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Nº 1486 . 26/8 A 1/9/2021 . CONT. E ILHAS: €3,70 .

SEMANAL
A NEWSMAGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS WWW.VISAO.PT

PANDEMIA
VAMOS TER
ERICEIRA
IMUNIDADE AS MELHORES
DE GRUPO? NOVIDADES
AFEGANISTÃO
QUEM SÃO
OS NOVOS
TALIBÃS
FOTO: ALEXANDER BOGORODSKIY/PHOTOSHOOTPORTUGAL

ES P E C I A L I M O B I L I Á R I O

CASAS DE SONHO
PRONTAS A MONTAR
CRESCE A PROCURA DE HABITAÇÕES SUSTENTÁVEIS, EM MADEIRA,
TAIPA E OUTROS MATERIAIS, MUITO MAIS BARATAS DO QUE AS
TRADICIONAIS E RÁPIDAS DE INSTALAR EM QUALQUER TERRENO
PREÇOS, MODELOS E SOLUÇÕES PARA VIVER FORA DA CIDADE

Apetecíveis
Um T1 de madeira
com 50 m2, chave na mão,
custa cerca de 50 mil euros
VISÃO
26 AGOSTO 2021 / Nº 1486

10 Entrevista: Francisco
Castro Rego

ANA BRIGIDA
RADAR
14 Raio X
16 A semana em 7 pontos
18 Holofote
19 Inbox
36 A saga dos irmãos Taheri
Refugiada em Portugal, a família Taheri é uma história de sucesso.
20 Almanaque Outros não têm tido a mesma sorte. Qual será o papel do País no
acolhimento a quem foge dos talibãs?
21 Transições
22 Próximos capítulos
24 Imagens do mundo 28 Donos e senhores do Afeganistão
Quem são, o que pensam e o que pretendem os “novos talibãs”
que conquistaram Cabul
FOCAR
76 Onde foram para os kamov
80 Morteza Mehrzad,
60 Casas de sonho
Confortáveis e mais sustentáveis, as casas de madeira estão a conquistar
o gigante iraniano cada vez mais famílias. Mas não são as únicas. As novas alternativas para
ter uma casa de sonho mais acessível
VAGAR
82 Feira do Livro:
Conta-me uma boa história
42 Imunidade de grupo, eis a questão
A variante Delta veio baralhar os estudos e cálculos sobre a evolução
87 Pessoas do SARS-CoV-2 e trocar as voltas à tão discutida imunidade de grupo.
Chegaremos lá algum dia? A palavra aos especialistas
VISÃO SETE
48 Empatia no escritório
As empresas estão a formar os trabalhadores para se tratarem uns aos
outros como pessoas. Só que isso vai contra o principal objetivo da maioria
das empresas: o lucro. Um exclusivo da revista TIME

54 50 anos de Vilar de Mouros


O mítico festival foi o “Woodstock português”, um palco para grandes
bandas e revoluções de costumes que desafiavam a ditadura. A VISÃO
91 Ericeira: O que há de novo recorda as histórias que ficaram

OPINIÃO
6 Dulce Maria Cardoso
Online W W W.V I S A O . P T
Últimos artigos no site da VISÃO
8 Rui Tavares Guedes
79 Pedro Norton
90 Miguel Araújo
114 Ricardo Araújo Pereira
Alexandre Poço Alice Vieira Adão Carvalho
POLÍTICA / LUGAR AOS NOVOS e Nelson Mateus JUSTIÇA
A estagnação não DIÁRIO DE UMA AVÓ E DE UM NETO A importância do Ministério
Interdita a reprodução, mesmo parcial, é nem tem de ser o Um livro para toda a família Público na efetivação do
de textos, fotografias ou ilustrações sob nosso destino acesso ao Direito e à Justiça
quaisquer meios, e para quaisquer fins,
inclusive comerciais.
Todos os dias, um novo texto assinado por um dos 28 especialistas convidados

26 AGOSTO 2021 VISÃO 3


LINHA DIRETA Correio do leitor

Um desafio aos portugueses


para redescobrirem as belezas
naturais do Interior deste
nosso Portugal. Um bom
desafio, uma boa aposta.
World Press Photo 2021 em Oeiras Mário da Silva Jesus, Odivelas

A CEGUEIRA DOS RIOS


Um agradecimento ao texto da VISÃO
A VISÃO vai trazer, mais uma vez, a maior exposição de fotojornalismo do nº 1485 de José Eduardo Agualusa.
mundo a Portugal: a World Press Photo. A edição de 2021 é inaugurada no Somos todos pessoas, não importa o que
fazemos. Importa é respeitarmo-nos uns
dia 15 de setembro e chega, em parceria com a Câmara Municipal de Oeiras, aos outros e valorizar o trabalho de cada
pela primeira vez a um espaço ao ar livre, o Parque dos Poetas. um – seja lá ele qual for, é importante.
A 64ª edição da World Press Photo estará patente no Parque dos Poetas, Hermínio de Jesus Gouveia, Lisboa
Entrada Templo da Poesia. As fotografias vencedoras estarão expostas na A CEGUEIRA DOS RIOS
Alameda do Parque dos Poetas, junto ao Anfiteatro Almeida Garrett, até ao Deem condições ao Interior e a
dia 15 de outubro, com entrada gratuita. demografia cresce. O declínio
Além da visita à exposição, existirão também workshops com rallies demográfico é fruto do desprezo
e abandono a que os desgovernos
fotográficos práticos, com fotógrafos e fotojornalistas de renome. Os do PSD, CDS e PS submeteram o
workshops serão aos sábados, das 15h30 às 17h30, e o público pode Interior. Aqui, quando se acabar com a
inscrever-se no próprio dia, no Templo da Poesia. Estão já confirmados precariedade laboral, os baixos salários
nesta iniciativa Arlindo Camacho (retratos), Rita Ferro Alvim (fotografia de e proporcionarem incentivos de âmbito
laboral e habitacional aos jovens,
família) e Gonçalo F. Santos (fotografia de lifestyle). também voltarão as condições para
“É com grande satisfação que o município de Oeiras se associa à exposição haver gente a fixar-se, e a demografia
World Press Photo. Há cerca de dois anos acolhemos, no Palácio Anjos, a dará um salto!
Vítor Colaço Santos, São João das Lampas
exposição do também português premiado Mário Cruz e foi um verdadeiro
sucesso. Portanto, ficou claro que o público se interessa muito por esta O DESASTRE DE JOE BIDEN
iniciativa. Voltamos a ter um português premiado, Nuno André Ferreira, e, O grande desastre americano (no
por isso, é um orgulho para Oeiras receber a exposição de fotografias dos Afeganistão) culminou com Joe
Biden, mas já vinha de trás – dos anos
eventos que marcaram o ano em todo o mundo”, considera o presidente da consecutivos de arrogância, de achar
Câmara Municipal de Oeiras, Isaltino Morais. que os aliados têm de estar às ordens
de Washington. Tudo ruiu, agora,
da pior forma possível: com o regresso
dos talibãs.
Já nas bancas Sofia Cardoso, Aveiro

Contactos
visao@visao.pt
As cartas devem ter um máximo
de 60 palavras e conter nome, morada
e telefone. A revista reserva-se
o direito de selecionar os trechos
que considerar mais importantes.

NOVA MORADA
JORNAL COURRIER EXAME CORREIO: Rua da Fonte da Caspolima
DE LETRAS INTERNACIONAL INFORMÁTICA – Quinta da Fonte,
Daniel Sampaio O apelo da vida Os melhores portáteis Edifício Fernão Magalhães, 8,
em pré-publicação selvagem a menos de 1 000 euros 2770-190 Paço de Arcos

4 VISÃO 26 AGOSTO 2021


AUTOBIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA

O Ervilha de Setúbal
ou Em busca
do sabor perdido
POR DULCE MARIA CARDOSO
ILUSTRAÇÃO: SUSA MONTEIRO

U
m dos dois passaportes do Pedro diz que mesmo sobre a recompensa a oferecer, qualquer va-
ele é português, o Registo Civil certificará lor, por maior que seja, deve parecer-lhe mesquinho.
que nasceu em Lisboa numa maternidade É esse o problema das memórias que nos perseguem,
que ficava ali atrás da Fundação Calouste que nos prometem um regresso àquilo a que quere-
Gulbenkian e já não existe, neto e bisneto mos entregar-nos: são inestimáveis.
de famílias de Setúbal, onde viveu até aos Nunca tinha ouvido falar do Ervilha até ter conhe-
nove anos. No entanto, a verdade é muitas cido o Pedro. Era verão, fazia calor, eu estava feliz por
vezes diferente daquela que os documentos ter encontrado o Pedro, já tão tarde na minha vida,
declaram: o Pedro é apenas norte-ame- que acreditei que aquele tempo nunca acabaria. A
ricano e temo que um dia desate a pregar partir dali, seria só luz, sol, amor e mar para sempre.
nas árvores e nos postes cartazes com a fotografia de Foi o verão de 2019, o último antes de um vírus ter
um velhote de boné branco. Em vez de, Procura-se, mudado o mundo. Num dos nossos primeiros en-
morto ou vivo, dos filmes dos cowboys, Procura-se a contros, lembro-me de que me apresentara com risco
receita dos gelados do Ervilha. Talvez só ainda não o preto nos olhos, gotas de perfume no pulso, sapatos
tenha feito por não conseguir chegar a acordo consigo para calcorrear uma cidade quase desconhecida para

6 VISÃO 26 AGOSTO 2021


o Pedro recém-regressado dos Estados Unidos, parámos numa bonomia cromática predominantemente amarela
para comer um gelado perto do Cais do Sodré. O Pedro e vermelha, a cara do Bocage, o escudo lusitano, cones
estava encantado com a diferença que Lisboa apresentava de gelado, fruta e um dos pregões com que o Ervilha
em relação às suas memórias, a tristeza sombria e po- chamava os clientes, O Ervilha nunca falha. Havia outros
bremente compostinha transformara-se: uma exuberân- pregões de uma singeleza inesquecivelmente banal, Já
cia de esplanadas cheias, turistas que traziam o mundo sabem que estou aqui, ou brejeira, Quem compra chupa,
inteiro numa azáfama de selfies, as fachadas dos edifí- quem não compra não chupa, e histórias pequeninas de
cios limpas, tuk-tuks a atravancarem o trânsito, a cidade um herói improvável, ora generoso, a oferecer dois ge-
num frenesim de mudança, a estoirar de vida, prestes a lados pelo preço de um, ora maldisposto, a ralhar com a
atingir um limite que olhos estrangeirados confundiam criançada que lhe enxameava o carrinho, ora solitário, a
com alegria. Saboreávamos o gelado à beira-rio, o Tejo caminhar trôpego de velhice ao pé da Lota como se não
quase parado como se não fosse uma tirânica ampulheta fosse o criador dos melhores gelados do mundo.
de um só sentido a lembrar-me que o passado é sem- O sabor da infância é enganador, nada se lhe compara,
pre passado e que jamais poderei regressar ao instante argumentei numa das primeiras vezes em que o Pedro fa-
que culposamente desperdicei, ao instante em que quase lou do Ervilha, e ainda é mais enganador para quem, como
fui feliz, àquele outro em que não nós, teve a infância descontinuada,
me importei de ser injusta, instantes, com partidas abruptas, tanto faz se
esses fantasmas do futuro, não posso para a Metrópole, se para os Estados
guardar nem corrigir nenhum instan- Gosto de guardar Unidos. O Pedro reagiu, indigna-
te, como cuidar do tempo que passou, as memórias dos que do, Vinha todos os anos de férias a
do tempo que passa? O Pedro e eu
caminhávamos pela borda da água,
amo. Acarinho-as Portugal, já era bem adulto quando
o Ervilha deixou de vender gelados e
os relvados pejados de gente delicio- como se fossem uma coisa te garanto, não há no mun-
samente ociosa, Que bom, disse eu, minhas, talvez acredite do gelados tão bons como os que ele
em luta para comer o gelado mais de- fazia, ou que alguém fazia para ele,
pressa do que ele se derretia. O Pedro que os meus amores se não sei, e olha que conheci as melho-
concordou, era um bom gelado, mas tornem mais meus res gelatarias de Nova Iorque.
não se comparava – nenhum gelado
no mundo se comparava, aliás – aos
se guardar pedaços *
Ontem, esteve outra vez uma bela
do Ervilha, Nunca ouviste falar do dos seus passados noite de verão. Em Cascais, a foz do
Ervilha, perguntou-me incrédulo, ao Tejo está longe e as marés enrolam o
aperceber-se de que eu não o estava tempo numa segurança ilusória. Para
a acompanhar no que ele dissera. Até então, ervilha, para entrarmos no restaurante indiano, o Pedro e eu apresentá-
mim, era apenas a concentração redonda e verde de vida, mos os nossos certificados digitais de vacinação e desin-
perfeitamente arrumada entre outras idênticas no escuro fetámos as mãos. De máscaras postas, fomos conduzidos
esconderijo de uma vagem. por um empregado até a uma mesa no fundo. Alguns dos
Gosto de guardar as memórias dos que amo. Acari- outros clientes ainda mantinham, já sentados, as suas más-
nho-as como se fossem minhas, talvez acredite que os caras, enquanto esperavam que lhes trouxessem a comida.
meus amores se tornem mais meus se guardar pedaços Senti medo de que existamos para sempre assim escanga-
dos seus passados. Por isso vou decorando o que o Pe- lhados e que 2019 se tenha tornado tão distante e inacessí-
dro me vai contando acerca do Ervilha. O Ervilha vendia vel como a infância.
gelados na praia, a princípio sozinho, depois coadju- À sobremesa, fui eu que me lembrei dos famosos gelados
vado por um homem mais velho e muito mais franzi- do Ervilha como se já os tivesse saboreado, A receita não
no do que ele, que lhe carregava os gelados, como se pode ter morrido com ele, há certamente algum familiar ou
fossem uma parelha cómica, no fim usava um carrinho trabalhador que a tem. E se tentássemos descobrir a receita?
adaptado de bicicleta, Está agora exposto no Museu do Talvez não consigamos continuar sem perseguir sonhos,
Trabalho, em Setúbal, mostrou-me o Pedro usando o nossos ou dos que amamos, tanto faz. Sonhos ou realidades
Google, uma caixa frigorífica com um fundo branco e, quase à mão. Aparentemente quase à mão. visao@visao.pt

26 AGOSTO 2021 VISÃO 7


OPINIÃO
HISTÓRIAS
DA CAPA
A hora da verdade para
os talibãs e para o mundo
P O R R U I T A V A R E S G U E D E S / Diretor-executivo
1

A
verdadeira tragédia afegã ainda forma ténue, possa ser equiparado a uma
mal começou. As imagens de caos verdadeira economia. O que os talibãs vão
e de desespero no aeroporto de herdar é um país pobre e miserável, com
Cabul, com milhares de pessoas a vastas áreas onde nem sequer há forne-
procurar um lugar nos aviões que cimento de água potável ou os mínimos
saem do país, são apenas uma cuidados de saúde. Segundo os últimos
pequena amostra do que pode relatórios internacionais, cerca de 80%
ocorrer, em larga escala, por todo do PIB do Afeganistão é proveniente da
o Afeganistão, dentro de poucos dias, mal ajuda externa. As poucas receitas do Es-
as potências ocidentais declarem, mais tado vinham das taxas aduaneiras – uma A dificuldade, às
uma vez, “missão cumprida” e os talibãs das razões por que os talibãs iniciaram a vezes, está na
escolha: qual a
assumam, sem hesitações nem constran- reconquista exatamente pelas regiões de
melhor foto para
gimentos, o seu poder. Será nessa altura fronteira, para, dessa forma, ficarem com
ilustrar esta nova
que ficaremos a saber se existe alguma esse dinheiro. Também sabemos que as tendência de
diferença entre os “novos” e os “velhos” plantações de papoila aumentaram expo- casas?
talibãs, se os mulás vão ou não cumprir as nencialmente, desde que os talibãs passa-
suas surpreendentes promessas de uma ram a controlar determinadas regiões.
sociedade inclusiva, concedendo, até, o No entanto, também é conhecida a
direito às mulheres de trabalharem e de importância estratégica daquele terri-
estudarem – ao contrário do que fizeram tório, no meio das antigas rotas da seda 2
entre 1996 e 2001. Mas será também nessa – e como a Rússia e a China sabem disso
altura que vamos medir exatamente o pul- melhor do que ninguém têm sido as mais
so ao estado atual da comunidade inter- cautelosas no relacionamento com os
nacional, sempre lesta a produzir decla- talibãs, agora que se viram livres da pre-
rações eloquentes, mas ainda mais rápida sença norte-americana na região. Mas o
a fechar os olhos aos atentados contra os Afeganistão não é só um lugar sensível em
direitos humanos. termos geoestratégicos, também acumula
A situação é de grande dificuldade para uma riqueza ainda inexplorada mas cada
todos os atores envolvidos, é preciso re- vez mais decisiva nos dias de hoje: o lítio,
conhecê-lo. Mas, também por isso, o que aquele elemento mineral indispensável
acontecer será igualmente muito clarifi- nos telemóveis, automóveis, computado- A opção divide-se
cador quanto às verdadeiras intenções de res e em tudo o que esteja mais ou menos entre a estética da
cada país, ou bloco, em relação ao estado relacionado com a nossa vida digital. Há casa e os materiais
do mundo. De uma forma ou de outra, uns anos, um relatório do Pentágono che- com que é cons-
os próximos tempos no Afeganistão vão gou até a classificar o Afeganistão como a truída.
permitir-nos estabelecer algumas linhas “Arábia Saudita do lítio”, numa analogia às
divisórias: perceber quem se preocupa, de reservas de petróleo.
facto, com os direitos humanos ou quem O que vai prevalecer quando os talibãs
está apenas a olhar para a realpolitik e a
influência geoestratégica; quem é mesmo
assumirem o poder na sua plenitude? De
que forma a comunidade internacional vai
3
a favor da liberdade e do desenvolvimento reagir perante os atropelos aos direitos hu-
sustentável ou quem só procura oportuni- manos, mas também à fome e às sucessivas
dades de negócio, indiferente aos regimes vagas de refugiados? Como se vão compor-
e às atrocidades cometidas; quem aplica, tar os talibãs perante um povo cuja média
na prática, o princípio da solidariedade no etária é agora de 18 anos e em que, portanto,
acolhimento de refugiados ou quem só o a maioria nunca viveu sob o seu domínio?
repete nos discursos, mas depois é rápido Ninguém, em consciência, pode adivi-
a fechar as fronteiras. nhar a resposta a estas perguntas. Sobre o
Desengane-se quem pensa que o que não parece existir dúvidas é que, para
problema se resumirá a uma questão de os talibãs, vai ser mais difícil governar o
liberdade e de direitos humanos. A verda- Afeganistão do que foi conquistá-lo. E Esta, em madeira,
de é que, após 20 anos a despejar milhões para a comunidade internacional fica ape- é perfeita: está
de acordo com a
de euros no país, as potências ocidentais, nas uma certeza: o pesadelo afegão conti-
tendência mais po-
com os EUA à cabeça, foram incapazes de nuará a assombrar as principais potências.
pular e é também
criar ou de construir algo que, mesmo de rguedes@visao.pt
inspiradora.

8 VISÃO 26 AGOSTO 2021


Seja responsável, beba com moderação.

A frescura que apetece descobrir no momento,


as notas leves de frutos e flores, ou o tempo de espera,
o caráter que se apura e amadurece ao longo do tempo.
Tudo o que é autêntico tem uma origem
e esta é Monção e Melgaço.
Francisco Castro Rego
Presidente do Observatório Técnico Independente sobre incêndios rurais

Falta humildade nas


declarações do ministro
da Administração Interna,
quando sente que pode dar
garantias de que nenhuma
outra tragédia como a de
Pedrógão Grande voltará
a acontecer
NUNO MIGUEL ROPIO ANA BRÍGIDA

10 VISÃO 26 AGOSTO 2021


T
Três anos após a sua criação, há uma
incógnita quanto ao futuro do Ob-
servatório Técnico Independente, a
entidade consultora sobre os incên-
dios rurais que o Parlamento criou
na sequência dos trágicos fogos de
2017. Constituído com os melhores
especialistas do setor – parte deles
indicada pelos partidos – já teve, em
maio, a vida estendida por mais dois
possa utilizar as recomendações e os
estudos.
O facto de alguns membros terem
sido indicados pelos partidos
fez com que houvesse confronto
político no observatório?
Isso é muito interessante. Houve um
certo blind date, pela forma como nos
encontrámos para trabalhar, porque
apenas alguns de nós nos conhecía-
mos. Nunca se sentiu no observatório
nenhuma ligação ou pressão política
sobre os seus membros. Algumas vezes,
tivemos posições e opiniões diferen-
tes, mas nunca a origem da indicação
partidária de um membro foi sentida
como um problema, o que nos deu um
grande conforto em relação às reco-
mendações e ao trabalho que fizemos.
As críticas que o observatório fez
à tutela e à Proteção Civil criaram
anticorpos tais que o mais provável
é que acabe por ser extinto?
Há um certo autismo e uma pretensa
ignorância daquilo que são as nossas
contribuições.
Isso deve-se ao facto de a AGIF
ter sido abençoada pelo primeiro-
ministro, como se se tratasse
de uma secretaria de Estado, ao
contrário do observatório?
Deveria ser mais equilibrada a relação
entre uma entidade que executa, e está
junto do primeiro-ministro – com
toda a competência e a autoridade
que isso lhe confere –, e uma entidade
consultiva, que está a produzir matéria
para o mesmo efeito.
Na orgânica do Estado, faz sentido
a AGIF?
Fiz parte da Comissão Técnica In-
dependente, que vincou, com muita
força, a importância de uma estrutura
deste tipo. O observatório mantém
em absoluto a importância de uma
entidade que tenha essa competência
meses. Porém, os relatórios críticos Pode ser uma leitura legítima. O que de coordenação, de integração, de
que produziu desde agosto de 2018, nos pareceria era o contrário: o facto ganhos de complementaridade e de
sobre uma realidade que põe Portugal de haver crítica, que tentámos sempre criação de uma lógica conjunta. Mas a
nos registos negros europeus, podem que fosse construtiva, seria um indica- interpretação que a AGIF tem feito do
ter ditado o seu fim. Para Francisco dor de mais-valia para a existência do seu mandato, e o seu presidente, Tiago
Castro Rego, presidente do observató- observatório e não uma razão para a Oliveira, de quem sou amigo, tem sido
rio, a necessidade da existência deste sua extinção. errada. Essa interpretação é de que a
órgão mantém-se mais do que nunca, Sente que aquilo que foi proposto AGIF controla o sistema e deve super-
até porque muito está por fazer no acabou por ter sequência? visionar tudo o que acontece na área. E
setor e a Agência para a Gestão dos Houve um olhar para as nossas reco- não era esse o espírito inicial proposto
Fogos Rurais (AGIF), dependente de mendações, com a melhoria nalguns pela comissão. Por isso, o observatório
António Costa, não se mostra eficaz. sistemas, como foi o caso da recu- tem proposto que a AGIF se transfor-
O especialista em Gestão e Ecologia peração do Pinhal de Leiria, onde se me numa interagência, para aproximar,
do Fogo, que participou na Comissão redobraram as atenções – apesar dos e não para afastar, os vários agentes.
Técnica Independente que investigou anunciados milhões, não aconteceu Faz sentido a AGIF estar a
os incêndios de há quatro anos, avisa com a rapidez e a tecnicidade que transferir o conhecimento ali
que não se pode dar a garantia de que seriam exigíveis. O sistema no seu construído para o ICNF (Instituto
catástrofes como a de Pedrógão Gran- conjunto não tem sido aperfeiçoado. A de Conservação da Natureza e das
de não se repitam e que os recentes integração e a coordenação de vários Florestas)?
cenários na Grécia ou em Itália só setores, que eram obrigações da AGIF, Essa transferência está a criar no
não aconteceram por cá neste verão não aconteceram como era desejado. ICNF um enorme desconforto,
porque a meteorologia deu uma mão Pelo contrário, tem sido um desem- completamente justificado. A AGIF
aos portugueses. penho um pouco errático, com planos criou uma série de estruturas e uma
Ainda se justifica a existência de que nunca estão completos, porque orgânica interna com peritos juniores,
um observatório que surgiu na falta sempre mais qualquer coisa. de formações muitos particulares e
sequência das tragédias de 2017? Considera que os efeitos das com condições de remuneração mais
O grande problema é que andamos propostas do observatório significativas. A sua integração no
um pouco aos solavancos, e quando há acabaram por ser esvaziados ICNF criou incómodos, porque nada
episódios infelizes e dramáticos, como perante a AGIF? disso estava previsto. Obrigou que o
os de 2017, dá-se muito relevo as estes A AGIF poderia ter aproveitado muito estatuto remuneratório dos próprios
assuntos e desenvolvem-se trabalhos das nossas reflexões, contribuições e dirigentes do ICNF fosse alterado para
e organizações para tentar resolvê-los. propostas; mas optou por não aceitar não estarem em piores condições do
Quando a memória se vai esbatendo, como bom o que o observatório pro- que os que vinham da AGIF. Esse setor
com alguns anos mais benéficos em pôs. Criada em 2018, também como mais operacional da AGIF poderia dar
termos de meteorologia e de área consequência das recomendações da um contributo significativo no apoio
ardida, há um certo relaxamento. Se Comissão Técnica Independente, a às estruturas da Proteção Civil – que
a Assembleia da República decidir AGIF nunca referiu os trabalhos do precisam muito de ser reforçadas. Há
manter este trabalho do observatório, observatório, nem mesmo na elabora- uma falta de lógica neste processo, que
esperemos que o Governo se torne ção dos planos de gestão integrada dos parece ser determinado de uma forma
mais aberto à crítica construtiva e fogos rurais. É, no mínimo, estranho. casuística.

26 AGOSTO 2021 VISÃO 11


Uma das matérias gizadas pela da estratégia de prevenção e de
AGIF foi o Plano Nacional de
O sistema combate?
Gestão Integrada de Fogos [de Proteção Civil] A análise dos números é sempre muito
Rurais. O documento responde às complicada, porque são muito suscetí-
necessidades?
só consegue dar veis de leituras demasiadamente fá-
Detetámos dificuldades de raciocí- provas quando é ceis. Do estudo de 2020, observámos,
nio na arquitetura desse documento, em termos do número de ignições,
que substituiria o Plano Nacional de
testado em stresse. que uma análise tem de levar em conta
Defesa da Floresta Contra Incêndios, Felizmente, não as condições meteorológicas. Se não
que tinha uma vigência muito antiga e as incluir, a análise não pode ser feita
que acabou em 2018. Esperava-se que,
temos tido as com razoabilidade. Não podemos
em 2019 ou 2020, houvesse um plano experiências comparar a situação de Portugal com
que revisse o anterior ou o substituís- aquilo que a Grécia, a Turquia ou Itália
se nas suas valências. Mas não! Houve
de outros países. sofreram devido a um calor extremo.
um processo aos empurrões. Primeiro, Só uma realidade Mas o sistema de Proteção Civil
criou-se uma estratégia; depois, indi- está melhor?
cou-se que a estratégia seria o próprio
semelhante pode, O sistema só consegue dar provas
plano; haveria um programa de ação, com rigor, dizer-nos quando é testado em stresse. Feliz-
que concretizaria; depois o plano de mente, não temos tido as experiências
ação foi transformado em progra-
como se comporta de outros países. Só uma realidade
ma de ação nacional, que passou a o sistema semelhante pode, de forma rigorosa,
regional, ainda a sub-regional e depois dizer-nos como se comporta o sistema.
a municipal. Ainda estamos a meio do Mas o ministro da Administração
processo, em que os programas regio- Interna tem destacado que Portugal
nais estão por confirmar. tório. Esta arquitetura é tão defensável mudou o paradigma em relação às
Bem longe daquilo que propunha a como a anterior. Nesta área, tem de tragédias de 2017. É possível dar
comissão técnica. haver um trabalho conjunto entre os essa garantia?
Completamente. É evidente que todos dois ministérios. Não, julgo que ninguém pode dar essa
estes processos são complexos, com Deixar de considerar a floresta garantia. É impossível garantir que
dificuldades, e é importante ouvir enquanto um bem económico – ao não se poderão repetir. Também não
muita gente e entidades. Mas não é ra- retirá-la da Agricultura – para dar se pode dizer que não estaremos mais
zoável que, três anos e meio depois de primazia ao valor ambiental não bem preparados para essa enfrentar
acabar a vigência do último plano, este pode levar mais ao abandono do essas condições. Mas as garantias
ainda não esteja completo. É comple- Interior e à falta de transição do neste setor não se podem dar. Até por-
tamente injustificado. Cria situações atual material florestal, visto como que, do ponto de vista meteorológico,
muito complicadas do ponto de vista problemático? Os fundos que eram as condições de Pedrógão foram de tal
municipal, porque os Planos Muni- aplicados na transformação da maneira extremas que é muito difícil
cipais de Defesa da Floresta Contra floresta vinham da Política Agrícola perceber um desfecho.
Incêndios teriam de ser revistos – mas Comum. Mas houve melhorias no combate?
não puderam sê-lo à luz do plano cuja Claramente, pode haver esse risco. E Há mais meios aéreos, maior
vigência já acabou, em 2018, e à luz de as próprias declarações do ministro do profissionalização, aprendeu-se
um plano que não está completamente Ambiente são preocupantes, quando a fazer rescaldos – que era uma
determinado. Isto pode resultar em diz que a função primeira das flores- das maiores críticas de peritos
situações muito complicadas. tas é a captura de dióxido de carbono internacionais.
Também ficou por fazer um plano – parece que não considera, conve- Sim, quanto aos rescaldos, os dados
florestal mais amplo… nientemente, as funções económicas apontam que houve imensas melho-
Houve uma resposta no bom sentido, diretas de uma floresta, que é essen- rias. A rapidez na primeira intervenção
mas insuficiente: a criação das áreas cialmente privada. melhorou. Há, de facto, pontos posi-
integradas. O que criticámos? Propu- A transição será então agora mais tivos; e é ótimo que aconteçam. Mas
semos que fossem definidas ou rede- difícil de fazer... o fundamental é que não podemos
finidas as metas para o ordenamento Antes da transição para o Ambiente, sentir que as coisas estão resolvidas
das florestas e do País. Nada disto foi havia uma visão demasiadamente – estão longe disso. Quando a meteo-
revisto após 2017. Era importante que centrada nos benefícios económicos rologia é extrema, nenhum país pode
o País tivesse uma indicação ao nível mais diretos e não considerando tanto anunciar vitória. Temos de ter todos
do planeamento de qual o tipo de flo- os benefícios ambientais da floresta. uma humildade muito grande peran-
resta e paisagem para que quer evoluir. A tutela do Ambiente pode puxar por te este problema. Essa humildade é
Isso não foi feito, injustificadamente. essas valências e dar-lhe os recursos. que muitas vezes nos faltará; e falta
É preocupante que, neste período, Este ano, as coisas não têm – posso dizer isto – humildade nas
a tutela das florestas tenha corrido mal a Portugal quanto a declarações do ministro da Adminis-
transitado da Agricultura para o incêndios. É um golpe de sorte, tração Interna, quando sente que pode
Ambiente? por não estarmos a ser afetados dar garantias de que nenhuma outra
É uma boa pergunta para um tema que por condições climáticas extremas tragédia como a de Pedrógão Grande
não chegámos a abordar no observa- como outros países? Ou é resultado voltará a acontecer. visao@visao.pt

12 VISÃO 26 AGOSTO 2021


RAIO X

A batalha do futuro A disputa pela supremacia em Inteligência


Artificial está acesa. Mas a China acaba de ganhar
uma vantagem inédita sobre os EUA

R U I T A V A R E S G U E D E S rguedes@visao.pt

China ultrapassa EUA na investigação em Inteligência Artificial


Pela primeira vez, a China ultrapassou os EUA num dos principais indicadores científicos: o número
de vezes que um artigo académico sobre Inteligência Artificial foi citado por outros académicos,
segundo um relatório da Universidade de Stanford. Esta ultrapassagem já fez soar os alarmes nos EUA,
que foram sempre dominadores nesta área cada vez mais decisiva para a economia
mas também para a defesa e segurança das nações.

Um novo líder ou um pico esporádico?


Onde são produzidos os artigos sobre Inteligência Artificial com mais citações (em percentagem)
40%
(% DO TOTAL MUNDIAL)
TODAS AS CITAÇÕES

30%
China 20,7%
20%
EUA 19,8%
10%
EU 11%
0%
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020

Em marcha acelerada Produção de artigos científicos sobre Área estratégica


O avanço chinês em IA foi
conseguido através da produção
Inteligência Artificial A Inteligência Artificial é usada
em cada vez mais setores e
ativa de artigos científicos, ao (em percentagem do total) tem uma enorme influência na
longo da última década – o que 25% competitividade e na segurança
lhe permitiu passar de uma
20%
China 18% de uma nação. A Comissão de
posição quase inexistente para Segurança Nacional dos EUA
a liderança mundial. Segundo a 15% sobre Inteligência Artificial,
consultora britânica Clarivate, a 10%
chefiada pelo ex-CEO do Google,
China produziu, desde 2012, 240 Eric Schmidt, já tinha alertado,
mil artigos sobre Inteligência 5% EUA 12,3% em março, num relatório, que os
Artificial, enquanto os EUA se EU 8,6% EUA poderiam perder a liderança
0%
ficaram pelos 150 mil. 2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014 2016 2018 2020 do setor para a China.

8 000 000 000 de razões para estar à frente


Um dos motivos para o rápido desenvolvimento da China está na sua população e, portanto, no grande volume
de dados que esta gera. Segundo várias projeções, em 2030 haverá cerca de 8 mil milhões de dispositivos
ligados à internet, na China, montados em carros, infraestruturas, robôs e outros instrumentos. Todos esses
dados vão ajudar a Inteligência Artificial a ficar ainda mais... inteligente.

14 VISÃO 19 AGOSTO 2021


7
PONTOS DA SEMANA

POR
MAFALDA ANJOS*
UNSPLASH

O CANTO DA SEREIA DO TELETRABALHO


Há um tema quente que vai ocupar muita
gente, desde políticos a empresários e traba-
lhadores, a partir de setembro. Falo do tele-
trabalho, esse assunto que a pandemia trouxe
para a vida de grande parte da população,
mesmo em funções que nunca ninguém ima-
ginou serem possíveis de executar à distância.
Desde 1 de agosto que deixou de ser obri-
global que mostrou que mais flexibilidade é
possível nas formas de trabalhar. Mas acredito
que, por melhores estratégias complemen-
tares de recursos humanos que se adotem, é
cada vez mais claro que o teletrabalho deslaça
o espírito de equipa e de entreajuda e castra
a criatividade e o brainstorming. Perde-se o
contacto humano e a empatia, despersona-
gatório em todo o território, passando a ser lizam-se os fluxos de comunicação entre as
apenas recomendado nas atividades que o equipas. Poupa-se em transportes e refeições,
permitam. Muitas empresas deixaram para mas esbatem-se horários e confunde-se o
a rentrée mais decisões sobre esta matéria. tempo de trabalho com o tempo de descan-
Agora que grande parte da população está so (com os emails, contactos no Teams e no
inoculada, e chegando à marca indicativa dos WhatsApp a caírem dia e noite). E há, sobre-
85% da população vacinada em setembro, tudo para as mulheres, uma enorme sobre-
esta será a questão premente nas relações carga com as tarefas da vida doméstica, já que,
laborais no último trimestre: manter ou não uma vez em casa, passam a assumi-las mais.
o teletrabalho daqui em diante? E, se sim, em Por outro lado, o teletrabalho onera as che-
que moldes? fias, sobretudo as que têm muitas pessoas
O teletrabalho é um conceito sedutor. A ideia debaixo da sua alçada, que perdem a ligação
de a pessoa trabalhar no conforto do seu lar, direta e cara a cara às suas equipas. Tudo isto,
com menos horários e restrições, organiza- e o isolamento acrescido, gera uma enorme
da e vestida como bem entender e podendo pressão sobre a saúde mental: os números
dar mais assistência à família tem uma aura mostram um grande aumento das depressões
de atração. Há, claro, uma razão de ser para e dos esgotamentos. Um estudo recente de
as empresas forçarem o caminho do teletra- um inquérito a 90 milhões de profissionais,
balho, sobretudo se não forem obrigadas a divulgado pela Adecco Portugal, revelou que
custear quaisquer despesas. Muitas registam mais de metade (59%) admite sentir-se “des-
aumentos de produtividade, e há uma clara ligado” das suas funções e lideranças desde o
redução de custos com as instalações e o des- início do ano passado.
laçamento das relações laborais – olhos que Sou adepta de muito mais flexibilidade na
não veem, coração que não sente. forma de trabalhar – com tarefas atribuídas
O legislador andará também às voltas com o por objetivos e menos rigidez de horários –,
tema. Há neste momento dez projetos de lei o que é bastante distinto do teletrabalho. No
que passaram à especialidade na Assembleia médio prazo, se a opção for uma prevalência
da República, que debatem a regulamentação do trabalho à distância, estou certa de que na
desta modalidade de trabalho e as condições grande maioria dos casos ficarão todos pior,
em que pode acontecer, com os direitos e de- tanto as organizações como os trabalhadores.
veres de empregadores e funcionários. Há um Existirão, claro, situações em que o teletraba-
ponto essencial que distingue estes projetos: lho pode ser vantajoso: funções que exigem
o do pagamento das despesas extra que um silêncio e beneficiam do isolamento, recruta-
trabalhador pode ter quando está em teletra- mento de talentos que vivem noutras zonas
balho, algo defendido por todos exceto pelo ou noutros países, casos temporários ou
PS e pelo PSD. transitórios. Mas devem ser a exceção e não
Ano e meio volvidos, penso que já é possível a regra. Será melhor para todos resistir a este
tirar algumas conclusões desta experiência falacioso canto da sereia.
*Diretora
manjos@visao.pt

16 VISÃO 26 AGOSTO 2021


NÚMERO FRASE

-9,5%
“Fui dos primeiros a pô-la
e serei dos últimos a tirá-la”
Marcelo Rebelo de Sousa sobre o fim
do uso da máscara, que será decidido pela
Assembleia da República, em setembro.
Uma decisão que, nas suas palavras,
Queda do “tem de ser feita permanentemente
desemprego e com bom senso”.
homólogo
Segundo as novas
estatísticas de julho A F E G A N I S TÃ O
divulgadas esta
semana, menos 38 mil Aeroporto
pessoas estão hoje
desempregadas, quando
de Cabul virou
comparamos com o
mesmo mês de 2020.
enclave
O desemprego diminuiu O aeroporto de Cabul
em todos os maiores transformou-se no mais
setores, e as ofertas de desejado porto seguro
emprego registaram novo da capital afegã. Embora
aumento de mais de 80% o governo de Joe Biden
face ao ano anterior. No tenha chegado a ponderar
total, em julho existiam manter os seus militares
368 mil desempregados no aeroporto internacional
em Portugal, menos de Cabul por mais tempo,
9 000 do que em junho. o dia 31 de agosto é a data
PA N D E M I A determinada para a retirada
das tropas norte-americanas
VA C I N A S
Menos um argumento antivacinas da cidade. Até lá, será preciso
gerir o caos da retirada e
Até agora, todas as vacinas que estão a ser tentar atender aos muitos
Vem aí a administradas receberam luz verde para ser milhares de pessoas que,
terceira dose administradas apenas num regime de emergência.
Mas, a partir da próxima semana, a vacina da Pfizer
com outras nacionalidades
ou vistos de saída,
A Agência Europeia de contra o vírus da Covid-19 deixará de ter autorização diariamente se acumulam
Medicamentos está a “experimental”, um argumento utilizado pelos às portas do aeroporto na
analisar novos dados negacionistas para recusarem as vacinas. O regulador tentativa de fugir do que
relativos à eficácia das norte-americano, a Food and Drug Administration, aí vem com o novo regime
vacinas para a nova concede assim a autorização para introdução no talibã. Desde 14 de agosto
variante para fazer mercado, o que a equipara a qualquer medicamento até ao início da semana,
recomendações aos em circulação, com o respetivo selo de segurança. os militares americanos
países da União Europeia ajudaram a evacuar 37 mil
sobre os respetivos pessoas. Os ajuntamentos
planos de vacinação. COVID-19 já fizeram, pelo menos, sete
Israel já começou a vítimas mortais.
inocular pessoas com Portugueses no caminho para a cura
mais de 60 anos e
anunciou esta semana São três compostos que tem outra coisa de
que a terceira dose da retiram força ao vírus extraordinário: foi
vacina está autorizada SARS-CoV-2 – que é como feita por um grupo de
para pessoas a partir quem diz, pode ser o início investigadores portugueses,
dos 30. E, por cá, o de uma terapêutica para do Instituto de Tecnologia
responsável da task force a doença da Covid-19, Química e Biológica da
para a vacinação afirmou que a transforma numa Universidade Nova de
que está a ser estudada simples constipação Lisboa. A descoberta será
para 100 mil pessoas. sem complicações patenteada e, a seguir, a
Talvez não seja boa ideia nem necessidade de indústria farmacêutica
desmantelar os centros internamentos. Esta poderá desenvolver ensaios
de vacinação... descoberta tão relevante clínicos em humanos.

26 AGOSTO 2021 VISÃO 17


HOLOFOTE

Pedro Penim “O teatro do nosso tempo” no D. Maria


O FUTURO DIRETOR
A TV (e a Disney)
colada à pele
Para Pedro Penim,
ator nos anos 90 ARTÍSTICO DO TEATRO
em séries e nove-
las – como Riscos,
NACIONAL D. MARIA
em que ganhou o II NÃO RENEGA
O PASSADO NA
primeiro dinheiro
Sempre o teatro como profissional, Pedro Pluralidade
Nasceu em Lisboa
há 46 anos, feitos
ou Jardins Proibi-
dos –, a televisão TELEVISÃO. MAS É EM veste Praga
Aos 17, 18
na “caixa forte
da memória”
a 5 de julho. foi “sempre uma
exceção” na car- CIMA OU PARA LÁ DOS anos, assistia “Completamente

PALCOS QUE DESENHA


Reconhecem-no a espetáculos inexperiente” na
muitas vezes da reira, mas o meio na Cornucópia, direção de um
com que o grande
televisão, mas
é nos palcos – público mais o O SEU PERCURSO na Comuna, no
Meridional – ““e
teatro desta enver-
gadura, como disse
como encenador, identifica.
ca. Guarda no D. Maria à Antena 1, Penim
dramaturgo e o lado “emocional PA U L O Z A C A R I A S G O M E S II!”, sublinha. vai trabalhar com
ator – que se e de criatividade” Os cursos de a equipa executiva
revê pessoal e ligado à apresenta- teatro “de fim do D. Maria II,
profissionalmente. ção dos programas de semana” e o os levando a sua ex-
Trocou o curso de infantis Clube Dis- conhecimentos no periência de ence-
Arquitetura pelo de ney e Art Attackk – meio acabaram nador, dramaturgo
Teatro na Escola este durante quase por pesar na e programador.
Superior de Teatro uma década. “Terei mudança da “Não esperem uma
e Cinema, onde 90 anos e hão de Arquitetura para
par transferência da
também deu aulas, falar-me disso”, diz Conservatório,
o Conservatório identidade do Pra-
e fez um mestrado à VISÃO, enquanto onde entrou à ga para o D. Maria,
em Gestão sublinha a ironia de primeira. Em 19 1995, que é infinitamente
Cultural. Nos “um percurso curto ajuda a criar o mais complexo
últimos anos, viveu com uma grande Praga, coletivo e institucional”,
entre Portugal, repercussão. As sem encenador em garante à VISÃO.
Turquia e Itália. participações na membro
que cada memb Nos três anos de
Algures no último TV sempre foram assume a mandato, promete
trimestre deste secundárias em responsabilidade
responsabilida acrescentar
ano, vai abandonar relação à teatral, atos
pelos seus ato inovação e plurali-
o coletivo de que foi constan- criativos. “Na
“Nasci dade ao legado de
quatro elementos te.” Em 2018, com o Teatro Tiago Rodrigues
que dirige o Teatro regressou Praga. Não h há (de saída para o
Praga – o projeto brevemen- uma diferença
diferen Festival d’Avignon),
que ajudou a teao formato entre uma preservando a
fundar – para como um dos coisa e outra.
outr “caixa forte da
assumir o cargo moderado- Não tenho memória” que é
de diretor artístico res
es da final carreira nem
ne o teatro nacional.
do D. Maria II, onde dee Lisboa da antes nem “Não vou respon-
se propõe fazer “o Eurovisão – depois”, der às minhas
teatro do nosso dee que é fã. diria ao vontades artísti-
tempo”. Público em cas. É um sentido
2015. de missão política
que suplanta eu
ter sido convidado
enquanto artista”,
assume.

18 VISÃO 26 AGOSTO 2021


INBOX

M O D É S T I A À PA R T E
Tanto sangue
Não quero deixar
grandes somas de
derramado
dinheiro à próxima e vidas
geração. A minha
filosofia é: livra- perdidas
-te dele ou doa-o
antes de partires para chegar
DANIEL CRAIG
O protagonista de James Bond
considera a herança “repugnante”
a este ponto
e diz que não tenciona deixar
muito dinheiro aos filhos
é um
falhanço
quase
impossível
de entender
ANGELINA JOLIE
“Não se pode dar nem A atriz norte-americana criticou
o caos no Afeganistão
um euro a quem não
respeita os direitos
das mulheres” FRASE DA SEMANA
URSULA VON DER LEYEN
A presidente da Comissão
Europeia recusa apoios
económicos da UE ao regime
talibã no Afeganistão
É inevitável que
C H O Q U E F R O N TA L todos os partidos
“O abandono venham a ser
do Afeganistão liderados por
é trágico, perigoso
e desnecessário”
mulheres
MARIANA VIEIRA DA SILVA
TONY BLAIR A ministra da Presidência e da Modernização
O ex-primeiro-ministro britânico Administrativa está a substituir o primeiro-
apelida de “imbecil” a estratégia de -ministro, António Costa, durante 15 dias
retirada dos EUA e seus aliados

Indicámos a nossa 50 refugiados.


A vacina contra disponibilidade Não 5 000 ou
a Covid-19 devia ser para receber, 50 000. E o peso
obrigatória, como no imediato, 50 de todo o Portugal
acender os faróis afegãos em bazófia
AUGUSTO SANTOS governamental.
do carro à noite SILVA Ai, inclemência!
SEAN PENN O ministro dos Negócios
O ator norte-americano Estrangeiros definiu o ANA GOMES
diz que recusar a imunização número de refugiados A ex-candidata
“é como apontar uma arma que o País poderá presidencial reagiu,
à cara de alguém” acolher, para já incrédula, perante um
número tão baixo

Fontes: Candis Magazine, CNN, Instagram, Twitter, Jornal Económico, TVI


26 AGOSTO 2021 VISÃO 19
ALMANAQUE

NÚMEROS DA SEMANA

60
Litros de refrigerantes
é o que cada português
bebe, em média, por ano.
O equivalente a 3,3 quilos
de açúcar.
Os dados, citados
pelo Expresso, são
referentes ao ano
de 2018 e constam do

FOTOS: GETTY
relatório de 2019 do
Programa Nacional
para a Promoção da
Alimentação Saudável.

€50 mil O esplendor da Lua Azul Sazonal


É quanto receberá cada No último fim de semana, o fenómeno astronómico raro voltou
atleta português que a proporcionar imagens espetaculares nos céus do planeta
conquistar uma medalha
de ouro nos Jogos À terceira das quatro luas cheias ocorrerá apenas em agosto de 2024.
Paralímpicos de Tóquio, do verão de 2021, no Hemisfério Desconhece-se a origem do termo
que decorrem Norte, chama-se Lua Azul Sazonal, com que foi batizado o fenómeno
até dia 5 de setembro. um fenómeno astronómico raro que que, na verdade, raramente deixa ver a
Os prémios são iguais aos ocorreu no último fim de semana. A Lua, literalmente, a azul. De qualquer
dos Jogos Olímpicos. cada estação do ano correspondem, modo, mediante determinadas
A prata vale €30 mil por norma, três luas cheias, uma por condições atmosféricas, o único
e o bronze €20 mil. mês. No entanto, uma vez que elas se satélite natural da Terra ganha, de
repetem a cada 29,53 dias, há certos facto, esse tom, e talvez venha mesmo
anos em que os três meses de uma daí o seu nome.

63 878
O total de candidatos ao
estação acabam por proporcionar
quatro luas cheias. É esse o caso do
verão de 2021, sendo que o próximo
Certo é que voltou a proporcionar
imagens espetaculares, um pouco
por todo o mundo.
Ensino Superior público
para o próximo ano letivo
é o maior desde 1996.
A tutela estima que, MIGUEL ÁNGEL FÉLIX GALLARDO
acrescentando o ensino
privado, entrem cerca
de 90 mil novos alunos
A primeira entrevista ao grande barão da droga mexicano
nas universidades nacionais Ao fim de 32 anos na prisão, Miguel Ángel Félix
em 2021-2022. Gallardo aceitou dar a sua primeira entrevista.
Fundador do cartel de Guadalajara, que nos
anos 80 dominou o narcotráfico no México e se

2 000 000
O número de criadores
aliou ao do colombiano Pablo Escobar (como
é retratado na série da Netflix Narcos: México),
negou todas as acusações, inclusive a de ter
mandado raptar, torturar e matar o agente
de conteúdos a quem o da DEA, Enrique “Kiki” Camarena, em 1985,
YouTube já pagou para crimes pelos quais cumpre uma pena de quase
esse efeito não para 40 anos. “Nunca conheci esse senhor. Não sou
de aumentar. Ao longo uma pessoa de armas”, afirmou à cadeia televisiva norte-americana Telemundo, numa
dos últimos 14 anos, a entrevista em que se apresentou de cadeira de rodas, a respirar com a ajuda de uma botija
comunidade atingiu a de oxigénio, de braço ao peito, cego de um olho e com dificuldades de audição. Também
fasquia dos dois milhões negou conhecer Caro Quintero e Fonseca Carrillo (Don Neto), outros barões da droga mexi-
de “youtubers” remunerados canos. E Pablo Escobar? “Nunca o conheci.” Então o que fazia? “Dediquei-me à agricultura
pela própria plataforma e à ganadaria desde criança. Também tinha umas farmácias e dois velhos hotéis.” E para
de vídeo da Google. rematar: “Miguel Félix Gallardo é um homem honesto.” Está agora com 75 anos.

20 VISÃO 26 AGOSTO 2021


TRANSIÇÕES

MORTES
Natural de Lisboa, Mariana
Silva foi coroada Rainha
do Fado Menor em 1952,
no Teatro Apolo, tinha
então 18 anos. Desde os
10 que cantava o fado e
só parou aos 66, com um
espetáculo na casa de fados
A Parreirinha de Alfama.
Morreu na quarta-feira, 18,
em Lisboa, com 87 anos.

A princesa Maria do
Liechtenstein, mulher do
príncipe Hans-Adams II,
não resistiu a um derrame
cerebral. Hospitalizada
desde quarta-feira da
semana passada, a princesa
nascida em Praga, em
1940, acabou por falecer no
sábado, 21, aos 81 anos.
O príncipe Hans-Adams
II rege a monarquia
CHUCK CLOSE 1940 -2021
constitucional do principado

Pincel fotográfico
do Liechtenstein desde
1989.

Foram mais de 40 anos


de dedicação aos UB40, Referência maior do hiper-realismo norte-americano, viu a carreira
a banda britânica criada por um fio com as acusações de assédio sexual. A certeza de que
em 1978 numa fila para também de detalhe se faz a pintura é a maior herança que deixa
o subsídio de desemprego.
Brian Travers, o Raras são as histórias de sucesso detalhe que ainda hoje deslumbra os
saxofonista (e por vezes que não vêm envoltas em desgraça: críticos de arte. Daí para a frente,
compositor), foi um dos a literatura, o cinema e até os média e já com uma paleta a cores, a carreira
fundadores, contribuindo habituaram-nos desde sempre a do pintor somou sucessos como o
para temas como Red Red
grandes exemplos de superação retrato de Bill Clinton. Porém, e como
Wine, Can’t Help Falling
que inspiram tudo e todos com a qualquer percurso bem-sucedido,
in Love ou I Got You Babe.
Morreu no domingo, 22, na
resiliência do seu caráter. Órfão de o artista não se viu livre de tropeções.
sequência de um tumor pai desde os 11 anos, Chuck Close não Em 2017, viu rebentar na praça pública
cerebral. Tinha 62 anos. desanimou quando, na sua infância, um conjunto de acusações de assédio
todos o condenaram ao insucesso sexual por múltiplas mulheres que
escolar perante um diagnóstico de tinham sido modelos das suas obras.
Os norte-americanos Everly dislexia severa. Sem rancores nem A primeira abordagem do pintor foi de
Brothers estão na história hesitações, seguiu o exemplo da mãe negação, mas perante o cancelamento
do rock ‘n’ roll e da música pianista e vingou no mundo das da exposição, agendada para janeiro
country pelo grande sucesso artes com uma técnica hiper-realista, do ano seguinte, pela National Art
alcançado na década de semelhante ao pontilhismo, que Gallery, o artista assumiu o erro e
1950. Formada pelos irmãos marcou a pintura contemporânea pediu publicamente desculpa por
Don (Donald) e Phil (Phillip), ao mostrar que também os pincéis qualquer situação de desconforto ou
a banda foi fortemente conseguem chegar ao nível de de desrespeito que tivesse ocorrido
abalada pelos problemas pormenor das objetivas fotográficas. entre as quatro paredes do seu atelier.
do primeiro com drogas, na A maior obra-prima do artista (e o Chuck Close, o artista que pintaria
década seguinte. Com 84 adjetivo faz jus ao quadro, visto ter “nem que tivesse de cuspir para a tela”,
anos, Don Everly morreu quase três metros de altura) chegaria morreu quinta-feira passada, 19, num
no último sábado, 21, na sua
em 1968, com Big Self-Portrait. Aqui, hospital em Nova Iorque, vítima de
casa em Nashville. O irmão
Close retratou-se a si próprio, entre complicações cardíacas. Tinha 81 anos
faleceu em 2014.
tons cinza, cigarros meio acesos e e deixa duas filhas e quatro netos.
cabelos despenteados, num grau de Alexandre Abrantes Neves

26 AGOSTO 2021 VISÃO 21


Governo
adaptou PERSI
PRÓXIMOS CAPÍTULOS e PARI, programas
do tempo da Troika,
para funcionarem
como “rede”

PERISCÓPIO

CONFUSÃO 2018, após cinco


Santana Lopes põe legislaturas em
socialistas a ferver que foi eleito para
Ainda a contas com o Parlamento pelo
um recurso do PSD, círculo de Leiria. Como
junto do Tribunal nas legislativas de
Constitucional, depois 2019 não figurou na
de o tribunal da lista do PS, porque
Figueira da Foz ter estava na FlorestGal,
recusado a queixa por sobra agora a
irregularidades e que Medeiros, de 61 anos,
o lugar de candidato

GONÇALO ROSA DA SILVA


visava a suspensão
da sua candidatura à presidência da
independente, Santana Assembleia Municipal
Lopes pisou agora o de Ansião – concelho
risco para o lado dos que o PS arrancou ao
socialistas: filmou o PSD, em 2017.
comício do recandidato
do PS, Carlos Monteiro, LITURGIAS
CRÉDITOS
no último sábado, São Paulo, o talibã
e disponibilizou em “Vós, mulheres,

O dia seguinte às moratórias tempo real o vídeo.


“Grande comício”,
escreveu, de forma
irónica, no perfil da sua
sujeitai-vos a vossos
maridos, como ao
Senhor; Porque o
marido é a cabeça da
Começaram a vigorar no início da pandemia mulher, como também
candidatura “Figueira,
e têm fim anunciado para o último dia de setembro. a primeira”, tendo Cristo é a cabeça
Restam poucos dias para os bancos avaliarem em conta a pouca da Igreja, sendo ele
a situação dos clientes afluência. Irado, o PS próprio o salvador
estará a equacionar do corpo. De sorte
se avança com uma que, assim como a
Quem aderiu, desde o último trimestre do ano passado, às denúncia do caso à Igreja está sujeita a
moratórias disponibilizadas pelo Estado (para créditos pessoais Comissão Nacional de Cristo, também as
e à habitação, por exemplo) tem agora uma nova data a fixar no Eleições. O ambiente mulheres sejam em
calendário: 30 de setembro. É neste dia que deverão terminar das futuras reuniões tudo sujeitas a seus
as medidas provisórias que permitiram pagar apenas juros municipais na Figueira maridos.” Este excerto
ou não pagar a prestação, durante um determinado período, contará com todos os da epístola de São
prorrogando-os e diluindo-os pelo tempo restante de duração ingredientes para ser Paulo aos Efésios,
do contrato. uma animação. escrita por volta do
Para fazer face a potenciais incumprimentos ou falhas dos ano 65, lido por uma
clientes depois do fim destas medidas, o Governo adaptou DESPEDIMENTO crente, na última
dois planos, o PARI e o PERSI, que podem ser acionados. Nem um lenço missa dominical
Ao abrigo do primeiro, os bancos têm de analisar os créditos a dizer adeus transmitida pela RTP,
em moratória até ao fim deste mês e propor soluções ao cliente O ministro do incendiou as redes
Ambiente, Matos sociais. É verdade
até 15 de setembro. Já o segundo plano protege os devedores
Fernandes, informou que Paulo de Tarso
do recurso à via judicial nos três meses posteriores à extinção
José Manuel escreveu outros
da moratória, período em que terá de ser encontrado um textos, de acutilante
Medeiros, presidente
caminho alternativo. atualidade – mas a
da FlorestGal – a
A 30 de junho (dados mais recentes do Banco de Portugal) Igreja persiste em
empresa pública que
havia 298 mil devedores em moratória e um total de 37,5 mil gere 86 propriedades escolher, para a sua
milhões de euros de crédito abrangido por estas medidas florestais, com 14 mil liturgia, peças que
excecionais. Embora a maioria dos devedores (243 mil) seja hectares de terras só não estão datadas
particular, é às empresas que pertence a –, que, de um dia em locais como... o
maior fatia em dívida (22,3 mil milhões para o outro, iria ser atual Afeganistão. Ora,

€37,5
de euros). Há um ano, os devedores substituído por Rui depois de as touradas
chegaram a um recorde de 500 mil, e o Nobre Gonçalves, terem sido banidas da
montante em dívida aos 48,1 mil milhões antigo secretário de antena, ninguém se
de euros. Estado do Ambiente admire que alguém
Além das moratórias públicas, agora de José Sócrates. venha a exigir a
proibição... das missas.
MIL MILHÕES amoratórias
descontinuar, existiram também
privadas ao crédito,
Medeiros assumira
o cargo no verão de Já esteve mais longe...
Empréstimos em
moratória, no final postas em prática pelos bancos e que
de junho terminaram no final de março. P.Z.G.

22 VISÃO 26 AGOSTO 2021


OPINIÃO

Menos carros
P O R B E R N A R D I N O S O A R E S / Presidente da Câmara Municipal de Loures / PCP

P
ode ter passado despercebida a muitos do carro, vão de carro. Se os horários de trabalho
(entre a situação do Afeganistão e as notí- não se coadunam com a frequência e os horários
cias da pandemia) a recente atribuição de dos transportes, vão de carro. Se o conforto e a
visto pelo Tribunal de Contas ao con- segurança dos transportes públicos são baixos, pro-
curso de transportes rodoviários da Área vavelmente continuam a ir de carro.
Metropolitana de Lisboa (AML). O facto Nenhuma campanha de apelo à utilização de
merece, contudo, toda a atenção. Não só transportes públicos será eficaz se a oferta não for
pelo valor (cerca de 1,2 mil milhões de de qualidade. E é necessário diminuir o estatuto
euros), pelo acréscimo de oferta de 40% do automóvel na sociedade, ainda visto por muitos
na rede de carreiras (com 600 linhas), como um elemento que evidencia uma determinada
para servir uma população de quase 2,9 milhões de posição social. Nas novas gerações mais urbanas,
pessoas (28% da população nacional), mas sobretudo há elementos interessantes, como é o facto de hoje
por constituir um avanço na garantia de transportes (ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com
públicos de qualidade. Estes autocarros serão mais a minha geração) muitos não considerarem priori-
modernos, com melhor acessibilidade e com muito tário, logo que atingem a maioridade, ter carta de
melhores desempenhos ambientais. condução e muito menos carro.
Trata-se de um episódio de uma O impacto destas medidas não
trilogia que integra também a cria- É necessário é só no ambiente. São medidas
ção, em 2019, de um passe único que reduzem as desigualdades
metropolitano (com total intermo-
diminuir o estatuto entre aqueles que têm de usar
dalidade e um valor bastante aces- do automóvel na transportes públicos de qualidade
sível) e a exigência de reforço das
infraestruturas pesadas de trans-
sociedade, ainda ainda insuficiente e os que podem
optar pela viatura própria; que
portes na AML, algumas em vias de visto por muitos aumentam o rendimento dispo-
concretização com fundos comuni- como um elemento nível das famílias; que permitem
tários. O passe único significou uma regular de forma muito mais
poupança para muitas famílias de
que evidencia efetiva o espaço público e come-
centenas de euros, no que constituiu uma determinada çar a sonhar com uma progressi-
provavelmente o maior aumento de
rendimento líquido nas últimas dé-
posição social va diminuição do número médio
de carros por agregado familiar
cadas (e sem acréscimo fiscal). nas zonas mais urbanas; que
A substituição do uso de veículos privados pelo garantem igualmente uma melhor atratividade dos
de transportes públicos é uma medida determinante territórios para o investimento de empresas, muitas
para a proteção do ambiente (menos emissões po- vezes limitados pela escassa rede de transporte
luentes) e para a gestão das cidades e dos territórios público.
de maior densidade. Bem mais do que a mobilidade Todo este processo, que ocorreu nos últimos
elétrica que tem os próprios impactos ambientais e quatro anos, teve origem em dois factos fundamen-
não resolve os problemas dos congestionamentos de tais. Um sólido empenho dos municípios e da AML
circulação e de estacionamento. na melhoria dos transportes, com o financiamen-
É claro que, para muitas faixas da população, os to duma parte significativa dos custos e a assunção
rendimentos não permitem sequer equacionar o uso do risco da operação. E a existência de condições
de um carro diariamente. São utilizadores obrigató- políticas na Assembleia da República e nas negocia-
rios do transporte público. É preciso garantir-lhes ções dos orçamentos do Estado, capazes de impor
conforto, qualidade e preço baixo. soluções de investimento nesta área, até aqui inexis-
Outros têm essa opção e é desejável que prefiram tentes.
também o transporte público. Para que isso acon- Esperemos que este processo se consolide o su-
teça, é preciso ter consciência de que as pessoas ficiente, designadamente na sua apropriação pelas
tomam decisões racionais. Se têm um custo com populações, para que se torne impossível o seu re-
transporte público pouco diferente do custo do uso trocesso! visao@visao.pt

26 AGOSTO 2021 VISÃO 23


IMAGENS

ISLÂNDIA,
L A B OR ATÓR IO
DA TERRA
As alterações climáticas não dão tréguas na pequena ilha
do Atlântico Norte, com menos de 400 mil habitantes.
Há 30 anos que o degelo nos glaciares faz soar
os alarmes, num país cheio de atividade vulcânica
GETTY IMAGES

24 VISÃO 26 AGOSTO 2021


NATUREZA A FOGO E ÁGUA
Desde os anos 1990 que as evidências
do aquecimento global fazem da
Islândia um caso de estudo, uma
espécie de laboratório onde as
consequências do aumento de
temperatura são visíveis a olho
nu – 90% dos glaciares islandeses
estão a perder volume desde então,
e as projeções indicam que eles
assim vão continuar. Nas imagens,
captadas nos últimos dias, veem-se
grandes blocos, já separados, de
dois glaciares pertencentes à maior
calota de gelo do país. Muitos dos
vulcões que aí abundam situam-se
nas regiões glaciares – como o
Eyjafjallajokull, que, em 2010, cobriu
os céus da Europa de cinza e fumo.
Já o Fargradalsfjall, em cima, entrou
em erupção em março deste ano,
mas está longe dos glaciares. O rio
Skeidara, por outro lado, “emagreceu”
muito. Basta comparar as duas
pontes que o atravessam: a maior, à
esquerda, foi substituída pela outra e
deixou de ser utilizada.

26 AGOSTO 2021 VISÃO 25


IMAGENS

DESAFIAR
OS LIMITES
O impossível só existe até deixar de o ser. Como tão bem
o provam os atletas paralímpicos, ou as incursões
ao Espaço, ou mesmo uma arte de pesca ancestral

GETTY IMAGES

TÓQUIO, JAPÃO
Os Jogos Paralímpicos de Tóquio 2020 arrancaram nesta
terça-feira, 24. Na imagem, o nadador turco Koral Berkin
Kutlu, sentado à beira da piscina do Centro Aquático,
molha a sua touca durante uma sessão de treino.

KEELUNG, TAIWAN
Este será o último barco de pesca de fogo sulfúrico em
Taiwan. A arte ancestral tem forte tradição nesta ilha do
mar da China, que chegou a ter 300 embarcações próprias
para atrair o peixe através do fogo.

26 VISÃO 26 AGOSTO 2021


TÓQUIO, JAPÃO
A superação é uma imagem
de marca dos atletas
paralímpicos. Aqui, o
tailandês Chalermpong
Punpoo, jogador de ténis
de mesa, prepara-se para
servir, durante um treino
realizado no Ginásio
Metropolitano, o local
da competição.

ESTAÇÃO ESPACIAL
CHINESA
O programa espacial chinês
teve, esta semana, mais
um momento de grande
espetacularidade, com
o segundo “passeio” em
Espaço aberto, na estação
espacial, a ser transmitido
na televisão. Enquanto o
astronauta Nie Haisheng
estava “lá fora” a trabalhar
no braço robótico, o colega
Tang Hongbo coordenava
a operação no interior do
módulo central Tianhe.

26 AGOSTO 2021 VISÃO 27


Grande dupla O mullah
Baradar (esq.) deverá
liderar o governo e o mullah
Stanikzai pode liderar
novamente a diplomacia
afegã ou a pasta da Saúde
DON O S E S E N H O R E S
DO A F E G A N I S TÃ O o s talibãs”
pre ten d em o s “n o v
m s ão , o q ue pe ns a m e o que e a c o m u nidade
Qu e a 15 de agosto ? O s E UA
u is ta ram C ab ul o “re no vado”
que conq resignad o s a ac eit ar
internacional parecedmo pelo mullah Abdul Ghani Baradar
a
Emirado Islâmico chefi FILIPE FIA
LHO
U
Um dos maiores conhecedores da His-
tória e da cultura afegãs, Michael Barry,
professor da Universidade de Prince-
ton, escreveu há quase quatro décadas
um livro sobre o país e chamou-lhe
o Reino da Insolência. A obra retrata
aquilo que os comentadores e analistas
agora designam por “cemitério de im-
périos”, mas não se limita a descrever
o período em que o Afeganistão pro-
clamou a sua independência do Reino
Unido e foi uma monarquia instável e
mais ou menos absoluta (1919-1973).
Os habitantes deste território da Ásia
Central, orgulhosos e guerreiros, desde
Homo talibanus Os novos talibãs
refletem a atual composição
demográfica do país, em que a idade
média da população ronda os 24 anos

a Antiguidade que rejeitam submeter-


-se ao domínio de quem vem de fora e
esse é um dos (poucos) traços de união
entre as diferentes etnias que habitam
junto à cordilheira do Hindu Kush – ou
Indocuche. Aliás, as rivalidades locais,
entre tribos e clãs, são permanentes e
históricas, sem que ninguém consiga
impor-se aos demais de forma clara
e duradoura.
Tudo isto é do conhecimento do
homem que, nos próximos dias ou
semanas, vai assumir a liderança do
Afeganistão. O seu nome é Abdul Ghani
Baradar e parece haver um estranho
consenso quanto à sua escolha. Nas-
cido há 52 ou 53 anos numa pequena e
pobre vila da província de Oruzgan, no
Centro-Sul do país, é descrito como um
personagem cordato, bem-disposto,
com sentido de humor e sobretudo um
diplomata nato. Ou seja, alguém que
jamais poderia ser classificado como
insolente. No entanto, convém recordar
que ele é um ilustre ex-combatente da
guerrilha islâmica (vulgo mujahidin)
que enfrentou e derrotou as tropas
soviéticas no final dos anos 80 e que
se tornou um dos fundadores e diri-
gentes máximos dos talibãs, durante
a guerra civil (1992-1996) que eclodiu
entre as diferentes fações afegãs e que
provocou mais de 25 mortos só em
Cabul, a capital. Enquanto comandante
militar e braço direito do mullah Omar,
o líder supremo dos talibãs e de quem

30 VISÃO 26 AGOSTO 2021


A CÚPULA TALIBÃ
Principais responsáveis pelo
movimento que já governou
o Afeganistão entre 1996 e 2001

era amigo desde a adolescência, Abdul


Ghani Baradar foi um dos responsáveis
pelo que aconteceu ao deposto Pre-
sidente Mohammad Najibullah. Em
setembro de 1996, após passar quase
ABDUL GHANI BARADAR quatro anos refugiado nas instalações
DIPLOMATA E LÍDER ABSOLUTO da ONU em Cabul, o ex-governante
Fundou o movimento talibã com o seu socialista, laico e pró-Moscovo, foi
amigo mullah Omar. Entre 2010 e 2018, sequestrado, torturado, castrado, de-
esteve preso no Paquistão. Passou os capitado e pendurado num semáforo
últimos dois anos e meio a negociar com junto ao palácio presidencial. Perma-
Washington, Moscovo e Pequim. É já
neceu aí durante mais de 48 horas e só
visto como o líder do próximo governo.
depois foi permitido à família recuperar
HAIBATULLAH AKHUNDZADA
o cadáver e proporcionar-lhe um fu-
O COMANDANTE RELIGIOSO neral digno. Najibullah era a primeira
Desde 2016 que este discreto teólogo grande vítima da “nova ordem” que
ultraconservador chefia os talibãs. Entre os estudantes de teologia e do Corão
1996 e 2001 foi um dos responsáveis – significado de talibãs, em árabe –
pelos implacáveis tribunais islâmicos do pretendiam instaurar no Afeganistão
regime. É visto pelos seus pares como o e que vigorou até ao outono de 2001.
“miramolim”, o “chefe dos crentes”. Abdul Ghani Baradar é um belo
exemplo de como a História é feita
MOHAMMAD YAQOOB de avanços e recuos, de contradições
O GENERAL BENJAMIM e ironias. É ele o homem que teve de
Tem pouco mais de 30 anos, mas já é o fugir à pressa de Cabul – supostamente
líder militar do movimento. A explicação aos comandos de uma motorizada e
é quase genealógica: é filho do mullah levando como pendura o mullah Omar
Omar, o fundador e primeiro chefe tali- –, para escapar aos bombardeamentos
bã, falecido em 2013. Pode ser um peão dos EUA, na sequência dos atentados
dos serviços secretos paquistaneses. de 11 de setembro desse ano, por ser um
elemento da cúpula talibã que deu gua-
SIRAJUDDIN HAQQANI rida a Bin Laden e permitiu que o Afe-
O VENDEDOR DE PROMESSAS
ganistão se tornasse um santuário do
É o líder do clã Haqqani, uma dinastia
terrorismo internacional. Agora, é ele
que controla o Leste do Afeganistão
e tem fortes ligações à Al Qaeda. Em
que a Administração de Joe Biden
fevereiro de 2020 escreveu um artigo reconhece como principal interlocutor
no New York Times onde alega que os nas negociações em curso para a for-
talibãs respeitam os direitos das mu- mação de um novo executivo afegão,
lheres e as convenções internacionais após a derrota da NATO e das forças
– “desde que estejam de acordo com os internacionais que ocuparam o país nas
princípios islâmicos”. últimas duas décadas.
Caso dúvidas existissem a propósito
da importância de Baradar, o Washin-
gton Post acabou por desfazê-las ao
noticiar a presença em Cabul, nesta
segunda-feira, 23, do diretor da CIA,
William Burns, para negociar dire-
SHER STANIKZAI tamente com o antigo guerrilheiro a
O MEDIADOR ESTRANGEIRADO transição de poder e todo o processo
Este antigo ministro da Saúde é dos pou- de retirada dos militares e civis que
cos mujahidin que aprenderam a falar se acumulam desde 14 de agosto no
bem inglês. Há quase uma década que aeroporto da capital. Este reconheci-
vive em Doha, no Qatar, onde iniciou os
mento implícito de Baradar coincidiu
contactos diplomáticos que o tornaram o
com a crise humanitária em curso e
mais viajado dos comandantes talibãs.
a caótica ponte aérea que já permitiu
SUHAIL SHAHEEN retirar mais de 40 mil pessoas do país
O PROPAGANDISTA MOR e que pode não estar concluída até
Liderou o departamento de 31 de agosto, data limite fixada pela
comunicação em Doha e tornou- Casa Branca e que muitos governos
se o melhor relações públicas do europeus consideram ser necessário e
movimento. Sempre ativo nas redes urgente prolongar. Uma possibilidade
sociais, foi dos primeiros a falar em que os talibãs rejeitam liminarmente.
“governo de unidade nacional”. Um dos mais conhecidos porta-vozes

26 AGOSTO 2021 VISÃO 31


Vítimas do costume Os talibãs insistem
em dizer que respeitam os direitos das
mulheres, mas multiplicam-se os relatos
a indicar o contrário

do movimento, Suhail Shaheen, em – desde permitir a saída de refugiados


declarações à Sky News, foi categórico: Produção da papoila do ópio ao eventual acolhimento de jiadistas
“Se os EUA ou o Reino Unido querem Hectares cultivados (estimativas) e criminosos, passando pela política
mais tempo, a resposta é não. Caso no Afeganistão externa – serão críticas. Até agora, os
contrário, haverá consequências!” Sem 300 MIL
talibãs têm-se apresentado como mo-
querer entrar em detalhes, o mesmo derados. Os factos no terreno contam-
Em julho de 2000,
responsável explicou que, a confir- -nos uma história diferente e é muito
mar-se a presença militar estrangeira 200 MIL os talibãs proíbem provável que tenhamos de enfrentar
a produção
além da data acordada, “passará a haver uma fase violenta. (...) Os talibãs nunca
desconfiança entre as partes” e isso será 100 MIL cortaram, e jamais irão cortar, com a Al
igualmente interpretado como uma 2001 – Os EUA invadem Qaeda. Esse tipo de grupos vai conti-
“tentativa de prolongar a ocupação”. 0 o Afeganistão nuar a usar o território afegão como
Na prática, Shaheen deu-se ao luxo de plataforma para o terrorismo e a cri-
1996 2000 2004 2008 2012 2016 2020
fazer um ultimato e definir uma “linha minalidade transnacional.” No entanto,
FONTE Nações Unidas – Gabinete contra a Droga e o Crime
vermelha” que pode ditar a diferença AR/VISÃO
apesar de todas estas circunstân-
entre guerra e paz. cias e ameaças identificadas
Por haver cada vez mais gente com num artigo de opinião para
o Financial Times, o antigo
O TRÁFICO DE ÓPIO
plena consciência do que está em causa,
multiplicam-se os apelos ao “realismo”, oficial defende que é preciso
que é como quem diz, ao mal menor.
É o caso do general Mike Allen, anti- E HEROÍNA TEM “manter aberto o diálogo”,
como, de resto, tem vindo
go comandante das forças dos EUA SIDO UMA DAS a acontecer. O ministro dos

PRINCIPAIS FONTES DE
e da NATO no Afeganistão, e atual Negócios Estrangeiros da Ale-
presidente da Brookings Institution, manha, Heiko Maas, reconheceu
um dos mais influentes think tanks
de Washington D.C.: “A configuração FINANCIAMENTO DOS essa “inevitabilidade” e muitas chan-
celarias europeias – Comissão Euro-
do futuro governo talibã será um dos TALIBÃS NAS ÚLTIMAS peia incluída – dizem o mesmo. Boris

DUAS DÉCADAS
mais importantes acontecimentos Johnson, primeiro-ministro do Reino
geopolíticos de 2021. As suas decisões Unido e presidente de turno do G-7,

32 VISÃO 26 AGOSTO 2021


O império americano está a encolher
Os Estados Unidos da América continuam a ser a maior potência militar do planeta
mas o seu poder e influência – a pax americana – parecem estar em acentuado recuo,
como o Afeganistão e os talibãs vieram demonstrar

Top 10 TOTAL
Número de efetivos Intervenções
Países e territórios
com destacamentos
180 954
Nos destacamentos militares
dos EUA, fora do país e ocupações
militares dos EUA Países onde os EUA
(número de efetivos) O mais baixo têm ou tiveram militares
das últimas ANOS
JAPÃO 53 936 sete décadas CUBA 1898-2021 123
ALEMANHA 35 486 ARÁBIA SAU. 1943-2021 78
COREIA DO SUL 26 326 171 PANAMÁ 1903-1979 76
ITÁLIA 12 535 Países e territórios ALEMANHA 1945-2021 76
REINO UNIDO 9 515 com presença JAPÃO 1945-2021 76
militar dos EUA COREIA DO SUL 1950-2021 71
GUAM 6 161
BAHREIN 1971-2021 50
AFEGANISTÃO* 6 000 FILIPINAS 1898-1946 48
BAHREIN 4 008 Europa Ásia QATAR 1996-2021 25
3 256 Américas 64 257 99 632 1915-1934 19
ESPANHA África Oceânia e Pacífico Local desconhecido HAITI
TURQUIA 1 808 2 086 1 023 7 946 6 008 AFEGANISTÃO 2001-2021 19

€180 mil milhões Despesa anual dos EUA para manter


o contingente militar fora do seu território (estimativa)

Destacados no estrangeiro desde 1950 Mortos na guerra no Afeganistão


1,2 MILHÕES – EFETIVOS MILITARES FORA DOS EUA 15 MIL MORTOS
Outros Médio Oriente Civis Forças afegãs
800 MIL 10 MIL
Ásia Europa Forças dos EUA Outros aliados

400 MIL 5 MIL

0
1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 2020 2001 2005 2009 2013 2017 2021**
FONTES Pentágono, Brookings Institution, CSIS, The Economist * Valor divulgado pela Casa Branca ** Dados até junho de 2021 AR/VISÃO

promoveu nesta terça-feira uma cimei- ça com os dirigentes talibãs. E não é coisas correram-lhe mal e, para grande
ra virtual entre os líderes das maiores de estranhar que isso tenha sido feito irritação e sonoros protestos de Karzai,
economias do mundo com o objetivo muito antes da queda da capital afegã. acabou por penar oito anos nas mas-
de discutirem a situação em Cabul, a Recorde-se que Abdul Ghani Baradar morras paquistanesas. Só que os amigos
criação de corredores humanitários se reuniu diversas vezes com algumas são para as ocasiões e, em outubro de
por via terrestre e, claro, um eventual figuras de proa das diplomacias russa e 2018, Baradar é libertado e estrategi-
reconhecimento diplomático do novo chinesa, ao longo dos últimos dois anos camente enviado para Doha, no Qatar,
Emirado Islâmico do Afeganistão. Algo e meio, ao mesmo tempo que negociava com o intuito de chefiar os escritórios
que pode ainda demorar algum tempo um acordo de paz com os EUA, o que da missão talibã no emirado. É assim
mas que parece garantido. Nesta quin- viria a concretizar-se a 29 de fevereiro que, à mesa com Karzai e o enviado
ta-feira, 26, os mesmos tópicos serão de 2020 e lhe concedeu o direito a tro- especial da Administração Trump, o
debatidos numa outra cimeira digital car breves palavras, por telefone, com o americano-afegão Zalmay Khalilzad, se
no âmbito do G-20, convocada por então Presidente Donald Trump. chega ao polémico acordo que prevê a
Itália, que detém a presidência rota- Um feito notável para o dirigente retirada de todas as forças estrangeiras
tiva deste fórum intergovernamental fundador dos talibãs que foi detido em do Afeganistão e os talibãs se compro-
onde pontificam também as economias 2010, na cidade paquistanesa de Cara- metem a não apoiar grupos terroristas
em desenvolvimento e países como a chi, devido a uma alegada armadilha que ponham em causa a segurança dos
Rússia e a China. Pormenor: Moscovo da CIA e do ISI, os serviços secretos EUA e demais aliados. Inicialmente, o
e Pequim, ao contrário do que sucedeu do Paquistão. A lenda negra diz que acordo previa que a saída das tropas
com a generalidade das representações Baradar pretendia negociar diretamente internacionais acontecesse até 1 de maio
diplomáticas ocidentais em Cabul, pre- com as autoridades do Afeganistão e de 2021, véspera do 10º aniversário da
feriram manter abertas as portas das com um seu velho conhecido, Ahmid morte de Bin Laden, em Abbottabad,
suas embaixadas e consulados, após Karzai (então Presidente afegão), sem no Paquistão, mas a Casa Branca e Joe
terem negociado a respetiva seguran- dar cavaco a ninguém. Na altura, as Biden encarregaram-se de alterar os

26 AGOSTO 2021 VISÃO 33


Crise humanitária Desde 14 de agosto,
mais de 40 mil civis já saíram pelo
aeroporto de Cabul, mas outros tantos
podem querer sair até ao final do mês

uigur (oriundos da província chinesa de


Xianjiang, que lutam contra a República
Popular) forem contidos, o governo de
Pequim admite reconhecer as novas
autoridades de Cabul. E não só. Admite
voltar a investir em larga escala na ex-
ploração das riquezas naturais afegãs,
a começar pela mina de cobre de Mes
Aynak, cuja concessão já foi atribuída a
uma empresa pública chinesa. O subso-
lo afegão é ainda fértil em pedras pre-
ciosas, lítio e terras raras, mas Pequim
não deverá, por enquanto, incluir o
novo Emirado nas suas Rotas da Seda, o
gigantesco programa de infraestruturas
com que pretende voltar a ser o centro
do mundo. Já lhe bastam os problemas
de segurança que tem com o outro país
que mais fica a ganhar com a vitória
talibã sobre os EUA, o Paquistão. Só
nos últimos dois meses, mais de uma
dúzia de engenheiros e funcionários
chineses foram mortos em atentados
prazos. É também por este motivo que Vladimir Putin. Terá sido a este embai- no país que olha para o Afeganistão
os talibãs se sentiram livres para adiar xador que o líder talibã deu garantias como um instrumento para garantir
o proclamado adeus às armas e acelera- de que o Afeganistão não se tornará um “profundidade estratégica” e contra-
ram a campanha militar que culminou, albergue de jiadistas, prontos a ataca- riar os interesses do seu maior rival, a
em apenas dez dias, na conquista de rem a Ásia Central e todo o Cáucaso Índia. Seja como for, como escreveu o
Cabul e de todas as capitais provinciais russo. À cautela, o Kremlin já reforçou francês Pascal Boniface, diretor do IRIS,
do Afeganistão. Uma vitória retumbante a sua presença militar no Tajiquistão e em Paris, “todos os que contestam a
para Baradar e seus pares, enquanto os tem aí colocados elementos da sua 201ª supremacia ocidental ficam a ganhar”.
EUA, a Europa e demais aliados carpiam Divisão Motorizada, de modo a neutra- Quanto à carga de trabalhos que
mágoas porque, como afirmou Fareed lizar possíveis incursões e ataques de Abdul Ghani Baradar tem pela frente,
Zakaria, “não há forma elegante de se grupos terroristas, alguns deles com deveria ouvir os relatos de quem ainda
perder uma guerra” e muito menos ligações à Al Qaeda. consegue andar pelas ruas das cidades
quando se passa por uma humilhação No que toca aos 76 quilómetros de afegãs. “Toda a gente espera que os tali-
bélica que durou quase 20 anos, custou fronteira que o Afeganistão partilha bãs deem sinais de que mudaram desde
2,2 biliões de dólares e custou a vida a, com a China, junto ao famoso corredor 2001. Se esta mudança não for visível, os
pelo menos, 238 mil pessoas (incluindo montanhoso de Wakhan, a situação não afegãos não podem confiar neles”, afir-
2 442 soldados americanos), nas deta- é muito diferente. A 28 de julho, Abdul mou ao diário Le Monde uma habitante
lhadas contas do Watson Institute da Ghani Baradar encabeçou uma delega- de Qala-e-Naw, cidade da província de
Universidade de Brown. ção talibã que foi recebida, em Tianjin, Badghis, no Noroeste do país. Aí, em
Este tipo de estatísticas soa como pelo chefe da diplomacia de Pequim, Herat ou em Cabul, a identidade e as
música para a Rússia, dado o envolvi- Wang Yi, que classificou o seu interlo- intenções dos talibãs são um problema
mento da URSS no Afeganistão, entre cutor como um “ator-chave”, após ouvir tão sério como o aumento do custo de
1979 e 1989. Durante esse período, o a promessa de que o Emirado Islâmico vida: os combustíveis, o gás doméstico e
Kremlin perdeu aproximadamente 15 do Afeganistão não será uma base para outros produtos básicos como o arroz,
mil Rapazes de Zinco, título do livro da separatistas chineses. Se assim aconte- a farinha, o chá e a fruta dispararam
Nobel da Literatura Svetlana Alexievi- cer, se os militantes islâmicos de etnia quase dois dígitos e não é previsível
ch, alusivo aos soldados abatidos pelos que baixem tão cedo. Com os bancos
mujahidin que tiveram de regressar a fechados, as caixas multibanco vazias
casa em caixões feitos com esse metal. O FUTURO EXECUTIVO e a população sem acesso a salários e

AFEGÃO ESTÁ NA
No entanto, após a retirada soviética, reformas, Baradar vai precisar de muita
para comparação e vitória moral face diplomacia e bom senso. Características
ao atual fiasco dos EUA, o governo
pró-comunista de Cabul resistiu mais IMINÊNCIA DE que alguns conhecedores da realidade
afegã lhe negam. Lynne O’Donnel, aus-
de dois anos aos senhores da guerra e ENCONTRAR O PAÍS NA traliana que chefiou os escritórios da

BANCARROTA E DE NÃO
aos combatentes islâmicos. Paradoxos AFP e da Associated Press em Cabul,
da História que, muito provavelmente, por exemplo, está convencida de que o
terão já sido abordados entre o coman-
dante-mullah Baradar e um dos seus TER DINHEIRO PARA próximo executivo do mullah Baradar é
um simples bando de “criminosos e ter-
principais interlocutores internacio- PAGAR SALÁRIOS roristas”, escreveu ela no site da revista

E REFORMAS
nais, o russo Zamir Kabulov, um dos Foreig Policy. Em breve saberemos se
diplomatas de confiança do Presidente tem ou não razão. ffialho@visao.pt

34 VISÃO 26 AGOSTO 2021


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Setembro 2021 NÚMERO 307 | MENSAL | €5 (Cont.)

MANIFESTO
AOS 70 ANOS
ES

SOCIALISTA

AS ORIGENS DO FUTEBOL
TEEBO O APELO DA VIDA SELVAGEM
VAGEM
DE PIKETTY

EM PORTUGAL O NOVO APELO


Porque temos de repensar a nossa relação com a Na
Natureza
atu
ure
eza
se quisermos viver num mundo melhor
r
SCIENCE, YALE ENVIRONMENT 360, GRIST, TYGODNIK POWSZECHNY
Y

DO INTERIOR DE PORTUGAL
COMO OS PORTUGUESES ESTÃO A REDESCOBRIR A BELEZA DOS LUGARES MENOS POVOADOS
E A DESFRUTAR DOS PRAZERES DA VIDA DE ALDEIA E DA NATUREZA SURPREENDENTE.
UMA VIAGEM DESDE O GERÊS ATÉ MÉRTOLA, POR RIOS, SERRAS E VALES

VAMOS MESMO
MOO
REGRESSAR
• O futebol antes do futebol • A ‘invenção’ do football
• Os primeiros jogos em Portugal
all iinglês
nglês AO ESCRITÓRIO?
O? ESPAÇO
CHINA E RÚSSIA
DOSSIER
A CIÊNCIA E AS LEIS
INDONÉSIA
A NO
ND
NOVA
DONÉSIIA
OVA CAPITAL
CAPITTA
PERIODICIDADE BIMESTRAL

Os novos espaços e o trabalho em equipa | Os modelos


modeelo
os híbridos
híbr
híbri
ridos
rid
ri DESAFIAM OS EUA DA AMIZADE VAI NASCER
ASSCER N
NAA SSELVA
E
• A fundação do Benfica, do Sporting e do FC Porto
ortto
N.º 66 · AGOSTO 2021
CONTINENTE – €5,00

THE NEW YORK TIMES DIE ZEIT, NEW SCIENTIST KOMPAS


KO
OMPA
AS
e os desafios para os gestores | O impacto económico | A ssaúde
aúde mmental
ent
• Os clubes operários • Futebol e Estado Novoo Os exemplos da SAP, Feedzai e PHC | O dilema da vacinação
naçção obrigatória
obriga ató

Textos de António Macedo, Germano Silva, João Gobern,
João Nuno Coelho e Rui Miguel Tovar
Nuno Carvalho, da Deloitte: “Precisamos de passarr da
da política
polííti
po ti
tica
do controlo para a política da confiança”
a”

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RESGATADOS
AO TERROR
Para os afegãos Omed e Hamid Taheri, Portugal é
sinónimo de paz. Doze anos depois de chegarem ao País,
trabalham e jogam futebol sem se sentirem diferentes
dos demais. Os dois irmãos juntam-se às vozes de quem
exige mais do Governo português – receber 50 refugiados
não chega. E o Governo confirma à VISÃO: “Vamos receber
R I TA R AT O N U N E S E J O Ã O A M A R A L S A N T O S
ANA BRIGIDA
Refugiados de guerra
Omed e Hamid Taheri,
afegãos, construíram as suas
vidas em Portugal. Trabalham
no turismo, na restauração
e são jogadores de futebol
ANA BRIGIDA

Com o pai Voltar para o Afeganistão não é uma hipótese, mas Omed e Hamid Futebol Hamid é defesa e Omed
gostavam de conhecer “as montanhas a perder de vista” que veem na internet guarda-redes do Bobadelense
e de que Mohammad Yusuf se lembra bem

Só para de trabalhar antes das


20 horas nos três dias em que tem
treino de futebol e ao domingo, dia
Como podemos ajudar? 7. No entanto, quando chegaram ao
País que pensavam ser parte de Es-
panha e que só sabiam ser o de Figo,
de competições. O mesmo acontece CONHECER E DIVULGAR Deco e Cristiano Ronaldo, tiveram de
com Hamid. Mas isso não os inco- Os média tradicionais acompanham, ficar parados. “Diziam-nos que não
moda: terem trabalho é a principal diariamente, a situação no podiam aceitar as nossas inscrições,
preocupação dos dois. “Portugal é Afeganistão – conhecer e divulgar apesar de termos ido a um treino e de
o melhor país da Europa, por causa a realidade permite ao mundo não nos terem garantido que ficávamos na
das pessoas, do clima, da paz. Posso ignorá-la. equipa. Diziam-nos que era sempre
andar na rua à vontade, que ninguém para a semana seguinte, que faltava
me faz mal. A única coisa má é a fal- ASSINAR PETIÇÕES mais um papel ou que a janela de
ta de trabalho, de vez em quando, e Pressionar o poder político para inscrições já estava fechada. Tive de
os preços altos das casas”, aponta o a ação. A Amnistia Internacional ficar parado, quando eu só sabia jogar,
Portugal lançou uma petição online
irmão mais novo, lembrando que a jogar, jogar”, conta Hamid, que conti-
para o País cumprir as obrigações
família teve de sair do País, nos anos nua a sonhar com a possibilidade de
para com os afegãos.
da Troika, por não conseguir arranjar jogar na Liga portuguesa. “Eu ainda
emprego, pagar a renda e ter dinheiro FAZER DOAÇÕES quero chegar a algum lado. Não posso
para comer. Emigraram todos para a Doar dinheiro ou, em alternativa, desistir de ser jogador profissional e
Alemanha, e só Omed e Hamid re- doar milhas à Miles4Migrants, de ter uma vida estável”, continua.
gressaram pouco depois. Os pais e as patrocinando o transporte de “Quero ganhar o meu dinheirinho,
irmãs estão espalhados pela Europa e famílias refugiadas. construir uma vida em paz, ter um
fazem-lhes visitas pontuais, como a abrigo e um negócio nosso. Passámos
que o pai preparou, de surpresa, esta ACOLHER REFUGIADOS a vida a ouvir falar em bombas que
segunda-feira. Os interessados podem contactar rebentaram e mataram pessoas, em
A relação da família com Portugal é as autarquias locais, Governo ou a cidades que desapareceram. É muito
feita de altos e baixos: por se sentirem Plataforma de Apoio aos Refugiados triste nascer num país onde só se
bem no País, mas também por verem (PAR). ouve a palavra guerra.”
os seus currículos num caixote do Por isso, pede ajuda a Portugal, ao
lixo depois de os entregarem; pelas VOLUNTARIADO Governo e aos portugueses, recor-
dificuldades em encontrar casa e pela As inscrições para dar apoio nos dando: “Não somos todos terroristas.
burocracia que manteve os irmãos centros de acolhimento para Não somos todos maus. O nosso povo
longe dos relvados nos primeiros refugiados podem ser feitas no site é igual ao português e ao de outros
anos. Começaram a jogar na Ucrâ- do Conselho Português para os países. Temos outra religião, outra
Refugiados (CPR).
nia – Hamid aos 5 anos; Omed, aos cultura, mas o meu pensamento não é

26 AGOSTO 2021 VISÃO 39


que as mulheres têm de ficar em casa
a fazer tarefas domésticas, nem andar
com os pés tapados.”

A REVIRAVOLTA DO AUXÍLIO
PORTUGUÊS
Depois de ter anunciado que Portugal
acolheria até 50 refugiados afegãos,
o Governo português estuda, agora,
LUSA

conforme revelou à VISÃO a secretária


de Estado para a Integração e as Migra-
ções, Cláudia Pereira, a possibilidade
Cláudia Pereira de acolher muitos mais (ver caixa de
Secretária de Estado das Migrações entrevista). O ministro da Defesa, João
Gomes Cravinho, começou por avançar

“Vamos acolher com a necessidade de o executivo acu-


dir a 243 afegãos (cerca de mil pessoas
com as famílias), que colaboraram,

mais de 50” durante quase 20 anos, com os mili-


tares portugueses no Afeganistão. Foi,
por isso, com surpresa que o ministro

LUSA
Portugal tem disponibilidade para dos Negócios Estrangeiros, Augusto
alargar o número de refugiados Santos Silva, diria, horas depois, que a
afegãos que poderá vir a receber no primeira resposta oficial passaria por ras de Sintra, do Fundão e de Lisboa,
futuro? acolher em território nacional 50 refu- Cruz Vermelha Portuguesa, Conselho
Podemos já afirmar a nossa capacidade giados, todos funcionários contratados Português para os Refugiados”, e vá-
e disponibilidade para ultrapassar esse localmente ao serviço da comunidade rias entidades de solidariedade social.
número. E garantimos o acolhimento de internacional e respetivas famílias –
todos os cidadãos afegãos que colabo- uma gota no fluxo ininterrupto de voos REAÇÕES EM CADEIA
raram (por exemplo, como intérpretes)
que, desde a semana passada, já reti- Esta onda de solidariedade surge,
com a nossa força nacional destacada
raram do Afeganistão perto de 30 mil também, em reação à meia cente-
no Afeganistão, no quadro da NATO.
Está em curso a identificação de todos
pessoas, a partir do aeroporto interna- na inicial de vagas para refugiados
esses cidadãos. cional Hamid Karzai (única ponte de anunciada pelo executivo português,
saída do país), a maioria com destino número que suscitou manifestações
Mas haverá outros? às bases norte-americanas espalhadas imediatas de surpresa e desalento. À
Participamos no esforço de acolhimento pelo mundo. VISÃO, Pedro Neto, diretor-executivo
dos cidadãos afegãos que colaboraram Ora, conforme nos revelou, esta ter- da Amnistia Internacional Portugal,
noutros enquadramentos da NATO e tam- ça-feira, Cláudia Pereira, a 17 de agosto classificou o número como “irrisó-
bém com a União Europeia. Os serviços foi divulgado “um formulário público rio” e alertou para anúncios que nem
competentes estão a proceder à identi- para cidadãos individuais, que regis- sempre correspondem à realidade:
ficação das famílias que serão acolhidas tou 4 429 respostas até à hora do seu “Sempre que há uma crise, que vem
em território nacional, bem como à encerramento, dia 20 de ggosto às 15 com mediatismo associado, o Governo
preparação das modalidades e calendário horas”. Explica a governante que, “con- adota uma atitude de generosidade
para esse acolhimento. E também aco- siderando as manifestações de interesse para fazer declarações, mas depois,
lheremos cidadãos afegãos no quadro de de organizações da sociedade civil em quando o assunto morre nas notí-
operações de proteção conduzidas pelas dar o seu contributo para apoiar, o Alto cias e vamos ver quantos refugiados
Nações Unidas. Estamos ainda a rece- Comissariado para as Migrações criou realmente recebemos, o número fica
ber e analisar pedidos de acolhimento um formulário para o registo da cola- sempre aquém. Não vale a pena o
dirigidos diretamente a Portugal, designa- boração disponível, seja como entidade Governo declarar simpatia, se depois
damente por pessoas e grupos profis- de acolhimento, como entidade parceira não toma medidas concretas.”
sionais em situação de risco (jornalistas,
ou como dinamizadores de medidas Outras vozes surgiram, apelando ao
mulheres juristas, estudantes, ativistas
de integração”. Em resultado disso, as executivo por ações céleres e efetivas
de direitos humanos, etc.).
respostas revelaram 840 famílias de – mesmo no interior do próprio PS. A
E como se processa o acolhimento? acolhimento, 350 alojamentos dispo- quente, Ana Gomes mostrou-se indig-
O Alto Comissariado para as Migrações níveis, mais de quatro mil respostas nada, no Twitter. Contactada pela VI-
está a mapear a capacidade de respos- para o fornecimento de bens essenciais, SÃO, a ex-eurodeputada sublinha que,
ta da rede de parceiros e entidades de quase mil ofertas de apoio psicológico, “face à dimensão desta emergência, não
acolhimento à necessidade de receber entre outras manifestações de interesse podemos estar a falar destes números”.
famílias afegãs. A resposta foi bastante no acolhimento aos refugiados afegãos. “Portugal tem estruturas para receber
positiva, e dispomos, até ao momento, Além disso, revela a secretária de mais pessoas. Neste momento, cinco mil
da confirmação de disponibilidade de Estado, “foi disponibilizada capacida- era algo perfeitamente exequível”, diz.
acolhimento de mais de 240 cidadãos, de de acolhimento imediato pela Santa Mas até onde pode, de facto, che-
distribuídos pelo País. Casa da Misericórdia de Lisboa, câma- gar a solidariedade do País para com

40 VISÃO 26 AGOSTO 2021


DIANA TINOCO

Farid Walizadeh ”A dor que tinha continuo a ter”, disse à VISÃO,


após o regresso dos talibãs. Em Portugal desde 2012, o pugilista celebrado
é um caso de integração bem-sucedida

os refugiados afegãos? Os desafios guês e tem dificuldades com o inglês.


colocados ao Governo não diferem, Mas, por estes dias, já não é a escola
nesta fase, dos que outros países en- que lhe ocupa a mente.
frentam, mas o facto de Portugal viver, Os seus desejos tocam os de Omed
hoje, uma crise demográfica – perdeu e Hamid. “Só quero ter uma residência
António Costa em Cabul cerca de 2% da população (mais de fixa, um trabalho e uma vida normal,
Em dezembro de 2018, 200 mil pessoas) no espaço de dez num sítio onde possa reunir a família
o primeiro-ministro e o ministro anos – pode até transformá-los numa [que ainda está no Afeganistão].”
da Defesa, João Gomes Cravinho,
oportunidade. Vive em angústia com a situação da
visitaram o contingente português.
À VISÃO, Vasco Malta, chefe da mãe e das irmãs, “presas” em Cabul.
E agora?...
missão da Organização Internacional Não as vê desde os 9 anos, quando
para as Migrações (OIM), explica que fugiu com um tio e um primo para o
“a principal dificuldade é a falta de Irão, após a morte do pai e de outro
soluções habitacionais em Portugal tio em conflitos étnicos. A. e a família
para acolher refugiados e requerentes pertencem à minoria hazara – de ori-
de asilo”. O dirigente sabe que “a ope- gem mongol, fixada essencialmente na
ração de acolhimento de refugiados região central afegã e com um largo
será sempre da responsabilidade dos historial como vítima de discrimi-
governos”, mas reitera que a segu- nação. Segundo fontes da Amnistia
rança e proteção dos civis só podem Internacional no terreno, os talibãs já
ser asseguradas com “boa vontade e torturam e mataram, este mês, vários
ação concreta por parte da comuni- membros desta minoria em Ghazni.
dade internacional, na qual Portugal “Estou muito preocupado com a mi-
se insere”. nha mãe. E, com estes documentos,
nem sequer posso pedir que a família
“SÓ QUERO UMA VIDA NORMAL” se reúna”, lamenta.
A., afegão, 22 anos, vive há dois em É também o caso de Farid Waliza-
PORTUGAL TEM Portugal e, desde então, defronta-se
com as dificuldades kafkianas do sis-
deh, o celebrado pugilista, refugiado
em Portugal desde 2012, que disse
ESTRUTURAS PARA tema português – o seu exemplo dá
sentido às preocupações de institui-
recentemente ao site da VISÃO não ter
notícias de familiares e amigos desde
RECEBER MAIS ções e pessoas quanto às estratégias
para integração dos refugiados. Os
que os talibãs voltaram: “Senti-me
triste e regressei aos meus tempos
PESSOAS. NESTE receios que carrega consigo impõem-
-lhe o anonimato. Hoje, continua a
de trauma. A dor que tinha continuo
a ter.” A aprendizagem do português
MOMENTO, CINCO viver num centro de acolhimento – que tanto os irmãos Taheri como

MIL [REFUGIADOS]
para refugiados em Lisboa e ainda Farid falam corretamente –, bem
não tem a situação de residência no como o reconhecimento das habili-

ERA ALGO País assegurada. Até há pouco tempo,


nem sequer tinha documentos para
tações dos refugiados são os passos
considerados fundamentais para uma

PERFEITAMENTE frequentar uma escola portuguesa


ou arranjar um trabalho. “Tentei ir à
integração bem-sucedida. Objetivo?
Torná-los cidadãos de corpo inteiro,
EXEQUÍVEL escola, mas disseram-me que não me
podia inscrever”, diz, por intermédio
capazes de contribuir para a economia
e a sociedade portuguesas. Nem que
ANA GOMES de um tradutor, pois não fala portu- seja a jogar à bola. visao@visao.pt

26 AGOSTO 2021 VISÃO 41


VAMOS TER
IMUNIDADE
DE GRUPO?
CLARA SOARES*

Provavelmente não,
muito menos agora
com a variante Delta a
prevalecer. A questão
é polémica e, entre
esperanças e desilusões,
discute-se quantas
pessoas precisamos
de imunizar para
chegar à tão desejada
imunidade. A palavra
42 VISÃO 26 AGOSTO 2021
aos especialistas
26 AGOSTO 2021 VISÃO 43
H
Houve uma altura, bem lá no começo
destes tempos pandémicos, em que
se atingia a imunidade de grupo com
60% da população vacinada. Depois, no
início deste ano, o vice-almirante Gou-
veia e Melo, coordenador da task force
da vacinação contra a Covid-19, falava
em 70%, percentagem que se atingiria,
em Portugal “em volta de meados ou
início de agosto”. Gouveia e Melo tinha
acabado de chegar às novas funções e
ainda estávamos longe de saber o que
MARCOS BORGA

era a variante Delta, muito mais trans-


missível do que a Alpha que, por sua Proteção As pessoas vacinadas ficarem de fora os menores de 12 anos
vez, já era mais transmissível do que as têm 50% de hipóteses e a eficácia da Astrazeneca ser inferior
primeiras versões do vírus. de escapar à infeção pela (66% a 70%)”.
Com a Delta a representar 98,9% das variante Delta e quase 90% Conclusão: a imunidade de grupo, que
infeções no nosso país, onde ficamos de evitar a doença grave tem uma tradução matemática (1 - R0 x
na corrida pela imunidade de grupo? 100), “foi um conceito útil que se tor-
Ainda não é certo que conseguiremos lá nou impossível de atingir”. Pelas contas
chegar, acredita agora o vice-almirante, do pneumologista, com base nos dados
“mas se ela for atingida, é de certeza do Centro de Controlo e Prevenção de
acima dos 85%” de população vacinada Doenças (CDC), “em 100 pessoas vacina-
com as duas doses, o que deverá acon- das há ainda 12,5% que podem infetar-se,
tecer no final de setembro. embora o risco seja oito vezes menor”. A
Será? Quando a variante Delta entrou solução é “continuar a vacinar e aumentar
em campo, “passámos da primeira di- a proteção individual e de grupo, man-

AINDA NÃO É CERTO


visão para a Champions”, começa por tendo a máscara em zonas de maior risco
afirmar Filipe Froes, responsável do de transmissão”.

QUE CONSEGUIREMOS
gabinete de crise para a Covid-19 da
Ordem dos Médicos. Na variante ini- VALE A PENA?
cial, o R0 (número médio de contágios
causados por cada pessoa infetada) si- LÁ CHEGAR, Manuel Carmo Gomes, professor da Fa-
culdade de Ciências da Universidade de
tuava-se nos 2,5 e bastaria ter 60% da
população protegida com uma vacina DIZ GOUVEIA E Lisboa, já esteve mais confiante de que
atingiríamos a imunidade de grupo, mas
mais de 85% eficaz para evitar cadeias
de transmissão e proteger todos, mes- MELO, “MAS SE A ainda não descarta essa possibilidade. “A
Delta tem um R0 entre cinco e sete, o que
mo os não vacinados. “A Delta significou
um acréscimo de transmissibilidade, de
IMUNIDADE FOR não é incomum em doenças infecciosas.
Acontece com a papeira, com a difteria e
gravidade e de reinfeção, com um R0
entre cinco e oito.” Mas se as vacinas da
ATINGIDA, É DE com o sarampo, cujo R0 é para cima de
12. Ou seja, este vírus atingiu o R0 que
Pfizer e da Moderna têm uma eficácia CERTEZA ACIMA DOS é típico dos vírus que já andam entre

85%” DE POPULAÇÃO
próxima dos 88%, sublinha o pneumo- nós há muitos anos”, explica o epide-
logista, “teríamos de vacinar 100% da miologista.

VACINADA
população para chegar à imunidade de Como as vacinas não são 100% efica-
grupo, o que não não vai acontecer, por zes, os cálculos de Carmo Gomes situam

44 VISÃO 26 AGOSTO 2021


a imunidade de grupo com 90% de co-
bertura vacinal. “Em Portugal julgo que COVID-19
conseguiremos chegar aos 95%, mas essa RISCO DE HOSPITALIZAÇÃO POR ESTADO VACINAL
percentagem obriga a ir a idades muito Percentagem de hospitalizados por grupo etário (acima dos 50 anos), entre 1 e 30 de junho de 2021
jovens, abaixo dos 12 anos. A questão é:
Não vacinado Vacinação incompleta Vacinação completa*
vale a pena? Justifica-se para interrom-
per a circulação do vírus? Neste caso to- 25 % 22,4 24
mamos sempre decisões com informa- 20 19,2
ção insuficiente”, acrescenta, defendendo 15 11,4 10,2
que “não podemos equacionar o futuro 10
5,2 3,7 5,3
dependendo da imunidade de grupo”. 5 2,5 1,4 2,6
0,5
A Delta é, de facto, um “game chan- 0
ger”. “Em julho percebemos que não 50 a 59 anos 60 a 69 anos 70 a 79 anos + 80 anos
podíamos continuar a usar a incidência FONTE BI SINAVE, VACINAS, BDMH AUTORIA DGS AR/VISÃO

(número de novos casos) e a transmis-


sibilidade para fundamentar decisões
e criámos, com o Instituto Superior COVID-19
Técnico, o Indicador de Avaliação da
Pandemia, com cinco dimensões (in- NÚMERO DE DOENTES INTERNADOS EM ENFERMARIA
cidência, transmissibilidade, óbitos e Por estado vacinal e por semana, entre 17 de maio e 11 de julho de 2021
internamentos em enfermaria e UCI)”, Não vacinado Vacinação incompleta Vacinação completa*
esclarece Filipe Froes. Objetivo: “Moni-
torizar o impacto da pandemia e avaliar 150 pessoas
o efeito das medidas sem ter apenas em 100
conta a cobertura vacinal; mesmo que
fosse de 100%, uma nova variante pode 50
levar a uma situação descontrolada.” O
0
especialista fundamenta: “O intervalo do
indicador vai do zero aos 180 e contem- Semana 20 21 22 23 24 25 26 27
FONTE BI SINAVE, VACINAS, BDMH; ACSS; Hospitais AUTORIA DGS
pla as zonas de intervenção de alarme AR/VISÃO

(80), crítica (100) e de rutura (120). Para


tirar a máscara, o indicador teria de
ser abaixo dos 40 (ronda os 80) e sem COVID-19
vacinas estaríamos em 123, ou seja, em ÓBITOS POR ESTADO VACINAL
confinamento.” Em percentagem do estado vacinal, por mês de óbito, entre 1 de janeiro e 8 de agosto de 2021
Pedro Simas, virologista e diretor de
investigação biomédica da Universidade Não vacinado Vacinação incompleta Vacinação completa*
Católica Portuguesa, defende que “com 100 %
70% da população vacinada, Portugal
75
está numa altura excelente para tirar
a máscara na rua e aliviar medidas de 50
proteção com prudência.” Isso signifi- 25
ca, por exemplo, que “alguém vacinado 0
que testa positivo e não apresenta sinais Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago**
clínicos não precisa de ter isolamento FONTE BI SINAVE, VACINAS, BDMH; SICO AUTORIA DGS ** 1 a 8 de agosto AR/VISÃO

profilático”. O especialista admite que


“não vamos conseguir eliminar a circu-
lação do vírus na comunidade”, como no
caso do sarampo, que não envolve as vias COVID-19
respiratórias, “apenas criar uma barreira LETALIDADE EM PORTUGAL POR ESTADO VACINAL
indireta”. Daí a manutenção da prudência Por grupo etário (acima dos 50 anos) em julho de 2021
no alívio das medidas e, eventualmente,
“equacionar a terceira dose para grupos Não vacinado Vacinação incompleta Vacinação completa*
de risco como a população dos lares”. 20 % 19,5
Manuel Santos Rosa, imunologista 15
e docente da Faculdade de Medicina 12,3
10 7,5
da Universidade de Coimbra, admite 6,4
que “houve um erro estratégico a nível 5 1,6 2,1
0,5 0 0,2 0,4 0,3 1,1
mundial na avaliação da perigosidade e 0
da permanência do SARS-CoV-2”. 50 a 59 anos 60 a 69 anos 70 a 79 anos + 80 anos
Lembrando que “a imunidade de gru- FONTE BI SINAVE, VACINAS, BDMH; SICO AUTORIA DGS AR/VISÃO

po pressupõe um número significativo


de pessoas imunizadas que bloqueiam a * Vacinação completa refere-se ao esquema vacinal completo há mais de 14 dias

26 AGOSTO 2021 VISÃO 45


transmissão do agente infeccioso e im-
pedem que as não vacinadas entrem em
contacto com ele”, apoia-se em estudos
tração da terceira dose está fora de jogo.
“Discutível” é a expressão usada por
Manuel Santos Rosa a este respeito. 3 RESPOSTAS
ESSENCIAIS
da Universidade de Massachusetts e do “Haverá claramente quem não imuni-
Reino Unido e explica porque é que o zou e possa beneficiar de um reforço,
princípio não se aplica ao novo coro- mas não sabemos se a taxa de anticor-
navírus: “A vacina não impede que se pos, um indicador pouco fiável, significa

SOBRE
transporte carga viral nem a replicação; perda de imunidade”, remata.
o foco deve passar da imunidade de “As nossas células T são muito ro-
grupo para o impedir a transmissão e bustas, sendo pouco provável que uma

A VACINAÇÃO
as mutações.” variante do vírus iluda a proteção das
O imunologista acrescenta que o vacinas, que continuam a garantir a
alívio precoce das medidas de proteção imunidade”, afirma Miguel Prudêncio,
básicas (higienização, distanciamento, investigador do Instituto de Medicina
máscara) nos sairá caro. “Este vírus in- Molecular da Faculdade de Medicina da
ferioriza-nos e agarra cada oportunidade Universidade de Lisboa. O bioquímico
que lhe dermos para criar mais ondas vi- prossegue: “Se a replicação e a mutação Numa altura de grande
rais.” É olhar para a Nova Zelândia, “basta
um caso ou dois e isolam tudo porque
do vírus resultar em novas variantes,
mais prevalentes ou infecciosas, e a
desinformação, os cientistas
o foco estratégico é a não transmissão”. proteção conferida decair abaixo do respondem às muitas dúvidas
Na ausência de uma vacina capaz de aceitável, pode ser necessária nova imu-
bloquear a capacidade de mutação, “a nização.” A decisão depende dos dados sobre as vacinas contra
aposta está nas terapias antivirais com
ensaios promissores”.
científicos apurados entretanto e das
autoridades médicas, e será circunscrita
a Covid-19
a casos específicos, como pessoas com
TERCEIRA DOSE? sistemas imunitários mais débeis ou

1
A Pfizer quer ver aprovada a terceira dose imunodeprimidas. A vacina Covid-19 é
da vacina para conter a variante Delta, “Quem se referiu copiosamente à experimental e somos todos
apoiando-se num estudo preliminar em imunidade de grupo (muitas vezes sem cobaias?
que a imunização adicional aumentou os saber o que é o sistema imune ou tendo
Hélder Mota Filipe, ex-pre-
níveis de anticorpos de cinco para dez desse sistema uma imagem semelhante
sidente do Infarmed, come-
vezes mais, face à segunda toma. Porém, à PSP ou GNR do nosso corpo), está ça por esclarecer que “qualquer
a comunidade científica mantém-se agora talvez perplexo.” A afirmação é medicamento que entre no mercado
na expectativa, por questionar se esse de António Sousa Uva, docente e presi- foi aprovado seguindo todos os
aumento se traduz num incremento da dente do conselho pedagógico da Escola passos para tal; no caso da Covid-19,
proteção, que é elevada com duas doses. Nacional de Saúde Pública, no artigo de criaram-se condições para que esses
Uma posição defendida, de resto, pela opinião publicado no site de informação passos fossem mais rápidos e feitos
Organização Mundial da Saúde, que em saúde Healthnews, no passado dia em paralelo”. Dizer-se que é expe-
aposta na globalização da cobertura va- 18 de agosto, baseando-se nos números rimental não passa de um grande
cinal, e subscrita por Hélder Mota Filipe, da vacinação a nível mundial (Our World equívoco, que pode ter que ver com a
ex-presidente do Infarmed e consultor in Data) para sublinhar que “apenas designação de “autorização de intro-
na Agência Europeia do Medicamento: um por cento está vacinado em países dução no mercado condicionada”. Ou
até haver evidência científica, a adminis- menos abonados e, em alguns deles, seja, “para [as vacinas] serem apro-
dez vezes menos do que isso, como é o vadas, a indústria teve de respeitar
exemplo da Tanzânia”, pelo que “talvez a condição de prolongar os estudos
não seja má ideia um olhar mais global, por dois anos e fornecer os dados à
Agência Europeia do Medicamento”.
A ESCASSEZ
também, sobre a vacinação”.
Para Manuel Carmo Gomes, há, Este tipo de autorização aplica-se

DE VACINAS neste momento, “uma carga viral muito a fármacos desenvolvidos para o can-
cro e outras doenças, “mas isso não
grande no planeta, por isso é que temos
EM PAÍSES MENOS
quer dizer que seja experimental”.
tantas mutações”. A escassez de vacinas
E prossegue, referindo-se à farma-
em países menos desenvolvidos é um
DESENVOLVIDOS
covigilância: “Os medicamentos e
assunto que nos diz respeito, caso fosse vacinas que estão no mercado são
necessário mais um argumento. Ainda
PROPICIA
sujeitos a supervisão e monitoriza-
assim, o epidemiologista acredita que ção para identificar efeitos adversos
um só país pode chegar à imunidade de
O APARECIMENTO
que não o tenham sido antes, nos
grupo, tal como aconteceu em Portugal ensaios.” Foi o caso dos fenómenos
e na Finlândia com a eliminação do sa-
DE MUTAÇÕES, UMA
tromboembólicos (da Astrazeneca),
rampo. E deixa uma nota final otimista: numa fase inicial, “raríssimos” e,

VEZ QUE A CARGA


“Com coberturas vacinais acima de 97% mais recentemente, das miocardites,
[no caso de outras doenças], se há país “que parecem ser pouco graves e

VIRAL É GRANDE
que consegue é o nosso!” visao@visao.pt sem problemas a longo prazo”. O
*com Alexandra Correia docente lembra que “isto faz parte da

46 VISÃO 26 AGOSTO 2021


MARCOS BORGA

vida de qualquer medicamento, estas rante que as suas duas doses são 87,5% Universidade de Lisboa explica: “Quando
vacinas é que têm um holofote especial eficazes a prevenir doença sintomática se faz o balanço entre o benefício e o
e até estão a demonstrar uma melhor e 96% eficazes contra o risco de hospi- risco, o benefício é claramente maior, ao
performance do que eu esperaria, segu- talização (variante Delta considerada). nível de hospitalizações evitadas, sem
ras e eficazes na prevenção da doença Portanto, as vacinas são altamente dúvida nenhuma.”
grave e da morte”. eficazes a prevenir a doença grave, mas “Do ponto de vista científico, são
“Somos tão cobaias da vacina como do um outro estudo do Imperial College necessários muitos dados para ter
paracetamol, pois tudo o que está no London mostra que as vacinas são bem uma noção exata do valor destes
mercado é alvo de monitorização”, diz o menos eficazes a prevenir a infeção. acontecimentos (miocardites e
investigador Miguel Prudêncio, do Ins- “Com a variante Alpha, as vacinas pro- pericardites), muito raros”, assume
tituto de Medicina Molecular. Assim se tegiam contra a infeção numa eficácia o bioquímico Miguel Castanho. O
justifica que “as bulas vão mudando à entre 80 e 90 por cento. Com a variante problema é que os testes da Pfizer,
medida que se vai sabendo mais sobre Delta, essa percentagem desce para os divulgados em maio, foram feitos com
reações raras, efeitos inesperados ou 60/65 por cento no caso das duas do- uma amostra pequena (mil vacinados
sinais que suscitam preocupação”. ses completas”, explica Manuel Carmo e mil no grupo placebo). “A ocorrência
Gomes, professor de Epidemiologia da da doença é tão rara que dificulta a

2
Faculdade de Ciências da Universidade comparação entre os dois grupos.”
A Covid-19 é transmitida com de Lisboa. Idealmente, “deveríamos esperar
a mesma facilidade em pes- Carmo Gomes não tem dúvidas: “As até ter mais dados e vacinar depois”.
pessoas vacinadas estão mais prote- A alternativa seria vacinar todos os
soas vacinadas e em pessoas gidas contra a infeção, mesmo com a adultos e ter uma incidência baixa. “Se
não vacinadas? variante Delta.” Na verdade, os total- todos os adultos fizessem o que devem,
Vamos distinguir aqui as mente vacinados têm 60% ou 65% de não seria preciso colocar o ónus nos
percentagens de eficácia das vacinas hipóteses de não apanhar o vírus. Algo mais novos”, adianta Miguel Castanho.
que estamos habituados a ler nas que os não vacinados não têm. Não podemos esquecer-nos de que há
notícias. Elas referem-se ao facto vantagens em alargar o número de pes-

3
de prevenirem a evolução para soas protegidas e que as crianças são
doença grave, a hospitalização e O risco de adolescentes um reservatório para multiplicação de
consequentemente as mortes. Um terem complicações com a novas variantes, mas estes argumentos
estudo recente da agência de saúde não são fortes. Na prática, “a inoculação
pública britânica mostra que as duas
vacina é maior do que o risco dos 12 aos 15 anos contribui entre 3% e
doses da Astrazeneca, por exemplo, da Covid-19? 4% para a proteção comunitária, o que é
têm uma eficácia de 80,9% contra a “O risco de um adolescente ter muito pouco”. Além disso, “as variantes
doença sintomática no caso da variante complicações com a vacina é bastante surgiram em países com baixa cober-
Delta (tinha 86,8% de eficácia em baixo. Já o risco de ter miocardite com tura vacinal por razões económicas”.
relação à variante Alpha); a prevenir o a doença Covid-19 é bem mais alto Em Portugal, “esperando-se mais de
risco de hospitalização, a Astrazeneca é do que ter com a vacina”, esclarece o 90% de vacinados acima dos 16 anos,
92% eficaz com a Delta. epidemiologista Manuel Carmo Gomes. a probabilidade de aparecerem novas
O mesmo estudo analisou a Pfizer e ga- O docente da Faculdade de Ciências da variantes é residual para todos”.

26 AGOSTO 2021 VISÃO 47


A armadilha
As empresas estão a abraçar este valor num esforço
para manter os funcionários felizes, mesmo quando
os escritórios estavam vazios por causa da pandemia.
Mas é tudo muito mais complicado do que aquilo que
geralmente se apregoa. Como promover, af inal,
a satisfação das pessoas no local de trabalho?
ANNE HELEN PETERSEN*

48 VISÃO 26 AGOSTO 2021


da empatia

26 AGOSTO 2021 VISÃO 49


A
“A empatia é um dos valores que prezamos desde a nossa
fundação.” É o que me diz Chelsea MacDonald, vice-
-presidente da Ada, startup tecnológica que desenvolve
plataformas de atendimento ao cliente, quando para este
artigo, em junho, falámos pela primeira vez ao telefone.
Quando a empresa estava na fase inicial, com cerca de
50 funcionários, a empatia “era um pouco mais ad hoc”,
porque nos podíamos encontrar com os colegas ao al-
moço. Mas isso foi antes da pandemia, e antes de um
aumento repentino de contratações. Agora, adianta Ma-
cDonald, a empatia assenta na comunicação (pelo menos
cinco vezes por semana, ela fala de alguma forma com
presas sabem que têm de começar a pensar seriamente em
como resolver o défice de empatia ou, então, arriscam-se a
perder quadros para onde há essa empatia. No entanto, eu
também ouvi trabalhadores para os quais tudo isto é um
absurdo: é mais uma tentativa de as empresas desviarem
a atenção da sua cultura tóxica ou exploradora, mais um
cenário em que os patrões pedem aos trabalhadores que
sejam honestos e vulneráveis sobre o que necessitam, para
depois os punirem, implícita ou explicitamente.
Se leu tudo isto e permanece confuso sobre o que é real-
mente a empatia no local de trabalho, não é o único. Fora do
escritório, exprimir empatia significa tentar compreender e
partilhar os sentimentos ou as experiências de outras pessoas.
A empatia é diferente de simpatia, que é mais unidire-
cional: ficamos tristes quando alguém sofre, mas não en-
tendemos bem o que é sentir-se assim. Como a empatia se
baseia na experiência, é difícil, se não mesmo impossível,
cultivá-la. No melhor dos casos, é uma simpatia alargada;
no pior, é tentar forçar ligações entre experiências de vida
totalmente diferentes.
Aplicada num ambiente empresarial, a própria ideia de
empatia começa a desintegrar-se. Será assumirmos o nosso
whole self [“eu completo”] no trabalho, para usar um cha-
vão dos recursos humanos? Será cultivar a gentileza? Será
abrir espaço à simpatia e permitir que as pessoas expressem
as suas queixas ou é um modelo de liderança vulnerável?

toda a empresa sobre empatia) através de ferramentas TODOS ESTAVAM CANSADOS


(uma, especificamente, que rastreia as pessoas com que Enquanto preparava este artigo, entrevistei mais de uma
mais se comunica e os que são deixados de fora), atra- dúzia de executivos de médias e grandes empresas que
vés da intimidade (cultivada por intermédio de grupos decidiu fazer da empatia um pilar central da sua mensa-
com interesses especiais) e através da transparência (os gem ou estratégia corporativa. Alguns planos eram mais
responsáveis mais seniores partilham os apontamentos elaborados e exigentes. Uns achavam que era suficiente
após cada reunião). Por várias vezes ao longo da nossa disponibilizar uma formação em empatia para três fusos
conversa, MacDonald descreve a empatia como “mais do horários; outros entenderam a empatia como pequenos
que justa e como “uma maneira de abrir espaço para que gestos, por exemplo: olhar para a agenda de um(a) colega
outros cometam erros”. e, ao ver que esteve todo o dia numa reunião, dar-lhe uma
Chelsea MacDonald estava entre uma dúzia de executi- pausa de 10 minutos antes de se encontrar com ele/ela.
vos, cujos diretores de comunicação me contactaram quan- Mas, afinal, onde é que começou o atual impulso para a
do tuitei sobre a tendência para a “empatia” no escritório. empatia no local de trabalho? Johnny C. Taylor Jr., presi-
Adriana Bokel Herde, diretora de recursos humanos na dente e CEO da Society for Human Resource Management
empresa de software Pegasystems, falou-me de uma sessão (SHRM), e autor do livro Reset: A Leader’s Guide to Work
de formação virtual de três horas sobre empatia que a sua in an Age of Upheaval, diz que tudo começou... com ele.
companhia criou para gestores – e contou-me como cerca
de 90% se inscreveram voluntariamente. Kieran Snyder,
CEO da Textio, empresa de texto preditivo e de correção
automática, diz que a maior surpresa sobre a empatia no
local de trabalho é que empatia e responsabilidade “são
As empresas estão
lados opostos da mesma moeda”.
“Tivemos uma engenheira cujo feedback foi muito im-
a tentar formar
pressionante”, revelou Snyder. Na sua opinião, a coisa mais os trabalhadores
empática que o chefe podia fazer por ela era ser muito claro
quanto às expectativas. “Deixem-me ser adulta e lidar com para se tratarem uns
os meus resultados, porque só assim saberei o que fazer.”
aos outros não como
COMO RESOLVER O DÉFICE?
Todos estes executivos veem na empatia o caminho a se-
robôs de produtividade
guir, depois de 17 meses de tumulto social e profissional.
E os trabalhadores sentem que ela não existe no local de
mas como pessoas. Só que
trabalho: segundo o Estudo sobre o Estado da Empatia isto vai contra o principal
no Emprego, elaborado pela empresa de software Busi-
nessolver, só um em cada quatro trabalhadores considera objetivo da maioria
que a empatia nas suas organizações é “suficiente”. As em-
das empresas: o lucro
50 VISÃO 26 AGOSTO 2021
No outono de 2020, Taylor começou a escutar uma sua empresa, a Viacom, tem enviado muitas mensagens sobre
frase semelhante nas empresas: todos estavam cansados. empatia, sobretudo em relação à saúde mental. Simultanea-
Cansados da pandemia; da falta de esforços no sentido da mente, porém, substituiu o plano de saúde por outro mais
diversidade, equidade e inclusão (DE&I); dos empregado- restritivo em termos de acesso a profissionais e cuidados de
res e dos empregados. Quando ele olhou para o estudo da saúde mental. (A Viacom não respondeu a múltiplos pedidos
Businessolver, as razões para essa exaustão tornaram-se para que comentasse esta informação.)
claras. As pessoas sentiam-se cansadas porque estavam Outros trabalhadores dão conta de repetidas invo-
sempre a trabalhar, tentando assumir as responsabilidades cações de empatia por parte dos administradores em
de cuidadores ao mesmo tempo que lidavam com os níveis reuniões de equipa, mas havia pouca formação sobre
oscilantes de ameaça da Covid-19. Mas também estavam como os supervisores a poderiam pôr em prática. “Numa
cansadas, acredita ele, porque havia um défice generaliza- reunião só com o meu chefe em que mostrei abertamen-
do de empatia. Esse “défice de empatia” tornou-se pedra te o meu sofrimento e tentei falar dele, disse-me que a
angular de um discurso de Taylor, em novembro de 2020. saúde mental é importante, mas que melhorar o meu
“Muitos programas de DE&I que ressurgiram na se- desempenho era ainda mais importante”, revelou uma
quência do assassínio de George Floyd deveriam supos- trabalhadora de uma organização sem fins lucrativos de
tamente encorajar um diálogo aberto e a compreensão artes performativas.
mútua”, anotou Taylor, “mas contornavam muitas vezes O operador do serviço de atendimento ao cliente de uma
a empatia. Programas bem-intencionados acabaram por empresa de tecnologia financeira descreveu a empatia como
transformar-se em sessões de reclamação, em vez de pro- um “valor central” da sua organização: algo que os traba-
curarem ouvir e tentarem relacionar.” lhadores devem praticar uns com os outros mas também
A SHRM é uma organização extraordinariamente in- com os clientes. Para quantificar a empatia do trabalhador,
fluente, com mais de 300 mil membros em 165 países. a empresa envia inquéritos à satisfação do cliente (CSAR)
Embora os esforços de empatia não fossem inexistentes, após cada interação. A empresa apercebeu-se de que a baixa
a realidade é que o discurso de Taylor os encorajou. Ainda pontuação, medida por um sistema automatizado, aconte-
que o público não estivesse ali para ouvir as suas palavras, cia sempre que um cliente ficava muito tempo à espera ao
a mensagem – e os dados do estudo – começaram a in- telefone e pouco tinha que ver com a expressão de empatia
filtrar-se nos departamentos de recursos humanos, dei- do operador. Apesar disso, os trabalhadores continuaram
xando um rasto de módulos de aprendizagem opcionais a ser promovidos com base nessas pontuações.
e de formação por Zoom.
As repercussões foram quase imediatas. Taylor reco- TRATAREM-SE COMO PESSOAS
nhece isso. “Vi as empresas a agir”, disse-me ele. “Mas não A tensão central emerge repetidamente. “Há uma certa
se trata de uma simples iniciativa. Não é um chavão. É um ironia, porque se quer dar igualdade ao trabalhador e,
princípio cultural. À empresa que faça esta promessa, que ao mesmo tempo, considerar soluções para situações
divulgue esta palavra, os trabalhadores irão cobrar-lhe.” específicas, e ambas são frequentemente incongruentes”,
A empatia, acrescenta, deve ter dois sentidos: “Espera-se diz-me Joyce Kim, diretor de marketing da Genesys, que
que os trabalhadores façam asneira; os patrões também fornece tecnologia para call center e serviço ao cliente a
devem poder asneirar.” várias empresas. Dito de outra forma, é duro, pelo menos
No caso dos trabalhadores, muitos sentem-se frustrados de uma perspetiva de liderança, cultivar tratamento igual
com a perceção de hipocrisia. Uma mulher disse-me que a para todos, enquanto se abrem exceções para todos.

26 AGOSTO 2021 VISÃO 51


Quando se concebe objetivo. Se o trabalhador cuidasse da companhia e se re-
baixasse até se aproximar o mais possível da imagem de
a empatia como subsídio, trabalhador ideal, a empresa cuidaria dele, na indemnização
e na eventual pensão. Esta é uma das muitas razões por
os que dela beneficiam que os empregados de escritório resistiam aos esforços de
sindicalização, o que parece, como observou o sociólogo
tornam-se trabalhadores C. Wright Mills, uma forma grosseira, quase histérica, de
menos desejáveis. O seu atrito no trabalho.
Os maquinistas e estivadores eram trabalhadores, e
atrito é centralizado o seu único recurso para se defenderem era o bastão do
sindicato. Os empregados de escritório podiam resolver
e o seu valor diminui os conflitos de homem para homem, de patrão para fun-
cionário, tal como... cavalheiros brancos que eram – ou
pelo menos pretendiam ser.
Esta mentalidade começou a desgastar-se durante os anos
1970 e 1980 – primeiro, quando vagas de layoff e cortes de
benefícios desestabilizaram o mito da empresa-mãe bene-
Se permitirmos que um empregado trabalhe em horá- volente. Mas a cultura masculina e branca também começou
rios diferentes, espere mais acessibilidade ou tenha mais (muito gradualmente) a mudar na sequência de proteções
liberdade em caso de doença, como é que isso é justo legais contra a discriminação de género, idade, deficiência
para os que não precisam destes benefícios? Por outras e, mais recentemente, orientação sexual.
palavras, como se acomoda a diferença enquanto se ma-
ximizam os lucros? A INFELICIDADE É CARA
No fundo, o que as empresas estão a tentar fazer é for- Os trabalhadores brancos do sexo masculino continuaram a
mar os trabalhadores para se tratarem uns aos outros não ser dominantes na maioria das indústrias, particularmente
como robôs de produtividade mas como pessoas: pessoas em postos de chefia. No entanto, começaram a perder o
com filhos, pessoas com responsabilidades, pessoas que inquestionável monopólio sobre as normas no local de
carregam o peso da discriminação sistémica. Só que isto trabalho. Algumas foram mudadas; outras, sobretudo em
vai contra o principal objetivo da maioria das empresas, e relação ao assédio sexual e discriminação racial, foram
que é criar e distribuir um produto – seja ele um serviço, alteradas por força da lei.
objeto ou design – o mais eficientemente possível. Talvez O principal objetivo dos departamentos de recursos
possam revestir esse objetivo com uma linguagem menos humanos, num passado que remonta aos primórdios da
capitalista, mas a finalidade continua inalterável: lucros, “gestão científica” das linhas de montagem das fábricas,
quanto mais melhor, com o mínimo de atrito possível. era manter os trabalhadores suficientemente saudáveis
Neste contexto, o trabalhador que não levanta pro- para poderem trabalhar com eficiência. Depois de 1964,
blemas é o trabalhador ideal. Mas o facto de não haver a sua missão passou a incluir também a proteção legal
desentendimentos é um privilégio. Significa parecer e agir dos trabalhadores, além de continuar a mantê-los sau-
como pessoas no poder, o que, pelo menos na sociedade dáveis e suficientemente “felizes” para fazerem bem o
norte-americana, é o mesmo que ser branco, homem e seu trabalho.
cisgénero; com poucas ou nenhumas responsabilidades A “infelicidade”, afinal, é cara – segundo uma sondagem
como cuidadores; sem deficiência física ou mental; sem de 2013 do instituto Gallup, a insatisfação custa às em-
um sotaque acentuado ou tiques sociais estranhos ou presas, nos EUA, de 450 milhões a 550 milhões de dólares
lembretes físicos, como “dentes podres” por ter crescido [entre 378,5 milhões e mais de 460 milhões de euros] por
pobre; sem necessidades de compromisso – religiosas, ano em perda de produtividade. Por outras palavras, a
dietéticas ou outras. Durante décadas, os escritórios infelicidade é atrito.
encheram-se de pessoas que encaixavam neste perfil, ou No entanto, à medida que o local de trabalho continua a
que eram capazes de esconder ou de abdicar de partes diversificar-se, como manter a “felicidade” do trabalhador
de si mesmas que não se ajustavam. num grupo de pessoas diferentes, de diferentes origens, de
As mulheres e as pessoas de cor que eram admitidas diferentes contextos culturais? Há algumas soluções óbvias:
naqueles espaços fizeram-no com a advertência tácita de continuando a erosão do poder da monocultura (em que uma
que teriam de adaptar-se ao statu quo. Elas não levaram única e limitada maneira de ser/trabalhar se torna a maneira
o seu whole self para o trabalho. Nem de perto. Levaram de ser/ trabalhar a que devem aspirar todos os trabalhado-
apenas as partes que se podiam misturar com a restante res); recrutando e retendo os gestores que sabem realmente
força ativa. Quem fosse vítima de assédio sexual não se gerir; criando uma cultura que encoraja o descanso. Só que,
queixava. O mesmo acontecia se alguém proferisse um habitualmente, a solução proposta assume a forma de uma
insulto racial. Se havia celebrações de Natal que deixas- iniciativa de recursos humanos.
sem embaraçado um trabalhador judeu, este não deveria Considere-se o impulso dos anos 2010 ao wellness
fazer ondas. Mau comportamento não era atrito, mas, se (“Bem-estar”), que se manifestou sob a forma de seminários
um trabalhador cuja identidade gerasse uma certa forma sobre saúde mental, inscrição em ginásios e [dispositivos]
de atrito se queixasse, isso já era de certeza. Fitbit gratuitos. É possível olhar para estas iniciativas como
Historiadores do trabalho atestam que essa postura parte de um plano para reduzir os prémios dos seguros
prevalecia sobretudo em escritórios onde saturavam os de saúde, mas também podemos encará-las como meios
assalariados com narrativas de um grande e unificado de confrontar a realidade de uma força ativa que, após a

52 VISÃO 26 AGOSTO 2021


sempre mais fácil de conter do que uma mudança de pa-
radigma que ameace o statu quo e, consequentemente, o
perfil público e os lucros da empresa.

OS OBJETIVOS DO CAPITALISMO
Muitas iniciativas em prol da empatia são bem-intenciona-
das. Contudo, vindas da parte do patrão, elas ainda dizem
[ao trabalhador]: Vemos que se está a desdobrar. Também
nós. Mas de que forma é que, coletivamente, podemos
continuar a trabalhar como se não estivéssemos?
É aqui que reside a armadilha da empatia. Enquanto as
organizações virem os trabalhadores com diferentes ne-
cessidades como fontes de atrito, e as soluções para essas
necessidades como exemplos de injustiça, continuarão a
promover e a reter trabalhadores com capacidade para
tornar as suas personalidades, necessidades e identidades
o mais simples possíveis. Continuarão a encorajar “trazer
o seu eu completo para o trabalho”, mas apenas nos dias
bons. Continuarão o fetiche de “partilhar histórias pes-
soais”, mas só quando as ramificações não interferirem
com o produto ou criarem conflitos interpessoais.
Isto é o que acontece quando se concebe a empatia
como subsídio. Os que dela beneficiam tornam-se traba-
lhadores menos desejáveis. O seu atrito é centralizado e
o seu valor diminui.
Grande parte da A nossa sociedade é construída em torno de objetivos de
capitalismo – e o capitalismo, e o ethos do individualismo
insatisfação dos que com ele prospera, está inerentemente em conflito com
a empatia. As qualidades que fazem os nossos corpos, o
trabalhadores resulta nosso eu, as nossas mentes mais recetivos a esses obje-
tivos são valorizadas acima de tudo, e a tarefa primeira
da política tóxica da dos recursos humanos é cultivar ainda mais essas quali-
empresa, da gestão dades, quer através do “enriquecimento” quer através do
wellness, mesmo quando o obstáculo mais significativo
impensada e dos é o próprio local de trabalho.
Por que razão as declarações de empatia parecem tão
executivos apegados ao vazias? Porque o crescimento e o lucro não a recompensam.
Empresas, profissionais de recursos humanos, gestores,
statu quo. Mas muito até os mais bem formados, podem fazer muito. Grande
disso também é raiva parte da insatisfação dos trabalhadores resulta da política
ativamente tóxica da empresa, da gestão impensada e dos
para com os sistemas que executivos apegados ao statu quo. Mas muito disso também
é raiva para com os sistemas que existem fora do escritório:
existem fora do escritório redes de Segurança Social frágeis, laços sociais decadentes,
estruturas criadas para desvalorizar o trabalho das mulhe-
res, resistência insistente do racismo, falta de proteção ou
salário justo para os trabalhadores cujo labor nós até mais
valorizamos.
Grande Recessão, estava preocupada com as suas finanças e Não sabemos como fazer as pessoas preocuparem-se
carreiras, especialmente porque mais e mais trabalhadores com outras pessoas. Não admira que as iniciativas nos
eram substituídos por subcontratados, que beneficiavam locais de trabalho possam parecer ridiculamente incom-
de menos proteção e privilégios. pletas. Como se cultiva um local de trabalho saudável
Estas iniciativas são muitas vezes insatisfatórias e des- quando ele está enraizado num solo envenenado? “Não
moralizantes, sobretudo para os trabalhadores que, pro- é apenas um local de trabalho com défice de empatia”,
positadamente, visam beneficiar delas, porque dependem, diz-me Johnny C. Taylor Jr, “é um défice cultural norte-
frequente e fortemente, do trabalho daqueles que têm -americano”.
menos poder dentro de uma organização. Além disso,
abordam problemas sistémicos com soluções pensadas para * Anne Helen Petersen, escritora e jornalista norte-americana, é coautora
do livro Out of Office: The Big Problem and Bigger Promise of Working From
perturbar a vida das pessoas ao mínimo. (Um webinar de Home, que será publicado em 7 de dezembro.
três horas nunca criará uma cultura de inclusão.)
No entanto, esta superficialidade faz parte do jogo. Con-
tenha-se o atrito, sim, mas faça-se isso criando o mínimo © 2021, TIME Inc. Todos os direitos reservados.
de atrito adicional possível. Pois uma série de erupções é Traduzido da TIME Magazine e publicado com autorização da TIME Inc.

26 AGOSTO 2021 VISÃO 53


VILAR DE MOUROS
O WOODSTOCK
PORTUGUÊS
FAZ 50 ANOS
Em plena ditadura marcelista, uma aldeia
minhota tornou-se um espaço de liberdade, que
desafiou a moral do regime ao som de Elton
John, Manfred Mann ou Amália Rodrigues.
Meio século passado, as histórias do primeiro
festival de música em Portugal permanecem
vivas na memória de quem lá esteve
MIGUEL JUDAS
PROJETO SOMBRAS DE ALGUÉM
A
PROJETO SOMBRAS DE ALGUÉM
As pessoas nuas a tomar banho no
rio, a multidão de mochila às costas
que rumou à boleia para uma isolada
aldeia minhota, os charros fumados em
público pela primeira vez, o pop rock
a assumir-se como banda sonora de

PROJETO SOMBRAS DE ALGUÉM


uma nova geração, já influenciada pela
cultura hippie mas ainda amordaçada
pelo regime marcelista... São tantos os
“postais” que poderiam desatar esta
viagem no tempo. Vilar de Mouros
foi um momento histórico, tanto em
Portugal como na Europa – à exceção
de Inglaterra, um festival de música
com mais de 20 mil pessoas era um co”, referiram os zelosos relatórios participou no primeiro fim de semana
fenómeno inédito. Mas durante três da PIDE. do festival dedicado à música erudita e
fins de semana de agosto de 1971, este Mas Vilar de Mouros era demasiado que também colaborou com António
festival foi o “Woodstock português”, longe da capital, e ninguém parecia já Barge na organização. Ainda se pensou
palco para grandes bandas e músicos, lembrar-se dessas militâncias quando em contratar The Rolling Stones ou os
e cenário para algumas revoluções de António Barge decidiu avançar com um Pink Floyd, mas, devido à falta de datas
costumes que, coisa inédita, desafia- projeto ainda mais ambicioso, influen- disponíveis, o estatuto de cabeças de
ram, coletivamente, os anacrónicos câ- ciado pelo festival de Woodstock, que cartaz coube ao jovem Elton John e
nones morais impostos pela ditadura. tivera lugar em 1969. “O objetivo era aos populares sul-africanos Manfred
Mas contar toda a história deste chamar a juventude”, recordou Amélia Mann. Ao cartaz juntar-se-iam ainda
festival mítico implica recuar até 1965, Barge, a mulher de António Barge, à nomes da pop nacional, como os Pop
quando António Barge, um médico na- VISÃO, em 2003, aquando da edição Five Music Incorporated, Sindicato ou
tural de Vilar de Mouros e radicado em do livro Vilar de Mouros, 35 Anos de o Quarteto 1111.
Lisboa, decidiu organizar, na pequena Festivais, da autoria do ex-jornalista “Foi uma pedrada no charco, tanto
aldeia do concelho de Caminha, um Fernando Zamith, também ele com em Portugal como na Europa, porque
festival dedicado à música folclórica do ligações familiares à terra. só existiam festivais nos EUA e em In-
Minho e da Galiza. Três anos depois, Para atingir esta meta, parecia não glaterra”, sublinha Tozé Brito, 64 anos,
em 1968, alargou a programação ao haver limites: a banda pensada para cantor, compositor e administrador
fado e à música erudita, mas também cabeça de cartaz do Vilar de Mouros da SPA, e que, na altura, integrava a
à chamada canção de intervenção, fi- era nada mais nada menos do que os banda Quarteto 1111 ao lado de José
cando para a História as atuações de The Beatles. “Tinham tudo apalavrado, Cid. “Foi em Vilar de Mouros que
Zeca Afonso e de Adriano Correia de mas a banda entretanto separou-se e vi, pela primeira vez, gente a fumar
Oliveira. As “canções proibidas” des- teve de se encontrar outra solução”, charros e a fazer nudismo. Estavam
tes cantautores resistentes à ditadura contou o maestro António Victorino lá a GNR e alguns elementos da PIDE,
foram “cantadas em coro pelo públi- de Almeida, 81 anos, que, à época, que se topavam à distância, mas que

56 VISÃO 26 AGOSTO 2021


censurado”, esclarece o músico. Hoje
com 79 anos, Cid considera Vilar de
Mouros “um dos momentos mais mar-
cantes” da carreira. Em 1971, o Quarteto
1111 atuou antes de Elton John, mas o
artista esteve quase para não subir ao
palco, por causa do deficiente sistema
de som. Em desespero, António Barge
pediu ao grupo português para alugar
o seu equipamento. “Não alugámos,
emprestámos, e foi assim que Elton
John tocou em Vilar de Mouros: com
a nossa aparelhagem”, conta José Cid.
E o português ainda impressionou os
músicos da estrela inglesa, quando
interpretou uma versão de Move Over,
de Janis Joplin. “Ficaram admiradíssi-
mos por um homem conseguir cantar
aquilo assim”, lembra, divertido.

A LIBERDADE PASSOU POR AQUI


Nesse agosto de 1971, a CP criou com-
boios especiais para fazer a ligação
entre Lisboa, Porto e Caminha, mas
o meio de transporte mais usado
pela multidão que acorreu a Vilar
de Mouros foi a boleia. E chegaram
a ser distribuídos panfletos em todo
o Norte de Portugal e pela Galiza,
apelando à população para dar boleia
PROJETO SOMBRAS DE ALGUÉM

aos festivaleiros. “Centenas de jovens


demandaram a aldeia. Foram de rou-
pas coloridas e práticas, mochilas e
sacos às costas. Lançaram-se para
a estrada, contando com a boa von-
tade dos automobilistas”, relatavam
os jornais. O próprio Elton John foi
à boleia com Júlio Isidro para Viana
Filho da terra O jornalista não intervieram. Estavam mais preo- do Castelo, onde ficou alojado. Ainda
e académico Fernando Zamith cupados com a música de intervenção assim, a cobertura mediática nacional
recolheu depoimentos e documentos e não deram o devido valor ao poten- foi reduzida – a censura rondava.
para Vilar de Mouros, 35 Anos cial revolucionário do rock”, declara, A própria RTP cancelou, à última
de Festivais (Edições Afrontamento, com humor. O próprio Quarteto 1111 hora, a gravação dos concertos, mas
2003), dedicado ao pioneiro António começou a sua atuação em palco can- a Imprensa internacional, essa, deu
Barge e às primeiras décadas tando à capela o tema Glory, Glory, destaque ao festival, organizado por
do festival Hallelujah!, “um hino antirracista da “um filantropo local”.
guerra civil americana” que “serviu Durante três fins de semana, entre
para marcar uma posição” – embora 31 de julho e 15 de agosto, a música
Tozé Brito reconheça terem sido “pou- fez-se ouvir no recanto minhoto. O
cos a percebê-lo”. primeiro fim de semana, dedicado à
À época, assinala José Cid, os Quar- música clássica portuguesa, contou
teto 1111 eram “a maior banda nacio- com António Victorino de Almeida, a
nal”, e a presença no festival possibi- pianista Olga Prats ou Natália Correia;
litou-lhes tocar, para uma verdadeira no último, atuaram o Duo Ouro Negro
multidão, alguns temas do primeiro e Amália Rodrigues. Pelo meio, tiveram
álbum homónimo: lançado um anos lugar as tais duas noites históricas de
antes, fora imediatamente mandado “música moderna para a juventude”,
retirar do mercado pela Comissão de como eram inocentemente apresen-
Censura, devido a faixas como Lenda tadas no cartaz.
de Nambuangongo ou Pigmentação. A população da pequena aldeia
“Era um disco sobre a emigração e primeiro estranhou aquela multidão
o colonialismo, portanto tínhamos de “cabeludos” e depois entranhou o
praticamente todo o nosso repertório espírito – para desespero da igreja local

26 AGOSTO 2021 VISÃO 57


Manchetes que apenas viu “libertinagem” em Vilar
de Mouros. O pároco da aldeia exco-
mungou António Barge, a família deste
Vilar de Mouros teve atenção e todos os colaboradores do festival... O
mediática nacional, fintando relatório final da Direção-geral de Se-
o conservadorismo social
gurança (DGS) também não foi brando
e a vigilância do regime
em relação aos “comportamentos pro-
míscuos” daqueles “hippies famintos e
cabeludos”. E a indumentária extrava-
gante da estrela Elton John também
não passou despercebida à polícia
política, que sinalizou “os modos so-
berbos” e a “má impressão” causada
pelo artista britânico...
A crítica à moral e aos bons costu-
mes, que abalou por completo os alicer-
ces políticos e sociais do País, terá sido
“uma mera arma de arremesso usada
pelas autoridades, de modo a desviar
as atenções de outros aspetos do festi-
val. Falou-se muito das pessoas nuas a
tomar banho no rio, mas isso só mostra
que eram asseadas”, atira António Vic-
torino de Almeida com uma gargalhada.
É essa liberdade que, passadas cinco
décadas, Tozé Brito mais valoriza. “Vi-
veu-se um ambiente mágico. E depois
do concerto também nós ficámos por lá,
A excentricidade
como verdadeiros militantes da causa, a
de Elton John dormir numa tenda. Os momentos vi-
desagradou à vidos no meio do público acabaram por
PIDE, mas O ser os mais enriquecedores”, descreve
Século Ilustrado o músico que, confidencia, ainda bebeu
deu honras de “uns copos com Elton John” e chegou
capa ao cabeça “a comprar alguns instrumentos aos
de cartaz que Manfred Mann”.
substituiu Então em início de carreira, Rão
os Beatles Kyao tocou no festival em dois grupos
diferentes, os The Bridge e os Sindi- Kyao. O músico também por lá ficou
cato (“uma banda de jazz rock muito nos dias seguintes ao festival: “Dormi
à frente do seu tempo”, descreve, da em casa de gente que não conhecia de
qual fazia parte Jorge Palma), e recor- lado nenhum e que mesmo assim nos
da Vilar de Mouros como “um pedrada abria as portas. A hospitalidade dos
no charco”, um acontecimento em que habitantes de Vilar de Mouros, com
a música acabou por se tornar qua- aquelas pessoas tão diferentes deles,
se secundária. “Sentia-se uma onda foi algo marcante para quem lá esteve.”
inebriante que extravasava por com- Houve um outro lado da moeda
pleto os espetáculos. Havia uma sede na história do festival Vilar de Mou-
enorme pelo conhecimento e pela ros. Para garantir a presença de Elton
experiência de participar num evento John, a organização teve de desem-
com esta vibração”, refere o músico, bolsar 600 contos (cerca de €3 000),
hoje com 74 anos. “Tive a sorte de, um cachet elevado para a época e que
bem no meu começo, poder partici- contribuiria para o elevado prejuízo
O Diário de
Lisboa enviou
par num momento histórico, como final. Apesar do aparente sucesso,
os repórteres foi Vilar de Mouros”, afirma. Quanto Vilar de Mouros revelou-se um fiasco
Cáceres Monteiro aos concertos, já não se lembra muito em termos de receitas de bilheteira,
(primeiro diretor bem – “já passaram 50 anos...” –, mas muito aquém do esperado, resul-
da VISÃO) e Lobo sabe que foram “muito bem recebi- tando num descomunal prejuízo de
Pimentel Jr. para dos” pelo público. “Além de estar tudo mil contos para a família Barge. “O
cobrir o festival, grosso, as pessoas estavam realmen- único dinheiro que recebemos então
e a revista Mundo te abertas a ouvir coisas novas, não foram 30 contos, oferecidos pelo Se-
da Canção havia ali qualquer tipo de fronteiras cretariado Nacional de Informação. A
deu-lhe capa estéticas ou estilísticas”, lembra Rão RTP prometeu, mas não deu. Ficámos

58 VISÃO 26 AGOSTO 2021


Memórias recuperadas
Filipe Bonito, criador do projeto
Sombras de Alguém, dedica-se
aí à descoberta e à publicação de
fotografias anónimas e antigas,
recuperadas a partir de rolos antigos.
“Ao longo dos anos, comprei várias
câmaras e muitas delas ainda
continham um rolo no interior.
Descobri também conjuntos de
negativos. Percebi que havia algo
de mágico em trazer ao mundo
imagens nunca vistas e que ficariam
perdidas”, explica à VISÃO. É o caso
D.R.

das imagens inéditas reveladas


neste artigo, descobertas no meio de
negativos encontrados na Feira da
Ladra. Quando foram publicadas no
site, suscitaram especulação sobre
onde teriam sido captadas... até que
um seguidor conseguiu identificar
a primeira edição do festival Vilar
de Mouros, a partir de uma capa
D.R.

da revista Mundo da Canção. A


funcionar desde 2013, são publicadas
“quase diariamente” duas ou três
fotografias, sem ordem ou legenda,
no site Sombras de Alguém. “São as
pessoas que acrescentam os locais,
as situações, assim participando no
processo de descoberta”, esclarece
ARQUIVO PESSOAL JOSÉ CID

Filipe. E estas recordações a preto-


e-branco do primeiro festival Vilar
de Mouros reavivaram memórias:
“Fui contactado por alguém que
se reconheceu, em criança, nas
fotografias tiradas por uma tia.”

Memorabília Programas, pósteres sem coragem para repetir o festival”, de novo o prejuízo financeiro, ficaria
e ingressos de Vilar de Mouros, hoje confessou Amélia Barge, em 2003. também a estreia dos irlandeses U2
tesouros documentais; os jovens Mas a história não seria bem assim: em Portugal, perdidos num cartaz
Tozé Brito e José Cid retratados apenas uma década depois, o festival de luxo que incluía The Stranglers, A
no festival em 1971, onde atuaram regressou, por iniciativa do então Certain Ratio, The Durutti Column,
sob vigilância das autoridades presidente da Câmara Municipal de Sun Ra ou Echo and The Bunnymen.
Caminha, Pita Guerreiro, novamente Vilar de Mouros regressaria novamen-
com organização de Barge, apoiado te em 1996, pela mão da promotora
pela mulher. “Entre armar e desarmar Música no Coração, que o realizou
barracas, colaborei sempre em tudo”, ininterruptamente entre 1999 e 2006.

“O FESTIVAL VILAR lembrou Amélia à VISÃO.


Na segunda edição do Vilar de
Não fosse a pandemia, a festa seria
novamente rija por estes dias. Vilar
DE MOUROS ABALOU Mouros, em 1982, tudo foi diferente.
“Houve muitas infiltrações e sabo-
de Mouros vai celebrar 50 anos, já
neste sábado, 28: atuam os Bunny Kills
POR COMPLETO tagens, porque já se notava uma luta
entre o espírito inicial de Vilar de
Bunny e a Banda do filme Variações,
que homenageia o legado de uma das
OS ALICERCES Mouros e um lado mais comercial que,
anos mais tarde, prevaleceu”, declara
maiores figuras da música dos anos
80, com David Fonseca como cabeça
POLÍTICOS E SOCIAIS Vitorino de Almeida, um dos três di-
retores artísticos do festival nesse ano.
de cartaz. E Rui Pregal da Cunha e
Paulo Pedro Gonçalves, cofundadores
DO PAÍS”, DEFENDE “É como comparar um ciclóstomo a dos Heróis do Mar, revisitarão, em

ANTÓNIO VICTORINO
um mamífero”, acrescenta. O festival modo Live DJ set, temas marcantes da
de 1982 durou nove dias seguidos, história do festival na aldeia minho-

DE ALMEIDA
com rock, folclore, música erudita, ta que entrou para a História como
fado, poesia... Para a História, além sinónimo de liberdade. visao@visao.pt

26 AGOSTO 2021 VISÃO 59


IMOBILIÁRIO / DOSSIER

60 VISÃO 26 AGOSTO 2021


CASAS DE SONHO
ALTERNATIVAS
Muito desatualizado anda quem ainda pensa que uma casa de madeira
é uma cabana. Confortável e bem mais sustentável, este tipo de
construção está a conquistar cada vez mais famílias, seja em casas
de férias ou em habitação permanente. Mas a madeira não é a única
alternativa para ter uma casa de sonho mais acessível.
Venha conhecer as outras
MARISA ANTUNES*

©FERNANDO GUERRA | FG+SG

26 AGOSTO 2021 VISÃO 61


Q
IMOBILIÁRIO / DOSSIER

moradia possui dois quartos, sala


e cozinha. No interior do U, o pro-
prietário resolveu criar uma zona
adicional fechada, com uma cobertura
em vidro, uma espécie de jardim de
inverno, que se torna particularmente
interessante em dias de chuva.
O mesmo construtor que lhe fez a
piscina preparou previamente todas
as fundições e a rede de saneamento.
Por isso, quando a casa chegou em
cima do camião, foi só descarregar
os diferentes módulos e montá-la
diretamente na estrutura já preparada,
um processo que demorou três dias.
Com a pandemia, a moradia, que
até então se destinava a férias e al-
moçaradas de fins de semana com
amigos e familiares, converteu-se
em habitação permanente e passou
com nota máxima. “Em vez de estar
a trabalhar dentro de quatro paredes,
tive esta vista desafogada! Fez toda a
diferença!”, reforça Francisco Soares.
Integrada numa área de oito mil
Quando os confinamentos empurra- metros quadrados, a casa está rodeada
ram as pessoas para dentro das suas de carvalhos, sobreiros e pinheiros. “Já
casas, a família Soares rumou a Norte. tinha muitas árvores e ainda plantei
Com residência fixa em Sintra e a pos- mais, algumas delas árvores de fruto,
sibilidade de teletrabalho em cima da como pessegueiros. Algumas ocupa-
mesa, Francisco e Manuela foram para ram o lugar dos eucaliptos que tive
o seu refúgio, uma casa construída
estrategicamente num terreno alta-
neiro, em Marco de Canaveses, com
uma incrível vista aberta sobre o rio
que se alonga até à Ilha dos Amores
(e mais além).
Um local paradisíaco onde o Plano
Diretor Municipal não permitia uma
construção em alvenaria (naquele sítio
específico), o que foi determinante
para a decisão da família de avançar
com uma casa modular de madeira.
“E ainda bem! Hoje, mesmo que fos-
se possível, já não queria uma casa
em alvenaria. Só quem não conhece
é que não percebe as vantagens da
madeira. É mais ecológica, muito
FERNANDO VELUDO/NFACTOS

mais impercetível quando integrada


no meio da Natureza e, em termos
de habitabilidade, é extremamente
confortável”, diz, convicto, Francisco
Soares, 60 anos, técnico superior de
saúde pública que, aqui, aproveita
para recarregar energias entre as suas
permanentes deslocações.
Com empenho, desenhou a casa
com que sonhava no local que foi, em
QUANDO A CASA CHEGOU EM CIMA
tempos, a quinta dos pais e apresentou DO CAMIÃO, FOI SÓ DESCARREGAR
OS MÓDULOS E MONTÁ-LA NA ESTRUTURA,
a proposta à Jular Madeiras, empresa
especializada em construções mo-

UM PROCESSO QUE DEMOROU TRÊS DIAS


dulares, que a ajustou à sua medida.
Com uma configuração em U, a

62 VISÃO 26 AGOSTO 2021


habitação. Outros estão habituados
a fazer férias na neve e gostam do
conforto que estas casas proporcio-
nam. Depois, também temos clientes
estrangeiros que vêm da Alemanha
ou da Escandinávia e conhecem bem
este tipo de produto”, explica Hélder
Neves Santos, CEO da Jular.
Com preços a variar entre os 1 000
e os 1 200 euros o metro quadrado (já
com isolamento incluído), estas mora-
dias eram procuradas habitualmente
para segunda habitação; porém, nos
anos mais recentes, há um número
crescente de famílias que avançam
com o investimento para primeira
habitação. “As pessoas estão mais
informadas, já não há aquela ideia da
história dos três porquinhos… O que
notamos são exigências diferentes por
parte dos clientes consoante investem
numa primeira ou segunda habitação.
As habitações secundárias têm nor-
malmente padrões térmicos inferiores
a uma construção de primeira habita-
FERNANDO VELUDO/NFACTOS

ção, porque são só para usar no verão


e acabam por não ser tão exigentes em
isolamentos e caixilharias, por exem-
plo”, explica o responsável.
Por zonas geográficas, o mercado
de segunda habitação da Jular está
muito concentrado no Litoral Alen-
de abater devido ao risco de incên- tejano, Troia, Comporta e Melides. “E
ESTILO DE VIDA
dio”, diz, acrescentando que o fogo depois temos outro mercado a crescer,
não o assusta, apesar de ter uma casa de casas de maiores dimensões e mais

QUE BEM SE ESTÁ


de madeira. “Basta manter o terreno orientado para primeira habitação
limpo. O problema de muitas pessoas na periferia de Lisboa, como Sintra,
NO CAMPO é não limpar junto à base das árvores e
aí, sim, o fogo sobe e passa de árvore
Mafra ou Torres Vedras”, realça ainda.
A rapidez de instalação assenta no
em árvore.” conceito modular. “A madeira vem
Os confinamentos impostos À escolha da construção em ma- de países de Leste, como a Estónia
pela pandemia foram deira os proprietários aliaram a agri- ou a Lituânia, e recebemos já em kits,
bem menos stressantes cultura biológica, em perfeita sintonia mas normalmente só as paredes e a
para Manuela e Francisco com o ambiente. “E não há como cobertura. Depois, tudo o que tem
Soares, que desfrutaram em acordar de manhã e ir à horta buscar que ver com o saneamento, acaba-
pleno da sua casa modular, tudo aquilo de que preciso para o mentos, etc., é feito localmente e no
junto ao Douro. Planeada pequeno-almoço”, sublinha o pro- terreno. Produzimos na nossa fábrica
para segunda habitação, a prietário. na Azambuja 95% do trabalho e de-
moradia foi feita à medida
pois, in loco, fazemos apenas a parte
dos desejos do proprietário,
PREOCUPAÇÕES ECOLÓGICAS das pinturas”, continua Hélder Santos.
que resolveu dar bom uso
a um terreno que herdou.
A Jular recebe cada vez mais pessoas Em média, o processo chave na
Integrada numa área de oito como Francisco e Manuela, que olham mão – desde a escolha do modelo, o
mil metros quadrados, a casa para as casas de madeira como uma licenciamento, a conceção da casa e
está rodeada de carvalhos, solução que vai para além da van- a sua instalação – demora cerca de
sobreiros e pinheiros e tem tagem económica ou da rapidez de seis meses, independentemente da
até uma horta biológica. “Não execução. A questão da sustentabili- dimensão. Para os mais entusiastas, é
há como acordar de manhã dade também pesa na decisão e, por possível acrescentar ainda mais ele-
e ir à horta buscar tudo isso, entre a clientela portuguesa, há mentos em madeira. Francisco Soares,
aquilo de que preciso para uma geração mais jovem e mais ali- por exemplo, incorporou nas paredes
o pequeno-almoço”, graceja nhada com o ambiente que procura da sua casa contraplacado marítimo,
Francisco Soares. habitações mais ecológicas. “Muitos material muito usado nos barcos e
fizerem Erasmus ou trabalharam lá excelente para repelir as humidades.
fora e já conhecem bem este tipo de Também há quem tenha madeira re-

26 AGOSTO 2021 VISÃO 63


IMOBILIÁRIO / DOSSIER

€150 MIL
É o valor aproximado
de uma vivenda T3
com estrutura de
madeira em projeto
chave na mão

D.R.
tirada das gaiolas pombalinas. “Temos construção seca, executa-se em seis
algumas obras de reabilitação na Baixa COSMOHOUSE
a oito meses (algo impensável com o
lisboeta e a madeira que retiramos de betão, que tem um tempo de cura e,

NÃO PARECE,
coberturas ou pavimentos com mais se for executado com rapidez, acaba
de 200 anos reutilizamos em deco- por ficar com humidade). Estas casas
ração, por exemplo. E assim, ganham
nova vida por mais 20 ou 30 anos, o MAS É DE MADEIRA “alternativas” são isoladas com lã de
rocha, e a manutenção é a de uma
seu ciclo de vida não acaba ali”, remata habitação normal.
o CEO da Jular. A casa de Diogo e Catarina, “A madeira tem o melhor desempe-
na Beira Alta, tem nho térmico entre todos os materiais,
POUPANÇAS ENERGÉTICAS a estrutura em madeira, mas ou seja, produz-me muito menos
Na zona Centro, também são as fa- o revestimento em capoto energia para aquecer a casa no inverno
mílias mais jovens quem procura protege aquele material e arrefecê-la no verão. Além disso, é
Diogo Cabral, CEO da Cosmohouse. das agressões exteriores. CEO um material natural, biodegradável.
“Estamos a ser obrigados a crescer”, da Cosmohouse, Diogo Cabral A que usamos é certificada e vem da
congratula-se o empresário, que não não tem mãos a medir para Suécia”, continua Diogo, 35 anos, que
a procura deste género
tem mãos a medir para responder vive com a mulher Catarina, 33, e o fi-
de vivenda. As famílias querem
à procura, sobretudo de habitações lho de 5 anos, numa vivenda T5 de 320
uma habitação permanente
permanentes. “Em relação ao betão, altamente eficiente ao nível
metros quadrados, mais uma garagem
uma estrutura em madeira fica 20 a energético, pois requer em anexo de 80 metros quadrados.
30% mais barata. O que as pessoas menos energia a aquecer no Uma casa de sonho com acabamentos
poupam na construção podem depois inverno e a refrescar no verão. de topo, inserida num vasto terreno
gastar nos acabamentos, reforçando o Esta vivenda T5 com 400 m2 na Beira Alta, e que custou aproxima-
conforto”, explica. construídos, inserida num damente 300 mil euros.
Revestidas a capoto, as casas feitas vasto terreno, custou ao casal No entanto, por metade desse va-
pela Cosmohouse nem parecem de cerca de 300 mil euros. lor, faz-se uma vivenda T3 com aca-
madeira – e o revestimento acaba por O que pouparam na construção bamentos médios. Os 150 mil euros
proteger o exterior, requerendo me- de madeira reinvestiram nos pagam um projeto chave na mão,
nos manutenção do que se a madeira acabamentos de topo. que vai do licenciamento aos mó-
ficasse exposta. Como é um tipo de veis de cozinha. “Há muito menos

64 VISÃO 26 AGOSTO 2021


desperdício, pois com um misto de casas autoportantes, não precisam já concebeu mais de 90 casas de terra.
construção em fábrica e em obra, de estrutura, são feitas com taipais O primeiro contacto com este tipo
percebe-se exatamente o material de cruzados em toda a volta do perímetro de construções surgiu através de Hen-
que precisamos.” O método de cons- e não há necessidade de pilares nem rique Schreck, com quem o atelier
trução é financiado pelos bancos, tal vigas. Depois, o material-base é a terra fez, em parceria, inúmeros projetos
como na construção tradicional. E o do próprio local. Logo, não há gastos durante mais de uma década. O ar-
licenciamento nas autarquias também energéticos com deslocações. Em quiteto, que é um dos maiores espe-
se processa da mesma forma. relação à durabilidade, quanto mais cialistas em Portugal nesta técnica, já
antigas são, mais resistentes ficam. É projetou mais de 250 casas de taipa
CASAS DE BARRO ESTÃO EM ALTA como a rocha sedimentar – quanto nos últimos 20 anos. “Identifiquei-me
Mas não é só a madeira que está na mais envelhece, mais compacta e dura com esta técnica porque é superecoló-
mira de quem procura habitações se torna”, explica a arquiteta Raquel gica – as casas em terra têm a grande
mais sustentáveis. As típicas casas de Cunha, sócia-fundadora do atelier vantagem de possuir um ar condi-
taipa que marcam a paisagem urba- Visionarte, sediado em Odemira e que cionado natural, ou seja, dada a sua
nizada de localidades alentejanas e porosidade, absorvem água durante o
algarvias estão agora mais na moda inverno e, no verão, evaporam a água,
do que nunca. Construídas em solos fazendo baixar a temperatura”, explica
que tenham mais de 50% de argila,
estas casas são feitas com recurso a O MÉTODO o arquiteto. “As casas em taipa têm
de respirar, trabalham o ano inteiro
taipas, espécie de caixas de madeira,
sem fundo, que se vão enchendo de É FINANCIADO PELOS como um organismo”, reforça, por
seu turno, Raquel Cunha.
barro e servem de molde na constru-
ção das paredes. BANCOS, TAL COMO Para Henrique Schreck, a cons-
trução em taipa é, aliás, a forma mais
Aprimoradas ao longo dos tempos,
hoje, as habitações de taipa integram
NA CONSTRUÇÃO ecológica de se resolver o problema da
habitação a menores custos. “Porque
todas as comodidades contemporâ-
neas ao nível de materiais e acaba-
TRADICIONAL. é uma construção assente só na ter-
ra, matéria-prima que não paga IVA
mentos, mantendo porém intacta, E O LICENCIAMENTO e está livre de cimento e ferro. Além

TAMBÉM SE PROCESSA
na sua estrutura exterior, a milenar disso, é muito mais rápida de fazer:
técnica de construção que as tornam pode edificar-se em um mês uma

DA MESMA FORMA
ecológicas e perfeitamente alinhadas casa de 200 metros quadrados com
com o local onde se inserem. “São apenas quatro pessoas a trabalhar”,

€50/60 MIL JULAR MADEIRAS

IDEAIS PARA FÉRIAS…


E NÃO SÓ
Valor de um T1
com 50 m2, feito
pela Jular, já com
isolamento incluído
Em tempos procuradas
apenas para uso turístico
ou habitação de férias,
as casas modulares
de madeira começam a ser
uma opção também para
primeira residência. Por
zonas geográficas, o mercado
de habitação permanente da
Jular Madeiras está muito
ALEXANDER BOGORODSKIY/PHOTOSHOOTPORTUGAL

concentrado na periferia
de Lisboa, com destaque
para Sintra, Mafra e Torres
Vedras. Já as casas de férias
estão mais a Sul – Litoral
Alentejano, Troia, Comporta
e Melides. Na foto, vemos
o Ecoparque do Outão,
na Arrábida.

26 AGOSTO 2021 VISÃO 65


IMOBILIÁRIO / DOSSIER

explica, lembrando que, numa casa em ser reciclados com facilidade – como
VISIONARTE betão, por exemplo, o mesmo tempo é as torneiras ou canalizações de plás-
necessário para deixar secar um pilar. tico. Tudo o resto regressa à terra na-
UMA ARTE ANTIGA Benesses que acabam por ter um
impacto direto no custo da obra.
turalmente. E se quisermos, podemos
até voltar a plantar batatas ali.”
E ECOLÓGICA Uma habitação feita de taipa ronda
habitualmente os 700 euros/m2 e, em BETÃO MODULAR E RÁPIDO
betão, cerca de 1 200 euros. Ganha a Para quem se sente atraído pela rapi-
As típicas casas de taipa, bolsa e ganha o ambiente, realça ainda dez dos modelos modulares mas não
comuns nas localidades Henrique Schreck: “Quando estas ca- quer uma casa de madeira, apostar
alentejanas, estão em alta sas são demolidas, há uma minúscula numa feita de cimento parece fazer
e percebe-se porquê – o quantidade de materiais que não vão todo o sentido.
material-base é a própria terra É deste princípio que partem os
onde a casa vai ser implantada; projetos de Samuel Gonçalves, ar-
o custo do transporte é zero; quiteto fundador do atelier Summary,
e, uma vez edificada, dispensa
TAMBÉM COM
que tem apostado na divulgação da
o uso de ar condicionado.
construção modular em betão para
Ainda por cima, o material
não paga IVA. “Quanto mais
antigas, mais resistentes
O BETÃO É POSSÍVEL primeira habitação ou para usos co-
merciais. Neste conceito, a casa sai
ficam. É como a rocha
sedimentar”, diz Raquel Cunha,
TER POUPANÇAS literalmente construída da fábrica e é
montada quase em sistema de Lego no
sócia-fundadora do atelier DE CUSTOS E SER local, reduzindo drasticamente o tem-
po de edificação. Consoante a escala,
MAIS AMIGO
Visionarte, que já concebeu
mais de 90 casas com recurso esta poderá decorrer entre semanas
ou alguns meses.
DO AMBIENTE.
a taipas, espécie de caixas de
madeira, sem fundo, que se vão “A principal vantagem para quem
compra é precisamente a rapidez de
AS CASAS
enchendo de barro e servem
de molde na construção construção, que se traduz também

MODULARES SÃO
das paredes. Na foto, projeto em vantagens ambientais. Os edifícios
do Seremonheiro, um turismo que são produzidos em fábrica, sob

EXEMPLO DISSO
rural localizado em Aljezur. condições altamente controladas, com
monitorização muito maior dos re-

€37,5 MIL
Este é o valor
médio de uma casa
de taipa com uma
área de 50 metros
quadrados
VISIONARTE

66 VISÃO 26 AGOSTO 2021


€70 MIL
Valor médio de uma
construção modular
em cimento com uma
área de 50 metros
quadrados

©RICARDO RÖSELER
cursos e do tempo que é gasto na pro- Aveiro, uma residência universitária
dução, tornam as construções menos SUMMARY ARCHITECTURE
no Porto ou um complexo turístico
agressivas em termos ambientais em na aldeia da Paradinha, junto aos Pas-

A VANTAGEM
comparação com as tradicionais, em sadiços do Paiva, o atelier Summary
que nada é monitorizado, em que se está direcionado para projetos já com
gasta muito mais tempo, mais trans-
portes, mais quantidade de água e de DOS MÓDULOS alguma escala. Lá fora, este mercado
tem-se expandido e, segundo o Pre-
energia durante a construção”, explica fabricated Building Market Report,
Samuel Gonçalves, que desenvolveu A construção modular vale, ao nível mundial, mais de 106
em 2015 o sistema Gomos Building em betão dá garantias mil milhões de dólares (98 mil mi-
System, assente na edificação em de rapidez de execução lhões de euros), estimando-se que,
“fatias”, os gomos (já com isolamento e muita flexibilidade, um em 2026, ascenda a cerca de 150 mil
térmico incorporado), que se ajustam atributo que se tornou milhões, previsão feita ainda antes da
a qualquer configuração e podem levar essencial nos tempos que pandemia.
qualquer acabamento de acordo com correm. Neste conceito,
as exigências do cliente. a casa sai literalmente NO PASSIVO É QUE ESTÁ O GANHO
construída da fábrica
Este sistema valeu-lhe o reconheci- Para a vasta maioria que não comprou
e é montada em sistema
mento internacional, e ele tornou-se o de raiz uma casa mais amiga do am-
de Lego no local. Samuel
mais jovem arquiteto a ser convidado Gonçalves (na foto), do atelier
biente, é possível transformá-la numa,
para a Bienal de Veneza em 2016 e, Summary Architecture, até porque, como diz a frase, não há
dois anos depois, foi considerado “um desenvolveu o sistema Gomos um planeta B e o tempo urge.
dos jovens arquitetos mais promisso- Building System, assente na Em 2012, o arquiteto João Gavião
res da Europa”, no concurso Europe edificação em “fatias” e que foi um dos fundadores da Associação
40 Under 40. já aplicou em vários projetos, Passivhaus Portugal, que sensibiliza e
Já com mais de uma dezena de incluindo este, de uso turístico forma profissionais para a necessidade
projetos concluídos ou em curso, – as Casas da Paradinha, junto de se apostar nas chamadas passive
entre os quais a sede da Associação aos Passadiços do Paiva, houses. Trata-se de casas que são pas-
Empresarial de Cambra e Arouca (um em Arouca. sivas no recurso a aquecedores ou a ar
dos primeiros que ficaram termina- condicionado, dispensando-os, recor-
dos), um equipamento desportivo em rendo antes a uma abordagem ativa

26 AGOSTO 2021 VISÃO 67


IMOBILIÁRIO / DOSSIER

Versátil Sistema
modular de betão
da Summary Architecture
num edifício de uso misto
(residencial e comercial)
em Vale de Cambra

©FERNANDO GUERRA | FG+SG


que vá ao cerne da questão, deixando como as janelas, que devem ser ade-
o espaço habitacional com conforto quadas e, sobretudo, bem instaladas.
térmico em todas as estações do ano. Temos todas as soluções disponíveis
Entre as regras de ouro a seguir no mercado em termos de caixilharia,
para ter uma passive house está a ne- em termos de vidros de perfis inter-
cessidade de apostar num isolamento calares, etc. O importante é que não
correto, que efetivamente evite as haja perdas de calor muito relevantes”,
fugas de ar quente, com janelas ade- realça João Gavião.
quadas e um sistema de ventilação
com recuperação de calor, que forneça
TRANSFORMAR Ter um sistema de ventilação ade-
quado e eliminar fissuras nas paredes
ar novo sem deixar o calor sair. Tudo UMA CASA “NORMAL” que promovam infiltrações e humi-

COM 50 M2 NUMA
isto somado, garantem os especialistas dades – “que estimulam as trocas de
deste sistema, consegue-se poupar ar não controladas” – são também

PASSIVE HOUSE
cerca de 90% da fatura energética com regras básicas a seguir para garantir
aquecimento (ou refrigeração). “É um o conforto térmico da casa.
conceito que assenta unicamente no
desempenho do edifício, e podemos TEM UM CUSTO Obrigatório em alguns países,
regiões e cidades, entre os quais
ter uma passive house em qualquer
método construtivo, seja esta uma POR METRO Luxemburgo, Bruxelas ou Frankfurt
(onde se prevê que, em 2050, todo o
construção mais pesada ou mais leve,
mais high-tech ou low-tech”, explica QUADRADO parque edificado público e privado
seja Passive House), por cá, o sistema
o arquiteto.
E como se pode melhorar o de-
LIGEIRAMENTE tem trilhado um caminho mais lento,
mas há cada vez mais sensibilidade
sempenho do edifício? “Dando um
tratamento adequado a toda a envol-
ABAIXO DOS 1 000 para o tema, a reboque da questão
das alterações climáticas e não só.
vente. O isolamento térmico é funda- € + IVA. SÃO OBRAS Uma consciência que já está a mudar

DE REABILITAÇÃO
mental – e aqui é também importante as habitações, a paisagem e também a
evitar o isolamento exagerado, pois pegada ambiental que cada um deixa

PROFUNDAS
em climas mais quentes isso pode no planeta. *com Alexandra Correia
provocar o sobreaquecimento –, tal visaoimobiliario@visao.pt

68 VISÃO 26 AGOSTO 2021


IMOBILIÁRIO / NEGÓCIOS

9,4%
NÚMERO HOTELARIA

Ritz de cara lavada


A primeira fase da renovação do icónico hotel
Ritz, em Lisboa, já está terminada. O projeto,
a cargo da Vector Mais, deu uma nova vida ao
hotel, ao intervencionar cerca de 80 quartos (11
dos quais em suíte). O hotel, recorde-se, abriu
A taxa portas em 1959. A recuperação das carpintarias
de crescimento e das pedras portuguesas originais das casas
médio dos preços de banho foi uma das preocupações desta
renovação, que foi feita em parceria com o
das casas nas atelier Oitoemponto, encarregado do projeto de
40 economias mais interiores. “A nossa vontade ao intervir foi tentar
fortes da OCDE, no dar ao Ritz não o mesmo look, porque entretanto
primeiro trimestre passaram 60 anos, mas a mesma qualidade
deste ano e atualidade que o hotel teve desde o seu

D.R.
nascimento”, refere Artur Miranda, deste atelier.
Os preços das casas
estão a subir de forma
expressiva na grande
maioria dos países da
OCDE (Organização
para a Cooperação
e Desenvolvimento
Económico). A taxa de
crescimento médio entre as
40 economias mais fortes
da OCDE rondou os 9,4%
no primeiro trimestre deste
ano, revelou uma análise
do Financial Times. A curto
prazo, o aumento dos
preços do imobiliário até
pode ser positivo, porque
promove o fluxo de capitais
e dinamiza as economias.
Porém, se esta tendência
persistir por muito tempo,
poderá ser acompanhada
por uma expansão

LUÍS BARRA
do crédito bancário,
criando riscos graves de
endividamento das famílias,
alerta-se ainda na análise
do Financial Times. CASAS DE FÉRIAS

ESCRITÓRIOS Comporta nas rotas internacionais


De volta à vida Comporta, Miami, Menorca, Canárias e Tirol Trentino-Alto Ádige (Itália) estão entre os destinos
favoritos para investimento imobiliário premium, diz a consultora internacional Engel
No mês de julho, voltou & Völkers, que, nos primeiros cinco meses do ano, “fechou 96% mais negócios internacionais
a registar-se uma forte no segmento imobiliário premium, em casas entre os dois e os cinco milhões de euros, em
ocupação no mercado comparação com o mesmo período do ano anterior”. Em comunicado, a multinacional destaca
de escritórios de Lisboa, a Comporta, onde o preço médio de venda dos imóveis ronda os dois milhões
com a área arrendada de euros. “As praias desertas, aldeias pitorescas, custo de vida aceitável e vantagens
a exceder os 13 mil metros associadas aos vistos Gold fazem desta zona um dos destinos mais procurados em Portugal,
quadrados. “A atividade onde 80% dos compradores são estrangeiros”, refere a consultora. As ilhas Canárias estão
no passado mês representa entre as preferências dos investidores, com o preço médio a situar-se nos quatro milhões
um crescimento de 125% de euros. Também Miami (EUA) assistiu a um boom sem precedentes na venda de casas
face a junho e atingiu uma de luxo logo após o início da pandemia, com os preços a dispararem mais de 20% no primeiro
área média de 1 030 m2 trimestre de 2021 – situam-se entre 15 e os 25 milhões de euros. No Norte de Itália, na região
por operação”, refere de Tirol Trentino-Alto Ádige, os valores situam-se nos seis milhões de euros. A ilha
um relatório da JLL. de Menorca, nas Baleares, completa este top 5 das casas de luxo para férias. O preço médio
da venda de imóveis ultrapassou o marco de um milhão de euros.

70 VISÃO 26 AGOSTO 2021


SUPERLUXO

As casas mais caras à venda em Portugal


É a zona mais cara do País e, por isso, não é de admirar que aqui se concentrem três
das cinco moradias mais luxuosas à venda nos portais imobiliários nacionais. Falamos
da muito exclusiva Quinta do Lago, no Algarve, na zona de Almancil. O site Idealista
listou as habitações mais valiosas que estão disponíveis para serem compradas ou
simplesmente para serem admiradas. Diz o portal que cerca de 78% dos seus utilizadores
confessam visitar o Idealista para sonhar com casas de luxo, independentemente
de estarem em processo de compra, venda ou arrendamento de um imóvel.

14,5 MILHÕES DE EUROS.


MORADIA NA QUINTA DO LAGO,
ALGARVE. Com vistas deslumbrantes
sobre a Ria Formosa e o mar, esta
mansão conta com 11 quartos e dez
casas de banho, ginásio, sauna, sala
de jogos e bar. No seu exterior,
encontra-se uma piscina infinita.

12,6 MILHÕES DE EUROS.


20 MILHÕES DE EUROS. VILLA NA QUINTA DO LAGO, ALGARVE. Localizada PALACETE EM ELVAS. Direcionada
no famoso Triângulo Dourado português (Vale do Lobo, Vilamoura e Quinta do Lago), esta para quem prefere zonas mais
mansão foi projetada para quem precisa de muito espaço. Senão, vejamos: nos seus 1 500 campestres, esta quinta com 90 mil
metros quadrados, contam-se oito quartos e vários espaços concebidos para puro lazer metros quadrados agrega mais
e diversão, onde se destaca o spa caseiro e uma sala de cinema devidamente equipada com de uma habitação. É composta por
tecnologia de topo. O jardim, com mais de quatro mil metros quadrados, integra não uma um palacete de arquitetura francesa,
mas três piscinas aquecidas. Um luxo apenas ao alcance de uma pequena minoria. um jardim botânico desenhado
por Forestier, picadeiro com 30 boxes,
pista de saltos para cavalos, duas
15 MILHÕES moradias independentes e piscina.
DE EUROS. QUINTA
DO SÉCULO XIX EM
PAÇO DE ARCOS,
LISBOA. Tem uma vista
aberta para o mar, mesmo
na primeira linha, e há
décadas que é um ponto
emblemático da Avenida
Marginal. A Quinta
do Relógio foi mandada
construir em 1860
e encontra-se num terreno
que tem precisamente 12,5 MILHÕES DE EUROS.
5 589 m2. O palacete ocupa MANSÃO NA QUINTA DO LAGO,
uma área de 1 700 m2. ALGARVE. Desenhada pelo arquiteto
Nos seus jardins, sobressai Vasco Vieira, esta vivenda tem oito
a Torre do Relógio, que deu quartos, um spa e três piscinas, entre
o nome à propriedade. as quais uma coberta. As vistas recaem
sobre o lago e sobre o mar.
26 AGOSTO 2021 VISÃO 71
I M O B I L I Á R I O / E N T R E V I S TA

Pedro Figueira
“Portugal é dos destinos
mais atrativos para a indústria”
A tendência da indústria é relocalizar a produção junto dos consumidores,
defende este especialista de logística, para quem o nosso país tem vantagem em
voltar a atrair estas empresas. A explosão do comércio online veio mudar tudo

A
MARISA ANTUNES

logística sempre foi a área dade muito maior de produto – logo, ter de esperar um ou dois dias já não
menos “interessante” do necessitamos de muito mais área para faz sentido.
imobiliário comercial até armazenar. Por outro lado, também Com impacto direto na
a pandemia chegar. Os surgiu outra realidade: quase um terço necessidade de espaços para
confinamentos empurra- das encomendas tem uma devolução armazenagem…
ram as pessoas para casa de correspondência, pelo que é preciso Sim, vai aumentar ainda mais a procu-
e, nesse movimento, o criar todo um novo canal de receber, ra de espaços logísticos e, sobretudo,
comércio online cresceu preparar, armazenar e, depois, voltar espaços logísticos em formatos dife-
de forma exponencial, a introduzir no circuito comercial. rentes, que permitam agilidade. Será
movimentando merca- Portanto, isto puxou por algo que um tipo de infraestrutura comple-
dorias em todo o mundo e aumen- ainda não vemos no nosso mercado, mentar, que estará muito próxima do
tando a necessidade de as armazenar mas que será mais visível no próximo consumidor. Outra questão é a rutura
localmente. Um movimento que está ano, que são os chamados formatos de das cadeias de abastecimento devido à
a lançar novos paradigmas, inclusive last mile (espaços locais para receber a pandemia e a dificuldade de obter pro-
a necessidade de se voltar a apostar na última etapa da encomenda). Muito em dutos e de ter stocks – e se as empresas
industrialização. E Portugal, graças à breve, o consumidor vai exigir receber não tiverem stock, não vendem. Quase
sua posição geográfica, está no bom em poucas horas os seus produtos. todas as empresas estão a aumentar os
caminho para atrair investidores in- Encomendar alguma coisa online e níveis de stock, muitas vezes em 40 e
ternacionais para o setor, afiança Pe- 50 por cento. Fazem-no para garantir
dro Figueira, diretor do departamento a disponibilidade de produto nestes
de Indústria e Logística da consultora períodos mais voláteis.
imobiliária Savills.
Os confinamentos concederam MUITO EM BREVE, Que consequências poderá ter a
maior necessidade de stock ao
um estatuto nunca visto ao setor
da logística devido ao impacto do O CONSUMIDOR VAI nível da produção?
Já existia alguma vontade de promo-
comércio online. Pode explicar
essa dinâmica aos leitores? EXIGIR RECEBER EM ver a reindustrialização. A pandemia
veio reforçá-la ainda mais, não só pela
Curiosamente, ainda antes da pande-
mia, em 2019, a Savills fez um estudo
POUCAS HORAS A SUA vontade política mas também pela fal-
ta de produto, até porque, quando se
ao nível europeu para perceber qual o
impacto do e-commerce na logística. A
ENCOMENDA ONLINE. tem a produção deslocalizada em vá-
rias partes do mundo, é difícil manter
partir do momento em que as vendas TER DE ESPERAR o fluxo de bens e de matérias-primas.

DOIS DIAS JÁ NÃO


online ultrapassam os 10% do total Aqui, vê-se claramente uma mudança
de vendas do mercado das empresas, de paradigma, e já estão a acontecer

FAZ SENTIDO
as necessidades de espaços logísticos algumas transações de ativos para
aumentam exponencialmente. Quando a indústria. Portugal tem um papel
estamos a trabalhar num canal online, privilegiado na Europa, pois é talvez
precisamos de dar muito mais oferta dos destinos mais atrativos para a
ao consumidor, com uma disponibili- relocalização da indústria.

72 VISÃO 26 AGOSTO 2021


Quais são os maiores trunfos do Este poderá ser o melhor ano de A logística está concentrada no eixo
País? sempre do setor da logística? Este, essencialmente Alverca-Azam-
Há, desde logo, fatores que tornam Penso que será o melhor da última dé- buja. E o consumo está em Lisboa e em
cada vez mais competitivo voltar a cada. Neste segundo semestre, vamos todo o corredor Oeste (Cascais-Sintra).
produzir na Europa – quanto menos ver um indicador muito interessante: Para termos uma ideia da dimensão, o
mão de obra e mais automação, mais os projetos que têm sido feitos nem município de Lisboa e todo o corredor
indiferente se torna o local onde es- sequer vão chegar ao mercado, vão ser Oeste representam perto de 80% do
tamos, e isso tira competitividade a todos absorvidos antes disso. Isto re- total de consumo em euros do distrito
alguns destinos mais longínquos de vela pujança e a necessidade de espaço de Lisboa! Isto está a fazer com que,
produção. Mas falando em Portugal, que existe no mercado. A construção, por exemplo, a zona de Loures e tudo
temos mão de obra qualificada e, assim que começa, já tem os espaços o que está adjacente à CREL tenham
apesar de tudo, abundante para a in- todos arrendados. O setor fechou o enorme procura, porque permite que
dústria; temos vários casos de sucesso primeiro semestre com um take-up em 20 minutos se esteja junto do con-
de indústrias com níveis de produ- (área arrendada) de praticamente 145 sumidor. Por outro lado, os restantes
tividade muito interessantes; temos mil metros quadrados. Se olharmos extremos do corredor Oeste (Cascais,
uma capacidade em infraestruturas para 2020, vemos que há um cresci- Sintra) também têm um aumento cada
bastante interessante também – é cer- mento ainda pequeno, cerca de 2%, vez maior de procura.
to que ainda há o tema das ferrovias, mas se recuarmos a 2019, a área ab- E já há reflexo nos preços
mas há aqui um nível de investimento sorvida foi apenas de 73 mil metros de terrenos ou de espaços
significativo. E temos um porto de quadrados e, em 2018, de 89 mil. disponíveis em armazéns?
Sines a ganhar relevo no panorama Este contexto também está a Sem dúvida. Se olharmos para o com-
mundial, a partir do qual conseguimos mexer com a procura de terrenos portamento das rendas, vemos que, já
colocar produtos em qualquer ponto de uso industrial? no primeiro semestre deste ano, se
do mundo. Sines está a crescer, tem Sim, está intrinsecamente ligado às mu- registou um crescimento em várias
ambição de criar um novo terminal danças a que assistimos no setor e está a zonas de logística… Até ao final do
e de ter uma capacidade de mo- trazer dinâmica a algumas zo- ano, vamos assistir a um aumento
vimentação de carga ao ní- nas que tradicionalmente em praticamente todas as zonas. Isto
vel de alguns dos maio- não eram tão logísticas advém de dois fatores: por um lado,
res portos da Europa. e que têm, hoje em existe pouca oferta de espaços e, por
Depois, estamos na dia, uma procu- outro, em algumas zonas já existe
zona euro, que nos ra muito maior produto novo e melhor. Porque uma
traz uma estabili- e em que não empresa só está disponível para pagar
dade importante existe oferta. mais renda se tiver um espaço que é
numa perspeti- Por melhor, mais eficiente e mais moder-
va cambial – o exemplo? no. No lado dos terrenos, na zona do
que, muitas ve- Todo o eixo eixo circundante de Lisboa e corre-
zes, é um claro circundante dor Oeste, há uma grande pressão no
facilitador de da cidade de preço, até porque também concorrem
investimentos. Lisboa, toda com outros usos. O obstáculo que
Ou seja, temos cá a zona da CREL isto coloca é que poderá inviabilizar
todos os ingredientes está sob uma a criação de novo produto logístico.
necessários. enorme pressão. Os preços elevados estão a
inviabilizar projetos?
Exatamente. Há aqui um equilíbrio
que é necessário e que, hoje em dia,
concorre com uma terceira força: o
crescimento significativo dos custos
de construção. Nos eixos mais conso-
lidados, não se sente tanta pressão no
preço da terra, verifica-se algum
crescimento, que é acomodável
e continua a existir uma grande
procura dos principais ope-
radores de mercado. Quase
todos os grandes promoto-
res logísticos internacionais
estão a entrar ou à procu-
ra de oportunidades em
Portugal. O nosso mer-
cado já está mais madu-
ro e existe uma grande
robustez da procura.
visaoimobiliario@visao.pt

26 AGOSTO 2021 VISÃO 73


IMOBILIÁRIO / TENDÊNCIAS

Olá, anos 70!


O conforto está de volta a casa
A ideia de comodidade total veio para ficar no mundo da decoração
e design de interiores. Sofás ou poltronas mais avolumados
e confortáveis são o ex-líbris desta tendência
A N A R I TA C O E L H O

A
valores seguros. Querem
força da simpli- qualidade, mas querem
cidade volta outros conceitos, mais
sempre em lúdicos, instigantes, vi-
momentos brantes e motivadores”,
de viragem, reconhece o manager da
mudança ou QuartoSala.
de crises, se-
jam elas sociais MODA SUSTENTÁVEL
ou económicas, Sofás como os Camaleonda ou
e isso reflete-se sempre os Soriana, da Cassina Collection, in-
no design.” Quem o diz é a arquiteta tegram-se bem em qualquer tipo de
e decoradora de interiores Gracinha ambiente decorativo. “Fluem num
Viterbo quando o tema é a “squishy durabilidade enorme”, explica Vera. ambiente minimal, mas também se in-
furniture”. “Depois de estarmos tanto tem- tegram muito bem num contraste bem
O termo é usado para se referir po em casa, é natural procurar um estudado dum ambiente muito clássico.
a mobiliário “superfofo”, a cadeiras, sofá multifuncional em que se possa Vivem bem sozinhos e acompanhados.
sofás e pufes em que uma pessoa se estar sentado, deitado, torto, direito Têm uma versatilidade que lhes dá uma
“enterra” para gozar as delícias da ou alongado, e que seja cómodo”, certa intemporalidade por se adaptarem
preguiça. Tal como as leggings ou as enumera Pedro d’Orey, fundador da a vários ambientes”, explica Gracinha
calças de pijama, escreve o The New QuartoSala. E é por estar ciente da Viterbo.
York Times, os móveis squishy foram versatilidade inerente a esta tendência A arquiteta de interiores assume que
adotados nestes tempos pandémicos que destaca o sofá Camaleonda, que tem um enorme respeito pelos artigos
em que a casa se tornou o centro do foi reeditado pela marca B&B Itália. “É de design que marcam determinadas
nosso mundo. um grande ícone. Faz todo o sentido épocas e que perduram ao longo dos
Mas esta tendência já não é nova: que uma marca como a B&B queira tempos, mas enquanto profissional da
nos anos 70, o famoso sofá “Cama- reafirmar os valores do seu design, área gosta que os clientes estejam cien-
leonda” (na foto vemos um módulo apostando num público novo que tes das suas escolhas. “A minha respon-
desse modelo), de Mário Bellini, fez procura não só o bem-estar como sabilidade é [garantir] que os clientes
escola no design de interiores e foi não se deixem levar por tendências que
imitadíssimo ao longo do tempo. São lhes tirem as suas identidades. Por isso,
dessa década as peças extraordinaria-
mente confortáveis com tamanhos SÃO DA DÉCADA dentro de peças como estas, é sempre
importante definir um caminho único e
oversize e formatos arredondados.
“O que está agora na moda é gos-
DE 1970 AS PEÇAS intransmissível que somente ao cliente
pertence”, manifesta.
tarmos de estar em casa”, diz Paula
Laranjo, dona da loja de mobiliário
SUPERCONFORTÁVEIS, Pedro d’Orey enfatiza a importân-
cia da sustentabilidade – preocupação
e iluminação Branco sobre Branco, ENORMES que nos anos 70 não existia – e que

E DE FORMATOS
juntamente com Vera Moreira. “Pro- é cada vez mais notória nas decisões
curam-se produtos mais confortáveis dos clientes. “Um dia que acabe, o

ARREDONDADOS
e envolventes, em que há espumas ex- sofá tem um caminho de modo a ter
tremamente confortáveis e com uma uma segunda vida, através da sua re-
ciclagem”, conclui. visaoimobiliario@visao.pt
74 VISÃO 26 AGOSTO 2021
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“Todos os
Peças vitais dos Kamov
negócios que
me propõem são
maus, porque se
do Estado aparecem
fossem bons não
mos propunham”
André Maurois
Escritor e ensaísta francês
(1885-1967)
de forma ilegal na Rússia
Componentes das aeronaves pesadas do Estado,
seladas num hangar por suspeita de roubo de peças,
em 2018, surgiram na Rússia, no âmbito de um
negócio mal explicado que terá levado o fabricante
dos Kamov a contactar Portugal. O Ministério Público
confirma dois inquéritos ao desvio de materiais
destes helicópteros comprados há 15 anos e que,
para voltarem a voar, vão precisar de uma profunda
manutenção de milhões. Dos seis que existem, um é
quase dado como perdido para a aviação

NUNO MIGUEL ROPIO

76 VISÃO 26 AGOSTO 2021


Combate Já data do verão
de 2017 a última operação
de um Kamov do Estado

O
num incêndio florestal

hangar da ANPC sito em


Ponte de Sor, onde se en-
contra localizada a frota de
helicópteros Kamov, pro-
priedade do Estado portu-
guês, foi ontem, interditado
pela ANPC, em virtude de
se ter constatado a movi-
mentação de material da
mencionada frota, por parte
da Heliavionics, sem ter sido
efetuada a identificação do
referido material, nem ter sido solicita-
da a necessária autorização.” Com este
comunicado da Proteção Civil, emitido
na noite de 28 de março de 2018, parecia
ter-se encontrado um desfecho para a
atribulada vida dos seis helicópteros pe-
sados do Estado, desde que começaram
a chegar a solo nacional, uma década
antes. Porém, apesar de estarem sela-
dos num hangar em Ponte de Sor, várias
peças dos Kamov apareceram de forma
suspeita na Rússia, num dos reparadores
que integram a rede oficial do fabricante
daquelas aeronaves. Terão ali chegado
nas mãos de técnicos que fariam cá a
manutenção destes helicópteros e, finda
a reparação, rumariam à posse de chine-
ses. A Procuradoria-Geral da República
(PGR) confirmou duas investigações, a
cargo do Departamento de Investigação
e Ação Penal de Lisboa, que visam apurar
quem tirou o quê de Ponte de Sor.
A origem de tais componentes foi
detetada no número de série de uma
caixa de transmissão, que pertencerá ao
Kamov identificado como HMP, levando
a JSC Russian Helicopters a confrontar,
há um ano, a Autoridade Nacional de
Emergência e Proteção Civil (ANEPC)
se sabia que tal material português tinha
ali sido depositado para conserto. Nos
emails do fabricante russo enviados à
ANEPC, a que a VISÃO teve acesso, sina-
liza-se que as peças terão sido entregues
pelo cidadão ucraniano, proprietário
da empresa Heliavionics Lab, sediada
em Portugal e que durante anos esteve
subcontratada para assegurar a manu-
tenção das aeronaves do Estado. Mais:
a indicação que terá sido dada ao repa-
rador é que o levantamento das peças
consertadas iria ficar a cargo de uma
empresa chinesa – que ainda chegou a
contactar os russos, assegurando que
havia comprado aquele equipamento.
A VISÃO questionou Oleksandr
Shyyenko, proprietário da Helioavionics
Lab, quanto ao seu papel no aparecimen-
LUSA

to daquelas peças no Leste, mas, até ao

26 AGOSTO 2021 VISÃO 77


Fechados Aeronaves estão
INVESTIGAÇÃO fechadas num hangar, em
Ponte de Sor, desde março
de 2018, devido a suspeitas
de roubo de peças

fecho desta edição, não houve qualquer


explicação – ainda assim, um porta-voz
da empresa assegurou que “as coisas não
se passaram bem assim”. Já a JSC Russian
Helicopters, após ter mostrado uma dis-
ponibilidade inicial para esclarecer este
episódio, não respondeu às insistentes
questões sobre o assunto – principal-
mente depois de ter sido contratada
pela Força Aérea Portuguesa (FAP), em
maio deste ano, por 73 mil euros, para
fazer uma peritagem às seis aeronaves e
fornecer um orçamento que as consiga
pôr de novo nos céus portugueses. Sobre
o destino das peças – se permaneceram
na Rússia ou se voltaram a Ponte de Sor
– a JSC nada disse.
A Helioavionics Lab entrou em Por-
tugal pelas mãos da HeliPortugal que, De “todo-o-terreno” dos céus a “enjeitadinhos”
além de intermediar a compra dos Ka- São extensos os volumes das auditorias críticas que o Tribunal de Contas (TdC) tem
mov entre os russos e o governo de José produzido ao longo de anos, desde que o então secretário de Estado da Proteção
Sócrates, em 2006, ainda teve a operação Civil, Fernando Rocha Andrade, liderou o processo de aquisição das aeronaves, em
destas aeronaves nos anos seguintes. 2006. No último, já deste ano, o TdC critica a demora na retoma da operação da frota.
Mais tarde, em 2015, a mesma empresa Com o epíteto de “todo-o-terreno” dos céus, que viriam resolver a falta de aeronaves
de Shyyenko passou a assegurar igual do Estado no combate aos fogos, os Kamov começaram por chegar com grande
trabalho para a EverJets, que ganhou atraso, sem que o governo de então tenha aplicado sanções; depois, tendo em conta
a concessão dos meios aéreos – após a a especificidade das máquinas russas, em que nem todos os pilotos podiam pegar,
extinção da estatal Empresa de Meios o Estado pagou horas a mais por voos que nunca foram realizados. E vários outros
episódios foram sendo alvo de censura do TdC. Um dos últimos questionava o facto
Aéreos (EMA), levada a cabo pelo então
de o INEM ter rejeitado usar os Kamov – quando estes ainda voavam –, optando
ministro da Administração Interna, Mi-
por recorrer aos privados, porque os seus técnicos achavam as aeronaves pouco
guel Macedo, em 2014. adaptáveis e nem sempre estavam disponíveis para as emergências.
À VISÃO, Ricardo Dias, proprietário
da EverJets, disse desconhecer o assun-
to, lembrando que, desde que a ANEPC
mandou selar o hangar em Ponte de Sor, – que lhes pagou, além das viagens, a O maior problema continua a ser o
há três anos e meio, nunca mais a em- estada e a alimentação. A inspeção, re- Kamov que se despenhou, em 2012 –
presa pôde aproximar-se das aeronaves. lataram fontes ligadas ao processo, não acidente que permitiu ao Tribunal de
Aliás, no Tribunal Arbitral continua o poderia ter revelado pior cenário relativo Contas (TdC) detetar que nenhuma das
pedido de indemnização da EverJets ao às condições das seis aeronaves. Aliás, seis aeronaves tinha seguro. Está pro-
Estado, no valor de 45 milhões de euros, condizente com aquela que tem sido fundamente danificado devido à queda
por alegados danos causados pela de- a novela atribulada desde que o então que sofreu no verão daquele ano, quando
cisão da Proteção Civil. Estima-se que, ministro da Administração Interna, se abastecia numa lagoa em Ourém. Para
na melhor das hipóteses, só haja uma António Costa, em 2006, autorizou a o estado da aeronave, que obviamente
decisão no próximo ano. aquisição à Rússia destes helicópteros, nunca mais voou, terão contribuído os
por quase 50 milhões de euros. anos que o Gabinete de Prevenção e In-
RUSSOS SURPREENDIDOS vestigação de Acidentes com Aeronaves
COM OS HELICÓPTEROS e de Acidentes Ferroviários (GPIAAAF)
Tendo em conta que ainda está a decor-
rer o processo de transição das aerona- COMPRADOS À RÚSSIA, demorou para concluir o inquérito à
queda e o tempo gasto para as peças se-
ves da ANEPC para a Força Aérea (que,
desde 1 de janeiro de 2019, gere todos os
EM 2006, O PERCURSO rem enviadas para peritagem na Rússia.
Refira-se que, nessa altura, os ou-
meios aéreos de combate a incêndios), a DOS KAMOV TEM SIDO tros cinco Kamov acabaram por pa-

ATRIBULADO, COM
FAP não se pronunciou sobre assunto, rar por inexistência de seguro, mas
assim como a Proteção Civil – que terá também porque foram logo apontadas
apresentado queixa ao Ministério Públi-
co, dando origem aos tais dois inquéritos INCIDENTES, FALTA pelo GPIAAAF falhas à manutenção
da Helioavionics Lab, tendo em conta
que decorrem no DIAP.
Entretanto, dois técnicos da Russian
DE SEGUROS E QUEDA que, quanto à tripulação, a caixa negra
do helicóptero deixava claro que o co-
Helicopters permaneceram, durante
cerca de um mês, em Ponte de Sor, no
DO LÍDER DA PROTEÇÃO mandante, de 46 anos e o copiloto de 33
eram experientes e tinham seguido todos
âmbito do contrato com a Força Aérea CIVIL À MISTURA os procedimentos desde que saíram da

78 VISÃO 26 AGOSTO 2021


OPINIÃO

A desesperança de Cabul
base de Ferreira do Zêzere até à lagoa do
e o “ennui” do Ocidente
Parque de Merendas de Espite.
Outros dois Kamov estão ligeiramente
POR PEDRO NORTON
melhor: não estão tão danificados, confir-

A
maram à VISÃO as mesmas fontes liga-
das ao processo. Mas o facto de terem os
pneus esvaziados, entre outras mazelas, s aterradoras imagens do para quem nunca as conheceu. Mas
terá transmitido aos russos um ar de colapso de Cabul não po- é, convenhamos, particularmente
abandono e desmazelo. Refira-se que es- dem deixar de perturbar sádico assistir, impávido, à imposi-
tes dois helicópteros estão parados desde qualquer alma com um mí- ção de uma reversão dessas mesmas
2015, quando a HeliPortugal os entregou nimo de sensibilidade. É liberdades a quem as experimentou,
assim ao Estado, levando à queda do então sempre arrepiante assistir ainda que de forma efémera.
presidente da Proteção Civil, Grave Perei- ao desabar de qualquer re- Independentemente de saber
ra, em 2016, por ter ficado provado que gime, mesmo no caso dos quem carrega a maior responsabi-
aceitou receber estas duas, e as restantes, mais hediondos. Guardo, por exem- lidade, independentemente de saber
aeronaves com centenas de falhas. plo, memórias muito vivas da queda se existiriam alternativas realistas à
Uma auditoria da Inspeção-Geral da estrondosa de Ceausescu, transmitida disposição dos decisores políticos (e
Administração Interna (IGAI), pedida pela praticamente em direto da Roménia eu sou dos que duvidam que existis-
então ministra da Administração Interna de 1989 e que haveria de culminar sem), independentemente de todas as
do PSD, Anabela Rodrigues, e validada já no julgamento sumário do ditador considerações geoestratégicas, uma
pela sua sucessora, Constança Urbano de e da sua mulher, Elena. Assim como coisa parece certa: para os afegãos que
Sousa, do PS, sinalizou que a Proteção Ci- não esqueço as imagens fortíssimas puderam experimentar a liberdade,
vil não só não acompanhava a manutenção da captura e execução de Saddam esta experiência-limite de retroces-
feita às aeronaves como aceitou receber a Hussein no Iraque ou de Khadafi so e reversão permanecerá como a
frota sabendo que só três das aeronaves nos escombros da Líbia. Mas se, nes- herança mais tangível de 20 anos de
estariam aptas a voar, outras duas estavam tes casos, o choque com a violência intervenção dos aliados ocidentais
inoperacionais por avarias várias e ainda dos acontecimentos no país.
havia um helicóptero acidentado. aparecia aos nossos Sentado no con-
Só há dois anos, um Tribunal Arbitral, olhos como o preço a É angustian- forto de um sofá em
presidido pelo constitucionalista Bacelar pagar por libertações te assistir, Lisboa, é impossível
Gouveia, obrigou a HeliPortugal a in- de longos invernos ti- não parar um instante
demnizar o Estado em 9,4 milhões de rânicos, em Cabul não em direto, ao que seja para fazer um
euros pelas condições em que entregou há qualquer atenuante colapso da- paralelo entre esta de-
as aeronaves e por ter retido peças – en- para o terror que tes- quilo a que, no sesperança sem nome
tre as quais motores. Todavia, a decisão temunhamos. E é de e as várias “crises” que
foi muito crítica também devido à falta terror que efetivamen-
Ocidente libe- nos ocupam os dias.
de controlo da ANEPC, perante os avi- te se trata. É terror que ral, convencio- O Ocidente que se es-
sos que terão sido ignorados por Grave efetivamente lemos na námos chamar panta com a voragem
Pereira. O presidente da Proteção Civil desesperança sem fun- Civilização dos acontecimentos no
demitiu-se não pela conclusão do tal do das multidões em Afeganistão é o mes-
relatório da IGAI, mas porque percebeu Cabul. mo que, até há poucos
que lhe ia ser movido um processo dis- Ao observar o de- dias, se entretinha, nas
ciplinar por Urbano de Sousa. sespero afegão, vêm-me aliás à cabeça redes sociais, na procura incessante,
Na prática, entre 2015 e 2018, só um profecias sinistras, de outras eras doentia e obsessiva de causas eféme-
Kamov voou regularmente, a que se e de outros lugares. Apetece para- ras e de vítimas tantas vezes imagi-
juntaram outros dois depois, após alvo frasear Marx. “Há um espectro que nárias. O Ocidente que se choca com
de uma profunda manutenção já a cargo assombra o Afeganistão.” O espectro este inexorável avanço das trevas, o
da EverJets. São esses três helicópteros da intolerância, do fanatismo, do Ocidente que por agora debita pala-
que estão em melhor estado, porque medievalismo, do radicalismo, que vras e promessas ocas de solidarie-
eram os mesmos que estavam em ma- se abate sobre a sociedade afegã. É dade é o mesmo que, num espaço de
nutenção quando a ANEPC denunciou sempre arrepiante, repito, assistir ao poucas semanas, voltará a esquecer
às autoridades as suas suspeitas quanto desabar de um regime. Mas é pro- Cabul para regressar ao seu fútil
ao desaparecimento de peças. fundamente angustiante assistir, em “ennui”, desencantar outros tantos
O orçamento para Portugal voltar a direto, ao colapso daquilo a que, no “je suis” e voltar a acender fogueiras
ter os seus Kamov operacionais pode Ocidente liberal, convencionámos de indignação e cancelamento com
atingir vários milhões, apurou a VISÃO. chamar Civilização. A privação das palavras proibidas, ofensas espúrias
Além da incógnita sobre como decorrerá liberdades mais básicas e funda- e outras cruzadas de trazer por casa.
esse processo, persiste ainda a dúvida de mentais, imprescindíveis para a ple- Cada um tem os dramas que pode.
quem pilotará esta frota no futuro, já que na realização do “eu”, constitui uma Em Cabul, não é preciso inventá-los.
a FAP não tem militares com experiência violência difícil de imaginar, mesmo visao@visao.pt
nestas aeronaves. nropio@visao.pt

26 AGOSTO 2021 VISÃO 79


FIGURA
Serviço Morteza Mehrzad em ação frente
à Bósnia Herzegovina, na final dos Jogos
Paralímpicos de 2016, no Rio de Janeiro

BI
MORTEZA
MEHRZAD
NASCIMENTO
Vajargah, Irão, 17
de setembro de 1987
ALTURA
2,46 metros
MÃOS
27 centímetros
MODALIDADE
voleibol sentado
ESTREIA
2011
NA SELEÇÃO
2016
PRINCIPAIS TÍTULOS
Jogos Paralímpicos
(2016),
Jogos Asiáticos
(2017 e 2019),
Campeonato
do Mundo (2018),
Liga Mundial (2018)

O milagre do gigante iraniano


Morteza Mehrzad tem 2,46 metros e é o segundo homem
mais alto do mundo. Com vergonha do corpo, fechou-se
em casa durante oito anos. Agora, é protagonista
nos Jogos Paralímpicos de Tóquio

A
RUI ANTUNES

os 16 anos, ele media 1,90 corpo para o qual todos olhavam, sem- Sentado no solo, como as regras exigem,
metros. Os dias negros já pre que saía à rua. Hoje, aos 33 anos, o Morteza é literalmente um gigante no
o assombravam, vítima de iraniano é uma das grandes estrelas do jogo de rede, um sério obstáculo no
gozo na escola, de uma que- desporto paralímpico, sem dúvida um momento de blocar os remates adver-
da de bicicleta com conse- dos atletas a seguir nos Jogos Paralímpi- sários e uma arma temível quando é a
quências terríveis e de um cos de Tóquio – e não apenas por medir sua vez de ripostar. É capaz de observar
crescimento imparável que, 2,46 metros e ser a segunda pessoa mais o outro lado do campo por cima da rede,
além do mais, lhe deformou alta do mundo. posicionada a 1,15 metros do chão. Com
as feições da cara. Uma con- A sua altura faz dele um trunfo de os braços levantados, ele realiza blocos a
jugação de adversidades, na peso para a seleção de voleibol sentado 1,96 metros de altura, o que se torna uma
força da juventude. Morteza Mehrzad do Irão, uma potência da modalidade, barreira quase intransponível para um
quebrou: ficou oito anos sem sair de com seis títulos paralímpicos e duas me- opositor que tente rematar à sua frente.
casa, deprimido, com vergonha de um dalhas de prata nas últimas oito edições. Quando o iraniano apareceu nos

80 VISÃO 26 AGOSTO 2021


palcos internacionais, em 2016, houve mãe se lembrou de apelar à comunicação QUEIXAS A DEUS
alguns protestos da parte dos rivais social para dar a conhecer o estado do O iraniano saiu do Brasil com a me-
que só a manifesta incapacidade para filho mais velho. Depois de a Imprensa dalha de ouro, depois de ter sido pro-
contrariar o seu jogo pode explicar. A local se ter interessado pela história do tagonista na final frente à Bósnia-Her-
perna esquerda de Morteza tem mais 15 homem mais alto do Irão, depressa veio zegovina, a maior rival do Irão. Com
centímetros do que a direita e, por causa atrás a TV estatal. 28 pontos, foi o melhor marcador do
dessa diferença, ele mal consegue andar. Coincidência feliz, a assistir ao pro- jogo, proeza que repetiu no Mundial de
Ou alguém o ajuda, oferecendo-lhe um grama estava o treinador de um clube de 2018, que teve os mesmos finalistas e
ombro para se apoiar, ou tem de recorrer voleibol sentado, da cidade de Chalus, igual desfecho. Entretanto, conquistou
a canadianas, o que acontece na maioria onde Morteza residia. Ligou para a ainda os Jogos Asiáticos em 2017 e 2019
das ocasiões, mais do que usar a cadeira televisão, obteve o contacto e contra- e a Liga Mundial em 2018, contribuindo
de rodas. Não há sequer a mínima mar- tou-o para a equipa, tinha ele 24 anos. para o percurso imaculado da sua se-
gem para dúvida da sua legitimidade “O voleibol sentado foi um milagre na leção nestes cinco anos que mediaram
para integrar o desporto paralímpico. minha vida”, declarou agora o jogador os Jogos do Rio e os de Tóquio, pelos
A abissal diferença de tamanho dos ao site oficial dos Jogos Paralímpicos de motivos conhecidos.
membros inferiores de Morteza teve na Tóquio, que arrancaram esta terça-feira, No regresso ao seu país, foi recebido
sua origem uma queda de bicicleta da 24, mas que para ele e para a sua seleção por uma pequena multidão em Chalus,
qual resultou a fratura da pélvis, quan- só começam esta sexta-feira, 27. uma cidade colada ao Mar Cáspio. De
do ele tinha 15 anos. Com implicações Após três anos de aprendizagem, com crianças às autoridades locais, passando
nas articulações, sobretudo ao nível do muitas deslocações para os treinos na pelos familiares, não se livrou de dar au-
joelho direito, os médicos avançaram parte de trás de uma carrinha de caixa tógrafos e posar para as selfies. “Fiquei
para uma cirurgia que não correu como aberta, face à escassez de espaço na ca- em choque, porque nunca tinha visto
esperado. A perna direita de Morteza bina, Morteza saltou para a primeira di- uma receção como aquela”, reconheceria
nunca mais acompanhou o crescimento visão e não demorou até o selecionador mais tarde, sobre aquele dia inesquecível.
da esquerda – e todo esse processo, para nacional, Hadi Rezaei, reparar nele. No “Em Teerão e no caminho para casa, vi
seu infortúnio, não iria parar tão cedo… ano seguinte, este já estava a convocá-lo, cartazes com fotos minhas e dos meus
Só anos mais tarde o iraniano e a sua bem a tempo de se estrear numa prova companheiros, mas fiquei extasiado
família viriam a conhecer o diagnóstico internacional antes dos Jogos Paralím- quando cheguei. Chorei de alegria, toda
clínico. A explicação para o seu tamanho picos do Rio de Janeiro, em 2016. a gente gritava o meu nome.”
anormal chama-se acromegalia, uma A mãe, falecida em 2019, era uma das
doença rara que se estima afetar seis pessoas que o esperavam e teve dedica-
em cada 100 mil pessoas. Distingue-se tória especial: “Ela foi pai e mãe ao longo
do gigantismo por surgir numa idade dos anos, e devo-lhe tudo o que sou hoje.
mais avançada do que a infância. O pro- Trabalhou para que não nos faltasse
blema reside na produção excessiva da nada e passou por muitos sacrifícios,
hormona do crescimento, quase sempre sobretudo depois de a minha condição
provocada por um tumor benigno. Os física se ter agravado. Agradeço a Deus
ossos crescem mais do que é suposto, daí por ter tornado o seu coração feliz com
o impacto verificado, também, ao nível a conquista da medalha desportiva mais
do rosto. As mãos de Morteza, essas, importante do mundo.”
chegaram aos 27 centímetros. Não é preciso os atletas paralímpicos
subirem ao pódio para sabermos que a
QUEM É AQUELE NA TV? sua carreira começa sempre com histó-
Era bom aluno até começar a ser alvo rias de superação. A de Morteza Mehr-
de chacota na escola, a meio do ensino zad é um bom exemplo. Um dos seus
secundário. Contra a vontade da mãe, maiores desejos é fazer ver “às pessoas
desistiu dos estudos e foi trabalhar numa com incapacidades que o desporto é uma
padaria, para ajudar nas despesas. Com opção”, bastando para isso “saírem de
o pai ausente, havia ainda um irmão e casa e começarem”. Outro é repetir em
uma irmã mais novos para sustentar. A Tóquio o resultado do Rio.
família vivia com dificuldades, mas ao O impossível, diz-nos a vida dele, é
fim de um ano os males físicos toma- relativo. “Queixei-me repetidamente a

O PROBLEMA RESIDE NA
ram conta da vida de Morteza. Quando Deus sobre a minha condição. Sempre
não estava a ser operado nos hospitais, questionei porque haveria eu de estar em
passava o tempo em casa, isolado do
mundo à sua volta. PRODUÇÃO EXCESSIVA DA tal situação, mas agora não estou muito
infeliz, porque esta doença proporcio-
Os médicos tinham finalmente con-
seguido travar o crescimento, pela via
HORMONA DO CRESCIMENTO, nou-me a minha presença na televisão
e, depois, na seleção nacional de voleibol
cirúrgica, aos 22 anos dele, mas a re-
clusão autoimposta parecia sina para
QUASE SEMPRE PROVOCADA sentado. Na verdade, a minha doença
tornou-se uma bênção na minha vida.”
se arrastar toda a vida. Foi então que a POR UM TUMOR BENIGNO Palavra de campeão. rantunes@visao.pt

26 AGOSTO 2021 VISÃO 81


LIVROS

VAGA R

Conta-me
uma boa
“A vantagem
de ter péssima
memória é
divertir-se muitas
vezes com as

história
mesmas coisas
boas como se
fosse a primeira
vez”
Friedrich Nietzsche
Escritor e filósofo
(1844-1900)

COM AS FEIRAS DO LIVRO DE LISBOA E DO PORTO


A ABRIREM PORTAS, A 26 E 27 DE AGOSTO RESPETIVAMENTE,
É TEMPO DE FAZER O DESCONFINAMENTO QUE DISPENSA
CERTIFICADO DIGITAL: O DA CURIOSIDADE. PRETEXTOS
NÃO FALTAM: A 91ª EDIÇÃO DO CERTAME NA CAPITAL
ASSUME-SE COMO O SEGUNDO MAIOR EVENTO EDITORIAL
DE SEMPRE, COM 131 EXPOSITORES; NA INVICTA, HÁ 78,
E ASSINALAM-SE OS 150 ANOS DE JÚLIO DINIS. POR AQUI,
CELEBRAMOS TAMBÉM A LITERATURA E A LIBERDADE:
SETE ESCRITORES PARTILHAM AS HISTÓRIAS
VIVIDAS ENTRE BARRAQUINHAS E AUTÓGRAFOS
S Í LV I A S O U TO C U N H A

82 VISÃO 26 AGOSTO 2021


LUÍS BARRA

26 AGOSTO 2021 VISÃO 83


LIVROS

José Eduardo Agualusa


Agradecimentos
Certa ocasião, uma senhora aproximou-
-se de mim com um exemplar de um dos
meus romances, O Vendedor de Passados,
cujo narrador é uma osga.
– Quero agradecer-lhe – disse-me, com um
sorriso tímido.
– Porquê? – perguntei, um tanto intrigado.
– Porque neste seu romance há uma osga
que ri. Em minha casa, em Benguela, vive
uma que canta para mim. Quando eu conto
isto às pessoas, ninguém acredita, mas
agora mostro-lhes o seu romance. Se as
lagartixas riem, então também podem
cantar.
Disse-lhe que acreditava nela. As osgas
certamente cantam, não cantam é para
qualquer pessoa. Ainda espero que um dia
cantem para mim.
Uma outra história. Todos os anos há
um leitor que me visita na Feira do Livro.
Distingue-se em meio à multidão que
enche o parque, espreitando os livros. Os
cabelos compridos, enrolados, a roupa,
amarfanhada e suja, colada à pele. Os
outros visitantes olham para o homem
com desconfiança. Veio ver-me, como de
costume, no ano passado. Ergui-me, dei-
lhe um abraço e convidei-o a sentar-se.
Estendeu-me um exemplar do meu último
romance, para que o autografasse, e a
seguir colocou-me nas mãos um pequeno
LUÍS BARRA

caderno de capa preta:


Este, escrevi-o eu – disse-me. – Agora é
seu.
Abri o caderno. Poemas, com fantásticas
ilustrações coloridas, que saltam,
iluminadas, contra um fundo negro.
José Luís Peixoto
Também os poemas estão escritos à mão
em tintas de várias cores.
Acontece-me receber livros de presente
Uma questão de identidade
durante sessões de autógrafos. Nunca Em 2002, na primeira feira do livro depois de ter recebido o Prémio José
recebi um tão bonito.” Saramago com Nenhum Olhar, a editora mandou fazer uma cinta para colocar no
romance premiado. O nome de José Saramago foi impresso com um tamanho
enorme, muito maior do que o meu próprio nome, na capa do romance. Então,
quando estava numa sessão de autógrafos na Feira do Livro de Lisboa, houve um
homem que viu esse livro e investiu na direção da minha mesa, muito exaltado,
convencido de que eu era o José Saramago. Não sei o que teria contra Saramago,
mas claramente não o conhecia muito bem, uma vez que, nessa altura, eu tinha
27 anos e Saramago já tinha 80. Ainda assim, foi difícil convencê-lo de que eu
não era José Saramago e foi um alívio quando, por fim, se foi embora.
Ainda no que diz respeito a Saramago, lembro-me bem de vê-lo a dar autógrafos
JOSÉ CARLOS CARVALHO

na Feira do Livro de Lisboa. Foi uma referência importante, que descrevi no livro
Autobiografia, publicado em 2019. Mas ao longo dos últimos vinte anos, tenho
participado em todas as Feiras do Livro de Lisboa e acumulado muitíssimas
histórias. Já tive, por exemplo, pessoas que vieram entubadas, acompanhadas
por assistência médica e logística, apenas para estarem presentes naquele
momento. Gestos como esses são inesquecíveis.”

84 VISÃO 26 AGOSTO 2021


Alice Vieira
Duas histórias
pelo preço de uma
O senhor, fardado de polícia, abeirou-se
de um dos stands da Leya, tirou um
papel do bolso e perguntou: “Têm este
livro” – e leu – “A Espada do Rei Afonso?”
A funcionária foi buscar o livro e apontou
para mim: “Se quiser um autógrafo, está
ali a autora.” O senhor foi ter comigo, es-
tendeu-me o livro, disse o nome do filho.
Enquanto eu escrevia, ele ia falando:
“Nem sei que raio de livro é esse… Mas
sabe, foi a professora lá da escola que o
mandou comprar… E sabe como é ago-
ra… As professoras mandam comprar
toda a merda que aparece…”
Entreguei-lhe o livro, sorri. E ele foi-se
embora. Não há nenhuma Feira do Livro
em que as funcionárias da Leya não me
recordem essa história.
Ia eu a meio da alameda do Parque
Eduardo VII para começar a sessão de
D.R.

autógrafos, quando vejo a mulher que


habitualmente por lá anda (não agora,
em tempo de pandemia) com um cesto a
vender tremoços, pinhões, amendoins e
essas coisas. Adoro tremoços e compro-
Afonso Cruz -lhe uma embalagem. Vejo que está com
uma cara estranha, mas não digo nada.
Pago, ela volta a pegar na cesta, dá meia
O fiel amigo dúzia de passos, mas volta atrás:
“Desculpe, mas a senhora pode-me
Conheci o Virgílio na Feira do Livro de Lisboa. Muitas vezes levava uma fazer um favorzinho? Fica-me aqui com a
pilha de livros meus, para ele e para oferecer, pedindo que os assinasse. minha cesta, que eu estou mesmo muito
Ocasionalmente, trazia consigo um presente, refletindo duas das suas paixões, aflita e tenho de ir já lá abaixo à casa de
o violoncelo e a porcelana. Quando publiquei Capital, uma narrativa silenciosa banho?”
em que o protagonista tem um porquinho-mealheiro que cresce com ele Nem me deixa responder, passa-me a
– como um animal de estimação –, levou-me uma peça de porcelana: um cesta para o braço e dá-me um papel
porquinho-mealheiro. Tenho também alguns discos de violoncelistas graças à onde estão anotados todos os preços.
generosidade do Virgílio. Um dia, disse-me que me queria contar uma história. “Assim, quando vierem comprar, já não se
Tinha conhecido uma pessoa – não interessam as circunstâncias –, que engana, e sabe quanto custa cada um.”
trabalhava na secretaria de um hospital e lhe tinha contado alguns episódios E lá foi alameda abaixo.
de infância, situados num orfanato da década de cinquenta do século passado. Demorou-se algum tempo.
Eram memórias pungentes, duras, sendo uma delas profundamente bela na Aquilo eram só bocas dos meus amigos
sua tragédia. Mais tarde, o Virgílio organizou um almoço em sua casa para que passavam.
que eu as ouvisse contadas pela pessoa que as viveu. Estou desde então, e já “Pagam-te assim tão mal na editora?”
terão passado mais de cinco anos, a escrever um romance cujo enredo parte “Mudaste de profissão?”
precisamente do testemunho que tive o privilégio de ouvir nesse dia.” Quando a senhora voltou, eu já tinha ven-
dido dez pacotes de amendoins e outros
tantos de tremoços e não sei quantos de
pinhões. A cesta estava quase vazia. Ela
nem queria acreditar.
“Já vi que tem jeito para isto… Se calhar,
vou-lhe pedir ajuda noutro dia!”
Preparava-me para ir para o stand quan-
do ela me chama.
“Tome lá. É a paga pelo serviço.”
E passou-me um cartucho de amendoins
para as mãos.
Se um dia me apetecer deixar de escre-
ver, já sei que profissão hei de escolher.”
JOÃO LIMA

26 AGOSTO 2021 VISÃO 85


LIVROS

Luísa Costa Gomes


Um momento
embaraçosamente pedagógico

MARCOS BORGA
Aconteceu no passado, isso de certeza, mas
evade-se-me o onde e quando. Talvez ainda
na Avenida da Liberdade, portanto antes de
1980, ou já no Parque. Havia sombras de
árvores e bancos verdes, mas também isso
Patrícia Portela
pode ser invenção minha. Tinha vinte e alguns
anos, os vinte e alguns anos pesporrentes,
desrespeitosos e ignorantes a que todos
A lei da atração
temos direito. Escrevia poemas, eu, cada um Na minha primeira vez como autora na Feira do Livro, pus o meu melhor
mais desinteressante e desenxabido do que vestido, e lá fui eu, orgulhosa, sentar-me na cadeira. À minha frente estava José
o anterior. Chamou-se Uma dúzia deles esse Saramago, com uma fila de leitores que dava duas voltas à feira. À esquerda, o
primeiro arroubo literário que prenunciava o José Eduardo Agualusa e o Mia Couto, quais médicos de família, atendiam fãs
imenso talento para títulos que depois vim que sabiam de cor os livros. E o Gonçalo M. Tavares, vestido de branco, qual
a cumprir em décadas de treze disto, doze guru, chateado por se ter esquecido de que havia jogo nesse dia, mas sempre
daquilo, outra vez isto e o que quiserem atencioso com os leitores. E o Ondjaki, com 200 livros sobre a mesa, rodeado
daquilo. Fiz da juvenil coleção cem cópias, ou de multidão. Eu, que nem caneta tinha, era a ilha deserta naquele arquipélago
policópias, bastante esborratadas e com todas de gente. O Zeferino Coelho sentou-se ao meu lado. A certa altura, lá apareceu
as marcas desse amadorismo que defendo um amigo, o encenador André e. Teodósio, que, fascinado com as histórias do
ainda, agrafadas à mão nos serões de inverno Zeferino, logo puxou de uma cadeira. A seguir passou a atriz Sandra Faleiro, e ali
da Costa da Caparica. Fui vender?, distribuir?, ficou a conversar. Chega uma tia que não via há anos, com um novo namorado,
a obra à Feira do Livro, não me lembro com que reconhece um dos personagens do Zeferino. O Ondjaki e o Gonçalo vêm
que sucesso. Nem me lembro se escolhia cumprimentar o Zeferino, Agualusa, Mia e livreiros de outras bancas juntam-se,
as pessoas a quem dava o panfleto, se as trocam-se abraços e gargalhadas. A Helena ou a Catarina, da Caminho, tem a
conhecia, se as abordava, nem como é que ideia de ir buscar farturas para todos (o tempo da ginjinha e do sumo saudável
fui dar com o Alberto Pimenta, o conhecido é recente). A minha mesa é, agora, a mais concorrida. Eu termino a sessão com
poeta e expoente da irreverência, sentado um livro assinado apenas (comprado pelos meus pais, claro!), mas certa de
num banco, não sei se com Zink, se sem Zink. ser a autora mais chique de toda a feira. Desde então, dia de autógrafo é dia de
Ainda hoje me intriga esse impulso que no encontro com farturas na minha mesa. Quem já sabe vai lá ter, lá pelas 18h,
momento me tomou, não de lhe entregar quando está mais fresquinho!”
a dita dúzia, isso faz sentido, mas a ideia
peregrina de lhe passar para a mão, para que
ele o autografasse, As Palavras e as Coisas,
de Michel Foucault. Era um calhamaço, uma
tradução, ainda por cima um livro usado que
eu acabava de comprar. Eu não conhecia
Alberto Pimenta em pessoa. Mas não era
Richard Zimler
preciso conhecê-lo bem para perceber que
estava realmente furioso. Eu fiquei no papel
ingrato da engraçadinha. “Mas você quer
A cena surreal
que eu assine um livro que não escrevi?”. Naquele dia de 2006, após ter sido
Embaraçosamente pedagógico, o poeta. Foi publicado o meu romance Goa ou o
LUCÍLIA MONTEIRO

reprimenda bem aplicada. Mas o que é que me Guardião da Aurora, esperava-me muita
passou pela cabeça?” gente na Feira do Livro de Lisboa.
Passada meia hora, uma senhora com
uns 50 anos posicionou-se dez metros
atrás de mim, e começou a gritar: “O
Zimler não é judeu, é alemão, é um nazi!” À minha volta, ninguém ficou
perturbado. Mas eu sou dos EUA, onde qualquer um é alvo de assédio
na rua. Fiquei preocupado. Pedi a alguém da editora para contactar a
Polícia: esta nunca chegou. Tentei ir ter com a senhora para perceber,
para a calar. Não consegui. Voltei a assinar autógrafos, desconcentra-
do. “Nazi!” A minha família perdeu-se quase toda na Europa, uns em
MARCOS BORGA

Treblinka, outros em Auschwitz... Finalmente, ela partiu. Soube mais


tarde que fora à banca do José Saramago e também gritara com ele.
Não sei o que lhe terá dito. Talvez ele tenha tido mais sorte do que eu.”

86 VISÃO 26 AGOSTO 2021


PESSOAS

GRADA KILOMBA
“Precisamos da arte para
levantar questões”
É de racismo e de pós-colonialismo que trata a mais recente
exposição da artista e ativista portuguesa. O Barco/The Boat
aporta no MAAT, em Lisboa, no início de setembro
ALEXANDRE ABRANTES NEVES

D
epois do sucesso das dos porões dos barcos da época
individuais The Most quinhentista e representa as formas
Beautiful Language como os corpos dos escravos
e Secrets to Tell, em eram dispostos nas longas viagens
2017, Grada Kilomba transatlânticas dos Descobrimentos.
está de volta a Por- As histórias sobre os blocos são uma
tugal com a expo- homenagem, o funeral digno que
sição O Barco/The milhões de pessoas nunca tiveram
Boat, comissão da BoCA Bienal 2021 oportunidade de ter. Já o poema, da
em co-produção com o MAAT, onde, minha autoria, foi pensado como
a partir de 3 de setembro, se alinharão o choro de todas as vítimas do
140 blocos de madeira queimada ao colonialismo – por isso mesmo, vai
longo do rio, num total de mais de 32 ser interpretado, entre três atos, por
metros de comprimento. Pensados para um coro na estreia da instalação, à
se assemelharem aos porões das naus responsabilidade do Kalaf Epalanga.
dos Descobrimentos, sobre os blocos da Qual é a sua posição face ao debate
construção repousam histórias e poemas sobre a demolição do Padrão
que estimulam a reflexão sobre a época dos Descobrimentos?
quinhentista. Em conversa com a VISÃO, Neste momento vivo em
a artista explorou a mensagem da obra, o Berlim, pelo que não consigo
movimento Black Lives Matter e, claro, tomar uma posição concreta
o Padrão dos Descobrimentos. sobre o tema. Porém,
Como surgiu a ideia desta obra? apraz-me muito sentir
O Barco/The Boat que chega agora ao que, sempre que venho
MAAT é uma instalação que pretende a Lisboa, há uma nova
levantar uma série de questões ao geração preparada para
espectador. Qual a verdadeira história lutar contra narrativas
da escravidão africana pelos impérios que lhe são apresentadas
europeus? Há falta de rigor na forma de uma forma
como nos contam a nossa História? quase dogmática.
Quais os efeitos que esta política Movimentos, como
tem no ressurgimento de grupos o Black Lives Matter,
extremistas? A reflexão é a grande que têm cada vez
finalidade da arte. Precisamos da arte mais uma significativa
para levantar estas questões. massa jovem são
Que narrativas encontramos nos importantíssimos na
blocos da construção? luta pela igualdade.
A instalação é uma reconstrução aneves.est@visao.pt

26 AGOSTO 2021 VISÃO 87


87
TENDÊNCIAS

Adeus, anjos.
Vivam as mulheres reais
Já vem tarde, mas a Victoria’s Secret finalmente rendeu-se
às evidências: deixar os anjos e descer à terra é a melhor
forma de vender lingerie. O marketing comprometido com
os problemas sociais está na crista da onda
ROSA RUELA

H
á 17 anos, este arti- pra Jonas, a esquiadora olímpica Eileen
go poderia começar Gu, a fotógrafa Amanda de Cadenet e as
pelo ar andrógino modelos Paloma Elsesser, Adut Akech
da futebolista Me- e Valentina Sampaio. Priyanka é em-
gan Rapinoe, talvez baixadora da Boa Vontade da UNICEF,
vincando que o seu desde 2016; Eileen bate-se pelo em-
cabelo e algumas poderamento das jovens através do
das suas expres- desporto; Amanda criou uma pla-
sões lembram a atriz Tilda Swinton. taforma digital de fotografia feita
Mas, agora, quando olhamos para as apenas por mulheres; Paloma defende
fotografias da avançada americana e ativamente a positividade corporal; Adut
vemos aquele cabelo curto cor de rosa, é uma refugiada sudanesa e Valentina é antes que a concorrência (que vai muito
pensamos logo em alguém não binário transexual. à frente na corrida da representação da
e parece-nos natural. No Instagram, onde, este verão, o VS diversidade étnica e morfológica, escre-
Não é uma questão de semântica ou Collective tem tido uma presença cons- va-se) começasse a gozar com a sua visão
de cor. Em 2004, o mundo espantava-se tante, Valentina Sampaio (que não, não é de alguém que acredita em unicórnios,
com a campanha Beleza Real da Dove, da família de Sara) afirmou-se honrada Martin Waters veio fazer um mea culpa.
porque ver mulheres de todos os tama- por fazer a parceria juntamente com “Numa altura em que o mundo estava
nhos e feitios em anúncios de cremes e mulheres que a inspiraram tanto. “Cele- a mudar, fomos demasiado lentos a res-
afins era inesperado no meio publici- bramos a autenticidade, a comunidade e ponder a isso”, assumiu o presidente da
tário – embora certeiro e atual para as o amor por todas as mulheres”, escreveu Victoria’s Secret, durante uma videocon-
consumidoras. Em 2021, o mundo não a modelo que, já em 2019, tinha sido ferência com os acionistas. “Tínhamos
espera outra coisa. contratada numa tentativa de melhorar de parar de agir em função daquilo que
O que nos leva até à mudança “drás- a imagem da marca de lingerie. os homens queriam e começar a pensar
tica” de conceito da marca americana A publicação da modelo brasileira naquilo que as mulheres querem.” O ob-
de lingerie Victoria’s Secret (o adjetivo tem um pouco de discurso de miss, mas, jetivo, nos próximos tempos, é renovar
é da lavra do próprio diretor-executivo, a marca “para torná-la mais relevante e
Martin Waters, nomeado em fevereiro), mais inclusiva, para torná-la mais con-
que finalmente trocou os “anjos” por sistente com a atitude e o estilo de vida
ativistas sociais (o advérbio é nosso, mas
não é abusivo, como se vai ler). Em vez
EM VEZ DE MODELOS da mulher moderna”, disse ainda Waters.

de modelos esculturais, como a portu- ESCULTURAIS, COMO MAIS ESCÂNDALOS

A PORTUGUESA SARA
guesa Sara Sampaio, que nos habituámos Fundada em 1977, a marca tardou a
a ver desfilar de asas e plumas, as novas adaptar a sua comunicação à evolução
embaixadoras da marca são “ícones do
nosso tempo”, twittou a propósito Me- SAMPAIO, AS NOVAS da sociedade. Os famosos desfiles de
“anjos” começaram em 1995 e só aca-
gan Rapinoe.
Além da futebolista, que fora das
EMBAIXADORAS DA baram em 2018, ano em que a quebra
nas vendas havia de se traduzir numa
quatro linhas é conhecida como ativista
pela igualdade de género, o grupo VS
MARCA SÃO “ÍCONES descida de 41% no preço das ações. No
ano seguinte, seriam encerradas mais
Collective incluiu a atriz Priyanka Cho- DO NOSSO TEMPO” de 50 lojas.

88 VISÃO 26 AGOSTO 2021


Caras novas A futebolista Megan
Rapinoe, a atriz Priyanka Chopra
Jonas, a modelo trans Valentina
Sampaio e a modelo plus size
Paloma Elsesser

Rui Oliveira Marques, diretor-adjunto sociais a assinalar sempre que a imagem


da Meios & Publicidade, vê, por isso, esta é retocada por filtros ou outros progra-
mudança de conceito como uma neces- mas de edição. Na França também, nos
sidade pragmática. “A campanha Beleza anúncios em revistas de moda.”
Real, da Dove, é de 2004. Passaram-se Para a francesa Caroline Courbières,
mais de 15 anos; portanto, a questão de professora em Ciências da Informação
mostrar corpos realistas de mulheres de- e Comunicação, tudo isto faz parte de
morou. Mas é óbvio que isso só acontece todo um movimento que luta contra as
porque vende. A própria Victoria’s Secret representações estereotipadas, nomea-
só agora mudou – de ‘anjos’ para ativis- damente nas redes sociais. “Os jovens
tas sociais – porque as vendas estavam são particularmente sensíveis a estas
a vir por aí abaixo”, afirma. questões: aceitar o próprio corpo e não
Além da insistência num ideal femini- se conformar com as expectativas da
no desatualizado, não ajudaram os vários sociedade”, sublinhou a especialista em
escândalos que beliscaram a marca de fenómenos da moda, ao diário católico
lingerie nos últimos anos. Desde ligações francês La Croix. “A utilização pelas
ao pedófilo Jeffrey Epstein, que geria o marcas da imagem de mulher-objeto,
dinheiro de Les Wexner, fundador da submetida ao desejo masculino, pode
empresa, e era considerado um amigo ter hoje um efeito repulsivo.”
próximo da família, até às declarações A mudança de estratégia levou já a
homofóbicas do anterior diretor de Victoria’s Secret a lançar soutiens de
marketing, Ed Razek, passando por um maternidade e soutiens de mastectomia,
ambiente misógino nos escritórios. além de uma maior variedade de tama-
Acrescente-se que também não ha- nhos. Paloma Elsesser, que foi a primeira
via grandes hipóteses de adiar mais a modelo plus size a aparecer na capa da
mudança. A sociedade tinha evoluído, Vogue, tem estado a fazer lóbi para que a
lembra Oliveira Marques. “Na Norue- empresa vá até ao XXXXXL, disse ao The
ga foi aprovada uma lei que obriga New York Times. Para os novos anjos,
os anúncios de televisão e as redes o céu parece ser o limite. rruela@visao.pt

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CRÓNICA

P O R M I G U E L A R A Ú J O / Músico

T
O Homem odos os domingos da minha primeira infância,
enquanto ainda morava em Águas Santas, a
família alargada rumava em bando à missa da

Mais Alto Igreja da Trindade, no centro do Porto. Porquê


tão longe não sei, nunca me lembrei de perguntar.
Quase sem exceção íamos a pé, de seguida, à

do Mundo fábrica dos Gelados Neveiros, que ficava ali ao


lado. A Dona Virgínia abastecia aquela tropa
imensa de gelados de várias cores e feitios. Caramelo e framboesa
era o que mais saía. Lembro-me de que algumas vezes, suponho
agora que em domingos de verão, fomos a uma espécie de feira
popular itinerante que por pouco mais de um par de anos foi
montada num descampado ali para os lados do Lima 5. Talvez
não fosse aí, mas na minha memória o Luna Park ficava ao lado
do Lima 5. Era uma feira popular com roda gigante, carrinhos
de choque, maçã caramelizada e algodão-doce, túnel do terror,
essas coisas assim. Eu era muito novo, nem 10 anos teria. Mas
nunca mais me esqueci dum moçambicano muito magro, de
calças de fazenda cinzentas e camisa branca com bolsos no peito e
manga curta, sentado numa cadeira branca de plástico: o Homem
Mais Alto do Mundo. As pessoas faziam fila e pagavam por uma
fotografia com tão inusitada aberração que, não sem custo, se
levantava num gesto de mecânico enfado e, sem sorrir, punha a
mão gigante no ombro do corretratado. Depois sentava-se outra
vez, os joelhos pontiagudos quase à altura dos ombros, como que
a querer furar as calças, as mãos gigantes em repouso sobre a
dobra dos joelhos. O homem era de facto gigante. Lembro-me de
sentir uma imediata empatia pelo malfadado destino dessa pobre
alma que passava a vida nesse senta-levanta sem propósito a sorrir
amarelo para o passarinho. Um dó profundo trespassou a minha
alma imberbe, sei agora que até hoje. Nunca mais soube do Luna
Park, acho que nunca mais voltou ao descampado do Lima 5.
O circo lá terá seguido a sua campanha por outras paragens, outras
fotografias, mais um sem-fim de sentas-levantas para o Homem
Mais Alto do Mundo, quantos quilos de algodão-doce e maçã
Aquela visão no caramelizada. Até março de 2019, no fim dos concertos, o Chico
Carvalho montava-me uma banca com uma garrafinha de água,
Luna Park é mais um uma caixinha de canetas de feltro finas, um monte de CD e livros
daqueles mistérios e eu sentava-me a postos, as mãos não gigantes mas grandes em
repouso sobre a dobra dos joelhos. O Chico dizia posso mandar vir
insondáveis que não as feras e eu dizia manda, manda, as pessoas já faziam fila por uma
ouso compreender fotografia ou uma assinatura com tão inusitada aberração que, não
em que, nalguns sem custo, se levantava num gesto de mecânico enfado e, sorrindo,
punha a mão não gigante mas grande no ombro do corretratado,
momentos, o passado horas sem fim nisto, daí o dó profundo na alma, agora entendo,
e o futuro falam um o Homem Mais Alto do Mundo sou eu, aquela visão no Luna
Park é mais um daqueles mistérios insondáveis que não ouso
com o outro de igual compreender em que, nalguns momentos, o passado e o futuro
para igual falam um com o outro de igual para igual. visao@visao.pt

90 VISÃO 26 AGOSTO 2021

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