ⓒ 2020 Fábio de Oliveira Índice Página do título Direitos autorais Capítulo I. Obtendo suprimentos Capítulo II Movimento para a frente Capítulo III Um Dia Capítulo IV Uma Noite Capítulo V Fora de Serviço Capítulo VI Pós-escrito Capítulo I. Obtendo suprimentos
“Eu quero fazer alguma coisa.”
Tendo essa observação sido direcionada ao mundo em geral, ninguém se sentiu na obrigação de respondê-la. Então, eu a repeti ao pequeno mundo ao meu redor, recebendo as seguintes sugestões, e resolvendo o assunto respondendo a minha própria pergunta, como as pessoas costumam fazer quando estão sérias. “Escreva um livro,” disse a autora em mim. “Não sei o suficiente. Primeiro viva, depois escreva.” “Tente dar aulas novamente,” sugeriu minha mãe. “Não, obrigada. Dez anos disso são suficientes.” “Arrume um marido, como o meu querido Darby, e cumpra a sua missão,” disse a minha irmã Joan, numa visita. “Não posso arcar com luxos caros, Sra. Coobiddy.” “Vire uma atriz e imortalize o seu nome,” disse a minha irmã Vashti, cheia de atitude. “Não.” “Seja enfermeira dos soldados,” disse o meu irmão mais novo, Tom, ansioso pelo acampamento militar. “Eu irei!” Até aqui tudo bem. Aqui estava a vontade—agora para o caminho. Num primeiro momento, sinal nenhum dele apareceu, mas isso não importou, pois os Periwinkles são uma raça obstinada. O símbolo em seus elmos é uma âncora com três galos cacarejando no topo. Eles usam óculos cor de rosa e são descendentes diretos do inventor da arquitetura aérea. Uma hora de conversa sobre o assunto deixou a família inteira intensamente entusiasmada. Um hospital imaginário foi erigido, e cada membro da família aceitou um honorável posto nele. O pai era capelão, a mãe era a enfermeira- chefe, e os irmãos enchiam o futuro de conquistas cuja importância eclipsaria as glórias do presente e do passado. Chegando a essa conclusão satisfatória, a reunião foi encerrada, e o fato de que a Srta. Trib estava disponível como enfermeira para o exército viajou com as asas do vento. Alguns dias depois, uma mulher ouviu o meu desejo, aprovou, e arranjou uma entrevista com um membro da irmandade na qual eu tinha o desejo de ingressar, que estava de licença e disponível para responder às nossas indagações. Uma conversa matinal com a Srta. General S. —nós sempre ouvimos falar de Sras. Generais, por que não uma Srta.? — produziu três resultados: eu senti que era capaz de fazer o trabalho, fui oferecida uma posição e aceitei, prometendo não desertar, mas ficar de prontidão para marchar para Washington com uma hora de aviso prévio. Alguns dias eram necessários para que a carta contendo o meu pedido e recomendação chegasse ao quartel general, e outra, contendo a minha comissão, retornasse. Portanto, eu não tinha tempo a perder. Agradecendo ao meu par de amigas calorosamente, eu parti pela lama de dezembro na direção de casa como se rebeldes estivessem atrás de mim e, como vários outros recrutas, explodi sobre a minha família com o anúncio: “Eu me alistei!” Seguiu-se um impressionante silêncio. Tom o quebrou com um tapinha no ombro e um gentil elogio: “Minha irmã, você é incrível!” “Obrigada. Então, eu pegarei alguma coisa,” o que eu fiz, na forma do jantar, disparando as minhas notícias num ritmo de três dúzias de palavras por mordida; e, como todos os outros falavam igualmente rápido, e todos juntos, a cena era das mais inspiradoras. Como o discurso de garotos indo para o mar se torna imediatamente náutico, e eles começam a andar como se já tivessem as suas “pernas de marinheiro”, eu também me tornei imediatamente militar, chamei o meu jantar de minha ração, fiz continência para todas as visitas e ordenei um desfile militar para os meus vestidos naquela mesma tarde. Depois de inspecionar cada farrapo que eu possuía, designei alguns para ficar de guarda enquanto tomavam ar sobre o muro; outros para a influência sanitária do tanque; outros para montar guarda dentro do baú; enquanto os fracos e feridos foram para o hospital do cesto de costura para serem reparados e voltarem ao serviço novamente. A esse esquadrão eu me devotei por uma semana; mas então estava tudo pronto, e eu tive tempo para ficar intensamente impaciente antes de a carta chegar. Ela finalmente chegou e trouxe decepção junto com a sua boa vontade e amabilidade, pois ela dizia que a posição no Hospital Militar que eu deveria ocupar já estava preenchida, e uma outra vaga muito menos desejável no Hospital Hurly-burly foi oferecida. “Que falta de sorte, Trib. Eu vou te ajudar a desfazer as malas, porque é evidente que você não vai mais querer ir,” disse Tom, com a piedade desdenhosa que os garotos desenvolvem quando chegam à adolescência. Eu estava hesitante na minha alma, mas isso decidiu o assunto. Eu o esmaguei ali mesmo, com brevidade marcial: “Agora é uma hora. Eu partirei às seis.” Eu tenho uma vaga lembrança de ter passado a tarde percorrendo a casa como um turbilhão, com a minha família atrás de mim, trabalhando, falando, profetizando e lamentando. Enquanto isso, eu empacotei meus bens de viagem, coloquei o resto em duas grandes caixas, dancei nas tampas até elas fecharem e dei a eles a seguinte instrução: “Se eu não voltar, faça uma fogueira com elas.” Então, eu engoli um copo de chá, generosamente salgado ao invés de adoçado, por algum parente agitado, coloquei minha mochila militar — era apenas uma mala de viagem, mas permita-me preservar a unidade — abracei cada membro da minha família três vezes, sem nenhum traço de fraqueza, até que uma certa querida senhora se agarrou ao meu pescoço, com um gemido de tristeza: “Oh, minha querida, minha querida, como eu posso te deixar partir?” “Eu ficarei se você me pedir, mãe.” “Mas eu não vou. Vá, e Deus tomará conta de você.” Muito da coragem matriarcal estava presente na constituição dessa mãe, e, a despeito das lágrimas, ela teria mandado dez filhos para a guerra, se ela os possuísse, tão livremente quanto ela mandava a sua filha, sorrindo e acenado da porta até que eu desaparecesse, apesar de seus olhos estarem bem turvos, e o lenço que ela agitava, bem úmido. Meu trajeto de casa para a estação ferroviária foi uma mistura de votos de felicidade e despedidas, poças de água e compras. O crepúsculo de dezembro não é o momento mais propício para embarcar numa aventura arriscada, e, se não fosse pela presença de Vashti e Thorn, eu sinto que eu teria adicionado uma gota salgada à umidade natural da cidade que eu deixava para trás. Mas eu nem pensava em desistir; de maneira nenhuma! Quando o motor começou a berrar, anunciando que a hora de partir tinha chegado, eu me agarrei à minha escolta num abraço fervoroso e pulei para dentro do vagão com uma despedida tão despreocupada quanto a de uma noiva partindo para as núpcias. Apesar de que noivas não costumam sair por aí usando gorros negros e casacos felpudos marrons, carregando uma escova de cabelo, um par de galochas, dois livros e um saco de biscoitos de gengibre. Se eu pensasse que alguém acreditaria em mim, eu diria que eu dormi durante a viagem toda, o que simplificaria o assunto imensamente. Mas como eu sei que ninguém vai, eu confesso que a cabeça debaixo do gorro funerário fermentava com ideias de “fazer ou morrer”, talvez os dois; e o coração dentro do casaco marrom estava bastante sentimental com a lembrança da velha senhora, provavelmente chorando nas suas meias do exército pela perda da sua atrapalhada Trib. Nesse momento, eu abaixei o véu, e o que eu fiz por trás dele não é da conta de ninguém; eu digo apenas que o soldado que chora quando a sua mãe lhe diz “até logo”, é aquele que lutará melhor, morrerá corajosamente, quando a hora chegar, ou voltará para casa melhor do que partiu. Até as nove horas eu marchei pelas ruas da cidade, fazendo as últimas visitas que mulher nenhuma iria nem para o céu sem tentar primeiro, se ela pudesse. Então, eu voltei para o meu refúgio e, com a intenção de permanecer acordada, numa espécie de vigília apropriada para a ocasião, eu caí no sono e sonhei sonhos propícios até ser acordada com um beijo pela minha prima de face rosada. Um lindo dia sorria para a minha missão, e às 10 horas eu me apresentei à minha General, recebi minhas últimas instruções e uma boa dose do encorajamento solidário que as mulheres dão, mais em gestos e olhares do que em palavras. O próximo passo era conseguir o passe livre para Washington, pois eu não tinha o menor desejo de gastar a minha substância em companhias ferroviárias, quando os meninos necessitavam cada centavo. Uma amiga minha tinha obtido tal passe, e eu estava determinada a fazer o mesmo, mas eu tinha que encarar o presidente da companhia para isso. Eu sou uma criatura tímida, mesmo que eu não consiga convencer ninguém disso, e foi um grande esforço para mim ficar bisbilhotando pela estação de Worcester até que a porta certa aparecesse, e então entrar na sala contendo vários cavalheiros e fazer o meu pedido num tremendo estado de vergonha e gagueira. Ninguém poderia ter sido mais cortês do que este temido presidente, mas era evidente que eu tinha feito uma solicitação tão absurda quanto se tivesse pedido o nariz de sua respeitável face. Ele me encaminhou para o Governador na Assembleia Legislativa, e eu me retirei, o deixando, sem dúvidas, a lamentar que esses maníacos andassem à solta. Era um dilema e tanto: como se o presidente não fosse difícil o suficiente, sem adicionar o governador de Massachusetts e o clube todo. “Eu nunca vou conseguir fazer uma coisa dessas”, eu pensei. “Tom vai te azucrinar se você não fizer”, sussurrou aquela vozinha inconveniente que está sempre incitando as pessoas a fazerem tarefas desagradáveis, e que sempre apela ao agente mais eficiente para produzir o resultado apropriado. A ideia de deixar um menino que já vestiu uma touca de feltro e uma jaqueta felpuda com uma cauda microscópica me dominar era tão absurda que eu me dei um tapinha mental pela minha fraqueza e segui em frente, pensando se eu deveria dizer “Vossa senhoria”, ou simplesmente “Senhor”, me decidindo pelo último. Eu tentei me encorajar com a lembrança de ter visto o governador em uma charmosa biblioteca verde numa tarde, consumindo placidamente as suas ostras e rindo como se Massachusetts fosse um mito, e ele não tivesse nenhum peso sobre as suas costas além das bonitas mãos de seu anfitrião. Como uma mosca energética numa teia de aranha, eu lutei pela assembleia, entrando em todas as salas erradas, até que eu fiquei desesperada e entrei em uma, decidida a não sair de lá até que alguém me ouvisse. Eu suspeitei que de todos os lugares errados em que eu tinha me metido aquele era o pior. E apesar de o lugar estar cheio de soldados, médicos, observadores e cuspidores, eu encurralei uma pessoa perfeitamente incapaz e comecei a tentar extrair informações dela, com o seguinte resultado: “O governador estava em algum lugar por ali?” Não, ele não estava. “Será que ele poderia me dizer onde procurar?” Não, ele não podia. “Ele sabia alguma coisa sobre passes livres?” Não, ele não sabia. “Havia alguém ali que pudesse me responder?” Não havia ninguém. “Ele conhecia algum lugar onde eu poderia obter informações?” Lugar nenhum. “Ele poderia jogar algum raio de luz sobre o assunto, de qualquer maneira possível?” Nenhum raio. Eu sou naturalmente irascível, e se eu pudesse sacudir esse senhor vigorosamente, o alívio seria imenso. Mas considerando a parcialidade da sociedade contra este tipo de comportamento, eu meramente olhei para ele com uma expressão séria. E, antes que a minha fúria encontrasse formas de se expressar em palavras, minha general apareceu, tendo me visto de uma janela oposta, e veio investigar o que eu estava fazendo. Ao seu comando, o lânguido cavalheiro acordou e se deu ao trabalho de lembrar que um major ou general ou alguma coisa Sr. K. sabia tudo sobre passagens, e seu escritório ficava em Milk Street. Eu me animei imediatamente, e então, como se o esforço fosse demais para ele, o que esse cobertor molhado em forma de gente adicionou? “Eu acho que o Sr. K pode ter saído de Milk Street, e eu não sei para onde ele foi.” “Não tem importância. Os recém-chegados saberão para onde ele foi, minha querida, não fique desanimada. E se você não conseguir, venha a mim, e nós veremos o que fazer em seguida”, disse a minha general. Eu a agradeci fervorosamente, virei a esquina, e adentrei Milk Street, determinada a encontrar o Sr. K. se tal criatura estivesse lá para ser encontrada. Ele não estava, e a ignorância dos vizinhos era realmente lamentável. Ninguém sabia de nada, e, depois de tropeçar em rolos de couro, colidir com grandes estalajadeiros, quase ser aniquilada por fardos, e de ter sido xingada por um carregador exasperado, eu finalmente obtive o conselho de procurar pelo Sr. K em Haymarket Square. Quem foi o meu informante eu realmente não lembro. Tendo saudado vários cavalheiros, algum deles provocou essa ilusória paz no meu perturbado espírito e eu parti imediatamente para o local nomeado. Se eu estivesse em busca do diamante de Koh-i-noor eu teria tanta chance de encontrá- lo ali quanto qualquer vestígio do Sr. K. Eu olhei para os sinais, perguntei em lojas, invadi uma pensão, visitei uma tenda de recrutamento no meio da praça, me transformei num transtorno de modo geral e acumulei lama o suficiente para retardar o Nilo. Tudo em vão. Eu virei a minha face miseravelmente na direção da minha general, sentindo que eu teria que enriquecer a companhia ferroviária no fim das contas, quando, subitamente, eu avistei aquele admirável jovem, meu cunhado Darcy Coobiddy. Eu o detive com uma avalanche de notícias, desejos e desgraças, o que fez sua expressão perder a tranquilidade habitual. “Oh, meu querido, eu tenho que ir para Washington às 5, mas não consigo achar a pessoa responsável pelos passes-livres, e eu não terei tempo de ver Joan, e estou tão exausta e irritada que não sei o que fazer; você me ajudará como o adorável querubim que você é?” “Oh, claro. Eu conheço alguém que dará um jeito nisso”, respondeu Darby, um pouco animado, e, correndo para dentro de algum tipo de escritório, teve uma conversa com um anjo invisível, que o fez sair de lá radiante. “Tudo certo. Eu sei onde ele está. Eu acompanharei você para resolvermos este assunto e então buscarei Joan a tempo de te ver partir.” Eu sou uma mulher emancipada, e se qualquer homem tivesse se oferecido para me ajudar naquela manhã, eu teria desdenhosamente recusado, certa de que eu poderia fazer tudo tão bem, ou melhor, por mim mesma. Minha confiança tinha diminuído bastante desde então, e eu estava bem pronta para ser uma tímida donzela, se necessário. Minha nossa! Com que facilidade Darby fez tudo: ele teve que perguntar apenas uma vez e obteve sua resposta, me levou pelo braço e, dez minutos depois, eu estava na presença do Sr. K., o Desejado. “Agora meus problemas acabaram”, eu pensei, e, como sempre, estava terrivelmente enganada. “Você vai ter que conseguir um passe com o Dr. H., em Temple Place, antes que eu possa te dar um passe, senhora”, respondeu o Sr. K., tão desinteressadamente como se ele não estivesse trazendo desespero para a minha alma. Oh, certamente! Por que ele não me mandou para Dorchester Heights, India Wharf ou para o Monumento de Bunker Hill, e deu um fim em tudo? Aqui estava eu, depois de ter vagado pela manhã toda, em algum lugar nos arredores de Dock Square, e me dizem para ir para Temple Place. E isso não foi tudo; ele podia muito bem ter me pedido para capturar um beija-flor, cozinhar uma salamandra, ou visitar o homem da Lua, como me pedir para achar um doutor em casa na hora mais movimentada do dia. Isso foi um golpe. Mas o cansaço tinha extinguido o entusiasmo, e resignação me envolvia como uma roupa. Eu enviei Darby para Joan e obstinadamente parti, sentindo que a lama era meu elemento natural, e certa de que o jornal da tarde anunciaria a presença de um judeu errante em trajes femininos. “O Dr. H. está?” “Não, senhora.” É claro que não. Eu sabia antes de perguntar. E, num espírito de zombaria inútil, eu acrescentei: “Quando ele provavelmente retornará?” Se a donzela tivesse dito “às 10 da noite”, eu teria sentido uma satisfação sombria pelo cumprimento da minha própria profecia; mas ela disse: “Às duas, moça”, e eu me senti pessoalmente insultada. “Eu voltarei então. Diga a ele que o assunto é importante.” E com essa mensagem misteriosa, eu parti, torcendo para tê-la deixado morrendo de curiosidade, já que a lama fazia de mim um objeto de interesse. Para descansar, eu cruzei o terreno baldio pela terceira vez, reservei uma carruagem, almocei, embrulhei minhas compras, alisei minha plumagem, e estava de volta novamente quando o relógio marcou duas horas. O doutor ainda não tinha voltado, e eu estava moralmente certa de que ele não voltaria, até que, tendo esperado até o último minuto, eu teria que comprar a minha passagem, e, cinco minutos depois do irrevogável ato ter sido executado, aí sim ele estaria ao meu serviço com todos os tipos de documentos úteis e direções. Tudo funciona ao contrário comigo: depois de ter me conformado a ficar desapontada, evidentemente eu não fiquei, pois, pouco tempo depois, o Dr. H apareceu. E tão logo ele ouviu da minha missão e olhou para as minhas credenciais, ele disse, com a mais acolhedora prontidão: “Eu te darei a ordem, com prazer, senhora.” Palavras não podem expressar o quão tranquilizante e encantador foi encontrar, finalmente, alguém que poderia fazer o que eu queria, sem me enviar para uma dúzia de outros indivíduos para fazer alguma outra coisa primeiro. A Paz caiu, como óleo, sobre as águas agitadas do meu ser, enquanto eu ficava sentada escutando o ruído de sua caneta. E, quando ele se virou para mim, não apenas com a ordem, mas também com um papel em que estavam anotadas direções com as quais eu poderia resolver qualquer dificuldade entre Boston e Washington, eu me senti como o pobre Christian quando o Evangelista deu a ele o pergaminho, no lado certo do Pântano do Desespero. Eu não tenho dúvidas de que várias enfermeiras encardidas se impuseram ao nobre cavalheiro desde então. Mas eu tenho certeza de que nenhuma foi tão gentilmente ajudada, ou ficou tão grata quanto eu. Pois aquela curta entrevista adicionou mais uma às várias agradáveis associações que cercam o seu nome. Me sentindo não mais como “Martha Struggles”, mas como uma confortável jovem mulher, com o pior da viagem para trás e com uma navegação fácil dali em diante, eu mais uma vez me apresentei ao valoroso Sr. K. A ordem foi lida, e certos papéis que precisavam ser preenchidos foram entregues a um jovem cavalheiro—não, eu prefiro chamá-lo de garoto, com uma ênfase desdenhosa na palavra, pois essa é a única forma de vingança que me resta. Esse garoto, ao invés de cumprir o seu dever, com a diligência tão apreciada nos jovens, se espreguiçava e perdia tempo, de uma maneira que mostrava que a sua educação tinha sido deficiente no quesito “Como é ocupada a abelhinha”. Ele olhava para mim, olhava pela janela com a boca aberta, comia amendoins e fofocava com os seus vizinhos—garotos como ele, e todos numa fileira, como potros numa exposição pecuária. Eu não imagino que ele sabia a angústia que estava me infligindo, pois já eram quase 3 horas, e o trem partia às cinco, e eu ainda tinha a minha passagem para pegar, o meu jantar para comer, a minha abençoada irmã para ver, e a estação para alcançar, se eu não morresse de apoplexia. Enquanto isso, Paciência estava tendo um perfeito dia de trabalho, e eu espero que ela o tenha aproveitado mais do que eu. Tendo esperado uns vinte minutos, esse garoto repreensível se contentou em fazer várias marcas e borrões nos meus documentos e jogá-los para uma venerável criatura de dezesseis anos, que os entregou para mim com direções tão paternais, que só faltou um tapinha na cabeça e o encorajador: “Agora, corra para a sua mãe, garotinha, e cuidado com os cruzamentos, querida”, para tornar a ilusão perfeita. Por que eu fui enviada para um escritório de barcos à vapor para pegar uma passagem de trem, eu não sei dizer, mas eu fui, tão docilmente como eu teria ido para o Cartório, se tivesse sido enviada. Um senhor gordo e afável me deu vários pedaços de papel com cupons anexados, me avisando para não os separar, o que imediatamente me deixou com vontade de separá-los e ver o que acontecia. Mas lembrando-me de quantas provações eu tive que passar para consegui-los, eu silenciei a voz de Satã e, agarrando o meu prêmio como se fosse um passe para os Campos Elísios, corri para casa. O jantar foi consumido rapidamente; Joan foi informada, confortada e beijada; os queridos primos com cara de maçã abraçados; os pais desses primos sujeitados ao mesmo processo; e eu montei a ambulância ou carroça de bagagens, tudo que você quiser menos uma carruagem, e parti, cansada demais para me sentir excitada, triste ou feliz. Capítulo II Movimento para a frente
Como viajantes gostam de dar a sua própria impressão de uma
jornada, apesar de cada centímetro do trajeto já ter sido descrito dezenas de vezes antes, eu adiciono algumas notas feitas pelo caminho, na esperança de que elas divirtam o leitor e convençam o cético de que a enfermeira Periwinkle realmente existiu, e que ela realmente viajou para Washington, e que esses esboços não são nenhum romance. Trem de Nova Iorque—Sete P.M.— seguindo em frente para pegar o barco em New London. Bastante confortável; comendo biscoitos de gengibre e saboreando a maravilhosa pera da Sra. C., que merece uma menção honrosa, porque a minha solidão foi primeiramente confortada por ela e pela lembrança agradável da pessoa que com ela me presenteou. Olho sempre para o papel com as direções do Dr. H—ponho a minha passagem em todos os lugares concebíveis, para que possa retirá-la com facilidade, acabo perdendo-a mesmo assim. Sofro agonias até que um vizinho compadecido a retira de uma fresta com o seu canivete. Coloco a passagem no fundo da minha bolsa, coloco a bolsa dentro de uma mala, coloco uma coleção de artigos diversos por cima dela e fecho. Eu me recomponho, sentindo que eu fiz o melhor que eu podia para mantê-la em segurança, até que o condutor aparece, e eu sou forçada a retirá-la novamente, expondo as minhas precauções e ficando aflita por fazer o homem esperar. Finalmente, prendo a passagem no acento à minha frente e mantenho um olho fixo sobre ela, até esquecê-la completamente, conversando com o cavalheiro sentado ao meu lado. Tendo ouvido reclamações sobre a maneira absurda como as mulheres americanas se comportam, assumindo a imagem do mais rígido decoro, se eu sou abordada por estranhos ao viajar sozinha, a perversidade inerente da minha natureza me faz assumir o comportamento inverso; e, descobrindo que o meu companheiro vem de Little Athens, conhece vários dos meus trezentos e sessenta e cinco primos e é, de todas as maneiras, um respeitável e respeitoso membro da sociedade, eu boto a minha vergonha no bolso e mergulho em uma longa conversa sobre a guerra, o tempo, música, Carlyle, patinação, gênio, aros e a imortalidade da alma. Dez, P.M. — Muito sonolenta. Nada para ver do lado de fora, apenas escuridão; nada para ver do lado de dentro além de toda a variedade de montes em que a forma humana pode ser retorcida, enrolada ou amontoada, como a Srta. Prescott costuma dizer das suas joias. As pernas de cada homem se esparramam preguiçosamente, a cabeça de cada mulher (menos a minha) se inclina, até finalmente repousar sobre os ombros de alguém, confirmando aquele eterno símile sobre as vinhas e o carvalho; crianças se movem inquietas, amantes sussurram, velhos roncam, e alguém abre uma garrafa de brandy secretamente assim que as luzes são apagadas. O perfume penetrante desperta a multidão, fazendo alguns levantarem a cabeça como cavalos de guerra ao sentir o cheiro de pólvora. Quando as lâmpadas são acesas novamente, todos riem, cheiram e olham inquisitivamente para seu vizinho — todos menos um corpulento cavalheiro que, com as mãos enluvadas postas sobre a sua bem coberta esfericidade, dorme admiravelmente. Se ele fosse inocente, ele teria acordado; pois dormir como um bebê daquela maneira, em um vagão cheio de pessoas dando risadinhas, olhando e fungando era simplesmente absurdo. A suspeita do público caiu sobre ele imediatamente. Eu duvido que a aparição de um frasco preto com um rótulo teria resolvido a questão mais efetivamente do que o profundo e dignificado repouso daquele ser imprudente. A sua gravata moral, botas virtuosas e atitude piedosa não lhe serviram de nada. E foi bom ele manter os olhos fechados, pois a acusação de “embuste!” brilhava em cada janela, prego e olho humano em volta dele. Onze, P.M. — No barco Cidade de Boston, escoltada até lá pelo meu conhecido do trem e depositada na cabine. Tentando parecer como se eu tivesse passado uma grande parte da minha vida dentro de barcos, mas dolorosamente consciente de que eu não sei de nada. Assim, eu fico de pé e olho ao meu redor, até ouvir uma senhora dizer para outra “Precisamos encontrar nossos leitos imediatamente”, ao que eu corro para um e calmamente retiro meu casaco, esperando para descobrir qual será o segundo passo. Várias senhoras puxam as cortinas que ficam dispostas em semicírculo antes de cada ninho — eu imediatamente fecho as minhas e então abro um pouquinho para ver o que acontece em seguida. Gradualmente, em ganchos acima das cortinas azuis e amarelas, aparecem os casacos e gorros de meus vizinhos, enquanto suas botas e sapatos, se afirmam abaixo de toda maneira imaginável, dando a impressão de que seus donos cometeram suicídio. Um violento som de rangidos me faz perceber que as pessoas estão indo para as camas. É claro que elas estão! E eu também — mas paro um momento antes, lembrando-me de que eu tinha nascido para me afogar, e agora uma oportunidade se apresentava. E, tendo escapado em duas ocasiões da sepultura aquosa, uma terceira imersão irá certamente extinguir a minha centelha de vida. O barco é novo, mas se ele pretende explodir, apresentar um vazamento, pegar fogo, ou bater em alguma coisa, ele fará isso esta noite, porque eu estou aqui para cumprir o meu destino. Com uma calma trágica, eu me conformo, troco os meus grampos, coloco a minha bolsa e os meus papeis juntos, examino os meus lencinhos e olho em volta em busca de meios de libertação para quando o momento molhado chegar. Pois eu não tenho a menor intenção de cruzar os braços e borbulhar até a morte sem uma boa luta primeiro. Barris, sofás, galinheiros e salva-vidas não adornam a cabine como deveriam. E, andando de um lado para o outro freneticamente, os meus olhos não veem nenhum raio de esperança, até eles caírem sobre uma velha senhora roliça, lendo devotamente a Bíblia da cabine e vestindo um volumoso gorro. Eu lembro que, na escola de natação, garotas gordas são as que boiavam melhor, e num instante eu delineio o meu plano. Ao soar do primeiro alarme, eu me seguro firmemente à senhora gorda, e continuo segurando pelo fogo e pela água, pois eu tenho a premonição de que a minha velha inimiga, a cãibra, vai me agarrar pelo pé se eu tentar nadar. E, apesar de ser difícil imaginar que eu conseguiria chegar à Nova Jersey com a minha bagagem intacta como eu esperava, eu posso conseguir ser resgatada se eu me mantiver anexada à minha amiga. Caso contrário, será um consolo saber que eu fiz o melhor que pude e devo morrer em boa companhia. Pobre mulher! Quão pouco ela imaginava, enquanto lia e se balançava, com o seu gorro bem engomado, dos esquemas cruéis que pairavam sobre ela, e quão atentamente, um pequeno mas determinado olho a observava, até ele se fechar subitamente. Sono dominou o medo de tal forma que as minhas botas pareciam bocejar e o meu gorro se inclinava, antes de eu ceder. Tendo empilhado o meu manto, a minha sacola, meus sapatos, livros e guarda-chuva na prateleira de baixo, eu subi sonolentamente na de cima, caindo algumas vezes, e escoriando as extremidades do meu corpo no processo. Uma breve soneca no poleiro de cima foi suficiente para me deixar arquejando como se uma dúzia de colchões de pena e o barco inteiro estivessem em cima de mim. Eu tentei descer, e depois de uma série de convulsões que levaram a minha vizinha a perguntar se eu precisava da comissária de bordo. Eu consegui botar a minha bagagem para cima e eu mesma para baixo. Mas mesmo no beliche de baixo, o meu descanso foi interrompido, pois vários itens continuavam caindo da pequena prateleira ao fim da cama, e toda vez que isso acontecia eu pulava, achando que a minha hora tinha chegado, e batia a minha cabeça severamente na pequena prateleira de cima, evidentemente colocada ali para esse propósito. Finalmente, depois de ouvir o marulhar das ondas do lado de fora, me perguntando se era normal que o maquinário rangesse daquela maneira, e de observar um buraco na madeira do lado do meu beliche, certa de que a morte entraria por ali assim que eu tirasse os olhos dele, eu caí no sono, e sonhei com bolinhos. Cinco, A.M. — No convés, logo depois de acordar, tentando aproveitar um vento do Leste e uma névoa da manhã e uma visão crepuscular de alguma coisa na costa. Rapidamente realizo o meu objetivo e aproveito cada momento, enquanto atravessamos pelo Som, com barcos a vapor passando para cima e para baixo, luzes dançando no litoral, espirais de névoa se enrolando lentamente, e um céu pálido e rosado acima de nós, enquanto o Sol nasce. Sete, A.M. — Dentro do trem, em Jersey City. Muita confusão com bilhetes, nos quais um homem escreve alguma coisa, um outro recorta, e um terceiro “faz uma nota”. Participo de uma refeição na escuridão de uma enorme e suja estação ferroviária. Penso que meus sanduíches seriam mais saborosos sem o forte sabor de guardanapo, e que meus biscoitos de gengibre seriam mais facilmente consumidos se não tivessem sido pulverizados quando eu sentei em cima deles. Pessoas agem como se viajar cedo não fizesse bem para elas. Crianças correm e gritam; homens fumam e rosnam; mulheres tremem e se inquietam; carregadores xingam; carroças cheias de bagagem são dirigidas para cima e para baixo; e todo mundo parece entrar no vagão errado e tem que sair novamente, tropeçando no caminho. Um homem com três crianças, um cachorro, uma gaiola, e vários pacotes coloca-se junto com seus pertences em todos os lugares possíveis em que um homem, três crianças, um cachorro, uma gaiola e pacotes poderiam ser colocados e não fica satisfeito com nenhum deles. Eu observo seus movimentos com um interesse que é realmente exaustivo e, quando eles desaparecem, rezo por descanso, mas não consigo. Uma mulher de personalidade forte, com uma caneca na mão e sem nenhum manto ou xale, vem correndo para o trem, falando alto com um pequeno carregador, que leva uma cama dobrável atrás dela e tem o aspecto de que a vida é um fardo para ele. “Você prometeu que ele estaria pronto. Ele não está pronto. Tem que ser um vagão com um jarro d’água, as janelas devem estar fechadas, o aquecimento deve estar ligado, e as cortinas devem estar fechadas. Não, esse não vai servir. Eu vou examinar o trem inteiro e fazer minha escolha, pois você disse que ele estaria pronto. Ele não está pronto.” E tudo novamente, como um realejo. Ela assombrou os vagões, a estação, os escritórios e o depósito de bagagens, com sua cama, sua caneca, e sua língua, até o trem começar a se mover; e um senso de profunda gratidão encheu a minha alma, quando eu percebi que ela e o seu inválido desconhecido não iriam compartilhar o nosso vagão. Filadélfia — Um lugar antigo cheio de mulheres holandesas, vestindo gorros, vendendo verduras em longos mercados abertos. Cada uma parece estar esfregando os seus próprios degraus brancos. Todas as casas parecem prisões bem arrumadas, com suas persianas externas. Várias tem crepe nas maçanetas, e muitas têm bandeiras balançando do telhado ou da sacada. Poucos homens aparecem, e as mulheres parecem fazer todo o trabalho, o que talvez explique porque tudo funciona tão bem. Passo por belos edifícios, mas não sei o que são. Gostaria de parar para ver a minha cidade natal; pois, depois de tê-la deixado na tenra idade de dois, minhas memórias dela não são vívidas. Baltimore — Um lugar grande, sujo e indolente, cheio de bodes, gansos, pessoas negras e carvão, pelo menos a parte que eu pude ver. Passo perto do local em que a manifestação aconteceu e sinto vontade de jogar uma pedra em alguém com força. Encontro um guarda na balsa, no armazém, e aqui e ali, pela estrada. Um acampamento embranquece um lado da colina, e uma escola de treinamento de cavalaria, ou seja lá como se chama, é uma visão muito interessante, com cavalos e cavaleiros galopando por todos os lugares propícios para quebrar o pescoço. Um grupo de ingleses entra—os homens, loiros e de bigode vermelho, todos aparados da mesma maneira, até o último fio; casacos cinzas ásperos, faces bem limpas e rosadas, e um jeito de falar bastante cheio e bonito, que é particularmente atraente comparado com a nossa tagarelice descuidada. As duas senhoras vestem inusitados capuzes de veludo forrados com pele; estão arrumadas, como pacotes compactos, em xales xadrez; e parecem determinadas a ver tudo completamente. A devoção de um velho John Bull à sua esposa de nariz vermelho foi realmente uma coisa linda de se ver. Ela era feia e zangada, e nervosa e estúpida, mas J. B. não lia nenhum jornal quando ela estava acordada, não ignorava quando ela desejava dormir, e dizia alegremente, “Sim, minha querida,” para qualquer desejo ou vontade que a esposa do seu coração expressasse. Meu coração se aqueceu para esse excelente homem, e eu lhe fiz uma pergunta ou duas, o único meio que eu encontrei de expressar a minha boa vontade. Ele respondeu com civilidade, mas era óbvio que ele não estava acostumado a ser abordado por mulheres estranhas em meios de transporte públicos. E a Sra. B fixou seus olhos verdes em mim como se eu fosse uma mulherzinha petulante, ou seja lá qual for o termo inglês para uma jovem intrometida como eu. O par deixou seus amigos antes de alcançarmos Washington. A última visão que eu tive deles foi a de uma grande senhora em xadrez, se afastando sombriamente, segurando o braço de um cavalheiro rosado e robusto, carregando várias malas, tapetes e livros, mas sempre dedicado, sempre sorrindo, se despedindo com um caloroso “Até logo! Nos encontraremos na casa do Willard na terça-feira.” Pouco depois da partida deles, nós sofremos um acidente. Pois nenhuma longa jornada na América estaria completa sem um. Um ferro do engate quebrou; e, depois de deixar o último carro para trás, nós esperamos até que ele voltasse. Ele voltou com uma batida que arremessou todos de seus acentos e fez várias velhas senhoras gritarem horrivelmente. Chapéus voaram, gorros foram amassados, o forno pulou, lâmpadas caíram, o jarro de água deu uma cambalhota, e a roda sobre a qual o meu assento estava recebeu algum dano. Obviamente, foi necessário que todos os homens saíssem e ficassem no meio do caminho, enquanto os reparos eram feitos, e que as mulheres lutassem para pôr as cabeças para fora das janelas, perguntando noventa e nove perguntas estúpidas para cada uma sensata. E algumas mulheres sábias aproveitaram esse momento propício para se apropriar de assentos melhores, sabendo que poucos homens seriam páreos para o olhar sério com que elas enfrentariam os antigos donos dos lugares que elas estavam invadindo. O território pelo qual passamos não parecia muito diferente daquele que tínhamos acabado de deixar, exceto que era mais plano e menos frio. No verão, os amplos campos teriam me mostrado novas paisagens, e as cercas vivas na beira da estrada estariam florescendo com novas flores; agora, tudo estava murcho e encharcado, e uma atmosfera de apatia prevalecia, que teria dado bastante desgosto a um fazendeiro de Nova Inglaterra, e um forte desejo de ajeitar as coisas. Casinhas lúgubres, com chaminés construídas do lado de fora, com argila e gravetos grossos empilhados transversalmente, da maneira como costumávamos construir torres de cob, estavam situadas em campos que pareciam estéreis, com uma vaca, porco ou mula descansando próximo da porta. Nós frequentemente passávamos por negros, que pareciam ter vindo de um livro ilustrado, ou de um palco, mas nem um pouco parecidos com o tipo de pessoa que eu estava acostumada a ver no Norte. Acampamentos na beira da estrada alegravam os campos e ruas com uniformes azuis e botões cintilantes. Uniformes militares se agitavam nas cercas; panelas fumegavam ao ar livre; quadros de todos os tipos podiam ser vistos pela abertura das tendas, e por todo lugar os garotos jogavam seus capacetes e faziam travessuras enquanto passávamos. Washington — Estava escuro quando chegamos; e, se não fosse pela presença de outro gentil cavalheiro, eu teria sido vítima do primeiro condutor que insistisse que eu queria ir exatamente para onde eu não queria. Colocando-me no transporte que eu pertencia, minha escolta acrescentou à sua obrigação a tarefa de apontar objetos de interesse pelo qual passávamos durante a nossa longa viagem. Apesar de ter sido informada várias vezes de que Washington era um lugar grande, sua visível magnitude me tirou o fôlego, e é claro que eu citei a expressão de Randolph, “uma cidade de distâncias magníficas,” como eu imagino que todos fazem quando a veem pela primeira vez. O Capitólio era tão parecido com as figuras que costumam ficar penduradas em pensões e hotéis, em frente a um retrato do Pai deste País, que não me impressionou, exceto por me lembrar da época em que eu imaginava que Cinderela tinha ido fazer serviço doméstico num lugar parecido, depois de ter se casado com o inflamável príncipe. Apesar de que, mesmo naquele tempo, eu tinha minhas dúvidas da sabedoria de um relacionamento formado numa fundação de vidro. A Casa Branca estava iluminada, e carruagens rolavam para dentro e para fora do grande portão. Eu fiquei olhando para a famosa Sala Leste, e teria gostado de espiar através de uma fresta na porta. As atenções de meu velho cavalheiro eram infatigáveis, e eu dizia “Que esplêndido!” para tudo que ele apontava, mas suspeito que frequentemente admirava o lugar errado e perdia o certo. A Avenida Pensilvânia, com a sua algazarra, luzes, música e militares, me fez sentir como se eu tivesse cruzado as águas e desembarcado em algum lugar em pleno Carnaval. Chegando nas partes menos notáveis da cidade, meu companheiro ficou em silêncio, e eu meditei sobre a perfeição que a Arte americana tinha alcançado — tendo passado por uma estátua de bronze de algum herói, que se assemelhava a um ministro Metodista negro com um chapéu bicorne, da cintura para cima, e um escudeiro bêbado da cintura para baixo; enquanto seu cavalo estava de pé, como um dançarino de ópera, numa perna só, em um forte mas curioso vento, que soprava sua crina numa direção e sua enorme cauda em outra. “A Casa Hurly-burly, senhora!” disse uma voz, tirando-me do meu devaneio, no momento em que parávamos diante de um amontoado de edifícios, com uma bandeira tremulando na frente, sentinelas no portão, e uma desesperadora quantidade de homens descansando ao redor. Meu coração batia mais rápido do que o usual, e subitamente me ocorreu que eu estava bem longe de casa. Mas eu desci com dignidade, me perguntando se eu seria impedida de entrar por não ter uma contrassenha, e ser obrigada a passar a noite na rua. Marchando corajosamente pelos degraus, eu descobri que nenhum documento era necessário, pois os homens abriram caminho, os guardas tocaram seus capacetes, um garoto abriu a porta, e, quando ela se fechou atrás de mim, eu senti que eu estava completamente iniciada, e a missão da enfermeira Periwinkle começou. Capítulo III Um Dia
“Eles chegaram! Eles chegaram! Apressem-se, meninas—
precisam de vocês.” “Quem chegou? Os rebeldes?” Essa convocação repentina no amanhecer cinzento foi um pouco alarmante para uma enfermeira de três dias como eu, e, assim que a batida estrondosa atingiu a nossa porta, eu dei um salto da cama, preparada “Para cingir a minha forma feminina, / E nas muralhas morrer,” se necessário, mas a minha companheira de quarto reagiu mais friamente e, enquanto ela ia ao banheiro rapidamente, respondeu minha desnorteada pergunta: “Não, minha criança. São os feridos de Fredericksburg. Quarenta ambulâncias estão na porta, e nossas mãos estarão cheias em quinze minutos.” “O que nós teremos que fazer?” “Limpar, vestir, alimentar, aquecer e cuidar deles pelos próximos três meses. Oitenta camas estão prontas, e já estávamos ficando impacientes para os homens chegarem. Agora você começará a ver como é a vida de hospital de verdade. Você provavelmente não terá tempo para sentar-se uma só vez durante o dia, e se considerará sortuda se conseguir ir para cama à meia-noite. Venha comigo para o salão de festas quando estiver pronta. Os piores casos são sempre levados para lá, e eu precisarei da sua ajuda.” Falando assim, a energética mulherzinha enrolou o cabelo em um botão atrás da cabeça, em um estilo “preparado para a ação”, e desapareceu, lutando para entrar em uma espécie de paletó feminino enquanto saía. Eu confesso que naquele momento eu tive a reveladora sensação de que a minha cama de hospital não era uma cama de rosas, e que a perspectiva diante de mim não era de puro êxtase. Minhas experiências naqueles três dias tinham começado com uma morte e, devido ao desfalque de outra enfermeira, um mergulho abrupto na superintendência de uma ala contendo quarenta leitos, onde eu passava as minhas horas brilhantes lavando rostos, servindo comida, dando remédios, ou sentada em uma cadeira bastante dura, com pneumonia de um lado e difteria do outro, cinco tifoides na frente e uma dúzia de patriotas arruinados, pulando num pé só, deitando-se ou relaxando, todos olhando mais ou menos para a nova enfermeira, que sofria incontáveis agonias, mas as escondia sob o aspecto mais matronal que uma solteirona podia assumir, e continuava executando suas árduas tarefas com uma firmeza espartana, que eu espero que eles tenham apreciado, mas temo que não. Tendo um gosto pelo horrível, eu estava ansiosa para os feridos chegarem, pois reumatismo não era heroico, tampouco eram reclamações sobre o fígado, ou sarampo. Até mesmo febre tinha perdido seu charme desde que “molhar testas queimando” já tinha sido tão utilizado em romances, reais ou ideais. Mas quando eu vi o que eu inicialmente tinha chamado inocentemente de carros de mercado alinhados na rua escura, descarregando as suas cargas tristes, eu lembrei-me de diversas reminiscências de enfermeiras mais experientes, meu ardor experimentou um súbito resfriamento, e eu cedi ao mais antipatriótico desejo de estar segura em casa novamente, com um dia calmo à minha frente, e sem a necessidade de ser apressada, como se eu fosse uma galinha e tivesse apenas que saltar do meu poleiro, alisar a minha plumagem com o bico, e já estar pronta para a ação. Uma segunda batida na porta mandou esse desejo covarde para longe, e uma pequena cabeça de lã apareceu, e Joey (um “contrabando” de seis anos de idade) anunciou: “A Dona Blank tá uma fera atrás de você e falou para você ir de uma vez. Eles estão vindo, eu tô dizendo, um montão deles — um já tá morto. Eu até vi, tava bem morto mesmo!” E com essa animada inteligência, o diabinho saiu correndo, cantando como um passarinho, e eu o segui, sentindo que Richard não era o mesmo novamente e não seria por um bom tempo. A primeira coisa que eu encontrei foi um regimento dos mais repugnantes odores que já assaltaram um nariz humano, e eu os encarei de frente. Cologne, com seus setenta e sete sabores malignos era um ramalhete de flores comparada a isto. E o pior da milha aflição era que todos me asseguraram de que isso era uma fraqueza crônica dos hospitais, e eu deveria suportar. O que eu fiz, armada com água de lavanda, que eu borrifei em mim mesma e ao meu redor, de tal modo que eu passei a ser conhecida pelos meus pacientes como “a enfermeira com o frasco.” Tendo sido atropelada por três cirurgiões entusiasmados, esbarrada por baldes de carvão, baldes de água e meninos migratórios; quase escaldada por uma avalanche de bules de chá recém enchidos, e irremediavelmente emaranhada com um grupo de irmãs negras vindo para limpar, eu progredia lentamente pela escada para cima e para baixo, até atingir o salão principal, onde parei para respirar e observar. Lá estavam eles! “Nossos bravos meninos,” como os jornais justamente os chamavam, pois covardes dificilmente estariam tão repletos de buracos, tão arrasados e quebrados, nem estariam suportando sofrimento para o qual nem se tem nome, com uma coragem silenciosa, que faria qualquer um alegre em tratar cada um deles como um irmão. Para dentro eles vieram, alguns em macas, alguns sendo apoiados, alguns cambaleando debilmente com muletas improvisadas, e um deitado imóvel com a face coberta, enquanto seu companheiro dava seu nome para ser registrado antes que o carregassem para o necrotério. Tudo era correria e confusão. O salão estava cheio dessas ruínas de humanidade, pois o mais exausto não podia alcançar um leito antes de ser propriamente registrado. Junto às paredes estavam fileiras daqueles que podiam sentar-se, o chão coberto com os mais incapacitados, os degraus e portas cheios de ajudantes e observadores. O som de vários pés e vozes fez daquela hora normalmente quieta, tão barulhenta quanto a tarde. E, no meio disso tudo, a face maternal da enfermeira-chefe trouxe mais conforto para várias pobres almas do que os cordiais papéis que ela administrava, ou as animadas palavras com que dava boas-vindas a todos, fazendo do hospital uma casa. A visão de várias macas, cada uma com o seu ocupante sem uma perna, um braço ou desesperadamente ferido, entrando na minha enfermaria, me informou que eu estava ali para trabalhar, não para fantasiar ou chorar. Assim, eu interrompi meus sentimentos e retornei ao caminho do dever, que era uma dura estrada para viajar naquele momento. A casa tinha sido um hotel antes de hospitais serem necessários, e várias portas ainda levavam seus antigos nomes. Alguns não tão inapropriados quanto se poderia imaginar, pois a minha enfermaria era na realidade um salão, se feridas de revólver pudessem batizá-la. Quarenta leitos tinham sido preparados, várias já estavam ocupados por homens cansados que se deitariam em qualquer lugar, e permaneceriam dormindo até o cheiro de comida acordá-los. Em volta do grande fogão estava reunido o grupo mais triste que eu já tinha visto — esfarrapados, pálidos e esqueléticos, lama até os joelhos, com ataduras ensanguentadas intocadas desde que foram colocadas dias atrás; vários enrolados em cobertores, seus casacos perdidos ou inúteis; e todos exibindo aquele olhar abatido que proclamava a derrota, mais claramente do que qualquer telegrama sobre o erro de Burnside. Eu tinha tanta pena, que eu não ousei falar com eles; mas, lembrando de tudo que eles tiveram que passar desde o caminho para Fredericksburg, eu ansiava em ser útil aos mais tristes deles. Logo, a Srta. Blank me arrancou do meu refúgio atrás de montes de camisas de uma manga só, meias sem par, ataduras e fiapos de roupas, e colocou uma bacia, esponja, toalhas e uma barra de sabão marrom nas minhas mãos, com essas terríveis instruções: “Venha aqui, minha querida, comece a lavá-los o mais rápido possível. Diga a eles para tirarem as meias, casacos e camisas, esfregue-os bem, vista-os com camisas limpas, e os atendentes vão terminar o serviço e colocá-los na cama.” Se ela tivesse me pedido para barbear todos eles, ou dançar o hornpipe em cima da chaminé do fogão, eu teria ficado menos chocada. Mas esfregar as costas de uma dúzia de senhores da criação imediatamente era realmente... realmente... No Entanto, não havia tempo para bobagem. E tendo decidido, quando eu vim, a fazer tudo o que me fosse pedido, eu afoguei os meus escrúpulos na minha bacia, agarrei minha barra de sabão decididamente, e, assumindo um ar profissional, eu dei um toque no primeiro espécime, determinada a cumprir minha tarefa vi et armis se necessário. Eu calhei de acordar um velho irlandês murcho, ferido na cabeça, o que fazia aquela parte de seu corpo estar disposta como um jardim, as ataduras sendo os caminhos, os cabelos os arbustos. Ele estava tão dominado pela honra de ter uma senhorita para lhe dar banho, como ele expressou, que ele não fez nada além de rolar os olhos para cima e me abençoar, em um estilo irresistível que era demais para o meu senso de ridículo; então, nós rimos juntos, e quando eu ajoelhei para retirar os seus sapatos, ele não quis ouvir de mim tocando “essas coisas imundas. Que a sua cama acima seja mais fácil, minha filha, pelo seu trabalho duro durante o dia! Olha, aí estão eles, e por Deus, é difícil dizer o que é mais sujo o pé ou o sapato.” E realmente era. E se ele não tivesse tirado o sapato por mim, eu teria continuado puxando, sob a impressão de que o pé era uma bota, pois calças, meias, sapatos e pernas eram uma massa de lama. Esse quadro cômico produziu uma risada geral, e com esse propício começo, eu retomei minha coragem e comecei a esfregar como qualquer pai asseado numa noite de sábado. Alguns receberam a performance como crianças sonolentas, apoiando suas cabeças cansadas no meu ombro enquanto eu trabalhava. Outros pareciam horrivelmente escandalizados, e vários dos mais brutos coravam como garotas tímidas. Um vestia um saquinho sujo em volta do pescoço, e, quando eu o movi, para lavar o seu peito ferido, eu disse: “Seu talismã não o salvou, hein?” “Bem, eu acredito que sim, moça, pois aquele tiro teria entrado alguns centímetros a mais se não fosse pelo saco de cânfora da minha mãe,” respondeu o alegre filósofo. Outro, com um tiro na bochecha, pediu por um espelho, e quando eu lhe trouxe um, ele encarou sua face inchada com uma expressão dolorosa, enquanto murmurava: “Eu juro por Deus, isso é ruim! Eu não era feio antes, e agora eu estou acabado. Não vai ficar uma cicatriz horrível? O que Josephine Skinner dirá?” Ele olhou para mim com seu único olho de maneira tão apelativa, que eu controlei minhas risadas e lhe assegurei que se Josephine era uma garota de bom senso, ela admiraria a honrosa cicatriz, como uma prova permanente de que ele tinha enfrentado o inimigo, pois todas as mulheres consideravam uma cicatriz a melhor decoração que a face de um bravo soldado poderia exibir. Eu espero que a senhorita Skinner confirme a boa opinião dela que eu tão precipitadamente expressei, mas eu nunca saberei. O próximo cliente era um rapaz bonito, com uma cabeleira castanha encaracolada, e um leve traço de pão de gengibre sobre os lábios, que ele chamava de barba e que defendeu com firmeza, quando o barbeiro sugeriu jocosamente a sua imolação. Ele estava deitado na cama, com uma perna faltando, e com o braço direito tão arruinado que ele deveria obviamente ser o próximo; ainda assim o pequeno sargento estava tão alegre como se não valesse a pena lamentar sobre as suas aflições. E quando uma ou duas gotas de água salgada se misturaram com a minha água de sabão por causa da visão deste jovem corpo, tão estragado e mutilado, o garoto olhou para cima, com um sorriso cativante, apesar de que havia um pequeno tremor nos lábios, e disse: “Não se chateie por minha causa, moça. Eu estou na primeira classe aqui, pois é ótimo poder deitar nessa cama, depois de ser sacudido para cima e para baixo nessas malditas ambulâncias, que fazem uma geleia com o que sobrou de um sujeito. Eu nunca estive num lugar com este antes, e eu acho que esse negócio de banho uma coisa muito divertida para nós, mas eu temo que não seja para vocês damas.” “Essa foi a sua primeira batalha, Sargento?” “Não, moça. Eu já estive em uns seis confrontos, e nunca recebi nenhum arranhão até este último. Mas eu devo dizer que dessa vez o serviço foi muito bem feito. Meu Deus! Que luta vai ser por braços e pernas quando sairmos de nossas sepulturas no dia do Julgamento Final. Você acha que nós conseguiremos os nossos próprios novamente? Se conseguirmos, a minha perna terá que caminhar de Fredericksburg, meu braço daqui, eu imagino, para encontrar o meu corpo onde quer que ele esteja.” A ideia parecia diverti-lo imensamente, pois ele começou a rir alegremente, e eu também. O que certamente fez a nova enfermeira ser considerada uma pecadora desmiolada pelo capelão, que rondava pelo local, informando aos homens que todos eles eram vermes, corruptos de coração, com corpos perecíveis, e almas que poderiam ser salvas apenas pela leitura diligente de certas passagens, e outros exemplos de consolo espiritual igualmente animadores, quando um gole de álcool teria sido preferido. “Eu vou te dizer, moça!” disse uma voz atrás de mim; e, virando- me, eu vi um rústico michigânder, com um braço removido na altura do ombro, e duas ou três balas ainda no corpo — o que ele mencionou depois, tão negligentemente como se fosse um hábito comum de um cavalheiro carregar esse tipo de coisa com ele. Eu fui até ele, e, enquanto eu administrava uma dose de água e sabão, ele sussurrou irado: “Aquele demônio ruivo ali é um rebelde, maldito seja! Você concorda comigo, não? Ele levou um tiro no pé, ou ele teria fugido como o resto do grupo. Não o lave, não dê comida a ele, só deixe ele gritar até ficar cansado. É uma vergonha trazer esses infelizes para cá conosco. E eu vou dizer isso para o sujeito responsável. Ah, se vou!” Eu lamento dizer que eu não dei um sermão moral a respeito do dever de perdoar os inimigos, e sobre o pecado da profanidade, ali mesmo. Pelo contrário, sendo uma abolicionista convicta, eu olhei fixamente para o alto rebelde, que era uma serpente cabeça de cobre, e decidi privadamente jogar sabão nos seus olhos, esfregar seu nariz do jeito errado e escoriar a sua cutícula de modo geral, se eu tivesse que dar banho nele. Minhas amáveis intenções, no entanto, foram frustradas. Pois, quando eu me aproximei, com uma expressão tão cristã quanto os meus princípios permitiam, e perguntei: “Devo deixá-lo mais confortável, senhor?”, tudo o que eu consegui foi um rude: “Não, eu mesmo faço isso.” “Aqui está o seu cavalheirismo sulista,” eu pensei, largando a bacia na frente dele, controlando assim o forte desejo de dar-lhe um batismo sumário, em retribuição pela sua grosseria. Pois a minha cólera cresceu diante dessa rejeição, de uma maneira que teria escandalizado o Dr. Watts. Ele era uma decepção em todos os respeitos (o rebelde, não o abençoado doutor), pois ele não era nem diabólico, nem romântico, nem patético, nem nada de interessante. Apenas um homem gordo e comprido, com uma cabeça parecendo um arbusto em chamas, e um rosto perfeitamente inexpressivo. Então, eu podia odiá-lo sem o menor inconveniente, e passei a ignorar sua existência daquele dia em diante. Ele possuía uma característica redentora, como o chão claramente testemunhava. Suas abluções eram executadas com tanto vigor que a sua cama rapidamente virou uma ilha isolada num mar de espuma, e ele se assemelhava a um tritão encharcado, sofrendo com a falta de uma barbatana. Se limpeza é uma vizinha próxima da santidade, então aquele grande rebelde foi o homem mais santo da minha enfermaria naquele dia. Tendo terminado a nossa lavagem humana e deixado para secar, a segunda sílaba da nossa versão da palavra war-fare foi realizada com sucesso. Grandes bandejas com pão, carne, sopa e café apareceram, e enfermeiras e ajudantes viraram garçons, servindo generosas porções de ração para todos que pudessem comer. Eu posso chamar o meu avental para testemunhar a favor da minha boa vontade no trabalho, pois em dez minutos ele estava reduzido a um cardápio ambulante, apresentando amostras de todos os itens disponíveis ou já consumidos. Era uma cena animadora. O amplo salão com fileiras de camas, cada uma preenchida por um ocupante, o qual água, tesoura e roupas tinham transformado de um horroroso maltrapilho em um herói reclinado, com a cabeça raspada. Matronas, empregadas e “garotos” convalescentes andavam apressadamente para lá e para cá, lutando com garfos e facas, recuando com pratos vazios, marchando e contramarchando, com invariável sucesso, enquanto o choque de colheres atarefadas fez a música mais inspiradora para a nossa carga da Brigada Ligeira: “Camas a sua frente, Camas a sua direita Camas a sua esquerda, Ninguém errou. Recebendo o brilho de almas famintas, Recebendo gritos com tigelas cheias, Sendo cozida por pães do exército, Amanteigados e divididos. Com café e não canhões, Cada um precisa ser satisfeito, Vivendo ou morrendo; Todos os homens imaginavam.” Depois de uma semana de sofrimento, exposição e pouca comida, a refeição foi bastante bem vinda. Rapidamente os rostos começaram a sorrir enquanto a comida, o calor e o descanso faziam seu trabalho. E os entusiasmados agradecimentos eram seguidos de uma descrição mais gráfica da batalha e da retirada que qualquer repórter pago poderia nos dar. Curiosos contrastes entre o trágico e o cômico eram vistos por toda a parte, e alguns episódios emocionantes e ridículos poderiam ter sido gravados naquele dia. Um homem de New Hampshire de 1 metro e oitenta, com uma perna quebrada e perfurada por um projétil tão grande que, se eu não tivesse visto a ferida, teria considerado a história um munchausenismo, me chamou para ajudá-lo, pois ele não podia sentar, e tanto a sua cama quanto a sua barba estavam sendo abundantemente ungidas com sopa. Enquanto eu alimentava o meu grande passarinho com colheradas correspondentes, eu o perguntei como ele se sentiu durante a batalha. “Bem, foi a minha primeira batalha, sabe? Então eu não tenho vergonha de dizer que eu estava um pouco incomodado no começo, era um barulho dos infernos, e se tem uma coisa que eu não gosto é de barulho. Mas quando o meu amigo, Eph Sylvester, caiu, com uma bala na cabeça, eu fiquei irritado e corri para a luta. A nossa parte da batalha não durou muito; então, vários de nós ficamos patrulhando por Fredericksburg, e dando alguma das casas uma boa remexida, até recebermos a ordem para sair daquela bagunça. Alguns de nós correram de volta, mas eu não estava com pressa de correr por ninguém. E, de repente, uma bomba explodiu, bem na nossa frente, e eu tombei, sentindo que eu tinha voado mais alto do que uma pipa. Eu gritei, e os rapazes voltaram para me buscar, bem rápido. Mas o jeito como eles me jogaram por cima das cercas não foi muito delicado, para ser sincero. No dia seguinte eu estava mais preto do que aquele negrinho ali, lambendo os pratos escondido. Esse café é muito bom, não é? Nos dê mais um pouco dele e eu ficarei grato.” Foi o que eu fiz. E depois de dar o último gole, ele disse, com uma esfregada do seu velho lenço sobre a boca e os olhos: “Veja só: eu tenho um par de brincos e um alfinete de lenço que eu vou dar a você, se você aceitar, pois você é a própria Lizy Sylvester, a boa esposa do pobre Eph. Foi por isso que eu a chamei aqui. Não é muito, eu sei, mas eles vão servir para lembrar dos rebeldes.” Escavando em baixo do seu travesseiro , ele produziu um pequeno pacote do que ele chamava “troços”, e galantemente me presenteou com um par de brincos, cada um representando um cacho de uvas enormes, e o alfinete uma cesta de frutos exuberante, grande o suficiente e com cobre o suficiente para ser confundida com um pequeno aquecedor de cama. Sentindo escrúpulos de privá-lo de tão valioso bem, eu aceitei apenas os brincos, e fiquei feliz em partir de forma meio abrupta, quando o meu amigo enfiou o aquecedor no seio de sua roupa de dormir, vendo-o com muita complacência e talvez alguma tenra memória naquele seu coração duro, do amigo que ele tinha perdido. Observando que o homem ao seu lado não tinha tocado no prato, eu ofereci o mesmo serviço que eu tinha executado para o seu vizinho, mas ele balançou a cabeça. “Obrigado, moça. Eu acho que eu nunca mais comerei de novo, pois eu levei um tiro no estômago. Mas eu gostaria de um copo de água, se você não estiver muito ocupada.” Eu corri, mas os baldes de água tinham sido levados para serem enchidos novamente, e demorou um pouco até eles reaparecerem. Eu não esqueci do meu paciente paciente nesse meio tempo e, corri de volta para ele com a primeira caneca cheia. Ele estava dormindo profundamente. Mas algo na sua face cansada e pálida fez eu me aproximar para ouvir a sua respiração. Nenhuma veio. Eu encostei na sua testa: estava fria. Então eu soube que, enquanto ele esperava, uma enfermeira melhor do que eu tinha lhe dado um gole mais frio e o curado com um toque. Eu cobri a face do silencioso adormecido, a quem nenhum som poderia incomodar agora. E, meia hora depois, a cama estava vazia. Parecia uma recompensa pobre para tudo o que ele tinha sacrificado e sofrido — aquela cama de hospital; solitário mesmo numa multidão, pois não havia nenhum rosto familiar para ele olhar pela última vez, nenhuma voz amiga para dizer adeus; nenhuma mão para guiá-lo gentilmente pelo Vale da Sombra; e ele desapareceu, como uma gota naquele mar vermelho em cujo litoral tantas mulheres lamentam. Por um momento eu senti uma amarga indignação diante dessa aparente negligência com o valor da vida, a santidade da morte. E então eu me consolei com o pensamento de que, quando a grande lista de pessoal for chamada, esses homens sem nome poderão ser promovidos acima de vários cujos monumentos registram as estéreis homenagens que ganharam. Depois de todos terem comido, bebido e descansado, os médicos começaram a fazer suas rondas, e eu tive a minha primeira lição na arte de fazer curativos. A cena não era, de modo algum, festiva. Pois o Dr. P, a quem eu servia de ajudante, se pôs a trabalhar com um vigor que logo me convenceu de que eu era um vaso mais fraco, mas nada teria me induzido a admitir isso naquele momento. Ele tinha servido na Crimeia e parecia considerar um corpo arruinado da mesma maneira que ele poderia considerar uma peça de vestuário danificada. E, arregaçando as mangas, ele retirou um estojo de costura de aspecto desagradável. Ele cortava, serrava, remendava e perfurava, com o entusiasmo de um talentoso costureiro cirúrgico, tudo isso ao mesmo tempo em que explicava o procedimento, em termos científicos, para o paciente; o que era, obviamente, extremamente animador e confortável. Havia uma estranha satisfação em assisti-lo, enquanto ele examinava e observava o mecanismo daqueles magníficos corpos, cujos mistérios ele entendia tão bem. Quanto mais intrincada a ferida, mais ele gostava. Um pobre soldado, que tinha perdido ambas as pernas, e estava com o pulmão perfurado por tiros, possuía mais atrações para ele do que doze generais, levemente arranhados em alguma “Retirada Magistral”. E se alguém tivesse aparecido em pequenos pedaços, requisitando ser reunido novamente, ele teria considerado isso uma dispensação especial. As amputações tinham sido reservadas para amanhã, e a mágica misericordiosa do éter não foi considerada necessária naquele dia, então as pobres almas tinham que suportar a dor da melhor maneira que pudessem. É muito bom falar da paciência da mulher, e longe de mim querer arrancar essa pena do seu chapéu, pois só Deus sabe que ela não é permitida usar muitas; mas a resistência paciente daqueles homens, sob as provações da carne, era realmente impressionante. A força deles parecia contagiosa, e raramente um gemido escapava de suas bocas, apesar de que eu frequentemente desejava gemer por eles, quando o orgulho mantinha suas bocas fechadas, enquanto grandes gotas de suor podiam ser vistas em suas testas, e a cama tremia com o incontrolável tremor de seus corpos torturados. Um ou dois irlandeses amaldiçoaram os médicos com a franqueza de sua nação e ordenaram à Virgem que ficasse ao lado deles, como se ela fosse alguém que eles pudessem acertar a pauladas, se não obedecesse. Mas, de modo geral, o trabalho prosseguiu em silêncio, quebrado apenas por algum pedido silencioso por ataduras, instrumentos ou gesso, um suspiro do paciente, ou um murmuro confortador da enfermeira. Já tinha passado do meio dia antes que esses reparos estivessem sequer parcialmente concluídos. E, tendo dado alguma ordem no corpo dos meus rapazes, a próxima missão era cuidar de suas mentes, escrevendo cartas para as almas preocupadas em casa, respondendo a perguntas, lendo jornais, tomando posse de dinheiro e objetos de valor; pois o oitavo mandamento tinha sido reduzido a uma condição bem fragilizada, tanto pelos negros quanto pelos brancos, que ornamentavam o nosso hospital com sua presença. Carteiras, bolsas, miniaturas e relógios foram confiscados, rotulados e entregados para a enfermeira-chefe, para serem devolvidos quando os donos estivessem prontos para marchar para a casa ou para o campo de batalha novamente. As cartas ditadas para mim e revisadas por mim naquela tarde fariam um excelente capítulo para alguma futura história da guerra; pois, assim como “Ensign Spooney” de Thackeray escreveu para a sua mãe antes de Waterloo, elas estavam “cheias de afeição, coragem e má ortografia”. Quase todas dando vívidas descrições da batalha e terminando com uma queda súbita do patriotismo para as provisões, desejando que a “Mamãe”, “Mary Ann” ou “Tia Peters” mandasse algumas tortas, picles, doces e maçãs, “Para o seu querido...” Joe, Sam ou Ned, conforme o caso. O meu pequeno sargento insistiu em tentar rabiscar alguma coisa com a sua mão esquerda, e pacientemente conseguiu produzir umas seis linhas de hieróglifos, que ele me deu para dobrar e enviar, com um rubor de menino, que tinha um vislumbre de “Minha Querida Jane”, desnecessário, para me garantir que o jovem herói tinha sido mais bem sucedido no serviço do Comandante Cupido do que do General Marte. E um adorável romance desabrochou na mente da enfermeira Periwinkle, mas nenhuma outra confidência foi feita naquele dia, pois o Sargento caiu no sono e, julgando pela sua face tranquila, visitou a sua ausente amada na encantadora terra dos sonhos. Às cinco em ponto, um grande sino badalou, e os ajudantes voaram, não para as armas, mas para as suas tigelas, para trazer o jantar, quando um segundo tumulto anunciou que ele estava pronto. Os recém chegados acordaram com o barulho. E eu logo descobri que era necessária uma ferida bem séria para impedir os defensores da fé de comer suas rações. A quantidade que alguns deles sequestraram era incrível, mas quando eu sugeri a possibilidade de ficarmos sem comida à enfermeira chefe, aquela figura maternal exclamou: “Deus os abençoe, por que eles não deveriam comer? É a sua única forma de divertimento. Então, encha todos eles, e, se não houver o suficiente esta noite, eu oferecerei a minha parte para Deus, dando-a para os meninos.” E assim, pegando rapidamente o seu bule de café e prato de torradas, ela satisfez os olhos e estômagos de dois ou três heróis insatisfeitos, servindo-os com uma mão liberal. E eu não tenho a menor dúvida de que, tendo lançado seu pão sobre as águas, ele voltou amanteigado, como uma outra velha senhora de coração grande costumava dizer. Então, veio a visita noturna do médico; a administração de remédios; a lavagem de faces febris; o alisamento de camas desarrumadas; a lavagem das feridas; o canto de canções de ninar; e as preparações para a noite. Às onze, o último trabalho de amor estava feito; o último boa noite tinha sido falado; e, se alguém precisava de uma recompensa por aquele dia de trabalho, eles certamente a receberam, na silenciosa eloquência das longas linhas de rostos, pálidos e serenos nos cômodos escuros, quando os deixamos, seguida pelos olhares gratos que iluminavam nosso caminho para a cama, onde o doce descanso tornava nossos travesseiros macios, enquanto a Noite e a Natureza tomavam nossos lugares, enchendo aquela grande casa de dor com os milagres curativos do Sono, e de sua divina irmã, a Morte. Capítulo IV Uma Noite
Sendo uma apreciadora do lado noturno da natureza, eu logo fui
promovida para o posto de enfermeira do turno da noite, com toda a facilidade para satisfazer o meu passatempo favorito de viver como uma coruja. Minha colega, uma viúva de olhos pretos, me substituía ao amanhecer, nós duas cuidando da enfermaria como as imortais Sairy e Betsey, “uma depois da outra”. Eu geralmente encontrava os meus meninos no estado mental mais alegre que a condição deles permitia, pois era um fato conhecido que a enfermeira Periwinkle detestava tristeza e estava convicta de que aquele que ria mais era o mais certo de se recuperar. No começo do meu reinado, a melancolia e o desânimo prevaleciam; as enfermeiras pareciam preocupadas e cansadas, os homens sombrios ou tristes; e uma conversação no estilo “Ouça! Das tumbas o triste som” era a regra geral. Um estado de coisas que fazia alguém vindo de uma alegre e sociável cidade de Nova Inglaterra sentir-se como se tivesse entrado em um cemitério; e o instinto de autopreservação, sem falar do desejo filantrópico de servir à raça, provocou uma rápida mudança na Enfermaria Nº 1. Mais lisonjeiro do que o elogio mais graciosamente elaborado, mais agradável do que o olhar da maior admiração, era a visão daquela fileira de rostos, todos estranhos para mim até pouco tempo atrás, agora iluminados com sorrisos de boas-vindas ao ver eu me aproximar, aproveitando cada momento, sentindo um orgulho feminino e uma afeição maternal por todos eles. Passávamos as noites lendo em voz alta, escrevendo cartas, cuidando e divertindo os homens, fazendo rondas com o Dr. P., enquanto ele fazia a sua segunda inspeção, refazendo curativos, dando a última dose de remédios e deixando-os confortáveis para as longas horas ainda por vir, até que o sino das nove tocasse, o gás fosse desligado, as enfermeiras do dia terminassem o seu turno, e a minha aventura noturna começasse. Minha enfermaria estava agora dividida em três partes. Com a permissão da enfermeira-chefe, eu separei os pacientes entre o que eu chamava de minha “sala do dever”, minha “sala do prazer” e a minha “sala patética”, e trabalhava em cada uma de uma maneira diferente. Uma eu visitava armada de curativos, ataduras, gesso e pinos; outra, com livros, flores, jogos e conversa fiada; e a terceira, com bules de chá, canções de ninar, consolação e, de vez em quando, uma mortalha. Onde quer que o homem mais doente e desamparado estivesse, lá estaria eu fazendo a minha vigília, visitando os outros quartos frequentemente, para ver se o vigia geral da enfermaria tinha feito o seu dever para com o fogo e as feridas, estas necessitando ser banhadas constantemente. Essa não era a única razão das minhas saídas. Eu também gostava de sair para pegar um ar mais fresco do que os quartos fechados permitiam, pois, devido à estupidez daquele ser misterioso que causa todos os infortúnios neste mundo, as janelas tinham sido pregadas cuidadosamente na parte de cima, e as vidraças inferiores só podiam ser abertas se o clima estivesse ameno, pois os homens estavam bem abaixo delas. Eu sugeri a quebra de alguns painéis aqui e ali, quando apelos constantes ao quartel general se mostraram inúteis, e ordens diárias aos serventes preguiçosos resultaram em nada. Ninguém apoiou a minha sugestão, e os pregos estavam fora do meu alcance, pois, apesar de pertencer à irmandade dos “anjos ministradores”, eu não tinha asas, e podia tanto ter pedido a Escada de Jacó quanto um par de degraus naquele caridoso caos. Um dos fantasmas inofensivos que me faziam companhia era Dan, o vigia, a quem eu via com certa admiração, pois, apesar de estar constantemente na sua presença, eu nunca cheguei a ver o seu rosto claramente, e, se não fosse pelas suas pernas, nunca poderia reconhece-lo, já que raramente nos encontrávamos durante o dia. Essas pernas eram extraordinárias, assim como toda a sua figura, pois ele era de baixa estatura, roliço, e vestido num grande casaco e com um cachecol. Sua barba escondia a parte inferior do rosto, e a aba do chapéu a parte de cima. E tudo que eu consegui descobrir foi um par de olhos sonolentos, e uma voz bem suave. Mas as pernas! — muito longas, muito finas, bem tortas e fracas, parecendo salsichas cinzas na calça apertada, e terminadas em um par de grandes sapatos de pano verdes, parecendo aqueles lixos chineses. Esta figura, deslizando silenciosamente pelos quartos mal iluminados, era sugestiva do espírito de um barril de cerveja montado em dois saca-rolhas, assombrando o velho hotel em busca de seus colegas perdidos, abertos e esvaziados há muito tempo atrás. Outro goblin que frequentemente me aparecia era o atendente da sala patética, que, sendo uma alma fiel, estava sempre acordado cuidando de dois ou três homens, que perambulavam debilmente como bebês, depois que a febre tinha passado. A amável criatura passava o turno da noite preparando jarros de uma temível bebida, que ele dizia ser café, e insistia em compartilhar comigo. Ele entrava com um grande jarro de algo que parecia uma sopa de lama, muito quente, sem nenhum vestígio de creme e com um sabor predominante de melaço, queimado e lata. Tal era a boa vontade e amor ao próximo que ele colocava na coisa, que eu nunca tive coragem de recusar e, pelo contrário, aceitava agradecida, tomando um gole com um prazer fingido enquanto ele permanecia e jogando tudo no lixo no instante em que ele saía, gratificando-o e garantindo uma boa risada, de modo que ninguém saía perdendo nessa transação, com exceção dos porcos. Se eles tinham sido “aniquilados prematuramente pelos seus pecados”, ou não, eu me abstive de perguntar. Era uma vida estranha: dormindo metade do dia, explorando Washington na outra metade, e pairando durante a noite toda, como um enorme querubim num véu vermelho, sobre os filhos adormecidos dos homens. Eu gostava, e encontrei várias coisas para me divertir, ensinar e ocupar. Apenas os roncos já davam um bom estudo, variando de um leve fungar a uma estentórea bufada, cujo eco assustava o próprio executor e o levantava ereto para acusar o vizinho do ato, perdoá-lo magnanimamente e, enrolando o lençol da cama em volta de si, deitar-se para um sono vocal. Depois de uma semana escutando esta orquestra de instrumentos de sopro, eu passei a acreditar que eu poderia reconhecer cada um pelo ronco apenas, e fiquei tentada a me unir ao coro com o hino favorito de John Brown: “Sopre o seu trompete, sopre!” Eu teria dado muito para ser capaz de desenhar, pois alguns dos rostos tornavam-se extremamente interessantes quando inconscientes. Alguns ficavam sérios e sombrios, os homens evidentemente estavam sonhando com a guerra, dando ordens, lamentando-se sobre suas feridas ou amaldiçoando os rebeldes vigorosamente. Alguns tornavam-se tristes e infinitamente patéticos, como se a dor suportada em silêncio durante o dia todo se vingasse agora, revelando o que o orgulho do homem tinha escondido tão bem. Frequentemente os mais severos se tornavam jovens e simpáticos quando o sono suavizava as linhas duras da face, deixando a sua verdadeira natureza se afirmar. Vários pareciam praticamente falar, e eu aprendi a entender mais sobre esses homens à noite do que durante qualquer conversa durante o dia. De vez em quando, eles me decepcionavam, quando rostos que pareciam bons e alegres na luz do dia, tornavam-se ruins e malignos nas sombras. E, apesar de eles não fazerem nenhuma confidência em palavras, eu lia suas vidas, e os deixava confusos com a mudança de atitude que essa mágica da meia noite tinha provocado na sua enfermeira. Alguns falavam energeticamente; um jovem percussionista cantava docemente, embora nenhum argumento o convencesse a cantar durante o dia. Pela manhã, vários queriam saber sobre o que tinham falado. Até mesmo as minhas caminhadas pelos corredores gelados tinham um certo charme, pois a casa nunca estava parada. Sentinelas marchavam em volta dela a noite toda, seus mosquetes reluzindo na luz da lua de inverno enquanto eles andavam, ou ficavam de guarda na frente das portas, eretos e silenciosos, como estátuas, provocando visões românticas de fortificações guardadas, surpresas súbitas e feitos ousados; pois nestes tempos de guerra, o tédio da vida cotidiana dos ianques tinha desaparecido, e até o mais prosaico indivíduo sentia um pouco daquela emoção que agita o coração da nação, e transforma sua capital num campo de hospitais. Andando para cima e para baixo pelos corredores inferiores, eu frequentemente ouvia gritos vindo de cima e passos se apressando de um lado para o outro, via médicos subindo as escadas, ou homens descendo carregando numa maca uma figura branca e longa, cuja luta tinha terminado. De vez em quando, eu parava para observar as pessoas andando pela rua, com a luz da lua iluminando a torre à frente, ou o brilho de algum barco flutuando, como uma gaivota de asas brancas, no amplo rio Potomac, cujo incrível fluxo é incapaz de lavar a mancha vermelha da terra. A noite que eu escolho registrar começou com um pouco de comédia e terminou com uma grande tragédia; pois, quando uma vida virtuosa e útil chega ao fim, é sempre uma tragédia para aqueles que não veem como Deus. Meu quartel general ficava ao lado da cama de um garoto de Nova Jersey, enlouquecido pelos eventos daquele terrível sábado. Uma leve ferida no joelho o tinha trazido aqui, mas a sua mente tinha sofrido mais do que o seu corpo. Alguma peça naquela delicada máquina tinha sido colocada sob pressão demais, e por dias ele tinha revivido, em sua imaginação, as cenas que ele não podia esquecer, até que sua aflição explodia em delírios incoerentes, tristes de ver. Enquanto eu sentava ao seu lado, buscando acalmá-lo tocando com a mão úmida a sua testa quente, ele animava seus colegas, chamava-os de volta, e os contava quando eles caíam ao seu redor, frequentemente apertando o meu braço, para me afastar de perto de um projétil explodindo, ou colocando a mão na cabeça para se proteger dos estilhaços de um tiro, seu rosto brilhando com a febre; seus olhos agitados; sua cabeça sempre se movendo; todos os músculos tensos e rígidos, enquanto uma corrente de gritos desafiantes, avisos sussurrados, e lamentações emocionadas jorravam de seus lábios, com aquela terrível desorientação que faz tais devaneios tão difíceis de ouvir. Já tinha passado das 11 horas, e o meu paciente estava lentamente se esgotando em intervalos irregulares de quietude, quando, numa dessas pausas, um curioso som me chamou a atenção. Olhando para trás, eu vi um fantasma de uma perna só, pulando agilmente pela sala. Indo ao seu encontro, eu reconheci um certo cavalheiro da Pensilvânia, cuja febre por conta dos ferimentos tinha piorado, privando-o dos poucos vestígios de inteligência que ele ainda possuía depois de uma campanha bêbada, e o deixando literalmente dançando “na direção de casa”, como ele me informou calmamente, tocando no seu boné militar, que causava um contraste enorme com a profunda simplicidade do resto de sua não- vestimenta. Quando são, o menor movimento produzia um urro de dor ou uma torrente de imprecações. Mas a partida da razão parece ter causado nele uma agradável mudança, pois, equilibrando-se numa perna só, como uma cegonha meditativa, ele mergulhou numa animada discussão sobre a guerra, o presidente, rifles Enfield, ignorando os meus argumentos sobre os benefícios de voltar para a cama, para evitar ser julgado pela corte marcial como desertor. Era difícil de imaginar alguma coisa mais ridícula do que esta figura, escassamente coberta de branco, seu único pé enfiado numa grande meia azul, um boné sujo colocado torto na sua cabeça careca, e uma plácida satisfação brilhando em sua ampla face vermelha, enquanto carregava uma caneca em uma mão, uma velha bota na outra, chamando-as de cantil e mochila, pulando e se agitando da maneira mais fantástica. O que fazer com essa criatura eu não sabia. Dan não estava, e se eu saísse para chamá-lo, a alma perambulante poderia se pendurar do lado de fora da janela, atear fogo na sua toga, ou fazer alguma travessura com os seus vizinhos. O atendente da sala estava dormindo como um parente próximo dos celebrados Sete, e nada menos do que alfinetes o fariam levantar; pois ele tinha saído naquele dia, e o uísque afirmava a sua supremacia em perfumadas baforadas. Ainda declamando, numa fina eloquência, o louco cavalheiro pulava, cego e surdo para os meus apelos e súplicas; e eu estava prestes a bater a porta na sua cara e correr para pedir ajuda, quando um segundo fantasma mais são, “todo em branco”, veio ao meu resgate, na forma de um prussiano que não falava nem um pouco de inglês, mas adivinhou a crise e colocou um fim nela, prendendo o animado homem de um pé só em sua cama, como um bebê, com um comando autoritário para “ficar ali”, que tinha um peso adicional por ser proferido em uma estranha mistura de francês e alemão, acompanhado de sacudidas de uma cabeça adornada com uma touca de dormir de algodão amarela, tornada mais imponente devido a uma borla parecida com um cordão de campainha. Bastante cansado com a sua excursão, o cavalheiro da Pensilvânia se aquietou; e, depois de uma irresistível risada juntos, meu aliado prussiano e eu estávamos voltando aos nossos lugares, quando o eco de um soluço nos fez olhar para as camas. O som vinha de um canto — que cama pequena! — e uma face pequena e chorosa nos olhou quando paramos do lado da cama. O percursionista de doze anos não estava mais cantando, mas chorando, fazendo um esforço viril para reprimir os angustiantes sons que emitia. “O que foi, Teddy?”, eu perguntei, enquanto ele esfregava o rosto para secar as lágrimas, e tentando se recompor no meio de um grande soluço para responder queixosamente: “Eu estou com um calafrio, moça, mas eu não estou chorando por causa disso, porque eu já me acostumei. Eu sonhei que Kit estava aqui, e quando eu acordei ele não estava, e eu não pude evitar...” O garoto tinha vindo com os outros, e o homem que tinha sido tirado morto da ambulância era o Kit por quem ele chorava. Bom, deve ter sido; pois, quando os feridos foram trazidos de Fredericksburg, o menino estava deitado em um dos campos ao redor, e este bom amigo, apesar de ele próprio estar machucado, não o abandonou num lugar tão negligenciado e aberto; mas, envolvendo-o em seu próprio cobertor, carregou-o em seus braços até o transporte, cuidou dele durante a viagem, e só abandonou sua carga quando a Morte o encontrou às portas do hospital que prometia cuidado e conforto ao menino. Por dez dias, Teddy tinha tremido ou queimado de febre, o tempo todo ansiando por Kit, e recusando-se a ser confortado por não ter sido capaz de agradecê- lo pela generosa proteção, que talvez tenha custado a vida de seu doador. O vívido sonho tinha apertado o coração do jovem com uma nova dor, e quando eu tentei lhe oferecer um consolo adequado à sua idade, o arrependimento que o assombrava encontrou expressão em uma nova torrente de lágrimas, enquanto ele olhava para as mãos magras que eu estava tentando aquecer. “Oh, se eu estivesse tão magro quando o Kit me carregou quanto eu estou agora, talvez ele não tivesse morrido; mas eu estava pesado, e ele estava mais machucado do que sabíamos, então isso o matou. E eu não o vi para dizer adeus.” Esta ideia o tinha perturbado em segredo; e as minhas garantias de que o amigo dele provavelmente morreria de qualquer maneira, fizeram pouco para atenuar a amargura de seu luto arrependido. Neste momento, o homem delirante começou a gritar; o homem de uma perna só se levantou de sua cama, como se estivesse se preparando para uma nova corrida; Teddy chorou de maneira mais patética do que antes: e se alguma vez já existiu uma mulher no limite de sua paciência, essa distraída mulher era a enfermeira Periwinkle, durante dois ou três minutos, enquanto ela vibrava entre as três camas, como um agitado pêndulo. Dan, o curvado, apareceu no momento mais oportuno para oferecer reforços, e entrou na animada festa, me oferecendo a oportunidade de voltar ao meu posto. O prussiano, com um aceno de cabeça e um sorriso, levou o rapaz para a sua própria cama e o embalou para dormir com um murmúrio calmante, como uma abelha gigantesca. Eu gostava disso em Fritz, e se alguma vez ele se perguntou o porquê das guloseimas que de vez em quando enfeitavam o seu prato, ou dos confortos extras da sua cama, ele pode ter encontrado a resposta para o mistério através do conhecimento de diversas pessoas das suas ações paternais naquela noite. Eu mal tinha sentado novamente, e a inevitável tigela apareceu, e o seu portador proferiu a mensagem que eu esperava, mas temia receber. “John está indo, moça, e ele quer te ver, se você puder vir.” “Quando este menino estiver dormindo; diga a ele. E me avise caso eu esteja correndo o risco de chegar tarde demais.” Meu Ganímedes partiu, e enquanto acalmava o pobre Shaw, eu pensava em John. Ele chegou um ou dois dias depois dos outros; e, numa tarde, quando eu entrei na minha “sala patética,” encontrei uma cama que tinha sido desocupada recentemente ocupada agora por um homem grande, com um rosto bonito e os olhos mais serenos que eu já vi. Um dos homens que tinha chegado primeiro tinha falado com frequência de um amigo que tinha ficado para trás, para que aqueles feridos mais gravemente do que ele pudessem alcançar abrigo primeiro. Era o tipo de amizade que me fazia pensar em Davi e Jônatas. O homem se afligia por seu amigo, e nunca cansava de elogiá-lo — sua coragem, sobriedade, abnegação e uma bondade infalível; sempre terminando com: “Ele é um sujeito dos melhores, moça, você vai ver.” Eu tive um pouco de curiosidade de contemplar este exemplar de excelência, e quando ele veio, eu o observei por uma noite ou duas, antes de fazer amizade com ele; pois, para falar a verdade, eu estava com um pouco de medo daquele homem majestoso, cuja cama teve que ser alongada para acomodar a sua imponente estatura; que raramente falava, nunca reclamava, não pedia por nenhuma simpatia, mas observava com tranquilidade o que acontecia ao seu redor. E, enquanto ele estava deitado em seus travesseiros altos, nenhuma imagem de nenhum guerreiro ou político moribundo esteve mais cheia da verdadeira dignidade do que a deste ferreiro da Virgínia. Ele tinha um rosto dos mais atraentes, emoldurado em cabelos e barba castanhos, bem apresentado e cheio de vigor, ainda não subjugado pela dor; atencioso e lindamente absorto ao observar a dor dos outros, como se tivesse esquecido completamente da própria. Sua boca era solene e firme, com linhas que revelavam bastante determinação e coragem, mas um sorriso podia fazê-la tão doce quanto uma boca feminina; e seus olhos eram olhos de criança, que olhavam você diretamente, com um olhar claro e honesto, que prometia muito a quem colocava fé nele. Ele parecia se agarrar à vida, como se esta fosse rica em deveres e prazeres, e ele tivesse aprendido o segredo da felicidade. A única ocasião em que eu vi a sua compostura ser abalada, foi quando o meu médico trouxe outro para examiná-lo, e John escrutinou os rostos deles com um olhar ansioso, e perguntou ao mais velho: “O senhor acha que eu vou sobreviver?”, “Eu espero que sim, meu rapaz.” E, quando os dois saíram, os olhos de John os seguiram, com uma expectativa que teria conseguido uma resposta mais clara deles, caso eles tivessem visto. Uma sombra temporária passou pela sua face, e então veio a tranquilidade usual, como se, durante aquele breve eclipse, ele tivesse reconhecido a existência de alguma difícil possibilidade e, pedindo por nada, mas esperando todas as coisas, deixou o assunto nas mãos de Deus, com aquela submissão que é a verdadeira devoção. Na noite seguinte, enquanto eu fazia as minhas rondas com o Dr. P., eu o perguntei qual homem daquela sala provavelmente sofria mais. Para a minha surpresa, ele olhou para John: “Cada vez que ele respira é como uma punhalada, pois o projétil perfurou o pulmão esquerdo, quebrou uma costela e causou mais algum dano aqui e ali. Então, o pobre rapaz não pode encontrar esquecimento e nem paz, pois ele precisa deitar com as costas feridas ou sufocar. Vai ser uma batalha dura e longa, pois ele possui muita vitalidade; mas mesmo a sua vida temperada não poderá salvá-lo agora. Eu gostaria que pudesse.” “Você quer dizer que ele vai morrer, doutor?” “Minha querida, ele não tem a menor chance. E é melhor você contar para ele o mais rápido possível. As mulheres têm uma maneira de fazer esse tipo de coisa confortavelmente, por isso eu deixo essa tarefa nas suas mãos. Ele não durará mais do que um dia ou dois, no máximo.” Eu poderia ter sentado e começado a chorar naquele momento, se eu não tivesse aprendido a sabedoria de engarrafar as lágrimas para os momentos de lazer. Tal fim parecia bem inapropriado para tal homem, quando meia dúzia de corpos inúteis e gastos ao redor dele estavam reunindo as sobras de vidas desperdiçadas, para sobreviver por anos talvez, um fardo para os outros, uma censura diária para si mesmos. O exército precisava de homens como John, sérios, corajosos e leais; lutando pela liberdade com o coração e com o braço, verdadeiros soldados do Senhor. Eu não poderia desistir dele tão cedo, ou pensar com paciência em uma natureza tão excelente sendo roubada da sua realização e atirada na eternidade pela estupidez ou imprudência daqueles em cujas mãos repousa o destino de tantas vidas. Era fácil para o Dr. P. dizer: “Diga a ele que ele deve morrer,” mas isso era uma coisa extremamente difícil de se fazer, e de maneira nenhuma “confortável” como ele polidamente sugeriu. Eu não tinha coragem de fazê-lo então, e privadamente me entreguei à esperança de que alguma mudança para o melhor poderia acontecer, apesar das profecias sombrias, tornando a minha tarefa desnecessária. Alguns minutos depois eu entrei novamente, com ataduras novas, e vi John sentado ereto, sem ninguém para suportá-lo, enquanto o médico examinava as suas costas. Eu nunca vi isso sendo feito novamente, pois, tendo feridas mais simples para cuidar, e sabendo da fidelidade do tratador, eu deixei John para ele, pensando que assim poderia ser mais agradável e seguro; pois tanto força quanto experiência eram necessárias no caso dele. Eu tinha esquecido que o homem forte pode sentir falta do zelo gentil de uma mão feminina, do magnetismo acolhedor da presença de uma mulher, tanto quanto as almas mais fracas ao seu redor. As palavras do doutor fizeram eu me acusar de negligência, não de nenhum dever verdadeiro, mas daqueles pequenos cuidados e gentilezas que confortam espíritos saudosos, e fazem as longas horas passarem mais facilmente. John parecia solitário e desconsolado naquele momento, enquanto sentava com a cabeça curvada, mãos sobre o joelho, e sem nenhum sinal externo de sofrimento, até que, olhando mais de perto, eu vi suas lágrimas rolarem e caírem no chão. Foi uma visão nova para mim, pois, apesar de já ter visto vários homens sofrerem, alguns praguejavam, alguns gemiam, a maioria aguentava em silêncio, mas nenhum chorava. Ainda assim não parecia fraqueza, era apenas comovente. Imediatamente o meu medo desapareceu, o meu coração abriu-se para ele, e eu segurei a sua cabeça curvada em meus braços, tão livremente como se ele fosse uma criança pequena, e disse: “Deixe-me ajudá-lo a suportar, John.” Nunca, no semblante de nenhum ser humano, eu tinha visto uma expressão tão bonita de gratidão, surpresa e conforto, como aquele que me respondeu, de maneira mais eloquente do que o sussurrado: “Obrigado, moça. Isso é bom. Era isso que eu queria!” “Então por que não pediu antes?” “Eu não queria incomodar. Você parecia ocupada, e eu podia continuar sozinho.” “Você não vai mais querer isso, John.” E ele realmente não queria. Pois agora eu entendi o olhar melancólico que às vezes me seguia, quando eu saía, depois de uma breve pausa ao lado de sua cama, ou um mero aceno com a cabeça, enquanto ocupada com aqueles que pareciam precisar de mim mais do que ele, por causa da maior urgência em seus pedidos; agora eu sabia que para ele, como para muitos, eu era a pobre substituta da mãe, esposa ou irmã, e não uma estranha em seus olhos, mas uma amiga, que até aquele momento tinha parecido negligente; pois, em sua modéstia, ele nunca tinha adivinhado a verdade. Isso tinha mudado agora. E, através da tediosa operação de examinar, banhar e cobrir suas feridas, ele se apoiava em mim, segurando firme a minha mão, e, se a dor o fez derramar mais lágrimas, ninguém mais as viu cair além de mim. Quando ele foi deitado novamente, eu pairei em volta dele, num estado de arrependimento que não me deixava descansar, até que eu banhei a sua face, escovei seus bonitos cabelos castanhos, amaciei todas as coisas ao seu redor, e botei um galhinho de urze no seu travesseiro limpo. Enquanto eu fazia isso, ele olhava para mim com uma expressão satisfeita que eu adorei ver. Quando eu ofereci o pequeno ramalhete, ele segurou nas suas mãos grandes, desamassou uma ou duas folhas, inspecionou e cheirou com um ar de genuína satisfação, e deitou contente, contemplando o reflexo da luz do sol sobre o verde. Mesmo sendo o mais viril de meus quarenta homens, ele dizia “Sim, moça” como um garotinho; recebia sugestões para o seu conforto com o sorriso rápido que iluminava toda a sua face; e, de vez em quando, enquanto eu arrumava a mesa ao lado de sua cama, eu o sentia tocar suavemente o meu vestido, como se quisesse confirmar que eu estava ali. Eu nunca vi nada tão natural e franco, e eu descobri que esse John era tão tímido quanto bravo, mas cheio de excelências e nobres aspirações, as quais, não encontrando nenhuma maneira de se expressar em palavras, floresceram em seu caráter e fizerem dele o que ele era. Depois daquela noite, uma hora de cada noite que restava a ele foi devotada ao seu conforto ou prazer. Ele não podia falar muito, pois o fôlego era precioso, e ele falava em sussurros; mas através de conversas ocasionais, eu obtive pequenos detalhes de uma história privada que só intensificaram a afeição e o respeito que eu tinha por ele. Uma vez ele me pediu para escrever uma carta, e, enquanto preparava a caneta e o papel, eu disse com uma irreprimível curiosidade feminina, “Deve ser endereçada à esposa ou mãe, John? “Nenhuma das duas, moça. Eu não sou casado, e vou escrever para a minha mãe eu mesmo, quando melhorar. Você achou que eu era casado por causa disso?”, ele perguntou, tocando num anel simples que ele usava e frequentemente virava no dedo, pensativo, quando estava sozinho. “Em parte por causa disso, mas mais por causa de uma certa aparência resolvida que você tem, uma aparência que os homens jovens raramente têm até casarem.” “Eu não sei nada disso. Mas eu não sou tão novo, moça. Trinta anos em maio. E eu tenho sido o que você pode chamar de resolvido pelos últimos dez anos. Minha mãe é viúva, eu sou o filho mais velho que ela tem, e eu não posso casar até que a Lizzy tenha uma casa, e Laurie tenha aprendido um ofício; pois nós não somos ricos, e eu preciso ser pai para as crianças e marido para a querida velhinha, se eu puder.” “Sem dúvidas você é os dois, John; mas como você acabou indo para a guerra? Se alistar não era tão ruim quanto casamento?” “Não, moça, não do meu ponto de vista. Pois em um caso eu estou ajudando ao próximo, e no outro a mim mesmo. Eu fui para a guerra porque eu não pude evitar. Eu não queria a glória ou o dinheiro; eu queria que a coisa certa fosse feita, e as pessoas continuavam dizendo que aqueles homens que fossem sérios deveriam lutar. Eu era sério, Deus sabe disso, mas eu adiei o máximo possível, não sabendo qual era o meu dever; minha mãe viu o caso, me deu o seu anel para me dar coragem e disse: “Vá”, então eu fui.” Uma história curta e simples, mas o homem e a mãe foram retratados de maneira melhor do que em páginas e páginas de escrita bonita. “Você se arrepende de ter vindo, agora que está deitado aqui sofrendo tanto?” “Não, moça. Eu não ajudei muito, mas eu mostrei que eu estava disposto a sacrificar a minha vida, e talvez eu tenha que fazer isso. Mas eu não culpo ninguém, e se tivesse que fazer tudo de novo, eu faria. Eu acho uma pena que eu não tenha sido ferido de frente. Parece covarde ser atingido nas costas, mas eu obedeci às ordens, e no fim isso não importa, eu sei.” Pobre John! Não tinha importância agora, exceto que um tiro de frente poderia ter lhe poupado a longa agonia reservada para ele. Ele pareceu ler o pensamento que me perturbava, enquanto ele falava com tanta esperança, pois ele adicionou de repente: “Esta foi a minha primeira batalha. Eles acham que será a minha última?” “Eu temo que sim, John.” Esta foi a questão mais difícil que eu já tive que responder; duplamente difícil com aqueles olhos claros fixados em mim exigindo uma resposta honesta pela sua própria sinceridade. Ele pareceu um pouco assustado a princípio; ponderou o trágico fato por um momento e então balançou a cabeça, com um olhar para o peitoral largo e para os membros musculares esticados em sua frente: “Eu não estou com medo, mas é difícil de acreditar. Eu sou tão forte, e não parece possível que uma ferida tão pequena seja capaz de me matar.” As palavras finais do alegre Mercúcio me vieram à mente enquanto ele falava: “Não é tão fundo quanto um poço, nem tão largo quanto uma porta de igreja, mas é suficiente.” E John teria dito a mesma coisa se ele fosse capaz de ver os sinistros buracos negros entre seus ombros, mas ele nunca pôde. E, olhando para as horríveis cenas ao seu redor, ele não podia acreditar que a sua própria ferida fosse mais fatal do que aquelas, mesmo com todo o sofrimento que lhe causava. “Devo escrever para a sua mãe agora?” eu perguntei, pensando a notícia repentina fosse alterar todos os seus planos e propósitos; mas ela não alterou. O homem recebeu a ordem do comandante divino para marchar com a mesma obediência incondicional que o soldado tinha recebido a do comandante humano, sem dúvidas lembrando que o primeiro o tinha guiado à vida, e o último à morte. “Não, moça. Para Laurie, do mesmo jeito. Ele dará a notícia melhor, e eu adicionarei uma linha no final para ela eu mesmo, quando você tiver terminado.” Assim, eu escrevi a carta que ele ditou, considerando-a melhor do que todas que eu já tinha enviado; pois, apesar de ser um pouco inelegante ou não gramatical aqui e ali, cada sentença vinha a mim breve, mas bastante expressiva, cheia de excelentes conselhos para o garoto, carinhosamente passando “Mamãe e Lizzie” para os seus cuidados, e dando-lhe adeus em palavras tornadas mais tristes por sua simplicidade. Ele acrescentou algumas linhas, com uma mão firme e, enquanto eu selava a carta, com um suspiro paciente, “Eu espero que a resposta venha a tempo de eu vê-la,” então, virando o rosto, colocou as flores na frente dos lábios, como se para esconder algum estremecimento de emoção diante de uma separação tão súbita de todos os queridos laços com a família. Essas coisas tinham acontecido dois dias atrás; agora John estava morrendo, e a carta não tinha chegado. Eu já tinha sido chamada para vários leitos de morte, mas nenhum tinha me causado tanta dor quanto eu sentia naquele momento, desde que a minha mãe tinha me chamado para assistir à partida de um espírito aparentado a este em sua gentileza e força paciente. Quando eu entrei, John estendeu ambas as mãos: “Eu sabia que você viria! Acho que eu estou partindo, moça.” Ele estava. E tão rapidamente que, mesmo enquanto ele falava, eu via cair o véu cinza que nenhuma mão humana pode levantar. Eu me sentei ao seu lado, sequei as gotas de suor em sua testa, abanei-o suavemente com um leque, e esperei para ajudá-lo a morrer. Ele estava em extrema necessidade de ajuda — e eu podia fazer tão pouco. Como o médico tinha previsto, o corpo forte se rebelava contra a morte e lutava a cada centímetro do caminho, forçando-o a respirar com um espasmo e cerrar suas mãos firmemente com um olhar suplicante, enquanto perguntava: “Por quanto tempo devo suportar isso e ficar parado?” Por horas ele sofreu em silêncio, sem um momento de descanso, ou um momento de murmúrio; seus membros foram ficando frios, sua face úmida, seus lábios brancos, e várias vezes ele removeu a coberta que cobria seu peito, como se o mínimo peso acrescentasse a sua agonia. Mesmo assim, por tudo isso, seus olhos nunca perderam sua perfeita serenidade, e a alma do homem parecia residir ali, inabalada por todos os males que afligiam a sua carne. Um por um, os homens acordaram, e ao redor da sala apareceu um círculo de rostos pálidos e olhos atentos, cheios de admiração e pena; pois, apesar de ser um estranho, John era amado por todos. Cada homem ali tinha se maravilhado com a sua paciência, respeitado sua devoção, admirado sua força, e agora lamentava a sua morte: pois a influência de uma natureza correta tinha sido sentida profundamente, mesmo em apenas uma semana. Em pouco tempo, o Jônatas que tanto amava o seu bonito Davi, veio arrastando-se de sua cama para um último olhar e uma última palavra. A pobre alma estava cheia de angústia, como sua voz embargada, ou o aperto de sua mão revelavam; mas não houve lágrimas, e a despedida dos amigos foi ainda mais emocionante por sua brevidade. “Como vai, velho amigo?”, disse um, vacilante. “Quase acabado, graças a Deus!”, sussurrou o outro. “Posso dizer ou fazer qualquer coisa para você em qualquer lugar?” “Leve as minhas coisas para casa e diga que eu dei o meu melhor.” “Eu irei! Eu irei!” “Adeus, Ned.” “Adeus, John, adeus!” Os dois se beijaram, tão ternamente como mulheres, e assim se separaram, pois o pobre Ned não podia ficar para ver o seu companheiro morrer. Por algum tempo, não houve som nenhum no quarto além do gotejar da água e dos angustiantes suspiros de John, enquanto sua vida se esvaía lentamente a cada respiração. Eu achei que ele estava quase no fim, e tinha acabado de abaixar o leque, acreditando que sua ajuda não era mais necessária, quando subitamente ele se levantou de sua cama e deu um grito amargo que quebrou o silêncio, assustando a todos com seu apelo agonizante: “Pelo amor de Deus, me dê ar!” Foi o único grito que a dor ou a morte tiraram dele, o único favor que ele tinha pedido; e nenhum de nós poderia concedê-lo, e todo o ar que soprava agora era inútil. Dan escancarou a janela. A primeira faixa vermelha do alvorecer estava aquecendo o cinzento leste, anunciando a chegada do sol. John viu, e com o amor pela luz que permanece em nós até o fim, pareceu ler nela um sinal de ajuda, pois, por toda a sua face formou-se aquela misteriosa expressão, mais brilhante do que qualquer sorriso, que frequentemente surge nos olhos que veem pela última vez. Ele se deitou gentilmente; e, esticando o seu forte braço direito, como se para agarrar aquele abençoado ar e trazê-lo para os seus lábios num fluxo maior, caiu numa misericordiosa inconsciência, que nos garantiu que o seu sofrimento tinha passado. Ele morreu então; pois, apesar de a sua respiração pesada continuar irrompendo até a superfície por mais algum tempo, eram apenas as ondas de uma maré baixa batendo sem serem sentidas contra os destroços que um viajante imortal tinha desertado com um sorriso. Ele não falou novamente, mas segurou a minha mão firme até o fim, tão firme que quando ele estava finalmente dormindo, eu não consegui retirá-la. Dan me ajudou, me avisando enquanto o fazia que era perigoso que carne viva e morta ficassem em contato por tanto tempo. Mas, apesar de a minha mão estar estranhamente gelada e rígida, e quatro marcas brancas permanecessem atrás dela, quando o calor e a cor já tinham retornado em outros lugares, eu estava apenas feliz que, através do seu toque, a presença do calor humano tenha, de alguma forma, aliviado aquela hora difícil. Quando eles o tinham preparado para a sepultura, John foi velado por meia hora, algo que raramente acontecia naquele lugar ocupado; mas um sentimento universal de reverência e afeição parecia encher os corações de todos que o conheciam ou tinham ouvido falar dele; e quando o rumor de sua morte atravessou a casa, sempre agitada, vários vieram para vê-lo, e eu senti um tenro orgulho de meu paciente perdido; pois ele parecia incrivelmente heroico, deitado ali, imóvel e majestoso, como a estátua de algum jovem cavaleiro adormecido em seu túmulo. A linda expressão que frequentemente embeleza a face dos mortos logo substituiu as marcas da dor, e eu desejava que aqueles que mais o amavam pudessem vê-lo quando meia hora de contato com a Morte os tinha tornado amigos. Enquanto nós estávamos olhando para ele, o chefe da enfermaria me entregou uma carta, dizendo que ela tinha sido esquecida na noite anterior. Era a carta de John, chegando apenas uma hora atrasada para alegrar os olhos que ansiavam por ela tão intensamente. Mas ele a teve; pois, depois de cortar algumas mechas castanhas para a sua mãe e retirar o anel para enviá-la, dizendo quão bem o talismã tinha executado o seu trabalho, eu beijei esse bom filho em nome dela, e coloquei a carta em sua mão, ainda fechada como quando eu tirei a minha, sentindo que o lugar dela era ali, e me fazendo feliz com a ideia de que, mesmo na sua posição solitária no “lote do governo”, ele não estaria sem uma lembrança do amor que torna a vida bonita e sobrevive a morte. Então, eu o deixei, feliz de ter conhecido um homem tão genuíno, e carregando comigo a memória duradoura do bravo ferreiro de Virgínia, enquanto ele deitava serenamente esperando pelo alvorecer daquele longo dia que não conhece a noite. Capítulo V Fora de Serviço
“Minha querida, você ficará doente, a não ser que se mantenha
aquecida e quieta na sua cama por alguns dias. A viúva Wadman pode cuidar da enfermaria sozinha, agora que os homens estão tão confortáveis, e tirar as férias dela quando você voltar. Agora, seja prudente e não me obrigue a adicionar uma Periwinkle ao meu buquê de pacientes.” Esse conselho foi dado, num tom paternal, pelo médico mais novo do hospital, um bondoso cavalheiro, que parecia me considerar uma frágil jovem florzinha, que precisava de muita estima, ao invés de uma dura solteirona, que tinha vagado pelo mundo por trinta anos. No tempo sobre o qual eu escrevo, ele me descobriu sentada na escada, com uma bela nuvem de uma fumaça insalubre saindo do banheiro; uma festa de brisas de janeiro se divertindo nos corredores; e perfumes, que não eram de modo algum da “abençoada Arábia”, fazendo-lhes companhia; enquanto eu sofria um acesso de tosse, que fez a minha cabeça girar de uma maneira que a aplicação de um corrimão gelado se fez necessária e agradável, enquanto eu esperava os ventos brincalhões restaurarem o ar que eu tinha perdido; me animando, enquanto isso, com a convicção secreta de que pneumonia me esperava dentro de pouco tempo. Esse conselho tinha sido oferecido por várias pessoas por uma semana, e rejeitado por mim com a obstinação com a qual o meu sexo é tão abundantemente dotado. Mas as últimas horas trouxeram vários surpreendentes fenômenos internos e externos, que me convenceram do fato de que, se eu não fizesse uma retirada logo, eu iria tombar em algum canto, e teria que ser carregada de maneira ignominiosa do campo. Minha cabeça parecia uma bala de canhão; meus pés tinham uma tendência de aderir ao chão; as paredes ondulavam às vezes da maneira mais desagradável; as pessoas pareciam anormalmente grandes; e os próprios frascos nas prateleiras pareciam dançar sarcasticamente diante de meus olhos. Levando estas coisas em consideração, enquanto piscava estupidamente para o Dr. Z., eu decidi me retirar graciosamente, já que eu devia. Assim, com uma palavra de despedida aos meus meninos, uma conversa particular com a Sra. Wadman, e um desejo fervente de poder abandonar o meu corpo e trabalhar com a minha alma, eu subi pesarosamente para o meu quarto, e a enfermeira Periwinkle estava oficialmente fora de serviço. Para o benefício de qualquer donzela fervorosa, cujas tendências patrióticas tenham cercado a vida de hospital numa auréola de charmes, eu descreverei brevemente a cabana para a qual eu me retirei, numa condição um tanto quanto ruinosa. Era bem ventilada, pois cinco vidraças tinham sofrido uma combinação de fraturas, que todos os médicos e enfermeiras tinham falhado em curar; as duas janelas estavam cobertas com lençóis, pois o hospital da igreja em frente era um Argos de tijolo e argamassa, e a mente feminina tem uma preferência pela privacidade durante os períodos noturnos da existência. Um chão sem pisos sustentava duas camas de ferro estreitas, alongadas com colchões finos como esparadrapo, equipada com travesseiros no último estágio de decomposição. Numa lareira, livre de pás, pinças, ferros ou grelhas, queimava uma tora, de centímetro em centímetro, sendo muito longa para queimar toda de uma vez. Assim, enquanto o fogo ardia numa ponta, eu fazia o mesmo na outra, enquanto eu tropeçava nela dez vezes por dia, e levantava para cutucá-la dez vezes durante a noite. Um espelho (sejamos elegantes!) das dimensões de um bolinho e tão reflexivo quanto um, estava pendurado sobre uma bacia de lata, um jarro azul e um par de canecas amarelas. Duas mesas inválidas, cadeiras no mesmo estado, vagavam por aqui e por ali, e o armário continha uma variada coleção de gorros, frascos, sacos, botas, pão e manteiga, caixas e insetos. O armário parecia pertencer ao Barba- Azul para mim. Eu sempre o abria tremendo de medo, por causa dos ratos, e o fechava com o espírito angustiado; pois tempo e espaço não eram respeitados, e o caos reinava junto com os ratos. Nossa chaminé era decorada com um ferro de passar, uma Bíblia, uma vela sem castiçal, um frasco de lavanda, uma panela de lata nova, tão brilhante que servia perfeitamente como espelho de parede, e uma variedade de grandes insetos pretos que preferia um clima mais quente do que o lixo oferecia. Duas arcas, ou baús, espreitavam atrás da porta, contendo os bens terrenos das duas que sorriam e choravam, dormiam e lutavam, neste refúgio. Enquanto das paredes brancas acima de cada cama, olhavam para baixo as imagens daqueles cuja memória pode nos fazer: “Um pequeno quarto em qualquer lugar.” Por um dia ou dois eu consegui aparecer durante as refeições; pois a lagarta humana precisa comer até que a borboleta esteja pronta para sair, e ninguém tinha tempo de subir até o meu quarto enquanto eu podia descer. Longe de mim acrescentar mais uma aflição àquele sólido homem, o zelador; pois, comparado com seu predecessor, ele era uma cornucópia. Mas — eu coloco isso para qualquer mente sincera —, não pode o seguinte menu ser melhorado, sem afundar a nação em dívidas? As três refeições eram “uma verdadeira fartura”, e consistiam em carne de boi, evidentemente abatido para os homens de 1876; carne de porco, fresquinho da estrada; pão do exército, composto de serragem e bicarbonato de sódio; manteiga, salgada como se tivesse sido batida pela esposa de Ló; amoras cozidas, tão parecidas com baratas, que apenas aqueles sem imaginação poderiam saboreá-las com satisfação; café, fraco e com aspecto de lama; chá, três folhas secas de mirtilo para um litro de água — temperada com limão — fervente e sem nada que lembrasse clareza. Variedade sendo o tempero da vida, uma pequena pitada do artigo teria sido apreciada pela faminta e trabalhadora irmandade, uma das quais, apesar de estar acostumada à comida simples, logo se viu reduzida a pão e água; tendo uma aversão inata à fartura e ao sal da terra. Outra peculiaridade dessas refeições de hospital era a velocidade com que os alimentos desapareciam, e a impossibilidade de conseguir alguma migalha depois do horário usual. Ao tocar do sino, ocorria uma debandada geral; umas vinte almas famintas corriam para a sala de jantar e varriam a mesa como um enxame de gafanhotos, sem deixar nenhum fragmento para qualquer criatura lenta que chegasse quinze minutos atrasada. Pensando ser mais importante que meus pacientes fossem bem alimentados, eu não me preocupei em chegar cedo para a minha própria refeição por um ou dois dias depois de ter chegado, mas fui rapidamente iluminada por Isaac, o garçom negro, que me aguentou algumas vezes e então me informou, sério como o Destino: “Eu vou te dizer uma coisa, moça, se você continuar chegando atrasada não vai conseguir comer nada. Eu tenho que arrumar a mesa para os doutores assim que vocês enfermeiras e os homens tiverem terminado. Os cavalheiros não vão te esperar, muito menos eu, então você pode fazer o favor de chegar na hora, e ninguém vai ter problema.” Era uma sensação nova ficar de pé olhando para uma mesa cheia, dolorosamente consciente daquele vácuo que a Natureza abomina, e receber ordens para dar meia volta, sem tomar parte da nutrição que a sua mulher interior exige desesperadamente. Os médicos sempre comiam melhor do que nós; e, por um momento, um impulso desesperado quase me levou a lhes dar uma dica, fugindo com o carneiro, ou confiscando a torta. Mas os olhos de Ike estavam sobre mim e, para a minha vergonha, eu saí docilmente. Saí sem jantar naquele dia; e, naquela noite, fui ao mercado, armazenei um pequeno estoque de biscoitos, queijo e maçãs, para que meus meninos não fossem negligenciados, e eu não sofresse dispepsia, nem morresse de fome. Esse plano teria funcionado admiravelmente bem, se não fosse pela estrela maligna sob a qual eu nasci estar ascendente naquele mês, lançando sua influência perversa sobre a minha humilde despensa. Para começar os ratos comeram o meu queijo de sobremesa, os insetos se estabeleceram no meu saco de biscoitos, e as maçãs, como todas as riquezas mundanas, adquiriram asas e voaram; para onde ninguém podia dizer, apesar de que alguns negrinhos poderiam dar alguma luz ao assunto, se a parte queixosa não estivesse relutante em adicionar mais um aos muitos julgamentos da sofredora África. Depois dessa falha, eu me resignei ao destino e, lembrando que pão é o esteio da vida, passei a depender unicamente dele; mas esse plano também se mostrou imperfeito, e eu fui ao chão depois de algumas semanas de comida de prisão, variando com a ocasional batata ou gole de leite escondido. Logo depois de ter deixado a minha enfermaria, eu descobri que tinha perdido o apetite, e praticamente cortei os interesses alimentícios, no lugar deles experimentando a cura pelo exercício e pelo sol. Dizendo a mim mesma que eu tinha bastante tempo, e que eu poderia ver tudo que pudesse ser visto por uma mulher sozinha se aventurando pela cidade na qual metade da população masculina parecia estar levando a outra metade para a prisão militar, — toda manhã eu dava uma corrida rápida em uma direção ou outra; pois os dias de janeiro estavam tão amenos como se fosse primavera. Um agradável vento do Norte e uma ocasional tempestade de neve teriam sido mais do meu gosto, pois um fortaleceria e restauraria corpo e a alma cansados, e a outra purificaria o ar e espalharia uma límpida coberta sobre a cama na qual a capital dos Estados Unidos parecia estar dormindo bem profundamente no momento. Uma das viagens que eu fiz foi até o Hospital do Arsenal, cuja limpeza, conforto e conveniência faziam dele uma honra para o gênio que o dirigia, e provocavam a cobiça das enfermeiras de outros hospitais que vinham visitá-lo. As alas longas, quentes, limpas e bem ventiladas, construídas como um quartel, com o quarto da enfermeira no final, foram plenamente apreciadas pela enfermeira Periwinkle, cuja enfermaria e caramanchão particular eram frios, sujos, inconvenientes, no andar de cima e de baixo, e no caminho de todo mundo. Na enfermaria K do Arsenal, eu encontrei uma alegre pequena dama de olhos brilhantes, vestindo um avental branco, e descansando em seu posto próximo ao fogão; um tapete sob seus pés; uma corrente de ar fresco fluindo sobre a sua cabeça; uma mesa cheia de bandejas, copos e coisas do gênero, de um lado; um grande e bem abastecido armário de medicamentos do outro; e todo o seu dever parecia consistir em, uma vez ou outra, sair dando doses, emitindo ordens que ajudantes bem treinados executavam, ou afagando, aconselhando ou confortando Tom, Dick ou Harry da melhor maneira possível. Enquanto eu assistia aos procedimentos, eu lembrei de minhas próprias tribulações e contrastei os dois hospitais de uma maneira que teria causado a minha demissão sumária, se pudesse ser reportada ao quartel general. Aqui, ordem, método, senso comum e liberalidade reinavam, num estilo que aquecia o coração de quem visse; no Hotel Hurly Burly, desordem, desconforto, má administração e nenhuma liderança visível reduziam as coisas a uma condição que me desespera ter que descrever. O estilo de circunlóquio prevalecia, formulários e confusões atormentavam nossas almas, e o rigor desnecessário em uma área era balanceado com uma imperdoável negligência em outra. Aqui está um exemplo: eu estou fazendo um curativo no ombro de Sam Dammer; tendo limpado a ferida, olho em volta em busca de tiras de esparadrapo para segurar o pequeno quadrado de tecido molhado que deve cobrir a ferida de bala; a caixa não está na bandeja; Frank, o atendente dorminhoco e meio doente, não sabe nada a respeito; Sam está cansado e fumegando de raiva; Frank boceja e não faz nada de útil; os homens dão conselhos e riem da confusão; eu me sinto como uma chaleira em ebulição, com a tampa pronta para voar e machucar alguém. “Vá pegar um pouco emprestado da outra ala, e passe o resto do dia procurando o nosso”, eu comando finalmente. Uma pausa; e então Frank volta com a seguinte mensagem: “A Srta. Peppercorn não tem nenhum, e disse que não é para você sair perdendo o seu e ficar pedindo emprestado dos outros.” Eu não digo nada, por medo de falar demais, mas saio voando para o dispensário. O Sr. Toddypestle me informa que eu não posso pegar nada sem uma ordem do médico da minha enfermaria. Santo Deus! Onde ele está? E eu saio correndo, para cima e para baixo, para lá e para cá, até que, por fim, eu o encontro num estado de êxtase sobre uma amputação complicada, no quarto andar. Eu faço o meu pedido; ele responde: “Em cinco minutos,” e continua o seu trabalho, com a cabeça curvada para baixo, enquanto amarra uma artéria, serra um osso, ou faz um pequeno trabalho de costura, com uma satisfação visível, e um par de mãos bem sanguinário. Os cinco minutos se transformam em quinze, e Frank aparece, observando que: “Dammer quer saber por que raios você deixou ele lá com o dedo num pano molhado?” O Dr. P. se afasta por tempo suficiente para rabiscar uma ordem, com a qual eu desço para o dispensário novamente, encontro a porta fechada e, enquanto eu a martelo, sou informada de que dois amigos meus estão me esperando no salão. Como a enfermeira-chefe não está, sua sala se encontra fechada, e não há nenhum lugar para receber meus convidados além do meu próprio quarto, nem tempo para apreciá-los até que o esparadrapo fosse encontrado. Eu resolvo este assunto e dou algumas voltas pela casa para encontrar Toddypestle, que não deveria deixar a sala de cirurgias até a noite. Encontro-o no necrotério, fumando um cigarro e bem pior devido as suas explorações pelos preparados alcoólicos das prateleiras do dispensário. Ele está inclinado a ser galante e dá o sopro final no fogo da minha ira; a tampa da chaleira voa, e, levando-o até o seu posto, eu arremesso a ordem, pego o que eu quero e parto, deixando o absurdo incapaz beijando a sua própria mão para mim. Dammer, quando o encontro, decide fazer jus ao nome, e eu tenho que reprimir um desejo de selar sua boca suja com o esparadrapo. Assim que eu termino, Frank pega a sua bota para vestir e exclama: “Olha se não é a caixa de esparadrapos! Eu lembro de ter visto ela essa manhã, mas tinha esquecido até o meu calcanhar bater nela. Aqui está, madame. Pegue isso e dê quantas enroladas você quiser nos meninos. Cuidado pra ela não cair em outra bota.” Se um olhar pudesse aniquilar, Francis Saucebex teria deixado de existir; mas ele não pode, portanto ele continua vivo, atazanando a alma de alguma mulher infeliz e acumulando gordura. Agora, já que eu estou desabafando, eu gostaria de registrar o meu protesto contra a prática de colocar convalescentes como ajudantes, ao invés de homens fortes, animados e propriamente treinados. Como é em outros lugares eu não posso dizer; mas aqui era uma constante fonte de problemas e confusão, esses homens fracos e ignorantes tentando varrer, esfregar, levantar e auxiliar seus colegas feridos. Um, com problemas de coração, precisava subir e descer escadas, carregar bandejas pesadas e carregar homens desamparados. Ele tentou, e ficou rapidamente em pior estado do que quando tinha chegado. E assim, quando foi comandado a marchar até o hospital convalescente, teve uma espécie de ataque e caiu antes de virar a esquina, e foi trazido de volta para morrer. Outro, ferido ao cair do cavalo, tentava fazer o seu dever, mas falhava miseravelmente, e a fúria do chefe da enfermaria caía sobre a enfermeira, que deveria esfregar as salas ela mesma, ou levar a bronca no lugar dele; pois o garoto parecia forte e bem, e o chefe da enfermaria nunca o via tornar-se branco com a dor, ou gemer durante o sono quando um movimento involuntário machucava a sua pobre coluna. Reclamações constantes eram feitas sobre os ajudantes incompetentes, e uma dúzia de mulheres trabalhava dobrado, e eram culpadas quando caíam. Se qualquer diretor de hospital acha que isso é um arranjo bom e econômico, permita que esta enfermeira esgotada lhe diga que não, e implore que ele poupe suas irmãs, que às vezes, em sua simpatia, esquecem-se de que são mortais, e correm o risco de se tornarem imortais antes do tempo para seus amigos. Outra das minhas caminhadas me levou à Câmara do Senado, esperando ver se as coisas no mecanismo maior eram administradas melhor do que nos menores que eu conhecia. Eu cheguei atrasada e encontrei a cadeira do Presidente ocupada por um cavalheiro negro de uns dez anos de idade, ao mesmo tempo em que outros dois estavam de pé tendo um caloroso debate sobre a questão da bola de pipoca, enquanto recolhiam o papel espalhado pelo chão e colocavam em sacos; e vários dos membros brancos brincavam de pular carniça sobre as mesas, uma forma de relaxamento muito mais saudável do que aquele que alguns dos Senadores mais velhos praticam, na minha opinião. Vendo que a costa estava limpa, eu também pulei para cima e para baixo, de galeria em galeria, sentei na cadeira de Sumner, acertei um Brooks imaginário a pauladas; examinei os livros de Wilson da maneira mais fria possível; aqueci meus pés em um dos registros nacionais; li o nome de pessoas em envelopes espalhados, e guardei no bolso um autógrafo ou dois; assisti os procedimentos não muito parlamentares ocorrendo ao meu redor, me perguntando quem seriam os indivíduos sérios que continuavam saindo de portas avulsas aqui e ali, como respeitáveis Jacks-in-the-box. Então eu passeei pela “residência palaciana” da Senhora Columbia e examinei suas muitas belezas, mas eu não posso dizer que ela era uma boa dona de casa, e eu não compartilhava o seu gosto em imagens, pois os olhos deste humilde indivíduo logo se cansaram de ver patriotas expirados, que pareciam todos ter deixado seus tabernáculos terrenos em convulsões, camisas amarrotadas, e um turbilhão de bandeiras rasgadas, explosivos, e com os braços e pernas azuis ou amarelos. O estatuário também era massivo e concreto, mas tremendamente cansativo de examinar; pois as damas e cavalheiros colossais não carregavam nenhuma nota de introdução na face ou figura; então, se o sujeito meditativo num kilt, com pernas bem desenvolvidas, calçados parecendo chinelos do exército, e um enorme nariz, era Colombo, Cato ou Cockelorum Tibby, o escritor de tragédias, eu não podia dizer. Várias damas robustas me atraíram, pois eu me sentia um pouco roliça também, como algumas velhas do interior poderiam dizer; mas qual era América e qual era Pocahontas era um mistério, pois todas apresentavam um traje bastante folgado, cabelos desalinhados, espadas, flechas, lanças, balanças e outros ornamentos bem fora de moda entre as mulheres de hoje, cujas efígies entrarão para a história armadas com leques, agulhas de crochê, chicotes de equitação e sombrinhas, com uma aqui e ali segurando uma caneta ou lápis, rolo de massa ou vassoura. A Estátua da Liberdade eu reconheci imediatamente, pois ela não tinha nenhum pedestal ainda, mas estava diretamente na lama, e a Jovem América fazia tortas de terra e fortes com lascas de madeira de maneira bastante simbólica à sua sombra. Mas bem acima das disputas e planos insignificantes dessa pequena multidão, o sol brilhava diretamente na ampla testa da Liberdade, e, em sua mão, algum pássaro de verão tinha feito um ninho. Eu aceitei o bom presságio naquele momento, e no dia primeiro de janeiro, o Ato de Emancipação deu à estátua um mais nobre e duradouro pedestal do que qualquer mármore ou granito extraído e esculpido por mãos humanas. Uma viagem para Georgetown Heights, onde os cedros suspiravam por cima das cabeças, folhas mortas farfalhavam sob os pés, caminhos agradáveis levavam para cima e para baixo, um riacho serpenteava como uma serpente de prata pelas ruínas escurecidas da casa de algum Pastor Francês, através dos pobres jardins das lavadeiras negras que se reuniam ali, e, passando pelo cemitério com uma murmurosa canção de ninar, continuava o seu percurso até pagar o seu humilde tributo ao rio. Essa amena corrida foi a última que eu fiz; pois, no dia seguinte, veio a chuva e o vento. E o confinamento logo se provou um poderoso reforço ao inimigo, que estava calmamente se preparando para detonar uma mina e me explodir quinhentas milhas da posição que eu tinha tomado no que eu chamava de meu Pântano Querido. Trancada no meu quarto, sem nenhuma voz, espírito ou livro, aquela semana não foi nenhum feriado. Considerando refeições um embuste, eu parei com elas completamente, confiando que, se este pardal tivesse qualquer valor, o Senhor não o deixaria cair. Como um bando de corvos amigáveis, minhas irmãs enfermeiras me alimentavam, não apenas com comida para o corpo, mas com palavras gentis para a mente. E logo, de quase morta de fome, eu me encontrava agora tão bem servida e cheia de mimos, que eu me considerava no ápice da opulência, apesar da tosse, da dor de cabeça, da dolorosa consciência da minha pleura, e de uma clara percepção da existência de ossos no corpo humano. Da agradável casa na colina, a casa no coração de Washington, e Caravançarai de Willard, vinham amigos novos e antigos, carregando cestos, garrafas, carruagens e convites para a inválida; e diariamente, nossa Florence Nightingale subia os degraus íngremes, separando um momento de sua ocupada vida para ajudar uma estranha, para quem ela era tão atenciosamente carinhosa como uma mãe. Que ela viva por muito tempo! O que quer que as outras pessoas pensem ou digam, a enfermeira Periwinkle estará para sempre grata; e entre suas relíquias daquela derrota em Washington, nenhuma é mais valiosa do que o pequeno livro que apareceu em seu travesseiro num dia triste; pois o D.D. escrito nele significa bem mais para ela do que Doutor da Divindade. Proibida de lidar com braços e pernas de carne e osso, eu me consolei consertando uns de algodão, e, enquanto costurava diante da janela, assistia ao panorama que se passava abaixo; me divertindo e tomando notas das figuras mais surpreendentes. Longos trens do exército mantinham um perpétuo ronco da manhã até a noite; ambulâncias chacoalhavam para um lado e para o outro com médicos ocupados, enfermeiras tomando ar, ou convalescentes sendo levados em grupos para serem encaixados em membros artificiais. Filas de cavalos em péssimo estado passavam, dizendo o mais claramente possível para criaturas tão estúpidas: “Como, numa cidade tão cheia de nós, não há nenhum hospital de cavalos?” Carroças com vários caixões passavam frequentemente sem nenhuma pessoa de luto acompanhando. Caleches com oficiais inválidos viravam a esquina, seguidos por carruagens cheias de crianças bonitas, com cocheiros, empregadas e criados negros. As mulheres que saíam para suas caminhadas estavam tão esmagadas sob seus gorros de três andares, com sacadas de flores suspensas, que seus charmes eram obscurecidos; tudo que eu posso dizer sobre elas é que se vestiam com o pior gosto possível e andavam como patos. Os homens contribuíam para o pitoresco e o faziam tão bem que Washington parecia um gigantesco baile de máscaras. Chapéus espanhóis, capas para cavalgar forradas de vermelho, espadas e faixas, botas altas e esporas brilhantes, barbas e bigodes, que faziam rostos sem graça se tornarem bonitos, e rostos bonitos se tornarem heroicos; essas vaidades da carne transformavam nossos açougueiros, padeiros e fabricantes de velas em galantes cavaleiros de cavalos alegremente enfeitados, muito mais bonitos do que eles; e dúzias dessas figuras estavam constantemente galopando pela área, dando ocasionais picadas com suas esporas, para o benefício do canteiro de flores. Alguns desses cavalheiros vestiam uniformes dolorosamente apertados, e pequenos bonés, mantidos no lugar por alguma nova lei da gravitação, pois eles cobriam apenas a ponta do nariz, mas mesmo assim nunca caíam. Os homens pareciam aves empalhadas e cavalgavam como se a segurança da nação dependesse unicamente de sua velocidade. Os oficiais mais gordos e velhos eram os que se vestiam mais e cavalgavam de maneira imponente, com ordenanças atrás, tentando agir como se não conhecessem o robusto indivíduo à frente, e caracolando bastante por conta própria. As mulas me encantavam especialmente; e uma hora de estudo de uma constante sucessão delas me introduziu a muitas de suas características; pois seis dessas estranhas criaturas puxavam cada carroça do exército, e pulavam como sapos através dos rios de lama que corriam gentilmente pela rua. A mula sedutora tinha pés pequenos, uma cauda bem aparada, orelhas de pé e era bastante inclinada a virar a cabeça subitamente e a trotar de maneira afetada; se ela tivesse sinos, ou estivesse adornada com qualquer tipo de enfeite, se exibia como qualquer beldade. A mula moral era uma criatura robusta e trabalhadeira, sempre puxando com toda a sua força, mesmo quando as outras já haviam parado, trabalhando sob a ilusão de que a comida para o exército inteiro dependia unicamente de seus esforços. Eu respeitava esse tipo de mula e se eu tivesse um repolho suculento em minhas mãos, eu o teria dado a ela, como agradecimento pelo seu excelente exemplo. A mula histérica era um quadrúpede melodramático, que tinha a tendência de assustar a humanidade com saltos erráticos e mergulhos selvagens, muitas sacudidas de sua cabeça teimosa, e coices de suas patas perversas; de vez em quando ela caía no chão, como se tivesse morrido ao estilo Forrest: uma arfada — uma contorção — um desmaio, e assim por diante, até que a rua estivesse totalmente bloqueada, os condutores xingando como demônios em chapéus ruins, e a circulação do ator principal fosse decididamente apressada por todo tipo de chute, bofetada, sacudida e puxão. Quando ela parecia ter dado o último suspiro, e os médicos pareciam ter sido chamados em vão, uma súbita ressurreição acontecia; e se alguma vez uma mula já sorriu em triunfo zombeteiro, foi esse animal, enquanto levantava sem nenhuma pressa, dava uma sacudida confortável e então, encarando a excitada plateia calmamente, parecia dizer: “Um sucesso! Um verdadeiro sucesso! O animal mais estúpido conseguiu tapear uma dúzia de homens. Agora, por que está todo mudo parado travando o caminho?” A mula patética era talvez a mais interessante de todas; pois, apesar de parecer ser sempre a menor, mais magra e mais fraca das seis, o postilhão, com suas grandes botas, casaco de cauda longa e pesado chicote, sempre montava essa, que se esforçava com a cabeça baixa, corpo sujo de lama, olhos tristes e sem vida, sua cauda um coto mortificado, e o animal todo um retrato da miséria mansa, capaz de tocar até mesmo um coração de pedra. A mula jovial era uma coisinha rechonchuda e despreocupada, tratando tudo com calma, de carinhos a cacetadas; andando com um brilho maroto nos olhos e, se fosse possível, teria colocado as mãos no bolso e assoviado enquanto passava. Se calhasse de haver uma maça meio comida, um nabo perdido, ou um tufo de feno na sarjeta, esse Mark Tapley era o primeiro a encontrar, e nenhum de seus companheiros invejava sua mordida. Eu suspeitava que esse indivíduo era o apaziguador, amigo e confidente de todos os outros, pois ele tinha uma aparência de “Se-anime-velho-amigo-que- eu-vou-te-ajudar” que era extremamente cativante. Porcos também me atraíam, já que eu nunca tinha tido a oportunidade de observar suas graças de espírito e comportamento, até que eu vim para Washington e observei que seus cidadãos suínos tinham mais liberdades do que os humanos. Porcos robustos e calmos passavam depressa toda manhã para seus lugares de trabalho, com um ar preocupado e cumprimentando seus amigos sonoramente. Porcos refinados, com uma ondulação extra na cauda, passeavam em pares, lanchando aqui e ali, como cavalheiros aproveitando a vida. Porcos desordeiros empurravam os transeuntes para fora da calçada; porcos embriagados arrotavam a sua versão de “Não vou voltar para casa até de manhã”, da sarjeta; porcos jovens saltitavam delicadamente pela lama, como se, assim como a “Sra. Peerybingle”, eles tivessem orgulho de seu tornozelo e não quisessem sujar as meias. Porcos maternais, com suas interessantes famílias, caminhavam pelo sol, e com frequência os porquinhos rosados que pareciam bebês se deitavam para uma soneca, com uma confiança na Providência que deveria ser imitada pelos humanos. Mas mais interessante do que os oficiais, damas, mulas ou porcos, eram meus irmãos e irmãs de cor, tão diferentes dos respeitáveis membros da sociedade que eu tinha conhecido na moral Boston. Aqui estava o artigo genuíno — não, não o artigo genuíno de verdade; é preciso ir à África para ver esse — mas o tipo de criaturas que gerações de escravidão os transformaram: obsequiosos, espertos, preguiçosos e ignorantes, mas também bondosos, alegres, rápidos para sentir e aceitar o menor gesto do amor fraternal que está ensinando lentamente a mão branca a apertar a negra, nesta grande luta pela liberdade de ambas as raças. Eu fui aconselhada a não ser muito excessiva no assunto da escravidão, pois doutrinas separatistas prosperavam mesmo debaixo do respeitável nariz do Pai Abraham. Assim, eu me esforcei para ser discreta, observando tudo ao meu redor atentamente e guardando o resultado dessas observações para uso futuro. Eu estava lá há menos de uma semana, quando a expressão negligenciada e irresponsável das faces ao meu redor começou a parecer um apelo urgente para deixar o cuidado dos corpos brancos e começar a ocupar-se dessas almas negras. Por mais que aqueles meninos preguiçosos e garotas atrevidas me atormentassem, eu gostava deles, e descobri que a menor demonstração de interesse ou amabilidade fazia emergir os melhores traços que estão presentes nos mais degradados e desamparados de nós. Eu apreciava a sua alegria, pois mesmo o mais triste velho, que passava o dia inteiro esfregando o chão naquela névoa pestilenta, sorria e fofocava ao sair, quando a noite o livrava da labuta. As garotas brincavam com seus namorados morenos, ou jogavam seus bebês, com o terno orgulho que faz o amor materno embelezar a mais feia das faces. Os homens e os garotos assoviavam o dia inteiro; e frequentemente, enquanto eu fazia a minha vigília, o silêncio da noite era docemente quebrado por algum coro na rua, cheio de melodia de verdade, quer a música fosse sobre o Paraíso ou sobre pão de fubá. Enquanto ouvia, eu sentia que nós não devíamos nunca duvidar ou nos desesperar com uma raça que, mesmo com todas as injustiças e incertezas, ainda se agarra a este dom, e parece usá-lo para consolar os corações pacientes que esperam e assistem com esperança até o fim. Eu esperava ter que me defender de acusações de preconceito contra a cor, mas surpreendentemente o oposto aconteceu, e eu diariamente chocava algum vizinho ao tratar os negros da mesma forma que eu tratava os brancos. Os homens xingariam, colocariam dois “g” na palavra “negro” e zombariam da ideia de qualquer coisa boa vindo de tal lixo. As enfermeiras estavam dispostas a serem servidas pelas pessoas de cor, mas raramente agradeciam, nunca os elogiavam e mal os reconheciam na rua. Enquanto que o sangue de duas gerações de abolicionistas queimava em minhas veias e se proclamava na primeira oportunidade e afirmava o direito da liberdade de expressão tão obstinadamente como a própria Folsom. Quando eu peguei um engraçado bebê negro, que estava engatinhando pela cozinha das enfermeiras um dia em que eu tinha descido para fazer alguma coisa para algum de meus homens, uma mulher de Virgínia que estava de pé ali disse, com uma fungada de desaprovação: “Minha querida, Srta. P., como você pôde? Eu estou aqui há seis meses e nunca sequer toquei o sapo com uma vara.” “Vergonha sua, senhora,” respondeu a Srta. P., e com a perversidade natural de uma ianque, seguiu o golpe beijando “o sapo” com ardor. Seu rosto estava providencialmente limpo e brilhante como se a mamãe tivesse acabado de esfregá-lo com a ponta do seu avental e uma gota de água da chaleira, como a velha Tia Chloe. Esse ato imprudente, e o discurso anti-escravidão que eu dei em seguida, enquanto uma mão misturava o mingau para a América doente e a outra abraçava o bebê África, não produziram o alegre resultado que eu esperava; pois minha colega passou a me considerar uma perigosa fanática daquele ponto em diante, e o meu protegido quase morreu por insistir em subir as escadas para o meu quarto, em todas as ocasiões, e sendo pisoteado como uma pequena aranha negra. Eu esperei pelo dia de Ano Novo com mais ansiedade do que nunca em minha vida; e, apesar de ele não me trazer nenhum presente, eu me senti rica no ato de justiça tão tardiamente executada para algumas das pessoas ao meu redor. Quando os sinos anunciaram a meia noite, eu eletrifiquei minha companheira de quarto ao dançar para fora da cama, escancarando a janela e balançando o meu lenço com um fraco grito de encorajamento, em resposta ao grito de um grupo de homens de cor na rua abaixo. A noite inteira eles apitaram e dançaram, fizeram biscoitos, cantaram “Glória, aleluia”, e se confortaram da sua própria maneira, as pobres almas. O céu estava limpo, a lua brilhava benignamente, um vento suave soprava sobre o rio, e todos os bons presságios pareciam anunciar o dia cujo amanhecer não poderia estar tão longe. Se as pessoas de cor tivessem pegado faixas e dançado ao redor da Casa Branca, com alguns gritos para o cavalheiro que se imortalizou com apenas um ato, nenhum presidente poderia ter uma melhor assembleia, ou uma mais digna de orgulho. Enquanto esses sons e visões ocorriam do lado de fora, curiosas cenas aconteciam do lado de dentro, e eu estava descobrindo que um dos melhores métodos de se adaptar como enfermeira de um hospital é virar paciente; pois essa é a única maneira de entender o que os homens sofrem e por que eles suspiram; como atos de bondade comovem e vencem; quanto realmente significamos para aqueles ao nosso redor; e ver pela primeira vez que indo para lá nós realmente pegamos nossas vidas em nossas mãos, e talvez tenhamos que pagar caro pela breve experiência. Todos foram muito gentis; os atendentes da minha enfermaria vinham sempre reportar o progresso, abastecer minha caixa de madeira, ou me trazer mensagens e presentes dos meus meninos. As enfermeiras deram muitos passos com aqueles pés cansados delas, e várias vinham todas as tardes para conversar na frente do meu fogo e deixar as coisas confortáveis para mim durante a noite. Os médicos faziam visitas diárias, davam tapinhas nos meus pulmões para ver se havia pneumonia lá dentro, deixavam doses de remédios sem nome e saíam, me deixando mais ignorante e muito mais desconfortável, do que antes de eles virem. Horas começaram a ficar confusas; as pessoas pareciam estranhas; faces bizarras assombravam o quarto, e as noites eram uma longa luta contra a dor e o cansaço. Cartas de casa cresciam em preocupação; os médicos levantavam as sobrancelhas de maneira sinistra; amigos diziam: “Não fique”, e uma rebelião interna reforçava o conselho. Mas os três meses ainda não tinham terminado, e desistir tão cedo era proclamar derrota antes do tempo; então, para todos os “Não fiques” eu me opus com “Ficarei”, até que, numa bela manhã, um cavalheiro de cabeça grisalha apareceu como um fantasma bem-vindo na minha frente; e, ao vê- lo, minha determinação desapareceu, meu coração traiu os meus meninos, e, quando ele disse “Venha para casa”, eu respondi “Sim, pai”; e assim terminou a minha carreira como enfermeira do exército. Eu nunca me arrependerei de minha ida, mesmo que a minha luta contra a febre tifoide, dez dólares e uma peruca sejam os únicos resultados visíveis do experimento; pois pode-se viver e aprender muito em um mês. Um bom ataque de alguma enfermidade prova o valor da saúde; perigo real é um bom teste de coragem; e sacrifício de si mesmo adoça o caráter. Que ninguém sinceramente interessado em ajudar o próximo desanime por medo do que pode acontecer; pois o valor da vida reside nas experiências que a preenchem, e esta é uma que não pode ser esquecida. E tudo de melhor e mais corajoso nos corações de homens e mulheres vem à luz em cenas como estas; e, apesar de um hospital ser uma escola difícil, suas lições são tanto severas quanto salutares; e o pupilo mais humilde, em proporção a sua lealdade, adquire uma fé mais profunda em Deus e em si mesmo. Eu retornaria amanhã mesmo, no princípio de “sacudir a poeira e entrar no jogo novamente”, se eu pudesse; pois a quantidade de prazer e proveito que eu tirei daquele mês mais do que compensa as dores posteriores. E, perdão pelo sentimento feminino, mas me causa uma certa satisfação a ideia de que, apesar de não ter deitado a minha cabeça no altar do meu país, eu deixei o meu cabelo; e isso é mais do que a bonita Helena fez pelo seu marido morto, quando ela sacrificou apenas a ponta de suas mechas para a sua urna. Portanto, eu fecho esta pequena coleção de histórias de hospital com o arrependimento de que elas não foram mais dignas de serem registradas; e acrescento o pequeno poema com o qual eu me consolo pela morte da “Enfermeira Periwinkle”:
Oh, coloquem-na numa pequena cova,
Coberta com uma pedra de mármore, E grave nela uma colher de mingau, Para mostrar a enfermeira que morreu cedo demais. Capítulo VI Pós-escrito
Querida Sra. S. — Perguntas como as suas foram feitas por vários
leitores simpáticos dos meus Esboços. Assim, eu responderei a elas en masse, na forma de um adendo ao que veio antes. Uma dessas perguntas foi: “Não havia serviços religiosos nos leitos de morte, ou aos domingos?” Na maioria dos hospitais, eu espero que sim; no nosso, os homens morriam e eram carregados, com tão pouca cerimônia quanto no campo de batalha. O primeiro evento desse tipo que eu testemunhei foi tão rápido e tão sem nada que se assemelhasse à reverência, tristeza, ou consolação piedosa, que eu tive que concordar ardentemente com a opinião francamente expressa de um residente de Maine, deitado ao lado de seu companheiro, que morreu sem nenhuma ajuda visível perto de si, com exceção de uma mulher compassiva e de um irlandês de bom coração, que caiu de joelhos para rezar, com um fervor católico, pela alma de seu irmão protestante: “Se, depois de tudo que passamos, somos deixados para morrer desse jeito, sem nada além das rezas de Paddy para nos ajudar, acho que cristãos são uma raça rara em Washington.” Eu concordei. Mas a Srta. Blank, uma de minhas amigas, preocupada que as almas fossem assistidas, tanto quanto o corpo, falou mais de uma vez com o capelão, sem nenhum resultado. Diferente de outro pastor, cuja devoção sincera purificava a Câmara do Senado toda semana, esse homem não alimentava e abraçava seu rebanho, nem fazia de si mesmo o símbolo do Bom Samaritano, que nunca passa pelo outro lado. Eu descobri depois que o nosso evasivo capelão tinha sido um professor em alguma faculdade sulista; e apesar de ele insistir que não possuía nenhuma inclinação separatista, eu posso testemunhar que ele se separou de suas responsabilidades ministeriais, ou salvou-se delas, para usar suas próprias palavras, que são tão apropriadas quanto inelegantes. Ele lia Emerson, citava Carlyle, e tentou ser um capelão; mas, julgando pelo seu sucesso, eu temo que ele ainda ansiava pelos potes de canjica da rebeldia. Ocasionalmente, num Domingo à tarde, as enfermeiras, os oficiais, os ajudantes e os pacientes que podiam se reuniam no salão para uma hora de serviço religioso, do qual o canto era a melhor parte. Se alguma vez palavras fortes, sábias e afetuosas foram necessárias, foi ali; se algum mortal já teve provas vivas diante de seus olhos para ilustrar e iluminar seu pensamento, foi ali; e se alguma vez corações foram levados à mais devota abnegação, foi no trabalho que nos levava a tudo menos à Capela da Facilidade. Mas alguma paralisia espiritual parecia ter acometido nosso pastor; pois, embora várias faces se voltassem em sua direção, cheias da fome muda que frequentemente atinge os homens quando o sofrimento ou o perigo os trazem mais próximos do coração das coisas, eles eram oferecidos apenas as cascas da divindade, enquanto o trigo era deixado para os observadores menos necessitados, que sabiam onde procurar. Até mesmo as excelentes velhas histórias bíblicas, que podem ser tão realistas quanto qualquer história do nosso tempo por uma imaginação viva e dicção pictórica, eram roubadas de todos os seus charmes por explicações secas e aplicações literais, ao invés de serem lições úteis e agradáveis àqueles homens, cuja debilidade tinha rendido tão dóceis como crianças nas mãos do pai. Eu observava o semblante apático daqueles ao meu redor, enquanto um brando Daniel moralizava num covil de leões absolutamente desinteressantes; enquanto Hananias, Misael e Azarias passavam vagarosamente pela fornalha ardente, onde alguns de nós desejavam que eles tivessem ficado permanentemente; enquanto o Templo de Salomão era laboriosamente erigido, com descrições minuciosas do processo, e da quantidade se sinos e romãs nas vestimentas dos clérigos. Eles estavam apáticos no começo e apáticos no final; mas no instante em que um velho hino inspirador começava, olhos sonolentos brilhavam, figuras relaxadas sentavam eretas, e vários jovens coitados se levantavam em suas camas, ou esticavam uma mão ansiosa para o livro, enquanto todos irrompiam com uma energia que provava que em algum lugar no coração até mesmo do mais abandonado, ainda ardia algum vestígio daquela devoção inata que flui na música do coração de cada criança pequena. Até o grande rebelde participou, e explodiu numa voz grave e estrondosa, cantando: “Salvação! Deixe os ecos voarem,” tão energeticamente como se ele precisasse que o comando fosse executado rapidamente. Aquele era o momento mais agradável da hora, pois então o lugar parecia alegre e familiar. Os grupos de homens olhando sobre os ombros uns dos outros enquanto cantavam; as poucas figuras silenciosas nas camas; aqui e ali uma mulher desempenhando alguma função necessária silenciosamente e cantando enquanto trabalha; enquanto eu colocava mentalmente na poltrona situada no meio, para a minha própria satisfação, a imagem de um certo pastor fiel, que tomava todos os párias pelo braço, golpeava o demônio qualquer fosse seu disfarce e confortava os pobres em espírito com a sabedoria de um coração grande e terno, que ainda fala conosco de seu túmulo italiano. Com essa adição, a minha imagem estava completa; e eu sempre tive vontade de fazer um rascunho autêntico de um domingo no hospital, pois, a despeito de todos os inconvenientes, que consistiam em trabalho contínuo, falta de livros adequados, uma pregação estéril que não produzia nenhum fruto, este dia nunca era como os outros seis. Fiéis à sua educação, nossos meninos da Nova Inglaterra fizeram o seu melhor para fazer dele o que deveria ser. Com vários, havia bastante leitura dos testamentos, cantarolar dos hinos favoritos, e olhar para livros sortidos que podiam ser conseguidos da biblioteca. Alguns ficavam ociosos, dormiam ou fofocavam; mesmo assim, quando eu me aproximava para uma conversa tranquila no fim da tarde, eles falavam abertamente e muito bem de si mesmos; expressariam uma esperança tímida de que seus problemas façam bem para eles e lhes dê firmeza; ficariam com a voz meio embargada ao dizer boa noite e virar a cabeça para a parede pensando numa mãe, esposa ou casa, essas ligações humanas parecendo ser a religião mais vital que eles conheciam. Eu observei que alguns deles não vestiam seus chapéus nesse dia, apesar de em outros momentos se agarrarem a eles como quakers, vestindo- os na cama, colocando-os para ler o jornal, comer uma maçã, ou escrever uma carta, como uma nova espécie de Sansão, sua força residindo não nos seus cabelos, mas em seus chapéus. Muitos não liam romances, praguejavam menos, eram mais silenciosos, ordenados e animados, como se Deus fosse um encarregado invisível que aparecia uma vez por semana e tinha que encontrar tudo no seu melhor. Eu gostava de tudo isso nos pobres meninos, e poderia até ter abaixado a minha esponja e bule de chá para pregar um pequeno sermão ali mesmo, enquanto a tristeza e saudade de casa amoleciam suas naturezas, de modo que alguma boa semente pudesse ser plantada ali, para florescer e dar frutos agora ou mais tarde. Sobre a admissão de amigos para cuidar dos seus doentes, eu só posso dizer que isso não era aceito no Hospital Hurlyburly. Mas uma vez uma mãe indomável tomou a minha enfermaria de assalto, e manteve a sua posição, apesar dos esforços dos médicos, da enfermeira-chefe e da enfermeira Periwinkle. Apesar de ser contra as regras, apesar de a culpada ser uma mulher ácida e fria, apesar de que o jovem teria se saído tão bem sem a sua agitada interferência, e a sala inteira estaria bem mais confortável, havia algo de irresistível em sua persistente devoção, que ninguém tinha coragem de expulsá-la de seu posto. Ela dormia no chão, sem se queixar; tolerava piadas das mais rudes; comia muito pouco, apesar de seu cesto estar sempre cheio de guloseimas para o seu menino; e cuidava daquele personagem petulante com uma paciência infalível que era bonita de se ver. Eu sinto um brilho de retidão moral ao dizer isso dela; pois, apesar de ser um perfeito pelicano para o seu filho, ela picava e cacarejava (eu não sei se pelicanos costumam expressar suas emoções dessa maneira) da maneira mais descontrolada, quando outros invadiam suas premissas; e me fez levar uma vida tremendamente exaustiva, com os “biscoitos do George”, a “bacia para lavar os pés do George”, o “sarampo do George”, e a “mãe do George”; até que, depois de uma conversa incisiva com a enfermeira-chefe, ela empacotou iradamente as suas coisas, seu filho e a si mesma, e partiu, carrancuda até o final. Este é o lado cômico da coisa. O lado sério é mais difícil de descrever; pois a presença, mesmo breve, de amigos e parentes no leito dos mortos ou moribundos é sempre uma provação para os observadores. Eles não estão próximos o suficiente para saber a melhor maneira de confortar, mas estão próximos demais para virar as costas para o pesar que só encontra consolo ouvindo a repetição das últimas palavras, suspiradas nos ouvidos da enfermeira, ou recebendo os carinhosos legados de amor e saudade transmitidos por elas. Para mim, a visão mais triste que eu testemunhei naquele lugar foi a de um pai grisalho, sentado hora após hora ao lado de seu filho, morrendo pelo veneno de sua ferida. O velho pai, robusto e caloroso; o filho, sem esperança de ajuda, apesar de ser difícil de acreditar; pois a sutil febre que exauria suas forças dava um rubor às suas bochechas, enchia seus olhos de brilho, dando uma imagem zombeteira de saúde ao rosto e ao corpo, tornando o pobre rapaz mais bonito na morte do que na vida. Seu leito não estava na minha ala, mas eu entrava e saía com frequência, e, por um dia ou dois, o par ficou bastante junto, dizendo pouco, mas olhando muito. O velho senhor tentava se ocupar com um livro ou caneta, para que a sua presença não fosse um fardo; e uma vez, quando ele se sentou para escrever, para a angustiada mãe em casa com certeza, eu vi os olhos do filho fixos em sua face, com uma expressão de resignação misturada com pesar, como se estivesse se esforçando para aprender a dar o longo adeus alegremente. E assim que o filho dormiu, o pai o assistiu, como tinha sido assistido antes; e mesmo que nenhum traço de seu sério semblante tenha se alterado, a mão áspera alisando a mecha de cabelo sobre o travesseiro, a atitude curvada da cabeça grisalha, eram mais patéticas do que a mais alta das lamentações. O filho morreu; e o pai levou para casa a relíquia pálida da vida que ele deu, oferecendo um pouco de dinheiro para a enfermeira, como a única forma de retribuição em seu poder; pois, apesar de estar bastante grato, ele era pobre. Obviamente ela não aceitou, mas foi mais recompensada pela sincera declaração do homem: “Meu garoto não poderia ter sido mais bem cuidado se estivesse em casa; que Deus lhe pague, pois eu não posso.” Minhas próprias experiências desse tipo começaram quando o meu primeiro homem morreu. Ele mal tinha sido retirado, quando sua esposa entrou. Seus olhos foram diretamente para a bem conhecida cama; ela estava vazia. E sentindo, apesar de ainda não acreditar na dura realidade, ela gritou, com uma expressão que eu nunca esquecerei: “Onde está o Emanuel?” Eu nunca a tinha visto antes, não sabia qual era a sua relação com o homem que eu só tinha cuidado por um dia, e estava prestes a dizer-lhe que ele tinha morrido, quando McGee, o irlandês de bom coração mencionado anteriormente, passou por mim com um animado: “Ele foi para uma cama melhor, Sra. Connel. Venha, minha querida, eu vou lhe mostrar”, e levando-a pelo braço, ele a guiou até a enfermeira-chefe, que deu a triste notícia para a esposa e confortou a viúva. Outro dia, subindo correndo para o meu quarto para respirar um pouco de ar fresco e descansar por cinco minutos após uma tarefa desagradável, eu encontrei uma corpulenta jovem sentada na minha cama, apresentando a expressão miserável que eu já tinha aprendido a reconhecer. Vendo-a eu lembrei que eu tinha ouvido falar que um homem que tinha morrido durante a noite e que sua irmã tinha chegado pela manhã. Deve ser ela, eu pensei. Eu tinha pena dela, com todo o meu coração. O que eu poderia dizer ou fazer? Palavras sempre parecem impertinentes em tais momentos; eu não conhecia o homem; a mulher não era nem interessante em si mesma, nem graciosa em seu luto; ainda assim, tendo também passado pelo luto de irmã, eu não podia deixá-la sozinha em sua dor naquele lugar estranho, sem dizer uma palavra. Então, me sentindo abatida, com saudade de casa, e sem saber o que mais eu podia fazer, eu coloquei os meus braços em volta dela e comecei a chorar sincera e intensamente; pois, como eu raramente me entrego a este luxo úmido, quando eu o faço, eu gosto de desfrutá-lo com todas as minhas forças. Felizmente, eu não podia ter feito nada melhor, pois, apesar de nenhuma palavra ter sido proferida, cada uma sentiu a compaixão da outra; e, em silêncio, nossos lencinhos foram mais eloquentes do que palavras. Ela logo começou a soluçar baixo. E eu voltei para o trabalho, deixando-a em minha cama, e me sentindo revigorada pelo banho, apesar de ter esquecido de descansar, e lavado o rosto ao invés das mãos. Eu menciono esse experimento bem sucedido como uma receita, testada e aprovada, para o uso de qualquer enfermeira que tenha que cuidar dessas feridas do coração. Elas perceberão que ela é mais eficaz do que copos de chá, sais perfumados, salmos ou sermões; pois um toque carinhoso e um choro em companhia unem os consolos de todo o resto para o sexo feminino. E, se genuíno, será a cura suprema para a primeira pontada de dor que tantos sofrem nesses tempos difíceis. Eu fico feliz em saber que o meu pequeno sargento achou graça em tantos lugares e respondo com prazer aos diversos pedidos de notícias dele, mas o meu conhecimento pessoal terminou cinco meses atrás. Ao lado do meu querido John — eu espero que a grama esteja verde acima dele, tão distante lá em Virgínia! — eu coloquei o meu sargento na lista de meninos dignos, e aproveitei várias conversas joviais com o alegre rapaz, que tinha um gosto por diversão, quando seu pobre braço estava sendo tratado. Enquanto o Dr. P. cutucava e amarrava, eu penteava o que tinha restado da juba castanha do sargento — tosado dolorosamente contra a sua vontade — e fofocava com todas as minhas forças, enquanto ele fazia caretas, exclamações e apelos, quando o nervosismo superava a bobagem, como frequentemente acontecia. “Eu prefiro rir do que chorar quando eu sei que vou gritar de qualquer maneira, então conte aquela do Dickens novamente, que eu vou aguentar como um homem.” E foi o que ele fez. A “Sra. Cluppins”, “Chadband” e “Sam Weller” sempre o ajudavam, me fazendo deixar outra oferenda de amor e admiração no templo do deus da minha idolatria, apesar de ele já usar muitas joias e falar gírias. O sargento também originou, acredito eu, o hábito de chamar seus vizinhos pelas suas aflições em vez de seus nomes; e eu fiquei bastante chocada ao vê-los trocar comentários desse tipo, em perfeito bom humor e aproveitando bastante o novo jogo. “Oh, o Espasmos saiu novamente!” “Como está, Reumatismo?” “Quer trocar maçãs, Costela?” “Srta. P., será que eu posso dar um gole disso para o Tifo?” “Olhe aqui, Sem Dedos, empreste um selo, esse sim é um bom rapaz!” etc. Ele próprio foi batizado “Bebê B.”, pois ele cuidava de seu braço em um pequeno travesseiro, e o chamava de seu bebê. O sargento B. também era bastante exigente na hora de comer, e muitas idas e vindas de assistentes eram necessárias durante a sua refeição. Nunca vi nada mais irresistivelmente bajulador, e eu constantemente me via fazendo as suas vontades, como uma mãe excessivamente tolerante, meramente pelo prazer de ver os seus olhos castanhos brilharem, seus lábios se abrirem num sorriso, e sua única mão executar uma energética saudação que era absolutamente cativante. Eu temo que a enfermeira P. tenha ferido a sua dignidade, fazendo travessuras com esse persuasivo cavalheiro, mas foi tudo pelo seu bem. Mas “meninos serão meninos” é perfeitamente aplicável neste caso; pois, apesar da idade, sexo, e da doutrina puritana pronta para o nosso uso, eu tenho um sentimento de camaradagem com os rapazes e sempre guardei um certo rancor contra o Destino por não ter me feito um senhor da criação ao invés de uma dama. Desde que eu saí, eu ouvi de uma fonte confiável, que o meu sargento foi para casa. Portanto, o pequeno romance que brotou quando eu o vi, desabrochou em seu segundo capítulo. E agora eu imagino a “querida Jane” ocupando o meu lugar, tratando das feridas que eu tratei, escovando a selva encaracolada que eu escovei, amando o excelente pequeno rapaz que eu amei e eventualmente caminhando na direção do altar, com o sargento mancando galantemente ao seu lado. Se ela não fizer tudo isso e mais, eu nunca a perdoarei. Eu sinceramente rezo ao santo padroeiro dos amantes, para que o “Bebê B.” possa ter sucesso em sua corte, e que seu nome persista na terra. Um dos episódios mais animados da vida de hospital era a frequente marcha daqueles que estavam bons o suficiente para voltar aos seus regimentos, ou ir para algum acampamento para convalescentes. O chefe da enfermaria vai para a porta de cada quarto que deve ser reduzido, lê uma lista de nomes, comanda que seus donos se arrumem e estejam prontos ao serem chamados. Depois que ele desaparece, os quartos entram num indescritível estado de desordem, enquanto os garotos começam a limpar suas botas, clarear suas esporas, se eles tiverem, inspecionar suas mochilas, fazer presentes, serem equipados com itens necessários, e — por que não? — beijados de vez em quando, ao dizer adeus; pois, em toda probabilidade, nunca nos veríamos de novo, e o coração da mulher se apega a qualquer coisa que se agarra a ela em busca de ajuda e conforto. Eu nunca gostei dessas separações da minha pequena família; apesar de só ter passado por três na minha curta estadia. Eu fiquei profundamente satisfeita com os apertos de mão, pois a sua cordialidade um tanto dolorosa me assegurava que eu não tinha me esforçado em vão. O grande prussiano emitiu o seu grave e ininteligível adeus, com uma expressão grata e um alisar premonitório de seu bigode amarelo, mas não foi além disso, pois outra pessoa entrou na sua frente, com uma grande mão morena estendida, e esta recomendação do nosso muito falho estabelecimento: “Estamos partindo, moça, e eu estou muito triste, pois não sabia que o hospital era um lugar tão divertido. Espero levar outro tiro em algum lugar mais fácil, para eu poder voltar aqui e ser tratado novamente. Não é uma boa ideia?” Eu não achava, mas pregar a doutrina da tranquilidade inglória não era correto, então eu tentei parecer chocada, falhei, e me consolei dando a ele a grande almofada de alfinetes que ele tinha admirado como a “coisinha mais bonita”. Então, eles formaram uma fila na frente do hospital, alguns deles parecendo bastante pálidos e abatidos, mas tentando sair elegantemente e marchar em ordem, apesar de metade das mochilas serem carregadas pelos guardas, e vários se apoiarem em bengalas ao invés de portar suas armas. Todos olhavam para cima e sorriam, ou acenavam e tocavam em seus bonés, ao passar na frente de nossas janelas pela longa rua, e assim partiam, alguns para suas casas neste mundo, e alguns para as do próximo; e durante o resto do dia eu me sentia como Raquel de luto pelas suas crianças, quando eu via as camas vazias e sentia falta das faces familiares. Você quer saber se as enfermeiras são obrigadas a assistir às amputações e coisas do tipo, como parte de suas obrigações? Eu acredito que não, a não ser que elas queiram; pois o paciente está sob os efeitos do éter e não precisa de nenhum cuidado além daquele que os cirurgiões podem oferecer. Nosso trabalho começa depois, quando a pobre alma acorda, doente, fraca e perdida; cheia de visões confusas, de sensações e imagens desagradáveis. É então que devemos acalmar e sustentar, tender e observar; pregando e praticando paciência, até que o sono e a prática tenham restaurado a coragem e o auto controle. Eu assisti a várias operações; pois o meu objetivo no começo era ir para a linha de frente depois da batalha, e achei que quanto antes eu me habituasse com as imagens difíceis, mais útil eu seria. Várias das minhas colegas evitavam esse tipo de coisa; pois, apesar da vontade do espírito, a carne era inconvenientemente fraca. Uma senhora fúnebre apareceu com a intenção de testar seus talentos como enfermeira. Mas, após uma breve conversa, da qual foram extraídas as informações de que ela desmaiava ao ver sangue, tinha medo de fazer vigília sozinha, não podia cuidar de pessoas delirantes de maneira nenhuma, tinha pavor de infecções e não suportava muita fadiga, ela foi polidamente dispensada. Eu espero que ela tenha encontrado a sua área, mas imagino que uma caixinha no alto de uma prateleira atenderia melhor às suas exigências. O Dr. Z sugeriu que eu assistisse uma dissecação, mas eu nunca aceitei seus convites, acreditando que os meus nervos pertenciam aos vivos e não aos mortos, e que eu devia terminar a minha educação como enfermeira primeiro, antes de começar a de cirurgiã. Mas eu nunca vi o homenzinho saltitando pelo corredor com caixas estranhas na mão, e uma expressão absorvida, sem ter certeza de que um grupo seleto de cirurgiões estava trabalhando no necrotério, uma imagem bastante perturbadora, principalmente quando eu sabia que o sujeito que o sujeito era uma das pessoas de quem eu tinha cuidado. Mas isso não deve fazer ninguém supor que os médicos eram propositalmente frios ou cruéis, apesar de que um deles me contou, com remorsos, que ele temia que a sua profissão tivesse diminuído sua sensibilidade e, talvez, o tornado indiferente à visão do sofrimento. Eu estou inclinada a acreditar que algumas vezes ela realmente o faz; pois, apesar de ser um homem bondoso e um médico competente, o Dr. P., através de uma longa familiarização com os males aos quais a carne é sujeita, adquiriu o desagradável hábito de tratar o homem e suas feridas como entidades separadas, e parecia se irritar bastante caso o primeiro demonstrasse qualquer opinião sobre as últimas, ou reivindicasse qualquer direito sobre elas, enquanto estivesse sob seus cuidados. Ele tinha uma maneira de puxar a bandagem, ou de dar um tipo de aperto geral nos membros, que, enquanto sem dúvidas completamente científico, era mais assustador do que tranquilizador e totalmente questionável como meio de preparar os nervos para qualquer nova provação. Ele também esperava que o paciente ajudasse em pequenas operações, como ele as chamava, e reprimisse qualquer demonstração durante o processo. “Aqui, camarada, segure aqui, enquanto eu dou uma olhada”, ele disse um dia para Fitz G., deixando um braço machucado sob o controle de um sadio, e continuando a cutucar entre pedaços de ossos e músculos visíveis, num abismo verde e vermelho feito por alguma máquina infernal da categoria dos projéteis ou granadas. O coitado do Fitz se segurou o máximo que pôde, com vergonha de demonstrar medo na frente de uma mulher, até que a dor ficou pior do que ele podia suportar em silêncio e, depois de alguns gemidos abafados, ele olhou para mim com uma expressão suplicante, como se dissesse, “Eu não faria isso, moça, se eu pudesse evitar”, e desmaiou. O Dr. P. deu uma espécie de cacarejo de compaixão, e continuou cutucando, mais ocupado do que nunca, com um aceno para mim e um breve — “Não faz mal; faça o favor de segurar isso até eu terminar.” Eu obedeci, o tempo todo acalentando o forte desejo de introduzir algumas de suas próprias facas e tesouras desagradáveis dentro dele para ver se ele gostava. Uma ideia ridícula e desrespeitosa, claro; pois ele estava fazendo tudo o que podia, e o braço prosperou muito bem em suas mãos. Mas a mente humana é propensa ao preconceito; e, apesar de ser um homem agradável, falando francês como um verdadeiro “Parley voo”, e arrancando pernas como uma animada guilhotina, devo confessar que eu me senti aliviada quando ele foi mandado para outro lugar; e eu suspeito que vários dos homens encarariam uma bateria do exército rebelde com menos trepidação do que eles encaravam o Dr. P., quando ele entrava energeticamente durante a sua ronda da manhã. Como se para nos dar o prazer do contraste, quem o substituiu foi o Dr. Z, que parecia sofrer mais ao causar dor do que os seus pacientes sofriam ao suportá-la; pois ele sempre parava para perguntar: “Está sentindo alguma dor?” e, vendo a sua solicitude, os rapazes invariavelmente respondiam: “Não muita. Vá em frente, doutor”, apesar de que os lábios que proferiam esta nobre mentira frequentemente estavam brancos de dor enquanto falavam. Durante o processo de fazer alguns dos curativos, nós costumávamos conversar sobre assuntos alheios ao trabalho, para que o paciente se distraísse nos charmes de nosso discurso. A véspera de Natal foi passada dessa maneira; o doutor enfaixando o braço do jovem sargento, eu segurando a luz, enquanto todos os três riam e conversavam, como se estivéssemos em qualquer lugar, menos numa enfermaria de hospital; exceto quando a conversa era interrompida por um prolongado ”Ohh!” do “Bebê B.”, um pedido abrupto do doutor para “Segurar a lâmpada um pouco mais alto, por favor”, ou um encorajador “Quase acabando, sargento”, da enfermeira P. Eu fiquei sabendo que o Cirurgião Chefe, o Dr. O., recusou um salário maior, maior reconhecimento, e menos trabalho, de uma designação para o Hospital de Oficiais, virando a esquina, para que ele pudesse servir aos pobres companheiros na Casa Hurlyburly, ou ir para a linha de frente, trabalhando ali dia e noite, entre os horrores que sucediam as glórias da batalha. Eu gostei tanto disso que passei a admirar especialmente o quieto doutor de olhos castanhos; e quando chegava o meu turno, tinha mais fé nele do que em todos os outros juntos, apesar de que ele me aconselhou a ir para a casa e autorizou o consumo de pílulas azuis. Falar dos médicos me lembra que, tendo encontrado toda espécie de defeito, é justo que eu celebre uma característica positiva da Casa Hurlyburly. Eu tinha sido preparada pelo relato de muitos a esperar muita humilhação dos médicos, e a ser tratada como um capacho, verme, ou qualquer outra criatura mansa ou insignificante, cuja missão é ser colocada para baixo e andada por cima; enfermeiras sendo consideradas meras servas, recebendo o menor pagamento e, na minha opinião, fazendo o mais difícil dos trabalhos de qualquer parte do exército, com exceção das mulas. Grande, então, foi a minha surpresa, ao ser tratada com a maior cortesia e gentileza. Logo a minha mansidão cuidadosamente preparada foi colocada na prateleira, e, passando de um extremo ao outro, eu mais de uma vez expressei uma diferença de opinião a respeito das várias porcarias que eu tinha o dever de administrar. Como oito de nós enfermeiras ficamos de folga ao mesmo tempo, tivemos uma excelente oportunidade de testar as virtudes desses cavalheiros; e eu devo dizer que eles passaram no teste admiravelmente, no que diz respeito às minhas observações. O estetoscópio do Dr. O. era incansável em suas atenções; o Dr. S. trazia seus botões para a minha sala duas vezes por dia, com a regularidade de um relógio hospitalar; o Dr. Z. enchia a minha mesa de pequenos frascos, que eu nunca esvaziava, prescrevia Browning, me borrifava com Colônia, e mantinha a minha lareira acesa, como se ela fosse como as velas de São Pedro, e ele não pudesse permitir que apagasse. Caminhando, numa noite fria, com a certeza de que a minha última centelha tinha sido consumida e morrido, e que, portanto, horas de tosse estavam reservadas para mim, eu fiquei surpresa ao ver uma luz rubra dançando na parede, uma agradável chama subindo pela chaminé, e, na frente dela de joelhos, o Dr. Z., talhando lascas de madeira. Eu deveria ter subido e agradecido a ele ali mesmo; mas, sabendo que ele era do tipo que gostava de fazer o bem furtivamente, eu apenas espiei como se ele fosse um fantasma camarada; até que, tendo tornado as coisas tão confortáveis quanto a mais maternal das enfermeiras poderia ter feito, ele se retirou, me deixando com a impressão, como alguém disse, “de que anjos estavam tomando conta de mim enquanto eu dormia.” Apesar de que essa espécie de ave selvagem geralmente não desce vestida em tecido de lã e usando óculos. Eu descobri em seguida que ele tinha cortado a madeira ele mesmo naquela meia- noite fria de janeiro e feito ou conservado o fogo para as pobres velhas em seus deprimentes covis; dessa forma, se tornando para elas uma luz intensa e brilhante em mais de uma maneira. Eu nunca o agradeci como deveria; portanto, eu o faço agora publicamente, oprimindo ainda mais esse modesto M.D. ao dizer que, se ele não era o melhor dos doutores, e o mais cavalheiro entre os cavalheiros, eu ficarei feliz em ver qualquer melhora sobre o produto. Para aqueles que desejam saber onde essas cenas ocorreram, eu respeitosamente me recuso a responder; pois a Casa Hurlyburly deixou de existir como hospital; então, deixemos ela descansar, com todos os seus pecados sobre sua cabeça, — talvez eu deva dizer sua chaminé. Quando as enfermeiras ficaram doentes, os médicos partiram, e os pacientes melhoraram, acredito que a firma gentilmente desapareceu da existência. Ou se fundiu a um outro e melhor estabelecimento, onde eu espero que o banho de trezentas pessoas doentes aconteça fora da casa, que a comida seja comível, e que não se espere que mulheres mortais possuam a angelical isenção de todas as necessidades e a resistência de cavalos de carga. Desde de a aparição destes apressados Esboços, eu ouvi de vários de meus companheiros no hospital; e a aprovação deles me garante que eu não deixei a simpatia e a imaginação me levarem, como essa animada dupla está apta a fazer quando acompanhada de uma caneta. Como duas pessoas nunca verão a mesma coisa com os mesmos olhos, o meu ponto de vista sobre a vida de hospital deve ser tomado pelo que é. Certamente, nada foi escrito com malícia, e para os sérios que objetarem ao tom leve de algumas partes dos esboços, eu digo apenas que faz parte da minha religião cuidar das alegrias da vida, e deixar as tristezas tomarem conta de si mesmas; acreditando, com o bom Sir Thomas More, que é sábio “alegrar-se em Deus.” Eu espero que o próximo hospital que eu entre seja um para os regimentos dos negros, já que eles estão provando que merecem a admiração e os serviços de seus irmãos brancos, que devem a eles uma dívida tão grande, uma pequena parte da qual eu ficarei feliz em pagar. Sua amiga, Com uma firme Fé Nos bons tempos que estão por vir, Tribulation Periwinkle.