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A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO STF: RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL,

SÚMULA VINCULANTE N. 13 E NEPOTISMO

CLÁUDIA TÜRNER P. DUARTE*1


INÊS DA MATTA ANDREIUOLO**2

SÍNTESE DOGMÁTICA:

A Reclamação perante o Supremo Tribunal Federal é a ferramenta constitucional cabível e adequada

para impugnar a nomeação de parentes para quaisquer cargos públicos de livre nomeação, inclusive os de alto

escalão, tais como secretarias e ministérios, considerando que a Súmula Vinculante n. 13 foi editada com o

objetivo de reconhecer de forma expressa a prática de nepotismo, direta e cruzada, como ato de violação à

Constituição, sobretudo, dos princípios da moralidade e impessoalidade inscritos no art. 37, caput.

Verificamos que a jurisprudência construída em torno da Súmula Vinculante n. 13, conquanto

represente um avanço no combate ao nepotismo, merece ser reavaliada, de modo a incluir os casos de nepotismo

direto também para cargos políticos. O direito dos políticos de nomear assessores diretos e de confiança tem

limites nos postulados éticos que sustentam o edifício constitucional. As práticas da vida privada encontram

fronteiras quando realocadas no universo da coisa comum. E a vedação à nomeação de parentes é um limite

institucional aos interesses do gestor, que é a um só tempo ser humano e administrador público. Trata-se de

norma moralizadora do espaço público. Norma esta que parte da sociedade e reflete o seu anseio por um governo

com ética e retidão moral.

FUNDAMENTAÇÃO:

1- DA LEGITIMIDADE ATIVA DOS MINISTÉRIOS PÚBLICOS ESTADUAIS PARA O AJUIZAMENTO DE

RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL

A legitimidade dos ramos estaduais do Parquet implica, em última análise, em maior efetividade na

fiscalização do cumprimento das súmulas vinculantes e em garantia constitucional de acesso à Justiça, ante a sua

capilaridade institucional e proximidade com a realidade cotidiana das cidades, da comunidade e de seus

cidadãos.

Este tema, como se sabe, foi objeto de debate no Supremo Tribunal Federal por meio da Reclamação n.

7.358/SP (Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJe de 03/06/2011). O acórdão em questão promoveu

1
*Promotora de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro.
2
**Procuradora de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro.
verdadeira virada jurisprudencial, a qual consolidou o entendimento atual e pacífico sobre a legitimidade ativa

dos Ministérios Públicos estaduais para a proposição da Reclamação Constitucional. Vejamos, pois, o trecho em

destaque da ementa do sobredito acórdão:

RECLAMAÇÃO. ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO


ESTADUAL. INICIAL RATIFICADA PELO PROCURADOR-GERAL DA
REPÚBLICA. AFASTAMENTO DA INCIDÊNCIA DO ART. 127 DA LEP POR
ÓRGÃO FRACIONÁRIO DE TRIBUNAL ESTADUAL. VIOLAÇÃO DA
SÚMULA VINCULANTE 9. PROCEDÊNCIA. 1. Inicialmente, entendo que o
Ministério Público do Estado de São Paulo não possui legitimidade para propor
originariamente Reclamação perante esta Corte, já que ‘incumbe ao Procurador
Geral da República exercer as funções do Ministério Público junto ao Supremo
Tribunal Federal, nos termos do art. 46 da Lei Complementar 75/93’ (Rcl 4453 MC-
AgR-AgR/SE, de minha relatoria, DJe 059, 26.03.2009). 2. Entretanto, a
ilegitimidade ativa foi corrigida pelo Procurador-Geral da República, que ratificou a
petição inicial e assumiu a iniciativa da demanda. 3. Entendimento original da
relatora foi superado, por maioria de votos, para reconhecer a legitimidade
ativa autônoma do Ministério Púbico Estadual para propor reclamação. (...)”
(Rcl nº 7.358/SP, Relatora a Ministra Ellen Gracie, Tribunal Pleno, DJe de 3/6/11).
(Grifou-se).
Posteriormente, o Ministro Dias Toffoli reiterou o posicionamento acima indigitado no julgamento do

Agravo Regimental na Reclamação n. 14223/GO, em 16/12/2014, trazendo à baila o leading case do Estado de

São Paulo, a saber, a Reclamação n. 7.358/SP.

2- DA RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL N. 26.482

O presente trabalho foi realizado pela 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Cidadania da

Capital do Rio de Janeiro em atuação conjunta com a Assessoria de Recursos Constitucionais Cíveis.

No dia 08/02/2017, o órgão com atribuição instaurou inquérito civil com o escopo de apurar suposta

violação ao princípio da moralidade, previsto no art. 37, caput, da CRFB/88, e da regra inscrita na S. V. n. 13 do

STF, a qual veda a prática de nepotismo pelos agentes públicos; bem como expediu Recomendação ao Prefeito

Marcelo Crivella para que exonerasse, no prazo de 10 dias, seu filho do cargo de Secretário Chefe da Casa Civil

do Município do Rio de Janeiro. Nessa esteira, o Prefeito foi notificado em 09/02/2017. Transcorrido o prazo in

albis e presente a condição de procedibilidade de esgotamento das vias administrativas (Rcl. n. 22.286/SC - Rel.

Ministro Luiz Fux, com j. em 16/02/16), o Parquet Fluminense ajuizou Reclamação, no dia 21/02/2017.

Após o ajuizamento da Reclamação n. 26.482, distribuída ao Ministro Marco Aurelio3, foi estabelecido

contato a Assessoria de Recursos Constitucionais, a fim de montar uma estratégia de atuação perante o Supremo

Tribunal Federal. Foi acordado que seriam elaborados memoriais para distribuição aos Ministros, como forma de

apresentar a tese ministerial com a antecedência necessária para a exposição da questão. Foram realizados

3
A Reclamação ajuizada pelo MPRJ foi distribuída por dependência à Reclamação 26.303, na qual foi proferida
liminar para suspender a eficácia do Decreto que nomeou Marcelo Hodge Crivella para o cargo Secretário Chefe
da Casa Civil.
agendamentos com alguns dos Ministros, em especial com o relator, oportunidade em que o Parquet expôs a tese

ministerial. O Relator reconheceu a necessidade de submeter o julgamento ao Plenário, tendo em 28/06/2017

requerido a inclusão em pauta à Presidente. No momento aguardamos a definição de data para julgamento,

quando então se fará necessária nova rodada de agendamentos e inscrição dos membros do MPRJ para

sustentação oral.

3- HISTÓRICO DA SÚMULA VINCULANTE N. 13 DO STF

A S. V. n. 13 tem origem em quatro precedentes: (i) a ADI 1.521/RS (Min. Rel. Marco Aurélio, julgado

em 12/03/1997); (ii) o MS 23.780-5/MA (Min. Rel. Joaquim Barbosa, julgado em 28/09/2005); (iii) a ADC 12-

6/DF (Min. Rel. Carlos Britto, julgado em 20/08/2008); e (iv) o RE 579.951-4/RN (Min. Rel. Ricardo

Lewandowski, julgado em 20/08/2008). Quando do julgamento da RE 579.951-4/RN, os Min. Ricardo

Lewandowski e Cármen Lúcia travaram o seguinte diálogo:

“O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) – [...] Estou


apenas a imaginar, eminente Ministro Carlos Britto, sem querer discordar de Vossa
Excelência, e até trazendo à baila uma situação muito comum nos pequenos
municípios: o Prefeito coloca sua esposa como Secretária Municipal, coloca o filho
em outra secretaria; coloca o sobrinho em outra. Como ficaríamos.
O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO – Desgraçadamente acontece isso.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) – E o que
aconteceria? Isso seria lícito?
[...]
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) – Então, por
isso é que eu preferi dizer, eminente Ministro, que cada caso concreto deverá ser
avaliado à luz da proibição do nepotismo que emana do artigo 37, caput, um pouco
na linha do que colocou a Ministra Cármen Lúcia. Eu fico com certo receio de
assentarmos, com todas as letras, que, em se tratando de Secretário Municipal, que é
um cargo político de livre nomeação, enfim, de confiança do prefeito, tal atitude
seria lícita. Amanhã, se ele colocar a esposa em um cargo-chave’ de Secretária de
Governo, isso seria lícito à luz da proibição do nepotismo, do princípio da
moralidade? Isso acontece no cotidiano deste grande Brasil.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – Ministro Carlos Britto, essa
liberdade não me parece absoluta. Ministro Ricardo Lewandowski, porque
teria de haver limites, não é isso? Não existe liberdade absoluta em espaço
algum, senão o governante poderia escolher apenas os seus familiares para
todos os cargos. E por ser cargo político, isso seria permitido? De modo algum.”
(RE 579.951-4/RN, Min. Rel. Ricardo Lewandowski, com julgamento em
20/08/2008). (Grifou-se).

Da reunião de tais precedentes nasce em 29/08/2008 a Súmula Vinculante n. 13:

“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por


afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da
mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento,
para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função
gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste
mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal” (Súmula Vinculante
n. 13 do Supremo Tribunal Federal).
Nos 08 anos que se seguiram, nos mais de 28 acórdãos e 195 decisões monocráticas que versaram sobre

o presente tema, a Corte Constitucional foi aos poucos redirecionando a interpretação da mencionada súmula,

afastando os casos de nomeação de parentes para cargos políticos da sua hipótese de incidência, com exceção de

situações de (i) tráfico de influência; (ii) fraude à lei; e (iii) inaptidão do nomeado (V. Rcl 6.650/PR, Min. Rel.

Ellen Gracie, j. em 16/10/2008; Rcl n. 7.590/PR, Min. Rel. Dias Toffoli, j. em 30/09/2014; RE 825682/SC, Min.

Rel. Teori Zavaski, j. 10/02/2015; Rcl 22.286/SC, Min. Rel. Luiz Fux, j. 16/02/2016).

Com efeito, entendemos que após a edição da Súmula Vinculante n. 13, aos poucos a noção da

imoralidade em si do ato de nepotismo, reconhecido como a nomeação para cargo público de pessoa da família,

foi se transmudando para a noção de imoralidade do tráfico de influência ou da falta de aptidão técnica. O debate

em torno da nomeação do parente – objeto imediato da Súmula Vinculante n. 13 – foi perdendo espaço para o

debate sobre fraudes e suposto tráfico de influência, desviando-se, assim, da sua vocação original, a saber, a

vedação à prática pura e simples de nepotismo.

Vale dizer, deparamo-nos com um verdadeiro paradoxo: o nepotismo cruzado tornou-se ato mais

ofensivo à moralidade administrativa que o próprio nepotismo direto. Conquanto a redação da Súmula

Vinculante tenha abarcado as duas categorias de nepotismo, a direta e a cruzada, a primeira, de natureza

ostensiva foi lançada ao ostracismo jurisprudencial.

O diálogo travado entre os eminentes Ministros Carmem Lúcia e Ricardo Lewandoski continuou em

aberto: e nos casos em que o Prefeito nomeia para Secretarias chaves do governo filho e cônjuge? Parafraseando

o ilustre Ministro Carlos Ayres Brito, isso continua desgraçadamente a acontecer. E se isso é uma desgraça, ou

mesmo, uma atitude que vai de encontro ao patamar ético de uma vida republicana, por que aceitá-la?

Quando aponta a sua divergência, à ocasião do voto-vista, no ARE n. 806608 AgR/SC – Primeira

Turma, julgado em 28/10/2016, o eminente Ministro Marco Aurélio de Mello está buscando um posicionamento

objetivo da Corte para uma hipótese específica de nepotismo: a nomeação pelo Prefeito de parente para

Secretários. Senão, vejamos:

Divirjo do Relator para dar seguimento ao extraordinário. (...). O fato de estar em


jogo cargo de livre escolha do Chefe do Poder Executivo, aliado ao grau de
parentesco dos envolvidos e à suspeição de favorecimento dele decorrente, não
afasta a pertinência do verbete. Há de ser enfrentada pelo Colegiado físico – se é que
existe outro – a seguinte controvérsia: legitimidade, ou não, da nomeação por
prefeito de cônjuge para o cargo de secretário municipal. (Grifou-se).
Logo, verificamos que a jurisprudência construída em torno da Súmula Vinculante n. 13, conquanto

represente um avanço no combate ao nepotismo, merece ser reavaliada, de modo a incluir os casos de nepotismo

direto também para cargos políticos.

Nessa esteira, não duvidamos que para os pais e mães, maridos e esposas, os seus parentes sejam os

mais leais, e que haja de alguma forma uma expectativa de levá-los consigo nas missões diárias, sujeitas às mais

variadas provações. A questão é que o direito dos políticos de nomear assessores diretos e de confiança tem

limites nos postulados éticos que sustentam o edifício constitucional. As práticas da vida privada encontram

fronteiras quando realocadas no universo da coisa comum. E a vedação à nomeação de parentes é um limite

institucional aos interesses do gestor, que é um só tempo ser humano e administrador público. São imposições de

uma comunidade baseadas em um senso de moral comum: é preciso construir um muro entre a vida privada e a

gestão da coisa pública. Trata-se de norma moralizadora do espaço público. Norma esta que parte da sociedade e

reflete o seu desejo por um governo com ética e retidão moral.

4- FAMÍLIA E POLÍTICA

A família é autoridade que governa a nível local e que ao mesmo tempo se projeta em direção ao poder

central, infiltrando-se sempre que possível nas suas estruturas do governo. Trata-se de uma dinâmica social que

tem suas raízes em um passado remoto. A lógica da interpenetração do privado com o público por meio de

estruturas familiares nos remete sem sombra de dúvidas ao modelo político da era feudal 4.

Nada obstante, trata-se de práticas políticas que se perpetuam até os dias de hoje. Em maior ou menor

grau, fato é que o parentesco se desdobra em um complexo ambiente político, e que mesmo hoje, no ano de

2017, em especial no Brasil, a política estatal confunde-se com a vida em família. A consanguinidade estrutura-

se, pois, em função da autoridade local, servindo como critério para o exercício do poder (e sua transferência) de

geração em geração. Em suma, a linhagem serve à organização da estrutura política coletiva.

Ricardo Costa de Oliveira, Doutor em Ciências Políticas pela UNICAMP, e professor Associado da

UFPR, autor da obra “Nas teias do nepotismo: sociologia política das relações de parentesco e de poder político

no Paraná e no Brasil”5 dedica-se ao estudo de temas associados ao nepotismo, a saber, família e poder político.

Destaquem-se as seguintes conclusões obtidas no Grupo de Trabalho 06 – Desigualdade e Estratificação Social,

4
ARIÈS, Phillippe; & DUBY, Georges (Org.) História da vida privada: da Europa feudal à Renascença. 2. São
Paulo: Companhia das Letras. 2001, pp. 31-34.
5
DE OLIVEIRA, Ricardo Costa. Nas teias do nepotismo: sociologia política das relações de parentesco e de
poder político no Paraná e no Brasil. Curitiba: Editora Insight, 2012.
do XVII Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado de 20 a 23 de julho de 2015, organizado pelo professor e

intitulado “Famílias políticas, desigualdade estratificação social no Brasil Contemporâneo” 6:

“A família política se tornou o grande “ponto cego” nas ciências sociais brasileiras
do século XXI. Como as famílias atravessam e agem dentro das instituições políticas
brasileiras foi uma questão central na gênese de certo pensamento social e na própria
formulação de uma ciência social brasileira no início do século XX. Podemos
discutir uma visão cética e realista na dimensão do ensaísmo e das pesquisas de
Oliveira Vianna. O "complexo da família senhorial" e sua compreensão. Outra visão
democrática e otimista na dimensão do ensaísmo e das pesquisas de Sérgio Buarque
de Holanda. Raízes do Brasil, a família patriarcal e o “homem cordial”.
(...)
“A implantação da moderna ciência política no Brasil, após a redemocratização de
1946 e nas décadas posteriores, não trouxe e nem comportou a categoria “família”
nos estudos políticos daquela época em diante.
(...)
A análise e identificação de um conjunto de famílias e de genealogias regionais,
estruturas familiares de longa duração, formando uma classe social histórica no
Brasil, revela um conjunto de relações sociais e de formas sociais de patrimônios e
de tipos de rendas. A estrutura familiar apresenta vários casamentos com famílias
igualmente antigas, ou com novos ingressantes e imigrantes ao longo do tempo.
Trata-se de uma classe social histórica, que transmite e reproduz de várias maneiras
seu habitus de classe e seu ethos político para as novas gerações. A velha classe
dominante também transmite as velhas culturas do “familismo” e do “nepotismo”
para as novas famílias do poder, muitas das quais possuíram origens migrantes,
origens ascendentes e acabam casando com as velhas famílias do poder. Muitas
vezes o funcionamento e a lógica das instituições operam mecanismos clientelísticos
e formas de patronagem, que beneficiam esquemas políticos familiares. O tema das
famílias é tema do presente!” 7 (Grifou-se)

Vemos, pois, que o tema do nepotismo vem sendo objeto de detalhados estudos por parte de sociólogos

e cientistas políticos brasileiros, que conseguiram identificar nesses últimos anos esse “ponto cego”. Logo, trata-

se, sobretudo, de se debater o modelo político clientelista familiar que domina o país desde a sua colonização

remota. O nepotismo é em si mesmo um fator de desequilíbrio social e econômico, que reproduz mecanismos

clientelistas de monopólio do poder político. É uma fórmula que por si só é imoral, mas que nesse país adquire

contornos trágicos, uma vez que mantém comunidades inteiras reféns de poderosos clãs locais.

Como ressalta Ricardo Costa de Oliveira, trata-se de tema da ordem do dia. A população e a grande

mídia há muito já reconhecem esse como um dos principais fatores de atraso cultural e civilizatório do nosso

país. A luta pela construção de uma sociedade mais digna e justa passa pelo reconhecimento de limites éticos

6
DE OLIVEIRA, Ricardo Costa (Universidade Federal do Paraná). “Famílias políticas, desigualdade
estratificação social no Brasil Contemporâneo” In Grupo de Trabalho (GT 06) – Desigualdade e estratificação
social, In XVII Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado de 20 a 23 de julho de 2015.
7
V. também livros e estudos de OLIVEIRA, Ricardo Costa de. (i) Estado, classe dominante e parentesco no
Paraná. Curitiba: Nova Letra, 2015; (ii) Redes de Nepotismo como processo de produção e reprodução de
desigualdades. GT 14: Desigualdades: produção e reprodução. 33º Encontro Anual da ANPOCS – Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – 2009; e (iii) Política, Direito, Judiciário e Tradição
Familiar; Área temática: Política, Direito e Judiciário. IX Encontro da ABCP, em 04 a 07 de agosto de 2014.
institucionais aos nossos governantes. Nessa esteira, destaque-se a seguinte notícia do Jornal O Globo, em

04/01/2013:

ADMINISTRAÇÃO EM FAMÍLIA: NEPOTISMO AVANÇA NO BRASIL.


PREFEITOS ASSUMEM MANDATOS E ESTIMULAM PRÁTICAS; MÃES,
MULHERES E IRMÃOS GANHAM CARGOS: Nem bem assumiram o comando
de suas cidades, na última terça-feira, prefeitos de municípios brasileiros já tomaram
como uma de suas primeiras decisões nomear parentes para cargos remunerados de
primeiro e segundo escalões. Em prefeituras do Norte ao Sul do país, mulheres,
mães, pais e irmãos de prefeitos eleitos ou reeleitos no ano passado foram alojados
na máquina municipal. Segundo maior colégio eleitoral fluminense, São Gonçalo, na
Região Metropolitana, é um dos municípios onde há casos de nepotismo. O prefeito
Neilton Mulim (PR) escolheu seu irmão, o vereador Nivaldo Mulim (PR), para
assumir a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Já na Região Serrana, o
prefeito de Petrópolis, Rubens Bomtempo (PSB), que está em seu terceiro mandato,
nomeou a mulher, Luciane Bessa Bomtempo, para o cargo de secretária chefe de
gabinete, e o cunhado, Eduardo Ascoli de Oliva Maia, para comandar a Secretaria de
Planejamento e Urbanismo. (...)— “É um velho costume de usar a máquina pública
para fins particulares. É um atentado contra qualquer vida pública decente e não há
nenhuma justificativa” — afirmou o professor de Filosofia Política da Unicamp
Roberto Romano, que recorda os critérios da moralidade e da competência previstos
na Constituição para o preenchimento de cargos públicos. (...) Em Manga (MG), o
prefeito Anastácio Guedes (PT) emplacou três parentes no primeiro escalão. O
cunhado assumiu a Secretaria de Agricultura familiar; a cunhada, a Secretaria de
Assistência Social; e o sobrinho, a Secretaria de Administração. Em Carnaubais
(RN), o prefeito reeleito, Luizinho Cavalcante (PSB), indicou o irmão, Nicolau
Cavalcante, para a Secretaria da Educação e a esposa, Mária Cavalcante, para a
Secretaria da Assistência Social. — Não há nenhuma lei que proíba a indicação de
parentes para cargos de secretário municipal, de primeiro escalão. Não há problema
nenhum, pelo menos é o que informou a minha assessoria jurídica — afirmou o
prefeito Anastácio Guedes. (Grifou-se).
Em 2008, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a Súmula Vinculante Em
decisões judiciais posteriores, a Suprema Corte flexibilizou a iniciativa para cargos
considerados de “natureza política”, entre eles de secretários municipais. A incerteza
sobre o alcance da medida tem gerado discussões nos meios jurídicos. Na avaliação
de juristas e especialistas entrevistados pelo GLOBO, o entendimento de que a
restrição não se aplica aos cargos políticos não está consolidado. — Se essa
jurisprudência estivesse consolidada, o Supremo Tribunal Federal (STF) teria
feito uma espécie de retificação pontual da Súmula Vinculante Nº 13, o que
ainda não foi feito — avaliou o procurador Gustavo Binenbojm, professor de
Direito da UERJ. Para o professor Gustavo Alexandre Magalhães, doutor em
Direito Administrativo pela UFMG, o texto da súmula deixou brechas, o que
possibilita aos prefeitos interpretarem de acordo com suas conveniências. — Alguns
pontos precisam ser esclarecidos. Pelo texto atual, o prefeito pode preencher seu
primeiro escalão só com parentes, caso assim queira — afirmou. (GUSTAVO
URIBE / EZEQUIEL FAGUNDES / MARCELO REMÍGIO / ODILON RIOS. O
Globo. Administração em família: nepotismo avança no Brasil. Prefeitos assumem
mandatos e estimulam práticas; mães, mulheres e irmãos ganham cargos. 04/01/2013
23:00/atualizado 05/01/2013 16:51. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/brasil/administracao-em-familia-nepotismo-avanca-no-
brasil-7202448 1/, com acesso em 20/02/2017). (Grifou-se).
Nessa esteira, nosso pleito consiste em que se reconheça a importância da realidade brasileira, dos

estudos de ciência política e social e a avaliação da opinião pública sobre o tema, como elementos informadores

da decisão do Supremo Tribunal Federal. Precisamos integrar o discurso acadêmico e social a esse processo

decisório. Chama-se a atenção, pois, para a gravidade em si mesma da prática de nepotismo direto, mesmo nos

casos de cargos políticos, tais como a nomeação pelo Prefeito de parentes para o seu secretariado.
5- OPINIÃO PÚBLICA E PAUTA ÉTICA

Ao se analisar a situação atual da complexa sociedade contemporânea, percebemos uma constante em

toda a heterogeneidade que a compõe: uma busca maior por ética por parte do sistema político. As chamadas

"Jornadas de 2013", como ficaram conhecidas as manifestações em meados de 2013, configuraram um

verdadeiro estopim para o aumento da percepção da ética - ou, no caso, falta de ética - no sistema político

vigente. Nas manifestações, além das demandas sociais, houve grande apelo por mais transparência. Evidenciou-

se à ocasião a profunda falta de representatividade dos partidos. Centenas de milhares pessoas nas ruas de todo o

Brasil expressando, através de diferentes vozes, um extremo descontentamento com a política e a maneira como

ela é estruturada, fortemente influenciável por interesses pessoais.

Com a descrença no sistema político, o brasileiro passa a buscar uma instituição capaz de externalizar a

vontade popular. No cenário brasileiro atual, o Judiciário tem assumido em parte esse papel, sobretudo, quando

as demandas de ética e moralidade dizem respeito a escolhas políticas que vão de encontro aos interesses

pessoais dos agentes públicos. O Judiciário surge na arena pública como um mediador das relações sociais.

Conforme lição do eminente Ministro Luis Roberto Barroso, o Supremo Tribunal Federal passa a ter o

dever de prestar a jurisdição constitucional, sob dois fundamentos: (i) a atuação contramajoritária; e a (ii) atuação

representativa8. Como nos ensina o professor e Ministro, a atuação contramajoritária costumeiramente decorre do

dever de analisar a necessidade de sustar atos do Legislativo e do Executivo. Já a representativa decorre da crise

de representatividade das instituições políticas. Ela está destinada a evitar abusos perpetrados pelos membros dos

demais Poderes que compõe a República. Cabe, ao STF, o dever de “(atender) a demandas sociais relevantes

que não foram satisfeitas pelo processo político majoritário”9. Veja-se que o autor se utiliza justamente da

Súmula Vinculante 13 como exemplo:

A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADC 12 e a posterior edição da Súmula


Vinculante 13, que chancelam a proibição do nepotismo nos três Poderes,
representam um claro alinhamento com as demandas da sociedade em matéria
de moralidade administrativa. A tese vencida era de que somente o legislador
poderia impor esse tipo de restrição10. (Grifou-se).
Nesse contexto, a Suprema Corte age como guardiã das normas constitucionais. Desta forma, não se

pode permitir a prática de atos que violem os princípios da impessoalidade e moralidade da Administração

Pública, sob o risco de se privilegiar interesses privados camuflados de interesse público.

8
BARROSO, Luis Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. In.
SARMENTO, Daniel (Coord.). Jurisdição constitucional e política. Rio de Janeiro: Forense, 2015. pp. 3-34.
9
Ibidem. p. 34.
10
Ibidem. p. 27.
Pretende-se, com a propositura da Reclamação Constitucional demonstrar que o ato realizado pelo

Prefeito do Município do Rio de Janeiro, Marcelo B. Crivella, consistente na nomeação de seu filho, Marcelo H.

Crivella, para o cargo de Secretário da Casa Civil do Município do Rio de Janeiro é ato de nepotismo direto,

conduta esta expressamente vedada pelo enunciado n. 13 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal,

verdadeira regra protetora do Artigo 37, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil.

Foi, assim, requerido pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro fosse declarado o

descumprimento, pelo Município do Rio de Janeiro da Súmula Vinculante n. 13 da Colenda Corte

Constitucional, e a consequente declaração de nulidade do ato administrativo de nomeação de Marcelo H.

Crivella, para o cargo de Secretário da Casa Civil do Município do Rio de Janeiro, determinando-se o

afastamento da pessoa acima citada do referido cargo público da Administração Pública Municipal do Rio de

Janeiro.

CONCLUSÃO OBJETIVA:

Estamos diante de um caso que evidencia o potencial da atuação do Ministério Público em defesa das

teses que lhes são caras perante o Supremo Tribunal Federal. Identificada a relevância de determinada tese para a

instituição, cabe aos órgãos de execução articularem-se seja internamente, seja a nível nacional, com os demais

Ministérios Públicos para sua defesa conjunta. Em muitos casos, forjam-se interpretações destoantes do

postulado constitucional, as quais devem ser prontamente combatidas.

O Ministério Público não deve se apequenar diante de tais desafios. Ao revés, deve insistir na

persecução dos objetivos constitucionais ministeriais valendo-se das ferramentas à sua disposição, em especial a

Reclamação Constitucional. No caso, a reconstrução histórica da edição da Súmula Vinculante n. 13, nos termos

da Reclamação n. 26.482 revela que a preocupação original deste enunciado era a vedação do nepotismo direto.

Nessa esteira, surge a importância do papel do Ministério Público como agente ativo na arena dialógica.

Por fim, é evidente que a Súmula Vinculante N. 13 foi editada com o objetivo de reconhecer de forma

expressa a prática de nepotismo, direta e cruzada, como ato de violação à Constituição, sobretudo, dos princípios

da moralidade e impessoalidade inscritos no art. 37, caput.

PROPOSTA DE ENUNCIADO: Cabe ao Ministério Público o ajuizamento de Reclamação

Constitucional perante o Supremo Tribunal Federal como ferramenta de impugnação de nomeação de parentes

para quaisquer cargos públicos de livre nomeação, inclusive os de alto escalão, tais como secretarias e

ministérios, considerando que a Súmula Vinculante N. 13 foi editada com o objetivo de reconhecer de forma
expressa a prática de nepotismo, direta e cruzada, como ato de violação à Constituição, sobretudo, dos princípios

da moralidade e impessoalidade inscritos no art. 37, caput.

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