Você está na página 1de 90

Nº 1425 . 25/6 A 1/7/2020 . CONT. E ILHAS: €3,70 .

SEMANAL
A NEWSMAGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS WWW.VISAO.PT

DEPRESSÃO
O RISCO
ESCONDIDO
DOS HOMENS 16 ESCAPADAS
QUE NÃO CHORAM ISOLADAS
NA NATUREZA
INÉDITO
O 25 DE ABRIL
DESCONHECIDO
DE AMÁLIA

COMO LID AR
COM CHEFES TOXICOS ISTIN GUE OS BONS DOS MAUS LÍDER
ES
ED
Z AUMENTAR OS ABUSOS? O QU R A SE DEFENDER
U OU FE ZE R PA
O TELETRABALHO
AMENIZO
S • O QUE FA
S MULH ERES NAS CHEFIA
A VANTAGEM DA
TUTORIAL APRENDA A TIRAR
TODO O PARTIDO DA APP
AS NOTÍCIAS DO DIA BIBLIOTECA DE REVISTAS
Aceda à VISÃO online Ao ser assinante da VISÃO pode aceder
através do menú inicial a todo o arquivo de edições digitais da revista.
e explore as últimas Em cima, a edição mais recente, disponível
histórias e opiniões em primeira-mão a partir das 18h
de quarta-feira
Fechar

VISÃO ONLINE
AJUDA
DA

Envie-nos os seus comentários

FAQ

SOBRE

Termos e condições

Política de Privacidade

ÁREA PESSOAL

Definições

O MEU CONTEÚDO

Suplementos
6
Edições Tansferidas 135 NSF
ERIR
TRA
As suas marcações Ler

Pesquisa ECA
LIOT
BIB
35 / 132

A EVOLUÇÃO
DUAS OPÇÕES FORÇADA
DE LEITURA DA REVISTA Uma investigadora
portuguesa está a estudar a
Pode escolher resposta dos animais para se
adaptarem às mudanças
como prefere ler provocadas pelo
aquecimento global
a edição semanal: LUÍS RIBEIRO

em formato pdf, Diana Madeira quer saber se as


alterações climáticas podem acabar com
com primazia uma espécie de minhocas marinhas do
género científico Ophryotrocha.
Olhando para elas, uns vermes
para o grafismo, ou minúsculos que mais parecem
centopeias viscosas, é fácil pensar que a

em formato de texto, sua extinção, seja por que razão for, não
t
< ANTERIOR
d l
33 / 102
d O bl
SEGUINTE >

para uma leitura mais


confortável do texto

CLIQUE PARA ABRIR


50 / 132 FORMATO DE TEXTO
Para leitura mais 24 horas seguidas, subindo ao topo três
do mais de 2 700 metros
vezes, perfazendo
confortável dos artigos ados
do na
de altura escalados
em
também no Yosemite,
n vertical. Em 2012,
fez subidas
“E Cap”, da Half Dome
consecutivas do “El
ou caixas completos, kin as três mais altas
e do Monte Watkins,
rqu perfazendo
elevações do parque, p 2 133
basta carregar. me
metros verticais em menos de 19 horas.
oi com David Allfrey,
E dois anos depois,
ren do
subiu sete rotas diferentes
Pode escolher o corpo s. N
“El Cap”, em sete dias.
endero
No México, em
er Luminoso
2015, escalou o Sendero Lu –

de letra mais adaptável 500 metros de rochaha no


n Parque
P de
pen três horas,
Potrero Chico, em apenas
ni
quando muitas duplas de alpinistas
ao seu gosto p
demoram dois dias, com proteção. ção.

MPRE DIMEN
EMPREENDIMENTO ARRISCADO

NAVEGAÇÃO INTUITIVA Na origem de Free Solo está uma


amizade e a determinação em superar o
► Deslize para navegar que parece impossível. Alex Honnold e o
realizador Jimmy Chin também
entre páginas < ANTERIOR 33 / 102 SEGUINTE >

► Aproxime e afaste
para ver detalhes

PESQUISA DE ARTIGOS
Pode pesquisar um tema que lhe interesse
nos artigos publicados na edição semanal da VISÃO.
Na barra de navegação em cima, à direita, encontre
o menu com opção de pesquisa. Procure por palavra chave
na última edição ou na biblioteca de revistas anteriores
www.iseg.ulisboa.pt

Open minds
for a better world

Licenciaturas Mestrados
Economia Accounting*
Gestão Actuarial Science*
Finance* Applied Econometrics and Forecasting*
Matemática Aplicada à Economia e à Gestão Ciências Empresariais
Economics* Contabilidade, Fiscalidade e Finanças
Empresariais
Management*
Data Analytics for Business*
Desenvolvimento e Cooperação Internacional
Economics*
PARCERIAS E ACREDITAÇÕES INTERNACIONAIS: Economia e Gestão de Ciência, Tecnologia
e Inovação
O ISEG faz parte de um grupo restrito de escolas de
Economia e Políticas Públicas
negócios que possuem as acreditações AACSB e AMBA
Economia Internacional e Estudos Europeus
Finance*
Gestão de Recursos Humanos
Gestão de Sistemas de Informação
Com um corpo docente experiente e bem preparado, Gestão e Estratégia Industrial
estudantes de mais de 70 países contribuem para um Law & Management*
ambiente académico internacional e aproveitam a (Joint with Faculdade de Direito ULisboa)
excelência da escola, reconhecida pela eduniversal e pelo
Monetary and Financial Economics*
Financial Times com mestrados no ranking global.
Masters in Management (MiM)*
Mathematical Finance*
Marketing
Métodos Quantitativos para a Decisão
*cursos lecionados em Inglês Económica e Empresarial

Saiba mais em · www.iseg.ulisboa.pt · (+351) 213 925 900 · you@iseg.ulisboa.pt


VISÃO
25 JUNHO 2020 / Nº 1425

10 Entrevista: Cristina Roldão

RADAR
14 Raios X
16 A semana em 7 pontos
D.R.

18 Holofote
19 Inbox
20 Almanaque
21 Transições
46 Amália, os primeiros dias de Abril
Amália assistiu aos primeiros dias de liberdade, sem saber que seria
22 Próximos capítulos perseguida por uma ligação à PIDE que nunca teve. Excerto do novo livro
do jornalista da VISÃO Miguel Carvalho: Amália, Ditadura e Revolução
24 Imagens

FOCAR 28 Chefes altamente tóxicos


72 O estranho caso Quando as chefias se tornam um pesadelo para os subordinados.
O stresse, a pressão, as injustiças. Sinais de alerta e dicas para lidar
do concurso dos drones com o problema
76 Tiago Craveiro, o “pai”
da Champions em Portugal
80 Covid-19: São jovens, 40 O senhor que se segue no caso EDP
não pensam? Manuel Sebastião, ex-presidente da Autoridade da Concorrência,
deverá ser ouvido em breve no processo da EDP

VAGAR
82 Alba Baptista: tão forte,
54 O silêncio triste dos homens que não choram
tão frágil... A morte do ator Pedro Lima traz à superfície a depressão no masculino.
Admiti-la e pedir ajuda é um estigma social que persiste
86 Tendências: 11 apps para
aumentar os conhecimentos
60 A segunda vida de Foz Côa
Com a recente descoberta da maior gravura do mundo ao ar livre,
VISÃO SETE datada do Paleolítico Superior, reaviva-se o interesse por um projeto
89 Escapadinhas: Refúgios cultural que fez História
isolados com a Natureza
por perto
66 Ricky Gervais, a morte e o humor
A segunda temporada de After Life foi um sucesso em época de pandemia.
OPINIÃO Entrevista com Ricky Gervais sobre estes tempos estranhos
6 José Eduardo Agualusa
8 Rui Tavares Guedes
23 Isabel Moreira Online W W W.V I S A O . P T
79 José Carlos de Vasconcelos Últimos artigos no site da VISÃO
88 Capicua
130 Ricardo Araújo Pereira

Luís Delgado Mafalda Anjos Henrique Costa Santos


Interdita a reprodução, mesmo parcial, LINHAS DIREITAS COVIDIÁRIO CRÓNICAS D.C.
de textos, fotografias ou ilustrações sob O passo certo do A nova vaga dos Deseducação
quaisquer meios, e para quaisquer fins,
inclusive comerciais. primeiro-ministro contaminados desconfinados para a cidadania
e despreocupados

25 JUNHO 2020 VISÃO 3


LINHA DIRETA Correio do leitor

Morreu o nosso bravo soldado Luís


Luís Pinto – que integrava a equipa da VISÃO desde a fundação da revista
– morreu, no passado dia 19, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa,
após complicações causadas por um AVC ocorrido há cerca de um mês.
Dele, recordamos o seu bom humor e a sua infinita dedicação à VISÃO

Quando uma equipa de repórteres


da VISÃO saía em reportagem, era
o Luís que tratava do aluguer do carro. As teorias da conspiração
Burocracia resolvida, o Luís dirigia-
-se ao jornalista e, não raras vezes, tornaram-se uma verdadeira
à chegada da dita viatura, acrescentava
um comentário cheio de humor:
arma de propaganda
Teresa Fonseca, Porto
“O teu Porsche amarelo à Futre está
cá amanhã de manhã.” RACISMO
Era assim o Luís Pinto, que integrava “Portugal é o País da Europa com maior
a nossa equipa desde a fundação da racismo biológico”, escrevia Mafalda Anjos
revista. Sentido de humor nunca lhe no editorial [Racistas, Nós?!, V1424].
Portugal é também, provavelmente,
faltava, tinha simpatia e cordialidade o País da Europa com mais ignorantes,
em doses suficientes para espalhar
GONÇALO ROSA DA SILVA

semianalfabetos, iletrados funcionais,


por toda a Redação. Se há talento que etc. O racismo tem muito de maldade,
o Luís tinha era o da tirada repentina. ignorância ou estupidez. Haverá sempre
pessoas más, ignorantes e estúpidas.
Certeiro, sem nunca precisar de A democracia concede-lhes o direito
recorrer ao vernáculo para que a graça à existência e à manifestação.
surtisse efeito (inesquecível, a sua Paulo Dias, Lisboa
gargalhada). Sempre se disse que o ser humano tem
Nascido há 52 anos em São Pedro do Sul, começou a trabalhar aos 16 anos, horror ao vazio. Pois se apagássemos
no grupo da Projornal, a sociedade de jornalistas que criou o semanário toda a nossa História, logo nascia uma
O Jornal cuja equipa viria, mais tarde, em 1993, a fundar a VISÃO. José Carlos outra visão da mesma. Não seria tal
visão um horror ainda maior? Não
de Vasconcelos, um dos fundadores de O Jornal e atual diretor do Jornal de há sociedade sem símbolos nem seres
Letras, Artes e Ideias, recorda o “miúdo” que então chegou às instalações humanos sem mácula na sua vida.
do grupo, na Avenida da Liberdade, em Lisboa: “Fazia serviço do que ao Ângelo Santos, Peniche
tempo se chamava ‘paquete’. Depois, foi progredindo, com tarefas de maior Quero felicitar José Manuel Pureza pelo
dificuldade e responsabilidade. Manteve-se simpático e disponível, mas excelente artigo [O Joelho de Derek
sempre de uma dedicação exemplar.” Na Redação da VISÃO, os amigos mais Cauvin, V1423] sobre o caso do crime
próximos recordam infinitas histórias que exemplificam o seu fino humor. sem nome cometido pela polícia norte-
-americana contra o cidadão George
Dos tempos em que trabalhou no semanário Se7e, ainda na Projornal, ficou- Floyd. Uma análise fina da situação atual.
lhe também a alcunha de “soldado Luís”, posta pelos jornalistas Viriato Teles Danielle Foucaut
e António Macedo, numa referência ao golpe de 11 de março de 1975, CORREÇÃO
no RALIS, e que originou uma única vítima que ficou para a História com Na primeira pergunta do Quiz da edição
esse nome. E agora, Luís, que já cá não estás, temos de nos rir sem ti? S.B.L. passada (V1424), sobre a idade de
Fernando Pessoa ao morrer, a resposta
correta é 47 anos (opção B) e não 36
(opção A), como, por lapso, indicámos

Já nas bancas nas soluções. Aos leitores, as nossas


desculpas.

Contactos
visao@visao.pt
As cartas devem ter um máximo
de 60 palavras e conter nome, morada
e telefone. A revista reserva-se
o direito de selecionar os trechos
que considerar mais importantes.

NOVA MORADA
MICROPLÁSTICOS EMAGRECER JOÃO DE MELO CORREIO: Rua da Fonte da Caspolima
O miúdo que pode A ciência da Novo romance do – Quinta da Fonte,
salvar os oceanos alimentação autor de Gente Feliz Edifício Fernão Magalhães, 8,
com Lágrimas 2770-190 Paço de Arcos

4 VISÃO 25 JUNHO 2020


É PRECISO
TER VISÃO
Frase de Ricardo
Araújo Pereira, publicada
em novembro de 2019,
na sua crónica semanal
“Boca do Inferno”

ASSINE A VISÃO E RECEBA O NOSSO SACO


Apoie o jornalismo credível e de qualidade (e mantenha o bom humor)

VERSÃO PAPEL VERSÃO DIGITAL


12 EDIÇÕES POR €2/EDIÇÃO 12 EDIÇÕES POR €1,60/EDIÇÃO
+ O F E R TA D O S A C O + O F E R TA D O S A C O

ACEDA A LOJA.TRUSTINNEWS.PT OU LIGUE 21 870 50 50


DIAS ÚTEIS DAS 9H ÀS 19H. INDIQUE O CÓDIGO PROMOCIONAL AO OPERADOR: COC5G

Campanha válida em Portugal até 31/07/20, salvo erro de digitação. Condições exclusivas para novas assinaturas da revista VISÃO,
nas versões papel ou digital, durante 3 meses (12 edições). Pagamento na totalidade ou em prestações sem juros, TAEG 0%, de acordo com as condições da campanha em vigor.
A oferta é limitada ao stock existente e enviada após boa cobrança da assinatura. Valor da assinatura não reembolsável.
NEM TUDO É FICÇÃO

Todos
os domingos
POR JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
ILUSTRAÇÃO: SUSA MONTEIRO

C
om quanto esquecimento se ergue uma tuar a memória e a grandeza do projeto escravocra-
estátua?” ta. Ao mesmo tempo, assinalavam um vazio, pois
Isto foi o que pensou Hipólito Azagu- erguiam-se por entre o triste silêncio dos humi-
ri enquanto o seu melhor amigo, Isaías lhados e esquecidos. Não disse nada. Ficaram os
Pinto, se exaltava com o derrube das dois calados, assistindo ao espetáculo da turba que,
estátuas: depois de atirar baldes de tinta vermelha contra o
– Estão a destruir a memória da nação rosto da estátua, se afadigava agora a amarrar gros-
— queixou-se Isaías. sas cordas nas pernitas marmóreas da mesma.
Hipólito pensou em retorquir: cada – Vê como sofre! – disse Isaías. – Não resistirá
uma daquelas estátuas pretendia perpe- ao primeiro puxão.

6 VISÃO 25 JUNHO 2020


Há 20 anos que se encontravam naquele parque, – Não se pode apagar a História!
todos os domingos, ao meio-dia, depois da missa – Dessa vez, Hipólito enfrentou-o:
contando que fizesse sol. Sentavam-se a uma mesa, – A História tanto se escreve erguendo uma estátua
à sombra húmida de uma pujante figueira-da-índia. como deitando-a abaixo. Está sempre lá. O que muda é
Hipólito ia montando o tabuleiro de xadrez enquanto a forma como olhas para ela.
cantarolava: “Cuando tengas que partir / Quiero que – Não me venhas tu ensinar História. Vocês nem
sepas / Que estaré pensando en tí / Todos mis días.” História tinham quando os portugueses chegaram a
Perdiam e ganhavam tendo a estátua como testemu- África. O que sabes tu de História?
nha. Até lhe tinham posto uma alcunha: o Petulante. – Perdi um pé para ajudar a escrever uma outra
Incluíam-na nas suas conversas: História.
– Ali o Petulante jogava pior do que tu – costumava – E eu dei-te um pé!
dizer Isaías, apontando com o quei- – Deste não, paguei-o! Mas que-
xo para a estátua. – Dizem que res o meu pé?! Então fica lá com o
um dia jogou a própria esposa pé!...
e a perdeu. Cada uma daquelas Dizendo isto, Hipólito desa-
O Petulante era como se fosse tarraxou o pé e atirou-o contra a
um companheiro mudo, porém
estátuas pretendia cabeça do amigo. O outro esqui-
atento, que partilhava os risos e as perpetuar a memória vou-se a tempo. A prótese girou no
memórias dos dois homens. Isaías
e Hipólito haviam combatido em
e a grandeza do ar, afundando-se, alguns metros
adiante, num canteiro de hortên-
Angola. Um ganhara, outro perdera. projeto escravocrata. sias. Foi então que entrou em cena
O que ganhara, perdera um pé. Ao mesmo tempo, uma nova personagem — Kabiri,
O que perdera, ganhara uma entra- um fox terrier que tinha também o
nhada paixão pela culinária ango-
assinalavam um vazio, hábito de passear no parque. O ca-
lana. Conheceram-se alguns anos pois erguiam-se por chorro agarrou no falso pé e correu
depois da independência de Angola,
porque Hipólito precisava de uma
entre o triste silêncio com ele nos dentes até junto dos
jovens iconoclastas, os quais, con-
nova prótese e alguém lhe indica- dos humilhados centrados a desmembrar o Petu-
ra o nome de Isaías. O antigo sol- e esquecidos. lante à machadada, não deram logo
dado português fabricava próteses por ele. Finalmente, uma rapariga
estéticas hiper-realistas em silicone.
Não disse nada. viu-o e gritou:
Ficaram amigos. Mais tarde, Hipóli- Ficaram os dois – Um pé! O cão tem um pé na
to reformara-se, trocara Luanda por
Lisboa, e desde então os dois homens
calados, assistindo boca!
Foi a confusão geral. No meio
passaram a encontrar-se todos os ao espetáculo da da gritaria, Isaías conseguiu en-
domingos. Depois do jogo, Hipólito turba que, depois curralar Kabiri, arrancando-lhe a
convidava Isaías para almoçar em prótese dos dentes. Regressou para
sua casa. A esposa, dona Fina, cozi-
de atirar baldes de junto do angolano. Sentou-se, sem
nhava às vezes um funje de peito alto, tinta vermelha contra conseguir conter o riso. Riram-se
às vezes um feijão de óleo de palma.
Isaías comia e chorava por mais.
o rosto da estátua, os dois. Hipólito voltou a colocar a
prótese:
– Não há melhor cozinha do que se afadigava agora – Tens fome? – perguntou ao
a sua, dona Fina. Não se quer casar a amarrar grossas outro.
comigo? O português assentiu com a ca-
Agora ali estavam os dois,
cordas nas pernitas beça. Uma hora mais tarde, suando
o angolano e o português, num fres- marmóreas da mesma muito, enquanto se batia brava-
co domingo de primavera. Enquanto mente com um magnífico calulu de
viam ruir o Petulante, voltavam a carne seca, voltou a lembrar-se do
posicionar-se em lados diferentes Petulante.
da barricada. Isaías sentia a queda da estátua como se – À machadada, Hipólito?! Ninguém merece...
fosse a dele, que se batera pelo Império, com todas as Dona Fina assustou-se:
suas glórias e todos os seus inumeráveis crimes, in- – Mataram alguém?
cluindo o da escravatura. Hipólito experimentava uma – Não! – sossegou-a o marido. – Mataram uma
espécie de pequeno renascimento, como se lhe esti- ideia. À machadada.
vessem a recolocar na perna o pé legítimo, perdido na Isaías ia retorquir – “ideias não se matam assim”
guerra de libertação. Avançou a rainha no tabuleiro: –, mas desistiu. O calulu estava excelente. Fazia calor.
– Acho que perdeste – disse para o português. – Cai Bebeu um gole de cerveja e sorriu. As estátuas que
o Petulante e cai o teu rei. caíssem todas. O mundo que tremesse e se exaltasse.
Isaías deu um soco na mesa, derrubando as peças Não havia causa ou revolução que valesse o caloroso
todas: tempero de dona Fina. visao@visao.pt

25 JUNHO 2020 VISÃO 7


OPINIÃO
HISTÓRIAS
DA CAPA
Fiem-se em milagres
e não corram…
P O R R U I T A V A R E S G U E D E S / Diretor-executivo
1

A
s maratonas olímpicas costu- más decisões. E, para haver decisões melho-
mam iniciar-se com duas voltas res, é preciso que exista informação o mais
ao estádio. Nesse momento, é completa possível sobre o problema que
habitual um concorrente acelerar precisamos de solucionar. Para enfrentarmos
só para poder ser visto na frente, a ameaça da pandemia já não chega indicar,
a comandar o pelotão, e a ganhar burocraticamente, quais os concelhos com
alguns minutinhos de fama na maior número de novos casos confirma-
transmissão da TV e a receber os dos ou continuar a dividir o País em regiões
aplausos dos espectadores. Depois, aca- administrativas que, no caso do vírus, não
ba por “desaparecer” porque não consegue significam nada – o contágio estabelece-se Não é fácil
manter aquele ritmo durante os mais de 42 através de correntes de ligação, não impor- “ilustrar” a ideia
de um chefe tóxico.
km da corrida. Este “clássico” das maratonas ta as fronteiras que se desenhem no mapa.
Associá-lo a uma
merece ser recordado agora, na maratona Para quê continuar a insistir, por exemplo,
espécie de diabo
pandémica em que estamos envolvidos. Com no debitar do aumento de casos em Lisboa era uma hipótese...
uma certeza, desde já: ninguém ganha uma e Vale do Tejo, uma região administrativa de
maratona por decreto nem por milagre e, que 99% dos portugueses desconhece os li-
muito menos, a tentar ganhar uns minutos mites e que alberga uma população superior
de fama nos primeiros quilómetros.
Só porque, no primeiro embate, não
a 3,5 milhões de pessoas (mais do que sete
países da União Europeia)?. É preciso, isso
2
vivemos o caos e a mortandade de italianos, sim, saber a localização exata de cada cluster
espanhóis, americanos ou brasileiros, não há de infeção, em cada bairro ou aglomerado, e
nem haverá qualquer “milagre português” atuar depressa. Nesses locais, com as pessoas
em relação à Covid-19. Tivemos, isso sim, a informadas, o medo será útil para ajudar a
vantagem de assistir ao vírus a chegar pri- combater o contágio. Nos outros, onde não
meiro a outros países e, contra as expectati- existe qualquer ligação real, mas apenas ad-
vas dos habituais pessimistas, o nosso Servi- ministrativa, não adianta continuar a insistir
ço Nacional de Saúde ter demonstrado a sua nele, até porque o resultado será o contrário
resiliência, graças à competência e dedicação e conduz às aglomerações de pessoas. Mais:
dos seus profissionais. De resto, o que nos é preciso ter consciência de que muitas das
“salvou” foi o medo, aquele impulso irra- atuais correntes de contágio têm origem em Ou, então, ir
cional que fez as pessoas refugiarem-se em pessoas de classes mais desfavorecidas que mais longe,
e caricaturá-lo
casa, fecharem escolas e comércios, ainda sempre tiveram de continuar a trabalhar no
de uma forma
antes de o Governo decretar o estado de exterior, em profissões nas quais não era
ainda mais
emergência. possível o teletrabalho. É preciso criar con- violenta
Ao fim de três meses, o medo de ficar sem dições específicas para elas, de forma a que e desprezível.
sustento tornou-se, no entanto, superior ao possam continuar a garantir o sustento, em
medo de se ser infetado. Era preciso reabrir período de confinamento.
a economia já quase moribunda e tentar que Temos de ter a consciência de que es-
os níveis de consumo subissem para salvar
negócios e empregos. Tudo correto. Só que
tamos a correr uma maratona. Portanto,
quanto mais abrirmos, mais novos casos irão
3
era desnecessário anunciar essa nova etapa surgir. As últimas semanas têm sido elo-
como se o pior já tivesse passado, graças ao quentes nessa tendência: quase todos os dias,
tão proclamado e elogiado “milagre por- batem-se os recordes de novas infeções em
tuguês” – ainda para mais quando este é todo o mundo. Esta semana, ultrapassou-
alicerçado em números que, como se vê, -se a marca dos nove milhões de infetados
mudam depressa e podem ser sempre lidos e estamos prestes a chegar, a nível global, ao
de maneira diferente, conforme as compara- meio milhão de mortes. Numa região da Ale-
ções e os pontos de vista. manha foi necessário adotar novas medidas
Não faz qualquer sentido, perante uma de confinamento, na Coreia do Sul cresce o
crise mundial como esta, falar em milagres. receio de uma segunda vaga, em África os
Seria até um contrassenso, em 2020, quan- sinais são cada vez mais alarmantes. As ma- O melhor, no
do todo um planeta está expectante sobre ratonas só se ganham no fim. E se já vi mui- entanto, é olhá-lo
diretamente nos
a resposta da comunidade científica para tos campeões olímpicos elevados à condição
olhos. E, dessa
conseguir encontrar um tratamento eficaz de heróis, nunca vi nenhum adorado como
forma, transmitir
ou uma vacina. Não há milagre – há boas ou santo milagreiro. rguedes@visao.pt a mensagem
exata.

8 VISÃO 25 JUNHO 2020


Cristina Roldão Socióloga e ativista

Foram estruturas políticas,


religiosas e culturais que
instituíram a noção de que
existem povos superiores
a outros. É muito difícil apagar
esta ideia, porque ela opera
ao nível do inconsciente
ALEXANDRA CORREIA LUÍS BARRA

10 VISÃO 25 JUNHO 2020


C
Cristina Roldão, 40 anos, é professora
na Escola Superior de Educação de
Setúbal. Doutorada em Sociologia pelo
ISCTE, é investigadora no Centro de
Investigação e Estudos de Sociologia
(CIES) e dedica-se ao estudo das ques-
tões relacionadas com os afrodescen-
dentes e as desigualdades na Educação,
a juventude e os bairros de realoja-
Quais são as causas deste racismo?
Ignorância? Ódio?
É um passado colonial que está na
nossa memória e que perdura, porque
não temos medidas ativas para o
desconstruir. Há um imaginário de que
determinados grupos são subalternos.
Não se trata de ignorância, porque
somos mais racistas exatamente com os
grupos com quem temos proximidade
histórica, como os brasileiros, as pessoas
de origem africana ou a população
cigana. Porque não há racismo com os
finlandeses, com quem temos muito
menos História comum? Porque não é
uma questão de não conhecer o outro,
tem que ver com hierarquias raciais que
se estabeleceram historicamente e que
durante séculos foram legitimadas por
grandes instituições da Ciência, da Igreja
e da Política.
O racismo não é maior entre pessoas
com baixa escolaridade?
Faz sentido criar um partido
de afrodescendentes?
Não sei responder a isso. A designação
de “política identitária” serve, neste
momento, para retirar valor. É óbvio
que o racismo em Portugal não é só
uma questão cultural, de identidade.
Quando dizemos que os bairros de
realojamento da periferia de Lisboa
sofrem violência policial, não é uma
questão identitária, é uma questão de
justiça. Quando dizemos que a maior
parte das pessoas negras trabalha no
setor das limpezas e da construção
civil, não é uma questão de identidade,
mas de justiça redistributiva. O sufixo
identitário tem sido usado para desviar
o nosso olhar. Foi o que aconteceu com
a manifestação de 6 de junho. Era uma
manifestação sobre violência policial e
racismo, mas o debate transformou-se
numa questão culturalista do Padre
António Vieira e da identidade nacio-
mento. Fomos ouvi-la a propósito do Talvez essas pessoas tenham me- nal. É um grande debate que temos de
debate sobre o racismo em Portugal. nos ferramentas de sofisticação para fazer, mas ele não pode estar dissocia-
Portugal é um país racista? ocultar o seu racismo, enquanto outros do das nossas vidas.
Como é que se pode dizer que Portugal dominam mais a linguagem e a auto- Porque é que as pessoas aderem
não é racista quando tudo na História censura. Mas há momentos em que a ao tipo de discurso do Chega?
nos mostra uma dificuldade enorme de coisa vem ao de cima, escapa. O Chega, de alguma forma, segue uma
lidar com o outro que é negro? O que pensa quando vê líderes política e uma estratégia muito pare-
Podemos dizer isso de todo um País? políticos como Rui Rio ou Jerónimo cidas como o que temos com Donald
Não estamos a generalizar, sendo de Sousa a negar ou a minimizar a Trump ou Bolsonaro: a sua base são
justamente a generalização uma existência de racismo em Portugal? os destituídos da globalização, aqueles
arma do racismo? É a tese do negacionismo com maçãs que chegaram a ter uma vida melhor
Estamos a falar de políticas de Estado, podres. Existe o negacionismo total, e a perderam; não são os que nunca a
de padrões dominantes e de rela- que é a versão do Chega: Portugal não tiveram, como os negros ou os ciganos.
ções económicas. Quando se diz que tem racismo. E há a tese de que, gene- Falamos de população retornada, do
Portugal é racista, não se está a dizer ricamente, não há racismo, não há nada pequeno comerciante que foi engolido
que cada um dos portugueses o é, mas para resolver, mas existe um caso ou pelas grandes corporações económicas,
que há uma matriz dominante que faz outro. O PSD, que até tem uma matriz e de segmentos de funcionários públicos
com que isso aconteça. Vou dar um católica, faz uma guinada à direita para que viram a sua profissão desvalorizada
exemplo: como é que nos manuais de não perder votos para o CDS e para o a partir de 2008. Sentem-se impotentes
História não há uma única referência Chega. Já a Iniciativa Liberal tem outra face à complexidade da política atual
à população cigana que está há 500 posição, que é: capitalist lives matter, e querem “voltar à ordem”. Mas é uma
anos em Portugal? Os portugueses têm ou seja, diz que há discriminação com ficção. O Chega quer acabar com o
muitas costelas ciganas e até o fado tem os empresários. [risos] Estado-providência, que permitiu que os
origem cigana, mas isto nunca é con- E o PCP? filhos dessa gente chegassem ao Ensino
tado. E estes silêncios não são acasos; É muito dececionante. Os comunis- Superior, por exemplo.
são decisões políticas de como narrar tas acham que esta agenda é do tipo Como foi a sua experiência na escola
a nação. identitária e típica do Bloco de Esquer- quando chegou a altura de aprender
Mas há dados estatísticos da e do Livre, e sempre fizeram esta sobre os Descobrimentos?
que o comprovem? distinção de que a classe é o elemento Na altura, claro que me apercebia
Sim, há dados como os estudos do fundamental – que isto são divisões da quando se começava a falar das questões
European Social Survey. Os portugueses classe operária e que a classe operária da escravatura en passant; era ouro,
estão entre os povos europeus que mais tem de estar unida. O PCP tem uma borracha, café e escravos… E a maneira
acreditam que existem raças natural- base de apoio conservadora e também como se representava África deixava-me
mente superiores a outras, ou que exis- não fez um trabalho de consciencia- desconfortável, porque o pressuposto
tem grupos culturalmente superiores lização do seu eleitorado. Há muito era que aquela aula estava a ser dada
– isto na ordem dos 50, 60 por cento. racismo na cintura industrial. Se o PCP para portugueses brancos, aquilo era
Vemos como a extrema-direta está a não o vê, pode ao menos olhar para os a história deles, não era a minha; eu
avançar, e as pessoas não se tornaram estudos que mostram desigualdades estava do outro lado. Julgo que isso é
racistas agora porque houve manifesta- enormes na Educação, no Emprego, na algo que muitos jovens negros sentem e
ções antirracistas, como diz Rui Rio. Justiça e na Habitação. espero que cada vez mais jovens brancos

25 JUNHO 2020 VISÃO 11


também, ao perceberem que não podem andar para a frente. Portugal foi dos tíssimo. Temos estátuas e nomes de
continuar a glorificar o passado colonial. países que mais tardaram a sair das ruas a glorificar pessoas que tiveram
Não se trata de deixar de se falar; trata- colónias. E foi dos que tiveram a guerra um profundo envolvimento no tráfi-
-se de falar sobre o que realmente acon- colonial mais longa: bateu-se durante co de escravos e na colonização (Paiva
teceu e as consequências na atualidade. 13 anos, bateu-se até à última por man- Couceiro, Mouzinho de Albuquerque e
Muitos professores de História dizem ter o domínio colonial sobre outros! por aí adiante...) e temos tentativas de
que precisamos de conhecer o passado Também se argumenta que os por- criar um museu dos Descobrimentos
para compreender o presente – é isso tugueses eram dados a misturas… em Lisboa. Agora, acho que temos todos
mesmo. Se olharmos para as desigual- Em territórios com poucos colonatos a responsabilidade de não desarticular
dades do mundo atual, para uma glo- brancos, em que as famílias brancas estas questões. A toponímia, as estátuas
balização que é muito mais de mercado ficavam na metrópole, quem ia para lá e os museus não podem ser discuti-
do que de circulação livre de pessoas, as eram os funcionários da administração dos de forma desgarrada da vida das
crises dos refugiados, as migrações das colonial, do exército, pequenos comer- pessoas. Porque é que é importante
pessoas dos países do Sul para o Norte, ciantes… Essas pessoas misturavam-se desconstruir esta narrativa nacional?
tudo isso são as ramificações diretas da com as populações locais. Mas é preciso Porque ela nos ajuda a perceber porque
história colonial. E isto nunca é explica- dizer que essa mistura não era feita é que algumas pessoas que nascem em
do desta forma articulada. Os livros de em pé de igualdade; parte dela fez-se à Portugal não são consideradas portu-
História falam do Apartheid na África custa da violação e exploração sexual de guesas pela lei. Ou ajuda-nos a perceber
do Sul como exemplo de um racismo mulheres negras. Sei que, ao dizer isto, porque temos zonas de exceção, onde os
brutal, e está certo; falam do nazismo e muitas pessoas desligam o seu botão direitos humanos estão suspensos e as
do Holocausto, certo; falam do movi- da atenção. É não desligar o botão… É pessoas não são consideradas cidadãs de
mento dos diretos civis, certíssimo; mas reconhecer e andar para a frente. Porque pleno direito, como em certos bairros de
o colonialismo português não é associa- é que Portugal vai ter orgulho do seu realojamento, chamados zonas urbanas
do ao racismo. E esses recortes dizem passado colonial e não do projeto futuro sensíveis, onde a polícia pode ter uma
muito sobre o que está por contar na de uma sociedade que tem uma política intervenção distinta do que faz no resto
História de Portugal. ativa de reparação do seu passado co- do território. Pode cercá-los, proibir as
Falta descolonizar as mentes? lonial? pessoas de entrar e sair, revistar todas
O 25 de Abril tinha isso como um dos Levar o debate para as estátuas pode as pessoas que passem e não só as
objetivos, mas ficou por fazer. Toda a prejudicar a luta antirracista? suspeitas… Há quase um salto para uma
História atlântica com África e com o O debate da memória é importan- certa militarização, como se fosse um
Brasil, com o tráfico de escravos, desa- território de guerra.
parece, tudo se apaga. Mas, em termos Porque não gosta da palavra
históricos, o colonialismo foi hoje de integração?
manhã. No estatuto do indigenato, É muito parecida com assimilação.
em vigor até aos anos 60, definem-se Ou seja, há um molde, um padrão
três grandes grupos: os civilizados (a dominante, e quem não se adapta é um
população branca); a população indígena incivilizado. Outra coisa é a inclusão, o
(a maior parte da população negra); e que implica uma mudança da própria
depois os assimilados (famílias mestiças sociedade para incluir as referências
ou da pequena e alta burguesia negras, dos outros como suas.
para quem era preciso criar uma distin- Não teme que o politicamente corre-
ção, mas nunca igualdade). Este estatuto to possa alienar algumaspessoas?
ajuda-nos a perceber como o racismo à Não podemos deixar que o debate mais
portuguesa funciona: a ideia de que, se culturalista tome a dianteira ao ponto de
te portares bem, se não fizeres críti- Está muito ficar desfasado. No entanto, as palavras
cas e aderires por completo à cultura são uma expressão do que pensamos e
dominante, nós deixamos-te estar aqui
presente a daquilo que se pretende, ao nível indi-
ao lado, não acima. Está tudo bem, se ideia de que, vidual, mas também de projeto político.
abandonares toda a tua cultura. Quem No nosso currículo escolar, não se fala
não cabe dentro da categoria de assi-
se te portares sobre antirracismo, mas sobre inter-
milado é considerado um vândalo, um bem, se não culturalidade – e é tão parecido com
arrogante, um ingrato, um incivilizado. lusotropicalismo, porque é esta ideia de
Esta matriz continua muito presente.
fizeres críticas que os povos se misturam e não há lutas
O que responde quando lhe dizem e abandonares a de poder. A vida real não é assim. Há
que o colonialismo português foi culturas e povos e grupos que têm mais
mais suave?
tua cultura para poder de impor as suas referências do
É preciso não esquecer que dos 12 aderir à cultura que outros. Porque é que não ouvimos
milhões de pessoas que estão contabi- os nomes das pessoas que, em Portugal,
lizadas como tendo sido escravizadas e
dominante, nós sofreram violência policial?
traficadas no espaço atlântico, mais de deixamos-te Como ouvimos na América…
40% foram-no pelos portugueses. Isto Quando o problema era lá longe, tudo
não é para culpabilizar; é para reco-
estar aqui ao bem; quando chegou aqui, ai a Covid,
nhecer a História de forma a podermos lado, não acima ai os cartazes, ai a estátua. E não se fala

12 VISÃO 25 JUNHO 2020


do que tínhamos de falar: como é que É preciso dizer so, não precisa de ser declarado? Está
se pensa uma política de segurança e tudo bem no jantar de Natal, mas as
de território que não esteja assente na que a mistura dos mulheres estão na cozinha a trabalhar e
violência sistemática sobre determina- portugueses não os homens, na sala a conviver.
do tipo de corpos? Porque seria útil, nos censos,
O que é o privilégio branco? era feita em pé de a caracterização da população
É uma noção de que há uma hierarquia igualdade; e parte com base na etnia?
entre pessoas de diferentes origens Primeiro, porque isso confrontaria a
étnico-raciais. Isso foi construído his- dela fez-se à sociedade portuguesa com a sua diver-
toricamente e, durante muito tempo, custa da violação sidade. Teríamos um instrumento do
tivemos a Ciência a dizer que há povos Estado a dizer que nós somos isso, so-
que são subumanos. E tivemos a Igreja
e da exploração mos brancos, negros, ciganos, de origem
ligada ao tráfico de escravos. Foram es- sexual de asiática... Outra questão seria a possibi-
truturas políticas, religiosas e culturais lidade de termos dados fidedignos sobre
que instituíram a noção de que existem
mulheres negras a desigualdade no Emprego, na Educa-
povos superiores a outros. É muito ção, na Saúde – dados que obrigariam
difícil apagar esta ideia, até porque a que se fizessem políticas para reduzir
ela opera ao nível do inconsciente. O outros. Imagine uma mulher branca da essas desigualdades estruturais.
privilégio branco tem desdobramentos classe operária: lidou com o machismo, Existe racismo contra os brancos,
muito objetivos: numa entrevista de a exploração, mas não teve de lidar com como alguns brancos se queixam?
emprego, no ato de alugar uma casa ou a discriminação racial, como a sua cole- Existem formas de discriminação que
a pedir crédito num banco… ga negra. Isto não devia provocar tanta têm raízes históricas. Isto quer dizer
Também há brancos pouco ou nada celeuma. Há um lado de sobrerreação que houve várias instituições ao longo
privilegiados, que toda a vida que tem que ver com a negação do da História que se conjugaram no sen-
estiveram nas classes mais baixas. racismo. Então não sabemos que existe tido de legitimar um conjunto de ideias.
Claro. Mas o privilégio branco não é machismo em Portugal e que os homens Pode ter-me escapado, mas não tive-
sinónimo de que se é “rico”. Ele quer ganham mais e são mais privilegiados mos séculos em que a Igreja Católica,
dizer que, na dimensão racial, aquela do que as mulheres no acesso aos cargos Estados-nação e Ciência se juntaram
pessoa não teve de lidar com certos pro- de chefia, por exemplo? As pessoas não para dizer que os brancos eram um
blemas. Mas teve de lidar com todos os percebem como o machismo é insidio- grupo inferior. acorreia@visao.pt

CONSULTÓRIOS PARTICULARES DE OFTALMOLOGIA

a sua consulta de
oftalmologia quando
e onde quiser
Coeso é uma APP que reúne os Oftalmologistas em
rede, colocando-os mais perto de onde o utilizador se
encontra, fazendo a marcação gratuita
da consulta.

Aceda aqui à maior Rede de Consultórios de


Oftalmologia em Portugal e agende agora a sua
próxima consulta:

www.coeso.pt /appcoeso /appcoeso


RAIOS X

Atlas da fuga Em média, uma em cada 98 pessoas, em todo


o mundo, é refugiada ou foi obrigada a abandonar
a sua residência por motivos de violência

Esquecidos por todos?


No final de 2019, existiam mais nove milhões de pessoas
deslocadas do que no ano anterior e perto do dobro dos
41 milhões registados em 2010. “Este número de quase 80 milhões
é obviamente motivo de grande preocupação”, diz Filippo Grandi,
o alto-comissário da ONU para os Refugiados

Refugiados
Venezuelanos deslocados

Nº DE PESSOAS
5 000 000 Alemanha Turquia
2 500 000
1 000 000
100 000
Paquistão

Venezuela Sudão
Colômbia
Equador
Uganda
Peru

26
Chile Argentina

MILHÕES DE REFUGIADOS

79,5 MILHÕES 45,7


DE PESSOAS DESLOCADAS À FORÇA

20,4
EM RESULTADO DE PERSEGUIÇÕES, CONFLITOS, VIOLÊNCIA, MILHÕES
VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS E DE ACONTECIMENTOS pessoas deslocadas
QUE PERTURBAM A ORDEM PÚBLICA MILHÕES internamente
80 sob o mandato do ACNUR

4,2
(Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados)
60 MILHÕES
requerentes de asilo
40
5,6 3,6
MILHÕES
20
refugiados da Palestina MILHÕES
sob o mandato da UNRWA venezuelanos
(Agência das Nações Unidas de Assistência deslocados
0 aos Refugiados da Palestina) para o exterior
1990 2000 2010 2019

FONTE ACNUR – Forced Displacement in 2019 INFOGRAFIA MT/VISÃO

14 VISÃO 25 JUNHO 2020


7
PONTOS DA SEMANA

POR
MAFALDA ANJOS*
GETTYIMAGES

APRENDER A DANÇAR ESTA DANÇA


Há toda uma arte na condução de uma
dança a par. Os passos sucedem-se ao
sabor da música, e o espaço ocupado na
pista tem de ser gerido com andamentos
adiante, para o lado e à retaguarda.
35 anos. Isto não é só uma doença que
“mata velhinhos”, como se ouve dizer.
Foram agora necessárias medidas de
contenção mais apertadas para a Área
Metropolitana de Lisboa: prolongamento
Conduzir a saúde pública em tempos do estado de calamidade em 15 freguesias
de pandemia é mais ou menos como da Amadora, Loures, Odivelas, Lisboa e
dançar um tango com um companheiro Sintra, com novas regras e coimas para
invisível, para variar das metáforas bélicas os ajuntamentos, que agora são restritos
da guerra contra a Covid-19, mas em a dez pessoas, e fecho antecipado de
vez de sedução há uma atração fatal. estabelecimentos.
Temos de conviver e de nos adaptar a Além de Portugal, outros países já deram
este par que não foi convidado para a ou estudam passos atrás: Espanha, País de
festa, e tentar conduzir a coreografia à Gales, Alemanha, Nova Zelândia, além da
nossa maneira tendo em conta os sinais China, Japão e Coreia do Sul, que tiveram
que nos vai passando. O ritmo é o nosso de reequacionar as medidas. Dar um
companheiro invisível que dita, temos é passo atrás não é assumir uma derrota,
de saber dançá-lo bem. Saber dar dois mas assumir uma responsabilidade:
passos para a frente e um passo para trás. quando abrimos já sabíamos que a
Em maio, quando começou a reabertura, situação teria de ser permanentemente
escrevi que quem pensava que o pior reavaliada.
já tinha passado, estava enganado. O Vamos ter de nos habituar a viver assim:
maior desafio para todos nós começou ao sabor do ritmo imposto pela evolução
nessa altura. Porque desconfinar é muito da Covid. E não é descabido pensar numa
mais difícil do que confinar, tal como estratégia de desconfinamento que é
proibir é muito mais fácil do que educar diferente entre regiões, tendo em conta
e sensibilizar. Entrar nas rotinas do dia o risco de contágio e o valor de R0, que
a dia e viver num novo normal é a maior indica a taxa de reprodução da infeção, tal
prova, quando tudo naturalmente nos como acontece já, por exemplo, no país
puxa para os velhos hábitos e as velhas vizinho.
rotinas. Mais liberdade implica mais Há um ponto que nos deve alegrar nesta
responsabilidade. questão: o ritmo é ditado pela Covid-19,
O grande aumento entre os jovens mas nós, coletivamente, podemos
– número de novos casos quase influenciar-lhe a cadência, o volume e os
duplicou desde o desconfinamento instrumentos incluídos na banda. Isso
– começou a preocupar os faz-se com regras, mas sobretudo com
infecciologistas, que alertam agora sensibilização, educação e informação.
para o aumento de situações graves Temos de aprender a dançar esta dança.
entre pessoas mais novas, muito Está nas nossas mãos – e na forma
graças aos comportamentos de risco como nos comportamos todos – fazer
que recomeçaram em força. 34% dos da Covid-19 um partner de dança
doentes internados no Hospital de manobrável e dócil. Não lhe podemos é
Santa Maria, em Lisboa, têm menos de pisar os calos que ela não gosta...
*Diretora
manjos@visao.pt

16 VISÃO 25 JUNHO 2020


NÚMERO FRASE

590 348
“A Europa tem de se reindustrializar. E é agora,
ora,
não é mais tarde. E não é uma questão apenasnas
de conjuntura e sobrevivência, é uma questãotão
estrangeiros
a viver de opção estrutural, a médio e longo prazo””
em Portugal Marcelo Rebelo de Sousa, numa declaração
O valor vale pelo na conferência da Cotec sobre o renascimento da indústria
simbolismo: no final e os próximos passos para a era pós-Covid.
de 2019, mais de meio
milhão de estrangeiros
vivia em Portugal, REGRESSO
segundo os últimos
dados do Serviço
de Estrangeiros e
O desafio
Fronteiras. É o número das escolas
mais alto registado
Tiago Brandão Rodrigues
desde 1976, quando foi
disse, esta semana, que o
criado este organismo.
Governo vai propor que o
Os brasileiros ocupam
próximo ano letivo se inicie
a maior fatia, com quase
entre os dias 14 e 17 de
26%, seguidos
setembro, considerando que
dos cabo-verdianos
esse calendário dará tempo
e dos ingleses, que
de preparação à comuni-
subiram duas posições
dade educativa. Este é dos
no ranking.
assuntos mais prementes
que temos para resolver nos
ANTIRRACISMO próximos tempos. Parece
evidente que não conse-
DEPRESSÃO A ignorância de spray na mão guiremos ter tudo como
dantes na reabertura do ano
Sofrer O movimento antiestátuas, como já lhe chamam, está cada vez
mais absurdo. De Voltaire a De Gaulle, passando por George escolar: horários normais
em silêncio Washington ou Ulysses S. Grant, foram mais estas as estátuas
de grandes figuras da História vandalizadas nos últimos dias.
e salas lotadas de crian-
ças será o caminho para o
e com um Era bom que os neoiconoclatas, eufemismo para vândalos,
tivessem uma pitada de cultura geral. Voltaire foi uma figura
desastre, numa altura em
que as infeções respiratórias
sorriso do Iluminismo, acérrimo defensor da liberdade e das reformas
sociais; De Gaulle, um símbolo da luta contra o nazismo; George
se agravam. É fundamental
Washington, um dos fundadores mais respeitados da nação começar a pensar o quanto
O suicídio de Pedro
americana e defensor de princípios que viriam a ser essenciais antes em medidas criativas
Lima, um pai de
para erradicar a escravatura, e Ulisses S. Grant derrotou a para fazer face às novas
família exemplar e um
Confederação na Guerra da Secessão e quis reformar os estados necessidades. Rotatividade
ator unanimemente
do Sul, perseguindo o Ku Klux Klan e impondo direitos civis. de alunos nas aulas presen-
admirado, impressionou
ciais, como acontece nas
o País. E deve servir
empresas? Aulas presen-
como alerta geral
ciais apenas para algumas
para a depressão, uma EMPRESAS
disciplinas fundamentais?
doença que ainda é
tabu e que, nos homens, Um Calimero chamado TAP Alargamento de horários?
A telescola é uma ideia
é particularmente
O apelo surge dias depois única empresa da Europa, com bem-intencionada, mas
invisível e traiçoeira.
de ser conhecido o processo exceção da Lufthansa, que cada vez mais se percebe
É fundamental
interposto pela Associação não teve apoio” e criticando que foi um penso rápido
desmistificar as doenças
Comercial do Porto para a severidade de Bruxelas. e não serve como solução
mentais, para que pedir
impedir o apoio financeiro do Talvez a compreensão geral de continuidade.
ajuda não seja visto
Estado, que pode ir até aos em relação à empresa fosse
como uma fraqueza
1 200 milhões de euros. “É mais fácil se os sucessivos
e ir a um psicólogo
muito importante o País unir- casos, como os prémios
ou psiquiatra se torne
se à volta de um plano futuro incompreensíveis e os abonos
tão banal como ir
para a TAP”, disse Antonoaldo suplementares para os pilotos
ao dentista ou ao
Neves, presidente executivo da em layoff, não tivessem vindo
ginecologista.
companhia, lastimando ser “a a público.

25 JUNHO 2020 VISÃO 17


HOLOFOTE

John Bolton Um falcão à caça de Trump


LIVRO DO
Sexta guerra Falcão de Bush
mundial Filho de um
John Bolton foi o
terceiro homem EX-CONSELHEIRO bombeiro de
Baltimore,
a exercer o cargo
no mandato de
PARA A SEGURANÇA John Bolton
é um assumido
Donald Trump.
Entrou na Casa
NACIONAL RETRATA republicano

O PRESIDENTE DOS EUA


conservador,
Branca em abril advogado de A aberração e o
COMO UM IGNORANTE
Olhos no novo de 2018 e saiu profissão, que já cachorro doente
mandato em setembro de tinha passado pela Até ao último
São quase
600 páginas a
2019, demitido,
segundo a versão EM POLÍTICA EXTERNA Casa Branca nas
administrações
momento, a admi-

QUE AGE SÓ A PENSAR


nistração Trump
ajustar contas. do Presidente dos de Richard Nixon, tentou impedir na
No livro A Sala EUA, ou pelo seu Ronald Reagan
Onde Aconteceu,
lançado esta
pé, a acreditar
no próprio.
NA REELEIÇÃO e George W.
Bush. Foi um
Justiça a publica-
ção do livro, mas
a decisão acabou
terça-feira, 23, Certo é que as RUI ANTUNES dos chamados por ser favorável
John Bolton tão divergências falcões, a par de ao ex-conselheiro.
depressa acusa eram mais do que Dick Cheney
Che y ou Nas entrevistas
Donald Trump de muitas – sobre o Donald Rumsfeld, para promover
ter incentivado a Irão, a Coreia do que apoiaram a a obra, Bolton
China a manter Norte, a Rússia, invasão do Iraque, sustentou que os
campos de a Venezuela, os em 2003, sob o Estados Unidos da
concentração talibãs. “Ele foi pretexto nunca América podem
para a etnia uigur despedido porque, confirmado “superar um man-
como diz que francamente, se eu da existência dato” de Trump. “Já
ele considerou o tivesse ouvido, de armas de dois, tenho mais
“porreira” a já estaríamos destruição maciça dúvidas”, contrapôs
ideia de invadir na sexta guerra no regime de sobre o Presidente
a Venezuela. O mundial”, Saddam Hussein. que espera vir a
ex-conselheiro comentou o líder Em 2015, defendeu ser descrito na
para a Segurança norte-americano, um ataque ao Irão História como “uma
Nacional meses mais tarde, e, em 2018, aberração”.
multiplica-se em após saber à Coreia do A troca de insultos
exemplos para que o livro Norte. na praça pública
desqualificar o estava em tem sido de ida e
antigo chefe: que marcha. volta nos últimos
ele pensava que
dias. No Twitter,
a Finlândia fazia
Trump chamou-lhe
parte da Rússia,
“maluco”, “tolo
que desconhecia
chato” e “estúpido”.
o facto de o Reino
Sobre o livro, ca-
Unido ser uma
racterizou-o como
potência nuclear,
“uma compilação
que Kim Jong-un
de mentiras e his-
“deve rir-se muito”
tórias inventadas”
dele... Não há
para o deixar mal-
uma estratégia
visto: “Está apenas
para a política
a tentar ajustar
externa, escreve
contas por tê-lo
Bolton, apenas
despedido como o
decisões “a pensar
cachorro doente
na reeleição” em
que é.”
novembro.

18 VISÃO 25 JUNHO 2020


INBOX

M O D É S T I A À PA R T E
A pandemia
Não tenho e o ressurgi-
dúvidas de que
um dia seremos mento do
um grande
partido
movimento
JOÃO COTRIM FIGUEIREDO
Líder da Iniciativa Liberal explica
que “proibir e obrigar são duas
Black Lives
palavras que fazem muita
confusão” ao seu partido Matter
são uma
oportunidade
incrível para
mudarmos a
O CDS não diz que
forma como
um jogador de futebol
não pode comentar
vivemos
assuntos políticos, mas GWYNETH PALTROW
A atriz acaba de estrear a segunda temporada
um político já pode da série The Politician, na Netflix
passar os seus dias
a fazer comentários FRASE DA SEMANA
de futebol
FRANCISCO RODRIGUES
DOS SANTOS
O líder do CDS diz que “o partido
Não veria mal
tem linhas vermelhas” e que “não
pode fazer discurso baseado em C H O Q U E F R O N TA L a possibilidade
conversas de café”
de termos padres
Acabar com o racismo
casados dentro
é também acabar da nossa Igreja
D. JOSÉ ORNELAS
com os problemas O bispo de Setúbal é o novo
do mundo presidente da Conferência
Episcopal Portuguesa
ANGELA DAVIS
A filosofa e ativista norte-
americana dos direitos dos
negros e das mulheres é pela A [Final 8 da Os profissionais
primeira vez editada em Portugal, Champions] é de saúde não andam
50 anos depois de um julgamento
que fez dela um mito um prémio aos a pedir prémios
profissionais de escondidos dentro das
saúde (...) que quatro linhas, o que
Recebi ameaças fizeram com querem é condições
de morte que Portugal se para realizar
afirmasse como um o seu trabalho
CORINNA LARSEN
A ex-amante de Juan Carlos, destino seguro MOISÉS FERREIRA
ex-rei de Espanha, acusa ANTÓNIO COSTA Deputado do Bloco
a Casa Real espanhola Primeiro-ministro de Esquerda

Fontes: NBC, Jornal I, Público, Record, Rádio Renascença, Lux


25 JUNHO 2020 VISÃO 19
ALMANAQUE

NÚMEROS DA SEMANA

4 644
As salas portuguesas de
cinema, que reabriram a
1 de junho, tiveram, em duas
semanas, pouco mais de
4 600 espectadores,
algumas sessões vazias
e outras com lotação
completa, segundo dados
do Instituto do Cinema e
do Audiovisual. Ao todo,
os resultados de bilheteira
rondaram os 22 mil euros.

60%
A campanha da cereja
Vamos caçar asteroides?
Um estudo conclui que a melhor forma de evitar que corpos rochosos
deverá cair 60% e a do
pêssego 20% este ano, atinjam a Terra é amarrá-los uns aos outros. Se Astérix soubesse...
devido às “condições
meteorológicas muito Tal como os irredutíveis gauleses da maneira ideal de defender a Terra do
adversas da primavera”, aldeia de Astérix tinham medo – e era impacto de um asteroide seria amarrar
enquanto os cereais de a única coisa que os atemorizava – de o corpo rochoso a outro idêntico, o
inverno deverão registar um que o céu lhes caísse sobre as cabeças, há que obrigaria o primeiro a mudar o seu
aumento generalizado da neste nosso planeta muito boa gente com centro de gravidade e, por arrasto, a
produção, segundo dados o mesmo medo. Pelo menos, com receio sua trajetória. Como? Com cabos. “As
divulgados pelo INE. de que algum dos incontáveis asteroides simulações mostraram que o método é
que gravitam pelo Espaço possa, um dia, dinamicamente viável para mitigação do
cair-nos em cima da cabeça. É, por isso, impacto de asteroides”, lê-se no artigo,

4 364
Um total de 4 364 casos
normal que se estudem formas de evitar
um desastre desse género. Foi o que fez
uma equipa de especialistas, liderados
que defende a mais-valia deste método,
porque dele “não resulta a fragmentação
dos objetos”. A técnica de detonar
de discurso de ódio na por Flaviane Vendetti, da Universidade explosivos na superfície dos asteroides
internet, a grande maioria no da Flórida Central, nos Estados Unidos. habitualmente resulta nos filmes, mas
Facebook, foram detetados Segundo o novo estudo, agora divulgado “pode causar danos generalizados”,
em seis semanas na União no European Physical Journal, a avisa o estudo.
Europeia, com 475 a
chegarem à polícia, anunciou
hoje a Comissão Europeia.
N O VA D E S C O B E R TA

48%
Desde o recomeço do
Stonehenge continua a revelar segredos
Um círculo de poços profundos, com cerca de 4 500 anos, foi localizado por um grupo
campeonato espanhol, de arqueólogos perto do Património Mundial de Stonehenge, no Reino Unido – um dos
há uma semana, que os sítios arqueológicos mais conhecidos da Terra. Trabalhos de campo e análises recentes
números das audiências descobriram, pelo menos, 20 poços pré-históricos maciços, de mais de dez metros de
televisivas dispararam. diâmetro e cinco metros de profundidade, revela um artigo publicado, esta semana, por
De acordo com La Liga, investigadores da Universidade de St. Andrews no Internet Archaeology. Segundo um
comunicado da universidade, estes poços formam um círculo com mais de dois quilómetros
o aumento registado nestas
de diâmetro, que envolve uma área superior a três quilómetros quadrados. Os arqueólogos
primeiras jornadas de
acreditam que os poços serviram de limite a uma área sagrada ou recinto associado àquele
retoma atingiu os 48 por
monumento do Neolítico.
cento. Principal motor do
crescimento foi o mercado
africano. Na Europa,
a Bélgica registou uma
subida de 130 por cento.

20 VISÃO 25 JUNHO 2020


TRANSIÇÕES

MORTES
O escritor catalão
Carlos Ruiz Zafón tinha
55 anos e lutava contra um
cancro desde 2018. Morreu
na última sexta-feira, 19, em
Los Angeles, cidade onde
vivia desde a década de 90.
Nascido em Barcelona
a 25 de setembro de 1964,
Zafón, que se iniciou em
1992 no “estranho ofício
de romancista”, como
costumava dizer, conquistou
o público e a crítica com
A Sombra do Vento, vencedor
do prémio Correntes de
Escritas/Casino da Póvoa de
Varzim em 2006, finalista
do Prémio de Romance
Fernando Lara 2001 e do
Prémio Llibreter 2002, eleito
o Melhor Livro de 2002 pelos
leitores do jornal
P E D R O L I M A 19 7 1-2 0 2 0
La Vanguardia, traduzido
para mais de 40 línguas e
com mais de 6,5 milhões de

O ator olímpico de sorriso fácil exemplares vendidos em


todo o mundo desde
o lançamento, em 2001.
Há dois anos, Pedro Lima admitiu ter problemas de autoestima
e enfrentado “alguns momentos de angústia muito grande” O historiador israelita
Zeev Sternhell,
Nem crise financeira, nem familiar. estar na origem das inquietações sobrevivente do
Anna Westerlund, companheira de Pedro Lima, Nuno Santos, diretor Holocausto, militante
comprometido com a paz
de Pedro Lima há quase 20 anos e de programas da estação de Queluz,
com os palestinianos e
mãe de quatro dos seus cinco filhos, revelou que o contrato entre as partes
uma das principais figuras
descarta aquelas duas hipóteses como tinha sido recentemente renovado até intelectuais e políticas da
possíveis causas de suicídio do “amigo, junho de 2021. esquerda em Israel, morreu,
profissional, marido e pai excecional”. Antes de se tornar ator, teve sucesso no domingo, 21, aos 85 anos.
“O Pedro foi certamente surpreendido como modelo e nadador olímpico
pela própria dor que naquele momento (Seul-1988 e Barcelona-1992).
lhe terá sido insuportável”, escreveu a Representou a seleção de Angola, país PRÉMIO
ceramista, esta segunda-feira, 22, na onde nasceu e que abandonou ainda O escritor
sua conta de Instagram, sobre “o amor” em bebé, quando os pais o enviaram Mário de Carvalho venceu
da sua vida. “Um homem responsável, para Portugal para ser criado pela o Grande Prémio de Crónica
terno, presente e dedicado.” avó Bernardette, a “vovocas”, como e Dispersos Literários,
Com uma moradia em construção em lhe chamava. Em 2019, admitiu que da Associação Portuguesa
Cascais, os dois tinham planos para recorreu a terapia para ultrapassar de Escritores (APE), com
se casarem no próximo ano, de modo este “abandono”, tendo assumido o livro O Que Eu Ouvi
a assinalar não só as duas décadas anteriormente, numa entrevista na Barrica das Maçãs.
de relacionamento mas também à TV Guia em 2018, a superação
os 50 anos do ator, presença regular de “alguns momentos de angústia
nas telenovelas da TVI e conhecido muito grande”, relacionados com TÍTULO
pelo sorriso fácil. a falta de autoestima. O treinador português
Há cerca de um mês, passado o Aos 49 anos, foi encontrado sem vida Luís Castro sagrou-se,
confinamento por causa da pandemia, na Praia do Abano, em Cascais, na no último sábado, 20,
tinha voltado às gravações de Amar manhã de sábado, 20. Terá deixado campeão nacional de futebol
Demais, ao lado de Fernanda Serrano. uma carta de despedida à família e da Ucrânia, ao serviço
do Shakhtar Donetsk.
Refutando a ideia de que a incerteza enviado mensagens a amigos a pedir-
quanto ao futuro profissional pudesse -lhes para cuidarem dos filhos. R.A.

25 JUNHO 2020 VISÃO 21


Livre. Com
a saída do
PRÓXIMOS CAPÍTULOS Eurogrupo,
Centeno fecha
um ciclo
governativo

PERISCÓPIO

O INCENDIÁRIO
O fogo de Ventura
Meados de junho. Jantar na sala de condomínio
do prédio do ideólogo do Chega, Diogo Pacheco
de Amorim. André Ventura entre os convidados.
A noite avança, a conversa flui, fumam-se uns
cigarros, as beatas voam pela janela e o monte de
papelão amontoado no pátio (despojos de umas
obras em curso) pega fogo. Vieram os vizinhos
de extintor em riste. E vieram, também, Ventura
e Amorim dar uma ajuda. Incendiário das redes
sociais e das sessões parlamentares, desta vez, o
deputado levou a expressão à letra.

LEI SECA
JSD sem gins

GETTY
Está finalmente reagendado o XXVI Congresso
Nacional da JSD. Devido à Covid-19, só a 24, 25 e
EUROGRUPO 26 de julho os “jotas” vão eleger o(a) sucessor(a)
de Margarida Balseiro Lopes, num conclave
que será realizado à distância. Pode parecer

A sineta muda de mãos


A espanhola Nadia Calviño parece bem posicionada
inexequível, mas será mesmo assim. O problema
maior, dizem as más-línguas, vai colocar-se
quando, no final de cada dia de trabalho, os jovens
não puderem ir tratar da mercearia dos votos,
para suceder a Centeno na liderança do grupo enquanto despacham umas cervejas, uns gins
ou uns uísques. Alexandre Poço e Sofia Matos, os
de ministros das Finanças do euro
candidatos, estão inconsoláveis. Serão saudades
antecipadas dos congressos em que por um copo
Depois de limpar a secretária no Terreiro do Paço, Mário Centeno se ganhava e por um copo se perdia?
prepara-se também para arrumar os papéis na Europa. Ao fim de
dois anos e meio de Ronaldo das Finanças, outros avançados se
perfilam para agitar a sineta do Eurogrupo, aquilo a que a The Eco-
nomist chamou “clube de jantares” tornado órgão decisor de políti-
cas financeiras da zona euro – e que corre o risco de irrelevância.
O prazo para o envio das cartas de motivação dos interessados, que
têm de estar obrigatoriamente à frente da pasta das Finanças, ter-
mina esta quinta-feira (à hora de fecho desta edição, não havia ainda
nenhuma formalização). A protocandidata mais bem posicionada pa-
rece ser a ministra da Economia espanhola, Nadia Calviño, que já teve
o apoio do primeiro-ministro, Pedro Sánchez, e concorreu a direto-
LUÍS BARRA

ra-geral do FMI. O nome do ministro das Finanças do Luxemburgo,


Pierre Gramegna, também é falado para o cargo (já tinha estado na
corrida em 2018), tal como o homólogo irlandês, Paschal Donohoe.
A eleição decorre em plena negociação do pacote financeiro de 750 AH, LEÃO!
mil milhões de euros – para enfrentar as consequências econó-
micas da pandemia –, que tem conheci- Aparição nas redes
João Leão assumiu funções como ministro de
do obstáculos por parte dos chamados
Estado e das Finanças na segunda-feira, 15, e
“quatro frugais” da União: Áustria, Suécia,
entrou logo no ritmo que se exige a uma das
Dinamarca e Países Baixos. Nos trabalhos
“TUDO O QUE do fórum, está ainda o fecho da união ban- mais altas figuras do Governo: não só começou
por reunir as equipas com que vai trabalhar,
É BOM TEM UM cária com a criação do sistema europeu de nos próximos anos, como também aderiu ao...
garantia de depósitos, que não tem reunido
FIM. MAS AINDA consensos no seio do grupo. Instagram. Naquela rede social, logo no dia
seguinte a ser empossado por Marcelo Rebelo
ME VERÃO AQUI A eleição do sucessor de Centeno decorrerá de Sousa, João Carvalho Leão (nome adotado
durante a reunião do Eurogrupo, no início
NA REUNIÃO de julho (dia 9 é o mais falado), e o novo para a conta oficial) partilhou uma fotografia da
cerimónia no Palácio de Belém. Na quarta-feira,
DE JULHO” presidente toma posse no dia 13 desse mês. 17, o sucessor de Mário Centeno voltou à carga e
MÁRIO CENTENO, A partir daí, Centeno volta à condição de publicou outra imagem, desta vez no Parlamento,
Comunicado da economista. E fica com caminho livre para, na qual intervinha no debate sobre o Orçamento
reunião em que por exemplo, liderar o Banco de Portugal Suplementar. Para quem tinha dúvidas, foi mesmo
anunciou não ser
recandidato ao – um cargo de que, como disse, “qualquer uma entrada de Leão – pelo menos online.
Eurogrupo economista pode gostar”. P.Z.G.

22 VISÃO 25 JUNHO 2020


OPINIÃO

Os populistas já
não andam sós
P O R I S A B E L M O R E I R A / Deputada do Partido Socialista

A
pedagogia permanente daquilo que
significa uma Assembleia da República
A Ordem dos Médicos
representativa de todos os portugueses quer afirmar que se a lei
estava a enfrentar, nos últimos tempos,
os populistas. Os populistas em várias
em causa for aprovada
vestes fazem do Parlamento um lugar carece de legitimidade.
distante, fechado, casa de “políticos” devi- Acontece que este ruído faz
damente caracterizados como “eles”, fora
da cidade, cheios de vícios e de privilé-
esquecer que a Assembleia
gios, gente que não sabe o que é o País da República representa
e fechada sobre si mesma.
A pedagogia permanente sobre o significado
os cidadãos e as cidadãs
do sufrágio universal, direto e secreto, uma conquista verdadeiramente, isto é,
da democracia, que faz da Assembleia da República todos eles, na pluralidade
a casa de todas e de todos, estava a enfrentar, nos últi-
mos tempos, os populistas.
das correntes políticas
A eficácia do ataque ao Parlamento parece ter con- e sensibilidades existentes
tagiado gente inesperada. Somos surpreendidos por
quem tem poderes delegados do Estado, como uma
e tem competência
ordem profissional, a fazer um discurso contra a legi- reservada na matéria
timidade democrática da casa da democracia. em causa. O lugar da
Vários projetos de lei sobre a morte medicamen-
te assistida foram aprovados, na generalidade, por
legitimidade, quando
ampla maioria. Em plena discussão na especialidade, falamos de morte assistida,
no âmbito da qual o Parlamento ouvirá quem quer ser
ouvido, a Ordem dos Médicos (OM) não se limita a
chama-se Parlamento
dar a sua legítima opinião. Anuncia, dramaticamente, e mal estaríamos se uma
que não cumprirá uma lei da República. ordem profissional, que
Ora, com esta posição, a OM quer afirmar que se
a lei em causa for aprovada carece de legitimidade.
recebe poderes delegados
Acontece que este ruído faz esquecer que a Assem- do Estado, o questionasse
bleia da República representa os cidadãos e as cidadãs
verdadeiramente, isto é, todos eles, na pluralidade das
correntes políticas e sensibilidades existentes e tem
competência reservada na matéria em causa. O lugar
da legitimidade, quando falamos de morte assistida,
chama-se Parlamento e mal estaríamos se uma ordem
profissional, que recebe poderes delegados do Estado,
o questionasse.
Mas questionou.
Há qualquer coisa de profundamente perturbador
quando a democracia representativa está a funcionar
normalmente, no caso em projetos de lei que assegu-
ram, naturalmente, o direito à objeção de consciência,
e a OM presume representar todos os médicos e mé-
dicas do País lançando um “veto” a uma futura lei.
As leis da República são para se cumprir, sabem
os democratas.
Os populistas já não andam sós. visao@visao.pt

25 JUNHO 2020 VISÃO 23


IMAGENS

REGRESSO
DA S M U LT I D ÕE S
O número de casos identificados com Covid-19 continua
a subir à escala global, mas também crescem as
aglomerações cada vez maiores de pessoas em locais
públicos – em sinal de protesto ou por pura diversão

FOTO: MARCO CANTILE / GETTY IMAGES

FOTO: MICHELE CATTANI / GETTY IMAGES

NÁPOLES, ITÁLIA
Os adeptos do Nápoles celebram a vitória
da sua equipa na final da Taça de Itália, frente
à Juventus, na Praça do Plebiscito... como nos
velhos tempos

NANTES, FRANÇA
Marcha contra a violência policial e em memória
do lusodescendente Steve Maia Caniço, encontrado
morto, há um ano, após uma carga das forças
FOTO: SCOTT HEINS / GETTY IMAGES

de segurança num concerto ao ar livre


FOTO: SEBASTIEN SALOM-GOMIS / GETTY IMAGES

NOVA IORQUE, EUA


Grande manifestação de ciclistas contra
o racismo, em Times Square, à semelhança
do que tem ocorrido, desde há três semanas,
nas grandes cidades americanas

24 VISÃO 25 JUNHO 2020


BAMAKO, MALI
Vista aérea da manifestação compacta, na Praça
da Independência, convocada pelo líder oposicionista
Imam Mahmoud Dicko contra o Presidente, Ibrahim
Boubacar Keita, e o seu Governo

BUDAPESTE,
HUNGRIA
Os membros
da claque do
Ferencváros
(conhecidos como
Monstros Verdes)
no jogo frente
ao Újpest FC,
que assinalou o início
FOTO: LASZLO SZIRTESI / GETTY IMAGES

dos desafios
no futebol húngaro
sem limitações para
espectadores

25 JUNHO 2020 VISÃO 25


IMAGENS

BERLIM, ALEMANHA
Visitantes observam a instalação It Wasn't Us, da artista
alemã Katharina Grosse, no museu de arte contemporânea
Hamburger Bahnhof, agora reaberto

FOTO: JOHN MACDOUGALL / GETTY IMAGES


FOTO: JORDI VIDAL / GETTY IMAGES

RIMINI, ITÁLIA
FOTO: YURI KADOBNOV / GETTY IMAGES

Alegria, sem máscara nem distância


de segurança, na reabertura do Villa
delle Rose, um dos mais famosos clubes
noturnos da Costa Adriática

MOSCOVO, RÚSSIA
Visitantes tentam tirar fotos a um panda
gigante no jardim zoológico da capital
FOTO: MAX CAVALLARI / GETTY IMAGES

russa, depois de este ter reaberto ao fim


de meses de confinamento

26 VISÃO 25 JUNHO 2020


BARCELONA, ESPANHA
O quarteto de cordas UceLi interpreta Crisantemi, de Puccini,
para uma audiência de 2 292 plantas na reabertura do Teatro
Liceu, após ser levantado o estado de emergência no país.
As plantas foram depois entregues a 2 292 profissionais
de saúde do Hospital Clínic, da cidade

PARIS, FRANÇA
Festa brasileira, no
bairro de Marais,
no primeiro dia da
Festa da Música,
uma iniciativa
criada em França,
em 1982, e que
agora se realiza
em mais de 120
países. Este ano, os
grandes concertos
FOTO: KIRAN RIDLEY / GETTY IMAGES

foram cancelados
devido à pandemia,
mas há muita
música nas ruas

27
CHEFES
ALTAMENTE
TÓXICOS
Líderes que humilham, que não deixam as pessoas brilhar.
Chefias autoritárias ou inseguras, que massacram as suas
equipas... O teletrabalho ameniza ou potencia os abusos? Fomos
à procura das histórias de quem sofreu sob o seu domínio
e mostramos como se pode dar a volta por cima
R O S A R U E L A E VÂ N I A M A I A

28 VISÃO 25 JUNHO 2020


25 JUNHO 2020 VISÃO 29
G
que me valeu foi eu ter a autorização documentos e escrevendo um diá-
por escrito”, diz, aliviado. rio factual sobre os acontecimentos.
Transferiram-no para outro ser- Também é fundamental ter provas
viço e Pedro não podia estar mais escritas do que se passa: “Tive uma
satisfeito: “Sempre gostei do meu cliente que passou mais de um ano
emprego, adoro o contacto com os a enviar diariamente emails à chefia
doentes, mas era como se carregasse a pedir trabalho. O objetivo não era
300 quilos em cada perna. Agora, saio ter uma resposta, mas ter o registo
de casa com vontade de trabalhar. É da situação.”
muito bom ter, finalmente, um chefe
que me ouve e que confia na minha EM VIAS DE EXTINÇÃO?
experiência.” A verdade é que os chefes estão
A advogada Rita Garcia Pereira, sempre num pedestal, porque têm
especialista em Direito do Trabalho, um papel de destaque. “Eles dão o
distingue dois tipos de chefes tóxicos. exemplo e tomam decisões, e nós
Os primeiros são os obcecados com os vemos constantemente o que fazem
resultados, mesmo à custa dos direitos bem e mal”, lembra a psicóloga or-
dos trabalhadores. Os segundos têm ganizacional Inês Lourenço. O pro-
“um perfil mais sociopata” e fazem da blema é quando estes chefes têm os
vida dos trabalhadores um inferno. tais comportamentos tóxicos e são
“A insegurança pode tornar os chefes protegidos, sublinha a coach que olha
“Gritos, gritos, gritos.” É desta forma autocráticos, assim como a inveja”, as estruturas hierárquicas como or-
que Pedro Pereira, 36 anos, resume afirma. Pelas mãos passam-lhe casos ganizações desatualizadas. “Vivemos
os seus dias de trabalho nos últimos de pessoas a quem é dado excesso num VUCA world, um acrónimo saído
18 anos. O assistente operacional de de trabalho ou a quem são retiradas das palavras volatilidade, incerteza,
um hospital de Lisboa foi obrigado funções, a quem são atribuídos ho- complexidade e ambiguidade, em
a habituar-se a ouvir a enfermeira- rários inconvenientes ou são elimi- inglês. Já não podemos esperar que
-chefe a chamar a si e aos seus colegas nados benefícios salariais ou mesmo as pessoas aceitem o princípio de que
“criados”. “Às tantas, já a conhecia pelo proibidas de serem cumprimentadas ‘Você é pago para não pensar’. Claro
andar e estava sempre atento para, pelos colegas... que as equipas têm de pensar e de
quando ouvisse os seus passos, fugir Rita Garcia Pereira aconselha os forma complexa.”
para outro sítio. Se me cruzasse com trabalhadores vítimas destas situa- No mundo em que vivemos, Inês
ela, era certo de que ia pôr defeitos no ções a manterem um registo escrito Lourenço acredita que os chefes tóxi-
meu trabalho”, conta. de tudo o que acontece, imprimindo cos estão em vias de extinção. “Hoje,
Era habitual ser-lhe pedido para queremos equipas superflexíveis e
desempenhar tarefas que não lhe multidisciplinares, em que as pessoas
competiam ou mesmo para fazer têm um papel e não uma função”, jus-
recados pessoais. “Uma vez, cheguei tifica. “São estruturas mais dinâmicas,
ao hospital às oito da manhã, ela veio que respondem bem às mudanças de
ter comigo toda simpática e pediu-me que a empresa vai precisando. Um

1 200
para lhe levar os sapatos ao sapateiro, espaço em que o feedback é constante
porque tinha partido os saltos. Andei e onde não cabem líderes tóxicos.”
à procura de um sapateiro pela cida- Sandrine Veríssimo, diretora re-
de inteira e, quando voltei, ela ainda gional de Lisboa do grupo de recru-
me acusou de ter demorado muito”, tamento Hays, sente sobretudo que as
recorda. As ameaças de despedimento novas gerações são menos permeáveis
ou de processos disciplinares eram a terem de lidar com este tipo de che-
constantes. E o desgaste foi-se acu- fias. “São pessoas que, se não estão
mulando. “Ela chamava-me ‘burro’, bem, ou saem da organização ou ex-
mas as outras pessoas elogiavam o põem frontalmente o seu desagrado.”
meu trabalho. Tinha uma boa autoes- Fazemos figas para que a sua extin-
tima fora do hospital, mas lá dentro ção esteja para breve quando ouvimos
sentia-me espezinhado”, confessa. QUEIXAS POR ASSÉDIO Fernando Neves de Almeida dizer que
Já tinha apresentado várias queixas existem “verdadeiros psicopatas” na
à administração, mas a gota de água LABORAL gestão. “Até podem parecer bons líde-
aconteceu em plena pandemia, quan- recebidas pela Autoridade para res, porque tendem a ser pessoas en-
do Pedro Pereira pediu autorização as Condições do Trabalho (ACT), cantadoras e ambiciosas, e, no limite,
para faltar no sentido de acompanhar no ano passado, vindas do setor fica-se com a ideia de que têm vocação
um familiar que ia ser operado. Apesar privado. Já os funcionários para aquilo”, observa o diretor-geral
de ter autorização da hierarquia supe- públicos entregaram 57 em Portugal da Boyden, empresa es-
rior, a enfermeira-chefe quis instau- reclamações à Inspeção-Geral pecializada em headhunting.
rar-lhe um processo disciplinar por de Finanças, durante o mesmo Mas não têm. E, a começar, porque
abandono do posto de trabalho. “O período não pensam nos outros nem olham a

30 VISÃO 25 JUNHO 2020


12 SINAIS DE UM CHEFE POUCO SAUDÁVEL
Todas as pessoas erram, mas a frequência, a duração e a intensidade de alguns comportamentos tóxicos indicam
que algo vai mal numa liderança. Porque ninguém quer um chefe que sistematicamente age como aqui descrevemos

1 2 3

NÃO SABE OUVIR NÃO DÁ O EXEMPLO NÃO DÁ AUTONOMIA


Só ouve aquilo que lhe Tem uma noção muito Vê a iniciativa como
interessa ou revela própria de moralidade – o uma ameaça ou mesmo
grande dificuldade que vale para ele não vale como um desafio à sua
em fazê-lo. Ignora, para os outros. Marca autoridade. Não respeita
interrompe, não deixa reuniões para as 8h da as capacidades das
responder, fazendo com manhã, mas só chega às pessoas, partindo do
que o interlocutor se 9h30, como se não fosse princípio de que elas não
sinta completamente nada. são capazes de evoluir.
desprezado.

4 5 6
NÃO HESITA NÃO CUMPRE NÃO DEIXA BRILHAR
EM HUMILHAR A PALAVRA Estereotipa as pessoas,
Dá apenas feedback Dá o dito por não dito. Pode, como se as colocasse
negativo e – pior – à frente inclusive, mentir para levar em caixinhas. Não sabe
de outras pessoas. Há avante os seus propósitos. ensiná-las nem as
quem argumente que “é Não é por acaso que muitas motiva a serem
para aprenderem”, um tipo das suas ordens são dadas melhores. E não atribui
de justificação que eterniza oralmente – para não os louros de algo que foi
esse comportamento. existirem provas. feito por um elemento
da sua equipa.

7 8 9
USA O CHICOTE DESCARTA CULPAS NÃO REVELA EMPATIA
Institui um ambiente Não assume Os sentimentos, as emoções
de terror, minando as responsabilidades. e as necessidades dos outros
interações da equipa. “Um por todos e todos não lhe interessam. Vê as
Como se trata de uma por um”, neste caso, tem dificuldades pessoais dos seus
relação desigual, as uma leitura dicotómica subordinados como uma mera
pessoas não têm muitas – se algo correu bem, o desculpa para justificar um
ferramentas para se mérito é todo seu; se algo fracasso. Não é capaz de se pôr
libertar desse medo. correu mal, a culpa é só no lugar do outro porque
dos outros. pura e simplesmente não
quer saber da sua existência.

10 11 12

É CONTROLADOR TEM PREFERIDOS NÃO TENTA MUDAR


Desconfia do subordinado e Não tem nenhuma equidade Mesmo que tenha capacidade
acredita que tem como função interna. Revela grande para o fazer, não tenta mudar
vigiá-lo e puni-lo. Não respeita o ambivalência na forma como os seus comportamentos – nem
seu tempo de lazer, muitas vezes trata as várias pessoas da sequer pensa nessa hipótese.
porque ele próprio não sabe sua equipa, fazendo com que É orientado para objetivos
planear as atividades. algumas não se apercebam individuais e não olha a meios
da sua toxicidade. para atingir os seus fins.

25 JUNHO 2020 VISÃO 31


meios para atingir os seus fins, nota
este especialista em recrutamento e SAIBA COMO SE PROTEGER
À LUZ DA LEI
autor de Psicologia para Gerentes e
A Arte de Gerir Pessoas, para quem
a pior maneira de causar danos num
trabalhador é através da humilhação.
O Código do Trabalho prevê
Logo a seguir vem a incapacidade de
vários mecanismos de defesa
ouvir, não saber ensinar a equipa, dos trabalhadores vítimas
ver defeitos em tudo, nunca elogiar, de abusos laborais
ser altamente controlador e não res-
peitar o tempo de lazer. “Estas serão
as mais graves, mas a lista continua”,
PROIBIÇÃO DE ASSÉDIO
alerta (ver caixa 12 Sinais de um Chefe
Seja moral ou sexual, o assédio está
Pouco Saudável).
expressamente proibido na legislação.
Sempre que tem à sua frente um
Nele incluem-se comportamentos com
candidato a um lugar de chefia, este o objetivo de “perturbar ou constranger
headhunter procura avaliar a sua a pessoa, afetar a sua dignidade, ou
inteligência emocional. “Tenho de de lhe criar um ambiente intimidativo,
perceber se é capaz de conduzir um hostil, degradante, humilhante ou
conjunto de pessoas motivadas para desestabilizador”. Quando conseguem
fazerem alguma coisa”, explica, “por- prová-lo, os trabalhadores têm direito a
que uma equipa que gosta de quem a ser indemnizados.
lidera é mais produtiva”.
Pelo contrário, um chefe tóxico LIMITAÇÃO DE HORAS
enlouquece as pessoas com quem EXTRAORDINÁRIAS
trabalha “ou leva-as a pôr as cordinhas Não pode ser exigido aos funcionários
nos sapatos”, acredita Fernando Neves que se mantenham permanentemente
de Almeida. “Não vão conseguir mu- ligados. De acordo com o Artigo
dá-lo e, a médio ou longo prazo, ele 228º do Código do Trabalho, não é
dá cabo da saúde mental delas. Podem permitido realizar mais de duas horas
confrontá-lo e tentar pô-lo em causa, extraordinárias num dia normal de
mas não é muito provável um chefe trabalho. O limite máximo do trabalho
ser ‘queimado’ por colaboradores.” suplementar admissível, previsto em
alguns contratos coletivos, é de 200
horas extras anuais.
“QUERO, POSSO E MANDO” recusou-lhe o pagamento do subsídio
Durante o pico da pandemia provocada ORGANIZAÇÃO DO TELETRABALHO
de férias por ter estado de licença
pela Covid-19, todos os funcionários Devido à pandemia, muitas empresas de maternidade. “Disse-lhe que me
da empresa onde trabalha Sofia, 35 estão a incluir nos contratos a tinha informado e que sabia que eu
anos, foram para casa em regime de possibilidade de prestação de tinha direito. Enviei-lhe os artigos
teletrabalho, exceto uma trabalhadora. teletrabalho. A legislação salvaguarda todos que mostravam isso”, recor-
“Fui sozinha para o escritório dias se- que os trabalhadores mantêm os da. Só receberia o subsídio que lhe
guidos”, conta a secretária administra- mesmos direitos e deveres nesta era devido seis meses depois. E veio
tiva que teria todas as condições para modalidade. acompanhado de uma ameaça: “Não
desempenhar as suas funções em casa. tentes medir forças comigo. Não tens
Chegou a enviar um email ao patrão ALTERAÇÃO DE FUNÇÕES noção do que sou capaz.”
a perguntar-lhe se a sua vida, e a dos Os trabalhadores só podem mudar Recentemente, contou ao patrão
seus familiares, valeria menos do que para uma categoria profissional que está grávida do segundo filho.
a dos restantes empregados, mas nada inferior se estiverem de acordo com “Outra vez?”, foi a reação. Depois do
o demoveu. “Ao menos ele não estava o empregador. Uma forma habitual nascimento do bebé, está decidida a
lá”, sublinha. Há quatro anos que Sofia de assédio é a atribuição de funções procurar outro emprego. “Isto assim
tem este emprego. Ao fim de seis me- que não estão ao nível da formação do não é vida.”
ses, o patrão começou a revelar o perfil trabalhador ou mesmo a retirada de Filipa Costa, dirigente do CESP
que, agora, não tem dificuldade em qualquer tarefa. – Sindicato dos Trabalhadores do
atribuir-lhe: “Sente-se inferiorizado Comércio, Escritórios e Serviços de
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
porque qualquer um dos funcionários Portugal, denuncia a pressão exer-
Se o empregador propõe a cessação
tem mais formação do que ele, e isso do contrato, sem justa causa, o
cida sobre as mães trabalhadoras. “A
torna-o prepotente, agressivo e mal- trabalhador tem o direito de recusar. gravidez devia ser motivo de alegria
-educado. É um frustrado”, remata. Por outro lado, caso não concorde também no local de trabalho, mas
A relação agudizou-se quando So- com os motivos invocados para o muitas vezes não é assim. Até as idas
fia engravidou do primeiro filho, há seu despedimento, pode impugnar a às consultas são dificultadas.”
três anos, o que não terá agradado ao decisão em tribunal. Também pode ser Depois de o bebé nascer, os pro-
dono da empresa. Quando regressou o trabalhador a invocar justa causa, por blemas mantêm-se: “Se alguém não
ao trabalho, depois de ter dado à luz, exemplo, devido a assédio. puder fazer mais uma hora, porque

32 VISÃO 25 JUNHO 2020


ALÉM DE GRITAR
MUITO, A CHEFE
DE PEDRO
PEDIA-LHE PARA
FAZER RECADOS
PESSOAIS, COMO
LEVAR-LHE OS
SAPATOS AO
SAPATEIRO
PORQUE TINHA
PARTIDO
OS SALTOS

tem de ir buscar os filhos à escola,


acaba por ser prejudicado.” A pan-
demia também trouxe complicações.
“Não houve respeito nenhum. Alte-
raram-se horários, sem dizer nada,
indo ao encontro do perfil do ‘quero,
posso e mando’.”

TRABALHO A TODA A HORA


À partida, Ana Loya, psicóloga das
organizações e especialista de recur-

COMO SE TORNAR UM CHEFE MELHOR


sos humanos da The Key Talent, não
conta com a hipótese de um chefe tó-
xico deixar de o ser. “Qualquer pessoa
pode dar-nos um grito ou irritar-nos
Para a psicóloga organizacional Inês Lourenço, devemos começar
um dia, mas aqui tem que ver com a
por fazer o trabalho de casa – ou seja, olharmos para nós próprios
antes de olharmos para os outros
frequência, a duração e a intensidade
– é o padrão da relação”, lembra.
Dos quase 30 anos que passou a
AUTOCONHECER-SE melhores. E ajudar a DAR O EXEMPLO
entrevistar pessoas, Ana Loya recorda
Deve tomar consciência da orientar para um bom Tem sempre de fazer o
que habitualmente elas não queriam
forma como se comporta. caminho (seja para elas mesmo que pede aos seus
sair das empresas. Só trocavam de
Olhar-se através dos olhos próprias, seja para a colaboradores, ao nível dos
dos outros e trabalhar a valores. No fundo, estamos
emprego para se livrarem de um líder
empresa).
inteligência emocional, a falar de “liderança nocivo. “A maior parte das vezes, não
nomeadamente aprender o ESCOLHER O MOMENTO autêntica”. há saída. Porque é que as pessoas se
autocontrolo. O feedback deve ser dado divorciam? Porque o casamento se
aos colaboradores na SER UM LÍDER COACH tornou um inferno”, compara.
TER EMPATIA altura certa. Nunca pode É importante acreditar que Quando a pessoa-alvo está bem
Tudo começa por ser feito à frente de toda a as pessoas podem mudar, noutros aspetos da sua vida e tem
saber pôr-se na pele gente. elas próprias. E dar-lhes recursos psicológicos estruturados, a
do outro. Precisamos ferramentas para que toxicidade não chega a “entrar”, nota
de ter empatia para AJUDAR A CRESCER consigam fazê-lo. a mesma especialista. “Mas, de um
conseguirmos gerir O desenvolvimento da modo geral, é muito difícil lidar com
emoções positivas e equipa tem de estar VALORIZAR A um chefe tóxico, porque faz a pessoa
motivar os colaboradores. nas suas preocupações. DIVERSIDADE sentir-se mal todos os dias e com
Deve criar contextos de Não deve querer apenas intensidade, e ela entra em burnout,
LIDERANÇA COMPASSIVA aprendizagem para as pessoas iguais a si. fica esgotada pela toxicidade.”
É importante perceber pessoas poderem evoluir As diferenças só nos O regime de teletrabalho, adotado
que, por vezes, os e sentirem-se felizes e enriquecem, sobretudo por milhares de pessoas por causa da
comportamentos das úteis. numa interação laboral pandemia, também pode ter servido
pessoas não são os mais criativa.
para muitas delas tomarem a decisão

25 JUNHO 2020 VISÃO 33


de deixar o emprego, aventa a psicólo-
ga. “Nalguns casos, a distância tornou
a relação mais fácil, mas vi pessoas a
serem ainda mais massacradas, com
solicitações a toda a hora.”
“O ideal é ser graxista”, diz, desilu-
dido, o engenheiro do ambiente que
prefere que lhe chamemos António
por temer represálias. Este técnico
superior da Função Pública de 40
anos afirma que tem sido recorrente,
ao longo da sua carreira, cruzar-se
com chefias que “não têm mérito
para o cargo” e que, por causa das
suas inseguranças, se tornam agres-
sivas. “Na Função Pública, este é um
problema generalizado, porque a
meritocracia nem sempre funciona”,
denuncia. “Quando um trabalhador
dá uma sugestão, muitas vezes ela é
vista como uma crítica e não como um
contributo”, lamenta, antes de acres-
centar: “Quanto mais competente é
uma pessoa, mais é vista como uma
ameaça e acaba prejudicada.”
O secretário-geral da Federação de
Sindicatos da Administração Pública
(FESAP), José Abraão, identifica um
grave problema: “Os chefes tóxicos,
muitas vezes, têm uma grande pro-
teção política, daí defendermos a
crescente despolitização dos cargos”,

O CHEFE IDEAL DOS PORTUGUESES


afirma.
Atualmente, António tem o que
chama “chefe neutro”, mas, durante a
pandemia, deu por si a trabalhar mais
horas do que o habitual no regime de Estudo aponta as características que mais valorizamos num líder
teletrabalho: “Inicialmente, a chefia
queria que toda a gente se adaptasse Para a maioria, Uma minoria Outras
ao horário que mais lhe convinha, que a expressão “chefe ideal” respondeu palavras que vêm
era à tarde e à noite, esquecendo-se é sinónimo de de imediato à cabeça
BONDOSO
de que as pessoas trabalham até às COMPREENSIVO JUSTO
NÃO EXISTE
seis da tarde... Dei por mim a ir ver o
RESPEITADOR DIÁLOGO AMIGO
email a meio da noite.”
LÍDER CHATO RESPONSÁVEL
AUTONOMIA E PRODUTIVIDADE SIMPÁTICO DEMOCRÁTICO MOTIVADOR
Ainda antes da imposição da quarente- COMPETENTE ORGANIZADO
na, já Sandrine Veríssimo, da Hays, sabia
de cor que gerir equipas remotamente Os inquiridos que desempenham eles próprios cargos de chefia apontam
pede alguns cuidados. Se, por um lado, exatamente as mesmas características avançadas pelos restantes trabalhadores
é preciso dar um sentido de autonomia
aos trabalhadores, por outro deve-se
garantir que eles estão satisfeitos e são As pessoas Os Baby Boomers A X Generation Os Millennials
produtivos, escreveu num artigo que nascidas (1946-1964) (1965-1980) (1981 e 2001)
partilhou em meados de março. entre 1928 e 1945 querem-no começa por seguem a
Para começar, é preciso delegar ao (Silent respeitador, responder geração anterior,
máximo e confiar que os colaborado- Generation) líder, competente “compreensivo” e mas destacam
res vão saber gerir o tempo da melhor valorizam um chefe e simpático só depois refere a simpatia em
forma, lembrou esta especialista em compreensivo e que também deve detrimento
respeitador ser respeitador, da competência
recursos humanos. Depois, deve-se
líder e competente
assegurar que a informação circula
FONTE Como é o Chefe Ideal?
facilmente e em ambos os sentidos, Um Estudo Sobre a sua Representação Social em Portugueses, de Lisete Mónico, Leonor Pais, Inês Pratas
nomeadamente com a ajuda de pla- e Nuno Rebelo dos Santos, Revista da Associação Portuguesa de Psicologia, 2019

34 VISÃO 25 JUNHO 2020


A falta de respeito pelo tempo de cavam como potenciais adversários
lazer acabou por ajudar Mariana a to- numa promoção ou que respondiam
mar a decisão de pedir para mudar de sempre torto aos funcionários que
departamento. E, agora que está a uns colocavam alguma dúvida. Resultado:
dias de regressar ao trabalho presen- “Os elementos da equipa só pediam
cial, não tem dificuldade em apontar ajuda em último recurso e o trabalho
duas outras características tóxicas da corria pior.”
chefe anterior: “Além de ser muito Também está familiarizado com
desorganizada, não sabia ouvir. Fazia as chefias obcecadas pelos objetivos.
uma pergunta, mas a meio da resposta “Há uma tendência para exigir resul-
já se punha a olhar para o telefone ou tados, sem se investir na formação das
mesmo a atender uma chamada.” pessoas. É querer fazer omeletes em
ovos”, sintetiza. O sindicalista deixa
A CONVERSAR É QUE alguns conselhos para lidar com os
NOS ENTENDEMOS? elementos perturbadores no local
“A maior parte das pessoas pensa que de trabalho: “É fundamental manter
a sua chefia direta é intocável, mas não a calma para não perder a razão. Eu
é verdade. Há sempre um superior”, tento respirar fundo e, às vezes, só
defende Danilo Moreira, 43 anos, abordo a situação no dia seguinte a
presidente do Sindicato dos Trabalha- ter acontecido.”
dores de Call Center. “Tento sempre A advogada Madalena Januário,
resolver as questões diretamente com com duas décadas de experiência na
a pessoa em causa, mas, quando não é área do Direito do Trabalho, não he-
possível, vou subindo na hierarquia”, sita em dizer que “os mecanismos de
explica. Ao longo dos 14 anos a que defesa dos trabalhadores são muito
está ligado à profissão, expôs vários poucos”. Uma estratégia habitual dos
problemas aos recursos humanos ou assediadores é atribuir tarefas impos-
à administração das empresas onde síveis de cumprir para que a pessoa
trabalhava. “Nas cinco vezes em que se sinta incompetente e também seja
isso aconteceu, todas as situações se vista dessa forma pelos colegas. Ou,
resolveram. Inicialmente, o ambiente pelo contrário, não atribuir quaisquer
não ficou muito bom, mas a situação funções. “Hoje, procura-se que as em-
taformas online, sem que as conver- anterior era ainda pior. Passado algum presas tenham códigos internos que
sas se restrinjam ao negócio. “Tente tempo, o trabalho começou efetiva- previnam estas situações e mecanis-
conversar sobre eventos locais, ou mente a funcionar melhor”, garante. mos que permitam aos trabalhadores
sobre os interesses pessoais”, suge- Danilo Moreira já conheceu chefes fazerem queixa, sem sofrerem repre-
riu. “Conhecer as suas equipas ao que não partilhavam informações sálias. O ideal é que sejam entidades
nível pessoal é importante para de- com os subordinados que identifi- externas a avaliarem as situações, mas
senvolver uma relação que contribui isso implica investimento, claro”, nota.
invariavelmente para graus mais ele- A missão da advogada passa, mui-
vados de satisfação profissional e de tas vezes, por conseguir provas que
produtividade.”
Por fim, Sandrine Veríssimo dei-
QUANDO SOFIA tornem os abusos visíveis. As con-
versas por escrito ganham, por isso,
xou uma última dica preciosa, “um CONTOU AO especialmente relevância. Quando o
pormenor e talvez óbvio”, diz, “mas
que não pode ser esquecido” quando
PATRÃO QUE desfecho é favorável para o traba-
lhador, há lugar a indemnização. “A
se agendam chamadas. “Marque as ESTÁ GRÁVIDA DO jurisprudência ainda é muito caute-
reuniões virtuais para uma hora que
seja conveniente para as duas partes”, SEGUNDO FILHO, losa nos valores. Tenho pessoas que
passaram anos voltadas para uma
aconselhou.
Parece uma dica desnecessária,
A REAÇÃO FOI: parede e que receberam 10 ou 20 mil
euros, mas conheço o caso de um
mas nos últimos meses teria sido “OUTRA VEZ?”. funcionário bancário que recebeu 100
útil a Mariana Silva, técnica superior
numa câmara da Grande Lisboa, a
DURANTE O mil”, contabiliza.
O teletrabalho, acredita, poderá
quem trocámos o nome para garantir CONFINAMENTO, ter aligeirado muitas situações. “Não
a confidencialidade. “O teletrabalho
realçou uma característica da minha FOI A ÚNICA é tão fácil praticar assédio por escri-
to ou por videoconferência, mas a
chefe que sempre deu comigo em FUNCIONÁRIA distância não impede que se peçam
doida: ela está constantemente ‘ligada’ novas tarefas de duas em duas horas.
e parte do princípio de que nós tam- QUE NÃO FOI O teletrabalho talvez seja mais eficaz
bém estamos.” Uma vez à distância, as
mensagens por WhatsApp multipli-
COLOCADA EM a prevenir situações tóxicas do que a
alterar as que já existem”, conclui.
caram-se, conta, “e a qualquer hora”. TELETRABALHO visao@visao.pt

25 JUNHO 2020 VISÃO 35


Tomas Chamorro-Premuzic
Chief Talent Scientist no ManpowerGroup

Em todos
os fatores-chave
da liderança, as
mulheres têm uma
performance melhor
do que os homens
TIAGO FREIRE

T
omas Chamorro- acerca de tudo ser, na verdade,
Premuzic, 44 anos, é um um líder melhor?
especialista que junta Só as pessoas que não têm a certeza
psicologia e mundo dos acerca de tudo têm a capacidade de
negócios, estudando há ser líderes competentes. Isto nunca
vários anos o fenómeno foi mais verdade do que é hoje.
da liderança e a razão Todos nós – as nossas famílias, as
pela qual a Humanidade nossas comunidades e os nossos
tende a falhar na escolha governos – vivemos tempos
dos chefes. Na opinião imprevisíveis e de mudanças muito
do autor de Porque é que tantos rápidas, à medida que a Covid-19
homens incompetentes se tornam afeta o nosso local de trabalho e
líderes?, somos vulneráveis ao a nossa vida diária. Um bom líder
aparente carisma e autoconfiança está confortável com não saber
de quem temos à frente. O todas as respostas. A dúvida não
resultado é escolhermos pessoas
que parecem competentes, mas
é uma condição agradável, mas
a certeza total é um absurdo!
O QUE UM LÍDER
estão longe de o ser, tendo muitas Podemos ter dificuldades em SABE É MENOS
vezes traços de narcisismo e de
falta de empatia, que acabam
acreditar naqueles que demonstram
inseguranças ou dúvidas, mas IMPORTANTE
por destruir equipas e culturas
empresariais. O remédio que
sermos seduzidos por aqueles que
não têm quaisquer dúvidas sobre
DO QUE AQUILO
propõe parece simples: tomar si próprios é certamente uma QUE PODE
APRENDER
menos decisões com base no receita para o desastre. Note que
instinto e contratar mais mulheres a confiança raramente é um sinal
para cargos de liderança. de competência. Precisamos de
Normalmente, tendemos aprender a detetar competência nos
a ser atraídos por líderes líderes, antes de decidirmos quem
carismáticos, mas poderíamos vamos seguir.
beneficiar mais se optássemos Quais são os efeitos mais comuns
por pessoas com maior que um chefe incompetente tem
humildade. Poderá uma pessoa sobre uma organização?
que não tem tantas certezas Causam alienação face à

36 VISÃO 25 JUNHO 2020


APRENDA A LIDAR
COM UM LÍDER NOCIVO
Para quem está de fora da relação
laboral, é mais fácil falar. Por isso
os psicólogos conseguem dar dicas
objetivas de como “dar a volta” a
um chefe tóxico

ATITUDE NINJA
Se estiver com a autoestima no lugar e se
sentir forte, aguenta mais facilmente esta
área “menos boa” da sua vida.

INVESTIR NA VIDA
Vale a pena valorizar outros aspetos do
seu dia a dia – até os hobbies. Se não olhar
para o trabalho como a coisa mais impor-
tante da sua vida, o comportamento tóxico
do chefe não o afeta tanto.

SABER COMUNICAR
Convém aprender a dar feedback, porque
a maneira como comunica tem impacto
no seu chefe. Tem de ser assertivo e
deixar de lado as emoções, sem temer as
consequências.

ESCREVER E GUARDAR Além de desem-


penhar impecavelmente as tarefas, deve
acompanhá-las com comunicações por
escrito, sobretudo se o seu chefe também
comunicar dessa forma. Poderá, assim,
provar que fez aquilo que lhe foi solicitado.

OLHAR PARA SI
Não deve ter vergonha nem sentir-se mal
por causa do comportamento do seu che-
fe. Este pode ser, aliás, um bom momento
para olhar para si e pensar: “Estarei a ser
resiliente?”

TER “A” CONVERSA


Vale a pena tentar uma conversa franca,
organização, desempenho abaixo Se o carisma é uma ferramenta explicando, sem fazer acusações, o modo
do potencial e provocam stresse de sedução de curto prazo que como se sente. Nem sempre as pessoas
e ansiedade nas suas equipas. ajuda as pessoas a subir na vida e têm noção do alcance das suas próprias
Criam culturas tóxicas e destroem a serem escolhidas como líderes, ações.
a performance e a cultura a integridade é aquilo em que
organizacional. podem apostar para beneficiar da PROCURAR AJUDA
Como se resolve isso? confiança das pessoas no longo Não conseguindo resolver a situação,
É seguir a Ciência: procurem traços prazo. E isso são boas notícias. deve expô-la a alguém dentro da própria
que fazem das pessoas melhores A pandemia forçou muita empresa. Talvez os Recursos Humanos
apresentem uma solução. Caso contrário,
líderes, especialmente quando, por gente a trabalhar em casa. Que
está a perpetuar essa situação, correndo o
norma, isso não faz das pessoas desafios traz esta situação para
risco de ela se tornar um monstro.
líderes. Usem dados e informação, os líderes?
em vez da intuição. E não se Tipicamente, as discussões acerca PREPARAR A SAÍDA
baixe o nível de exigência para as de trabalhar de casa, trabalho No limite, se verificar que a toxicidade já
mulheres; em vez disso, suba-se virtual e horas de trabalho flexíveis está a afetá-lo a um nível psicológico, tem
o nível que exigimos aos homens. focam-se mais no empregador do de equacionar a hipótese de mudar de
Qualidades como autocontrolo, que nos empregados. As pessoas emprego. Deve parar de varrer o problema
altruísmo e integridade são agora assumem que os empregados são para debaixo do tapete e encarar a saída
mais importantes do que nunca. uma categoria uniforme. Tomam como uma oportunidade.

25 JUNHO 2020 VISÃO 37


decisões tentando avaliar se todos
beneficiam com o trabalho em casa
ou não, ou se serão todos mais
produtivos ou não se escolherem
as suas próprias horas de trabalho,
deixarem de responder a emails
depois das seis da tarde ou tiverem
férias ilimitadas. No entanto,
todas as pessoas são diferentes,
e qualquer forma de trabalhar
será mais adequada a umas do
que a outras. Este é o momento
de os líderes repensarem como
organizamos o trabalho, onde
o fazemos, quem o faz e que
quantidade é necessária. Agora,
enquanto isto está fresco na mente
de empregados e empregadores.
Para fazer isto, os líderes devem
perguntar às pessoas o que
funciona para elas. Dando essa
informação e essa perspetiva neste
tema, pode ser um passo que
permita uma força de trabalho mais
saudável.
Muitas pessoas falam desta
situação como o verdadeiro
teste às lideranças nas empresas.
Acredita que estes últimos
meses tornaram clara, de modo
definitivo, a falta de qualidade
de alguns líderes e a qualidade
“escondida” de outros?
O futuro sempre foi incerto,
mas hoje estamos mais do que
nunca certos disso. O bem-estar
físico e mental das pessoas,
organizações e sociedades inteiras
está sob enorme ameaça, mudando
dramaticamente as prioridades
dos líderes empresariais. Líderes
competentes originam altos Ainda é a norma promover a
níveis de confiança, compromisso posições de liderança pessoas
e produtividade, enquanto os que são boas na função que
incompetentes resultam em NÃO SE BAIXE desempenham mas que não
trabalhadores ansiosos e alienados, serão necessariamente bons
que praticam comportamentos O NÍVEL DE chefes?
laborais contraprodutivos. Está na
hora de nos deixarmos de discursos
EXIGÊNCIA PARA Sim, mas está a diminuir.
Antigamente, uma pessoa tornava-
vazios acerca da humildade e da AS MULHERES; se líder com base em quem
integridade, até que pratiquemos
o que defendemos e escolhamos EM VEZ DISSO, conhecia (nepotismo ou relações do
círculo social/capital social); depois,
os líderes com base nestes traços. SUBA-SE O NÍVEL isso passou a depender mais do
Em vez de promovermos pessoas
com base no seu carisma, excesso QUE EXIGIMOS que a pessoa conhece (capital
intelectual ou hard skills); agora,
de confiança ou narcisismo, temos
de colocar ao leme pessoas com
AOS HOMENS as melhores organizações sabem
que o fator diferenciador chave
real competência, humildade e é o que a pessoa faz (soft skills
integridade. ou capital psicológico), incluindo
Ainda há uma obsessão pela como se relaciona com as outras.
valorização de competências Ser um líder é ter competências
técnicas, por oposição à pessoais, mais do que ser
competência para gerir pessoas? competente a resolver problemas.

38 VISÃO 25 JUNHO 2020


No alvo “Em vez de Defende que, para conferir mais
promovermos pessoas representatividade às mulheres,
com base no seu carisma,
não devemos incentivá-las a agir
excesso de confiança ou
mais como homens.
narcisismo, temos de
colocar ao leme pessoas
Em vez de pedirmos às mulheres
com real competência, que se atirem a um desafio quando
humildade e integridade” não têm talento para corresponder
ao mesmo, que passem muito
tempo em autopromoção ou
fiquem com os louros de resultados
dos outros, ou que concorram a
trabalhos para os quais não têm
qualificação – tudo coisas que
os homens incompetentes fazem
para serem bem-sucedidos –,
deixemos de valorizar pessoas que
Tem trabalhado muito o tema não são tão competentes como
do sexismo. Que características parecem. Não culpem as mulheres;
têm as mulheres que as tornam, consertem o sistema, que está
geralmente, melhores líderes? manipulado. Não ajudem as
Inteligência emocional, integridade, mulheres a serem bem-sucedidas
autocontrolo, humildade, empatia, num jogo viciado; mudem as regras
capacidade para ser treinada do jogo para que as melhores
e até qualificações. Em todos pessoas sejam bem-sucedidas. A
estes fatores-chave de eficácia solução para um mundo gerido por
na liderança, as mulheres têm pessoas com excesso de confiança
uma performance melhor do que não é fazer com que a outra metade
os homens, em média. Uma das do mundo aja da mesma forma!
razões pelas quais não fizemos um A televisão dos últimos anos
progresso suficientemente rápido tem-nos apontado figuras como
na paridade de género é porque Walter White ou Tony Soprano
continuamos a tomar decisões de como exemplos de liderança.
contratação e promoção através Qual poderá ter sido o impacto
de entrevistas ou nomeações destes símbolos na cultura pop?
subjetivas com base no nosso Não creio que sejam assim tanto
instinto. Há muitas provas de que vistos como líderes, mas sim heróis
“gostamos” e contratamos pessoas contraculturais que emergiram em
semelhantes a nós – o que não é resposta ao que muitas pessoas
ótimo para as mulheres e pessoas sentem como regras arbitrárias
não-brancas, particularmente ou hipócritas. São personagens
num ambiente em que homens moralmente ambivalentes
O conhecimento especializado foi compõem a maioria das posições que demonstram, ao mesmo
desvalorizado, porque o que você atuais de liderança. É por isso que, tempo, motivações antissociais e
sabe é menos importante do que o quando as organizações afirmam antissistémicas, mas não creio que
que você pode aprender. Os líderes estar a contratar pessoas que se faça sentido pensar que as pessoas
de topo são curiosos, humildes e enquadram na cultura da empresa, quereriam ser lideradas por eles.
empáticos. Têm alguma experiência estão – inadvertidamente ou Além disso, Tony Soprano é um
relevante e competência técnica, não – a perpetuar a sua falta de arquétipo masculino, enquanto
mas não é isso que os torna diversidade. Em 2015, consultámos Walter White é bastante feminino.
bons. Precisam de conseguir 222 líderes (estabelecidos e em Se nos derem a escolher entre
gerir pessoas com competências processo de afirmação, homens um líder incompetente mas
técnicas, em vez de adquirirem eles e mulheres) em 25 países, para carismático e um menos
próprios todas essas competências. identificar as barreiras à paridade “magnético” mas mais competente
No ManpowerGroup, onde de género e também para a gerir a sua equipa, devemos
trabalho, ajudamos as empresas a desenvolver soluções para acelerar sempre escolher a segunda opção,
identificar e a desenvolver futuros o processo. A maior barreira, em qualquer circunstância?
líderes, com entrevistas desenhadas identificada tanto por homens Sim! O carisma é apenas um
profissionalmente e com a ajuda como mulheres, é uma cultura amplificador: quando as pessoas
de pressupostos cientificamente masculina entrincheirada. Esta são éticas e competentes, isso
validados, que reduzem os nossos cultura é baseada nos méritos torna-as mais eficientes, mas
preconceitos e os nossos viés, definidos por homens, é marcada quando são incompetentes, o
para aumentar a qualidade na pelo presentismo e definida por carisma torna-as letais.
contratação. critérios masculinos. tfreire@exame.pt

25 JUNHO 2020 VISÃO 39


Manuel Sebastião
Amizade com
Manuel Pinho
não está em causa.
E os negócios?
LUSA
O SENHOR
QUE SE SEGUE
NO CASO EDP
O Ministério Público está a ponderar juntar o processo
das barragens ao caso das rendas da EDP. Muitos
factos estão interligados, até pelas personagens:
Manuel Sebastião, que se reuniu quatro vezes com
Pinho antes de ser nomeado para a Autoridade
da Concorrência, deverá ser ouvido em breve
S Í LV I A CA N E C O
638
MILHÕES
Valor que a EDP pagou
pela exploração das
centrais hidroelétricas
Manuel Sebastião estava há apenas três meses do Alqueva [um
a ocupar o discreto lugar de presidente da Au- montante inicial
de €195 milhões,
toridade da Concorrência (AdC) quando, em
acrescido de rendas
junho de 2008, aquela entidade reguladora
anuais de €12,7
publicou o seu parecer sobre um ajuste direto
de mais de 638 milhões de euros atribuído à
EDP. Estava em causa a exploração das duas
principais centrais hidroelétricas do Alqueva,

701,6
por um período de 35 anos. Tudo apontava
para a necessidade de ser lançado um con-
curso público internacional ou de ser criada
uma empresa pública, tendo em conta os
elevados montantes envolvidos. Mas não foi
isso que aconteceu: a decisão final do Estado
recaiu sobre a adjudicação direta da explora-
MILHÕES
ção daquelas barragens à empresa de energia. A auditoria do Tribunal
Anos depois, o Tribunal de Contas arrasou de Contas concluiu que
aquele contrato: disse que o interesse público os pagamentos da EDP
não tinha sido “salvaguardado”, que o valor como contrapartida da
global de 638,45 milhões de euros deste ajus- exploração das duas
te não estava suportado em estudos e que a centrais hidroelétricas
EDP só conseguira a concessão da exploração equivaliam a 701,6
daquelas barragens porque o Estado usara a milhões de euros em
favor da elétrica legislação que, afinal, naquela
data já não existia (tinha sido revogada).
O processo já tinha sido alvo de intenso

1 200
debate quando, no início de 2008, e após a
formalização da notificação da operação pela
EDP, a AdC abriu um processo para avaliar cia tenha notado que poderia haver, por parte
se a concentração de ativos esbarrava na Lei da empresa, “reforço de posição dominante”, da
da Concorrência. A 20 de março, Manuel Se- qual poderiam “resultar entraves significativos à
bastião foi nomeado para liderar a entidade
reguladora (substituindo Abel Mateus). E, a
MILHÕES concorrência” nos mercados, a autoridade res-
ponsável por zelar pelas regras da concorrência
27 de junho de 2008, a AdC comunicou ter O DCIAP diz limitou-se a impor uma lista de condições a
decidido “não se opor à operação de concen- que decisões serem cumpridas a posteriori pela EDP, que
tração”, que consistia na aquisição, pela EDP governamentais ninguém sabe bem se foram cumpridas.
(EDP Produção) à EDIA (Empresa de Desen- relacionadas com os Esta é uma das decisões que não passaram
volvimento e Infra-Estruturas do Alqueva), CMEC e a extensão ao lado da investigação do caso EDP, processo
dos direitos de exploração da componente da exploração de 27 que começou em 2012, centrado em questões
hidroelétrica do Alqueva, constituída pelas barragens beneficiaram muito técnicas, relacionadas com as chamadas
barragens e centrais hidroelétricas do Al- a elétrica neste rendas excessivas na energia, e foi aumentando
queva e Pedrógão, e dos direitos de utilização à medida que os estilhaços dos emails e outros
privativa do domínio público hídrico para elementos de prova recolhidos nos processos
produção de energia elétrica. BES e Marquês atingiram outros alvos – como
A operação de concentração incluía a aqui- Manuel Pinho ou Ricardo Salgado – e destapa-
sição, pela EDP Produção, de duas centrais ram alegados favorecimentos governamentais
hidroelétricas que já se encontravam em funcio- à EDP e supostos subornos atribuídos pela
namento e, embora a Autoridade da Concorrên- empresa de energia. E, agora, o processo, que

42 VISÃO 25 JUNHO 2020


ANTÓNIO MEXIA FUTURO NA EDP EM SUSPENSO
O Ministério Público quer afastá-lo de funções, mas Mexia defende que só os
acionistas da empresa podem destituí-lo. Carlos Alexandre vai decidir.

O QUE DIZ O MINISTÉRIO PÚBLICO O QUE DIZ A DEFESA

Os procuradores Carlos Casimiro Na resposta de 177 páginas


Nunes e Hugo Neto dizem que enviada ao Tribunal Central de
António Mexia cometeu quatro Instrução Criminal (TCIC), e à qual
crimes de corrupção ativa e um de a VISÃO teve acesso, António Mexia
participação económica em negócio e Manso Neto argumentam que o
António Mexia
em várias contratações, contratos e Ministério Público não pode pedir
O Ministério
patrocínios decididos pela EDP. E que que sejam suspensos de funções,
Público quer que
essa terá sido a forma que a elétrica pois sendo a EDP uma empresa
o presidente da
terá arranjado para pagar decisões 100% privada, com capitais 100%
EDP seja suspenso
governamentais e favores que lhe privados (só a EDP Distribuição
de funções. A
terão rendido, pelo menos, 1 200 tem outro estatuto), apenas os
decisão está nas
milhões de euros. Mexia é suspeito acionistas o podem fazer. “Nenhum
mãos do juiz Carlos
de, juntamente com João Manso titular dos órgãos de gestão da
Alexandre
Neto, presidente da EDP Renováveis, EDP assume a qualidade legal de
ter corrompido quatro pessoas: titular de cargo público, agente
Manuel Pinho, ex-ministro da da Administração ou funcionário
Economia, através de um patrocínio público”, alegam.
da EDP à Universidade Columbia, que Ainda assim, a defesa dos
serviu para pagar o salário de Pinho gestores já percebeu que o
como professor naquela instituição Ministério Público tem outra
de ensino em Nova Iorque; João Faria forma de alcançar o mesmo fim:
Conceição, consultor de Pinho, que mesmo que Carlos Alexandre não
terá enviado informação confidencial aplique a suspensão de funções,
à EDP e através de Mexia conseguido se aplicar a proibição de sair do
um posterior emprego no BCP; País e a obrigação de entrega
Miguel Barreto, ex-diretor-geral de do passaporte, António Mexia
Energia e Geologia a quem a EDP não conseguirá desempenhar
terá comprado uma empresa da qual na mesma as suas funções:
era sócio por 1,5 milhões de euros; “Conscientes da aberração jurídica
e Artur Trindade, ex-secretário de que peticionam, porque o fim de
Estado da Energia, que a elétrica afastar os arguidos justifica todos
terá compensado com a contratação os meios, para o caso de não
do pai, em 2013, para o Comité de conseguirem contar com a ajuda
Acompanhamento das Autarquias. do juiz de instrução criminal para
Por fim, a investigação aponta ainda trazer à vida este nado-morto,
a Mexia um crime de participação peticionam todo um arsenal de
está nas mãos de dois procuradores do Depar- económica em negócio, por medidas de coação – proibição de
tamento Central de Investigação e Ação Penal supostamente ter favorecido o Grupo entrada nas instalações da EDP +
(DCIAP), pode vir a engordar ainda mais. Ao Lena e a Bento Pedroso Construções proibição de contactos + proibição
que a VISÃO apurou, os procuradores Carlos (do grupo brasileiro Odebrecht) na de ausência para o estrangeiro,
Casimiro Nunes e Hugo Neto estão a ponde- construção da barragem do Baixo cujo propósito combinado é o de
rar ir buscar provas a outro processo de que Sabor. Os procuradores juntaram conseguir o mesmo fim visado pela
testemunhos, emails, informação suspensão de funções.”
também são titulares para juntar a este: o pro-
bancária e notas de agenda em 189 Recordando que o processo nasceu
cesso das barragens, que nasceu de uma queixa
páginas para pedir o agravamento em 2012 e que sempre colaborou
apresentada pela organização ambientalista das medidas de coação de António com a investigação desde que foi
GEOTA sobre os negócios relacionados com Mexia: pedem uma caução não constituído arguido, em 2017, Mexia
a barragem do Baixo Sabor e que tem estado inferior a dois milhões de euros, defende que não existem factos
adormecido, sem buscas, interrogatórios ou que fique sem passaporte, proibido novos e que o Ministério Público
inquirições, porque o caso das rendas da EDP de contactar com outros arguidos, se limitou a “requentar” indícios
se tornou prioritário. proibido de entrar nos edifícios da para o “condenar na praça pública”
EDP e suspenso de funções em antes do julgamento e se aproveitar
COMPROU CASA A PINHO empresas do grupo EDP ou de da presença de Carlos Alexandre
Os procuradores admitem vir a juntar os dois capitais públicos. A acusação não no processo para o conseguir
processos – ou, pelo menos, parte deles –, deverá sair até ao final do ano, mas, “afastar da EDP – já que este juiz,
porque muitas questões estão interligadas, para já, é a decisão do juiz Carlos diz, costuma ser mais favorável aos
até pelas personagens, que são centrais nas Alexandre que o pode condicionar. pedidos do Ministério Público.

25 JUNHO 2020 VISÃO 43


duas histórias. Uma das pessoas que tiveram
intervenção, quer nas questões das rendas
de energia, quer em vários negócios das
barragens, é Manuel Sebastião. Doutorado
em Economia pela universidade parisiense
Panthéon-Sorbonne, com um PhD da Uni-
versidade Columbia, em Nova Iorque (onde
Manuel Pinho viria a dar aulas), foi professor
de Economia e Finanças e economista do
FMI, mas foi no Banco de Portugal que fez
grande parte da carreira. Esteve à frente da
Autoridade da Concorrência entre 2008 e
2013, e é hoje presidente do conselho fiscal
do BPI (desde 2018) e membro do conselho
de administração da REN e presidente da
comissão de auditoria da REN (desde 2015).
O homem que muitos acusaram de ter feito
um mandato morno e praticamente invisível
na AdC – que apenas aqueceu na fase final,
com uma investigação a uma alegada concer-
tação de spreads na banca – deve ser um dos
próximos a serem ouvidos pelo Ministério
Público no caso EDP.
Isto porque a investigação desconfia das
suas decisões. Isoladamente, não representa-
riam muito. Mas olhando para a história como Manuel Pinho semanas depois, e após se ter demitido do
um todo e unindo as várias pontas, Manuel A investigação governo de José Sócrates, Pinho e a mulher
Sebastião está colado a este facto: quando era defende que o venderam os apartamentos T4, no 2º e 3º
presidente da Autoridade da Concorrência, ex-ministro só andares do prédio. Como a VISÃO reve-
comprou um apartamento a Manuel Pinho, teve uma carreira lou em 2018, o comprador foi o Fundo de
e o ex-ministro da Economia é agora sus- académica em Nova Gestão de Património Imobiliário do Banco
peito de ter tomado decisões para beneficiar Iorque à boleia de Espírito Santo – o FUNGEPI/BESE –, que
um patrocínio da
a EDP, em troca de um patrocínio que lhe posteriormente revendeu os apartamentos
EDP – criado para
permitiu ser professor em Nova Iorque e de com prejuízo, negócio que também está sob
o compensar por
uma avença mensal do Grupo Espírito Santo supostos benefícios
investigação.
(o BES era acionista da EDP). à empresa Manuel Sebastião continua a viver no 4º
Além disso, foi também Manuel Sebastião de energia andar daquele prédio, na Rua Saraiva de
quem representou Manuel Pinho quando o Carvalho, mas já não é vizinho de Manuel
ex-ministro comprou, em novembro de 2004, Pinho. O antigo ministro vendeu o seu duplex
todo o prédio que tinha sido a morada do es- com cinco quartos, cinco lugares de estacio-
critor Almeida Garrett, no número 68 da Rua namento, pátio inglês, jardim e piscina, de
Saraiva de Carvalho, em Campo de Ourique, forma relativamente discreta, em 2018, por
por menos de 800 mil euros. O edifício em quase três milhões de euros. Como adiantou
causa era propriedade da Fungere-Fundo a VISÃO naquela altura, depois de se tornar
de Gestão de Património Imobiliário, por público que era um dos principais alvos do
sua vez administrado pela Gesfimo-Espírito caso EDP, Manuel Pinho começou a desfa-
Santo Irmãos. À data da transação, Manuel zer-se de património em Portugal.
Pinho era administrador do BES e da ESAF, A VISÃO questionou o ex-presidente da
a empresa do grupo Espírito Santo responsá- Autoridade da Concorrência sobre as circuns-
vel pela gestão de fundos de investimento. E tâncias da compra deste apartamento a Pinho,
Manuel Sebastião, que representou Pinho por mas Manuel Sebastião não quis responder.
este se encontrar fora do País na altura, era Também fez perguntas sobre o ajuste direto
administrador do Banco de Portugal, o que le- à EDP pela exploração das centrais hidroe-
vantou dúvidas sobre um possível conflito de létricas do Alqueva, sobre se tomou alguma
interesses, já que estava a comprar o edifício a decisão que prejudicasse a elétrica, se teve
uma entidade ligada ao Banco Espírito Santo. encontros com algum arguido do processo
Depois da compra, Pinho demoliu o ou se alguma vez foi pressionado por algum
prédio inteiro e transformou-o em quatro deles, mas o economista apenas endereçou
apartamentos luxuosos: dois T4, um T2 e os documentos que apresentou na Comissão
um duplex. A 24 de junho de 2009, Manuel Parlamentar de Inquérito ao pagamento de
Sebastião foi o comprador do T2, por meio rendas excessivas aos produtores de eletri-
milhão de euros. Aquele apartamento, no 4º cidade: “Tudo o que poderei dizer sobre o
andar, foi o primeiro a ser vendido. Umas assunto disse-o nos documentos que preparei

44 VISÃO 25 JUNHO 2020


A 18 de março desse ano, dois dias antes de o
economista do Banco de Portugal ser empossa-
do presidente da Autoridade da Concorrência,
foi recebido pelo chefe de gabinete de Manuel

800
Pinho. Duas horas antes, o então ministro da
Economia tinha recebido António Mexia. A 30
de abril, foi a vez de Pinho promover um encon-
tro com Manuel Sebastião, António Mexia e João
Manso Neto, presidente da EDP Renováveis.
MIL Confrontado, na altura, com a nomeação de
um amigo para aquele cargo, o então ministro
Em 2004, Manuel Pinho da Economia de Sócrates justificou a escolha
desembolsou este
com o mérito, “competência” e “idoneidade” do
montante para comprar
nomeado. “Não o propus por ele ser meu amigo
a um fundo imobiliário
do BES um prédio
ou por ter prometido comprar um apartamento
inteiro em Campo de à sociedade que detenho com a minha mulher.
Ourique Muito menos por ter aceitado a maçada de as-
sinar um contrato de compra quando eu estava
temporariamente no estrangeiro, em 2004 (...).
É uma amizade de 30 anos, que não qualifica

500
ou desqualifica o seu nome para o cargo. E
os negócios em causa são privados, lícitos e
transparentes.”
Anos depois, também Manuel Sebastião veio
defender que, apesar da amizade com Manuel
para a minha audição na Comissão Parlamen- MIL Pinho, nunca tinha tomado uma decisão favo-
tar de Inquérito sobre o assunto, em setembro rável a alguém para satisfazer o então ministro
de 2018 e fevereiro de 2019.” Demoliu o edifício e fez da Economia e que nunca sentira tentativas de
quatro apartamentos.
condicionamento das suas ações. “O ano de
Um deles, um T2,
“NÃO TINHA PODER” 2009 foi o ano em que a AdC divulgou o seu
foi o primeiro a ser
Manuel Sebastião até teceu, perante os deputa- vendido por este valor.
primeiro estudo crítico sobre os CMEC, em que
dos, declarações pouco favoráveis à EDP: afir- E a quem? A Manuel foi, aliás, pioneira. E o assunto nunca mais dei-
mou, entre outras coisas, que as rendas de que a Sebastião xou de estar no radar da AdC, sendo de referir a
elétrica beneficia na produção de energia (com a recomendação em resposta a uma consulta pú-
passagem dos contratos de aquisição de energia blica da ERSE em 2010, o início da investigação
para os CMEC – Custos para a Manutenção do sobre o risco de sobrecompensação dos CMEC
Equilíbrio Contratual, que viriam a entrar em vi- em 2012, o destino dado ao estudo da ERSE de
gor em 2007) foram “um passo em branco”, sem março de 2013 e a aprovação da recomendação
qualquer “decisão legislativa” de suporte. Porém, ao Governo em 13 de setembro de 2013”, escre-
em sua defesa, também alegou que, enquanto veu numa carta enviada aos deputados.
esteve ao comando da Autoridade da Concor- Mas o Ministério Público acredita que a Au-
rência, só não fez mais para investigar o setor toridade da Concorrência não fez assim tanto.
elétrico porque até 2012 a Lei da Concorrência Tanto que, logo nos primeiros anos da investi-
não permitia que a autoridade avançasse por sua gação, juntou ao processo um relatório apon-
própria iniciativa: “Podíamos apenas responder MANUEL PINHO tando o dedo à sua inércia. “A AdC precisou de
a pedido de algum interessado.”
Já Abel Mateus, antigo presidente da AdC, TEVE TRÊS mais de dez anos após a publicação do regime
dos CMEC para formular a recomendação que
disse no Parlamento que a validação do regime REUNIÕES se impunha, na ótica da defesa do interesse
CMEC por parte de Bruxelas “foi uma das piores
decisões que a Comissão Europeia tomou”. Na
E UM ALMOÇO público”, lê-se no documento.
Esta linha de investigação foi deixada num
mesma ocasião, explicou as circunstâncias ne- COM MANUEL canto, à medida que foi chegando ao processo
bulosas em que foi afastado do cargo, em 2008,
para dar lugar a Manuel Sebastião, de quem Pi-
SEBASTIÃO um arsenal de provas mais diretas, como emails
e extratos bancários que levaram nomes como
nho era amigo assumido: “O ministro chamou- NO MINISTÉRIO Manuel Pinho, Ricardo Salgado ou António Me-
-me ao seu gabinete para me transmitir que o
meu mandato não seria renovado. Ponto final.”
DA ECONOMIA xia a serem constituídos arguidos. Mas, agora, os
investigadores deverão aproveitar os oito meses
O documento de 189 páginas que o Ministério ANTES ainda previstos na investigação para voltaram à
Público apresentou nos últimos dias a António
Mexia, a justificar o pedido de agravamento das
DE O NOMEAR base. Até porque nunca descolaram desta ideia:
a de que o processo legislativo sobre os CMEC
medidas de coação do presidente da EDP, e ao PRESIDENTE e a extensão do domínio hídrico – que supos-
qual a VISÃO teve acesso, revela que Manuel
Pinho teve quatro encontros com Manuel Sebas-
DA AUTORIDADE tamente terá permitido à EDP lucrar cerca de 1
200 milhões de euros – envolveu mãos menos
tião, entre 2007 e 2008, antes desta nomeação. DA CONCORRÊNCIA limpas. scaneco@visao.pt

25 JUNHO 2020 VISÃO 45


Amália
Os primeiros
dias de Abril

Na rua
Manifestação
promovida pelo PS
em junho de 1975.
“Amália, anda, não
fiques à varanda!”,
gritaram os
manifestantes.
E a fadista juntou-
-se ao grupo
g p
FOTO: LUÍS VASCONCELOS
Ao contrário do que ficou na memória coletiva,
Amália não fugiu no dia do 25 de Abril. Esteve
na ópera, e assistiu com surpresa aos primeiros dias
de liberdade sem saber que seria perseguida
por uma alegada ligação à PIDE.
No novo livro “Amália, Ditadura e Revolução”,
o jornalista da VISÃO Miguel Carvalho traz nova luz
sobre a vida da rainha do fado, que conspirou com
comunistas, ajudou presos políticos e financiou a resistência
ao Estado Novo. Aqui fica a pré-publicação de um excerto
Por Miguel Carvalho
N
Na noite de terça-feira, 23 de abril de
1974, o Teatro Maria Matos, em Lisboa,
estava à pinha. A gravação do progra-
ma da RTP 25 Milhões de Portugueses,
dedicado à cidade de Castelo Branco
e apresentado por Glória de Matos e
Henrique Mendes, tinha uma convi-
dada especial, com raízes no Fundão:
Amália Rodrigues. Já nessa altura ela se
atrevia a cantar ao vivo, despreocupada
de censuras, Meu Amor É Marinheiro,
composição de Alain Oulman a partir
de pedidos de autógrafos e elogios.
Amália, de calças e blusa de malha,
desceu então as escadas dos camarins
que davam acesso à porta lateral do
teatro e acabou por falar ali mesmo
sobre uma das suas antigas obsessões:
o facto de não ter uma sala ou espaço
artístico à medida do seu estatuto e
onde pudesse cantar com regularidade:
“A Casa dos Bicos, pois claro, a Casa dos
Bicos”, concordou, em conversa com
os aficionados. “Foi o que eu sempre
dias antes, na récita popular da tarde.
“Exibia-se La Traviata, de Verdi, com
um elenco excecional: Joan Suther-
land, a maior intérprete, com o cog-
nome de La Stupenda, o tenor Alfredo
Kraus, e um barítono jovem chamado
Giorgio Zancanaro”, recorda. “Estava
no camarote do diretor, João Freitas
Branco, com o meu amigo australiano
Peter Conrad, professor de Literatura
Inglesa em Oxford. O espetáculo já ti-
nha começado quando um funcionário
abriu a porta devagarinho e entrou
uma senhora de óculos escuros. Achei
estranho, nem sequer era permitido.
Foi então que esse meu amigo disse:
‘É a Amália!’” Veio o intervalo e a can-
tora estava babada: tinha sido reconhe-
cida na penumbra por um estrangeiro.
“Fiquei espantado por vê-la na ópera,
não sabia que ela gostava, mas ela ex-
plicou que adorava a voz do Alfredo
Kraus”, rememora Jorge Calado.
No final, Amália foi falar com o
tenor espanhol e ele sabia bem quem
de um poema de Manuel Alegre, es- ambicionei, mas até agora ainda não ela era, pois também a admirava à dis-
critor banido pelo regime. Incluindo o consegui nada. Vocês é que poderiam tância. “Se queres que te oiçam bem”,
tema musical no alinhamento prévio fazer isso por mim, arranjar-me a Casa segredou-lhe ela, “há um sítio no palco
da emissão, a fadista testava os limi- dos Bicos. Talvez com uma subscrição onde a voz se projeta melhor”. Kraus
tes da censura. “Se me viessem dizer pública, sei lá!”, desafiou. emocionou-se. A última récita fora
alguma coisa, eu diria que não sabia O assunto seria manchete do ves- agendada para a noite que mudaria o
que era proibido. Porque eu não en- pertino A Capital no dia seguinte, o destino do País.
tendia o porquê da proibição… aquilo último da vida da ditadura. E se a gra- Quando chegou ao Coliseu na com-
era bonito (…). Há muitos versos que eu vação começara azarada por causa do panhia de Peter Conrad, Jorge Calado
compreenderia que se proibissem, por incêndio numa câmara de televisão, verificou que tinham lugares separados,
causa da sua feitura, mas nunca foi mi- esse não seria o maior problema. Pre- nas pontas da coxia central. “Mas quem
nha ideia cantar coisas revolucionárias vista para dia 28 de abril, às 22 horas, ficou ao meu lado foi a Amália Rodri-
por serem revolucionárias: eu cantava- a transmissão não sobreviveria à mu- gues.” A sala estava cheia. De revolução
-as porque eram bonitas”, justificou. dança de regime. “Veio o 25 de Abril, o
Na assistência esteve Leonilde Hen- programa foi considerado uma mancha
riques, mais tarde secretária de Amália negra do fascismo, não foi transmitido
e figura próxima até à sua morte. “Faço e ninguém recebeu cachet. Terminou
anos a 24 de abril e uma amiga disse- sem brilho nem glória”, justificaria
-me que, se conseguisse bilhetes, seria Henrique Mendes, décadas à frente.
essa a minha prenda de anos. Com- Na verdade, nem todos saíram de mãos
prámos os últimos”, conta a conhecida
“Lili”, assim tratada na intimidade da
a abanar: Amália recebeu, pela sua
participação, cerca de 8 300 euros, a
Na noite de
Rua de São Bento. “Estávamos na úl- preços atualizados. 24 de abril, a
tima fila e a Amália cantou depois da Na noite de 24 de abril de 1974, en-
meia-noite. Amália encerrou. Eu sabia quanto unidades militares subversivas sala do Coliseu
tudo o que ela cantou nessa noite, mas rumavam a Lisboa, operacionais farda-
quando ouvi Meu Amor É Marinheiro dos se distribuíam por locais estratégi- estava cheia. De
percebi logo que essa não conhecia”,
recorda. De facto, não era caso para
cos e Grândola, Vila Morena, de José
Afonso (ou Zeca Afonso), aguardava revolução nem
estranhar: gravado em 1970, o tema não
tinha sido editado, apesar de Amália
o bater das 24 horas para, através do
programa Limite, da Rádio Renascença,
cheiro. “Mas
o cantar um pouco por todo o lado.
“De propósito, ao cantá-lo, ocultei o
servir de senha à revolução e tocá-la
para a frente, Amália Rodrigues estava
achei esquisito
nome do seu autor”, resumiria a pró-
pria, anos mais tarde.
na ópera, no Coliseu.
O cientista e crítico musical Jorge
haver muitos
Dezenas de espectadores aguarda-
ram até às duas da madrugada do dia
Calado, à época autor dos textos e coor-
denador dos programas do Teatro de
cravos”, recorda
24 para, findo o programa, a rodearem São Carlos, já a tinha encontrado por ali Jorge Calado
48 VISÃO 25 JUNHO 2020
NUNO CALVET
Ligação Amália, com o seu a maneira como pronunciava e esticava Nessa voz residia “uma mulher in-
compositor-fetiche Alain Oulman as palavras: fazia-o de forma criativa teligente, desempoeirada, numa terra
em fundo, durante uma das tertúlias e instintiva, acentuando o significado em que até os inteligentes se vestem
em casa da fadista de cada palavra. A Callas era a mesma de cinzento”. Da sua boca saíam “coi-
coisa. A Amália sabia onde estavam o sas profundas por palavras simples, o
nem cheiro. “Mas achei esquisito haver coração, o estômago e as tripas da mú- que deixava embasbacados os nossos
muitos cravos. Haver flores para a Su- sica e das palavras. Por muito que ela intelectuais de serviço”. Tal como Callas,
therland era normal, pois era a Callas tenha dito que não sabia o significado “o segredo da sua inteligência rara era
reencarnada, mas houve muita gente a do Abandono, a forma como ela o canta raciocinar através da emoção, não da
atirar cravos.” desmente-a.” razão. Por isso penetrava qualquer pú-
No final, confessou à fadista a sua Fado, para ele, era o da “cigana” blico, qualquer nação – mesmo aqueles
admiração antiga. “Ouvia-a desde me- Hermínia Silva ou a voz “aristocratica- que lhe não entendiam as palavras e os
nino.” Seguiu-a no cinema, na televisão. mente granulada” de Maria Teresa de pensamentos, mas recebiam, intactas,
Decorou canções, letras. E até trauteou Noronha. “Amália era diferente”, escre- as emoções”.
fados da diva. Quando fez o doutora- veu. Fazia, sozinha, “as vozes de todos Naquela madrugada de 24 para 25
mento em Oxford, em 1966, muniu-se os povos. Transformava tudo o que lhe de abril, tudo isso se manteria intacto.
de antídotos contra a saudade. “Levei passava pela garganta. Tinha o dom Mas a música já era outra: a primeira
alguns livros, uma gravura com a vista de um timbre inconfundível, abria as senha do Movimento dos Capitães fora
de Alfama e discos da Amália. Portugal vogais, suavizava as consoantes, torcia lida aos microfones dos Emissores As-
tinha ficado em 3º lugar no Mundial de e distorcia as frases musicais como se sociados de Lisboa por João Paulo Diniz
Futebol e toda a gente queria conhecer fossem lenços encharcados de lágrimas. quando faltavam cinco minutos para as
o tipo que era da pátria do Eusébio. Era a dor posta em música, cromática e 23 horas e antes de Paulo de Carvalho
Gastei-me a fazer tocar e a ouvir o angustiada, com um toque de fatalismo cantar E Depois do Adeus. Estava dado
Abandono.” Não houve inglês, indiano, árabe, e a esperança duma morte nova, o sinal para o levantamento militar.
australiano, africano, japonês ou ameri- com reencarnação à indiana. Diziam Depois da meia-noite, Grândola, Vila
cano que não se comovesse com aquela que não era autêntica, que não era fado. Morena, de José Afonso, passa na Rádio
voz. “Amália era ópera pura. Não era só Era ela e isso bastava.” Renascença.

25 JUNHO 2020 VISÃO 49


O mundo português até aí co- Porque se tivesse sido da PIDE pagava rei e gostarei da Amália. Mas o certo
nhecido começara a desmoronar-se. a conta e pronto. Se diziam, porque é é que ela telefonava para a polícia ou
O de Amália Rodrigues, esse, ficaria de que não provaram?” para a PIDE e dizia: ‘Deixem o homem
pernas para o ar. Correram versões surrealistas, abo- em paz, que chatice!’ E eles deixavam.
Todos trataram de se adaptar, ainda natórias ou videirinhas, consoante Nunca telefonei à Amália, a culpa não
às apalpadelas. Logo ao despertar de os protagonistas e os apetites. “Antes é dela. Nem à Amália, nem a ninguém”,
dia 25, a escritora Fernanda de Castro, do 25 de Abril, podia-se telefonar à pincelara o poeta Mário Cesariny, de-
viúva de António Ferro e admiradora Amália Rodrigues. Sempre defende- safiado por Torcato Sepúlveda a falar
de Salazar, recebeu um telefonema do sobre as suas contas em aberto com
poeta José Carlos Ary dos Santos, seu o antigo regime. Noutras recriações
protegido, de voz trémula: “Tia Fernan- alegava-se que Amália teria feito o “V”
da, sabe que há revolução?”, perguntou. de vitória, à varanda de casa, numa
Sim, sabia. O filho, António Quadros, tentativa apressada de se adaptar à nova
ligara 15 minutos antes. “Eu ainda não situação política, qual majestade caída
sei do que se trata”, continuou o escri-
tor comunista. “Mas, Tia Fernanda, se
A fadista foi dos ombros da luz.
“Nunca poderia ter dito que fiquei
for uma coisa a favor das suas ideias,
a Tia Fernanda protege-me; se for o
recebida num no dia 25 de abril a fazer o V da vitória.
Não é uma frase minha. Fiquei, sim,
contrário, protejo-a eu! Acha bem?”,
questionou, de novo. “Acho ótimo”,
concerto com a ouvir a rádio, como toda a gente”,
esclarecerá, em 1976, à revista Mulher
respondeu ela. insultos: “Morte – Modas e Bordados. Os jornalistas
Amália Rodrigues tinha compro- perguntaram se ficara contente. “Antes
missos agendados em Madrid, onde a Amália e a surpreendida”, respondeu. “Fecharam
era esperada para atuar num programa o aeroporto e eu tinha o problema
da televisão espanhola, a 27. Com o ae- quem a apoiar!” do meu espetáculo em Madrid e tra-
roporto fechado e a situação instável,
atravessou de carro a fronteira de Elvas, Tinha inúmeros tei assim de me informar se as fron-
teiras estavam ou não fechadas. Era,
na véspera, na companhia dos guitar-
ristas, quando já a perseguiam boatos
espetáculos na realidade, um acontecimento que
ninguém esperava e que não realizei
sobre alegadas cumplicidades com a
PIDE. “Estranhei muito como umas
agendados para imediatamente.”
Mentir, mesmo tratando-se de pre-
pessoas que fizeram uma revolução por
bem entraram mal comigo. E não ti-
o verão de 1974, sumidas ligações à polícia política,
nunca faria parte dos seus planos. “Se
nham razão”, explicou ao biógrafo Vítor
Pavão dos Santos. “Diziam que era da
mas foram quase tal tivesse acontecido, eu saberia as-
sumir a minha responsabilidade, pois
PIDE, mas a mentira é que me chocava. todos cancelados entendo que quem não quer ser lobo

50 VISÃO 25 JUNHO 2020


Independente Em julho de 1974, pelos boatos que lhe tinham feito che-
Amália, de cravos na mão, juntou-se gar acusando-a das maiores vilanias”,
a uma manifestação de artistas que lembrou, nas suas memórias, solidário
reivindicavam o seu espaço no pós- com o desconforto da cantora. “Havia
-revolução. Ao lado, uma capa sobre crescentes indícios de preocupantes
a digressão pela União Soviética, em revanchismos e de acusações a pes-
1969, e o pedido de bilhete de identida- soas, a algumas das quais Portugal era
de de Amália integrado nos arquivos do profundamente devedor. Um caso pa-
Secretariado Nacional de Informação radigmático foi o de Amália Rodrigues.”
Dali seguiram diretos ao Palácio Foz, ao
encontro do major Mariz Fernandes,
não lhe veste a pele”, explicara. “A força então delegado da Junta de Salvação
que tenho está dentro de mim, pois sei Nacional com a tutela da Informação
que sou uma pessoa honesta, verdadei- e do Turismo, antes da formação do
ra. Sou capaz de calar uma coisa por I Governo Provisório.
falta de coragem, mas não sou capaz “Dá licença que entre com a Dona
de dizer aquilo que não sinto. Não sou Amália?”, perguntou Feytor Pinto, ao
uma Maria da Fonte, não sou corajosa e abrir a porta do gabinete. “Minha se-
por isso calo muitas coisas. Agora dizer nhora, se esta revolução não tivesse
aquilo que não é verdade… isso não!” servido para mais nada, permitiu-me
a honra e a alegria de a conhecer”, disse
DOS BOATOS AOS INSULTOS o militar ao recebê-la.
Amália atuou na capital espanhola “Perfilado, beijou-lhe a mão, como-
dois dias após a revolução. Depois vendo Amália até às lágrimas”, recorda
do espetáculo, já no hotel e enquanto Feytor Pinto, anos depois diretor de
se preparava para descansar, tocou o O Primeiro de Janeiro.
telefone. Do outro lado da linha es- Na verdade, admite hoje o major-
tava a amiga Maria Amélia Passanha. -general, “fiquei muito admirado”.
“A [empregada] Laura manda dizer que Sentada ao seu lado, Amália desabafou.
não é preciso porque segunda-feira “O que se tinha passado? Ela chegara
não há peixe.” do estrangeiro e ficou destroçada por
A fadista não percebeu. “O quê?”, ver nas paredes e vitrines de Lisboa
perguntou, assarapantada. “A Laura folhetos acusando-a de ter estado ao
está a dizer que segunda-feira não serviço do Estado Novo e de ter sido
é preciso, que não há peixe”, repetiu agente da PIDE. Era este o clima de
a amiga. Amália continuou às cegas. baixeza, de maldade, de denúncia e
Mas pôs-se a pensar: seria linguagem delação que então vivíamos.”
codificada? Haveria tiros, desordens, Amália, pelo contrário, vivia num
violência nas ruas? Telefonou então panto, o seu próprio apagão. “Houve universo protegido de superestrela.
ao seu agente João Belchior Viegas. pessoas que tomaram conta dos jor- Adorada, “conquistara o Japão,
“Explicou-me que era um boato sem nais, e de mim não se falava. Tomaram onde não percebem uma palavra de
importância, que oficialmente ninguém conta da rádio e os meus discos não se português, e triunfara. Cantara no Mi-
tinha dito nada, mas que deixasse pas- tocavam. Na televisão, eu não podia dem, ao lado dos Beatles e de Roberto
sar o 1º de Maio. E eu fiquei em Madrid, aparecer”, desabafou nas conversas Carlos, subira ao topo do music-hall
à espera, a pensar porquê, com que ra- com o seu biógrafo. “Diziam que o internacional e em Portugal é uma
zão, o que é que eu tinha feito para não fado alienava as pessoas.” espécie de segunda Nossa Senhora
poder voltar logo para Lisboa”, contou O primeiro a dar-lhe a mão foi um de Fátima”, resume Rui Vieira Nery.
Amália ao seu biógrafo. homem ligado ao regime deposto: di- Quando a revolução se impõe, “está
Na verdade, ela não aguardou pelo retor dos Serviços de Informação da ainda convencidíssima de que as pes-
primeiro Dia do Trabalhador em li- Secretaria de Estado de Informação e soas a amam. Gente do anterior regime
berdade para regressar. “O marido e o Turismo, Pedro Feytor Pinto trabalha- e da oposição gosta muito dela. Sen-
Rui Valentim de Carvalho, pelo menos, ra diretamente com Marcelo Caetano, te-se intocável, à direita e à esquerda.
foram esperá-la à fronteira, de cravo último presidente do Conselho, cuja E, de repente, este universo desmoro-
vermelho. «‘Ai vocês estão muito lin- rendição negociara com os militares, na. Vê-se posta em causa em termos
dos, vão para alguma festa?’, perguntou no Quartel do Carmo. Ainda antes injustos, acusada de ser instrumento
ela. Talvez fosse melhor ficar mais uns do 1º de Maio, manhã cedo, Amália do fascismo, porta-voz consciente do
dias em Espanha, até as coisas sere- telefonou-lhe para casa. Queria ser regime, se não mesmo colaboradora
narem, sugeriram-lhe. ‘Eu não matei recebida, pediu. da PIDE. Circulou uma quantidade
ninguém no meu país. Vou para casa’, Pelas 10h30, a artista entrou no tremenda de boatos e ela torna-se um
respondeu ela. E veio”, conta Estrela pequeno gabinete da residência de símbolo a abater, mas creio que a si-
Carvas, a partir dos relatos escutados Feytor Pinto. “Vinda de Espanha, sem tuação não teve pai nem mãe. Foi mais
aos protagonistas. um grama de maquilhagem, nunca a vi fruto do tempo do que outra coisa”, crê
Regressou, mas descobriu, com es- mais dramaticamente bela, horrorizada o musicólogo.

25 JUNHO 2020 VISÃO 51


A própria fadista resumiria o con-
texto encontrado após o seu regresso
ao país. “A primeira reação que eu
tive foi o choque. Fez-me muito mal,
fiquei muito triste”, diria, mais tarde.
“Pensava que as pessoas gostavam de
mim. Está a ver que uma pessoa que
passa anos e anos da sua vida a apa-
recer num sítio, com toda a gente a
sorrir, toda a gente a bater palmas, a
dar-me beijinhos, a gostar muito de
mim, toda a gente a dar-me os filhos
para beijar e, de repente, há um boa-
to... que se estende por Portugal fora
a dizer aquelas coisas...” Sentira-se
insegura, sem chão, incompreendida.
“Eu estava muito fora disto, não sabia
porque é que me tinham feito aquilo
(…). Não foi só boato, foi um ataque
de certa gente.”
Segundo Pedro Feytor Pinto, a au-
diência urgente tinha como propósito
“encontrar uma fórmula que forne-
cesse à opinião pública o respeito que
se continuava a ter pela artista e pela
mulher extraordinária a que Portugal
tanto devia”. Amália dispôs-se então
a participar numa mesa-redonda na
RTP para dissipar dúvidas e calúnias:
“Olhe”, disse, dirigindo-se ao militar,
“venho cá para me fazerem o favor de
D.R.

me deixarem ir à televisão e esclare-


cer tudo isto. Que diabo! Eu não sou
o Zé dos Anzóis, que muda de bairro Ressentimento Até ao fim dos seus monstrar o contrário. A conversa
e, pronto, já deixou de ser da PIDE dias, viveria com a mágoa de nunca ter foi à volta disto. Acreditei que a tí-
(…). Eu não posso mudar de bairro, conseguido provar a sua independência nhamos convencido.” E o encontro
nem de aldeia, nem de país… E isto em relação ao antigo regime terminou ali.
foi uma coisa que passou fronteiras. Amália Rodrigues e o antigo co-
E os senhores sabem perfeitamente laborador de Marcelo Caetano des-
que eu não sou da PIDE.” oficialmente ninguém disse nada. ceram juntos a escadaria do Palácio
Conforme recordaria décadas à Ainda não é oportuno ir à televisão”, Foz, enquanto combinavam almoçar.
frente, em entrevista à Rádio Renas- terá justificado. Amália Rodrigues De guarda ao edifício estavam mari-
cença (23 de julho de 1989), Amália chorou. Imenso. “Verdadeiras lá- nheiros que, ao verem a fadista, apre-
reagiu “muito mal” aos boatos. “Com grimas no meu ombro”, recorda o sentaram armas com sorrisos rasgados.
muito desgosto primeiro, com muita major-general. “A senhora estava des- À chegada ao Grémio Literário, a dupla
surpresa depois. Com indignação feita. Não foi ali para negociar o que sentiu o desconforto.
também. Era uma mentira tão es- quer que seja, nem para esclarecer “Nunca vi tanta gente meter, de
quisita, tão feita à pressa”, lamentara, nada.” Na verdade, registara, a canto- repente, o nariz na sopa”, registou Pe-
desgostosa com algumas amizades. ra estaria preocupada, isso sim, com o dro Feytor Pinto. “Porém, o diretor do
“Tinha os intelectuais, todos eles, que pudesse ocorrer num espetáculo Grémio, o Geraldo Sales Lane, que era
muitas vezes em minha casa por marcado para os dias seguintes em inteligente, rapidamente se apercebeu
causa das coisas que eu cantei, e essa Barcelos. “Estava com medo.” de que, se eu a levava ali, era porque
gente nunca mais apareceu. De um O próprio Pedro Feytor Pinto in- nada havia que lhe fosse criticável. Veio
dia para o outro (…). Nessa altura, sistira na deslocação ao Minho, mas então cumprimentá-la e a partir daí
fiquei muito triste, muito indignada, Amália não queria. “Então trouxe-a foi um corrupio de saudações e cum-
muito surpreendida (…). Os amigos a à minha presença para ver se eu primentos vindos de todas as mesas.”
sério não fugiram, mas uns que se ajudava”, refere Mariz Fernandes, Antigo empresário de espetáculos,
diziam meus amigos fugiram.” recostado no sofá da sua moradia, em o portuense José Lopes de Almeida
Segundo a versão da fadista, Belém. “Punha-se este problema: se acompanhou Amália Rodrigues a
Mariz Fernandes torceu o nariz à ela não fosse ao espetáculo denun- Barcelos nos primeiros dias de maio
ideia de uma ida à RTP, atitude jul- ciava medo e cobardia. E isso poderia de 1974, como tantas vezes fizera em
gada inconveniente nesses primeiros ser interpretado como confirmação anos idos na Região Norte. A atua-
dias de revolução. “A Amália sabe que das acusações. Era importante de- ção estava agendada para a Festa das

52 VISÃO 25 JUNHO 2020


ela, recolhendo-se na estafada concha vizinho, “não vá a Maria Amélia ter
da ignorância e da ingenuidade. razão”. E acrescentava, atormentada:
“Houve sempre boatos sobre ela”, “Não digo que me cortem o pescoço,
Receosa devido assevera o gestor cultural José Manuel
dos Santos. “A Amália tinha memória
mas pode sempre haver um maluco
a querer dar-me um tiro…” Belchior
aos boatos que de elefante, mas não falava do seu Viegas e Estrela Carvas foram então le-
passado ou da coleção de pessoas e de vá-la ao aeroporto. Em silêncio. Quan-
circulavam, afetos de acordo com conveniências do Estrela parou o carro, disse-lhe:
Amália ponderou e oportunidades. Manteve até ao fim
uma fidelidade absoluta à memória
“Ó Amália, vamos para casa…” Belchior,
irritado, mas com os olhos cheios de
recolher-se de quem a tinha ajudado. Essa atitude lágrimas, virou-se para a cantora e
humana era a atitude política dela.” disse: “Vá para Espanha, vá para onde
algum tempo em Estava, porém, aberta a época das quiser! Vamos embora, Estrela!” E saiu
Espanha. “Saiu feridas e dos espíritos conturbados.
E ela, que tanto fora sensível a infor-
do carro. “Era a única maneira de a
parar”, comenta a antiga colaboradora.
uma lista com túnios alheios, sentira o chão a fugir.
“Amália personifica o defunto regime,
“O que é que você disse?!”, perguntou
então Amália, surpreendida com a
os nomes das apenas porque estava lá, ela mesma, reação. “Nada, vá-se embora!”, repetiu
pessoas a abater e com grande visibilidade. Ciúmes há
muito tempo contidos, mesquinhices,
Belchior. “Então agora já não vou!”,
respondeu ela. Deram meia volta e
e você vem em manifestam-se livremente, uma nova
censura opõe-se às anteriores; ei-la
regressaram à Rua de São Bento.
Amália não receava a sua consciên-
primeiro lugar!”, de repente, banida, pior, caluniada, e cia. “Nunca tive vergonha de mim”,
assustou-a o próprio fado atacado no seu imo-
bilismo involuntário, no seu gosto
diria no filme Amália – Estranha For-
ma de Vida. “Mesmo que tenha sido
Maria Amélia de derrota e de aceitação”, anotou o
jornalista e escritor francês no livro
muito prejudicada, nunca me vendi.”
Mas temia reações adversas, como
Passanha, dedicado à cantora (Amália – Uma confessara noutra ocasião. “Eram só
a amiga Voz no Mundo).
A antiga secretária escutar-lhe-ia
umas ideias que me davam e depois
até fiz o contrário. Cantei onde nunca
aristocrata eternos lamentos sobre a impotência
que sentira para lidar com as pertur-
tinha cantado, aceitei aquilo que nun-
ca tinha aceitado.” A sua modista, Ilda
bações políticas e a desordem da sua Aleixo, nunca valorizou em demasia
Cruzes, concorrida romaria minhota. vida. “Nunca conseguiu provar a sua a ansiedade da fuga: para ela, Amália
O jornalista, escritor e produtor teatral independência em relação ao antigo “não sabia, nem queria viver noutro
entrou na cidade com uma carrinha regime”, reconhece Lili Henriques. país”. mbcarvalho@visao.pt
de som a anunciar o concerto dessa “Ela mesma admitiu que desistiu, pois
noite, mas a viatura foi apedrejada. não tinha coragem, não era lutadora...
A fadista chegaria mais tarde, sem que A sua forma de estar na vida, de querer
o empresário pudesse alertá-la para sempre o melhor para toda a gente,
os riscos. Foi recebida com insultos: não a fazia andar de bandeira na mão,
“Morte a Amália e a quem a apoiar!”, a gritar ou de punho levantado.”
ouviu-se, uma e outra vez. “Tínhamos Receosa com os boatos que circu-
inúmeros espetáculos agendados para lavam, Amália ponderou recolher-se
o verão de 1974, mas foram quase algum tempo em Espanha. “Saiu uma
todos cancelados”, lembrou Lopes lista do Partido Comunista com os
de Almeida ao jornal O Comércio do nomes das pessoas a abater e você
Porto anos volvidos sobre estes acon- vem em primeiro lugar!”, assustou-a
tecimentos. “As comissões de festas Maria Amélia Passanha, a amiga aris-
queriam o Zeca Afonso, não a ela.” tocrata, bem relacionada nos círculos
Contudo, ainda se realizou um ou endinheirados e influentes, credibili- MIGUEL CARVALHO
outro concerto nessa altura. Num zando os rumores alimentados para
deles, o dono do antigo restaurante justificar a tentativa golpista do general Amália, Ditadura
fadista Mal Cozinhado teve mesmo
de subir ao palco “com uma barra de
Spínola a 28 de setembro de 1974 “Só
ela acreditava naquilo”, atalha Estrela
e Revolução
A história secreta
ferro na mão” para defender Amália Carvas. “A Amália ainda perguntou
de eventuais agressões. ao Belchior Viegas de que se tratava.
A fadista não entendia a razão de E ele: ‘Aposto que foi a Maria Amélia O livro que faz nova luz sobre
tanta má vontade contra si, a pretexto que lhe disse isso… Ó Amália, vá jan- Amália chega às bancas agora,
da sua alegada cumplicidade com a di- tar!’ E desligou-lhe o telefone”, conta depois de uma investigação que foi
tadura, da sua alienação política ou até a assistente da fadista. capa da VISÃO Biografia, publicada
da vida privada. “Eu tenho origem hu- Sobressaltada, ela não desistiu da em outubro de 2019
milde e sou analfabeta”, defendera-se ideia de se ausentar uns dias no país DOM QUIXOTE

25 JUNHO 2020 VISÃO 53


O SILÊNCIO
TRISTE
DOS HOMENS QUE
NAO CHORAM
A morte trágica do ator Pedro Lima traz à superfície
a depressão no masculino. A impossibilidade de admiti-la
e pedir ajuda é um estigma social que persiste,
confirmam os profissionais de saúde
GETTY

CLARA SOARES
S
Só ele sabia a verdade do que estava
a sentir no momento em que decidiu
enviar mensagens de despedida aos
amigos e rumou até à Praia do Abano,
no Guincho, no passado sábado, dia
20. O homem que tinha um sorriso
estampado no rosto, uma compa-
nheira de vida com quem planeava
oficializar a relação, cinco filhos e
uma carreira invejável. O ator Pedro
Lima, que confessara, anos antes,
ter atravessado um período de an-
gústia, foi encontrado sem vida na
água, com cortes fatais no pescoço,
pouco antes de chegar aos 50 anos.
A ocorrência gerou ondas de choque
e perplexidade, tal como aconteceu
com a inesperada morte, no mesmo
local, do pianista Bernardo Sassetti,
em 2012 (também faria 50 anos a 24
de junho).
O que pode levar um homem a co-
meter um ato de desespero, quando
aparentemente nada o faria crer aos
olhos dos outros? Sentimentos de
cias mais ou menos glamorosas da
vida de cada um.
Abrir-se à possibilidade de admitir
um problema e procurar ajuda é que
parece continuar a ser um tabu, so-
bretudo para os homens. Não deixa
autoestima”, fez questão de dizer no
programa da manhã da Rádio Comer-
cial. Não muito diferente do que fez
António Horta-Osório, CEO do banco
britânico Lloyds, depois de ter sofrido
um esgotamento nervoso que o levou
vazio, insuficiência, medo, vulnera- de ser perturbador equacionar, em a recorrer a uma clínica especializada
bilidade, sofrimento e, talvez, uma pleno século XXI, que muitos ho- no tratamento de perturbações psi-
vergonha do tamanho do mundo, mens se mantenham reféns do seu cológicas relacionadas com o stresse
ao ponto de vivê-la em silêncio? Até sofrimento, custe o que custar, sem e a defender o fim do tabu dos pro-
que ponto o peso ancestral de uma terem de passar pela “humilhação” de blemas mentais nas empresas, bem
certa ideia de masculinidade impera reconhecer que algo não está bem no como o acesso que todos devem ter a
ainda, criando um muro de silêncio seu mundo. Porém, é crucial fazê-lo essa ajuda. O gestor tem-se mostrado
intransponível em face de situações e trazer alguma luz numa área tão incansável na luta contra o estigma:
ameaçadoras, reais ou percebidas complexa e nebulosa como é a da encorajou o pessoal a procurar ajuda
como tal, como sucede em casos de depressão, nem sempre visível aos para preocupações profissionais e
depressão que acabam mal? Pense-se olhos, mas que importa notar e des- pessoais, criou um programa de sen-
ainda nos casos do chefe norte-a- codificar para poder intervir a tempo. sibilização para executivos seniores
mericano Anthony Bourdain, ou do Que o digam o humorista António e formou milhares de empregados
oscarizado ator australiano Heath Raminhos, que admitiu ter procura- em prestação de primeiros socorros
Ledger, que aos 28 anos sucumbiu do ajuda quando sentiu necessidade, mentais.
por “intoxicação acidental por fár- apelando a que não se esconda o que
macos prescritos”, e logo se conclui vai cá dentro por medo de não ser O CAMINHO MENOS PERCORRIDO
que não há vidas perfeitas e, menos compreendido. Ou o radialista Nuno O Relatório do Estudo Epidemio-
ainda, isentas de tormentas psicoló- Markl, que assumiu publicamente ter lógico Nacional de Saúde Mental,
gicas, inerentes à condição humana, procurado ajuda há cerca de um ano. coordenado pela Universidade de
independentemente das circunstân- “Eu tive e ainda tenho problemas de Harvard e a Organização Mundial da

56 VISÃO 25 JUNHO 2020


e serem o pilar da família”, afirma o
médico, que também é diretor clí-
nico da PIN, em Lisboa. Sem espaço
para o choro fácil, a tristeza ou o
isolamento social, “ficam constran-
gidos na manifestação dos sintomas,
escondem-nos e, pior, impedem-se
de pedir ajuda”.
O mal-estar inscreve-se no cor-
po – falta de energia e de prazer nas
atividades antes apreciadas, dores
osteomusculares e problemas diges-
tivos –, e “a atenção dirige-se quase
exclusivamente para o trabalho ou a
atividade desportiva, a fim de ocupar
a existência e não entrar em contac-
to com o que sentem”. O sofrimento
é camuflado pelo abuso de álcool
e outras substâncias tóxicas até ao
dia em que uma pequena gota de
água – problema financeiro, laboral,
familiar ou outro, até o impacto da
pandemia – faz transbordar o copo,
ou seja, “a depressão não tratada”. A
maioria dos homens que chegam à
consulta “atrasam muito a decisão e
vêm depois de muita resistência, às
vezes porque a mulher lhes lançou
um ultimato”.
Não raras vezes, ocupam cargos
com pressões elevadas do ponto
de vista empresarial e “nem para si
mesmos admitem dar, como dizem,
GETTY

‘parte de fracos’, o que é um dispa-


rate, porque se autolimitam baseados
num preconceito”, continua o clíni-
Saúde, permitiu apurar que as pertur- dos impulsos e de perturbações pelo co. O primeiro passo para quebrar
bações do humor (depressão major abuso de substâncias”. o ciclo consiste em “explorar com o
e perturbação bipolar) representam O psiquiatra Gustavo Jesus, do paciente o que não está bem e pegar
7,9% do total das doenças mentais. Centro Hospitalar Universitário de nos sintomas que ele valoriza, a fim
No documento, pode ler-se que “as Lisboa Central, esclarece que tais di- de tomar consciência de um desequi-
mulheres apresentam um risco maior ferenças assentam em componentes líbrio que pode ter solução”. Depois,
do que os homens de sofrer de per- biológicas (hormonais, por exemplo) levar a pessoa a reconhecer que não
turbações depressivas e perturbações e sociais. “Os homens modelam a perde nada em tentar o tratamento.
de ansiedade, enquanto os homens expressão de emoções em função do “Ultrapassadas estas duas barreiras,
têm uma maior probabilidade de papel social que ainda se espera de- percebem que viviam mal há muito
sofrer de perturbações do controlo les, que inclui a resiliência, a proteção tempo, achando que era só uma fase
e, até, o seu normal, e agradecem”,
conclui Gustavo Jesus.
Segundo a Organização Mundial
da Saúde, a depressão afeta uma em

OS DADOS SUGEREM QUE


cada cinco pessoas: são mais de 264
milhões em todo o mundo, impac-
AS TENTATIVAS DE SUICÍDIO tando negativamente o desempenho
profissional e académico, pessoal
SÃO MAIS FREQUENTES NAS e familiar. “No seu pior, a depres-

MULHERES, MAS É SOBRETUDO


são podendo conduzir ao suicídio”
(segunda causa de morte nas faixa
ENTRE OS HOMENS QUE etárias entre os 15 e os 29 anos). Se
a estes dados juntarmos situações
TENDE A SER EFETIVAMENTE adversas como o desemprego e ou-

CONSUMADO
tras perdas, o stresse gerado por ser
portador de uma doença e a estreita

25 JUNHO 2020 VISÃO 57


relação entre depressão e saúde física,
compreende-se que se estime que
atinjam o topo das doenças em 2030.
Em Portugal, o consumo de anti-
depressivos triplicou em sete anos,
caminhando para os nove milhões de
embalagens dispensadas no serviço
de saúde público (e com os dados do
Instituto Nacional de Estatística a
mostrar que, em 2018, se registaram
29 óbitos por depressão, cinco ho-
mens e 24 mulheres).
Os dados internacionais sugerem
que as tentativas de suicídio são mais
frequentes nas mulheres, mas é so-
bretudo entre os homens que tende
a ser efetivamente consumado (15,6
óbitos por 100 mil habitantes, face à
média de sete no sexo feminino), com
as condutas suicidárias nos homens
portugueses a serem três vezes supe-
riores às das mulheres.

SOLIDÃO, MÁ CONSELHEIRA
“Os homens são mais agressivos nas
estratégias que utilizam e têm maior
número de tentativas bem-sucedi-
das”, nota Miguel Ricou, coordenador
da supervisão da linha de apoio psi-
cológico SNS 24, a funcionar desde o
dia 1 de abril. Os dados dos Serviços vezes conseguem representar muito do que as mulheres e tende a ‘medi-
Partilhados do Ministério da Saúde bem os seus papéis sociais e aparen- car-se’ com álcool, que é uma ratoei-
permitem dizer que a média de ida- tam estar bem, mas o sentimento de ra”, avança o psiquiatra Miguel Nasci-
de dos utentes da linha se situa nos angústia alimenta este circuito.” mento, adjunto da direção clínica do
47 anos e 32% das chamadas foram Outro aspeto que o psicólogo sa- Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lis-
realizadas por homens e relacionadas lienta é que “a ideação suicida, ou boa, lembrando que as percentagens
com “ansiedade, stresse, angústia, vontade de morrer, não se correlacio- elevadas de alcoolismo e depressão
medo, sintomatologia depressiva, na com o suicídio e a grande maioria nas consultas de psiquiatria geral e
gestão de emoções e adaptação em recupera dessa ideação”. E se é certo de alcoologia. A “culpa” é do estigma,
situações de crise e, por vezes, toma que os homens têm mais dificuldade dos estereótipos dominantes, que faz
de medicação em excesso e ideação em falar das suas emoções e em pedir com que “cheguem à urgência já com
suicida”. ajuda, a sua experiência clínica leva-o tentativas de suicídio”.
O docente da Faculdade de Medici- a ser otimista: “Há 20 anos, a maioria Mas a luz ao fundo do túnel exis-
na do Porto destaca a impulsividade, dos meus pacientes eram mulheres te, desde que se esteja presente e
a assertividade e a falta de esperança e, agora, há dias em que tenho mais atento: “Quando se pergunta se têm
como os três fatores determinantes pacientes do sexo masculino.” tido pensamentos maus, ‘ideias mais
para tomar decisões que não são “O típico português não pede ajuda negras’ como dizem os franceses, é
ponderadas e poderão ter um outro nem assume que tem um problema, uma porta aberta para que falem e
desfecho: “Têm razões que não par- recorre menos ao médico de família aceitem ajuda, o não falar e isolar-se
tilham quase nunca, mas se falarem
delas com alguém em quem confiem,
podem dar-lhes significado em vez de
ficarem sós no seu mundo interno a
alimentar pensamentos negativos.”
Destes três fatores, apenas a fal- “CONTINUAMOS A EDUCAR OS
ta de esperança conta nos casos de RAPAZES PARA SEREM FORTES
E NÃO CHORAREM E PEDIR
depressão, “a pessoa está triste por
estar, sem um motivo específico”, daí
a necessidade de desmontar o ciclo
vicioso que caracteriza a doença: AJUDA TORNA-SE, EM MUITOS
desvalorização e sentimentos de in-
capacidade, que aumentam a sensação
CASOS, AINDA MAIS DIFÍCIL”
de tristeza e vão até ao desespero. “Às RUTE AGULHAS PSICÓLOGA E TERAPEUTA FAMILIAR

58 VISÃO 25 JUNHO 2020


Depressão cado no American Journal of Men’s
Health, no qual se lê que “a transição
masculina para a paternidade representa um
Como identificar os sinais teste à saúde mental dos pais e, se o
de alerta e superar um forem pela primeira vez, a depressão
problema que tem solução pós-parto pode afetá-los”, presta-se a
graças, mesmo quando tem implica-
ções no plano pessoal, conjugal e na
Sintomas comuns quantidade e qualidade das interações
Mal-estar físico com o bebé.
• Dores (costas, cabeça), como se Outra investigação divulgada no
carregasse o mundo às costas, Scandinavian Journal of Public Heal-
prostração, problemas de sono, th, que avaliou a prevalência de sin-
falta de desejo sexual, problemas tomas depressivos em pais suecos há
gastrointestinais três meses, mostrou que 6,3% dos
pais e 12% das mães apresentavam
esses sintomas, correlacionados
Emoções negativas com um baixo nível de escolarida-
• Irritabilidade, problemas de de, depressão prévia, entre outras
humor, sensibilidade excessiva
variáveis.
à crítica e sentimentos
“Aceitamos com naturalidade a
persistentes de raiva, de
desconforto em estar na sua pele
doença física, ninguém sente vergo-
nha em dizer que tem um problema
renal, mas se estiver deprimido isso
Condutas de risco gera sentimentos de vergonha e es-
• Impulsividade, agressividade, tigmatização”, assinala a psicóloga
e terapeuta familiar Rute Agulhas.
GETTY

comportamentos escapistas como


beber demais, abusar de drogas, “Continuamos a educar os rapazes
jogar ou trabalhar compulsivamente para serem fortes e não chorarem
e pedir ajuda torna-se, em muitos
é que mata.” Quanto aos mais próxi- casos, ainda mais difícil.”
mos, é importante que identifiquem O que pode desencadear A docente e investigadora no ISC-
pistas de sofrimento e não hesitem os sintomas TE-IUL adianta que pedir ajuda psi-
em sugerir algum tipo de apoio. Fatores de risco cológica tem uma conotação negativa
Luís Câmara Pestana, consultor • Isolamento e fraca estrutura que é preciso contrariar, pois “ainda
do INFARMED na área da psiquia- de apoio (pessoas confiáveis) se associa a doença mental e não à
tria e saúde mental, confirma que “a • Falta de competências saúde mental”, ou seja, “não se pensa
depressão é invisível para muitos ho- para lidar com o stresse que ajuda a promover competências,
mens e mulheres, mas mais para eles”. • Historial de abuso de álcool a desenvolver recursos internos e a
e outras substâncias
Na depressão, prossegue, “tudo o que facilitar processos de resolução de
• Antecedentes familiares
é uma ameaça tende a ser percebido problemas”.
(depressão, traumas)
de forma mais intensa e avassaladora” • Doenças crónicas e circunstâncias
Por fim, o psicólogo clínico David
e, se for desvalorizado, pode evoluir adversas (perdas, dificuldades Neto adverte: “Com a crise económica
para situações mais complicadas, económicas) a instalar-se após o confinamento,
como a perda do apego pela vida. existe um risco de stresse acrescido
“Episódios depressivos ligeiros a mo- para quem já estava mais sensível”.
derados justificam uma avaliação na O que fazer Basta recordar que crises anteriores
consulta de medicina geral e familiar 7 pistas para sair do fundo exacerbaram quadros sintomáticos
e resolvem-se com psicoterapia”. Se • Não guardar estados sombrios pré-existentes. O docente do ISPA-
vão além disso e envolvem abuso de persistentes só para si -Instituto Universitário afirma ainda
álcool e outras substâncias, pode ser • Ajustar rotinas (alimentares, de que o que faz deprimir um homem e
necessário acompanhamento psiquiá- exercício e sono) uma mulher é comum, o que muda
trico e farmacológico. • Procurar manter-se ligado, são as expectativas sociais em relação
também presencialmente a eles: “Cada caso é um caso, mas por
PORMENORES COM IMPORTÂNCIA • Permitir-se fazer coisas que gosta muito que se tenha evoluído, as dife-
Numa altura em que os homens as- sem se avaliar renças salariais num casal continuam
sumem progressivamente papéis que • Evitar armadilhas mentais do tipo a ser mais relevantes para ele, bem
eram associados às mulheres, paren- “isto é uma fase” como a maneira como se mostra forte
talidade à cabeça, e com o português • Abrir-se com quem não o julgue perante os outros.”
ou um profissional de saúde
Cristiano Ronaldo a mostrar ao mun- Uma ideia de masculinidade que
• Dar-se tempo para sentir
do que um homem também chora e não faz bem à saúde mental. A boa
melhoras no humor
expressa afetos, essa ainda está longe notícia: está a mudar para melhor.
de ser a regra. Estudos como o publi- Fonte: Helpguide.org csoares@visao.pt

25 JUNHO 2020 VISÃO 59


À descoberta
do génio criador
do Vale do Côa
IP 2

MUSEU
E PARQUE
102

VILA NOVA ARQUEOLÓGICO


EN

DE FOZ CÔA DO CÔA

Rio
Douro
Rio Côa
IP 2

EN
22
2
As gravuras nunca precisaram de aprender
a nadar, mas a Fundação Côa Parque, responsável
pela gestão do parque arqueológico e do museu,
esteve quase a afundar. Com a recente descoberta
da maior gravura do mundo ao ar livre, datada
do Paleolítico Superior, reaviva-se o interesse
por um património único e por um projeto
cultural que fez história, enquanto
âncora de um território
JOANA LOUREIRO LUCÍLIA MONTEIRO

Arte rupestre Até agora, estão


identificados cerca de 80 locais,
com 1 200 gravuras, num território
entre os rios Côa e Douro
A
Antes das escavações arqueológicas,
existia apenas a certeza da gravação de
uma singela linha, numa rocha junto
ao leito do rio Côa, avistada no início
deste século. As cheias frequentes que
assolam o vale viriam a transformar o
local, situado no núcleo do Fariseu, e a
ocultar os vestígios, mas a sinalização da
rocha 9 não seria esquecida por Thierry
Aubry. O arqueólogo francês, desde há
uns meses responsável pela coordena-
ção técnico-científica da Fundação Côa
Parque, não sabia bem o que poderia
encontrar durante a investigação. Aos
poucos, revelaria um painel com cer-
ca de seis metros, em que se destaca
o desenho de um auroque com 3,5
metros – a maior gravura do mundo,
dentro do seu género, encontrada ao ar
livre, datada do período do Paleolítico
Superior, que se crê ter 23 mil anos. No
local das escavações, Aubry acompanha
com o dedo os traços do bovino selva-
gem, ainda incompletos, guiando os
olhares perdidos dos visitantes, pouco
arte da Humanidade. “Os sedimentos
dão-nos uma idade mínima, mas as
gravuras podem ser ainda mais antigas”,
acrescenta o arqueólogo.
Aubry vagueia por este território
desde o anúncio da descoberta das
gravuras, em 1994. “Pode dizer-se que
sou um resistente. Aqui, tinha a opor-
E esse contexto é decisivo para perceber
uma cronologia de ocupação do vale e
o modo de vida destes caçadores-re-
coletores. Estudos revelados em 2018,
feitos no sítio do Salto do Boi, próximo
do núcleo da Penascosa, já tinham per-
mitido rever essa cronologia e provar a
presença de humanos há, pelo menos,
habituados a estes reconhecimentos tunidade de participar em algo muito 80 mil anos, ou seja, recuando até aos
de figuras ancestrais. “É uma sensação significativo, num território enorme”, Neandertais. “É uma área com uma
única, sermos os primeiros a rever o conta. Os primeiros anos de profissão concentração especial de recursos, entre
que foi visto há milhares de anos”, diz. tinham sido dedicados à investigação a meseta, uma área de caça de grandes
Os trabalhos prosseguem, para evi- do Paleolítico e, no Côa, a presença herbívoros, e o vale encaixado no rio,
tar qualquer desmoronamento. “O de especialistas como ele era decisiva. com outros recursos”, explica Aubry.
mais complicado é manter a calma, “Desde o início da criação do parque, Essa circunstância, além da posição
há sempre vontade de ver se o bicho a questão da datação das gravuras foi geográfica – a meio caminho entre o
está completo… Temos aqui trabalho essencial, e fez-se um investimento centro de Portugal e o de Espanha, alvo
para dezenas de anos; acredito que para encontrar um sítio arqueológico de constantes trocas entre os diferentes
há muito mais para descobrir”, su- que nos desse o contexto, que só em grupos humanos que por lá habitavam
blinha o arqueólogo. Placas de xisto 1999 encontrámos, na rocha 1 do Fa- – explica a concentração invulgar de
vindas da vertente e sedimentos, mais riseu [todas as rochas são numeradas arte rupestre. Falamos de mais de 80
finos, provenientes das cheias, tapavam e associadas a um núcleo], submersa e, locais revelados até agora, com mais
completamente o painel e tornaram o por isso, com menos impacto”, reforça. de 1 200 rochas gravadas, espalhados
achado ainda mais aliciante. “A única
maneira de datar gravuras é o contex-
to arqueológico. A partir do estilo das
gravuras, podemos ficar com uma ideia
da origem, mas, para as datarmos com
mais precisão, são necessários sedi-
mentos com vestígios arqueológicos,
como utensílios de pedra lascada ou
“É uma sensação única,
ossos”, salienta Aubry. Após a recolha de
amostras, um laboratório dinamarquês
sermos os primeiros a rever
irá também datar o momento em que a
rocha esteve exposta e o momento em
o que foi visto há milhares
que se depositaram os sedimentos, para
ajudar a fixar cronologicamente esta
de anos”, diz o arqueólogo
viagem à arte do Paleolítico, a primeira Thierry Aubry
62 VISÃO 25 JUNHO 2020
por cerca de 200 quilómetros quadra- A seguir o traço O arqueólogo territorial”, sublinha Bruno Navarro.
dos, num território distribuído entre Thierry Aubry descreve com Com uma carreira académica em Lis-
o rio Côa e o rio Douro, que abrange pormenor o painel de gravuras com boa, nunca tinha perdido a ligação a
áreas dos municípios de Vila Nova de cerca de seis metros, encontrado este território, onde exerceu funções
Foz Côa, Figueira de Castelo Rodrigo, há poucos meses. Só é possível na política local, como deputado pelo
Pinhel e Mêda. “Tivemos a polémica observar esta rocha do núcleo PS na assembleia municipal.
para manter as gravuras, mas é preci- do Fariseu através das visitas de Premente era resolver a questão do
caiaque, aqui conduzidas pelo guia
so explicar que foi uma boa escolha e financiamento, e Navarro acreditava
António Jerónimo
demonstrar que isto tem um potencial que “um projeto destes não tem de ser
patrimonial fora do comum. A única autossustentável, mas tem de gerar uma
solução é continuar a escavar”, sublinha dinâmica económica e servir de âncora
Thierry Aubry. havia ameaças de cortes de luz, a obra de uma região, pois foi nesse pressu-
do museu não tinha sequer sido entre- posto que se afirmou”. Durante estes
NOVO SOPRO DE VIDA gue (só o foi no final do ano passado), o três anos, conseguiu duplicar as receitas
Os últimos achados arqueológicos, pessoal estava desmoralizado e faltavam próprias. Aumentou os recursos (mate-
muito divulgados junto da comuni- muitos recursos”, conta o historiador. riais e humanos) para fazer as visitas às
dade científica, nacional e internacio- Longe estavam os momentos “únicos gravuras e os pacotes turísticos dispo-
nal, mas também do grande público, e irrepetíveis” vividos enquanto es- níveis, reforçou e reformulou a rede de
conseguiram recuperar um pouco da tudante do secundário em Vila Nova parceiros privados, alargou o horário de
notoriedade que o projeto tinha vindo de Foz Côa, em que a escola assumiu funcionamento do museu, captou o in-
a perder. “Não é por acaso que, nestas a primeira linha de defesa deste pa- teresse do mecenato (sobretudo de em-
últimas semanas, tivemos um boom trimónio arqueológico, com um slogan presas vinícolas que agora dão o nome
de visitantes. Esta descoberta permite inspirado na música da banda rap Bla- às salas do museu), duplicou a oferta
valorizar ainda mais esta modalidade da ck Company: “As gravuras não sabem da loja e passou a incluir produtos da
visita em caiaque, a mais lucrativa, que nadar”. “Estavam todas as atenções região e merchandising atrativo, além de
introduzimos no ano passado. Uma ex- concentradas nesta terra remota, onde se ter tornado competitivo na captação
periência integral, quase imersiva, com só vinha quem se perdia no caminho. de fundos estruturais. “Quando cheguei,
arte rupestre, paisagem, fauna, flora, Tínhamos a comunicação social em tinha havido uma única candidatura na
degustação…”, afirma Bruno Navarro, peso, manifestações e sessões de escla- área da investigação científica e, nes-
presidente da Côa Parque – Fundação recimento diárias, agentes políticos dos tes últimos anos, conseguimos quase
para a Salvaguarda e Valorização do mais variados quadrantes e, sobretudo, quatro milhões de euros”, acrescenta
Vale do Côa. Quando ocupou o cargo, havia o primeiro grande momento de o presidente.
em junho de 2017, o cenário era negro. afirmação socioprofissional da classe Aos poucos, inverteu-se a perceção
A extinção tinha sido ponderada e os dos arqueólogos. Foi notável e, apesar geral que havia do Côa, de uns rabiscos
problemas acumulavam-se. “Foi difícil de este projeto ter tido momentos me- impossíveis de visitar, porque não se
iniciar este processo de recuperação. nos bons, a verdade é que ainda surge conseguia fazer marcações – atual-
Poucos meses antes, a loja do museu como exemplo raríssimo de defesa do mente, têm capacidade para fazer
tinha sido penhorada pelas Finanças, património enquanto solução de defesa mais de 100 visitas guiadas por dia ao

25 JUNHO 2020 VISÃO 63


CRONOLOGIA DE UM VALE
Os momentos mais importantes
após a descoberta das gravuras

1994
Anúncio público da descoberta
das gravuras, por altura da
construção da barragem
hidroelétrica do Baixo Côa,
feita em 1991 pelo arqueólogo
Nelson Rebanda, responsável
pelo acompanhamento e
prospeção arqueológicos

1996
Liderado por António Guterres,
o governo abandona
a construção da barragem
e anuncia a criação do Parque
Arqueológico do Vale do Côa

1998
Arte rupestre do Vale do Côa
é classificada pela UNESCO
como Património Mundial,
naquele que foi o processo
de classificação mais rápido
de sempre

território. “Não quer dizer que fosse Museu do Côa O programa


um projeto fracassado, mas gerou-se museológico da instituição, que
muita expectativa, que nunca se con- faz agora dez anos, foi renovado
2010 cretizou”, sublinha Bruno Navarro. recentemente
Inauguração do Museu Recuperou-se (e pacificou-se) também
do Côa, projetado pelos a ligação à comunidade local. A refor-
arquitetos Camilo Rebelo mulação recente de cinco das sete salas podia viabilizar este território, a longo
e Tiago Pimentel do museu passou a incluir um filme de prazo”, recorda.
contornos lendários, com narração do
radialista Fernando Alves, em que é NA PAISAGEM PLANTADO
prestada homenagem a quem se en- Decisivo para o projeto é o próprio mu-
volveu nesta luta. “A dado momento, seu, inaugurado em 2010, um edifício
2011 pode ter ficado a sensação de que este emblemático de betão, projetado por
Criação da Fundação Côa projeto cultural foi uma coisa imposta Camilo Rebelo e Tiago Pimentel, assente
Parque, para gerir o parque de cima para baixo, quase sem a parti- como uma rocha no topo da colina, com
arqueológico e o museu, tendo
cipação dos locais. E, na verdade, nunca uma vista deslumbrante sobre a foz do
como objetivos a proteção,
se tinha sarado a ferida que se criou na Côa e da paisagem vinhateira do Douro,
conservação, investigação
e divulgação da arte
comunidade com aquela guerra, em os dois patrimónios mundiais da região.
e do património do Côa que algumas pessoas, de forma muito “É a impressão física que deixamos
legítima, queriam que se construísse como gravura para o futuro”, sublinha
a barragem, uma obra que estava a Bruno Navarro. No final de 2019, reno-
dar emprego a uma data de gente, e varam o programa museológico, com
outras conseguiram ver mais além e soluções tecnológicas simples, eficazes
perceber que este era um projeto que e lúdicas, a piscar o olho a diferentes

64 VISÃO 25 JUNHO 2020


barragem, com o entulho das pedras
da edificação das fundações amontoa-
do ao longo das margens. Dois muros
ainda lá estão, a aguardar que algo seja
feito – pelo menos, a demolição par-
cial – para minimizar o impacto na
conservação das gravuras, sujeitas a
frequentes cheias artificiais. “A decisão
da paragem das obras chegou na hora
certa, pouco antes de começarem a
encher isto de água… Chegavam a tra-
balhar 24 horas sobre 24 horas para se
certificarem de que ficava mais onerosa
a interrupção”, conta António Jerónimo,
curiosamente, um dos estudantes do
secundário envolvidos na luta. Pouco
depois, embarcamos nos caiaques e
mergulhamos na paisagem do Vale
do Côa, com zimbros, cornalheiras e
carrascos a crescer naturalmente ao
longo das margens, e cegonhas pretas,
milhafres e águias reais a pairar no céu.
A travessia ribeirinha é a melhor forma
de observar os afloramentos de xisto
onde estão representados, sobretudo,
auroques, cavalos, cabras e veados – os
animais mais desejados pelos caçadores.
Além do Fariseu e da Canada do
Inferno, existem outros dois núcleos
visitáveis, apenas com marcação prévia
e com acompanhamento de guias: Ri-
beira de Piscos, onde se encontra uma
das raras figuras humanas de cronologia
paleolítica conhecidas no vale, o Homem
de Piscos; e Penascosa, com saída do
centro de receção da aldeia de Castelo
Melhor. Neste último, recomenda-se
uma visita noturna, com os contornos
das gravuras a ganhar vida com a luz
gerações. Na enorme réplica da rocha 1 rasante que as ilumina. Acompanha-nos
do Fariseu, as gravuras ganham vida em Dina Regalo, guia do parque desde 1996
projeções coloridas, óculos de realidade e uma apaixonada pela arte rupestre. “A
virtual permitem viagens realistas aos diferença deste núcleo é que temos a
diferentes núcleos, famílias pré-histó- “Não era paisagem mais humanizada, embelezada
ricas posam para a fotografia com os pelas oliveiras, amendoeiras e vinhas”,
visitantes. um projeto explica, enquanto o sol se põe, durante
Entre os visitantes, só cerca de um
quinto se aventura em passeios (pe- fracassado, o caminho, e o vale conquista contor-
nos aveludados. Quando chegamos a
destres, de jipe ou de caiaque) até às
gravuras. “O museu permitiu que um mas gerou- Penascosa, já só se veem as sombras
do arvoredo nas margens do Côa, mas
enormíssimo número de pessoas, que
nunca teve intenções de visitar sítios -se muita o que se perde em paisagem ganha-se
em misticismo, com os sons dos animais
com arte rupestre, descobrisse o Côa.
Mesmo os mais céticos, quando vêm
expectativa noturnos a quebrar o silêncio. Com o
foco apontado para os enormes blocos
ao museu, ficam impressionados com
a qualidade artística das gravações e,
que nunca se de xisto, Dina procura reconstituir o
pensamento daqueles artistas rupestres.
sobretudo, com a quantidade”, realça
António Jerónimo, um dos históricos
concretizou”, “Haveria uma relação com rituais de tipo
xamânico? Seriam práticas mágicas,
guias do parque, que nos conduz de
jipe até à Canada do Inferno, o primeiro
diz o relacionadas com o culto da fertilidade?
Ou apenas arte pela arte?” Sucedem-se
sítio de arte rupestre identificado, em
1991. Descemos por um caminho origi-
presidente as narrativas à volta das gravuras. Para
obter mais respostas, é preciso continuar
nário, precisamente, da construção da da Côa Parque a investigar. jloureiro@visao.pt

25 JUNHO 2020 VISÃO 65


“SE NÃO ME DIVERTIR,
NÃO FAZ SENTIDO
CONTINUAR”
QUEM É QUE SE LEMBRA DE FAZER UMA COMÉDIA EM QUE
O PROTAGONISTA ESTÁ À BEIRA DO SUICÍDIO, DEPOIS DE
PERDER A MULHER, VÍTIMA DE CANCRO? RESPOSTA:
O BRITÂNICO RICKY GERVAIS. A SEGUNDA TEMPORADA DE
AFTER LIFE FOI UM SUCESSO EM TEMPO DE PANDEMIA.
O CRIADOR, REALIZADOR E PROTAGONISTA DA SÉRIE EXPLICA
COMO SURGIU ESTA IDEIA E O QUE APRENDEU COM ELA
J E N N Y D AV I S*
A
“Nas primeiras
semanas de
confinamento, notei
que as pessoas, eu
incluído, tinham
sonhos com maior
ansiedade, uma
forma do nosso
subconsciente nos
dizer: ‘Isto não está
certo, isto não
está nada bem’”
sido ótimo. Bem, isto da pandemia
ainda não terminou, embora muitas
pessoas, especialmente em Inglaterra,
pensem, “pronto, já está, foram uns
meses estranhos...”. Mas ainda não
acabou. Seja como for, eu sinto-me
bem. Tive sempre bebida suficiente
A segunda temporada de After Life, para enfrentar um inverno nuclear e
que ficou disponível no final de abril nunca gostei de receber pessoas em
na plataforma Netflix, tem sido um casa, por isso...
enorme êxito. O regresso desta série Quer dizer que gostou
de comédia negra – escrita, realiza- do confinamento?
da, produzida e protagonizada por Sim, habituei-me bem. Pode ser uma
Ricky Gervais – teve um impacto coisa horrível de se dizer, mas... yeah.
ainda maior por chegar numa altura A primeira temporada de After
em que muitos estavam preocupa- Life teve enorme sucesso, mas,
dos com os seus entes queridos. Nos com tudo o que se passa no
novos episódios, Ricky Gervais volta mundo e a dor que agora perpassa
a ser Tony, repórter de um peque- a vida de muitas pessoas, as
no jornal local ainda a lidar com as reações à segunda temporada
saudades da mulher que morreu de foram ainda melhores?
cancro – uma perda que quase o le- Devo dizer que, em relação ao êxito
vou ao suicídio. A terceira temporada da primeira temporada, nunca tinha
já está confirmada, mas o autor avisa tido uma experiência assim. Não me
que não haverá uma quarta. O que o refiro apenas à dimensão do suces-
faz continuar? so, que poderia justificar-se pelo
Como passou os últimos facto de a Netflix ter 180 milhões de
dois meses? subscritores. Mas foi uma resposta
Não me ouvirão a queixar-me. Não, emocional. O meu agente recebeu
enquanto enfermeiros e outros 300 cartas, o que nunca acontece, já
profissionais estiverem na linha da ninguém escreve cartas! E várias pes-
frente a fazer turnos de 14 horas e soas abordaram-me na rua, sempre
eu ando, relaxadamente, a ser um para falarem das suas perdas. Diziam:
escritor numa casa com jardim. “Perdi o meu irmão há três semanas,
Não é que tenha andado a escre- antes de começar a ver a série” ou
ver [risos], mas poderia fazê-lo, se “Perdi a minha mulher há dois anos, e
quisesse. A verdade é que a minha senti-me o Tony, ele era eu, por isso,
digressão SuperNature foi adiada. obrigado”. Compreendi que toda a
Tenho ocupado o tempo a fazer mais gente estava a lidar com os seus lutos.
exercício físico. E os dias têm mais Temos perdas a toda hora, sofremos
horas quando não temos de ir a lado sempre por alguma coisa. E quanto
nenhum... Tomo banho, mas não mais velhos ficamos, com mais lutos
tenho de me vestir nem de andar de temos de lidar, e isso tem um efeito
carro. Acho que as pessoas vão sentir cumulativo. Nunca desaparece, o
falta das horas que ganharam nestes que pode mudar é a maneira como
dias, quando regressarem ao traba- lidamos com a situação. Na realidade,
lho, tiverem de andar em transportes isso fez-me pensar como abordar
e fazer tudo o que não preenche esta questão com responsabilida-
agora o seu tempo. Na verdade, tem de. Tony não melhora na segunda

68 VISÃO 25 JUNHO 2020


temporada. E o público ajudou-me.
Agora, com as redes sociais, tenho
imensas histórias, sobre como as
pessoas interagiram e sobre o que
lhes chamou mais a atenção. Houve
quem notasse, por exemplo, que
havia duas escovas de dentes na casa
de banho... Fazemos certas coisas e
depois ficamos a saber que há quem
repare. Recebo milhares de tweets
por dia com pormenores que as pes-
soas registaram. A segunda tempo-
rada teve, provavelmente, uma maior
aceitação porque foi como se tivesse
sido promovida boca-a-boca. Não
apenas por causa da pandemia, em-
bora esta tivesse influência. Há uma
relação com o que vivemos agora. E
isso deve-se, parcialmente, ao facto
de as pessoas estarem a refletir sobre
o que é mais importante para elas.
Têm tido tempo para pensar, para se
preocuparem com os parentes mais
velhos. Constatei que alguns, entre
os quais me incluo, telefonam mais
à família do que faziam há um ano.
Somos animais sociais, e até os que
pensavam não sentir falta de pessoas
sentiram-na. Quando saímos e nos
sentamos num café, mesmo sem
falarmos com ninguém, continua-
mos rodeados de outros humanos.
Nas primeiras semanas, notei que as
pessoas, eu incluído, tinham sonhos
com maior ansiedade, uma forma
de o nosso subconsciente nos dizer:
“Isto não está certo, isto não está
nada bem.” Tudo isto, creio, tem sido
comovente. A própria série diz-nos
que a vida deve continuar. Mas não
a escrevi com isso em mente. Não
poderia adivinhar, mas o público

“Temos inibições
e tabus só porque
não queremos
falar sobre certos
assuntos. E o último
grande tabu é a
morte. As pessoas
não querem pensar
nisso. Mas os
humoristas estão
sempre fascinados
com a morte”
“Costumava
sentar-me no fundo
da sala de aula
a fazer os miúdos
planeado. Quando olho para trás, vejo
rirem-se da peruca que tudo foi feito intuitivamente. Se
do professor ou é bom e se resulta, acaba por seguir
as mesmas regras da comédia, sejam
de outra coisa elas quais forem.
qualquer. Sempre Quão difícil foi dirigir-se a si
próprio nesses momentos?
fiz o que faço agora, E onde se inspirou para convocar
mas só percebi que essa dor?
Antes de mais, a minha preocupação
estabeleceu as próprias comparações.
poderia ser um era esta: será que as pessoas, depois
Não queremos pensar nestes emprego quando de se rirem de coisas parvas, subli-
assuntos, mas devemos fazê- mes, absurdas e surreais, passam, su-
-lo e pode ser negativo se os
cheguei aos bitamente, a chorar por causa de um
evitarmos? 40 anos!” homem que perde a mulher e se quer
Temos inibições e tabus só porque matar? E a resposta foi sim. Porque
não queremos falar sobre certos as pessoas fazem isso todos os dias.
assuntos. E o último grande tabu é Mas tem de escrever o material... A vida real é bem mais assustadora.
a morte. É mesmo. As pessoas não Sim, mas a culpa impera. Depois E nós assumimos demasiadas coisas
querem pensar nisso. Mas os humo- penso que tenho de fazer mais uma sobre o público. Criadores, estúdios,
ristas estão sempre fascinados com a série ou um espetáculo. E a primeira televisões costumam alertar: “Oh, isto
morte. Deve haver algo de errado e de coisa que me ocorre é sempre “ima- é demais para o público!”. Mas quem
obscuro em nós próprios. Gostamos gina se...”. Talvez tenha que ver com o somos nós para dizer isso? E estamos
de ir por aí, porque a morte nos deixa modo como a sociedade tem muda- enganados, porque o público aguenta
desconfortáveis, a nós e aos outros. do, com o politicamente correto, com tudo. Se aguenta a vida real, também
De certo modo, caminhamos em di- temas tabus a serem condensados em aguenta uma série de TV. É como se
reção à escuridão. Nos meus espetá- novos dogmas. Talvez a explicação tivéssemos medo de que os especta-
culos de stand-up comedy, gosto de esteja aí. E, então, pensei: “Imagina dores pensassem: “O quê? Morrem
abordar assuntos tabus e controver- que não te importas com o que te pessoas?! A sério? Ninguém me tinha
sos, porque quero que o público se acontece, que não te importas com as avisado...” [Risos.]
sinta desconfortável, que pense nisso, consequências do que fazes ou dizes, Alerta de spoiler!
que sinta algo. Nenhum mal advém que podes dizer tudo o que queres.” Sim, spoiler alert: vamos todos
da discussão de temas tabus. Isso Nós não dizemos o que nos apetece morrer! Se é fácil dirigir-me a mim
conduz-nos a um lugar onde nunca porque não queremos aborrecer nin- mesmo? Sim, porque só tenho de
estivemos, o que é tentador, tanto guém ou porque queremos ser popu- agradar a mim próprio. É muito
para a comédia como para o drama. lares ou porque não queremos perder mais duro ser intermediário. Já vi
Como é o seu processo de escrita? o emprego. Por tudo isso, nunca realizadores a suarem por terem de
Não tenho nenhum processo. Deixo dizemos exatamente o que quere- fazer um telefonema, quando querem
que os pensamentos entrem na mos transmitir. Mas imaginemos mudar uma fala. É tudo mais fácil
minha cabeça. Tento arranjar tempo que podíamos. Em que situação isso quando somos nós a mandar. É mais
para ter pensamentos que quase não podia acontecer? Se formos morrer fácil escrever o argumento, porque
controlo. Preciso de me sentar, olhar em breve, se perdemos tudo e se sei que sou eu o realizador que o vai
o céu, ouvir música, não pensar em decidirmos desistir, morrer. Mas, de- ler... Só não podemos ser complacen-
coisa nenhuma e... os pensamentos pois, não o fazemos porque o nosso tes connosco, temos de ser os nossos
surgem. cão tem fome. E pensamos: “Sempre piores críticos, porque não haverá
Anda pelo mundo a estudar tive algo que me travou, mas agora ninguém a dizer-nos: “Isso é horrível,
as pessoas? posso fazer exatamente o que me Rick, repete lá isso...”
Sim, talvez, mas não conscientemen- apetece, não tenho medo de nada.” E O elenco da série é muito bom,
te. Sempre fiz isso. É o que faço como é como se tivéssemos superpoderes. sobretudo o seu cão maravilhoso.
ser humano. Eu costumava sentar- É esse o conceito, foi essa a ideia para Estabeleceu com ele laços
-me no fundo da sala de aula, a fazer After Life. Depois tive de pensar nos profundos?
os miúdos rirem-se da peruca do pormenores da série. Exemplo: Por Como já expliquei, surgiu a ideia de
professor ou de outra coisa qualquer. que não se matou Tony? Porque o cão haver um cão e de ele se tornar muito
Sempre fiz o que faço agora, mas só tinha fome, que ideia brilhante, vou importante. Metafórica e literalmen-
percebi que poderia ser um emprego arranjar-lhe um cão! E o que significa te, ele salva a vida do Tony. Os cães
quando cheguei aos 40 anos! Pode perder tudo? Oh, o amor da sua vida. são fantásticos. E salvam mesmo
ser uma ideia, uma observação... Em Certo, ótimo. E qual é o emprego vidas, literal e metaforicamente.
março de 2017, quando andava em dele? Qual o pior emprego? Ter de São ótimos para a dor. Eles com-
digressão com o espetáculo Huma- lidar com pessoas banais, porque ele preendem a emoção, sabem quando
nity, sentia-me ligeiramente culpado odeia trivialidades. E quando estamos estamos tristes. Se não existissem,
por trabalhar apenas 70 minutos deprimidos ou em sofrimento, tudo é teriam de ser inventados. Guardam-
por dia [risos]. Não foi essa a minha dez vezes pior. Foi por essa razão que -nos, guiam-nos, dão-nos segurança.
educação! Isto não é bem ter um fiz dele um repórter num pequeno Conseguem mesmo detetar o cancro!
emprego! jornal local gratuito. Nada disto foi Por isso, quis um cão e fui ter com as

70 VISÃO 25 JUNHO 2020


pessoas que tratam deles; cheguei ao quando penso: “Oh, eles não estavam de dois minutos por dia... Faço as
dono da Anti, a cadela que faz o papel nada à espera disto!” É isso que me minhas coisas, tenho uma boa ideia,
de Brandy, e disse-lhe: “Não quero entusiasma. escrevo-a, penso que amanhã olho
que faça truques, só quero que seja E nesse aspeto, After Life melhor para ela e, pronto, está feito.
um cão!” Brinquei com ela e houve foi um ponto de viragem? Se eu não me divertir, não faz sentido
logo uma ligação. É adorável. Já tem Não sei... Porque todos os anos continuar. Quero desfrutar de cada
10 anos e uns meses, o que significa sinto que estou a acordar para isto minuto do dia, de cada bocadinho da
que, em breve, se vai reformar. Mas tudo pela primeira vez. Sempre agi minha escrita. Quero lembrar-me de
ainda irá entrar na terceira tempo- assim. Não sei explicar, mas sei que todas as frases e de onde é que tive a
rada... Depois das duas temporadas, sabe bem. Devemos estar o mais ideia. Quero que todos estejam felizes
nas despedidas do elenco, quando entusiasmados possível com o que durante as gravações – e quero que
tive de dizer adeus à Anti, vieram-me estamos a fazer ou com o que ainda terminemos sempre às quatro! Passo
as lágrimas aos olhos, porque pensei: não fizemos. Vejo muitas pessoas que uns bons momentos e digo: “É isto
“Ela não entende por que não me deixaram de sentir prazer no que mesmo!” Essa é a única maneira de
vai ver durante mais de um ano.” Se fazem. Limitam-se a dizer: “Temos estar, porque a vida é demasiado
calhar sobrestimei o quanto ela gosta de fazer isto...” Não, não têm de o fa- curta. Não me quero castigar durante
de mim, mas... zer! É por isso que eu trabalho cerca dez anos... Nunca fui o tipo de pessoa
Até que ponto fazer esta série que consegue pensar: “Bom, vou
mudou a sua vida e o modo como fazer este trabalho que odeio durante
se vê enquanto artista? dez anos e depois as coisas vão me-
Sempre quis dar o meu melhor, ser “Não quero ser mais lhorar.” visao@visao.pt
original, para que as pessoas me qui- *Jenny Davis/The Interview People
sessem ver e eu fosse pago decente-
famoso ou mais
mente. E é muito bom ser candidato rico ou ganhar mais
a prémios e ganhá-los. Mas cada vez
mais sinto que as únicas coisas que
prémios, a sério.
importam realmente são: fui o mais Mas fui honesto?
corajoso e honesto que podia ser? A
stand-up também me ensinou isso.
Fui o mais corajoso
Não quero ser mais famoso ou mais possível? Estou a
rico ou ganhar mais prémios, a sério.
Mas fui honesto? Fui o mais corajoso
oferecer ao público
possível? Estou a oferecer ao público o melhor que
o melhor que consigo? É isso que me
move. Mais: será que isto já foi feito
consigo? É isso
antes? Sinto um pico de adrenalina que me move”
INCÊNDIOS

FOCAR Suspeitas
de favorecimento no
“Vejo os pombos
no asfalto, eles
sabem voar alto,
negócio dos drones
A Força Aérea vai comprar 12 aparelhos para usar na
mas insistem em prevenção de fogos. O contrato de 4,5 milhões de euros,
financiado pelo Fundo Ambiental, deve ser assinado
catar as migalhas até ao final do mês, mas o concurso está envolto em
do chão” polémica, até porque já só há uma empresa na corrida
Zeca Baleiro PEDRO RAÍNHO

Músico brasileiro
(1966)

72 VISÃO 25 JUNHO 2020


Missão Em 2019, os militares da Força
Aérea usaram drones da UAVision
para detetar focos de incêndio e

N
reacendimentos na serra da Lousã

o início de junho, o Ministério da


Defesa Nacional e a Força Aérea
Portuguesa (FAP) prometeram
4,5 milhões de euros à empre-
sa que conseguisse construir e
entregar, apenas uma semana
depois de assinado o contrato,
os dois primeiros de um con-
junto de 12 drones para reforçar
a vigilância e a prevenção na fase
mais crítica dos incêndios, já a
partir de 1 de julho. De envelope
na mão, foram ao mercado para uma consulta
prévia a três empresas nacionais na área dos
unmanned aircraft (nome técnico destes equi-
pamentos), mas só uma apresentou proposta
ao concurso. Depois de analisar o caderno de
encargos, a Tekever e o CEiiA – que chegaram
a formar um consórcio para disputar o con-
trato – desistiram do negócio. “Conclui-se à
saciedade que, apesar da aparência de abertu-
ra, o procedimento é fechado à concorrência,
refletindo uma escolha predefinida da entida-
de adjudicante”, refere uma nota demolidora
do concurso, que a empresa fez chegar à FAP.
À VISÃO, o ramo recusa em absoluto que as
regras do jogo tenham sido viciadas, mas a
verdade é que, agora, a UAVision ficou com
caminho livre para levantar o cheque.
Publicamente, a história começou a 11
de maio e tem João Pedro Matos Fernandes
como primeiro protagonista. Nesse dia, à
saída de uma reunião do Conselho de Coor-
denação da Agência para a Gestão Integrada
de Fogos Rurais, em que também partici-
pou o primeiro-ministro, Matos Fernandes
anunciou o reforço dos meios de vigilância
de fogos, com a compra de 12 novos apa-
relhos. “São drones que têm uma grande
capacidade de voo em comparação com os
que hoje existem. Estamos a falar de drones
que podem voar entre seis e oito horas, tendo
um raio de ação de 100 quilómetros a partir
do ponto onde são comandados. A partir do
final do mês de junho, esses drones vão estar
no terreno”, garantia então o governante.
A intervenção do ministro evidenciava já
duas coisas: primeiro, que havia uma ideia
muito concreta do tipo de equipamentos
a comprar e, segundo, que era possível ter
os aparelhos prontos a operar num período
bastante curto. À VISÃO, o Ministério do
Ambiente e da Ação Climática (MAAC) – que
garantiu o financiamento dos 4,5 milhões de
euros através do Fundo Ambiental – explica
que Matos Fernandes se baseou em “informa-
ção prestada pelas Forças Armadas, durante
uma reunião de coordenação de incêndios”,
cerca de um mês antes, e também na “garantia
que lhe foi dada de que a indústria portuguesa
teria capacidade para produzir os drones nesse
período de tempo”. Entretanto, e à boleia da

25 JUNHO 2020 VISÃO 73


Ambiente Matos Fernandes deu
INCÊNDIOS o tiro de partida em público, ao
anunciar a compra de 12 novos
drones

semana que o Governo levou a publicar


a autorização daquela despesa pela FAP,
o calendário derrapou. Agora, e já com o
prazo para a apresentação de propostas
já encerrado, o MAAC diz que a previsão
para a entrega dos aparelhos saltou um
mês, para o “final de julho”.
O concurso passou para as mãos da
FAP a 4 de junho, com a assinatura de
um “protocolo de colaboração institu-
cional” entre o ramo, o ministério e o
Fundo Ambiental onde ficam definidas as
“regras de financiamento” do negócio. A
resolução do Governo (18 de maio) abria
a porta a um ajuste direto, mas o modelo
seguido acabou por ser a consulta prévia,
sem negociação. A solução, justifica a De-
fesa, permite “assegurar a transparência
e a concorrência na contratação pública,
sem comprometer em demasia os prazos”
do concurso. Mas o consórcio que ficou
fora do negócio tem outra leitura sobre a
“transparência” do processo. Na resposta
à VISÃO, fonte oficial do grupo que reúne
a Tekever, o CEiiA e a Spin.Works (a GMV
Portugal também integrava o consórcio)
explica que deparou com um “conjunto
de dificuldades inultrapassáveis que tor-
naram inviável a apresentação de uma
proposta que cumprisse o muito detalha-
do caderno de encargos, em particular no
que respeita às características e especifi-
cações dos sistemas pretendidos”, e deixa
à FAP a decisão de revelar a “declaração
fundamentada” que apresentou.
ficam fora do negócio de 4,5 milhões necessidade não revelada” e impedem
SOLUÇÕES À MEDIDA de euros, e a que a VISÃO teve acesso soluções alternativas. E, de acordo com
O calendário para a apresentação de através de fonte militar conhecedora do o documento, há ainda situações em que
propostas e os requisitos da Força Aérea processo, o consórcio refere que a lista se assume “claramente a performance
não dão margem de manobra – isso até de “requisitos técnico-operacionais” da técnica” de determinado drone.
o único concorrente em jogo reconhece. FAP “coincidia, de forma muito genera- Multiplicam-se os exemplos. Seja por-
“A UAVision avalia o caderno de encar- lizada, com a especificação técnica das que a FAP exige um “trem de aterragem
gos apresentado pela FAP como sendo aeronaves não tripuladas disponibilizadas tipo triciclo amovível” integrado no apa-
extremamente exigente e apresentando no mercado português pelo fabricante relho; porque aponta a um modelo misto
prazos extremamente apertados”, diz o UAVision”. Além disso, “a maioria” desses de drones (uns de “asa fixa” e outros com
presidente da empresa. “Nem a Uavision requisitos são considerados essenciais e hélices acopladas às asas); porque define
nem, por norma, nenhum outro fabrican- representam um fator de eliminação das especificamente no caderno de encargos
te deste tipo de sistemas tem 12 aeronaves propostas apresentadas. Numa análise o peso máximo dos aparelhos (40 quilos,
e sistemas em stock” e prontos a vender, rápida, percebe-se que 95% dos 303 quando a classe de drones pretendida
acrescenta Nuno Simões. Mas isso não requisitos apresentados pela FAP foram abarca aparelhos até aos 150 quilos); ou
é problema para o líder da companhia. colocadas nesta categoria – portanto, ou porque determina, à partida, as peças de
“Somos cerca de 20, mas damos conta do são cumpridas ou impossibilitam a ida a substituição que devem ser entregues à
recado”, atira, em resposta aos adversá- jogo. A Tekever garante que determinadas FAP juntamente com os drones e o tem-
rios diretos que reclamam reunir “mais de exigências foram consideradas essenciais po de vida das originais (150 horas para
500 engenheiros altamente qualificados” mesmo que não representem “qualquer o carburador, 100 para o filtro de ar, 50
nesta área de atividade. vantagem operacional, técnica ou logís- para as velas do motor e 150 para as ba-
A análise do consórcio liderado pela tica e sem que sirvam para dar resposta terias do drone). “Este tipo de requisito só
Tekever, no entanto, vai muito além da a um requisito de conformidade legal ou pode ser construído de forma tão fechada
dimensão das empresas envolvidas no regulamentar”. Noutros casos, refletem tendo por base um conjunto de compo-
processo. Na “declaração fundamen- “uma preferência (...) para impor uma nentes e equipamentos de um Sistema
tada”, em que explica por que motivos determinada resposta técnica a uma Aéreo Não Tripulado já selecionado, cujo

74 VISÃO 25 JUNHO 2020


desgaste seja já conhecido, não podendo Essa capacidade de resposta seria
ser cumprido por outro [aparelho] com facilitada com informação prévia, mas
características diferentes”, denuncia o o consórcio da Tekever garante que “em
consórcio. General Nunes Borrego nenhum momento” foi contactado a
Noutro ponto, as empresas notam que O dinheiro para os drones provém este respeito e que soube do interesse
é exigida previamente uma “compatibili- do Fundo Ambiental, mas foi a do Estado na compra dos drones a 11
dade de integração” com a rede de comu- Força Aérea quem desenhou de maio, quando Matos Fernandes o
nicações da Força Aérea (RIGFA), mas não o concurso para a compra de anunciou publicamente. A resposta de
incluem “qualquer informação” sobre a 12 aparelhos por cerca de 4,5 Nuno Simões tem uma nuance. Por um
rede no caderno de encargos. Conclusão: milhões de euros. Os primeiros lado, garante que soube do concurso da
“É uma forma de fechar a concorrência equipamentos deverão ser FAP “no mesmo momento que todos os
à(s) entidade(s) que já tenham relações entregues uma semana depois outros” e que respondeu ao convite nos
de colaboração com a Defesa Nacional da assinatura do contrato termos do caderno de encargos. Por ou-
que possibilitem a aquisição de tal co- tro, admite que, “há vários meses”, a sua
nhecimento.” empresa foi “sondada informalmente
daturas já ter fechado –, a FAP recusa-se pelo Estado-Maior-General das Forças
“ESTADO DA ARTE” a divulgar o caderno de encargos. Mas Armadas (EMGFA)” quando elementos
A resposta da Força Aérea é categórica: faz questão de sublinhar: “É da compe- do gabinete do almirante Silva Ribeiro
“Não”, o concurso não foi desenhado à tência e responsabilidade da entidade estavam “à procura de um sistema VTOL
medida para garantir vantagem a deter- adjudicante definir os requisitos dos bens [drone com hélices que permitem desco-
minada empresa. “Os diversos requisitos em qualquer procedimento de natureza lar e aterrar na vertical] com capacidade
do caderno de encargos consideraram pré-contratual, em função da utilização de operar a partir de qualquer ponto do
detalhadamente e estão devidamente que lhes pretende atribuir e da avaliação País”. Um contacto motivado, segundo
ajustados à missão a desempenhar pelos que faz do estado da arte dos domínios Nuno Simões, por um interesse do EM-
UAS (aeronaves não tripuladas) no con- tecnológico e operacional.” GFA na “capacidade” da UAVision para
ceito de operações desenvolvido pela FAP, “A única coisa que mudou, na minha “rapidamente fabricar aeronaves VTOL,
respeitando as exigências de proporcio- perspetiva, em 2020, é que existe um pois tal poderia vir a ser necessário face
nalidade, de necessidade e de adequação concurso de quatro milhões de euros e, ao cenário de pandemia a decorrer até
ao cumprimento de tais missões”, garante de repente, já toda indústria nacional se então”.
fonte oficial do ramo. mobiliza e aparecem 500 engenheiros. A VISÃO procurou obter, junto do
Escudando-se no facto de o concur- Onde estavam eles em 2018 e 2019?”, gabinete de Silva Ribeiro, a confirmação
so ainda estar a decorrer – apesar de só pergunta Nuno Simões, lembrando que de que a empresa de Nuno Simões teria
haver uma proposta em cima da mesa e há outras empresas com colaboração sido sondada por responsáveis do EMG-
de o prazo para apresentação de candi- anterior com as Forças Armadas. O “pro- FA. E, a confirmar-se a informação, o que
blema”, acrescenta o líder da UAVision, teria motivado esse contacto com aquele
“é que, até ao momento, julgo sermos o que é, agora, o único concorrente a um
único fabricante com uma plataforma contrato de 4,5 milhões de euros com a
deste tipo em Portugal [e] a vantagem é FAP, “vários meses” antes de o concurso
que veio também a revelar-se perfeita ser anunciado. Na resposta, o EMGFA
para um cenário como o dos incêndios”, recorre à atual situação de pandemia e à
defende. “Os equipamentos da UAVision aproximação da época de incêndios – e
refletem os requisitos operacionais da ao esforço que ambas representam no
FAP, e não o contrário. Resultado de anos empenhamento de meios militares – para
de desenvolvimento contínuo”, garante. contextualizar a abordagem direta a “em-
Nuno Simões assume que nenhuma presas dentro do tecido nacional” (sem
empresa tem equipamentos à imagem especificar quais), além de ter identificado
dos pretendidos pela FAP prontos para “alternativas internacionais de sistemas e
DOS 303 REQUISITOS entrega na hora. Como é, então, possível
respeitar o apertado caderno de encargos
equipamentos de vigilância aérea”. Tudo
com o objetivo, continua, de “assegurar
APRESENTADOS sem comprometer prazos, com a entrega
de dois drones até sete dias após a assina-
as condições necessárias ao planeamento
e coordenação de operações de apoio à
NO CADERNO DE tura do contrato, outros quatro aparelhos proteção civil, a realizar pela FAP”.

ENCARGOS, 95%
nas duas semanas após a adjudicação e Esses contactos, conclui o gabinete,
os restantes seis nos 30 dias após ser fe- em nada se cruzaram com a compra dos
SÃO “ESSENCIAIS” chado o negócio? O consórcio da Tekever
diz que não é possível, mas Nuno Si-
drones, anunciada entretanto. Essa tarefa
“foi cometida à Força Aérea, não tendo o
E PERMITEM A mões encontrou uma forma: “Vamos ter
de paralisar todas as nossas atividades,
EMGFA interferido nos aspetos concursais
nem na inerente tramitação contratual”,
ANULAÇÃO DAS estender a nossa linha de produção e
implementar todos os novos requisitos”,
garante fonte oficial do gabinete de Silva
Ribeiro. Tudo não terá passado, afinal, de
CANDIDATURAS explica o responsável da UAVision. uma coincidência. prainho@visao.pt

25 JUNHO 2020 VISÃO 75


Ribalta O CEO da FPF
FIGURA tem vindo a apresentar
o caso de estudo português
em várias cimeiras
do futebol mundial

D.R.
O homem por detrás da máquina
A influência de Portugal no futebol internacional não para
de crescer. O presidente da FPF será o rosto do sucesso.
Mas o mérito deve ser repartido com o discreto Tiago Craveiro

N
MANUEL BARROS MOURA

aquela quarta-feira, 17 de de Futebol (FPF) e vice-presidente da


junho, dia em que a UEFA própria UEFA. Mas só mesmo os mais
confirmou Lisboa como a atentos ao fenómeno futebolístico na-
cidade escolhida para ser a cional terão conseguido perceber quem
sede da inédita fase final da era o Tiago a quem o dirigente esloveno
Liga dos Campeões, a maioria se referia. Pois bem, trata-se de Tiago
dos portugueses terá ficado
surpreendida quando o pre-
Craveiro, diretor-geral (ou CEO, como
preferirem) da FPF, o discreto dirigente EM 2017, FOI O 26º
sidente do órgão máximo do
futebol europeu explicou a
que faz mexer a poderosa máquina em
que se transformou, nos últimos anos, o
NO TOP 100 DOS
razão de a opção ter recaído na capital
do nosso país: “O Fernando e o Tiago
organismo que gere o futebol nacional.
Diga-se, a bem da verdade, que a
MAIS INFLUENTES
foram os primeiros a vir falar connosco escolha de Lisboa para a Final 8 da DA INDÚSTRIA DO
e a dizer que, se precisássemos, estavam
prontos para ajudar e que, facilmente,
liga milionária não foi assim tão sim-
ples. E muito menos uma questão de FUTEBOL. JORGE
podiam organizar o evento.” É possível
que muitos tenham percebido, de ime-
os dirigentes portugueses terem sido
os primeiros a oferecerem-se à UEFA MENDES SURGIA
diato, que o Fernando de quem Aleksan-
der Ceferin falava era Fernando Gomes,
para encontrar uma solução que per-
mite concluir a prova rainha do fute-
APENAS DOIS LUGARES
presidente da Federação Portuguesa bol europeu, interrompida em março À SUA FRENTE

76 VISÃO 25 JUNHO 2020


Com o dedo de Tiago
por causa da pandemia da Covid-19. 2007 – Taça da Liga: Tiago Craveiro desenhou
A competição foi renhida, nomeadamen- o modelo competitivo daquela que, mesmo com alguma
te com a Alemanha, algo que ficou bem dificuldade, se vem afirmando como a terceira prova
claro no facto de os germânicos terem do calendário futebolístico nacional.
sido compensados com a organização
2014 – Final da Liga dos Campeões: Dois anos após
da fase final da Liga Europa. Mas as pa- tomar em mãos as rédeas da FPF, a dupla Gomes/
lavras de Ceferin revelam um pouco do Craveiro garante a organização da final da Champions,
verdadeiro peso que Fernando Gomes no Estádio da Luz, em Lisboa.
e Tiago Craveiro têm vindo a ganhar no
seio das instituições que gerem o futebol 2016 – Cidade do Futebol: Situada em Oeiras, paredes
europeu e até mundial. O primeiro, já se meias com o Estádio Nacional, é a sede da federação
sabia, tem um prestígio cimentado em e oferece condições de trabalho únicas às 25 seleções
vários anos de presidência e de exercício nacionais, com três campos de futebol de última
de cargos internacionais. Basta lembrar geração e 11 vestiários. Está a ser construído um hotel
o facto de, nas últimas eleições da UEFA, e um museu. Poderá ainda vir a contar com um pavilhão
Gomes ter sido o vice-presidente mais de futsal e uma estrutura dedicada ao futebol de praia.
votado. Menos visível para o grande pú- 2016 – Liga de futebol feminino: A convite da FPF, os principais clubes
blico mas, por ventura, tão importante portugueses aceitaram o desafio de criar equipas femininas, dinamizando
tem sido, também, o desempenho do seu a competição e ajudando a captar patrocínios.
braço direito. Antes do “feito” de trazer
a fase final da Champions para Lisboa, 2017 – Portugal Soccer School: Desde a sua criação, realizou 150 cursos
Tiago Craveiro já tinha sido o grande e ajudou a formar 3 710 agentes desportivos.
responsável pelo enorme sucesso da Liga 2017 – VAR: Portugal foi dos pioneiros na adoção da tecnologia
das Nações, a mais recente competição do videoárbitro. Para o efeito, a FPF criou, na Cidade do Futebol,
europeia de seleções, que ele inventou um dos três primeiros centros de VAR do mundo.
e conseguiu, a duras penas, convencer
a UEFA a implementar. Portugal teve a 2018 – Liga Revelação: Campeonato sub-23, um escalão que permite
honra de organizar e de vencer a pri- aos clubes dar competitividade aos atletas que saem da formação e antes
meira edição da fase final da prova, que de se afirmarem nas equipas principais.
decorreu, em 2019, em Guimarães e no
Porto. Para o jovem dirigente português
valeu o reconhecimento por parte dos
principais dirigentes do futebol mundial,
nomeadamente dos anterior e atual pre-
sidentes da UEFA, e de Gianni Infantino,
atual líder da FIFA que, em 2014, quando
era secretário-geral de Michel Platini
no organismo europeu, foi o primeiro a
acreditar nos méritos da nova competi-
ção. A ponto de, por esta altura, estar já
a estudar, juntamente com o português,
a hipótese de a Liga das Nações passar a
ter uma edição mundial.

26º DO MUNDO
Tiago Craveiro foi considerado, em 2017,
pela FC Business, revista britânica voca-
cionada para os negócios e a indústria
do futebol, a 26ª personalidade mais
influente no meio desde 2004, numa 2019 – Liga das Nações: A ideia foi acabar com os jogos particulares
lista de 100 nomes, na qual o empresário entre seleções e aproveitar as datas vagas para criar uma liga competitiva,
Jorge Mendes surgia apenas dois lugares apetecível para patrocinadores e televisões. O parto foi difícil, mas Tiago
à frente. Um ano depois, foi nomeado convenceu tudo e todos. No futuro, poderemos estar a falar na Liga Mundial
administrador da UEFA Club Compe- das Nações...
titions, SA, empresa detida pela UEFA
2019 – Canal 11: Projeto único no mundo. A FPF é a primeira federação a
e pela Associação Europeia de Clubes
deter um canal de televisão, a emitir diariamente.
(ECA) e que passou a ser responsável
pela gestão de todas as competições 2020 – Final 8 da Liga dos Campeões: Pela primeira vez, as oito melhores
europeias de clubes: Liga dos Campeões, equipas europeias vão estar reunidas na mesma cidade, a lutar pelo título
Liga Europa, a futura Conference Lea- mais importante do calendário do futebol mundial de clubes. A ver vamos se
gue, Supertaça Europeia, Youth League não será a primeira de muitas...

25 JUNHO 2020 VISÃO 77


FIGURA

e Champions feminina. O português foi


escolhido por Aleksander Ceferin, ao
passo que o presidente do FC Barcelo-
na, Josep Maria Bartomeu, foi indicado
pela ECA. Ambos trabalham, desde
então, em conjunto em temas como a
venda de direitos de TV e comerciais e
implementação das novas provas. A este
cargo, que acumula com a direção-geral
da FPF, Craveiro junta ainda a vice-pre-
sidência do Comité de Competições de
Seleções da UEFA.
Tudo isto permite perceber o pres-
tígio internacional no seio do mundo
dos negócios do futebol que o dirigente
federativo português tem conquistado
desde que, em 2012, entrou para a FPF
pela mão de Fernando Gomes. Desde
essa altura, os sucessos desportivos são
LUSA

sobejamente conhecidos (Euro 2016,


Europeu de futsal e mundial de futebol
de praia à cabeça) e ajudaram a construir como ficarão Cristiano Ronaldo, José Bastidores Tiago Craveiro
uma imagem de competência por parte Mourinho e Jorge Mendes? (de costas, na cerimónia organizada
da federação portuguesa. E também “Conheci-o na campanha eleitoral por Marcelo Rebelo de Sousa,
permitirem amealhar chorudas quantias que levou à eleição de Durão Barroso, em Belém) prefere ficar na sombra
em prémios e patrocínios, dinheiro esse em 2002, era ele jornalista do Portugal e não quis falar à VISÃO
que teve efeito multiplicador nas mãos Diário”, conta Hermínio Loureiro, à
do organismo liderado por Fernando altura secretário-geral do PSD. Desper-
Gomes e conduzido pelo discreto Tia- tou-lhe a atenção “a forma de trabalhar” político, atualmente afastado dos holo-
go Craveiro. Projetos como a Cidade daquele jovem jornalista, formado, dois fotes, desde que, em 2016, abandonou
do Futebol, o Canal 11 (primeiro canal anos antes, em Comunicação Social pela a presidência da Câmara de Oliveira de
televisivo de uma federação em todo o Universidade do Minho. E o impacto Azeméis por ser suspeito da prática de
mundo), a aposta no futebol feminino, foi de tal ordem que, quando, após as crimes de corrupção, prevaricação, pe-
no futsal, no futebol de praia, na tecno- eleições, Hermínio Loureiro assumiu a culato e tráfico de influência. Dez anos
logia do VAR ou a Portugal Soccer School Secretaria de Estado da Juventude e do antes, porém, os tempos eram outros e
(escola de formação que visa capacitar Desporto, Tiago Craveiro foi chamado Hermínio Loureiro, então deputado da
e qualificar os agentes desportivos com a integrar o gabinete. “Mas rapidamente oposição após a vitória do PS de José
vista à promoção e ao desenvolvimen- passou a ser bem mais do que um as- Sócrates, foi eleito presidente da Liga
to do futebol em Portugal) são projetos sessor de imprensa, assumindo respon- Portuguesa de Futebol Profissional. “O
com o dedo de Tiago e que têm levado a sabilidades crescentes na definição de Tiago foi o primeiro com quem falei.
FPF a ser apontada como caso de estu- políticas e estratégias”, salienta. Era a pessoa certa.” E, assim, Craveiro
do a nível mundial. E o português a ser “O Tiago é alguém com quem dá gos- entrou em definitivo para o mundo do
estrela das maiores cimeiras do futebol to trabalhar, porque é de uma eficiência futebol, como secretário-geral da Liga.
internacional, como foram os casos da invulgar. Muito focado nos projetos, Isto apesar de não ter nenhuma ligação
última edição da Soccerex Europe, rea- para ele não há folgas ou fins de sema- ao desporto-rei. “Penso que praticou
lizada em setembro do ano passado, em na. É um empreendedor nato”, realça o natação. Sei que nunca ninguém o viu
Oeiras, e do webinar integrado no UEFA jogar à bola, nem a brincar”, recorda
Grow Conference and Awards, programa Loureiro, que não esconde ter sido essa
da instituição europeia que visa acompa- outra das qualidades que vislumbrou
nhar e apoiar o crescimento do negócio
em torno do futebol, que decorreu em
‘‘É DE UMA LEALDADE no jovem Tiago: “Não ser do futebol foi
bom, pois não tinha vícios.” Nem clube,
maio último, já em pleno confinamento. A TODA A PROVA aparentemente e por incrível que isso
possa parecer: “Ele é grande adepto, sim,
“NUNCA O VIRAM JOGAR À BOLA” E DÁ UMA EXTREMA mas da Seleção Nacional!”
Mas quem é, de onde vem e como aqui
chegou este homem do Norte, que com- CONFIANÇA ÀS “Lembro-me de ele ser muito traba-
lhador, competente, exigente e determi-
pletará 45 anos no próximo dia 5 de ju-
lho, casado e pai de duas crianças que, PESSOAS COM nado”, recorda, por seu lado, Augusto
Baganha, histórico basquetebolista do
com o trajeto que leva, se arrisca a ficar
na história do futebol mundial (pelo me-
QUEM TRABALHA’’ Sporting e da Seleção Nacional, que se
cruzou com Tiago na Secretaria de Es-
nos, na área institucional e dos negócios) EXPLICA HERMÍNIO LOUREIRO tado do Desporto. Porém, ao então chefe

78 VISÃO 25 JUNHO 2020


OPINIÃO

Princípios
de gabinete de Hermínio Loureiro o que
mais despertou a atenção no jovem as-
e valores, “mas”...
sessor foi o facto de ele ser “um tipo com
P O R J O S É C A R L O S D E VA S C O N C E L O S
ideias”. E se conseguiu colocar algumas
em prática durante a passagem pelos

1
governos de Durão Barroso e de Santana
Lopes, foi na Liga que começou a abrir o O Dia Mundial do Refugiado foi também intervenha e quando fizer
livro. “Ele foi fundamental na construção no passado dia 20 e o Presiden- declarações “comemorativas” como
do modelo competitivo da Taça da Liga”, te Marcelo assinalou-o subli- aquela não esqueça realidades que
recorda Hermínio Loureiro, lembrando nhando que “os refugiados são negam os princípios e valores que
também “as dificuldades” que ambos pessoas como nós, o humano é se proclamam.

2
tiveram de enfrentar para conseguir universal e todas as vidas contam”,
convencer os poderes instalados para sendo “Portugal um país aber- Como se já não bastasse a
levar a nova prova por diante, em 2007: to aos outros. De valores huma- Covid-19 a infernizar-nos a
“Foi igual à Liga das Nações.” nistas, de solidariedade e justiça, vida, para além da abundante
que fazem dos portugueses um indispensável informação sobre
A FOLHA EM BRANCO exemplo mundial no acolhimento a pandemia, suas manifestações
Em 2010, Hermínio Loureiro deixou a e integração dos refugiados”. Mui- e consequências, somos fustiga-
presidência da Liga e para o seu lugar to bem, temos até das legislações dos por chusmas de comentários e
entrou Fernando Gomes. Tiago Craveiro mais avançadas nesse domínio e variações, a seu respeito, que não
manteve-se como secretário-geral, só na proteção dos emigrantes. Não interessam nem ao Menino Jesus.
abandonando o cargo para acompanhar fazemos, aliás, mais do que a nossa E que só servem, muitas delas,
Gomes, em 2012, na passagem para a obrigação, atendendo inclusive à para nos dar um certo retrato, não
FPF. O resto é a história de sucesso que diáspora de milhões de portugue- muito lisonjeiro, dos seus auto-
se conhece. Um trajeto que não está au- ses ao longo do tempo. res. Incidindo em particular sobre
sente de críticas, é verdade. Fontes ouvi- Muito bem, “mas”... Na prática, o que Presidente da República e
das pela VISÃO que preferiram manter o muitos “mas”. Des- primeiro-ministro
anonimato destacam-lhe o “feitio difícil” de logo, o Serviço fazem e não fazem,
e “uma certa arrogância e frieza na forma de Estrangeiros e Há comentadores dizem e não dizem.
como lida com aqueles que o rodeiam”. Fronteiras (SEF). que entendem Trata-se do exer-
Augusto Baganha, porém desvaloriza. Que esteve e está não haver hoje cício da liberdade
“Quando alguém é tão exigente na forma tragicamente em de opinião, tudo
de trabalhar, é natural que haja sempre foco, no banco dos em Portugal uma bem. No entanto já
quem se ressinta.” Hermínio Loureiro réus, com a morte oposição à altura é difícil suportar
reforça: “O Tiago é focado no trabalho. nas suas insta- e se entendem tanta repetição por
Não o mistura com conhaque, como se lações, vítima de um lado e contra-
costuma dizer. Mas é de boas relações.” tratamento bárba- à altura de ser dição por outro,
Aquilo em que ambos também acre- ro, de um cidadão essa oposição tanta divagação de
ditam é que o futuro de Tiago Craveiro ucraniano. E que mais e coerência de
tem ainda muito para desvendar. “Nunca foi agora uma vez menos.
vi nele uma ambição desmedida de che- mais referenciado, em relatório de O que muitas vezes julgo acon-
gar a um qualquer lugar. É alguém que se uma credível instituição internacio- tecer, e me penaliza pela ideia
mobiliza por projetos, que dá tudo por nal, por em 2019 ter detido nas suas que tenho da responsabilidade de
eles. É de uma lealdade a toda a prova instalações, para além do tempo opinar ou comentar nos média,
e dá uma extrema confiança às pessoas previsto em convenção interna- sobretudo em circunstâncias di-
com quem trabalha”, explica Hermínio cional que o País subscreveu, um fíceis como as atuais, é uma certa
Loureiro, acreditando em futuras con- total de 77 menores. O SEF justifica, tendência para uma infundada
quistas, nacionais e internacionais, do “mas” (mais um...). Há anos, aliás, crítica fácil, com falta de capacida-
seu antigo assessor. E é também nisso que há críticas e recomendações da de de análise (ou de seriedade?) e
que Tiago Craveiro parece apostado na Provedoria de Justiça, as últimas da em alguns casos de respeito pelos
vida. Pelo menos, a avaliar pelo depoi- atual provedora, mormente sobre o outros. Fazendo amiúde juízos com
mento que deu, enquanto antigo aluno, “isolamento excessivo” dos detidos, base no que já se sabe quando se
ao departamento de Ciências da Co- a que não é dado qualquer segui- escreve ou fala, e não com base no
municação da Universidade do Minho: mento. que se sabia quando se tinha de
“O importante é criar um padrão de Não pode ser. Além da urgente tomar, ou mesmo arriscar, uma
conhecimento e voar. Pegar numa folha posição, que já aqui reclamei, sobre decisão. Além disso, há comenta-
em branco, escrever algo que ainda nin- o caso do ucraniano assassinado, dores que entendem não haver hoje
guém escreveu e colocá-lo em prática.” impõe-se fazer muito mais do que em Portugal uma oposição à altura
Até agora, a folha de Tiago está meia o MAI já anunciou. Que Governo e e se entendem à altura de ser essa
cheia. E o que falta, pelo que já se viu, Parlamento assumam as suas res- oposição. Outra conversa...
promete... mbmoura@visao.pt ponsabilidades; e que o Presidente jcvasconcelos@jornaldeletras.pt

25 JUNHO 2020 VISÃO 79


SAÚDE

Jovens, mas não tanto


O número de infeções entre os mais novos quase duplicou desde
o desconfinamento e alguns até acabam internados. Agora, todos os olhos
estão em cima deles e das festas que organizam

Q
LUÍSA OLIVEIRA

A NOITE CONTINUA
uem nunca foi jovem, com É por isso que o médico lembra que
tudo o que isso implica, que os jovens não vivem sozinhos no mundo
atire a primeira pedra. Agora,
imaginem-se sem aulas pre- ÀS ESCURAS e que, com comportamentos irrespon-
sáveis como estar numa festa cheia de
senciais há três meses, encon- gente (chamados de superspreader even-
tros com amigos hipotecados, Uma das razões invocadas para que, ts), podem gerar cadeias de transmissão
de repente, se organizem festas
visitas à janela e à distância, e casos secundários. “Prevenir estes
clandestinas e haja ajuntamentos
sem abraços nem beijinhos, superspreader events pode fazer a dife-
nas ruas é o facto de os bares e as
festivais cancelados, desporto discotecas se manterem de portas
rença no sentido de travar a Covid-19”,
cheio de regras, e bares e dis- fechadas. Os donos dos espaços de nota Samuel Scarpino, cientista que se
cotecas fechados a sete chaves. E com animação noturna defendem que, dedica a esta doença na Universidade
aquela sensação de invencibilidade, in- sob a sua alçada, haveria normas de Northeastern, nos EUA. E identifica
suflada pelas notícias que dão como alvo cumpridas e menos perigo de os catalisadores: grandes multidões,
preferencial da Covid-19 a população contágio. E que não se pode meter contactos de proximidade e espaços
mais envelhecida. no mesmo saco, por exemplo, bares confinados com má ventilação.
Resultado? Perante a ordem para sentados e discotecas sem zonas “O risco ao ar livre diminui, sim, mas
desconfinar, os mais novos saíram para exteriores. Formaram-se diversos o importante é pensar na densidade de
a rua com sede de compensar tudo o movimentos, houve manifestos e pessoas por metro quadrado”, admite
que lhes foi roubado pela pandemia. cartas entregues a António Costa e Ricardo Mexia. E realça que nos en-
Passaram a ser frequentes as imagens até manifestações silenciosas, mas contramos exatamente onde estávamos
de grupos na praia, nas esplanadas, nas por enquanto o Governo tem-se quando isto tudo começou: sem imuni-
ruas à noite e em festas clandestinas, mostrado inflexível. Entretanto, a dade de grupo, sem cura e sem vacina.
organizadas nas redes sociais – tudo AHRESP, associação que representa
isto denunciado por cidadãos que se têm o setor, apresentou à Direção-Geral UMA CAUSA COLETIVA
desdobrado em chamadas para a polícia. da Saúde um manual de boas A idade média das infeções está muito
É que estar numa festa, com centenas práticas para um hipotético regresso mais baixa. Desde o início do desconfi-
de pessoas, num local fechado, repre- da atividade: namento, a 4 de maio, o número de no-
senta tudo o que não está aconselhado vos casos entre os jovens quase duplicou:
nesta fase (ajuntamentos só com 20 1 Marcar lugar Sempre que cresceu 90% na faixa etária entre os 10 e
pessoas, dez na Área Metropolitana de possível, os clientes devem fazer os 29 anos (só entre os 20 e os 29 anos
Lisboa) e resulta num cocktail explosivo uma reserva antes de irem a aumentou 89,3 por cento). António Pa-
para a propagação da doença. Se restas- bares ou a discotecas. narra, responsável pela Medicina Interna
sem dúvidas, os números saídos da festa do Hospital Curry Cabral, em Lisboa,
em Odiáxere, Lagos, seriam suficientes 2 Ar livre Os estabelecimentos de confirma estas contas, ao verificar que
para as apagar – mais de 100 casos. diversão noturna devem utilizar os internamentos na unidade de saúde
Ricardo Mexia, presidente da Asso- preferencialmente espaços em que trabalha têm vindo a aumentar.
ciação Nacional dos Médicos de Saúde exteriores. Há muitos jovens na casa dos vinte a
Pública, relembra que a transmissão do recorrerem às urgências, com queixas
vírus ocorre pelas gotículas, de pessoa 3 Proteção Desinfeção constante respiratórias e quadro febril bastante
para pessoa, evitável através da proteção das mãos, e colaboradores e intenso e difícil de debelar, acabando,
das vias respiratórias. Ora, “num con- clientes de máscara. muitas vezes, por ficar internados e,
texto de festa, em que circulam bebidas nalguns casos, chegam mesmo à Uni-
alcoólicas, não se verificará o uso de 4 Chega para lá As pistas de dade de Cuidados Intensivos. “Antes
máscara por um período prolongado”. dança devem ter áreas de 2,25 m² eram 1% ou 2%, agora já representam
Além disso, costuma haver partilha marcadas no chão, assegurando 10% e prevejo que isto se torne mais
de copos e grande interação entre as a distância física entre clientes evidente num futuro próximo”, arrisca o
pessoas, nomeadamente quando estão ao mesmo tempo que se especialista. Em meados de maio, esses
a dançar. movimentam. casos estavam mais relacionados com os

80 VISÃO 25 JUNHO 2020


Multidões Imagens da SIC
e da CMTV mostram
concentrações de jovens em
Carcavelos e em Alcântara,
Lisboa. A sua divulgação fez
disparar as queixas

transportes públicos, agora dá ideia de


que se relacionam com os “abusos que
o desconfinamento permitiu”.
“Depois de termos feito tudo bem até
aqui, não vamos agora estragar. Senão,
é uma chatice ter as forças da ordem a
atuar e a autuar”, avisou António Costa.
Não terá só que ver com o comporta-
mento juvenil, porque ajuntamentos ad
hoc há-os por todo o País, do Minho ao
Algarve, ou até em toda a Europa, como
na Bélgica, em França ou em Itália. Certo
é que, desde terça-feira, em redor da
capital, não se vendem bebidas alcoó-
licas nas bombas de gasolina nem em
takeaway e fecha tudo às oito da noite,
exceto os restaurantes, que continuam
a ter de encerrar às onze.
Nada disto seria necessário se o ma-
nual Desconfinar Jovem, elaborado pela
Escola Nacional de Saúde Pública, já ti-
vesse chegado às mãos de mais pessoas.
Maria Isabel Loureiro, vice-presidente
do Conselho Nacional de Saúde e pro-
fessora catedrática desta instituição,
coordenou os conteúdos da publicação
online, por exemplo, pedindo que se
“abracem com o olhar” ou “brindem com
o copo no ar”. “Chamamos a atenção dos
jovens para a corresponsabilidade no
controlo da pandemia, pois podem não
ficar com sintomas, mas são um veículo
de transmissão poderoso. Há que aler-
tá-los para a necessidade de um esforço
coletivo.” No documento, trabalha-se a
ideia de autonomia, responsabilidade
e solidariedade. E, nesse sentido, usar
máscara é visto como algo positivo.
Ciente de que esta camada da popu-
lação tem muita energia, necessidade de
socializar e está sem espaços de lazer e
recreio, a Federação Nacional das As-
sociações Juvenis (FNAJ), que envolve
cerca de 1 200 organizações, trabalha
no sentido de que os seus espaços se
tornem alternativas seguras. “Estamos
perante uma causa coletiva, não pode
haver moralismos entre gerações. A
grande maioria dos jovens está a con-
tribuir positivamente para a evolução da
doença, as festas e os ajuntamentos são
situações pontuais e advêm da falta de
soluções minimamente equivalentes”,
conclui Tiago Rego, presidente da FNAJ.
loliveira@visao.pt

25 JUNHO 2020 VISÃO 81


VAGA R

FIGURA

“O mais difícil

Alba Baptista
para uma pessoa
criativa é conter
o esforço de
transformar o
mundo naquilo

Tão forte, tão frágil


que gostaria que
ele fosse”
Henry Miller
Escritor
(1891-1980)

MENINA CRESCIDA, SEMPRE TEVE PRESSA


DE ENTRAR NO MUNDO DOS ADULTOS. SENTE-SE
MAIS VELHA DO QUE REALMENTE É. AOS 22 ANOS,
A ATRIZ PORTUGUESA, FLUENTE EM CINCO LÍNGUAS,
PROTAGONIZA WARRIOR NUN, UMA NOVA SÉRIE
DA NETFLIX, EM QUE DESEMPENHA O PAPEL
DE UMA JOVEM DOTADA DE SUPERPODERES.
A SUA CARREIRA TERÁ, AGORA, A PROJEÇÃO
INTERNACIONAL QUE ELA SEMPRE AMBICIONOU
SÓNIA CALHEIROS J O S É C A R L O S C A R VA L H O

82 VISÃO 25 JUNHO 2020


25 JUNHO 2020 VISÃO 83
P
FIGURA

Por duas vezes, pelo menos, Alba Baptista M. Ferreira, Tudo o Que Imagino, de
já teve a sorte a bater-lhe à porta e soube Leonor Noivo ou Linhas de Sangue, de
agarrar essas oportunidades. A primei- Sérgio Graciano e Manuel Pureza, em que
ra, há sete anos, no casting para Miami, interpretava uma personagem alemã. E
curta-metragem de terror realizada por tudo começou quando, aos 14 anos, foi
Simão Cayatte e, em 2018, ao participar acompanhar a irmã mais velha que quis
no Festival de Cinema Europeu Subtitle, inscrever-se numa agência de modelos
na Irlanda. “Ao início é sempre preciso e anúncios e, por sugestão desses profis-
sorte. É a vida a dar-te um empurrão. sionais treinados para adivinhar talentos,
E o difícil não é chegar a esta indústria, também ela acabou por se inscrever. Se-
o difícil é permanecer”, constata a atriz ria a partir dessa agência que chegaria o
de 22 anos, próxima portuguesa a entrar desafio para entrar no casting de Miami.
para a família internacional da ficção em
streaming, ao protagonizar Warrior Nun, SEM FRONTEIRAS
nova série da Netflix com estreia marcada Já há algum tempo que Alba Baptista
para 2 de julho. dizia à sua agente, Carla Quelhas, que
Criança tranquila, a mais nova de três queria mostrar o seu valor em produções
irmãos, Alba Baptista teve a sua fase de internacionais. “Domino várias línguas e
rebeldia por volta dos 15 anos, quando quero explorar esse lado. Vejo beleza nos
“lutava contra a insatisfação interior”. Por dialetos. Ler Goethe ou Shakespeare no
isso, quando foi ao casting para Miami e original acentua a sua beleza”, explica.
Simão Cayatte lhe perguntou como lida- Com dupla nacionalidade (portuguesa e
va com a culpa, adorou aprofundar esse brasileira), Alba é fluente em português
assunto. Antes, já Patrícia Vasconcelos, (também com sotaque perfeito do Brasil),
responsável pelo casting, lhe tinha feito alemão, inglês, francês e espanhol. Há dois
várias perguntas de resposta rápida, a anos, Carla Quelhas conseguiu levá-la
testar-lhe o raciocínio. Cayatte quase a ao festival Subtitle, na Irlanda, onde vão
eliminou por ter “cara de princesa”, mas todos os diretores de casting do mundo,
Patrícia insistiu e hoje confessa: “Foi um e a experiência foi muito intensa. “Passei
diamante que me veio parar às mãos. cinco dias com entrevistas de manhã à
Ela junta várias características essenciais noite: dez minutos à frente de três direto-
num ator: inteligência, disponibilidade,
curiosidade e talento, o que só por si
não chega porque é preciso trabalhar
muito. Ela tem luz, tem uma aura à sua
volta. Tem a imagem de forte e de frágil
ao mesmo tempo.” res de casting, intervalo de cinco minutos,
Apesar de ter nascido em Lisboa, Alba e assim sucessivamente até ao fim do dia.
Baptista tem sangue de vários países a É insano, intimidante e não se sabe o que
correr-lhe nas veias. Os avós emigra- esperar. Não havia a pressão para mostrar
ram para a Alemanha onde nasceu a o meu valor, o que já tinha feito, porque
mãe, tradutora, cuja mentalidade reúne ali já só estão os que têm potencial para
as raízes tradicionais portuguesas com crescer”, recorda.
a modernidade alemã da época da sua “Para a idade dela, na altura com 20
juventude. Os caminhos profissionais anos, tinha, e tem, um percurso no cinema
levaram-na para o Rio de Janeiro, onde e nas séries televisivas portuguesas muito
conheceu o marido, um engenheiro me- vendável lá fora”, analisa Carla Quelhas,
cânico brasileiro. Já com a família em
Portugal, Alba frequentou a Escola Alemã “GOSTO DE PENSAR que meia hora depois de ela ter chegado
ao festival começou a receber inúmeros
de Lisboa, onde aprendeu a não protelar
o que tem para fazer. Quando entrou em
QUE A ALMA DE ARTISTA pedidos para castings. O da Netflix foi
o primeiro que fez nessa edição em que
Jardins Proibidos (2014), primeira de três É MAIS ABRANGENTE também foi distinguida com o Prémio

DO QUE SÓ O QUE A
telenovelas em que já participou, sentiu Revelação Feminina.
um grande choque cultural, pois não Quando Alba abriu o email da Netflix
compreendia bem o lado informal do dia
de trabalho. Seguiram-se algumas séries REPRESENTAÇÃO ENGLOBA”, a dizer “protagonista”, “que ressuscita e
tem cenas de pancadaria”, pensou: “Nunca
de ficção (Filha da Lei, Madre Paula...) e
mais cinema português. O ano de 2018
DIZ ALBA BAPTISTA, vou ficar com o papel, mas é bom poder
fazer um casting em inglês.” Estava tão
incluiu vários trabalhos, desde Caminhos
Magnétykos, de Edgar Pêra, Leviano, de
ATRIZ QUE JÁ QUIS SER descomprometida que fez uma gravação
nada convencional, dentro do quarto de
Justin Amorim, Equinócio, curta de Ivo PINTORA E PIANISTA hotel, com péssima luz e a fingir estar a ver

84 VISÃO 25 JUNHO 2020


“Warrior Nun” Nesta nova série da Netflix,
baseada numa série de BD, Alba Baptista
desempenha o papel de Ava Silva, uma jovem
de 19 anos com superpoderes. Há cada vez mais
atores portugueses a serem escolhidos para
as produções das plataformas de streaming

Sobre Alba Baptista, os responsáveis por


escolher os elencos costumam dizer a
Carla Quelhas que ela tem um rosto que
alcança uma grande amplitude: consegue
representar uma adolescente, alguém da
sua idade e uma mulher madura com as-
peto jovial. “Sinto-me agradecida de estar
no meio-termo, de poder andar para trás
e para a frente na idade”, diz Alba. Nas
telenovelas em que entrou, sentiu-se ca-
tegorizada como Lolita. “Cara de menina
em corpo de mulher, frustrava-me imenso
essa conotação sexista e sexual.”
Em Warrior Nun, uma criação de Si-
mon Barry, inspirada na banda desenhada
norte-americana Warrior Nun Areala (de
1994, ao estilo manga japonês), de Ben
Dunn, Alba interpreta Ava Silva, uma jo-
vem de 19 anos que ressuscita na morgue
do orfanato onde mora desde a infância,
dotada de poderes extraordinários: o seu
corpo consegue regenerar-se e, às vezes,
também atravessar paredes.
Alba poucas vezes usa a palavra atriz,
prefere artista. Em miúda sempre quis
ser pintora, tinha o gosto de fazer retra-
tos a carvão, ou pianista, algo que nunca
desaprendeu (mas, durante a quarentena,
contactou a sua antiga professora para
retomar as aulas): “Gosto de pensar que a
alma de artista é mais abrangente do que
só o que a representação engloba.”
Num futuro próximo, Alba Baptista
vê-se a experimentar a escrita de um ar-
gumento e a realizá-lo, mas, até ao final
do ano, o público terá a oportunidade de
demónios. Escolheram-na precisamente portugueses: “Os nossos atores têm de ser confirmar, mais ainda, o seu talento na
por isso: “Porque fui imprevisível na minha tão equacionáveis como quaisquer outros.” representação: a 23 de julho estreia-se
forma de representação.” São já vários os atores e atrizes nacio- Patrick, filme escrito e realizado por Gon-
Cada vez mais, os diretores de casting nais a integrarem as produções da Netflix: çalo Waddington, em que interpreta uma
internacionais estão à procura de talen- White Lines internacionalizou Nuno Lo- jovem que tenta aproximar-se do primo,
to, como assegura Carla Quelhas. “Nos pes; Diogo Morgado e Maria de Medeiros um rapaz que foi raptado aos 8 anos e que
últimos anos, houve um alargamento do entraram em O Matador (2017), primeira reaparece com outra identidade; em Fáti-
mercado gigantesco. Havia a máquina de longa-metragem da Netflix a ser rodada no ma, de Marco Pontecorvo, está ao lado de
Hollywood, muito fechada, e de repente Brasil; antes, já Maria João Bastos entrara Sónia Braga e de Harvey Keitel; no outono,
as plataformas de streaming que fazem em O Mecanismo, série brasileira sobre em Nothing Ever Happened, de Gonçalo
produção própria alargaram o mercado, a Operação Lava Jato, realizada por José Galvão Teles, é uma das adolescentes do
e há a necessidade de absorver atores. Padilha; Pêpê Rapazote ganhou notorie- trio de protagonistas. Em julho, perto de
Filmar na Europa é menos burocrático dade em Narcos; a aparição inesperada Lisboa, começará a rodar L’Enfant, projeto
do que nos EUA, os atores são igualmente de Lídia Franco no filme 6 Underground francês produzido por Paulo Branco, com
talentosos e, por norma, falam muito bem foi aplaudida, e Albano Jerónimo, depois argumento e realização de Marguerite
inglês. No ano passado, senti que o mer- de participar em Vikings, entrará na série de Hillerin e de Félix Dutilloy-Liégeois.
cado espanhol já não estava a responder The One, baseada num conto de ficção Alba será uma adolescente e contracenará
às solicitações e um ator português que científica de John Marrs, a estrear-se em com João Reis e Albano Jerónimo, que,
falasse muito bem espanhol e inglês tinha setembro. “Muitos dos diretores de casting curiosamente, integrava o júri, em 2015,
muitas hipóteses de se exportar.” não chegariam a Portugal se não fosse o que premiou Miami na edição do Festival
Ideia corroborada por Patrícia Vascon- Passaporte, que apareceu na altura certa; MOTELx. “Quero chegar a uma altura da
celos, diretora de casting e mentora do o que interessa é o ator certo para o pa- carreira em que posso escolher os papéis
Passaporte, festival da Academia Portu- pel certo, e tanto talento não podia ficar que faço”, diz Alba. “Sei que em Portugal
guesa de Cinema, cuja principal missão é confinado em Portugal”, brinca Patrícia isso é difícil.” Mas o mundo está à espera
promover a internacionalização de atores Vasconcelos. dela. scalheiros@visao.pt

25 JUNHO 2020 VISÃO 85


TENDÊNCIAS

11 apps
para aumentar os seus
conhecimentos
Cada vez mais procuradas, as aplicações
móveis oferecem um universo gigantesco de
aprendizagens, desde lições de guitarra a respostas
para quase todas as perguntas. Para a VISÃO,
especialistas selecionaram um conjunto de apps
que ensinam e, ao mesmo tempo, divertem
J. PLÁCIDO JÚNIOR

Q
uer espreitar a nossos conhecimentos. Ain- CANVA so”, é “a referência”, diz o
coleção de um da acrescentamos sugestões Esta é “uma app diretor da Exame Informá-
museu em par- de um artigo do Guardian, muito útil para tica. “Esta app concentra as
ticular? Há uma jornal britânico de referên- quem gere redes sociais”, diz coleções de mais de dois mil
app que lhe dá cia. É o que lhe oferecemos a o especialista Vasco Marques. museus de todo o mundo”,
muito mais do partir daqui, com um bónus: Contém “numerosos mode- esclarece Sérgio Magno. Mas
que isso – dis- todas as 11 aplicações que se los prontos a utilizar para os não só: também disponibiliza
ponibiliza-lhe seguem são grátis. diversos social media, mas outros conteúdos culturais,
as coleções de também para outros meios “incluindo notícias e reco-
milhares de QUORA digitais”, justifica. E ainda “per- mendações sobre espaços a
museus es- O diretor da Exame mite exportar em PDF e vídeo”. visitar em viagens de férias”.
palhados pelo Informática diz que A opção grátis, sublinha, “é A tecnologia de Inteligência
mundo. Se lhe apetece mais se encontram aqui “respos- mais do que suficiente para Artificial da Google, explica
fazer composições artísticas tas para quase todas as per- a maioria das necessidades”. o jornalista especializado,
com fotografias ou, digamos, guntas”. Esta app dá acesso permite ainda “funcionali-
aprender italiano, também a uma plataforma de partilha ARCADEMICS dades divertidas, como pro-
há ferramentas móveis que de conhecimento com base Um dos destaques curar quadros com sósias do
ajudam a lá chegar. Resu- em perguntas e respostas. do professor Rui utilizador – basta tirarmos
mindo para encurtar razões, “A base de dados é gigan- Lima é esta ferramenta de uma selfie e iniciar a pesqui-
o problema, com as apps, é te, mas se não encontrar o “exploração de conteúdos, es- sa”. Mais: “É possível aplicar
escolhê-las. Por isso, a VI- que procura, basta pergun- sencialmente de matemática, o estilo de alguns quadros
SÃO pediu a três especialis- tar”, explica Sérgio Magno. através de jogos online”. São marcantes a fotos que temos
tas – Sérgio Magno, diretor “A probabilidade de obter mais de 60 jogos que permi- no smartphone ou ver al-
da revista Exame Informáti- respostas de qualidade é tem competições em tempo guns monumentos em 3D e
ca, Rui Lima, professor pre- muito elevada”, acrescenta. real, a que se somam “lições” com tecnologia de realidade
miado pela Microsoft como Trata-se de “uma consequên- individuais para melhorar o virtual.”
um dos mais inovadores do cia do método de classifica- desempenho.
mundo, e Vasco Marques, ção que, não sendo infalível, PHOTOSHOP CAMERA
consultor de marketing di- é capaz de valorizar as res- GOOGLE ARTS Esta é uma “nova
gital e de redes sociais – que postas mais acertadas, mes- & CULTURE app da Adobe, para
fizessem uma seleção de mo quando os temas são No que respeita a fazer composições artísti-
aplicações que aumentam os difíceis”. “transportar museus no bol- cas com fotografias”, infor-

86 VISÃO 25 JUNHO 2020


ma Vasco Marques. A apli- KODU como se estivéssemos num um assunto que não tenha
cação funciona como uma É outra ferramenta museu gigantesco”, ilustra sido explorado”, acrescenta
câmara inteligente, que recomendada pelo Sérgio Magno – que avisa: Sérgio Magno. O sistema de
adequa as lentes e os filtros professor Rui Lima, para “in- “É fácil ‘perdermo-nos’.” pesquisa, diz, “é eficiente e
antes de as fotos serem ti- trodução ao pensamento com- a quantidade e qualidade da
radas. “Para quem deseja putacional e à criação de jogos”. DUOLINGO informação é quase infindá-
explorar mais o mundo da Esta app é usada para criativi- Nesta app, que se vel, porque continua a cres-
imagem, a mesma empresa dade tecnológica, storytelling propõe ensinar um cer”. O jornalista considera
também tem as apps Pho- e programação. De crianças a vasto leque de línguas, o Guar- esta aplicação “uma exce-
toshop Express, Fix e Mix”, adultos, todos podem utilizar a dian elogia os “exercícios sim- lente forma de aprofundar-
completa o especialista. aplicação, sem precisar à parti- ples para prática diária”. As mos conhecimentos sobre
da de competências de design lições são adaptadas ao mé- determinado assunto ou de
YOUSICIAN ou de programação. todo de estudo do utilizador, encontrarmos pontos de
A guitarra que um que recebe notas imediatas e vista diferentes, mas sempre
dia comprou “está WIKIART (IOS), sabe num ápice se as respostas muito bem substanciados”.
a ganhar poeira há anos?”, ART-DROID que deu estão certas ou não,
pergunta-se no artigo The (ANDROID) e a correção também surge ELEVATE:
Guardian atrás referido. Se “Dá gosto explorar rapidamente. Moedas virtuais BRAIN TRAINING
assim é, está na hora de pegar os ecrãs desta app, recompensam o bom desem- O Guardian destaca
nela e de pedir ajuda à app que permitem o penho e mantêm a motivação esta app pelo treino cognitivo
que aquele jornal britânico acesso a uma das maiores para a subida de nível. que proporciona, através de
considera “uma das melhores coleções digitais, que pequenos exercícios diários
para aprender a tocar guitar- contempla mais de cem mil TED TALKS que testam a memória, os co-
ra”. Mas a Yousician também trabalhos criados por mais de “É a marca de nhecimentos matemáticos e
ensina a tocar piano, baixo ou dois mil artistas de todo o conferências mais de outras disciplinas. Cada
ukulele. O segredo do suces- mundo”, diz o diretor da conhecida do globo”, lembra utilizador recebe um programa
so parece estar no conceito Exame Informática. “Pode- o diretor da Exame Informá- de treino personalizado e que
“aprenda ao seu ritmo”, com mos procurar, por exemplo, tica. Nas numerosas talks, vai sendo ajustado ao longo
vídeos tutoriais que passo a uma pintura ou um artista, “muito fáceis de descobrir” do tempo para maximizar os
passo orientam o(a) aprendiz. ou explorar as muitas áreas, nesta app, “é difícil encontrar resultados. jjunior@visao.pt

EDIÇÃO MENSAL
GRATUITA,
EXCLUSIVA PARA
INVISUAIS

Porque
é bom ler
Com o apoio de:

PA P E L F OR NE C ID O P OR :

Para mais informações: visaobraille.frc@gmail.com e o tel: 913 998 221


CRÓNICA

H
á dezoito anos, a minha mãe chegou a casa com um
cachorrinho, cor de trigo, dentro de uma caixa de cartão.
Para mim foi a coisa mais surpreendente que alguma
vez fez. Tinha dito sempre que não queria animais de
estimação e, durante a minha infância, tinha acedido
apenas a que tivéssemos uma pequena tartaruga.
O cachorro tinha aparecido no seu local de trabalho e
P O R C A P I C U A / Rapper aqueles olhos meigos de rafeiro abandonado amoleceram-
-lhe o coração. Além do facto de o meu irmão, com seis anos na altura, ter uma
fixação por animais e ansiar há muito por um companheiro de quatro patas.

Leão
Sempre ironizámos também o facto de fazermos diferença de seis anos
entre irmãos, responsabilizando o relógio biológico da minha mãe por este
“quarto filho”. O que é certo é que, entre a pena de deixar o rafeirinho à sua
sorte, a vontade de fazer feliz o meu irmão, ou as saudades de ter um bebé
em casa, a minha mãe trouxe o Leão para a família.
Na infância e juventude era totalmente destravado. Corria portão fora
a cada oportunidade, pedinchava comida à mesa, roubava guardanapos
de papel para desfazê-los avidamente no chão, gania por cascas de maçã
cada vez que alguém descascava uma, não obedecia a ordens ou proibições
e dormia em cima das camas e dos sofás. O meu pai costumava dizer que não
podiam esperar muito deles no quesito domesticação, porque se tinham sido
incapazes de educar três crianças, não haviam de conseguir educar um cão,
selvagem. Um cão chamado Leão.
Sempre foi meigo, apesar da sua antipatia para com outros cães e de um
trauma esquisito com pés. Tinha tendência para abocanhar quem aproximasse
o sapato do seu focinho quando dormia no chão. Fui vítima desses ímpetos
algumas vezes e posso dizer que o trauma foi contagioso, de tal forma que
tenho isso tão inculcado em mim, que sou incapaz de pousar o pé à frente do
focinho de um cão, desviando sempre a passada para bem longe, não vão ser
todos como ele.
Com a idade, tornou-se mais sedentário e passou a ter um ódio ao
veterinário, ao ponto de se recusar a caminhar pelo passeio que desemboca
à sua porta, com medo de ser obrigado a entrar. As artroses entortaram-lhe
as patas e passou a andar de lado como os caranguejos. Um cão chamado
Leão que andava como um caranguejo.
Era guloso e faustosamente alimentado pelo meu pai, que fazia questão
de aquecer a sua comida no microondas, de deitar o molho da carne sobre
o arroz e de o presentear com todo o tipo de restos. Dizia que, coitadinho,
lambia os beiços e era quem melhor o recebia quando chegava a casa...
Qualquer especialista reprovaria essa dieta, porque os cães devem comer
ração e comida sem sal, mas a verdade é que o nosso rafeiro gourmet passou
a maioridade. Qualquer outro cão, sobretudo de raça, não teria sobrevivido
tanto tempo, mas este não era um cão qualquer. Era um cão, chamado Leão,
que andava como um caranguejo e comia como gente grande.
Os últimos meses foram mais difíceis e foi perdendo mobilidade. Via mal.
Ouvia pior. Quando dormia em cima da cama do meu irmão, já não conseguia
descer no dia seguinte. Tropeçava nas escadas, ladrava sem razão aparente
e tínhamos de ter cuidado ao tocar-lhe, porque tinha muitos pontos de dor.
De qualquer forma, continuava a ser um bom companheiro, respeitador
É muito específico do bebé que chegou entretanto à sua família e com o mesmo apetite voraz.
É muito específico o amor e a afeição que se tem por um animal de
o amor e a afeição estimação. Quem nunca os teve terá dificuldade em imaginar. Cada amor é tão
que se tem por particular que explicar o de irmãos, ou o de mãe para filho, a alguém que não
um animal de os tem, é demasiado vão. Ora este, pelos bichos, não é menos difícil de definir.
Enchem a casa, tornam-se família e quando partem deixam um vazio que
estimação. Quem dorme pelos cantos.
nunca os teve terá Hoje é o primeiro dia sem ele nesta casa. Há um silêncio inédito
e desconfortável. Almoçámos todos juntos e, apesar da perda, estamos bem.
dificuldade em Afinal, tivemos dezoito anos de Leão connosco e isso é ter muita sorte.
imaginar visao@visao.pt

88 VISÃO 25 JUNHO 2020

Você também pode gostar