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Aquele Verão em Camden

LAVYRLE SPENCER
Sumário
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
É o ano de 1916 e Roberta Jewett voltou de Boston com suas três filhas
pequenas, cheias de esperança para um novo começo na cidade onde ela foi
criada. Mas, em Camden, Maine, uma mulher divorciada é uma mulher
evitada. Apenas um homem a trata com respeito: o viúvo contratado Gabriel
Farley, que começa o trabalho de reformar sua casa. Apesar da química
entre eles ser inegável, eles a combatem. Então, ironicamente, um ato brutal
de violência obriga-os a reconhecer os sentimentos poderosos que têm
crescido entre eles. Mas como eles lutam por justiça contra uma cidade
determinada a provar seus erros, Roberta percebe que o pior calvário ainda
está por vir...
Capítulo 1
Camden, Maine, 1916
Roberta Jewett tinha alimentado esperanças de que predominasse um bom
tempo no dia em que ela se mudasse com suas filhas de volta para Camden,
Maine. Em vez disso, uma mistura de chuva afiada como agulhas e um denso
nevoeiro tinham acompanhado o barco vindo de Boston por todo o caminho ao
longo da costa. Um vento persistente vindo do sudoeste provocou uma ressaca
marítima furiosa, contribuindo para que a viagem fosse um verdadeiro inferno.
A pobre Lydia vomitou a noite toda.
A menina, de dez anos de idade, estava deitada em um banco duro de
madeira com a cabeça no colo de Roberta, de olhos fechados, pele
esverdeada. Suas tranças tinhas as pontas desfeitas como antigas cordas
esfiapadas.
— Quanto falta, mamãe? — ela perguntou, olhos e voz melancólicos.
Roberta olhou para sua filha mais nova e apartou de seu rosto o cabelo
emaranhado. Lydia, ao contrário de suas irmãs, nunca tinha sido uma boa
marinheira.
— Não muito.
— Que horas são?
Roberta olhou para o relógio.
— Quase sete.
— Você acha que chegaremos na hora prevista?
— Deixe-me ver onde estamos. — Gentilmente, ela retirou a cabeça de
Lydia do colo dela e colocou-a em um casaco que estava enrolado como um
travesseiro. — Já volto.
Deu uma olhada em suas outras duas filhas, Susan e Rebecca, que estavam
dormindo perto delas, com as bochechas e os braços apoiados sobre uma mesa
envernizada. Ao redor delas, outros passageiros dormiam nos incômodos
assentos correspondentes às passagens mais baratas. Alguns roncavam. De
outros, fios de saliva escorriam entre os lábios. Alguns despertaram, agora
que estava por despontar o amanhecer e o fim da viagem. Se aquela houvesse
sido uma viagem transatlântica que levasse imigrantes a América, aquela
cabine se chamaria “porão”. Mas como se tratava da muito distinta Eastern
Steamship Line que fazia o trajeto diário da costa de Boston a Bangor, o
folheto evitava termos tão degradantes e preferia utilizar o pomposo nome de
“cabine da terceira classe”. Mas qualquer um que houvesse passado nesse
lugar 13 horas seguidas, saberia que o nome correto era “porão”.
Ali não havia vistas panorâmicas apenas umas minúsculas janelas.
Roberta encaminhou para uma delas e viu que as gotas de chuva golpeavam
contra os vidros como se jogassem baldes de água desde a popa. O vidro
estava embaçado. Ela o limpou com a manga de seu casaco e olhou para o
lado de fora.
Era pouco menos das 7 da manhã e o céu começava a clarear. Ela calculou
que já deviam ter rodeado a Ponte Beauchamp por fora da Baía de Rockport.
Com a testa apoiada no vidro gelado, olhou o exterior, mas viu apenas uma
costa escura e desfocada pelo mau tempo. Nesse momento sou a campainha da
baía e Roberta olhou na outra direção. Sim, ali estava a baía luminosa da Ilha
Negra. Chegaram em casa.
Quando passaram pela enseada de Sherman viu a baía se perder entre as
ondas. Na distância, o aguaceiro delineava a silhueta da vila que se
encontrava em frente ao porto, mas que ainda assim resultava visível.
Examinou-a com sentido prático, animada mais por um instinto de defesa que
pela nostalgia.
No amparo do porto, as águas estavam mais calmas e a névoa estava
uniforme. A massa sem características claras que se estendia ao longo da costa
começou a adquirir identidade: o monte Battie detrás de Camden; o cais onde
o Belfast aterraria; o entremeado de ruas que acendiam a ladeira oriental da
montanha; os pináculos das igrejas conhecidas: a Episcopal, a Batista, e a
Congressista, aquela que ela havia assistido até que partiu dali; a onipresente
fumaça fumegante da fábrica de lã Knox, que dava sustento a maior parte das
pessoas da cidade, onde ela mesma estaria trabalhando ainda se seguisse o
caminho de sua mãe.
Em algum lugar, ali fora, os operários do turno da manhã se dirigiam à
fábrica para transformar a lã nos uniformes destinados aos garotos “da frente
de batalha”. Outros operários se dirigiam à pedreira em Rockport; Grace
havia escrito que Camden agora tinha uma linha de bonde e que os
trabalhadores viajavam nela até Rockport.
Roberta supôs que conhecia alguns desses homens, os havia conhecido
quando eram seus companheiros de classe na escola. Também algumas de suas
esposas. O que pensavam dela agora que ela voltava como uma mulher
divorciada? Era muito provável que o mesmo que sua mãe. Como havia
decepcionado sua mãe com seus conceitos tão rígidos e inflexíveis! “Nenhuma
mulher decente acaba com um matrimônio, Roberta. Estou segura de que te
deste conta disso.”
Ao diabo com todos eles, pensou. Que eles pensem o que quiserem! Se as
mulheres podem ir como enfermeiras na frente de batalha também podem se
divorciar.
Sua mãe não poderia ir até o cais tão cedo, a lombalgia ou alguma outra dor
oportuna a obrigaria a permanecer em casa. Mas a irmã de Roberta, Grace,
estaria esperando-a na estação junto a Elfred, seu esposo, de quem Roberta só
conservava uma vaga recordação.
As luzes do pequeno porto marítimo apareceram através da bruma e então
ela voltou para onde estavam suas filhas.
— Rebecca, Susan! Acordem!
Sacudiu seus ombros e depois foi até o banco para ajudar Lydia a levantar-
se. Sentou-se e passou um braço debaixo do corpo de sua filha mais nova.
— Quase chegamos. Estamos entrando no porto de Camden. Como você
está?
— Terrível.
Junto a mesa, Rebecca, de dezesseis anos, se endireitou. Bocejou e se
esticou enquanto perguntava: — Lydia se encontra mal ainda?
— Nunca me encontrei pior — respondeu a própria Lydia.
Roberta passou uma mão pela trança desfeita.
— Não será por muito tempo. Uma vez que estivermos em terra firme você
se sentirá melhor.
— Não quero viajar nunca mais neste barco.
Lydia deitou a cabeça no peito de sua mãe.
— Não será necessário. Viemos para ficar. Compramos uma casa e eu tenho
um emprego, assim, nada além de um furacão, nos obrigará a mudarmos outra
vez. De acordo?
Ninguém contestou. Roberta olhou suas outras duas filhas, mas elas ainda
tinham sono e a larga noite no mar fez com que elas perdessem o entusiasmo.
— Garotas, venham aqui — ordenou às duas mais velhas. Elas se
levantaram com penosa resignação e se sentaram à direita de sua mãe.
Enquanto Roberta falava, Susan, de quatorze anos, apoiou a cabeça contra o
braço de sua mãe.
— Agora escutem-me bem as três. Lamento muito não haver podido pagar
uma cabine melhor. Sei que foi uma viagem terrível, mas necessitamos de cada
centavo para a casa e para nossos primeiros passos aqui. Me entendem,
verdade?
— Está tudo bem, mamãe — a tranquilizou Rebecca.
Becky nunca se queixava de nada. Inclusive repreendia suas irmãs quando
elas o faziam. Lydia tentou fazer isso agora com ligeiro gemido na voz.
— Mas eu quero ver as cabines de luxo. O folheto dizia que eles têm
cabines individuais e banheiras de autêntico bronze.
— Mamãe faz o que pode — a recriminou Rebecca. — E de fato, que
diferença há entre vomitar em uma bacia de bronze ou nesse pote asqueroso?
Vomitar é vomitar.
Já mais desperta, desta vez foi Susan a que falou: — Mamãe, diz para ela se
calar.
— Já basta, Becky. Agora escutem. — Roberta se dirigiu às três. —
Organizem as saias e o cabelo e recolham todas as suas coisas, porque logo
desembarcaremos. Escutou isso, Lydia? O mar está tranquilo. Isso quer dizer
que nos aproximamos da costa.
Se puseram de pé, sacudiram as saias e abotoaram os casacos, mas pouco
fizeram para arrumarem o cabelo. Quando o silvo do vapor soou pela primeira
vez, elas tinham um aspecto tão desalinhado que parecia que nunca tiveram em
suas mãos uma escova ou um ferro.
O barco reduziu a velocidade.
— Assegurem-se de que vocês tem tudo — disse Roberta — especialmente
os guarda-chuvas. E agora vamos adiante.
Recolheram seus pertences e caminharam para a parte da cabine onde se
encontrava uma escada que desembocava no convés. Ali as janelas eram mais
amplas e outros passageiros já se aglomeravam junto a elas para olharem o
lado de fora enquanto esperavam para desembarcar. As garotas esticaram o
pescoço para verem por cima das cabeças que tinham diante de si.
— Aquele é o edifício da Igreja Batista, veêm? E a chaminé da fábrica.
Recordam que contei que minha mãe queria que eu trabalhasse ali? Vocês
conseguem ver?
— Sim, mamãe, nós vemos — respondeu Becky pelas três.
— Me pergunto se as garotas estarão com Grace e Elfred.
— Quantos anos elas tem? — preguntou Lydia.
— Quase os mesmos que vocês. Marcelyn tem dezesseis, Trudy tem treze, e
Corinda, creio que dez.
— Espero que não sejam tão horripilantes como seus nomes. E espero que
não sejam umas presunçosas e não pensem que são superiores só porque
viveram toda a vida aqui e nós não.
Em geral, Lydia era sempre a mais negativa.
E, como de costume, Rebecca se fazia de pacificadora.
— Pelo que sabemos, elas também opinam que nossos nomes são
horripilantes. De fato, creio que nossos nomes são dramáticos.
— Você pensa que tudo é dramático.
— Tudo menos você. O único que você sabe fazer é dizer não para tudo.
— Garotas…
Bastou essa única palavra de Roberta para que elas se acalmassem e
esperassem entre os outros passageiros, esfarrapados e sujos, com olhos que
mostravam sinais de terem dormido pouco e dentes que necessitavam con
urgência uma boa escovação. Um homem detrás delas demostrou isso quando
abriu a boca em um grande boçejo e empestiou o ar com o odor de alho.
Susan apertou o nariz e atraiu o olhar de Rebecca.
— Creio que os botões das costas do meu vestido apodreceram —
murmurou.
Rebecca riu entre dentes e recebeu uma forte cotovelada nas costas.
— Ai mamãe!
— Vigiem seus modos — as recriminou Roberta em voz baixa, ainda que
aparecesse uma curva de sorriso na comissura de seus lábios.
— Ele deveria vigiar os dele — sussurrou Rebecca por cima do ombro.
— Sim, deveria — concedeu Roberta. — Ou talvez deveríamos girar e
bocejar na cara dele.
Roberta e suas duas filhas começaram a rir, chamando a atenção dos
passageiros que estavam perto. Lydia levantou o olhar e se soltou da mão de
sua mãe.
— Do que vocês estão rindo?
Roberta se inclinou e sussurrou no seu ouvido: — Te direi depois,
cordeirinha. Agora reserva teu melhor comportamento para a tia Grace e o tio
Elfred.
— Mamãe, se me disser isso uma vez mais, me esconderei em algum lugar e
voltarei para Boston como um passageiro clandestino. E tens que me chamar
de cordeirinha como se eu fosse um bebê em fraldas? Eu já tenho dez anos,
sabia?
Roberta sorriu e apoiou com muito afeto uma mão sobre os cabelos
desordenados de Lydia. Depois voltou sua atenção ao grupo de pessoas que se
aglomeravam no cais.
Tinha sentimentos ambivalentes sobre seu regresso à aquele lugar, mas as
garotas necessitavam de estabilidade, e tampouco viria mal uma pequena dose
de família. Elas nunca haviam conhecido sua avó, sua tia, seu tio ou suas
primas, e já era hora de que conhecessem. Oxalá minha família fosse tolerante,
pensou. Que se mostrem tolerantes, é tudo o que peço. Eu me ocuparei de
manter minhas filhas, dar a elas um lugar e demonstrar a elas amor e
tolerância. Mas quando eu já não estiver com elas, necessitarão de minha
família.
O silvo do barco voltou a soar e o Belfast se chocou contra o cais. As
vibrações ascenderam desde os pavimentos inferiores e através das solas dos
sapatos de Roberta até seu coração, como um aviso de que, para bem ou para
mal, depois de dezoito anos ela se encontrava outra vez em sua casa.
Abrigadas debaixo dos guarda-chuvas negros, as quatro Jewett desceram a
escada e antes de chegarem à metade dela, já tinham a parte de trás das saias
empapadas. Um homem muito bem vestido, protegido debaixo de seu guarda-
chuva negro, se separou da multidão que esperava no cais e correu para elas.
Com a mão livre sujeitava o chapéu sobre a cabeça, enquanto os lados de seu
casaco balançavam.
— Birdy? — ele gritou por cima do ruído do vento.
— Elfred? — contestou Roberta a gritos. — É você?
— Sim, sou eu. E estas devem ser suas filhas.
Ele se aproximou tanto que seus guarda-chuvas se chocaram, e ela viu que
ele era o homem que recordava, ainda que agora levasse bigode.
— Sim, estas três. Garotas, este é o tio Elfred.
— Venham, Grace está esperando-as lá dentro.
Ele as levou em fila até o escritório da companhia naval, uma estrutura
baixa e larga, açoitada pela tormenta, com bancos empapados ao longo das
paredes exteriores e uma moderna iluminação elétrica que enviava seus
reflexos através das janelas. Dentro, uma corpulenta mulher, que levava um
chapéu alto adornado com frutas, abriu os braços e correu até elas.
— Birdy! Oh Birdy! Não posso acreditar que você está aqui.
— Grace, que alegria voltar a te ver!
Fundiram-se em um forte abraço e bloquearam a entrada aos outros
passageiros que se aglomeravam ao redor delas.
— Nossa pequena Birdy voltou para casa por fim!
— Céus! Fazia tanto tempo que não me chamavam assim.
Durante os primeiros anos de seu matrimônio, Roberta havia regressado de
vez em quando a casa, sempre sem seu marido. Porém, nos últimos dez anos,
quando se acentuou a vida tórrida de seu esposo, não tinha voltado mais, para
não ter que enfrentar as perguntas.
Terminou por fim o abraço e as duas mulheres deram um passo atrás para
estudarem uma a outra. Grace era apenas una sombra do que havia sido, com
seu pouco mais de um metro e cinquenta de estatura, uma matrona com a forma
de um pote de biscoito*, com uma cara rechonchuda e uma enorme e
repugnante verruga no lado direito do lábio superior. Seu cabelo estava
penteado com esmero e suas roupas eram caras. Detrás das lentes de seus
óculos assomavam lágrimas em seus olhos azuis.
Em contraste, os olhos azul-acinzentados de Roberta estavam secos e
firmes, com talvez um rasgo de reserva. Ela era uma cabeça mais alta que sua
irmã mais velha. Suas roupas eram baratas e estavam enrugadas. Burlava dos
convencionalismos dispensando o chapéu, e sua abundante cabeleira cor
mogno, recolhida em um coque mal feito desde a tarde anterior, estava
descuidada. As comissuras dos olhos formavam pequenas rugas, e sua cintura
mostrava alguns quilinhos a mais. Tudo nela dizia: “Me encaminho para os
quarenta anos e não me envergonho. E aqui estão minhas três razões para que
seja assim.”
— Vamos, Grace, venha conhecer minhas filhas — propôs com inocultável
orgulho em sua voz. — Garotas, apresento a vocês a tia Grace.
Responderam com tom formal e modos solenes que contrastavam com seu
pobre aspecto. Durante as apresentações, Grace abraçou as três e Elfred tirou
o chapéu e, se inclinou para apertar as mãos de cada uma. Pronunciou seus
nomes e perguntou a idade delas. Então se voltou por fim para a mãe delas,
para compensar a saudação precipitada que haviam intercambiado lá fora,
debaixo da chuva.
— Bom, Birdy, olá... Caramba, como você mudou!
— Todos mudamos não é, Elfred?
Ele estava vestido com elegância, sua roupa estava limpa, e suas bochechas
bem afiladas destacavam o vistoso bigode prateado que se levantava nas
pontas como um sorriso. A chuva liberava de sua pele um aroma de rum, que
envolvia o ar por cima de sua cabeça bem penteada, como um perfume
suspenso. Havia ficado mais corpulento e tinha também alguns fios prateados
nas sobrancelhas, mas a idade, quarenta ou um pouco mais, lhe sentava bem.
Ele parecia saber disso, o que arruinava todo o efeito. Seu sorrisso deixava
ver o poder de um surpreendente par de covinhas e de uns estremecedores
olhos castanhos de larguíssimas pestanas. Algum sexto sentido advertiu
Roberta que ele os usava com esse propósito cada vez que lhe convinha, e ele
descansou a mão lânguida sobre seu ombro um momento mais do que o
necessário.
— Bem vinda a Camden — disse o homem.
— Obrigada. A casa está pronta?
Elfred vendia propriedades e havia se ocupado da compra da casa de
Roberta.
— Bom, Roberta, “pronta” é um termo relativo. Adverti-te que necessitava
de alguns reparos.
— Estou acostumada a trabalhar. De fato, conto com três ajudantes
voluntárias. Quando posso vê-la?
— Quando quiseres, mas Grace esperava que primero vocês passassem por
nossa casa para tomar o café da manhã. A menos, claro, que vocês tenham
comido no barco.
— A única coisa que comemos no barco foram uns sanduíches de queijo,
ontem, ao redor das seis da tarde. Nós quatro estamos famintas.
Grace, radiante, disse: — Então venham para casa! Magnífico! Demos
permissão às garotas para que fossem um pouco mais tarde à escola, assim
elas poderiam conhecer suas filhas. A esta hora devem estar vestidas e nos
esperam. Elfred, e os baús de Roberta? Você pode falar com o despachante da
estação marítima e pedir para eles levarem? Imagino que ela vai querer…
— Eu mesma falarei con o despachante — a interrompeu Roberta.
— Ah… bom… sim, claro — gaguejou Grace.
Seus olhos lançaram uma olhada fugaz para seu esposo, como se esperasse
que ele tomasse partido.
— Sim, claro… imagino que você fará isso — adicionou vacilante. —
Então nós…
— Bom dia Elfred, senhora Spear...
Os saudou um homem que passava junto a eles e se dirigia para o interior.
Ele vestia uma capa marrom que escorria água, botas Wellington e um boné
de lã xadrez, que cobria sua orelha esquerda. Sua cara estava queimada pelo
vento, seus cabelos castanhos molhados se sobressaíam por debaixo do gorro.
Ele parecia ter mais ou menos a mesma idade que Elfred.
— Hey, Gabriel, não tão rápido! — o chamou Elfred. — Venha conhecer a
irmã de Grace, Roberta. Ela acaba de chegar de Boston com suas três filhas.
Pode ser que você se lembre dela. Ela foi à escola daqui, mas agora seu
sobrenome é Jewett. Birdy, você se lembra de Gabriel Farley?
— Não, creio que não. Muito prazer, senhor Farley.
Ele levou a mão até o boné em modo de saudação.
— Senhora Jewett — disse. — Pelo que ouvi você está se mudando para cá,
e desta vez para ficar.
— Sim, assim é — respondeu Roberta, surpreendida de que ele soubesse.
— Para a casa de Breckenridge — esclareceu Elfred.
— A casa de Breckenridge!
Farley levantou uma sobrancelha. Elas eram castanho claras e tão cheias e
rebeldes que lhe davam um aspecto feroz quando as franzia.
— Ela sabe onde está se metendo?
— Não a assuste, Gabe. Ela ainda não a viu.
Farley se inclinou para Roberta, como se fosse lhe revelar o maior dos
segredos.
— Tem que vigiar este indivíduo — murmurou.
Sem entrar em detalhes, dirigiu uma careta zombadora para Elfred e se
despediu deles.
— Bom, que tenha sorte! Encantado de conhecê-la. Tenho que descer alguns
suprimentos do barco, assim que é melhor que eu vá ver o agente. Senhoras...
— concluiu com um último e rápido toque em seu boné.
Quando o homem saiu, Roberta encarou seu cunhado.
— Muito bem Elfred, quer me dizer exatamente em que estou me metendo?
— Foi a melhor casa que eu pude conseguir dado que nestes tempos as
propriedades estão escassas como os dentes de uma galinha. Desde que
chegou a linha de bonde e com a produção de lã em contínuo aumento por
causa da guerra, a cidade está em pleno crescimento. Diga-me, está segura de
que não quer que eu pergunte ao despachante por seus baús?
— Claro. Passei 18 anos da minha vida com um esposo negligente que rara
vez estava em casa, e a estas alturas não tenho nenhuma intenção de começar a
confiar em um homem, o único que necessito é do endereço, da direção da rua
e de um número.
— Só diga-lhe que é a velha casa Breckenridge. Ele já sabe que está na rua
Alden.
Quando Roberta se afastou para cumprir o assunto, os olhos de Grace
giraram para Elfred com uma expressão que dizia com toda claridade: “Vê? Te
disse como ela era!”
Uma vez selados os baús e contratado os carros para que transportassem a
carga até a rua Alden, toda a tropa se dispôs a ir para a casa de Elfred e Grace
para tomarem o café da manhã.
Para grande assombro das Jewett, Elfred as fez subir em um reluzente
automóvel negro.
— Sério que ele é seu? — exclamou Becky com os olhos arregalados de
admiração.
Elfred se pôs a rir.
— Sim, ele é meu.
— Céus! Nunca viajei em um destes.
Tampouco Roberta, mas de imediato preferiu o saculejo de uma carruagem e
o odor de um cavalo.
Elfred as conduziu para uma belíssima casa de 3 andares, estilo Rainha Ana,
na a rua Elm. Era evidente que Elfred ia muito bem na venda das
propriedades. Também resultava óbvio que Elm era a melhor rua para se viver
em Camden, com casas magníficas que ficavam atrás de cercas, detrás de
jardins amplos e gramasos verdes. A casa de Elfred e Grace era majestosa,
enorme, pintada em intensa cor vinho com diferentes tons. Dentro, existia um
excesso de madeira lustrada, cristais e papel de parede muito elaborado, os
móveis eram suntuosos e estavam dispostos com grande solenidade; os tapetes
importados; as lâmpadas elétricas. Tudo é tão perfeito e ordenado, pensou
Roberta, enquanto dava uma olhada no salão se perguntando onde eles
desfrutavam da vida.
— Que linda casa, Grace! — exclamou enquanto Elfred se colocava detrás
dela para recolher seu casaco.
Por Deus! Seu corpo esbarrou no meu quando Grace não estava olhando?
pensou, dando um passo para a frente.
Roberta girou, mas também o fez Elfred, que se afastou para colocar seu
casaco em um cabide de bronze que havia dentro de um pequeno espaço na
entrada, e também para se ocupar dos casacos das garotas.
Talvez tivesse sido acidental, disse a si mesma, e se dirigiu a sua irmã.
— Insisto em dar uma olhada em volta.
Nesse momento Elfred regressou, se colocando em uma respeitosa distância
já que Grace o observava.
— Me perdoe Birdy, posso te chamar de Birdy, verdade? — abriu as
palmas das mãos e lhe dedicou um sorriso sedutor — Dado que eu sou o
vendedor de propriedades, posso sugerir que seja eu que te acompanhe a uma
volta na casa enquanto Grace se ocupa do café da manhã? Desta maneira
posso te explicar algumas das características que fazem tão atrativa esta casa.
Roberta esteve a ponto de lhe perguntar porque ele queria assinalar os
detalhes distintos da decoração de sua irmã. Teve que fazer um grande esforço
para tragar as palavras.
— Melhor deixar para depois do café da manhã Elfred — lhe aconselhou
Grace — Estou segura de que Sophie terá tudo em ordem até então. — Se
inclinou sobre o corrimão ornamentado e olhou para cima — Estão aí
crianças?
Em seguida desceram três jovenzinhas empertigadas, todas infurnadas em
vestidos engomados e com coques descomunais nos cabelos, seus sapatos
estavam tão perfeitos como foram seus modos quando lhes apresentaram as
três primas.
A mais velha, Marcelyn, atuou como porta voz das três.
— Muito prazer. Mamãe preparou uma mesa de café da manhã especial para
nós no solário. Vocês gostariam de vê-la?
As três Jewett a seguiram com os olhos no alto enquanto passavam debaixo
das modernas luzes elétricas acendidas pelos corredores interiores. No
solário, uma sala hexagonal situada em um canto traseiro da casa, havia uma
mesa de ferro branca reluzindo com a mais fina porcelana. Por cima de umas
prateleiras de metal colocadas em fileira cresciam frondosas samambaias e
palmeiras e floresciam orquídeas enquanto lá fora a chuva gelada golpeava
contra as janelas e retumbava uns quantos trovões.
— Virgem Santa! — exclamou Rebecca — Essa gente deve ter muitíssimo
dinheiro!
As garotas Spear cruzaram um par de olhadas confusas, seguidas por
algumas risadas nervosas.
— O que é tão engraçado? perguntou Rebecca.
— Você sempre diz tudo o que pensa?
Rebecca encolheu os ombros.
— Quase sempre.
— Mamãe daria um ataque se falássemos dessa maneira.
— Então façam quando ela não puder ouvi-las.
Escandalizadas, as primas anfitriãs cruzaram mais olhadas rápidas antes que
Marcelyn com muita cortesia, convidasse suas hóspedes a sentarem.
— Isso é o que você faz? — inquiriu, fascinada apesar de sua boa educação.
Rebecca ainda olhava assombrada a seu redor.
— Faço o que?
— Diz qualquer coisa que te vem na cabeça pelas costas de sua mãe?
— Céus, não! Nós podemos dizer tudo o que quisermos diante dela, se ela
não gostar discutimos e então ela nos dá um pequeno discurso sobre as
vantagens dos bons modos e seu impacto sobre a liberdade individual. Vejam,
nossa mãe acredita que temos que viver nossa vida da maneira que melhor nos
apeteça.
— Deus meu! — ressoou Marcelyn.
— Porque você diz isso?
— Bom... nossa mãe poderia... quero dizer... Deus meu!
— Ah, entendi. Sua mãe não gosta de ouvir semelhante linguagem da boca
de suas filh…
— Shhh… — recriminou Marcelyn, com um dedo sobre os lábios. — Em
qualquer momento entrará Sophie com o café da manhã, e ela informará tudo a
nossa mãe.
Como se respondendo a algum sinal, nesse momento entrou uma mulher
roliça de cabelos grisalhos que enquanto andava movia os quadris como um
pato. Ela levava uma bandeja enorme que contraía seu ventre proeminente. As
garotas ficaram quietas enquanto a mulher colocava diante delas os pratos
fumegantes.
— Aqui há um sabroso kedgeree bem quente.
Lydia olhou a almôndega que tinha em seu prato.
— O que é isso?
— O que é isso? Bom! É pescado e arroz banhado em ovos. Qualquer nativo
de Maine sabe o que é kedgeree.
— Nós não somos de Maine.
— Mas sua mãe sim.
— Sim, mas nossa mãe não cozinha muito.
— Não cozinha muito! — Sophie ficou perplexa. — Como! Não pode ser!
Com dissimulação, Rebecca beliscou a perna de Lydia por debaixo da mesa
para que ela se calasse. Sophie serviu biscoitos quentes, manteiga e geleia de
mirtilo.
— Você pode me trazer um pouco de café Sophie? — pediu Marcelyn.
— Marcelyn Melrose Spear! Você sabe muito bem que sua mãe me
despediria no ato se eu permitir que você tome café.
— O que há de mal em prová-lo?
Sophie enrugou a cara em um gesto de desgosto, até que sua papada se
triplicou e abandonou o solário.
— Agora se assegurem de deixarem os pratos bem limpos — ordenou a elas
ao sair.
No mesmo momento em que a mulher desapareceu de vista, Susan e Lydia
fizeram precisamente isso, com uns modos que deixaram muito a desejar.
Tserviram-se de grandes porções, mastigaram com a boca aberta e
ruidosamente e se limparam com o dorso da mão.
Enquanto comia, Rebecca fez uma observação com a boca cheia.
— Melrose é um segundo nome bastante estranho.
— Vem da minha tataravó paterna — explicou Marcleyn — Dizem que
quando tinha treze anos ela deu à luz ao seu primeiro filho na neve junto ao rio
Megunticook, o envolveu com uma manta de pele e o levou até a fábrica onde
encontrou seu esposo bêbado como um gambá, na cama com uma mulher índia.
Colocou o bebê entre os dois e cortou a orelha esquerda de seu esposo no
tempo que dizia: “Aí está. Agora as mulheres não o acharão tão formoso e
você terá que voltar para casa que é onde você deve estar.” Tiveram outros
oito filhos e pelo o que contam os índios, a metade nasceu sem a orelha
esquerda. Alguma vez em sua vida vocês escutaram uma história tão triste,
patética e romântica?
— Por todos os diabos, isso poderia ser um ótimo drama! Devemos
escrevê-la e representá-la.
Marcelyn escandalizou-se novamente, pois uma garota de dezesseis anos
falou a palavra “diabos”, mas ninguém disse nada sobre isso.
— Escrevê-la? — se limitou a perguntar.
— Como uma peça de teatro.
— Vocês escrevem peças de teatro?
— Claro.
— E também as representam?
— Oh, sim! Sempre fazemos alguma representação.
— Para quem?
— Bom, para nossa mãe, claro. Para nossos amigos, professores.... em
realidade, para qualquer pessoa que fique nos olhando por tempo suficiente.
— E sua mãe senta para ver como vocês representam essas obras?
— Ah, sim, ela é a mais entusiasta. Deixa qualquer tarefa para nos ver atuar,
cantar, tocar o piano, recitar poesias... e já começamos a ensinar Lydia a tocar
a flauta doce. Eu sei tocar uns quantos instrumentos e formamos trios, e às
vezes também quartetos quando podemos convencer nossa mãe de que se una a
nós. Na realidade, primeiro tocamos com os instrumentos nossas próprias
aberturas, depois vamos rapidamente para trás do cenário e interpretamos os
nossos papéis. Então voltamos a sair para tocar a peça final. Vocês nunca
tocaram instrumentos? Nunca?
Rebecca parecia tão perplexa por esse déficit cultural como havia estado
sua prima ante a palavra “diabos”.
— Nós, eh... bom não. Quer dizer nunca pensamos nisso.
— Vocês tocam instrumentos? Alguma de vocês?
Becky olhou as três e pensou que nunca na sua vida tinha visto um grupo de
garotas tão desinteressantes.
— Não.
— Então vocês recitam poesias.
— Não, tampouco.
— Então o que vocês fazem para se divertir?
— Eh...
Marcelyn ainda em seu papel de porta voz de suas irmãs, olhou cada uma
delas e depois, outra vez a sua prima.
— Nós cosemos.
— Coser! Eu falava de diversão!
— E assistimos palestras educativas...
— Que aborrecido! Eu preferiria dar uma palestra a ter que escutá-la. O que
mais?
— Bom, às vezes vamos remar.
— Velejando?
— Valha-me Deus, não! Mamãe nunca nos permitiria velejar. É demasiado
perigoso.
— Então imagino que tampouco vocês vão pescar.
— Por Deus, não! Eu não colocaria minha mão sobre um pescado viscoso.
Mas uma vez fizemos um piquenique na margem da enseada de Sherman.
Comemos músculos cozidos sobre pedras quentes.
— Uma vez?
— Bom, mamãe não gosta que fiquemos sem sapatos e que sujemos nossas
saias.
Rebecca pensou enquanto mastigava um pouco de kedgeree, que, segundo
descobriu era muito saboroso.
— Minha mãe não se preocupa muito pelas bainhas de nossas saias, limpas
ou sujas. E houve verões em que vivemos de moluscos e lagostas, de qualquer
coisa que pudéssemos tirar de graça do mar. Ela se preocupa mais por nossas
mentes do que se devemos ou não gastar um só minuto em insignificâncias que
com o tempo deixarão de importar. Mas insiste em que a imaginação é um dom
raro que devemos cultivar em todo momento, assim como todas e cada uma de
nossas capacidades inatas. Vocês querem participar da próxima representação
que façamos?
Marcelyn Melrose Spear olhou a sua recém-chegada prima radiante. Ela
havia herdado de sua mãe o cabelo castanho claro e de algum outro
desventurado antecessor, o nariz ligeiramente bulboso. Mas do seu pai tinha os
formosos olhos castanhos de pestanas muito largas e curvadas. Que nesse
momento cintilavam de entusiasmo.
— Ah, Rebecca! — exclamou. — Você fala sério?
— Claro que falo sério. Me chame de Becky. Em nossa próxima peça
contaremos a história de sua avó, e se você quiser, você pode ser a
personagem que cortaremos a orelha. Assim você poderá fazer toda a parte
dos gritos, contorções de dor e maldições. Será uma oportunidade para se
emocionar. Claro, devemos decidir o que vamos usar para simular o sangue e
teremos que fazer uma peruca de cabelos negros para usar na representação da
mulher índia. Em relação ao bebê... — Deu uma olhada sugestiva às crianças
de dez anos Lydia e Corinda. — Não, não, claro que não. Vocês são
demasiado grandes, não é? Bom, mas nos ocuparemos desse problema quando
chegue o momento. Poderemos usar bonecas e vocês as menores, poderão
chorar fora do cenário. Deveremos começar já a trabalhar no roteiro!
Marcelyn se inclinou para frente em atitude conspiratória.
— Escutem todas, devemos fazer um pacto. Não contaremos nada a mamãe
do que dissemos aqui nesta manhã... entendido? — concluiu com severo olhar
de advertência para Trudy e Corinda.
— Mas ela perguntará — balbuciou Corinda.
— Então diremos que tivemos um bate-papo encantador e nenhuma palavra
mais.
— Mas Marcy...
— Você quer participar das peças, não é assim?
E dessa maneira, em menos de uma hora depois de terem se conhecido, as
duas primas mais velhas estavam organizando sua próxima reunião.
Entretanto, em um clima mais formal no interior da casa, os adultos haviam
terminado de tomar o café da manhã e desfrutavam de uma taça de café quente.
Elfred, localizado atrás de sua cadeira, brincava com um palito de dente e
dirigia alguns sorrisos inquietantes a Roberta quando Grace não olhava. Como
Grace estava mais interessada na conversa, pois ela considerava ter um dever
obrigatório no caráter de irmã mais velha, não olhava muito Elfred.
— Bem, Birdy — disse com tom complacente — eu esperava que você
mencionasse... aquilo.
— Aquilo?
— É... bom, já sabe.
Grace agitou as mãos como se estivesse dobrando uma massa.
— O divórcio — sussurrou por fim.
— Por que sussurra Grace?
O semblante de Grace endureceu um pouco, porém ela continuou com voz
mais alta.
— Não seja torpe Roberta. É sério que fizeste isso?
— Sim, fiz.
— Oh Roberta, como pode?
Sem alterar-se Roberta lhe fez eco.
— Oh, Grace! Como não poderia? Te interessaria saber com quantas
mulheres ele se deitou ao longo dos anos?
Grace se ruborizou e voltou ao tom sussurrante.
— Birdy, pelo amor de Deus!
— Um momento...! Deixe-me ver se entendi bem... É correto que ele jogue
de eterno amante, mas não é correto que eu fale disso em companhia de gente
bem educada?
— Eu não disse isso.
— Não, mas estava implícito em suas palavras. É evidente que você
desaprova que eu tenha obtido o divórcio. Então o que eu deveria ter feito?
Ficar com ele outros dezessete anos e permitir que ele saísse a caça de
mulheres durante semanas e que se desfizesse do pouco dinheiro que eu
ganhava, que voltasse para mim quando se esgostasse os fundos ou quando
outra mulher se cansasse dele e o deixasse na rua? Porque isso é o que ele fez
Grace, uma e outra vez até que eu não pude tolerar mais. Ele não manteve viva
a minha família, eu mantive. E como não havia dúvidas de que ele não faria
nada de bom pela minha vida, ou pela vida de minhas filhas, eu tomei a
iniciativa. E me divorciei.
— Mas George era tão sedutor.
Roberta não pode evitar pôr os olhos em branco.
Como teu próprio sedutor, Elfred, aqui presente neste mesmo momento do
outro lado dessa mesma mesa, e diante do teu nariz, enviando mensagens
galantes?
Havia naquilo algo sorrateiro, insidioso, quando ele adotava poses que
sugeriam uma secreta intimidade e depois, justo antes de Grace desviar o
olhar para ele, se endireitava com um ar circunspecto. Neste preciso momento
ele estava sentado assim, ligeiramente reclinado, com os cotovelos junto a
xícara de café e acariciando o bigode para cima e para baixo com o dedo
indicador. Mas seus olhos e seus lábios lhe enviavam um convite inequívoco.
Roberta fez caso omisso de seu cunhado e respondeu a sua irmã: — Você o
viu poucas vezes, mas nisso você tem razão. Ele seduzia uma mulher atrás da
outra... treze, segundo tenho entendido.
— Não obstante, mamãe e eu somos totalmente contra este divórcio. O que
vão dizer às pessoas, Birdy?
— Não me importa o que as pessoas digam. Eu tive que fazer o que era justo
para mim e para minhas filhas. E assim fiz.
— Fazendo caso omisso de todos os convencionalismos!
— Sim, da mesma maneira que o fez George.
— E é sério que você se propõe a aceitar esse emprego como enfermeira do
condado e assim percorrer todo o distrito rural?
— Já o aceitei. Começarei tão logo que tenhamos nos estabelecido em nossa
casa.
— E quem se ocupará de suas filhas enquanto você está ausente?
— Ainda não pensei nisso, mas pensarei.
— Roberta, não seja escandalosa.
— O que tem de escandaloso em ganhar a vida para manter minhas própias
filhas?
— Você sabe a quê me refiro. Uma mulher divorciada que vai de uma
cidade a outra… Bom, é algo que não se faz.
— Ah… já vejo.
Roberta examinou a sua pobre irmã, que vivia enganada, que não podia, ou
não queria reconhecer que tinha um marido que parecia pensar que todas as
mulheres eram presas fáceis. Sem dúvida, essa era a impressão que ele dava a
Roberta enquanto nesse momento burlava em silêncio de sua esposa.
De maneira abrupta, Roberta desviou a conversa para ele.
— Diga-me, Elfred, você compartilha o baixo conceito que tem Grace sobre
o estado de uma divorciada?
Elfred aclarou a garganta, se endireitou em sua cadeira e voltou a encher sua
xícara de café.
— Você deve admitir Birdy, poucas mulheres se divorciam. E será visto
com bastante suspeita o fato de você ter aceitado um emprego que te levará
por todo o distrito rural.
Grace se inclinou para frente com o semblante muito sério.
— Me escute, Birdy. Coloque suas filhas para trabalhar na fábrica e consiga
você também um emprego ali. Dessa maneira você poderá estar com elas e
com as pessoas da cidade, e assim ninguém teria tantas razões para questionar
seus motivos.
Roberta se levantou de um salto.
— Questionar meus motivos! Por todos os céus se escute Grace! Você está
dizendo que sou eu quem tem de se desculpar só porque sou a parte feminina
neste assunto! Terás que esperar que o inferno se congele antes de ouvir
qualquer justificação de minha parte! E quanto a pôr minhas filhas para
trabalharem naquela fábrica, não enquanto eu viva! Elas vão desfrutar de todas
as facilidades culturais que eu puder dar a elas... lições de música, viagens a
Boston para visitarem as galerias de arte, e tempo para explorarem a natureza
e qualquer coisa que queiram fazer, e a usarem suas mãos e suas mentes. Em
primeiro lugar, completarão sua educação. Nada disso será possível se eu
colocá-las para trabalhar na fábrica de lã.
Grace abanou as mãos.
— Está bem... lamento. Era só uma ideia, nada mais. Pensei que três
salários extras poderiam ajudar, dado que você já não tem um esposo que te
mantenha. Se sente, Birdy.
— Cansei de ficar sentada. Na realidade, estou impaciente para ver minha
casa. Assim Elfred, se você for tão amável...
Elfred limpou o bigode com um pano de linho e se pôs de pé.
— Quando você disser, irmã. Você me permitiria primeiro te mostrar nossa
casa?
— Creio que seja melhor deixarmos para outra vez, já tem sido uma noite
muito longa e eu estou ansiosa para instalar-me.
— Muito bem.
Elfred acomodou a cadeira debaixo da mesa, tirou um relógio do bolso e
com um golpe rígido do polegar levantou a tampa.
— Calculo que as carretas com suas coisas já devem ter chegado na sua
casa. Vamos buscar as garotas.
Na porta uma vez que colocaram os casacos, Grace tomou as mãos de Birdy
nas suas e apertou a bochecha contra a dela.
— Não se irrite comigo, logo irei te visitar e poderemos falar um pouco
mais.
— Sim, faça isso — respondeu Birdy com frieza.
— E você verá nossa mãe, verdade?
— Tão logo eu disponha de um tempo livre.
Birdy se soltou das mãos de Grace e abotoou o último botão do casaco.
— Imagino que é inútil esperar que mamãe se dê ao trabalho de ir me ver.
— Vamos, Birdy, não sejas assim. Isso é o dever de uma filha. E depois de
tudo, foi você quem esteve longe por todos estes anos. Ela deve estar ansiosa
para te ver.
— Sem dúvida, para me dar outra palestra sobre todos os infortúnios que
acarreta o divórcio... Garotas, despeçam-se de suas primas.
As garotas intercambiaram amistosas saudações de despedida.
— E venham quando queiram — disse Grace as suas sobrinhas.
Ao se virar para sair, Elfred se assegurou de manter sua mão oculta, quando
tocou a cintura de Roberta da maneira que só um esposo o faria com um
sugestivo apertão.
Capítulo 2
— Elfred, basta!
Ela havia deixado as garotas correrem adiante debaixo da chuva enquanto
ela e Elfred abriam seus guarda-chuvas no alto dos degraus.
— Perdão, o que você disse?
— Toque-me uma vez mais e eu te deixarei um olho roxo.
— Te tocar? Nossa, irmã Birdy! A que te refere?
— Você sabe perfeitamente a que me refiro! E não me chame de irmã Birdy!
Eu não sou sua irmã.
— De acordo. Birdy, está bem?
— Suponho que sim. Agora, esclarecemos onde devem estar suas mãos
daqui em diante?
— Oooh! Que esquentada é você!
— Guarde suas mãos para si mesmo e nos levaremos muito bem, Elfred.
Com um sorriso que haveria cativado até uma matrona carrancuda, ele pois
o chapéu e lhe indicou que caminhasse diante dele pelo caminho.
— Como quiser. Vamos ao encontro das garotas?
Ele as levou no meio da chuva em seu luxuoso automóvel negro. No banco
de trás, as garotas, excitadas, provaram os acentos macios, olhando com
curiosidade o interior do veículo e perguntaram a Elfred se ele queria tocar a
buzina. Ele fez uma vez, enquanto Roberta se mantinha no assento dianteiro e
olhava pela janela.
— Bem, o que você pensa de nossos elétricos? — inquiriu Elfred.
— Elétricos?
— Os bondes.
— Ah! Bom, certamente mudaram a cidade, não?
— Bastante progresso para uma cidade deste tamanho, não acredita?
Ela observou um bonde que passou rangendo junto a eles.
— Você já viajou em um?
— Claro. Todo mundo viaja nos elétricos. É a maneira mais rápida para se
chegar até Rockland e Warren.
— Mais rápido que em seu automóvel?
— Bom, eu não diria tanto. Não.
— São tantos automóveis.
Depois de ver passar um, se voltou bruscamente para seu cunhado para
perguntar a ele: — Você gosta do seu, Elfred?
— Sim, mas alguns de meus clientes se recusam a subir nele. As pessoas
ainda preferem mais o cavalo.
— Você também?
— Não.
Ela podia não aprovar Elfred a nível pessoal, mas tudo o que Gracie havia
escrito sobre esse homem assegurava a Roberta que ele tinha algo mais que
uma bonita cabeça sobre os ombros.
— Então, se você fosse uma mulher você adquiriria um automóvel no lugar
de um cavalo?
— Ah, não! Espera um momento, Birdy! Não me diga que você está
pensando em comprar um automóvel.
— Por que não?
— Porque você é uma mulher!
Ela soltou um bufo que recordou a Elfred que ela não era sua serviçal
esposa com quem ele estava falando.
— Com meus próprios planos — replicou Roberta.
— Tenha cuidado, Roberta. As pessoas vão falar.
— Do quê? Do automóvel?
— Bom, você é divorciada, Birdy. Você tem que ser mais cuidadosa que a
maioria.
Ele havia baixado a voz até um tom de cochicho.
— Você não tem nenhuma necessidade de sussurrar, Elfred. Minhas filhas
sabem que sou divorciada e que o mundo olha com maus olhos as mulheres
divorciadas, não é certo que vocês sabem garotas?
— De todos os modos, nosso pai não estava nunca em casa — comentou
Lydia.
— E quando estava, o único que fazia era tirar dinheiro de nossa mãe e
desaparecer outra vez — adicionou Rebecca —, mas na última vez ela se
negou a dar isso a ele.
Susan também intercedeu a favor de sua mãe.
— Nós acreditamos que é bom que ela tenha se divorciado dele.
Pode ter parecido que Roberta atuava com um pouco de presunção quando
comentou: — Segundo minha experiência Elfred, no geral as pessoas falam
sobre os demais porque elas não têm o suficiente com suas próprias vidas para
manterem-se ocupadas. Essa é a razão principal pelo qual as pessoas metem
seus narizes nos assuntos de outras pessoas. Faz-me um favor, Elfred? Leve-
me até a rua Main.
— Para que?
— Quero ver que aspecto tem.
— O mesmo de sempre.
— Não acredito. Grace me escreveu sobre todo tipo de mudanças, quero
percorrer toda sua extensão e ver todas essas mudanças... a menos, é claro,
que você sinta que pode manchar sua reputação ser visto com uma mulher
divorciada.
Seu sarcasmo, uma estocada direta na tentativa de Elfred de deixar de lado
o assunto, foi tomado com um desafio.
— De acordo. Um passeio rápido e voltaremos a subir a costa até Alden.
— Muito bem, Elfred — respondeu ela com fingida submissão.
Reclinou-se em seu assento e se dispôs a desfrutar o passeio pela cidade em
que havia crescido.
Camden era agradável mesmo em um dia de chuva. As montanhas se
elevavam por detrás em curvas suaves; a pequena aldeia se enroscava como
um colar em sua garganta; a chuva vinda da costa rochosa delineava o
contorno de Camden e formava um porto natural sereno, muito mais sereno
ainda pelas dezenas de ilhas que ficavam na linha exterior da Baía Penobscot
e atuavam como muro de contenção contra o embate de até os mais violentos
temporais que ameaçavam a costa do Atlântico.
Nos anos transcorridos desde que Roberta tinha partido, muitos entusiastas
dos iates das grandes cidades de Nova Inglaterra haviam descoberto a
seguridade do pequeno porto de Camden e fizeram do porto o lar para suas
embarcações. Os mastros dos barcos de lazer agora compartilhavam os
ancoradouros juntamente com a própria frota pesqueira do lugar, ainda que a
essa hora do dia, no meio da manhã, as embarcações de trabalho, junto com
seus proprietários, mastros e redes, haviam ido mar adentro para ganharem a
vida no meio da chuva.
— Em Boston vivíamos cercadas por terra — comentou Roberta. — É
agradável estar outra vez perto da água. Os sons e odores são diferentes junto
ao mar.
Eles permaneceram um momento perto do cais da cidade, envolvidos pelo
motor do automóvel de Elfred, através da janela chegava a eles o som de
martelos dos estaleiros, a cacofonia das Gaivotas, a nota de contralto do motor
de uma embarcação solitária que se dirigia para partir.
— Escutem o que está soando — Roberta disse as garotas.
— O que é? perguntou Elfred.
Mas Roberta agitou a mão para fazê-lo se calar, enquanto ela e as garotas,
que entenderam sem fazerem perguntas, escutavam a serenata da cidade
marítima. O ar salgado se aderia com força contra seus rostos, como um pano
frio e molhado. O odor das rochas estofadas com as algas marinhas que as
usavam quando a maré baixava, a madeira do cais inchada pelos anos de
umidade e o tênue odor da queima de cal que subia desde Rockport cada vez
que soprava o vento do sudoeste.
Quando escutaram o suficiente, Roberta se voltou para Elfred.
— Vamos, Elfred. Agora me mostre a rua Main.
A rua Main serpenteava como uma enguia e ascendia no extremo norte. As
estruturas de madeira branca do setor comercial que Roberta recordava de sua
infância haviam sido destruídas pelo fogo em 1892. Em seu lugar, havia agora
edifícios de dois e três andares, de ladrilho vermelho. Mas ainda que os
edifícios fossem diferentes, o caráter da cidade era o mesmo.
Roberta, como qualquer viajante que regressa a casa, buscou os lugares
característicos que lhe eram familiares. Sobre a cúpula branca da Igreja
Batista, o relógio da cidade ainda marcava o passo da vida cotidiana. Junto a
ela, o Village Green permanecia inalterado. Mais abaixo, no estaleiro Bean,
um barco de quatro mastros estava na plataforma de construção, meio
terminado, exatamente como quando ela era uma criança. O pequeno rio
Megunticook caía em cascata pelo porto, passava pelos moinhos de lã e fazia
funcionar suas máquinas e a fábrica ainda reinava sobre toda a cidade, era de
se presumir que com crianças como a maioria dos empregados.
Mas o progresso havia chegado a Camden em mais do que apenas os bondes
elétricos. Um ônibus a motor do hotel Elms ia até eles e se dirigia ao
embarcardouro com sua carga de turistas. Os postos telefônicos se alinhavam
ao longo da rua Main. Aos postes lhes seguiam as calçadas de concreto. Havia
mangueiras de água para incêndios e iluminação elétrica e um edifício novo e
expansivo da Associação Cristã de Jovens. Mas a Roberta lhe chamou atenção
algo que estava em um edifício no extremo norte da rua Main, onde dobrava
para converter-se em Belfast Road.
— Elfred! Esse letreiro dizia “garagem”?
— Vamos, Roberta, nem pense.
— Mas dizia isso! Quero que você dê a volta e voltemos ali. Insisto, Elfred!
— Roberta não seja tola.
— Maldito seja, Elfred, obedece! Quando digo que dê a volta, falo sério!
No assento de trás as garotas começaram a rir.
— Creio que ela fala sério, tio Elfred — comentou Rebecca.
Com um grande suspiro de resignação, Elfred freou, mudou a marcha e se
dispôs a dar a volta. Enquanto esperava que passasse uma carruagem, falou a
sua cunhada.
— Roberta, entendo que você não teve que responder ante nenhum homem
durante muito tempo. Mas desta vez você tem que me escutar. As mulheres não
podem ter automóveis, simplesmente porque não podem manejá-los.
— E por que não?
Iniciaram o regresso ao centro da cidade.
— Porque podem quebrar o braço ao tratarem de manobrá-lo. E porque é
pesado e incômodo pôr nele a gasolina, e os motores se descomponhem com
bastante regularidade, e os carburadores necessitam permanentes ajustes. E os
pneus necessitam ser remendados, algumas vezes justo no meio do caminho. E
se isso acontecer quando você estiver completamente sozinha em algum lugar,
sem nenhum homem para te ajudar? Por favor, Roberta, seja sensata.
— Quanto custa um automóvel, Elfred?
— Você não está me escutando.
— Te escuto. É só que não te darei razão até que eu explore melhor as
possibilidades, porque, veja, pensei durante muito tempo nisto. Tem sido uma
parte de meu plano. Quanto custa um automóvel?
Elfred se negou a responder.
— Posso averiguar isso por mim mesma, e com facilidade.
— Está bem — respondeu exasperado. — Este custou oitocentos e
cinquenta dólares. Um carro aberto poderia custar uns seiscentos dólares, mais
ou menos.
— Não disponho de tanto, mais apesar disso penso em comprar um. De
alguma maneira conseguirei o dinheiro.
— Não seja ridícula, Birdy. Você não pode.
— Por que não? Você comprou.
— Sim, mas eu sou homem. Os homens podem manejá-los.
— Elfred — replicou indignada — você me insulta sem o menor esforço!
— Birdy, você é a mulher mais exasperante que conheço!
— Vira para a direita. — E depois de um segundo repetiu com mais energia
— Disse que vire, Elfred!
Ele assim fez, enquanto refutava.
— Não posso entender que você e Grace sejam irmãs.
Elfred se deteve frente à farmácia Boynton. A calçada resplandecia e o
carro ficou um pouco do lado dela enquanto o motor seguia com seu cacarejo e
fazia balançar o carro com seu ritmo. As gotas de chuva golpeavam o teto de
couro e rodavam pelas janelas convertendo a vista dos edifícios do outro lado
da rua Main em imagens borradas, como uma aquarela desbotada.
Roberta estreitou as pálpebras e aproximou o rosto da janela.
— “Companhia de Automóveis Boynton” — leu em voz alta. — Louvado
seja, Elfred! Compraste o teu aqui mesmo?
Elfred se negou a responder. De todos os modos, a resposta era óbvia.
Debaixo desse letreiro pendurava-se outro: GARAGEM CAMDEN. O
aguaceiro fazia ilegível a letra menor dos dois letreiros.
— Garotas, vocês podem ler isso?
Rebecca tentou.
— Não muito bem… agência… mantimento… é tudo o que posso decifrar.
— Eles guardam os automóveis aqui, Elfred?
— No inverno, sim. Com o frio os motores se congelam e os caminhos se
tornam intransitáveis.
— Onde se compra a gasolina?
— Birdy, por favor... sua irmã se irritará muito comigo se souber que te
ajudei com essa ideia louca.
— Não se preocupe Elfred; eu te absolverei de todos os pecados.
Assegurarei-me de que Grace saiba, sem nenhuma dúvida, que tudo tem sido
ideia minha.
Elfred começava a se dar conta de que essa mulher tinha uma língua tão
afiada como uma faca de dois gumes e desfrutava muito usando-a, com a
esperança de que ele se acovardasse. Mas Elfred não era desses. Ele gostava
das mulheres e essa em particular estimulava seu interesse com seu flamejante
estado de celibato, seu descaramento, sua linguagem grosseira e seus costumes
liberais. Nenhum homem com sua mente sã a suportaria por muito tempo, não
era estranho que George Jewett tinha deixado-a, mas como entretenimento, a
senhora Birdy Jewett faria muito bem o papel.
— A gasolina se encontra na loja de ferramentas. E agora posso levar você
para sua casa?
Roberta sorriu com afetação e se inclinou para trás em seu assento como se
já houvesse tomado uma decisão.
— Sim, por favor.
A rua Alden se localizava sobre uma colina muito próxima do centro da
cidade. A casa Breckenridge era tão velha como a mesma Camden e durante as
duas últimas décadas esteve habitada pelo último representante do clã, um tal
de Sebastian Dougal Breckenridge. Sebastian havia passado seus anos
produtivos no mar, e esta havia sido sua única esposa. Havia se resignado a
passar seus últimos dias de reumático ali, onde podia ver os vapores dos
navios que entravam no porto, observar os pescadores que saíam todas as
manhãs e regressavam ao entardecer, ouvir os chilreados das gaivotas quando
se resguardavam junto as suas janelas e recordar o ar salubre de sua juventude
quando percorria as rotas comerciais através de um mar agitado.
As pessoas da cidade recordavam os dias em que Sebastian cuidava de sua
casa, quando as petúnias floresciam nos canteiros debaixo da janela da frente,
quando o esteio cravado em ângulo oblíquo no terreno do jardim da frente,
mantinha sua resplandecente pintura branca. Mas haviam passado muitos anos
desde que as velhas das articulações rangentes de Sebastian puderam suportar
a tortura dele se agachar para arrancar as ervas daninhas do jardim, ou desde
que seus braços artríticos puderam sustentar um machado, ou desde que sua
vontade debilitada o recordou que a casa necessitava de cuidados se ele não
quisesse que ela desmoronasse.
Roberta olhou boquiaberta a casa e sentiu um vazio no estômago.
— É esta?
— Meu Deus! — murmurou uma das garotas, seguido por um absoluto
silêncio de incredulidade vindo do banco traseiro.
— Elfred, você não pode estar falando sério. Você gastou meu dinheiro
“nisto”!
— Duzentos dólares não é muito, Birdy. E eu poderia ter conseguido uma
casa muito bonita na rua Limerok por quatrocentos dólares, mas você disse
que duzentos era seu limite.
Duzentos pela casa, duzentos pelo carro. Sim, esse havia sido seu plano.
Agora, possuía um casebre em ruínas e poderia pagar apenas a terça parte de
um automóvel e não tinha maneira de conseguir logo o resto.
— Oh, Elfred! Como você pôde? Por Deus! Não é mais que uma.. uma ruína!
— Tem os cimentos bem firmes, fogões de lenha que funcionam e janelas
que se fecham.
— Sem vidros — assinalou ela com os olhos voltados para cima.
No segundo andar, uma janela se via coberta com uma tábua de madeira.
Não havia dúvida de que o lugar não havia sido pintado nos últimos dez anos.
Havia grande quantidade de excrementos das gaivotas sobre as telhas de
piçarra e debaixo das bordas das janelas, e ao longo da frente de um pórtico
baixo, onde uma fila de pássaros se alinhava sobre o corrimão da escada,
cujos degraus eram tão regulares como os dentes de um cão do mar. Através
das janelas inferiores, Roberta deu uma olhada nos bens de Sebastian Dougal
Breckenridge. Viu o que parecia ser umas pilhas de jornais velhos e
flutuadores de redes portuguesas de pescar se alinhavam nos peitoris das
janelas.
— Pode se pôr de volta o vidro — afirmou Elfred.
— Eu não posso. Não sou nenhum vidreiro, Elfred!
A desilusão de Roberta se transformava por momentos em cólera.
— Você disse que tinha três boas ajudantes, assim confiei em sua palavra e
em que você teria dinheiro para uma reforma. Supus que tenha separado algum
dinheiropara esse propósito.
— Bom, eu não tenho! Não tanto! Eu disse “reparar” Elfred, não
“reconstruir”!
Roberta ficou sentada no carro olhando com olhos incrédulos sua nova casa.
— Você quer entrar e dar uma olhada?
— Não. Eu quero te pendurar na árvore mais alta que exista em Camden...
pelos tornozelos, Elfred Spear!
— Roberta...
— ... e depois farei apostas sobre quando você apodrecerá por fim e cairá
em pedaços.
Elfred tapou a boca com a mão e sorriu em suas costas enquanto ela fervia
de fúria com os dentes apertados.
— Oh, vamos, Birdy... ao menos entra e dá uma olhada.
Ela estava tão perturbada que saiu do automóvel sem guarda chuva e
avançou entre os matos do terreno sem esperar ninguém.
— Fora! — gritou as gaviotas. — Tirem seus sujos traseiros do meu
pórtico!
Elfred desligou rapidamente o motor e se pôs a correr com um guarda-
chuva. Alcançou-a no pé dos degraus do pórtico, onde ela acabava de chegar,
apertando os dentes para não insultá-lo. Ao fazer um exame mais de perto, lhe
pareceu que o próprio pórtico ia apodrecer por completo antes que Elfred
chegasse. O chão tinha buracos por todas as partes. Deteve-se com as mãos
nos quadris.
— Isto é deplorável. Completamente deplorável.
Elfred a animou a subir os degraus pelas tábuas que estavam em bom estado
e abriu a porta da entrada. Ela entrou diante dele para o que era suposto ser
um receptor. Milagre dos milagres… Tinha luz elétrica! Mas os cabos estavam
pendidos por fora das paredes e as lâmpadas se penduravam nuas. Havia
jornais por todas as partes, inclusive cobrindo as paredes. O velho os havia
colecionado e estavam amontoados em pilhas ao redor da habitação, junto com
jarros de vidro vazios e flutuadores portugueses. Grandes manchas de fuligem
se destacavam no teto, em cima do fogão, e havia lixos espalhados por todo o
chão. O lugar fedia a urina e decadência.
— Quero que me devolvam meu dinheiro — anunciou Roberta.
— Não posso recuperá-lo — respondeu Elfred. — A transação da venda foi
fechada.
Roberta caminhou em direção a ele, tomou o guarda-chuva dobrado e
cravou-o no meio do seu estômago. Elfred se inclinou para frente e soltou um
grunhido.
— Ai…! Ro… Roberta… que diabos…
— Como se supõe que viveremos nisto? Como, Elfred? Quer me explicar
isso?! — gritou.
Elfred abraçou o estômago e a olhou fixamente, estupefato. As garotas
tinham chegado ao pórtico e ficaram olhando-o, duvidosas. Rebecca subiu até
a entrada e as demais a seguiram, elegendo com cuidado o caminho. Susan deu
uma olhada em um degrau gasto que dividia as duas salas no piso térreo.
Rebecca foi para uma parede e rasgou uma tira de papel de jornal. Debaixo
apareceu a antiga umidade que amarelou o papel.
— Não estará tão mal, mamãe, uma vez que queimemos os jornais e
pintemos as paredes.
Apesar de tudo, Rebecca era sempre a otimista do grupo.
— É inadequada até para uma doninha!
Havia uma cozinha contígua à sala de estar. Lydia se aventurou a entrar e as
demais a seguiram. Ela abriu uma porta de baixo de uma pia seca e saiu um
odor fétido. Algo que parecia ser um penico vazio, talvez por algum capricho
benevolente do destino, havia deixado uma mancha permanente na madeira do
chão.
— Fecha essa porta Lydia! — gritou Roberta — e não volte a tocar nessa
coisa imunda, pelo que sabemos é muito provável que ele tenha urinado aí
dentro. — Se voltou bruscamente para Elfred e adicionou — Suponho que não
há quarto de banho.
— Não. Apenas uma casinha fora da casa.
Lhe deu as costas, demasiado irritada para olhá-lo de frente.
— Escute-me, Birdy, você disse duzentos dólares. Isto é o que se consegue
por duzentos dólares.
— Eu poderia ter gastado duzentos dólares em algo habitável enquanto
financiava o resto com uma hipoteca.
— Você me disse que não queria hipoteca, assim imaginei que você poderia
reparar esta casa com um pouco de ajuda.
Ela girou para ele e assinalou uma parede.
— Então repare-a você, Elfred, porque eu não tenho tempo! Eu tenho que
sair para ganhar um salário para minhas filhas! E, entretanto, você quer que eu
as deixe dentro desta imundície?
A estas alturas ela gritava e gesticulava com fúria.
— Você nos meteu neste ninho de gambás! E você se encarregará de fazer
isso habitável pagando pelo necessário! Que Deus me ajude, Elfred, eu confiei
em você!
Elfred retrocedeu porque Birdy brandia outra vez o guarda-chuva. Ele
estendeu as duas mãos como se quisesse detê-la.
— Está bem, Birdy, está bem... eu assim farei. Eu me ocuparei disso.
— E faça isso rápido porque esta não é uma habitação adequada para
minhas filhas!
— Muito bem, agora mesmo irei ver Gabriel Farley.
— Sim, senhor, você fará isso — disse uma voz profunda da porta e o
mesmíssimo Gabriel Farley entrou na cozinha. — Olá outra vez.
— Bem, o que você faz aqui? — perguntou Elfred surpreendido.
— Imaginei que você poderia necessitar-me. Se estas damas vão viver na
cova do velho Sebastian, terão que fazer alguns reparos. — Ele cruzou os
braços, juntou as mãos debaixo das axilas e repassou as paredes com o olhar.
— Não me importaria de lhe dar uma opinião.
Roberta esfregou as palmas das mãos e lhe lançou um olhar mordaz.
— Bom, isso sim que é velocidade — observou com frieza.
— Foi uma sorte termos nos conhecido no cais, ou eu não teria me inteirado
de que esse lugar iria ser habitado outra vez.
Roberta se perguntou se realmente havia sido sorte.
— Então você é carpinteiro, senhor Farley?
— Carpinteiro, pintor, comerciante geral, tudo em um. Posso arrumar a
maioria das coisas.
O olhar de Roberta foi de um homem a outro.
— Não seria possível que vocês dois houvessem combinado isso, seria?
Que Elfred “por casualidade” tenha comprado esta ruína para mim e talvez o
senhor Farley “por casualidade” tenha entrado no momento oportuno na
estação naval na hora que nós estávamos ali e agora “por casualidade” tenha
tempo para reparar este pedaço de lixo? A que classe de preço, se posso
perguntar?
Farley não disse nada. Ficou quieto com as mãos metidas nas axilas e as
pernas abertas, enquanto a estudava. Era corpulento e a capa de chuva o fazia
parecer maior. Tinha uns pés enormes e umas sobrancelhas espessas. Mas
nenhum imbecil fornido ia intimidar Roberta Jewett.
— Bem, senhor Farley, tenho razão?
Gabe Farley, sempre sereno, voltou a estudar com mais atenção Roberta
Jewett. Ela era a primeira mulher divorciada que ele conhecia em sua vida, e
não estava de seguro de que conclusões tirar. Ali estava ela, parada, fazendo
frente a ele e a Elfred com suas suspeitas, exatamente como faria um homem.
Sem temor, sem escrúpulos! Tampouco se preocupava muito por sua
aparência. Isso resultou evidente desde o primeiro momento. Seus cabelos
pareciam um montão de grama do pântano depois de um furacão, e seu casaco,
todo enrugado, estava desabotoado. Nada de chapéu, nada de luvas, nada de
modos refinados. Ela tinha os pés quase tão abertos como os de Gabe. Céus!
Como as mulheres da cidade irão falar dela pelas suas costas! pensou ele, e
também os homens.
Ele tirou o gorro e coçou a cabeça. Ele voltou a colocá-lo inclinado para um
lado e puxou a borda até que ele escondeu sua sobrancelha direita.
— Bom, senhora Jewett, você poderia ter razão. No entanto, também
poderia estar equivocada. Então suponho que é você quem tem que decidir se
quer minha ajuda ou não.
— Bom, responda-me com sinceridade, senhor Farley. Está confabulado
com meu cunhado?
— Não.
Ela tinha esperado uma negativa mais extensa. Surpreendida por sua
resposta monossilábica, deu a volta e percorreu a habitação.
— Bem, mesmo se estivesse, suponho que não há nenhum problema, porque
Elfred acaba de aceitar financiar as reparações desta casa. Não é assim,
Elfred? Veja bem, senhor Farley, eu não tenho dinheiro. Bom, isso não é de
todo verdade. Tinha quatrocentos dólares, mas Elfred tomou duzentos para
comprar este montão de lixo, assim que me ficam duzentos, que penso usar
para comprar um automóvel.
— Um automóvel — repetiu Farley, da maneira que um tio falaria a uma
sobrinha de cinco anos.
— Não ria de mim, senhor Farley!
— Não rio de você, senhora Jewett.
— Sim, está fazendo isso. Não sou idiota, tampouco estou incapacitada para
tomar decisões, e decidi, contra vento e tempestade, que terei um automóvel.
— Excelente para você! Porém não esclarecemos a questão de se você quer
ou não que eu repare esta casa.
— Pergunte isso a Elfred. Ele me meteu nesta confusão, e ele me tirará dela.
Elfred limpou a garganta e deu uns passos para frente.
— Vamos, Gabe, prepare um orçamento e traga-me ele. De alguma maneira
resolveremos entre Roberta e eu. Ela tem que viver em algum lugar.
— Muito bem, verei o que posso fazer e agora se me perdoam... — se
dirigiu a Roberta, deu um toque ligeiro em seu boné e saiu da habitação.
As garotas tinham ido explorar. Rebecca e Susan a chamaram do pórtico da
entrada.
— Mamãe, vem aqui!
Roberta saiu para reunir-se com elas, que estavam paradas e olhavam para
fora através da chuva.
— Olha mamãe — exclamou Becky entusiasmada. — Daqui podemos ver o
porto e todas as embarcações, e as ilhas! Certamente quando deixar de chover
poderemos vê-las. E as saídas do sol! Oh, mamãe, será magnífico! Imagine
esta varanda e o chão arrumados e nossas velhas cadeiras de vime aqui fora, e
algo com uma deliciosa fragrância que floresça ali, ao lado dos degraus. —
Ela saltou por duas tábuas quebradas e ficou na extremidade oposta do
pórtico. — E aqui talvez uma rede, na sombra, para as tardes tórridas do
verão, e eu escreverei um poema sobre o porto e pararei no final destes
degraus como se fosse o cenário do teatro da ópera, e recitarei enquanto você
se recosta sobre o gramado fresco com os pés descalços e o pescoço
levantado até o céu.
Voltou-se com afeto para sua mãe.
— Sei que agora está muito mau, mas não se preocupe. Nós gostamos.
Queremos ficar aqui.
Roberta estudou por um instante suas filhas. Seu maior tesouro. Ela havia
comprado essa choça desmantelada que elas —bendita fosse a ignorância
delas!— pensavam que podia ser um lugar. De pronto, se pôs a rir.
— Quem disse que sou pobre quando tenho vocês? Venham aqui, filhas!
Abriu os braços e suas filhas foram para ela, se refugiaram em seu peito e
rodearam sua cintura. Ali estavam, como três nós de pescadores na mesma
corda, enquanto observavam a chuva que escorria pelo teto do pórtico e
golpeava a terra saturada de água. Do solo fértil emanava uma fragrância pura
e um ar rico e úmido que prometia um esplêndido verdor para o verão. A
montanha que se alçava as suas costas, as protegiam do vento preponderante
do sudoeste. A seus pés, a terra caía em declive e umas quantas casas, árvores
e comércios as separavam da baía de Penobscot. Abaixo e à direita se via uma
parte do teto da fábrica de lã e a seu lado a chaminé de tijolos como uma faca
no céu nublado, onde a neblina da chuva se misturava com a fumaça.
Uma gaivota passou junto a elas em um vôo rasante; emitindo toda uma série
de gritos roucos. Depois bateu as asas enquanto pousava sobre o cata-vento do
telhado de um galpão no caminho abaixo. Roberta observou-a durante todo o
trajeto, até que ela pousou e se deteve. Em Boston elas haviam vivido muito
longe do mar. Terra adentro, as gaivotas falavam uma linguagem diferente da
que utilizavam diante da vista do oceano. A presença do Atlântico dava a estas
gaivotas uma impetuosidade que Roberta gostava muito. E ninguém poderia
dizer a uma gaivota de Camden que deveria ficar calada, ou ser obediente, ou
decorosa, ou que deveria se amoldar, ou que não poderia voar sozinha.
Talvez ela houvesse tomado suas ideias das gaivotas.
— Se vamos ficar, nessecitarei que vocês me ajudem — disse Roberta as
suas duas filhas mais velhas.
— Claro, mamãe.
— Com certeza, mamãe.
— E ainda que eu possa assegurar que não teremos muito, nenhuma de vocês
vai trabalhar nessa fábrica.
Ela olhou abaixo, para o teto de piçarra cinza escuro.
— Nós não necessitamos de muito — lhe assegurou Rebeca para infundir a
ela confiança.
— Vocês vão passar muito tempo sozinhas. Não se importam?
— Quem foi quem nos ensinou que “quando se tem imaginação nunca está
sozinha”?
— Essa é minha filha!
Acompanhou a exclamação com uma cotovelada em Rebecca e então nas
duas garotas de uma vez.
A gaivota voltou, seguia sozinha, e ainda protestava. Roberta observou
como brilhavam seus olhos negros e girava a cabeça com curiosidade
enquanto planava sobre elas e olhava-as.
— Casas nunca foram muito importantes para mim. — comentou —
Enquanto sejam cálidas e secas e tenham uma boa quantidade de risadas em
seu interior, e talvez alguns livros e músicas… Isso é suficiente, certo?
— Certo — responderam as garotas ao uníssono.
— Então nós ficaremos — As mãos de Rebecca e Susan se apertaram em
sua cintura e Roberta pensou que havia tomado a decisão correta. Isso era tudo
que necessitava, e a partir desse momento estaria satisfeita com sua decisão.
— Onde está Lydia?
— Lá em cima, investigando.
— Vamos buscá-la?
Sorridentes as três foram para cima.
Lydia estava explorando a fundo a casa. Havia lido algumas das manchetes
dos jornais pregados na parede, que remontavam de trinta anos atrás. Havia
escolhido alguns flutuadores de vidro de cores vivas dentre os flutuadores de
Sebastian Dougal. Eles eram vermelhos, azul marinho, e amarelo açafrão e
ficariam magníficos quando fossem colocados no parapeito da varanda no
verão. Os deixou nos degraus da escada, depois olhou para cima, sonhando
acordada e cantarolando “Penoso é o destino de quem ama demais...”. No
princípio daquele ano em sua escola de Boston havia representado o papel de
Josephine em Pinafore, e agora se sentia transportada a um barco em alto mar.
Imersa no devaneio, com a cabeça apoiada na dobra do cotovelo e o braço
estendido sobre o corrimão da escada, voltou a subir sem deixar de cantar por
todo o caminho até acima. “Pesada a dor que envolve a cabeça...’”, cantava
enquanto entrava no dormitório de trás, que tinha vista para o monte Mount
Battie. O teto seguia a linha empinada do telhado, em um extremo tinha um par
de janelas largas e estreitas que chegavam quase até o solo. Com o joelho na
terra, o senhor Farley examinava a parede onde estavam as janelas e
assobiava por entre os dente,s seu silvo soava como as asas dos patos quando
voavam baixo.
— Olá... — murmurou ela.
Ele deixou de silvar e olhou para trás, por cima do ombro.
— Ah... Olá.
— Eu sou Lydia.
Farley deu a volta.
— Encantado de conhecê-la, Lydia. Eu sou o senhor Farley.
— Eu sei. Você vai arrumar esta casa para nós?
— Creio que sim.
— Está um desastre, não?
Ele deu uma olhada na casa.
— Bom não está tão mau, terei que substituir aquela janela do dormitório.
— assinalou com um nódulo enquanto mantinha a mão apoiada no joelho. — E
parece que vai ser necessário refazer o pórtico da entrada, mas o teto está
firme com a piçarra e pode durar outros cem anos.
— Esta vai ser minha habitação — afirmou Lydia.
— Ah, sim?
— Minha e de Becky e Susan. Mamãe ocupará aquela outra — assegurou
enquanto assinalava para trás.
— Já falaram sobre isso?
— Não, mas mamãe quase sempre nos deixa fazer as coisas de nossa
maneira.
— Verdade?
— Quase sempre, a menos que seja prejudicial para alguém ou ruim para
nossas mentes. Nós queremos ficar aqui assim que isso acontecerá.
— Por que querem ficar?
— Porque aqui temos uma avó, e primas, e a tia Graice e o tio Elfred, e já
era hora de conhecermos eles. E porque aqui há um teatro de ópera que mamãe
disse que iremos com frequência, e excelentes escolas e assistir a escola
secundária daqui permitirá nosso ingresso diretamente na universidade sem
necessidade de passar no exame, sabia disso?
Assombrado pela firmeza de seu discurso, Gabriel aclarou a garganta.
— Não, não sabia.
— Mamãe disse que a educação é primordial.
“Mamãe disse.” Gabriel examinou a pequena garota precoce. Ela não
chegava nem na altura de seus ombros e tinha um aspecto bastante desalinhado
com seus gastos sapatos marrom e um vestido em forma de saco e com bolsos
deformados. As tranças cor de areia estavam emaranhadas e mechas haviam se
soltado eram apartadas com frequência da testa. Tinha as unhas sujas, mas suas
duas bochechas eram rosadas, e seus olhos, tão vivazes como os de uma
andorinha do mar. Ademais, seu vocabulário e sua dicção surpreenderam
Gabe, que a escrutinou mais a fundo.
— Quantos anos você tem?
— Dez.
— Você fala muito bem para uma criança de dez anos.
— Mamãe lê muito para nós e nos incentiva a sermos muito inquisitiva
sobre o significado das palavras e a criar.
— Criar o quê?
— Qualquer coisa. Música, poesia, peças teatrais, ensaios literários,
pinturas, até exibições botânicas. Uma vez escrevemos uma ópera.
— Uma ópera… — repetiu Gabe com franca surpresa.
— Em latim.
— Virgem Santa!
— Bom, tentamos em latim, mas cometemos tantos erros que mamãe se
cansou de corrigi-los assim mudamos para o inglês. Você tem filhos?
— Sim. Tenho uma filha, Isobel. Ela tem quatorze anos.
— Susan tem quatorze anos, talvez nos tornemos todas amigas.
— Estou seguro de que Isobel gostaria disso.
— E Rebecca tem dezesseis anos. Susan e Rebecca fazem tudo juntos, mas
eu sou a menor e às vezes elas não me deixam intervir. Mas ao menos me
permitem atuar nas peças de teatro. Bom, agora creio que é melhor que eu vá.
Ao dar a volta se chocou com seu tio Elfred, que acabava de subir.
— Cuidado, pequena! — ele exclamou e deu um passo para trás.
Ela levantou os olhos.
— Me perdoe, tio Elfred, eu só ia buscar minha mãe.
— Ela está lá embaixo, no pórtico da entrada, com suas irmãs.
Lydia desceu ruidosamente as escadas e Elfred foi ao encontro de seu amigo
no aposento. Deteve-se debaixo da lâmpada apagada e buscou um cigarro no
bolso do seu jaleco.
— Bom, o que acha? — perguntou.
Farley se levantou.
— Sobre a casa ou sobre ela?
Elfred estava cortando a ponta do cigarro com os dentes e ao estalar em uma
gargalhada fez voar as fibras marrons.
— Do que mais goste — respondeu.
Ele raspou um fósforo com a unha do polegar e acendeu o cigarro.
Nesse momento, Roberta havia subido até a metade da escada, seguida por
suas filhas. Girou e com um dedo sobre os lábios ordenou que elas fizessem
silêncio e lhes indicou que ficassem quietas. Subiu nas pontas dos pés a borda
dos degraus, que não grunhiam, e uma vez acima se apertou contra uma parede
e aguçou o ouvido para escutar tudo que pudesse.
Farley falava em voz baixa.
— Ela não se importa muito com o que diz, verdade?
— Ou que aspecto tem — adicionou Elfred.
— Ou que aspecto tem suas filhas.
— No entanto ela tem o que um homem gosta para pôr as mãos em cima e
isso é o único que importa. Não é assim, Gabe?
Farley riu entre dentes.
— Bom, me recuperei bastante rápido. Mas que diabos! Nunca antes havia
visto de perto uma mulher divorciada. Senti curiosidade.
— Eu também. Eu também... — confabulou o cunhado.
O odor de cigarro chegava até Roberta.
— Você também o que, Elfred?
— Bom, você sabe... — disse com tom fanfarrão — Apalpei ela um
pouquinho.
— Você a apalpou? Bem, Elfred — aprovou Farley, com tom risonho —
Você... um homem casado.
— Foi só de brincadeira.
— O que ela fez?
Farley quase sussurrava.
Ainda que Roberta não escutou a resposta de Elfred, imaginou um sorriso
malicioso que significava qualquer coisa que uma mente luxuriosa quisesse
imaginar, antes de Farley responder: — Você é um demônio, Elfred.
Então, os dois homens se puseram a rir.
Pelo tom que falavam, Roberta imaginou que Elfred tinha o cigarro
enganchado entre os dentes.
— Sim senhor... Ela é ardente, Gabe. Um pouco colérica talvez...
Ele devia ter tirado o cigarro da boca, já que seguiu então no tom
confidencial de um sedutor experimentado que ajuda o outro.
— Aceita um conselho, no entanto. Primeiro deixe que ela se esquente. Ela
tem um lado batalhador.
— Acreditei que você só tinha tateado ela.
— Ela se mostrou assim com respeito a casa.
— A casa?
— Ficou colérica quando viu em que condições estava a casa e me deu um
golpe no estômago com seu próprio guarda-chuva. Foi uma reação
abominável. Abominável.
— Suponho que você mereceu e não falo das condições da casa.
Roberta tinha escutado o suficiente, com a cara vermelha de fúria irrompeu
na habitação e enfrentou os dois homens. Durante esse instante de repentina
imobilidade quando cada um dos presentes sabiam sobre o que haviam
sussurrado e rido, Roberta fixou seus olhos glaciais em Farley.
— Quando você pode começar o trabalho?
Farley nem sequer teve a graça de se ruborizar.
— Amanhã.
— E você, Elfred... você pagará.
Ninguém poderia equivocar-se em relação ao segundo sentido do tom de
suas palavras.
— E se assegure de que Grace saiba, de maneira que mais adiante não haja
nenhum problema entre ela e eu.
— Me assegurarei disso.
— E você — Com uma ênfase de desagrado na palavra, olhou Farley com
certo desprezo em seus olhos — Se assegure de terminar o trabalho e sair
daqui o quanto antes. Está claro?
— Sim, senhora — ele respondeu — O que você diga.
Roberta deu a volta com um ar tão majestoso como se estivesse vestida de
tafetá e se dirigiu para a porta.
— Já estão aqui os carros com meus pertences. Querem, por favor, ajudar a
descarrega-los?
Aquilo estava muito longe de ser uma súplica. Era uma ordem dada no tom
de alguém cujo desgosto era tão grande que só podia fazer frente à aquilo
descarregando-o sobre os causadores de sua irritação.
Quando ela se foi, Gabe e Elfred intercambiaram mensagens silenciosas
entortando as sobrancelhas e logo riram entre dentes uma vez mais.
Capítulo 3
Seus móveis estavam em tão más condições como ela, uma coleção de peças
deslustradas que desde o ponto de vista estético não tinham nenhum valor.
— Não se preocupem que se molhem! — gritou aos descarregadores. — Só
tragam eles aqui dentro!
— Talvez seja melhor você passar esta noite com nós em nossa casa — lhe
sugeriu Elfred.
— Por nada do mundo. O que você faria com nós quatro?
Elfred não sabia o que faria com as quatro. Tinha sugerido aquilo por uma
questão de cortesia, mas na realidade se sentiu aliviado por ela não ter
aceitado seu oferecimento.
— Esta é nossa casa. Estas são nossas coisas. Nos arrumaremos. Bom, não
fique aí parado, Farley, faça algo de útil! Você também, Elfred!
Elfred se empapou até os ossos. Roberta se alegrou quando o viu olhar o
traje de lã molhado, preocupado que encolhesse. Farley, que ainda vestia sua
capa de chuva de plástico marron, não tinha esse problema, assim ela pediu a
ele que ajudasse os descarregadores a descarregar as peças mais pesadas,
incluído o piano, que —assim esperava— lhe provocaria uma hérnia
considerável.
Murmurar. Era isso que faziam?
Maldita raça de porcos. Que trabalhem como bestas de carga. Os homens
poderiam fazer ao menos isso, ainda que para Roberta Jewett não serviam
para muito mais.
Elfred desgostava bastante de ver-se obrigado a realizar semelhante esforço
físico, e no momento oportuno, decidiu que necessitava ir a seu escritório.
Farley também se foi.
Roberta mandou as garotas para cima, com instruções de desempacotar
algumas caixas de roupa de vestir e de roupa de cama. Ela se dirigiu à cozinha
e percorreu com a vista a coleção de cestos e baús empilhados em um canto
como um quebra-cabeça chinês. Perguntou-se onde poderia encontrar os
utensílios de cozinha entre todos aqueles caixotes. Era perto do meio-dia e as
garotas deviam ter fome. Seria melhor ir em busca de algum armazém e trazer
alguns suprimentos, acender um fogo para esquentar o ambiente, tentar
desenterrar a chaleira e a pia e alguns baldes, panos e toalhas. De repente, lhe
pareceu tudo demasiado duro. Ademais, o ar que entrava pela porta aberta,
ainda úmido, lhe trazia o odor do oceano e da terra que começava a verdejar e
dos botões dos lilases, e o som das gaivotas, das boias com campainha na
distância, que sempre havia amado. Assim que localizou as pernas com forma
de garras do tamborete do piano, que surgiam da montanha de cestos, tirou um
montão de caixas da frente do instrumento, levantou a tampa do teclado,
sentou-se e tocou Art Is Calling for Me, de Naughty Marietta. Tocou a peça
com energia e ao ouvir a décima nota do compasso, as garotas começaram a
cantar da parte de cima.
“Mamãe é uma rainha... e papai é um rei... assim que sou uma princesa, e
sei.”
Logo, Roberta Jewett se sentiu imensamente feliz.
Tinha suas filhas, e um lugar onde abrigá-las, e um trabalho que a esperava.
Não havia nenhum esposo que tiraria o que era seu e que voltaria a pô-la em
ridículo. E mais, no pórtico dianteiro a esperava à vista do porto para
desfrutar todas as vezes que quisesse se apoiar contra o marco da porta e se
esquentar ao sol. Aquele era um novo começo de sua vida, e ela e as garotas
iam ser muito, mais muito, felizes.
Terminou a canção com um arpejo veloz e girou ao redor sobre o tamborete
do piano.
E se encontrou cara a cara com Gabriel Farley.
Ele estava apoiado contra o marco da porta com as mãos metidas debaixo
das axilas em posição de descanso, como se levasse um bom momento ali.
Um repentino mau humor se refletiu no rosto de Roberta.
— Pensei que você tinha partido.
— Assim foi. Mas voltei.
— Bom, você poderia ter chamado na porta.
Ela girou outra vez para o piano, fechou de um golpe a tampa do teclado e
se pôs de pé de um salto.
— Fiz isso, mas você não me ouviu, por causa do alvoroço.
Ela o olhou de soslaio, carrancuda.
— Alvoroço? Bom, obrigada, senhor Farley. Que cortês de sua parte!
Farley havia permanecido na porta durante todo um minuto, enquanto
observava e escutava e se perguntava que classe de mulher deixava aberta a
porta da entrada com essa chuva e se sentava ao piano ignorando o montão de
pacotes e caixas de mudança que deviam ser desembalados e a limpeza a
fundo que necessitava essa ruína de casa.
— Em realidade, digo que desfrutei bastante. Suas garotas cantam muito
bem.
Ouviu-se a voz de Rebecca, do piso de cima.
— Mamãe, quem está aí?
— O senhor Farley! — respondeu Roberta.
— O que ele deseja?
— Não sei. — Se voltou para ele. — O que deseja senhor Farley?
Ele se apartou da porta e entrou.
— Pensei que lhe viria bem um pouco de ajuda com as caixas mais pesadas,
ou talvez para dar uma olhada nas tubulações do fogão da chaminé. Poderia
haver ninhos de esquilos dentro delas.
— Não, obrigada. Arrumaremo-nos.
Ela se dirigiu para as caixas, elegeu uma e a levantou.
Ele se aproximou e a tirou de suas mãos enquanto ela ainda a tinha no ar.
Sua maior altura o permitia fazer isso sem nenhum esforço.
Roberta deu a volta e lhe dirigiu uma olhada depreciativa.
— Você não tem nenhum trabalho que fazer em alguma outra parte?
— Sim.
— Então, por que você não está lá?
— Tenho meu próprio negócio, meu e de meu irmão. Ele está trabalhando
agora perto de Lily Pond e se arrumará muito bem até que eu chegue. Onde
você quer isto?
A caixa continha suas caçarolas e panelas de ferro fundido. Ele a sustentava
como se estivesse vazia.
— Na cozinha.
Farley a levou até ali e ela foi atrás. O observou enquanto ele deixava a
caixa sobre o chão junto cozinha econômica de ferro.
— Olhe, senhor Farley — disse baixando a voz — escutei você cochichar e
rir entre dentes com meu cunhado ali em cima. Creio que tenho uma ideia
bastante próxima do que se tratava tudo isso, então, por que você não deixa
que nós desempacotemos as coisas e se despede de uma vez? Eu não sou a
classe de mulher que você pensa, e você não vai tirar nenhum proveito se ficar
dando voltas por aqui e atuando como se fosse indispensável. Já tenho meu
piano aqui dentro. Apenas por isso necessitei de você, e lhe dou meus
agradecimentos.
Ele endireitou pouco a pouco a coluna vertebral enquanto a olhava com
expressão divertida.
— Senhora Jewett, você está cometendo uma injustiça comigo — disse
enquanto limpava as palmas das mãos.
— Não, senhor Farley, você cometeu uma injustiça comigo. Disse a você
antes: eu não sou estúpida. Conheço os homens e seus costumes, e sei muito
bem que ideia preconcebida desperta em suas mentes a palavra “divorciada”.
Ao menos podemos estar de acordo em que sou bastante inteligente para ter
imaginado corretamente sobre o que murmuravam você e Elfred ali em cima?
Farley a estudou atentamente. Por Jeová! Nunca havia conhecido uma
mulher como ela. E para dizer a verdade, não sabia com certeza por que
estava ali. Não obstante, decidiu que uma admissão sincera de seu primeiro
erro os colocaria em termos mais amistosos.
— Muito bem. Por favor, aceite minhas desculpas.
— Não, não aceitarei.
Farley não soube se ria ou ficava com a boca aberta. Como nunca antes
tinham rechaçado uma desculpa sua, ele ficou com a boca aberta. E deu um
passo para frente como se acabasse de tragar um inseto.
— Não aceitará?
— Não, não aceitarei. Porque o que você fez foi muito grosseiro e como não
tenho nenhum desejo de fomentar nossa relação, opto por não aceitar suas
desculpas.
Passaram-se alguns segundos antes que ele pudesse balbuciar.
— Bom, que me condenem ao fogo eterno...
— Bem, isso é uma boa ideia — concluiu Roberta, cortante, antes de dar a
volta e se afastar com o nariz levantado.
Ela se dirigiu ao salão e o deixou outra vez boquiaberto. Farley tirou o
boné, coçou a cabeça ainda que não necessitasse fazer isso, deu uma olhada na
cozinha, sentiu curiosidade pela energia acumulada dessa mulher, colocou o
boné mais inclinado que de costume sobre sua testa e a seguiu.
Do vão da porta, entre os dois quartos, ele observou como ela se
aproximava de uns pacotes embalados e estirava os braços para alcançar uma
caixa redonda que estava em cima de uma pilha. Por detrás, sua saia estava
cheia de rugas e seus cabelos eram desastre. Ao inclinar-se para frente, ela
levantou os calcanhares de seus sapatos negros, mostrando que eles estavam
tão maltratados e gastos que quase não ficavam as solas. Ele examinou-a
melhor e não fez nenhum outro oferecimento de ajuda.
— Vou partir.
— Sim, faça isso, por favor.
— Então você não quer que eu faça os trabalhos da casa?
— Faça o que quiser. Isso é entre você e o Elfred, mas se fizer isso quero
que fique bem entendido que você deve chamar na porta antes de entrar e que
deixará de olhar meu traseiro da maneira que está fazendo neste mesmo
momento. Não estou interessada, senhor Farley. Nem em você, nem em nenhum
homem, está claro?
Ela desceu com o chapéu na mão e o olhou na cara outra vez.
Ele tirou o boné e coçou a cabeça com força. Não saía de seu assombro.
— Por Deus, você consegue me assustar! Está sempre disposta a atacar não
é assim?
— Sim, assim é. Você não viveu o que eu vivi senhor Farley, então não me
julgue.
Farley resolveu mudar de atitude e lhe apontou com dedo indicador
levantado.
— É melhor que você entenda uma coisa. As mulheres por aqui não falam
dessa maneira. E se você quiser ter amigos é melhor que você tampouco fale
assim!
— Falar como?
— Você sabe ao que me refiro! Como... como isso! Como você faz!
— Ah, você quer dizer que as mulheres daqui fazem vocês pensarem que
não sabem que os homens fazem comentários e observações sobre elas, em
voz baixa e as suas costas?
— Já me desculpei por isso!
Ele lhe apontou outra vez com indicador, mas começou a se ruborizar.
— E depois ficou parado na porta olhando-me como se eu fosse Lady
Godiva. Que vergonha, senhor Farley! O que pensaria sua esposa?
Ela deu a volta, pôs a caixa sobre o tamborete do piano, levantou a tampa e
deixou se pendurar um pedaço de seda. Do interior ela tirou um chapéu de
palha preto com uma rosa e uma pilha de xales e lenços para a cabeça.
Farley ficou imóvel atrás dela, de mau humor e desconcertado, irritado pelo
tom de reprimenda que havia usado Roberta ao lhe perguntar o que teria
pensado sua esposa. Mudou o peso do corpo de um pé para o outro, antes de
se defender com a desculpa mais trivial.
— Não tenho esposa.
— Não me surpreende — replicou ela secamente enquanto de costas a ele
amarrava um pano atrás da cabeça.
Quando terminou, girou e o viu parado no mesmo lugar onde tinha estado
todo este tempo olhando-a com uma expressão como se quisesse apertá-la
contra a parede com um bom empurrão.
— O que faz ainda aqui, senhor Farley?
— Maldita seja se sei! — exclamou ele, fora de si.
Com passo enérgico atravessou a sala, cruzou o pórtico, desceu os degraus e
saiu para chuva. A última coisa que Roberta viu dele foi a cauda de sua capa
de chuva marrom quando ele girou para a esquerda e desapareceu de sua vista.
— Sorte minha que me liberei deste tipo — murmurou para si mesma, e se
dispôs a trabalhar.
Gabriel Farley, nascido e criado em Maine, estava acostumado aos
caprichos do clima, mas nesse dia a umidade e à chuva lhe exasperavam. Bom,
talvez não só umidade e a chuva. Era bastante difícil tirar da mente uma
mulher insolente como aquela. Sobretudo porque havia atingido justo no ponto
sobre os motivos que o levaram a ficar ao seu redor. E ele havia tratado de
desculpar seus atos com uma observação tão inconsistente como “não tenho
esposa.”
Maldição! Por que havia dito isso?
Tinha passado quase toda a tarde dando voltas de um lado a outro, com a
mandíbula apertada e a testa franzida antes que seu irmão se animasse por fim
a falar.
— Que bicho te picou hoje?
— Nenhum.
— Se passa alguma coisa com Isobel?
— Não.
— Mamãe?
— Não.
— Bom, então o que é?
— Não se meta no que não te diz respeito, Seth.
Seth seguiu medindo um travessão para as portas duplas de uma garagem
coberta que Gabe e ele construíam nesse momento para uma das famílias ricas
que tinham casas em Boston e cabanas de verão ali. Um banco de talhar
madeira e uns cavaletes de serrar ocupavam o centro da estrutura construída a
pouco. Seth se inclinou sobre o banco, fez uma marca, colocou o grosso lápis
de carpinteiro detrás da orelha e assoviou baixo.
Conhecia muito bem Gabriel. A melhor maneira de tirar algo dele era deixar
de perguntar.
Assoviou um pouco mais enquanto Gabe montava uma pequena janela.
Mais cedo do que o esperado, ele decidiu por fim falar.
— Amanhã vou começar um trabalho para Elfred Spear. Assim que deixarei
que você termine este.
— O que você vai fazer para Elfred?
— Bom, não é precisamente um trabalho para Elfred. É ele que me pagará
para fazê-lo.
— Como?
— É a velha casa de Breckenridge.
— Você não fala sério! Aquela velha ruína?
— Esta manhã estive lá e dei uma olhada. A estrutura é bastante sólida e tem
o teto de piçarra.
— O velho Sebastian estava mais louco que uma cabra quando morreu.
Quase posso imaginar como é por dentro.
— De acordo, é um desastre. Mas nada que não possa se arrumar com um
pouco de água e sabão e muita pintura. Necessita um par de vidraças novas
para a janela e muita massa ao redor das velhas. Em alguns lugares terei que
reforçar os cimentos com um pouco de argamassa entre as pedras, mas posso
fazer tudo isso com bastante facilidade. Tirarei todo o pórtico de entrada e
levantarei um novo. Possa ser que te necessite então.
— Me avise quando chegar o momento.
— Sim.
Eles trabalharam um momento mais em silêncio, até que Seth se animou a
perguntar: — Então, com quem Elfred está ocupado estes dias?
— Ele não disse — respondeu Gabriel sem deixar de serrar.
— Sinto lástima por sua esposa.
— O que não se sabe não se pode lastimar.
— Vamos Gabe, o homem a engana e, por conseguinte, tem três filhas.
— Você quer me dizer que nunca traiu Aurélia?
— Acertaste! Isso é o que digo. Podemos ter nossas pequenas rixas, mas
nunca faria isso a Aurélia.
Seth continuou com seu trabalho um ou dois minutos a mais em silêncio, até
que perguntou: — Você não está me dizendo que enganou Caroline, está?
— Por Deus, não! Não enquanto ainda existia um sopro de vida dela.
— Então como pode se justificar um libertino como Spear?
Gabriel deixou cair as ferramentas, franziu com força os olhos e suspirou.
Durante todo o dia havia se sentido descontente consigo mesmo e muito
incômodo pelo que havia passado na velha casa Breckenridge.
— Demônios, não sei, Seth. Suponho que é porque eu mesmo estou muito
nervoso. Estou angustiado e cansado de toda esta vida de solidão.
— Você não vive em solidão. Você tem Isobel.
Gabe observou seu irmão em silêncio, depois caminhou até o vão da porta
sem terminar o trabalho e ficou olhando a chuva. Caroline nunca havia se
irritado com a chuva como a maioria das pessoas. Muitas vezes tinha
trabalhado do lado de fora no meio de um aguaceiro.
— Sim, sei. Tenho Isobel. E quanto mais velha ela fica, mais me lembra sua
mãe.
Seth deixou o trabalho que tinha entre mãos e cruzou a oficina para parar ao
lado de seu irmão. Passou a mão sobre o ombro de Gabriel e lhe deu um
apertão.
— Se aproxima o aniversário de seu falecimento. É isso?
— Sim. Cada ano é pior ao se aproximar essas datas.
A chuva havia aberto um canal debaixo das bordas dos beirais novos e
ressoava quando caía dentro das poças. Tudo no ar cheirava a renovação. Ali
fora, no pequeno lago conhecido como Lily Pond, as rãs cantavam como se
amassem esse clima. Talvez aproveitassem para pôr seus ovos ali. Os robins
estavam de regresso e já haviam construído seus ninhos. Dias atrás, na
fronteira da cidade, Gabriel tinha visto um par de gansos executarem um
esplêndido e ondulante balé sobre a superfície da água como duas bailarinas
com suas sapatilhas de ponta. A primavera... cruel primavera. Sempre era
difícil passar a primavera sem Caroline.
— Você quer saber o que aconteceu hoje?
Seth levantou a mão do ombro de Gabe e esperou. Gabriel deslizou as mãos
debaixo de suas axilas apoiou todo seu peso contra a abertura da porta
inacabada e seguiu olhando a chuva.
— Eu topei com Elfred no embarcadouro e essa mulher estava com ele...
bom na realidade ela é sua cunhada. Acontece que ela está divorciada.
— Divorciada! Ah, vamos, Gabe! Você pode inventar algo melhor!
— Me deixe terminar. Ela está divorciada, tem três filhas e vai se mudar
para essa imundície que Sebastian Breckenridge deixou quando morreu. Ouvi
isso e rapidamente me dirigi para lá, para ver se ela necessitava de um
carpinteiro.
Gabe sacudiu a cabeça de um lado a outro, um pouco envergonhado agora
que havia pensado nisso.
— Apareci mais rápido que um ganso quando se balança sobre um besouro,
mas ela me pescou no vôo e te asseguro, Seth, que me pôs em meu lugar. Foi
uma situação muito embaraçosa.
Seth lhe deu umas palmadas nas costas e começou a rir.
— Então é por isso que você está todo alterado.
Com a ponta de sua bota, Gabriel empurrou dentro da poça um par de lascas
de madeira do novo chão de pinho.
— Sim... suponho que sim. A verdade é que ela me fez sentir como um tonto.
Seth voltou a seu trabalho, deu umas marteladas em diagonal sobre o
travessão da porta e depois começou a buscar uma tábua de cedro para fazer
outro; encontrou uma e mediu a largura com o olho.
— Bem, como é? — perguntou de repente.
Gabriel se apartou da porta, voltou a entrar e também reatou seu trabalho.
— Deus, é um desastre! A roupa, o cabelo, a casa... o que te ocorra
perguntar, tudo é um desastre. Ela e as garotas parecem uma manada de
vagabundos.
— Então, porque você está aí parado tão exasperado por causa dela?
— Não sei... suponho que é porque amanhã terei que voltar lá e enfrentar ela
de novo.
— Bom diabos... talvez você não a encontre, se a casa está tão mau. Talvez
ela decida ir viver em algum outro lugar.
— Oh, sim que a encontrarei. É muito provável que ela esteja sentada na
frente de seu piano, tocando e cantando como louca no meio de toda aquela
sujeira. Digo-te, Seth, foi a coisa mais incrível que já vi. Voltei a entrar depois
de ajudar a descarregar todas as bagagens, e ali estava ela, sentada, tocando
piano, como se não houvesse uma maldita coisa fora do lugar. E suas filhas
cantavam do andar de cima! Você poderia ter pensado que viviam no Taj
Mahal. Mas sabe o quê? Elas são felizes. E uma dessas garotas, a menor das
três... bom, ela tem uma boa cabeça sobre os ombros. E que linguagem! Já li
artigos dos periódicos que não empregavam a linguagem como a dela. Sabe o
que ela disse? Que ela e suas irmãs escreveram uma ópera. Em latim! O que te
parece?
Seth interrompeu o trabalho e o olhou estupefato.
— Que idade você disse que tem essa garota?
— Dez anos.
— Dez anos. E suas feições?
— Com certeza, dez anos.
Eles ficaram um momento pensativos, imaginando eles mesmos aos dez
anos.
— Por todos os céus! — exclamou Seth. — Eu apenas sabia limpar meu
traseiro quando tinha dez anos.
Gabriel soltou uma risada.
— Creio que recordo isso, algumas vezes eu limpei você.
Era quase certo. Gabe era quatro anos mais velho que Seth, e desde pequeno
ajudava sua mãe. Os pensamentos de Gabe voltaram para a precoce Lydia.
— Como se supõe que uma garota alcança uma inteligência tão aguda aos
dez anos?
— Não sei.
— Pela maneira em que falou, sua mãe ensina muito elas.
— Essa é a... eh... a mulher com o cabelo e vestido tão descuidados.
Gabriel dirigiu uma olhada a seu irmão.
— Aonde você quer chegar, Farley?
— Desde que Caroline morreu você nunca falou tanto de uma mulher. Você
sabia disso?
Gabe emitiu um som gutural que não era nem um grunhido nem uma risada.
— Você está louco. Já te disse que ela tem uma língua que poderia cortar
seis filetes de linguado de uma só vez e tampouco é muito feminina.
— Me deixe dar uma olhada nela primeiro e depois te direi se sou um
demente. Foi você quem disse que correu para lá por curiosidade porque
ouviste que ela era divorciada.
— Bom, talvez eu tivesse feito isso, mas ela é quase tão atrativa como um
mocassim para chuva. Então não comece a divulgar nenhum rumor. Entendido?
Seth sufocou uma risada.
— Sim, senhor! Entendido!
A chuva diminuiu ao entardecer. Gabriel depositou a caixa de madeira de
suas ferramentas na parte traseira de seu caminhão Ford C, subiu, pôs o motor
em marcha e deu três passos a mais antes de sair para girar a manivela do
caminhão. O motor tossiu ao arrancar e Gabriel alçou a mão em sinal de
despedida enquanto voltava a subir a rua.
Ao realizar todas essas manobras para arrancar o caminhão, voltou a se
lembrar de Roberta. Ela disse que tinha intenção de comprar um automóvel.
Que estupidez. O primeiro que faria seria romper um braço ao tratar de
arrancá-lo. E como poderia recordar tudo o que necessitava saber antes sequer
de manobrar a manivela?
Ademais, o que diria as pessoas? As damas não faziam essas coisas.
No entanto, apesar do muito que ela protestara, ele não acreditava que ela
fosse uma dama.
Mas por que diabos perdia tempo pensando nela?
Teria que pensar em alguma outra coisa.
Era um entardecer muito bonito. Detrás da montanha Ragged o céu estava
clareando; o resplendor rosado que iluminava as bordas das nuvens, apesar de
que ainda tinha uma cor cinza esverdeado como a carapaça de uma lagosta
velha. Mas as nuvens estavam em movimento, subiam, se dissolviam e
antecipavam um dia claro.
Ele tomou a Chestnut até a cidade e depois dobrou para Bayview, onde seu
negócio estava, entre a rua e a costa rochosa. Deixou o caminhão em marcha
enquanto se dirigia para interior, as portas estavam fechadas com chave, mas
Terrence, o empregado, havia deixado algumas notas cravadas com tachinhas
na parede, junto à caixa de madeira do telefone: a senhora Harvey havia
passado por ali e queria saber quanto lhe custaria para substituir o apoio
quebrado de uma cadeira; o pastor da Igreja Congregacional queria falar com
ele sobre encabeçar um comitê para a limpeza do cemitério; sua filha havia
passado por ali depois da escola e queria saber a que horas chegaria em casa
para o jantar; o teatro de Ópera estava interessado em alguns bastidores de
cenário para uma próxima produção.
Ele deixou cair as notas sobre uma mesa poeirenta,pegou algumas listas de
preços e catálogos e voltou a fechar com chave antes de subir no caminhão
para dirigir-se à sua casa.
Ele vivia na rua Belmont, em uma casa branca, alta e angulosa, com um
pequeno galpão no fundo, ao que havia adicionado um alpendre para seu
caminhão. Do galpão, uma trilha de pedras conduzia a casa, coberta por uma
pérgola branca justo até o lado de fora da porta da cozinha. Ele passou
debaixo da pérgola em seu caminho através do pátio enquanto dava uma
olhada nos talos das rosas trepadoras pra ver se assomavam alguns botões.
Elas eram as únicas flores de Caroline que ele havia conservado; a cada
outono ele as protegia com muito cuidado com palha, e durante todo o verão as
mantinha podadas e fertilizadas. Fazia muito tempo que ele havia deixado que
o resto do jardim caísse vítima das ervas daninhas, e agora ao cabo de sete
anos, sequer podia dizer onde se encontrava o jardim. Isto às vezes o
entristecia, porque quando pensava em Caroline, a via com seu gorro para o
sol, com as mãos enlameadas dobradas sobre um dos cultivos, cuidando das
flores que tanto havia amado.
Ele entrou na cozinha e foi recebido por uma garota delgada como um junco,
que havia herdado dele sua estatura e seus pés grandes, mas pouco mais. Ela
se parecia a Caroline em tudo, desde o corpo mirrado até o cabelo vermelho.
Ainda que não era uma beleza no sentido clássico, tinha seu atrativo. Sua cútis
era suave e imaculada, mas, diferente da maioria das ruivas, não tinha uma só
sarda. Seus olhos verdes, ligeiramente levantados nas extremidades, estavam
marcados por sobrancelhas e pestanas tão claras que poderia ter sido uma
ilusão. Por desgraça, suas orelhas se sobressaíam para fora igual às de
Caroline, e consciente disso, ela as mantinha cobertas todo tempo.
— Olá, papai. Pensei que você não chegaria nunca. Morro de fome.
— Você sempre morre de fome. O que há para jantar?
— Postas de peixes e batatas cozidas.
Outra vez peixe. Pela misericórdia! Ele estava cansado dos peixes em
postas, mas a garota fazia o que podia depois da escola. Mais do que um pai
deveria esperar. Ao menos se sentia culpado de que ela tivesse que dedicar
tanto tempo livre em tarefas que corresponderiam a uma esposa e mãe.
Colocou a capa de chuva em um gancho da parede junto a porta.
— Como foi a escola? — inquiriu.
— Aborrecida. As mesmas coisas de sempre... as lições da senhorita
Tripton, as reprimendas da senhora Lohmer, e à senhorita Bisbee que nos trata
como crianças em que não se pode confiar nem um minuto enquanto ela está
fora da sala. É sério, ela até nomeia um monitor da classe quando sai!
— Bom, não falta muito para as férias.
Gabriel colocou água em uma chaleira e lavou as mãos enquanto ela
colocava oo peixe em dois pratos, as batatas cozidas em uma tigela, servia
leite para ela e café para ele. Secou as mãos com uma toalha, as esfregou bem
e se aproximou da mesa enquanto ela enchia sua taça.
— Hoje conheci umas garotas novas.
— Garotas? Você quer dizer da minha idade?
— Uma delas.
Colocou a toalha em um canto e os dois se sentaram, começaram a esmagar
as batatas e à untá-las com manteiga.
— As outras duas têm dezesseis e dez anos.
— E quem elas são? Como é que não vão à escola?
— Irão dentro de pouco tempo. Elas acabaram de se mudar para cá e são
primas das garotas Spear.
— Como são?
— A mais nova é muito esperta. É com ela que falei, as três são bastante
aficionadas a música. Salvo isso, não sei muito sobre elas, exceto que
parecem maltrapilhas.
— Onde você as conheceu?
— No escritório da companhia naval. Depois me interei de que elas iriam
se mudar para a velha casa Breckenridge, assim que fui até ali para ver se
poderia concretizar algum pequeno negócio.
— Oh, céus! Ninguém me olharia se eu vivesse nessa cova de javalis. Elas
devem ser muito pobres se elas têm que viver ali.
— Creio que são.
— O pai delas vai trabalhar na fábrica?
Gabriel tomou um sorvo do café enquanto pensava em sua resposta.
— Eh, não... na realidade... não há nenhum pai, só uma mãe.
— Ah...
Isobel ficou em silêncio, pensativa. A ela que havia sido criada quase que
exclusivamente por Gabriel e apenas recordava sua mãe, resultava difícil
imaginar que se pudesse crescer sem pai.
— Pobres garotas.
— Creio que vão indo bastante bem. De fato, não lhes falta imaginação e
parecem ser bastante felizes. Cantam, tocam piano e escrevem óperas.
— Escrevem óperas!
— Isso é o que disse a mais nova. Se chama Lydia. Ela disse que ela e suas
irmãs escreveram uma ópera em latim.
— Deus meu! Elas devem ser muito inteligentes.
— É o que eu pensei. Bom, de todos os modos, é possível que você conheça
elas logo. — Apartou o prato. — Obrigado por fazer o jantar, meu amor. Você
tem que estudar esta noite?
Isobel se pôs séria.
— Ortografia e governo civil. Amanhã teremos um exame dessas duas
matérias.
Gabriel se pôs de pé e levantou os pratos e as taças.
— Então eu me encarregarei dos pratos. Os lavarei mais tarde, primeiro
tenho que trabalhar em um orçamento para as Jewett.
— As Jewett?
— É assim que se chamam as garotas novas: Rebecca, Susan e Lydia Jewett.
Isobel encolheu os ombros e deu a volta.
— É provável que eu as conheça quando forem à escola. Então verei se
gosto delas ou não.
— Uhum. Bom, eu tenho que trabalhar nessa estimativa. Então vá buscar
seus livros e eu deixarei livre a metade da mesa para você.
Eles passaram as duas horas seguintes sentados debaixo da nova luz elétrica
em sua cozinha pintada de branco, enquanto a chaleira silvava uma suave
canção. Era um lugar confortável, com teto de ferro prensado, revestimentos
de madeira e uma curiosa combinação de artefatos antiquados e modernos,
evidência da habilidade do proprietário para melhorar e remodelar a casa
sozinho. As luzes eram elétricas, a cozinha, de lenha. A pia tinha um cano de
esgoto, mas sem torneira, apenas uma bomba. A mesa de carvalho e cadeiras,
que Gabriel havia feito com suas próprias mãos, remontavam do ano de seu
casamento. Mas os armários com portas de vidro eram recentes e devido à
petição de Isobel os havia adornado com puxadores de vidro transparente.
Entrou uma gata desgrenhada cor caramelo, se acomodou feito um novelo
sobre um terceiro acento debaixo da mesa, encolheu as patas e olhou de
soslaio enquanto bocejava. O som de seu ronronar se uniu ao da música da
chaleira, enquanto do lado de fora escurecia. Gabriel se levantou três vezes
para voltar a encher sua taça de café. Isobel se levantou uma só vez para
buscar dois pasteizinhos de mel. Quando terminou de comê-los e de estudar,
fechou seu livro e levantou os olhos. Então viu que seu pai olhava fixamente o
vazio e o lápis se pendurava ocioso em sua mão.
— Papai?
— Hummm?
Gabriel saiu de seu devaneio. Por alguma estranha razão havia estado
pensando nessa mulher, a senhora Jewett.
— O que?
— Talvez você devesse deixar isso e ir para a cama. Você tem o olhar
disperso.
— Sim? Bom, não estou cansado, só distraído. Escute já quase terminei este
orçamento e tenho que entregá-lo a Elfred Spear. Você se importaria se o
levasse agora?
— Esta noite? — perguntou surpreendida — É um pouco tarde, não?
Gabriel olhou seu relógio de bolso — São nove horas. Não é tão tarde.
Voltou a guardar o relógio, empurrou a cadeira para trás, juntou as folhas do
orçamento e foi em busca de uma jaqueta leve.
— Já deixou de chover, suponho que não necessito de uma capa. Não
demorarei muito.
Isobel se reclinou para trás em sua cadeira e se despediu.
— De acordo. Boa noite, papai.
— Nos veremos pela manhã.
Se foi sem tocá-la ou beijá-la. Só pensava no agradecido que estava por tê-
la e se perguntou o que seria dele dentro de dois, quatro ou seis anos quando
sua filha se casasse e deixasse sua casa. Perturbado pela perspectiva de
solidão, apartou a ideia de sua mente.
No lado de fora, a grama estava esmagada entre as pedras do caminho e o
céu tinha clareado. As estrelas brilhavam no céu, sobre sua cabeça, e em
algum lugar pombos espreitavam a primavera. Sinto sua falta, Caroline,
pensou como fazia frequentemente quando passava por debaixo da pérgola de
rosas.
Debaixo do alpendre se cheirava o petróleo e a terra molhada. A escuridão
o envolvia quando se dirigiu para o caminhão, onde a água jogou gotas nos
cristais de carboneto dos faróis. Ele abriu as janelas e ligou. Depois fez o
mesmo com as luzes laterais. Dentro do caminhão executou todo o tipo de
ajustes, —marcha de câmbio em ponto morto, regulador de pressão, freio de
emergência, cabo do carburador e a chave de ignição— antes de sair para
começar a pôr em marcha o motor. Quando ele voltou para o banco do
motorista, ele abaixou a marcha de câmbio na posição de engrenagem, pisou
no acelerador, puxou um pouco o freio de emergência e manobrou os pedais
até que finalmente rolou para frente, para fora do alpendre.
Era ridículo pensar que essa tal Jewett poderia fazer tudo isso!
O que o fazia a voltar a pô-la em sua mente? Havia estado pensando nela
quando Isobel o tirou de sua absorção e agora outra vez ainda que não
conseguisse entender porque. Talvez só pela questão do automóvel, pensou. A
ousadia de uma mulher que acreditava que podia ter um, quando tinha que
fazer tantas coisas só para que arrancasse. Para não falar de manejá-lo e
mantê-lo em condições!
Não... não. Ela devia estar louca para querer comprar um automóvel.
Mas se alguma vez havia conhecido uma mulher que fizesse da loucura, era
muito provável que essa mulher fosse Roberta.
Estacionou no pátio de Elfred e deixou o motor ligado enquanto cruzava na
frente das luzes de carboneto e se aproximava da porta de entrada.
O próprio Elfred respondeu à sua chamada.
— Por Deus, Gabe! O que você faz aqui a essa hora?
— Te trouxe esse orçamento.
Elfred tirou o cigarro da boca e olhou os papéis aparentando surpresa.
— Às nove da noite?
Um ligeiro brilho apareceu em seus olhos enquanto aceitava as folhas.
— Parece que você tem pressa, hein Gabe? — comentou com uma risada
conspiratória.
Gabriel baixou o queixo e coçou a têmpora esquerda.
— Bom... eu pensei que deveria me ocupar disso agora mesmo. Me veio
bem o trabalho.
— Claro, Gabe.
Elfred deu uma olhada rápida no orçamento.
— Nem sequer sei por que me preocupei em te pedir isso por escrito. Ela
não é a classe de mulher que um homem nega algo, verdade?
Gabriel pôs a mão sobre a maçaneta da porta, ansioso para partir. Não fazia
sentido esconder segundas intenções quando ele tinha se apressado para
entregar o orçamento, depois das piadas maliciosas que ele e Elfred tinham
feito à custa da mulher.
Com um sorriso malicioso Elfred lhe deu umas palmadas na bochecha como
se desse tapinhas em um bebê.
— Adiante, Gabe. Deixe-a louca.
Gabe regressou com grandes pernadas a seu caminhão.
Que o céu me condene, mas odeio esse Elfred! É um homem do mais
repugnante, pensou.
Conduziu no meio da noite primaveril. As árvores começavam a dar frutos e
a água da chuva que tinha caído durante todo o dia corria ao longo das bordas
da rua para o porto abaixo. Mais uma vez ele ouviu o coaxar das rãs e cheirou
a terra úmida.
Primavera sem Caroline… que doce amargura.
Já em sua casa, parou debaixo do alpendre e desligou o motor. Depois
caminhou lentamente ao longo do caminho de pedra, sob a pérgola, e foi até a
cozinha, onde Isobel tinha deixado acesa a nova luz elétrica.
Com gesto de cansaço tirou a jaqueta, a pendurou e se voltou para olhar o
lugar onde havia feito tantas tarefas domésticas desde a morte de Caroline.
Isobel se ocupava da casa, mas ele também. Frequentemente, como naquela
noite, mesmo se sentindo cansado e preferindo ir para a cama.
Havia água de reserva na cisterna e na chaleira. Encheu a pia, lavou os
pratos, os secou, limpou a mesa e pôs um bonito forro limpo no centro, como
Caroline fazia sempre. Era um forro tecido por ela mesma. Pôs em cima a
planta de filodendro, tal como costumava fazer sua esposa. Com um pano
úmido para secar pratos limpou algumas marcas de dedos de um painel de
vidro da porta do armário, depois dobrou pano e o colocou no toalheiro que
havia feito ele mesmo. Sua última tarefa foi bombear água para encher tanto a
cisterna como a chaleira, para a manhã seguinte.
Logo ele iria instalar um banheiro e alguns aquecedores, ele prometeu.
Também uma cozinha moderna. Era bobagem ter energia elétrica e não fazer
uso de todas as comodidades que ela poderia fornecer.
Deveria buscar tempo para realizar esse trabalho.
Antes de girar a alavanca da luz elétrica, deu uma olhada no lugar e o
encontrou satisfatório. Os tapetes bem alinhados com a pia e a porta de trás,
armários limpos, as cadeiras em seu lugar.
Assim como teria gostado Caroline.
Perto das onze da noite, subiu a escada com passos pesados e foi ao
encontro de sua cama solitária.
Capítulo 4
As Jewett foram para a cama depois das onze da noite. Pela manhã
despertaram tarde e comeram macarrão servido com manteiga. Tudo era um
caos tão grande que as garotas não conseguiram encontrar seus pentes e
acabaram usando os de sua mãe. Tampouco conseguiram encontrar roupa de
interior limpa ou meias, então usaram as mesmas do dia anterior. Seus
vestidos estavam enrugados pela viagem, mas ninguém pareceu se importar
com isso.
Era tarde quando saíram todas juntas para seu primeiro dia de escola.
— Olha isso — comentou Roberta ao divisar o porto, mas abaixo. —
Parece um dos flutuadores de Lydia.
Durante a noite a chuva havia cessado e a água tinha uma cor azul tão
intensa que parecia que o sol a iluminava de baixo e não de cima. A vista era
esplêndida desde o alto da rua. Havia embarcações amarradas junto ao cais do
porto e outras que se dirigiam para a bruma prateada do horizonte. Algumas
tinham a vela branca, outras navegavam a vapor e deixavam de trás de si um
rastro de fumaça. As numerosas ilhas que salpicavam a baía Penobscot
pareciam bolinhas de gelo com a parte de cima derretidas debaixo da luz do
sol.
Era uma manhã ruidosa. As gaivotas contribuíam para isso e também os
trabalhadores do estaleiro Bean. Os golpes de seus martelos se uniam ao som
mais musical que saía do galpão de um lavrador de pedra em Tannery Lane.
— Escutem! — exclamou Roberta. — Nos meus velhos tempos despertava
com o som desses martelos.
Pela colina ascendiam também os ruídos do trânsito: o rangido dos bondes,
o zumbido das máquinas dos barcos e o traqueteio dos automóveis. Todas
essas notas, filtradas pela manhã de abril, se converteram em uma harmonia
delicada enquanto a terra, lavada pela chuva do dia anterior, desprendia um
odor fresco e intenso.
As Jewett contemplavam extasiadas a nova paisagem que no futuro lhes
resultaria familiar.
Elas caminharam debaixo de um grupo de gaivotas que chilreavam sem
interrupção. Susan as olhou e chilreou por sua vez.
— Cricri!
— São cormorões? – perguntou Lydia.
— Não, são gaivotas prateadas — respondeu Susan.
Rebecca começou a recitar uma poesia de Swinburne.
Roberta levantou a cabeça e observou as aves.
— São formosas, mas não podem ser cormorões. Não nesta costa. Estou de
acordo com Susan, creio que seja gaviotas prateadas.
— Espero que eu goste da professora de inglês — comentou Rebecca.
— E da professora de música — adicionou Susan.
— Eu gosto dessa cidade — interveio Lydia, a pessimista, para surpresa de
todas. — É bonita.
Era uma conversação desordenada, mas muito própria das Jewett. Seus
interesses eram tão variados que passavam de um tema a outro com grande
rapidez.
Na escola da rua Knowlton se apresentaram ante a diretora, a senhorita
Abernathy. Era uma mulher robusta de uns quarenta anos, com óculos e
ondulados cabelos grisalhos que estavam recolhidos em uma trança. Ela
saudou-as, mas quando olhou seu relógio observou que já era perto das nove e
meia da manhã.
— As aulas começam às oito horas, senhora Jewett.
— Sim, eu sei — respondeu Roberta, serena. — Mas no caminho estivemos
recitando Swinburne.
— Swinburne? — repetiu a senhorita Abernathy.
— Algernoon-Swinburne, o poeta inglês.
A senhorita Abernathy deixou a pluma em seu suporte e sorriu indulgente.
— Sim, claro. Sei quem é Swinburne. No entanto, não é comum que nossas
alunas estejam familiarizadas com suas obras.
— Oh, minhas filhas estão familiarizadas com muitos poetas e também com
compositores e autores.
— Verdade? Então teremos aqui um trio de verdadeiras estudiosas.
— Estudiosas? — refletiu Roberta. — Talvez não. Mas elas são inquisitivas
e tem imaginação.
— Então elas deverão se sair muito bem.
Roberta as deixou na escola sem a menor dúvida de que era exatamente isso
o que aconteceria.
Quando regressou para sua casa, o caminhão de Gabriel Farley estava
estacionado na rua e ele esperava sentado nos degraus da entrada.
— O que você quer? — ela perguntou a ele com tom áspero.
Farley se levantou com movimentos pesados e alcançou toda sua altura justo
quando ela chegou aos degraus do pórtico.
— Vim reparar sua casa.
— Ah...
Roberta entrou sem sequer diminuir o passo.
Farley ficou parado no meio das ervas daninhas pisoteadas no jardim da
frente, enquanto a seguia com o olhar através da porta aberta. Do alpendre
tinha uma visão direta até a cozinha e à porta no extremo oposto. Ele a
observou até que ela dobrou à direita e desapareceu detrás de uma parede da
cozinha. Voltou o olhar até a âncora oxidada meio enterrada, depois passou a
língua pelos dentes e sacudiu a cabeça de um lado a outro. No dia anterior
havia feito besteira. Disso estava seguro ainda que não importava muito já que
na realidade não gostava tanto dessa mulher.
Resignado com a realidade, se aproximou do caminhão para buscar sua
caixa de ferramentas.
Depois de examinar o exterior da casa, decidiu era melhor começar tirando
o pórtico e reconstruí-lo, já que aquele chão meio apodrecido era muito
perigoso e ele teria que cruzá-lo centenas de vezes durante as próximas duas
semanas. Da demolição ele poderia se encarregar sozinho, depois Seth o
ajudaria a reconstruí-lo.
Subiu os degraus do pórtico, espiou o interior da casa e ouviu Roberta
arrastando caixas até a cozinha para desempacotar as coisas.
— Senhora Jewett? — chamou.
Ela apareceu na porta entre duas habitações com um par de panelas azuis na
mão e uma toalha atada ao redor da saia.
— Sim?
— Vou começar com o pórtico da entrada, se você estiver de acordo.
— Não me importa por onde você começa.
Sem dizer mais, voltou a desaparecer.
— Tenho que tirá-lo por completo e reconstruí-lo — gritou ele.
Roberta voltou a mostrar a cabeça.
— Já disse que não me importa. Faça o que tem que fazer... desde que não
me incomode!
Gabriel ajustou uma escada, subiu ao telhado e começou a tirar as tábuas de
madeira porosa, enquanto se perguntava por que o teto no corpo principal da
casa havia sido construído com piçarra. Aquelas casas eram velhas e essa, em
particular, talvez tivesse cem anos ou mais. Às vezes, as varandas e alpendres
eram adicionados mais tarde. Os cogumelos tinham comido esse telhado.
Ele trabalhou nela até o final da manhã. O sol estava quente, o pátio ficou
coberto com pregos dobrados e pedaços de madeira podre. Até o meio-dia
havia exposto as vigas, estava golpeando uma com um martelo quando
acreditou ouvir um grito.
— Senhor Farley!
Olhou para baixo e viu que a senhora Jewett olhava para cima, com uma
mão a modo de proteção sobre os olhos. Ainda levava a toalha ao redor da
saia de seu vestido marrom. Tinha os cabelos alvoroçados e a borda das
mangas molhadas.
— Sim — respondeu.
— Posso fazer-lhe umas perguntas sobre seu automóvel?
— Sim. Cuidado com isso!
Roberta retrocedeu uns passos e ele deixou cair uma tábua de madeira
descolorida.
— Não é um automóvel; é um caminhão.
— Ah…
— Um caminhão Ford C.
Roberta girou a cabeça até o caminhão e depois outra vez até ele.
— Quanto tempo faz que você o tem?
— Uns dois anos.
— E você gosta dele?
— Sim, eu gosto.
— Mais do que um cavalo?
— Quanto tempo vai durar isto? Você se incomoda se eu descer para
conversarmos? — Ele havia mantido o equilíbrio com os quadris apoiados
contra a escada e a cintura dobrada para olhar para baixo.
— Não, claro que não. Desça.
Gabriel deslizou o martelo dentro de uma presilha de seu cinturão de couro
para ferramentas e desceu de costas. Eles ficaram parados à distância,
separados por tábuas de telhado que desprendiam um odor parecido ao de um
aposento velho sem ter sido usado. Os ramos de um olmo ainda sem folhas
lançavam finas linhas de sombras sobre eles enquanto falavam.
— Um caminhão é muito mais cômodo que um cavalo. Não necessita de
alimentos, nem de banho. Ainda que no inverno, por esta zona, um caminhão
não chega a todos os lugares e um cavalo sim. Mas, bom, nesse caso se tem o
bonde.
— Um caminhão é difrente de um automóvel?
— Só no tamanho. O chassi é o mesmo.
— Então arranca e corre do mesmo jeito?
— Sim.
— Elfred disse que uma mulher não pode ter um, porque não poderia
arrancá-lo. Você concorda com isso?
Gabriel esfregou o chão e olhou para o caminhão. Ele parecia estranho sem
portas, com um dossel de couro preto em forma de onda do mar que curvava-
se do assento ao teto.
— É difícil dizer. Nunca vi uma mulher arrancando um.
— Bom, o que você acha?
O olhar de Gabriel se voltou para ela.
— Quer conferir por si mesma?
Roberta franziu as sobrancelhas enquanto se decidia.
— Sim, suponho que sim.
— De acordo, então. Venha, vejamos o que você pode fazer. Tenha cuidado,
há pregos por todas as partes.
Eles passaram das tábuas quebradiças ao colchão macio da grama seca do
inverno e Gabriel a deixou passar antes que ele pela abertura de uma cerca
irregular de lírios e coroas de noiva que faziam fronteira com o jardim. Então
observou que ela levava os mesmos sapatos gastos do dia anterior. A rua
estava pavimentada com cascalho e salpicada com poças de lama depois da
chuva. Eles se esquivaram de umas quantas e chegaram até o caminhão, onde
as cortinas laterais estavam enroladas e atadas para fora.
— Suba na cabine — lhe indicou. — É melhor que você faça tudo desde o
princípio.
Roberta subiu no estribo, lutou para desenganchar a saia da alavanca de
freio e sentou-se no assento de couro.
— Vou guiá-la passo a passo.
Apoiou um pé no estribo e assinalou para dentro enquanto falava.
— Bem, essa alavanca dali, sobre a coluna do volante, é o mecanismo de
câmbio. Tem que estar em ponto morto, que é como está neste momento. Se por
acidente for deixado em marcha, o carro dará um salto quando você tratar de
girar a manivela de arranque, e é possível que se machuque. Estes solavancos
tem fama de ter amassado mais de um crânio. É importante pôr sempre a
alavanca em ponto morto.
— Alavanca em ponto morto. — ela repetiu e tocou a alavanca com cautela.
Ele assinalou a coluna do volante.
— Este daqui é o regulador de pressão, e deve estar metade para cima
quando você for arrancá-lo. Isso faz passar à gasolina.
— Regulador de pressão metade para cima.
— E este aqui — ele estirou a mão para a alavanca do freio — É o freio de
emergência, mas tem muito a ver com o câmbio, assim se assegure de que ele
esteja todo para trás contra o assento. Você tem que apertar as alavanca juntas
enquanto as puxa... vê?
Ele retirou a mão e deixou que ela tentasse.
— Bem — disse — Agora desça. Temos que ir para a parte da frente do
caminhão.
Enquanto ela descia de costas, ele ficou para trás e observou o nó branco da
toalha no meio de suas costas. Pensou que, se houvesse sido outra mulher, ele
teria oferecido a mão para ajudá-la a descer. Mas a dureza com que ela havia
repreendido ele no dia anterior, fez com que procedesse com cautela.
Conduziu-a até a parte dianteira do veículo e lhe mostrou um gancho que se
sobressaía da parte esquerda do radiador.
— Esse é o cabo do carburador. Puxe-o para fora.
Ela obedeceu sem fazer comentários.
— Agora poderíamos ir para dentro e pô-lo em marcha, mas há um pequeno
truque para fazê-lo arrancar mais depressa. Faça assim… vê? Puxe a manivela
três ou quatro vezes, com o motor desligado, isso faz com que passe mais
gasolina no cilindro. Pode fazer isso ou não, você que decide. Agora, venha.
Roberta o seguiu até o lado do condutor.
— Estire a mão e gire a chave na posição de ligado… bem, vejamos se
pode arrancá-lo sozinha.
A manivela tinha uma parte de madeira sem pintar. Quando estirou o braço,
ele se apartou bruscamente.
— Espere um minuto. Esta é a parte mais perigosa. Recorde sempre que tem
que puxar para cima. Nunca empurrar para baixo, porque você quer dar a ele
um golpe de compressão.
— Golpe de compressão?
— Tem a ver com o motor, mas você não precisa entender isso. Só
recorde… sempre para cima, nunca para baixo. E outra coisa mais. Não
rodeie a alavanca com o polegar, só apoie-o para cima. Dessa maneira, se lhe
dá una patada para trás, poderá libertar a mão com mais facilidade. Assim,
vê?
Demostrou isso e depois se afastou para deixar que Roberta ficasse à cargo.
Enquanto aferrava a alavanca, Roberta sentiu que o coração lhe dava um
tombo. Levantou o olhar e se encontrou com os olhos de Farley.
— Sairá tudo bem — animou-a. — Tudo está em ordem, então tente. Se
você pode engatá-lo, pode arrancá-lo. Adiante.
Roberta apertou a mandíbula e puxou para cima com tanta força que sentiu
uma distenção no músculo do ombro. O motor se pôs em marcha e ela se
recostou com uma mão no coração.
— Consegui!
— Vamos! — ele gritou por cima do ruído. — Suba! Ainda não terminou!
Os dois subiram. O ruído era terrível e o motor balançava o veículo de um
lado a outro.
— Bem, já lhe mostrei isto antes: esse é o mecanismo de câmbio. Empurre-
o para frente enquanto o motor está em marcha, isso lhe dará mais potência.
Ela fez tal e como ele indicou.
— Recorda qual é o regulador de pressão?
— Este.
— Bem. Empurre-o para cima.
Roberta obedeceu e o sacolejar diminuiu.
— Você quer conduzi-lo?
— Você deixaria que eu fizesse isso? — perguntou Roberta, assombrada.
— De que outra maneira você vai aprender, se quer ter seu próprio
automóvel?
Roberta teve que pensar um instante antes de responder.
— Obrigada, senhor Farley. Sim, eu gostaria de tentar.
— As mãos sobre o volante, então.
Ela aferrou o volante de madeira e se sentou, tensa, na borda do assento.
— Relaxe um pouco.
— Relaxar? Enquanto faço isto? Você não pode falar sério!
Gabe sorriu por dentro satisfeito e lhe assinalou as pernas.
— Só sente-se um pouco mais para trás. Sua saia está tapando os pedais.
Ela se moveu ligeiramente para trás, ainda aferrada ao volante.
— Bem, esses três pedais mais o freio de emergência são os que fazem ele
andar.
Os três pedais com forma de losango estavam dispostos em um triângulo na
altura dos pés.
— O da esquerda é o da embreagem, o do meio é o da marcha detrás e o da
direita é o freio. Primeiro levante até a metade o freio de mão e empurre o
pedal da embreagem para baixo. Não se assuste... Freio de mão para cima, até
a metade.
Ela seguiu as ordens com muito menos segurança do que havia mostrado
quando disse a Elfred que queria ter um desses artefatos. Quando terminou de
realizar os movimentos, deixou escapar um suspiro entrecortado, mas seus
nódulos haviam ficado brancos de tanto apertar o volante.
— Agora empurre o freio de emergência todo para frente, e seu pé, todo
para baixo. Assim se põe a primeira marcha.
Fez aquilo com muito cuidado e o carro se sacudiu para frente. Então
começou a rodar pela avenida, metade sobre a calçada, metade sobre a rua.
— Muito bem. Aqui vamos nós. Use o acelerador.
— Onde está o acelerador? — ela gritou.
Ele tomou a mão direita dela e guiou-a até a alavanca do acelerador.
— Justo aí. Agora acelere um pouco... devagar.
Roberta acelerou e eles avançaram aos tombos pela avenida de Alden.
— Deus meu! Espero que eu não nos mate.
— Gire o volante.
Ele a ajudou a girá-lo e eles desceram pela rua.
— Agora tire o pé do pedal esquerdo e ponha no direito.
Seguiram até um cruzamento. O caminhão saltava cada vez que as rodas
tocavam em um buraco e salpicava água suja sobre os estribos.
— Agora prove o freio... não o outro pé!
— Me confundo, com três pedais.
— Você se acostumará. Na esquina olhe de ambos os lados, depois aperte a
embreagem e isso diminuirá a velocidade para poder dar a volta. Vire à
esquerda e suba a colina.
Ela apertou a embreagem e, tal como ele havia dito, diminuiu a marcha.
Farley a ajudou a controlar o volante na esquina. Depois ele falou durante o
tempo que tardaram a subir a ladeira do monte Battie.
— Relaxe — ele repetiu.
— Não posso. Estou aterrorizada.
— Você está indo muito bem. Quer ter seu próprio automóvel?
— Por favor, senhor Farley. Não posso falar e conduzir ao mesmo tempo.
— De acordo. Calarei-me.
Recostou-se no assento e a observou. Ela mostrava uma lucidez que nunca
antes havia visto em uma mulher, e não podia negar que lhe despertava
admiração. Não conhecia nenhuma outra mulher que teria se posto detrás de
um volante.
— Você está pronta agora para tentar dar a volta ao redor?
— Oh Deus! — exclamou Roberta.
— Você se sairá muito bem.
Farley lhe deu instruções para diminuir a marcha, dar a volta e descer pela
montanha.
Na metade do caminho viram um carro que subia.
— Senhor Farley! — gritou. — O que devo fazer?
Ele resistiu ao impulso de recolher o volante.
— Dirija para a direita.
Roberta assim fez, enquanto rezava em voz alta: “Deus meu, Deus meu.”
Gabriel sorriu por dentro e saudou com a mão Seba Poole, que olhou
boquiaberto quando os dois carros se cruzaram.
— Você tem sorte de que eu não tenha nos matado, Farley! Não sabia que os
caminhos eram tão estreitos!
— Você se saiu muito bem. Seba ainda está no caminho e você também.
Roberta relaxou um pouco.
— Quem era esse? — perguntou Roberta.
— Seba Poole; é o dono do viveiro de peixes que há na desembocadura do
lago Megunticook. Ele gosta de fofoca, então logo correrá o falatório de que
você conduzia meu caminhão.
Ela lhe enviou uma olhada rápida.
— Sinto por você — comentou enquanto estudava a expressão do seu rosto.
Durante o resto do caminho eles não conversaram. Mas entre eles nasceu um
respeito mútuo. Ela tinha descoberto que ele era um homem paciente e bom
dando explicações. Ele a achava firme e admirava a sua integridade, ao
transmitir um grito ocasional de ajuda.
Roberta se deteve frente a casa e ele lhe indicou como devia desligar o
motor e deixar as alavancas na posição correta assim.
— Assim não quebrarei o braço da próxima vez que quiser arrancá-lo —
ele explicou.
Quando o motor parou, Roberta soltou um suspiro de alívio e retirou os
dedos do volante. Não havia terminado de abaixar seus ombros, quando já
voltou à erguê-los com determinação.
— Posso repassar tudo isto outra vez mais para estar segura de que recordo
os passos corretamente?
— Claro.
Repetiu tudo o que havia aprendido, sem um só erro. Quando ela terminou,
se encontrou com o olhar atento de Gabriel.
— Como me saí?
— Perfeita.
Eles ficaram parados junto ao veículo, enquanto ela o estudava como se
desejasse avaliar as possibilidades.
— Elfred me deu uma larga lista de razões pelas quais uma mulher não
deveria sequer pensar em ter um automóvel — comentou por fim — disse que
se quebram com bastante regularidade e que os pneus necessitam serem
trocados e de que algo mais que necessita de ajustes permanentes...
— O carburador.
— Sim, isso.
— Os carburadores são delicados, é verdade. Mas eu posso ensinar você
como ajustá-los. Não é muito complicado.
— Elfred disse que pôr a gasolina é pesado e incômodo.
— Não tanto para que você não possa fazer isso.
— Onde vai a gasolina?
— O tanque de gasolina está debaixo do assento. Mostrarei a você.
Inclinou-se dentro do caminhão e levantou o assento, ficando à vista o solo
de madeira com um buraco por onde assomava a boca do tanque de gasolina.
— A gasolina se põe aqui.
Ele deu um passo atrás para que ela pudesse vê-lo. Roberta se inclinou e viu
o duto. Junto a ele havia uma vara de madeira atada em uma corda.
— O que é isto?
— É uma vara para medir quanta gasolina fica.
Ela examinou os números esculpidos na vara.
— Galões? — ela perguntou.
— Sim.
— Hmm... é simples.
Deixou a vara e retrocedeu enquanto Gabriel voltava a colocar o acento e
esfregava as palmas das mãos.
— Bem, agora me diga, senhor Farley, pode ser franco comigo. Você pensa
que estou louca por querer ter meu próprio automóvel?
— Bom, está claro que você pode conduzir. Hoje o demonstrou.
— Na cidade há uma garagem onde eu poderia levá lo para ser reparado
caso seja necessário, não é assim?
— Bom... sim. Sempre que de maneira muito oportuna, o problema se
apresente quando esteja na cidade. Elfred sabe que estas coisas acontecem
constantemente. Senhora Jewett, você se importaria de me dizer para quê quer
ter um automóvel?
— Eu consegui um emprego como enfermeira pública.
— Quer dizer que tem que viajar?
— Sim, ao largo e ao longo do condado.
— Sempre sozinha? — Ele parecia surpreendido.
— Sim.
— Nesse caso… — deixou em suspenso a frase enquanto escondia as mãos
debaixo das axilas. Ela começava a compreender que essa pose escondia
algumas respostas tácitas.
— Nesse caso se esqueça do automóvel! Você queria dizer isso, verdade?
— Bom, me deixe expressar dessa forma. Eu não gostaria de ter uma mulher
ligada a mim conduzindo por todas essas montanhas com uma dessas coisas.
— Sim... Bom... Entenda, senhor Farley, por sorte eu já não tenho que
responder ante um homem pelo que faço.
— Você me perguntou minha opinião, e eu a dei.
— Obrigada, senhor Farley — replicou. — Agora é melhor que volte para
meu trabalho.
Ela entrou e deixou-o de pé sob os sulcos rasos de sombras jogadas dos
ramos desencapados de bétula. Ele retomou seu trabalho se perguntando por
que ela tinha pedido a opinião dele, se não a aceitaria.
Algumas vezes de cima da escada, via voar lixo que saia pela porta de
entrada. Uma vez a viu jogar um balde de àgua cheia de sabão e minutos
depois escutou que começava a tocar o piano. Interrompeu seu trabalho para
escutar.
Que estranha mulher se pondo a tocar o piano enquanto estava esfregando.
Um momento depois chegou até ele o aroma de café. Mas ela não lhe
ofereceu nenhuma taça. Pouco antes do meio dia, chegou a pé, a mãe de
Roberta.
— Senhor Farley, é você? — o saudou.
— Olá, senhora Halburton.
Com o pescoço estirado para cima, ela o olhava com expressão mal-
humorada. Era uma mulher com quilos a mais, carnuda, com um chapéu em
forma de caçarola, que apertava contra o peito uma carteira negra.
— Não posso acreditar que ela o contratou para arrumar esta velha ruína.
Bom, é difícil crer que valha a pena o esforço que exigirá pôr em ordem este
lugar.
Pelo que ele podia recordar, nunca havia ouvido Myra Halburton saudar
alguém de outra maneira que não fosse com queixas. Proporcionou-lhe certo
prazer contrariá-la.
— Quem sabe! Talvez você se surpreenda quando eu terminar com tudo isto.
A mulher agitou uma mão com gesto de desgosto.
— Essa garota nunca me ouviu, nem um só dia em toda sua vida. E se me
preguntar, lhe direi que está louca varrida ao pôr seu dinheiro em semelhante
cova. Não consigo imaginar em que estava pensando Elfred. Ademais, tive que
subir essa maldita colina para chegar até aqui, e minhas pernas já não me
respondem. Mas claro, ela não pensou nisso!
Myra avançou com dificuldade para a casa.
— Seja como for, como se suponhe que uma pessoa pode entrar aqui?
— Mantenha-se junto a parede do pórtico — lhe aconselhou Gabriel.
Ela chegou até a porta, sem deixar de se queixar pela bagunça de materiais
de construção.
— Roberta! — chamou. — Você está aí?
— Mãe, é você? — Ela apareceu por um instante na porta enquanto olhava
para baixo através das vigas quebradas. — Olá mãe, entre. — Sua voz tinha
perdido toda vitalidade.
— Essa é uma bonita maneira de saudar, quando uma filha nem sequer vai
visitar sua própria mãe. Pensei que você iria me ver ontem.
— E eu pensei que você estaria na casa de Elfred e Grace.
— Aquela Sophie faz uma comida demasiado pesada para mim. É
prejudicial para minha vesícula.
Gabe as perdeu de vista quando entraram na casa.
— Por Deus misericordioso! Você perdeu o juízo, para comprar uma casa
como esta?
— É tudo o que me permitem meus recursos.
— Cheira como os cubos de água suja de Sebastian Breckenridge. Esse
velho estava mais louco que uma cabra. Bom, você não pode manter suas
filhas nestas condições! O que tem? Três dormitórios?
— Dois.
— Dois dormitórios. Roberta, em que demônios você estava pensando?
— Estava pensando em que é importante que minhas filhas conheçam sua
avó.
— Bom, claro que sim. Essa é a razão pela qual ontem te esperei durante
todo o dia.
— Estive muito ocupada. Depois de chegar e tomar o desjejum, tive que
esperar que os carregadores descarregassem todos os nossos pertences, e
preparei as camas. Era quase meia-noite quando fomos dormir.
Myra deu outra olhada rápida no lugar, com a desaprovação escrita no rosto.
— Tudo isso é desnecessário, Roberta. Isto é o que te acontece por se
divorciar. Você tinha um lugar decente, e um esposo, e agora tens… isto.
— Como sabe que tinha um lugar decente, mãe? Você nunca foi vê-lo.
— Ah, sim, agora me joga a culpa. Foi você quem… quem se foi de casa no
mesmo momento em que teve idade suficiente, como se sua família não
significasse nada para ti.
— Eu parti porque queria ir a universidade. E fiquei com George porque
tinha que fazê-lo. Que outra coisa pode fazer uma esposa? Mas agora tudo isso
terminou. Posso fazer exatamente o que me apeteça.
— Mas a desonra, Roberta… Todo mundo na cidade sabe que se divorciou
dele.
— Ele tinha amantes, mãe.
— Oh, por favor!
Myra fechou os olhos e levantou as duas mãos, espantada.
— Por favor, não seja vulgar!
— Tinha amantes, uma trás de outra, mulheres das quais podia viver, até que
por fim elas se davan conta de que ele não era outra coisa que um gigolô.
Então o deixavam e ele voltava para mim de joelhos, me enganava dizendo-me
que regressava porque me queria, e me pedia uma nova oportunidade. Uma e
outra vez o perdoei. Até que não pude mais. A última vez que ele voltou fechei
a porta na cara dele e consultei as garotas sobre a possibilidade de pedir o
divórcio. Elas me incentivaram a fazer isso, e me nego a andar com a cabeça
baixa por fazer o que tinha que fazer para ter uma vida melhor para mim e para
minhas filhas.
— Mas é que isso não se faz, Roberta! É impróprio de uma mulher
respeitável. Você não entende. As pessoas sussurram no ouvido essa
palavra…
— Claro que entendo. Já ouvi que sussurra ela às minhas costas desde que
estou aqui.
— E é óbvio que não te incomoda ou teria começado a manter isso em
segredo em lugar de proclamá-lo por todas as partes.
— Eu não proclamei isso. Você e Elfred e Grace fizeram isso por mim. Do
contrário, como poderia ter sabido as pessoas antes que eu chegasse aqui?
— Quem sabia?
— Farley, pelo menos. Eu o conheci no escritório da companhia naval e ele
já sabia. Não fui eu, por certo, quem disse a ele.
— É que as coisas se sabem, as pessoas começam a falar… E como se
suponhe que uma mãe pode manter a testa alta?
— Você pode tentar dizer as pessoas que tenho três filhas encantadoras, que
me proponho a manter elas sozinha e que consegui um trabalho como
enfermeira pública.
— E que você viajará por todo o condado sem que ninguém te acompanhe?
Ah, sim, isso impressionaria muito minhas amizades. E já que falamos do
tema, como você pensa em fazer isso?
— Vou comprar um automóvel.
— Um automóvel! Quem vai conduzi-lo?
— Eu mesma.
— Oh, por todos os céus! Não há nenhuma maneira de fazer-te entrar em
razão, verdade? Você sempre foi teimosa e ainda é. Mas grave minhas
palavras, Roberta: você não terá amigos nesta cidade. Não enquanto alardear
sua independência da maneira que faz! Por que você não pode buscar um
trabalho na fábrica, como as demais mulheres? Também as garotas poderiam
começar a trabalhar ali e te ajudar um pouco.
— Outra vez a fábrica! Mãe, já discutimos sobre a fábrica, quando eu parti
daqui faz dezoito anos!
— Você sempre se achou demasiado boa para a fábrica, não?
— A questão não é essa, e sim que classe de vida queria. E essa classe de
vida não era trabalhar em um recinto fechado, cosendo feltro dez horas ao dia
durante o resto de minha vida. E você pode estar segura de que tampouco
imporia essa convicção a minhas filhas! Elas são umas garotas inteligentes,
com imaginação e vocação. Tirá-las da escola secundária para que trabalhem
na fábrica faria em pedaços essa vocação e anularia essa imaginação. Você
não pode entender isso?
— De todas as coisas, o único que entendo é que anos atrás me desafiaste e
partiste para gastar o dinheiro que seus avós tinham deixado para você estudar
enfermaria. E olha o que você conseguiu. Esta casa. Esta casa… patética.
— Oh, mãe, por uma vez em sua vida, por que não pode se sentir orgulhosa
de mim?
— Por favor…
— Tudo o que faz Grace é perfeito. Mas nada do que fiz em toda minha vida
contou jamais com sua aprovação.
— Grace segue as regras.
— As regras de quem? As suas?
— Eu não vim até aqui para que me insulte, Roberta.
— Tampouco eu. Vim aqui com a ideia de que talvez, despois de todos esses
anos, poderia me dar bem com minha família. Ma já vejo que estava
equivocada. O único que recebo são críticas e advertências de que devo pôr
as garotas para trabalhar na fábrica. Bom, sinto, mamãe. Mas não posso.
Myra tocou a testa.
— Você está me provocando uma dor de cabeça monstruosa.
— Te ofereceria raíz de ácoro, mas não tive tempo de desempacotar meus
remédios.
— Não necessito de raíz de áçoro. Necessito ir para casa, deitar-me e pôr
uma compressa fria sobre a cabeça.
— Muito bem, mãe. Direi as garotas que sua avó passou por aqui e que
gostaria de vê-las logo.
Seu tom foi o bastante ácido para enviar Myra para a porta de saída sem
uma palavra de despedida. Enquanto a via se afastar, Roberta pensou com
tristeza que nem sequer tinha tido uma saudação de reencontro. Nenhum
abraço, muito menos um beijo, só as queixas de Myra, tal como tinha sido
sempre.
Capítulo 5
Quando Myra saiu da casa feito uma fúria, Gabe estava sentado debaixo do
olmo com as pernas cruzadas, terminando de comer seu sanduíche de queijo.
— Essa garota sempre teve o dom de me exasperar. Devia ter recordado
isso antes de vir aqui. Agora tenho que andar a pé todo esse caminho, e o
único que recebo por meu esforço é sua falta de respeito!
Gabe se pôs em pé de um salto, com o invólucro do sanduíche na mão.
— Eu posso levá-la no carro, senhora Halburton.
— Eu o agradeço senhor Farley. Ao menos ainda ficam algumas pessoas
jovens que sabem como tratar os mais velhos.
Ela se dirigiu ao caminhão com passo lento e ele se adiantou para ajudá-la a
subir. Enquanto ele girava a alavanca para pôr em marcha o motor, Roberta
observava detrás da porta da sala. Apesar de que sua cara estava oculta na
sombra, Gabe conseguiu ver suas mãos apertadas contra a toalha que lhe
servia de avental. Havia ouvido o suficiente para se dar conta de que Roberta
e sua mãe se comportavam como um par de galos de briga atados no mesmo
palheiro. Gabe pensou em sua própria mãe, uma pessoa bondosa, de caráter
aprazível, e não pode menos que sentir uma pontada de compaixão por
Roberta, que depois de tantos anos de ausência, em lugar de uma cálida bem
vinda só recebia ataques.
Myra se queixou durante todo o trajeto.
— Ela tem a desfaçatez de se mudar para cá com os papéis de divórcio na
mão. Disse que vai comprar um automóvel. Disse que vai viajar por todas
essas montanhas e deixará as garotas sozinhas em casa. Disse que elas
queriam que se divorciasse. Humph! Qualquer coisa que eu lhe digo sobre o
tema passa por ela como água pelas costas de um pato. Ela sempre crê que tem
razão. Sempre! Me acusa de manifestar favoritismo por Grace. Bom, Grace
nunca me causou desgostos, senhor Farley. Nem sequer um! Mas essa… me
desafiou desde o momento em que começou a falar. Grace se casou com um
bom homem e teve filhos. Fez um bom matrimônio, que é o dever de uma
mulher. Ela não partiu de sua casa para se converter em enfermeira! Não é de
se estranhar que o esposo de Roberta não tenha estado muito em sua casa. Que
homem quereria ficar em sua casa, quando sua mulher vai e vem de um lado a
outro quando lhe apetece?
Myra seguiu com as críticas, tantas que, quando Gabe a deixou na porta de
sua casa, estava disposto a retirá-la de uma patada sem deter o automóvel.
Enquanto via Myra subir no caminhão de Farley, Roberta se entregou a uma
estranha sensação de tristeza. Sua mãe não tinha mudado. Era a mesma
autocrata opressora de sua juventude. O desejo de escapar dela formava parte
da razão que a havia impulsionado a partir de Camden. Que equivocada estava
ao crer que os anos transcorridos desde então poderiam ter temperado sua
mãe!
Grace, Grace, a favorita havia sido sempre Grace. Grace, que só ia tocar no
piano as canções favoritas de sua mãe, que levava o cabelo tal e como sua
mãe queria, que caminhava, falava, atuava como sua mãe lhe dizia, que
gostava de esconder-se detrás das portas e escutar os mexericos de sua mãe,
que contava com a aprovação de sua mãe para converter-se ela mesma em uma
fofoqueira, que levou para sua casa um homem elegante e galanteador, capaz
de derramar seus encantos sobre Myra e ocultar suas falhas.
Grace, que ficou em Camden, se casou com Elfred, o presenteou com sua
herança para que começasse seus negócios, deu à luz a suas filhas e que desde
então havia feito vista grossa ante suas aventuras extramaritais.
Era evidente que Elfred havia chegado a enganar Myra também.
Dez minutos depois que o caminhão de Farley se foi, Roberta estava sobre
uma cadeira, tirando umas cortinas rasgadas de uma janela da cozinha, quando
Elfred pegou-a pela cintura com as duas mãos.
— Bem, bem! Isto é demasiado tentador para resistir! — exclamou.
Roberta soltou um grito agudo quando ele rodeou seu ventre com os braços.
— Elfred, me solte!
— E se não solto? O que você fará?
— Maldito sejas, Elfred!
— E se eu solto? O que você fará?
Tentou se desvencilhar, mas ele era muito forte.
— Elfred Spear, estou avisando-o! Direi a Grace que você é um asqueroso
carneiro mulherengo!
Elfred se limitou a rir.
— Não acredito. Você não dirá isso a sua única irmã.
— Eu direi! Que Deus me perdoe, mas direi! Elfred, basta!
— Oh, Birdy, é tão agradável te ver excitada! Quanto tempo faz que você
não se recosta com um homem? Ofereço-me como voluntário.
— Tire as mãos de cima de mim Elfred!
Deu-lhe um pontapé. Ele grunhiu, mas persistiu.
— Te direi uma coisa, Birdy. Você tem mais fogo do que sua irmã já mostrou
em dezenove anos. Um homem que passa todos esses anos com um poste de
madeira como Grace merece alguma distração. Vamos, Birdy, por que você e
eu não subimos essas escadas e fazemos ranger as molas da cama?
— Elfred, você é o bruto mais desprezível que Deus já pôs nesta Terra! E
agora me solte!
Elfred voltou a rir e deslizou as mãos para cima de suas panturrilhas.
Detrás se ouviu a voz serena de Farley.
— Olá, Elfred.
Elfred girou a cabeça, sobressaltado.
— Oh, Gabe, é você! Nossa, você me assustou!
— Verdade?
— Bom, não sabia quem era.
Elfred apartou as mãos do corpo de Roberta. Gabe estava parado no vão da
porta da cozinha, fingindo indiferença, quando na realidade começava a sentir
todo o contrário.
— O que te trás aqui, Elfred?
— Só vim ver como vai o trabalho e para dizer a Birdy que estou pagando
os gastos, tal e como ela pediu.
— O trabalho vai muito bem. Esta manhã retirei o teto do pórtico. É
provável que amanhã comece a reconstruí-lo.
— Já vejo.
Gabe se dirigiu devagar para a cozinha. Elfred ajustou a cintura da calça.
— Pensei que devia começar por lá — continuou Gabe —, para que as
pessoas possam chegar a salvo na porta de entrada. Senhora Jewett, você
necessita de ajuda com essa barra da cortina?
Roberta desceu depressa da cadeira.
— Não, obrigada.
Sua cara mostrava uma viva cor escarlate.
— Ali fora há algo que queria te mostrar, Elfred. Você se importaria de vir
comigo?
Deu a volta e Elfred o seguiu.
Não havia nada que queria mostrar a Elfred, mas eles saíram ao pátio, em
frente a casa, e falaram sobre que cor era a mais adequada para pintá-la.
Até que por fim Elfred ensaiou uma explicação.
— Eu só tratava de passar um bom momento com ela, Gabe. Você sabe
como é.
— Sim, sei como é. No entanto, creio que você deve ter cuidado, Elfred.
Ela é a irmã de sua esposa.
— Mas isso é parte da diversão!
— Sabe Elfred? Eu não acredito que ela pensa o mesmo que você.
Elfred arqueou as sobrancelhas.
— Bom, o que é isto? Uma canção diferente da que cantavas ontem, Gabe?
— Bom, talvez seja. Mas acontece que por casualidade me inteirei que ela
acaba de ter uma discussão com sua mãe, não faz mais de meia hora, e posso
te dizer que a anciã foi bastante dura com ela.
— Nossa, Gabriel Farley! O que está acontecendo aqui? Não me diga que
agora você a quer para si?
— Ah, vamos, Elfred, usa a cabeça. Você não pode manipular dessa maneira
uma mulher. Ouvi muito bem suas objeções do outro lado do pátio.
Suponhamos que, em vez de mim, tivesse sido Grace quem se aproximava da
casa...
— Por acaso você reivindica seus direitos sobre ela, Gabe?
Gabe defixou cair a mandíbula e meneou a cabeça enquanto Elfred,
aproximando-se dele, continuava com um sorriso malicioso.
— Você está aqui, trabalha todos os dias em sua casa. Seria bastante fácil,
não é, Gabe?
— Não é essa a razão pela qual te tirei da cozinha.
— Ah, não? Então, me explique outra vez.
Gabe levantou as palmas e as deixou cair com um gesto de resignação.
— O que há para explicar? Quando uma mulher oferece inflamada
resistência, você se retira, Elfred. Eu não deveria ter que te explicar isso.
— Eu já te disse, Gabe, que só tratava de me divertir um pouco.
— Muito bem, Elfred! Muito bem. — Outra vez levantou as palmas e as
defixou cair. — O que você diga. Só que me parece que talvez ontem tenhamos
nos precipitado um pouco ao fazer comentários picantes às suas costas,
quando nem sequer a conhecíamos. Mas se você quer seguir com seu jogo de
sedução, não voltarei a interferir. E agora, tenho trabalho a fazer.
Deu-lhe as costas e se agachou para recolher seu cinturão de ferramentas.
Uma vez que o ajustou ao redor da cintura, se pôs a trabalhar com o chão da
varanda, deixando Elfred pensando no que tinha dito. Por fim, com uma pose
fanfarrona, Elfred respondeu: — Bem, Gabe, te direi algo. Eu não vou meter o
nariz em teu território, mas não te perderei de vista. Depois de tudo, ela é a
irmã de minha esposa e é minha obrigação velar por seu bem estar.
Com um sorriso malicioso, Elfred partiu, sem voltar a incomodar Roberta.
Gabe cravou o olhar em seu carro enquanto se afastava e pensou que Elfred
era um tipo do mais repulsivo. Foi no dia anterior quando ele próprio havia
instigado-o?
Na cozinha, Roberta esfregava com uma escova de cerdas duras o chão
imundo de Sebastian Dougal, com tanta energia como se se tratasse do fígado
de seu cunhado.
Ainda que Roberta e Gabe se mantiveram longe um do outro à medida que
passava o dia, a cena da cozinha permaneceu em suas mentes. Talvez já
tivessem deixado-a de lado, porém os sons que se filtravan dentro e fora da
casa lhes recordava que o outro trabalhava perto, simulando que o incidente
com Elfred não havia acontecido.
Por fim, às três e meia, Roberta secou a testa com o dorso da mão e aguçou
o ouvido. Nada, só o silêncio. Deu uma olhada em seu avental sujo, o desatou
e sacudiu a saia uma ou duas vezes, molhada na altura do ventre e suja nas
bordas. Estava demasiado cansada para que lhe importasse. Que dia! Deus,
odiava os trabalhos da casa! Odiava Elfred. Quase odiava sua mãe. Já não
tinha certeza quanto a Gabriel Farley, mas lhe resultava muito desagradável
saber que ele trabalhava ali fora, pensando sabe o que sobre sua discussão
com Elfred.
Mas o que ele estaria fazendo ali fora?
Parou debaixo da arcada da cozinha para olhar através da sala. Todo o
pórtico de entrada havia desaparecido, a habitação se via mais luminosa e a
porta de entrada ficava suspendida a pouco mais de um metro do solo.
Colocou o avental sobre uma cadeira da cozinha e foi até a porta da sala.
Farley estava parado no meio da desordem do pátio de costas para ela,
bebendo de uma garrafa de suco de fruta. Havia tirado uma luva de couro e a
sujeitava contra o quadril enquanto dobrava para trás a cabeça. Observou-o,
tratando de adivinhar seus pensamentos. Gabe voltou a beber, secou a boca
com a palma da mão e tampou a garrafa. Depois de depositá-la no chão, tomou
seu tempo para pôr outra vez a luva e se inclinou para recolher as telhas
descartadas. Levantou um montão delas em um braço, girou e então a viu,
parada no vão da porta.
E ficou paralisado como se tivesse encontrado um urso no bosque.
Ela fez o mesmo.
Durante vários segundos eles se olharam fixamente, receosos. Por fim foi
Roberta quem falou: — Suponho que você pensa que eu o incentivei.
— Não, não penso.
Levantou as telhas um pouco mais e as deixou cair.
— Mas não é isso o que fazem as mulheres “divorciadas”?
— Elfred é famoso em toda a cidade por andar a caça de mulheres. Todo
mundo sabe, exceto sua esposa.
— É um homem patético.
Ainda aguilhoado pelas insinuações de Elfred, Gabe se sentiu obrigado a
ensaiar uma justificação.
— Pode ser, mas quando um homem busca em outro lado, pelo geral há uma
razão bastante boa.
— Ah, essa é uma reação típica de um homem! — respondeu ela com
desprezo. — Naturalmente, você põe a culpa em minha irmã pelos pecados de
Elfred.
— Não sua irmã, não a conheço o suficiente. Só estava generalizando.
— Bom, faça suas generalizações em qualquer outro lugar, porque eu não
tenho nenhum interesse em escutá-las! Ele é um pai de família com três filhas.
Como crê você que elas se sentiriam se descobrissem que o pai delas se
comporta de maneira indiscreta com qualquer mulher que almeja?
Gabe bateu as palmas de ambas as luvas sujas.
— Olhe, me arrependo de ter dito o que disse, de acordo?
— Bom, melhor assim, porque vocês, os homens, se regem por padrões
duplos, sem considerar o que as esposas e os filhos sofrem quando vocês têm
seus “casos inocentes”. Eu sei por que tive um esposo exatamente igual a
Elfred!
Ela deu a volta e desapareceu dentro da casa. Gabe ficou com o olhar fixo
na porta vazio. Como muitos homens da cidade, ele havia rido muitas vezes
pelos adultérios de Elfred e menosprezado a esposa dele por sua ignorância
“Grace Spear, essa gorda mandona — comentavam todos. — Não é estranho
que Elfred a engane em seu próprio nariz.” Elfred gostava de flertar com as
mulheres enquanto Grace estava presente, e Gabe, como muitos outros, havia
achado divertido. Mas ao vê-lo utilizar as mesmas artimanhas sujas com Birdy
Jewett o fez se perguntar o que tinha em realidade de divertido.
Enquanto empilhava as tábuas para fazer uma fogueira, pensou no esposo de
Roberta. Quantas mulheres ele tinha tido? Suas filhas sabiam! Era evidente
que sim. Lhe pareceu uma situação muito dolorosa para as pequenas saber que
seu pai se deitava com um montão de mulheres além de sua mãe.
Imerso em seus pensamentos, ele não percebeu o regresso das garotas até
que a menor, que tanto havia gostado, se dirigiu a ele: — Olá, senhor Farley!
Olhe quem está aqui!
— Olá, papai!
— Isobel! Que surpresa, por Deus!
— Susan e eu nos conhecemos no recreio — explicou Isobel —, e eu lhe
disse que você trabalhava para sua mãe. Então ela me perguntou se eu queria
vir para ver onde elas vão viver.
— Nossa varanda desapareceu! — exclamou Rebecca.
— Estou a ponto de queimar todos os restos.
— Oh! Podemos ajudá-lo?
— Oh, sim, por favor! Podemos?
Susan pegou Isobel pela mão.
— Vem comigo, subiremos a porta de entrada e eu te mostrarei nossa
habitação. De nossa janela podemos ver a montanha! Mamãe, já estamos em
casa!
As quatro garotas treparam por cima das tábuas e quando Roberta apareceu
na porta começaram a empurrar umas as outras.
— Como foi na escola? Apresentam-me a amiga de voces?
— Esta é Isobel! — gritaram todas em coro.
Lydia, entretanto, se balançava nos pés de sua mãe.
Gabe levantou uma prancha e cruzou o pátio depressa.
— Garotas, esperem!
Apoiou-a de uma forma que pudessem subir por ele, enquanto discursavam
sobre a escola, Isobel, suas professoras, a fogueira… Gabe, com uma só filha,
estava acostumado ao silêncio e a calma. Aquilo era uma violação a sua
tranquilidade. As garotas bombardeavam a casa, se balançavam sobre a
prancha e falavam sobre quatro coisas ao mesmo tempo. De alguma maneira,
no meio da tagarelice, o nome completo de Isobel penetrou nos ouvidos de
Birdy.
— Isobel Farley? — repetiu então.
— Sim, ele é meu pai — confirmou Isobel.
De sua posição vantajosa, no alto da varanda, Roberta se encontrou com o
olhar de Gabe. As adolescentes não tinham a menor ideia da hostilidade que
havia entre seus respectivos pais.
— Ah… sim, claro. Bom, bem vinda, Isobel.
— Seu pai vai fazer uma fogueira para queimar as tábuas — comentou
Lydia. — Podemos ajudá-lo, mamãe?
— Sim, por favor! Podemos?
— Temos fome! Há algum pastel? Ou qualquer outra coisa?
— Eh… Pastel?
Roberta apartou a vista de Gabe para responder as garotas.
— Não, não tive tempo de preparar nada.
— Mas estamos famintas!
— Tenho alguns biscoitos.
As quatro se lançaram escada acima para ver o quarto das garotas, depois
voltaram a descer para comer os biscoitos antes de descerem pela prancha e
descobrir que Gabe havia incendiado a pilha de tábuas. Elas correram até a
fogueira, apesar de que nenhuma tinha trocado a roupa da escola, algo que
Gabe havia se ocupado de ensinar a Isobel. Começaram a juntar as tábuas e
alimentar o fogo, enquanto Gabe o atiçava com um ancinho.
Sem preâmbulos, Rebecca começou a recitar.
— “Pelas costas de Gitche Gummee, pela água resplandecente do grande
oceano….”
— O que é isso? — perguntou Isobel.
— Isso é Hiawatha. Você não conhece Hiawatha?
Fez uma pausa e adotou uma pose dramática.
— Eu sou Hiawatha, um índio indômito, valente, que jejua na floresta na
alegre e prazenteira primavera.
Sem o menor vestígio de timidez, ela começou a cantar e dançar como se
estivesse vestida com camurça e plumas de águia. Suas irmãs a imitaram e
dançaram também dando voltas e voltas ao redor do fogo, com os braços
estendidos e os corpos ondulando, enquanto Isobel, tão desconcertada como
seu pai, as olhava assombrada.
Gabe observou como sua filha lutava para equilibrar sua fascinação com
uma renúncia natural a unir-se a elas. Em um momento ela o olhou com os
olhos muito abertos e ele viu com toda claridade seu desejo de ser como essas
garotas. Mas ela havia sido criada como filha única e havia passado
demasiados anos sozinha para sentir-se livre no meio das ferazinhas
indomáveis da senhora Jewett. Gabe supôs de imediato que elas não atuavam
para ele. Elas eram assim, simplemente espontâneas.
De repente, Rebecca interrompeu seu canto.
— Já sei! — exclamou. — Lagostas!
Suas irmãs também deixaram de cantar.
— Podemos recolher algumas se a maré estiver baixa e cozinhá-las sobre
nossa fogueira!
Decidida, correu para a prancha.
— Perguntarei a mamãe! Mamãe! A que horas sobe a maré?
Roberta voltou a aparecer na porta.
— Dentro de uma hora mais ou menos.
— Então temos que nos apressar! Podemos ir recolher algumas lagostas e
cozinhá-las sobre a fogueira?
— A cesta está no meu dormitório, cheia de toalhas.
Deu a volta e suas três filhas se precipitaram em ir atrás dela. Subiram pela
prancha e entraram no meio de um grande alvoroço. Momentos depois, com
Lydia na frente, elas voltaram a descer com a cesta.
— Vamos, Isobel! — gritou Lydia. — Você tem que nos mostrar onde está
Sherman's Cove ! Ali é onde mamãe disse que se encontram as lagostas!
Isobel ficou cravada no solo, indecisa. Levantou os olhos para seu pai.
— Posso?
— Lagostas?
Ninguém comia lagostas. Com a maré alta elas se amontoavam sobre as
rochas e faziam transtornos entre elas. Aqueles que se incomodavam em
levantá-las enterravam-as para fertilizar a terra.
Isobel encolheu os ombros.
— Você está segura de que quer comer lagostas? — lhe susurrou Gabe ao
ouvido.
— Eu quero ir com elas. Por favor, papai.
Ele albergava suas dúvidas sobre aquele trio selvagem, mas Isobel tinha em
seus olhos uma ansiedade que ele não via nela fazia tempo. E por certo que se
divertiria muito mais com elas até Sherman's Cove, que se voltasse para casa
com ele para compartilhar um jantar solitário para dois.
— Está bem — concedeu —, mas primeiro você deveria mudar de roupa.
— Mas, papai! Se eu fizer isso, será muito tarde!
A casa dos Farley ficava em direção oposta a Sherman's Cove, e as lagostas
não demoravam muito sobre as rochas, uma vez que o ar lhes golpeava o
casco.
— Bom, está bem. Vá com elas. Mas amanhã você a mudará imediatamente
depois da escola, como de costume.
— Obrigada, senhor Farley! — gritaram em coro as outras três, e Isobel
correu atrás delas.
O último vislumbre que Gabe teve de sua filha foi que ela corria para
alcançar Lydia, que levava a cesta sobre a cabeça.
Durante a espera, o silêncio se apoderou do lugar salvo pelo crepitar do
fogo. Roberta ficou na porta; Gabe, junto a fogueira. Reconheciam que suas
filhas estavam iniciando uma amizade que talvez nenhum dos dois desejava
incentivar, mas suas razões eram egoístas e isso fazia-os se sentir ainda mais
incômodos um com o outro.
— Bom, será melhor que eu vá comprar alguma manteiga — disse Roberta
por fim, e desapareceu da porta.
Ele continuou com a limpeza do pátio, pegou pregos, alimentou o fogo,
guardou algumas tábuas para que as garotas queimassem quando regressassem.
Minutos depois, Roberta desceu pela prancha com uma bolsa das que se
usavam para carregar alimentos. Havia se penteado e trocado a saia. Gabe lhe
deu as costas para fazer aquilo mais fácil para os dois e se agachou para
recolher algumas tábuas enquanto ela cruzava o pátio detrás dele. Ele sabia
muito bem, no entanto, que ela se dirigia colina abaixo para comprar alguns
alimentos e que teria que carregá-los ladeira acima. Ela só tinha dois pés,
enquanto ele tinha um caminhão Ford e sua mãe não havia deixado de
pressionar ele sobre os bons modos.
Afastou-se do fogo e a chamou: — Senhora Jewett!
Ela se deteve.
— Posso levá-la com o caminhão?
— Não, obrigada, senhor Farley — respondeu resoluta. — Não creio que
seja conveniente que as pessoas voltem a nos ver juntos em seu caminhão. Eu
caminharei.
Gabe soltou um suspiro de alívio enquanto a observava se afastar na mesma
direção em que haviam ido as garotas.
Seu desejo teria sido partir antes que ela regressasse, mas um homem
responsável não deixa brasas acesas para que lancem faíscas e ponham fogo
na casa de uma mulher. Então terminou de passar o ancinho na terra, recolheu
o lixo com uma pá, o meteu dentro de um saco de pano e queimou a maior
parte das tábuas restantes. Suas ferramentas estavam no caminhão e ele estava
de cócoras junto ao leito de brasas ardentes, quando Roberta voltou carregada
com duas bolsas. As garotas a acompanhavam e arrastavam a cesta com seu
tesouro coberto com algas marinhas. Seus vestidos estavam sujos, e seus
sapatos, molhados. O cabelo de Isobel pendurava-se como gramíneas de mar.
Todas falavam ao mesmo tempo.
— Olhem! São enormes!
— Oh, o fogo está no ponto!
— Mamãe, onde está a panela para lagostas?
— Venha vê-las, papai! Rebecca sabia como pôr nelas umas varetas nas
garras para que elas não nos beliscassem!
Seguiu-se uma admiração de lagostas, com quatro garotas desgrenhadas que
corriam por todo o pátio, dentro da casa e outra vez do lado de fora. Roberta
passou detrás de Gabe com suas duas bolsas pesadas.
— Ainda está aqui, senhor Farley? Pensava que você tinha ido.
— Não achei prudente deixar o fogo sem vigia.
Enquanto subia na prancha, Roberta lhe disse: — Se quiser, você pode ficar
para comer com nós.
Lagostas? Gabe estremeceu. Ademais, recordou a insinuação de Elfred.
— Não, obrigada. Irei para casa.
No alto da prancha, Roberta deixou sobre o solo a pesada carga e girou
enquanto friccionava os braços.
Gabe se sentia um idiota por ter deixado que ela carregasse latas e garrafas
de leite ladeira acima.
— Você deveria ter permitido que eu a levasse — comentou.
Ela o olhou fixamente, como se fosse decidir que ele tinha razão.
— Eu já lhe disse que estou acostumada a me arrumar por conta própria.
Por outra parte, vejo que você não gosta das lagostas.
Gabe foi para sua casa e comeu sozinho. Sardinhas e biscoitos. E alguns
pêssegos. Duas taças de café quente e três pasteizinhos de canela que sua mãe
tinha feito. A cozinha estava ordenada e reluzente debaixo da nova luz elétrica.
Caramelo, a gata, trepou a cadeira e se recostou sobre seu colo. Gabe fixou os
olhos no relógio de parede, notou um reflexo de luz avermelhada na janela e
imaginou o pátio das Jewett com as lagostas fervendo em uma panela.
Levantou-se para lavar seus talheres e sua xícara, regou as plantas de
Caroline, varreu a cozinha e sacudiu os tapetes. Quando terminou, Isobel
seguia sem aparecer. Banhou-se e barbeou, e sua filha ainda não havia voltado
para casa. Seguiu pensando naquelas brasas e naquela gangue imprevisível
que a acompanhava. Demônios! Pelo que sabia, elas eram capazes de fazê-la
caminhar descalça sobre as brasas para que representasse o papel de deusa de
um vulcão havaiano.
Quando por fim ela apareceu, radiante e com o rosto extasiado, ele tinha
posto roupa limpa com a intenção de voltar lá para buscá-la.
— Papai? — chamou de baixo. — Papai, onde você está?
— Isobel?
Subiu de dois em dois os degraus e se precipitou em seu dormitório.
— Onde diabos você esteve até tão tarde?
— Oh, estive com as Jewett e, papai, elas são tão divertidas!
— Você não se dá conta da hora que são?
— Mas você sabia onde eu estava.
— Sim, mas não achei que você ficaria lá até tão tarde.
— Não são nem sequer as oito, papai, e estivemos sentadas ao redor do
fogo. A senhora Jewett pegou um livro de Longfellow e nos leu o primeiro
verso de The Song of Hiawatha. Depois tornaram a ler cada uma um verso.
Elas até sabem de cabeça alguns deles! E podem pronunciar todas as palavras
índias. E vimos uma coruja e ela posou naquela árvore grande do pátio e nos
olhou como se também estivesse escutando. E a senhora Jewett a chamou e ela
endireitou a cabeça e a girou por completo até que ficou olhando para trás!
Também sabiam que tipo de coruja era. Era uma ave enorme, mas se afastou
voando sem fazer o menor ruído. Amanhã leremos os cinco versos que faltam!
Para uma garota que facilmente se entediava por tudo, desde a escola à
visitas familiares, tanto entusiasmo impressionou seu pai.
— Amanhã?
— Sim, depois da escola. E Rebecca quer fazer trajes e ensaiar uma obra de
teatro. Mas eu não quero fazê-lo. Não sei atuar.
— Como você sabe? Nunca tentou.
— Mas eu sei. Ademais, não gosto que as pessoas me olhem. Mas da leitura
eu gosto.
Isobel pensava que as pessoas sempre olhavam suas orelhas, e Gabe não
sabia como consolá-la.
— Como estavam as lagostas? — lhe perguntou para mudar de tema.
— Feias de aspecto, mas muito saborosas. A senhora Jewett derreteu
manteiga e fritou uns bolinhos de arroz e comemos eles com as mãos, sentadas
ao redor do fogo.
— Se nota. Seu vestido está muito sujo. Bem, por que você não sobe para
tomar banho e tira essa roupa? Amanhã eu levarei-a a casa da avó para lavá-
la.
Uma hora depois, quando não ouviu mais ruídos na habitação de sua filha,
Gabe bateu na porta e a encontrou sentada com as pernas cruzadas sobre a
cama, vestida com uma camisola azul pálido e escrevendo. Entrou e se sentou
nos pés da cama, se apoiando sobre uma mão.
— O que é isso? — perguntou.
— Um poema.
— Você escreve poemas?
Ela virou o caderno no colo, com expressão satisfeita.
— Pensei que você não gostava de poesia.
— Isso era na escola.
— É diferente em casa?
— É diferente naquela casa. Tudo é diferente naquela casa.
— Isobel — pronunciou seu nome com doçura —, eu sei que hoje você
passou um momento muito bom com as Jewett, mas você e elas são muito
diferentes. A mãe delas permite que elas sejam bastante desenfreadas, e eu não
quero que você seja assim. Você não pode estar fora de casa quando anoitecer
e correr por aí depois da escola sem mudar de roupa e comer ao redor de uma
fogueira como uma índia selvagem.
— Oras, os índios não são selvagens! Você já leu Hiawatha?
— Não, não li, Isobel. Mas a questão é…
— Bom, deveria lê-lo. Conta como eles amam a terra e o céu e tudo o que
os rodeia. E hoje me diverti tanto com Rebecca e suas irmãs… Nesta cidade
todos são tão chatos.
— Isobel, a mãe delas está divorciada.
— A mãe delas é mais divertida que qualquer mãe que eu já conheci! E o
que isso tem a ver com que eu seja amiga delas?
— É a maneira que ela as educa e as deixa fazer o que querem. Se você
começar a se relacionar com elas, você adquirirá seus maus hábitos e terá má
reputação.
Ela o olhou surpreendida.
— Caramba, pai, você me surpreende! Elas estão a apenas dois dias na
cidade, e você já está divulgando rumores sobre elas?
— Não estou divulgando rumores.
— Sim, está. E mamãe dizia “Primeiro averigua e julga depois”. Não é isso
o que ela sempre dizia?
— Isobel, só te peço que se lembre das boas maneiras que sempre te
ensinamos e das regras que temos nesta casa.
— Lembrarei, pai.
Era a segunda vez que ela o chamava de “pai”, e Gabe tomou isso como uma
reprimenda.
— Então posso ir amanhã à casa das Jewett?
Ele não tinha nenhuma razão lógica para negar.
— Se primeiro você trocar de roupa e atuar como uma dama enquanto esteja
lá.
— Farei isso.
— E você voltará para casa para jantar comigo.
— Certo.
Quando Gabe se levantou e disse “boa noite”, Isobel o olhou e tratou de
recordar se alguma vez ele havia abraçado-a da maneira que a senhora Jewett
abraçava suas filhas. Ela tinha feito isso quando regressaram para casa da
escola e várias vezes durante aquela incrível noite. Fez isso sem nenhuma
razão em particular, as vezes quando passava junto a elas, no pátio. Em uma
ocasião, enquanto Lydia lia, a senhora Jewett estendeu a mão e lhe acariciou a
cabeça. E Lydia seguiu como se nem sequer tivesse notado. Eu teria notado se
papai tivesse acariciado minha cabeça alguma vez. Ou se alguma vez tivesse
me abraçado para desejar-me boa noite, ou para se despedir de mim quando
vou para a escola, pensou.
Se cobriu com os lençóis e de repente sentiu a pontada aguda da solidão que
cuidava muito bem de ocultar a seu pai cada vez que a acometia. A imagem de
sua mãe se desvanecia. Antes recordava seu rosto com claridade, mas agora
só podia recordá-lo quando olhava a fotografia que seu pai conservava sobre
a penteadeira em seu dormitório.
— Mamãe — murmurou na escuridão. — Mamãe…
Às vezes sussurrava dessa maneira porque nunca tinha oportunidade de
fazê-lo em voz alta como faziam outras crianças.
Capítulo 6
Não existe uma verdadeira primavera em Maine.
Roberta havia ouvido isso durante toda sua vida e a manhã seguinte
confirmou isto. O tempo benigno do dia anterior tinha mudado de maneira
brusca e o céu tinha escurecido até formar um espesso colchão de lã cinza. As
nuvens carregadas de vapor rondavam o mar e descarregavam sua umidade
sufocante sobre tudo o que se movia entre elas.
Inclusive Roberta.
Tão logo as garotas saíram para a escola, ela colocou um casaco curto de lã
fechado até o pescoço, armou-se com seu guarda-chuva e se dispôs a ir à
agência de automóveis Boynton. Quando abriu a porta principal, comprovou
que ainda não havia sinais de Gabriel Farley. A prancha estava escorregadia e
havia deslizado para baixo. Depois passou junto à mancha negra onde na noite
anterior haviam acendido o fogo. Os restos molhados de carvão vegetal
despendiam um odor acre, mas as agradáveis recordações da noite deram
impulso a seus passos. Roberta desfrutara participando das travessuras de
suas filhas. Ademais, Isobel Farley tinha sido um complemento jovial... um
pouco tímida, mas uma ávida discípula.
Todos o indícios apontavam que veria muitas vezes Isobel por sua casa. Se
isso significava encontrar-se de vez em quando com seu pai, teria que limitar-
se a sorrir e suportá-lo.
Afastou-o de sua mente enquanto descia pela rua Washington com os sapatos
cada vez mais molhados. No extremo norte da rua Main parou debaixo do
letreiro que não tinha podido ler no dia de sua chegada. Debaixo de seus
nomes, os Boynton anunciavam: AGÊNCIA DE VENDA DE AUTOMÓVEIS
DE PRIMEIRA QUALIDADE. DEPÓSITO E MANTIMENTO DE
AUTOMÓVEIS.
O lado de dentro cheirava a goma, mas por sorte estava seco. Os Boynton
haviam acendido a luz elétrica de modo que as luzes do teto dissipavam a
escuridão. Roberta deixou o guarda-chuva no bengaleiro junto a porta de
entrada e bateu os pés no tapete de crina.
— Bom dia. Posso ajudá-la em algo?
Levantou os olhos e se encontrou com o rosto de um homem robusto com
óculos, que deveria rondar os quarenta anos. Tinha bigode e vestia um terno
listrado.
— Espero que sim. Eu queria comprar um automóvel.
Foi mais que evidente que ele não esperava semelhante resposta. Ele
demorou uns segundos em responder, enquanto esfregava as palmas das mãos.
— Claro, senhora. Hamlin Young as suas ordens. E você é...?
— Roberta Jewett.
— Senhora Jewett, por aqui, por favor.
Enquanto a conduzia ao interior ele deu uma olhada na porta.
— Seu esposo está com você?
— Não tenho esposo. O carro é para mim.
O homem se deteve junto a um Oldsmobile negro e franziu as sobrancelhas,
como se tratasse de se lembrar de algo.
— Jewett... Jewett... Você não seria a cunhada de Elfred Spear, verdade?
— Sim, sou eu. A irmã de Grace.
— Ahhh... — murmurou enquanto dava umas batidinhas no queixo. —
Alguém me disse que você vinha viver em Camden.
Elfred, sem dúvida alguma. Pela maneira que os olhos de Hamlin Young
cintilaram com novas especulações, ele também devia ter mencionado que
Roberta era divorciada. Ela já tinha visto essa reação suficiente vezes para
predizer o que sucederia depois. O homem tomaria a oportunidade de tocá-la
em alguma parte.
— Nasci e cresci aqui — ela disse a ele.
— Sim, claro. E com quem estava casada?
— Você não o conhecia. O automóvel, senhor Young — lhe recordou.
— Ah, sim, claro.
Roberta não se equivocou: ele tocou seu cotovelo com a ponta dos dedos.
— Você já andou alguma vez em um?
— Sim, um par de vezes.
— Já conduziu um?
— Uma só vez.
— Verdade? Bem! É surpreendente. Devo admitir que ainda não vendi um
automóvel a uma mulher. De acordo com meu conhecimento, nenhuma mulher
já conduziu um em Camden.
— Então eu serei a primeira. Tenho algumas perguntas a fazer, senhor
Young, sobre o preço e a manutenção.
— Nos ocuparemos disso mais tarde. Primeiro permita-me mostrar-lhe o
que temos.
Tocou-a outra vez enquanto lhe apresentava o Oldsmobile, e outra vez
quando a conduziu para um Overland de passeio. Quando se aproximaram de
um modelo comum de Fort T, ela se pôs a um lado com grande habilidade e
manteve muito espaço entre os dois.
— Quanto custa esse?
— Trezentos e sessenta dólares, com arranque rápido de última geração,
incluindo um sistema de engrenagem planetário.
Só trezentos e sessenta. Elfred havia falado de seiscentos.
— Esse arranca e opera igual a um caminhão Ford C?
— Um caminhão Ford C? — Ele escrutinou-a com mais atenção. — Bom...
sim. Você já conduziu um caminhão, senhora Jewett?
Roberta compreendeu de imediato seu erro.
— Bom... sim. E devo dizer que conduzi bastante bem. Vocês se encarregam
dos concertos?
— Sim, senhora. Somos os donos da Garagem Camden, que fica justo aqui
ao lado, e na parte de trás temos nossa própria oficina e um corpo de
mecânicos experientes. Lá em cima, no segundo andar, temos peças de todas as
classes e uma confortável sala de espera para nossos clientes. Até contamos
com uma conexão telefônica ali em cima. Incomodaria-lhe se eu perguntar de
quem era o caminhão que você conduziu senhora Jewett?
— Sim, me incomodaria, senhor Young. Que relação tem isso com meu
desejo de comprar este automóvel?
— Bom, só me perguntava se por casualidade teria sido o caminhão de
Gabriel Farley.
— Sim, foi esse! — respondeu exasperada.
— Ah, bem, porque Gabe o comprou aqui. Ele lhe informaria do tipo de
trabalho que fazemos. Oras, Gabe conhece todo mundo nesse lugar.
Ela estava segura de que assim era. Como também estava segura de que todo
mundo se inteiraria de que havia viajado com Farley em seu caminhão.
— Gabe é um bom homem. Então ele lhe deu umas pequenas lições de
condução?
— Só uma, muito breve. Mas o suficiente para que me desse conta de que
posso fazer isso.
— Ah, não tenho nenhuma dúvida. Mas eu não faria bem meu trabalho se
não lhe advertisse de algumas coisas, para você saber o que fazer se você
conduzir durante algumas horas. Gabe mencionou a você algo sobre remendar
pneus?
— Remendar pneus?
— Você terá que levar sempre uma caixa para remendos. Vendemos isso
aqui, no piso de cima. Mas eu não acredito que você gostaria de fazer um
trabalho sujo.
— O que mais?
— Se não puder remendar o pneu, você terá que substituí-lo enquanto o aro
fica no auto, e, com toda franqueza, não creio que uma mulher possa fazer isso.
Para isso é necessário ter alguns músculos. Não vou mentir, é um trabalho
endemoniado inclusive para um homem.
— Com que frequência os pneus se gastam?
— Depende dos caminhos pelos quais você transite. Acima, nas montanhas,
alguns são bastante maus. Rochas, deslizamentos de terra pelo arrastar da
água, o que queira.
— Mas eu poderia remendá-los?
— Poderia. Com uma pequena lição.
— Algo mais?
Roberta lamentou ter perguntado. Foi informada sobre a necessidade de
ajustar com frequência o carburador, esticar as correias de transmissão e
substituir correias de ventilador.
— Mas eu pensei que vocês faziam as reparações.
— Estas são coisas que podem acontecer na estrada.
— Ah!
Pela primeira vez ela mostrou um sinal de desencorajamento.
— Não me leve a mal, senhora Jewett. Eu vendo estes veículos e não
deveria falar mal deles. Eles são boas máquinas e bastantes confiáveis quando
são novas, mas eu não me sentiria bem se vendessse um a uma mulher sem
esposo, a menos que ela soubesse o que vai enfrentar. Com o tempo, é muito
provável que você deseje ter comprado um cavalo.
— Não tenho lugar para alojar um cavalo.
— Bom…
Com um gesto de resignação, levantou as duas mãos e as deixou cair.
— Posso perguntar-lhe para que você necessita um automóvel?
— Eu sou enfermeira pública, contratada pelo estado de Maine. Terei que
viajar muito.
— Ah, já vejo.
Young notou a decepção de Roberta e voltou a tocá-la, desta vez no ombro,
com uma mão aberta que se demorou um pouco mais.
— Se você decidir comprar um, estarei encantado de mostrar-lhe como
fazer algo destas coisas.
A presunção do homem acabou com seu momentâneo temor e se livrou do
contato da mão dele.
— Se um homem pode fazer isso, eu também. E se é um trabalho demasiado
pesado, conseguirei ajuda. Voltarei dentro de um momento, senhor Young.
Em seguida se dirigiu ao banco de Camden. O senhor Tunstill, o vice-
presidente, arqueou as sobrancelhas com arrogância, deu uma olhada em seus
sapatos gastos e no casaco passado de moda, e lhe informou que seu banco não
autorizavá empréstimos de cento e cinquenta dólares às mulheres. Muito
menos a mulheres que não tinham um homem que as mantivesse. Uma
enfermeira pública? Isso não lhe impressionava, e tampouco podia ajudá-la.
Sugeriu que encontrasse um homem com um automóvel e que se casasse com
ele, se quisesse conduzir.
— Bom dia, senhora Jewett.
Dez minutos depois ela estava outra vez no lado de fora debaixo da chuva. E
tão enojada, que nem sequer se deu conta de que também suas meias estavam
encharcadas.
Voltando a agência Boynton, perguntou ao senhor Young que arranjos
poderiam fazer se ela não tivesse suficiente dinheiro. Ele lamentava, disse,
mas sem um empréstimo do banco ele tinha as mãos atadas. Ele não tinha
automóveis usados, mas tinha alguns para alugar. O aluguel, no entanto, era tão
caro que com o tempo resultaria um mau negócio. Então, uma vez mais
Roberta terminou na rua debaixo de seu guarda chuva. Em uma tentativa para
se acalmar, se dirigiu a oficina de correios e fez os trámites para a entrega de
sua correspondência, depois entrou no restaurante Gold e se presenteou com
uma xícara de café quente. Sem nenhuma cerimônia, a garçonete lhe perguntou
quem era e quando Roberta lhe disse seu nome, três mulheres a olharam
fixamente e sussurraram entre elas. Dois velhos acomodados no balcão
giraram e ficaram de boca aberta.
Pelo tempo que ela saiu do Gold ela estava desejando ter um monte de
cobras e poder as fazer silvarem e cuspirem conforme ela partia.
Ela só tinha mais uma alternativa. E apesar do repugnante que era, decidiu
pô-la em prática.
O conquistador da cidade. Elfred.
Sua companhia estava no mesmo quarteirão do templo maçônico, em um
desses novos edifícios de alvenaria, com arcos acima das janelas. Quando
entrou perguntando por seu cunhado, havia quatro pessoas trabalhando no
escritório. Ele a viu através da divisória de vidro de seu escritório e quase
quebrou o joelho ao saltar da cadeira.
— Birdy!
Ele foi para ela com os braços abertos.
— Que surpresa! Georgie, esta é minha cunhada, Birdy Jewett.
Ela foi apresentada a todos e conduzida para dentro debaixo dos braços
possessivos de Elfred, enquanto os empregados seguiam eles com olhares
inquisitivos. Ele convidou-a para sentar-se em uma cadeira em seu escritório,
e girou a sua para sentar-se de frente a ela, tão perto que quase se tocavam
seus joelhos. Os olhos de Elfred brillhavam com malícia.
— O que te traz por aqui, Birdy? Você mudou de ideia sobre o que sugeri
ontem?
— Basta, Elfred!
Ele sorriu e se reclinou em sua cadeira com um sorriso de satisfação, cruzou
os joelhos e estendeu um pé que se refugiou entre as pregas da saia de
Roberta.
— Eu disse a Farley que deixaria o terreno livre, mas parece que talvez
falei demasiado cedo, já que agora você está aqui e me causa um imenso
prazer ver-te.
Roberta levantou um pé e empurrou sua cadeira uns centímetros para trás.
Ele não necessitou mais do que rolar uns centímetros para frente e meteu o pé
no mesmo lugar.
— Seus empregados estão olhando — Roberta lhe recordou.
— A única coisa que eles podem ver são nossas cabeças e ombros. O que
você deseja?
— Um empréstimo.
— Ah… um empréstimo — ele repetiu com tom zombeteiro e movimentos
insinuantes com as sobrancelhas.
— De cento e cinquenta dólares.
— Para aquele automóvel que você quer comprar?
— Sim.
— E o que você oferece em troca?
— Nada. Eu vou assinar uma nota promissória.
— Hummm… não é suficiente. Você terá que fazer algo melhor que isso,
Birdy.
Ele começou a deslizar seu sapato negro por sua perna. Ela golpeou seu
joelho com o salto e empurrou-o para trás com cadeira e tudo. Elfred arfou e
ficou com a boca aberta.
— Não, é você que deverá fazer algo melhor, Elfred. A não ser que você
queira que eu diga a Grace que você sugeriu dormir comigo ao cabo de vinte e
quatro horas de minha chegada a cidade.
Ele esfregou o joelho e falou com notável cordialidade.
— Não trate de me enganar Birdy, porque eu sou um jogador muito melhor
que você.
— Você não acredita que eu diria? — Ela inclinou o queixo e o olhou
fixamente. Desejava novamente ter umas cobras na mão. — Ponha-me à
prova..
A ameaça começava a abater Elfred, que perdeu seu ar de insolência.
— Isso é chantagem Birdy e você sabe.
— Sim, e não é encantador? Se você quer me testar, adiante. Claro, você
terá que refletir sobre se vale a pena ou não correr o risco de perder o
respeito de sua esposa e de suas três filhas. Porque eu que direi a Grace, com
toda segurança. De todos os modos, não estou muito contente com ela. Ela
deve ter fofocado para toda a cidade sobre o meu divórcio, porque as
mulheres me olham com olhos tortos e os homens adotam poses de estátuas
gregas ao ouvirem meu nome. E com absoluta franqueza Elfred, você me dá
asco. Então não me ponha à prova! Preciso de cento e cinquenta dólares e
posso assinar uma nota promissória, agradável e educadamente, ou posso criar
um grave problema na sua vida familiar. Agora, o que você decide?
A expressão insolente de Elfred havia congelado.
— Você tem coragem, Birdy. Sabia disso?
— Sim. Cento e cinquenta, por favor, Elfred. E rápido, antes que eu decida
dizer a Grace de qualquer maneira.
Ele deslizou com a cadeira até um cofre de ferro negro e começou a girar a
roda. Roberta via suas costas, e quando ele girou trazia um monte de notas na
mão.
— Repito, Birdy: isto é chantagem.
Ele lhe entrgou as notas e ela guardou-as no bolso de seu casaco enquanto
levantava-se..
— Prepare uma nota promissória e eu pagarei-a. Não posso pagar mais que
cinco dólares ao mês, mas posso ser sempre pontual, querido cunhado. Muito
obrigada.
Elfred viu-a sair com uma expressão azeda em seu rosto bonito.
Quando Roberta regressou a sua casa, havia uma pilha de tábuas de madeira
serradas no pátio e Gabriel Farley martelava uma no chão da varanda. Seu
irmão acompanhava-o. Nenhum dos dois a viu ou ouviu chegar até que se
deteve no pátio junto perfumado chão de madeira.
— Oh, senhora Jewet! Olá!
Gabe se sentou sobre seus calcanhares.
Ela não mostrou a menor cortesia. Então Elfred deixava para ele o terreno
livre? Perguntou-se de quem teria sido a ideia, e não teve vontade de lhe
devolver a saudação.
— Não pensei que viesse para trabalhar chovendo.
— Se alguém espera um dia ensolarado em Maine, nunca terá nenhum
trabalho terminado. Este é meu irmão Seth, senhora Jewett.
Eles intercambiaram uma breve saudação, a dela fria, a dele curiosa.
— Você tirou a prancha. — disse a Gabriel.
— Sinto muito, você terá que dar a volta pela parte de trás.
Ela se lançou com passo enérgico nessa direção, mas a voz de Farley
deteve-a.
— Obrigado por ter permitido que Isobe ficasse até a noite. Quando ela
chegou em casa não parava de falar. Obrigado!
— Não há de quê — ela respondeu e seguiu seu caminho.
— Ela gosta de suas filhas — ele gritou.
— Elas também gostam de Isobel — respondeu Roberta, sem diminuir o
passo nem se voltar para ele enquanto desaparecia por lado da casa.
Seth a seguiu com o olhar e meneou a cabeça.
— Ela não gosta muito de você, verdade?
— Não, não muito.
— Mas Isobel ficou aqui ontem à noite?
— Só para jantar. Cozinharam umas lagostas sobre uma fogueira e leram
Hiawatha.
— Sério?
Seth observou como Gabe estendia uma régua de carpinteiro marcava uma
tábua e pegava uma serra.
— Porém, não a quero rondando muito por aqui — comentou Gabe. —
Tenho a impressão de que suas filhas são muito rebeldes.
— O que você e eu nunca fomos.
Gabe sorriu por cima de sua serra.
Os dois puseram-se a trabalhar mas falaram no meio do ruído.
— E então? O que se passa entre você e essa mulher? — Seth perguntou.
— Nada.
— Então por quê ela se foi com tanta pressa?
— Ontem interrompi uma pequena cena entre ela e Elfred. Creio que ela se
sente incômoda por isso.
— E o que eles estavam fazendo?
— Elfred estava fazendo o que sempre faz só que ela não participava.
Protestava bastante quando eu me meti.
Seth soltou uma risada, mas em seguida ficou sério.
— Como é possível que sua esposa tolere semelhante conduta dele?
— No geral, as esposas são as últimas a saber.
Depois de refletir um pouco, Seth comentou.
— Jesus! Tentar com sua própria cunhada... esse Elfred é um canalha
repugnante, você sabia?
— Todo mundo sabe, mas todos nós rimos muito com seu comportamento.
Não é assim?
— Suponho que sim.
— Ontem, no entanto, isso não me pareceu tão divertido.
— Então há algo entre você e essa mulher.
— Seth, já disse...
— Sim, sim, claro. Você já me disse. Mas algo estranho está acontecendo
aqui. Algo por baixo de tudo.
— Garoto, você está louco. Se eu estivesse buscando uma mulher, não iria
atrás de uma que se veste e fala dessa maneira. Ela é tão diferente de Caroline.
— Ah, você tem comparado-a com Caroline!
— Não, não a comparei com Caroline. Olhe, esqueça isso, está bem? Há
dias em que queria trabalhar sozinho.
Quando Gabe se concentrou outra vez em seu trabalho, se pôs a martelar
com a força de um pistão.
As garotas voltaram da escola às quatro da tarde. Isobel chegou com elas.
— Olá papai! Olá tio Seth!
O chão da varanda estava terminado e o teto estava bastante adiantado. As
quatro garotas gritaram em coro.
— Ohhh! Um chão novo na varanda!
— Senhor Farley, olhe! Este pode ser nosso cenário!
Sem se importarem com a garoa que molhava e sujava-as, elas subiram nas
tábuas ainda limpas e começaram a correr em círculos para provar o som de
suas pisadas e simular que patinavam ou dançavam. Rebecca parou no centro
do “cenário”, abriu os braços como um pássaro e começou a recitar uns versos
de Hiawatha.
Quando terminou, as demais a aplaudiram com entusiasmo e Rebecca fez
uma reverência profunda e cerimomiosa.
— Vamos buscar algo para comer! — gritou no mesmo instante em que
voltava a se erguer.
As quatro se precipitaram para dentro e deixaram a porta aberta de par em
par.
Gabe e Seth, um no telhado e o outro na escada, trocaram um olhar. Gabe
encolheu os ombros.
— Vê o que quero dizer? — perguntou — Isobel está mais feliz do que tenho
visto em muito tempo — Seu irmão retrucou.
Do lado de dentro começou a soar o piano e se ouviram as vozes das garotas
enquanto corriam pela casa, entravam na cozinha e subiam a escada. Algumas
vezes eram gritos, outras vezes risadas, outras baques. Ouviram a voz de
Roberta chamando-as: — Hey! Desçam aqui e me contem como foi na escola!
Depois de um momento elas voltaram a sair correndo, ainda com seus
uniformes escolares, comendo uns bolinhos de arroz.
— Papai, vou mostrar nossa casa às meninas! — Isobel gritou.
Gabe deixou de martelar e as olhou por cima da borda do telhado. O que
podia dizer? No dia anterior sua filha havia sido a convidada. Não podia
admitir que não queria elas correndo por toda sua casa.
— Troque de roupa quando você chegar lá! E não baguncem muito a casa!
— Pode deixar!
Elas partiram correndo no meio da garoa.
De cima do telhado, Gabe as observava. Roberta, com as mãos na cintura,
fazia o mesmo da porta principal.
Quando as três Jewett viram a cozinha de Isobel, ficaram petrificadas.
— Céus! Como aqui é limpo! — exclamaram com surpresa.
— Mantemos a cozinha do jeito que minha mãe a mantinha. Meu pai não
quer mudar nada. A única exceção é que pôs a luz elétrica.
— Quanto tempo faz que ela morreu?
— Sete anos.
— Como ela morreu?
— Nosso cavalo a chutou.
— Oh, que horror!
— Sabem o que meu pai fez depois? — As Jewett esperaram absortas. —
Matou o cavalo com um tiro. Eu o vi chorar depois de fazer isso. Eu só tinha
sete anos, mas recordo com absoluta claridade.
— Deus! — murmurou uma delas com a voz entrecortada.
— E desde então ele não permite que ninguém mude nada em nossa casa.
Disse que quer mantê-la tal e como ela a deixou. Direi a vocês um segredo.
— O que?
— Os vestidos de minha mãe ainda estão em seu armário.
Foi Lydia, muito impressionável para seus dez anos, quem perguntou em um
sussurro: — Podemos vê-los?
— Só se vocês me prometerem não tocá-los, porque ele brigaria comigo se
descobrir. Ele é muito rigoroso a respeito das coisas de minha mãe Bom,
sigam-me. Mas sobretudo: não toquem em nada. Vocês só podem olhar, de
acordo?
Enquanto cruzavam nas pontas dos pés a sala imaculada e subiam um par de
degraus estreitos, Susan perguntou em voz baixa — Quem mantém sua casa tão
limpa e ordenada?
— Papai e eu, e às vezes vem minha avó. Tira as cortinas e as lava. Bom,
coisas assim. Este é o dormitório de meus pais.
Ao transpor a porta do dormitório as Jewett ficaram paradas em respeitoso
silêncio. A cama estava feita com asseio com uma colcha branca. A cabeceira
e o pé da cama eram de madeira talhada e faziam jogo com os outros móveis
da habitação. Isobel se dirigiu ao armário que tinha gavetas no lado direito e
uma porta alta no esquerdo. Então abriu a porta.
— Vocês vêem? Esta é a camisola dela e estes seus vestidos.
— Céus! Não te dá arrepios tocar neles?
— Claro que não, tonta. Ela era minha mãe.
— Deus, eu não tocaria ainda que pudesse.
— Eu sim — comentou Rebecca — Essa cor âmbar é muito bonita.
Só aparecia uma manga de cor âmbar.
— Esse é o que ela usava sempre para ir à missa aos domingos.
— Nós não vamos à igreja — Lydia informou.
— Vocês não vão à igreja! Mas todo mundo vai à igreja.
— Nós não, nossa mãe não gosta.
— Nossa! Então vocês são atéias?
Lydia encolheu os ombros e levantou as palmas das mãos — Não sei —
admitiu.
Rebecca se sentiu ofendida — Não, não somos atéias. Lydia não seja
estúpida.
Isobel fechou a porta do armário como se lhe repugnasse expor as roupas de
sua mãe aos olhos das infiéis.
Susan olhou a fotografia na moldura oval.
— É ela?
— Sim, papai, pois essa fotografia aí.
Susan a pegou e a olhou de perto.
— Jesus, que bonita ela era.
— Nada de tocar Susan... se lembra?
— Oh… desculpe.
Voltou a deixar o retrato no lugar onde o lenço de linho da penteadeira
estava marcado pela borda da moldura.
— Creio que não deveríamos ficar muito tempo aqui. Mostrarei a vocês meu
quarto.
Depois de uma breve visita a sua habitação, Isobel obedeceu a ordem de seu
pai e trocou de roupa. Depois ofereceu a elas uns biscoitos de canela, que
eram preferíveis aos bolinhos de arroz com gosto de goma que tinham comido
na casa das Jewett.
— Minha avó sempre se encarrega de que o tacho de biscoitos esteja cheio,
como minha mãe fazia. Minha avó faz tudo o que eu peço.
As quatro deram boa conta dos biscoitos e deixaram o tacho vazio, depois
de cada uma pegar um par a mais para mais tarde.
As filhas de Roberta, no entanto, levaram para casa algo mais que uns
biscoitos de reserva. Chegaram em casa com a história da mulher morta cujos
vestidos ainda estavam pendurados no armário de seu esposo.
— Mamãe, adivinha o que...
— Não posso adivinhar, o que é?
Rebecca fez as honras — Um cavalo chutou a esposa do senhor Farley e ela
morreu. Depois ele matou o cavalo com um tiro.
— Era seu próprio cavalo — adicionou Lydia.
— E Isobel o viu chorar depois, não é romântico?
Roberta sentiu um calafrio por todo o corpo, deixou a um lado a roupa que
ia passar e se aproximou da mesa da cozinha onde estavam sentadas as
garotas.
— Isso não é romântico, é trágico — Roberta disse a elas.
— E escuta isso, ele mantém a casa tal e como ela a deixou e não permite
que ninguém toque nada que ela tocou.
— Com exceção da luz, ele não fez nenhuma outra mudança — adicionou
Lydia — Ele instalou a eletricidade.
— Mas todo o resto está igual que como ela deixou e faz sete anos que ela
morreu e sua roupa ainda está pendurada junto à dele no armário. Nós vimos!
— E a fotografia dela está sobre a penteadeira...
— E ela era muito bonita. E estava com um vestido branco de pescoço alto
e o cabelo penteado para cima igual ao de Lillian Russell.
O olhar de Roberta vagou para o pórtico da entrada, onde Farley havia
trabalhado durante dois dias. Agora ele tinha ido e o lugar estava silencioso.
Imaginou ele preservando um santuário para sua formosa mulher morta…
justamente esse carpinteiro que podia irritá-la tanto. Quando voltou sua
atenção para as garotas, sua expressão tinha se suavizado.
— Que triste.
— Isobel não nos permitiu tocar em nada, porque disse que ele poderia
notar e então lhe daria uma reprimenda. Eu não acredito que nós já recebemos
uma reprimenda, ou já mamãe?
— Claro que sim, é só que vocês não se lembram.
— Você tinha que ver como a casa é limpa, e sabe o que? Ele e Isobel fazem
a maior parte das tarefas domésticas, mas a avó dela vai lá todas as semanas e
leva pasteizinhos. Nossa, estou muito contente de que nós não temos que
limpar a casa todas as semanas!
— Então Isobel tem uma avó, isso é bom para ela.
Roberta não considerou a mãe de Farley. Claro que podia ser a mãe de sua
esposa morta.
— Sua avó faz os melhores biscoitos de canela do mundo — proclamou
Lydia. — Nós comemos todos.
— Todos?
Lydia assentiu e se impulsionou com os cotovelos quase até o centro da
mesa.
— Bom, não creio que o pai dela vai gostar muito disso. Na realidade, não
acredito que ele tenha gostado que vocês fossem para lá.
— Por que não?
— Porque ele não está acostumado como eu a ter uma tribo de selvagens
armando escândalo por toda a casa e agora escutem... — Fez uma breve pausa
para cobrar ânimo — Amanhã teremos nosso próprio automóvel.
— Sério?
— Sim. Um Ford T.
As garotas começaram a fazer numerosas perguntas e a expressar seu júbilo
e o tema da casa de Farley foi esquecido.
Mas em outra casa, no outro lado da cidade, Gabe terminou seu jantar e
quando buscou biscoitos no tacho e o encontrou vazio, soltou uma maldição
entre dentes.
Capítulo 7
Na manhã seguinte, as garotas haviam ido para a escola e Roberta já havia
se levantado e se vestido quando ouviu os primeiros golpes de martelo no
pórtico. O que havia acontecido com sua animosidade para com Gabriel
Farley? Desde que as garotas haviam contado a história sobre sua esposa seus
sentimentos negativos para com ele haviam se dissipado igual às nuvens do
céu. Ele aparecia de tempos em tempos nos seus pensamentos e sempre ela o
imaginava parado na porta como quando interrompeu Elfred. Parecia que
havia dois Farley: um que considerava presa fácil as mulheres divorciadas; o
outro as resgatava dos galanteios não desejados. Um opinava que todos os
problemas matrimoniais começavam com a mulher; o outro era um marido tão
apaixonado por sua esposa que havia mantido um santuário para ela durante
sete anos.
Que tipo de homem era aquele capaz de tanta devoção?
Roberta admitiu seu desconcerto.
Sua esposa havia sido bonita, disseram as garotas, com o cabelo penteado
para cima como o de Lillian Russell. Uma olhada rápida no espelho do
bengaleiro confirmou a Roberta que ela não era nenhuma Lillian Russell.
Irritou-se com suas próprias reflexões. Não importa o que você esteja
pensando, é uma loucura Roberta Jewett! Você acaba de se libertar de um
homem e a última coisa que você necessita é de outro! E menos ainda esse
Gabriel Farley, que sorriu com desprezo na primeira vez que te viu!
Não, Gabriel Farley não a interessava. Essa olhada no espelho havia sido
uma insensata reação feminina que ela deu pouca importância enquanto saía
pela porta de trás. Ela ouvia os golpes sincronizados do martelo, que pareciam
como se seguisse uma partitura. Dindinggg... dindinggg. Abriu seu guarda-
chuva, rodeou a casa e encontrou Farley ocupado em construir um novo jogo
de degraus. No dia anterior não havia feito outra coisa que ignorá-lo, mas
agora se deteve.
— Bom dia, senhor Farley.
Gabriel se endireitou devagar como se houvesse estado agachado
demasiadas horas em sua vida.
— Bom dia, senhora Jewett.
Inclinado sobre sua orelha esquerda estava o mesmo boné xadrez que tinha
usado no dia que ela o conheceu, estava coberto de gotas de água do tamanho
de ovos de rã.
No outro extremo do alpendre seu irmão colocava um corrimão.
— Bom dia, senhor Farley — Roberta o saudou.
— Senhora… — Ele respondeu e continuou com seu trabalho. Roberta ficou
na frente de Gabriel, sua irritação estava superada agora que conhecia a
trágica história de sua esposa.
— Suponho que você estará contente de ter outra vez seus degraus. —
comentou Gabe.
— Sim, claro.
— Mais tarde terei todos terminados. Quando parar de chover pintarei o
alpendre, não quero deixar a madeira desprotegida exposta aos elementos.
— Não, claro que não. Eu soube por minhas filhas que elas esvaziaram seu
tacho de biscoitos.
— Boooom... — Gabe alongou a palavra.
Farley parecia apoiar-se sempre em uma enxada, tivesse ela na mão ou não.
— Não sou muito caseira — admitiu Roberta. — Quando elas têm ao
alcance boa comida às vezes perdem seus modos.
— Minha mãe voltará a encher o tacho logo.
Porque um homem conservava os vestidos de sua esposa morta? Pegava e
tocava-os?
A imagem desconcertante de Gabe acariciando uma roupa com as pontas dos
seus dedos calosos o fazia mais humano do que Roberta desejava. Tirou de
sua mente esses pensamentos e mudou de tema.
— Bom, pensei que você gostaria de saber que vou a agência Boynton para
pegar eu mesma meu automóvel.
— Então você comprou um.
— Sim, um Ford T.
— Estou certo de que você saberá conduzi-lo.
Gabe abriu um sorriso hesitante.
— Sim, saberei.
— Você vai provocar alguns falatórios, por ser uma mulher solteira.
— Sim, sem dúvida.
— Bom, os Boynton tem uma oficina bastante decente. Eles cuidaram do
carro para você.
— Isso foi o que disse o senhor Young quando falei com ele ontem. Bom é
melhor que eu vá. Verei você mais tarde. — Se dirigiu a Seth. — Até logo
senhor Farley, lamento o mau tempo!
— Ah, hoje ela fala contigo! — comentou Seth em tom seco quando ela se
foi.
— Parece uma mulher de caráter irritável — respondeu Gabe.
Depois, ele também voltou a seu trabalho.
Ela tirou por seus próprios meios o Ford T novinho em folha da garagem
dos Boynton. No porta malas havia uma miríade de acessórios em que Henry
Ford tinha estampado com orgulho o emblema de sua companhia: uma correia
de ventilador de reserva, uma caixa de remendos para pneu, uma pequena
caixa de ferramentas, um guarda-pó de lona para proteger seus vestidos e um
par de óculos para quando quisesse baixar o capô. A única coisa em que Ford
havia omitido seu nome era uma lata de cinco quilos de cristais de carboneto
que Hamlin Young lhe deu depois de encher os faróis... assegurando-se de
apertar sua mão durante todo o momento.
— Volte logo, então a ensinarei como ajustar o carburador! — ele gritou às
suas costas.
Claro, pensou Roberta, o carburador que você quer ajustar é o meu e eu não
sou nenhuma idiota!
Conduziu pela rua Main, dando pulos sob seu assento de couro. Sentia-se
intrépida e livre, com as cortinas laterais abaixadas apesar da garoa. Seu
próprio automóvel totalmente pago e ninguém que lhe dissesse aonde podia ir
com ele! Deteve-se na loja de ferragens de Coose e levou até o interior do
carro a sua nova lata de gasolina, encheu-a e ela mesma colocou o tampão de
madeira. A lata era pesada, tal como Elfred lhe havia advertido, mas o senhor
Coose não quis saber de que Roberta a carregasse e fez isso por ela. Quando
voltou a dirigir não pode evitar sorrir diante das olhadas perplexas dos
homens que deixava para trás. A garoa continuava e dificultava a visibilidade
na fenda horizontal do para-brisa, mas cada vez que cruzava com um motorista
se sentia superior ao comprovar que nenhum deles era mulher.
Tanto júbilo merecia ser compartilhado, então se deteve na frente da casa de
Grace e tocou várias vezes a buzina.
Grace apareceu na porta, bateu nas bochechas e exclamou: — Oh, Deus
misericordioso! O que você vai fazer em seguida?
— Grace venha aqui, vamos dar um passeio.
— Você é uma louca, Roberta!
— Nem um pouco! Vamos, iremos mostrá-lo a mamãe.
— Mamãe ficará furiosa.
— Mamãe está quase sempre furiosa. Vamos, venha comigo.
Do extremo oposto da calçada, ela podia jurar que Grace estava indecisa.
— Sem um homem?
— Oh, Grace, você não necessita de um homem para tudo.
Os olhos de Grace giraram para ambos os lados da rua e depois outra vez
para o automóvel.
— Oh Deus, Elfred vai ficar furioso! Não vamos longe, não é?
— Não — E só de brincadeira adicionou. — Não vamos além de Portland.
— Oh, Birdy. Grace agitou uma mão, mas esta confabulação inocente era
mais do que podia resistir. Quando eram pequenas, sempre era Birdy quem
metia elas em problemas e quando entrou na casa para recolher seu casaco
compreendeu que a história se repetia.
A mãe delas vivia em Elm, uma das ruas mais belas da cidade, em uma casa
sólida de dois andares com frente colonial e portas e persianas de madeira
azul. Durante o curto trajeto que percorreram para chegar até ali, as irmãs
voltaram a se divertir juntas; faziam soar o sino de bronze da buzina e se
sentiam inteligentes e mundanas nesse artefato de homens que atraíam olhares
de assombro e bocas abertas de todos os motoristas pelo qual passavam.
Grace foi bater na porta — Olha mamãe! Birdy comprou um automóvel!
— Oh! Essa garota vai ser o calvário da minha vida.
— Ela quer levar você a um passeio nele.
— Por nada do mundo! E você tampouco deveria fazer isso. As pessoas
dirão que as duas são umas perdidas.
— Mas mãe, não vejo que dano pode fazer um breve passeio.
— Elfred sabe que você está fora de casa, rodando sozinha por aí?
— Não, mas não estou fazendo nada de mal. — O entusiasmo de Grace
decaía rápido.
— Você volte entre naquela coisa e diga a sua irmã para levá-la direto para
casa antes que Elfred descubra! — Ela levantou a voz e gritou para Roberta,
— Elfred não gostaria de ve-la saindo por ai como uma meretriz! Você pode
pensar que está tudo bem sair e comprar um carro, mas esta é uma cidade
pequena, e as mulheres não fazem coisas como essa! Agora leve sua irmã para
casa!
Ela desapareceu e bateu a porta.
Grace voltou para o carro um pouco triste. — Mamãe provavelmente está
certa. Sabia antes de vir com você.
Desde o momento que tinha devolvido Grace na casa dela, os próprios
espíritos de Roberta estavam atenuados. Ela deveria saber. Grace não estava
apenas sob o controle de Elfred, estava debaixo também de sua mãe. Ela fazia
o que os dois exigiam por tanto tempo que havia aceitado a opressão como o
seu modo de vida natural.
Quando Roberta estacionou em casa a reação que recebeu foi muito
diferente. Farley e seu irmão pararam de martelar e se moveram em direção ao
carro como crianças em direção a um circo.
— Bem, ela aí está! — Farley chamado. — E não é bonita!
Esquecendo seu guarda-chuva, Roberta saiu e os encontrou na cobertura da
grinalda.
— Por que é que todos vocês, os homens chamam os meios de transporte de
ela?
Ambos os homens pararam e casualmente admiravam o carro. Gabe disse:
— Nunca parei para pensar sobre isso, apenas faço. — Seth começou a
circular o modelo T, mas Gabe permaneceu ao lado de Roberta. — Você
deixou a alavanca da ignição levantada para não quebrar um braço da próxima
vez?
— Deixei.
— E o acelerador, também?
— O acelerador também.
— Você aprende rapidamente, Sra. Jewett.
— Parece que sim. Eu vim para casa com um monte de ferramentas de
reparo que Hamlin Young assegurou que eu deveria ter - um kit de borracha de
remendo para os pneus e um cinto de reposição para o ventilador e um monte
de chaves de fenda e chaves para o carburador.
— E não se esqueça das bandas de transmissão.
— Oh, querido, - disse ela, tocando os lábios em tom melodramático como
uma donzela em perigo, colocando ambos proximos das gargalhadas, Roberta
estava tão longe de ser uma donzela em perigo como uma aranha viúva-negra.
O momento teve uma batida de inquietação, enquanto estavam na chuva
curtindo um ao outro totalmente, pegos de surpresa pela percepção de que sua
convivência estava tomando um rumo que nenhum deles esperava: Eles
estavam lentamente se tornando amigos.
Sua voz tinha um tom provocador enquanto ela falou novamente. — O que é
este novo incômodo, bandas de transmissão?
— Algo que pode ser ajustado simplesmente com uma chave de fenda. Você
vai saber quando precisar o fazer, porque os pedais vão descer até o chão.
— E então eu vou bater no objeto parado que estiver mais próximo?
Ele riu desta vez, por sua indiferença em fazer tal pergunta. — Isso não vai
acontecer de repente. Você vai sentir isso com o tempo. O carro vai começar a
correr sacudindo.
— Vou me lembrar disso - correr sacudindo, apertar as bandas de
transmissão. — Ela observou atentamente a reação dele quanto ao seu próximo
cometário. — Eu estou começando a pensar que um cavalo pode ter sido muito
melhor depois de tudo.
Ele se virou e começou a circular o carro para que ela não pudesse ver seu
rosto. — Não senhora, — ele disse calmamente: — Não penso assim.
Seth voltou naquele momento e disse: — Não há nada como um Ford. —
Enquanto ela estava falando com ele, ela manteve-se claramente ciente do
progresso de Gabriel ao redor do carro, tocando as chaves que sustentavam o
parte superior de couro, lendo a placa cerâmica, abrindo a porta, ficando atrás
do volante de direção e testando o ajuste em suas mãos (discretamente
verificou as posições das alavancas, que lhe trouxe um sorriso secreto),
voltando para fora, inclinou-se para verificar o nível dos cristais no recipiente
de metal duro, na abertura dos faróis de latão e o fechou novamente, acabou
completando o círculo, de volta para ela.
Ainda estava mostrando um sorriso divertido quando ela perguntou: — Você
não acredita em mim?
—Eu . . . hum. . . . — Ele esfregou a parte de baixo de seu nariz com um
dedo.
— Eu disse os coloquei na posição.
— Eu só estava olhando. Estes equipamentos são bastante bonitos quando
estão com a pintura nova.
— Sim, eles são. — Ela decidiu tirá-lo do apuro.
Seth disse — Bem, eu tenho um alpendre para terminar — e saiu para fazê-
lo, deixando Gabe com Roberta, estudando o Ford.
— Você sabe — disse ele — você me disse que não poderia pagar um.
Estava pensando . . . bem, não é da minha conta, na verdade.
Ela sorriu e lhe disse, — Eu subornei Elfred. — Seus olhos mostraram
surpresa. — Sobre o incidente na cozinha.
— Você não fez.
—Sim eu fiz. Eu lhe disse que ia contar a Grace se ele não me emprestasse
cento e cinquenta dólares.
Um sorriso de diversão fez aparecer pés de galinha nos cantos dos olhos de
Gabe. — Então o velho Elfred finalmente encontrou uma mulher que ele não
pode seduzir.
—Está certo. E eu teria contado, também, não se enganem sobre isso!
— Tenho certeza que você teria.
— Ele segue com sua paquera por muito tempo, e está fazendo minha irmã
de tola. Suspeito que as pessoas estão rindo dela pelas costas.
Ela respeitou Gabe por não confirmar sua suspeita. Em vez disso, o seu
silêncio a fez recordar uma confusa lista dos encontros que haviam moldado
sua convivência, começando com o infeliz início quando ela tinha ouvido a
conversa dele com Elfred, a sua posição na garoa ao lado do carro que ele a
tinha ensinando a conduzir.
— A propósito, eu nunca disse obrigado por me resgatar de Elfred —
Roberta disse calmamente.
— Oh. . . — Ele cruzou os braços e cutucou no cascalho com a ponta do seu
Wellington.
— Sou grata pelo o que você fez.
Ele olhou para ela de frente e disse: — Este é um assunto muito
desconfortável, Sra Jewett, após os comentários que fiz sobre você. Você
sabe, eu realmente sinto muito sobre isso.
—Você sente? Bem, você mais do que já compensou isso. Está perdoado,
Sr. Farley.
Ele parou por um momento, encontrando seus olhos, com o rosto iluminado.
A névoa da primavera colocara um brilho em suas bochechas rosadas e
pintado o jardim de um verde irlandês. Ela tirou as penugens de sua jaqueta de
lã desgastada e soltou o cabelo que tinha trançado mais cedo. Isso enriqueceu
e revigorou o som das marteladas de Seth, o que assustou alguns pardais e os
levou a resmungar.
— Bem, ouça — Gabe pigarreou — melhor voltar ao trabalho, também.
Avise-me se houber alguma coisa que eu possa ensinar-lhe sobre o carro.
—Eu vou . . . obrigada.
Eles caminharam em direção à casa separadamente, como se estivessem
desconfortáveis com o rumo que sua amizade havia tomado, ela subiu os
degraus frescos pela primeira vez e ele foi ajudar seu irmão com o corrimão.
Levou um pouco de coragem, mas naquela tarde Roberta decidiu que não
havia sentido em intimidar-se: As 15:55, ela saiu para pôr em marcha o carro
para que pudesse dirigir até a escola e surpreender as meninas.
Gabriel parou de trabalhar para vê-la, e quando o motor acionou e nenhum
osso foi quebrado, sorriu e sinalizou a mão em sinal de aprovação.
As meninas estavam ruidosas e alegres. — Podem Isobel e nossas primas
irem de carona, também? Elas estavam indo para trabalhar na peça.
— Eu não sei se todas vocês vão caber aqui.
— Oh, vamos sentadas em dupla. . . não é mesmo, meninas?
Assim, com sete passageiras energéticas Roberta foi embora da escola, pela
primeira vez, enquanto todas as crianças da cidade iam de boca preparadas
para levar para casa a notícia para seus pais. Na casa dela todas elas saíram e
correram a pé, enquanto Gabe testemunhava mais uma vez que estava se
tornano a rotina normal na casa das Jewett - um bando de meninas criando
tumulto às 16:00 todas as tardes. A varanda as agradou duas vezes mais hoje,
com o corrimão feito e o telhado de coberto de telhas. Rebecca recitou outra
peça, esta de Shakespeare, então todas as meninas entraram e sairam
novamente comendo cenouras cruas, com algumas batidas nas teclas do piano
no percurso.
Às cinco horas, quando Gabe e Seth empacotaram suas ferramentas para
sair, Isobel pediu — Por favor, pai, posso ficar um pouco mais? Nós estamos
nos divertindo tanto! E, além disso, eu tenho que terminar de escrever a minha
parte.
Ele tinha batido na porta da frente e ficou conversando com ela do lado de
fora. Atrás dela, ele vislumbrou as meninas todas agrupadas ao redor do
piano, escrevendo e rindo, então curiosamente o crescente silêncio quando
elas escreviam novamente.
— Bem, tudo bem, — ele concordou. — mas eu quero você em casa às seis,
e você irá jantar comigo.
— Ah, com certeza! — Disse ela com os olhos arregalados de inocência.
— E fique fora do caminho da Sra. Jewett.
— Oh, nós não estamos em seu caminho. Ela está nos ajudando!
— Ela está?
— Aham.
Ele tentou espiar por ela novamente, mas não podia ver Roberta em
qualquer lugar. — Bem, apenas certifique-se que você estará em casa às seis.
—Eu vou. Obrigada, papai.
Quando Gabe chegou em casa sua mãe estava na cozinha deixando alguma
comida no fogão e enchendo o pote de biscoitos. Ela era de estatura média e
encorpada, com os braços carnudos cujos lados de baixo balançaram quando
ela se mexia. Seu cabelo era cinza com listras como uma concha do mexilhão,
separados de lado e enrolados ao redor do aro em volta com um rato. A
maneira como ela se movia, era fácil ver como ela teve carpinteiros como
filhos.
— Oi, mãe.
— Trouxe-lhe alguns biscoitos, — disse ela.
—Obrigado.
— Vi que o frasco estava vazio.
— Ayup — ele disse enquanto tirava o boné e capa de chuva.
— Quem é essa mulher pela qual você está interessado? — Perguntou ela, à
queima-roupa.
— Ninguém, Mãe.
— Ouvi dizer que ela é divorciada.
— Mãe! O que acabei de dizer?
— Ouvi dizer que ela saiu dirigindo seu caminhão.
Gabe revirou os olhos e foi até a pia para lavar as mãos.
— Ela está na cidade o que - três dias? Quatro?
— Seth saiu fofocando?
— Claro, Seth estava fofocando, e todos os outros na cidade. É verdade que
ela comprou seu próprio carro?
— O que há de errado com isso?
— Eu não sei exatamente. Depende do que ela está planejando fazer com
ele.
— Ela é uma enfermeira pública — ele disse a ela, enxugando as mãos. —
Ela precisa dele para fazer seu trabalho.
— Oh, você já está sabendo, não é?
— Eu estou trabalhando para ela, Mãe. Claro que eu sei. Assim como o
Seth!
— Ouvi dizer que ela tem filhas.
—Três.
— Isobel está andando ao redor com elas e elas são selvagens como os
vândalos. Onde ela foi depois da escola hoje, correndo com elas? Eu vim com
os biscoitos e ela não estava aqui. Onde ela está agora?
— Elas estão apresentando uma peça.
—Uma peça! Onde?
— Bem, várias delas estão trabalhando nisso. . . na casa da Sra Jewett.
— Ah, então esse é o nome dela agora. Acho que me lembro quando ela
casou-se com algum colega que conheceu quando se mudou para Boston.
Casou com ele e nunca mais voltou.
Gabe decidiu fechar sua boca.
— Bem, eu posso ver que você está se fechando como uma ostra e não me
dirá nada, então eu só vou dizer uma coisa. Caroline está morta há sete anos e
está hora de você começar a pensar em outra mulher. Mas essa uma, Gabriel. .
. seja cuidadoso.
Gabe levantou as mãos. — Mãe, estou consertando sua varanda, pelo amor
de Deus!
— E a ensinou a dirigir e enviou Isobel lá para comer lagostas.
— Como você descobriu isso?
— Fofoca.
Ele bufou e caiu sobre uma cadeira na cozinha.
— Bem, não fique com esse olhar como se o resto do mundo tivesse um
nariz como um tamanduá. Como acha que se consegue as notícia por aí? Há
novas linhas de telefone nesta cidade, caso você tenha esquecido, e eu tenho
uma delas.
— Mãe, veja. Eu não vou me casar com ninguém. Eu não estou interessado
em ninguém, e, quanto a Isobel, ela e eu estamos indo muito bem. Eu aprecio
sua vinda e como você prepara os biscoitos e lava nossas roupas, mas não vai
dizer às pessoas que eu estou interessado em Roberta Jewett, porque isto não é
verdade. Eu estou consertando sua casa e isso é tudo.
Maude Farley parecia temporariamente apaziguada. — Bem, tudo bem
então. . . enquanto seja verdade.
—E é. Assim . . . — Ele cruzou os braços e relaxado. — Que tipo de
biscoitos que você trouxe?
— Creme de leite, nozes e cobertura de chocolate.
— Posso ter um, ou você vai empurrar todos no pote de biscoitos e
escondê-los?
— Você deve comer seu jantar em primeiro lugar. Trouxe-lhe algumas
almôndegas.
— Mais tarde. Vamos, vamos . . . — Ele fez um gesto impaciente para um
biscoito e ela lhe entregou um. Ele sentou-se mastigando enquanto ela limpou
algumas migalhas do biscoito e empurrou um par de coisas contra a parte de
trás de um armário de pé alto com uma peneira interna.
Finalmente ele perguntou — Mãe, o que você sabe sobre Hiawatha?
— Hiawatha, quem é ele?
— O índio do poema.
— Poema! — Ela olhou para ele com desconfiança. — Você deu para ler
poemas nos dias de hoje?
— Não, as meninas estão.
— As meninas, você quer dizer a sua e as da Sra Jewett?
—Bem . . . Sim. — Ele limpou a garganta e se endireitou.
— Bem, eu não sei nada sobre qualquer Hiawatha. Ouça, eu mudei seus
lençóis, então terminei aqui.
—OK . . . — Ele tombou da cadeira. — Lhe dou uma carona para casa
então.
Por todo o caminho de ida e volta, e também, durante o resto da noite, assim
como na noite anterior, ele continuou tentando lembrar daquelas palavras que
Rebecca Jewett havia disparado ontem, quando ela estava em pé na varanda
com os braços abertos. Algo sobre um arco de índio, e como ele era como um
homem e uma mulher, e como nenhum deles era de muito uso sem o outro. O
que diabos estava errado com ele ultimamente? Ele não era inútil sem uma
mulher, longe disso. Ele e Isobel tinham se saido malditamente bem por conta
própria. Que coisa, ultimamente ele tinha as mulheres na mente
constantemente. Oh bem, era primavera, e, como ele disse a seu irmão, esta foi
a época do ano que Caroline havia morrido, além de ser um momento em que a
inquietação era natural.
Ainda assim, tudo o que havia naquelas palavras, elas eram bonitas e o
fizeram parar e pensar.
Roberta adorava ter as meninas ao redor da casa. Elas eram terrivelmente
barulhentas e indisciplinadas, mas seu espírito trazia vivacidade e humor em
sua vida. Com a adição de Isobel, e agora suas três sobrinhas, o clã tinha
crescido até que ela não tivesse cadeiras suficientes na sala da frente para
elas. Elas não se importavam. Sentavam nas camas no andar superior ou no
chão da sala de estar, ou agrupadas em torno do piano ou da mesa da cozinha.
Elas haviam decidido fazer uma dramatização de Hiawatha em vez de
promulgar o roteiro infame sobre o tataravô de uma orelha só orelhudo de
Marcelyn e foram escolher as estrofes para escrevê-las e falar sobre o
figurino. Roberta, era chamada muitas vezes para responder a perguntas ou
fornecer ideias para fontes de penas e fantasias, foi facilmente atraída para
longe de tudo o que estava fazendo. Se uma de suas filhas chamamava, —
Mãe! Venha aqui! — Ela ia de bom grado e ouvia as suas ideias e respondia as
perguntas como — Poderíamos empurrar o piano para lá e assim ficar mais
perto da varanda? — Ou — Ouça isso! Isso soa como música indígena? — Ou
— Você acha que Hiawatha funcionaria como uma pequena ópera?
Ela aprendeu muito sobre a família Farley, ouvindo suas conversas. Como
todas as crianças que querem conhecer uns aos outros, elas fizeram perguntas,
e Isobel respondia: sem editar nada. — Há um monte de roupas velhas em
nossa casa, mas meu pai não vai nos deixar corta-las pois eram da minha mãe.
— Meu pai odeia ir à escola para os programas. Ele provavelmente não
viria mesmo se o fizéssemos lá.
— Aos domingos comemos na minha avó, mas geralmente eu que cozinho
para o meu pai.
— À noite? Ah, eu não sei. Fazemos os pratos e eu estudo e se é verão, ele
sai e se distrai com as rosas da mãe, e se é inverno, ele lê seu jornal. Às vezes
eu tenho que ajudá-lo a limpar a casa.
O que Roberta tinha reunido era o retrato de uma jovem muito solitária com
uma existência muito chata que não lhe era permitido fazer muito, exceto as
tarefas domésticas.
Ela começou a notar uma resposta evidente de Isobel a qualquer sinal de
afeto. Uma vez, quando Roberta distraidamente tocou o cabelo de Isobel ao
passar por trás dela, Isobel olhou por cima do ombro com uma expressão de
tamanha gratidão que Roberta deu um abraço de despedida na menina naquela
noite enquanto ela estava saindo.
Isobel abraçou de volta muito forte, e seus olhos se iluminaram quando ela
exclamou: — Oh, Sra Jewett, eu adoro sua casa! É muito divertido aqui.
— Bem, você é bem-vinda a qualquer hora, Isobel.
Roberta tentou se lembrar se ela já tinha visto Gabriel abraçar sua filha, mas
ela achou que não.
Na manhã seguinte, o tempo tinha esquentado e Roberta abriu a porta da
frente cedo, enquanto as meninas ainda estavam dormindo. Ela saiu para a
varanda de camisola e se espreguiçou, sentindo-se muito viva e otimista. Esse
ia ser um dia esplêndido! E ah, que céu! Nuvens de um rosa intenso
espalharam-se como a barbatana de um peixe vela com barbatanas de bordas
dourada, levando a tristeza de ontem para o nascer do sol. O mar foi tingido
por todo o lado de rosa e através da sua superfície as ilhas da Baía de
Penobscot pareciam estar ascendentes como se fossem levantar completamente
livre do mar e tornar-se parte do modelo acima. Abaixo, em Camden Harbor,
o litoral rochoso conheceu a água do espelho, e com isso um navio pequeno
saiu para algum lugar, deixando para trás uma floresta de mastros refletidos
que estavam tão precisos quanto os reais sobre a superfície vítrea. Enquanto
ela observava, esses reflexos foram diminuindo devido a propagação lenta do
navio. Em seguida, um pescador se afastou do cais em um veleiro, e quando
ele deixou pra trás as outras embarcações que estavam ancoradas, Roberta
observou sua silhueta, em pé no barco enquanto puxava os remos, como uma
pintura Winslow Homer.
Isso então, era Camden. Esta, a sua casa e de casa de suas filhas, talvez para
o resto de seus dias. E o que isso traria? Um lugar feliz para as meninas, ao
que parecia. Alguns conflitos com sua família: Isso parecia certo. Um novo
trabalho, que ela deveria averiguar, agora que ela tinha seu automóvel. E
Gabriel Farley. . . um amigo ou um aborrecimento?
O pensamento sobre Farley era muito desconcertante, então ela virou-se
para dentro para se preparar para o dia.
Seu irmão não veio com ele naquela manhã, mas Farley estava fora na
varanda com seu pincel antes das meninas irem para a escola. Claro, que elas
queriam que Roberta as levasse para um passeio no novo Ford, mas quando
ela se recusou, elas se moveram para fora, gritando saudações que vagaram
para dentro e animaram os ouvidos de Roberta na cozinha.
— Oi, Sr. Farley!
— Bom dia, Sr. Farley!
— Oi, Sr. Farley, vai pintar hoje?
Ela recuou um passo e olhou através do corredor da casa para a porta da
frente, mas onde quer que estivesse, ele não estava visível.
Ela ouviu o tom profundo de sua voz, mas não as palavras que retornou
como saudações. Ela podia ver a extremidade dianteira de seu caminhão atrás
de seu carro, mas como havia bastante tráfego passando na rua ela não tinha
prestado atenção ao som do seu motor quando ele o desligou.
Ela decidiu começar a trabalhar e abrir mão das boas vindas.
O cheiro da pintura e da terebintina, no entanto, foi um lembrete implacável
de sua presença. Às vezes o baque fraco de uma escada sendo movida ia
tomando forma sobre ela, e questionou-se por que não tinha ido imediatamente
cumprimentá-lo como ela teria feito com qualquer outra pessoa.
No meio da manhã ela saiu com a bolsa na mão, vestindo seu novo casaco
de cor creme por cima do vestido, com seus óculos de condução pendurados
no braço. Farley estava na extremidade sul da varanda, pintando a parede.
— Bem, bom dia — disse ele, voltando-se com o pincel na mão.
— Bom Dia.
— Parece que esta manhã vai dirigir com a capota baixada, não é?
— Sim, eu estou saindo para o escritório do administrador para obter
minhas atribuições para a próxima semana.
— É hora de ir para o trabalho, não é?
— Tenho de ganhar a vida para as minhas meninas.
— Bem, você certamente tem uma bela manhã para isso.
— Sim, não é? E eu pensei que todos em Main alegavam que nunca tinham
primavera.
— Prova que estamos errados. Viu um par de folhas brotando nas rosas da
minha esposa.
— Ela era uma jardineira, era ela?
— Sim ela era.
— Eu tenho um dedo ruim. A única coisa que cresce melhor para mim são
ervas daninhas.
— Ela poderia fazer qualquer coisa crescer. Seus jardins eram seu orgulho e
alegria.
— Você ainda os mantém?
— Não, apenas as rosas. O resto se foi.
Houve um momento de silêncio, tingido por certa melancolia que colocou
uma pequena sombra sobre a bela manhã de primavera. Para afastar Roberta
convocou uma nota mais alegre. — Bem! — Ela se inclinou para trás para
examinar a pintura decorativa em torno da varanda. — A tinta vai fazer
maravilhas, não é?
Seu olhar seguiu o dela. — Vai parecer como um novo lugar em nenhum
momento.
— As meninas terão prazer em tirar você da sua varanda.
— Sua varanda — ele repetiu, rindo silenciosamente.
— Elas a reivindicaram. No momento em que a tinta secar a peça entrará em
produção. Parece que todos nós seremos convidados para a estreia.
—Todos? Quem é “nós”?
— Todos nós pais. Você, eu, Elfred e Grace. Eu acredito que elas colocaram
Lydia encarregada da vendas de ingressos.
— Você quer dizer que vamos ter que pagar?
—Está certo. Você não deve deixar transparecer que eu contei a você. Eu
acho que era para ser uma surpresa.
— Eu não vou dizer nada.
Eles estavam de volta à base confortável e teria gostado de conversar um
pouco mais, mas a tinta estava secando em seu pincel.
— Bem, é melhor eu ir. . . — Roberta começou a abotoar seu casaco —. . .
vou deixá-lo voltar ao trabalho.
— Boa sorte — ele disse enquanto ela estava indo pelas escadas abaixo.
— Obrigada.
Ele ficou observando até que ela estava do outro lado do gramado, então
chamou — Você sabe como abaixar essa capota?
Andando para trás, ela respondeu: — Acho que posso descobrir isso.
— Ficarei feliz em dar-lhe uma mão.
Ela girou e continuou em direção ao carro. — Obrigado, Sr. Farley, mas
acho que consigo descobrir.
Ele baixou o pincel e voltou ao trabalho, mas quando ela estava de costas,
ele a viu abrir a porta do carro e entrar para afrouxar os raios do capô e
abaixá-los como se fosse o capô de um carrinho de bebê. Então ela foi à
frente, acionou o motor e limpou as palmas das mãos. Ela entrou, colocou os
óculos e acenou. —Até logo! Feliz pintura — e lá se foi ela.
Observando-a sair com o carro, ele mentalmente sacudiu a cabeça, mas uma
semente inegável de admiração tinha enraizado em Gabe Farley. Perguntou-se,
quando o Modelo T desapareceu no fim da rua, se Caroline teria conseguido ir
em frente tão habilmente se tivesse sido ele o primeiro a morrer.
Capítulo 8
O escritório regional de enfermagem pública do estado do Maine
localizava-se em Rockland, sete milhas ao sul de Camden. Lá Roberta recebeu
suas ordens de uma mulher de rosto doce chamada Eleanor Balfour, que
providenciou seu uniforme, touca branca, suprimentos médicos, deu-lhe as
atribuições para a próxima semana e a informou que seria necessário obter
uma linha de telefone em sua casa pela qual o Estado pagaria.
— Uma linha de telefone? — O rosto de Roberta iluminou-se com surpresa.
— Vai simplificar a obtenção de suas atribuições e a solicitação de
suprimentos. Emergências surgem ocasionalmente, também.
— E o Estado vai pagar?
— Sim. — No espanto contínuo da Roberta, a senhorita Balfour sorriu com
indulgência. — É uma dessas novas engenhocas que estamos todos nos
acostumando. Se você é contra todas as pessoas da cidade saberem sobre seus
assuntos particulares, não fale deles no telefone.
— Não, eu não vou.
— Um lembrete sobre o nosso serviço — Miss Balfour continuou. — É
tanto o de ensino como é o de enfermagem - nas casas, nas escolas, onde quer
que vá, esteja preparada para pregar a limpeza e higiene. Mantenha um olhar
atento sobre possíveis fontes de água contaminadas, quaisquer sinais de
doenças transmissíveis, em particular a difteria, sarampo e escarlatina.
Estabeleça quarentena, quando necessário, e ensine as pessoas sempre que
possível. — Ela empurrou a cadeira para trás. — Como você sabe, Sra.
Jewett, uma parte importante da nossa luta é contra a ignorância. E. . . —
acrescentou com um sorriso, —. . . estradas lamacentas na primavera.
— Até nas montanhas, eu acho que elas são. — Roberta comentou enquanto
as duas mulheres levantaram.
— Eles não nos chamam de enfermeiras a cavalo à toa.
— Eu não vou estar a cavalo, senhorita Balfour. Possuo o meu próprio
automóvel.
—Você tem! Uau, que excelente!
— Até agora é, e muito emocionante.
— E você já domina conduzi-lo?
— Se não domino, pelo menos tento.
Senhorita Balfour riu. — Bem, boa sorte, Sra. Jewett.
Ela encontrava-se animada e precisando de alguém com quem compartilhar
sua alegria. Muito naturalmente, correu para casa e para Gabe, sem perceber o
quanto estava ansiosa para contar-lhe a novidade.
— Ei, Sr. Farley, tenho meu primeiro trabalho! — Roberta exultou enquanto
atravessava pelo quintal.
Gabe desceu a escada e parou embaixo, limpando as mãos em um pano.
— Que é . . .
— Vacinar crianças em idade escolar contra a difteria. Vou começar aqui em
Camden, e chegar a tantas quanto eu puder antes de fecharem as escolas para o
verão.
— Vacinar as crianças nos braços com aquelas agulhas para cavalo. Elas
não vão ficar muito felizes em vê-la chegando.
— Embora possa salvar as suas vidas.
— Ayup.
— Você já foi vacinado, Sr. Farley?
— Não.
— Eu posso fazer isso em você, se quiser.
— Oh, te agrada a ideia de me espetar e me fazer gritar, não é?
Embora Roberta certamente não fosse do tipo tímido, ela não estava acima
de um pouco de provocação. — Você grita, Sr. Farley? — Disse com um
brilho de malícia.
Ele a olhou de lado provocando-a. — Como é sabido. Não posso dizer que
gosto de sentir dor.
— Oh vamos lá. Você provavelmente já se bateu com um martelo que
machuca mais do que esta pequena injeção.
De repente, lá em baixo, o apito da fábrica soprou. Como a casa era situada
logo acima da chaminé, ela estava perto o suficiente para que copos tinissem
em conjunto, sempre que o apito soava com vigor. Roberta tapou os ouvidos
durante o rugido ensurdecedor, e Farley estremeceu. Quando finalmente
terminou, os ouvidos continuaram fazendo barulho.
— Ufa, essa coisa é alta — disse ela.
— Pode-se ouvi-lo por cinco minutos depois de terminado.
— Bem, é meio-dia — ela observou desnecessariamente. —Eu estou com
fome. Você já comeu o seu almoço?
— Não. Ainda está no caminhão.
— Vou fazer um pouco de café, se você quiser entrar e comer comigo.
— Parece uma boa ideia. Estou pronto para fazer uma pausa.
Dez minutos mais tarde eles se sentaram em sua cozinha em uma mesa de
madeira com marcas. Ela estava comendo carnes frias e queijo cottage
enquanto ele trabalhava em dois robustos sanduíches. O aposento estava longe
de ser limpo, mas ele podia ver que ela tinha esfregado e lavado as janelas.
Ele também podia ver que seus bens eram muito escassos.
— Adivinha o quê? — disse ela. — O estado de Maine vai pagar uma linha
de telefone para mim.
— Não me diga. — Ele sorriu, sua bochecha saliente com um pedaço de
sanduíche.
— Então, assim eu posso receber minhas atribuições e encomendar
suprimentos de Rockland.
— Bem, parabéns.
— Eu acho que pareço muito elegante, conseguindo um telefone. — Ele
pegou sua xícara de café. — Apenas cuidado com o que diz nele.
— Por quê?
— As linhas são compartilhadas.
— Oh, sim, isso é certo.
— Minha mãe gosta de escutar.
— Muita fofoca nesta cidade, eu aguento.
— Ayup.
Eles comeram durante algum tempo, então ela perguntou, — Então o que sua
mãe ouviu sobre mim, em sua linha compartilhada?
— Sobretudo que você é divorciada.
— Humm . . . — Ela pegou duas migalhas de seu sanduíche e comeu. —. . .
que é bastante sórdido, não é?
Levou algum tempo para que seu sorriso crescer. Então ele falou, — Sim,
senhora, é.
Ela sentou-se confortavelmente, desfrutando dele. — Então me diga, como é
sua mãe?
— Minha mãe? Ele pensou um pouco. — Oh, ela é uma mulher agradável.
Ela faz muito para mim e para Isobel. Ela é viúva, tem sido há muito tempo,
então lavar nossas roupas e preencher o nosso pote de biscoitos lhe dá algo
para fazer.
— Ela conhecia minha mãe?
— Eu acredito que ela conhecia, sim.
— Mas elas não eram amigas?
— Não exatamente. Por quê?
— Porque minha mãe não é uma boa mulher como a sua, eu não acho.
Ele apoiou os cotovelos na mesa e enganchou um dedo na alça da xícara,
lembrando a única vez que tinha visto a mãe e filha juntas. — Eu poderia dizer
pelo dia em que ela veio aqui, que vocês duas não se dão tão bem.
— Nós nunca nos demos, na verdade. Isso foi uma das razões pela qual eu
deixei Camden.
— Quantos anos você tinha?
— Dezoito. Foi logo depois que me formei no ensino médio. Ela queria que
eu trabalhasse naquela fábrica infernal, e me recusei terminantemente. Ela
pensou que eu iria me estabelecer aqui e ter paciência para fazer tudo o que
ela queria, assim como Grace. Mas minha avó havia morrido e deixado para
Grace e eu uma pequena herança para cada. Grace deu a dela para Elfred
comprar o seu primeiro pedaço de propriedade e iniciar o seu negócio. Eu
peguei a minha e fui para à faculdade, o que irritou muito minha mãe. Ela
pensou que eu deveria ter feito o que Grace fez, e é claro que ela nunca parou
de me lembrar como Grace ficou atrás de seu marido quando ele precisava
dela, e olha o que aconteceu. . . . — Roberta imitou a mãe. — Elfred é um dos
homens mais ricos da cidade, e ele é tão bom para Grace e as crianças.
Porque, olha para aquela casa que ele mantém!
Ela largou a encenação e continuou. — Eu, por outro lado, com a minha
educação universitária e os meus caminhos mundanos, me desgracei, jogando
fora um marido e retornando para Camden com pouco mais do que as roupas
do corpo e esta mobília muito velha, tornando-se assim um constrangimento
para minha mãe. Ela não consegue ver que se eu não tivesse prosseguido na
minha carreira de enfermeira, meus filhos teriam morrido de fome. O pai deles
teria visto isso.
— Ele não era de Camden?
— Não. Ele era de Boston. . . de todos os lugares, na verdade, onde quer
que houvesse um jogo de cartas itinerante, ou um novo esquema para ficar rico
rápido, ou uma mulher que fosse correndo quando ele estalasse o dedo para
ela. Ele voltou para casa com o suficiente para me deixar grávida três vezes e
para conseguir dinheiro para outra aventura e outra, e outra, até que eu
finalmente tive o suficiente. A última vez que ele voltou, eu disse que estava
livre para viver com a mulher que ele queria, tudo o que ele tinha a fazer era
assinar os papéis do divórcio. Ele se recusou, então eu o subornei,
oferecendo-lhe um último jogo. Você sabe o quanto foi?
Ela encontrou os olhos de Gabriel enquanto ele permanecia em silêncio,
atentamente.
— Vinte e cinco dólares — disse com tristeza. — Ele se livrou de uma
esposa e três filhas por míseros vinte e cinco dólares.
Ele notou a dor em seus olhos e a decadência de seu ânimo. Ela olhou para
longe em direção a uma janela. O aposento ficou muito silencioso. Roberta
tomou um gole de café, mas Gabe esqueceu o dele. Toda a sua atenção estava
voltada para a mulher cujo rosto tinha de repente perdido a sua tenacidade.
Levou apenas alguns segundos antes de seu olhar voltar para Gabe.
— E você sabe o quê? — No lugar da dor, um toque de orgulho acendeu os
olhos dela. — Eu nunca fui mais feliz na minha vida. Eu não tenho muito, mas
eu não preciso de muito. E eu certamente não preciso de um marido, nem
quero um. Eu estou livre dele, e minhas meninas estão prosperando aqui. Eu
posso ter uma reputação manchada, mas o que posso mandar o resto do mundo
para o inferno, porque eu sei a verdade. Eu sobrevivi com George, um pouco
mais. O que me manteve foram minhas filhas, e são elas que continuam a me
manter indo.
Levantou-se e encheu as xícaras de café. Seus olhos seguiram-na todo o
caminho até o fogão e volta. Quando ela retomou a sua cadeira fechou os
olhos, mas nenhum deles disse uma palavra por um longo trecho. Então, ainda
sem falar, ele empurrou sua pilha de biscoitos em sua direção.
Silenciosamente ela aceitou um e por um tempo comeu, mergulhando os
biscoitos no café, pensando sobre tudo o que ela tinha dito, se acostumando
com a ideia de serem confidentes, o que eles não esperavam. Este intercâmbio
franco era novidade para os dois, e eles se perguntavam se era sábio instigar
ainda mais.
Finalmente ele perguntou: — Por que você casou com ele, então?
— Eu não sei. Ele era bonito. . . e era um sedutor. Vá se era sedutor. Sua
linguagem e seus modos eram um jogo permanente de sedução, e eu caí nele,
assim como uma dúzia de outras mulheres depois de mim. Até a minha mãe. Eu
o trouxe aqui um par de vezes logo depois que nos casamos, e ele beijou a
mão dela e elogiou a sua comida e lhe disse que era uma mulher bonita. Bem,
ela engoliu a isca — um olhar distante surgiu nos olhos de Roberta — E me
culpou pelo fracasso do meu casamento.
Era raro para Roberta mostrar sua vulnerabilidade. Gabriel pensou que não
eram muitos, e mais uma vez não disse nada, apenas esperou ela continuar. O
que ela logo fez, como se fosse incapaz de estancar o fluxo agora que ele tinha
começado.
— Eu parei de voltar quando começaram as escapadas de George. Eu não
queria responder às perguntas sobre por que ele não estava comigo. Mas
depois que me divorciei, eu pensei que devia isso a minhas meninas, dar-lhes
a oportunidade de conhecerem a sua avó. E Grace e Elfred e as meninas,
também. . . — Ela sorriu ironicamente para Gabe. — Embora agora eu inclua
Elfred com algumas sérias dúvidas.
Ele devolveu o sorriso e ela desviou o olhar. De repente, a magia parecia
ter quebrado.
— Meu Deus, mas eu torturei seu ouvido — disse ela.
— Eu não me importo.
— Você é um ouvinte muito bom.
— Sou? A verdade é que um homem fica um pouco carente de conversa
adulta quando ele está vivendo com uma moça de quatorze anos.
— Entendo o que você quer dizer. Embora nunca exista falta de emoção por
aqui, muita coisa é exatamente isso - emoção. É agradável, falar desta forma.
— Então, vá em frente — disse ele, recostando-se, cruzando os braços e
estendendo os tornozelos cruzados debaixo da mesa.
— Oh não, agora é a sua vez. E a sua esposa?
— Minha esposa?
— Ou você não fala sobre ela?
Ele avaliou Roberta como se decidia se deveria ou não responder, então
respondeu: — Não, não muito.
— Por que não?
— Bem . . . — Ele pensou um pouco.
— Preservando a memória dela?
Franziu a testa como se procurasse algum sarcasmo. Não encontrando nada,
ele cedeu. —Pode ser....Sim, pode ser.
Ela podia ver que ele precisava de um empurrãozinho para falar de sua
vida. Ele parecia ser um homem que preservava seus sentimentos.
— Seu casamento foi muito diferente do meu — ela incitou.
— Ah sim . . . — Ele pegou um saleiro e distraidamente brincava com ele.
— Como o dia e a noite. — Ele se sentou meditando por tanto tempo que ela
desejou que ele tivesse uma manivela, como seu Modelo T, para que pudesse
fazê-lo funcionar. Quando tinha perdido a esperança que ele falasse, ele
pressionou o fundo do saleiro na mesa e disse: — Ela era bonita, quase
perfeita. Eu, ah. . . — Limpou a garganta e sentou-se um pouco mais reto,
mantendo os olhos no saleiro. — Eu sabia que queria me casar com ela desde
o momento em que tínhamos. . . oh, quatorze, quinze, talvez. Parece que eu
sempre soube. Ela era gentil e suave, e bonita como uma flor. Eu . . . Eu fui . . .
— Ele riu e balançou a cabeça. — Bem, inferno, você sabe. . . Eu era tão alto,
magro e com grandes mãos ásperas, e eu pensei que nenhuma menina tão
bonita como Caroline jamais iria me dar uma chance. E ainda por cima, eu era
filho de um carpinteiro, e seria obrigado a ser um carpinteiro. O que eu
poderia dar a ela? Deus! Quando ela disse casaria comigo eu estava tão. . . tão
. . . — Ele não conseguia terminar a frase, mas ela esperou, assim como ele fez
durante a sua história. — Eu pensei que era o homem mais sortudo desde o
nascimento do tempo. E tivemos uma boa vida juntos. Comprei aquela pequena
casa na Belmont Street, e ela arrumou como uma casa de bonecas, e todos os
dias quando eu chegava em casa, ela estava com aquele sorriso, e a ceia
quente no fogão e flores ao redor da casa. Em seguida, Isobel veio, e Caroline
queria mais bebês, mas. . . bem, nenhum veio. Fiquei muito grato, porque eu
não gostava do que ela teve que passar para a chegada de Isobel. Ela teve um
parto muito difícil. Ela era . . . bem, ela era uma mulher pequena. — Ele
limpou a garganta. — De qualquer maneira . . . Isobel veio, e tivemos sete
anos depois disso antes daquele dia - era abril, fará sete anos na próxima
terça, 18 de abril. Ela estava indo de carruagem, ia passear e desfrutar da
tarde, ela disse, que era um daqueles raros dias de primavera, quando o sol
brilhava agradável e acolhedor, e ela pensou em levar uma cesta de
piquenique à lagoa Hosmer e ver se os trillium ainda estavam florescendo.
Mas ela parou no centro para alguma coisa e quando ela estava voltando para
a carruagem o apito da fábrica soou e assustou o cavalo. — Ele fez uma pausa,
engoliu em seco. — Ele levantou. . . e...
Sua história desvaneceu-se em silêncio no momento em que Roberta olhou
para o brilho revelador nos olhos dele e ele olhou para fora da janela. Sua
garganta fechou e seu coração caiu junto como uma pedra nas corredeiras. O
tempo passou em sua sombria e desordenada cozinha, a luz do sol fazendo seu
melhor para espalhar a alegria do lado de fora. Ele ficou olhando, e ela
esperou.
Quando ele finalmente falou, sua voz soava quebrada tanto quanto suas
palavras. — É difícil perder alguém quando você não terminou com eles
ainda.
Ela não sabia o que dizer. Este tipo de devoção estava além dela.
Finalmente, ele percebeu que estava sentado lá com os olhos marejados. —
Bem . . . — Ele empurrou a cadeira para trás e ficou de pé. — Estive sentado
aqui tempo suficiente. Aquela varanda não vai se pintar sozinha.
Virando as costas, tentou esconder o fato de que ele estava limpando os
olhos com o lado da mão. Ela tentou se lembrar se ela já tinha visto um homem
tão perto de lágrimas, mas nada veio à mente. Ela e Farley tinham começado o
seu almoço com espíritos alegre; ela não tinha a intenção de corromper seu
coração assim. Ela apenas sentou-se calmamente a ouvir, assim como ele tinha
feito quando ela estava falando. Ela poderia dizer que ele estava
decepcionado por ter mostrado a ela mais do que pretendia.
— Está tudo bem, Sr. Farley — disse ela gentilmente, levantando-se
também. — Não há nenhuma necessidade de sentir vergonha de algumas
lágrimas.
Ele assentiu, baixando a cabeça, enquanto ela permaneceu do outro lado da
mesa, com um nó na garganta, estudando a parte de trás do seu cabelo enquanto
ele tirava de seu colarinho as pontas castanho areia.
— Bem, ouça. . . — Ele meio que olhou por cima do ombro, certificando-se
de não mostrar todo o seu rosto. — Obrigado pelo café.
— Obrigada pelos biscoitos.
Ele saiu, dando-lhe uma vista de nada, exceto de suas costas.
Desde que ele começou a trabalhar em sua casa eles compartilhavam uma
série de emoções. Cada dia parecia ser o estado de espírito que unia os dois,
embora ela trabalhava dentro e ele do lado de fora. Da evidente antipatia dos
momentos de constrangimento, a um lento interesse, começando quando ele lhe
ensinou a dirigir. Mas nenhum deles os tinha unido tanto como a
inquietantemente troca de histórias de hoje. A partir das histórias que tinham
dito, cada um sabia, sem sombra de dúvida que o outro estava sofrendo de um
passado que não deixou espaço para um novo amor. Ela estava acabada para
sempre para os homens. Ele ainda amava sua falecida esposa. Mas cada som
tilintando e martelando que ouviam através das paredes ou pela porta da frente
aberta lembrou-lhes que tinham criado um vínculo entre eles esta tarde e que
nada poderia mudar isso. Para sempre saberiam as vulnerabilidades de cada
um.
Ele ouviu um barulho uma vez e parou de pintar para ouvir. Mas ele parou
em um ângulo da porta que não podia enxergar dentro.
Ela ouviu o rangido de dobradiças uma vez e esperou um longo momento
antes de colocar a cabeça para fora e espreitar do outro lado da sala para
descobrir que ele estava começando a pintar o exterior da porta. Ela mal tinha
o visto terminando o esquadro da janela, empunhando o pincel, olhando para
cima, inconsciente de sua observação.
Ela se afastou, com um dedo curvado contra seus lábios, sacudiu a cabeça e
tentou tirá-lo de sua mente.
Pelo resto da tarde, ambos perceberam que tirar o outro de seus
pensamentos era um esforço inútil. Eles tinham falado demais para fazer isso.
Além disso, havia mais a ser dito antes que as meninas chegassem da escola,
ironicamente, e com toda a probabilidade todas as suas meninas.
Ela estava passando um de seus uniformes quando ele chamou, — Senhora
Jewett?
Que estranho. O som de sua voz de repente causou uma palpitação debaixo
de suas costelas. Ela largou o ferro e foi para a porta entre a cozinha e sala de
estar.
— Sim?
Ele estava de pé apenas dentro do limite, mãos vazias e com cheiro de
solvente.
— Eu terminei aqui fora, então eu vou indo. Tudo bem se eu deixar as latas
e escovas de pintura sob o alpendre no fim de semana?
— Claro.
— Eu trabalho aos sábados em minha oficina, por isso não vou vê-la até
segunda-feira. Ou seja, eu vou voltar na segunda-feira de manhã, mas se você
sair, antes de eu chegar aqui, bem, que você tenha um bom primeiro dia, você
vai?
— Sim, obrigada. Eu vou trabalhar na escola das meninas.
— Bem, pegue leve com essas crianças, então.
Ela sorriu cautelosamente.
— Vou começar dentro da casa na próxima semana, então eu espero que
esteja tudo bem. Tudo bem se você não estiver aqui?
— Claro. O que você vai fazer primeiro?
— Essa janela do segundo andar. Em seguida, começar nas paredes.
— Bem. Basta mover qualquer coisa que está em seu caminho.
— OK. Eu irei.
Pararam por um momento, então ele mudou seu peso para o outro pé. —
Sobre mais cedo, — disse ele conscientemente. —Eu sinto muito. Eu não
deveria ter dito tudo aquilo.
— Está tudo bem. Estou feliz que você o fez.
— Não, eu me excedi um pouco. Eu vi o que fez em você. . . bem, isso não
era. . . — Ele ficou sem palavras e acabou limpando a garganta. — Bem, você
sabe o que quero dizer. Ouça, eu tenho que ir. — Só agora ele encontrou seus
olhos. — Eu imagino que Isobel vai aparecer aqui com suas meninas, então
diga a ela para estar em casa as seis, certo?
— Certamente. Ela estará lá.
Ele acenou com a cabeça uma vez.
E ficou ali.
E ela também.
Cada um reconhecendo uma leve relutância em encarar dois dias sem se
verem.
— É melhor que vá. — disse ele.
— Tenha um bom fim de semana.
— Obrigada, você também.
Roberta teve problemas para manter sua palavra sobre Isobel chegar em
casa às seis. As meninas trouxeram para casa uma nova amiga chamada Shelby
DuMoss, assim como as meninas de Grace, e todas elas, oito ao todo,
decidiram ir até a montanha para procurar casca de bétula. Elas voltaram
arrastando uma árvore morta, a partir da qual disseram que iriam desenrolar a
casca para fazer o casco de uma canoa para sua brincadeira. A partir de
sucatas da madeira serrada de Gabe tomaram peças para atuar como uma
estrutura, e foram cuidadosamente martelando e colando quando Roberta
anunciou que era hora das meninas irem para casa.
— Ah, nãooooo! — Todas elas em coro. — Apenas mais alguns minutos?
Por favor?
— Não, eu prometi ao pai de Isobel.
Isobel foi, mas ela estava de volta no dia seguinte, e assim foram todos os
outros dias. Roberta levou-as em uma caminhada até o Monte Battie, e elas
exploraram os espinheiros e cornus que estavam brotando, os salgueiros com
seus ramos primaveris escarlates. Identificaram aves e foram à uma lagoa em
uma antiga pedreira onde sapos cantavam. Elas localizaram os arbustos de
mirtilo para atacar no final do verão, e pararam no topo examinando a vista do
mar e do céu, ilhas, o pequeno laço azul de Camden brilhando ao sol, e em
seguida, entorpecido quando uma nuvem fina passou por ela.
Mais tarde, elas desceram todo o caminho até a costa e apareceram alguns
meninos nas rochas limpando linguado, em um balde, em troca de acesso
gratuito à primeira atração de Hiawatha. Era fácil ver que um dos rapazes
tinha olhos para Becky e queria agradá-la.
Roberta fritou o linguado e levou-o para fora, onde se sentou com as
meninas no chão da varanda com as pernas penduradas ao longo da borda e
seus saltos batendo na treliça.
Foi lá que Gabriel as encontrou, chegando a pé na sombria escuridão para
atravessar o jardim da frente e parar na base das escadas. Ele estava vestido
com roupa escura e com sua jaqueta abotoada contra o frio da noite, e mais
uma vez deixou o chapéu em casa. Embora todas o viram chegar, ninguém
falou quando ele se aproximou, apenas bateram seus calcanhares e mastigaram
o peixe e lamberam os dedos.
— Boa noite — ele disse preguiçosamente.
— Boa noite— todas elas responderam, e saiu em duas dessas perfeitas,
batidas em uníssono, como um canto a capela, em que todo mundo ficou
alegre.
— Imaginei que te encontraria aqui, Isobel.
— Eu tive meu jantar, se é com isso que você está preocupado.
— Eu vejo.
— A Senhora Jewett fritou linguado para nós.
Ele não disse nada, mas desviou o olhar para Roberta e lá deixou ficar.
— Boa noite, Sr. Farley — disse ela calmamente. — Gostaria de um pouco
de linguado?
— Não, obrigado. Eu já jantei.
— Oh, que pena. — Ela balançou os calcanhares como as meninas, e ele
podia dizer a partir das pancadas que nas sombras, que elas estavam fazendo
marcas em sua treliça recém-pintada. Ele contou as fêmeas. Havia nove delas
alinhadas como prendedores de roupa, cada uma delas balançando os
calcanhares contra o seu trabalho de pintura.
— Eu gosto de Isobel em casa às seis — disse à Roberta agradavelmente.
— É sábado. Achei que você não se importaria.
— Ela tem que lavar o cabelo para amanhã, e polir os sapatos para a igreja.
— Oh, isso é certo. Bem, então, Isobel. . . hora de ir, querida. — Roberta se
inclinou para trás para ver Isobel no fim da fila.
— Oh, eu gostaria de não precisar ir.
— Shh, Isobel — ela sussurrou — você vai ferir os sentimentos de seu pai.
Além disso, é tarde, e as outras terão que ir, também.
Isobel levantou-se e passou por trás de Roberta, que ergueu um braço e
olhou para ela de cabeça para baixo. Isobel se inclinou e elas deram beijos
uma a outra. — Boa noite querida, disse Roberta suavemente.
— Boa noite. E obrigada.
Roberta observou cuidadosamente para ver se Gabe iria colocar o braço em
volta dos ombros de sua filha quando eles se viraram e atravessaram o quintal,
mas ele não o fez. Ele caminhou separadamente, enquanto a voz de Isobel
chegava até a varanda, contando sobre sua caminhada até a montanha e como
elas tinham adquirido o peixe. Quando chegaram no portão da cerca a menina
virou-se e chamou feliz, — Boa noite, pessoal. — Em seguida, ela e Gabe
saíram para a escuridão crescente.
Na tarde de domingo, ela apareceu mais uma vez, exasperada por ter que
passar as
horas na igreja e ir na casa da avó materna para almoçar.
— Meu pai insistiu. Nós gastamos todo domingo lá até as três horas. É tão
chato!
— Mas eu prometi a seu pai que estaria em casa às seis e você vai, de
acordo?
— Ah, tudo bem — disse ela.
Pouco depois que ela chegou, Grace o fez, conduzida por Elfred em seu
carro de passeio preto. Ela foi entrando na casa sem bater, como se o próprio
Deus lhe houvesse concedido o direito de fazer isso, gritando, — Roberta, eu
tenho que falar com você! É sobre essas meninas e os horários que você tem
que manter! Elizabeth DuMoss me telefonou para perguntar que tipo de lugar
vocês estão rodando por aí para mantê-las aqui até tão tarde na noite passada!
Ela exige saber exatamente o que estava acontecendo, e eu também!
Elfred entrou também, e ficou para trás apenas o suficiente para dar à sala
olhares desagradáveis. Ele pegou um charuto e apertou-o em seus lábios,
torcendo-o para trás e para frente e molhando-o, trabalhando dentro e para
fora como um êmbolo, enquanto sorria sugestivamente.
Grace censurou. — Minhas meninas foram criadas com boas maneiras! Você
as deixou comer peixe frito com os dedos, sentadas na beira de uma varanda!
E ainda as levou para vagar até aquela montanha e deixando seus vestidos
imundos!
Roberta de repente ficou doente e cansada de sua irmã, que criou as meninas
como bonecas de porcelana. — Sim, eu fiz isso, Grace, e elas amaram cada
minuto. Por uma questão de lógica, elas não queriam ir para casa.
— Oh Roberta, — Grace engasgou melodramática — como você me
machuca. Eu esperava que quando você se mudasse para cá que poderíamos
conviver melhor do que antes, mas posso ver que você está tão equivocada e
imprudente como sempre foi. E Elfred e eu tínhamos vindo para que você
soubesse que decidimos dar uma pequena festa em nossa casa para apresentá-
la a alguns dos nossos amigos, mas agora eu não sei. Você está tentando me
prejudicar com as minhas próprias filhas. — Sua voz quebrou enquanto ela
tirou um lenço e levou aos olhos. — E isso machuca, Birdy.
Roberta abriu os braços e cruzou sua irmã em um abraço. — Oh, Grace, eu
sinto muito. Eu não deveria ter dito isso.
— Mas você sempre fez isso, sempre! Zombava dos meus caminhos e das
minhas decisões. Tudo o que faço, não é o que você teria feito. Bem, eu não fiz
tão mal! — Grace puxou-se para trás defensiva. — Eu tenho minhas meninas e
meu Elfred e temos um lar feliz e muitos amigos, então quem é você para me
depreciar?
— Sinto muito, Grace — disse Roberta, devidamente castigada, mas
mantendo os olhos em Elfred, que finalmente removeu o charuto da boca
desprezível. Se Grace queria convencer-se de que seu casamento era o
paraíso, quem era ela para desiludi-la da sua ideia? Deixaria ela viver em seu
mundo de sonhos. Ela pegou a mão livre de Grace. — Se você poder me
perdoar, eu adoraria que você desse uma festa para mim. Na verdade, eu
gostaria. E adoraria conhecer seus amigos.
Grace lançou um olhar martirizado para Elfred, certificando-se que algumas
lágrimas sacudiram em suas pálpebras. — Bem, se estiver tudo bem para
Elfred.
Ele veio logo atrás dela e colocou a mão em sua cintura. — É com você,
querida. — Disse ele docemente, fazendo Roberta ter vontade de vomitar.
Grace fez um grande show de decidir. — Bem, eu acho que nós poderíamos
ir em frente com os planos. Sábado à noite, nós pensamos. Talvez jantar e um
pouco de música depois.
— Isso seria fantástico.
Então Grace estragou tudo. — Nós pensamos que se sairmos publicamente
mostrando nosso apoio, deixando todo mundo ver que ainda estamos dispostos
a tê-la em casa, posteriormente, os outros na cidade vão ignorar que é
divorciada e irão seguir o exemplo.
Custou toda sua civilidade para que Roberta evitasse de enfiar a cara gorda
de Grace para dentro de seu pescoço gordo. Disposta a tê-la em casa! Como
se ela fosse uma hamster de estimação em vez de um rato marrom liso!
Maldito Judas, se não fosse tão hipócrita, poderia ter sido engraçado.
Grace, com um marido mulherengo, disposta a bancar a líder moral da cidade,
enquanto todos estavam rindo dela pelas costas. Elfred, mexia o charuto em
sua boca como fosse uma batedeira de manteiga, aproveitando todas as
oportunidades para enviar sorrisos picantes para sua própria cunhada
enquanto os homens e mulheres igualmente o desprezavam de longe. Eles eram
verdadeiramente duas criaturas patéticas.
Após Elfred e Grace saírem, a raiva de Roberta permaneceu. Ela tocou um
pouco de piano, mas não conseguia acabar com a dor e o desgosto que sentia.
Ainda estava agitada quando ela virou seus lençóis e subiu na cama.
A casa ficou em silêncio. As meninas se estabeleceram. Elfred, Grace.
Grace, Elfred. Ainda estamos dispostos a tê-la em casa e esquecer que era
divorciada.
Demorou mais de uma hora antes de Roberta ficar sonolenta. Seu último
pensamento antes de dormir foi que ela não podia esperar para reclamar sobre
isso para Gabriel Farley. Ele era o único nesta cidade que iria entender.
Capítulo 9
Na segunda de manhã Gabe chegou antes de Roberta sair para o trabalho.
Ela estava no andar de cima quando as meninas chegaram bombardeando-a
com despedidas, então ruidosamente desceram as escadas correndo, atrasadas,
como de costume.
Ela desceu segundos mais tarde em seu uniforme branco engomado e chapéu
de pala branca para encontrar Gabe na sala de estar, vestindo luvas de couro e
segurando uma placa de vidro.
— Oh! Eu não sabia que você estava aqui! — Ela disse, surpresa.
— Desculpe. Eu pensei que as meninas tinham avisado.
— Não!
Ele olhou como se nunca a tivesse visto antes. O cabelo dela estava
enrolado bem como o de sua mãe, com o chapéu situado na fenda na parte de
trás. Seu uniforme impecavelmente engomado quase alcançou os tornozelos
dela se destacando como um sino, coberto por um avental branco com um
babador que se inclinou sobre os seios, como um pedaço de estanho.
Ele nunca tinha prestado muita atenção à sua forma antes, mas olhando para
ela com esse uniforme era como olhar para a costa de Maine a partir do topo
do Monte Battie: As curvas mostravam-se, puras e abundantes. E ela parecia
tão arrumada! Quando ela estava correndo por aqui com as meninas, seu
cabelo parecia algo que o mar tinha jogado sobre as rochas na maré alta, mas
ele arrumado e enrolado foi uma verdadeira surpresa. Por que, até mesmo seus
sapatos gastos desaparecrem, e em seu lugar havia oxfords brancos
imaculados.
Ele esteve boquiaberto por algum tempo antes de perceber isso e começar a
falar. — Vou conseguir substituir a janela hoje.
—Sim, que bom.
Ainda assim, ele não se mexeu.
Depois de uma batida, Roberta projetou sua cabeça e disse, confusa — Sr.
Farley?
Fez um gesto como se quisesse apontar para ela, para o painel de vidro e
tudo. — O uniforme.
Ela olhou para baixo. — Há algo de errado com ele?
— Um. . . não. Está . . . ah. . . não é . . .
Ela esperou, escondendo sua diversão.
— Agradável — ele finalmente terminou, ajustando o painel de vidro em
suas botas.
— O Estado que mandou.
— Ah, então não apenas telefones, mas uniformes, também.
—Sim. Tenho sorte, hm?
—Muita sorte.
— Bem, eu tenho que ir. Não posso atrasar no meu primeiro dia.
— Não, claro que não. Ele curvou as mãos enluvadas em torno do vidro e se
dirigiu para as escadas.
— Oh, Sr. Farley?
Ele parou, colocou o painel de vidro sobre suas botas novamente.
— Você vai estar aqui o dia todo?
— Assim espero.
— Isso é uma coisa presunçosa para perguntar, eu sei, mas as meninas vão
vir para para casa. Importa-se de manter um olho sobre elas até eu chegar
aqui? Tente mantê-las alimentadas e fora da casa?
— Será um prazer. Claro, eu vou estar ocupado, você entende.
— Ah sim, claro. Eu apenas pensei, é uma aposta bastante certa que Isobel
estará com as minhas três, então talvez você não se importasse.
— Não me importo.
— Bem, eu vou vê-lo então. . . em algum momento entre as cinco e seis, eu
imagino.
— Ayup.
Ele observou-a atravessar a sala e ir para fora. Quando ela alcançou os
degraus da varanda, ele chamou, — Oh, Sra. Jewett? — Ela voltou para a
porta e olhou para dentro. — Você quer que eu coloque o carro em marcha
para assim você não se sujar?
— Não, obrigada, Sr. Farley, eu me viro.
Ele permaneceu nas sombras, longe da porta para que ela não pudesse vê-lo
observando-a. Ela colocou o carro em marcha com seu uniforme branco
engomado, verificando tudo o que tinha lhe ensinado a verificar, entrando e
saindo enquanto ele catalogava cada ajuste que ela fez. Quando o motor
acionou, um grande sorriso floresceu em seu rosto e ela esfregou as palmas
das mãos, olhando para a casa como se para ganhar a sua aprovação.
Ele também sorriu, e esperou até que ela partiu, em seguida, levou o painel
para cima, pensando que seria um dia muito solitário por aqui hoje.
O quarto das meninas era uma bagunça. Nenhuma das camas havia sido feita
e roupas sujas foram deixadas onde caíram. Os dois quartos compartilhavam
um armário minúsculo com portas deixadas abertas em ambas as direções.
Livros, ventiladores, conchas, ninhos de pássaros, rochas, troncos, sapatos,
pratos sujos, copos de água, cartões de teatro pregados às paredes - deuses,
você mal podia ver os pisos.
Gabe não era intrometido, mas ele deu uma olhada no quarto de Roberta e
achou a mesma coisa. A coisa mais ordenada, parecia ser uma pilha de
uniformes dobradas em cima de sua mesa. Ela tinha um baú velho e de uma de
suas gavetas abertas pendurava uma saia com uma bainha suja. Ela dormia no
lado direito da cama - ele observou - em dois travesseiros empilhados,
debaixo de uma colcha de chenille amarelo. Sem cortinas nas janelas, apenas
tons verdes com fundos esfarrapados, provavelmente deixado pelo velho
louco Breckenridge.
Caroline teria criado uma combinação para o lote e ficaria perfeito.
Ele procurou por uma foto do marido, mas não havia nenhuma. No momento
que começou a trabalhar no novo painel de vidro, se perguntou como George
Jewett aparentaria.
O dia passou lentamente sem ela. Em apenas uma semana, ele tinha se
acostumado com os ruídos que ela fazia, movendo coisas, zumbido, tocando
piano em momentos impróprios, ligando o carro, saindo para falar com ele,
exalando o aroma do café ao prepará-lo.
Ao meio-dia ele se sentou nos degraus da varanda da frente e comeu seu
sanduíche sozinho, lembrando de como eles se sentaram juntos na sexta-feira
em sua cozinha, conversando. Uma e outra vez ele pensou, mas ela é tão
diferente de Caroline, sem perceber a implicação de seu devaneio.
Sua mãe o encontrou ali, comendo o último de seus cookies.
— Gabriel — ela chamou quando se aproximou a pé através do jardim da
frente.
— Bem, o que você está fazendo aqui? — Perguntou, limpndo as migalhas
do bolinho para fora das palmas das mãos.
— Vim para ver o que você está fazendo no lugar do velho Breckenridge.
— É necessário muito trabalho.
— A varanda parece bem.
— Seth e eu fiz isso na semana passada.
— Vejo que pintou também.
— Ayup. Estou trabalhando no interior da casa esta semana.
— Eu quero dar uma olhada. Ouvi dizer que ela está na escola aplicando
injeções, então acho que esta tudo bem. — Ela começou a subir os degraus em
torno dele.
— Ei, Mãe, espere! É a casa dela. Eu não posso simplesmente deixar você
ir entrando!
Era tarde demais. Ela já tinha entrado quando ele se levantou.
— Como é que ela vai descobrir? Senhor, estes são todos os móveis que ela
tem? O piano é a melhor coisa da sala, e pelo visto muito usado.
— Mãe, vamos lá, eu não me sinto bem deixando você xeretar aqui.
— Eu não estou bisbilhotando. — Mesmo fazendo essa afirmação ela estava
de pé na porta inspecionando a cozinha. — Eu vim falar com você sobre
Isobel.
— O que tem ela?
— Todo mundo diz que ela está correndo com as meninas dessa mulher e eu
não acho que Caroline iria gostar.
— Caroline está morta mãe, e eu tenho que decidir as coisas por mim
mesmo. E não foi você que me fez lembrar disso duas semanas atrás?
Maude virou. — Ouça meu filho, você tem passado muito do seu tempo
aqui.
— Trabalho para ela.
— No sábado à noite?
— Eu não estava aqui no sábado à noite.
—Ouvi que você estava.
— Mãe, você passou muito tempo atrelada à essa linha telefônica.
— Tudo o que estou dizendo que aqui há uma mulher divorciada, e é melhor
que você deixe de rondá-la porque a cidade inteira sabe disso. E eu não quero
que minha neta fique com má reputação por estar andando com essas
arruaceiras selvagens.
— Você sabe o quê, mãe? — Ele forçou sua voz para manter a calma. —
Estou ficando um pouco furioso aqui. Já faz muito tempo desde que fiquei
furioso, mas porra, eu sou um homem crescido e eu não tenho que explicar
minhas idas e vindas a você. Nem tenho que explicá-las a uma cidade cheia de
fofoqueiras que não sabem nada sobre Roberta Jewett. Isto é o mais feliz que
Isobel tem sido desde que Caroline morreu. Elas ficam por aqui, um bando de
meninas, cantando e compondo peças de teatro, e fazem caminhadas na
montanha e ela frita todos os peixe, e se você quer saber a verdade, eu nunca
vi uma mãe que passe tanto tempo com seus filhos, ou que os desfrute mais. E
elas gostam dela também. Elas riem juntos, e ela fica lá tocando piano com
elas e se divertindo. Agora, o que há de errado com isso?
—Estou apenas dizendo . . . você deve fazer o seu trabalho e sair daqui,
Gabriel.
Ele disse calmamente, sem rancor, mas ela sabia que ele queria dizer cada
palavra. — Eu acho que talvez o único quem deveria sair daqui agora é você,
mãe.
Ele teve uma tarde ruim depois disso, se preocupando com o que sua mãe
iria contar às outras mulheres na linha telefônica compartilhada, perguntando-
se por que ele não tinha apenas saído e alegado que não havia nada entre ele e
Roberta Jewett. Só que as pessoas fofocavam sobre ela, sem nunca tê-la
conhecido.
No meio da tarde Seth apareceu.
— Rapaz, a mãe está fervendo — disse ele.
— Ayup.
— Que diabos você disse a ela de qualquer maneira?
— Disse para ela cuidar da própria vida.
— Isso é o que eu imaginei.
— Ela foi até a oficina ou o quê?
— Isso mesmo que ela fez, e me disse para vir até aqui e ver se eu poderia
dar um jeito em sua cabeça dura.
— A cidade é pequena demais para seu próprio bem. Todo mundo sabe dos
negócios de todo mundo.
Seth parecia travesso. — Mãe disse que está enchendo seu pote de
biscoitos.
Gabe inclinou seu irmão um olhar divertido. — Bem, isso vai com certeza
me corrigir, não vai? — Os dois riram e Seth bateu nas costas de Gabe entre
as escápulas.
— Então, você está se dando muito bem com a Sra Jewett ou o quê?
— Não, nada disso. Nós apenas conversamos muito, isso é tudo.
— Não acho que alguma vez você falou muito.
— Sobre as pessoas com que eramos casados.
— Ohhh. . . —, Disse Seth, inclinando a cabeça para trás sabiamente. —. . .
sobre as pessoas com quem estavam casados. Isso não é interessante?
Não você, também! Droga, Seth, você é tão mau como a Mãe!
— Não, eu não sou. Eu estou apenas brincando, e não vou fofocar também.
— Vá em frente — Gabe disse com um sorriso afetuoso. —Saia já daqui.
*
As meninas, todas as quatro, chegaram em casa depois da escola, com fome,
rindo, loquaz, e enchendo a casa com vida.
— Sua mãe disse para não comerem fora de casa, e que depois vocês
mesmas se encarregarão da arrumação.
Gabe ficou surpreso ao descobrir que ele gostava de suas brincadeiras e
alegria. Todas elas haviam sido vacinadas na escola e comparavam seus
braços e contaram sobre uma menina mais nova que tinha desmaiado. Mais de
uma vez ele riu, ouvindo-as, continuando a corrigir o gesso nas paredes
internas.
— Estamos indo! — Uma delas falou.
— Aonde? — Ele falou de volta.
— Até os Spears olhar os velhos vestidos da tia Grace!
— Mude suas roupas em primeiro lugar! Isobel, você vai para casa e mude
a sua.. — Ele estava ordenando para o ar. Elas estavam do outro lado do
quintal e ele estava balançando a cabeça, feliz pela liberdade dela, apesar de
si mesmo.
Elas ainda não tinham chegado às cinco, quando Roberta chegou em casa e
encontrou Gabe lavando sua desempenadeira e ferramentas na bomba. Ela
andou pela casa silenciosa e seguiu os sons em direção ao quintal, onde ele
estava de joelhos ao lado de um balde de costas para a casa. Ele não ouviu sua
vinda ao longo das placas de madeira enrolada que serviram como uma
passagem para a bomba. Ela parou cinco passos atrás dele e disse: — Estou
feliz que você ainda esteja aqui.
Ele virou um quarto de volta, pego de surpresa. Então, acomodou-se sobre
uma perna, com um pulso preso na alça de seu balde, dedos pingando. —
Então, como foi seu primeiro dia?
— Não foi ruim. Apenas três crianças desmaiaram.
— Já ouviu falar sobre uma delas.
— Onde estão as meninas? — Ela estendeu a mão para remover um alfinete
de chapéu de seu boné branco. Os olhos dele caíram nos seios dela, em
seguida desviaram para suas ferramentas, que ele, sacudiu e cairam no balde.
— Na sua irmã. Foram olhar seus velhos vestidos.
Ele se levantou, tomando detalhes. Seu avental estava salpicado de manchas
de sangue aqui e ali e seu uniforme estava amassado. Uma mecha de cabelo
havia caído solta quando ela tirou o boné, e ela colocou-a atrás de sua orelha,
enquanto perguntava: — Está com pressa para sair?
—Não. Não tem nada em casa, exceto uma casa vazia.
— Posso falar com você sobre algo?
— Claro, — disse ele, levando seu balde, andando com ela para o quintal
onde ela se sentou com os cotovelos sobre os joelhos. Ele se sentou ao lado
dela no degrau de madeira, deixando uma distância discreta entre eles. Ela
segurou seu boné, remexendo nele enquanto falava, empurrando o alfinete
repetidamente para o algodão engomado duro.
— Pode ser completametne sincero comigo? — Disse ela.
— Depende do que você vai perguntar.
Ela respirou fundo. — Elfred e Grace vieram ontem e me disseram que
iriam dar uma festa para mim, para me introduzir na sociedade educada, por
assim dizer. Ela disse que eles queriam mostrar aos bons cidadãos de Camden
que mesmo eu sendo uma pária social, eles estavam dispostos a me ter em sua
casa de qualquer maneira na esperança de que os outros também sejam tão
magnânimos.
Uma expressão de espanto se apoderou do rosto de Gabriel e ele endireitou
sua coluna. — Sua irmã disse isso?
— Bem, não, não exatamente com essas palavras, mas a essência era a
mesma.
— Ela não deveria ter feito isso.
— É realmente assim tão mau? Está todo mundo nesta cidade falando de
mim só porque eu sou divorciada? — Ela desistiu de mexer com seu boné e
olhou para ele.
— O que te interessa o que eles dizem? As pessoas são imprudentes e
ignorantes, às vezes.
— Então, eles estão.
Ele desviou o olhar para a bomba. — Eu mesmo não fofoco muito, por isso
eu não sei.
— Eu lhe pedi para ser honesto comigo. Por favor, Gabriel.
Ele também tinha um membro da família com quem ele estava descontente.
Ele gostaria de poder descarregar suas insatisfações com sua mãe, mas para
isso feriria Roberta ainda mais, então ele permaneceu em silêncio.
— Porque é a mulher culpada quando o homem é infiel? — disse ela.
— Eu não sei, Roberta.
— Essas pessoas não me conhecem mesmo.
— Não, eles não a conhecem. Então você vai ter que enfrentá-los e mostrar
que você é uma boa pessoa.
— Você acha que eu sou uma boa pessoa?
—Sim eu acho. Agora que eu a conheci, eu certamente o acho. Faz-me sentir
muito envergonhado, também, porque quando você veio pela primeira vez para
a cidade eu era igual a eles, fazendo piadas à sua custa.
— Sim, eu me lembro muito bem.
— Estou perdoado?
— Você quer ser?
Ele achou melhor não olhar para ela enquanto divulgava, — Minha família
acha que há algo acontecendo entre você e eu, e eles estão me dando as
framboesas.
— O que exatamente significa, as framboesas?
— Nada. Esqueça que eu disse isso.
— O que? Eles estão brincando com você? Avisando para sair? O que?
— Esqueça. — Ele se levantou, pegando o balde. — Eu não deveria ter dito
nada. É melhor eu ir.
Seu humor se alterou, porque ela queria honestidade completa e ele se
afastou, com medo disso. Ela era uma mulher acostumada a falar as coisas,
não escondendo as coisas; enfrentando problemas, e não os suprimindo.
—Tudo bem. Seja teimoso! — Ela retrucou, levantando-se também, e
marchando para dentro, deixando a porta de tela bater entre eles.
Ele a observou ir, rapidamente, pertubado com seu show tão inisutado de
temperamento. Depois de permanecer parado por algum tempo, tentando
decidir como lidar com isso, ele a seguiu para dentro, para o cheiro de gesso
molhado e do pó das migalhas das bolachas deixadas para trás na mesa da
cozinha pelas meninas. Ela estava limpando com bruscos movimentos, com
raiva, recusando-se a olhar para ele quando entrou na sala.
— Eu lhes disse para elas mesmas limparem. Desculpe se não o fizeram.
Ela jogou o pano de prato e bateu uma porta que tinha sido deixada aberta.
Ele permaneceu incerto por mais um tempo , em seguida, passou para a sala da
frente onde ele tinha empilhados algumas ferramentas se preparando para sair.
Ele sentiu como se houvesse um tijolo em sua barriga, sabendo que ele tinha
desagradado ela. Engraçado, como se sentia pesado. Ele tinha todas as suas
ferramentas e seu balde na mão e parou por um minuto, sozinho. Em seguida,
abaixou todos novamente e voltou-se para a porta da cozinha. Ela estava de pé
em uma janela com os braços cruzados, olhando para fora. Seu boné estava
sobre a mesa.
— Roberta — disse ele.
— O quê? — Ela retrucou, sem olhar para ele.
— Não importa o que dizem.
Ela se virou com raiva e bateu em seu peito. — Não para você, mas para
mim importa! Minha própria irmã! Sua família! Toda essa gente a pensar o
pior de mim quando nada disso é verdade! Nada disso! Só porque eu sou
divorciada não significa que eu não tenho moral!
— Eu sei disso — disse ele calmamente.
Ela pegou o boné e passou roçando nele, indo para as escadas. — Apenas
saia daqui — ela ordenou em desgosto. — Eu não preciso de você. Eu não sei
por que mesmo pensei que poderia falar com você! Eu tenho as minhas
meninas, e elas são melhores que o resto desta cidade juntos!
Ela foi subindo as escadas, e ele atrás dela, agarrando-a pelo braço, quando
ela estava na metade. Lá estavam eles, em dois níveis diferentes, ela olhando
para baixo e ele olhando para cima, agarrando o braço, em algum nível
existencial, eles estavam cientes do fato dele ter invadido uma parte privada
da casa dela, seguindo-a para o seu quarto.
— Eu não deveria ter dito aquilo sobre minha família. Eu estou . . . Eu sinto
muito.
Sua expressão permaneceu estável e fria. — Talvez seu irmão deva terminar
o serviço aqui.
Ele sentiu uma pontada estranha de perda. Segundos se passaram e ele ainda
a segurava no lugar. — Isso que você quer?
— Sim, eu acho que é. — E depois de uma pausa, disse sarcasticamente —
Claro, só porque ele é casado não significa que eles não vão pensar que eu
estou com ele também, não é mesmo? Poderia, por favor soltar meu braço?
Ele fez, com relutância. — Você se engana sobre meu irmão. Ele é o único
que defende você.
— Ah, então você foi discutir com ele sobre mim, também. O fez com Elfred
e seu irmão e quantos outros?
De repente, ele ficou impaciente com ela interpretando tudo o que ele dizia.
— Agora pare com isso! — Gritou. — Isso não é verdade, e você sabe disso.
Tudo bem, talvez o tenha feito com Elfred, no início, mas eu me desculpei por
isso. E eu não estou cochichando sobre você pelas costas mais, não desde que
eu comecei a conhecê-la melhor.
Ela forçou um riso irônico, tocou a testa, como se limpando a cabeça e subiu
o resto da escada. — Sobre que estamos brigando? Nem sei! Você não é nada
exceto o meu carpinteiro, pelo amor de Deus, e eu estou aqui perdendo meu
tempo com você? — Ela desapareceu no entorno do andar de cima. — Diga a
seu irmão que eu quero que ele termine este trabalho! — Gritou de seu quarto.
Ele gritou de volta: — Eu não quero que ele o faça!
Sua cabeça reapareceu. —Ah não? Bem, eu faço! — Ela desapareceu
novamente.
— Eu comecei isso, eu vou terminar! — Ele gritou. Em seguida, ainda mais
alto — Roberta, volte aqui!
Ela reapareceu no topo da escada, desabotoando seu avental por trás. —
Pare de gritar, Farley. Arrume suas ferramentas e vá, porque eu não sei o que
está acontecendo entre nós, mas seja o que for, eu não preciso de
complicações na minha vida. Eu tenho as minhas meninas, e meu trabalho e
meu automóvel, e eu estou feliz como uma cotovia. Agora vá, e envie o seu
irmão, amanhã de manhã!
Wham! A porta do quarto bateu.
Quando ela desapareceu pela última vez, ele apoiou um braço na parede e
abaixou a cabeça, perguntando por que ele estava discutindo com ela. . .
teimosa, sabe-tudo, uma sabichona que começou a provar a cada passo que ela
poderia se dar bem sem um homem. Afinal, ela tinha lhe falado que não queria
ter nada a ver com os homens. Por que ele andava aqui?
Em seu quarto, Roberta bateu a porta, mas ela estava torta e começou a abrir
novamente. Ela apertou suas costas contra a porta, deixando acalmar seu
temperamento. O silêncio dele. Um longo silêncio enquanto ela se perguntava
o que ele estava fazendo lá em baixo. Então, finalmente, ela ouviu seus passos
se afastarem e o som de seu caminhão partindo.
Ela tirou seu uniforme e o colocou de molho em água fria, em seguida, tocou
piano para se acalmar.
Enquanto ela estava tocando as meninas chegaram com alguns dos antigos
vestidos de Grace, anunciando que elas iriam executar a canção de Hiawatha
no domingo à tarde na varanda da frente. Roberta fez com que Isobel fosse
para casa às seis. Porém uma hora e meia mais tarde, e disse, — Menino, meu
pai está um rabugento esta noite! Tudo que fiz foi perguntar se ele viria assistir
a Hiawatha, e ele quase arrancou minha cabeça! Ele disse que sempre vamos
para acasa da vovó nos domingos à tarde, e eu fiquei tão louca que eu tinha
que sair de lá!
Roberta pensou presunçosamente, Que bom! Ele me chateou, deixe-o ficar
chateado também!
Ele não enviou Seth para terminar o trabalho no restante da semana. Em vez
disso, ele se certificou de chegar lá depois que Roberta havia saído pela
manhã e de terminar antes dela voltar à tarde. Ela não sabia quem estava
fazendo o trabalho e dizia a si mesma que não se importava. Cada dia ela via o
progresso, as paredes lixadas, pintadas, a madeira envernizada. Uma nova
maçaneta na porta dos fundos. Um calço colocado sob um canto do piano para
assentar o nível. O registro de calor no teto pintado. A porta do quarto
ajustada de modo que iria fechar corretamente. E foi aí que ela soube.
No sábado, ela restaurou um dos antigos vestidos de Grace da pilha de
trajes, lavou-o severamente, poliu os sapatos pretos e dirigiu até a casa dos
Spears para sua festa.
Quem deveria estar lá, senão Gabriel Farley.
Ele bebia ponche em um copo prata quando seus olhos colidiram do outro
lado da sala. Ele levantou a taça e ela lançou-lhe um sorriso de despedida,
então evitou-o enquanto todo mundo no lugar estava sendo apresentado. Elfred
era um empresário respeitado; seus colegas estavam todos lá: Jay Tunstill do
banco, Hamlin Young de Boynton, além de muitos outros, juntamente com suas
esposas. As mulheres tendiam a oferecer olás estéreis e recuavam
imediatamente após serem apresentadas à Roberta. Os homens seguravam a
mão dela muito tempo e cobiçavam ela quando eles pensavam que ela ou suas
esposas não estavam olhando. Elfred a tocou a cada chance que ele tinha,
sempre na cintura ou nas costas, sempre sob o pretexto de ser o anfitrião
educado, estando Grace perto ou não.
Às nove horas Roberta estava pronta para dar uma machadada no cotovelo
dele. Isso foi quando a música começou e Farley veio por trás dela no jardim
de inverno ao lado de um enorme vaso de palmeira.
— Eu não vou deixá-la passar sem falar comigo.
Ela olhou para ele friamente. — Olá, Gabriel.
— Você está muito bonita esta noite.
—Obrigado. E você também. — Ele tinha cortado o cabelo e estava usando
um terno preto e camisa branca e gravata. Seu rosto foi barbeado e estava
levemente bronzeado pelo trabalho ao ar livre. Embora as sobrancelhas nunca
encontravam-se ordenadas, sua indisciplina o fazia mais atraente. Ele era, na
verdade, um homem robusto, bonito.
— Você ainda está brava comigo?
—Sim. Você ainda está fazendo o trabalho na minha casa?
—Sim.
—Eu achei que sim. Obrigada por nivelar o piano.
—De nada.
— E por consertar a porta do meu quarto, assim ela fica fechada.
— É por isso vai funcionar na próxima vez que você quiser bater na minha
cara.
—Você mereceu isso. Você me deixou muito louca naquele dia.
— Bem, eu vou ter terminando segunda-feira, então eu vou estar fora de seu
caminho para sempre.
— Ah, — disse ela, e tomou um gole de ponche. — Bem, certifique-se de
deixar as chaves da minha nova porta de trás.
—Claro.
Ela olhou por cima da multidão. — Eu pensei que talvez sua mãe estaria
aqui. Eu queria conhecê-la.
— Eu te disse, ela e os Spears não são amigos íntimos.
— Ah, sim, isso é certo. Eu pensei que talvez ela tivesse evitado vir por
causa de suas objeções contra mim.
Ele se recusou a comentar.
— Eu ouvi que nossas meninas irão apresentar Hiawatha na tarde de
domingo — ela observou.
— Então, Isobel me disse.
— Eu também ouvi que você quase arrancou-lhe a cabeça e lhe disse que
você sempre vai para a sua mãe no domingo à tarde.
— Que droga Isobel. Será que ela tem que lhe contar tudo?
— Achei muito divertido. Mas tenho certeza que você ouviu coisas sobre
mim que eu prefiro não ouvir.
— Eu ouvi algumas. Roberta, eu estava pensando. . . eu poderia acompanha-
la até em casa?
— Não, você não pode, Gabriel. Eu vim de carro.
— Então, eu poderia te levar para sua casa em seu carro? Porque estou a pé.
— Por que diabos você iria querer me levar para casa?
Ele tentou controlar sua exasperação, mas não conseguiu. — Juro por Deus,
Roberta, às vezes eu realmente não sei porquê! Você sabe que é uma mulher
irritante?
Se ela não tivesse rido, eles poderiam ter ficado bem. Mas a honestidade
dele trouxe um desabafo inesperado que pode ser ouvido acima do pianista,
que estava tocado uma valsa de Strauss. Várias pessoas se viraram para olhar.
— Oh, tudo bem então — Roberta admitiu. — Que diabos.
Quando a festa terminou, ela esperava que ele entrasse no carro em segredo
depois que ela estivesse em segurança no seu interior. Em vez disso, ele se
colocou ao lado dela no vestíbulo e a segurou pelo cotovelo enquanto ela
estava agradecendo Grace e Elfred.
— Talvez eu devesse acompanhar você para chegar em casa com segurança,
Birdy — Elfred ofereceu.
— Eu vou acompanhar Roberta até em casa, Elfred. Não há necessidade de
você se preocupar com ela. — Pelo menos uma meia dúzia de pessoas
ouviram e viram o olhar de Elfred cair para a mão de Gabe quando ele
conduzia o cotovelo de Roberta.
Em seu caminho para baixo, ela disse, —Não é melhor você vigiar a si
mesmo? Sua mãe vai ouvir sobre isso na linha telefônica compartilhada.
— Roberta — ele disse suavemente — por favor, cale a boca sobre a minha
mãe?
Ela sorriu e seguiu as ordens.
Ele acionou seu carro e dirigiu sem quaisquer queixas dela. Ele esperava o
momento em que ele faria um movimento em direção a ela, e ela diria, eu
posso fazer isso sozinha, Gabriel! Agradava-lhe que ela o deixou fazer algo
por ela, pela primeira vez.
Quando chegaram a casa dela, ele desligou o motor e acompanhou-a até a
varanda.
— Acho que jogamos em Elfred uma bola curva, saindo juntos — comentou
Gabe.
— Eu queria jogar nele muito mais do que uma bola curva durante a noite
toda.
— Ele gosta de deixar as mãos permanecem em você, não é?
— Me convida para sua casa, então me coloca as mãos na frente de sua
esposa. Eu poderia tê-lo cortado.
— Por que não?
— Da próxima vez, talvez. Obrigada por me resgatar.
— De nada.
— Então presumo que você não vai ver a peça amanhã.
— Oh, é claro que eu vou. Como eu poderia não assistir quando elas estão
executando como uma elegante Companhia de repertório Shakespeariano?
Além disso, se eu não o fizer, eu pareceria um degenerado perto de você.
Sua ironia colocou um sorriso no rosto.
— Bem, eu vou te ver, em seguida, — disse ela quando chegaram aos
degraus. Ele parou e deixou-a subir sozinha. Onde ele estava, o luar brilhou;
para onde ela se moveu, sombras obscurecida. A mola porta de tela cantou no
escuro. — Eu gosto da minha porta de tela nova, — disse ela, deixando-a
descansar contra seu traseiro, enquanto olhava para ele. — Obrigado por isso.
— De nada.
— E por me trazer para casa.
Ele deveria ter se virado e saído. Ela deveria ter ido diretamente para
dentro. Em vez disso, ele permaneceu, banhado por uma turva luz da noite,
olhando para sua forma fraca acima dele com a borda branca da porta de tela
cortando para baixo do ombro. Um momento de imobilidade passou antes que
ela rompesse o silêncio: — Sabemos o que estamos fazendo, Gabriel?
Sua franqueza quase o pegou de surpresa, mas ele estava relaxado, no lugar.
— Eu acho que não, Roberta —, respondeu ele.
Não havia dúvida de que eles estavam pensando sobre se beijarem. A
definição e a situação eram clássicos - a varanda sombreada, branco luar no
gramado, o cheiro do lilás da primavera desabrochando em algum lugar
próximo, os postes da cidade circulando o porto abaixo, um homem e uma
mulher com trajes de festa após uma discussão. Mas a ideia era loucura.
Também muito tinha sido dito. Reivindicações foram feitas, que os avisou que
qualquer intimidade seria caprichosa na melhor das hipóteses, equivocada, na
pior das hipoteses. Se eles cedecem a seus caprichos, sem dúvida, se
arrependeriam mais tarde.
Então eles disseram boa noite e ela fechou a nova porta de tela entre eles.
Eles foram talvez um pouco demasiado respeitável um com o outro no dia
seguinte, quando ele veio para a casa dela para ver a peça. Qualquer pessoa
que os conhecia podia ter percebido a tensão. Mas os únicos que já os tinham
visto juntos por qualquer período de tempo foram as meninas, e elas estavam
ocupadas demais para perceber. O mais próximo que Roberta chegou de
Gabriel foi da outra extremidade do piano quando ela perguntou se ele iria
ajudá-la a movê-lo pela sala da frente para perto da porta aberta para que
pudesse ser ouvido a partir do quintal.
A produção foi precariamente assistida. Elfred e Grace acharam abaixo de
sua dignidade sentar-se na grama do jardim da frente de Roberta e assistir suas
filhas saltitarem em trajes indianos. Sophie, sua empregada, veio em seu lugar.
Myra havia declinado por causa de uma dor de cabeça, e avó de Isobel,
enquanto curiosa o suficiente para enfiar o nariz na casa de Roberta quando
Roberta estava ausente, reteve sua presença na chance que poderia ter sido
interpretada como um gesto de aceitação para a mulher divorciada.
Mas um conjunto de pais vieram - os DuMosses, a quem Roberta suspeitou
queriam verificar o lugar onde sua filha estava gastando muito tempo, e julgá-
la por si mesmos. Eles foram educados, mas reservados, e trouxeram seu
próprio cobertor para sentar.
Algumas das crianças da escola vieram também, incluindo os rapazes que
tinham dado a Roberta o peixe. E - surpreendentemente - as professores de
inglês de Rebecca e Susan, a Sra Roberson e Srta Werm.
As meninas tinham sido verdadeiramente criativas, tendo criado algumas
estrofes para a música e construiram sua versão de uma canoa de casca de
bétula para agir como um adereço no palco enquanto Marcelyn recitava — Dá-
me de sua casca, Oh Vidoeiro-árvore! — Elas tinham feito uma mortalha de
preto com um bico amarelo para a cabeça de Trudy, e ela virou-se para
revelar vermelho no lado oposto enquanto ela recitou a parte sobre como a
cabeça do pica-pau ficou vermelho. Cada uma delas tinha escolhido uma parte
da lenda para recitar em trajes: sobre o que faz as sombras na lua, e porquê o
arco-íris tem cores, e porquê os pássaros cantam. Rebecca, usando os
mocassins encantados, cujo passo medido de uma milha, recitou a estrofe
sobre Hiawatha cortejar Minnehaha. Começou: — Para o arco a corda está,
Assim como para o homem a mulher está, Embora ela o dirija, ela o obedece,
Embora ela o puxe, ainda assim ela o segue; Inútil é um sem o outro!
Roberta, sentada na grama com as pernas estendidas e cruzadas, inclinou-se
para trás em suas mãos e moveu os lábios em silêncio com as palavras
familiares. Sentia a presença de Gabriel como se sente a luz solar, um poder
concentrado focado em sua direção, e quando ela virou a cabeça, ele estava
lhe estudando na reflexão sombria, como se incapaz de ajudar a si mesmo.
Arco e cordas, homem e mulher.
Foi um momento peculiar, dotado não com encantamento, mas com a
percepção de que a resistência existia de ambas as partes; além disso, a
necessidade de resistência que tinham desenvolvido em algum lugar ao longo
do curso, e isso, em si, era uma ameaça. Com muita irônia tinham afirmado
seus estandes - ele ainda amava sua esposa, ela irritou-se com os homens pelo
que ela tinha tido - ainda que sentissem sua atração pelo outro e trabalhasse
sobre ela insidiosamente, era complicada por tantas coisas: seu status de
divorciada, a visão da cidade sobre ela, as advertências de sua mãe, a
amizade florescente de suas filhas, a sua própria amizade e vulnerabilidade da
fofoca, o fato de que as duas das professores de suas filhas poderiam estar os
assistindo neste momento.
Esperando que não tivesse sido observada sua troca de olhares, eles
voltaram sua atenção para a varanda, onde a produção continuou.
— Embora ela se dobre a ele, ela o obedece, Embora ela o puxe, ela o
segue; O velho Longfellow sabia sobre os homens e as mulheres neste estado.
—Inútil cada um sem o outro.
Mas eu não sou inútil sem Gabriel Farley, pensou Roberta. Eu tenho
provado isso. Eu fiz a difícil decisão de partir de Boston para poder criar
minhas meninas, sustentá-las, amá-las o suficiente por dois e ser feliz fazendo
isso. Eu tenho uma casa, um automóvel e um trabalho que me dá segurança e
dignidade. Por que eu iria querer comprometer qualquer um deles para
sucumbir a qualquer reles atração que eu poderia sentir pelo homem?
Nem Gabe se sentia inútil sem Roberta. Ele também tinha uma filha que ele
amava, uma fina, limpa, impecável casa, onde tudo corria sem problemas (ao
contrário dela), uma família que o ajudou e cuidou dele, um comércio
próspero e o respeito da cidade. Por que ele iria querer arriscar algo disso,
por ocupar-se com esta mulher divorciada?
Quando a peça terminou, eles permaneceram educados mas distante,
aplaudindo com os outros, conversando com as professoras, recolhendo
elogios sobre suas filhas.
Mas enquanto Roberta abraçou as filhas dela, sem reservas, Gabriel deu
Isobel pouco mais do que um tapinha desajeitado nas costas, e Roberta
perguntou se ele era mesmo capaz de demonstrar afeição.
Quando seus convidados dispersaram, Roberta lançou-lhe um adeus
intencionalmente impessoal, certamente muito menos entusiasta do que a que
ela deu a Isobel. Isobel conseguiu o abraço costumeiro, sorriso e despedida
amorosa que significava, volte quando quiser.
Na segunda-feira à tarde Gabriel já havia terminado e recolhido suas
ferramentas e estava girando a alavanca para dar partida no motor quando
Roberta estacionou seu carro atrás do caminhão.
Gabriel! Espere!
Ele soltou a manivela e caminhou para a frente para encontrá-la.
—Algo errado?
—Não. Eu só prometi que iria lhe aplicar a vacina, isso é tudo. Eu sabia que
este era seu último dia, então eu terminei cedo e me apressei para casa. Vamos
lá em casa e eu vou cuidar disso para você.
— Oh, você não tem que se preocupar.
— Não custa nada. Entre.
Ele tinha outra escolha a não ser segui-la ou parercer um medroso.
— Isso vai doer? — Perguntou, sentindo a tensão crescer.
— Mmm. . . um pouco. Mas é tão importante. Se eu vacinar o número
suficiente de pessoas isso pode vencer a difteria. Todo mundo conta. Na
próxima semana eu vou estar dirigindo até Northport para começar nas escolas
de lá.
Ela o levou direto para a cozinha e ordenou — Arregace as mangas da
camisa. — Ela deixou-o em pé enquanto lavou as mãos e limpou seu braço
com álcool, depois tirou o seu equipamento. — Desvie o olhar se isso
incomoda você. —— Mas ele não podia. O que ela estava segurando parecia
uma agulha de tricô e a ideia de tê-lo preso em sua pele fez Gabe empalidecer,
mesmo antes de ela agarrar seu braço para deixar a pele firme. No último
momento, ela olhou para cima e viu como ele estava pálido. — Não olhe —,
disse ela calmamente. Ele virou-se e fechou os olhos. Quando a agulha
perfurou sua pele, ele se encolheu e sussurrou: — filho da puta.
—Você está bem?
Ele sugou o ar por entre os dentes e assentiu.
— Eu nunca ouvi você praguejar antes.
—Isso machuca.
—Vai por um tempo, e amanhã você pode ter um pouco febre- — Ela olhou
para cima. Seus olhos estavam fechados e ele estava cambaleando.
— Sente-se, Gabriel, — ela ordenou, guiando-o para trás para uma cadeira.
—Eu sinto Muito . . . EU . . . — Ele não conseguiu finalizar. Tudo era
branco e distante.
— Afaste seus joelhos e coloque sua cabeça para baixo. — Ela colocou a
mão na parte de trás de sua cabeça e forçou-a para baixo, permancendo com
sua mão no seu grosso cabelo cor de areia e na pele bronzeada de seu
pescoço. Estava fria e úmida. Ela acariciou-o uma vez, duas vezes. —Melhor
agora?
Ele balançou a cabeça em silêncio, com a cabeça ainda pendurada.
Ela podia ver que ele não estava.
— Vou pegar um pano frio. Fique aí.
Ele ainda estava encurvado como um abutre, quando ela voltou com o pano.
—Aqui . . . coloque isso em seu rosto. Vai ajudar.
Ele o pegou em ambas as palmas das mãos e enterrou o rosto no dele,
apoiando-se nos joelhos espalmados.
— Respire fundo, respirações profundas, — disse ela. — Vai passar.
Enquanto ele seguia as ordens, ela assistiu a ascensão e queda de seus
ombros dentro de uma camisa xadrez vermelha firmemente esticada. Ela fez o
que teria feito para qualquer criança tonta na escola, colocou a mão lá e
esfregou levemente, fazendo pequenos e reconfortantes círculos nas costas de
Gabriel Farley.
Lentamente as tonturas de Gabriel desapareceram e ele se tornou ciente das
carícias ritmadas. Tinha sido um longo, longo tempo desde que qualquer ser
humano havia lhe confortado de qualquer forma. Afeto humano tinha sido
apagado de sua vida com a morte de Caroline. Sua fraqueza desapareceu mas
ele permaneceu dobrado para a frente, desfrutando da sensação de sua
distração suave, estremecendo levemente a cada círculo que ela fazia com as
pontas dos dedos entre suas escápulas. Era fim de tarde, o sol entrando pela
janela e a chamada das gaivotas flutuando de fora. Ele passou algumas horas
agradáveis com ela aqui dentro de sua cozinha, onde as coisas eram
familiares. Do lado de fora alguém estava cortando um gramado, o som foi
através da casa, juntamente com o cheiro verde da grama cortada. E ser
tocado, consolado, era algo que ele não tinha percebido que tinha perdido.
— Isso é bom — ele murmurou no pano.
Então ela esfregou-lhe um pouco mais, observando-o balançar na cadeira,
tão relaxado que ele tinha desistido de toda forma de resistência.
Depois de um tempo ela se inclinou para frente para espiar, mas só podia
ver sua orelha e mandíbula direita. — Você não caiu no sono, caiu, Gabriel?
— Hmm.
—Se sente melhor agora?
— Mm-hmm.
Tão logo a mão deslizou para longe de seu ombro, ele levantou a cabeça.
Seu rosto estava úmido do pano, cabelo empurrado para cima e mais escuro
acima de sua testa, onde ele, também, tinha ficado úmido. Seus olhos estavam
sem defesas e constante sobre ela. Quando ele entregou-lhe o pano seus dedos
se fecharam sobre sua mão e a puxou.
— Gabriel, não acho — Não diga nada — disse ele, e a derrubou sobre seu
colo.
— Pare, Gabriel.
—Você quer dizer isso?
—Sim. Eu não vou começar nada com você.
— Eu não vou começar nada com você também. Eu apenas estou pensando
em beijar você, isso é tudo. Eu tive a impressão que você estava pensando
sobre isso também.
— É uma ideia estúpida.
— Você fala demais, sabia?
Quando ele a beijou, ela parou de resistir. Sua pele estava fria, ainda úmida,
áspera em torno de seus lábios pelo crescimento do bigode. Sua língua era
quente e nem um pouco tímida. Ela tinha caído com um braço dobrado contra o
peito, o outro livre para vagar. Não fez nada disso, mas o deixou inerte contra
sua camisa, enquanto em suas costas ele ainda segurava o pano úmido. Porém
ele tomou seu tempo, e tudo se tornou mais fácil enquanto os segundos
passavam. Ela abriu os olhos uma vez para ver se os dele estavam fechados.
Eles estavam, e o vislumbre de seus cílios de perto trouxe um estranho tremor
ao longo de seus membros. Fazia anos desde que ela tinha beijado um homem
– os beijos babados de seu marido tinham se tornado intragáveis anos antes de
seu divórcio, e ela certamente não iria deixar-se ser indevidamente
influenciado pelo primeiro, tornando-se assim como todas as divorciadas
tinham rumores ser. Então, ela deixou-o fazer o trabalho e permaneceu
meramente receptiva. No momento em que ela sentou-se o pano molhado fez
um círculo de amido na parte de trás do avental branco.
Ela se levantou de seu colo em pleno controle de suas emoções e ficou de
costas para ele. — Esta é uma idéia muito ruim — disse ela.
— Eu me disse a mesma coisa.
— Foi apenas o poema de ontem e tudo o que declamaram sobre arcos e
cordas.
—Talvez sim. Talvez não.
— Não acha que as linhas telefônicas compartilhadas iriam incendiar se
alguém nesta cidade descobrisse o que nós fizemos?
— Bem, eu não vou dizer a eles. — Ele endireitou-se como se sua cabeça
tivesse finalmente clareado. — Eu tenho mais senso do que isso.
— Não, claro que não. — Ela deu vários passos e encontrou algo para
manter as mãos ocupadas: algumas facas gordurosas que as meninas haviam
deixado inclinadas sobre o prato de manteiga. — As meninas vão estar em
casa logo. Talvez seja melhor ir.
— Claro — disse ele, empurrando-se da cadeira.
— Está tudo bem agora? A tontura passou?
—Bem. Desculpe eu fui um bebê.
— Você não foi um bebê. Isso só acontece com algumas pessoas.
— Bem, obrigado pela vacina. . . Eu penso.
Por fim, ela se virou para ele. Ele não teria imaginado que ele tinha acabado
de beija-la pela maneira pragmática que ela lidou com ele. — Será que você
terminou tudo aqui? Quer dizer, o seu trabalho está feito?
—Tudo feito. Como eu disse, não vou incomodar mais.
Ela não sabia se devia levá-lo até a porta ou ficar onde estava. No final, ela
ficou e ele saiu sem dizer mais nada.
Capítulo 10
Em casa as noites eram mais solitárias para Gabe. Isobel passou cada
minuto livre com as Jewetts. Ele tinha dois pensamentos a respeito de sua
deserção: Por um lado, ele não a culpava por querer estar em torno daquele
lugar, com toda a sua atividade alegre; por outro, ele se sentia abandonado,
pois ainda era a sua casa, ele ainda era seu pai, e ela tinha responsabilidades
aqui. Ela se preocupava com isso cada vez menos. O trabalho doméstico e
cozinhar foi deixado para ele. Sua mãe, teimosa como só, tinha sido fiel à sua
palavra e se recusou a encher o pote de biscoitos ou vir para mudar os lençóis.
Naturalmente, ela parou de trazer sobras, também.
Uma noite, durante a semana seguinte ao seu último encontro com Roberta,
tinha feito uma chaleira de ensopado de ostras para o jantar e estava à espera
de Isobel quando o telefone tocou. Dois curtas e uma longa, que foi seu toque.
Ele foi para a caixa de madeira e levantou o fone dos pinos. — Olá?
— Olá, Sr. Farley? Aqui é Susan Jewett. Temos nosso novo telefone!
— Vocês tem? Bem, isso não é emocionante?
— A mãe disse que poderíamos cada uma fazer uma chamada, e eu disse
que queria te ligar porque eu estava me perguntando se tudo bem se Isobel
ficasse conosco para o jantar.
Ele pensou: O que você estão fazendo? Talvez eu vá também. Ele disse: —
Isobel está aí a muito tempo.
— Oh, mas nós amamos tê-la! Não é, mãe? — No fundo, podia ouví-la tocar
piano e retratou Roberta no teclado enquanto as meninas invadiam a casa.
Susan disse: — Por favor, Sr. Farley, mãe diz que é claro que sim, ela pode
ficar?
— Ela provavelmente tem lição de casa.
— Mas é sexta-feira e a escola está quase no fim e os professores
dificilmente vão nos dar qualquer coisa. Por favor, Sr. Farley? Estamos
tentando convencer a mãe a nos deixar fazer um piquenique, porque muito em
breve a maré estará baixa e seria tão divertido!
— Eu já fiz o jantar para Isobel e eu.
— Mas ela não pode ficar assim mesmo? Mãe, ele não vai deixá-la. . . '' A
voz de Susan ficou chorosa e foi sumindo como se ela tivesse se transformado
a partir do telefone. — . . . e eu disse a ele sobre o piquenique e tudo.
O piano cessou e um momento depois a voz de Roberta veio. — Gabriel ?
— Oh! Roberta. . . Olá.
— Nós realmente queremos que Isobel fique. Você se importa?
É solitário aqui, ele queria dizer, mas é claro que não podia. — Ela está aí
há muito tempo.
— Porque nós gostamos dela. As meninas me convenceream a fazer um
piquenique na costa. Eles querem cavar alguns mariscos. ''
— Bem, nesse caso, eu acho que está bem.
— Bom . . . bem . . . obrigada, Gabriel.
Ele apressou-se para mantê-la na linha para não desligar tão cedo. — Eu só
não quero que ela abuse de sua hospitalidade.
— Não, ela não vai. E não se preocupe com ela voltando para casa depois
de escurecer. Vou levá-la desta vez.
— É bondade sua, Roberta.
— Não há problema, já que vamos estar no automóvel de qualquer maneira.
Bem . . .
Sua pausa trouxe uma sensação de iminente despedida, e ele tentou alguma
coisa para mantê-la na linha. — Então, como foi em Northport esta semana?
— Bem. Eu terminei lá e passei para Lincolnville.
— Teve algum desmaiado em suas mãos?
— Oh, Gabriel. . . você não desmaiou. Você ficou um pouco tonto.
— Bem, eu me senti como um completo tolo.
— Por quê? Você estava certo. É um grande da agulha.
Se fez um silêncio e ele a imaginou impaciente para embalar um cesto e
colocar seu passeio em curso. Ele sabia que deveria liberá-la, mas só a casa
silenciosa o esperava, e seu patético ensopado de ostras, e ele queria mantê-la
na linha por alguma razão mais profunda que ele não estava disposto a
reconhecer. — Ouça, Roberta. — Ele limpou a garganta e limpou a borda da
caixa de telefone de carvalho com um polegar. — Sobre o que aconteceu
naquele dia. Eu sei que você não esta muito contente comigo e eu só queria
dizer que sinto muito. Eu não deveria ter pressionado a questão.
— Está tudo bem, Gabriel. Está tudo esquecido.
— Não. Não, eu poderia dizer mais tarde que você estava. . . bem, você
agiu muito distante e você não podia esperar para se livrar de mim. Em
primeiro lugar você não quer começar qualquer coisa e eu deveria ter deixado
por isso mesmo.
— Gabriel, a razão de eu não querer começar nada é por causa de como esta
cidade me rotulou. Eu tenho que ter mais cuidado do que a maioria, e nós dois
sabemos disso. Então, vamos esquecer isso, porque não resultou nada.
Não resultou? Engraçado, mas Gabe pensou que tinha. Seu comentário o
deixou sentindo-se fraco e emasculado.
— Bem, eu estive pensando sobre isso durante toda a semana, e só queria
esclarecer isso.
— Gabriel? Posso perguntar uma coisa?
— Claro.
— Isobel disse que sua mãe parou de encher o pote de biscoitos e de ir
ajudar com as tarefas domésticas. É por minha causa?
— Isobel disse isso?
— Sim, ela disse.
— Não há muito trabalho doméstico por aqui com apenas dois de nós e
ficamos fora durante todo o dia. E agora Isobel parece ficar na sua casa quase
todos os dias depois da escola.
— Você não respondeu à minha pergunta, Gabriel.
Ele limpou a garganta. — Não, não é por causa de você.
A linha ficou em silêncio por vários segundos, enquanto Gabriel suspeitava
que ela havia percebido que ele estava mentindo. Em seguida, ela o
surpreendeu, perguntando: — Bem, nesse caso, você estaria interessado em
continuar essa conversa na praia? Se você está sozinho, você pode muito bem
vir aqui e cavar mexilhões com as meninas e comigo.
Ele parou de esfregar a caixa de telefone com o polegar.
— Bem, isso soa muito tentador, mas você tem certeza disso?
— Tem anos desde que eu fiz um piquenique e eu poderia precisar de um
pouco de ajuda com estas nossas quatro filhas indisciplinadas.
— Eu gostaria disso, Roberta. Dê-me um par de minutos para me trocar e
vou para aí.
Ele apareceu em quinze minutos, vestido com calças confortáveis, sapatos
de lona e uma jaqueta Norfolk espaçosa. Cruzando o familiar jardim da frente
de Roberta, o seu passo era animado e ele estava assobiando. Subiu os
degraus da varanda em dois saltos gigantes e chamou pela porta da frente
aberta, — Alguém aqui?
A agitação interior era cômica: ruídos de utensílios de cozinha, portas
batendo, vozes vertiginosas das meninas e Roberta gritando ordens.
— Eu esqueci, eu não tenho uma pá. Isobel, chame seu pai e veja se ele vai
trazer uma pá! E um rastelo, também!
Ele caminhou para a direita e parou na soleira da porta da cozinha. — Eu
tenho uma pá e um rastelo e algumas cestas de alqueire no caminhão, além de
uma caixa de restos de madeira para construir uma fogueira. Ninguém tem que
me chamar.
Roberta se virou e abriu um grande sorriso. — Oh, Gabriel, você está aqui!
Ela estava de volta como a Roberta que ele conhecia, o uniforme de
enfermeira desapareceu, o cabelo caindo de seu laço, vestindo seus sapatos
pretos e um vestido solto e longo xadrez azul e branco com grandes botões
brancos na frente. O vestido precisava ser passado, os sapatos precisavam ser
substituiídos e o cabelo precisava ser arrumado, mas enquanto ele estava na
porta observando a comoção sentiu-se vivo como ele não sentia há dias, estar
com ela e as crianças novamente.
— Oi, Roberta — disse ele, discreto.
— Você não demorou muito tempo.
— Não.
— Papai, oi! Eu não posso acreditar que você está realmente indo com a
gente!
Isobel bombardeou e abraçou sua cintura. Ele deixou cair as mãos até os
ombros, mas Roberta viu que ele estava fora de seu elemento o carinho
espontâneo.
— A Senhora Jewett me convidou — disse a Isobel. — Espero que esteja
tudo bem.
— Oh, isso vai ser muito divertido! Ela diz que todos nós podemos cavar
mariscos.
— Pensei que você odiava mariscos.
— Bem, eu sei, mas. . . Ela soltou-se e deu um encolher de ombros
envergonhado. — Meu Deus, eu não os tive desde que minha mãe era viva, e
eu cresci muito desde então. Eu provavelmente vou amá-los!
Ele olhou para Roberta, pensando que essa seria a melhor noite de sexta-
feira que tinha tido nos últimos anos.
Roberta ficou ocupada novamente, colocando uma faca de marisco, saleiros
e pimenteiros no cesto aberto sobre a mesa. — Vamos ver . . . manteiga, limão,
sal e pimenta. Ainda não é epoca do ano para espigas de milho, mas nós temos
algumas batatas doces. Rebecca, pegue os pratos; Susan, pegue os talheres;
Isobel, alguns copos por favor; e Lydia, você vai encontrar um cobertor,
querida?
Gabe observou como sua filha moveu-se com as outras para seguir as
ordens. Ela sabia exatamente onde encontrar os copos.
Moveu-se até o ombro de Roberta e disse em voz baixa — Ela certamente se
move com toda liberdade em sua casa.
— Essa é o tipo de casa que eu administro, Gabe. Não há muita formalidade
por aqui.
Quando os últimos itens foram embalados dentro do cesto, ela fechou a
tampa e ele o tomou de suas mãos. — Aqui, eu vou levar isso.
— Nós precisamos de um pedaço de lona, disse ela.
— Eu trouxe.
— E um pouco de água fresca?
— Trouxe isso também.
— Hey, brincou ela, você é um bom homem para se ter por perto. Como
você aprontou tudo isso em quinze minutos?
— Esse é o tipo de casa que eu administro, disse ele com um sorriso. —
Tudo em seu lugar por isso é fácil de encontrar.
— E você encontrou tempo para trocar de roupa, também?
— Aham.
Ela devolveu o sorriso. — Fale sobre dois de opostos, nós somos eles, não
somos, Gabe?
Opostos ou não, ambos estavam felizes ao se reunirem lá fora com as
crianças, como uma família regular de seis. Sim, era uma família simulada,
mas sentiam-se seduzidos pela saudade do perambular em uma aventura
simples que iria preencher uma noite e os manteriam juntos. As quatro meninas
se davam muito bem, como se Isobel realmente fosse uma meia-irmã. Roberta
e Gabriel, agora que o beijo havia sido “esquecido” por eles, encontraram o
companheirismo aceitável um no outro e, como antes, gostavam de ter outro
adulto para conversar depois de haverem convivido somente com as crianças
durante anos.
O sol de Maio ainda estava a vinte e cinco graus do horizonte quando eles
começaram. Gabe deu partida no carro de Roberta e ela dirigia enquanto todas
as quatro meninas empilhadas no banco de trás, cantavam, — Nós
navegaremos no oceano azul, E nosso navio atrevido é uma beleza.
Roberta e Gabe mal podiam ouvir um ao outro acima do “H.M.S. Pinafore”.
— Onde é o melhor lugar para cavar? - Perguntou ela.
— Fora de Glen Cove Flats.
— Ah, sim, eu me lembro. Para baixo em direção a Rockport.
— Você costumava ir lá?
— Claro, quando eu estava na escola. E você?'
— Na escola e depois quando eu era casado. . . com Caroline.
— Mas vocês não foram desde que ela morreu?
Ele estudou brevemente, depois sacudiu a cabeça. — Não desde que ela
morreu.
— Então, será difícil para você?
— Eu não sei. Vou descobrir quando chegarmos lá, não vou?
No banco de trás as meninas estavam gritando, —. . . quando ancorados nós
passearemos, na maré Portsmouth. . . ''
Ela estacionou na colina acima de Glen Cove Flats, e as meninas saíram e
foram escalando sobre as rochas que haviam sido empurradas por um milhão
de marés para formar uma borda acidentada em torno do furo superior da
enseada. Roberta e Gabriel estavam ao lado do carro e assistiam a distancia
presoa às cestas de alqueire e aos rastelos enquanto atrás deles as sombras das
montanhas desciam até o mar e manchou a noite azul. Adiante, uma superfície
plana marrom opaca, exceto onde uma impotente onda deixou uma espuma
prata que apagou as pegadas das meninas. Seixos e troncos encravados a
superfície lavada, também. Em alguns lugares onde a maré havia abaixado,
ficaram destroços em fileiras irregulares que criaram um design recortado ao
longo da costa. Entre as rochas e sobre a areia, caranguejos corriam,
procurando sua ceia, mergulhando com segurança em seus buracos quando as
meninas passavam.
Gabriel estudou a cena calma e disse: — Ela não era particularmente louca
por mariscos, mas ela gostava de ir cavar. Especialmente na parte da manhã,
quando o sol estava na água e as ilhas pareciam fantasmagóricas lá fora na
fumaça do mar. Às vezes, ela me convencia a trazê-la para fora mais cedo,
mesmo antes do sol nascer, para que ela não perdesse o espetáculo.
Roberta se virou para estudar o perfil dele contra o pano de fundo da costa
rochosa. Um sopro fraco do vento balançou o cabelo na testa. O crepúsculo
pintou sombras ao lado de seu nariz reto e boca sombria.
— Eu invejo suas memórias felizes. Eu gostaria de ter mais delas.
Arrastou-se de seu devaneio para olhar para ela. Imóvel, ele se levantou,
enquanto as vozes das meninas flutuaram até eles — Oh, aqui está um!
Escavem! Escavem - juntou-se ao coro grosseiro de algumas gaivotas cujas
refeições tinha sido interrompida, também. Roberta tinha a sensação de
Gabriel estava vendo outra mulher, em outro tempo, antes que ele finalmente
mexeu-se e juntou-se a ela no presente.
— Eu vou começar a cavar o poço se você reunir algumas algas. Ele saiu
para as rochas, fazendo os caranguejos da areia fugirem novamente.
No próximo quarto de hora todos estavam ocupados. Enquanto Gabe ateou o
fogo e Roberta recolheia algas, as três meninas mais jovens procuravam
minúsculos buracos na praia e escavavam. Rebecca, descalça, amarrou a saia
entre suas coxas e metodicamente a entrou nas águas rasas, arrastando o
rastelo, mantendo-se atenta para os indicadores de nuvens de lama na parte
inferior. Quando as meninas vieram com a sua recompensa, Roberta as lavava.
O sol se escondeu atrás da montanha e deixou o ar mais frio e mais azul. As
ilhas distantes perderam suas extremidades de ouro e pareciam resolver
aprofundar em Penobscot Bay como se aconchegando-se para a noite.
Quando o fogo se reduziu a brasas, Roberta se ajoelhou ao lado de Gabriel
e ajudou-o com a camada de rochas, algas, alimentos e lona, que eles
ancoraram nos cantos com mais pedras.
— Aqui, Gabe disse, sentando-se nos calcanhares. Em uma hora nós vamos
ter uma refeição digna de um rei.
— Estou com fome, disse Lydia.
— Sim, eu também, acrescentou Isobel.
— Por que vocês todas não cantar alguma coisa? Roberta sugeriu. — Isso
vai fazer o tempo passar mais rápido.
— Eu não sinto vontade de cantar. — Susan falou — Vamos ver se podemos
escavar alguns caranguejos da areia.
Elas se afastaram para as sombras crescentes, deixando seus pais para trás.
Gabriel estendeu a seus pés. — Eu vou fazer outro fogo então nós teremos algo
para cutucar.
Ele fez, e sentaram-se em rochas em forma de tartaruga, enquanto o
anoitecer e a umidade baixou em cima da costa, gelando suas costas enquanto
seu rosto adquiria uma cor laranja como pôr do sol emparelhado no brilho de
seu pequeno incêndio. As rochas eram duras, porém os dois tinham
experiência anterior com piquenique e tinham rejeitado qualquer assento mais
confortável; afinal, sentar na pedra foi parte da experiência toda. A fogueira
crepitava e enviou um silvo suave e quente que os mantinha firme.
Roberta olhou para o céu e recitou, — Lá! vem a noite, roxo suave, Para
levantar as estrelas brilhando no alto.
Gabriel olhou por cima.
— Quem escreveu isso?
— Eu.
Ele ponderou um momento. — Vocês Jewetts são realmente algo especial
quando se trata de versos. Vocês sempre conseguem me deixar na poeira.
—Deixar no pó?
— Você sabe tantas coisas que eu não sei, Roberta.
— Talvez eu saiba, mas eu não posso construir um alpendre.
Às vezes, ela poderia realmente colocá-lo à vontade, esta mulher de vestido
enrugado e cabelo em ruínas. Ele tinha vindo a apreciar passar tempo com ela,
e estava começando a admitir que era não só por causa das meninas. — Eu não
tinha pensado nisso, disse ele. Agora que ele o fez, no entanto, sentiu-se menos
ignorante. — Você escreveu mais desse poema?
— Não, mas posso se você quiser.
— Assim, facilmente?
Ela encolheu os ombros como se o talento lhe fosse comum.
— Você quer dizer que você poderia apenas colocar linhas que rimam, sem
pensar duas horas e olhar em livros e livre de erros?
— Eu sempre gostei de poesia, música e drama. E minhas filhar herdaram
meu gosto.
— Então, vamos fazer um pouco mais.
Ela piscou um olho para a lua crescente. Seus lábios se moviam
silenciosamente por um tempo antes que ela continuasse . .
— “Então, apenas quando os sonhos estão se tornando insanos Eles deslizam
e caem e vira-se dia.”
Ele apreciou-a em silêncio por um tempo antes de falar. — Você é especial,
Roberta, você sabe disso?
— E você acha que você não é?
— Não gosto disso, não. Eu nunca fui bom com as palavras. Meu irmão
acabou de dizer no outro dia que eu não falo muito.
— Você faz comigo.
— Com você o faço. Talvez porque em sua casa há tanta conversação que
uma pessoa sente que tem que fazer parte dela mesmo ou se perder no trabaho
de carpintaria.
Ela riu, então, pegou uma vara e cutucou o fogo.
— Será que você e sua esposa falavam muito?
— Não muito, não. Poderíamos ficar quieto juntos e ainda se sentir
confortáveis.
— Isso é bom. Quando meu marido e eu estávamos juntos em silêncio era
porque nos tinha crescido tal estado de desrespeito que não tinhamos nada a
dizer mais.
— Quanto mais você me diz sobre o seu casamento, pior me parece.
— E quanto mais você me dizer sobre o seu, melhor me parece, o que é uma
grande surpresa para mim, porque eu nunca conheci alguém que tinha um
casamento feliz. Eu pensei que eles eram todos lições de tolerância.
— Não, você está errada. Nem todos.
— Todos que eu já testemunhei. Olhe meus pais, por exemplo. Ele estava na
taberna mais frequentemente do que ela gostaria que ele estivesse, então ela
reclamava constantemente; em seguida, quando ele estava em casa, ela ralhava
com ele para corrigir isso, consertar isso, mas quando o fazia, ele nunca era
bom o suficiente para ela. Ela criticou tudo que ele fez, até que eu pudesse
entender por que ele gostava mais na taberna. Eu acho que é por isso que eu
comecei a escapar para a minha literatura e música, para que eu pudesse me
desligar de suas discussões.
Ele teve tempo para ponderar sobre relacionamento de seus próprios pais.
— Meus pais se davam muito bem. Às vezes a fofoca dela o irritava, assim
como ele fumando cachimbo a irritava. Ela dizia que ofuscava suas janelas.
Ele tinha uma tendência a ser preguiçoso e ela tinha uma tendência a apressar
tudo, mas, eu não sei, eles pareciam resolver as coisas.
Roberta disse: — Eu acho que aqueles que resolvem as coisas são mais
raros do que aqueles que não o fazem. Eu tinha uma amiga em Boston chamada
Irene. Ela e seu marido eram realmente loucos um pelo outro. Mas ciumentos!
Alguns dias, eles podiam entrar em brigas sobre estranhos que passavam na
rua. Se um deles retornou um Olá, ou o outro era acusado de flertar, e a luta
começava. Se ela foi ao mercado para comprar um pedaço de pão, ela tinha
que contar cada minuto que ela estave longe, e mesmo assim ele a acusava de
namoricos ridículos. Assim mesmo eles se amavam, nunca parecia suficiente.
Porém, isso chegou a um ponto em que não podiam mesmo ser cortês com os
seus próprios amigos, em seguida, após cada briga Irene aparecia e chorava
no meu ombro. Eu costumava fazer o meu melhor para confortá-la até que um
dia ela me acusou de estar de olho em seu marido. Isso terminou a nossa
amizade, e eu me senti muito mal com isso.
— Então, é claro, há Elfred e Grace. Se eu já vi uma farsa, é esse
casamento.
— Eu tenho que concordar com você nisso.
Eles ponderaram sobre os Spears por um tempo, Gabriel agora cutucando o
fogo juntamente com Roberta. Algumas faíscas aumentaram quando ele
perguntou, — Elfred tornou a lhe incomodar?'
— Não desde o dia em que você o assustou.
— Bem, eu estou contente com isso. Eu tenho que admitir, eu me alterei um
pouco aquele dia.
— Ah?
— Elfred acha que ele é o presente de Deus para as mulheres, e até então
sempre ríamos sobre isso. Mas eu não acho que foi engraçado naquele dia.
Lado a lado, com os tornozelos cruzados, eles se voltaram para estudar um
ao outro. Pararam de cutucar o fogo e deixaram as pontas de suas varas
queimar. A lua tinha subido e espalhado um caminho dourado sobre a água. A
alga enterrada estava começando a desprender um aroma de ervas que
contrastava com o odor de mofo que desprendia da lona aquecida. A batida
suave das ondas na beira da água, e na distância invisível uma das meninas
gritou, seguido por um coro de risos abafados.
Finalmente Roberta perguntou em voz baixa: — Então, como é, estar de
volta aqui onde você costumava trazer Caroline?
—Não tão mau como eu pensava que seria. Bastante agradável, na verdade.
— Uma vez, você mencionou um dia que pensou que ia ser ruim para você.
18 de Abril.
— Ah, isso.
— Estou pisando em solo sagrado?
— Surpreendentemente, não. Um mês atrás, você teria, mas, eu não sei,
talvez eu esteja me curando do passado.
— Então, o que você fez no dezoito de abril deste ano?
— Adubei as rosas dela, a mesma coisa que eu faço todos os anos. Elas
escalam um pergolado que leva à porta da cozinha e que tenho que andar sob
ele cada vez que eu entrar em casa.
— Isobel faz isso com você?
— Não.
— Porque ela não quer ou porque você nunca pediu para ela?
— Quando eu trato das rosas é sempre o meu tempo especial com Caroline.
Eu . . bem, eu falo com ela então.
Ele estava estudando o fogo. Ela estava estudando-o. — Tenha cuidado,
Gabriel. Ele olhou por cima. — Sobre o que?
— Afastando a sua filha tanto tempo.
Ele se mostrou indignado. — Eu não exclui a minha filha.
— Ela fala em nossa casa. Ela nos diz coisas.
— Como o quê? Se ela disse que eu coloquei para fora, isso não é verdade.
Roberta poderia dizer que era um terreno perigoso. — Eu não estou dizendo
que você faz conscientemente.
— Se não fosse por Isobel, eu teria enlouquecido quando Caroline morreu!
— Você já disse isso a ela?
— Eu não tenho que lhe dizer. Ela sabe.
— Engraçado, às vezes ela pensa que é um estorvo.
— Um estorvo?
Roberta jogou a vara no fogo, limpou as mãos e abraçou os joelhos.
— A afeição é um bem curioso. Ele abre a boca quase tão facilmente como
ele abre o coração.
— Mas por que ela acha que é um estorvo?
— Você nunca a abraça, Gabriel. Você nunca a toca. Eu o vejo e eu posso
ver que você não sabe como. Eu imagino que quando Caroline estava viva, ela
fez isso por ambos. Muitas vezes é a mãe quem é a responsável pelas
manifestações de amor. Mas você é seu único pai agora, e ela precisa saber
que você a ama.
Gabe não disse nada. Ele olhou nos flamejantes olhos de Roberta, por
alguns momentos, e ela podia ver que ele apertava sua mandíbula. — Mostrar
é difícil para algumas pessoas — disse ela. — Se você não sabe como, me
observe.
Ele virou-se para que ela já não pudesse ler seu rosto. — São as pequenas
coisas que contam, Gabriel. Dizemos — eu te amo — de mil maneiras; alguns
têm palavras e alguns não - tocar, sorrir, talvez um pequeno aviso, como: —
Mantenha-se aquecido.
— Mantenha-se em local seco.
— Cuidado com a cabeça!
— Seu vestido é bonito.
— É uma nova fita de cabelo? Ela combina com seus olhos.
— Eu adoraria ir assistir sua peça Hiawatha.
— Por que não vamos lá fora e escolhemos algumas das rosas da mãe
juntos?
— Você já fez isso com ela?
Ela havia ido muito loge para parar agora. Havia coisas em sua mente que
ela simplesmente tinha a dizer, em nome de Isobel.
— Ela me disse que não tem permissão para tocar vestidos da mãe, e que as
vezes quando ela o faz, ela é severamente repreendida. Talvez você devesse
deixá-la algum dia. Como você teria se sentido se tivessem lhe negado tocar
em qualquer uma das coisas de Caroline depois que ela morreu? Você teria se
sentido muito magoado, Gabriel.
Ele falou no passado, e podia ouvir sua raiva depositada. — Eu não queria
que ela se metesse lá com seus amigos, e você sabe quão destruitiva as
crianças podem ser.
— Ela nunca teve amigos, Gabriel. Ela nos disse isso. Não até as minhas
meninas chegarem, porque você sempre esperava que ela substituisse a mãe
nos deveres domésticos, que fizesse sua lição de casa, cumprir
responsabilidades antes de mais nada. Sempre pensei o contrário. Ensinar as
crianças o suficiente, para que eles possam cuidar de si mesmos quando
necessário, mas dar-lhes a sua liberdade. Afinal de contas, eles vão ser
adultos mesmo assim! — Roberta estalou os dedos — E então elas terão suas
próprias famílias e todas as responsabilidades que vão vir junto com elas.
Enquando elas forem crianças, que sejam crianças. E é isso que Isobel é em
nossa casa. É por isso que ela gosta tanto de lá.
Ele encarou-a abruptamente e argumentou com alguma ferocidade, — Mas
era difícil depois de Caroline morreu! Você não sabe o quão difícil!
— Não, não. Eu não posso saber, porque perder meu marido foi totalmente
diferente do que perder sua esposa. Mas eu posso imaginar. E eu posso ver
que você ainda está sofrendo, e que me diz muito. O que eu estou pedindo para
você entender é que, foi igualmente difícil para Isobel, e você nunca
compartilhou isso com ela. Você lidou com a sua dor separadamente da dela, e
fazendo assim, você a fez acreditar que ela estava em seu caminho. Você está
com raiva de mim por ser tão franca, eu posso dizer.
—Você está certa que estou. Você está me acusando de um monte de coisas
aqui que eu não acho que mereço.
— Eu não estou acusando você.
— O inferno que você não está! — Ele pôs-se de pé. — Você está me
dizendo que eu não tenho sido um bom pai para Isobel, e quem te nomeou juiz?
—Eu nunca disse isso.
— Você já disse muito! Pelas minhas costas em sua casa - você acabou de
admitir isso! O que você faz, Roberta? Parou de ser a melhora amiga da minha
filha para apontar como seu pai sofre em comparação?
— Oh, não seja ridículo, Gabriel.
— Ah, agora eu sou ridículo, pois não? Bem, talvez eu tenha sido, por
deixá-la ficar tanto tempo muito.
— Olhe o que encontramos! — As meninas estavam de volta, ostentando
uma estrela do mar de um bom tamanho. Isobel disse: — Nós vamos fervê-la e
mantê-la e talvez no Natal, se pintarmos de ouro que poderia usá-lo na árvore
de alguma forma.
— Não agora, meninas! Ele retrucou. — Roberta e eu estamos falando de
algo importante.
Roberta ignorou e estendeu a mão. — A estrela do mar. . . aqui, deixe-me
ver. — Em seguida, ela examinou o espécime e disse: — Oh, é uma beleza.
Gabriel declarou: — Você não vai trazer essa coisa em nossa casa, Isobel!
Vai começar feder antes que você ferva e, além disso, temos uma estrela para
o topo da árvore, então vá jogá-la de volta.
Isobel olhou perplexa. — O que está errado, papai?
O que ele poderia responder? Ele estava sendo um cafajeste e ele sabia
disso.
Roberta entrou em cena. — Eu acho que nossa comida está pronta. Vamos
descobrir isso, meninas.
— Eu vou descobrir isso! —, Ele retrucou.
Sua excursão foi completamente arruinada. Embora tivesse sido feitas
algumas tentativas de forçar um diálogo enquanto comiam, nenhuma foi entre
Roberta e Gabriel. Eram quase dez horas quando eles reembalaram o cesto.
Ele, juntou areia até a fogueira e Roberta enviou as meninas para o carro com
as cestas de alqueire e rastelo. Ela observou-o batendo a pá na areia e jogar
um pouco no fogo menor com uma raiva reprimida em cada batida. Finalmente
as brasas desapareceram e deixou-os na luz da lua. Ele jogou mais duas pás e
ouviu-se o som solitário do metal morder a areia.
Finalmente, ela simplesmente tinha que falar.
— Você está realmente com raiva de mim. Quero dizer, realmente.
Ele se inclinou para bater alguma coisa fora da areia, algo desnecessário,
ela pensou, para escapar de frente para ela. — Sim, eu estou, Roberta.
— Gabriel, me escute. Está tudo bem se você está com raiva de mim.
Somente . . . só não desconte sua raiva sobre Isobel, ok?
— Por que eu deveria descontar em Isobel! Jesus, Roberta, você acha que
eu sou algum tipo de um bruto!
—Eu não. Mas às vezes quando você está com raiva de mim você fica muito
rabujento com ela. Apenas lembre-se que fui eu quem falou esta noite, então se
você quiser descontar em alguém, desconte em mim, porque ela não merece
isso.
De repente, ele se virou para ela e lhe apontou um dedo.
— Você sabe, as coisas corriam muito bem na minha casa antes de você
chegar à cidade! Eu cuidei da minha filha e nós nos dávamos muito bem!
Portanto, não pense que você é a palavra final sobre como educar os filhos,
porque eu estava fazendo tudo certo! E talvez seja melhor você dar uma olhada
naquele buraco lixo em que vive e ver se voce pode melhorar um pouco em
seu papel de mãe! Enquanto você está correndo por todo o condado vacinando
as crianças contra as doenças, as suas próprias estão sujeitas a pegar dez
outras das condições insalubres em sua própria maldita casa! E pelo amor de
Deus, por que você nunca passa seus vestidos?
Quando ele terminou, ele estava gritando.
Durante o silêncio que se seguiu, eles se encararam e sentiram seu sangue
subir. Então ele girou e atravessou a praia, agarrando o cabo da pá como se
fosse um dardo.
Ela parou com os pés separados e gritou para ele — Maldito cabeça dura,
de mente fechada, idiota, burro, plebeu, estúpido! — Em seguida, chutou um
jato de areia para fora de seu caminho antes de ir atrás dele.
Quando ela chegou, ele estava colocando em marcha o carro como se
quisesse levantar e o arrastar para casa.
— Eu vou fazer isso sozinha! — Ela insistiu, deixando-o de lado. —Me dê
isso!— — Com prazer — ele atirou de volta, e saiu para lado do passageiro e
entrou, deixando-a a lutar não só com a manivela, mas com os faróis de metal
carboneto.
Depois de iniciar o gotejamento, iluminando os cristais e fechar as lentes
ela finalmente subiu ao volante.
Isso o irritava, que ele não tinha seu próprio caminhão e tinha que ser
conduzido por ela! Ela era muito independente para seu próprio bem, e foi a
gota d'água que esta noite de todas as noites ela o estava levando! Além disso,
ele não sabia o que significava “plebeu”.
No banco de trás as meninas ficaram imóveis, cautelosas. Sem canto agora,
sem vibrações. Roberta colocou o carro em marcha e se sacudiu violentamente
enquanto ela se moveu. Quando foi rolando suavemente uma voz tímida da
parte traseira perguntou: — Qual é o problema?
Eles responderam simultaneamente.
Gabriel — Nada.
Roberta — Tivemos uma briga.
— Sobre o quê? — Perguntou Rebecca.
Gabriel — Nada.
Roberta — Sobre que tipo de pais que somos.
Ele alertou — Roberta. . .
— Oh, isso é tão típico! — Gritou ela. — Esconder tudo como se elas não
tivessem o direito de saber!
— Roberta, eu vou levar isso com você em particular, se é que o faça.
— Se é que o faça. . . Ha! — Ela jogou a cabeça para trás. — Eu duvido
que você vai ter uma chance, Farley. —Rebecca tinha mais coragem do que os
outros. — O que isso significa — ela perguntou, — que tipo de pais que vocês
são? Vocês dois são bons pais, não é?
— Parece que o Sr. Farley acha.
— Roberta, cale a boca.
— Eu não vou calar a boca em perto das minhas filhas, Farley! — Ela
gritou. — É por isso que a minha família funciona! Então, não me diga para
calar a boca! Cale a boca você! Você é tão bom no que faz de qualquer
maneira, que deve vir naturalmente! Cale-se todos os seus sentimentos, e todos
os velhos vestidos de sua esposa, e a verdade sobre o que sua mãe e os
cidadãos respeitáveis de Camden pensam sobre Roberta Jewett e suas
meninas! Bem, nós somos apenas tão boas quanto qualquer um nesta cidade, e
você pode voltar e dizer-lhes isso por mim!
Gabriel fechou-se e olhou para fora no mato à beira da estrada verde
piscando sob as luzes de carboneto. Uma criatura da noite com olhos cor de
âmbar desapareceu na vala.
Os passageiros do banco traseiro andavam em silêncio.
Roberta tomou uma curva muito rápido e Farley deslizou para fora do
asssento.
— Calma — ele ordenou.
Vá para o inferno, ela pensou, e continuou no mesmo ritmo alucinante. Em
Camden, avançaram ruidosamente ao longo dos trilhos do bonde, passando
pelo moinho e até a colina para Alden Street.
Ninguém falou quando ela parou o carro, lançando todos para a frente em
seus assentos. Ela colocou as várias alavancas na posição correta, saiu e
parou o gotejamento de carboneto. Num silêncio sombrio todos começaram a
separar seus pertences. Ele levou a pá para seu caminhão, mas Isobel pairava
atrás, muito perto das lágrimas.
— Obrigada pelo piquenique — disse à Roberta timidamente, então
sussurrou — você e meu pai não vão falar um com o outro mais?
Embora Gabriel tivesse o poder de despertar o seu temperamento, a
vulnerabilidade de Isobel fez muito pelo contrário. Ela tocou o queixo de
Isobel. — Eu acho que não, querida.
— Mas — Isobel olhou para o pai, que estava iluminando seus faróis —
Ainda posso ser sua amiga?
Roberta deixou cair o cesto e levou Isobel em seus braços. — Oh, é claro
que você pode, querida. Nós sempre seremos suas amigas.
Isobel a agarrou e lágrimas brotaram nos olhos de Roberta. Contra a parte
superior da cabeça da menina, ela disse — Sinto muito, que tenhamos
terminado esta noite mal após ela ter começado tão bem.
A partir de seu caminhão Gabriel ordenou severamente, — Isobel, vamos,
temos que ir.
Isobel afastou com relutância. Rebecca, Susan e Lydia rodeavam.
— Boa noite — Isobel disselhes, em seguida, acrescentou com um tom de
súplica — Podemos fazer alguma coisa amanhã?
—Certo . . . — Lydia e Susan responderam sem convicção, incerta do que
os adultos lhe diriam.
O motor de Gabriel disparou e, acima de seu forte ruído, gritou, — Isobel,
vamos lá! — E bateu a porta do caminhão.
— Tchau, ela sussurrou, e Roberta ouviu lágrimas em sua voz.
Suas três filhas se despediram, e Roberta levou o cesto para a casa,
enquanto Farley continuava firme, deixando as meninas assistindo atrás dele
como um trio de pássaros fora do ninho, mas que ainda não estavam prontos
para voar.
Capítulo 11
Roberta e Gabriel passaram muito tempo juntos para dar as costas à sua
briga como se isso não importasse. Era um final e finais machucam. Este
machucou. Nenhum deles iludiu-se sobre quão próximo eles estiveram de uma
ligação romântica. A verdade era que eles acabaram gostando um do outro,
desfrutando a companhia um do outro e a tentação de transformar aquela
amizade em algum tipo de ligação física certamente passou por suas mentes
desde o beijo. Roberta pensou da seguinte maneira: como leve ligação física.
Gabriel, admitiu depois da briga deles, que eventualmente os imaginou como
amantes, depois descartou a ideia somente para que ela reemergisse com
regularidade.
O ponto era discutível. A amizade deles havia acabado com uma nota de
amargura que permaneceu durante os dias seguintes. Sempre que recordavam
aquela noite do piquenique, cada um pensava em como a vida deles era
tranquila e prática antes de se conhecerem. Depois tornou-se turbulenta,
lembrando das críticas injustas que sofreram um do outro.
Roberta pensou, minha casa pode ser bagunçada, mas é tão limpa conforme
tenho tempo de fazê-lo – e certamente não é infestada! Quem ele é para criticar
a maneira como mantemos as coisas, quando isso serve para nós quatro? Sou
uma enfermeira que ensina outras pessoas sobre higiene, pelo amor de Deus!
Como ele se atreve insinuar que não cuido dos meus filhos de maneira
apropriada? Eles não viverão num...num museu onde nada pode ser tocado!
Eles se divertirão em seu lar, e se isso for um pouquinho bagunçado, bem, o
que eles se lembrarão quando forem mais velhos? A bagunça ou a diversão? E
se ele não gosta do jeito que me cuido, ele que vá para o inferno! Que ele ache
alguma “bonequinha” com cérebro de ervilha que viva e respire somente para
agradá-lo. Ela que fique com ele!
Gabriel pensava, ela tem uma maldita boca grande para uma mulher que
nunca havia visto minha casa, ou como Isobel e eu nos dávamos, ou como
lidávamos sem Caroline. E para ela pensar que eu nao amo minha filha – bem,
isto é um disparate! O pensamento de Isobel crescendo e partindo, me assusta
até a morte! Porque este lugar parece uma cela de prisão sem ela, e quando ela
partir definitivamente não sei o que farei. Talvez eu não fique bajulando minha
menina como Roberta faz, mas este é o jeito da mulher. Talvez eu faça Isobel
assumir sua parte da responsabilidade em manter o lugar limpo e apresentável,
mas isso é o que bons pais fazem; Eles não deixam seus filhos soltos como
esquilos! Roberta Jewel pode criar seus filhos da maneira dela e eu do meu, e
veremos quem causa melhor impressão nas pessoas da cidade. E se eu tiver
outra ideia idiota de ir lá e flertar com aquela mulher, espero que alguém me
bata na cabeça!
Uma noite após o piquenique, Isobel estava esperando quando Gabriel
voltou para casa do mercado.
—Papai, adivinhe!— Seu rosto brilhava de empolgação. Pediram-nos para
representar Hiawatha para toda escola.
—Isso é maravilhoso, Isobel!
—Pela própria diretora!
—Bem, é uma boa pequena produção. Ela deveria ter pedido.
A senhora Roberson e a senhorita Wern conversaram com ela sobre isso e
disseram que todo o corpo estudantil deveria ter a chance de ver, porque é um
clássico americano. E após escutarem a respeito a senhorita Abernathy disse
que seria perfeito para a programação do liceu durante a ultima semana de
aula. Então vamos fazer isso, e estou tão empolgada!! Você virá, não virá,
papai?
Ele estava a ponto de falar — mas eu já vi.
Porém a admoestação de Roberta o parou, passando por sua mente como um
raio. Nós dizemos ‘eu te amo’ de mil maneiras. Se você não sabe como, me
observe.
Ele se pegou respondendo como ela faria.
—Claro que irei. Jamais perderia.
Sua inesperada concordância, fez com que Isobel arregalasse os olhos. —
Não perderia? — Claramente ela estava preparada para desculpas. — De
verdade, papai? Você realmente não perderia?
Ele Chuckle sorriu pego de surpresa. — Acabei de dizer que não perderia,
não disse? Se eu disse, estarei lá.
Convencida, Isobel lançou os braços ao redor dele e o abraçou com força.
— Oh, papai, estou tão feliz. Jamais pensei que concordaria em ver pela
segunda vez. Muito obrigada por dizer sim!
De repente pareceu que Roberta estava lá, como um anjo-da-guarda com
grandes asas, pairando sobre Isobel cuidando de seu bem-estar emocional.
Quando o instinto de Gabe disse-lhe para retornar, o fantasma de Roberta
ordenou-lhe: Não perca esta chance. Ele enrolou seus braços em torno de
Isobel e pousou sua bochecha em seus cabelos. Ele sentiu sua surpresa: um
momento de calmaria, durante o qual seu coração bateu rápido e ele pensou
por que ele demorou tanto. Eles permaneceram juntos enquanto ele sentia as
engrenagens sentimentais se encaixando. Então ela se afastou e olhou para ele
com um sorriso tão maravilhado, que ele achou seu prêmio ali.
O momento de proximidade passou, trazendo um momento de embaraço.
Isobel corou e disse — Bem...tenho que ir ligar para Susan, Lidia e Rebecca.
Tudo bem, papai?
— Tudo bem — ele disse e retirou suas mãos de seus ombros.
Vendo-a apressar-se, sentiu seu brilho remanescente aprofundar-se nele
fazendo-o um ser mais inteiro do que era antes. Uma coisa tão simples – um
abraço, uma palavra gentil, um sim – mas que reações complexas evocou.
Muitos anos atrás, quando Isobel era uma criança, ele sentia-se assim quando
a olhava em seu berço, como se ele fosse cheio de vida, que uma gota a mais
de bondade e ele transbordaria.
Surpreendeu Gabe a frequência que ele pensava no abraço que ele e Isobel
dividiram, quão caloroso o fez sentir-se, e quantas lembranças de Caroline.
Talvez Roberta estivesse certa: Ele deixou o alimento emocional de sua
esposa e quando ela morreu ele não teve meios de substituí-la neste
departamento. Mas ele realmente ressentiu-se da intromissão de Isobel em seu
luto?
Não...não, isso era uma acusação ridícula, que ainda machucava. Ele amava
sua filha – essa reação não era uma prova verdadeira? – e para Roberta acusá-
lo de se ressentir dela era uma ferida emocional que Gabe não ia esquecer tão
cedo.
A apresentação de Hiawatha na escola ocorreu às duas horas da tarde, numa
quinta-feira na última semana de maio. Gabriel trabalhou a manhã toda na
oficina e foi para casa à uma hora para trocar-se, refrescar-se , barbear-se e
pentear seus cabelos.
Roberta estava trabalhando do outro lado de Bald Mountain, e quando ela
dirigiu-se para a estrada Barnstown ela tinha pouco tempo para pensar em
roupas e pentes.
Ele chegou dez minutos adiantado.
Ela chegou dez minutos atrasada.
Ele sentou no fundo, sozinho.
Ela sentou-se na terceira fileira perto de sua irmã e sua mãe.
Ele assistiu, ainda como uma gaivota sonolenta.
Ela movia seus lábios junto com as palavras.
As meninas fizeram uma esplêndida performance e, quando acabou, foram
fortemente aplaudidas. A senhorita Abernathy agradeceu e as reverenciou, e
depois de um resquício de aplauso, a audiência levantou-se e misturou-se no
auditório da escola.
Gabriel foi direto para fora.
Roberta seguiu direto para os degraus do palco, onde encontrou o elenco
descendo. As meninas estavam falantes, excitadas, satisfeitas consigo mesmas,
aceitando muitos comprimentos e cercadas pela multidão, que se deslocava em
massa para a saída.
Roberta deu um jeito de abraçar suas três filhas e as de Grace e finalmente,
Isobel, que apertou um pouco mais forte e mais demoradamente que as outras.
— Senhora Jewett...Deus, é tão bom te ver novamente.
— Estou tão orgulhosa de vocês, meninas! Todas vocês fizeram um trabalho
esplêndido!
— Nós realmente fizemos, não fizemos?
— Todo mundo está dizendo.
Elas separam-se, olharam-se e abraçaram-se novamente com um nó na
garganta.
— Tenho sentido sua falta em casa.
— Tenho sentido falta de ir lá. Mas papai quer que eu fique mais em casa.
— Sim. Eu sei que ele quer. Mas você sempre será bem vinda, você sabe
disso, não sabe?
— Sim...eu sei.
Separando-se, a menina e a mulher viram afeto nos olhos uma da outra, e
talvez algumas lágrimas represadas.
Gabriel estava aguardando do lado de fora, no sol, quando Roberta saiu com
um dos braços ao redor de Susan, e o outro em Isobel, rodeada por jovens e
seguida por sua mãe e irmã. Ele ficou fora, no jardim da escola ao lado de um
grande pedaço de pedra de trinta toneladas chamada Conway Boulder em
homenagem aos mortos de guerra de Camden. Enquanto ela descia os degraus
do edifício da escola, seus olhares colidiram, trazendo uma mistura do boas e
más memórias. Se seus corações enviaram a mais leve vibração, nenhuma
deles demonstrou. Ele ficou tão imóvel quanto a própria rocha, ela permaneceu
no meio de seu grupo. Talvez ela tivesse virado para seguir para seu veículo,
mas os jovens a empurravam, e ela não conseguiria desviar com delicadeza.
Conforme o grupo movia-se em direção a Gabe, Isobel soltou-se e correu para
abraçá-lo.
— Papai — Ela olhou para seu rosto com um triunfo radiante. — Todo
mundo está indo para a casa das Jewett para uma limonada. Posso ir?
— Tudo bem. Em casa para o jantar, huh?
— Eu prometo.
Conforme ela trotou para se juntar ao grupo, ele a assistiu.
Roberta observou a troca com alguma surpresa, conforme Gabe abraçava
Isobel de volta. Quando ele levantou cabeça seus olhares encontraram-se mais
uma vez, mas o que emanou de ambos foi frieza. A gravidade estava lá,
inegável – uma fisgada no coração e o desejo – mas orgulho se sobrepôs, e
agora não era o momento, não na confusão da despedida anterior com primeiro
e segundo anistas vigiando e sua mãe e irmã assistindo. As filhas deles sabiam
como as coisas ficaram entre eles, e também não podiam evitar de serem
curiosas.
Então eles não trocaram sorrisos, ele deu um leve meneio de cabeça e ela
respondeu da mesma forma antes de se virar e seguir.
Grace segurou Roberta pelo cotovelo e sussurrou em seu ouvido — Esta é a
primeira vez que vejo Gabe Farley em um evento desses.
Myra fez uma cara azeda e disse — Você não o está vendo mais, está,
Roberta?
Ela reprimiu uma resposta cáustica e respondeu obedientemente — Não mãe.
Conforme o grupo se movia, Gabe se viu olhando para o X das tiras do
avental nas costas de Roberta. Seu quepe de enfermeira branco captava a luz
solar como a neve no topo das montanhas. Seu cabelo cor de mogno estava
enrolado como uma bobina perfeita pela manhã, mas que agora estava se
desfazendo. Uma pontada de solidão o pegou durante a lembrança da casa
dela. Ele desejava poder segui-la para casa, sentar em sua varanda e ouvir as
conversas e risadas dos jovens visitando Roberta e beber uma bebida gelada.
Eles alcançaram o carro de Roberta e as crianças entraram – devia ser
quase doze delas, mas Roberta não se importou. Ela beijou sua mãe e sua irmã
na bochecha e quando ela estava a ponto de girar a manivela para ligar o
motor, Elfred apareceu e se ofereceu para fazer isso por ela. Gabe não sabia,
ao certo, onde Elfred havia estado: Não no auditório, ele tinha certeza.
Aparentemente ele veio para buscar sua mulher e sua sogra e dar a elas uma
carona para casa. Para qualquer avaliação, ele fez um longo desvio para se
fazer útil para Roberta, que declinou (com clara aversão) e girou a manivela
do carro ela mesma. Contra sua vontade, Gabriel riu da ousadia dela.
Conforme ela deu a volta e abriu a porta de motorista, ele teve a impressão
que ela parou por um segundo para olhar para ele, mas alguém andou entre
eles e cortou sua linha de visão e quando ele se deu conta o carro estava se
afastando.
Duas coisas que aconteceram durante a sessão de limonada naquela tarde
permaneceram na mente de Roberta. Uma foi quando Isobel disse a ela — Meu
pai disse que ele vai contratar uma mulher para lavar nossas roupas e cuidar
da casa...finalmente. — E a outra foi quando Rebecca - com o cabelo recém
lavado e com um batom vermelho claro – foi para a varanda e sentou-se com o
rapaz que deu a elas o peixe que limpou neste mesmo dia, nas pedras,
separada das outras meninas, que estavam rindo e conversando. O nome dele
era Ethan Ogier e ela pediu permissão para deixar a reunião e andar com ele
até a cidade e tomar um sorvete com refrigerante na farmácia.
O ano letivo terminou no Dia do Memorial, e o verão teve sua estréia oficial
com uma grande parada e um piquenique onde Roberta rechaçou os avanços de
Elfred quando Grace e Myra não estavam olhando. Ele a encurralou em seu
carro quando ela foi buscar uma manta. Seu ataque foi mais audacioso, desta
vez, e ela acabou estampeando-o forte o suficiente para deixar um vergão
vermelho em sua bochecha, antes de ele finalmente recuar e retornar para
Grace, lançando uma ameaça sobre seu ombro. —Eu ainda vou te pegar sua
vagabundazinha. Não pense que não o farei. Você está dando muito disso para
Farley – você pode guadar um pouco para mim! — Ele não retornou para o
piquenique depois disso, e apesar de Roberta imaginar como ele explicou o
vergão, ela nunca perguntou e Grace nunca mencionou. Faria cinquenta graus
abaixo de zero em julho, antes de Grace admitir que ela era casada como o
mais notório mulherengo do condado de Knox. Grace era a pessoa mais
iludida que Roberta jamais conheceu.
Junho chegou trazendo dias quentes para a pequena cidade litorânea de
Camden, esparramando um grosso verde pela montanha e deixando prateada a
Baía de Penobscot. Margaridas selvagens formavam caminhos pelas colinas
na costa recortada. Samambaias prestavam sua homagem aos pés do vidoeiro
branco. As frutas como morango, amora e framboesa – brotando em caminhos
protegidos, enquanto as aquilégias balançavam, selvagens e doces nas brisaa
do verão.
O verão mudou o porto e o cais movimentado. Bancadas de bacalhau
salgado aromáticos apareceram, próximo ao cais, para secarem ao sol. Os
barcos pesqueiros saiam cedo e retornavam mais tarde. Os turistas de verão
chegaram, enchendo a enseada de velas de barco e ocupando os chalés ao
longo de Dillingham’s point e pela Lagoa Hosmer. Na praia pública de Laite,
banhistas vestiam suas roupas de banho de lã e iam para a água aos montes. O
grupo da varanda de Roberta Jewett, nadou ali, também, e passaram o tempo
remando e pescando na Ilha Negra, fazendo piqueniques no Monte Battie, onde
brisas frescas davam um alívio no mormaço a nível do mar.
Isobel, frequentemente, estava com eles, uma vez que Gabe havia contratado
a viúva de trinta e seis anos, chamada Elise Plowman para cuidar da casa,
lavar a roupa e fazer alguma comida. A mãe dele permaneceu distante e sua
filha parecia mais feliz do que ela jamais foi, depois que ela voltou a sentar-se
na varanda e a explorar o topo das montanhas com o grupo Jewett. Apesar da
casa de Roberta ser o ponto de encontro do verão para um número ainda maior
de rapazes e garotas, Rebecca ficou menos com suas irmãs e mais com Ethan
Ogier.
O verão avançou, Roberta amava cada vez mais seu trabalho. Ela ia de
condado em condado, ficando, alguns dias, até o anoitecer. A recém criada
especialidade de enfermeira pública, legitimada pela presença da Cruz
Vermelha na contínua guerra na Europa, deu às suas enfermeiras “liberdade
para iniciar” e “ autorização para educar”, e assim ela o fez. Conforme ela
cruzava a cidade, ela começou a procurar casas que tinham fraldas no varal e
parava nelas para verificar o bem-estar das mães e bebês. Ela deu aulas de
cuidados infantis e descobria através das “fofocas do condado” quem estava
grávida, depois ia a essas casas para dar conselhos pré-natais e indicar
parteiras. Ela iniciou um programa visando a prevenção de febre tifóide e
outras doenças transmissíveis através de falta de higiene e ignorância. Ela
começou uma cruzada anti tuberculose com a ajuda de materiais impressos
pelo estado e implementado pelo exame e supervisão de casos. Ela examinou
olhos e ouvidos e visitou doentes recém saídos do hospital, e cegos que não
sabiam que havia ajuda para eles.
Ela aprendeu mais sobre o funcionamento de um carro modelo T, ela
aprendeu a levantar o assoalho, remover a tampa da caixa de transmissão e
ajustar as correias de transmissão com uma chave de fenda; como colocar uma
borracha de remendo num furo de pneu, embrulhar com uma toalha e amarrar
com um arame para andar mais 50 milhas extra; como usar uma inclinação
acentuada quando a nível de gasolina estiver baixo, assim a gravidade
ajudaria a alimentar e não parar o motor. Ela até aprendeu a ligar o carro com
uma chave no lugar da manivela – sintonizando seu ouvido para aquele
barulho particular na bobina de ignição que indicava que havia gasolina no
cilindro e nos pistões e que estariam na posição correta, apesar de ela nunca
saber (se a chave de partida conseguiria funcionar) se Tin Lizzie iria arrancar
para frente ou para trás.
No último dia de junho ela foi enviada para fazer um check-up num bebê de
seis semanas e em sua mãe e subiu uma das piores estradas que o Condado
Knox tinha a oferecer. Estava um dia quente e nublado. Do alto do monte
Howe, a baía Penobscot parecia estar fervendo. Uma névoa perolada estava
em cima , tampando a superfície d’água com uma camada de nuvens delgadas
que ficavam de forma incoerente e preguiçosa ao redor do sol sombrio. A
direção de madeira sob as mãos de Roberta pareciam escorregadias conforme
ela se chocava com o leito da estrada gasta. Ela bateu em uma pedra e saltou
alto e duro...e quando ela pousou o motor parou de funcionar. Ela estava indo
em direção a uma descida acentuada e se manteve margeando até ela se
aproximar do cruzamento da estrada Hope, onde ela bateu e parou de forma
brusca e precisa com o carro inclinado sobre o mato e nas pedras na margem
direita.
Maldita máquina! Ela golpeou a direção e lutou para abrir a porta. Com a
gravidade trabalhando contra ela, precisou de um forte empurrão antes de se
mexer e de ficar em pé sobre o cascalho com as mão na cintura com
repugnância. Ela olhou ao redor: um T na estrada, a poeira baixando atrás
dela, copos de leite e repolhos balançando, na vala, grilos pulando e
cricrilando entre a grama e os dentes-de-leão ao redor do carro, mostarda
selvagem brotando preguiçosamente na vala e a nota incessante dos gafanhotos
escondidos no mato.
As nuvens afastaram-se do sol e o calor aumentou, cozinhando o topo de sua
cabeça, enquanto ela pensava o que deveria checar primeiro. Correia do
alternador? Provavelmente não, uma vez que o radiador não estava chiando.
Mas ela abriu o capô de qualquer maneira e deu uma olhada. O calor que
vinha do motor era horrendo, mas a correia do alternador estava no lugar e as
coisas pareciam no mesmo lugar que ela se lembrava. Ela sacolejou os cabos
da vela, checou o terminal do magneto. Eles pareciam ok. Então, poderiam ser
as correias de transmissão, mas mesmo se elas precisassem de ajuste não
deveriam parar o motor desta forma. Quando ela estava levantando o banco da
frente para checá-las, ela pensou em checar a gasolina. Ela arrastou o banco
para fora e o inclinou contra o estribo, depois removeu a tampa da gasolina do
buraco entre o assoalho, usando uma vareta de madeira, ela achou seu
problema – muito seco. Tirando a lata de gasolina Valvoline do banco de trás,
ela ouviu um barulho de motor aproximando-se; ela endireitou-se e aguardou.
Um carro preto de passeio apareceu no cume do morro pelo leste e diminuiu
conforme descia a leve inclinação e aproximou-se dela. Antes mesmo de ele
estacionar ela reconheceu Elfred.
Ele estava sem chapéu, fumando um charuto e com um sorriso afetado
conforme ele desligava o motor e saia do carro – nunca tirando os olhos de
cima dela.
— Bem, o que temos aqui...uma donzela em perigo?
Ela colocou uma mecha solta de seus cabelos atrás da orelha e repondeu —
De maneira nenhuma. Estou apenas enchendo o tanque de gasolina.
— Bem, me permita, Sra Jewett — disse ele passando para ela seu charuto.
—Aqui, segure isto, esta bem?
Ele deixou seu paletó para trás e estava vestindo uma camisa branca com
colarinho calças risca de giz cinza e suspensórios pretos estreitos. Mesmo no
calor no final do dia, seu colarinho estava firmemente ajustado. Apesar da
goma embaixo do suspensório ter murchado, era aparente que sua camisa
esteve fresca e engomada esta manha. Elfred tinha um gosto por esmero.
Esmerado por fora e sórdido por dentro, ela pensou, estudando a parte branca
de trás de sua camisa, conforme ele pegava a lata de gasolina.
— É muito gentil de sua parte, Elfred, mas eu poderia ter feito isso sozinha.
— Bobagem. Que tipo de sujeito passaria por uma mulher com problemas,
tão longe da cidade sem oferecer uma ajuda? — Ele remover a tampa da lata
Valvoline e se posicionou para derramar enquanto ela tentava balançar a
fumaça do charuto para longe. O ar estava tão parado, ela poderia achar uma
brisa, não importava para onde ela virasse, e fumaça a seguir. Conforme ele
derramava, ela estudava a costura traseira de suas calças. Ela desviou o olhar,
tomada por uma onda de desgosto. A quietude e a distância pareciam
magníficas para a imutável musica dos grilos e o calor opressivo.
Finalmente ela perguntou — O que esta fazendo por aqui desocupado?
— Olhando o imóvel dos Mullens. Ela decidiu vender, ao invés de
administrar ela mesma. E você?
—Eu tive um caso por lá...— ela movimentou-se. — Uma mãe recente com
um bebê de seis semanas. Examinei-a e dei algumas orientações para o
cuidado de bebês. Há muita ignorância em todos os lugares. Isso mata muitas
crianças sem necessidade, principalmente recém-nascidos.
Ele deu um olhar de soslaio sobre seu ombro e voltou seus olhos novamente
para a gasolina.
— Eu não a vi desde o piquenique do Memorial day.
— Estive ocupada correndo pelo condado.
— Ele parou de derramar a gasolina e afastou-se do banco da frente com a
lata. — Você sabe, eu não gostei da maneira como me tratou aquele dia. — Ele
colocou a trava na lata e a tampou com a mão em concha. — Você colocou uma
marca em meu rosto que deu muito trabalho para explicar para Grace.
Roberta buscou em sua mente alguma coisa para dizer, enquanto ele
guardava a lata no banco de trás, depois andou na direção dela, limpando a
mão em um lenço de linho branco. Quando parou na frente dela, ele guardou o
lenço no bolso de trás e ficou no caminho dela. Ela deu um passo para trás.
— Você está um pouco agitada, Birdy. — ele disse, pedindo seu charuto com
um sorriso insidioso. — Não está?
— É melhor eu ir andando. As meninas estão me aguardan do às cinco.
— Não tão rápido. — Sua mão avançou e agarrou o braço dela. — Não
ganho nenhum agradecimento por ajudá-la?
Ela puxou de volta, mas ele segurou firme. — Obrigada Elfred. Agora posso
ir?
Elfred podia colocar mais lascívia em seu sorriso do que qualquer pessoa
que ela conhecia.
— Deixe-me ir, Elfred. — Ela tentou abrir os dedos dele, mas ele a enlaçou
com o outro braço e abriu as pernas, arrastando e apertando ela contra ele, seu
bigode muito próximo dos lábios dela.
— Deixar você ir? E seu eu não quiser?— Ele riu como um lobo, seus
rostos tão próximos que ela podia cheirar o charuto em seu hálito e a gasolina
em suas mãos. — E se eu descobrir por mim mesmo o que de tão precioso há
embaixo desta saia que você guardou para Farley? E seu fizer isso, huh,
Birdy?
Ela forçou um braço entre eles e empurrou. — Deixe-me ir.
— Não desta vez, Birdy. Desta vez não há ninguém aqui para me parar.—
Ele abaixou o rosto, mas ela virou o seu de lado.
— Elfred, por favor...não.
— Me mostra, Birdy... vamos lá.
— Elfred, eu disse não! — Seu pânico crescente parecia aumentar o fogo
dele.
— Vamos lá, Roberta, não seja tão mesquinha.— A luta aumentou, assim
como seu medo.
— Pare, Elfred!— Ele puxou de um lado e ela de outro, e o combate deles
levantou poeira na estrada.
— Toda essa coisa quente você tem segurado a distancia de um braço...—
Ela tentou dar uma joelhada nele, mas sua saia travou sua tentativa e ele estava
cuidadoso em seus movimentos, mantendo-se de lado ou bem perto. —Não me
diga que você não gosta disso...Já ouvi sobre mulheres divorciadas...elas
gostam de qualquer maneira que conseguirem, não é isso, Birdy?
Ele agarrou o cabelo dela, inclinou sua cabeça para trás, pressionando sua
língua em seus lábios travados. A touca branca dela caiu na estrada. Se crânio
parecia como se estivesse sendo arrancado de suas têmporas. O cheiro de
fumaça de charuto encheu suas narina enquanto continuava a aumentar por trás
dela conforme ele lutava com ela por controle. Ele se manteve empurrando o
peito dele enquanto sua boca machucava os lábios dela – empurrando!
Empurrando! – até que finalmente ele perdeu a posse e sua mão escorregou
pelas costas dela. Quando ele se deslocou para agarrá-la novamente, a chance
dela apareceu. Um empurrão forte, e ela se livrou dele, girando e correndo.
Ele deu cinco passos antes que ele a derrubasse, gritando, contra o estribo
do carro. O banco solto caiu e o ombro dela bateu no metal. Ela escorregou
em um ângulo, metade sobre o cascalho e metade sobre o banco. Dor rompeu
através de seu quadril e seu ombro direito.
— Ow! Ela chorou —Meu braço! Elfred...meu braço!
Estava deslocado embaixo dela enquanto ele a arremessava com uma
surpreendente facilidade.
— Vire para cá, maldição!— Ele montou as coxas dela enquanto ela lutava
com ele da melhor maneira que podia.
— Elfred, por favor...não...Por favor...Elfred, meu braço...
O braço esquerdo dela estava livre. Ela o golpeou com seus punhos tão forte
que ele uivou, ela balançou para um lado e se libertou. Ela levantou correndo,
mas seu uniforme sujo e seu avental estavam enrolados nas calças dele , então
ele agarrou um punhado da saia dela. Ela o arrastou dois passos pelo cascalho
antes dele arrastá-la para trás e a deixor esparramada em suas costas.
Bem onde ela esteve.
Imobilizada pelo pescoço por uma de suas mãos fortes, enquanto ele
agigantava-se sobre ela, agora, enraivecido e machucado.
— Maldição Birdy! Estou ficando cansado disso! Você vai ficar quieta e vai
ficar agora! A brasa de seu charuto chegou perto do queixo dela. Ela gritou e
esperneou selvagemente, o cascalho sendo arrastado pelos seus saltos. Ele a
segurou pela garganta, seus dentes cerrados, os cabelos caindo pela testa dele
seu rosto perverso. Um inchaço vermelho estava se desenvolvendo próximo
aos olhos dele.
— Você vai parar de lutar, Roberta. Entendeu?
Os olhos apavorados de Roberta responderam.
— Agora... eu não quero queimar você Birdy, mas eu vou!
Ela tentou unhar as mãos dele , inutilmente, acabou arranhando sua própria
garganta.
Eu não consigo respirar, ela tentou dizer, mas não conseguiu.
O rosto dele ficou vermelho e tremia conforme sua ira ia aumentando. Ele
aumentou o aperto, a chacoalhou batendo a cabeça dela no cascalho. —Eu vou
ensiná-la a me tratar como merda! Você se acha tão malditamente boa para
mim, não acha, Birdy? Bem, tenho mulheres por todo o condado quarendo
abaixar as calças para mim. Então por que não você, huh? O que é
malditamente exclusivo sobre Birdy Jewett?
Ela deitou cegamente, apertando os pulsos dele, o cascalho esfregando em
seu pescoço e sua cabeça.
Eu não posso respirar, ela falou sem voz.
Finalmente ele liberou sua garganta o suficiente para deixar ela respirar e
afastou seu charuto. Sua expressão ficou feroz e ele falou com os lábios
travados — Agora você vai fazer isso, Birdy.— Ele olhou para seu colo. —Vá
em frente.
— Você vai ter que me matar primeiro — ela sussurrou asperamente.
—Não, não vou.— O charuto dele retornou...mais perto desta vez. Assim
como seu rosto, impregnado pelo charuto fedorento.
— Não me faça queimá-la, Birdy. Eu não gostaria de fazer isso, mas você
tem que aprender a fazer o que um homem diz, então ele vai deixa-la em paz.
Agora, faça isso. Me desabotoe.
Ela se esforçou para tirar seu queixo do calor. Impossibilitada. Olhos cheios
de medo.
— Não me subestime Roberta. Esse tem sido seu problema – você sempre
me subestimou. Agora você vai fazer, Birdy. Vá em frente.
— Por favor, Elfred...— lágrimas molhavam suas têmporas e faziam um
caminho molhado no cascalho.
— Faça. — Ele a tocou com o charuto e ela gritou.
E desabotoou as calças dele.
— Agora as suas.— Os olhos dela estavam fechados de humilhação, mas ela
o sentiu levantar e tirar os suspensórios, passando o charuto para a outra mão.
O resto foi fácil, apesar dela recusar-se a ajudá-lo mais. Com o joelho em seu
estômago, ele levantou a saia, , empurrou o cós, puxou sua cueca...e por último
arremessou o charuto no mato. Ela então tentou empurrá-lo e arranhar seu
rosto, mas era inútil. Ela imobilizou os punhos dela acima da cabeça, jogando
cascalho em cima deles conforme ele se colocava entre suas pernas forçando-
se para dentro dela.
Ela sentiu lágrimas quentes escapando de suas pálpebras trêmulas enquanto
se cunhado a maculava. Ela aguentou isso colocando-se além do que estava
acontecendo...além da da bestialidade e dos grunhidos dele...e do cheiro de
charuto...e de gasolina... e do suor da pele dele...além da dor das pedras que a
machucavam por baixo... e a ignominia de estar sendo violada contra sua
vontade, de estar sendo tratada como um objeto descartável, menos que
humano. Ela retirou-se para o canto dos grilos, e a promessa de uma água
fresca, e o gorjeio dos passarinhos e o som das vozes de suas crianças na
varanda no crepúsculo, maravilhando-se com os vagalumes e a leitura de
James Russel Lowell —A visão de sir Launfal O que é tão especial quanto um
dia em junho?
Como sempre os dias são perfeitos...
Quando estava terminado, Elfred se retirou, sentando para trás nas pernas
dela, ela, então, colocou seu braço sobre os olhos e ficou imóvel.
Ele se atrapalhou com um lenço e a aba da camisa, depois seu peso
deslocou apoiando a mão na barriga dela, ele se impulsionou para cima,
forçando seu fôlego escapar com um grunhido.
— Este maldito cascalho é duro para os joelhos, ele disse enquanto os
esmagava com os sapatos.
Com seus olhos ainda cobertos, ela abaixou sua saia e forçou-se a ficar
inerte até ele ir embora. Como seria fácil matá-lo bem ali onde ele estava.
Tivesse ela uma arma, ela de boa vontade apontaria para a cabeça dele e
puxaria o gatilho, sem sentir qualquer remorso.
Répteis como Elfred mereciam ser massacrados.
— Venha Birdy, é melhor você levantar.
Ela sentiu a mão dele em seu braço.
— Não me toque — ela disse arrancando com um safanão para se livrar do
toque detestável, seus olhos ainda cobertos. Ela falou com uma calma mortal.
— Se me tocar de novo, juro que vou mata-lo, Elfred. Não agora, mas logo. Eu
acharei uma arma, alguma faca, ou uma de minhas seringas com o tipo certo de
droga dentro, ou veneno de rato, ou talvez o acelerador do meu carro vai,
convenientemente, colar quando você cruzar a rua em que estarei dirigindo, ou
não importa o que for preciso, mas vou matá-lo, Elfred, se alguma vez, na sua
vida, você encostar novamente um dedo em mim.
Ela não precisava gritar para dramatizar. A certeza em sua voz, fez Elfred
mover-se devagar, a meio caminho de levantar seus suspensórios.
— Olhe Birdy, eu não seria tão duro se você tivesse se rendido semanas
atrás. Eu tentei seu bom e persuasivo com você, mas você não prestava
atenção.
— É assim que você racionaliza o crime que acabou de cometer?— Ela
recusou-se a mover o braço e olhar para ele. ‘Se eu ficar grávida por causa
disso, você pode esquecer que eu vá arriscar minha vida para tirar com
alguma parteira. Mas seu bastardo vai aparecer numa cesta na sua porta, como
um bilhete dizendo a Grace e as meninas porque está lá. Agora se afaste de
mim. Pegue seu corpo desprezível, suado e inchado e vá para longe de mim,
antes que eu pegue meu carro e te passe por cima de você aonde você está.’
Quando ele partiu, ela ainda estava deitada onde ele a estuprou, seu braço
ainda sobre os olhos.
Capítulo 12
Somente quando ele saiu com o carro, ela rolou para o lado e abraçou sua
barriga. Mais lágrimas vieram, e também um tremor feroz ao longo de todo o
seu corpo, mas ela resistiu a sucumbir à disfunção total. Eu não posso, não
posso, pensou ela, mantendo um corredor estreito de sua mente aberto a razão,
extraindo uma força interior que imaginava ser justo o necessário para manter
a sobrevivência. O choque tardio sacudiu seu corpo, firmando sua cabeça
contra o cascalho como “dentes de tubarão”, mas ela chorou em silêncio,
deixando as lágrimas rolarem sobre as pedras, que escureceram como
manchas de chá sob sua têmpora.
Levante-se. Busque ajuda. Ela ouviu a voz interior, mas, levantando-se, ela
teria se dobrado, então ao invés de levantar-se ela estava esperando os
tremores passarem. Era como se ela estivesse assistindo alguém chacoalhar no
meio daquele caminho remoto, olhando a partir da borda da vala, enquanto a
vítima daquela violência se enrolava de lado, com os braços apertados em
torno de sua barriga e com lágrimas vazando de seus olhos. Enquanto isso, os
gafanhotos passavam gorjeando, e um bando de pintassilgos se agitavam em
um pedaço de cardo roxo, conversando amigavelmente. Ela estava consciente
deles subliminarmente, e das hastes de algumas chicórias insignificantes que
espocavam contra o horizonte, e do próprio horizonte – a reunião do verde
com o azul brilhantes, enquanto a natureza indiferente continuava com sua
programação de Verão, e deixava uma mulher devastada para reunir suas
forças na estrada.
O tempo passou . . . cinco minutos ou dez. . . ela não sabia quanto, antes da
voz conseguir passar.
Levante-se. Busque ajuda.
Ela se arrastou e se levantou, e se sentou apoiada em uma mão, estarrecida
com a incapacidade de seu corpo ser controlado por sua vontade. Continuou a
tremer como se estivesse enfraquecida, e não havia raciocínio que restaurasse
sua calma. Ela encarou entorpecida suas saias empoeiradas, seu sapato
esquerdo, onde o leito da estrada tinha raspado o branco brilhante na parte do
dedo e deixado apenas o couro nu. Alguns corvos voaram acima, grasnando
alto. Sua cabeça doía.
Preciso de um banho. . . por favor . . . alguém, me ajude a conseguir tirar
esse lodo fora de meu corpo.
Ela levantou-se instavelmente, o cascalho cravado em suas palmas como
joias, parte dele caiu quando ela levantou a saia e puxou sua roupa de baixo,
segurando a cintura de suas calças sem botões no lugar. Ela vacilou até o
carro, deixando para trás seu boné branco e um botão de madre-pérola entre
os arranhões da estrada. O banco da frente estava deitado onde havia caído, ao
lado do encosto, ela o arrumou no Ford, em seguida, acionou a marcha,
manobrou o carro e dirigiu abaixo pela Howe Hill indo para Hope Road, ao
longo da Megunticook River paralela à Washington Street e, eventualmente,
pela cidade para Belmont Street.
A voz em sua cabeça disse a ela onde ela deveria ir. Ela não queria que suas
filhas a vissem naquela condição, nem sua mãe - e ir até Grace estava fora de
questão, mas por que infligir seus problemas a Gabriel Farley, um homem que
não queria ser incomodado? Pura autopreservação a levou à sua porta, seus
pensamentos mal eram pensamentos, mas o instinto irracional a fez procurar
refúgio.
Ao erguer os dedos para bater em sua porta de tela, ela ouviu a voz
cantando de novo: Deixe-o em casa. . . deixe-o em casa. . . Em algum lugar em
suas percepções distantes ela detectou o cheiro de carne assada e café, mas a
hora do jantar e sua rotina monótona não estavam relacionados a este dia.
Ela bateu na porta e ele veio, segurando um pano de prato que estava usando
como um pegador de panela, aparecendo na porta acima dela como São
Miguel, o arcanjo disfarçado em cambraia azul e cáqui.
— Roberta?
Gabriel — . . . EU . . .
— Roberta, o que está errado?
— Eu não sabia mais para onde ir.
— O que aconteceu? — Ele moveu-se rapidamente em torno da porta de
tela, as sobrancelhas arqueando com preocupação, enquanto deixava de lado o
pano de prato.
— As meninas estão em casa. . . e. . . e. . . as meninas estão em casa. . . e. . .
Eu não quero que eles. . . as garotas . . . oh, Gabriel. . .
— O que aconteceu? — Ele agarrou seus braços e sentiu seu
estremecimento profundo.
— Sinto muito por ser um incômodo. — Ela agia de forma peculiar,
nebulosa, como um sonâmbulo.
— Você não é um incômodo, Roberta. Agora me diga o que aconteceu.
Ela olhou para sua garganta durante algum tempo, como se fosse incapaz de
dar sentido a sua presença ali, então virou a cabeça com suavidade mecânica e
estudou o tapume branco ao lado de sua porta.
Quase desapaixonadamente, ela disse a ele, — Elfred me estuprou.
— Oh, Jesus — ele sussurrou enquanto os joelhos dela cediam, puxou-a em
seus braços e a levou para dentro.
As paredes da cozinha passaram zunindo por ela enquanto se opunha —
Isobel está aqui? Isobel não pode me ver. Gabe, pare.
Ele percorreu sua casa, subiu as escadas, a levou para um quarto e a deitou
em uma cama macia.
— Esse filho da puta — disse ele, enchendo seu campo de visão enquanto
apoiava suas mãos em seus ombros. — Ele estuprou você?
— Eu tentei impedi-lo, mas foi inútil. Ele era tão forte, Gabe, e eu. . . EU . .
. — Um soluço a interrompeu.
— Onde isso aconteceu?
— Em Howe H-Hill. — Ela engoliu em seco e controlada seus soluços. —
Meu carro ficou sem gasolina e ele parou para m-me ajudar a enchê-lo, e então
ele. . . ele. . . — Ela tentou não chorar, mas a memória voltou e se repetiu em
sua mente, e com ela vieram os tremores novamente. Ela jogou um braço sobre
os olhos e sentiu Gabriel tocar a manga suja.
Ele viu as evidências flagrantes — cascalho em seu pulso, suas roupas
sujas, os hematomas roxos em sua garganta.
— Ele fez isso?
De trás de seu braço, ela disse: — Eu não fiz nada para encorajá-lo,
Gabriel. . . honestamente. . . você tem que acreditar em mim.
— Eu acredito que você, Roberta. — Tocando uma contusão no pescoço, ele
repetiu — Ele fez isso?
— Eu lutei e eu gritei, mas ele era mais forte do que eu pensava e não havia
nada que eu pudesse fazer. Primeiro ele me segurou, e como eu não parava de
lutar, ele me q-queimou com seu c-charuto.
—Oh Deus . . . — Ele a puxou para cima e a abraçou enquanto ela chorava,
enquanto piedade e raiva criavam um turbilhão de emoções dentro dele. Ele
apertou-a contra o peito, a testa em sua garganta, os olhos fechados, com medo
de perguntar onde ela tinha sido queimada. Seu coração estava disparado
quando ele imaginou o pior. Mas ele forçou-se a perguntar: — Onde?
Ela se afastou um pouco e correu as bordas de suas mãos sujas sobre os
olhos. — Debaixo do meu queixo.
Sob o queixo. Doce Jesus. Ele mataria aquele filho da puta desgraçado. Ele
pegou seus ombros e pediu — Deite-se, Roberta. Deixe-me ver.
Quando ele viu a bolha vermelha, sua raiva triplicou. Mas ele forçou-se a
pensar nela primeiro e na vingança em segundo.
— Eu tenho que colocar algo sobre isso.
Ele se mexeu para sair, mas ela agarrou sua manga. — Não, Gabe, por
favor. Isobel voltará para casa para o jantar e ela não pode me encontrar aqui
desta forma. Eu não quero que as minhas meninas descubram.
Ele cobriu a mão dela com a sua, apertando forte. — Isobel está em sua
casa. Vou ligar e dizer-lhe para ficar por lá algum tempo. Descanse que eu já
volto. — Ele se levantou da cama, estendendo as mãos para prolongar seu
toque enquanto ele se afastava. — Eu só vou demorar um minuto, Roberta.
Sua mão deslizou para longe e ela o ouviu as batidas dele descendo as
escadas como se alguém estivesse atrás dele com um machado. Ela fechou os
olhos e ouviu o toque da chamada, ele chamando o operador, em seguida, sua
voz, indistinta, enquanto ele dava o seu número. Da conversa com Isobel, ela
só ouviu fragmentos. —A Senhora Jewett e eu estamos conversando. . . você
iria . . . sim . . . nossa casa. . . você mais tarde. . . — Então, nada mais.
Ela descansou, com as mãos ao lado, as abanando sobre a colcha que
provavelmente tinha sido escolhida, lavada e dobrada sob os travesseiros
inúmeras vezes por sua esposa. Estranho, mas o pensamento daquela mulher
morta que nunca havia conhecido deu coragem e força para Roberta.
Ela sentou-se instável e equilibrou-se com ambas as mãos, olhando para
baixo com os olhos turvos para a colcha, era uma colcha de retalhos. As
paredes estavam forradas em cinza, salpicadas de rosas amarelas.
Encontrou-a dessa forma, sentada parecendo de alguma forma um pouco
mais forte.
— Eu trouxe um pouco de ácido bórico e pomada, mas você deve consultar
um médico.
— Não — disse ela com veemência surpreendente. — Sem médico! Vai se
espalhar por toda a cidade e as minhas meninas vão ouvir sobre o acontecido.
Se eu quisesse isso, eu teria ido direto para casa.
— Mas você está ferida, Roberta, arranhada e queimada.
— A queimadura não é nada. — Ela pegou a lata das mãos dele e tentou
abrir, mas suas mãos trêmulas não podiam fazer. — Vai curar em uma semana,
e a dor real é muito mais profunda do que qualquer médico possa curar.
Ele pegou a lata, abriu-a e disse: — Deite-se. Eu vou fazer isso.
Ela fez o que pediu, levantando o queixo enquanto ele salpicava a
queimadura com ácido bórico, em seguida, passou levemente a pomada. Ela
estremeceu, e ele também, odiando ter que machucá-la depois de tudo que ela
já tinha sofrido. — Sinto muito — disse ele, mas ela apertou a mandíbula e
suportou seus cuidados com estoicismo notável.
Quando ela ouviu a tampa voltar na pomada seus olhos se abriram e
encontraram os dele. Se levantou e se sentou do lado da cama, balançando as
pernas sobre a borda e levando uma mão suja até seus cabelos. Ele parou
diante dela, fora do seu elemento, incerto, mas percebendo que ela ainda não
estava em condições para levantar e ir embora.
— Você tem certeza sobre o médico?
Ela assentiu com a cabeça, os olhos baixos.
— Então o que você quer que eu faça?
— Um banho — disse ela calmamente. — Eu gostaria de um banho.
Sua resposta sacudiu-o com imagens indesejadas e uma percepção mais
aguçada de que a sordidez permanecia, mesmo após o ato ter acabado.
— Claro — disse ele, voltando-se para a cômoda.
Ela estudou a cambraia azul em suas costas enquanto ele se afastou e abriu
uma gaveta.
— Eu sou um grande problema para você — disse ela.
— Sim você é, mas não da maneira que você pensa. Não hoje. — Ele
escolheu alguma coisa, então se moveu até uma cômoda, seguido pelos olhos
dela e voltou para a cama, onde colocou algumas roupas perto de Roberta. —
Estas são algumas coisas de Caroline, ela era bem mais magra do que você,
mas esse é um vestido que ela usava enquanto esperava Isobel, por isso deve
servir. Vou trazer um pouco de água.
Ele saiu, deixando-a com as preciosas e intocáveis roupas de sua esposa.
Ela pegou as roupas, surpresa por sua generosidade e pelo quanto ele mudou
durante este verão agitado, desde que eles se encontraram pela primeira vez.
Ela segurou o vestido pelos ombros e ele caiu em cascata sobre seus joelhos,
um guarda-chuva de musselina florida de violetas com duas pequenas manchas
permanentes na frente. As manchas — prova de uma vida real num mundo real
— derramaram as lágrimas de Roberta mais uma vez. Ela colocou o rosto no
vestido de gestante de Caroline Farley e silenciosamente disse a ela: Eu amo
seu marido. Eu não quero, mas eu amo, e ele não quer me amar também, mas
eu acredito que ele o faz. Veja só, eu não sou nada parecida com você, e isso o
assusta, e ele luta contra seus sentimentos por mim, porque ele acha que está
sendo desleal a você. Eu sei perfeitamente bem que se ele nunca ceder e me
dizer, isso nunca vai ser como foi com você. Mas ele é um bom homem, e você
teve sorte. Obrigado por me emprestar suas roupas.
Gabe parou na porta, segurando uma tina de água quente, com uma toalha
pendurada no ombro. Roberta levantou o rosto do vestido de Caroline, que ela
segurava amontoado em ambas as mãos. Havia um espírito de oração em seu
semblante que tocou em seu coração.
— A água ainda estava quente no reservatório. — Ele entrou e colocou a
tina de água no centro de um tapete. — Trouxe um pouco de sabão, um pano e
toalha, também. — Ele pôs sobre uma cadeira próxima, em seguida, virou-se
para encontrá-la olhando para ele, com as mãos caídas em seu colo nas dobras
da musselina florida.
— Obrigada, Gabriel — disse ela.
— Quando você estiver vestida, me chame e eu levarei a tina.
— Sim. Você pensa em tudo.
Depois de uma pausa constrangedora, ele se moveu mais uma vez, em
seguida, parou abruptamente.
— Você tem certeza que pode se levantar?
Ela o fez, para mostrar a ele. —Viu? Eu vou ficar bem.
— Ok, então, tome o seu tempo. — Ele fez um gesto com as palmas das
mãos levantadas. — Não há pressa.
Ela deu um sorriso fraco e ele se dirigiu para a porta.
— Gabriel, há mais uma coisa que eu preciso te pedir para fazer por mim.
Ele se virou. —Qualquer coisa.
— É um assunto delicado, mas eu não vejo outra maneira de perguntar.
Entende... Eu não quero o bebê dele. Se acidentalmente houver um, eu não
quero isso. Você entende o que eu quero dizer?
Ele corou e mudou seu peso, baixando os olhos para o tapete. — Acho que
sim.
— Você poderia misturar um pouco de ácido bórico em um litro de água
quente e trazer minha bolsa do automóvel? Há algo lá que eu posso usar.
Ele limpou a garganta, ainda incapaz de encontrar seus olhos. — Claro,
volto logo.
A porta do quarto estava fechada quando ele voltou com as coisas que ela
tinha pedido. — Eu vou deixar aqui, Roberta, — ele chamou, inclinando a
cabeça na direção da porta.
— Obrigado, Gabriel — disse ela de dentro de seu quarto.
— Ouça, eu tenho que sair um pouco. Você ficará bem por um tempo?
— Eu vou ficar bem.
Ele mudou seu peso para o outro quadril, arrumando o cabelo atrás da
orelha direita e decidiu que, sendo um assunto indelicado ou não, ele poderia
ser tão corajoso quanto ela.
— O commode1 está debaixo da cama, Roberta. Sinta-se livre para usá-lo.
Além da porta do quarto tudo estava silencioso. Imaginou-a de pé do outro
lado e se perguntou o que ela usaria, então se sentiu como um pervertido
maldito por ceder à curiosidade em um momento como este. Mas que inferno,
ele tinha sido casado com Caroline por oito anos, tinha vivido com ela uma
noite de núpcias, uma gravidez e um parto sem se voltar a qualquer coisa
vulgar como essa. Ele sentiu seu rosto queimando de vergonha como na vez
que tinha visto a senhora gorda no carnaval que não podia fechar as pernas.
Mas não era um momento para ignorar, Roberta havia sido estuprada, e a
realidade tinha que ser enfrentada. Era notável como ela enfrentava qualquer
coisa que a vida lhe preparasse e se tornava mais forte por isso.
Ele colocou uma palma no batente da porta e lhe disse: — Você espere aqui
por mim, não vá a pé para casa, entendeu?
— Eu não vou. Mas Gabriel? Onde você vai?
— Até minha oficina — ele mentiu. — Parada rápida, então eu volto.
—Espere Gabriel, eu poderia pedir-lhe mais um favor, uma vez que você
está saindo de qualquer maneira?
—Qualquer coisa.
— Meu chapéu de enfermeira.... Devo ter deixado lá em cima na estrada
onde aconteceu. Eu não quero que ninguém o encontre, e eu preciso dele para
amanhã de manhã. Você se importaria de dirigir até lá e pegá-lo para mim?
— Só me diga onde.
— Na parte inferior da Howe Hill, onde se encontra com Hope Road. Há
um T na estrada.
— Eu sei onde é. Levo cerca de vinte minutos. Você ficará bem?
— Eu vou ficar bem. . . e muito obrigada, Gabriel.
—Tudo bem então... Eu voltarei.
Ele fez muito barulho ao descer as escadas para que ela soubesse que ele
tinha ido embora e que tinha total privacidade.
Do lado de fora, ele não pensou duas vezes sobre pegar seu carro, estava
estacionado em frente, e quando ele o manobrou, estava concentrando em
Elfred com tanta raiva que quase levantou os pneus dianteiros fora do chão.
Ele dirigiu direto para a casa de Elfred, segurando o volante e carrancudo,
sentindo o pulso elevar-se a cada quarteirão que passava até que sua
adrenalina estava bombeando por vingança através de sua corrente sanguínea.
Olho por olho não era bom o suficiente, ele decidiu. No caso de Elfred
teríamos talvez vinte para um.
A porta da frente dos Spears estava aberta e as vozes vinham da parte de
trás da casa. O jantar já tinha passado para a maioria das famílias, e os Elfred,
provavelmente, estavam terminando a refeição.
Gabe bateu na tela com a ponta de um punho e gritou: — Elfred, saia aqui
fora! Quero falar com você!
No fundo da casa as vozes silenciaram.
Gabe bateu na porta de tela novamente. — Elfred, traga seu traseiro aqui
fora agora ou eu vou entrar aí e arrastá-lo para fora!
Mais silêncio, seguido por sussurros.
— Elfred, você sabe do que se trata, então eu posso resolver isso aí dentro
na frente de sua família ou aqui fora no quintal da frente! A escolha é sua, mas
é melhor fazê-lo logo ou eu estou entrando!
No final do corredor central a cabeça de Elfred apareceu perto do arco de
sala de jantar. Em algum lugar atrás dele, Grace murmurava, — Elfred, o que
está acontecendo? Aquele é Gabriel Farley?
Elfred disse — Farley, você está louco?
Gabe abriu a porta de tela e ordenou — Traga sua bunda aqui fora, seu
bastardo pedaço de merda! Eu vim para dar o que nenhuma mulher pode dar-
lhe, e o meu sangue está bombeando muito rápido, Elfred, por isso não me faça
entrar aí e pegá-lo, porque você só vai piorar as coisas para você mesmo!
Elfred, visivelmente assustado, limpou a boca com um guardanapo de linho,
em seguida, se escondeu atrás dele por um momento.
Gabe entrou e deixou a porta bater ruidosamente.
Elfred apontou o dedo e disse: — Você saia daqui Farley, ou eu vou chamar
a polícia para você.
Gabe marchou pelo corredor. — Eu vou sair daqui quando eu terminar o
meu negócio com você, seu bastardo. — Ele o agarrou pelo colarinho e o
prendeu numa gravata, o arrastou direto pelo corredor, abrindo a tela da porta
com a parte superior da cabeça de Elfred enquanto seus pés pedalavam para
mantê-lo em pé. A família Spear se espalhou pelo arco e alguns deles gritavam
enquanto observavam o homem da casa ser usado, sem a menor cerimônia,
como uma vareta.
— Elfred! Oh, meu Deus! — Grace gritou, os seguindo.
Gabe arrastou Elfred pelos quatro degraus, ainda preso pelo pescoço,
sufocando-o com sua gravata. Cada palavra que Gabe falou saiu em um clara e
baixa voz de barítono. — Agora, para que não haja qualquer pergunta, isto é
pela mulher que você estuprou, Elfred, porque ela não pode fazê-lo sozinha.
Claro que você sabia disso quando você a estuprou, não é?
Ele desferiu os primeiros golpes, enquanto a cabeça de Elfred ainda estava
presa, próxima ao seu quadril. Quatro deles-trituração, trituração, trituração,
trituração -que quebrou seu bonito e pequeno nariz e colocou no olho dele uma
marca como um morango, igual ao que ele tinha feito com Roberta. Ele o
lançou na escada com uma joelhada e Elfred caiu para trás contra seus
próprios degraus da frente. Quando caiu, uma costela se quebrou e ele gritou.
Seus filhos e esposa estavam na porta se debulhando em lágrimas e chorando,
mas Gabe ainda trabalhou nele por um minuto ou mais, colocando-o de pé uma
vez e outra até que as pernas bambas de Elfred finalmente não o suportaram.
Então Gabe o deixou cair como uma sela usada, seus membros dobrados
debaixo dele como correias de estribo, enquanto Gabe inclinou sobre ele e
saqueou os bolsos de seu colete. Ele retirou um charuto, mordeu o final,
cuspiu, riscou um fósforo com seu polegar e soltou quatro baforadas da
fedorenta fumaça no ar noturno cheirando a lavanda antes de pegar sua presa
pelos cabelos e soltar sua cabeça apática de volta.
— Uma última coisa, Elfred. Olho por olho, uma queimadura por uma
queimadura. . . só não vamos escondê-la. Vamos colocá-la onde todo mundo
perguntará sobre isso.
Elfred ainda tinha medo o suficiente para gritar enquanto o charuto aceso se
aproximava do centro de seu bigode. No final, o bom senso de Gabe
sobressaiu e o parou quando ele tinha apenas chamuscado o bigode de Elfred
o suficiente para arruiná-lo.
— Ehh, seu verme sugador de merda, Gabriel disse em desgosto, o atirando
de lado e o deixando cair como antes, membros dobrados em direções
variadas, como Roberta tinha ficado quando Elfred a derrubou. Gabe estava
sobre ele, sua adrenalina ainda bombeamento, seus músculos poderosos de
carpinteiro pouco forçados pelo minuto e meio de pulverização do homem que
tinha atacado as mulheres durante anos. — Você teve isto esperando por você
por um longo tempo, Elfred, e eu estou feliz por ser o homem a fazê-lo. Se
qualquer um quiser saber onde me encontrar, estarei em casa, esperando para
testemunhar a respeito do porquê eu ter deixado você como um purê de frango.
Está me ouvindo, Elfred? A lei pergunta, e você os envia para me procurar.
Ele tocou a aba do seu boné, que não saiu muito do lugar em sua cabeça, e
disse, Boa noite, Elfred — antes de se virar para o carro de Roberta, cujo
motor ainda estava funcionando.
No quarto de Gabe, após ele ter saído, Roberta banhou-se por dentro e por
fora, estremecendo por vezes com recolhimento. Ela esfregou sua carne até
doer, incapaz de lavar a sensação suja das mãos e das partes masculinas de
Elfred que abusaram dela. Às vezes as lágrimas interrompiam, mas ela as
limpava com raiva, não querendo ser rebaixada por alguém tão baixo e bestial
como Elfred Spear.
Não me deixe estar grávida, não me deixe estar grávida, ela implorava em
silêncio. Às vezes, ela murmurava as palavras, em seguida, se continha, se
recusava a ser reduzida a um montão louco de choramingo, e apertava os
lábios teimosamente.
Uma vez ela disse em voz alta, claramente, — Elfred, você vai pagar!
Marque minhas palavras, você vai pagar! — Sem saber que Elfred já tinha
pago.
Quando ela tinha se secado com a toalha, ela colocou o vestido de gestante
de Caroline Farley. Ficou apertado no corpete, mas a cobria e cheirava a
lavanda das gavetas de Caroline. A roupa de baixo que Farley tinha dado a ela
ficou demasiado curto, então ela a deixou dobrada sobre a cama, evitando suas
próprias roupas de baixo sujas, que ela enrolou em uma bola e amarrou com as
pernas de suas calças. Sobre a cômoda, havia um espelho de mão e um pente
como Caroline tinha deixado. Ela removeu os grampos que sobraram em seus
cabelos e os sacudiu, enviando pedaços de cascalho para o chão em seus
calcanhares. Enquanto ela se penteava, ela estudou a foto de Caroline. Era uma
mulher como uma rosa graciosa, com toda delicadeza que um homem poderia
desejar, enquanto no espelho o próprio reflexo de Roberta mostrava grandes
maçãs do rosto e características corajosas com pouco a recomendá-las, salvo
a força, o que a maioria dos homens desprezavam e que ela tinha muito. O
pente movia-se através de seu cabelo quase desafiadoramente, e quando ela
terminou, ela colocou-o de volta no lenço de malha e disse: — Obrigada,
Caroline. Vou fazer algo de bom para sua filha. O que você acha disso?
Em seguida, ela se sentou na cadeira para esperar o marido de Caroline, que
parecia estar demorando terrivelmente. Ela tinha estado sentada lá há menos
de um minuto quando um gato marrom felpudo saiu de debaixo da cama, disse,
— Mrr. . . — E saltou para o seu colo.
Ela o conhecia pelo nome, embora nunca o tivesse encontrado.
— Olá, Caramel — ela disse enquanto ele fazia uma pausa agachando e
cheirando seu queixo, em seguida, circulou e encontrou um lugar em suas
roupas.
—Bem . . . então você é Caramel — ela disse, e levantou uma mão para
coçar o pescoço da criatura. — O que você acha que está tomando tanto o
tempo de seu dono?
Quando Gabe finalmente bateu, Roberta estava cochilando com o queixo no
peito.
— Roberta? — Ele chamou em voz baixa, e sua cabeça balançou para cima.
— Whmm? — Respondeu ela, desorientada.
—Posso entrar?
— Oh, Gabriel. . . sim . . . sim, entre.
Ele entreabriu a porta e olhou ao seu redor. O sol havia se posto, mas
Roberta não tinha ligado nenhuma lâmpada. Na penumbra do quarto ela tinha
apenas uma fraca luz vinda de uma janela ao norte cujos vidros haviam se
tornado violetas. Seus cabelos caiam pendurados em suas costas e tinha
enfiado os pés descalços em seus sapatos brancos, e segurava um rolo de
roupas no colo, que era compartilhado por Caramel, cujos olhos se fecharam
após identificar seu dono. O vestido de Caroline parecia desalinhado nos
ombros muito mais amplos de Roberta, mas ele se encontrava pronto para
aceitá-lo lá.
— Sinto muito — disse ela, sentando-se reto. —Adormeci.
Ele empurrou a porta contra a parede e entrou no quarto onde o cheiro de
sabonete branco ainda permanecia. —Está tudo bem. Isso é bom, na verdade.
Preocupei-me que você ainda pudesse estar chorando. . . ou com medo. . .
alguma coisa.
Ele parou perto de seus joelhos e ela olhou para cima. — Eu decidi que
lágrimas e medo são inúteis. O que está feito está feito, e eu não vou me deixar
ser arruinada por eles.
— Eu odiei deixá-la sozinha, mas eu tive que deixar.
— Você foi muito gentil comigo esta noite, Gabriel, mais gentil do que você
teria de ser, especialmente considerando o quão mal terminamos da última vez
que estivemos juntos.
Ele estava perto de sua cadeira, olhando para baixo em seu rosto virado
para cima, imaginando o que viria a acontecer a eles dois.
— Aqui está o seu chapéu — disse ele.
Quando ela estendeu a mão para pegá-lo, sua mão fez uma pausa. — Acenda
a luz, Gabriel.
—Por quê?
—Acenda a luz.
Ele escondeu a mão atrás das costas, com chapéu e tudo. —Por quê?
—Sua mão . . . o que você fez?
— Você sabe o que eu fiz. Eu bati no Elfred Spear até ele perder a luz do
dia.
— Oh, Gabriel. — E depois de todo o trabalho enxugando os olhos, eles se
encheram de lágrimas novamente. Ela baixou a cabeça e colocou uma mão em
seu rosto, tentando esconder a evidência de seus sentimentos por ele, porque
mais uma vez este não era o momento nem o lugar para revelá-los.
Ele se agachou perto dos joelhos dela e colocou o chapéu no chão ao lado
da cadeira e em vez de tocá-la, ele tocou o gato, esfregando sua garganta com
um dedo calejado. — Sinto muito, Roberta, mas eu não podia deixar passar.
Todo mundo vai ficar sabendo hoje – suas filhas, a esposa de Elfred, os filhos
dele. Mas um canalha como esse tem que ser detido em algum momento, e se
eu não fizesse, quem o faria?
Ela assentiu com a cabeça atrás de sua mão e disse: — Eu sei. É tão
inesperado. . . sua briga por mim. Ninguém nunca lutou por mim, eu sempre
tive que lutar por mim mesma.
Ele estendeu colocou uma mão grande e áspera em seu cabelo. Ele notou seu
pranto silencioso e se ajoelhou, colocando sua outra mão em seu cabelo,
também, puxando-a para a frente até que sua testa bateu em sua clavícula e a
boca dele descansou em seu cabelo cor de mogno.
Eles permaneceram dessa forma um longo tempo. Até que a janela ficou
mais escura e Caramel acordou e se viu cercada por muitas pessoas.
Silenciosamente ela saltou para o chão e caminhou para dentro da casa escura.
Então Gabriel sussurrou com uma voz grave — Eu fui lá fora para pegar o
seu chapéu, e eu achei um botão, também. E eu vi as marcas no cascalho, onde
ele derrubou você, e que Deus me ajude, eu queria voltar para a casa de Elfred
e acabar com ele. Em toda a minha vida eu nunca quis machucar ninguém, mas
hoje eu queria matar Elfred, acredito que se você me pedisse, eu o faria.
Roberta puxou sua cabeça e notou apenas o contorno obscuro de Gabe. —
Quanto você bateu nele?
— Muito. Eu quebrei alguns ossos.
— Oh, Gabe. Você acha que vão prendê-lo por isso?
— Eu não sei. É uma possibilidade. De qualquer maneira, toda a cidade vai
saber.
Ela suspirou e caiu para trás contra a cadeira, fechando os olhos.
Ele sentou-se nos calcanhares, perto, mas sem tocá-la. — Você está
pensando sobre suas meninas? — Perguntou.
— E a sua . . . e em você. Porque você sabe o que todo mundo vai dizer
sobre mim, não é? Eu sou divorciada, então devo ter pedido por isso.
— Mas eu sei a verdade. Eu vi a evidência!
— E você sabe o que eles vão dizer a seguir, não é? Que vim a sua casa em
primeiro lugar, que negócio é esse de eu ter vindo para a casa de um homem
sozinho em um estado como esse? Por que não ir para a casa da minha mãe?
Mas você quer saber por que eu não fui com ela? Porque ela vai dizer a
mesma coisa que todo o resto. Que a culpa foi minha.
— Não, Roberta. . . ela não diria.
— Sim, ela diria, é assim que ela pensa. A culpa é sempre da mulher.
Ele pensou por um tempo e depois disse: — Roberta, me desculpe se eu
piorei tudo batendo nele.
Ela teve pena dele e tocou seu colarinho. — Está tudo bem, Gabriel. E se
você pensar direito sobre isso, há um requintado senso de justiça em saber que
o verdadeiro caráter de Elfred veio à luz enfim. Afinal, como pode Grace
ignorá-lo agora que está bem diante de seus olhos?
— Mas os filhos dele sabem também, e eles não merecem isso. Eu não
deveria ter feito isso na frente deles.
— Não, Gabriel, você não deveria. Mas você fez, e eles, como todo o resto
de nós, vão ter que viver com o que eles sabem sobre o seu pai. Talvez seja o
maior preço que Elfred vai pagar - a perda do respeito e amor dos filhos.
— Então você não pretende denunciar para a justiça o que ele fez com
você?
Ela tirou a mão de seu colarinho e balançou a cabeça lentamente.
—Absolutamente não.
— Eu não concordo. — Ele suspirou e se levantou de seu agachamento,
elevando-se acima dela novamente. — É tão injusto, ele deveria pagar como
qualquer outro criminoso.
— Gabriel, não vamos mais falar sobre isso. — Estava completamente
escuro agora e ele viu apenas um vislumbre do rosto dela enquanto ela se
levantava. — Estou muito cansada e eu quero ir para casa.
— Eu vou levá-la.
— Não por favor . . . as garotas...
— As meninas sabem o que se passa entre nós, não estamos as enganando.
— O que está acontecendo entre nós, Gabe? Eu mesma pareço não saber.
— Você está cansada, você disse, e você já passou por muita coisa. Este não
é o tempo para falarmos nisso, por isso espere, Sra. Jewett. Eu farei algo que
fiz apenas uma vez na minha vida, em minha noite de núpcias.
Um segundo depois, ela estava em seus braços como uma criança a ser
levada para cama.
— Gabriel, me coloque no chão. Eu não sou Caroline.
— Eu sei que você não é Caroline, e o sei há algum tempo — declarou ele,
dirigindo-se para as escadas. — Acenda a luz. O interruptor é logo baixo do
seu quadril.
Um momento depois, o interruptor foi acionado e o brilho fez ambos
apertarem os olhos enquanto ele a levava pelas escadas.
— Você não ouve muito bem — disse ela, rodeando seu pescoço com ambos
os braços, de qualquer outra forma aquela carona era um pouco estranha. —
Eu disse para me colocar no chão.
— Eu ouvi.
Ele a levou até a cozinha e abriu a porta de tela com os pés e saiu para a luz
das estrelas através do forte cheiro de rosas.
— Você me carregou sob o caramanchão de rosas de Caroline.
— Ayup — disse ele.
— E se você dirigir meu automóvel você vai ter que caminhar de volta para
casa.
— Ayup — disse ele. — Já fiz isso antes.
— E se por acaso alguém estiver deixando seu gato sair para a noite e nos
ver, ambos teremos que deixar a cidade.
— Piso em cima deles.
Ela não podia deixar de sorrir; ele não era o habitual bem-educado nesta
noite. Ele deixou cair seus pés quando alcançaram o carro dela, e abriu a porta
do passageiro e em seguida, a colocou dentro. Demorou um minuto para ele
acionar a marcha, acender os faróis e arrancar com o carro. Quando ele
entrou, sentou-se e ficou parado por um momento antes de colocar o automóvel
em movimento.
— Ouça, Roberta. Quando você estiver sentindo-se melhor em relação a
isso, você e eu deveríamos ter uma conversa.
— Sobre o que?
— Sobre algumas das coisas que dissemos um ao outro a noite do que
piquenique .
— Oh, aquilo.
Eles retumbaram a distância na avenida escura, os feixes de luz dos faróis
saltando com cada pilha de esterco de cavalo e buraco que cruzavam.
— Você não acha que deveríamos?
— Sim, acho que sim.
— Tudo bem, então, você me avisa e eu virei a qualquer momento que você
quiser e vamos resolver isso.
— Você acha que nós podemos?
— Não sei, mas temos de tentar, não é?
— Sim, eu suponho que sim.
— Tudo bem — disse ele, enquanto se aproximavam de sua casa. — Agora,
o que você vai dizer às meninas sobre esta noite?
—A verdade. O que mais eu posso fazer quando eu estou usando um vestido
de Caroline? Além disso, eu tive um monte de tempo para pensar enquanto
você esteve fora, e eu percebi que nunca escondi a verdade das minhas
meninas antes, e nós sempre nos saímos muito bem. Descobrirei uma maneira
de lhes dizer de uma forma que não as traumatize.
Ele freou, desligou o motor, ajustou a marcha e disse: — Tudo bem,
Roberta, vamos fazer isso à sua maneira. Nada além da verdade.
— E sobre Isobel?
Ele considerou um momento, então respondeu: — Ela tem a mesma idade de
Susan.
— Mas ela levou uma vida muito mais protegida. Além disso, isso não é
realmente um problema dela, não é? Eu não sou sua mãe.
Ele não deu nenhuma resposta, porque ele não sabia o que dizer.
Roberta descansou a mão no assento perto de sua coxa. —Eu vou te contar
uma coisa. Eu realmente não sei o que eu vou dizer quando eu entrar lá. Todas
as quatro meninas são inocentes, elas não merecem aprender que o mundo tem
crueldades como a de Elfred, e quando eu penso sobre elas descobrirem isso
me faz detestá-lo ainda mais. Ele é tio delas, Gabe. . . o tio! Pense sobre isso.
Eles pensaram, por algum tempo, em silêncio.
Finalmente Gabe suspirou. — Bem, vamos apenas entrar lá e descobrir o
que eles dizem. Vou acreditar no seu palpite.
— Obrigado, Gabriel — disse ela.
Eles saíram do carro e ela esperou enquanto ele parava o gotejamento de
carboneto dos faróis. Em seguida, eles caminharam até a casa dela para
enfrentar suas filhas, juntos.
Capítulo 13
A casa cheirava a chocolate. A sala da frente estava escura, mas pela porta
iluminada da cozinha Roberta vislumbrava todas as quatro meninas reunidas
ao redor da mesa, apoiando-se em seus cotovelos, comendo algo de uma
panela. Elas conversavam alto e Lydia deve ter se divertido, porque ela de
repente se levantou da cadeira, girou em um círculo e agitou os braços como
se ela fosse um dervixe (religioso muçulmano que segue uma vida de pobreza
e austeridade).
As outras estavam rindo quando Roberta e Gabriel entraram na sala.
— Olá, meninas. Estamos aqui — ela anunciou.
Todas olharam para a porta, e seus rostos iluminaram com a visão de
Roberta e Gabriel juntos novamente.
— Vocês dois estão aqui! — Rebecca exclamou.
— Nós dois estamos aqui.
— Isso significa que vocês fizeram as pazes? — Perguntou Lydia.
— Eu acho que sim. O que há na panela?
— Fudge (doce de chocolate). Becky fez para o jantar.
— Fudge? Para o jantar?
— Bem, você não estava aqui, não sabíamos o que mais fazer. E, além
disso, estávamos no clima para isso.
Susan olhava curiosamente para sua mãe. — O que é que você está
vestindo?
Isobel respondeu: — É o vestido da minha mãe.
— Por que você está usando um vestido da mãe dela?
Roberta olhou para a peça de roupa usada. — Porque eu tive uma
emergência e precisava de algo rápido, e Gabriel ofereceu este emprestado.
— Ele ofereceu? — Isobel voltou seus olhos arregalados para seu pai. —
Você disse que ela poderia usar as roupas da mãe?
— Isso mesmo — disse ele, fingindo indiferença, servindo-se de um pedaço
de fudge.
— Mas isso é um vestido de gestante!
Roberta explicou — Eu sou maior do que a sua mãe. Esta foi a única coisa
que servia.
Rebecca estava desconfiada, com mais suspeitas do que o resto. — O que
aconteceu com o seu vestido? — Perguntou ela, sua atitude sugerindo que ela
não estava acreditando naquelas explicações superficiais.
— Ela ficou suja.
Gabe mordeu seu pedaço de fudge e Isobel perguntou: — O que aconteceu
com sua mão?
— Briga.
Todas as quatro meninas falaram ao mesmo tempo.
— O que!
— Uma briga!
— Por causa da mãe?
Todas as meninas se animaram, e o murmúrio soou como um bando de
pelicanos. Mas ouviu-se a pergunta de Rebecca no final. — O que esta
acontecendo aqui?
Os olhos de Roberta procuraram por Gabe. — Acho que seria melhor dizer
a elas e acabar com isso.
— Tudo bem, o que você quiser. — Ele pousou o fudge e disse: — Susan,
pegue uma cadeira para sua mãe. Ela passou por muita coisa esta noite.
Susan entrou na sala e voltou com o banquinho do piano. Quando Roberta
sentou-se, Gabriel surpreendeu a todos ao assumir uma posição atrás dela com
as mãos sobre seus ombros.
— O que eu tenho a dizer não pode sair desta sala. Entendido? — Os olhos
de Roberta examinaram o círculo de rostos solenes. Duas das meninas
assentiram. — Você não vão confirmar nem negar, não importa o que vocês
ouçam pela cidade, não importa o que os seus amigos ou quaisquer outroas
pessoas possam dizer a vocês.
Rebecca falou por todas. — Você tem a nossa promessa, mãe.
Roberta buscou em sua mente por onde começar. Ela estendeu as mãos para
as duas meninas mais próximas e disse: — Eu acho que vou precisar de
algumas mãos para segurar. Isso vai ser difícil. — Segurando as mãos de
Lydia e Susan ela contou sua história, evitando descrições abertamente
gráficas e buscando uma linguagem velada.
— A razão das mãos de Gabriel estarem machucadas é porque ele bateu em
seu tio Elfred por ter me atacado. Eu estava fora no campo e meu carro ficou
sem gasolina. Elfred apareceu e se ofereceu para me ajudar a encher meu
tanque, e então ele pensou que eu deveria beijá-lo para agradecer-lhe. Quando
me recusei, ele ficou muito áspero contra mim e tentou me forçar a beijá-lo.
Ele me machucou muito mal e minha roupa ficou suja e eu estava com muito,
muito medo.
Era evidente que só Rebecca havia compreendido o conteúdo completo do
que Roberta estava dizendo a elas. Seu rosto o mostrava. Embora ela estivesse
sentada à mesa com as demais, ela tinha avançado a um plano de especulação
adulto que imediatamente a distanciava das três meninas mais jovens. Ela não
fez perguntas, mas Roberta sabia que elas gritavam em sua cabeça.
— Seu tio Elfred não é um bom homem. Ele é um . . . bem . . . como direi
isso?
— ‘Mulherengo’, Gabriel sugeriu, ainda a apoiando como antes.
— Sim, eu acho que é uma palavra tão boa quanto qualquer outra. Vocês
todas sabem o que isso significa?
As meninas mais jovens se entreolharam e encolheram os ombros
timidamente, com as mãos entrelaçadas entre os joelhos sob a mesa.
— Ele gosta de flertar com outras mulheres além de tia Grace. Só que às
vezes ele excede ao flerte e fica exigente. Isso é o que me aconteceu.
Lydia perguntou inocentemente: — Será que ele bateu em você, mamãe? —
Ela tinha parado de chamar Roberta de mamãe há muito tempo, mas voltou a
usar o termo agora que o bem-estar de sua mãe tinha sido ameaçado.
— Bem . . . não. — Roberta pensou por um instante, depois disse mais
energicamente, mas eu bati nele. Muito forte, também.
— Você bateu? — Os olhos de Lydia se iluminaram. — Puxa!
Antes que qualquer uma das jovens pudesse pedir detalhes do ataque,
Roberta direcionou a conversa para outro rumo. — Agora me escutem, porque
isso é importante. Seus primos estavam lá quando Gabriel bateu em seu tio e
sua tia Grace também. Então eu não tenho certeza se eles vão querer vir aqui e
fazer companhia a vocês.
— Podemos pedir a eles que venham? — Susan perguntou.
— Não por um tempo. Deixe as coisas se acalmarem um pouco. E, acredito
que ir até a casa deles será contra as regras a partir de agora.
Lydia olhou consternada, e Roberta pôde ver os lamentos vindo. Com muita
certeza, Lydia reclamou, — Mas Sophie faz os melhores biscoitos de
amêndoas. Nós todos amamos seus biscoitos de amêndoas, mãe.
— No entanto, eu não quero vocês por lá.
Rebecca estava olhando para as mãos de Gabe nos ombros de Roberta. Suas
preocupações ultrapassavam em muito o fim dos biscoitos de amêndoas de
Sophie.
Roberta respirou fundo e endireitou-se. — Gabriel e eu pensamos que vocês
deveriam saber o que aconteceu, mas estou bem agora, então vocês não
precisam se preocupar. Eu fui a sua casa e ele cuidou muito bem de mim, então
agora a única coisa que precisamos nos preocupar é que vocês só tiveram
fudge para comer no jantar, não é mesmo?
Embora Roberta tivesse tentado terminar o discurso com uma tom mais
alegre, uma do grupo estava visivelmente mais triste do que as outras quando a
noite terminou. Rebecca, já distante de suas irmãs por causa de sua paixão por
Ethan Ogier, retirou-se para seu quarto, deixando as outras para se despedirem
de Isobel e Gabriel. Todos eles saíram para a varanda, onde Isobel deu em
Roberta um abraço de despedida e disse: — Sinto muito por Mr. Spear ter
sido tão mau com você.
— Obrigado, Isobel. Mas não se preocupe comigo. Boa noite, querida. —
Vagalumes piscavam brilhando nos arbustos enquanto as três meninas saíram à
frente. A vizinhança permanecia quieta sob o céu banhado pela lua e o ar tinha
a frieza orvalhada que deixaria o chão da varanda pintada aspergido com a
umidade na parte da manhã. Gabriel permaneceu na varanda com Roberta,
sentindo-se protetor e relutante em deixá-la. Ali, nas sombras, ele colocou as
mãos em seus ombros, perguntando, — Você vai ficar bem?
Tinha custado muito dar aquele toque de carinho, ela pensou, mas ele ainda
tinha um longo caminho a percorrer. —Eu vou ficar bem. Eu só preciso
descansar um pouco.
Um mosquito veio zumbindo, e ele abanou-o longe de sua orelha. — Você
acha que vai ficar em casa amanhã?
— Eu preciso de cada centavo que puder ganhar. Eu trabalharei.
— No campo?
— Em Rockport na parte da manhã. Na parte da tarde eu não sei onde até eu
receber minhas ordens.
— Eu me preocuparei com você, por estar fora e sozinha em seu carro a
partir de agora.
— Não faz sentido se preocupar. — Ela também acenou fora um mosquito.
— Ninguém além de Elfred representa qualquer tipo de ameaça para mim, e
você tomou conta dele.
— No entanto, eu me preocuparei.
— Eu não sou do tipo que dobre o rabo e se esconda, Gabriel. Eu
simplesmente tenho que fazer o que eu tenho que fazer, e se eu tiver de
conduzir através dessas montanhas para sustentar as minhas meninas, que
assim seja. Não estou dizendo que não haverá momentos em que meu coração
saltará em minha garganta quando eu ver um homem se aproximando de mim,
mas eu vou ter que aprender a viver com isso, não é?
Ele tomou uma de suas mãos e cobriu-a com a sua. Ao redor deles havia luz
suficiente para que ela visse o contorno do nariz e do queixo, e refletindo em
seus olhos quando ele disse calmamente: — Você é uma mulher incrível,
Roberta, você sabe disso?
— Na verdade, eu acho que sou muito comum, mas é bom ouvir você dizer
isso de qualquer maneira. Obrigado, Gabe. E obrigado por ter batido em
Elfred. Eu certamente espero que isso não cause em um monte de problemas.
Ele usou suas mãos unidas para bater um mosquito fora de sua têmpora. —
Eu não acho que isso vá acontecer, porque apesar de tudo, Elfred é um
covarde, e se ele me acusar publicamente, ele também terá que explicar o
porquê publicamente, e eu não acho que ele tenha a coragem de fazer isso.
Nesse momento Isobel chamou — Papai, vamos lá! Os mosquitos estão me
mordendo!
— A mim também — disse a Roberta, e largou sua mão. —Bem, boa noite.
Vou tentar passar aqui amanhã à noite e ver como você está.
— Eu estarei aqui — disse ela, e mudou-se para o topo da escada enquanto
eles desciam. Ele passou por suas meninas se virando para a casa, perseguido
por mosquitos também.
— Noite, Sr. Farley! — Disseram em coro.
— Boa noite, meninas. Cuidem bem de sua mãe agora.
As meninas subiram os degraus em dois saltos e Susan gritou, — Vamos,
vamos entrar antes que eles nos comam vivos!
Em seu quarto dez minutos depois, Roberta pendurou o desgastado e
manchado vestido de musselina lavanda para gestantes de Caroline Farley em
um gancho atrás da porta. Espalhados ao redor do quarto estavam suas
próprias roupas descartadas já há uma semana. Mas o cuidado que ela não
teve com suas próprias roupas ela dispensou ao vestuário da mulher morta
respeitosamente como se Caroline estivesse observando: Ela centrou-o
cuidadosamente no cabide, e tocou as manchas suavemente antes que sua mão
caísse ao lado dela.
Oh, Gabe, ela pensou, o que vamos fazer?
Remover o vestido deixou Roberta nua. Ela colocou uma mão em seu ventre
e fechou os olhos, odiando Elfred Spear. Olhando para baixo em suas pernas
ela sentiu uma onda de desespero e reprimiu o impulso de derramar lágrimas
por si mesma. Ela nunca tinha sido vaidosa, nem mesmo remotamente. Na
verdade, o corpo, para Roberta, era apenas um vaso que abrigava a alma, a
mente e o espírito. Eles precisavam de combustível para alimentar as almas,
mentes e espíritos, bem como manutenção ocasional, mas, além disso, Roberta
se importava pouco com a fisicalidade do corpo humano. Olhando para si
mesma, ela via claramente sua mediocridade — tamanho, textura, forma. Tudo
mostrava a história de uma mulher que dera à luz três filhas e passou uma vida
inteira trabalhando arduamente e com pouco tempo para cuidar de si mesma.
Mas sua carne, por mais flácida que fosse, era sua, não de qualquer um para
usar como quisesse.
Ela não tinha espelho de corpo inteiro no quarto, apenas um pequeno
retangular com uma moldura de gesso quebrado, pendurado acima de uma
cômoda. Passando isso, ela teve um leve vislumbre de seus seios, e se
apressou a cobri-los com a roupa de dormir, como se Elfred ainda pudesse
estar escondido.
Mesmo quando ela já tinha vestido a camisola de verão desbotada e tentado
pensar no amanhã, em vez de no hoje, o nó na garganta com o desejo de chorar
persistiu. Duas vontades opostas insistiam com ela. Uma delas dizia: Chore. A
outra dizia: Não chore. Ela estava lutando entre as duas, arrumando sua cama
desfeita quando Rebecca bateu na porta e disse: — Mãe, posso entrar?
Roberta pegou os lençóis e esfregou ambos os olhos antes de dizer — Claro
Becky, pode entrar.
Becky entrou e parou perto da porta, mostrando uma reserva atípica.
Apoiada contra a porta, ela olhou fixamente para sua mãe e tentou dar de um
sorriso que falhou miseravelmente.
Roberta sentou-se na beira da cama, tentando parecer calma. —Ainda
acordada?
— Eu estive esperando.
Oh, Becky, eu esperava que você não entendesse. Eu queria poupá-la disso.
A expressão de Roberta se dissolveu em uma admissão de tristeza e muito
calmamente admitiu — Eu acho que já sabia disso.
Um momento de silêncio evidenciou a noite e acentuou a necessidade da
verdade. Onde ir a partir daqui - uma mulher de trinta e seis anos que sabia
demais sobre o mundo em que homens e mulheres se encontravam e entravam
em confronto e uma de dezesseis que só suspeitava disso, uma que queria
proteger e outra que queria saber.
Rebecca encontrou a coragem para falar primeiro. — Você não disse tudo,
não é?
Um terrível nó se formou na garganta de Roberta novamente e trouxe
consigo uma tristeza profunda e esmagadora. Seus lábios formaram um não,
mas ela não conseguiu dizer e então ela balançou a cabeça tristemente de lado
a lado.
Rebecca deslizou através do quarto e sentou-se no lado oposto da cama em
diagonal a sua mãe. Ela estava descalça e vestida com uma camisola branca,
seu cabelo tinha sido trançado como uma coroa naquele dia - ela
experimentava com os cabelos desde que Ethan Ogier começou a cortejá-la –
era formada por pontas soltas, como uma corda desfiada sobre seus os
ombros. Quando ela se sentou, inconscientemente recostou-se contra a
cabeceira como tinha ficado contra a porta, mas sua mãe havia compreendido:
Naquela noite sua filha iria crescer de uma forma que nenhuma das duas
queria.
Demorou um pouco antes que Becky conseguisse dizer: — Você acha que eu
não sei o que aconteceu, mas eu sei o que o tio Elfred fez com você. — Seus
olhos estavam grandes com a certeza. — Ele fez, não é?
Depois dessa conversa Rebecca nunca mais seria a menina inocente que
havia sido, mas Roberta não iria mentir para sua filha. Ela balançou a cabeça
lentamente, duas vezes.
— Eu sei como é chamado também. Eu ouvi os meninos dizendo. — A voz
de Becky denotava ambos, desafio e medo.
— É uma palavra terrível.
— Eu sabia que era, porque os meninos estavam sussurrando quando
disseram isso, e quando eles nos pegaram escutando ficaram bravos e
disseram para sairmos de lá. — As lágrimas apareceram em seus olhos e ela
olhou para baixo em sua camisola e no contorno de seu joelho. A indignação
de súbito substituiu o espanto horrorizado em sua voz e ela fechou o punho
sobre a colcha. — Como tio Elfred pôde fazer isso com você? É tão horrível.
— Sim é. Foi horrível. Mas eu não podia deixar as meninas mais jovens
saberem.
Rebecca balançou a cabeça tristemente.
— Elfred vem fazendo insinuações para mim desde que cheguei aqui. Ele é
astuto, um devasso traiçoeiro, o pior tipo deles. Sempre o faz pelas costas de
Grace. Pobre Grace, casada com um hipócrita assim.
— Será que ela sabe o que ele fez com você?
— Gabriel diz que sim. Ele não tentou manter em segredo o porquê de ele
estar batendo em Elfred e o deixando como uma polpa sangrenta em seu
quintal da frente. E Grace estava lá assistindo, ela ouviu do que Gabe o
acusava.
— Será que ela vai divorciar-se dele como você divorciou do nosso pai?
— Eu não sei, Becky. Minha suspeita é que ela vai pensar que eu atraí seu
pobre marido, que foi tudo culpa minha, só porque eu sou divorciada. Ela e a
avó estão em conluio sobre isso.
— Mas como ela poderia pensar isso? — Rebecca ficou indignada. — Ela
sabe que você nunca faria isso! Você é uma boa pessoa, e que sempre nos
ensinou a sermos boas também.
— Ah, Becky. . . — Roberta caiu de volta, parcialmente em seus
travesseiros, parcialmente contra a cabeceira da cama. — Se o resto do mundo
fosse tão imparcial como você. — Ela fechou os olhos por um momento. —
No entanto, não é. — Abriu os olhos novamente e ela parecia relaxada, de
braços cruzados arrancando uma farpa como se pegá-la lhe desse algum apoio.
— E essa é a razão pela qual eu disse às meninas que não podem defender-me,
porque há pessoas nesta cidade que tomarão o lado de Elfred. Ele é um
homem, afinal de contas, e os homens de algum modo são perdoados por
cometerem atos viciosos como este. As mulheres são responsabilizadas e
levam a culpa, é assim que as coisas são.
Especialmente mulheres divorciadas. — Ela virou a cabeça para enfrentar
Rebecca. — Mas você e eu sabemos a verdade, e Gabriel sabe, e isso é tudo o
que realmente importa para mim. De qualquer forma, o que os outros possam
dizer significa pouco ou nada para mim. Só lamento se machucar vocês
meninas, especialmente se fizer com que suas irmãs percebam exatamente o
que aconteceu. — Ela arrastou-se novamente na posição vertical. — Essa é
uma das sequelas pela qual eu mais odeio Elfred, por roubar meus bebês de
sua inocência. Veja, — sua mão levantou e caiu — você está aqui, tendo essa
discussão, quando deveria estar totalmente inconsciente de qualquer coisa,
viver a sua jovem vida sem esta chaga em sua memória. Oh, Becky... Eu
gostaria de poder desfazê-la por você.
Com a súbita onda de emocionalismo de sua mãe, Becky levantou-se e
correu ao redor da cama. — Oh, Mãe, eu gostaria de poder desfazê-lo para
você. — Sentada ao lado de Roberta, Rebecca abraçou-a como se ela fosse a
mãe e Roberta a filha.
Roberta se permitiu algumas lágrimas. . . mas poucas. Ela e Rebecca tinham
sido sempre próximas, mas ainda mais próximas desde o divórcio. Como a
mais velha, Becky tinha assumido sem reclamar as responsabilidades que
caíram sobre si, muitas vezes sendo uma mãe substituta na ausência de
Roberta. Hoje à noite, sua doce preocupação trouxe paz e cura; o afago de sua
mão no ombro de Roberta fez ambas se sentirem muito melhor.
Contra o cabelo de Roberta, sua filha disse: — Porém, o pai de Isobel foi
muito bom para você, não foi mãe?
Roberta recuou e segurou as duas mãos finas de Becky.
— Eu estava tão feliz por tê-lo lá. Ele é realmente um homem muito gentil.
— Eu me senti mal quando vocês dois brigaram.
— Eu também.
— E eu estou feliz por vocês estarem bem novamente.
— Eu também estou.
— Isobel também está!
Elas descobriram leveza suficiente para sorrisos, então Rebecca disse —
Isobel me disse que ela deseja que seu pai case com você.
— Ela disse? — Roberta sorriu suavemente, imaginando Isobel, a quem ela
também amava. — Embora eu temo que isso não vai acontecer. Nós somos
muito diferentes.
— Diferentes como?
— Ah você sabe. Ele é alinhado, eu sou uma bagunça, ele vive por um
cronograma, eu odeio relógios. Ele acha que você deve se sentar à mesa com
um garfo e faca, e eu acho que as mesas foram feitas para descansar os
calcanhares. Além disso, sua família se opõe a mim porque eu sou divorciada.
— Oh. — Um momento passou antes que Rebecca perguntasse — Mas você
casaria com ele de qualquer maneira, se ele pedisse para você?
— Eu não sei. Você gostaria que sim?
— Bem . . . não por nós, quero dizer, nos damos muito bem sem ele, e temos
muita diversão juntas, só nós quatro. Mas você parece mais feliz quando você
está com ele.
— Eu não sabia disso. — Depois de pensar um pouco Roberta acrescentou:
— Bem, talvez eu tenha percebido, porque quando eu o vi na escola aquele dia
e ele não falou comigo, me senti simplesmente terrível. E depois disso eu não
conseguia parar de pensar nele. Eu não sei, Becky. . . uma vez que você foi
casado e não deu certo, você passa a ter medo de tentar novamente. E como
você disse, nós quatro Jewetts nos damos muito bem por conta própria, não é?
Becky estendeu a mão e fechou dois botões na garganta de Roberta. — Mas
ele bateu em tio Elfred por você, e deixou vestir a roupa de sua esposa, e
deixou Isobel voltar a vir aqui sempre que ela quiser. Eu acho que ele te ama,
mãe. Eu acho que ele te ama muito, mas ele só não sabe disso ainda.
Com isso, Rebecca calmamente se levantou e beijou sua mãe na parte
superior da cabeça. — Não se preocupe com nada. Eu vou tomar cuidar mais
de você de agora em diante, e se ele se casa com você ou não, eu acho que o
Sr. Farley vai cuidar de você, também.
O Sr. Farley, naquele momento, estava pensando na mesma coisa: cuidar de
Roberta Jewett. Ele estava de pé em seu quarto usando cueca de verão,
achando um pouco de cascalho sobre a colcha, onde a cabeça dela tinha
estado. Maldito Elfred Spear, ele deveria ter suas bolas cortadas! Gabe se
abaixou e esfregou um par de grãos entre os dedos, em seguida, caiu
fortemente na borda da cama, sentado ali por um longo tempo, imaginando o
que aquele bastardo tinha feito com Roberta. E ela, tão cheia de coragem e
vida, não tendo ferido nunca uma pulga. A verdade era que ela era uma das
pessoas mais amáveis que já conheceu. Boa para suas filhas, boa para a filha
dele, boa para ele e provavelmente muito boa para as pessoas doentes de
quem ela cuidava por todo o campo também. Não era malditamente justo que
uma mulher assim fosse vítima de um sujo como Elfred. Se perguntasse a
qualquer um que o conhecia, eles diriam que Elfred certamente era um bom
homem de negócios, e era dono de uma casa grande e bonita, e que
verdadeiramente tinha uma boa família. E não poderia esse homem ganhar
dinheiro, mão fechada! À parte de todo “bem” que Elfred fez, eles podiam rir
sobre seus pecadilhos intermináveis. Mas eles o pararam? Alguém já ao
menos tentou parar homens como Elfred?
Não. Em vez disso, eles fofocavam sobre as mulheres como Roberta, porque
ela tinha um pequeno pedaço de papel branco que dizia que ela não tinha mais
que ser casada com um parasita inútil que nunca tinha tomado conta dela ou de
seus filhos para começar! Teria seu marido a amado? Difícil de acreditar que
um homem como aquele tivesse muito amor nele. Se ele tivesse, teria estado
mais em casa e mantido ela feliz em vez de estar com outras mulheres e a
deixado sozinha para tomar conta daquelas crianças.
Pobre Roberta, ela tinha tido um inferno de vida, sempre suando para ganhar
a vida, nunca reclamando sobre isso. Mas agora . . . E se ela tivesse mais um?
E se aquele filho da puta do Elfred a tivesse deixado grávida? Não iria isso
dar às boas matronas de Camden combustível para fofocas durante os
próximos vinte anos? E aquelas três meninas agradáveis dela pagariam um
preço também. Senhor, Senhor, isso simplesmente não era justo.
Gabe não era um especialista, mas ele tinha pensado um pouco sobre quanto
tempo tinha levado desde o momento em que Elfred a estuprou até o momento
em que ele a deixou sozinha para tomar banho, e parecia a Gabe que não
importava o que ela tinha feito depois que ele fechou a porta, a natureza tinha
tido tempo de sobra para tomar seu curso.
Ele supôs que ela deveria estar deitada em sua cama se preocupando com a
mesma coisa. E se? E se?
Ele suspirou e levantou-se como um homem velho, endireitando músculo
por músculo, em seguida, tirou seu cobertor de debaixo de seu travesseiro,
apagou a luz, se deitou para dormir e cruzou as mãos sob a cabeça.
Mas tudo o que podia pensar era em Roberta, Roberta, Roberta ao lado
dele, onde ela estaria a salvo de homens como Elfred para o resto de sua vida.
Ela ainda estava dormindo na manhã seguinte, quando o telefone tocou no
andar de baixo, misturando-se com algum sonho estranho que ela tinha tido.
Despertando, ela sentiu o batimento de seu pulso enquanto ela sentava em sua
cama desfeita, tentando descobrir por que o sino da escola estava tocando em
casa, e onde as meninas estavam no sábado. Oh! Era sexta-feira e, a julgar
pela posição do sol, ela deveria estar a caminho do trabalho.
O telefone tocou novamente.
— Oh meu — ela murmurou, se arrastando para fora da cama, observando o
despertador marcar sete e meia. Ela desceu as escadas com as mãos em ambas
paredes, impedindo que mergulhasse escada a baixo, e atendeu o telefone
enquanto tocava pela quinta vez.
— Alô?
— Bom dia, Roberta.
— Oh. . . Gabe. — Ela amarrotou seu cabelo e olhou para a brilhante janela
da cozinha. — O que você está fazendo ligando a esta hora?
— Queria saber como você está passando hoje.
— Eu acabei de acordar e me atrasarei para o trabalho, mas apesar disso eu
estou muito bem, Gabe. Realmente, eu estou.
— Bem, bom. Há algo que eu quero falar com você, mas não com a Central
escutando. Suponho que você poderia me encontrar em algum lugar ao meio-
dia?
— Ao meio-dia?
— Ou quando for melhor. Eu pensei que você pudesse sair um pouco depois
que você fosse até o escritório em Rockport. Eu estou fazendo um trabalho por
lá e talvez pudéssemos nos encontrar, digamos, oh, eu não sei. . . ao sul do
final da Lily Pond com Chestnut Street?
— Claro, acho que eu poderia.
Ele lhe deu algumas direções específicas e eles concordaram em se
encontrar às onze e meia.
— Até então — disse ela.
— Ayup — disse ele — vejo você lá — e desligou. Ela ficou por alguns
segundos com a mão sobre o receptor depois que ele desligou, imaginando o
que ele queria. Lembrou-se de sua preocupação na noite anterior, a sua
proteção, mas era o que qualquer um faria em tal situação, não era o Gabriel
normal. Bem, ela saberia em breve, e, entretanto, ela estava mais atrasada do
que nunca.
Quando ela chegou no lugar marcado para encontrá-lo, seu caminhão estava
estacionado fora da estrada numa sombra ao lado de uma clareira que levava
ao lago. Ao redor da borda do mesmo havia lírios d’água espalhados na
superfície com folhas do tamanho de placas, salpicadas com grandes flores
amarelas. Do outro lado da água, casas eram visíveis, mas no lado mais
próximo as residências estavam isoladas na floresta, e apenas uma pilha de
rochas quebrava o trecho do terreno aberto entre duas seções de floresta verde
e densa. Alguém tinha ceifado as gramas selvagens e as deixadas para secar ao
sol. O perfume inebriante de ambrosia cortada pairava no ar. À esquerda de
Roberta, uma cerca de ferro dividia o bosque do campo, e ao seu lado mais
distante um pequeno rebanho de gado preto e branco mastigava seu alimento e
contorciam suas caudas. Dois deles viram Roberta quando ela saiu de seu
carro, protegeu os olhos e acenou para Gabe.
Ele estava apoiado até a altura da cintura a aproximadamente dez metros de
distância, usando um chapéu de palha e mastigando um pedaço de grama.
Quando Roberta acenou, ele impulsionou-se e caminhou até ela, que gostava
de assistir seus movimentos esguios, o passo descontraído de suas pernas em
suas calças jeans azuis e o bater da brisa contra as mangas arregaçadas de sua
camisa branca. Eles se encontraram no meio da clareira, onde gafanhotos
saltaram fora da bainha de seu uniforme e caíram sobre as pontas de suas
botas de couro desgastado.
— Cheira bem aqui fora — disse ela quando eles ainda estavam a dez
passos de distância.
— Trevos — disse ele.
— Tranquilo também.
Eles chegaram um perto do outro e pararam. — Muito tranquilo, percebi
tarde demais que você pode não estar muito ansiosa para encontrar com um
homem no meio do nada sem ninguém por perto.
— Oh, Gabe, eu não estou com medo de você.
— Bem, eu espero que não.
O sol brilhante do meio-dia refletido nas roupas brancas dela fez ele
semicerrar os olhos, mesmo de costas para o sol.
— Muito quente aqui fora no sol — disse ele. — Vamos lá, vamos sentar na
sombra perto do caminhão.
— Tudo bem.
Ela virou-se e caminhou ao seu lado através do resto dos trevos cortados e
da campina, levantando os pedaços de grama verde com as pontas de seus
sapatos brancos de enfermeira, assim como ele fez com as pontas de suas
botas, espalhando seu perfume, que aumentou inebriante sob o quente, quente
sol. Ao longe, uma das vacas mugiu como se perguntasse para onde estavam
indo. A mata formava uma parede verde ondulante enquanto se moviam em
direção a ela.
— Eu estava observando as rãs. . . — ele disse.
— Mmm…
— . . . comer moscas.
— Mmm . . . — Ela sorriu olhando para os seus pés enquanto eles
caminhavam juntos, ela esticava seus passos e ele encurtava os seus para que
eles correspondessem.
— Há algumas tartarugas na lagoa, também.
— Nós temos que dizer às meninas, elas vão querer vir aqui para pegar
uma.
— Quando eu era menino, costumava comer tartaruga, minha mãe fazia sopa
delas.
Eles chegaram à sombra fresca, ao lado de seu caminhão e ela se virou para
ele.
— Você me trouxe aqui para conversar sobre o que, Gabriel? Sobre as rãs e
as tartarugas?
Por debaixo da aba do chapéu de palha ele a estudou sem sorrir. O
colarinho da camisa branca estava aberto, manchado por dentro devido ao
trabalho da manhã, e pequenos pedaços de serragem se agarravam em seus
ombros. Sua garganta era de um marrom avermelhado como a de um homem
que raramente fechava o botão do colarinho. Seus olhos estavam de um azul-
cinza esfumaçado, e sério.
— Não, não é. Você almoçou na cidade?
— Não, eu não almocei.
— Oh, claro que não, não é meio-dia ainda. Claro, eu sei que você não dá
muita importância para o almoço, mas eu me permiti e nos trouxe alguns
sanduíches, e pensei que poderíamos apenas sentar aqui no estribo e comê-los,
se você estiver com fome.
Gabriel, que nunca desperdiça palavras, estava tagarelando. Ela se
perguntou o porquê.
— Que tipo de sanduíche? Tartaruga?
— Não. Bife. — Ele abriu a porta do caminhão para pegá-los. — Na
verdade, você não vai acreditar, mas eu fui lá e pedi à minha mãe para fazê-
los esta manhã.
— Sua mãe, bem, ela não deveria saber que você os compartilharia comigo.
— Ayup, ela sabe, eu disse a ela. — Da caixa de ferramentas, que estava na
parte de trás da caminhonete, ele encontrou uma escova de aço e varreu a
sujeira do estribo.
— Sente-se, Roberta.
Ela se sentou, e ele sentou-se, colocando uma lata de sanduíche entre eles.
Ele pegou uma jarra de suco cheia de chá gelado e a destampou e o colocou no
mato entre os pés estendidos. Abrindo a lata, ele ofereceu a ela.
— Obrigada.
Eles começaram a comer, amigavelmente quietos por um tempo antes que
Gabriel dissesse o que queria, olhando para o leste através do prado a borda
verde da floresta. — Com o que aconteceu a você ontem, há algo que me
incomoda terrivelmente. Eu não conseguia dormir a noite pensando sobre isso
e me preocupando com você.
— Mas eu não sou sua preocupação, Gabriel.
— Pode não ser, mas eu me preocupo do mesmo jeito. E se . . . Bem, e se o
que você fez depois não surtir efeito? Eu descobri, Roberta, e tanto quanto eu
posso imaginar, já tinha passado quase uma hora desde o momento em que
Elfred fez seu trabalho sujo e que você tomou aquela bacia de água no meu
quarto. Vamos apenas supor que o tempo decorrido acabou por ser o suficiente
e que o que você fez lá foi tarde demais, e ainda estiver grávida. Se isso
aconteceu, eu me caso com você, Roberta. Isso é o que eu vim aqui para lhe
dizer.
Sua bochecha cheia quase deixou o sanduiche cair fora de sua boca. Ela
fechou os lábios e engoliu, olhando para o perfil de Gabriel, enquanto ele
continuava estudando o campo ensolarado de trevos cortados.
— Você casaria?
Virando o rosto para ela, ele assentiu.
— Se eu estivesse grávida.
— Está certo.
— Para me proteger das fofocas.
— Algo assim. — Ele deu outra mordida no sanduíche de carne.
— E sobre as coisas que você disse que precisávamos conversar? Achei
que era por isso que você estava me encontrando aqui.
— Em um caso como este, quero dizer, supondo que aconteça, apenas
teremos que ignorar as nossas diferenças.
— Ignorar minha desordem e seu medo de mostrar suas emoções, é isso que
você quer dizer?
Ela observou-o cuidadosamente, e com certeza, ele finalmente encontrou
meios para corar. Ele terminou seu sanduíche e tomou um longo gole de chá
gelado do frasco de suco, estudando o bosque ao longe novamente. Ele
colocou o frasco para baixo e limpou a boca com a ponta de uma mão.
— Achei que era uma opção de solução para você.
Ela ficou em silêncio por tanto tempo que ele finalmente olhou e encontrou-a
embalando a porção não consumida do sanduíche na lata.
— Qual é o problema?
— Você realmente acha que eu faria um segundo casamento desastroso após
o primeiro ter terminado daquela maneira?
— Desastroso?
Ela colocou os pés no chão e cobriu os joelhos como se fossem bolas de
beisebol que ela tinha acabado de capturar. — Um casamento de conveniência
não é exatamente o meu estilo, Gabriel. Eu pensei que você soubesse disso
agora. Eu posso não ser delicada, perfeita e feminina como Caroline, mas eu
tenho sentimentos da mesma forma que ela tinha. E se um homem me quisesse,
eu esperaria que ele demonstrasse isso, me cortejando seriamente, a não ser
que você considere a forma como você está agindo como sendo um cortejo.
Mas para os meus padrões não é. A coisa, Gabriel, é que eu acho que você
está com medo. Eu acho que você me ama e você está morrendo de medo de
dizê-lo, então ao invés disso você usa esta desculpa inventada sugerindo que
devemos nos casar, só que eu não cairei nessa e não acabarei vivendo com
outro homem que não tem a menor noção de como ser um marido. Eu prefiro
dar à luz a um bastardo e criá-lo eu mesma do que me amarrar a um homem
que ainda está apaixonado por sua primeira esposa. Então, eu agradeço sua
intenção, e no mínimo, é provavelmente muito altruísmo seu por oferecer, mas
não obrigada, Gabriel. A não ser que você me ame. — Ela empurrou fora de
seus joelhos e levantou-se, acrescentando, sem um toque de rancor —
Obrigada pelo sanduíche. Desculpe, eu não consegui terminá-lo, quem sabe na
próxima vez. — Ela se dirigiu para seu carro enquanto ele saltou para seus
pés.
— Roberta, espere!
— Eu tenho que dirigir até Bangor esta tarde. Desculpa.
— Isso é uma boa forma de arremessar a oferta de um homem de volta na
cara dele! — Ele gritou para ela de volta.
— Eu agradeci, Gabe, não foi? — Ela deu uma olhada por cima do ombro, e
ele ficou mais irritado, a observando se dirigir ao seu carro e se preparando
para ligá-lo. Ele percorreu os seis metros de ervas daninhas mistas e
alcançou-a, forçando a mão dela fora do câmbio.
Ele, irritado, e ela, muito calma, se enfrentaram na sombra salpicada do
meio-dia com um rebanho de vacas olhando.
— O que você quer que eu faça? — Disse, exasperado como só esta mulher
poderia deixá-lo.
— Eu já disse a você.
— Roberta, nós somos pessoas de meia-idade, pelo amor de Deus!
— Que impede o namoro? Emoção? Dar carinho? Gabriel, se é isso que
você pensa, então você está pior do que eu pensava.
— Eu pensei que estava fazendo um favor, te oferecendo uma saída.
— Sim, eu sei que é o que você pensou. Me desculpe, eu não posso aceitar,
e agradeço novamente por sua generosidade. Mas nesses termos. . . — Ela
balançou a cabeça, confirmando seu pensamento. — Eu já desperdicei o
suficiente de anos com um homem sem amor. Eu sou o tipo de mulher que
precisa da coisa real, e tudo o mais — ela fez um gesto largo — a ousadia
flamejante, e eu acho que você não está pronto para isso ainda. Também acho
realmente que você não superou Caroline ainda. Não me interprete mal,
Gabriel, nunca pedi que você desistisse das memórias dela. Mas você tem que
me amar tanto quanto você a amou, caso contrário isso nunca funcionaria, eu
sempre estaria andando em sua sombra, e a sombra seria muito frio para eu
tolerar.
Ela tirou a mão dele do câmbio e o colocou em seu lugar. Momentaneamente
eles ficaram cercados pelo barulho do motor.
— Roberta — ele gritou. — Todas nossas filhas querem que a gente se case,
você não pode ver isso?
Ela gritou de volta: — Claro que posso! Examine seus motivos, Gabriel, e
quando eles forem os certos, me pergunte novamente!
Enquanto se dirigia para a porta do carro, ele queria trazê-la de volta e
submetê-la à sua vontade. Mas isso era o que Elfred tinha feito ontem, e
cavalheiros não fazem essas coisas.
Então ele a deixou entrar no carro, e mudar o que precisava ser mudado, deu
ré , virou o carro e o deixou de pé na sombra perguntando-se o que tinha feito
de errado.
Capítulo 14
Myra Halburton pertencia a uma organização chamada Sociedade de
Caridade e Benevolência das Damas do Camden. Uma de suas sócias era
Tabitha Ogier, a avó do Ethan Ogier. Outra era Maude Boynton, a esposa do
dono da agência de carros. E Jocelyn Duerr, uma vizinha do Gabriel, e Ellen
Barloski, tia avó de Sophie, a governanta dos Spear. Hannah Mary Gold era
prima irmã da esposa de Seth Farley, e Niella Wince vivia justo em frente dos
Spear. A filha de Sandra Yance era enfermeira do jovem doutor Fortier III…
E a lista seguia e seguia.
Dois dias depois da surra ao Elfred Spear, a Sociedade de Benevolência se
reuniu para o acontecimento mais importante do ano: um almoço beneficente
sob os olmos do jardim traseiro da casa de sua presidenta, Wanda Libardi.
Wanda pertencia também a um trio musical chamado As Noivas do Canto, que
abriam o banquete cantando Beautiful dreamer, sob a pracinha de rosas, no
exuberante jardim de Wanda e tendo como pano de fundo uma malva de quase
um metro de altura.
A verdadeira festa começou, entretanto, quando Wanda e sua corte deixaram
de gorjear e o grupo se sentiu em liberdade para dedicar-se à sua
‘benevolência’ preferida.
Maude Boynton tirou o tema que os presentes queriam saber.
— Myra, é certo o que todas ouvimos sobre o Elfred?
— Não sei, Maude. O que ouviram vocês?
— Que Gabriel Farley quase o matou a golpes.
— Suponho que não tem sentido tratar de ocultá-lo. Mas Gabriel Farley
pagará pelo que fez! Recordem minhas palavras!
— Minha Susan viu o Elfred quando entrou no consultório do doutor Fortier
— comentou Sandra Yance. — Disse que parecia como se alguém o tivesse
usado como uma bigorna.
Ellen Barloski olhou angustiada.
— OH… essa atrativa cara, toda machucada… que lástima! A pobre Grace
deve estar chocada.
— Sua filha divorciada esteve vendo muito ao Gabriel, não é assim? —
Perguntou Jocelyn Duerr.
Myra arrepiou-se.
— Em realidade não sei o que faz Roberta. Se andar por todo o Estado com
esse automóvel que comprou, como poderia uma mãe lhe seguir os passos?
Enquanto Myra se defendia para não responder à pergunta principal, as
outras mulheres intercambiavam olhadas intencionadas que diziam ‘depois’.
Foram duas horas muito agradáveis. Passearam pelo parque, admiraram os
jardins, serviram-se elas mesmas de uma mesa de buffet e comeram pequenos
bolos e sanduíches. Cada vez que Myra se achava fora do alcance do ouvido,
os cochichos secretos enchiam o espaço com a mesma persistência que o
aroma de café que saía da casa. Ao perceber que a agitação que havia em sua
família era a causa dessas conversações às escondidas, Myra apresentou suas
desculpas e se retirou mais cedo.
As outras sócias da Sociedade de Benevolência do Camden ficaram sob os
olmos à espera de ver desaparecer as ondulações das saias de Myra pelo
portão do jardim e reiniciar a sessão de intrigas. A anfitriã se encarregou de
abri-la.
— Bom, agora que ela não está, devo dizer que… estou surpreendida de que
não haja dito mais. Ela, que sempre alardeava de tantas coisas… Elfred, e seu
dinheiro, Grace e suas joias finas. Mas agora que a coisa vai em outra direção,
selou bem seus lábios, não?
— O que quer que Myra Halburton diga, essa sua filha menor está por detrás
da rivalidade entre Gabriel e Elfred. O que outra coisa poderia fazer os dois
homens adultos que foram amigos durante anos briguem a murros dessa
maneira?
— E no jardim da casa do Elfred, onde todo mundo podia vê-los!
— Meu neto passou algum tempo na casa de Jewett este verão — interveio
Tabitha Ogier — Parece que lhe jogou o olho à filha maior. Algumas das
coisas que ouviu ali… bom, me deixem lhes dizer, lhes poriam os cabelos
enrolados.
— Eu vi essa mulher frente à casa do Gabriel Farley a mesma noite que
dizem que golpeou ao Elfred. Estacionou seu automóvel diante da casa com o
maior descaramento. Por acaso me inteirei de que a filha dele não estava em
casa nesse momento.
— Bom, eu não o hei dito até agora… por respeito a Myra…, mas eu vi a
briga — disse Niella Wince com ar de suficiência.
— Não!
— A maior parte. Da janela de meu dormitório. Valha me Deus, uma pessoa
não pode menos que aparecer a olhar com tudo essa gritaria! O que Gabe
gritava não o repetiria jamais uma dama, mas me deixem lhes dizer que não
ficou nenhuma dúvida de que essa mulher divorciada pensa que todo homem é
uma presa fácil para ela, seja casado ou não.
Todas meditaram um momento, até que alguém falou.
— Meu deus, pobre Grace!
— E pobre Caroline. O que pensaria ela se ainda vivesse?
— E essas meninas. Por Deus! Imaginem ao que se viram expostas com uma
mãe como essa.
— Myra Halburton não vai ouvir de meus lábios, mas eu o disse anos atrás,
quando Roberta se foi de Camden porque não era o bastante bom para ela.
Então disse: ‘Recordem o que digo, essa moça vai cair em algo mal ao ir-se à
cidade dessa maneira.’ E em efeito, volta dezoito anos depois, divorciada e
sem regras, e pensa que pode continuar com suas indiscrições diante de nossos
narizes como se fôssemos cegas e estúpidas.
— Gabriel Farley esteve em sua casa muitas vezes. Diz-se que a coisa
começou no mesmo dia que ela chegou à cidade. Ele e Elfred correram a sua
casa a visitá-la como dois gatos em zelo. Após, voltaram muitas vezes lá.
— E quanto a essas meninas Jewett? Não teria que ocupar-se alguém disto e
fazer que as tirem de sua casa se a está convertendo em um bordel?
— Quem?
— Bom, não sei, mas alguém deveria fazê-lo.
— Bom, não serei eu.
— Mas nós não somos a Sociedade de Benevolência? Não é nosso dever?
— Espera um momento! Não sei se o fato de que sejamos a Sociedade de
Benevolência nos dá direito a nos misturar nos assuntos privados de uma
pessoa.
— Ah, não? Então quem deveria olhar pelo bem-estar dessas criaturas?
Depois de tudo, são as netas de uma de nossas sócias.
— Então, que seja Myra Halburton quem olhe pelo bem-estar de suas netas.
— Não vê que a pobre Myra está muito mortificada com as atividades de
sua filha mais nova, para admitir o que está passando? E você também deveria
se compadecer. Depois de tudo, que mãe quereria acusar a sua própria filha de
ser uma má mãe?
— Eu hei dito que a viram na casa do Gabriel Farley, mas isso não a
converte em uma má mãe.
— Então, o que? É uma prostituta das piores. Casada, divorciada, balança
sua cauda frente ao homem mais decente desta cidade, converte-o em um
desgraçado, depois trata de fazer pedaços o matrimônio de sua própria irmã. É
o que chamo uma prostituta. Além disso, deixa a suas filhas desatendidas a
todas as horas do dia e da noite, e dizem que sua casa parece uma pocilga. Eu
digo que falemos com alguém de autoridade, para que vá ali e veja o que está
passando. Essas criaturas poderiam ter melhores condições de vida em alguma
outra parte.
— Mas quem vai fazê-lo?
— Você é a presidenta, Wanda. Você deveria fazê-lo.
Somente uma das ‘benevolentes’ tinha permanecido em silêncio durante
todo o intercâmbio de sugestões moralistas. Elizabeth DuMoss, pelo geral
muito gentil, falou com uma ferocidade que espantou a suas colegas.
— Um momento, todas vocês! Estive aqui sentada, escutando enquanto
vocês planejavam sua pequena guerra contra uma mulher que não está presente
para defender-se, assim eu o farei por ela. Em primeiro lugar, devo dizer que
me envergonho de todas vocês por entregar-se a seus falatórios no mesmo
momento em que Myra voltou as costas. Vocês se denominam uma sociedade
benevolente, mas temo que hoje se burlaram dessa palavra, e já não posso
seguir sentada em silêncio e deixar que continuem com esta farsa. Eu pertenço
à quarta geração de membros deste grupo e estou segura de que minha bisavó
se horrorizaria se soubesse como se desviou a intenção caridosa e se voltou a
semelhantes assuntos arbitrários como decidir sobre o destino das pessoas.
Sei que sou uma só voz contra muitas, mas não poderia viver em paz comigo
mesma se não dissesse algo. E o que tenho que dizer em primeiro lugar se
refere ao Elfred Spear, não a Roberta Jewett. Cada mulher presente neste
jardim considerou conveniente fazer a vista grossa ao feito de que Elfred
Spear é um libertino desavergonhado que não desperdiçou uma oportunidade
para beliscar traseiros e olhar com luxúria os peitos e acariciar às mulheres
que não tinha nenhum direito a tocar. Ele nos pôs em apuros em reuniões
públicas e privadas ao tocar a muitas de nós, embora poucas de vocês o vão
admitir. Mofa-se de sua esposa quando ela não o vê, e faz uma brincadeira de
seu matrimônio com seus inumeráveis adultérios. Nem sequer tem respeito
suficiente por suas próprias filhas para conter sua luxúria quando elas estão
presentes, mas sim lhe dá rédea solta sob seus próprios narizes como se Deus
mesmo lhe tivesse dado o direito de insultar a todas as mulheres do universo.
Todas nós sabemos o que faz… — chega de maneira furtiva às mulheres em
qualquer lugar que lhe ocorra e lhes faz insinuações sobre o que têm debaixo
das saias. E se alguma de vocês o negar, é uma mentirosa. Assim lhes
pergunto: por que todas jogam a culpa em Roberta Jewett, quando é provável
que o verdadeiro vilão aqui seja Elfred Spear? Permaneci sentada aqui em
silêncio, enquanto vocês a crucificavam só porque é uma mulher e divorciada,
e não mencionaram uma só palavra sobre as fornicações do Elfred. Bom, eu as
menciono, porque ele já o fez por tempo suficiente. Esta é nossa oportunidade
para frear Elfred Spear. Quão único temos que fazer é apoiar à senhora Jewett
e deter os rumores em lugar de divulgá-los. É tão difícil dar à mulher o
benefício da dúvida? Qual é seu maior crime? Que é divorciada ou que vive
sua vida da maneira que muitas queríamos viver as nossas… viver onde lhe
agrada, conduzir seu próprio automóvel, manter a suas três filhas como o julga
conveniente, ter um trabalho que lhe dá a satisfação de ganhar um salário que
pode usar como quer, sem ter que lhe pedir dinheiro para gastos menores a um
homem?
—Pergunto a cada uma das mulheres aqui pressente: Desprezam a Roberta
Jewett, ou estão com ciúmes dela?
Quando Elizabeth DuMoss deixou de falar, as mulheres sentadas sob os
olmos guardavam um silêncio tão absoluto que só se ouvia o zumbido das
abelhas no cerco de malva. Algumas caras estavam pintadas de indignação;
outras, brancas de fúria, mas nenhuma impassível. Algumas mulheres olhavam
com severidade a Elizabeth, outras olhavam envergonhadas a seus regaços.
Algumas se ocultavam detrás de suas taças de café; outras, detrás de seu
silêncio hipócrita.
Elizabeth recolheu suas luvas e sua sombrinha.
— Eu deixo-as com um gesto que para alguns de vocês pode parecer
excessivo, mas que eu vejo como essencial para o meu respeito próprio. Neste
momento renuncio formalmente a meu cargo de tesoureira da Sociedade de
Caridade e Benevolência das Damas do Camden e apresento minha renúncia
ao clube. Considero que não posso estar filiada a uma instituição que parece
disposta a dedicar seu tempo e seus esforços, e possivelmente também alguns
de seus recursos, a exercer uma imerecida coação emocional sobre uma
mulher como a senhora Jewett. Ao fazer isto, não só sigo os ditados de meu
coração, mas também o de minhas antepassadas, uma das quais foi inspiradora
e membro fundador desta sociedade. Em seu nome, e no meu próprio, digo-
lhes adeus.
Uma vez finalizado seu discurso, Elizabeth DuMoss abriu sua sombrinha e
abandonou a reunião. Antes de chegar ao portão do jardim, ouviu que detrás
dela se desatava outra vez o furor.
Foi diretamente à oficina do Gabriel Farley na rua Bayview. Como não o
encontrou ali, dirigiu-se à sua casa. Bateu na porta, mas ninguém respondeu,
abriu-a e lhe deixou uma nota sobre o tapete: Senhor Farley, preciso falar
urgentemente com você. A Sociedade de Benevolência vai tratar de arruinar a
reputação da Roberta Jewett e fazer com que tirem suas filhas. Nós não
podemos permitir que isso aconteça. Por favor, me ligue ou passe por minha
casa esta noite logo que lhe seja possível.
Elizabeth DuMoss.
Elizabeth DuMoss era uma bonita mulher, de olhos castanho claro, maneiras
suaves e um marido riquíssimo, dono de uma das maiores mansões de
Camden, na rua Pearl, assim como das pedreiras de pedra calcária de
Rockport. Elizabeth era um ano mais jovem que Gabriel Farley e tinha estado
apaixonada por ele na época em que ela cursava quarto grau. Amava a seu
marido e seu matrimônio era feliz. Mas ele tinha uma barriga proeminente e
era miserável com seu dinheiro, e embora ela não tivesse trocado sua vida
pela de nenhuma outra mulher, invejava alguns aspectos da vida da Roberta
Jewett.
Seu primeiro amor não correspondido era um deles.
Quando ele tocou a campainha em sua casa às seis e quinze da tarde, estava
a ponto de jantar.
— Eu respondo, Rosetta. Você segue servindo o jantar — ordenou à sua
governanta.
Caminhou por sua casa com a graça de uma anfitriã acostumada a receber
visitas e se aproximou da porta de entrada com a segurança de alguém que
conhece sua posição privilegiada em uma cidade pequena.
Abriu a porta e o fez passar a seu elegante salão de entrada.
— Olá, Gabriel. — disse ela, abrindo a porta da tela e admitindo-o em seu
vestíbulo ricamente decorado.
— Olá, Elizabeth. Como está?
— OH, muito bem. Ao menos o estava até a reunião da Sociedade de
Benevolência desta tarde.
O apertão de mãos se prolongou e o mútuo conhecimento do afeto dela por
ele outorgou ao momento uma intimidade que se fazia presente cada vez que se
encontravam, mas junto com ela aparecia o respeito mútuo por sua condição
de casada e pelo fato de que era a mãe de quatro filhos.
Ao cabo de uns segundos lhe soltou a mão.
— Recebi sua nota, Elizabeth.
— Me espere um momento, Gabriel. Em seguida estarei contigo.
Ele a observou enquanto atravessava o corredor até o arco da sala de jantar
e ouviu que falava com sua família.
— Perdão, Aloysius, mas Gabriel já está aqui. Meninos, sigam com o jantar.
Não demoraremos muito.
Ouviu-se o arrasto de uma cadeira e Aloysius DuMoss levou sua volumosa
barriga e seu bigode de morsa ao salão de entrada. Quando se aproximou de
Gabriel lhe estendeu a mão para saudá-lo.
— Sugiro que vamos ao salão. Ali poderemos falar em privado.
Cinco minutos depois de terminada a reunião, Gabriel Farley estacionava
frente à porta da Roberta.
Quando chegou, as meninas estavam no alpendre, sentadas nas redes e nas
cadeiras, lendo e espantando mosquitos ao mesmo tempo. Ethan Ogier também
se achava ali, sentado com as costas apoiada contra uma grade do corrimão,
jogando sozinho com uma bola de borracha.
Entregues por completo à vadiagem, saudaram-no sem lhe dar muita
atenção.
— Olá, senhor Farley…
— Sua mãe está em casa? — Perguntou ele enquanto subia os degraus com
dois passos gigantes.
— Está na cozinha.
— Posso entrar?
— Mamãe! — Gritou Susan por cima do ombro — O senhor Farley vai
entrar!
Susan já tinha voltado para sua leitura quando Gabriel abriu a porta de
arame tecido.
Roberta o esperou na porta da cozinha. Secou as mãos com um pano de
cozinha tão cinza como os trapos que Gabriel usava em sua oficina para
limpar as ferramentas.
— Bom… tão rápido de volta? Veio me cortejar?
Ele a pegou pelo braço e a fez entrar na cozinha, onde não podiam ser vistos
da porta de entrada.
— Se o que pede é que te corteje, o vais conseguir, Roberta, porque quero
me casar contigo.
— Bem, isso sim que é uma mudança em relação a esta tarde, quando disse
que em realidade não queria se casar comigo, mas que o faria para me salvar
da desonra. E agora, o que é, Gabriel?
— Juro Por Deus que nunca vi uma mulher tão insolente como você em toda
minha vida! Quer fechar a boca e me escutar?
— OH, fechar a boca… isso sim que é poético. — Ela abanou o rosto com o
pano de cozinha — Faz que o coração de uma mulher corra a oitenta
quilômetros por hora ouvir uma coisa tão doce. Quem ensinou a…?
Gabe lhe fechou a boca com um beijo.
Apertou sua impaciente boca contra a boca impertinente dela e a apertou
contra a porta da despensa. Quando esteve seguro de que a tinha feito calar
por completo, utilizou também os braços. Esses braços largos e fortes de
carpinteiro lhe rodearam o corpo e a separaram da porta para apertá-la contra
ele e quando seus corpos se alinharam, toda a insolência dela e todas as
admoestações dele caíram no esquecimento. Roberta ficou nas pontas dos pés
e ele acomodou a cabeça e se encaixaram de maneira perfeita, e se beijaram
até ficar sem fôlego.
Foram beijos fogosos, exigentes, matizados com o conhecimento de que um
alpendre cheio de gente jovem podia precipitar-se dentro da casa em qualquer
momento.
E demônios se o fizeram!
Justo em meio a essa primeira e importante rendição voluntária, quando
Roberta estava dobrada sobre o braço de Gabe e suas calças de carpinteiro
empoeiradas estavam aninhadas nas dobras de seu avental branco enrugado de
enfermeira, duas garotas apareceram na porta. Lá estavam eles, movendo
como amantes há muito perdidos quando ouviram Susan sussurrar.
— Minha mãe está beijando seu pai.
E em seguida dois risos afogados que fizeram que Gabe girasse rapidamente
a cabeça.
— Fora daqui! — Ordenou-lhes. Em seguida, algo tardio, adicionou: Olá,
Isobel.
Roberta olhou ao redor do Gabe e apoiou sua ordem.
— Sim, saiam daqui. E não voltem a entrar até que eu lhes diga isso.
— Essas meninas…! disse Gabe, retomando sua posição, antes que Roberta
continuasse beijando-o.
Seus beijos foram melhores desta vez… As meninas sabiam, e não lhes
incomodariam. Entregaram-se à paixão de seus beijos… e durante muito
tempo… se exploraram um pouco enquanto ignoravam os mosquitos que se
aproximavam com seu zumbido. Quando as necessidades primitivas se
tornaram inflexíveis, ele se afastou um pouco para trás, com os olhos
fechados. Ela também. Seus corações ainda palpitavam com força e havia uma
picada de mosquito na bochecha de Roberta.
— Ele me pegou — disse ela sorrindo.
— Quem?
— O mosquito.
— Onde? — Irei beijar.
— Bem aqui. — Ela tocou a bochecha e ele a beijou, inclinando-se para
alcançar, mantendo os antebraços apoiados na parede.
— Obrigada — ela murmurou.
— Mais alguma? — Ele questionou. Aqui? — Ele roçou sua sobrancelha.
Aqui? — E seu nariz. Aqui? — E roçou seus lábios.
— Mm... sim, aí.
Enquanto ele beijava sua boca, ela o coçou a picada em sua bochecha.
Ainda preocupado com suas atenções amorosas, ele afastou a mão dela.
— Aqui, não faça isso. Apenas irá piorar.
— Pare de falar quando está me beijando. Eu estive sem beijar por muito
tempo para aguentar isso.
— Você é mandona — ele disse, e seguiu a ordem.
Alguns minutos depois se separaram e ela passou os seus braços vagamente
sobre os ombros dele.
— OH, Gabriel — ela disse, olhando-o nos olhos, — por que demoraste
tanto?
— O que quer dizer com que demorei tanto? Recorda a primeira vez que te
beijei? Nem sequer correspondeu a meu beijo, só ficou imóvel. A um homem
leva um tempo voltar a atrever-se depois de ter sido tratado dessa maneira.
— Eu não fiquei imóvel.
— Sim, senhora Jewet, o fez. E depois me despediu de sua casa como se
quisesse me dizer: ‘Dever completo, adeus.’
— Não o recordo absolutamente dessa maneira. Só pensei que era uma má
ideia.
— É evidente que já não pensa assim — comentou ele, sorridente.
— Não, senhor Farley, já não penso assim.
— Bem, porque agora tem que me escutar. Tem que se casar comigo
porque…
Lhe empurrou para desembaraçar-se dele.
— Não. Escuta… — Voltou a agarrá-la e a apertou contra a parede — Tem
que fazê-lo porque as damas da Sociedade de Benevolência estão falando de
apresentar demandas ante a justiça para objetar que não tem condições morais
para ser mãe e de algum jeito forçar que lhe tirem suas filhas. E não te dá
conta de que isso é por minha culpa? Porque eu esmaguei a cara de Elfred e
elas se imaginam que brigamos porque você tinha relações com os dois,
alguém viu seu automóvel em frente à minha casa depois do que aconteceu, e
se elas forem à justiça terá que lhes dizer o que Elfred te fez, e eu não acredito
que queira fazê-lo.
Roberta o olhou fixamente, com as mãos apertadas contra a parede, detrás
de seu corpo.
— Quem te contou isso?
— Elizabeth DuMoss.
— A mãe do Shelby?
— Sim. Ela pertence a essa sociedade. Pertencia, em realidade. Hoje
renunciou, quando elas começaram a falar de apresentar essas demandas
absurdas e autoritárias. E também lhes disse umas quantas coisas. Depois foi
me ver e me advertiu sobre o que essas damas planejam.
Roberta o olhou outra vez com olhos espantados.
— Minha mãe é membro da Sociedade de Benevolência.
Gabe fechou os olhos e suspirou fundo.
— OH, Deus!
Lhe empurrou o braço e ele apartou a mão da parede e a deixou livre.
— Sinto muito, Roberta.
Lhe deu as costas e caminhou para a pia.
— Por que Elizabeth DuMoss me defenderia?
— Porque ela sabe que classe de lixo asqueroso é Elfred.
Lhe lançou um olhar rápido.
— Contou-lhe o que ele me fez?
Gabe tomou um segundo para responder.
— Não, não exatamente.
— Então o que… exatamente?
— Eu não o disse. Acredito que o deduziu sozinha, quando ouviu sobre a
forma em que o golpeei. Roberta, olhe… — Aproximou-se dela por detrás, e
tratou de lhe fazer dar a volta — Tudo isto é por minha culpa. Se eu tivesse
usado a cabeça e tivesse espancado Elfred em algum lugar distante, no campo,
ninguém teria sabido que fui eu e isto não teria acontecido. Sinto muito,
Roberta. Foi estúpido e egoísta de minha parte, porque só pensei em mim e em
quão furioso estava. Não me detive para pensar em quanto implicava a ti. Por
favor, Roberta…
Apesar de seu esforço por fazer que ela se voltasse para ele, ela resistia.
Assim ele deslizou um braço por sua clavícula e lhe estreitou as costas contra
seu peito.
— Por favor, não fique assim comigo novamente. Não me rechace e volte
com essa atitude independente e altiva. Vamos lutar contra isso juntos.
— Por que quereria fazê-lo, Gabriel? — Perguntou ela, lhe aferrando o
braço com as duas mãos — Por que? Tenho que sabê-lo. Se for verdade,
adiante, diga-o. Para que os dois possamos saber onde estamos.
— Porque te amo, Roberta.
Roberta lhe apertou o braço com força, como se tivesse medo de que
pudesse soltar-se e trocar de ideia.
— Eu também te amo, Gabriel, e espero que acredite. Mas se eu não me
jogo em seus braços e não me caso contigo em uma, duas ou três semanas, não
deve se desanimar. Hoje foi a segunda vez que te beijei, desde que te conheço
passamos a metade do tempo zangados. Além disso, você me conhece. Sabe
que tenho que lutar minhas próprias batalhas e ganhar em minha maneira, seja
para me liberar de um marido infiel ou para manter a minhas queridas filhas.
Então tenho que lutar contra isso a minha maneira.
— E se casar comigo não seria à sua maneira.
— Não.
Deu-lhe a volta para que o olhasse à cara e a sustentou pelos braços.
— Roberta, por favor…
— Não, porque se eu fizesse isso, não poderia demonstrar que se
equivocam. E eu sou uma boa mãe. E muito boa! Não permitirei que ninguém
diga o contrário!
— Mas se você se casasse comigo, não poderiam te desafiar. Então, para
que se arriscar?
— Até o momento se trata tão somente de um rumor.
Gabe podia ver que não iria convencê-la, assim a tomou em seus braços
com doçura e ficaram enlaçados em um abraço tenro.
— Gabriel? — Sussurrou Roberta depois de uns segundos.
— O que, meu amor?
— Obrigado por me pedir isso e por me dizer que me ama, e por estar aqui
para me apoiar. Tem-no feito quase desde o momento em que cheguei em
Camden, e nunca te hei dito quanto lhe agradeço isso.
— Não há de que. Você também me apoiou.
— E te tenho feito zangar à mínima oportunidade.
— Isso também. Mas de algum jeito sempre voltei para mais, portanto devo
ter desfrutado com isso.
Roberta se apoiou contra o corpo vigoroso do Gabe e se sentiu à vontade.
— Sabe como acaba de me chamar? — Perguntou ao cabo de um momento.
— Como?
— Amor. Disse, o que, meu amor?
— Sim?
Ela sorriu.
— Ainda pode haver esperanças para nós. Além disso, beija muito bem.
— É obvio — respondeu ele sorridente — E você não é tão ruim, uma vez
que decide colaborar.
Ela se relaxou em seus braços um pouco mais, antes de voltar para a dura
realidade.
— Tomei uma decisão — anunciou por fim.
— Sobre o que?
— Falar com minha mãe e ver o que sabe ela sobre esta Sociedade de
Benevolência.
Roberta se apartou e olhou ao Gabriel aos olhos.
— Porque ela é parte disso… e se ela for uma das mulheres que quer que
tirem a minhas filhas, não posso ficar nesta cidade, Gabe. Deve entendê-lo.
A ele não lhe tinha ocorrido. Estremeceu-se e voltou a apertá-la em seus
braços.
— Não me assuste dessa maneira. Agora que por fim superei o medo de te
querer. Não me assuste, Roberta.
— Assim é como sou, Gabriel. Vejo as coisas com muita claridade… que
caminho deveria tomar, qual deveria evitar. Então risco meu curso e o sigo. É
essa a classe de mulher com a que quer se casar?
— Aqui… sim. Não em Boston ou na Filadélfia ou em alguma outra cidade
em que nunca estive. Camden é meu lar. É aqui onde quero ficar.
Roberta se separou lentamente até que ficou de pé frente a ele.
— Então será melhor que esperemos e vejamos. Não te parece, Gabe?
Ele suspirou e se sentiu carregado de pressentimentos. Embora lhe causasse
desgosto admiti-lo, nesse momento soube que ela pensava com muita mais
claridade que ele.
— Sim, suponho que sim — admitiu por fim — É melhor que esperemos.
E com essa nota de desamparo saíram a enfrentar-se aos olhos brilhantes de
impaciência de suas filhas, para quem ainda não tinham nenhuma resposta.
Capítulo 15
Voltar à sua antiga casa deveria ser mais convidativo, pensou Roberta
enquanto se aproximava da casa de sua mãe. Entrar na cozinha de uma mãe
deveria ser como um agradável descanso, uma imersão luxuriosa na segurança
do amor que deveria ter sobrevivido ao crescimento e à independência
pessoal, ao ir-se longe e ter os próprios filhos.
Aproximar-se da porta traseira da Myra, em troca, só lhe provocava terror.
Roberta bateu na porta, esse gesto lhe produziu pena: Myra nunca
consideraria adequado que abrisse a porta e entrasse como o fazia Isobel em
sua casa.
Em lugar de ‘Roberta querida, entre, vamos conversar, você está bem?’,
ouviu: — Ah, é você.
Entrou sem que sua mãe a convidasse.
A cozinha da Myra foi pintada de cor verde musgo e cheirava a camomila e
hortelã seca, para os chás que ela preparava durante o inverno. A mesma mesa
de madeira pintada dominava o centro da cozinha e as mesmas terrinas de
madeira e as mesmas vasilhas de louça se alinhavam nas prateleiras abertas. A
mesma expressão de desagrado enrugava a cara da Myra.
— Olá, mãe — saudou-a o fim, resignada —. Posso me sentar?
— Estiveste na casa de Grace?
— Não, mãe. Por que deveria ter ido à casa de Grace?
— Bom, não sei. Para arrumar as coisas, suponho.
Roberta estudou sua mãe por um longo tempo, em silêncio, oprimida,
pensando: ‘Eu nunca tratarei minhas filhas desta maneira. Nunca. Não importa
o que tenham feito.’ Por fim pegou uma cadeira e se sentou, enquanto Myra
ficava de pé, detrás da mesa que as separava.
— Não, mãe, para isso vim aqui.
— Bom, eu não é fui a única a quem ofendeu! Deveria ver sua irmã. Não
tem feito mais que chorar estes três dias.
— Por que?
— Por que!
Myra tinha os olhos exagerados quando se sentou erguida como uma águia
na cadeira mais distante da Roberta.
— Como se atreve a vir aqui e dizer uma coisa semelhante! Que Deus lhe
perdoe pelo que fez a sua irmã!
— O que eu fiz para a minha irmã?
— Pô-la em ridículo diante de toda esta cidade. Isso é o que tem feito!
— Quer, por favor, escutar minha versão, mãe? Só por uma vez? Porque eu
acho que você deveria. Acredito que deveria ouvir minha versão ao invés do
que murmuram esse bando de velhas galinhas murchas na Sociedade de
Benevolência!
À medida que falava sua voz se tornou mais forte e sua cabeça se projetou
para frente.
— Acredito que de uma vez por todas deveríamos expor o que nós duas
sabemos sobre o Grace e Elfred, e seu miserável matrimônio — deu um golpe
forte sobre a mesa — e as aventuras adúlteras do Elfred… e como te negaste a
reconhecê-lo, durante quanto tempo? Dez anos? Doze? Todo o tempo que têm
de casados? E eu acredito que deveríamos falar agora sobre o porquê. Hoje,
aqui, neste exato momento. Dizê-lo tudo, porque eu não posso mais viver desta
maneira, me perguntando por que me tem tanta antipatia!
Myra desviou o olhar e estalou os lábios.
— Não seja tola. Eu não te tenho antipatia.
— Não?
— Pelo amor de Deus, sou sua mãe — respondeu Myra como se isso o
explicasse tudo.
— As mães defendem a seus filhos. Você nunca o fez comigo. Sempre foi
Grace, e Grace, e Grace! Eu não te teria agradado assim nem que me tivesse
casado com o rei do Siam! Por que?
— Roberta, você está agitada.
E para dar por terminada a conversação, levantou-se de sua cadeira.
— Tem razão, maldita seja, estou-o! Sente-se, mãe! Não vais escapar disto!
Myra se sentou. Roberta se apaziguou e baixou a voz a um tom mais
razoável.
— Quando cursava sétimo grau ganhei um concurso de poesia e me deram
um diploma na escola, mas você não foi à entrega. Recorda por que?
Myra a olhava em silêncio, com os olhos muito abertos, como se tivesse
diante uma cobra.
— Porque Grace ficou doente. A pobre Grace tinha um de seus dez
resfriados do ano, ou uma dor de ouvidos, ou algo de tão pouca importância
como isso. Poderia havê-la deixado com papai, mas não o fez. Ficou em casa
para cuidar de Grace e deixou que eu recebesse meu prêmio sem que nenhum
de meus pais estivesse entre o público. Quando cheguei a casa, corri para te
dar meu diploma e, sabe o que fez com ele? — Myra não sabia, é obvio —.
Um ou dois dias depois te perguntei onde estava e você disse: ‘OH, devo-o ter
queimado junto com os jornais velhos.’ E eu fui ao meu quarto e chorei tudo o
que pude. Mas aprendi algo dessa experiência. Aprendi a não depender de que
minha mãe me amasse ou me apoiasse, porque ela nunca o fez. Algo que eu
obtivesse, ou que queria obter, você a denegria de uma maneira ou outra.
Quando me graduei com honras, afirmava que devia ficar e trabalhar na
fábrica. Quando disse que ia mudar-me para Boston, respondeu: ‘Lamentará.’
Quando disse que ia me casar, perguntou: ‘É rico?’ Quando Grace disse que ia
se casar, alardeou por toda a cidade sobre o bom moço que era Elfred e sobre
o próspero homem de negócios que ia ser algum dia. Escrevi-te e te pedi que
fosse a Boston quando tive minhas filhas… bom, as duas primeiras. Depois
aprendi a não lhe pedir mais isso, porque de todos os modos você não iria. É
obvio, nunca o fez. À medida que minhas filhas cresciam e te escrevia para lhe
contar sobre seus progressos, nunca deixou de responder minhas cartas para
elogiar algo que as meninas do Grace faziam nesse momento. Quando George
começou com suas aventuras e eu necessitava tanto a alguém, o que me
ofereceu? Nada. Nem ir a meu lado nem me ajudar de algum jeito. Isso foi,
provavelmente, quando Grace teve herpes e claro, você tinha que ir a sua casa
e cozinhar para eles. E quando ao final já não pude aguentar mais as aventuras
do George com outras mulheres, nem que me tirasse até o último centavo,
desfiz-me dele da única maneira que conhecia, mas… que outra coisa podia
fazer você? Jogou-me a culpa do divórcio. Você me culpou!
Roberta se levantou e à medida que aumentava sua cólera se inclinava mais
sobre a mesa.
— E agora! Agora esse bando de velhas hipócritas sabichonas com quem
tomas o chá decidiram que não sou uma mãe decente e falam de ir às
autoridades para tratar de que tirem a minhas filhas. E se você tiver parte
nisso, mãe, será melhor que primeiro escute toda a história!
— Como pode acreditar…? — Myra arfou.
— Posso acreditá-lo porque nunca, nem sequer uma vez em sua vida, me
defendeste. Elas dizem que tenho um romance com o Gabriel. Não o tenho.
Dizem que tenho outro com o Elfred. Não o tenho. Mas deixa que te conte algo
sobre seu precioso Elfred. No mesmo momento em que pus um pé nesta
cidade, ele o tentou. Depois de tudo, sou uma indecente mulher divorciada,
correto? Devo ser uma presa fácil para um demônio tão astuto e formoso como
ele, correto? Depois de tudo, ele seduziu uma mulher atrás de outra enquanto
sua esposa estava no mesmo lugar… Toda a cidade faz brincadeiras sobre
isso, mas Grace aparenta que não passa nada. Por isso teve herpes, mãe!
Porque seu marido tem relações promíscuas com qualquer mulher que pode.
Só esta mulher — Roberta se golpeou o peito — não se deixou enganar. Esta
mulher…
A voz da Roberta começou a perder sua força combativa e então voltou a
afundar-se na cadeira.
— Esta mulher disse não, e lhe deu uma bofetada e lhe proibiu que voltasse
para sua casa… até…
Com os braços estendidos, aferrou-se aos borde da mesa.
— Até três dias atrás, quando meu carro ficou sem gasolina no meio do
campo, no Hope Road, e Elfred passou por ali e me encontrou. E o que supõe
que fez, mãe? — Perguntou em voz muito suave.
Myra se deixou cair para trás, contra o encosto de sua cadeira, e cobriu a
boca com quatro dedos.
Passaram uns segundos de profundo silêncio antes de que Roberta
respondesse ela mesma a pergunta.
— Estuprou-me.
— OH não! — Sussurrou Myra detrás de sua mão.
— Por isso Gabriel lhe partiu a cara a golpes, por isso Grace esteve se
escondendo, e por isso meu carro foi visto frente à casa de Gabriel naquela
noite, já tarde… porque ele fazia o que deveria ter feito minha mãe: cuidou de
mim, abraçou-me enquanto chorava, deixou-me tomar um banho em sua casa e
aplacou meus medos. Porque eu não podia ir a ti… não é triste, mãe? Não
podia vir a ti porque você me teria culpado, como o tem feito sempre. Haveria
dito com segurança que eu tinha feito algo para provocar Elfred. E é provável
que o pense neste momento. Pensa — o, mãe?
Myra tremia.
— Bom, eu não o provoquei. — continuou Roberta — E como não o fiz,
Elfred me deixou isto. — Jogou a cabeça atrás e apontou debaixo do queixo —
É uma queimadura de charuto. Assim é como conseguiu que eu deixasse de
resistir.
Apareceram lágrimas nos olhos da Myra quando Roberta levantou o queixo.
A confusão emocional da filha se assemelhava a da noite em que tinha sido
violada. Myra, entretanto, sujeitava com firmeza as rédeas de suas reações,
encerrava-se em uma espécie de transe e mostrava apenas um pouco mais que
o brilho das lágrimas em seus olhos.
Roberta a estudou durante alguns momentos, deixou que mostrasse sua
própria confusão e então rompeu o silêncio.
— Agora preciso sabê-lo, mãe. Você é uma dessas mulheres da Sociedade
de Benevolência que quer que tirem a minhas filhas?
Myra demorou um bom momento em recuperar o equilíbrio emocional.
— Não — murmurou ao fim — Não sabia uma só palavra disso, até agora.
Roberta soltou um fundo suspiro.
— Bom, alegra-me ouvir isso.
Esperou a que sua mãe mostrasse angústia e preocupação por sua condição,
como Gabe, mas Myra estava muito encerrada em seu egoísmo para chegar tão
longe. Em troca, olhava fixamente através das lágrimas, possivelmente
chorando o final de suas ilusões sobre o Elfred e Grace.
— Talvez tenha mostrado preferência pela Grace — disse ao fim, olhando o
marco da janela — Sim… suponho que o fiz. Mas havia uma razão.
Fez uma pausa, ainda sem olhar aos olhos da Roberta.
— Bom, diga-me o motivo — incitou-a Roberta, impaciente — Estou
esperando.
Myra fez um esforço por recuperar-se, exalou um suspiro sobrecarregado,
abaixou o queixo e os ombros e baixou os olhos às suas mãos entrelaçadas.
— Educaram-me em uma família muito rigorosa… igreja todos os
domingos, recitar os mandamentos de joelhos todas as noites na hora de
dormir. Não havia más palavras, nem risadas, muito pouca diversão. Eles
pregavam que a diversão era para os ateus, que o trabalho te aproximava mais
ao céu… e eu lhes acreditei. Era uma educação muito severa, mas eu os
amava, a minha mãe e a meu pai. Tinham vindo da Dinamarca e estavam
acostumados a me falar desse país e de seus avós. Seja como for, eles
arrumaram meu matrimônio com um jovem bastante calado, chamado Cari
Halburton. Logo ficamos noivos. Bom, você sabe… nenhuma dessas tolices e
noites de lua que hoje associaria com um noivado. Mas nos casamos e ele era
um bom homem. Nunca muito expressivo ou quente, mas muito trabalhador.
Estava muito orgulhoso quando nasceu Grace. Mas eu nunca tive… Carl e
eu… Nós… Não era…
Myra tinha os olhos fixos em seus dedos, que retorciam a toalha de mesa da
mesa como se esmiuçassem uma massa. Esclareceu-se garganta e começou de
novo.
— Bom, me deixe dizer-lhe desta maneira… As vias da ferrovia viriam
passar pela cidade e chegou uma equipe de trabalhadores para coloca-las.
Esses homens colocaram essas vias justo detrás de nosso pátio traseiro e um
desses jovens, em particular, costumava me ver lá fora pendurando roupas, e
acenava para mim, e uma vez se aproximou e me perguntou se podia pegar
água da bomba de nosso pátio. E depois começou a me visitar até depois de
terminar a linha. Era um moço muito arrumado, sorridente, sempre cheio de
alegria e brincadeiras, muito diferente do Carl. Ele me fazia rir… e me disse
que era bonita.
Uma quietude incômoda invadiu a habitação. Nem sequer os dedos da Myra
retorciam a toalha de mesa.
Roberta soube inclusive antes de que terminasse a história.
— Como se chamava, mãe?
— Seu nome era Robert Coyle respondeu Myra, como em sonhos.
— Ele era meu pai, verdade?
— Sim.
Era um momento estranho para sentir-se perto da Myra, esse momento em
que Roberta se inteirava de que sua mãe lhe tinha mentido durante toda sua
vida. Entretanto, ela nunca tinha visto a suavidade em Myra antes. Suavizara-
lhe as rugas da testa e relaxara os olhos envelhecidos fazendo com que
Roberta se perguntasse como teria sido sua mãe se Robert Coyle tivesse
ficado.
— Ele se foi, é obvio, com a equipe da ferrovia. E Carl soube em seguida
que o bebê não era dele porque ele e eu não… bom, já sabe. Não com
frequência. E então, depois que Robert se fora, não voltou a me tocar. Nunca
mais. Carl me tratava com cortesia, como um hóspede em sua casa. E quando
você nasceu, anunciou que devia te chamar Roberta, como um aviso
permanente do pecado que eu tinha cometido com outro homem. Não demorei
muito tempo em compreender o bom homem que era Carl Halburton… seguro,
amável, alguém a quem eu amava…, mas aí já era tarde demais. Ele continuou
me evitando até o dia de sua morte. Grace era dele. Você não. Ele se
encarregou muito bem de que nunca o esquecesse, assim suponho que
descarreguei em ti algo de meu ressentimento.
Embora Roberta tenha esperado, nenhuma desculpa acompanhou a
exposição descarnada da alma da Myra.
— Mas, mãe… eu também era sua filha.
Myra se moveu incômoda em sua cadeira e enrugou a toalha de mesa da
mesa.
— Sim… bom… foi difícil.
Havia pouca dignidade em suplicar a essas alturas, e Myra devia ter
amadurecido bastante para contar a história, mas parecia que não estava
disposta a confessar nenhum amor por sua filha nem a desculpar-se por
reprimi-lo. O fato, feito estava.
Roberta olhou a seu redor como se começasse a despertar de um comprido
sonho.
— Bom, você me ensinou algo, mãe.
— O que?
— Nunca privar de amor minhas próprias filhas.
Myra se ruborizou um pouco e apertou os lábios, obstinada.
— Tentei-o muito contigo, Roberta, mas foi sempre tão teimosa… e
diferente. Algo que te dizia, você fazia o contrário. Isso não é fácil para uma
mãe, você sabe.
Roberta compreendeu que algumas pessoas não podem admitir nunca que
estão equivocadas, e sua mãe era uma delas. Seguia tão preocupada consigo
mesma, que era incapaz de ver seus enganos.
— Grace sabe tudo isto?
— Não. Nunca o hei dito.
— Se eu não tivesse insistido, tampouco me haveria dito, verdade?
— Não… suponho que não.
— Então o que há sobre essa Sociedade de Benevolência que quer me tirar
a minhas filhas? Há dito que não sabe nada?
— Não! Nada!
— Quem dirige essa sociedade?
— OH, Roberta! Não pensará ir lá a armar um grande escândalo, não?
— Mãe, ouça a si mesma! Trata-se de minhas filhas, e lutarei por elas. Se
você não me disser isso, averiguá-lo-ei em alguma outra parte.
— Muito bem, é Wanda Libarti. Mas é amiga minha, assim não vás acusando
—a de instigar algo que não é verdade.
Era típico da Myra que lhe preocupassem mais os possíveis sentimentos
feridos de sua amiga que a felicidade de suas próprias netas e de sua filha,
embora Roberta estivesse acostumada à sua insensibilidade, ficou indignada.
Mas, Por Deus! Não tinha devotado uma só palavra de comiseração pela
violação ou pela queimadura, nenhuma expressão de horror, nenhuma palavra
de censura à Elfred. Era como se depois dessas poucas e míseras lágrimas, ela
tivesse excluído por completo o tema de sua mente. Ela realmente ia fazer
como se nunca tivesse se inteirado?
— Mãe, você acredita em mim sobre a violação, verdade?
— OH, Roberta, por favor…
— Por que deveria inventar uma história semelhante? E onde pensa que me
queimei, se estava tendida no chão?
— Você e Grace… as duas são minhas filhas…. Que esperas que faça?
‘Abra seus braços e me estreite neles.’ Pensou Em realidade, uma resposta
semelhante teria resultado inapropriada, quase inaceitável. Nunca tinha
recebido uma amostra física de afeto de sua mãe, e Roberta compreendeu que
em realidade não a desejava naquele momento. Quando tinha necessitado
consolo, tinha contado com o Gabriel. E com as meninas, especialmente com
Rebecca. Eles seguiriam sendo seu principal suporte emocional.
— Nada — respondeu ao fim.
E em seu interior soube que o dizia seriamente. Não esperava nada de sua
mãe e não recebia nada. Mas também era verdade o que havia dito antes: que
tinha aprendido uma valiosa lição de frieza com Myra e que lhe tinha sido
muito proveitosa no momento em que ela mesma se converteu em mãe. Suas
filhas nunca sofreriam por falta de afeto, atenção e aprovação, não enquanto
ela respirasse.
Para grande surpresa, agora que Roberta tinha expresso sua irritação, sentiu-
se mais amigável com Myra.
— Hei-o dito muito a sério, mãe. Eu não espero nada de ti, só precisava
exteriorizar meus sentimentos. Suponho que seja bom que siga cuidando de
Grace, porque ela a necessita mais que eu. Eu me desembaracei de um marido
infiel e estou tranquila com minha consciência. Ela ainda tem que resolver
esses dois problemas. Bom, escuta… — Apartou a cadeira da mesa e se
levantou-se. É melhor que vá. Vim no meu horário de trabalho e tenho que
compensá-lo. Eu sou a única enfermeira pública que trabalha nesta região.
Myra pareceu aliviada de que a visita tivesse terminado. Levantou-se
também e ficou de pé ao outro lado da mesa.
— Está zangada comigo por te contado sobre seu pai?
— Não. Não troca em nada o que eu sentia pelo Carl. Ele será sempre o pai
que tenho em minhas lembranças. E se não era um pai afetuoso, sempre se
assegurou de que tivéssemos o que necessitávamos. Isso era suficiente.
— Bom… — Myra fez um gesto vago — Que bom.
Um silêncio embaraçoso caiu sobre ambas. Roberta não via o momento de
sair dali e terminar com tudo aquilo. Aos trinta e seis anos de idade, fazia uma
grande demonstração de maturidade e se alegrava de que tudo ficasse trás.
Não teve tempo para ir falar com Wanda Libarti sobre o que a Sociedade de
Benevolência estava tramando. Tinha trabalho e isso significava percorrer
muitos quilômetros.
E tantas coisas em que pensar: Suas filhas. Gabriel. A família recalcitrante
de Gabriel. A aterradora possibilidade de uma gravidez. O que a cidade
comentava sobre ela. O que Grace diria a Elfred. Como explicaria Elfred sua
cara desfigurada a golpes. As filhas de Elfred e o que teriam ouvido sobre seu
pai. Casar-se ou não com Gabriel. Em que casa viveriam. Em como se
levariam se eram tão diferentes. A Sociedade de Benevolência. A advertência
da Elizabeth DuMoss. Gabe e Isobel que deviam jantar essa noite. As
instruções que tinha dado a Susan e Lydia sobre quando pôr no forno o pão de
carne. Rebecca e o jovem Ogier que tinham saído a navegar essa tarde. Que
ironia que ela e Rebecca se embarcassem em uma nova relação quase ao
mesmo tempo. O fato de que devia sustentar um bate papo com a Rebecca
sobre o tema…
Já era tarde e quando chegou em sua casa, os outros já estavam ali. O
caminhão do Gabe estava estacionado sobre a pracinha e havia um novo
balanço pendurado no alpendre. Susan, Isobel e Lydia estavam apertadas
sobre ele. Rebecca e Ethan Ogier acariciavam um gato alheio que tinha
entrado no pátio, e Gabriel, sentado nos degraus dianteiros, lia o jornal.
Quando ela fechou de repente a porta de seu Ford, Gabriel deixou o jornal
no chão, levantou-se e cruzou o pátio para ir a seu encontro. Roberta sentiu um
delicioso e inesperado tombo no coração ao vê-lo. Estava recém banhado e
penteado, vestido com uma calça cor cáqui e uma camisa branca que sua nova
lavadeira devia ter engomado e engomado. A noite era quente e levava as
mangas arregaçadas até o cotovelo de tal maneira que se viam seus braços
bronzeados. Enquanto caminhava para ela mostrava um sorriso plácido.
Roberta pensou em quão estranho devia parecer para seus vizinhos que o
homem esperasse a mulher voltar para casa do trabalho. Suas filhas, que
vadiavam no alpendre junto a ele, continuaram suas ocupações, com uma
aceitação que lhe deu absoluta liberdade para caminhar para ele com um
sorriso espectador em seu rosto cansado.
— Olá — saudou-o, feliz.
— Olá.
— De onde saiu o balanço?
— Tenho-o feito para vocês.
— Rebecca e Ethan ficarão contentes.
— Eu também, depois que escurecer.
Roberta lhe olhou os lábios e deixou acontecer um segundo antes de
responder: — Eu também. Obrigado. É muito bonito.
Detiveram-se na porta da cerca, onde as sombras largas das árvores dos
vizinhos riscavam franjas douradas e verdes sobre o pátio. Lhes chegou o som
de cascos de cavalo a distância, e no alpendre a corrente do balanço chiava.
Gabriel estava de pé, de costas à casa; Roberta, de costas à rua.
— Sabe o que desejaria? — perguntou ele.
— Não. O que?
— Poder te beijar.
— Eu também. Hoje pensei muito em nossos beijos.
— Bom sinal. Isso quer dizer que se casará comigo?
— Não necessariamente. Mas também pensei nisso, sobretudo depois de
falar com minha mãe.
— Sim?
— Disseme que não sabia nada sobre a Sociedade de Benevolência querer
que tirem minhas filhas.
Gabe assentiu três vezes com a cabeça, muito lento, como se sua mente
estivesse em alguma outra parte. Um meio sorriso lhe entreabriu os olhos
enquanto observava o cabelo e o rosto de Roberta.
— Nunca lhe hei isso dito antes, mas realmente eu gosto muito como usa
uniforme.
— Ah, sim? Por que?
— A maneira que enrola o cabelo sobre a borda do gorro, pulcro e
ordenado. A maneira em que cruza as tiras do avental nas costas. Seus sapatos
brancos limpos.
— Você gostaria que eu estivesse bem arrumada o tempo todo, não é?
— Suponho que sim.
— E se não o sou? E se nossa casa não o é? E se minhas filhas não o são e
estivéssemos casados? Brigaríamos por isso?
— Não sei.
Deu uma volta para examiná-lo e gostou do que viu.
— Onde viveríamos se nos casássemos?
— Isso tampouco sei.
— Onde você gostaria de viver?
— Sua casa é muito pequena.
— E na tua Caroline está muito presente.
— Vais estar ciumenta?
— Duvido-o. Falei com seu retrato quando estava sozinha em sua habitação.
— O que lhe disse?
De dentro da casa se ouviu o grito de Susan.
— Ei, vocês dois! Irão ficar aí de pé falando a noite toda? Estamos mortas
de fome!
Gabriel lançou um olhar por cima dos ombros.
— Já iremos!
Depois se voltou para a Roberta e repetiu a pergunta calmamente.
— O que lhe disse?
Ela gostava de sua serenidade além dos olhos azuis e os traços firmes de
seus lábios, suas sobrancelhas espessas e sua estatura generosa.
— Disse-lhe que te amo.
— Não!
— Sim, o fiz. Disse-lhe: Amo a seu marido, Caroline Farley. E assim é,
Gabriel, amo-te.
Ela viu muito claramente como sua declaração o surpreendeu novamente.
Gabe ficou sem fôlego e seus lábios se abriram como se fosse inclinar a
cabeça, fechar os olhos e beijá-la ali mesmo, na entrada da casa.
— Roberta, não te entendo. Ama-me e, entretanto, não quer se casar comigo.
— Vamos! — Gritou Isobel — São quase as sete e meia e o pão de carne
está pronto!
Esta vez foi Roberta quem olhou para o alpendre, inclinou-se para um lado
para ver pela lateral de Gabe e voltou a endireitar-se sem responder Isobel.
— Falaremos sobre isto mais tarde no novo balanço, digamos às onze? —
Sugeriu ela.
— Falta muito para essa hora.
— Bom, talvez possa fazer as meninas irem para a cama às dez. Farei o meu
melhor. Agora vamos ver se Isobel arrumou bem a mesa, ou se minhas filhas
planejam partir o pão de carne com as mãos.
Gabe lhe cedeu passagem para que ela caminhasse adiante e quando ela
passou a seu lado ele falou por trás dela.
— Eu sempre ponho bem a mesa.
— OH! — Roberta sorriu para si mesma —Bom, quem sabe? Depois de
tudo poderíamos chegar a alguma espécie de compromisso conjugal.
O jantar pareceu eterno. Depois as meninas decidiram fazer alguns desenhos
recortando papéis, e quando Roberta as convenceu de que começassem a
recolher os pedacinhos de papel, era bem depois das dez. Gabriel se sentiu
obrigado a levar Isobel a casa com o caminhão. E como era tarde, ele não
queria que ninguém, de um lado ou outro da rua Alden, ouvisse o ruído de seu
caminhão que voltava para casa da Roberta. Assim subiu a pé a colina depois
das onze.
Roberta tomou um banho rápido, esfregou-se com um creme de amêndoas,
vestiu-se um vestido comprido até a panturrilha e um suéter. Quando ele
começou a subir os degraus do alpendre, esperava-o detrás da porta de tela.
Abriu-a com cautela para não fazer ruído e saiu ao alpendre.
— Olá — sussurrou.
— Olá — respondeu ele, também com um sussurro.
— Pensava que nunca iriam à cama.
— Eu também.
— Isobel sabe que voltaste aqui?
— Não. Ela não tem que saber tudo.
— Tampouco sabem minhas filhas. Não posso acreditar que na minha idade
eu escape às escondidas para me encontrar com o namorado.
— Eu tampouco, mas não deixa de ser divertido.
— Tudo exceto os mosquitos.
— Não me incomodaram muito pelo caminho. Talvez queiram nos deixar
sozinhos. Veem aqui.
Agarrou-a pela mão, caminharam nas pontas dos pés até o balanço e se
sentaram. Gabriel lhe colocou um braço ao redor dos ombros e falaram em
voz baixa.
— Soltaste o cabelo.
— Para manter aos mosquitos longe de meu pescoço.
Lhe pôs uma mão sobre o cabelo… em seguida… encontrou seu crânio com
as pontas dos dedos.
— Bem, do que falávamos quando as meninas nos chamaram para jantar?
Isso era o que tinham esperado durante todo o dia. Esse momento de
aproximar-se, tocar-se, provar-se uma vez mais, com a cabeça dele inclinada
sobre a dela. Foi instantâneo esse primeiro beijo e valeu por todo o dia de
espera. Eles estavam ansiosos e ardentes desde o instante em que se tocaram,
excitados pelas horas de expectativa e pela intimidade das sombras debaixo
do telhado do alpendre. Por mais inibido que Gabriel Farley fosse a luz do
dia, ele se desprendeu de suas inibições na privacidade desse balanço no
alpendre. Os beijos que tinham faltado a Roberta durante os anos da
decadência de seu matrimônio os recebia uma e outra vez com uma melodia de
doce repetição. Um mosquito a picou no tornozelo através da meia de algodão,
então ela encolheu as pernas para cima, cobrindo os pés com a saia, sem
renunciar a nenhum dos prazeres que recebia da boca de Gabe. Estava aberta
sobre a sua, seu fôlego lhe golpeava as bochechas e a mão sobre suas costas
explorava tudo, seu suéter, seu vestido, sua pele, e riscava círculos suaves que
substituíam carícias mais íntimas.
Havia perguntas que brotavam de seu coração atormentado, e apartou a boca
para as formular.
— Quanto faz que não fazia isto?
— Desde que Caroline morreu.
— Quantos anos?
— Sete.
— George deixou de me beijar muitos anos atrás, a menos que quisesse
dinheiro. Então cheguei a odiar seus beijos…, mas sentia falta de… OH, sim,
faltava-me…
Beijaram-se outra vez, agora para recuperar o tempo perdido, enroscados
um com o outro em um abraço impaciente. Então dois mosquitos picaram
Gabriel ao mesmo tempo, um no pescoço, outro no seu punho. Ele espantou um
e esmagou o outro e disse contra os lábios dela: — Vamos para dentro,
Roberta.
— Não, não posso.
— Não faremos ruído. Ninguém saberá.
— Eu saberei. Você saberá. E não quero dar essa satisfação a esta cidade.
Ele recuou a cabeça para trás e disse: — Mas é uma tolice. Quão único
vamos fazer é ir detrás da porta de tela, onde os mosquitos não podem nos
alcançar. Prometo. Isso é quão único iremos fazer.
— Não posso, Gabriel. Se eu não fosse divorciada seria diferente, mas isso
é justo o que esta cidade espera que eu faça… levar homens à minha casa de
noite quando minhas filhas estão dormindo.
Outro mosquito lhe cravou no queixo. Gabe lhe deu um golpe, mas falhou.
— Então vá pegar uma manta.
— OH, Gabriel, não pode falar a sério.
Ele ouviu uma risada entre dentes no tom de sua voz. Mas justo nesse
momento matou um mosquito sobre a cara dela.
— Roberta, isto é simplesmente ridículo, vá procurar uma manta.
— Está bem, irei — aceitou e baixou os pés do balanço.
Ele ficou espantando mosquitos enquanto ela cruzava o alpendre nas pontas
dos pés, abria a porta sem fazer o menor ruído, desaparecia e voltava tão
silenciosa como se foi.
— Aqui está — ela sussurrou, jogando a manta enquanto voltava a ocupar
seu lugar ao lado dele.
— Onde foste a procurá-la? — perguntou.
— No meu dormitório, claro.
— Acha que te ouviram?
— Não me importa se me ouviram. Tenho direito a me sentar no balanço de
meu próprio alpendre, não?
Gabe riu entre dentes e conseguiu que os dois se colocassem como ele
queria, com a manta lhes cobrindo tudo menos as cabeças.
— Hey… eu gosto disto — ele sussurrou e deslizou uma mão por debaixo do
braço, quase lhe roçando um peito — Veem aqui.
Existem maneiras de combater o pudor e, entretanto, ainda mantê-lo... e ele
as encontrou, recostando-se em um canto do balanço e arrastando-a com ele
até que suas pernas estivessem estiradas e juntas com a manta as cobrindo.
Depois de um beijo de seis minutos, quando a boca começou a lhes doer e os
mosquitos encontraram suas cabeças descobertas e sua mão vazia não podia
negar mais a ansiedade, estirou a manta sobre suas cabeças e ali, no refúgio da
escuridão total, onde o aroma de seu rum com essência de louro se juntou com
o do creme de amêndoas dela, Roberta o repreendeu: — Gabriel! — E riu
entre dentes.
— Shh… — ele sussurrou, e segurou seu peito. E conteve o fôlego durante
esse momento tão singular e depois respirou outra vez…ofegante.
Cinco minutos mais tarde, suas bocas estavam inchadas e também algumas
outras partes estratégicas, quando uma voz falou fora da manta.
— Mamãe? É você?
Gabe e Roberta ficaram imóveis como estátuas. Ali estavam sentados — em
realidade deitados — dois vultos debaixo de uma manta. De fora, a Rebecca
pareceu que sua mãe tratava de levantar-se e simular que não tinha estado
deitada contra as pernas abertas do senhor Farley, porque uma das dela
pendurava no ar enquanto lutava contra a gravidade.
— Senhor Farley? É você também?
Houve alguns sussurros debaixo da manta e as quatro pernas conseguiram
desenredar-se e os dois corpos endireitar-se um junto ao outro, e por fim
Roberta levantou a manta o suficiente para olhar fora. Rebecca tinha acendido
a luz do salão que iluminava duas cabeças com os cabelos revoltos e quatro
olhos que a olhavam com acanhamento.
— Sim, Rebecca?
Foi a resposta de uma mãe de trinta e seis anos, empenhada em dar a sua voz
um tom de dignidade.
— Mamãe? Que diabos faz aí embaixo?
— Falávamos…
Passaram alguns segundos embaraçosos antes que Gabriel intervisse.
— É que… os mosquitos…ele explicou vagamente enquanto levantava a
ponta da manta.
— Bom, e por que não entram na casa? — Suspirou Rebecca com sensatez
— Lá dentro não há mosquitos.
— Boa ideia — disse Farley, e apartou a saia da Roberta da perna esquerda
de sua calça — Entremos na casa, Roberta.
Ele não tinha ideia de que ela estava se contendo, até que sua risada lhe
escapou através dos lábios apertados com um ruído parecido a um zurro.
Quando Roberta começou a rir, não pôde conter-se e riu também.
Rebecca os olhou indignada e apertou os punhos contra os quadris.
— Mamãe, pelo amor de Deus, entrem agora mesmo na casa antes que os
vizinhos lhes vejam aqui fora com essa manta ridícula sobre as cabeças! Céus,
comportam-se como se fossem duas crianças de doze anos!
Precipitou-se dentro da casa, fechou a porta de repente, apagou a luz e os
deixou no alpendre, rindo, cada um com uma ponta da manta apertada contra a
boca. Roberta ria tanto que estava sem fôlego e quase não conseguia falar.
— OH, Gabe… te dou minha palavra… se nos casarmos… teremos que
contar esta história a nossos netos… OH, Gabe, deveria ter-se visto quando
saíste debaixo da manta.
Lhe esfregou o cabelo emaranhado com sua manta e o deixou pior que antes.
— Bom, que diabos! De todos os modos elas sabem.
Roberta riu um pouco mais, então sentou-se ao lado dele até que conseguiu
normalizar o ritmo de sua respiração. Então, segurou com as duas mãos
obstinadas nas bordas do balanço e olhou para Gabe à sua direita.
— Será melhor que nos digamos boa noite. De todos os modos, já somos
muito velhos para isto.
— Muito velhos para que? — Perguntou ele insinuante.
— Não para aquilo — sussurrou ela —Só para isto.
Levantou-se e pegou uma ponta da manta para leva-la, porém Gabriel a tinha
agarrada e a puxou em sentido contrário. Roberta caiu em cima dele e o
impulso enviou aos dois e ao balanço para trás. Gabe a sustentou à altura das
costelas com suas mãos grandes, os polegares debaixo de seus peitos.
Levantou o rosto para ela, que o olhava de acima.
— Case-se comigo, Robert. — disse muito sério.
Ele tinha feito um verdadeiro esforço por agradá-la e ela gostava da
mudança, a maneira como a tinha cortejado, como ela disse que queria… ao
vaivém de um balanço em um alpendre debaixo de uma manta. E o enorme
progresso que tinha feito ao lhe dar mais liberdade e demonstrar mais afeto a
Isobel. E as meninas, que com segurança estavam a favor de seu noivado. Mas
o noivado era uma coisa, e a vida cotidiana, outra… com mães, e cunhados, e
as damas da Sociedade.
— Talvez — respondeu, e lhe deu um beijo de boa noite.
Capítulo 16
No dia seguinte, ao amanhecer, Roberta teve um pesadelo sobre o estupro.
Despertou com um grito encolhida contra a cabeceira, suando e chorando, e as
palpitações pareciam lhe fazer estalar o coração.
Rebecca, foi arrancada com violência de um sono profundo, e entrou
aterrorizada pela porta de seu dormitório vestindo uma camisola enrugada.
— Mamãe, o que acontece?
— OH, Becky… OH… OH…
Rebecca correu até a cama e abraçou forte a sua mãe.
— Estava sonhando?
— Foi horrível…
A voz da Roberta tremia enquanto se apertava contra sua filha.
— Era outra vez Elfred me fazendo essa coisa terrível, só que, justo antes
de fazê-lo, ele… levantou a cabeça e era Gabriel, não Elfred, e eu estava tão
desolada porque ele tinha me enganado e não era a classe de homem que eu
acreditava, e eu continuava tentando lutar contra, tratei de rechaçá-lo e quis
lhe pegar e lhe dizer que era um mentiroso, mas não me saíam as palavras.
OH, Becky, foi simplesmente horrível!
Becky lhe acariciou o cabelo e a manteve apertada contra seu peito. Seu
próprio coração pulsava tão depressa como se ela mesma tivesse tido esse
pesadelo.
— Foi só um sonho, mamãe. Olhe, já é quase de dia e as meninas ainda
dormem e tudo está em perfeita calma. Não tenha medo.
Roberta começou a acalmar-se e pouco a pouco afrouxou os braços que a
apertavam a sua filha.
— Por que tinha que sonhar uma coisa semelhante sobre Gabriel?
Becky se sentou na borda da cama, agarrou as mãos de sua mãe e esfregou
os polegares sobre os nós dos dedos de Roberta.
— Não sei, mas ontem à noite você estava sentada com ele no balanço e em
nenhum momento me pareceu que quisesse rechaçá-lo, justamente o contrário.
— OH, céus…
Roberta olhou para a janela. O alvorecer de lavanda pálido estava fluindo
sobre o peitoril e no jardim as folhas do arco permaneciam imóveis nos
ramos. À medida que recordava a noite anterior se desvanecia seu medo e os
batimentos de seu coração recuperavam seu ritmo normal.
— Você parecia muito descontente conosco.
— Em realidade não. Suponho que despertei quando você subiu nas pontas
dos pés para procurar essa manta. Então eu fiquei pensando por que estava
acordada tão tarde e me perguntei se se sentiria bem. Simplesmente não pude
acreditar quando apareci no alpendre e os vi com essa manta sobre a cabeça.
Mas não estou descontente. Em realidade, estou encantada de que o senhor
Farley tenha se apaixonado por ti.
— Sério?
— Por que não deveria está-lo, quando você está tão feliz?
— Sou-o, verdade?
— Ele lhe deu um maravilhoso verão; em realidade, ele deu a todas nós um
verão maravilhoso… nosso primeiro verão em Camden, cheio de tão boas
lembranças. Eu acredito que deveria se casar com ele, mamãe.
— Ontem à noite ele me perguntou novamente.
— E o fará?
— Suponho que sim, com o tempo.
— Eu não posso deixar de pensar no quão segura estará com ele. Então os
homens como o tio Elfred não poderão lhe fazer mal e os fofoqueiros desta
cidade terão que encontrar alguma outra vítima para falarem. E também pensei
muito em que dentro de pouco tempo Susan e Lydia e eu seremos adultas, e que
quando encontrarmos marido e formos embora de casa ficará sozinha. Eu
adoraria que tivesse o senhor Farley a seu lado. E nas férias viríamos todas
aqui, nós três e também Isobel, e pensa em quão bem o passaríamos. Voltar
para Camden para passar outro verão junto ao mar, provavelmente com um
montão de bebês… OH, mamãe, tem que se casar com ele! Tem que fazê-lo!
Roberta deu a sua filha um tenro abraço. Tinha recuperado por completo a
calma e sentia o coração cheio de emoção por essa extraordinária jovenzinha
tão especial.
— Ultimamente te hei dito quanto te quero, Becky?
— É obvio.
— Bom, deixa que lhe diga isso outra vez. — Beijou-a forte na bochecha e
declarou-: Quero-te, Becky. Não sei o que teria feito sem ti estes dois últimos
dias. Quanto mais velha você fica, mais querida você fica.
Becky olhou diretamente nos olhos de sua mãe e disse com a maior
naturalidade: — se case com o senhor Farley, mamãe. Eu acredito que o ama
mais do que acredita e às vezes você pode ser muito independente para seu
próprio bem.
Becky se levantou e caminhou descalça para a porta. Quando chegou ali,
deteve-se e lhe disse: — Além disso, se você se casar com ele já não
precisarão ter que beijar debaixo de uma manta no alpendre. Poderão entrar
em casa, que é onde deveriam estar.
Não tinha transcorrido nenhuma hora quando Roberta chamou Gabe por
telefone.
— Bom dia Gabriel — saudou-o.
— Quem…? — Seu assombro foi evidente — Bom, isto sim que é uma
surpresa!
— Despertei-te?
— Não, já tinha me levantado e me preparava para ir ao trabalho.
— Dormiste bem?
— Em realidade, não. — Fez uma pausa e se esclareceu garganta — Não,
Roberta, não dormi bem.
— Não? — Deu um matiz de paquera ao simples monossílabo — Por que?
Ele riu e o som de sua risada produziu um agradável calafrio na coluna de
Roberta, que riu com ele e durante uns instantes a operadora não pôde ouvir
outra coisa que não o silêncio.
— Estava pensando… — continuou Roberta — Esta noite apresenta uma
companhia de Boston no teatro da Ópera. Interpretam uma obra do Oscar
Wilde e prometi às meninas que as levaria. Vocês gostariam de vir conosco?
— Oscar Wilde? — perguntou Gabe.
— Sim. A importância de chamar-se Ernesto.
— Ah…
Roberta podia jurar que ele não sabia nada do Oscar Wilde nem de suas
obras.
— Estiveste alguma vez no teatro?
— Para ver uma obra? Não, nunca.
Roberta sorriu e imaginou que ele se sentia fora de seu elemento.
— Está bem, Gabriel. Eu não construí nenhum alpendre nem nunca cultivei
roseiras, mas isso não quer dizer que nós não possamos aprender sempre algo
novo.
Roberta desejou que ele estivesse a seu lado para poder vê-lo, embora fosse
por um instante, e que a beijasse e poder sentir as vibrações de sua presença e
apagar as sombras que ficaram do pesadelo.
— Gabriel? O que diz?
— Estou disposto a tentá-lo.
Ela sorriu e se sentiu jovem. E vigorizada. E impaciente! E se deu conta de
que esse desejo veemente não estava reservado só aos mais jovens.
Aquele dia tinha um agitado programa de trabalho. Mas também Gabriel
ocupava sua mente, apesar da diversidade de seus afazeres.
Tirou uma ervilha do nariz de um menino de cinco anos, que sua mãe tinha
tratado extrair sem êxito com uma agulha de crochê. Enviou ao doutor um
homem com um pé excessivamente inchado depois de que uma tocha lhe
atravessou o sapato e lhe rompeu a falange do dedão. Enfaixou as costelas
fraturadas de um homem que caiu esmagado contra a parede de um abrigo
quando seu cavalo se espantou pelo som de um apito de vapor nas docas.
Comprovou um surto de sarampo em uma granja do sudoeste da cidade, e não
só atendeu os três meninos da família, mas também a um leitão de estimação
que apareceu com erupção ao mesmo tempo que os pequenos.
Com o passar do dia conduziu mais de cem quilômetros. E enquanto saltava
e ziguezagueava pelos caminhos de cascalho, com os cabelos que se soltavam
do coque e o uniforme cada vez mais sujo, pensava em Gabriel e planejava se
dar de presente um bom banho de imersão ao final da tarde, e lavar o cabelo e
os recolher da maneira que ele gostava. Não faria mal fazer a vontade dele
desta vez, a noite em que pretendia aceitar sua proposta de matrimônio.
Vestiria seu único vestido de linho da melhor qualidade, de mangas bufantes e
laço no corpete, e lhe diria: ‘Gabriel, aceito sua proposta. Sentir-me-ei muito
orgulhosa de ser sua esposa.’
Mas quando chegou em sua casa, no final da tarde, encontrou uma mulher
desconhecida sentada em seu novo balanço no alpendre, com um chapéu
carregado de flores como se as abelhas tivessem que tirar o néctar dali.
Debaixo do chapéu, o vestido reto do verão e os sapatos marrons abotinados
lhe davam um aspecto severo. Também as recatadas luvas brancas.
Não se balançava. Estava sentada reta, com os tornozelos cruzados e a alça
da bolsa pendurada em seu punho. Quando Roberta estacionou, a mulher se
levantou e esperou no degrau mais alto do alpendre.
— Senhora Jewett? — Perguntou ao aproximar-se Roberta.
— Sim?
— Meu nome é Alda Quimby. Sou membro da comissão diretiva da escola
de Camden e nosso presidente, o senhor Boynton, pediu-me para falar com
você.
— Sobre o que?
— Há algum lugar onde possamos falar em privado?
— Não, não o há. Terá que ser aqui, no alpendre. Sente-se onde estava e eu
ficarei de pé. Mas terá que esperar um momento. Primeiro tenho que saudar
minhas filhas. — deu a volta e entrou na casa.
— Meninas, já estou aqui!
Esse dia eram cinco, mais dois moços: Ethan Ogier e seu irmão menor,
Elmer. Estavam todos no pátio traseiro, alguns entretidos com uma coleção de
conchas marinhas, outros sentados nos degraus do fundo enquanto Elmer Ogier
se pendurava de cabeça para baixo na barra do varal para impressionar às
garotas.
Roberta atravessou a cozinha e chamou da porta traseira.
— Oi, todo mundo, estou em casa!
Susan veio para o lado oposto da porta de tela lhe perguntou em voz baixa:
— Quem é essa mulher, mamãe?
— Não sei. Dir-lhe-ei isso depois. Bombeia um pouco de água para o meu
banho, por favor? Obrigado, Susan.
No alpendre dianteiro, Alda Quimby seguia de pé quando Roberta voltou a
sair com seu uniforme cheio de pó.
— E bem, senhora Quimby… o que posso fazer por você?
— Estou aqui por um assunto oficial, senhora Jewett, e lhe advirto que não
será agradável.
Roberta sabia muito do que se tratava, e não mostrou a menor paciência.
— Bem, então cuspa de uma vez. Esse bando de velhas murchas conhecidas
como a Sociedade de Benevolência pensa que não sou uma mãe decente. É
isso, verdade?
A senhora Quimby ficou boquiaberta, mas em seguida recuperou sua
compostura.
— A esposa do senhor Boynton é membro dessa sociedade e ela levou
algumas coisas à atenção de seu marido.
— E ele é muito covarde para vir aqui e falar comigo, talvez porque pensa
que não vou comprar dele meu próximo automóvel. E tem razão. Não o farei!
— Chegou a nossos ouvidos que suas filhas ficam sozinhas e têm que valer-
se por si mesmas os cinco dias da semana, e que em sua ausência outros
meninos da cidade reúnem-se aqui, em sua casa, sem supervisão de nenhum
adulto. É correto?
— Eu trabalho para manter a minhas filhas é correto! — Replicou Roberta,
irada.
— Alguns desses meninos estão em seu pátio traseiro neste mesmo
momento.
— Assim é.
A boca da senhora Quimby se franziu como se se preparasse para tomar um
sorvo de chá.
— Você é divorciada, conforme tenho entendido.
— Sim, graças a Deus. E sou enfermeira diplomada, e a proprietária desta
casa, e a proprietária desse automóvel, e bastante competente para educar a
minhas filhas com meus próprios recursos.
— Senhora Jewett, vou economizar nosso tempo e serei o mais clara que
possa. Apresentaram demandas contra você afirmando que foi a causa de uma
feroz briga entre dois homens, um dos quais é casado… e, para aumentar a
vergonha desse incidente, seu próprio cunhado. A rixa, dizem-me, foi
presenciada por sua própria esposa e suas filhas, que, segundo o rumor,
ouviram uma linguagem muito suja naquela noite, e ouviram coisas sobre você
que nenhuma criança deveria ouvir jamais. Depois disso, um dos homens de
negócios mais respeitados teve que caminhar por aí em um estado deplorável,
desfigurado. E seu automóvel, senhora Jewett, foi visto altas horas dessa noite
estacionado frente à casa do outro homem. E ele foi visto com tanta frequência
neste alpendre, que se expressou preocupação também por sua filha. Há-se
dito também que suas filhas tiveram que jantar caramelos de chocolate porque
sua mãe não chegou até muito tarde e tiveram que arrumar-se sozinhas. E hoje
corre o rumor de que você e o senhor Farley foram vistos acariciando-se neste
mesmo balanço ontem a meia-noite! Senhora Jewett, estou segura de que
compreenderá que os membros do conselho diretor da escola têm que
preocupar-se com o bem-estar de qualquer criança que veja ameaçada sua
educação por carecer dos cuidados de sua mãe, que está dirigindo sua casa
como um bordel.
Roberta mal confiou em si mesma para permanecer de pé ali, no alpendre,
sem dar um empurrão em Alda Quimby e fazê-la rodar de costas pelos
degraus, golpeando-se seu sabichão e inchado traseiro.
— Vocês são uns jumentos eruditos, vocês não sabem nada sobre o que
converte a uma pessoa em um bom pai ou mãe! — Gritou — Se soubessem,
estariam frente à porta do Elfred Spear neste mesmo momento! Pedir-lhe-ei
que se vá, senhora Quimby, e se quer questionar minha moral ou a atenção e o
cuidado que dou a minhas filhas, é melhor que se prepare para fazê-lo através
de canais legais, porque vou lutar contra você até a morte antes de permitir
que me tirem minhas filhas. E agora saia de meu alpendre e não volte a pôr um
pé nesta casa nunca mais!
— O conselho diretor da escola me pediu…
— Fora! — Roberta lhe deu um ligeiro empurrão — E diga a esse
cavalheiro do Boynton que na próxima vez, ele mesmo faça o trabalho sujo em
lugar de mandar uma mulher que o faça por ele!
Não precisou empurrar de novo à senhora Quimby. Um só passo em direção
a ela e a mulher saiu correndo com suas enormes rosas sacudindo-se sobre sua
cabeça.
Quando Gabriel chegou a noite, encontrou a Roberta em um estado de
extrema agitação, ainda com seu uniforme sujo e sem banhar-se. Enquanto
caminhava de um lado a outro da habitação como uma fera enjaulada, pô-lo a
par do que tinha passado.
— Como se atrevem! — gritou ao final — Gabriel, estou tão furiosa que
poderia matar alguém! Juro que o faria se tivesse um revólver! Mandam essa
sabichona essa dissimulada com suas luvas brancas de Virgem Maria e seu
ridículo chapéu cheio de rosas para me dizer que não sei educar minhas filhas!
As meninas rodeavam Roberta, tão furiosas como sua mãe.
— Eu lhe direi umas quantas coisas a esse conselho da escola! — Exclamou
Rebecca.
— Sim, nossa mãe é a melhor do mundo! — Adicionou Susan.
— Eu também o direi! Esses idiotas! — Somou-se Isobel.
Com seus dez anos, Lydia era ainda bastante pequena para sentir mais medo
que irritação.
— É verdade que podem nos apartar de mamãe? — Perguntou com
acanhamento.
— Não acredito — respondeu Gabriel — Roberta, sinto-o tanto!
Então ocorreu algo maravilhoso. Gabriel agarrou a Roberta em seus braços,
ali mesmo, no centro do salão, sob o atento olhar de suas quatro filhas como se
fosse a coisa mais natural do mundo. Ela apoiou o rosto contra o pescoço dele
e lhe passou os braços pelas costas, e durante esse instante, enquanto retomava
forças, os seis se sentiram felizes por estarem juntos.
— OH, Gabe! — disse, o bastante forte para que as meninas o ouvissem —
Estou tão contente de te ter a meu lado nestas circunstâncias!
— Não te angustie, Roberta, eu não permitirei que ninguém te arrebate
nada… nunca!
Ela tinha os olhos fechados; as lágrimas lhe tinham escurecido as pestanas.
— Eu nunca fui chorona, mas devo admitir que hoje estive muito perto de
sê-lo, depois que essa mulher partiu.
— Bom, isso é perfeitamente compreensível. Mas agora escuta, não sou o
único aqui que está disposto a te apoiar e te defender contra tudo…. Também
estão as meninas… O que me dizem, meninas?
As meninas correram para eles e se somaram ao abraço. Nesse momento as
duas famílias se sentiram muito unidas. Ali, nessa casa que tinha unido
Roberta e Gabriel, onde tinham superado a aversão mútua inicial, e tinham
brigado e perdoado e compartilhado o primeiro beijo, e onde suas filhas
tinham se tornado amigas, estreitaram-se os vínculos entre eles quando mais o
necessitavam.
— Bem, agora escutem — propôs Gabe — Não vamos permitir que isto nos
impeça de ir ao teatro, verdade?
Roberta o olhou angustiada.
— OH, Gabe, nem sequer troquei de roupa, e pensava me banhar e arrumar
o cabelo.
Gabe olhou a hora em seu relógio.
— Faça-o rápido. Nós lhe esperaremos. Além disso, não é justo privar as
meninas de um momento de diversão só porque a Alda Quimby e a seu bando
tenha lhe atravessado uma bola de cabelos na garganta. O que diz?
Alda Quimby tinha arruinado o dia maravilhoso de Roberta e tinha
transformado um sentimento de grande regozijo em outro de profundo vexame;
e agora Gabriel tentava bravamente melhorar o humor dela. Uma verdadeira
inversão de papéis para ele e Roberta.
— Está bem — concedeu ela — Mas necessitarei um pouco de ajuda.
Becky, pode subir comigo e trazer uma bacia de água?
Enquanto outros saíram ao alpendre para esperá-la, Roberta se precipitou
escada acima para trocar-se.
Por volta das sete e meia daquela noite, Maude Farley retirava as pragas de
seu pomar de verduras quando seu filho Seth veio caminhando pela lateral da
casa e caminhou até o final da fileira de feijões. Os borrachudos sempre
atacavam Maude quando transpirava e a essa hora do entardecer eram
terrivelmente molestos, assim que se atou um pano de cozinha sobre a cabeça
para mantê-los afastados de seu cabelo.
— Olá, mamãe — saudou-a.
Maude jogou algumas pragas em uma cesta de vime e se virou. Tinha o rosto
brilhante e rosado.
— Bem, Seth! O que está fazendo aqui?
— Vim falar contigo sobre um assunto.
— Incomodo-te se seguir com isto enquanto o faz?
— Aurélia te mandou este prato de compota de maçã que fez para o jantar.
Por que não lava as mãos e come isso enquanto nos sentamos nos degraus da
cozinha e conversamos?
Maude se abaixou e puxou outra erva daninha. Penduravam de seus dedos
sujos quando ela se endireitou para olhar seu filho.
— Bom, de acordo — consentiu.
Atirou as ervas junto com as outras e apoiou a enxada contra a cesta de
vime.
Tinha uma bomba de água no pátio traseiro e Seth acionou a alavanca
enquanto ela lavava as mãos. Depois se inclinou para um lado para sacudir o
excesso de água sobre a grama.
— Compota de maçã, né? — Comentou com um sorriso agradado quando
caminhavam para os degraus do fundo.
— Ela sabe que você gosta muito de tudo o que contenha maçã.
— Aurélia é uma boa mulher. Se importaria de entrar e procurar uma
colher?
Sentaram-se nos degraus e Maude comeu a compota de maçã enquanto os
dois olhavam para o pomar e o jardim de flores que cobriam a maior parte do
terreno traseiro. O sol da final da tarde projetava sombras largas junto aos
arbustos de tomate e as trepadeiras de pepinos. Ela já não precisava cultivar
tantas verduras, mas o fazia para dar a seus filhos. Uma família de carriça
criava sua segunda ninhada em uma casinha branca que pendurava de um ramo
baixo de uma árvore. O macho entrou voando com um verme no bico, atirou-o
dentro do buraco, e começou a cantar.
— Mamãe, vim para falar contigo sobre Gabe e Roberta Jewett.
Maude deixou de comer durante um par de segundos.
— Ele a esteve vendo muito frequentemente, verdade?
— Muito.
— Hummm… — balbuciou, e seguiu comendo.
— Sei que você não gosta dela, mas é melhor você se preparar, porque
Gabe a pediu em casamento. E se quiser minha opinião, você está sendo muito
teimosa com respeito a essa mulher. Demônios, mamãe, nem sequer a conhece.
— Como poderia, se ele não a trouxe aqui para apresentá-la?
— Por que teria que fazê-lo, com tudo o que lhe disse sobre ela?
— Parece que estivestes falando muito.
— Ele me conta muitas coisas. De fato, Gabe está muito mais conversador
desde que conheceu Roberta.
— Ele sabe que vieste aqui me persuadir?
— Não. Tenho-o feito por minha própria conta. Pensei que o necessitava.
— Todo mundo na cidade fala de que a Sociedade de Benevolência e o
conselho diretor da escola estão furiosos pela forma como ela educa suas
filhas e porque minha neta virtualmente vive em sua casa. E também ele.
— Não, ele não. Ele a corteja…. Não te parece natural que um homem que
corteja a uma mulher vá sentar-se em seu alpendre de vez em quando?
Maude terminou de comer sua compota de maçãs, deixou o prato de lado e
limpou os lábios com as pontas dos dedos.
— Como você está tomando partido nisto?
— Porque Gabe é muito feliz. Não o vi tão feliz desde que Caroline morreu.
E se estivesse mais perto dele, veria—o com seus próprios olhos.
Ela ficou pensativa, com o olhar perdido na distância. No final suspirou,
tirou o pano da cabeça sem desatá-lo e apoiou os cotovelos sobre os joelhos.
— Suponho que tem razão. Fui muito teimosa. Eu não gostava da ideia de
que meu filho se enredasse com uma mulher divorciada.
— Bom, dir-te-ei algo… se persistir nessa atitude, não o verá muito. Porque
se eles se casam, a lealdade de Gabe será para com ela. E seria muito
estúpido que lhes distanciassem só porque Roberta já esteve casada antes.
— Então ainda não lhe deu o sim?
— Até onde sei, ainda não. Mas, pelo bem que se levam suas meninas e
pelas coisas que ele diz, acredito que o fará.
Maude ficou olhando o pano de cozinha que tinha em suas mãos.
— Ah, possivelmente tenha razão. Ser obstinada é um mau e triste negócio.
Sinto falta dos dias em que lhe levava bolachas e além disso, o que vou fazer
com todos esses pepinos e tomates do pomar? Você e Aurélia não podem
consumir tantos.
Seth lhe apoiou uma mão nas costas e lhe deu um beijo na testa.
— Adivinha aonde o leva esta noite — desafiou-a.
— Aonde?
— Ao teatro da Ópera.
Ela fez uma careta de incredulidade, inclinou a cabeça e o olhou de
esguelha.
— Ah, vamos…
— Não! É certo! Ao teatro da Ópera.
Maude soprou enquanto ria.
— Bom, bom! Isso sim que é um milagre… ao teatro da Ópera!
— Ele mudou, nosso Gabe.
— Mas e todos esses rumores de que ele golpeou Elfred e de que ela tinha
relações com os dois?
— Ah, vamos, mamãe! Não conhece o Elfred Spear? Junta o que sabe sobre
ele com o fato de uma recente divorciada ter chegado à cidade, e imagina o
que Elfred terá tentado fazer.
— Com sua própria cunhada?
— Isso não seria um impedimento para Elfred.
A mulher ficou pensativa um instante.
— Então Gabriel foi ali para defendê-la.
— O mesmo que eu teria feito por Aurélia, se ela fosse a vítima. E te direi
algo: é melhor que nunca ela seja, ou não deixarei ao Elfred com vida.
Terminarei com ele para sempre, esse imundo bastardo.
Ficaram sentados um momento mais, julgando Elfred e Roberta Jewett. Por
fim Maude ficou de pé e anunciou: — Bom, pode ser que manhã vá lá para
deixar alguns biscoitinhos no pote de bolachas de Gabriel e ver se aquela
empregada quer algumas fatias de carne para o jantar.
Seth lhe olhou as costas enquanto ela movia os ombros para relaxar o
pescoço.
— Acredito que se feito muito tarde para tirar ervas — desculpou-se —
Pode ser que os borrachudos não incomodem mais, mas o farão os mosquitos.
O clã Jewett-Farley atraiu muitos olhares aquela noite no teatro da Opera.
No entreato, Gabriel comprou um refresco para todas e ficaram de pé no
vestíbulo do teatro para beber e observar como os olhares das pessoas se
desviavam, como se não estivessem murmurando sobre eles.
Um casal se aproximou de saudá-los: Elizabeth e Aloysius DuMoss.
Cruzaram o vestíbulo e Elizabeth fez uma manifestação clara de sua posição
ao estender sua mão tanto à Gabriel como à Roberta.
— Boa noite, senhora Jewett… Gabriel…vejo que saíram para passear as
duas famílias juntas. Olá, meninas.
As quatro responderam a saudação em coro e Elizabeth se dirigiu a Roberta:
— Senhora Jewett, posso falar um minuto com você?
Levou Roberta à parte e foi direta ao ponto.
— Perdoe-me por me intrometer em sua noite, mas pensei que deveria
saber… Há um movimento em marcha para levar este desagradável assunto
sobre você à reunião do conselho diretor da escola na segunda-feira de noite.
Inteirei-me que esta tarde tirou Alda Quimby da sua casa, assim as linhas de
batalha foram traçadas.
— Caramba, que rapidez! Faz apenas três horas que a joguei.
— A nova linha Telefónica compartilhada…
— Ah… isso.
Elizabeth estendeu o braço e apertou o antebraço da Roberta com sua mão
enluvada.
— Me escute bem — implorou — Não permita que a acovardem, e não
tenha medo. Eles não têm nenhum poder para fazer isto. Tudo foi provocado
por uma turma de mulheres fofoqueiras que se apoiam em seus maridos e lhes
esquentam as orelhas. Eles não têm nenhum direito! Nenhum!
Roberta estava pasma com ferocidade da senhora DuMoss.
— Talvez não, mas de todos os modos tratarão de fazê-lo. E não importam
todas as ameaças que possa lhes haver feito, eu não tenho dinheiro para
contratar um advogado que me assessore sobre meus direitos.
— Você não necessita dinheiro. Mas se chegar a isso, eu tenho dinheiro e
seria primeira a sair em sua ajuda.
— Você? Por que, senhora DuMoss?
— Por favor… me chame Elizabeth.
— Elizabeth…, deixa-me sem fala. Por que teria que me fazer uma oferta
semelhante? E o que diria seu marido?
— Ele seria o primeiro em dizer: ‘Adiante, Elizabeth.’
— Mas, por que? Mal me conhece.
Elizabeth apertou um pouco mais o braço da Roberta e em seguida afrouxou.
— Sei o suficiente. E não vamos deixá-los sair com isso.
O último ato da obra passou despercebido para a Roberta. Não podia deixar
de pensar nas palavras da Elizabeth DuMoss e se perguntava que razão a tinha
impulsionado às pronunciar. Perguntava-se pela reunião do conselho da escola
e se a citariam para que concorresse, ou se simplesmente continuariam com as
intrigas sobre ela enquanto nem sequer estava presente. Em sua opinião, quão
único fariam seria murmurar, se o que disse Elizabeth era verdade e eles não
tinham nenhuma autoridade para lhe tirar suas filhas.
Quando a peça terminou, voltaram todos para casa no automóvel de
Roberta. Como de costume, as meninas tinham fome e Roberta lhes fez
pipocas.
— Estaremos no pátio traseiro anunciou-lhes com o evidente propósito de
evitarem o balanço do alpendre — Vamos, Gabriel.
Fora, a grama estava carregada de orvalho e as luzes da cozinha caíam
oblíquas sobre ele. Ouviam as vozes das meninas ao redor da mesa e podiam
sentir o cheiro das calêndulas que floresciam perto da bomba de água quando
passaram junto a elas e se encaminharam para as sombras profundas debaixo
dos olmos.
Gabe aferrou a mão da Roberta e fez que o olhasse aos olhos.
— Agora me diga o que te disse Elizabeth.
— Disse que não tenho que ter medo, e que ela vai lutar comigo contra o
conselho da escola, e que eles não têm nenhum direito de fazer o que
pretendem, e que se isso significar que terei que contratar um advogado, ela
mesma pagará os honorários para deter essa gente. Mas não me disse por que.
Gabe, ela mal me conhece.
— Elizabeth é uma boa pessoa. E sua palavra tem muito peso nesta cidade.
— Mas por que quereria fazer tal coisa?
— Não sei.
Gabe puxou a mão e ela se abraçou a ele e lhe passou os braços pelo
pescoço.
— OH, Gabe, foi um dia tão agitado! No trabalho não fiz mais que planejar
o que faria ao chegar à casa: pensava-me banhar e arrumar como você gosta e
depois ia dizer—te que me casaria contigo…, mas quando cheguei em casa,
essa mulher Quimby estava em meu alpendre, e depois não tive vontade de me
banhar nem de lavar o cabelo. E agora, esta conversa sobre o conselho da
escola terminou por roubar toda a magia desta noite.
Gabe a estreitou contra seu corpo, com os braços enlaçados na parte baixa
de sua coluna.
— Espera um momento. Retrocede à parte em que pensava que foste casar-
te comigo. Há-o dito a sério?
— OH, Gabe! Como poderia não me casar contigo? Pela maneira em que as
meninas passam todo o tempo juntas e pela forma em que nós vamos e vamos a
nossas casas, na prática já estamos casados. Além disso, Rebecca me disse
esta manhã que estou muito mais apaixonada por ti do que acredito e que para
meu próprio bem sou muito independente.
— Então, se casará comigo ou não?
— Sim, casar-me-ei contigo.
— Bom…! — Ele soltou um suspiro — Você teve tempo suficiente!
— Mas não quero que esse maldito conselho da escola saiba. Se tudo isto
resultar em uma batalha, quero brigá-la por meu próprio mérito como mãe, não
me arrastando ante eles e lhes pedindo misericórdia porque estou casada e a
partir de agora tenho um homem que cuide de mim.
— Rebecca tem razão. É muito independente.
— Primeiro derroto o conselho e depois damos a notícia. De acordo?
— Roberta — disse Gabe, frustrado — o que importa isso?
— Importa, Gabe. A estas alturas deveria me conhecer o suficiente para
saber que me importa.
— Mas por que tem que ser tão teimosa?
— Prometo que não o serei em todas as coisas. Só nisto. Por favor, Gabriel.
— Está bem, Roberta — admitiu ele com um suspiro — Faremos à sua
maneira.
Deixou cair as mãos e ela sentiu que se perdeu o espírito romântico que
devia ter acompanhado esses últimos minutos. Então ela pegou a mão a mão
dele entre as suas e disse: — Gabriel, lamento muito ter quebrado este
momento tão especial. Tinha-o planejado de uma maneira muito diferente.
Ele parecia mal-humorado, assim Roberta levou sua mão aos lábios e a
beijou.
— Gabriel — sussurrou — Vamos… não se zangue. Nem sequer vais beijar-
me?
— Bom, não queremos que o conselho da escola descubra.
Roberta sorriu na escuridão por sua criancice, e tomou como um desafio.
Ela puxou a mão e murmurou.
— Gabriel?
Ele se deixou arrastar de volta para ela, mas ainda não a agarrou em seus
braços.
— Quantos rostos nos olham pelas janelas da cozinha? — Perguntou, de
costas à casa.
— Nenhum. Mas se não querer me beijar, farei eu. Está bem… fique aí
parado, e lhe demonstrarei isso.
Pôs os lábios sobre os dele, apertou-se contra seu corpo e o abraçou com
força melodramática.
— Roberta — murmurou Gabe enquanto lutava por separar a boca — Juro
que…
— Jura mais tarde — interrompeu-o, sem separar seus lábios dos dele —
Neste momento quero dar a esse maldito conselho escolar algo sobre o que
falar.
Capítulo 17
Roberta não recebeu nenhuma intimação para a reunião do conselho da
escola, mas, se iam falar dela, ela estaria lá. Um espírito frágil teria se
acovardado, mas isso lhe teria causado uma vergonha muito maior que a de ser
interrogada em público por sua conduta como mãe, pela qual Roberta não
tinha que desculpar-se.
Às sete e meia da noite, quando o conselho escolar se reuniu no auditório
principal da escola secundária para sua última reunião antes do período
escolar de outono, Roberta estava presente. Também estavam Gabriel e seu
irmão Seth, e Aurélia, a esposa do Seth, e a maioria dos membros da
Sociedade de Caridade e Benevolência das Damas de Camden, uma
quantidade de professores, e Elizabeth e Aloysius DuMoss, cujas
contribuições caridosas ao conselho da escola tinham ajudado a construir, em
1904, esse mesmo edifício em que agora se encontravam. Também estavam
presentes outros moradores curiosos, que se tinham informado das
controvérsias entre o conselho e Roberta Jewett.
Por alguma razão que Roberta não conseguiu entender, Alda Quimby atuou
como porta-voz do conselho. Depois de que o presidente, o senhor Boynton,
declarou constituída a assembleia e que o conselho discutiu alguns assuntos
sociais da escola, o presidente cedeu em silêncio a palavra à senhora Quimby,
que juntou as mãos sobre a mesa e olhou em direção a Roberta, mas sem
encontrar-se jamais com seus olhos.
— Senhora Jewett… Bem, se nos permite lhe fazer algumas perguntas em
relação aos assuntos dos que vários membros da Sociedade de Benevolência
nos informaram…
Alda se esclareceu garganta e Gabriel apertou a mão da Roberta.
— Perguntem o que queiram — respondeu Roberta da segunda fila —. Quer
que eu vá até aí e olhe de frente à galeria, como se prestasse testemunho no
tribunal?
Houve uma visível quantidade de movimentos incômodos nas cadeiras da
frente.
— Não será necessário. Pode ficar onde está.
No fundo do auditório, apesar da proibição expressa de seus pais de que
assistissem à reunião, um grupo de jovenzinhos abriu a porta silenciosamente,
e entraram para ficar de pé parede traseira. Estavam ali as filhas da Roberta, e
é obvio Isobel e Shelby DuMoss e os moços Ogier, além de outros que tinham
entre nove e dezesseis anos, que em várias ocasiões tinham jogado no
alpendre das Jewett, subido com elas ao monte Battie, comido lagostas
fervidas no pátio, representado peças de teatro ou cantado ao redor do piano
enquanto Roberta ou uma das meninas o tocava. As últimas a entrar foram
Marcelyn, Trudy e Corinda Spear.
Alda Quimby notou sua chegada e parou por um momento olhando para seus
colegas do conselho, que muito convenientemente desviaram o olhar.
Alda franziu os lábios e começou a falar outra vez.
— Senhora Jewett, você se mudou para cá, acredito, na primavera passada.
— Correto — respondeu Roberta, forte e claro, para que todos pudessem
ouvi-la.
— E você veio de Boston, onde pouco antes tinha obtido seu divórcio.
— Correto. É isso um crime no estado de Maine?
A senhora Quimby olhou a seus colegas, mas nenhum lhe ofereceu a menor
ajuda. Todos tinham os olhos cravados na mesa.
— Não, não o é. Então quando se mudou para cá, você comprou a velha
casa de Breckenridge e a reparou com a ajuda do senhor Farley.
— Sim.
— E obteve um trabalho como enfermeira, empregada pelo Estado.
— Correto. Sou graduada do curso de enfermaria da Universidade Simmons
de Boston.
— E você viaja por todo o distrito rural em um automóvel que…
— Que comprei do senhor Boynton, aqui presente. Olá, senhor Boynton, me
alegro em vê-lo.
Boynton ficou tão avermelhado como uma lagosta fervida, e parecia que seu
colarinho iria explodir.
— De modo que seu trabalho como enfermeira pública a mantém longe de
sua casa da manhã até, às vezes, tarde da noite.
— Alguns dias.
— E durante esse tempo suas filhas têm que cuidar de si mesmas.
— Minhas filhas têm dezesseis, quatorze e dez anos e lhes ensinei a valer-se
por seus próprios meios. Sim, quando é necessário elas cuidam de si mesmas.
— Sua casa, senhora Jewett, converteu-se em um lugar de reunião para
outros jovens de Camden. Não é assim?
— Suponho que se poderia dizer assim.
— Onde lhes permite ficar depois da hora do jantar e até altas horas da
noite, havendo alguém que os vigiasse ou não.
Do fundo do salão se ouviu uma voz jovem.
— Por que não nos faz essas perguntas?
— Sim! — adicionou outra voz — Por que não nos pergunta o que fazemos
ali?
— E o que a senhora Jewett faz conosco!
— E quanto nos divertimos este verão em seu alpendre, fazendo coisas que
ninguém nesta cidade pensou jamais em nos ensinar!
Roberta girou a cabeça para trás assim como Gabe e todos os presentes no
auditório.
— Vocês que não deviam vir aqui — sussurrou Roberta.
— Trata-se também de suas vidas, Roberta — respondeu-lhe Gabe em voz
baixa.
— Mas e se o assunto de Elfred surgir?
— Não sei. Teremos que esperar e ver o que acontece.
As crianças marchavam corajosamente pelo corredor central, entre as filas
de cadeiras de madeira dobradiças, lideradas por Rebecca.
— Temos algumas coisas que queremos dizer antes de que isto vá mais
longe. Se vocês, os adultos, podem falar, nós também podemos.
— Não são permitidas crianças nas reuniões do conselho da escola! —
Gritou a senhora Quimby por cima do estrondo de passos enquanto as crianças
avançavam.
— Em nossa casa temos permissão para falar. Por que não deveríamos fazê-
lo aqui, quando é minha mãe a quem estão acusando?
Intrépida, Becky guiava sua legião à batalha e falava com a voz de uma
oradora que tinha adquirido sentido do drama devido às obras que tinha
representado desde sua infância.
— Neste salão todos deveriam ter uma mãe como a minha; desse modo
haveria mentes mais abertas e tolerantes. Não pensem que não sabemos que
classe de coisas murmuram a suas costas só porque é divorciada. Pois saibam
que a melhor parte de nossas vidas começou quando se livrou de nosso pai.
Lydia interveio: — Quão único fazia ele era desaparecer durante semanas e
semanas, e nem sequer voltava para casa à noite.
— Só voltava quando ficava sem dinheiro — adicionou Susan — Então o
tirava de mamãe e se ia outra vez.
— Assim, todas nos sentimos realmente felizes quando minha mãe se
divorciou — proclamou Becky — E ela tem um trabalho do qual estamos
muito orgulhosas também.
— É enfermeira e ajuda às pessoas — disse Lydia a todos os presentes.
— E tem seu próprio automóvel e o conduz ela mesma, coisa que à maioria
das mulheres daria medo — adicionou Susan.
— Mas nossa mãe não tem medo de nada.
— Nem sequer de vocês. Ela não teria que ter vindo aqui esta noite para
responder às suas perguntas, e tampouco nós… O olhar da Roberta abrangeu a
todo seu séquito — Mas pensamos que vocês deviam saber o que fazemos em
nossa casa.
Isobel deu um passo adiante.
— Antes que a senhora Jewett chegasse à cidade, eu era uma menina muito
solitária; não tinha muitos amigos e nem passatempos que me interessassem.
Todos sabem que minha mãe morreu, assim não encontrava ninguém em casa
ao voltar da escola e tampouco durante os dias do verão. Então conheci Susan,
Becky, Lydia e sua mãe… e tudo mudou. Acredito que o primeiro que fizemos
juntas foi Hiawatha. Ela nos deixou usar o alpendre e moveu o piano que está
justo ao lado da porta…
— E nos fez todos os trajes que quisemos…
Shelby DuMoss encabeçou uma ronda de comentários realizados por cada
criança que quis falar. Até as três meninas Spear fizeram ouvir sua voz.
— E decorados… Jesus, nossa mãe nunca nos permitiria organizar essa
confusão em nosso pórtico!
— Depois nos deixou representar a obra para nossos pais.
— Só que não vieram muitos.
— Mas representamos a obra na escola. Não é assim, senhora Robertson?
Becky se virou para procurar a sua professora entre a multidão.
Na quarta fila, a senhora Robertson ficou de pé.
— Sim, fizeram-no. A meu convite e da senhorita Werm, para toda a escola.
E foi uma excelente realização, na verdade. E se algum de vocês pensa que a
representação se originou e foi ensaiada na escola, equivoca-se. Tudo foi um
produto do próprio engenho das meninas. A senhorita Werm e eu assistimos à
representação no alpendre da senhora Jewett e em seguida nos demos conta de
que as meninas estavam muito motivadas para realizar atividades.
A senhorita Werm ficou de pé.
— Não só peças de teatro, mas também música. E acredito ter ouvido algo
sobre algumas caminhadas que ela conduziu em meio da natureza.
— Ah, sim! Levou-nos ao alto do monte Battie e nós identificamos árvores e
colecionamos insetos e ela nos recitou poesias.
— Na escola nunca nós gostamos da poesia, mas a senhora Jewett nos
ensinou coisas que nós podíamos entender.
— Sempre é divertido estar em sua casa, porque ali ri todo mundo.
— E ninguém nos ordena que fiquemos quietas e caladas.
— E ali sempre há algo que fazer.
Estes comentários foram feitos pelas meninas Spear.
— E eu estou lendo um livro do Robert Louis Stevenson…
— E talvez seja a próxima obra que representaremos.
— Se a senhora Jewett nos permitir…
O silêncio reinava em todo o salão, um silêncio impressionante, memorável,
durante o qual a reputação da Roberta Jewett começava a brilhar. Em meio
desse silêncio, Gabriel soltou a mão da Roberta e ficou de pé com uma
expressão de serenidade no rosto. Com sua boina na mão, olhou nos olhos da
Alda Quimby e falou com uma voz profunda e firme: — E eu vi a minha filha
florescer como um casulo e converter-se em uma jovenzinha cheia de vida
durante este verão. O que ela disse antes é verdade. Era uma menina solitária
e aborrecida até que as Jewett chegaram à cidade. Então a senhora Jewett lhe
abriu seu coração e as portas de sua casa e a admitiu como se fosse uma de
suas próprias filhas. — Olhou a Roberta para concluir — E por isso lhe
estarei eternamente agradecido.
Sem aparato, Gabriel voltou a sentar-se.
Na mesa da frente, Alda Quimby ainda tentava evitar que a tomassem por
tola.
— Senhor Farley — ela perseguiu — há outro tema que não mencionamos, e
que é bastante… bom, digamos que é um assunto delicado do qual você parece
ser um fator determinante. Mas em vista da presença destas crianças…
No lado direito do salão, Elizabeth DuMoss ficou de pé, vestida com
esmero e irradiando distinção.
— Acredito saber de que assunto se trata e, se o conselho quiser, acredito
que posso jogar um pouco de luz a respeito. Todos vocês me conhecem e
também a meu marido, Aloysius. — Ele assentiu com a cabeça — E este
senhor é nosso advogado do Bangor, o senhor Harvey. Se as crianças tiverem
terminado de dizer sua parte, uma breve sessão em privado poderia ser o
indicado neste momento. Senhor presidente, senhora Quimby, incomodaria
lhes dirigir-se conosco a outra sala, para que possamos solucionar isto o mais
rápido possível?
— É obvio, senhora DuMoss.
— Acredito que a senhora Jewett e o senhor Farley deveriam estar
pressente também.
— Certamente, senhora DuMoss.
— Aloysius… — convidou a seu marido.
Quando ele se levantou, agarrou-o pelo braço.
— Senhor Harvey…
Harvey ficou de pé e os seguiu.
Quando já estavam reunidos em outra sala, ao final do corredor, e a porta se
fechou detrás deles, Aloysius DuMoss apresentou o senhor Daniel Harvey, um
homem alto, elegante, que com um semblante afável sugeriu que todos se
sentassem nas carteiras da classe. Assim o fizeram. Os membros do conselho
escolheram a segunda e terceira filas de carteiras, enquanto Roberta e seus
defensores se sentaram na primeira fila, que consistia só em assentos, sem
superfície para escrever.
O senhor Harvey se situou diante deles como um professor. Deixou vagar
seus olhos sobre cada uma das pessoas presente, antes de dirigir-se a eles com
voz tranquila — Membros do conselho da escola, senhora Jewett, senhor
Farley… O senhor e a senhora DuMoss me pediram que viesse esta noite para
representá-los, e se necessário a você, senhora Jewett, no que eles esperam a
retratação imediata destas acusações. Estamos falando agora das alegações
relativas a uma conduta licenciosa de parte da senhora Jewett, na qual o
senhor Farley implicado, não estamos?
Os membros do conselho, intimidados pela inesperada presença de um
advogado de Bangor, lançaram-se olhadas desconcertadas. Então tomou a
palavra o senhor Boynton.
— Sim, falamos disso — respondeu.
— Obrigado, senhor Boynton. A senhora DuMoss tem alguma informação
que queria proporcionar sobre este assunto. Mas antes, os senhores DuMoss
pediram que os membros do conselho leiam e assinem este acordo de
confidencialidade, para certificar-se de que tudo o que se diga nesta sala
deverá manter seu caráter confidencial ad finem.
O senhor Harvey exibiu um papel datilografado e o entregou ao presidente
do conselho.
— Senhor Harvey, isto é, por completo irregular — protestou o senhor
Boynton — Nossa reunião não é mais que uma investigação informal.
— Sobre atitudes que parecem ser condutas muito ofensivas à moral, que
poderiam danificar a reputação de qualquer pessoa acusada delas se fossem
ventiladas em público. A senhora DuMoss me informou que as filhas de um
certo senhor Spear estavam presentes no auditório principal esta noite. Dado
que o que ela tem a dizer envolve o dito senhor, considera-se que teremos que
preservar a todo custo que essas meninas se inteirem, seja de primeira ou de
segunda mão. Com esse propósito pediu que todos os membros do conselho
assinem o acordo de confidencialidade, que eu irei autenticar ante um notário
e o senhor DuMoss guardará sob chave.
O senhor Boynton jogou um olhar ao papel.
— Mas você nos pede que assinemos um papel que nos denega o direito de
nos defender quanto a nossa decisão sobre esse assunto.
— Exatamente. Apesar de tudo, a decisão será do conselho e, uma vez que
tenham escutado o que a senhora DuMoss tem a dizer, entenderão suas razões.
O conselho nunca antes se viu frente a uma exigência tão caprichosa.
Entretanto, dada a generosidade do Aloysius DuMoss para com o distrito
escolar, e as perdas de recursos que teriam que suportar no futuro se eles o
desagradassem nessa ocasião, ao senhor Boynton ficaram poucas opções.
— Está bem. Assinemos e continuemos com isto.
O senhor Harvey tirou uma pluma e um frasco de tinta, molhou a pluma e
entregou primeiro ao senhor Boynton. Na sala reinava um silêncio tão absoluto
que o arranhão de seis assinaturas soava como o dos cães em uma porta.
— Obrigado.
Uma vez estampadas todas as assinaturas no documento, o senhor Harvey
tampou o frasco de tinta e guardou a pluma em uma capa de couro.
— Agora lhe pedirei à senhora DuMoss que continue.
Elizabeth se levantou e, seguida por seu marido, subiu ao pódio e puxou uma
cadeira. O senhor Harvey se sentou em uma das cadeiras que tinham deixado
vazias, e Aloysius DuMoss se colocou detrás de sua esposa enquanto ela se
sentava. Entrelaçou os dedos sobre a mesa e falou com um tom de voz discreto
e refinado.
— O que tenho a lhes dizer esta noite o mantive em segredo durante muito
tempo. Foi a causa de um grande sofrimento para mim durante anos e anos.
Todos vocês me conhecem… faz tempo e compreenderão que não tenho
nenhuma razão para mentir. O que vou dizer lhes é a pura verdade, e meu
marido responderá por isso, porque ele também sabe há muitos anos. Desde
que o telefone chegou a Camden, todos escutamos, através das linhas
compartilhadas coisas que desejaríamos não ter ouvido. Há pessoas que
divulgam as novidades que ouvem como se tivessem um direito concedido por
Deus para fazê-lo. Eu não o passo, mas é inevitável que se divulguem intrigas,
e eu ouço rumores como qualquer outro. Recentemente ouvi um rumor sobre
uma briga feroz entre o Gabe Farley e Elfred Spear. Cada um dos que se
encontram nesta sala sabe que é verdade que essa briga aconteceu, porque
todos vocês viram Elfred com a cara destroçada. Na noite dessa briga, Gabe
gritou algo, no jardim da casa de Elfred, que nenhum dos que estão nesta sala
teve a coragem de repetir e que eu acredito que devo dizer. A palavra era
‘violação’ e eu sei sobre isso porque aconteceu comigo.
Aloysius enquanto lutava para superar uma onda de emoção. Lhe fez um nó
em sua garganta e as articulações dos dedos de suas mãos entrelaçadas
ficaram brancas de tanto apertar.
— Quando tinha dezessete anos, Elfred Spear me estuprou… de repente lhe
encheram os olhos de lágrimas e perdeu a capacidade de falar. Seu marido
inclinou a cabeça para a dela e a fortaleceu com uma palavra sussurrada ao
ouvido e a permanente presença de sua mão sobre o ombro.
— Está tudo bem, querido. — sussurrou ela, e lhe acariciou a mão —.
Posso fazê-lo. — esclareceu a garganta e continuou — Os detalhes não são
importantes; apenas o fato de que eu era uma virgem inocente que ia caminho
para minha casa depois de passar uma noite com minhas amigas, quando
aceitei que me levasse em seu carro um jovem a quem eu acreditava conhecer,
um jovem no qual eu confiava. As consequências dessa noite me afetaram
durante toda minha vida. Meu matrimônio com o Aloysius começou com medo.
Só seu amor paciente me ajudou a superar os pesadelos que demoraram anos
para desaparecer. E agora, com os ataques da Sociedade de Benevolência à
senhora Jewett meus pesadelos retornaram.
Os olhos de Elizabeth procuraram e encontraram os de Roberta, e seus
passados aparentados fizeram que aparecessem lágrimas nos olhos das duas.
Então, com um tom mais delicado e feminino, declarou a todos os pressente:
— Amaldiçoo Elfred Spear uma e outra vez pelo que me fez. Eu não o
merecia. Não fiz nada para encorajá-lo… nada! Eu era uma mulher, e para
Elfred isso era o suficiente. Todos sabemos que para Elfred isso sempre foi
suficiente. Entretanto, quantos de vocês, sobre tudo os homens, riem de suas
artimanhas como se não fossem mais que travessuras infantis, enquanto as
mulheres que ele atacava estavam condenadas a guardar eterno silêncio,
porque se tivessem falado as teriam acusado, igual estão acusando agora a
senhora Jewett. E não digam que não o têm feito, porque eu estive nessa
reunião da Sociedade Benevolente quando esses desprezíveis falatórios deram
pé a esta trama sinistra que perpetraram contra esta mulher, cujo único crime
foi voltar para sua cidade natal como divorciada. Por isso a estigmatizaram.
Não é assim?
Elizabeth guardou um segundo de silêncio para que a furadeira de sua
acusação chegasse até o fundo antes de continuar.
— É muito mais fácil apontar um dedo a uma mulher divorciada que a um
pilar da sociedade de nossa cidade, verdade? Em especial se for alguém com
quem todos vocês fazem negócios todos os dias. Bom, vocês também fazem
negócios com meu marido, e eu benzo seu bondoso coração por me apoiar em
meu desejo de lhes fazer frente esta noite, com o rogo de que deixem de
perseguir Roberta Jewett. Se não o fizerem, devem saber que nossa apreciável
fortuna respaldará ao senhor Harvey para defender à senhora Jewett de todas
as maneiras que sejam necessárias. E que também haverá repórteres dos
jornais aqui, desafiando seus motivos, nem o que dizer de seu direito, para
trazê-la ante este conselho e questioná-la. E no processo, a esposa e as filhas
do Elfred Spear serão arrastadas pela esteira que deixaram seus atos
perversos. Eu sou mãe de quatro filhos. E simplesmente não acredito que os
filhos devam padecer algo semelhante. Por isso o acordo de confidencialidade
que pedi que assinassem. Cavalheiros… e damas… lhes deixo a decisão a
respeito de que caminho seguir a partir daqui. — Fez uma breve pausa e
adicionou — Só uma coisa mais. Renunciei a meu cargo como tesoureira da
Sociedade Benevolente, porque não posso, em boa consciência, estar filiada a
um grupo que faz escárnio de seu próprio nome. Obrigada.
Elizabeth sentou-se e relaxou as mãos. Seu marido lhe acariciou o ombro
quando ela elevou os olhos para ele. Elizabeth, em nenhum momento tinha
ameaçado retirar os recursos da escola que provinham dos cofres de DuMoss,
nem tampouco afirmado inequivocamente que Roberta Jewett tinha sido
estuprada. Mas, pelo ânimo que flutuava no ambiente, resultava evidente que o
conselho escolar já não tinha nenhuma intenção de queimá-la na fogueira.
— Se pudessem nos conceder uns minutos para discutir isto… pediu o
senhor Boynton.
Cinco pessoas abandonaram a sala, os DuMoss e seu advogado, Roberta e
Gabe. Lá fora, no vestíbulo, quando a porta se fechou atrás deles, as duas
mulheres ficaram de pé uma frente a outra durante uns segundos de silêncio
comovedor, até que abriram os braços e se fundiram em um abraço.
— Como posso agradecer-lhe, Elizabeth?
— Talvez já o tenha feito. Finalmente tirei este peso de cima e, depois de
tantos anos, sinto-me muito bem. Não o teria feito a não ser por ti. —
Elizabeth se apartou um pouco e adicionou-: Tinha medo de divulgar coisas
sobre ti porque não tenho nenhum direito, mas pensei que ao menos ao lhes
fazer assinar esse acordo…
— Não diga mais, Elizabeth. Foi muito discreta, e além do mais, eu também
queria que soubessem quem é Elfred, assim falou pelas duas.
— Direi-te algo — comentou Elizabeth, com expressão mais animada —.
Alda Quimby pagará o preço por haver ficado à frente desta investigação.
Ficará louca não poder contar isto a cada uma das mulheres da Sociedade
Benevolente.
A porta da sala de aula se abriu e o senhor Boynton ficou de pé diante dos
membros do conselho, que evitaram o contato visual com todos que se
encontravam no vestíbulo.
— O inquérito está descartado — manifestou o homem, direto — Perdão,
senhora Jewett.
Os seis membros do conselho escolar se afastaram em fila em completo
silêncio, deixando para trás cinco pessoas com muitas razões para sorrir.
Gabriel abraçou a Roberta, depois a Elizabeth.
— Obrigado, Elizabeth sussurrou-lhe ao ouvido — Obrigado em nome de
nós dois.
— De nada, Gabriel.
E aceitou o primeiro abraço que lhe dava em sua vida, antes de ocupar seu
lugar junto ao marido que a amava o suficiente para ajudá-la a superar essa
prova e muitas mais.
Daniel Harvey estendeu a mão a Roberta.
— Senhora Jewett, é um prazer conhecê-la finalmente. Devo dizer que a
admiro muito depois de escutar essas crianças. Trouxeram-me aqui para
defendê-la, mas eles fizeram um trabalho tão esplêndido que nem em sonhos
me ocorreu intervir. Além disso, nos livros de leis há algo que se chama
‘difamação de caráter’, e pensei que deixando que esse conselho diretor a
atacasse um pouco mais, poderiam nos fazer um favor se alguma vez
tivéssemos que enfrentar a eles em um tribunal. Alegra-me muito que não seja
o caso.
— Obrigado, senhor Harvey. Deu-lhe a mão também ao senhor DuMoss.
— Por que não vamos todos à nossa casa e tomamos uma taça de xerez para
comemorar? — Sugeriu então Elizabeth — Roberta, eu gostaria de te conhecer
melhor. Você o que diz, Gabriel?
Ele cedeu a resposta a Roberta.
— Parece-me magnífico — decidiu ela — mas posso tomar o atrevimento
de deixar minhas filhas sozinhas?
Todos riram antes que Elizabeth respondesse: — É provável que o conselho
escolar se inteire e inicie uma investigação.
Do lado de fora da escola, encontraram suas filhas. Roberta abriu os braços
para as três… mais Isobel.
— Bom, aqui estão nossas obedientes filhas, que permaneceram em casa tal
como o ordenamos.
As meninas falaram todas de uma vez.
— Conseguimos!
— Salvamos! Mamãe, estamos tão orgulhosas…!
— OH, senhora Jewett, ganhamos! Você ganhou!
Em meio da gritaria, houve um momento de tristeza, quando Roberta
levantou os olhos e viu que suas três sobrinhas rondavam perto deles. Então se
aproximou e as abraçou também.
— Marcy, Trudy, Corinda, obrigado pelo que hão dito esta noite.
Perguntou-se quanto saberiam a respeito de seu pai, e esperava que elas
ignorassem suas faltas mais graves, pois a inocência dessas meninas era muito
mais importante que a culpabilidade dele.
— Como está sua mãe? — perguntou.
— Muito bem.
— Poderão lhe dar um oi e um beijo de minha parte?
— Claro.
— E lhe dizer vou me casar em breve?
Os olhos da Corinda se aumentaram de entusiasmo.
— Sério, tia Birdy?
— Com o senhor Farley. Mas… silêncio! Não o divulguem por toda parte
esta noite. Esperem até amanhã, tudo bem? Ainda não dissemos às meninas.
Corinda riu enquanto se separavam e a mão da Roberta deslizava muito
lentamente dos ombros de sua sobrinha com uma persistente melancolia.
Gabriel se aproximou por trás e percebeu sua tristeza pela fenda irreparável
que se abriu entre ela e sua irmã.
— É doloroso não se dar bem com a família — confessou — Eu sei porque
minha mãe se manteve afastada durante todo o verão e eu realmente senti a
falta dela. Mas adivinha o que…
Roberta viu por cima do ombro seu sorriso de satisfação.
— Ontem foi a minha casa e encheu meu pote de bolachas enquanto eu
estava no trabalho.
— OH, Gabriel! Sério?
— Sim.
— Alegro-me muito por ti.
— Eu também estou muito contente. Acredito que isso significa que está
disposta a te reconhecer. A propósito, há mais alguém aqui que eu quero que
você conheça.
Era sua cunhada, Aurélia, que junto com seu marido, Seth, foi convidada a
unir-se ao grupo que se dirigia à casa dos DuMoss. De Aurélia e Seth, como
também dos DuMoss, Roberta só recebia amostras de sincera amizade. Quão
apropriado, ela pensou, que nesta noite em que minha vida dá um giro
importante, eu conheça pelo menos uma parte da família do Gabriel.
As crianças se afastaram em um grupo para caminhar até seus respectivos
lares, enquanto os adultos se dirigiam em seus automóveis à casa dos DuMoss.
Foi ali, no saguão dos DuMoss, depois do primeiro brinde à noite vitoriosa
de Roberta, que Gabriel propôs um segundo brinde.
— Para minha futura esposa! — disse ele, tocando a borda de sua taça
contra a de Roberta — Há três dias, Roberta consentiu em casar-se comigo.
Felicitações foram dadas, acompanhadas por abraços e uma pergunta
aparentemente sensata de Seth.
— Então, por que não o anunciou antes? Assim lhes teriam economizado
todo este inferno desnecessário esta noite.
— Ela não me permitiu isso — respondeu Gabriel.
— É próprio de minha natureza ser obstinada — informou a todos Roberta.
— Pode repeti-lo? — Disse Gabriel, olhando sua taça.
Quando as risadas se apaziguaram, olhou nos olhos de Roberta enquanto
falava com os outros.
— Vejam, ela queria triunfar sobre o conselho da escola por seus próprios
méritos e não por ter um homem que dela cuide e das meninas no futuro. Mas
de todos os modos o vai ter.
— Eu posso cuidar de mim mesma, Gabriel Farley — declarou Roberta com
toda claridade.
— Sei que pode. Vi-te fazê-lo durante todo o verão. Mas dois podem fazê-lo
melhor.
— Farei essa concessão. — Respondeu ela com um sorriso.
Então voltou a chocar sua taça com a dele, enquanto outros os olhavam e se
sentiam excluídos da cumplicidade entre Gabriel Farley e Roberta Jewett. O
casal tinha uma camaradagem pouco habitual. E todos podiam ver que esse
matrimônio não ia funcionar de maneira convencional.
Ela percorreria o distrito em todas direções nesse automóvel, vestida com
seu uniforme branco. E ele, com muita probabilidade, teria que arrumar-se
sozinho em uma casa que não se limpava com a frequência que deveria, e
comeria refeições tardias preparadas por mãos inexperientes, ou aprenderia
ele mesmo a cozinhar.
Elizabeth elevou sua taça para fazer um brinde oficial.
— Pelos futuros senhor e senhora Farley!
E quando as várias taças se tocaram, Roberta compreendeu que teria em
Elizabeth DuMoss sua primeira amiga verdadeira em Camden.
Capítulo 18
Quando Roberta e Gabe voltaram para a casa dela naquela noite, eram
11:30, a luz da cozinha estava acesa e todas as quatro garotas estavam
comendo ‘suspiro’ com colheres.
— Nós tentamos fazê-lo espesso, mas nossos braços se cansaram de batê-lo
— explicou Isobel. — Mas está muito gostoso. Querem um pouco?
— O que você ainda está fazendo aqui? — Perguntou Gabe. Esses dias,
quando ele questionava Isobel desta forma ele fazia isso calmamente.
— Eu moro aqui, você não sabia? — ela respondeu alegremente, lambendo
uma colher.
Gabe passou um braço frouxamente ao redor do pescoço de Roberta e disse
à sua filha — Sabe de uma coisa? Você vai. Diga a elas, Roberta.
Ela deu um aperto relaxado em seu punho e deixou seu braço balançar. —
Seu pai e eu vamos nos casar.
— Pro inferno, nós sabíamos disso — Isobel respondeu, ainda engolindo.
— Claro, nós sabíamos disso — Becky apoiou.
— Nós apenas não sabíamos quando — acrescentou Susan.
— Quando, mãe? — Lydia perguntou.
Roberta passou para Gabe. — Quando, Gabe?
— Quando você quer?
— Quando deveríamos?
Isobel respondeu: — Quanto mais cedo melhor para que todos possamos
viver juntos.
Roberta se virou para Gabe novamente. — Onde iremos viver?
— Aqui — respondeu ele, como se ele soubesse o tempo todo. — Vou abrir
um buraco naquela parede lá e adicionar um quarto para nós, e as meninas
podem compartilhar os dois quartos no andar de cima.
— Terei Isobel no meu quarto! — declarou Susan.
— Mãe, ela pode? — Lydia lamentou. — Eu a quero no meu.
Rebecca mergulhou duas colheres, que ela entregou para os adultos. —
Aqui, experimentem um pouco. Melhor se acostumar com isso, Sr. Farley,
porque às vezes isso é tudo que você tem para o jantar por aqui.
— Oh, Becky, honestamente, — repreendeu Roberta, divertida. — Não diga
a ele coisas assim. Ele vai acreditar em você.
— E não me chame mais de Sr. Farley. O que acha de Gabe?
— Tudo bem, Gabe. Como está o suspiro?
— Mmm. . . não está ruim.
— Quem vai estar lá por você, mãe?
— Quem quer?
Três mãos se levantaram. — Eu estarei, eu estarei, eu estarei!
Susan imediatamente menosprezou sua irmã mais nova. — Não seja boba,
Lydia, você é muito pequena para ser uma dama de honra.
— Não, ela não é — Becky defendeu. — Por que ela não poderia ser uma
dama de honra tão boa quanto você?
— Eu sei. Vamos tirar no palito, — Roberta decidiu.
— Eu tenho uma ideia melhor — disse Rebecca. — Vamos tirar colheres.
Todo mundo lambe sua colher, e só um de nós a mergulha no doce. Em seguida,
nós a colocamos na chaleira limpa e você a segura acima de sua cabeça, Gabe,
e aquela com o ‘suspiro’ será a ser atendente da mãe ou a dama de honra ou o
que quer que você chame isso.
Gabe disse a Roberta — É assim que a vida vai ser todo o tempo, vivendo
com vocês quatro? Fazendo jogo com tudo?
— Sempre um jogo — ela disse ele. — Sempre tentando conseguir diversão
na vida de modo que quando formos nós seis você terá um monte de
lembranças. — Para as meninas ela disse — Alguém mergulhe aquela colher.
Lydia mergulhou. Gabe levantou. E todo mundo tirou.
Rebecca pegou a colher cristalizada, e Roberta sentiu uma faísca de segredo
de prazer: estava certo que Becky estivesse lá por ela; afinal, ela esteve
prevendo e incentivando essa união por algum tempo. Todo mundo recebeu um
abraço, de qualquer forma, juntamente com um convite para planejar algo
especial para a cerimônia de casamento, e para falar sobre onde deveria ser
realizada. Parecia natural dizer sim quando as meninas perguntaram se Isobel
podia ficar durante a noite para que pudessem iniciar o planejamento.
Minutos depois, Gabe e Roberta estavam na varanda da frente no escuro,
dizendo boa noite.
— Você realmente vai deixar as meninas planejarem seu casamento?
— Bem, com certeza. . . algo dele, de qualquer maneira. Nós fazemos tudo
juntas.
Ele segurou seus braços e puxou-a para si. — Roberta, você é algo — disse
ele, inclinando a cabeça.
Foi diferente, beijar como um casal de noivos. O noivado removeu certas
restrições. Suas mãos se moveram sobre ela como se ela fosse uma linda peça
de madeira que ele tinha lixado e polido e estava verificando sua suavidade.
Ele ficou entre ela e o quintal, nas sombras mais escuras na extremidade
oposta do balanço da varanda, ficando cada vez mais imprudente enquanto os
segundos se estenderam em minutos com sua boca aberta ocupando a dela e
seus quadris fixando-a contra a parede.
Seus braços foram levantados, suas mãos em seu pescoço e cabelo até que
sua respiração se tornou difícil e ele começou a fazer incursões em sua roupa.
Ele nunca tinha feito isso antes.
Com sua boca e mãos ela o empurrou e sussurrou: — Pare, Gabe.
Ele libertou-a abruptamente, sentindo seu medo crescente. Ele mal
conseguia distinguir seu rosto nas sombras azul escuro.
— Eu não sou Elfred, Roberta. Eu não vou te machucar.
— Eu sei . . . — ela sussurrou, em seguida, como se para convencer a si
mesma — Eu sei.
— Mas ele amedrontou você, não foi?
— Um pouco. Talvez.
Ele pensou um pouco, condenando Elfred e temendo pela praga ele poderia
ter deixado no futuro dele e de Roberta.
— Ok, bem, ouça. . . — Ele deu um passo para trás, pegando suas mãos,
segurando-as. —Você está certa. A melhor coisa a fazer é esperar com tudo,
provar que a Sociedade Beneficente está errada, hein?
Ela o beijou no canto da boca e disse: — Obrigado, Gabe, pela
compreensão.
Embora eles tentassem fingir que uma pequena cunha não tinha sido
colocada entre eles, tinha. Embora eles tentassem fingir que isso não seria
levado mais fundo na noite de núpcias, eles sabiam que era uma possibilidade
distinta. Carícias no balanço da varanda ou nas sombras do quintal com todos
os seus botões fechados era uma coisa; enfrentar um leito conjugal era outra.
Ele se perguntou se ela iria atrasar seu casamento interminavelmente para
evitar enfrentar seus próprios medos.
— Então, quando podemos nos casar? — perguntou.
— Oh — ela deixou escapar um sopro de ar — Eu não sei. Quanto tempo
vai demorar para aumentar a casa?
— Está tudo bem se eu fizer isso? Nós ainda não conversamos sobre isso.
— Claro que está tudo bem. Eu adoraria ficar aqui, e seu plano faz todo
sentido. Afinal, Isobel tem passado tanto tempo aqui, e você também, que
praticamente parece que já tem sido nosso lar.
Pensou em seu horário de trabalho. — Seth e eu temos alguns trabalhos que
já concordamos em fazer, então eu não posso começar aqui por um par de
semanas.
— Bem— ela pensou por um momento — e em meados de novembro?
Poderíamos definir a data do casamento para essa data então.
Parecia a anos-luz de distância, mas Gabe escondeu sua decepção e disse:
— Acho que está tudo bem.
— É isso então. Meados de novembro.
— Roberta, eu gostaria de dar-lhe algo, um anel de noivado ou um broche.
Deveria ter tido isso para você hoje à noite, mas eu pensei que você gostaria
de escolher você mesma.
Ambos perceberam o quão diferente esta segunda vez foi em comparação às
suas primeiras, quando antecipação emocionante não segurou as sombras, e as
propostas foram entregues com os ornamentos apropriados. Eles se
perguntaram o que tinha acontecido com o casal despreocupado que tinha
entrado na casa para anunciar suas intenções de modo alegre menos de meia
hora antes.
Aquele casal reapareceu na sexta-feira quando foram escolher o anel de
noivado, um diamante modesto rodeado por quatro diminutos diamantes, e
voltaram para a casa de Roberta para encontrá-la excepcionalmente vazia.
Levou-a para o sofá da sala e começou a beijá-la, e puxou-a em seu colo, e
inclinou-a para um canto contra uma almofada solta.
Desta vez, ela o deteve imediatamente, arrastando sua mão para longe de
seus seios no momento em que ele fez um movimento em direção a eles,
agarrando-o em um abraço apertado que forçou seus braços ao redor de suas
costas, enquanto aceitava sua vontade.
Abraçando assim, encontravam-se em perigo, e contavam as semanas até seu
casamento, perguntando-se, então, se até lá ela teria superado sua aversão de
ser tocada.
Depois, e em outros momentos entre aquele e seu casamento, ele passou a
perguntar que danos finais Elfred tinha feito, pois ela iria apenas até certo
ponto antes que a tentação aberta se tornasse medo intrínseco. Isso correu por
ela, às vezes, quando ele menos esperava, e ele percebeu que como um noivo,
que a ele tinha sido dada uma segunda noiva mais delicada que a primeira.
Roberta precisaria de uma enorme quantidade de paciência e compreensão na
sua noite de núpcias, e talvez por muitas noites a seguir.
As meninas tiveram algo a dizer sobre a espera até meados de novembro.
Elas queriam que o casamento fosse realizado na varanda da frente, e havia
uma boa chance de que em meados de novembro ela pudesse estar coberta de
neve.
Então eles mudaram a data para 14 de outubro, e Gabriel ficou ocupado com
a reforma. A ala do quarto era à prova de intempéries, mas ainda não estava
terminada quando o dia do casamento chegou.
Roberta despertou cedo, virando o rosto para a janela onde uma aurora
rosada perfeita estava subindo em um céu azul impecável.
Devemos viver bem, pensou. Vai ser um dia perfeito para um casamento. No
entanto, ela enroscou mais fundo em sua cama dupla amarrotada, olhando para
a cor exterior, percebendo que esta noite ela estaria compartilhando a cama
com Gabe. Ela suprimiu um arrepio ao pensar, então apertou uma mão no seu
estômago apertado.
Roberta Jewett, você ama Gabe, e ele não é Elfred, e você está sendo boba,
então é só tirar esses medos ridículos de sua mente e agir como uma noiva
ansiosa.
Como uma pessoa poderia querer algo e temê-lo, também?
Às vezes, o dia pareceu rastejar, às vezes voou em direção às quatro horas.
Quando ela estava se vestindo, com as meninas andando para dentro e para
fora de seu quarto, pedindo itens de última hora, exclamando sobre seu vestido
e seu cabelo, buscando a aprovação de seus próprios, seus nervos estavam no
limite como se ela tivesse dezessete anos e fosse virgem.
As garotas tinham vestidos novos, e embora todos elas parecessem
adoráveis, Rebecca, em um vestido muito adulto até os tornozelos de cetim
damasco, parecia bastante impressionante. E tão adulta! Roberta pensava.
Pouco antes das quatro Lydia chamou — Gabe e Isobel estão aqui! — E ela
os ouviu bater abaixo. Ela nunca teria acreditado que ela teria borboletas no
estômago por encontrar um homem na porta, mas no dia do casamento, ela
teve.
Quando ela o viu de pé na varanda, lustroso e vestindo um terno novo de lã
preta bem apresentável, a ponta de suas botas novas brilhando como ônix, ela
pensou, Por que eu o amo mais do que eu amei George. Certamente eu o
conheço melhor. Nunca em um milhão de anos teria nada a temer dele.
Ela poderia dizer imediatamente que ele estava longe de estar calmo. Suas
bochechas barbeadas estavam tão rosadas como o amanhecer tinha estado, e
ele não parecia saber onde colocar suas mãos.
Ele disse: — Olá, Roberta.
E ela disse: — Olá, Gabriel — muito formal. Em seguida, os dois riram
nervosamente enquanto ela abria a porta de tela.
Isobel disse — Meu Deus, Roberta, você está tão bonita!
Tardiamente, ele disse: — Sim. . . sim, você certamente está.
Ela estava adornada em marfim, um vestido austríaco-drapeado que caia em
camadas por debaixo de seu peito e mostrava seus sapatos de cano alto. Seu
cabelo estava preso na parte de trás em torno de uma rosa de seda branca,
embora ela a usasse com seu gorro de enfermeira.
— E você parece muito elegante. Você comprou um terno novo.
Ele limpou a garganta e olhou para baixo rapidamente, seu queixo
encostando em sua gola branca alta com uma gravata amarrada grossa, preta.
— Ah. . . sim.
Nem mesmo quando eles se conheceram, tinham sido tão formais e rígidos
um com o outro. No entanto, ridículo como parecia, nenhum deles poderia
obstruir o seu nervosismo, o que fez as crianças sussurrarem entre si.
— Eu pensei que poderíamos esperar lá fora na varanda —, disse Roberta.
— Oh, certamente! — Gabe respondeu, como se ele tivesse feito algo
errado entrando na sala de estar.
Alguns convidados começaram a chegar: Seth, que iria leva-la para Gabe;
Aurélia e seus filhos; a mãe de Gabe, Maude, a quem Roberta tinha encontrado
em duas ocasiões e com quem ela havia forjado uma paz desconfortável; os
DuMosses e seus filhos; a Sra. Roberson e a senhorita Werm; Eleanor Balfour
do escritório regional de enfermagem e Terrence Hall, que trabalhou para os
rapazes Farley.
E, claro, Myra.
Grace estava conspicuamente ausente, embora Roberta realmente não
esperava que ela para participasse - Grace estava vivendo em sua esfera
insular, fingindo como sempre fez, que o resto do mundo estava mal orientado
e que seu casamento foi um presente do céu.
Elfred não estava no casamento também, é claro. O rumor espalhado na
cidade dizia que a sua empresa não estava indo particularmente bem. Ouviu-se
ele dizer que ele ia ser forçado a fazer uma segunda hipoteca de sua casa.
O ministro da igreja Congregacional sugeriu que começassem.
Como era para ser um casamento muito informal, não havia marcha nupcial,
apenas um arrastar de pés e a instalação do casamento na varanda, com as
crianças nos degraus da escada.
Enquanto as mães dos noivos estavam assistindo a festa de casamento
acontecer, Maude comentou: — Sua filha parece muito linda hoje.
A boca de Myra formou um oh de desaprovação. — Eu disse a Roberta para
não usar branco, mas ela nunca me ouviu. Grace me disse que era o que
Roberta faria, e com certeza, olhe para ela! Uma mulher nunca se veste de
branco em seu segundo casamento!
— Eu chamaria isso de marfim.
— Bem, é branco o suficiente para ser uma vergonha!
Maude lançou um olhar surpreso para esta mulher que estava prestes a se
tornar sogra de seu filho, e decidiu que ele iria precisar de toda a espécie de
cuidado materno ele pudesse obter de sua própria mãe, se ele fosse ser
sobrecarregado com Myra Halburton pelo lado de sua esposa.
A cerimônia foi comum em todos os padrões, exceto pelo fato de que a
noiva acompanhou suas filhas em um piano levado até a porta da sala,
enquanto o trio cantava — Oh Promise Me — em harmonia de três partes; e
Rebecca recitado um verso indiano.
Quando ela se virou na grade da varanda, ela descobriu que suas primas
Spears, que tinham sido ordenadas por sua mãe a ficar em casa, tinham
aparecido do outro lado da rua e estavam assistindo o processo de lá. Rebecca
permaneceu orgulhosa e alta e deixou sua reverberação ser levada clara para
onde eles estavam.
— Para o arco a corda está, Assim como para o homem a mulher está,
Embora ela o dirija, ela o obedece, Embora ela o puxe, ainda assim ela o
segue, Inútil é um sem o outro!
Ethan Ogier, que havia subido em sua bicicleta, ficou ao lado das meninas
Spear e sussurrou reverentemente — Uau, Becky não está bonita hoje? — E em
seu coração de dezesseis anos ele prometeu, eu vou me casar com ela um dia.
Na varanda, o reverendo Davis perguntou ao noivo — Você aceita esta
mulher? — E quando Gabe respondeu — eu aceito — quatro meninas
balbuciaram as palavras junto com ele. Elas fizeram o mesmo quando Roberta
deu sua resposta. E quando Gabriel beijou a noiva as três meninas mais jovens
sorriram de um para o outro, enquanto Becky enviava um olhar prolongado
para o outro lado da rua para Ethan.
O beijo foi breve e autoconsciente por parte de Gabriel. Ele tinha chegado a
alguma distância em relação a estar confortável com demonstrações de afeto,
mas beijar em frente de uma audiência definitivamente o sacudiu. Quando ele
levantou sua cabeça, Roberta viu que seu rosto estava maduro como um
pêssego, e ela pensou quão peculiar era que eles tivessem sobrevivido aos
primeiros estágios do cortejo com relativa facilidade, apenas para se tornarem
desconfortáveis um com o outro no dia de seu casamento.
Todas as meninas se juntaram ao redor e lhes deram beijos na bochecha, o
que também, adicionou graus de calor em suas bochechas. E, também, os
convidados vieram para a frente, com abraços e parabéns, e separaram a noiva
do noivo por um tempo.
Na festa de casamento foi servida comida para se comer com a mão,
passadas pelas quatro novas irmãs, que tinham ajudado a sua mãe fazê-la.
Entre os sanduíches frios estavam os bombons e suspiros brancos como a neve
(sem necessidade de colheres neste momento) e os bolinhos de creme azedo
favoritos de Gabe, que sua mãe se ofereceu para fazer.
Roberta encontrou Becky no meio da festa e sugeriu: — Por que você não
pega uma bandeja de doces e os oferece a seus amigos do outro lado da rua.
Dessa forma, eles não terão que quebrar qualquer regra.
Becky olhou para sua mãe e ficou com os olhos enevoados. — Sabe o que
Sra. Farley? — disse ela. — Eu absolutamente tenho a melhor mãe do mundo.
Enquanto Roberta beijava o rosto de Becky, Gabe se aproximou e parou ao
lado delas. Quando Becky se afastou com a bandeja perguntou em voz baixa:
— O que significam todas essas lágrimas?
Roberta observou Becky ir e disse: — Oh, Gabe, eu estou tão feliz. Nós
vamos fazer uma família tão maravilhosa.
Ele colocou um braço sobre seus ombros e eles ficaram lado a lado
enquanto Becky alcançava o grupo do outro lado da rua. Marcelyn espiou e
viu-os observando. . . e acenou.
Gabe e Roberta acenaram de volta.
— Pobre Grace— disse Roberta. — Ela ficará com esse homem até que a
morte os separe, e nunca saberá que tipo de felicidade ela perdeu.
Gabe poderia pensar em uma única resposta: Ele gentilmente beijou a
têmpora de sua esposa.
Roberta sorriu para ele. — Bem, olhe para você — disse ela, satisfeita com
seu delicado beijo, — o homem que estava com tanto medo de mostrar afeto.
— Eu gostaria que fosse noite, respondeu ele. — Eu iria mostrar muito mis
para você.
Ela rapidamente desviou o olhar, e ele se perguntou quantas vezes ela havia
dito não a ele desde que tinham ficado noivos. Ela até insistiu que não
houvesse lua de mel, sua desculpa foi que ela estava trabalhando havia apenas
seis meses e não queria pedir alguns dias de folga. Além disso, ela
argumentou, as meninas não deveriam ser deixadas sozinhas, embora ele não
visse porque Maude ou Myra não pudesse ficar com elas por uma semana.
— Não — Roberta tinha dito novamente.
Então ele deixou o negócio para Seth e tentou o seu melhor para obter o
quarto do casal terminado até hoje à noite.
E era isso. . . Era pouco depois das 18:00 e seus convidados estavam indo
embora. . . e as meninas estavam indo dormir na casa de Gabe com a avó
Maude. . e o novo quarto não estava completamente terminado, mas tinha uma
nova cama, e o banheiro tinha uma banheira com pés e um aquecedor de água
de verdade funcionando com eletricidade. . . e Gabe não tinha ideia de como
enfrentar o próximo par de horas.
O pátio ficou vazio.
Gabe e Roberta estavam nos degraus da varanda da frente ouvindo o
silêncio do outono. Além dos telhados, o mar parecia um prato de esmalte
azul-celeste quebrado pelas salientes ilhas que se queimavam para fora da
água como pequenos incêndios. Toda a vista era de um vibrante laranja e azul,
com perenes pináculos ocasionais cutucando, e barcos brancos vindo para
casa no final do dia.
Mais perto, as samambaias ao redor da âncora de Sebastian Breckenridge
tinham ficado enferrujadas e enroladas em direção da terra, na direção de
onde elas tinham vindo. As flores há muito haviam amarelado, e os arbustos de
flores delimitando o pátio tinham sido tocados pela geada e se penduravam
como uma cascata laranja. Uma fila de gaivotas meditativas apoiava na viga
mestra de um telhado abaixo e, como Roberta e Gabe observavam, uma das
aves saiu da posição e levantou voo, seguida por outras, que se reuniram ao
longo do seu próprio jardim da frente para erguer suas cabeças e emitirem
seus gritos desafinados para o homem e mulher que estavam em pé na escada.
— Me lembro quando você construiu esta varanda— disse Roberta.
— Seis meses atrás.
— Isso tudo?
— Uau, você me odiou.
Roberta riu. — Eu odiei, não foi?
— Lembra-se do dia em que viu a casa pela primeira vez? Você entrou no
quarto e me encontrou fazendo piadas de mau gosto sobre você ser uma mulher
divorciada. Senhor, eu estava errado.
Ele estava olhando para ela, esperando que ela virasse a cabeça para que
ele pudesse ler seus olhos. Ela se virou, e se havia uma ansiedade dentro dela,
ela escondeu bem.
Ficaram ali à beira da noite, Gabe se perguntando como ela se sentia sobre
fazer amor antes do escurecer, Roberta com medo de que no último minuto ela
estragasse sua noite de núpcias com algo que ele não estava fazendo.
— Você está cansada? — ele perguntou.
— Sim . . . Eu estou.
— Quer entrar?
Em resposta ela se virou e seus passos se arrastaram pelo chão oco da
varanda. A porta de tela se abriu preguiçosamente, depois os fechou por
dentro, seguido pela porta interna com seu revestimento marcado abaixo da
janela com cortinas.
Eles cruzaram a sala de estar sem pressa e permaneceram na entrada da
cozinha, ombro direito de Gabe curvando atrás do ombro esquerdo dela,
inspecionando o aposento que as meninas haviam deixado mais limpo do que
jamais tinha sido. Sobre a mesa estava um prato de doces e a planta filodendro
de Caroline.
Observando os olhos de Roberta pausando nisso, Gabe perguntou: — Você
se importa?
— Não, claro que não. Isobel me perguntou se podia trazê-lo. Na verdade,
ele enfeita a sala. . . e você sabe, eu não sou muito boa fazendo isso eu mesma.
Há coisas que Isobel pode me ensinar.
Ele nunca tinha conhecido outro ser humano como Roberta, tão insuscetível
ao ciúme, tão aberto à mudança, à descoberta. Ela tinha aceitado não só Gabe
e Isobel, mas uma terceira pessoa também, Caroline era uma parte integrante
do seu passado, e ela entendeu isso. O ciúme era estranho para Roberta, pois
ela estava tão confortável com ela mesma que não havia necessidade disso em
sua vida. Ela viu seus defeitos tão claramente quanto ela viu seus pontos
fortes, e nem denegriu a si mesma por esses nem se elogiou para o outro. Ela
simplesmente viveu a vida dia a dia seguindo seu próprio código de felicidade
em primeiro lugar.
— Roberta? — ele disse.
Ela virou-se do filodendro para ele. — Hm?
— Eu te amo. Eu estive parado aqui percebendo o quanto.
— Por que, Gabe — ela disse enquanto ele a enrolava em seus braços.
Ela teria dito eu também te amo, mas ele a beijou com uma ternura tão
delicada que fez seu coração doer. Beijou-a e manteve suas mãos apenas em
suas costas. Quando o beijo terminou, ele a abraçou de corpo inteiro, com
tanta força que machucou suas costelas, e a manteve completamente contra seu
corpo sem se mover, seu queixo apoiado em seu ombro e seus seios
firmemente aconchegados contra seu peito.
Com os lábios fechados ele puxou uma respiração profunda, então exalou de
forma instável, e ela sabia que o próximo passo dependeria dela.
Ela se inclinou para trás, com as mãos vindo para descansar em seu peito, e
disse: —Se você não se importa, eu acho que vou usar a nova banheira.
—Eu não me importo— disse ele, soltando-a.
Enquanto ela entrava e fechava a porta do banheiro, ele tirou seus sapatos,
sua gravata, seu colarinho e jaqueta.
A água corria. E parou. E sons sucessivos como se um pé entrasse. E sons
sucessivos em um tom mais baixo, como se um corpo estrasse.
Ele se sentou em uma cadeira em seu novo quarto, olhando para o
revestimento de madeira recém terminado que ele não tinha tido tempo de
envernizar ainda, na cama que ela tinha feito com toda a roupa de cama nova,
tudo branco.
Soaram alguns salpicos suaves, o borbulhar de um pano que estava sendo
torcido.
Ele levantou e virou a colcha de chenille e os cobertores para baixo e
pensou em entrar, depois mudou de ideia e voltou para a cadeira, deixando a
roupa de cama virada para baixo e esperando.
A água começou a escoar. . . então o silêncio Ele esperou onde estava.
Finalmente a porta se abriu, deixando escapar uma nuvem de ar úmido e o
aroma floral de talco. Ela permaneceu na entrada fechando dois botões na pala
da camisola de algodão azul, nem formal nem promíscua. Seu cabelo estava
escovado e estava descalça. E seus olhos vieram direto para os dele.
— Eu nunca tive uma banheira antes. Obrigado, Gabriel.
— Por nada — disse ele.
Ela olhou para seus pés descalços, sua camisa desabotoada: era óbvio que
ele estava sentado lá esperando.
— Será que eu demorei muito?
— Não! Não, não de todo.
— Você quer . . . — Ela gesticulou para atrás dela, deixando o convite
inacabado.
— Oh. . . certo. — Ele entrou e deliberadamente deixou a porta entreaberta,
escovou os dentes, lavou o rosto e voltou com uma toalha nas mãos e seus
suspensórios pendurados.
Ela estava sentada na beira da cama de frente para ele. Ele deu a volta para
o outro lado e, de costas para ela, removeu tudo, exceto sua roupa de baixo e
entrou.
Quando ele deitou, ela deitou, coberta até a cintura.
Ainda era menos de sete horas e ainda estava claro do lado de fora.
Ele colocou seu braço direito sob a cabeça e olhou para ela. Ela estava
olhando para ele.
— Gabriel— disse ela com naturalidade — eu não era virgem na minha
primeira noite de núpcias, então isso é muito estranho. Eu me sinto como se o
fosse hoje à noite.
Ele virou para encará-la, mantendo muita distância entre eles, e o cotovelo
ainda curvado debaixo de sua orelha.
— Eu teria pensado que você seria — disse ele.
— Não, eu não era. Você era?
— Sim. Eu era.
— De alguma forma, isso não me surpreende. Então você já passou por isso
antes.
Ele limpou a garganta, então concordou em vez de falar.
— Tudo isso é diferente de mim— ela disse — Eu não sou uma moça que
não foi convidada para dançar. Eu nunca fui.
Ele pegou sua mão e segurou-a no lençol limpo entre eles, observando seu
polegar enquanto ele brincava com o dela.
— Roberta— disse ele, e ergueu os olhos para ela. — Diga-me o que te
assusta mais.
— As lembranças voltarem. Eu as afasto um pouco e, em seguida, todos elas
voltam e é como se eu estivesse novamente naquela estrada de cascalho, e sei
perfeitamente que é com você que eu estou e não ele, mas isso acontece - eu
fico amedrontada e eu não posso evitar isso. Não sou eu, Gabe, honestamente,
não é! Mas eu não sei o que fazer. . . como superar isso.
Ele continuou esfregando sua mão com o polegar, deixando que ela se
acostumasse a vê-lo na outra metade da cama. Seus olhos se mantiveram
constantes nos dela enquanto se perguntava como proceder.
Finalmente, ele puxou sua mão e sussurrou: —Venha aqui. . . — E rolou de
costas, arrastando-a junto e colocando-a sobre seu peito, liberando suas mãos.
— Nós dois já fizemos isso antes — disse ele. —Faça o que quiser.
Ela se deitou em cima dele olhando para baixo, enquanto ele atirava seus
braços para trás e deixou-os repousando sobre o travesseiro. Ela estudou seus
olhos por um longo momento, enquanto nenhum deles se moveu tanto como
uma piscadela. Sua mão direita estava em seu peito, onde ele a havia deixado,
sobre seu coração, que ela podia sentir batendo tão rápido quanto o seu
próprio.
Uma madeixa do cabelo dela soltou-se de trás da orelha e caiu no queixo
dele. Ele não se moveu, apenas encontrou seu olhar constante, esperando.
Ela enfiou a mecha de cabelo atrás da orelha e, lentamente, inclinou-se para
beijá-lo. O que ele negou a suas mãos, ele permitiu à sua boca, abrindo-a por
baixo da dela e movendo de forma convincente enquanto sua cabeça inclinava
sobre o travesseiro. Seu cabelo caiu novamente, e empurrando-o de volta, ela
tocou seu rosto quente, então, colocou a mão em seu rosto com a ponta dos
dedos no canto de seu olho.
Ela terminou o beijo e eles abriram os olhos, tão perto que podiam sentir o
calor radiante da pele um do outro, e o alarde da respiração rápida que caiu
de entre seus lábios entreabertos.
Ela sussurrou: — Gabriel. . . — e ficou de joelhos ao lado dele, segurando
o rosto dele entre suas mãos.
Ele sussurrou: —Suas mãos estão quentes.
— Seu rosto também. E seu coração está acelerado. Eu posso senti-lo
debaixo do meu braço.
— O seu está?
— Sim — ela sussurrou, beijando-o mais uma vez, inclinando-se para frente
fora de seus calcanhares até que seus seios ficaram pendentes dentro de sua
camisola. No meio do beijo ela encontrou seus punhos virados para cima e
circulou-os com as mãos, apertando como se para deixá-los no lugar e mantê-
los imóveis enquanto ele estivesse deitado como antes, não representando
qualquer ameaça. Seu pulso batia contra as palmas de suas mãos e seus seios
libertados sentiam-se pesados enquanto ela se ajoelhou sobre ele. O desejo
veio como um presente, um assalto livre de medo ou lembrança.
Ela ergueu uma perna acima de sua barriga plana e montou nele, observando
seus olhos escurecem e suas narinas se dilatarem, ainda segurando suas mãos
contra o travesseiro. Então ela as levou, com veias azuis e forte, para os seios,
e deixou os olhos se fecharem enquanto as palmas das mãos se enchiam com
sua carne. Ela se sentou sobre ele, a cabeça inclinada para trás, com as mãos
sobre as dele, suas mãos unidas flexionando juntas até as dela caíram e as dele
permaneceram, balançando-a para trás e para a frente para algum ritmo
original que eles ouviam em suas cabeças.
Minutos depois, ela caiu para frente e esticou os membros ao longo dos
dele, murmurando um pedido em sua boca aberta, carregando sua mão mais
uma vez, expulsando o fôlego no retorno do prazer, quando ele obedeceu.
Havia roupa de cama entre eles. Eles lutaram para coloca-las para baixo e
deitaram em seus respectivos lados, abrindo as pernas, elevando os joelhos,
unidos pela primeira vez em desejos, criando com prazer sua própria tortura
de espera. Eles recuaram com olhares luminosos e tiraram a roupa – a dela em
primeiro lugar, e depois a dele depois - e deitaram no crepúsculo que
sombreava suas peles com a noite caindo, arriscando os primeiros vislumbres
um do outro.
Eles falaram a linguagem universal dos amantes, com sons guturais de
louvor sem palavras, e se tocaram livremente.
Em seguida, eles estavam unidos, ainda em seus lados, cara a cara em um
único travesseiro, olhos abertos. . . em seguida fechados. O aperto frouxo. . .
em seguida tenso. Respiração fluindo. . . em seguida contida.
Ela abriu os olhos no momento final e viu-o com os seus lábios desenhados
em uma expressão próxima ao êxtase, e se admirou de que ela pudesse levá-lo
a tal situação.
Ela sorriu e fechou os olhos mais uma vez, e reivindicou sua vitória sobre
Elfred Spear.
Ela veria Elfred esporadicamente nos anos que se seguiriam, atravessando
uma rua ou passando em seu automóvel. Mas eles nunca se falaram, nem ela
nem sua irmã, Grace. Uma vez, quando Roberta estava entrando no banco,
Grace estava saindo e eles quase colidiram. — Oh! Birdy! — Grace disse,
sem pensar.
Roberta sorriu, com o coração disparado, e disse — Olá, Grace, como você
está?
Mas Grace reuniu sua dignidade sobre ela como uma capa de arminho e
seguiu em frente, sem mais palavras. Roberta observou-a ir com o coração
cheio de piedade.
— Pobre Grace — ela sussurrou, tocando seu próprio coração.
As garotas Spear, embora proibidas, encontraram maneiras de chegar à casa
de Roberta e participar de jogos e eventos musicais com suas primas.
Myra também veio, quando convidada, mas nunca ficou muito tempo e
sempre saía bufando de raiva a respeito de algum desacordo com sua filha
mais jovem, que nunca tinha sido capaz de dobrar-se a seus desejos como fazia
sua filha mais velha. Roberta a observava ir e suspirava. E sussurrar para si
mesma um eco do que ela disse no dia em que colidiu com Grace.
— Pobre Mamãe.
Em seguida, o marido surgia silenciosamente atrás dela, e deslizaria um
braço em volta de sua cintura e beijaria sua testa. E logo as meninas estariam
lá também, observando sua avó bufando de raiva como se o mundo lhe tivesse
feito uma grave injustiça. . . mais uma vez.
— O que fez avó ficar tão mal-humorada? — Elas perguntavam.
E Roberta responderia: — Quem sabe?
E então um dia elas perguntaram e Gabriel respondeu —Inveja.
Roberta virou a cabeça e olhou para ele. — O que?
— Ela está com ciúmes de você. Você não sabe disso? Grace também.
Porque você sempre foi tão feliz e você mesma se fez feliz.
— Sério?
Ele só colocou um meio sorriso na boca e deixou-o lá.
Ela considerou sua opinião por algum tempo, em seguida, o beijou na
mandíbula – eles se beijavam muito regularmente na frente das meninas agora,
e disse: — Obrigada por isso, Gabriel. Eu mesma nunca teria imaginado isso.
— Isso é porque você não tem um pingo de ciúmes em você, portanto, você
não pode vê-lo nos outros.
— Hm — disse ela, pensativa.
Ele fechou a porta e entrou, com ela severa ao seu lado, para a cozinha,
onde os pratos do jantar estavam à espera para serem lavados. Parando na
porta com o braço ainda a redor Roberta, ele chamou por cima do ombro — de
quem é a vez esta noite?
Alguém responde — Não nossa!
Alguém mais respondeu —Não nossa!
Era bom ter equipes. . . quando eles faziam seu trabalho. Mas sempre havia
tantas coisas mais criativas para fazer!
Gabe olhou para Roberta, que fez o equivalente a um encolher de ombros.
— Oh, inferno— disse ele — devemos lavá-los?
— Não, vamos deixá-los.
— Eles estarão todos secos amanhã.
— Mas amanhã será a vez de outra pessoa.
Ele riu, então elevou a sobrancelha sugestivamente — Então, o que mais
devemos fazer em vez disso?
Ela subiu na ponta dos pés e sussurrou algo em seu ouvido.
Ele fingiu um suspiro e disse: — Senhora Farley! A esta hora do dia!
Em seguida, eles pegaram as jaquetas dos ganchos ao lado da porta e se
dirigiram para a frente da casa, informando enquanto passavam pelas escadas
— Ei, meninas! Voltamos logo. Temos que ir até a oficina rapidamente! — E
correrram para o crepúsculo, dando risadas.

[1] Espécie de penico

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