Revista Trimestral de
Jurisprudência
COMISSÃO DE REGIMENTO
COMISSÃO DE JURISPRUDÊNCIA
COMISSÃO DE DOCUMENTAÇÃO
COMISSÃO DE COORDENAÇÃO
PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
PRIMEIRA TURMA
Pág.
ACÓRDÃOS ................................................................................................ 725
ÍNDICE ALFABÉTICO ........................................................................... 1065
ÍNDICE NUMÉRICO ............................................................................... 1111
ACÓRDÃOS
AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA 756 — SP
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tri-
bunal Federal, por seu Tribunal Pleno, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim, na
conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de
votos, remeter os autos ao Superior Tribunal de Justiça, para que decida a matéria, nos
termos do voto do Relator.
Brasília, 4 de agosto de 2005 — Carlos Ayres Britto, Relator.
728 R.T.J. — 197
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de conflito de atribuições entre o
Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado de São Paulo.
2. Tudo começou com a representação feita pelo cidadão Fernando Antônio Ramos
Gonçalves, em agosto de 1998, ao Ministério Público Federal. Disse o representante
que, após a privatização do sistema de transporte ferroviário nacional, operado pela
Rede Ferroviária Federal S.A., o serviço correspondente foi transferido às empresas
privadas mediante concessão. Para esse fim foram leiloadas as seis malhas ferroviárias
então existentes. Entretanto, as empresas concessionárias não vêm cumprindo os ter-
mos dos respectivos contratos, o que resulta em prejuízo e má qualidade do serviço
público. O próprio Ministério dos Transportes — aduz o representante — modificou o
objeto da licitação, em afronta às Leis n. 8.666/93 e 8.987/95.
3. Pois bem, a digna Procuradora da República a quem foi distribuído o expediente,
Dra. Fernanda Teixeira S. D. Taubemblatt, entendeu descabida a intervenção do Minis-
tério Público Federal, no caso, por se tratar “de atos de empresas privadas, que não
perdem tal identidade pelo fato de serem concessionárias de serviço público.” Dessa
forma, citando dispositivos da Lei Complementar n. 75/93, Sua Excelência determinou
o envio do feito ao Ministério Público do Estado de São Paulo.
4. Deu-se então que o Parquet estadual discordou de tal entendimento, pela palavra
do Promotor de Justiça da Cidadania, Dr. Fernando Capez, segundo quem há “notório
interesse da União no deslinde da questão”. Para ele, cabe ao poder concedente fisca-
lizar os atos praticados pelas empresas concessionárias, aplicando-lhes, se for o caso, as
penalidades previstas na lei e nos contratos.
5. Na mesma linha posicionou-se o Procurador-Geral de Justiça, Dr. Rodrigo
César Rebello Pinho, que focalizou a questão na “inércia do poder concedente no que
diz respeito à fiscalização do serviço concedido, de competência da União (CF, artigo
21, 12, d), e cuja qualidade — segundo se alega — estaria comprometida justamente em
razão da suposta complacência do Poder Público com as empresas prestadoras.” Por
isso — concluiu o ilustrado Procurador —, deverá o Ministério Público Federal prosse-
guir nas investigações.
6. Criado, assim, o impasse, aquela eminente autoridade determinou a remessa
dos autos a esta egrégia Corte, para resolvê-lo, nos termos do art. 102, inciso I, letra f, da
Magna Carta. Considerou Sua Excelência, enfim, que subjaz um conflito entre a União
e o Estado bandeirante, por estar em causa “o exercício de deveres institucionais não-
concorrentes”.
7. Mas este não é o pensamento do douto Procurador-Geral da República, Dr.
Cláudio Fonteles, a quem enviei os autos assim que os recebi. Para ele, o conflito de
atribuições não deve ser conhecido “no âmbito do Supremo Tribunal Federal, encami-
nhando os autos ao Procurador-Geral da República para seu exame e decisão”. Ou
seja, de acordo com a manifestação de fls. 1.036/1.040, o incidente ora noticiado encer-
ra matéria interna corporis do Ministério Público, que desconhece hierarquia entre as
esferas federal e estadual. Em suma, o raciocínio aqui desenvolvido é o seguinte: “no
espaço em que se controverte, onde não há pedido formalizado em juízo; onde não há
partes, por qualquer perspectiva, o chamamento do Poder Judiciário é injurídico”.
R.T.J. — 197 729
Daí o pedido para que se devolva o feito ao mesmo digno parecerista, que entende estar
investido da necessária competência para resolver o “incidente”, como ele próprio o
chama.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Como visto no relatório, o Ministério
Público Federal e o Ministério Público do Estado de São Paulo dissentem quanto à
competência para processar representação feita por cidadão brasileiro, em que se alega
descumprimento dos contratos de concessão resultantes da privatização do sistema de
transporte ferroviário nacional.
10. Convém esclarecer que, até agora, não houve manifestação do Poder Judiciá-
rio no caso, que pudesse caracterizar conflito de jurisdição.
11. Dito isso, relembro que os autos vieram a esta egrégia Corte ante a invocação
do art. 102, inciso I, letra f, da Magna Carta, assim legendado:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda
da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
(...)
f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito
Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração
indireta;
(...)”
12. É bom lembrar que, na sessão do dia 3-10-2002, o Plenário desta egrégia Corte
teve oportunidade de apreciar caso semelhante, em que se antagonizavam o Ministério
Público Federal e o Ministério Público de Minas Gerais. Tratava-se da Petição 1.503,
Relator Ministro Maurício Corrêa. O pano de fundo era uma suposta falsificação de
guias de contribuição previdenciária. Decidiu-se, então, pela remessa dos autos ao
Superior Tribunal de Justiça, por força de acórdão assim ementado:
“Conflito negativo de atribuições. Ministério Público Federal e Estadual.
Denúncia. Falsificação de guias de contribuição previdenciária. Ausência de
conflito federativo. Incompetência desta corte.
Conflito de atribuições entre o Ministério Público Federal e o Estadual.
Empresa privada. Falsificação de guias de recolhimento de contribuições previ-
denciárias devidas à autarquia federal. Apuração do fato delituoso. Dissenso quan-
to ao órgão do Parquet competente para apresentar denúncia.
A competência originária do Supremo Tribunal Federal, a que alude a letra
f do inciso I do artigo 102 da Constituição, restringe-se aos conflitos de atribui-
ções entre entes federados que possam, potencialmente, comprometer a harmonia
do pacto federativo. Exegese restritiva do preceito ditada pela jurisprudência da
Corte. Ausência, no caso concreto, de divergência capaz de promover o desequi-
líbrio do sistema federal.
730 R.T.J. — 197
16. Já se vê, eminentes Ministros, que a matéria é polêmica e não encontra uma
solução linear nas disposições constitucionais que traçam as competências do Supremo
Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
17. Por outro lado, é relativamente parcimoniosa a produção doutrinária sobre o
tema. Dele se ocuparam, com maior ou menor profundidade, Sérgio Demoro Hamilton,
Hugo Nigro Mazzilli e o então Procurador da República Cláudio Lemos Fonteles, hoje
à frente do Ministério Público Federal. A maioria dos estudos foi feita sob a égide da
Ordem Constitucional pretérita e também não deságua numa solução única. Mais re-
centemente temos Paulo Cezar Pinheiro Carneiro e Eugênio Pacelli de Oliveira. Este
último, no seu Curso de Processo Penal (2ª edição, 2003, Editora DelRey) faz um
apanhado das soluções possíveis e manifesta a sua concordância com o entendimento
desta Suprema Corte, expresso no julgamento da Pet 1.503.
18. Transcrevo as suas palavras (pp. 39/40):
“Na primeira hipótese — conflito entre Ministério Público Federal e
Estadual — também não se pode aceitar a competência do Procurador-Geral da
República para a solução do conflito, uma vez que não ocupa ele qualquer posição
(administrativa, funcional ou operacional) hierarquicamente superior aos procu-
radores-gerais de Justiça dos Estados.
Assim, a solução do problema, aparentemente insolúvel, tanto para uma,
quanto para outra hipótese, poderia ser aquela preconizada por Paulo Cezar Pi-
nheiro Carneiro (O Ministério Público no processo civil e penal. 1999, p. 213),
no sentido da aplicação do disposto no art. 102, f, da Constituição Federal, atribu-
indo-se ao Supremo Tribunal Federal a solução da pendenga. O dissenso, assim,
constituiria uma causa e envolveria órgãos integrantes da União e dos Estados,
resolvendo-se entre estes o conflito.
Outra solução possível, por meio de recurso eminentemente analógico, art.
105, I, d, CF, diante da ausência de norma aplicável, seria a fixação da competên-
cia no Superior Tribunal de Justiça, que é o órgão da jurisdição competente para
a solução de conflito entre a Justiça estadual e a Justiça Federal de primeira instân-
cia. Assim, como os membros do Ministério Público atuam perante esses órgãos,
a competência do Superior Tribunal de Justiça seria logicamente a mais adequa-
da. Ficamos com essa última, mais coerente com a preservação do sistema de
solução de conflitos de jurisdição, tendo em vista que a matéria, embora discutida
ao nível de conflito entre membros do Ministério Público, é, efetivamente, de
definição da jurisdição.
De se registrar que em decisão recente o Pleno da Suprema Corte veio a
sufragar esse entendimento, que sustentávamos desde a primeira edição deste
Curso, consoante se vê no julgamento da Pet 1503/MG, em acórdão relatado pelo
eminente Min. Maurício Corrêa, publicado no DJ de 14.11.2002, vol. 2091, p. 59,
constando da ementa exatamente a mesma fundamentação:
‘(...) Presença de virtual conflito de jurisdição entre os juízos federal e
estadual perante os quais funcionam os órgãos do parquet em dissensão.
Interpretação analógica do artigo 105, I, d, da Carta da República, para fixar
a competência do Superior Tribunal de Justiça, a fim de que julgue a contro-
vérsia.’
R.T.J. — 197 733
19. Pois bem, Senhor Presidente. Feito esse giro sobre o assunto, volto ao ponto de
partida, para alinhar o meu pensamento à orientação traçada por esta colenda Corte ao
julgar a multicitada Petição 1.503. Afinal, há que se dar uma solução ao caso. Se não
existe a dicção literal do texto normativo, dê-se-lhe a interpretação que melhor se afine
com o espírito da Lei Maior. O conflito imediato é de atribuições, não se pode negar,
mas ele encerra, nas dobras do processo, um conflito potencial de jurisdição. Lembremo-
nos, uma vez mais, de Carlos Drummond de Andrade: “sob a pele das palavras há
cifras e códigos”.
20. Ante o exposto, não conheço do conflito. Em conseqüência, declino da com-
petência para o Superior Tribunal de Justiça, ao qual deverão os autos ser oportuna-
mente remetidos.
21. É como voto.
EXTRATO DA ATA
ACO 756/SP — Relator: Ministro Carlos Britto. Autor: Ministério Público do
Estado de São Paulo. Interessado: Fernando Antonio Ramos Gonçalves.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, decidiu remeter os autos para o Superior
Tribunal de Justiça, para que decida a matéria, nos termos do voto do Relator. Ausentes,
justificadamente, os Ministros Celso de Mello e Carlos Velloso. Presidiu o julgamento
o Ministro Nelson Jobim.
Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda
Pertence, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto,
Joaquim Barbosa e Eros Grau. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto
Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 4 de agosto de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie
(RISTF, art. 37, I), na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, deferir o pedido de extradição, nos termos do voto do Relator.
Ausentes, justificadamente, os Ministros Nelson Jobim (Presidente) e Carlos Velloso.
Brasília, 25 de maio de 2005 — Celso de Mello, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Celso de Mello: O Ministério Público Federal, em parecer da lavra
do eminente Procurador-Geral da República, Dr. Claudio Fonteles, assim resumiu e
apreciou o pedido de extradição, que se reveste de caráter executório, formulado pelo
Governo da República Francesa (fls. 145/149):
“A República Francesa formaliza pedido de extradição do Sr. Jean-Pierre
Bourg, divorciado, comerciante, nascido em Tullins/França, no dia 12.02.1946,
filho de Emile Bourg e Josette Chenavas, condenado a 18 (dezoito) anos de
reclusão, por sentença pronunciada em 27 de janeiro de 2003, pelo Tribunal do
Júri do Circulo do Isère/França, pela prática de crimes de estupro e atentado
violento ao pudor, cometidos contra sua filha Rachel Bourg (fl. 29).
2. O pedido de extradição foi formalizado com base na promessa de recipro-
cidade de tratamento para casos análogos (Nota verbal n. 54 – fl. 5), tendo sido
decretada sua prisão preventiva para fins da extradição (fl. 31 e fl. 103), estando
atualmente recolhido no presídio Ari Franco/SEAP/RJ (fl. 102).
3. No interrogatório realizado no dia 28 de março de 2005 (fls.116/121), o
extraditando negou o seu envolvimento nos fatos ilícitos a ele imputados, afir-
mando que ‘deseja retornar à França para provar sua inocência; que foi interrogado
em território francês; que confirma tudo que foi dito quando foi interrogado na
França; que afirma ‘minha ex-mulher e sua filha montaram essa história para me
destruir’; que há vinte e um anos mora com uma mulher que ama, com a qual teve
um filho; que se amam muito; que tiveram um filho chamado Pierre, e desde
então a ex-mulher se tornou diabólica e sua filha também ficou contrariada, porque
imaginava ser a única herdeira; (...) que sua filha Rachel não tem qualquer sinal de
anormalidade, e que uma pessoa estuprada pelo pai seria indubitavelmente trau-
matizada; que Rachel procurou sua irmã Laurance na Monpelier, após a perda do
filho desta, sendo que ambas combinaram uma união de esforços para destruir o
736 R.T.J. — 197
interrogando; que nesta época a mais velha tinha 32 anos e a mais nova tinha 26,
e ambas combinaram procurar um juiz para dizer que o denunciado as tinha
violado; (...) que sua filha foi ao Canadá porque naquele país há associações de
vítimas de estupros cometidos por ascendentes; (...) que lá aprendeu todas as
características que apresentam as vítimas dos aludidos crimes; que ela é uma
moça muito inteligente; que ela retornou para a França com todo este conheci-
mento e levando um diário enorme, todo ele escrito com a mesma letra; que neste
diário ela redigiu e inventou toda a história deste estupro; (...) que não foi feito
exame de corpo de delito na vítima; que sua esposa era prostituta enquanto foi
casada com o interrogando, e o interrogado não sabia; (...) que nunca havia sido
vítima de denuncia de estupros anteriormente; que a polícia fez um levantamento
da vida escolar de sua filha, tendo ouvido as pessoas da escola por onde passou, e
apurou que tudo era normal.’
4. Em sua defesa a fls. 126/127, o extraditando afirma que quer retornar à
França para provar que é inocente, porque não estuprou a filha e os fatos narra-
dos são montagem da ex-mulher e da filha para o destruir, desde que vive com
outra mulher e tem um filho.
5. O pedido extradicional da República Francesa reúne condições para ser
deferido.
6. Preliminarmente, observe-se que o processo extradicional é de caráter
especial, sem dilação probatória, desta forma, não cabe no processo de extradi-
ção passiva analisar sobre a inocência do requerente. Por outro lado, mesmo
com a concordância do extraditando em retornar a seu país, não haveria a possibi-
lidade de renúncia ao procedimento extradicional, não dispensando o controle da
legalidade do pedido.
7. Como se sabe, ao estado requerente incumbe a obrigação de produzir,
dentre outros elementos, aqueles que constituem os documentos indispensáveis à
própria instauração do juízo extradicional, em razão da exigência estabelecida
pelo art. 80, caput, da Lei n. 6.815/80.
8. Com efeito, no caso, foi exposto o episódio motivador da postulação.
Vem instruído com a sentença condenatória e os demais documentos exigidos
pela Lei n. 6.815/80, havendo indicações sobre o local, data, natureza e circuns-
tâncias do fato delituoso, com cópia dos textos legais pertinentes, todos em por-
tuguês, de modo a permitir ao Supremo Tribunal Federal o exame seguro da
legalidade da pretensão extradicional .
9. Vale lembrar que a Lei 6.815/80, arts 91 e ss, estabelece dentre os requisitos
formais exigidos para o pedido extradicional a existência de título penal con-
denatório ou de mandado de prisão emanados de juiz, tribunal ou autoridade
competente do Estado estrangeiro.
10. No caso presente, a extradição fundou seu pedido na sentença condena-
tória (fl. 28), instruído com mandado de prisão expedido por autoridade judiciá-
ria francesa competente (fl. 31).
R.T.J. — 197 737
11. Também se faz presente o requisito da dupla tipicidade, uma vez que os
fatos atribuídos ao extraditando são igualmente puníveis na lei penal brasileira
(estupro e atentado violento ao pudor).
12. Segundo consubstanciado nos autos, o extraditando foi condenado a
18 anos de reclusão pela prática dos crimes de estupro por ascendente contra
menor de 15 anos e crimes de estupro por ascendente (fl. 32), nas penas dos artigos
222-23 e 222-24, 222-44, 222-45, 222-47, 131-26, 131-27 e 131-31 do Código
Penal Francês e 332 do antigo Código Penal em vigor na época dos fatos, vistos os
artigos 627 a 641 do Código de Processo Penal Francês (fl. 29), porque:
‘Atendendo que o processo é tido por legítimo e que os elementos
recolhidos vieram provar que Bourg Jean-Pierre é culpado de ter em
Vinay, Grenoble, Varces, Tullins Paris e através de todo o território nacional:
‘— entre 1986 e 19 de Outubro de 1989, cometido actos de penetra-
ção sexual, por constrangimento, ameaça ou surpresa, sobre a pessoa de
Rachel Bourg, menor de 15 anos, nascida em 20.10.1974, em relação à qual
ele era ascendente natural;
— entre 20 de Outubro de 1989 e 1993, cometido actos de penetração
sexual, por violência, constrangimento, ameaça ou surpresa, sobre a pessoa
de Rachel Bourg, em relação à qual ele era ascendente natural;’
13. Segundo as leis brasileira e francesa não restam prescritos os delitos em
questão (fls. 87; 52; 54).
14. Considerando que a pena foi aplicada globalmente, para a prescrição
conta-se a pena mínima aplicada a cada um dos crimes, conforme consta na deci-
são da Extradição 774-2, Relatora Ministra Ellen Gracie, verbis:
‘(...)
O trânsito em julgado ocorreu em 11.10.89.
A pena de 8 anos e 3 meses de reclusão foi aplicada globalmente aos 5
crimes referidos, não havendo na cópia da sentença o quantum fixado para
cada delito. O crime de disparo de arma de fogo foi anistiado e o crime de
posse e porte ilegal de armas foi colocado a salvo da extradição por ser, na
época dos fatos (novembro/86), considerado contravenção pela nossa legis-
lação. Diante da iliquidez da pena global aplicada aos crimes, pela exclu-
são destes 02 (dois) últimos e em face de não existir na sentença aplicação
individualizada de pena, passo, a exemplo do que fez o Dr. Edson no pare-
cer, a examinar a prescrição levando em conta a pena mínima cominada
aos crimes pela legislação italiana.
(...)’
15. Ante o exposto, opina o Ministério Público Federal pela concessão do
pedido de extradição formulado pela República Francesa, em desfavor de Jean-
Pierre Bourg.” (Grifei)
É o relatório.
738 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Celso de Mello (Relator): Este pedido de extradição reveste-se de
caráter executório, eis que se apóia em condenação decretada, pela Justiça da República
Francesa, contra o ora extraditando, “(...) para a execução de uma pena de 18 anos de
reclusão criminal pronunciada em 27 de janeiro de 2003 pelo Tribunal de Grenoble,
por fatos de violação de menor (...)” (fl. 08 — grifei).
Cabe-me assinalar, desde logo, que o ora extraditando, em manifestação for-
mal produzida por intermédio de Advogado regularmente constituído (fl. 115),
concorda, integralmente, com o imediato deferimento deste pedido de extradição
(fls. 126/127).
Impõe-se referir, neste ponto, por necessário, que a circunstância de o extradi-
tando concordar com o pedido extradicional não basta, por si só, para viabilizar o
acolhimento do pleito deduzido pelo Estado estrangeiro interessado.
É preciso ter em consideração, presente o contexto em referência, que “O simples
desejo manifestado pelo extraditando não se revela apto a flexibilizar as regras do
procedimento extradicional” (Ext 872/Argentina, Rel. Min. Gilmar Mendes).
Esse entendimento nada mais reflete senão a orientação jurisprudencial que o
Supremo Tribunal Federal firmou no sentido de não assumir relevo jurídico, só por si,
a eventual concordância do súdito estrangeiro com o pedido de extradição contra ele
dirigido, pelo fato de que o processo extradicional representa garantia indisponível
instituída em favor do próprio extraditando (RTJ 177/566-567, Rel. Min. Nelson
Jobim, Pleno — Ext 751/Alemanha, Rel. Min. Nelson Jobim):
“O controle jurisdicional, pelo Excelso Pretório, do pedido de extradição
deduzido pelo Estado estrangeiro traduz indeclinável exigência de ordem
constitucional e poderosa garantia — de que nem mesmo o extraditando pode
dispor – contra ações eventualmente arbitrárias do próprio Estado.”
(RTJ 132/139, Rel. Min. Celso de Mello)
“Extradição — Concordância do extraditando — Circunstância que não
dispensa o controle de legalidade do pedido extradicional, a ser efetuado pelo
Supremo Tribunal Federal.
— O desejo de ser extraditado, ainda que manifestado, de modo inequívoco,
pelo próprio súdito estrangeiro, não basta, só por si, para dispensar as formali-
dades inerentes ao processo extradicional, posto que este representa garantia
indisponível instituída em favor do extraditando. Precedentes.(...).”
(Ext 909/Estado de Israel, Rel. Min. Celso de Mello)
Passo, em conseqüência, a apreciar este pedido extradicional. E, ao fazê-lo, assinalo
que o pleito extradicional em questão observa as condições e satisfaz as exigências
impostas pelo Estatuto do Estrangeiro e pelo Tratado de Extradição firmado entre o
Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Francesa.
Com efeito, o exame dos autos evidencia que inexiste qualquer obstáculo legal
ao deferimento deste pedido de extradição relativamente à prática dos crimes de
estupro e atentado violento ao pudor, pois, em relação a essas espécies delituosas,
R.T.J. — 197 739
É por tal razão que esta Corte Suprema, com apoio em autorizado magistério
doutrinário (José Frederico Marques, “Tratado de Direito Penal”, vol. I/319, 2ª ed.,
1964, Saraiva; Mirtô Fraga, “O Novo Estatuto do Estrangeiro Comentado”, p. 336,
1985, Forense; Yussef Said Cahali, “Estatuto do Estrangeiro”, p. 374, 1984, Saraiva;
José Francisco Rezek, “Direito Internacional Público — Curso Elementar”, p. 204,
item n. 118, 1989, Saraiva; Negi Calixto, “A propósito da extradição: a impossibilidade
de o STF apreciar o mérito no processo de extradição. Indisponibilidade do controle
jurisdicional na extradição”, in “Revista de Informação Legislativa”, vol. 109/163,
v.g.) —, tem advertido que “a justiça ou injustiça, a procedência ou improcedência
da acusação escapam ao exame do Tribunal” (Ext 183/Suíça, Rel. Min. Edgard Costa).
De outro lado, e no que concerne à prescrição penal pertinente aos crimes imputa-
dos ao ora extraditando, cabe esclarecer, referentemente a tais delitos, praticados no
período compreendido entre 1986 e 1993, que ainda não se verificou, quanto a eles, a
prescrição penal, quer segundo a lei francesa, quer conforme o direito brasileiro.
Essa é a razão pela qual a douta Procuradoria-Geral da República, ao enfatizar a
inocorrência da prescrição penal no caso em exame, asseverou (fl. 148):
“13. Segundo as leis brasileira e francesa não restam prescritos os delitos
em questão (fls. 87; 52; 54).
14. Considerando que a pena foi aplicada globalmente, para a prescrição
conta-se a pena mínima aplicada a cada um dos crimes, conforme consta na decisão
da Extradição 774-2, Relatora Ministra Ellen Gracie, verbis:
‘(...)
O trânsito em julgado ocorreu em 11-10-89.
A pena de 8 anos e 3 meses de reclusão foi aplicada globalmente aos 5
crimes referidos, não havendo na cópia da sentença o quantum fixado para
cada delito. O crime de disparo de arma de fogo foi anistiado e o crime de
posse e porte ilegal de armas foi colocado a salvo da extradição por ser, na
época dos fatos (novembro/86), considerado contravenção pela nossa legis-
lação. Diante da iliquidez da pena global aplicada aos crimes, pela exclusão
destes 02 (dois) últimos e em face de não existir na sentença aplicação indi-
vidualizada de pena, passo, a exemplo do que fez o Dr. Edson no parecer, a
examinar a prescrição levando em conta a pena mínima cominada aos crimes
pela legislação italiana.
(...)’”
De outro lado, cumpre ressaltar que não se registra, no caso, qualquer concurso
de jurisdição penal entre o Estado brasileiro e a República Francesa, uma vez que,
sendo inaplicável a legislação penal doméstica, incide, na espécie, sem qualquer restri-
ção, o ordenamento punitivo vigente no Estado requerente. É que se aplica à espécie o
princípio da territorialidade da lei penal francesa, pois foi no âmbito de validade espa-
cial do ordenamento positivo vigente no Estado requerente que se praticaram as trans-
gressões delituosas apontadas neste processo extradicional.
742 R.T.J. — 197
Sendo assim, em face das razões expostas, e acolhendo, ainda, o douto parecer
do eminente Procurador-Geral da República, defiro, integralmente, sem qualquer res-
trição, o pedido de extradição formulado pela República Francesa.
É o meu voto.
EXTRATO DA ATA
Ext 917/República Francesa — Relator: Ministro Celso de Mello. Requerente:
Governo da França. Extraditando: Jean-Pierre Bourg.
Decisão: O Tribunal, à unanimidade, deferiu o pedido de extradição, nos termos
do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, os Ministros Nelson Jobim (Presidente) e
Carlos Velloso. Presidiu o julgamento a Ministra Ellen Gracie (Vice-Presidente).
Presidência da Ministra Ellen Gracie, Vice-Presidente. Presentes à sessão os
Ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar
Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau.Vice-Procurador-Geral da República,
Dr. Antônio Fernando Barros e Silva de Souza.
Brasília, 25 de maio de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tri-
bunal Federal, por seu Tribunal Pleno, na conformidade da ata do julgamento e das
notas taquigráficas, por unanimidade de votos, deferir o pedido de extradição, nos
termos do voto do Relator.
Brasília, 1º de setembro de 2005 — Nelson Jobim, Presidente — Carlos Ayres
Britto, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de pedido extradicional, formulado
pelo Governo da Argentina, com fundamento no Tratado de Extradição Brasil/Argentina
(Decreto n. 62.979, de 11-7-1968). Pedido que tem por objeto a entrega de Luis
Reynaldo Mercante, nacional argentino, que está sendo processado, naquele país, pelo
crime de “instigador de homicídio em ocasião de roubo”.
2. A prisão cautelar do extraditando, decretada pelo ilustrado Ministro Ilmar
Galvão (arts. 76 e 82 da Lei n. 6.815/80), somente se efetivou em 27-2-2005. Logo,
mais de dois anos após a expedição do mandado de captura.
3. Tendo em vista que a prisão do estrangeiro reclamado se deu no Estado da
Bahia, deleguei à Justiça Federal daquela unidade da Federação a competência para o
interrogatório do extraditando. Na ocasião, José Reynaldo Mercante negou a veracidade
dos fatos que lhe são imputados na Argentina. Também lhe foi nomeada Defensora
Pública da União, que ofereceu peça de defesa e pugnou pelo indeferimento do pedido.
Isso sob a afirmação de que “o acusado quis praticar crime menos grave, qual seja,
furto (...)”. Desse modo, e como a pena mínima cominada ao delito de furto é de um ano
de reclusão, insuscetível a entrega extradicional, nos termos do inciso IV do art. 77 do
Estatuto do Estrangeiro (“Art. 77. Não se concederá a extradição — IV quando a lei
brasileira impuser ao crime pena de prisão igual ou inferior a 1 (um) ano”).
4. A seu turno, também o extraditando, agora em causa própria, apresentou sua
defesa, na qual postulou o indeferimento da extradição, por não haver participado do
crime e por ser pai de filha brasileira.
5. Enfim, anoto que o Ministério Público Federal opinou “pela procedência do
pedido de extradição”.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Feito o relatório, passo ao voto. E
começo por dizer que a instrução do processo atende plenamente às exigências do art. 80
744 R.T.J. — 197
1 Art. 85, § 1º: “A defesa versará sobre a identidade da pessoa reclamada, defeito de forma dos
documentos apresentados ou ilegalidade da extradição”.
R.T.J. — 197 745
EXTRATO DA ATA
Ext 972/República Argentina. Relator: Ministro Carlos Britto. Requerente: Governo
da República Argentina. Extraditando: Luis Reynaldo Mercante (Advogada: Defensoria
Pública da União).
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, deferiu o pedido de extradição, nos ter-
mos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, o Ministro Carlos Velloso e, neste
julgamento, o Ministro Gilmar Mendes. Presidiu o julgamento o Ministro Nelson
Jobim.
Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda
Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,
Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio
Fernando Barros e Silva de Souza.
Brasília, 1º de setembro 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim, na
conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade,
negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Relator. Ausentes,
justificadamente, os Ministros Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Gilmar Mendes e,
neste julgamento, o Ministro Carlos Britto.
Brasília, 24 de novembro de 2005 — Carlos Velloso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Trata-se de agravo regimental, interposto pelo Estado
de Santa Catarina, da decisão (fls. 444-449) que, diante da não-configuração da com-
petência prevista no art. 102, I, n, da Constituição Federal, e da não-incidência da
Súmula 731/STF, determinou o retorno dos autos ao eg. Tribunal de Justiça do Estado
de Santa Catarina.
Inicialmente, diz o agravante que o caso dos autos é peculiar, uma vez que as
licenças-prêmio reclamadas referem-se a períodos anteriores à Loman e também à ob-
tenção de período aquisitivo (1970-1980) na vigência da LC 35/79, sendo certo que
está em discussão a própria existência ou não do direito a tais licenças (fl. 454).
Sustenta, mais, que saber se os magistrados possuem ou não o direito à licença-
prêmio referente ao regime anterior à Loman, ou seja, se há direito adquirido à licença-
prêmio “conquistada” por magistrado, perante a Loman, é questão que interessa e atinge
a todos os magistrados brasileiros e não apenas aos interessados, sendo aplicável, pois,
a Súmula 731/STF (fl. 457).
Ao final, requer o agravante a reconsideração da decisão agravada ou, caso assim
não se entenda, o provimento do presente agravo regimental.
Autos conclusos em 6-10-2005 e mandados à Mesa em 17-10-2005.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Assim a decisão agravada, ora sob exame:
“(...)
Destaco do parecer do hoje ilustre Procurador-Geral da República, Dr. Antonio
Fernando de Souza:
‘(...)
21. O STF reserva a incidência da letra n, do inciso I, do art. 102, da
CF/88, à controvérsia sobre vantagens específicas da magistratura. No caso
em questão, como visto, não se discute sobre a existência ou não do direito
à licença-prêmio em face da Loman, mas sobre a possibilidade de conversão
R.T.J. — 197 747
EXTRATO DA ATA
AO 1.122-AgR/SC — Relator: Ministro Carlos Velloso. Apelante: Estado de Santa
Catarina (Advogados: PGE-SC – Osmar José Nora e outro). Apelados: Espólio de Eugênio
Trompowsky Taulois Filho (Advogados: Luiz Alberto de Cerqueira Cintra e outro) e
Espólio de Euclydes de Cerqueira Cintra (Advogados: Carolina Viegas de Cerqueira
Cintra de Vincenzi e outro).
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental,
nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, os Ministros Sepúlveda
Pertence, Celso de Mello, Gilmar Mendes e, neste julgamento, o Ministro Carlos Britto.
Presidiu o julgamento o Ministro Nelson Jobim.
Presidência do Ministro Nelson Jobim . Presentes à sessão os Ministros Carlos
Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e
Eros Grau. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos.
Brasília, 24 de novembro de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
RECLAMAÇÃO 1.865 — PI
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma
do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence, na
conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos,
julgar procedente a reclamação, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 7 de junho de 2005 — Carlos Ayres Britto, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: O Estado do Piauí ajuíza a presente reclamação,
com pedido de medida liminar. E o faz para impugnar o decisum proferido pelo MM.
750 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Conforme visto, o objeto desta recla-
mação é o decisum do MM. Juiz de Direito da 2a Vara da Fazenda Pública da Comarca de
Teresina, que, segundo o autor, ofendeu o julgado proferido no RE 216.647, Rel. Min.
Ilmar Galvão.
7. Fixado, então, o objeto da causa, começo por anotar que, em 1994, Segisnando
Messias Ramos de Alencar, Eulino Gomes da Silva, José Francisco Benício de Macedo
e outros Assistentes Jurídicos Autárquicos impetraram um mandado de segurança contra
ato do Secretário de Estado de Administração do Piauí e do Diretor-Geral do Detran (MS
1.500/94). Ação constitucional pela qual os impetrantes postularam, com êxito, parida-
de remuneratória com os Procuradores daquele Estado.
8. Pois bem, em face dessa decisão proferida pela Corte de Justiça estadual, inter-
pôs o Estado do Piauí o RE 216.647, fundamentado em que este STF entendeu inexistir
direito à igualdade remuneratória entre os servidores do quadro de Assistente Jurídico
Autárquico do Departamento de Trânsito piauiense (aí incluídos os interessados) e os
Procuradores de Estado. Confira-se:
“Servidores do quadro de assistente jurídico autárquico lotados no
Detran do Estado do Piauí. Acórdão que lhes reconheceu igualdade de trata-
mento remuneratório nos níveis fixados para o cargo de procurador do Estado,
com base em isonomia.
Direito inexistente, posto que, segundo assentado pelo Supremo Tribunal
Federal, não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar
vencimentos de servidores públicos sob fundamento em isonomia (Súmula 339),
além de importar em vinculação a índices e critérios de uma categoria a outra.
Acórdão recorrido que, por haver dissentido dessa orientação, não merece
subsistir.
Recurso conhecido e provido.”
(RE 216.647, Relator Min. Ilmar Galvão)
R.T.J. — 197 751
EXTRATO DA ATA
Rcl 1.865/PI — Relator: Ministro Carlos Britto. Reclamantes: Estado do Piauí e
outro (Advogados: PGE-PI – João Emilio Falcão Costa Neto e outros). Reclamado: Juiz
de Direito da 2ª Vara dos Feitos da Fazenda Pública da Comarca de Teresina. Interessados:
Segisnando Messias Ramos de Alencar e outros (Advogado: Raimundo Uchoa de Castro).
Decisão: A Turma julgou procedente a reclamação, nos termos do voto do
Relator. Unânime. Não participou deste julgamento o Ministro Eros Grau.
1 Esse acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí que reconheceu o direito à equiparação dos
Assistentes Jurídicos lotados no Detran/PI, também foi reformado pelo Supremo Tribunal Federal no
julgamento do RE 223.452, em 5-4-05.
752 R.T.J. — 197
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tri-
bunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim, na
conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, dar
provimento ao agravo, no sentido de reconhecer que a perda superveniente de represen-
tação parlamentar não desqualifica o partido político como legitimado ativo para a pro-
positura da ação direta de inconstitucionalidade.
Brasília, 12 de agosto de 2004 — Gilmar Mendes, Relator para o acórdão.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Trata-se de agravo regimental, com pedido de
reconsideração, fundado no art. 39 da Lei 8.038/90, c/c o art. 317 do RISTF, interposto
pelo Partido Social Liberal – PSL, da decisão (fls. 309/310) que negou seguimento à
ação direta de inconstitucionalidade, ao argumento de que “a perda superveniente da
representação no Congresso Nacional implica perda da legitimidade ativa para a
ação direta de inconstitucionalidade”.
Sustenta o agravante, em síntese, que a perda superveniente da bancada parlamentar
no Congresso Nacional é corolário lógico da implementação da chamada “cláusula de
barreira” na atual legislatura (Lei 9.096/95, art. 57). Ademais, grandes temas
R.T.J. — 197 753
VOTO
Ementa: Constitucional. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Partido
político: perda da representação parlamentar: legitimidade ativa: descarac-
terização. CF, art. 103, VIII.
I - A perda superveniente da representação parlamentar descaracteriza a
legitimidade ativa do partido político para prosseguir na ação direta de inconsti-
tucionalidade. CF, art. 103, VIII. Extinção do processo. Precedentes do STF.
II - Agravo não provido.
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Em caso idêntico, ADI 2.735-AgR/RJ,
Relator o Ministro Celso de Mello, agravante o ora Partido Social Liberal – PSL, deci-
diu o Supremo Tribunal Federal:
Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade — Partido político que,
no curso do processo, vem a perder a representação parlamentar no Congresso
nacional — Fato superveniente que descaracteriza a legitimidade ativa da
agremiação partidária (CF, art. 103, VIII) — Matéria de ordem pública —
Possibilidade de reconhecimento ex-officio pelo Relator da causa — Ação
direta de que não se conhece — Recurso de agravo improvido.
— A perda superveniente da bancada legislativa no Congresso Nacional
descaracteriza a legitimidade ativa do partido político para prosseguir no pro-
cesso de controle abstrato de constitucionalidade, eis que, para esse efeito, não
basta a mera existência jurídica da agremiação partidária, sobre quem incide o
ônus de manter, ao longo da causa, representação parlamentar em qualquer das
Câmaras que integram o Poder Legislativo da União.
— A extinção anômala do processo de fiscalização normativa abstrata,
motivada pela perda superveniente de bancada parlamentar, não importa em
ofensa aos postulados da indisponibilidade do interesse público e da inafastabi-
lidade da prestação jurisdicional, eis que inexiste, em favor do partido político
que perdeu a qualidade para agir, direito de permanecer no pólo ativo da relação
processual, não obstante atendesse, quando do ajuizamento da ação direta, ao que
determina o art. 103, VIII, da Constituição da República.” (DJ de 9-5-2003)
754 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sr. Presidente, essa questão já foi objeto de discussão
no precedente mencionado pelo eminente Ministro Carlos Velloso.
Naquela oportunidade, eu sustentava o desconforto com a solução e lembrava a
necessidade de, talvez, discutirmos uma alternativa. Cheguei a aventar, por analogia, o
disposto no artigo 5º, § 3º, da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985) e no artigo
9º da Lei da Ação Popular (Lei n. 4.717/1965), que prevêem a possibilidade de o
Ministério Público assumir o processo no caso de desistência ou abandono da ação.
Posteriormente, o Ministro Sepúlveda Pertence suscitou questão de ordem em
outro caso no qual se discutia a perda superveniente de legitimidade do requerente da
ação em hipótese de julgamento já iniciado (ADI n. 2.054-QO, DJ de 28-3-2003,
Relator Ministro Ilmar Galvão).
Desde então, pus-me a refletir sobre o assunto e tenho a forte impressão de que,
tendo em vista a objetividade do processo, e mesmo a indisponibilidade que marca a
Ação Direta de Inconstitucionalidade, a aferição da legitimidade há de se fazer tão-
somente no momento da propositura da ação.
Creio que o Tribunal avançaria muito se afastasse a preliminar de ilegitimidade e
reconhecesse a necessidade de prosseguimento dessas ações.
Parece-me, assim, necessária a reanálise da controvérsia à luz dessas considerações.
VOTO (Confirmação)
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Sr. Presidente, mantenho-me fiel à juris-
prudência da Casa.
Com a vênia devida ao Sr. Ministro Gilmar Mendes, mantenho o meu voto.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, quando apreciada a matéria, fui
voz isolada no Plenário. Sustentei — com a mania, para alguns, de processualista —
que a aferição da legitimidade ocorre considerada a data em que proposta a ação,
principalmente em processo no qual não se tem o envolvimento de direito subjetivo, de
um interesse propriamente dito deste ou daquele cidadão, desta ou daquela pessoa
natural, desta ou daquela pessoa jurídica. O que reclama a Carta da República para que
se conclua pela legitimidade — vou utilizar uma nomenclatura da Corte — do reque-
rente? Que o requerente, partido político, à data da propositura da ação direta de
inconstitucionalidade, tenha representante em uma das Casas Legislativas. À época em
que proposta esta ação, havia essa representação, ou seja, estava viabilizada a atuação
do partido político, pois bastava que ele contasse com um representante numa das
Casas do Congresso, detendo, portanto, mandato. Ora, a perda posterior do mandato,
pela não-reeleição ou pela não-eleição de outros filiados ao partido, é suficiente a
R.T.J. — 197 755
prejudicar um processo que está em curso, um processo, como ressaltado pelo Ministro
Gilmar Mendes, de natureza objetiva? A meu ver, não.
Senhor Presidente, continuo convencido de que é preciso evoluir, dada até mesmo a
natureza do processo e a necessidade de mantermos vivo, com eficácia, o próprio sistema.
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Sr. Presidente, justamente porque estamos
diante de um processo objetivo em que não há partes, no qual visa-se à defesa da ordem
jurídico-constitucional, permitir que um partido sem representação no Congresso, que
tinha uma precária representação quando do ajuizamento da ação e que veio a perder
essa representação, continue com legitimação ativa para a ação direta de inconstitucio-
nalidade, não me parece adequado.
Quero dizer, Sr. Presidente — e o eminente Ministro Gilmar Mendes me corrigirá,
dado que S. Exa. é um expert na jurisdição constitucional alemã —, que legitimação
para a causa com apenas um parlamentar é sui generis, não conhecida na jurisdição
constitucional européia. Não é verdade, eminente Ministro?
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Faço a idéia de 1/3.
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Exato. Quer dizer, no Brasil, faculta-se a
esses pequenos partidos...
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Ministro, talvez não haja nos sistemas civilizados,
hoje, tamanha facilidade para mudar de partido, portanto, para produzir esse resultado
como no sistema brasileiro.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Poderia ocorrer, inclusive, o prejuízo, na dicção da
maioria, da legitimidade até pela mudança de partido. O que a Carta requer é a observân-
cia da representação parlamentar no ajuizamento da ação.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Neste caso, há um fato curioso: esse partido
recuperou, com vantagens, a sua representação.
O Sr. Ministro Carlos Britto: É o que eu ia alegar. O partido recuperou.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Precisamos examinar primeiro a questão
prejudicial.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Apenas para que se veja como isso é mutável.
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Depois vamos verificar se é possível read-
quirir a capacidade postulatória.
Então, eminente Ministro, permitir que um partido que veio a perder a representa-
ção continue com capacidade postulatória no processo objetivo, defendendo a ordem
jurídico-constitucional, quando muitas vezes se sabe que não é esse, na verdade, o seu
propósito, não seria adequado.
De maneira que, com a vênia dos eminentes Ministros Gilmar Mendes e Marco
Aurélio, mantenho o meu voto.
VOTO
O Sr. Ministro Eros Grau: Senhor Presidente, com a devida vênia ao Ministro Carlos
Velloso, acompanho o entendimento dos Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio.
756 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Sr. Presidente, também peço vênia ao Ministro
Carlos Velloso, mas entendo que, exatamente por se tratar de processo de natureza
objetiva, a aferição da capacidade postulatória há de se dar no momento da propositura.
A meu ver, torna-se irrelevante a perda da representação no Congresso daí em diante.
Por essa razão, acompanho a divergência.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Senhor Presidente, mesmo reconhecendo que o
partido, ao decair de representação no Congresso Nacional, deixa de fazer aquela ponte
institucional entre ele, partido, e o povo, porque, em última análise, a razão de ser dessa
legitimidade processual é o fato de o partido representar a população, mesmo assim,
entendo que é da natureza do processo de jurisdição concentrada aferir a legitimidade
ad causam ativa no momento da propositura da ação.
Fico um pouco, do ponto de vista pessoal, constrangido em me manifestar pela
dissidência, porque entendo que o sistema de controle concentrado de jurisdição não
tem primazia sobre o controle difuso e estaria reforçando, com essa minha decisão, o
controle concentrado.
Pelos fundamentos expendidos pelos eminentes Ministros que se posicionaram
pela dissidência, peço vênia também ao eminente Relator para dissentir do seu abaliza-
do voto.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sr. Presidente, partindo do pressuposto de que não há
possibilidade de submeter este processo, vamos dizer, sui generis, aos princípios legais
e dogmáticos do chamado processo subjetivo, não vejo como, neste caso, negar, porque
é disso que se trata, a continuidade do processo objetivo, para que o Tribunal exerça
função diferenciada daquela que, sob o título de jurisdição estrita, exerce nos processos
subjetivos, em que se julga caso concreto de lide, e, hipoteticamente, a existência, ou
não, de direito subjetivo. Neste caso, a Corte exerce função político-constitucional
tendente à defesa do ordenamento jurídico. No processo subjetivo tradicional, eviden-
temente não se pode prescindir da subsistência de legitimação no curso de todo o
processo, assim porque o processo subjetivo tradicional depende, não apenas da inicia-
tiva da parte na sua instauração, mas, no próprio impulso processual, não obstante o
caráter oficioso com que o juiz pode agir, também depende, quanto a alguns atos, da
iniciativa do autor. Em segundo lugar, nos casos em que há perda superveniente de
legitimação ativa ad causam no processo subjetivo tradicional, a explicação, vamos
dizer, pré-jurídica, é de que terá havido, por efeito da legislação ou por efeito de algum
fato já previsto na legislação, a perda de contato daquele primitivo autor com o direito
subjetivo objeto do processo.
Neste caso, perda da representação parlamentar daquele que toma a iniciativa da
ação não altera nem exclui o dever do Tribunal de se pronunciar sobre a questão político-
R.T.J. — 197 757
constitucional que lhe foi submetida. Em outras palavras, entendo que, para efeito da
ação direta de inconstitucionalidade, a legitimação deve ser aferida apenas para efeito
da incoação do processo, tanto assim, que este processo, por ser objetivo e por estar
ligado exatamente ao exercício de jurisdição especial da Corte Suprema, não depende,
na sua continuidade, de nenhum ato do autor, bastando ver que, se o autor ficasse
absolutamente imóvel durante toda a causa, após a sua propositura, a Corte não estaria
desobrigada de julgá-la.
De modo que a extinção superveniente da representação parlamentar do partido
político, no caso, a mim me parece também, com o devido respeito, que não é causa
suficiente para desvestir o Tribunal do dever de apreciar a questão da constitucionalidade
que interessa ao ordenamento jurídico, e sem nenhum reflexo, pelo menos próximo,
quanto a direito subjetivo.
Também vou pedir vênia ao eminente Ministro Relator para acompanhar a dissi-
dência.
VOTO
(Sobre perda superveniente de bancada parlamentar)
O Sr. Ministro Celso de Mello: O Partido Social Liberal – PSL ajuizou a presente
ação direta de inconstitucionalidade.
Ocorre, no entanto, como é notório (CPC, art. 334, I), que essa agremiação parti-
dária não mais possui representação parlamentar em qualquer das Casas do Congresso
Nacional, considerada a data do início da presente legislatura (1º-2-2003).
A inexistência de bancada parlamentar em qualquer das Casas que compõem o
Poder Legislativo da União suscita algumas reflexões em torno do alcance da regra
inscrita no art. 103, VIII, da Constituição, que outorga, aos Partidos Políticos com
representação no Congresso Nacional, legitimidade ativa para a instauração do processo
objetivo de controle normativo abstrato.
Ao julgar a ADI 2.060/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, tive o ensejo de acentuar que a
análise do tema concernente a quem pode ativar a jurisdição constitucional do Supremo
Tribunal Federal, mediante ação direta, revela que o sistema de direito constitucional
positivo brasileiro optou por uma solução intermediária. Nem consagrou a legitimidade
exclusiva do Procurador-Geral da República, verdadeiro dominus litis, que detinha,
nos regimes constitucionais anteriores, o monopólio da ação direta por ele ajuizável
discricionariamente (RTJ 48/156 — RTJ 59/333 — RTJ 98/3 — RTJ 100/1 —
RTJ 100/954 — RTJ 100/1013), nem ampliou a legitimação para agir em sede de
controle normativo abstrato. Entre a legitimidade exclusiva, de um lado, e a legitimi-
dade universal, de outro, o constituinte optou pelo critério da legitimidade restrita e
concorrente, partilhando, entre diversos órgãos, agentes ou instituições, a qualidade
para agir em sede jurisdicional concentrada (CF/88, art.103).
A Constituição da República, ao dispor sobre o sistema de fiscalização normativa
abstrata, outorgou legitimidade ativa aos partidos políticos com representação no
Congresso Nacional (art.103, VIII), conferindo-lhes o poder de promover, perante o
Supremo Tribunal Federal, a pertinente ação direta de inconstitucionalidade.
758 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sr. Presidente, saudoso Ministro desta Casa,
desde que chegou à cadeira de decano, costumava acompanhar o ameaçado de ficar
sozinho: entendia ele ser um dever de gentileza elementar do decano. O douto voto do
Ministro Celso de Mello, no caso, dispensa-me do constrangimento. O eminente Ministro
Carlos Velloso já não está só.
O abandono da jurisprudência, neste caso, já fora por mim praticamente anunciado.
Ao votar na questão de ordem que suscitei na ADI 2.054, já confessara certa inquietação
para alinhar-me aos precedentes do Tribunal, no sentido do voto agora proferido pelo
eminente Relator, dizia, “dado o caráter objetivo do processo do controle abstrato de
normas do qual decorreu — antes que o explicitasse a Lei 9.868 —, a impossibilidade
de desistência da ação direta”.
Por isso, naquele caso, ADI 2.054, como recordava o Ministro Gilmar Mendes,
chegamos a um primeiro passo. Não poderia — como não pode o autor desistir — o fato
superveniente ao início do julgamento trancar a ação direta.
Mas, na verdade — e os votos aqui proferidos na divergência, hoje, acabaram de
convencer-me —, não vejo porque distinguir se há ou não início de julgamento. Se não
cabe a desistência, é porque, realmente, a legitimatio ad causam, a qualidade para pro-
vocar a jurisdição constitucional objetiva, existe, ou não existe, e há de ser verificada no
momento da propositura da demanda. Proposta a demanda, há uma questão constitucional
a ser decidida por uma jurisdição política, a jurisdição constitucional concentrada do
Supremo Tribunal Federal.
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Excelência, a própria Constituição preceitua
que a legitimidade é para propor; não exatamente para impulsionar. Demais disso, como
nos cabe, precipuamente, a guarda da Constituição, nenhuma oportunidade deve ser
perdida, uma vez deflagrada, para o Tribunal sair em possível socorro da Magna Carta.
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Mesmo que se extinga.
R.T.J. — 197 763
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Também acompanho a divergência ini-
ciada pelo Ministro Gilmar Mendes, mas nos estritos limites do voto do Ministro Cezar
Peluso.
Tenho imensa dificuldade de teorizar sobre realidades. Lembro aos Colegas que,
hoje, no Tribunal, dentre as 3.182 ações diretas de inconstitucionalidade, há 641 ações
ajuizadas por partidos políticos.
Em relação à afilação erudita do Ministro Celso de Mello, no sentido de que a ação
direta de inconstitucionalidade se destina à proteção de situações, lembro que não se
aplica absolutamente ao caso, porque, aqui, não se trata de uma ação direta de
inconstitucionalidade no sentido daqueles fundamentos elencados por Vossa Excelência.
Trata-se, isso sim, de um partido político que emprestou a uma determinada entidade a
sua bandeira para efeito de deduzir as suas pretensões no que diz respeito aos interesses
da corporação.
VOTO (Aditamento)
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Sr. Presidente, proponho ao Tribunal seja
declarada extinta a ação por estar prejudicada. Ela tem por objeto o inciso XV do art. 37
da Constituição Federal, conforme o eminente Ministro-Presidente já esclareceu.
764 R.T.J. — 197
EXTRATO DA ATA
ADI 2.618-AgR-AgR/PR — Relator: Ministro Carlos Velloso. Relator para o
acórdão: Ministro Gilmar Mendes. Agravante: Partido Social Liberal – PSL (Advogado:
Wladimir Sérgio Reale). Agravado: Corregedor-Geral da Justiça do Estado do Paraná.
Decisão: O Tribunal, por maioria, deu provimento ao agravo, no sentido de
reconhecer que a perda superveniente de representação parlamentar não desqualifica o
partido político como legitimado ativo para a propositura da ação direta de inconstitu-
cionalidade, vencidos os Ministros Carlos Velloso, Relator, e Celso de Mello. Votou o
Presidente, Ministro Nelson Jobim. Redigirá o acórdão o Ministro Gilmar Mendes. Au-
sente, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie.
Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda
Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,
Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio
Lemos Fonteles.
Brasília, 12 de agosto 2004 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das
notas taquigráficas, por unanimidade, julgar parcialmente procedente a ação e declarar
a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei n. 3.867, de 24 de junho de 2002, do
Estado do Rio de Janeiro, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 6 de abril de 2005 — Nelson Jobim, Presidente — Eros Grau, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Eros Grau: A Governadora do Estado do Rio de Janeiro, com funda-
mento no inciso V do artigo 103 da Constituição do Brasil, propõe a presente ação
direta, em que é pleiteada a declaração de inconstitucionalidade da Lei estadual n.
3.867, cujo teor é o seguinte:
“Lei n. 3.867, de 24 de junho de 2002:
Determina a obrigatoriedade da divulgação dos veículos apreendidos
pelas polícias militar e civil.
Art. 1º O Poder Executivo divulgará, pelo Diário Oficial e pela Internet,
através de site próprio, em periodicidade não superior a 15 (quinze) dias, infor-
mações sobre os veículos apreendidos, que tenham sido roubados ou furtados.
§ 1º As informações a que se refere o caput deste artigo deverão contemplar,
sempre que possível, o modelo, a cor predominante, o ano de fabricação e os
números do chassi e da placa dos veículos.
§ 2º Deverão ser instalados terminais eletrônicos de consulta em local de
fácil visualização e de acesso público.
§ 3º A primeira divulgação conterá as informações referentes aos veículos
apreendidos nos 60 (sessenta) dias anteriores a sua publicação.
Art. 2º Os veículos não reclamados por seus proprietários ou companhias
seguradoras no período de 3 (três) anos, contados da publicação a que se refere o
Artigo 1º, serão levados a hasta pública, repartindo-se o produto do leilão, igual-
mente, entre o Estado e o município do emplacamento do veículo.
§ 1º Quando o veículo apreendido houver sido emplacado em outro Estado
da União, ou não for possível a identificação do local de emplacamento, o produto
do leilão será repartido, igualmente, entre o Estado e o município onde ocorreu a
apreensão.
§ 2º A parte do leilão a que se refere o caput deste artigo, pertencente ao
Estado, destina-se a suprir as despesas decorrentes da aplicação da presente Lei.
Art. 3º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogando-se as
disposições em contrário.”
2. Sustenta que a referida lei está acoimada de graves vícios, pois, ao envolver
questões relativas a trânsito e transporte, viola o artigo 22, inciso XI, da Constituição,
dado que usurpa a competência privativa do legislador federal. Alega, ainda, que há
766 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Impugna-se na presente ação a Lei n. 3.867, do
Estado do Rio de Janeiro, que determina a obrigatoriedade da divulgação de informações
1 Art. 123. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, se dentro no prazo de 90 (noventa) dias, a
contar da data em que transitar em julgado a sentença final, condenatória ou absolutória, os objetos
apreendidos não forem reclamados ou não pertencerem ao réu, serão vendidos em leilão, depositando-se
o saldo à disposição do juízo de ausentes.
2 Art. 328. Os veículos apreendidos ou removidos a qualquer título e os animais não reclamados por
seus proprietários, dentro do prazo de noventa dias, serão levados à hasta pública, deduzindo-se, do
valor arrecadado, o montante da dívida relativa a multas, tributos e encargos legais, e o restante, se
houver, depositado à conta do ex-proprietário, na forma da lei.
R.T.J. — 197 767
identificando os veículos apreendidos pelas polícias militar e civil. A requerente alega que
o referido ato legislativo viola os incisos I, II e XI do artigo 22 da Constituição do Brasil.
2. A lei ora impugnada, ao obrigar o Poder Executivo Estadual a divulgar informa-
ções a respeito de veículos apreendidos, em razão de roubos ou furtos, não versa sobre
matéria relativa a trânsito ou transporte (CB/88, art. 22, XI), mas sim, sobre segurança
pública.
3. O Procurador-Geral da República bem observou que, verbis:
“ [...] A mencionada lei, em seu art. 1º, ao obrigar o Poder Executivo a divulgar,
por meio do Diário Oficial e da internet, informações sobre os veículos apreendidos
pelas polícias militar e civil, que tenham sido roubados ou furtados, não parece
tratar acerca de trânsito, transporte ou sobre outras matérias de competência
legislativa exclusiva da União Federal, mas sobre segurança pública.
A Constituição reservou o Capítulo II, do Título V, “Da Defesa do Estado e das
Instituições Democráticas”, determinando ser a segurança pública dever do Estado,
direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservação da ordem pública e
da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através das polícias federal, rodoviária
federal, ferroviária federal, civis, militares e corpos de bombeiros militares.
Quanto às polícias militares e civis, a Constituição, no § 6º, do art. 144, as
subordina expressamente aos Governadores dos Estado. E, no § 7º, do mesmo
artigo, estabelece que a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos
órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de
suas atividades.” (fl. 39).
4. Esta Corte, no julgamento da ADI n. 882, Relator o Ministro Maurício Corrêa,
DJ de 23-4-2004, assentou, verbis:
“[...] ao cuidar de Segurança Pública, a Constituição não garante autonomia
de espécie alguma às polícias militares, aos corpos de bombeiros militares e às
polícias civis. Antes deixa claro que essas corporações subordinam-se aos Gover-
nadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios (CF, artigo 144, § 6º).
[...] a organização policial compõe a estrutura institucional do Estado, sendo
parte integrante da Administração Pública. Está, por essa razão, subordinada ao
governador (CF, artigo 144, § 6º), a quem foi assegurada, constitucionalmente, a
direção superior da Administração Pública do Estado.” (Grifo nosso)
5. O artigo 144 da Constituição de 19881 dispõe que a segurança pública deve ser
exercida através da polícia federal; da polícia rodoviária federal; das polícias civis e das
polícias militares e corpos de bombeiros militares. Em seu artigo 6º determina que as
polícias militares, bem como as polícias civis, subordinam-se aos Governadores dos
Estados.
1 Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para
a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes
órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
768 R.T.J. — 197
6. Os preceitos estabelecidos nos artigos 84, VI, a e 61, § 1º, II, b, da Constituição
do Brasil2 evidenciam ser da competência privativa do Chefe do Poder Executivo Federal
a organização administrativa federal.
7. A interpretação conjunta dessas regras e o entendimento firmado em precedente
deste Tribunal (ADI n. 882), de que a segurança pública está abrangida no conceito de
“organização administrativa”, conduzem à conclusão de que a gestão da segurança
pública, na esfera estatal, é atribuição privativa do Governador de Estado. Dessa forma,
resta claro que a lei estadual ora impugnada avançou sobre o espaço reservado à atuação
do Chefe do Poder Executivo Estadual.
8. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-Membros a capacidade de
auto-organização e de autogoverno (artigo 25, caput), impõe a obrigatória observância
de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o
legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa
privativa do Chefe do Executivo.
9. O Pleno desta Corte pacificou jurisprudência no sentido de que os Estados-
Membros devem obediência às regras de iniciativa legislativa reservada, fixadas consti-
tucionalmente, sob pena de violação do modelo de harmônica tripartição de poderes,
consagrado pelo constituinte originário (ADI n. 805, Relator o Ministro Sepúlveda
Pertence, DJ de 12-3-99; ADI n. 645, Relator o Ministro Ilmar Galvão, DJ de 13-12-96;
ADI n. 665, Relator o Ministro Sydney Sanches, DJ de 6-9-95; e ADI n. 227, Relator o
Ministro Maurício Corrêa, DJ de 18-5-2001).
Tendo em vista que a flagrante inconstitucionalidade formal dispensa a análise
das demais alegações de afronta à Constituição, inclusive a relativa ao fato de que o
artigo 2º da lei avança sobre matéria de expropriação (artigo 22, II da CB), julgo proce-
dente a ação direta para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 3.867, do Estado do
Rio de Janeiro.
eventual proprietário, até porque sujeito a prazo para reclamação, sob pena de perda
dessa propriedade.
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Perdoem-me. Este art. 1º, na verdade, dispõe
sobre matéria de segurança pública.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: De administração em geral.
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Refiro-me à ADI n. 882, Relator o Ministro
Maurício Corrêa. Se nós entendermos que aí se trata de segurança pública, aplicar-se-ia.
A organização policial compõe a estrutura institucional do Estado, sendo parte
integrante da Administração Pública.
Não tenho nada contra salvar-se esse art. 1º pelo sentido de informação que ele tem.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: É uma norma de procedimento administrativo tão-
somente no que diz respeito a essas apreensões.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Vossa Excelência reduz, então, a decla-
ração de inconstitucionalidade ao art. 2º?
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Ao art. 2º. Evoluo nesse sentido.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Tenho dúvidas quanto ao artigo 2º, porque, no
parecer, evoca-se o Código de Processo Penal, que dispõe, entretanto, sobre matéria
diversa — o perdimento de bens.
No caso, o que se verifica é, até mesmo, uma previsão, objetivando evitar ônus para
o serviço público quanto à manutenção de bens não procurados num espaço de tempo
que, para mim, é razoável, de três anos, em se tratando de bem móvel.
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Está regulado no art. 328 do Código de Trânsito:
“Art. 328. Os veículos apreendidos ou removidos a qualquer título e os ani-
mais não reclamados por seus proprietários, dentro do prazo de noventa dias, serão
levados à hasta pública, deduzindo-se, do valor arrecadado, o montante da dívida
relativa a multas, tributos e encargos legais, e o restante, se houver, depositado à
conta do ex-proprietário, na forma da lei.”
É matéria já regulada.
DEBATE
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): No Código de Trânsito, há alguma
disciplina sobre o resultado do leilão?
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Há, no art. 328:
R.T.J. — 197 771
VOTO (Retificação)
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Anteriormente afirmei que todo o texto da lei
n. 3.867, do Estado do Rio de Janeiro, seria inconstitucional. Entretanto, evoluo no
tocante ao artigo 1º do ato impugnado, reduzindo a declaração de inconstitucionalidade
aos artigos 2º e 3º.
EXTRATO DA ATA
ADI 2.819/RJ — Relator: Ministro Eros Grau. Requerente: Governadora do Estado
do Rio de Janeiro. Requerida: Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou parcialmente procedente a ação, e
declarou a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei 3.867, de 24 de junho de 2002, do
Estado do Rio de Janeiro, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro
Nelson Jobim. Ausente, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie.
Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda
Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,
Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio
Lemos Fonteles.
Brasília, 6 de abril de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas
taquigráficas, por maioria de votos, conhecer da ação, vencida a Ministra Ellen Gracie,
Relatora.
O Tribunal, por maioria de votos, julgou procedente em parte a ação para dar
interpretação conforme a Constituição, no sentido de que a abertura de crédito suple-
mentar deve ser destinada às três finalidades enumeradas no artigo 177, § 4º, inciso II,
alíneas a, b e c, da Carta Federal, vencida a Ministra Ellen Gracie, Relatora, e os Minis-
tros Joaquim Barbosa, Nelson Jobim e Sepúlveda Pertence.
Brasília, 19 de dezembro de 2003 — Maurício Corrêa, Presidente — Marco Aurélio,
Relator para o acórdão.
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Ellen Gracie: Adoto, como relatório, o constante do parecer da
lavra do ilustre Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio Lemos Fonteles, que assim
expôs o presente caso (fls. 281/285):
“Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de liminar,
ajuizada pela Confederação Nacional do Transporte – CNT em face do art. 4º, I, a,
b, c e d, da Lei 10.640, de 14 de janeiro de 2003 – Lei Orçamentária Anual da
União, que estima e fixa a despesa da União para o exercício de 2003.
O texto impugnado assim está disposto:
‘Art. 4º Fica o Poder Executivo autorizado a abrir créditos suplemen-
tares, observados os limites e condições estabelecidos neste artigo e desde
que demonstrada, em anexo específico do decreto de abertura, a compatibili-
dade das alterações promovidas na programação orçamentária com a meta de
resultado primário estabelecida no Anexo de Metas Fiscais da Lei de Diretrizes
Orçamentárias 2003, para suplementação de dotações consignadas:
I - a cada subtítulo, até o limite de dez por cento do respectivo valor,
mediante a utilização de recursos provenientes de:
774 R.T.J. — 197
EXPLICAÇÃO
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): Sr. Presidente, quero deixar registrado
que, nesta Casa, usualmente, temos o privilégio de encontrar e receber trabalhos da
mais alta qualidade. No entanto, preciso assinalar que particularmente este caso revela
um Advogado — os Colegas puderam ver da tribuna e pelos memoriais recebidos —
extremamente aplicado, de uma correção e precisão lógica de argumentação realmen-
te notável.
Faço esse registro de louvor ao jovem Advogado.
VOTO
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. A tese sustentada na presente ação direta
fundamenta-se na necessidade da definição de uma interpretação constitucionalmente
válida das espécies de abertura de crédito suplementar autorizadas pelo art. 4º, I, da Lei
Orçamentária Anual vigente, de modo a impedir a ocorrência de restrições nas destina-
ções reservadas aos recursos obtidos pela cobrança da Cide – Combustíveis, previstas no
art. 177, § 4º, II, da CF como o financiamento de programas de infra-estrutura de trans-
porte (alínea c).
Segundo a Confederação autora, a leitura dos preceitos impugnados compatível
com o referido dispositivo constitucional é a que (1) afasta o limite de dez por cento na
suplementação de valores de cada dotação da Cide com recursos da reserva de contin-
gência ou do excesso de arrecadação da própria Contribuição em exame, e que (2) obsta
a anulação parcial de dotação ou a utilização de reserva de contingência e de excesso de
arrecadação, todas relativas à receita da Cide, para atender ou reforçar dotações outras
que não aquelas apontadas pelo art. 177, § 4º, II, da Carta Magna.
Para ilustrar a necessidade de tal provimento, afirma o autor que o Quadro 11 anexo
ao Diploma atacado, demonstrativo das fontes de recursos por grupos de despesa,1
sinaliza que cerca de 40% (quarenta por cento) da estimativa de receita da Cide em 2003
foi enquadrada como reserva de contingência, não tendo sido tal parcela endereçada,
assim, a nenhuma das finalidades constitucionais referidas. Desse modo, conclui, se
aplicados os preceitos contestados, grande parte desse montante não deverá ser utiliza-
do nas destinações do art. 177, § 4º, II, da CF, viabilizando, ademais, o gasto desses
recursos em outras despesas públicas.
2. Não obstante o brilhantismo dos argumentos acima expendidos e o desvelo
demonstrado no confronto do caso em exame com a jurisprudência da Corte que tem
“(...)
Não só a Corte está restrita a examinar os dispositivos ou expressões deles
cuja inconstitucionalidade for argüida, mas também não pode ela declarar
inconstitucionalidade parcial que mude o sentido e o alcance da norma impugna-
da (quando isso ocorre, a declaração de inconstitucionalidade tem de alcançar
todo o dispositivo), porquanto, se assim não fosse, a Corte se transformaria em
legislador positivo, uma vez que, com a supressão da expressão atacada, estaria
modificando o sentido e o alcance da norma impugnada. E o controle de
constitucionalidade dos atos normativos pelo Poder Judiciário só lhe permite agir
como legislador negativo.
Em conseqüência, se uma das alternativas necessárias ao julgamento da pre-
sente ação direta de inconstitucionalidade (a procedência dessa ação) não pode ser
acolhida por esta Corte, por não poder ela atuar como legislador positivo, o pedido
de declaração de inconstitucionalidade como posto não atende a uma das condi-
ções da ação direta que é a da sua possibilidade jurídica.
(...)”
Assim, por todas essas razões, não conheço da presente ação direta.
VOTO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, apenas um aspecto que estimo
ressaltar. Na hipótese, não se discute, quer receita, quer destinação de uma receita, con-
siderada a discrição na elaboração da lei orçamentária. Quando o Tribunal proclamou
não convir o controle concentrado relativamente à lei orçamentária, fê-lo a partir da
premissa de que esta teria ficado no âmbito da opção política. Aqui, não é isso o que
ocorre. Argumenta-se que se acabou por lançar mão, muito embora de forma limitada, de
recursos que a própria Carta Federal revela com destinação específica. Busca-se, justa-
mente, a guarda da Constituição pelo Supremo Tribunal Federal, no que a lei orçamen-
tária estaria a conflitar, de modo frontal, com texto nela contido, mais precisamente com
o disposto no artigo 177, § 4º. Se entendermos caber a generalização, afastando por
completo a possibilidade do controle concentrado, desde que o ato impugnado seja lei
orçamentária, terminaremos por colocar a lei orçamentária acima da Carta da República.
Por isso, a meu ver, há que se distinguir caso a caso.
Não elogiei, no início de meu voto, o ilustre advogado, Dr. Luiz Alberto Bettiol,
que assomou à tribuna. Devo fazê-lo agora, porque é um ato de justiça, já que produziu
uma belíssima sustentação, a partir, a meu ver, de uma peça técnica que merece ser
considerada por esta Corte, de autoria do renomado jurista Marco Aurélio Grecco.
VOTO
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sr. Presidente, em trabalhos doutrinários, tenho
manifestado reservas em relação a essa jurisprudência, genericamente quanto a esse
caráter do ato de efeito concreto, especialmente em relação às leis, porque sabemos,
inclusive, a partir das próprias reflexões em termos de teoria geral, que podemos produzir
leis aparentemente genéricas destinadas à aplicação a um único caso. Creio haver
R.T.J. — 197 779
DEBATES
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Senhor Presidente, ainda a título de comentário
prévio, para confirmar as preocupações dos eminentes Ministros que me antecederam, a
lei orçamentária é para a Administração Pública, logo abaixo da Constituição, a lei mais
importante, até porque o descumprimento dela implica crime de responsabilidade. Está
no art. 85, inciso VI. Imunizar a lei orçamentária contra o controle abstrato acho um
pouco temerário, também, ou seja, vamos blindar a lei orçamentária contra o controle
objetivo de constitucionalidade.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Passa a ser um bill de indenidade.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Segundo a argumentação do autor — e, aqui,
nada cabe adiantar quanto à sua procedência ou não —, na verdade, por esse dispositivo
impugnado da lei orçamentária — que, em contrário, se pretende ser um ato concreto —
dá-se autorização para, durante um ano, alterar a destinação dada a determinado tributo,
a Cide, pela própria Constituição.
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Na Constituição, tinha destinação compulsória.
Com toda vênia à eminente Ministra Ellen Gracie, manifesto esta minha vontade.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Seria tornar a nossa Carta da República flexível,
passível de modificação por uma lei orçamentária.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Estou vendo um dos precedentes: autorização
para destinar parte da arrecadação da CPMF a cobrir débitos do Ministério da Saúde
com o FAT — não conhecemos da ADI (o que me dá um certo remorso, diante do que
veio a suceder posteriormente).
780 R.T.J. — 197
O Sr. Ministro Maurício Corrêa (Presidente): Ministro Pertence, quer dizer que V. Exa.
está alterando um pouco aquele entendimento, que sempre gosta de citar, de Kelsen, o
do menino e a missa?
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Não, aqui há uma norma autorizativa de que o
Presidente da República, com a única limitação da temporariedade da própria lei orça-
mentária, dela utilize quantas vezes, à sua discrição, parecer necessária.
O Sr. Ministro Maurício Corrêa (Presidente): Acho que, aqui, a hipótese, realmente,
não se enquadra.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Recordo a distinção de Kelsen, na Teoria Geral
das Normas. Se o pai ordena: “todos os meus filhos vão hoje à missa” tem-se um ato
concreto; ao contrário, se determina: o meu filho Antônio vai visitar o avô todos os
domingos, há norma abstrata, embora dirigida a uma única pessoa. É o exemplo que
costumo dar sempre. Aqui, realmente, o destinatário é o executor do orçamento; mas a
norma pode reger um número indeterminado de condutas...
O Sr. Ministro Maurício Corrêa (Presidente): Ministra Ellen Gracie, veja V. Exa.
que estamos vivendo novos tempos, então é preciso ter cuidado.
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): V. Exas. estão revisitando a jurisprudência
assentada. Vejo, analisando o caso concreto que temos na bancada, que esses dispositivos,
para serem eventualmente aplicados, essas limitações colocadas pela legislação, depen-
dem, necessariamente, do confronto com um anexo específico da lei orçamentária.
Portanto, mais concreto do que isso, dificilmente se encontrará.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não, prescinde, porque preceitua o dispositivo a
utilização de uma forma genérica, abstrata.
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: O artigo impugnado não estima receita nem
fixa despesa, não abre crédito e confere uma competência sub conditionis, acho que tem
esses caracteres, sim, da lei em sentido material, ou seja, lei genérica, impessoal e abstrata.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sr. Presidente, com o devido respeito, também acho
que é norma típica, de caráter geral e abstrato. Não é o fato de estar dirigida a sujeito
determinado, como seu destinatário, que descaracteriza a abstração e a generalidade da
norma. A norma constitucional que, por exemplo, no regime anterior, dava competência
ao Supremo Tribunal Federal e, portanto, a destinatário específico, para editar preceitos
regimentais com força de lei, era norma geral e abstrata. Concreta é a norma que prevê
uma ação historicamente determinada. Não é o caso.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Assim — V. Exa. me permite — temos julgado,
por exemplo, em relação, àquelas normas da LDO, que se esgotam na ação de encami-
nhar o projeto de lei orçamentária. Aí, continuo a entender que, realmente, é uma típica
norma concreta.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: É uma ação historicamente determinada. O caso, aqui,
parece-me de norma de competência, isto é, de norma que dá a certo sujeito o poder de
caráter geral para praticar uma série de atos, os quais é que serão concretos.
R.T.J. — 197 781
VOTO (Explicação)
O Sr. Ministro Carlos Britto: A abstratividade, diz a teoria toda do Direito, implica
uma renovação, não digo perene, porque, aqui, está limitada por um ano, mas uma
renovação duradoura entre a hipótese de incidência da norma e a sua conseqüência. E
me parece que, neste caso, o Ministro Sepúlveda Pertence colocou muito bem em evi-
dência, durante um ano inteiro o Presidente da República fica autorizado a aplicar e
reaplicar a lei a seu talante, claro que observados aqueles limites e condições. Acho que
a abstratividade está presente, também.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Na verdade, o conceito de controle abstrato — pelo
menos o desenvolvido no Direito europeu —, que contrapõe-se ao chamado controle
concreto, diz respeito simplesmente à se postulação de proteção a uma posição jurídico-
positiva. Tão-somente isso! Não está associado sequer a esse caráter genérico e abstrato.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Não, aí é o problema de que — como o Tribunal
construiu — o ato normativo deve ter, ele próprio, um certo grau de abstração.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sim, mas estou dizendo, o nome controle abstrato
está associado, propriamente, a essa contraposição com o chamado controle concreto.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: É mais de distinção entre a norma geral e a
norma concreta na teoria kelseniana.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Lourival Vilanova diria que o descritor e o prescritor
da norma se co-implicam duradouramente, um atrai o outro. O descritor é o antecedente
da norma, é a hipótese de incidência, e o prescritor é o conseqüente da norma.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Sr. Presidente, de regra, quando se trata da LDO –
Lei de Diretrizes Orçamentárias, tem-se o efeito concreto. Aliás, o precedente da minha
lavra diz respeito a essa lei.
Com todo o respeito à eminente Relatora, cujos votos temos o costume de acompa-
nhar, no caso ressai o caráter de abstração da norma objeto da causa.
No ponto, também peço licença a S. Exa. para conhecer da ação.
VOTO
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sr. Presidente, também fico na linha do voto do
Ministro Celso de Mello. O voto da eminente Relatora, não há dúvida, é ortodoxamente
fiel à jurisprudência que se vinha construindo, mas que, conforme já disse, me causa
desconforto em certas hipóteses.
Neste caso, reconheço a generalidade da norma de autorização absolutamente
abstrata, que permite ao Presidente da República, dadas certas condições de fato, criar
créditos suplementares, segundo o que se pretende, contrariando diretamente uma norma
782 R.T.J. — 197
constitucional. Esta, com relação a certa contribuição, impõe a aplicação total do produto
de sua arrecadação, nas suas finalidades constitucionais.
Na jurisprudência do Tribunal, creio, mesmo em norma de LDO — exemplo típico
de norma concreta que se esgota com o ato que se destina a regrar, isto é, a elaboração do
projeto do orçamento anual —, numa das poucas aberturas — pelo menos as minhas
anotações consignam —, admitimos a ação direta, em parte.
Refiro-me à ADI 2.108, em que conhecemos com relação a uma norma da LDO,
porque vinculava a execução orçamentária mensal à receita líquida. Era uma norma de
vigência temporária, mas pareceu-nos geral e, portanto, susceptível do controle direto
de constitucionalidade. Assim também parece no caso concreto, ainda sem me aventurar
a anunciar critérios gerais de orientação da jurisprudência.
Peço vênia à eminente Relatora para conhecer da ação direta.
VOTO
O Sr. Ministro Maurício Corrêa (Presidente): Também peço vênia à Ministra Ellen
Gracie, porque não vejo, na norma ora em exame, aqueles pressupostos estabelecidos na
nossa jurisprudência, especificamente para dizer que se trata de uma norma de efeito
concreto, tendo em vista a sua carga de abstração.
EXTRATO DA ATA
ADI 2.925/DF — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Relator para o acórdão: Ministro
Marco Aurélio. Requerente: Confederação Nacional do Transporte – CNT (Advogados:
Luiz Alberto Bettiol e outro). Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional.
Decisão: O Tribunal, por maioria, conheceu da ação, vencida a Ministra Ellen
Gracie, Relatora, que não a conhecia. Votou o Presidente, Ministro Maurício Corrêa.
Quanto ao mérito da questão, o julgamento foi adiado. Ausente, justificadamente, neste
julgamento, o Ministro Nelson Jobim. Falou pela requerente o Dr. Luiz Alberto Bettiol.
Presidência do Ministro Maurício Corrêa. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda
Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Nelson Jobim, Ellen Gracie,
Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto e Joaquim Barbosa. Procurador-Geral da
República, Dr. Cláudio Lemos Fonteles.
Brasília, 11 de dezembro de 2003 — Luiz Tomimatsu, Coordenador.
VOTO
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): 1. Superadas as questões preliminares
apreciadas na Sessão Plenária de 11-12-2003, passo, agora, ao exame de mérito da pre-
sente ação direta de inconstitucionalidade.
Ao impugnar as alíneas a, b, c e d do inciso I do art. 4º da Lei Orçamentária vigente
(Lei n. 10.640/03), opõe-se a requerente, fundamentalmente, à incidência de dois
comandos distintos do mecanismo de abertura de créditos suplementares, no que diz
respeito aos recursos da Cide/Combustíveis.
R.T.J. — 197 783
1 Lei n. 4.320, de 17-3-1964, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e
controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal:
“Art. 7º A Lei de Orçamento poderá conter autorização ao Executivo para:
I - abrir créditos suplementares até determinada importância, obedecidas as disposições do art. 43;”
2 Curso de Direito Constitucional Positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 720.
784 R.T.J. — 197
4 Art. 42 da Lei n. 4.320/64: “Os créditos suplementares e especiais serão autorizados por lei e abertos
por decreto executivo.”
R.T.J. — 197 785
VOTO (Incidências)
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): Sr. Presidente, iniciei o julgamento desta
ação na assentada em que propunha o seu não-conhecimento, tecendo elogios à atuação
do jovem Advogado que, brilhantemente, defende esta causa; renovo, aqui, essas home-
nagens, porque, realmente, o trabalho de Sua Excelência é brilhante, extremamente bem
desenvolvido e apresentado de maneira muito inteligente.
R.T.J. — 197 787
VOTO (Aditamento)
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): Sr. Presidente, nessa hipótese, creio que o
eminente Advogado já deu a solução: disse que iria, então, bater às portas do Ministério
Público para pedir as providências correspondentes.
Por essas razões, especialmente pela natureza mandamental que entrevejo colocada
nesta ação, eficácia que não se encontra na ação direta de inconstitucionalidade, por este
caráter — digamos — preventivo de tentar evitar que o Governo dê “um mau passo” na
questão da aplicação desses recursos, julgo improcedente o pedido formulado nesta
ação direta de inconstitucionalidade.
VOTO
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Sr. Presidente, eu desafiaria as pessoas com um
mínimo conhecimento de Direito comparado a vislumbrar a possibilidade de uma Corte
constitucional conceder o que se pleiteia nesta Ação Direta de Inconstitucionalidade. A
meu ver, é desconhecer completamente toda a evolução das relações entre Legislativo e
Judiciário nestes duzentos anos. Parece-me bastante exótico.
Por isso, acompanho a Relatora.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Senhor Presidente, pelo artigo 177, § 4º, da
Constituição Federal, todo o produto da arrecadação da Cide está vinculado a três fina-
lidades.
Se a eminente Relatora, no seu voto, deu à lei uma interpretação conforme esse
artigo, impedindo o risco de os recursos ficarem alocados em reserva de contingência,
que é uma dotação inespecífica, afastando este risco de uma aplicabilidade “tredestinada”,
ou seja, mesmo que, no exercício futuro, os recursos, ainda que sob reserva de contingência,
ficarão presos a essas três finalidades.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ministro, a norma é expressa a viabilizar a utilização
desses recursos no campo dos créditos suplementares, e sem uma especificação. Eis a
disposição contrária à Carta. Estou com um memorial e não encontrei pedido para se
afastar o contingenciamento, que decorre da frustração de receita.
O Sr. Ministro Nelson Jobim: Veja o que estabelece a referência específica ao
artigo 8º, parágrafo único, da Lei de Responsabilidade Fiscal.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não posso interpretar a Constituição a partir da
legislação ordinária.
O Sr. Ministro Nelson Jobim: Estou interpretando o artigo 4º da Lei Orçamentária
Anual da União, lei ordinária, que diz:
“Art. 4º Fica o Poder Executivo autorizado a abrir créditos suplementares,
observados os limites e condições estabelecidos neste artigo e desde que de-
monstrada, em anexo específico do decreto de abertura, a compatibilidade das
alterações promovidas na programação orçamentária com a meta de resultado
primário estabelecida no Anexo de Metas Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias
2003, para suplementação de dotações consignadas:
788 R.T.J. — 197
I - a cada subtítulo, até o limite de dez por cento do respectivo valor, mediante
a utilização de recursos provenientes de:
a) anulação parcial de dotações, limitada a dez por cento do valor do subtítulo
objeto da anulação, ressalvado o disposto no § 2º deste artigo;
b) reserva de contingência, inclusive de fundos e de órgãos e entidades das
Administrações direta e indireta, observado o disposto no parágrafo único do art.
8º da Lei de Responsabilidade Fiscal, e no § 6º deste artigo;
c) excesso de arrecadação de receitas diretamente arrecadadas, desde que
para alocação nos mesmos subtítulos em que os recursos dessas fontes foram origi-
nalmente programados, observado o disposto no parágrafo único do art. 8º da Lei
de Responsabilidade Fiscal; e
d) até dez por cento do excesso de arrecadação;”
De onde vêm os recursos em que fica autorizada a suplementação do crédito? Está
limitada essa suplementação a dez por cento de cada subtítulo. De onde vêm os recursos?
Primeiro, da anulação parcial de dotações, que se aplica a qualquer outra hipótese. De
reserva de contingência. À reserva de contingência no orçamento, poderá o Poder
Executivo suplementar crédito, utilizando dez por cento daquilo que já está reservado
em contingência. Ou seja, tem-se no orçamento o lançamento de uma reserva de contin-
gência, a Lei está autorizando, no artigo 4º, que poderá se utilizar para complementar até
dez por cento de subtítulos de verbas oriundas da reserva de contingência existente. E
diz mais, inclusive de fundos e órgãos da administração direta e indireta, observado —
quando do uso da reserva de contingência — o disposto no parágrafo único do art. 8º da
Lei de Responsabilidade Fiscal.
“Artigo 8º (...)
Parágrafo único. Os recursos legalmente vinculados a finalidade específica
serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda
que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso.”
Ou seja, se fosse lançar para a suplementação de verbas, no limite de dez por cento
de cada subtítulo, na reserva de contingência, e nela, se consignar verbas da Cide, só
pode ser destinada suplementação exclusivamente à Cide.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Todos estamos de acordo com a supremacia da Carta
da República. Agora, se existe tanta dúvida, a ponto de se ajuizar a ação direta de
inconstitucionalidade, evidentemente, precisamos partir, a fim de evitar controvérsias
futuras, para a interpretação conforme e proclamar que não pode haver a utilização,
como crédito suplementar, dessa rubrica que tem destinação peremptória, categórica, em
texto exaustivo na Carta da República.
O Sr. Ministro Nelson Jobim: Sugiro que se diga exclusivamente que, para
suplementação de créditos autorizados pelo artigo 4º da Lei, as origens das alíneas d —
excesso de arrecadação, caso da Cide — enfim, todas as fontes só podem ser as destinadas
referidas na Lei.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Compreendo. Vossa Excelência, perquirindo o
alcance da legislação que dispôs a respeito desse tema, do emprego de verbas, assenta
que ela respeita o texto da Carta. Agora, as dúvidas são muito grandes. Para mim, por
R.T.J. — 197 789
exemplo, temos, como ressaltou a Relatora, uma carta em branco que viabiliza a utilização,
quer a parcela esteja contingenciada ou não, em outro campo. Essa utilização em outro
campo é glosada pela Constituição.
O Sr. Ministro Nelson Jobim: Entendo que não, mas, em todo caso, não tem problema.
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Parece-me que, do voto da Relatora, a
vinculação à Constituição fica assegurada. Foi uma interpretação conforme.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Se todos estamos de acordo com a premissa básica,
que é a cláusula fechada da Carta da República, por que não julgar em definitivo para
emprestar a interpretação conforme, afastando, portanto, do cenário jurídico outro
enfoque?
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Eminente Ministra Relatora, Vossa Excelência
deu à lei impugnada uma interpretação conforme a Constituição, de sorte a preservar a
intocabilidade?
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): Não, Ministro Carlos Britto. Não vejo
como acatar o pedido desta ação de inconstitucionalidade porque, muito embora inteli-
gentemente formulado, na realidade o que se procura é uma ordem que o Judiciário dê ao
Executivo para que gaste o valor “x” em tal finalidade.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não adentramos essa seara.
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Relatora): Fiz questão de ler a informação da Secretaria
de Orçamento Federal, e ela está dizendo exatamente isso, que seria a interpretação
conforme, que não há nenhuma intenção, e que a legislação, inclusive de responsabili-
dade fiscal, não permite.
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Senhor Presidente, como não se trata de uma
interpretação conforme, peço vênia à Ministra Relatora, reconhecendo o brilho do voto
proferido, porém sou pela procedência da ação, mas apenas em relação à Cide/Combus-
tíveis.
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Sr. Presidente, acho que estamos todos de acordo. A
eminente Ministra Relatora invoca a Lei de Responsabilidade Fiscal para dizer que a
Constituição vai ser cumprida.
Sr. Presidente, o meu voto é no sentido de dar liberdade ao Governo para não
invocar outra interpretação qualquer como pretexto para deixar de cumprir a Constituição,
isto é, afasto todas as interpretações que dêem ao Governo um pretexto para não cumprir
a Constituição. Segundo meu raciocínio, a Constituição exige que os recursos sejam
aplicados nas três finalidades. O que entra na reserva é o saldo da aplicação dos recursos
nas três finalidades constitucionais. Ora, o art. 4º, § 1º, pode servir de escusa para o
Governo limitar até o teto de dez por cento a aplicação desse excesso ou desse saldo em
qualquer das três finalidades. Aí, a minha leitura é de que tal limite não subsiste e que,
portanto, o Governo tem a respeito liberdade política. Não vinculo, não amarro o Governo.
Mas não lhe reconheço poder de invocar aquele limite para dizer: “eu não aplico,
porque estou impedido”. Ele pode não aplicar, mas apenas se por ato político não o
queira fazer.
Essa é a minha interpretação e, com o devido respeito, julgo procedente a ação.
790 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sr. Presidente, é uma matéria altamente complexa e
realmente delicada. Agora, impressiona-me o argumento aqui mencionado e, agora,
enfatizado pelo Ministro Peluso quanto à possibilidade de, por via dessa interpretação,
negar-se aplicação, e de forma reiterada, a recursos que são obtidos mediante estrita
vinculação. Isso, de fato, sensibiliza-me. Nessa linha da interpretação conforme — já
enunciada pelo Ministro Carlos Britto e, agora, precisada pelo Ministro Cezar Peluso —,
parece-me razoável a formulação feita.
Acompanho a manifestação, com as vênias à Ministra Ellen Gracie.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Jobim: Sr. Presidente, o art. 4º autoriza o Executivo a abrir
créditos suplementares. Abertura de créditos, quando decorrente de qualquer origem, é
autorizada especificamente por leis especiais, ou seja, são chamados créditos especiais,
conforme foi exposto pela Ministra Relatora.
Aqui, a lei orçamentária autorizou que fossem abertos créditos suplementares pelo
Executivo mediante decreto, ou seja, independente de lei específica, uma autorização,
uma delegação legislativa, para suplementação de dotações consignadas. Temos, no
orçamento, uma série de dotações consignadas nos valores específicos do orçamento.
Fica o Executivo autorizado a suplementar crédito nas várias dotações existentes que
estão explicitadas na Lei Orçamentária. E diz que a cada subtítulo relativo às dotações,
essa suplementação só pode ser feita até o limite de dez por cento. Então, está autorizado
o Executivo, a cada subtítulo, por força dessa lei, a abrir crédito suplementar até o limite
de dez por cento a cada subtítulo. Mas de onde tirar o dinheiro para abrir os dez por
cento? Porque temos no orçamento a previsão da receita e a previsão de despesa. Então,
como diz ele: qual é a possibilidade que tem o Executivo? A primeira possibilidade é a
anulação parcial, na alínea a, de dotações, limitada a dez por cento do subtítulo objeto.
Então, se temos um subtítulo com “x”, e temos previstas dotações, estas poderão ser trans-
postas, ou seja, você anula determinadas dotações para abrir créditos suplementares a fim
de aumentar aquele subtítulo. É uma espécie de transposição orçamentária em que você
anula aquela parcela da dotação — diz a lei — até o limite de dez por cento — para
transpô-la já para a suplementação. É uma primeira hipótese de suplementação até o
limite de dez por cento.
A segunda: cada dotação tem uma reserva de contingência. Está lançada no orça-
mento, dentro do subtítulo da arrecadação — na lei das dotações —, a reserva de contin-
gência que diz que poderá, para suplementar até o limite de dez por cento, usar desses
valores já consignados na reserva de contingência.
Diz a Lei n. 10.640/2003, artigo 4º, inciso I, letra b:
“reserva de contingência, inclusive de fundos e de órgãos e entidades das
Administrações direta e indireta, observado o disposto no parágrafo único do artigo
8º da Lei de Responsabilidade Fiscal, (...)”
Ele só pode lançar mão das reservas de contingência constantes da lei orçamentária
para os fins específicos. Se aquela reserva é de contingência da Cide, só pode ser usada
R.T.J. — 197 791
O Sr. Ministro Nelson Jobim: Estou mostrando o sistema do orçamento. Veja o que
se passa: para efeito de raciocínio, vamos admitir que houve um excesso de arrecadação
“x” das verbas originárias da Cide. O que está autorizado? Que isso seja gasto, por
crédito suplementar, mediante decreto, até o limite de dez por cento. Temos autorização
para crédito suplementar, mediante decreto, até o limite de dez por cento; se houver um
excesso de arrecadação que ultrapasse esse limite — o Executivo pode, mediante decreto,
suplementar até o limite de dez por cento —, sobre o excedente terá que haver projeto de
lei especial para crédito especial, considerando o excesso de arrecadação. Efetivamente,
ele não pode gastar para outro fim sem que o Legislativo autorize no excedente de dez
por cento. Se essa arrecadação preenche os dez por cento, tudo bem. Agora, se ela excede,
o Executivo, mediante decreto, destina o limite até os dez por cento para o subtítulo
especial do investimento da Cide, e os outros excedentes, ele não pode gastar senão
autorizado pelo Congresso, pelo crédito especial. Ou seja, o fato de ter arrecadado de
fonte específica não autoriza despesa se não houver autorização orçamentária específica,
que é a norma orçamentária típica. É isso o que se passa.
Então, temos duas saídas: se houver a necessidade de uma suplementação de dez
por cento, onde buscará esses recursos para suplementá-los? Poderá buscá-los na anula-
ção parcial, na reserva de contingência existente, que é despesa para não pagar, e poderá
buscar o recurso no excesso de arrecadação, mas este está vinculado à sua origem. Se ele
é um excesso decorrente de receita vinculada, terá que lançar um subtítulo respectivo,
não pode destinar outro subtítulo. É isso o que está dito. Não há a criação de uma reserva
de contingência nova, mas, sim, a fonte para a suplementação até o limite de dez por
cento. Agora, se a necessidade do limite ultrapassar a dez por cento, ele usará decreto
para os dez por cento e terá que usar lei especial para o excedente.
Então, não vejo nenhuma possibilidade de interpretação diversa, porque essa é a
técnica orçamentária. Aqui, visa-se tentar romper o superavit primário, que se pretende
com orçamento, através da abertura da possibilidade da necessidade do investimento.
Por isso a Ministra Ellen Gracie referiu que a pretensão última disso é a tentativa
mandamental, que os Senhores perceberam e não concordaram, de que Supremo vá
determinar ao Executivo essa forma de execução extra-orçamentária.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, não haveria a discussão que
agora se trava sem o descompasso quanto à interpretação do ato atacado. Não teríamos a
presença, nesta assentada, do próprio Advogado-Geral da União, uma vez que a Advo-
cacia-Geral da União está assoberbada — tenho certeza disso —, se o ato normativo,
realmente, já atendesse ao dispositivo constitucional.
A norma primária, categórica, peremptória, exaustiva, relativa aos recursos arreca-
dados com a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, ligada às atividades
de importação, comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus deriva-
dos e álcool combustível, dispõe:
Art. 177 (...)
§ 4º (...)
II - os recursos arrecadados serão destinados:
R.T.J. — 197 793
ao alcance dessa lei, o que se dirá em relação àqueles titulares de uma política governa-
mental em curso? Qual será a tendência, principalmente em uma época em que se fala
tanto em Fome Zero?
O Sr. Ministro Nelson Jobim: Começou o preconceito, o juízo preconceituoso.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não, não há preconceito. O que há é a constatação
da realidade, de um histórico. Cada governo que chegou ao Poder nos últimos anos
trouxe o plano milagroso para consertar o Brasil — com c e com s — e a sociedade
brasileira viveu, nos últimos trinta anos, em sobressaltos.
Se nós, onze, que costumamos lidar tanto com a Carta da República, estamos aqui
a divergir quanto ao alcance do ato atacado, indaga-se: se concordamos que a nossa
Constituição Federal continua rígida, como Lei Suprema do País, por que não homena-
gear, explicitando, na espécie, que o dispositivo impugnado não alcança essa rubrica
que tem destinação exclusiva pela Carta da República?
O Sr. Ministro Nelson Jobim: Então, Vossa Excelência dá provimento ao mandado
de segurança preventivo, ajuizado pela Confederação Nacional do Trabalho, em favor
das empreiteiras nacionais?
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não é mandado de segurança preventivo, não é ação
direta de inconstitucionalidade por omissão; não temos, aqui, uma ação mandamental.
Senhor Presidente, não posso subestimar inteligências. Admito haver um descom-
passo de enfoque, relativamente ao alcance dessa lei. De um lado, sustentando-se que ela
ofende, como está, considerada uma certa ambigüidade, o que se contém na Constituição
Federal; de outro lado, dando-se à Carta da República, conforme trecho lido da tribuna
pelo Dr. Luiz Alberto Bettiol, uma interpretação que a torna flexível, que abre a alínea,
que seria a d, do inciso II do § 4º do artigo 177 dessa mesma Carta para, simplesmente,
ter-se uma carta em branco, visando à atuação no campo político, pelo Governo, no
emprego de verba destinada de forma peremptória, e bem destinada, diria eu. Não tenho,
na definição, preconceito quanto a empreiteiras.
O Sr. Ministro Nelson Jobim: Não tenho preconceito, tenho história.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Todos nós temos histórias.
O Sr. Ministro Nelson Jobim: Veja as CPIs e Vossa Excelência vai verificar muito a
participação das CPIs, principalmente da famosa CPI do Orçamento.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, então, há um descompasso.
Estamos aqui num processo — já perquiri o alcance do ato normativo —, não estamos
sequer indagando o alcance da Carta da República, porque os dez Ministros presentes —
Vossa Excelência, ainda, não se manifestou — concordam com o alcance do artigo 177,
§ 4º, inciso II, dessa mesma Carta, mas há sérias dúvidas, e o Tribunal está dividido,
quanto ao alcance do ato normativo atacado. Não tenho nenhuma dúvida. O que eu digo
é que o amanhã, se a decisão não for no sentido da procedência do pedido formulado na
inicial, revelará o emprego dessa contribuição, do arrecadado a título dessa contribuição
do artigo 177, § 4º, em áreas diversas, tendo em conta — repito — a ambigüidade da lei
atacada.
Peço vênia para acompanhar a divergência dos Ministros Carlos Britto, Gilmar
Mendes, Cezar Peluso e julgar procedente o pedido, nos termos em que formulado,
assentando que não há pedido quanto ao contingenciamento.
796 R.T.J. — 197
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, não deduzi meu raciocínio em
vista apenas do sustentado e esclarecido da tribuna. Quando, na assentada anterior, disse
do cabimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade, já tinha convencimento formado
sobre a procedência, isso com base no relatório da nobre Relatora, Ministra Ellen Gracie,
e, também, nos memoriais apresentados pelas partes, inclusive pela própria União. Agora,
torno a dizer que a União e a requerente, a Confederação, pensam de uma única forma:
que não pode haver desvio de valores arrecadados a partir da norma do § 4º do artigo 177
da Constituição Federal. A dúvida está no alcance dessa lei. Para um certo segmento,
tem-se que ela viabiliza a utilização, como crédito suplementar, do que arrecadado a tal
título e, para outro segmento, não. Acredita-se que teremos uma fidelidade maior no
campo da execução dessa lei, até mesmo não a observando no que é inconstitucional.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Sr. Presidente, o Código Tributário Nacional, no
artigo 4º, inciso II, estabelece que “a natureza jurídica específica do tributo é determinada
pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: II - a
destinação legal do produto da sua arrecadação.”
Esse dispositivo tem aplicação, às inteiras, no que concerne aos impostos, às taxas
e às contribuições de melhoria (CF, art. 145, I, II, III). Todavia, quanto às contribuições
parafiscais — que se desdobram em 1) contribuições sociais de seguridade social (CF,
art. 149, art. 195); 2) contribuições sociais de seguridade social decorrente de novas
fontes (CF, 149, art. 195, § 4º) e 3) contribuições sociais gerais, como, por exemplo, o
salário-educação (CF, art. 212, § 5º), e as contribuições do sistema “S” (CF, art. 240) —
e bem assim às contribuições parafiscais especiais, vale dizer 1) às contribuições de
intervenção (CF, art. 149) e 2) às contribuições corporativas (CF, art. 149), quanto a essas
contribuições, a sua característica está justamente na sua finalidade, ou na destinação do
produto de sua arrecadação. É dizer, o elemento essencial para a identificação dessas
espécies tributárias é a destinação do produto de sua arrecadação.
Bem por isso, Sr. Presidente, no que toca à contribuição objeto de nossas cogita-
ções, estabelece o art. 177, § 4º, inciso II, da Constituição Federal:
“Art. 177 (...)
§ 4º A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico
relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus de-
rivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes
requisitos:
II - os recursos arrecadados serão destinados:
a) ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível,
gás natural e seus derivados e derivados de petróleo;
b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do
petróleo e do gás;
c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes.”
R.T.J. — 197 797
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Vou pedir vênia ao eminente Ministro Carlos Velloso,
para me valer do aparte do eminente Ministro Nelson Jobim e fazer duas observações: o
problema que me chamou a atenção, aqui, foi a objeção já esboçada pelo Ministro
Sepúlveda Pertence, no sentido de que há dificuldade de ordem teórica para compatibi-
lizar o pedido com o propósito de transformá-lo em ação de caráter mandamental, para
defender resultado prático específico que interessa a grupo determinado. E invoco o
eminente Ministro Gilmar Mendes, para notar que estamos em sede de controle abstrato
de constitucionalidade, de modo que nossa função consiste em dizer que, diante de
pedido que não se subordina às regras particulares do processo subjetivo, isto é, nenhuma
das normas processuais que regulam o processo de caráter subjetivo (como, por exemplo,
a de adstrição ao pedido, adstrição à causa de pedir, etc.), essas normas são inaplicáveis
nesta ação, em que a cidadania tem direito de exigir da Corte a interpretação de uma
norma perante todo o texto constitucional. E, portanto, com base nessa premissa assen-
tada em memorável julgamento, podemos analisar o pedido, ainda que com alguma
especificidade em relação a um grupo de sujeitos, abstraindo essa especificidade e
tomando-o como pedido de análise da norma em caráter geral e, portanto, aproveitável
a toda espécie de contribuição que tem predestinação constitucional, para dar a essa
norma caráter geral, e não, restrito ao caso do artigo 177.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Ministro, mesmo no processo objetivo não podemos
sair do pedido.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Mas o pedido é só de interpretação da norma do artigo
4º perante a Constituição.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: O pedido é com relação à Cide, artigo 177, § 4º,
inciso II, e nós não podemos, mesmo no processo objetivo, nos afastar do pedido. No
mais, estou inteiramente de acordo com Vossa Excelência, mas, em relação ao pedido,
nós não podemos nos afastar, repito.
O Sr Ministro Cezar Peluso: Do pedido, não. A autora quer que se examine a
questão perante o artigo 177.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Exatamente, Ministro. O artigo 177 é expresso. O
pedido é com relação à Cide. No momento em que for proposta uma ação relativamente
a qualquer outra contribuição, então vamos nos manifestar. E há entendimento, neste
Tribunal, que seriam vinculantes os fundamentos com relação a todas as outras. Eu não
estou de acordo. Penso que apenas o dispositivo vincula. Mas a questão é interessante e,
brevemente, vamos ouvir o nosso eminente Colega, Ministro Gilmar Mendes, que,
certamente, sustentará que os fundamentos também são vinculantes. E quem sabe não
vamos concordar?
Vou encerrar o meu voto, pondo-me de acordo com a divergência, evidentemente
com o maior respeito e com a vênia devida à eminente Ministra Relatora. Penso que a
previsão de suplementação de créditos, contida nos dispositivos impugnados da Lei
Orçamentária Anual, não pode atingir a destinação da Cide, instituída pela Lei n.
10.336, de 2001. É dizer, a destinação a ser observada é a do artigo 177, § 4º, inciso II.
Volto a repetir, não estou dizendo que o Governo deve gastar, isso é um ato político, não
pode é desvincular o produto da arrecadação daquilo que está expressamente estabele-
cido na Constituição.
Com essas breves considerações, pedindo mais uma vez vênia à eminente Ministra
Relatora, acompanho a divergência.
R.T.J. — 197 799
VOTO (Aditamento)
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sr. Presidente, na verdade, é até uma infelicidade
que tenhamos de debater esse tema, e a Ministra Ellen Gracie trouxe isso, exatamente,
por revelação de responsabilidade, não deixar que isso entrasse no exercício findo e,
depois, tivéssemos, aí, a questão da discussão sobre os efeitos e tudo mais, e o eventual
exaurimento de eficácia da norma. Mas estamos a ver que o tema é assaz complexo, é um
daqueles casos em que, talvez, devêssemos nos valer da fórmula da Lei n. 9.868 e realizar
algo como ou uma audiência pública ou até a designação de um debate entre experts.
Acho que era um típico caso para que pudéssemos analisar a repercussão não só nesse
caso, mas em outros. A ambigüidade existe na medida em que o texto é bastante genérico,
e o pedido é exatamente de uma exclusão. Mas, de fato, se produz no próprio texto
constitucional, temos a experiência com a CPMF — claro que, aqui, com destinação à
seguridade e, obviamente, como esta é muito carente e não há essa discussão sobre se, de
fato, foram destinados os vinte ou trinta bilhões, se houve excesso de arrecadação, aqui
ou acolá —, e esse é um tema que marca o drama dessa nossa opção em ter de julgar isso
na última sessão do último dia do ano judiciário, e nós todos estamos impedidos, moral
e juridicamente, de pedir vista sem assumir a responsabilidade.
Eu, também, tive a impressão, e, também, o Ministro Carlos Britto, diante de algumas
considerações e obter dicta feitas pela Ministra Ellen Gracie, ficamos com a impressão
de que ela se encaminhava para uma interpretação conforme, especialmente em face das
considerações sobre um eventual “cheque em branco” que se dava ao Executivo.
De modo que, reconhecendo a delicadeza do tema e registrando a necessidade de
uma eventual rediscussão em outro contexto, eu, também, não vejo como afastar, agora,
a colocação feita ou resumida de maneira bastante precisa pelo Ministro Carlos Velloso,
assentando que o texto constitucional é impositivo. Agora não obriga a um dispêndio,
isso continua submetido às regras orçamentárias, claro que, portanto, terá de haver a
deliberação legislativa.
VOTO
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sr. Presidente, começo por informar ao Ministro
Nelson Jobim que sou filho de empreiteiro, embora um modesto empreiteiro.
Serei absolutamente breve, e os meus problemas são de princípio, de compromisso
com essa que é a nossa empreitada fundamental, o controle abstrato de normas.
Ninguém duvida, a meu ver, os dez Ministros presentes, que o artigo 177, § 4º,
inciso II, da Constituição, criou uma vinculação de receita iniludível, que alcança todo
o montante arrecadado a título da Cide. Como de resto é da essência das contribuições,
qual mostrou o Professor Carlos Velloso. Ninguém duvida também de que, em função
das regras básicas do processo orçamentário constitucional, essa vinculação não obriga
a despender, em cada exercício, toda a arrecadação desta contribuição ou de outras
receitas vinculadas. O dispêndio depende da dotação orçamentária.
Todo controle de constitucionalidade de normas parte — perdoem-me o lugar
comum — da interpretação da norma questionada. E, a partir daí, o Tribunal pode encon-
trar-se entre as duas hipóteses de uma alternativa: ou a interpretação é inequívoca —
quanto uma interpretação pode ser inequívoca, mas ao Tribunal parecer inequívoca — e,
800 R.T.J. — 197
VOTO (Aditamento)
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Senhor Presidente, exatamente porque a lei
impugnada não faz a distinção entre receitas de destinação obrigatória e receitas de
destinação livre, mais do que comportar uma certa ambigüidade, ela comporta uma
ambigüidade certa, o que é mais grave.
VOTO (Aditamento)
O Sr. Ministro Nelson Jobim: Sr. Presidente, só gostaria de lembrar ao grupo que
está acompanhando a divergência que, na folha 32 da inicial, pede seja afastada, em
relação às dotações vinculadas aos recursos oriundos da arrecadação, a aplicação do
artigo 4º, inciso I, letras b e c, isto é, do teto de dez por cento da abertura de crédito. Está
pedindo o afastamento dos dez por cento.
Não é tão simples, como se diria, o número I do pedido: seja afastada, em relação às
dotações vinculadas aos recursos oriundos da Cide (Fonte 111), a aplicação do artigo 4º,
inciso I, alíneas b e c da referida Lei, isto é, do teto de dez por cento para abertura de
créditos suplementares com recursos oriundos. Está se dizendo, aqui, que, se oriundos da
Cide, não teria limites à abertura do crédito suplementar.
R.T.J. — 197 801
VOTO
O Sr. Ministro Maurício Corrêa (Presidente): Examinando o ato impugnado, veri-
fica-se uma disposição que, ao meu juízo, afronta inegavelmente o artigo 177, § 4º, II da
Constituição Federal. Até porque quem se responsabiliza por fazer lei orçamentária não
somos nós, mas o Congresso Nacional. Ele deveria ter tido o cuidado de saber se estaria
a norma compatibilizada ou não com o que determina a regra constitucional.
Diante de tudo já devidamente explicitado, não tenho outra alternativa senão também
entender que, na melhor das hipóteses, resta — conforme disse com muita propriedade o
Ministro Carlos Velloso — uma ambigüidade entre o texto impugnado e a norma consti-
tucional. Só isso, a meu ver, justificaria o julgamento pela procedência da ação.
Acompanho a divergência do Ministro Carlos Britto, com todas as vênias à Ministra
Ellen Gracie e aos que a acompanharam.
EXTRATO DA ATA
ADI 2.925/DF — Relatora: Ministra Ellen Gracie. Relator para o acórdão: Ministro
Marco Aurélio. Requerente: Confederação Nacional do Transporte – CNT (Advogados:
Luiz Alberto Bettiol e outro) Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional.
Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou procedente, em parte, a ação, para dar
interpretação conforme a Constituição, no sentido de que a abertura de crédito suple-
mentar deve ser destinada às três finalidades enumeradas no artigo 177, § 4º, inciso II,
alíneas a, b e c, da Carta Federal, vencidos a Ministra Ellen Gracie, Relatora, e os Ministros
Joaquim Barbosa, Nelson Jobim e Sepúlveda Pertence. Votou o Presidente, Ministro
Maurício Corrêa. Redigirá o acórdão o Ministro Marco Aurélio. Ausente, justificada-
mente, o Ministro Celso de Mello.
Presidência do Ministro Maurício Corrêa. Presentes à sessão os Ministros
Sepúlveda Pertence, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Nelson Jobim, Ellen Gracie, Gilmar
Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto e Joaquim Barbosa. Procurador-Geral da República,
Dr. Haroldo Ferraz da Nóbrega (Portaria PGR n. 769/2003).
Brasília, 19 de dezembro de 2003 — Luiz Tomimatsu, Coordenador.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, por seu Tribunal Pleno, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim,
na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de
votos, julgar procedente a ação e declarar a inconstitucionalidade da Emenda Constitu-
cional n. 52, de 28 de dezembro de 2001, do Estado de Minas Gerais, que acrescentou o
artigo 110 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do
mesmo Estado, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente.
Brasília, 30 de junho de 2005 — Carlos Ayres Britto, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: De ação direta de inconstitucionalidade é que se
cuida. Ação, essa, que tem por objeto a Emenda Constitucional n. 52, de 28 de dezembro
de 2001, do Estado de Minas Gerais, que “acrescenta ao Ato das Disposições Constitu-
cionais Transitórias da Constituição do Estado dispositivos referentes à extinção do
cargo de carcereiro na estrutura da Polícia Civil”.
2. Os dispositivos sob censura têm a seguinte legenda:
“Art. 1º Fica acrescido ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
da Constituição do Estado o seguinte art. 110:
‘Art. 110. Fica extinto, na estrutura da Polícia Civil, o cargo de Carce-
reiro, com suas respectivas classes, passando seus ocupantes na data de
publicação da emenda que instituiu este artigo a ocupar o cargo de Detetive,
mantidas as vagas existentes no quadro de detetives.
§ 1º Os ocupantes do cargo de Carcereiro a que se refere o caput deste
artigo ingressarão na classe inicial do cargo de Detetive, independentemente
da classe ocupada na carreira de Carcereiro.
§ 2º Os servidores de que trata este artigo farão jus à progressão na
carreira por merecimento e antiguidade.
§ 3º Até o integral cumprimento da Lei n. 13.720, de 27 de setembro de
2000, cabem aos ocupantes do cargo de Detetive as atribuições previstas no
art. 78 da Lei n. 5.406, de 16 de dezembro de 1969.
§ 4º Fica o Poder Executivo autorizado a promover o ajuste e o equilí-
brio do número de cargos na série de classes de Detetive.’
Art. 2º. Essa emenda à Constituição entra em vigor na data de sua publicação.”
R.T.J. — 197 803
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Consoante noticiado, a pretensão
deduzida pelo requerente alicerça-se em duas teses jurídicas distintas. A primeira, de que
o texto normativo adversado padece de vício formal de inconstitucionalidade. A segunda,
de que a norma estadual sub judice, ao possibilitar o preenchimento de cargo permanente
sem a necessidade de concurso público, destoa do inciso II do artigo 37 da Magna Lei.
9. Realmente, o § 1º do art. 61 da Lex Legum confere ao Chefe do Poder Executivo
a privativa competência de iniciar os processos de elaboração de diplomas legislativos
que disponham sobre a criação de cargos, funções ou empregos públicos na Administração
Direta e autárquica, ou aumento de sua remuneração, bem como leis que digam respeito
a servidores públicos da União e dos Territórios, seu regime jurídico, provimento de
cargos, estabilidade e aposentadoria (inciso II, a e c, do art. 61).
10. Daqui se infere que a Carta-cidadã, ao instituir a cláusula de reserva de iniciativa
para o Chefe do Poder Executivo, interditou idêntico mister a qualquer membro ou
colegiado dos outros dois Poderes; pouco importando a natureza do ato legislativo a ser
formalmente iniciado nas instâncias parlamentares. É que a prerrogativa outorgada ao
804 R.T.J. — 197
EXTRATO DA ATA
ADI 3.051/MG — Relator: Ministro Carlos Britto. Requerente: Procurador-Geral
da República. Requerida: Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou procedente a ação e declarou a
inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n. 52, de 28 de dezembro de 2001, do
Estado de Minas Gerais, que acrescentou o artigo 110 ao Ato das Disposições Constitu-
cionais Transitórias da Constituição do mesmo estado, nos termos do voto do Relator.
Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim. Ausentes, justificadamente, o Ministro
Carlos Velloso e, neste julgamento, o Ministro Sepúlveda Pertence.
Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda
Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,
Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Subprocurador-Geral da República, Dr.
Haroldo Ferraz da Nóbrega.
Brasília, 30 de junho de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
1 Art. 78 da Lei n. 5.406/69 — O Carcereiro é o servidor policial de classe singular que tem a seu cargo
o recolhimento, movimentação, disciplina e vigilância de presos nas cadeias públicas, guarda de
valores e pertences de detentos, escrituração dos livros de registros das carceragens e cuidados com a
limpeza das celas e adjacências.
806 R.T.J. — 197
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim, na
conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade, julgar
prejudicada a ação, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 17 de fevereiro de 2005 — Eros Grau, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Eros Grau: A Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, com
fundamento no artigo 103, inciso IX, da Constituição do Brasil, propõe ação direta de
inconstitucionalidade contra o artigo 253 da Lei Estadual do Ceará n. 12.342 — Código
de Divisão e de Organização Judiciária —, de 28 de julho de 1994, cujo teor é o seguinte:
“Art. 253. Os magistrados, nos períodos de férias coletivas, não poderão
ausentar-se de suas comarcas senão para lugar de onde lhes seja possível voltar às
suas funções dentro de 48 horas, e (sic) sem antes comunicar à Presidência do
Tribunal a ausência e onde devam ser encontrados”.
2. A requerente alega que o preceito impugnado padece de inconstitucionalidade
formal e material. Sustenta que vários dispositivos da Constituição do Brasil são infrin-
gidos, ao argumento de que: (i) o preceito dispõe a propósito de matéria de competência
que estaria reservada ao Estatuto da Magistratura, (ii) contraria as prerrogativas constitu-
cionalmente asseguradas aos magistrados e (iii) afronta o direito fundamental de ir e vir.
3. Afirma haver contrariedade entre o preceito hostilizado e o artigo 931, caput, e inciso
VII, da Constituição do Brasil, dado que, ao dispor sobre os deveres dos magistrados, o artigo
253 da Lei n. 12.342 tratou de matéria constitucionalmente reservada à lei complementar.
4. Aponta, ainda, violação direta aos artigos 1º, 5º, caput, e inciso XV, visto que os
juízes cearenses não poderiam exercer plenamente o direito fundamental de que são
titulares todos os cidadãos da República Federativa do Brasil, qual seja, o de livre
locomoção.
5. Destaca precedentes desta Corte nos quais restou assentado que o preceito
normativo que condiciona a ausência do magistrado da comarca a prévia autorização
configura inconstitucionalidade formal (ADI 2.753/CE, Ministro Carlos Velloso, DJ de
11-4-2003; ADI 2.880-MC/MA, Ministro Gilmar Mendes, DJ de 1º-8-2003).
1 Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da
Magistratura, observados os seguintes princípios:
[...]
VII - o juiz titular residirá na respectiva comarca.
R.T.J. — 197 807
VOTO
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): A Associação dos Magistrados Brasileiros –
AMB propõe ação direta, objetivando a declaração de inconstitucionalidade do art. 253
da Lei cearense n. 12.342, de 28 de julho de 1994.
2. O preceito impugnado dispunha sobre as férias coletivas dos magistrados do
Estado do Ceará. A EC 45/04, ao vedar as férias coletivas nos juízos e tribunais de
segundo grau, revogou os atos normativos inferiores que a elas se referiam, sendo pací-
fico o entendimento desta Corte no sentido de não ser cabível a ação direta contra ato
revogado.
Julgo prejudicado o pedido.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, faço uma ponderação: a regra
somente é aplicável ao Tribunal de Justiça e ao Judiciário do Estado do Ceará, e tivemos
a abolição das férias coletivas.
808 R.T.J. — 197
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Levanto a questão de ordem para saber se
prejudicou ou não.
O Sr. Ministro Marco Aurélio:Vossa Excelência conclui?
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Creio não ter prejudicado.
EXTRATO DA ATA
ADI 3.085/CE — Relator: Ministro Eros Grau. Requerente: Associação dos
Magistrados Brasileiros – AMB (Advogados: Alberto Pavie Ribeiro e outro). Requeridos:
Governador do Estado do Ceará e Assembléia Legislativa do Estado do Ceará.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou prejudicada a ação. Votou o Presidente,
Ministro Nelson Jobim. Ausentes, justificadamente, os Ministros Sepúlveda Pertence e
Carlos Velloso.
Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Celso de
Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim
Barbosa e Eros Grau. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e
Silva de Souza.
Brasília, 17 de fevereiro de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribu-
nal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim, na confor-
midade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade, julgar proce-
dente a ação, para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 10.860, de 31 de agosto de
2001, do Estado de São Paulo, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente,
Ministro Nelson Jobim. Ausentes, justificadamente, os Ministros Sepúlveda Pertence,
Celso de Mello e Gilmar Mendes.
Brasília, 24 de novembro de 2005 — Carlos Velloso, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Velloso: O Governador do Estado de São Paulo, com funda-
mento no art. 103, V, da Constituição Federal, propõe ação direta de inconstitucionalida-
de, com pedido de suspensão cautelar, em face da Lei 10.860, de 31-8-2001, do Estado de
São Paulo, que “estabelece requisitos para criação, autorização de funcionamento, ava-
liação e reconhecimento dos cursos de graduação na área da saúde, das instituições
públicas e privadas de educação superior e adota outras providências” (fl. 10).
Sustenta o autor, em síntese, o seguinte:
a) afronta aos arts. 22, XXIV, e 24, IX, § 1º e § 2º, da Constituição Federal, dado que
a lei impugnada, ao prescrever requisitos para criação, avaliação e reconhecimento de
cursos de graduação, invadiu competência privativa da União para legislar sobre diretri-
zes e bases da educação nacional, extrapolou a competência concorrente ao estabelecer
normas gerais de educação, bem como violou o princípio federativo (fls. 05-06);
b) contrariedade ao art. 209 da CF, porquanto as instituições privadas de ensino
possuem a garantia constitucional da livre iniciativa, atendidas as condições previstas
nos incisos desse artigo (fl. 06);
Solicitaram-se informações na forma do art. 12 da Lei 9.868/99 (fl. 14). O Presidente
da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, às fls. 21-39, sustenta, em síntese:
a) inocorrência de afronta ao princípio federativo, uma vez que a competência
legislativa concorrente do Estado de São Paulo para legislar sobre normas específicas
voltadas à educação está em conformidade com o art. 22, XXIV, da CF (fl. 25);
b) ausência de violação à competência concorrente, dado que a proteção e a defesa
da saúde é atribuição de todos os Estados-Membros, restando à União legislar sobre
normas gerais (fl. 25);
c) inexistência de ofensa à competência privativa da União para legislar sobre
diretrizes e bases da educação nacional, visto que “as regras específicas sobre educa-
ção são de alçada dos Estados-Membros” (fl. 26);
d) ausência de contrariedade ao art. 209 da CF, porquanto a lei impugnada, “ao
estabelecer requisitos para criação, autorização de funcionamento, avaliação e re-
conhecimento dos cursos de graduação na área de saúde, manifesta a preocupação de
conjugar a liberdade do particular com as exigências do Estado quanto ao aspecto
educacional” (fl. 28).
R.T.J. — 197 811
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): O Governador do Estado de São Paulo
aforou esta ação direta de inconstitucionalidade objetivando a declaração de inconstitu-
cionalidade da Lei 10.860, de 31-8-2001, daquele Estado. Sustenta o autor que a Assem-
bléia Legislativa, ao dispor sobre requisitos para criação, autorização de funcionamento,
avaliação e reconhecimento dos cursos de graduação na área de saúde, das instituições
públicas e privadas de educação superior, usurpou a competência privativa da União
para legislar sobre “diretrizes e bases da educação nacional”, conforme disposto nos
arts. 22, XXIV, e 24, IX e §§ 1º e 2º, da Constituição Federal. A lei objeto da causa
violaria, também, o art. 209 da mesma Carta.
A Constituição Federal, art. 22, XXIV, estabelece que compete privativamente à
União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional. E, no art. 24, IX, prescreve
competir à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre
educação, cultura, ensino e desporto.
Estamos, pois, no caso, no campo da legislação concorrente entre a União, os
Estados e o Distrito Federal.
Quando do julgamento das ADIs 927-MC/RS e 933-MC/GO, ambas de minha
Relatoria, examinei a questão da legislação de diretrizes e normas gerais de competência
da União. Examinamos, nas mencionadas ADIs 927-MC/RS e 933-MC/GO, a competên-
cia privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação: CF, art. 22, XXVII.
812 R.T.J. — 197
Posta assim a questão, indaga-se até que ponto seria legítimo ao Estado-Membro,
utilizando-se da competência concorrente, editar normas legais.
Feita a distinção retropreconizada, no sentido de que a competência concorrente
do art. 24 da Constituição compreende competência concorrente não-cumulativa ou
suplementar (§ 2º) e competência concorrente cumulativa (§ 3º), temos o seguinte: pode-
rão os Estados-Membros: 1º) presente a lei de normas gerais, no uso da competência
suplementar, preencher os vazios daquela lei de normas gerais, a fim de afeiçoá-la às
peculiaridades locais (art. 24, § 2º); 2º) poderão os Estados, em princípio, inexistente a
lei federal de normas gerais, exercer a competência legislativa plena “para atender a
suas peculiaridades” (art. 24, § 3º).
Em suma: o art. 24 da CF compreende competência estadual concorrente não-
cumulativa ou suplementar (§ 2º) e competência estadual concorrente cumulativa (§ 3º).
No primeiro caso, existente a lei federal de normas gerais, poderão os Estados e o DF, no
uso da competência suplementar (§ 2º), preencher os vazios de lei federal de normas
gerais, a fim de afeiçoá-la às peculiaridades locais (CF, art. 24, § 2º); no segundo caso,
poderão os Estados e o DF, inexistente a lei federal de normas gerais, exercer a compe-
tência legislativa plena “para atender a suas peculiaridades” (CF, art. 24, § 3º), obser-
vando-se o disposto no § 4º do citado art. 24, CF.
Isso posto, examinemos a questão.
A Lei 9.394, de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Título IV,
regula a organização da Educação Nacional. O art. 8º estabelece que “a União, os Esta-
dos, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os
respectivos sistemas de ensino”. Prescreve, a seguir, o art. 10 da citada Lei 9.394/96:
“Art. 10. Os Estados incumbir-se-ão de:
I - organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais dos seus
sistemas de ensino;
II - definir, com os Municípios, formas de colaboração na oferta do ensino
fundamental, as quais devem assegurar a distribuição proporcional das responsa-
bilidades, de acordo com a população a ser atendida e os recursos financeiros
disponíveis em cada uma dessas esferas do Poder Público;
III - elaborar e executar políticas e planos educacionais, em consonância com
as diretrizes e planos nacionais de educação, integrando e coordenando as suas
ações e as dos seus Municípios;
IV - autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectiva-
mente, os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do
seu sistema de ensino;
V - baixar normas complementares para o seu sistema de ensino;
VI - assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino
médio;
VII - assumir o transporte escolar dos alunos da rede estadual.
Parágrafo único. Ao Distrito Federal aplicar-se-ão as competências referentes
aos Estados e aos Municípios.”
816 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Eros Grau: Senhor Presidente, estou plenamente de acordo com o
voto do eminente Relator. Mas quero só ressalvar que — isso não foi sequer mencionado
no voto do Ministro Carlos Velloso — não me comprometo com o argumento da ofensa
à livre iniciativa. No caso da educação, estamos diante de serviço público, não tem nada
a ver com livre iniciativa.
818 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Britto: Senhor Presidente, só gostaria de acrescentar um
fundamento ao excelente voto do Ministro Carlos Velloso.
Quando a Constituição habilita os Estados e o Distrito Federal a legislar concor-
rentemente com a União em matéria de educação, quero crer, Senhor Relator, que isso se
justifica pelo fato de que os Estados, o Distrito Federal e até os Municípios são autoriza-
dos pela Constituição, até diria, são obrigados a manter sistemas próprios de ensino.
Então, para a mantença desses sistemas próprios de ensino, é natural o Estado lançar mão
de sua competência legislativa concorrente.
Agora, para os que entendem que ensino faz parte de atividades franqueadas à
iniciativa privada — penso assim, data venia do pensamento do Ministro Eros Grau.
O Sr. Ministro Eros Grau: Mas ainda vai me acompanhar.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Quem sabe, com o tempo.
Aí, a lei em xeque torna-se ainda mais ofensiva da Constituição, porque o art. 209
diz:
“O ensino é livre à iniciativa privada, (...)”
E entre as condições que a Constituição estabelece, vem uma muito clara:
“I - cumprimento das normas gerais da educação nacional;”
Vale dizer, a iniciativa privada, em tema de educação, vincula-se a uma legislação
expressamente nacional.
Repito:
“O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições:
I - cumprimento das normas gerais da educação nacional;”
Como que a excluir os Estados da competência legiferante para conformar a ativi-
dade da iniciativa privada em tema de ensino.
Acompanho o voto de Sua Excelência o Ministro Carlos Velloso.
EXTRATO DA ATA
ADI 3.098/SP — Relator: Ministro Carlos Velloso. Requerente: Governador do
Estado de São Paulo (Advogado: PGE/SP – Elival da Silva Ramos). Requerida: Assem-
bléia Legislativa do Estado de São Paulo.
R.T.J. — 197 819
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribu-
nal Federal, por seu Tribunal Pleno, na conformidade da ata do julgamento e das notas
taquigráficas, por maioria de votos, julgar constitucional a ação no que diz respeito à
iniciativa do Tribunal de Justiça na proposição da lei, considerando-a, embora não
privativa, do próprio Tribunal, vencido o Ministro Marco Aurélio. No mérito, também
por maioria, julgar procedente, em parte, a ação, dando pela inconstitucionalidade do
§ 1º do artigo 2º da Lei n. 8.033, de 17 de dezembro de 2003, do Estado de Mato Grosso,
vencidos o Ministro Eros Grau, que a julgava procedente somente no aspecto material,
e o Ministro Marco Aurélio, que a julgava procedente em toda a sua extensão, tanto no
aspecto formal como no material. Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim.
Brasília, 8 de junho de 2005 — Nelson Jobim, Presidente — Carlos Ayres Britto,
Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Com fundamento no inciso IX do art. 103 da
Constituição Federal de 1988, a ANOREG – Associação dos Notários e Registradores do
Brasil ajuíza a presente ação direta de inconstitucionalidade. E o faz para impugnar o
artigo 1º, com seus §§ 1º e 2º; o art. 2º, com seus §§ 1º e 2º, além do inteiro teor do art. 7º,
todos da Lei n. 8.033, de 17 de dezembro de 2003, do Estado de Mato Grosso.
2. Os dispositivos sob suspeita de inconstitucionalidade estão assim legendados:
“Art. 1º Fica instituído o Selo de Controle dos atos dos Serviços Notariais e
de Registro, para implantação do sistema de controle das atividades dos notários e
dos registradores, bem como para obtenção de maior segurança jurídica quanto à
autenticidade dos respectivos atos.
§ 1º O valor de cada selo de controle corresponde a R$ 0,10 (dez centavos de
real) e não será repassado ao usuário.
§ 2º O valor do selo de controle será reajustado na mesma proporção da
recomposição dos valores dos emolumentos dos serviços notariais.
Art. 2º Cada ato notarial ou de registro praticado receberá selo de controle,
que será utilizado seqüencialmente, da seguinte forma:
a) o número de selos deverá corresponder à quantidade de atos praticados
num único documento;
b) quando um documento possuir mais de uma folha e constituir um só ato, o
selo será colocado onde houver a assinatura do servidor responsável pelo ato;
c) quando um documento possuir mais de uma folha e vários atos, os selos
correspondentes aos atos poderão ser distribuídos pelo documento.
§ 1º A não-utilização do selo de controle, de acordo com as regras fixadas
nesta lei, acarretará a invalidade do ato.
§ 2º As cópias dos documentos expedidos e destinados ao arquivo da
serventia deverão conter o número de série dos respectivos selos de controle.
822 R.T.J. — 197
(...)
Art. 7º Além daqueles já previstos em lei, constituem recursos do Fundo de
Apoio ao Judiciário – FUNAJURIS, os valores provenientes do fornecimento dos
selos de controle dos serviços notariais e de registro, e até 20% (vinte por cento) do
total dos emolumentos cobrados em razão das atividades do serviço notarial e
registral, previstos nas tabelas constantes da Lei n. 7.550, de 03 de dezembro de
2001, e alterações posteriores.
(...)”
3. Já no tocante aos dispositivos constitucionais que se tem por violados, são
eles os artigos 5º, XXXVI; 19, II; 22, XXV; 150, IV; 153, III; 155, I, II e III; 156, III; e
236, § 1º.
4. Nessa marcha batida, é que a autora declina os fundamentos jurídicos da sua
pretensão de ver julgada procedente a ação direta, sustentando, inicialmente, que os
dispositivos censurados instituíram “impostos incidindo sobre a prestação dos serviços
notariais e registrais, erigindo como base de cálculo a remuneração bruta auferida
pelos notários e registradores em razão daquela prestação de serviços públicos”, e
acrescentando que é direito subjetivo dos notários e registradores a percepção integral
dos emolumentos, direito, esse, assegurado pelo art. 236, §§ 1º a 3º, da Lex Legum, bem
como pelo art. 28 da Lei federal n. 8.935, de 18 de novembro de 1994. Firme em tais
premissas, a requerente argumenta que, ao “determinar a apropriação, de parte ou do
todo, dos emolumentos percebidos pelos notários e registradores em razão da respectiva
prestação de serviços”, a Lei estadual n. 8.033/03 feriu o direito adquirido dos associa-
dos dela, autora da presente ação direta.
5. Não é tudo. A requerente segue em frente para dizer que o art. 155 da Carta
Republicana de 1988 outorgou competência aos Estados-Membros apenas para instituí-
rem tributos incidentes sobre: a) a transmissão causa mortis e a doação de quaisquer
bens ou direitos; b) as operações relativas à circulação de mercadorias e sobre a prestação
de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e c) a propriedade de veículos
automotores. Daí concluir que “não há previsão constitucional para que o Estado de
Mato Grosso crie impostos incidentes sobre os serviços notariais, de registro e a respec-
tiva remuneração bruta auferida pelos notários e registradores em decorrência do
pagamento direto dos usuários, em contraprestação desses serviços”.
6. À derradeira, a autora enxerga vício de inconstitucionalidade formal no parágrafo
1º do art. 2º da Lei estadual em foco, por disciplinar matéria da competência legiferante
privativa da União: registros públicos (arts. 19, II; 22, XXV, e 236, § 1º, da CF).
7. Prossigo no relatório para averbar que solicitei informações aos requeridos, mas
apenas o Governador do Estado de Mato Grosso atendeu ao chamado. Em seu arrazoado,
o Chefe do Poder Executivo rechaça a tese esgrimida na inicial e, ao fazê-lo, Sua Exce-
lência salienta que:
“(...)
A lei claramente menciona que o objeto é controle dos atos notariais e auten-
ticidade dos mesmos, não significa a criação de imposto ou emolumentos, mas,
tão-somente estabelecer certeza e autenticidade dos atos notariais, onde, sem o
devido selo ficaria faltando o principal efeito, qual seja, a validade do ato notarial.
R.T.J. — 197 823
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Reconheço, de pronto, a legitimidade
ativa da Anoreg. Por isso que acedo ao pensar jurisprudencial desta Suprema Corte,
notadamente quanto ao decidido na ADI 1.751, Relator Min. Moreira Alves. Além disso,
entendo satisfeito o requisito da pertinência entre as finalidades institucionais da
acionante e o centrado objeto desta actio.
824 R.T.J. — 197
14. Passando ao exame de mérito da quaestio, começo por dizer que a sua correta
solução passa pela análise da natureza e do regime jurídico dos tais “serviços de regis-
tros públicos, cartorários e notariais”, que a Lei Maior da República sintetizou sob o
nome de “serviços notariais e de registro” (art. 236, cabeça e § 2º). Quero dizer, a formu-
lação de qualquer juízo de validade ou de invalidade dos dispositivos legais postos em
xeque deve ser precedida de um cuidadoso exame do tratamento constitucional conferido
às atividades notariais e de registro (registro “público” já é adjetivação feita pelo inciso
XXV do art. 22 da Constituição, versante sobre a competência legislativa que a União
detém com privatividade).
15. Com este propósito, pontuo que as atividades em foco deixaram de figurar no
rol dos serviços públicos que são próprios da União (incisos XI e XII do art. 21, especifi-
camente) — como também não foram listadas na competência material dos Estados, ou
dos Municípios (arts. 25 e 30, respectivamente). Nada obstante, é a Constituição mesma
que vai tratar do tema já no seu derradeiro título permanente (o de número IX), sob a
denominação de “Disposições Gerais”, para estatuir o seguinte:
“Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado,
por delegação do Poder Público.
§ 1º Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal
dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de
seus atos pelo Poder Judiciário.
§ 2º Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos
relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
§ 3º O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso
público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga,
sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.”
16. Vai além a regração constitucional-federal sobre a matéria, porque o “Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias” também dispõe sobre o mesmo assunto, nos
seguintes termos:
“Art. 32. O disposto no art. 236 não se aplica aos serviços notariais e de
registro que já tenham sido oficializados pelo poder público, respeitando-se o
direito de seus servidores”.
17. Pois bem, daqui se infere que, tirante os serviços notariais e de registro já
oficializados até o dia 5 de outubro de 1988, todos os outros têm o seu regime jurídico
fixado pela parte permanente da Constituição Federal. Mais precisamente, os demais
serviços notariais e de registro têm o seu regime jurídico centralmente estabelecido pelo
art. 236 da Lei Republicana. Um regime jurídico, além do mais, que pensamos melhor se
delinear pela comparação inicial com o regime igualmente constitucional dos serviços
públicos, versados estes, basicamente, no art. 175 da Lei Maior1. Por isso que, do con-
fronto entre as duas categorias de atividades públicas, temos para nós que os traços
principais dos serviços notariais e de registro sejam os seguintes:
1 “Art. 175. Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou
permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
R.T.J. — 197 825
2 Como deflui da segura doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello (ver Curso de Direito
Administrativo, Malheiros Editores, 15ª ed. pp. 611/620), dois elementos se combinam para a
conceituação do serviço público: a) um elemento formal, que é o seu regime de Direito Público, a
significar sua regência por normas consagradoras tanto de prerrogativas quanto de encargos ou sujei-
ções especiais; b) um elemento material, traduzido na efetiva ou na potencial oferta de comodidades ou
utilidades materiais aos respectivos usuários, préstimos, esses, tão específicos quanto divisíveis.
3 “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
(...)
XXV - registros públicos;
(...)”
R.T.J. — 197 827
4 Veja-se, à guisa de ilustração, o que restou decidido no RE 209.354, Relator Min. Carlos Velloso;
ADI 865-MC, Relator Min. Celso de Mello; ADI 1.709, Relator Min. Maurício Correa; ADI 1.378,
Relator Min. Celso de Mello; e ADI 1.778, Relator Min. Nelson Jobim; entre outras.
5 Assim definido pelo art. 78 do Código Tributário Nacional: “Considera-se poder de polícia atividade
da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a
prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene,
à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas
dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à
propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”.
6 Vencido o eminente Ministro Marco Aurélio.
7 Vencido o eminente Ministro Marco Aurélio.
828 R.T.J. — 197
“(...)
A Lei 2.049/99 destinou 3% dos emolumentos percebidos pelas serventias
extrajudiciais ao “Fundo Especial para Instalação, Desenvolvimento e Aperfeiçoa-
mento dos Atividades dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais” (fl. 31).
Compete à Administração Pública delimitar o exercício dos direitos indivi-
duais em prol do interesse público.
Ela o faz via seu poder de polícia.
O exercício desse poder é exatamente um dos fatos geradores de taxas (art.
145, II, CF e 77/78 do CTN).
(...)”
24. Neste lanço, calha ainda abrir um parêntese para consignar que este egrégio
Tribunal vem admitindo a destinação de parte da arrecadação dos emolumentos a órgão
público e ao próprio Poder Judiciário. Daí a seguinte parte do voto proferido pelo Min.
Carlos Velloso na ADI 1.145:
“(...)
Na ADI 2.059/PR, Relator o Ministro Nelson Jobim, ficou esclarecido que é
possível a destinação do produto da arrecadação da taxa para órgão público não
estranho aos serviços notariais. Se essa destinação ‘é para o próprio Poder Judiciário’,
esclareceu o Ministro Moreira Alves, ‘não há dúvida de que é possível’, pois não se
trata, como ocorre, por exemplo, com a Caixa de Assistência da OAB, de pessoa
jurídica de direito privado’. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da men-
cionada ADI 2.059/PR, decidiu pela regularidade da destinação do produto da
arrecadação da taxa a órgão público. Naquele caso, ao próprio Poder Judiciário.
(...)”
25. Ora bem, se é assim — vale repetir —, se tem a natureza de taxa de polícia o
tributo instituído pela Lei mato-grossense aqui impugnada (art. 7º), penso inexistir a
alegada violação aos incisos I, II e III do art. 155 e ao inciso III do art. 156, todos da
Constituição Republicana de 1988.
26. Nessa vertente subsuntiva, ainda me parece carecedora de fundamento a peti-
ção de ingresso, no trecho em que afirma o desrespeito ao inciso III do artigo 153 da
Magna Lei — dispositivo constitucional, esse, que atribui à União a competência para
instituir impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza. E assim me posiciono
porque, segundo anotei um pouco mais acima, o tributo instituído pela Lei n. 8.033, do
Estado de Mato Grosso, possui natureza jurídica de taxa e, por isso mesmo, não se confun-
de com imposto.
27. Sigo na formatação deste voto para lembrar que a requerente desta ação cons-
titucional também argumenta que o art. 28 da Lei n. 8.935/94 (Lei dos Cartórios) confere
aos notários e registradores o direito subjetivo de receberem integralmente os emolu-
mentos fixados em lei. Donde o reclamo de que, ao determinar a apropriação de parcela
desses emolumentos, o diploma legal aqui impugnado afrontou o disposto no inciso
XXXVI do art. 5º da Constituição Federal.
R.T.J. — 197 829
28. Assim não se me afigura — ainda uma vez devo dizê-lo —, pois esse outro
questionamento jaz circunscrito às fronteiras do cotejo entre normas subconstitucio-
nais, que, por se constituir em confronto que só é direto no plano infraconstitucional
mesmo, insuscetível se torna para autorizar o manejo de um tipo de ação de controle de
constitucionalidade que não admite intercalação normativa entre o diploma impugnado
e a Constituição da República. Aliás, não foi outra a conclusão a que chegou o Ministro
Nelson Jobim no julgamento da medida cautelar que se continha na pré-falada ADI
2.129. Confira-se:
“(...)
Poder-se-ia dizer que — e a inicial não o faz —, no presente caso, não estariam
os titulares das serventias percebendo o valor integral dos emolumentos, como
determina a lei federal (Lei 8.935/94, art. 28).
Mas esse enfoque importa no confronto da lei estadual com a lei federal.
Nada com a Constituição.
(...)”
(Destaques nesta transcrição)
29. Já no tocante à suposta violação ao inciso IV do art. 150 da Constituição
Federal de 1988, observo que o art. 7º do instrumento normativo ora combatido previu
que “constituem recursos do Fundo de Apoio ao Judiciário — FUNAJURIS os valores
provenientes do fornecimento dos selos de controle dos serviços notariais e de registro,
e até 20% (vinte por cento) do total dos emolumentos cobrados em razão das atividades
do serviço notarial e registral, previstos nas tabelas constantes da Lei n. 7.550, de 03 de
dezembro de 2001, e alterações posteriores”. É dizer: além daqueles já previstos em lei,
os recursos do Fundo de Apoio ao Judiciário – FUNAJURIS são constituídos por duas
parcelas distintas:
a) os valores provenientes do fornecimento dos selos de controle dos servi-
ços notariais e de registro; e
b) até 20% (vinte por cento) do total dos emolumentos cobrados em razão
das atividades do serviço notarial e registral.
30. A seu turno, o art. 8º da Lei n. 8.033/03 assim dispõe:
“(...)
Art. 8º A Corregedoria-Geral de Justiça criará 03 (três) categorias de serviços
notariais assim constituídas:
I - serventias pequenas e deficitárias;
II - serventias médias;
III - serventias grandes.
Parágrafo único. As serventias pequenas e deficitárias são isentas do paga-
mento do disposto no art. 7º, que serão cobradas das outras categorias, através de
valores progressivos.
(...)”
830 R.T.J. — 197
VOTO (Explicação)
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Realmente, a nossa jurisprudência chegaria a
tais excessos de cerimônia. Mas, na verdade, de uma lei, seja ela federal, municipal ou
estadual, que prescreve caber a integralidade dos emolumentos aos titulares, pode-se
tirar a ilegitimidade de um tributo? Por isso é que eu disse: coitado do imposto de renda.
Quanto à interpretação da lei federal, não há dúvida de que temos de passar por ela
para chegarmos à inconstitucionalidade. A lei federal, efetivamente, preceitua que os
emolumentos são integralmente percebidos pelo titular. Outra coisa é a incidência ou
não de tributos.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Também declaro inconstitucional a expres-
são “os valores provenientes do fornecimento dos selos de controle de serviços notariais
e de registro”, constante do artigo 7º do mencionado diploma legal.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Qual é?
R.T.J. — 197 831
VOTO
O Sr. Ministro Eros Grau: Senhor Presidente, peço vênia para divergir do Ministro
Carlos Britto.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Mas é fundamento ou é conclusão?
O Sr. Ministro Eros Grau: Vou fundamentar a minha conclusão. Tratar-se-ia de
“taxa” pelo “exercício do poder de polícia”. Sucede que o poder de polícia limita ou
disciplina “direito, interesse, ou liberdade,” quer dizer, incide sobre atividade de par-
ticulares. Nas atividades notariais — há serviços exercidos por delegação do Poder
Público, serviços fiscalizados nos termos do § 1º do art. 236. Não há “direito, interesse,
ou liberdade,” porém, atividade pública, função pública, não sujeita à ação do chamado
poder de polícia. Insisto: poder de polícia limita ou disciplina “direito, interesse, ou
liberdade”. No caso, há dever-poder a ser exercido pelos agentes dos serviços notariais e
de registro.
Portanto, não vejo lugar para o exercício do chamado poder de polícia. Por conse-
qüência, não vejo a possibilidade de se cobrar taxa que remunere “o exercício do poder
de polícia”.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): A fiscalização não poderá ser cobrada?
O Sr. Ministro Eros Grau: A fiscalização é outra, é a fiscalização interna das
corregedorias.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Não se cobra nada?
O Sr. Ministro Eros Grau: É remunerada por imposto. Não é adequada ao conceito
do poder de polícia.
Julgo procedente a ação.
O Sr. Ministro Carlos Britto (Relator): Senhor Presidente, só para não perder a
oportunidade. Marcelo Caetano diz, sobre o “poder de polícia”, que os serviços de
polícia são os que vigiam as atividades para fazer observar as restrições legais impostas
à liberdade, no intuito de evitar que se produzam, ampliem ou generalizem danos sociais.
R.T.J. — 197 835
Ora, o Poder Judiciário, em relação às serventias, faz o quê? Uma tríplice atividade
de vigilância, de orientação e de correição, a justificar, a meu modo, a incidência da taxa,
conceitualmente.
O Sr. Ministro Eros Grau: As mesmas razões a não justificarem que se dê autentici-
dade ao que já é autêntico não podem justificar que o chamado poder de polícia, ativi-
dade que limita ou restringe a liberdade de privados, seja aplicado à atuação interna do
próprio Poder Público.
Esse é o fundamento do meu voto.
VOTO
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Senhor Presidente, peço vênia ao Ministro Eros
Grau. Entendo que há, sim, exercício do poder de polícia.
Acompanho o Relator, fazendo, no entanto, ressalva com relação aos fundamentos.
Tenho algumas reservas a respeito de certos conceitos.
Acompanho, na conclusão, para declarar a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º.
VOTO
A Sra. Ministra Ellen Gracie: Senhor Presidente, também acompanho o Relator,
com a vênia do Ministro Eros Grau.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, devo reconhecer que a origem
desta lei — que eu possa assim enquadrar — está na autonomia financeira mitigada do
Judiciário. Isso está consignado, com todas as letras, no artigo 7º do diploma, ao aludir-se
que “os valores provenientes do fornecimento dos selos de controle dos serviços
notariais e de registro,” como, também, “até 20% (vinte por cento) do total dos
emolumentos cobrados em razão das atividades do serviço notarial”, serão destinados
ao Fundo de Apoio ao Judiciário – FUNAJURIS. Para mim, essa destinação já seria
suficiente para concluir pela inconstitucionalidade do diploma.
Reafirmo que o Judiciário deve funcionar a partir do respectivo orçamento. Bus-
quem-se recursos para a atividade da máquina judiciária. Insisto todavia que, no caso,
acabou-se tendo aporte de recursos para o denominado apoio ao Judiciário — e ele,
realmente, precisa de apoio, de verbas para se reestruturar, mas elas devem decorrer, em
si, dos impostos, já que até mesmo o direito de petição, pela Carta da República, é
gratuito. Há de se considerar ainda o problema da iniciativa.
Pela vez primeira, vejo o Tribunal caminhar no sentido de entender que, no
preceito exaustivo do artigo 96, quanto à iniciativa de leis, na referência à alteração da
organização e da divisão judiciária, tem-se a iniciativa para propor projeto visando ao
surgimento, no cenário jurídico, de exações.
A meu ver, é uma interpretação que transborda os limites da interpretação
integrativa, que elastece, como já disse, a mais não poder, o que se contém no inciso II do
artigo 96 da Carta da República.
836 R.T.J. — 197
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não há parâmetros rígidos quanto à atuação desse
Fundo, quanto à prestação de contas por esse Fundo.
Lamento que o Judiciário tenha chegado a essa quadra que o leva a caminhar no
sentido de um verdadeiro, para mim, com a devida vênia dos Colegas, drible aos
parâmetros constitucionais. O Judiciário, se ele não pode atuar a partir do orçamento,
deve ser fechado para balanço, como o próprio Estado. O Judiciário deve atuar a partir,
repito, do orçamento, cujas balizas são rígidas.
Peço vênia, Senhor Presidente, ao Relator, muito embora perceba que o objetivo
de Sua Excelência é o melhor possível, para entender que a lei, que já nasceu com um
vício inafastável, o de iniciativa, porque não reconheço a iniciativa do Judiciário para
encaminhamento de projeto objetivando alcançar recursos, conflita com a Lei Funda-
mental.
Assim, julgo procedente o pedido formulado.
VOTO
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Senhor Presidente, também acompanho o voto
do eminente Relator. Dado o tom apodítico com que contestada a iniciativa legislativa
do Tribunal de Justiça, neste caso, apenas como já adiantara durante a discussão — e,
agora, acaba de mostrar com precisão o Ministro Celso de Mello —, o caso me parece um
exemplo escolar de poder implícito. A iniciativa legislativa do Judiciário é restrita, não
há dúvida, mas lhe é concedida não em termos de racionalidade do processo legislativo,
mas como instrumento de sua independência. E de nada vale dar-lhe a iniciativa para
propor a própria organização judiciária, se não se lhe dá a iniciativa para propor o
custeio necessário a essa organização.
Por isso, entendo que o caso é, sim, de iniciativa, ainda que não exclusiva, do
Poder Judiciário.
No mais, reporto-me aos votos proferidos em casos similares, na ADI n. 2.059/PR,
da qual Vossa Excelência foi Relator, e mesmo na ADI n. 2.159, em que houve um
problema que me reservei para análise melhor, porque se colocava o produto dessa taxa
de polícia, não genericamente num fundo de apoio ao Poder Judiciário, mas, lembra-se
Vossa Excelência, num fundo de financiamento de custeio dos Juizados Especiais.
Aqui, não, é um fundo genérico, dir-se-á — daí a intervenção do Advogado da tribuna —
não ser integralmente destinado ao serviço de policiamento. É outro problema sobre o
qual já tive oportunidade de expender considerações neste Tribunal: a taxa é um preço
político; a sua destinação não a desfigura e nada exige limitá-la ao financiamento exclu-
sivo da atividade de fiscalização que a legitima.
São essas as minhas breves considerações.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Haveria dificuldade de fazer esta precisão. O Ministro
Nelson Jobim falou do fundo contábil. A rigor, aqui se faz encontro de contas.
O que se poderia discutir, mas aparentemente a questão não veio a termo — e a
Corte já se pronunciou sobre isso naquele célebre acórdão do Ministro Moreira Alves —,
é quanto à eventual desproporcionalidade de uma taxa.
838 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Também acompanho o Relator e chamo
a atenção do Tribunal, com as considerações feitas, que esses fundos instituídos em
alguns Tribunais de Justiça — e grande parte deles estão criando essa modalidade de
fundos — são, todos eles, rubricas orçamentárias, criados por lei e destinados exclusiva-
mente a determinados tipos de investimentos. Não se pode, inclusive, destinar esses
fundos ao pagamento de pessoal. A sua destinação é exatamente suprir o Judiciário de
uma série de carências que o sistema de arrecadação não atende. É um sistema inteligente
no sentido de uma solução financeira para as carências que encontramos no sistema
judiciário nacional, considerando exatamente o problema dos recursos.
EXTRATO DA ATA
ADI 3.151/MT — Relator: Ministro Carlos Britto. Requerente: Associação dos No-
tários e Registradores do Brasil – ANOREG/BR (Advogados: Antônio Carlos Mendes e
outro). Requeridos: Governador do Estado de Mato Grosso e Assembléia Legislativa do
Estado de Mato Grosso (Advogados: Roberto Quiroga Mosquera e outros).
Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou constitucional a ação no que diz respeito
à iniciativa do Tribunal de Justiça na proposição da lei, considerando-a, embora não
privativa, do próprio Tribunal, vencido o Ministro Marco Aurélio. No mérito, também
por maioria, o Tribunal julgou procedente, em parte, a ação, dando pela inconstituciona-
lidade do § 1º do artigo 2º da Lei n. 8.033, de 17 de dezembro de 2003, do Estado de
Mato Grosso, vencidos o Ministro Eros Grau, que a julgava procedente somente no
aspecto material, e o Ministro Marco Aurélio, que a julgava procedente em toda a sua
extensão, tanto no aspecto formal como no material. Votou o Presidente, Ministro
Nelson Jobim. Ausente, justificadamente, o Ministro Cezar Peluso. Falou pela requerida,
Assembléia Legislativa do Estado de Mato Grosso, o Dr. Roberto Quiroga Mosquera.
Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda
Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes,
Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Vice-Procurador-Geral da República, Dr.
Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
Brasília, 8 de junho de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
R.T.J. — 197 839
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das
notas taquigráficas, por unanimidade, afastar o vício formal de inconstitucionalidade da
Emenda Constitucional n. 45/2004, como também não conhecer da ação quanto ao § 8º
do artigo 125. E, no mérito, por maioria, julgar totalmente improcedente a ação, venci-
dos o Ministro Marco Aurélio, que a julgava integralmente procedente; a Ministra Ellen
Gracie e o Ministro Carlos Velloso, que julgavam parcialmente procedente a ação para
declarar a inconstitucionalidade dos incisos X, XI, XII e XIII do artigo 103-B, acrescen-
tado pela emenda constitucional; e o Ministro Sepúlveda Pertence, que a julgava proce-
dente em menor extensão, dando pela inconstitucionalidade somente do inciso XIII do
caput do artigo 103-B. Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim. Falaram, pela reque-
rente, o Dr. Alberto Pavie Ribeiro; pela Advocacia-Geral da União, o Dr. Álvaro Augusto
Ribeiro Costa e, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Cláudio Lemos Fonteles, Procura-
dor-Geral da República.
Brasília, 13 de abril de 2005 — Nelson Jobim, Presidente — Cezar Peluso, Relator.
R.T.J. — 197 841
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade com
pedido de liminar, movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e voltada
contra os arts. 1º e 2º da Emenda Constitucional n. 45/2004, nos textos que, exteriorizando
normas relativas ao Conselho Nacional de Justiça, são os seguintes:
“art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de quinze membros
com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e seis anos de idade, com mandato
de dois anos, admitida uma recondução, sendo:
I - um Ministro do Supremo Tribunal Federal, indicado pelo respectivo tribunal;
II - um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo
tribunal;
III - um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo
tribunal;
IV - um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo
Tribunal Federal;
V - um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;
VI - um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal
de Justiça;
VII - um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;
VIII - um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal
Superior do Trabalho;
IX - um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;
X - um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-
Geral da República;
XI - um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-
Geral da República dentre os nomes indicados pelo órgão competente de cada
instituição estadual;
XII - dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advo-
gados do Brasil;
XIII - dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados
um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.
§ 1º O conselho será presidido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal,
que votará em caso de empate, ficando excluído da distribuição de processos
naquele tribunal.
§ 2º Os membros do Conselho serão nomeados pelo Presidente da República,
depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.
§ 3º Não efetuadas, no prazo legal, as indicações previstas neste artigo, caberá
a escolha ao Supremo Tribunal Federal.
§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira
842 R.T.J. — 197
sado contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxi-
liares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça.”
“Art. 52. (...)
II - processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros
do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público,
o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da união nos crimes de
responsabilidade;” (grifo nosso)
“Art. 92. (...)
1-A — o Conselho Nacional de Justiça;
§ 1º O Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça e os Tribu-
nais Superiores têm sede na Capital Federal.” (grifos nossos)
Art. 93. (...)
VIII - o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por
interesse público, fundar-se-á em decisão por voto da maioria absoluta do respec-
tivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa;”
(grifo nosso)
Art. 102. (...)
r) as ações contra o Conselho Nacional de Justiça e contra o Conselho
Nacional do Ministério Público. (grifo nosso)
Art. 125. (...)
§ 8º Os Tribunais de Justiça criarão ouvidorias de justiça, competentes para
receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou ór-
gão do Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando direta-
mente ao Conselho Nacional de Justiça”. (grifos nossos)
Os fundamentos jurídicos do pedido podem ser reduzidos a dois argumentos subs-
tanciais: a instituição do Conselho Nacional de Justiça implicaria “(a) tanto inegável
violação ao princípio da separação e da independência dos poderes (art. 2º da Cons-
tituição Federal), de que são corolários o auto-governo dos Tribunais e a sua autono-
mia administrativa, financeira e orçamentária (artigos 96, 99 e parágrafos, e 168 da
Constituição Federal, (b) como ainda a ofensa ao pacto federativo (artigos 18, 25 e
125), na medida em que submeteu os órgãos do Poder Judiciário dos Estados a uma
supervisão administrativa, orçamentária, financeira e disciplinar por órgão da União
Federal” (fl. 05).
Mas consta outro, tendente agora à decretação conjunta de inconstitucionalidade
específica do art. 103-B, § 4º, inc. III, objeto da mesma Emenda: sua redação final não teria
sido submetida “à discussão e votação nas duas casas do Congresso Nacional, mas
apenas do Senado Federal, daí resultando a ofensa ao § 2º, do art. 60, da CF” (fl. 06).
Em caráter liminar, aduzindo serem sólidos tais fundamentos e estar-se diante da
“excepcional urgência” de que fala o art. 10, § 3º, da Lei n. 9.868/99, a autora pediu a
imediata suspensão da “vigência dos dispositivos impugnados nesta ação, especial-
mente o art. 103-B”, até o julgamento definitivo da causa (fls. 43-46).
844 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): 1. Examino a preliminar.
Argúi a Advocacia-Geral da União que os pedidos seriam “juridicamente impossí-
veis”, porque deduzidos antes da publicação oficial da Emenda, coisa proibida no sistema
de controle de constitucionalidade. Pede, em conseqüência, a extinção do processo, sem
julgamento do mérito.
Não obstante tenha razão o Advogado-Geral quanto à inadmissibilidade de con-
trole de constitucionalidade em caráter preventivo, ao caso não quadra a conseqüência.
Posto que, à data de propositura da ação, a Emenda Constitucional n. 45/2004 não
houvesse sido deveras publicada, foi-o pouco tempo depois, o que torna agora cognos-
cíveis os pedidos. A publicação superveniente da Emenda remediou a carência original
da ação.
A rigor, o vício processual imputado pela Advocacia-Geral ligava-se à suposta
falta de interesse de agir, e não à impossibilidade jurídica dos pedidos. É que não se
estava diante de inviabilidade teórica absoluta dos pedidos, nem doutra espécie de
improcedência prima facie, que são as explicações últimas da falta de possibilidade
jurídica como uma das causas da chamada carência da ação. Tratar-se-ia, quando muito,
de caso de desnecessidade da tutela jurisdicional, já que os textos impugnados ainda
não tinham obtido existência jurídica. Mas, com a publicação subseqüente da Emenda,
despontou pleno e nítido o interesse processual.
Tem razão, ainda, o Advogado-Geral, quando afirma não serem as regras processuais
meras formalidades, mas, sim, garantias do Estado democrático de direito (fl. 166). Equi-
voca-se, no entanto, ao tirar daí necessidade de extinção anômala do processo. Repug-
naria ao sistema processual o decreto de carência. A falta de interesse de agir é posta
como causa de trancamento do processo, porque a solução evita dispêndio inútil de
tempo e energias na condução de uma causa insuscetível de produzir resultado prático ao
autor. Não é este o caso, entretanto, pois a publicação da Emenda extirpou qualquer
dúvida sobre a necessidade e a adequação dos pedidos. Fosse agora extinto o processo,
a AMB retornaria de imediato a este juízo, com demanda idêntica, e ter-se-iam, então,
perdido tempo e esforços, em dano da parte e do ofício jurisdicional, em contraste aberto
com os propósitos que norteiam a construção dogmática das condições da ação. A res-
R.T.J. — 197 845
peito, merece lembrada a advertência de Liebman: “as formas são necessárias, mas o
formalismo é uma deformação”.1 E é bom não esquecer que as condições da ação devem
coexistir ao tempo da decisão da causa.2
Rejeito a preliminar.
2. O tema nuclear da causa, a criação do Conselho Nacional de Justiça, órgão
supostamente destinado a controle externo do Poder Judiciário, foi e continua sendo
objeto de amplos debates nas mais diversas instâncias da sociedade brasileira3. Dada a
natureza mesma do assunto, em cujas entranhas situam-se matrizes fundamentais da
nossa ordem jurídico-constitucional, que, com graves reflexos nas ações cotidianas, vão
desde a divisão e o equilíbrio entre os Poderes até a estrutura e a independência do Poder
Judiciário, não admira haja despertado e ainda desperte discussões fervorosas no ambi-
ente político, no domínio acadêmico e, sobretudo, no seio da magistratura, da advocacia
e, até, do Ministério Público.
Eu próprio jamais escondi oposição viva, menos à necessidade da ressurreição ou
criação de um órgão incumbido do controle nacional da magistratura, do que ao perfil
que se projetava ao Conselho e às prioridades de uma reforma que, a meu sentir, andava
ao largo das duas mais candentes frustrações do sistema: a marginalização histórica das
classes desfavorecidas no acesso à Jurisdição e a morosidade atávica dos processos. Não
renuncio às minhas reservas cívicas nem me retrato das críticas pré-jurídicas à extensão
e à heterogeneidade da composição do Conselho. Mas isso não podia impedir-me, como
meus sentimentos e predileções pessoais não me impediram nunca, em quatro lustros de
ofício jurisdicional, de, atento à velha observação de Cardozo, ter “aberto os ouvidos
sacerdotais ao apelo de outras vozes”, ciente de que “as palavras mágicas e as
encantações são tão fatais à nossa ciência quanto a quaisquer outras”.4 Julgo a causa
perante a Constituição da República.
3. O argumento radical da autora vem da regra da separação, com os corolários da
independência e harmonia entre os três Poderes da República (art. 2º da Constituição
Federal). Segundo a AMB, a instituição de órgão funcionalmente voltado ao “controle
da atuação administrativa e financeira” do Judiciário e do “cumprimento dos deveres
funcionais” dos magistrados, mas composto por membros na origem alheios ao mesmo
Poder — dois dos quais indicados pelo Legislativo —, violaria a dita cláusula pétrea da
separação dos Poderes, em cujo ventre reside a garantia da independência do Judiciário.
Essa postura da autora já desvela toda a preocupação — muito legítima, diga-se —
de que o advento do Conselho Nacional de Justiça traduza sério risco à independência
do Poder Judiciário, no exercício de sua função típica, a jurisdicional. É que, apenas para
adiantar o que me parece o ponto nevrálgico da causa, ninguém tem dúvida de que não
1 Manual de direito processual civil. Trad. DINAMARCO, Cândido Rangel. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1986, v. 1, p. 258.
2 Cf., por todos, DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo:
Malheiros, 2001, v. 3, p. 143.
3 Veja-se SADEK, Maria Tereza. Controle externo do poder judiciário. In: Reforma do judiciário. São
Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, passim.
4 CARDOZO, Benjamin N. A Natureza do processo e a evolução do Direito. Trad. Lêda Boechat
Rodrigues. São Paulo: Nacional de Direito, 1956. p. 144.
846 R.T.J. — 197
5 CAMPILONGO, Celso Fernandes. (Afirma cuidar-se de um dos conceitos mais complexos da teoria
constitucional Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 30).
6 Livro III, Capítulo XI. In: Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 1999. pp. 230-234.
7 LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Trad. Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Edi-
torial Ariel, 1976. p. 57.
R.T.J. — 197 847
8 Segundo tratado sobre o governo civil, XII, XIII e XIV. In Segundo tratado sobre o governo civil
e outros escritos. Petrópolis: Vozes, 1994. pp. 170-186.
9 GOUGH, J. W. Introdução ao Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. cit., p. 30.
10 Ob. cit., p. 170.
848 R.T.J. — 197
técnica de organização racional das funções públicas. A idéia da tripartição dos poderes
foi, portanto, o método lucubrado para a consecução de um fim maior: limitar o poder
político.
Com a aparentemente exclusiva exceção de Passerin D’ Entrèves15, é o que sem-
pre professaram os estudiosos. Como afirma Otto Bachof: “el sentido de la división de
poderes es impedir la concentración de poder y, con ello, un posible abuso del
mismo”16.
No mesmo sentido, ouça-se Carré de Malberg:
“Et d’ailleurs, toute la démonstration de Montesquieu tourne autour de cette
idée principale: assurer la liberte des citoyens, em leus fournissant par la
séparation des pouvoirs la garantie que chacun de ceux-ci sera exercé légalement.
(...) Seule, en effet, la séparation des pouvoirs peut fournir aux gouvernés une
garantie sérieuse et une protection efficace”.17
(“Aliás, toda a argumentação de Montesquieu gira em torno desta idéia prin-
cipal: assegurar a liberdade dos cidadãos, dispensando-lhes, por meio da separa-
ção dos poderes, a garantia de que cada um deles será exercido legalmente. (...)
Portanto, somente a separação dos poderes pode dar aos governados uma garantia
séria e uma proteção eficaz”).
Também, Hans Kelsen:
“A significação histórica do princípio chamado ‘separação de poderes’ en-
contra-se precisamente no fato de que ele opera antes contra uma concentração que
a favor de uma separação de poderes”.18
Mais enfáticos são Zaffaroni e Tércio Sampaio Ferraz Júnior. O primeiro
acentua:
“(...) as palavras de Montesquieu são muito mais claras se forem consideradas
como provindas de um sociólogo e não como texto dogmático, porque parte ele do
reconhecimento de um fenômeno humano que não pode ser esquecido na medida
em que se conserve um mínimo de contacto com a realidade: todo poder induz ao
abuso.
(...)
Entendendo Montesquieu sociológica e politicamente – e não jurídica ou
formalmente – não resta dúvida de que ele quer significar que o poder deve estar
distribuído entre órgãos ou corpos, com capacidade de regerem-se de forma autô-
noma com relação a outros órgãos ou corpos, de modo que se elida a tendência
‘natural’ ao abuso”19.
15 The notion of the state — an introduction to political theory. Oxford: Oxford University, 1967. p. 121.
16 Jueces y constitución. Trad. Rodrigo Bercovitz Rodríguez-Cano. Madrid: Civitas, 1985. p. 58.
17 Contribution a la théorie générale de l’état. Paris: Sirey, 1922. t. II, p. 7.
18 Teoria geral do direito e do estado. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes/Universi-
dade de Brasília, 1990. p. 274.
19 Poder judiciário — crises, acertos e desacertos. Trad. Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1995. pp. 81-83.
850 R.T.J. — 197
Remata o segundo:
“Montesquieu, na verdade, via na divisão dos poderes muito mais um preceito
de arte política do que um princípio jurídico. Ou seja, não se tratava de um princípio
para a organização do sistema estatal e de distribuição de competências, mas um
meio de se evitar o despotismo real. (...) Nesse sentido, o princípio não era de
separação de poderes, mas de inibição de um pelo outro de forma recíproca”.20
A matriz histórica da separação dos Poderes há de ser, pois, reconduzida, no con-
texto da causa, ao alcance de instrumento político que lhe emprestava o autor que a
consagrou como teoria: conter o poder, para garantir a liberdade. É essa a razão por que,
em coerência com seus pressupostos teóricos e objetivos práticos, Montesquieu jamais
defendeu a idéia de uma separação absoluta e rígida entre os órgãos incumbidos de cada
uma das funções estatais. Antes, chegou a fazer referência a mecanismos de relaciona-
mento mútuo entre os Poderes, a fim, precisamente, de lhes prevenir abusos no exercício.
Contra a natural tendência de expansão do poder, era mister a criação de instrumentos
que garantissem a subsistência do esquema tripartite de funções, impedindo que os
representantes de uma delas se sobrepusessem aos demais. Doutro modo, o poder
incontido sacrificaria a liberdade. E exemplo significativo de relações dessa espécie,
colhido à obra do grande pensador francês, é a intervenção do Executivo no processo
legislativo mediante o veto.21
Discorrendo sobre o pensamento de Montesquieu, Carré de Malberg realça-lhe
essa idéia:
“La doctrine de Montesquieu se rattache donc essentiellement au système de
l’ ‘État de droit’. Cependant, par la force des choses, cette doctrine, bien que visant
principalement à sauvegarder la liberté civile, implique aussi certaines dispositions
à prendre, em vue d’ assurer la liberté des autorités publiques elles-mêmes, dans
leurs rapports les unes avec les autres, en tant qu’il s’agit, pour chacune d’elles, de
l’exercice du pouvoir qui lui est spécialement attribué. C’est là un nouvel aspect,
fort important, du sujet. En effet, la division des compétences et la spécialisation
des fonctions ne saurient, à elles seules, suffire à réaliser la limtation des pouvoirs:
pour que cette limitation se trouve assurée, il faut, en outre, qu’aucun des trois
ordres de titulaires des pouvoirs ne possède ou ne puisse acquérir de supériorité,
qui lui permettrait de dominer les deux autres et qui, par lá même, pourrait peu à
peu dégénérer en omnipotence. Et pour cela, il est indispensable que les titulaires
des trois pouvoirs soient, non seulement investis de compétences distinctes et
séparées, mais encore rendus, par leur constitution organique, indépendants et
comme égaux les uns vis-à-vis des autres. Ce n’est qu’à cette condition qu’ils
pourront effectivement se limiter et s’arrêter entre eux”.22
20 O judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência? In: Revista trimestral de
direito público, vol. 9, 1995. p. 41. No mesmo sentido, veja-se Cunha Ferraz, Anna Cândida. Conflito
entre poderes — o poder congressual de sustar atos normativos do poder executivo. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1994. p. 16.
21 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 24. ed. São Paulo:
Saraiva, 1997. p. 133.
22 Ob. cit., p. 8.
R.T.J. — 197 851
24 O federalista. Trad. Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003. pp. 299-300. Grifos
nossos.
25 Ob. cit., p. 305. Grifos nossos.
26 COOLEY, Thomas M. General principles of constitutional law. 2. ed. Boston: Little, Brown and
Company, 1891. p. 41 (reimpressão de 1998).
27 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros,
2000. p. 113.
R.T.J. — 197 853
30 SILVA, José Afonso da. Ob. cit., pp. 113-115. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ob. cit., p.
133. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 166.
R.T.J. — 197 855
31 The judiciary and democratic decay in Latin America: declining confidence in the rule of law.
Westport: Praeger, 2000. p. 16.
32 Teoria geral do processo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, p. 172.
856 R.T.J. — 197
nalidade da criação do Conselho, sem antes reconhecê-la, com maiores e mais conspícu-
as razões, ao processo de nomeação de todos os Ministros do Supremo Tribunal Federal.
A fortiori, essa conclusão óbvia não apenas decepa a objeção de inconstitucio-
nalidade específica a título de injúria ao sistema da separação e independência dos
Poderes, mas, sobretudo, é prova suficiente de que a não há nenhuma, ainda quando
genérica, por conta dessa mesma causa material, nas regras de composição, escolha e
nomeação dos membros do Conselho. Donde vem, logo, o erro de o tomar por órgão de
controle externo.
Talvez ocorra a alguém que, na prática, essa composição híbrida poderia compro-
meter a independência interna e externa do Judiciário. A objeção não é forte, porque os
naturais desvios que, imputáveis à falibilidade humana, já alimentavam, durante os
trabalhos preparatórios da Constituição americana, o ceticismo calvinista em relação
aos riscos de facciosidade do parlamento, são inerentes a todas as instituições, por aca-
badas e perfeitas que se considerem. Mas, se escusa reforço à resposta, é sobremodo
importante notar que o Conselho não julga causa alguma, nem dispõe de nenhuma
atribuição, de nenhuma competência, cujo exercício fosse capaz de interferir no desem-
penho da função típica do Judiciário, a jurisdicional. Pesa-lhe, antes, abrangente dever
constitucional de “zelar pela autonomia” do Poder (art. 103-B, § 4º, inc. I). E não seria
lógico nem sensato levantar suspeitas de que, sem atribuição jurisdicional, possa com-
prometer independência que jamais se negou a órgãos jurisdicionais integrados por
juízes cuja nomeação compete ao Poder Executivo, com ou sem colaboração do
Legislativo.
Será caso, no entanto, de indagar se tal risco não adviria da própria natureza das
competências destinadas ao Conselho, como órgão nacional de controle da atuação
administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcio-
nais dos magistrados.
Aqui, a dúvida é de menor tomo. Com auxílio dos Tribunais de Contas, o Legislativo
sempre deteve o poder superior de fiscalização dos órgãos jurisdicionais quanto às
atividades de ordem orçamentária, financeira e contábil (arts. 70 e 71 da Constituição da
República), sem que esse, sim, autêntico controle externo do Judiciário fosse tido, alguma
feita e com seriedade, por incompatível com o sistema da separação e independência dos
Poderes, senão como peça da mecânica dos freios e contrapesos. E esse quadro propõe
ainda um dilema: ou o poder de controle intermediário da atuação administrativa e finan-
ceira do Judiciário, atribuído ao Conselho Nacional de Justiça, não afronta a indepen-
dência do Poder, ou será forçoso admitir que o Judiciário nunca foi, entre nós, Poder
independente!
Igual coisa pode dizer-se de imediato sobre a competência de controle do cumpri-
mento dos deveres funcionais dos juízes. Ou a atribuição em si, a este ou àquele órgão,
não trinca nem devora a independência do Poder, ou se há de confessar que este nunca
tenha sido verdadeiramente autônomo ou independente. A outorga dessa particular
competência ao Conselho não instaura, como novíssima das novidades, o regime
censório interno, a que, sob a ação das corregedorias, sempre estiveram sujeitos, em
especial, os magistrados dos graus inferiores, senão que, suprindo uma das mais notórias
deficiências orgânicas do Poder, capacita a entidade a exercer essa mesma competência
R.T.J. — 197 857
36 ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; Dinamarco, Cândido Rangel.
Ob. e loc. cit..
R.T.J. — 197 859
45 LIMA LOPES, José Reinaldo de. Crise da norma jurídica e reforma do judiciário. In: Faria, José
Eduardo (org). Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 76.
46 The right degree of independence. In: Transitions to democracy in Latin America: the role of
judiciary, 1993. p. 56, apud PRILLAMAN, William. Ob. cit., p. 17. Há recente tradução desse ensaio
de Owen Fiss no Brasil, na obra Um novo processo civil — estudos norte-americanos sobre jurisdição,
constituição e sociedade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
47 ATALIBA, Geraldo. República e constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 65.
R.T.J. — 197 861
48 Ob. cit., pp. 73 e 75. Mesma opinião foi expressa pelo autor no ensaio Who watches the watchmen?
In: American journal of comparative law, v. 31, 1983. pp. 48 e 50.
49 Ob. cit., p. 16.
50 LIMA LOPES, José Reinaldo de. Ob. cit., p. 80.
51 Ob. cit., pp. 75-76.
862 R.T.J. — 197
social, económica e política”, cuja abertura deve, como ideal, incluir “o maior
envolvimento e participação dos cidadãos, individualmente ou em grupos organizados,
na administração da justiça”52.
De modo que, num juízo objetivo e sereno, como convém à matéria e ao interesse
público, a composição do Conselho — cujo modelo não pode deixar de ser “pluralístico
e democrático”53 — estende uma ponte entre o Judiciário e a sociedade, de um lado
permitindo oxigenação da estrutura burocrática do Poder e, de outro, respondendo às
críticas severas, posto nem sempre de todo justas para com a instituição, que lhe vinham
de fora e de dentro, como ecos da opinião pública. De fora, Dalmo de Abreu Dallari
pregava:
“(...) é necessário estabelecer um sistema de controle. É oportuno lembrar
aqui a atitude de Thomas Jefferson, que defendeu com firmeza a independência
dos juízes e tribunais, mas admitiu que tinha medo do corporativismo dos magis-
trados, o que pode significar não só uma comunhão de interesses, mas também um
relacionamento afetivo. Daí a conveniência de um órgão controlador, integrado,
em sua maioria, por magistrados, mas também por profissionais de outras áreas
jurídicas, como se tem feito para compor bancas examinadoras de concursos de
ingresso na magistratura. Não se pode esquecer que o Poder Judiciário exerce
poder público, age em nome do povo, embora seus membros não sejam escolhidos
por meio de eleição popular. Por isso é necessário um controle democrático de seu
desempenho, que assegure a obediência às regras legais e a prevalência do inte-
resse público, mantendo o requisito fundamental, que é a garantia da indepen-
dência dos juízes”.54
De dentro, o ilustre Min. Celso de Mello era só mais sutil:
“Estou cada vez mais convencido da necessidade de controle externo sobre
o Poder Judiciário. Fiscalização e responsabilidade são princípios do modelo re-
publicano. A fiscalização externa não compromete o princípio da separação dos
Poderes. Ela não quer dizer que se vá exercer censura sobre o pensamento dos
magistrados. A independência dos juízes deve ser preservada. Mas ela não é uma
finalidade em si própria. É preciso ter juízes independentes para se poder ter cida-
dãos livres”.55
“O Judiciário só pode enfraquecer se seus membros falharem gravemente no
desempenho das suas funções. Os magistrados devem se expor democraticamente
à crítica social. Nenhum Poder da República está acima da Constituição, nem pode
pretender que sua fisionomia institucional não possa ser redesenhada”.56
52 Pela mão de Alice — o social e o político na pós-modernidade. 9. ed. São Paulo: Cortez, 1995.
p. 177.
53 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Ob. cit., p. 130.
54 “Juízes independentes, judiciário sob controle social”. In: Revista da associação dos magistrados
do Estado do Rio de Janeiro, ano 2, n. 8, p. 33. Grifos nossos.
55 Entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, em 11-4-99.
56 Entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, em 19-3-99.
R.T.J. — 197 863
decisório (eficácia da decisão), entre órgão superior e magistrado que lhe está sujeito, o
que nada tem a ver com o tipo de subordinação que se dá noutro plano, o dos degraus da
carreira.
7. Entre os membros laicos, cuja previsão dá caráter heterogêneo à composição do
Conselho Nacional de Justiça, constam dois representantes do Ministério Público e dois
advogados, todos indicados pelos pares (art. 103-B, incs. XI e XII). Por mais que forcejasse,
não encontrei nenhuma razão de índole constitucional que lhes pudera vetar a participa-
ção no Conselho.
Pressuposto agora que a instituição do Conselho não apenas simboliza mas tam-
bém opera ligeira abertura das portas do Judiciário para que representantes da sociedade
tomem parte no controle administrativo-financeiro e ético-disciplinar da atuação do
Poder, robustecendo-lhe o caráter republicano e democrático, nada mais natural que os
dois setores sociais, cujos misteres estão mais próximos das atividades profissionais da
magistratura, a advocacia e o Ministério Público, integrem o Conselho responsável por
esse mesmo controle.
Não é à toa que ambas as profissões são objeto de normas da Constituição da
República, no âmbito do capítulo reservado à disciplina das “funções essenciais à Jus-
tiça”. De acordo com o art. 127, “o Ministério Público é instituição permanente, essen-
cial à função jurisdicional do Estado”. E o art. 133 reputa o advogado “indispensável
à administração da justiça”.
Esses cânones não se limitam a refletir ou reafirmar, no mais alto escalão nomo-
lógico, certos truísmos ligados aos papéis da advocacia e do Ministério Público, como,
v. g., que suas iniciativas técnicas desencadeiam o exercício da função jurisdicional, cuja
inércia é garantia da imparcialidade que a caracteriza como monopólio e obrigação do
Estado. Ou que, como órgãos dotados de capacidade postulatória, legitimem esse mesmo
exercício, dando concreção a todos os princípios inerentes à cláusula do justo processo
da lei (due process of law).
Aqueles preceitos vão além, porque concebem e proclamam, como ingredientes da
própria ordem jurídico-constitucional, a dignidade e a relevância da advocacia e do
Ministério Público na condição de funções essenciais da Justiça, e cujos titulares são,
como tais, merecedores de garantias, como a inviolabilidade relativa dos atos e manifes-
tações emanados no exercício da profissão de advogado (art. 133), e as prerrogativas e
vedações análogas às dos juízes, relativamente aos membros do Ministério Público (art.
128, § 5º). Eis o fundamento da previsão de participação da Ordem dos Advogados em
todas as fases do concurso de ingresso na carreira da magistratura (art. 93, I).
Tudo isso comprova a decisiva responsabilidade que, ao lado da magistratura,
pesa, já no plano constitucional originário, à advocacia e ao Ministério Público, quanto
ao correto desenvolvimento da atividade estatal que, atribuída como função típica ao
Poder Judiciário no quadro da separação dos Poderes, constitui a própria razão de ser das
três categorias profissionais. De modo que, pelo menos no nível teórico, e é esse o que
sobreleva na causa, os rumos dos interesses institucionais não podem deixar de convergir
para o mesmo propósito político: o aprimoramento da atividade jurisdicional.
É, pois, compreensível e conforme, não contrário, aos princípios que, presumindo-se
ambas as instituições aptas e interessadas em oferecer contribuições valiosas ao
R.T.J. — 197 865
senão que se situam, definem e qualificam dentro das respectivas camadas da federação.
E tampouco se pode imaginar, como pretende a inicial, que haveria supervisão adminis-
trativa, orçamentária, financeira e disciplinar dos órgãos judiciários estaduais por órgão
da União. O Conselho, repita-se, não é órgão da União.
Sua composição reverencia e contempla as duas esferas federativas dotadas de
Justiças, a União e os Estados-Membros, os quais contam ali com representantes das
respectivas magistraturas (art.103-B, incs. I a IX). Além disso, a indicação de um cidadão
pelo Senado Federal exprime, de certa maneira, senão a vontade, pelo menos forma
indireta de participação dos Estados (art. 103-B, inc. XIII). Não vejo, pois, como cogitar
de violação ao princípio federativo.
Não é, como tentei demonstrar, imutável o conteúdo concreto da forma federativa.
As relações de subordinação vigentes na estrutura do Judiciário, dado seu caráter nacional,
como o reconhece a autora (item 51 da inicial), podem ser ampliadas e desdobradas pelo
constituinte reformador, desde que tal reconfiguração não rompa o núcleo essencial das
atribuições do Poder em favor de outro. E foram redefinidas pela Emenda n. 45, sem
usurpação de atribuições por outro Poder nem sacrifício da independência. A redução
das autonomias internas, atribuídas a cada tribunal, não contradiz, sob nenhum aspecto,
o sistema de separação e independência dos Poderes. A Corte cansou-se de proclamar
que não são absolutas nem plenas as autonomias estaduais, circunscritas pela Constitui-
ção (art. 25), porque, se o fossem, seriam soberanias. E o Conselho não tem competência
para organizar nem reorganizar as Justiças estaduais.
E é só órgão que ocupa, na estrutura do Poder Judiciário, posição hierárquica
superior à do Conselho da Justiça Federal e à do Conselho Superior da Justiça do Traba-
lho, no sentido de que tem competência para rever os atos deste e daquele. Ora, está nisso
o princípio capaz de resolver, em concreto, os conflitos aparentes de competência.
Por outro lado, a competência do Conselho para expedir atos regulamentares desti-
na-se, por definição mesma de regulamento heterônomo, a fixar diretrizes para execução
dos seus próprios atos, praticados nos limites de seus poderes constitucionais, como
consta, aliás, do art. 103-B, § 4º, I, em que se lê: “no âmbito de sua competência”. A
mesma coisa é de se dizer a respeito do poder de iniciativa de propostas ao Congresso
Nacional (art. 103-B, § 4º, inc. VII).
Como consectário do princípio da unidade do Judiciário como Poder nacional, o
Conselho recebeu ainda competência de reexame dos atos administrativos dos órgãos
judiciais inferiores, ou seja, o poder de controle interno da constitucionalidade e da
legitimidade desses atos. Ora, tal competência em nada conflita com as competências de
controle exterior e posterior, atribuídas ao Legislativo e aos tribunais de contas. E o
argumento vale para todos os atos de autogoverno, cujo poder não é subtraído, mas cujo
exercício é submetido a processo de aperfeiçoamento mediante revisão eventual de
órgão superior.
E, por fechar, neste tópico, o conjunto de respostas aos argumentos pontuais da
demandante, nada mais insuspeito e apropriado do que transcrever opinião do então juiz
Luis Flávio Gomes, em monografia de cerrada crítica a propostas de composição seme-
lhante à do Conselho:
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10. A autora invoca ainda, em socorro de sua pretensão, algumas decisões da Corte
em ações diretas de inconstitucionalidade dirigidas à criação de conselhos estaduais de
“controle externo” dos órgãos judiciários. De fato, chamado a avaliar a legitimidade
constitucional de órgãos desse tipo, rejeitou-a sempre o Supremo Tribunal Federal, cuja
invariável jurisprudência ao propósito consolidou-se na Súmula 649 (“é inconstitucional
a criação, por Constituição Estadual, de órgão de controle administrativo do Poder
Judiciário do qual participem representantes de outros Poderes ou entidades”).
Análise cuidadosa e, sobretudo, desinteressada mostra, todavia, que os precedentes
não se ajustam nem se aplicam ao caso. Em todos eles, era substancialmente diversa a
situação posta ao julgamento da Corte. Em primeiro lugar, os conselhos criados por leis
dos Estados da Paraíba, de Mato Grosso, de Sergipe, do Ceará e do Pará, objetos daqueles
precedentes, figuravam autênticos órgãos externos ao Poder Judiciário, concebidos e
disciplinados em posições marginais à sua estrutura orgânico-burocrática. Aliás, no caso
decidido na ADI n. 197, o art. 115 da Constituição do Estado de Sergipe preceituava,
literalmente, que o conselho era “órgão de controle externo”, e era-o em substância.
Nenhuma das composições desses colegiados contava tampouco com presença majori-
tária de membros pertencentes às magistraturas estaduais. A representação dos juízes era
ali, em todos os conselhos, apenas equiparada, quando não inferior ao número de mem-
bros advindos doutros setores sociais (cf. ADI n. 197, Relator Min. Octavio Gallotti, DJ
de 25-5-90; ADI n. 251, Relator Min. Aldir Passarinho, DJ de 2-4-93; ADI n. 135,
Relator Min. Octavio Gallotti, DJ de 15-8-97; ADI n. 98, Relator Min. Sepúlveda
Pertence, DJ de 31-10-97, ADI n. 137, Relator Min. Moreira Alves, DJ de 3-10-97).
Ora, não é esse o caso do Conselho Nacional de Justiça, que se define como órgão
interno do Judiciário e, em sua formação, apresenta maioria qualificada (três quintos) de
membros da magistratura (arts. 92, 1-A e 103-B). Desses caracteres vem-lhe a natureza de
órgão de controle interno, conduzido pelo próprio Judiciário, conquanto democratizado
na composição por meio da participação minoritária de representantes das áreas profis-
sionais afins.
Os conselhos criados pelos Estados da Paraíba, de Mato Grosso e do Pará,
compunham-nos, ainda, membros originais do Legislativo estadual (deputados), cuja
presença não deixava nenhuma dúvida quanto à forma de interferência direta doutro
Poder. No Conselho Nacional de Justiça, dois dos quinze membros são apenas indicados
pelo Poder Legislativo, mas escolhidos fora de seus quadros de agentes e políticos,
dentre os cidadãos, sem nenhum vestígio de representação nem de interferência orgânica.
É, pois, notável a distância que medeia entre uma coisa e outra.
Ao depois, e está aqui verdade jurídica que se deve antecipar e proclamar com toda
a clareza, os Estados-Membros carecem de competência constitucional para instituir
conselhos, internos ou externos, destinados a controle de atividade administrativa,
financeira ou disciplinar das respectivas Justiças, porque a autonomia necessária para o
fazer seria incompatível com o regime jurídico-constitucional do Poder Judiciário, cuja
unidade reflete a da soberania nacional.
O Poder Judiciário é nacional e, nessa condição, rege-se por princípios unitários
enunciados pela Constituição, a qual lhe predefine ainda toda a estrutura orgânica, sem
prejuízo das competências que delega a cada um dos grandes ramos nela previstos. Seu
funcionamento obedece, em todos os níveis, a leis processuais uniformes, editadas ex-
R.T.J. — 197 871
clusivamente pela União (art. 22, inc. I), e seus membros, os magistrados, assujeitam-se
a um único regime jurídico-funcional (art. 93, caput).
De modo que eventual poder de criação de conselho estadual, ordenado ao controle
administrativo-financeiro e disciplinar da divisão orgânica do Poder, atribuída com
fisionomia uniforme às unidades federadas, violentaria a Constituição da República,
porque lhe desfiguraria o regime unitário, ao supor competência de controles díspares da
instituição, mediante órgãos estaduais, cuja diversidade e proliferação, isso sim, meteriam
em risco o pacto federativo.
Ora, tal vício de inconstitucionalidade, que já mareava a criação daqueles
esdrúxulos órgãos estaduais, não guarda nenhuma pertinência com a hipótese. O Con-
selho Nacional de Justiça é órgão judiciário de âmbito nacional, com atribuições para
atuar de maneira unitária e estratégica sobre todas as estruturas orgânicas do Poder.
E colhe-se outro dado fundamental, que remarca e exaspera a profunda diferença
entre aqueles precedentes e este caso. O juízo de constitucionalidade das normas
instituidoras dos conselhos fez-se, é óbvio, à luz da arquitetura que assumia o princípio
da separação dos Poderes, à época, na Constituição da República, cujas regras, escusaria
dizê-lo, não podiam ceder a leis subalternas. No mais profundo daqueles julgamentos,
realizado na ADI n. 98, relatada pelo Min. Sepúlveda Pertence, foi reconhecido o fato,
aqui já sobrelevado, de que:
“o princípio da separação e independência dos Poderes, malgrado constitua
um dos signos distintivos fundamentais do Estado de Direito, não possui fórmula
universal apriorística: a tripartição das funções estatais entre três órgãos ou con-
juntos diferenciados de órgãos, de um lado, e, tão importante quanto essa divisão
funcional básica, o equilíbrio entre os Poderes mediante o jogo recíproco dos
freios e contrapesos, presentes ambos em todas elas, apresentam-se em cada formu-
lação positiva do princípio com distintos caracteres e proporções”.
Sob tal luz, reputou-se que a criação do conselho estadual feria o postulado da
tripartição dos Poderes, tal como desenhado pelo conjunto das normas constitucionais
então vigentes.
Ora, a Emenda Constitucional n. 45, de 2004, como produto do exercício de com-
petência de que não dispunham nem dispõem os legisladores estaduais, operou, em
resposta a uma singular necessidade sociopolítica de aperfeiçoamento do Judiciário,
mais uma adaptação histórica na formulação positiva do princípio da separação, sem
vulnerar-lhe a cláusula constitucional que proíbe a espoliação do cerne das atribuições
de um Poder em benefício de outro.
De modo que, por muitas e boas razões, não faz senso chamar este caso singular a
contas com jurisprudência fundada noutros pressupostos constitucionais.
12. Ao cabo desta já longa argumentação sobre o objeto central da demanda, não
tenho a mais tênue dúvida acerca da constitucionalidade das normas impugnadas. Devo
confessar, porém, que, durante as esforçadas meditações em que, sobre o tema, pus à
prova a minha consciência, foi outra a razão decisiva que, em remate, me seduziu e
convenceu. E essa poderosa razão diz com a regra do art. 102, inc. l, letra r, que,
introduzida na Constituição da República pela Emenda Constitucional n. 45, comete ao
Supremo Tribunal Federal competência para, julgando ações, rever os atos praticados
872 R.T.J. — 197
pelo Conselho Nacional de Justiça. Entre parênteses, noto que, ao tempo dos conselhos
estaduais fulminados, não havia, aliás, no sistema, nem se justificava então que houvesse,
nenhuma regra análoga, o que só reforça e agrava a radical impertinência dos precedentes
invocados.
Toda a estrutura lógico-jurídica do raciocínio do meu voto reduz-se à tentativa de,
submetendo as normas da Emenda a estreito confronto com os princípios e regras que
disciplinam e formam nosso sistema constitucional de separação de poderes, entendido
nas perspectivas históricas e políticas de garantia da liberdade dos cidadãos contra os
riscos institucionais do arbítrio e da prepotência, estimar se de algum modo não compro-
metiam, em última instância, a independência e a imparcialidade dos juízes, sem as
quais ninguém pode realizar seu projeto histórico de convivência ética, nem se concebe
Estado Democrático de Direito. Afinal, na sabatina obrigatória perante o Senado da
República, já havia eu professado, não apenas a título de opinião de cidadão, senão
também como firme convicção jurídica, que me opunha a toda proposta que pusesse em
risco, direto ou indireto, próximo ou remoto, a garantia constitucional da independência
e da imparcialidade dos juízes, parecendo-me discutíveis todas as demais.
Dissiparam-se-me as hesitações quando, não podendo deixar de reconhecer, na
ratio iuris da criação do Conselho, a necessidade sociopolítica de um órgão nacional de
controle das atividades judiciárias, visto como um de muitos instrumentos hábeis de
reforma, já não experimentei nenhum receio racional de que sua estruturação, nos termos
da Emenda, pudesse descambar, sem reparo nem remédio, para excessos esporádicos,
mas passíveis de alimentar um clima de insuportável intimidação.
E já não experimentei porque, para além de todos os mecanismos intrínsecos de
resguardo da autonomia do Poder Judiciário, pressupostos alguns na Emenda e previstos
outros na precedente ordem constitucional, a cujo respeito terá sido longo o discurso do
meu voto, dei com a competência, atribuída a esta Corte, de revisão da constitucionali-
dade e da legitimidade dos atos do Conselho Nacional de Justiça. Está aí, nessa nobre
responsabilidade que o constituinte derivado depositou nos ombros desta Casa, a garan-
tia última e específica que a obriga, como órgão supremo do Poder Judiciário e guardião
da Constituição da República, a velar pela independência e imparcialidade dos juízes,
aos quais já não sobra pretexto para se arrecearem de coisa alguma. Ninguém pode, aliás,
alimentar nenhuma dúvida a respeito da posição constitucional de superioridade ab-
soluta desta Corte, como órgão supremo do Judiciário e, como tal, armado de preemi-
nência hierárquica sobre o Conselho, cujos atos e decisões, todos de natureza só admi-
nistrativa, estão sujeitos a seu incontrastável controle jurisdicional. É o que logo notou
a doutrina:
“Não bastasse a natureza do STF que, na estrutura do estado brasileiro, se põe
acima de qualquer outro órgão administrativo ou judiciário, incumbido da guarda
da Constituição (art. 102, caput), a Emenda entregou a ele o controle jurisdicional
das decisões do Conselho Nacional de Justiça, conferindo-lhe competência para as
ações contra o órgão, mediante a adoção da alínea r do inciso I do art. 102 da
Constituição. Controlador do CNJ, não pode o Supremo ser, de nenhum modo,
controlado por ele”.64
64 BERMUDES, Sérgio. A reforma do Judiciário pela emenda constitucional n. 45. Ob. cit., p. 137.
R.T.J. — 197 873
E essa tranqüilidade final do meu convencimento mostrou ainda quão inútil era o
alvitre de recorrer ao expediente técnico-jurídico de redução teleológica do alcance da
Emenda, para, contornando dificuldades observadas alhures,65 sugerir interpretação que
privasse os membros laicos do Conselho Nacional de Justiça de votar em matéria ético-
disciplinar dos magistrados. O Supremo Tribunal Federal é o fiador da independência e
da imparcialidade dos juízes, em defesa da ordem jurídica e da liberdade dos cidadãos.
13. O último tópico da inicial impugna o disposto no art. 103-B, § 4º, inc. III, que,
também introduzido pela Emenda Constitucional n. 45/2004, se ressentiria de inconsti-
tucionalidade formal, uma vez que a expressão “perda do cargo”, contida no texto
vindo da Câmara dos Deputados, foi suprimida ao texto aprovado no Senado Federal. O
argumento é de que a norma decotada deveria ser submetida à reapreciação da Câmara,
em atenção ao art. 60, § 2º, da Constituição da República.
A Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República invocaram, com
muita propriedade, precedentes da Corte que demonstram não padecer de inconstituciona-
lidade o dispositivo. Este Tribunal, deveras, já assentou:
“Proposta de emenda que, votada e aprovada na Câmara dos Deputados,
sofreu alteração no Senado Federal, tendo sido promulgada sem que tivesse
retornado à Casa iniciadora para nova votação quanto à parte objeto de modificação.
Inexistência de ofensa ao art. 60, § 2º, da Constituição Federal no tocante à supres-
são, no Senado Federal, da expressão “observado o disposto no § 6º do art. 195 da
Constituição Federal”, que constava do texto aprovado pela Câmara dos Deputados
em 2 (dois) turnos de votação, tendo em vista que essa alteração não importou em
mudança substancial do sentido do texto (Precedente: ADC n. 3, Relator Min.
Nelson Jobim)” (ADI n. 2.666, Relatora Min. Ellen Gracie, DJ de 6-12-2002).
“Quanto à alteração ocorrida na Câmara dos Deputados, relativa à su-
pressão das palavras ‘ou restabelecê-la’, em seguida ao verbo ‘reduzir’, no § 1º
do novo art. 75, sem que a proposta tivesse retornado ao Senado para nova
apreciação, tenho que esse aspecto não importou ofensa ao art. 60, § 2º, da
Carta Magna. Como amplamente debatido no julgamento liminar, a possibilidade
de restabelecimento da alíquota original tinha caráter autônomo em relação à
possibilidade da sua redução, não tendo a supressão daquela importado em modi-
ficação substancial do sentido da norma aprovada e promulgada. O que importa,
no caso, é que o texto promulgado foi devidamente aprovado por ambas as
Casas, nos termos exigidos pelo § 2º do art. 60 da Constituição” (ADI n. 2.031,
Relatora Min. Ellen Gracie, DJ de 17-10-03. Grifos nossos).
Dos mesmos autos consta decisão do então Relator, Min. Octavio Gallotti, à apre-
ciação do pedido liminar, nestes termos:
“Aprovada a proposta pelo Senado Federal, foi ela, na Câmara, objeto, entre
outros, de dois destaques de votação em separado (DVS’s), de cuja aprovação
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, a forma — que realmente não deve ser
exacerbada — revela meio para alcançar-se a realização do direito substancial. Mais do
que isso, penso que a forma, colocada no cenário jurídico mediante preceitos imperativos,
é, acima de tudo, liberdade, em seu sentido maior; é a revelação do que pode, ou não,
ocorrer, em se tratando de jurisdição.
No caso dos autos, do meu ponto de vista, houve a propositura de uma ação direta
de inconstitucionalidade — perdoem-me a expressão — temporã. Temporã porque o ato
normativo impugnado, a emenda constitucional, não existia quando dessa mesma
propositura. Não estava aperfeiçoado o processo legislativo, que desaguaria, após a
propositura da ação direta de inconstitucionalidade, em um ato normativo abstrato autô-
nomo; em um ato normativo passível de ataque, uma vez promulgada a emenda.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Ministro, Vossa Excelência me permite?
Lembro que a própria emenda já dava efeito da promulgação. O artigo 5º determinava
um prazo para a instalação do Conselho a contar da data da promulgação, não da publi-
cação.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Sim. Pelo que percebi — pode ser que eu esteja
partindo de uma premissa equivocada, e peço esclarecimento do Relator —, teria havido
o ajuizamento antes da promulgação.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Não. Foi antes da publicação. Houve a
promulgação, mas, antes da publicação da ementa, ocorreu o ajuizamento.
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): Há uma petição de aditamento.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não há uma petição de aditamento posteriormente.
876 R.T.J. — 197
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): Não invoquei isso por motivo de reforço;
substancialmente não há o que acrescentar.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Presidente, tendo em conta o afastamento da premissa
de que teria havido a propositura da ação direta de inconstitucionalidade antes da pro-
mulgação, contento-me com a peça trazida, no caso, pela Associação dos Magistrados
Brasileiros, aditando a inicial, uma vez publicada a própria emenda.
Não divirjo do Relator.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sr. Presidente, nós já temos — creio que a partir do
Mandado de Segurança n. 20.257 — aceito a discussão sobre a questão do controle de
cláusulas pétreas em relação até a propostas de emendas.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Aí teremos de ver qual é o pedido: se ataca a
tramitação da emenda, eu a admitiria. Até na ação direta de inconstitucionalidade, aco-
lheria o pedido para tornar prevalecente o texto do artigo 60 da Lei Fundamental, a
revelar que não pode haver a tramitação de proposta de emenda para abolir uma das
garantias, uma das cláusulas pétreas constantes do § 4º do mesmo artigo.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Na verdade, o mandado de segurança é
para proteger o parlamentar de não ser obrigado a votar.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: De qualquer sorte, é um controle de constituciona-
lidade.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: É a única hipótese brasileira de controle pre-
ventivo de constitucionalidade.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Exatamente. Nós, inclusive, em julgamento recente,
relatoria do Ministro Carlos Velloso, não julgamos prejudicado o mandado de segurança,
mas prosseguimos no julgamento após a aprovação da emenda constitucional. Já há essa
exceção no regime. No caso específico, portanto, já havia a promulgação — Vossa
Excelência lembrou bem — com força normativa. Dentro do quadro de costume consti-
tucional afirma-se até mesmo que é da promulgação que se afere a vigência da emenda,
só que aqui não houve a coincidência entre a promulgação e a publicação.
Também acompanho o voto do Relator nesse passo.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, apenas para deixar bem claro:
admito o processo objetivo, o controle concentrado de constitucionalidade contra simples
tramitação de proposta de emenda constitucional, mas é preciso que o pedido se
direcione a fulminar o que está em tramitação numa das Casas do Legislativo.
VOTO
O Sr. Ministro Eros Grau: A separação dos Poderes, como observei em texto de
doutrina1, constitui um dos mitos mais eficazes do Estado liberal, coroado na afirmação,
inscrita no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, de que
“qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem
estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição”.
Trata-se de uma idéia dominante; ainda hoje a doutrina da separação dos Poderes
mostra-se como idéia dominante, enunciada como “lei eterna”2.
Essa doutrina chega até nós a partir da exposição de Montesquieu, e não pela via
da postulação norte-americana dos freios e contrapesos. De resto, mesmo a prioridade de
Montesquieu na sua formulação merece questionamentos, seja desde a ponderação de
antecedentes remotos, em Aristóteles, seja na sua enunciação por Bolinbroke e na con-
tribuição de Locke.
2. John Locke, no Segundo Tratado sobre o governo, propõe uma efetiva separa-
ção entre Poderes Executivo, Legislativo e Federativo. O primeiro compreende a execu-
ção das leis naturais da sociedade, dentro dos seus limites, com relação a todos que a ela
pertencem. O Poder Federativo, a gestão de segurança e do interesse do público fora
dela, juntamente com todos quantos poderão receber benefício ou sofrer dano por ela
causado. O Poder Legislativo é o que tem o direito de estabelecer como se deverá utilizar
a força da comunidade no sentido da preservação dela própria e de seus membros.
Segundo Locke, é conveniente que os Poderes Legislativo e Executivo fiquem
separados. Mas dificilmente podem separar-se e colocar-se ao mesmo tempo em mãos de
pessoas distintas os Poderes Executivo e Federativo: ambos exigindo a força da sociedade
para seu exercício, é quase impraticável colocar-se a força do Estado em mãos distintas e
não subordinadas; além disso — transcrevo palavras de Locke —, na colocação destes
poderes em mãos de pessoas que possam agir separadamente, a força do público ficaria
sob comandos diferentes, o que poderia provocar, em qualquer ocasião, desordem e
ruína.
Para logo se vê, destarte, que, no pensamento de Locke, surge perfeitamente
delineado o princípio da separação dos Poderes. De toda sorte, observa-se que, embora
visualize três tipos de poder, a separação que surge como conveniente e viável é a que
se operaria entre o Legislativo, de um lado, e o Executivo e o Federativo, de outro. O que
Locke propõe é uma separação dual — e não tríplice — entre os três Poderes que
descreve.
3. Montesquieu jamais propôs a separação dos Poderes. Sua exposição encontra-se
no capítulo VI do Livro IX de O espírito das leis. As idéias que coloca inicialmente,
neste capítulo, a sumariam: “Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o Poder
Legislativo, o Poder Executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o
Executivo das que dependem do direito civil. Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado
1 O direito posto e o direito pressuposto, 5. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. pp. 225 e ss.
2 Cf. MARX e ENGLES, A ideologia alemã, 5. ed. trad. de José Carlos Bruni e Marco Aurélio
Nogueira, São Paulo: Hucitec, 1986. p. 72.
878 R.T.J. — 197
faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo
segundo, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou
julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro,
simplesmente, o Poder Executivo do Estado. A liberdade política num cidadão é esta
tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança:
e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo, que um
cidadão não possa temer outro cidadão. Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de
magistratura o Poder Legislativo está reunido ao Poder Executivo, não existe liberdade,
pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo Senado apenas estabeleçam leis
tirânicas para executá-las tiranicamente.
Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do Poder
Legislativo e do Executivo. Se estivesse ligado ao Poder Legislativo, o poder sobre a
vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse
ligado ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria
perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do
povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e
o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos”.
É certo, ademais, que Montesquieu não sustenta a impenetrabilidade, um pelos
outros, dos Poderes que refere. Assim, por um lado afirma que: “apesar de que, em geral,
o poder de julgar não deva estar ligado a nenhuma parte do Legislativo, isso está sujeito
a três exceções, baseadas no interesse particular de quem deve ser julgado”. Por outro
lado, distinguindo entre faculdade de estatuir — o direito de ordenar por si mesmo, ou
de corrigir o que foi ordenado por outrem — e faculdade de impedir — o direito de
anular uma resolução tomada por qualquer outro (isto é, poder de veto) —, entende deva
esta última estar atribuída ao Poder Executivo, em relação às funções do Legislativo;
com isso, o Poder Executivo faz parte do Legislativo, em virtude do direito de veto: “Se
o Poder Executivo não tem o direito de vetar os empreendimentos do campo Legislativo,
este último seria despótico porque, como pode atribuir a si próprio todo o poder que
possa imaginar, destruiria todos os demais poderes”. “O Poder Executivo, como disse-
mos, deve participar da legislação através do direito de veto, sem o quê seria despojado
de suas prerrogativas”.
O que importa verificar, inicialmente, na construção de Montesquieu, é o fato de
que não cogita de uma efetiva separação de Poderes, mas sim de uma distinção entre
eles, que, não obstante, devem atuar em clima de equilíbrio. Isso fica bastante nítido na
análise de outro trecho de sua obra: “Eis, assim, a constituição fundamental do governo
de que falamos. O corpo legislativo sendo composto de duas partes, uma paralisará a
outra por sua mútua faculdade de impedir. Todas as duas serão paralisadas pelo Poder
Executivo, que o será, por sua vez, pelo Poder Legislativo. Estes três poderes deveriam
formar uma pausa ou uma inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, eles
são obrigados a caminhar, serão forçados a caminhar de acordo”.
De outra parte, importa enfatizar que, já da sua exposição, resulta a distinção entre
Poderes Executivo e Legislativo, de um lado, e funções executiva e legislativa, de outro.
Segundo Montesquieu, o Poder Executivo deve estar dotado de funções executivas e —
pela titularidade da faculdade de impedir (poder de veto) — também de parcela das
R.T.J. — 197 879
funções legislativas. Da mesma forma, entende deva o Poder Legislativo, em casos ex-
cepcionais, estar dotado de funções jurisdicionais.
4. O alinhamento procedido, das colocações de Locke e de Montesquieu, permite-
nos verificar que o primeiro propõe uma separação dual entre três Poderes — o Legisla-
tivo, de um lado, e o Executivo e o Federativo, de outro — e o segundo sugere não a
divisão ou separação, mas o equilíbrio entre três Poderes distintos — o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário.
Mais ainda: de modo bastante nítido na exposição de Montesquieu — o que está
implícito na postulação de Locke —, visualizamos a necessidade de distinguir entre
poderes e funções. Para que o equilíbrio a perseguir seja logrado, impõe-se, v.g., que o
Poder Executivo exercite parcelas de função não executiva — mas legislativa.
A Constituição do Brasil afirma que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são
Poderes independentes e harmônicos entre si — artigo 2º —, ainda que o § 4º do seu
artigo 60 mencione “separação dos Poderes”. O vocábulo “separação” nesse parágrafo
indica, no entanto, sem qualquer dúvida, independência e harmonia entre eles e não
cisão entre os Poderes.
A construção teórica de Montesquieu merece, contudo, não apenas ser descrita,
porém ser também analisada desde a perspectiva crítica.
5. Detenho-me, inicialmente, sobre dois textos de Charles Eisenmann3, nos quais
encontra Althusser4 os fundamentos da assertiva de que a “separação dos poderes” não
passa de um mito.
Montesquieu, como vimos, além de jamais ter cogitado de uma efetiva separação
dos Poderes, na verdade enuncia a moderação entre eles como divisão dos poderes entre
as potências e a limitação ou moderação das pretensões de uma potência pelo poder das
outras. Daí por que, como observa Althusser5, a “separação dos poderes” não passa da
divisão ponderada do poder entre potências determinadas: o rei, a nobreza e o “povo”.
Eu gostaria de avançar nesta análise crítica da exposição de Montesquieu, mas não
vou maçar a Corte com essas considerações.
O mínimo, no entanto, há de ser dito. O ponto de partida de Montesquieu no Livro
IX de O espírito das leis é a liberdade: “Encontra-se a liberdade política unicamente nos
Estados moderados. Porém ela nem sempre existe nos Estados moderados: só existe
nesses últimos quando não se abusa do poder; mas a experiência eterna mostra que todo
homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites (...). Para que
não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o
poder”. Ora, se a liberdade só pode existir nos Estados moderados nos quais ninguém
abuse do poder, a divisão dos Poderes encerra em si a virtude, precisamente, do equilíbrio.
3 “L’esprit des lois et la séparation des pouvoirs”. Cahiers de philosophie politique (Montesquieu).
Bruxelles, Éditions Oupia, 1985. (pp. 3-34) e “La pensée constitutionnelle de Montesquieu”. Cahiers
de philosophie politique (Montesquieu). Bruxelles, Éditions Oupia, 1985. pp. 35-66.
4 Montesquieu — La politique et l’histoire. 6. ed. Paris, PUF, 1985.
5 Ob. cit., p. 104.
880 R.T.J. — 197
Esse equilíbrio é que Althusser6 visualiza na divisão dos poderes entre as potências — o
que importa que, nos Estados moderados, o poder não seja absoluto, porque, mercê
daquele equilíbrio, controlado7.
Daí a indagação que se introduz: a quem beneficia o equilíbrio que provém da
divisão dos Poderes? Ou, em outros termos, quem controla o poder? A resposta a tais
perguntas dá-nos Althusser na afirmação de que Montesquieu fazia da nobreza a
beneficiária de tal equilíbrio — a nobreza controlava o poder.
A aplicação da teoria, contudo, na praxis política, finda por demonstrar que não
apenas quando Executivo e Legislativo estejam controlados pela mesma classe ou fra-
ção hegemônica a divisão dos Poderes é, no seu funcionamento, inexistente; pois —
observa Poulantzas8 —, mesmo quando são grupos diferentes os que os controlam, a
unidade do poder institucionalizado se mantém no lugar predominante onde se reflete a
classe ou fração hegemônica. Diz o próprio Montesquieu: “Assim, em Veneza, ao Grande
Conselho cabe a legislação; aos pregandi, a execução; aos guaranties, o poder de julgar.
Mas o mal é que esses tribunais diferentes são formados por magistrados do mesmo
corpo, o que quase faz com que componham um mesmo poder” (grifei).
6. O que nos tem faltado é reflexão a respeito do Estado. Para compreendê-lo seria
conveniente recorrermos a Hegel9: o Estado político, diz ele, divide-se nas seguintes
diferenças substanciais: a) o poder de definir e estabelecer o universal — poder
legislativo; b) a subsunção dos domínios particulares e dos casos individuais sob o
universal — poder de governo; c) a subjetividade como decisão suprema da vontade —
poder do príncipe. Neste último, os diferentes poderes são reunidos em uma unidade
individual e, por conseqüência, este poder é a suma e a base do todo. Mas o Estado
político, erigido sobre a Constituição racional — racional na medida em que, continua
Hegel10, o Estado determina e distribui sua atividade entre vários poderes, porém de
modo que cada um deles seja, em si mesmo, a totalidade, ou seja, um todo individual
único — o Estado político, dizia eu, é uma totalidade. Ensina, em passos sucessivos, o
velho Hegel:
“O princípio da divisão dos poderes contém, com efeito, o momento essencial
da diferença, da racionalidade real. Ora, o entendimento abstrato apreende-o de um
modo que implica, por um lado, a determinação errônea da autonomia absoluta
dos poderes uns com relação aos outros, e, por outro lado, um procedimento unila-
teral que consiste em tomar seu relacionamento mútuo como algo negativo, como
uma restrição recíproca. Esse modo de ver encerra uma hostilidade, um temor, de
cada qual em face do outro; cada um aparece como um mal para o outro e o
como se cada Poder estivesse supostamente lá abstratamente, por ele próprio, quando os
diferentes Poderes supostamente se diferenciam apenas enquanto momentos do conceito.
10. De resto — e este ponto é de fundamental importância — ao Conselho Nacional
de Justiça não é atribuída competência nenhuma que permita a sua interferência na
independência funcional do magistrado. Cabe a ele exclusivamente o “controle da atua-
ção administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcio-
nais dos juízes”, nada mais do que isso. Sua presença, como órgão do Poder Judiciário, no
modelo brasileiro de harmonia e equilíbrio entre os Poderes, não conformará nem infor-
mará — nem mesmo afetará — o dever-poder de decidir conforme a Constituição e as leis
que vinculam os membros da magistratura. O controle que exercerá está adstrito ao
plano “da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos
deveres funcionais dos juízes”. Embora órgão integrante do Poder Judiciário — razão
pela qual desempenha autêntico controle interno —, não exerce função jurisdicional.
11. Há mais, todavia, a ser considerado.
É que esta Corte é um tribunal político. Político, sim, no sentido de que provê a
viabilidade da polis. Cumpre-nos compreender a singularidade de cada situação no
âmbito da polis, isto é, do Estado. Por isso, não estamos aqui para sacrificar a realidade
em benefício de doutrinas. Não interpretamos apenas textos normativos mas também a
realidade, de modo que o significado da Constituição é produzido, pelo intérprete,
contemporaneamente à realidade.
A Constituição é a ordem jurídica fundamental de uma sociedade em um determi-
nado momento histórico e, como ela é um dinamismo, é contemporânea à realidade. Daí
por que tenho afirmado que não existe a Constituição de 1988. O que hoje realmente há,
aqui e agora, é a Constituição do Brasil, tal como hoje, aqui e agora, ela é interpretada/
aplicada por esta Corte.
12. Ademais, o discurso da ordem abrange o lugar da racionalidade [a Constitui-
ção, a lei] e o lugar do imaginário social como controle da disciplina das condutas
humanas e de sua sujeição ao poder19. De modo que não se justifica a alienação do
intérprete à realidade social, constituída também pelas aspirações da sociedade.
Frustrar a existência efetiva do Conselho Nacional de Justiça, a pretexto de in-
compatibilidade da presença, nele, de membros indicados pelo Senado Federal e pela
Câmara dos Deputados, bem assim pelo Ministério Público e pelo Conselho Federal da
OAB, frustrar sua existência efetiva, dizia, a pretexto de incompatibilidade dessa presença
com a doutrina da “separação dos Poderes”, isso não se justifica. O confronto com o
imaginário social e as expectativas que nutre, neste momento, sem que uma razão cons-
titucional definitiva houvesse a justificá-lo — e, se ela houvesse, eu estaria pronto, sem
qualquer temor, a enfrentar as reações que haveria de provocar —, confronto dessa
ordem, sem que uma razão constitucional definitiva houvesse a justificá-lo, repito, com-
prometeria a força normativa da Constituição. A Constituição então produzida por esta
Corte, na interpretação da Emenda n. 45, afrontaria a natureza singular do presente.
19 Cf. MARÍ, Enrique. Papeles de filosofia. Buenos Aires: Biblos, 1993. pp. 219 e ss.
884 R.T.J. — 197
20 A força normativa da Constituição, tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1991. p. 24.
21 Esse caráter, nacional, do Poder Judiciário, tem sido afirmado pelo Supremo Tribunal Federal. José
Néri da Silveira, em palestra proferida nesta Corte (“Aspectos institucionais e estruturais do Poder
Judiciário brasileiro”, in Salvio de Figueiredo Teixeira [coord.] O Judiciário e a Constituição, São Paulo,
Saraiva, 1994, pp. 3 e 9), tomando o “(...) poder judiciário como a pedra angular do edifício federal”,
afirma que “Na guarda desse princípio, contido no art. 99 da Lei Maior, que respeita à independência
do Poder Judiciário e afirma seu caráter nacional, o Supremo Tribunal Federal tem adotado providências
concretas no que respeita à fixação de vencimentos da magistratura federal (o que se estende também
à esfera dos Estados-Membros) (...) Bem de reconhecer, assim, é, nessa importante competência, que se
proclama não apenas o caráter nacional do Poder Judiciário, mas a atribuição a seu órgão de cúpula
de iniciativa privativa, em nome do Poder a que se destina a normatividade prevista, para que, em lei
complementar, se tracem disciplinas conducentes, inequivocamente, à uniformidade de tratamento da
magistratura nacional e à unidade do Poder Judiciário, em torno de princípios e valores fundamentais,
na busca dos interesses maiores da instituição judiciária” (grifei). Lê-se também, no voto do Ministro
Moreira Alves em decisão do STF [Representação n. 1.155/DF]: “(...) após a Constituição de 1891,
já observava, apesar de nossa federação estar no nascedouro, que o Poder Judiciário, mesmo nela,
R.T.J. — 197 885
VOTO
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Considero três os principais argumentos apresen-
tados.
O primeiro deles — de que a criação do Conselho Nacional de Justiça violaria a
separação de Poderes — não impressiona.
Como já reiterado diversas vezes por esta Corte — e o Ministro Sepúlveda Pertence
tem insistido nesse ponto —, não existe um conceito apriorístico de separação de Poderes.
É apenas na positivação desse princípio na Constituição que se pode visualizá-lo concre-
tamente.
Noutras palavras, o conceito de separação de Poderes foi ao longo do tempo se
adaptando a circunstâncias e necessidades históricas, de sorte que não é admissível
extrair a visão que dele se tinha há 300 anos e simplesmente aplicá-la às necessidades
atuais.
Todos sabemos que vêm de John Locke e Montesquieu as bases teóricas mais
sólidas sobre esse tema. Mas a pergunta que faço é a seguinte: as idéias poderosas desses
homens iluminados, idéias que forjaram as formas de organização político-social sob as
quais até hoje somos governados, devem ser seguidas em sua pureza original?
apresentava característica diversa dos demais Poderes do Estado: tinha caráter nacional. Esta concep-
ção — O Poder Judiciário emana da soberania nacional — foi inequivocadamente acolhida pela
Emenda Constitucional n. 1/69, onde se declara, no título concernente à Organização Nacional, que
o Poder Judiciário, ao contrário do que ocorre com relação ao Poder Executivo e ao Poder Legisla-
tivo, é constituído não só pelos Tribunais e juízes federais mas também pelos Tribunais e juízes estaduais
(...) [...] Com isso (...) quis a Constituição acentuar que o Poder Judiciário é nacional por emanar da
soberania nacional, mas não excluiu, porque a pressupõe nas normas sobre esse Poder, a separação, no
âmbito funcional, no administrativo, entre o Poder Judiciário da União e os Poderes Judiciários dos
Estados-Membros” (in RTJ 108/486 (1984))21. No mesmo sentido, a observação de Galeno Lacerda
(“O juiz e a Justiça no Brasil”, in O Judiciário e a Constituição, cit., p. 127): “(...) apesar de existir um
Poder Judiciário Federal, ao lado dos Estaduais, a verdade é que essa distinção também se mostra
artificial, uma vez que os Juizes e Tribunais dos Estados-Membros aplicam também a legislação federal
em cerca de 99% de suas decisões. Por isso, seria mais próprio falar, no Brasil, em Justiça unitária
nacional. A verdade é que permanece nas instituições brasileiras a predominância do Poder Central,
reminiscência, talvez, do Estado monárquico originário”.
886 R.T.J. — 197
1 Em tradução livre: “Em quarto lugar, o legislativo não pode transferir o poder de elaborar as leis
para outras mãos; pois, em se tratando de um poder delegado do povo, aqueles que o recebem não
podem entregá-lo a outrem. Somente o povo pode determinar a forma de organização da comunidade
(Estado), mediante a instituição de um legislativo e a indicação daqueles em cujas mãos essa atribui-
ção repousará. E, uma vez que o povo disse, nós nos submeteremos às leis e seremos governados pelas
leis elaboradas por esses homens (na forma por eles determinada), então ninguém mais pode dizer que
outros homens farão leis por eles; tampouco pode o povo vincular-se a outras leis que não sejam
aquelas votadas por aqueles que ele escolheu e autorizou a fazer leis em seu nome. O poder do
legislativo, sendo derivado do povo através de uma outorga voluntária e positiva, não pode ser outro
senão o contido na outorga concedida, que é o de fazer leis e não legisladores, daí segue que o
legislativo não pode dispor do poder de transferir a sua autoridade de fazer as leis, colocando-a em
outras mãos.” (V. John Locke, Second Treatise of Civil Government, Section 141, 1690.)
R.T.J. — 197 887
mesmas mãos que enfeixam ‘todo’ o poder de outro ramo, os princípios fundamen-
tais de uma constituição livre estarão subvertidos.”2
Do ponto de vista prático-institucional, portanto, não há como se falar numa divisão
estanque entre os Poderes. Isso é certo, pois a própria Constituição prevê a participação de
um Poder na composição de órgãos de outro Poder. Veja-se, por exemplo, a composição
do Conselho da República (art. 89) e do Conselho de Defesa Nacional (art. 91) — o
primeiro contém, inclusive, representantes da sociedade civil. Também o presidente
desta Corte (art. 52, parágrafo único) preside o Senado no julgamento de crimes de
responsabilidade. E mais: quanto à participação de pessoas estranhas ao Judiciário, para
que exemplo mais ilustrativo da evolução desses conceitos do que a fantástica inova-
ção, por muitos louvada, oferecida pelo Direito brasileiro, a Justiça Eleitoral? Nela
atuam, como se sabe, em função jurisdicional, e não administrativa ou financeira, advo-
gados militantes, portanto profissionais que representam interesses que nem sempre
coincidem com o interesse público.
Seria a Justiça Eleitoral, em conseqüência dessa presença de “estranhos”, intrinse-
camente inconstitucional?
Em realidade, Senhor Presidente, a expressão “separação de Poderes”, nos dias
atuais, para que se capte com precisão seu sentido verdadeiro, há de ser entendida como
dispersão/difusão de Poderes. Valho-me, a esse propósito, das palavras de Robert
Jackson, célebre ex-juiz da Corte Suprema dos Estados Unidos da América, em caso de
grande importância:
“While the Constitution diffuses power the better to secure liberty, it also
contemplates that practice will integrate the dispersed powers into a workable
government. It enjoins upon its branches separatedness but interdependence,
autonomy but reciprocity.”3
Longe estamos, portanto, da visão que pugna por uma separação radical dos Poderes,
sem nenhum mecanismo de interpenetração.
É preciso lembrar, ademais, que a composição do Conselho Nacional de Justiça é
largamente dominada por membros do Judiciário. E isso é bastante sintomático, pois
impede, como já antecipado por Hamilton, que “todo” o poder de um dos ramos “seja
concentrado nas mesmas mãos que enfeixam ‘todo’ o poder de outro ramo”.
Argumenta também a requerente que a criação do Conselho Nacional de Justiça
violaria o Pacto Federativo.
Não se pode deixar de lembrar que, no Brasil, o Poder Judiciário tem caráter nacional:
sua estrutura e sua disciplina normativa básica estão contidas já no texto da Constituição
Federal. Este estabelece claros limites e parâmetros para atuação da Justiça estadual, ainda
que esta não esteja submetida à União. Diante desse quadro, não se pode concluir senão
que o novo Conselho Nacional de Justiça seria um consectário lógico da disciplina que a
Constituição Federal dá ao Poder Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça foi criado por
uma norma constitucional e sua atuação estará jungida à Constituição. É exclusivamente
no parâmetro estabelecido pela Constituição que se dará sua atuação.
Por último, a requerente lembra o rechaço, por várias decisões desta Corte, da
criação de Conselhos de Justiça no âmbito dos estados.
Tal argumento é falho, por duas razões básicas, a saber: (i) precedentes não são
eternos e (ii) tais precedentes surgiram numa época em que não havia um modelo federal
de Conselho. Naquele tempo, compartimentar o Poder Judiciário seria ilegítimo. Hoje,
estamos a tratar de um Conselho criado por emenda constitucional, expressamente
disposto no Texto de 1988 e aplicável a todo o Poder Judiciário, no âmbito federal e no
estadual. E — infelizmente —, ainda que se admita o controle de constitucionalidade de
emendas, elas gozam, por sua própria natureza, de forte presunção de constitucionalidade.
Para mim, no caso em tela, tal presunção não pode ser afastada.
Por essas razões, julgo improcedente o pedido e declaro a constitucionalidade da
norma ora atacada.
VOTO (Aditamento)
O Sr. Ministro Carlos Britto: Sr. Presidente, também trouxe um voto escrito, porém
não vou fazer a respectiva leitura porque, diante do magistral voto do Ministro Cezar
Peluso, não tenho nada a dizer praticamente. Se eu for acrescentar, será uma demasia; se
eu for retirar, vai fazer falta.
Apenas quero ponderar que, realmente, o Judiciário é singularmente de âmbito
nacional. Tanto assim que, quando a Constituição Federal, no art. 44, fala do Poder
Legislativo, o discurso é completamente diferente:
“Art. 44. O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se
compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.”
Ou seja, nenhum órgão estadual comparece no art. 44. Quando a Constituição vai
definir o Poder Executivo, no art. 76, também o discurso é completamente diferente do
art. 92, diz assim:
“Art. 76. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxi-
liado pelos Ministros de Estado.”
Pronto. Nenhum outro ente, nenhum órgão de nenhum outro ente federativo
comparece. Entretanto, como tantas vezes dito aqui, a propósito do art. 92, o que diz a
Constituição? O Poder Judiciário é constituído pelos seguintes órgãos, e nessa
nominata, nessa relação inclui o Judiciário dos Estados e do Distrito Federal.
De outra parte, Sr. Presidente, a idéia de controle externo é conceitualmente cons-
titucional. A Constituição diz o que é controle externo: é quando um Poder interfere no
âmbito doméstico do outro. E, nesse caso, não existe isso porque o Conselho Nacional
de Justiça é órgão do próprio Poder Judiciário; é órgão interno ao Poder Judiciário.
Então, o conceito constitucional de controle externo não se aplica ao Conselho Nacional
de Justiça.
R.T.J. — 197 889
Já defendi esse ponto de vista desde a minha argüição pública perante a CCJ do
Senado Federal e, no que toca à questão formal — vou concluir —, também a minha
opinião não é ad hoc, não é de ocasião. Minha tese de doutorado, simplesmente, coincide
inteiramente com o ponto de vista do Ministro Cezar Peluso. Leio a tese:
Aprovado que seja o dispositivo na segunda votação, o que sucede? A Casa que o
aprovou faz a remessa de todo o dossiê para outra Casa Legislativa, e as coisas se repetem
como se a aprovação naquela primeira Casa nem existisse, do que se conclui ficar a
segunda Casa também completamente livre para rediscutir o assunto. Daí que, havendo
deliberação final, deliberação de segundo turno na segunda Casa, coincidente com a
deliberação final na primeira Casa Legislativa, a proposta de emenda é tida por aprovada
quanto ao dispositivo em tela. Caso contrário, ou seja, se a votação final da segunda
Casa — que foi o caso, aqui — concluir pela desaprovação do que foi decidido na última
votação da primeira Casa Legislativa — caso igual —, o dispositivo cai por terra, morre
nos estertores de um simples projeto, pois não chega a se transmutar em Direito Positivo.
Então, na verdade, não tinha sentido fazer voltar o projeto para a Câmara, porque
só se volta o projeto para outra Casa quando há possibilidade de re-arrumar o consenso.
No caso, foi muito mais do que modificar o projeto: o projeto foi rejeitado no particular.
Então, não há nenhum sentido de fazer retornar a matéria para a Câmara dos Deputados.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): A Câmara não iria examinar a rejeição do
Senado. O Senado não votou; acabou. No processo de votação de emenda constitucional,
é esse o sistema. Já no outro, é outro problema. Mas, aqui, no caso, também não voltaria.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Então, não fazia nenhum sentido retornar o processo
à Câmara e, portanto, não padece a Emenda Constitucional n. 45 do vício formal apon-
tado pela ADI.
Com essas palavras, acompanho o eminente Relator.
VOTO
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Sr. Presidente, somente gostaria de ressaltar que
essa prática que se tornou algo corrente entre nós, da impugnação das emendas constitu-
cionais, que tem sido objeto de tanta discussão no direito comparado, é quase uma
singularidade brasileira. Veja Vossa Excelência que todos nós, que nos ocupamos deste
tema doutrinário ou teoricamente, ficamos encantados com a questão do controle de
constitucionalidade das normas constitucionais.
E, no plano do direito comparado, encontramos, aqui ou acolá, um ou outro exemplo
de exame perante as Cortes constitucionais de uma questão como esta.
No Brasil, estamos a ver, diante, inclusive, da pletora de emendas constitucionais
e, também, da abertura das chamadas cláusulas pétreas, hoje, quase que um ofício recor-
rente em termos de controle de constitucionalidade de emendas constitucionais. Sabe-
mos que não é uma atividade lítero-poético-recreativa desta Corte. Em muitos casos, o
Tribunal tem examinado para declarar a inconstitucionalidade de emendas constitucio-
nais num quadro de absoluta normalidade, como ocorreu, recentemente, no caso da
Previdência Social. Desde 1926, a emenda ou a reforma à Constituição de 1891. Portanto,
é um dado importante do ponto de vista teórico e dogmático.
890 R.T.J. — 197
VOTO
A Sra. Ministra Ellen Gracie: Senhor Presidente, eu acompanho o eminente Relator
quando ele não conhece da ação relativamente ao § 8º do art. 125, porque inexistente.
Também acompanho Sua Excelência para afastar o vício formal que foi alegado, que é
aquele de irregularidade na tramitação do projeto de emenda.
De fato, no tocante à alegação de irregularidade na tramitação do projeto de emenda
que teria dado causa à inconstitucionalidade formal do art. 103-B, § 4º, III, inserido no
texto constitucional, verifico que este dispositivo, ao ser apreciado pelo Senado Federal,
atribuía, originariamente, ao Conselho Nacional de Justiça a competência de avocar
processos disciplinares em curso e determinar, dentre outras sanções administrativas, a
perda do cargo de magistrado. Prosseguindo-se o trâmite legislativo, com a votação, em
dois turnos, pelo Senado Federal, tal prerrogativa foi suprimida.
Entendo não ter havido, com esta supressão, matéria que deixou de ser apreciada
pela Câmara dos Deputados. O dispositivo, na parte em questão, tratava, ao chegar ao
Senado, e continuou tratando, após as deliberações nesta Casa, do controle, pelo Conse-
lho, do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (caput do art. 103-B, § 4). Ade-
mais, não faria sentido algum devolver à Câmara dos Deputados a apreciação de supressão
que, tudo indica, evitou o surgimento de inconstitucionalidade consubstanciada na
ofensa à exigência de decisão judicial transitada em julgado para a perda de cargo
público.
A jurisprudência da Casa, ao enfrentar casos análogos, firmou o entendimento de
que as emendas supressivas, quando não tragam alterações substanciais no sentido do
texto enviado pela Câmara dos Deputados, não possuem o condão de provocar a
inconstitucionalidade formal da emenda daí advinda. Neste sentido, a ADC n. 3, Relator
Min. Nelson Jobim; a ADI n. 2.031-MC, Relator Min. Octavio Gallotti; e a ADI n. 2.666,
Relatora Min. Ellen Gracie.
Afasto, dessa forma, o vício formal alegado.
No entanto, com todas as vênias, divirjo de Sua Excelência e da maioria já formada
com relação ao mérito.
2 - Prescreve o artigo 2º da Constituição Federal que “são Poderes da União,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Trata-se
do princípio da separação e independência dos Poderes. O art. 60, § 4º, III, da Carta
Magna, por sua vez, estabelece limitação material à atividade do constituinte reformador
ao enunciar que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir a separação dos Poderes”.
Além desta separação genérica, em sentido amplo, que torna os Poderes da União
recíproca e isonomicamente independentes, há em nosso sistema constitucional aquilo
R.T.J. — 197 893
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, quanto ao voto do Relator, so-
mente me cabe — já que temos convencimentos antagônicos sobre a matéria — registrar
que confirma o princípio da imprevisibilidade, e diria da tríplice imprevisibilidade, da
tríplice imprevisão, muito embora, com os avanços da medicina, tenhamos a dupla, e
não mais a tríplice imprevisão.
Acompanho Sua Excelência e, assim, não discordo integralmente do que Sua Ex-
celência veiculou. Faço-o quanto ao objeto, em si, da ação direta de inconstitucionali-
dade, no que veio a ser atacado dispositivo que não foi alvo da promulgação; faço-o,
também, considerado o vício de forma, já que ocorreu, no Senado da República, a poda
da atribuição do próprio Conselho, afastando-se a cláusula que lhe outorgava a possibi-
lidade de declarar a perda do cargo, sem o prejuízo do remanescente. Vale dizer, o que
resultou como norma do crivo do Senado Federal passou pelo crivo da Câmara dos
Deputados.
Senhor Presidente, continuamos a acreditar que poderemos ter, no Brasil, mediante
novos diplomas e novas leis, dias melhores, a retomada do desenvolvimento, o abandono
da estagnação. Repito o que tenho dito: precisamos, no Brasil, de homens, cidadãos,
especialmente homens públicos, que observem — é esse o preço que se paga por se viver
em um Estado Democrático de Direito — a ordem jurídica.
Aponta-se, e se dá uma esperança vã à sociedade brasileira, o Conselho Nacional de
Justiça como solução para os problemas do Judiciário, não se perquirindo, em si, a origem
desses problemas, partindo-se quase do pressuposto de que o Judiciário nacional é com-
posto por pessoas que, costumeiramente, adentram o campo do desvio de conduta; que o
Poder Judiciário nacional não possui, considerado o poder constituinte originário — e
aqui estamos a defrontar com emenda decorrente do poder constituinte derivado — orga-
nização própria para corrigir atos que discrepem do arcabouço normativo de regência,
quer na área administrativa, quer na área jurisdicional.
Criou-se o Conselho composto de membros da magistratura, de membros do Mi-
nistério Público federal e estadual, de advogados e de cidadãos. Não sei nem mesmo,
Senhor Presidente — afastados aqueles que já têm uma qualificação —, como deverei
dirigir-me aos integrantes desse Conselho, principalmente àqueles que não se mostrem
egressos da magistratura nacional. Fez-se inserir esse Conselho como órgão integrante
do Poder Judiciário. Quando nos referimos a órgãos integrantes do Poder Judiciário, ima-
ginamos jurisdição. Imaginamos algo que é inerente à soberania do Estado, à atuação
R.T.J. — 197 897
não ocorreu no Brasil uma revolução propriamente dita, uma virada de mesa ou o
desmembramento, com o surgimento de uma outra nação, de fatia territorial.
Verificamos que, relativamente ao quinto — a revelar a escolha de certas pessoas
para integrarem tribunal —, há participação, nessa escolha, do próprio tribunal, por-
quanto se tem a confecção de lista sêxtupla e a redução dessa lista pelo tribunal. No
tocante ao Conselho, não haverá essa triagem. A indicação é direta, cabendo ao Órgão de
origem.
Há mais, entretanto. Se pararmos, haveremos de admitir que entre os componentes
do Conselho egressos da magistratura será possível contar-se com pessoas que, na ori-
gem, tenham saído da classe dos advogados e do Ministério Público. E aí se constata, até
mesmo, a possibilidade de uma sobreposição. Contudo, além da integração de advogados
e de membros do Ministério Público — que afinal são indispensáveis à administração da
Justiça, e não chego a estender a previsão constitucional à área administrativa —, tem-se a
participação de cidadãos que votarão no campo administrativo, considerada a extensão
das atribuições do Conselho previstas na própria Emenda Constitucional, e com o detalhe
da alternatividade: a existência de mandato com a possibilidade de uma única
recondução.
Dir-se-á: tudo que o Conselho vier a decidir estará sujeito ao crivo do Supremo
Tribunal Federal. Também pudera, se não ocorresse assim, talvez fosse mais interessante
fecharmos para balanço, porque aí estaria rasgada a própria Constituição quanto ao livre
acesso ao Judiciário; acesso daqueles que se sintam prejudicados por uma deliberação
do próprio Conselho.
Outra implicação que vejo, Presidente — e um dia ainda teremos realmente, no
Brasil, uma federação —, diz respeito ao pacto federativo. Uma coisa é ter-se o Judiciário
organizado em patamares; o Judiciário contando com o gênero “justiça federal”, para
julgar a partir do aspecto ligado à pessoa e à matéria; e tribunais de justiça, tribunais
regionais federais, tribunais superiores; um tribunal de cassação, que tem na nomencla-
tura o vocábulo “superior”, mas que não é, a rigor, um tribunal que atue na área extraor-
dinária — refiro-me ao Superior Tribunal Militar —, além do Superior Tribunal de
Justiça, do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal. Outra diversa é
cogitar-se, potencializando-se a mais não poder a nomenclatura em detrimento do fundo,
de um órgão que formalmente está integrado ao Judiciário e que passará a exercer —
mesmo existente a Federação, o pacto federativo — crivo quanto à atuação administra-
tiva de um dos Poderes da Federação.
Presidente, preceitua o artigo 25, proclamado como decorrente da competência
originária, que:
“Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adota-
rem, observados os princípios desta Constituição”.
Esses princípios não podem ser dissociados do artigo 1º da nossa Lei Fundamental,
a revelar que:
‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos (...)’
900 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Sr. Presidente, há mais de dez anos, tenho cuidado
e escrito a respeito do tema, a Reforma do Poder Judiciário. Em 1986, antes, portanto, da
Constituição de 1988, em palestra que proferi na Escola de Magistratura de Porto Ale-
gre, cuidei do tema do Conselho, sempre, entretanto, advertindo que ele há de ser tratado
sob o prisma do direito público.
Cito Geraldo Ataliba, hoje mencionado com tanta justiça neste julgamento. Ele
dizia que a formação do jurista brasileiro, infelizmente, é de direito privado. Uma lástima.
Questões eminentemente de direito público, como a que estamos examinando, não
são tratadas como tal. Caem no desvio: não se sabe se está-se falando em direito privado
ou em direito público. O Conselho Nacional da Magistratura, por exemplo, é uma dessas
questões. São invocados os conselhos da magistratura europeus. O Ministro Sepúlveda
Pertence, em conferências e nos seus votos, já advertiu muitas vezes que os Judiciários
europeus não são poderes políticos. O Judiciário francês não é um poder político. O
Judiciário italiano, também não, não obstante tratar-se de uma Justiça respeitável. E
justamente por não ser um poder político, nasceu lá a questão do direito alternativo. O
juiz, não podendo realizar o que é fundamental, básico — ajustar a lei à Constituição —,
criou o direito alternativo, do qual o juiz brasileiro não precisa.
É possível, na Europa continental, existirem conselhos da magistratura, indicados
os seus membros pelo Congresso Nacional, mesmo porque — é outra questão — os
países europeus adotam como sistema de governo o parlamentarismo, em que há a pre-
dominância do parlamento. No sistema parlamentar puro, constituição rígida não deve-
ria existir, e isso ocorre na Inglaterra, onde é adotado sistema parlamentar puro. O parla-
mento compreende a consciência da nação e, nesse sistema, ele pode tudo. Já se disse,
pitorescamente, que o Parlamento inglês pode tudo, só não pode transformar homem em
mulher.
Mas, Sr. Presidente, esses conselhos da magistratura foram criados na Europa com
uma finalidade: conferir independência à magistratura.
O Dr. Saulo Ramos, homem perspicaz, notável advogado, escreveu um artigo re-
centemente, em que mostra como a idéia de conselho surgiu no Brasil. Um advogado
entrou no gabinete de um juiz, com este teve um “bate-boca” e saiu falando, a partir daí,
que o Judiciário precisava de um conselho; e a coisa pegou. A idéia nasceu na França. O
eminente Ministro Eros Grau, professor visitante da Sorbonne, sabe que o Judiciário
francês não é essas coisas.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Cuidado, porque eles ficam no direito de
dizer a mesma coisa. Cuidado com essas comparações, Ministro.
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: A frase é da Embaixada do Brasil, Ministro Carlos
Velloso.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: O eminente Ministro Joaquim Barbosa poderá até
invocar o depoimento do notável Chapus.
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: O Professor Chapus não escreve sobre essas maté-
rias; há outros ilustres doutrinadores que o fazem.
904 R.T.J. — 197
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Mas, talvez, tenha escrito sim, porque a matéria é
mais de Direito Administrativo, Ministro.
O Sr. Ministro Eros Grau: Ninguém vai citar o Garapon?
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Garapon, Favoreu e vários outros.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Fiquemos, então, com o Garapon, que se parece com
o “Guarapan” mineiro.
Esclareço que a minha formação, em termos culturais, é francesa, como é a do
Ministro Sepúlveda Pertence, meu colega do ginásio.
Hoje, a França evoluiu. Perceberam que um conselho integrado de não-magistrados
não prestava bons serviços. Hoje, na França, quando as questões dizem respeito aos
magistrados, não vota quem não é magistrado. Vejam como evoluíram. Mas, como eu
disse, no Brasil, a formação não é de direito público, infelizmente. Geraldo Ataliba dizia
isso; Dalmo de Abreu Dallari vive a dizer isso. É preciso dizer isso, para que possam as
nossas faculdades desenvolver mais os estudos de Direito Constitucional, de Teoria
Geral do Direito Público.
O Judiciário brasileiro tem como padrão o norte-americano, que é o Judiciário mais
eficiente do mundo e que é poder político. E por que poder político? Porque é um
Judiciário de um sistema de governo presidencial, no qual a separação entre os Poderes
há de ser nítida, existindo a independência entre uns e outros, realizando o Judiciário o
controle de constitucionalidade das leis.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Ministro Carlos Velloso, Vossa Exce-
lência me permite?
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Pois não.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Discutimos, no Plenário, as agências. Na
questão dos Estados Unidos, as agências são órgãos que fiscalizam e exercem funções em
vários Poderes. Ou seja, o conceito da divisão de Poderes dos Estados Unidos é completa-
mente diverso do nosso. Tem, inclusive, Poder quase judicial e Poder Legislativo.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Esta é uma afirmativa que não encontra apoio na
realidade.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Quem fez essa afirmativa foi o Ministro
Vitor Nunes Leal, não eu.
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Ministro Carlos Velloso, detesto cabotinismo,
mas tive oportunidade de escrever um artigo sobre “agências reguladoras” em que mostro
precisamente isso: como a concepção de separação de Poderes dos Estados Unidos
evoluiu.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Ministro, as agências reguladoras, que, aliás, estamos
a copiar, dizem respeito a questões técnicas atinentes a serviços; agência reguladora quanto
à água; agência para regular e disciplinar, por exemplo, serviços de telefones, energia
elétrica, etc.; questões técnicas. Estamos cuidando aqui de questão política no seu mais
alto sentido. Não estamos cuidando de regulamentação de serviços. Pode ser até que haja
quem queira fazer do Poder Judiciário brasileiro um mero serviço. Um administrador já
disse que é como se fosse um serviço, tipo INSS; mas não é, e não o será.
R.T.J. — 197 905
Vou buscar uma frase do Juiz Holmes, da Suprema Corte norte-americana, quando
se referiu à famosa frase de Marshall que o poder de tributar envolve o poder de destruir.
E Holmes disse cem anos depois: envolve sim, se inexistente a Suprema Corte.
Tenho muita esperança na mesma Suprema Corte, que jamais vai permitir que o
Judiciário brasileiro, poder político, seja transformado em mero serviço. A Justiça brasi-
leira tem história. Tem, também, detratores, inimigos ocultos. É que o juiz agrada e
desagrada. A sentença tem sempre um vencido. E quando desagrada a certos políticos, é
um Deus nos acuda.
Sr. Presidente, Alexis de Tocqueville escreveu duas obras extraordinárias. Uma, na
juventude, A Democracia na América, escrita entre 1835 e 1840; outra, obra da maturi-
dade, O Antigo Regime e a Revolução, de 1856. Tocqueville, em A Democracia na
América, estudou o Judiciário norte-americano, registrando que este ocupava lugar de
destaque no sistema constitucional e na sociedade, exercendo controle sobre os demais
Poderes. Outro francês ilustre que escreveu sobre o Judiciário americano, Edouard
Laboulaye — Do Poder Judiciário, in A Constituição dos Estados Unidos, 1866, tradu-
ção de Lenine Nequete, Ajuris, 4-13 —, analisando as diferenças entre a Justiça francesa
e a Justiça americana, deixou expresso que, “onde, porém, começa a diferença, onde os
Estados Unidos fizeram uma verdadeira revolução, foi quando intuíram que a justiça
deveria fazer-se também um poder político”. Se a França tivesse procedido dessa forma,
acrescenta Laboulaye, certamente que não teria feito as revoluções sangrentas que fez.
Voltemos ao tema do presidencialismo. Neste, os Poderes são independentes; a
separação entre eles é nítida. E tanto deve ser assim que a Constituição brasileira de
1988, a mais democrática das Constituições que tivemos — aliás, ela costuma pagar um
alto preço justamente por isso —, estabelece, como limitação constitucional ao poder
constituinte derivado (artigo 60, § 4º, inciso III), o que os constitucionalistas brasileiros
estimam denominar de “cláusula pétrea”:
“Art. 60. (...).
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
III - a separação dos Poderes;”
O Poder é excelentemente fiscalizado pelo Poder. Montesquieu foi citado aqui
várias vezes, e é dele a afirmativa no sentido de que o poder detém o poder. Por isso, os
americanos criaram a doutrina dos checks and balances (freios e contrapesos): certas
funções, que são próprias de um Poder, são exercidas por outro Poder. E, justamente
nisso, nessa interação de funções, ocorre a fiscalização de um Poder sobre o outro.
Exemplifiquemos: os Juízes do Supremo Tribunal Federal são julgados, nos crimes
de responsabilidade, pelo Senado Federal; o Presidente da República concede indulto e
comuta penas; os Juízes das altas Cortes são nomeados pelo Presidente da República
após aprovação pelo Senado; os atos dos Poderes Legislativo, Executivo e do próprio
Judiciário são apreciados e julgados pelo Poder Judiciário, sob o ponto de vista da
legalidade e da constitucionalidade; o Executivo participa do processo legislativo, seja
mediante a iniciativa legislativa, seja mediante o veto, as medidas provisórias e as leis
delegadas; o Legislativo julga o Chefe do Executivo e os Ministros de Estado mediante
o impeachment; a gestão dos Poderes, de todos eles, submete-se à fiscalização do Tribu-
nal de Contas. É a doutrina dos freios e contrapesos.
906 R.T.J. — 197
O Sr. Ministro Carlos Britto: Em obra editada, agora em 2003, pela editora RT,
página 35, o mesmo eminente Magistrado Vladimir Passos de Freitas diz o seguinte — o
que me parece uma grande e justa preocupação dele com corporativismo do Judiciário:
“As infrações administrativas praticadas por um magistrado de segunda ins-
tância devem ser apuradas no próprio tribunal onde ele exerce as suas funções. A
apuração nem sempre é fácil. A convivência durante anos, a aproximação das
famílias, a solidariedade nos momentos difíceis de vida, tudo isso cria vínculos
fortes. É exigir demais, ainda que não seja impossível, que um colega investigue a
falta funcional praticada por outro.” — e arremata o eminente Desembargador —
“Disso resulta que pouco se faz em tal sentido.”
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): A observação, Ministro, é de que a
correição horizontal é quase inexistente; a vertical pode dar exemplos, os quais são
estatísticos.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Quer dizer, Ministro Carlos Britto, que Vossa Exce-
lência acaba entendendo que essas questões devem ser examinadas pelo Conselho?
O Sr. Ministro Carlos Britto: Concorrentemente, como, aliás, diz a Emenda.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Aliás, é o que escrevi em 1986. Penso assim tam-
bém. Em 1986, cheguei a dizer isso, falando até que somos capazes de punir os juízes
tardinheiros.
Eminente Colega e Ministro Carlos Britto, o que me parece que não tem legitimi-
dade constitucional não é isso, mas, sim, o que está na sua composição, conforme, aliás,
decidiu o Supremo Tribunal Federal, em sessão administrativa, pelo voto dos Senhores
Ministros.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Ministro, Vossa Excelência me permite?
Acho que, na sessão administrativa, não se julgou a constitucionalidade de pre-
tensão, mas, sim, a conveniência política do envio. Essa foi a posição do Ministro Cezar
Peluso. Numa sessão administrativa, não se submeteu isso, Ministro, mas, sim, a conve-
niência.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Quando o Presidente do Supremo Tribunal Federal
pediu a posição da Casa, que seria levada ao Congresso, os Ministros se manifestaram
expressamente. E a maioria condenou a existência de estranhos no Conselho.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Posição em relação à situação da conve-
niência.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Nenhum Ministro do Supremo Tribunal Federal,
data venia, deixaria de pensar, primeiro, naquilo que ele tem, por expressa determinação
constitucional, a guarda da Constituição. Somos os guardiões da Constituição.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Mas não na sessão administrativa, não
foi esse o objeto da discussão.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Ora, um ou outro talvez possa dizer que não pensou
na Constituição. Certo é que não podemos deixar de considerá-la, jamais. Na sessão
administrativa convocada pela Presidência, os Srs. Ministros Maurício Corrêa, eu
R.T.J. — 197 909
próprio, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes e Cezar Peluso votamos contra
a inclusão, no Conselho, dos não-magistrados, representantes do Senado, da Câmara,
dos advogados e dos membros do Ministério Público. Seis Ministros, portanto. A estes
votos acresceu, em parte, o voto do Ministro Sepúlveda Pertence, que inadmitia os
representantes do Senado e da Câmara, mas admitia os advogados e membros do Ministé-
rio Público. Sete Ministros, portanto, não admitiam os representantes da Câmara e do
Senado.
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): Vossa Excelência me permite?
É importante esclarecer a posição de cada qual, mas, até, suporia desnecessário tal
esclarecimento, porque, embora não queira generalizar o meu pensamento, imagino que
nenhum Ministro do Supremo, chamado a manifestar-se, administrativamente, sobre
uma questão a ser submetida à votação do Congresso Nacional, daria uma opinião que
não fosse puramente política ou de cidadão e antecipar com um prejulgamento uma ação
de inconstitucionalidade.
Quando dei minha opinião e, de certo modo, reafirmei hoje o meu ponto de vista,
de que do ponto de vista de conveniência não me agrada realmente a participação nem
de membros da advocacia, do Ministério Público, dentre o cidadão, na estrutura do
Conselho, não significava que a questão, do ponto de vista constitucional, não fosse
outra.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Perfeito, Ministro Cezar Peluso. É o que o Ministro
Marco Aurélio diz, o juiz costuma evoluir.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Ninguém evoluiu, permanece a mesma
posição.
O Sr. Ministro Cezar Peluso (Relator): Não. Ninguém evoluiu. Eu não evolui nada.
Eu continuo com a minha convicção.
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Ou pode involuir também. Ou pode ser convertido.
Saulo foi convertido. Felizmente, não caminhei na estrada de Damasco.
Sr. Presidente, quanto aos representantes da política partidária — os indicados
pelo Senado e pela Câmara terão essa característica —, não admito no Conselho. A uma,
em nome da separação dos Poderes, que constitui cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, III). É
que ter-se-á, com a indicação de representantes de um Poder para fiscalizar outro Poder,
ingerência de um Poder em outro Poder, com maus-tratos na cláusula pétrea da separação
dos Poderes. Essa participação, portanto, é inconstitucional. A EC 45, no ponto, feriu de
morte a cláusula pétrea da separação dos Poderes. A duas, porque a participação de
representantes da política partidária na administração da Justiça causará danos ao Poder
Judiciário e à independência deste, com ofensa, destarte, ao disposto no artigo 2º da
Constituição Federal. A política partidária deve estar distante da Justiça por expressa
recomendação constitucional: CF, art. 95, parágrafo único, III.
No tocante aos advogados e membros do Ministério Público, não obstante o res-
peito que lhes decido, respeito, admiração e estima, reporto-me ao que foi dito linhas
atrás: a natureza da advocacia se realiza em postular, requerer e exigir o advogado, junto
aos juízes e tribunais, o reconhecimento de direito e o cumprimento de obrigações.
Ademais, é forçoso reconhecer que o advogado ficaria proibido de exercer a advocacia
910 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Celso de Mello: É justo e necessário que se reconheça o voto
magnífico, erudito e luminoso que o eminente Ministro Cezar Peluso proferiu no exame
de questão impregnada da mais elevada importância e revestida de tão expressiva
significação para o processo de aperfeiçoamento institucional do sistema judiciário
brasileiro, como o é o tema pertinente à previsão, pela EC 45/2004, do Conselho
Nacional de Justiça.
Sabemos todos que o constituinte brasileiro, ao elaborar a Constituição que nos
rege, mostrou-se atento e sensível à experiência histórica das sociedades políticas e fez
consagrar, na Carta da República que promulgou, fiel à nossa própria tradição constitu-
cional, um princípio revestido de fundamentalidade marcante no plano das relações
institucionais entre os órgãos da soberania nacional.
Refiro-me ao princípio da separação de Poderes, cuja razão de ser — na visão
permanentemente atual de José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente
(“Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império”, pp. 32/33, itens
ns. 27/28, 1958, reedição do Ministério da Justiça, Rio de Janeiro) — apóia-se na neces-
sidade de preservar os direitos dos cidadãos e de inibir, mediante controles interorgâ-
nicos recíprocos, “o espírito usurpador do poder”, conforme advertia, já no final do
século XVIII (1787/1788), James Madison, em texto lapidar constante de “O Federa-
lista” (n. 47 e 48, 1984, Editora UnB), reiterando, no ponto, observação feita, em 1690,
por John Locke (“Segundo Tratado sobre o Governo”, pp. 89/92, itens n. 141/144,
1963, Ibrasa), tal como pude acentuar em decisão proferida nesta Suprema Corte,
quando do julgamento da ADI 2.213/DF, Relator Min. Celso de Mello (RTJ 190/
139-143, 152-164).
A Constituição da República, ao dispor sobre a configuração institucional do
Estado, proclama que os Poderes da República são “independentes e harmônicos entre
si” (CF, art. 2º). Não obstante esse grau de autonomia, os Poderes do Estado — que, na
realidade, são interindependentes — devem manter convívio harmonioso em suas rela-
ções institucionais, para que, do respeito recíproco entre as diversas instâncias de po-
der, possa resultar, como normalmente tem ocorrido no presente momento histórico,
R.T.J. — 197 911
uma prática governamental cujo paradigma constante resida no respeito consciente aos
grandes princípios proclamados pela Constituição.
A harmonia entre os Poderes da República qualifica-se como valor constitucional
a ser permanentemente preservado e cultivado. Mais do que mero rito institucional, o
convívio harmonioso — e reciprocamente respeitoso — entre os poderes do Estado
traduz indeclinável obrigação constitucional que a todos se impõe.
Sabemos que nenhum dos Poderes situa-se acima da Constituição. E sabemos,
ainda, que o justo equilíbrio político entre os Poderes do Estado decorre do convívio
harmonioso que deve pautar as suas relações institucionais.
A importância da divisão funcional do poder e a necessidade de preservação da
integridade das garantias dos Juízes — garantias que devem ser vistas muito mais
como formas de proteção dos próprios cidadãos —, considerada a estrutura institucio-
nal em que se organiza o aparelho de Estado, assumem significativo relevo político,
histórico e social, pois não há, na história das sociedades políticas, qualquer registro de
um Povo, que, despojado de um Judiciário independente, tenha conseguido preservar os
seus direitos e conservar a sua própria liberdade.
Sob essa perspectiva, e no contexto histórico em que hoje vive o nosso País,
situado entre o seu passado e o seu futuro, impulsionado pelos desafios da liberdade e
confrontado pela necessidade de impedir que os postulados da República, da Federação
e da divisão funcional do poder sejam afetados e comprometidos em sua eficácia e em
seu objetivo, torna-se imperioso reconhecer uma realidade política que se revela es-
sencial à compreensão de nosso mecanismo de governo.
E essa realidade, analisada a partir da necessidade de aperfeiçoamento dos me-
canismos de controles institucionais recíprocos entre os poderes do Estado, fundados
em um plano de estrita horizontalidade, concerne ao estabelecimento de um modelo
eficaz e transparente, viabilizador da supervisão das atividades financeiras e do con-
trole da gestão orçamentária do Poder Judiciário, bem assim de fiscalização disciplinar
dos magistrados que descumpram os seus deveres funcionais, tais como previstos pela
EC 45/2004, ao definir o âmbito de competência institucional do Conselho Nacional
de Justiça.
A questão da fiscalização externa dos atos dos magistrados, quando desvestidos
de conteúdo jurisdicional, projeta-se como um dos tópicos mais relevantes, expressivos
e sensíveis da agenda — só em parte agora concretizada — de reformulação institu-
cional do Poder Judiciário.
Sempre entendi essencial e plenamente compatível com a idéia republicana —
que possui extração constitucional — a necessidade de instaurar-se, em nosso País, um
sistema destinado a viabilizar a instituição de modelo vocacionado a conferir efetividade
ao processo de fiscalização social dos atos não-jurisdicionais emanados dos membros
e órgãos do Poder Judiciário.
Cheguei a propor, por isso mesmo, em 22-5-1997, quando de minha posse na Presi-
dência deste E. Supremo Tribunal Federal, a extensão do mecanismo do impeachment,
hoje restrito aos membros da Suprema Corte brasileira (CF, art. 52, II), a todos os magis-
trados, assinalando, então, que os Juízes do nosso mais alto Tribunal judiciário têm
912 R.T.J. — 197
ações propostas será sempre do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102,
I, r, da Constituição Federal.
(...)
Dessa forma, independentemente do posicionamento político sobre a con-
veniência ou não da criação e existência desse órgão de controle central do Poder
Judiciário, três importantes pontos caracterizadores do Conselho Nacional de Jus-
tiça afastam a possibilidade de declaração de sua inconstitucionalidade, por inter-
ferência na Separação de Poderes (CF, art. 60; §4º, III): ser órgão integrante do
Poder Judiciário, sua composição apresentar maioria absoluta de membros do
Poder Judiciário e possibilidade de controle de suas decisões pelo órgão de cúpula
do Poder Judiciário (STF).
Essas três marcantes características garantem a constitucionalidade do Con-
selho Nacional de Justiça, além de reforçarem e centralizarem na força do Supremo
Tribunal Federal todo o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, tornando-o,
não só a cúpula jurisdicional do Poder Judiciário brasileiro, como tradicionalmente
estabelecido, mas também, a partir da EC n. 45/04, sua cúpula administrativa,
financeira e disciplinar, pois todas as decisões do Conselho Nacional de Justiça
sobre o controle da atuação administrativa e financeira dos diversos tribunais e
sobre a atuação funcional dos magistrados serão passíveis de controle jurisdicional
pelo STF (CF, art. 102, I, r), que fixará o último posicionamento.” (Grifei)
Concluo o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, acompanho, integralmente,
por seus próprios fundamentos, o magnífico voto proferido pelo eminente Ministro
Cezar Peluso, para também reconhecer, seja no plano formal, seja no âmbito material,
a plena validade jurídico-constitucional do Conselho Nacional de Justiça, eis que a
sua previsão, nos termos estabelecidos pela EC 45/2004, não desrespeitou nem impor-
tou em transgressão aos postulados maiores — como o princípio republicano, o prin-
cípio da Federação e o princípio da separação de Poderes — fundados na Constitui-
ção da República.
Com estas considerações, Senhor Presidente, peço vênia para julgar improce-
dente a presente ação direta de inconstitucionalidade.
É o meu voto.
VOTO
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sr. Presidente, começo por aquilo que, até aqui,
é unânime: afasto a argüição de inconstitucionalidade formal.
No processo bicameral brasileiro de emendas à Constituição, não se tem, ao contrário
do que ocorre no processo legislativo ordinário, a prevalência da Casa de origem. Por
isso, não havia por que devolver à Câmara dos Deputados a emenda meramente
supressiva, aprovada pelo Senado, de parte de dispositivo vindo da Câmara.
Na questão de inconstitucionalidade material, no entanto, apesar da hora, e de ser
tão do meu gosto acompanhar as lições do eminente Ministro Cezar Peluso, no caso, não
o poderei fazer, o que me obriga, sem pretensão de ombrear-lhe o voto formalmente
antológico, a expor as razões do meu dissenso parcial.
914 R.T.J. — 197
Começo pedindo licença para recordar o voto que proferi, acompanhado pela
unanimidade do Plenário, na ADIn 98, de 7 de agosto de 1997 (RTJ 188/394): cuida-
va-se, então, da criação, pela Constituição do Estado de Mato Grosso, de um conselho
de formação heterogênea reunindo magistrados e membros dos dois outros Poderes,
além do Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, para a fiscalização administrativa
do Poder Judiciário.
Então, aduzi:
“O tema — depois de diversos julgamentos liminares de suspensão cautelar
de dispositivos semelhantes (v.g., ADIn 98-MC/MT, C. Mello, 18-10-89; ADIn
137-MC/PA, Moreira, 13-11-89; ADIn 197-MC/SE, Sanches, 25-5-90, ADIn
251-MC/CE, Passarinho, 20-4-90, RTJ 149/3) — foi enfrentado, em decisão defi-
nitiva, na ADIn 135/PB, Relator o eminente Ministro Octavio Gallotti, cuja ementa
consigna:
‘Criação, pela Constituição do Estado da Paraíba (art. 147 e seus parágrafos),
de Conselho Estadual de Justiça, composto por dois desembargadores, um repre-
sentante da Assembléia Legislativa, o Procurador-Geral da Justiça, o Procurador-
Geral do Estado e o Presidente da Seccional da OAB, como órgão da atividade
administrativa e do desempenho dos deveres funcionais do Poder Judiciário.
Inconstitucionalidade dos dispositivos, declarada perante o princípio da se-
paração dos Poderes — art. 2º da Constituição Federal — de que são corolários o
auto-governo dos Tribunais e a sua autonomia administrativa, financeira e orça-
mentária (artigos 96, 99, e parágrafos e 168 da Carta da República).
Ação direta julgada procedente’.
Essa é também a convicção a que cheguei, depois de longa reflexão e alguma
leitura sobre a experiência européia com instituições similares.
De logo, não me impressiona que, na Europa, sejam nações democráticas as
que têm criado tais órgãos e, quase sempre, no momento mesmo em que, vencidas
as suas experiências autoritárias, retomaram a democracia.
Não há dúvida de que o princípio da separação e independência dos Poderes —
instrumento que é da limitação do poder estatal — constitui um dos traços caracte-
rísticos do Estado Democrático de Direito.
Mas, como há pouco assinalava neste mesmo voto, é princípio que se reveste,
no tempo e no espaço, de formulações distintas nos múltiplos ordenamentos posi-
tivos que, não obstante a diversidade, são fiéis aos seus pontos essenciais.
Por isso, quando erigido, no ordenamento brasileiro, em princípio constitu-
cional de observância compulsória pelos Estados-Membros, o que a este se há de
impor como padrão não são concepções abstratas ou experiências concretas de
outros países, mas sim o modelo brasileiro vigente de separação e independência
dos Poderes, como concebido e desenvolvido na Constituição da República.”
Faço aqui um parêntese na transcrição, para recordar que, nesta Casa, o grande
Orozimbo Nonato, ao votar na Rp 94, já o assinalara (cf. Edgard Costa — Os Grandes
Julgamentos do Supremo Tribunal Federal, 1964, 2/136, 175):
R.T.J. — 197 915
1907, mas com funções consultivas, despido, até 1946, de qualquer poder
decisório (Mortati, Instituzioni di Diritto Pubblico, 8ª ed., Padova, 1969, II/1161).
Por isso mesmo, também anotei no precedente, debalde se procurará na lite-
ratura européia a caracterização de tais Conselhos como órgãos do chamado “con-
trole externo” do Poder Judiciário: muito ao contrário — porque historicamente a
sua instituição tenha representado a superação, ainda que parcial, dos tempos de
completa submissão da administração da Justiça e sobretudo da carreira judicial ao
Executivo — toda a ênfase dos escritores recai no seu papel de garante da indepen-
dência da magistratura.
Com efeito.
Na Itália, que tem a respeito a experiência mais relevante — onde dois terços
da composição do CSM (e a totalidade da sua seção disciplinar) são de magistrados
eleitos pelos diversos escalões da estrutura judiciária e na qual o Governo não tem
representantes — é freqüente — malgrado um pouco de exagero, dada a parcela
significativa de funções que a própria Constituição reservou ao Ministro da Justiça
(art. 110) — a identificação do Conselho como órgão de autogoverno ou de auto-
nomia da magistratura (Mortati, op. cit., p. 1.165; Ceretti, Diritto Costituzionele
Italiano, 1958, p. 269; Crisafulli e Paladin, Comentario breve alla Costituzione,
Padova, 1990, art. 104 ss., p. 649 ss; Spagna Musso, Diritto Costituzionale, 4ª ed.,
Padova, 1992, p. 613).
Em Portugal, porque a composição atual dá prevalência aos membros desig-
nados pelo Presidente e pela Assembléia da República sobre os magistrados eleitos
por seus pares, Canotilho e Vital Moreira , (Constituição (...) Anotada, 2ª ed., art.
223, p. 345; Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., p. 777), negam ao Conselho
o título de órgão de autogoverno da magistratura; reconhecem-lhe, não obstante, a
função essencial de “garantir a autonomia dos juízes dos tribunais judiciais,
tornando-os independentes do Governo e da administração”.
O mesmo se dá na Espanha, a propósito do Consejo General del Poder
Judicial, composto do Presidente do Tribunal Supremo e de vinte membros
nomeados pelo Rei, doze entre magistrados, quatro propostos pelo Congresso de
Deputados e quatro pelo Senado (Const., art. 122; Luis Mosquera, ob. cit., p.
727; Tomas e Valiente, Poder Judicial e Tribunal Constitucional em Escritos
sobre y desde el Tribunal Constituional, Madri, 1993, p. 63; J.F. López Aguilar,
La Justicia y sus Problemas en la Constitución, Madrid, 1996, p. 114: não sendo,
por sua composição, um órgão de autogoverno — mas uma “fórmula de
autogobierno parcial”, na dicção de Sanches Agesta (Sistema Político de La
Const. Española, Madri, 1994, p. 389) — o Conselho é, no entanto, órgão da
independência do Poder Judiciário, na medida em que desvinculou do Governo
os setores mais relevantes da administração da Justiça — “el núcleo duro del
gobierno interno, de la magistratura” — segundo López Aguilar — vale dizer,
da carreira judicial e da disciplina dos magistrados.
Na França mesmo, malgré tout — superadas, com a reforma de 1994, as
vicissitudes do autoritarismo gaullista — ao Conseil Supérieur de la Magistrature
se volta a emprestar a função de “assegurar a independência dos magistrados”
(cf. DM. Duverger; Le Système politique français, PUF, 1996, p. 430).
R.T.J. — 197 917
Tudo isso vem só a propósito de reafirmar que, num prisma tão delicado da
arquitetura constitucional como o do regime de Poderes, não é possível transplantar
instituições de outras plagas sem atenção à diversidade entre o seu significado na
origem e o que assumiria aqui.
Na Europa, como visto, os conselhos superiores da magistratura representa-
ram um avanço significativo no sentido da independência do Judiciário, na medida
em que nada lhe tomaram do poder de administrar-se, de que nunca dispuseram,
mas, ao contrário, transferiram a colegiados onde a magistratura tem presença rele-
vante, quando não majoritária, poderes de governo judicial que historicamente
eram reservados ao Executivo.
Ao contrário, a mesma instituição traduziria retrocesso e violência constitu-
cional, onde, como sucede no Brasil, a idéia da independência do Judiciário está
extensamente imbricada com os predicados de autogoverno crescentemente ou-
torgados aos Tribunais.
Na mesma linha de raciocínio, há um último ponto a sublinhar: em todos os
países que têm instituído os conselhos de formação heterogênea para o governo do
Judiciário — com a única exceção, que passou a adotar o princípio da unidade
jurisdicional (Const. de 1978, art. 117, 5) —, à magistratura judicial — por moti-
vos históricos similares aos já recordados —, jamais se entregou nem o controle da
legalidade da administração, nem muito menos o de constitucionalidade das leis.
Quanto aos órgãos da jurisdição constitucional, é significativo notar que
mesmo onde — como sucede na Espanha (Tomas y Valiente, Los Jueces y la
Constitución, ob. cit., p. 86) — e em Portugal (Canotilho e Vital Moreira, ob. Cit.,
art. 212º, II/323) — o Tribunal Constitucional exerce jurisdição e se reputa inte-
grante do Poder Judiciário, é dele próprio o seu governo e a ninguém ocorreria
submeter os seus juízes ao poder disciplinar dos Conselhos Superiores.”
Entre parênteses, assinalo que, para a minha felicidade, o próprio voto condutor do
Ministro Cezar Peluso deixou explícito que os Juízes deste Tribunal não estão submeti-
dos a esta magistratura censória, que a Emenda Constitucional n. 45 criou — não por
glória nem orgulho desta Casa, mas pela incompatibilidade de suas funções com o
controle de um órgão administrativo do Poder Judiciário, como é o Conselho Nacional.
Mas isso não resolve tudo como terá resolvido em Portugal e na Espanha.
É que — continuava eu na ADIn 98:
“No sistema brasileiro, todo órgão judiciário é juiz da legalidade da adminis-
tração e da constitucionalidade das leis.
É um dado a mais para evidenciar o trauma que representaria ao modelo
positivo brasileiro de independência do Judiciário, que tem um dos seus pilares no
autogoverno, a introdução em Estado-Membro de um órgão de administração e
disciplina em cuja heterogênea formação se abrissem flancos à intromissão dos
outros Poderes.”
Mudam, essencialmente, as coisas quando se cuida, hoje, não da validade de uma
Constituição Estadual, mas, sim, de uma emenda à Constituição da República? O emi-
nente Ministro Cezar Peluso pretende que sim. Chegou a afirmar, se não me engano, que
918 R.T.J. — 197
O Sr. Ministro Carlos Britto: É porque todos nós passamos pelo crivo do Parlamento
para chegarmos aqui.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Sim, chegarei lá também.
Postas essas premissas, devo reconhecer que a fórmula adotada na Emenda Consti-
tucional 45, de 2004, foi bem mais suave do que a que se temia há alguns anos. Anos em
que — costumo insistir —, com todas as ressalvas de que a idéia de controle externo se
dirigia a fiscalização administrativa, a idéia de sua criação só vinha à tona quando uma
decisão judicial, particularmente uma decisão deste Tribunal, desagradava a esta ou
aquela corrente política. Tenho em meus guardados — não rasgo papéis, mas também
não os encontro — dois artigos exemplares; um, de um caríssimo amigo meu, hoje
Presidente Nacional do partido no poder, que entendia reacionária, formalista e elitista
determinada decisão do Supremo. E terminava o seu artigo: por essas e outras é inadiável
o controle externo do Poder Judiciário. Na mesma semana e na mesma página do grande
jornal paulista, um outro homem público, e ilustre — que infelizmente não poderia
arrolar entre os meus amigos — considerava outra decisão do Supremo “jurássica”,
populista, “esquerdóide”. E último período, se não era idêntico, substancialmente vinha
o mesmo pensamento: por essas e por outras é preciso instituir o controle externo do
Poder Judiciário.
Repito, a Emenda Constitucional 45 foi bem mais sutil, bem mais suave.
Por isso, na criação em si mesma do Conselho Nacional de Justiça, eu não vejo
inconstitucionalidade e, nesse ponto, me dispenso de maiores considerações subscre-
vendo as do eminente Ministro Relator.
Nem vejo ofensa à Federação. O paradigma, aqui também, é a Federação “à brasi-
leira”, é preciso frisar. E aqui já se disse o bastante, particularmente nos votos dos
Ministros Cezar Peluso e Ellen Gracie, mediante a invocação do dogma da unicidade
nacional do Poder Judiciário — enfatizado desde João Mendes, passando por Castro
Nunes e, hoje, uma virtual unanimidade doutrinária — que deixa marcas no modelo
positivo brasileiro, particularmente no art. 93, onde se prevê, por lei complementar de
iniciativa do Supremo Tribunal Federal, um estatuto único da Magistratura Nacional.
Assim, não vejo inconstitucionalidade na criação do Conselho e fico feliz de não
divisá-la. Desde quando Presidente deste Tribunal, de 1995 a 1997 — e dispus-me a
voltar ao que sempre gostei de fazer, ser um agitador da idéia de reforma judiciária —,
preguei a necessidade de um órgão central e nacional de planejamento, de administração
superior e controle disciplinar supletivo da Magistratura.
Mas, não passo, daí, a entender integralmente constitucional o novo art. 103-B da
Constituição, objeto nuclear da argüição.
É que nele se criou uma forma nova de ingerência do Poder Legislativo na compo-
sição de um órgão formalmente inserido na estrutura nacional do Poder Judiciário, com
imensos poderes, aqui corretamente já chamados, hoje, de “poderes de superposição” a
todo o exercício do autogoverno do Judiciário Federal e também do Judiciário dos
Estados-Membros. Refiro-me à indicação de dois membros do Conselho Nacional de
Justiça, um, pelo Senado; outro, pela Câmara dos Deputados.
Por motivos que votos que me antecederam já expuseram com eloqüência, não dou
relevo a que sejam esses dois cidadãos minoria na composição do colegiado, nem me
920 R.T.J. — 197
impressiona que se tenha inserido o Conselho Nacional de Justiça, no art. 92, entre os
órgãos do Poder Judiciário.
É certo, já se disse, em contrário, que a indicação desses dois cidadãos pelas Casas
do Congresso Nacional à nomeação do Presidente da República não os faz representantes
dos Poderes partícipes de sua investidura: seriam eles, uma vez indicados pelo Congresso
e nomeados pelo Presidente da República, integrantes de um organismo do Poder Ju-
diciário, tanto quanto o somos nós, Juízes do Supremo Tribunal, os dos Tribunais
Superiores e os dos Tribunais Federais em geral.
Mas, com relação ao Conselho Nacional de Justiça, permitam-me, o argumento
substantiva um paralogismo. Basta considerar que, ao contrário do que sucede no Con-
selho Superior da Itália, modelo preferido dos pregoeiros do controle externo, estes dois
cidadãos, providos pela indicação das Casas do Congresso e nomeação do Presidente da
República, têm mandato e são reconduzíveis, fórmula que já se tem já suficientemente
criticada a propósito, por exemplo, do Tribunal Constitucional Português, que vem, há
poucos anos, de aboli-la. E, no entanto, se introduz no Brasil um órgão — repito — de
superposição aos poderes de autogoverno do Judiciário, com membros não só escolhidos
mas também reconduzíveis pela vontade das Casas do Parlamento.
Por isso, Sr. Presidente, julgo inconstitucional, em parte, o art. 103, b, conforme a
Emenda Constitucional n. 45, de 2004, para declarar a invalidez de seu inciso XIII.
Dissentindo, agora, da esmagada minoria, não penso o mesmo com relação aos
incisos X, XI e XII, que prevêem a participação, neste Conselho, de membros do Minis-
tério Público e de advogados indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advoga-
dos do Brasil.
Parece óbvio, a essa altura da discussão, que nem para mim nem para os votos que
têm dado pela procedência da ação, em maior ou menor extensão, o respeito devido ao
núcleo irredutível do princípio — homenageio o Ministro Cezar Peluso —, não implica
a imutabilidade de todo o regime de poderes da Constituição, muito menos implicam na
sua “estanqueização”, com licença do Ministro Joaquim Barbosa para compartilhar do
neologismo.
Ministério Público e Advocacia por disposição constitucional inédita no Brasil, e
creio que sem similares estrangeiros (salvo onde, como na Itália, no que toca ao Minis-
tério Público, os seus membros integram a mesma carreira da magistratura judicante; em
Portugal também, todos se chamam “magistrados”, mas as carreiras são diferentes — são
aqui consideradas, repito, instituições que exercem função essencial à jurisdição).
E mais, são, por força do art. 94 da Lei Fundamental, órgãos parciais de composição
de todos os Tribunais da República, salvo o Supremo Tribunal Federal e os Tribunais
Eleitorais.
Esta inclusão de advogados e agentes do Ministério Público, escolhidos por seus
órgãos respectivos, na composição do Conselho Nacional de Justiça, apenas concretiza
e reforça esse papel de instituições essenciais à Justiça e, portanto, co-responsáveis pelo
bom funcionamento do serviço judiciário. Apenas concretiza e reforça esse papel, sem
desnaturar o Conselho, nem ofender o dogma da independência dos Poderes.
Nesses termos julgo parcialmente procedente a ação direta.
R.T.J. — 197 921
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Senhores Ministros, acompanho esse
debate da formação do Conselho, órgão de fiscalização do Poder Judiciário, há muito
tempo.
Junto com outros, fui derrotado em 1987, na Assembléia Nacional Constituinte,
quando se propôs um desenho de Conselho. Naquele tempo, remeti à lei complementar
o projeto de emenda apresentado pelo então Senador Maurício Corrêa. Em 1993, fizemos
um desenho desse Conselho Nacional de Justiça, cujos poderes e competência são exa-
tamente os aprovados na Emenda Constitucional n. 45. Lembro que toda vez que íamos
debater o assunto da reforma do Poder Judiciário, até o final do século passado, só
sentavam à Mesa as corporações, as representações da magistratura, as dos advogados e
as do Ministério Público. Como essas corporações eram extraordinariamente divididas,
não se sentava só a Associação dos Magistrados Brasileiros para discutir a reforma —
porque os juízes trabalhistas e federais entendiam que essa Associação representava o
interesse dos juízes estaduais —, sentavam, então, as três associações. Sentavam também
a Associação dos Juízes Militares, da Magistratura Militar. Do lado do Ministério Público,
sentava a antiga Conamp, representativa do Ministério Público estadual, e a representa-
ção dos Procuradores da República, que, na época, tinha uma conotação de serem tam-
bém advogados. Durante a Constituinte, inclusive, houve um conflito grande porque a
Associação do Ministério Público estadual pretendia excluir — como, de resto, foi
excluído — a possibilidade de serem advogados da União também, o que era rechaçado
pelo então presidente.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Com uma ligeira prevaricação então do Procura-
dor-Geral, que era eu.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Com uma ligeira prevaricação do Ministro
Sepúlveda Pertence, e com a oposição do então Presidente da Associação dos Procura-
dores da República, hoje eminente Ministro Advogado-Geral da União, que, atendendo
a reclames da sua base, pretendia a manutenção da Advocacia centrada no Ministério
Público, com aquela solução que havia antes.
Mas dessa discussão sempre participaram, exclusivamente, as corporações. Com
toda essa celeuma, os juízes conflitantes com o Ministério Público, porque este queria
atrelar a sua remuneração à dos juízes e os juízes não queriam, pois entendiam que, com
isso, não teriam o aumento na sua remuneração — estou falando sobre história, não sobre
questões axiomáticas ou dogmáticas. Os advogados, por sua vez, a mesma coisa. A OAB
sentava à Mesa, mas só representava advogados não especialistas, portanto, tinha que
sentar a Associação dos Advogados Trabalhistas; tinha que sentar aquela complexa
associação — “n” associações que tínhamos naquela advocacia de Estado, toda ela
partilhada entre autarquias, Consultoria-Geral da República, etc., mas tudo voltado às
corporações.
Assisti, durante todos esses anos, ao debate real que se travava naqueles fóruns,
exatamente o debate do espaço de cada uma dessas corporações no controle do Poder
Judiciário. Muito pouco se debatia sobre celeridade, sobre eficiência, mas debatiam-se
os conflitos entre os espaços de cada um. Os advogados querendo ampliar o quinto cons-
titucional, e os juízes querendo destruí-lo. Os advogados pretendendo que os membros do
922 R.T.J. — 197
seja, por meio de um discurso do pacto federativo, como se o Brasil tivesse, se a União
nacional tivesse sido formada por uma decisão de Estados soberanos anteriores. Foi a
União, foi o Estado unitário que resolveu criar os Estados federados, e o fez por questões
políticas, não por modelos acadêmicos; resolveu criar, exatamente, porque a República
precisava destruir o Estado unitário do Império, pois a República não tinha, na verdade,
nenhum apelo popular. Era necessário romper o poder político central do Rio de Janeiro —
tenho repetido isso “n” vezes. Mas vou prosseguir nessa linha e dizer que, com imensa
satisfação, Ministro Cezar Peluso, cumprimento Vossa Excelência pela absoluta precisão
do voto em toda a sua extensão, e o acompanho completamente.
EXTRATO DA ATA
ADI 3.367/DF — Relator: Ministro Cezar Peluso. Requerente: Associação dos
Magistrados Brasileiros – AMB (Advogados: Alberto Pavie Ribeiro e outro). Requerido:
Congresso Nacional.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, afastou o vício formal de inconstituciona-
lidade da Emenda Constitucional n. 45/2004, como também não conheceu da ação
quanto ao § 8º do artigo 125. No mérito, o Tribunal, por maioria, julgou totalmente
improcedente a ação, vencidos o Ministro Marco Aurélio, que a julgava integralmente
procedente; a Ministra Ellen Gracie e o Ministro Carlos Velloso, que julgavam parcial-
mente procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade dos incisos X, XI, XII e
XIII do artigo 103-B, acrescentado pela emenda constitucional; e o Ministro Sepúlveda
Pertence, que a julgava procedente, em menor extensão, dando pela inconstitucionali-
dade somente do inciso XIII do caput do artigo 103-B. Votou o Presidente, Ministro
Nelson Jobim. Falaram, pela requerente, o Dr. Alberto Pavie Ribeiro; pela Advocacia-
Geral da União, o Dr. Álvaro Augusto Ribeiro Costa; e, pelo Ministério Público Federal,
o Dr. Cláudio Lemos Fonteles, Procurador-Geral da República.
Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda
Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes,
Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República,
Dr. Cláudio Lemos Fonteles.
Brasília, 13 de abril de 2005 — Luiz tomimatsu, Secretário.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribu-
nal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim, na confor-
midade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos,
denegar a segurança, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 28 de setembro de 2005 — Nelson Jobim, Presidente — Joaquim Barbosa,
Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Trata-se de mandado de segurança, com pedido
de medida liminar, impetrado por Terezinha de Jesus Cunha Belfort contra o Plenário
do Tribunal de Contas da União e o Juiz Presidente do Tribunal Regional do Trabalho
da 16ª Região, visando à anulação de ato que a exonerou de cargo em comissão e,
conseqüentemente, à reintegração ao cargo.
A impetrante, servidora pública da Secretaria Estadual de Educação, afirma que foi
colocada à disposição do Tribunal Regional do Trabalho da 16ª Região em 1989 e vem
exercendo cargos de confiança naquela Corte desde então.
Relata que, em 1994, foi nomeada para exercer o cargo em comissão DAS 5 da
Secretaria de Coordenação do Programa de Assistência ao Servidor (Pró-Social), originá-
rio de vaga criada por lei referente à Diretoria de Secretaria da Junta de Conciliação e
Julgamento de Barra do Corda/MA, por meio do ATO GP 123, de 13-10-1994. Após
denúncia feita ao Tribunal de Contas da União, a nomeação foi considerada ilegal, por
ser a servidora irmã do vice-presidente do TRT da 16ª Região, situação que viola o
disposto no art. 10 da Lei 9.421/1996 e na Decisão 118/1994 do órgão pleno da Corte de
Contas.
Alega que o Tribunal de Contas da União exorbitou dos limites de sua competência
funcional ao erigir à categoria de norma legal a Decisão 118/1994 de seu órgão pleno,
considerando ilegal, à luz da referida decisão, a nomeação da impetrante.
Sustenta ter direito líquido e certo a permanecer no cargo enquanto não ocorrerem
razões legais para a exoneração.
Requer, assim, a declaração de nulidade do ato que a exonerou, bem como sua
reintegração ao TRT da 16ª Região, com a percepção inclusive dos vencimentos que lhe
foram suprimidos desde a edição do ato de exoneração.
926 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): Senhor Presidente, preliminarmente,
entendo que o Tribunal de Contas da União é parte legítima para figurar no pólo passivo
do presente mandado de segurança, uma vez que o ato que julgou ilegal a nomeação da
impetrante para o cargo em comissão que ela ocupava não é meramente recomendatório,
e sim vinculante, de modo que não há margem de apreciação ao administrador.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal considera atraída sua competência
em casos como o presente, em que a decisão da Corte de Contas é mais que simplesmente
recomendatória (v.g., MS 23.665, Relator Min. Maurício Corrêa).
É o STF, pois, competente para apreciar o caso.
No mérito, examinando os autos, verifico que o ato impugnado não padece de
nenhum vício passível de anulação.
Inicialmente é preciso destacar que a impetrante é servidora da Secretaria Estadual
de Educação e foi colocada à disposição do TRT da 16ª Região em agosto de 1989, para
R.T.J. — 197 927
exercer cargo em comissão. Noutras palavras, sempre ocupou naquela Corte cargos em
comissão, o último deles como diretora da Secretaria de Coordenação do Programa de
Assistência aos Servidores (Pró-Social), cuja nomeação ocorreu em 13-10-1994. Esse
ato do TRT da 16ª Região foi julgado ilegal pelo TCU por ter sido constatada a existência
de grau de parentesco entre a impetrante e o vice-presidente daquele Tribunal Regional à
época da nomeação.
Ressalte-se que a nomeação da impetrante para o cargo em comissão ocorreu em
data posterior à Decisão 118/1994 do Tribunal de Contas da União, publicada no Diário
Oficial da União de 28-3-1994, aplicável a todo e qualquer órgão da Justiça Trabalhista
e que veda a nomeação, para cargos em comissão, de cônjuges ou parentes consangüíneos
ou afins, até o terceiro grau, de juízes em atividade ou aposentados há menos de cinco
anos, exceto em se tratando de servidor titular de cargo público de provimento efetivo
de juízo ou tribunal (v. fls. 91-95).
É importante mencionar que, conforme se extrai das informações prestadas pelo
TRT da 16ª Região (fls. 123-124), ocorreu uma sucessão de exonerações e nomeações da
impetrante, o que demonstra uma possível tentativa de burla à Lei 8.432/1992, que veda
a nomeação de parentes para cargos em comissão, e à supracitada Decisão 118/1994 do
TCU. Confiram-se as sucessivas alterações na situação funcional da impetrante, descritas
pelo TRT da 16ª Região a fls. 123-124:
“7. Nomeada para exercer o cargo em comissão, DAS 5, da Secretaria de
Coordenação do Programa de Assistência ao Servidor – Pró-Social, através do Ato
G.P n. 091 de 24.06.1993. A Diretoria da referida Secretaria foi originada pela
Resolução Administrativa n.049/93, na vaga criada pela Lei n. 8432/92, referente
à Diretoria de Secretaria da Junta de Conciliação e Julgamento de Santa Inês/MA.
8. Exonerada do cargo em comissão de Diretora da Secretaria de Coordena-
ção do programa de Assistência ao Servidor – Pró-Social, por meio do item 1 do
Ato G. P n. 123 de 13.10.1994.
9. Nomeada para exercer cargo em comissão, DAS 5, da Secretaria de Coordena-
ção do Programa de Assistência ao Servidor – Pró-Social, através do item 2 do Ato G. P
n. 123 de 13.10.1994. A Diretoria da referida Secretaria foi originada ela Resolução
Administrativa n. 112/94, na vaga criada pela Lei n. 7729/89, referente à Diretoria de
Secretaria da Junta de Conciliação e Julgamento de Barra do Corda/MA.”
Como se vê, a legislação anterior à nomeação da impetrante para os cargos em
comissão por ela ocupados já vedava expressamente o preenchimento desses cargos por
pessoas que tivessem relação de parentesco com os juízes do Tribunal. Assim, não há
nenhum dispositivo legal que ampare o pretendido direito da impetrante.
Ademais, vale observar que a proibição do preenchimento de cargos em comissão
por cônjuges e parentes de servidores públicos é medida que homenageia e concretiza o
princípio da moralidade administrativa, o qual deve nortear toda a Administração Pública
em qualquer esfera do Poder.
Do exposto, voto pela denegação da segurança.
928 R.T.J. — 197
EXTRATO DA ATA
MS 23.780/MA — Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Impetrante: Terezinha de
Jesus Cunha Belfort (Advogados: Pedro Leonel Pinto de Carvalho e outros). Impetra-
dos: Tribunal de Contas da União e Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 16ª
Região.
R.T.J. — 197 929
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribu-
nal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas
taquigráficas, por unanimidade de votos, denegar a segurança, nos termos do voto do
Relator.
Brasília, 28 de setembro de 2005 — Nelson Jobim, Presidente — Eros Grau,
Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Eros Grau: Trata-se de mandado de segurança impetrado por Emilson
Caputo Delfino Silva contra ato do Tribunal de Contas da União consubstanciado nos
Acórdãos de n. 231/2001, 163/2002 e 562/2003.
2. O impetrante obteve, junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí-
fico e Tecnológico – CNPq, em 1988, bolsa de estudos, com duração de 24 meses, para
custear cursos de mestrado e doutorado na Universidade de Illinois, Estados Unidos.
3. Em razão de alterações no projeto de estudos e mudança de orientador, requereu
e obteve, em 1990, a prorrogação de sua bolsa por mais doze meses. Posteriormente
solicitou a renovação do auxílio por mais nove meses, o que foi indeferido, levando-o a
aceitar um emprego junto àquela Universidade para concluir o curso de doutorado.
4. Não obstante as notificações enviadas pelo órgão de fomento à pesquisa para
que retornasse imediatamente ao Brasil [fls. 84, 85 e 91/92], o impetrante permaneceu
em território estrangeiro por mais onze anos após o término do curso de doutorado, em
desacordo com as Resoluções do CNPq vigentes à época, cujos termos foram por ele
ratificados quando da assinatura do termo de concessão de bolsa.
5. O TCU condenou-o a devolver ao erário a quantia despendida pelo CNPq para
custeio de seus estudos1 [Decisão n. 231/2001], atualizada monetariamente e acrescida de
juros de mora a contar de 6-8-99, data de ciência da notificação a ele enviada. Foi
interposto pedido de reexame [fls. 98/108], ao qual foi negado provimento [Acórdão
TCU n. 163/2002].
6. Ao tomar conhecimento de que as análises preliminares da Secretaria de Recursos
do TCU sugeriam o não-acolhimento do recurso, o impetrante decidiu retornar ao País.
Em 18-2-2003, encaminhou ao TCU declaração informando seu retorno ao Brasil e sua
contratação como professor da Universidade Católica de Brasília em tempo integral [fls.
15/17]. O relator do processo não conheceu do documento e determinou a sua devolução
ao impetrante. Contra essa decisão foi interposto recurso de agravo, sobrevindo o
Acórdão TCU n. 562/2003, que manteve os termos do acórdão anterior [fl. 18].
7. O impetrante alega que a decisão do relator, que recusou a juntada de documentos,
ainda que respaldada no Regimento Interno daquela Corte, é ilegal, vez que contraria o
disposto nos artigos 397 e 462 do CPC, bem como o artigo 31 da Lei n. 8.443/92.
1 Apurada em R$103.985,52.
R.T.J. — 197 931
Assevera que o documento a ser juntado prejudica a decisão do TCU, pois comprova o
retorno do impetrante ao País após a conclusão do curso de doutorado.
8. Acrescenta que o instrumento de concessão da bolsa e as Resoluções do CNPq
não previam prazo para retorno, podendo, a qualquer tempo, cumprir “a obrigação,
procurando aplicar, no País, os conhecimentos que adquiriu no exterior” [fl. 9]. Segundo
o impetrante, em um de seus recursos administrativos, “o retorno a que se refere a norma
pode ser entendido em sentido amplo, significando não somente o retorno para fixar
residência no País como também todo e qualquer retorno ao Brasil, mesmo que a passeio
ou por um período curto” [fl. 166].
9. Requer a concessão da ordem, a fim de que lhe seja assegurada ampla defesa em
todas as etapas do processo administrativo instaurado perante o TCU, reconhecendo-se
a ilegalidade dos acórdãos proferidos por aquela Corte. Ante o seu retorno ao País e
contratação como professor da Universidade Católica de Brasília, requer o arquivamento
dos autos por perda de objeto, ficando desobrigado de ressarcimento aos cofres públicos.
10. O Ministro Nelson Jobim, Relator do feito à época, deferiu a medida liminar
para suspender o julgamento da decisão impugnada, sem prejuízo de posterior análise
do fumus boni iuris [fls. 26/29].
11. Em sua manifestação [fls. 35/48], o TCU afirma que não houve qualquer ilega-
lidade no ato que indeferiu a juntada de documentos, visto que os princípios do contra-
ditório e da ampla defesa devem ser exercidos de acordo com as regras processuais.
Acrescenta que o impetrante interpôs agravo contra o indeferimento e que o colegiado,
ao apreciar o recurso, teria tomado conhecimento do documento, considerando-o
irrelevante para alterar o deslinde da tomada de contas, conforme a íntegra do Acórdão
TCU n. 562/2003 [fls. 134/141].
12. Assevera que o impetrante deveria ter retornado ao Brasil após o término do
curso de doutorado, e não onze anos depois, de modo que a interpretação das resoluções
do CNPq deve pautar-se pela razoabilidade e proporcionalidade.
13. O Procurador-Geral da República, em parecer de fls. 239/243, opinou pelo
indeferimento do writ. Argumenta que o impetrante somente retornou ao País onze anos
após a defesa de sua tese, embora tivesse conhecimento, à época da concessão do bene-
fício, de que deveria retornar ao Brasil ao fim do período de concessão da bolsa, sob pena
de ressarcimento dos recursos recebidos, nos termos da Resolução Normativa CNPq n.
05/87.
14. Por fim, alega que o retorno do bolsista muito tempo depois do término dos
estudos ou a sua permanência no País por curto período de tempo não atenderia ao
interesse público nem justificaria o auxílio financeiro concedido às expensas do erário
para mantê-lo no exterior.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): O impetrante insurge-se contra ato do Tribunal
de Contas da União – TCU que indeferiu a juntada de documento em processo admi-
932 R.T.J. — 197
2 “Art. 160. As alegações de defesa e as razões de justificativa serão admitidas dentro do prazo
determinado na citação ou na audiência.
§ 1º Desde a constituição do processo até o término da etapa de instrução, é facultada à parte a
juntada de documentos novos.
§ 2º Considera-se terminada a etapa de instrução do processo no momento em que o titular da
unidade técnica emitir seu parecer conclusivo, sem prejuízo do disposto no § 3º do art. 157.
§ 3º O disposto no § 1º não prejudica o direito da parte de distribuir, após a inclusão do processo em
pauta, memorial aos ministros, auditores e ao representante do Ministério Público.”
3 “Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que
lhe sejam assegurados:
[...]
III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de
consideração pelo órgão competente;”
R.T.J. — 197 933
VOTO
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Estou concedendo parcialmente a segurança,
para o fim de que o Tribunal de Contas expressamente conheça do documento juntado
pelo impetrante.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Mas ele não assentou que não tem reflexo na decisão?
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Não tem reflexo, não examinaram; tanto
é que examinaram o documento.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: No agravo, ele examinou.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Sim, examinou no agravo.
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Ele julgou irrelevante, mas indeferiu a juntada.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Quer dizer, ele vai reafirmar.
O Sr. Ministro Nelson Jobim (Presidente): Dá na mesma.
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Então, vamos simplesmente negar a segurança,
negar plenamente, ficando cassada a liminar.
6 Vide meu O direito posto e o direito pressuposto, 6ª ed., Malheiros Editores, São Paulo, 2005, pp.
240 e ss.
R.T.J. — 197 935
EXTRATO DA ATA
MS 24.519/DF — Relator: Ministro Eros Grau. Impetrante: Emilson Caputo Delfino
Silva (Advogado: Walter da Costa Porto). Impetrado: Tribunal de Contas da União.
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, denegou a segurança e cassou a liminar
concedida, nos termos do voto do Relator. Ausentes, justificadamente, os Ministros Carlos
Velloso, Ellen Gracie e Carlos Britto. Presidiu o julgamento o Ministro Nelson Jobim.
Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda
Pertence, Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Joaquim
Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e
Silva de Souza.
Brasília, 28 de setembro de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, por seu Tribunal Pleno, sob a Presidência da Ministra Ellen Gracie
(Vice-Presidente), na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por
unanimidade de votos, indeferir a segurança, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 21 de setembro de 2005 — Ellen Gracie, Presidente — Carlos Ayres
Britto, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Trata-se de mandado de segurança, com pedido
de liminar, impetrado contra ato do Tribunal de Contas da União. Mandado pelo qual o
impetrante ataca o teor do Acórdão n. 2.060/2004, confirmatório de decisão que deter-
minou ao Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba que promovesse o levantamento dos
936 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): 7. Consoante relatado, a controvérsia
jurídica a ser equacionada no presente writ consiste em saber se houve afronta ao devido
processo legal, por efeito da decisão que determinou o retorno dos servidores requisitados
aos seus órgãos de origem.
8. Pois bem, ao indeferir a medida liminar despachei (fls. 96/97):
“Assim retratada a questão, anoto inicialmente que, do cotejo entre a decisão
da Corte de Contas e as alegações do impetrante, bem como da leitura dos docu-
mentos constantes dos autos, não constato, de plano, a ocorrência do pressuposto
relativo ao fumus bonis iuris, necessário à concessão da medida liminar. Razão por
que a indefiro.
Quanto à questão relativa ao conhecimento do mandamus, deixo-a para
melhor exame quando do julgamento do mérito, considerando, sobretudo, que a
requisição se me afigura um mecanismo jurídico endo-administrativo, insusce-
tível, a princípio, de gerar direitos subjetivos aos servidores envolvidos”.
(Sem destaques no original)
9. Deveras, o juízo que proferi em sede cautelar se confirma após a apreciação das
informações e do parecer da Procuradoria-Geral da República, do qual se retira o seguinte
trecho (fls. 163/171):
“(...)
O próprio cabimento do presente mandamus é severamente questionável.
Isso porque, do que se extrai do pronunciamento do TCU, restou apreciada uma
relação administrativa adstrita à Administração do Tribunal Regional Eleitoral da
Paraíba, sem reflexos imediatos sobre o plexo de direitos dos servidores. A Corte
de Contas crivou um comportamento, uma política, da gestão administrativa do
Tribunal Eleitoral, dando-o por ilegal. Censurou, com precisão, a prática maciça
identificada no âmbito do TRE/PB, que se vale da remoção para compor seus
quadros funcionais, em detrimento do provimento de cargos públicos, instrumentos
regulares para a consecução de tarefas usuais e permanentes do Poder Judiciário
Eleitoral.
938 R.T.J. — 197
EXTRATO DA ATA
MS 25.200/DF — Relator: Ministro Carlos Britto. Impetrante: Tarcísio Soares de
Morais (Advogados: Stanislaw Costa Eloy e outro). Impetrado: Tribunal de Contas da
União.
R.T.J. — 197 939
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas
taquigráficas, por unanimidade, indeferir o mandado de segurança, vencido na preliminar
o Ministro Marco Aurélio, que declarava a decadência do pedido. Votou o Presidente.
Ausentes, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie e, neste julgamento, os Ministros
940 R.T.J. — 197
Nelson Jobim (Presidente), Cezar Peluso e Eros Grau. Presidiu o julgamento o Ministro
Sepúlveda Pertence (art. 37, inc. I, do RISTF).
Brasília, 10 de novembro de 2005 — Nelson Jobim, Presidente — Carlos Velloso,
Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Trata-se de mandado de segurança impetrado origi-
nariamente perante a 2ª Vara Federal da Seção Judiciária da Paraíba por Maria José dos
Santos Clarindo e Rayênia Edja de Morais Clarindo, ambas pensionistas do ex-servidor
Cirilo Luiz Clarindo, contra ato do Tribunal de Contas da União, consubstanciado no
Acórdão 2.102/2003-TCU-2ª Câmara, proferido nos autos do Processo TC 003.436/
2003-5, que, considerando ilegal a acumulação de aposentadorias relativas a cargos
inacumuláveis na atividade, negou registro ao ato de aposentação do ex-servidor e
determinou à Universidade Federal da Paraíba – UFPB que suspendesse o pagamento
dos benefícios recebidos pelas impetrantes, bem como lhes orientasse acerca da possibi-
lidade de opção entre eles.
Dizem as impetrantes que o instituidor das pensões, o Sr. Cirilo Luiz Clarindo,
falecido em 12-2-1999, possuía dois vínculos funcionais distintos com a UFPB. O pri-
meiro referia-se à aposentadoria no cargo de Auxiliar Operacional de Serviços Diversos,
ocorrida em 27-12-1979. O segundo em decorrência de haver sido novamente contratado
pela mesma instituição, agora para o cargo de Assistente de Administração, no qual se
aposentou compulsoriamente em 9-8-1994.
Sustentam, mais, em síntese, o seguinte:
a) ausência de acumulação de pensões, porquanto não há obstáculo legal ou cons-
titucional que vede aos servidores públicos inativos exercerem novos cargos, empregos
ou funções no serviço público. Assim, “quisesse a Constituição vedar acumulação de
proventos da inatividade com remuneração outras da atividade, no setor público, tê-
lo-ia feito de modo explícito” (fl. 08);
b) ofensa ao art. 5º, LV, da Constituição Federal, dado que a autoridade coatora
determinou, sem o devido processo legal, o cancelamento das pensões percebidas pelas
impetrantes;
c) ocorrência da decadência para a Administração “impugnar a validade de ato
administrativo de que decorram efeitos favoráveis aos destinatários” (fl. 14), uma vez
que decorridos mais de cinco anos;
d) existência do fumus boni juris e do periculum in mora, consubstanciados no
fato de estar “provada a lesão grave e permanente do seu direito, caso haja o
desfazimento do ato administrativo de concessão de sua pensão e a suspensão do
pagamento de seus proventos” (fl. 18).
Ao final, requerem as impetrantes, liminarmente, que se conserve “o ato adminis-
trativo perfeito e acabado (concessão da pensão) com o devido pagamento dos
proventos” (fl. 18). No mérito, pedem seja declarado nulo o ato impugnado, a fim de que
seja restabelecido o pagamento do benefício.
R.T.J. — 197 941
Às fls. 109-115, o MM. Juiz Federal Alexandre Costa de Luna Freire informa que as
impetrantes haviam, anteriormente, impetrado idêntico mandado de segurança e que
esse foi extinto, sem julgamento de mérito, dada a ilegitimidade passiva do Superinten-
dente de Recursos Humanos da UFPB. Nesse contexto, decide declinar da competência
para o Supremo Tribunal Federal, que detém “a competência originária para processar
e julgar Mandado de Segurança impetrado contra ato do Tribunal de Contas da
União” (fl. 113).
Requisitadas informações (fl. 124), o Presidente do Tribunal de Contas da União as
prestou (fls. 131-168), sustentando, em síntese, o seguinte:
a) intempestividade da impetração, uma vez que restou superado o prazo decadencial
previsto no art. 18 da Lei 1.533/51;
b) inexistência de direito líquido e certo das impetrantes, mormente porque a
acumulação de aposentadorias decorrentes de cargos não-acumuláveis na atividade é
vedada constitucionalmente;
c) inocorrência do instituto da decadência administrativa, ante a inaplicabilidade
do art. 54 da Lei 9.784/99 aos processos em que o Tribunal de Contas da União exerce a
sua competência constitucional de controle externo;
d) observância do devido processo legal, dado que o “não-chamamento ao processo
de servidor de órgão destinatário de determinação proferida pelo TCU não configura
violação ao contraditório e à ampla defesa” (fl. 144);
e) não-cabimento do pedido de liminar, porquanto ausente a plausibilidade do
direito alegado.
Em 10-3-2005, indeferi o pedido de liminar (fls. 170-172).
A Procuradoria-Geral da República, em parecer lavrado pelo então Procurador-Geral
da República, Prof. Claudio Fonteles, opina pela denegação da ordem (fls. 174-180).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): A preliminar de decadência do direito
à impetração não procede, bem assinala o Ministério Público Federal, por isso que
“cuida-se de pagamento de proventos de aposentadoria, o que configura uma obriga-
ção de trato sucessivo. Assim, o prazo de 120 dias para impetração do mandamus se
renova periodicamente” (fl. 176).
Também não há falar em decadência da Administração para anular o ato. É que o
prazo decadencial, no caso, seria contado a partir da decisão do Tribunal de Contas da
União, já que o ato de aposentadoria é um ato complexo que somente se aperfeiçoa com
o registro perante a Corte de Contas: RE 195.861/ES, Ministro Marco Aurélio, DJ de 17-
10-1997; MS 23.665/DF, Ministro Maurício Corrêa, DJ de 20-9-2002.
Vamos ao mérito.
Oficiou, no ponto, o Ministério Público Federal, pelo seu chefe, o eminente
Procurador-Geral, Prof. Claudio Fonteles:
942 R.T.J. — 197
“(...)
15. Independentemente de questionamentos sobre a validade da acumulação
dos cargos antes da Constituição de 1988 e da edição do estatuto dos servidores
públicos, Lei n. 8.112/90, que instituiu o regime jurídico único, é certo que com a
vigência dessas normas tornou-se ilegal o exercício contemporâneo de tais cargos.
Assim, quedou-se prejudicado o argumento do impetrante de que seria admissível
a cumulação dos proventos com esteio no parágrafo 4º do artigo 99 da Constitui-
ção de 1967.
16. Dessa forma, verifica-se que houve acumulação irregular de proventos/
remuneração pelo menos entre 01.02.1980 e a data da Segunda aposentação, no
cargo de Assistente de Administração, à 09.08.1994, e, posteriormente, percepção
simultânea de proventos de duas aposentadorias.
17. Contudo, quando levado a registro no Tribunal de Contas da União o ato
de aposentadoria do de cujus no cargo de Assistente de Administração, verificou-
se que já era ele aposentado, com proventos integrais, como Auxiliar Operacional
de Serviços Diversos (Operador de Caldeira) da Universidade da Paraíba. Consta-
tada, pois a acumulação indevida de aposentadorias, foi recusado o registro do ato
de aposentação no cargo em que foi admitido posteriormente, e, consequentemente,
das pensões das impetrantes, decisão contra a qual ora se insurge.
18. A acumulação de cargos públicos, exceto nos casos previstos pela Cons-
tituição, de proventos de aposentadoria decorrentes desses cargos, bem como a
acumulação irregular de proventos/remuneração são vedadas nos termos do art.
37, inciso XVI, e do 40, § 6º, todos da Constituição Federal. Vejamos:
‘Art. 37 (...)
XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto,
quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o
disposto no inciso XI.
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde,
com profissões regulamentadas;
(...)
Art. 40 (...)
§ 6º - Ressalvadas as aposentadorias decorrentes dos cargos acumulá-
veis na forma desta Constituição, é vedada a percepção de mais de uma
aposentadoria à conta do regime de previdência previsto neste artigo.’
19. Destarte, não se pode cogitar a possibilidade de exercício simultâneo dos
cargos de Auxiliar Operacional de Serviços Diversos e Assistente de Administra-
ção, e, conforme o disposto nos artigos constitucionais transcritos, o mesmo não
pode ocorrer quanto a acumulação de pensões.
R.T.J. — 197 943
20. Já na Constituição Federal pretérita (art. 99, caput) não se permitia a acu-
mulação de cargos no serviço público, excetuadas apenas as hipóteses previstas nos
incisos e parágrafos do art. 99 da Constituição Federal de 1967, com a redação que
lhe conferiu a EC n. 1/1969. E, ainda que admitida a cumulação excepcional, com
base nesse regime, que alega o impetrante, esta teria sido expressamente revogada
pela nova ordem constitucional.
21. De outra banda, no que concerne ao alegado desrespeito ao princípio da
ampla defesa no processo administrativo, não tem ele, em sede de controle realizado
pela Corte de Contas, os contornos que pretende imprimir-lhe o impetrante. Certo,
pois o contrário resultaria na total impossibilidade daquele órgão de executar as
tarefas que lhe foram confiadas pelo Poder Constituinte.
22. Assim, na medida em que decisões tomadas na Corte de Contas – como é
o caso presente – podem se dirigir a autoridades administrativas, é perfeitamente
cabível que o terceiro não participante do processo perante aquele Tribunal seja
atingido pelos reflexos de suas decisões, sem que isso demande a manifestação nos
autos de todos os possíveis atingidos.
23. Assim, não está caracterizada a ofensa à ampla defesa. É essa a linha
adotada por esse Egrégio Tribunal, consoante se verifica da ementa a seguir
colacionada:
‘Ementa: Constitucional. Administrativo. Servidor público. Gratifica-
ção incorporada: sua absorção, por lei que majorou vencimentos: inexis-
tência de ofensa a direito adquirido ou ao princípio da irredutibilidade de
vencimentos. Tribunal de contas: julgamento da legalidade de aposentado-
rias: contraditório.
I. - Gratificação incorporada, por força de lei. Sua absorção, por lei
posterior que majorou vencimentos: inexistência de ofensa aos princípios do
direito adquirido ou da irredutibilidade de vencimentos, na forma da juris-
prudência do STF.
II. - Precedentes do STF.
III. - O Tribunal de Contas, no julgamento da legalidade de concessão
de aposentadoria, exercita o controle externo que lhe atribui a Constitui-
ção, no qual não está jungido a um processo contraditório ou contestatório.
IV. - Mandado de Segurança indeferido.’ (MS 24784 – DF – TP –
Relator Min. Carlos Velloso – DJU 25.06.2004 – p.6 – sem ênfase no
original)
24. Destarte, o Ministério Público Federal opina pela denegação da ordem.
Correto o parecer.
A acumulação de aposentadorias somente é admitida se lícita a acumulação dos
cargos na atividade. O mesmo deve ser dito relativamente às pensões. No julgamento do
RE 163.204/SP, por mim relatado, decidiu o Supremo Tribunal Federal:
“Ementa: Constitucional. Administrativo. Servidor público. Proventos e
vencimentos: acumulação. CF, art. 37, XVI, XVII.
944 R.T.J. — 197
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, só tenho uma dúvida quanto à deca-
dência. Admito que, mesmo em se tratando de uma relação jurídica que se desdobre em
prestações sucessivas, pode haver a decadência, como também pode incidir a prescrição.
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Quando se ataca o fundo de direito, sem
dúvida nenhuma, reconheço também.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: O que eu indagaria seria isso.
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Mas aí são as prestações de trato sucessivo.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Houve um ato comissivo do Tribunal de Contas da
União. A impetrante foi cientificada desse ato e somente protocolou o mandado de
segurança em data posterior aos cento e vinte dias alusivos ao prazo decadencial. Se a
situação concreta é essa, penso que incidiu a decadência.
946 R.T.J. — 197
VOTO (Explicação)
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Desde os meus primeiros tempos no Tribu-
nal Federal de Recursos que sustento que a disposição de cento e vinte dias é arbitrária.
A Constituição não fala isso. Cedi, mas confesso que — e já fiz essa declaração mais de
uma vez — só reconheço a decadência quando ela se apresenta escancaradamente. Faço
vistas grossas à decadência, que considero arbitrária frente ao disposto no art. 5º, inciso
LXIX, da Constituição Federal.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Há uma controvérsia: mandaram
optar, continuaram pagando, e, não sei quando, houve a interrupção do pagamento.
Nesse ponto, o direito da impetrante foi atingido.
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): O Ministro Eros Grau também tem enten-
dimento igual ao meu, segundo penso.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: De qualquer forma, só para deixar claro, tenho posi-
ção contrária em relação a isso. Vejo isso em vários textos, inclusive de Teotônio Negrão.
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Deve-se observar, apenas, o prazo de
prescrição. O mandado de segurança é ação como outra qualquer, mas com status de
ação constitucional. A Constituição não exige os cento e vinte dias.
Quando ingressei nesta Corte, fiz a declaração de que me curvaria à jurisprudência,
pois se trata da jurisprudência da Suprema Corte.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Mas incomoda.
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Incomoda. Então, confesso que faço sem-
pre vistas grossas a essa questão. Se é flagrante, eu a reconheço.
De qualquer forma, no caso, há a dúvida, pelo menos.
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: De qualquer sorte, é bom ressaltar que o mandado
de segurança, o mandado de injunção, o habeas data e outras garantias processuais
constitucionais são típicas garantias institucionais, daí poder o legislador, sim, definir
esse conteúdo, desde que não o faça de maneira abusiva. Até mesmo, o intuito aqui,
creio, é dar nobreza ao instituto. Se se trata de um remédio, como se diz, heróico, há de ser
manejado dentro também de um tempo razoável.
R.T.J. — 197 947
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator): Não a considero um remédio heróico, mas
uma ação, com status constitucional. Todas as ações têm proteção constitucional, mas o
mandado de segurança tem status constitucional especial. Trata-se de uma garantia
constitucional expressa.
EXTRATO DA ATA
MS 25.256/PA — Relator: Ministro Carlos Velloso. Impetrantes: Maria José dos
Santos Clarindo e outro (Advogados: Emerson Moreira de Oliveira e outro). Impetrado:
Tribunal de Contas da União. Litisconsorte Passivo: Superintendente de Recursos Humanos
da Universidade Federal da Paraíba – UFPB (Advogado: Procuradoria-Geral Federal).
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, indeferiu o mandado de segurança, vencido
na preliminar o Ministro Marco Aurélio, que declarava a decadência do pedido. Votou
o Presidente. Ausentes, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie e, neste julgamento, os
Ministros Nelson Jobim (Presidente), Cezar Peluso e Eros Grau. Presidiu o julgamento o
Ministro Sepúlveda Pertence (art. 37, inc. I, do RISTF).
Presidência do Ministro Nelson Jobim. Presentes à sessão os Ministros Sepúlveda
Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso,
Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr.
Antonio Fernando Barros e Silva de Souza.
Brasília, 10 de novembro 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribu-
nal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas
taquigráficas, por unanimidade de votos, denegar a segurança, nos termos do voto do
Relator.
Brasília, 27 de outubro de 2005 — Ellen Gracie, Presidente — Eros Grau, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Eros Grau: Trata-se de mandado de segurança impetrado por Aufer
Agropecuária S.A. contra decreto do Presidente da República, de 13 de janeiro de 2005,
que declarou de interesse social para fins de reforma agrária o imóvel rural denominado
“Fazendas Berro D’Água e outras”, localizado no Município de Coromandel/MG.
R.T.J. — 197 949
VOTO
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): O debate que se trava no âmbito do presente
mandado de segurança gira em torno da assinatura no aviso de recebimento da notifica-
ção de vistoria do Incra e da invasão do imóvel por movimento social de trabalhadores
rurais.
950 R.T.J. — 197
VOTO
A Sra. Ministra Ellen Gracie (Presidente): Também acompanho o Relator. Verifico,
das informações prestadas pela Advocacia-Geral da União, que, no caso, a falada invasão
é posterior à vistoria, portanto, nenhum efeito poderia ter sobre o seu resultado e que a
empresa foi, sim, notificada por alguém que se apresentava com uma procuração dela.
De modo que acompanho o voto do Ministro Relator.
R.T.J. — 197 951
EXTRATO DA ATA
MS 25.360/DF — Relator : Ministro Eros Grau. Impetrante: Aufer Agropecuária
S.A. (Advogados: José Roberto Bruno Polotto e outro). Impetrado: Presidente da Repú-
blica (Advogado: Advogado-Geral da União).
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, denegou a ordem, nos termos do voto do
Relator. Votou a Presidente. Ausentes, justificadamente, os Ministros Nelson Jobim
(Presidente), Celso de Mello, Carlos Velloso e Cezar Peluso. Presidiu o julgamento a
Ministra Ellen Gracie (Vice-Presidente).
Presidência da Ministra Ellen Gracie (Vice-Presidente). Presentes à sessão os
Ministros Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Carlos Britto, Joaquim
Barbosa e Eros Grau. Procurador-Geral da República, Dr. Antonio Fernando Barros e
Silva de Souza.
Brasília, 27 de outubro de 2005 — Luiz Tomimatsu, Secretário.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribu-
nal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas
taquigráficas, por unanimidade de votos, deferir o pedido formulado no habeas corpus,
nos termos do voto do Relator.
Brasília, 20 de junho de 2001 — Marco Aurélio, Presidente — Sepúlveda Pertence,
Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Habeas corpus preventivo impetrado em favor
de Jerônimo Pereira da Silva, índio macuxi da Aldeia de Maturuca, TI Raposa Serra do
Sul, Estado de Roraima, apontando-se como ameaça de coação a sua intimação para
prestar depoimento à CPI destinada a investigar a ocupação de terras públicas na Região
Amazônica, em audiência a ser realizada em Boa Vista, na sede da Assembléia
Legislativa daquele Estado.
Essa a fundamentação e o conseqüente pedido de habeas corpus formulados pela
ilustre Subprocuradora-Geral da República Ela Wiecko de Castilho e Procuradora Regi-
onal da República, Deborah Duprat de Britto Pereira, na qualidade de integrantes da 6ª
Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal:
“O art. 218 do CPP, de aplicação no âmbito das Comissões Parlamentares de
Inquérito, autoriza a condução coercitiva da testemunha faltosa, o que evidencia a
possibilidade concreta de o paciente vir a sofrer coação em sua liberdade de loco-
moção.
R.T.J. — 197 953
como a eles - índios - se representam os modos de criar, fazer e viver desta sociedade
que integram, de modo diferenciado (inciso II).
Resulta desta análise que, a par de lhes reconhecer o direito a uma existência
diferenciada, a Constituição outorgou aos próprios índios o direito a dizer em que
consiste esta diferença. Categorizar, como vinha fazendo o legislador a partir de
sua própria perspectiva, os índios como “aculturados” ou “selvagens” revela pre-
conceito etnocentrista e não mais encontra guarida no texto constitucional, na
medida em que, ao admitir-se como multiétnica a sociedade brasileira, nega-se a
possibilidade de que um de seus grupos formadores venha a dizer o que são ou
como são os demais, por tal atitude importar em domínio de um único segmento
étnico, o que antagoniza, em absoluto, com a própria noção de multi ou plurietni-
cidade.
Ademais, ter contato com uma sociedade não significa necessariamente com-
partilhar a pauta valorativa que a orienta.
É nessa perspectiva que se revela a ilegitimidade do ato coator.
Primeiramente, por impor ao índio que saia de seu território e compareça
para depor a uma Comissão Parlamentar de Inquérito, quando o texto constitucio-
nal lhe assegura a permanência em suas terras. Longe de representar um confina-
mento, é certo que a saída de um índio de suas terras é sempre um ato de opção, de
vontade própria, não podendo se apresentar como uma imposição, salvo hipóteses
excepcionalíssimas de cometimento de delitos ou situações de risco para a própria
comunidade. A propósito, o § 5º do art. 231 da CF.
Ademais, indispensável se faz a adoção de cautelas tendentes a assegurar que
não haja agressão aos seus usos, costumes e tradições. Não há como se desconhecer
que a inquirição de uma testemunha se faz segundo códigos próprios de quem
interroga, códigos esses não necessariamente compartilhados pelo depoente. Por
outro lado, tudo aquilo que é dito também o é sob uma ótica diferenciada de vida,
o que reclama correta tradução e compreensão. Tanto mais se revela necessária a
cautela quando é certo que o depoente está passível de responsabilidade criminal
por falso testemunho.
Desta forma, a oitiva de um índio, para o fim declinado no ato coator, deve
dar-se:
a) na área indígena onde se encontra o índio, em dia e hora previamente
acordados com a comunidade;
b) com a presença de representante da funai e de um antropólogo com
conhecimento desta mesma comunidade.
Ressalte-se, por último, para que não pairem dúvidas, que o paciente é Presi-
dente do Conselho Indígena de Roraima, organização exclusivamente formada
por índios, o que não altera, como antes ressaltado, em absolutamente nada o
direito que lhe assiste.
III - Do Pedido
Em razão da ameaça concreta de constrangimento à liberdade de locomoção
do paciente, requer-se a concessão da ordem para:
R.T.J. — 197 955
VOTO
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Relator):
I
Conheço do pedido.
Firmou-se no Tribunal a admissibilidade do habeas corpus que é de sua competên-
cia originária (vg, HC 32.678, 5-8-53, Mário Guimarães, RFor. 151/375; HC 71.261, 11-
5-94, Pertence, RTJ 160/522; HC 71.039, 7-4-94, Brossard, RTJ 169/511 etc) — quando
se questiona da legitimidade da intimação para depor em comissões parlamentares de
inquérito (vg., Plenário, HC 71.193, 6-4-94, Pertence, DJ de 23-3-01; HC 71.261, 11-5-
94, Pertence, RTJ 160/521; HC 71.039, 7-4-94, Brossard, RTJ 169/511).
No HC 71.193, consignei na ementa — DJ de 23-3-2001:
956 R.T.J. — 197
zido coercitivamente, se não cumprir o ato de intimação, e, por não ser integrado a
uma nova diversidade cultural, sujeitar-se aos malefícios de um choque de interes-
ses e valores.
18. Claro que se deve observar que tal direito de permanência na terra não é
absoluto, uma vez que não só limitado pelas exceções previstas no § 5º do artigo
231 da Lei Maior, mas por direitos e garantias constitucionais outros em conflito,
como seria o caso da prisão em flagrante ou por ordem escrita fundamentada (CF/
88, art. 5º, LXI).
19. De outro lado, cabe evidenciar que o colhimento de depoimento de ín-
dio, que não incorporou ou compreende as práticas e modos de existência comuns
ao ‘homem branco’, sem as devidas cautelas, ocasionaria, muito provavelmente,
em virtude do conflito entre as identidades culturais e do desconhecimento da lei,
o cometimento pelo silvícola de ato ilícito, passível de comprometimento do seu
status libertatis, dentre ele o crime de desobediência, desacato, ou, como observado
pelas impetrantes, a própria infração de falso testemunho. E, como conseqüência,
o ato de intimação para depor também estaria maculado pela pecha de ameaçador
ao direito de ir e vir, o que também dá ensejo à presente tutela jurídica.
Ante o exposto, opina o Ministério Público Federal pelo deferimento do
pedido, para que seja assegurado ao paciente prestar depoimento na área indígena
onde se encontra e com as devidas cautelas, de modo a não ocorrer agressão aos
seus usos, costumes e tradições.”
O parecer é irretocável.
Na mesma linha, José Afonso da Silva1, a meu ver, situou com precisão o reconhe-
cimento constitucional da identidade cultural das comunidades indígenas.
“O art. 231” — assinala o mestre — “reconhece a organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições dos índios, com o que reconhece a existência de minorias
nacionais e institui normas de proteção de sua singularidade étnica, especialmente de
suas línguas, costumes e usos. A propósito, a Constituição fala em populações indíge-
nas (art. 22, XIV) e comunidades indígenas ou dos índios (art. 232), certamente como
comunidades culturais, que se revelam na identidade étnica, não propriamente como
comunidade de origem que se vincula ao conceito de raça natural, fundado no fator
biológico, hoje superado, dada a ‘impossibilidade prática de achar um critério que
defina a pureza da raça’. Nem é comunidade nacional que não é redutível a fatores
particulares ou parciais, porque se integra de todos, enquanto realização do princípio
do Estado nacional, traduzindo, no nosso caso, a unidade comunitária dos brasileiros
que envolve a todos.”
E depois de definir o sentido étnico com o qual cabe referir-se a nações indígenas,
conclui:
“Enfim, o sentido de pertinência a uma comunidade indígena é que identifica
o índio. A dizer, é índio quem se sente índio. Essa auto-identificação, que se funda
1 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros, 19. ed. pp. 826 ss.
958 R.T.J. — 197
EXTRATO DA ATA
HC 80.240/RR — Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Paciente: Jerônimo
Pereira da Silva. Impetrantes: Ela Wiecko Volkmer de Castilho e outra. Coator: Presi-
dente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI para Investigar a ocupação de Terras
Públicas na Região Amazônica).
Decisão: Após o voto do Ministro Sepúlveda Pertence (Relator), deferindo o habeas
corpus, no que foi acompanhado pelos Ministros Ellen Gracie, Maurício Corrêa e Ilmar
Galvão, pediu vista dos autos o Ministro Marco Aurélio. Ausentes, justificadamente, os
Ministros Moreira Alves, Celso de Mello e Nelson Jobim.
Presidência do Ministro Carlos Velloso. Presentes à sessão os Ministros Néri da
Silveira, Sydney Sanches, Sepúlveda Pertence, Marco Aurélio, Ilmar Galvão, Maurício
Corrêa e Ellen Gracie. Vice-Procurador-Geral da República, Dr. Haroldo Ferraz da
Nóbrega.
Brasília, 19 de abril de 2001 — Luiz Tomimatsu, Coordenador.
VOTO (Vista)
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Este habeas corpus tem como objeto ato da Comissão
Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a ocupação de terras públicas na Região
Amazônica que implicou a intimação do Paciente, indígena, para comparecer perante a
Comissão como testemunha. A inicial, redigida com insuplantável esmero, busca reve-
R.T.J. — 197 959
lar o direito do Paciente de ser ouvido na área indígena, em dia e hora previamente
acordados, com a presença de representante da Fundação Nacional do Índio – FUNAI e
de um antropólogo com conhecimento da vida na comunidade.
Na sessão em que começado o julgamento, o Ministro Sepúlveda Pertence pronun-
ciou-se pela concessão do habeas, reportando-se não só ao parecer da Procuradoria-
Geral da República em tal sentido, como também à lição de José Afonso da Silva sobre
o alcance do artigo 231 do Diploma Básico. Entende Sua Excelência que o trato da
matéria sob o ângulo constitucional obstaculiza a mencionada intimação.
Estão em jogo valores diversos e que, portanto, hão de ser sopesados. De um lado,
consoante a regra geral decorrente do § 3º do artigo 58 da Constituição Federal, as
comissões parlamentares de inquérito têm poderes de investigação, podendo intimar
aqueles que surjam como envolvidos em fatos a serem objeto de apuração. De outro,
observa-se o tratamento especial conferido aos índios. A Carta preserva a organização
social, os costumes, as línguas, as crenças e tradições dos índios, consideradas as pecu-
liaridades reinantes, objetivando o respeito à cultura indígena. Há de extrair-se da Carta
Política a maior eficácia possível, ante o fim colimado. Procede a conclusão da inicial,
em que se enfatiza: “a saída de um índio de suas terras é sempre um ato de opção, de
vontade própria, não podendo se apresentar como uma imposição, salvo hipóteses
excepcionalíssimas de cometimento de delitos ou situações de risco para a própria
comunidade”. Retorno ao início deste voto. Contrapondo os valores em questão, so-
bressai o relativo à preservação dos costumes indígenas. E aí transparece em segundo
plano o referente à audição de pessoas no âmbito da casa em que instalada a comissão
parlamentar de inquérito, sem que isso implique prejuízo para a atividade desta. Con-
tando as comissões com melhor estrutura, podem muito bem proceder a tal audição na
região em que situada a comunidade indígena, cabendo as precauções aventadas na
inicial. Isso não resulta no esvaziamento da importância de tal comissão, mas na
racionalidade do desenvolvimento dos trabalhos em harmonia com o texto constitucio-
nal. Em síntese, o poder de investigação encerrado no preceito da Carta abrange, é certo,
o de intimar pessoas para comparecimento ao local designado, sem, no entanto, importar
em ato impositivo, em se tratando da audição de indígena. Aliás, os veículos de comuni-
cação têm revelado o deslocamento, em diligência, de membros de comissões parlamen-
tares de inquérito, o que se dirá quando isso decorre da própria norma constitucional.
Acompanho o Ministro Sepúlveda Pertence, deferindo o habeas corpus nos termos em
que pleiteado.
EXTRATO DA ATA
HC 80.240/RR — Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Paciente: Jerônimo
Pereira da Silva. Impetrantes: Ela Wiecko Volkmer de Castilho e outra. Coator: Presi-
dente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI para Investigar a ocupação de Terras
Públicas na Região Amazônica).
Decisão: Por unanimidade, o Tribunal deferiu o pedido formulado no habeas
corpus, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, o Ministro Marco Aurélio.
Eximiram-se de votar os Ministros Nelson Jobim e Moreira Alves, por não terem assistido
ao relatório. Ausente, justificadamente, a Ministra Ellen Gracie (que proferira voto na
assentada anterior).
960 R.T.J. — 197
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma
do Supremo Tribunal Federal, na conformidade da ata do julgamento e das notas
taquigráficas, por unanimidade de votos, dar provimento, em parte, ao recurso ordinário
em habeas corpus, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 12 de junho de 2001 — Moreira Alves, Presidente — Sepúlveda Pertence,
Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence: Na petição de habeas corpus endereçada ao
Superior Tribunal de Justiça, relata o impetrante:
“O paciente está processado em três ações penais, independentes e sem cir-
cunstância de similitude.
Em razão destas três ações penais, teve sua prisão preventiva decretada em
todos os processos que responde.
R.T.J. — 197 961
Indignado com sua prisão, impetrou um habeas corpus contra um dos decretos,
especificamente no decreto oriundo da ação penal de n. 1.390/98, que tramitam na
comarca de Anicuns, no qual figura como vítima Vicente Lourenço de Carvalho.
Recebeu este Habeas Corpus o n. 9800253432.
Posteriormente, impetrou ordem de habeas corpus contra o decreto de prisão
preventiva oriundo dos autos de ação Penal de n. 1377/98, também da Comarca de
Anicuns, em que figura como vítima Olício Antônio do Couto, portanto ação
penal da que originou az primeira ordem de habeas corpus. Este Habeas Corpus
tomou o número 9800490710.
Em seguida, foi impetrada nova ordem de habeas corpus de número
9800496998, em que figura como vítima Vicente Lourenço de Carvalho e que
versa sobre a supra referida ação penal de n. 1390/98.
Por fim foi impetrada a quarta ordem de habeas corpus, registrada sob o n.
9800497498, originária dos autos de ação penal de n. 1395/98, que tem como
vítima Rafael Gonçalves de Miranda.
Com este último habeas corpus fecha-se o círculo necessário a demonstração
das irregularidades graves e plenamente comprovadas documentalmente.
Em um processo repleto de elementos políticos (o paciente foi prefeito do
município de Anicuns, seu irmão é atualmente prefeito e seu outro irmão fora
presidente da Câmara de Vereadores), inferiu-se a fraude (dolosa ou culposa, pouco
importa) na distribuição dos processos perante o Egrégio Tribunal de Justiça de
Goiás.
É que o primeiro habeas corpus impetrado nenhuma relação possui com o
segundo e o quarto, da mesma forma que o terceiro não possui nenhuma relação
com o segundo, portanto não poderia o Setor de Distribuição ter se valido da
prevenção em processos diferentes, oriundos de causas diferentes, para justificar a
ausência de distribuição.”
O que se questiona, portanto, sob a alegação de contrariedade da garantia do juiz
natural, é a distribuição do segundo habeas corpus requerido ao Tribunal de Justiça do
Estado de Goiás — HC 9800490710 — a pretexto de inexistente prevenção do Relator
ou da Câmara a que anteriormente distribuída a impetração em favor do mesmo paciente,
mas com objeto diverso: a prisão preventiva decretada em processo diverso por homicí-
dio distinto do que lhe é imputado no primeiro.
Informou ao STJ o Presidente do Tribunal local, nestes termos — fl. 116:
“A impetração argúi vício na distribuição, por prevenção, do Habeas Corpus
n. 9800490710, sob o fundamento de que este processo não guarda qualquer rela-
ção com o de n. 9800253432, da mesma espécie, vínculo indicado como
motivador do ato.
Observo que a questão não foi suscitada neste Tribunal de Justiça, não sendo,
portanto, objeto de decisão. O acórdão proferido no processo do mencionado
Habeas Corpus, que registra a denegação da ordem pleiteada, não alude à questão,
como se vê da fotocópia anexa.
962 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Relator): Não posso endossar a fundamentação
do acórdão questionado.
O órgão jurisdicional que decide sobre o mérito de uma impetração de habeas
corpus afirma, ainda que implicitamente, a sua competência para conhecer do pedido.
E, por isso, a alegação de sua incompetência pode ser suscitada em recurso ordiná-
rio ou impetração dele substitutivo, porquanto independem de prequestionamento.
Nem me convenci — aí, ao contrário do parecer da PGR — de que a questão
envolva controvérsia de fato insuscetível de deslinde no processo de habeas corpus: não
bastassem, no ponto, as informações, a simples leitura dos decretos de prisão preventiva
R.T.J. — 197 963
EXTRATO DA ATA
RHC 80.967/GO — Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Recorrente: Francisco
Alves Neto (Advogados: Luís Alexandre Rassi e outros). Recorrido: Ministério Público
Federal.
Decisão: A Turma deu provimento, em parte, ao recurso ordinário em habeas
corpus, nos termos do voto do Relator. Unânime. Falou pelo recorrente o Dr. Luís
Alexandre Rassi.
Presidência do Ministro Moreira Alves. Presentes à sessão os Ministros Sydney
Sanches, Sepúlveda Pertence, Ilmar Galvão e Ellen Gracie. Subprocurador-Geral da Re-
pública, Dr.Wagner Natal Batista.
Brasília, 12 de junho de 2001 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribu-
nal Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência do Ministro Carlo Velloso, na confor-
midade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos,
denegar a ordem, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 9 de novembro de 2004 — Carlo Velloso, Presidente — Joaquim Barbosa,
Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: Trata-se de habeas corpus impetrado pelo pró-
prio paciente, João Carlos da Rocha Mattos, tendo por autoridade coatora a Quinta
Turma do Superior Tribunal de Justiça, a qual denegou a ordem pleiteada no HC 33.176,
em acórdão cuja ementa tem o seguinte teor (fl. 169):
R.T.J. — 197 965
Atuando por substituição (RISTF, art. 38, I), o Ministro Celso de Mello, antes
mesmo de apreciar a liminar, solicitou as informações à autoridade coatora, especial-
mente porque o acórdão atacado ainda não havia sido publicado (fls. 70-71).
Em petição de 26 de maio de 2004, o impetrante requereu a imediata apreciação do
pedido, uma vez que a suposta ilegalidade já perduraria por mais de trinta dias (fls. 76-
85). Indeferi tal pedido, determinando que se cumprisse a decisão do Ministro Celso de
Mello (fls. 164).
As informações foram prestadas (fls. 169-194). Indeferi, então, o pedido de liminar,
por não vislumbrar, naquela oportunidade, o requisito da verossimilhança das alegações
(fl. 196). Na mesma oportunidade, solicitei ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região
informações sobre o andamento do processo em que o paciente figura como réu. Por fim,
em 22 de junho de 2004, as informações solicitadas foram prestadas pela desembargadora
relatora no Tribunal Regional Federal (fls. 250-278).
Em petição de 02 de agosto de 2004, o impetrante suscitou questão de ordem,
alegando prevenção da Primeira Turma para o julgamento do habeas corpus. Apto a
julgar a impetração desde aquele dia, deixei de submetê-la a julgamento nas últimas
sessões da Turma em virtude da questão de ordem suscitada pelo impetrante/paciente ao
presidente desta Corte, Ministro Nelson Jobim, que, resolvendo-a nos autos do HC
84.263, também de minha relatoria, determinou o julgamento do habeas corpus por esta
Segunda Turma. Dessa decisão, foi interposto agravo para o Pleno, que manteve, por
maioria, a decisão do presidente.
Solucionada a questão de ordem, preparei o feito para julgamento na sessão de 19
de outubro, mas, novamente, a defesa apresentou pedido de adiamento do julgamento
(Petição 110.098), desta vez para a sessão de 26 de outubro. Em 25 de outubro, a defesa
requereu novo adiamento (Petição 113.173), agora para a sessão de 09 de novembro.
Deferi o adiamento requerido, com o intuito de possibilitar a sustentação oral pela
advogada do paciente.
A Procuradoria-Geral da República opina pela denegação da ordem (fls. 198-212).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): A presente impetração traz oito causas
de pedir, as quais passarei a apreciar, uma a uma.
Inicio pela tese da ilicitude das interceptações telefônicas realizadas, dado seu
caráter prejudicial à análise de todas as demais causas de pedir.
Ilegalidades na interceptação telefônica
O impetrante alega que as interceptações telefônicas realizadas durante a fase pré-
processual, as quais deram ensejo às denúncias oferecidas pelo Ministério Público Fede-
ral, são ilegais, especialmente porque determinadas por autoridade incompetente, reali-
zadas em desrespeito ao prazo imposto pelo art. 5º da Lei 9.296/1996 e não degravadas
por peritos.
R.T.J. — 197 967
Não seria razoável, portanto, a limitação das escutas telefônicas a apenas 30 dias,
pois, pelo que consta dos autos, todas as prorrogações foram devidamente fundamentadas
e feitas dentro do prazo, presentes, à época, todos os requisitos que as autorizavam.
Entendimento contrário levaria à total ineficácia da medida, que, atualmente, se apre-
senta como importante instrumento de investigação e apuração de ilícitos.
Aliás, por ocasião do julgamento do HC 83.515, de relatoria do eminente presidente
desta Corte, Ministro Nelson Jobim, o Pleno abraçou a tese da viabilidade de múltiplas
renovações das autorizações de interceptação pelo prazo de 15 dias.
Por fim, o paciente alega que todo o material coletado deveria ter sido degravado
por peritos oficiais, conforme exige o art. 159, caput, do Código de Processo Penal.
Tenho que esse argumento também não se aplica ao caso concreto.
Ora, toda a atividade investigativa pertinente à “Operação Anaconda” foi realizada
pelo setor de inteligência da Polícia Federal, e não há nos autos notícia da completa
degravação das fitas. Note-se que o que deu ensejo às denúncias do Ministério Público
Federal foram os relatórios da Polícia Federal (Apenso 2) e que, efetivamente, a prova
pericial deverá servir de base à sentença, o que, sabidamente, não se aplica ao recebi-
mento da denúncia.
Assim, a prova produzida mostra-se perfeitamente válida, apta, portanto, a embasar
a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal.
Incompetência absoluta do Tribunal Regional Federal da 3ª Região
O paciente/impetrante alega que há, nos fatos apurados na “Operação Anaconda”,
efetiva participação de subprocurador da República. Assim, por força do art. 105, I, a, da
Constituição Federal, o foro competente para julgar originariamente o paciente e seus
co-réus seria o Superior Tribunal de Justiça. Em decorrência disso, o recebimento da
denúncia pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Juízo absolutamente incompe-
tente, seria nulo.
Rejeito essa primeira tese, pelo simples fato de o Ministério Público Federal não
ter oferecido denúncia contra a pessoa detentora de foro por prerrogativa de função. Ora,
se até o momento não houve acusação formal contra o subprocurador da República,
ainda que existam indícios de sua participação nos fatos delituosos — o que não está em
discussão nesta oportunidade —, não há como deslocar a competência do Tribunal
Regional Federal da 3ª Região para o Superior Tribunal de Justiça.
Eventualmente, caso venha a ser oferecida denúncia contra o referido subprocura-
dor, efetivamente se poderá discutir a necessidade de um único processo perante o
Superior Tribunal de Justiça.
Violação do princípio da ampla defesa
O paciente argumenta que, em virtude de ter sido impedido de assistir à sessão
em que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região recebeu a denúncia, teria ocorrido
violação do princípio da ampla defesa, uma vez que lhe foi suprimido o direito da
autodefesa.
Também rejeito essa causa de pedir.
970 R.T.J. — 197
Em primeiro lugar, porque não há nos autos nenhuma peça de informação que
venha a comprovar a veracidade da alegação do paciente. A rigor, os únicos documentos
referentes ao registro da sessão são a certidão de julgamento, o relatório e o voto da
desembargadora relatora (Apenso 3). No mais, as minuciosas informações prestadas pelo
Tribunal Regional Federal da 3ª Região não registram nenhum incidente dessa natureza
(retirada do paciente do local em que se realizou a aludida sessão extraordinária).
De qualquer forma, ainda que se admitisse a veracidade da alegação, tenho que a
desembargadora relatora, ao determinar que o paciente (e os demais denunciados) não
poderiam participar daquele ato processual, apenas exerceu seu poder de polícia, ex-
pressamente previsto no art. 251 do Código de Processo Penal.
Ressalte-se, ainda, que a exigência da lei diz respeito à intimação pessoal do
denunciado, determinação que foi efetivamente cumprida. E mais: presente o defensor
do paciente na ocasião, inclusive tendo ele feito uso da prerrogativa de sustentar oral-
mente, não há que se falar em prejuízo para o paciente.
Indevido desmembramento dos fatos em diferentes denúncias
O paciente alega violação do princípio do devido processo legal, ante o desmem-
bramento dos fatos apurados na “Operação Anaconda”, com o oferecimento de diversas
denúncias em vez de uma única peça acusatória.
Rejeito também essa causa de pedir, e o faço porque a reunião de feitos, por força
de conexão, nem sempre é obrigatória.
A regra do art. 79 do Código de Processo Penal, que determina, como regra geral,
um único processo para fatos conexos ou continentes, é abrandada justamente no artigo
subseqüente, cuja redação é a seguinte:
“Art. 80. Será facultativa a separação dos processos quando tiverem sido
praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou quando, pelo
excessivo número de acusados e para não prolongar a prisão provisória, ou por
outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação.”
Ora, parece-me que, além de se tratar de fatos distintos (o que implica dizer que não
há risco de decisões conflitantes), há evidente benefício para o paciente e todos os
demais réus. A particularização da acusação, nessas circunstâncias, confere maior agili-
dade ao trâmite do processo e garante ao acusado a melhor compreensão dos fatos que
lhe são atribuídos.
Parcialidade da desembargadora relatora da ação penal
Nulidade do acórdão que recebeu a denúncia
O paciente/impetrante alega que a desembargadora relatora, por razões de índole
subjetiva, teria prejulgado a denúncia. Isso teria ficado evidente em seu voto, o qual
conteria profunda análise dos fatos, imprópria naquela oportunidade processual. Além
disso, argumenta que indícios colhidos após o oferecimento da denúncia foram usados
para motivar o recebimento desta.
Rejeito essa causa de pedir, por considerar que o extenso voto da desembargadora
relatora é plenamente justificável, dada a pluralidade de denunciados e o conseqüente
número de questões suscitadas nas respostas por eles oferecidas, as quais foram todas
examinadas.
R.T.J. — 197 971
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Velloso (Presidente): Antes de proferir o meu voto, quero
registrar que ficou claro não existir procuração nos autos autorgada ao ilustre advogado,
Dr. Osmar Tognolo. Portanto, não é advogado, neste habeas corpus, o Dr. Osmar
Tognolo, meu cunhado.
Assim, não me considero impedido, tendo em vista a informação posta da tribuna,
no sentido de que seria juntado aos autos substabelecimento que a ser conferido àquele
ilustre advogado. O impedimento, no caso, não é do juiz, e, sim, do advogado, segundo
os dados postos da tribuna pela ilustre Advogada: o substabelecimento seria ou será
conferido ao ilustre advogado Osmar Tognolo.
Esclarecida a questão, acompanho o voto do eminente Ministro Relator. Denego a
ordem.
EXTRATO DA ATA
HC 84.301/SP — Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Paciente e Impetrante:
João Carlos da Rocha Mattos (Advogada: Daniela Pellin). Coator: Superior Tribunal
de Justiça.
Decisão: A Turma, por unanimidade, denegou a ordem, nos termos do voto do
Relator. Falou, pelo paciente, a Dra. Daniela Pellin. Ausentes, justificadamente, neste
julgamento, os Ministros Celso de Mello e Ellen Gracie. Presidiu este julgamento o
Ministro Carlos Velloso.
Presidência do Ministro Carlos Velloso. Presentes à sessão os Ministros Gilmar
Mendes e Joaquim Barbosa. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello e
Ellen Gracie. Subprocurador-Geral da República, Dr. Haroldo Ferraz da Nóbrega.
Brasília, 9 de novembro de 2004 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma
do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence, na
conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos,
conhecer do recurso ordinário em habeas corpus; vencido nesta parte, o Ministro Eros
Grau. Por unanimidade, negou-lhe provimento, nos termos do voto do Relator.
Brasília, 29 de março de 2005 — Sepúlveda Pertence, Presidente — Carlos Ayres
Britto, Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto: Cuida-se de recurso em habeas corpus
impetrado em favor de Ronan Maria Pinto, denunciado juntamente com outras cinco
pessoas, por formação de quadrilha voltada para a prática de crimes contra a Administração
Pública do Município de Santo André, especialmente o crime de concussão contra em-
presários do setor de transportes coletivos, contratados pela Municipalidade.
2. A denúncia inicialmente oferecida foi impugnada em writ impetrado no Tribu-
nal de Justiça do Estado de São Paulo. Naquela ocasião, sustentou-se constrangimento
974 R.T.J. — 197
VOTO
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Feito o relatório, passo ao voto. Antes,
contudo, entendo oportunas algumas considerações sobre a impetração.
13. Como visto, cuida-se de recurso ordinário em habeas corpus, sendo que nem
na impetração originária, nem no presente feito — todos subscritos pelo nobre
impetrante — houve solicitação de sustentação oral. Esse pedido foi feito, pela primeira
976 R.T.J. — 197
vez, na Petição n. 102.187, que somente chegou ao meu gabinete às 15h28, do dia
28-9-2004; portanto, quando já iniciada a Seção da Turma em que o feito foi apresen-
tado. É dizer também que a solicitação foi apresentada por uma das advogadas com
procuração nos autos, que, mesmo constando seu nome na autuação do feito, insistiu
para que o julgamento fosse adiado.
14. Pois bem, acolhido o pleito, o que me cabia era trazer os autos na sessão seguinte
(5-10-2004), o que efetivamente fiz. E, embora ciente da data do julgamento, os
impetrantes atravessaram nova petição (fls. 859/860) nesse mesmo dia 5 de outubro,
requerendo o adiamento do julgamento e a intimação para sustentação oral. Mais: um
dos impetrantes chegou a subir à tribuna para requerer vista dos autos, postulando apre-
ciar os documentos encaminhados pelo ilustrado Procurador-Geral da Justiça de São
Paulo.
15. O curioso é que a manifestação do Titular do Parquet paulista, protocolada em
2-9-2004, foi apensada aos autos no dia seguinte (certidão de fl. 849), havendo o parecer
da douta Procuradoria-Geral da República, datado de 16-9-2004, se reportando ao seu
conteúdo. Logo, bem vistas as coisas, é patente que os impetrantes tiveram tempo razoável
para apreciar os documentos, ou, ao menos, solicitar vista dos autos para fazê-lo. Toda-
via, preferiram requerer a vista na própria Turma, exatamente no dia em que o feito era
trazido pela segunda vez a julgamento. Deu-se, então, por mais uma vez, o acatamento da
solicitação dos impetrantes, adiando-se o julgamento do feito. Frise-se que o retarda-
mento na apreciação do pedido já havia sido censurado pelos próprios impetrantes,
quando reclamaram de “incompreensível delonga” na apresentação do parecer (fl. 852).
16. Muito bem. Após todas essas considerações, trago novamente o feito para
apreciação da Turma, examinando, agora sim, as questões suscitadas pelo impetrante
nas petições apresentadas.
17. De início, afasto qualquer ilegalidade na juntada das informações prestadas
pelo nobre Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo (Petição n. 102.185). É
que, sendo o habeas corpus ação mandamental, voltada à proteção da liberdade de
locomoção, não há óbice legal à anexação de quaisquer documentos úteis na formação
do convencimento do julgador quanto à ocorrência ou não do constrangimento ilegal
suscitado; especialmente quando tais informações são prestadas por uma autoridade
pública e, mais ainda, como no caso, pelo representante do Ministério Público, instância
juridicamente vinculada ao seu invencível papel de custos iuris (caput do art. 127 da
CF). Aliás, é nesse sentido a lição de Rogério Lauria Tucci, que, em sua obra Direitos e
Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, discorre sobre o papel dos
partícipes da ação mandamental, in verbis:
“(...)
(...) nas outras espécies de ação penal — de conhecimento, declaratória
(como a de habeas corpus preventivo), ou constitutiva (e.g. revisão criminal); e de
execução -, é, por igual, parte em sentido processual o investigado, indiciado,
acusado, ou condenado(...). Já o Ministério Público, por sua vez, nelas atua, pre-
ponderantemente, como órgão opinante, isto é, custos legis; todavia, com a mesma
incumbência de ‘defesa da ordem jurídica’ e dos interesses social e individual
R.T.J. — 197 977
EXTRATO DA ATA
RHC 84.404/SP — Relator: Ministro Carlos Britto. Recorrente: Ronan Maria Pinto
(Advogados: Rogério Lauria Tucci, Elaine Mateus da Silva e outra e Thaisa Prisco
Rodrigues Costa). Recorrido: Superior Tribunal de Justiça.
R.T.J. — 197 979
DEBATE
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Senhor Presidente, há a questão da juntada. Ficaria
com a última parte do voto de Sua Excelência, o Relator, segundo a qual não se tem, no
habeas corpus, nem acusação, nem contraditório propriamente dito.
Creio que os documentos foram trazidos pelo titular da ação penal e, consoante a
manifestação da Subprocuradora-Geral da República, este habeas faz-se ainda dirigido
contra o que seria a ação penal.
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Não existe, ainda, ação penal. Não há
processo penal instaurado.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não. Quanto à primeira denúncia, chegou a ser
recebida.
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Quanto à primeira, sim. A segunda foi
anulada.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Foi anulada. Entretanto, pelo que percebi — aí
gostaria de contar com um esclarecimento do Relator —, a impetração está dirigida
contra esse primeiro processo, em que houve a declaração de insubsistência da denúncia;
assim não se tem objeto. Agora, de qualquer forma, a mim pelo menos causa espécie
admitir o que seria a fase de instrução no próprio habeas corpus, com a participação do
titular da ação penal, a ofertar documentos, muito embora eles tenham sido trazidos por
interposta pessoa, pelo órgão do Ministério Público Federal.
O Sr. Rogério Lauria Tucci (Advogado): Com a devida vênia, uma questão de fato.
Também foi endereçada e protocolizada em direção ao Ministro Relator.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Pelo próprio Procurador de Justiça?
O Sr. Rogério Lauria Tucci (Advogado): Pelo próprio Procurador, ele mandou dois
expedientes.
980 R.T.J. — 197
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Pelo titular da ação penal, enquanto tal, já que ele
não oficia como fiscal da lei no Supremo Tribunal Federal.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Ministro, qual é o objeto desta impetração?
O Sr. Ministro Cezar Peluso: V. Exa. me permite? Era exatamente isso que ia
perguntar. Parece-me que se trata de habeas corpus de caráter preventivo. Não li os
termos, porque não tenho cópia da petição inicial.
O Sr. Advogado: Sr. Presidente, uma questão de fato. Exatamente isso, a segunda
denúncia tem a mesma origem, viciada, que a primeira.
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Quanto a isso é preciso deixar que o
juiz natural se pronuncie, se é ou não ação.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: A impetração formalizada, tal como originariamente,
está voltada contra a primeira ou a segunda denúncia?
O Sr. Rogério Lauria Tucci (Advogado): A primeira impetração abrange as duas
situações com uma tese: de que o Ministério Público investigou, só exclusivamente, e
que não pode investigar exclusivamente.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Objetivamente, qual é o alvo da impetração?
O Sr. Rogério Lauria Tucci (Advogado): Como o Tribunal considerou nulo o
procedimento, ele continua sendo nulo, e que seja considerado nulo, também, em relação
ao prosseguimento.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Então, está voltada contra a segunda denúncia?
O Sr. Rogério Lauria Tucci (Advogado): É isso. Com caráter preventivo, é óbvio.
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Digo que a segunda denúncia não foi
nem recebida. Não há ação propriamente dita.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: V. Exa. poderia me esclarecer mais uma coisa? Aliás,
o ilustre Advogado pode esclarecer, porque se trata de matéria de fato, se, eventualmen-
te, seja o caso. O habeas corpus foi impetrado quanto à ressalva contida no acórdão de
que poderia ser oferecida nova denúncia?
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Perfeito. Agora, disse o acórdão, “com
as cautelas de praxe”.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Realmente, contra a própria res-
salva que possa ser oferecida nova denúncia, aí fica difícil.
O Sr. Rogério Lauria Tucci: Não é propriamente contra a ressalva, é a tese da
investigação.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Isso foi levado ao Tribunal de
Justiça de São Paulo?
O Sr. Rogério Lauria Tucci (Advogado): Foi levado. Inclusive o recurso procura
mostrar exatamente o equívoco no STJ, porque o acórdão de lá dá a entender que o
Ministério Público não exorbitou, como foi falado no relatório. Não é este o ponto, e,
sim, se ele pode ou não continuar fazendo essa investigação. Exatamente esse o termo do
habeas corpus.
R.T.J. — 197 981
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Sob a minha óptica, a ressalva não estaria a desafiar
impetração. Poderia o Ministério Público, conforme previsto no Código de Processo
Penal, ofertar nova denúncia com base em outros fatos, outros elementos.
O Sr. Rogério Lauria Tucci (Advogado): Foi impetrado exatamente com essa fina-
lidade, deve ser textual. Não me lembro bem dos termos. Foi impetrado contra esta parte
do acórdão e permitiu que o Ministério Público continuasse investigando. O que ele
quis evitar, obstar é a sua investigação, exclusivamente. Exatamente, é preventivo.
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): O Ministério Público oferta uma
segunda denúncia e se diz embasado em novos elementos de convicção, em novos
elementos probatórios colhidos exatamente junto à Comissão Parlamentar de Inquérito,
que se abriu lá no Município de Santo André. Só que isso não foi apreciado, não quero
suprimir instância, reservo a causa para o seu juízo natural — para a instância competente.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Não se teria sequer uma impetração preventiva, mas
a partir da premissa não do que normalmente deveria ocorrer, considerada a glosa do
Tribunal de Justiça de São Paulo, quanto à primeira denúncia alicerçada em investiga-
ção do Ministério Público, e sim presumindo-se o excepcional: que o Ministério Público
viria a propor a ação penal a partir das investigações por si feitas.
O Sr. Rogério Lauria Tucci (Advogado): Uma questão de fato, Excelência. Quando
o habeas corpus foi impetrado, já havia a segunda denúncia, ela é de dois anos atrás, 25
de fevereiro de 2003.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Daí eu ter perguntado: qual o alvo da impetração, o
pano de fundo?
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Bem, o eminente Relator julga
prejudicado?
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Eu não conheço.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Temos de conhecer.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Não conhecer? É um recurso
contra decisão denegatória do STJ. Temos que conhecer do recurso.
O Sr. Ministro Carlos Ayres Britto (Relator): Acho que não é caso de habeas
corpus.
Então, acato a sugestão de V. Exa. e nego provimento.
EXTRATO DA ATA
RHC 84.404/SP — Relator: Ministro Carlos Britto. Recorrente: Ronan Maria Pinto
(Advogados: Rogério Lauria Tucci, Elaine Mateus da Silva e outra e Thaisa Prisco
Rodrigues Costa). Recorrido: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Renovado o pedido de vista do Ministro Eros Grau, de acordo com o art.
1º, § 1º, in fine, da Resolução n. 278/2003. Primeira Turma, 7-12-2004.
Decisão: Adiado o julgamento por indicação do Ministro Eros Grau.
982 R.T.J. — 197
VOTO (Vista)
O Sr. Ministro Eros Grau: Após o voto do Ministro Carlos Britto, proferido na
Sessão de 26-10-04, negando provimento ao recurso, pedi vista dos autos e agora os
trago em mesa.
2. O impetrante ajuizou habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo,
objetivando anular a denúncia oferecida contra o paciente, sob a alegação de que a
investigação fora empreendida exclusivamente por membros do Parquet estadual; sus-
tentou, ademais, que os promotores não observaram as mínimas garantias processuais
dos investigados.
3. A Corte paulista rejeitou a tese de ilegalidade das investigações e acolheu o
segundo fundamento da impetração para anular a denúncia, sem prejuízo de que outra
fosse apresentada.
4. Insatisfeito, o paciente impetrou novo habeas corpus, desta feita nesta Corte,
que declinou da competência para o STJ.
5. O Tribunal a quo denegou a ordem, advindo este recurso ordinário pelo qual o
impetrante insiste na ilegalidade dos poderes investigatórios do Ministério Público.
6. Para facilitar a compreensão, cumpre situar, cronologicamente, os acontecimen-
tos: a primeira denúncia, oferecida em junho/2002, foi recebida em 29-7-02 (fls. 99/110)
e anulada pelo TJ/SP em 5-11-02, em acórdão que ensejou a impetração de outro HC
diretamente neste Tribunal, em 25-9-03. Como visto antes, o Ministro Carlos Britto
declinou da competência para o STJ (fl. 406), onde o writ foi indeferido em 18-12-03 e
agora volta ao STF em forma de RHC, concluso ao Relator em 8-6-04. A segunda
denúncia, equivocadamente datada de 25-2-02 (há certidão atestando que a data correta
é 25-2-03 — fls. 894/906 e 907), não foi recebida, conforme certidão acostada pelo
impetrante. Importante registrar que ela foi apresentada entre a decisão que anulou a
primeira (em 5-11-02) e a impetração de HC nesta Corte, em 25-9-03.
7. As razões expostas no HC impetrado nesta Corte visaram impugnar a primeira
denúncia com o fito de anular a segunda, oferecida sete meses antes da impetração.
Está clara a intenção de suprimir a competência do Tribunal paulista, que já explicitara
entendimento sobre o tema. Não vislumbrando êxito naquela Corte, o impetrante pegou
atalho para o Supremo Tribunal Federal, na perspectiva de melhor sorte, pois sabedor da
controvérsia aqui instaurada sobre a matéria, sem atentar, no entanto, que o STJ é o órgão
competente para julgar ato de tribunal estadual.
8. Pretende agora a declaração de ilegalidade do procedimento administrativo
atribuído ao Ministério Público estadual, a fim de que se anule também a segunda
denúncia, ao argumento de haver identidade entre esta e a primeira, com ressalva da
existência de mínimas dessemelhanças entre ambas, que, explicitadas em legenda, sig-
R.T.J. — 197 983
EXTRATO DA ATA
RHC 84.404/SP — Relator: Ministro Carlos Britto. Recorrente: Ronan Maria Pinto
(Advogados: Rogério Lauria Tucci, Elaine Mateus da Silva e outra e Thaisa Prisco
Rodrigues Costa). Recorrido: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Prosseguindo o julgamento, após o voto do Ministro Eros Grau não
conhecendo do recurso ordinário em habeas corpus, pediu vista dos autos o Ministro
Cezar Peluso.
Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence. Presentes à sessão os Ministros Marco
Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto e Eros Grau. Subprocurador-Geral da República, Dr.
Eitel Santiago de Brito Pereira.
Brasília, 8 de março de 2005 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
VOTO (Vista)
O Sr. Ministro Cezar Peluso: 1. O presente recurso tem origem em habeas corpus
impetrado perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e no qual se alegou
constrangimento ilegal que estaria sofrendo o ora recorrente, entre outras pessoas, em
virtude de recebimento de denúncia baseada em procedimento administrativo da Pro-
motoria de Santo André/SP. O writ foi deferido pela Corte estadual, que, anulando a
decisão de recebimento da denúncia, dispôs: “ressalvado o eventual oferecimento de
984 R.T.J. — 197
outra, desde que, precedentemente sejam observadas as garantias legais neste acórdão
explicitadas, vale dizer, a oitiva do investigado-paciente, facultando-se à defesa tudo
aquilo que lhe permite o Código de Processo Penal quando tratado inquérito policial”
(fl. 164).
2. Segundo o recorrente, a admissão indireta, pela decisão do TJSP, da investiga-
ção criminal realizada pelo Ministério Público — ainda que anulado o ato de recebi-
mento da denúncia —, estaria a causar-lhe constrangimento ilegal, donde a nova
impetração de ordem ao Superior Tribunal de Justiça, que a indeferiu sob argumento de
ausência de coação ilegal à míngua de excesso na atividade do Ministério Público (fls.
373/379).
3. Contra tal decisão, o recorrente “insiste na tese da impossibilidade do recebi-
mento de denúncia baseada exclusivamente em investigação realizada pelo Ministério
Público Federal, o que, no entender dele, recorrente, implicaria usurpação da compe-
tência constitucional da Polícia Civil” (fl. 2 do relatório do Ministro Relator).
4. Os Ministros Carlos Britto, Relator, e Eros Grau votam pela denegação.
5. Acompanho-os na essência.
6. Observo desde logo, como de passagem o fez o ilustre Ministro Relator, ser
duvidosa a presença de interesse recursal, perante esta Corte, e a própria existência
teórica de constragimento, na impetração originária perante o Superior Tribunal de
Justiça.
7. O habeas é remédio constitucional contra constrangimento ilegal. Sua aptidão
supõe, portanto, a descrição de situação objetiva capaz de tipificar coação ou ameaça à
liberdade de locomoção do paciente. E “a providência solicitada deve propiciar ao
interessado um resultado prático” (GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO,
Antonio Magalhães. FERNANDES, Antonio Scarance. Recursos no processo penal. 3
ed. São Paulo: RT, 2001, p. 350).
8. Ora, não havia, como não há, descrição alguma de ato que, suscetível de carac-
terizar coação ou ameaça à liberdade de locomoção do ora recorrente, pudera justificar-
lhe o pedido no Superior Tribunal de Justiça, pois que a decisão de recebimento da
denúncia havia sido anulada no habeas impetrado perante a Corte estadual.
9. Não há dúvida de que pode o writ ser também proposto com caráter preventivo,
quando “houver uma prisão atual ou simples ameaça, mesmo que remota, de restrição
ao direito de liberdade física de alguém” (GRINOVER, Ada Pellegrini [et al], op. cit.
p. 350). No caso, não há, todavia, sequer ameaça, já que a decisão do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo aventou mera possibilidade (de atualização futura e incerta) de
o Ministério Público, cumpridas certas exigências, oferecer nova denúncia.
10. Ora, a alusão do acórdão, sob forma de ressalva, é à simples possibilidade
factual de oferecimento de denúncia, sem nenhuma garantia, que seria demasiada, de
eventual recebimento. Nada acrescenta nem subtrai em termos jurídicos.
11. Ou seja, o presente recurso mais se afeiçoa à idéia de consulta, pois submete à
Corte, não a alegação da existência de situação concreta atual ou potencialmente danosa
à liberdade física do paciente, senão mera hipótese, sobre cujo desfecho, é óbvio, não
cumpre à Corte antecipar-se, até porque pode vir a ser inócuo.
R.T.J. — 197 985
O Sr. Ministro Marco Aurélio: No caso, Relator, tratar-se-ia, então, de uma impetra-
ção, ajuizada no Superior Tribunal de Justiça, de contornos preventivos, para se obstacu-
lizar o recebimento de uma segunda denúncia, no que poderia vir à balha, assentada a
investigação promovida pelo Ministério Público? Seria isso. O receio é que se receba essa
segunda denúncia a partir de uma investigação promovida pelo Ministério Público?
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não. O receio é que se leve a sério a ressalva do
Tribunal, que, tirada ou mantida, não altera nada em termos decisórios. Uma segunda
denúncia poderá ser oferecida de qualquer maneira, com ou sem essa ressalva, e, recebida,
ou não.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Se houver algum vício, haverá oportunidade para
nova impetração e o ataque por parte da defesa.
Presidente, muito embora compreendendo o zelo elogiável do patrono do recor-
rente, acompanho o Relator, no caso, desprovendo o recurso.
EXTRATO DA ATA
RHC 84.404/SP — Relator: Ministro Carlos Britto. Recorrente: Ronan Maria Pinto
(Advogados: Rogério Lauria Tucci, Elaine Mateus da Silva e outra e Thaisa Prisco
Rodrigues Costa). Recorrido: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Adiada a continuação do julgamento para o próximo dia 29 de março.
Presidiu o julgamento o Ministro Marco Aurélio. Não participou deste julgamento o
Ministro Sepúlveda Pertence. Primeira Turma, 15-3-2005.
Decisão: Prosseguindo o julgamento, a Turma, por maioria de votos, conheceu do
recurso ordinário em habeas corpus; vencido, nesta parte, o Ministro Eros Grau. Por
unanimidade, negou-lhe provimento, nos termos do voto do Relator.
Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence. Presentes à sessão os Ministros Marco
Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto e Eros Grau. Subprocuradora-Geral da República,
Dra. Maria Caetana Cintra Santos.
Brasília, 29 de março de 2005 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
986 R.T.J. — 197
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma
do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence, na
conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos,
indeferir o pedido de habeas corpus.
Brasília, 13 de setembro de 2005 — Sepúlveda Pertence, Presidente — Eros Grau,
Relator.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Eros Grau: Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordiná-
rio em que é apontada como coatora a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que
denegou o HC n. 31.665, assim ementado:
“Processo Penal — Homicídio — Júri — Formulação de Quesitos — Nuli-
dade — Inocorrência.
— Conforme firme jurisprudência desta Corte, eventual irregularidade na
formulação dos quesitos no procedimento do Tribunal do Júri devem ser argüidas
[sic] no momento oportuno, antes do julgamento, sob pena de preclusão.
— Ordem denegada.”
R.T.J. — 197 987
VOTO
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): O pedido formulado nesta impetração é alterna-
tivo: visa ao reconhecimento das nulidades e conseqüente anulação da decisão do Júri
ou do acórdão da apelação, por omissão, a fim de que as teses deduzidas nas razões
recursais sejam efetivamente apreciadas em novo julgamento.
2. O primeiro quesito tem a seguinte redação:
“1º Quesito: No dia 24 de novembro de 2004, em horário ignorado, nas
dependências da suíte do apartamento n. 404, situado no 4º Andar, do Edifício
Copenhague, localizado na rua Goiás, n. 1.914, nesta cidade e Comarca, o réu
Marco Antônio Germano de Souza, fazendo uso de um objeto semelhante a uma
corda, promoveu asfixia por estrangulamento de sua esposa, ora vítima, Rosiane
Gonçalves da Silva, produzindo-lhe, assim, os ferimentos descritos no Laudo de
Exame Cadavérico de fls. 31/34?”
3. Segundo o impetrante, o fato de constar no primeiro quesito a expressão “pro-
moveu asfixia por estrangulamento”, configura constrangimento ilegal, nos termos da
Súmula 162/STF2.
4. A alegação é improcedente. O Juiz descreveu o objeto utilizado na prática do
crime como sendo uma corda ou algo semelhante, cuja potencialidade, obviamente,
seria a de causar asfixia por estrangulamento. Apesar de a inserção desses termos no
quesito relativo ao fato principal ser inconveniente, não é correta a afirmação de que a
circunstância agravante (rectius: qualificadora) antecedeu aos quesitos correspondentes
às circunstâncias atenuantes. A indagação relativa à asfixia foi respondida afirmativa-
mente, no 4º quesito, assim redigido:
“O réu ao tirar a vida da vítima, com o emprego de uma corda, colocando-a
em torno de seu pescoço, passando a apertá-lo, veio a proporcionar desta forma,
atroz, desnecessário e exagerado sofrimento físico, agiu com emprego de asfixia?”
5. O inciso III do artigo 484 do CPP dispõe que “o juiz formulará, sempre, um
quesito sobre a existência de circunstâncias atenuantes, ou alegadas”. Se afirmativa a
resposta, formulará questionário a respeito, segundo a regra do inciso IV do artigo citado.
A hipótese do inciso III refere-se a quesito genérico, cuja afirmação leva à formulação de
quesito(s) específico(s). Os jurados responderam negativamente ao serem indagados se
existiam circunstâncias atenuantes, de modo que não cabe ao impetrante alegar nulidade
por inversão dos quesitos.
6. De igual modo, não prospera a alegação de perplexidade decorrente do uso da
adjetivação penal “motivo torpe” desacompanhada da explicação de seu significado em
linguagem acessível à compreensão dos jurados. A transcrição do seguinte trecho da ata
de julgamento infirma o argumento:
“Concluído os debates, o Doutor Juiz indagou dos jurados se estavam habili-
tados a julgar a causa ou se precisavam de maiores esclarecimentos, tendo recebido
resposta de que estavam habilitados e, como tal, não precisavam de maiores escla-
recimentos. Em seguida, lendo os quesitos e explicando a significação legal de
cada um [grifei], o Doutor Juiz indagou das partes se tinham requerimento ou
reclamação a fazer. Não havendo nenhum pedido, o Doutor Juiz anunciou que iria
proceder ao julgamento.”
7. Tem-se, destarte, que os jurados compreenderam o significado dos quesitos e as
partes, provocadas pelo Juiz, silenciaram a respeito.
8. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que a apelação contra sentença
do júri deve restringir-se à matéria impugnada em ata (cf., entre outros, os HHCC n.
75.905, Sydney Sanches; 81.890, Nelson Jobim; 81.906, Carlos Velloso, e 83.107, Celso
de Mello).
2 É absoluta a nulidade do julgamento pelo júri, quando os quesitos da defesa não precedem aos das
circunstâncias agravantes.
R.T.J. — 197 989
9. A regra cede quando “o silêncio das parte, durante o julgamento, sobre a apre-
sentação de quesito complexo ou de formulação irregular (...), por sua gravidade, é
passível de conduzir o Conselho de Sentença a erro ou perplexidade sobre o fato sujeito
a decisão” (RTJ 80/450).
10. Essa não é a hipótese dos autos.
11. Finalmente, ao contrário do que se alega, o acórdão proferido na apelação não
é omisso quanto às teses deduzidas nas razões recursais, porquanto reproduz trecho da
ata de julgamento — já transcrito acima — que revela os esclarecimentos necessários
feitos pelo Juiz, concluindo em seguida:
“Vê-se, portanto, que os senhores jurados não pediram qualquer esclareci-
mento a respeito dos fatos e dos quesitos, o que mostra a inexistência de confusão
ou perplexidade por parte daqueles julgadores, o que afasta a tese da defesa, defen-
dida no recurso.
Ademais, vale lembrar que a defesa também não se opôs à formulação dos
quesitos no momento da leitura.
Segundo a orientação jurisprudencial, não se anula o julgamento em razão
da formulação de quesitos, quando após a sua leitura os jurados não pedem escla-
recimentos e nem as partes fazem qualquer reclamação a respeito dos mesmos.”
Denego a ordem.
para, também sob esse ângulo, se vencido quanto à nulidade do Júri, concluir que cabe
conceder a ordem para tornar insubsistente o acórdão proferido por força da apelação
interposta pela defesa, a fim de que as matérias nela versadas sejam devidamente anali-
sadas, decidindo o órgão como entender de direito.
Então, sucessivamente, se não acolhido o primeiro pedido, voto, também, favora-
velmente ao segundo formulado na inicial do habeas corpus.
VOTO (Confirmação)
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): Sr. Presidente, apenas para esclarecer, com a
devida vênia do Ministro Marco Aurélio: quanto ao primeiro argumento, seria o mesmo
que indagar se “fulano”, utilizando-se de uma arma de fogo, provocou lesões que culmi-
naram com a morte da vítima. A questão é única e exclusivamente de identificação do
instrumento usado.
Com relação à segunda parte, li no final do meu voto: efetivamente, não houve a
negação de prestação jurisdicional.
Por isso, mantenho o meu voto e indefiro o pedido de habeas corpus.
VOTO
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): A omissão estaria em não ter sido
considerado o quê?
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): A questão do motivo torpe. Mas no próprio
acórdão lê-se:
“Vê-se, portanto, que os senhores jurados não pediram qualquer esclareci-
mento a respeito dos fatos e dos quesitos, o que mostra a inexistência de confusão
ou perplexidade por parte daqueles julgadores, o que afasta a tese da defesa, defen-
dida no recurso.”
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Bem ou mal, respondeu-se.
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): A perplexidade seria sobre o motivo torpe
exatamente.
O Sr. Bruno Augusto Gonçalves Vianna (Advogado): Sr. Presidente, um esclareci-
mento de fato? Essa questão, Ministro Eros Grau, diz respeito à quesitação. A segunda
causa de pedir da impetração diz respeito à ausência de apreciação de tese da defesa na
apelação, depois do julgamento pelo Tribunal do Júri.
O Sr. Ministro Eros Grau (Relator): No acórdão foi examinada a matéria.
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Há, realmente, trecho abrangente, linear, com refe-
rência ao segundo tópico da apelação — das provas contrárias à tese da acusação. Não
tenho a explicitação. Vale, de início, lembrar que, nas decisões do tribunal do júri, não
cabe ao Tribunal, em grau de recurso, fazer qualquer valoração das provas. Não sei se
seria quanto à autoria, a imputação em si, ou a problemática do motivo torpe. Logo a
seguir, sinalizando a que esse trecho diria respeito, há referência expressa a essa última
autoria.
R.T.J. — 197 991
VOTO
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Peço vênia ao eminente Relator
para não subscrever a afirmação apodítica de que a falta de protesto na sessão do Júri
sana a nulidade decorrente dos vícios do questionário.
Ao contrário, essa causa de nulidade decorreu de lei posterior ao Código de Processo
Penal e não foi incluída no rol daquelas nulidades sanáveis pela falta de argüição no
momento previsto.
Não obstante, não creio que o questionário, no caso, padeça de nulidade alguma. É
habilidosa a tese de que a menção à asfixia no primeiro quesito, relativo à autoria e à
materialidade, o tornaria complexo, de modo a traduzir resposta afirmativa o prejulga-
mento da qualificadora do uso da asfixia, como modo cruel de execução do crime. Uma
dificuldade praticamente insolúvel.
O primeiro quesito tem que dizer como o réu teria causado as lesões sofridas pela
vítima. E, no caso, não poderia dizer outra coisa, senão aludir à asfixia.
Acresce que, adotando a tese mais liberal na inteligência do § 2º, III, do art.121 do
Código Penal, o quesito sobre a qualificadora não se limitou ao dado objetivo de ter sido
o homicídio tratado mediante asfixia: ao contrário, referiu-se à asfixia, sim, mas para
indagar se, em conseqüência, fora infligido sofrimento anormal à vítima.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Já em outro quesito.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Sim. Impressionou-me, por outro
lado, a alegação de nulidade por omissão do acórdão que repeliu a apelação da defesa. É
fato, no acórdão que julgou inicialmente a apelação, efetivamente não há menção a ter
o reconhecimento do motivo torpe contrariado a prova dos autos. Houve, então, embar-
gos de declaração suscitando esse problema, em cujo julgamento o Tribunal, mal ou
bem, entendeu que não lhe cabia, a propósito, valorar a prova. Assim, houve exame do
tema e motivação.
Caberia indagar, aqui, do acerto da afirmação pelo acórdão dos embargos de decla-
ração de que não lhe competia fazer nenhuma avaliação da prova? Eu poderia chegar a
tanto, se a resposta não fosse proporcional à da apelação. Depois de longas razões para
sustentar contrariedade à prova quanto à materialidade e à autoria — afinal de contas,
era um caso em que se controvertia sobre a existência de homicídio ou suicídio —, eis o
que se contém, na apelação, quanto ao motivo torpe.
992 R.T.J. — 197
O Sr. Ministro Marco Aurélio: Mas aí caberia apreciar para definir se a conclusão
dos jurados seria, ou não, manifestamente contrária à prova dos autos.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): Não. Afirma-se apenas que não há
prova da torpeza do motivo, sem justificar a assertiva.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não, é por falta de prova.
O Sr. Ministro Carlos Britto: Não é prova contrária.
O Sr. Ministro Cezar Peluso: Não é prova contrária; é textualmente. Ele disse que
havia falta de prova da qualificadora do motivo torpe.
O Sr. Ministro Sepúlveda Pertence (Presidente): É apelação do veredicto do júri,
limitada e vinculada a uma motivação específica.
Por isso, denego a ordem.
EXTRATO DA ATA
HC 84.560/PR — Relator: Ministro Eros Grau. Paciente: Marco Antonio Germano
de Souza. Impetrante: Bruno Augusto Gonçalves Vianna. Coator: Superior Tribunal de
Justiça.
Decisão: A Turma, por maioria de votos, indeferiu o pedido de habeas corpus;
vencido o Ministro Marco Aurélio, que o deferia. Falou pelo paciente o Dr. Bruno
Augusto Gonçalves Vianna.
Presidência do Ministro Sepúlveda Pertence. Presentes à sessão os Ministros Marco
Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto e Eros Grau. Subprocuradora-Geral da República,
Dra. Delza Curvello Rocha.
Brasília, 13 de setembro de 2005 — Ricardo Dias Duarte, Coordenador.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribu-
nal Federal, em Segunda Turma, sob a Presidência do Ministro Carlos Velloso (RISTF,
art. 37, II), na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria
de votos, deferir o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Ministro Gilmar
Mendes.
Brasília, 13 de dezembro de 2005 — Carlos Velloso, Presidente — Gilmar Mendes,
Relator para o acórdão.
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa: A Ordem dos Advogados do Brasil impetra
habeas corpus, sem pedido de liminar, em favor de Sérgio Salgado Ivahy Badaró,
advogado, denunciado por “ter inserido declaração falsa num documento particular,
com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante” (fl. 04).
Contra o recebimento da denúncia foi impetrado habeas corpus ao Tribunal de
Justiça de São Paulo, cuja 1ª Câmara Criminal denegou a ordem, com fundamento na
inaplicabilidade à hipótese do precedente firmado no RHC 43.396 (Rel. Min. Evandro
Lins e Silva, Primeira Turma, j. 22-8-1966). Em face dessa decisão, foi impetrado novo
habeas corpus, agora ao Superior Tribunal de Justiça, cujo pedido também foi
denegado.
Solicitei informações, que foram devidamente prestadas e acompanhadas do inteiro
teor do acórdão atacado, cujo fundamento central é, na espécie, a imprescindibilidade
do “cotejo minucioso da matéria fático-probatória” (fl. 114) para a demonstração da
atipicidade alegada, o que impediria o trancamento da ação penal por falta de justa
causa.
O acórdão do Superior Tribunal de Justiça tem a seguinte ementa:
“Processual Penal. Habeas corpus. Art. 299 do CPP. Trancamento da ação
penal. Justa causa. Atipicidade da conduta. Ausência de potencialidade lesiva.
I - O trancamento da ação penal por falta de justa causa, somente é possível em
sede de habeas corpus, se demonstrado, de plano, v.g., a atipicidade da conduta, a
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VOTO
O Sr. Ministro Joaquim Barbosa (Relator): No julgamento do RHC 43.396 (Rel.
Min. Evandro Lins e Silva, Primeira Turma, j. 22-8-1966), efetivamente decidiu-se que
“a retratação de uma testemunha, e por esta assinada, não é documento penalmente
protegido”.
Na ocasião, partiu o Ministro Relator da premissa de que o documento não era
“idôneo a produzir dano”, para concluir que “o fato, em si, descrito na denúncia não
constitui crime em tese”, tendo Sua Excelência examinado inclusive a informação cons-
tante da denúncia de que o signatário da petição se mostrava inibido e acanhado.
Tratava-se de hipótese análoga à presente, em que o paciente também era advogado.
Mas acredito que as semelhanças daquele precedente não se estendem às circunstâncias
deste caso.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu, ao indeferir a ordem em
favor do ora paciente (fl. 70), que basta a ocorrência de dano potencial causado pelo
documento assinado por orientação do paciente para justificar o prosseguimento da
ação penal.
Em linha semelhante, o Superior Tribunal de Justiça afirmou ser inviável o
trancamento da ação penal sem a demonstração de plano da atipicidade da conduta. Cito
trecho da ementa:
R.T.J. — 197 997
“II - Não é a via eleita adequada para se trancar a ação penal, se para a
constatação da alegada atipicidade da conduta por ausência de potencialidade
lesiva faz-se imprescindível o cotejo minucioso de matéria fático-probatória, o
que é vedado em habeas corpus.” (Fl. 114)
Entendo que a conclusão do Superior Tribunal de Justiça é correta, considerando
as circunstâncias do caso.
Com efeito, conforme consta da denúncia, o ora paciente teria orientado a testemunha
César Augusto Castilho a firmar a declaração em causa após ter tido conhecimento de
que este se tornara amigo de Sheila Aparecida Costa, filha do indiciado por homicídio,
José Roberto da Costa.
Na denúncia, relata-se:
“Tal documento foi obtido mediante pressão psicológica exercida sobre
César, por conta da já referida amizade com Sheila, tanto que no momento em que
Maria Lúcia dos Santos Costa (esposa de José Roberto da Costa) apresentou a
referida declaração ao Tabelião de Notas, a fim de que a firma do seu subscritor
fosse reconhecida, a cartorária Juliana Ribeiro dos Santos (coincidentemente noiva
de César) notou a divergência entre as assinaturas constantes dá declaração e da
ficha que permanecesse arquivada no cartório, negando-se a realizar o ato; sendo
necessário que o próprio César comparecesse pessoalmente ao Cartório e confir-
masse a autenticidade do documento.
Sabedora de que César nunca havia manifestado qualquer dúvida acerca do
reconhecimento de José Roberto da Costa como o autor do crime de homicídio,
Juliana revelou suas suspeitas ao órgão do Ministério Público desta Comarca, o
que ensejou a requisição da instauração do presente procedimento apuratório.”
(Fl. 118)
Consta que a testemunha confirmou em juízo a versão inicial de seu depoimento,
contrária à da declaração, e, a respeito dessa, afirmou que não compreendia bem os
termos técnicos e que o ora paciente lhe dissera que a declaração não alteraria o teor do
depoimento. Nesse sentido, destaca a denúncia que o ora paciente, “advogado crimina-
lista experiente e professor de curso de Direito”, ainda que soubesse da possibilidade de
nova audiência da testemunha, pretendeu criar dúvida na mente dos jurados acerca da
autoria do crime de homicídio.
Como se vê, a denúncia contém elementos adicionais indicativos da impossibili-
dade de redução das circunstâncias do caso aos limites do precedente firmado no RHC
43.396 e, no meu entender, que não indicam a manifesta atipicidade da conduta descrita.
Ainda que se concluísse pela inaplicabilidade do art. 299 do Código Penal à
espécie, restaria ao juízo competente a qualificação jurídica dos fatos narrados na de-
núncia, conforme jurisprudência desta Corte, e isso também obstaria o deferimento da
ordem (cf. RHC 64.999, Rel. Min. Moreira Alves, Primeira Turma, j. 11-9-1987, e HC
68.720, Rel. Min. Celso de Mello, Primeira Turma, j. 10-12-1991).
Por esse aspecto, considero irrelevante para o caso a argumentação do impetrante
referente à ausência de dano, pois não se pode afirmar de plano a atipicidade sem que se
aprofunde o exame dos fatos narrados na denúncia. Em conseqüência, indefiro a ordem.
998 R.T.J. — 197
EXTRATO DA ATA
HC 85.064/SP — Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Paciente: Sérgio Salgado
Ivahy Badaró. Impetrante: Ordem dos Advogados do Brasil (Advogados: Alberto
Zacharias Toron e outro). Coator: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Após o voto do Ministro Relator, indeferindo a ordem, pediu vista o
Ministro Gilmar Mendes. Falou, pelo paciente, o Dr. Alberto Zacharias Toron. Ausentes,
justificadamente, neste julgamento, os Ministros Celso de Mello e Ellen Gracie. Presidiu
este julgamento o Ministro Carlos Velloso.
Presidência do Ministro Carlos Velloso. Presentes à sessão os Ministros Gilmar
Mendes e Joaquim Barbosa. Subprocuradora-Geral da República, Dra. Sandra Verônica
Cureau.
Brasília, 21 de junho de 2005 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador.
VOTO (Vista)
O Sr. Ministro Gilmar Mendes: Em sessão do dia 21-6-2005, o Min. Joaquim
Barbosa, Relator do presente habeas corpus, proferiu voto pelo indeferimento do writ.
Apenas para rememorar o caso, vale mencionar que, na espécie, o paciente, Sérgio
Salgado Ivahy Badaró, advogado, foi denunciado pela suposta prática do crime de
falsidade ideológica (CP, art. 299).
Originariamente, impetrou-se habeas corpus ao Tribunal de Justiça de São Paulo
contra o recebimento da denúncia. A ordem foi denegada pelo TJSP sob o fundamento
de que o precedente RHC n. 43.396/RS, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, 1ª T., DJ de 22-
8-1966, seria inaplicável à espécie. Em face dessa decisão, novo habeas corpus foi
impetrado ao Superior Tribunal de Justiça, cujo pedido também foi denegado. O presente
habeas corpus, impetrado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em favor de
Sérgio Salgado Ivahy Badaró, insurge-se contra essa decisão do STJ, que foi ementada
nos seguintes termos:
“Processual Penal. Habeas Corpus. Art. 299 do CP. Trancamento da ação
penal. Justa causa. Atipicidade da conduta. Ausência de potencialidade lesiva.
I - O trancamento da ação penal por falta de justa causa, somente é possível
em sede de habeas corpus, se demonstrado, de plano, v.g. a atipicidade da condu-
ta, a incidência de causa de extinção de punibilidade, ou ainda a total ausência de
indícios de autoria, ou de prova da materialidade do delito, hipóteses não consta-
tadas, prima facie, na espécie. (Precedentes).
II - Não é a via eleita adequada para se trancar a ação penal, se para a
constatação da alegada atipicidade da conduta por ausência de potencialidade
lesiva faz-se imprescindível o cotejo minucioso de matéria fático-probatória, o
que é vedado em habeas corpus. (Precedentes).
Writ denegado.” (fl. 71)
A impetrante apresenta como fundamento principal o fato de que trata de decla-
ração unilateral não ofertada, portanto, perante o competente juízo. Conseqüentemente,
R.T.J. — 197 999
esse ato declaratório não possuiria, por si só, valor probante em matéria penal. Por fim,
em que pese a consideração de que a declaração constou de documento registrado em
cartório, a impetração sustenta que ela não poderia ter sido considerada como documento
apto para a procedência do pedido de persecução penal com fulcro no art. 299 do CP,
uma vez que não acarretou qualquer dano para a instrução criminal.
Alega-se, também, ser o presente caso absolutamente idêntico ao apreciado julga-
mento do RHC n. 43.396/RS, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, 1ª T., DJ de 22-8-1966.
Nesse precedente, o então Relator entendeu que o documento não era “idôneo a produ-
zir dano” e que “o fato, em si, descrito na denúncia não constitui crime em tese”, ainda
que, segundo informação da denúncia, o signatário da petição estivesse inibido e
acanhado. Ao final, decidiu-se que “a retratação de uma testemunha, e por esta assinada,
não é documento penalmente protegido”, se o documento não é idôneo a produzir dano.
Sob esse fundamento, a impetração requer o trancamento da ação penal por falta de
justa causa.
No presente caso, o Ilustre Ministro Relator sustentou que a denúncia conteria ele-
mentos adicionais indicativos da impossibilidade de redução das circunstâncias deste
caso aos limites firmados no precedente invocado. Dessa maneira, a partir da denúncia
apresentada, não seria possível caracterizar a manifesta atipicidade da conduta descrita.
Outrossim, o voto do Relator assumiu premissa de que, ainda que se concluísse
pela inaplicabilidade do art. 299 do Código Penal à espécie, competiria ao juízo ordinário
a qualificação dos fatos narrados na denúncia, bem como a ocorrência ou não de dano.
Assim, consoante jurisprudência desta Corte, a presente ordem não poderia nem sequer
ser conhecida uma vez que “não se pode afirmar de plano a atipicidade sem que se
aprofunde o exame dos fatos narrados na denúncia”.
No RHC n. 43.396/RS, o paciente também era advogado. Eis o teor da ementa
desse precedente:
“Falsidade ideológica. Petição de advogado, dirigida ao Juiz, contendo a
retratação de uma testemunha e por esta assinada, não é documento penalmente
protegido. O escrito submetido à verificação não constitui o falsum intelectual.
Falta de justa causa para a ação penal. Recurso de habeas corpus provido.”
Neste HC n. 85.064/SP, cabe destacar que a declaração prestada por César Augusto
Castilho foi reconhecida em cartório. Trata-se de documento público, que, à primeira
vista, seria apto, portanto, para o reconhecimento da tipicidade prevista no art. 299 do
Código Penal, in verbis:
“Art. 299. Omitir em documento público ou particular, declaração que dele
devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que
devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a
verdade sobre fato juridicamente relevante”.
Entretanto, vale destacar que, posteriormente, em juízo, César confirmou a versão
inicial de seu depoimento, contrária à da declaração prestada, e a respeito desta, afirmou
que não compreendia bem os termos técnicos dela constantes e que o ora paciente lhe
assegurara que tal declaração não alteraria o depoimento já prestado.
1000 R.T.J. — 197
EXTRATO DA ATA
HC 85.064/SP — Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Paciente: Sérgio Salgado
Ivahy Badaró. Impetrante: Ordem dos Advogados do Brasil (Advogados: Alberto
Zacharias Toron e outro). Coator: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: Prosseguindo no julgamento, após o voto do Ministro Gilmar Mendes,
deferindo a ordem, pediu vista o Ministro Carlos Velloso. Declarou-se impedido o
Ministro Celso de Mello. Ausente, justificadamente, neste julgamento, a Ministra Ellen
Gracie. Presidiu este julgamento o Ministro Carlos Velloso.
Presidência do Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Ministros Carlos
Velloso, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. Ausente, justificadamente, a Ministra Ellen
Gracie. Subprocuradora-geral da República, Dra. Maria Caetana Cintra Santos.
Brasília, 6 de dezembro de 2005 — Carlos Alberto Cantanhede, Coordenador.
VOTO (Vista)
O Sr. Ministro Carlos Velloso: Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de
Sérgio Salgado Ivahy Badaró, contra acórdão da 5ª Turma do Eg. Superior Tribunal de
Justiça, que denegou pedido de habeas corpus em que se postulava o trancamento da
ação penal por falta de justa causa, por considerar imprescindível para a constatação da
atipicidade de conduta o exame da matéria fática probatória.
Consta dos autos que o paciente foi denunciado pelo crime de falsidade ideológica
(art. 299 do Código Penal). Sustenta a impetração tratar-se de conduta atípica, porquanto
a declaração firmada pela testemunha e juntada pelo paciente, mesmo podendo ser
considerada falsa, não é concebida como documento para fins penais. Aduz, assim, ser o
presente caso idêntico ao RHC 43.396/RS (Rel. Min. Evandro Lins e Silva, DJ de 22-8-
1966).
Além disso, alega que, para a configuração do delito imputado ao paciente, neces-
sária se faz a presença de dois requisitos, quais sejam, a aptidão do documento para
provar fato juridicamente relevante e a auto-suficiência deste para fazer a prova, o que
não ocorre no caso.
1004 R.T.J. — 197
EXTRATO DA ATA
HC 85.064/SP — Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Paciente: Sérgio Salgado
Ivahy Badaró. Impetrante: Ordem dos Advogados do Brasil (Advogados: Alberto
Zacharias Toron e outro). Coator: Superior Tribunal de Justiça.
Decisão: A Turma, por maioria, deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos
do voto do Ministro Gilmar Mendes, vencido o Ministro Relator. Relator para o
R.T.J. — 197 1005