Você está na página 1de 93

Esboços de Hospital

Louisa May Alcott

Traduzido por Fábio de Oliveira


ⓒ 2020 Fábio de Oliveira
Índice
Página do título
Direitos autorais
Capítulo I.
Obtendo suprimentos
Capítulo II
Movimento para a frente
Capítulo III
Um Dia
Capítulo IV
Uma Noite
Capítulo V
Fora de Serviço
Capítulo VI
Pós-escrito
Capítulo I.
Obtendo suprimentos

“Eu quero fazer alguma coisa.”


Tendo essa observação sido direcionada ao mundo em geral,
ninguém se sentiu na obrigação de respondê-la. Então, eu a repeti
ao pequeno mundo ao meu redor, recebendo as seguintes
sugestões, e resolvendo o assunto respondendo a minha própria
pergunta, como as pessoas costumam fazer quando estão sérias.
“Escreva um livro,” disse a autora em mim.
“Não sei o suficiente. Primeiro viva, depois escreva.”
“Tente dar aulas novamente,” sugeriu minha mãe.
“Não, obrigada. Dez anos disso são suficientes.”
“Arrume um marido, como o meu querido Darby, e cumpra a sua
missão,” disse a minha irmã Joan, numa visita.
“Não posso arcar com luxos caros, Sra. Coobiddy.”
“Vire uma atriz e imortalize o seu nome,” disse a minha irmã
Vashti, cheia de atitude.
“Não.”
“Seja enfermeira dos soldados,” disse o meu irmão mais novo,
Tom, ansioso pelo acampamento militar.
“Eu irei!”
Até aqui tudo bem. Aqui estava a vontade—agora para o
caminho. Num primeiro momento, sinal nenhum dele apareceu, mas
isso não importou, pois os Periwinkles são uma raça obstinada. O
símbolo em seus elmos é uma âncora com três galos cacarejando
no topo. Eles usam óculos cor de rosa e são descendentes diretos
do inventor da arquitetura aérea. Uma hora de conversa sobre o
assunto deixou a família inteira intensamente entusiasmada. Um
hospital imaginário foi erigido, e cada membro da família aceitou um
honorável posto nele. O pai era capelão, a mãe era a enfermeira-
chefe, e os irmãos enchiam o futuro de conquistas cuja importância
eclipsaria as glórias do presente e do passado. Chegando a essa
conclusão satisfatória, a reunião foi encerrada, e o fato de que a
Srta. Trib estava disponível como enfermeira para o exército viajou
com as asas do vento.
Alguns dias depois, uma mulher ouviu o meu desejo, aprovou, e
arranjou uma entrevista com um membro da irmandade na qual eu
tinha o desejo de ingressar, que estava de licença e disponível para
responder às nossas indagações. Uma conversa matinal com a
Srta. General S. —nós sempre ouvimos falar de Sras. Generais, por
que não uma Srta.? — produziu três resultados: eu senti que era
capaz de fazer o trabalho, fui oferecida uma posição e aceitei,
prometendo não desertar, mas ficar de prontidão para marchar para
Washington com uma hora de aviso prévio.
Alguns dias eram necessários para que a carta contendo o meu
pedido e recomendação chegasse ao quartel general, e outra,
contendo a minha comissão, retornasse. Portanto, eu não tinha
tempo a perder. Agradecendo ao meu par de amigas
calorosamente, eu parti pela lama de dezembro na direção de casa
como se rebeldes estivessem atrás de mim e, como vários outros
recrutas, explodi sobre a minha família com o anúncio:
“Eu me alistei!”
Seguiu-se um impressionante silêncio. Tom o quebrou com um
tapinha no ombro e um gentil elogio:
“Minha irmã, você é incrível!”
“Obrigada. Então, eu pegarei alguma coisa,” o que eu fiz, na
forma do jantar, disparando as minhas notícias num ritmo de três
dúzias de palavras por mordida; e, como todos os outros falavam
igualmente rápido, e todos juntos, a cena era das mais inspiradoras.
Como o discurso de garotos indo para o mar se torna
imediatamente náutico, e eles começam a andar como se já
tivessem as suas “pernas de marinheiro”, eu também me tornei
imediatamente militar, chamei o meu jantar de minha ração, fiz
continência para todas as visitas e ordenei um desfile militar para os
meus vestidos naquela mesma tarde. Depois de inspecionar cada
farrapo que eu possuía, designei alguns para ficar de guarda
enquanto tomavam ar sobre o muro; outros para a influência
sanitária do tanque; outros para montar guarda dentro do baú;
enquanto os fracos e feridos foram para o hospital do cesto de
costura para serem reparados e voltarem ao serviço novamente. A
esse esquadrão eu me devotei por uma semana; mas então estava
tudo pronto, e eu tive tempo para ficar intensamente impaciente
antes de a carta chegar. Ela finalmente chegou e trouxe decepção
junto com a sua boa vontade e amabilidade, pois ela dizia que a
posição no Hospital Militar que eu deveria ocupar já estava
preenchida, e uma outra vaga muito menos desejável no Hospital
Hurly-burly foi oferecida.
“Que falta de sorte, Trib. Eu vou te ajudar a desfazer as malas,
porque é evidente que você não vai mais querer ir,” disse Tom, com
a piedade desdenhosa que os garotos desenvolvem quando
chegam à adolescência. Eu estava hesitante na minha alma, mas
isso decidiu o assunto. Eu o esmaguei ali mesmo, com brevidade
marcial:
“Agora é uma hora. Eu partirei às seis.”
Eu tenho uma vaga lembrança de ter passado a tarde
percorrendo a casa como um turbilhão, com a minha família atrás de
mim, trabalhando, falando, profetizando e lamentando. Enquanto
isso, eu empacotei meus bens de viagem, coloquei o resto em duas
grandes caixas, dancei nas tampas até elas fecharem e dei a eles a
seguinte instrução:
“Se eu não voltar, faça uma fogueira com elas.”
Então, eu engoli um copo de chá, generosamente salgado ao
invés de adoçado, por algum parente agitado, coloquei minha
mochila militar — era apenas uma mala de viagem, mas permita-me
preservar a unidade — abracei cada membro da minha família três
vezes, sem nenhum traço de fraqueza, até que uma certa querida
senhora se agarrou ao meu pescoço, com um gemido de tristeza:
“Oh, minha querida, minha querida, como eu posso te deixar
partir?”
“Eu ficarei se você me pedir, mãe.”
“Mas eu não vou. Vá, e Deus tomará conta de você.”
Muito da coragem matriarcal estava presente na constituição
dessa mãe, e, a despeito das lágrimas, ela teria mandado dez filhos
para a guerra, se ela os possuísse, tão livremente quanto ela
mandava a sua filha, sorrindo e acenado da porta até que eu
desaparecesse, apesar de seus olhos estarem bem turvos, e o
lenço que ela agitava, bem úmido.
Meu trajeto de casa para a estação ferroviária foi uma mistura de
votos de felicidade e despedidas, poças de água e compras. O
crepúsculo de dezembro não é o momento mais propício para
embarcar numa aventura arriscada, e, se não fosse pela presença
de Vashti e Thorn, eu sinto que eu teria adicionado uma gota
salgada à umidade natural da cidade que eu deixava para trás.
Mas eu nem pensava em desistir; de maneira nenhuma! Quando
o motor começou a berrar, anunciando que a hora de partir tinha
chegado, eu me agarrei à minha escolta num abraço fervoroso e
pulei para dentro do vagão com uma despedida tão despreocupada
quanto a de uma noiva partindo para as núpcias. Apesar de que
noivas não costumam sair por aí usando gorros negros e casacos
felpudos marrons, carregando uma escova de cabelo, um par de
galochas, dois livros e um saco de biscoitos de gengibre.
Se eu pensasse que alguém acreditaria em mim, eu diria que eu
dormi durante a viagem toda, o que simplificaria o assunto
imensamente. Mas como eu sei que ninguém vai, eu confesso que a
cabeça debaixo do gorro funerário fermentava com ideias de “fazer
ou morrer”, talvez os dois; e o coração dentro do casaco marrom
estava bastante sentimental com a lembrança da velha senhora,
provavelmente chorando nas suas meias do exército pela perda da
sua atrapalhada Trib. Nesse momento, eu abaixei o véu, e o que eu
fiz por trás dele não é da conta de ninguém; eu digo apenas que o
soldado que chora quando a sua mãe lhe diz “até logo”, é aquele
que lutará melhor, morrerá corajosamente, quando a hora chegar,
ou voltará para casa melhor do que partiu.
Até as nove horas eu marchei pelas ruas da cidade, fazendo as
últimas visitas que mulher nenhuma iria nem para o céu sem tentar
primeiro, se ela pudesse. Então, eu voltei para o meu refúgio e, com
a intenção de permanecer acordada, numa espécie de vigília
apropriada para a ocasião, eu caí no sono e sonhei sonhos
propícios até ser acordada com um beijo pela minha prima de face
rosada.
Um lindo dia sorria para a minha missão, e às 10 horas eu me
apresentei à minha General, recebi minhas últimas instruções e uma
boa dose do encorajamento solidário que as mulheres dão, mais em
gestos e olhares do que em palavras. O próximo passo era
conseguir o passe livre para Washington, pois eu não tinha o menor
desejo de gastar a minha substância em companhias ferroviárias,
quando os meninos necessitavam cada centavo. Uma amiga minha
tinha obtido tal passe, e eu estava determinada a fazer o mesmo,
mas eu tinha que encarar o presidente da companhia para isso. Eu
sou uma criatura tímida, mesmo que eu não consiga convencer
ninguém disso, e foi um grande esforço para mim ficar bisbilhotando
pela estação de Worcester até que a porta certa aparecesse, e
então entrar na sala contendo vários cavalheiros e fazer o meu
pedido num tremendo estado de vergonha e gagueira. Ninguém
poderia ter sido mais cortês do que este temido presidente, mas era
evidente que eu tinha feito uma solicitação tão absurda quanto se
tivesse pedido o nariz de sua respeitável face. Ele me encaminhou
para o Governador na Assembleia Legislativa, e eu me retirei, o
deixando, sem dúvidas, a lamentar que esses maníacos andassem
à solta. Era um dilema e tanto: como se o presidente não fosse
difícil o suficiente, sem adicionar o governador de Massachusetts e
o clube todo. “Eu nunca vou conseguir fazer uma coisa dessas”, eu
pensei. “Tom vai te azucrinar se você não fizer”, sussurrou aquela
vozinha inconveniente que está sempre incitando as pessoas a
fazerem tarefas desagradáveis, e que sempre apela ao agente mais
eficiente para produzir o resultado apropriado. A ideia de deixar um
menino que já vestiu uma touca de feltro e uma jaqueta felpuda com
uma cauda microscópica me dominar era tão absurda que eu me dei
um tapinha mental pela minha fraqueza e segui em frente, pensando
se eu deveria dizer “Vossa senhoria”, ou simplesmente “Senhor”, me
decidindo pelo último. Eu tentei me encorajar com a lembrança de
ter visto o governador em uma charmosa biblioteca verde numa
tarde, consumindo placidamente as suas ostras e rindo como se
Massachusetts fosse um mito, e ele não tivesse nenhum peso sobre
as suas costas além das bonitas mãos de seu anfitrião.
Como uma mosca energética numa teia de aranha, eu lutei pela
assembleia, entrando em todas as salas erradas, até que eu fiquei
desesperada e entrei em uma, decidida a não sair de lá até que
alguém me ouvisse. Eu suspeitei que de todos os lugares errados
em que eu tinha me metido aquele era o pior. E apesar de o lugar
estar cheio de soldados, médicos, observadores e cuspidores, eu
encurralei uma pessoa perfeitamente incapaz e comecei a tentar
extrair informações dela, com o seguinte resultado:
“O governador estava em algum lugar por ali?”
Não, ele não estava.
“Será que ele poderia me dizer onde procurar?”
Não, ele não podia.
“Ele sabia alguma coisa sobre passes livres?”
Não, ele não sabia.
“Havia alguém ali que pudesse me responder?”
Não havia ninguém.
“Ele conhecia algum lugar onde eu poderia obter informações?”
Lugar nenhum.
“Ele poderia jogar algum raio de luz sobre o assunto, de qualquer
maneira possível?”
Nenhum raio.
Eu sou naturalmente irascível, e se eu pudesse sacudir esse
senhor vigorosamente, o alívio seria imenso. Mas considerando a
parcialidade da sociedade contra este tipo de comportamento, eu
meramente olhei para ele com uma expressão séria. E, antes que a
minha fúria encontrasse formas de se expressar em palavras, minha
general apareceu, tendo me visto de uma janela oposta, e veio
investigar o que eu estava fazendo. Ao seu comando, o lânguido
cavalheiro acordou e se deu ao trabalho de lembrar que um major
ou general ou alguma coisa Sr. K. sabia tudo sobre passagens, e
seu escritório ficava em Milk Street. Eu me animei imediatamente, e
então, como se o esforço fosse demais para ele, o que esse
cobertor molhado em forma de gente adicionou?
“Eu acho que o Sr. K pode ter saído de Milk Street, e eu não sei
para onde ele foi.”
“Não tem importância. Os recém-chegados saberão para onde
ele foi, minha querida, não fique desanimada. E se você não
conseguir, venha a mim, e nós veremos o que fazer em seguida”,
disse a minha general.
Eu a agradeci fervorosamente, virei a esquina, e adentrei Milk
Street, determinada a encontrar o Sr. K. se tal criatura estivesse lá
para ser encontrada. Ele não estava, e a ignorância dos vizinhos era
realmente lamentável. Ninguém sabia de nada, e, depois de
tropeçar em rolos de couro, colidir com grandes estalajadeiros,
quase ser aniquilada por fardos, e de ter sido xingada por um
carregador exasperado, eu finalmente obtive o conselho de procurar
pelo Sr. K em Haymarket Square. Quem foi o meu informante eu
realmente não lembro. Tendo saudado vários cavalheiros, algum
deles provocou essa ilusória paz no meu perturbado espírito e eu
parti imediatamente para o local nomeado. Se eu estivesse em
busca do diamante de Koh-i-noor eu teria tanta chance de encontrá-
lo ali quanto qualquer vestígio do Sr. K. Eu olhei para os sinais,
perguntei em lojas, invadi uma pensão, visitei uma tenda de
recrutamento no meio da praça, me transformei num transtorno de
modo geral e acumulei lama o suficiente para retardar o Nilo. Tudo
em vão. Eu virei a minha face miseravelmente na direção da minha
general, sentindo que eu teria que enriquecer a companhia
ferroviária no fim das contas, quando, subitamente, eu avistei aquele
admirável jovem, meu cunhado Darcy Coobiddy. Eu o detive com
uma avalanche de notícias, desejos e desgraças, o que fez sua
expressão perder a tranquilidade habitual.
“Oh, meu querido, eu tenho que ir para Washington às 5, mas
não consigo achar a pessoa responsável pelos passes-livres, e eu
não terei tempo de ver Joan, e estou tão exausta e irritada que não
sei o que fazer; você me ajudará como o adorável querubim que
você é?”
“Oh, claro. Eu conheço alguém que dará um jeito nisso”,
respondeu Darby, um pouco animado, e, correndo para dentro de
algum tipo de escritório, teve uma conversa com um anjo invisível,
que o fez sair de lá radiante. “Tudo certo. Eu sei onde ele está. Eu
acompanharei você para resolvermos este assunto e então buscarei
Joan a tempo de te ver partir.”
Eu sou uma mulher emancipada, e se qualquer homem tivesse
se oferecido para me ajudar naquela manhã, eu teria
desdenhosamente recusado, certa de que eu poderia fazer tudo tão
bem, ou melhor, por mim mesma. Minha confiança tinha diminuído
bastante desde então, e eu estava bem pronta para ser uma tímida
donzela, se necessário. Minha nossa! Com que facilidade Darby fez
tudo: ele teve que perguntar apenas uma vez e obteve sua resposta,
me levou pelo braço e, dez minutos depois, eu estava na presença
do Sr. K., o Desejado.
“Agora meus problemas acabaram”, eu pensei, e, como sempre,
estava terrivelmente enganada. “Você vai ter que conseguir um
passe com o Dr. H., em Temple Place, antes que eu possa te dar um
passe, senhora”, respondeu o Sr. K., tão desinteressadamente como
se ele não estivesse trazendo desespero para a minha alma. Oh,
certamente! Por que ele não me mandou para Dorchester Heights,
India Wharf ou para o Monumento de Bunker Hill, e deu um fim em
tudo? Aqui estava eu, depois de ter vagado pela manhã toda, em
algum lugar nos arredores de Dock Square, e me dizem para ir para
Temple Place. E isso não foi tudo; ele podia muito bem ter me
pedido para capturar um beija-flor, cozinhar uma salamandra, ou
visitar o homem da Lua, como me pedir para achar um doutor em
casa na hora mais movimentada do dia. Isso foi um golpe. Mas o
cansaço tinha extinguido o entusiasmo, e resignação me envolvia
como uma roupa. Eu enviei Darby para Joan e obstinadamente
parti, sentindo que a lama era meu elemento natural, e certa de que
o jornal da tarde anunciaria a presença de um judeu errante em
trajes femininos.
“O Dr. H. está?”
“Não, senhora.”
É claro que não. Eu sabia antes de perguntar. E, num espírito de
zombaria inútil, eu acrescentei:
“Quando ele provavelmente retornará?”
Se a donzela tivesse dito “às 10 da noite”, eu teria sentido uma
satisfação sombria pelo cumprimento da minha própria profecia;
mas ela disse: “Às duas, moça”, e eu me senti pessoalmente
insultada. “Eu voltarei então. Diga a ele que o assunto é importante.”
E com essa mensagem misteriosa, eu parti, torcendo para tê-la
deixado morrendo de curiosidade, já que a lama fazia de mim um
objeto de interesse.
Para descansar, eu cruzei o terreno baldio pela terceira vez,
reservei uma carruagem, almocei, embrulhei minhas compras, alisei
minha plumagem, e estava de volta novamente quando o relógio
marcou duas horas. O doutor ainda não tinha voltado, e eu estava
moralmente certa de que ele não voltaria, até que, tendo esperado
até o último minuto, eu teria que comprar a minha passagem, e,
cinco minutos depois do irrevogável ato ter sido executado, aí sim
ele estaria ao meu serviço com todos os tipos de documentos úteis
e direções. Tudo funciona ao contrário comigo: depois de ter me
conformado a ficar desapontada, evidentemente eu não fiquei, pois,
pouco tempo depois, o Dr. H apareceu. E tão logo ele ouviu da
minha missão e olhou para as minhas credenciais, ele disse, com a
mais acolhedora prontidão:
“Eu te darei a ordem, com prazer, senhora.”
Palavras não podem expressar o quão tranquilizante e
encantador foi encontrar, finalmente, alguém que poderia fazer o
que eu queria, sem me enviar para uma dúzia de outros indivíduos
para fazer alguma outra coisa primeiro. A Paz caiu, como óleo,
sobre as águas agitadas do meu ser, enquanto eu ficava sentada
escutando o ruído de sua caneta. E, quando ele se virou para mim,
não apenas com a ordem, mas também com um papel em que
estavam anotadas direções com as quais eu poderia resolver
qualquer dificuldade entre Boston e Washington, eu me senti como
o pobre Christian quando o Evangelista deu a ele o pergaminho, no
lado certo do Pântano do Desespero. Eu não tenho dúvidas de que
várias enfermeiras encardidas se impuseram ao nobre cavalheiro
desde então. Mas eu tenho certeza de que nenhuma foi tão
gentilmente ajudada, ou ficou tão grata quanto eu. Pois aquela curta
entrevista adicionou mais uma às várias agradáveis associações
que cercam o seu nome.
Me sentindo não mais como “Martha Struggles”, mas como uma
confortável jovem mulher, com o pior da viagem para trás e com
uma navegação fácil dali em diante, eu mais uma vez me apresentei
ao valoroso Sr. K. A ordem foi lida, e certos papéis que precisavam
ser preenchidos foram entregues a um jovem cavalheiro—não, eu
prefiro chamá-lo de garoto, com uma ênfase desdenhosa na
palavra, pois essa é a única forma de vingança que me resta. Esse
garoto, ao invés de cumprir o seu dever, com a diligência tão
apreciada nos jovens, se espreguiçava e perdia tempo, de uma
maneira que mostrava que a sua educação tinha sido deficiente no
quesito “Como é ocupada a abelhinha”. Ele olhava para mim, olhava
pela janela com a boca aberta, comia amendoins e fofocava com os
seus vizinhos—garotos como ele, e todos numa fileira, como potros
numa exposição pecuária. Eu não imagino que ele sabia a angústia
que estava me infligindo, pois já eram quase 3 horas, e o trem partia
às cinco, e eu ainda tinha a minha passagem para pegar, o meu
jantar para comer, a minha abençoada irmã para ver, e a estação
para alcançar, se eu não morresse de apoplexia. Enquanto isso,
Paciência estava tendo um perfeito dia de trabalho, e eu espero que
ela o tenha aproveitado mais do que eu. Tendo esperado uns vinte
minutos, esse garoto repreensível se contentou em fazer várias
marcas e borrões nos meus documentos e jogá-los para uma
venerável criatura de dezesseis anos, que os entregou para mim
com direções tão paternais, que só faltou um tapinha na cabeça e o
encorajador: “Agora, corra para a sua mãe, garotinha, e cuidado
com os cruzamentos, querida”, para tornar a ilusão perfeita.
Por que eu fui enviada para um escritório de barcos à vapor para
pegar uma passagem de trem, eu não sei dizer, mas eu fui, tão
docilmente como eu teria ido para o Cartório, se tivesse sido
enviada. Um senhor gordo e afável me deu vários pedaços de papel
com cupons anexados, me avisando para não os separar, o que
imediatamente me deixou com vontade de separá-los e ver o que
acontecia. Mas lembrando-me de quantas provações eu tive que
passar para consegui-los, eu silenciei a voz de Satã e, agarrando o
meu prêmio como se fosse um passe para os Campos Elísios, corri
para casa. O jantar foi consumido rapidamente; Joan foi informada,
confortada e beijada; os queridos primos com cara de maçã
abraçados; os pais desses primos sujeitados ao mesmo processo; e
eu montei a ambulância ou carroça de bagagens, tudo que você
quiser menos uma carruagem, e parti, cansada demais para me
sentir excitada, triste ou feliz.
Capítulo II
Movimento para a frente

Como viajantes gostam de dar a sua própria impressão de uma


jornada, apesar de cada centímetro do trajeto já ter sido descrito
dezenas de vezes antes, eu adiciono algumas notas feitas pelo
caminho, na esperança de que elas divirtam o leitor e convençam o
cético de que a enfermeira Periwinkle realmente existiu, e que ela
realmente viajou para Washington, e que esses esboços não são
nenhum romance.
Trem de Nova Iorque—Sete P.M.— seguindo em frente para
pegar o barco em New London. Bastante confortável; comendo
biscoitos de gengibre e saboreando a maravilhosa pera da Sra. C.,
que merece uma menção honrosa, porque a minha solidão foi
primeiramente confortada por ela e pela lembrança agradável da
pessoa que com ela me presenteou. Olho sempre para o papel com
as direções do Dr. H—ponho a minha passagem em todos os
lugares concebíveis, para que possa retirá-la com facilidade, acabo
perdendo-a mesmo assim. Sofro agonias até que um vizinho
compadecido a retira de uma fresta com o seu canivete. Coloco a
passagem no fundo da minha bolsa, coloco a bolsa dentro de uma
mala, coloco uma coleção de artigos diversos por cima dela e fecho.
Eu me recomponho, sentindo que eu fiz o melhor que eu podia para
mantê-la em segurança, até que o condutor aparece, e eu sou
forçada a retirá-la novamente, expondo as minhas precauções e
ficando aflita por fazer o homem esperar. Finalmente, prendo a
passagem no acento à minha frente e mantenho um olho fixo sobre
ela, até esquecê-la completamente, conversando com o cavalheiro
sentado ao meu lado. Tendo ouvido reclamações sobre a maneira
absurda como as mulheres americanas se comportam, assumindo a
imagem do mais rígido decoro, se eu sou abordada por estranhos
ao viajar sozinha, a perversidade inerente da minha natureza me faz
assumir o comportamento inverso; e, descobrindo que o meu
companheiro vem de Little Athens, conhece vários dos meus
trezentos e sessenta e cinco primos e é, de todas as maneiras, um
respeitável e respeitoso membro da sociedade, eu boto a minha
vergonha no bolso e mergulho em uma longa conversa sobre a
guerra, o tempo, música, Carlyle, patinação, gênio, aros e a
imortalidade da alma.
Dez, P.M. — Muito sonolenta. Nada para ver do lado de fora,
apenas escuridão; nada para ver do lado de dentro além de toda a
variedade de montes em que a forma humana pode ser retorcida,
enrolada ou amontoada, como a Srta. Prescott costuma dizer das
suas joias. As pernas de cada homem se esparramam
preguiçosamente, a cabeça de cada mulher (menos a minha) se
inclina, até finalmente repousar sobre os ombros de alguém,
confirmando aquele eterno símile sobre as vinhas e o carvalho;
crianças se movem inquietas, amantes sussurram, velhos roncam, e
alguém abre uma garrafa de brandy secretamente assim que as
luzes são apagadas. O perfume penetrante desperta a multidão,
fazendo alguns levantarem a cabeça como cavalos de guerra ao
sentir o cheiro de pólvora. Quando as lâmpadas são acesas
novamente, todos riem, cheiram e olham inquisitivamente para seu
vizinho — todos menos um corpulento cavalheiro que, com as mãos
enluvadas postas sobre a sua bem coberta esfericidade, dorme
admiravelmente. Se ele fosse inocente, ele teria acordado; pois
dormir como um bebê daquela maneira, em um vagão cheio de
pessoas dando risadinhas, olhando e fungando era simplesmente
absurdo. A suspeita do público caiu sobre ele imediatamente. Eu
duvido que a aparição de um frasco preto com um rótulo teria
resolvido a questão mais efetivamente do que o profundo e
dignificado repouso daquele ser imprudente. A sua gravata moral,
botas virtuosas e atitude piedosa não lhe serviram de nada. E foi
bom ele manter os olhos fechados, pois a acusação de “embuste!”
brilhava em cada janela, prego e olho humano em volta dele.
Onze, P.M. — No barco Cidade de Boston, escoltada até lá pelo
meu conhecido do trem e depositada na cabine. Tentando parecer
como se eu tivesse passado uma grande parte da minha vida dentro
de barcos, mas dolorosamente consciente de que eu não sei de
nada. Assim, eu fico de pé e olho ao meu redor, até ouvir uma
senhora dizer para outra “Precisamos encontrar nossos leitos
imediatamente”, ao que eu corro para um e calmamente retiro meu
casaco, esperando para descobrir qual será o segundo passo.
Várias senhoras puxam as cortinas que ficam dispostas em
semicírculo antes de cada ninho — eu imediatamente fecho as
minhas e então abro um pouquinho para ver o que acontece em
seguida. Gradualmente, em ganchos acima das cortinas azuis e
amarelas, aparecem os casacos e gorros de meus vizinhos,
enquanto suas botas e sapatos, se afirmam abaixo de toda maneira
imaginável, dando a impressão de que seus donos cometeram
suicídio. Um violento som de rangidos me faz perceber que as
pessoas estão indo para as camas. É claro que elas estão! E eu
também — mas paro um momento antes, lembrando-me de que eu
tinha nascido para me afogar, e agora uma oportunidade se
apresentava. E, tendo escapado em duas ocasiões da sepultura
aquosa, uma terceira imersão irá certamente extinguir a minha
centelha de vida. O barco é novo, mas se ele pretende explodir,
apresentar um vazamento, pegar fogo, ou bater em alguma coisa,
ele fará isso esta noite, porque eu estou aqui para cumprir o meu
destino. Com uma calma trágica, eu me conformo, troco os meus
grampos, coloco a minha bolsa e os meus papeis juntos, examino
os meus lencinhos e olho em volta em busca de meios de libertação
para quando o momento molhado chegar. Pois eu não tenho a
menor intenção de cruzar os braços e borbulhar até a morte sem
uma boa luta primeiro. Barris, sofás, galinheiros e salva-vidas não
adornam a cabine como deveriam. E, andando de um lado para o
outro freneticamente, os meus olhos não veem nenhum raio de
esperança, até eles caírem sobre uma velha senhora roliça, lendo
devotamente a Bíblia da cabine e vestindo um volumoso gorro. Eu
lembro que, na escola de natação, garotas gordas são as que
boiavam melhor, e num instante eu delineio o meu plano. Ao soar do
primeiro alarme, eu me seguro firmemente à senhora gorda, e
continuo segurando pelo fogo e pela água, pois eu tenho a
premonição de que a minha velha inimiga, a cãibra, vai me agarrar
pelo pé se eu tentar nadar. E, apesar de ser difícil imaginar que eu
conseguiria chegar à Nova Jersey com a minha bagagem intacta
como eu esperava, eu posso conseguir ser resgatada se eu me
mantiver anexada à minha amiga. Caso contrário, será um consolo
saber que eu fiz o melhor que pude e devo morrer em boa
companhia. Pobre mulher! Quão pouco ela imaginava, enquanto lia
e se balançava, com o seu gorro bem engomado, dos esquemas
cruéis que pairavam sobre ela, e quão atentamente, um pequeno
mas determinado olho a observava, até ele se fechar subitamente.
Sono dominou o medo de tal forma que as minhas botas
pareciam bocejar e o meu gorro se inclinava, antes de eu ceder.
Tendo empilhado o meu manto, a minha sacola, meus sapatos,
livros e guarda-chuva na prateleira de baixo, eu subi
sonolentamente na de cima, caindo algumas vezes, e escoriando as
extremidades do meu corpo no processo. Uma breve soneca no
poleiro de cima foi suficiente para me deixar arquejando como se
uma dúzia de colchões de pena e o barco inteiro estivessem em
cima de mim. Eu tentei descer, e depois de uma série de convulsões
que levaram a minha vizinha a perguntar se eu precisava da
comissária de bordo. Eu consegui botar a minha bagagem para
cima e eu mesma para baixo. Mas mesmo no beliche de baixo, o
meu descanso foi interrompido, pois vários itens continuavam
caindo da pequena prateleira ao fim da cama, e toda vez que isso
acontecia eu pulava, achando que a minha hora tinha chegado, e
batia a minha cabeça severamente na pequena prateleira de cima,
evidentemente colocada ali para esse propósito. Finalmente, depois
de ouvir o marulhar das ondas do lado de fora, me perguntando se
era normal que o maquinário rangesse daquela maneira, e de
observar um buraco na madeira do lado do meu beliche, certa de
que a morte entraria por ali assim que eu tirasse os olhos dele, eu
caí no sono, e sonhei com bolinhos.
Cinco, A.M. — No convés, logo depois de acordar, tentando
aproveitar um vento do Leste e uma névoa da manhã e uma visão
crepuscular de alguma coisa na costa. Rapidamente realizo o meu
objetivo e aproveito cada momento, enquanto atravessamos pelo
Som, com barcos a vapor passando para cima e para baixo, luzes
dançando no litoral, espirais de névoa se enrolando lentamente, e
um céu pálido e rosado acima de nós, enquanto o Sol nasce.
Sete, A.M. — Dentro do trem, em Jersey City. Muita confusão
com bilhetes, nos quais um homem escreve alguma coisa, um outro
recorta, e um terceiro “faz uma nota”. Participo de uma refeição na
escuridão de uma enorme e suja estação ferroviária. Penso que
meus sanduíches seriam mais saborosos sem o forte sabor de
guardanapo, e que meus biscoitos de gengibre seriam mais
facilmente consumidos se não tivessem sido pulverizados quando
eu sentei em cima deles. Pessoas agem como se viajar cedo não
fizesse bem para elas. Crianças correm e gritam; homens fumam e
rosnam; mulheres tremem e se inquietam; carregadores xingam;
carroças cheias de bagagem são dirigidas para cima e para baixo; e
todo mundo parece entrar no vagão errado e tem que sair
novamente, tropeçando no caminho. Um homem com três crianças,
um cachorro, uma gaiola, e vários pacotes coloca-se junto com seus
pertences em todos os lugares possíveis em que um homem, três
crianças, um cachorro, uma gaiola e pacotes poderiam ser
colocados e não fica satisfeito com nenhum deles. Eu observo seus
movimentos com um interesse que é realmente exaustivo e, quando
eles desaparecem, rezo por descanso, mas não consigo. Uma
mulher de personalidade forte, com uma caneca na mão e sem
nenhum manto ou xale, vem correndo para o trem, falando alto com
um pequeno carregador, que leva uma cama dobrável atrás dela e
tem o aspecto de que a vida é um fardo para ele.
“Você prometeu que ele estaria pronto. Ele não está pronto. Tem
que ser um vagão com um jarro d’água, as janelas devem estar
fechadas, o aquecimento deve estar ligado, e as cortinas devem
estar fechadas. Não, esse não vai servir. Eu vou examinar o trem
inteiro e fazer minha escolha, pois você disse que ele estaria pronto.
Ele não está pronto.” E tudo novamente, como um realejo. Ela
assombrou os vagões, a estação, os escritórios e o depósito de
bagagens, com sua cama, sua caneca, e sua língua, até o trem
começar a se mover; e um senso de profunda gratidão encheu a
minha alma, quando eu percebi que ela e o seu inválido
desconhecido não iriam compartilhar o nosso vagão.
Filadélfia — Um lugar antigo cheio de mulheres holandesas,
vestindo gorros, vendendo verduras em longos mercados abertos.
Cada uma parece estar esfregando os seus próprios degraus
brancos. Todas as casas parecem prisões bem arrumadas, com
suas persianas externas. Várias tem crepe nas maçanetas, e muitas
têm bandeiras balançando do telhado ou da sacada. Poucos
homens aparecem, e as mulheres parecem fazer todo o trabalho, o
que talvez explique porque tudo funciona tão bem. Passo por belos
edifícios, mas não sei o que são. Gostaria de parar para ver a minha
cidade natal; pois, depois de tê-la deixado na tenra idade de dois,
minhas memórias dela não são vívidas.
Baltimore — Um lugar grande, sujo e indolente, cheio de bodes,
gansos, pessoas negras e carvão, pelo menos a parte que eu pude
ver. Passo perto do local em que a manifestação aconteceu e sinto
vontade de jogar uma pedra em alguém com força. Encontro um
guarda na balsa, no armazém, e aqui e ali, pela estrada. Um
acampamento embranquece um lado da colina, e uma escola de
treinamento de cavalaria, ou seja lá como se chama, é uma visão
muito interessante, com cavalos e cavaleiros galopando por todos
os lugares propícios para quebrar o pescoço. Um grupo de ingleses
entra—os homens, loiros e de bigode vermelho, todos aparados da
mesma maneira, até o último fio; casacos cinzas ásperos, faces
bem limpas e rosadas, e um jeito de falar bastante cheio e bonito,
que é particularmente atraente comparado com a nossa tagarelice
descuidada. As duas senhoras vestem inusitados capuzes de
veludo forrados com pele; estão arrumadas, como pacotes
compactos, em xales xadrez; e parecem determinadas a ver tudo
completamente. A devoção de um velho John Bull à sua esposa de
nariz vermelho foi realmente uma coisa linda de se ver. Ela era feia
e zangada, e nervosa e estúpida, mas J. B. não lia nenhum jornal
quando ela estava acordada, não ignorava quando ela desejava
dormir, e dizia alegremente, “Sim, minha querida,” para qualquer
desejo ou vontade que a esposa do seu coração expressasse. Meu
coração se aqueceu para esse excelente homem, e eu lhe fiz uma
pergunta ou duas, o único meio que eu encontrei de expressar a
minha boa vontade. Ele respondeu com civilidade, mas era óbvio
que ele não estava acostumado a ser abordado por mulheres
estranhas em meios de transporte públicos. E a Sra. B fixou seus
olhos verdes em mim como se eu fosse uma mulherzinha petulante,
ou seja lá qual for o termo inglês para uma jovem intrometida como
eu. O par deixou seus amigos antes de alcançarmos Washington. A
última visão que eu tive deles foi a de uma grande senhora em
xadrez, se afastando sombriamente, segurando o braço de um
cavalheiro rosado e robusto, carregando várias malas, tapetes e
livros, mas sempre dedicado, sempre sorrindo, se despedindo com
um caloroso “Até logo! Nos encontraremos na casa do Willard na
terça-feira.”
Pouco depois da partida deles, nós sofremos um acidente. Pois
nenhuma longa jornada na América estaria completa sem um. Um
ferro do engate quebrou; e, depois de deixar o último carro para
trás, nós esperamos até que ele voltasse. Ele voltou com uma
batida que arremessou todos de seus acentos e fez várias velhas
senhoras gritarem horrivelmente. Chapéus voaram, gorros foram
amassados, o forno pulou, lâmpadas caíram, o jarro de água deu
uma cambalhota, e a roda sobre a qual o meu assento estava
recebeu algum dano. Obviamente, foi necessário que todos os
homens saíssem e ficassem no meio do caminho, enquanto os
reparos eram feitos, e que as mulheres lutassem para pôr as
cabeças para fora das janelas, perguntando noventa e nove
perguntas estúpidas para cada uma sensata. E algumas mulheres
sábias aproveitaram esse momento propício para se apropriar de
assentos melhores, sabendo que poucos homens seriam páreos
para o olhar sério com que elas enfrentariam os antigos donos dos
lugares que elas estavam invadindo.
O território pelo qual passamos não parecia muito diferente
daquele que tínhamos acabado de deixar, exceto que era mais
plano e menos frio. No verão, os amplos campos teriam me
mostrado novas paisagens, e as cercas vivas na beira da estrada
estariam florescendo com novas flores; agora, tudo estava murcho e
encharcado, e uma atmosfera de apatia prevalecia, que teria dado
bastante desgosto a um fazendeiro de Nova Inglaterra, e um forte
desejo de ajeitar as coisas. Casinhas lúgubres, com chaminés
construídas do lado de fora, com argila e gravetos grossos
empilhados transversalmente, da maneira como costumávamos
construir torres de cob, estavam situadas em campos que pareciam
estéreis, com uma vaca, porco ou mula descansando próximo da
porta. Nós frequentemente passávamos por negros, que pareciam
ter vindo de um livro ilustrado, ou de um palco, mas nem um pouco
parecidos com o tipo de pessoa que eu estava acostumada a ver no
Norte.
Acampamentos na beira da estrada alegravam os campos e ruas
com uniformes azuis e botões cintilantes. Uniformes militares se
agitavam nas cercas; panelas fumegavam ao ar livre; quadros de
todos os tipos podiam ser vistos pela abertura das tendas, e por
todo lugar os garotos jogavam seus capacetes e faziam travessuras
enquanto passávamos.
Washington — Estava escuro quando chegamos; e, se não fosse
pela presença de outro gentil cavalheiro, eu teria sido vítima do
primeiro condutor que insistisse que eu queria ir exatamente para
onde eu não queria. Colocando-me no transporte que eu pertencia,
minha escolta acrescentou à sua obrigação a tarefa de apontar
objetos de interesse pelo qual passávamos durante a nossa longa
viagem. Apesar de ter sido informada várias vezes de que
Washington era um lugar grande, sua visível magnitude me tirou o
fôlego, e é claro que eu citei a expressão de Randolph, “uma cidade
de distâncias magníficas,” como eu imagino que todos fazem
quando a veem pela primeira vez. O Capitólio era tão parecido com
as figuras que costumam ficar penduradas em pensões e hotéis, em
frente a um retrato do Pai deste País, que não me impressionou,
exceto por me lembrar da época em que eu imaginava que
Cinderela tinha ido fazer serviço doméstico num lugar parecido,
depois de ter se casado com o inflamável príncipe. Apesar de que,
mesmo naquele tempo, eu tinha minhas dúvidas da sabedoria de
um relacionamento formado numa fundação de vidro.
A Casa Branca estava iluminada, e carruagens rolavam para
dentro e para fora do grande portão. Eu fiquei olhando para a
famosa Sala Leste, e teria gostado de espiar através de uma fresta
na porta. As atenções de meu velho cavalheiro eram infatigáveis, e
eu dizia “Que esplêndido!” para tudo que ele apontava, mas
suspeito que frequentemente admirava o lugar errado e perdia o
certo. A Avenida Pensilvânia, com a sua algazarra, luzes, música e
militares, me fez sentir como se eu tivesse cruzado as águas e
desembarcado em algum lugar em pleno Carnaval. Chegando nas
partes menos notáveis da cidade, meu companheiro ficou em
silêncio, e eu meditei sobre a perfeição que a Arte americana tinha
alcançado — tendo passado por uma estátua de bronze de algum
herói, que se assemelhava a um ministro Metodista negro com um
chapéu bicorne, da cintura para cima, e um escudeiro bêbado da
cintura para baixo; enquanto seu cavalo estava de pé, como um
dançarino de ópera, numa perna só, em um forte mas curioso vento,
que soprava sua crina numa direção e sua enorme cauda em outra.
“A Casa Hurly-burly, senhora!” disse uma voz, tirando-me do
meu devaneio, no momento em que parávamos diante de um
amontoado de edifícios, com uma bandeira tremulando na frente,
sentinelas no portão, e uma desesperadora quantidade de homens
descansando ao redor. Meu coração batia mais rápido do que o
usual, e subitamente me ocorreu que eu estava bem longe de casa.
Mas eu desci com dignidade, me perguntando se eu seria impedida
de entrar por não ter uma contrassenha, e ser obrigada a passar a
noite na rua. Marchando corajosamente pelos degraus, eu descobri
que nenhum documento era necessário, pois os homens abriram
caminho, os guardas tocaram seus capacetes, um garoto abriu a
porta, e, quando ela se fechou atrás de mim, eu senti que eu estava
completamente iniciada, e a missão da enfermeira Periwinkle
começou.
Capítulo III
Um Dia

“Eles chegaram! Eles chegaram! Apressem-se, meninas—


precisam de vocês.”
“Quem chegou? Os rebeldes?”
Essa convocação repentina no amanhecer cinzento foi um pouco
alarmante para uma enfermeira de três dias como eu, e, assim que
a batida estrondosa atingiu a nossa porta, eu dei um salto da cama,
preparada “Para cingir a minha forma feminina, / E nas muralhas
morrer,” se necessário, mas a minha companheira de quarto reagiu
mais friamente e, enquanto ela ia ao banheiro rapidamente,
respondeu minha desnorteada pergunta:
“Não, minha criança. São os feridos de Fredericksburg. Quarenta
ambulâncias estão na porta, e nossas mãos estarão cheias em
quinze minutos.”
“O que nós teremos que fazer?”
“Limpar, vestir, alimentar, aquecer e cuidar deles pelos próximos
três meses. Oitenta camas estão prontas, e já estávamos ficando
impacientes para os homens chegarem. Agora você começará a ver
como é a vida de hospital de verdade. Você provavelmente não terá
tempo para sentar-se uma só vez durante o dia, e se considerará
sortuda se conseguir ir para cama à meia-noite. Venha comigo para
o salão de festas quando estiver pronta. Os piores casos são
sempre levados para lá, e eu precisarei da sua ajuda.”
Falando assim, a energética mulherzinha enrolou o cabelo em
um botão atrás da cabeça, em um estilo “preparado para a ação”, e
desapareceu, lutando para entrar em uma espécie de paletó
feminino enquanto saía.
Eu confesso que naquele momento eu tive a reveladora
sensação de que a minha cama de hospital não era uma cama de
rosas, e que a perspectiva diante de mim não era de puro êxtase.
Minhas experiências naqueles três dias tinham começado com uma
morte e, devido ao desfalque de outra enfermeira, um mergulho
abrupto na superintendência de uma ala contendo quarenta leitos,
onde eu passava as minhas horas brilhantes lavando rostos,
servindo comida, dando remédios, ou sentada em uma cadeira
bastante dura, com pneumonia de um lado e difteria do outro, cinco
tifoides na frente e uma dúzia de patriotas arruinados, pulando num
pé só, deitando-se ou relaxando, todos olhando mais ou menos para
a nova enfermeira, que sofria incontáveis agonias, mas as escondia
sob o aspecto mais matronal que uma solteirona podia assumir, e
continuava executando suas árduas tarefas com uma firmeza
espartana, que eu espero que eles tenham apreciado, mas temo
que não. Tendo um gosto pelo horrível, eu estava ansiosa para os
feridos chegarem, pois reumatismo não era heroico, tampouco eram
reclamações sobre o fígado, ou sarampo. Até mesmo febre tinha
perdido seu charme desde que “molhar testas queimando” já tinha
sido tão utilizado em romances, reais ou ideais. Mas quando eu vi o
que eu inicialmente tinha chamado inocentemente de carros de
mercado alinhados na rua escura, descarregando as suas cargas
tristes, eu lembrei-me de diversas reminiscências de enfermeiras
mais experientes, meu ardor experimentou um súbito resfriamento,
e eu cedi ao mais antipatriótico desejo de estar segura em casa
novamente, com um dia calmo à minha frente, e sem a necessidade
de ser apressada, como se eu fosse uma galinha e tivesse apenas
que saltar do meu poleiro, alisar a minha plumagem com o bico, e já
estar pronta para a ação. Uma segunda batida na porta mandou
esse desejo covarde para longe, e uma pequena cabeça de lã
apareceu, e Joey (um “contrabando” de seis anos de idade)
anunciou:
“A Dona Blank tá uma fera atrás de você e falou para você ir de
uma vez. Eles estão vindo, eu tô dizendo, um montão deles — um já
tá morto. Eu até vi, tava bem morto mesmo!”
E com essa animada inteligência, o diabinho saiu correndo,
cantando como um passarinho, e eu o segui, sentindo que Richard
não era o mesmo novamente e não seria por um bom tempo.
A primeira coisa que eu encontrei foi um regimento dos mais
repugnantes odores que já assaltaram um nariz humano, e eu os
encarei de frente. Cologne, com seus setenta e sete sabores
malignos era um ramalhete de flores comparada a isto. E o pior da
milha aflição era que todos me asseguraram de que isso era uma
fraqueza crônica dos hospitais, e eu deveria suportar. O que eu fiz,
armada com água de lavanda, que eu borrifei em mim mesma e ao
meu redor, de tal modo que eu passei a ser conhecida pelos meus
pacientes como “a enfermeira com o frasco.” Tendo sido atropelada
por três cirurgiões entusiasmados, esbarrada por baldes de carvão,
baldes de água e meninos migratórios; quase escaldada por uma
avalanche de bules de chá recém enchidos, e irremediavelmente
emaranhada com um grupo de irmãs negras vindo para limpar, eu
progredia lentamente pela escada para cima e para baixo, até atingir
o salão principal, onde parei para respirar e observar. Lá estavam
eles! “Nossos bravos meninos,” como os jornais justamente os
chamavam, pois covardes dificilmente estariam tão repletos de
buracos, tão arrasados e quebrados, nem estariam suportando
sofrimento para o qual nem se tem nome, com uma coragem
silenciosa, que faria qualquer um alegre em tratar cada um deles
como um irmão. Para dentro eles vieram, alguns em macas, alguns
sendo apoiados, alguns cambaleando debilmente com muletas
improvisadas, e um deitado imóvel com a face coberta, enquanto
seu companheiro dava seu nome para ser registrado antes que o
carregassem para o necrotério. Tudo era correria e confusão. O
salão estava cheio dessas ruínas de humanidade, pois o mais
exausto não podia alcançar um leito antes de ser propriamente
registrado. Junto às paredes estavam fileiras daqueles que podiam
sentar-se, o chão coberto com os mais incapacitados, os degraus e
portas cheios de ajudantes e observadores. O som de vários pés e
vozes fez daquela hora normalmente quieta, tão barulhenta quanto
a tarde. E, no meio disso tudo, a face maternal da enfermeira-chefe
trouxe mais conforto para várias pobres almas do que os cordiais
papéis que ela administrava, ou as animadas palavras com que
dava boas-vindas a todos, fazendo do hospital uma casa.
A visão de várias macas, cada uma com o seu ocupante sem
uma perna, um braço ou desesperadamente ferido, entrando na
minha enfermaria, me informou que eu estava ali para trabalhar, não
para fantasiar ou chorar. Assim, eu interrompi meus sentimentos e
retornei ao caminho do dever, que era uma dura estrada para viajar
naquele momento. A casa tinha sido um hotel antes de hospitais
serem necessários, e várias portas ainda levavam seus antigos
nomes. Alguns não tão inapropriados quanto se poderia imaginar,
pois a minha enfermaria era na realidade um salão, se feridas de
revólver pudessem batizá-la. Quarenta leitos tinham sido
preparados, várias já estavam ocupados por homens cansados que
se deitariam em qualquer lugar, e permaneceriam dormindo até o
cheiro de comida acordá-los. Em volta do grande fogão estava
reunido o grupo mais triste que eu já tinha visto — esfarrapados,
pálidos e esqueléticos, lama até os joelhos, com ataduras
ensanguentadas intocadas desde que foram colocadas dias atrás;
vários enrolados em cobertores, seus casacos perdidos ou inúteis; e
todos exibindo aquele olhar abatido que proclamava a derrota, mais
claramente do que qualquer telegrama sobre o erro de Burnside. Eu
tinha tanta pena, que eu não ousei falar com eles; mas, lembrando
de tudo que eles tiveram que passar desde o caminho para
Fredericksburg, eu ansiava em ser útil aos mais tristes deles. Logo,
a Srta. Blank me arrancou do meu refúgio atrás de montes de
camisas de uma manga só, meias sem par, ataduras e fiapos de
roupas, e colocou uma bacia, esponja, toalhas e uma barra de
sabão marrom nas minhas mãos, com essas terríveis instruções:
“Venha aqui, minha querida, comece a lavá-los o mais rápido
possível. Diga a eles para tirarem as meias, casacos e camisas,
esfregue-os bem, vista-os com camisas limpas, e os atendentes vão
terminar o serviço e colocá-los na cama.”
Se ela tivesse me pedido para barbear todos eles, ou dançar o
hornpipe em cima da chaminé do fogão, eu teria ficado menos
chocada. Mas esfregar as costas de uma dúzia de senhores da
criação imediatamente era realmente... realmente... No Entanto, não
havia tempo para bobagem. E tendo decidido, quando eu vim, a
fazer tudo o que me fosse pedido, eu afoguei os meus escrúpulos
na minha bacia, agarrei minha barra de sabão decididamente, e,
assumindo um ar profissional, eu dei um toque no primeiro
espécime, determinada a cumprir minha tarefa vi et armis se
necessário. Eu calhei de acordar um velho irlandês murcho, ferido
na cabeça, o que fazia aquela parte de seu corpo estar disposta
como um jardim, as ataduras sendo os caminhos, os cabelos os
arbustos. Ele estava tão dominado pela honra de ter uma senhorita
para lhe dar banho, como ele expressou, que ele não fez nada além
de rolar os olhos para cima e me abençoar, em um estilo irresistível
que era demais para o meu senso de ridículo; então, nós rimos
juntos, e quando eu ajoelhei para retirar os seus sapatos, ele não
quis ouvir de mim tocando “essas coisas imundas. Que a sua cama
acima seja mais fácil, minha filha, pelo seu trabalho duro durante o
dia! Olha, aí estão eles, e por Deus, é difícil dizer o que é mais sujo
o pé ou o sapato.” E realmente era. E se ele não tivesse tirado o
sapato por mim, eu teria continuado puxando, sob a impressão de
que o pé era uma bota, pois calças, meias, sapatos e pernas eram
uma massa de lama. Esse quadro cômico produziu uma risada
geral, e com esse propício começo, eu retomei minha coragem e
comecei a esfregar como qualquer pai asseado numa noite de
sábado. Alguns receberam a performance como crianças
sonolentas, apoiando suas cabeças cansadas no meu ombro
enquanto eu trabalhava. Outros pareciam horrivelmente
escandalizados, e vários dos mais brutos coravam como garotas
tímidas. Um vestia um saquinho sujo em volta do pescoço, e,
quando eu o movi, para lavar o seu peito ferido, eu disse:
“Seu talismã não o salvou, hein?”
“Bem, eu acredito que sim, moça, pois aquele tiro teria entrado
alguns centímetros a mais se não fosse pelo saco de cânfora da
minha mãe,” respondeu o alegre filósofo.
Outro, com um tiro na bochecha, pediu por um espelho, e
quando eu lhe trouxe um, ele encarou sua face inchada com uma
expressão dolorosa, enquanto murmurava:
“Eu juro por Deus, isso é ruim! Eu não era feio antes, e agora eu
estou acabado. Não vai ficar uma cicatriz horrível? O que Josephine
Skinner dirá?”
Ele olhou para mim com seu único olho de maneira tão apelativa,
que eu controlei minhas risadas e lhe assegurei que se Josephine
era uma garota de bom senso, ela admiraria a honrosa cicatriz,
como uma prova permanente de que ele tinha enfrentado o inimigo,
pois todas as mulheres consideravam uma cicatriz a melhor
decoração que a face de um bravo soldado poderia exibir. Eu
espero que a senhorita Skinner confirme a boa opinião dela que eu
tão precipitadamente expressei, mas eu nunca saberei.
O próximo cliente era um rapaz bonito, com uma cabeleira
castanha encaracolada, e um leve traço de pão de gengibre sobre
os lábios, que ele chamava de barba e que defendeu com firmeza,
quando o barbeiro sugeriu jocosamente a sua imolação. Ele estava
deitado na cama, com uma perna faltando, e com o braço direito tão
arruinado que ele deveria obviamente ser o próximo; ainda assim o
pequeno sargento estava tão alegre como se não valesse a pena
lamentar sobre as suas aflições. E quando uma ou duas gotas de
água salgada se misturaram com a minha água de sabão por causa
da visão deste jovem corpo, tão estragado e mutilado, o garoto
olhou para cima, com um sorriso cativante, apesar de que havia um
pequeno tremor nos lábios, e disse:
“Não se chateie por minha causa, moça. Eu estou na primeira
classe aqui, pois é ótimo poder deitar nessa cama, depois de ser
sacudido para cima e para baixo nessas malditas ambulâncias, que
fazem uma geleia com o que sobrou de um sujeito. Eu nunca estive
num lugar com este antes, e eu acho que esse negócio de banho
uma coisa muito divertida para nós, mas eu temo que não seja para
vocês damas.”
“Essa foi a sua primeira batalha, Sargento?”
“Não, moça. Eu já estive em uns seis confrontos, e nunca recebi
nenhum arranhão até este último. Mas eu devo dizer que dessa vez
o serviço foi muito bem feito. Meu Deus! Que luta vai ser por braços
e pernas quando sairmos de nossas sepulturas no dia do
Julgamento Final. Você acha que nós conseguiremos os nossos
próprios novamente? Se conseguirmos, a minha perna terá que
caminhar de Fredericksburg, meu braço daqui, eu imagino, para
encontrar o meu corpo onde quer que ele esteja.”
A ideia parecia diverti-lo imensamente, pois ele começou a rir
alegremente, e eu também. O que certamente fez a nova enfermeira
ser considerada uma pecadora desmiolada pelo capelão, que
rondava pelo local, informando aos homens que todos eles eram
vermes, corruptos de coração, com corpos perecíveis, e almas que
poderiam ser salvas apenas pela leitura diligente de certas
passagens, e outros exemplos de consolo espiritual igualmente
animadores, quando um gole de álcool teria sido preferido.
“Eu vou te dizer, moça!” disse uma voz atrás de mim; e, virando-
me, eu vi um rústico michigânder, com um braço removido na altura
do ombro, e duas ou três balas ainda no corpo — o que ele
mencionou depois, tão negligentemente como se fosse um hábito
comum de um cavalheiro carregar esse tipo de coisa com ele. Eu fui
até ele, e, enquanto eu administrava uma dose de água e sabão, ele
sussurrou irado:
“Aquele demônio ruivo ali é um rebelde, maldito seja! Você
concorda comigo, não? Ele levou um tiro no pé, ou ele teria fugido
como o resto do grupo. Não o lave, não dê comida a ele, só deixe
ele gritar até ficar cansado. É uma vergonha trazer esses infelizes
para cá conosco. E eu vou dizer isso para o sujeito responsável. Ah,
se vou!”
Eu lamento dizer que eu não dei um sermão moral a respeito do
dever de perdoar os inimigos, e sobre o pecado da profanidade, ali
mesmo. Pelo contrário, sendo uma abolicionista convicta, eu olhei
fixamente para o alto rebelde, que era uma serpente cabeça de
cobre, e decidi privadamente jogar sabão nos seus olhos, esfregar
seu nariz do jeito errado e escoriar a sua cutícula de modo geral, se
eu tivesse que dar banho nele.
Minhas amáveis intenções, no entanto, foram frustradas. Pois,
quando eu me aproximei, com uma expressão tão cristã quanto os
meus princípios permitiam, e perguntei: “Devo deixá-lo mais
confortável, senhor?”, tudo o que eu consegui foi um rude:
“Não, eu mesmo faço isso.”
“Aqui está o seu cavalheirismo sulista,” eu pensei, largando a
bacia na frente dele, controlando assim o forte desejo de dar-lhe um
batismo sumário, em retribuição pela sua grosseria. Pois a minha
cólera cresceu diante dessa rejeição, de uma maneira que teria
escandalizado o Dr. Watts. Ele era uma decepção em todos os
respeitos (o rebelde, não o abençoado doutor), pois ele não era nem
diabólico, nem romântico, nem patético, nem nada de interessante.
Apenas um homem gordo e comprido, com uma cabeça parecendo
um arbusto em chamas, e um rosto perfeitamente inexpressivo.
Então, eu podia odiá-lo sem o menor inconveniente, e passei a
ignorar sua existência daquele dia em diante. Ele possuía uma
característica redentora, como o chão claramente testemunhava.
Suas abluções eram executadas com tanto vigor que a sua cama
rapidamente virou uma ilha isolada num mar de espuma, e ele se
assemelhava a um tritão encharcado, sofrendo com a falta de uma
barbatana. Se limpeza é uma vizinha próxima da santidade, então
aquele grande rebelde foi o homem mais santo da minha enfermaria
naquele dia.
Tendo terminado a nossa lavagem humana e deixado para secar,
a segunda sílaba da nossa versão da palavra war-fare foi realizada
com sucesso. Grandes bandejas com pão, carne, sopa e café
apareceram, e enfermeiras e ajudantes viraram garçons, servindo
generosas porções de ração para todos que pudessem comer. Eu
posso chamar o meu avental para testemunhar a favor da minha
boa vontade no trabalho, pois em dez minutos ele estava reduzido a
um cardápio ambulante, apresentando amostras de todos os itens
disponíveis ou já consumidos. Era uma cena animadora. O amplo
salão com fileiras de camas, cada uma preenchida por um
ocupante, o qual água, tesoura e roupas tinham transformado de um
horroroso maltrapilho em um herói reclinado, com a cabeça
raspada. Matronas, empregadas e “garotos” convalescentes
andavam apressadamente para lá e para cá, lutando com garfos e
facas, recuando com pratos vazios, marchando e contramarchando,
com invariável sucesso, enquanto o choque de colheres atarefadas
fez a música mais inspiradora para a nossa carga da Brigada
Ligeira:
“Camas a sua frente,
Camas a sua direita
Camas a sua esquerda,
Ninguém errou.
Recebendo o brilho de almas famintas,
Recebendo gritos com tigelas cheias,
Sendo cozida por pães do exército,
Amanteigados e divididos.
Com café e não canhões,
Cada um precisa ser satisfeito,
Vivendo ou morrendo;
Todos os homens imaginavam.”
Depois de uma semana de sofrimento, exposição e pouca
comida, a refeição foi bastante bem vinda. Rapidamente os rostos
começaram a sorrir enquanto a comida, o calor e o descanso faziam
seu trabalho. E os entusiasmados agradecimentos eram seguidos
de uma descrição mais gráfica da batalha e da retirada que qualquer
repórter pago poderia nos dar. Curiosos contrastes entre o trágico e
o cômico eram vistos por toda a parte, e alguns episódios
emocionantes e ridículos poderiam ter sido gravados naquele dia.
Um homem de New Hampshire de 1 metro e oitenta, com uma
perna quebrada e perfurada por um projétil tão grande que, se eu
não tivesse visto a ferida, teria considerado a história um
munchausenismo, me chamou para ajudá-lo, pois ele não podia
sentar, e tanto a sua cama quanto a sua barba estavam sendo
abundantemente ungidas com sopa. Enquanto eu alimentava o meu
grande passarinho com colheradas correspondentes, eu o perguntei
como ele se sentiu durante a batalha.
“Bem, foi a minha primeira batalha, sabe? Então eu não tenho
vergonha de dizer que eu estava um pouco incomodado no começo,
era um barulho dos infernos, e se tem uma coisa que eu não gosto é
de barulho. Mas quando o meu amigo, Eph Sylvester, caiu, com
uma bala na cabeça, eu fiquei irritado e corri para a luta. A nossa
parte da batalha não durou muito; então, vários de nós ficamos
patrulhando por Fredericksburg, e dando alguma das casas uma
boa remexida, até recebermos a ordem para sair daquela bagunça.
Alguns de nós correram de volta, mas eu não estava com pressa de
correr por ninguém. E, de repente, uma bomba explodiu, bem na
nossa frente, e eu tombei, sentindo que eu tinha voado mais alto do
que uma pipa. Eu gritei, e os rapazes voltaram para me buscar, bem
rápido. Mas o jeito como eles me jogaram por cima das cercas não
foi muito delicado, para ser sincero. No dia seguinte eu estava mais
preto do que aquele negrinho ali, lambendo os pratos escondido.
Esse café é muito bom, não é? Nos dê mais um pouco dele e eu
ficarei grato.”
Foi o que eu fiz. E depois de dar o último gole, ele disse, com
uma esfregada do seu velho lenço sobre a boca e os olhos:
“Veja só: eu tenho um par de brincos e um alfinete de lenço que
eu vou dar a você, se você aceitar, pois você é a própria Lizy
Sylvester, a boa esposa do pobre Eph. Foi por isso que eu a chamei
aqui. Não é muito, eu sei, mas eles vão servir para lembrar dos
rebeldes.”
Escavando em baixo do seu travesseiro , ele produziu um
pequeno pacote do que ele chamava “troços”, e galantemente me
presenteou com um par de brincos, cada um representando um
cacho de uvas enormes, e o alfinete uma cesta de frutos
exuberante, grande o suficiente e com cobre o suficiente para ser
confundida com um pequeno aquecedor de cama. Sentindo
escrúpulos de privá-lo de tão valioso bem, eu aceitei apenas os
brincos, e fiquei feliz em partir de forma meio abrupta, quando o
meu amigo enfiou o aquecedor no seio de sua roupa de dormir,
vendo-o com muita complacência e talvez alguma tenra memória
naquele seu coração duro, do amigo que ele tinha perdido.
Observando que o homem ao seu lado não tinha tocado no
prato, eu ofereci o mesmo serviço que eu tinha executado para o
seu vizinho, mas ele balançou a cabeça.
“Obrigado, moça. Eu acho que eu nunca mais comerei de novo,
pois eu levei um tiro no estômago. Mas eu gostaria de um copo de
água, se você não estiver muito ocupada.”
Eu corri, mas os baldes de água tinham sido levados para serem
enchidos novamente, e demorou um pouco até eles reaparecerem.
Eu não esqueci do meu paciente paciente nesse meio tempo e, corri
de volta para ele com a primeira caneca cheia. Ele estava dormindo
profundamente. Mas algo na sua face cansada e pálida fez eu me
aproximar para ouvir a sua respiração. Nenhuma veio. Eu encostei
na sua testa: estava fria. Então eu soube que, enquanto ele
esperava, uma enfermeira melhor do que eu tinha lhe dado um gole
mais frio e o curado com um toque. Eu cobri a face do silencioso
adormecido, a quem nenhum som poderia incomodar agora. E, meia
hora depois, a cama estava vazia. Parecia uma recompensa pobre
para tudo o que ele tinha sacrificado e sofrido — aquela cama de
hospital; solitário mesmo numa multidão, pois não havia nenhum
rosto familiar para ele olhar pela última vez, nenhuma voz amiga
para dizer adeus; nenhuma mão para guiá-lo gentilmente pelo Vale
da Sombra; e ele desapareceu, como uma gota naquele mar
vermelho em cujo litoral tantas mulheres lamentam. Por um
momento eu senti uma amarga indignação diante dessa aparente
negligência com o valor da vida, a santidade da morte. E então eu
me consolei com o pensamento de que, quando a grande lista de
pessoal for chamada, esses homens sem nome poderão ser
promovidos acima de vários cujos monumentos registram as
estéreis homenagens que ganharam.
Depois de todos terem comido, bebido e descansado, os
médicos começaram a fazer suas rondas, e eu tive a minha primeira
lição na arte de fazer curativos. A cena não era, de modo algum,
festiva. Pois o Dr. P, a quem eu servia de ajudante, se pôs a
trabalhar com um vigor que logo me convenceu de que eu era um
vaso mais fraco, mas nada teria me induzido a admitir isso naquele
momento. Ele tinha servido na Crimeia e parecia considerar um
corpo arruinado da mesma maneira que ele poderia considerar uma
peça de vestuário danificada. E, arregaçando as mangas, ele retirou
um estojo de costura de aspecto desagradável. Ele cortava, serrava,
remendava e perfurava, com o entusiasmo de um talentoso
costureiro cirúrgico, tudo isso ao mesmo tempo em que explicava o
procedimento, em termos científicos, para o paciente; o que era,
obviamente, extremamente animador e confortável. Havia uma
estranha satisfação em assisti-lo, enquanto ele examinava e
observava o mecanismo daqueles magníficos corpos, cujos
mistérios ele entendia tão bem. Quanto mais intrincada a ferida,
mais ele gostava. Um pobre soldado, que tinha perdido ambas as
pernas, e estava com o pulmão perfurado por tiros, possuía mais
atrações para ele do que doze generais, levemente arranhados em
alguma “Retirada Magistral”. E se alguém tivesse aparecido em
pequenos pedaços, requisitando ser reunido novamente, ele teria
considerado isso uma dispensação especial.
As amputações tinham sido reservadas para amanhã, e a
mágica misericordiosa do éter não foi considerada necessária
naquele dia, então as pobres almas tinham que suportar a dor da
melhor maneira que pudessem. É muito bom falar da paciência da
mulher, e longe de mim querer arrancar essa pena do seu chapéu,
pois só Deus sabe que ela não é permitida usar muitas; mas a
resistência paciente daqueles homens, sob as provações da carne,
era realmente impressionante. A força deles parecia contagiosa, e
raramente um gemido escapava de suas bocas, apesar de que eu
frequentemente desejava gemer por eles, quando o orgulho
mantinha suas bocas fechadas, enquanto grandes gotas de suor
podiam ser vistas em suas testas, e a cama tremia com o
incontrolável tremor de seus corpos torturados. Um ou dois
irlandeses amaldiçoaram os médicos com a franqueza de sua nação
e ordenaram à Virgem que ficasse ao lado deles, como se ela fosse
alguém que eles pudessem acertar a pauladas, se não obedecesse.
Mas, de modo geral, o trabalho prosseguiu em silêncio, quebrado
apenas por algum pedido silencioso por ataduras, instrumentos ou
gesso, um suspiro do paciente, ou um murmuro confortador da
enfermeira.
Já tinha passado do meio dia antes que esses reparos
estivessem sequer parcialmente concluídos. E, tendo dado alguma
ordem no corpo dos meus rapazes, a próxima missão era cuidar de
suas mentes, escrevendo cartas para as almas preocupadas em
casa, respondendo a perguntas, lendo jornais, tomando posse de
dinheiro e objetos de valor; pois o oitavo mandamento tinha sido
reduzido a uma condição bem fragilizada, tanto pelos negros quanto
pelos brancos, que ornamentavam o nosso hospital com sua
presença. Carteiras, bolsas, miniaturas e relógios foram
confiscados, rotulados e entregados para a enfermeira-chefe, para
serem devolvidos quando os donos estivessem prontos para
marchar para a casa ou para o campo de batalha novamente. As
cartas ditadas para mim e revisadas por mim naquela tarde fariam
um excelente capítulo para alguma futura história da guerra; pois,
assim como “Ensign Spooney” de Thackeray escreveu para a sua
mãe antes de Waterloo, elas estavam “cheias de afeição, coragem e
má ortografia”. Quase todas dando vívidas descrições da batalha e
terminando com uma queda súbita do patriotismo para as provisões,
desejando que a “Mamãe”, “Mary Ann” ou “Tia Peters” mandasse
algumas tortas, picles, doces e maçãs, “Para o seu querido...” Joe,
Sam ou Ned, conforme o caso.
O meu pequeno sargento insistiu em tentar rabiscar alguma
coisa com a sua mão esquerda, e pacientemente conseguiu
produzir umas seis linhas de hieróglifos, que ele me deu para dobrar
e enviar, com um rubor de menino, que tinha um vislumbre de
“Minha Querida Jane”, desnecessário, para me garantir que o jovem
herói tinha sido mais bem sucedido no serviço do Comandante
Cupido do que do General Marte. E um adorável romance
desabrochou na mente da enfermeira Periwinkle, mas nenhuma
outra confidência foi feita naquele dia, pois o Sargento caiu no sono
e, julgando pela sua face tranquila, visitou a sua ausente amada na
encantadora terra dos sonhos.
Às cinco em ponto, um grande sino badalou, e os ajudantes
voaram, não para as armas, mas para as suas tigelas, para trazer o
jantar, quando um segundo tumulto anunciou que ele estava pronto.
Os recém chegados acordaram com o barulho. E eu logo descobri
que era necessária uma ferida bem séria para impedir os
defensores da fé de comer suas rações. A quantidade que alguns
deles sequestraram era incrível, mas quando eu sugeri a
possibilidade de ficarmos sem comida à enfermeira chefe, aquela
figura maternal exclamou: “Deus os abençoe, por que eles não
deveriam comer? É a sua única forma de divertimento. Então, encha
todos eles, e, se não houver o suficiente esta noite, eu oferecerei a
minha parte para Deus, dando-a para os meninos.” E assim,
pegando rapidamente o seu bule de café e prato de torradas, ela
satisfez os olhos e estômagos de dois ou três heróis insatisfeitos,
servindo-os com uma mão liberal. E eu não tenho a menor dúvida
de que, tendo lançado seu pão sobre as águas, ele voltou
amanteigado, como uma outra velha senhora de coração grande
costumava dizer.
Então, veio a visita noturna do médico; a administração de
remédios; a lavagem de faces febris; o alisamento de camas
desarrumadas; a lavagem das feridas; o canto de canções de ninar;
e as preparações para a noite. Às onze, o último trabalho de amor
estava feito; o último boa noite tinha sido falado; e, se alguém
precisava de uma recompensa por aquele dia de trabalho, eles
certamente a receberam, na silenciosa eloquência das longas linhas
de rostos, pálidos e serenos nos cômodos escuros, quando os
deixamos, seguida pelos olhares gratos que iluminavam nosso
caminho para a cama, onde o doce descanso tornava nossos
travesseiros macios, enquanto a Noite e a Natureza tomavam
nossos lugares, enchendo aquela grande casa de dor com os
milagres curativos do Sono, e de sua divina irmã, a Morte.
Capítulo IV
Uma Noite

Sendo uma apreciadora do lado noturno da natureza, eu logo fui


promovida para o posto de enfermeira do turno da noite, com toda a
facilidade para satisfazer o meu passatempo favorito de viver como
uma coruja. Minha colega, uma viúva de olhos pretos, me substituía
ao amanhecer, nós duas cuidando da enfermaria como as imortais
Sairy e Betsey, “uma depois da outra”. Eu geralmente encontrava os
meus meninos no estado mental mais alegre que a condição deles
permitia, pois era um fato conhecido que a enfermeira Periwinkle
detestava tristeza e estava convicta de que aquele que ria mais era
o mais certo de se recuperar. No começo do meu reinado, a
melancolia e o desânimo prevaleciam; as enfermeiras pareciam
preocupadas e cansadas, os homens sombrios ou tristes; e uma
conversação no estilo “Ouça! Das tumbas o triste som” era a regra
geral. Um estado de coisas que fazia alguém vindo de uma alegre e
sociável cidade de Nova Inglaterra sentir-se como se tivesse
entrado em um cemitério; e o instinto de autopreservação, sem falar
do desejo filantrópico de servir à raça, provocou uma rápida
mudança na Enfermaria Nº 1.
Mais lisonjeiro do que o elogio mais graciosamente elaborado,
mais agradável do que o olhar da maior admiração, era a visão
daquela fileira de rostos, todos estranhos para mim até pouco tempo
atrás, agora iluminados com sorrisos de boas-vindas ao ver eu me
aproximar, aproveitando cada momento, sentindo um orgulho
feminino e uma afeição maternal por todos eles. Passávamos as
noites lendo em voz alta, escrevendo cartas, cuidando e divertindo
os homens, fazendo rondas com o Dr. P., enquanto ele fazia a sua
segunda inspeção, refazendo curativos, dando a última dose de
remédios e deixando-os confortáveis para as longas horas ainda por
vir, até que o sino das nove tocasse, o gás fosse desligado, as
enfermeiras do dia terminassem o seu turno, e a minha aventura
noturna começasse.
Minha enfermaria estava agora dividida em três partes. Com a
permissão da enfermeira-chefe, eu separei os pacientes entre o que
eu chamava de minha “sala do dever”, minha “sala do prazer” e a
minha “sala patética”, e trabalhava em cada uma de uma maneira
diferente. Uma eu visitava armada de curativos, ataduras, gesso e
pinos; outra, com livros, flores, jogos e conversa fiada; e a terceira,
com bules de chá, canções de ninar, consolação e, de vez em
quando, uma mortalha.
Onde quer que o homem mais doente e desamparado estivesse,
lá estaria eu fazendo a minha vigília, visitando os outros quartos
frequentemente, para ver se o vigia geral da enfermaria tinha feito o
seu dever para com o fogo e as feridas, estas necessitando ser
banhadas constantemente. Essa não era a única razão das minhas
saídas. Eu também gostava de sair para pegar um ar mais fresco do
que os quartos fechados permitiam, pois, devido à estupidez
daquele ser misterioso que causa todos os infortúnios neste mundo,
as janelas tinham sido pregadas cuidadosamente na parte de cima,
e as vidraças inferiores só podiam ser abertas se o clima estivesse
ameno, pois os homens estavam bem abaixo delas. Eu sugeri a
quebra de alguns painéis aqui e ali, quando apelos constantes ao
quartel general se mostraram inúteis, e ordens diárias aos serventes
preguiçosos resultaram em nada. Ninguém apoiou a minha
sugestão, e os pregos estavam fora do meu alcance, pois, apesar
de pertencer à irmandade dos “anjos ministradores”, eu não tinha
asas, e podia tanto ter pedido a Escada de Jacó quanto um par de
degraus naquele caridoso caos.
Um dos fantasmas inofensivos que me faziam companhia era
Dan, o vigia, a quem eu via com certa admiração, pois, apesar de
estar constantemente na sua presença, eu nunca cheguei a ver o
seu rosto claramente, e, se não fosse pelas suas pernas, nunca
poderia reconhece-lo, já que raramente nos encontrávamos durante
o dia. Essas pernas eram extraordinárias, assim como toda a sua
figura, pois ele era de baixa estatura, roliço, e vestido num grande
casaco e com um cachecol. Sua barba escondia a parte inferior do
rosto, e a aba do chapéu a parte de cima. E tudo que eu consegui
descobrir foi um par de olhos sonolentos, e uma voz bem suave.
Mas as pernas! — muito longas, muito finas, bem tortas e fracas,
parecendo salsichas cinzas na calça apertada, e terminadas em um
par de grandes sapatos de pano verdes, parecendo aqueles lixos
chineses. Esta figura, deslizando silenciosamente pelos quartos mal
iluminados, era sugestiva do espírito de um barril de cerveja
montado em dois saca-rolhas, assombrando o velho hotel em busca
de seus colegas perdidos, abertos e esvaziados há muito tempo
atrás.
Outro goblin que frequentemente me aparecia era o atendente
da sala patética, que, sendo uma alma fiel, estava sempre acordado
cuidando de dois ou três homens, que perambulavam debilmente
como bebês, depois que a febre tinha passado. A amável criatura
passava o turno da noite preparando jarros de uma temível bebida,
que ele dizia ser café, e insistia em compartilhar comigo. Ele entrava
com um grande jarro de algo que parecia uma sopa de lama, muito
quente, sem nenhum vestígio de creme e com um sabor
predominante de melaço, queimado e lata. Tal era a boa vontade e
amor ao próximo que ele colocava na coisa, que eu nunca tive
coragem de recusar e, pelo contrário, aceitava agradecida, tomando
um gole com um prazer fingido enquanto ele permanecia e jogando
tudo no lixo no instante em que ele saía, gratificando-o e garantindo
uma boa risada, de modo que ninguém saía perdendo nessa
transação, com exceção dos porcos. Se eles tinham sido
“aniquilados prematuramente pelos seus pecados”, ou não, eu me
abstive de perguntar.
Era uma vida estranha: dormindo metade do dia, explorando
Washington na outra metade, e pairando durante a noite toda, como
um enorme querubim num véu vermelho, sobre os filhos
adormecidos dos homens. Eu gostava, e encontrei várias coisas
para me divertir, ensinar e ocupar. Apenas os roncos já davam um
bom estudo, variando de um leve fungar a uma estentórea bufada,
cujo eco assustava o próprio executor e o levantava ereto para
acusar o vizinho do ato, perdoá-lo magnanimamente e, enrolando o
lençol da cama em volta de si, deitar-se para um sono vocal. Depois
de uma semana escutando esta orquestra de instrumentos de
sopro, eu passei a acreditar que eu poderia reconhecer cada um
pelo ronco apenas, e fiquei tentada a me unir ao coro com o hino
favorito de John Brown:
“Sopre o seu trompete, sopre!”
Eu teria dado muito para ser capaz de desenhar, pois alguns dos
rostos tornavam-se extremamente interessantes quando
inconscientes. Alguns ficavam sérios e sombrios, os homens
evidentemente estavam sonhando com a guerra, dando ordens,
lamentando-se sobre suas feridas ou amaldiçoando os rebeldes
vigorosamente. Alguns tornavam-se tristes e infinitamente patéticos,
como se a dor suportada em silêncio durante o dia todo se vingasse
agora, revelando o que o orgulho do homem tinha escondido tão
bem. Frequentemente os mais severos se tornavam jovens e
simpáticos quando o sono suavizava as linhas duras da face,
deixando a sua verdadeira natureza se afirmar. Vários pareciam
praticamente falar, e eu aprendi a entender mais sobre esses
homens à noite do que durante qualquer conversa durante o dia. De
vez em quando, eles me decepcionavam, quando rostos que
pareciam bons e alegres na luz do dia, tornavam-se ruins e
malignos nas sombras. E, apesar de eles não fazerem nenhuma
confidência em palavras, eu lia suas vidas, e os deixava confusos
com a mudança de atitude que essa mágica da meia noite tinha
provocado na sua enfermeira. Alguns falavam energeticamente; um
jovem percussionista cantava docemente, embora nenhum
argumento o convencesse a cantar durante o dia. Pela manhã,
vários queriam saber sobre o que tinham falado. Até mesmo as
minhas caminhadas pelos corredores gelados tinham um certo
charme, pois a casa nunca estava parada. Sentinelas marchavam
em volta dela a noite toda, seus mosquetes reluzindo na luz da lua
de inverno enquanto eles andavam, ou ficavam de guarda na frente
das portas, eretos e silenciosos, como estátuas, provocando visões
românticas de fortificações guardadas, surpresas súbitas e feitos
ousados; pois nestes tempos de guerra, o tédio da vida cotidiana
dos ianques tinha desaparecido, e até o mais prosaico indivíduo
sentia um pouco daquela emoção que agita o coração da nação, e
transforma sua capital num campo de hospitais. Andando para cima
e para baixo pelos corredores inferiores, eu frequentemente ouvia
gritos vindo de cima e passos se apressando de um lado para o
outro, via médicos subindo as escadas, ou homens descendo
carregando numa maca uma figura branca e longa, cuja luta tinha
terminado. De vez em quando, eu parava para observar as pessoas
andando pela rua, com a luz da lua iluminando a torre à frente, ou o
brilho de algum barco flutuando, como uma gaivota de asas
brancas, no amplo rio Potomac, cujo incrível fluxo é incapaz de lavar
a mancha vermelha da terra.
A noite que eu escolho registrar começou com um pouco de
comédia e terminou com uma grande tragédia; pois, quando uma
vida virtuosa e útil chega ao fim, é sempre uma tragédia para
aqueles que não veem como Deus. Meu quartel general ficava ao
lado da cama de um garoto de Nova Jersey, enlouquecido pelos
eventos daquele terrível sábado. Uma leve ferida no joelho o tinha
trazido aqui, mas a sua mente tinha sofrido mais do que o seu
corpo. Alguma peça naquela delicada máquina tinha sido colocada
sob pressão demais, e por dias ele tinha revivido, em sua
imaginação, as cenas que ele não podia esquecer, até que sua
aflição explodia em delírios incoerentes, tristes de ver. Enquanto eu
sentava ao seu lado, buscando acalmá-lo tocando com a mão úmida
a sua testa quente, ele animava seus colegas, chamava-os de volta,
e os contava quando eles caíam ao seu redor, frequentemente
apertando o meu braço, para me afastar de perto de um projétil
explodindo, ou colocando a mão na cabeça para se proteger dos
estilhaços de um tiro, seu rosto brilhando com a febre; seus olhos
agitados; sua cabeça sempre se movendo; todos os músculos
tensos e rígidos, enquanto uma corrente de gritos desafiantes,
avisos sussurrados, e lamentações emocionadas jorravam de seus
lábios, com aquela terrível desorientação que faz tais devaneios tão
difíceis de ouvir.
Já tinha passado das 11 horas, e o meu paciente estava
lentamente se esgotando em intervalos irregulares de quietude,
quando, numa dessas pausas, um curioso som me chamou a
atenção. Olhando para trás, eu vi um fantasma de uma perna só,
pulando agilmente pela sala. Indo ao seu encontro, eu reconheci um
certo cavalheiro da Pensilvânia, cuja febre por conta dos ferimentos
tinha piorado, privando-o dos poucos vestígios de inteligência que
ele ainda possuía depois de uma campanha bêbada, e o deixando
literalmente dançando “na direção de casa”, como ele me informou
calmamente, tocando no seu boné militar, que causava um contraste
enorme com a profunda simplicidade do resto de sua não-
vestimenta. Quando são, o menor movimento produzia um urro de
dor ou uma torrente de imprecações. Mas a partida da razão parece
ter causado nele uma agradável mudança, pois, equilibrando-se
numa perna só, como uma cegonha meditativa, ele mergulhou numa
animada discussão sobre a guerra, o presidente, rifles Enfield,
ignorando os meus argumentos sobre os benefícios de voltar para a
cama, para evitar ser julgado pela corte marcial como desertor.
Era difícil de imaginar alguma coisa mais ridícula do que esta
figura, escassamente coberta de branco, seu único pé enfiado numa
grande meia azul, um boné sujo colocado torto na sua cabeça
careca, e uma plácida satisfação brilhando em sua ampla face
vermelha, enquanto carregava uma caneca em uma mão, uma
velha bota na outra, chamando-as de cantil e mochila, pulando e se
agitando da maneira mais fantástica. O que fazer com essa criatura
eu não sabia. Dan não estava, e se eu saísse para chamá-lo, a alma
perambulante poderia se pendurar do lado de fora da janela, atear
fogo na sua toga, ou fazer alguma travessura com os seus vizinhos.
O atendente da sala estava dormindo como um parente próximo dos
celebrados Sete, e nada menos do que alfinetes o fariam levantar;
pois ele tinha saído naquele dia, e o uísque afirmava a sua
supremacia em perfumadas baforadas. Ainda declamando, numa
fina eloquência, o louco cavalheiro pulava, cego e surdo para os
meus apelos e súplicas; e eu estava prestes a bater a porta na sua
cara e correr para pedir ajuda, quando um segundo fantasma mais
são, “todo em branco”, veio ao meu resgate, na forma de um
prussiano que não falava nem um pouco de inglês, mas adivinhou a
crise e colocou um fim nela, prendendo o animado homem de um pé
só em sua cama, como um bebê, com um comando autoritário para
“ficar ali”, que tinha um peso adicional por ser proferido em uma
estranha mistura de francês e alemão, acompanhado de sacudidas
de uma cabeça adornada com uma touca de dormir de algodão
amarela, tornada mais imponente devido a uma borla parecida com
um cordão de campainha. Bastante cansado com a sua excursão, o
cavalheiro da Pensilvânia se aquietou; e, depois de uma irresistível
risada juntos, meu aliado prussiano e eu estávamos voltando aos
nossos lugares, quando o eco de um soluço nos fez olhar para as
camas. O som vinha de um canto — que cama pequena! — e uma
face pequena e chorosa nos olhou quando paramos do lado da
cama. O percursionista de doze anos não estava mais cantando,
mas chorando, fazendo um esforço viril para reprimir os
angustiantes sons que emitia.
“O que foi, Teddy?”, eu perguntei, enquanto ele esfregava o rosto
para secar as lágrimas, e tentando se recompor no meio de um
grande soluço para responder queixosamente:
“Eu estou com um calafrio, moça, mas eu não estou chorando
por causa disso, porque eu já me acostumei. Eu sonhei que Kit
estava aqui, e quando eu acordei ele não estava, e eu não pude
evitar...”
O garoto tinha vindo com os outros, e o homem que tinha sido
tirado morto da ambulância era o Kit por quem ele chorava. Bom,
deve ter sido; pois, quando os feridos foram trazidos de
Fredericksburg, o menino estava deitado em um dos campos ao
redor, e este bom amigo, apesar de ele próprio estar machucado,
não o abandonou num lugar tão negligenciado e aberto; mas,
envolvendo-o em seu próprio cobertor, carregou-o em seus braços
até o transporte, cuidou dele durante a viagem, e só abandonou sua
carga quando a Morte o encontrou às portas do hospital que
prometia cuidado e conforto ao menino. Por dez dias, Teddy tinha
tremido ou queimado de febre, o tempo todo ansiando por Kit, e
recusando-se a ser confortado por não ter sido capaz de agradecê-
lo pela generosa proteção, que talvez tenha custado a vida de seu
doador. O vívido sonho tinha apertado o coração do jovem com uma
nova dor, e quando eu tentei lhe oferecer um consolo adequado à
sua idade, o arrependimento que o assombrava encontrou
expressão em uma nova torrente de lágrimas, enquanto ele olhava
para as mãos magras que eu estava tentando aquecer.
“Oh, se eu estivesse tão magro quando o Kit me carregou quanto
eu estou agora, talvez ele não tivesse morrido; mas eu estava
pesado, e ele estava mais machucado do que sabíamos, então isso
o matou. E eu não o vi para dizer adeus.”
Esta ideia o tinha perturbado em segredo; e as minhas garantias
de que o amigo dele provavelmente morreria de qualquer maneira,
fizeram pouco para atenuar a amargura de seu luto arrependido.
Neste momento, o homem delirante começou a gritar; o homem
de uma perna só se levantou de sua cama, como se estivesse se
preparando para uma nova corrida; Teddy chorou de maneira mais
patética do que antes: e se alguma vez já existiu uma mulher no
limite de sua paciência, essa distraída mulher era a enfermeira
Periwinkle, durante dois ou três minutos, enquanto ela vibrava entre
as três camas, como um agitado pêndulo. Dan, o curvado, apareceu
no momento mais oportuno para oferecer reforços, e entrou na
animada festa, me oferecendo a oportunidade de voltar ao meu
posto. O prussiano, com um aceno de cabeça e um sorriso, levou o
rapaz para a sua própria cama e o embalou para dormir com um
murmúrio calmante, como uma abelha gigantesca. Eu gostava disso
em Fritz, e se alguma vez ele se perguntou o porquê das
guloseimas que de vez em quando enfeitavam o seu prato, ou dos
confortos extras da sua cama, ele pode ter encontrado a resposta
para o mistério através do conhecimento de diversas pessoas das
suas ações paternais naquela noite.
Eu mal tinha sentado novamente, e a inevitável tigela apareceu,
e o seu portador proferiu a mensagem que eu esperava, mas temia
receber.
“John está indo, moça, e ele quer te ver, se você puder vir.”
“Quando este menino estiver dormindo; diga a ele. E me avise
caso eu esteja correndo o risco de chegar tarde demais.”
Meu Ganímedes partiu, e enquanto acalmava o pobre Shaw, eu
pensava em John. Ele chegou um ou dois dias depois dos outros; e,
numa tarde, quando eu entrei na minha “sala patética,” encontrei
uma cama que tinha sido desocupada recentemente ocupada agora
por um homem grande, com um rosto bonito e os olhos mais
serenos que eu já vi. Um dos homens que tinha chegado primeiro
tinha falado com frequência de um amigo que tinha ficado para trás,
para que aqueles feridos mais gravemente do que ele pudessem
alcançar abrigo primeiro. Era o tipo de amizade que me fazia pensar
em Davi e Jônatas. O homem se afligia por seu amigo, e nunca
cansava de elogiá-lo — sua coragem, sobriedade, abnegação e
uma bondade infalível; sempre terminando com: “Ele é um sujeito
dos melhores, moça, você vai ver.”
Eu tive um pouco de curiosidade de contemplar este exemplar
de excelência, e quando ele veio, eu o observei por uma noite ou
duas, antes de fazer amizade com ele; pois, para falar a verdade, eu
estava com um pouco de medo daquele homem majestoso, cuja
cama teve que ser alongada para acomodar a sua imponente
estatura; que raramente falava, nunca reclamava, não pedia por
nenhuma simpatia, mas observava com tranquilidade o que
acontecia ao seu redor. E, enquanto ele estava deitado em seus
travesseiros altos, nenhuma imagem de nenhum guerreiro ou
político moribundo esteve mais cheia da verdadeira dignidade do
que a deste ferreiro da Virgínia. Ele tinha um rosto dos mais
atraentes, emoldurado em cabelos e barba castanhos, bem
apresentado e cheio de vigor, ainda não subjugado pela dor;
atencioso e lindamente absorto ao observar a dor dos outros, como
se tivesse esquecido completamente da própria. Sua boca era
solene e firme, com linhas que revelavam bastante determinação e
coragem, mas um sorriso podia fazê-la tão doce quanto uma boca
feminina; e seus olhos eram olhos de criança, que olhavam você
diretamente, com um olhar claro e honesto, que prometia muito a
quem colocava fé nele. Ele parecia se agarrar à vida, como se esta
fosse rica em deveres e prazeres, e ele tivesse aprendido o segredo
da felicidade. A única ocasião em que eu vi a sua compostura ser
abalada, foi quando o meu médico trouxe outro para examiná-lo, e
John escrutinou os rostos deles com um olhar ansioso, e perguntou
ao mais velho: “O senhor acha que eu vou sobreviver?”, “Eu espero
que sim, meu rapaz.” E, quando os dois saíram, os olhos de John os
seguiram, com uma expectativa que teria conseguido uma resposta
mais clara deles, caso eles tivessem visto. Uma sombra temporária
passou pela sua face, e então veio a tranquilidade usual, como se,
durante aquele breve eclipse, ele tivesse reconhecido a existência
de alguma difícil possibilidade e, pedindo por nada, mas esperando
todas as coisas, deixou o assunto nas mãos de Deus, com aquela
submissão que é a verdadeira devoção.
Na noite seguinte, enquanto eu fazia as minhas rondas com o Dr.
P., eu o perguntei qual homem daquela sala provavelmente sofria
mais. Para a minha surpresa, ele olhou para John:
“Cada vez que ele respira é como uma punhalada, pois o projétil
perfurou o pulmão esquerdo, quebrou uma costela e causou mais
algum dano aqui e ali. Então, o pobre rapaz não pode encontrar
esquecimento e nem paz, pois ele precisa deitar com as costas
feridas ou sufocar. Vai ser uma batalha dura e longa, pois ele possui
muita vitalidade; mas mesmo a sua vida temperada não poderá
salvá-lo agora. Eu gostaria que pudesse.”
“Você quer dizer que ele vai morrer, doutor?”
“Minha querida, ele não tem a menor chance. E é melhor você
contar para ele o mais rápido possível. As mulheres têm uma
maneira de fazer esse tipo de coisa confortavelmente, por isso eu
deixo essa tarefa nas suas mãos. Ele não durará mais do que um
dia ou dois, no máximo.”
Eu poderia ter sentado e começado a chorar naquele momento,
se eu não tivesse aprendido a sabedoria de engarrafar as lágrimas
para os momentos de lazer. Tal fim parecia bem inapropriado para
tal homem, quando meia dúzia de corpos inúteis e gastos ao redor
dele estavam reunindo as sobras de vidas desperdiçadas, para
sobreviver por anos talvez, um fardo para os outros, uma censura
diária para si mesmos. O exército precisava de homens como John,
sérios, corajosos e leais; lutando pela liberdade com o coração e
com o braço, verdadeiros soldados do Senhor. Eu não poderia
desistir dele tão cedo, ou pensar com paciência em uma natureza
tão excelente sendo roubada da sua realização e atirada na
eternidade pela estupidez ou imprudência daqueles em cujas mãos
repousa o destino de tantas vidas. Era fácil para o Dr. P. dizer: “Diga
a ele que ele deve morrer,” mas isso era uma coisa extremamente
difícil de se fazer, e de maneira nenhuma “confortável” como ele
polidamente sugeriu. Eu não tinha coragem de fazê-lo então, e
privadamente me entreguei à esperança de que alguma mudança
para o melhor poderia acontecer, apesar das profecias sombrias,
tornando a minha tarefa desnecessária. Alguns minutos depois eu
entrei novamente, com ataduras novas, e vi John sentado ereto,
sem ninguém para suportá-lo, enquanto o médico examinava as
suas costas. Eu nunca vi isso sendo feito novamente, pois, tendo
feridas mais simples para cuidar, e sabendo da fidelidade do
tratador, eu deixei John para ele, pensando que assim poderia ser
mais agradável e seguro; pois tanto força quanto experiência eram
necessárias no caso dele. Eu tinha esquecido que o homem forte
pode sentir falta do zelo gentil de uma mão feminina, do
magnetismo acolhedor da presença de uma mulher, tanto quanto as
almas mais fracas ao seu redor. As palavras do doutor fizeram eu
me acusar de negligência, não de nenhum dever verdadeiro, mas
daqueles pequenos cuidados e gentilezas que confortam espíritos
saudosos, e fazem as longas horas passarem mais facilmente. John
parecia solitário e desconsolado naquele momento, enquanto
sentava com a cabeça curvada, mãos sobre o joelho, e sem
nenhum sinal externo de sofrimento, até que, olhando mais de perto,
eu vi suas lágrimas rolarem e caírem no chão. Foi uma visão nova
para mim, pois, apesar de já ter visto vários homens sofrerem,
alguns praguejavam, alguns gemiam, a maioria aguentava em
silêncio, mas nenhum chorava. Ainda assim não parecia fraqueza,
era apenas comovente. Imediatamente o meu medo desapareceu, o
meu coração abriu-se para ele, e eu segurei a sua cabeça curvada
em meus braços, tão livremente como se ele fosse uma criança
pequena, e disse: “Deixe-me ajudá-lo a suportar, John.”
Nunca, no semblante de nenhum ser humano, eu tinha visto uma
expressão tão bonita de gratidão, surpresa e conforto, como aquele
que me respondeu, de maneira mais eloquente do que o
sussurrado:
“Obrigado, moça. Isso é bom. Era isso que eu queria!”
“Então por que não pediu antes?”
“Eu não queria incomodar. Você parecia ocupada, e eu podia
continuar sozinho.”
“Você não vai mais querer isso, John.”
E ele realmente não queria. Pois agora eu entendi o olhar
melancólico que às vezes me seguia, quando eu saía, depois de
uma breve pausa ao lado de sua cama, ou um mero aceno com a
cabeça, enquanto ocupada com aqueles que pareciam precisar de
mim mais do que ele, por causa da maior urgência em seus
pedidos; agora eu sabia que para ele, como para muitos, eu era a
pobre substituta da mãe, esposa ou irmã, e não uma estranha em
seus olhos, mas uma amiga, que até aquele momento tinha
parecido negligente; pois, em sua modéstia, ele nunca tinha
adivinhado a verdade. Isso tinha mudado agora. E, através da
tediosa operação de examinar, banhar e cobrir suas feridas, ele se
apoiava em mim, segurando firme a minha mão, e, se a dor o fez
derramar mais lágrimas, ninguém mais as viu cair além de mim.
Quando ele foi deitado novamente, eu pairei em volta dele, num
estado de arrependimento que não me deixava descansar, até que
eu banhei a sua face, escovei seus bonitos cabelos castanhos,
amaciei todas as coisas ao seu redor, e botei um galhinho de urze
no seu travesseiro limpo. Enquanto eu fazia isso, ele olhava para
mim com uma expressão satisfeita que eu adorei ver. Quando eu
ofereci o pequeno ramalhete, ele segurou nas suas mãos grandes,
desamassou uma ou duas folhas, inspecionou e cheirou com um ar
de genuína satisfação, e deitou contente, contemplando o reflexo da
luz do sol sobre o verde. Mesmo sendo o mais viril de meus
quarenta homens, ele dizia “Sim, moça” como um garotinho; recebia
sugestões para o seu conforto com o sorriso rápido que iluminava
toda a sua face; e, de vez em quando, enquanto eu arrumava a
mesa ao lado de sua cama, eu o sentia tocar suavemente o meu
vestido, como se quisesse confirmar que eu estava ali. Eu nunca vi
nada tão natural e franco, e eu descobri que esse John era tão
tímido quanto bravo, mas cheio de excelências e nobres aspirações,
as quais, não encontrando nenhuma maneira de se expressar em
palavras, floresceram em seu caráter e fizerem dele o que ele era.
Depois daquela noite, uma hora de cada noite que restava a ele
foi devotada ao seu conforto ou prazer. Ele não podia falar muito,
pois o fôlego era precioso, e ele falava em sussurros; mas através
de conversas ocasionais, eu obtive pequenos detalhes de uma
história privada que só intensificaram a afeição e o respeito que eu
tinha por ele. Uma vez ele me pediu para escrever uma carta, e,
enquanto preparava a caneta e o papel, eu disse com uma
irreprimível curiosidade feminina, “Deve ser endereçada à esposa
ou mãe, John?
“Nenhuma das duas, moça. Eu não sou casado, e vou escrever
para a minha mãe eu mesmo, quando melhorar. Você achou que eu
era casado por causa disso?”, ele perguntou, tocando num anel
simples que ele usava e frequentemente virava no dedo, pensativo,
quando estava sozinho.
“Em parte por causa disso, mas mais por causa de uma certa
aparência resolvida que você tem, uma aparência que os homens
jovens raramente têm até casarem.”
“Eu não sei nada disso. Mas eu não sou tão novo, moça. Trinta
anos em maio. E eu tenho sido o que você pode chamar de
resolvido pelos últimos dez anos. Minha mãe é viúva, eu sou o filho
mais velho que ela tem, e eu não posso casar até que a Lizzy tenha
uma casa, e Laurie tenha aprendido um ofício; pois nós não somos
ricos, e eu preciso ser pai para as crianças e marido para a querida
velhinha, se eu puder.”
“Sem dúvidas você é os dois, John; mas como você acabou indo
para a guerra? Se alistar não era tão ruim quanto casamento?”
“Não, moça, não do meu ponto de vista. Pois em um caso eu
estou ajudando ao próximo, e no outro a mim mesmo. Eu fui para a
guerra porque eu não pude evitar. Eu não queria a glória ou o
dinheiro; eu queria que a coisa certa fosse feita, e as pessoas
continuavam dizendo que aqueles homens que fossem sérios
deveriam lutar. Eu era sério, Deus sabe disso, mas eu adiei o
máximo possível, não sabendo qual era o meu dever; minha mãe
viu o caso, me deu o seu anel para me dar coragem e disse: “Vá”,
então eu fui.”
Uma história curta e simples, mas o homem e a mãe foram
retratados de maneira melhor do que em páginas e páginas de
escrita bonita.
“Você se arrepende de ter vindo, agora que está deitado aqui
sofrendo tanto?”
“Não, moça. Eu não ajudei muito, mas eu mostrei que eu estava
disposto a sacrificar a minha vida, e talvez eu tenha que fazer isso.
Mas eu não culpo ninguém, e se tivesse que fazer tudo de novo, eu
faria. Eu acho uma pena que eu não tenha sido ferido de frente.
Parece covarde ser atingido nas costas, mas eu obedeci às ordens,
e no fim isso não importa, eu sei.”
Pobre John! Não tinha importância agora, exceto que um tiro de
frente poderia ter lhe poupado a longa agonia reservada para ele.
Ele pareceu ler o pensamento que me perturbava, enquanto ele
falava com tanta esperança, pois ele adicionou de repente:
“Esta foi a minha primeira batalha. Eles acham que será a minha
última?”
“Eu temo que sim, John.”
Esta foi a questão mais difícil que eu já tive que responder;
duplamente difícil com aqueles olhos claros fixados em mim
exigindo uma resposta honesta pela sua própria sinceridade. Ele
pareceu um pouco assustado a princípio; ponderou o trágico fato
por um momento e então balançou a cabeça, com um olhar para o
peitoral largo e para os membros musculares esticados em sua
frente:
“Eu não estou com medo, mas é difícil de acreditar. Eu sou tão
forte, e não parece possível que uma ferida tão pequena seja capaz
de me matar.”
As palavras finais do alegre Mercúcio me vieram à mente
enquanto ele falava: “Não é tão fundo quanto um poço, nem tão
largo quanto uma porta de igreja, mas é suficiente.” E John teria dito
a mesma coisa se ele fosse capaz de ver os sinistros buracos
negros entre seus ombros, mas ele nunca pôde. E, olhando para as
horríveis cenas ao seu redor, ele não podia acreditar que a sua
própria ferida fosse mais fatal do que aquelas, mesmo com todo o
sofrimento que lhe causava.
“Devo escrever para a sua mãe agora?” eu perguntei, pensando
a notícia repentina fosse alterar todos os seus planos e propósitos;
mas ela não alterou. O homem recebeu a ordem do comandante
divino para marchar com a mesma obediência incondicional que o
soldado tinha recebido a do comandante humano, sem dúvidas
lembrando que o primeiro o tinha guiado à vida, e o último à morte.
“Não, moça. Para Laurie, do mesmo jeito. Ele dará a notícia
melhor, e eu adicionarei uma linha no final para ela eu mesmo,
quando você tiver terminado.”
Assim, eu escrevi a carta que ele ditou, considerando-a melhor
do que todas que eu já tinha enviado; pois, apesar de ser um pouco
inelegante ou não gramatical aqui e ali, cada sentença vinha a mim
breve, mas bastante expressiva, cheia de excelentes conselhos
para o garoto, carinhosamente passando “Mamãe e Lizzie” para os
seus cuidados, e dando-lhe adeus em palavras tornadas mais tristes
por sua simplicidade. Ele acrescentou algumas linhas, com uma
mão firme e, enquanto eu selava a carta, com um suspiro paciente,
“Eu espero que a resposta venha a tempo de eu vê-la,” então,
virando o rosto, colocou as flores na frente dos lábios, como se para
esconder algum estremecimento de emoção diante de uma
separação tão súbita de todos os queridos laços com a família.
Essas coisas tinham acontecido dois dias atrás; agora John
estava morrendo, e a carta não tinha chegado. Eu já tinha sido
chamada para vários leitos de morte, mas nenhum tinha me
causado tanta dor quanto eu sentia naquele momento, desde que a
minha mãe tinha me chamado para assistir à partida de um espírito
aparentado a este em sua gentileza e força paciente. Quando eu
entrei, John estendeu ambas as mãos:
“Eu sabia que você viria! Acho que eu estou partindo, moça.”
Ele estava. E tão rapidamente que, mesmo enquanto ele falava,
eu via cair o véu cinza que nenhuma mão humana pode levantar. Eu
me sentei ao seu lado, sequei as gotas de suor em sua testa,
abanei-o suavemente com um leque, e esperei para ajudá-lo a
morrer. Ele estava em extrema necessidade de ajuda — e eu podia
fazer tão pouco. Como o médico tinha previsto, o corpo forte se
rebelava contra a morte e lutava a cada centímetro do caminho,
forçando-o a respirar com um espasmo e cerrar suas mãos
firmemente com um olhar suplicante, enquanto perguntava: “Por
quanto tempo devo suportar isso e ficar parado?” Por horas ele
sofreu em silêncio, sem um momento de descanso, ou um momento
de murmúrio; seus membros foram ficando frios, sua face úmida,
seus lábios brancos, e várias vezes ele removeu a coberta que
cobria seu peito, como se o mínimo peso acrescentasse a sua
agonia. Mesmo assim, por tudo isso, seus olhos nunca perderam
sua perfeita serenidade, e a alma do homem parecia residir ali,
inabalada por todos os males que afligiam a sua carne.
Um por um, os homens acordaram, e ao redor da sala apareceu
um círculo de rostos pálidos e olhos atentos, cheios de admiração e
pena; pois, apesar de ser um estranho, John era amado por todos.
Cada homem ali tinha se maravilhado com a sua paciência,
respeitado sua devoção, admirado sua força, e agora lamentava a
sua morte: pois a influência de uma natureza correta tinha sido
sentida profundamente, mesmo em apenas uma semana. Em pouco
tempo, o Jônatas que tanto amava o seu bonito Davi, veio
arrastando-se de sua cama para um último olhar e uma última
palavra. A pobre alma estava cheia de angústia, como sua voz
embargada, ou o aperto de sua mão revelavam; mas não houve
lágrimas, e a despedida dos amigos foi ainda mais emocionante por
sua brevidade.
“Como vai, velho amigo?”, disse um, vacilante.
“Quase acabado, graças a Deus!”, sussurrou o outro.
“Posso dizer ou fazer qualquer coisa para você em qualquer
lugar?”
“Leve as minhas coisas para casa e diga que eu dei o meu
melhor.”
“Eu irei! Eu irei!”
“Adeus, Ned.”
“Adeus, John, adeus!”
Os dois se beijaram, tão ternamente como mulheres, e assim se
separaram, pois o pobre Ned não podia ficar para ver o seu
companheiro morrer. Por algum tempo, não houve som nenhum no
quarto além do gotejar da água e dos angustiantes suspiros de
John, enquanto sua vida se esvaía lentamente a cada respiração.
Eu achei que ele estava quase no fim, e tinha acabado de abaixar o
leque, acreditando que sua ajuda não era mais necessária, quando
subitamente ele se levantou de sua cama e deu um grito amargo
que quebrou o silêncio, assustando a todos com seu apelo
agonizante:
“Pelo amor de Deus, me dê ar!”
Foi o único grito que a dor ou a morte tiraram dele, o único favor
que ele tinha pedido; e nenhum de nós poderia concedê-lo, e todo o
ar que soprava agora era inútil. Dan escancarou a janela. A primeira
faixa vermelha do alvorecer estava aquecendo o cinzento leste,
anunciando a chegada do sol. John viu, e com o amor pela luz que
permanece em nós até o fim, pareceu ler nela um sinal de ajuda,
pois, por toda a sua face formou-se aquela misteriosa expressão,
mais brilhante do que qualquer sorriso, que frequentemente surge
nos olhos que veem pela última vez. Ele se deitou gentilmente; e,
esticando o seu forte braço direito, como se para agarrar aquele
abençoado ar e trazê-lo para os seus lábios num fluxo maior, caiu
numa misericordiosa inconsciência, que nos garantiu que o seu
sofrimento tinha passado. Ele morreu então; pois, apesar de a sua
respiração pesada continuar irrompendo até a superfície por mais
algum tempo, eram apenas as ondas de uma maré baixa batendo
sem serem sentidas contra os destroços que um viajante imortal
tinha desertado com um sorriso. Ele não falou novamente, mas
segurou a minha mão firme até o fim, tão firme que quando ele
estava finalmente dormindo, eu não consegui retirá-la. Dan me
ajudou, me avisando enquanto o fazia que era perigoso que carne
viva e morta ficassem em contato por tanto tempo. Mas, apesar de a
minha mão estar estranhamente gelada e rígida, e quatro marcas
brancas permanecessem atrás dela, quando o calor e a cor já
tinham retornado em outros lugares, eu estava apenas feliz que,
através do seu toque, a presença do calor humano tenha, de
alguma forma, aliviado aquela hora difícil.
Quando eles o tinham preparado para a sepultura, John foi
velado por meia hora, algo que raramente acontecia naquele lugar
ocupado; mas um sentimento universal de reverência e afeição
parecia encher os corações de todos que o conheciam ou tinham
ouvido falar dele; e quando o rumor de sua morte atravessou a
casa, sempre agitada, vários vieram para vê-lo, e eu senti um tenro
orgulho de meu paciente perdido; pois ele parecia incrivelmente
heroico, deitado ali, imóvel e majestoso, como a estátua de algum
jovem cavaleiro adormecido em seu túmulo. A linda expressão que
frequentemente embeleza a face dos mortos logo substituiu as
marcas da dor, e eu desejava que aqueles que mais o amavam
pudessem vê-lo quando meia hora de contato com a Morte os tinha
tornado amigos. Enquanto nós estávamos olhando para ele, o chefe
da enfermaria me entregou uma carta, dizendo que ela tinha sido
esquecida na noite anterior. Era a carta de John, chegando apenas
uma hora atrasada para alegrar os olhos que ansiavam por ela tão
intensamente. Mas ele a teve; pois, depois de cortar algumas
mechas castanhas para a sua mãe e retirar o anel para enviá-la,
dizendo quão bem o talismã tinha executado o seu trabalho, eu
beijei esse bom filho em nome dela, e coloquei a carta em sua mão,
ainda fechada como quando eu tirei a minha, sentindo que o lugar
dela era ali, e me fazendo feliz com a ideia de que, mesmo na sua
posição solitária no “lote do governo”, ele não estaria sem uma
lembrança do amor que torna a vida bonita e sobrevive a morte.
Então, eu o deixei, feliz de ter conhecido um homem tão genuíno, e
carregando comigo a memória duradoura do bravo ferreiro de
Virgínia, enquanto ele deitava serenamente esperando pelo
alvorecer daquele longo dia que não conhece a noite.
Capítulo V
Fora de Serviço

“Minha querida, você ficará doente, a não ser que se mantenha


aquecida e quieta na sua cama por alguns dias. A viúva Wadman
pode cuidar da enfermaria sozinha, agora que os homens estão tão
confortáveis, e tirar as férias dela quando você voltar. Agora, seja
prudente e não me obrigue a adicionar uma Periwinkle ao meu
buquê de pacientes.”
Esse conselho foi dado, num tom paternal, pelo médico mais
novo do hospital, um bondoso cavalheiro, que parecia me
considerar uma frágil jovem florzinha, que precisava de muita
estima, ao invés de uma dura solteirona, que tinha vagado pelo
mundo por trinta anos. No tempo sobre o qual eu escrevo, ele me
descobriu sentada na escada, com uma bela nuvem de uma fumaça
insalubre saindo do banheiro; uma festa de brisas de janeiro se
divertindo nos corredores; e perfumes, que não eram de modo
algum da “abençoada Arábia”, fazendo-lhes companhia; enquanto
eu sofria um acesso de tosse, que fez a minha cabeça girar de uma
maneira que a aplicação de um corrimão gelado se fez necessária e
agradável, enquanto eu esperava os ventos brincalhões restaurarem
o ar que eu tinha perdido; me animando, enquanto isso, com a
convicção secreta de que pneumonia me esperava dentro de pouco
tempo. Esse conselho tinha sido oferecido por várias pessoas por
uma semana, e rejeitado por mim com a obstinação com a qual o
meu sexo é tão abundantemente dotado. Mas as últimas horas
trouxeram vários surpreendentes fenômenos internos e externos,
que me convenceram do fato de que, se eu não fizesse uma retirada
logo, eu iria tombar em algum canto, e teria que ser carregada de
maneira ignominiosa do campo. Minha cabeça parecia uma bala de
canhão; meus pés tinham uma tendência de aderir ao chão; as
paredes ondulavam às vezes da maneira mais desagradável; as
pessoas pareciam anormalmente grandes; e os próprios frascos nas
prateleiras pareciam dançar sarcasticamente diante de meus olhos.
Levando estas coisas em consideração, enquanto piscava
estupidamente para o Dr. Z., eu decidi me retirar graciosamente, já
que eu devia. Assim, com uma palavra de despedida aos meus
meninos, uma conversa particular com a Sra. Wadman, e um desejo
fervente de poder abandonar o meu corpo e trabalhar com a minha
alma, eu subi pesarosamente para o meu quarto, e a enfermeira
Periwinkle estava oficialmente fora de serviço.
Para o benefício de qualquer donzela fervorosa, cujas
tendências patrióticas tenham cercado a vida de hospital numa
auréola de charmes, eu descreverei brevemente a cabana para a
qual eu me retirei, numa condição um tanto quanto ruinosa. Era bem
ventilada, pois cinco vidraças tinham sofrido uma combinação de
fraturas, que todos os médicos e enfermeiras tinham falhado em
curar; as duas janelas estavam cobertas com lençóis, pois o hospital
da igreja em frente era um Argos de tijolo e argamassa, e a mente
feminina tem uma preferência pela privacidade durante os períodos
noturnos da existência. Um chão sem pisos sustentava duas camas
de ferro estreitas, alongadas com colchões finos como esparadrapo,
equipada com travesseiros no último estágio de decomposição.
Numa lareira, livre de pás, pinças, ferros ou grelhas, queimava uma
tora, de centímetro em centímetro, sendo muito longa para queimar
toda de uma vez. Assim, enquanto o fogo ardia numa ponta, eu
fazia o mesmo na outra, enquanto eu tropeçava nela dez vezes por
dia, e levantava para cutucá-la dez vezes durante a noite. Um
espelho (sejamos elegantes!) das dimensões de um bolinho e tão
reflexivo quanto um, estava pendurado sobre uma bacia de lata, um
jarro azul e um par de canecas amarelas. Duas mesas inválidas,
cadeiras no mesmo estado, vagavam por aqui e por ali, e o armário
continha uma variada coleção de gorros, frascos, sacos, botas, pão
e manteiga, caixas e insetos. O armário parecia pertencer ao Barba-
Azul para mim. Eu sempre o abria tremendo de medo, por causa
dos ratos, e o fechava com o espírito angustiado; pois tempo e
espaço não eram respeitados, e o caos reinava junto com os ratos.
Nossa chaminé era decorada com um ferro de passar, uma Bíblia,
uma vela sem castiçal, um frasco de lavanda, uma panela de lata
nova, tão brilhante que servia perfeitamente como espelho de
parede, e uma variedade de grandes insetos pretos que preferia um
clima mais quente do que o lixo oferecia. Duas arcas, ou baús,
espreitavam atrás da porta, contendo os bens terrenos das duas
que sorriam e choravam, dormiam e lutavam, neste refúgio.
Enquanto das paredes brancas acima de cada cama, olhavam para
baixo as imagens daqueles cuja memória pode nos fazer:
“Um pequeno quarto em qualquer lugar.”
Por um dia ou dois eu consegui aparecer durante as refeições;
pois a lagarta humana precisa comer até que a borboleta esteja
pronta para sair, e ninguém tinha tempo de subir até o meu quarto
enquanto eu podia descer. Longe de mim acrescentar mais uma
aflição àquele sólido homem, o zelador; pois, comparado com seu
predecessor, ele era uma cornucópia. Mas — eu coloco isso para
qualquer mente sincera —, não pode o seguinte menu ser
melhorado, sem afundar a nação em dívidas? As três refeições
eram “uma verdadeira fartura”, e consistiam em carne de boi,
evidentemente abatido para os homens de 1876; carne de porco,
fresquinho da estrada; pão do exército, composto de serragem e
bicarbonato de sódio; manteiga, salgada como se tivesse sido
batida pela esposa de Ló; amoras cozidas, tão parecidas com
baratas, que apenas aqueles sem imaginação poderiam saboreá-las
com satisfação; café, fraco e com aspecto de lama; chá, três folhas
secas de mirtilo para um litro de água — temperada com limão —
fervente e sem nada que lembrasse clareza. Variedade sendo o
tempero da vida, uma pequena pitada do artigo teria sido apreciada
pela faminta e trabalhadora irmandade, uma das quais, apesar de
estar acostumada à comida simples, logo se viu reduzida a pão e
água; tendo uma aversão inata à fartura e ao sal da terra.
Outra peculiaridade dessas refeições de hospital era a
velocidade com que os alimentos desapareciam, e a impossibilidade
de conseguir alguma migalha depois do horário usual. Ao tocar do
sino, ocorria uma debandada geral; umas vinte almas famintas
corriam para a sala de jantar e varriam a mesa como um enxame de
gafanhotos, sem deixar nenhum fragmento para qualquer criatura
lenta que chegasse quinze minutos atrasada. Pensando ser mais
importante que meus pacientes fossem bem alimentados, eu não
me preocupei em chegar cedo para a minha própria refeição por um
ou dois dias depois de ter chegado, mas fui rapidamente iluminada
por Isaac, o garçom negro, que me aguentou algumas vezes e
então me informou, sério como o Destino:
“Eu vou te dizer uma coisa, moça, se você continuar chegando
atrasada não vai conseguir comer nada. Eu tenho que arrumar a
mesa para os doutores assim que vocês enfermeiras e os homens
tiverem terminado. Os cavalheiros não vão te esperar, muito menos
eu, então você pode fazer o favor de chegar na hora, e ninguém vai
ter problema.”
Era uma sensação nova ficar de pé olhando para uma mesa
cheia, dolorosamente consciente daquele vácuo que a Natureza
abomina, e receber ordens para dar meia volta, sem tomar parte da
nutrição que a sua mulher interior exige desesperadamente. Os
médicos sempre comiam melhor do que nós; e, por um momento,
um impulso desesperado quase me levou a lhes dar uma dica,
fugindo com o carneiro, ou confiscando a torta. Mas os olhos de Ike
estavam sobre mim e, para a minha vergonha, eu saí docilmente.
Saí sem jantar naquele dia; e, naquela noite, fui ao mercado,
armazenei um pequeno estoque de biscoitos, queijo e maçãs, para
que meus meninos não fossem negligenciados, e eu não sofresse
dispepsia, nem morresse de fome. Esse plano teria funcionado
admiravelmente bem, se não fosse pela estrela maligna sob a qual
eu nasci estar ascendente naquele mês, lançando sua influência
perversa sobre a minha humilde despensa. Para começar os ratos
comeram o meu queijo de sobremesa, os insetos se estabeleceram
no meu saco de biscoitos, e as maçãs, como todas as riquezas
mundanas, adquiriram asas e voaram; para onde ninguém podia
dizer, apesar de que alguns negrinhos poderiam dar alguma luz ao
assunto, se a parte queixosa não estivesse relutante em adicionar
mais um aos muitos julgamentos da sofredora África. Depois dessa
falha, eu me resignei ao destino e, lembrando que pão é o esteio da
vida, passei a depender unicamente dele; mas esse plano também
se mostrou imperfeito, e eu fui ao chão depois de algumas semanas
de comida de prisão, variando com a ocasional batata ou gole de
leite escondido.
Logo depois de ter deixado a minha enfermaria, eu descobri que
tinha perdido o apetite, e praticamente cortei os interesses
alimentícios, no lugar deles experimentando a cura pelo exercício e
pelo sol. Dizendo a mim mesma que eu tinha bastante tempo, e que
eu poderia ver tudo que pudesse ser visto por uma mulher sozinha
se aventurando pela cidade na qual metade da população masculina
parecia estar levando a outra metade para a prisão militar, — toda
manhã eu dava uma corrida rápida em uma direção ou outra; pois
os dias de janeiro estavam tão amenos como se fosse primavera.
Um agradável vento do Norte e uma ocasional tempestade de neve
teriam sido mais do meu gosto, pois um fortaleceria e restauraria
corpo e a alma cansados, e a outra purificaria o ar e espalharia uma
límpida coberta sobre a cama na qual a capital dos Estados Unidos
parecia estar dormindo bem profundamente no momento.
Uma das viagens que eu fiz foi até o Hospital do Arsenal, cuja
limpeza, conforto e conveniência faziam dele uma honra para o
gênio que o dirigia, e provocavam a cobiça das enfermeiras de
outros hospitais que vinham visitá-lo.
As alas longas, quentes, limpas e bem ventiladas, construídas
como um quartel, com o quarto da enfermeira no final, foram
plenamente apreciadas pela enfermeira Periwinkle, cuja enfermaria
e caramanchão particular eram frios, sujos, inconvenientes, no
andar de cima e de baixo, e no caminho de todo mundo. Na
enfermaria K do Arsenal, eu encontrei uma alegre pequena dama de
olhos brilhantes, vestindo um avental branco, e descansando em
seu posto próximo ao fogão; um tapete sob seus pés; uma corrente
de ar fresco fluindo sobre a sua cabeça; uma mesa cheia de
bandejas, copos e coisas do gênero, de um lado; um grande e bem
abastecido armário de medicamentos do outro; e todo o seu dever
parecia consistir em, uma vez ou outra, sair dando doses, emitindo
ordens que ajudantes bem treinados executavam, ou afagando,
aconselhando ou confortando Tom, Dick ou Harry da melhor
maneira possível. Enquanto eu assistia aos procedimentos, eu
lembrei de minhas próprias tribulações e contrastei os dois hospitais
de uma maneira que teria causado a minha demissão sumária, se
pudesse ser reportada ao quartel general. Aqui, ordem, método,
senso comum e liberalidade reinavam, num estilo que aquecia o
coração de quem visse; no Hotel Hurly Burly, desordem,
desconforto, má administração e nenhuma liderança visível
reduziam as coisas a uma condição que me desespera ter que
descrever. O estilo de circunlóquio prevalecia, formulários e
confusões atormentavam nossas almas, e o rigor desnecessário em
uma área era balanceado com uma imperdoável negligência em
outra. Aqui está um exemplo: eu estou fazendo um curativo no
ombro de Sam Dammer; tendo limpado a ferida, olho em volta em
busca de tiras de esparadrapo para segurar o pequeno quadrado de
tecido molhado que deve cobrir a ferida de bala; a caixa não está na
bandeja; Frank, o atendente dorminhoco e meio doente, não sabe
nada a respeito; Sam está cansado e fumegando de raiva; Frank
boceja e não faz nada de útil; os homens dão conselhos e riem da
confusão; eu me sinto como uma chaleira em ebulição, com a tampa
pronta para voar e machucar alguém.
“Vá pegar um pouco emprestado da outra ala, e passe o resto do
dia procurando o nosso”, eu comando finalmente. Uma pausa; e
então Frank volta com a seguinte mensagem: “A Srta. Peppercorn
não tem nenhum, e disse que não é para você sair perdendo o seu
e ficar pedindo emprestado dos outros.” Eu não digo nada, por
medo de falar demais, mas saio voando para o dispensário. O Sr.
Toddypestle me informa que eu não posso pegar nada sem uma
ordem do médico da minha enfermaria. Santo Deus! Onde ele está?
E eu saio correndo, para cima e para baixo, para lá e para cá, até
que, por fim, eu o encontro num estado de êxtase sobre uma
amputação complicada, no quarto andar. Eu faço o meu pedido; ele
responde: “Em cinco minutos,” e continua o seu trabalho, com a
cabeça curvada para baixo, enquanto amarra uma artéria, serra um
osso, ou faz um pequeno trabalho de costura, com uma satisfação
visível, e um par de mãos bem sanguinário. Os cinco minutos se
transformam em quinze, e Frank aparece, observando que:
“Dammer quer saber por que raios você deixou ele lá com o dedo
num pano molhado?” O Dr. P. se afasta por tempo suficiente para
rabiscar uma ordem, com a qual eu desço para o dispensário
novamente, encontro a porta fechada e, enquanto eu a martelo, sou
informada de que dois amigos meus estão me esperando no salão.
Como a enfermeira-chefe não está, sua sala se encontra fechada, e
não há nenhum lugar para receber meus convidados além do meu
próprio quarto, nem tempo para apreciá-los até que o esparadrapo
fosse encontrado. Eu resolvo este assunto e dou algumas voltas
pela casa para encontrar Toddypestle, que não deveria deixar a sala
de cirurgias até a noite. Encontro-o no necrotério, fumando um
cigarro e bem pior devido as suas explorações pelos preparados
alcoólicos das prateleiras do dispensário. Ele está inclinado a ser
galante e dá o sopro final no fogo da minha ira; a tampa da chaleira
voa, e, levando-o até o seu posto, eu arremesso a ordem, pego o
que eu quero e parto, deixando o absurdo incapaz beijando a sua
própria mão para mim.
Dammer, quando o encontro, decide fazer jus ao nome, e eu
tenho que reprimir um desejo de selar sua boca suja com o
esparadrapo. Assim que eu termino, Frank pega a sua bota para
vestir e exclama:
“Olha se não é a caixa de esparadrapos! Eu lembro de ter visto
ela essa manhã, mas tinha esquecido até o meu calcanhar bater
nela. Aqui está, madame. Pegue isso e dê quantas enroladas você
quiser nos meninos. Cuidado pra ela não cair em outra bota.”
Se um olhar pudesse aniquilar, Francis Saucebex teria deixado
de existir; mas ele não pode, portanto ele continua vivo, atazanando
a alma de alguma mulher infeliz e acumulando gordura.
Agora, já que eu estou desabafando, eu gostaria de registrar o
meu protesto contra a prática de colocar convalescentes como
ajudantes, ao invés de homens fortes, animados e propriamente
treinados. Como é em outros lugares eu não posso dizer; mas aqui
era uma constante fonte de problemas e confusão, esses homens
fracos e ignorantes tentando varrer, esfregar, levantar e auxiliar seus
colegas feridos. Um, com problemas de coração, precisava subir e
descer escadas, carregar bandejas pesadas e carregar homens
desamparados. Ele tentou, e ficou rapidamente em pior estado do
que quando tinha chegado. E assim, quando foi comandado a
marchar até o hospital convalescente, teve uma espécie de ataque e
caiu antes de virar a esquina, e foi trazido de volta para morrer.
Outro, ferido ao cair do cavalo, tentava fazer o seu dever, mas
falhava miseravelmente, e a fúria do chefe da enfermaria caía sobre
a enfermeira, que deveria esfregar as salas ela mesma, ou levar a
bronca no lugar dele; pois o garoto parecia forte e bem, e o chefe da
enfermaria nunca o via tornar-se branco com a dor, ou gemer
durante o sono quando um movimento involuntário machucava a
sua pobre coluna. Reclamações constantes eram feitas sobre os
ajudantes incompetentes, e uma dúzia de mulheres trabalhava
dobrado, e eram culpadas quando caíam. Se qualquer diretor de
hospital acha que isso é um arranjo bom e econômico, permita que
esta enfermeira esgotada lhe diga que não, e implore que ele poupe
suas irmãs, que às vezes, em sua simpatia, esquecem-se de que
são mortais, e correm o risco de se tornarem imortais antes do
tempo para seus amigos.
Outra das minhas caminhadas me levou à Câmara do Senado,
esperando ver se as coisas no mecanismo maior eram
administradas melhor do que nos menores que eu conhecia. Eu
cheguei atrasada e encontrei a cadeira do Presidente ocupada por
um cavalheiro negro de uns dez anos de idade, ao mesmo tempo
em que outros dois estavam de pé tendo um caloroso debate sobre
a questão da bola de pipoca, enquanto recolhiam o papel espalhado
pelo chão e colocavam em sacos; e vários dos membros brancos
brincavam de pular carniça sobre as mesas, uma forma de
relaxamento muito mais saudável do que aquele que alguns dos
Senadores mais velhos praticam, na minha opinião. Vendo que a
costa estava limpa, eu também pulei para cima e para baixo, de
galeria em galeria, sentei na cadeira de Sumner, acertei um Brooks
imaginário a pauladas; examinei os livros de Wilson da maneira
mais fria possível; aqueci meus pés em um dos registros nacionais;
li o nome de pessoas em envelopes espalhados, e guardei no bolso
um autógrafo ou dois; assisti os procedimentos não muito
parlamentares ocorrendo ao meu redor, me perguntando quem
seriam os indivíduos sérios que continuavam saindo de portas
avulsas aqui e ali, como respeitáveis Jacks-in-the-box. Então eu
passeei pela “residência palaciana” da Senhora Columbia e
examinei suas muitas belezas, mas eu não posso dizer que ela era
uma boa dona de casa, e eu não compartilhava o seu gosto em
imagens, pois os olhos deste humilde indivíduo logo se cansaram de
ver patriotas expirados, que pareciam todos ter deixado seus
tabernáculos terrenos em convulsões, camisas amarrotadas, e um
turbilhão de bandeiras rasgadas, explosivos, e com os braços e
pernas azuis ou amarelos. O estatuário também era massivo e
concreto, mas tremendamente cansativo de examinar; pois as
damas e cavalheiros colossais não carregavam nenhuma nota de
introdução na face ou figura; então, se o sujeito meditativo num kilt,
com pernas bem desenvolvidas, calçados parecendo chinelos do
exército, e um enorme nariz, era Colombo, Cato ou Cockelorum
Tibby, o escritor de tragédias, eu não podia dizer. Várias damas
robustas me atraíram, pois eu me sentia um pouco roliça também,
como algumas velhas do interior poderiam dizer; mas qual era
América e qual era Pocahontas era um mistério, pois todas
apresentavam um traje bastante folgado, cabelos desalinhados,
espadas, flechas, lanças, balanças e outros ornamentos bem fora
de moda entre as mulheres de hoje, cujas efígies entrarão para a
história armadas com leques, agulhas de crochê, chicotes de
equitação e sombrinhas, com uma aqui e ali segurando uma caneta
ou lápis, rolo de massa ou vassoura. A Estátua da Liberdade eu
reconheci imediatamente, pois ela não tinha nenhum pedestal ainda,
mas estava diretamente na lama, e a Jovem América fazia tortas de
terra e fortes com lascas de madeira de maneira bastante simbólica
à sua sombra. Mas bem acima das disputas e planos insignificantes
dessa pequena multidão, o sol brilhava diretamente na ampla testa
da Liberdade, e, em sua mão, algum pássaro de verão tinha feito
um ninho. Eu aceitei o bom presságio naquele momento, e no dia
primeiro de janeiro, o Ato de Emancipação deu à estátua um mais
nobre e duradouro pedestal do que qualquer mármore ou granito
extraído e esculpido por mãos humanas.
Uma viagem para Georgetown Heights, onde os cedros
suspiravam por cima das cabeças, folhas mortas farfalhavam sob os
pés, caminhos agradáveis levavam para cima e para baixo, um
riacho serpenteava como uma serpente de prata pelas ruínas
escurecidas da casa de algum Pastor Francês, através dos pobres
jardins das lavadeiras negras que se reuniam ali, e, passando pelo
cemitério com uma murmurosa canção de ninar, continuava o seu
percurso até pagar o seu humilde tributo ao rio. Essa amena corrida
foi a última que eu fiz; pois, no dia seguinte, veio a chuva e o vento.
E o confinamento logo se provou um poderoso reforço ao inimigo,
que estava calmamente se preparando para detonar uma mina e me
explodir quinhentas milhas da posição que eu tinha tomado no que
eu chamava de meu Pântano Querido.
Trancada no meu quarto, sem nenhuma voz, espírito ou livro,
aquela semana não foi nenhum feriado. Considerando refeições um
embuste, eu parei com elas completamente, confiando que, se este
pardal tivesse qualquer valor, o Senhor não o deixaria cair. Como
um bando de corvos amigáveis, minhas irmãs enfermeiras me
alimentavam, não apenas com comida para o corpo, mas com
palavras gentis para a mente. E logo, de quase morta de fome, eu
me encontrava agora tão bem servida e cheia de mimos, que eu me
considerava no ápice da opulência, apesar da tosse, da dor de
cabeça, da dolorosa consciência da minha pleura, e de uma clara
percepção da existência de ossos no corpo humano. Da agradável
casa na colina, a casa no coração de Washington, e Caravançarai
de Willard, vinham amigos novos e antigos, carregando cestos,
garrafas, carruagens e convites para a inválida; e diariamente,
nossa Florence Nightingale subia os degraus íngremes, separando
um momento de sua ocupada vida para ajudar uma estranha, para
quem ela era tão atenciosamente carinhosa como uma mãe. Que
ela viva por muito tempo! O que quer que as outras pessoas
pensem ou digam, a enfermeira Periwinkle estará para sempre
grata; e entre suas relíquias daquela derrota em Washington,
nenhuma é mais valiosa do que o pequeno livro que apareceu em
seu travesseiro num dia triste; pois o D.D. escrito nele significa bem
mais para ela do que Doutor da Divindade.
Proibida de lidar com braços e pernas de carne e osso, eu me
consolei consertando uns de algodão, e, enquanto costurava diante
da janela, assistia ao panorama que se passava abaixo; me
divertindo e tomando notas das figuras mais surpreendentes.
Longos trens do exército mantinham um perpétuo ronco da manhã
até a noite; ambulâncias chacoalhavam para um lado e para o outro
com médicos ocupados, enfermeiras tomando ar, ou convalescentes
sendo levados em grupos para serem encaixados em membros
artificiais. Filas de cavalos em péssimo estado passavam, dizendo o
mais claramente possível para criaturas tão estúpidas: “Como, numa
cidade tão cheia de nós, não há nenhum hospital de cavalos?”
Carroças com vários caixões passavam frequentemente sem
nenhuma pessoa de luto acompanhando. Caleches com oficiais
inválidos viravam a esquina, seguidos por carruagens cheias de
crianças bonitas, com cocheiros, empregadas e criados negros. As
mulheres que saíam para suas caminhadas estavam tão
esmagadas sob seus gorros de três andares, com sacadas de flores
suspensas, que seus charmes eram obscurecidos; tudo que eu
posso dizer sobre elas é que se vestiam com o pior gosto possível e
andavam como patos.
Os homens contribuíam para o pitoresco e o faziam tão bem que
Washington parecia um gigantesco baile de máscaras. Chapéus
espanhóis, capas para cavalgar forradas de vermelho, espadas e
faixas, botas altas e esporas brilhantes, barbas e bigodes, que
faziam rostos sem graça se tornarem bonitos, e rostos bonitos se
tornarem heroicos; essas vaidades da carne transformavam nossos
açougueiros, padeiros e fabricantes de velas em galantes cavaleiros
de cavalos alegremente enfeitados, muito mais bonitos do que eles;
e dúzias dessas figuras estavam constantemente galopando pela
área, dando ocasionais picadas com suas esporas, para o benefício
do canteiro de flores. Alguns desses cavalheiros vestiam uniformes
dolorosamente apertados, e pequenos bonés, mantidos no lugar por
alguma nova lei da gravitação, pois eles cobriam apenas a ponta do
nariz, mas mesmo assim nunca caíam. Os homens pareciam aves
empalhadas e cavalgavam como se a segurança da nação
dependesse unicamente de sua velocidade. Os oficiais mais gordos
e velhos eram os que se vestiam mais e cavalgavam de maneira
imponente, com ordenanças atrás, tentando agir como se não
conhecessem o robusto indivíduo à frente, e caracolando bastante
por conta própria.
As mulas me encantavam especialmente; e uma hora de estudo
de uma constante sucessão delas me introduziu a muitas de suas
características; pois seis dessas estranhas criaturas puxavam cada
carroça do exército, e pulavam como sapos através dos rios de lama
que corriam gentilmente pela rua. A mula sedutora tinha pés
pequenos, uma cauda bem aparada, orelhas de pé e era bastante
inclinada a virar a cabeça subitamente e a trotar de maneira afetada;
se ela tivesse sinos, ou estivesse adornada com qualquer tipo de
enfeite, se exibia como qualquer beldade. A mula moral era uma
criatura robusta e trabalhadeira, sempre puxando com toda a sua
força, mesmo quando as outras já haviam parado, trabalhando sob
a ilusão de que a comida para o exército inteiro dependia
unicamente de seus esforços. Eu respeitava esse tipo de mula e se
eu tivesse um repolho suculento em minhas mãos, eu o teria dado a
ela, como agradecimento pelo seu excelente exemplo. A mula
histérica era um quadrúpede melodramático, que tinha a tendência
de assustar a humanidade com saltos erráticos e mergulhos
selvagens, muitas sacudidas de sua cabeça teimosa, e coices de
suas patas perversas; de vez em quando ela caía no chão, como se
tivesse morrido ao estilo Forrest: uma arfada — uma contorção —
um desmaio, e assim por diante, até que a rua estivesse totalmente
bloqueada, os condutores xingando como demônios em chapéus
ruins, e a circulação do ator principal fosse decididamente
apressada por todo tipo de chute, bofetada, sacudida e puxão.
Quando ela parecia ter dado o último suspiro, e os médicos
pareciam ter sido chamados em vão, uma súbita ressurreição
acontecia; e se alguma vez uma mula já sorriu em triunfo
zombeteiro, foi esse animal, enquanto levantava sem nenhuma
pressa, dava uma sacudida confortável e então, encarando a
excitada plateia calmamente, parecia dizer: “Um sucesso! Um
verdadeiro sucesso! O animal mais estúpido conseguiu tapear uma
dúzia de homens. Agora, por que está todo mudo parado travando o
caminho?” A mula patética era talvez a mais interessante de todas;
pois, apesar de parecer ser sempre a menor, mais magra e mais
fraca das seis, o postilhão, com suas grandes botas, casaco de
cauda longa e pesado chicote, sempre montava essa, que se
esforçava com a cabeça baixa, corpo sujo de lama, olhos tristes e
sem vida, sua cauda um coto mortificado, e o animal todo um retrato
da miséria mansa, capaz de tocar até mesmo um coração de pedra.
A mula jovial era uma coisinha rechonchuda e despreocupada,
tratando tudo com calma, de carinhos a cacetadas; andando com
um brilho maroto nos olhos e, se fosse possível, teria colocado as
mãos no bolso e assoviado enquanto passava. Se calhasse de
haver uma maça meio comida, um nabo perdido, ou um tufo de feno
na sarjeta, esse Mark Tapley era o primeiro a encontrar, e nenhum
de seus companheiros invejava sua mordida. Eu suspeitava que
esse indivíduo era o apaziguador, amigo e confidente de todos os
outros, pois ele tinha uma aparência de “Se-anime-velho-amigo-que-
eu-vou-te-ajudar” que era extremamente cativante.
Porcos também me atraíam, já que eu nunca tinha tido a
oportunidade de observar suas graças de espírito e comportamento,
até que eu vim para Washington e observei que seus cidadãos
suínos tinham mais liberdades do que os humanos. Porcos robustos
e calmos passavam depressa toda manhã para seus lugares de
trabalho, com um ar preocupado e cumprimentando seus amigos
sonoramente. Porcos refinados, com uma ondulação extra na
cauda, passeavam em pares, lanchando aqui e ali, como
cavalheiros aproveitando a vida. Porcos desordeiros empurravam os
transeuntes para fora da calçada; porcos embriagados arrotavam a
sua versão de “Não vou voltar para casa até de manhã”, da sarjeta;
porcos jovens saltitavam delicadamente pela lama, como se, assim
como a “Sra. Peerybingle”, eles tivessem orgulho de seu tornozelo e
não quisessem sujar as meias. Porcos maternais, com suas
interessantes famílias, caminhavam pelo sol, e com frequência os
porquinhos rosados que pareciam bebês se deitavam para uma
soneca, com uma confiança na Providência que deveria ser imitada
pelos humanos.
Mas mais interessante do que os oficiais, damas, mulas ou
porcos, eram meus irmãos e irmãs de cor, tão diferentes dos
respeitáveis membros da sociedade que eu tinha conhecido na
moral Boston.
Aqui estava o artigo genuíno — não, não o artigo genuíno de
verdade; é preciso ir à África para ver esse — mas o tipo de
criaturas que gerações de escravidão os transformaram:
obsequiosos, espertos, preguiçosos e ignorantes, mas também
bondosos, alegres, rápidos para sentir e aceitar o menor gesto do
amor fraternal que está ensinando lentamente a mão branca a
apertar a negra, nesta grande luta pela liberdade de ambas as
raças.
Eu fui aconselhada a não ser muito excessiva no assunto da
escravidão, pois doutrinas separatistas prosperavam mesmo
debaixo do respeitável nariz do Pai Abraham. Assim, eu me esforcei
para ser discreta, observando tudo ao meu redor atentamente e
guardando o resultado dessas observações para uso futuro. Eu
estava lá há menos de uma semana, quando a expressão
negligenciada e irresponsável das faces ao meu redor começou a
parecer um apelo urgente para deixar o cuidado dos corpos brancos
e começar a ocupar-se dessas almas negras. Por mais que aqueles
meninos preguiçosos e garotas atrevidas me atormentassem, eu
gostava deles, e descobri que a menor demonstração de interesse
ou amabilidade fazia emergir os melhores traços que estão
presentes nos mais degradados e desamparados de nós. Eu
apreciava a sua alegria, pois mesmo o mais triste velho, que
passava o dia inteiro esfregando o chão naquela névoa pestilenta,
sorria e fofocava ao sair, quando a noite o livrava da labuta. As
garotas brincavam com seus namorados morenos, ou jogavam seus
bebês, com o terno orgulho que faz o amor materno embelezar a
mais feia das faces. Os homens e os garotos assoviavam o dia
inteiro; e frequentemente, enquanto eu fazia a minha vigília, o
silêncio da noite era docemente quebrado por algum coro na rua,
cheio de melodia de verdade, quer a música fosse sobre o Paraíso
ou sobre pão de fubá. Enquanto ouvia, eu sentia que nós não
devíamos nunca duvidar ou nos desesperar com uma raça que,
mesmo com todas as injustiças e incertezas, ainda se agarra a este
dom, e parece usá-lo para consolar os corações pacientes que
esperam e assistem com esperança até o fim.
Eu esperava ter que me defender de acusações de preconceito
contra a cor, mas surpreendentemente o oposto aconteceu, e eu
diariamente chocava algum vizinho ao tratar os negros da mesma
forma que eu tratava os brancos. Os homens xingariam, colocariam
dois “g” na palavra “negro” e zombariam da ideia de qualquer coisa
boa vindo de tal lixo. As enfermeiras estavam dispostas a serem
servidas pelas pessoas de cor, mas raramente agradeciam, nunca
os elogiavam e mal os reconheciam na rua. Enquanto que o sangue
de duas gerações de abolicionistas queimava em minhas veias e se
proclamava na primeira oportunidade e afirmava o direito da
liberdade de expressão tão obstinadamente como a própria Folsom.
Quando eu peguei um engraçado bebê negro, que estava
engatinhando pela cozinha das enfermeiras um dia em que eu tinha
descido para fazer alguma coisa para algum de meus homens, uma
mulher de Virgínia que estava de pé ali disse, com uma fungada de
desaprovação:
“Minha querida, Srta. P., como você pôde? Eu estou aqui há seis
meses e nunca sequer toquei o sapo com uma vara.”
“Vergonha sua, senhora,” respondeu a Srta. P., e com a
perversidade natural de uma ianque, seguiu o golpe beijando “o
sapo” com ardor. Seu rosto estava providencialmente limpo e
brilhante como se a mamãe tivesse acabado de esfregá-lo com a
ponta do seu avental e uma gota de água da chaleira, como a velha
Tia Chloe. Esse ato imprudente, e o discurso anti-escravidão que eu
dei em seguida, enquanto uma mão misturava o mingau para a
América doente e a outra abraçava o bebê África, não produziram o
alegre resultado que eu esperava; pois minha colega passou a me
considerar uma perigosa fanática daquele ponto em diante, e o meu
protegido quase morreu por insistir em subir as escadas para o meu
quarto, em todas as ocasiões, e sendo pisoteado como uma
pequena aranha negra.
Eu esperei pelo dia de Ano Novo com mais ansiedade do que
nunca em minha vida; e, apesar de ele não me trazer nenhum
presente, eu me senti rica no ato de justiça tão tardiamente
executada para algumas das pessoas ao meu redor. Quando os
sinos anunciaram a meia noite, eu eletrifiquei minha companheira de
quarto ao dançar para fora da cama, escancarando a janela e
balançando o meu lenço com um fraco grito de encorajamento, em
resposta ao grito de um grupo de homens de cor na rua abaixo. A
noite inteira eles apitaram e dançaram, fizeram biscoitos, cantaram
“Glória, aleluia”, e se confortaram da sua própria maneira, as pobres
almas. O céu estava limpo, a lua brilhava benignamente, um vento
suave soprava sobre o rio, e todos os bons presságios pareciam
anunciar o dia cujo amanhecer não poderia estar tão longe. Se as
pessoas de cor tivessem pegado faixas e dançado ao redor da Casa
Branca, com alguns gritos para o cavalheiro que se imortalizou com
apenas um ato, nenhum presidente poderia ter uma melhor
assembleia, ou uma mais digna de orgulho.
Enquanto esses sons e visões ocorriam do lado de fora, curiosas
cenas aconteciam do lado de dentro, e eu estava descobrindo que
um dos melhores métodos de se adaptar como enfermeira de um
hospital é virar paciente; pois essa é a única maneira de entender o
que os homens sofrem e por que eles suspiram; como atos de
bondade comovem e vencem; quanto realmente significamos para
aqueles ao nosso redor; e ver pela primeira vez que indo para lá nós
realmente pegamos nossas vidas em nossas mãos, e talvez
tenhamos que pagar caro pela breve experiência. Todos foram muito
gentis; os atendentes da minha enfermaria vinham sempre reportar
o progresso, abastecer minha caixa de madeira, ou me trazer
mensagens e presentes dos meus meninos. As enfermeiras deram
muitos passos com aqueles pés cansados delas, e várias vinham
todas as tardes para conversar na frente do meu fogo e deixar as
coisas confortáveis para mim durante a noite. Os médicos faziam
visitas diárias, davam tapinhas nos meus pulmões para ver se havia
pneumonia lá dentro, deixavam doses de remédios sem nome e
saíam, me deixando mais ignorante e muito mais desconfortável, do
que antes de eles virem. Horas começaram a ficar confusas; as
pessoas pareciam estranhas; faces bizarras assombravam o quarto,
e as noites eram uma longa luta contra a dor e o cansaço. Cartas de
casa cresciam em preocupação; os médicos levantavam as
sobrancelhas de maneira sinistra; amigos diziam: “Não fique”, e uma
rebelião interna reforçava o conselho. Mas os três meses ainda não
tinham terminado, e desistir tão cedo era proclamar derrota antes do
tempo; então, para todos os “Não fiques” eu me opus com “Ficarei”,
até que, numa bela manhã, um cavalheiro de cabeça grisalha
apareceu como um fantasma bem-vindo na minha frente; e, ao vê-
lo, minha determinação desapareceu, meu coração traiu os meus
meninos, e, quando ele disse “Venha para casa”, eu respondi “Sim,
pai”; e assim terminou a minha carreira como enfermeira do
exército.
Eu nunca me arrependerei de minha ida, mesmo que a minha
luta contra a febre tifoide, dez dólares e uma peruca sejam os
únicos resultados visíveis do experimento; pois pode-se viver e
aprender muito em um mês. Um bom ataque de alguma
enfermidade prova o valor da saúde; perigo real é um bom teste de
coragem; e sacrifício de si mesmo adoça o caráter. Que ninguém
sinceramente interessado em ajudar o próximo desanime por medo
do que pode acontecer; pois o valor da vida reside nas experiências
que a preenchem, e esta é uma que não pode ser esquecida. E tudo
de melhor e mais corajoso nos corações de homens e mulheres
vem à luz em cenas como estas; e, apesar de um hospital ser uma
escola difícil, suas lições são tanto severas quanto salutares; e o
pupilo mais humilde, em proporção a sua lealdade, adquire uma fé
mais profunda em Deus e em si mesmo. Eu retornaria amanhã
mesmo, no princípio de “sacudir a poeira e entrar no jogo
novamente”, se eu pudesse; pois a quantidade de prazer e proveito
que eu tirei daquele mês mais do que compensa as dores
posteriores. E, perdão pelo sentimento feminino, mas me causa uma
certa satisfação a ideia de que, apesar de não ter deitado a minha
cabeça no altar do meu país, eu deixei o meu cabelo; e isso é mais
do que a bonita Helena fez pelo seu marido morto, quando ela
sacrificou apenas a ponta de suas mechas para a sua urna.
Portanto, eu fecho esta pequena coleção de histórias de hospital
com o arrependimento de que elas não foram mais dignas de serem
registradas; e acrescento o pequeno poema com o qual eu me
consolo pela morte da “Enfermeira Periwinkle”:

Oh, coloquem-na numa pequena cova,


Coberta com uma pedra de mármore,
E grave nela uma colher de mingau,
Para mostrar a enfermeira que morreu cedo demais.
Capítulo VI
Pós-escrito

Querida Sra. S. — Perguntas como as suas foram feitas por vários


leitores simpáticos dos meus Esboços. Assim, eu responderei a elas
en masse, na forma de um adendo ao que veio antes. Uma dessas
perguntas foi: “Não havia serviços religiosos nos leitos de morte, ou
aos domingos?”
Na maioria dos hospitais, eu espero que sim; no nosso, os
homens morriam e eram carregados, com tão pouca cerimônia
quanto no campo de batalha. O primeiro evento desse tipo que eu
testemunhei foi tão rápido e tão sem nada que se assemelhasse à
reverência, tristeza, ou consolação piedosa, que eu tive que
concordar ardentemente com a opinião francamente expressa de
um residente de Maine, deitado ao lado de seu companheiro, que
morreu sem nenhuma ajuda visível perto de si, com exceção de
uma mulher compassiva e de um irlandês de bom coração, que caiu
de joelhos para rezar, com um fervor católico, pela alma de seu
irmão protestante:
“Se, depois de tudo que passamos, somos deixados para morrer
desse jeito, sem nada além das rezas de Paddy para nos ajudar,
acho que cristãos são uma raça rara em Washington.”
Eu concordei. Mas a Srta. Blank, uma de minhas amigas,
preocupada que as almas fossem assistidas, tanto quanto o corpo,
falou mais de uma vez com o capelão, sem nenhum resultado.
Diferente de outro pastor, cuja devoção sincera purificava a Câmara
do Senado toda semana, esse homem não alimentava e abraçava
seu rebanho, nem fazia de si mesmo o símbolo do Bom Samaritano,
que nunca passa pelo outro lado.
Eu descobri depois que o nosso evasivo capelão tinha sido um
professor em alguma faculdade sulista; e apesar de ele insistir que
não possuía nenhuma inclinação separatista, eu posso testemunhar
que ele se separou de suas responsabilidades ministeriais, ou
salvou-se delas, para usar suas próprias palavras, que são tão
apropriadas quanto inelegantes. Ele lia Emerson, citava Carlyle, e
tentou ser um capelão; mas, julgando pelo seu sucesso, eu temo
que ele ainda ansiava pelos potes de canjica da rebeldia.
Ocasionalmente, num Domingo à tarde, as enfermeiras, os
oficiais, os ajudantes e os pacientes que podiam se reuniam no
salão para uma hora de serviço religioso, do qual o canto era a
melhor parte. Se alguma vez palavras fortes, sábias e afetuosas
foram necessárias, foi ali; se algum mortal já teve provas vivas
diante de seus olhos para ilustrar e iluminar seu pensamento, foi ali;
e se alguma vez corações foram levados à mais devota abnegação,
foi no trabalho que nos levava a tudo menos à Capela da Facilidade.
Mas alguma paralisia espiritual parecia ter acometido nosso pastor;
pois, embora várias faces se voltassem em sua direção, cheias da
fome muda que frequentemente atinge os homens quando o
sofrimento ou o perigo os trazem mais próximos do coração das
coisas, eles eram oferecidos apenas as cascas da divindade,
enquanto o trigo era deixado para os observadores menos
necessitados, que sabiam onde procurar. Até mesmo as excelentes
velhas histórias bíblicas, que podem ser tão realistas quanto
qualquer história do nosso tempo por uma imaginação viva e dicção
pictórica, eram roubadas de todos os seus charmes por explicações
secas e aplicações literais, ao invés de serem lições úteis e
agradáveis àqueles homens, cuja debilidade tinha rendido tão
dóceis como crianças nas mãos do pai.
Eu observava o semblante apático daqueles ao meu redor,
enquanto um brando Daniel moralizava num covil de leões
absolutamente desinteressantes; enquanto Hananias, Misael e
Azarias passavam vagarosamente pela fornalha ardente, onde
alguns de nós desejavam que eles tivessem ficado
permanentemente; enquanto o Templo de Salomão era
laboriosamente erigido, com descrições minuciosas do processo, e
da quantidade se sinos e romãs nas vestimentas dos clérigos. Eles
estavam apáticos no começo e apáticos no final; mas no instante
em que um velho hino inspirador começava, olhos sonolentos
brilhavam, figuras relaxadas sentavam eretas, e vários jovens
coitados se levantavam em suas camas, ou esticavam uma mão
ansiosa para o livro, enquanto todos irrompiam com uma energia
que provava que em algum lugar no coração até mesmo do mais
abandonado, ainda ardia algum vestígio daquela devoção inata que
flui na música do coração de cada criança pequena. Até o grande
rebelde participou, e explodiu numa voz grave e estrondosa,
cantando: “Salvação! Deixe os ecos voarem,” tão energeticamente
como se ele precisasse que o comando fosse executado
rapidamente.
Aquele era o momento mais agradável da hora, pois então o
lugar parecia alegre e familiar. Os grupos de homens olhando sobre
os ombros uns dos outros enquanto cantavam; as poucas figuras
silenciosas nas camas; aqui e ali uma mulher desempenhando
alguma função necessária silenciosamente e cantando enquanto
trabalha; enquanto eu colocava mentalmente na poltrona situada no
meio, para a minha própria satisfação, a imagem de um certo pastor
fiel, que tomava todos os párias pelo braço, golpeava o demônio
qualquer fosse seu disfarce e confortava os pobres em espírito com
a sabedoria de um coração grande e terno, que ainda fala conosco
de seu túmulo italiano. Com essa adição, a minha imagem estava
completa; e eu sempre tive vontade de fazer um rascunho autêntico
de um domingo no hospital, pois, a despeito de todos os
inconvenientes, que consistiam em trabalho contínuo, falta de livros
adequados, uma pregação estéril que não produzia nenhum fruto,
este dia nunca era como os outros seis.
Fiéis à sua educação, nossos meninos da Nova Inglaterra
fizeram o seu melhor para fazer dele o que deveria ser. Com vários,
havia bastante leitura dos testamentos, cantarolar dos hinos
favoritos, e olhar para livros sortidos que podiam ser conseguidos da
biblioteca. Alguns ficavam ociosos, dormiam ou fofocavam; mesmo
assim, quando eu me aproximava para uma conversa tranquila no
fim da tarde, eles falavam abertamente e muito bem de si mesmos;
expressariam uma esperança tímida de que seus problemas façam
bem para eles e lhes dê firmeza; ficariam com a voz meio
embargada ao dizer boa noite e virar a cabeça para a parede
pensando numa mãe, esposa ou casa, essas ligações humanas
parecendo ser a religião mais vital que eles conheciam. Eu observei
que alguns deles não vestiam seus chapéus nesse dia, apesar de
em outros momentos se agarrarem a eles como quakers, vestindo-
os na cama, colocando-os para ler o jornal, comer uma maçã, ou
escrever uma carta, como uma nova espécie de Sansão, sua força
residindo não nos seus cabelos, mas em seus chapéus. Muitos não
liam romances, praguejavam menos, eram mais silenciosos,
ordenados e animados, como se Deus fosse um encarregado
invisível que aparecia uma vez por semana e tinha que encontrar
tudo no seu melhor. Eu gostava de tudo isso nos pobres meninos, e
poderia até ter abaixado a minha esponja e bule de chá para pregar
um pequeno sermão ali mesmo, enquanto a tristeza e saudade de
casa amoleciam suas naturezas, de modo que alguma boa semente
pudesse ser plantada ali, para florescer e dar frutos agora ou mais
tarde.
Sobre a admissão de amigos para cuidar dos seus doentes, eu
só posso dizer que isso não era aceito no Hospital Hurlyburly. Mas
uma vez uma mãe indomável tomou a minha enfermaria de assalto,
e manteve a sua posição, apesar dos esforços dos médicos, da
enfermeira-chefe e da enfermeira Periwinkle. Apesar de ser contra
as regras, apesar de a culpada ser uma mulher ácida e fria, apesar
de que o jovem teria se saído tão bem sem a sua agitada
interferência, e a sala inteira estaria bem mais confortável, havia
algo de irresistível em sua persistente devoção, que ninguém tinha
coragem de expulsá-la de seu posto. Ela dormia no chão, sem se
queixar; tolerava piadas das mais rudes; comia muito pouco, apesar
de seu cesto estar sempre cheio de guloseimas para o seu menino;
e cuidava daquele personagem petulante com uma paciência
infalível que era bonita de se ver.
Eu sinto um brilho de retidão moral ao dizer isso dela; pois,
apesar de ser um perfeito pelicano para o seu filho, ela picava e
cacarejava (eu não sei se pelicanos costumam expressar suas
emoções dessa maneira) da maneira mais descontrolada, quando
outros invadiam suas premissas; e me fez levar uma vida
tremendamente exaustiva, com os “biscoitos do George”, a “bacia
para lavar os pés do George”, o “sarampo do George”, e a “mãe do
George”; até que, depois de uma conversa incisiva com a
enfermeira-chefe, ela empacotou iradamente as suas coisas, seu
filho e a si mesma, e partiu, carrancuda até o final.
Este é o lado cômico da coisa. O lado sério é mais difícil de
descrever; pois a presença, mesmo breve, de amigos e parentes no
leito dos mortos ou moribundos é sempre uma provação para os
observadores. Eles não estão próximos o suficiente para saber a
melhor maneira de confortar, mas estão próximos demais para virar
as costas para o pesar que só encontra consolo ouvindo a repetição
das últimas palavras, suspiradas nos ouvidos da enfermeira, ou
recebendo os carinhosos legados de amor e saudade transmitidos
por elas.
Para mim, a visão mais triste que eu testemunhei naquele lugar
foi a de um pai grisalho, sentado hora após hora ao lado de seu
filho, morrendo pelo veneno de sua ferida. O velho pai, robusto e
caloroso; o filho, sem esperança de ajuda, apesar de ser difícil de
acreditar; pois a sutil febre que exauria suas forças dava um rubor
às suas bochechas, enchia seus olhos de brilho, dando uma
imagem zombeteira de saúde ao rosto e ao corpo, tornando o pobre
rapaz mais bonito na morte do que na vida. Seu leito não estava na
minha ala, mas eu entrava e saía com frequência, e, por um dia ou
dois, o par ficou bastante junto, dizendo pouco, mas olhando muito.
O velho senhor tentava se ocupar com um livro ou caneta, para que
a sua presença não fosse um fardo; e uma vez, quando ele se
sentou para escrever, para a angustiada mãe em casa com certeza,
eu vi os olhos do filho fixos em sua face, com uma expressão de
resignação misturada com pesar, como se estivesse se esforçando
para aprender a dar o longo adeus alegremente. E assim que o filho
dormiu, o pai o assistiu, como tinha sido assistido antes; e mesmo
que nenhum traço de seu sério semblante tenha se alterado, a mão
áspera alisando a mecha de cabelo sobre o travesseiro, a atitude
curvada da cabeça grisalha, eram mais patéticas do que a mais alta
das lamentações. O filho morreu; e o pai levou para casa a relíquia
pálida da vida que ele deu, oferecendo um pouco de dinheiro para a
enfermeira, como a única forma de retribuição em seu poder; pois,
apesar de estar bastante grato, ele era pobre. Obviamente ela não
aceitou, mas foi mais recompensada pela sincera declaração do
homem:
“Meu garoto não poderia ter sido mais bem cuidado se estivesse
em casa; que Deus lhe pague, pois eu não posso.”
Minhas próprias experiências desse tipo começaram quando o
meu primeiro homem morreu. Ele mal tinha sido retirado, quando
sua esposa entrou. Seus olhos foram diretamente para a bem
conhecida cama; ela estava vazia. E sentindo, apesar de ainda não
acreditar na dura realidade, ela gritou, com uma expressão que eu
nunca esquecerei:
“Onde está o Emanuel?”
Eu nunca a tinha visto antes, não sabia qual era a sua relação
com o homem que eu só tinha cuidado por um dia, e estava prestes
a dizer-lhe que ele tinha morrido, quando McGee, o irlandês de bom
coração mencionado anteriormente, passou por mim com um
animado:
“Ele foi para uma cama melhor, Sra. Connel. Venha, minha
querida, eu vou lhe mostrar”, e levando-a pelo braço, ele a guiou até
a enfermeira-chefe, que deu a triste notícia para a esposa e
confortou a viúva.
Outro dia, subindo correndo para o meu quarto para respirar um
pouco de ar fresco e descansar por cinco minutos após uma tarefa
desagradável, eu encontrei uma corpulenta jovem sentada na minha
cama, apresentando a expressão miserável que eu já tinha
aprendido a reconhecer. Vendo-a eu lembrei que eu tinha ouvido
falar que um homem que tinha morrido durante a noite e que sua
irmã tinha chegado pela manhã. Deve ser ela, eu pensei. Eu tinha
pena dela, com todo o meu coração. O que eu poderia dizer ou
fazer? Palavras sempre parecem impertinentes em tais momentos;
eu não conhecia o homem; a mulher não era nem interessante em si
mesma, nem graciosa em seu luto; ainda assim, tendo também
passado pelo luto de irmã, eu não podia deixá-la sozinha em sua
dor naquele lugar estranho, sem dizer uma palavra. Então, me
sentindo abatida, com saudade de casa, e sem saber o que mais eu
podia fazer, eu coloquei os meus braços em volta dela e comecei a
chorar sincera e intensamente; pois, como eu raramente me entrego
a este luxo úmido, quando eu o faço, eu gosto de desfrutá-lo com
todas as minhas forças.
Felizmente, eu não podia ter feito nada melhor, pois, apesar de
nenhuma palavra ter sido proferida, cada uma sentiu a compaixão
da outra; e, em silêncio, nossos lencinhos foram mais eloquentes do
que palavras. Ela logo começou a soluçar baixo. E eu voltei para o
trabalho, deixando-a em minha cama, e me sentindo revigorada pelo
banho, apesar de ter esquecido de descansar, e lavado o rosto ao
invés das mãos. Eu menciono esse experimento bem sucedido
como uma receita, testada e aprovada, para o uso de qualquer
enfermeira que tenha que cuidar dessas feridas do coração. Elas
perceberão que ela é mais eficaz do que copos de chá, sais
perfumados, salmos ou sermões; pois um toque carinhoso e um
choro em companhia unem os consolos de todo o resto para o sexo
feminino. E, se genuíno, será a cura suprema para a primeira
pontada de dor que tantos sofrem nesses tempos difíceis.
Eu fico feliz em saber que o meu pequeno sargento achou graça
em tantos lugares e respondo com prazer aos diversos pedidos de
notícias dele, mas o meu conhecimento pessoal terminou cinco
meses atrás. Ao lado do meu querido John — eu espero que a
grama esteja verde acima dele, tão distante lá em Virgínia! — eu
coloquei o meu sargento na lista de meninos dignos, e aproveitei
várias conversas joviais com o alegre rapaz, que tinha um gosto por
diversão, quando seu pobre braço estava sendo tratado. Enquanto o
Dr. P. cutucava e amarrava, eu penteava o que tinha restado da juba
castanha do sargento — tosado dolorosamente contra a sua
vontade — e fofocava com todas as minhas forças, enquanto ele
fazia caretas, exclamações e apelos, quando o nervosismo
superava a bobagem, como frequentemente acontecia.
“Eu prefiro rir do que chorar quando eu sei que vou gritar de
qualquer maneira, então conte aquela do Dickens novamente, que
eu vou aguentar como um homem.” E foi o que ele fez. A “Sra.
Cluppins”, “Chadband” e “Sam Weller” sempre o ajudavam, me
fazendo deixar outra oferenda de amor e admiração no templo do
deus da minha idolatria, apesar de ele já usar muitas joias e falar
gírias.
O sargento também originou, acredito eu, o hábito de chamar
seus vizinhos pelas suas aflições em vez de seus nomes; e eu fiquei
bastante chocada ao vê-los trocar comentários desse tipo, em
perfeito bom humor e aproveitando bastante o novo jogo.
“Oh, o Espasmos saiu novamente!” “Como está, Reumatismo?”
“Quer trocar maçãs, Costela?” “Srta. P., será que eu posso dar um
gole disso para o Tifo?” “Olhe aqui, Sem Dedos, empreste um selo,
esse sim é um bom rapaz!” etc. Ele próprio foi batizado “Bebê B.”,
pois ele cuidava de seu braço em um pequeno travesseiro, e o
chamava de seu bebê.
O sargento B. também era bastante exigente na hora de comer,
e muitas idas e vindas de assistentes eram necessárias durante a
sua refeição. Nunca vi nada mais irresistivelmente bajulador, e eu
constantemente me via fazendo as suas vontades, como uma mãe
excessivamente tolerante, meramente pelo prazer de ver os seus
olhos castanhos brilharem, seus lábios se abrirem num sorriso, e
sua única mão executar uma energética saudação que era
absolutamente cativante. Eu temo que a enfermeira P. tenha ferido a
sua dignidade, fazendo travessuras com esse persuasivo
cavalheiro, mas foi tudo pelo seu bem. Mas “meninos serão
meninos” é perfeitamente aplicável neste caso; pois, apesar da
idade, sexo, e da doutrina puritana pronta para o nosso uso, eu
tenho um sentimento de camaradagem com os rapazes e sempre
guardei um certo rancor contra o Destino por não ter me feito um
senhor da criação ao invés de uma dama.
Desde que eu saí, eu ouvi de uma fonte confiável, que o meu
sargento foi para casa. Portanto, o pequeno romance que brotou
quando eu o vi, desabrochou em seu segundo capítulo. E agora eu
imagino a “querida Jane” ocupando o meu lugar, tratando das
feridas que eu tratei, escovando a selva encaracolada que eu
escovei, amando o excelente pequeno rapaz que eu amei e
eventualmente caminhando na direção do altar, com o sargento
mancando galantemente ao seu lado. Se ela não fizer tudo isso e
mais, eu nunca a perdoarei. Eu sinceramente rezo ao santo
padroeiro dos amantes, para que o “Bebê B.” possa ter sucesso em
sua corte, e que seu nome persista na terra.
Um dos episódios mais animados da vida de hospital era a
frequente marcha daqueles que estavam bons o suficiente para
voltar aos seus regimentos, ou ir para algum acampamento para
convalescentes. O chefe da enfermaria vai para a porta de cada
quarto que deve ser reduzido, lê uma lista de nomes, comanda que
seus donos se arrumem e estejam prontos ao serem chamados.
Depois que ele desaparece, os quartos entram num indescritível
estado de desordem, enquanto os garotos começam a limpar suas
botas, clarear suas esporas, se eles tiverem, inspecionar suas
mochilas, fazer presentes, serem equipados com itens necessários,
e — por que não? — beijados de vez em quando, ao dizer adeus;
pois, em toda probabilidade, nunca nos veríamos de novo, e o
coração da mulher se apega a qualquer coisa que se agarra a ela
em busca de ajuda e conforto. Eu nunca gostei dessas separações
da minha pequena família; apesar de só ter passado por três na
minha curta estadia. Eu fiquei profundamente satisfeita com os
apertos de mão, pois a sua cordialidade um tanto dolorosa me
assegurava que eu não tinha me esforçado em vão. O grande
prussiano emitiu o seu grave e ininteligível adeus, com uma
expressão grata e um alisar premonitório de seu bigode amarelo,
mas não foi além disso, pois outra pessoa entrou na sua frente, com
uma grande mão morena estendida, e esta recomendação do nosso
muito falho estabelecimento:
“Estamos partindo, moça, e eu estou muito triste, pois não sabia
que o hospital era um lugar tão divertido. Espero levar outro tiro em
algum lugar mais fácil, para eu poder voltar aqui e ser tratado
novamente. Não é uma boa ideia?”
Eu não achava, mas pregar a doutrina da tranquilidade inglória
não era correto, então eu tentei parecer chocada, falhei, e me
consolei dando a ele a grande almofada de alfinetes que ele tinha
admirado como a “coisinha mais bonita”. Então, eles formaram uma
fila na frente do hospital, alguns deles parecendo bastante pálidos e
abatidos, mas tentando sair elegantemente e marchar em ordem,
apesar de metade das mochilas serem carregadas pelos guardas, e
vários se apoiarem em bengalas ao invés de portar suas armas.
Todos olhavam para cima e sorriam, ou acenavam e tocavam em
seus bonés, ao passar na frente de nossas janelas pela longa rua, e
assim partiam, alguns para suas casas neste mundo, e alguns para
as do próximo; e durante o resto do dia eu me sentia como Raquel
de luto pelas suas crianças, quando eu via as camas vazias e sentia
falta das faces familiares.
Você quer saber se as enfermeiras são obrigadas a assistir às
amputações e coisas do tipo, como parte de suas obrigações? Eu
acredito que não, a não ser que elas queiram; pois o paciente está
sob os efeitos do éter e não precisa de nenhum cuidado além
daquele que os cirurgiões podem oferecer. Nosso trabalho começa
depois, quando a pobre alma acorda, doente, fraca e perdida; cheia
de visões confusas, de sensações e imagens desagradáveis. É
então que devemos acalmar e sustentar, tender e observar;
pregando e praticando paciência, até que o sono e a prática tenham
restaurado a coragem e o auto controle.
Eu assisti a várias operações; pois o meu objetivo no começo
era ir para a linha de frente depois da batalha, e achei que quanto
antes eu me habituasse com as imagens difíceis, mais útil eu seria.
Várias das minhas colegas evitavam esse tipo de coisa; pois, apesar
da vontade do espírito, a carne era inconvenientemente fraca. Uma
senhora fúnebre apareceu com a intenção de testar seus talentos
como enfermeira. Mas, após uma breve conversa, da qual foram
extraídas as informações de que ela desmaiava ao ver sangue,
tinha medo de fazer vigília sozinha, não podia cuidar de pessoas
delirantes de maneira nenhuma, tinha pavor de infecções e não
suportava muita fadiga, ela foi polidamente dispensada. Eu espero
que ela tenha encontrado a sua área, mas imagino que uma
caixinha no alto de uma prateleira atenderia melhor às suas
exigências.
O Dr. Z sugeriu que eu assistisse uma dissecação, mas eu
nunca aceitei seus convites, acreditando que os meus nervos
pertenciam aos vivos e não aos mortos, e que eu devia terminar a
minha educação como enfermeira primeiro, antes de começar a de
cirurgiã. Mas eu nunca vi o homenzinho saltitando pelo corredor
com caixas estranhas na mão, e uma expressão absorvida, sem ter
certeza de que um grupo seleto de cirurgiões estava trabalhando no
necrotério, uma imagem bastante perturbadora, principalmente
quando eu sabia que o sujeito que o sujeito era uma das pessoas de
quem eu tinha cuidado.
Mas isso não deve fazer ninguém supor que os médicos eram
propositalmente frios ou cruéis, apesar de que um deles me contou,
com remorsos, que ele temia que a sua profissão tivesse diminuído
sua sensibilidade e, talvez, o tornado indiferente à visão do
sofrimento.
Eu estou inclinada a acreditar que algumas vezes ela realmente
o faz; pois, apesar de ser um homem bondoso e um médico
competente, o Dr. P., através de uma longa familiarização com os
males aos quais a carne é sujeita, adquiriu o desagradável hábito de
tratar o homem e suas feridas como entidades separadas, e parecia
se irritar bastante caso o primeiro demonstrasse qualquer opinião
sobre as últimas, ou reivindicasse qualquer direito sobre elas,
enquanto estivesse sob seus cuidados. Ele tinha uma maneira de
puxar a bandagem, ou de dar um tipo de aperto geral nos membros,
que, enquanto sem dúvidas completamente científico, era mais
assustador do que tranquilizador e totalmente questionável como
meio de preparar os nervos para qualquer nova provação. Ele
também esperava que o paciente ajudasse em pequenas
operações, como ele as chamava, e reprimisse qualquer
demonstração durante o processo.
“Aqui, camarada, segure aqui, enquanto eu dou uma olhada”, ele
disse um dia para Fitz G., deixando um braço machucado sob o
controle de um sadio, e continuando a cutucar entre pedaços de
ossos e músculos visíveis, num abismo verde e vermelho feito por
alguma máquina infernal da categoria dos projéteis ou granadas. O
coitado do Fitz se segurou o máximo que pôde, com vergonha de
demonstrar medo na frente de uma mulher, até que a dor ficou pior
do que ele podia suportar em silêncio e, depois de alguns gemidos
abafados, ele olhou para mim com uma expressão suplicante, como
se dissesse, “Eu não faria isso, moça, se eu pudesse evitar”, e
desmaiou.
O Dr. P. deu uma espécie de cacarejo de compaixão, e continuou
cutucando, mais ocupado do que nunca, com um aceno para mim e
um breve — “Não faz mal; faça o favor de segurar isso até eu
terminar.”
Eu obedeci, o tempo todo acalentando o forte desejo de
introduzir algumas de suas próprias facas e tesouras desagradáveis
dentro dele para ver se ele gostava. Uma ideia ridícula e
desrespeitosa, claro; pois ele estava fazendo tudo o que podia, e o
braço prosperou muito bem em suas mãos. Mas a mente humana é
propensa ao preconceito; e, apesar de ser um homem agradável,
falando francês como um verdadeiro “Parley voo”, e arrancando
pernas como uma animada guilhotina, devo confessar que eu me
senti aliviada quando ele foi mandado para outro lugar; e eu
suspeito que vários dos homens encarariam uma bateria do exército
rebelde com menos trepidação do que eles encaravam o Dr. P.,
quando ele entrava energeticamente durante a sua ronda da manhã.
Como se para nos dar o prazer do contraste, quem o substituiu
foi o Dr. Z, que parecia sofrer mais ao causar dor do que os seus
pacientes sofriam ao suportá-la; pois ele sempre parava para
perguntar: “Está sentindo alguma dor?” e, vendo a sua solicitude, os
rapazes invariavelmente respondiam: “Não muita. Vá em frente,
doutor”, apesar de que os lábios que proferiam esta nobre mentira
frequentemente estavam brancos de dor enquanto falavam. Durante
o processo de fazer alguns dos curativos, nós costumávamos
conversar sobre assuntos alheios ao trabalho, para que o paciente
se distraísse nos charmes de nosso discurso. A véspera de Natal foi
passada dessa maneira; o doutor enfaixando o braço do jovem
sargento, eu segurando a luz, enquanto todos os três riam e
conversavam, como se estivéssemos em qualquer lugar, menos
numa enfermaria de hospital; exceto quando a conversa era
interrompida por um prolongado ”Ohh!” do “Bebê B.”, um pedido
abrupto do doutor para “Segurar a lâmpada um pouco mais alto, por
favor”, ou um encorajador “Quase acabando, sargento”, da
enfermeira P.
Eu fiquei sabendo que o Cirurgião Chefe, o Dr. O., recusou um
salário maior, maior reconhecimento, e menos trabalho, de uma
designação para o Hospital de Oficiais, virando a esquina, para que
ele pudesse servir aos pobres companheiros na Casa Hurlyburly, ou
ir para a linha de frente, trabalhando ali dia e noite, entre os horrores
que sucediam as glórias da batalha. Eu gostei tanto disso que
passei a admirar especialmente o quieto doutor de olhos castanhos;
e quando chegava o meu turno, tinha mais fé nele do que em todos
os outros juntos, apesar de que ele me aconselhou a ir para a casa
e autorizou o consumo de pílulas azuis.
Falar dos médicos me lembra que, tendo encontrado toda
espécie de defeito, é justo que eu celebre uma característica
positiva da Casa Hurlyburly. Eu tinha sido preparada pelo relato de
muitos a esperar muita humilhação dos médicos, e a ser tratada
como um capacho, verme, ou qualquer outra criatura mansa ou
insignificante, cuja missão é ser colocada para baixo e andada por
cima; enfermeiras sendo consideradas meras servas, recebendo o
menor pagamento e, na minha opinião, fazendo o mais difícil dos
trabalhos de qualquer parte do exército, com exceção das mulas.
Grande, então, foi a minha surpresa, ao ser tratada com a maior
cortesia e gentileza. Logo a minha mansidão cuidadosamente
preparada foi colocada na prateleira, e, passando de um extremo ao
outro, eu mais de uma vez expressei uma diferença de opinião a
respeito das várias porcarias que eu tinha o dever de administrar.
Como oito de nós enfermeiras ficamos de folga ao mesmo
tempo, tivemos uma excelente oportunidade de testar as virtudes
desses cavalheiros; e eu devo dizer que eles passaram no teste
admiravelmente, no que diz respeito às minhas observações. O
estetoscópio do Dr. O. era incansável em suas atenções; o Dr. S.
trazia seus botões para a minha sala duas vezes por dia, com a
regularidade de um relógio hospitalar; o Dr. Z. enchia a minha mesa
de pequenos frascos, que eu nunca esvaziava, prescrevia Browning,
me borrifava com Colônia, e mantinha a minha lareira acesa, como
se ela fosse como as velas de São Pedro, e ele não pudesse
permitir que apagasse. Caminhando, numa noite fria, com a certeza
de que a minha última centelha tinha sido consumida e morrido, e
que, portanto, horas de tosse estavam reservadas para mim, eu
fiquei surpresa ao ver uma luz rubra dançando na parede, uma
agradável chama subindo pela chaminé, e, na frente dela de
joelhos, o Dr. Z., talhando lascas de madeira. Eu deveria ter subido
e agradecido a ele ali mesmo; mas, sabendo que ele era do tipo que
gostava de fazer o bem furtivamente, eu apenas espiei como se ele
fosse um fantasma camarada; até que, tendo tornado as coisas tão
confortáveis quanto a mais maternal das enfermeiras poderia ter
feito, ele se retirou, me deixando com a impressão, como alguém
disse, “de que anjos estavam tomando conta de mim enquanto eu
dormia.” Apesar de que essa espécie de ave selvagem geralmente
não desce vestida em tecido de lã e usando óculos. Eu descobri em
seguida que ele tinha cortado a madeira ele mesmo naquela meia-
noite fria de janeiro e feito ou conservado o fogo para as pobres
velhas em seus deprimentes covis; dessa forma, se tornando para
elas uma luz intensa e brilhante em mais de uma maneira. Eu nunca
o agradeci como deveria; portanto, eu o faço agora publicamente,
oprimindo ainda mais esse modesto M.D. ao dizer que, se ele não
era o melhor dos doutores, e o mais cavalheiro entre os cavalheiros,
eu ficarei feliz em ver qualquer melhora sobre o produto.
Para aqueles que desejam saber onde essas cenas ocorreram,
eu respeitosamente me recuso a responder; pois a Casa Hurlyburly
deixou de existir como hospital; então, deixemos ela descansar, com
todos os seus pecados sobre sua cabeça, — talvez eu deva dizer
sua chaminé. Quando as enfermeiras ficaram doentes, os médicos
partiram, e os pacientes melhoraram, acredito que a firma
gentilmente desapareceu da existência. Ou se fundiu a um outro e
melhor estabelecimento, onde eu espero que o banho de trezentas
pessoas doentes aconteça fora da casa, que a comida seja comível,
e que não se espere que mulheres mortais possuam a angelical
isenção de todas as necessidades e a resistência de cavalos de
carga.
Desde de a aparição destes apressados Esboços, eu ouvi de
vários de meus companheiros no hospital; e a aprovação deles me
garante que eu não deixei a simpatia e a imaginação me levarem,
como essa animada dupla está apta a fazer quando acompanhada
de uma caneta. Como duas pessoas nunca verão a mesma coisa
com os mesmos olhos, o meu ponto de vista sobre a vida de
hospital deve ser tomado pelo que é. Certamente, nada foi escrito
com malícia, e para os sérios que objetarem ao tom leve de
algumas partes dos esboços, eu digo apenas que faz parte da
minha religião cuidar das alegrias da vida, e deixar as tristezas
tomarem conta de si mesmas; acreditando, com o bom Sir Thomas
More, que é sábio “alegrar-se em Deus.”
Eu espero que o próximo hospital que eu entre seja um para os
regimentos dos negros, já que eles estão provando que merecem a
admiração e os serviços de seus irmãos brancos, que devem a eles
uma dívida tão grande, uma pequena parte da qual eu ficarei feliz
em pagar.
Sua amiga,
Com uma firme Fé
Nos bons tempos que estão por vir,
Tribulation Periwinkle.

Você também pode gostar