ficaste aleijado e nem sabemos se ainda
serás capaz de procriar.
Hugh arregalou os olhos, alarmado. Levara um tiro na perna. Na
perna!
– Não pensaste nisso, não foi? – provocou o pai. – A bala atingiu
uma artéria. É um milagre que não te tenhas esvaído em sangue.
Segundo o médico, a perna tem sangue suficiente para poder ser
salva, mas só Deus sabe as consequências para o resto. – Abriu a
porta e atirou a última farpa por cima do ombro: – O Winstead
arruinou a minha vida. Tenho direito a arruinar a dele, caramba!

As sequelas da lesão de Hugh só seriam conhecidas vários meses


depois.
No entanto, o fémur foi consolidando gradualmente e os músculos,
ou o que restara deles, curaram-se lentamente. Além disso, tudo
indicava que ainda seria capaz de gerar filhos.
Não que tivesse vontade.
Ou, mais precisamente, não que tivesse tido oportunidade, até à
data.
Mas quando o pai pôs essa hipótese... ou melhor, exigiu saber...
ou melhor, lhe arrancou os cobertores de cima na presença de um
médico alemão que Hugh não gostaria de encontrar num beco
escuro...
Hugh voltou a puxar os cobertores para se tapar, fingindo um
constrangimento indescritível, e deixou o pai acreditar que ficara
irremediavelmente deficiente.
Durante toda a agonizante convalescença, Hugh ficou confinado à
casa paterna, preso a uma cama e obrigado a suportar os cuidados
diários de uma enfermeira cuja brutalidade era comparável à de
Átila, o Huno.
Até fisicamente, era parecida. Ou, pelo menos, tinha um rosto que
Hugh imaginava assemelhar-se ao de um huno. Fosse como fosse,
a comparação não era muito lisonjeira.
Para o rei dos hunos.
De qualquer forma, Átila, a enfermeira, embora rude e cruel, ainda
era preferível ao marquês que, todos os dias, às quatro horas da
tarde, lhe entrava no quarto com um copo de brandy na mão (para
ele, não para o filho) e as últimas notícias sobre a sua caça a Daniel
Smythe-Smith.
E todos os dias, às quatro horas e um minuto, Hugh pedia ao pai
para pôr termo à perseguição.
Simplesmente, cessar.
Pura perda de tempo, claro. Lord Ramsgate jurara perseguir
Daniel até à morte... de um ou de outro.
Finalmente, Hugh recuperou o suficiente para sair de Ramsgate
House. Não tinha muito dinheiro – apenas o que ganhara ao jogo,
quando ainda jogava –, mas o suficiente para contratar um criado
pessoal e arrendar um pequeno apartamento no The Albany,
conhecido como o edifício de apartamentos londrino de excelência
para aristocratas de excecional linhagem e riqueza modesta.
Reaprendeu a andar. Precisava de uma bengala para percorrer
distâncias mais longas, mas conseguia atravessar um salão de baile
pelo próprio pé.
Não que fosse a salões de baile.
Aprendeu a viver com a dor constante de um osso mal sarado e o
latejar de músculos dilacerados.
E obrigou-se a visitar o pai para o fazer ver a razão e desistir da
caça a Daniel Smythe-Smith. Em vão. Lord Ramsgate agarrava-se à
sua ira com todas as forças. Nunca teria um neto, vociferava, e tudo
por culpa do conde de Winstead.
O pai ignorava todos os argumentos, mesmo quando Hugh lhe
recordava que Freddie gozava de boa saúde e que ainda poderia
surpreendê-los e casar, que muitos solteiros inveterados se
casavam. O marquês limitava-se a cuspir literalmente para o chão
com desprezo, dizendo que, mesmo que se casasse, Freddie nunca
conseguiria conceber um filho. E se, por milagre, tal acontecesse,
nunca seria uma criança digna do título Ramsgate.
Não, o culpado era Winstead. Hugh devia ter gerado o herdeiro de
Ramsgate e agora não passava de um aleijado inútil, sem dúvida
também incapaz de conceber um filho.
Lord Ramsgate nunca perdoaria Daniel Smythe-Smith, o outrora
garboso e popular conde de Winstead. Nunca!
E Hugh, que sempre se orgulhara da sua capacidade de olhar
para um problema de todos os ângulos e chegar à solução mais
lógica, estava completamente perdido. Já pensara várias vezes em
casar, mas, apesar de parecer estar tudo bem, não podia descartar
a possibilidade de a bala ter realmente causado algum dano íntimo.
Além disso, que mulher ia querer um homem com uma perna
defeituosa?
Um dia, porém, um pormenor da conversa que teve com o irmão
logo após o duelo iluminou-se na sua mente.
Freddie dissera que não tentara chamar o marquês à razão, ao
que Hugh respondera «pois, claro que não» e pensara: Quem havia
de querer discutir com um louco?
E finalmente teve a resposta:
Apenas outro louco.
Capítulo 1

Fensmore,
perto de Chatteris
Cambridgeshire
Outono de 1824

L ady Sarah Pleinsworth, veterana de três temporadas sociais


infrutíferas em Londres, olhou em volta para a futura sala de estar
da prima e exclamou:
– Ando a ser assolada por uma verdadeira praga de casamentos!
Estava acompanhada pelas irmãs mais novas, Harriet, Elizabeth e
Frances, que, aos dezasseis, catorze e onze anos, respetivamente,
ainda não tinham idade suficiente para se preocuparem com as
perspetivas matrimoniais. No entanto, podiam ter mostrado um
pouco de compaixão.
Mas isso pensaria alguém que não conhecesse as jovens
Pleinsworth.
– Estás a ser melodramática – respondeu Harriet, sentada à
escrivaninha, lançando um olhar fugaz a Sarah, antes de mergulhar
a caneta no tinteiro e retomar a escrita.
Sarah virou-se lentamente para ela e replicou:
– Estás a escrever uma peça sobre Henrique VIII e um unicórnio,
e dizes que eu sou melodramática?
– É uma sátira – elucidou Harriet.
– O que é uma sátira? – perguntou Frances. – É a mesma coisa
que um sátiro?
– Sim! – exclamou Elizabeth, arregalando os olhos de malvadez
divertida.
– Elizabeth! – ralhou Harriet.
– Não é, pois não? – insistiu Frances, fuzilando Elizabeth com o
olhar.
– Devia ser – retorquiu Elizabeth –, já que a obrigaste a inserir um
maldito unicórnio na história.
– Elizabeth!
A repreensão veio de Sarah, não por se importar realmente com o
palavrão dito pela irmã, mas porque, sendo a mais velha, sabia que
devia importar-se. Ou, pelo menos, fingir que sim.
– Não disse uma asneira – protestou Elizabeth. – Era a expressão
de uma vontade.
A declaração foi seguida de um silêncio perplexo.
– Se o unicórnio sofrer – explicou Elizabeth –, a peça poderá, pelo
menos, ser interessante.
Frances suspirou, chocada, e perguntou:
– Harriet, não vais ferir o unicórnio, pois não?
– Bem – respondeu Harriet, escondendo o texto com a mão –, não
muito.
O suspiro de Frances passou a voz estrangulada de horror:
– Harriet!
– Uma praga de casamentos será sequer possível? – questionou
Harriet em voz alta, virando-se para Sarah. – E, se assim for, dois
seriam suficientes?
– Sim – resmungou Sarah, agoirenta –, se forem celebrados com
uma semana de intervalo, se formos da família de uma das noivas e
da família de um dos noivos e, acima de tudo, se formos obrigadas
a ser a dama de honor num casamento que...
– Só vais ser dama de honor uma vez – interrompeu Elizabeth.
– Uma já é de mais – resmungou Sarah.
Ninguém devia ter de percorrer a nave central de uma igreja com
um ramo de flores, exceto se fosse a noiva, se já estivesse casada
ou se fosse demasiado nova para se casar. Caso contrário, era pura
e simples crueldade.
– Acho maravilhoso que a Honoria te tenha convidado para dama
de honor – confessou Frances. – É tão romântico! Talvez possas
incluir uma cena como essa na tua peça, Harriet.
– Boa ideia – respondeu Harriet. – Podia introduzir uma nova
personagem e fazê-la fisicamente parecida com a Sarah.
– Por favor, não faças isso – pediu Sarah, sem se preocupar em
olhar para ela.
– Não, vai ser tão divertido – insistiu Harriet. – Um pormenor
especial só para nós as três.
– Somos quatro – lembrou-a Elizabeth.
– Ah, sim, é verdade! Desculpa, acho que me esqueci da Sarah.
Sarah não julgou a observação digna de comentário, o que não a
impediu de estreitar os lábios em desagrado.
– O que quero dizer – continuou Harriet – é que nos recordaremos
sempre de que estávamos aqui juntas quando pensámos nisso.
– Podias fazê-la parecida comigo – sugeriu Frances,
esperançosa.
– Não, não – contrariou-a Harriet –, é tarde de mais para mudar
agora. Já tenho a imagem na cabeça. A nova personagem deve
parecer-se com a Sarah. Ora, deixa ver... – Começou a escrever
freneticamente. – Cabelo preto grosso, com uma ligeira tendência
para encaracolar.
– Olhos escuros, insondáveis – acrescentou Frances, um pouco
ofegante. – Têm de ser insondáveis.
– Com alguns sinais de loucura – disse Elizabeth.
Sarah virou-se abruptamente para ela.
– Só estou a dar o meu contributo – defendeu-se Elizabeth. –
Além do mais, neste momento, vejo claramente esses sinais de
loucura.
– É bom que vejas! – ripostou Sarah.
– Nem muito alta nem muito baixa – continuou Harriet, ainda a
escrever.
Com um grande sorriso, Elizabeth acrescentou no mesmo tom:
– Nem muito magra nem muito gorda.
– Espera, espera, lembrei-me de uma! – exclamou Frances, aos
pulinhos no sofá. – Nem muito rosa nem muito verde.
Aquela frase fez cessar a conversa.
– Desculpa? – inquiriu Sarah, por fim, sem perceber.
– É raro ficares envergonhada – explicou Frances –, por isso,
raramente coras. E só te vi vomitar uma vez, quando todas nós
comemos aquele peixe estragado em Brighton.
– Daí o verde – concluiu Harriet. – Uma observação muito
perspicaz, Frances. As pessoas ficam realmente esverdeadas
quando estão enjoadas. Porque será?
– É por causa da bílis – esclareceu Elizabeth.
– Essa conversa é realmente necessária? – questionou Sarah.
– Não entendo porque estás tão mal-humorada – notou Harriet.
– Eu não estou de mau humor.
– Não estás de bom humor.
Como Sarah não se deu ao trabalho de a contradizer, Harriet
continuou:
– No teu lugar, eu ficaria nas nuvens. Vais poder percorrer o
caminho até ao altar.
– Eu sei – reclamou Sarah, atirando-se para o sofá, como se a
veemência daquela última sílaba lhe tivesse tirado as forças.
Frances levantou-se e aproximou-se dela, debruçando-se nas
costas do sofá.
– Não queres caminhar até ao altar?
A pose dela fazia lembrar a de um pardalito preocupado, a cabeça
virando para a esquerda e para a direita em movimentos curtos e
rápidos.
– Não particularmente – respondeu Sarah.
Exceto, claro, se fosse o seu próprio casamento. No entanto, era-
lhe difícil abordar esse assunto com as irmãs. A diferença de idades
era muito grande e havia coisas que ela não podia partilhar com
uma criança de onze anos.
A mãe perdera três bebés entre Sarah e Harriet. Dois por abortos
espontâneos e um – o único menino que Lord e Lady Pleinsworth
tiveram – morrera no berço antes de fazer três meses. Sarah tinha a
certeza de que os pais lamentavam não ter um filho varão, mas a
verdade era que nunca se queixavam. Quando mencionavam o
facto de o título ser herdado por William, o primo de Sarah, nunca o
faziam com amargura. Pareciam aceitá-lo como um facto
consumado. Chegara a pôr-se a hipótese de Sarah se casar com
William, para «simplificar e manter tudo na família», mas William era
três anos mais novo do que ela. Aos dezoito anos, acabara de
entrar em Oxford e certamente não se casaria nos cinco anos
seguintes.
Para Sarah, estava fora de questão esperar cinco anos. Nem
pensar! Nem pela mais pequena e infinitésima...
– Sarah!
Olhou para cima. Mesmo a tempo, aparentemente, pois Elizabeth
preparava-se para lhe atirar um livro de poesia à cabeça.
– Não te atrevas – ameaçou Sarah.
Elizabeth fez um beicinho dececionado e baixou o livro.
– Eu estava a perguntar – repetiu ela (aparentemente) – se sabes
se todos os convidados chegaram.
– Acho que sim – respondeu Sarah, embora na verdade não
fizesse a menor ideia. – É difícil saber, por causa daqueles que
ficam hospedados na aldeia.
A sua prima Honoria Smythe-Smith ia casar com o conde de
Chatteris na manhã seguinte. A cerimónia realizar-se-ia ali em
Fensmore, a residência ancestral da família Chatteris, no Norte do
Cambridgeshire. Contudo, por mais imponente que fosse, a casa de
Lord Chatteris não conseguia acomodar todos os convidados que
vinham de Londres. Vários deles teriam de ficar hospedados nas
pousadas locais.
Os membros da família Pleinsworth foram os primeiros a receber
quartos em Fensmore e tinham chegado quase uma semana antes,
para ajudar nos preparativos. Ou, mais exatamente, a mãe ajudava
nos preparativos. Sarah fora encarregada de manter as irmãs longe
de sarilhos.
Uma tarefa difícil.
Normalmente, essa responsabilidade seria da precetora,
permitindo que Sarah cumprisse os seus deveres de dama de honor
de Honoria, mas o facto é que a (agora antiga) precetora ia casar-se
daí a quinze dias.
Com o irmão de Honoria.
Portanto, assim que as núpcias Chatteris/Smythe-Smith
estivessem concluídas, Sarah – assim como metade de Londres, ao
que parecia – rumaria a Whipple Hill, no Berkshire, para o
casamento de Daniel Smythe-Smith e Miss Anne Wynter. Sendo
Daniel também conde, o casamento prometia ser grandioso.
Tão grandioso como o de Honoria.
Dois eventos grandiosos. Sarah teria duas grandes oportunidades
de dançar e se divertir e se sentir penosamente ciente de não ser
uma das noivas.
Ela só queria casar-se. Seria um desejo assim tão patético?
Claro que não, pensou, endireitando as costas (mas não o
suficiente para se sentar direita). Tinha sido educada
exclusivamente para ser fada do lar, além de tocar piano no
malfadado quarteto Smythe-Smith.
Aliás, pensando bem, talvez essa fosse uma das razões por que
estava tão desesperada por se casar.
Todos os anos, impreterivelmente, as quatro primas mais velhas
Smythe-Smith ainda solteiras eram obrigadas a juntar os seus
talentos musicais inexistentes e tocar num quarteto.
Em público.
Diante de pessoas reais... que não eram surdas.
Um verdadeiro inferno. Sarah não encontrava melhor palavra para
o descrever e tinha quase a certeza de que ainda teria de ser
inventado um termo mais apropriado.
O ruído que saía dos instrumentos das primas Smythe-Smith
também só poderia ser qualificado com palavras ainda por inventar.
No entanto, por alguma razão misteriosa, todas as mães Smythe-
Smith, incluindo a mãe de Sarah, que era Smythe-Smith de
nascença, embora agora fosse Pleinsworth, se sentavam na
primeira fila, com um sorriso de êxtase, acreditando piamente que
as filhas eram prodígios musicais. Quanto ao resto da audiência...
Esse é que era o verdadeiro mistério.
Como é que havia o «resto da audiência»? Sarah ainda não
encontrara resposta a essa pergunta. Assistir a um só sarau do
quarteto Smythe-Smith bastaria a qualquer pessoa para entender
que nada de bom sairia dali. No entanto, Sarah analisara as listas
de convidados e descobrira que algumas pessoas vinham todos os
anos. O que lhes passaria pela cabeça? Decerto saberiam que
estavam a expor-se ao que só poderia ser classificado como tortura
auditiva.
Aparentemente, já tinha sido inventada uma expressão
qualificativa da ocasião.
A única maneira de uma prima Smythe-Smith poder deixar o
quarteto era casar. Ou fingir uma doença grave, mas Sarah já
recorrera a esse esquema e duvidava que funcionasse uma
segunda vez.
A alternativa era ter nascido rapaz. Eles não tinham de aprender a
tocar um instrumento e a sacrificar a própria dignidade no altar da
humilhação pública.
Era uma enorme injustiça.
Enfim, voltando ao casamento. As três temporadas sociais de
Sarah em Londres tinham sido completos fracassos. No verão
anterior, dois cavalheiros lhe tinham pedido a mão em casamento e,
embora ciente de que provavelmente estava a condenar-se a mais
um ano de sacrifício ao piano, Sarah recusara os dois.
Não sonhava com uma paixão louca e desenfreada. Era
demasiado pragmática para acreditar que todos encontravam a sua
alma gémea – ou mesmo que todos tivessem uma alma gémea.
Ainda assim, uma mulher de vinte e um anos não devia ter de se
casar com um homem de sessenta e três.
Quanto ao outro pretendente... Sarah suspirou. Era de uma
afabilidade rara, mas, sempre que contava até vinte (e parecia fazê-
lo com uma frequência surpreendente), saltava o número doze.
Sarah não precisava de se casar com um génio, mas seria
realmente muito exigir que o possível marido soubesse contar?
– Casamento – murmurou para si mesma.
– Desculpa? – perguntou Frances, ainda debruçada nas costas do
sofá.
Harriet e Elizabeth estavam ocupadas no seu canto, o que Sarah
agradecia, pois não precisava de mais testemunhas além da irmã de
onze anos quando anunciou:
– Tenho mesmo de me casar este ano. Caso contrário, sou capaz
de morrer!

Hugh Prentice fez uma breve pausa à porta da sala de visitas,


abanou a cabeça, pois, se os seus ouvidos não o enganavam,
identificava a voz de Sarah Pleinsworth, e entrou.
Mais uma razão por que não quisera ir àquele casamento.
Hugh sempre fora um ser solitário e poucas eram as pessoas cuja
companhia procurava deliberadamente. Em contrapartida, também
eram poucas as pessoas que evitava a todo o custo.
O pai, claro.
Assassinos condenados.
E Lady Sarah Pleinsworth.
Mesmo que o primeiro encontro não tivesse sido um desastre total
e absoluto, nunca poderiam ter sido amigos. Sarah Pleinsworth era
uma daquelas mulheres melodramáticas dada a hipérboles e a
tiradas grandiloquentes. Hugh não tinha por hábito estudar os
padrões de fala das outras pessoas, mas, quando Lady Sarah
falava, era difícil ignorá-la.
Usava uma extraordinária quantidade de advérbios e pontos de
exclamação.
Além disso, ela desprezava-o. Não era uma simples conjetura da
parte dele, pois, na realidade, ouvira-a dizê-lo com todas as letras.
Não que isso o incomodasse. Também não gostava especialmente
dela. Só gostaria que ela aprendesse a ficar calada.
Como naquele momento: capaz de morrer se não se casasse este
ano? Francamente!
Hugh abanou a cabeça novamente. Pelo menos, não teria de ir a
esse casamento.
Quase conseguira fugir a este. Infelizmente, Daniel Smythe-Smith
insistira e, quando Hugh alegara não ser sequer o casamento de
Daniel, o amigo recostara-se na cadeira dizendo que era o da sua
irmã e que, se os dois queriam convencer o resto da sociedade de
que as divergências tinham sido esquecidas, Hugh tinha de se fazer
visto e com um sorriso no rosto.
O convite não fora exatamente cortês, mas Hugh não se
importava. Preferia que as pessoas dissessem o que tinham a dizer
com frontalidade. Porém, Daniel tinha razão: as aparências, neste
caso, eram importantes.
O escândalo alcançara proporções inimagináveis quando os dois
travaram o duelo, três anos e meio antes. Daniel fora obrigado a
fugir do país e Hugh passara um ano inteiro a reaprender a andar. O
ano seguinte, Hugh passara-o a tentar convencer o pai a abandonar
a sua perseguição a Daniel, e o outro a seguir pessoalmente à
procura de Daniel, depois de encontrar uma maneira de obrigar o
pai a tirar de cena os seus espiões e assassinos.
Espiões e assassinos... ter-se-ia a existência dele afundado num
melodrama tão profundo que o levasse a considerar palavras como
«espiões e assassinos» relevantes?
Hugh soltou um longo suspiro. Conseguira vencer o pai, encontrar
Daniel Smythe-Smith e trazê-lo de volta para Inglaterra. Agora,
Daniel ia casar e viver feliz para sempre e tudo voltaria a entrar nos
eixos.
Para todos, exceto para Hugh.
Baixou o olhar para a perna. Era mais do que justo que tivesse
ficado com sequelas irremediáveis, já que era ele o responsável.
Mas... maldição... como lhe doía hoje! Passara onze horas enfiado
numa carruagem no dia anterior e estava a pagar por isso.
Para ser franco, não entendia porque precisava de marcar
presença neste casamento. Decerto que comparecer no casamento
de Daniel, mais para o fim do mês, teria sido suficiente para
convencer a sociedade de que a zanga entre ele e Daniel era coisa
do passado.
O orgulho de Hugh não o impedia de admitir que, neste caso, se
importava com a opinião da sociedade. Não o incomodava que as
pessoas o considerassem um excêntrico, com mais aptidão para
cartas do que para pessoas. Também não o incomodara ouvir uma
senhora da sociedade comentar com outra que o achava muito
estranho e que nunca o consideraria como possível pretendente da
filha – isso se a filha se interessasse por ele, o que, acrescentou
categoricamente, nunca aconteceria.
Hugh não se incomodava, mas também não esquecia. Lembrava-
se de cada palavra.
O que o incomodava, no entanto, era ser considerado um canalha;
que alguém pensasse que ele quisera matar Daniel Smythe-Smith
ou que ficara contente por Daniel ter sido obrigado a fugir do país...
isso, ele não suportava. E se a única maneira de limpar a sua
reputação era provar à sociedade que Daniel o havia perdoado, iria
àquele casamento e faria tudo o que Daniel considerasse
apropriado.
– Lord Hugh!
Parou ao ouvir uma voz feminina que bem conhecia. Era a noiva,
Lady Honoria Smythe-Smith, e futura Lady Chatteris. Daí a vinte e
três horas, na verdade, se a cerimónia começasse sem atraso, o
que ele duvidava. Hugh ficou surpreendido ao vê-la perambular por
ali. Não deviam as futuras noivas estar cercadas de amigas e
parentes a tentar acertar os últimos pormenores?
– Como vai, Lady Honoria? – cumprimentou Hugh, afastando a
bengala para fazer uma vénia.
– Estou tão feliz por ter vindo ao casamento!
Depois de lhe perscrutar os olhos azul-claros por mais tempo do
que seria necessário, Hugh ficou quase convencido da sua
sinceridade.
– Obrigado. É um prazer estar aqui – mentiu.
Ela abriu um sorriso amplo e luminoso, daqueles que apenas a
verdadeira felicidade pode produzir. Mas Hugh não tinha ilusões de
ser o responsável por tal sorriso. Limitara-se a ser educado e,
assim, evitar lançar uma sombra sobre a atual aura de felicidade da
noiva. Um cálculo matemático simples.
– Gostou do pequeno-almoço? – perguntou ela.
Hugh imaginou que ela não o chamara para falar do que ele
comera, mas, como era evidente que estava a sair da sala de
refeições, respondeu:
– Muito. Só posso louvar as cozinhas de Lord Chatteris.
– Muito obrigada. Há décadas que não havia uma festa desta
magnitude em Fensmore. Os criados estão extremamente
apreensivos e... felicíssimos. – Honoria franziu os lábios com certa
timidez e acrescentou: – Principalmente, apreensivos.
Não tendo nada a acrescentar, Hugh esperou que ela
continuasse.
O que ela fez logo de seguida.
– Gostava de lhe pedir um favor.
Hugh não via de que favor poderia tratar-se, mas sendo Honoria a
noiva, se ela lhe pedisse para fazer o pino, no seu entender, ele
devia, pelo menos, tentar.
– O meu primo Arthur ficou doente – começou ela –, e devia ficar
sentado à mesa principal no banquete de casamento.
Oh, não! Não, ela não estava a pedir-lhe...
– Precisamos de outro cavalheiro, e...
Aparentemente, estava.
– ...eu tinha esperança de que aceitasse substituí-lo. Seria uma
boa maneira de... bem... – engoliu em seco, olhou para o teto um
instante, tentando encontrar as palavras certas – ...de mostrar que
está tudo bem. Ou, pelo menos, de que tudo parece bem.
Hugh fitou-a um momento. Não sentiu o coração apertar-se nem
acelerar de pânico. Não havia razão para recear a obrigação de ficar
na mesa principal, havia, sim, razão para ficar aterrorizado.
– Não que não esteja tudo bem – apressou-se ela a acrescentar. –
No que me diz respeito, e à minha mãe, posso assegurar-lhe que...
o estimamos muito. Nós sabemos... bem... o Daniel disse-nos o que
fez por ele.
Fitou-a com atenção, questionando-se sobre o que Daniel teria
dito exatamente.
– Eu sei que o Daniel não estaria aqui, em Inglaterra, se não
tivesse ido à procura dele e fico muito grata por isso.
Hugh considerou uma extraordinária delicadeza ela não
mencionar o facto de ter sido por causa dele que o irmão tivera de
fugir do país.
– Uma pessoa muito sábia disse-me um dia que o nosso carácter
se revela, não nos erros que cometemos – continuou ela com um
sorriso sereno –, mas no que fazemos para os corrigir.
– Uma pessoa muito sábia? – murmurou ele.
– A minha mãe, na verdade – admitiu ela, com ar algo contrito. – E
devo confessar que ela o disse ao Daniel com muito mais frequência
do que a mim, mas eu acabei por perceber, e espero que ele
também, que é verdade.
– Acho que ele percebeu – disse Hugh, em voz baixa.
– Então, que me diz? – insistiu Honoria, mudando bruscamente de
assunto e de tom. – Junta-se a nós na mesa principal? Far-me-ia
um enorme favor.
– Será uma honra tomar o lugar do seu primo – respondeu Hugh,
percebendo que era verdade.
Mesmo que preferisse nadar no meio da neve a sentar-se no
palanque da mesa dos noivos, à frente de todos os convidados, não
deixava de ser uma honra.
O rosto de Honoria iluminou-se de novo, radiante de felicidade.
Seria este o impacto do casamento sobre as pessoas?
– Muito obrigada! – respondeu ela, notoriamente aliviada. – Se
recusasse, eu teria de pedir ao meu outro primo, o Rupert, e...
– Tem outro primo? E prefere convidar-me a mim?
Hugh podia não dar muita importância à miríade de regras que
regiam a vida da alta sociedade, mas isso não significava que as
desconhecesse.
– Ele é horrível – confessou ela, num sussurro alto. – A sério, é
pavoroso e come demasiadas cebolas.
– Bem, nesse caso... – murmurou Hugh.
– Além disso – continuou Honoria –, ele e a Sarah não se dão
bem.
Hugh pesava sempre as suas palavras antes de falar, mas, desta
vez, foi incapaz de se conter.
– Eu também não me dou bem com... – começou, antes de se
interromper.
– Perdão?
– Não vejo que isso seja um problema – corrigiu, entre dentes.
Deus do Céu, ia ter de ficar sentado ao lado de Lady Sarah
Pleinsworth! Como era possível que Honoria Smythe-Smith não
percebesse a péssima ideia que isso era?
– Oh, muito obrigada, Lord Hugh! – disse Honoria, efusivamente. –
Agradeço a sua flexibilidade. Se os pusesse lado a lado... e não
havia outro lugar para o pôr na mesa principal, acredite que pensei
no assunto... nem quero imaginar as discussões entre os dois.
– Lady Sarah? A discutir? – murmurou Hugh.
– Sim, eu sei – concordou Honoria, interpretando erroneamente a
observação dele. – É difícil imaginar. A Sarah e eu nunca
discutimos. Ela tem um sentido de humor absolutamente
maravilhoso.
Hugh absteve-se de comentar.
Honoria dirigiu-lhe um sorriso grandioso e terminou:
– Obrigada, mais uma vez. Está a fazer-me um favor inestimável.
– Como poderia recusar?
Ela estreitou os olhos um instante, mas, aparentemente, não
detetou qualquer sarcasmo, o que seria normal, já que o próprio
Hugh não sabia se pretendera que a observação fosse sarcástica.
– Bom – disse Honoria –, vou dizer à Sarah.
– Ela está na sala de visitas – informou ele. Como Honoria o fitou
com curiosidade, acrescentou: – Ouvi-a falar quando passei pela
porta. Ela tem uma voz muito característica – disse ainda, quando
notou o franzir de sobrolho dela.
– Nunca reparei nisso – murmurou Honoria.
Hugh concluiu que era um excelente momento para ficar calado e
se ir embora.
A noiva, no entanto, tinha outros planos.
– Bom, se ela está aqui ao lado, porque não vem comigo dar-lhe a
boa notícia?
Era a última coisa que ele queria, mas Honoria sorriu-lhe,
lembrando-o de que era a noiva, por isso, seguiu-a.

Nos romances fantásticos – aqueles que Sarah lia às dezenas


sem qualquer vergonha –, os presságios eram um recurso
abundante. A heroína batia na testa com a mão e dizia coisas como:
«Oh, como eu gostaria de encontrar um cavalheiro que visse além
do meu nascimento ilegítimo e do meu dedo do pé vestigial!»
Ainda não encontrara um autor interessado em incluir um dedo do
pé extra, mas daria uma boa história, isso era inegável.
Mas, voltando aos presságios, a heroína murmurava uma
fervorosa oração, e então, como se invocado por um talismã
ancestral, aparecia um cavalheiro.
Oh, como eu gostaria de encontrar um cavalheiro... e ali estava
ele.
Fora por isso que, depois de anunciar (ridiculamente, tinha de
admitir) que morreria se não se casasse naquele ano, Sarah olhou
para a porta. Não seria engraçado se um cavalheiro realmente
aparecesse?
Obviamente, isso não aconteceu.
– Humpf! – resmoneou. – Até os deuses da literatura desesperam
comigo.
– Disseste alguma coisa? – perguntou Harriet.
– Ah, se ao menos eu encontrasse um cavalheiro – murmurou
baixinho – que me fizesse infeliz e me exasperasse até ao fim dos
meus dias!
E então...
Não podia deixar de ser...
Lord Hugh Prentice!
Santo Deus, será que as suas provações nunca teriam fim?
– Sarah! – exclamou Honoria, alegre, aparecendo ao lado de
Hugh. – Trago boas notícias.
Sarah levantou-se. Olhou para a prima, depois para Hugh
Prentice, de quem nunca gostara, e depois para a prima novamente.
Honoria era a sua melhor amiga e, como tal, adivinhou que a notícia
não poderia ser boa. Pelo menos, Sarah não veria a notícia assim.
Aparentemente, Hugh Prentice também não, a julgar pela
expressão dele.
Mas Honoria continuava a exibir um sorriso alegre e luminoso de
noiva e quase deu um pequeno pulinho ao anunciar:
– O primo Arthur está doente.
Elizabeth olhou imediatamente para cima.
– Que boa notícia.
– Oh, não sejas assim – interveio Harriet –, ele não é tão mau
como o Rupert.
– Essa não é a boa notícia – apressou-se a corrigir Honoria,
olhando nervosamente para Hugh, talvez com receio de que ele as
considerasse totalmente impiedosas. – A boa notícia é que a Sarah
já não precisa de ficar sentada ao lado do Rupert amanhã.
Frances soltou um gritinho de êxtase e atravessou a sala aos
pulos.
– Isso significa que posso ficar na mesa dos noivos? Por favor,
deixa-me ficar no lugar dele! Eu adoraria mais do que tudo!
Especialmente porque vai estar num palanque, não é? Eu ficaria
realmente acima de tudo.
– Frances, querida, quem dera que fosse possível – disse
Honoria, com um sorriso carinhoso –, mas sabes que as crianças
não podem ficar na mesa principal, além disso, tem de ser um
homem.
– Daí a presença de Lord Hugh – disse Elizabeth.
– Tenho todo o prazer em ajudar – afirmou Hugh, embora fosse
óbvio para Sarah que não era esse o caso.
– Não pode imaginar como ficamos gratas – disse Honoria. –
Principalmente a Sarah.
Hugh olhou para Sarah, que devolveu o olhar. Era essencial que
ele entendesse que, na verdade, ela não sentia a mais pequena
gratidão.
Mas ele sorriu, o infame! Bem, não era propriamente um sorriso.
No rosto de qualquer outra pessoa, ninguém lhe chamaria sorriso,
mas a expressão no rosto dele era tão severa que o mais pequeno
tremor do canto dos lábios era equivalente a um pulo de alegria.
– Tenho a certeza de que será um prazer sentar-me a seu lado,
em vez de ao lado do meu primo Rupert – disse Sarah.
Um «prazer» era exagerado, mas o primo Rupert tinha um hálito
pavoroso, portanto, com Lord Hugh, pelo menos, evitaria essa
provação.
– Certeza – repetiu Lord Hugh, a voz uma estranha mistura de
inexpressão e brandura que fez Sarah sentir a mente prestes a
explodir.
Estaria ele a fazer pouco dela? Ou apenas a repetir uma palavra
para dar ênfase? Não conseguia perceber. Mais uma peculiaridade
que fazia de Lord Hugh Prentice o homem mais enfurecedor de
Inglaterra. Se uma pessoa estava a ser gozada, não teria o direito
de saber?
– Não mastiga cebola crua com o chá, pois não? – perguntou
Sarah, friamente.
Ele sorriu. Ou talvez não.
– Não.
– Nesse caso, tenho a certeza.
– Sarah? – disse Honoria, hesitante.
Sarah virou-se para a prima, com um sorriso radiante nos lábios.
Nunca mais esquecera aquele momento desastroso, no ano
anterior, em que conhecera Lord Hugh. Ele passara de caloroso a
gélido num abrir e fechar de olhos. Que raio, se ele era capaz, ela
também seria.
– O teu casamento será perfeito – assegurou ela. – Lord Hugh e
eu vamos entender-nos lindamente, sem dúvida.
Era evidente que Honoria não acreditara na afirmação, o que não
surpreendeu Sarah. No espaço de um segundo, os olhos da prima
fizeram pelo menos seis idas e vindas entre Lord Hugh e ela.
– Hum – disse, obviamente desconcertada pelo súbito
constrangimento. – Enfim...
Sarah manteve um sorriso plácido no rosto. Por Honoria, esforçar-
se-ia por ser educada com Hugh Prentice. Pela prima, tentaria até
sorrir para ele e rir-se das suas piadas, se ele fizesse alguma.
Mesmo assim, como poderia Honoria não perceber o quanto Sarah
odiava Hugh? Bem, odiar também não. Reservava o ódio para
alguém verdadeiramente demoníaco. Como Napoleão, por exemplo.
Ou aquela florista de Covent Garden que a tentara aldrabar na
semana anterior.
Ainda assim, Hugh Prentice era para lá de irritante, para lá de
exasperante. Era a única pessoa, tirando as irmãs, que conseguira
deixá-la furiosa a ponto de ter de cerrar as mãos com toda a força
para não lhe bater.
Nunca ficara tão furiosa como naquela noite...
Capítulo 2

O primeiro encontro
(tal como ela se lembra)

Um salão de baile em Londres, durante a festa de noivado de Mr.


Charles Dunwoody com Miss Nerissa Berbrooke
Dezasseis meses antes

chas que Mr. St. Clair é atraente?


–A Sarah não se deu ao trabalho de olhar para Honoria ao fazer
a pergunta, pois estava demasiado ocupada a observar Mr. St. Clair
e a tentar descobrir o que pensava dele. Sempre gostara de homens
ruivos, mas ainda não sabia se gostava do cabelo comprido que ele
usava amarrado num rabicho. Parecia um pirata ou alguém a tentar
parecer um pirata?
Havia uma grande diferença.
– Gareth St. Clair? – inquiriu Honoria. – O neto de Lady Danbury?
Sarah virou-se abruptamente para encarar a prima.
– Não pode ser! – exclamou.
– Oh, mas é. Tenho a certeza de que é neto dela.
– Nesse caso, fica imediatamente riscado da minha lista.
– Pois eu tenho muita admiração por Lady Danbury – afirmou
Honoria. – Ela diz exatamente aquilo que pensa.
– E essa é precisamente a razão pela qual nenhuma mulher no
seu juízo perfeito quereria casar-se com um membro de tal família.
Credo, Honoria, já pensaste como seria viver com ela?
– Tu também tens a reputação de seres bastante frontal – lembrou
Honoria.
– Seja como for – respondeu Sarah, numa grande mostra de
aquiescência –, não sou sequer comparável a Lady Danbury.
Voltou a observar Mr. St. Clair. Pirata ou aspirante a pirata? Na
verdade, se ele tinha uma ligação a Lady Danbury, a questão nem
se punha.
– Dá tempo ao tempo – sugeriu Honoria, dando-lhe uma
palmadinha afetuosa no braço.
Sarah virou-se para a prima e, com uma expressão sarcástica,
retorquiu:
– Quanto tempo? Ela já tem, pelo menos, oitenta anos.
– Todos nós precisamos de algo a que aspirar – objetou Honoria.
Sarah não conseguiu evitar um revirar de olhos.
– Será que a minha vida se tornou tão patética que devo passar a
medir as minhas esperanças em décadas e não em anos?
– Não, claro que não, mas...
– Mas o quê? – insistiu Sarah, ao ver que Honoria não completava
a frase.
Honoria suspirou.
– Achas que vamos encontrar marido este ano?
Sem conseguir verbalizar uma resposta, Sarah contentou-se com
um olhar triste.
Honoria retribuiu a expressão e ambas suspiraram em uníssono,
um som cansado de quem não vê solução para o problema.
– Somos mesmo patéticas – disse Sarah.
– Pois somos – concordou a prima.
Ficaram as duas a observar o salão de baile em silêncio, até que
Sarah disse:
– Esta noite nem me importo, na verdade.
– De ser patética?
– Esta noite, estás comigo – respondeu Sarah, lançando à prima
um sorriso travesso.
– Uma desgraça nunca vem só?
– Isso é o mais curioso... – disse Sarah, com um ar ligeiramente
intrigado – esta noite, não me sinto infeliz.
– Ora vejam só! – brincou Honoria. – Sarah Pleinsworth, esse
talvez seja o maior elogio que já me fizeste.
Sarah soltou uma risada, antes de sugerir:
– Podemos ser duas velhas solteironas encarquilhadas no sarau
anual da família!
– Tenho a certeza de que isso não é um elogio – respondeu
Honoria, com um estremecimento. – Eu adoro o sarau, mas...
– Não! – exclamou Sarah, quase não resistindo à vontade de
tapar os ouvidos com as mãos. Ninguém seria capaz de adorar o
sarau!
– Eu disse que adoro o sarau, não a música – esclareceu
Honoria.
– Podes explicar-me a diferença? Pensei que ia morrer...
– Também não é preciso exagerares, Sarah – repreendeu-a
Honoria.
– Quem me dera que fosse exagero – resmungou Sarah.
– Pois eu achei muito divertido ensaiar contigo, a Viola e a
Marigold. No próximo ano será ainda melhor, pois a Iris estará
connosco para a parte de violoncelo. A tia Maria disse-me que será
apenas uma questão de semanas para que Mr. Wedgecombe peça
a Marigold em casamento. Embora – acrescentou, franzindo o
sobrolho – eu não veja como ela possa saber disso.
– Essa não é a questão – retorquiu Sarah, com grande seriedade.
– E, mesmo que fosse, não vale a humilhação pública. Se queres
passar tempo com as tuas primas, convida-nos para um piquenique.
Ou para um jogo de palamalho.
– Não seria a mesma coisa.
– Graças a Deus!
Sarah estremeceu, tentando não se lembrar da sua estreia no
quarteto Smythe-Smith, mas, até agora, apagar a pletora de notas
dissonantes e de olhares aflitos provara ser uma tentativa vã...
Por isso, não tinha outra hipótese senão considerar cada homem
como potencial marido. Se fosse obrigada a dar outro concerto com
as primas, morreria de certeza.
E não era um exagero.
– Adiante – disse Sarah, endireitando os ombros e assumindo
uma atitude decidida, pois era hora de voltar à luta. – Mr. St. Clair
está fora da minha lista. Quem mais veio esta noite?
– Ninguém – respondeu Honoria, taciturna.
– Ninguém? Como é possível? Então e Mr. Travers? Pensei que tu
e ele... – Sarah engoliu em seco ao ver a expressão de mágoa no
rosto de Honoria. – Oh! Peço desculpa. Que aconteceu?
– Não sei. Pensei que estava tudo a correr bem. E então... nada.
– Que estranho – comentou Sarah. Mr. Travers não teria sido a
sua primeira escolha para marido, mas parecia uma pessoa séria.
Certamente, não o tipo de homem que abandona uma senhora sem
explicação. – Tens a certeza?
– Na soirée de Mrs. Wemberley na semana passada, sorri-lhe e
ele fugiu a correr da sala.
– Não, talvez tenha sido imaginação...
– Até tropeçou numa mesa, com a pressa.
– Hã – murmurou Sarah, fazendo uma careta, pois não havia outra
reação a ter. – Lamento!
O sentimento era sincero. Por mais reconfortante que fosse ter
Honoria como companheira de infortúnio no mercado de casamento,
queria que a prima fosse feliz.
– Talvez seja pelo melhor – disse Honoria, sempre otimista. –
Temos muito poucos interesses em comum. Na verdade, ele adora
música e não sei como teria ele... Oh!
– O que é? – perguntou Sarah, pois a interjeição da prima fora tão
profunda que, se estivessem mais perto do candelabro, ela teria
apagado a chama.
– Porque está ele aqui? – sussurrou Honoria.
– Quem? – insistiu Sarah, varrendo o olhar pela sala. – Mr.
Travers?
– Não. Hugh Prentice!
O corpo inteiro de Sarah enrijeceu de fúria.
– Como se atreve a mostrar a cara? – sibilou ela. – Sabia
certamente que estaríamos cá.
Honoria, no entanto, abanou a cabeça e argumentou:
– Ele tem tanto direito de estar aqui como...
– Não, não tem – interrompeu Sarah. Só a prima era capaz de
mostrar bondade e magnanimidade imerecidas. – O que Lord Hugh
Prentice precisa é de flagelação pública – rosnou Sarah.
– Sarah!
– Há uma hora certa para a caridade cristã e essa hora ainda não
chegou para Lord Hugh Prentice – retorquiu Sarah, observando o
homem que julgava ser ele, com olhos semicerrados de fúria.
Nunca tinham sido oficialmente apresentados. O duelo ocorrera
antes da apresentação de Sarah à sociedade e, é claro, ninguém
arriscara fazer as apresentações depois disso. Mas ela sabia quem
ele era.
Aliás, fizera questão de saber quem ele era.
Visto de trás, como neste momento, a cor de cabelo do homem
era a correta: castanho-claro. Ou talvez loiro-escuro, dependendo
da perspetiva. Não via se ele trazia bengala. Já teria mais facilidade
em andar? A última vez que o vira, vários meses antes, o coxear
dele era muito marcado.
– Ele é amigo de Mr. Dunwoody – explicou Honoria, a voz ainda
fraca e trémula. – Decerto quis felicitar o amigo.
– Até podia querer oferecer uma ilha particular ao feliz casal –
ripostou Sarah. – Tu também és amiga de Mr. Dunwoody. Conhece-
lo há anos e Lord Hugh sabe certamente disso.
– Sim, mas...
– Não lhe arranjes desculpas. Eu não quero saber o que Lord
Hugh pensa do Daniel...
– Pois eu, sim. Eu quero saber o que toda a gente pensa do
Daniel.
– Essa não é a questão! – protestou Sarah. – Tu és inocente e
sofreste para além do imaginável. Se Lord Hugh tivesse um pingo
de decência, evitaria qualquer reunião social em que houvesse a
mais ínfima probabilidade de estares presente.
– Tens razão – murmurou Honoria, que, por um momento, fechou
os olhos, parecendo terrivelmente cansada. – Mas, neste momento,
não quero pensar nisso. Só quero sair daqui. Quero ir para casa.
Sarah continuava de olhos fixos no homem em questão, ou
melhor, nas costas dele.
– Ele não devia ter vindo – murmurou e, inadvertidamente,
avançou um passo. – Eu vou...
– Não te atrevas! – avisou Honoria, agarrando Sarah pelo braço. –
Se fizeres uma cena...
– Eu nunca faria uma cena.
Mas ambas sabiam que era mentira. Para Hugh Prentice, ou
melhor, por causa de Hugh Prentice, Sarah estava pronta a fazer
uma cena que se tornaria lendária.
Dois anos antes, Hugh Prentice arruinara a sua família. A
ausência de Daniel continuava a ser sentida como uma lacuna nas
reuniões de família. Ninguém podia sequer pronunciar o nome de
Daniel à frente da mãe dele. A tia Virginia simplesmente fingia não
ter ouvido e, segundo Honoria, depois trancava-se no quarto a
chorar.
O resto da família também não fora poupado. Depois do duelo, o
escândalo fora tal, que Honoria e Sarah tiveram de desistir daquela
que seria a sua primeira temporada social em Londres. Não
escapara a Sarah – nem a Honoria, depois de Sarah o ter
mencionado repetidamente e em fúria, e se ter atirado em
desespero para a cama – que 1821 fora um ano invulgarmente
produtivo, a julgar pelos testemunhos das mães casamenteiras.
Catorze cavalheiros tinham encontrado noivas naquela temporada.
Catorze! E sem contar os demasiado velhos, demasiado esquisitos
ou demasiado apegados à bebida.
Quem sabe o que teria acontecido, se Sarah e Honoria tivessem
debutado no ano de um mercado matrimonial tão florescente.
Alguns podiam julgar Sarah superficial, mas, a seu ver, Hugh
Prentice era diretamente responsável pelo seu estado de futuras
solteironas.
Sarah nunca conhecera oficialmente o homem, mas odiava-o.
– Sinto muito – disse Honoria abruptamente, a voz entrecortada,
como se tentasse engolir um soluço. – Tenho de ir. Agora. E temos
de encontrar a minha mãe. Se ela o vir...
A tia Virginia, afligiu-se Sarah ao pensar no estado em que ficaria
a mãe de Honoria, pois esta nunca recuperara da desonra do seu
único filho varão. Só de pensar no risco de ela ficar frente a frente
com o homem responsável por toda a situação...
Sarah pegou na mão da prima.
– Vamos. Eu ajudo-te a procurá-la.
Honoria assentiu fracamente e seguiu Sarah. Abriram caminho por
entre a multidão, tentando combinar velocidade e discrição. Sarah
não queria que a prima fosse obrigada a falar com Hugh Prentice,
mas preferia morrer a deixar que alguém acreditasse que estavam a
fugir dele.
O que significava que ela, Sarah, teria de ficar. Talvez até de falar
com ele, quanto mais não fosse para manter as aparências, em
nome de toda a família.
– Ali está ela! – anunciou Honoria, quando se aproximavam das
grandes portas de acesso ao salão de baile.
Lady Winstead fazia parte de um pequeno grupo de mães que
conversavam animadamente com Mrs. Dunwoody, a anfitriã.
– Ela não deve tê-lo visto – sussurrou Sarah, notando o sorriso da
tia.
– Que pretexto devo dar para nos irmos embora? – perguntou
Honoria.
– Cansaço – foi a resposta pronta de Sarah.
Ninguém questionaria, pois Honoria ficara pálida ao ver Hugh
Prentice, evidenciando as olheiras escuras.
Honoria aquiesceu e rapidamente se aproximou da mãe, pedindo
desculpas ao grupo e puxando-a para o lado, para lhe sussurrar
algumas palavras ao ouvido. Sarah ficou a vê-las despedirem-se e
saírem em direção à fila de carruagens.
Sarah só voltou a respirar fundo quando teve a certeza de que a
tia e a prima não se cruzariam com Lord Hugh. Infelizmente, cada
medalha tem o seu reverso, e a saída de Honoria condenava Sarah
a ficar, pelo menos, mais uma hora. Não demoraria muito para que
as pessoas se apercebessem de que Lord Hugh Prentice estava na
mesma sala que uma prima Smythe-Smith e comentassem o facto.
A princípio, haveria olhares, seguir-se-iam os sussurros e, depois,
todos tentariam ver se os caminhos de ambos se cruzavam e, em
caso afirmativo, se falavam. Em caso negativo, qual deles
abandonaria a festa primeiro.
Sarah calculou que precisaria de ficar uma hora, no mínimo, no
salão de baile dos Dunwoody até que as pessoas perdessem o
interesse em quem saía ou ficava. Nesse ínterim, porém, era
importante que a vissem divertir-se, portanto, não podia ficar ali
sozinha. Tinha de encontrar uma amiga com quem conversar, um
cavalheiro com quem dançar e obrigar-se a sorrir e a rir como se
não tivesse a mais pequena preocupação.
Isto enquanto mostrava a toda a gente que estava bem ciente da
presença de Lord Hugh Prentice... e que não o considerava
merecedor da sua atenção.
Manter as aparências era muito desgastante...
Por sorte, assim que voltou ao salão de baile, viu o primo Arthur.
Como pessoa, era terrivelmente enfadonho, mas fisicamente era
garboso e parecia atrair muitas atenções. Mais importante ainda, se
o puxasse pela manga e lhe dissesse que tinham de dançar
imediatamente, ele fá-lo-ia sem hesitar.
Quando a dança terminou, pediu a Arthur que a levasse até um
dos amigos dele, que não teve escolha a não ser convidá-la para
dançar o minueto seguinte e foi assim que Sarah conseguiu dançar
quatro vezes sucessivas, três delas com homens que faziam uma
donzela parecer muito popular e a quarta com Sir Felix Farnsworth,
que, infelizmente, nunca faria mulher alguma parecer cobiçada.
No entanto, por essa altura, os papéis já se tinham invertido e
Sarah ficou feliz por partilhar a sua popularidade com Sir Felix.
Sempre gostara dele, apesar do seu lamentável interesse pela
taxidermia.
Não viu Lord Hugh, mas teria sido difícil ele não a ver. Quando
terminou de beber o seu copo de limonada na companhia de Sir
Felix, decidiu que já fizera o suficiente, mesmo ainda não tendo
decorrido uma hora inteira desde a partida de Honoria.
Presumindo que cada dança durava cerca de cinco minutos, com
um curto intervalo, mais a breve conversa com Arthur e os dois
copos de limonada...
O resultado era certamente suficiente para defender a honra da
família. Por aquela noite, pelo menos.
– Obrigada novamente pela agradável dança, Sir Felix – disse
Sarah, entregando o copo vazio a um lacaio. – Desejo-lhe boa sorte
com o abutre.
– Sim, eles são muito divertidos de trabalhar – respondeu ele com
um aceno entusiasmado. – O segredo está no bico.
– No bico... – repetiu Sarah. – Claro.
– Já se vai embora? – inquiriu ele. – Estava a pensar falar-lhe de
outro projeto novo que tenho em mãos. Uma pequena fera.
Sarah tentou encontrar uma resposta adequada, mas tudo o que
conseguiu dizer foi:
– A minha mãe!
– A sua mãe é uma fera?
– Não! Quero dizer, não habitualmente. – Santo Deus, ainda bem
que Sir Felix não era coscuvilheiro, porque se aquilo chegasse aos
ouvidos da mãe... – O que eu quis dizer foi que ela não é uma fera.
Nunca. Mas tenho de ir procurá-la. Ela disse-me muito claramente
que queria sair antes de... hã... bem... agora.
– São quase onze horas – informou Felix, cordialmente.
– Precisamente! – acrescentou ela, com um aceno enfático de
cabeça.
Sarah despediu-se e deixou Sir Felix com o primo Arthur, que, se
não estava interessado em pequenas feras, conseguia escondê-lo
admiravelmente. Foi então à procura da mãe, para lhe dizer que
desejava ir-se embora mais cedo do que o planeado. Não moravam
muito longe da casa dos Dunwoody. Se Lady Pleinsworth não
quisesse ir, não seria difícil a carruagem levar Sarah a casa e depois
regressar para vir buscar a mãe.
No entanto, após cinco minutos de busca infrutífera, Sarah já
resmungava baixinho, atravessando o corredor que, pensava ela,
levava à sala de jogos da casa dos Dunwoody.
– Se a mamã está a jogar cartas...
Não que Lady Pleinsworth não pudesse dar-se ao luxo de perder
um ou dois guinéus no jogo de cartas com que estivesse a distrair-
se com as outras mães da sociedade, mas parecia-lhe injusto que a
mãe se entretivesse enquanto Sarah se esforçava por salvar a
família de uma situação mais do que embaraçosa.
Uma situação originalmente causada pelo primo... durante um
jogo de cartas!
– Ah, a ironia... – murmurou. – O teu nome é...
O teu nome era...
O teu nome podia ser...
Estacou e franziu o sobrolho. Aparentemente, o nome da ironia
era uma palavra de que ela não se lembrava.
– Sou mesmo patética – resmungou, recomeçando a procura.
Estava impaciente e queria ir para casa. Onde diabo se teria
enfiado a mãe?
Alguns passos à frente, reparou numa luz suave que emanava de
uma porta entreaberta. Parecia-lhe demasiado sossegada para uma
sala de jogo, mas, por outro lado, a porta entreaberta indicava que
Sarah podia entrar sem ser demasiado inconveniente.
– Mãe? – sussurrou, entrando na sala.
Porém, não era a mãe.
O nome da ironia era, afinal, Hugh Prentice.
Sarah petrificou à entrada, o olhar fixo no homem sentado junto à
janela. Mais tarde, ao recordar cada momento horrível daquele
encontro, ocorrer-lhe-ia que podia, simplesmente, ter dado meia-
volta. Ele não a vira, pois estava de costas.
Mas, obviamente, ela não conseguiu conter-se e disse em tom
gélido:
– Espero que esteja satisfeito.
Ao som da sua voz, Lord Hugh levantou-se rigidamente, apoiando-
se pesadamente nos braços da poltrona.
– Perdão? – perguntou, educado, observando-a com uma
expressão totalmente desprovida de emoção.
Ele nem sequer tinha a decência de parecer envergonhado na
presença dela? Sarah cerrou os punhos com força.
– Não tem vergonha?
A reação dele foi um mero piscar de olhos.
– Depende da situação – murmurou, por fim.
Sarah vasculhou o seu repertório em busca de uma exclamação
adequada de indignação feminina, mas tudo o que lhe ocorreu foi:
– O senhor não é um cavalheiro.
O comentário suscitou, por fim, a atenção dele. Os seus olhos
verde-musgo encontraram os dela, estreitaram-se ligeiramente e foi
então que Sarah entendeu.
Ele não sabia quem ela era!
Deixou escapar um suspiro abafado.
– Que mais? – resmungou ele.
Santo Deus, ele não sabia quem ela era! Aquele homem
arruinara-lhe a vida e nem sequer sabia quem ela era?
Ironia, o teu nome está prestes a ser amaldiçoado!
Capítulo 3

O primeiro encontro
(tal como ele se lembra)

uando a jovem à sua frente o acusou de não ser um cavalheiro,


Q Hugh devia ter percebido que ela era desequilibrada.
Infelizmente, só chegou a essa conclusão muito mais tarde. Porém,
ela não estava enganada, pois, embora tentasse comportar-se como
um adulto civilizado, há muitos anos que ele sabia que a sua alma
era negra como carvão.
No entanto... Um adulto com inteligência e juízo normais não se
sairia com declarações tão redundantes como: «O senhor não é um
cavalheiro» precedida por «Espero que esteja satisfeito» e «Não
tem vergonha?».
Uma enxurrada de banalidades! Ou a pobre mulher passava muito
tempo no teatro ou estava convencida de que era uma personagem
de um daqueles melodramas ridículos que toda a gente lia
ultimamente.
Hugh ficou tentado a abandonar a sala, mas, a julgar pelo brilho
selvático nos seus olhos, ela ia provavelmente segui-lo e, em termos
de velocidade, ele estava mais para tartaruga do que para lebre. O
melhor era encarar o problema, por assim dizer.
– Não se sente bem? – perguntou, cauteloso. – Quer que vá
chamar alguém?
Apesar da luz fraca dos castiçais, conseguiu ver o violento corar
das faces quando ela gaguejou de raiva:
– Seu... seu...
Discretamente, Hugh deu um passo atrás. Ela ainda não cuspia
literalmente as palavras, mas, considerando o modo como apertava
os lábios, era melhor munir-se de alguma cautela.
– Talvez seja melhor sentar-se? – sugeriu.
Hugh apontou para um sofá próximo, esperando que ela não
contasse com ele para a ajudar, pois o seu equilíbrio já vira
melhores dias.
– Catorze homens! – sibilou ela, entre dentes.
Hugh manteve-se em silêncio, sem a mais pequena ideia do que
ela queria dizer.
– Sabia? – insistiu ela, e Hugh percebeu como ela tremia. –
Catorze!
Ele pigarreou e respondeu:
– E eu sozinho...
Houve um momento de abençoado silêncio. Infelizmente, a pausa
foi de curta duração.
– Não sabe quem eu sou, pois não? – perguntou ela.
Hugh observou-a com mais atenção. Parecia-lhe vagamente
familiar, o que, logicamente, não significava nada. Embora não fosse
pessoa de grande vida social, provavelmente já se cruzara com
todos os membros da alta sociedade, portanto, era normal que o
rosto dela lhe parecesse familiar.
Se tivesse ficado no salão de baile mais do que alguns minutos,
poderia ter descoberto quem ela era, mas escapulira-se logo depois
de entrar. Charles Dunwoody ficara lívido quando Hugh se
aproximara para o felicitar, a ponto de o fazer pensar que talvez
tivesse perdido o seu último amigo em Londres. Então, Charles
chamara-o à parte informando-o de que a mãe e a irmã de Daniel
Smythe-Smith estavam presentes.
Não pedira a Hugh para se ir embora, mas ambos sabiam que não
era necessário. Hugh despediu-se e retirou-se de imediato. Já
causara sofrimento suficiente àquelas duas mulheres. Ficar no baile
teria sido odioso da parte dele.
Especialmente quando nem sequer podia dançar.
No entanto, a perna doía-lhe e ele não se sentia com forças, pelo
menos não imediatamente, para abrir caminho entre a fila de
carruagens lá fora e chamar uma carruagem de aluguer. Por isso,
encontrara refúgio naquela pequena sala silenciosa, na esperança
de descansar um pouco e saborear a solidão.
Ou não.
A mulher que lhe invadira o refúgio ainda estava de pé, à porta, e
a sua fúria era de tal modo palpável, que Hugh quase podia
reconsiderar a sua opinião sobre a possibilidade de combustão
espontânea do corpo humano.
– Arruinou a minha vida! – afirmou ela, sibilante.
Isso não era verdade. Ele tinha estragado a vida de Daniel
Smythe-Smith e talvez, por inerência, a vida da sua irmã ainda
solteira, mas aquela jovem morena não era Honoria Smythe-Smith.
Lady Honoria não só tinha o cabelo mais claro, como o seu rosto
estava longe de ser tão expressivo, mesmo que a profunda emoção
evidenciada por esta mulher fosse talvez causada pela insanidade.
Ou, pensando melhor, pelo abuso de álcool.
Sim, era muito mais plausível. Hugh não sabia quantos copos de
ratafia eram necessários para embriagar uma mulher de pouco mais
de cinquenta quilos, mas era óbvio que ela conseguira.
– Sinto muito por incomodar – disse ele –, mas temo que esteja a
confundir-me com outra pessoa. – E viu-se obrigado a acrescentar,
visto que ela bloqueava a única saída e precisava claramente de um
incentivo verbal para se mexer: – Se eu puder ajudar...?
– Seria uma grande ajuda se livrasse Londres da sua presença –
declarou ela, em voz dura.
Hugh tentou não rosnar. Aquela conversa estava a tornar-se
enfadonha.
– Ou até o mundo inteiro – acrescentou, venenosa.
– Pelo amor de Deus, haja paciência! – praguejou ele, pois, quem
quer que aquela mulher fosse, há muito o libertara da obrigação de
falar como um cavalheiro. – Por quem sois – continuou com
sarcasmo e uma vénia ostensiva –, talvez eu deva suicidar-me
mediante uma palavra sua, caríssima desconhecida cuja vida
destruí.
Ela ficou boquiaberta. Reduzida ao silêncio.
Finalmente!
– Será um prazer curvar-me à vossa vontade, assim que sair do
meu caminho – terminou ele, a voz subindo para um rugido.
Ou melhor, para a sua versão pessoal de rugido, que estava mais
para resmungo malévolo. Empurrou a bengala para o espaço vazio,
à esquerda da jovem, esperando que o gesto a convencesse a
desviar-se.
Ela soltou uma espécie de soluço dramático digno de uma atriz de
teatro e exclamou:
– Pretende agredir-me? – atacou.
– Ainda não – murmurou ele.
– Não ficaria surpreendida se ousasse fazê-lo! – rosnou ela.
– Nem eu – respondeu, os olhos estreitando-se.
– O senhor não é um cavalheiro.
– Esse facto já ficou estabelecido – escarneceu. – Tenho fome,
estou cansado e quero ir para casa. A senhora, no entanto, insiste
em bloquear a única saída.
Ela cruzou os braços, com ar muito confiante.
Hugh inclinou a cabeça, avaliando a situação.
– Parece-me haver duas escolhas – declarou, por fim. – Ou sai do
meu caminho ou eu a empurro.
– Gostaria de ver isso – desafiou ela, com arrogância.
– Lembre-se de que não sou um cavalheiro.
Ela abriu um sorriso trocista.
– Mas eu tenho duas boas pernas.
– E eu tenho uma arma – contrapôs ele, afagando a bengala com
certo carinho.
– Que os meus reflexos são suficientes para evitar.
– Ah, mas, assim que se desviar, deixará de haver obstáculo –
disse ele com um sorriso brando e um floreio casual da mão livre. –
E, então, poderei partir e, se houver um Deus no nosso céu, nunca
mais lhe porei a vista em cima.
Embora ela não se tenha afastado, o seu corpo pareceu oscilar
ligeiramente para o lado e Hugh aproveitou a oportunidade para
passar por ela, a bengala lançada para a frente como uma barreira.
Já porta fora, ouviu-a exclamar:
– Eu sei exatamente quem é, Lord Hugh Prentice!
Ele devia ter seguido o seu caminho, sabia disso agora, porém,
estacou, suspirou fundo, sem se virar.
– Sou Lady Sarah Pleinsworth – anunciou ela.
Hugh lamentou, não pela primeira vez, não ser melhor a
interpretar as entoações femininas, pois havia algo no tom dela –
uma espécie de estrangulamento fugaz – que não entendia.
O que entendia, no entanto, e não precisava de lhe ver a
expressão no rosto para saber, era que ela esperava que ele
reconhecesse o nome. E, por mais que Hugh preferisse não o fazer,
reconhecia.
Lady Sarah Pleinsworth, prima direita de Daniel Smythe-Smith. De
acordo com Charles Dunwoody, ela espalhara a sua fúria aos quatro
ventos após o duelo. Muito mais do que a mãe e a irmã de Daniel,
cuja raiva, para Hugh, teria sido bastante mais justificada.
Quando Hugh se virou, Lady Sarah estava a poucos passos, a
postura rígida e furiosa. Notou-lhe os punhos cerrados ao lado do
corpo e o queixo espetado como uma criança furiosa no meio de
uma discussão absurda, e determinada a ser teimosa.
– Lady Sarah... – começou, em tom educado. Ela era prima de
Daniel e, apesar da troca de palavras anterior, estava determinado a
tratá-la com respeito. – Não fomos apresentados oficialmente.
– Não é necessário...
– Seja como for, eu sei quem é – cortou, antes que ela pudesse
fazer outra declaração melodramática.
– Aparentemente, não sabe – murmurou ela.
– É prima de Lord Winstead – afirmou. – Eu sei o seu nome,
mesmo que não lhe conhecesse o rosto.
Ela assentiu com a cabeça, o primeiro gesto cortês que esboçou e
a voz soou apenas ligeiramente mais branda ao dizer:
– Não devia ter vindo aqui esta noite.
– Conheço Charles Dunwoody há mais de dez anos – explicou
Hugh, após de uma longa pausa. – Queria felicitá-lo pelo noivado.
A explicação não pareceu impressioná-la.
– A sua presença foi muito penosa para a minha tia e a minha
prima.
– Sinto muito por isso.
Hugh estava a ser sincero e a fazer tudo ao seu alcance para
corrigir os seus erros. Mas não podia partilhá-lo com a família
Smythe-Smith até ter a certeza do seu sucesso. Seria cruel dar-lhes
falsas esperanças. Além disso, duvidava ser recebido, se alguma
vez lhes aparecesse à porta.
– Sente muito? – repetiu Lady Sarah com desdém. – Custa-me
muito acreditar.
Ele fez mais uma pausa. Não gostava de reagir a uma provocação
com um ataque imediato. Não era do seu temperamento, o que
tornava o seu comportamento para com Daniel ainda mais
humilhante. Se não tivesse bebido naquela noite, teria reagido
racionalmente e nada daquilo teria acontecido. Decerto não estaria
neste exato momento numa sala escura na casa dos pais de
Charles Dunwoody, na companhia de uma mulher que obviamente
só o procurara para lhe atirar insultos à cara.
– Acredite no que quiser – respondeu.
Afinal, não lhe devia explicações.
Seguiu-se um silêncio, até que Lady Sarah anunciou:
– Elas saíram, caso queira saber.
Ele inclinou a cabeça com ar interrogativo.
– A tia Virginia e a Honoria – esclareceu ela. – Saíram assim que
souberam que estava cá.
Hugh não percebeu o intuito daquela declaração. Deveria sentir-
se culpado? Teriam as duas mulheres preferido ficar na festa? Ou
seria só mais um insulto? Talvez Lady Sarah insinuasse que ele era
tão repulsivo que a tia e a prima não podiam tolerar a sua presença.
Para evitar dar uma resposta incorreta, preferiu ficar calado. Mas
algo lhe ficou a matutar na mente, como um quebra-cabeças. Uma
pergunta sem resposta, apenas, mas tão incongruente e descabida
que ele tinha de saber a resposta.
– O que quis dizer sobre aqueles... catorze homens? – perguntou
ele.
Lady Sarah apertou os lábios numa linha dura. Implacável, aliás,
se é que era possível.
– Quando me viu, mencionou algo sobre catorze homens –
recordou-lhe, embora tivesse a certeza de que ela sabia
perfeitamente do que ele falava.
– Não foi nada – assegurou ela.
No entanto, desviou ligeiramente o olhar. Ou estava a mentir ou
estava envergonhada. Talvez as duas coisas.
– Catorze não é um número a desprezar – objetou ele.
Estava a ser pedante, sabia disso, mas ela já lhe esgotara a
paciência em todas as áreas, exceto na matemática. Catorze era
muito diferente de nada! Além do mais, porque é que as pessoas
diziam coisas que depois se recusavam a explicar? Se ela não tinha
a intenção de explicar a observação, devia ter ficado calada.
Ela deu um passo para o lado com determinação e disse:
– Por favor, vá.
Porém, ele permaneceu imóvel. Ela despertara-lhe a curiosidade e
ninguém era mais tenaz neste mundo do que Hugh Prentice diante
de uma pergunta sem resposta.
– Passou a última hora a mandar-me sair do seu caminho –
rosnou ela, entre dentes.
– Cinco minutos – corrigiu ele – e, se é verdade que anseio pela
serenidade da minha casa, sinto vontade de saber mais sobre os
seus catorze homens.
– Não são os meus catorze homens!
– Espero que não – murmurou –, mas quem sou eu para julgar...
Vendo-a boquiaberta, insistiu:
– Fale-me sobre esses catorze homens.
– Já lhe disse, não é nada – repetiu ela, as faces adquirindo um
tom rosado, notou Hugh com satisfação.
– Mas estou curioso... Catorze homens convidados para o jantar?
Para o chá? É demasiado para uma equipa de críquete, mas...
– Pare! – explodiu ela.
Hugh obedeceu, mas não evitou um erguer de sobrancelha.
– Se quer saber – disse ela, a voz tremendo de fúria –, catorze
homens ficaram noivos durante o ano de 1821!
O longo silêncio que se seguiu deixou em evidência a
perplexidade de Hugh. Não era um homem de parca inteligência,
mas não conseguia ver a mínima ligação com a conversa anterior.
– E os catorze homens casaram? – perguntou, por fim.
Ela olhou-o fixamente sem responder e Hugh acrescentou:
– Disse que os catorze ficaram noivos.
– Que importância tem isso?
– Ouso dizer que deva ter para eles.
Ele julgava que o drama teatral já terminara, mas Lady Sarah
soltou um grito de frustração:
– Não entende nada!
– Oh, por amor de...
– Tem alguma ideia do que fez? – bradou ela. – Sentado
confortavelmente no aconchego da sua casa de Londres...
– Cale-se!
Hugh não sabia se o dissera em voz alta. Só queria que ela se
calasse. Que parasse de falar, que parasse de argumentar, que
simplesmente parasse!
Mas, em vez disso, ela deu um passo em frente e, com um olhar
venenoso, perguntou:
– Sabe quantas vidas arruinou?
Ele respirou fundo. Ar, precisava de ar. Não precisava de ouvir
aquilo. Muito menos dela. Sabia precisamente quantas vidas
arruinara e a daquela mulher não entrava na contagem.
Mas ela não se desarmou.
– Não lhe pesa a consciência? – sibilou.
Foi a gota de água. Sem pensar na perna magoada, avançou até
ela conseguir sentir o calor da respiração dele e encostou-a à
parede, encurralando-a com a simples fúria da sua presença.
– Não me conhece – rosnou. – Não sabe o que eu penso, como
me sinto ou que inferno tenho de suportar todos os dias da minha
vida. E da próxima vez que se sentir ofendida, a senhora, que nem
sequer tem o mesmo sobrenome de Lord Winstead, lembre-se de
que uma das vidas que arruinei é a minha.
Em seguida, afastou-se.
– Desejo-lhe uma boa noite – terminou, numa voz tão doce como
um dia de verão.
Por instantes, pensou que tudo tivesse finalmente terminado, mas
então Lady Sarah disse a única coisa que a poderia redimir:
– Eles são a minha família.
Hugh fechou os olhos.
– São a minha família – repetiu ela em voz estrangulada – e os
danos que lhes causou são irreparáveis. E, por isso, nunca serei
capaz de lhe perdoar.
– Nem eu – murmurou Hugh para consigo.
Capítulo 4

De volta à sala de estar de Fensmore,


com Honoria, Sarah, Harriet, Elizabeth,
Frances e Lord Hugh, onde os deixámos...

ra raro que o silêncio caísse numa reunião de primas Smythe-


E Smith. No entanto, foi exatamente isso que aconteceu quando,
depois de fazer uma vénia educada, Lord Hugh se retirou da sala.
Todas as cinco – isto é, as quatro irmãs Pleinsworth e Honoria –
permaneceram mudas por segundos, enquanto trocavam olhares,
como se houvesse necessidade de algum tempo passar.
Quase se podia ouvi-las contar, pensou Sarah, e de facto, assim
que chegou a dez na sua contagem silenciosa, Elizabeth arriscou o
primeiro comentário:
– Francamente, faltou-te uma certa subtileza.
– Que queres dizer? – perguntou Honoria, virando-se para ela.
– Estás a tentar fazer de casamenteira entre a Sarah e Lord Hugh,
certo?
– Claro que não! – exclamou Honoria, mas o uivo indignado de
Sarah foi bem mais sonoro.
– Ah, mas devias! – contrapôs Frances, batendo as palmas com
entusiasmo. – Eu gosto muito de Lord Hugh. É verdade que
consegue ser um pouco excêntrico, mas é terrivelmente inteligente.
E é um excelente atirador.
Todos os olhos se voltaram para Frances.
– Feriu o primo Daniel no ombro – lembrou Sarah.
– É um excelente atirador quando está sóbrio – esclareceu
Frances. – Foi o próprio Daniel quem disse.
– Nem me atrevo a imaginar a conversa que revelou tal facto –
disse Honoria –, nem quero pensar nisso na véspera do meu
casamento – acrescentou, antes de se virar para Sarah com
determinação. – Tenho um favor a pedir-te.
– Por favor, diz-me que não envolve Hugh Prentice.
– Envolve Hugh Prentice – confirmou Honoria. – Preciso da tua
ajuda.
Sarah suspirou ostensivamente. Teria de aceder ao pedido de
Honoria, é claro, e ambas sabiam disso. No entanto, mesmo que
Sarah se rendesse sem lutar, nada a impedia de reclamar.
– Temo que ele não se sinta bem-vindo em Fensmore – disse
Honoria.
Sarah não via nada a objetar àquela afirmação. Se Hugh Prentice
não se sentia bem-vindo, ela não tinha nada a ver com isso e não
era nada que ele não merecesse. Mas, sendo capaz de se mostrar
diplomática quando as circunstâncias o exigiam, Sarah contentou-se
em dizer:
– É provável que ele se isole. Não é uma pessoa muito sociável.
– Eu acho que ele é tímido – comentou Honoria.
Harriet, ainda sentada à secretária, soltou uma exclamação de
prazer.
– Um herói taciturno! Não há melhor. Vou incluí-lo na minha peça.
– Na peça do unicórnio? – quis saber Frances.
– Não, naquela em que estive a pensar esta tarde – respondeu
Harriet, antes de apontar a ponta da pena a Sarah e acrescentar: –
Com a heroína que não é nem muito rosa nem muito verde.
– Ele deu um tiro ao teu primo! – exclamou Sarah, virando-se
rapidamente para a irmã mais nova. – Ninguém se lembra disso?
– Foi há muito tempo – observou Harriet.
– E eu acho que ele se arrependeu – declarou Frances.
– Frances, tens onze anos – protestou Sarah. – Ainda não tens
capacidade de julgar o carácter de um homem.
Os olhos de Frances estreitaram-se.
– Sou muito capaz de julgar o teu.
Sarah olhou de irmã para irmã e depois voltou para Honoria.
Nenhuma delas percebia como Lord Hugh era uma pessoa ignóbil?
Mesmo se esquecesse por um momento – como se fosse possível!
– que ele quase destruíra a sua família, ele era desprezível. Bastava
conversar com ele dois minutos para...
– É verdade que ele parece muitas vezes desconfortável em
público – admitiu Honoria, interrompendo a retórica mental de Sarah
–, mas mais uma razão para nos empenharmos em fazê-lo sentir-se
bem-vindo. Eu... – Fez uma pausa e olhou em volta, notando que
Harriet, Elizabeth e Frances a ouviam com interesse indisfarçado. –
Com licença – disse, agarrando Sarah pelo braço e arrastando-a
para fora da sala de estar, atravessando o corredor até outra sala de
estar.
– Queres que eu seja a ama-seca de Hugh Prentice, é isso? –
exigiu saber Sarah, assim que Honoria fechou a porta.
– Claro que não. O que te peço é que o faças sentir-se parte das
festividades. Talvez esta noite, na sala de estar, antes do jantar... –
sugeriu Honoria.
Sarah soltou um resmungo.
– É provável que ele fique sozinho num canto.
– Talvez ele prefira.
– És tão boa a falar com as pessoas – insistiu Honoria. – Sabes
sempre o que dizer.
– Não a ele.
– Nem o conheces! – insistiu Honoria. – Não pode ser assim tão
mau.
– É claro que já o conheço! Não creio que haja uma pessoa em
Londres que eu não tenha conhecido. – Sarah pensou um momento
no que acabara de dizer e resmoneou: – Por mais patético que
seja.
– Eu não disse que não lhe tinhas sido apresentada, disse que
não o conheces – corrigiu Honoria. – Há uma grande diferença.
– Muito bem – concedeu Sarah, com certa má vontade. – Se
queres discutir minúcias...
Honoria limitou-se a inclinar a cabeça para o lado, forçando Sarah
a continuar:
– Posso não o conhecer, mas o que vi não me agrada
particularmente. E olha que tentei ser simpática nestes últimos
meses.
Honoria exibiu uma expressão cheia de ceticismo.
– Tentei, sim! – protestou Sarah. – Talvez não me tenha esforçado
muito, mas acredita em mim, Honoria, o homem não é propriamente
um conversador brilhante.
A prima parecia prestes a soltar uma gargalhada, o que só
aumentou a irritação de Sarah.
– Tentei falar com ele – resmungou – porque é isso que as
pessoas fazem nas reuniões sociais. Mas ele nunca responde como
devia.
– Como devia? – repetiu Honoria.
– Ele deixa-me desconfortável – explicou Sarah, com uma
fungadela. – E tenho a certeza de que não gosta de mim.
– Não sejas tonta. Toda a gente gosta de ti.
– Não, toda a gente gosta de ti – retorquiu Sarah com toda a
franqueza. – Ao contrário de ti, eu não tenho um coração bom e
puro.
– Do que estás a falar?
– Tu vês o melhor nas pessoas, mas eu vejo o mundo de forma
mais cínica. E eu... – Sarah parou. Como pô-lo em palavras? –
Digamos que há pessoas que me acham bastante irritante.
– Isso não é verdade – protestou Honoria.
Porém, era óbvio que se tratava de uma resposta mecânica.
Sarah estava convencida de que, se a prima tivesse tido tempo para
pensar, reconheceria certamente que havia um grande fundo de
verdade.
O que não a teria impedido de responder o mesmo, pois Honoria
era extraordinariamente leal.
– Sim, é verdade – insistiu Sarah –, e isso não me incomoda. Não
muito. E, no que diz respeito a Lord Hugh, não me incomoda de
todo, já que é recíproco.
Honoria precisou de um momento para descodificar o significado
daquelas palavras e, então, revirou os olhos. Discretamente, mas
Sarah conhecia-a demasiado bem para não notar. Na sua doce e
gentil prima, era o equivalente a um grito incrédulo.
– Acho que devias dar-lhe uma oportunidade – disse Honoria. –
Nunca tiveste uma conversa digna desse nome com ele.
A conversa deles não tivera nada de digno, pensou Sarah com
ressentimento, considerando que quase chegavam a vias de facto.
A verdade é que ela não sabia o que lhe dizer. Ficava doente
sempre que se lembrava do encontro na festa de noivado de
Charles Dunwoody. Só conseguira desfiar uma série de lugares-
comuns e talvez tenha chegado mesmo a bater o pé. Ele deve tê-la
tomado por uma perfeita imbecil e, para ser franca, desconfiava que
agira como tal.
Não que se importasse com o que ele pensava dela, isso era dar
demasiada importância à opinião dele. Mas naquele terrível
confronto na biblioteca da família Dunwoody, e nas poucas palavras
que trocaram depois, Hugh Prentice reduzira-a a alguém de quem
ela não gostava.
E isso era-lhe impossível perdoar.
– Não cabe a mim dizer com quem tens empatia ou não –
continuou Honoria, quando se apercebeu de que Sarah não ia
comentar –, mas decerto és capaz de encontrar forças para suportar
a companhia de Lord Hugh por um dia.
– O sarcasmo combina contigo – respondeu Sarah, desconfiada. –
Quando é que isso aconteceu?
Honoria sorriu.
– Eu sabia que podia contar contigo.
– Pois sim – murmurou Sarah.
– Não é assim tão terrível – disse Honoria, dando-lhe uma
palmadinha afetuosa no braço. – Na verdade, acho-o bastante
atraente.
– Não importa se é atraente.
– Isso quer dizer que o achas atraente? – perguntou a prima,
imediatamente.
– O que eu acho é que ele é muito esquisito – ripostou Sarah. – E
se estás a tentar fazer de casamenteira...
– De modo algum! – defendeu-se Honoria, erguendo os braços em
rendição. – Juro. Foi apenas uma observação. Acho que ele tem
uns olhos muito bonitos.
– Gostaria mais se ele tivesse um dedo do pé vestigial –
resmungou Sarah.
Talvez devesse mesmo escrever um livro.
– Um dedo do pé... quê?
– Sim, ele tem olhos muito bonitos – concordou, docilmente.
Era verdade, admitia. Ele tinha olhos muito bonitos, de um verde-
musgo e extremamente inteligentes e penetrantes. Mas uns lindos
olhos não eram suficientes para fazer dele um potencial marido.
Não, ela não via todos os homens pelo prisma do casamento! Bem,
não todos, e certamente não aquele homem. Ficou claro, no
entanto, que, apesar dos protestos, os pensamentos da prima
tomavam essa direção.
– Farei isso por ti – disse Sarah –, porque sabes que faria
qualquer coisa por ti. O que significa que me atiraria para a frente de
uma carruagem, se fosse preciso. – Fez uma pausa para dar tempo
a Honoria de absorver tal declaração e, depois, prosseguiu com
grande solenidade: – E, se estou pronta para me atirar para a frente
de uma carruagem, parece-me lógico que também aceite algo que
não envolve o sacrifício da minha vida.
Honoria fitou-a com ar tão intrigado, que Sarah se sentiu obrigada
a acrescentar:
– Como sentar-me ao lado de Lord Hugh Prentice na boda de
casamento.
– Sim, é muito... lógico – murmurou Honoria, depois de demorar
algum tempo a absorver.
– A propósito, vou ter de suportar a companhia dele não um dia,
mas dois – disse Sarah com um franzir de nariz. – Só para que fique
claro.
– Isso quer dizer que vais entreter Lord Hugh antes do jantar? –
perguntou Honoria, com um sorriso gracioso.
– Entreter... – repetiu Sarah com ironia. – Devo dançar? Porque
está fora de questão tocar piano, sabes disso.
Com uma risada, Honoria encaminhou-se para a porta e, antes de
sair, ainda se virou para atirar:
– Basta seres tu mesma, charmosa como sempre. Ele vai adorar.
– Deus nos livre!
– Deus escreve direito por linhas tortas...
– Não tão tortas assim.
– Creio que a senhora protesta...
– Não termines essa frase! – interrompeu Sarah.
Honoria ergueu as sobrancelhas.
– Shakespeare decerto sabia do que falava.
Sarah atirou-lhe uma almofada.
Mas falhou. Havia dias assim.

Mais tarde, no mesmo dia...

Lord Chatteris tinha organizado um concurso de tiro ao alvo


naquela tarde. Como era um dos poucos desportos que ainda podia
praticar, Hugh decidiu ir para o relvado sul à hora marcada. Ou,
mais exatamente, meia hora antes. A sua perna ainda estava muito
rígida e, mesmo com a ajuda da bengala, andava mais devagar do
que habitualmente. Havia remédios para aliviar a dor, mas o
bálsamo aconselhado pelo médico tinha um cheiro horrendo. E
Hugh não suportava o entorpecimento da mente causado pelo
láudano.
Sobrava-lhe apenas o álcool, e tinha de admitir que um copo ou
dois de brandy pareciam relaxar os músculos e adormecer a dor. No
entanto, considerando o que havia acontecido da última vez que se
embriagara, raramente se permitia esse alívio. Também se
esforçava por não beber antes da hora do jantar. Nas poucas vezes
em que sucumbira à tentação, censurara-se durante dias.
Restavam-lhe tão poucas áreas onde pudesse medir as próprias
forças que, para ele, era uma questão de honra enfrentar a dor até
ao crepúsculo, sem outra arma além da vontade.
As escadas eram o maior obstáculo, e Hugh parou no patamar
para flexionar a perna. Talvez devesse desistir. Ainda não chegara a
meio do caminho e já sentia o característico latejar constante na
coxa. Ninguém notaria se ele desse meia-volta e regressasse ao
quarto.
Mas, caramba, queria praticar tiro ao alvo! Queria segurar uma
arma, levantar um braço com segurança e precisão, pressionar o
gatilho e sentir o coice no ombro. E, mais do que tudo, queria
acertar em cheio no alvo.
Afinal, era um homem e era de se esperar que fosse competitivo.
Haveria sussurros e olhares furtivos, certamente. Não passaria
despercebido que Hugh Prentice se encontrasse armado nas
imediações de Daniel Smythe-Smith, mas Hugh ansiava por isso,
até com certa perversidade. Assim como Daniel, que já lho havia
dito ao pequeno-almoço.
– Dez libras se conseguirmos fazer alguém desmaiar – desafiara
Daniel, logo após ter feito uma imitação bastante aceitável de uma
das matronas do Almack’s, com voz de falsete, mão no coração e
uma enxurrada de expressões indignadas.
– Dez libras? – murmurou Hugh, fitando-o por cima da chávena de
café. – Para mim ou para ti?
– Para os dois – respondeu Daniel, com um sorriso insolente. – É
o Marcus que vai pagar.
Marcus olhou-o com ar condenatório e voltou a atenção para os
ovos mexidos.
– A idade está a torná-lo cada vez mais enfadonho – comentou
Daniel.
Com grande mostra de paciência, Marcus limitou-se a revirar os
olhos.
Hugh sorriu e percebeu que há muito não se divertia tanto. Se os
homens iam praticar tiro ao alvo, juntar-se-ia a eles, caramba!
Porém, levou, pelo menos, cinco minutos a descer ao andar
térreo. Quando lá chegou, decidiu atalhar por um dos muitos salões
de Fensmore, em vez de fazer o caminho mais longo e contornar o
edifício até ao relvado do lado sul.
Nos últimos três anos e meio, Hugh adquirira uma notável
capacidade de encontrar atalhos.
Tudo o que tinha de fazer era entrar na terceira porta à direita,
virar à esquerda, atravessar o aposento e sair por uma das portas
envidraçadas. Poderia até aproveitar para descansar um momento
nos sofás. A maioria das senhoras tinha ido à aldeia, portanto, era
improvável que o salão estivesse ocupado. Segundo o seu cálculo,
tinha cerca de quinze minutos antes do início da competição de tiro
ao alvo.
Aquela sala de estar era relativamente pequena, com apenas
alguns assentos. Hugh viu um cadeirão azul, à sua frente, que lhe
pareceu bastante confortável. Embora não pudesse ver para lá do
sofá, de costas para ele, supôs que haveria uma mesa de centro
entre os dois assentos, na qual poderia descansar a perna um
momento, sem incomodar ninguém.
Foi até lá, mas não deve ter prestado a devida atenção, pois a sua
bengala chocou no rebordo da mesa, fazendo com que batesse
nesta em cheio com a canela, o que, por sua vez, levou a que um
chorrilho de asneiras lhe escapasse da boca quando se virou para
se sentar.
Foi então que viu Sarah Pleinsworth a dormir no sofá.
Livra, que azar!
Estava a ter um dia relativamente bom, tirando a dor na perna. A
última coisa que queria era uma conversa a sós com a dramática
Lady Sarah. Ela ia provavelmente acusá-lo de algum ato infame,
seguido de uma declaração de ódio e terminaria a diatribe evocando
os catorze homens que tinham ficado noivos na temporada social de
1821.
Hugh ainda não sabia o motivo daquele comentário.
Ou porque se lembrava sequer de tal detalhe. Sempre tivera uma
memória excecional, é certo, mas não poderia o seu cérebro livrar-
se do estritamente inútil?
Tinha de sair da sala sem a acordar. Andar em pontas dos pés
com uma bengala não seria fácil, mas, por Deus, seria exatamente
isso que faria, se fosse a única maneira de escapar discretamente.
Teve de dizer adeus à esperança de descansar a perna. Com
extrema cautela, começou a contornar devagarinho a mesa de
centro, sem tocar em nada. No entanto, como era do conhecimento
geral, o ar move-se e ele provavelmente respirara com demasiada
força, porque, antes de passar pelo sofá, Lady Sarah acordou com
um grito tão alto que, apanhado de surpresa, Hugh recuou e bateu
noutro cadeirão, tombou sobre o braço estofado e caiu
desajeitadamente no assento.
– Que... que... que está a fazer? – Lady Sarah pestanejou várias
vezes, antes de lhe atirar um olhar duro e dizer: – Lord Hugh!
Era uma acusação. Sem sombra de dúvida.
– Assustou-me – acrescentou, esfregando os olhos.
– Aparentemente. – Hugh praguejou baixinho enquanto tentava
trazer as pernas para a frente do cadeirão. – Ai!
– O que foi? – perguntou ela, impaciente.
– Bati na mesa.
– Porquê?
– Não fiz de propósito – respondeu ele, com má cara.
Só então ela pareceu perceber que estava deitada num sofá e,
com um movimento repentino, endireitou-se, adotando uma pose
mais adequada.
– Peço desculpa – murmurou, ainda atrapalhada.
Algumas mechas de cabelo escuro tinham escapado do penteado,
mas Hugh achou melhor não mencionar o facto.
– Por favor, aceite as minhas desculpas – disse, com formalidade.
– Não queria assustá-la.
– Eu estava a ler. Devo ter adormecido. Eu... hã... – Pestanejou
mais um par de vezes, o olhar pareceu finalmente focar-se nele e
ela perguntou de repente: – Veio espiar-me?
– Não! – respondeu ele, com mais pressa e convicção do que
deveria. – Estava apenas a fazer um atalho – acrescentou,
apontando para a porta envidraçada. – Lord Chatteris organizou
uma competição de tiro ao alvo.
– Oh... – Ela pareceu desconfiar por um segundo e, então, a sua
expressão tornou-se claramente embaraçada. – Claro. Não haveria
razão para me espiar... isto é... é isso – concluiu, depois de aclarar a
garganta.
– É isso.
Ela esperou um momento, depois perguntou:
– Não pretende seguir para o relvado?
Hugh fitou-a sem responder.
– Para o tiro ao alvo – esclareceu ela.
Ele encolheu os ombros e respondeu:
– Cheguei cedo.
A resposta não pareceu agradá-la.
– Está muito agradável lá fora.
Ele olhou pela janela e assentiu:
– Pois está.
Ela queria livrar-se dele e Hugh supôs que merecia algum respeito
por nem tentar escondê-lo. Por outro lado, agora, que estava
acordada – e que ele estava sentado a descansar a perna –, não lhe
parecia haver razão para pressas.
Era capaz de aguentar qualquer coisa durante dez minutos, até
mesmo Sarah Pleinsworth.
– Pretende disparar? – perguntou ela.
– Sim.
– Com uma arma?
– É esse geralmente o processo.
A expressão dela contraiu-se.
– E acha prudente?
– Diz isso porque o seu primo vai lá estar? Se a deixar mais
descansada, ele também terá uma arma. Será quase como um
duelo – acrescentou, os lábios curvando-se num sorriso sem
emoção.
– Como pode brincar com um assunto desses? – revidou ela.
Ele arrastou o olhar vagaroso até fixar o dela e respondeu:
– Quando a alternativa é o desespero, eu costumo preferir o
humor. Mesmo que seja humor negro.
Algo tremulou nos olhos dela. Um lampejo de compreensão,
talvez, embora muito fugaz para ele ter a certeza. Então, ela apertou
os lábios com tanta severidade que a dúvida se dissipou: era óbvio
que ele imaginara o breve momento de empatia.
– Pois fique sabendo que desaprovo – declarou ela.
– Devidamente anotado.
– E... acho que é uma péssima ideia – acrescentou, de queixo
erguido e desviando um pouco o olhar.
– Como é isso diferente da desaprovação?
Ela franziu o sobrolho e não disse nada.
De repente, uma ideia passou pela mente de Hugh.
– Acha mau o suficiente para desmaiar?
De imediato, Sarah concentrou a atenção nele.
– Como disse?
– Se desmaiar no relvado, o Chatteris terá de pagar dez libras ao
Daniel e a mim.
Os lábios de Sarah abriram-se, mas nenhum som saiu, e ela ficou
imobilizada naquela posição.
Hugh recostou-se e abriu um sorriso lento.
– Posso ser convencido a partilhar vinte por cento consigo.
Ela arregalou os olhos sem recuperar o uso da fala. Era
impossível negar o prazer que sentia em atormentá-la.
– Não importa, nunca conseguiríamos convencer ninguém – disse
ele.
Sarah fechou a boca, finalmente. E voltou a abri-la. Claro, ele
devia saber que aquele silêncio só podia ser passageiro.
– Não gosta de mim – afirmou ela.
– Não especialmente.
Talvez fosse melhor mentir, mas parecia-lhe que algo menos do
que a verdade seria ainda mais insultuoso.
– E eu também não gosto de si.
– Não, imaginei que não – admitiu ele.
– Nesse caso, porque está aqui?
– No casamento?
– Nesta sala. Santo Deus, haja paciência para tanta idiotice...
A última parte, disse-a para si mesma, mas Hugh sempre tivera
uma excelente audição.
Raramente usava a sua lesão como trunfo, mas pareceu-lhe um
bom momento.
– É a minha perna – disse, com deliberada lentidão. – Dói-me.
Caiu um silêncio delicioso. Delicioso para ele, a bem dizer. Para
ela, deve ter sido horrível.
– Peço desculpa – murmurou ela, baixando os olhos antes que ele
tivesse tempo de avaliar a extensão do rubor. – Foi muito rude da
minha parte.
– Não tem importância. Já fez pior.
Ela olhou para cima, os olhos muito abertos.
Hugh uniu os dedos, as mãos formando um triângulo.
– Recordo o nosso último encontro com desagradável exatidão.
– Expulsou a minha prima e a minha tia de uma festa – replicou
ela, furiosa.
– Elas fugiram. Há uma diferença. E eu nem sabia que elas lá
estavam.
– Bem, devia saber.
– A clarividência nunca foi uma das minhas qualidades.
Ele via como ela se esforçava por manter a compostura e, quando
voltou a falar, foi quase com o maxilar cerrado.
– Eu sei que se reconciliou com o meu primo Daniel. Lamento,
mas eu não posso perdoar-lhe.
– Mesmo que ele o tenha feito? – perguntou Hugh, em tom
suave.
Desconfortável, ela mudou de posição e várias expressões lhe
perpassaram o rosto antes de finalmente responder:
– Ele pode dar-se ao luxo de ser caridoso. A vida e a felicidade
foram-lhe restauradas.
– E a sua não.
Não era uma pergunta, apenas uma constatação, pouco
simpática, por sinal.
Ela cerrou os lábios.
– Diga-me – insistiu Hugh, porque, caramba, era hora de
chegarem ao fundo da questão –, que fiz eu, precisamente, para lhe
afetar tanto a vida? Não à sua prima nem à sua outra prima, mas a
si especificamente, Lady Sarah Pleinsworth?
Ela olhou-o muito revoltada e levantou-se de repente, dizendo:
– Vou-me embora.
– Covarde – murmurou ele, levantando-se também, pois até ela
merecia a cortesia de um cavalheiro.
– Muito bem – disse ela, as faces coradas de raiva. – Eu devia ter
feito o meu debute em 1821.
– O ano dos catorze cavalheiros solteiros.
Era verdade. Ele tinha uma memória de elefante.
Sarah ignorou a observação e continuou:
– Depois de obrigar o Daniel a sair do país, a minha família isolou-
se no campo.
– Foi o meu pai – corrigiu Hugh, secamente.
– Perdão?
– Foi o meu pai quem obrigou Lord Winstead a sair do país. Eu
não tive nada a ver com isso.
– Pouco importa.
Com olhos semicerrados e tom duro, Hugh respondeu:
– Para mim, é importante.
Ela engoliu em seco, envergonhada, o corpo tenso.
– Por causa do duelo – corrigiu ela, para que a culpa voltasse para
ele –, não voltámos a Londres por um ano inteiro.
Hugh engoliu a vontade de rir, compreendendo finalmente aquela
cabeça de vento: ela culpava-o por ter sido privada do seu debute
na sociedade londrina.
– Resultado: perdeu para sempre os tais catorze cavalheiros.
– Não há necessidade de ser tão trocista.
– Não tem como saber se algum deles a teria pedido em
casamento – salientou, pois gostava que tudo fosse regido pela
lógica e aquele... não era o caso.
– Não há como saber se algum deles não o teria feito! – exclamou
ela.
Levou a mão ao peito e deu um passo atrás, espantada com a
intensidade da própria reação.
Hugh não sentiu compaixão e não conseguiu conter uma risada
cruel.
– Não para de me surpreender, Lady Sarah. Durante todo este
tempo, tem-me culpado a mim pelo seu estado de solteira? Já lhe
ocorreu olhar-se ao espelho?
Ela soltou um grito estrangulado, levou a mão à boca, não para a
esconder, mas para se impedir de falar.
– Perdoe-me – disse ele, embora ambos estivessem cientes de
que ele acabara de dizer algo imperdoável.
– Pensei que não gostava de si por causa do que fez à minha
família – declarou ela, o corpo tão hirto que tremia –, mas não é
isso, de todo. O senhor é uma pessoa horrível.
Hugh manteve-se perfeitamente imóvel, tal como fora ensinado
desde que nascera. Um cavalheiro mantinha sempre o controlo do
próprio corpo. Um cavalheiro não esbracejava, não gritava, não se
mostrava fisicamente irrequieto. Não lhe restava muito mais na vida,
exceto isso: o seu orgulho e a sua frieza.
– Vou tratar de não lhe impor mais a minha presença – disse,
austero.
– É um pouco tarde para isso – rosnou ela.
– Perdão?
Ela fuzilou-o com o olhar e explicou:
– A minha prima, se bem se lembra, pediu que nos sentássemos
lado a lado na boda de casamento.
Aparentemente, Hugh também se esquecia de algumas coisas.
Santo Deus! Tinha feito a promessa a Lady Honoria e era impossível
revertê-la.
– Eu consigo ser civilizado, se também for – disse.
Sarah apanhou-o de surpresa, estendendo a mão para selar o
acordo. Hugh aceitou e, no momento em que a mão dela tocou a
dele, Hugh foi tomado pelo inexplicável desejo de levar aquela mão
aos lábios.
– Tréguas? – sugeriu ela.
Hugh cometeu o erro de erguer o olhar.
Lady Sarah Pleinsworth fitava-o com uma expressão de invulgar e
– estava certo disso – atípica clareza. Os olhos dela, que sempre
vira severos e acusadores quando voltados para ele, tinham-se
suavizado. E percebeu que os seus lábios, agora que não proferiam
mais insultos, eram absolutamente perfeitos: cheios e rosados, com
uma deliciosa curva. Pareciam revelar a um homem que ela sabia
das coisas, que sabia rir e que, se ele revelasse o que lhe ia na
alma, ela seria capaz de iluminar a vida dele com um simples
sorriso.
Sarah Pleinsworth.
Deus do céu, teria ele perdido a cabeça?
Capítulo 5

Mais tarde, naquela noite

uando desceu para o jantar, Sarah sentia-se mais conformada


Q com a ideia de ter de passar a noite com Hugh Prentice. A
discussão daquela tarde tinha sido horrível, e ela não imaginava que
alguma vez pudessem ser amigos, mas, pelo menos, servira para
pôr as cartas na mesa. Se era obrigada a acompanhá-lo durante
toda a boda de casamento, ele não ficaria a pensar que ela o fazia
por querer a companhia dele.
E ele também se comportaria corretamente. Tinham chegado a
um acordo e, apesar de todos os seus defeitos, ele não parecia
pessoa de voltar atrás na palavra dada. Seria educado e
desempenharia bem o seu papel perante Honoria e Marcus. Então,
quando aquela ridícula sucessão de casamentos terminasse, no fim
do mês, nunca mais se falariam.
No entanto, depois de cinco minutos na sala de estar, Sarah ficou
satisfeita ao ver que Lord Hugh não estava presente. E tinha
procurado por ele. Ninguém a podia acusar de ter tentado fugir ao
seu dever.
Sarah, que nunca gostara de ficar sozinha em reuniões sociais,
juntou-se à mãe e às tias junto à lareira. Como seria de esperar, o
tema da conversa era o casamento. Sarah ficou a ouvir
distraidamente, pois, ao fim de cinco dias em Fensmore, duvidava
que ainda não tivesse ouvido algum pormenor da cerimónia
iminente.
– É uma pena que não seja época de hortênsias – comentou a tia
Virginia. – As que crescem em Whipple Hill são exatamente do
mesmo tom alfazema-azulado de que precisamos para a capela.
– É azul-alfazema – corrigiu a tia Maria –, e teria sido um erro
terrível escolher hortênsias.
– Erro?
– As cores são demasiado variáveis – explicou a tia Maria –,
mesmo num arbusto de cultivo. É impossível garantir o tom com
antecedência, e o que teria acontecido, se elas não combinassem
na perfeição com o vestido de Honoria?
– Não me parece que alguém exija perfeição – argumentou a tia
Virginia. – Não no que diz respeito a flores.
– Eu espero sempre perfeição – respondeu a tia Maria, com uma
fungadela.
– Especialmente quando se trata de flores – disse Sarah, com
uma risada.
Todas as filhas da tia Maria tinham nomes de flores. O único filho,
que Sarah considerava a criança mais sortuda da Inglaterra,
chamava-se John.
Infelizmente, a tia Maria, embora normalmente uma pessoa de
bom coração, tinha pouco sentido de humor. Piscou os olhos várias
vezes na direção de Sarah, antes de murmurar com um sorriso
vago:
– Ah, sim, claro!
Sarah não percebeu se ela tinha entendido a piada, mas preferiu
não insistir.
– Ah, ali vem a Iris! – exclamou, aliviada, vendo a prima entrar na
sala.
Sarah nunca fora tão próxima de Iris como de Honoria, mas as
três eram quase da mesma idade e Sarah sempre gostara do humor
mordaz de Iris. Passariam, sem dúvida, mais tempo juntas depois
de Honoria se casar, especialmente porque partilhavam a mesma
profunda aversão ao tradicional sarau musical da família.
– Vai ter com ela – sugeriu a mãe. – Não me parece que queiras
ficar aqui com as mães de família.
Sarah tinha de admitir que era verdade e, depois de lhe dar um
sorriso agradecido, foi ter com Iris, junto à porta, obviamente à
procura de alguém.
– Viste Lady Edith? – perguntou Iris, sem preâmbulos.
– Quem?
– Lady Edith Gilchrist – especificou Iris, referindo-se a uma jovem
que nenhuma das duas conhecia bem.
– Ela não esteve noiva, recentemente, do duque de Kinross? –
perguntou Sarah.
Iris ignorou a pergunta, como se a recente perda de um duque
elegível fosse um facto trivial, e mudou de assunto:
– A Daisy já desceu?
– Não a vi – respondeu Sarah, desconcertada com a mudança
abrupta de assunto.
– Graças a Deus!
Os olhos de Sarah arregalaram-se ao ouvir Iris invocar o nome do
Senhor, mas não ousaria criticá-la. Não quando se tratava de Daisy.
Daisy era suportável apenas em doses muito pequenas. Era um
facto e não havia volta a dar.
– Se eu chegar ao fim destes casamentos sem a matar, será um
pequeno milagre – comentou Iris com ar sombrio. – Ou um grande...
qualquer coisa.
– Eu pedi à tia Virginia para não vos pôr no mesmo quarto – disse
Sarah.
A resposta da prima foi um ligeiro movimento da cabeça,
retomando a sua busca pela sala de estar.
– Não havia nada a fazer. É normal as irmãs ficarem juntas
quando é necessário ter mais quartos livres. Já estou habituada.
– Então, o que se passa?
Iris virou-se para encarar a prima. No seu rosto pálido, os grandes
olhos igualmente pálidos brilhavam com fúria. Sarah ouvira certa
vez um cavalheiro comentar que Iris era incolor. É verdade que os
seus olhos eram azul-claros, a pele quase translúcida e o cabelo,
assim como as pestanas e as sobrancelhas, de um loiro quase
branco. Tudo era pálido nela... até a conhecermos.
Na verdade, Iris era de uma intensidade inigualável.
– Ela quer tocar! – explicou, a ferver de irritação.
Por um momento, Sarah não entendeu. Então, horrorizada,
respondeu em choque:
– Não!
– Trouxe o violino de Londres – confirmou Iris.
– Mas...
– E o violino da Honoria já está em Fensmore. E, claro, todas as
mansões têm um piano.
Iris cerrou o maxilar. Era óbvio que estava a repetir as palavras de
Daisy.
– Mas o teu violoncelo não veio, pois não? – tentou Sarah.
– Seria lógico pensar isso, não é? – fumegou Iris. – Mas ela
pensou em tudo. Lady Edith Gilchrist está cá e trouxe o violoncelo
dela. A Daisy quer que eu lho peça emprestado.
Instintivamente, Sarah perscrutou a sala, à procura de Lady Edith.
– Ainda não está aqui – declarou Iris, com pragmatismo –, mas
tenho de falar com ela assim que entrar nesta sala.
– Porque é que Lady Edith traria um violoncelo?
– Porque ela toca violoncelo – respondeu Iris, como se Sarah não
tivesse considerado essa possibilidade.
Sarah resistiu, embora talvez não completamente, à vontade de
revirar os olhos.
– Certamente, mas porque o traria para cá?
– Parece que é muito boa.
– O que tem isso a ver?
Iris encolheu os ombros.
– Creio que ela gosta de praticar todos os dias. É o que muitos
dos grandes músicos fazem.
– Bom, eu não sei nada a respeito disso – comentou Sarah.
Depois de lhe dar um olhar de comiseração, Iris continuou:
– Preciso de a encontrar antes da Daisy. Ela não pode deixar, em
caso algum, que a Daisy lhe peça o violoncelo emprestado em meu
nome.
– Se ela é assim tão boa, provavelmente não vai querer emprestá-
lo. Muito menos a uma de nós – concluiu Sarah, com uma careta.
Embora não vivesse em Londres há muito tempo, Lady Edith já
tinha certamente ouvido falar do sarau musical anual da família
Smythe-Smith.
– Peço já desculpa antecipadamente – disse Iris. – É provável que
eu tenha de te abandonar a meio de uma frase, se a vir.
– Talvez eu te abandone primeiro – avisou Sarah. – Tenho de
cumprir alguns deveres esta noite.
A sua relutância deve ter sido evidente, pois Iris virou-se para ela
com interesse renovado.
– Tenho de fazer de ama-seca de Hugh Prentice – explicou Sarah,
as palavras escapando-lhe da boca com desânimo excessivo.
No entanto, era um desânimo no bom sentido, pois, se tinha de
passar uma noite terrível, podia, pelo menos, alardeá-lo
antecipadamente.
– Ama-seca de... oh, meu Deus!
– Não te rias – advertiu Sarah.
– Não pretendia fazê-lo – mentiu Iris, descaradamente.
– A Honoria insistiu. Acha que ele não se sentirá bem-vindo, se
uma de nós não cuidar da sua felicidade e o incluir nas festividades.
– E foi a ti que confiou essa tarefa de ama-seca?
Iris fitou-a com ar de dúvida. Era sempre perturbador ser
submetida ao exame daqueles olhos azul-pálidos, com pestanas
quase invisíveis. A prima conseguia ser bastante desconcertante.
– Bem, na verdade não – admitiu Sarah. – Não por essas
palavras.
Na verdade, por palavras nenhumas. Aliás, Honoria rejeitara
justamente essas palavras, mas a história era mais apetecível se ela
se intitulasse ama-seca.
Em reuniões como aquela, era preciso ter algo interessante sobre
que reclamar. Era como aqueles rapazes que conhecera em
Cambridge na primavera anterior. Só pareciam felizes quando
reclamavam sobre a quantidade de trabalho que tinham de fazer.
– Que quer ela que faças? – quis saber Iris.
– Oh, nada de mais. Tenho de ficar sentada ao lado dele na mesa,
amanhã, na boda. O Rupert está doente – acrescentou, como
aparte.
– Pelo menos, isso é uma boa notícia – murmurou Iris.
Sarah aquiesceu e continuou:
– E ela pediu-me expressamente para entreter Lord Hugh antes
do jantar.
– Ele já está aqui? – perguntou Iris, espreitando por cima do
ombro.
– Não – respondeu Sarah, sem conter um suspiro de alívio.
– Não te acomodes demasiado – avisou Iris. – Ele vai descer. Se a
Honoria te pediu especificamente para lhe fazeres companhia,
também lhe deve ter pedido especificamente para vir jantar.
Sarah fitou-a com horror. Honoria afirmara-lhe que não estava a
fazer de casamenteira entre os dois...
– Achas que...
– Não, não acredito! – assegurou Iris, com um ronco de riso. – Ela
não se atreveria a fazer de casamenteira. Não contigo.
Quando Sarah estava prestes a perguntar o que queria a prima
dizer, Iris acrescentou:
– Tu conheces a Honoria. Ela gosta de tudo muito organizado. Se
quer que faças companhia a Lord Hugh, vai assegurar-se de que ele
recebe a devida atenção.
Depois de pesar aquelas palavras um momento, Sarah finalmente
concordou com um aceno de cabeça. De facto, Honoria era assim.
– Bom... – disse, pois sempre gostara de um declarativo «bom». –
Os próximos dois dias serão péssimos, mas prometi à Honoria e
cumpro sempre as minhas promessas.
Se estivesse a beber, Iris ter-se-ia engasgado.
– Tu?
– O que queres dizer com isso?
– Oh, poupa-me! – disse Iris, naquele tom desdenhoso que só se
usa com alguém da família, sem esperar consequências de maior. –
És a última pessoa a poder reivindicar cumprir todas as suas
promessas.
Sarah deu um passo atrás, profundamente ofendida.
– Não estou a perceber.
Se notou a indignação de Sarah, Iris não deu mostras disso. Ou
simplesmente ignorou.
– A tua memória não se estende até abril passado? – espicaçou
Iris. – Até dia catorze de abril, para ser mais exata?
O sarau musical. Sarah tinha-se escapado ao concerto daquela
tarde.
– Eu estava doente – protestou. – Estava absolutamente incapaz
de tocar.
Iris não respondeu. Era inútil. Sarah estava a mentir e ambas
sabiam disso.
– Pronto, está bem, não estava doente – admitiu Sarah. – Pelo
menos, não muito doente.
– É bom da tua parte reconhecê-lo finalmente – disse Iris, num
tom de irritante superioridade.
Sarah mudou de pé para pé, incomodada. Naquela primavera, o
quarteto era composto por Iris e ela, além de Honoria e Daisy.
Honoria não se importava de tocar, desde que fosse com a sua
família, e Daisy convenceu-se de estar prestes a tornar-se uma
virtuosa. Iris e Sarah, por outro lado, tiveram muitas conversas em
que consideraram várias possíveis mortes por instrumentos
musicais. O humor negro tinha sido o único recurso para enfrentar o
medo.
– Fi-lo por ti – disse, finalmente a Iris.
– Não me digas!
– Pensei que o concerto seria cancelado.
Iris mostrou-se claramente descrente.
– É verdade! – insistiu Sarah. – Quem havia de dizer que a mamã
arrastaria a pobre Miss Wynter? Embora as coisas tenham acabado
bem para ela, isso não se pode negar.
Miss Anne Wynter, que se casaria com o primo Daniel daí a duas
semanas e se tornaria condessa de Winstead, certa vez cometera o
erro de dizer à mãe de Sarah que tocava piano. Aparentemente,
Lady Pleinsworth não se esquecera.
– O Daniel ter-se-ia apaixonado por Miss Wynter de qualquer
maneira – retorquiu Iris –, por isso, não tentes aliviar a consciência
com esse pretexto.
– Não é o caso. Só estava a dizer que não podia prever... – Sarah
interrompeu-se e não conseguiu conter um suspiro irritado. Nada do
que dizia refletia o que lhe ia na mente. – Iris, quero que saibas que
eu estava a tentar ajudar-te.
– Era a ti quem tentavas ajudar.
– Tentei ajudar-nos às duas. Eu só... só não funcionou como eu
esperava.
Iris olhou-a friamente. Sarah esperou pacientemente por uma
resposta que não veio. A prima manteve-se impassível, prolongando
o momento como um fio de melaço que teima em não cair.
Finalmente, no final da paciência, Sarah desistiu:
– Vá, pronto, diz de uma vez!
Iris ergueu uma sobrancelha.
– Diz o que tens aí na ponta da língua. É óbvio que tens algo a
dizer-me.
Iris abriu a boca, depois fechou-a, como se aproveitasse o tempo
para escolher as palavras certas. Finalmente, começou:
– Sabes que te adoro.
Não era o que Sarah esperava. Infelizmente, também não estava
à espera do que se seguiu.
– Vou sempre adorar-te – continuou Iris. – Aliás, vou sempre
gostar de ti, e sabes que não posso dizer o mesmo sobre grande
parte da nossa família. Mas tu consegues ser terrivelmente egoísta.
E o pior de tudo é que nem te apercebes disso.
Que estranho, pensou Sarah, querer dizer alguma coisa, sentir a
necessidade de dizer alguma coisa, porque era isso que fazia
quando confrontada com algo de que não gostava, e Iris não podia
acusá-la de ser egoísta e esperar que ela se ficasse... E, contudo,
não disse uma palavra.
Engoliu em seco, depois humedeceu os lábios com a ponta da
língua, mas foi incapaz de formar uma única palavra. Só conseguia
pensar: não, não é verdade. Amava a família. Faria qualquer coisa
por ela. Que Iris pudesse acusá-la de ser egoísta...
Magoava-a profundamente.
Sarah fixou o rosto da prima e viu o momento exato em que Iris
esqueceu o assunto, como se acusá-la de ser egoísta não fosse a
coisa mais importante do mundo.
Como se alguma coisa pudesse ser mais importante!
– Ali está ela – anunciou Iris, bruscamente. – Lady Edith. Tenho de
a intercetar antes da Daisy. – Avançou um passo, depois virou-se e
acrescentou: – Podemos conversar sobre isto mais tarde, se
quiseres.
– Prefiro não o fazer, obrigada – articulou Sarah com secura,
finalmente arrancando a sua personalidade do desconfortável
abismo em que a declaração da prima a fizera cair.
Mas Iris não ouviu, porque já seguia no encalço de Lady Edith.
Sarah ficou sozinha no canto, tão desconcertada como uma noiva
abandonada no altar.
Foi obviamente nesse momento que Hugh Prentice decidiu
aparecer.
Capítulo 6

mais curioso é que Sarah pensou estar zangada.


O Julgou estar furiosa com Iris, que devia mostrar-se mais
sensível aos sentimentos dos outros. Se Iris tinha sentido a
necessidade de lhe chamar egoísta, pelo menos poderia tê-lo feito
num lugar mais privado.
E, depois, ir-se embora daquela maneira? Sarah compreendia a
urgência de falar com Lady Edith antes que Daisy a abordasse, mas
Iris podia ao menos dizer que lamentava.
Foi nesse momento, quando se interrogava quanto tempo poderia
ignorar a chegada de Lord Hugh, que um súbito soluço tomou conta
de Sarah.
Um soluço que imediatamente engoliu.
Aparentemente, não estava furiosa, e o perigo de explodir em
lágrimas ali mesmo na sala cheia de visitas dos Fensmore era
grande.
Sarah virou-se rapidamente, determinada a estudar de perto o
grande e sinistro quadro que lhe fazia companhia na parede. O
retrato parecia ser de um cavalheiro antipático da Flandres. Do
século XVII, a julgar pela indumentária. Sarah não percebia como
conseguia ele manter um ar tão orgulhoso com aquele rufo ridículo
ao pescoço, mas o seu olhar de desdém acima do nariz adunco
dizia claramente que nenhum dos primos dele ousaria dizer-lhe na
cara que era egoísta e, se o fizesse, ele não choraria por isso.
Sarah apertou os lábios e fixou um olhar furioso no retrato. Era,
sem dúvida, notável o talento do artista, por conseguir que o
cavalheiro no retrato parecesse fulminá-la com o olhar.
– Esse cavalheiro fez alguma coisa que a ofendeu?
Hugh Prentice. Sarah já lhe reconhecia a voz. Honoria devia tê-lo
encaminhado até ela. Caso contrário, não via porque teria ele
procurado a sua companhia.
Afinal, tinham prometido ser educados, não interessados.
Virou-se. Ele estava a dois passos, impecavelmente vestido para
o jantar. Apenas a bengala destoava. A madeira estava desgastada
e arranhada, sem brilho por causa do uso excessivo. Sarah não
entendia porque achava esse facto tão interessante. Lord Hugh
certamente viajava com um criado pessoal, pois as suas botas
brilhavam de tão polidas e o plastrão estava artisticamente
amarrado. Porque é que a bengala não gozava do mesmo
tratamento cuidadoso?
– Lord Hugh – cumprimentou, com uma pequena reverência,
aliviada ao descobrir que a sua voz soava quase normal.
Ele não respondeu imediatamente. Virou-se e, com o queixo
ligeiramente erguido, examinou o retrato. Sarah ficou feliz por não
ser alvo da mesma atenção, pois, provavelmente, não teria
suportado outra dissecação dos seus defeitos tão pouco tempo
depois da primeira.
– Aquele colarinho parece muito desconfortável – comentou Lord
Hugh.
– Foi o meu primeiro pensamento também – disse Sarah, antes de
se lembrar de que não gostava dele e, acima de tudo, de que a
companhia dele nessa noite seria um fardo a suportar.
– Devemos congratular-nos por viver nos tempos modernos,
suponho.
Ela permaneceu em silêncio, porque aquele tipo de afirmação não
pedia resposta. Lord Hugh continuou a examinar a pintura,
inclinando-se a certa altura, sem dúvida para apreciar as pinceladas.
Teria ele adivinhado que ela precisava de algum tempo para se
recompor? Não, não parecia o tipo de homem que reparava nessas
coisas. De qualquer forma, estava grata. Quando ele finalmente se
virou para ela, a sensação de aperto no peito tinha aliviado, e já não
corria o risco de fazer uma cena diante das dezenas de convidados
importantes da prima.
– Ouvi dizer que o vinho é muito bom esta noite – comentou
Sarah.
Era um começo de conversa um pouco abrupto, porém educado e
inofensivo, e, mais importante ainda, fora a primeira coisa que lhe
viera à mente.
– Ouviu dizer? – repetiu Lord Hugh.
– Eu não bebi – explicou Sarah. Seguiu-se uma pausa
constrangedora e decidiu continuar: – Na verdade, ninguém me
disse. Contudo, as caves de Lord Chatteris são famosas. Imagino
que o vinho só possa ser bom.
Santo Deus, a conversa não podia ser mais forçada! No entanto,
Sarah estava determinada a esforçar-se. Não ia fugir ao seu dever
esta noite. Se Honoria olhasse para ela... ou se Iris olhasse para
ela...
Ninguém poderia dizer que não estava a cumprir a sua promessa.
– Ando a tentar não beber na presença da família Smythe-Smith –
disse Lord Hugh, com ar quase casual. – Raramente acaba bem
para mim.
Sarah reprimiu um soluço chocado.
– Estou a brincar – disse ele.
– Claro – assentiu ela apressadamente, mortificada por se revelar
tão pouco sofisticada.
Ela devia ter entendido a piada. Tê-lo-ia conseguido, se não
estivesse ainda tão chateada por causa de Iris.
Santo Deus, disse para si mesma (e para quem pudesse ouvir),
fazei esta noite terminar o mais rapidamente possível!
– Não é interessante tudo o que as convenções sociais impõem?
– perguntou Lord Hugh em tom vagaroso.
Sarah virou-se para ele, mesmo sabendo que nunca seria capaz
de discernir o significado da sua expressão. Ele inclinou a cabeça
para o lado, o movimento reorganizando as sombras no seu rosto
impassível.
Era bonito, percebeu Sarah num lampejo súbito de lucidez. Não
era apenas a cor dos seus olhos, mas a maneira como olhava para
as pessoas, de forma direta e às vezes desconcertante. Conferia-lhe
uma intensidade difícil de ignorar. Quanto à boca... Ele raramente
sorria ou, em todo o caso, raramente sorria para ela, mas os lábios
tinham uma expressão bastante irónica. Algumas pessoas podiam
não achar atraente, mas ela...
Sim.
Deus todo-poderoso, voltou ela a tentar, rapidamente é pouco. Só
um milagre fará esta noite terminar com rapidez suficiente.
– Aqui estamos nós – continuou ele, fazendo um gesto elegante
para o resto dos convidados –, confinados numa sala com... quantas
pessoas acha que cá estão?
Sarah não via aonde ele queria chegar, mas arriscou uma
resposta.
– Quarenta?
– Com efeito – respondeu ele, embora ela tenha percebido pelo
rápido olhar avaliador que ele fizera da sala que discordava da sua
estimativa. – E a sua presença coletiva significa que Lady Sarah,
que, já sabemos, me considera detestável, está a ser muito educada
para comigo.
– Não estou a ser educada por haver outras quarenta pessoas na
sala – argumentou, erguendo as sobrancelhas. – Estou a ser
educada porque a minha prima me pediu.
O canto dos lábios dele tremeu, talvez de divertimento.
– Ela estava ciente do desafio que isso poderia representar?
– Não – foi a resposta tensa de Sarah.
Honoria sabia que Sarah não estava interessada na companhia de
Lord Hugh, mas parecia não compreender até que ponto ia o seu
desagrado.
– Nesse caso, devo felicitá-la por guardar os protestos para si –
disse ele, com um aceno de cabeça irónico.
Algo de agradável e familiar voltou a entrar nos eixos e Sarah
começou finalmente a sentir-se mais normal. Levantou o queixo,
num gesto orgulhoso, e respondeu:
– Não fiz tal coisa.
Para sua grande surpresa, Lord Hugh deixou escapar o que
pareceu um riso abafado.
– E, mesmo assim, ela impôs-lhe a minha presença?
– Ela receia que não se sinta bem-vindo em Fensmore – explicou
Sarah, num tom que subentendia não partilhar a mesma
preocupação.
Ele ergueu as sobrancelhas de surpresa e, mais uma vez, quase
sorriu.
– E, segundo ela, Lady Sarah é a pessoa certa para me fazer
sentir bem-vindo?
– Eu não lhe contei sobre o nosso encontro anterior – admitiu
Sarah.
– Ah, agora começa a fazer sentido – disse ele, com um aceno
condescendente.
Sarah cerrou os dentes, numa tentativa gorada de evitar um bufo
escarninho. Como ela odiava aquele tom de voz que acompanhava
o pensamento: Ah, sim, vejo perfeitamente como funciona essa
linda cabecinha de vento. Hugh Prentice estava longe de ser o único
homem em Inglaterra a empregá-lo, mas parecia ter refinado essa
aptidão ao limite. Sarah não imaginava como alguém poderia tolerar
a companhia dele mais do que alguns minutos. Sim, era bastante
agradável aos olhos e, sim, era (segundo lhe disseram)
excecionalmente inteligente, mas, Santo Deus, era tão doloroso
como unhas a raspar numa lousa!
Sarah inclinou-se para ele e disse:
– A prova do meu amor pela minha prima é o facto de eu não ter
encontrado uma maneira de colocar veneno no seu pó dentífrico.
Foi a vez de ele se inclinar para ela e responder:
– O vinho poderia ter sido um bom substituto... se eu bebesse. Foi
por isso que fez a sugestão, certo?
– Está zangado – murmurou ela, recusando-se a ceder.
Ele encolheu um ombro e recuou um passo, como se a
intensidade daquele momento entre eles nunca tivesse acontecido.
– Não fui eu quem falou de veneno.
Sarah ficou boquiaberta. O tom dele era precisamente o que ela
poderia usar, se falassem sobre o tempo.
– Zangada? – perguntou ele, cortês.
Na verdade, estava mais perplexa do que zangada.
– Está-me a dificultar muito a tarefa de ser simpática consigo –
respondeu, por fim.
– Será que lhe devia ter oferecido o meu pó dentífrico?
Livra, como ele era irritante! E o pior de tudo é que ela não tinha a
certeza se ele estava a brincar naquele momento. Fosse como
fosse, aclarou a voz e respondeu:
– Era suposto ter uma conversa normal comigo.
– Duvido que sejamos capazes de ter conversas normais.
– Posso assegurar-lhe de que eu sou capaz.
– Não comigo.
Desta vez, ele sorriu abertamente. Não havia dúvida disso.
Sarah endireitou os ombros. O mordomo estaria certamente
prestes a anunciar o início do jantar. Talvez fosse para ele que
devesse agora dirigir as suas preces, em vez de para Deus, que
parecia não as ouvir.
– Vamos, Lady Sarah – provocou Lord Hugh –, tem de admitir que
o nosso primeiro encontro foi tudo menos normal.
Sarah apertou os lábios. Custava-lhe concordar com ele neste
caso, ou em qualquer outro, mas a verdade é que ele tinha razão.
– E, desde então – continuou ele –, raramente nos vimos, e
sempre de maneira muito superficial.
– Não reparei – respondeu, tensa.
– Que foi superficial?
– Que nos vimos – mentiu ela.
– Seja como for, esta é apenas a segunda vez que trocamos mais
de duas frases. Na primeira, se bem me lembro, pediu-me que
livrasse o mundo da minha presença.
Sarah encolheu-se. Não fora um dos seus melhores momentos.
– E esta noite... – continuou ele com um sorriso sedutor – já
mencionou veneno.
Ela fitou-o com ar inexpressivo e limitou-se a responder:
– Cuidado com o pó dentífrico.
Ele soltou uma risada discreta e Sarah sentiu uma estranha
emoção perpassar-lhe o corpo. Podia não ter levado a melhor, mas
marcara um ponto e ele sabia disso. Para dizer a verdade,
começava a divertir-se. Ainda não gostava do homem, de certo
modo por princípio, mas tinha de admitir que estava a divertir-se
pelo menos um bocadinho.
Lord Hugh era um adversário digno.
Ela nem percebera que queria um adversário.
O que não significava – Céus, se começasse a corar com os
próprios pensamentos, o melhor era atirar-se da janela! – que o
quisesse a ele. Qualquer bom adversário serviria.
Até um que não tivesse olhos tão bonitos.
– Algum problema, Lady Sarah? – inquiriu Lord Hugh.
– Não – respondeu ela, um pouco depressa de mais.
– Parece agitada.
– Mas não estou.
– Claro – murmurou ele.
– Estou... – Ela fez uma pausa e disse com relutância: – Bem,
agora estou.
– E eu que nem fiz nada.
Várias respostas vieram aos lábios de Sarah, mas nenhuma que o
deixasse sem réplica. Talvez o que ela realmente quisesse era um
adversário um pouco menos à altura. Com bastante inteligência
para ser interessante, mas não tanta que a impedisse de ganhar
sempre.
Hugh Prentice nunca seria esse adversário.
Graças a Deus!
– Ora, ora, parecem a meio de uma conversa incómoda! – veio
outra voz.
Sarah virou a cabeça, embora já soubesse a quem a voz
pertencia. Era a condessa de Danbury, o velho dragão mais
aterrorizante da alta sociedade. Certa vez, conseguira destruir um
violino com apenas uma bengala (e um passe de mágica, na opinião
de Sarah). Porém, a sua verdadeira arma, como todos sabiam, era a
sua devastadora sagacidade.
– Incómoda, de facto – confirmou Lord Hugh, curvando-se
respeitosamente numa vénia. – Mas será cada vez menos, agora,
que chegou.
– Que pena – respondeu a velha senhora, ajustando a bengala na
mão. – Acho as conversas incómodas muito divertidas.
– Lady Danbury – disse Sarah, com uma reverência –, que
agradável surpresa vê-la aqui esta noite.
– Qual é o espanto? – retorquiu Lady Danbury. – Não devia ser
surpresa. O Chatteris é meu sobrinho-bisneto. Onde mais estaria
eu?
– Hum...
Sarah não teve tempo de dizer mais nada antes que a condessa
continuasse:
– Sabe por que razão atravessei a sala de ponta a ponta para me
juntar aos dois?
– Não faço ideia – respondeu Lord Hugh.
Lady Danbury lançou um olhar de esguelha a Sarah, que se
apressou a dizer:
– Nem eu.
– Descobri que as pessoas felizes são chatas. Já os dois, por
outro lado, pareciam prestes a arrancar olhos. Naturalmente, vim
imediatamente. – Olhou de Hugh para Sarah e concluiu sem
rodeios: – Entretenham-me.
A declaração foi seguida de um silêncio estupefacto. Depois de
lançar um olhar furtivo a Lord Hugh, Sarah ficou aliviada ao ver que
a sua impassibilidade habitual tinha dado lugar a uma surpresa
óbvia.
Lady Danbury inclinou-se para ela e sussurrou em voz alta:
– Concluí que gosto de si, Lady Sarah.
Sarah não estava convencida de que isso fosse bom.
– De verdade?
– Sim. Por isso, vou dar-lhe alguns conselhos. – Fez um aceno de
cabeça como se concedendo uma audiência a um servo. – E
autorizo-a a partilhá-los com quem quiser.
Sarah olhou novamente para Lord Hugh, embora sem saber como
poderia ele ajudá-la.
– Não obstante a nossa presente conversa – continuou Lady
Danbury com ar imperioso –, notei que é uma jovem de inteligência
razoável.
Razoável? Sarah não pôde evitar franzir o nariz tentando decifrar
aquela tirada.
– Obrigada...
– Foi um elogio – confirmou Lady Danbury.
– Incluindo a parte do «razoável»?
– Não a conheço assim tão bem – retorquiu Lady Danbury, com
um bufo.
– Bem, obrigada – respondeu Sarah, concluindo que era hora de
ser graciosa ou, no mínimo, obtusa.
Olhou discretamente para Lord Hugh, que parecia levemente
divertido, e voltou a concentrar-se em Lady Danbury, que a fitava
como se esperasse que ela continuasse.
Sarah aclarou a garganta.
– Hum... Existe algum motivo especial para querer informar-me da
sua estima?
– O quê? Ah, sim! – respondeu Lady Danbury, batendo com a
bengala no chão. – Apesar da minha idade avançada, não me
esqueço de nada... Exceto – acrescentou, depois de uma pausa –,
por vezes, do que acabei de dizer.
Sarah estampou um sorriso educado no rosto, enquanto se
esforçava por conter uma crescente apreensão.
Lady Danbury deixou escapar um suspiro teatral.
– Suponho que não se possa chegar aos setenta anos sem fazer
algumas concessões.
Sarah suspeitava que o número setenta errava o alvo por, pelo
menos, uma década, mas nem lhe passaria pela cabeça tornar a
sua opinião pública.
– O que eu ia dizer – continuou Lady Danbury, o tom evidenciando
o martírio de quem é constantemente interrompido (apesar de ser
ela a única pessoa a falar) – é que quando disse que estava
surpreendida por me ver... o que, ambas sabemos, foi uma tentativa
um tanto desajeitada de fazer conversa... e eu respondi «onde mais
estaria eu?», a menina devia ter respondido com um:
«Aparentemente, não acha a conversa educada muito divertida.»
Sarah abriu a boca, mas levou uns bons dois segundos a
conseguir falar.
– Creio que não entendi.
Lady Danbury fitou-a com ar vagamente irritado.
– Eu disse que achava as conversas incómodas muito divertidas e
a menina disse aquele disparate sobre estar surpreendida por me
ver aqui, portanto, eu, com toda a razão, chamei-lhe tonta.
– Não me lembro de lhe ter chamado tonta – murmurou Lord
Hugh.
– Não chamei? Então pensei-o. – Lady Danbury bateu com a
bengala no chão mais uma vez. – Seja como for – continuou,
virando-se para Sarah –, só tentei ajudar. É realmente inútil desfiar
trivialidades. Faz-nos parecer papagaios, e ninguém quer isso, pois
não?
– Depende de onde o papagaio está empoleirado – respondeu
Sarah, imaginando quantos papagaios se poderiam encontrar, por
exemplo, no Brasil.
– Muito bem, Lady Sarah – elogiou Lady Danbury. – Continue a
afiar essa língua. Imagino que precise de manter a mente muito
perspicaz esta noite.
– Em geral, procuro manter a mente perspicaz todas as noites.
Lady Danbury deu-lhe um aceno de aprovação e, para deleite de
Sarah, voltou-se para Lord Hugh:
– Não pense que me esqueci de si.
– Creio que a ouvi dizer que não se esquece de nada.
– Isso mesmo – replicou Lady Danbury. – Sou um pouco parecida
com o seu pai, nesse aspeto.
Sarah engoliu um suspiro chocado. Mesmo para Lady Danbury,
era um comentário ousado.
Lord Hugh, no entanto, provou estar à altura da situação. A sua
expressão permaneceu impassível quando disse:
– Ah, mas esse não é de todo o caso. A memória do meu pai é
implacavelmente seletiva.
– Mas teimosa.
– Implacavelmente teimosa também.
– Bom – declarou Lady Danbury, batendo com a bengala no chão
–, é hora de neutralizar isso.
– Tenho pouca influência sobre o meu pai, Lady Danbury.
– Nenhum homem fica sem recursos.
Ele inclinou a cabeça em discreta saudação e respondeu:
– Eu não disse isso.
Os olhos de Sarah voavam tão depressa de um para o outro que
começava a ficar tonta.
– Este absurdo já durou mais do que o suficiente – anunciou Lady
Danbury.
– Nesse ponto, estamos de acordo – admitiu Lord Hugh, mas, aos
ouvidos de Sarah, o tom não pareceu nada conciliatório.
– É bom vê-lo neste casamento – disse a velha condessa. –
Espero que seja um prenúncio de tempos mais pacíficos.
– Uma vez que Lord Chatteris não é meu sobrinho-bisneto, só
posso concluir que fui convidado por amizade.
– Ou para o manter debaixo de olho.
– Ah, mas, nesse caso, produziria o efeito oposto – retorquiu Lord
Hugh, erguendo um canto da boca em subtil sarcasmo. – Seria de
supor que o único ato vil que exigiria uma vigilância da minha
pessoa envolvesse Lord Winstead, que, como sabemos, também
está no casamento.
O rosto dele voltou a assumir a típica expressão impenetrável e
fitou Lady Danbury sem pestanejar, até ela responder:
– Creio que é a frase mais longa que já o ouvi proferir.
– Ouviu-o dizer muitas frases? – interpelou Sarah.
A condessa virou-se para ela com uma expressão beligerante.
– Tinha-me esquecido de que estava aí.
– Tenho estado invulgarmente calada.
– O que me traz de volta ao começo da conversa – proclamou
Lady Danbury.
– De que a nossa conversa era incómoda? – murmurou Lord
Hugh.
– Sim!
Logicamente, seguiu-se um silêncio incómodo.
– Lord Hugh – disse Lady Danbury –, sei que é anormalmente
taciturno desde o dia em que nasceu.
– Estava lá?
Lady Danbury franziu o sobrolho, mas era óbvio que gostara da
réplica, mesmo sendo contra ela.
– Como é que o atura? – perguntou a Sarah.
– Raramente sou obrigada a fazê-lo – respondeu Sarah com um
encolher de ombros.
– Humpf!
– Ela foi destacada para me aturar – explicou Lord Hugh.
– Para alguém tão pouco comunicativo, está muito falador esta
noite – comentou a condessa, com um estreitar de olhos.
– Deve ser da companhia.
– É verdade que desperto o melhor nas pessoas. – Com um
sorriso astuto, Lady Danbury dirigiu-se então a Sarah: – O que
acha?
– Não há dúvida de que desperta o melhor em mim – declarou
Sarah, que sabia sempre dizer o que os outros queriam ouvir.
– Devo admitir que acho esta conversa divertida – disse Lord
Hugh, em tom irónico.
– Bem, seria de esperar, não seria? – replicou Lady Danbury. –
Não teve propriamente de esforçar muito a cabeça para me
acompanhar.
Mais uma vez, Sarah ficou boquiaberta a tentar decifrar aquela
tirada. Teria Lady Danbury acabado de elogiar a inteligência de Lord
Hugh? Ou tê-lo-ia insultado com a insinuação de que ele não
acrescentara nada de interessante à conversa?
E que significado teria o facto de Sarah ter de se esforçar por a
acompanhar?
– Parece perplexa, Lady Sarah – observou Lady Danbury.
– Estou fervorosamente à espera do anúncio de que o jantar foi
servido.
Lady Danbury soltou um ronco divertido.
Sarah, encorajada, voltou-se para Lord Hugh, dizendo:
– Acho que comecei a rezar ao mordomo.
– Se houver respostas, certamente ouvirá a dele antes da de
qualquer outra pessoa – respondeu ele.
– Ah, assim é que eu gosto! – exclamou Lady Danbury. – Olhem
para os dois. Estão praticamente na galhofa.
– Na galhofa – repetiu Lord Hugh, como se não entendesse o
significado da palavra.
– Não é tão divertido para mim como uma conversa incómoda,
mas imagino que prefiram assim. – Lady Danbury apertou os lábios
e perscrutou a sala. – Creio que vou ter de encontrar outra pessoa
que me entretenha agora. Saibam que é um equilíbrio delicado, pois
o incómodo não costuma andar longe da estupidez.
Bateu uma última vez com a bengala no chão e, com um último
grunhido, foi-se embora.
– Ela é louca – disse Sarah, virando-se para Lord Hugh.
– Devo lembrá-la que disse recentemente a mesma coisa sobre
mim.
Sarah estava convencida de que havia mil respostas, mas não
conseguiu pensar em nenhuma e, subitamente, Iris apareceu.
Cerrou os dentes, ainda zangada com a prima.
– Encontrei-a! – anunciou Iris, com uma expressão muito séria e
determinada. – Estamos salvas.
Sarah não conseguiu encontrar dentro de si a caridade suficiente
para reagir à notícia com um comentário alegre e congratulatório.
Porém, assentiu.
Iris olhou-a com curiosidade e encolheu levemente os ombros.
– Lord Hugh – disse Sarah com talvez um pouco mais de ênfase
do que o necessário –, posso apresentar-lhe a minha prima, Miss
Smythe-Smith? Anteriormente Miss Iris Smythe-Smith –
acrescentou, apenas por pura irritação. – A irmã mais velha casou-
se recentemente.
Iris sobressaltou-se, pois não tinha notado que Lord Hugh estava
ao lado de Sarah, que não se espantou pela reação; quando tinha a
mente ocupada, Iris raramente notava algo que considerasse
irrelevante.
– Lord Hugh – cumprimentou ela, recuperando rapidamente.
– Fico muito aliviado por saber que está salva – disse ele.
Sarah sentiu uma certa satisfação ao ver que Iris parecia não
saber como responder.
– De uma praga? – arriscou Lord Hugh. – Da peste?
Sarah permaneceu em silêncio.
– Ah, sim, já sei! – continuou ele, no tom mais alegre que ela já lhe
ouvira. – Gafanhotos! Não há nada pior do que uma praga de
gafanhotos.
Iris pestanejou várias vezes, depois levantou o dedo indicador
como se tivesse acabado de pensar em alguma coisa.
– Vou deixá-los, então.
– Porque é que isso não me surpreende? – resmungou Sarah.
Iris deu-lhe um sorriso quase impercetível e foi-se embora,
serpenteando com fluidez entre a multidão.
– Devo confessar a minha curiosidade – disse Lord Hugh, quando
Iris desapareceu de vista.
Sarah não virou a cabeça. Lord Hugh não era o tipo de pessoa
que se sentisse desencorajada pelo seu silêncio, portanto, não
precisava de responder.
– De que destino cruel a salvou a sua prima?
– Não de si, aparentemente – murmurou Sarah, antes de
conseguir segurar a língua.
Ele riu baixinho e Sarah decidiu que, afinal de contas, não havia
motivo para esconder a verdade.
– A minha prima Daisy, irmã da Iris, estava a tentar organizar uma
apresentação especial do quarteto Smythe-Smith.
– E por que razão seria isso um problema?
Sarah precisou de um momento para escolher bem as palavras e
perguntou:
– Nunca foi a um dos nossos saraus, pois não?
– Nunca tive esse prazer.
– Esse prazer – repetiu ela, com uma careta que tentava esconder
a incredulidade.
– Passa-se alguma coisa? – preocupou-se Lord Hugh.
Sarah abriu a boca para explicar, mas, nesse momento, o
mordomo entrou para anunciar que o jantar estava servido.
– As suas preces foram atendidas – disse Lord Hugh, irónico.
– Não todas – resmungou ela.
Ele ofereceu-lhe o braço.
– Pois não, ainda está condenada a aturar-me, não é?
Verdade.
Capítulo 7

Na tarde seguinte

conde de Chatteris e Lady Honoria Smythe-Smith estavam,


O doravante, unidos pelos laços sagrados do matrimónio. O sol
brilhava, o vinho fluía e, a julgar pelas risadas e boa disposição
geral no banquete de casamento, que se estendeu pela tarde fora,
todos os convivas se divertiam.
Até Lady Sarah Pleinsworth.
Do seu lugar na mesa principal, Hugh – bastante solitário, porque
todos se levantaram para dançar – observou que Lady Sarah
incorporava na perfeição a jovem inglesa sem preocupações.
Conversava facilmente com os outros convidados, ria muitas vezes,
mas nunca demasiado alto, e, quando dançava, parecia tão feliz que
a sala quase se iluminava.
Hugh adorava dançar, outrora.
Era até um bom dançarino. A música não era muito diferente da
matemática. Também havia padrões e sequências, mas suspensas
no ar, em vez de escritas numa folha de papel.
Dançar era uma grande equação. De um lado o som, do outro o
movimento, e o trabalho do dançarino era torná-los iguais.
Hugh talvez não sentisse a música da maneira prescrita pelo
diretor do coro em Eton, mas é certo que a entendia.
– Olá, Lord Hugh. Quer uma fatia de bolo?
Levantou a cabeça e sorriu. Era a pequena Lady Frances
Pleinsworth, segurando dois pratos, nos quais se viam duas
enormes fatias de bolo, uma bem maior do que a outra, decoradas
com um glacé cor de alfazema e minúsculas violetas de açúcar.
Hugh vira o bolo em todo o seu esplendor, antes de ser cortado, e
não pôde deixar de pensar imediatamente na quantidade de ovos
necessária para o fazer. Quando o cálculo se provou impossível,
passou para a estimativa das horas necessárias para levar a cabo
tal confeção. Depois passou para...
– Lord Hugh? – repetiu Lady Frances, interrompendo-lhe os
pensamentos.
Ela levantou um dos pratos para o lembrar do motivo da sua
presença.
– Gosto muito de bolo – disse ele.
Ela sentou-se a seu lado e pousou os pratos na mesa.
– Parecia solitário.
Hugh sorriu novamente. Um adulto nunca teria feito aquele
comentário em voz alta. Era precisamente por essa razão que
preferia conversar com Frances a conversar com qualquer outro
convidado.
– Eu estava sozinho, mas não me sentia só.
Frances franziu a testa, considerando a resposta. Hugh estava
prestes a explicar-lhe a diferença quando ela perguntou:
– Tem a certeza?
– Ficar sozinho é um estado físico – explicou ele –, ao passo que
a solidão é...
– Sim, eu sei – cortou ela.
– Nesse caso, receio não entender a sua pergunta – disse ele,
observando-a.
– Estava só a pensar se uma pessoa saberá, sempre, quando se
sente só – disse Frances, com ar pensativo.
Uma pequena filósofa em germinação.
– Quantos anos tem? – perguntou-lhe, concluindo que não ficaria
espantado se ela lhe respondesse que tinha quarenta e dois anos.
– Onze – respondeu ela, espetando o garfo no bolo e separando o
glacé entre as camadas com mestria. – Mas sou muito precoce.
– Obviamente.
Ela não disse nada, mas Hugh viu-a sorrir ao enfiar uma garfada
de bolo na boca.
– Gosta de bolos? – perguntou ela, depois de limpar
delicadamente os cantos da boca com um guardanapo.
– Haverá alguém que não goste? – murmurou ele, sem mencionar
que já tinha respondido à pergunta.
– Porque não come, então? – perguntou ela, baixando os olhos
para o prato intocado de Hugh.
– Estou a pensar – respondeu ele, os olhos varrendo a sala e
repousando no rosto risonho da irmã mais velha de Frances.
– Não é capaz de comer e pensar ao mesmo tempo? – inquiriu
ela.
Aquilo era um desafio, por isso, voltou a atenção para a fatia de
bolo à sua frente, deu uma grande mordida, mastigou, engoliu e
anunciou:
– 541 vezes 87 são 47 067.
– Está a inventar – disse Frances, imediatamente.
Ele encolheu os ombros.
– Pode confirmar, se quiser.
– Não posso fazer isso aqui.
– Nesse caso, terá de acreditar no que lhe digo, certo?
– Sim, desde que saiba que eu poderia confirmar, se tivesse o
material necessário – respondeu Frances com insolência. – Fez
mesmo esse cálculo de cabeça?
– Sim.
Hugh pegou noutro pedaço de bolo. Era muito bom. A cobertura
parecia ter sido aromatizada com verdadeira alfazema. Lembrou-se
de que Marcus sempre adorara doces.
– É brilhante! – exclamou Frances. – Quem me dera saber fazer
isso.
– Às vezes é útil – admitiu ele, comendo mais bolo. – Outras
vezes, não.
– Eu sou muito boa a matemática – disse Frances em tom
prosaico –, mas não sei fazer cálculos de cabeça. Preciso de
escrever tudo.
– Não há problema nenhum nisso.
– Pois, claro que não. Sou muito melhor do que a Elizabeth –
assegurou, com um sorriso superior. – Ela fica furiosa, mas sabe
que é verdade.
– Qual é a Elizabeth?
Hugh deveria lembrar-se de cada uma das irmãs, mas a sua
memória, capaz de capturar cada palavra escrita numa página, nem
sempre era tão fiável com nomes e rostos.
– É a que vem antes de mim. Às vezes, é desagradável, mas, a
maioria do tempo, damo-nos bem.
– Toda a gente é desagradável, às vezes.
O comentário surpreendeu Frances, que perguntou:
– Até Lord Hugh?
– Oh, especialmente eu!
Depois de pestanejar várias vezes, ela deve ter preferido retomar
o tópico de conversa anterior, porque perguntou:
– Tem irmãos e irmãs?
– Tenho um irmão.
– Como é que ele se chama?
– Frederick. Mas eu trato-o por Freddie.
– Gosta dele?
– Gosto muito dele – disse Hugh, com um sorriso. – Infelizmente,
não o vejo com muita frequência.
– Porquê?
Hugh não queria pensar nas muitas razões que o impediam de ver
o irmão, por isso, escolheu a única adequada aos ouvidos de uma
menina.
– Ele não vive em Londres. E eu sim.
– É uma pena – disse ela, esmagando distraidamente a cobertura
do bolo com o garfo. – Talvez o veja no Natal.
– Talvez – mentiu Hugh.
– Ah, esqueci-me de perguntar! É melhor do que ele em
aritmética?
– Sim – confirmou Hugh. – Mas ele não se importa com isso.
– A Harriet também não. É cinco anos mais velha do que eu e,
ainda assim, sou melhor do que ela.
Por falta de resposta adequada, Hugh limitou-se a assentir.
– Ela gosta de escrever peças de teatro – continuou Frances. –
Não quer saber de números.
– Pois devia – disse Hugh, voltando a olhar para a festa de
casamento.
Lady Sarah dançava agora com um dos irmãos Bridgerton. Do
ângulo onde estava, Hugh não conseguia ver qual deles. Sabia que
três dos irmãos eram casados, mas um ainda não.
– Ela é muito boa – comentou Frances.
De facto, pensou Hugh, ainda a observar Lady Sarah. Ela
dançava lindamente. Quase podia esquecer a língua afiada, ao vê-la
dançar assim.
– Até vai pôr um unicórnio na próxima.
Um uni...
– O quê?! – perguntou Hugh, virando-se para Frances, confuso.
– Um unicórnio – repetiu ela, atirando-lhe um olhar
assustadoramente seguro. – Sabe o que é, não sabe?
Santo Deus, estaria ela a fazer troça dele? Teria ficado
impressionado, se não fosse tão ridículo.
– Claro.
– Eu adoro unicórnios – explicou Frances, com um suspiro de
êxtase. – São tão maravilhosos!
– Maravilhosamente inexistentes.
– Isso é o que nós pensamos – ripostou ela, enfaticamente.
– Lady Frances – disse Hugh, com a sua voz mais professoral –,
deve saber certamente que os unicórnios são criaturas míticas.
– Os mitos têm de vir de algum lugar.
– Vêm da imaginação dos bardos.
Ela encolheu os ombros e comeu mais bolo.
Hugh ficou estupefacto. Estaria realmente a debater a existência
de unicórnios com uma menina de onze anos?
Tentou abandonar o assunto. E viu-se incapaz. Aparentemente,
estava a debater a existência de unicórnios com uma menina de
onze anos.
– Nunca ninguém relatou ter visto um unicórnio – argumentou e,
para sua grande irritação, percebeu que o comentário saíra tão
rígido e solene como o de Lady Sarah, quando o censurara por
querer participar na competição de tiro ao alvo.
Frances ergueu o queixo e contrapôs:
– Eu nunca vi um leão, mas isso não significa que eles não
existam.
– Pode não ter visto, mas muitas outras pessoas já viram.
– Não é possível provar que algo não existe – reagiu ela.
Era um excelente argumento, por isso, Hugh permaneceu em
silêncio.
– Vê? – disse ela, com satisfação indisfarçada, reconhecendo o
exato momento em que o forçara a render-se.
– Muito bem – revidou ele com um aceno de aprovação. – Eu não
consigo provar que os unicórnios não existem, mas a menina não
consegue provar que eles existem.
– Verdade – admitiu ela, graciosamente. Franziu os lábios um
momento, depois fez uma careta curiosa. – Eu gosto de si, Lord
Hugh.
Por um segundo, soou exatamente como Lady Danbury e Hugh
interrogou-se se devia ficar com medo.
– Não fala comigo como se eu fosse uma criança – acrescentou
ela.
– Mas é uma criança – apontou ele.
– Sim, claro, mas não fala comigo como se eu fosse idiota.
– Não é idiota.
– Sim, eu sei – respondeu ela com uma ponta de exasperação.
Hugh observou-a um instante.
– Então, o que quer demonstrar?
– Apenas que... oh, olá, Sarah! – disse ela, sorrindo por cima do
ombro de Hugh, certamente para a atual maldição da sua
existência.
– Olá, Frances – veio a voz de Lady Sarah Pleinsworth, agora
familiar. – Lord Hugh.
Hugh levantou-se, embora a perna lhe dificultasse o movimento.
– Oh, não precisa... – começou Lady Sarah.
– Preciso, sim – cortou Hugh, com aspereza.
O dia em que não pudesse levantar-se na presença de uma
senhora seria... Em suma, com toda a honestidade, preferia não
pensar sobre isso.
Lady Sarah dirigiu-lhe um sorriso tenso, talvez até embaraçado,
depois deu a volta e foi sentar-se ao lado de Frances.
– Do que estavam a falar?
– De unicórnios – respondeu Frances, imediatamente.
Os lábios de Sarah fecharam-se, aparentemente numa tentativa
de manter a cara séria.
– Ah, sim?
– Sim – disse Hugh.
– E... chegaram a alguma conclusão? – perguntou ela, depois de
aclarar a garganta.
– Só que concordamos em discordar – explicou Hugh. – Como
acontece tantas vezes na vida.
Ela estreitou os olhos.
– A Sarah também não acredita em unicórnios – interveio Frances.
– Nenhuma das minhas irmãs acredita. Sinto-me muito só nas
minhas esperanças e sonhos – acrescentou, com um pequeno
suspiro triste.
Hugh viu Sarah revirar os olhos e disse:
– Tenho impressão, Lady Frances, de que ocupa o lugar de sumo
objeto de amor e devoção da sua família, e só aí está sozinha.
– Ah, nisso não estou sozinha! – respondeu Frances, alegrando-
se. – Mas, como sou a mais nova, é verdade que tenho certos
privilégios.
Sarah fez uma espécie de ruído de desdém e Hugh virou-se para
ela.
– Confirma? – sussurrou.
– Ela seria insuportável se não fosse tão naturalmente
maravilhosa – respondeu Sarah, sorrindo à irmã com evidente afeto.
– O nosso pai estraga-a com mimos de maneira abominável.
– É verdade – confirmou Frances, com prazer.
– O vosso pai está aqui? – indagou Hugh, curioso, pois achava
que jamais conhecera Lord Pleinsworth.
– Não – respondeu Sarah. – Achou que era uma viagem muito
longa de Devon até Fensmore. Raramente sai de casa.
– Ele não gosta de viajar – acrescentou Frances.
Sarah assentiu com a cabeça.
– Mas vai estar presente no casamento do Daniel.
– Vai levar os cães? – perguntou Frances.
– Não sei – respondeu Sarah.
– A mamã vai...
– ...matá-lo, eu sei, mas...
– Os cães? – interrompeu Hugh, pois era impossível não fazer a
pergunta.
As irmãs Pleinsworth olharam para ele como se se tivessem
esquecido de que estava ali.
– Os cães? – repetiu Hugh.
– O nosso pai é muito... ligado à sua matilha – explicou Sarah,
escolhendo meticulosamente as palavras.
Hugh olhou discretamente para Frances, que assentiu. Então, fez
a pergunta que parecia mais lógica:
– Quantos cães?
Lady Sarah mostrou-se relutante em revelar um número, mas a
irmã mais nova não teve os mesmos escrúpulos e respondeu:
– Cinquenta e três da última vez que contámos. Mas
provavelmente há mais agora. Estão sempre a ter cachorros.
Hugh não conseguiu encontrar um comentário apropriado.
– Claro que ele não pode pô-los todos numa carruagem –
continuou Frances.
– Imagino que não – murmurou Hugh.
– Ele diz muitas vezes que os animais são melhor companhia do
que as pessoas – explicou Sarah.
– Não posso dizer que discorde – disse Hugh. Viu Frances abrir a
boca para falar e apressou-se a acrescentar, apontando-lhe um
dedo: – Os unicórnios não contam.
– O que eu ia dizer – replicou ela, com ar falsamente ofendido – é
que gostava que ele levasse os cães.
– Enlouqueceste?! – exclamou a irmã.
– Os cinquenta e três? – murmurou Hugh, em simultâneo.
– Ele provavelmente não os levaria todos – disse Frances a Hugh
antes de se virar para Sarah. – E não, não enlouqueci. Se ele
levasse os cães, eu teria alguém para brincar. Não há mais crianças
aqui.
– Estou cá eu – viu-se Hugh a dizer.
As duas irmãs Pleinsworth emudeceram e Hugh ficou com a
impressão de que aquilo não acontecia com frequência.
– Claro, não posso participar em jogos como o Bom Barqueiro –
admitiu com um encolher de ombros –, mas não me importo de
fazer algo que não exija muito esforço da minha perna.
– Oh! – murmurou Frances, pestanejando algumas vezes. –
Obrigada.
– Esta foi a conversa mais divertida que tive em Fensmore –
confessou-lhe ele.
– Verdade? – inquiriu Frances. – Mas não foi à Sarah que
disseram para lhe fazer companhia?
Seguiu-se um silêncio embaraçoso.
Hugh pigarreou, mas foi Sarah quem falou primeiro.
– Obrigada, Frances – disse, com grande dignidade. – Agradeço
por me teres substituído à mesa principal, enquanto eu dançava.
– Lord Hugh parecia solitário – disse Frances.
Hugh tossiu. Não por estar envergonhado, mas porque... Que raio,
não sabia como se sentia, mas era bastante desconcertante.
– Não é que ele se sentisse só – explicou Frances, lançando-lhe
um olhar conspiratório. – Apenas parecia. – Depois de olhar
alternadamente para a irmã e para Hugh, percebeu finalmente que o
momento podia tornar-se embaraçoso e acrescentou: – Além disso,
ele precisava de bolo.
– É verdade, todos precisamos de bolo – interveio Hugh.
Não se importava com a reação de Lady Sarah, mas não havia
necessidade de Frances se sentir desconfortável.
– Preciso de bolo – anunciou Sarah.
Foram as palavras mágicas para reavivar a conversa.
– Ainda não comeste bolo?! – exclamou Frances, estupefacta. –
Ah, mas tens de provar! É absolutamente delicioso. O criado deu-
me uma fatia com muitas flores.
Hugh reprimiu um sorriso. Cheio de flores, de facto. As
decorações do bolo tinham-lhe deixado a língua roxa.
– Eu estava a dançar – lembrou Sarah.
– Ah, sim, claro! – assentiu a irmã, virando-se para Hugh com uma
careta. – É outra grande tristeza de ser a única criança num
casamento: ninguém dança comigo.
– Garanto-lhe que o teria feito com prazer – respondeu ele, com ar
muito sério. – Mas infelizmente...
Apontou para a bengala. Frances assentiu em compreensão.
– Nesse caso, fico muito feliz por termos partilhado este momento.
Não é nada divertido ficar sentada sozinha quando toda a gente
está a dançar. – Levantou-se e virou-se para a irmã. – Queres que
vá buscar-te bolo?
– Não é necessário.
– Mas acabaste de dizer que querias uma fatia.
– Ela disse que precisava de bolo – esclareceu Hugh.
Lady Sarah olhou para ele como se lhe tivessem crescido
tentáculos, subitamente.
– Eu tenho boa memória – limitou-se a dizer.
– Vou buscar-te bolo – decidiu Frances antes de se afastar.
Hugh entreteve-se a contar o tempo que Lady Sarah levaria a
quebrar o silêncio que se seguiu à partida da irmã. Quando chegou
aos quarenta e três segundos, mais ou menos, pois não tinha
relógio para fazer uma contagem precisa, concluiu que teria de
assumir o papel do adulto naquele dueto e comentou:
– Reparei que gosta de dançar.
Ela sobressaltou-se e, quando se virou, Hugh entendeu pela sua
expressão que, enquanto ele media uma pausa embaraçosa na
conversa, ela estivera apenas a desfrutar de um momento de
tranquilidade gregária.
Achou estranho. Perturbador, até.
– Sim – respondeu ela abruptamente, ainda com uma expressão
surpreendida. – A música é maravilhosa. Realmente faz-nos querer
levantar e... oh, peço desculpa.
Lady Sarah corou, como acontecia a todos os que temiam ter-se
referido indiretamente à sua perna magoada.
– Eu costumava dançar – disse ele, com o intuito de ser irritante.
– Eu... hum...
Sem palavras, Sarah aclarou a garganta com um ruído
constrangido.
– É-me difícil agora, claro.
Os olhos de Lady Sarah assumiram uma expressão vagamente
alarmada, por isso ele abriu um sorriso plácido e bebeu um gole de
vinho.
– Pensei que não bebesse na presença de um Smythe-Smith –
lembrou ela.
Ele bebeu outro gole daquele vinho que, na verdade, era muito
bom, tal como ela havia prometido no dia anterior, e então virou-se
para Sarah com a intenção de responder com uma piada irónica.
Porém, quando a viu ali sentada, a pele ainda rosada e brilhante de
dançar, algo mudou dentro dele e o pequeno nó de raiva que se
esforçara tanto por sufocar explodiu e começou a sangrar.
Nunca mais poderia dançar.
Nunca mais poderia andar a cavalo, subir a uma árvore ou
atravessar uma sala em passo decidido e levantar uma mulher nos
braços. Havia mil coisas que nunca mais voltaria a fazer. Seria de
esperar que tivesse sido outro homem a recordá-lo disso, um
homem robusto, capaz de caçar, de praticar boxe, de fazer todas as
malditas coisas que um homem deveria fazer. Mas não. Fora ela,
Lady Sarah Pleinsworth, com os seus belos olhos, pés ágeis e cada
maldito sorriso com que presenteara todos os parceiros de dança
hoje.
Hugh não gostava dela. Não gostava mesmo, mas, por Deus, teria
vendido parte da alma naquele momento, para poder dançar com
ela.
– Lord Hugh?
Embora calma, a voz dela continha um pequeno traço de
impaciência, o suficiente para o recordar de que ficara em silêncio
demasiado tempo.
Bebeu novamente, um grande trago desta vez, e disse:
– Dói-me a perna.
Não era verdade. Pelo menos, não mais do que o habitual,
contudo, mais valia que assim fosse. A sua perna parecia justificar
todos os factos da sua existência; um copo de vinho certamente não
era exceção.
– Oh! – disse Sarah, mexendo-se com desconforto no assento. –
Peço desculpa.
– Não peça – replicou Hugh, talvez com mais brusquidão do que
pretendia. – Não é culpa sua.
– Eu sei disso! Mas posso lamentar que a perna lhe doa.
O olhar que ele lhe lançou deve ter sido duvidoso, pois ela, numa
atitude defensiva, acrescentou:
– Não sou desumana.
Ele observou-a com atenção e, inadvertidamente, os seus olhos
desceram pelo pescoço até à delicada planície do colo. Podia ver-
lhe a respiração mais acelerada, cada movimento minúsculo da
pele. Sim, não havia dúvida de que ela era humana.
– Perdoe-me – disse, rigidamente. – Pensei que considerasse o
meu sofrimento bem merecido.
Os lábios de Sarah entreabriram-se e Hugh quase conseguia ver o
caminho que tal declaração fazia na mente dela. O desconforto era
quase palpável até que, finalmente, ela respondeu:
– Eu julgava que sim e não consigo imaginar que algum dia
consiga pensar em si de forma caridosa, mas estou a tentar ser
menos... – Interrompeu-se e abanou a cabeça desajeitadamente, à
procura das palavras. – Estou a tentar ser uma pessoa melhor –
concluiu, por fim. – Não lhe desejo nenhum mal.
Hugh arqueou as sobrancelhas. Aquela não era a Sarah
Pleinsworth que ele conhecia.
– Mas continuo a não gostar de si – deixou ela escapar, de
repente.
Ah, sim, ali estava ela! Na verdade, a sua rudeza provocava um
certo conforto em Hugh. Sentia-se inexplicavelmente cansado e não
tinha energia para tentar entender aquela Lady Sarah mais profunda
e com matizes.
Talvez não gostasse da jovem teatral que fazia declarações
grandiloquentes, mas naquele momento... era essa que preferia.
Capítulo 8

a sua posição na mesa principal, Sarah podia ver a sala inteira.


D Como era habitual fazer-se naquele tipo de eventos, aproveitou
a oportunidade para observar descaradamente a noiva, que, vestida
de seda cor de alfazema, exibia um sorriso radiante. Seria possível,
até, lançar olhares ferozes à noiva feliz, sem intenção, é claro, de
que a noiva feliz visse os olhares ferozes. Porque, afinal de contas,
era por culpa de Honoria que Sarah estava condenada a sentar-se
ao lado de Lord Hugh Prentice, que, depois de ter tido uma
conversa aparentemente agradável com a sua irmã mais nova, se
tornara desagradável e mal-humorado.
– Eu realmente faço sobressair o melhor que há em si, não é? –
resmoneou Sarah sem olhar para ele.
– Disse alguma coisa? – inquiriu ele, também sem olhar para ela.
– Não.
Hugh mexeu-se na cadeira e, olhando discretamente para baixo,
Sarah viu que ele ajustara a posição da perna. Parecia mais
confortável quando a tinha esticada à sua frente; Sarah reparara
nisso no jantar da noite anterior. Mas essa mesa estava repleta de
convidados, enquanto nesta, apenas dois permaneciam. Ele tinha
muito espaço para...
– Não me dói – informou ele, sem sequer virar a cabeça para ela.
– Perdão? – defendeu-se Sarah, pois não estivera a olhar para a
perna dele.
Na verdade, depois de notar que ele a mantinha muito rígida,
desviara propositadamente os olhos para, pelo menos, seis objetos
diferentes.
– A minha perna – repetiu Hugh. – Por enquanto, não me dói.
– Ah. – Estava quase a dizer que não perguntara nada, mas até
ela sabia que as boas maneiras exigiam alguma restrição. – O
vinho, suponho – arriscou, por fim.
Ele não bebera muito, mas, se alegava que o vinho ajudava a
aliviar a dor, quem era ela para duvidar?
– Tenho dificuldade em dobrá-la. – Desta vez, virou abruptamente
a cabeça para a encarar. – Caso queira saber.
– Claro que não! – apressou-se a responder.
– Mentirosa – disse ele, em voz baixa.
Sarah soltou um suspiro chocado. É claro que tinha mentido, mas
era uma mentira educada, ao passo que Lord Hugh chamar a
atenção para esse facto não era de todo educado.
– Se quer saber – continuou Hugh, cortando um pedaço de bolo
com o garfo –, só tem de perguntar.
– Muito bem – reagiu Sarah com aspereza –, perdeu um grande
pedaço de carne?
Ele engasgou-se com o bolo, para grande satisfação de Sarah.
– Sim.
– De que tamanho?
Ele parecia prestes a sorrir, o que não era a intenção de Sarah.
Então, baixou os olhos para a perna.
– Diria cerca de trinta e três centímetros cúbicos.
Sarah cerrou os dentes. Que tipo de pessoa falava em
«centímetros cúbicos»?
– Mais ou menos do tamanho de uma pequena laranja –
acrescentou ele, com certa condescendência. – Ou um morango
gigantesco.
– Eu sei o que é um centímetro cúbico.
– Claro que sabe.
Estranhamente, desta vez, disse-o sem ponta de
condescendência.
– O joelho também ficou lesionado? – perguntou ela, pois agora,
caramba, estava curiosa. – É por essa razão que não consegue
dobrar a perna?
– Eu consigo dobrá-la, mas não muito bem – respondeu ele. – E
não, o joelho não foi atingido.
Sarah esperou alguns segundos e disse, entre dentes:
– Nesse caso, porque é que lhe custa dobrá-lo?
– Por causa do músculo – explicou ele, com um encolher de
ombros. – Creio que ele não consegue esticar como deveria porque
lhe faltam trinta e três centímetros cúbicos de... como foi que disse?
– A voz tornou-se desagradavelmente divertida. – Ah, sim, um
pedaço de carne!
– Disse-me para perguntar – resmungou Sarah.
– Pois disse.
Sarah apertou os lábios. Estaria ele a tentar fazê-la sentir-se
cruel? Se havia regras oficiais que ditassem o comportamento de
uma jovem diante de um homem aleijado, ela não as sabia. No
entanto, estava quase certa de que devia fingir não notar a
enfermidade.
A menos que ele precisasse de ajuda. Nesse caso, ela devia
reparar no coxear, porque seria uma falta de sensibilidade
imperdoável deixá-lo debater-se sem intervir. Mas, em qualquer dos
casos, provavelmente não devia fazer perguntas.
Como a razão pela qual ele não conseguia dobrar a perna.
Mas, pensando bem, não teria sido dever de Lord Hugh, como
cavalheiro, não lhe apontar o erro, evitando assim que ela se
sentisse mal consigo própria?
Honoria ficava a dever-lhe uma. Provavelmente, ficava a dever-lhe
três.
Três quê, Sarah não sabia, mas seria algo importante. Algo muito
importante.
Um minuto se passou até Lord Hugh retomar:
– Creio que a sua irmã não vai retornar com bolo.
Fez um gesto com a cabeça, apontando para Frances, que
dançava uma valsa com Daniel, exibindo uma expressão de puro
êxtase.
– Ele sempre foi o primo favorito dela – disse Sarah que, apesar
de não olhar para Hugh, teve a impressão de o sentir anuir.
– Ele tem muito jeito com pessoas – comentou Hugh.
– É um talento.
– De facto – disse Lord Hugh, antes de beber um gole de vinho. –
Um talento que também a Sarah tem, parece-me.
– Não com toda a gente.
Ele abriu um sorriso irónico.
– Refere-se a mim, presumo.
Sarah reprimiu o protesto que tinha na ponta da língua – É claro
que não –, mas ele era inteligente de mais para isso, portanto,
manteve um silêncio forçado, sentindo-se uma idiota. Uma idiota
cruel.
Ele riu baixinho.
– Não deve culpar-se pelo seu fracasso. Eu desafio até as
pessoas mais afáveis.
Sarah olhou para ele, surpreendida e incrédula. Que tipo de
homem dizia uma coisa daquelas?
– Parece dar-se bem com o Daniel – respondeu ela, finalmente.
Ele levantou uma sobrancelha quase desafiadora.
– E, ainda assim – disse Hugh, inclinando-se ligeiramente para ela
–, dei-lhe um tiro.
– Para ser justa, era um duelo.
– Está a defender-me? – perguntou ele, com um meio sorriso.
– Não. – Estaria a defendê-lo? Não, apenas a fazer conversa.
Algo em que, segundo ele, era talentosa. – Diga-me – continuou –,
tinha intenção de lhe acertar?
Ele estacou e, por um momento, Sarah pensou que tinha ido
longe de mais. No entanto, quando ele respondeu, foi mais com
assombro do que qualquer outra coisa.
– É a primeira pessoa a fazer-me essa pergunta.
– Não é possível.
Porque, francamente, esse pormenor era de fulcral importância,
certo?
– Creio que só agora me dei conta disso, mas ninguém jamais
pensou em perguntar se eu tinha intenção de lhe acertar.
Sarah conseguiu segurar a língua por alguns segundos. Mas
apenas isso.
– Então, qual foi a sua intenção?
– Se queria acertar-lhe? Não. É claro que não.
– Devia dizer-lho.
– Ele sabe disso.
– Mas...
– Eu disse que nunca ninguém me perguntou – interrompeu ele –,
não disse que nunca forneci essa informação voluntariamente.
– Calculo que o tiro dele também tenha sido acidental.
– Nenhum de nós estava no seu perfeito juízo naquela manhã –
referiu ele, em tom absolutamente neutro.
Sarah assentiu sem saber porquê; não estava propriamente a
concordar com nada. Talvez porque devesse mostrar uma reação.
Sentia que ele merecia uma resposta.
– Seja como for – disse Lord Hugh, com os olhos fixos em frente
–, fui eu que exigi o duelo e fui eu quem disparou primeiro.
Ela baixou os olhos para a mesa, sem saber que dizer.
Ele voltou a falar em voz baixa, mas com inequívoca convicção:
– Nunca culpei o seu primo pela minha lesão.
Ela nem sequer teve tempo de pensar numa resposta. Lord Hugh
levantou-se tão abruptamente, que a sua perna ferida bateu na
mesa, fazendo salpicar um pouco de vinho de um copo
abandonado. Olhando para cima, Sarah viu-lhe a expressão de dor.
– Está bem? – perguntou, cautelosa.
– Estou ótimo – respondeu ele, secamente.
– Claro que está – murmurou ela. Com os homens, estava sempre
tudo «ótimo».
– O que é que isso quer dizer? – revidou ele.
– Nada – mentiu Sarah, levantando-se também. – Precisa de
ajuda?
Os olhos dele brilharam de fúria à pergunta, mas, quando estava
prestes a recusar, a bengala caiu no chão com ruído.
– Eu apanho-a – ofereceu-se Sarah, de imediato.
– Eu posso...
– Já a apanhei! – resmungou ela.
Céus, o homem tornava mesmo difícil a Sarah querer ser
atenciosa.
Hugh exalou devagar, soltou um suspiro, e mesmo que claramente
relutante em fazê-lo, disse:
– Obrigado.
Ela entregou-lhe a bengala e, com muita cautela, perguntou:
– Posso acompanhá-lo à porta?
– Não é necessário – foi a resposta brusca.
– Para si, talvez – replicou ela.
Isto pareceu despertar-lhe a curiosidade. Ele arqueou uma
sobrancelha e Sarah continuou:
– Deve estar ciente de que fui incumbida de cuidar do seu bem-
estar.
– Devia realmente parar de me lisonjear, Lady Sarah. Vai subir-me
à cabeça.
– Não vou fugir às minhas obrigações.
Depois de a fitar demoradamente, ele lançou um olhar cheio de
significado para as mais de duas dezenas de casais que dançavam.
Sarah respirou fundo, tentando não cair na armadilha.
Provavelmente, não devia tê-lo abandonado na mesa, mas estava
de bom humor e gostava de dançar. Honoria certamente não
esperava que ela passasse a festa toda sentada ao lado de Lord
Hugh. Além disso, ainda estavam várias pessoas à mesa quando
ela se levantara. E regressara quando percebeu que só Frances
estava lá para lhe fazer companhia.
Para dizer a verdade, ele parecia preferir Frances.
– É estranho ser um dever para uma mulher – murmurou ele. –
Nunca tive esse prazer.
– Eu fiz uma promessa à minha prima – afirmou Sarah, em voz
tensa, sem deixar de pensar na crítica humilhante de Iris. – Como
cavalheiro, podia ao menos deixar-me tentar manter a minha
promessa.
– Muito bem.
A voz dele não mostrava ira, nem resignação, nem divertimento,
nem nada que ela conseguisse identificar. Ele ofereceu-lhe o braço
como qualquer outro homem teria feito, mas Sarah hesitou. Devia
aceitá-lo? Será que poderia fazê-lo perder o equilíbrio?
– Não vai deitar-me ao chão – disse ele.
Assim que ela aceitou o braço, ele curvou-se para ela e
comentou:
– A menos, claro, que me empurre.
Sarah sentiu as faces corarem.
– Oh, vamos, Lady Sarah – brincou ele, fitando-a com uma
expressão paternalista –, pode certamente aceitar uma piada.
Especialmente quando é às minhas custas.
Sarah forçou-se a esboçar um sorriso constrangido.
Lord Hugh respondeu com uma risadinha. Os dois dirigiram-se
para a porta a um ritmo mais rápido do que ela esperava. O coxear
era pronunciado, mas ele obviamente descobrira a melhor forma de
o compensar. Atordoada, Sarah percebeu que ele certamente tivera
de reaprender a andar. Deve ter levado meses ou até anos de
dolorosa reabilitação.
Um sentimento não muito longe da admiração nasceu dentro dela.
Lord Hugh não deixava de ser rude e exasperante, e ela não
gostava da companhia dele, é certo, mas, pela primeira vez desde
aquele desafortunado duelo, três anos e meio antes, Sarah
descobriu que o admirava. Ele era forte. Não era forte no sentido
vejam como é fácil pegar nesta senhora e sentá-la na sela do
cavalo, embora, até onde soubesse, ele também fosse forte nesse
sentido. Tinha a mão no braço dele e sentia-lhe os músculos.
A força de Hugh Prentice era interior, onde era mais importante.
Teria de ser, para recuperar de uma lesão daquelas.
Sarah engoliu em seco, os olhos fixos num ponto distante da sala,
enquanto caminhava ao lado dele. Sentia-se instável, como se o
chão se tivesse subitamente inclinado para a direita ou o ar, tornado
rarefeito. Passara os últimos anos a odiar aquele homem e, embora
a raiva não a tivesse consumido, de certa forma moldara-a.
Lord Hugh Prentice fora um pretexto conveniente, um elemento
constante na sua existência. Enquanto o mundo mudava à sua
volta, ele permanecia o objeto imutável do seu repúdio. Um homem
frio, sem coração nem moral, que arruinara a vida da prima dela
sem um pingo de arrependimento. Em suma, era a própria
encarnação do mal.
E, de repente, encontrava algo para admirar nele? Nem parecia
coisa dela. Era Honoria que via sempre o melhor nas pessoas.
Sarah era a que guardava rancor.
E a que nunca mudava de ideias.
Exceto, aparentemente... quando mudava.
– Vai dançar até não poder mais, quando eu me for embora? –
perguntou, de repente, Lord Hugh.
Perdida no tumulto dos seus pensamentos, Sarah sobressaltou-se
com o volume da voz dele a ecoar-lhe alto nos ouvidos.
– Para ser sincera, nem pensei nisso – respondeu.
– Pois devia – comentou ele, em voz baixa. – É uma excelente
dançarina.
Sarah ficou boquiaberta.
– Sim, Lady Sarah, foi um elogio – disse ele.
– Nem sei como reagir a isso.
– Aconselho-a a aceitá-lo com graciosidade.
– Baseia-o em experiência pessoal?
– Certamente que não. Eu quase nunca aceito elogios com
graciosidade.
Ela olhou para ele, esperando ver uma expressão divertida e até
maliciosa, mas o seu rosto permanecia tão impassível como de
costume. Ele nem sequer estava a olhar para ela.
– É realmente um homem estranho, Lord Hugh Prentice – disse,
baixinho.
– Eu sei.
Ambos contornaram o enorme tio-avô de Sarah (e a sua mulher
extraordinariamente alta), rumo à porta do salão de baile. No
entanto, antes de saírem, foram intercetados por Honoria, radiante
de felicidade e fazendo Sarah pensar que já lhe deviam doer as
faces de tanto sorrir. Agarrada à mão dela, estava Frances,
contagiada pelo brilho da noiva.
– Não se vão já embora! – exclamou Honoria.
Nesse ínterim, só para provar que era impossível escapar
silenciosamente de uma sala cheia de membros da família Smythe-
Smith, Iris materializou-se do outro lado de Honoria, corada e sem
fôlego, por causa da dança escocesa que acabara de terminar.
– Sarah e Lord Hugh! – disse ela, com um risinho mais alegre do
que o normal. – Juntos. Novamente.
– Ainda – corrigiu Lord Hugh, para embaraço de Sarah. Depois de
se curvar numa vénia para Iris, virou-se para Honoria e acrescentou:
– Foi um casamento maravilhoso, Lady Chatteris, mas preciso de
voltar ao quarto, para descansar.
– E eu tenho de o acompanhar – anunciou Sarah.
Iris soltou uma risada irónica.
– Não ao quarto! – apressou-se Sarah a corrigir, atrapalhada. – Só
até às escadas. Ou talvez... – Precisaria ele de ajuda para subir as
escadas? Deveria ela oferecer-se? – Hã... a subir as escadas, se...
– Até onde quiser levar-me – disse ele, cuja inocente afabilidade
era uma clara provocação.
Sarah enterrou os dedos no braço dele, na esperança de o
magoar.
– Mas eu não quero que saiam agora – contestou Honoria.
– Eles formam realmente um casal adorável – comentou Iris com
um sorriso.
– És muito gentil, Iris – resmungou Sarah.
– Foi um prazer vê-lo, Lord Hugh – disse Iris, antes de fazer uma
reverência apressada. – Infelizmente, tenho de me despedir.
Prometi à Honoria que dançava com o primo Rupert. As promessas
devem ser cumpridas, não é?
Com um gesto casual da mão, foi-se embora.
– Ainda bem que a Iris está aqui – disse Honoria. – Não sei o que
o Rupert comeu de manhã, mas ninguém quer ficar perto dele. É um
grande conforto poder contar com as minhas primas.
A adaga que Iris acabara de espetar no coração de Sarah afundou
um pouco mais. Se ela julgava que depressa estaria livre de Lord
Hugh, enganara-se redondamente.
– Devias agradecer-lhe mais tarde – continuou Honoria, dirigindo-
se a Sarah. – Eu sei que tu e o Rupert não... hã... – A voz
desvaneceu, quando se lembrou de que Lord Hugh estava à sua
frente. Não era boa educação discutir as disputas familiares em
público, mesmo que tivesse referido a desavença a Lord Hugh no
dia anterior. – Enfim – continuou, depois de aclarar a voz –, assim,
não tens de dançar com ele.
– Porque a Iris o vai fazer – assinalou Frances, como se Sarah
não entendesse.
– Nós temos realmente de ir – disse Sarah.
– Não, não podem ir já – insistiu Honoria, pegando nas mãos de
Sarah. – Quero que fiques comigo. És a minha prima mais querida.
– Só porque eu sou muito nova – sussurrou Frances para Lord
Hugh.
– Por favor – implorou Honoria antes de se voltar para Lord Hugh.
– Lord Hugh, fique também. É muito importante para mim.
Sarah cerrou os dentes. Se tivesse sido qualquer outra pessoa,
teria atirado os braços ao ar e saído da sala em fúria. Mas Honoria
não estava a tentar fazer de casamenteira. Não era suficientemente
manhosa para isso e, mesmo que fosse, nunca teria sido tão óbvia.
Na verdade, a sua felicidade de noiva era tal que desejava que
todos fossem tão felizes como ela, e não imaginava que alguém
pudesse ser mais feliz do que naquele momento, naquele salão de
baile.
– Sinto muito, Lady Chatteris – murmurou Lord Hugh –, mas a
minha perna precisa de descanso.
– Nesse caso, pode sentar-se na sala de estar – sugeriu Honoria,
imediatamente. – Servimos lá o bolo aos convidados que não
dançam.
– A Sarah ainda não comeu bolo! – exclamou Frances. – Eu devia
ter ido buscar-lhe uma fatia.
– Não faz mal, Frances – tranquilizou-a Sarah. – Eu...
– Oh, mas tens de provar o bolo – interrompeu Honoria. – Mrs.
Wetherby trabalhou com a cozinheira durante semanas, para que a
receita saísse na perfeição.
Sarah não duvidava. Honoria sempre gostara muito de doces.
– Eu vou contigo – anunciou Frances.
– Seria ótimo, mas...
– E Lord Hugh também pode vir!
Diante de tal sugestão, Sarah virou-se para Frances, desconfiada.
Honoria podia estar a tentar deixar toda a gente tão feliz como ela,
mas os motivos de Frances raramente eram tão puros.
– Muito bem – concordou Sarah, antes de perceber que deveria
ter sido Lord Hugh a responder.
– O Marcus e eu vamos à sala de estar daqui a pouco agradecer
aos convidados – explicou Honoria.
– Como queira, minha senhora – disse Lord Hugh, curvando-se
ligeiramente numa vénia.
Nada na sua voz revelava irritação ou impaciência, mas Sarah não
se deixou enganar. Se pensasse a esse respeito, era estranho que,
no espaço de um dia, o conhecesse o suficiente para adivinhar que
ele estava absolutamente furioso. Ou, pelo menos, levemente
aborrecido.
No entanto, o seu rosto era tão impassível como sempre.
– Vamos? – sussurrou ele.
Sarah assentiu e os dois saíram. Uma vez no corredor, no entanto,
ele parou e disse:
– Não precisa de me acompanhar à sala de estar.
– Oh, preciso sim! – resmungou ela, pensando em Iris, que lho
esfregaria na cara se não o fizesse, e em Honoria, que contava com
ela, e até em Frances, que esperava encontrá-la quando chegasse
à sala com uma fatia de bolo. – Mas, se quiser ir para o quarto, eu
apresentarei as suas desculpas.
– Prometi à noiva.
– Eu também.
Lord Hugh observou-a tempo suficiente para ela se sentir
desconfortável e disse:
– Suponho que não seja pessoa de quebrar uma promessa.
A sorte dele é que ela já lhe soltara o braço, caso contrário,
provavelmente ter-lho-ia partido.
– Não.
Mais uma vez, ele fixou-a. Ou talvez não fosse um olhar fixo, mas
tinha um jeito muito estranho de deixar os olhos demorarem-se no
rosto dela antes de falar. Fazia-o com os outros também; ela
reparara nisso no dia anterior.
– Muito bem, então – disse ele. – Creio que somos esperados na
sala de estar.
Sarah olhou-o de relance e virou rapidamente a cabeça para a
frente, comentando:
– É verdade que gosto de bolos.
– Pretendia privar-se de o comer apenas para me evitar? –
perguntou ele enquanto desciam o corredor.
– Não exatamente.
– Não exatamente? – repetiu ele, olhando-a de esguelha.
– Planeava voltar para o salão de baile depois de se ir embora –
admitiu Sarah. – Ou pedir a alguém que me levasse um prato ao
quarto. – Um instante depois, acrescentou: – E não estava a tentar
evitá-lo.
– Ah, não?
– Não, eu... Não exatamente – retificou ela, contendo um sorriso.
– Não exatamente? – repetiu ele pela segunda vez.
Sarah não esclareceu. Não podia, porque não sabia exatamente o
que queria dizer. Que já não o odiava tão completamente, talvez.
Pelo menos, não o suficiente para se privar de bolo.
– Tenho uma pergunta – disse.
Ele inclinou a cabeça para o lado, convidando-a a continuar.
– Ontem, na sala de estar, quando... hã...
– A acordei? – interveio ele.
– Sim – disse ela, imaginando por que razão se sentia
envergonhada de o dizer. – Melhor, depois disso. Referiu algo sobre
dez libras.
Ele riu-se, um som grave e rico vindo das profundezas da
garganta.
– Queria que eu fingisse desmaiar – lembrou ela.
– Seria capaz de o fazer?
– Fingir desmaiar? Acho que sim. É um talento que todas as
mulheres devem ter – assegurou com um sorriso atrevido e, depois,
perguntou: – O Marcus ofereceu-lhe mesmo dez libras, se eu
desmaiasse no relvado?
– Não – admitiu Lord Hugh. – O seu primo Daniel afirmou que a
visão de nós dois armados seria suficiente para fazer uma senhora
desmaiar.
– Não só eu, então?
– Não, qualquer senhora. Portanto, o Daniel anunciou que Lord
Chatteris nos daria dez libras a cada um se isso acontecesse.
– E o Marcus concordou?
Sarah não conseguia imaginar nada mais longe da personalidade
de Marcus, exceto talvez vê-lo saltar para um palco e dançar uma
jiga.
– Claro que não. Consegue imaginá-lo a aceitar tal coisa?
Lord Hugh sorriu então, um sorriso verdadeiro que lhe curvava
mais do que os cantos da boca, mas que também assomava aos
olhos, cintilando naquelas profundezas verdes. Por um momento,
espantoso e horripilante, ele ficou quase atraente. Não, não era
isso. Ele sempre fora atraente. Mas, quando sorria, ficava...
Cativante.
– Oh, meu Deus! – exclamou Sarah, com voz estrangulada,
recuando um passo.
Nunca beijara um homem, nunca o quisera sequer, e agora
imaginava fazê-lo com Hugh Prentice?
– Passa-se alguma coisa?
– Hã... não. Quero dizer, sim. Isto é, vi uma aranha!
Ele olhou para o chão.
– Uma aranha?
– Desapareceu – disse Sarah, rapidamente, apontando para a
esquerda... e logo depois para a direita.
Lord Hugh franziu o sobrolho, apoiou-se na bengala para se
curvar e inspecionar o corredor.
– Tenho medo de aranhas – acrescentou Sarah.
Não era exatamente verdade, mas quase. Digamos que não
gostava delas.
– Bem, não a vejo.
– Acha que deva chamar alguém? – sugeriu Sarah, pensando que
atravessar a casa toda até à ala dos criados talvez não fosse má
ideia. Se não tivesse Hugh Prentice diante dos olhos, aquela loucura
desapareceria, certo? – Sabe, para... a procurarem – continuou,
inventando à medida que falava. – E a matarem. Santo Deus, pode
haver um ninho!
– Tenho a certeza de que os criados de Fensmore não permitiriam
tal coisa.
– Mesmo assim – guinchou Sarah e recuou, assustada pelo
próprio som estridente.
– Talvez fosse mais fácil tocar para chamar um lacaio? – sugeriu
Lord Hugh, apontando para a sala de estar, a apenas alguns
passos.
Sarah assentiu, porque ele tinha razão, claro. Além disso,
começava a sentir-se normal novamente. As batidas do coração
tinham-se acalmado e, se se abstivesse de olhar para a boca dele, a
vontade de o beijar desapareceria. Praticamente.
Endireitou os ombros e, munindo-se de coragem, disse:
– Obrigada pela preocupação – e entrou na sala de estar.
Estava vazia.
– Que estranho... – murmurou ela.
– De facto – disse Lord Hugh, apertando os lábios.
– Não sei se... – começou Sarah, mas não precisou de dizer mais
nada, porque Lord Hugh virou-se para ela, com os olhos
ligeiramente estreitados.
– A sua prima – começou ele – não tentaria...
– Não! – exclamou Sarah. – Quero dizer, não – repetiu, num tom
muito mais relaxado. – A Iris, talvez, mas não a Hono...
Interrompeu-se. A última coisa que queria era pô-lo a pensar que
qualquer membro dos Smythe-Smith os tentava atirar para os
braços um do outro.
– Olhe, pratos vazios! – exclamou ela, a voz saindo demasiado
alta e vivaz, apontando para uma mesa, à esquerda. – Estiveram
pessoas aqui. Apenas se foram embora.
Ele não fez comentários.
– Vamos sentar-nos? – sugeriu ela, desconfortável.
Ainda sem dizer uma palavra, ele virou a cabeça para a encarar.
– E esperamos? – acrescentou ela. – Foi o que dissemos que
faríamos, certo?
Sarah sentia-se ridícula e estranhamente inquieta. Mas, agora, era
como se tivesse de provar a si mesma que era capaz de estar na
mesma sala que ele e comportar-se normalmente.
– A Frances está à espera de nos encontrar aqui – voltou a falar
Sarah, uma vez que Lord Hugh parecia ter emudecido.
Estaria, sem dúvida simplesmente a pensar. Mas não seria ele
capaz de pensar e alimentar uma conversa ao mesmo tempo? Ela
fazia-o constantemente.
– Faça favor, Lady Sarah – disse ele finalmente, dando-lhe
passagem.
Ela dirigiu-se para um sofá azul e dourado, o mesmo, percebeu,
em que adormecera no dia anterior, quando ele a acordara. Ficou
tentada a olhar para trás, para se certificar de que Lord Hugh não
precisava de ajuda. O que era ridículo, pois sabia que ele não
precisava, pelo menos não em algo tão simples.
No entanto, sentia uma necessidade irreprimível e, assim que se
sentou no sofá, foi com um alívio indescritível que levantou a cabeça
e olhou para ele. Hugh estava a poucos passos de distância e, um
momento depois, sentou-se na poltrona azul que ocupara no dia
anterior.
Ela teve uma sensação de déjà vu. Mas tudo era diferente, agora.
Tudo, exceto onde estavam sentados. Apenas um dia se passara e
o universo de Sarah ficara virado do avesso.
Capítulo 9

éjà vu brincou Lady Sarah.


–D Hugh pensara exatamente o mesmo. No entanto, havia um
pormenor diferente: a mesa não estava no mesmo sítio. Tivera essa
impressão quando se sentara.
– Algum problema? – perguntou ela.
Hugh percebeu que devia estar de sobrolho franzido.
– Não, é só...
Ele mexeu-se no assento, tentando encontrar uma posição mais
confortável. Seria muito difícil deslocar a mesa? Ainda estava cheia
de pratos meio vazios, que os criados não tiveram tempo de retirar.
Mas poderia certamente afastá-los para o lado...
– Oh! – exclamou Lady Sarah, de repente. – Precisa de esticar a
perna. Claro.
– Creio que a mesa não está onde estava ontem – declarou ele.
Ela olhou para a mesa, depois para ele.
– Eu tinha espaço para esticar a perna – explicou ele.
– Isso mesmo – concordou ela, levantando-se de imediato. Ele
engoliu um grunhido. Apoiando-se nos braços da poltrona,
preparava-se para a imitar, quando ela colocou uma mão ao de leve
na dele, dizendo: – Por favor, não se sinta obrigado a levantar-se.
Ele olhou para a mão dela, mas, com a mesma rapidez com que
tinha aparecido, desapareceu, e Sarah começou a levar os pratos
para outra mesa.
– Não faça isso – disse, constrangido por a ver executar tal tarefa
doméstica por ele.
Ela ignorou-o.
– Pronto, já está! – disse Sarah, pousando as mãos nas ancas e
avaliando a mesa parcialmente limpa. Levantou os olhos e
perguntou-lhe: – É mais confortável ter o pé no chão ou na mesa?
Céus! Hugh não podia acreditar que ela lhe fizera tal pergunta.
– Não vou pôr o pé na mesa!
– Não é isso que faria em casa?
– Sim, claro, mas...
– Nesse caso, respondeu à minha pergunta – cortou ela, com
insolência, e tratou de remover mais pratos sujos.
– Lady Sarah, pare!
– Não – respondeu ela, sem sequer olhar para ele.
– Eu insisto!
A situação era demasiado absurda. Lady Sarah Pleinsworth não
só afastava louça suja, mas também se preparava para mover uma
peça de mobília. Mais surpreendente ainda era que o fazia para o
ajudar.
– Fique quieto e deixe-me ajudá-lo – respondeu ela, num tom
severo.
Hugh ficou boquiaberto. Sarah deve ter notado o seu espanto com
satisfação, pois os seus lábios formaram um sorriso que
gradualmente se tornou presunçoso.
– Não sou inválido – resmungou.
– Eu nunca disse tal coisa.
Os olhos escuros dela brilharam e, quando se inclinou para
continuar a tarefa, a evidência atingiu Hugh como um vento quente
do deserto.
Eu desejo-a!
Hugh ficou sem fôlego.
– Algum problema? – perguntou ela.
– Não – resmungou ele, mas continuava a desejá-la.
– A sua voz soou esquisita – disse ela, olhando para cima. –
Como se... bem, não sei. – Retomou a tarefa de levantar os pratos,
falando enquanto trabalhava: – Talvez como se estivesse com
dores.
Hugh ficou em silêncio, a tentar não a seguir com os olhos
enquanto ela se movia pela sala de estar. Santo Deus, o que estava
a acontecer com ele? Sim, Lady Sarah era muito atraente, e sim, o
corpete de veludo do seu vestido moldava-lhe o busto de tal
maneira que um homem ficava ciente da forma exata – exatamente
perfeita – dos seus seios.
Mas tratava-se de Sarah Pleinsworth, que diabo! Ainda há vinte e
quatro horas a detestava. Aliás, talvez ainda a odiasse um pouco.
Quanto ao vento quente do deserto, Hugh nem sabia qual era a
sensação. De onde diabo lhe viera tal comparação?
– Na minha opinião – disse Lady Sarah, pousando o último prato e
virando-se para olhar para ele –, seria melhor se pousasse o pé na
mesa e depois eu empurro-a para mais perto, para que possa apoiar
o resto da perna.
Hugh não conseguiu reagir, pois ainda tentava entender que diabo
se passava.
– Lord Hugh... – chamou ela, expectante – a sua perna?
Adivinhando que nada a impediria de alcançar o seu objetivo, ele
pediu silenciosamente desculpa aos anfitriães e pousou o pé
calçado com a bota na mesa de apoio.
Era realmente um grande alívio esticar a perna.
– Não se mexa – disse Lady Sarah, indo para o lado dele. – Não
está a apoiar o joelho. – Pôs-se ao lado dele e puxou a mesa, mas
fê-lo na diagonal. – Oh, desculpe! – disse, contornando a poltrona. –
Só um minuto...
Sarah deu um passo para o lado, espremendo-se entre o sofá e a
cadeira. Estava tão perto que Hugh podia sentir-lhe o calor do
corpo.
– Com licença – murmurou ela.
Ele, então, cometeu o erro de virar a cabeça.
Lady Sarah tinha-se curvado para fazer mais força, e aquele
vestido... aquele decote... tão perto dele...
Mexeu-se novamente no assento e, desta vez, não tinha nada a
ver com a lesão.
– Pode levantá-la um bocadinho? – pediu Lady Sarah.
– O quê?
– A perna.
Graças a Deus, ela não estava a olhar para ele, porque ele não
conseguia desviar o olhar. A sombra entre os seios dela estava
demasiado perto e a fragrância que lhe emanava do corpo, uma
mistura de limão, madressilva e algo mais rico e sensual, envolvia-
o.
Ela dançara a manhã toda. Ficara sem fôlego e tonta do exercício.
O simples pensamento tornava-o tão desesperado de desejo por ela
que estava capaz de parar de respirar.
– Precisa de ajuda? – perguntou ela.
E como! Hugh não estava com uma mulher desde que se
magoara e, para dizer a verdade, não queria realmente. Embora
tivesse as mesmas necessidades que qualquer outro homem, era-
lhe tão difícil imaginar ser desejado com aquela perna danificada,
que não se permitira sentir nada por mais nenhuma mulher.
Até àquele momento, quando foi atingido como se por um...
Não, maldição, não um vento quente do deserto! Tudo menos um
vento quente do deserto!
– Lord Hugh – disse Lady Sarah, com impaciência –, ouviu o que
eu disse? Se levantar a perna, consigo deslocar a mesa mais
facilmente.
– Desculpe – murmurou ele, levantando a perna uns centímetros.
Ela puxou a mesa, mas esta ficou presa na ponta superior da bota
dele, forçando-a a dar um passo à frente, para manter o equilíbrio.
Ficara tão perto agora, que Hugh poderia ter-lhe tocado. Agarrou-
se aos braços da poltrona, para não sucumbir à tentação.
Teria gostado de lhe pegar na mão, de sentir os dedos a
entrelaçar-se nos dele e de a levar aos lábios. Beijá-la-ia no interior
do pulso, sentir-lhe-ia as pulsações sob a pele pálida...
Santo Deus, não era altura de entrar em devaneios eróticos, mas
não conseguia evitar, aparentemente. Então... levantar-lhe-ia os
braços acima da cabeça, o movimento fazendo-a arquear
ligeiramente as costas e, quando a puxasse contra si, sentiria cada
curva do seu corpo. Depois, levantar-lhe-ia a saia e deixaria a mão
subir pela perna até à reentrância das coxas.
Queria conhecer-lhe a temperatura exata do corpo, em cada
momento, até a sentir quente e corada de desejo.
– Aí está – disse ela, endireitando-se.
Era quase impossível pensar que ela não estivesse ciente do
desespero dele, que não percebesse que ele estava prestes a
perder o controlo.
Ela sorriu, tendo conseguido pôr a mesa na posição que queria.
– Está melhor? – perguntou.
Hugh assentiu, inseguro da própria voz.
– Está tudo bem? Parece um pouco congestionado.
Oh, meu Deus!
– Precisa de alguma coisa?
De si.
– Não – respondeu ele, demasiado alto.
Como raio tinha aquilo acontecido? Estava a olhar para Sarah
Pleinsworth como um adolescente lascivo e não conseguia pensar
em nada além da forma dos seus lábios, da cor, da textura que
queria conhecer...
Sarah pousou uma mão na testa dele.
– Posso? – perguntou, mas já o tocava, mesmo antes de terminar
a pergunta.
Ele assentiu. Que mais poderia fazer?
– Realmente não parece bem – murmurou ela. – Quando a
Frances chegar com o bolo, podemos pedir-lhe que vá buscar uma
limonada. Vai refrescá-lo.
Hugh assentiu mais uma vez e forçou-se a pensar em Frances,
que tinha onze anos e adorava unicórnios.
Estava fora de questão ela entrar na sala e encontrá-lo naquele
estado.
Sarah tirou a mão da testa dele e franziu o sobrolho.
– Está um pouco quente, mas não muito.
Hugh não podia imaginar como isso era possível, pois, segundos
antes, estivera à beira da combustão espontânea.
– Estou bem – conseguiu articular. – Só preciso de mais bolo. Ou
limonada.
Ela fitou-o como se lhe tivesse nascido de repente uma terceira
orelha. Ou se a sua cor de pele tivesse mudado.
– Passa-se alguma coisa? – arriscou ele.
– Não – respondeu ela, embora não muito convencida. – É só que
não parece encontrar-se no seu estado normal.
Hugh tentou manter um tom natural ao responder:
– Não sabia que nos conhecíamos bem o suficiente para o
perceber.
– Eu sei, é estranho – concordou ela, voltando a sentar-se no
sofá. – Acho que é porque... não importa.
– Não, diga – insistiu ele.
Conversar era uma ótima ideia. Evitaria que a sua mente se
desviasse e, mais importante, fá-la-ia sentar-se no sofá e parar de
se dobrar sobre ele na poltrona.
– Costuma fazer uma pausa antes de falar.
– Isso é um problema?
– Não, é claro que não. É apenas... diferente.
– Talvez eu goste de pensar nas palavras que vou usar.
– Não, não é isso – murmurou ela.
Hugh deixou escapar uma risadinha.
– Está a dizer-me que eu falo sem pensar?
– Não – defendeu-se ela, rindo também. – Tenho a certeza do
contrário. É muito inteligente e sei que sabe disso.
Isso fê-lo sorrir.
– Eu realmente não sei explicar – continuou ela –, mas quando
olha para uma pessoa... Não, não vale a pena ser
desnecessariamente vaga... Quando olha para mim, antes de falar,
há com frequência um momento de silêncio. E não acho que esteja
a escolher as palavras.
Hugh examinou-lhe a expressão. Foi a vez de ela ficar em silêncio
e tentar refinar os pensamentos.
– É algo na sua expressão – disse ela, finalmente. – Não dá a
impressão de estar a decidir o que dizer. – Ergueu os olhos
bruscamente e a expressão pensativa desapareceu. – Peço
desculpa, foi uma observação demasiado pessoal.
– Não peça desculpa – pediu ele, baixinho. – O nosso mundo está
cheio de conversas ociosas. É uma honra ter uma que não o é.
As faces dela assumiram um tom rosado de orgulho e Sarah
desviou o olhar timidamente. Hugh percebeu naquele momento que
também a conhecia o suficiente para adivinhar que aquela não era
uma expressão comum no seu rosto.
– Bom – disse ela, cruzando as mãos no colo. Aclarou a garganta
uma vez, depois outra. – Talvez devêssemos... Frances!
A exclamação saiu com grande fervor, misturada, na opinião de
Hugh, com um toque de alívio.
– Lamento ter demorado tanto – disse Frances, ao entrar na sala
de estar. – A Honoria atirou o bouquet e eu não queria perder o
momento.
Sarah endireitou-se abruptamente no assento.
– A Honoria atirou o bouquet sem mim lá?
Frances pestanejou algumas vezes.
– Sim... Mas não precisas de te preocupar. Não terias corrido mais
depressa do que a Iris.
– A Iris correu?! – exclamou Sarah, com uma expressão que Hugh
só poderia descrever como uma mistura de horror e júbilo.
– Até saltou – confirmou Frances. – Atirou a Harriet ao chão.
Hugh cobriu a boca com a mão.
– Não precisa de esconder o riso por minha causa – disse Sarah.
– Não sabia que a Iris tinha alguém em mira – comentou Frances,
baixando os olhos para o prato de bolo. – Posso tirar um bocadinho
do teu, Sarah?
Sarah acenou em confirmação antes de declarar:
– Não acho que seja o caso.
Frances lambeu cuidadosamente um pouco da cobertura do bolo
do garfo.
– Talvez ela pense que ter o bouquet da noiva a ajude a encontrar
o seu grande amor mais depressa.
– Se isso bastasse – disse Sarah com ironia –, eu podia ter pulado
na frente da Iris.
– Sabe de onde vem a tradição de a noiva lançar o bouquet? –
perguntou Hugh.
Sarah abanou a cabeça.
– Faz a pergunta porque sabe ou porque quer saber?
Ignorando o tom um tanto sarcástico, ele explicou:
– As noivas eram consideradas sortudas. Há muitos séculos, as
jovens que queriam atrair um pouco dessa sorte tentavam consegui-
la rasgando literalmente pedaços do vestido de noiva.
– Mas isso é uma barbaridade! – exclamou Frances.
Divertido pelo rompante, ele continuou:
– Só posso deduzir que alguma mente brilhante percebeu que, se
a noiva pudesse oferecer uma lembrança diferente do seu sucesso
romântico, seria benéfico tanto para a sua saúde como para o seu
bem-estar.
– Claro – concordou Frances. – Pense em todas as noivas que
devem ter sido pisoteadas.
Sarah soltou uma risada e estendeu a mão para pegar no que
restava do seu bolo. Frances tinha comido grande parte da
cobertura e Hugh quase lhe ofereceu o dele, pois já havia comido
uma fatia enquanto a observava dançar. Mas, com a perna apoiada
na mesa, não conseguia dobrar-se o suficiente para deslizar o prato
em direção a ela.
Então, ficou a vê-la comer enquanto ouvia Frances conversar
sobre mil e uma coisas. Sentia-se notavelmente satisfeito e talvez
até tenha fechado os olhos por um momento. Até que ouviu Frances
dizer de repente:
– Tens um bocadinho de glacé.
Ele abriu os olhos.
– Mesmo aqui – explicou Frances a Sarah, apontando para o sítio
nos próprios lábios.
Como não havia guardanapos, e Frances não se lembrara de os
trazer, Sarah lambeu o canto da boca com a ponta da língua.
Aquela língua. Aqueles lábios.
A sua perdição.
Hugh tirou o pé da mesa e levantou-se desajeitadamente.
– Algum problema? – perguntou Sarah, preocupada.
– Por favor, apresente as minhas desculpas a Lady Chatteris –
disse ele, rigidamente. – Sei que ela queria que eu esperasse, mas
a minha perna precisa realmente de descansar.
Sarah fitou-o, desconcertada.
– Não foi exatamente isso que...
– É diferente – cortou ele, mesmo que, na realidade, não fosse.
– Oh – foi a reação dela.
Foi um som muito ambíguo que poderia expressar surpresa,
prazer, talvez até deceção. Mas Hugh recusou-se a ponderar na
diferença, pois estava fora de questão desejar uma mulher como
Lady Sarah Pleinsworth.
Absolutamente fora de questão.
Capítulo 10

Na manhã seguinte

númeras carruagens se encontravam alinhadas à entrada de


I Fensmore, pois os convidados se preparavam para partir do
Cambridgeshire em direção ao Berkshire, no Sudoeste, mais
especificamente a Whipple Hill, a propriedade rural dos condes de
Winstead. Seria, como Sarah descrevera certa vez, a Grande e
Terrível Caravana da Aristocracia Britânica. De pena na mão, Harriet
insistira que tal nome exigia maiúsculas.
Uma vez que Londres não ficava muito longe, alguns dos
hóspedes relegados a estalagens vizinhas decidiram regressar à
cidade. Mas a maioria resolveu transformar a dupla celebração
numa festa de três semanas.
– Santo Deus! – exclamara Lady Danbury, ao receber os convites
para os dois casamentos. – Eles acreditam realmente que vou
reabrir a minha casa de Londres por dez dias?
Ninguém ousara dizer-lhe que a propriedade rural de Lady
Danbury ficava no Surrey, ou seja, ainda mais perto de Fensmore e
de Whipple Hill do que Londres.
Porém, a observação de Lady Danbury fazia sentido. Naquela
época do ano, a alta sociedade estava muito dispersa. A maioria
das pessoas encontrava-se no Norte ou no Oeste do país, ou
melhor, não se encontrava no Cambridgeshire e no Berkshire nem
entre esses dois condados. Quase ninguém via razões para abrir as
casas de Londres por menos de duas semanas, quando podia
desfrutar da hospitalidade de outra pessoa.
Embora, verdade seja dita, não fosse uma opinião partilhada por
todos.
– Recordas-me porque é que não volto para casa? – perguntou
Hugh a Daniel, enquanto atravessavam o átrio principal de
Fensmore.
A viagem de Fensmore a Whipple Hill demorava três dias, dois se
a fizessem a um ritmo mais veloz, o que ninguém queria. Sem
dúvida, pensou Hugh, passaria menos tempo dentro de uma
carruagem do que se regressasse a Londres e partisse para
Berkshire uma semana depois, mas seria, ainda assim, uma viagem
difícil.
Alguém – ele não sabia exatamente quem, mas certamente não
Daniel, que nunca tivera jeito para essas coisas – tinha preparado o
itinerário, anotado todas as estalagens ao longo do caminho e o
número de quartos de que dispunham, além de ainda planear o
lugar onde todos deveriam dormir.
Hugh esperava que ninguém que não fosse convidado dos
casamentos Chatteris-Smythe-Smith-Wynter se aventurasse nas
estradas naquela semana, pois não encontraria um único quarto
disponível.
– Não vais para casa, porque a tua casa é uma seca – respondeu
Daniel, dando-lhe uma palmada amigável nas costas. – E não tens
carruagem própria, portanto, para regressares a Londres, terias de
arranjar lugar com uma das amigas da minha mãe.
Hugh abriu a boca, mas Daniel ainda não tinha terminado.
– Já para não falar da viagem de Londres para Whipple Hill. Pode
haver lugar na carruagem que levará a antiga ama da minha mãe,
mas, se não houver, terias de fazer uma reserva na carruagem da
mala-posta.
– Já acabaste? – ironizou Hugh.
Daniel ergueu o dedo indicador como se ainda tivesse algo a
acrescentar, depois mudou de ideias e respondeu:
– Sim.
– És um homem cruel.
– Só digo a verdade – contrapôs Daniel. – Além disso, porque não
havias de querer ir para Whipple Hill?
Hugh tinha um bom motivo.
– A festa começa assim que chegarmos – continuou Daniel. –
Será uma maravilhosa frivolidade até ao casamento.
Era difícil imaginar um homem com uma alma mais leve e alegre
do que Daniel Smythe-Smith. Hugh sabia que aquilo se devia, em
grande parte, ao casamento iminente de Daniel com a bela Miss
Wynter, mas a verdade é que Daniel sempre fora um homem de riso
fácil e sem qualquer problema em fazer amigos.
Para Hugh, a consciência de que tinha destruído a vida de um
homem como ele, forçando-o ao exílio na Europa, era-lhe ainda
mais penosa. Ainda o impressionavam a graça e o bom humor com
que Daniel recuperara o seu lugar em Inglaterra. A maioria dos
homens teria sede de vingança.
Porém, Daniel agradecera-lhe. Agradecera-lhe por ter ido a Itália
buscá-lo, depois agradecera-lhe por ter posto fim à perseguição
iniciada pelo pai de Hugh e, finalmente, agradecera-lhe pela
amizade.
Não havia nada que não fizesse por Daniel, pensou Hugh.
– O que farias em Londres, afinal? – perguntou Daniel, dando
sinal para que Hugh o acompanhasse. – Ficar sentado a fazer
cálculos de cabeça?
Hugh fitou-o com ar rabugento.
– Eu provoco-te porque te admiro.
– Ah, sim?
– Sim, é um talento brilhante – assegurou Daniel.
– Mesmo que tenha sido a causa de levares um tiro e teres de sair
a fugir do país? – perguntou Hugh.
Tal como dissera Lady Sarah, às vezes o humor negro era a única
escolha.
Daniel parou e a expressão tornou-se sombria.
– Estás ciente – continuou Hugh – de que a minha aptidão para a
matemática é precisamente o motivo pelo qual sempre fui bom às
cartas, certo?
Os olhos de Daniel pareceram escurecer ainda mais. Então,
pestanejou e assumiu um ar de calma resignação.
– O que está feito está feito, Prentice. É passado e as nossas
vidas retomaram o seu curso.
A tua, sim, pensou Hugh, condenando-se imediatamente por tal
pensamento.
– Fomos ambos idiotas – disse Daniel, em voz baixa.
– Possivelmente, mas apenas um de nós exigiu um duelo –
replicou Hugh.
– Eu não era obrigado a aceitar.
– Claro que eras. Nunca mais andarias de cabeça erguida, se não
o tivesses feito.
Aquele código de honra entre os aristocratas era estúpido, mas
sacrossanto. Se um homem fosse acusado de fazer batota às
cartas, tinha de se defender.
Daniel pousou uma mão no ombro de Hugh.
– Eu já te perdoei e acho que me perdoaste também.
Não era o caso, mas apenas porque Hugh não tinha nada que lhe
perdoar.
– O que eu quero saber – sussurrou Daniel – é se te perdoaste a ti
mesmo.
Hugh não respondeu e Daniel não insistiu. Foi com o tom jovial de
sempre que Daniel declarou:
– Que a viagem para Whipple Hill comece! Vamos comer, alguns
vão beber e todos seremos felizes.
Hugh assentiu rapidamente. Daniel não bebia álcool desde aquela
noite fatal, segundo lhe dissera. Hugh pensava, por vezes, que
devia seguir-lhe o exemplo, mas havia noites em que a dor era tão
forte que precisava de algo que a aliviasse.
– Além do mais – continuou Daniel –, tens de lá estar com
antecedência porque decidi que fazes parte do grupo do noivo.
– Perdão? – perguntou Hugh, estacando de repente.
– O Marcus será o meu padrinho, claro, mas creio que vou
precisar do apoio de mais alguns amigos. A Anne tem um
verdadeiro séquito de damas de honor.
Hugh engoliu em seco, desejando não se sentir tão constrangido
ao aceitar aquela honra. Porque era realmente uma honra. Teria
gostado de agradecer, de dizer que aquilo significava muito para ele
e que já se tinha esquecido de como era bom ter um amigo
verdadeiro.
No entanto, apenas conseguiu inclinar a cabeça
desajeitadamente. Não mentira a Sarah no dia anterior. Ele não
sabia aceitar elogios com graciosidade. Para o fazer, provavelmente
era necessário pensar que os merecia.
– Então, está resolvido – disse Daniel. – A propósito, arranjei-te
lugar na minha carruagem favorita.
– O que é que isso significa? – indagou Hugh, desconfiado,
enquanto desciam os últimos degraus da entrada.
– Vamos ver – murmurou Daniel, ignorando a pergunta. – Está
mesmo... ali!
Apontou para uma carruagem preta relativamente pequena, a
quinta da fila à entrada da casa. Não tinha brasão, mas era
obviamente de boa qualidade. Provavelmente, a carruagem
secundária de uma das famílias nobres presentes.
– De quem é a carruagem? – quis saber Hugh. – Não me digas
que me puseste com Lady Danbury?
– Não, não te pus com Lady Danbury – tranquilizou-o Daniel –,
embora, verdade seja dita, ela deva ser uma ótima companheira de
viagem.
– Com quem me puseste, então?
– Entra e verás.
Hugh passara a tarde do dia anterior e grande parte da noite
convencido de que o desejo febril que sentira por Sarah Pleinsworth
não era mais do que uma loucura passageira, provocada por...
alguma coisa. Talvez por outra loucura passageira. Em suma,
qualquer que fosse a razão, um dia inteiro com ela no espaço
confinado de uma carruagem não poderia ser boa ideia.
– Winstead – disse Hugh em tom de advertência –, não a tua
prima. Aviso-te que já...
– Sabes quantas primas tenho? Achas realmente que poderia
evitá-las a todas?
– Winstead...
– Não te preocupes, pus-te com as melhores. Prometo.
– Então porque é que me sinto a ser levado para o matadouro?
– Bem, é verdade que estarás em minoria – admitiu Daniel.
– O quê? – disse Hugh, rodando nos calcanhares e virando-se
para a carruagem.
– Aqui estamos nós!
Daniel abriu a porta.
– Minhas senhoras – disse Daniel, com toda a pompa.
Uma cabeça apareceu.
– Lord Hugh!
Era Lady Frances.
– Bom dia, Lord Hugh.
– Bom dia, Lord Hugh.
E as irmãs de Lady Frances, aparentemente. Mas não Lady
Sarah, tanto quanto conseguia ver.
Hugh pôde finalmente respirar fundo.
– Passei algumas das melhores horas da minha vida com estas
três senhoras – disse Daniel.
– Creio que a viagem de hoje vai durar nove horas – comentou
Hugh, com ironia.
– Serão nove horas bem passadas – assegurou Daniel,
inclinando-se para Hugh e acrescentando num murmúrio: – No
entanto, se aceitas um conselho, não tentes seguir tudo o que elas
dizem. Arriscas-te a ficar com vertigens.
– O quê? – espantou-se Hugh, parando no degrau.
– Vai, entra! – disse Daniel, dando-lhe um leve empurrão. – Vemo-
nos quando pararmos para o almoço.
Hugh abriu a boca para protestar, mas Daniel já fechara a porta.
Na carruagem, Hugh viu que Harriet e Elizabeth estavam sentadas
de frente para a estrada, uma pilha de livros e papéis pousada no
banco entre elas. Com uma pena presa atrás da orelha, Harriet
tentava manter equilibrada uma escrivaninha portátil no colo.
– Não foi simpático o Daniel tê-lo posto connosco? – comentou
Frances, assim que Hugh se sentou a seu lado.
Ou melhor, pouco antes de se sentar, o que só confirmava o
palpite de que aquela criança não era particularmente paciente.
– Claro – murmurou ele.
A verdade é que devia ficar agradecido. Lady Frances seria
melhor companhia do que uma daquelas velhas senhoras
maçadoras ou um cavalheiro a fumar charuto. E certamente que as
irmãs de Lady Frances também seriam toleráveis.
– Eu pedi-lhe o especial favor – admitiu Frances. – Diverti-me
muito no casamento, ontem. – Virou-se para as irmãs,
esclarecendo: – Comemos bolo juntos.
– Eu vi – disse Elizabeth.
– Não se importa de viajar de costas? – perguntou Frances. – A
Harriet e a Elizabeth enjoam se viajarem de costas.
– Frances! – repreendeu-a Elizabeth.
– É verdade. O que seria mais embaraçoso, dizer a Lord Hugh
que enjoas ou vomitares por viajares de costas?
– Prefiro a primeira hipótese – interveio Hugh.
– Vão estar na conversa o caminho todo? – perguntou Harriet.
Das três, era a mais parecida com Sarah. O cabelo era um pouco
mais claro, mas o mesmo formato do rosto e o mesmo sorriso.
Harriet olhou para Hugh com certo embaraço e acrescentou:
– Peço desculpa. Estava a falar com as minhas irmãs, claro. Não
consigo.
– Não há problema – assegurou, com um sorriso alegre. – Mas
acontece que não pretendo conversar o tempo todo.
– Eu planeava escrever – explicou Harriet, pousando alguns
papéis na pequena escrivaninha.
– É impossível – protestou Elizabeth. – Vais sujar tudo com tinta.
– Não vou, não. Encontrei uma nova técnica.
– Para escrever em andamento?
– Vou usar menos tinta, garanto. Alguém se lembrou de trazer
biscoitos? Fico sempre com fome antes de pararmos para o
almoço.
– A Frances trouxe. E sabes que a mãe vai ter um ataque se
sujares...
– Cuidado com os cotovelos, Frances.
– Sinto muito, Lord Hugh. Espero não o ter magoado. E eu não
trouxe biscoitos. Pensei que a Elizabeth ia tratar disso.
– Estás sentada em cima da minha boneca?
– Oh, desculpa! Eu sabia que devia ter comido mais ao pequeno-
almoço. Para de me olhar assim! Não vou sujar os estofos com
tinta...
– A tua boneca está aqui. Como é possível usar menos tinta?
Hugh estava sem palavras. Tinha a impressão de assistir a
dezasseis conversas ao mesmo tempo. Com apenas três
interlocutores.
– Bem, escrevi as ideias principais...
– Essas ideias principais incluem unicórnios?
Hugh não conseguira acompanhar quem dizia o quê até àquele
momento.
– Oh, não, unicórnios outra vez não! – resmungou Elizabeth e,
virando-se para Hugh, acrescentou: – Peço-lhe que perdoe a minha
irmã. É obcecada por unicórnios.
Hugh olhou de relance para Frances e viu-a muito tensa, a atirar
um olhar furioso a Elizabeth. Não a podia censurar, já que o tom de
Elizabeth não poderia ter sido mais exemplificativo do típico tom de
irmã mais velha: dois terços de condescendência e um terço de
escárnio. Embora não pudesse levar-lhe a mal, já que teria
certamente adotado o mesmo tom naquela idade, foi tomado do
súbito desejo de ser o herói de uma menina.
Há tanto tempo que alguém não o via como herói.
– Eu gosto muito de unicórnios – declarou.
Elizabeth pareceu ficar estupefacta e só conseguiu dizer:
– Gosta?
Ele encolheu os ombros.
– Há alguém que não goste?
– Sim, mas não acredita que eles existem – argumentou Elizabeth.
– A Frances acredita.
Pelo canto do olho, Hugh viu que Frances o olhava com
nervosismo.
– Na verdade, não posso provar que eles não existem –
respondeu ele.
Frances deixou escapar um gritinho.
Quanto a Elizabeth, exibia uma expressão que faria alguém
pensar que ela ficara a olhar para o sol por muito tempo.
– Lord Hugh – começou Frances –, eu...
– Mamã!
Frances interrompeu-se e todos viraram a cabeça para a porta.
Era a voz de Sarah, do lado de fora da carruagem e não parecia
nada contente.
– Achas que ela vai viajar connosco? – sussurrou Elizabeth.
– Bem, estava connosco quando viemos – lembrou Harriet.
Lady Sarah. Na carruagem. Hugh não imaginava tortura mais
diabólica.
– É aqui com as tuas irmãs ou com o Arthur e o Rupert – decretou
Lady Pleinsworth, em tom perentório. – Lamento, mas não há lugar
na...
– Acho que não vou poder viajar a seu lado, Lord Hugh – disse
Frances, desolada. – Elas não vão caber as três do outro lado.
Lady Sarah ia ficar sentada ao lado dele? Aparentemente, havia
de facto uma tortura mais diabólica.
– Não se preocupe, a Sarah não enjoa a viajar de costas –
tranquilizou-o Harriet.
Ainda ouviram Sarah dizer:
– Não, não me importo de viajar com elas. É só que...
A porta abriu-se. Sarah já subia o degrau, a cabeça ainda virada
para trás a falar com a mãe:
– É só que estou cansada e...
– É hora de partirmos – cortou Lady Pleinsworth, empurrando-a
ligeiramente. – Não quero ser eu a atrasar toda a gente.
Com um suspiro irritado, Sarah entrou na carruagem e...
Viu Hugh.
– Bom dia, Lady Sarah – cumprimentou ele.
Ela ficou boquiaberta.
– Eu mudo de lado – resmungou Frances.
Levantou-se para ir para o banco oposto. Depois de tentar em vão
desalojar Elizabeth do lugar à janela, Frances resignou-se a
acomodar-se no meio, de braços cruzados.
– Lord Hugh – murmurou Sarah, obviamente perplexa. – Eu... o
que faz aqui?
– Não sejas rude – ralhou Frances.
– Não estou a ser rude. Estou apenas surpreendida – disse Sarah,
sentando-se no lugar desocupado pela irmã. – E curiosa.
Hugh tentou lembrar-se de que ela não fazia ideia do que
acontecera no dia anterior. Porque nada acontecera. Fora tudo coisa
da cabeça dele. E talvez de outras partes da sua anatomia. O
importante era que Lady Sarah não sabia, e nunca saberia, porque
aquilo ia, simplesmente, acabar.
Uma loucura passageira era, por definição, passageira.
Ainda assim, exigiu-lhe um esforço considerável não reparar que a
anca de Sarah estava a poucos centímetros dele.
– A que devemos o prazer da sua companhia, Lord Hugh? –
continuou ela, desapertando as fitas do chapéu.
Ela não fazia a menor ideia. Caso contrário, não teria certamente
usado a palavra «prazer».
– O seu primo informou-me de que me reservara um lugar na
carruagem mais agradável da viagem.
– Caravana – corrigiu Frances.
Hugh afastou os olhos de Sarah para os focar na irmã mais nova.
– Perdão?
– A Grande e Terrível Caravana da Aristocracia Britânica –
respondeu Frances com impertinência. – É como lhe chamamos.
Hugh começou por sorrir, mas o ruído da respiração seguinte soou
mais a risada.
– É... excelente – admitiu, decidindo-se por uma palavra.
– Foi a Sarah que inventou – explicou Frances, com um encolher
de ombros. – Ela é muito inteligente, sabe?
– Frances – advertiu Sarah.
– Garanto-lhe – sussurrou Frances, muito alto.
Os olhos de Sarah moveram-se rapidamente sem focar ponto
algum, como fazia quando estava envergonhada, até que,
finalmente, se inclinou para a janela e mudou de assunto:
– Não devíamos estar de partida?
– A Grande e Terrível Caravana – murmurou Hugh.
Sarah olhou para ele com desconfiança.
– Eu gosto – disse ele, simplesmente.
Ela entreabriu os lábios, com aquele ar de quem planeia uma
grande frase, mas contentou-se em dizer:
– Obrigada.
– Estamos de partida! – exclamou Frances, alegremente.
A carruagem arrancou e Hugh recostou-se, pronto a ser embalado
pelo movimento suave das rodas. Antes da lesão, nunca se
importara de viajar de carruagem, pois adormecia sempre. Ainda era
o caso. O problema era o espaço não ser geralmente suficiente para
estender a perna, fazendo com que as dores no dia seguinte fossem
um martírio.
– Não terá nenhum problema? – perguntou Lady Sarah, em voz
baixa.
– Problema? – murmurou, inclinando-se para ela.
Ela olhou-lhe brevemente para a perna.
– Não, eu fico bem.
– Não precisa de a esticar?
– Vamos parar para o almoço.
– Mas...
– Eu fico bem, Lady Sarah – interrompeu, e, para sua surpresa, o
tom não saiu defensivo. Pigarreou e acrescentou: – Obrigado pela
preocupação.
Ela estreitou os olhos e ele percebeu que tentava decidir se devia
acreditar. Para lhe provar que estava perfeitamente à vontade, olhou
preguiçosamente para as três jovens Pleinsworth espremidas umas
contra as outras. Harriet tamborilava a ponta da pena na testa,
Elizabeth abrira um pequeno livro e Frances inclinava-se por cima
dela, para olhar pela janela.
– Ainda não saímos da entrada – resmungou Elizabeth, sem
levantar os olhos do livro.
– Eu só quero ver.
– Não há nada para ver.
– Por enquanto.
Elizabeth virou a página com um gesto de marcada precisão.
– Não vais fazer isso durante toda a...
– Ai! – queixou-se Harriet.
– Foi sem querer – defendeu-se Frances.
– Ela deu-me um pontapé – explicou Harriet a ninguém em
particular.
Hugh seguiu a conversa com certo divertimento, consciente de
que o que era divertido agora tornar-se-ia uma agonia se
continuasse por mais uma hora.
– Porque não tentas espreitar pela janela da Harriet? – sugeriu
Elizabeth.
Frances suspirou, mas obedeceu. Momentos depois, no entanto,
ouviu-se um farfalhar de papel.
– Frances! – exclamou Harriet.
– Desculpa! Eu só quero olhar pela janela.
Harriet atirou um olhar suplicante a Sarah.
– Não posso – respondeu Sarah ao pedido mudo. – Se já está
apertado agora, imagina como seria se eu trocasse de lugar com a
Frances.
– Frances, senta-te quieta – ordenou Harriet, antes de voltar a
atenção para a escrita.
Alertado por uma discreta cotovelada, Hugh virou a cabeça para
Sarah e, com os olhos, ela fez sinal para a própria mão.
Um... dois... três...
Ela contava discretamente os segundos, abrindo um dedo após o
outro.
Quatro... cinco...
– Frances!
– Desculpa!
Hugh olhou disfarçadamente para Sarah, cujo leve sorriso era
decididamente presunçoso.
– Frances, não podes continuar a inclinar-te sobre mim assim –
protestou Elizabeth.
– Então, deixa-me sentar à janela!
Todos os olhos se focaram em Elizabeth, que finalmente soltou um
suspiro irritado e se levantou para trocar de lugar com a irmã. Hugh
observou com interesse Elizabeth retorcer-se muito mais do que era
necessário para encontrar uma posição confortável. Ela abriu o livro
e olhou para a página.
Quando Hugh olhou para Sarah, viu-lhe a expressão que
silenciosamente lhe dizia: Ainda não viu nada.
Frances não os desapontou.
– Estou entediada.
Capítulo 11

arah suspirou, dividida entre a diversão e o constrangimento,


S pois Lord Hugh ia assistir a uma cena clássica da família
Pleinsworth.
– Pelo amor de... Frances! – Elizabeth fuzilou a irmã mais nova
com o olhar. – Nem há cinco minutos trocámos de lugar.
– Ainda assim, estou entediada – respondeu Frances, com um
encolher de ombros desamparado.
Sarah olhou de esguelha para Hugh. Estava obviamente a conter-
se para não rir, o que provavelmente seria o melhor que ela poderia
esperar.
– Não podemos fazer alguma coisa? – implorou Frances.
– Eu estou a fazer alguma coisa – rosnou Elizabeth, levantando o
livro.
– Sabes muito bem que não é isso que eu quero dizer.
– Oh, não! – exclamou, de repente, Harriet.
– Eu sabia que ias derramar a tinta! – refilou Elizabeth, antes de
soltar um grito agudo. – Não me sujes com isso!
– Então para de te mexer!
– Eu ajudo – disse Frances, levantando-se, animada, e entrando
na briga.
Sarah estava prestes a intervir, quando Lord Hugh se adiantou,
puxando Frances pelo colarinho, e, sem cerimónias, levantou-a e
pousou-a no colo de Sarah.
Foi um momento magnífico, na verdade.
Frances ficou de boca aberta.
– É melhor não interferir – aconselhou ele.
Entretanto, Sarah procurava livrar-se de um cotovelo enfiado nas
costelas.
– Estás a tirar-me o ar – protestou Sarah, em voz sufocada.
– Está melhor assim? – perguntou Frances, alegremente, depois
de mudar de posição.
A resposta de Sarah foi uma grande golfada de ar. Com certa
dificuldade, conseguiu virar a cabeça para Lord Hugh.
– Até lhe daria os meus sinceros parabéns pela magnífica
intervenção, se não tivesse perdido toda a sensação nas pernas.
– Bom, pelo menos já consegue respirar – disse ele.
Então, sem conseguir controlar-se, Sarah soltou uma gargalhada.
Era tão ridículo ser felicitada por respirar, que não aguentou. Ou
talvez fosse inevitável rir, quando o melhor da situação era o facto
de ainda ser capaz de respirar. Por isso, riu e riu, tão alto e durante
tanto tempo, que Frances deslizou para o chão. Quando lágrimas de
riso começaram a rolar-lhe pelas faces, Elizabeth e Harriet pararam
de discutir e olharam para ela, atónitas.
– Que se passa com a Sarah? – arriscou Elizabeth.
– Tem que ver com a dificuldade em respirar – explicou Frances,
no chão.
Aquela resposta arrancou outra risada estrangulada de Sarah, que
levou a mão ao peito e disse, ofegante:
– Não... não consigo respirar. Dói de tanto rir.
Como acontece com frequência, o acesso de riso acabou por ser
contagioso, e logo toda a carruagem se encheu de risos, inclusive
de Lord Hugh, que Sarah jamais imaginaria a deixar-se levar
daquela maneira. Oh, ele sorria, e ocasionalmente até ria, mas,
naquele momento, quando a carruagem Pleinsworth virou para sul
em direção a Thrapstone, ele estava tão descomposto como todas
elas.
Foi um momento esplêndido.
– Meu Deus! – articulou Sarah, por fim.
– Nem sei porque estamos a rir – disse Elizabeth, ainda com um
sorriso de orelha a orelha.
Depois de limpar as lágrimas, Sarah tentou explicar:
– Foi... foi Lord Hugh que disse... oh, deixa lá, contado perde a
graça!
– Pelo menos, limpei a tinta – disse Harriet. – Bem, exceto a das
mãos – acrescentou, com uma expressão contrita.
Ao ver os dedos dela, Sarah fez uma careta. Apenas um parecia
ter escapado ao desastre.
– Parece que tens a peste negra – comentou Elizabeth.
– Não, acho que nesse caso tinha de ser no pescoço – respondeu
Harriet, sem se ofender. – Frances, talvez seja melhor levantares-
te.
Frances olhou para Elizabeth, que recuperara o lugar à janela.
Com um suspiro, a irmã voltou a deslizar para o centro.
– Está bem, mas vou ficar entediada outra vez – anunciou Frances
quase imediatamente.
– Não, isso nem pensar – disse Hugh, com firmeza.
Sarah virou-se para ele, divertida e impressionada. Era preciso
coragem para enfrentar as jovens Pleinsworth.
– Havemos de encontrar algo para fazer – anunciou Hugh.
Ela esperou até que ele percebesse a insuficiência de tal
declaração. Aparentemente, as irmãs fizeram o mesmo, pois pelo
menos dez segundos se passaram até Elizabeth lhe perguntar:
– Tem alguma sugestão?
– Lord Hugh é extraordinário com números – anunciou Frances. –
Consegue multiplicar enormes somas, de cabeça. Já o vi a fazê-lo.
– Duvido que achem divertido fazerem-me perguntas de
matemática durante nove horas – avisou ele.
– Não, mas talvez seja durante os próximos dez minutos –
respondeu Sarah.
Estava a ser sincera. Como era possível que não soubesse aquilo
sobre ele? Sabia que era muito inteligente, pois tanto Daniel como
Marcus já lho tinham dito. Também sabia que era considerado
imbatível às cartas. Depois do que acontecera, era inconcebível que
ela não tivesse depreendido o seu jeito para a matemática.
– Enormes a que ponto? – perguntou ela, com indisfarçado
interesse.
– Pelo menos quatro algarismos – respondeu Frances. – Foi o que
fez na boda de casamento. Foi brilhante.
Sarah observou Lord Hugh pelo canto do olho. Ele corara.
Ligeiramente, pareceu-lhe. Ou talvez não. Talvez fosse apenas
impressão dela. Porém, havia algo de muito apelativo na ideia de
que ele poderia corar.
Foi então que lhe apanhou uma expressão fugaz no rosto. Não
era capaz de a descrever, mas subitamente soube...
– É capaz de multiplicar mais de quatro algarismos – afirmou,
maravilhada.
– É um talento que me trouxe tantos problemas como benefícios –
disse ele.
– Posso fazer-lhe perguntas? – disse Sarah, sem tentar parecer
muito entusiasmada.
Ele inclinou-se para ela com um sorriso malandro e respondeu:
– Só se eu também puder fazer-lhe perguntas.
– Desmancha-prazeres.
– Posso dizer-lhe o mesmo.
– Mais tarde – decidiu ela. – Voltamos ao assunto mais tarde.
Estava literalmente fascinada pelo talento que acabava de
descobrir em Lord Hugh. Ele certamente não se recusaria a resolver
uma pequena equação, já que o fizera a Frances.
– Podíamos ler uma das minhas peças – sugeriu Harriet,
começando a remexer no monte de papéis pousados no colo. –
Tenho aqui a que comecei a escrever ontem à noite. Sabes, aquela
com a heroína que não é muito rosa...
– ...nem muito verde! – terminaram Frances e Elizabeth, em coro.
– Oh, não! – murmurou Sarah, desanimada. – Não!
Lord Hugh virou-se para ela com ar divertido e murmurou:
– Não muito rosa nem muito verde?
– É uma descrição da minha pessoa, receio.
– Hã... percebo.
– Pode rir-se. Vejo que está a morrer de vontade – disse Sarah,
com olhar duro.
– Também não é nem muito gorda nem muito magra –
acrescentou Frances, solícita.
– A heroína não é verdadeiramente a Sarah – explicou Harriet. –
Apenas uma personagem inspirada nela.
– Muito inspirada – acrescentou Elizabeth, com um sorriso
trocista.
– Aqui está – declarou Harriet, segurando algumas folhas de
papel. – Só tenho um exemplar, portanto, terão de partilhar.
– Esta obra-prima tem título? – questionou Lord Hugh.
– Ainda não – respondeu Harriet. – Muitas vezes tenho de
terminar uma peça antes de saber que título lhe dar. Mas será algo
terrivelmente romântico. É uma história de amor. – Fez uma pausa e
um beicinho pensativo. – Mas ainda não sei se terá um final feliz.
– Uma história de amor? – repetiu Lord Hugh erguendo uma
sobrancelha interrogativa. – E eu devo interpretar o herói?
– Não podemos usar a Frances – disse Harriet sem um pingo de
sarcasmo. – E, uma vez que só tenho um exemplar, se a Sarah é a
heroína, terá de ser o herói, pois está sentado ao lado dela.
Ele olhou para o manuscrito.
– Chamo-me Rudolfo?
Sarah quase deu uma gargalhada.
– É espanhol – explicou Harriet. – Mas a sua mãe era inglesa,
portanto, fala inglês muito bem.
– Tenho sotaque?
– Claro.
– Nem sei porque fiz a pergunta – murmurou ele e, virando-se
para Sarah, acrescentou: – Veja, chama-se «Mulher».
– Interpreto sempre o mesmo papel – brincou Sarah.
– Ainda não pensei no nome da heroína – explicou Harriet –, mas
não queria que isso atrasasse a escrita do manuscrito. Às vezes,
preciso de várias semanas para encontrar o nome certo. E, se
esperar, corro o risco de me esquecer de todas as minhas ideias.
– O processo criativo é realmente insondável – sussurrou Lord
Hugh.
Sarah, que estivera a ler o manuscrito enquanto Harriet falava,
começava a ter sérias reservas.
– Não sei se isto será boa ideia – disse ela, pegando na segunda
folha para continuar a ler. Não, definitivamente não era uma boa
ideia. – Ler numa carruagem em movimento é sempre arriscado –
argumentou Sarah. – Especialmente quando se viaja de costas.
– Tu nunca enjoas – lembrou-a Elizabeth.
– Mas pode acontecer – respondeu Sarah, passando os olhos
pela terceira folha.
– Não precisas de interpretar o que está escrito – disse Harriet. –
Não é um ensaio a sério. É apenas uma leitura.
– Devo continuar a ler? – perguntou Lord Hugh a Sarah.
Ela entregou-lhe a segunda folha sem dizer uma palavra.
– Oh...
Depois, a terceira.
– Oh!
– Harriet, não podemos fazer isto – declarou Sarah com firmeza.
– Oh, por favor! – implorou a irmã. – Seria uma grande ajuda!
Esse é o problema de escrever peças de teatro. É preciso ouvir as
palavras pronunciadas em voz alta.
– Sabes que eu nunca fui boa a interpretar as tuas peças – insistiu
Sarah.
Lord Hugh fitou-a com perplexidade.
– Verdade?
Algo no seu tom desagradou Sarah.
– O que significa essa reação?
Ele encolheu os ombros e respondeu:
– É só que me parece uma pessoa muito dramática.
– Dramática?
– Oh, vá lá – respondeu ele com mais condescendência do que
seria aconselhável num espaço tão exíguo –, decerto não se
considera uma pessoa doce e meiga.
– Não, mas não sei se chegaria ao ponto de me considerar
dramática.
Ele olhou-a por um momento antes de dizer:
– Gosta muito de fazer grandes proclamações.
– É verdade, Sarah, não podes negar – interveio Harriet.
Foi um milagre o olhar com que Sarah fuzilou a irmã não a ter
pulverizado imediatamente.
– Recuso-me a ler isto.
– É só um beijo – protestou Harriet.
Só um beijo?
Os olhos de Frances abriram-se quase tanto como a boca, antes
de exclamar:
– Queres que a Sarah beije Lord Hugh?!
Só um beijo. Nunca seria só um beijo. Não com ele.
– Eles não fariam o beijo de verdade – explicou Harriet.
– É possível fazer-se um beijo? – questionou Elizabeth.
– Não – rosnou Sarah, entre dentes. – Não é possível.
– Nós não contamos a ninguém – tentou Harriet.
– Isto é absolutamente inapropriado – disse Sarah em voz tensa,
antes de se virar para Lord Hugh, que permanecia em silêncio. –
Concorda comigo, certamente!
– Certamente que sim – respondeu ele, num tom
surpreendentemente seco.
– Pronto, vês? Não vamos ler isto – concluiu Sarah, devolvendo
as folhas a Harriet, que as aceitou com grande relutância.
– E se a Frances ler o papel de Rudolfo? – perguntou Harriet, em
voz baixa.
– Acabaste de dizer...
– Eu sei, mas quero muito ouvir a peça em voz alta.
Sarah cruzou os braços.
– Não vamos ler esta peça. Ponto final.
– Mas...
– Eu disse que não! – explodiu Sarah, perdendo a paciência. –
Não vou beijar Lord Hugh. Não aqui. Não agora. Nem nunca!
Um silêncio chocado instalou-se na carruagem.
– Peço perdão – murmurou Sarah.
Sentiu o rubor subir-lhe do pescoço à testa. Esperou que Lord
Hugh dissesse algo terrivelmente contundente e perspicaz, mas ele
não disse uma palavra. Harriet também não. Nem Elizabeth ou
Frances.
Por fim, foi Elizabeth que, depois de um ruído estranho com a
garganta, disse:
– Bom, vou continuar a ler o meu livro.
Harriet começou a remexer nos seus papéis.
Até Frances se virou para a janela sem fazer qualquer menção ao
seu tédio.
Quanto a Lord Hugh, Sarah não sabia, pois não teve coragem de
olhar para ele. A explosão dela fora horrível e o insulto, imperdoável.
Era óbvio que não se teriam beijado na carruagem. Não se teriam
beijado mesmo se estivessem a representar a peça numa sala de
estar. Como Harriet dissera, haveria alguma espécie de narração
ou, na pior das hipóteses, ter-se-iam inclinado um para o outro
(mantendo uma distância adequada de quinze centímetros) e
beijado o ar.
O problema era que ela já tinha uma consciência tão aguda da
presença dele, de um modo que a desconcertava e exasperava ao
mesmo tempo, que o simples ato de ler que as personagens de
ambos se iam beijar...
Tinha sido insuportável.
A viagem prosseguiu em silêncio. Frances acabou por adormecer.
Harriet mantinha o olhar fixo no nada. Elizabeth continuava a ler,
embora, de vez em quando, levantasse os olhos para Sarah e Lord
Hugh, alternadamente. Ao fim de uma hora, Sarah supôs que Lord
Hugh também tivesse adormecido. Ele não se mexera uma vez,
desde que o silêncio caíra, e ela imaginava que manter a perna na
mesma posição durante tanto tempo não fosse nada confortável.
No entanto, quando decidiu espreitar pelo canto do olho, viu que
ele estava acordado. O único sinal de ele a ter visto espreitar foi
uma quase impercetível alteração no olhar.
Ele não disse nada.
Sarah também não.
Finalmente, ela sentiu a carruagem abrandar e, quando espreitou
pela janela, viu que estavam a chegar à estalagem, cuja linda placa
dizia: A Rosa e a Coroa, fundada em 1612.
– Frances – chamou, feliz por ter um bom motivo para falar. –
Frances, acorda. Chegámos.
Frances pestanejou, sonolenta, e encostou a cabeça no ombro de
Elizabeth, que não protestou.
– Frances, estás com fome? – insistiu Sarah.
Ela inclinou-se para lhe abanar ligeiramente o joelho. A carruagem
parara e a vontade de Sarah era só uma: sair dali. Fizera tanto
esforço por permanecer tão perfeitamente imóvel e silenciosa, que
tinha a impressão de prender a respiração há horas.
– Oh, adormeci? – disse, por fim, Frances com um bocejo.
Sarah anuiu e Frances anunciou:
– Tenho fome!
– Devias ter-te lembrado de trazer os biscoitos – observou
Harriet.
Sarah devia repreendê-la pela observação maldosa, mas a
verdade é que era um alívio enorme ouvir alguém falar com tanta
normalidade.
– Não sabia que era eu que devia trazer biscoitos – defendeu-se
Frances, levantando-se.
Ela era baixa para a sua idade e capaz de ficar em pé no interior
da carruagem.
A porta abriu-se, Lord Hugh pegou na bengala e desceu sem uma
palavra.
– Sabias, sim – respondeu Elizabeth. – Eu avisei-te.
Quando Sarah se aproximou da porta, Frances gritou:
– Estás a pisar a minha capa!
Sarah olhou para fora e viu Lord Hugh de mão estendida para a
ajudar a descer.
– Não estou a pisar nada.
Sarah pousou a mão na dele, não sabendo que mais fazer.
– Tira os pés da minha... Oh!
Ouviu-se um grito e, então, alguém caiu em cima das costas de
Sarah. O corpo dela foi empurrado e os seus esforços
desesperados por recuperar o equilíbrio de nada valeram. Sarah
viu-se cair, primeiro para o degrau e depois no chão, arrastando
Lord Hugh consigo.
A dor aguda que lhe atravessou o tornozelo provocou-lhe um grito
de dor. Acalma-te, disse a si mesma, foi apenas a surpresa. Como
bater com o dedo grande do pé, nada mais. Doía horrores durante
um segundo, mas depois percebíamos que fora mais a surpresa do
que outra coisa.
Sarah susteve a respiração e esperou que a dor diminuísse.
Em vão.
Capítulo 12

or um instante, Hugh achou-se de novo um homem são.


P Não sabia exatamente o que tinha acontecido na carruagem,
mas, assim que pusera a mão na dele, Sarah soltara um grito e
caíra-lhe para cima.
Estendera os braços para a apanhar. O gesto era muito natural,
exceto que ele tinha uma perna aleijada e os aleijados nunca
deviam esquecer a sua condição.
Apanhou Sarah, ou pelo menos pensou que sim, mas a sua perna
não fora capaz de suportar o peso dos dois, especialmente
aumentado pelo ímpeto da queda. Não teve tempo para sentir dor. A
sua perna simplesmente cedeu.
Depois, não tinha importância se a amparara ou não. Os dois
caíram ao chão e, por um momento, a única reação de Hugh foi
ofegar. O impacto deixara-o sem respiração e a perna...
Mordeu com força o interior da bochecha. Era estranho como uma
dor conseguia diminuir a intensidade de outra dor. Pelo menos,
assim era geralmente. Desta vez, no entanto, não ajudou. Sentiu o
gosto de sangue na boca, mas a perna ainda parecia perfurada por
agulhas.
Praguejando entre dentes, conseguiu pôr-se de gatas para ver
Sarah, deitada no chão a seu lado.
– Está bem? – perguntou, aflito.
Ela assentiu com a cabeça, mas foi um gesto contido e tenso que
dizia o contrário.
– É a perna?
– O tornozelo – gemeu Sarah.
Hugh ajoelhou-se ao lado dela, sentindo uma dor excruciante
atravessá-lo assim que dobrou a perna. Teria de transportar Sarah
até à estalagem, mas, primeiro, queria ter a certeza de que ela não
tinha partido nada.
– Posso? – perguntou, com um gesto indicativo do pé dela.
Sarah assentiu. No entanto, antes de ter tempo de lhe tocar, foram
rodeados por várias pessoas. Harriet saltara da carruagem, Lady
Pleinsworth saíra a correr da estalagem e outras pessoas, que ele
não viu quem eram, acorreram e tentaram afastá-lo. Hugh
finalmente levantou-se e recuou, apoiando-se pesadamente na
bengala.
Tinha a impressão de ter uma lâmina a ferver espetada no
músculo da coxa. No entanto, era uma dor bem conhecida. A sua
perna não sofrera nenhum dano em particular, ele simplesmente a
levara ao limite.
Chegaram dois homens – primos de Sarah, talvez – e depois
Daniel, que os empurrou para se inclinar sobre ela, assumindo o
comando da situação.
Hugh viu Daniel tocar-lhe no tornozelo e Sarah pôr os braços à
volta do pescoço do primo.
Viu Daniel levantá-la nos braços e, cortando a multidão, levá-la
para a estalagem.
Hugh nunca teria sido capaz de o fazer. De repente, a ideia de
cavalgar, dançar, caçar e tudo o mais de que lamentara ter de
desistir desde que uma bala lhe atravessara a coxa deixara de ter
importância.
Ele nunca seria capaz de carregar uma mulher nos braços.
E nunca se sentira tão impotente.
*
Na estalagem A Rosa e a Coroa,
uma hora depois

– Quantas?
Hugh levantou os olhos, quando Daniel se sentou no banquinho
ao lado, ao balcão do bar da estalagem.
– Quantas bebidas? – insistiu Daniel.
Hugh bebeu um longo gole de cerveja, e depois outro, pois era o
que demorava para esvaziar a caneca, e respondeu:
– Não o suficiente.
– Estás bêbedo?
– Infelizmente, não! – respondeu Hugh, fazendo sinal ao
estalajadeiro para lhe trazer outra.
– Para o senhor também, milorde? – perguntou este último a
Daniel, que abanou a cabeça.
– Chá, por favor. Ainda é cedo.
Hugh não conseguiu reprimir um sorriso trocista.
– Estão todos na sala de jantar – informou-o Daniel.
As duzentas pessoas?, quase perguntou Hugh, antes de se
lembrar que os viajantes estavam divididos por várias estalagens
para o almoço. Devia, sem dúvida, dar-se por feliz. Apenas um
quinto da caravana testemunhara a sua humilhação.
– Queres juntar-te a nós? – perguntou Daniel.
Hugh olhou-o sem responder.
– Imaginei que não.
O estalajadeiro pousou outra caneca de cerveja à frente de Hugh.
– O chá está quase pronto, senhor.
Hugh levou a caneca aos lábios e esvaziou cerca de um terço do
conteúdo num só gole. A cerveja não tinha álcool suficiente, porém.
Ele estava a demorar muito tempo a conseguir nublar o cérebro e
não pensar em nada.
– Ela tem alguma fratura? – perguntou.
Não pretendia fazer perguntas, mas tinha de saber pelo menos
isso.
– Não, é só uma entorse feia – respondeu Daniel. – O tornozelo
está inchado e a provocar-lhe muitas dores.
Hugh assentiu, pois sabia bem o que isso era.
– Vai poder prosseguir a viagem?
– Acho que sim, mas terá de seguir noutra carruagem, pois vai
precisar de manter o pé elevado.
Hugh engoliu outro longo gole de cerveja.
– Não vi o que aconteceu – disse Daniel.
Hugh gelou. Lentamente, virou-se para o amigo.
– O que estás a perguntar-me, exatamente?
– Só o que aconteceu – respondeu Daniel, aquela reação
excessiva deixando-o visivelmente incrédulo.
– Ela caiu da carruagem. E eu não consegui segurá-la.
Daniel fitou-o alguns segundos e exclamou:
– Pelo amor de Deus, não estás a culpar-te por isso, espero!
Hugh não respondeu.
– Como é que havias de a ter segurado?
Hugh agarrou com força o rebordo do balcão.
– Que raio – murmurou Daniel –, a tua perna não tem sempre
culpa. Eu provavelmente também teria falhado.
– Não, não terias – rosnou Hugh.
– As irmãs estavam a discutir – disse Daniel, após uma breve
pausa. – Aparentemente, uma delas foi empurrada contra a Sarah e
foi por isso que ela se desequilibrou.
Francamente, para Hugh, o motivo de Sarah ter caído não tinha
importância. Bebeu outro gole de cerveja, enquanto Daniel
concluía:
– Na verdade, é como se tivesse sido projetada da carruagem.
Hugh desviou a atenção da bebida tempo suficiente para rosnar:
– Aonde queres chegar, afinal?
– Ela deve ter caído com um impulso considerável.
Sem dúvida, Daniel falava com uma paciência louvável, mas Hugh
não estava com disposição para apreciar a paciência. Só queria
beber, sentir pena de si mesmo e arrancar os olhos de quem fosse
estúpido o suficiente para se aproximar dele. Terminou a cerveja,
pousou a caneca com força e fez sinal para o estalajadeiro lhe
trazer outra. Foi imediatamente servido.
– Tens a certeza de que queres beber isso? – perguntou Daniel.
– Absoluta.
– Acho que me lembro de me teres dito, um dia, que nunca bebes
antes de escurecer – comentou Daniel, com uma calma
insuportável.
Como se ele não se lembrasse! Será que Daniel achava que ele
teria ficado ali sentado, a engolir má cerveja atrás de má cerveja, se
houvesse outra maneira de aliviar a dor? Desta vez, não era apenas
a perna. Que inferno, como poderia ele ser um homem, quando a
maldita perna não era capaz de o suportar?
Hugh sentiu o coração acelerar de fúria e a respiração tornar-se
entrecortada. Havia dezenas de respostas naquele momento que
poderia ter dado a Daniel, mas apenas uma expressava o que
realmente sentia.
– Vai-te lixar!
Seguiu-se um longo silêncio e, então, Daniel desceu do
banquinho.
– Não estás em condições de passar o dia na mesma carruagem
que as minhas primas.
– Por que diabo julgas que estou a beber? – rosnou Hugh, com
um esgar da boca.
– Vou fazer de conta que não ouvi isso – respondeu Daniel com
calma – e sugiro que faças o mesmo quando voltares a ficar sóbrio.
– Caminhou para a porta e acrescentou: – Partimos daqui a uma
hora. Vou mandar alguém informar-te em que carruagem podes ir.
– Deixa-me aqui, e fica tudo resolvido.
E porque não? Ele não precisava de ir já para Whipple Hill. Podia
perfeitamente ficar a marinar na estalagem o resto da semana.
– Gostavas disso, não era? – retorquiu Daniel, com um sorriso
sem humor.
Hugh encolheu os ombros, mas o gesto que pretendia ser
insolente só conseguiu desequilibrá-lo, e ele quase caiu do banco.
– Uma hora – repetiu Daniel, antes de sair.
Hugh ficou a contemplar a sua cerveja. Sabia que, daí a uma hora,
estaria em frente à estalagem, pronto para enfrentar a segunda
parte da viagem. Se qualquer outra pessoa, qualquer uma, lhe
tivesse ordenado que estivesse pronto daí uma hora, ele teria virado
costas e saído da estalagem sem olhar para trás.
Mas nunca o faria a Daniel Smythe-Smith. E suspeitava que ele
sabia disso.

Whipple Hill,
perto de Thatcham,
Berkshire,
seis dias depois
A viagem até Whipple Hill fora terrivelmente dolorosa, mas, agora
que chegara, Sarah concluiu que talvez tivesse sido uma sorte
passar os primeiros três dias na carruagem da família Pleinsworth
com um tornozelo inchado. Claro que a viagem tinha sido cheia de
solavancos da estrada, mas, pelo menos, uma razão lógica
obrigara-a a não se mexer. Além disso, estavam todos condenados
a passar horas a fio sentados.
Esse já não era o caso.
Determinado a que a semana que antecedia o seu casamento
fosse lendária, Daniel organizara todos os entretenimentos
possíveis e imagináveis. Haveria excursões, charadas, festas
dançantes, uma caçada e, pelo menos, uma dúzia de outros
passatempos surpreendentes que seriam revelados a seu tempo.
Sarah não excluía a hipótese de o primo oferecer aulas de
malabarismo no relvado. Sabia que ele era capaz de o fazer, pois
aprendera aos doze anos, quando uma feira itinerante passara pela
aldeia.
Sarah passou o seu primeiro dia em Whipple Hill trancada no
quarto que partilhava com Harriet, com o pé apoiado em almofadas.
As outras irmãs vieram visitá-la, como fizeram Iris e Daisy, mas
Honoria ainda estava em Fensmore, onde desfrutava de alguns dias
de intimidade com o seu novo marido. Embora lhe agradasse que as
irmãs e primas a visitassem, Sarah não ficava entusiasmada com os
relatos arrebatados dos eventos fabulosos que aconteciam fora do
quarto.
O segundo dia foi quase igual, exceto pelo facto de Harriet ter tido
pena dela e prometido ler-lhe os cinco atos da peça que escrevera,
Henrique VIII e o Unicórnio do Mal, recentemente reintitulada A
Pastorinha, o Unicórnio e Henrique VIII. Sarah não entendia porquê,
já que não havia menção a nenhuma pastora na peça. Era certo que
adormecera durante alguns minutos, mas era impossível que lhe
tivesse escapado a intervenção de uma personagem fulcral o
suficiente para aparecer no título.
O terceiro dia foi o pior. Daisy trouxe o violino.
E Daisy não conhecia nenhuma peça curta...
Por essa razão, quando acordou no seu quarto dia em Whipple
Hill, Sarah jurou a si mesma descer a grande escadaria e juntar-se
ao resto da humanidade, nem que morresse na tentativa.
Deve ter feito o juramento com demasiada convicção, pois a
criada empalideceu e fez o sinal da cruz.
Uma vez no andar térreo, Sarah descobriu que metade das
senhoras tinha ido para a aldeia e a outra metade estava prestes a
juntar-se a elas.
Quanto aos homens, planeavam ir caçar.
Fora muito humilhante chegar ao pequeno-almoço nos braços de
um lacaio (Sarah não tinha pensado como pretendia descer a
imponente escadaria), portanto, assim que todos os convidados se
foram, ela levantou-se e deu um passo com toda a cautela.
Conseguia apoiar algum peso no tornozelo, se tivesse cuidado.
Mas logo se encostou a uma parede.
Talvez fosse para a biblioteca. Podia escolher um livro, sentar-se e
ler. Afinal, a leitura não exigia o uso dos pés e a biblioteca não
ficava muito longe.
Arriscou outro passo.
A biblioteca não ficava propriamente do lado oposto da casa.
Gemeu. Quem estava ela a tentar enganar? Àquele ritmo, levaria
metade do dia para chegar à biblioteca.
O que ela precisava era de uma bengala.
Parou e pensou em Lord Hugh. Há quase uma semana que não o
via. Não surpreendia, decerto; afinal, eram apenas duas pessoas
entre as duzentas que tinham feito a viagem de Fensmore para
Whipple Hill. Escusado seria dizer que ele não a visitaria enquanto
ela estivesse a convalescer no quarto.
No entanto, pensara nele, mesmo assim. Deitada na cama, com o
pé apoiado em almofadas, muitas vezes se perguntara quanto
tempo ele tivera de ficar assim, imobilizado, como ela. E, quando se
levantara a meio da noite e tivera de se arrastar até ao bacio,
começara a perguntar-se... Então, amaldiçoara a injustiça de ser
mulher. Um homem não teria necessidade de rastejar até ao bacio,
certo? Provavelmente, poderia usá-lo na cama.
Não que imaginasse Lord Hugh na cama.
Nem tão-pouco a usar bacio.
Mas, ainda assim, questionava-se como é que ele o fizera. Como
é que ainda fazia? Como é que enfrentava cada tarefa diária sem
querer arrancar os cabelos e gritar de frustração? Sarah detestava
ficar tão dependente de todos. Ainda naquela manhã, tivera de pedir
a uma criada para ir chamar a sua mãe, que decidiu que um lacaio
seria a pessoa certa para a transportar à sala do pequeno-almoço.
Sarah queria apenas caminhar pelo próprio pé sem ter de informar
ninguém sobre as suas intenções. E, se tivesse de passar por
aquela dor latejante sempre que pousasse o pé no chão, pois bem,
que assim fosse! Valia a pena, só para sair do quarto.
Os seus pensamentos voltaram para Lord Hugh. Sabia que a
perna o incomodava quando ele a esforçava demasiado, mas será
que sentia dores a cada passo que dava? Porque nunca lho
perguntara? Tinham caminhado lado a lado, por curtas distâncias, é
claro, mas ela devia ter-se apercebido se ele sentia dores. Ou, pelo
menos, devia ter perguntado.
Depois de mancar um pouco mais pelo corredor, foi forçada a
desistir e sentou-se numa cadeira. Alguém acabaria por passar.
Uma criada... um lacaio... Toda a casa estava muito atarefada.
Para passar o tempo, pôs-se a tamborilar uma música na coxa. A
mãe teria um colapso nervoso, se a visse naqueles propósitos. Uma
donzela devia ficar quieta; uma donzela devia ter uma voz suave,
uma risada cristalina e um monte de qualidades que lhe eram
absolutamente antinaturais. Realmente, era notável que amasse
tanto a mãe. Por todas as razões, elas deviam querer matar-se uma
à outra.
Minutos mais tarde, Sarah ouviu alguém aproximar-se, mas
hesitou em chamar. Precisava de ajuda, claro, mas...
– Lady Sarah?
Era ele. Não sabia porque ficara tão espantada. Ou feliz. Mas
estava. A última conversa deles fora horrível, mas, quando viu Lord
Hugh Prentice atravessar o corredor para se juntar a ela, sentiu-se
invadida por uma incrível felicidade.
Uma vez perto dela, ele olhou para ambos os lados do corredor e
perguntou:
– Que faz aqui?
– Estou a descansar, confesso – disse ela, antes de levantar
ligeiramente o pé magoado. – As minhas capacidades não
corresponderam às minhas ambições.
– Não devia estar de pé.
– Acabei de passar três dias praticamente amarrada à cama.
Era imaginação sua ou, de repente, ele pareceu embaraçado?
Sarah continuou a falar.
– E os três dias antes desses fechada numa carruagem...
– Como todos nós.
– Talvez, mas todos tiveram a oportunidade de sair e andar um
pouco – replicou ela, com ar rabugento.
– Ou mancar – corrigiu ele, em tom seco.
Ela observou-o, mas, se havia alguma emoção por trás daqueles
olhos, não foi capaz de a interpretar.
– Devo-lhe um pedido de desculpa – disse ele, rigidamente.
– Desculpa? Porquê? – perguntou, incrédula.
– Por não conseguido segurá-la.
Fitou-o novamente, perplexa pela possibilidade de ele se culpar
pelo que, obviamente, fora um acidente.
– Não seja ridículo – assegurou ela. – A minha queda era
inevitável. A Elizabeth estava a pisar a bainha da capa da Frances,
ela a puxar, e quando a Elizabeth levantou o pé... – Sarah sacudiu a
mão. – Em suma, não sei como, mas a Harriet acabou a cair por
cima de mim. Se tivesse sido apenas a Frances, talvez eu tivesse
recuperado o equilíbrio.
Ele não disse nada, e ela foi novamente incapaz de interpretar a
sua expressão.
– Eu estava no degrau, entende? – insistiu ela. – Foi aí que torci o
tornozelo. Não quando caí ao chão. – Não via como esse facto
pudesse fazer diferença, mas sempre tivera dificuldade em segurar
as palavras quando estava nervosa. – Eu também lhe devo um
pedido de desculpa – acrescentou, após uma hesitação.
Quando ele lhe deu um olhar interrogativo, ela engoliu em seco e
explicou:
– Fui muito indelicada consigo na carruagem.
Ele começou uma frase, provavelmente, «não diga disparates»,
mas ela interrompeu-o.
– A minha reação foi excessiva. Foi muito... embaraçoso... a peça
de Harriet. E quero que saiba que me teria comportado da mesma
maneira com qualquer outro homem. Por isso, peço-lhe que não se
sinta ofendido. Pelo menos, não o tome por pessoal.
Santo Deus, só estava a dizer disparates! Nunca fora boa a pedir
desculpa. Na maioria das vezes, recusava-se simplesmente a fazê-
lo.
– Vai com os outros cavalheiros à caça? – perguntou.
A boca contorceu-se num esgar e ele confessou com um encolher
de sobrancelhas irónico:
– Não posso.
– Oh! Peço desculpa! – resmungou Sarah, achando-se uma
completa idiota. – Foi uma falta de sensibilidade terrível da minha
parte.
– Não há necessidade de evitar o assunto, Lady Sarah. Sou coxo,
é um facto. E não é certamente culpa sua.
Ela anuiu.
– Mesmo assim, peço desculpa.
Por uma fração de segundo, ele pareceu hesitar sobre o que fazer.
Então, respondeu em voz baixa:
– Desculpas aceites.
– Não gosto dessa palavra, no entanto – disse ela.
Ele ergueu o sobrolho com ar interrogativo.
– Coxo – esclareceu ela, torcendo o nariz. – Lembra-me um
cavalo.
– Tem uma alternativa a propor?
– Não. Mas não me compete resolver os problemas do mundo.
Apenas expô-los.
Ele olhou-a fixamente.
– Estou a brincar!
Ele, finalmente, sorriu.
– Bem – disse ela –, suponho que seja brincadeira apenas em
parte. Não tenho outro termo para sugerir e provavelmente não
consigo resolver os problemas do mundo, embora, para ser
honesta, ninguém me tenha dado oportunidade de tentar.
Fitou-o de olhos semicerrados, como se o desafiasse a fazer um
comentário.
Para sua surpresa, ele soltou uma risada.
– Diga-me, Lady Sarah, o que planeou fazer esta manhã? Duvido
que pretenda ficar sentada no corredor o dia todo.
– Ia ler para a biblioteca – admitiu ela. – É um disparate, eu sei,
pois é o que tenho feito no meu quarto nos últimos dias, mas quero
muito estar noutro sítio que não o meu quarto. Acho que era capaz
de ler num guarda-vestidos, só pela mudança de paisagem.
– Seria uma mudança de paisagem interessante – admitiu ele.
– Escura – concordou ela.
– E lanosa.
Sarah apertou os lábios, numa tentativa vã de conter uma risada.
– Lanosa? – repetiu.
– Era o que encontraria no meu guarda-fatos.
– Estou a imaginar um rebanho de ovelhas. – Fez uma pausa,
depois uma careta e acrescentou: – E o que faria a Harriet com uma
cena dessas numa das suas peças.
Ele levantou a mão para a impedir de continuar e sugeriu:
– Vamos mudar de assunto.
Sarah inclinou a cabeça para o lado e deu-se conta de que sorria
sedutoramente. Parou logo. O que não a impediu de se sentir
inexplicavelmente coquete.
Então, sorriu outra vez, porque adorava sorrir, porque gostava de
se sentir coquete e, acima de tudo, porque Lord Hugh sabia que ela
não estava realmente a namoriscar com ele. Não estava. Era
apenas um sentimento passageiro por ter ficado trancada no quarto
durante tanto tempo sem ver ninguém além das irmãs e primas.
– Então, estava a caminho da biblioteca – disse ele.
– Sim.
– E saiu de...
– Da sala de pequeno-almoço.
– Não chegou muito longe.
– Não – admitiu ela –, não cheguei.
– Ocorreu-lhe que talvez não deva pôr peso nesse pé? –
perguntou ele, cauteloso.
– Para dizer a verdade, sim.
Ele arqueou uma sobrancelha.
– Orgulho?
– Demasiado para o meu próprio bem – confirmou ela, com um
aceno de cabeça contrito.
– O que fazemos agora?
Sarah olhou para o tornozelo traiçoeiro.
– Talvez seja melhor eu ir pedir a alguém que me leve até lá.
Houve um longo silêncio. Quando ela, finalmente, olhou para
cima, ele estava meio virado e ela só lhe viu o perfil. Ele pigarreou e
perguntou:
– Quer experimentar a minha bengala?
Sarah permaneceu em silêncio um momento.
– Mas... não precisa dela?
– Não para distâncias curtas. Ajuda – acrescentou, sem dar tempo
a Sarah para apontar que nunca o vira sem bengala –, mas não é
absolutamente necessária.
Estava prestes a aceitar. Chegou a estender a mão para a
bengala, mas então mudou de ideias. Lord Hugh era o tipo de
homem para fazer algo estúpido por puro cavalheirismo.
– Pode andar sem a bengala – disse ela, fitando-o diretamente
nos olhos –, mas isso significa que a dor na perna será mais forte
depois?
Ele demorou muito a responder.
– Provavelmente.
– Obrigada por não mentir.
– Quase o fiz – admitiu ele.
Sarah permitiu-se um leve sorriso.
– Eu sei.
– Agora tem de aceitar – disse ele, agarrando a bengala pelo meio
para que o punho ficasse virado para Sarah agarrar. – A minha
honestidade merece ser recompensada.
Sarah sabia que devia recusar a oferta. Talvez ele quisesse ajudá-
la agora, mas pagaria o preço mais tarde. Sem qualquer
necessidade.
Contudo, algo lhe dizia que a sua recusa lhe infligiria mais dor do
que a que sentiria na perna mais tarde. Ele precisava de a ajudar,
percebeu.
Precisava mais de a ajudar do que ela mesma precisava de
ajuda.
Por alguns instantes, Sarah não conseguiu reagir.
– Lady Sarah?
Ergueu o olhar. Ele observava-a com uma expressão curiosa, e os
olhos... Como era possível que aqueles olhos ficassem mais bonitos
de cada vez que o via? Ele não sorria. Para dizer a verdade, não
sorria com muita frequência. No entanto, ela viu-lhe nos olhos um
brilho caloroso e feliz.
Um brilho que não existia naquele primeiro dia em Fensmore.
Sentiu-se profundamente abalada, ao perceber que nunca queria
que desaparecesse.
– Obrigada – disse, mas, em vez de pegar na bengala, estendeu a
mão para ele. – Ajuda-me a levantar?
Nenhum dos dois usava luvas e a sensação de calor da pele dele
fê-la estremecer. Ele fechou a mão firmemente na dela, puxou
levemente e ela viu-se de pé. Ou num pé, mais exatamente, num
equilíbrio precário.
– Obrigada – repetiu, preocupada por a voz ter saído tão
ofegante.
Sem dizer uma palavra, ele estendeu-lhe a bengala, que Sarah
aceitou. Havia algo quase íntimo no ato de segurar aquele objeto
que se tornara quase uma extensão do corpo dele.
– É um pouco alta para si – disse ele.
– Eu arranjo-me – declarou Sarah, testando um passo.
– Não, não, precisa de se apoiar mais nela. Assim – explicou ele,
colocando-se atrás dela e pousando a mão na que segurava a
bengala.
Sarah parou de respirar. Ele estava tão perto que lhe sentia o
hálito quente fazer-lhe cócegas na orelha.
– Sarah? – sussurrou ele.
Ela assentiu, precisando de um momento para recuperar o uso da
voz.
– Eu... acho que entendi agora.
Ele afastou-se e, por um momento, ela não sentiu senão a falta da
sua presença. Era surpreendente e desconcertante e...
Frio.
– Sarah?
A custo, ela saiu do estranho devaneio.
– Desculpe – murmurou. – Estava distraída.
Ele sorriu. Talvez fosse um sorriso amigável, mas ligeiramente
trocista.
– O que foi? – perguntou, pois nunca o vira sorrir daquela
maneira.
– Estava apenas a pensar onde ficaria o tal guarda-vestidos.
Sarah levou um momento a entender a piada – decerto teria
entendido instantaneamente, se não estivesse tão perturbada – e
devolveu o sorriso. De repente, disse:
– Chamou-me Sarah.
Ele fez uma ligeira pausa e respondeu:
– Sim. Peço desculpa. Foi sem querer.
– Não importa – apressou-se ela a dizer. – Acho que gosto.
– Acha?
– Tenho a certeza – afirmou. – Somos amigos agora, acho.
– Acha?
Desta vez, o sorriso era verdadeiramente trocista.
Ela atirou-lhe um olhar sarcástico.
– Não foi capaz de resistir, pois não?
– Não – murmurou ele –, creio que não.
– Foi tão horrível que quase foi bom – comentou ela.
– E isso foi tão insultuoso, que quase me sinto elogiado.
Sarah apertou os lábios para não sorrir. Era uma batalha de
sagacidade e, de alguma forma, sabia que, se risse, perdia. Ao
mesmo tempo, porém, perder não parecia uma perspetiva assim tão
terrível. Pelo contrário.
– Vamos – disse ele, com severidade fingida. – Vamos ver se
consegue chegar à biblioteca.
Ela conseguiu. Não foi fácil nem indolor, pois na verdade ainda
não deveria andar a pé, mas conseguiu.
– Está a ir muito bem – disse ele, quando já se aproximavam do
destino.
– Obrigada – agradeceu Sarah, sentindo um prazer ridículo com o
elogio. – É maravilhosa, esta independência. Era horrível depender
de alguém para me deslocar. É assim que se sente? – perguntou,
por cima do ombro.
Os lábios dele curvaram-se num sorriso irónico.
– Não exatamente.
– A sério? Porque... – Sarah quase se engasgou. – Não importa.
Que idiota era! Obviamente que não era o mesmo para ele. Ela
estava a usar uma bengala temporariamente. Enquanto ele nunca
mais poderia passar sem aquilo.
A partir desse momento, deixou de se questionar porque é que ele
sorria tão raramente. Em vez disso, sentiu-se maravilhada pelo facto
de ele ser capaz de sorrir.
Capítulo 13

Na sala de estar azul


Whipple Hill
Oito horas da noite

o respeitante a compromissos sociais, Hugh nunca sabia o que


N era pior: chegar cedo e exaurir-se por ter de se levantar sempre
que uma mulher entrava, ou chegar atrasado e ser o centro das
atenções por atravessar a sala a mancar. Naquela noite, porém, a
sua lesão tomou a decisão por ele.
Não mentira quando dissera a Sarah que a perna provavelmente
lhe doeria mais ao fim do dia. No entanto, ficara feliz por ela ter
usado a bengala. Foi sem qualquer ponta de ressentimento que
pensou ser o mais perto que poderia chegar de a levantar nos
braços e carregar até à biblioteca.
Um pouco patético, certamente, mas um homem tinha de se
contentar com os triunfos ao seu alcance.
Quando finalmente entrou na grande sala de visitas de Whipple
Hill, a maioria dos convidados já lá estava. Cerca de setenta
pessoas, pelos seus cálculos. Mais de metade da chamada
«caravana» alojara-se em estalagens locais; esses convidados
participavam das festividades diurnas, mas regressavam às
estalagens à noite.
Assim que transpôs a porta, Hugh não fingiu procurar outra
pessoa além de Sarah. Tinham passado a maior parte do dia juntos
na biblioteca, num companheirismo sossegado, a ler ou,
ocasionalmente, a conversar. Sarah exigira, nas suas próprias
palavras, uma demonstração do seu génio matemático, e ele fizera-
lhe a vontade. Sempre odiara «atuar» a pedido, mas Sarah ouvira-o
com um prazer e assombro tão óbvios, que ele não conseguira
sentir o constrangimento habitual.
Hugh tinha de admitir que se enganara acerca dela. Sim, era
verdade que Sarah era dada a uma certa teatralidade ou a proferir
declarações grandiloquentes, mas não era a debutante superficial
que ele julgara. Também começava a chegar à conclusão de que a
antipatia inicial de Sarah por ele não era infundada. Tinha-a
prejudicado. Sem querer, é verdade, mas o facto é que ela teria tido
a sua primeira temporada em Londres, se não fosse pelo duelo com
Daniel.
Hugh não ia ao ponto de achar que lhe tinha arruinado a
existência, mas, agora, que a conhecia melhor, já não descartava a
hipótese de que Lady Sarah Pleinsworth pudesse ter arrebatado um
daqueles já lendários catorze cavalheiros.
No entanto, não podia arrepender-se.
Quando a encontrou – foi a sua risada, para dizer a verdade, que
o atraiu –, ela estava sentada numa poltrona no meio da sala, o pé
apoiado numa pequena otomana. Uma das primas estava com ela,
aquela muito pálida... Iris, era esse o nome. Sarah e ela pareciam
ter uma relação curiosa, que incluía uma certa rivalidade. Hugh
nunca teria a audácia de pensar que compreendia mais de duas ou
três coisas sobre as mulheres (ou talvez nem isso), mas aquelas
duas eram evidentemente capazes de ter conversas inteiras
compostas por estreitares de olhos e inclinares de cabeça.
De momento, porém, pareciam divertir-se. Ele aproximou-se e
curvou-se numa vénia.
– Boa noite, Lady Sarah. Boa noite, Miss Smythe-Smith.
As duas cumprimentaram-no com um sorriso.
– Quer juntar-se a nós? – convidou Sarah.
Hugh sentou-se numa poltrona à esquerda de Sarah e aproveitou
a oportunidade para esticar a perna à sua frente. Geralmente,
abstinha-se de o fazer em público, mas Sarah sabia que aquela
posição era mais confortável para ele e, mais do que isso,
provavelmente ela própria não se coibiria de o sugerir.
– Como está o seu tornozelo? – perguntou ele.
– Muito bem – respondeu ela, antes de franzir o nariz. – Não, é
mentira. Estou num autêntico martírio.
Iris riu-se.
– É verdade – disse Sarah, com um suspiro. – Tenho impressão
de que abusei hoje de manhã.
– Achei que tivesses passado a manhã na biblioteca – comentou a
prima.
– Passei, sim. Mas Lord Hugh foi muito gentil e emprestou-me a
bengala e eu atravessei a casa toda sozinha. – Olhou para o pé com
uma carranca antes de continuar: – Depois disso, não fiz
absolutamente mais nada. Não entendo porque me dói tanto.
– Esse tipo de lesão leva tempo a sarar – ressalvou Hugh. –
Talvez seja mais grave do que uma simples entorse.
– É verdade que o meu tornozelo fez um barulho horrível quando
o torci no degrau – admitiu Sarah com uma careta. – Como alguma
coisa a rasgar.
– Oh, isso é horrível! – exclamou Iris, com um calafrio. – Porque
não disseste nada?
Sarah encolheu os ombros e Hugh interveio:
– Não é um bom sinal, receio. Nada permanente, decerto, mas
pode indicar que a lesão é mais profunda do que se pensava.
Sarah soltou um suspiro teatral.
– Suponho que terei de aprender a conceder audiências no meu
boudoir, como uma rainha francesa.
– Aviso-o de que ela está a falar a sério – disse Iris, olhando para
Hugh.
Ele não duvidou.
– Ou – continuou Sarah, o olhar assumindo um brilho perigoso –
posso pedir que arranjem uma liteira para me transportarem.
Hugh não pôde deixar de achar graça à exuberância dela. Era o
tipo de conversa que, uma semana antes, o teria enfurecido. Mas,
agora que a conhecia melhor, achava divertido. Ela tinha uma
maneira muito pessoal de deixar as pessoas à vontade. Era um
talento, tal como ele lhe dissera, com toda a sinceridade.
– Devemos oferecer-te uvas num cálice de ouro? – brincou Iris.
– Claro – respondeu Sarah, mantendo uma expressão altiva
durante dois segundos, antes de abrir um grande sorriso.
Os três estavam tão distraídos a rir, que só repararam em Daisy
Smythe-Smith quando ela se aproximou.
– Sarah, posso dar-te uma palavrinha? – pediu ela, solenemente.
Hugh levantou-se. Ainda não tivera oportunidade de falar com
aquela Smythe-Smith. Parecia muito novinha, apesar de ter idade
suficiente para participar de um jantar festivo.
– Boa noite, Daisy – saudou Sarah. – Conheces Lord Hugh
Prentice? Lord Hugh, esta é Miss Daisy Smythe-Smith. É irmã da
Iris.
Ele obviamente ouvira falar daquela família em particular. O
«ramalhete Smythe-Smith» como alguém as apelidara. Já conhecia
Iris, agora Daisy (Margarida) e, provavelmente, haveria uma Rosa e
uma Violeta. Esperava sinceramente que nenhuma delas se
chamasse Calêndula.
Daisy cumprimentou-o com uma breve reverência, mas era óbvio
que não se interessara por ele, pois virou imediatamente a cabeça
de caracóis loiros para Sarah.
– Como não podes dançar esta noite, a minha mãe decidiu que
vamos tocar – anunciou, sem rodeios.
Sarah empalideceu e Hugh lembrou-se subitamente daquela
primeira noite em Fensmore, quando ela começara a contar-lhe algo
sobre os saraus musicais da família. Fora interrompida e ele ficara
sem saber o que ela estava prestes a dizer-lhe.
– A Iris não vai poder juntar-se a nós – continuou Daisy, alheia à
reação de Sarah. – Não temos violoncelo, e Lady Edith não foi
convidada para este casamento. Não que fizesse alguma diferença
– acrescentou, com um beicinho ofendido. – Foi muito indelicado da
parte dela recusar-se a emprestar-nos o violoncelo em Fensmore.
Hugh percebeu o olhar desesperado que Sarah lançou a Iris. A
expressão desta revelava uma mistura de compaixão e horror.
– Mas o piano está perfeitamente afinado – continuou Daisy – e,
claro, eu trouxe o meu violino, por isso, podemos fazer um dueto.
Houve outra troca de olhares entre Iris e Sarah. Estavam a ter
uma daquelas conversas silenciosas, pensou Hugh, que nenhum
membro do sexo masculino seria capaz de decifrar.
– A única questão é saber o que tocar – prosseguiu Daisy,
imperturbável. – Proponho o Quarteto n.º 1 de Mozart, já que não
temos tempo para ensaiar. – Virou-se para Hugh e explicou: –
Tocámos a peça este ano.
– Mas... – articulou Sarah, numa voz estrangulada.
Porém, Daisy não admitiu interrupções.
– Calculo que te lembres da tua parte.
– Não! Não me lembro. Daisy, eu...
– Percebo que seremos apenas duas – argumentou Daisy –, mas
acho que não fará grande diferença.
– Não? – sussurrou Iris, com ar horrorizado.
A irmã atirou-lhe um breve olhar, mas, nesse relance fugaz, Hugh
viu que ela conseguiu transmitir uma notável mistura de
condescendência e aborrecimento.
– Só teremos de o fazer sem o violoncelo e o segundo violino –
disse ela.
– Mas tu tocas o segundo violino – lembrou-lhe Sarah.
– Não quando só temos um violinista – respondeu Daisy.
– Isso não faz sentido – interveio Iris.
Daisy suspirou com força, com ar exasperado.
– Mesmo que eu tocasse a segunda parte, como fiz na primavera
passada, continuaria a ser a única violinista. – Esperou pela
confirmação, que não veio, e depois continuou: – O que, portanto,
faria de mim o primeiro violino.
Até Hugh sabia que não funcionava assim.
– Não é possível ter um segundo violino sem o primeiro –
argumentou Daisy, impaciente. – É numericamente impossível.
Oh, não, pensou Hugh, espero que ela não traga números para a
discussão.
– Não posso tocar esta noite, Daisy – disse Sarah, abanando a
cabeça, horrorizada.
Daisy apertou os lábios com impertinência.
– A tua mãe disse que tocavas.
– A minha mãe...
– O que Lady Sarah quer dizer – interrompeu Hugh em voz suave
– é que já me prometeu a noite.
Aparentemente, começava a gostar de desempenhar o papel de
herói. Mesmo quando a jovem em perigo não tinha onze anos e não
era fascinada por unicórnios.
Daisy fitou-o como se ele falasse outra língua.
– Não compreendo.
Pela expressão de Sarah, ela também não. Hugh abriu o seu
sorriso mais neutro e explicou:
– Eu também não posso dançar. Lady Sarah ofereceu-se para me
fazer companhia.
– Mas...
– Tenho a certeza de que Lord Winstead já tratou do
acompanhamento musical da noite – continuou Hugh.
– Mas...
– E eu raramente tenho oportunidade de ter alguém a fazer-me
companhia durante festas como esta.
– Mas...
Santo Deus, a rapariga era tenaz!
– Lamento, mas não posso permitir que ela quebre a promessa
que me fez.
– Oh, eu nunca faria uma coisa dessas – disse Sarah, finalmente
assumindo o seu papel. Com um encolher de ombros impotente
para a prima, acrescentou: – Uma promessa é uma promessa.
Quando percebeu que não teria sucesso, Daisy contorceu o rosto
e pareceu transformar-se numa estátua.
– Iris... – começou.
– Eu não vou tocar piano! – quase gritou Iris.
– Como sabias o que te ia perguntar? – retorquiu Daisy, com ar
petulante.
– És minha irmã desde que nasceste – respondeu Iris, mal-
humorada. – É claro que sei o que me ias perguntar.
– Todas tivemos de aprender a tocar piano – choramingou Daisy.
– E todas parámos de ter aulas quando passámos para os
instrumentos de cordas.
– O que a Iris está a tentar dizer – disse Sarah a Daisy, depois de
olhar de relance para Hugh – é que nunca será tão boa ao piano
como tu no violino.
Iris fez um ruído muito parecido com uma risada estrangulada,
mas, quando Hugh olhou para ela, já a ouviu dizer:
– É verdade, Daisy. E tu sabes disso. Só serviria para passar uma
vergonha.
– Está bem – rendeu-se Daisy. – Nesse caso, talvez possa tocar
alguma coisa sozinha.
– Não! – gritaram Sarah e Iris em coro.
E foi de facto um grito. Várias pessoas se voltaram na direção
deles, fazendo com que Sarah se sentisse obrigada a colocar um
sorriso envergonhado nos lábios e sussurrar:
– Desculpem.
– E porque não? – insistiu Daisy. – Não me importo de o fazer e
tenho uma grande variedade de solos de violino por onde escolher.
– É muito difícil dançar ao som de um único violino – apressou-se
a dizer Iris.
Hugh não sabia se era verdade, mas certamente não ia questioná-
lo.
– Talvez tenhas razão – admitiu Daisy. – Ainda assim, é uma
pena. Afinal, é um casamento da família e teria um significado
especial se fossem os membros da família a tocar a música.
Foi a primeira observação generosa e totalmente altruísta que ela
fez, e quando Hugh olhou discretamente para Sarah e Iris, viu-as
com expressões ligeiramente envergonhadas.
– Haverá outras oportunidades – disse Sarah, sem entrar em
pormenores.
– Talvez amanhã – murmurou Daisy, com um pequeno suspiro.
Nem Sarah nem Iris abriram a boca. Hugh não tinha a certeza se
respiravam.
A campainha soou para o jantar e Daisy deixou-os. Quando Hugh
se levantou, Sarah disse:
– Devia entrar com a Iris. O Daniel disse que vinha para me levar
ao colo. Admito que lhe fico grata. É muito estranho ser carregada
por um lacaio – acrescentou, franzindo a testa.
Hugh estava prestes a propor esperar a chegada de Daniel, mas o
homem do momento, pontual como sempre, chegou. Hugh mal teve
tempo de oferecer o braço a Iris e já Daniel levantava Sarah nos
braços para a levar para a sala de jantar.
– Se eles não fossem primos – comentou Iris com aquele tom de
ironia seca que Hugh começava a perceber ser único nela –, seria
um gesto muito romântico.
Hugh olhou para ela sem responder.
– Eu disse «se não fossem primos» – defendeu-se ela. – Seja
como for, ele está tão apaixonado por Miss Wynter que podia cair do
teto um harém inteiro de mulheres nuas que ele não notaria.
– Oh, notaria sim – objetou Hugh, convencido de que Iris estava a
tentar provocá-lo. – Simplesmente, não faria nada.
Quando Hugh entrou na sala de jantar com a mulher errada pelo
braço, ocorreu-lhe que ele também não faria nada.
Se um harém de mulheres nuas caísse do teto.

Mais tarde naquela noite


Depois do jantar

– Tem a noção de que agora vai ter de me aturar a noite toda? –


disse Sarah a Hugh.
Estavam sentados em cadeiras, no relvado, iluminados por tochas
que conseguiam aquecer a atmosfera o suficiente para ser possível
estar ao ar livre, desde que tivessem um casaco. E uma manta.
Não eram os únicos a aproveitar a bela noite. Uma dúzia de
cadeiras e espreguiçadeiras tinham sido dispostas no relvado que
dava para o salão de baile e metade estava ocupada. As pessoas
vinham aproveitar temporariamente o ar da noite, mas Sarah e Hugh
eram os únicos ocupantes permanentes.
– Se me deixar sozinha, nem que seja por um momento –
continuou Sarah –, a Daisy vem buscar-me e arrastar-me para o
piano.
– E isso seria assim tão terrível? – perguntou.
Sarah olhou-o sem pestanejar e disse:
– Vou certificar-me de que recebe um convite para o nosso
próximo sarau.
– Mal posso esperar.
– Não, não pode – foi a resposta dela.
– Essa história parece-me muito misteriosa – confessou ele,
recostando-se mais confortavelmente na cadeira. – Com base na
minha experiência, a maioria das jovens gosta de mostrar o seu
talento ao piano.
– Nós – esclareceu ela, parando para dar ao pronome a ênfase
necessária – somos singularmente execráveis.
– Não podem ser assim tão más – insistiu ele. – Caso contrário,
não dariam um concerto anual.
– Essa conclusão pressupõe alguma lógica – disse ela, antes de
fazer uma careta. – E bom gosto.
Sarah não via razão para lhe esconder a verdade. Ele acabaria
por descobrir, se tivesse a infelicidade de estar em Londres na
época errada do ano.
Hugh riu-se e Sarah olhou para o céu, não querendo desperdiçar
nem mais um segundo nos desastrosos concertos da família. A
noite estava demasiado agradável para isso.
– Há tantas estrelas – murmurou.
– Gosta de astronomia?
– Nem por isso – admitiu ela –, mas gosto de contemplar as
estrelas numa noite límpida.
– Ali está a Andrómeda – disse ele, apontando para uma
constelação que Sarah secretamente identificava mais como um
garfo torto do que outra coisa qualquer.
Apontou para uma constelação que parecia a letra «W» e
perguntou:
– E aquela?
– É Cassiopeia.
Ela moveu o dedo indicador para a esquerda.
– E aquela?
– Nada que eu reconheça – admitiu ele.
– Já as contou todas?
– As estrelas?
– Uma vez que conta tudo... – brincou ela.
– As estrelas são infinitas. Nem eu consigo contá-las.
– Claro que consegue – respondeu Sarah, sentindo uma deliciosa
mistura de humor e travessura. – Não há nada mais simples. O
infinito menos um, o infinito, o infinito mais um.
A expressão de Hugh, quando olhou para ela, mostrava
claramente que sabia que ela sabia estar a ser ridícula. O que não o
impediu de responder:
– Não funciona assim.
– Pois devia.
– Mas não é o caso. O infinito mais um continua a ser infinito.
– Isso não faz sentido!
Sarah suspirou de satisfação aconchegando mais a manta à sua
volta. Adorava dançar, mas, para ser sincera, não percebia quem
preferia ficar no salão de baile a sentar-se no relvado, a admirar o
céu.
– Sarah! Hugh! Que surpresa maravilhosa!
Os dois trocaram olhares, vendo Daniel caminhar para eles, a
noiva radiante mesmo atrás dele. Sarah ainda não se acostumara à
iminente mudança de papéis de Miss Wynter, que, de precetora das
suas irmãs passaria a condessa de Winstead e, portanto, prima
delas. Não era uma questão de snobismo ou, pelo menos, assim
Sarah pensava... e esperava... Gostava muito de Anne, assim como
gostava de ver Daniel tão feliz na sua companhia.
Porém, a situação era muito estranha.
– Onde está Lady Danbury quando precisamos dela? – perguntou
Hugh.
Sarah virou-se para ele com um sorriso curioso e repetiu:
– Lady Danbury?
– Decerto devemos dizer algo sobre o facto de isto não ser de
todo uma surpresa.
– Oh, não sei – disse Sarah com um sorriso altivo. – Tanto quanto
sei, ninguém aqui é meu sobrinho-bisneto.
– Estiveram aqui fora a noite toda? – perguntou Daniel, quando
ele e Anne chegaram.
– Sim – respondeu Hugh.
– Não têm frio? – inquiriu Anne.
– Estamos bem aconchegados – respondeu Sarah. – E, para dizer
a verdade, se não posso dançar, prefiro estar ao ar livre.
– Fazem um belo par esta noite – comentou Daniel.
– Creio que este seja o clube dos aleijados – ironizou Hugh.
– Pare de dizer isso – repreendeu-o Sarah.
– Oh, desculpe! – disse Hugh, antes de se dirigir a Daniel e Anne.
– Lady Sarah vai ficar curada, é claro, portanto, não pode entrar
para o clube.
Sarah endireitou-se mais no assento.
– Não foi isso que eu quis dizer. Bem, sim, mas não
completamente. – Vendo Daniel e a noiva observá-los com
perplexidade, explicou: – Esta é a terceira... Não, a quarta vez que
ele diz isto.
– O clube dos aleijados? – repetiu Hugh, e, mesmo à luz das
tochas, ela pôde ver que ele estava a divertir-se.
– Se não parar de dizer isso, juro que me vou embora – ameaçou
Sarah.
Hugh ergueu uma sobrancelha.
– Não acabou de dizer que tenho de a aturar o resto da noite?
– Não devia considerar-se aleijado – devolveu Sarah, o tom
tornando-se muito veemente, mas sendo ela incapaz de o controlar.
– É uma palavra terrível.
Hugh, como seria previsível, respondeu de modo prosaico:
– Mas aplica-se à situação.
– Não, não se aplica.
– Vai comparar-me a um cavalo outra vez? – perguntou ele, com
uma risada.
– Isto é muito mais interessante do que qualquer coisa que se
passe lá dentro – disse Daniel à noiva.
– Não, não é – respondeu Anne. – E também não é da nossa
conta.
Ela puxou-o pelo braço, mas Daniel teimou em manter os olhos
em Sarah e Hugh.
– Podia ser – observou ele.
Anne suspirou e revirou os olhos.
– És tão coscuvilheiro!
Depois, sussurrou algo que Sarah não ouviu e, com relutância,
Daniel deixou-se levar.
Sarah seguiu-os com o olhar, um pouco desconcertada pelo óbvio
desejo de Anne de sair dali. Pensaria ela que eles precisavam de
privacidade? Estranho. No entanto, ainda não terminara a conversa,
por isso, virou-se para Hugh e disse:
– Se tem mesmo de ser, pode intitular-se coxo, mas proíbo-o de
se intitular aleijado.
Ele recuou de surpresa e, talvez, de divertimento.
– Proíbe-me?
– Exatamente.
Sarah engoliu em seco, a onda de emoções deixando-a
desconfortável. Pela primeira vez naquela noite, estavam
completamente sozinhos no relvado. Sabendo que Hugh a ouviria
no meio do silêncio, ela falou num sussurro.
– Continuo a não gostar da palavra «coxo» mas, enfim, é um
adjetivo. Intitular-se aleijado é como se definisse a sua pessoa como
um todo.
Hugh fixou-a longamente antes de se levantar e cruzar a curta
distância entre as duas cadeiras. Inclinou-se e, numa voz tão baixa
que a fez duvidar se tinha ouvido corretamente, perguntou:
– Lady Sarah Pleinsworth, concede-me a honra desta dança?

Hugh não esperava aquela expressão nos olhos de Sarah. Ela


ergueu o rosto para ele, os lábios entreabriram-se e, naquele
momento, ele poderia jurar que o Sol nascera e descansara naquele
sorriso.
Curvou-se mais para sussurrar:
– Se não sou, como diz, um aleijado, devo ser capaz de dançar.
– Tem a certeza? – sussurrou ela.
– Só vou saber se tentar.
– Não vou ser muito graciosa – disse ela, com ar contrito.
– Razão pela qual é o par perfeito.
Sarah levantou a mão e colocou-a na dele.
– Lord Hugh Prentice, seria uma honra dançar consigo.
Com cautela, ela deslizou até à ponta da cadeira e ele ajudou-a a
levantar-se. Apoiada num só pé. Era quase cómico: ele apoiado na
cadeira, ela apoiada nele e nenhum dos dois conseguiu evitar que
os sorrisos evoluíssem para uma boa risada.
Quando se endireitaram e encontraram um relativo equilíbrio,
Hugh pôs-se a escutar a música trazida pela brisa da noite. A
orquestra tocava uma quadrilha.
– Parece-me que ouço uma valsa – disse.
Sarah levantou a cabeça, obviamente pronta para o corrigir. Ele
pousou um dedo nos lábios dela.
– Deve ser uma valsa – repetiu, vendo o instante em que ela
percebeu.
Nunca poderiam dançar uma quadrilha ou um minueto. Até uma
valsa exigiria uma imaginação considerável.
Hugh pegou na bengala, que estava encostada à sua cadeira.
– Se eu puser a mão aqui – disse ele, pousando a mão no punho
da bengala – e a Sarah colocar a sua sobre a minha...
Sarah seguiu as instruções, e ele pousou a outra mão no fundo
das costas dela. Sem tirar os olhos dele, deslizou a mão para o
ombro de Hugh.
– Assim? – sussurrou.
– Sim – respondeu ele com um aceno.
Foi a valsa mais estranha e desajeitada que se possa imaginar.
Em vez de duas mãos unidas a formar um arco elegante diante
deles, ambos apoiavam o seu peso na bengala. Não demasiado,
pois não precisavam de tanto apoio, não quando se apoiavam um
no outro. Hugh cantarolou baixinho uma melodia de compasso
ternário e conduziu Sarah com uma ligeira pressão nas costas,
deslocando a bengala quando era altura de virar.
Há quase quatro anos que ele não dançava, que não sentia o seu
corpo mover-se ao ritmo de uma música ou saboreava o calor da
mão de uma mulher na sua. Mas esta noite... Foi uma experiência
mágica, quase espiritual, e ele sabia que nunca conseguiria
agradecer a Sarah o suficiente por lhe oferecer aquele momento,
por lhe restaurar uma parte da alma.
– É muito gracioso – comentou ela, fitando-o com um sorriso
enigmático.
Era o sorriso que ela usava em Londres, ele tinha a certeza disso.
Quando dançava num baile e olhava para um pretendente e lhe
fazia um elogio, era assim que ela sorria. Hugh teve a maravilhosa
impressão de ser quase normal.
Nunca teria pensado que um simples sorriso o fizesse sentir-se
tão grato.
Baixou a cabeça para ela e fingiu revelar um segredo.
– Ando a treinar há anos.
– De verdade?
– Sim, de verdade. Vamos tentar uma volta?
– Ah, sim, vamos!
Juntos, levantaram a bengala, moveram-na cuidadosamente para
a direita e depois fizeram pressão para a cravarem na terra.
– Estava à espera do momento certo para revelar o meu talento
ao mundo – disse ele.
Sarah ergueu as sobrancelhas.
– Do momento certo?
– Do par certo – corrigiu ele.
– Eu sabia que havia uma razão para a minha queda. – Riu-se e,
com um brilho malicioso nos olhos, acrescentou: – Não vai
responder que sabia haver uma razão para não me ter apanhado?
Sobre aquele assunto, infelizmente, ele era incapaz de brincar.
– Não. Nunca – respondeu, com seriedade firme.
Ela baixou os olhos, mas ele percebeu pela curva das maçãs do
rosto que a agradara.
– De qualquer forma, amorteceu a minha queda – disse ela,
instantes depois.
– Aparentemente, sou bom em alguma coisa – replicou ele, feliz
por voltar à normalidade da conversa bem-humorada.
– Oh, não acredito nisso, caro senhor! Suspeito que seja bom em
muitas coisas.
– Acabou de me tratar por «caro senhor»?
Desta vez, quando ela sorriu, ele ouviu-lho na respiração, pouco
antes de ela responder:
– Creio que sim.
– Não sei o que fiz para merecer tal honra.
– Oh, a questão não é o que fez para o merecer, mas o que eu
acho que fez para o merecer – disse ela.
Hugh parou momentaneamente de dançar.
– Isso pode explicar porque não entendo as mulheres.
Ela soltou uma risada.
– Essa é uma das muitas razões, tenho a certeza.
– Essa ofendeu-me.
– Pelo contrário. Não conheço um único homem que queira
sinceramente entender as mulheres. De que se queixaria então, se
as entendesse?
– Do Napoleão? – sugeriu ele.
– Já morreu.
– Do tempo?
– Desse, pode sempre queixar-se, embora não esta noite.
– Não – concordou ele, olhando para o céu. – A noite está
excecionalmente agradável.
– Sim – murmurou ela. – Muito agradável.
Hugh devia ter-se dado por satisfeito, mas estava a ficar
insaciável. Não querendo que a dança terminasse, acentuou a
pressão da sua mão nas costas de Sarah e disse:
– Ainda não me revelou o que acha que eu fiz para merecer a
honra de ser tratado por «caro senhor».
Ela atirou-lhe um olhar insolente.
– Bem, para ser honesta, devo admitir que simplesmente me
escapou. Dá um certo ar de galanteio a uma declaração, acho.
– Essa magoou ainda mais.
– Ah, mas eu não vou ser totalmente honesta! Prefiro recomendar
que reflita sobre a razão por que me sinto tão galanteadora.
– Vou aceitar a recomendação.
Ela cantarolou baixinho e deram mais uma volta na dança.
– Vai obrigar-me a fazer a pergunta, não é? – disse Hugh.
– Só se quiser.
Ele fixou os olhos nos dela.
– Eu quero muito.
– Pois bem, senti-me galanteadora porque...
– Um momento – interrompeu ele, em jeito de retaliação por o ter
obrigado a fazer a pergunta. – Está na hora de mais uma volta.
Executaram o movimento na perfeição, o que significava que não
se esparramaram no chão.
– Estava a dizer? – insistiu ele.
Ela olhou-o com severidade fingida.
– Eu devia fingir que perdi o fio à meada.
– Mas não o fará.
Ela fez uma careta triste e respondeu:
– Oh, mas acho mesmo que me esqueci!
– Sarah!
– Como consegue fazer o meu nome soar a ameaça?
– A questão não é que o seu nome soe a ameaça – respondeu ele
com doçura –, o que importa é que ache que soa a ameaça.
Ela arregalou os olhos e desatou a rir.
– Ganhou – rendeu-se ela.
Hugh estava convencido de que ela teria levantado as mãos em
derrota se não dependessem um do outro para manter o equilíbrio.
– Creio que sim – murmurou ele.
Foi a valsa mais estranha e desajeitada que se possa imaginar... e
o momento mais perfeito da sua vida.
Capítulo 14

Várias noites depois, a uma hora tardia,


no quarto partilhado por Lady Sarah e
Lady Harriet Pleinsworth

retendes ler a noite toda?


–P Os olhos de Sarah, que deslizavam pelas páginas do seu
romance com agradável abandono, pararam na palavra «forsítia».
– Como é que essa pergunta pode sequer existir no reino da
atividade humana? – disse, muito alto e com considerável irritação.
– É claro que não vou ler a noite toda. Alguma vez existiu um ser
humano que tenha lido a noite toda?
Arrependeu-se imediatamente, porque era Harriet que estava
deitada ao lado dela, e se houvesse alguém capaz de responder
«provavelmente sim», era ela.
O que ela fez, aliás.
– Bem, não, não vou ler a noite toda – resmungou Sarah.
Já o tinha dito, mas, numa discussão entre irmãs, era importante
ter a última palavra, mesmo que fosse repetida.
Harriet virou-se para o lado e achatou a almofada debaixo da
cabeça.
– O que estás a ler?
Sarah engoliu um suspiro e fechou o livro sobre o dedo indicador,
para marcar a página. A situação não era invulgar. Quando Sarah
não conseguia dormir, lia romances. Quando Harriet não conseguia
dormir, azucrinava Sarah.
– Miss Butterworth e o Barão Louco.
– Não leste já esse?
– Sim, mas não me importo de o reler. É um romance meio
disparatado, mas muito divertido.
Reabriu o livro, olhou para a palavra «forsítia» e preparou-se para
continuar a ler.
– Viste Lord Hugh esta noite ao jantar?
Sarah voltou a marcar o livro com o dedo indicador.
– Sim, claro. Porquê?
– Por nenhuma razão em particular. Achei-o muito atraente.
Harriet jantara com os adultos naquela noite, para grande
aborrecimento de Elizabeth e Frances.
O casamento aconteceria daí a três dias e Whipple Hill era um
turbilhão de atividade. Marcus e Honoria – agora Lord e Lady
Chatteris, recordou Sarah a si mesma – tinham chegado de
Fensmore, corados, risonhos e parecendo prodigiosamente felizes.
Seria o suficiente para dar vómitos a Sarah, não fora o facto de ela
ter passado horas bastante agradáveis e divertidas na galhofa com
Lord Hugh.
Era muito estranho, mas o primeiro rosto em que pensava ao
acordar pela manhã era o dele. Procurava-o ao pequeno-almoço, e
ele parecia estar sempre lá, um prato quase cheio na frente, como
se tivesse acabado de chegar.
Todas as manhãs, ambos se deixavam ficar pela sala de pequeno-
almoço, com o pretexto de que não podiam participar das muitas
atividades organizadas para o dia. Na verdade, o tornozelo de Sarah
estava muito melhor e, embora uma caminhada à aldeia ainda
estivesse excluída, nada a impedia de participar num jogo de
petanca no relvado.
Ambos prolongavam o pequeno-almoço, Sarah fingindo beber o
chá, pois, se realmente o bebesse no tempo que seria normal, teria
de encurtar a conversa.
Preferia não pensar no facto de uma conversa de uma ou duas
horas não poder realmente ser interpretada como curta.
Deixavam-se ficar por ali, e a maioria das pessoas não parecia
notar. Os convidados iam e vinham, enchiam os pratos no bufete,
tomavam chá ou café e saíam. Por vezes, juntavam-se à conversa
de Sarah e Hugh, outras vezes não.
Finalmente, quando era mais do que óbvio que os criados
estavam à espera para limpar a sala de pequeno-almoço, Sarah
levantava-se e, como se nada fosse, referia onde pretendia passar a
tarde a ler.
Hugh nunca dizia que pretendia juntar-se a ela, mas fazia-o
sempre.
Tinham-se tornado amigos e se, às vezes, ela se via a demorar o
olhar nos lábios de Hugh, pensando que todos mereciam um
primeiro beijo um dia, e que seria encantador se o primeiro beijo
dela fosse com ele... bem, guardava esse tipo de pensamento para
si, é claro.
Porém, estava a ficar sem romances para ler. Embora a biblioteca
de Whipple Hill estivesse bem abastecida, tinha poucos livros do
tipo que ela gostava de ler. Miss Butterworth e o Barão Louco, por
exemplo, fora arrumado aleatoriamente numa prateleira entre A
Divina Comédia e A Fera Amansada.
Olhou para o livro. Miss Butterworth ainda não tinha conhecido o
seu barão, e Sarah estava ansiosa por que a trama avançasse.
Forsítia... forsítia...
– Achaste-o atraente?
Sarah soltou um suspiro irritado.
– Achaste que Lord Hugh estava muito atraente? – insistiu
Harriet.
– Sei lá, estava como sempre.
A primeira parte da resposta era mentira, pois Sarah sabia que o
achava irresistivelmente atraente. A segunda parte era verdade, e
essa era certamente a razão pela qual o achava atraente.
– Acho que a Frances se apaixonou por ele – declarou Harriet.
– Provavelmente – concordou Sarah.
– Ele é muito carinhoso com ela.
– De facto.
– Ensinou-a a jogar piquete esta tarde.
Devia ter sido quando Sarah estivera a ajudar na última prova do
vestido de Anne. Caso contrário, não podia imaginar quando mais
Hugh teria tido tempo.
– Não a deixou ganhar. Acho que ela provavelmente esperava que
ele o fizesse, mas acredito que lhe agradou o facto de ele não o
fazer.
Sarah deixou escapar um suspiro longo e resignado.
– Harriet, aonde queres chegar?
A irmã pareceu surpreendida.
– Sei lá. Só estava a fazer conversa.
– Que horas são? – perguntou Sarah, depois de procurar em vão
um relógio com os olhos.
Harriet permaneceu em silêncio por um minuto inteiro. Sarah
conseguiu avançar de «forsítia» até «pomba», antes de a irmã voltar
a falar.
– Acho que ele gosta de ti.
– De quem estás a falar?
– De Lord Hugh – respondeu Harriet. – Acho que ele tem um
fraquinho por ti.
– Ele não tem um fraquinho por mim – retorquiu Sarah.
E não mentia. Ou antes, esperava estar a mentir. Porque sabia
que estava a apaixonar-se por ele e que ficaria perdida se o
sentimento não fosse correspondido.
– Acho que estás enganada – declarou Harriet.
Sarah voltou resolutamente às pombas de Miss Butterworth.
– Gostas dele?
Foi a última gota. Sarah recusava-se a discutir o assunto com a
irmã. Era tudo demasiado novo, demasiado íntimo e, sempre que
pensava nisso, sentia o corpo prestes a explodir.
– Harriet, recuso-me a ter essa conversa agora.
– Amanhã, então? – aventurou-se Harriet, depois de pensar um
momento.
– Harriet!
– Oh, está bem, eu não digo nem mais uma palavra.
Virou-se com ímpeto para o outro lado da cama, arrastando
consigo metade dos cobertores.
Sarah soltou o grunhido, já que uma óbvia demonstração de
exasperação era justificada, puxou o cobertor para si com força e
mergulhou outra vez no livro.
Contudo, foi incapaz de se concentrar.
Os olhos permaneceram fixos na página trinta e três pelo que lhe
pareceram horas. Harriet deixara de se mexer e a sua respiração
regular estava lentamente a transformar-se num ronco leve e
sereno.
Sarah pensou em Hugh, no que estaria a fazer naquele momento
e se também teria dificuldade em adormecer.
Interrogou-se se a perna lhe doía quando se deitava, se ainda lhe
doeria na manhã seguinte ou se a dor o acordava durante a noite.
Não pôde deixar de imaginar como se tornara ele tão talentoso a
matemática. Ele explicara-lhe uma vez, depois de ela lhe ter
implorado para multiplicar números ridiculamente altos, que via os
números na cabeça, isto é, não os via de facto, os números
simplesmente se encaixavam até Hugh saber a resposta. Sarah
nem tentara fingir entender, mas continuara a fazer-lhe perguntas,
porque ele era adorável quando ficava frustrado.
Hugh sorria quando estava com ela. Sarah desconfiava que ele
não sorria muito antes.
Seria possível apaixonar-se em tão pouco tempo? Honoria
conhecera Marcus toda a vida antes de se apaixonar por ele. Daniel
alegava ter-se apaixonado à primeira vista por Miss Wynter. De
certa forma, parecia mais lógico do que a evolução dos sentimentos
de Sarah.
Sem dúvida que podia ficar na cama a noite toda a ruminar as
suas dúvidas, mas sentia-se tão agitada que se levantou, foi à
janela e abriu a cortina. A Lua não estava ainda completamente
cheia e a relva refulgia com um brilho prateado.
O orvalho, pensou, antes de perceber que já tinha calçado os
chinelos. Sabia que não devia, mas saiu do quarto e atravessou a
casa silenciosa.
Não era o luar que a atraía lá para fora, mas a brisa. Embora as
folhas já tivessem caído havia muito das árvores, as minúsculas
extremidades dos galhos agitavam-se com um leve rumorejar. Só
precisava de respirar um pouco de ar fresco. E de sentir o vento nos
cabelos. Há anos que não era autorizada a usá-los soltos fora do
quarto, e ela só queria sair e...
E ser ela.
Na mesma noite,
noutro quarto

Hugh Prentice sempre tivera dificuldade em adormecer. Em


criança, era porque se punha à escuta. Não sabia por que razão o
berçário de Ramsgate não ficava afastado do resto da casa, como
em todas as casas que conhecia, e isso significava que, de vez em
quando, e sempre quando menos se esperava (mentira, era sempre
esperado), Freddie e ele ouviam a mãe gritar.
Da primeira vez, Hugh quisera saltar da cama, mas fora
imediatamente impedido por Freddie.
– Mas a mamã...
Freddie abanou a cabeça.
– E o pai...
Hugh ouvira a voz do pai também. Parecia zangado. E depois
rira.
Freddie abanara a cabeça novamente e o que Hugh lera nos seus
olhos fora o suficiente para que ele, cinco anos mais novo, voltasse
para a cama e tapasse os ouvidos.
Mas não fechara os olhos. Se lhe tivessem perguntado no dia
seguinte, ele juraria que nem pestanejara. Hugh tinha seis anos e
ainda jurava muitas coisas impossíveis.
Quando vira a mãe naquela noite antes do jantar, ela não lhe
parecera diferente. Achara realmente que a mãe tinha sido atacada,
mas ela não tinha hematomas e não parecia doente. Hugh estava
prestes a interrogá-la quando Freddie o pisara.
O irmão nunca fazia aquele tipo de coisa sem razão, por isso,
Hugh ficara calado.
Nos meses seguintes, Hugh observara os pais com atenção. Só
então percebera que raramente os via na mesma sala. Se comiam
juntos na sala de jantar, Hugh não sabia, pois as crianças faziam as
refeições no berçário.
Quando os via juntos, era muito difícil adivinhar quais eram os
sentimentos de um em relação ao outro, pois, por norma, eles não
conversavam. Passavam-se meses e Hugh quase chegava a
imaginar que tudo estava bem.
E, então, voltavam a ouvi-los e Hugh entendia que não estava
tudo bem e que não podia fazer nada.
Hugh tinha dez anos quando a mãe morrera de uma febre
provocada por uma mordida de cão; uma pequena mordida que,
infelizmente, infetara muito rapidamente. Hugh chorara tanto a
morte dela como se poderia chorar a morte de alguém que vemos
vinte minutos por noite. Por fim, deixara de se pôr à escuta, à noite,
quando tentava adormecer.
Mas, nessa altura, já não tinha importância. Hugh já não
conseguia adormecer, por se pôr a pensar. Quando estava deitado
na cama, o seu cérebro fervilhava, corria e saltava e recusava-se a
acalmar. Freddie aconselhara-o a tentar imaginar uma página em
branco, provocando uma gargalhada em Hugh, porque, se havia
coisa que a sua mente jamais poderia imaginar era uma página em
branco. Hugh passava o dia a ver números e padrões, fosse nas
pétalas de uma flor ou na cadência dos cascos de um cavalo a bater
no chão. Alguns desses padrões chamavam-lhe imediatamente a
atenção, mas outros aguardavam num canto do seu cérebro até ele
estar deitado. Era então que voltavam sub-repticiamente e, de
repente, tudo se adicionava, subtraía e rearranjava. Freddie achava
realmente que ele poderia dormir nessas condições?
Na verdade, Freddie não acreditava. Quando Hugh lhe explicara o
que se passava na sua cabeça quando tentava adormecer, o irmão
nunca mais fizera referência à página em branco.
Agora havia muitas razões para não conseguir adormecer. Por
vezes, era a perna, com aquela contração irritante do músculo.
Outras vezes, era a sua natureza desconfiada que o obrigava a
manter, metaforicamente, o pai debaixo de olho, pois Hugh nunca
confiaria totalmente nele, apesar de se encontrar em vantagem na
presente batalha entre os dois. E, às vezes, era a sua antiga
obsessão, a sua mente a zumbir com números e padrões, e a
recusar-se a sossegar.
Hugh, no entanto, tinha uma nova hipótese: não conseguia dormir,
simplesmente porque se acostumara àquele tipo particular de
frustração. De alguma forma, treinara o corpo para considerar
normal ficar deitado durante horas até finalmente desistir da luta e
descansar. Isto porque, muitas vezes, nenhuma razão explicava a
sua insónia. A sua perna podia parecer quase normal, ele quase se
esquecia da existência do pai e, mesmo assim, o sono não vinha.
Ultimamente, porém, era diferente.
Adormecer continuava a ser difícil. E provavelmente seria sempre.
Quanto ao motivo...
Essa era a diferença.
Desde que tinha sido ferido, havia muitas noites em que ficava
acordado a desejar a companhia de uma mulher. Afinal, era homem,
e tirando a maldita coxa esquerda, o seu corpo estava em perfeito
funcionamento. Não havia nada de surpreendente nisso, mas não o
tornava menos desconfortável.
Agora, no entanto, essa mulher tinha um rosto e um nome. E
mesmo que Hugh se comportasse com toda a decência durante o
dia, à noite, quando estava deitado na cama, a sua respiração
ofegava e sentia o corpo em chamas. Pela primeira vez na vida,
ansiava pelos números e padrões que geralmente lhe atormentavam
a mente. Em vez disso, só conseguia recordar aquele momento,
alguns dias antes, quando Sarah havia tropeçado no tapete da
biblioteca e ele a apanhara antes de ela cair. Por um momento
inesquecível, os seus dedos roçaram o lado de um seio. Ela usava
um vestido de veludo e Deus sabe que mais por baixo, mas ele
sentira-lhe a curva do seio, a maciez sedosa, e isso bastara para
que o desejo que crescia dentro dele se tornasse desenfreado.
Por isso, não ficou particularmente surpreendido quando se virou
de lado na cama para consultar o relógio e descobriu que eram três
e meia da manhã. Tentara ler, o que às vezes o acalmava, mas não
resultara. Depois, passara uma hora a resolver algumas equações
especialmente difíceis, mas também sem resultado. Finalmente,
admitindo a derrota, levantou-se e foi à janela. Se não conseguia
dormir, podia ao menos olhar para algo que não o interior das
próprias pálpebras.
Foi quando a viu.
Ficou atordoado e, no entanto, nada surpreendido. Sarah
Pleinsworth assombrava-lhe os sonhos há mais de uma semana;
não era de espantar que a visse no relvado a meio da noite, na
única vez que se aproximara da janela. Havia uma espécie de lógica
sem sentido.
Obrigou-se a sair do seu estupor. Que diabo estaria ela a fazer lá
fora? Eram três e meia da manhã e, se ele podia vê-la da janela,
pelo menos duas dúzias de pessoas também a veriam. Hugh soltou
uma série de imprecações digna de qualquer marinheiro, correu
para o armário e tirou um par de calças.
Sim, era capaz de correr quando a situação o exigia. Não era
gracioso, longe disso, e pagaria o preço mais tarde, mas conseguia.
Pouco depois, mais ou menos vestido (e a parte «menos» estava
tapada pelo casaco), atravessou os corredores de Whipple Hill o
mais rapidamente possível sem arriscar acordar a casa toda.
Parou por instantes no limiar da porta das traseiras, a coxa quase
paralisada por espasmos. Sabia que, se não a relaxasse por um
momento, a perna o deixaria ficar mal. Aproveitou a demora para
perscrutar o relvado e procurar Sarah. Ela trazia um casaco vestido,
mas não cobria completamente a camisa de noite branca, por isso,
devia ser fácil de detetar...
Viu-a. Estava sentada na relva, tão imóvel que poderia ser
confundida com uma estátua. Com os braços ao redor dos joelhos
dobrados, olhava para o céu noturno com uma expressão serena
que o teria deixado sem fôlego, se não estivesse tão invadido por
uma mistura de medo, raiva e, agora, alívio.
Hugh avançou devagar, poupando a perna lesionada, agora que a
rapidez já não era necessária. Sarah devia estar perdida em
pensamentos, porque não pareceu ouvi-lo. Ele estava a uns meros
oito passos quando, sufocando um grito, ela se virou.
– Hugh?
Sem responder, continuou a caminhar para ela.
– O que faz aqui? – perguntou ela, levantando-se.
– Eu podia fazer a mesma pergunta – rosnou ele.
A fúria dele era tão óbvia que Sarah recuou um passo.
– Não conseguia dormir, por isso...
– Então pensou que seria normal dar um passeio às três e meia
da manhã?
– Eu sei que parece um disparate...
– Um disparate? – repetiu Hugh. – Um disparate? Está a falar a
sério?
– Hugh...
Ela fez menção de pousar a mão no braço dele, mas ele afastou-
o.
– E se eu não a visse? Se fosse outra pessoa a vê-la?
– Eu teria voltado para dentro – respondeu ela, perscrutando-lhe o
olhar com tal intensidade que Hugh quase se encolheu.
Ela não podia ser assim tão ingénua. Ele tinha atravessado a casa
quase a correr... ele que, nalguns dias, mal conseguia andar,
atravessara aquela casa gigantesca como louco, assombrado pela
lembrança dos gritos da própria mãe.
– Acredita que toda a gente tem sempre as melhores intenções? –
perguntou.
– Não, mas acho que todas as pessoas que aqui estão sim e...
– Sarah, há homens neste mundo que magoam os outros.
Homens que magoam mulheres!
Ela imobilizou a expressão e ficou em silêncio.
Hugh tentou, com todas as forças, repelir a lembrança.
– Olhei pela janela do meu quarto – disse numa voz estrangulada
– e vi-a, às três e meia da madrugada, a caminho do relvado, como
uma espécie de aparição erótica.
Ela arregalou os olhos, talvez de preocupação, mas ele estava
demasiado furioso para reparar.
– E se não fosse eu? – continuou ele, agarrando os braços dela
com força, os dedos enterrando-se na pele. – Se outro a tivesse
visto, se alguém tivesse descido com intenções diferentes...
O pai dele nunca fora pessoa de pedir consentimento às
mulheres.
– Hugh – sussurrou Sarah.
Tinha o olhar fixo na boca dele. Santo Deus, ela tinha o olhar fixo
na boca dele e era como se lhe tivessem ateado fogo ao corpo.
– E se... e se...
Hugh sentia a língua pastosa, a respiração acelerada e nem sabia
o que estava a dizer.
Foi então que ela mordeu o lábio inferior, e ele pensou ter sentido
o raspar suave nos próprios lábios...
Foi a gota de água.
Puxou-a para si e tomou-lhe a boca sem delicadeza nem doçura,
apenas pura paixão. Mergulhou uma das mãos na massa de
cabelos e a outra desceu pelas costas, encontrando a curva
voluptuosa das nádegas e puxando-a para mais perto.
– Sarah... – gemeu.
Parte dele percebeu que ela também o tocava.
As mãos delicadas envolviam-lhe o pescoço, segurando-o contra
o dela, e os lábios entreabertos soltavam pequenos ruídos que o
atravessavam como relâmpagos.
Sem interromper por um momento o beijo, ele livrou-se do casaco,
deixando-o cair no chão. Os dois ajoelharam-se e logo ela estava
deitada de costas e ele sobre ela, os beijos cada vez mais ferozes e
profundos, como se pudesse prolongar aquele momento
indefinidamente, desde que os seus lábios não deixassem os de
Sarah. A camisa de noite dela era de algodão branco, feita para um
sono confortável e não para sedução, mas deixava-lhe o colo
descoberto. Depressa Hugh deslizava os lábios na pele leitosa,
perguntando-se até que ponto poderia aproximar-se da perfeição
daqueles seios sem agarrar o decote com os dentes e o rasgar.
Sarah moveu as ancas e ele gemeu o nome dela novamente,
acomodando-se melhor entre as pernas dela. Sentia o sexo
intumescido dentro das calças e perguntou-se se ela sabia o que
significava, mas não estava em condições de lhe fazer a pergunta.
Arqueou o corpo contra o dela, perfeitamente consciente de que,
mesmo através da roupa, ela sentiria a pressão na própria
intimidade.
Ela deixou escapar um pequeno grito abafado e reagiu
febrilmente, enterrando as mãos nos cabelos dele antes de as
deixar correr ao longo das costas e depois enfiando-as por baixo da
camisa.
– Hugh – sussurrou, e ele sentiu um dedo dela percorrer-lhe a
coluna. – Hugh...
Com uma coragem que não sabia ter, ele afastou-se, apenas o
suficiente para a fitar nos olhos.
– Eu não quero... eu não...
Céus, era difícil articular uma palavra que fosse. O coração batia
descontroladamente, sentia o corpo em chamas e nem sequer tinha
a certeza se ainda respirava.
– Sarah – recomeçou ele –, não vou fazer-te minha. Não agora,
prometo. Mas preciso de saber...
Ele não pretendia beijá-la novamente, mas, quando ela levantou a
cabeça para olhar para ele e arqueou o pescoço, foi como se
ficasse possuído. Com a ponta da língua, acariciou-lhe a cavidade
na base da garganta e foi aí que finalmente conseguiu falar.
– Preciso de saber – repetiu, afastando-se o suficiente para a fitar.
– Queres que isto aconteça?
Ela olhou-o, confusa. O desejo era óbvio, mas Hugh precisava de
a ouvir dizê-lo.
– Queres que isto aconteça? – repetiu ele, com voz rouca. –
Desejas-me?
Ela assentiu e sussurrou:
– Sim.
Hugh deixou a respiração escapar num exalar irregular. A
magnitude daquela oferta atingiu-o com toda a força. Ela estava a
abrir-se para ele... e a confiar nele. Ele garantira-lhe que não lhe
tomaria a virtude, e manteria a promessa, pelo menos, esta noite.
Mas desejava aquela mulher como nunca desejara nada na vida e
não era suficientemente cavalheiro para a mandar de volta para o
quarto.
Desceu uma mão até encontrar a bainha da camisa de noite e ela
soltou um suspiro de surpresa quando ele correu os dedos pela
perna, mas o som misturou-se com o gemido que deixou escapar à
sensação da pele dela.
Nunca ninguém a tocara ali. Ninguém jamais deslizara a mão pela
perna dela, subindo até à coxa. Aquela parte do corpo pertencia a
Hugh agora.
– Gostas? – sussurrou ele, acentuando a pressão da mão.
Ela assentiu.
Ele subiu um pouco mais e, com o polegar, acariciou-lhe a pele
macia do interior da coxa.
– E disto?
– Sim...
Quase não foi um som, mas ele ouviu.
– E se eu fizer isto?
A outra mão, que estivera a acariciar-lhe os cabelos, fechou-se
num dos seios.
– Oh, meu Deus... Hugh!
Beijou-a devagar, profundamente.
– Foi um sim?
– Sim...
– Quero ver-te – sussurrou-lhe ele ao ouvido. – Quero ver cada
pedacinho de ti e sei que não será agora, não esta noite. Mas quero
ver um pouco de ti. Entendes?
Ela abanou a cabeça.
– Confias em mim?
Ela esperou até os olhos de ambos se encontrarem para
responder:
– Com a minha própria vida.
Por um momento, ele não conseguiu mexer-se. As palavras de
Sarah penetraram nele, agarraram-lhe o coração e apertaram.
Depois, desceram e, se Hugh pensara que desejava Sarah, agora
nada se comparava à paixão selvagem que o invadiu ao ouvir
aquelas cinco palavras sussurradas.
Minha, pensou. Ela é minha.
Com os dedos trémulos, desatou a fita que fechava o decote da
camisa de noite. Que pessoa insensata tivera a ideia de adicionar tal
ornamento a uma peça de roupa que não era dedicada à sedução?
Era como um laço num presente que ele tinha de desembrulhar.
Puxou levemente a fita e, com mais um toque gentil, afastou o
tecido para trás, revelando um seio perfeito. O decote não se soltara
o suficiente para revelar ambos, mas havia algo de imensamente
erótico em ver apenas um.
Hugh humedeceu os lábios e, vagarosamente, ergueu o rosto para
o dela. Sem uma palavra, sem tirar os olhos dos dela um momento,
tocou a ponta do seio com a palma da mão.
Não precisou de perguntar se ela gostara. Sarah sussurrou o
nome dele e assentiu.
Minha, pensou ele novamente. Era a coisa mais incrível do
mundo, pois, até recentemente, ele presumira – não, ele sabia – que
nunca encontraria uma mulher que pudesse considerar sua.
Gentilmente, beijou-lhe os lábios, depois o nariz, depois ambas as
pálpebras. A constatação de que estava a apaixonar-se por ela foi
como uma explosão que o abalou profundamente, mas ele nunca
tinha sido homem de expressar os seus sentimentos e as palavras
permaneceram presas na garganta. Então, beijou-a uma última vez,
fervorosamente, esperando que ela reconhecesse aquele beijo pelo
que era, a oferta que lhe fazia da sua própria alma.
Teu, pensou ele. Sou teu.
Capítulo 15

arah sabia que não devia ter saído a meio da noite. Não tinha
S permissão para sair à rua em Londres sem um acompanhante e
sabia perfeitamente que uma escapada noturna no Berkshire
também era proibida.
Mas estava tão inquieta, tão... insatisfeita. Era como se a própria
pele a incomodasse e, quando saíra da cama e pousara os pés no
tapete, o quarto parecera-lhe pequeno de mais. A casa inteira
parecia-lhe pequena de mais. Precisava de se mexer, de sentir o ar
frio da noite na pele.
Nunca se sentira assim e, com toda a sinceridade, não encontrava
explicação para isso.
Mas agora sabia.
Precisava dele. De Hugh.
Simplesmente, não o sabia.
Em algum momento entre a viagem de carruagem, o bolo de
casamento e a valsa disparatada no relvado, Sarah Pleinsworth
tinha-se apaixonado pelo homem que nunca deveria ter cobiçado.
E quando ele a beijara...
Ela quisera mais.
– És tão linda – murmurou ele e, pela primeira vez na vida, Sarah
realmente acreditou que sim.
Acariciou-lhe a face e respondeu:
– Tu também.
Hugh olhou para ela com um meio sorriso totalmente incrédulo.
– És, sim – insistiu ela. Tentou fazer uma expressão severa, mas
foi incapaz de não sorrir. – Tens de acreditar na minha palavra.
Hugh continuou calado. Fitava-a como se ela fosse algo raro e
precioso e, sob aquele olhar, ela sentia-se preciosa. Naquele
instante, tudo o que desejava era que ele sentisse o mesmo.
Porque ela sabia que, infelizmente, não era esse o caso.
Hugh dissera coisas... nada mais do que insinuações ou
comentários estranhos aqui e ali, certamente convencido de que
ninguém se lembraria. Mas Sarah escutava-o. E lembrava-se. Sabia
que Hugh Prentice não era feliz. Pior, que ele pensava que não o
merecia ser.
Não era o tipo de homem que procurasse a multidão. Ele não
queria ser um líder, mas Sarah também sabia que Hugh não era um
seguidor. Tinha um carácter ferozmente independente, não temia a
solidão.
Mas ele estivera mais do que sozinho nos últimos anos. Sozinho
com aquele sentimento esmagador de culpa. Sarah não sabia como
conseguira ele convencer o pai a permitir que Daniel regressasse a
Inglaterra em segurança e não ousava imaginar as dificuldades que
tivera de enfrentar para viajar a Itália e trazer Daniel de volta.
Porém, fizera tudo isso. Hugh Prentice fizera tudo o que era
humanamente possível para reparar os seus erros e, no entanto,
ainda não estava em paz consigo mesmo.
Era um homem bom, que defendia meninas e unicórnios e
dançava a valsa com uma bengala. Não merecia que um erro
isolado definisse para sempre a sua vida.
Sarah Pleinsworth nunca fizera nada pela metade e sabia que, se
amasse aquele homem, dedicaria a sua vida a fazê-lo entender um
simples facto.
Ele também era precioso e merecia cada momento de felicidade
que viesse a ter.
Sarah acariciou-lhe os lábios com as pontas dos dedos. Eram
macios e maravilhosos, e sentia-se honrada apenas por sentir a
respiração na sua pele.
– Às vezes, ao pequeno-almoço, não consigo tirar os olhos da tua
boca – confessou ela.
Ele estremeceu. Ela adorava ser capaz de o fazer estremecer.
– E os teus olhos... – continuou, encorajada pela reação dele. –
Sabias que muitas mulheres matariam para ter olhos dessa cor?
Ele abanou a cabeça e parecia tão desorientado, que ela não
conseguiu conter um sorriso de pura alegria.
– Acho que és lindo e acho que... – sussurrou, antes de se
interromper. O coração falhou uma batida e ela mordeu o lábio antes
de continuar: – ...não, espero que a minha opinião seja a única que
importa.
Ele curvou-se e roçou os lábios nos dela. Deu-lhe um beijo no
nariz, depois na testa e fitou-a demoradamente nos olhos antes de a
beijar na boca novamente, desta vez sem restrições.
Sarah deixou escapar um gemido, o som rouco ficando preso na
boca dele. O beijo de Hugh era faminto e voraz, e, pela primeira vez
na vida, ela entendeu o que era paixão.
Não, aquilo ia além da paixão.
Era uma necessidade vital.
Hugh precisava dela. Sarah sentia-o em cada movimento dele;
ouvia-o no exalar rouco da sua respiração. E cada carícia daquelas
mãos, cada toque da língua alimentava a mesma necessidade nela.
Não sabia que era possível desejar um ser humano com tal
intensidade.
Sarah deslizou as mãos por baixo da camisa dele e correu os
dedos sobre a pele. Os seus músculos contraíram-se ao toque e ele
respirou fundo, o ar roçando a face dela como um beijo.
– Não tens ideia... não tens ideia do que provocas em mim – disse
ele, em voz rouca.
Ela viu a chama da paixão nos seus olhos e sentiu-se mais forte e
mais mulher do que nunca.
– Diz-me – sussurrou, antes de arquear o pescoço e chegar aos
lábios dele para um beijo suave e fugaz.
Por um momento, achou que ele diria as palavras. Mas ele
abanou a cabeça e disse:
– Seria a minha morte.
Tomou-lhe a boca novamente e ela deixou de querer saber o que
provocava nele, desde que continuasse o que estava a fazer.
– Sarah – disse, afastando os lábios apenas o breve instante
necessário para sussurrar o nome dela.
– Hugh – devolveu ela o sussurro, ciente do sorriso na própria
voz.
Ele afastou-se ligeiramente.
– Estás a sorrir.
– Não consigo evitar – admitiu ela.
Ele acariciou-lhe a face, contemplando-a com tanta emoção que
ela quase se esqueceu de respirar. Seria amor o que lia naqueles
olhos? Parecia que sim, mesmo que ele não tivesse dito as
palavras.
– Temos de parar – disse ele, antes de lhe compor
carinhosamente a camisa de noite.
Sabia que ele tinha razão, mas ainda assim murmurou:
– Quem me dera que pudéssemos ficar.
Hugh soltou uma espécie de risada sufocada e quase dolorosa.
– Não imaginas o quanto eu gostaria também.
– Ainda faltam muitas horas para o amanhecer – disse ela,
suavemente.
– Não vou desonrar-te – respondeu ele, antes de levar a mão dela
aos lábios. – Não assim.
Uma bolha de alegria rebentou dentro dela.
– Isso significa que pretendes desonrar-me de outra maneira?
Com um sorriso sedutor, ele levantou-se e ajudou-a a fazer o
mesmo.
– Gostaria muito de o fazer. Mas não lhe chamaria desonra. A
desonra é o que acontece a uma reputação, não o que acontece
entre um homem e uma mulher. Pelo menos – acrescentou numa
voz sensual –, não para o que está a acontecer entre nós.
Sarah estremeceu de prazer. Nunca sentira o próprio corpo tão
vivo. Nunca sentira a alma tão viva. Não sabia como conseguiria
chegar ao quarto. Os seus pés queriam correr, os seus braços
queriam abraçar o homem que caminhava a seu lado, ela queria rir,
e o seu coração...
O seu coração...
Parecia embriagado. Embriagado de amor.
Hugh acompanhou-a à porta do quarto. A casa inteira dormia.
Desde que não fizessem barulho, não tinham nada a temer.
– Até amanhã – sussurrou Hugh, levando a mão dela aos lábios.
Sarah assentiu em silêncio. Não havia palavras para expressar
tudo o que lhe ia no coração.
Estava apaixonada. Lady Sarah Pleinsworth estava apaixonada.
E era maravilhoso.

Na manhã seguinte

– Estás esquisita.
Sarah pestanejou para afastar o sono e olhou para Harriet, que,
empoleirada na beira da cama de dossel, a observava com bastante
desconfiança.
– Como assim? – resmungou Sarah. – Não tenho nada de
esquisito.
– Estás a sorrir.
Apanhada de surpresa, Sarah só conseguiu responder:
– Essa agora, não posso sorrir?
– Não logo ao acordar.
Sarah concluiu que não havia uma resposta adequada, portanto,
decidiu prosseguir a sua rotina matinal. No entanto, Harriet, com a
curiosidade despertada, seguiu-a ao lavatório, de olhos
semicerrados, a cabeça inclinada para o lado e a emitir pequenos
«hums» a intervalos irregulares.
– Passa-se alguma coisa? – perguntou Sarah.
– Passa-se? – questionou Harriet.
Santo Deus, e a dramática era ela.
– Estou a tentar lavar a cara – disse Sarah.
– Por quem sois, não quero impedir-te.
Sarah mergulhou as mãos na água do lavatório, mas, antes de
conseguir fazer qualquer coisa com ela, Harriet enfiou a cabeça
entre as mãos e o nariz de Sarah.
– Harriet, que se passa contigo?
– Isso pergunto eu! – retorquiu a irmã.
Sarah deixou a água escorrer por entre os dedos.
– Não faço a mais pequena ideia do que estás a falar.
– Tu estás a sorrir – acusou Harriet.
– Que tipo de pessoa julgas que sou, se não tenho o direito a
acordar de bom humor?
– Tens o direito! Só acho que és inerentemente incapaz.
De facto, toda a família sabia que Sarah não acordava bem-
disposta.
– E agora estás a corar – acrescentou Harriet.
Sarah resistiu à vontade de lhe atirar água à cara, preferindo
utilizá-la em si própria. Depois de secar o rosto com uma toalhinha
branca, respondeu:
– Pode ser pelo esforço de ter de te aturar logo pela manhã.
– Não, não acho que seja isso – revidou Harriet, impermeável ao
sarcasmo.
Sarah passou por ela. Se o seu rosto não corara antes, corara
certamente agora.
– Passa-se alguma coisa contigo – insistiu Harriet, correndo atrás
dela.
Sarah parou, mas não se virou.
– Pretendes seguir-me ao bacio?
Houve um silêncio muito satisfatório, seguido de:
– Hum... não.
Com a cabeça erguida, Sarah foi ao pequeno quarto de banho e
fechou a porta.
Aliás, trancou-a, pois não excluía a hipótese de que, depois de
contar até dez, Harriet concluísse ter-lhe dado tempo de sobra para
tratar do que tinha a tratar e entrasse de rompante.
Assim que ficou barricada contra invasões, Sarah virou-se e
encostou-se à porta, soltando um longo suspiro.
Oh, meu Deus!
Oh, meu Deus!
Estaria assim tão diferente depois da noite anterior, que a irmã
conseguia ver-lho no rosto? E, se estava assim tão diferente depois
de alguns beijos roubados, o que aconteceria quando...
Bem, talvez fosse mais razoável dizer «se».
Porém, o seu coração dizia-lhe que seria «quando». Ia passar o
resto da vida com Lord Hugh Prentice. Estava simplesmente fora de
questão permitir que fosse de outra maneira.
Quando Sarah desceu para o pequeno-almoço, ainda com Harriet
nos calcanhares a questionar cada sorriso, era óbvio que o tempo
mudara. O sol, que havia brilhado toda a semana, recuara para trás
de ameaçadoras nuvens de um cinzento de chumbo, e rajadas de
vento anunciavam uma tempestade iminente.
O passeio dos homens – uma ida a cavalo ao rio Kennet – foi
cancelado, e Whipple Hill zumbia com a energia por gastar de
dezenas de aristocratas ociosos. Tendo-se acostumado a ter grande
parte da casa só para si durante o dia, Sarah descobriu, com
surpresa, que se ressentia pelo que considerava quase uma
intromissão à sua privacidade.
Para complicar as coisas, Harriet aparentemente decidira que a
sua missão do dia era seguir todos os atos e gestos de Sarah e
interrogá-la. Whipple Hill era uma casa grande, mas não o suficiente
quando se tinha uma irmã curiosa e determinada, e, mais importante
ainda, que conhecia todos os cantos.
Hugh estivera presente ao pequeno-almoço, como sempre, mas
fora impossível a Sarah falar com ele sem que Harriet se metesse
na conversa. E quando Sarah foi para a pequena sala de estar para
ler, tal como dissera como quem não quer a coisa durante o
pequeno-almoço, encontrou Harriet sentada à secretária, com as
folhas do seu trabalho atual à frente.
– Sarah, que surpresa ver-te aqui! – disse, alegremente.
– Uma surpresa, de facto – respondeu Sarah num tom
deliberadamente neutro.
A sua irmã nunca fora muito boa na arte do subterfúgio.
– Vais ler? – inquiriu Harriet.
Sarah olhou para o romance que tinha na mão.
– Disseste que ias ler – lembrou-lhe Harriet. – Ao pequeno-
almoço.
Sarah virou os olhos para a porta, considerando as alternativas de
que dispunha naquela manhã.
– A Frances anda à procura de alguém que brinque com ela ao
Bom Unicórnio – informou Harriet.
Estava decidido. Sarah sentou-se no sofá e abriu o Miss
Butterworth. Folheou o livro, à procura da página onde tinha parado
e depois franziu a testa.
– É um jogo? – perguntou. – O Bom Unicórnio?
– Ela diz que é uma versão do Bom Barqueiro – explicou Harriet.
– Como é que se substituem barqueiros por unicórnios?
Harriet encolheu os ombros.
– Também não são precisos verdadeiros barqueiros para jogar.
– Ainda assim, estraga o ritmo – disse Sarah. Abanou a cabeça,
tentando lembrar-se da cantilena de infância que acompanhava o
jogo. – Bom unicórnio, bom unicórnio...
Olhou para Harriet em busca de inspiração.
– Juntam-se as duas palavras, para fazer Bonicórnio?
– Não me parece.
– Gentilcórnio?
– Está melhor – concordou Sarah, com a cabeça inclinada para o
lado.
– Foficórnio?
E... já chegava de parvoíce. Sarah voltou a atenção para o livro e
declarou:
– Vamos parar por aí, Harriet.
Sarah olhou para o livro, mas viu-se a cantarolar a rima infantil
enquanto lia.
Bom barqueiro, bom barqueiro, deixai-me passar...
Entretanto, Harriet, curvada sobre a secretária, resmungava
baixinho:
– Docicórnio, gracicórnio...
Tenho filhos pequeninos para acabar de criar...
– Oh, é isso, já sei! Hughnicórnio!
Sarah congelou. Impossível fingir que não ouvira. Com deliberada
lentidão, marcou a página com o dedo indicador e olhou para cima.
– O que disseste?
– Hughnicórnio – repetiu Harriet, como se não fosse nada de
estranho. – Em homenagem a Lord Hugh, claro – acrescentou, com
olhar matreiro. – Ele parece ser um tema frequente de conversa.
– Não da minha – respondeu Sarah de imediato.
Lord Hugh Prentice podia ocupar todos os seus pensamentos,
mas não se lembrava de o ter trazido à conversa com a irmã uma só
vez.
– O que eu queria dizer – insistiu Harriet – é que ele é um sujeito
frequente das tuas conversas.
– Não é a mesma coisa?
– Ele é um participante frequente das tuas conversas – corrigiu
Harriet de imediato.
– Gosto de falar com ele – disse Sarah, sabendo que era inútil
negar.
– Exatamente – continuou a irmã, estreitando os olhos inquisitivos.
– O que me leva a perguntar se será também ele a fonte do teu bom
humor atípico.
Sarah soltou um bufo impaciente.
– Estou a ficar ofendida, Harriet. Desde quando não sou
considerada uma pessoa de bom humor?
– Desde a primeira manhã da tua existência.
– É muito injusto – reclamou Sarah, pois estava certa de que
também era inútil negá-lo.
De forma geral, nunca era aconselhável negar qualquer coisa que
fosse indiscutivelmente verdade. Especialmente na presença de
Harriet.
– Eu acho que tens um fraquinho por Lord Hugh – declarou
Harriet.
E porque estava a ler Miss Butterworth e o Barão Louco, em que
os barões (loucos ou não) apareciam à porta no exato momento em
que alguém dizia o nome deles, Sarah levantou a cabeça.
Ninguém.
– Alguma vez haveria de ser a primeira – murmurou ela.
– Disseste alguma coisa? – perguntou a irmã, lançando-lhe uma
olhadela rápida.
– Estava simplesmente a admirar o facto de Lord Hugh não
aparecer à porta no momento em que disseste o nome dele.
– Não tens assim tanta sorte – ironizou Harriet.
Sarah revirou os olhos ao comentário.
– A propósito, creio que acabei de dizer que tens um fraquinho por
Lord Hugh.
Sarah olhou para a porta. Porque, na verdade, não poderia ter
tanta sorte duas vezes.
Ainda nada de Hugh.
Bem, aquilo era novo e inesperado.
Ela tamborilou os dedos por um momento no livro e disse em voz
baixa:
– Oh, quem me dera encontrar um cavalheiro que veja para além
das minhas irritantes três irmãs e... porque não?... do meu dedo do
pé vestigial!
Olhou para a porta.
E ali estava ele.
Sarah sorriu. No entanto, considerando bem as coisas, era melhor
parar com a história do dedo do pé vestigial. Seria uma pena se
acabasse a dar à luz um bebé com seis dedos.
– Interrompo? – perguntou Hugh.
– Claro que não! – respondeu Harriet, entusiasticamente. – A
Sarah está a ler e eu estou a escrever.
– Então interrompo.
– De modo nenhum! – protestou Harriet.
Procurou a ajuda de Sarah, que não viu motivo para intervir.
– Não preciso de silêncio para escrever – explicou Harriet.
Hugh arqueou uma sobrancelha interrogativa.
– Não pediu às suas irmãs para ficarem caladas na carruagem?
– Oh, isso foi diferente! – Antes que alguém pudesse perguntar
porquê, ela convidou: – Quer juntar-se a nós?
Depois de assentir educadamente, Hugh entrou na sala. Sarah
observou-o a contornar uma poltrona. Reparou pelo andar que ele
se apoiava mais do que o habitual na bengala. Franziu o sobrolho,
antes de se lembrar que ele tinha atravessado a casa num ritmo
acelerado na noite passada. Sem a bengala.
Sarah esperou que ele se sentasse na outra ponta do sofá e
sussurrou:
– A perna está a incomodá-lo?
– Um pouco.
Hugh pousou a bengala no chão e esfregou o músculo com um
gesto distraído. Sarah pensou se ele saberia que o fazia.
De repente, Harriet levantou-se e anunciou:
– Acabei de me lembrar de uma coisa!
– De quê? – perguntou Sarah.
– É... hã... uma coisa sobre... a Frances!
– O que tem a Frances?
– Oh, nada de especial, na verdade, apenas...
Harriet reuniu os papéis espalhados com gestos urgentes e depois
pegou no maço inteiro, dobrando algumas folhas ao fazê-lo.
– Cuidado – avisou Hugh.
Harriet fitou-o sem entender.
– Está a amassá-las – explicou ele, apontando para as páginas.
– Sim! Mais uma razão para eu sair. – Deu um passo para o lado
em direção à porta e depois outro. – Bem, vou indo...
Sarah e Hugh viraram-se para a ver sair, mas, apesar de todos os
seus protestos, ela parecia pairar perto da porta.
– Não tinhas de encontrar a Frances? – insistiu Sarah.
– Sim. – Harriet pôs-se em bicos de pés, voltou a pousá-los no
chão e disse: – Bem... adeus.
Finalmente saiu.
Sarah e Hugh olharam-se por alguns segundos antes de soltar
uma risada.
– O que foi aqu... – começou ele.
– Desculpem! – interrompeu Harriet, reentrando a correr na sala
de estar. – Esqueci-me de uma coisa.
Correu para a secretária, fez o gesto de pegar num objeto e,
embora Sarah tivesse a impressão de que a irmã não pegara em
nada, também não tinha um campo de visão desimpedido para ter a
certeza, e saiu apressada, fechando a porta atrás de si.
Sarah ficou boquiaberta.
– O que foi? – perguntou Hugh.
– Menina matreira! Fingiu esquecer-se de qualquer coisa só para
poder fechar a porta.
– E isso incomoda-te? – quis saber Hugh, arqueando uma
sobrancelha.
– Não, claro que não. Só nunca pensei que ela pudesse ser tão
ardilosa. – Depois de pensar no que acabara de dizer, Sarah
corrigiu: – O que estou a dizer? É claro que ela é ardilosa.
– O que eu acho interessante é a tua irmã estar tão determinada a
deixar-nos sozinhos – comentou Hugh, acrescentando com certa
malícia: – Com a porta fechada.
– Ela acusou-me de ter um fraquinho por ti.
– Ah, sim? O que respondeste?
– Creio que evitei fazê-lo.
– Muito bem, Lady Sarah, mas eu não desanimo tão facilmente.
Sarah moveu-se um pouco no sofá para se aproximar dele.
– Ai não?
– Não! – respondeu ele, pegando na mão dela. – Se eu te
perguntasse se tens um fraquinho por mim, posso assegurar-te que
não escapavas tão facilmente.
– Se me perguntares se tenho um fraquinho por ti – contrapôs
Sarah, permitindo que ele a puxasse –, talvez eu não queira
escapar.
– Talvez? – repetiu ele, em voz baixa e rouca.
– Bem, talvez eu precise que alguém me convença um pouco...
– Só um pouco?
– Um pouco pode ser o que preciso – disse ela, soltando um
suspiro ofegante quando os corpos de ambos se tocaram, antes de
responder –, mas a verdade é que quero muito.
Ele roçou os lábios ao de leve nos dela e comentou:
– Vejo que tenho algum trabalho a fazer.
– Sorte a minha, porque não me pareces homem de recear algum
trabalho árduo.
Ele abriu um sorriso predador.
– Posso garantir-lhe, Lady Sarah, que vou trabalhar arduamente
para garantir o seu prazer.
Sarah achou aquilo bastante promissor.
Capítulo 16

arah não sabia ao certo quanto tempo se beijaram. Cinco


S minutos, talvez dez. Toda a sua concentração estava na boca
diabólica de Hugh e nas suas mãos hábeis e ousadas, mesmo que
ele tivesse conseguido não lhe tirar nem perturbar uma única peça
de roupa.
Ele despertava-lhe sensações poderosas, que começavam na
barriga e se espalhavam por todo o corpo, como lava
incandescente. Quando lhe roçava os lábios no pescoço, ela tinha
vontade de se esticar como um gato, arqueando as costas até cada
músculo ficar quente e flexível. Tinha vontade de tirar os sapatos e
correr os dedos dos pés ao longo das pernas de Hugh, de
pressionar as ancas contra as dele e de o acolher entre as coxas.
Por causa dele, ela queria fazer coisas de que uma jovem não
devia falar, nem imaginar.
E ela adorava. Mesmo que não cedesse a nenhum desses
desejos, gostava de pensar neles. Gostava daquela sensação de
abandono e do desejo insano de o puxar para si até ambos se
tornarem um só. Ela, que nunca quisera beijar um homem, agora só
pensava na maravilhosa sensação daquelas mãos a acariciarem-lhe
a pele nua na noite anterior.
– Oh, Hugh! – suspirou, quando ele deslizou os dedos pela curva
da coxa, através da suave musselina do vestido.
Com o polegar, ele desenhou círculos preguiçosos, a mão
aproximando-se gradualmente da zona mais íntima.
Santo Deus, se ele conseguia pô-la naquele estado através do
tecido, como seria quando lhe tocasse a pele nua?
Sarah estremeceu, atordoada por um mero pensamento poder
excitá-la tanto.
– Não imaginas o quanto eu gostaria de estar noutro lugar, que
não esta sala – murmurou Hugh, entre beijos.
– Noutro lugar? – perguntou, provocadora.
Enterrou a mão no cabelo castanho dele, deleitando-se com a
facilidade de o despentear.
– Noutro lugar, com uma cama. – Ele beijou-lhe a face, desceu
pelo pescoço, depois parou na pele delicada na base do pescoço. –
E uma porta trancada.
O coração de Sarah deu um pulo àquelas palavras e,
simultaneamente, o comentário provocou nela uma faísca de
sensatez. A porta da sala de estar estava fechada, mas não
trancada. Sarah nem sabia se podia ser trancada e, mais importante
ainda, sabia que não devia estar fechada. Qualquer pessoa que
desejasse entrar e a encontrasse fechada quereria imediatamente
saber o que estava a acontecer lá dentro, o que significava que, a
menos que um deles quisesse ser corajoso o suficiente para saltar
pela janela, um salto de mais de três metros, o escândalo seria tão
grande como se a pessoa tivesse acabado de entrar pela porta
aberta.
Embora tivesse toda a intenção de se casar com Lord Hugh
Prentice – assim que ele fizesse o pedido, o que faria, e se não
fizesse, ela obrigá-lo-ia –, Sarah não queria o casamento deles
envolvido num escândalo a poucos dias do casamento do primo.
– Temos de parar – murmurou, sem muita convicção.
– Eu sei.
Mas ele não parou de a beijar, embora o fizesse com um pouco
menos de ardor.
– Hugh...
– Eu sei – repetiu ele.
Contudo, antes de ter tempo de se afastar, a porta abriu-se e
Daniel entrou em passo decidido, dizendo algo sobre andar à
procura de Anne.
Sarah sufocou um grito, mas era demasiado tarde para corrigir a
situação. Hugh estava meio deitado sobre ela, havia pelo menos
três ganchos de cabelo no chão e...
Bem... Hugh estava meio deitado sobre ela.
– Que diabo se passa aqui?! – exclamou Daniel, paralisado de
choque, antes de recuperar a sua habitual presença de espírito e
fechar a porta com um pontapé.
Hugh levantou-se mais depressa do que Sarah teria imaginado
possível naquelas circunstâncias. Aliviada do peso dele, sentou-se
e, instintivamente, cruzou os braços sobre o peito. Mesmo que o
corpete estivesse perfeitamente abotoado, sentiu-se exposta.
Ainda sentia o calor do corpo de Hugh contra o seu. Daniel olhava
para ela com tal mistura de fúria e deceção que Sarah não
conseguiu suster o olhar.
– Confiei em ti, Prentice – rosnou Daniel, ameaçador.
– Não nisto – disse Hugh, e até Sarah ficou espantada com a falta
de gravidade no seu tom.
Daniel precipitou-se para Hugh e ela levantou-se de um pulo.
– Para! Não é o que estás a pensar!
Era o que as pessoas diziam sempre, nos romances.
– Muito bem, é o que estás a pensar – corrigiu ela, vendo as
expressões incrédulas dos dois homens –, mas não podes bater-
lhe.
– Ai, não posso? – grunhiu Daniel.
Sarah impediu-o, colocando a mão no peito do primo.
– Não – replicou ela com firmeza, virando-se depois para Hugh de
dedo em riste e acrescentando: – E o Hugh também não.
– Eu não pretendia fazê-lo – disse ele, encolhendo os ombros.
Sarah pestanejou. Ele parecia surpreendentemente descontraído,
apesar de tudo.
Ela virou-se para Daniel.
– Isto não te diz respeito.
Daniel endureceu de fúria e foi numa voz trémula de raiva que
ordenou:
– Vai para o teu quarto, Sarah.
– Não és meu pai – atirou ela.
– Mas considero-me responsável pela família até ele chegar! –
revidou Daniel.
– Olha quem fala! – ironizou Sarah.
O primo, aparentemente, esquecera-se de que a sua noiva tinha
vivido com a família Pleinsworth. Sarah sabia muito bem que a corte
dos dois não fora totalmente casta.
Daniel cruzou os braços.
– Não se trata de mim.
– Não se tratava, até invadires a sala.
– Se te faz sentir melhor, Winstead – disse Hugh –, eu pretendia
pedir a Lord Pleinsworth a mão da Sarah em casamento quando ele
chegasse.
A cabeça de Sarah virou-se para Hugh como um chicote.
– É esse o meu pedido de casamento?! – exclamou.
– A culpa é dele – disse Hugh, apontando com o queixo para
Daniel.
Foi então que Daniel fez algo inesperado. Deu um passo em
direção a Hugh, encarou-o com ar duro e disse:
– Não vais pedir a mão dela a Lord Pleinsworth. Não vais dizer-lhe
uma palavra até contares a verdade à Sarah.
A verdade? Sarah olhou de um para outro. Várias vezes. Porém,
era como se não estivesse lá, pois nenhum dos dois lhe deu
atenção. E, pela primeira vez na vida, ficou calada.
– Do que estás a falar? – retorquiu Hugh, numa voz finalmente
irritada.
– Sabes muito bem do que estou a falar – encolerizou-se Daniel. –
Acho que não te esqueceste do pacto que assinaste com o diabo.
– Aquele que te salvou a vida? – contrapôs Hugh.
Sarah recuou um passo, assustada. Não sabia do que falavam,
mas estava apavorada.
– Sim, esse mesmo – confirmou Daniel, numa voz de seda. – Não
achas que uma mulher deve saber antes de aceitar o teu pedido?
– Saber o quê? – perguntou Sarah. – Do que estão a falar?
Porém, nenhum dos dois se dignou a olhar para ela.
– O casamento é um compromisso para toda a vida – disse
Daniel, num tom terrível. – Para toda a vida!
Com dentes cerrados, Hugh sibilou:
– Este não é o momento, Winstead.
– Não é o momento? – repetiu Daniel. – Não é o momento? E
quando será o maldito momento?
– Olha a língua! – avisou Hugh.
– Ela é minha prima.
– Ela é uma senhora.
– E ela está aqui – disse Sarah, em voz baixa, levantando a mão.
Daniel virou-se para a encarar.
– Ofendi-te?
– Alguma vez na vida? – perguntou Sarah, numa tentativa
desesperada de quebrar a tensão na sala.
Daniel franziu o sobrolho à tentativa patética de humor e voltou-se
para Hugh.
– Vais contar-lhe? Ou preferes que seja eu a fazê-lo?
Ninguém disse uma palavra.
Vários segundos se passaram até que Daniel se virou para Sarah
tão de repente, que ela se encolheu. Foi numa voz sinistra que lhe
perguntou:
– Lembras-te de como o pai de Lord Hugh ficou furioso depois do
duelo?
Sarah assentiu, embora ele provavelmente não esperasse uma
resposta. Ela ainda não frequentava a sociedade na altura do duelo,
mas ouvira os sussurros trocados pela mãe e pelas tias. Lord
Ramsgate tinha enlouquecido, disseram elas. Estava totalmente
desequilibrado.
– Nunca te perguntaste como é que Lord Hugh conseguiu
convencer o pai a deixar-me em paz? – continuou Daniel, ainda
naquele tom horrível, que Sarah agora percebia ser para Hugh,
embora as palavras fossem dirigidas a ela.
– Não – murmurou Sarah, lentamente e com honestidade. Ou pelo
menos não até algumas semanas atrás. – Presumi que... não sei. Tu
voltaste e só isso importava.
Sentiu-se estúpida. Porque é que não se perguntara o que Hugh
fizera para libertar Daniel? Será que devia tê-lo feito?
– Já conheceste Lord Ramsgate? – perguntou-lhe o primo.
– Devo ter conhecido, em algum momento – respondeu ela,
olhando para os dois homens com nervosismo. – Mas eu...
– Ele é um sacana e um estupor.
– Daniel!
Sarah nunca o ouvira usar tal linguagem ou tom. Virou-se para
Hugh, mas ele limitou-se a encolher os ombros e declarar:
– Não tenho objeções à caracterização.
– Mas...
Sarah só podia gaguejar. Não via o próprio pai com muita
frequência. Ele raramente saía de Devon, ao passo que Sarah
vagava pelo Sul da Inglaterra a reboque da mãe, que andava
desesperada por lhe encontrar um marido adequado. Mas ele era
seu pai e ela amava-o; era-lhe inconcebível ficar indiferente se
alguém o insultasse de forma tão abominável.
– Nem todos temos um pai afável e feliz com os seus cinquenta e
três cães – assinalou Hugh.
Sarah esperava ter interpretado mal a nota de condescendência
nas suas palavras.
– O que tem isso a ver com o caso? – replicou ela, impaciente.
– A verdade é que o meu pai é uma besta, um canalha doentio
que magoa pessoas e adora fazê-lo. A verdade é – continuou Hugh,
numa voz cada vez mais vibrante de raiva – que ele é
completamente louco, a despeito da imagem que projeta para o
resto do mundo, e que não há, repito, não há maneira de o chamar
à razão quando ele enterra as suas presas em alguma coisa.
– Em mim, neste caso – clarificou Daniel.
– Em qualquer coisa – revidou Hugh –, mas sim, tu incluído. De ti,
por outro lado, ele ia gostar – acrescentou Hugh num tom quase
normal.
Tudo aquilo provocou nela um profundo desconforto.
– O título da tua família remonta à dinastia Tudor e provavelmente
tens um bom dote – prosseguiu Hugh, apoiando a anca no braço do
sofá e esticando a perna magoada. – Mas, mais importante do que
isso, estás de boa saúde e em idade fértil.
Sarah só conseguia olhar para ele, muda.
– O meu pai vai adorar-te – terminou ele, com um encolher de
ombros.
– Hugh – começou Sarah. – Eu não...
Mas não sabia como continuar. Não reconhecia aquele homem
duro e frio que a descrevia de tal maneira que a fazia sentir-se
maculada e árida.
– Eu nem sequer sou herdeiro dele – disse Hugh, e Sarah
percebeu uma imensa raiva que ele mantinha controlada a duras
penas. – Ele não devia preocupar-se com a capacidade de
reprodução da minha mulher. Tem o Freddie. É nele que deve
depositar as esperanças, e eu passo a vida a dizer-lhe...
Hugh virou-se abruptamente, mas não antes de Sarah o ouvir
praguejar entre dentes.
Instalou-se um pesado silêncio na sala. Foi Daniel quem o
quebrou.
– Nunca conheci o teu irmão.
Sarah olhou para o primo, que estava de sobrolho carregado, e
percebeu que ele estava mais curioso do que surpreendido.
Hugh não se virou, mas disse com uma voz estranhamente
monótona:
– Ele não se move nos mesmos círculos que tu.
– Há... algum problema com ele? – perguntou Sarah, hesitante.
– Não! – rugiu Hugh tão abruptamente, que perdeu o equilíbrio e
quase caiu.
Sarah correu para o segurar, mas ele esticou o braço para a
afastar.
– Está tudo bem – resmungou Hugh.
Não era verdade. Ela via que ele não estava bem.
– O meu irmão não tem nenhum problema – disse Hugh, a voz
baixa e precisa, a respiração entrecortada pela quase queda. – Está
de perfeita saúde e perfeitamente capaz de ter um filho. Mas... é
provável que nunca venha a casar-se – concluiu, depois de uma
troca de olhares misteriosa com Daniel.
Os olhos de Daniel escureceram, e ele assentiu, compreendendo
o significado.
– O que é que isso significa? – explodiu Sarah, sem perceber e
com a impressão de que eles falavam uma língua desconhecida.
– Não é informação para os teus ouvidos – respondeu Daniel.
– Ah, não? – protestou ela. – Ao contrário de «sacana e estupor»
e «canalha doentio»?
Se não estivesse tão furiosa, teria ficado satisfeita ao ver os dois
homens encolherem-se.
– Ele prefere homens – disse Hugh, secamente.
– Eu nem sei o que isso significa – retorquiu Sarah.
Daniel praguejou em voz baixa.
– Oh, pelo amor de Deus, Prentice, ela é uma jovem de boa
família! E é minha prima.
Sarah não conseguia ver a relação, mas, antes de conseguir
perguntar, Daniel foi até Hugh e ameaçou-o:
– Mais uma palavra e mando-te esquartejar.
Hugh ignorou-o, os olhos fixos nos de Sarah.
– Tal como eu te prefiro a ti – disse ele, com deliberada lentidão –,
o meu irmão prefere homens.
Sarah não entendeu imediatamente. Então, sufocou uma
exclamação e, sem saber porquê, virou-se para Daniel.
– É mesmo possível?
Daniel desviou o olhar, o rosto muito corado.
– Não finjo entender o Freddie – disse Hugh, escolhendo as
palavras com cuidado – ou a razão por que ele é assim. Mas é meu
irmão e eu amo-o.
Sarah hesitou sobre como reagir. Olhou para Daniel em busca de
orientação, mas ele ainda estava de costas.
– O Freddie é um bom homem – continuou Hugh – e foi...
Sarah voltou-se para Hugh. A garganta mexia-se convulsivamente
e ela não se lembrava de o ver tão derrotado.
– Foi só graças a ele que sobrevivi à minha infância. – Hugh
pestanejou e, com um sorriso melancólico, acrescentou: – Embora
ele provavelmente diga o mesmo sobre mim.
Santo Deus, pensou Sarah, que tipo de homem era o pai deles?
– O Freddie é... não é como eu – afirmou Hugh, engolindo em
seco –, mas é um bom homem e não conheço ninguém mais
honrado e gentil do que ele.
– Está bem – murmurou Sarah, tentando absorver tudo aquilo. –
Se é como o descreves, estou pronta a amá-lo como um irmão. Mas
o que é que isso tem a ver com... com o resto?
– É por isso que o meu pai estava tão determinado a vingar-se do
teu primo – explicou Hugh, fazendo um gesto para Daniel. – E a
razão pela qual ainda não desistiu.
– Mas acabaste de dizer...
– Posso impedi-lo de agir – interrompeu Hugh –, mas não posso
fazê-lo mudar de ideias.
Ele mudou de posição, notoriamente desconfortável, e Sarah
julgou ver um lampejo de dor passar-lhe nos olhos. Seguiu o olhar
dele na direção da bengala que estava no tapete perto do sofá.
Hugh deu um passo para a bengala, mas Sarah antecipou-se e
apanhou-a.
A expressão dele quando ela lha entregou não foi de gratidão.
Contudo, engoliu o que estava prestes a dizer e continuou, sem se
dirigir a nenhum deles em particular:
– Disseram-me que, no dia do duelo, ninguém sabia se eu ia
sobreviver.
Sarah virou-se para Daniel, que assentiu.
– O meu pai está convencido de que... – Hugh fez uma pausa e
deixou escapar um suspiro cansado e resignado. – ...e pode ter
razão... – confessou, como se ele próprio tivesse acabado de o
aceitar – que o Freddie nunca se casará. Eu sempre pensei o
contrário, mesmo se...
Mais uma vez, a voz esmoreceu.
– Hugh? – sussurrou Sarah após quase um minuto de silêncio.
Ele virou a cabeça para olhar para ela e a sua expressão
endureceu.
– Não importa o que eu pensava – afirmou ele, depreciativo. – O
que importa é o que o meu pai pensa, e ele está convencido de que
tenho de ser eu a providenciar um herdeiro para a próxima geração.
Quando o Winstead quase me matou...
Encolheu os ombros, deixando Sarah e Daniel chegarem às suas
conclusões.
– Mas ele não te matou – disse Sarah, suavemente. – Por isso,
ainda podes...
Ninguém falou.
– Hã... podes, não podes? – insistiu ela, pois não era hora para
recatos inúteis.
Hugh deu uma risada sinistra.
– Não tenho motivos para supor o contrário, embora admita que
não tranquilizei o meu pai nesse aspeto.
– Não achas que devias tê-lo feito? – perguntou Sarah. – Ele teria
deixado o Daniel em paz e...
– O meu pai não é pessoa de desistir de uma vingança – cortou
Hugh.
– Com efeito – confirmou Daniel.
– Continuo sem entender – interveio Sarah.
Qual era a ligação de tudo aquilo com o modo como Hugh
trouxera Daniel de Itália?
– Sarah, se te quiseres casar com ele – disse Daniel –, eu não vou
pôr objeções. Gosto do Hugh. Sempre gostei, mesmo quando nos
encontrámos naquele maldito campo de duelo. Mas não vou permitir
que te cases com ele sem saberes a verdade.
– Que verdade? – exigiu saber Sarah.
Estava farta de os ouvir contornar o assunto, quando nem sabia
qual era o problema.
Depois de olhar para ela por um longo momento, Daniel voltou a
atenção para Hugh.
– Diz-lhe como convenceste o teu pai – pediu, num tom seco.
Sarah encarou Hugh, que tinha o olhar fixo em algum ponto acima
do ombro dela. Era como se ela não estivesse lá.
– Diz-lhe – insistiu Daniel.
– Não há nada de que o meu pai goste mais do que o título de
Ramsgate – disse Hugh, numa voz monocórdica. – Aos olhos dele,
eu sou apenas um meio para atingir um fim. Mas ele acredita que eu
sou o único meio, portanto o meu valor é inestimável.
– O que é que isso significa? – perguntou Sarah.
Focou os olhos nela, como se só agora descobrisse a sua
presença.
– Não entendes? – disse ele, baixinho. – A única coisa que posso
usar contra o meu pai é a minha pessoa.
O mal-estar de Sarah começou a crescer.
– Redigi um contrato a explicar exatamente o que acontecerá se
algo acontecer ao teu primo.
Sarah olhou para Daniel e voltou para Hugh.
– O quê? – perguntou, a respiração quase cortada pelo medo. – O
que vai acontecer?
– Cometo suicídio – respondeu Hugh, com um encolher de
ombros.
Capítulo 17

ora de brincadeiras – disse Sarah, a voz incerta, o olhar


–F cauteloso –, o que disseste que aconteceria?
Hugh resistiu ao impulso de pressionar as têmporas com os
dedos. A cabeça tinha-lhe começado a latejar e a ideia de
estrangular Daniel Smythe-Smith parecia-lhe o único remédio. Pela
primeira vez, tudo na sua vida corria pelo melhor – na perfeição, até
–, e Daniel tinha de meter o nariz onde não era chamado.
Não era daquela maneira que Hugh pretendia abordar o assunto
com Sarah.
Ou talvez não pretendesse abordá-lo de todo, sussurrou-lhe uma
vozinha interior. Para dizer a verdade, nem tinha pensado nisso.
Estava tão enamorado de Lady Sarah, tão profundamente fascinado
com a alegria de se apaixonar que não pensara nem por um
momento no «acordo» que fizera com o pai.
Mas decerto... decerto ela via que ele não tivera escolha.
– É uma piada? – disse Sarah. – Porque, se for, não é engraçada.
O que lhe disseste realmente que aconteceria?
– Ele não está a mentir – assegurou Daniel.
– Não, isso não pode ser verdade – disse Sarah, abanando a
cabeça, horrorizada. – É um absurdo. É uma loucura, é...
– Era a única maneira de convencer o meu pai a deixar o
Winstead em paz – interrompeu Hugh, com rispidez.
– Mas não estavas a falar a sério – frisou ela, em desespero. –
Mentiste-lhe, não foi? Foi apenas uma ameaça. Uma ameaça vã.
Hugh não respondeu. Não sabia se estava a ser sincero quando o
fez. Fora confrontado com um problema, ou melhor, desgastado por
um problema, e finalmente encontrara uma maneira de o resolver.
Com toda a honestidade, ficara satisfeito consigo próprio e achara o
plano brilhante.
O pai nunca correria o risco de perder Hugh antes de este lhe dar
uma nova geração de varões Prentice. Embora, pensou Hugh,
depois de isso acontecer, tudo ficaria sem efeito. Se o marquês
tivesse um ou dois netos de boa saúde, certamente nem
pestanejaria se Hugh decidisse pôr termo à vida.
Ou antes, talvez pestanejasse uma vez, para salvar as
aparências. Depois disso, a vida seria retomada como
habitualmente.
O momento em que apresentara o contrato ao pai fora
extraordinário. Talvez ele também fosse um canalha doentio, mas a
visão do pai tão derrotado, privado de qualquer recurso ou
resposta...
Fora magnífico.
Havia vantagens em ser considerado imprevisível, concluíra Hugh.
O pai tinha-se irritado, trovejado e derrubado a bandeja de chá,
enquanto Hugh o observava imperturbável, com um olhar quase
clínico que nunca deixava de enfurecer o marquês.
E então, depois de Lord Ramsgate declarar que Hugh nunca
executaria uma ameaça tão absurda, finalmente olhara para o filho.
Pela primeira vez, observara realmente o filho mais novo. E, quando
vira o seu sorriso vazio e insolente e a determinação de aço nos
seus olhos, o marquês ficara lívido.
E assinara o contrato.
Depois disso, Hugh não pensara muito no assunto. Às vezes, fazia
uma piada imprópria, pois sempre tivera um sentido de humor
negro, mas, na sua opinião, ele e o pai estavam num impasse
estável de destruição mutuamente assegurada.
Por outras palavras, não via motivo para se preocupar. E não
entendia porque é que ninguém conseguia perceber isso.
É claro que as únicas pessoas a saber a verdade eram Daniel e,
agora, Sarah. Mas eles eram inteligentes e sensíveis à lógica.
– Porque não me respondes? – insistiu Sarah, a voz evidenciando
o pânico. – Hugh? Diz-me que não estavas a falar a sério.
Hugh encarou-a. Estivera perdido em pensamentos e memórias, e
era quase como se uma parte dele tivesse saído da sala e buscado
refúgio num canto sossegado, para refletir sobre o triste estado da
sua existência.
Ia perdê-la. Ela não ia entender. Percebeu-o ao ver-lhe o olhar
frenético e as mãos trémulas. Porque é que ela não via o lado
heroico da escolha que ele fizera? Sacrificara-se – ou, pelo menos,
ameaçara sacrificar-se – pelo bem do querido primo dela. Não
deveria isso contar?
Trouxera Daniel de volta para Inglaterra e garantira a sua
segurança. Devia ser punido por isso?
– Diz alguma coisa, Hugh – implorou Sarah. Olhou para Daniel e
depois para Hugh, a cabeça num movimento brusco e desajeitado. –
Não entendo porque não dizes nada.
– Ele assinou um contrato – disse Daniel. – Eu tenho uma cópia.
– Deste-lhe uma cópia?
Hugh não via como esse facto mudava alguma coisa, mas Sarah
parecia horrorizada. Ficara muito pálida e as mãos, que se
esforçava por controlar, tremiam.
– Tens de o rasgar – disse ela a Daniel. – Imediatamente. Tens de
o rasgar!
– Não vai fazer...
– Está em Londres? – interrompeu ela. – Porque, se estiver, eu
parto imediatamente. Não quero saber se falto ao teu casamento.
Isso não importa. Posso ir agora buscá-lo e...
– Sarah! – quase gritou Daniel, só assim a trazendo à realidade. –
Não faria diferença. Não é a única cópia. E, se ele tiver razão –
acrescentou, apontando para Hugh –, é a única maneira de me
manter seguro.
– Mas isto pode levar à morte dele! – exclamou ela.
Daniel cruzou os braços.
– Depende apenas de Lord Hugh.
– Do meu pai, na verdade – corrigiu Hugh, já que era nele que a
corrente de loucura começava.
Sarah petrificou, mas a sua cabeça continuou a abanar como se
ainda tentasse compreender.
– Porque farias uma coisa dessas? – perguntou ela, embora Hugh
sentisse que tinha explicado as suas razões com clareza. – É
errado. É... é... contranatura!
– É lógico – respondeu Hugh.
– Lógico? Lógico? Estás louco? Não vejo nada mais ilógico, mais
irresponsável, mais egoísta...
– Sarah, para! – disse Daniel, colocando a mão no ombro da
prima. – Estás perturbada.
Mas Sarah libertou-se da mão, furiosa.
– Poupa-me! – rosnou, virando-se para Hugh.
Hugh desejou saber o que dizer. Achava que tinha dito a coisa
certa. Era o que o teria convencido, se os papéis fossem invertidos.
– Pensaste em alguém além de ti próprio? – acusou ela.
– Pensei no teu primo.
– Mas é diferente, agora – bradou ela. – Quando fizeste essa
ameaça, afetava-te apenas a ti. Mas agora...
Hugh esperou, mas ela não terminou a frase. Não disse «mas
agora não» nem «mas agora afeta-nos aos dois».
– Bem, não precisas de o fazer – anunciou ela, como se isso
bastasse para resolver todos os problemas. – Se acontecesse
alguma coisa ao Daniel, não terias de levar a cabo a ameaça.
Ninguém te pediria para respeitar tal contrato. Ninguém! Certamente
não o teu pai, e o Daniel estaria morto.
Seguiu-se um pesado silêncio, até que Sarah levou a mão à boca,
horrorizada.
– Perdoa-me – gaguejou, voltando-se para o primo. – Perdoa-me.
Oh, meu Deus, desculpa!
– Estamos conversados – rosnou Daniel, lançando um olhar
quase de ódio a Hugh.
Daniel pôs um braço à volta dos ombros de Sarah e sussurrou-lhe
algumas palavras ao ouvido. Hugh não as ouviu, mas elas não
fizeram nada para impedir a enxurrada de lágrimas que deslizavam
pelo rosto de Sarah.
– Vou fazer as malas – anunciou Hugh.
Ninguém o impediu.
Sarah deixou-se levar da sala por Daniel, apenas protestando
quando ele se propôs a levá-la ao colo pelas escadas.
– Não, por favor – disse ela, numa voz estrangulada. – Não quero
que ninguém veja como estou perturbada.
Perturbada. A palavra era um grande eufemismo. Não estava
perturbada, estava destroçada.
Aniquilada.
– Deixa-me acompanhar-te ao quarto – sugeriu Daniel.
Ela assentiu, mas mudou de ideias repentinamente.
– Não! A Harriet pode lá estar. Não quero que ela faça perguntas e
sabes que ela o fará.
Daniel acabou por a levar para o seu próprio quarto,
argumentando ser um dos poucos aposentos da casa onde a
privacidade seria garantida. Perguntou-lhe uma última vez se ela
queria ver a mãe ou Honoria ou outra pessoa qualquer, mas Sarah
abanou a cabeça e enrolou-se na cama, por cima da colcha. Depois
de a tapar com um cobertor e de se assegurar de que ela realmente
queria ficar sozinha, Daniel saiu do quarto e fechou a porta
devagarinho.
Dez minutos depois, Honoria entrou.
– O Daniel disse-me que querias ficar sozinha – explicou, antes
que Sarah pudesse fazer mais do que olhar para ela com uma
expressão exausta –, mas achamos que fazes mal.
A verdadeira definição de família. Pessoas que se arrogam o
direito de decidir quando alguém faz alguma coisa mal. Sarah
provavelmente fazia o mesmo que eles. Talvez pior.
Honoria sentou-se ao lado dela na cama e afastou gentilmente o
cabelo de Sarah do rosto.
– Como posso ajudar?
Sarah não levantou a cabeça da almofada, nem se virou para
encarar a prima.
– Não podes.
– Deve haver alguma coisa que possamos fazer. Recuso-me a
acreditar que tudo está perdido.
Sarah colocou-se numa posição mais sentada e olhou para ela,
incrédula.
– O Daniel não te contou nada?
– Contou-me uma parte – respondeu Honoria, não parecendo
ofendida com o tom agressivo de Sarah.
– Então, como podes dizer que não está tudo perdido? Pensei que
o amava. Pensei que ele me amava. E agora descubro... – Sarah
sentiu o rosto contorcer-se de uma raiva que Honoria não merecia,
mas era incapaz de se conter. – Não me digas que não está tudo
perdido!
Honoria mordeu o lábio inferior e sugeriu:
– Talvez se falasses com ele...
– Falei com ele! Como julgas que cheguei a este ponto?
Sarah agitou um braço, como se dissesse:
Estou furiosa e magoada e não sei que fazer.
Como se dissesse: Não há mais nada que eu possa fazer, exceto
agitar este braço estúpido.
Ajuda-me, porque eu não sei como pedir ajuda.
– Não tenho a certeza se sei toda a história – disse Honoria com
cautela. – O Daniel estava muito preocupado e disse que estavas a
chorar, e eu corri...
– Que mais te contou ele? – perguntou Sarah, em tom
monocórdico.
– Explicou que Lord Hugh... – Honoria fez uma careta, como se
não pudesse acreditar no que dizia. – Em suma, contou-me que
Lord Hugh conseguiu finalmente convencer o pai a deixá-lo em paz.
É... – Mais uma vez, o rosto de Honoria expressou várias formas de
incredulidade. – Na verdade, achei a ideia bastante inteligente,
embora um pouco...
– Insana?
– Não, na verdade não – disse Honoria. – Só seria insana se não
houvesse raciocínio por trás dela e não acredito que Lord Hugh seja
capaz de fazer qualquer coisa sem reflexão.
– Ele disse que se mataria, Honoria. Desculpa, não posso... Santo
Deus, e as pessoas ainda me acusam a mim de ser dramática!
Honoria reprimiu um leve sorriso.
– É bastante... irónico.
Sarah atirou-lhe um olhar furioso.
– Eu não disse que era engraçado – apressou-se Honoria a
corrigir.
– Pensei que o amava – murmurou Sarah.
– Pensaste?
– Não sei se ainda é o caso.
Sarah virou-se e deixou a cabeça repousar de novo na almofada.
Era doloroso olhar para a prima. Honoria estava tão feliz. E merecia
estar, é claro, mas Sarah nunca teria um coração puro o suficiente
para conseguir não a odiar um bocadinho. Neste momento, pelo
menos.
Honoria ficou em silêncio por alguns segundos e perguntou em
voz baixa:
– Podes deixar de amar alguém tão rapidamente?
– Apaixonei-me rapidamente. – Sarah engoliu em seco. – Talvez
nunca tenha sido real. Talvez eu apenas quisesse que fosse real.
Todos estes casamentos, tu e o Marcus, e agora o Daniel e a
Anne... Toda a gente parece tão feliz, e é exatamente isso que eu
quero. Talvez fosse só isso.
– Acreditas mesmo no que estás a dizer?
– Como posso estar apaixonada por alguém que faz uma ameaça
daquelas? – questionou Sarah, com voz quebrada.
– Ele fê-lo para garantir a felicidade de outra pessoa – lembrou
Honoria. – Do meu irmão.
– Eu sei – respondeu Sarah – e seria capaz de admirar o gesto. A
sério que seria. Mas, quando lhe perguntei se era apenas uma
ameaça vã, ele não disse que sim. – Engoliu várias vezes,
convulsivamente, tentando controlar a respiração. – Não me disse
que se... se fosse necessário, não iria até ao fim. Eu fiz-lhe a
pergunta diretamente e ele não respondeu.
– Sarah – começou Honoria –, tens de...
– Percebes como até esta conversa é horrível?! – exclamou
Sarah. – Estamos a falar de uma coisa que só aconteceria se o teu
irmão fosse assassinado. Como se... como se... qualquer coisa que
o Hugh fizesse fosse pior.
Honoria pousou uma mão gentil no ombro da prima.
– Eu sei – disse Sarah, numa voz estrangulada, como se o gesto
tivesse sido uma pergunta. – Vais dizer-me que tenho de lhe
perguntar outra vez. Mas e se o fizer e ele me responder que está
preparado para cumprir o contrato, que, se o pai mudar de ideias e
atacar o Daniel, ele pega numa arma e a enfia na boca?
Houve um silêncio terrível, depois Sarah levou a mão aos lábios,
para tentar conter fisicamente um soluço.
– Tenta respirar fundo – disse Honoria suavemente, apesar do
horror nos seus olhos.
– Como posso sequer falar sobre isto? – soluçou Sarah. –
Percebes como me sentiria péssima em relação ao Hugh, a raiva
que lhe teria, quando obviamente isso significaria que o Daniel
estaria morto e isso, sim, é que me devia deixar destroçada e...
Santo Deus, Honoria, é contra a própria natureza humana! Não
posso... não posso...
Lançou-se para os braços da prima, gaguejando entre soluços:
– Não é justo. Não é justo.
– Não, não é justo.
– Eu amo-o.
– Eu sei – disse Honoria, sem parar de lhe afagar as costas, num
gesto de conforto.
– E sinto-me um monstro por me incomodar tanto que ele tenha
dito... – Sarah engoliu uma golfada de ar – tenha dito que se mataria
e eu ter implorado para ele me prometer que não o faria, quando, na
verdade, o que realmente devia incomodar-me é que tudo isso
significaria que algo tinha acontecido ao Daniel!
– Mas consegues entender a razão por que Lord Hugh fez o
pacto, certo?
Sarah fez que sim com a cabeça contra o ombro dela. Doíam-lhe
os pulmões. Doía-lhe o corpo inteiro.
– Mas devia ser diferente agora – murmurou ela. – Ele devia ver
as coisas de maneira diferente, agora. Eu deveria contar, agora.
– E contas – garantiu Honoria. – Tenho a certeza disso. Eu vi
como vocês olham um para o outro quando pensam que ninguém
está a ver.
Sarah recuou o suficiente para ver o rosto da prima. Honoria
olhava para ela com um sorriso quase impercetível, e os olhos dela
– aqueles olhos cor de alfazema espantosos que Sarah sempre
invejara – eram límpidos e serenos.
Seria essa a diferença entre elas? Honoria enfrentava cada dia
como se o mundo fosse feito de mares azul-turquesa e suaves
brisas marítimas. O mundo de Sarah era uma tempestade atrás da
outra. Nunca conhecera um dia pacífico em toda a sua vida.
– Eu vi a maneira como ele olha para ti – continuou Honoria. –
Está apaixonado por ti.
– Ele não disse isso.
– E tu disseste?
Sarah deixou o silêncio responder.
– Talvez tenhas de ser corajosa e ser a primeira a dizê-lo – propôs
Honoria, pegando na mão da prima.
– É fácil para ti falar – disse Sarah, pensando em Marcus, sempre
tão honrado e reservado. – Apaixonaste-te pelo homem mais fácil,
adorável e menos complicado de Inglaterra.
Honoria encolheu os ombros, compreensiva.
– Nós não escolhemos por quem nos apaixonamos. E tu não és a
mulher mais fácil e menos complicada de Inglaterra, sabias?
Sarah lançou-lhe um olhar de soslaio.
– Esqueceste-te do «adorável».
– Bem, talvez sejas a mais adorável – reconheceu Honoria com
um sorriso e, depois de uma cotovelada afetuosa, acrescentou: –
Atrevo-me a dizer que Lord Hugh te considera a mais adorável.
Sarah escondeu o rosto nas mãos.
– Que devo fazer?
– Vais ter de falar com ele, parece-me.
Sarah sabia que Honoria tinha razão, mas não pôde deixar de
imaginar todos os resultados que essa conversa podia ter.
– E se ele disser que vai respeitar o contrato? – perguntou, numa
voz trémula e assustada.
Alguns segundos se passaram antes de a prima responder:
– Pelo menos, saberás a verdade. Mas, se não lhe perguntares,
nunca saberás o que ele responderia. Imagina o que teria
acontecido se Romeu e Julieta tivessem realmente falado um com o
outro.
Sarah olhou para ela, boquiaberta.
– É uma comparação terrível !
– Tens razão, desculpa – admitiu Honoria, contrita, mas logo
mudou de opinião, pois, apontando para Sarah, acrescentou num
tom alegre: – Mas, pelo menos, paraste de chorar.
– Nem que seja para te repreender.
– Podes repreender-me à vontade se isso te fizer sorrir. Mas tens
de me prometer que vais falar com ele. Não queres que um enorme
e terrível mal-entendido arruine a tua oportunidade de seres feliz.
– O que queres dizer então é que, se a minha vida vier a ser
arruinada, devo ser eu a fazê-lo? – perguntou Sarah, sarcástica.
– Não o diria exatamente assim, mas a ideia é essa.
Sarah ficou em silêncio por um longo tempo e, depois, perguntou
com ar quase distraído:
– Sabias que ele é capaz de multiplicar números grandes de
cabeça?
– Não, não sabia – admitiu Honoria, com um sorriso indulgente. –
Mas não me surpreende.
– Leva apenas um momento. Tentou explicar-me uma vez como é
que tudo se combina na mente dele, mas não entendi
absolutamente nada.
– A aritmética é insondável.
Sarah revirou os olhos.
– Ao contrário do amor?
– O amor é absolutamente incompreensível – disse Honoria. – A
aritmética é apenas misteriosa. – Encolheu os ombros, levantou-se
e estendeu a mão para Sarah. – Ou talvez seja o contrário. Vamos
tentar descobrir?
– Pretendes vir comigo?
– Só para te ajudar a encontrá-lo. A casa é grande – disse
Honoria, com um leve encolher de ombros.
Sarah arqueou uma sobrancelha, desconfiada.
– Tens medo que eu perca a coragem.
– Sem sombra de dúvida – confirmou Honoria.
– Não vou fugir – assegurou Sarah e sabia que era verdade,
apesar das borboletas no estômago e do medo que lhe apertava o
coração.
Não era pessoa de recuar perante os seus medos. E nunca se
perdoaria se não fizesse tudo ao seu alcance para garantir a própria
felicidade.
Assim como a de Hugh. Porque, se alguém merecia ter um final
feliz, era ele.
– Mas, primeiro, preciso de ter um ar mais composto – disse
Sarah. – Não quero aparecer à frente dele com cara de quem
esteve a chorar.
– Ele devia saber que te fez chorar.
– Francamente, Honoria Smythe-Smith, essa deve ser a coisa
mais desumana que já te ouvi dizer.
– O meu nome agora é Honoria Holroyd – lembrou Honoria, com
petulância. – E é verdade. Pior do que um homem que faz uma
mulher chorar, é um homem que faz uma mulher chorar e não se
sente culpado.
Sarah fitou-a com um novo respeito.
– O casamento assenta-te bem.
– Assenta, sim – respondeu Honoria com um sorriso um pouco
convencido.
Sarah saiu da cama. Sentia as pernas rígidas e teve de as dobrar
e esticar várias vezes.
– Ele já sabe que me fez chorar.
– Ainda bem.
Sarah encostou-se à cama e examinou as mãos. Tinha os dedos
inchados. Como era possível? Quem é que ficava com os dedos
como salsichas depois de chorar?
– Que se passa? – perguntou Honoria.
Sarah deu-lhe um olhar triste.
– Teria preferido que Lord Hugh pensasse que eu sou o tipo de
mulher que fica linda a chorar, com olhos muito brilhantes e assim.
– Em vez de vermelhos e inchados?
– É a tua maneira de me dizeres que estou horrível?
– Talvez queiras arranjar o cabelo – disse Honoria, sempre um
exemplo de delicadeza.
Sarah assentiu antes de perguntar:
– Sabes onde está a Harriet? Partilhamos o quarto e não quero
que ela me veja neste estado.
– Ela não te vai julgar – assegurou-lhe Honoria.
– Eu sei. Mas não tenho forças para aguentar as perguntas dela.
E sabes que ela vai ter muitas.
Honoria tentou reprimir um sorriso, pois conhecia bem Harriet.
– Vamos fazer o seguinte: eu mantenho a Harriet distraída para
que possas ir ao teu quarto e...
Agitou as mãos perto do rosto e foi o suficiente para expressar o
que queria dizer.
– Obrigada – disse Sarah com um aceno, enquanto a prima se
dirigia à porta. – Honoria... – chamou e a prima virou-se. – Adoro-te.
Honoria abriu um sorriso trémulo.
– Eu também te adoro, Sarah. – Limpou uma lágrima inexistente e
perguntou: – Queres que mande uma mensagem a Lord Hugh a
pedir-lhe que se encontre contigo daqui a trinta minutos?
– Talvez seja melhor uma hora?
Sarah era corajosa, mas não tanto. Precisava de algum tempo
para reunir a coragem necessária.
– No jardim de inverno? – sugeriu Honoria, alcançando a porta. –
Terão privacidade. Creio que ninguém lá entrou a semana toda.
Imagino que as pessoas tenham medo de nos encontrar a ensaiar
para um concerto.
Sarah sorriu.
– Está bem. No jardim de inverno daqui a uma hora. Eu vou...
Foi interrompida por batidas fortes na porta.
– Que estranho – disse Honoria. – O Daniel sabe que nós... –
Encolheu os ombros, sem se preocupar em terminar a frase. –
Entre!
A porta abriu-se e um lacaio entrou, piscando os olhos com óbvia
surpresa.
– Com licença, milady, vim à procura de Lord Winstead.
– Ele teve a gentileza de nos permitir usar o seu quarto – explicou
Honoria. – Há algum problema?
– Não, mas tenho uma mensagem dos estábulos.
– Dos estábulos? – repetiu Honoria. – Que estranho. – Virou-se
para Sarah, que ouvia pacientemente a conversa. – O que pode ser
tão importante para terem pedido ao George para vir trazer uma
mensagem ao Daniel, no quarto?
Sarah encolheu os ombros, supondo que George fosse o lacaio.
Honoria tinha crescido em Whipple Hill, portanto sabia o nome dele.
– Muito bem – disse Honoria, estendendo a mão para o lacaio. –
Se me der a mensagem, eu entrego-a a Lord Winstead.
– Perdão, milady, não é uma mensagem escrita. Foi-me pedido
apenas para a transmitir.
– Então diga-me o que é. Eu transmito-a a ele.
– Obrigado, milady – disse o lacaio depois de uma breve
hesitação. – Pediram-me que informasse Lord Winstead de que
Lord Hugh levou uma das carruagens para Thatcham.
– Lord Hugh? – exclamou Sarah, de repente muito atenta à
conversa.
– Hã... sim – confirmou George. – É o cavalheiro que coxeia,
certo?
– Porque iria ele para Thatcham?
– Sarah – interveio Honoria –, creio que o George não sabe...
– Não – interrompeu George. – Peço desculpa, minha senhora,
não queria interrompê-la.
– Por favor, continue – pediu Sarah, em tom urgente.
– Disseram-me que ele foi à estalagem White Hart ver o pai.
– O pai? – repetiu Sarah. – Porque iria ele ver o pai?
George não se encolheu, mas quase, e, com um olhar
desesperado para Honoria, respondeu:
– Eu... eu não sei, minha senhora.
– Não gosto disto – afirmou Sarah.
– Obrigada, George, pode ir – disse Honoria ao lacaio, que, depois
de uma vénia breve, desapareceu.
– Porque é que o pai dele está em Thatcham? – perguntou Sarah,
assim que ficaram sozinhas.
– Não sei – respondeu Honoria, que parecia igualmente perplexa.
– Não foi convidado para o casamento.
– Não pode ser boa coisa. – Sarah virou-se para a janela. A chuva
ainda caía com força. – Tenho de ir à aldeia.
– Não podes sair com este tempo.
– O Hugh foi.
– É diferente. Foi visitar o pai.
– Que quer matar o Daniel!
– Oh, meu Deus! – exclamou Honoria, abanando a cabeça. – É
tudo uma loucura tão grande.
Sarah mal a ouviu, precipitando-se para o corredor para chamar
George. Felizmente, ainda o apanhou antes de ele descer as
escadas.
– Mande preparar uma carruagem. Imediatamente!
Assim que ele desapareceu para cumprir a ordem, ela virou-se
para Honoria, parada à porta do quarto.
– Encontro-me contigo em frente à casa – declarou Honoria. – Vou
contigo.
– Não, não podes – contestou Sarah, de imediato. – O Marcus
nunca me perdoaria.
– Então levamo-lo também. E o Daniel.
– Não! – Sarah pegou Honoria pelo braço e empurrou-a para o
quarto. – Devemos, a todo o custo, impedir que o Daniel veja Lord
Ramsgate.
– Não podes deixá-lo fora disto – insistiu Honoria. – Ele está tão
envolvido como...
– Pronto, está bem – concordou Sarah, só para a calar. – Vai
chamar o Daniel. Não quero saber.
Porém, não era verdade e, assim que Honoria saiu em busca dos
dois homens, Sarah vestiu o casaco e correu para os estábulos. A
cavalo, chegaria à aldeia mais depressa do que de carruagem,
mesmo à... não, especialmente à chuva.
Daniel, Marcus e Honoria segui-la-iam até White Hart, ela sabia
que sim. Mas, se tivesse avanço suficiente, poderia... Bem, para ser
honesta, não sabia exatamente o que poderia fazer, apenas que
poderia fazer alguma coisa. Encontraria uma maneira de apaziguar
Lord Ramsgate antes que Daniel aparecesse, furioso e hostil.
Podia não conseguir engendrar um final feliz para todos; aliás,
tinha a certeza do contrário. Mais de três anos de ódio e
ressentimento não podiam ser apagados num só dia. Contudo, se
Sarah pudesse, de alguma forma, impedir que os ânimos se
exaltassem, que os punhos voassem e... que alguém fosse morto...
Poderia não ser um final feliz, mas teria de ser suficiente.
Capítulo 18

Uma hora antes,


em Whipple Hill,
noutro quarto

e Hugh se tornasse efetivamente marquês de Ramsgate, a sua


S primeira decisão seria mudar o lema da família. Podia fazê-lo,
não podia? Porque o lema O orgulho é valente não fazia o menor
sentido, no contexto das atuais gerações de homens Prentice. Se
tivesse voto na matéria, Hugh ia mudá-lo para Pior é sempre
possível.
Tinha a prova na mão: a breve missiva que tinha sido depositada
no seu quarto em Whipple Hill enquanto ele estava na sala de estar,
a partir o coração de Sarah, a fazê-la chorar e, aparentemente, a ser
uma pessoa horrível.
O bilhete era do pai.
Do pai!
Ver a letra angulosa do pai já fora mau o suficiente, mas, então,
leu o bilhete e ficou chocado ao descobrir que Lord Ramsgate
estava, ali, no Berkshire, hospedado na White Hart, a estalagem
mais chique da zona e muito próxima de Whipple Hill.
Hugh não percebia como conseguira ele um quarto, quando todas
as estalagens locais estavam cheias com os convidados do
casamento. O pai sempre tivera uma tendência para abrir caminho
na vida à bruta. Se quisesse um quarto, teria um quarto, e Hugh só
podia sentir pena dos convidados que tinham sido mudados de
quarto, um após o outro, até o último ir parar ao celeiro.
O que a missiva do pai não mencionava, no entanto, era o motivo
da sua vinda ao Berkshire. A omissão não surpreendia Hugh, pois o
marquês nunca achava necessário explicar-se. Encontrava-se na
estalagem White Hart e queria falar com o filho imediatamente.
Ponto final.
Regra geral, Hugh envidava todos os esforços por evitar qualquer
interação com o pai, mas não era estúpido a ponto de ignorar uma
convocatória direta. Depois de pedir ao criado para preparar a sua
bagagem e aguardar mais instruções, foi para a aldeia. Daniel não
ficaria certamente satisfeito por ele pedir emprestada uma das
carruagens dos Winstead, mas entre a chuva incessante e as
dificuldades em caminhar, não tinha grande escolha.
Sem mencionar que era obrigado a ir ver o pai. Por mais furioso
que Daniel estivesse com Hugh – e Hugh suspeitava que ele estava
realmente furioso –, decerto compreenderia a necessidade de ele se
encontrar com o marquês.
– Céus, não gosto nada disto – murmurou Hugh para si mesmo,
entrando desajeitadamente na carruagem.
Perguntou-se se estaria a absorver a propensão de Sarah para o
drama, porque tudo o que lhe vinha à mente era:
«Estou a caminho da desgraça.»

Estalagem White Hart,


Thatcham
Berkshire

– O que faz aqui? – exigiu saber Hugh, assim que entrou numa
das salas de jantar privadas da estalagem White Hart.
– Nem me cumprimentas? – perguntou o pai, sem se incomodar
em levantar-se. – Não perguntas sequer: «Pai, o que o traz ao
Berkshire neste belo dia?»
– Está a chover.
– E a natureza renova-se – disse Lord Ramsgate, jovial.
Hugh olhou-o com frieza. Detestava quando o pai assumia aquele
tom de falsa cordialidade.
– Senta-te – ordenou o marquês, apontando para uma cadeira do
outro lado da mesa.
Hugh teria preferido permanecer de pé, só por uma questão de
contradição, mas a perna estava a doer-lhe e o desejo de irritar o
pai não era forte o suficiente para sacrificar o conforto, portanto,
sentou-se.
– Vinho? – perguntou o pai.
– Não.
– Também não é grande coisa – disse o pai, o que não o impediu
de esvaziar o copo. – Devia mesmo trazer o meu próprio vinho
quando viajo.
Hugh manteve um silêncio glacial, esperando que o pai fosse
direto ao assunto.
– O queijo é comestível – continuou o marquês, pegando numa
fatia de pão da tábua de queijos na mesa. – Pão? É difícil estragar
um pedaço de...
– Que diabo se passa? – explodiu Hugh, incapaz de se controlar.
Obviamente, o pai só estava à espera daquela reação. O rosto
abriu-se com um sorriso de satisfação e ele recostou-se na cadeira.
– Não consegues adivinhar?
– Não me atrevo a tentar.
– Estou aqui para te felicitar.
– O quê? – perguntou Hugh, observando-o com evidente
desconfiança.
– Não sejas tímido – retorquiu o pai, agitando o dedo indicador. –
Ouvi um rumor de que estás prestes a ficar noivo.
– Quem disse?
Hugh beijara Sarah pela primeira vez na noite anterior. Como
diabo sabia o pai que ele pretendia pedi-la em casamento?
Lord Ramsgate agitou a mão.
– Eu tenho espiões em toda a parte.
Hugh não duvidava nem por um instante, mesmo assim... os seus
olhos estreitaram-se.
– Estava a espiar quem? O Winstead ou eu?
– Que importância tem isso? – reagiu o pai, com um encolher de
ombros.
– Enorme.
– Ambos, suponho. Contigo, é fácil matar dois coelhos de uma
cajadada.
– É melhor não usar essas metáforas na minha presença –
aconselhou Hugh, erguendo uma sobrancelha.
– Sempre a interpretar tudo literalmente – comentou Lord
Ramsgate, com um estalar da língua reprovador. – Nunca foste
capaz de entender uma piada.
Hugh ficou boquiaberto. O pai acusava-o de falta de humor? Era
espantoso.
– Eu não pedi ninguém em casamento – esclareceu Hugh,
destacando cada sílaba. – E não pretendo fazê-lo num futuro
próximo. Portanto, pode fazer as malas e voltar ao inferno de onde
saiu.
O pai limitou-se a rir ao insulto, o que exasperou Hugh. Lord
Ramsgate nunca ignorava os insultos, preferindo apurá-los
lentamente, até os devolver ao remetente ainda mais ofensivos.
E então, sim, ria.
– Terminámos? – perguntou Hugh, friamente.
– Porquê a pressa?
– Porque o odeio – respondeu Hugh, com um sorriso doentio.
O marquês soltou mais uma risada.
– Ó Hugh, quando é que aprendes?
Não respondeu.
– Não importa que me odeies. Nunca terá importância. Eu sou o
teu pai. – Inclinou-se sobre a mesa com um sorriso oleoso. – Não
podes livrar-te de mim.
– É verdade – admitiu Hugh e, com um olhar direto, acrescentou:
– Mas o pai pode livrar-se de mim.
Um pequeno músculo contraiu-se na face de Lord Ramsgate.
– Suponho que te refiras àquele maldito documento que me
obrigaste a assinar.
– Ninguém o forçou – retorquiu Hugh, com um encolher de ombros
insolente.
– Acreditas mesmo nisso?
– Coloquei-lhe a pena na mão? – contrapôs Hugh. – O contrato
era uma mera formalidade. Sabe disso tão bem como eu.
– Não sei tal...
– Eu disse-lhe o que aconteceria se atacasse Lord Winstead –
interrompeu Hugh, com uma calma mortífera – e permanece válido,
quer esteja escrito ou não.
Era a verdade. Depois de redigir o contrato, Hugh apresentara-o
ao pai e ao advogado, para lhes provar que estava a falar a sério.
Quisera que o pai assinasse o nome – o nome completo, com o
título nobiliárquico que tanto significava para ele –, reconhecendo
tudo o que perderia se não desistisse de se vingar de Daniel.
– Eu respeitei a minha parte do acordo – resmungou o marquês.
– Desde que Lord Winstead se mantenha vivo, sim.
– Eu...
– Devo dizer – interrompeu Hugh com um prazer malicioso – que
não exijo muito de si. A maioria das pessoas não teria dificuldade
em viver a sua vida sem matar outro ser humano.
– Ele fez de ti um aleijado!
– Não – disse Hugh, baixinho, lembrando-se daquela noite mágica
no relvado de Whipple Hill.
Ele tinha dançado uma valsa. Pela primeira vez desde que a bala
de Daniel lhe despedaçara a coxa, Hugh segurara uma mulher nos
braços e dançara.
Sarah não aceitara que ele se considerasse um aleijado. Teria
sido esse o momento em que se apaixonara por ela? Ou teria sido
apenas um momento entre uma centena de outros?
– Prefiro pensar que sou coxo – sussurrou Hugh, não conseguindo
conter um sorriso.
– Qual é a maldita diferença?
– Se eu for um aleijado, isso define-me...
Hugh olhou para cima. O rosto do pai estava vermelho e venoso,
como um homem que bebeu de mais ou pronto a explodir de raiva.
– Não importa – disse Hugh. – Não entende.
Ele mesmo não entendera. Precisara que Lady Sarah Pleinsworth
lhe explicasse a diferença.
Sarah. Deixara de a ver como Lady Sarah Pleinsworth ou Lady
Sarah. Apenas Sarah. Ela pertencera-lhe e depois perdera-a. E
ainda não entendia bem porquê.
– Não te subestimes, meu filho – disse Lord Ramsgate.
– Acabou de me chamar aleijado e agora acusa-me de me
subestimar? – questionou Hugh.
– Não me refiro às tuas capacidades atléticas – respondeu o pai –,
embora seja verdade que uma mulher gosta de ter um marido que
possa andar a cavalo, empunhar uma espada e caçar.
– Sim, porque o pai se destaca em todas essas categorias –
troçou Hugh, baixando o olhar para a barriga do pai.
– E destaquei-me em tempos – respondeu o pai, não parecendo
ofender-se com o insulto. – E pude escolher a melhor da ninhada,
quando decidi casar-me.
A melhor da ninhada. Era assim que o pai via as mulheres?
É claro que sim.
– Duas filhas de duques, três filhas de marqueses e uma filha de
um conde. Eu podia ter tido qualquer uma delas.
– Que sorte teve a mãe – comentou Hugh.
– De facto – disse Lord Ramsgate, completamente imune ao
sarcasmo. – O pai dela podia ser duque de Farringdon, mas ela
tinha mais cinco irmãs e o dote não era significativo.
– Mas maior do que o da filha do outro duque, presumo – ironizou
Hugh.
– Não. Porém, a família Farringdon é descendente dos barões de
Veuveclos, o primeiro dos quais, como sabes...
Oh, sim, ele sabia. Como sabia!
– ...lutou ao lado de Guilherme, o Conquistador.
Hugh fora obrigado a memorizar toda a árvore genealógica aos
seis anos de idade. Felizmente, tinha jeito para aquele tipo de coisa.
O que não era o caso de Freddie, que tivera as mãos inchadas
durante semanas, devido às frequentes vergastadas.
– O outro ducado não podia reivindicar tal antiguidade – concluiu o
marquês, em tom de desdém.
Hugh limitou-se a abanar a cabeça e a comentar:
– Consegue realmente levar o snobismo a novos níveis.
O pai ignorou a observação.
– Como eu estava a dizer, acho que te subestimas. Podes ser
aleijado, mas ainda tens alguns atrativos.
Hugh quase se engasgou.
– Atrativos?
– Um eufemismo para o teu sobrenome.
– Claro.
Que mais poderia ser?
– Podes não ser o herdeiro do título, mas, embora me repugne
dizê-lo, quem se der ao trabalho de investigar, descobrirá que,
mesmo que nunca venhas a ser marquês de Ramsgate, o teu filho
será.
– O Freddie é mais discreto do que pensa – sentiu-se Hugh
obrigado a ressalvar.
Lord Ramsgate bufou com desprezo.
– Se eu consegui descobrir que andavas a suspirar pela jovem
Pleinsworth, achas que o pai dela não vai descobrir a verdade sobre
o Freddie?
Considerando que Lord Pleinsworth estava enfiado em Devon com
cinquenta e três cães de caça, Hugh duvidava seriamente, mas
entendia o que o pai quisera dizer.
– Eu não iria tão longe a ponto de dizer que podes ter a mulher
que quiseres – continuou Lord Ramsgate –, mas não há razão para
não conseguires agarrar a jovem Pleinsworth. Especialmente depois
de passarem a semana toda a fazer olhinhos um ao outro à mesa
do pequeno-almoço.
Hugh mordeu o interior da bochecha para não responder.
– Noto que não me contradizes.
– Os seus espiões são excelentes, como sempre – respondeu
Hugh.
O pai recostou-se na cadeira, uniu as pontas dos dedos e disse,
com um toque de admiração:
– Lady Sarah Pleinsworth. Tenho de te dar os parabéns.
– Prefiro que não o faça.
– Oh, céus! Agora somos tímidos?
Hugh agarrou-se ao rebordo da mesa. O que aconteceria
realmente se saltasse por cima dela e apertasse o pescoço do pai?
Ninguém choraria a sua morte, tinha a certeza disso.
– Eu já a conheci, sabias? – continuou o pai. – Nada de especial,
claro, apenas uma breve apresentação num baile, há alguns anos.
Mas o pai dela é conde. Os nossos caminhos cruzam-se, de tempos
a tempos.
– Não fale sobre ela – alertou Hugh, ameaçador.
– Ela é bonita, de uma forma pouco convencional. Os cabelos
encaracolados, uma boca grande mas adorável... – Lord Ramsgate
olhou para o filho e agitou as sobrancelhas. – Um homem pode
habituar-se a ter aquele rosto na almofada do lado.
Hugh sentiu o sangue ferver-lhe nas veias e rosnou:
– Cale-se imediatamente!
– Vejo que não queres discutir os teus assuntos pessoais – cedeu
o pai, ostensivamente.
– Estou a tentar lembrar-me de quando é que isso o impediu.
– Ah, mas se decidires casar, a escolha da noiva também me diz
respeito.
Hugh levantou-se de um pulo.
– Seu canalha...
– Oh, não te enerves! – interrompeu o pai, rindo. – Não estou a
falar disso, embora, agora que penso no assunto, poderia ter sido
uma maneira de contornar o problema do Freddie.
Oh, céus, Hugh estava enojado. Não duvidava por um momento
que o pai pudesse obrigar Freddie a casar-se e depois violasse a
mulher dele.
Tudo em nome da dinastia.
Não, ele não teria sucesso. Freddie, embora calmo e discreto,
nunca cederia a um casamento nessas condições. E mesmo que de
alguma forma...
Bem, Hugh poderia sempre intervir. Para isso, só precisaria de se
casar e dar razões ao pai para acreditar que Ramsgate depressa
teria um herdeiro.
Algo que, finalmente, teria todo o prazer em fazer.
Só que a mulher com quem ele queria casar não o queria...
Por causa do pai.
A ironia da situação estava a matá-lo.
– Lady Sarah tem um dote respeitável – continuou o marquês,
como se não tivesse notado o brilho assassino nos olhos do filho. –
Por favor, senta-te. É difícil ter uma conversa séria contigo inclinado
dessa maneira.
Hugh respirou fundo. Sem perceber, apoiara-se na perna boa.
Sentou-se devagar.
– Como eu estava a dizer – prosseguiu o pai –, pedi ao meu
advogado para se debruçar sobre o assunto e é mais ou menos a
mesma situação que eu tive com a tua mãe. Os dotes das jovens
Pleinsworth não são de grande monta, mas são suficientes, se
considerarmos a linhagem e as relações de Lady Sarah.
– Ela não é um cavalo.
– Ah, não? – provocou o pai, com um sorriso.
– Vou matá-lo – rosnou Hugh.
– Não, não vais. – O pai estendeu a mão para pegar noutra fatia
de pão. – E devias comer alguma coisa. Não dou conta de tudo...
– Vai parar com isso da comida? – rugiu Hugh.
– Estás realmente de muito mau humor hoje.
Com um esforço considerável, Hugh conseguiu responder em voz
normal:
– As conversas consigo geralmente têm esse efeito em mim.
– Bem, reconheço que me pus mesmo a jeito para essa.
Mais uma vez, Hugh ficou boquiaberto. O pai a admitir que ele o
suplantara? Nunca fazia tal coisa, nem mesmo quando se tratava de
uma simples troca de palavras.
– A acreditar no que dizes – continuou Lord Ramsgate –, só posso
deduzir que, de facto, não pediste a mão de Lady Sarah em
casamento.
Hugh não respondeu.
– Os meus espiões, como parecemos gostar de lhes chamar,
dizem-me que ela estaria aberta a tal proposta.
Hugh continuou em silêncio.
– A questão é – Lord Ramsgate inclinou-se para a frente,
apoiando os cotovelos na mesa –: o que posso fazer para te
ajudar?
– Não se meta na minha vida.
– Ah, infelizmente, isso é impossível.
Hugh deixou escapar um suspiro cansado. Detestava mostrar
fraqueza à frente do pai, mas estava simplesmente exausto.
– Porque não me deixa em paz?
– Tens mesmo de perguntar? – revidou o pai, embora fosse óbvio
que a pergunta de Hugh era retórica.
Hugh levou uma mão à testa e pressionou as têmporas.
– O Freddie ainda pode casar-se – disse, mais por hábito do que
outra coisa.
– Oh, para com isso! – protestou o pai. – Ele não saberia o que
fazer com uma mulher, nem que lhe pegasse na...
– Cale-se! – gritou Hugh, levantando-se tão abruptamente que
quase derrubou a mesa. – Cale essa maldita boca!
O pai parecia quase desconcertado por tal agressividade.
– É a verdade, Hugh. A verdade mais que comprovada, diga-se.
Sabes quantas prostitutas eu...
– Sim! – rosnou Hugh. – Sei exatamente quantas prostitutas
trancou no quarto dele. É o meu maldito cérebro. Não consigo evitar
contar, lembra-se?
O pai explodiu numa gargalhada. Hugh olhou para ele,
imaginando que diabo era tão engraçado.
– Eu também contei – respondeu Lord Ramsgate, sem fôlego de
tanto rir.
– Eu sei que sim – disse Hugh, neutro.
O quarto dele ficava ao lado do de Freddie e ouvira tudo. Quando
trazia prostitutas para Freddie, Lord Ramsgate ficava a assistir.
– Não serviu de nada – continuou Lord Ramsgate. – Pensei que
ajudaria. Que lhe daria um pouco de ritmo, percebes?
– Oh, pelo amor de Deus! – quase gemeu Hugh. – Cale-se de
uma vez por todas.
Era como se ainda conseguisse ouvir. Na maioria das vezes, era
apenas a voz do pai, mas às vezes uma das mulheres entrava no
jogo e juntava a sua voz à dele.
Lord Ramsgate ainda se ria quando se levantou da cadeira.
– Uma – disse ele, acompanhando a contagem com um gesto
obsceno. – Duas...
Hugh encolheu-se, pois uma lembrança acabara de lhe vir à
memória.
– Três...
O duelo. A contagem. Ele tentara não se lembrar. Esforçara-se
tanto por apagar da memória a voz do pai, que se encolhera.
E, nesse momento, apertara o gatilho.
Nunca tivera intenção de disparar sobre Daniel. Apontara para o
lado. Mas então alguém começara a contagem e, de repente,
voltara a ser um rapazinho, aconchegado na cama enquanto ouvia
Freddie a implorar ao pai que o deixasse em paz.
Freddie, que lhe ensinara a nunca interferir.
A contagem não tinha que ver apenas com as prostitutas. Lord
Ramsgate gostava muito da sua bengala de ébano polida e não
hesitava em usá-la, quando os filhos o desagradavam.
Freddie sempre o desagradara. E Lord Ramsgate adorava contar
as vergastadas.
Hugh encarou o pai.
– Odeio-o.
– Eu sei – respondeu o pai, sustendo o olhar.
– Vou-me embora.
– Não, isso está fora de questão – respondeu o pai, abanando a
cabeça.
Hugh endureceu.
– Perd...
– Eu preferia não ter de fazer isto – interrompeu o pai, quase em
tom contrito.
Quase.
E, então, deu um forte pontapé na perna ferida de Hugh.
Com um grito de dor, Hugh caiu ao chão, sentindo o corpo enrolar-
se instintivamente como se tentasse conter a dor.
– Mas que raio... – gemeu. – Porque fez uma coisa destas?
Lord Ramsgate ajoelhou-se ao lado dele.
– Para te impedir de sair.
– Vou matá-lo – rosnou Hugh, ofegante de dor. – Vou...
– Não, não vais – disse o pai, encostando um pano húmido com
um cheiro adocicado ao nariz de Hugh.
Capítulo 19

Na suíte Duque de York


na estalagem White Hart

Q uando abriu os olhos, Hugh estava deitado na cama. E a perna


doía-lhe abominavelmente.
– Mas o que...? – rosnou, tentando descer a mão para massajar a
coxa. Mas...
Santo Deus! O sacana do pai amarrara-o!
– Ah, estás acordado – veio a voz, branda e ligeiramente...
entediada?
– Vou matá-lo – rosnou Hugh.
Contorceu-se para se livrar das amarras, até que viu o pai,
sentado numa poltrona, a observá-lo por cima de um jornal aberto.
– É possível – respondeu Lord Ramsgate –, mas não hoje.
Hugh puxou as amarras mais uma vez, mas tudo o que conseguiu
foi magoar o pulso e sentir uma súbita tontura. Fechou os olhos, a
tentar recuperar o equilíbrio.
– Que maldita ideia é esta agora?
Lord Ramsgate fingiu pensar e respondeu:
– Estou preocupado.
– Com o quê? – resmungou Hugh.
– Temo que estejas a demorar muito tempo a pedir a mão da
encantadora Lady Sarah. Quem sabe quando encontraremos uma
mulher disposta a contentar-se com... – Lord Ramsgate fez uma
careta de desgosto e terminou – contigo.
O insulto não perturbou Hugh, pois estava mais do que
acostumado a ser alvo daquele tipo de farpas, e até começara a
orgulhar-se disso. Mas a alusão do pai ao tempo que ele estava a
demorar deixou-o profundamente apreensivo.
– Só conheço Lady Sarah há duas semanas – argumentou,
pensando para si «pelo menos, nesta encarnação».
– Só? Parece muito mais, neste caso. Devo estar impaciente,
suponho.
Hugh não podia acreditar. O mundo estava todo às avessas. O
pai, que geralmente armava um pé de vento enquanto Hugh
mantinha um desdém indiferente, contentava-se em fitá-lo, de
sobrancelhas erguidas.
Hugh, pelo contrário, sentia-se pronto a cuspir fogo.
– Tinha esperança de que estivesses mais avançado na tua corte
– continuou Ramsgate, antes de virar uma página do jornal. –
Quando é que tudo começou, afinal? Oh, sim, naquela noite em
Fensmore! Com Lady Danbury. Credo, aí está uma velha jarreta.
– Como sabe disso? – perguntou Hugh, enojado.
Lord Ramsgate ergueu a mão e esfregou os dedos.
– Tenho pessoas ao meu serviço.
– Quem?
O pai inclinou a cabeça para o lado, como se ponderasse na
sensatez de revelar tal informação. Então, com um encolher de
ombros, respondeu:
– O teu criado pessoal. Mais vale dizer-te. Sei que terias
descoberto sozinho.
Hugh olhou para o teto, dominado pelo choque.
– Ele está comigo há dois anos.
– Toda a gente tem um preço – respondeu o marquês, baixando o
jornal para olhar para o filho. – Não aprendeste nada do que te
ensinei?
Hugh respirou fundo para tentar manter a calma.
– Tem de me desamarrar agora.
– Ainda não – disse Lord Ramsgate, voltando a levantar o jornal. –
Oh, francamente, isto não foi passado a ferro! – Pousou o jornal e
examinou as mãos, cheias de manchas pretas, com ar irritado. –
Odeio viajar.
– Tenho de voltar para Whipple Hill – insistiu Hugh, na voz mais
razoável que conseguiu.
– Ah, sim? – O marquês abriu um sorriso brando. – Porque ouvi
dizer que estavas de partida.
Hugh cerrou os punhos. O pai estava terrivelmente bem
informado.
– Recebi um bilhete do teu criado, enquanto estavas indisposto –
explicou Lord Ramsgate. – O bilhete dizia que o tinhas mandado
fazer as malas. Isso preocupa-me, devo dizer.
Hugh puxou as amarras novamente, mas em vão. Obviamente, o
pai percebia de nós.
– Espero que não demore muito tempo – disse Lord Ramsgate
levantando-se. Foi até uma pequena bacia e mergulhou as mãos na
água. Então, tendo agarrado uma toalha branca, olhou para Hugh
por cima do ombro. – Só estamos à espera da chegada da
encantadora Lady Sarah.
– O quê?! – gritou Hugh, boquiaberto.
Depois de limpar as mãos com meticulosa precisão, o pai tirou o
relógio do bolso e abriu-o.
– Em breve, calculo. – Olhou para Hugh com uma expressão
insuportavelmente branda. – O teu criado já a deve ter informado do
teu paradeiro.
– Por que diabo tem tanta certeza de que ela virá? – grunhiu
Hugh, num tom de desespero que o deixou assustado.
– Não tenho a certeza, mas estou esperançoso – respondeu o pai.
– Tu também devias estar. Caso contrário, só Deus sabe quanto
tempo ficarás amarrado a essa cama.
Hugh fechou os olhos e soltou um resmungo. Como diabo tinha
deixado o pai levar a melhor?
– O que estava naquele pano? – exigiu saber.
Ainda se sentia tonto. E tão cansado como se tivesse acabado de
correr um quilómetro a toda a velocidade. Não, não era exatamente
isso, porque não estava sem fôlego, só...
Tinha dificuldade em respirar. Não sabia como explicar a
sensação.
– O que estava no pano? – repetiu, impaciente.
– O quê? Ah, isso! Éter. Uma substância engenhosa, não achas?
Hugh piscou os olhos, para afastar os pontos que ainda lhe
turvavam a visão. «Engenhoso» não era o termo que ele usaria.
– Lady Sarah não virá à White Hart – declarou Hugh, tentando
manter a voz desdenhosa e escarninha.
Qualquer coisa que conseguisse instigar a dúvida na mente do
pai.
– Claro que vem – respondeu Lord Ramsgate. – Ela ama-te,
embora só Deus saiba porquê.
– A sua ternura paterna nunca deixará de me surpreender –
ironizou Hugh, dando um puxão às amarras, para ilustrar melhor o
comentário.
– Não irias atrás dela, se ela tivesse fugido para uma estalagem?
– É completamente diferente – protestou Hugh.
Lord Ramsgate apenas sorriu.
– Tem a noção de que há inúmeras formas de o seu plano falhar,
espero – disse Hugh, tentando soar razoável.
Encorajado pelo olhar que o pai lhe lançou, improvisou.
– Para começar, está a chover torrencialmente. Ela seria louca se
saísse com um temporal destes.
– Tu saíste.
– O pai não me deu escolha – respondeu Hugh, em voz tensa. –
Além disso, Lady Sarah não tem motivos para se preocupar por
causa da minha visita a si.
– Oh, vamos – troçou o pai –, a nossa aversão mútua não é
segredo. Atrevo-me a dizer que é do conhecimento geral.
– A nossa aversão mútua, sim – disse Hugh, ciente de falar
demasiado depressa –, mas ela não sabe até onde vai a nossa
inimizade.
– Não lhe contaste sobre o nosso... contrato? – desdenhou Lord
Ramsgate.
– Claro que não – mentiu Hugh. – Acha que ela aceitaria a minha
corte, se soubesse?
O pai refletiu um momento antes de declarar:
– Mais uma razão para pôr o meu plano em ação, nesse caso.
– Isso quer dizer?
– Para garantir o teu casamento, é claro.
– Amarrando-me a uma cama?
– E permitindo que seja ela a soltar-te – respondeu o pai, com um
sorriso de satisfação.
– Está louco – sussurrou Hugh.
Mas, para seu horror, Hugh sentiu uma onda de calor invadi-lo.
Pensar em Sarah curvando-se e esticando o corpo sobre ele para
alcançar o nó na cabeceira da cama...
Fechou os olhos e obrigou-se a pensar em tartarugas, lentes
grande-angulares e no pastor da aldeia em que crescera. Qualquer
coisa, menos Sarah. Tudo, menos Sarah.
– Devias agradecer-me – disse Lord Ramsgate. – Não é a mulher
que querias?
– Não assim – resmungou Hugh.
– Vou certificar-me de que estão os dois aqui trancados, pelo
menos, uma hora – prosseguiu o pai. – Faças o que fizeres, ela
ficará comprometida. Tudo acabará bem. Tu consegues o que
queres e eu consigo o que quero – terminou Lord Ramsgate,
inclinando-se para o filho com olhar irónico.
– E o que ela quer?
Lord Ramsgate arqueou uma sobrancelha, inclinou a cabeça para
o lado e encolheu os ombros. Aparentemente, isso era tudo o que
ele concedia às esperanças e aos sonhos de Sarah.
– Ela vai ficar agradecida – concluiu. – E... – Fez uma pausa para
ouvir e murmurou: – Acho que chegou.
Hugh não deu por nada, mas, um momento depois, ouviu-se uma
batida insistente na porta.
Mais uma vez, Hugh puxou com força as amarras. Queria Sarah
Pleinsworth, com toda a sua alma. Queria estar com ela num altar,
colocar-lhe uma aliança no dedo e jurar-lhe amor eterno. Queria
levá-la para a cama, mostrar-lhe com o corpo tudo o que lhe ia no
coração e queria cuidar dela quando ela carregasse o filho de
ambos na barriga.
Mas não ia impor-lhe nada. Ela tinha de querer tudo isso também.
– É tão empolgante – disse Lord Ramsgate, num tom irónico
propositado para exasperar Hugh. – Céus, sinto-me como um
adolescente.
– Não se atreva a tocar-lhe! – ameaçou Hugh. – Se puser as mãos
nela...
– Não te apoquentes – disse o pai –, Lady Sarah vai ser a mãe
dos meus netos. Nunca lhe faria mal.
– Não faça isto – pediu Hugh, a voz sufocando antes de poder
acrescentar «por favor».
Não queria implorar, a ideia era-lhe insuportável, mas, por Sarah,
fá-lo-ia. Depois da cena com Daniel naquela manhã, era óbvio que
ela não queria casar com ele. No entanto, se Sarah entrasse
naquele quarto, Lord Ramsgate ia trancá-la e o seu destino estaria
selado. Hugh conseguiria a mão da mulher que amava, mas a que
custo?
– Pai... – começou Hugh e os olhos de ambos encontraram-se.
Nenhum dos dois se recordava da última vez que Hugh o tratara por
outro nome que não «sir». – Imploro-lhe, não faça isso.
Porém, a resposta do pai foi apenas esfregar as mãos de regozijo
e ir à porta.
– Quem é?
Ouviu-se a voz de Sarah atrás da porta.
Hugh fechou os olhos, angustiado. Aquilo ia acontecer e ele não
conseguia impedi-lo.
– Bom dia, Lady Sarah – cumprimentou Lord Ramsgate, assim
que abriu a porta. – Estávamos à sua espera.
Hugh virou a cabeça, obrigando-se a olhar para a porta, mas o pai
escondia-a de vista.
– Vim ver Lord Hugh – respondeu ela, friamente. – O seu filho.
– Não entres, Sarah! – gritou Hugh.
– Hugh? – chamou, parecendo assustada.
Hugh debateu-se na cama. Sabia que não seria capaz de se
libertar, mas não podia ficar ali inerte como um maldito tronco.
– Deus do céu, o que fez com ele?! – exclamou Sarah,
empurrando Lord Ramsgate e fazendo-o bater contra o umbral da
porta.
Estava encharcada, o cabelo colado ao rosto e a bainha do
vestido enlameada e rasgada.
– Estava apenas a prepará-lo para si, minha querida – informou
Lord Ramsgate, com uma risada.
Então, sem dar tempo a Sarah de dizer uma palavra, saiu do
quarto e bateu a porta.
– Hugh, que aconteceu? – perguntou Sarah, correndo para a
cama. – Oh, meu Deus, ele amarrou-te! Porque faria uma coisa
destas?
– A porta! – quase bradou Hugh, virando a cabeça para o lado. –
Tenta abrir a porta!
– A porta? Mas...
– Depressa.
Ela arregalou os olhos e fez o que ele pediu.
– Está trancada – anunciou, virando-se para o encarar.
Ele praguejou baixinho.
– O que se passa? – perguntou, correndo de volta para a cama e
começando de imediato a desamarrar-lhe os tornozelos. – Porque é
que ele te amarrou à cama? Porque vieste vê-lo?
– Quando o meu pai me manda chamar, é aconselhável não o
ignorar – explicou Hugh, tenso.
– Mas...
– Especialmente na véspera do casamento do teu primo.
Ela entendeu imediatamente.
– Sim, claro.
– As amarras – acrescentou Hugh, com a voz cheia de ódio –
foram por tua causa.
– O quê?! – exclamou, boquiaberta. – Oh, não consigo... Ai! –
queixou-se e levou o dedo indicador à boca. – Virei uma unha. Estes
nós são monstruosos. Como é que ele foi capaz de os apertar
tanto?
– Eu não consegui resistir – resmungou Hugh, sem disfarçar o
desprezo que sentia por si mesmo.
Sarah olhou imediatamente para cima, mas ele virou-se, incapaz
de olhar para ela.
– Amarrou-me enquanto eu estava inconsciente – explicou Hugh.
Ela murmurou algo, que ele adivinhou mais do que ouviu.
– Éter – acrescentou, em voz fraca.
Sarah abanou a cabeça.
– Eu não sei o que...
– Um pano encharcado com éter encostado ao nariz pode deixar
uma pessoa inconsciente – explicou Hugh. – Sabia que existia, mas
foi a primeira vez que tive o prazer de o sentir.
Sarah abanava a cabeça, mas ele achou que ela nem estava
ciente disso.
– Porque é que o teu pai faria uma coisa dessas?
A pergunta teria sido razoável, se estivessem a falar de outra
pessoa que não Lord Ramsgate. Hugh fechou os olhos por um
momento, mortificado pelo que teria de confessar.
– O meu pai considera que, se ficarmos trancados aqui juntos,
ficarás comprometida.
Ela permaneceu em silêncio.
– E, portanto, obrigada a casar comigo – acrescentou, embora
fosse inútil.
Ela gelou, os olhos fixos no nó que se esforçara tanto por soltar.
Hugh sentiu algo pesado e escuro envolver-lhe o coração.
– Não vejo porquê – sussurrou ela, finalmente.
Falara devagar, com cautela, como se tivesse medo de pronunciar
uma palavra errada que desencadeasse uma avalanche de
acontecimentos desagradáveis.
Hugh não sabia o que responder. Ambos conheciam as regras que
governavam a alta sociedade. Iam ser descobertos juntos, num
quarto com uma cama, e Sarah teria apenas duas escolhas: o
casamento ou a desonra. Apesar de tudo o que ela ficara a saber
sobre ele naquela manhã, Hugh queria acreditar que ainda era a
melhor escolha.
– Dificilmente podes comprometer-me estando amarrado a uma
cama – lembrou ela, ainda sem olhar para ele.
Hugh engoliu em seco. Os seus gostos nunca o levaram a esse
tipo de experiência, mas agora era-lhe impossível não pensar em
todas as maneiras pelas quais alguém poderia ser comprometido
amarrado a uma cama.
Ela mordeu o lábio inferior, pensativa, e disse:
– Talvez seja melhor deixar-te assim.
– Deixar-me... assim? – gaguejou ele.
– Bem, sim. – Sarah franziu a testa, levando uma mão à boca,
num gesto preocupado. – Assim, quando alguém chegar, e o Daniel
deve estar no meu encalço, vai descobrir que nada poderia ter
acontecido.
– O teu primo sabe que estás aqui?
Ela assentiu.
– A Honoria insistiu em dizer-lhe. Mas eu pensei... o teu pai... eu
não queria... – Afastou o cabelo molhado dos olhos. – Pensei que,
se chegasse primeiro, talvez pudesse... não sei... acalmar as
coisas.
Hugh grunhiu de desagrado.
– Eu sei – disse ela, a expressão combinando com a risada
sombria dele. – Eu não esperava...
– ...isto? – terminou ele.
Hugh teria apontado para si mesmo com um gesto irónico, se a
mão não estivesse firmemente amarrada à coluna da cama.
– Vai ser horrível quando o Daniel chegar – sussurrou Sarah.
Hugh não achou necessário confirmar, pois ela sabia a verdade.
– Eu sei que disseste que o teu pai não fará nada contra ele,
mas... – Virou-se abruptamente para a porta, os olhos brilhando com
uma ideia súbita. – Achas que seria melhor se eu começasse a
bater na porta? A pedir ajuda? Se alguém chegar antes do Daniel...
Hugh abanou a cabeça.
– Isso vai dar-lhe exatamente o que ele quer: uma testemunha da
tua suposta desonra.
– Mas estás amarrado à cama!
– Não te ocorreu que as pessoas pensem teres sido tu a fazê-lo?
Ela ficou boquiaberta.
– Exatamente.
Sarah afastou-se da cama como se se tivesse queimado.
– Mas isso é... é...
Desta vez, Hugh decidiu não terminar a frase.
– Oh, meu Deus!
Hugh tentou não reparar no horror estampado nas feições dela.
Santo Deus, se não tinha ficado completamente revoltada com ele
depois das revelações daquela manhã, agora certamente ficaria. Ele
deixou escapar um suspiro trémulo.
– Vou encontrar uma forma – declarou, embora não soubesse
como poderia manter a promessa. – Não terás de... Hei de pensar
nalguma coisa.
Sarah levantou a cabeça e fixou os olhos na parede. Só lhe via o
perfil. A expressão dela era tensa, constrangida.
– Se explicarmos ao Daniel...
Ela engoliu em seco e Hugh seguiu o delicado movimento ao
longo do pescoço. Beijara-a ali. Mais de uma vez. A pele dela tinha
um gosto a sal e limão, e a um perfume de mulher; ele desejara-a
com tanta força que temera fazer uma figura triste ali mesmo.
E agora ali estava ele, com o seu sonho a ser-lhe oferecido numa
bandeja, e só conseguia pensar em encontrar maneiras de o
destruir. Não era capaz de suportar a ideia de ela ser forçada a
casar consigo, por mais que esse fosse o seu desejo.
– Acho que ele vai entender – disse Sarah, com altivez. – E não
insistirá. Eu não quero... – Desviou o olhar completamente até ele
não conseguir ver-lhe o rosto – Não quero que ninguém se sinta
obrigado a...
Sarah não terminou a frase, mas Hugh assentiu, procurando
interpretar aquelas palavras. Ela sabia que ele pretendia pedi-la em
casamento. Estaria ela a insinuar que ele não devia fazê-lo? Depois
de tudo o que acontecera, ela ainda tentava evitar-lhe a
humilhação.
– Claro que não – murmurou ele, por fim.
Três palavras vazias, destinadas apenas a preencher o silêncio.
Hugh não sabia que dizer mais.
Sarah voltou a morder o lábio e ele não pôde tirar os olhos dela,
vendo-a passar a ponta da língua para humedecer o ponto que
acabara de morder. De repente, sentiu todo o corpo incendiar-se.
Dadas as circunstâncias, era uma reação totalmente indecorosa,
mas não conseguia deixar de se imaginar a acariciar-lhe o lábio com
a própria língua, desde o ponto mordido até ao canto delicado.
Depois desceria pela curva do pescoço e...
– Por favor, desamarra-me – articulou, com voz rouca.
– Mas...
– Já não sinto as mãos – disse, aproveitando a primeira desculpa
que lhe veio à mente.
Era mentira, mas, se não fosse libertado, ser-lhe-ia impossível
esconder a prova do seu desejo.
Sarah hesitou, mas apenas um momento. Então, aproximou-se da
cabeceira da cama e começou a desamarrar o nó do pulso direito.
– Achas que ele está atrás da porta? – sussurrou ela.
– Tenho a certeza disso.
Ela contorceu o rosto com ar repugnado.
– Isso é...
– Doentio? Bem-vinda à minha infância.
Imediatamente se arrependeu das palavras. Os olhos de Sarah
encheram-se de pena e ele sentiu a bílis subir-lhe à garganta. Não
queria a pena dela, nem por causa da perna, nem por causa da sua
infância ou de todas as malditas razões que o fariam não conseguir
protegê-la. Só queria ser homem, e queria que ela o soubesse, que
o sentisse. Queria deitar-se com ela, envoltos apenas pelo calor da
paixão, e que ela soubesse ser só dele e que nenhum outro homem
jamais conheceria a doçura sedosa da sua pele.
Mas era apenas um pobre idiota. Sarah merecia alguém capaz de
a proteger, não um aleijado que fora subjugado tão facilmente.
Atirado ao chão, drogado e amarrado a uma cama... Como poderia
respeitá-lo depois de tal humilhação?
– Acho que estou a conseguir soltar este – anunciou ela, puxando
a corda com força. – Espera... só mais um bocadinho... já está!
– Já só faltam três – disse ele, tentando parecer alegre e falhando
miseravelmente.
– Hugh...
Ele não percebeu se era o início de uma pergunta ou de uma
afirmação.
E não chegou a descobrir, pois ouviu-se um tumulto terrível no
corredor, seguido por um gemido de dor e uma série de
imprecações.
– É o Daniel – disse Sarah, estremecendo.
E eu ainda amarrado à maldita cama, pensou Hugh, em
desespero.
Capítulo 20

arah mal teve tempo de olhar para cima, antes de a porta ser
S escancarada, fazendo voar lascas de madeira da fechadura.
– Daniel! – exclamou, sem saber porque parecia tão espantada.
– Mas que raio...
Porém, o grito de Daniel foi interrompido, porque o marquês de
Ramsgate apareceu a correr e atirou-se às costas de Daniel.
– Saia de cima de mim, maldito...
Sarah tentou entrar na escaramuça, mas Hugh segurou-a
bruscamente pela mão que ela acabara de libertar. Ela livrou-se dele
e correu para o primo, sendo derrubada pelo ombro de Lord
Ramsgate no momento em que Daniel o virou, ao tentar libertar-se.
– Sarah! – gritou Hugh, puxando com tanta força as amarras que a
cama começou a deslizar no chão.
Ela levantou-se a custo, mas Hugh, desesperado, conseguiu
esticar o braço e segurar-lhe a barra da saia molhada.
– Larga-me! – rosnou ela, caindo para trás na cama.
Ainda agarrado à saia, Hugh conseguiu passar o braço em volta
do corpo dela.
– Por nada neste mundo!
Entretanto, Daniel, que não conseguira livrar-se de Lord
Ramsgate, agora empurrava-o violentamente contra a parede.
– Maldito lunático! – rosnou. – Largue-me!
Sarah agarrou, por sua vez, a saia e puxou violentamente na
direção oposta.
– Ele vai matar o teu pai.
Hugh manteve um olhar frio de desdém.
– Deixa-o.
– Oh, isso agradar-te-ia, não é? O Daniel seria enforcado!
– Não sendo nós as únicas testemunhas – atirou Hugh.
Com um grito abafado, Sarah puxou outra vez a saia, mas Hugh
segurava-a com uma força surpreendente. Enquanto tentava
desenvencilhar-se do aperto dele, percebeu que o rosto de Daniel
assumira um tom arroxeado aterrorizante.
– Ele está a estrangulá-lo! – gritou.
Hugh também deve ter levantado os olhos, pois largou a saia tão
abruptamente, que Sarah saiu disparada pelo quarto, mal
conseguindo manter o equilíbrio.
– Largue-o! – gritou ela, agarrando Lord Ramsgate pela camisa.
Procurou algo, qualquer coisa com que pudesse dar-lhe uma
pancada na cabeça. Havia uma cadeira, mas seria muito pesada
para levantar, portanto, depois de sussurrar uma pequena oração,
cerrou o punho e bateu com toda a sua força.
– Ai! – exclamou ela, de dor, sacudindo a mão.
Ninguém a tinha avisado de que dar um soco na cara a um
homem doía muito.
– Santo Deus, Sarah!
Era Daniel, ofegante, a mão tapando um olho.
Tinha acertado no homem errado.
– Oh, peço imensa desculpa! – lamentou ela.
Mas, pelo menos, conseguira desequilibrar a torre humana. Lord
Ramsgate fora forçado a soltar o pescoço de Daniel quando os dois
caíram ao chão.
– Vou matar-te – ameaçou Lord Ramsgate, rastejando em direção
a Daniel, que não estava em condições de se defender.
– Pare com isso – ordenou Sarah, pisando brutalmente a mão de
Lord Ramsgate. – Se o matar, mata o Hugh também.
Lord Ramsgate olhou-a fixamente com uma expressão que ela
não decifrou ser de perplexidade ou fúria.
– Menti – veio a voz de Hugh. – Contei-lhe sobre o nosso acordo.
– Pensou nisso? – ralhou Sarah, que começava a ficar farta do
comportamento daqueles homens. – Pensou ou não pensou?
Lord Ramsgate levantou a mão que ela não estava a esmagar
com o pé, em súplica. Lentamente, Sarah levantou o pé sem tirar os
olhos dele, até ele se arrastar para longe de Daniel.
– Estás bem? – perguntou a Daniel, rapidamente.
A pele debaixo do olho já começava a ficar roxa. Ele não ia bonito
para o casamento.
Daniel grunhiu em resposta.
– Ainda bem – disse ela, concluindo que o grunhido era resposta
suficiente. E então lembrou-se: – Onde estão o Marcus e a
Honoria?
– Algures atrás de mim, numa carruagem – resmungou Daniel. –
Eu vim a cavalo.
Claro, pensou Sarah. Devia ter adivinhado que Daniel saltaria para
um cavalo assim que percebesse que ela tinha partido sem eles.
– Acho que me partiu a mão – queixou-se Lord Ramsgate.
– Não está partida – respondeu Sarah, exasperada. – Eu teria
ouvido os ossos a estalar.
Da cama, Hugh soltou uma risada estrangulada e ela olhou-o com
má cara. Não era engraçado. Nada daquilo era engraçado e, se ele
não percebia, não era o homem que ela imaginava. O humor negro
tinha os seus limites.
Pragmática, Sarah virou-se para o primo e perguntou:
– Tens uma faca?
Daniel arregalou muito os olhos.
– Para cortar as cordas.
– Ah!
Daniel baixou-se e tirou uma adaga da bota. Sarah pegou nela,
um pouco surpreendida, pois não esperava que o seu pedido fosse
satisfeito.
– Adquiri o hábito de ter sempre uma arma comigo em Itália –
explicou Daniel, neutro.
Sarah assentiu. Claro que compreendia. Nessa altura, ele era
perseguido por assassinos a mando de Lord Ramsgate.
– Não se mexa – ordenou ela ao marquês.
Contornou a cama para agarrar a corda que prendia o pulso
esquerdo de Hugh. Já cortara quase metade da corda quando viu
Lord Ramsgate começar a levantar-se.
– Não, não, não! – exclamou, apontando a adaga na direção do
marquês. – Fique no chão.
O marquês obedeceu.
– Estás a assustar-me – sussurrou Hugh, mas soou a elogio.
– Tu podias ter morrido – sussurrou ela.
– Não – respondeu ele, muito sério. – Lembra-te de que sou o
único em quem ele jamais tocaria.
Sarah abriu os lábios, mas o que estava prestes a dizer foi
afastado por um pensamento repentino.
– Sarah? – chamou Hugh com ar preocupado.
Ele não era o único, percebeu ela. Ele não era o único.
A corda cedeu finalmente e Hugh baixou o braço. Com um
grunhido, começou a massajar o ombro dorido.
– Podes tratar dos tornozelos – disse ela, entregando-lhe a adaga.
Então, marchou para junto de Lord Ramsgate e ordenou: – Levante-
se.
– Acabou de me mandar sentar – ironizou ele.
– Não é o melhor momento para discutir comigo – replicou ela,
com um rosnado ameaçador.
– Sarah – murmurou Hugh.
– Fica quieto – disse ela, sem se virar. Assim que Lord Ramsgate
se levantou, Sarah empurrou-o contra a parede. – Quero que me
ouça com muita atenção, Lord Ramsgate, porque só vou dizer isto
uma vez. Vou casar-me com o seu filho e, em troca, o senhor vai
jurar que deixa o meu primo em paz.
Ele abriu a boca, mas Sarah não terminara.
– Além disso, não tentará contactar-me a mim ou a qualquer
membro da minha família, e isso inclui Lord Hugh e os filhos que
possamos ter.
– Escute aqui...
– Quer que me case com ele, certo? – interrompeu Sarah,
agudizando a voz.
O rosto de Lord Ramsgate ficou vermelho de fúria.
– Quem pensa que...
– Hugh? – disse ela, esticando a mão para trás. – A faca?
Hugh devia ter libertado os pés, porque, quando falou, a voz
estava mais próxima. Espreitando por cima do ombro, viu-o de pé a
poucos passos de distância.
– Não sei se isso é boa ideia, Sarah – disse ele.
Provavelmente tinha razão. Ela não sabia que loucura havia
tomado conta de si, mas estava tão zangada que quase se sentia
capaz de estrangular o marquês com as próprias mãos.
– Quer um herdeiro? – perguntou ao marquês. – Muito bem. Dou-
lhe um herdeiro, mesmo que eu morra.
Hugh pigarreou, sem dúvida para a lembrar de que aquele dia
calamitoso havia começado com o anúncio da morte dele.
– Nem uma palavra tua – disse, furiosa, apontando um dedo
irritado a Hugh.
Ele estava de pé a poucos passos de distância, a bengala na
mão.
– Estou farta dos três. – E olhou para o marquês, Hugh e Daniel,
sentado no chão, com a mão no olho. – E da vossa incompetência.
Esta situação arrasta-se há três anos e a única maneira que
encontraram de manter a paz foi o Hugh ameaçar matar-se. – Virou-
se para encarar Hugh e os seus olhos estreitaram-se
perigosamente. – O que não vais fazer.
Hugh olhou para ela por um momento, antes de perceber que
devia dizer alguma coisa.
– Não, não o farei.
– Lady Sarah – começou Lord Ramsgate –, deve saber...
– Cale-se! – refilou ela. – Disseram-me, Lord Ramsgate, que quer
acima de tudo um herdeiro. Ou, devo dizer, um herdeiro além dos
dois que já tem.
O marquês confirmou com um aceno de cabeça.
– E deseja tanto esse herdeiro, que Lord Hugh conseguiu garantir
a segurança do meu primo colocando a sua própria vida em risco.
– Um acordo monstruoso – disse Lord Ramsgate.
– Tenho de concordar consigo nesse ponto. Mas creio que se
esqueceu de um pormenor crucial. Se, de facto, a única coisa que
lhe importa é a procriação, a vida de Lord Hugh é inútil sem a
minha.
– Oh, também vai ameaçar cometer suicídio?
– Nada disso – retorquiu Sarah. – Mas raciocine comigo, Lord
Ramsgate. A única maneira de conseguir esse precioso neto é o
seu filho e eu permanecermos felizes e saudáveis. E aviso-o desde
já: se, por algum motivo, me deixar infeliz, proibirei ao Hugh o
acesso à minha cama.
Seguiu-se um silêncio muito satisfatório.
– Ele será seu senhor e mestre – retorquiu o marquês. – Não pode
proibir-lhe nada.
Hugh pigarreou e murmurou:
– Não me passaria pela cabeça ir contra a vontade da minha
mulher.
– És mesmo um imprestável...
– Está a fazer-me infeliz, Lord Ramsgate – avisou Sarah.
O marquês engoliu uma exclamação furiosa e Sarah soube que
vencera a batalha.
– Se acontecer alguma coisa ao meu primo – continuou ela –, juro
que vou persegui-lo e estraçalhá-lo com as minhas próprias mãos.
– Se fosse a si, acreditava nela – murmurou Daniel, ainda
palpando cuidadosamente o olho.
Sarah cruzou os braços.
– Estamos entendidos?
– No que me diz respeito, sim – assegurou-lhe Daniel.
Sarah ignorou-o e aproximou-se de Lord Ramsgate.
– Vai concordar, certamente, que esta é a solução mais
satisfatória para todos os envolvidos. Consegue o que quer, um
possível herdeiro para Ramsgate, e eu consigo o que quero, paz
para a minha família. Quanto ao Hugh... – Sarah interrompeu-se
abruptamente para engolir o nó que se lhe formava na garganta. –
Bem, o Hugh não terá de se matar.
Lord Ramsgate ficou muito quieto e em silêncio durante um longo
momento.
– Se concordar em casar com o meu filho – disse por fim –, e não
lhe proibir a sua cama, e espere que acredite em mim se eu disser
que vou ter espiões em vossa casa e que vou saber se não cumprir
a sua parte do acordo, deixarei o seu primo em paz.
– Para sempre – insistiu Sarah.
O aceno de Lord Ramsgate foi breve e amargo.
– E não vai tentar contactar os meus filhos.
– Isso, não posso aceitar.
– Muito bem – aquiesceu Sarah, que não esperava prevalecer
sobre este ponto –, permitirei que os veja. Mas apenas na presença
do pai ou na minha, na hora e no lugar que escolhermos.
– Tem a minha palavra – aceitou Lord Ramsgate, a voz tremendo
de raiva.
Sarah virou-se para Hugh, em busca de confirmação.
– Quanto a isso, podes confiar nele – assegurou. – Pode ser cruel,
mas mantém as suas promessas.
– Nunca o vi mentir – confirmou Daniel.
Quando Sarah olhou para ele, estupefacta, o primo explicou:
– Ele disse que ia tentar matar-me e fê-lo. Tentou, pelo menos.
Sarah ficou sem palavras.
– E esse é o teu aval?
Daniel encolheu os ombros.
– Depois, disse que não tentaria matar-me e, até onde sei,
também cumpriu essa promessa.
– Com quanta força lhe bateste? – interveio Hugh.
Sarah olhou para a mão. Os seus dedos estavam a ficar roxos.
Santo Deus, Daniel ia casar-se daí a dois dias! Anne nunca a
perdoaria.
– Valeu a pena – disse Daniel, com um gesto vago para o próprio
rosto. A cabeça pendeu para o lado e ele ergueu uma sobrancelha a
Hugh e acrescentou: – Ela conseguiu onde tu e eu falhámos.
– E tudo o que teve de fazer foi sacrificar-se – disse Lord
Ramsgate, com um sorriso untuoso.
– Vou matá-lo – rosnou Hugh.
Sarah teve de interceder, colocando-se à frente dele e segurando-
o com força.
– Volte para Londres – ordenou ao marquês. – Voltaremos a ver-
nos no batismo do nosso primeiro filho, e não antes.
Lord Ramsgate apenas riu.
– Está claro?
– Como a água, minha querida. – Lord Ramsgate caminhou para a
porta, parou e virou-se. – Se tivesse nascido antes – disse, com um
olhar intenso –, eu próprio teria casado consigo.
– Maldito desgraçado! – exclamou Hugh, que, afastando Sarah, se
atirou ao pai.
Ouviu-se um rangido sinistro, quando Hugh lhe deu um soco no
rosto.
– Não é digno de pronunciar o nome dela – rosnou Hugh, olhando
com ar ameaçador para o pai deitado no chão, com o nariz a
sangrar e provavelmente partido.
– E pensar que és o melhor dos dois – resmungou Lord Ramsgate
com uma careta de repulsa. – Céus, pergunto-me o que fiz para
merecer tais filhos.
– Eu também – revidou Hugh.
– Hugh – disse Sarah, colocando a mão no braço dele. – Afasta-
te. Não vale a pena.
Mas Hugh não estava em si. Embora não tendo afastado a mão
dela, não parecia ouvi-la. Sem tirar os olhos do pai por um
momento, inclinou-se para pegar na bengala que caíra ao chão na
rixa.
– Se lhe tocar, mato-o – disse, numa voz assustadoramente
contida. – Se lhe dirigir uma palavra inapropriada, mato-o. Se
respirar na direção errada, eu...
– Matas-me, já percebi – terminou o pai, com desdém, antes de
apontar para a perna lesionada de Hugh. – Continua a acreditar que
és capaz disso, idiota alei...
À velocidade de um raio, Hugh empunhou a bengala como uma
espada. Sarah não pôde deixar de admirar a beleza daquele gesto.
Seria assim que ele era... antes?
– Quer repetir? – ameaçou, encostando a ponta da bengala à
garganta do pai.
Sarah prendeu a respiração.
– Faça-me o favor – continuou Hugh, num tom ainda mais
perturbador por ser tão calmo –, diga mais uma palavra. – Baixou
ligeiramente a ponta da bengala ao longo da traqueia de Lord
Ramsgate aliviando um pouco a pressão e murmurou: – Nada?
Preocupada, Sarah humedeceu os lábios. Não conseguia
perceber se Hugh era um exemplo de autocontrolo ou se estava
apenas por um fio. Viu-se fascinada pelo movimento do peito dele,
que subia e descia ao ritmo dos batimentos cardíacos. Naquele
momento, Hugh Prentice era não apenas um homem, mas uma
força da natureza.
– Deixa-o ir – disse Daniel, exausto, levantando-se finalmente. –
Ele não vale um bilhete para a forca.
Sarah continuava de olhos postos na ponta da bengala encostada
à garganta de Lord Ramsgate. Parecia ter afundado ainda mais.
Não, ele não ia...
E de repente, com a rapidez de um raio, a bengala saiu disparada,
deixando a mão de Hugh por breves instantes, antes de ele a
apanhar novamente e se afastar. Mancava, mas havia algo de
impressionante no seu andar irregular, algo quase gracioso.
Bastava olhar e ver como era belo em movimento.
Sarah sentiu-se capaz de respirar novamente. Não se lembrava
da última vez que o fizera. Observou em silêncio Lord Ramsgate
levantar-se e sair do quarto. Continuou a olhar para a porta quando
ele desapareceu, meio à espera de que retornasse.
– Sarah?
A voz de Hugh chegou-lhe como uma espécie de névoa, mas não
conseguia tirar os olhos da porta. Estava a tremer... tremiam-lhe as
mãos e talvez até o corpo todo.
– Sarah, estás bem?
Não, ela não estava bem.
– Deixa-me ajudar-te.
Sentiu o braço de Hugh nos ombros e, de repente, o tremor
intensificou-se e as pernas... O que estava a acontecer-lhe às
pernas? Houve um barulho terrível e doloroso, e, quando tentou
inspirar, percebeu que o ruído vinha dela. De repente, viu-se nos
braços de Hugh, que a levou para a cama.
– Está tudo bem – assegurou ele. – Tudo vai ficar bem.
Mas Sarah não se enganava. E não se sentia bem.
Capítulo 21

Whipple Hill
Mais tarde naquela noite

H ugh hesitou muito antes de bater à porta. Não sabia exatamente


que alterações tinham sido feitas na distribuição dos convidados,
mas, desde o retorno a Whipple Hill, Sarah tinha um quarto só para
si. Honoria, que chegara à estalagem White Hart com Marcus, logo
após a partida de Lord Ramsgate, espalhara o boato de que Sarah
tivera uma recaída na lesão do tornozelo e que precisava de
descansar. Se alguém se perguntou por que razão ela não podia
continuar a partilhar um quarto com Harriet, não disse nada. Mas
talvez ninguém tenha prestado atenção.
Quanto a Daniel, Hugh não sabia como explicara o seu olho
negro.
– Entre – veio a voz de Honoria.
Hugh não ficou surpreendido, pois ela não saíra de junto de Sarah
desde o regresso.
– Estou a interromper? – perguntou, avançando dois passos.
– Não – respondeu Honoria, a quem ele não prestou atenção.
Hugh não conseguia tirar os olhos de Sarah, sentada na cama, as
costas apoiadas num monte de almofadas. Usava a mesma camisa
de noite branca de... Santo Deus, fora apenas na noite anterior?
– Não devia estar aqui – disse Honoria.
– Eu sei.
Porém, não fez nenhum movimento para sair.
Sarah humedeceu os lábios antes de dizer:
– Agora estamos noivos, Honoria.
A prima ergueu as sobrancelhas.
– Sei muito bem que, mesmo assim, ele não deve estar no teu
quarto.
Hugh susteve o olhar de Sarah. Cabia-lhe a ela tomar a decisão.
Ele não ia impor-se.
– Foi um dia muito invulgar – murmurou Sarah. – Este não seria o
momento mais escandaloso.
Parecia exausta. Hugh mantivera-a nos braços durante todo o
caminho de regresso, até os soluços dela darem lugar a uma
preocupante prostração. Quando a fitara com mais atenção,
reparara que os olhos dela tinham perdido toda a expressão.
Estava em choque. Ele sabia bem como era.
Contudo, embora ainda enfraquecida, já parecia ter recuperado
um pouco.
– Por favor – pediu Hugh, dirigindo-se a Honoria.
Depois de hesitar por um momento, ela levantou-se.
– Está bem, mas volto daqui a dez minutos.
– Uma hora – contrapôs Sarah.
– Mas...
– Que pode acontecer de pior? – interrompeu-a Sarah, com uma
expressão incrédula. – Sermos obrigados a casar? Já está feito.
– Não é essa a questão.
– Nesse caso, qual é a questão?
Honoria abriu a boca e logo a fechou, os olhos voando entre Hugh
e Sarah.
– A minha responsabilidade é ser a tua dama de companhia –
respondeu, finalmente.
– Curioso, pois acho que ouvi essas palavras saírem da boca da
minha mãe ainda há pouco.
– Onde é que ela está? – perguntou Hugh.
Não que ele pretendesse comportar-se de maneira imprópria,
mas, considerando que ia passar uma hora sozinho com Sarah, era
bom saber.
– Está a jantar – respondeu Sarah.
Hugh beliscou a ponte do nariz.
– Meu Deus, é assim tão tarde?
– O Daniel disse-nos que também descansou – disse Honoria a
Hugh, com um sorriso gentil.
Hugh fez um aceno de cabeça. Ou talvez tenha sido um abanar.
Ou um revirar de olhos. Estava tão virado do avesso, que não tinha
a certeza de nada. Tivera vontade de ficar com Sarah quando
voltaram a Whipple Hill, mas até ele sabia que as primas dela não
tolerariam tais liberdades. De qualquer forma, sentia-se tão exausto
que só teve forças para subir as escadas e arrastar-se para a
cama.
– Ninguém está à sua espera para o jantar – explicou Honoria. – O
Daniel disse... hã... não sei o que ele disse, mas é muito bom a
inventar desculpas credíveis neste tipo de situação.
– E como está o olho dele? – perguntou Hugh.
– Explicou que tinha um olho negro quando conheceu a Anne,
portanto, era bastante apropriado também o ter quando casasse
com ela.
– E a Anne não se importou? – questionou Hugh, incrédulo.
– Para ser sincera, não faço ideia – respondeu Honoria,
empertigada.
Sarah riu-se e revirou os olhos.
– Mas – continuou a prima, abrindo um sorriso e levantando-se –,
agrada-me não ter estado presente quando ela o viu.
Hugh afastou-se para permitir que Honoria passasse.
– Uma hora – disse ela. Então, parou à porta e acrescentou: –
Deviam trancar a porta.
Hugh recuou de surpresa.
– Perdão?
Honoria engoliu em seco e as faces adquiriram um rubor
revelador.
– Assim, todos supõem que a Sarah está a descansar e não quer
ser incomodada.
Hugh ficou mudo de choque. Estaria ela a dar-lhe permissão para
desonrar a prima?
Obviamente, Honoria entendeu para onde os pensamentos de
Hugh caminhavam.
– Eu não quis dizer... oh, pelo amor de Deus, não é como se
algum dos dois estivesse em condições de fazer seja o que for!
Hugh olhou de esguelha para Sarah e viu-a também boquiaberta.
– Imagino que não queiram que ninguém entre enquanto
estiverem sozinhos – disse Honoria, já escarlate. Estreitando os
olhos, acrescentou para Hugh: – Estará só sentado na cadeira, mas
é melhor prevenir.
Hugh pigarreou.
– Sim, é melhor prevenir.
– Seria absolutamente inapropriado... – disse ela. – Vou-me
embora.
E desapareceu apressadamente.
Hugh virou-se para Sarah e comentou:
– Foi um pouco embaraçoso.
– É melhor trancares a porta, parece-me.
– De facto – concordou Hugh, rodando a chave na fechadura.
Depois de Honoria sair, no entanto, deixou de haver mediadores
entre eles, para dar à situação uma aparência de normalidade. Hugh
permaneceu junto à porta, como uma estátua com má pose, incapaz
de decidir o que fazer com os pés.
– O que quiseste dizer quando mencionaste que há homens que
magoam as mulheres? – perguntou Sarah, de repente.
Ele franziu o sobrolho.
– Desculpa. Eu não sei o que...
– Ontem à noite – interrompeu ela –, quando foste ter comigo ao
relvado, estavas muito perturbado e falaste de homens que magoam
pessoas, especialmente mulheres.
Hugh abriu a boca, mas as palavras continuaram presas na
garganta. Como poderia ela não ter percebido o significado? Não
podia ser assim tão inocente! Era verdade que vivia uma vida muito
protegida, mas decerto sabia o que acontecia entre um homem e
uma mulher.
– Às vezes... – começou ele devagar, porque não era uma
conversa que tivesse antecipado – um homem pode...
– Por favor – interrompeu ela –, eu sei que há homens que
maltratam as mulheres. Isso acontece todos os dias.
Hugh tinha vontade de se encolher. Gostaria de considerar aquela
declaração chocante, mas, infelizmente, era a verdade.
– Não estavas a falar no geral – insistiu Sarah. – Podes ter
pensado que sim, mas não estavas. A quem te referias?
Hugh ficou em silêncio muito tempo e, quando finalmente falou,
não olhou para Sarah:
– À minha mãe. Percebeste, certamente, que o meu pai não é um
homem bom.
– Sinto muito – disse Sarah.
– Ele abusava dela na cama – explicou Hugh, sentindo-se, de
repente, fisicamente mal. Virou a cabeça da esquerda para a direita
várias vezes, para se libertar do peso das lembranças. – Nunca
abusou dela fora do quarto conjugal. – Engoliu em seco e respirou
fundo. – À noite, eu ouvia a minha mãe a gritar.
Sarah não disse nada, pelo que ele ficou grato.
– Eu nunca vi nada – continuou Hugh. – Se o meu pai lhe deixava
marcas, decerto arranjou uma forma de que não fossem visíveis.
Nunca a vi a mancar ou com nódoas negras. Mas... – finalmente
conseguiu olhar para Sarah – percebia-o nos olhos dela.
– Sinto muito – voltou Sarah a sussurrar.
No entanto, a expressão dela era cautelosa, e, um momento
depois, desviou o olhar.
Hugh viu-a baixar a cabeça, as sombras movimentando-se na
garganta quando engoliu em seco. Nunca a tinha visto tão
desconfortável, tão apreensiva.
– Sarah...
De imediato se condenou por ter começado a falar, porque ela
olhou para cima, esperando que ele continuasse, e ele não tinha
ideia do que dizer. Nenhuma palavra lhe chegou aos lábios, e ela
finalmente baixou os olhos para as mãos que beliscavam o lençol
nervosamente.
– Sarah, eu não... – recomeçou.
Eu o quê? O quê? Porque é que não conseguia terminar uma
maldita frase?
Mais uma vez, ela olhou para cima, à espera de que ele
continuasse.
– Eu nunca... faria isso.
As palavras sufocaram-se-lhe na garganta, mas ele tinha de as
dizer. Tinha de ter a certeza de que ela entendia. Ele não era o pai e
nunca seria o pai.
Sarah abanou a cabeça, um movimento tão ténue que ele quase
não o viu.
– Magoar-te, quero dizer. Nunca te vou magoar. Nunca seria
capaz...
– Eu sei – interrompeu ela, para grande alívio dele. – Tu nunca...
Nem precisas de o dizer.
Hugh assentiu, desviando rapidamente o olhar quando se ouviu a
respirar bruscamente. Era o tipo de som feito antes de alguém
perder o controlo, e ele não podia... depois de tudo o que
acontecera naquele dia...
Não podia ir por ali. Não neste momento. Por isso, encolheu os
ombros, como se aquele gesto de despreocupação pudesse
resolver tudo. Mas só serviu para tornar o silêncio mais pesado. E
Hugh viu-se na mesma situação de antes, quando Sarah lhe
perguntara sobre a mãe: petrificado junto à porta, sem saber o que
fazer.
– Dormiste? – perguntou ela, finalmente.
Ele assentiu e encontrou impulso suficiente para avançar para a
cadeira que Honoria havia desocupado. Sentou-se e, depois de
pendurar a bengala num dos braços, perguntou a Sarah:
– E tu?
– Sim. Estava perturbada. Ou antes, sentia-me assoberbada.
Sarah tentou sorrir, mas o constrangimento era percetível.
– Vai ficar tudo bem.
– Não – deixou ela escapar –, na verdade não... quero dizer, vai
ficar tudo bem, mas... – Pestanejou como um coelho encurralado e,
em seguida, acrescentou: – Eu estava tão cansada. Acho que nunca
estive tão cansada.
– É compreensível.
Depois de o fitar demoradamente, ela murmurou:
– Não sei o que me deu.
– Nem eu – admitiu Hugh –, mas fico feliz por ter acontecido.
– Agora tens de casar comigo – disse ela, depois de um silêncio
de vários segundos.
– Eu já pretendia pedir-te em casamento – lembrou-lhe ele.
– Eu sei – Sarah continuou a mexericar no lençol –, mas ninguém
gosta de ser forçado.
Estendeu a mão e agarrou a dela.
– Eu sei.
– Eu...
– Tu foste forçada – interrompeu Hugh, com firmeza. – Não é justo
e se quiseres desistir...
– Não! – exclamou ela, surpreendida pela própria veemência. –
Quero dizer, não, não quero desistir. Não posso, na verdade.
– Não podes – repetiu ele, com uma voz opaca.
– Bem, não – respondeu ela, os olhos faiscantes de impaciência. –
Não ouviste nada do que eu disse na estalagem?
– O que eu ouvi foi uma mulher a sacrificar-se – disse ele, com o
que esperava ser um grau adequado de paciência.
– E não foi isso que fizeste também? – replicou ela. – Quando
foste ter com o teu pai e ameaçaste matar-te?
– Não podes comparar. Eu sou a causa de toda esta terrível
confusão. É minha responsabilidade corrigi-la.
– Estás zangado porque te usurpámos esse direito?
– Não! Pelo amor de... – Ele passou a mão pelo cabelo. – Não
ponhas palavras na minha boca.
– Nunca faria isso. Estás a desenrascar-te muito bem sozinho.
– Não devias ter ido à estalagem – disse ele, baixinho.
– Nem vou-me dar ao trabalho de responder.
– Não sabias que tipo de perigo ias encontrar.
– Aparentemente, tu também não – comentou ela, com sarcasmo.
– Meu Deus, mulher, tens de ser tão teimosa? Não entendes? Não
posso proteger-te!
– Eu não te pedi para o fazeres.
– Vou ser teu marido – disse Hugh, sentindo cada palavra rasgar-
lhe a garganta antes de chegar aos lábios. – É meu dever.
Sarah cerrou os dentes com tanta força que o queixo tremeu.
– Sabes que, desde esta tarde, ninguém... nem tu, nem o teu pai,
nem até o meu primo... me agradeceu? – revidou ela.
Os olhos de Hugh voaram para ela.
– Não, não agradeças agora! Julgas que poderia acreditar na tua
sinceridade? Eu fui à estalagem porque estava muito assustada,
porque o retrato que tu e o Daniel pintaram de Lord Ramsgate era o
de um louco, e pensei que ele ia atacar-te...
– Mas...
– Não me digas que ele nunca te atacaria. O homem é
completamente louco. Seria capaz de te cortar um braço se tivesse
a certeza de que isso não te impediria de ter filhos.
Hugh empalideceu. Era verdade, claro, mas ele não suportava a
ideia de Sarah sequer pensar numa coisa dessas.
– Sarah, eu...
– Não – cortou ela, apontando-lhe o dedo indicador. – É a minha
vez de falar. E a tua de estares calado.
– Perdoa-me – sussurrou ele, numa voz quase inaudível.
– Não – disse ela, abanando a cabeça como se tivesse acabado
de ver um fantasma –, este não é o momento de seres simpático.
Não podes pedir perdão e esperares que eu... que eu... – Tentou
sufocar um soluço. – Compreendes o que me fizeste passar?
Durante um único dia?
As lágrimas escorriam-lhe pelas faces agora e Hugh teve de se
conter para não se inclinar e as secar com um beijo. Queria
implorar-lhe para não chorar, pedir desculpa por este momento e por
todos os que viriam, porque sabia que haveria outros. Podia dedicar
a sua vida a um sorriso de Sarah, mas tinha a certeza de que, mais
tarde ou mais cedo, falharia e a faria chorar novamente e esse
pensamento destruía-o.
Pegou na mão dela e levou-a aos lábios.
– Por favor, não chores – implorou.
– Não estou a chorar – soluçou ela, limpando os olhos com uma
manga.
– Sarah...
– Não estou a chorar! – soluçou ela.
Em vez de a contradizer, sentou-se na cama, abraçou-a e
acariciou-lhe os cabelos, sussurrando palavras de consolo até ela
se aconchegar a ele, exausta.
– Não me atrevo a imaginar o que pensas de mim – sussurrou ela,
por fim.
– Penso que és magnífica – respondeu, com toda a sinceridade
do seu coração.
E também pensou que não era digno dela.
Fora ela a salvar a situação. Tinha sucedido onde ele e Daniel
tinham falhado durante quase quatro anos, e fizera-o enquanto ele
estava amarrado àquela maldita cama. Talvez não no exato
momento em que ela triunfara, mas, se estava livre, era graças a
ela.
Ela salvara-o. E embora ele admitisse que as circunstâncias
tinham sido excecionais, aterrorizava-o a ideia de que nunca seria
capaz de a proteger como um marido deveria fazer.
Qualquer homem que se prezasse se disporia a afastar-se e
permitir que Sarah se casasse com outro. Outro que fosse melhor
do que ele.
Um homem completo.
Exceto pelo facto de que um homem que se prezasse nunca se
teria visto naquela situação. Hugh era responsável por aquele
desastre. Fora ele a embriagar-se e a desafiar um homem inocente
para um duelo. Era ele que tinha um pai louco que precisara de uma
ameaça de suicídio para deixar Daniel em paz. Mas fora Sarah
quem sofrera as consequências. E mesmo que Hugh fosse um
homem que se prezasse, não poderia afastar-se, porque fazê-lo
poria Daniel em perigo e porque Sarah seria humilhada.
Mas, acima de tudo, porque Hugh a amava demasiado para
desistir dela.
Sou um canalha egoísta.
– O quê? – murmurou Sarah, a cabeça ainda encostada ao peito
de Hugh.
Teria falado em voz alta?
– Hugh?
Ela inclinou a cabeça ligeiramente, para poder ver-lhe o rosto.
– Não sou capaz de desistir de ti – confessou ele.
– Do que estás a falar?
Ela afastou-se mais um pouco, para poder ver-lhe a expressão e
Hugh deu conta de que ela franzia a testa. Não queria pô-la
preocupada.
– Não sou capaz de desistir de ti – repetiu, abanando a cabeça
lentamente.
– Vamo-nos casar – disse ela com muita cautela, como se não
soubesse exatamente porque dizia aquelas palavras. – Não tens de
desistir de mim.
– Mas devia. Não consigo ser o homem de que precisas.
– Não achas que cabe a mim decidir? – sussurrou ela,
acariciando-lhe a face.
Hugh respirou fundo e fechou os olhos às terríveis lembranças
que o assolavam.
– Odeio que tenhas sido obrigada a ver o meu pai hoje.
– Eu também, mas o que está feito está feito.
Ele fitou-a com assombro. Quando ficara tão calma? Cinco
minutos antes, estava a soluçar e ele a tentar consolá-la, e agora
ela tinha um olhar límpido e a expressão tão serena e sensata, que
ele quase podia acreditar que o futuro deles seria simples e
radiante.
– Obrigado – disse.
Ela inclinou a cabeça para o lado, em interrogação.
– Obrigado por hoje. Por muito mais do que hoje, mas, de
momento, fico-me por hoje.
– Eu... – Ficou boquiaberta por um momento, indecisa, e depois
continuou: – É um caso em que parece estranho responder: «De
nada.»
Ele perscrutou-lhe o rosto sem saber realmente o que procurava.
Talvez só quisesse olhar para ela, perder-se no aconchego daqueles
olhos cor de chocolate, na sensualidade daquela boca que tão bem
sabia sorrir. Fitava-a com espanto e admiração, ao lembrar-se da
guerreira feroz daquela tarde. Se ela o tinha defendido com tanto
ardor, como seria como mãe, quando tivesse de proteger o sangue
do seu sangue?
– Amo-te – disse ele, as palavras saindo-lhe da boca numa
torrente. Não tinha a certeza se pretendia dizer aquelas palavras,
mas agora não conseguia parar. – Não te mereço, mas amo-te. Sei
que nunca imaginaste casar com alguém nestas circunstâncias, mas
prometo passar o resto da minha vida a fazer-te feliz.
Levou a mão dela aos lábios e beijou-a com fervor, quase
subjugado pela força das próprias emoções.
– Sarah Pleinsworth, aceitas casar comigo?
Com os olhos marejados de lágrimas e os lábios a tremer, Sarah
respondeu:
– Nós já...
– Eu não te perguntei – interrompeu ele. – Tu mereces um pedido
formal. Não tenho anel, mas posso arranjar um mais tarde e...
– Não preciso de um anel. Só preciso de ti.
Com as pontas dos dedos, ele tocou-lhe a face e então...
Beijou-a. Um desejo brutal e irreprimível apoderou-se dele,
surpreendendo-o. A mão mergulhou nos cabelos dela e ele devorou-
lhe os lábios com paixão.
– Espera! – pediu ela, num tom entrecortado.
Ele afastou-se muito ligeiramente.
– Eu também te amo – sussurrou ela. – Não me deste tempo de
responder.
Se tinha alguma esperança de moderar o seu desejo, Hugh
perdeu-a completamente. Beijou-lhe a boca, distribuiu uma chuva de
beijos pelo rosto, pelo pescoço e, quando ela já estava deitada, e
ele sobre ela, tomou a delicada fita que fechava a camisa de noite
entre os dentes e puxou.
Ela soltou um riso rouco e sensual que o deixou desconcertado ao
ouvi-lo num momento tão ardente.
– Desatou com tanta facilidade – explicou ela, com um sorriso. –
Não pude deixar de fazer a comparação com os nós do teu pai esta
manhã. E também estamos numa cama!
Hugh sorriu, embora a cama fosse o último lugar que ele queria
associar ao pai.
– Desculpa – pediu ela, com uma risada. – Não consegui evitar.
– Eu não te amaria tanto se o fizesses – brincou ele.
– O que é que isso significa?
– Só que tens o maravilhoso dom de encontrar humor nas coisas
mais inesperadas.
– Encontro humor em ti – disse ela, pousando um dedo no nariz
de Hugh.
– Precisamente.
Abriu um sorriso satisfeito.
– Eu acho que... oh!
Ela obviamente percebeu que a mão dele deslizava ao longo da
sua perna.
– Estavas a dizer...? – sussurrou ele.
Sarah fez um ruído delicioso quando ele lhe acariciou a pele
macia da coxa e, então, sussurrou numa voz ofegante:
– Ia dizer que o nosso noivado não devia ser muito longo.
A mão de Hugh subiu um pouco mais.
– Ah, não?
– Pelo bem do... Daniel... claro, e... Hugh!
– Pelo meu bem, sem dúvida – assentiu ele, antes de lhe
mordiscar o lóbulo da orelha.
Mas a exclamação que ela soltara provavelmente devia-se mais
ao calor suave que ele lhe sentia entre as pernas.
– Precisamos de mostrar que pretendemos cumprir a nossa parte
do acordo – disse ela, entre gemidos.
– Mmm...
Hugh deixou os lábios descerem suavemente pelo pescoço
enquanto ponderava a sensatez de deslizar um dedo para dentro
dela. Tinha ainda a presença de espírito suficiente para calcular que
dispunham de cerca de trinta minutos antes de Honoria regressar,
certamente não o tempo suficiente para fazer amor com ela
devidamente.
Mas mais do que suficiente para lhe dar prazer.
– Sarah? – sussurrou.
– Sim?
Repousou os dedos no centro da feminilidade.
– Hugh!
Sorriu contra a pele dela e deslizou um dedo para dentro daquele
calor húmido. O corpo dela estremeceu, mas não o rejeitou. Com o
polegar, encontrou o pequeno ponto mais sensível, começando a
descrever círculos lentos, pressionando lentamente, numa espiral de
prazer.
– O que... eu não...
As palavras de Sarah eram ininteligíveis, deixando-o satisfeito.
Hugh só queria que ela sentisse o prazer do toque dele e soubesse
o quanto a venerava.
– Relaxa – sussurrou.
– Impossível.
Ele riu baixinho. Não fazia ideia de como conseguia conter o
próprio desejo. Sentia o sexo duro, mas ainda assim sob controlo.
Talvez fosse a barreira das calças que o segurava ou talvez
soubesse que aquele não era o momento nem o lugar certos.
Depois de pensar um pouco, entendeu: era porque só queria dar-
lhe prazer a ela.
A Sarah.
A sua Sarah.
Queria ver-lhe a expressão quando ela atingisse o clímax e queria
segurá-la nos braços quando ela descesse, trémula, do paraíso.
Todos os desejos dele podiam esperar. Este momento era só para
ela.
No entanto, quando aconteceu e ele lhe observou a expressão no
rosto e a segurou contra si enquanto o corpo dela vibrava de
felicidade, percebeu que o momento também fora para ele.
– A tua prima não deve demorar a aparecer – murmurou, assim
que a respiração dela readquiriu um ritmo regular.
– Mas trancaste a porta – argumentou ela, sem se incomodar em
abrir os olhos.
Hugh sorriu. Era adorável, assim sonolenta.
– Sabes que tenho de sair daqui.
– Sim – respondeu ela, abrindo um olho –, mas eu não tenho de
gostar.
– Ficaria profundamente magoado se fosse esse o caso. – Hugh
saiu da cama, feliz por ainda estar todo vestido, e pegou na
bengala. – Vejo-te amanhã – despediu-se, inclinando-se para lhe
dar um último beijo na face.
Então, antes de sucumbir novamente à tentação, dirigiu-se à
porta.
– Hugh?
Quando ele se virou, deliciou-se com o sorriso travesso que ela
exibia.
– Sim, meu amor?
– Eu disse que não precisava de anel.
Ele arqueou uma sobrancelha.
– Mas preciso – brincou ela, agitando os dedos. – Preciso de um
anel. Só para que saibas.
Hugh não pôde evitar uma gargalhada.
Capítulo 22

Ainda mais tarde naquela noite,


ou, mais precisamente, no dia seguinte,
mas por pouco

casa estava mergulhada em silêncio quando Sarah percorreu os


A corredores escuros em bicos de pés. Não tinha crescido em
Whipple Hill, mas, se somasse todas as suas visitas, decerto daria
mais de um ano.
Não seria um exagero dizer que conhecia a casa como a palma da
sua mão.
Uma criança conhecia melhor uma casa do que ninguém. A
quantidade de vezes que brincava às escondidas garantira que não
havia uma porta de ligação ou uma escada de serviço que não
conhecesse. Mais importante ainda, quando, alguns dias antes,
alguém mencionara que Lord Hugh Prentice estava hospedado no
quarto verde da ala norte, ela sabia qual era.
E o caminho mais curto para lá chegar.
Quando Hugh saíra do quarto cinco minutos antes de Honoria
voltar, Sarah pensara que ia cair num sono indolente e magnífico.
Não tinha a certeza do que Hugh lhe tinha feito, mas, depois de ele
sair, vira-se incapaz de levantar um dedo sequer. Sentia-se...
saciada.
No entanto, apesar do bem-estar físico, não adormecera. Talvez
pelas sestas anteriores que fizera antes ou pela mente hiperativa –
afinal, tinha muito em que pensar –, a verdade era que, quando o
relógio da lareira mostrara a uma hora da manhã, fora obrigada a
admitir que não ia dormir naquela noite.
Essa constatação devia tê-la aborrecido, pois sabia que precisava
de descanso e não queria ficar mal-humorada ao pequeno-almoço.
Mas, em vez disso, só conseguia pensar que aquela insónia era um
presente ou, pelo menos, que devia considerá-la como tal.
E um presente não devia ser negado.
Fora por essa razão que, nove minutos depois, se encontrava à
porta do quarto verde, na ala norte, com a mão na maçaneta.
Depois de a rodar cuidadosamente, abriu a porta em silêncio.
Sem fazer um único som, fechou a porta, rodou a chave na
fechadura e foi em bicos de pés até à cama. Um pálido raio de luar
caía sobre o tapete, proporcionando claridade suficiente para ver a
silhueta de Hugh a dormir.
Sorriu. A cama não era muito grande, mas chegava.
Hugh estava deitado mais para o lado direito, por isso, ela deu a
volta à cama e, respirando fundo para ganhar coragem, enfiou-se
entre os lençóis. Lentamente, aproximou-se dele até sentir o calor
que lhe emanava do corpo. Depois, colocou uma mão leve nas suas
costas, encantada ao descobrir que ele estava nu...
Hugh acordou sobressaltado, emitindo uma espécie de ronco tão
engraçado que Sarah não conseguiu evitar uma risadinha.
– Sarah?
Sorriu com malícia, mesmo sabendo que ele não podia vê-la na
escuridão.
– Boa noite!
– O que fazes aqui? – perguntou ele, com voz sonolenta.
– Estás a reclamar?
Houve um silêncio. Então, na mesma voz rouca daquela tarde, ele
murmurou:
– Não.
– Senti a tua falta – sussurrou ela.
– Já percebi que sim.
Mesmo tendo-lhe ouvido o sorriso na voz, Sarah espetou o dedo
indicador no peito dele.
– Devias responder que também sentiste a minha falta.
Ele abraçou-a e, antes de ela reagir, puxou-a para cima dele e
pousou-lhe as mãos nas nádegas.
– Também senti a tua falta.
Ela beijou-o ao de leve nos lábios.
– Vou casar contigo – disse ela com um sorriso pateta.
Hugh fitou-a com a mesma expressão e, sem a soltar, rolou-os
para o lado para ficarem face a face.
– Vou casar contigo – repetiu Sarah. – Gosto de dizer isto,
sabias?
– Seria capaz de o ouvir o dia todo.
– Mas o facto é que... – Com a cabeça apoiada no braço, Sarah
esticou a perna e deslizou lentamente a ponta do pé ao longo da
perna de Hugh, que, notou com prazer, também estava nua. – Estou
a ter dificuldade em manter a retidão moral esperada de uma mulher
na minha posição.
– Uma escolha de palavras interessante, considerando a tua atual
posição na minha cama.
– Como eu disse, vou casar contigo.
A mão dele tinha encontrado a curva da anca dela, e Sarah sentiu
a camisa de noite subir pela perna, os dedos dele puxando o tecido.
– Vai ser um noivado curto.
– Muito curto – concordou ele.
– Tão curto, na verdade, que...
Ficou sem fôlego, pois ele puxara a camisa de noite até à cintura e
agora acariciava-lhe as nádegas nuas de maneira deliciosa.
– Estavas a dizer...? – murmurou ele, enquanto um dos dedos
vagava, provocador, até ao exato ponto que dera a Sarah tanto
prazer naquela tarde.
– Só que... talvez... – Sarah tentou respirar, mas as deliciosas
sensações que a percorriam pareciam tirar-lhe toda a capacidade. –
Não seria muito escandaloso se fizéssemos um pequeno avanço.
– Vai ser escandaloso! – assegurou-lhe Hugh, puxando-a para
mais perto. – Será muito escandaloso.
– És terrível! – respondeu ela com um sorriso.
– Devo lembrar-te de que foste tu quem se escapuliu para a minha
cama.
– Devo lembrar-te de que foste tu quem criou um monstro.
– Um monstro, dizes tu?
– É uma maneira de falar. – Sarah deu-lhe um beijo no canto da
boca. – Eu não sabia que me podia sentir assim.
– Nem eu – admitiu ele.
Sarah parou, intrigada. Decerto ele não estava a dizer que nunca
tinha feito aquilo?
– Hugh... não é... é a tua primeira vez?
Ele sorriu e virou-a na cama, deitando-a de costas.
– Não, mas é como se fosse – sussurrou ele. – Contigo, tudo é
completamente novo.
E então, enquanto ela ainda saboreava a beleza daquela
declaração, ele beijou-a com ardor.
– Amo-te – sussurrou contra os lábios dela. – Amo-te tanto!
Sarah teria gostado de responder e sussurrar também o seu amor
contra a pele dele, mas a camisa de noite parecia ter evaporado e,
no instante em que os seus corpos nus se tocaram, os pensamentos
desapareceram.
– Sentes quanto te quero? – perguntou ele, os lábios deslizando
para a têmpora.
Ele pressionou a pélvis firmemente contra a de Sarah, e ela sentiu
a pressão da ereção contra o ventre.
– Todas as noites – continuou ele em voz rouca –, todas as noites
sonho contigo, e todas as noites fico num estado de desespero, sem
esperança de cura. Mas esta noite... – a boca fez um percurso lento
e provocador ao longo do pescoço – será diferente.
– Sim – suspirou ela, arqueando o corpo.
Ele fechara as mãos nos seios dela, acariciando-os. Depois,
passou a língua pelos lábios e...
O corpo de Sarah quase se ergueu completamente da cama
quando ele tomou um mamilo endurecido entre os lábios.
– Oh... mas... mas... – gaguejou ela, agarrando com força o
lençol.
Nunca prestara muita atenção àquela parte do seu corpo. O seu
peito era bonito num vestido decotado e tinha sido avisada de que
os homens não eram insensíveis a esse pormenor, mas, santo
Deus, ninguém lhe dissera que os seios podiam dar-lhe tanto
prazer.
– Bem suspeitava que gostarias disto – afirmou Hugh, com um
sorriso satisfeito.
– É que sinto isso... em toda a parte?
– Em toda a parte? – murmurou ele, antes de deslizar os dedos
entre as coxas. – Ou aqui?
– Em toda a parte – respondeu ela, sem fôlego. – Mas
especialmente aí.
– Não tenho a certeza – disse ele, provocador. – Teremos de
aprofundar a questão, não te parece?
– Espera – pediu ela, pousando uma mão no braço dele.
Ele levantou uma sobrancelha inquiridora.
– Quero tocar-te – explicou ela, timidamente.
Viu o instante em que Hugh entendeu o que ela queria dizer.
– Sarah, pode não ser uma boa ideia – disse, em voz rouca.
– Por favor!
Depois de respirar fundo, Hugh pegou na mão dela e guiou-a ao
longo do peito. Sem tirar os olhos do rosto dele, ela acariciou-lhe o
peito, a barriga... A expressão dele era quase de dor. Ele fechou os
olhos e, quando os dedos de Sarah roçaram a pele macia e tensa
do sexo, soltou um gemido rouco, a respiração saindo de repente
entrecortada.
– Magoei-te? – perguntou, preocupada.
Não era de todo o que ela esperava. Sabia, claro, o que acontecia
entre um homem e uma mulher, pois tinha inúmeras primas mais
velhas e algumas eram bastante indiscretas. No entanto, Sarah não
esperava que ele fosse tão... sólido. A pele era como veludo macio,
mas por baixo...
Envolveu o sexo com a mão, tão concentrada na sua exploração
que mal notou a breve inspiração que sacudiu o corpo de Hugh.
Por baixo, ele era duro como pedra.
– É sempre assim? – perguntou ela.
Não parecia nada confortável e perguntou-se como conseguiam
os homens usar calças.
– Não – disse Hugh, com voz rouca. – Muda. Com o desejo.
Sarah pensou sobre isso, os dedos continuando a acariciá-lo, até
que Hugh lhe agarrou na mão e a afastou.
Ela ergueu o olhar, apreensiva. Será que o tinha desagradado?
– Isso é demasiado – quase gaguejou ele. – Não vou conseguir
esperar...
– Então não esperes – murmurou ela.
Hugh estremeceu quando os lábios se juntaram aos dela,
beliscando e provocando. Os movimentos lânguidos e sedutores
tornaram-se mais apaixonados, mais imperiosos, e ela não pôde
conter um grito abafado, quando ele lhe abriu as coxas.
– Não posso esperar mais – rugiu ele, e ela sentiu-o à entrada do
corpo. – Por favor, diz-me que estás pronta.
– Eu... acho que sim.
Ela sabia que aspirava a algo. As carícias de Hugh naquela tarde
tinham provocado nela uma sensação extraordinária. Mas o sexo
era muito maior do que o dedo.
Ele insinuou a mão entre os corpos de ambos e tocou-lhe, embora
sem a penetrar.
– Meu Deus, estás tão húmida – gemeu ele, antes de se elevar
acima dela. – Vou tentar ser gentil – prometeu, o sexo substituindo
os dedos.
Sarah prendeu a respiração e ficou tensa, quando sentiu o
impulso aumentar. Era doloroso. Não era insuportável, mas o
suficiente para atenuar o fogo que ardia dentro dela.
– Estás bem? – perguntou Hugh, preocupado.
Ela assentiu.
– Não mintas.
– Está quase tudo bem – disse ela, com um sorriso forçado. – A
sério.
Ele começou a afastar-se.
– Nós não devíamos...
– Não! – exclamou ela, abraçando-o com mais força.
– Mas tu...
– Toda a gente diz que dói da primeira vez – tranquilizou-o.
– Toda a gente? – repetiu ele, com um sorriso trémulo. – Com
quem andaste a conversar?
Sarah não pôde evitar uma risada nervosa.
– Tenho muitas primas. Não foi a Honoria – apressou-se a
esclarecer, adivinhando-lhe o pensamento. – Algumas das mais
velhas são faladoras. Muito faladoras.
Hugh apoiou-se nos antebraços para não a esmagar com o seu
peso, mas não disse uma palavra. A julgar pela expressão
concentrada, Sarah imaginou que ele não conseguia.
– Mas depois melhora – continuou ela, baixinho. – É o que elas
dizem. Quando se tem um marido carinhoso, melhora muito.
– Eu não sou teu marido – lembrou ele com voz rouca.
Ela mergulhou os dedos no cabelo dele, puxando-o para um beijo
e sussurrou:
– Mas vais ser.
Se ele tinha a intenção de parar, o pensamento foi varrido quando
as bocas se tocaram avidamente. Ele começou a mover-se lenta e
deliberadamente, até que, sem Sarah saber como, as ancas dos
dois se tocaram, ele penetrando-a inteiramente.
– Amo-te – disse ela, antes que ele tivesse tempo de lhe perguntar
se estava bem.
Sarah não queria mais perguntas, apenas paixão. Ele recomeçou
o movimento e os corpos de ambos encontraram o ritmo que os
levou à beira do precipício.
Então, num momento de beleza ofuscante, Sarah estremeceu e os
seus músculos internos contraíram-se ao redor de Hugh. Ele
enterrou o rosto no pescoço dela para abafar um grito e deu um
último impulso, antes de espalhar a sua semente dentro dela.
Sem forças, as respirações de ambos foram a única comunicação
entre eles, de ofegantes a regulares, até os dois adormecerem.

Hugh acordou primeiro. Depois de se assegurar de que ainda


faltavam umas horas para o amanhecer, permitiu-se o simples luxo
de ficar deitado a contemplar Sarah. Ao fim de alguns minutos, no
entanto, não lhe era mais possível ignorar a cãibra que lhe torturava
a perna. Há muito tempo que não esforçava os músculos daquela
forma e, se a prática era deliciosa, as consequências não.
Com cuidado para não acordar Sarah, sentou-se e esticou a perna
lesionada à sua frente. Num esgar de dor, começou a massajar o
músculo endurecido. Já o fizera inúmeras vezes. Sabia exatamente
como desfazer os nós com o polegar, até o músculo ceder e relaxar.
A dor era excruciante, mas curiosamente benéfica.
Quando os dedos ficaram cansados, continuou com a palma da
mão, traçando círculos curtos e profundos e alargando depois a
massagem para uma área mais ampla.
– Hugh?
Virou a cabeça ao tom sonolento de Sarah.
– Está tudo bem – assegurou-lhe, com um sorriso. – Podes voltar
a dormir.
– Mas...
Ela bocejou, sem completar a frase.
– Ainda falta muito para amanhecer.
Curvou-se para lhe beijar a testa e recomeçou a massajar a coxa,
voltando a usar os dedos para desfazer os nós.
– Que estás a fazer? – perguntou ela.
Sarah bocejou de novo e sentou-se na cama.
– Não é nada.
– Dói-te a perna?
– Um pouco – mentiu ele. – Mas já está melhor.
O que não era mentira. Sentia-se quase bem o suficiente para
considerar uma repetição do exercício culpado por aquela situação.
– Posso tentar?
Hugh fitou-a com surpresa. Nunca lhe ocorrera que ela poderia
querer cuidar dele. A perna não era bonita de se ver. Entre a fratura,
a bala e o escarafunchar do médico para extrair a bala, a pele da
coxa estava rugosa, riscada de cicatrizes e esticada sobre um
músculo que perdera a sua forma harmoniosa original.
– Talvez eu possa ajudar – disse ela suavemente.
Hugh abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu. As suas mãos
cobriam as cicatrizes mais feias e parecia-lhe impensável mostrar-
lhas. Na escuridão do quarto, sabia que Sarah não veria os rasgos
na carne, pelo menos não distintamente.
Porém, as cicatrizes eram horríveis e uma recordação constante
do erro mais imperdoável da sua vida.
– Diz-me o que fazer – pediu ela, colocando as mãos ao lado das
dele.
Com um aceno de cabeça brusco, Hugh pousou uma mão sobre a
dela.
– Aqui – disse, levando a mão dela ao nó mais obstinado.
Sarah fez pressão com os dedos, mas era longe de ser suficiente.
– Assim está bem?
– Um pouco mais – explicou ele, empurrando a mão dela com
mais força.
Mordendo o lábio inferior, ela tentou de novo, desta vez atingindo
aquele ponto horrível no fundo do que lhe restava do músculo. Ele
soltou um grunhido e ela retirou imediatamente a mão.
– Eu...
– Não, é bom.
– Está bem.
Depois de um olhar hesitante, Sarah voltou à tarefa, parando de
vez em quando para esticar os dedos.
– Às vezes, uso o cotovelo – disse ele, sentindo-se ainda um
pouco constrangido.
Ela observou-o com curiosidade e, então, com um ligeiro encolher
de ombros, fez o que ele sugeria.
– Oh, meu Deus! – suspirou ele, deixando-se cair contra as
almofadas.
Porque sabia tão melhor quando era outra pessoa a fazê-lo?
– Tenho uma ideia – disse Sarah. – Deita-te de lado.
Hugh não acreditava que pudesse mexer-se. Conseguiu levantar a
mão, mas apenas por um segundo. O seu corpo transformara-se
num monte de carne sem ossos. Não poderia haver outra
explicação.
Com uma risada, Sarah empurrou-o, virando-o para que a perna
lesionada ficasse para cima.
– Devias esticá-lo – aconselhou ela e, mantendo o joelho seguro,
dobrou-lhe a perna até o calcanhar se encostar às nádegas.
Ou melhor, até meio caminho.
– Estás bem?
Ele assentiu, embora tremesse de dor. Mas era... Bem, talvez não
fosse uma dor boa, mas era uma dor útil. Sentia algo a ceder no
músculo e, quando voltou a deitar-se de costas e Sarah começou a
massajá-lo novamente, teve a estranha sensação de que algo
furioso dentro dele escapava pela pele e lhe aliviava a alma. A
perna latejava, mas sentia o coração mais leve e, pela primeira vez
em muitos anos, um mundo de possibilidades parecia abrir-se diante
dele.
– Amo-te – murmurou ele.
E pensou: cinco vezes. Cinco vezes que lhe dissera que a amava.
Não era de todo suficiente.
– E eu amo-te – respondeu ela, inclinando-se para lhe beijar a
perna.
Hugh levou a mão ao rosto e sentiu lágrimas. Não se dera conta
de que estava a chorar.
– Amo-te – repetiu.
Seis.
– Amo-te.
Sete.
Quando ela levantou a cabeça com um sorriso confuso, ele tocou-
lhe o nariz com o dedo.
– Amo-te.
– O que estás a fazer?
– Oito – disse ele, em voz alta.
– Perdão?
– Oito vezes que te disse «amo-te».
– Estás a contá-las?
– Já são nove e... – Encolheu os ombros. – Eu estou sempre a
contar. Já devias saber.
– Não achas que devias terminar a noite com um dez, só para ser
um número redondo?
– Sim, tens razão. Amo-te.
– Muito bem, disseste-o dez vezes – brincou ela, aproximando-se
para um longo e lânguido beijo –, mas o que gostava de saber é...
quantas vezes o pensaste?
– É impossível contar – disse, contra os lábios dela.
– Mesmo para ti?
– Um número infinito de vezes – murmurou, puxando Sarah para
se deitar. – Ou talvez...
O infinito mais um.
Epílogo

Pleinsworth House
Londres
Na primavera seguinte

asamento ou morte: as únicas duas maneiras de evitar o serviço


C obrigatório no quarteto Smythe-Smith. Ou, mais exatamente, as
únicas duas maneiras de escapar das suas garras.
Era por isso que ninguém – exceto Iris, mas falaremos sobre isso
depois – conseguia perceber porque é que, daí a três horas, o
quarteto Smythe-Smith estaria em «palco» para a apresentação do
seu sarau musical anual e porque é que Lady Sarah Prentice,
recém-casada e vivinha da silva, estaria, de dentes cerrados,
sentada ao piano a tocar.
A ironia era realmente magnífica, como dissera Honoria a Sarah.
Não, a ironia não era magnífica, dissera Sarah a Hugh. A ironia
deveria ter sido espancada com um taco de críquete e pisoteada.
Se a ironia tivesse forma corpórea, é claro. O que não era o caso,
para desgosto de Sarah. A vontade de bater com um taco noutra
coisa que não uma bola de críquete era quase irreprimível.
Por falta de um taco disponível na sala de música da família
Pleinsworth, Sarah apropriou-se do arco de violino de Harriet e
usava-o como Deus certamente prescrevera: para ameaçar Daisy.
– Sarah! – gritou Daisy.
Sarah rosnou, ou antes, soltou um verdadeiro rugido.
Daisy correu a esconder-se atrás do piano.
– Iris, diz-lhe para parar!
Iris ergueu uma sobrancelha, como se dizendo: achas mesmo que
vou levantar-me desta cadeira para te ajudar, irmãzinha
insuportável, logo hoje?
Sim, Iris sabia como dizer tudo isso com um simples levantar de
sobrancelha. Um talento notável, sem dúvida.
– Tudo o que fiz – protestou Daisy – foi dizer que ela podia
melhorar um pouco a atitude. Não vejo nada de mal nisso.
– Pensando bem – comentou Iris, com sarcasmo –, talvez não
tenha sido a melhor escolha de palavras.
– Ela vai estragar tudo!
– É apenas graças a ela – disse Sarah, com ar ameaçador – que
ainda existe quarteto.
– Ainda me custa acreditar que não haja ninguém disponível para
tomar o lugar da Sarah ao piano – respondeu Daisy.
– Dizes isso como se suspeitasses de más intenções da parte da
Sarah – indignou-se Iris.
– Oh, ela tem um bom motivo para temer más intenções da minha
parte! – retorquiu Sarah, avançando com o arco.
– Estamos a ficar sem primas – disse Harriet, levantando
brevemente o olhar da sua escrita, tendo passado aquele tempo a
anotar febrilmente todas as palavras trocadas na discussão. –
Depois de mim, só restam a Elizabeth e a Frances, antes de
passarmos o testemunho a uma nova geração.
Sarah lançou a Daisy um último olhar furioso e devolveu o arco a
Harriet.
– É a última vez que faço isto – avisou. – Não quero saber se fica
reduzido a um trio. A única razão por que toco este ano é...
– É sentires-te culpada – terminou Iris. – Só estou a dizer a
verdade – acrescentou, diante do silêncio de Sarah. – Ainda te
sentes culpada por nos teres abandonado no ano passado.
Sarah abriu a boca para se defender. Era sua propensão natural
argumentar quando era acusada, com ou sem razão – neste caso,
com uma boa razão. Mas, quando viu o marido à porta da sala, com
um sorriso nos lábios e uma rosa na mão, respondeu:
– Sim. Sim, é verdade.
– É verdade? – repetiu Iris, incrédula.
– Sim. Peço desculpas a ti... e também a ti – acrescentou,
dirigindo-se a Daisy. – E provavelmente a ti também, Harriet.
– Ela nem sequer tocou no ano passado – lembrou Daisy.
– Sou a irmã mais velha dela. Tenho a certeza de que lhe devo
desculpas por alguma coisa. Agora, se me derem licença, vou-me
embora com o Hugh.
– Mas estamos a ensaiar! – protestou Daisy.
– Até loguinho – despediu-se Sarah, com um aceno alegre.
– Até loguinho? – sussurrou-lhe Hugh ao ouvido, à saída da sala
de música. – Disseste «até loguinho»?
– Só à Daisy.
– És realmente boa pessoa – comentou ele. – Não eras obrigada
a tocar este ano.
– Em parte, sim. Achei que devia fazê-lo.
Sarah nunca o teria admitido em voz alta, mas quando percebera
que era a única pessoa capaz de salvar o sarau musical anual...
Bem, não podia simplesmente deixá-lo morrer.
– A tradição é importante – explicou, mal acreditando nas palavras
que lhe saíam da boca.
A verdade é que mudara depois de se apaixonar. Além disso...
Sarah pegou na mão de Hugh e levou-a à própria barriga.
– Pode ser uma menina.
Ele permaneceu quieto um momento e, então, murmurou:
– Sarah?
Ela assentiu.
– Um bebé?
Mais uma vez, ela assentiu.
– Quando?
– Em novembro, creio.
– Um bebé – repetiu ele, como se não pudesse acreditar.
– Não devias ficar tão surpreendido – brincou ela. – Afinal de
contas...
– Ela vai ter de tocar um instrumento – interrompeu Hugh.
– Ela pode ser um menino.
Hugh olhou-a com ar irónico.
– Isso seria muito invulgar.
Sarah soltou uma risada. Só Hugh era capaz de fazer uma piada
daquelas.
– Amo-te, Hugh Prentice.
– E eu amo-te, Sarah Prentice.
Recomeçaram a andar para a porta de entrada, mas, mal tinham
dado dois passos, quando Hugh se inclinou para ela e sussurrou:
– Duas mil.
E Sarah, porque se tratava de Sarah, riu-se e respondeu:
– Só?

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