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A mulher era muito bonita, uma loira estonteante de pernas grossas e grandes seios

que balançavam suavemente no ritmo do seu caminhar, Rafael já a seguia por alguns minutos
dividido entre seu instinto masculino e seu dilema.

Estava sozinho na cidade e sua batalha estava fadada ao fracasso, a única chance de
sobrevivência ia de encontro a repetição de um ato que o traumatizou no passado, pois
quando lhe transmitiram a maldição não o consultaram, apenas jogaram a ele esta nova
condição e forma de vida, será que ele deveria fazer o mesmo? Com a loira talvez?

Sem duvida a ideia de tornar-se ligado a aquela bela mulher era bastante sedutora,
mas um grito de criança o fez despertar do labirinto que se tornara sua mente. Era uma
menina de não mais que oito anos que correu em direção a mulher ao vê-la, a imagem da
menina também loira, magra como os galhos das arvores do parque, correndo de braços
abertos em direção a mulher o fez repensar. Talvez fosse filha dela.

Desistiu.

Sentou-se num banco feito de toras de madeira, apoiou os cotovelos sobre os joelhos
afastados e olhou para o chão seco castigado pelos dias de sol. Era um lobo sem matilha e
sabia que, se já não estivesse, mais hora ou menos hora seria caçado por aqueles que
dominam a noite, só restava ele.

Em algumas horas iria anoitecer e a lua estaria cheia, um momento ideal para
conseguir um companheiro ou companheira para sua solidão, alguém para ensinar toda a arte,
alguém para proteger e para protege-lo, alguém para ser sua família. Cogitou novamente o
inviável: e se eu perguntasse?

Quem, em sã consciência, iria ao menos cogitar que tal proposta fosse verdadeira?
Abordar um transeunte qualquer e lhe perguntar o absurdo. Você quer ser um lobisomem?

Não. Se tivesse que amaldiçoar o faria como fizeram, na marra, a força, de repente. O
escolhido que encarasse a nova realidade, não haveria escapatória. A resistência de um
lobisomem é muito superior, não é fácil matar um deles e não é fácil nem mesmo para um
lobisomem se matar. Ele já havia tentado.

A loira se foi, perdida enquanto ele olhava para o solo por não ter que encarar nem a
mulher desconhecida nem a filha, sentiu-se mal em pensar na transformação da mulher, como
ficaria difícil o convívio com a pequena que certamente depende dela inteiramente. Era
melhor desistir, ainda que quisesse não poderia amaldiçoar alguém ali em plena luz do dia,
numa via publica, teria que fazê-lo a noite, no momento mais perigoso.

De volta ao seu apartamento estrategicamente no ultimo andar de um prédio mais


alto que os imóveis vizinhos, o passar dos ponteiros do relógio denunciavam o inevitável,
naquela noite se lançaria aos perigos noturnos, ser caça e caçador ao mesmo tempo.

Desde que se tornou o ultimo de sua espécie na cidade adotou um ritual para as noites
de lua cheia, pouco antes de sua inevitável transformação chegar, se dirigia ao banheiro e
olhava fixamente seu rosto no espelho aguardando o inicio da transformação, percebeu que
gostava de ver como sua face se alongava e os pelos cresciam, mas lamentava estar com a
consciência alterada demais para lembrar do que vinha depois.

Foi pensando em seu dilema que a transformação começou. Sempre sentindo uma
agonia, uma vontade imensa de quebrar, arranhar, morder, agredir, uma violência gratuita que
normalmente castigava o azulejo já partido de tantos socos que levava, a pressão no nariz e
na boca alongando a face, os pelos cobrindo todo o rosto. A voz do homem na televisão
tornara-se maior e outros sons, antes inaudíveis tornavam-se altos e claros, os carros lá
embaixo, podia contar quantos estavam freando e quantos aceleravam.

Houve a transformação. Saindo por uma grande janela colocada no quarto dos fundos
do apartamento o grande lobisomem lançou-se a escuridão de um beco, era a hora critica.
Caçador e caça, predador e presa. O instinto do lobo clamava por companhia e a insegurança
do homem já não tinha mais forças para resistir. O fedor dos vampiros tomava a cidade. A loira
se perdeu, mas talvez ainda pudesse farejar seu forte perfume. Ele iria visitar o parque mais
uma vez.

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