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KATE QUINN é autora bestseller de ficção histórica do New York Times

e USA Today. Natural da Califórnia, frequentou a Universidade de


Boston, onde obteve um diploma de bacharel e mestrado em Voz Clássica.
É autora de quatro romances da série Imperatriz de Roma e dois títulos
sobre o Renascimento italiano, antes de se dedicar a temas do século xx
com este A Rede de Alice. Todos foram já publicados em vários países.
Kate e seu marido vivem agora em Maryland com dois cães chamados
Caesar e Calpurnia.
A rede de Alice
Kate Quinn

Publicado em Portugal por:


Porto Editora
Divisão Editorial Literária – Porto
Email: delporto@portoeditora.pt

Título original:
The Alice Network
© 2017, Kate Quinn

Tradução: Gabriela Pilkington

Design da capa: Elsie Lyons


Imagens da capa: © Malgorzata Maj/Arcangel; © Stephen
Mulcahey/Arcangel;
© David & Myrtille/Arcangel; © Shutterstock (imp. de fundo)
Foto da autora: Kate Furek
Adaptação para a versão portuguesa: NOR267

1.ª edição em papel: outubro de 2019

Rua da Restauração, 365


4099-023 Porto
Portugal

www.portoeditora.pt

ISBN 978-972-0-67825-6
Para a minha mãe
A primeira leitora, a primeira crítica, a primeira fã
Isto é para ti
Capítulo 1
Charlie
Maio de 1947
Southampton

A primeira pessoa que conheci em Inglaterra foi uma alucinação. Veio


comigo a bordo do sereno transatlântico que me transportara, entorpecida de
dor, de Nova Iorque para Southampton.
Eu estava sentada a uma mesa de verga, em frente à minha mãe, no meio
de vasos com palmeiras no Dolphin Hotel, a tentar ignorar o que os meus
olhos me diziam. A rapariga loura ao pé do balcão da receção não era quem
eu pensava. Eu sabia que ela não era quem eu pensava. Era apenas uma
rapariga inglesa, à espera, ao lado da bagagem da família, alguém que eu
nunca vira – mas isso não impedia que a minha mente me dissesse que ela era
outra pessoa. Desviei o olhar, concentrando-me em três rapazes ingleses
sentados à mesa ao lado, ocupados a tentar não pagar gorjeta à empregada.
“Cinco porcento de gorjeta ou dez?”, dizia um deles, com uma gravata de
uma universidade, enquanto acenava a conta e os amigos se riam. “Só dou
gorjeta quando elas são bonitas. Esta tem pernas magricelas…”
Lancei-lhes um olhar furioso, mas a minha mãe, distraída, não deu conta.
– É muito frio e chuva para maio, mon Dieu! – Desdobrou o guardanapo.
Ela era um rebuliço de saias perfumadas, muito feminina, no meio da nossa
pilha de malas. Totalmente o oposto de mim, toda amarrotada e zangada. –
Põe os ombros para trás, chérie. – Ela vivia em Nova Iorque desde que casara
com o meu pai, mas continuava a salpicar o discurso com palavras francesas.
– Senta-te direita, por favor.
– Com esta esta roupa, não tenho como não me sentar direita. – Eu estava
enfiada numa cinta que mais parecia uma faixa de ferro; não que eu
precisasse de uma cinta, pois era magra como uma tábua, mas as minhas saias
folhadas não caíam bem sem uma cinta, daí a faixa de ferro. Que aquele Dior
e o seu New Look apodreçam no inferno. A minha mãe vestia-se sempre de
acordo com a última moda e tinha o corpo certo para os últimos modelos:
alta, cintura fina, curvas voluptuosas, toda arranjada no traje de viagem de
saias rodadas. Eu também vestia um fato de viagem com folhos, mas
afogava-me no meio de tanto tecido. O ano de 1947 era um pesadelo para
rapariguinhas escanzeladas como eu, que não se adequavam ao New Look. Na
verdade, 1947 era um pesadelo para qualquer rapariga que preferisse resolver
problemas de cálculo a ler a Vogue, qualquer rapariga que gostasse mais de
ouvir Edith Piaf do que Artie Shaw, qualquer rapariga sem um anel no dedo,
mas com uma barriga a crescer.
Eu, Charlie St. Clair, estava oficialmente prenhe. Essa era a outra razão
pela qual a minha mãe me queria metida numa cinta. Estava apenas de três
meses, mas ela não queria que a minha barriga revelasse a galdéria que tinha
trazido ao mundo.
Olhei de relance para o átrio do hotel. A rapariga loura permanecia lá, e a
minha mente continuava a tentar dizer-me que ela era alguém que não era.
Pisquei os olhos com força e desviei o olhar. A empregada aproximou-se com
um sorriso:
– Vão querer lanchar, minha senhora?
Ela tinha mesmo pernas magricelas, e, quando se afastou para tratar do
nosso pedido, os rapazes da mesa ao lado continuaram a queixar-se da
gorjeta. “Cada chá custou cinco xelins. Deixa só dois pence…”
O nosso chá chegou pouco depois, num estrépito de porcelana florida. A
minha mãe sorriu em agradecimento. “Mais leite, por favor. C’est bon!”
Embora não fosse assim tão bon, na verdade. Pequenos scones duros,
sanduíches secas e nada de açúcar; ainda havia racionamento em Inglaterra,
embora o Dia da Vitória tivesse acontecido dois anos antes, e um jantar num
hotel sumptuoso como este ainda tinha o preço racionado de cinco xelins. A
ressaca da guerra continuava visível, de uma forma que não se via em Nova
Iorque. Ainda havia soldados de uniforme a vaguear pelo átrio do hotel, a
namoriscar com as criadas; e, uma hora antes, ao desembarcar, eu tinha
reparado nas casas do cais que, destruídas pelas bombas, se assemelhavam a
falhas de dentes num sorriso bonito. Era a minha primeira visita a Inglaterra
e, das docas ao hotel, tudo parecia cinzento e esgotado da guerra, ainda em
profundo estado de choque. Como eu.
Meti a mão no bolso do meu casaco cinzento mescla e senti o papelinho
que lá vivia havia um mês, estivesse eu vestida num fato de viagem ou de
pijama, e com o qual eu não sabia o que fazer. O que podia eu fazer com ele?
Não sabia, mas sentia-o mais pesado do que o bebé dentro de mim. A este,
não o sentia de maneira nenhuma, assim como não conseguia ter uma emoção
definida sobre ele. Não tinha enjoos matinais, ou desejos de comer sopa de
ervilhas com manteiga de amendoim, ou qualquer outra coisa que é suposto
uma grávida sentir. Estava entorpecida. Não conseguia acreditar neste bebé,
porque nada mudara. Apenas toda a minha vida.
Os rapazes da mesa ao lado levantaram-se, atirando alguns pence para
cima da mesa. Reparei que a empregada regressava com o leite, caminhando
como se os pés lhe doessem, e olhei para os três rapazes ingleses que se
afastavam.
– Desculpem – disse eu, esperando que olhassem para trás. – Cinco xelins
por cada chá… Um total de 15 xelins vezes cinco porcento dá nove pence de
gorjeta. Dez porcento dá um xelim e seis pence.
Eles olharam para mim, espantados. Eu estava habituada àquele olhar.
Ninguém esperava que raparigas conseguissem fazer cálculos, muito menos
de cabeça, mesmo cálculos fáceis, como estes. Mas eu tinha tirado o curso de
Matemática no Bennington College – os números faziam sentido para mim;
eram ordenados e racionais e fáceis de compreender, ao contrário das pessoas
– e não havia conta que eu não conseguisse fazer mais rápido do que uma
máquina.
– Nove pence, ou um xelim e seis – repeti com ar aborrecido para os
rapazes que me fitavam. – Sejam cavalheiros. Deixem um xelim e seis.
– Charlotte – sibilou a minha mãe, quando os rapazes se foram embora,
irritados. – Foste muito indelicada.
– Porquê? Eu disse “desculpem”.
– Nem toda a gente deixa gorjetas. Não te devias ter intrometido dessa
maneira. Ninguém gosta de meninas metediças.
Ou de meninas que tiram cursos de Matemática, ou de meninas que
engravidam, ou… Mas deixei as palavras por dizer, demasiado cansada para
discutir. Atravessáramos o Atlântico num camarote de luxo para uma pessoa
durante seis dias, mais tempo do que o esperado devido ao mar agitado, e
todo esse tempo foi passado numa série de querelas tensas, que se
transformaram em cortesias ainda mais desconfortáveis. Tudo isto tinha
subjacente os silêncios repletos de vergonha da minha mãe, a sua intensa
raiva calada. Foi por isso que aproveitámos a oportunidade de sair do navio
por uma noite – se não saíssemos daquele camarote exíguo e abafado, íamos
atirar-nos uma à outra.
“A tua mãe está sempre pronta para se atirar a alguém.” A minha prima
francesa Rose dissera-o alguns anos antes, quando a Maman nos tinha dado
um sermão de dez minutos por ouvirmos Edith Piaf. Isto não é música para
meninas, é indecente!
Bem, eu tinha feito algo bastante mais indecente do que ouvir jazz
francês. Tudo o que eu podia fazer era afastar as minhas emoções até parar de
as sentir e afugentar as pessoas com o queixo empinado num determinado
ângulo que significava: quero lá saber. Funcionava bem com rapazes que não
queriam deixar gorjeta a empregadas, mas a minha mãe conseguia facilmente
ver por detrás da máscara.
Naquele momento, ela tagarelava, queixando-se da nossa viagem:
– … eu sabia que devíamos ter apanhado o navio a seguir. Ter-nos-ia
levado diretamente a Calais, sem ter de fazer este desvio idiota a Inglaterra.
Fiquei em silêncio. Uma noite em Southampton e amanhã diretas a
Calais, onde um comboio nos levaria à Suíça. A minha mãe marcara
discretamente uma certa consulta numa clínica em Vevey. Sente-te grata,
Charlie, disse a mim mesma pela milésima vez. Ela não tinha obrigação de
vir contigo. Eles podiam ter-me despachado para a Suíça com a secretária do
meu pai ou qualquer outro serviçal desinteressado. A minha mãe não tinha
obrigação de prescindir das habituais férias em Palm Beach só para me trazer
pessoalmente à consulta. Ela está aqui contigo. Está a esforçar-se. Eu
reconhecia isso, mesmo no meu estado ansioso e confuso, cheio de raiva e
vergonha. Não é que ela estivesse errada por estar tão furiosa comigo, por
pensar que eu era uma galdéria problemática. Era isso que se chamava a
raparigas que se metiam no tipo de apuros em que eu estava. Era melhor
habituar-me ao rótulo.
Maman continuava a falar, resolutamente animada.
– Estava a pensar irmos a Paris, depois da tua Consulta. –Sempre que ela
dizia a palavra, eu ouvia perfeitamente a letra maiúscula. – Comprar-te
roupas em condições, ma p’tite. Arranjar-te o cabelo.
O que ela estava efetivamente a dizer era: Vais regressar à escola no
outono com um visual novo e chique, e ninguém vai saber do teu Pequeno
Problema.
– Não vejo essa equação a dar certo, Maman.
– O que queres dizer com isso?
Suspirei.
– Uma aluna do 2.° ano da faculdade menos um pequeno embaraço, a
dividir por um período de tempo de seis meses, multiplicado por dez vestidos
parisienses e um novo corte de cabelo não equivale, por magia, a uma
reputação refeita.
– A vida não é um problema matemático, Charlotte.
Se fosse, eu sair-me-ia muito melhor a vivê-la, sem dúvida. Desejava
frequentemente poder perceber as pessoas tão facilmente como entendia
aritmética: reduzi-las simplesmente ao denominador comum e resolvê-las. Os
números não mentiam; havia sempre uma resposta, e a resposta era certa ou
errada. Simples. Mas nada na vida era simples, e aqui não havia nada para
resolver. Havia apenas a caótica Charlie St. Clair, sentada à mesa com a mãe,
com quem não tinha nenhum denominador comum.
Maman bebericava o chá fraquinho com um sorriso forçado, odiando-me.
– Vou perguntar se os nossos quartos estão prontos. Senta-te direita! E
não te afastes da tua mala; o colar de pérolas da tua avó está lá dentro.
Deslizou graciosamente em direção ao balcão comprido de mármore e aos
rececionistas atarefados, e eu peguei na minha mala – quadrada e amassada;
não tive tempo para comprar uma mala nova e impecável. Eu tinha metade de
um maço de Gauloises guardado debaixo da caixa com o meu colar de
pérolas (só a minha mãe para insistir que eu levasse as pérolas para a clínica
da Suíça). E deixaria alegremente a mala e as pérolas à mercê de um ladrão,
se pelo menos conseguisse sair à rua para fumar um cigarro. A minha prima
Rose e eu fumámos o nosso primeiro cigarro quando tínhamos,
respetivamente, 13 e 11 anos; roubámos um maço ao meu irmão mais velho e
trepámos a uma árvore para experimentar aquele vício dos adultos. “Pareço a
Bette Davis?”, perguntara Rose, tentando exalar o fumo pelo nariz. Eu quase
caíra da árvore, enquanto ria e tossia simultaneamente, após a primeira passa,
ao mesmo tempo que ela punha a língua de fora. “Que pateta, Charlie!” Rose
era a única pessoa que me chamava Charlie, em vez de Charlotte, dando ao
nome uma sonoridade francesa. Xarr-li, com ênfase em ambas as sílabas.
Era Rose, claro, quem eu via agora a olhar fixamente para mim no átrio
do hotel. E não era Rose; era apenas uma rapariga inglesa de ombros caídos,
ao lado de um monte de malas, mas o meu cérebro dizia-me teimosamente
que eu via a minha prima: 13 anos, loura, delicadamente bonita. Essa era a
idade dela no último verão em que eu a vira, sentada naquela árvore com o
seu primeiro cigarro.
Seria agora mais velha, 21 anos para os meus 19…
Se ainda fosse viva.
– Rose – sussurrei, sabendo que devia desviar o olhar, mas não o fazendo.
– Oh, Rose.
Na minha imaginação, ela esboçou um sorriso traquinas e meneou a
cabeça para trás, apontando o queixo para a rua. Vai.
– Vai aonde? – disse eu em voz alta. Mas já sabia. Enfiei a mão no bolso
do casaco e senti o papelinho que guardava havia um mês. Duro e enrugado
ao início, o tempo desgastara-o até ficar mole e maleável. O papelinho tinha
um endereço. Eu podia…
Não sejas estúpida. A minha consciência tinha uma voz severa e
reprovadora que picava como um ferrão. Sabes bem que não vais a lado
nenhum, a não ser lá para cima para o quarto. Havia um quarto de hotel com
lençóis limpos à minha espera, um quarto que eu não teria de partilhar com a
fúria precária da minha mãe. Uma varanda onde eu poderia fumar em paz.
Outro barco para apanhar no dia seguinte, e depois a Consulta, como os meus
pais, de forma eufemística, se referiam. A Consulta, que trataria do meu
Pequeno Problema, para que tudo ficasse Bem.
Ou eu poderia aceitar que nada estava Bem e que nada ficaria Bem. E
poderia, naquele preciso momento, simplesmente ir e seguir outro caminho,
que começava aqui, em Inglaterra.
Tu planeaste isto, murmurou Rose. Sabes bem que sim. E era verdade.
Até no meio do meu infortúnio cego e apático das últimas semanas, eu
desejara seguir no barco que nos levaria pelo desvio a Inglaterra, e não no
barco seguinte, que nos teria levado diretamente a França. Eu ansiara por
aquele barco sem me permitir pensar na razão por que o fazia: eu tinha um
endereço inglês no meu bolso. E naquele momento, quando já não havia um
oceano pelo meio, só me faltava a coragem para ir lá.
A rapariga desconhecida inglesa que não era a Rose já não estava lá;
subia as escadas do hotel, atrás de um paquete carregado com a bagagem.
Olhei para o espaço vazio onde Rose estivera. Passei os dedos pelo papelinho
no interior do meu bolso. Senti os cacos de uma emoção que não identifiquei
a picarem-me por entre a minha apatia. Medo? Esperança? Determinação?
Um endereço rabiscado mais uma pitada de determinação, multiplicado à
potência de dez. Resolve a equação, Charlie.
Faz os cálculos.
Descobre a incógnita.
Agora ou nunca.
Respirei fundo. Tirei o papel do bolso e, com ele, veio uma nota
amarrotada de uma libra. Num impulso, espalmei a nota na mesa ao lado,
onde os rapazes imbecis tinham deixado uma gorjeta miserável, e saí do
edifício agarrada à minha mala e aos meus cigarros franceses. Saí pelas
portas largas do hotel, perguntando ao porteiro:
– Desculpe, pode dizer-me onde é a estação de comboios?

Não era a ideia mais sensata que eu alguma vez tivera: uma cidade
estranha, uma rapariga sozinha. Tinha passado as duas últimas semanas num
estado tal de estupefação, devido ao meu azar interminável – o Pequeno
Problema, os gritos em francês da minha mãe, o silêncio gelado do meu pai –,
que estava disposta a ir a qualquer lado que me levassem. Ter-me-ia até
atirado de um precipício, impassível e submissa, sem me importar ou pensar
na razão pela qual o fazia até chegar ao fundo. Estava quase a chegar ao
fundo do buraco em que a minha vida se tornara, dando incontáveis voltas no
ar. Mas agora tinha algo onde me agarrar.
Era, concedo, algo com a forma de uma alucinação, uma visão que eu
vinha a ter desde havia meses, com o meu pensamento a insistir em desenhar
o rosto de Rose em todas as raparigas louras que passavam por mim.
Assustara-me muito da primeira vez, não por achar que Rose era um
fantasma, mas por acreditar que estava a ficar louca. Talvez eu estivesse
louca, mas não via fantasmas. Porque, independentemente do que os meus
pais dissessem, eu não estava completamente convencida de que Rose
morrera.
Agarrei-me a essa esperança enquanto me apressava rua fora em direção à
estação de comboios, nos meus sapatos de salto alto muito pouco práticos
(“uma jovem baixa como tu deve usar sempre saltos altos, ma chère, ou
parecerás sempre uma menina”). Avancei pelo meio da multidão, entre os
trabalhadores que se dirigiam para as docas, brutos e fanfarrões; as
empregadas de lojas muito bem vestidas; os soldados que conversavam nas
esquinas. Acelerei até perder o fôlego, e deixei que a esperança florescesse
dentro de mim, crescendo por entre uma dor que me fazia arder os olhos.
Volta para trás, repreendeu a voz dura da consciência. Ainda estás a
tempo de voltar para trás. De voltar para um quarto de hotel, para a minha
mãe a tomar todas as decisões, para o abrigo do meu estado alheado de
confusão. Mas continuei a andar depressa. Ouvi o apito de um comboio e
inspirei o cheiro do carvão e as vagas de vapor. Terminal de Southampton.
Uma multidão de passageiros desembarcava – homens de chapéu, crianças de
faces coradas, mulheres a proteger os cabelos ondulados da chuva miudinha
com jornais amarrotados. Quando teria começado a chover? Sentia o cabelo
escuro a achatar sob a aba do chapéu verde que a minha mãe escolhera para
mim, o mesmo que me fazia parecer um duende. Continuei a correr e entrei
na estação.
O revisor de um comboio gritava qualquer coisa. A partida dentro de dez
minutos de um comboio direto para Londres.
Olhei novamente para o papelinho que apertava na mão. Hampson Street,
número 10, Pimlico, Londres. Evelyn Gardiner.
Quem quer que ela fosse.
A minha mãe provavelmente já estaria à minha procura no Hotel Dolphin,
lançando instruções imperiosas aos rececionistas do hotel. Mas eu não me
importava nada. Estava apenas a 120 quilómetros de Hampson Street,
número 10, Pimlico, Londres, e havia um comboio mesmo à minha frente.
– Cinco minutos! – gritou o revisor.
Os passageiros apressaram-se a subir para as carruagens, erguendo as
malas.
Se não fores agora, nunca mais irás, pensei.
Por isso, comprei um bilhete e embarquei no comboio. E assim, sem mais
nem menos, desapareci por entre a bruma.

A tarde transformou-se em princípio de noite e começou a fazer frio na


carruagem. Encolhi-me dentro da minha velha gabardine, tentando aquecer.
Partilhava o compartimento com uma mulher de cabelo grisalho e os seus três
netos fungosos. A avó lançou um olhar desaprovador à minha mão sem
aliança e sem luvas, como se quisesse descobrir que tipo de jovem viajaria
para Londres sozinha. Haveria frequentemente, com certeza, jovens a viajar
para Londres, dadas as necessidades do tempo de guerra – mas era óbvio que
ela não me aprovava.
– Estou grávida – disse-lhe, à terceira vez que ela emitiu um estalido em
sinal de desaprovação. – Vai querer agora mudar de assento? – Ela
endireitou-se no banco e saiu na paragem seguinte, arrastando os netos
consigo enquanto eles se queixavam. “Mas avó, não é suposto sairmos só…”
Coloquei o meu queixo no ângulo que dizia quero lá saber e desafiei o seu
último olhar de desaprovação. Assim que a porta se fechou e eu fiquei
sozinha, voltei a afundar-me no assento. Apertei as minhas faces vermelhas
com as mãos, sentindo-me zonza e confusa e esperançosa e com a
consciência pesada. Eram tantas emoções que estava quase a afogar-me,
sentindo a falta da carapaça que tinha sido a minha apatia. Que diabo se
passava comigo?
A fugir para Inglaterra com um endereço e um nome, disse a minha voz
interior com dureza. Achas que vais fazer o quê? És um desastre sem
esperança, como queres tu ajudar alguém?
Estremeci. Não sou um desastre.
Sim, és. Da última vez que tentaste ajudar alguém, vê o que aconteceu.
– E agora estou a tentar outra vez – disse eu em voz alta para o
compartimento vazio. Fosse eu um desastre sem esperança ou não, estava ali.
Era já noite cerrada quando cambaleei para fora do comboio, em Londres,
cansada e cheia de fome. Arrastei o passo até à rua e a cidade apareceu à
minha frente, uma enorme e fumarenta massa escura; ao longe, vi o perfil do
grande relógio de Westminster. Fiquei momentaneamente parada, enquanto
os carros chapinhavam água ao passar, a pensar como teria sido Londres
apenas há alguns anos, quando este nevoeiro era ceifado por Spitfires e
Messerschimtts – e depois, com uma sacudidela, parei de fantasiar. Não fazia
ideia de onde poderia ser o número 10 de Hampson Street, e só me restavam
algumas moedas na carteira. Chamei um táxi, rezando para que fossem
suficientes. Não me apetecia nada ter de arrancar uma pérola ao colar da
minha avó só para pagar a corrida de táxi. Se calhar, não devia ter deixado
uma libra inteira à empregada… Mas não estava arrependida.
O taxista levou-me a um bairro que disse ser Pimlico e deixou-me perto
de uma série de casas altas. Tinha começado a chover a sério. Olhei em redor,
à procura da minha alucinação, mas não vislumbrei qualquer cabeça loura.
Apenas uma rua escura, a chuva a cair e os degraus gastos da casa número
10, que acabavam numa porta de tinta suja e descascada. Ergui a mala, subi
as escadas e bati a aldraba da porta, antes que a coragem me abandonasse.
Ninguém abriu. Voltei a bater. A chuva caía mais forte, e eu senti-me
invadida por uma onda de desespero. Bati várias vezes com força, até o pulso
me doer, e então reparei que a cortina da janela ao lado da porta havia sido
puxada num movimento minúsculo.
– Eu sei que está alguém aí dentro! – Abanei com força a maçaneta da
porta, cega pela chuva. – Deixe-me entrar!
Para minha surpresa, a maçaneta rodou e eu entrei a voar, caindo
finalmente do alto dos meus sapatos nada práticos. Caí de joelhos no chão do
átrio sombrio, rasgando as meias, e a porta fechou-se com um estrondo. Ouvi
o clique do cão de uma pistola.
A voz era grave, irritada, arrastada, feroz.
– Quem és tu e que raio estás a fazer na minha casa, porra?
A luz dos postes da rua chegava turva através das cortinas, iluminando de
forma ténue o átrio escuro. Consegui entrever uma figura magra e alta, cabelo
esguedelhado, a ponta acesa de um cigarro. O reflexo de luz no cano de uma
pistola, apontada diretamente a mim.
Devia sentir-me apavorada, aterrorizada com o choque, a pistola e a
linguagem. Mas a fúria que senti nesse momento varreu o último resquício da
minha apatia, e encolhi as pernas para me levantar, com as malhas das meias
a repuxar.
– Procuro a Evelyn Gardiner.
– Não me importa quem procuras. Se não me disseres porque tenho o raio
de uma ianque a tentar arrombar-me a casa, dou-te um tiro. Estou velha e
bêbeda, mas isto é uma Luger de 9mm P08 em excelente estado. Bêbeda ou
não, a esta distância consigo bem rebentar com a tua cabeça.
– Chamo-me Charlie St. Clair. – Afastei o cabelo molhado dos olhos. – A
minha prima Rose Fournier desapareceu em França durante a guerra, e talvez
a senhora me possa ajudar a encontrá-la.
De repente, o candeeiro de parede elétrico acendeu-se. O brilho súbito da
luz fez-me piscar os olhos. De pé, por cima de mim, estava uma mulher alta e
magra, com um vestido estampado a perder a cor, guedelhas grisalhas a
emoldurar um rosto devastado pelo tempo. Tanto podia ter 50 como 70 anos.
Tinha a Luger numa mão e o cigarro aceso na outra; mantinha calejadamente
a pistola fixa junto à minha testa, enquanto levava o cigarro à boca e dava
uma longa passa. O meu estômago deu uma volta quando lhe vi as mãos.
Meu Deus, o que lhe teria acontecido às mãos?
– Eu sou a Eve Gardiner – disse ela por fim. – E não sei nada dessa prima
de que falas.
– Se calhar – soltei eu, desesperada. – Se calhar sabe… se me deixar
explicar.
– É esse o teu plano, jovem ianque? – Os olhos caídos e cinzentos
observaram-me cuidadosamente e com desdém, como uma ave de rapina. –
Entras pela minha casa dentro de noite, sem plano, e aposto que sem
dinheiro, na hipótese de eu saber alguma coisa sobre a tua amiga d-
desaparecida?
– Sim. – Confrontada com aquele desprezo e aquela pistola, não
conseguia explicar porquê, porque é que a hipótese de encontrar Rose se
tornara subitamente uma obsessão na minha vida em pantanas. Não
conseguia explicar este estranho desespero arrebatador ou porque deixara que
ele me trouxesse até ali. Não conseguia mais do que constatar a verdade.
– Eu tinha de vir.
– Bom. – Eve Gardiner baixou a pistola. – Suponho que vais querer um
ch-chá.
– Sim, um chá seria…
– Não tenho chá nenhum. – Virou costas e caminhou pelo corredor, com
passos largos e descuidados. Os pés descalços pareciam as garras de uma
águia. O andar era ligeiramente ondulante, com a Luger a oscilar livremente
ao lado do corpo, e reparei que ela mantinha um dedo no gatilho. Louca,
pensei. A velha é completamente louca.
E as mãos dela… eram pedaços monstruosos de carne, cheios de nós,
todas as articulações deformadas e grotescas. Pareciam mais pinças de uma
lagosta do que mãos.
– Segue-me – disse, sem se voltar, e eu corri atrás dela. Bateu numa porta
para a abrir, acendeu a luz, e vi uma sala de jantar fria: tudo desarrumado,
lareira por acender, cortinas corridas de tal forma que nem uma centelha de
luz passava da rua para o interior da casa, jornais velhos e chávenas de chá
sujas por todo o lado.
– Sra. Gardiner…
– Miss. – Ela lançou-se para cima de um cadeirão coçado, voltado para a
total desarrumação da sala, e atirou a pistola para uma mesinha ao lado do
cadeirão. Encolhi-me, mas a coisa não disparou. – E podes chamar-me Eve.
Entraste na minha casa à f-força, e isso implica um grau de intimidade que,
desde já, me faz não gostar de ti. Que importância tem um nome?
– Não tive intenção de entrar à força…
– Claro que tiveste. É óbvio que queres alguma coisa, e muito. O que é?
Despi a gabardine com dificuldade e sentei-me numa almofada no chão,
não sabendo, de repente, por onde começar. Tinha estado tão preocupada em
chegar aqui, que não planeara a forma de começar a conversa. Duas
raparigas vezes onze verões a dividir por um oceano e uma guerra…
– V-vá, despacha-te. – Eve parecia gaguejar ligeiramente, mas eu não
conseguia dizer se era da bebida ou por algum outro problema. Ela pegou
num decantador de cristal que se encontrava ao lado da pistola e tentou tirar a
rolha com movimentos desajeitados dos dedos disformes. Senti o cheiro do
whisky. – Não me restam muitas horas de sobriedade, por isso, sugiro que não
as desperdices.
Soltei um suspiro. Não era apenas uma velha louca, era também uma
velha bêbeda. Pelo nome, Evelyn Gardiner, eu tinha imaginado alguém com
sebes no jardim e o cabelo penteado num puxo, não com um decantador de
whisky e uma pistola carregada.
– Importa-se que eu fume?
Ela encolheu os ombros magricelas e, enquanto eu tirava rapidamente os
meus Gauloises, começou à procura de um copo. Não encontrou nada à sua
volta, pelo que despejou uma porção do líquido cor de âmbar para dentro de
uma chávena florida. Meu Deus, pensei, ao acender um cigarro, meio
fascinada, meio horrorizada. Que criatura é esta?
– É má educação olhar fixamente para as pessoas – disse ela, olhando
para mim igualmente com descaro. – Credo, esses folhos todos da tua saia…
É isso o que as mulheres usam, hoje em dia?
– Não sai muito à rua, pois não? – perguntei, sem pensar.
– Nem por isso.
– É o New Look. É a última moda em Paris.
– Parece desconfortável c-como tudo.
– E é. – Dei uma passa no cigarro, deprimida. – Muito bem. Chamo-me
Charlie St. Clair, ou melhor, Charlotte, e acabei de chegar de Nova Iorque…
– O que estaria a minha mãe a pensar naquele momento? Provavelmente
estaria furiosa e frenética, pronta para me dar uma sova. Mas afastei esse
pensamento com veemência. – O meu pai é americano, mas a minha mãe é
francesa. Antes da guerra, costumávamos passar os verões em França, com os
meus primos franceses. Eles viviam em Paris e tinham uma casa de férias nos
arredores de Rouen.
– A tua infância parece um piquenique de Degas. – Eve tomou um trago
de whisky. – Vê se contas algo m-mais interessante, ou vou ter de beber mais
depressa.
Mas fora realmente uma pintura de Degas. Se eu fechasse os olhos, todos
aqueles verões se transformavam numa longa e indistinta estação: as ruas
estreitas e sinuosas, exemplares antigos do Le Figaro espalhados pela enorme
casa repleta de recantos e sofás gastos, a luz do sol filtrada por entre a bruma
do jardim a iluminar todos os grãos de poeira no ar.
– A minha prima Rose Fournier… – Senti lágrimas a picarem-me os
olhos. – Ela é minha prima direita, mas é como uma irmã mais velha. Tem
mais dois anos do que eu, mas nunca me ignorou. Partilhávamos tudo,
contávamos tudo uma à outra.
Duas meninas com os vestidos manchados pela relva a brincar à
apanhada, a trepar às árvores e a declarar guerras violentas aos nossos
irmãos. Depois, mais velhas, Rose a começar a ter peito e eu ainda
desengonçada, de joelhos arranhados, as duas a cantarolar ao som de discos
de jazz e a partilhar uma paixoneta jovial pelo Errol Flynn. Rose, a mais
audaciosa das duas, sempre com esquemas descabelados; eu, a sua sombra
dedicada, que ela protegia como uma leoa quando os esquemas davam para o
torto e nos metiam em trabalhos. A voz dela surgiu-me tão real e tão
repentinamente que era como se ela estivesse ali na sala: “Charlie, esconde-te
no meu quarto. Eu coso-te o vestido antes que a tua mãe dê conta do rasgão.
Eu não te devia ter levado a escalar aquelas rochas…”
– Não chores, por favor – disse Eve Gardiner. – Não suporto mulheres
que choram.
– Eu também não. – Eu não chorava havia semanas, perdida na minha
apatia, mas naquele momento os meus olhos ardiam. Pisquei-os
furiosamente. – A última vez que vi Rose foi no verão de 39. Toda a gente
estava preocupada com a Alemanha… bem, todos exceto nós. Rose tinha 13
anos e eu 11; tudo o que queríamos era ir todas as tardes ao cinema, à socapa,
e isso era muito mais importante do que tudo o que acontecia na Alemanha.
A Polónia foi invadida pouco depois de eu ter regressado aos Estados Unidos.
Os meus pais queriam que a família de Rose viesse para a América, mas eles
mantiveram-se sempre hesitantes… – A mãe de Rose convencera-se de que
estava demasiado frágil para viajar. – Antes que eles pudessem fazer planos,
a França foi conquistada.
Eve bebeu outro gole de whisky e nem sequer pestanejou os olhos de
pálpebras descaídas. Dei outra passa no meu cigarro para me acalmar.
– Recebi cartas – continuei. – O pai de Rose era uma pessoa importante,
um industrial. Tinha muitos conhecimentos, por isso a família conseguia
enviar uma carta de vez em quando. A Rose parecia-me animada. Falava
sempre do nosso próximo encontro. Mas nós tínhamos notícias do que se
passava, toda a gente tinha: suásticas hasteadas por toda a cidade de Paris,
pessoas levadas à força em camiões para nunca mais serem vistas. Eu
escrevia-lhe a perguntar se ela estava realmente bem, e ela respondia sempre
que sim, mas… – Na primavera de 43, trocámos fotografias, uma vez que
havia muito tempo que não nos víamos… Rose tinha 17 anos e estava tão
bonita, de pose atraente e a sorrir para a lente. Eu guardava a fotografia no
meu porta-moedas, já gasta e dobrada nos cantos. – A última carta de Rose
mencionava um rapaz que ela namorava às escondidas. Falava de muita
excitação. – Respirei fundo, trémula. – Isso foi no início de 43. Depois, não
tive mais notícias de Rose, nem de ninguém da família dela.
Eve observava-me, o seu rosto envelhecido parecia uma espécie de
máscara. Não conseguia dizer se tinha pena de mim, ou desprezo, ou se não
se importava de todo.
O meu cigarro estava quase no filtro. Dei uma última e profunda passa e
apaguei-o num pires já a transbordar de cinza.
– Eu sabia que o facto de não receber cartas de Rose não tinha qualquer
significado. O correio em tempo de guerra é caótico. Só tínhamos de esperar
que a guerra acabasse, e então as cartas começariam a chegar ao destino. Mas
a guerra acabou e… nada.
Mais silêncio. Era mais difícil do que eu pensara, contar aquilo tudo.
– Pedimos informações. Demorou muito tempo, mas conseguimos
algumas respostas. O meu tio francês morrera em 44, atingido a tiro quando
tentava arranjar medicamentos para a minha tia no mercado negro. Os dois
irmãos de Rose tinham morrido no final de 43, uma bomba. A minha tia
ainda está viva: a minha mãe queria que ela fosse viver connosco, mas ela
não quis e fechou-se na casa de Rouen. E Rose…
Engoli em seco. Rose a deambular à minha frente, por entre as árvores do
jardim. Rose a praguejar em francês, a passar uma escova pelos caracóis
rebeldes. Rose no café provençal, no dia mais feliz de toda a minha vida…
– A Rose desapareceu. Deixou a família em 43. E não sei porquê. O meu
pai tentou saber, mas depois da primavera de 44 perdemos-lhe o rasto. Nada.
– Muito se perdeu nessa guerra – comentou Eve, e eu fiquei surpreendida
por ouvir a sua voz rouca depois de eu ter falado durante tanto tempo. –
Muitas pessoas desapareceram. Tu não pensas que ela está viva, pois não? Já
se passaram dois anos desde que a maldita g-guerra acabou.
Cerrei os dentes. Os meus pais tinham concluído havia muito tempo que
Rose morrera, perdida no caos da guerra, e provavelmente com razão, mas…
– Não sabemos ao certo.
Eve revirou os olhos.
– Não me vais dizer que se ela estivesse morta tu o s-sentirias.
– Não tem de acreditar em mim. Só ajudar-me.
– Porquê? Que raio tem isto tudo que ver c-comigo?
– Porque a última informação que o meu pai conseguiu veio daqui, de
Londres. Ele queria saber se a Rose emigrara de França para cá. Havia um
gabinete que ajudava a localizar os refugiados. – Respirei fundo. – E a
senhora trabalhou lá.
– Em 45 e 46. – Eve verteu mais whisky na chávena florida. – Fui
despedida no Natal passado.
– Porquê?
– Se calhar porque chegava ao trabalho com os copos. E porque disse à
minha chefe que ela era o estupor de uma cabra rancorosa.
Não pude evitar encolher-me. Nunca ouvira alguém dizer tantos palavrões
como Eve Gardiner. Muito menos uma mulher.
– Portanto… – Ela fez rodar o whisky dentro da chávena. – Suponho que
o dossiê da tua prima passou por mim, é isso? Eu n-não me lembro. Como te
disse, chegava muitas vezes ao trabalho com os copos.
Também nunca tinha visto uma mulher beber assim. A bebida preferida
da minha mãe era xerez, dois cálices de cada vez, no máximo. Eve bebia
whisky puro de golada, como se fosse água, e as palavras arrastavam-se cada
vez mais. Talvez a ligeira gaguez fosse apenas da bebida.
– Eu tenho uma cópia do dossiê da Rose – revelei, aflita pela
possibilidade de perder de vez a atenção dela, fosse por desinteresse ou pelo
whisky. – Tem a sua assinatura. Foi assim que obtive o seu nome. Telefonei a
fingir que era a sua sobrinha americana. E eles deram-me o seu endereço. Eu
ia escrever-lhe, mas… – Bem, o meu Pequeno Problema instalou-se na minha
barriga por essa altura. – Tem a certeza de que não se lembra de outras
informações sobre a Rose? Qualquer…
– Escuta, jovem. Não te posso ajudar.
– … coisa! Ela saiu de Paris em 43, na primavera seguinte estava em
Limoges. Foi o que a mãe dela nos disse…
– Eu disse que não te posso ajudar.
– Mas tem de me ajudar! – Eu estava de pé, mas não me lembrava de me
ter levantado. O desespero acumulava-se no meu estômago, uma bola sólida
muito mais densa do que a sombra imaterial que era o meu bebé. – A senhora
tem de me ajudar! Não saio daqui sem a sua ajuda! – Eu nunca gritara com
um adulto na minha vida, mas naquele momento gritava. – A Rose Fournier,
ela estava em Limoges, 17 anos de idade…
Eve também estava de pé, bastante mais alta do que eu, a picar o meu
peito com um dos seus dedos indescritíveis, a voz terrivelmente calma.
– Não grites comigo na minha própria casa.
– … ela teria agora 21 anos, é loura e linda e divertida…
– Não me importa se ela é a Santa Joana d’Arc, não tenho nada que ver
com ela nem contigo!
– … ela trabalhava num restaurante chamado Le Lethe, cujo dono era um
Monsieur René, e depois disso ninguém sabe…
Nesse momento, algo aconteceu no rosto de Eve. Nada nele se mexeu,
mas alguma coisa acontecia. Era como se algo se tivesse movido no fundo de
um lago profundo e enviado uma minúscula vibração à superfície. Não era
sequer uma onda – mas eu sabia que algo se movera lá no fundo. Eve olhou
para mim e os olhos dela brilharam.
– O quê? – O meu coração palpitava como se tivesse corrido um
quilómetro, o rosto ardia de emoção e as minhas costelas doíam sob o aperto
do ferro da cinta.
– Le Lethe – disse ela lentamente. – Eu conheço esse nome. D-disseste
que o dono é quem?
Apressei-me a abrir a minha mala, afastando a roupa enquanto procurava
o bolso do forro. Duas folhas de papel dobradas; entreguei-lhas.
Eve leu a primeira folha do relatório, com o seu nome escrito em baixo.
– Não há nada aqui sobre o nome do restaurante.
– Descobri isso depois… Veja a segunda página, as minhas notas.
Telefonei para o gabinete na esperança de falar consigo, mas a senhora já não
trabalhava lá. Convenci o funcionário a procurar a informação original
guardada nos dossiês deles; ele encontrou o nome Le Lethe, propriedade de
um Monsieur René, sem apelido. O texto estava truncado, talvez por isso não
tivesse sido transcrito para o relatório. Mas presumi que, se a senhora assinou
o relatório, também terá lido a informação original.
– Não li. S-se tivesse lido, não o teria assinado. – Eve leu a segunda
página, não tirando os olhos do papel. – Le Lethe… esse nome é-me familiar.
A esperança era dolorosa, muito mais dolorosa do que a raiva.
– Como assim?
Eve voltou-se e procurou o decantador do whisky às apalpadelas. Deitou
mais whisky na chávena e bebeu tudo de um só trago. Encheu novamente a
chávena e ficou especada, o olhar a trespassar-me em direção ao infinito.
– Sai da minha casa.
– Mas…
– Podes dormir aqui, se não tens sítio onde f-f-f-ficar. Mas amanhã de
manhã é melhor ires-te embora, ianque.
– Mas… a senhora sabe de alguma coisa. – Ela pegou na pistola e passou
por mim. – Por favor…
A mão estropiada de Eve foi mais rápida do que a minha reação, e, pela
segunda vez naquela noite, eu tinha uma arma apontada a mim. Encolhi-me,
mas ela avançou meio passo e colocou o cano da pistola bem no meio da
minha testa, entre os olhos. A marca redonda e fria da pistola arrepiou-me a
pele.
– Sua velha louca – murmurei.
– Sim – replicou ela asperamente. – E vou dar-te um tiro se ainda
estiveres aqui amanhã, quando eu acordar.
E saiu a cambalear da sala de estar em direção ao corredor desprovido de
tapete.
Capítulo 2
Eve
Maio de 1915
Londres

A sorte chegou à vida de Eve Gardiner vestida de tweed. Nessa manhã,


Eve estava atrasada para o trabalho, mas o seu chefe não deu conta quando
ela entrou discretamente no escritório de advocacia 10 minutos depois das
9h00. Eve sabia que Sir Francis Galborough raramente reparava em alguma
coisa que não estivesse nas páginas das corridas de cavalos do jornal.
– Aqui estão os ficheiros, minha cara – anunciou ele quando ela entrou.
Ela pegou na pilha de documentos com as mãos delgadas e perfeitas: uma
jovem alta de cabelo castanho avelã, pele macia e olhar enganadoramente
inocente.
– Sim, s-s-senhor. – A letra s era difícil de dizer; emperrar nela só duas
vezes não era mau.
– E aqui o Capitão Cameron tem uma carta para passar à máquina em
francês. Tem de a ouvir tagarelar em franciú – disse Sir Francis para o
soldado alto e magro sentado à sua frente. – É uma joia, esta Miss Gardiner.
É meio francesa! Eu cá não falo nem uma palavra de franciú.
– Nem eu. – O capitão sorriu, brincando com o cachimbo. – Passa-me
completamente ao lado. Obrigada por me emprestares a tua rapariga, Francis.
– Sem problema, sem problema!
Ninguém perguntou a Eve se havia problema. E porque o fariam? Afinal,
ela, sendo secretária, não era mais do que uma espécie de mobília, mais
móvel do que um feto num vaso, mas igualmente surda e muda.
Tens sorte em ter este emprego, relembrou Eve a si mesma. Se não fosse
pela guerra, um emprego como este numa firma de advogados teria sido dado
a um homem com boas recomendações e brilhantina no cabelo. Tu tens sorte.
Muita sorte, na verdade. Eve tinha um emprego fácil, a endereçar envelopes,
arquivar documentos e, de vez em quando, escrever à máquina uma carta em
francês; ganhava o suficiente para viver com relativo conforto; e, apesar de a
escassez de açúcar, natas e fruta fresca, causada pela guerra, já cansar, era um
preço justo a pagar pela segurança que lhe dava. Ela podia muito bem não ter
conseguido sair do norte de França e estar a passar fome sob a ocupação
alemã. Toda a cidade de Londres andava assustada, a caminhar pelas ruas de
olhos postos no céu, à procura de zepelins – mas a região da Lorena, onde
Eve crescera, era um mar de lama e ossos, como ela bem sabia pelos jornais
que devorava. Tinha sorte em estar em Londres, longe e em segurança.
Muita sorte.
Eve recebeu em silêncio a carta das mãos do Capitão Cameron, que
ultimamente era visita regular do escritório. Ele vestia um fato em tweed
amarrotado, em vez do uniforme caqui, mas as costas direitas e o passo largo
típico de soldado bradavam o seu posto militar, muito mais do que qualquer
insígnia. O Capitão Cameron, talvez com uns 35 anos, uma ponta de sotaque
escocês na voz mas, sob todos os outros aspetos, completamente inglês, tão
esgalgado, grisalho e amarrotado que poderia perfeitamente ter aparecido
num livro de Conan Doyle como o Perfeito Cavalheiro Britânico. Eve teve
vontade de lhe perguntar: “Tem mesmo de fumar um cachimbo? Tem mesmo
de usar tweed? Tem mesmo de ser assim tão cliché?”
O capitão inclinou-se para trás na cadeira, a acenar com a cabeça
enquanto Eve se encaminhava para a porta.
– Eu aguardo pela carta, Miss Gardiner.
– Sim, s-senhor – murmurou ela novamente, recuando para sair.
– Está atrasada. – A Miss Gregson dirigiu-se a Eve na sala de arquivo, a
torcer o nariz. Era a mais velha das secretárias e tinha a tendência para
mandar nas outras; Eve aparentou um olhar de incompreensão. Ela detestava
a sua própria aparência: o rosto suave e macio que a mirava desde o espelho
tinha uma espécie de beleza imatura e desinteressante, sem algo que fosse
memorável, exceto o seu aspeto jovem, que fazia com que as pessoas
pensassem que ela não teria mais do que 16 ou 17 anos. Apesar disso, o seu
aspeto servia-lhe bem quando ela se via em apuros. Ao longo da vida, Eve
conseguira, arregalando e pestanejando os seus enormes olhos, passar uma
expressão perfeita de confusão inocente, livrando-se, assim, das
consequências. A Miss Gregson soltou um ligeiro suspiro irritado e afastou-
se com alarido, mas, mais tarde, Eve apanhou-a em segredinhos com outra
secretária.
– Por vezes pergunto-me se aquela francesa é algo simplória.
– Bem… – A resposta chegou noutro sussurro e com um encolher de
ombros. – Já a ouviu falar, certo?
Eve entrelaçou as mãos e apertou-as duas vezes com força, para evitar
que tomassem a forma de punhos cerrados; em seguida, dedicou toda a sua
atenção à carta do Capitão Cameron, traduzindo-a para um francês
impecável. Tinha sido contratada por isso, pelo seu francês e inglês perfeitos.
Era natural dos dois países, mas em nenhum se sentia em casa.
Sentiu uma espécie de aborrecimento quase violento nesse dia, ou pelo
menos era assim que Eve se lembraria dele, mais tarde. De datilografar,
arquivar e comer a sanduíche ao meio-dia. De caminhar sem entusiasmo
pelas ruas ao final do dia, de ficar com a saia encharcada por um táxi que
passava. De chegar à pensão em Pimlico e do seu cheiro carbólico a sabonete
Lifebuoy e a fígado frito rançoso. De sorrir respeitosamente a uma outra
hóspede, uma enfermeira que acabara finalmente de convencer o namorado
tenente a pedi-la em casamento, e que se sentara à mesa de jantar a alardear o
minúsculo diamante.
– Devias vir trabalhar para o hospital, Eve. É lá que se arranjam maridos,
não num escritório!
– Não estou interessada em arranjar m-marido. – O comentário mereceu-
lhe olhares estupefactos da enfermeira, da dona da pensão e de outras duas
hóspedes. Porquê a surpresa?, pensou Eve. Não quero marido, não quero
bebés, não quero um tapete na sala de estar nem uma aliança. Eu quero…
– A Eve não é uma daquelas sufragistas, pois não? – perguntou a dona da
pensão, com a colher da sopa suspensa no ar.
– Não. – Eve não queria colocar uma cruzinha num boletim de voto.
Havia uma guerra em curso; o que ela queria era lutar. Provar que Eve
Gardiner, a gaga, podia servir o seu país de forma tão competente como
qualquer uma das milhares de pessoas que a tinham apelidado de idiota ao
longo da sua vida. Mas todos os tijolos atirados às montras pelas sufragistas
não poderiam fazer com que Eve chegasse à frente de combate, nem mesmo
como voluntária civil da Voluntary Aid Detachment ou condutora de
ambulâncias, pois ela já fora recusada para ambas as funções por causa da
gaguez. Eve afastou o prato, desculpando-se, e subiu para o seu quarto
pequeno e asseado, com uma mesa franzina e uma cama estreita.
Desprendia o cabelo quando soou um miau à porta; Eve deixou entrar o
gato da dona da pensão com um sorriso.
– Guardei-te um bocadinho de f-fígado – disse ela, pegando nos restos
que tirara do prato e embrulhara num guardanapo, e o gato malhado
ronronou, arquejando o dorso. A dona da pensão tinha-o apenas para caçar
ratos, e ele subsistia com um regime alimentar escasso, feito de migalhas da
cozinha e o que conseguia matar; mas o gato dera conta de que Eve tinha
coração mole e engordara à conta dos restos dos jantares dela.
– Quem me dera ser gato – continuou Eve, pegando no gato malhado ao
colo. – Os gatos não têm de f-f… de falar, a não ser nos contos de fadas. Ou
talvez fosse melhor ser um homem. – Porque se ela fosse um homem, pelo
menos poderia bater naqueles que falavam da sua gaguez, em vez de lhes
sorrir com amável resignação.
O gato ronronou. Eve afagou-o.
– Mais vale desejar o i-i-impossível.
Uma hora depois, ouviu uma pancada à porta – era a dona da pensão, tão
tensa que os lábios quase lhe tinham sumido.
– Tem uma visita – revelou num tom acusador. – Um cavalheiro.
Eve colocou o gato reticente no chão.
– A esta hora?
– Não me venha com esse olhar inocente, menina. As visitas masculinas
são proibidas à noite, essa é a minha regra. Especialmente soldados. Assim
informei o cavalheiro, mas ele insiste que é urgente. Deixei-o na sala de
visitas e vocês podem tomar lá um chá, mas gostava que deixassem a porta
entreaberta.
– Um soldado? – A perplexidade de Eve aumentou.
– Um tal de Capitão Cameron. Não me parece bem que um capitão do
exército a procure em casa e à noite!
Eve concordou, enquanto enrolava o cabelo castanho solto num puxo e
vestia novamente o casaco por cima da blusa de gola alta, como se fosse para
o escritório. Havia um certo tipo de cavalheiro que olhava para uma
empregada de loja ou de escritório – qualquer mulher que trabalhasse – e a
via como perfeitamente disponível. Se ele tiver vindo cá com ideias, dou-lhe
uma estalada na cara. Mesmo que ele faça queixa ao Sir Francis e ele me
despeça.
– Boa noite. – Eve abriu a porta da sala de visitas com determinação,
decidida a ser formal. – Estou muito surpreendida por vê-lo, c-c-c… –
Apertou a mão direita até formar um punho e conseguiu fazer sair a palavra.
– C-Capitão. Em que o p-posso ajudar? – Ergueu bem o queixo, recusando
deixar-se corar pelo embaraço da situação.
Para seu espanto, o Capitão Cameron respondeu em francês.
– Vamos mudar de língua? Eu ouvi-a a falar francês com as outras
colegas e gagueja bastante menos.
Eve encarou com espanto aquele homem irrepreensivelmente inglês,
recostado na cadeira desconfortável da sala, com as pernas ligeiramente
cruzadas e um vago sorriso sob um pequeno bigode aparado. Ele não falava
francês. Ela ouvira-o dizer precisamente isso nessa manhã.
– Bien sûr – respondeu ela. – Continuez en français, s’il vous plait.
Ele continuou em francês.
– A dona da pensão vai dar em doida, ali a rondar o corredor à espera de
escutar alguma coisa.
Eve sentou-se, compondo a saia de sarja azul, e inclinou-se para pegar no
bule florido.
– Como gosta do chá?
– Com leite e duas colheres de açúcar. Diga-me, Miss Gardiner, o seu
alemão é bom?
Eve olhou bruscamente para ele. Deixara essa habilitação de fora da lista
de competências quando andou à procura de emprego – o ano de 1915 não
era uma boa altura para admitir que falava a língua do inimigo.
– Eu n-não falo alemão – respondeu, passando a chávena de chá ao
capitão.
– Hum. – Ele olhou-a por cima da chávena. Eve cruzou as mãos no colo e
retribuiu com um olhar ingénuo e confuso.
– O seu rosto é extraordinário – comentou ele. – Não se passa nada por
detrás da sua expressão; nada que se veja, pelo menos. E olhe que eu sou bom
a ler rostos, Miss Gardiner. É sobretudo pelos músculos pequeninos em redor
dos olhos que as pessoas se traem. Os seus estão quase totalmente sob
controlo.
Eve arregalou novamente os olhos, pestanejando com perplexidade
inocente.
– Lamento, mas não compreendo o que quer dizer.
– Permite-me que lhe faça algumas perguntas, Miss Gardiner? Nada para
lá dos limites do decoro, asseguro-lhe.
Pelo menos, ainda não se tinha inclinado para a frente para tentar
acariciar-lhe o joelho.
– Com certeza, C-C-Capitão.
Ele sentou-se para trás na cadeira.
– Eu sei que é órfã, o Sir Francis mencionou-o, mas importa-se de falar
um pouco sobre os seus pais?
– O meu pai era inglês. Mudou-se para a região de Lorena para trabalhar
num banco francês; foi lá que conheceu a minha mãe.
– Ela era francesa? Isso explica, sem dúvida, a pureza do seu sotaque.
– Sim. – E como sabe que o meu sotaque é puro?
– Imagino que uma jovem da Lorena também fale alemão. Não é assim
tão longe da fronteira.
Eve desviou o olhar para o chão.
– Eu não aprendi.
– Mente realmente muito bem, Miss Gardiner. Eu não gostaria de jogar às
cartas consigo.
– Uma senhora não joga às c-cartas. – Sentia os nervos à flor da pele, mas
estava relaxada. Ficava sempre relaxada quando pressentia perigo. Como no
canavial, à caça de patos, quando se preparava para atirar: dedo no gatilho, a
ave paralisada, uma bala prestes a voar… nesses momentos, o seu batimento
cardíaco abrandava sempre até ficar em completamente plácida. Abrandava
também naquele momento, ao inclinar a cabeça na direção do capitão.
– Perguntava-me sobre os meus pais? O meu pai vivia e trabalhava em
Nancy; a minha mãe era dona de casa.
– E a Miss Gardiner?
– Eu ia para a escola e voltava todos os dias para casa à hora do lanche.
Da minha mãe, herdei o francês e o jeito para bordar; do meu pai, o gosto
pela caça aos patos e o inglês.
– Tudo muito civilizado.
Eve sorriu docemente, relembrando os gritos por detrás da cortina de
renda, a linguagem vulgar e as discussões violentas. Ela aprendera a fingir
boas maneiras, mas as suas origens eram bastante menos refinadas: o ruído
constante da louça a ser atirada, o pai a gritar com a mãe por ela esbanjar
dinheiro, a mãe a achincalhar o pai por ele ter sido visto com mais uma
empregada de bar. Era o tipo de lar onde uma criança rapidamente aprendia,
ao primeiro troar no horizonte doméstico, a sair sem ser vista pelos cantos
das divisões e a desaparecer como uma sombra em noite sem luar. A ouvir
tudo, a ponderar tudo, a passar sempre despercebida.
– Sim, foi uma infância muito instrutiva.
– Perdoe-me a pergunta, mas a sua gaguez… sempre sofreu dela?
– Em criança, era um pouco mais p-p-p… mais pronunciada. – A sua
língua sempre dera nós e tropeçara. Era a única coisa nela que não era
equilibrada e discreta.
– Deve ter tido bons professores, que a ajudaram a superar este problema.
Os professores? Viam-na ficar desesperada com as palavras, a ponto de
corar e quase chorar, e nada mais faziam do que passar a palavra a outro
aluno que pudesse responder mais rapidamente à pergunta. A maioria deles
achava que ela, para além de ter a língua presa, era também simplória;
dificilmente se davam ao trabalho de enxotar as outras crianças quando estas
a rodeavam para a atormentar. “Diz o teu nome, diz! G-g-g-g-g-gardiner…”
Por vezes, os professores também participavam na risota.
Não. Eve subjugara a gaguez através de pura vontade de ferro, lendo
poesia em voz alta no seu quarto, gaguejando linha após linha, martelando as
consoantes que ficavam presas até elas desbobinarem e se libertarem.
Lembrava-se bem de demorar dez minutos para ler a introdução de As Flores
do Mal, de Baudelaire – e o francês era a língua mais fácil para ela.
Baudelaire dissera que tinha escrito As Flores do Mal com raiva e paciência;
Eve compreendia isso perfeitamente.
– Os seus pais – continuou o Capitão Cameron. – Onde estão eles agora?
– O meu pai morreu em 1912, com um bloqueio cardíaco. – Ser-se
apunhalado no coração com uma faca de açougueiro por um marido
enganado era uma espécie de bloqueio. – A minha mãe não gostava dos
rumores que vinham da Alemanha e decidiu trazer-me para Londres. – Para
fugir ao escândalo, não aos boches. – Morreu de gripe, no ano passado, Deus
dê paz à sua alma. – Amarga, ordinária, a discutir por tudo e por nada até ao
fim, a praguejar e a atirar chávenas a Eve.
– Deus dê paz à sua alma – repetiu o capitão, com uma piedade que nem
por um momento convenceu Eve. – E agora, temo-la a si. Evelyn Gardiner,
órfã, com o seu francês e inglês perfeitos… Tem a certeza de que não fala
alemão? A trabalhar no escritório do meu amigo Sir Francis Galborough,
presumo que a passar tempo até casar. Uma jovem bonita, mas que tende a
passar despercebida. Timidez, talvez?
O gato entrou sinuosamente pela porta aberta, soltando um miau
inquiridor. Eve chamou-o para o seu colo.
– Capitão Cameron – começou por dizer, com aquele sorriso que a fazia
parecer ter 16 anos, enquanto fazia cócegas ao gato debaixo do focinho –,
está a tentar seduzir-me?
Eve conseguiu chocá-lo. Ele sentou-se para trás, corado de vergonha.
– Miss Gardiner… Nem me passaria pela cabeça…
– Então, o que faz aqui? – perguntou diretamente Eve.
– Estou aqui para a avaliar. – Ele cruzou os tornozelos, recuperando o
aprumo. – Tenho-a observado desde há algumas semanas, desde que entrei no
escritório do meu amigo pela primeira vez, a fingir que não falava francês.
Posso falar com toda a franqueza?
– Não falámos até agora com franqueza?
– Tenho a impressão de que nunca fala com franqueza, Miss Gardiner. Já
a ouvi a balbuciar desculpas às suas colegas para se livrar de tarefas que
considera aborrecidas. Esta manhã, ouvi-a a contar uma mentira descarada
quando elas lhe perguntaram o porquê do seu atraso. Algo sobre um taxista
que a demorou com atenções indesejadas. Nunca se enerva, está sempre
impávida e serena, mas finge muito bem. Não chegou atrasada por causa de
um taxista enamorado, Miss Gardiner; esteve foi a analisar o cartaz de
recrutamento afixado na rua, ao lado da porta do escritório, durante uns bons
dez minutos. Eu estava à janela e marquei o tempo.
Foi a vez de Eve se recostar e corar de embaraço. Ela tinha estado a olhar
para o cartaz com atenção: mostrava uma fila de soldados ingleses, tommies
corajosos, determinados e idênticos, com um espaço em branco no meio.
Ainda há lugar na fila para TI!, exclamava o título em cima. VAIS SER TU A
PREENCHÊ-LO? E Eve ficara ali de pé, amarga, a pensar: Não. Porque as
letras dentro do espaço em branco na fila de soldados diziam, em tamanho
pequeno: Este espaço é reservado a homens aptos para o serviço militar! Por
isso, não, Eve nunca o poderia preencher, embora tivesse 22 anos e fosse
perfeitamente apta.
O gato protestou no colo, sentindo os dedos dela a apertarem-lhe o pelo.
– Então, Miss Gardiner – disse o Capitão Cameron. – Posso contar com
uma resposta honesta, se lhe fizer uma pergunta?
Não conte com isso, pensou Eve. Mentir e evadir perguntas era tão fácil
para ela como respirar. Era o que tinha feito ao longo da vida, pelo que o
fazia com naturalidade. Eve não se lembrava da última vez em que fora
completamente honesta com alguém. As mentiras eram mais fáceis do que a
verdade dura e turbulenta.
– Tenho 32 anos – disse o capitão. Parecia mais velho, com o rosto
enrugado e fatigado. – Estou demasiado velho para esta guerra. Tenho outra
tarefa a desempenhar. O nosso céu está sob ataque dos zepelins alemães,
Miss Gardiner, e o nosso mar ameaçado pelos submarinos deles. Estamos sob
ataque permanente.
Eve acenou com fúria. Duas semanas antes, o Lusitania fora afundado –
as outras hóspedes tinham lacrimejado durante dias. Eve tinha devorado os
relatos do jornal sem verter uma só lágrima, cheia de raiva.
– Para evitar mais ataques, precisamos de pessoas – continuou o Capitão
Cameron. – Faz parte do meu trabalho encontrar pessoas com um certo tipo
de aptidões: o talento para falar francês e alemão, por exemplo. A capacidade
de mentir. De parecer inocente. De ser verdadeiramente corajoso. Tenho de
as encontrar e pô-las a trabalhar, de modo a poder deslindar o que os boches
planeiam contra nós. Acho que tem potencial, Miss Gardiner. Por isso, deixe-
me perguntar-lhe: tem vontade de defender a Grã-Bretanha?
A pergunta atingiu Eve como uma pancada. Expirou a tremer, colocando
o gato no chão, e respondeu sem pensar.
– Sim. – O que quer que ele quisesse dizer com defender a Grã-Bretanha,
a resposta era sim.
– Porquê?
Eve começou a pensar numa resposta conveniente e esperada, algo sobre
os malditos boches, sobre cumprir o seu dever para com os rapazes nas
trincheiras. Mas aos poucos desistiu da mentira.
– Quero provar que sou capaz, a todos aqueles que sempre pensaram que
sou simplória ou fraca porque não consigo falar direito. Eu quero l-l-l… eu
quero l-l-l…
Ela agarrou-se à palavra com tanto vigor que as faces lhe ardiam
intensamente. Mas ele não se apressou a terminar a frase, como a maioria das
pessoas fazia, o que a deixava furiosa. Limitou-se a ficar sentado em silêncio,
até que ela bateu com o punho no joelho e a palavra se libertou. Ela expeliu-a
de dentes cerrados, mas com tamanha veemência que o gato se assustou e
saiu da sala.
– Eu quero lutar.
– Quer mesmo?
– Sim. – Três respostas sinceras consecutivas; era um recorde para Eve.
Deixou-se ficar sentada, a tremer, muito perto de chorar, enquanto o
Capitão a encarava com um olhar pensativo.
– Então, pergunto pela quarta vez, e não haverá uma quinta. Fala alemão?
– Wie ein Einheimischer. – Como alguém natural da Alemanha.
– Excelente. – O Capitão Cecil Aylmer Cameron levantou-se. – Evelyn
Gardiner, estaria interessada em servir a Coroa Britânica como espia?
Capítulo 3
Charlie
Maio de 1947

Tive ligeiros pesadelos com tiros de espingardas a acertar em copos de


whisky, raparigas louras a desaparecer atrás de carruagens, uma voz a
sussurrar: “Le Lethe”. E depois, a voz de um homem: “A menina, quem é?”
Abri os olhos pesados com um gemido. Tinha adormecido no sofá velho e
estragado da sala de estar, sem coragem para deambular pela casa à procura
de uma cama, quando aquela mulher louca andava à solta com uma Luger na
mão. Consegui libertar-me dos folhos do meu fato de viagem, enroscada
debaixo de uma manta coçada, e adormeci só com a minha combinação
vestida – e agora, aparentemente, era de manhã. Um feixe de luz entrava por
uma fenda nas densas cortinas, e eu percebi que alguém olhava especado para
mim da porta: um homem de cabelo escuro com um casaco puído, de
cotovelo apoiado na ombreira da porta.
– Quem é o senhor? – perguntei, ainda meio atordoada de sono.
– Eu perguntei primeiro. – A voz dele era grave, com uma ponta de
pronúncia escocesa nas vogais. – É a primeira vez que conheço uma visita da
Gardiner.
– Ela não está acordada, pois não? – Lancei um olhar de pânico por cima
do ombro dele. – Ela disse que me dava um tiro se eu ainda estivesse aqui
quando ela se levantasse…
– Sim, é típico dela – comentou o escocês.
Eu queria pegar na minha roupa, mas não ia levantar-me só de
combinação em frente a um estranho.
– Tenho de sair daqui…
E ir para onde?, sussurrou Rose, e o pensamento fez latejar a minha
cabeça. Não sabia para onde ir; tudo o que tinha era um pedaço de papel com
o nome de Eve. O que me restava? Os olhos ardiam-me.
– Não vale a pena apressar-se – aconselhou o escocês. – Se a Gardiner
estava emborrachada ontem à noite, é provável que hoje não se lembre de
nada. – Ele virou-lhe as costas e despiu o casaco com um encolher de
ombros. – Vou fazer um chá.
– Quem é o senhor? – comecei a dizer, mas a porta fechou-se atrás dele.
Depois de um momento de hesitação, atirei a manta para o lado e os meus
braços nus arrepiaram-se de frio. Olhei para o volume do meu fato de viagem
amarrotado e torci o nariz. Tinha um outro vestido na mala, mas era
igualmente folhado, cintado e desconfortável. Por isso, vesti uma camisola
velha e um par de jardineiras já muito gasto que a minha mãe detestava e,
descalça, fui à procura da cozinha. Não comia fazia 24 horas e o ronco do
meu estômago sobrepunha-se a tudo o resto, até ao medo que sentia da
pistola de Eve.
A cozinha era surpreendentemente limpa e luminosa. A chaleira estava ao
lume e a mesa posta. O escocês atirara o casaco para cima de uma cadeira e
estava em mangas de camisa, também puída.
– Quem é o senhor? – perguntei, incapaz de esconder a curiosidade.
– Finn Kilgore. – Ele tirou uma panela de um armário. – O faz-tudo da
Gardiner. Sirva-se de chá.
Era curioso que aquele homem se referisse a ela apenas como “Gardiner”,
como se ela fosse um homem.
– Faz-tudo? – perguntei, pegando numa caneca lascada da banca. Com
exceção da cozinha, não parecia que fossem feitas quaisquer tarefas naquela
casa.
Ele remexeu no frigorífico e tirou para fora ovos, bacon, cogumelos e
metade de um pão grande.
– Viu bem as mãos dela?
– … sim. – O chá era forte e escuro, tal como eu gostava.
– Acha que ela consegue fazer alguma coisa com aquelas mãos?
Lancei uma pequena gargalhada.
– Pelo que vi ontem à noite, ela consegue armar o cão de uma pistola e
tirar a rolha do decantador do whisky muito bem.
– Essas duas coisas, sim. Para o resto, contrata-me. Faço-lhe os recados.
Vou buscar o correio. Conduzo o carro quando ela quer sair. E cozinho um
bocadinho. Ainda que ela não me deixe arrumar nada mais para além da
cozinha. – Colocou as fatias de bacon uma a uma na frigideira. Era alto,
esguio e movia-se de forma descontraída, desarticulada e graciosa. Tinha
talvez 29 ou 30 anos, barba escura por fazer, a precisar de uma lâmina, e
cabelo escuro desgrenhado que lhe chegava ao colarinho, a precisar
urgentemente de um corte. – O que faz aqui, menina?
Hesitei. A minha mãe diria que era extremamente impróprio que um faz-
tudo fizesse perguntas a uma hóspede. Mas eu não era exatamente uma
hóspede e ele tinha mais direito a estar naquela cozinha do que eu.
– Charlie St. Clair – apresentei-me e, enquanto bebericava o meu chá,
ofereci-lhe uma versão sucinta de como tinha aterrado à porta de Eve (e no
seu sofá). Sem os pormenores da gritaria e da pistola pressionada entre os
meus olhos. Não pela primeira vez, perguntei-me como a minha vida ficara
de pernas para o ar em pouco menos de 24 horas…
Porque decidiste em Southampton ir atrás de um fantasma, murmurou
Rose. Porque tu és um bocadinho maluca.
Não sou maluca, repliquei. Quero salvar-te. Isso não faz de mim maluca.
Tu queres salvar toda a gente, minha querida Charlie. A mim, ao James,
a todos os cães vadios que encontravas na rua quando eras pequena…
James. Estremeci e a voz manhosa da minha consciência sussurrou: Não
te saíste muito bem a salvá-lo, pois não?
Arranquei este pensamento antes que a inevitável onda de culpa me
atingisse e esperei que o faz-tudo de Eve me fizesse perguntas, uma vez que a
minha história era, para ser franca, bizarra. Mas ele continuou silencioso em
volta da frigideira, acrescentando cogumelos e uma lata de feijão. Eu nunca
tinha visto um homem cozinhar. O meu pai nunca sequer havia barrado
manteiga numa tosta; isso era algo para a minha mãe e eu fazermos. Mas o
escocês mexia os feijões e fritava o bacon com perfeita destreza, e não se
parecia importar com a gordura que saltava da frigideira para os braços.
– Há quanto tempo trabalha para a Eve, Sr. Kilgore?
– Há quatro meses. – Ele começou a fatiar o pão.
– E antes disso?
A faca dele hesitou.
– Royal Artillery, 63.° Regimento Antitanques.
– E depois veio trabalhar para a Eve. Isso é que é uma mudança. – Porque
teria ele hesitado, perguntei para mim. Talvez tivesse vergonha, por ter
passado de soldado a lutar contra nazis a trabalhador doméstico ao serviço de
uma louca. – Como é que ela…
A minha voz esmoreceu, pois não sabia bem que direção levaria a minha
pergunta. Como é que ela era como patroa? Como é que ela ficou assim?
– Como é que ela magoou as mãos? – acabei por perguntar.
– Ela nunca me contou. – Finn partiu dois ovos para dentro da frigideira,
um de cada vez. O meu estômago roncou. – Mas posso imaginar.
– O que imagina?
– Que todas as articulações dos dedos foram sistematicamente partidas.
Estremeci.
– Que tipo de acidente poderia fazer isso?
Finn Kilgore olhou de frente para mim pela primeira vez. Tinha olhos
escuros sob duas sobrancelhas pretas e retas, simultaneamente atentos e
distantes.
– Quem disse que foi um acidente?
Envolvi a caneca com os meus dedos (inteiros, intactos). O chá pareceu-
me subitamente frio.
– Pequeno-almoço inglês. – Ele tirou a frigideira quente do fogão e
pousou-a ao lado das fatias de pão. – Tenho de ir ver um cano que está a
vazar água, mas sirva-se do que quiser. Deixe só uma boa porção para a
Gardiner. Ela vai descer com uma dor de cabeça terrível e aqui, nas Ilhas
Britânicas, um pequeno-almoço inglês é a melhor cura para uma ressaca. Se a
menina comer tudo, ela é mesmo capaz de lhe dar um tiro.
Ele saiu de mansinho sem olhar outra vez. Peguei num prato e dirigi-me à
frigideira, a salivar. Mas, enquanto admirava a deliciosa mistura de ovos e
bacon, feijões e cogumelos, o meu estômago deu uma reviravolta súbita.
Levei uma mão à boca e virei costas ao fogão, a tempo de evitar vomitar por
cima da melhor cura para uma ressaca das Ilhas Britânicas.
Eu sabia o que aquilo era, embora nunca o tivesse experimentado até
então. Estava esfomeada, mas o meu estômago dava tantas voltas que me era
impossível comer, mesmo que Eve me apontasse novamente a Luger à
cabeça. Aquilo eram enjoos matinais. Pela primeira vez, o meu Pequeno
Problema tinha decidido fazer-se notar.
Sentia-me agoniada, e não apenas por causa do meu estômago às voltas.
Faltava-me o ar e as palmas das mãos começaram a transpirar. O Pequeno
Problema tinha três meses, mas nunca me parecera até então mais do que uma
vaga ideia – eu não o sentia, não o imaginava, não via sinais dele. Era apenas
algo que tinha abalroado o âmago da minha vida como um comboio. Depois
de os meus pais saberem, tornou-se simplesmente um problema a ser
resolvido, como uma má equação. Um Pequeno Problema mais uma viagem à
Suíça igual a zero, zero, zero. Muito simples.
Mas naquele momento eu sentia que era muito mais do que um Pequeno
Problema, e de simples não tinha nada.
– O que vou fazer? – sussurrei. Era a primeira vez em muito tempo que
pensava nessa pergunta. Não o que iria fazer quanto a Rose, ou os meus pais,
ou a voltar para a escola, mas o que iria fazer quanto a mim?
Não sei quanto tempo estive ali especada, até que uma voz cáustica
quebrou a minha pose de estátua.
– Estou a ver que a invasão americana continua por aqui.
Voltei-me. Eve estava na ombreira da porta, com o mesmo vestido
estampado da noite anterior, o cabelo grisalho solto e despenteado e os olhos
raiados de vermelho. Preparei-me mentalmente, mas talvez o Sr. Kilgore
tivesse razão quando disse que ela se esquecera das ameaças da noite
passada, pois parecia mais interessada em massajar as têmporas do que em
mim.
– Tenho os Quatro Cavaleiros do Apocalipse à paulada dentro do meu
crânio – disse ela –, e tenho o sabor de um urinol de Chepstow na boca. Diz-
me que aquele maldito escocês fez o pequeno-almoço.
Acenei com a mão, com o estômago ainda às voltas.
– O milagre da frigideira.
– Deus o abençoe. – Eve tirou um garfo de uma gaveta e começou a
comer diretamente da frigideira. – Então, já conheceste o Finn. Ele é um
borracho, não é? Se eu não fosse velha como a Torre de Londres e feia como
a noite, trepava-o como a uma montanha nos Alpes.
Afastei-me do fogão.
– Eu não devia ter vindo aqui. Lamento ter entrado à força. Vou-me já
embora… – O quê? Voltar de rastos para a minha mãe, enfrentar a fúria dela,
apanhar o barco para a minha Consulta? Que mais havia a fazer? Senti o véu
leve do entorpecimento cobrir-me novamente. Queria apoiar a minha cabeça
no ombro de Rose e fechar os olhos; queria curvar-me sobre uma sanita e
vomitar as entranhas. Sentia-me tão agoniada e tão desamparada.
Eve molhou um pouco de pão na gema do ovo.
– Senta-te, ianque.
Gaga ou não, a voz áspera dela tinha autoridade. Sentei-me.
Ela limpou os dedos a um pano de cozinha, meteu a mão no bolso do
vestido e tirou um cigarro. Acendeu-o com uma passa lenta e comprida.
– O primeiro cigarro do dia – disse, expirando o fumo. – É sempre o que
sabe melhor. Quase compensa a maldita ressaca. Diz-me lá outra vez: qual é
o n-n-ome da tua prima?
– Rose. – O meu coração disparou. – Rose Fournier. Ela…
– Diz-me uma coisa – interrompeu Eve. – As jovens como tu têm mamãs
e papás ricos. Porque é que os teus pais não estão à procura da sobrinha
querida deles?
– Eles tentaram. Investigaram, fizeram perguntas. – Mesmo quando eu
ficava zangada com os meus pais, eu sabia que eles tinham tentado tudo. –
Depois de dois anos sem notícias, o meu pai disse que a Rose,
provavelmente, tinha morrido.
– Parece-me inteligente, o teu pai.
E era. E como advogado especializado em direito internacional, ele sabia
quais os canais e os atalhos a utilizar para conseguir respostas. Ele fez tudo,
mas como ninguém mais tinha sequer recebido um telegrama de Rose – nem
mesmo eu, a pessoa de quem ela gostava mais na família inteira –, o meu pai
tirou a conclusão lógica: ela estava morta. Eu tentei habituar-me a essa ideia,
tentei convencer-me disso. Pelo menos, até seis meses antes.
– O meu irmão mais velho foi enviado para casa após a batalha de Tarawa
sem metade de uma perna, e há seis meses matou-se com um tiro. – Ouvi a
minha própria voz engasgar-se. Eu e James não tínhamos sido próximos em
crianças; eu tinha sido apenas a irmã mais nova, a quem ele podia atormentar.
Mas assim que ele saiu da fase de me puxar os cabelos, os tormentos
abrandaram; ele fazia piadas em como assustaria qualquer rapaz que quisesse
namorar comigo, e eu brincava com ele sobre o corte de cabelo terrível que
ele teria de fazer quando se alistasse nos fuzileiros. Ele era o meu irmão. Eu
adorava-o e os meus pais achavam que ele era Deus na terra. E, depois, um
dia, morreu. Foi por essa altura que Rose começou a emergir da minha
memória e a entrar no meu campo de visão. Todas as meninas que passavam
por mim transformavam-se na Rose de 6, 7 ou 11 anos; todas as raparigas
louras que caminhavam vagarosamente pelos jardins da universidade
transformavam-se na jovem Rose, alta, a começar a ter curvas… Todos os
dias, dezenas de vezes ao dia, o meu coração batia mais depressa e depois
despedaçava-se, à medida que a memória me ia pregando truques cruéis.
– Eu sei que provavelmente não há esperança. – Olhei Eve nos olhos,
querendo que ela compreendesse bem. – Sei que a minha prima está,
provavelmente… Eu sei quais são as probabilidades. Acredite em mim,
consigo calculá-las até à última décima. Mas tenho de tentar. Tenho de seguir
todas as pistas até ao fim, por mais ínfimas que sejam. Se houver a mais
pequena possibilidade de ela ainda estar viva…
Engasguei-me novamente, e não consegui acabar a frase. Eu tinha perdido
o meu irmão nesta guerra. Se houvesse a mais pequena das possibilidades de
resgatar Rose do esquecimento, eu tinha de a encontrar.
– Ajude-me – pedi novamente a Eve. – Por favor. Se não for eu a procurá-
la, mais ninguém o fará.
Eve expirou lentamente.
– E ela trabalhou num restaurante chamado Le Lethe… onde?
– Limoges.
– Mmm… E quem era o dono?
– Um tal Monsieur René qualquer coisa. Fiz uns telefonemas, mas
ninguém conseguiu dizer-me um nome de família.
Os lábios dela franziram. Por momentos, limitou-se a olhar para o nada,
aqueles dedos horrendos a dobrarem e a esticarem, abrindo e fechando ao
lado do corpo. Por fim, lançou-me um olhar impenetrável e disse:
– Acho que, afinal, talvez te possa ajudar.
A chamada telefónica de Eve não parecia estar a correr bem. Eu só
conseguia ouvir metade da conversa: ela berrava para o auscultador, enquanto
andava de um lado para o outro do corredor, a sacudir o cigarro para a frente
e para trás, como a cauda de um gato raivoso. Mas metade da conversa era o
suficiente para perceber o essencial.
– Não quero saber quanto custa transferir a chamada para França, sua
vaca, faça-me imediatamente a chamada.
– Com quem está a tentar falar, Miss Gardiner? – perguntei pela terceira
vez. Ela ignorou-me, como acontecera nas duas vezes anteriores, e continuou
a interpelar a telefonista.
– Ah, pare de me chamar minha senhora ou ainda se vai engasgar! E
passe-me ao major…
Eu conseguia ouvi-la através da porta da frente, mesmo depois de sair de
casa. A humidade cinzenta do dia anterior desaparecera; Londres tinha-se
vestido de um céu azul, algumas nuvens esfiapadas pela brisa e um sol a
brilhar. Protegi os olhos com uma mão, tentando procurar o objeto que
pensava ter visto numa esquina, na noite anterior, através da janela do táxi –
ali estava. Uma das cabines telefónicas vermelhas, tão icónicas e tão inglesas
que pareciam quase ridículas. Dirigi-me a ela, com o estômago novamente às
voltas. Tinha-me forçado a comer uma torrada seca, depois de a Eve começar
o seu telefonema para o tal misterioso major, e isso acalmara as náuseas do
meu Pequeno Problema; mas a agonia que eu sentia naquele momento era de
um tipo diferente. Eu tinha a minha própria chamada telefónica a fazer, e iria
certamente ser tão complicada quanto a da Eve.
Uma pequena quezília com a telefonista, depois outra com o rececionista
do Hotel Dolphin, em Southampton, ao dar-lhe o meu nome. E depois:
– Charlotte?’Allo,’allo?
Afastei o auscultador do ouvido e olhei para ele, subitamente irritada. A
minha mãe nunca atendia assim o telefone, exceto quando alguém estava
suficientemente perto dela para a ouvir. Era de supor que, tendo a filha
grávida fugido para Londres, ela se preocupasse mais com isso do que em
impressionar o rececionista do Hotel Dolphin.
Ainda se ouviam grasnidos vindos do auscultador. Voltei a aproximá-lo
do ouvido.
– Olá, Maman – saudei, num tom brusco. – Não fui raptada e estou
claramente viva. Estou em Londres, em perfeita segurança.
– Estás louca, ma petite? A desaparecer assim… Pregaste-me cá um
susto! – Uma fungadela e depois um merci sussurrado; era óbvio que o
rececionista lhe acabara de oferecer um lenço para secar as lágrimas. Duvidei
seriamente que a maquilhagem estivesse sequer borratada. Talvez fosse
mauzinho da minha parte pensar assim, mas não o podia evitar.
– Diz-me em que sítio de Londres estás, Charlotte. Imediatamente.
– Não – respondi, e algo no meu estômago, que não as náuseas, se
expandiu. – Desculpe, mas não.
– Não sejas absurda. Tens de voltar para casa.
– E vou voltar – assegurei. – Quando descobrir de uma vez por todas o
que aconteceu à Rose.
– Rose? Mas que…
– Volto a telefonar em breve, prometo. – E pousei o auscultador.
Finn Kilgore voltou-se para olhar para mim, quando regressei a casa de
Eve e entrei novamente na cozinha.
– Passe-me um pano de cozinha, menina. – Ele fez o gesto com o queixo,
enquanto lavava a frigideira do pequeno almoço. Fiquei outra vez especada a
olhar para ele; o meu pai achava que as chávenas de café sujas se lavavam a
si próprias como por milagre.
– Ela está a fazer outra chamada – revelou Finn, acenando com a cabeça
na direção do corredor e pegando no pano. – Tentou falar com um oficial
qualquer inglês em França, mas ele está de férias. Agora está aos berros com
uma mulher, não sei quem.
Hesitei.
– Sr. Kilgore, disse que era o motorista da Eve. Importava-se…
importava-se de me levar a um sítio? Não conheço Londres suficientemente
bem para me orientar a pé, e não tenho dinheiro para um táxi.
Pensei que ele não ia aceitar, já que nunca me tinha visto mais gorda, mas
ele encolheu os ombros e secou as mãos no pano.
– Vou preparar o carro.
Olhei para as minhas jardineiras e camisola coçadas.
– Vou ter de mudar de roupa.
Quando fiquei pronta, Finn já estava à minha espera com a porta aberta, a
bater com a bota no chão e a olhar para a rua. Olhou para trás, por cima do
ombro, ao escutar o clique dos meus saltos altos, e ergueu não apenas uma,
mas as duas sobrancelhas pretas e retas. Não confundi aquilo com admiração.
O conjunto que eu vestia era a única muda de roupa limpa que tinha na mala,
e fazia-me parecer uma pastora de porcelana: saia folhada por cima de várias
camadas de crinolina, chapéu rosa com um véu pequeno, luvas impecáveis e
um casaquinho rosa que se moldaria às minhas curvas, se as tivesse. Ergui o
queixo e baixei o véu ridículo sobre os olhos.
– É um banco internacional – revelei, passando-lhe o papel com um
endereço. – Obrigada.
– As miúdas que usam essa quantidade toda de saiotes normalmente não
se preocupam em agradecer ao motorista – disse Finn, em jeito de conselho,
enquanto segurava a porta para que eu passasse sob o braço dele. Não
precisei de me baixar para evitar tocar-lhe no cotovelo, mesmo com saltos
altos.
A voz de Eve chegou-me aos ouvidos, do outro lado do corredor, quando
me estiquei para fechar a porta.
– Sua vaca cegueta estuporada, não te atrevas a desligar-me o telefone…
Hesitei; tinha vontade de lhe perguntar porque me estava a ajudar, depois
de na noite passada se ter recusado totalmente a fazê-lo. Mas aquele não era o
momento de a pressionar, ainda que me apetecesse muito abanar aqueles
ombros ossudos até ela tossir tudo o que sabia. Não podia arriscar chateá-la
ou fazê-la perder o interesse, porque ela sabia alguma coisa. Disso eu estava
certa.
Por isso, não a interrompi e segui Finn até à rua. O carro surpreendeu-me:
um descapotável azul-escuro com a capota para cima e lustre puxado como
um espelho.
– Mas que belo carro. É da Eve?
– É meu. – O carro não correspondia ao aspeto duvidoso dele, com a
barba por fazer e remendos nos cotovelos.
– O que é, um Bentley? – O meu pai tinha um Ford, mas gostava de
carros ingleses e estava sempre a chamar-nos a atenção para eles quando
visitávamos a Europa.
– Um Lagonda LG6. – Finn abriu a porta para eu entrar. – Entre, menina.
Sorri quando ele se sentou atrás do volante e agarrou na alavanca de
velocidades, meio soterrada nas minhas saias espalhadas por todo o lado. Era
agradável estar com estranhos que nada sabiam do meu passado recentemente
manchado. Eu gostava de olhar uma pessoa nos olhos e ver-me refletida
como alguém que merecia ser tratada por um respeitável menina. Tudo o que
eu via quando olhava nos olhos dos meus pais nas últimas semanas era
galdéria… desilusão… nulidade.
Tu és uma nulidade, murmurou a voz perniciosa da minha consciência,
mas eu afastei-a com veemência.
Londres passava a correr, indistinta; cinzenta, ruas de paralelos, ainda
com destroços à vista, telhados rachados e pedaços tirados a paredes que
pareciam sólidas e inteiras. Tudo consequência da guerra e, no entanto,
estávamos em 1947. Recordei o meu pai a suspirar de alegria ao ler o jornal
depois do Dia da Vitória e a dizer: “Ótimo, agora tudo pode voltar ao que
era”. Como se os telhados, os edifícios e as janelas partidas pudessem voltar
imediatamente à sua qualidade de inteiros no dia seguinte à paz ter sido
declarada.
Finn levou o Lagonda por uma rua tão esburacada que mais parecia uma
fatia de queijo suíço, e um pensamento fez-me olhar para ele com
curiosidade.
– Porque precisa a Eve de um carro? Com a escassez de gasolina, não
seria melhor andar de elétrico?
– Ela não se dá bem com elétricos.
– Porquê?
– Não sei. Elétricos, espaços confinados, multidões… Tudo isso a põe
nervosa. Da última vez que apanhou um elétrico quase explodiu como uma
granada. Gritou e acotovelou todas as donas de casa que viajavam com as
suas compras.
Abanei a cabeça, a imaginar a cena, e logo o Lagonda parou com um
ronco em frente a um banco com uma imponente fachada de mármore – o
meu destino. O meu rosto deve ter traído o meu nervosismo, porque Finn
disse com uma enorme gentileza:
– Quer um acompanhante, menina?
Eu queria, mas um escocês reservado a precisar de um barbeiro não ia
exatamente fazer-me parecer mais respeitável, pelo que abanei a cabeça e saí
do carro.
– Obrigada.
Tentei invocar alguma da facilidade da minha mãe em pavonear-se
enquanto caminhava sobre o chão de mármore polido do banco. Dei o meu
nome e o assunto que me trazia ali, e fui rapidamente acompanhada até ao
gabinete de um homem idoso com um fato ao xadrez. Ele olhou de relance
para cima, desviando o olhar de um gráfico onde escrevinhava números.
– Posso ajudá-la, cara jovem?
– Espero que sim, senhor. – Sorri, com a intenção de tagarelar um pouco.
– Em que está a trabalhar? – perguntei, apontando para o gráfico e a coluna
com números.
– Percentagens, números. Coisas aborrecidas. – Ele levantou-se e apontou
para uma cadeira. – Sente-se.
– Obrigada. – Sentei-me e respirei fundo, debaixo do meu pequeno véu. –
Eu gostaria de levantar algum dinheiro, por favor.
A minha avó americana estabelecera uma conta em meu nome quando
morrera. Não tinha muito dinheiro, mas era o suficiente, e eu ia juntando
mais desde os 14 anos, quando comecei a trabalhar durante o verão no
escritório do meu pai. Nunca tinha tocado na conta; os meus pais davam-me
uma mesada para a universidade e eu não precisava de mais. A caderneta
bancária estava habitualmente guardada na gaveta da cómoda, debaixo da
minha roupa interior, mas meti-a na mala à última hora, quando nos
preparávamos para fazer a viagem transatlântica. Talvez motivada pela
mesma razão que me tinha feito trazer o endereço de Eve e o relatório sobre o
último paradeiro conhecido de Rose. Nada disso fora planeado, mas eu dera
ouvidos a uma voz sussurrante: Talvez precises destas coisas, caso ganhes
coragem para fazer o que realmente queres fazer…
Eu estava contente por ter escutado aquela voz e ter trazido a caderneta,
porque estava agora sem dinheiro. Não sabia por que razão Eve decidira
ajudar-me, mas achava que não era por bondade. Eu não me importava de lhe
pagar, ou a qualquer outra pessoa, se isso me levasse até Rose, mas, para isso,
precisava de dinheiro. Por isso, apresentei a minha caderneta bancária e
identificação ao banqueiro, e ofereci-lhe um sorriso.
Dez minutos depois, o meu sorriso mantinha-se apenas por pura força de
vontade.
– Não compreendo – disse eu, no mínimo, pela quarta vez. – O senhor
tem prova do meu nome e idade, e é óbvio que há fundos suficientes na
conta. Então, porque…
– Porque não se costuma levantar um montante assim tão elevado, cara
jovem. Esta conta foi aberta com fundos guardados para o seu futuro.
– Mas não se tratam só de fundos para o meu futuro. As minhas
poupanças também estão na conta…
– Talvez pudéssemos falar com o seu pai?
– Ele está em Nova Iorque. E não é assim um montante tão elevado…
O banqueiro interrompeu-me novamente.
– Basta termos o número de telefone do escritório do seu pai. Se
pudermos falar com ele para obter o seu consentimento…
Foi a minha vez de o interromper.
– O senhor não precisa do consentimento do meu pai. A conta está em
meu nome. Ficou determinado que eu teria acesso à conta quando fizesse 18
anos e eu tenho agora 19. – Continuei a pressioná-lo. – O senhor não precisa
do consentimento de ninguém, exceto o meu.
O homem mexeu-se desconfortavelmente na cadeira de couro, mas a
expressão de avô preocupado não desapareceu.
– Asseguro-lhe que podemos fazer alguma coisa se conseguirmos falar
com o seu pai.
Os meus dentes estavam tão cerrados que pareciam terem sido fundidos.
– Eu gostaria de fazer um levantamento de…
– Lamento, cara jovem.
Fitei a corrente do relógio do homem e as suas mãos papudas; a luz do sol
refletia na cabeça dele por entre o cabelo ralo. Já nem sequer olhava para
mim; pegou novamente no gráfico e recomeçou a escrevinhar e a riscar
números.
Num ato de mesquinhez, estiquei-me por cima da mesa, tirei-lhe o gráfico
da mão e dei uma vista de olhos às colunas com números. Antes que ele
tivesse tempo de se indignar, peguei num lápis da secretária, risquei os
números dele e escrevi os números corretos.
– Falhou por zero vírgula vinte e cinco porcento – revelei, fazendo
deslizar a folha na direção dele. – É por isso que o saldo não estava a dar
certo. Mas o melhor é usar uma máquina de calcular, só para ter certeza. Uma
vez que, em questões de dinheiro, aparentemente não sou de confiança.
O sorriso dele desapareceu. Levantei-me, o queixo bem erguido na
posição quero lá saber, e saí furiosa para a rua. O meu próprio dinheiro. Não
apenas dinheiro que herdara, mas dinheiro que eu mesma ganhara, e não
estava autorizada a levantar nem cinco cêntimos sem ter o meu pai a reboque.
Era tão absolutamente injusto que os meus dentes rangiam, apesar de não me
ter totalmente surpreendido.
Era por isso que eu tinha um plano alternativo.
Finn olhou para cima quando eu me encolhi para me enfiar dentro do
carro, deixando metade do meu vestido de fora ao fechar a porta.
– Perdoe-me que lhe diga, mas o senhor tem um certo ar duvidoso – disse
eu, abrindo novamente a porta para puxar o resto da crinolina para dentro. –
Isso é verdade ou está só a precisar de fazer a barba, Sr. Kilgore?
Ele dobrou o jornal amarrotado que estava a ler.
– Um pouco das duas coisas.
– Ótimo. É que preciso de uma casa de penhores. O tipo de lugar onde
não fazem muitas perguntas, quando uma jovem entra com algo para vender.
Ele fitou-me por um momento e, em seguida, conduziu o carro de volta ao
trânsito barulhento de Londres.
A minha avó americana tinha-me deixado dinheiro numa conta. A minha
avó francesa dividira a meio o colar de pérolas de duas voltas, antes de
morrer: “Um para a petite Charlotte e outro para la belle Rose! Eu devia dá-
los às minhas filhas, mas, mon dieu, que sisudas as vossas mães se tornaram”.
Dissera isto com a habitual candura, fazendo-nos soltar risinhos cheios de
culpa. “Por isso, usem-nos vocês quando se casarem, mes fleurs, e pensem
em mim.”
Abri a carteira para tirar o colar de pérolas e pensei nela. Na minha avó
francesa pequenina, que, graças a Deus, morrera muito antes de ver as
bandeiras suásticas desfraldadas sobre a sua tão amada Paris. Pardonnez-moi,
Grandmère, pensei. Não tenho outra alternativa. Não podia tocar nas minhas
poupanças, mas podia tocar nas minhas pérolas. A minha mãe falara a sério
quando dissera que me queria levar a Paris depois da Consulta, para comprar
roupas novas e ver velhos amigos, deixando claro que estávamos na Europa
por motivos de lazer, nada de escandaloso. Daí as pérolas. Permiti-me
admirá-las uma vez mais – aquelas enormes esferas leitosas e uma esmeralda
de corte quadrado a servir de fecho – e, de seguida, entrei com determinação
na loja de penhores onde o Finn me levara, bati com as pérolas em cima do
balcão e disse:
– Quanto me oferece?
Os olhos do penhorista brilharam, mas ele disse em tom tranquilo:
– Vai ter de esperar um momento, menina. Estou a acabar de despachar
umas encomendas importantes.
– O truque habitual – murmurou Finn, que, surpreendentemente, me tinha
seguido. – Para que o cliente fique impaciente e se contente com a oferta
dele. Não vai ficar aqui muito tempo.
Ergui o queixo.
– Nem que fique aqui o dia todo.
– Vou só ver se a Gardiner precisa de alguma coisa; a casa não fica longe
daqui. Não se vai pôr a andar, pois não, menina?
– Não precisa de me chamar menina. – Embora me agradasse, aquela
formalidade era uma tolice. – Não estamos no Palácio de Buckingham.
Ele inclinou um ombro e saiu da loja com a sua passada larga.
– Sim, menina – disse ele, mesmo antes de a porta se fechar. Abanei a
cabeça e sentei-me numa cadeira desconfortável com o colar enrolado nos
dedos. Tinham passado uns bons 30 minutos quando o penhorista voltou a
sua atenção e a lupa de joalheiro para mim.
– Lamento, mas foi enganada, menina – disse ele com um suspiro. – São
pérolas de vidro. Vidro de boa qualidade, mas apenas vidro. Posso dar-lhe
algumas libras, suponho…
– Tente outra vez. – Eu sabia muito bem por quanto o meu colar tinha
sido segurado. Converti mentalmente os dólares em libras, adicionei dez
porcento e disse a minha quantia.
– Tem prova de proveniência? Talvez um recibo? – A lupa dele apontou
para mim, e eu vi-lhe os dedos a acariciarem as pérolas na direção do fecho
com a esmeralda. Tirei-lhe o colar das mãos e continuei a regatear. Outra
meia hora difícil passou sem que ele cedesse, e eu não pude evitar que a
minha voz se elevasse.
– Olhe que vou a outro lado – rosnei por fim, mas ele limitou-se a sorrir,
insípido.
– Não lhe farão uma oferta melhor, menina. Não sem uma prova de
proveniência. Agora, se o seu pai estivesse consigo ou o seu marido…
Alguém que possa assegurar que a menina tem autorização para as vender …
Outra vez aquela conversa. Eu estava do outro lado do Atlântico e, ainda
assim continuava na palma da mão do meu pai. Virei a cabeça na direção da
janela, de modo a esconder a minha raiva, e vislumbrei o cabelo louro de
Rose por entre as pessoas que passavam no exterior. Um instante depois,
percebi que era apenas uma menina a correr. Oh, Rosie, pensei eu, cheia de
lástima, a olhar para a menina que se afastava. Tu deixaste a tua família e
foste para Limoges; como diabo conseguiste fazer isso? Ninguém nos deixa
fazer nada, só por sermos raparigas. Nem gastar o nosso próprio dinheiro,
nem vender as nossas próprias coisas, nem planear as nossas próprias vidas.
Preparava-me para uma discussão inútil, quando a porta da loja se abriu
com um estrondo e a voz de uma mulher cantarolou:
– Charlotte, mas que… mas, querida, eu pedi-lhe para esperar por mim.
Suponho que a menina sabia que me partiria o coração ter de me separar das
minhas p-pérolas, e achou melhor poupar-me, não foi?
Eu olhei estarrecida. Eve Gardiner entrara de rompante na loja e sorria
para mim como se eu fosse a menina dos seus olhos. Usava o mesmo vestido
estampado dessa manhã, amarfanhado e coçado, mas agora trazia vestidas
umas meias de vidro e umas sabrinas respeitáveis; as mãos deformadas
encontravam-se escondidas dentro de umas luvas de pelica e o cabelo
desguedelhado estava preso sob um enorme chapéu, outrora elegante, com
um enfeite de plumas alfinetado na copa. Ela parecia, para meu espanto
absoluto, uma senhora. Uma senhora excêntrica, talvez, mas uma senhora.
Discretamente encostado à porta, de braços cruzados no peito, Finn fez
um sorriso quase impercetível.
– Oh, que pena ter de me separar delas – suspirou Eve, acariciando as
minhas pérolas como se fossem um cão e sorrindo distraidamente para o
penhorista. – São pérolas do Mar do Sul, sabe, um presente do meu q-querido
falecido marido. – Enxugou os olhos com um lenço, e eu tive de segurar o
queixo para ele não cair até ao chão. – E a esmeralda é da Índia! Veio de
Cawnpore, faz muito tempo, quando o meu querido avô estava ao serviço da
R-R-Rainha Vitória. Ele deu conta de muitos sipaios, livrando-nos daqueles
pequenos demónios. – A voz dela transpirava o sotaque elegante de Mayfair.
– Vá, examine outra vez o lustre com a sua lupa e diga-nos quanto pode
realmente pagar por elas, meu bom senhor.
O olhar do homem alternava entre as luvas meticulosamente remendadas
de Eve e as plumas oscilantes do chapéu. Ela era a imagem da alta burguesia
arruinada: uma senhora inglesa a passar por dificuldades, obrigada a
empenhar as joias.
– E a prova de proveniência, minha senhora? Tem alguma maneira de
provar…
– Sim, sim, tenho aqui algures. – Eve atirou a enorme carteira para cima
do balcão, lançando a lupa de joalheiro ao chão. – Aqui está… Não, não é
isto. Os meus óculos, Charlotte…
– Na sua carteira, avó – intervim, conseguindo finalmente dizer algo por
entre o meu espanto.
– Pensei que a menina os tinha. Por favor, veja no seu saco. Não, espere,
segure aqui. É isto? Não, isto é a conta daquele xaile chinês, deixa cá ver… O
papel deve estar aqui…
Iam caindo papéis em cascata por cima do balcão do penhorista. Eve
vasculhava minuciosamente cada um deles, enquanto tagarelava numa
pronúncia imaculada, como se tivesse acabado de tomar chá com a rainha;
remexia desajeitadamente à procura dos óculos inexistentes, colocando cada
papel à luz para os decifrar.
– Charlotte, veja novamente no seu saco, tenho a certeza de que a menina
tem os meus óculos…
– Minha senhora – interrompeu o homem, clareando a garganta, quando
outro casal de clientes entrou na loja. Eve ignorou-os, continuando a palrar
como uma viúva num romance de Jane Austen.
– Cavalheiro, tenha paciência comigo. Aqui está, sim… não, bem, está
aqui em algum lado… – As plumas oscilaram perigosamente e algumas
caíram do chapéu, espalhando um cheiro a naftalina. O penhorista tentou
atender o outro casal de clientes, mas Eve deu-lhe uma pancada seca nos nós
dos dedos com a lupa dele. – Tome atenção, meu bom senhor, ainda não
acabámos de falar! Charlotte, querida, leia isto por mim, estes meus velhos
olhos… – Os clientes que tinham entrado esperaram algum tempo, mas
acabaram por ir embora.
Eu sentia-me como um extra num filme, até que, por fim, o prestamista
fez uma careta de impaciência.
– Não importa, minha senhora. Não é preciso prova de proveniência.
Afinal, não sou assim tão descortês que não possa aceitar a palavra de uma
senhora tão distinta.
– Muito bem – disse Eve. – Diga-nos então o seu preço.
Os dois barafustaram durante algum tempo, mas eu sabia quem ia ganhar.
Alguns momentos depois, o penhorista começou a contar para as minhas
mãos um maço de notas novas em folha, e as minhas pérolas desapareceram
por detrás do balcão. Eve e eu virámos costas e vimos Finn a segurar a porta
aberta, com um sorriso que se notava apenas em redor dos olhos.
– Minha senhora – disse ele, com expressão muito séria, e Eve saiu com o
porte de uma velha duquesa, pavoneando as plumas.
– Ah – soltou ela, assim que a porta da loja se fechou atrás de nós, e a
pronúncia de Mayfair desapareceu completamente da voz. – Que gozo que
isto me deu.
Parecia uma pessoa completamente diferente daquela louca bêbeda da
noite anterior, com a chávena de whisky e a Luger. Na verdade, não parecia
sequer a mesma velha ressacada dessa manhã. Parecia sóbria, fresca, muito
divertida, com os olhos cinzentos a brilhar e os ombros ossudos a
despojarem-se da idade e da aura de burguesa arruinada, como se fossem um
xaile desconfortável.
– Como é que fez aquilo? – perguntei eu, ainda agarrada ao maço de
notas.
Eve Gardiner sacou uma luva, revelando a mão monstruosa, e tirou um
dos omnipresentes cigarros da carteira.
– As pessoas são estúpidas. Espeta-se um papel qualquer debaixo do nariz
e conta-se uma história minimamente d-decente, e, com uma grande dose de
sangue-frio, consegue-se sempre passar.
Parecia estar a citar alguém.
– Sempre? – interroguei.
– Não. – O brilho desapareceu-lhe dos olhos. – Nem sempre. Mas isto não
era m-muito arriscado. Aquele idiota presunçoso sabia que ia comprar uma p-
pechincha. Só fiz com que ele se quisesse ver livre de mim um pouco mais
rápido.
Perguntei a mim mesma porque é que a sua gaguez aparecia e desaparecia
daquela maneira. Ela executara aquela farsa na loja de uma forma tranquila e
descarada. E porque se tinha dado ela ao trabalho de encenar tudo aquilo?
Observei-a enquanto entregava o cigarro a Finn, para que ele o acendesse
com um fósforo.
– A senhora não gosta de mim – disse eu, por fim.
– Não – concordou ela, lançando-me aquele olhar encapuçado uma vez
mais, como uma águia a observar a presa de muito alto. Era um olhar bem-
disposto, mas não vi ali qualquer simpatia ou suavidade.
Não me importava. Podia não gostar de mim, mas falava comigo de igual
para igual, e não como a uma criança ou a uma galdéria.
– Porque me está ajudar?
– Que tal por dinheiro? – Olhou para o meu punhado de notas e
mencionou uma quantia que me fez arfar. – Eu p-posso levar-te a alguém que
talvez saiba alguma coisa sobre essa tua prima, mas não o vou fazer de graça.
Semicerrei os olhos, desejando não me sentir tão pequena, entalada entre
um escocês enorme e uma inglesa alta.
– Não lhe dou um penny até que me diga com quem estava a falar ao
telefone, esta manhã.
– Um oficial inglês que está colocado em Bordéus – retorquiu ela sem
hesitar. – Conheço-o há 30 anos, mas ele está de férias. Por isso, tentei outra
pessoa conhecida, uma mulher que sabe de algumas coisas. Perguntei-lhe
sobre um restaurante chamado Le Lethe e sobre o dono, e ela desligou-me o
telefone na cara. – Resmungou. – A cabra sabe de alguma coisa. Se formos
falar pessoalmente com ela, eu s-saco-lhe o que é. E, se não conseguirmos
saber por ela, tenho a certeza de que conseguiremos saber pelo oficial inglês
meu amigo, assim que ele voltar da caça aos patos em Le Marche. Então,
quantas libras achas que isto vale?
Ela estava a pedir mais do que umas quantas libras, mas eu não insisti.
– Porque é que o seu interesse aumentou quando eu mencionei o
Monsieur René? – ripostei. – Como o conhece, se nem sequer temos um
apelido? Ou foi o nome do restaurante que lhe chamou a atenção?
Eve sorriu por entre uma baforada de fumo.
– Vai-te foder, ianque – disse ela docemente.
Não gaguejou ao dizer aquilo. Era uma palavra que eu nunca ouvira uma
mulher dizer, antes da Eve Gardiner. Finn olhou para o céu, com uma
expressão cuidadosamente desinteressada.
– Está bem – reagi. E contei as notas uma por uma, passando-as para a
mão dela.
– Isto é só metade do que eu pedi.
– Receberá o resto depois de falarmos com os seus amigos – disse eu,
também num tom doce. – Se lhe der tudo agora, é capaz de se meter nos
copos e deixar-me a ver navios.
– Provavelmente – concordou a Eve. Mas, apesar das minhas palavras, eu
tinha dúvidas.
Ela queria mais do que o meu dinheiro. Eu tinha a certeza disso.
– E então, onde está essa sua velha amiga? – perguntei, quando nos
enfiámos no Lagonda descapotável, com Finn ao volante, Eve no meio, com
o braço pendurado despreocupadamente nos ombros dele, e eu esmagada
contra a porta, a tentar meter o resto das notas dentro do meu porta-moedas. –
Onde vamos?
– Folkestone. – Eve esticou-se para apagar o cigarro no painel de
instrumentos do carro, mas Finn arrancou-lhe a beata da mão e atirou-a pela
janela fora, furioso. – E depois de Folkestone… França.
Capítulo 4
Eve
Maio de 1915

França. Era aí que Eve iria trabalhar como espia. Uma espia, pensou ela
ainda a medo, examinando cuidadosamente a ideia, da mesma forma que uma
criança analisa o buraco deixado por um dente acabado de cair. Sentiu
borboletas na barriga, em parte pelos nervos e em parte pela excitação. Vou
ser uma espia em França.
Mas antes de França, Folkestone.
– Acha que eu podia tirá-la do seu trabalho e largá-la imediatamente em
território inimigo? – interrogou o Capitão Cameron, que fizera o favor de
carregar com o saco de viagem a abarrotar de Eve, quando chegaram ao
comboio. Passara apenas um dia desde que ele a recrutara enquanto tomavam
chá na sala de visitas da pensão. Ela teria ido com ele nessa mesma noite,
vestida como estava – sem se importar com o decoro –, mas o Capitão
insistira em fazer as coisas com decência, indo buscá-la no dia seguinte à
tarde e caminhando com ela de braço dado até à estação, como se fossem de
férias para algum lado. A única criatura que se despedira dela fora o gato
malhado, a quem ela tinha dado um beijo no focinho e dito baixinho: Vai ter
com a Sra. Fitz aqui ao lado; fi-la prometer que te vai dar restos enquanto eu
estiver fora.
– Se alguém perguntar – disse o Capitão Cameron, quando eles se
instalaram num compartimento vazio – eu sou um tio dedicado que leva a sua
sobrinha preferida a Folkestone para apanhar um pouco de sol. – Fechou as
portas com firmeza, para que tivessem o compartimento só para eles, e
verificou novamente que não havia ninguém à escuta.
Eve inclinou a cabeça, analisando o rosto magro do Capitão e o fato em
tweed amarrotado.
– É um bocadinho jovem para ser meu tio, não?
– A Eve tem 22, mas aparenta 16; eu tenho 32 e pareço ter 45. Eu sou o
seu Tio Edward. Este será o nosso disfarce, daqui em diante.
O verdadeiro nome dele, Cecil Aylmer Cameron, ela já sabia. Colégios
particulares, Royal Military Academy, servira em Edimburgo durante algum
tempo, o que teria dado a leve entoação escocesa ao seu sotaque inglês –
estas referências ele listara meticulosamente quando Eve aceitou a proposta.
Quanto aos pormenores pessoais, esses eram revelados apenas quando
necessário neste mundo tão secreto… E naquele momento, ela recebia o
primeiro: o nome de código dele.
– Tio Edward será. – Eve sentiu mais borboletas na barriga. – E qual é o
meu nome de c-código? – Ela lera Kipling, Childers e Conan Doyle; até em
livros ridículos, como O Pimpinela Escarlate, os espiões tinham nomes de
código, disfarces.
– Em breve saberá.
– P-P-P… Para onde irei em França? – Ela perdera a vergonha de
gaguejar à frente dele.
– Espere e verá. Em primeiro lugar, o treino. – Ele sorriu, as rugas à volta
dos olhos a franzirem. – Tenha cuidado, Miss Gardiner. O seu entusiasmo
está a fazer-se notar.
Eve suavizou a expressão, revelando uma inocência límpida.
– Melhor.
Folkestone. Fora uma vila costeira pacata antes da guerra, mas
transformara-se num porto movimentado; todos os dias chegavam ferries
com refugiados e ouvia-se mais francês e flamengo nos cais do que inglês. O
Capitão Cameron só voltou a falar quando saíram da estação apinhada e
caminhavam pelo passadiço, ao abrigo de ouvidos estranhos.
– Folkestone é a primeira paragem depois de Vlissingen, na Holanda –
disse ele, apressando-se para que os outros casais que passeavam ali não o
escutassem. – Parte do meu trabalho consiste em assegurar que os refugiados
são entrevistados antes de lhes ser autorizada a entrada na Grã-Bretanha.
– Para tentar encontrar pessoas como eu?
– Sim, e também as que são como a Eve, mas que trabalham para o outro
lado.
– Quantas encontrou d-de cada até agora?
– Seis de um lado, meia dúzia do outro.
– Há muitas mulheres? – Eve queria saber. – Entre os… os recrutas? –
Que nome lhes podia dar? Aprendizes de espias? Espiões-estagiários? Tudo
lhe parecia absurdo. Uma parte de Eve ainda não acreditava que tudo aquilo
lhe estava a acontecer. – Nunca pensei que as mulheres fossem consideradas
para tal função – disse ela com sinceridade. O Capitão Cameron (Tio
Edward) parecia ter a capacidade de lhe arrancar a verdade de uma forma
estranha. Ele devia ser um prodígio como interrogador, pensou ela. Sacava
informação de uma maneira tão gentil que uma pessoa mal dava conta que
estava a abrir a boca.
– Pelo contrário – esclareceu o Capitão. – Eu gosto de recrutar mulheres.
Elas conseguem muitas vezes passar despercebidas em situações que um
homem seria considerado suspeito e detido. Há alguns meses, recrutei uma
mulher francesa – sorriu repentinamente, de forma afetuosa, como se
recordasse algo particularmente bom – que neste momento gere uma rede de
mais de 100 informadores, e faz com que isso pareça simples. Os relatórios
que envia sobre posições de artilharia chegam-nos com tanta rapidez e são tão
precisos que nós conseguimos bombardeá-los numa questão de dias. É
absolutamente notável. Ela é do melhor que temos, seja homem ou mulher.
O espírito de competição de Eve inflamou-se. Eu vou ser a melhor.
Ele fez sinal a um táxi.
– Para o número 8, em The Parade. – Era um lugar decrépito, não muito
diferente da pensão onde Eve vivera, e “pensão” era provavelmente a
resposta dada aos vizinhos que manifestavam a sua curiosidade. Mas quando
o Capitão a convidou a entrar e ela se viu em cima do tapete desbotado da
sala de visitas, não foram recebidos por uma criada empertigada e azeda, mas
por um major alto de uniforme.
Ele olhou de lado para Eve, enrolando as pontas do seu impressionante
bigode.
– Muito jovem – disse, num tom desaprovador, olhando para ela de cima
a baixo.
– Dê-lhe uma oportunidade – disse calmamente o Capitão Cameron. –
Miss Evelyn Gardiner, este é o Major George Allenton. Deixo-a ao cuidado
dele.
Eve teve um momento de receio, ao ver Cameron e o seu fato em tweed a
desaparecerem, mas afastou-o. Não posso sentir medo de nada, relembrou-se
a si mesma. Caso contrário, vou falhar.
O Major não pareceu entusiasmado. Eve supôs que ele não partilhava a
preferência do Capitão Cameron por recrutas femininos.
– O seu quarto é o primeiro do segundo andar. Espero-a cá em baixo
dentro de 15 minutos. – E, com esta facilidade, o mundo dos serviços
secretos abriu-se para ela.
O curso em Folkestone durou duas semanas. Duas semanas metida em
salas abafadas, de teto baixo e janelas fechadas ao calor de maio. Salas com
alunos que não tinham aspeto de espiões, a aprender coisas estranhas e
sinistras de homens que não aparentavam ser soldados.
Apesar da preferência do Capitão Cameron por recrutas femininos, Eve
era a única mulher. Os instrutores ignoravam-na; os olhares deles dirigiam-se
aos homens presentes na sala, e não a deixavam responder a nada, mas isso
não a incomodava, pois dava-lhe tempo para avaliar os colegas. Havia apenas
quatro e eram muito diferentes. Esse facto era o que mais surpreendera Eve.
Os pósteres de recrutamento de forças de combate mostravam uma fila de
tommies, todos iguais, robustos e corajosos, anónimos na sua similitude. Esse
era o soldado ideal: uma linha, um regimento, um batalhão de homens fortes,
todos exatamente iguais. Mas um póster de recrutamento de espiões,
apercebeu-se ela, mostraria apenas uma fila de pessoas que não tinham aspeto
de espiões e que eram todas diferentes.
Havia um belga entroncado com uma barba grisalha; dois franceses, um
com sotaque lionês e outro coxo; e um rapaz franzino inglês que demonstrava
um tal ódio incandescente pelos boches que quase brilhava de ardor. Este não
vai servir de nada, concluiu Eve. Não tem autocontrolo – e o francês que
coxeava também não a convencia; as mãos dele fechavam-se em punhos à
mais leve frustração. O curso inteiro era um exercício de frustração,
minuciosas perícias para aprender com infinita paciência: abrir fechaduras,
escrever códigos, aprender cifras. Os vários tipos de tinta invisível, como se
fazia e como se lia. Como ler e desenhar mapas, como esconder mensagens –
a lista não tinha fim. O belga praguejava baixinho sempre que tinham de
aprender a compilar relatórios em papelinhos de arroz o mais minúsculos
possível, porque as suas mãos eram como presuntos. Mas Eve rapidamente
aprendeu a controlar o sistema de letras pequeninas, mais pequenas do que
uma vírgula numa máquina de escrever. E o professor, um Cockney magro
que mal tinha olhado para Eve desde que ela chegara, sorriu ao ver o trabalho
dela e começou a tomar mais atenção ao que ela fazia.
Passados 15 dias, Eve pensou como era possível mudar tanto em duas
semanas. Ou talvez não tivesse mudado, mas sim transformado no que já era?
Ela sentia-se como se estivesse a ser queimada, descartando-se de todas as
camadas exteriores, de todos os contrapesos de mente e corpo que a puxavam
para baixo. Todas as manhãs, ela acordava pronta, atirava as cobertas para
trás e saltava da cama de mente esfomeada por tudo aquilo que o dia tinha
para lhe oferecer. Controlava os movimentos dos dedos à volta dos
minúsculos pedaços de papel – o tipo de movimentos hábeis que persuadiam
uma fechadura a revelar os seus segredos – e arrepiava-se de puro e intenso
prazer sempre que sentia o mecanismo da fechadura estalar pela primeira vez,
mais do que alguma vez se arrepiara quando um homem a tentara beijar.
Fui feita para isto, pensava. Eu sou a Evelyn Gardiner, e este é o meu
lugar.
O Capitão Cameron foi vê-la no fim da primeira semana.
– Como está a minha aluna? – perguntou ele, entrando sem aviso prévio
na sala de improviso abafada.
– Muito bem, Tio Edward – replicou modestamente Eve.
Os olhos dele sorriram.
– O que está a praticar?
– A esconder mensagens. – Como abrir um buraco na bainha de um
punho e enfiar uma mensagem minúscula enrolada, e como tirá-la
rapidamente da bainha. Era preciso rapidez e dedos desembaraçados, mas
Eve tinha as duas coisas.
O Capitão encostou-se à mesa. Vestia o seu uniforme, nesse dia; era a
primeira vez que ela o via assim e assentava-lhe bem.
– Em quantos sítios consegue esconder uma mensagem, com a roupa que
traz vestida hoje?
– Punhos, bainhas, pontas das luvas – recitou Eve. – Num alfinete no
cabelo, claro. Enrolado à volta do interior de um anel, ou dentro de um tacão
de s-sapato…
– Hum, é melhor esquecer esse último. Dizem-me que os boches já
descobriram o truque do tacão.
Eve acenou com a cabeça, arquivando a informação. Desenrolou a
pequeníssima mensagem em branco e começou a enfiá-la na bainha do lenço
da mão.
– Os seus colegas estão a praticar tiro ao alvo – observou o Capitão. –
Porque é que a Eve também não está?
– O Major Allenton não achou necessário. – Não vejo porque uma mulher
alguma vez precise de disparar uma pistola, tinham sido as palavras dele; por
isso, Eve ficara para trás, enquanto os colegas tinham ido para as carreiras de
tiro com as Webleys emprestadas. Só restavam três colegas – o rapaz
franzino inglês fora declarado inapto, por entre lágrimas e palavrões. Junta-te
aos Tommies, se queres lutar contra os alemães, pensou Eve, sentindo
alguma compaixão.
– Eu acho que devia aprender a disparar uma pistola, Miss Gardiner.
– Isso não vai contra as ordens do Major? – Cameron e Allenton não
gostavam um do outro; Eve percebera isso no primeiro dia.
Cameron limitou-se a dizer:
– Venha comigo.
Ele não levou Eve para o campo de tiro, mas para uma praia deserta,
longe da agitação do cais. Ele caminhou em direção à água, com uma
mochila de lona às costas que tinia a cada passo, e Eve seguiu-o, com as
botas a afundarem-se na areia e o vento a despentear-lhe o cabelo do puxo
asseado. A manhã estava quente e Eve desejou poder despir o casaco, mas
esta expedição a sós até uma praia isolada com um homem que não era, de
forma nenhuma, seu tio seria, por si só, considerada imprópria. A Miss
Gregson e o resto das secretárias iam pensar que eu sou uma galdéria.
Nesse mesmo momento, Eve afastou o pensamento, tirou o casaco e ficou só
em camisa, argumentando para si mesma que, se pensasse muito sobre o que
era impróprio ou não, não seria grande coisa como espia.
O Capitão encontrou um tronco, tirou uma série de garrafas de vidro da
mochila tiritante e alinhou-as em cima do tronco.
– Isto deve servir. Dê dez passos para trás.
– Eu não deveria ser capaz de disparar mais longe do que isso? –
protestou Eve, deixando cair o casaco em cima de um monte de sargaço.
– Se o seu alvo for um homem, é provável que se encontre perto dele. – O
Capitão Cameron contou os passos e tirou a pistola do coldre.
– Esta é uma Luger 9mm P08…
Eve franziu o nariz.
– Uma p-pistola alemã?
– Não faça troça, Miss Gardiner. É bastante mais precisa e fiável do que
as nossas pistolas inglesas. Os nossos rapazes recebem a Webley Mk IV; é a
pistola que os seus colegas estão a usar para treinar, mas a verdade é que
mais valia nem treinarem, porque são precisas semanas para se atirar bem
com a Webley, tal é o coice que dá quando é disparada. Com a Luger, vai
conseguir acertar no alvo apenas com algumas horas de prática.
O Capitão Cameron desmontou rapidamente a pistola, disse o nome de
cada peça e ordenou a Eve que a voltasse a montar e desmontar até não sentir
dificuldade em fazê-lo. Quando Eve apanhou o jeito e reparou que as suas
mãos se moviam com rapidez e habilidade, sentiu a excitação pura que vinha
a sentir desde que chegara, sempre que conseguia decifrar um mapa ou
descodificar uma mensagem. Mais, pensou. Quero mais.
Cameron mandou-a carregar e descarregar a arma, e Eve percebeu que ele
queria ver se ela lhe pedia para disparar, em vez de se limitar a mexer e
remexer na pistola. Ele quer ver se sou paciente. Ela prendeu uma madeixa
de cabelo solta pelo vento atrás da orelha e aceitou as instruções em silêncio.
Posso esperar o dia todo, Capitão.
– Ali. – Por fim, ele apontou para a primeira garrafa alinhada no tronco. –
Tem sete balas. Faça mira ao longo do cano, assim. Esta não dá um coice tão
grande como a Webley, ainda assim dá. – Ele bateu levemente no ombro, no
queixo e nos nós dos dedos de Eve, corrigindo a posição. Nada disto teve
intenção de intimidade – Eve lembrou-se dos rapazes franceses em Nancy,
sempre que ela aparecia para caçar patos. Deixa-me mostrar-te como deves
fazer pontaria! E punham os braços à sua volta.
O Capitão acenou com a cabeça e deu um passo atrás. A forte brisa
marítima despenteava-lhe o cabelo e encrespava o azul baço da água do canal
da Mancha, atrás dele.
– Fogo.
Eve esvaziou a câmara do carregador e os estrondos dos sete disparos
ecoaram pela praia vazia. Não acertou em nenhuma garrafa. Sentiu uma
pontada de desilusão, mas sabia que não o podia mostrar. Limitou-se a
recarregar a arma.
– Porque quer esta vida, Miss Gardiner? – perguntou o Capitão,
acenando-lhe para disparar novamente.
– Quero fazer a minha parte. – Não gaguejou ao dizer aquilo. – É assim
tão estranho? No verão passado, quando a guerra começou, todos os homens
jovens na Grã-Bretanha desejaram ardentemente alistar-se para combater,
fazer a sua parte. Alguém lhes perguntou porquê? – Ela levantou a Luger,
puxou o gatilho e disparou mais sete balas, cuidadosamente espaçadas. Desta
vez, acertou de raspão numa das garrafas, fazendo voar um estilhaço de
vidro, mas a garrafa não se escacou. Outra pontada de desilusão. Mas, um
dia, vou ser a melhor, prometeu. Melhor ainda do que a preciosa recruta de
Lille, seja ela quem for.
A voz do Capitão continuou.
– Odeia os boches?
– Eles não estavam longe de Nancy, onde eu cresci. – Eve começou a
recarregar a pistola. – Eu não os odiava, nessa altura. Mas eles invadiram a
França, destruíram-na, roubaram para eles o que ela tinha de m-m-melhor. –
Enfiou com um gesto brusco a última bala na câmara. – Que direito têm eles
de fazer isso?
– Nenhum. – Ele estudou-a. – Mas eu acho que a sua razão não é tanto o
patriotismo. É mais o ímpeto de provar que é capaz.
– Sim – admitiu Eve, sentindo-se bem ao dizê-lo. Acima de tudo, era isso
que ela queria. E queria-o tanto que doía.
– Relaxe ligeiramente o punho. Está a puxar o gatilho, em vez de o
apertar, e é isso que lhe está a desviar a pontaria para a direita.
Ao segundo disparo, uma garrafa explodiu. Eve fez um sorriso rasgado.
– Não pense que isto é uma brincadeira. – O Capitão olhou para ela. –
Vejo muitos jovens oficiais a quererem ardentemente derrotar os suínos
alemães. E isso está bem para os soldados rasos; eles perdem essa ilusão na
primeira semana que passam nas trincheiras, e não há mal nenhum nisso, a
não ser para a sua inocência. Mas os espiões não podem desejar nada
ardentemente. Os espiões que acham que isto é uma brincadeira acabam
mortos, e fazem com que os colegas também acabem mortos.
Independentemente do que possa ter ouvido acerca dos boches, os alemães
são espertos e implacáveis e, a partir do momento em que a Eve puser os pés
em França, eles farão tudo para a apanhar. Como mulher, é provável que não
a encostem a uma parede e a executem, como aconteceu a um rapaz de 19
anos que mandei para Roubaix o mês passado. Mas pode ser atirada para uma
prisão alemã, deixada a apodrecer, a morrer à fome entre as ratazanas, sem
que ninguém a possa ajudar, nem mesmo eu. Compreende o que lhe estou a
dizer, Evelyn Gardiner?
Outro teste, pensou Eve, sentindo o coração a bater com força. Se
falhasse, não poria os pés em França. Se falhasse, voltaria para um quarto
arrendado e para a sala de arquivo do escritório. Não.
Mas qual era a resposta certa?
O Capitão Cameron estava à espera, de olhos postos nos dela.
– Nunca pensei nisto como uma brincadeira – garantiu Eve, por fim. – Eu
n-não brinco. As brincadeiras são para crianças, e até posso parecer que tenho
16 anos, mas nunca fui uma criança. –. – Não posso prometer que não vou
falhar, mas, se falhar, não vai ser por achar que isto é uma brincadeira.
Ela devolveu o olhar dele, irritada, ainda de coração aos pulos. Seria esta
a resposta certa? Não fazia ideia. Mas era a única que tinha.
– Vai ser enviada para território ocupado pelos alemães, para Lille –
revelou finalmente o Capitão Cameron, e os joelhos de Eve quase cederam
com o alívio. – Mas antes vai a Le Havre, para conhecer o seu contacto. O
seu nome vai ser Marguerite Le François. Aprenda a reagir ao nome como se
ele fosse seu.
Marguerite Le François. Em inglês, significava algo como “Margarida
Francesa”, o que fez Eve sorrir. Um nome perfeito para uma jovem inocente
e apagada, em quem ninguém repara. Nada mais do que uma pequena
margarida, viçosa e à espreita no meio da relva.
O Capitão Cameron retribuiu o sorriso.
– Pensei que lhe assentaria bem. – Ele apontou para a fila de garrafas, só
restavam seis. As mãos dele eram magras e bronzeadas pelo sol, e Eve
vislumbrou o brilho dourado de uma aliança na mão esquerda. – Outra vez.
– Bien sûr, Oncle Édouard.
Quando o final da tarde chegou, todas as garrafas tinham sido partidas.
Com mais uns dias de prática, sob a supervisão dele, ela poderia facilmente
acertar em sete garrafas com sete tiros consecutivos.
– Anda a dedicar-lhe muito tempo, o Cameron – observou, certa tarde, o
Major Allenton, quando Eve voltava para a sala de aula após um treino. Ele
não se tinha dado ao trabalho de falar com Eve desde que ela chegara, mas
naquele momento olhava para ela com suspeita. – Tenha cuidado, minha
cara.
– Não percebo que quer d-dizer com isso. – Eve sentou-se à sua
secretária, a primeira a chegar à aula prática de descodificação. – O Capitão é
um perfeito cavalheiro.
– Bem, talvez não perfeito. Houve aquela questão horrível que o levou à
prisão durante três anos.
Eve quase caiu da cadeira. Cameron, com a sua distinta voz e melodioso
sotaque escocês, a gramática impecável de colégio privado, o olhar suave e
graciosidade esguia. Prisão?
O Major enrolou as pontas do bigode encerado, claramente à espera que
ela perguntasse os detalhes. Eve endireitou as saias e ficou em silêncio.
– Fraude – disse ele, por fim, evidentemente satisfeito por estar a censurar
um subordinado. – Se tem curiosidade. A mulher dele declarou ao seguro que
o colar de pérolas lhe tinha sido roubado, o que era mentira. Foram
condenados por fraude. Um assunto muito duvidoso. Ele assumiu a culpa por
ela, mas quem sabe o que realmente aconteceu? – O Major parecia muito
satisfeito com a expressão de Eve. – Suponho que ele não lhe contou nada
sobre a pena de prisão, hã? – Piscou o olho. – Ou sobre a mulher.
– Nada disso – começou Eve, num tom frio – é da minha c-conta. E, uma
vez que foi reintegrado no exército de Sua Majestade numa posição de
confiança, não me c-c… não me compete q-questionar a autoridade dele.
– Eu não diria que é uma posição de confiança, minha cara. A guerra tem
destas coisas: precisamos de todos os homens, mesmo daqueles que têm um
passado sujo. O Cameron recebeu um perdão e foi reintegrado, mas isso não
significa que eu queira uma filha minha a passear na praia sozinha com ele.
Depois de um homem passar algum tempo atrás das grades, bem…
Eve pensou nas mãos elegantes de Cameron a carregar a Luger para lhe
dar. Não conseguia imaginar aquelas mãos a roubar o que quer que fosse.
– P-p-pretende mais alguma coisa, Major? – Ela estava ansiosa por saber
mais, claro, mas preferia morrer a fazer uma única pergunta que fosse a este
homem venenoso de bigode ridículo. O Major foi-se embora, claramente
desiludido, e, no dia seguinte, Eve observou Cameron às escondidas. Mas não
lhe fez qualquer pergunta, pois toda a gente em Folkestone tinha segredos. E,
no dia em que o curso terminou, ele enfiou a Luger no saco de viagem de
Eve, de presente, e disse:
–Amanhã de manhã, parte para França.
Capítulo 5
Charlie
Maio de 1947

Não sei quanto tempo demorou a travessia do Canal da Mancha. O tempo


estica indefinidamente quando é passado a vomitar.
– Não feche os olhos. – A voz com pronúncia escocesa de Finn Kilgore
soou atrás de mim, enquanto eu me agarrava veemente ao parapeito. – É pior
para o estômago, se não conseguir ver a direção de onde vêm as ondas.
Fechei os olhos.
– Por favor, não diga essa palavra.
– Qual palavra?
– Ondas.
– Olhe para o horizonte e…
– Tarde de mais – gemi, inclinando-me sobre o parapeito. Já não tinha
mais nada para vomitar, ainda assim o meu estômago virou-se do avesso.
Pelo canto do olho, consegui ver dois homens franceses com fatos elegantes a
desviarem-se discretamente para o outro lado do convés. Uma rajada forte de
vento assolou a coberta e o meu chapéu verde-escuro com a horrenda aba
enrolada esvoaçou borda fora. – Deixe-o ir – consegui dizer entre vómitos,
quando Finn se esticou para o apanhar por cima do parapeito. – Detesto esse
chapéu!
Ele sorriu, prendendo-me o cabelo esvoaçante de modo a afastá-lo do
meu rosto, enquanto eu vomitava pela última vez. Sentira-me estupidamente
envergonhada da primeira vez que o fizera à frente dele, mas naquele
momento estava demasiado fraca para sentir humilhação.
– Tem um estômago delicado, para uma ianque – observou ele. – A julgar
pelos cachorros-quentes que comem e pelo café que tomam, pensei que os
americanos nunca ficassem agoniados.
Endireitei-me, com o meu rosto provavelmente tão verde como uma lata
de ervilhas.
– Por favor, não fale em cachorros-quentes.
Ele largou-me o cabelo.
– Como queira.
Estávamos do lado do barco oposto ao de Eve, porque ela tinha achado o
meu infortúnio muito divertido e eu vi-me obrigada a afastar-me para não a
matar. Finn acabou por se juntar a mim. Provavelmente, cansou-se dos
palavrões dela e do fumo dos cigarros, embora fosse difícil de acreditar que
eram piores do que as minhas náuseas intermináveis.
Ele encostou-se, apoiando os cotovelos no parapeito e inclinando a cabeça
para trás, observando o convés superior do barco, repleto de gente.
– Para onde vamos depois de Le Havre, menina?
– A Eve diz que a mulher com quem precisamos de falar está em
Roubaix, por isso mais vale irmos lá antes de Limoges. Mas eu estava
pensar… – A minha voz esmoreceu.
– A pensar o quê?
– Talvez parar primeiro em Rouen? – Saiu-me em tom de pergunta e
arrependi-me disso. Eu não tinha de pedir autorização para pararmos; esta
investigação era minha, embora aquela fosse uma palavra um pouco
grandiosa. A minha missão? A minha obsessão? Bem, qualquer que fosse a
palavra certa, era o meu dinheiro que financiava tudo, por isso era eu que
mandava. Finn e Eve pareciam tomar isso como certo, algo que não deixava
de me dar gozo, depois de tantas semanas a sentir-me como uma folha à
superfície de um redemoinho de água.
– Vamos a Rouen, primeiro – afirmei. – A minha tia deixou Paris e
mudou-se de vez para a casa de férias depois da guerra. A mãe da Rose. Ela
nunca se mostrou muito expansiva nas cartas, mas, se eu lhe aparecer à porta,
tenho a certeza de que vai falar comigo.
Pensei na minha tia francesa e na carteira dela, sempre a chocalhar,
repleta de inesgotáveis caixas de compridos para todas as doenças de que ela
achava que estava a morrer. Queria agarrá-la pelos braços ossudos e abaná-la
até ela me dar as respostas que eu procurava. Porque é que a Rose saiu de
casa em 43? O que aconteceu à sua filha?
Olhei para o convés e vi a Rose de 8 anos, magra e sardenta, a saltitar ao
longo do parapeito. Sorriu para mim, e foi então que vi que não era Rose.
Nem sequer tinha o cabelo louro de Rose. Observei a criança a correr na proa
de volta para a mãe, e ainda assim a minha imaginação continuou a dizer-me
que eram as tranças louras de Rose que ressaltavam naquelas costas estreitas,
e não as tranças morenas de uma criança estranha.
– Rouen – repeti. – Esta noite dormimos em Le Havre e amanhã seguimos
de carro para lá. Se fôssemos de comboio, podíamos chegar lá hoje… – Eve
recusara com veemência outro modo de transporte que não o carro, por isso
eu fora forçada a largar uma soma considerável para que o pesado Lagonda
de Finn fosse colocado no barco por uma grua. Como se fôssemos
aristocratas ingleses de partida para uma agradável excursão de carro pela
Europa, enquanto fazíamos piqueniques acompanhados de champanhe. Pelo
mesmo custo do transporte do carro – e por causa do carro, tivemos de
apanhar o barco para Le Havre, que ficava mais longe, em vez do barco
rápido para Bolonha-sobre-o-Mar – eu poderia ter pagado uma viagem de ida
e volta a França para seis pessoas. – Não podia a velha ter engolido o sapo e
aguentado uma viagem de comboio? – resmunguei.
– Acho que não – disse Finn, com o seu sotaque escocês.
Olhei de relance para a minha imprevisível aliada do outro lado do
convés. Durante a viagem de carro, ela fora, à vez, insultuosa e silenciosa,
recusando-se a sair do carro à chegada a Folkestone, pelo que foi Finn quem
me acompanhou para ir comprar os bilhetes para a travessia. De volta ao
Lagonda, ela desaparecera e, depois de andarmos às voltas de carro,
encontrámo-la em frente a uma casa de mau aspeto, no número 8 de The
Parade, onde ela estava especada, de pé, de sobrolho franzido.
– Ainda me interrogo para onde foi aquele rapaz inglês franzino – disse
ela, sem mais nem menos. – Aquele que foi corrido do curso. Ter-se-á
alistado e morrido nas trincheiras? Filho da mãe sortudo.
– Qual curso? – perguntei, exasperada, mas ela ladrou uma das suas
gargalhadas ásperas, dizendo:
– Não temos um barco para apanhar?
Agora, no barco, ela estava sentada do lado oposto do convés, a um canto,
com um casaco coçado, sem chapéu, a fumar cigarros sem parar, com uma
expressão inesperadamente frágil.
– O meu irmão costumava sentar-se sempre assim – disse eu. – De costas
para um canto. Pelo menos, depois de voltar de Tarawa. Uma noite, quando
estava bêbedo, disse-me que não se conseguia sentir confortável, se não visse
claramente todas as possíveis linhas de fogo. – Senti um nó na garganta, ao
recordar o rosto bem-parecido e atraente do James, mas já não tão atraente
sob o efeito do álcool, com sorriso colado e olhar vazio…
– Há muitos soldados que fazem isso – comentou Finn, indiferente.
– Eu sei… – Engoli em seco. – Não era só o meu irmão… Os soldados
que vinham ao café onde eu trabalhava também faziam isso. – Reparei no
olhar surpreendido de Finn. – O quê, acha que a menina rica americana nunca
trabalhou?
Era precisamente isso o que ele achava, sem tirar nem pôr.
– O meu pai acreditava que os filhos deviam saber o valor do dinheiro,
por isso comecei a trabalhar no escritório dele quando tinha 14 anos. – Era
uma firma especializada em direito internacional, ouvia-se francês e alemão
ao telefone quase tanto como inglês. De início, regava os vasos e fazia café,
mas rapidamente comecei a fazer arquivo, a organizar os memorandos do
meu pai e até a fazer a contabilidade da empresa, assim que ficou claro que
eu o conseguia fazer mais depressa e de modo mais organizado do que a
secretária dele. – Mais tarde, quando fui para Bennington, e a minha mãe não
estava lá para me proibir, trabalhei num café. Era aí que via os soldados.
Finn parecia desorientado.
– Mas trabalhar porquê, se não precisava?
– Gosto de ser útil. Tudo o que me livre de luvas brancas e bailes de
debutantes. Num café, podemos observar as pessoas, inventar histórias sobre
elas. Aquela ali é uma espia nazi, a outra acolá é uma atriz a caminho de uma
audição na Broadway. Além disso, sou boa com números, pelo que posso ser
útil numa loja: a fazer trocos de cabeça, a fazer a contabilidade ao final do
dia. Tirei o curso superior de Matemática.
Como a minha mãe franzira o sobrolho quando lhe disse que me tinha
inscrito nas aulas de Álgebra e Cálculo em Bennington.
– Eu sei que gostas desse tipo de coisas, ma chère, e não sei quem me vai
atualizar o livro de cheques, quando fores para Vermont, mas não fales muito
disso quando saíres com um rapaz. Não faças aquela coisa que costumas
fazer, calcular mentalmente o preço de todos pratos e bebidas para ver se o
consegues fazer mais rapidamente do que o empregado. Os rapazes não
gostam dessas coisas.
Talvez tivesse sido este o motivo por que arranjei emprego no café assim
que cheguei a Bennington. Uma pequena rebelião contra a ladainha que
ouvira a minha vida inteira sobre o que era decente, o que era apropriado,
aquilo de que os rapazes gostavam. A minha mãe enviou-me para a
universidade para que eu encontrasse um marido, mas eu procurava outra
coisa. Outro caminho que não o que alguém escolhera para mim – viajar,
trabalhar, sabia lá o que mais. Ainda estava em processo de descoberta,
quando o Pequeno Problema apareceu e despedaçou os planos da minha mãe
e os meus.
– Fazer trocos num café. – Finn sorriu subitamente. – É uma maneira
galante de passar a guerra.
– Não tenho culpa de ter sido demasiado jovem para ser enfermeira. – De
repente, hesitei, mas decidi fazer a pergunta. O meu estômago continuava às
voltas, e a conversa ajudava a distrair-me. – E a sua guerra? – Porque cada
um tinha a sua própria guerra. A minha era trabalho de casa de Álgebra, sair
de vez em quando com um rapaz e esperar todos os dias pelas cartas de Rose
e de James. A guerra dos meus pais era o bairro onde moravam, Victory
Gardens, e as campanhas de reciclagem de metal e a minha mãe aflita por ter
de pôr maquilhagem nas pernas, em vez de meias de vidro. Quanto à guerra
do meu pobre irmão… Bem, ele não contou como foi, mas a guerra fê-lo
estoirar os miolos.
– Como foi a sua guerra? – perguntei novamente ao motorista de Eve,
afastando do pensamento o rosto de James, antes que o nó me apertasse
novamente a garganta. – Disse que esteve no Regimento Antitanques.
– Não fui ferido. Diverti-me muito, divertimento puro. – Finn estava a
fazer pouco de alguma coisa, mas a expressão dele fechou-se e não tive
coragem de bisbilhotar mais. Afinal, mal o conhecia – ele era o faz-tudo de
Eve, o escocês que fazia o pequeno-almoço. Não sabia se simpatizava
comigo ou se estava simplesmente a ser educado.
Eu queria que ele simpatizasse comigo. Não só ele – Eve também, por
mais desconcertante e irritante que fosse. Na companhia deles, eu podia
começar do zero. Para eles, eu era Charlie St. Clair, a líder da equipa de
buscas mais improvável do mundo. Não Charlie St. Clair, uma total desgraça
e uma galdéria completa.
Finn acabou por se afastar e o meu estômago começou a dar voltas outra
vez. Passei o resto da viagem a olhar para o horizonte e a engolir em seco.
Finalmente, o grito foi dado – Le Havre! –, e eu fui a primeira a sair para o
cais, arrastando a mala, tão feliz por me ver em terra firme que seria capaz de
lhe dar um beijo. Levei alguns momentos a registar o que se passava em meu
redor.
Em Le Havre, havia ainda mais vestígios da guerra do que em Londres. O
porto fora completamente destruído, eu lembrava-me disso – a tempestade de
aço e fogo, assim lhe chamaram. Restavam ainda muitos destroços e vários
edifícios arrasados. Mais do que isso, havia ali uma tristeza cinzenta, um
cansaço nas pessoas em redor. Os londrinos que eu vira pareciam carregar um
certo humor sombrio, como se dissessem: Pode não haver natas para os
nossos scones, mas pelo menos não fomos invadidos.
A França, apesar de todas as boas notícias que eu lera nos jornais – o
General de Gaulle a marchar nas avenidas de Paris, triunfante, os gritos
delirantes das multidões –, parecia exausta.
Quando, por fim, Eve e Finn se juntaram a mim, eu tinha atirado a minha
melancolia súbita ao ar e contava o monte de francos que comprara em
Folkestone. (“Jovem, o seu pai sabe que está a cambiar este dinheiro todo?”)
Finn largou Eve e a mala decrépita dela e dirigiu-se rapidamente à doca, para
se assegurar de que a grua não amolgava o seu precioso Lagonda ao
desembarcá-lo.
– Vamos precisar de um hotel – disse eu, distraída, enquanto recontava os
meus francos e sacudia uma onda repentina de cansaço. – Conhece algum
lugar barato?
– Não faltam lugares baratos numa cidade portuária. – Eve olhou para
mim, divertida. – Queres partilhar um quarto com o Finn? Dois quartos ficam
mais baratos do que três.
– Não, obrigada – disse eu com frieza.
– Tão puritanos, os americanos. – Eve soltou um riso entre dentes.
Ficámos em silêncio até o Lagonda azul-escuro virar a esquina, a ronronar.
– Como é que ele conseguiu ter um carro como aquele? – perguntei eu, a
pensar na camisa coçada do Finn.
– Provavelmente, através de algo ilegal – replicou Eve, num tom
despreocupado. Pisquei os olhos.
– Está a brincar?
– Não. Tu achas que ele trabalha para uma cabra de mau feitio como eu
porque é divertido? Mais ninguém lhe daria trabalho. Eu, se calhar, também
não devia, mas tenho um fraquinho por homens bem parecidos com sotaque
escocês e registo criminal.
Quase tropecei nos meus próprios pés.
– O quê?
– Ainda não tinhas percebido? – Ela ergueu uma sobrancelha. – O Finn é
um ex-presidiário.
Capítulo 6
Eve
Junho de 1915

Marguerite Le François entrou num café em Le Havre, escapando à


chuva, e sentou-se a uma mesa num canto afastado: uma jovem respeitável,
de luvas e chapéu, a pedir timidamente ao empregado uma limonada no seu
sotaque francês nortenho. Se alguém abrisse o porta-moedas de Marguerite
veria todos os cartões de identidade imaculadamente organizados: ela nascera
em Roubaix, ela tinha papéis de trabalho, ela tinha 17 anos. Tudo o resto
sobre Marguerite era algo que Eve ainda não sabia muito bem – a identidade
era superficial, ela não tinha ainda a consistência que os detalhes lhe
proporcionariam, tornando-a real. Quando o Capitão Cameron – o Tio
Edward – deixou Eve no barco, em Folkestone, não lhe dera mais do que o
pacote imaculado com os cartões falsos, um fato de viagem respeitável, ainda
que ligeiramente coçado, uma mala amachucada, com mais roupas
respeitáveis e coçadas, e um destino.
– Em Le Havre – disse ele no cais –, vai conhecer o seu contacto. Ela vai
dizer-lhe tudo o que precisa de saber daqui para a frente.
– Ela é que é a sua estrela? – Eve não se conteve. – A sua melhor agente?
– Sim. – Cameron sorriu, e os olhos enrugaram-se nos cantos. Voltara ao
anonimato do fato em tweed, em vez do imaculado uniforme caqui. – Não há
melhor pessoa para a preparar.
– Vou ser tão boa como ela. – Eve lançou-lhe um olhar intenso. – Vai
ficar orgulhoso de m-mim.
– Sinto-me orgulhoso de todos – respondeu Cameron. – Fico orgulhoso
no momento em que um recruta aceita uma missão. Porque este não é só um
trabalho perigoso, é também sujo e desagradável. Não é muito agradável
ouvir atrás das portas e abrir o correio de alguém, mesmo sendo um inimigo.
No fundo, toda a gente acha que um cavalheiro não deve fazer esse tipo de
coisas, nem mesmo em tempo de guerra. Muito menos uma senhora.
– Tontice – replicou Eve, num tom mordaz, e Cameron riu-se.
– Perfeita tontice. Ainda assim, o tipo de trabalho que fazemos não é
muito respeitado, incluindo entre aqueles que contam com as nossas
informações. Não se pode esperar glória, ou fama, ou elogios. Só perigos. –
Ele deu um toque no pequeno chapéu enfadonho de Eve, para o endireitar
sobre o cabelo aprumado. – Portanto, nunca receie não me fazer sentir
orgulho de si, Miss Gardiner.
– Mademoiselle Le François – lembrou Eve.
– Exato. – O sorriso dele esmoreceu. – Tenha cuidado.
– Bien sûr. Qual é o nome dela, desta mulher em Le Havre? A estrela,
cujo lugar vou tomar?
– Alice – respondeu o Capitão, divertido. – Alice Dubois. Não é o nome
verdadeiro dela, claro. E, se conseguir ser melhor do que ela, vai acabar com
a guerra em seis meses.
Ele ficou no cais durante muito tempo, a observar o barco de Eve a entrar
no mar picado. Ela devolveu-lhe o olhar até a figura em tweed dele
desaparecer. Sentiu um aperto no peito quando deixou de o ver – ele era a
primeira pessoa na sua vida a ter fé nela, a acreditar que podia ser algo mais;
e o seu último contacto com a vida que deixava para trás. No entanto, o
entusiasmo rapidamente venceu a solidão. Eve Gardiner deixara Inglaterra;
Marguerite Le François chegara a Le Havre. E ali estava ela, a bebericar
limonada e a esconder a sua curiosidade, que podia ser descrita fielmente
como ávida, pela misteriosa Alice.
O café estava apinhado. Empregados de expressão rabugenta a passar à
justa com pratos sujos e garrafas de vinho, clientes a entrar da rua, a sacudir
os guarda-chuvas ensopados. Eve examinou minuciosamente todas mulheres
no seu campo de visão. Aquela mulher forte de modos bruscos possuía o
anonimato e o aspeto competente de uma organizadora mestra de espias…
Ou talvez a jovem escanzelada que encostara a bicicleta no exterior e parara à
porta do café para limpar os óculos. Ela poderia esconder uns olhos de lince,
experientes na leitura de planos alemães…
– Ma chère Marguerite! – guinchou a voz de uma mulher; a cabeça de
Eve virou-se imediatamente ao ouvir o nome a que aprendera a reagir como
um cachorrinho. Teve a impressão de que um chapéu se abateu sobre ela, não
um chapéu qualquer, mas um do tamanho de uma roda de carroça, coberto de
organza cor-de-rosa e rosas de seda; depois, a dona do chapéu envolveu-a
numa nuvem de perfume de lírios-do-vale e deu-lhe dois grandes beijos na
cara.
– Chérie, bons olhos te vejam! Como está o oncle Édouard?
Esta era a frase que, segundo o que lhe fora dito, ela ouviria em primeiro
lugar, mas tudo o que Eve conseguiu fazer foi olhar, espantada. Esta é a líder
da rede de Lille?
A mulher francesa tinha talvez 35 anos e era pequena e delicada como um
pássaro, provavelmente nem sequer lhe dava pelo queixo. Vestia um fato
arrojado num tom berrante de lilás, encimado pelo gigantesco chapéu cor-de-
rosa. Empilhou sacos de compras à sua volta, enquanto se sentava à mesa, e
continuou a tagarelar, alternando um francês rápido com um inglês
igualmente acelerado. Nesta parte de França, era normal ouvir-se falar inglês,
graças aos soldados e enfermeiras de licença da frente de batalha.
– Mon Dieu, esta chuva! O meu chapéu vai certamente ficar estragado.
Talvez seja melhor que se estrague. Não me conseguia decidir se era
totalmente horrendo ou absolutamente mágico, por isso não havia nada a
fazer, senão comprá-lo, claro. – Retirou alguns alfinetes do chapéu e atirou-o
para a cadeira vazia, revelando o cabelo louro, enrolado numa poupa. –
Compro sempre um chapéu moralmente duvidoso quando passo por esta
zona. Não os posso levar comigo para o norte, claro. Se usar um chapéu
bonito, aparece logo um soldado sentinela alemão para mo confiscar e dá-lo à
sua mais recente prostituta. Por isso, em Lille uso roupa antiquada em sarja e
um chapéu em palhinha horroroso; quando tenho de regressar, vejo-me
obrigada a abandonar tudo o que é moda. Devo ter deixado chapéus
moralmente duvidosos por toda a França. Brandy – pediu ela ao empregado
que apareceu a seu lado, oferecendo-lhe um sorriso charmoso quando ele deu
um passo atrás, surpreendido com o pedido. – Este dia tem sido uma estopada
– explicou ela. – Por isso, traga-me um brandy duplo, monsieur, e não faça
essa cara rabugenta. Pois então… – prosseguiu, virando-se novamente para
Eve, que tinha estado em silêncio e de olhos arregalados durante este
monólogo introdutório; de repente, olhou para ela de alto a baixo, muito
séria. – Merde. O Tio Edward agora manda-me bebés diretamente do berço?
– Tenho 22 anos – revelou Eve, num tom ligeiramente gélido. Era o que
faltava, esta parisiense de peluche que usava roxo e cor-de-rosa ao mesmo
tempo chamar-lhe criança. – Mademoiselle Dubois…
– Chiu.
Eve estacou e olhou em redor, para a clientela ruidosa.
– Está alguém a ouvir-nos?
– Não, não, aqui estamos em segurança. Se alguém compreender inglês, o
que eu duvido, estamos no canto de uma sala demasiado barulhenta para que
se ouça uma palavra de jeito. Não, o que eu não quero é que me chames por
esse nome horroroso. – Estremeceu com teatralidade. – Alice Dubois. Que
pecado terei cometido para merecer um nome como esse? Vou ter de
perguntar ao meu confessor. Alice Dubois soa a professora magricela com
cara de cão. Chama-me Lili. Também não é o meu verdadeiro nome, mas
pelo menos tem algum estilo. Tive de fazer a vida negra ao Tio Edward para
que também ele me começasse a chamar assim. Acho que ele gosta, porque
desde então tem dado nomes de flores às novas “sobrinhas”, como Violette,
que vais conhecer em breve; vai odiar-te, mas ela odeia toda a gente, e agora
tu: Marguerite, a pequena margarida. Nós somos o jardim dele, e ele cuida de
nós como uma solteirona de regador na mão. – Alice/Lili falava com a cabeça
muito próxima de Eve, para que a conversa não pudesse ser ouvida, ainda
assim parou de falar logo que o empregado se aproximou com o brandy. –
Merci! – agradeceu ela, com um sorriso rasgado, ignorando o olhar
desaprovador do homem.
Eve nunca vira uma mulher de boas maneiras beber bebidas espirituosas,
exceto talvez com um propósito medicinal, mas não disse nada, rodando o
seu copo de limonada. O Capitão Cameron avisara-a que não devia pensar
naquele trabalho como uma brincadeira, mas a agente perfeita dele parecia
achar que tudo era uma piada. Ou será que não? Por detrás da tagarelice
descontraída, Lili demonstrava uma cautela instintiva: parava de falar sempre
que alguém se aproximava nem que fosse um pouquinho da mesa, embora
falasse tão baixo que Eve tinha de se inclinar até estar muito próxima para
ouvir todas as palavras. As duas mulheres pareciam estar a partilhar segredos
íntimos – o que, efetivamente, era verdade.
Lili não aparentava incómodo com o olhar minucioso de Eve. Pelo
contrário, ela também a analisava, com os olhos fundos a moverem-se de
uma maneira quase líquida.
– Tens 22 anos? – repetiu. – Nunca acreditaria.
– É por isso que os meus papéis dizem 17. – Eve abriu os olhos o mais
que pôde e pestanejou com ar doce e confuso, o que fez Lili soltar uma
gargalhada de puro regozijo e bater palmas ao mesmo tempo.
– Talvez o nosso tio seja, afinal, um génio. Que peça me saíste, chérie:
fresquinha da escola e ingénua como uma flor. Quem havia de dizer!
Eve baixou modestamente o olhar.
– Ob-b-brigada.
– Ah, sim, o Tio Edward disse que eras tatibitate – disse Lili, sem papas
na língua. – Imagino que para ti isso seja normalmente um inferno, mas, a
partir de agora, vai ser muito útil. As pessoas não se inibem de falar quando
estão perto de mulheres e ainda menos quando perto de raparigas; junto a
uma jovem que parece ser meio pateta, então, vão falar como papagaios.
Aconselho-te a exagerá-lo o mais possível. Vamos pedir umas baguetes! Em
Lille, não se encontra bom pão. A farinha de boa qualidade vai para os
boches, por isso, sempre que venho ao sul, devoro bom pão e chapéus da
moda. Adoro esta cidade!
Lili deitou abaixo o resto do brandy e depois pediu baguetes e compota.
Eve começou a sorrir.
– O Tio Edward disse que me ia fornecer detalhes. – Eve estava mais
faminta de informação do que de pão.
– Gostas de ir direta aos assuntos, não é? – Lili debicou a primeira
baguete, comendo-a com dentadinhas rápidas, como um passarinho asseado.
– Vais trabalhar num restaurante em Lille, muito na moda. É o tipo de lugar
onde nunca serviriam um enorme copo de brandy a uma senhora com um
chapéu moralmente duvidoso. – Lili agitou o copo vazio. – Bebo outro, oui
ou non? Oui, claro. Se alguém tem o luxo de poder dormir em segurança à
noite, deve sempre tomar mais um brandy. – Ergueu o indicador ao
empregado, que estava a umas três mesas dali, apontando para o copo, e ele
pareceu ficar embaraçado. – O restaurante chama-se Le Lethe – continuou
ela, baixando ainda mais a voz. – O kommandant alemão vai lá comer pelo
menos duas vezes por semana, e a maioria dos oficiais da região segue-lhe o
exemplo, tendo em conta que o cozinheiro do restaurante recebe metade da
comida do mercado negro de Lille. Havia um empregado que trabalhava lá,
um tipo esperto, que nos costumava passar informações. Mon Dieu, as coisas
que ele ouvia quando aqueles oficiais se enfrascavam com schnapps! Eu
queria alguém para o substituir, porque ele foi apanhado, e voilà: o Tio
Edward diz-me que encontrou a margaridazinha perfeita para mim.
– Apanhado? – perguntou Eve.
– A roubar mantimentos. – Lili abanou a cabeça. – Tinha bons ouvidos,
mas pouco juízo. Roubava galinhas, açúcar e farinha das pessoas que espiava.
Merde, que idiota. Claro que foi encostado à parede do beco mais próximo e
morto a tiro.
Eve sentiu o estômago embrulhar-se e pousou a baguete. Morto a tiro.
Como tudo se tornava real – tão mais real, naquele café à pinha, do que na
praia cheia de sol de Folkestone.
Lili esboçou um sorriso de esguelha.
– Estás a sentir náuseas, eu sei. É natural. Eu como a tua baguete, então.
De qualquer maneira, deves tentar perder algum peso antes de te deixarmos ir
à entrevista. Tens um aspeto demasiado saudável para alguém que vem de
Roubaix. No norte, toda a gente parece um pau de virar tripas. Olha para
mim, um saco de ossos com a pele da cor de um cinzeiro.
Eve vira os sinais de cansaço que Lili mostrava sob os olhos e, agora
reparava também na palidez do rosto dela, apesar dos sorrisos. É este o
aspeto que eu vou ter daqui a uns meses?, perguntou-se Eve, pousando a
baguete no prato de Lili.
– Entrevista? – interrogou.
– Para trabalhar no Le Lethe. O dono fez saber que está a pensar contratar
empregadas, em vez de empregados. Numa situação normal, ele preferiria
morrer a permitir que uma mulher servisse no restaurante, mas homens é algo
que ele não pode arranjar no mercado negro. Em tempo de guerra, é mais
difícil encontrar empregados do que farinha branca, até mesmo para um
maldito especulador como o René Bordelon. Que é, devo avisar-te, uma
besta. É capaz de vender a mãe aos alemães, se isso lhe trouxer lucro. Não
que ele tenha mãe, é bem provável que tenha sido vomitado pelo próprio
Diabo, depois de uma noite de copos com Judas. – Lili despachou as últimas
migalhas da baguete de Eve. – Vais ter de convencer o Monsieur Bordelon a
contratar-te. Ele é esperto, por isso não penses que vai ser fácil.
Eve acenou com a cabeça. A identidade de Marguerite Le François
começava a ganhar forma. Uma jovem provinciana, inexperiente, pouco
inteligente, sem muita educação, mas suficientemente esperta, calma e
delicada para servir um boeuf en daube e ostras en brochette sem chamar
muito a atenção.
– Depois de seres contratada, se fores contratada, vais transmitir-me tudo
o que ouvires. – Lili meteu a mão na carteira e tirou uma cigarreira de prata. –
Eu farei com que as informações cheguem ao Tio Edward.
– Como? – questionou Eve, tentando não olhar fixamente para Lili, que
acendia um fósforo. Só as mulheres ordinárias fumam, sempre sentenciara a
sua mãe, mas Lili não podia ser rotulada de ordinária, apesar do chapéu cor-
de-rosa berrante e do brandy.
– Isso é da conta do mensageiro – replicou Lili, de modo vago. – É o meu
trabalho. Posso ser muitas pessoas e ir a muitos sítios, enquanto tu, com a tua
gaguez, serias reconhecida num instante. Por isso, vamos atuar de acordo
com as tuas habilidades.
Eve não se deu ao trabalho de ficar ofendida. Afinal, era verdade.
Imaginou Lili a passar pelos postos de controlo, a pavonear-se e a tagarelar
sem cessar, e sorriu.
– Acho que o seu trabalho é mais p-p-perigoso do que o meu.
– Oh, pffft. Lá me desenrasco. Espeta-se um papel qualquer debaixo do
nariz e, com uma grande dose de sangue-frio, consegue-se sempre passar.
Especialmente uma mulher. Por vezes, levo uma braçada de sacos e
embrulhos e deixo-os cair um a um, enquanto tento encontrar os meus papéis
de identificação, sem parar de palrar, e eles acabam por me deixar passar só
por pura irritação. – Lili expeliu uma longa baforada. – Para ser franca,
grande parte deste trabalho especial que fazemos é muito aborrecido.
Aceitamos a oferta do Tio Edward sem hesitar porque já não suportamos a
ideia de trabalhar num escritório ou de ensinar uma sala cheia de crianças
ranhosas a ler. Depois, descobrimos que este trabalho é igualmente
aborrecido de morte, mas, pelo menos, há a possibilidade excitante de a
qualquer momento alguém nos apontar uma Luger à nuca. E isso é melhor do
que sermos nós a darmos um tiro na cabeça, que é o que aconteceria se
tivéssemos de escrever mais uma carta à máquina ou de martelar mais um
verbo em latim na cabecinha de uma criança.
Eve perguntou-se se Lili teria sido professora da escola primária antes da
guerra; e como a teria recrutado o Capitão Cameron. No entanto, sabia que
ninguém lho contaria. Nada de nomes verdadeiros e nada da vida pessoal, a
não ser que fosse necessário. Fez então um comentário:
– O Tio Edward diz que a Lili é a sua melhor agente.
Lili soltou outra gargalhada sonora.
– Que romântico é aquele homem! São Jorge vestido de tweed! Mas como
o adoro. É demasiado honrado para esta profissão.
Eve concordava, com ou sem pena de prisão. Nos seus momentos menos
ocupados, pensava muito nesse mistério – Cameron, preso por fraude? –, mas
na verdade não fazia diferença. Qualquer que fosse a sua história, ela
confiava nele, era óbvio que Lili também.
– Agora, vamos. – Lili apagou o cigarro. – Tens de conhecer a Violette
Lameron. Ela diz que é a minha tenente, mas se realmente tivéssemos uma
hierarquia, devia ser eu a ralhar com ela, em vez de ser ela sempre a ralhar
comigo. Acho que é por ter sido enfermeira… Convém saberes disso, já
agora, para o caso de alguma vez sofreres um ferimento. Ela pode ter
decidido que prefere ser morta a fazer mais um curativo na Cruz Vermelha,
mas sabe o que fazer quando há ossos partidos e feridas abertas, e, se alguma
vez ficares ferida, ela vai tratar de ti. Não vais é gostar nada do processo.
Deus me ajude, mas ela é mesmo muito chata! – Disse-o com carinho. – Não
tenhas dúvidas de que, independentemente do que ela faça, ser chata anda a
par com ser enfermeira.
Lili espalmou o enorme chapéu rosa sobre o cabelo louro, pegou nos
sacos e levou Eve pelas ruas de Le Havre. A temperatura estava amena,
apesar da chuva, e mães de faces rosadas acompanhavam os filhos de
regresso a casa, enquanto carroças puxadas a cavalo faziam esparrinhar a
água das poças. Eve reparou que ninguém ali era tão magro como Lili ou
tinha um aspeto tão cansado e pálido – e talvez Lili estivesse a pensar o
mesmo, porque desfraldou o guarda-chuva com um movimento violento e
disse:
– Detesto esta cidade.
– Mas disse antes q-que a adora.
– Adoro-a e detesto-a. Le Havre, Paris. Adoro as baguetes e os chapéus,
mas merde, as pessoas não têm ideia do que está a acontecer no norte. Ideia
nenhuma. – O seu rosto versátil imobilizou-se momentaneamente. – Lille está
a transbordar de bestas, e aqui torcem o nariz se uma mulher quer tomar um
brandy e fumar um cigarro, para compensar um dia estopante.
– Lili, alguma vez sente medo? – perguntou impulsivamente Eve.
Lili voltou-se para Eve, com a chuva a pingar das pontas do guarda-
chuva, como uma cortina de prata entre as duas.
– Sim, como toda a gente. Mas só depois de o perigo passar. Antes disso,
o medo é um luxo. – Enfiou a mão por entre o cotovelo de Eve. – Bem-vinda
à Rede Alice.
Capítulo 7
Charlie
Maio de 1947

Verão, há quase precisamente dez anos. Eu tinha 9 e Rose 11, quando as


nossas famílias fizeram uma viagem de carro pela Provença… e acabaram
por nos deixar num café de beira da estrada durante quase seis horas.
Foi esquecimento, claro. Dois carros, um com os adultos e o outro atrás
com as crianças e a ama. Uma paragem num café com vista para uma vinha
repleta de rebentos de uvas; os nossos pais à procura da casa de banho e de
postais; Rose e eu a correr atrás do cheiro a pão, que vinha da cozinha; os
nossos irmãos à bulha… E, de uma maneira ou de outra, quando toda a gente
voltou para os carros, a ama pensou que tínhamos entrado no carro dos
nossos pais e os nossos pais pensaram que estávamos com a ama, e os carros
partiram sem nós.
Foi a única vez que vi Rose assustada e, de início, não percebi porquê.
Não estávamos em perigo. A cozinheira rechonchuda e maternal ficou muito
preocupada connosco assim que descobriu o que se tinha passado.
– Não se preocupem, mademoiselles! As vossas mães não tardarão nem
20 minutos a voltar para trás. – Rapidamente nos sentou a uma mesa só
nossa, sob o toldo às riscas, virada para a vinha, com copos de limonada
gelada e enormes sanduíches com queijo de cabra e presunto.
– Eles não tardam a voltar – disse eu, mastigando ruidosamente. Para
mim, isto era muito melhor do que estar entalada e a morrer de calor no
banco de trás do Renault, com a ama a ralhar-nos e os rapazes a darem-nos
beliscões.
Mas Rose limitava-se a olhar fixamente para a estrada, sem sorrir.
– Talvez não voltem – retorquiu. – A minha mãe não gosta de mim.
– Claro que gosta.
– Não agora que estou… sabes. Mais velha. – Rose olhou para baixo, para
o seu corpo. Aos 11 anos, o peito começava a desenvolver-se. – A maman
não gosta. Fá-la sentir-se velha.
– Porque tu vais ser ainda mais bonita do que ela, quando fores crescida.
Já o problema da minha mãe é que eu não vou ser suficientemente bonita. –
Soltei um suspiro, mas a tristeza não durou muito. O dia estava tão lindo e a
cozinheira sorridente acabara de colocar um prato de madeleines quentinhas à
nossa frente.
– Porque é que, connosco, a questão anda sempre à volta de sermos
bonitas ou não? – exclamou Rose, ignorando a vista maravilhosa sobre as
vinhas e do céu.
– Não gostas de ser bonita? Quem me dera ser.
– Bem, claro que gosto. Mas quando as pessoas conhecem os nossos
irmãos, não fazem comentários sobre o aspeto deles, mas perguntam “gostas
da escola?” ou “jogas futebol?” Connosco, ninguém pergunta nada.
– As raparigas não jogam futebol.
– Tu sabes o que quero dizer. – Rose parecia revoltada. – Os nossos pais
nunca se esqueceriam dos rapazes. Eles estão sempre em primeiro lugar.
– E depois? – As coisas eram mesmo assim; não valia a pena levar a mal
ou pensar muito nisso. Os meus pais riam-se de modo complacente sempre
que James me puxava o cabelo ou me empurrava para o riacho até me fazer
chorar. Os rapazes podiam fazer o que queriam e as raparigas tinham de se
portar bem e ser bonitas. Eu não era muito bonita, ainda assim os meus pais
tinham grandes planos para mim: luvas brancas, um bom colégio e, um dia
mais tarde, tornar-me uma Linda Noiva. Maman já me tinha dito que, com
um pouco de sorte, eu ficaria noiva aos 20 anos, como ela.
Rose torcia a ponta da trança loura.
– Eu não quero ser apenas bonita quando crescer. Quero fazer alguma
coisa diferente. Atravessar o Canal da Mancha a nado. Fazer um safari e
caçar um leão…
– Ou ficar aqui para sempre. – Os aromas do alecrim e da alfazema
trazidos pela brisa de verão, o calor do sol, o alarido dos clientes franceses, o
queijo de cabra e o pão estaladiço e fresquinho na minha boca… Para mim,
aquele café era o paraíso.
– Não vamos ficar aqui para sempre! – Rose estava novamente
consternada. – Não digas isso.
– Estava só a brincar. Não pensas mesmo que eles nos deixariam aqui,
pois não?
– Não. – Eu via que ela estava a tentar ser racional, a ser a menina grande
de 11 anos que sabia muito mais do que eu. Mas sussurrou, como se não
pudesse evitar o pensamento. – E se eles não voltam?
Creio que foi aí que eu percebi porque é que Rose era tão minha amiga.
Ela tinha mais dois anos do que eu, podia ignorar a pestinha da prima, no
entanto, nunca se importava que eu andasse atrás dela. Sentadas naquele café
paradisíaco, eu compreendi: os irmãos tinham as suas próprias brincadeiras, a
mãe tinha algum ressentimento dela, o pai estava sempre a trabalhar. Com
exceção do verão, quando eu a ia visitar, tornando-me a sua sombra
inseparável, ela sentia-se sozinha.
Eu tinha apenas 9 anos. Não tinha capacidade de traduzir isto em palavras
ou até de o compreender bem, como aconteceu mais tarde. Mas naquele
momento tive uma noção vaga, ao vê-la lutar contra o medo de que os pais
não se dessem ao trabalho de voltar para a ir buscar, e apertei-lhe a mão.
– Mesmo que eles não voltem, eu estou aqui – disse-lhe. – Não te vou
deixar.

– Menina? – Pisquei os olhos, e regressei do verão de 37 para maio de 47.


Deixara-me arrastar de forma tão intensa pela memória que foi um choque
olhar para cima e ver os olhos escuros e o cabelo despenteado de Finn, em
vez da trança loura e os olhos azuis bebé de Rose aos 11 anos.
– Chegámos – disse ele. – Este é o endereço que me deu.
Estremeci. Ele parara o carro. Olhei pela janela, para o caminho em
gravilha que levava à velha casa onde eu passara todos os verões da minha
vida até a Alemanha invadir a França: a casa dos meus tios, nos arredores de
Rouen. Todavia, continuava a ver aquele café na Provença, onde duas
meninas passaram quase seis horas, até os pais se aperceberem do equívoco
quando pararam, três horas depois, e deram a volta a toda a velocidade. Essas
seis horas foram mágicas: Rose e eu empanturradas de queijo de cabra e
madeleines, a brincar à apanhada no meio das vinhas, de aventais atados para
ajudar a simpática cozinheira a lavar chávenas, a sentirmo-nos muito
crescidas quando ela nos deixou beber um copinho de vinho rosé aguado.
Depois, sonolentas, a ver o sol a pôr-se nas vinhas, com as cabeças
encostadas uma à outra. E, quando os nossos pais, terrivelmente preocupados,
chegaram, cheios de desculpas e abraços esbaforidos, sentimo-nos
ligeiramente desapontadas por partir. Fora o melhor dia das nossas vidas. O
melhor dia da minha vida, na verdade, porque era a equação mais simples do
mundo: Rose mais eu igual a felicidade.
Não te deixarei, prometi-lhe eu. Mas tinha-a deixado, e ela desaparecera.
– Está tudo bem? – perguntou Finn. Aqueles olhos escuros não deixavam
escapar nada.
– Sim – respondi, saindo do carro. – Fique aqui com a Eve. – Ela
dormitava no banco de trás e os roncos elevavam-se por entre o canto estival
das cigarras. Fora uma longa viagem de carro, depois de uma noite em Le
Havre, num hotel barato. Partimos tarde por causa da ressaca de Eve, e
depois demorámo-nos nas estradas esburacadas de França, parando de hora
em hora para eu sair e vomitar. Desculpei-me, alegando enjoar em
automóveis, mas na verdade era o Pequeno Problema. Ou talvez o facto de
pensar no que ia acontecer me fizesse sentir maldisposta. Olhei novamente
para a casa; as janelas de portadas fechadas pareciam olhos de mortos.
– Vá lá, então. – Finn sacou de uma cópia usada da revista The Autocar
que estava sob o assento e apoiou um cotovelo na janela para ler. – Quando
voltar, vamos para Rouen e arranjamos um hotel.
– Obrigada. – Virei costas ao reluzente Lagonda azul e pus-me a caminho
da casa.
Ninguém respondeu à minha pancada na porta. Bati outra vez. Estava a
demorar tanto que me preparava para espreitar pela janela, mas foi então que
ouvi um arrastar de pés vindo do interior e a porta a abrir-se com chiadeira.
– Tante Jeanne – comecei por dizer, mas gelei quando a vi. A minha tia
francesa sempre fora elegante, perfumada e loura, como Rose. Sempre doente
também, mas ao estilo Greta Garbo, com tosse delicada e casaquinhos de
malha rendada todos bonitos. A mulher diante de mim era escanzelada, com
cabelo grisalho e vestia uma camisola suja e uma saia sem graça. Se ela
passasse por mim na rua, eu não a reconheceria – e, a julgar pela expressão
perplexa que mostrava, ela também não.
Engoli em seco.
– Tante, é a Charlotte… A sua sobrinha. Vim cá para lhe fazer perguntas
sobre a Rose.

Ela não me ofereceu chá ou biscoitos, limitou-se a afundar num velho


divã e a olhar para mim, confusa. Empoleirei-me no braço de um cadeirão
puído à sua frente. Ela perdeu tudo, pensei, olhando o rosto prematuramente
envelhecido diante de mim. Enviuvou… perdeu dois filhos… a Rose
desapareceu. Não sabia como a Tante Jeanne conseguia sequer sobreviver.
Eu sabia que ela amava a minha prima, independentemente dos pensamentos
infantis que Rose tinha.
– Lamento muito, Tante – disse eu. – Tudo… Tudo o que aconteceu.
Ela passou um dedo pela mesa de centro, deixando uma marca no pó.
Havia pó por todo o lado, como um manto, naquela sala escura.
– A guerra.
Uma palavra tão pequena e sem esperança para abarcar tanta perda. As
lágrimas picaram-me os olhos e eu entrelacei os meus dedos enluvados.
– Tante, não há nada a fazer quanto ao oncle, ou ao Jules, ou ao Pierre…
Mas quanto à Rose, sim. Eu sei que as probabilidades são ínfimas, mas ela
pode estar…
Viva. Eve fizera troça de mim por eu ter esperança, mas eu tinha de ter
esperança. Eu podia ser um fracasso em muitas coisas, mas era boa a ter
esperança.
– Achas que sei de alguma coisa? Ela vivia em Limoges, da última vez
que tive notícias dela – afirmou a minha tia, como se fosse o fim do assunto.
– Parou de me escrever há pelo menos três anos. Meados de 44, suponho.
– E porque saiu de casa? – perguntei, tentando encontrar uma centelha,
um brilho, qualquer coisa no olhar da minha tia. – Porquê?
A voz dela soou grave e amarga.
– Porque ela só causava problemas e não tinha moral nenhuma.
Absolutamente nenhuma.
Senti um murro no estômago.
– O q-quê?
Tante Jeanne encolheu os ombros.
– Não. – Abanei a cabeça. – Não, a tia não pode dizer uma coisa dessas e
depois encolher os ombros.
– Aquela rapariga ficou louca. Havia nazis por Paris inteira e ela fazia
questão de não passar despercebida. Primeiro, ia às escondidas ouvir Deus
sabe que tipo de discursos naqueles clubes onde as pessoas só falam de
violência, voltando para casa a altas horas da noite. As discussões que ela
tinha com o pai… Os alemães queriam os nomes de todos os socialistas e
judeus que trabalhavam para a empresa; o que podia ele fazer, recusar? As
coisas que a Rose lhe disse aos gritos…
Eu fitava a minha tia, sentindo o sangue a pulsar nos ouvidos.
Ela continuou, num tom inexpressivo.
– Começou por colocar panfletos nos carros, depois partiu janelas.
Provavelmente, teria acabado a explodir coisas e a fazer com que a matassem,
se não tivesse sido o rapaz.
Recordei a última carta de Rose. Estava entusiasmada com um rapaz que
via às escondidas…
– Que rapaz?
– Étienne qualquer coisa. Não tinha mais de 19 anos, era vendedor numa
livraria. Um zé-ninguém. Trouxe-o cá a casa uma vez, para o conhecermos.
Eles iluminavam-se quando olhavam um para o outro, era óbvio que
estavam… – Bufou, em sinal de desaprovação. – Bem, isso causou outra
discussão.
Abanei a cabeça, completamente paralisada.
– Porque não nos contou nada disto? Quando o meu pai quis saber?
– Eu contei-lhe. Suponho que ele terá achado que não era apropriado para
ti.
Engoli em seco.
– E depois, o que aconteceu?
– O rapaz da Rose foi apanhado a trabalhar para a Resistência.
Mandaram-no sabe lá Deus para onde. Metade de Paris desaparecia de um dia
para o outro. A Rose provavelmente também teria desaparecido… Ela quase
fora presa por dar um pontapé a um camisa castanha na Rue de Rivoli, por
isso, trouxemo-la para aqui, para Rouen. Mas…
– Mas o quê? – Quase gritei. – O quê?
– O que achas? – Os lábios da minha tia franziram-se, como se ela tivesse
dado uma dentada num limão. – A Rose ficou grávida.
Não me lembro de como cheguei junto da enorme faia do jardim. Apenas
que dei comigo encostada ao tronco áspero e a arfar com grande dificuldade.
Tinha um medo terrível de olhar para cima e de ver duas meninas sentadas
lado a lado num galho da árvore. Esta fora a nossa árvore, onde nos
refugiávamos dos nossos irmãos brutos, antes de James ter crescido em idade
e bondade. Rose e eu, sentadas naquele ramo acima da minha cabeça, com
pés a baloiçar, tal como naquele café da Provença. Nunca sós, enquanto nos
tivéssemos uma à outra.
Rose. Oh, Rose…
Quero fazer algo diferente. E ela era capaz disso… Claro que ela
percorrera Paris à noite a partir janelas e a dar pontapés a camisas castanhas.
Eu devia ter adivinhado que Rose se tinha envolvido com a Resistência. Mas
ela fora apanhada na armadilha mais velha do mundo, exatamente como eu.
Rose não ia escrever um livro, ou atravessar o Canal da Mancha a nado, ou
fazer algo diferente… Porque quando se engravidava, era o fim.
Eu quisera muito salvar a minha prima, mas ninguém a podia ter salvado
disto. E eu estava presa na mesma armadilha. Sem esperança.
Soltei um único soluço de choro, tão alto que me sobressaltei. Ter-se-ia
ela sentado ali, sozinha, naquele ramo de árvore, na noite em que contara aos
pais? Depois de a mãe a aconselhar a tomar um banho muito quente e um gin
puro, e depois tentar dançar como louca para o perder? Depois de o pai ter
gritado e gritado, dizendo que ela era motivo de vergonha eterna para a
família? Tante Jeanne tinha contado tudo isso, enquanto eu olhava especada
para ela.
O meu pai não gritou comigo quando lhe contei. Foi a minha mãe quem
gritou; ele limitou-se a ficar sentado, a olhar fixamente para mim. Quando eu
saí da sala, ele desviou a cabeça e disse apenas, incrédulo: “Galdéria”.
Tinha-me esquecido disso.
Perguntei-me se eles também teriam chamado Rose de galdéria.
Bati com os punhos no tronco da árvore, desejando poder chorar,
desejando poder embrulhar-me no meu entorpecimento isolador. Mas as
lágrimas estavam amarradas dentro de mim num nó feio e gigante, e os
golpes de dor e fúria que eu sentia apunhalavam-me demasiado fundo para
me sentir entorpecida. Por isso, bati na árvore até as articulações dos meus
dedos me doerem dentro das luvas.
Tinha os olhos a arder quando finalmente me afastei. A minha tia
observava-me da porta das traseiras, débil e encolhida.
– Conte-me o resto – pedi, e ela assim fez, num tom indiferente. O meu
tio mandara Rose para uma vila perto de Limoges, para que ela desse à luz
longe das pessoas que conhecia. Ela não escreveu quando o bebé nasceu, não
lhes contou nada sobre ele, e eles também não perguntaram. Quatro meses
mais tarde, Rose enviou um bilhete a dizer que ia trabalhar para Limoges, e
que devolveria aos pais tudo o que eles tinham gastado com ela durante
aquele tempo de reclusão, até ao último franco. O dinheiro chegou e por duas
vezes outras cartas foram trocadas: a primeira, a anunciar a morte do pai; a
segunda, a morte dos irmãos. Em resposta, duas atabalhoadas cartas de
pêsames, manchadas de lágrimas. Não, Tante Jeanne não se lembrava da
morada de Rose; ela não guardara as cartas nem os envelopes… E, depois de
meados de 44, não chegou mais nada. – Não sei se ainda está em Limoges –
disse a minha tia, fazendo uma pausa. – Eu pedi-lhe para voltar, sabes. O pai
da Rose nem queria ouvir falar disso, mas depois de ele morrer… Bem, eu
pedi. Mas ela nunca me respondeu.
Não perguntei se o bebé de Rose fora incluído naquela oferta de
hospitalidade. Estava a tremer demasiado.
– Podes ficar cá a dormir? – Tante Jeanne parecia triste. – Sinto-me muito
sozinha aqui.
E de quem é a culpa? Apetecia-me atacá-la. Foi a tia que atirou a Rose à
rua como se ela fosse lixo. Mais valia tê-la deixado naquele café na
Provença. As palavras ardiam-me nos lábios, impacientes para saírem, mas
eu mordi-as. A minha tia estava tão magra que a mais pequena brisa seria
capaz de a levar; adquirira finalmente o aspeto da inválida que sempre
alegara ser. Um marido e dois filhos mortos. Tinha perdido tanto…
Sê amável.
Eu não queria ser amável, mas pelo menos consegui não dizer as coisas
que pensava. Apenas disse, num tom seco:
– Não, Tante, não posso ficar. Tenho de ir para Roubaix.
Tante Jeanne suspirou.
– Bem, nesse caso…
Não consegui dar-lhe um abraço. Não suportava a ideia. Consegui
arrancar um adeus súbito e seco e avancei, vacilante, pelo relvado
malcuidado em direção ao Lagonda azul.
Finn ergueu os olhos das páginas gastas da The Autocar. Não sei que
expressão ele viu no meu rosto, mas saiu do carro num pulo.
– Miss?
– Porque o mandaram para a prisão, Finn?
– Roubei o chapéu de um guarda do Palácio de Buckingham – disse ele,
sem expressão. – Está tudo bem consigo?
– Está a mentir.
– Sim. Entre no carro.
Avancei para o descapotável, mas tropecei na gravilha. Finn agarrou-me
pela cintura, evitando que caísse, pegou em mim e ajudou-me a entrar para o
banco da frente.
A Eve estava acordada, observando-me com os olhos caídos de águia.
– Então?
Esfreguei a minha face a ferver com a mão fria, ao mesmo tempo que
Finn se sentava no banco do condutor.
– Descobri porque é que a Rose foi embora. Porque… Porque estava
grávida.
O silêncio era ensurdecedor.
– Bem – disse finalmente Eve, lançando um olhar intencional à minha
barriga. – Ou muito me engano, ou tu também estás.
Capítulo 8
Eve
Junho de 1915

Eve foi tomada de surpresa, não pelos vários horrores de Lille – e bem os
havia –, mas por um cartaz. Afixado com um prego no exterior de uma igreja,
abanava ao vento, e nele estava escrito, em francês e alemão:

QUALQUER CIVIL – INCLUINDO FUNCIONÁRIOS


PÚBLICOS DO GOVERNO FRANCÊS – APANHADO A
AJUDAR TROPAS INIMIGAS DA ALEMANHA, OU QUE
ATUE DE FORMA A PREJUDICAR A ALEMANHA E OS
SEUS ALIADOS, SERÁ PUNIDO COM A MORTE.

– Ah, estes. – O tom de Lili era prático. – Foram afixados no final do ano
passado. Acho que, a princípio, ninguém os levou a sério. Depois, em janeiro,
uma mulher foi morta a tiro por dar abrigo a dois soldados franceses, e ficou
tudo muito claro.
Eve recordou o cartaz de recrutamento com o qual ela se demorara em
Londres, sob o olhar atento do Capitão Cameron. A fila de tommies corajosos
e determinados, o espaço em branco no meio: Ainda há lugar na fila para TI!
VAIS SER TU A PREENCHÊ-LO?
Sim, ela preenchera-o. E agora tinha diante de si um cartaz que lhe
garantia a morte, se fosse apanhada, e tudo se tornara real, muito real. Mais
real do que a garantia dada pelo Capitão Cameron, na praia ventosa de
Folkestone, de que os boches não matavam mulheres.
Eve olhou para os olhos fundos no rosto versátil e sorridente de Lili.
– Aqui estamos mesmo na b-b-boca do lobo, não é?
– Sim. – Lili deu o braço a Eve, afastando-a do cartaz. O seu aspeto era
completamente diferente do de Le Havre: nada de chapéus chocantes ou
penteados elaborados. Tinha um ar asseado e sóbrio, vestia um fato simples
em sarja, calçava luvas muito remendadas e levava um saco ao ombro. Os
seus papéis de identificação, com outro nome falso, declaravam que a sua
profissão era costureira, e o saco continha agulhas e carrinhos de linhas.
Tinha também um conjunto de mapas cosidos ao forro – mapas marcados
com pontos-alvos. Felizmente, Eve só soube disso depois de terem passado
os postos de controlo de acesso a Lille. Ela quase desmaiou quando Lili lhe
disse, com um riso abafado:
– Os boches iam adorar encontrar os mapas! Estão marcados com as
novas posições de artilharia, para serem bombardeadas.
– Estavas a f-f-fazer piadas com os sentinelas alemães enquanto eles
inspecionavam os papéis, e tinhas isso tudo no teu saco?
– Oui. – respondeu serenamente Lili, e Eve olhou para ela com um misto
de admiração e horror. Soube nesse momento que a confiança com que
prometera ao Capitão Cameron que ultrapassaria a sua agente perfeita não era
mais do que jactância, e que essa promessa estava destinada a não se cumprir,
pois nunca ninguém seria melhor do que Lili e os seus nervos de aço. Eve
pensou se a sua chefe não seria ligeiramente doida, ao mesmo tempo que
sentia uma admiração arrebatadora por ela.
O mesmo claramente se podia dizer de Violette Lameron, que as recebeu
num sombrio quarto arrendado, algures perto da Grand Place. Violette era
forte e carrancuda, com o cabelo apanhado num puxo e óculos redondos;
abraçou Lili com evidente alívio, ao mesmo tempo que ralhava com ela:
– Devias ter-me deixado ir buscar a nova rapariga. Tens passado
demasiadas vezes pelos postos de controlo; vais acabar por dar nas vistas!
– Tais-toi, preocupas-te demasiado! – Lili começou a falar inglês, tal
como tinha dito a Eve que o fariam quando estivessem sozinhas. Era muito
melhor inventar uma história para justificar o facto de falarem em inglês, se
alguém as escutasse – explicou ela –, do que perceberem que discutiam
coisas como mensagens secretas e códigos britânicos em francês. O inglês de
Lili era impecável, mas ela salpicava-o casualmente com palavrões em
francês. – Agora temos de preparar a Marguerite, antes de tu e eu partirmos
para a fronteira para enviarmos os relatórios. – Ela sorriu para Violette. – A
nossa nova amiga tem um ar de pateta esplêndido, e vai sair-se muito bem,
mas tem muito para aprender.
Em Folkestone, o treino de Eve tinha sido formal: os instrutores, as filas
de secretárias, os uniformes e as bandeiras. Este treino era muito diferente.
Tinha lugar num pequeno quarto húmido, com uma cama estreita e um
simples lavatório e uma racha que atravessava o teto de um lado ao outro,
onde tudo cheirava a mofo devido à chuva miudinha que nunca parava de cair
lá fora. Um quarto escolhido não pelo conforto, mas por ser à prova de
ouvidos curiosos, uma vez que, de um lado, o prédio estava isolado pela
parede grossa de uma capela; do outro, por um edifício de apartamentos em
ruínas; e em cima por um sótão vazio. Um quarto onde as três mulheres se
sentavam a beber canecas de uma bebida pouco apetitosa, feita de folhas de
nogueira fervidas com alcaçuz – os alemães tinham confiscado todo o café –
e falavam prosaicamente de coisas indizíveis.
– Um oficial alemão caminha pela rua na tua direção – começou Violette,
depois de a porta e a janela serem inspecionadas e fechadas. O seu aspeto
carrancudo contrastava com a descontração de Lili; a chefe recusava-se a ser
sisuda e era evidente que Violette carregava a seriedade pelas duas. – O que
deves fazes?
– Deixá-lo passar, não olhar para ele…
– Errado. Cumprimenta-o. Se não o fizeres, arriscas-te a apanhar uma
multa e a uma pena de prisão de três dias. – Violette olhou para Lili. – Mas
eles ensinam alguma coisa em Folkestone?
Eve indignou-se.
– Ensinam-nos muita coisa…
– Nós vamos conseguir prepará-la – assegurou Lili à sua tenente. – Um
alemão pede para ver os teus papéis e depois começa a apalpar-te. O que
deves fazer?
– Nada? – tentou adivinhar Eve.
– Não. Sorri, porque se não conseguires simular um pouco de solicitude,
vais levar uma bofetada na cara e, possivelmente, ser revistada. Um alemão
pergunta porque tens as mãos nos bolsos. O que deves fazer?
– T-tirá-las dos bolsos muito rapidamente…
– Não. Nunca metes as mãos nos bolsos, porque os boches vão pensar que
vais sacar de uma faca e vão espetar-te uma baioneta no corpo.
Eve esboçou um sorriso desconfortável.
– De certeza que não…
A mão de Violette estalou o rosto de Eve, produzindo um som semelhante
ao de um tiro de espingarda.
– Achas que estamos a exagerar? Foi o que aconteceu a um rapaz de 14
anos na semana passada!
Eve levou imediatamente a mão ao rosto dolorido. O olhar voltou-se para
Lili, sentada com as suas pequenas mãos à volta da caneca.
– O que foi? – reagiu Lili. – Achas que estamos aqui para sermos tuas
amigas? Estamos aqui para te treinar, margaridazinha.
Eve foi trespassada por uma onda de ira; mais do que ira, traição. Lili fora
tão calorosa e acolhedora em Le Havre; naquele momento, tudo parecia
correr mal.
– Eu já fui treinada.
Violette revirou os olhos.
– Acho que a devemos mandar de volta para casa. Ela é inútil.
Eve abriu a boca para responder, mas Lili pousou-lhe um dedo nos lábios.
– Marguerite – começou ela, e o seu tom era prático. – Tu não tens ideia
nenhuma do que se passa aqui. E o Tio Edward também não. Ele deu-te o
treino que te permitia chegar até aqui, mas a Violette e eu temos de te dar o
treino que te vai fazer ser útil aqui… e que te vai manter viva. Temos só
alguns dias para o fazer. Se não aprenderes, não serás mais do que um
empecilho.
O olhar era firme e irremissível. Ela parecia um capataz de uma fábrica a
pregar um sermão a um novo trabalhador, e Eve sentiu o rosto a arder de
vergonha. Soltou lentamente um suspiro, descerrou os dentes e conseguiu
fazer um aceno de cabeça.
– Cumprimentar todos os oficiais alemães. Não oferecer resistência
quando apalpada. Não meter as m-m-m… as mãos nos bolsos. O que mais?
Elas repetiram as instruções, vezes e vezes sem conta. Treinaram
encontros: O que fazes se…? Treinaram esconder coisas rapidamente: Se eles
te apanham antes de poderes esconder um relatório, o que fazer para os
distrair e atrasar? E ensinaram-lhe as regras para viver em Lille.
– Não acredites em nada do que os jornais ou os boletins dizem. Se está
escrito, é mentira – afiançou Lili.
– Anda sempre com os teus papéis de identificação, mas esconde a
pistola. – Violette também tinha uma Luger, que manejava de forma
descontraída, mas autoritária. – Os civis não podem usar armas.
– Mantém-te longe dos oficiais alemães. Eles acham que podem ter todas
as mulheres que quiserem, com ou sem o consentimento delas…
–… e, se isso acontecer, há muita gente em Lille que te vai desprezar por
achar que és colaboradora e que te deitaste com eles para obter favores.
– Vais viver aqui, neste quarto. Temo-lo usado como esconderijo para
dormir, mas agora que vais morar aqui, tens de afixar uma notificação com o
teu nome e idade no lado de fora da porta, no caso de haver uma chamada…
– Não são permitidos ajuntamentos de mais de dez pessoas…
– Como é que alguém consegue v-viver assim? – Eve perguntou no
segundo dia, quando, por fim, ganhou alguma aprovação para se aventurar a
fazer uma pergunta ou outra.
– A vida aqui é uma merda – reconheceu Lili. – E é provável que
continue a ser uma merda até conseguirmos expulsar os alemães.
– Quando é que começo a passar informações? S-s-se eu souber de
alguma coisa.
– Nós voltaremos regularmente, a Violette e eu. – Lili sorriu para a sua
tenente. – Vamos continuar a dormir aqui contigo, sempre que precisarmos
de passar a noite em Lille. Mas como estamos sempre a viajar, a visitar os
nossos informadores, é provável que passes muito tempo sozinha.
Violette olhou para Eve com completa falta de entusiasmo.
– Espero que estejas à altura.
– Salope! – Lili deu um esticão no puxo teso de Violette. – Não sejas tão
cabra!
Eve rapidamente se apercebeu que Lille, governada pelos alemães, era um
lugar horrível. Antes da guerra, devia ter sido uma cidade bonita, luminosa,
cheia de vida – os pináculos das torres das igrejas erguidas para o céu, as
pombas a esvoaçar na Grand Place, os candeeiros das ruas a emanar uma luz
calorosa no escuro da noite. Agora, a cidade estava apagada e infeliz, e os
rostos caídos e chupados da fome. Não estavam longe das trincheiras, dos
soldados e da verdadeira ação da guerra – o troar das armas ao longe
ribombava como o som de uma trovoada suave e, de vez em quando, um
biplano sobrevoava a cidade, zumbindo como uma vespa venenosa. Os
boches tinham tomado Lille no outono anterior e estavam para ficar: as
avenidas tinham placas novas com nomes em alemão, as botas alemãs batiam
nas calçadas das ruas com confiança e a língua alemã era falada alto e bom
som em todos os locais públicos. Os únicos rostos saudáveis eram os dos
alemães, e só isso foi suficiente para rapidamente transformar a antipatia algo
impessoal que Eve sentia pelo Inimigo num ódio inflamado e total.
– Não deixes que o teu olhar brilhe com emoção – avisou Lili, ajudando
Eve a vestir-se para a entrevista. Uma saia e uma camisa simples e limpas,
mas havia mais a fazer do que escolher roupas. Lili empalidecia a pele de Eve
com umas aplicações estratégicas de giz e fuligem, tentando atenuar a cor
saudável das suas faces.
– Tens de parecer abatida e estourada, margaridazinha. É isso que os
alemães querem ver. Um brilho nos olhos vai fazer com que reparem em ti.
– Abatida – repetiu sombriamente Eve. – Oui.
Violette examinou-a de alto a baixo, dardejando-a com os óculos
redondos.
– O cabelo dela está brilhante.
Embaçaram-no com um pouco de terra. Eve ergueu-se, calçando luvas
remendadas.
– Sou uma jovem provinciana recém-chegada de Roubaix – recitou ela. –
Desesperada por encontrar um trabalho, com pouca educação. Limpa, capaz,
um pouco b-b-burra.
– Tens ar de burra – observou Violette, num tom de indiferença; Eve
lançou-lhe um olhar furioso. Não simpatizava com Violette, mas não havia
dúvidas de que ela era excelente no que fazia. Evelyn Gardiner desaparecera;
o espelho sujo daquele pequeno quarto refletia Marguerite Le François, uma
rapariga de aspeto esfomeado e pele baça.
Eve olhou para Marguerite e sentiu-se nervosa, como uma atriz que se
prepara para subir ao palco.
– E s-s-s… E se eu falhar? E se o dono do Le Lethe não me contratar?
– Nesse caso, voltas para casa. – Lili não estava a ser indelicada, apenas
direta. – Porque não te podemos usar em mais nenhum sítio, margaridazinha.
Por isso, vai, mente o mais que possas, tenta ser contratada e tenta não ser
morta.
René Bordelon podia ser uma besta, mas a verdade é que tinha uma
caverna muito elegante. Esse foi o primeiro pensamento de Eve enquanto
esperava no Le Lethe.
Seis raparigas, incluindo Eve, sentadas na sala de jantar, com mesas
atoalhadas e paredes forradas a madeira escura, aguardavam o momento de
serem entrevistadas. Havia outras duas, mas essas foram dispensadas quando
o maître d’ lhes perguntara se falavam alemão e elas admitiram que sim.
“Nenhuma pessoa que trabalhe aqui pode ser fluente na língua dos nossos
clientes habituais, que exigem privacidade total para poderem conversar
livremente.” Eve pensou que seria difícil para os habitantes de Lille evitar
aprender alemão, se a ocupação pelos inimigos se prolongasse por muito
tempo; mas, em vez de exprimir essa observação, declarou com firmeza a sua
mentira: não, ela não compreendia uma só palavra de alemão, para além de
nein e ja, pelo que lhe foi mostrada uma cadeira para que esperasse.
O Le Lethe era um oásis de elegância na monótona e oprimida Lille: os
candelabros de cristal, que emanavam uma luz suave, a carpete cor de vinho
escura e felpuda, que absorvia o som dos sapatos, e as toalhas em cima das
mesas, perfeitamente espaçadas para proporcionar privacidade – tudo era
perfeito. A janela para a rua era saliente e com caixilhos dourados, e tinha
vista para o rio Deûle. Eve compreendia por que motivo os alemães jantavam
ali. Era um lugar civilizado, onde podiam relaxar depois de um longo dia a
espezinhar a populaça subjugada.
Naquele momento, o ambiente, no entanto, não era civilizado. Era tenso e
cru, por entre olhares cruzados das seis jovens, seguramente a pensarem
quem seriam as duas escolhidas e as quatro que iriam para casa. Trabalhar ali
ou não significava a diferença entre comer e não comer – Eve estava em Lille
havia apenas alguns dias, mas já se apercebera de que ali se vivia no fio da
navalha. Mais dois meses e o seu rosto ficaria exatamente como o de Lili.
Ótimo, pensou. A fome vai manter-te alerta.
Uma por uma, as raparigas foram levadas ao andar de cima. Eve
aguardou, agarrada à carteira, sentindo-se nervosa, mas não se permitindo
pensar na possibilidade de não ser contratada. Ela ia ser contratada, e ponto
final. Não seria mandada para casa como um falhanço, mesmo antes de ter a
oportunidade de se provar como um sucesso.
– Mademoiselle Le François, Monsieur Bordelon vai recebê-la.
Foi conduzida ao andar de cima por umas escadas alcatifadas,
caminhando até a uma porta robusta de carvalho polido. Aparentemente,
René Bordelon vivia num apartamento espaçoso por cima do restaurante. A
porta abriu-se, revelando um escritório privado. Era obsceno.
Essa foi a palavra que Eve encontrou para descrever o que via. Obsceno,
mas também belo, com um relógio dourado sobre uma lareira em marfim, um
tapete Aubusson e cadeirões em couro castanho-avermelhado. Estantes em
pau-cetim repletas de livros com capas de couro, peças decorativas em vidro
Tiffany e o pequeno busto em mármore de um homem a fazer uma vénia. A
sala, com as paredes forradas a seda verde jade, transpirava dinheiro e bom
gosto, luxo e pomposidade. Com o aterrador mundo subjugado de Lille
visível através das cortinas imaculadas de musselina, aquela opulência era
obscena.
Eve detestou aquele escritório e o seu dono ainda antes de ser dita
qualquer palavra.
– Mademoiselle Le François – disse René Bordelon. – Sente-se, por favor.
Indicou-lhe um dos cadeirões fundos e sentou-se no outro com delicada
elegância. Vestia calças de dobra vincada, camisa branca como a neve e um
colete de corte impecável, feito com precisão parisiense. Teria talvez 40 anos,
era alto e esguio, de cabelo grisalho nas têmporas e penteado para trás,
revelando um rosto magro e impenetrável. Se o Capitão Cameron era, para
Eve, o exemplo perfeito do cavalheiro inglês, René Bordelon era seguramente
o exemplo acabado de um cavalheiro francês.
E, contudo, todas as noites, no restaurante lá em baixo, fazia o papel de
anfitrião atencioso dos alemães.
– Parece-me muito jovem. – Mounsieur Bordelon inspecionou-a enquanto
ela se acomodava na borda do cadeirão. – A menina é de Roubaix?
– Sim, monsieur. – Violette, que crescera nessa pequena vila, tinha
transmitido a Eve todos os detalhes pertinentes, caso fossem necessários.
– Porque não ficou lá? Lille é um lugar muito vasto para uma órfã de… –
Olhou para os papéis de identificação dela. – 17 anos.
– Não há trabalho. Pensei que aqui em L-L-Lille podia arranjar um
trabalho. – Eve juntou os joelhos e agarrou ainda mais a carteira, aparentando
estar assoberbada e perdida no meio de todo aquele luxo. Marguerite Le
François nunca teria visto um relógio dourado ou uma coleção de livros com
capas de couro escritos por Rousseau e Diderot, por isso olhava em redor de
boca aberta e olhos arregalados.
– Pode pensar que trabalhar num restaurante é tarefa simples. Pôr a mesa,
recolher pratos. Mas não é. – A sua voz não entoava para cima e para baixo,
como as vozes normais. Era feita de metal, ligeiramente arrepiante. – Exijo
perfeição, mademoiselle. Na comida que sai da cozinha, nos empregados que
a levam às mesas, no ambiente no qual ela é consumida. Aqui, eu sou criador
de civilização, de paz em tempo de guerra. Um lugar para esquecer,
temporariamente, que a guerra existe. Daí o nome, Le Lethe.
Eve abriu os olhos o mais possível, mostrando perplexidade.
– Monsieur, não sei que o isso quer d-d-dizer.
Ela esperava um sorriso, um olhar condescendente, até mesmo irritação,
mas ele limitou-se a estudá-la.
– Eu já t-trabalhei num café, monsieur – apressou-se Eve a dizer, como se
estivesse nervosa. – Eu sou c-capaz e r-r-rápida. Ap-prendo depressa. Sou
esforçada. Só quero t-t-t-t-t-t…
Ela tropeçou intensamente na palavra. Nas duas semanas anteriores, quase
não tinha reparado na sua própria gaguez – talvez porque falara sobretudo
com o Capitão Cameron e com Lili, que tinham o dom de também não
reparar nela –, mas, agora, a sílaba estava encravada atrás dos seus dentes,
recusando-se a sair, e René Bordelon observava o esforço dela com a maior
calma. Tal como o Capitão Cameron, não se apressou a terminar a frase por
ela. Mas, ao contrário do Capitão Cameron, Eve não pensou que fosse por
cortesia.
Eve Gardiner teria fechado o punho e batido com ele na coxa, furiosa e
teimosa, até a palavra se soltar. Marguerite Le François limitou-se a gaguejar
até se calar, vermelha de vergonha, pronta a desaparecer por entre a carpete
sumptuosa.
– A menina gagueja – observou Mounsieur Bordelon. – Mas duvido que
seja estúpida, mademoiselle. Uma língua trôpega não significa
necessariamente um cérebro trôpego.
A vida de Eve seria consideravelmente mais fácil se toda a gente pensasse
assim, mas não naquele momento, por amor de Deus. Seria muito melhor se
ele pensasse que sou uma imbecil, disse para si, e pela primeira vez os nervos
afloraram-lhe à pele. Ele tinha de pensar que ela era estúpida. E não apenas
devido à gaguez – Eve estava a desenhar uma Marguerite em pinceladas
precisas desde que entrara pela porta do escritório. Se ele não engolia a
camuflagem fácil que a gaguez lhe dava, ela ia precisar de uma máscara
diferente. Baixou o olhar, fingindo sentir-se totalmente confusa.
– Monsieur?
– Olhe para mim.
Ela engoliu em seco e ergueu o olhar. Os olhos dele não tinham uma cor
definida e pareciam não precisar sequer de pestanejar.
– Pensa que sou um colaborador? Um especulador?
Sim.
– Estamos em guerra, monsieur – respondeu Eve. – Cada um faz o que
tem de fazer.
– Pois é. E a menina, também vai fazer o que tem de fazer e servir os
alemães? Aqueles que nos invadiram? Que nos conquistaram?
Ele lançara-lhe um engodo, e Eve gelou. Não tinha dúvidas de que, se ele
visse brilho no olhar dela – como Lili tinha dito –, a possibilidade de ela
conseguir o trabalho estaria perdida. Monsieur Bordelon nunca contrataria
uma rapariga que pensasse ser capaz de cuspir no boeuf bourguignon dos
alemães. Mas qual era a resposta certa?
– Não me minta – avisou ele. – Sou muito bom a farejar mentiras,
mademoiselle. Vai ser difícil servir os meus clientes alemães? Servi-los com
um sorriso?
Não seria uma mentira demasiado absurda sequer para tentar. Sim era
uma honestidade a que ela não se podia dar ao luxo.
– É d-d-difícil estar sem comer – respondeu por fim, exagerando um
pouco a gaguez. – Não tenho t-tempo para outras dificuldades, monsieur. Só
essa. Porque se o senhor não me contratar, não vou encontrar outro t-trabalho.
Ninguém quer contratar uma rapariga g-g-g-gaga. – Isto era a verdade. Eve
pensou no tempo que passara em Londres e em como tinha sido difícil
encontrar aquele trabalho tonto como secretária, uma vez que trabalhos que
não requeriam falar com clientes eram raros. Recordou a frustração que
sentiu ao procurar trabalho nessa altura, e deixou que Monsieur Bordelon
visse essa amargura no seu rosto. – Não posso atender o telefone ou ajudar
clientes numa loja, não com esta língua t-t-trôpega. Mas sou capaz de
levantar pratos e pôr a mesa em silêncio, monsieur, e posso fazê-lo de modo
perfeito.
Ela voltou a arregalar inocentemente os olhos: uma jovem desesperada,
esfomeada, humilhada. Ele juntou as mãos nas pontas dos dedos –
extraordinariamente longos, sem aliança – e olhou para ela.
– Que descuidado estou a ser – acabou por dizer. – Se tem fome, eu dou-
lhe de comer.
Disse isto de modo despreocupado, como se estivesse a falar de oferecer
um prato de leite a um gato vadio. Não teria, certamente, oferecido comida às
outras raparigas? Não é bom que ele me trate de maneira diferente, pensou
Eve, mas ele já tocara uma campainha e falava com um empregado que tinha
vindo do restaurante. Segredaram algumas palavras e o empregado partiu,
para logo de seguida voltar com um prato. Uma torrada muito quente; Eve
reparou que era pão branco do bom, do tipo que era quase impossível arranjar
em Lille, com manteiga – manteiga verdadeira – barrada de forma generosa e
extravagante. Eve não estava tão faminta que pudesse ficar hipnotizada com a
visão de uma torrada, mas Marguerite sim, estava, e Eve deixou que a mão
tremelicasse quando pegou num pedaço de torrada e o levou à boca. Ele ficou
sentado, a ver se ela devorava a torrada, mas ela deu uma pequena dentada.
Marguerite não podia ser tão parola como Eve a planeara; era evidente que
René Bordelon queria alguém mais civilizado para empregada. Eve mastigou
a torrada, engoliu, deu outra dentada. A compota de morango era feita com
açúcar verdadeiro, e ela pensou na beterraba cozida que Lili usava como
adoçante.
– Há vantagens em trabalhar para mim – revelou, por fim, Monsieur
Bordelon. – Os restos da cozinha são todas as noites divididos pelos
empregados. As pessoas que trabalham para mim estão isentas do recolher
obrigatório. Nunca tive mulheres a trabalhar no meu estabelecimento, mas,
como é inevitável, asseguro-lhe que não se espera que… entretenha a
clientela. Esse tipo de coisas estraga a reputação de um restaurante. – O seu
tom revelava repugnância. – Sou um homem civilizado, Mademoiselle Le
François, e é esperado que os oficiais que comem na minha casa se portem
como homens civilizados.
– Sim – murmurou Eve.
– Contudo – acrescentou ele, de modo desinteressado –, se me roubar,
seja comida, prata ou até uma pinga de vinho, eu entrego-a aos alemães. E
depois verá que eles nem sempre são civilizados.
– Compreendo, monsieur.
– Muito bem. Começa amanhã, logo às 8h00. Vai ser treinada pelo meu
braço-direito.
Ele não falou na questão do pagamento. Sabia que ela aceitaria qualquer
valor que lhe oferecesse; qualquer uma delas aceitaria. Eve engoliu o último
pedaço de torrada, de modo elegante, mas apressado – ninguém naquela
cidade deixaria torrada com manteiga por comer num prato –, e, fazendo uma
reverência, saiu rapidamente do escritório.
– Então? – Violette ergueu os olhos da minúscula mensagem que estava a
escrever em papel de arroz, quando Eve entrou abruptamente no quarto
bafiento.
Eve quase gritou de alegria e triunfo, mas, como não queria parecer uma
rapariguinha pateta, fez apenas um aceno de cabeça casual.
– Fui contratada. Onde está a Lili?
– Foi buscar um relatório de um contacto dela nos caminhos de ferro. E
depois vai até à fronteira. – Violette abanou a cabeça. – Não sei como não é
apanhada. Aqueles holofotes nas fronteiras são capazes de revelar uma pulga
aninhada num chão a arder, mas ela safa-se sempre.
Até ao dia em que não se safará, Eve não pode deixar de pensar,
enquanto desapertava as botas. Mas não valia a pena pensar nas várias formas
de serem apanhadas. Faz como a Lili disse: sente medo, mas só depois. Antes
disso, é um luxo.
E, de facto, naquele momento, em que René Bordelon, com as suas
elegantes mãos bem cuidadas e os olhos que não pestanejavam, já não a
podia ver, Eve sentiu medo; sentiu o medo deslizar na sua pele como uma
brisa venenosa. Soltou um longo suspiro.
– Já te estão a dar os tremeliques? – Violette ergueu as sobrancelhas, a luz
refletida nos seus óculos redondos. Óculos assim devem ser úteis, pensou
Eve; ela só precisava de inclinar a cabeça contra a luz e os olhos ficavam
encobertos. – Espera até passares um posto de controlo mais complicado ou
até teres de convencer um sentinela a deixar-te passar.
– René Bordelon. – Eve deitou-se de costas no colchão duro de palha,
cruzando os braços debaixo da cabeça. – O que sabes sobre ele?
– É um colaborador nojento. – Violette voltou a debruçar-se sobre o
papel. – Que mais há para saber?
Não me minta, sussurrou a voz metálica dele. Sou muito bom a farejar
mentiras, mademoiselle.
– Acho – começou lentamente Eve, o medo a arranhá-la ligeiramente –
que vai ser muito difícil espiar debaixo do nariz dele.
Capítulo 9
Charlie
Maio de 1947

– Não – recusou Eve. – Odeio Lille e nós não vamos ficar nessa maldita
cidade nem uma noite.
– Não temos alternativa – disse suavemente Finn, tirando a cabeça das
entranhas do Lagonda e endireitando-se. – Quando conseguir pô-lo a
ronronar outra vez, vai ser hora de pararmos.
– Mas não nesta maldita cidade. Podemos continuar para Roubaix mesmo
no escuro.
Eu tinha tido mais do que a minha dose de Eve nas últimas 24 horas.
– Paramos em Lille.
Ela olhou para mim, furiosa.
– Porquê, isso que tens dentro da barriga está outra vez a dar-te
problemas?
Retribuí o olhar furioso.
– Não, porque sou eu quem vai pagar o hotel.
Eve chamou-me um nome ainda mais inenarrável do que as obscenidades
habituais, e começou a andar de um lado para o outro na berma da estrada.
Que dia, pensei, enquanto Finn continuava a remexer no interior do Lagonda.
A noite anterior fora passada quase em branco num quarto de hotel barato em
Rouen, recheada de sonhos difusos e infelizes, com Rose a desaparecer em
corredores intermináveis e a mãe dela a cochichar “galdéria…” A viagem de
carro da manhã fora longa e desconfortável, com a Eve a soltar comentários
cáusticos sempre que eu tinha de vomitar e o Finn sem fazer qualquer
comentário, o que, de certo modo, era ainda pior.
Galdéria, sussurrara a minha tia nos meus pesadelos, e eu estremeci ao
pensar nisso. Eu gostara tanto do início daquela viagem, quando saboreava o
facto de ninguém naquele carro saber o que eu era ou o tipo de nuvem que
me acompanhava. Bom, esse começar do zero fora uma ilusão; Charlie St.
Clair era uma galdéria, e agora todos sabiam, graças àquela velha desbocada.
Ao chegarmos aos arredores de Lille, o Lagonda começou a deitar fumo
sob o capô reluzente e Finn estacionou para tirar a caixa de ferramentas da
mala.
– Consegue pô-lo a trabalhar outra vez? – perguntei, quando ele anunciou
que tinha de olear as válvulas ou pôr água no motor; tanto quanto eu
percebia, ele podia até dizer que precisava de pôr girafas bebé na alavanca de
velocidades. – Pelo menos, para nos levar até Lille?
Ele limpava as mãos a um trapo sujo, enquanto Eve rondava o carro, a
praguejar.
– Se formos devagar.
Fiz um aceno de cabeça sem o fitar nos olhos. Quase não olhara para ele,
desde que o meu Pequeno Problema fora revelado. Com Eve, eu era capaz de
encarar a situação – quando ela era malcriada comigo, eu erguia a minha
concha de cínica e respondia-lhe de forma ainda mais rude. Mas Finn não
falava e eu não o conseguia vencer naquele jogo de “vamos ver quem diz
menos palavras”. Não podia fazer mais do que fingir que não me importava.
Voltámos a entrar no Lagonda e partimos para Lille a passo de caracol. A
cidade parecia suficientemente agradável, com as casas geminadas, feitas de
tijolo flamengo e pedra francesa, sinal da proximidade com a Bélgica, e o
vasto espaço gracioso que era a Grand Place. A cidade fora alvo de um cerco
durante a guerra, mas não tinha sido bombardeada. Havia mais alegria ali do
que a que eu vira em Le Havre; mais energia nas pessoas que eu via na rua,
atarefadas com as compras ou com os pequenos cães terriers. Apesar disso,
quanto mais entrávamos na cidade, mais carrancuda Eve se tornava.
– “Qualquer civil” – começou ela, claramente a citar alguma coisa –,
“incluindo funcionários públicos do Governo francês, apanhado a ajudar
tropas inimigas da Alemanha, ou que atue de forma a prejudicar a Alemanha
e os seus aliados, será punido com a morte.”
Abanei a cabeça.
– Nazis…
– Não foram os nazis. – Eve olhou pela janela, o rosto endurecido como
pedra. O Lagonda passou por um café com um toldo às riscas e mesas no
passeio, com vista para o Deûle, e eu olhei para ele de modo nostálgico,
recordando o café provençal onde Rose e eu passámos aquela tarde
encantada. Perguntei a mim mesma se qualquer outro lugar no mundo alguma
vez me teria feito sentir tão feliz. Uma das empregadas do café, com mais ou
menos a minha idade, levava baguetes e um jarro de vinho, e eu senti inveja
dela. Não tinha um Pequeno Problema, só sardas no nariz, um avental ao
xadrez branco e vermelho e o cheiro a pão acabado de cozer.
A voz de Eve, intensa e fria, interrompeu os meus pensamentos.
– Eles deviam ter queimado o prédio todo, até não haver mais nada e
deitado sal na terra, depois de ele ter desaparecido. Deviam ter vertido as
águas do verdadeiro rio Letes sobre este lugar, para que toda a gente se
esquecesse. – Eve olhava fixamente para o mesmo café encantador, com a
sua distintiva janela saliente de caixilhos dourados.
– Gardiner? – Finn olhou por cima do ombro. A voz dela era intensa, mas
o aspeto era encolhido e frágil, com os dedos entrelaçados, para evitar que
tremessem. Troquei olhares perplexos com Finn, demasiado estupefacta para
me lembrar que andava a evitar o olhar dele.
– Temos de arranjar um hotel – sussurrou. – Já.
Ele parou no primeiro auberge que vimos e pediu três quartos. O
empregado fez mal as contas aos preços e, quando eu mencionei o erro, ele
subitamente deixou de perceber o meu sotaque francês americanizado. Então,
Eve debruçou-se sobre o balcão e disparatou num francês fluente do norte, o
que me apanhou completamente de surpresa e fez com que o empregado
ajustasse rapidamente os números.
– Não sabia que falava francês tão bem – comentei. Eve encolheu os
ombros e espalmou as chaves dos quartos em cada uma das nossas mãos.
– Melhor do que tu, ianque. Boa noite.
Olhei lá para fora, na direção do céu. O sol tinha-se posto e nenhum de
nós tinha comido.
– Não quer jantar?
– O jantar hoje vai ser líquido. – Eve deu uma palmadinha na sacola.
Ouviu-se o tilintar de um frasco lá dentro. – Vou embebedar-me até às
orelhas, mas, se esperares que eu acorde até me passar a ressaca, eu acabo
contigo. Temos de acordar bem cedo e estar prontos para partir de
madrugada, porque quero sair deste buraco maldito, e vou a pé, se for
preciso.
Desapareceu para o quarto e eu também me retirei rapidamente para o
meu. Não tinha vontade nenhuma de ficar sozinha no corredor com Finn.
O meu jantar foi uma sanduíche barata, comida em cima da minha cama
estreita. Lavei a blusa e a roupa interior no pequeno lavatório, pensando que,
em breve, necessitaria de mais roupas, e finalmente ganhei coragem para
descer à receção e usar o telefone do hotel. Não tinha intenção de dizer à
minha mãe para onde ia, no caso de ela aparecer com a polícia atrás – eu
ainda era menor –, mas não queria que ela se preocupasse a pensar que eu
estava em perigo. Contudo, o rececionista no Hotel Dolphin disse-me que ela
já não estava ali hospedada. Mesmo assim, deixei-lhe uma mensagem e
desliguei, algo inquieta. Voltei para o quarto, a sentir-me subitamente
exausta. Não tinha feito nada senão estar sentada no carro o dia inteiro, mas
sentia-me mais cansada do que alguma vez tinha estado. Estas estranhas
ondas de cansaço assolavam-me havia semanas – era seguramente outro sinal
do Pequeno Problema.
Afastei todos os pensamentos que estivessem relacionados com o P.P. e
fui para o quarto. No dia seguinte, Roubaix. Parte de mim não queria ir – Eve
continuava a insistir que havia alguém com quem ela tinha de falar, uma
mulher que talvez soubesse de alguma coisa, mas graças à minha tia eu já
sabia algo. Sabia que Rose fora mandada para uma pequena cidade mais a
sul, para ter o bebé, e sabia que ela partira depois para procurar trabalho não
longe dali, em Limoges. Limoges era para onde eu queria ir, não Roubaix e o
contacto duvidoso que Eve pensava ter.
Sentei-me na beira da cama e deixei-a crescer em mim: a esperança.
Ainda que aquela hora passada com a Tante Jeanne tenha sido horrível, dera-
me esperança. Porque por muito que eu me esforçasse para me convencer de
que havia uma possibilidade de Rose estar viva, parte de mim continuava a
pensar que os meus pais estavam certos, e que ela tinha morrido. É que a
rapariga que eu amava como se fosse minha irmã – a rapariga que tinha medo
da solidão – já teria, com certeza, encontrado um modo de voltar para nós.
Por outro lado, se toda a família a havia rejeitado, mandando-a para longe
para dar à luz o bastardo, e se, depois, todos tinham lavado daí as mãos…
Bem, eu conhecia Rose. Ela era orgulhosa e cheia de paixão. Jamais voltaria
à casa de Rouen depois se ter sido expulsa pelos pais daquela maneira.
Eu até percebia que ela não me tivesse escrito a contar do seu dilema.
Porque haveria de o fazer? Eu não passava de uma menina da última vez que
nos vimos, alguém a proteger, não a quem fazer confidências de assuntos
desagradáveis. Eu própria não sabia se lhe conseguiria contar do meu
Pequeno Problema, mesmo que tivesse um endereço para a contactar.
Pessoalmente, ter-lhe-ia contado tudo e chorado no ombro dela, mas transpor
estas coisas para papel implicava desembrulhar a minha própria desgraça e
expô-la preto no branco.
Se estivesse viva, podia estar a morar em Limoges. Talvez com a sua
criança. Um menino ou uma menina?, pensei, e ouvi-me a rir com receio.
Rose com um bebé. Olhei para a minha barriga, lisa e inócua, que
alternadamente me fazia sentir cansada ou enjoada, e os meus olhos
encheram-se de lágrimas.
– Oh, Rosie – sussurrei. – Como foi que nos metemos nestas terríveis
alhadas?
Bem, eu tinha-me metido numa alhada. Rose apaixonara-se por um
empregado de uma livraria francesa que se juntara à Resistência. Parecia
mesmo o género de rapaz de quem Rose poderia gostar. Perguntei-me se o
seu Étienne teria sido moreno ou louro, se o bebé deles teria herdado o cabelo
do pai. Perguntei-me para onde teria ele sido enviado depois de preso e se
estaria vivo ou não. Provavelmente, não. Tantas pessoas tinham desaparecido
e morrido, só agora se começava a perceber a extensão de todas as mortes. O
namorado da Rose estaria provavelmente morto. E, nesse caso, se ela
estivesse viva, estaria sozinha. Abandonada, tal como no café da Provença.
Mas não por muito tempo, Rose. Vou encontrar-te, prometo. Não tinha
sido possível salvar o meu irmão, mas ainda podia salvar Rose.
– E então, talvez eu saiba o que fazer contigo – disse à minha barriga. Eu
não queria aquele bebé, não fazia ideia do que fazer com ele. Mas os enjoos
dos últimos dias tinham deixado claro que ignorar já não era uma opção.
A noite lá fora estava negra, suave e quente. Meti-me na cama; as
pálpebras pesavam-me. Não me apercebera sequer de que tinha adormecido,
quando ouvi um grito a romper a noite.
Um grito que me fez levantar da cama. Vi-me de pé, o coração a galopar e
a boca seca, enquanto aquele uivo terrível continuava. Era o grito de uma
mulher, repleto de terror e agonia, e eu saí disparada do quarto.
Finn apareceu no corredor no mesmo instante, descalço e de braços nus.
– O que é aquilo? – perguntei, a arfar, ao mesmo tempo que as portas dos
outros quartos ao longo do corredor também começavam a abrir.
Finn não respondeu e dirigiu-se diretamente à porta que separava os
nossos quartos, debaixo da qual emergia uma linha de luz. Era daí que o grito
vinha.
– Gardiner! – Ele abanou o puxador. O grito parou, como se uma faca
tivesse cortado uma garganta tensa. Ouvi o clique inconfundível do cão de
uma Luger.
– Gardiner, vou entrar.
Finn encostou o ombro à porta e deu-lhe um encontrão com força. A
fechadura de má qualidade libertou-se da parede com um guinchar de pregos
e a luz invadiu o corredor. Eve estava de pé, imponente na sua altura, o
cabelo grisalho solto e despenteado, os olhos pareciam duas covas fundas
assombradas – e, assim que viu Finn na ombreira da porta e eu atrás dele,
ergueu a Luger e disparou.
Eu gritei e atirei-me ao chão, encolhendo-me numa bola – mas o cão da
Luger bateu numa câmara vazia do tambor. Finn arrancou a Luger da mão de
Eve e ela, enraivecida, proferiu uma obscenidade e atirou-se a ele, espetando-
lhe os dedos nos olhos. Ele atirou a pistola para cima da cama e agarrou-lhe
os pulsos magros com as duas mãos. Ao olhar para mim, vi com espanto que
ele estava bastante calmo.
– Procure o rececionista do turno da noite e diga-lhe que está tudo bem,
antes que alguém chame a polícia – disse, enquanto segurava Eve com força.
Ela continuava a praguejar em francês e em alemão. – Só nos faltava agora
ter de procurar outro hotel a meio da noite.
– Mas… – Eu não conseguia tirar os olhos da pistola em cima da cama.
Ela tinha disparado contra nós. Os meus braços, reparei então, estavam
agarrados ao Pequeno Problema.
– Diga-lhe que ela teve um pesadelo. – Finn olhou para Eve. Ela parara de
praguejar e respirava aos soluços bruscos e rápidos. Os olhos dela fitavam a
parede, mas ela não parecia ver nada. Onde quer que ela estivesse, não era ali.
Ouvi alguém rabujar estridentemente em francês atrás de mim e, virando-
me, vi a dona do auberge, ensonada.
– Pardonnez-moi – disse eu, fechando rapidamente a porta entre ela e
aquele cenário estranho. – Ma grandmère, elle a des cauchemars…
Adocei o meu francês americanizado o mais que pude até a indignação
dela acalmar, ajudada por um punhado de francs. Por fim, a senhora lá se
arrastou para o quarto e eu tomei coragem para espreitar novamente pela
porta do quarto.
Finn conseguira sossegar Eve, não na cama dela, mas no canto mais
afastado – aquele que tinha a vista mais clara para a porta e a janela. Ele
desviara uma cadeira para o lado, de forma que ela se aninhasse contra a
parede, e colocara um cobertor sobre os ombros de Eve. Estava acocorado ao
seu lado, a falar-lhe docemente e colocando-lhe um frasco de whisky no colo
com um movimento suave.
Ela resmoneou algo, um nome. Pareceu-me ouvir René e a minha pele
arrepiou-se.
– O René não está aqui – disse Finn no seu sotaque escocês,
tranquilizando-a.
– A besta sou eu – murmurou ela.
– Eu sei. – Finn deu-lhe a Luger para a mão, com o cabo virado para ela.
– Está maluco? – sussurrei-lhe, mas ele fez um gesto para trás, como que
a calar-me.
Eve não olhou para cima. Estava em silêncio, mas o seu olhar permanecia
desvairado, movendo-se agitadamente entre a janela e a porta. Os seus dedos
deformados voltaram a agarrar a pistola, e Finn largou a arma.
Ele ergueu-se e, descalço, caminhou calmamente até mim. Recuei para o
corredor e ele seguiu-me, fechando lentamente a porta atrás dele e suspirando
fundo.
– Porque lhe voltou a dar a pistola? – perguntei eu, num murmúrio. – Se
ela estivesse carregada, um de nós podia ter morrido!
– E quem acha que tirou as balas da pistola? – Ele olhou para mim. –
Faço-o todas as noites. Ela roga-me algumas pragas, mas tendo em conta que
quase me arrancou uma orelha com um tiro na primeira noite que trabalhei
para ela, não há margem para discussão.
– Quase lhe arrancou a orelha?
Finn olhou para a porta.
– Ela vai ficar bem até de manhã.
– Ela faz isto muitas vezes?
– De vez em quando. Qualquer coisa pode desencadear a reação: vê-se no
meio de uma multidão e entra em pânico ou ouve o barulho de andaimes a
cair e pensa que é uma explosão. Não se pode prever.
Apercebi-me de que ainda tinha os braços cruzados à volta do torso. Eu
não pensava no Pequeno Problema a não ser como, bem, como um problema
– mas assim que vi a arma da Eve, os meus braços protegeram-no
instintivamente. Ainda a tremer, baixei as mãos. Não me sentia assim tão
cheia de vida – em cada músculo tremente, em cada bocadinho arrepiado de
pele, em cada cabelo em pé – havia muito, muito tempo.
– Preciso de uma bebida.
– Eu também.
Segui Finn até ao quarto dele, o que não era de todo apropriado, uma vez
que eu estava quase nua, vestida só de combinação, que usava como camisa
de noite. Mas calei a voz desagradável dentro de mim e fechei a porta,
enquanto Finn ligava a luz de um candeeiro. Depois, revolveu o saco e
ofereceu-me um frasco, bastante mais pequeno do que o de Eve.
– Não há copos, lamento.
Nada de miss, agora, claro. Encolhi os ombros, não esperando outra coisa.
Eu sabia muito bem que tipo de equação se escrevia ali.
– Copos para quê? – Engoli um trago de whisky, apreciando o ardor. –
Pronto, vamos lá então. René. Afinal, a Eve conhece o nome. Se é o mesmo
do relatório, para quem a Rose trabalhava…
– Não sei. Mas sei que ela diz esse nome muitas vezes quando tem estas
crises.
– Porque não me disse isso antes?
– Porque trabalho para ela. – Ele bebeu um gole de whisky. – Não para si.
– Vocês saíram-me cá um par – resmunguei. – Os dois são uns novelos de
arame farpado cheios de segredos.
– E por boas razões.
Voltei a pensar no sussurro de Eve quando dissera que a morte era o
destino que aguardava os inimigos da Alemanha. Havia algo nela que me
fazia lembrar um combatente. Eu vira o meu irmão voltar da guerra e
observara as mudanças nele com preocupação e carinho; e James não fora o
único ex-soldado que eu observara. Tinha dançado e conversado com eles em
festas e adquirira o hábito de os observar, pois esperava descobrir algo que
me ajudasse a apoiar James. Falhara esse objetivo; nada do que eu fizera
ajudara James, e eu continuava a odiar-me por isso – mas sabia reconhecer os
sinais de um ex-combatente e na Eve eu via todos esses sinais.
– Ela vai estar bem, amanhã? – James nunca saía do quarto na manhã
seguinte a um episódio destes.
– Provavelmente. – Finn inclinou-se sobre o parapeito da janela aberta e
olhou para baixo, para a fila de candeeiros de luz na rua, bebendo outro gole
de whisky. – Normalmente, no dia seguinte comporta-se como se nada tivesse
acontecido.
Queria continuar a sondá-lo, mas aquela questão espinhosa de Eve e dos
seus segredos estava a dar-me uma grande dor de cabeça. Decidi abandonar o
assunto e fui até junto de Finn, à janela. Afinal, era isso que se seguia na
equação: rapariga mais rapaz, multiplicado por whisky. Depois, acrescenta-se
proximidade.
– Portanto, amanhã chegaremos a Roubaix, se o carro não avariar de
novo. – O meu ombro tocou ligeiramente o dele.
Ele deu-me o frasco para a mão.
– Eu consigo mantê-lo a funcionar.
– O Finn sabe bem como usar a caixa de ferramentas. Onde aprendeu? –
Na prisão? A curiosidade estava a matar-me.
– Desde pequeno que trabalho em garagens. Já brincava com chaves
inglesas no berço.
Tomei outro trago.
– Posso experimentar conduzir o Lagonda amanhã ou é carro de um
homem só?
– Conduz? – Ele lançou-me um olhar tão surpreendido quanto aquele que
lançara quando eu lhe disse que tinha tido um emprego. – Pensei que a sua
família teria um motorista.
– Não somos os Vanderbilts, Finn. Claro que conduzo. O meu irmão
ensinou-me. – Uma recordação simultaneamente doce e dolorosa: James
fugira a um churrasco de família, arrastando-me com ele no seu Packard,
para me dar uma aula de condução. – Creio que só o fez para escapar aos
nossos familiares barulhentos. Mas foi um bom professor. – Despenteou-me e
disse-me: “Conduz tu para casa; agora já sabes”. Depois de eu ter parado o
carro com um chiar de pneus, orgulhosa, ainda ficámos mais um pouco
dentro do carro, antes de nos juntarmos ao rebuliço familiar. Perguntei-lhe se
ele queria ser o meu acompanhante no próximo baile formal. “Não vou
arranjar ninguém até lá, James, e podemos sentar-nos a fazer pouco das
estudantes universitárias.” Ele esboçou um sorriso e disse: “Gostava muito,
mana”. Eu fiquei a pensar que, pelo menos uma vez, eu ajudara-o numa das
suas crises.
Menos de três semanas depois, ele suicidou-se.
Pisquei os olhos, afastando aquela dolorosa recordação.
– Talvez um dia eu a deixe conduzir. – Finn olhou para mim, por cima do
ombro magro; a luz refletia no seu cabelo escuro. – Vai ter de ser paciente
com ela. Não passa de uma senhora esquisita. Um pouco rabugenta. É preciso
ter pezinhos de lã com ela. Mas é uma sobrevivente.
– Não me venha com metáforas escocesas. – Dei outro gole do frasco e
devolvi-o, passando levemente os meus dedos pelos dele. – Já passa das
2h00.
Ele sorriu, voltando a atenção para as luzes noturnas do exterior. Esperei
que ele chegasse mais perto de mim. Mas ele limitou-se a engolir o whisky e
depois foi sentar-se no banco encostado à parede.
A voz manhosa dentro de mim continuava a dizer coisas desagradáveis.
Antes que se tornasse mais alta, fui acabar a equação: rapaz mais rapariga,
multiplicado por whisky e proximidade, igual a… Tirando o frasco da mão de
Finn, subi para o colo dele e beijei-o. Senti o sabor do whisky na sua boca
macia e a aspereza do rosto com a barba por fazer. Ele afastou-se.
– O que está a fazer?
– O que achas que estou a fazer? – Enrosquei os braços à volta do
pescoço dele. – Estou a oferecer-me para dormir contigo.
Ele olhou-me deliberadamente de cima a baixo. Encolhi um ombro,
descontraída, e deixei que a alça da minha combinação deslizasse pelo meu
braço. As mãos dele tocaram ao de leve os meus joelhos nus de cada lado e
depois deslizaram por cima da combinação, e não por baixo, até à minha
cintura, segurando-me com firmeza enquanto eu tentava inclinar-me para lhe
dar outro beijo.
– Bem – disse ele –, esta noite está a ser um poço de surpresas.
– Ah, sim? – Senti as mãos dele na minha cintura, grandes e muito
quentes, através da combinação fina. – Passei o dia a pensar nisto. – Desde
que o tinha visto ficar só em camisa para consertar o Lagonda. Os braços dele
eram mais fortes do que os da maioria dos rapazes da faculdade,
normalmente esgalgados ou pastosos.
A voz de Finn soava ligeiramente rouca, mas firme.
– O que faz uma boa rapariga como tu querer ir para a cama com um ex-
presidiário?
– Tu sabes que não sou boa rapariga. A Eve deixou isso bem claro. Além
disso, não te estou a pedir para me levares a um baile – acrescentei, sem
rodeios. – Não vais conhecer os meus pais. É apenas sexo.
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Mas pergunto-me o que terás feito – acrescentei com franqueza,
passando o meu dedo pela nuca dele – para teres ido parar à prisão.
– Roubei um cisne em Kew Gardens. – Ele continuava a segurar-me pela
cintura, afastando-me dele.
– Mentiroso.
– Pilhei uma tiara de diamantes das joias da coroa, na Torre de Londres.
– Continuas a mentir.
Os olhos dele pareciam negros e cavados, sob a luz fraca.
– Porque me perguntas, então?
– Gosto de te ouvir mentir. – Enrolei novamente os braços à volta do
pescoço dele, deslizando os dedos por entre o cabelo macio. – Porque é que
ainda estamos a falar? – A maioria dos rapazes não tirava as mãos de cima,
assim que as luzes se apagavam; porque não Finn? Assim que Eve deixara
claro que tipo de rapariga eu realmente era, supus que ele largaria o ar
respeitável e tentaria levar-me para a cama. Era a isso que eu estava
habituada. E, nesse caso, podia desandá-lo ou alinhar, e já decidira alinhar.
No entanto, não estava habituada a tomar a iniciativa. Podia não ser bonita,
mas estava disponível, e isso, normalmente, era o suficiente para que um
homem me despisse sem precisar da minha ajuda.
Mas Finn não se mexia, limitava-se a olhar para mim. Os seus olhos
fixaram-se na minha cintura e ele disse:
– Não tens um namorado? Um noivo?
– Vês algum anel?
– Quem é o pai, então?
– Harry S. Truman – respondi.
– E agora, quem é o mentiroso?
O ar estava espesso e quente. Mexi as ancas e senti uma reação nele. Eu
sabia o que ele queria. Porque não me aceitava?
– Porque te importas com quem me engravidou? – sussurrei, mexendo
mais as ancas. – Tu não me podes engravidar agora e isso é que importa.
Podemos ter sexo sem qualquer risco.
– Isso é feio – murmurou ele.
– Mas é verdade.
Puxou-me para ele, o rosto muito próximo do meu, e a minha pele
arrepiou-se.
– Porque é que te estás a atirar a mim desta maneira?
Galdéria. A palavra ecoou na minha cabeça, dita pela voz da minha mãe
ou talvez pela da minha tia. Estremeci, mas disfarcei com um encolher de
ombros.
– Sou uma vagabunda – disse eu, de modo frívolo. – Toda a gente sabe
que as vagabundas dormem com toda a gente. E tu até és uma brasa. Por isso,
porque não?
Ele sorriu, um sorriso a sério, não aquele movimento rápido no canto da
boca que eu estava habituada a ver.
– Charlie, miúda – disse ele, e eu tive tempo de pensar o quanto gostava
do meu nome dito com o seu sotaque escocês –, precisas de uma razão
melhor do que essa.
Ele levantou-me do colo como se fosse uma boneca e pousou-me de pé no
chão. Depois ergueu-se, dirigiu-se à porta e abriu-a. Eu senti um fluxo de
vergonha pelo pescoço abaixo.
– Boa noite, menina. Durma bem.
Capítulo 10
Eve
Junho de 1915

Eve fez a estreia como espia e como empregada do Le Lethe duas noites
depois. Dos dois trabalhos, o segundo era o mais esgotante: René Bordelon
não aceitava nada menos do que a perfeição e dois dias de treino não era
muito tempo para atingir a perfeição. Mas Eve conseguira-o. Afinal de
contas, falhar não era uma opção. Ela assimilou as regras que o seu novo
patrão lhe repetiu mais uma vez, na sua voz metálica, mesmo antes de ela e a
outra nova empregada começarem o primeiro turno.
Vestido preto, cabelo arranjado. “Nada de dar nas vistas; vocês são
sombras.” Pezinhos de lã, passinhos curtos. “Os vossos movimentos devem
ser suaves e deslizantes. Não quero que os clientes interrompam as
conversas.” Silêncio em todas as circunstâncias; nada de falar ou murmurar
com os convidados. “Não preciso que memorizem as cartas dos vinhos ou
tomem nota dos pedidos. A vossa função é levar os pratos para as mesas e
depois levantá-los.” Servir o vinho com o braço graciosamente fletido. “Tudo
no Le Lethe é gracioso, até aquilo que não se nota.”
E a última regra, a mais importante. “Se infringirem as regras, serão
despedidas. Há muitas raparigas com fome em Lille que estão ansiosas por
ocuparem o vosso lugar.”
O Le Lethe ganhava vida à noite. Era um fragmento artificial de luz, calor
e música numa cidade que escurecia por completo depois do pôr do sol.
Posicionada no canto que lhe fora designado e com o seu vestido preto, Eve
lembrou-se da lenda dos vampiros. Em Lille, os franceses iam para a cama
quando o sol se punha, porque, mesmo que não houvesse recolher
obrigatório, havia escassez de parafina e carvão para iluminar as casas. Só os
alemães saíam à noite, como os mortos-vivos, para comemorar o seu
incontestado domínio. Iam ao Le Lethe com os uniformes vistosos e
medalhas reluzentes, e falavam muito alto. René Bordelon recebia-os no seu
smoking impecavelmente feito à medida, com um sorriso natural. Tal qual
Renfield, da história de Bram Stoker, um ser humano tornado ignóbil e
cobarde ao serviço dos vampiros, pensou Eve.
Estás a fantasiar, disse a si própria. Desliga o cérebro e liga os ouvidos.
Durante as horas de servir o jantar, moveu-se como um autómato
gracioso, levantando pratos em silêncio, limpando migalhas das mesas,
enchendo copos vazios. Ninguém diria que se travava uma guerra: havia
velas por todo o lado, todas as mesas tinham pão branco e manteiga
verdadeira, todos os copos cheios até cima. Metade da comida do mercado
negro de Lille devia passar por ali, pois era óbvio que os alemães gostavam
de comer bem.
– A comida… – sussurrou a outra empregada, uma jovem viúva de ancas
largas com dois bebés em casa. – Só olhar é uma tortura!
Levando um prato de volta para a cozinha, a garganta dela mexia-se.
Havia restos de comida no prato – numa cidade onde os franceses lambiam
até as migalhas. Um pouco de molho béchamel, uns pedacinhos de vitela… O
estômago de Eve também roncava, mas lançou um olhar de advertência à
colega.
– Nem uma só trinca. – Olhou de relance para trás, para Monsieur
Bordelon, que circulava pela sala como um tubarão bem vestido. – Nem uma
só trinca até ao fim do turno, tu –s-s-sabes isso. – Ao fim da noite, todos os
restos da cozinha eram reunidos e divididos pelos empregados. Nenhum deles
sentiria pejo em fazer queixa de outro que roubasse comida antes da divisão
ser feita, porque todos tinham fome. Eve admirava cinicamente esse sistema:
Monsieur Bordelon conseguira inventar um método de recompensa que
obrigava os empregados a serem honestos, ao mesmo tempo que os
encorajava a espiarem-se uns aos outros.
Mas se os empregados eram ansiosos e pouco amistosos, os clientes eram
piores. Como era fácil detestar os alemães quando se constatava de perto o
quanto eles desperdiçavam. O Kommandant Hoffman e o General von
Heinrich foram jantar ao restaurante três vezes durante a primeira semana de
Eve, pedindo champanhe e codorniz assada para comemorar as últimas
vitórias alemãs, dando grandes gargalhadas por entre um conjunto de
acólitos. Monsieur Bordelon era sempre convidado a juntar-se a eles, para
tomar o brandy depois do jantar, sentando-se indolentemente de pernas
cruzadas e distribuindo charutos de uma caixa de prata com monograma. Eve
esforçava-se por ouvir o que eles diziam, mas não se podia demorar muito a
encher os copos de água, de forma a não correr o risco de ser óbvia. De
qualquer modo, eles não falavam de planos de batalha ou de plataformas de
canhões, mas sim das jovens que tinham tomado como amantes, comparando
as melhores características físicas e debatendo se a amante do General era
loura natural ou não.
Então, na quarta noite, o Kommandant Hoffman pediu brandy e Eve
trouxe silenciosamente o decantador.
– … bombardeado – dizia ele em alemão aos acólitos –, mas a nova
bateria de artilharia ficará posicionada dentro de quatro dias. Quanto à
localização…
O coração de Eve abrandou, alvo de um feixe de excitação tão luminoso
como um diamante. Pegou no copo de balão do Kommandant e encheu-o o
mais lentamente que ousava, deixando o líquido acumular-se, enquanto ele
explicava a localização da artilharia. As suas mãos, reparou, não tremiam
absolutamente nada. Voltou a pousar o copo, implorando silenciosamente por
uma desculpa para se demorar. Um dos ajudantes respondeu à sua prece,
estalando os dedos a pedir mais brandy, ao mesmo tempo que fazia uma
pergunta sobre as capacidades das novas armas. Eve virou-se para pegar no
copo dele e viu que Monsieur Bordelon olhava para ela da mesa ao lado,
onde cumprimentava efusivamente um capitão alemão e um par de tenentes.
A mão dela agarrou o copo com mais força e ela perguntou-se, subitamente
em pânico, se a sua expressão teria dado a entender que ela compreendera as
palavras do Kommandant. Se ele suspeitasse que Marguerite Le François
falava alemão…
Não suspeita, convenceu-se Eve, fazendo com que a sua expressão fosse
absolutamente impávida e lembrando-se de que devia curvar graciosamente o
braço ao servir o brandy. O seu patrão acenou a cabeça em jeito de
aprovação, o Kommandant acenou a cabeça para ela se afastar e Eve deslizou
até ao seu canto, com uma expressão impenetrável e os ouvidos repletos de
informação valiosa: as novas localizações exatas da artilharia alemã nos
arredores de Lille.
Passou o resto do turno a recitar aquela informação na sua cabeça: os
números, os nomes, as capacidades, a rezar para não se esquecer de nada.
Depois, Eve correu para casa e transcreveu tudo para um pequeno pedaço de
papel de arroz na letra minúscula que aprendera em Folkestone. Enrolou o
papel à volta de um gancho de cabelo, enfiou o gancho no puxo do cabelo e
suspirou de alívio. Lili apareceu na noite seguinte, na habitual visita para
recolha de informação, e foi com alguma cerimónia – como se se tratasse da
apresentação de uma medalha – que Eve fez uma vénia de cabeça, retirou o
gancho do cabelo e ofereceu-o à líder da Rede Alice.
Lili leu a mensagem, festejando à medida que a lia, passou um braço à
volta do pescoço de Eve e deu-lhe dois beijos com satisfação.
– Mon dieu, eu sabia que te ias sair bem.
Se a carrancuda Violette estivesse ali com os óculos redondos e a sua
desaprovação austera, Eve tentaria esconder a alegria, mas, face à felicidade
de Lili, soltou as gargalhadas que reprimia desde a noite anterior.
Lili semicerrou os olhos quando viu o rolinho de papel.
– Passar isto para o meu relatório geral vai dar cabo dos meus olhos! Da
próxima vez, escreve em código rápido.
– Eu p-passei quatro horas a escrever isso – revelou Eve, desconsolada.
– Os agentes novos põem sempre seis vezes mais trabalho na primeira
mensagem do que o que devem. – Lili riu-se, dando uma palmadinha no rosto
de Eve. – Não desanimes, fizeste um bom trabalho! Vou passar a informação
ao Tio Edward, e a nova bateria deles será bombardeada antes de quinta-feira.
– Quinta-feira? Vocês conseguem b-b-b… bombardear uma posição
assim tão rápido?
– Bien sûr. Tenho a rede de informações mais célere de toda a França. –
Lili enrolou novamente a mensagem à volta do gancho de cabelo e enfiou-o
na sua enorme poupa loura. – E tu vais ser um trunfo valioso,
margaridazinha. Eu sinto-o.
O seu rosto versátil brilhou com tanta alegria que aquele quarto sem graça
ficou iluminado, como se tivesse sido atingido por um holofote da fronteira.
Eve deu por si a sorrir de orelha a orelha. Conseguira; tinha feito uso do que
aprendera no treino; realizara o seu dever. Era uma espia.
Lili pareceu intuir a onda de triunfo interior que inundou Eve, porque deu
outra gargalhada enquanto se deixava cair na única cadeira existente no
quarto.
– Dá muito, muito prazer, não dá? – disse ela, como se confessasse um
segredo picante. – Talvez não devesse ser assim. É algo muito sério, servir la
belle France contra os seus inimigos, mas também dá muito gozo. Não há
outro trabalho que proporcione tanta satisfação como espiar. As mulheres
com filhos dirão que ser mãe é a vocação que mais satisfação dá na vida, mas
merde – prosseguia Lili, com sinceridade –, elas estão demasiado
entorpecidas pela rotina infindável do dia a dia para saberem do que falam.
Prefiro o risco de uma bala do que a certeza de uma fralda suja, venha o que
vier.
– Sabes do que gostei mais? – questionou Eve. – Afastar-me daquela
mesa cheia de bestas em uniformes, deixá-los com o brandy e os charutos,
sem nenhum deles saber… – Estava tão feliz que nem gaguejara e
posteriormente, quando parou para pensar nisso, ficou surpreendida.
– Pffft para os alemães – soltou Lili, começando a desenrolar um pedaço
do tecido de uma combinação em cima da mesa. – Vem cá, vou ensinar-te o
meu método para transcrever posições em mapas. É um padrão simples de
grelha, muito mais eficiente para comunicar posições…
Aquele quarto sem graça tornou-se mais dourado do que o Le Lethe
iluminado por 100 velas. Ficaram acordadas até muito tarde, muito depois de
terem terminado a transcrição do mapa, com Lili a partilhar um pouco do
brandy que roubara e a contar histórias.
– Certa vez, consegui enganar um sentinela metediço de um posto de
controlo com um conjunto de despachos que tinha roubado, colocando-os no
fundo de uma caixa para bolos. Devias ter visto a cara do Tio Edward quando
lhe entreguei uma caixa com despachos cobertos de açúcar em pó!
– Quando entregares o relatório ao Tio Edward, elogia o meu trabalho –
pediu Eve. – Quero que ele se sinta orgulhoso de mim.
Lili inclinou a cabeça para o lado, com um olhar malandro.
– Margaridazinha, estás apaixonada?
– Um pouquinho – admitiu Eve. – Ele tem uma voz tão bonita… – E ele
percebera que ela tinha potencial para estar aqui, para fazer isto. Sim, era
difícil não se apaixonar um bocadinho pelo Capitão Cameron.
– Merde. – Lili riu-se. – Também eu poderia facilmente sentir uma
tendresse por ele. Não te preocupes, vou elogiar desavergonhadamente o teu
trabalho. Talvez o vejas em breve, sabes: ele vem a território ocupado de vez
em quando, em missões altamente secretas. Se vier, promete-me que vais
fazer o teu melhor para lhe arrancar do corpo aquele fato em tweed.
– Lili! – Eve balançou-se de riso. Não se lembrava da última vez que rira
daquela maneira. – Ele é casado!
– E isso é impedimento para ti? A mulher dele é uma cabra, nunca o
visitou na prisão.
Portanto, Lili sabia que ele passara tempo na prisão.
– Pensei que devíamos manter a nossa vida pessoal em segredo, a não ser
quando necessário…
– Toda a gente sabe da vida pessoal do Tio Edward; veio em todos os
jornais, por isso é difícil manter segredo. Ele assumiu a pena de prisão da
mulher e, pelo que sei, ela nunca o visitou. – Eve não conseguiu reprimir um
sopro de indignação, e Lili sorriu. – Acho que deves ir à conquista. Se a tua
consciência te pesa devido a uma coisinha como o adultério, confessa-te e
reza uns Pai-Nossos.
– S-Sabes, nós, protestantes, acreditamos que devemos sentir a nossa
culpa, e não apenas saldá-la com rezas.
– É por isso que os ingleses não são bons amantes: sentem-se demasiado
culpados – afirmou Lili. – A não ser em tempo de guerra, já que até a guerra
dá aos ingleses uma desculpa para se divertirem. Quando a vida pode acabar
a qualquer momento na ponta de uma baioneta alemã, não se pode permitir
que a moralidade burguesa atrapalhe uma boa traquinice com um ex-
presidiário casado e vestido de tweed.
– Não estou a ouvir isto – disse Eve, com uma risadinha, levando as mãos
aos ouvidos. O resto da noite passou a correr, por entre gargalhadas e
brilharetes. Eve ainda tinha um sorriso no rosto no dia seguinte, quando
acordou e viu que Lili já tinha saído e levado o rolinho de papel de arroz,
deixando o pedaço de combinação sarrabiscado com uma mensagem: “Volta
ao trabalho e lembra-te: não fiques vaidosa! Voltarei dentro de cinco dias.”
Cinco dias, pensou Eve, vestindo o seu vestido preto e saindo para o Le
Lethe. Vou ter mais informações para ela. Estava serenamente convencida
disso. Fizera-o uma vez e fá-lo-ia novamente.
Pensando na aprovação de Lili e no olhar sorridente do inglês vestido de
tweed, talvez estivesse mesmo a ficar vaidosa. Foi assim que entrou pela
porta lateral do Le Lethe e deu de caras com a figura indolente de René
Bordelon e o som da sua voz monocórdica a dizer:
– Diga-me, Mademoiselle Le François, vem de onde, na verdade?

Eve gelou. Não exteriormente – por fora, foi rápida a tirar o chapéu, a
cruzar as mãos enluvadas e a deixar transparecer uma expressão confusa. As
reações naturais da inocência rapidamente implementadas. Mas, por dentro,
passou de um estado de leveza efervescente a um bloco de gelo num bater do
coração.
– Monsieur? – disse ela.
René Bordelon virou costas e dirigiu-se para as escadas que davam acesso
aos aposentos privados.
– Venha daí.
De volta àquele escritório obsceno, onde as cortinas se mantinham
fechadas para afastar a crueldade da guerra e os candeeiros estavam acesos
durante o dia, com tal abundância e desperdício de parafina que era quase
como levar uma estalada no rosto. Eve parou em frente ao cadeirão de couro
onde fora aceite neste emprego havia menos de uma semana, e esperou
calmamente, como um animal numa moita de silvas à espera que o caçador
passe. O que sabe ele? O que pode ele saber?
Ele não sabe de nada, disse a si própria. Porque Marguerite Le François
não sabe nada.
Ele sentou-se, juntando as pontas dos dedos compridos enquanto a
observava, sem pestanejar. Eve manteve a sua expressão de confusa
inocência.
– Passa-se alguma c-coisa com o meu trabalho, m-m-monsieur? –
perguntou, por fim, quando ficou evidente que ele esperava que fosse ela a
quebrar o silêncio.
– Pelo contrário – respondeu ele. – O seu trabalho é excelente. Não é
preciso dizer-lhe como se fazem as coisas mais do que uma vez e a
mademoiselle tem uma certa graça natural. A outra jovem é néscia, por isso
decidi substituí-la.
Então, porque estou a ser interrogada?, pensou Eve, ao mesmo tempo
que sentia pena por Amélie, a colega de anca larga, e os seus dois filhos em
casa.
– A mademoiselle tem-me agradado em tudo, exceto numa coisa. – Ele
ainda não pestanejara. – Creio que me mentiu quanto à sua origem.
Não, pensou Eve. Ele não podia suspeitar que ela era meio inglesa. O seu
francês era perfeito.
– De onde é que disse que era?
Ele sabe.
Ele não sabe de nada.
– Roubaix – replicou Eve. – Tenho os meus p-papéis comigo. – Ela
ofereceu os cartões de identidade, grata por dar alguma coisa que fazer às
mãos e aos olhos, para além de confrontar aquele olhar penetrante.
– Eu sei o que os seus papéis dizem. – Ele não olhou para os cartões. –
Dizem que Marguerite Duval Le François é de Roubaix. Mas não é.
Ela ajustou a expressão.
– Sou, sim.
– Mentira.
Aquilo abalou-a. Havia muito tempo que Eve não era apanhada a mentir.
Talvez ele tivesse lido a surpresa no rosto dela, ainda que dissimulada, pois
esboçou um sorriso completamente desprovido de empatia.
– Eu avisei-a de que sou bom nestas coisas, mademoiselle. Quer saber
como a apanhei? Porque não fala o francês desta região. Ou muito me
engano, ou o seu sotaque é da Lorena. Viajo frequentemente para essa região,
para comprar vinhos para o restaurante, e conheço o sotaque tão bem como
os vinhos. Por isso… porque dizem os seus papéis Roubaix, quando as suas
vogais dizem, talvez, Tomblaine?
Que excelente ouvido ele tinha. Tomblaine era mesmo do outro lado do
rio que percorria Nancy, onde Eve crescera. Ela hesitou; ouviu a voz do
Capitão Cameron dentro de si, baixa e calma, com a ligeira entoação
escocesa. Se forçada a mentir, é melhor dizer o mais possível a verdade.
Palavras ditas durante o treino, numa das tardes em que ele a levara para a
praia deserta, para praticar o tiro a garrafas.
René Bordelon continuava sentado à espera da verdade.
– Nancy – sussurrou. – F-foi onde eu n-n-n-n…
– Nasceu?
– Sim, m-m-m-m…
Ele interrompeu-a com um aceno de mão.
– Então, porquê mentir?
Uma resposta verdadeira sustentada por uma razão falsa. Eve esperava ser
convincente, porque não conseguia pensar em mais nada.
– Nancy é p-p-p-perto da Alemanha – apressou-se a dizer, como se
sentisse vergonha. – Toda a gente em França pensa que nós somos t-t-t-
traidores, que estamos do lado dos alemães. Como vinha para L-L-Lille,
sabia que seria odiada, se… Sabia que não encontraria t-t-trabalho. E não
teria comida. Por isso m-m-m… por isso menti.
– Onde arranjaste os papéis falsos?
– N-n-não arranjei. Só p-p-paguei ao funcionário para ele escrever uma
cidade diferente. Ele teve pena de m-mim.
O patrão recostou-se, dando pancadinhas com as pontas dos dedos.
– Fale-me de Nancy.
Eve ficou contente por não ter tentado mentir novamente ao dar-lhe o
nome de outra cidade. Ela conhecia Nancy como a palma da mão, muito
melhor do que os factos que memorizara acerca de Roubaix. Falou de ruas,
monumentos, igrejas, cada um deles uma memória da sua infância. A língua
tropeçava-lhe tanto que tinha o rosto a arder, mas continuou a gaguejar,
assegurando uma voz suave e os olhos bem abertos.
Mas as palavras devem ter soado a verdade, porque ele interrompeu-a a
meio de uma frase.
– É óbvio que conhece bem Nancy.
Eve não teve sequer tempo de expirar, antes de ele prosseguir, com a
cabeça estreita inclinada.
– Estando tão perto da fronteira alemã, há uma mistura considerável das
populações da região. Diga-me, mademoiselle, fala alemão? Se me mentir
outra vez, despeço-a sem contemplações.
Eve voltou a gelar até aos ossos. Ele pusera de parte a possibilidade de
empregar raparigas que fossem fluentes em alemão. A garantia aos clientes
alemães que o Le Lethe era um oásis de privacidade proporcionava-lhe a
maioria dos lucros. O olhar dele era cortante como um escalpelo, devorando-
a por completo: cada movimento de Eve, cada espasmo muscular, cada tique
de expressão.
Mente, Eve, pensou ela bruscamente. A melhor mentira da tua vida.
Eve olhou bem fundo nos olhos do patrão, de forma direta e franca, e
disse sem gaguejar:
– Não, monsieur. O meu pai odiava os alemães. Não permitia que a língua
deles fosse falada na sua casa.
– E a mademoiselle odeia-os? – perguntou ele. – Os alemães?
Ela não se atrevia a arriscar outra mentira imediatamente a seguir à
última. Decidiu esquivar-se, baixando o olhar para o colo e deixando que os
lábios lhe tremessem.
– Quando eles mandam para trás metade do b-b-boeuf en croûte por
comer, sim… – confessou ela, com uma expressão fatigada. – É difícil não os
odiar. M-Mas eu estou demasiado cansada para sentir ódio, monsieur. Tenho
de me adaptar ao mundo, ou n-n-não sobreviverei a esta guerra.
Ele riu-se suavemente.
– Não é uma perspetiva muito popular para se ter, pois não? Eu vejo a
questão de um modo muito semelhante ao seu, mademoiselle. Só que o meu
objetivo não é apenas sobreviver. – Ele abriu as mãos para mostrar o seu belo
escritório. – Vou enriquecer.
Eve não tinha dúvidas de que ele conseguiria. Se alguém pusesse o lucro
acima de todas as outras coisas – país, família, Deus –, não restaria nada para
impedir esse objetivo.
– Diga-me, Marguerite Le François. – René Bordelon parecia quase
divertido, mas Eve não se deixou relaxar nem por um segundo. – Deseja
enriquecer? Alcançar mais do que apenas sobreviver?
– Sou apenas uma r-rapariga, monsieur. As minhas ambições são muito
modestas. – Ergueu o olhar, aberto e desesperado, e encarou-o nos olhos. –
Por favor… não vai contar a ninguém que sou de N-N-Nancy, pois não? Caso
se saiba que venho dessa região…
– Imagino. As pessoas em Lille são… – Ele semicerrou os olhos, em jeito
cúmplice. – São patriotas arrebatados. E, por vezes, são cruéis. O seu segredo
está guardado.
Era um homem que gostava de segredos, intuiu Eve. Quando era ele o
guardião deles.
– O-O-Obrigada, monsieur. – Eve agarrou-lhe nas mãos e deu-lhe um
pequeno e desajeitado apertão, inclinando muito a cabeça para frente e
trincando a bochecha dentro da boca até as lágrimas lhe virem aos olhos. Este
era um homem que apreciava a gratidão servil, tanto quanto segredos. –
Obrigada.
Ela largou-lhe as mãos antes que ele se sentisse irritado por ter sido
tocado por uma empregada, e depois deu um passo atrás, alisando a saia. O
comentário dele chegou depressa e em alemão:
– Como é graciosa, mesmo quando tem medo.
Ela endireitou-se e cruzou o olhar com o dele. Ele devorou a expressão de
Eve, procurando o mais pequeno sinal de compreensão. Ela piscou
longamente os olhos, mostrando não ter percebido.
– Monsieur?
– Nada. – Ele sorriu, por fim, e Eve teve a sensação de que um dedo fora
retirado do gatilho. – Pode ir.
As unhas de Eve tinham cravado sulcos fundos nas palmas das mãos,
quando voltou ao restaurante, mas teve a presença de espírito para desfazer os
punhos antes de fazer sangue. Porque René Bordelon repararia nisso. Ah,
sim, claro que repararia.
Esquivaste-te a uma bala, pensou ela, assim que começou o turno, à
espera de se sentir maldisposta, pois o perigo tinha passado. Mas as suas
entranhas aguentaram. É que o perigo ainda não tinha passado – enquanto ela
tivesse de trabalhar e espiar sob o olhar atento do seu astuto patrão, ela
permaneceria em perigo. Eve sempre fora boa a mentir, mas, pela primeira
vez na vida, perguntou-se se seria suficientemente boa.
Não há tempo para sentir medo, relembrou a si mesma. O medo é um
luxo. Desliga o cérebro e liga os ouvidos.
E voltou ao trabalho.
Capítulo 11
Charlie
Maio de 1947

– Ah. – Eve ergueu as sobrancelhas quando entrei para o banco de trás do


Lagonda, em vez de me sentar à frente, com Finn. – Então, de repente já não
te apetece partilhar o ar com o ex-presidiário?
– Não a quero a si sentada atrás de mim – ripostei. – A Eve tentou
disparar contra mim, ontem à noite.
Eve semicerrou os olhos raiados de sangue, à luz da manhã.
– Não acertei, claramente. Vamos é sair desta cidade maldita e partir para
Roubaix.
Finn acertara na profecia: Eve estava macilenta e cinzenta, e movia-se
com a rigidez de uma senhora idosa ao entrar no carro, mas não disse nada
sobre o episódio da noite anterior com a Luger. Finn remexia no motor do
carro, murmurando comentários no seu sotaque escocês, mais denso e
cantarolado quanto mais obstinadas as entranhas do Lagonda se mostravam –
“anda, lata velha, para lá de ir abaixo” –, até que por fim entrou no carro e
ajustou os mostradores para preparar o arranque.
– Temos de ir com calma – avisou ele, assim que deixámos o hotel,
enquanto lutava com a ruidosa alavanca de velocidades. Virei a cabeça e
olhei para o exterior. Ir com calma não era seguramente o estilo de Charlie
St. Clair. Nada de ir com calma: era mais beber whisky de golada, trepar para
cima de um escocês de 30 anos e pedinchar sexo.
Não quero saber o que ele pensa de mim, disse a mim mesma. Não me
importa. Mas ainda sentia a humilhação entalada na garganta.
Galdéria, sussurrou a voz manhosa dentro de mim, e eu estremeci. Talvez
não precisasse de Finn e de Eve para fazer o resto da viagem. Eve conhecia
alguém em Roubaix que talvez nos pudesse dizer alguma coisa sobre o
restaurante onde Rose trabalhara em Limoges – mas, depois disso, será que a
própria Eve ia querer ficar comigo? Ela parecia não gostar de mim. Eu podia
perfeitamente pagar-lhe o que devia e mandá-la para casa a cambalear com a
Luger e o motorista ex-presidiário, enquanto eu apanhava um comboio para
Limoges, como as pessoas civilizadas, de forma a procurar Rose. Se retirasse
um escocês e uma mulher inglesa armada e perigosa desta equação, eu,
americana insensata, poderia levar a cabo a minha busca insensata sem o
estorvo dos meus companheiros de viagem ainda mais visivelmente
insensatos.
– Hoje – disse eu em voz alta, e Finn olhou para mim por cima do ombro.
– Temos de chegar hoje a Roubaix. – Quanto mais cedo, melhor.
Claro que o dia em que eu já não suportava o carro nem a companhia
revelou-se também um dia maravilhoso para uma viagem de carro, sob o sol
luminoso de maio e um céu com nuvens deslizantes. A distância até Roubaix
era curta e ninguém reclamou quando Finn baixou a capota do Lagonda – até
o Pequeno Problema decidiu não se importar muito com o movimento do
carro, por isso, pela primeira vez, não passei a viagem a vomitar. Pousei o
queixo nos braços cruzados, a observar os campos a passar e a pensar que
aquela paisagem me parecia muito familiar; até que me lembrei porquê.
Tinha sido outra viagem de carro, com a minha família e a de Rose, alguns
anos depois daquele episódio em que se tinham esquecido de nós num café da
Provença. Tínhamos passado Lille, estávamos no campo e, depois de um dia
solene a visitar igrejas e velhos monumentos, Rose enrolara o tapete do nosso
quarto de hotel para o lado e ensinara-me a dançar o Lindy Hop.
– Vá, Charlie, solta os pés… – Ela movia-se tão depressa que os caracóis
lhe saltavam para cima e para baixo. Com 13 anos, era alta e já tinha peito.
Confessaria depois que já tinha beijado um rapaz pela primeira vez. –
Georges, o filho do jardineiro. Foi horrível. Língua, língua e mais língua!
Devo ter sorrido ao lembrar-me disto, porque Eve comentou:
– Ainda bem que alguém gosta desta região.
– E a Eve não gosta? – Inclinei a cabeça para trás para apanhar sol. –
Quem não prefere estar aqui, em vez de Londres ou Le Havre, no meio dos
escombros?
– Prefiro em vida dar aos corvos como ceia os trapos que me pendem do
esqueleto imundo – disse Eve, acrescentando, perante a minha expressão
confusa: – É uma citação, sua ianque inculta. Baudelaire. Um poema
chamado Le M-Mort Joyeux.
– O Morto Alegre? – traduzi, franzindo o nariz. – Ugh.
– Um pouco sinistro – concordou o Finn, do banco do condutor.
– Bastante – concordou Eve. – Por isso, é óbvio que era um dos
preferidos dele.
– De quem? – perguntei, mas ela naturalmente não me respondeu. Porque
dizia sempre coisas misteriosas, quando não dizia palavrões? Era como viajar
com uma esfinge embriagada. Finn apanhou-me a revirar os olhos e sorriu, e
eu voltei a olhar para os campos lá fora.
Pouco depois, Roubaix aparecia no horizonte. Era mais pequena do que
Lille, mais poeirenta, mais tranquila. Passámos aos soluços pela elegante
câmara municipal e por uma igreja com uma torre de estilo gótico. Eve
passou ao Finn um endereço escrevinhado e, pouco depois, parámos numa
rua estreita pavimentada com seixos, em frente ao que parecia ser uma loja de
antiguidades.
– A mulher com quem precisa de falar está aqui? – interroguei, perplexa.
– Quem é ela?
Eve saiu do carro com pressa, atirando o cigarro para a sarjeta com um
piparote experiente dos dedos estropiados.
– Alguém que me odeia.
– Toda a gente a odeia. – Não pude deixar de comentar.
– Esta odeia mais do que o normal. V-vens ou não, é como preferires.
Avançou em direção à loja sem olhar para trás. Precipitei-me atrás dela,
enquanto Finn apoiava o cotovelo na janela aberta e começava a ler The
Autocar. De coração aos pulos, segui Eve para o interior da loja fria e
sombria.
Era um sítio minúsculo e repleto de coisas. As paredes eram forradas com
estantes altas de mogno, um balcão comprido servia de barreira ao fundo da
loja e por todo o lado via-se o brilho da porcelana. Urnas em porcelana de
Meissen, conjuntos de chá Spode, pastoras de Sèvres e muito mais. Atrás do
balcão, uma mulher vestida de preto que escrevia num livro de contas com a
ponta de um lápis olhou para nós quando entrámos.
Era forte, sensivelmente com a mesma idade de Eve, usava óculos
perfeitamente redondos e tinha o cabelo apanhado num puxo impecável.
Como Eve, as suas rugas eram profundas, típicas de alguém que tivera uma
vida dura.
– Posso ajudá-las, mesdames?
– Depende – respondeu Eve. – Estás com bom aspeto, Violette Lameron.
Aquele nome era novo para mim. Olhei para a mulher atrás do balcão,
mas a expressão dela não se alterou. Inclinou a cabeça lentamente, até as
lentes dos óculos redondos refletirem a luz.
Eve latiu uma única gargalhada.
– Esse teu velho truque, o de esconder os olhos! Cristo, já me tinha
esquecido disso.
Violette, ou quem quer que fosse, respondeu calmamente.
– Há muitos anos que não ouço esse nome. Quem é a senhora?
– Estou acabada e grisalha, o tempo não tem sido generoso comigo, mas
pensa lá no passado. – Eve fez um círculo em redor do seu rosto com a mão.
– Uma rapariga de olhos doces e inocentes? Nunca gostaste de mim, mas a
verdade é que nunca gostaste de ninguém, exceto dela.
– Dela quem? – sussurrei, cada vez mais perplexa; mas, daquela vez,
reparei que o rosto da outra mulher ficou agitado. Ela curvou-se
instintivamente sobre o balcão, olhando não para o rosto de Eve, mas para lá
dele, como se as linhas do tempo fossem apenas uma máscara. Observei o
sangue desaparecer do rosto da mulher, deixando-lhe a pele completamente
sem cor, contrastando com o preto da gola alta.
– Fora! – exclamou ela. – Fora da minha loja.
Credo, pensei. No que nos havíamos metido?
– Colecionas chávenas de chá, Violette? – Eve olhou em redor, para as
prateleiras cheias de porcelana. – Parece-me um pouco entediante para ti.
Via-te mais a colecionar as cabeças dos teus inimigos… mas, se assim fosse,
ter-me-ias procurado.
– Estás aqui agora, por isso deves querer que eu te mate. – Os lábios de
Violette mal se moviam. – Sua cabra cobarde.
Recuei, como se tivesse recebido uma bofetada. Mas as duas megeras
estavam ali, de pé e calmas, com o balcão entre elas, como se estivessem a
discutir colheres de porcelana. Eram completamente diferentes: uma alta,
magra e acabada; a outra forte, asseada e respeitável. Contudo, enfrentavam-
se hirtas e duras como pilares de granito, e o ódio que sentiam parecia
fumegar delas em vagas negras. Eu estava intoxicada e sentia a boca seca na
presença delas.
Quem é você?, pensei. Quem são vocês?
– Uma pergunta. – O ar divertido e cínico de Eve evaporara; nunca a tinha
visto tão séria. – Uma pergunta e depois vou embora. Tê-la-ia feito por
telefone, se não me tivesses desligado o telefone na cara.
– De mim, não levas nada. – A mulher separou as próprias palavras como
se fossem estilhaços de vidro. – Porque, ao contrário de ti, não sou uma
galdéria medricas e desbocada.
Pensei que Eve se ia atirar a ela. Apontara a Luger à minha cabeça só por
lhe ter chamado velha louca. Mas não se mexeu, recebendo os insultos como
se fosse o alvo numa prova de tiro, preparada e de dentes cerrados.
– Uma pergunta.
Violette cuspiu-lhe no rosto.
Arquejei, dando um passo atrás, mas era como se não estivesse ali, porque
as duas mulheres não me prestaram atenção. Eve permaneceu
momentaneamente imóvel, com a saliva a deslizar-lhe pelo rosto, e de
seguida tirou a luva e limpou a cara com ela. Violette observou-a, com a luz a
refletir nos seus óculos, e eu dei outro passo atrás. Este não era o tipo de
discussões entre mulheres a que eu estava habituada – o mostrar de garras e a
bisbilhotice que fluíam nas residências universitárias femininas. Este era o
tipo de altercação que levava a um duelo ao amanhecer.
Porque não podem as coisas ser simples?, pensei, em pânico.
Eve deixou cair a luva ao chão e bateu com a palma da mão em cima do
balcão, produzindo um som parecido com o tiro de uma espingarda. Observei
os olhos de Violette a fixarem-se com perturbação nos dedos estropiados de
Eve.
– O René Bordelon morreu em 1917? – perguntou Eve, num sussurro. –
Sim ou não? Seja qual for a resposta, eu vou embora.
Fiquei com os cabelos em pé. René, vínhamos sempre dar ao mesmo
nome. No relatório sobre Rose. Nos pesadelos de Eve. E aqui, na loja de
antiguidades. Quem é ele, quem é ele…
Violette continuava a fitar a mão de Eve.
– Tinha-me esquecido desses teus dedos.
– Na altura, disseste-me que mereci.
Um desprezo gelado atravessou o rosto de Violette.
– A tua gaguez está muito melhor, isso é certo. É o whisky que te ajuda?
Cheiras a bêbeda.
– Whisky ou raiva são duas boas curas para a gaguez, e eu tenho bastante
das duas – rosnou Eve. – René Bordelon, sua galdéria azeda. O que lhe
aconteceu?
– Porque haveria de saber? – Violette encolheu os ombros. – Tu e eu
saímos de França ao mesmo tempo e, nessa altura, ele ainda prosperava.
Como dono do Le Lethe.
Le Lethe – o restaurante onde Rose trabalhara. Mas isso tinha sido em
Limoges, não em Lille, pensei, confusa. Além disso, eu procurava
informações sobre 1944, não sobre a primeira guerra. Abri a boca para o
dizer, mas voltei a fechá-la. Não me queria intrometer entre as duas mulheres
e os seus olhares desafiantes.
Os olhos cinzentos de águia de Eve não se moviam.
– Depois da guerra, tu regressaste a Lille por algum tempo. O Cameron
disse-me isso…
Agora era Cameron? Quantas novas personagens estavam a ser
empurradas para o palco deste drama? Apetecia-me gritar, mas deixei-me
ficar em silêncio, a olhar para Eve, como se lhe pudesse sacar as respostas
com um anzol. Para de fazer perguntas e começa a cuspir respostas, que
raio.
– … e também me disse que o René Bordelon morreu em 1917, morto a
tiro pelos cidadãos de Lille, por ser um colaborador imundo.
– Ele era um colaborador imundo – afirmou Violette. – Mas ninguém o
matou a tiro; eu saberia, se o tivessem feito. Se tivesse morrido da maneira
que merecia, teria havido festa nas ruas. Não, disseram-me que o cabrão
pegou nas trouxas e zarpou, assim que os alemães bateram em retirada. Ele
sabia que uma bala na nuca era o melhor que podia esperar. Ninguém o
voltou a ver em Lille, isso é certo. Mas estava vivo em 1918, pelo menos.
Sempre foi um sobrevivente. – Violette esboçou um sorriso desagradável. –
Por isso, se o Cameron te disse outra coisa, mentiu-te. E tu sempre foste tão
orgulhosa da tua capacidade de farejar mentiras.
Nada daquilo fazia sentido para mim, mas reparei que a postura orgulhosa
de Eve se abatera. As mãos estropiadas agarraram a borda do balcão. Sem dar
conta, coloquei o braço à volta da cintura dela, temendo que caísse. Esperava
que ela me afastasse com uma estalada e um comentário cáustico, mas tinha
os olhos fechados.
– Aquele mentiroso – murmurou, e madeixas de cabelo voaram quando
abanou arrebatadamente a cabeça. – Aquele maldito mentiroso vestido de
tweed.
– E agora podes sair da minha loja – disse Violette, enquanto tirava os
óculos para os limpar.
– Dê-lhe uns minutos – reagi eu num tom rude. Por vezes, a Eve era
irritante a ponto de me deixar louca, mas eu não ia deixar que aquela mulher
míope a espezinhasse quando ela estava assim tão frágil e em choque.
– Não lhe dou mais do que 30 segundos, muito menos uns minutos – disse
a mulher, encarando-me pela primeira vez. Fez um gesto para ir buscar algo
debaixo do balcão e tirou uma Luger igual à de Eve. – Eu sei usá-la, menina.
Leva essa cabra daqui para fora, nem que a tenhas de a arrastar pelos pés.
– Que obsessão é esta com as pistolas, suas velhas malucas? – gritei, mas
Eve endireitou-se e o seu rosto parecia uma horrível máscara coalhada.
– Já não temos mais nada a fazer aqui – murmurou, dirigindo-se para a
porta. Apanhei a luva do chão e segui-a, com o coração a martelar no peito.
Ouvi a voz de Violette atrás de mim:
– Costumas sonhar, Eve?
Eve deteve-se, mas não olhou para trás. Tinha os ombros direitos e
rígidos.
– Todas as noites.
– Espero que ela te sufoque – soltou Violette. – Todas as noites, espero
que ela te sufoque até morreres enquanto dormes.
Mas, ao sairmos, quem parecia estar a sufocar era Violette. A porta
fechou-se atrás de nós com o som de um soluço estrangulado, antes de eu
poder perguntar quem era ela.

– Lamento – disse subitamente Eve.


Aquilo surpreendeu-me tanto que quase virei a chávena de café. Ela
estava sentada, horrivelmente pálida, com as mãos em redor da chávena,
como garras. Quando saímos da loja, Eve entrou no Lagonda e sentou-se a
olhar fixamente para o infinito, ao mesmo tempo que eu dizia a Finn: “Leva-
nos para um hotel”. Ele encontrou um auberge do outro lado do bonito
edifício da câmara municipal de Roubaix, e depois estacionou o Lagonda,
enquanto eu e Eve nos fomos sentar numa das mesinhas da esplanada do
hotel. Ela pediu um café no seu francês perfeito, e depois ignorou o olhar de
desaprovação do empregado, ao ver que ela despejava o frasquinho de prata
para dentro da chávena.
Naquele momento, ela erguia os olhos para mim e a visão daquele olhar
vazio quase me assustou.
– Não te devia ter trazido aqui. Foi um desperdício do teu dinheiro. Eu
não estava à procura da tua prima, estava à procura de outra pessoa.
– Aquela mulher?
– Não. – Eve deu um gole no café com whisky. – Um homem que eu
pensava estar morto há 30 anos… Acho que o Cameron me disse que ele
estava morto só para me dar paz. – Abanou a cabeça. – O Cameron era
demasiado nobre para compreender uma gaja perversa como eu. O que me
tinha dado paz era ver a cabeça do René na ponta de um espeto.
Mastigou as palavras, de olhar fixo na azáfama de funcionários e paquetes
em redor dos vasos com fetos.
– René… Bordelon, foi o que a Eve disse na loja. – Tínhamos finalmente
um último nome para o misterioso Monsieur René.
– Era o dono do Le Lethe. Pelo menos, do de Lille.
– Como o conheceu?
– Trabalhei para ele durante a primeira guerra.
Hesitei. Esta última guerra ofuscara de forma tão avassaladora a primeira
que eu sabia muito pouco sobre o que se passara da primeira vez que os
alemães invadiram França.
– Foi muito horrível, Eve?
– Oh, sabes como é. Alemães a pisarem nas nucas dos esfomeados,
pessoas mortas a tiro em becos. Foi mau.
Então, era isso que alimentava os pesadelos de Eve. Observei as mãos
estropiadas dela e estremeci.
– Então, houve dois Le Lethe?
– Parece que sim. Uma vez que a tua prima trabalhou num em Limoges.
Aquelas histórias em duplicado deixavam-me completamente arrepiada.
– E um segundo homem chamado René? Ou poderá esse René Bordelon
ter sido também o dono do restaurante em Limoges?
A sua mão espalmada voltou a bater na mesa.
– Não – reagiu ela. – Não.
– Não acredito em tantas coincidências, e a Eve também não. A mulher da
loja disse que ele sobreviveu à primeira guerra ao fugir de Lille. Pode
perfeitamente ter vivido até 1944, o ano em que Rose chegou a Limoges.
Pode até estar vivo, neste momento. – Excitação e pavor assolaram-me em
igual medida. O patrão de Rose, uma pessoa que a conhecera… Mesmo
sendo uma besta, ele tinha um nome. E um nome significava que era alguém
que eu podia procurar.
Eve abanou teimosamente a cabeça.
– Ele teria agora mais de 70 anos. Ele… – A cabeça dela continuava a
abanar para a frente e para trás, num movimento mecânico. – Talvez tenha
sobrevivido à primeira guerra. Mas é impossível ele neste momento estar
vivo, não um homem como aquele, não passados 30 anos. Alguém já teria
dado um tiro naquela cabeça podre.
Olhei para o meu café frio, relutante em largar aquela esperança.
– De qualquer modo, o restaurante dele em Limoges ainda deve estar lá.
Por isso, é para lá que vou a seguir.
– Diverte-te, ianque. – A voz dela endureceu. – É aqui que os nossos
caminhos se separam.
Pisquei os olhos, surpreendida.
– Ainda há pouco disse que queria ver a cabeça dele num espeto. Como é
possível que não esteja a ferver para encontrar o seu inimigo?
– O q-q-que te interessa? Não te querias ver livre de mim?
Queria. Mas isso era antes de ter percebido que ela tinha tanto a perder
nesta busca como eu. Ela tinha alguém para encontrar, tal como eu. E eu não
a podia impedir de fazer algo tão importante para ela. Eu já tinha posto de
parte o plano de continuar a viagem sem Eve e assumira que ela estava em
pulgas para terminar a busca – mas aqui estava ela, a desistir.
– Faz o que quiseres. Por mim, esta busca é inútil. – A voz dela era seca,
o olhar teimosamente vazio. – O René só pode estar morto. E a tua prima
também.
Desta vez, foi a minha mão que bateu na mesa.
– Não – rosnei. – Não se atreva. A Eve pode esconder a cabeça na areia
para não enfrentar os seus demónios, se quiser, mas eu vou enfrentar os
meus.
– A cabeça na areia? A guerra acabou há dois anos e tu acreditas num
conto de fadas em que a tua prima ainda pode estar viva.
– Eu sei que as probabilidades são ínfimas – ripostei. – Mas prefiro uma
lasca de esperança a perdê-la de todo.
– Nem sequer tens uma lasca. – Eve inclinou-se por cima da mesa, com
os olhos cinzentos a brilhar. – Os bons nunca sobrevivem. Morrem em valas,
diante de pelotões de fuzilamento e em celas de prisões imundas por crimes
que não cometeram. Eles morrem sempre. Só os maus sobrevivem
alegremente.
Levantei o queixo.
– Então, porque está tão convencida de que o seu René Bordelon morreu?
Porque estará ele morto, se os maus sobrevivem sempre?
– Porque se ele estivesse vivo, eu senti-lo-ia – retorquiu ela em voz baixa.
– Tal como tu sentirias se a tua prima estivesse morta. O que talvez faça de
nós loucas, mas faz também com que o assunto esteja arrumado.
Olhei para ela e declarei cuidadosamente:
– Cobarde.
Pensei que ela ia explodir. Mas limitou-se a ficar sentada, como que a
preparar-se para um ataque, e eu vi-lhe um pânico cego nos olhos. Ela não
queria que o inimigo estivesse vivo. Portanto, ele não estava vivo. Era tão
simples como isso.
– Então, muito bem. Quero lá saber. – Tirei o porta-moedas e contei o
dinheiro que lhe devia, subtraindo o que acabara de pagar pelo quarto de
hotel. – Está tudo pago. Tente não o gastar todo em bebida de uma vez só.
Ela levantou-se da mesa, juntando as notas. Sem uma palavra de
despedida, pegou na chave do quarto e dirigiu-se às escadas.
Não sei o que esperava que ela me dissesse. Talvez que me tivesse
contado mais sobre Lille e a primeira guerra. E o porquê de as suas mãos
estarem… Não sei. Fiquei sentada àquela mesinha como uma tonta de mãos
atadas, a sentir-me abandonada e a desejar não lhe ter posto o braço à volta da
cintura na loja e deixado que se apoiasse em mim. Pois mesmo depois de ela
ter deduzido a existência do Pequeno Problema e de ter tido a indelicadeza de
o anunciar, havia uma parte de mim que ainda aspirava a ter o seu respeito.
Eu nunca conhecera uma mulher como ela; falava comigo como se eu fosse
uma mulher adulta, não uma criança – ainda assim, acabara de me atirar à
sarjeta como se eu fosse uma beata de um cigarro. Quero lá saber, dissera-lhe
eu. Mas a verdade é que eu queria saber.
Não precisas dela, repreendi-me mentalmente. Não precisas de ninguém.
Finn apareceu, carregando o meu saco de viagem ao ombro.
– Onde está a Gardiner?
Levantei-me.
– Ela diz que o assunto está arrumado.
O sorriso dele sumiu-se.
– Então, vais-te embora?
– Já paguei os quartos, por isso mais vale vocês ficarem esta noite. Mas
não ficaria surpreendida se ela quisesse voltar para Londres amanhã.
– E tu, para onde vais?
– Limoges. A minha prima pode estar lá. Ou alguém que a tenha
conhecido. – Sorri para Finn, evitando o seu olhar.
– Agora?
– Amanhã. – Sentia-me demasiado exausta para ir a algum lado naquela
tarde; além disso, o meu quarto também já estava pago.
– Bem, sendo assim… – Ele afastou o cabelo dos olhos e entregou-me o
saco de viagem. Perguntei a mim mesma se ele sentiria pena ou alívio por me
ver partir. Alívio, provavelmente. Lamento, apeteceu-me dizer. Lamento ter-
te feito pensar que sou uma galdéria. Lamento não ter dormido contigo. Por
isso, sou mesmo uma vagabunda. Lamento que assim seja. Mas, em vez
disso, saí-me com a única outra coisa que me passou pela cabeça que não
envolvia trepar para o colo dele e colar os meus lábios aos dele.
– Como é que foste parar à prisão?
– Roubei a Mona Lisa da parede do Museu Britânico – replicou ele, de
rosto sério.
– A Mona Lisa nem sequer está no Museu Britânico – protestei.
– Pois, já não está, não.
Não pude deixar de rir. Consegui até, por um instante, cruzar o olhar com
ele.
– Boa sorte, Sr. Kilgore.
– Boa sorte, menina. – O meu coração inchou ligeiramente ao ouvir
aquele menina.
Mas, depois de Finn ter ido embora, não me apeteceu logo subir ao
quarto. Outra onda de pura exaustão se abatera sobre mim, além disso, estar
sentada sozinha no quarto de um hotel parecia-me mais triste do que estar
sentada na esplanada movimentada de um hotel. Pedi outro café e fiquei
sentada a olhar para a chávena.
Vai ser mais fácil sozinha, disse a mim mesma. Sem velhas malucas a
apontarem-te pistolas. Sem insultos e sem as ressacas da Eve para atrasarem
as coisas; para além do facto de ela não conseguir viajar a não ser dentro de
uma lata velha. Sem ex-presidiários escoceses para me fazerem sentir o tipo
de rapariga que se mete no tipo de alhadas em que já estou. Sem ninguém
para me chamar ianque. Podes continuar a procurar a Rose sem mais
ninguém senão tu, totalmente livre e sem entraves.
Sem ninguém senão eu. Não devia soar tão estranho – eu estava habituada
a estar sozinha. Na verdade, desde que me separara de Rose, antes da guerra,
que eu estava sozinha. Sozinha no meio de uma família que mal reparava na
minha presença; sozinha no meio de um dormitório de uma residência
universitária, onde as minhas colegas também não reparavam em mim.
Anima-te, tentei convencer-me, ao mesmo tempo que um paquete passava
por mim. Anima-te. Não tenhas pena de ti, Charlie St. Clair, porque isso é
muito maçador, que raio.
Eve contagiara-me. Dizia palavrões a toda a hora, tal como ela. Mesmo
que só dentro da minha cabeça.
És uma má influência para mim, disse o Pequeno Problema.
Silêncio, disse para o meu estômago. Não és real. Não te estou a ouvir.
Quem disse?
Lindo. O Pequeno Problema já falava. Primeiro alucinações, e a partir
daquele momento vozes.
Foi então que ouvi uns guinchinhos agradavelmente entoados atrás de
mim:
– Charlotte! Oh, ma p’tite, como pudeste…
Virei-me, sentindo suores frios na testa, e vi que a minha mãe me tinha
encontrado.
Capítulo 12
Eve
Julho de 1915

Foi um roubo bem organizado e muito metódico. Chegaram ao meio-dia:


o oficial alemão, de pasta debaixo do braço, e dois soldados a flanqueá-lo.
Um bater à porta brutal e oficioso, tal como o tom do oficial ao anunciar:
“Inspeção de cobre!” Era simplesmente uma desculpa. Era óbvio que o
quarto não continha qualquer revestimento ou canalização em cobre que
pudesse ser confiscado para a campanha de guerra dos alemães.
Eve, bem instruída por Lili e Violette, sabia como proceder. Entregou os
seus papéis de identificação e encostou-se à parede, enquanto eles revistavam
tudo, apesar de não haver muito para revistar ou levar. Exceto a Luger de
Eve, claro, escondida no fundo falso do saco de viagem. E também o seu
último relatório para Lili, com informações sobre a próxima entrega de
aviões, requisitada para guardar o espaço aéreo de Lille, e sobre a data de
chegada dos respetivos pilotos. Detalhes que Eve escutou enquanto servia um
crème brûlée e uma kirschtorte a um par de capitães alemães que discutiam o
assunto à sobremesa. Esses detalhes encontravam-se, como habitualmente, no
papelinho de arroz enrolado no gancho do seu cabelo.
Como o oficial e os seus homens gostariam de os encontrar…
Eve olhava para baixo, para os pés, simulando vergonha por lhe estarem a
revistar as suas roupas e o colchão. O coração gelou momentaneamente,
quando o saco foi levantado e abanado, mas a pistola estava bem embrulhada
e o saco passou na revista.
Um dos soldados puxou o varão da cortina para o inspecionar. “Nada”,
disse ele, atirando-o para o lado, mas não sem antes arrancar as cortinas de
Eve para as meter num saco, olhando de relance para Eve, como que a
perguntar se ela ia protestar. Ela não o fez, limitando-se a inspirar e expirar a
raiva que sentia. As coisas triviais e pequeninas que ela via diariamente
deixavam-na bastante mais exasperada do que as grandes. Eve importava-se
menos que os alemães tivessem o direito de a matar e mais com o direito de
entrarem pelo seu quarto e roubarem-lhe as cortinas.
– Esconde alguma coisa, fraulein? – perguntou o soldado, colocando uma
mão no pescoço de Eve. – Comida fresca? Carne, talvez?
Os dedos dele afagaram-lhe a nuca, a apenas alguns centímetros da
mensagem codificada enfiada no seu cabelo. Ela olhou para ele com os olhos
arregalados e inocentes, sem se importar que ele a tocasse, desde que não
encontrasse o rolinho de papel.
– Não, monsieur.
Saíram a pavonear-se com o saco de coisas surripiadas, não sem Eve se
lembrar de fazer uma vénia e murmurar obrigada, quando o oficial anotou
tudo na sua pasta e lhe deu um bon – um voucher – pelas cortinas. Os bons
não valiam nada, mas os procedimentos deviam ser seguidos. Essa era a lição
que os invasores tinham ensinado aos franceses.
Havia quase um mês que Eve trabalhava afincadamente nos seus dois
empregos em Lille. Transformava-se em Marguerite Le François todas as
manhãs, desde o momento em que saía da cama, vestindo a sua nova
identidade com tanta facilidade que por vezes se esquecia de que não era
Marguerite. Marguerite não saía do quarto a não ser para comprar comida,
evitando o mais possível dar nas vistas. Marguerite dizia os bons dias em voz
baixa à família que vivia do outro lado da rua, uma mãe com ar macilento e
vários filhos escanzelados, e oferecia um sorriso tímido ao padeiro sempre
que ele se desculpava pelo pão duro. O seu silêncio não era fora do comum: a
maioria dos habitantes do Lille eram igualmente introvertidos, levados à
apatia pela fome e aborrecimento, pela monotonia e pelo medo.
Os dias eram assim, mas as noites de Eve compensavam todo esse
cinzentismo. Trabalhava no Le Lethe seis noites por semana – e pelo menos
uma vez por semana ouvia algo digno de ser transmitido a Lili.
– Gostava de saber quanto disto tudo é realmente útil – confessou ela à
líder da Rede Alice durante uma longa noite de julho. As visitas fugazes de
Lili eram como respingos de champanhe numa existência de chá fraquinho –
momentos em que ela despia o vestido sem graça que era Marguerite e
voltava a ser Eve. – Como é que sabemos se alguma das c-c-coisas que eu
transmito fazem realmente a diferença?
– Não sabemos. – Lili fez deslizar o último relatório de Eve numa costura
lateral do seu saco. – Relatamos aquilo que achamos que pode ajudar e
depois rezamos para que realmente ajude.
– Alguma vez relataste alguma coisa que s-s-saibas que fez a diferença? –
insistiu Eve.
– Algumas vezes. Que sensação! – Beijou as pontas dos dedos. – Mas não
te inquietes, o Tio Edward pediu para te dizer que estás a fazer um trabalho
de primeira classe. Que mania esta de os britânicos dividirem tudo em
classes! É como se nunca ultrapassassem o facto de terem estudado num
colégio privado. – Lili ofereceu a Eve o seu sorriso traquinas. – Aí está, fiz-te
corar!
Trabalho de primeira classe. Eve agarrou-se àquelas palavras à noite, na
cama. O colchão era duro e fino; as noites estavam quentes e eram
interrompidas pelo troar distante das armas –apesar do perigo que a rodeava
em Lille, Eve dormia como um bebé. Nunca comia o suficiente, apesar da
repartição diária dos restos do restaurante; trabalhava até à exaustão e vivia
constantemente com medo; perdera peso e o brilho da pele, e por vezes
pensava que era capaz de cometer um crime por um bom café – mas
adormecia com um sorriso e acordava todas as manhãs com o único
pensamento que se permitia ter antes de se transformar em Marguerite para o
resto do dia.
É aqui que eu pertenço.
Eve não era a única a pensar o mesmo.
– Putain de merde – suspirou certa noite Lili, ao observar um punhado de
cartões de identidade, tentando decidir se no dia seguinte seria Marie, a
costureirinha, ou Rosalie, a lavadeira. – Que farei eu quando a guerra acabar
e tiver de voltar a ser apenas eu? Vai ser tão aborrecido.
– Tu n-não és aborrecida. – reagiu Eve, deitada no colchão duro, a sorrir
para o teto. – Eu sou aborrecida. Eu arquivava c-c-cartas e v-vivia numa
pensão, onde partilhava os restos do jantar com um gato. – Era difícil
acreditar que alguma vez vivera assim.
– Isso não significa que eras aborrecida, ma p’tite. Só estavas aborrecida.
A maioria das mulheres vive aborrecida, pois ser mulher é aborrecido.
Casamo-nos só porque nos dá algo que fazer, e depois temos filhos e
descobrimos que os bebés são as únicas coisas mais aborrecidas do que as
outras mulheres.
–Vamos aborrecer-nos de morte quando esta g-guerra acabar e o nosso
trabalho também? – perguntou preguiçosamente Eve. A guerra parecia tão
presente e tão abrangente que ela não conseguia imaginar que um dia ia
acabar. Em agosto, toda a gente dizia que até ao Natal estaria acabada, mas,
estando ali a apenas alguns quilómetros das trincheiras, com o ribombar das
armas como ruído de fundo e os relógios permanentemente acertados com a
hora alemã, a história parecia bastante diferente.
– Quando a guerra acabar, vamos ter empregos diferentes. – Lili dispôs os
seus cartões de identidade em leque. – Eu gostava de fazer algo esplêndido,
tu não? Algo extraordinário.
Lili já era extraordinária, pensou Eve. Não é como eu. Aquele
pensamento não era invejoso – era o que fazia delas boas profissionais no que
faziam. O trabalho de Lili era ser uma pessoa qualquer, mudar de uma
personalidade para outra apenas com alguns truques de postura ou gramática,
fosse ela costureira, lavadeira ou vendedora de queijo. E se o trabalho de Lili
era ser uma pessoa qualquer, o de Eve era não ser ninguém, não ser
observada e nunca dar nas vistas.
Mas, à medida que as semanas passavam, isso tornou-se uma
preocupação. Porque alguém tinha reparado nela.
Certa noite, René Bordelon deixou-se ficar no restaurante, mesmo depois
de o último cliente sair. Era algo que fazia ocasionalmente: acendia um
cigarro e fumava-o sozinho, enquanto os empregados faziam a limpeza à sua
volta. Ele fazia o papel de anfitrião bon vivant entre os alemães, mas o resto
da sua vida parecia ser passada a sós, como um tubarão solitário. Vivia
sozinho, de vez em quando deixava o restaurante a cargo do chefe de mesa e
ia a concertos ou ao teatro, e dava os seus passeios à tarde com um casaco de
cachemira impecável e uma bengala com castão em prata. Eve perguntava-se
em que pensaria ele nessas noites, quando o restaurante se ia fechando em
seu redor e ele sorria a olhar para as janelas negras. Talvez sorrisse a pensar
no lucro. Eve mantinha-se longe dele. Desde que ele adivinhara o seu sotaque
e a forçara a confessar de onde vinha, evitava-o a todo o custo.
Mas ele nem sempre o permitia.
– Tira o disco – ordenou ele, assim que Eve entrou na sala de jantar para
arrumar as mesas. O gramofone, que ocasionalmente providenciava uma
discreta música de fundo a algum cliente alemão com saudades da sua música
natal, chegara ao fim do disco e sibilava a um canto. – Às vezes, Schubert
cansa-me.
Eve dirigiu-se ao gramofone sob o olhar do patrão. Já passava da meia-
noite; ele estava sentado a uma mesa de canto, à luz de uma vela, com um
copo de conhaque. Todas as outras mesas se encontravam vazias, as toalhas
de mesa maculadas com nódoas de vinho, migalhas e alguns copos
espalhados. O som da azáfama dos cozinheiros a arrumar a cozinha chegava
abafado à sala, mal chegando a perturbar o silêncio.
– Quer que ponha outro disco a tocar, monsieur? – perguntou Eve, num
tom sussurrado. Tudo o que ela queria era acabar o turno, chegar rapidamente
a casa e escrever os horários dos comboios que chegariam com as tropas
feridas vindas da frente, uma preciosidade que ela ouvira nessa mesma
noite…
Ele afastou o copo de conhaque.
– Porque não providencio eu mesmo a música?
– Monsieur?
Havia um piano a um canto da sala, um baby grand decorado com velas
por cima de um xaile com bordados fantásticos, o que dava a impressão de o
Le Lethe não ser um restaurante, mas simplesmente uma casa particular com
um cozinheiro excelente. O patrão de Eve levantou-se e caminhou sem pressa
até ao piano, sentando-se e passando os dedos extraordinariamente compridos
pelo teclado. Começou a tocar uma melodia frágil que se elevava e baixava
como o som da chuva.
– Satie – comentou ele. – Uma das Gymnopédies. Conhece-as?
Eve conhecia. Marguerite não.
– Não, monsieur – confessou ela, recolhendo guardanapos perdidos e
garfos descartados para um tabuleiro. – Não sei nada sobre m-m-música.
– Quer que a ensine? – Continuou a tocar, uma melodia suave e calma. –
Satie é um impressionista, mas menos indulgente do que Débussy. Creio que
tem uma claridade e uma elegância que são unicamente francesas. Ele evoca
a melancolia sem floreios desnecessários. Como uma mulher bela com um
vestido muito simples, que conscientemente não se enfeita com lenços. – O
seu olhar concentrou-se brevemente no de Eve. – Suponho que a
mademoiselle nunca teve um vestido elegante.
– Não, monsieur. – Eve colocou dois copos no tabuleiro, um vazio e outro
com um resto de vinho de uma cor perfeitamente dourada. Fixou o olhar no
vinho, porque qualquer coisa era melhor do que olhar para o patrão. Noutro
restaurante, os cozinheiros sorveriam aqueles goles de vinho assim que Eve
entrasse na cozinha com os copos; mas ali, não. Eles decantariam aqueles três
goles de vinho novamente para dentro da garrafa, porque, mesmo num
restaurante recheado de frutos do mercado negro, o vinho não podia ser
desperdiçado. Ao contrário dos restos de comida, o vinho que sobrava não
era dividido entre os empregados no final da noite. Todos sabiam, desde o
cozinheiro carrancudo até ao mais arrogante empregado de mesa, que René
Bordelon era perfeitamente capaz de os despedir por causa de três goles de
vinho branco.
O patrão de Eve continuava a fantasiar em voz alta, enquanto as notas do
piano subiam e desciam, e a atenção dela voltou-se novamente para a música.
– Se a metáfora de um vestido elegante sem acessórios não a esclarece,
então talvez possamos comparar a música de Satie a um Vouvray. Elegante,
mas simples. – Ele indicou com a cabeça o copo no tabuleiro de Eve. –
Prove-o e diga-me se concorda.
Ele exibia um ligeiro sorriso – talvez aquilo fosse apenas um capricho
inocente? Eve esperava que sim. Esperava ardentemente que não fosse outra
coisa qualquer. Qualquer que fosse a motivação dele, ela não poderia recusar,
por isso pegou no copo e bebericou, como uma menina insegura de si.
Considerou cuspir o vinho, mas achou que isso seria exagerar e, desse modo,
limitou-se a esboçar um sorrisinho nervoso ao pousar o copo vazio.
– Obrigada, monsieur.
Ele acenou a cabeça sem dizer uma palavra, para alívio de Eve. Não
repare em mim, queria implorar-lhe, olhando de relance para trás, para aquela
figura solitária ao piano. Eu sou ninguém. Mas ela não sabia se ele acreditava
nisso. Ele destroçara o seu anonimato cuidadosamente planeado no dia que
decidira que as vogais dela não combinavam com o cartão de identidade, e
parecia procurar mais alguma coisa. Pensaria, talvez, que Marguerite Le
François tivesse mais segredos para revelar.
Duas noites depois, o dono do Le Lethe retirou-se ao final da noite. Mas o
empregado mais velho da casa mandou Eve ao andar de cima com as receitas
da noite e, ao entrar no escritório opulento, Eve reparou que ele exibia o
mesmo ligeiro sorriso.
– Mademoiselle – disse ele, baixando o livro depois de marcar a página. –
As contas de hoje?
Eve acenou com a cabeça e passou-lhe o livro-mestre. Ele folheou-o,
mencionando um borrão aqui e uma reserva pouco usual ali, tomou nota de
alguma coisa e depois, subitamente, comentou:
– Baudelaire.
– Desculpe, monsieur?
– Esse busto de mármore que a mademoiselle observa. É a réplica de um
busto de Charles Baudelaire.
Eve apenas fitava o busto por preferir olhar para qualquer coisa desde que
não fosse o patrão. Ela fixou mentalmente o pequeno busto em cima da
prateleira, piscando os olhos.
– Sim, monsieur.
– Conhece Baudelaire?
Marguerite não seria credível se fosse completamente ignorante, pensou
Eve. Infelizmente, Mounsieur Bordelon já descartara a ideia de ela ser
estúpida.
– Já ouvi f-f-falar dele.
– As Flores do Mal tem alguns dos poemas mais belos jamais escritos. –
Escreveu um visto no livro. – A poesia é como a paixão: não deve ser
meramente bonita; deve dominar e ferir. Baudelaire compreende isso. Ele
combina doçura com obscenidade, mas fá-lo com elegância. – Um sorriso. –
É algo muito francês, tornar o obsceno elegante. Os alemães tentam-no, mas
são simplesmente grosseiros.
Eve perguntou-se se a obsessão dele com tudo o que era elegante seria tão
intensa quanto a preferência por tudo o que era francês.
– Sim, monsieur.
Ele parecia divertido.
– Está perplexa, mademoiselle.
– Estou?
– Por eu servir os alemães, mas considerá-los grosseiros. – Encolheu os
ombros. – Eles são grosseiros. Não há muito mais a fazer com pessoas tão
grosseiras senão ganhar dinheiro à custa deles. Mais pessoas deviam perceber
isso. A maioria dos habitantes de Lille prefere o desprezo e a fome ao
pragmatismo e dinheiro. Para citar Baudelaire, são adeptos do prefiro em vida
dar aos corvos como ceia os trapos que me pendem do esqueleto imundo do
que servir os alemães. Mas esse tipo de orgulho não fará deles os vencedores
no campo. – Acariciou a lombada do livro-mestre com o dedo comprido. –
Fará deles apenas o esqueleto onde os corvos comerão a ceia.
Eve acenou com a cabeça. Que mais podia fazer? O sangue gelou-se-lhe
nos ouvidos.
– Os franceses são pragmáticos, não me interprete mal – continuou ele. –
Historicamente, somos mais pragmáticos do que orgulhosos, quando o
conseguimos ser. Foi o pragmatismo que cortou a cabeça do nosso rei. E o
orgulho deu-nos Napoleão. E qual deles foi o melhor plano, a longo prazo? –
Olhou para ela, pensativo. – A mademoiselle é uma jovem pragmática.
Arriscou uma mentira num cartão de identidade para obter um potencial
ganho: isso é pragmatismo aliado a intrepidez.
Eve não queria que ele chegasse à conclusão de que ela mentia bem.
– Posso l-levar o livro-mestre, monsieur? – Tentou desviar o assunto.
Ele ignorou-a.
– Recordo-me que um dos seus apelidos é Duval, não é assim? Baudelaire
também tinha a sua Mademoiselle Duval, embora ela fosse Jeanne, não
Marguerite. Uma jovem crioula que ele salvou da sarjeta, transformando-a
numa mulher muito bela. Chamava-a de Vénus Negra e foi a inspiração para
uma grande dose de obscenidade e paixão nestas páginas. – Deu umas
palmadinhas no livro que tinha posto de lado, quando ela entrara. – Muito
ouro ali jaz sonolento, no meio das trevas e do esquecimento, esquivo à
sonda e à enxada…
Outro olhar direto, sem pestanejar.
– Que descobriria a sonda e a enxada em si, pergunto-me?
Ele sabe, pensou Eve, num momento de puro pânico.
Ele não sabe de nada.
Ela expirou. Baixou os olhos.
– O Monsieur Baudelaire parece m-muito interessante – retorquiu ela. –
Vou tentar ler c-coisas dele. É tudo, m-m-m-m…?
– Sim. – Ele devolveu o livro-mestre. Eve fechou a porta e, fora da vista
dele, sentiu os joelhos cederem. Transpirava profusamente da cabeça aos pés
e, pela primeira vez desde que chegara a Lille, sentiu pânico. Queria aninhar-
se, queria correr. Queria fugir.
Violette estava ajoelhada a esconder a sua Luger ao lado da de Eve no
fundo falso do saco de viagem, quando Eve chegou do trabalho. Olhou para o
seu rosto pálido e disse, com uma certa resignação:
– Nervos?
– N-Não. – Eve esperou até terem completado a vistoria de rotina à janela
e à porta, para se assegurarem de que não havia ninguém à escuta, apesar do
isolamento garantido pelos prédios abandonados e as paredes de pedra. – O
meu patrão suspeita de mim – sussurrou ela.
Violette ergueu bruscamente o olhar.
– Ele tem feito perguntas?
– Não. Mas faz conversa. Faz conversa comigo, alguém que está numa
posição totalmente a-a-abaixo dele. Ele s-sabe que há algo de errado.
– Acalma-te. Ele não lê pensamentos.
Eu acho que lê. Eve sabia que era uma ideia ridícula, mas não conseguia
colocar essa hipótese de parte.
– Tens transmitido informações úteis à Lili, por isso não te vais acobardar
agora. – Violette acomodou-se no seu colchão improvisado e tirou os óculos.
Eve mordeu os lábios para evitar implorar ser recolocada noutra função: em
qualquer sítio de Lille, desde que não estivesse sob o olhar imperturbável de
René Bordelon… Mas não suportaria o olhar de escárnio de Violette e
também não podia desiludir Lili. A líder da rede precisava dela no Le Lethe.
Tal como o Capitão Cameron.
Trabalho de primeira classe.
Acalma-te, repreendeu-se a si mesma. O que aconteceu a “Eu sou Evelyn
Gardiner e é aqui que eu pertenço”? Mentiste ao René Bordelon uma vez, e
podes continuar a fazê-lo.
– Talvez ele não te esteja a observar por desconfiança. – A voz de
Violette soou no meio da escuridão, recheada de bocejos. – Talvez seja
desejo.
– Não. – Eve soltou um riso seco, dobrando-se para desapertar os sapatos.
– Eu n-n-não sou suficientemente elegante. Marguerite Le François é uma
parola do campo. Demasiado simplória para ele.
E, apesar do ruído cético que Violette emitiu, Eve estava absolutamente
certa disso.
Capítulo 13
Charlie
Maio de 1947

Ali estava ela. A minha mãe: com perfume de alfazema e linda como
sempre… Mas, por detrás do chapéu azul elegante, os olhos estavam rasos de
lágrimas. Só isso foi suficiente para me deixar estupefacta, enquanto ela me
abraçava.
– Ma chère, como pudeste? Fugires para um país estranho! – Ela estava a
repreender-me, mas com aquele abraço, a mão enluvada a esfregar-me as
costas como se eu fosse um bebé. Afastou-me e deu-me um pequeno abanão.
– Causar-me tanta preocupação, e por razão nenhuma!
– Mas havia uma razão – consegui dizer, antes de ela me abraçar
novamente. Dois abraços em dois minutos. A minha mãe não me abraçava
havia muito tempo, pelo menos desde que se descobrira o Pequeno Problema.
Talvez até antes disso. Sem eu querer, os meus braços rodearam a sua cintura
fina.
– Oh, chérie… – Afastou-me novamente, limpando as lágrimas dos olhos,
e eu consegui encontrar a minha voz.
– Como me conseguiu encontrar?
– Quando telefonaste de Londres, disseste que estavas à procura da Rose.
Que mais poderia isso significar senão que irias a correr ver a Tante Jeanne a
Rouen? Apanhei o barco e telefonei-lhe quando cheguei a Calais. Ela disse
que a tinhas visitado e que tinhas ido para Roubaix.
– Como é que ela sabia… – Mas eu própria lhe tinha dito. Não, Tante,
não posso ficar. Tenho de ir para Roubaix. Esforcei-me tanto para não gritar
com ela por ter expulsado a Rose de casa que me descaí.
– Roubaix não é uma cidade muito grande. – A minha mãe apontou para o
hotel. – Este foi apenas o quarto hotel onde perguntei.
Maldita sorte, pensei eu, mas uma parte de mim dizia, num sussurro: Ela
abraçou-me.
– Um chá – decidiu a minha mãe, tal como decidira no Hotel Dolphin, em
Southampton, nem uma semana antes. Uma mão-cheia de dias parecia muito
pouco tempo para incluir a Eve e o Finn e tudo o que entretanto soubera
sobre a Rose.
A minha mãe pediu o chá e depois olhou para mim com ansiedade,
abanando a cabeça.
– Que mau aspeto tens! Tens dormido na rua? Mon Dieu…
– Não, eu tenho dinheiro. Eu… eu empenhei as pérolas da Grandmaman.
– A vergonha de o ter feito feriu-me subitamente; era a única coisa que eu
possuía da mãe da minha mãe, e tinha-a trocado por uma busca sem
esperança. – Eu consigo reavê-las, prometo. Tenho a cautela do penhor.
Pagarei com o dinheiro das minhas poupanças.
– Fico feliz por saber que não dormiste numa valeta – revelou a minha
mãe, tentando esquecer as pérolas da minha avó. Surpreendi-me novamente.
A minha mãe não se importava com as pérolas que, como ela sempre dizia,
devia ter herdado? – Atravessar o Canal da Mancha sozinha! Chérie, que
perigo!
Não estava sozinha, quase disse, mas pensei que a Maman não se sentiria
melhor ao saber que eu viajara com um ex-presidiário e uma bêbeda de
pistola em riste. Naquele momento, dei muitas graças a Deus por Eve e Finn
já terem subido aos quartos. – Lamento tê-la preocupado, não era essa a
minha intenção…
– O teu cabelo – cacarejou ela, afastando uma madeixa de cabelo solto
para trás da minha orelha.
Como era possível eu sentir-me subitamente tão pequenina e indefesa
quando nos últimos dias eu arrombara a porta de Eve, tivera uma Luger
apontada à cabeça e atravessara o Canal da Mancha…?
Endireitei-me na cadeira, tentando ordenar os meus argumentos. Maman
não me ia dar ouvidos, a não ser que eu me apresentasse como uma mulher
adulta com um plano, e não como uma criança birrenta com um ataque de
fúria.
– Não fugi porque sou ingrata e não queria ir à Consulta. Fugi porque…
– Eu sei. – A minha mãe pegou na chávena de chá. – Nós apressámos-te,
eu e teu pai…
– Não, não é isso. Foi por causa da Rose.
– … com esta coisa na Suíça. A Consulta. – Novamente aquela letra
maiúscula. – Entraste em pânico quando desembarcámos em Southampton.
Encolhi os ombros. Era verdade, mas…
– Eu e o teu pai só queremos o melhor para ti. – Fez-me uma festa na
mão. – É o que todos os pais querem. Empurrámos-te para o barco e nem
sequer te demos tempo para pensar no que estava a acontecer.
– Estraguei tudo? – perguntei a custo, olhando nos olhos dela. – Será
demasiado tarde para… – Eu não sabia o que era “demasiado tarde” para que
aquele procedimento fosse seguro. Eu não sabia nada.
– Podemos marcar outra consulta, ma chère. Ainda não é demasiado tarde
para isso.
Senti uma pontada de dor a atravessar o meu peito: parte desilusão, parte
alívio. Senti o Pequeno Problema dentro de mim a vibrar, embora a minha
barriga estivesse perfeitamente imóvel.
A mão da minha mãe, quente e macia, cobriu a minha.
– É assustador, eu sei. Mas, nestes casos, quanto mais cedo, mais seguro
é. Assim que esteja terminado, podemos voltar para casa e terás tempo para
descansar, refletir…
– Não quero descansar. – Olhei para ela, sentindo um familiar fio de raiva
a desenrolar-se no meio da minha confusão. – Não quero ir para casa. Quero
tentar encontrar a Rose, se ela ainda estiver viva. Oiça o que lhe estou a dizer.
A minha mãe soltou um suspiro.
– Naturalmente, já perdeste essa esperança…
– Não – afirmei. – Até saber que ela morreu, não. Porque depois do que
aconteceu ao James, não posso simplesmente aceitar que não há esperança.
Não até tentar tudo o que puder.
Ela enrolou a ponta do guardanapo, com a expressão tensa que sempre
mostrava quando o nome do meu irmão era mencionado.
– Há esperança, Maman – disse eu, tentando convencê-la. – É demasiado
tarde para o James, mas talvez ainda seja possível salvar a Rose. Ela saiu de
casa e a Tante Jeanne contou-me porquê.
Um movimento vacilante. Sim, a minha mãe sabia. O fio de raiva
desenrolou-se ainda mais ao pensar que a minha mãe decidira não me contar,
mas consegui reprimi-lo.
– A Rose não ia querer voltar para casa dos pais depois do que aconteceu.
É possível que ainda esteja em Limoges. Se estiver lá, tenho de a encontrar.
– E tu? – A minha mãe olhou para mim. – Não podes suspender o teu
futuro por causa dela. A Charlotte St. Clair é tão importante como a Rose
Fournier. A própria Rose teria sido a primeira a dizê-lo.
Olhei para o outro lado da esplanada do hotel, pensando que talvez
pudesse ver o cabelo louro de Rose, o seu perfil. Nada.
– A Consulta. – A voz da Maman era meiga. – Deixa-me levar-te à
clínica, ma chère.
– E se eu não quiser uma Consulta? – As palavras surgiram de repente,
deixando-me tão surpreendida quanto à minha mãe.
Ela olhou momentaneamente para mim, e de seguida soltou um suspiro.
– Se tivesses um anel no dedo, a questão era outra. Antecipávamos o
casamento, tu serias uma noiva maravilhosa e, seis meses depois, uma mãe
maravilhosa. Estas coisas acontecem.
Pois aconteciam. Essa aritmética era compreendida por todas as mulheres:
uma aliança mais um bebé prematuro eram magicamente iguais a
respeitabilidade.
– Mas a tua situação é diferente, Charlotte. Sem um noivo…
Ela não terminou a frase e eu encolhi-me. Sabia o que acontecia a
raparigas solteiras que engravidavam e tinham os bebés. Ninguém falava
delas, mas sabia-se. Ninguém queria casar com essas raparigas perdidas ou
dar-lhes emprego, as famílias tinham vergonha delas e as amigas deixavam
de lhes falar. Ficavam com a vida destruída.
– Não há outra opção – pressionou a Maman. – Um pequeno
procedimento e terás a tua vida de volta.
Eu não podia negar que desejava regressar à normalidade. Passei o dedo
no rebordo da minha chávena.
– Por favor, chérie. – A Maman largou o chá morno e esticou os braços
por cima da mesa, para agarrar as minhas mãos. – Voltaremos a procurar a
Rose, se é isso que queres. Mas, pelo teu futuro, é melhor fazeres primeiro o
que está certo para ti, não achas?
– Eu vou à clínica – anuí, apesar do nó na minha garganta. – Depois
disso, procuraremos a Rose. Prometa-me isso, Maman. Por favor.
As mãos dela apertaram as minhas.
– Eu prometo.

Não conseguia dormir.


O Pequeno Problema tinha-me arrasado com outra onda de cansaço, por
isso eu devia estar a dormir como uma pedra. A minha mãe mudara-me para
um quarto melhor, ao lado do dela, e eu tinha comido muito bem ao jantar,
que me foi trazido num tabuleiro de prata, em vez da habitual sanduíche
recessa. Tinha também conseguido trocar a minha combinação, lavada todas
as noites, por uma camisa de noite da minha mãe. Já não tinha de me
preocupar com os gritos da inglesa louca ou o que aconteceria quando o
dinheiro acabasse, porque a Maman estava ali para cuidar de tudo.
Ainda assim, depois de ela se ter retirado para o seu quarto, despedindo-
se com um beijo na testa, e apesar da frescura dos lençóis do hotel, eu dava
voltas e voltas na cama. Por fim, levantei-me, vesti o robe e calcei os chinelos
do hotel, peguei nos meus cigarros e decidi ir lá fora apanhar ar fresco.
Eu só procurava uma varanda, mas as portas que davam para a varanda no
final do corredor do hotel estavam fechadas à chave. Acabei por descer ao
andar principal, que estava às escuras, demasiado irritada para me preocupar
com o olhar alarmado que o rececionista do turno da noite me lançou, quando
me viu a passar em direção à rua.
A lua em quarto crescente e alguns postes de iluminação não conseguiam
quebrar por completo a escuridão da noite. Passava das 2h00, segundo o
relógio do átrio do hotel, e a pequena cidade de Roubaix estava totalmente
adormecida. Tirei um Gauloise, apalpando os bolsos à procura de fósforos,
quando reparei em algo uns metros mais à frente. O brilho de metal azul-
escuro.
– Olá, olá – disse eu ao Lagonda, apressando o passo para afagar o
elegante guarda-lamas. – Confesso que vou ter saudades tuas.
– Ele fica todo contente. – Uma voz com sotaque escocês surgiu do banco
de trás do carro e eu sobressaltei-me.
– O que estás aqui a fazer? – Desejei que Finn, no escuro, não
conseguisse ver bem o estado desgrenhado em que eu me encontrava. Porque
não pedira eu à minha mãe para nos mudarmos para outro hotel, porquê? Era
constrangedor ter ficado no mesmo hotel que Eve e Finn, como se eu
esperasse alguma coisa deles. Era como se fôssemos atores a quem escapara
o facto de que já não termos falas numa cena. A vida devia ser mais como
uma peça de teatro: as entradas e saídas de cena seriam bastante mais
definidas.
A cabeça de Finn, e o seu cabelo despenteado, apareceram à janela e eu vi
o brilho incandescente do seu cigarro.
– Não conseguia dormir.
Meti as mãos nos bolsos, incluindo o cigarro por acender, para não
começar a mexer no cabelo. Haveria conjunto menos glamoroso e atraente no
mundo do que um robe e chinelos?
– E, quando não consegues dormir, vens para o carro, é? – disse eu, com
algum sarcasmo.
Finn descansou o cotovelo nu na janela do Lagonda.
– Ele acalma-me. É uma boa cura para pesadelos.
– Pensava que só a Eve tinha pesadelos.
– Também tenho alguns.
Que tipo de pesadelos seriam, pensei. Mas não lhe perguntei, limitei-me a
afagar novamente o guarda-lamas do carro. Era estranho pensar que não
partiria nele na manhã seguinte. Partiria num comboio para Vevey e depois…
Que tipo de veículos transportavam jovens às Consultas na Suíça? Táxis com
relógios de cuco? Motoristas calçados com tamancos? Arrepiei-me em plena
noite de verão.
Finn abriu a porta do Lagonda e deslizou para o lado oposto do banco.
– Entra, se tens frio.
Eu não tinha frio, ainda assim entrei.
– Dás-me lume?
Ele acendeu um fósforo. A chama muito curta permitiu-me ver o perfil
dele e deixou-me subitamente cega, envolta em sombras. Dei uma passa e
soltei o fumo devagar.
– Como conseguiste ter um carro destes? – perguntei, só para dizer
alguma coisa. Se não estava no banco de trás de um carro para sexo, parecia-
me apropriado fazer conversa.
– Herdei algum dinheiro de um tio – disse ele, surpreendendo-me. Finn
raramente respondia a perguntas diretas, pelo menos com a verdade. – Ele
queria que eu fosse estudar, que me tornasse alguém. Mas quando um rapaz
que cresceu no meio de óleo de motores se apanha com dinheiro no bolso,
tem outras ideias.
– Queres dizer que o rapaz gastou todos os tostões no carro dos seus
sonhos. – Quase podia ouvir Finn sorrir.
– Isso. Não era suficiente para comprar um Bentley, mas fui dar com este
velhote a ser levado para a sucata por um idiota qualquer. Comprei-o,
arranjei-o e ele gostou logo de mim. – Finn bateu afetuosamente no banco. –
Durante a guerra, a maioria dos soldados tinha fotografias das namoradas. Ou
talvez das mães, se tivessem acabado de sair do liceu. Eu não tinha
namorada, por isso tinha uma fotografia do meu carro.
Imaginei Finn de uniforme e capacete a olhar para uma fotografia do
Lagonda no convés de um navio de transporte. Aquela imagem fez-me sorrir.
Ele atirou a beata pela janela fora e acendeu outro cigarro, a chama do
fósforo a brilhar no escuro.
– Então, vais embora amanhã?
– Sim. – Acenei com a cabeça. – A minha mãe descobriu-me aqui.
Partimos para Vevey de manhã.
– Não vais para Limoges? Pensei que ias passar Limoges a pente fino à
procura da tua prima.
– Limoges fica para depois. Isto… – Acenei da direção do Pequeno
Problema, embora ele, provavelmente, não conseguisse ver o gesto. – … não
vai poder esperar muito mais tempo. É o que diz a Maman. Que sei eu? Sou
apenas a rapariga que se meteu em apuros.
– E Vevey é onde se vai… quando se está em apuros?
– Nunca ouviste falar de umas férias na Suíça? – Forcei um sorriso. – É
onde raparigas como eu vão.
– Pensei que iam para o altar vestidas de branco.
– Só se tiverem fisgado um rapaz.
– Bem, a não ser que sejas a Virgem Maria, já deves ter fisgado um rapaz.
– A voz dele tinha aquele tom irónico e implacável escocês.
Soltei uma risadinha seca.
– Finn, nesse caso, fisguei metade da residência universitária. E não posso
casar com todos.
Pensei que ele ia soltar um suspiro de desaprovação. Ou que se afastaria.
Mas limitou-se a ficar sentado no outro lado do assento macio e a olhar para
mim no escuro.
– O que aconteceu?
Se fosse dia, eu não teria conseguido falar sobre o assunto. A história era
tão trivial e ordinária, tão estúpida. Mas as sombras que me envolviam eram
generosas e eu virei o rosto para que ele me visse apenas o perfil e a ponta
incandescente do cigarro. A voz saiu-me num tom prático e desinteressado.
– Uma rapariga divide-se em três secções bem definidas. – As frações do
namoro, como eu as definia, e até as raparigas mais patetas da minha
faculdade sabiam exatamente como somar as frações. – Há as partes que um
rapaz pode tocar – continuei –, as partes que ele pode tocar se é seu noivo ou
quase e as partes que não pode tocar até casar com ela. Toda a gente conhece
o mapa. Mas os rapazes tentam tocar, de qualquer maneira, porque são
mesmo assim, porque nós dizemos que não. Os rapazes tentam, as raparigas
negam. É essa a dança.
Parei de falar e bati levemente com o cigarro na janela. O ar cheirava a
fresco – a chuva de verão a caminho, pensei. Finn continuava sentado em
silêncio.
– O meu irmão foi um daqueles soldados que não se adaptou bem, depois
de regressar da guerra. Com isto, quero dizer que ele estourou os miolos com
uma espingarda. – Miolos e sangue espalhados por todo o lado, dissera de
forma irrefletida um vizinho, que não reparara em mim, suficientemente perto
dele para ouvir os detalhes macabros a que os meus pais me tinham poupado.
Fui para casa a correr e vomitei, incapaz de esquecer aquela imagem terrível.
– Os meus pais ficaram… Deixei Bennington durante esse semestre e fui para
casa, para poder cuidar deles. – Comprava flores para a minha mãe, fazia o
nó da gravata ao meu pai, esturricava a carne assada do almoço de domingo,
uma vez que mais ninguém conseguia cozinhar. Tentei tudo para ajudar a
consertar as almas destroçadas dos meus pais.
– Depois do inverno, voltei finalmente à faculdade e, como já não tinha
ninguém para cuidar, eu simplesmente… paralisei. Como um relógio
avariado. Não conseguia sentir nada. Estava morta por dentro. Nem sequer
conseguia sair da cama de manhã. Ficava deitada a pensar no James, na Rose
e nos meus pais, e depois voltava a pensar no James. Chorava e chorava.
Foi nessa altura que comecei a ver Rose em todo o lado. Meninas de
tranças bamboleantes transformavam-se na pequena Rose, jovens altas
universitárias a caminho das aulas transformavam-se na Rose mais velha – eu
vi-a em todo o lado, o rosto dela sobreposto na face de pessoas
completamente desconhecidas. Tinha estas visões com tanta frequência que
comecei a pensar que estava a ficar louca… Ou que talvez, só talvez, ela não
estivesse morta.
– Perdi o meu irmão – disse eu, rouca. – Falhei com ele. Se tivesse sido
capaz de o ajudar, quando o mundo dele se começou a desmoronar, talvez
não tivesse morrido daquela maneira. E, se havia a menor probabilidade de a
Rose estar viva, eu não a podia perder também. Já quase não ia às aulas: não
me conseguia arrastar para fora da cama para ir às aulas de Álgebra, mas
conseguia fazê-lo pela Rose. Escrevi cartas, fiz telefonemas, falei com
gabinetes de apoio a refugiados. Tinha trabalhado tantos verões no escritório
de advogados do meu pai que sabia bem o tipo de chamadas internacionais
que devia fazer, que tipo de papéis devia pedir. O que havia para descobrir,
eu descobri. – O funcionário inglês entediado que me disse que o último
relatório existente sobre Rose Fournier fora escrito por uma Evelyn Gardiner,
atualmente residente em Hampson Street, número 10. A pista sobre o Le
Lethe.
Finn continuava em silêncio. O meu cigarro estava no fim. Tirei uma
última e longa passa e atirei a beata pela janela fora.
– Era de supor que alguém contactaria os meus pais por faltar a tantas
aulas na faculdade, mas ninguém quis saber. Toda a gente pensa que as
raparigas como eu não vão para a faculdade para obterem notas altas; estamos
ali para rondar os rapazes da Ivy League e encontrar um marido. Eu não saía
muito, era mais o género de rapariga que as colegas convidavam para
acompanhar o amigo de um namorado; mas, por essa altura, marcaram-me
um encontro com um rapaz que eu não conhecia. Creio que se chamava Carl.
Jantar e cinema drive-in. Assim que o filme começou, ele pôs logo a mão por
dentro da minha camisola. Eu sabia como a coisa funcionava: beijávamo-nos
durante algum tempo e depois eu afastava-o, quando ele fosse longe de mais.
Só que, dessa vez, não vi sentido em fazê-lo. Estava demasiado entorpecida
para seguir a dança habitual. Imaginei como seria se eu simplesmente… não
fizesse nada. Nem sequer simpatizava muito com ele, mas pensei que talvez
me fizesse sentir… algo. – Pelo menos, alguma coisa que não fosse culpa ou
dor. O que não aconteceu; resultou apenas num nada ainda mais vazio e
entorpecido. – Depois disso, o Carl olhava para mim sempre com ar de
espanto. Não conseguia acreditar que eu não o tinha feito parar. As boas
meninas não faziam isso e eu era uma boa menina.
Finn não reagiu. Perguntei-me se estaria enojado comigo.
– Ele voltou a convidar-me na semana seguinte. Eu disse que sim. A
primeira vez não tinha sido nada de especial, mas toda a gente sabe que a
primeira vez é um desastre. Esperava que melhorasse. – Mas, mais uma vez,
nada. – Ele provavelmente falou com outros rapazes na residência, porque
subitamente comecei a ter muitos convites. Aceitei-os todos e tive relações
com todos. Não é que gostasse, mas continuei a fazê-lo porque… – Parei,
engoli uma enorme dose de vergonha e forcei-me a continuar. – Porque me
sentia só. – Respira. Respira. – Eu… eu estava cansada de me sentir só e
entorpecida, e dar uma quecas no banco de trás com o Tom ou o Dick ou o
Harry era melhor do que ficar no meu quarto a chorar e a dizer a mim mesma
que poderia ter impedido o meu irmão de se matar. – Inspirei, com
dificuldade. – Depois de algum tempo, acumularam-se os Toms, os Dicks e
os Harrys. A notícia de que a Charlie St. Clair era uma rapariga fácil
espalhou-se. Nem sequer era preciso comprar-lhe um batido ou um bilhete de
cinema. Bastava aparecer com um carro.
Sentia a garganta inchada de tantos soluços reprimidos. Pus a minha mão
aberta fora da janela e deixei que a brisa da noite me arejasse os dedos,
continuando a evitar o olhar de Finn.
– E foi assim. Passava todo o meu tempo encolhida na cama, ou a
telefonar para gabinetes de refugiados, ou a deitar-me com rapazes de quem
não gostava. Na primavera, tive de voltar a casa, para contar aos meus pais
que estava grávida, não tinha namorado e que, possivelmente, chumbaria de
ano. Por entre os berros da minha mãe, o meu pai perguntou quem era o
rapaz; foi talvez a única coisa que ele disse durante a conversa inteira. Tive
de lhe dizer: “Há seis ou sete possibilidades, Pai”. Desde então, praticamente
não fala comigo.
Porém, quando eu chegasse a casa subtraída do Pequeno Problema, ele
teria de falar comigo, certo?
Finn clareou suavemente a garganta. Na minha frágil miséria, esperei pela
condenação dele, talvez um involuntário “Graças a Deus que não te toquei”.
– És tu quem quer ir a Vevey? Ou são os teus pais?
Não podia ter ficado mais surpreendida, tão surpreendida que, pela
primeira vez, me virei para o olhar nos olhos.
– Achas que posso ser mãe de alguém, no estado em que me encontro?
– Não estou a avaliar isso. Estou só a perguntar se estes planos são o que
tu queres ou o que eles querem.
Eu não sei o que quero. Na realidade, ninguém me perguntara. Eu era
menor de idade; os meus pais tinham tomado a decisão por mim e eu dera
como certo que devia fazer o que me diziam. Sempre com aquela voz
maliciosa dentro de mim a dizer-me que eu falhara em tudo, que falhara em
ajudar James e Rose e, naquele momento, a mim própria. O que importava o
que eu queria, quando certamente falharia se o tentasse obter? Queria ter
Rose de volta, queria ter o meu futuro de volta, queria salvar alguém que
amava, em vez de ficar especada enquanto perdia essa pessoa para a dor, a
guerra ou a morte – e eu não sabia o que fazer para tudo isso acontecer.
De repente, dei comigo a hesitar. As palavras gentis de Finn acendiam
uma chama de raiva dentro de mim, perfurando a concha defensiva que eu
criara. Eu era capaz de repelir insultos o dia todo, se fosse preciso: vadia,
galdéria, vagabunda. Já ouvira de tudo, e eu mesma os dirigia a mim, para
poupar trabalho às outras pessoas. Era capaz de fingir que não me importava,
porque importar-me deixar-me-ia de rastos e vulnerável.
– Porque estás a ser tão simpático comigo, Finn? Não achas que sou uma
criminosa, por querer livrar-me disto?
– Sou um ex-presidiário – murmurou ele. – Não tenho o direito de chamar
nomes a ninguém.
– És tão estranho – comentei, quase a chorar, e Finn puxou-me para me
dar um abraço. Escondi os meus olhos ardentes na camisa dele, respirando
aos soluços. Antes do Pequeno Problema, eu não fazia mais nada senão
chorar – mas, desde o dia em que contei aos meus pais, não chorei uma única
lágrima. Não podia recomeçar, ou nunca mais ia parar. Finn cheirava a fumo
e óleo de motor e a vento a bater no rosto; ficámos assim, eu encolhida com a
cara no peito dele, ele a fumar o cigarro até ao filtro.
Ouvi ao longe o toque dos sinos a darem as horas. Eram 3h00. Finn atirou
a beata pela janela e eu endireitei-me no assento, pressionando os punhos
contra os olhos. Tinha conseguido não chorar, mas por pouco.
Ele ergueu o braço e eu deslizei no banco do Lagonda em direção à porta.
– Charlie, miúda – soltou ele, e o meu nome dito por aquela voz grave e
suave deteve-me, fazendo-me olhar por cima do ombro. Olhou-me fundo nos
olhos, e talvez eu já me tivesse habituado ao escuro, porque conseguia ver
claramente os olhos dele, por baixo das sobrancelhas retas e escuras. – Faz o
que tu queres – disse ele. – Trata-se da tua vida e do teu petiz. Podes ser
menor de idade, mas a vida não deixa de ser tua. Não dos teus pais.
– Eles têm boas intenções. Mesmo quando me sinto furiosa com eles, sei
que têm boas intenções. – Porque falava eu tão honestamente? Até esse
momento, nunca falara com ninguém sobre o Pequeno Problema, não desta
forma. – Finn… – Comecei a despedir-me dele, mas já nos tínhamos
despedido na esplanada do hotel. Este interlúdio noturno, na realidade, não
tinha acontecido.
Ele continuava à espera.
– Obrigada – disse eu, por fim, na minha voz rouca. E saí do carro para
voltar ao hotel. Finn não disse nada, pelo menos que eu ouvisse. Ainda assim,
escutei a voz dele.
Faz o que tu queres.
Capítulo 14
Eve
Julho de 1915

O maior segredo de Lille chegou aos ouvidos de Eve como música. O


Kommandant Hoffman e o General von Heinrich jantavam na mesa habitual,
e Eve levantava os restos da mousse de chocolate sem se fazer notar, quando
ouviu:
– … inspeção privada na frente de combate – disse o general, num tom
ansioso. – O Kaiser vai passar por Lille dentro de duas semanas.
Eve continuou a levantar os pratos da sobremesa como se nada fosse.
– Devemos preparar-lhe uma receção adequada, ainda que a inspeção seja
secreta. Nada poderá faltar. Enviaremos uma pequena delegação para o
receber na estação: em que comboio vem?
Por favor, implorou silenciosamente Eve, o comboio e a data!
O general especificou ambos, consultando nervosamente um bloco de
notas para confirmar que não se enganara. Esta atenção aos pequenos
detalhes era tipicamente alemã, e Eve agradeceu a Deus por isso. Retirou-se
antes que parecesse que estava a fazer tempo, os pés dela mal tocavam no
chão. Eve sabia que o Kaiser – o Kaiser! – visitaria a frente de combate e
quando. Lili ia uivar de alegria. “Parbleu, margaridazinha, muito bem!
Vamos fazer explodir os miolos daquele sacana e acabar com esta guerra!”
– Estás a rir-te de quê? – perguntou a outra empregada, uma loura
platinada de raciocínio lento chamada Christine, que substituíra a desajeitada
Amélie havia algum tempo. – Que razão temos para nos rirmos?
– Nada. – Eve retomou o seu lugar, encostada à parede, eliminando
qualquer sinal de emoção do rosto, mas o coração pulava-lhe no peito, como
se sentisse amor à primeira vista. A guerra poderia estar prestes a terminar.
As trincheiras repletas de soldados a morrer na lama viscosa; a fome e a
humilhação da pobre e maltratada Lille; o zumbido dos aviões e o som
abafado das explosões de artilharia para lá do horizonte – tudo isso acabaria.
Eve imaginou-se a arrancar o letreiro em alemão com o nome da sua rua,
pregado em cima do francês, e a espezinhá-lo ao som dos sinos da vitória.
As horas nunca tinham demorado tanto a passar.
– Podes levar o livro-razão ao Monsieur René? – pediu Eve a Christine,
quando terminaram a limpeza da noite. – Tenho de ir p-para casa.
Christine estremeceu.
– Ele assusta-me.
– Olha p-para o chão e responde só sim e não, até ele te mandar embora.
– Não posso. Ele assusta-me!
Eve teve vontade de revirar os olhos. Que diabo importava se alguma
coisa a assustava, se tinha de ser feita de qualquer maneira? Porque havia
tantas mulheres assim, receosas e patetas? Pensou na coragem de leão de Lili,
na tenacidade feroz e obstinada de Violette. Isso é que eram mulheres.
Despachou o livro-razão para o chefe de mesa e saiu porta fora. Já
passava da meia-noite, a lua ia muito alta e quase cheia – uma má noite para
atravessar fronteiras às escondidas. Lili deveria estar a voltar e a passar por
Lille em breve…
– Fraulein! – A instrução brusca de uma voz alemã, passos de botas
alemãs atrás dela. – Já passa da hora do recolher obrigatório.
– Tenho uma dispensa. – Eve procurou às apalpadelas os seus cartões de
identidade e outros vários papéis no interior do saco. – Trabalho no Le Lethe;
terminei há pouco o meu t-turno.
O soldado alemão era jovem, solícito e tinha o rosto marcado por acne.
– Vamos lá ver essa dispensa, fraulein.
Eve praguejou em silêncio, dando voltas ao saco. Não estava ali – tivera
de esvaziar o saco em cima da cama, nessa manhã, para poder descoser o
forro e arranjar um esconderijo para as mensagens codificadas. O cartão com
a dispensa de recolher obrigatório devia ter ficado sobre a coberta.
– Lamento, não a tenho comigo. O restaurante é mesmo ali, eles podem c-
confirmar que eu…
– Sabe qual é o castigo por quebrar o recolher obrigatório? – perguntou
bruscamente o soldado, com ar satisfeito por ter um relatório para escrever.
Mas uma suave voz metálica apareceu no meio da escuridão, atrás de Eve.
– Asseguro-lhe que esta rapariga trabalha para mim. Os papéis dela estão
em ordem.
René Bordelon parou ao lado de Eve; a sua bengala de castão de prata
brilhava ao luar. Inclinou o chapéu num ângulo perfeito de cortesia e
descontração. Provavelmente teria dispensado a leitura do livro-razão,
preferindo dar um passeio ao luar de verão.
– Herr Bordelon…
René esboçou um sorriso de desprezo cortês e deu o braço a Eve.
– Leve o assunto ao Kommandant Hoffman, se quiser. Boa noite.
Fez avançar Eve, e ela soltou a respiração suspensa.
– Obrigada, m-monsieur.
– Não tem de quê. Não tenho problemas em servir os alemães quando eles
são civilizados, mas gosto de pôr os malcriados no seu devido lugar.
Eve tirou o braço da mão dele.
– Não q-quero, de maneira nenhuma, demorá-lo mais, m-monsieur.
– De todo. – Ele voltou a agarrar o cotovelo de Eve. – A mademoiselle
está sem papéis. Eu levo-a a casa.
Ele agia como um cavalheiro. Só que não era um cavalheiro, portanto, o
que quereria ele? Tinham passado dois dias desde a última conversa entre
eles, a mesma que tanto enervara Eve; o coração dela batia acelerado, mas,
por mais que desejasse evitar o contacto com o patrão, ela sabia que não
podia recusar. Deixou que ele a acompanhasse e preparou-se para gaguejar
bastante. Se a intenção dele era sondá-la, esta iria ser a conversa mais lenta da
história.
– Os seus olhos brilharam a noite toda – observou ele. – Estará
apaixonada, Mademoiselle Le François?
– Não, m-m-m-monsieur. Não tenho tempo para essas c-c-coisas. – Tenho
um Kaiser para matar.
– Mas alguma coisa a deixou muito feliz.
A possibilidade de um regicídio. Não, não penses nisso.
– Estou g-g-grata por tudo o que tenho, monsieur. – Afastavam-se agora
do rio. Só faltavam alguns quarteirões…
– Está muito calada – comentou ele. – Não conheço muitas mulheres
caladas. Isso faz-me cogitar no que estará a pensar. O que considero curioso.
É raro importar-me com o que se passa dentro da cabeça de uma mulher,
porque normalmente é banal. A mademoiselle é banal?
– Sou completamente normal, m-m-m-mounsieur.
– Mas pergunto-me: será mesmo?
Não se pergunte nada disso. Ela deveria falar pelos cotovelos, falar tudo
o que lhe passasse pela cabeça, como a tonta Christine fazia. Entediá-lo com
futilidades.
– Porque lhe chamou L-L-Le Lethe, monsieur? – Eve perguntou a
primeira coisa que lhe veio à cabeça.
– Baudelaire, mais uma vez – respondeu ele. – Nada iguala o abismo do
teu leito, o esquecimento poderoso perdura na tua boca e o Letes corre nos
teus beijos.
Aquela conversa estava a tomar um tom demasiado sensual, e Eve sentiu-
se desconfortável.
– B-b-bonito – murmurou ela, acelerando o passo. Só mais um quarteirão
e…
– Bonito? Não. Poderoso. – A mão dele no cotovelo de Eve, impedia-a de
se apressar; os dedos, tão compridos, rodeavam completamente o braço dela.
– O Letes é o rio do esquecimento que corre no mundo dos mortos, assim nos
diz a cultura clássica, e nada há de mais poderoso do que o esquecimento. É
isso o que um restaurante como o meu pode oferecer durante o tempo de
guerra: um oásis de civilização, onde, por algumas horas, se podem esquecer
os horrores da guerra. Não há horror que não possa ser esquecido,
mademoiselle, desde que se tome a droga certa para os sentidos. A comida é
uma delas. A bebida, outra. O movimento entre as coxas de uma mulher, a
terceira.
Disse-o tão casualmente, com a voz completamente monocórdica tão
cheia de vulgaridade, que Eve corou até à raiz dos cabelos. Ótimo, conseguiu
ela pensar. A Marguerite coraria, sem dúvida. Deus meu, faz-me chegar a
casa!
– Não me diga que a fiz corar? – Ele inclinou a cabeça para a poder
observar melhor, os cabelos prateados das têmporas a brilhar ao luar. –
Vinha-me perguntando se a faria corar. Os seus olhos não deixam
transparecer muita coisa. Janelas da alma? Nem por isso, no seu caso. Meu
amor tem olhos obscuros, profundos e vastos – citou ele, fazendo com que
Eve se sentisse ainda mais desconfortável. – Suas chamas são pensamentos
de amor e de fé, cintilando no fundo, voluptuosos ou castos. – Os olhos dele
fixavam os de Eve, sem pestanejar. – Tenho pensado muito neste último
verso, Mademoiselle Le François. Voluptuosa ou casta? – Ele passou um
dedo pela face vermelha de Eve. – Pelo rubor, eu diria a última.
– Uma senhora não f-f-fala dessas coisas – conseguiu ela dizer.
– Não se arme em burguesa. Não lhe fica bem.
Graças a Deus, tinham chegado à porta de Eve. Ela abrigou-se sob o
beiral e começou a vasculhar o saco, à procura das chaves, sentindo um fio de
suor a correr-lhe pelas costas, por baixo do vestido.
– B-Boa noite, monsieur – despediu-se ela jovialmente; mas ele
aproximou-se e pressionou-a lentamente contra a porta. Eve não conseguia
ver o rosto dele, mas sentiu-lhe a fragrância da água de colónia cara e a
brilhantina do cabelo, quando ele se inclinou para ela. A pequena boca dele
tocou levemente, não os seus lábios, mas a reentrância na base do pescoço.
Ela sentiu a língua fresca dele a tomar o sabor da sua pele.
Eve estava pregada à porta por aquele contacto ténue, demasiado aturdida
para se poder mexer.
– Estava curioso para provar a sua pele – disse ele, por fim, dando um
passo atrás. – Sabão barato, mas doçura por baixo. Um sabonete de lírio-do-
vale ficar-lhe-ia bem. Algo leve, doce, perfumado e jovem.
Nada no treino de Eve em Folkestone, nas resmas de conselhos que Lili
lhe dera ou nas suas experiências anteriores em Londres ou Nancy lhe dizia
como deveria reagir. Por isso, manteve-se em silêncio, deixando-se ficar
imóvel, como um animal apanhado num clarão de luz. Ele vai-se embora. Ele
vai-se embora e tu vais poder sentar-te na cama e escrever o relatório para a
Lili. O Kaiser vem a Lille. Mas, naquele momento, a glória dessa informação
de ouro eclipsara-se. Com os olhos penetrantes de René Bordelon tão perto
dos dela, não ousava sequer pensar nisso.
Ele pendurou a bengala com castão de prata no braço e, tirando o chapéu,
inclinou-o na direção dela. A despedida de um perfeito cavalheiro.
– Gostaria de a possuir – disse ele num tom coloquial. – Uma escolha
estranha, para mim; normalmente, não gosto de virgens inexperientes ou de
sabão barato, mas a mademoiselle tem uma certa elegância crua. Pense nisso.
Oh, meu Deus, pensou Eve. Continuou imóvel até ele voltar a pôr o
chapéu e retomar o seu passo descontraído rua abaixo.
Um dos vizinhos de Eve ainda estava acordado, porque se ouviu o chiar
de uma janela a abrir algumas casas abaixo. Por momentos, Eve ficou
contente pela existência do beiral comprido da porta – era impossível ter sido
vista enquanto era lambida por um homem conhecido por beber brandy com
o Kommandant. Sentiu-se invadida por uma onda de fúria e levou a mão ao
pescoço para limpar o rasto de humidade que ele deixara.
Protegida pela escuridão, Eve ouviu o vizinho bradar na direção da figura
que se afastava: “Colaborador!”, seguido do som de saliva a cair na rua.
Ele virou-se para trás e tirou o chapéu ao agressor invisível. “Bon soir”,
respondeu, com uma pequena vénia, e o eco do seu suave riso abafado
espalhou-se pela noite.

– Parbleu, margaridazinha, muito bem! – Lili sorriu de orelha a orelha ao


ler o relatório de Eve. – Mais duas semanas, um raide aéreo e alguma sorte, e
esta guerra terá acabado!
Eve sorriu, mas nessa noite o seu triunfo não tinha o mesmo brilho.
– Os conselheiros do Kaiser, os seus industriais e todas as pessoas que
lucram com a guerra vão continuar. – A máquina da guerra era vasta e
complexa e, quando posta em marcha, dificilmente podia ser parada; Eve
sabia disso.
– Se o sacana morrer, é o princípio do fim. Parto amanhã cedo, logo que
termine o recolher obrigatório. Lili guardou a mensagem no forro do saco de
costura (nessa noite, ela era Marie, a costureira, com os seus papéis de
identificação, os acessórios e os maneirismos) e começou a desapertar as
botas. – Não vou passar este relatório a um mensageiro. Vou eu mesma levá-
lo a Folkestone. E talvez compre um chapéu moralmente duvidoso, já que
vou estar num país onde o posso usar. Embora me pergunte se vocês,
ingleses, são capazes de fazer alguma coisa moralmente duvidosa, mesmo
que sejam chapéus…
– Tu c-consegues chegar a Inglaterra? – Eve ficou surpreendida. Ela mal
conseguia acreditar como Lili conseguia passar tão fácil e rapidamente da
França ocupada para a Bélgica, e depois voltar. A distância podia ser curta,
mas o território estava repleto de perigos, ainda assim Lili atravessava-o
como se fosse um fantasma. Não é que ela também conseguia atravessar o
Canal da Mancha?
– Bien sûr. – A voz de Lili soou abafada, pois estava a mudar de roupa
com rápida eficiência debaixo de uma velha camisa de noite. – Este ano, já lá
estive três ou quatro vezes.
Eve debateu-se com uma súbita onda de saudades de Folkestone, das
praias inglesas, dos pontões ingleses feitos de madeira, dos tweeds do Capitão
Cameron e dos seus olhos calorosos. Olhos que pestanejavam de vez em
quando e que não a arrepiavam, como os olhos penetrantes daquele francês…
Eve abanou a cabeça, afastando os ciúmes que a invadiram, por Lili ter visto
Cameron há menos tempo do que ela.
– Se vais viajar para Inglaterra amanhã, então deves dormir na cama. –
Elas tinham combinado uma estratégia para quando Lili precisava de dormir
em Lille: ela era uma amiga de Eve, uma costureira que a vinha visitar e que
ficava a dormir no seu quarto, para não infringir o recolher obrigatório. Este
cenário tinha passado o teste, após duas vistorias alemãs, e ver Lili
transformar-se em Marie, que era ainda mais palerma do que a loura
platinada Christine, fora fascinante.
– Não vou discutir contigo. – Lili pousou a camisa e a saia dobradas e
afundou-se na cama, enquanto contava uma história sobre a sua viagem para
Lille, nessa manhã. – Eu tinha enfiado um relatório de um informador de
Lens nas páginas de uma revista… Acreditas que a deixei cair ao sair do
comboio? – Deu uma risada claramente traquinas, soltando o cabelo claro. –
Um soldado alemão apanhou-a por mim, Deus o abençoe.
Eve sorriu, fazendo uma cama improvisada com cobertores ao lado da
cama estreita, mas o sorriso foi forçado. Não sorrira muito nessa noite e Lili
pareceu reparar nisso, interrompendo a história que contava.
– Conta lá, o que se passa contigo?
Eve olhou para a líder da Rede Alice. Na sua camisa de noite, Lili parecia
bem mais jovem do que os seus 35 anos, com o cabelo louro grosso e
despenteado, como o de uma menina que brincara o dia inteiro na rua.
Contudo, os olhos eram velhos e conhecedores, e as maçãs do rosto quase
visíveis sob a sua pele fina. Não a sobrecarregues, pensou Eve, sentindo uma
dor aguda no peito. Compreendeu subitamente o sentido de proteção sinistro
de Violette relativamente a Lili, porque naquele momento também o sentia.
Lili carregava tanto consigo e sempre fazia parecer o seu fardo ligeiro. Mas
isso estava a consumi-la, deixando-a magra como um espeto.
– Merde – praguejou Lili, exasperada. – Desembucha!
– Não é importante…
– Deixa que seja eu a decidir isso. Não me serves de muito se tiveres um
colapso nervoso.
Eve afundou-se na cama improvisada, ao lado da outra cama, e fitou as
suas mãos cruzadas.
– O René Bordelon quer seduzir-me. – As palavras saíram-lhe pesadas.
Lili inclinou a cabeça.
– Tens a certeza? Não me leves a mal, mas não me pareces o tipo de
pessoa bem-sucedida no jogo da sedução.
– Ele lambeu-me o p-pescoço. Depois disse que gostaria de me possuir.
Por isso, sim, tenho a certeza.
– Quelle bête – soltou Lili, num sussurro. Pegou na pequena cigarreira de
prata e acendeu dois cigarros. – Normalmente, falo sobre os homens maus
com uma bebida bem alcoólica na mão, mas, neste caso, um cigarro vai ter de
servir. Toma! Um cigarro clareia a cabeça e mata a fome.
Eve imitou o modo de pegar no cigarro de Lili, entre dois dedos, e de
seguida hesitou, citando a mãe:
– O tabaco é um vício de cavalheiros, não de senhoras.
– Tais-toi. Nós somos soldados de saias, não somos senhoras, e estamos a
precisar de um cigarro.
Eve levou o cigarro aos lábios e inalou. Tossiu, mas gostou
imediatamente do sabor. Era amargo e ela sentia um gosto amargo na boca
desde o momento em que René se aproximara dela.
– Então – continuou Lili, descontraída. – O Bordelon deseja-te. A questão
é o que vai acontecer quando ele te pressionar. Vai causar-te muitos
problemas, se recusares? Vai entregar-te aos alemães?
Ela queria saber a opinião profissional de Eve. Eve fez uma pausa, dando
mais uma passa do cigarro e tossindo menos. Sentiu o estômago dar uma
volta, mais por causa de René do que do cigarro.
– Ele não ia incomodar os alemães p-por causa de um rancor pessoal; ele
guarda os favores até p-precisar deles. Mas é provável que me despeça. Ele
não está habituado a ouvir r-recusas.
– Podíamos arranjar-te outro posto – sugeriu Lili, mas Eve abanou a
cabeça.
– Haverá outro lugar como o Le Lethe? Onde p-poderia eu obter
informações tão boas duas vezes por semana? Onde poderia eu ficar a saber
que o K-K-K… – Bateu no joelho com o punho até a palavra se soltar. – K-
Kaiser vem a Lille e em que comboio vem? Não. – Eve inalou
profundamente um trago de fumo, tossindo tanto que as lágrimas lhe vieram
aos olhos. – Tu p-p-p-precisas de alguém no Le Lethe.
– Sim – reconheceu Lili. – Ele despedir-te-ia, se o recusasses?
– Tenho de partir do princípio de que sim.
– Então, só há uma opção. – Lili olhou para o texto, expirando um círculo
de fumo. – Estás disposta a dormir com o René Bordelon?
Eve olhou fixamente para a ponta acesa do cigarro.
– Se tiver de ser.
Foi quase um alívio expelir as palavras. Ela vinha cercando-as desde o
que se passara, inspecionando-as de todos ângulos. A ideia enojava-a e
assustava-a, mas… e depois? O que importava se algo a assustava, se, de
qualquer maneira, tinha de ser feito?
– Um homem da idade dele, que escolhe uma rapariga que pensa ter 17
anos, está a assumir que ela é virgem. – O tom de Lili era totalmente prático.
– És?
Eve não conseguia ser tão descontraída, por muito que quisesse, pelo que
se limitou a acenar com a cabeça, com os olhos fixos no chão.
– Putain de merde – praguejou Lili, apagando o cigarro. – Se vais
realmente fazer isto, deves satisfazê-lo na cama, para que continues a obter
mais dele. De outra forma, estarás apenas a adiar o despedimento e a pagar
um preço muito alto por isso.
Eve não fazia ideia o que significava satisfazer um homem na cama – na
verdade, a sua imaginação parava no momento em que ela imaginava René
Bordelon a desabotoar a camisa impecável, feita à medida. Sentiu-se
empalidecer e Lili reparou.
– Vais mesmo fazer isto?
Eve acenou novamente com a cabeça.
– Eu vou c-c-c… – A palavra não saía de modo nenhum, mesmo quando
bateu com a mão no chão. Deixou-a ir, num assobio. – Merda – disse bem
alto. Era a primeira vez na vida que Eve dizia um palavrão em voz alta e, ao
dizê-lo, os nós apertados na sua garganta soltaram-se.
Foi a vez de Lili acenar com a cabeça.
– Acende outro cigarro e vamos falar de coisas práticas. Um homem que
toma uma mulher virgem como amante pretende uma de duas coisas: treiná-
la para ser ativa do modo que ele gosta ou mantê-la passiva e inocente
enquanto ele é ativo. Tens de prestar muita atenção e seguir o que ele quer.
Mas há coisas que podes fazer e que satisfazem qualquer homem… – Ela
especificou algumas, de forma gentil, mas detalhada, e Eve tentou memorizar
tudo o que conseguia, com o rosto rubro. Vou ter de fazer isso? E isso?
Para manter o emprego no Le Lethe, sim, ela teria de fazer tudo aquilo.
Ao ver o desconforto de Eve, Lili tocou-lhe na mão.
– Repara no que ele gosta e repete-o. Na realidade, é só isso. Outra coisa,
tens ideia de como evitar ficares enceinte?
– Sim. – Eve lembrava-se muito bem de, aos 12 anos, ter entrado na casa
de banho enquanto a mãe se lavava entre as pernas. Tinha visto também um
tubo e o saco de borracha. Não quero mais bebés daquele sacana, rosnara a
mãe, apontando o queixo na direção do quarto, onde o pai de Eve ressonava.
Eve permaneceu filha única; as lavagens da mãe deviam ter resultado.
– Não há nada que resulte na perfeição – garantiu Lili, como se tivesse
lido o pensamento de Eve. – Por isso, tem cuidado. Ninguém quer uma espia
grávida. Isso significaria o teu regresso imediato a casa, uma vez que
ninguém em Lille te trataria bem por teres engravidado de um colaborador.
Tantos pensamentos deprimentes. Eve afastou-os, concentrando-se numa
pergunta prática:
– Já alguma vez tiveste de… fazer isto?
– Houve um ou dois sentinelas alemães que me quiseram ver de joelhos
antes de me deixaram passar no posto de controlo.
Dez minutos antes, Eve não teria sabido o significado daquilo. Mas,
graças às instruções sem papas na língua de Lili, naquele momento já tinha
uma ideia mais clara. Olhou para Lili, incapaz de a imaginar a ajoelhar-se, a
desabotoar a braguilha de um homem e…
– Como… foi?
– Salgado – revelou Lili, sorrindo diante da expressão perplexa de Eve. –
Não tem importância, chérie. – O sorriso dela esbateu-se e as duas olharam-
se com rostos sombrios.
Eve inclinou a cabeça para trás e fitou o teto, dando outra longa passa.
Decidiu que gostava de fumar. Se algum dia acabasse noutra pensão com
uma senhoria a impor-lhe regras sobre o tabaco, mandá-la-ia para o inferno.
– Lili, porque não nos dizem que isto p-pode acontecer? Todo aquele
treino em Folkestone; n-n-n-não há sequer uma alusão ao facto de termos de
enfrentar situações destas.
– Porque eles não sabem. E, se fores esperta, não vais contar. – A
expressão de Lili era muito séria. – Faz o que tiveres de fazer, mas não contes
nada ao Capitão Cameron, nem ao Major Allenton, nem a nenhum dos outros
a quem reportamos.
A ideia de revelar ao Capitão Cameron que tinha ido para a cama com um
colaborador para obter informações fez Eve encolher-se.
– Jamais contaria isso a nenhum deles!
– Ainda bem. Porque eles nunca mais confiariam em ti, se descobrissem.
De tudo o que foi falado nessa noite, isto foi aquilo que mais a
surpreendeu.
– P-Porque não?
– Os homens são criaturas estranhas. – O sorriso torto de Lili não era
divertido. – Se uma mulher entrega a sua virtude a um inimigo, eles acham
que logo a seguir ela entregará o seu patriotismo. Eles acreditam pouco na
capacidade de uma mulher resistir a apaixonar-se por um homem com quem
partilha a cama. Além disso, o trabalho de uma espia é, já de si, pouco
respeitável, quanto mais uma horizontale. Não podemos envergonhar o nosso
país ao macular a nossa reputação: se trabalhamos em espionagem, temos de
o fazer como ladies.
– Que disparate – disse Eve, num tom apático. Lili sorriu.
– Oh, pois é, margaridazinha. Pois é. Mas queres correr o risco de ser
retirada de Lille porque eles acham que a tua cabecinha mole ficou toda
confusa devido a um colaborador jeitoso?
Eve bateu no cigarro para lhe tirar a cinza, sentindo o estômago
novamente a dar voltas.
– Achas que o Capitão Cameron pensaria isso de mim?
– Talvez não. Ele é um tipo decente, como vocês, ingleses, costumam
dizer. Mas já ouvi outros oficiais ingleses comentarem coisas semelhantes
sobre mulheres como nós.
– Merda – praguejou novamente Eve. Dizer palavrões, tal como fumar,
era cada vez mais fácil. Ela olhou para cima, para Lili, que retribuiu o olhar
com um sorriso que Eve não conseguiu interpretar. Prático, de pena, com
orgulho?
– C’est ainsi – disse ela tristemente. – Este trabalho é lixado, não é?
Sim, reconheceu Eve. Mas ela adorava aquele trabalho; fazia-a sentir-se
viva, como nenhuma outra coisa, por isso disfarçou o medo num encolher de
ombros desafiador.
– Mas alguém tem de o fazer. Nós somos boas a fazê-lo. Por isso, porque
não podemos ser nós?
Lili baixou-se e beijou a testa de Eve, que encostou a cabeça ao joelho de
Lili, e a líder da Rede Alice passou a mão pelo seu cabelo.
– Não vás a correr para a cama desse oportunista – aconselhou ela
docemente. – Eu sei… Estás a pensar em cerrar os dentes e acabar
rapidamente com o assunto. Mas tenta empatá-lo durante algum tempo, se
conseguires. Porque, se conseguirmos bombardear o Kaiser e acabar com ele
nos próximos 15 dias, entraremos num mundo completamente diferente. E
talvez possas voltar para casa sem precisares de ver o Bordelon todo nu.
Eve rezou para que as duas coisas acontecessem, enquanto Lili lhe fazia
festas no cabelo, como a mãe nunca fizera. Rezou mais do que alguma vez
rezara na vida – porque naquele momento podia sentir-se corajosa, mas, se
fechasse os olhos e recordasse a boca de René a saborear a sua carne, não
sentia mais do que nojo.
Capítulo 15
Charlie
Maio de 1947

A minha mãe estava a ser cuidadosa comigo, como se eu fosse um gato


com o pelo eriçado, pronto a fugir, se assustado. Ela não parava de me tocar
na mão ou no ombro, como se quisesse ter a certeza de que eu continuava
perto dela. Tagarelou durante toda a manhã, uma conversa ligeira e fluida
enquanto comíamos a torrada seca e o café que ela pedira para servir no
quarto e, depois, quando fazia a minha mala.
– Após a Consulta, compramos-te coisas novas em Paris. Este fato cor-de-
rosa nunca mais vai ser o mesmo…
Eu comia a minha torrada, irritada. Não gostava de falar logo pela manhã,
especialmente depois de dormir tão pouco, e já tinha perdido o hábito de
fazer conversa ao pequeno-almoço. Eve estava sempre demasiado ressacada
para fazer mais do que fitar o relógio até ao meio-dia e Finn era reservado a
qualquer hora do dia. Charlie, miúda…
– Põe os ombros para trás, ma chère – disse a minha mãe.
Endireitei-me. Ela sorria distraidamente, retocando o batom.
No dia anterior, com os olhos cheios de lágrimas e os abraços
espontâneos, ela parecera-me mais meiga do que a mãe a que eu estava
habituada. Naquela manhã, ancorada pela sensação de alívio, parecia
recompor, com cada camada de batom, a habitual máscara envernizada.
– Podemos ficar mais um pouco? Pedir mais comida? – Para variar, o
Pequeno Problema estava a fazer-me sentir esfomeada, em vez de enjoada.
Não queria torrada seca; queria o pequeno-almoço inglês que Finn fazia:
bacon, pão e ovos com a gema líquida. Bacon…
– Temos de ter cuidado com a nossa figura. – A Maman deu uma
palmadinha na sua própria cintura, com um sorrisinho irónico. – Afinal de
contas, é preciso sofrer para se ser bonita.
– Não sou bonita, por mais que tente – respondi. – Por isso, quero comer
o raio de um croissant.
Ela olhou para mim com uma expressão genuinamente chocada.
– Onde aprendeste esse tipo de linguagem?
Com uma inglesa louca que me tentou dar um tiro. Estranhamente, sentia
a falta da Eve.
– Compramos croissants no comboio – disse a Maman, fechando a mala
dela. – Não nos podemos atrasar.
Ela já tinha um paquete à porta. Comi o último pedaço de torrada
enquanto me levantava, ao mesmo tempo que a minha mãe limpava uma
migalha do canto da minha boca e me endireitava a gola. Porque me sentia
sempre uma criança na presença dela?
Tu és uma criança, sussurrou a voz manhosa dentro de mim. É por isso
que não podes ter uma criança. Não sabes nada.
E quem és tu para falar?, respondeu o Pequeno Problema.
Para de falar comigo, disse eu silenciosamente à minha barriga. Para de
me fazer sentir culpada. Não posso fazer nada por ti. Não te posso ter. É o
que toda gente diz.
E tu, o que achas?, respondeu o P.P. Eu não tinha uma resposta, só um
enorme nó na garganta.
– Charlotte?
– Já vou. – Seguia-a para o corredor, em direção aos elevadores. – Não é
melhor telefonarmos ao pai antes de apanharmos o comboio? – consegui
perguntar.
A minha mãe encolheu os ombros.
– Ele não está preocupado? – Perguntei-me se ele falaria comigo, quando
eu voltasse para casa. E se eu fosse à Consulta e, ainda assim, ele me
odiasse? E se continuasse a pensar que eu era uma galdéria? O nó na minha
garganta duplicou de tamanho.
– Se queres mesmo saber, não lhe contei que tinhas fugido em Londres,
feita rebelde. – Ela olhou para mim. – Para quê? Não o queria preocupar.
– Mas, entretanto, já lhe contou, não? – Entrámos no elevador. – Estamos
atrasadas vários dias relativamente ao planeado. Não vamos chegar a casa no
dia em que ele nos espera.
A minha mãe esperou que o paquete se juntasse a nós com as malas e
depois carregou no botão.
– Se passarmos menos uma semana em Paris do que o planeado,
chegaremos a casa a tempo, e o teu pai não terá de se preocupar com nada.
– Vamos para casa mais cedo? A mãe prometeu que depois de Vevey
íamos falar sobre a Rose. E sobre ir a Limoges…
– Falaremos disso quando chegarmos a casa. – Ela sorriu ao mesmo
tempo que o elevador começava a descer. – Quando for a altura certa.
Fitei-a.
– Quando for a altura certa? A altura certa é agora. Nós já estamos aqui.
– Ma chère… – Ela olhou de relance para o paquete, que, curioso,
escutava sem compreender a nossa conversa em inglês.
Ignorei-o.
– Não podemos ir para casa, não depois de tudo o que descobri.
– Não nos cabe a nós fazê-lo, Charlotte. É um trabalho para o teu pai.
– Porquê? Tenho feito um bom trabalho sozinha, melhor do que…
– Não é apropriado – disse ela bruscamente. – Tens de ir para casa, não
andar à procura de algo impossível. O teu pai tomará conta do assunto. Vou
pedir-lhe, mas mais tarde. Quando chegarmos a casa.
Mais tarde. Sempre mais tarde. Senti a raiva a acumular-se no meu
estômago.
– A mãe prometeu.
– Eu sei, mas…
– Maman, isto é importante para mim. – Toquei-lhe no braço, tentando
fazê-la compreender. – Não podemos desistir até…
– Não estou a desistir, chérie.
– Pois é o que parece. Este assunto vai continuar a ser urgente para si,
quando voltarmos para o outro lado do Atlântico? – A minha voz elevou-se. –
Quando não for uma promessa fácil para fazer e quebrar, só para me
convencer a apanhar o comboio?
A campainha do elevador tocou e as portas abriram-se. A Maman lançou
um olhar furioso ao paquete curioso e ele pegou nas nossas malas e caminhou
apressadamente na direção da receção do hotel.
– Então? – questionei.
– Este não é o local adequado para termos esta conversa. Vamos embora e
deixa de fazer espalhafato, por favor. – Saiu elegantemente do elevador para
o átrio do hotel.
– Espalhafato? Então é isso o que a preocupa? – Seguia-a, batendo com
os pés no chão.
Ela virou-se para trás e ofereceu-me um sorriso forçado.
– Por favor, Charlotte. O teu pai já está tão zangado contigo. E também
vai ficar comigo, se nos atrasarmos ainda mais. Por isso, por favor, para de te
comportar mal e vamos embora.
Olhei para ela, especada. A minha mãe, bela e segura de si, a morder os
lábios perfeitamente pintados, preocupada com a possibilidade de o meu pai
se zangar com ela. Ela não teve coragem de lhe contar que eu fugira para
França. Não teve coragem de lhe dizer que íamos chegar a casa uma semana
mais tarde. Ela diria qualquer coisa para me meter no comboio para Vevey,
tal como uma menina mentiria para se livrar de uma tareia. Se ela não me
devolvesse a casa a tempo e horas, e sem barriga, o meu pai ia zangar-se com
ela.
A Maman sempre me fez sentir como uma criança. Naquele momento,
olhei para ela e senti-me a pessoa adulta da relação.
– A mãe não vai procurar a Rose, pois não. – Não era uma pergunta.
– Porque a Rose está morta! – Ela revelou-se, por fim. – Tu sabes disso,
Charlotte!
– Possivelmente. Provavelmente, até. – Tentei ser justa, apesar da minha
raiva. – Mas isso não é suficiente para mim, e a mãe prometeu que eu podia
levar o assunto até ao fim. Se não for por mais nada, só para ficar em paz. –
Fiz uma pausa. – Se o pai não quiser retomar a busca, a mãe pode garantir-
me, com toda a honestidade, que o vai pressionar para que isso aconteça?
Ela expirou bruscamente.
– Vou pagar os nossos quartos. Tenta acalmar-te.
Virou costas e caminhou com firmeza, passinhos curtos e irritados, com
os tacões a baterem no chão. Fiquei para trás com as malas, a sentir-me
estranha e frágil como vidro, e, ao olhar para o outro lado do átrio, vi Rose.
Não era ela, claro – era apenas uma rapariga gorducha e borbulhenta
encostada à janela, à espera que os pais terminassem o check-in –, mas a luz
do sol fazia uma auréola no seu cabelo louro, sombreando-lhe o rosto, e por
um momento eu deixei-me acreditar que era Rose. Rose a olhar diretamente
para mim e a abanar ligeiramente a cabeça.
Tu não és uma criança, Charlie, imaginei-a a dizer. Nem cobarde.
Rose sempre fora corajosa. Mesmo quando tinha medo de ficar sozinha
ou de ser abandonada – como naquele dia, no café da Provença –, ela era
corajosa. Devia ter-se sentido aterrorizada, assim que se viu na mesma
situação em que naquele momento eu me encontrava e, ainda assim, não
cedeu quando os pais tentaram “resolver o problema” por ela. Ela teve o bebé
e fez-se à vida sozinha, por mais que isso a tivesse assustado.
A voz de Finn ecoou na minha cabeça. O que é que tu queres?
Ser corajosa, pensei.
Sabes o que é isso?, perguntou o Pequeno Problema. Descobre a resposta
como se fosse uma equação. Calcula o valor de X. X = corajosa.
Vi a minha mãe a fechar a carteira e caminhar na minha direção. Senti-me
doente. Não sabia absolutamente nada sobre bebés. Eram pequeninos e
indefesos, esfomeados e frágeis, e aterrorizavam-me. Este aterrorizava-me.
Não estava preparada para ele. Nem um bocadinho.
Inspirei fundo quando ela se juntou a mim.
– Não vou para Vevey.
– O quê? – As sobrancelhas arranjadas dela arquearam-se. Atrás dela, a
rapariga borbulhenta que eu transformara momentaneamente na Rose
afastava-se com os pais, quebrando a ilusão.
– Não vou à Consulta – disse eu.
– Charlotte, não vamos voltar a discutir este assunto. Está arrumado. Tu
concordaste em ir…
– Não. – Ouvi as minhas palavras como se fossem ditas por outra pessoa.
– Não me vou desfazer dele. Vou tê-lo.
Seria de supor que a tomada de uma decisão tão importante me trouxesse
algum alívio ou catarse. Mas nada. Sentia-me doente e assustada. Mas
também com fome. Esfomeada, na verdade. E disse timidamente ao Pequeno
Problema: Vou alimentar-te.
Ele pareceu gostar da ideia. Bacon, replicou.
Provavelmente, devia dar-lhe outro nome, em vez de P.P.
– Charlotte, ambas sabemos que esta é a única opção, por isso…
– Não é a única opção – interrompi. Nunca na vida tinha interrompido a
minha mãe. – Essa é a opção que traz menos problemas para si. Alguém
resolve o meu problema e o pai não tem de contar coisas embaraçosas aos
sócios dele, nem a mãe tem de contar às suas amigas do clube de bridge. Eu
sei que a sua intenção é boa, mas esta não é a única opção. E eu não tenho de
a tomar.
O rosto dela endureceu de fúria e a voz transformou-se por fim num
sussurro venenoso.
– E como vais sobreviver, sua vadia ingrata? Nenhum homem respeitável
vai querer casar com uma rapariga mãe de um bastardo. Como achas que te
vais sustentar?
– Eu tenho dinheiro, Maman. Dinheiro que eu ganhei, que não foi apenas
herdado. Consigo tomar conta de mim. Não sou indefesa. Não sou. Indefesa –
repeti teimosamente porque, que raio, apesar da quantidade de vezes que a
palavra falhanço, falhanço, falhanço soava no interior da minha cabeça, essa
era a verdade. Conseguia fazer as contas no livro de cheques da minha mãe
muito melhor do que ela, e era capaz de procurar a Rose de uma forma mais
eficiente do que o meu pai. E talvez tivesse falhado com o James, mas isso
não significava que ia falhar em tudo na vida.
– Sim, és! Como achas que vais cuidar de um bebé?
– Vou ter de aprender. – Havia uma porção de coisas que eu teria de
aprender, mas o facto de isso ser assustador não significava que não o podia
fazer. – Sei pouco sobre bebés, mas tenho seis meses para aprender. E há
outra coisa que sei: que, aqui e agora, vou continuar a procurar a Rose.
Peguei na minha mala. A Maman esticou a mão e agarrou-me no pulso.
– Se fores embora agora, nunca mais penses em voltar para casa.
Aquilo atingiu-me como um pontapé. Mas levantei o queixo e respondi:
– A mãe nunca reparou em mim quando eu vivia em casa. Não creio que
isto vá fazer grande diferença.
Tentei libertar-me, mas os dedos dela apertaram-me ainda mais.
– O único lugar para onde vais é a estação de comboios, Charlotte St.
Clair. És menor de idade e eu posso obrigar-te… – Ela estava aos gritos. A
minha mãe, tão respeitável, tão preocupada com o que os outros pensavam,
gritava como uma peixeira. Por todo o átrio, as pessoas fitavam-nos. Gritei-
lhe também.
– Acabou de me expulsar de casa, Maman! Não vou a lado nenhum
consigo! – Dei outro puxão, mas ela continuou a segurar-me com firmeza.
– Não fales assim comigo!
Uma voz baixa e zangada soou atrás de mim. A voz baixa e zangada de
um escocês.
– Passa-se alguma coisa, menina?
– Não se passa nada, Finn. – Voltei a dar outro puxão e, desta vez,
consegui libertar-me. Olhei para ele. Tinha o saco de Eve ao ombro e a chave
do descapotável na mão: ele e Eve deviam estar a fazer o check-out. – Há
espaço no Lagonda para mim?
Ele sorriu abertamente e pegou na minha mala de viagem.
A minha mãe olhou para ele, espantada, reparando na camisa amarrotada
de mangas arregaçadas e na barba por fazer.
– Quem… – começou a dizer, mas foi interrompida pela chegada
atabalhoada de Eve.
– Por Cristo, Finn – disse ela, com a voz áspera matinal. – Vejo que
encontraste a ianque.
– Ou ela vem, ou a Eve fica – disse Finn.
– Mas tu trabalhas para mim!
– O carro é meu.
Algo caloroso vibrou na minha barriga. Eu tinha pensado em ir para
Limoges de comboio, mas a possibilidade de voltar a andar naquele carro
maravilhoso… Eu adorava aquele carro. Proporcionava-me mais conforto do
que a casa da qual eu acabava de ser expulsa. Olhei para Finn e senti-me
engasgar ao dizer-lhe:
– Obrigada.
– Não acreditava que te voltaríamos a ver. – Surpreendentemente, o tom
de Eve parecia mais de aprovação do que irritação. – É mais difícil livrarmo-
nos dos americanos do que de lapas.
– Quem é esta? – Desta vez, a minha mãe conseguiu dizer a frase inteira.
Eve olhou para ela. Que par estranho faziam: a minha mãe, cheia de
estilo, de cintura minúscula, chapéu requintado e luvas impecáveis; e Eve,
maltrapilha, de vestido coçado e mãos estropiadas. Com o seu ar imperioso
de ave de rapina, encarou fixamente a Maman, até ela começar a piscar os
olhos.
– Deves ser a mãe – comentou, por fim, Eve. – Não vejo semelhanças.
– Como se atreve…
– Eve – disse eu, intrometendo-me. – Vou procurar a minha prima. No
meio dessa confusão, há um homem de quem a Eve tem medo. Creio que tem
de descobrir se ele está vivo ou morto. Acho que deve vir comigo.
Não sei porque disse aquilo. Eve, com o seu mau humor e a sua pistola,
complicavam tudo; podia despachar-me mais rapidamente sem ela. Mas,
nesse dia, ganhei coragem, por mais que isso me aterrorizasse, e queria que
Eve também ganhasse coragem – para ser a mulher resoluta que praguejara e
mentira na loja de penhores, ajudando-me a vender as pérolas, e a pessoa que
exigira respostas da mulher que a odiava, na loja de antiguidades. Não queria
que Eve voltasse a correr para Inglaterra e se escondesse no número 10 de
Hampson Street. Parecia-me, de alguma forma, indigno dela.
Também queria algo por mim. Queria saber o que lhe tinha acontecido
durante a ocupação de Lille, não só às mãos como à alma.
Tentei encontrar uma forma eloquente de dizer tudo isto, mas não
consegui. Tudo o que conseguir dizer foi:
– Quero ouvir o resto da sua história.
– Não é uma história bonita – confessou ela. – E falta-lhe um final.
– Então, escreva-o agora. – Coloquei as mãos nas ancas, em sinal de
desafio. – Não se sente preparada, mas a Eve não é cobarde. Então, qual é a
sua decisão? Sim ou não?
– Quem é esta gente? Charlotte!
Não fiz caso da minha mãe. Ela passara de uma posição em que dirigia a
minha vida para outra em que estava completamente fora dela. Mas Eve
olhou de relance para ela.
– Se a tua mãezinha for, não vou. Só passei 30 segundos na companhia
dela e ela já é muito mais irritante do que tu. Ao fim de um dia de viagem, era
provável que lhe desse um tiro.
– Ela não vem. – Olhei para a minha mãe e fui tomada por uma última
onda de raiva, confusão e amor, um último instinto para fazer o que ela
quisesse. Depois, foi-se. – Adeus. – Provavelmente, devia dizer-lhe mais
alguma coisa. Mas o que havia para dizer? Os olhos dela focavam
alternadamente Finn e Eve.
– Mas tu não podes ir assim, de carro com… com…
– Finn Kilgore. – Finn falou inesperadamente. Esticou a mão e, sem
pensar, a minha mãe apertou-a. – Saído da prisão de Sua Majestade, em
Pentonville. – Ela largou a mão dele, como se tivesse espinhos, e a boca
entreabriu-se. – E, antes que pergunte – acrescentou Finn, num tom educado
–, foi por agressão. Por atirar americanos chatos ao Tamisa. Bom dia, ma’am.
Ele pôs a minha mala ao ombro e caminhou para a porta de saída. Eve
acendeu um cigarro, virou-se para o seguir e depois olhou por cima do
ombro.
– Queres ouvir a minha história ou não, ianque?
Dirigi um último olhar à minha mãe. Ela estava especada a olhar para
mim, como se não soubesse quem eu era.
– Eu amo-a, Maman – disse. Depois, saí do hotel para as ruas
movimentadas de Roubaix. Sentia-me leve. Enjoada. Eufórica. Arrebatada.
Tinha as palmas das mãos a transpirar e a cabeça a fervilhar de barulho. Mas
uma coisa era clara.
– Pequeno-almoço – disse eu, quando Finn chegou com o Lagonda de
capota encolhida. Dei uma palmadinha no painel do velho carro ao entrar. –
O nosso destino é Limoges, mas antes temos de encontrar o maior pequeno-
almoço possível em Roubaix. Esta bebé está a dizer-me que quer ser
alimentada.
– É uma rapariga? – perguntou Eve.
– Assim ela mo diz.
Quantas coisas aprendi naquele dia. E quantas coisas ainda por aprender.
Capítulo 16
Eve
Julho de 1915

Dentro de dez dias, o Kaiser estaria morto. Era o que Eve dizia a si
mesma.
– Despacha-te! – pediu Lili, apressando o passo encosta acima. Eve sentia
o cabelo colado ao pescoço, mas Lili parecia insensível ao calor estival,
caminhando a passos largos com as saias arregaçadas e o chapéu pendurado
para trás. – Lesma!
Eve pôs o cobertor dobrado debaixo do braço e acelerou o passo. Lili
conhecia os arredores de Lille como a palma da mão.
– Mon Dieu! Como é bom palmilhar estas colinas em pleno dia e não no
escuro da noite, com pilotos enlameados a reboque! Vá, só mais uma
colina…
Lili desatou a correr encosta acima. Eve ficou a olhar para ela, banhada
em suor, a pensar como aquelas seis semanas de pouca comida a tinham
enfraquecido; mas rapidamente recuperou o ânimo ao chegar ao cimo da
colina. O céu estava limpo e as ervas das encostas, verdes e douradas,
brilhavam à luz do sol. Estavam a apenas alguns quilómetros de Lille, mas
era como se tivessem fugido da sombra de uma nuvem negra, longe dos
letreiros alemães e dos soldados alemães. Não que tudo fossem rosas no
campo. As pequenas quintas por que Eve e Lili haviam passado também
sentiam os efeitos da fome e do desespero, uma vez que tinham visto os
porcos, a manteiga e os ovos confiscados pelo inimigo. Mas do cimo daquela
pequena colina era possível fingir, por momentos, que os omnipresentes
invasores tinham desaparecido.
E talvez eles desaparecessem em breve, de facto. Se os pilotos da Royal
Flying Corps fizessem bem o seu trabalho.
As duas mulheres ficaram no cimo da colina, ambas de braços cruzados, a
observar a linha férrea que se estendia até à Alemanha. Dez dias para o
Kaiser passar por aqueles carris. Mais dez dias e o mundo poderia ser muito
diferente.
– Aqui. – Lili acenou com a cabeça na direção da linha de comboio. –
Tenho andado a estudar esta zona. Tal como a Violette e o Antoine. –
Antoine era um livreiro de Lille, de expressão enganadoramente dócil, que
falsificava documentos de identificação e passes para Lili. Para além de
Violette, era o único membro da Rede Alice que Eve conhecia, um contacto
necessário no caso de ela precisar de papéis novos numa situação de
emergência. – E todos concordamos que este trecho da linha é o melhor para
o ataque. – Lili levantou a saia e começou a despir o saiote de cima – Sabe-se
lá se os oficiais vão aceitar a sugestão.
– Estende o c-cobertor – aconselhou Eve. – Estamos a fazer um
piquenique, lembras-te? – Essa era a história que contariam, se algum batedor
alemão as encontrasse ali: Marguerite Le François e a sua amiga costureira
tinham levado modestas sanduíches para comer ali e aproveitar o bom tempo.
Mas, quando Eve estendeu o cobertor coçado, Lili não se deu ao trabalho de
tirar as sanduíches. Em vez disso, tirou um pedaço de carvão e começou a
mapear rapidamente o terreno em seu redor no saiote estendido.
– Está cada vez mais difícil passar mensagens escritas em papel – revelou
ela, com a habitual vivacidade, apesar da intensa concentração. – Mas aqueles
guardas não fazem ideia de quanta informação pode ser escrita num saiote de
senhora.
– Porque me trouxeste? A Violette conhece a região melhor do que eu.
Não seria melhor ser ela a ajudar-te a o-organizar o relatório?
– Sim, ela já o fez. Mas foste tu que ouviste em primeira mão a
informação sobre a visita do Kaiser, margaridazinha. Mereces saber o que se
passa. – A mão de Lili desenhava depressa, marcando o solo, as
irregularidades, os carris, as árvores. – Quando entregar o relatório ao Tio
Edward, vais comigo; ele pediu-me para te levar.
– A m-mim?
– Quer entrevistar-te, para ver se há mais algum detalhe que possa extrair
da tua memória. Trata-se de algo muito importante e ele não quer correr
riscos. Partimos daqui a dois dias.
Iam ver o Capitão Cameron dentro de dois dias. Sabê-lo devia ter sido um
conforto para Eve; no entanto, sentiu-se estranha. Ele parecia-lhe tão distante
que era como se vivesse noutro mundo. E a logística de uma visita dessas
dava-lhe uma volta ao estômago ainda maior do que pensar nos olhos
calorosos dele.
– N-Não posso ir a Folkestone. Não tenho coragem de faltar ao trabalho.
– Não temos de ir até Folkestone. – Lili terminou calmamente as suas
notas. – O Tio Edward vai encontrar-se connosco do outro lado da fronteira,
em Bruxelas. Voltaremos no dia seguinte.
– A minha m-maneira de falar… Vão reparar em mim no posto de
controlo. Vou fazer com que te a-apanhem. – Se Lili fosse apanhada devido à
sua gaguez, ela cortaria a própria língua com uma lâmina de barbear
ferrugenta.
– Je m’en fou! – Lili despenteou-lhe o cabelo. – Quem vai falar sou eu!
Estou habituada a desenrascar-me nas estações de comboios com palavreado.
Tens apenas de fazer uma expressão de doce inocência e tudo vai sair right as
rain, como vocês, ingleses, dizem. A propósito, quem disse que a chuva cai
sempre a direito? Vocês têm cada expressão mais estranha.
Lili tentava aligeirar a situação, Eve bem o sabia. Aqueles comentários
descontraídos, enquanto voltava a vestir o saiote com o mapa desenhado a
carvão, eram intencionais.
– Devias ter mais cuidado – aconselhou Eve, recolhendo as coisas do
piquenique. – Não leves tudo tão a b-brincar. A vida não vai ter piada se te
vires em frente a um pelotão de f-fuzilamento.
– Bah. – Lili acenou com a mão, uma mão tão magra que, à luz do sol, era
quase transparente. – Eu sei que um dia serei apanhada, mas o que importa?
Pelo menos, terei servido o meu país. Por isso, apressemo-nos e façamos
coisas importante enquanto há tempo.
– Não há m-muito tempo – resmungou Eve, seguindo Lili encosta abaixo.
– Daqui a dois d-dias partimos para Bruxelas. Como vou fazer para ter um
dia de folga?
– Vê se consegues arranjar uma desculpa no Le Lethe. – Lili lançou-lhe
um olhar de esguelha enquanto desciam a colina de regresso à cidade. –
Como vai o teu horrível pretendente?
Eve não queria pensar em René Bordelon. Desde a noite em que ele a
acompanhara a casa, ela tinha tentado evitar cruzar-se com ele; no Le Lethe,
levantava pratos, servia schnaps e escutava. Até conseguira escrever um
relatório sobre um excelente piloto germânico, de nome Max Immelmann –
sempre tentando evitar o olhar do patrão. Mas ele encontrava maneira de lhe
dizer que a observava e que continuava à espera de uma resposta. Por vezes,
era um olhar silencioso direcionado ao pescoço dela, onde ainda sentia a
língua dele a saborear a sua pele. Outras vezes, era o resto de um gole de
vinho que ele lhe oferecia de um copo usado, à hora do fecho. Que mundo era
este, quando uns goles de vinho do copo de um estranho podiam servir para
seduzir uma jovem presumivelmente esfomeada e desesperada.
– Persistente – respondeu Eve, por fim.
Lili prendeu uma madeixa de cabelo atrás da orelha.
– Tens conseguido repeli-lo?
– Até agora, s-sim.
Na realidade, haveria algo mais para além do agora na vida que ela
levava? Ver o Capitão Cameron dentro de dois dias e a chegada do Kaiser daí
a dez eram factos que existiam numa mesma zona cinzenta. Havia o passado
e o presente. Nada mais era certo. Nada mais era real.
Nessa noite, a conversa parecia mais viva do que o habitual no Le Lethe, a
azáfama dos oficiais mais barulhenta, o riso das mulheres nos seus braços
mais histérico.
– Galdérias – sussurrou Christine, num momento em que ela e Eve
estavam encostadas à parede, à espera de serem chamadas por um dedo em
riste. – Aquela ali, aperaltada num vestido de seda e agarrada àquele capitão,
é Françoise Ponceau. Sabes, o padeiro faz pão especial para gajas como
aquela. Ele mija na massa antes de a estender…
– Elas m-merecem – concordou Eve, embora sentisse o estômago
embrulhado. A jovem tinha um olhar ansioso, apesar dos sorrisos, e estivera a
noite toda a meter pãezinhos dentro da carteira, sempre que o capitão virava
costas. Teria alguém em casa que tinha de alimentar, provavelmente até mais
do que uma pessoa; em troca, recebia pão com urina e insultos. Mas era mais
seguro concordar com a opinião segredada de Christine, já que essa era a
opinião da maioria dos habitantes de Lille.
René olhou para as suas empregadas e Eve reparou no brilho do olhar
dele à luz das velas. Olha para a Christine, implorou Eve em silêncio.
Bonita, loura e burra como um poste; porque não olhas para a Christine?
Mas ele fez sinal com o dedo a Eve, e ela aproximou-se para servir os
digestivos, enquanto René esboçava um sorriso de apreciação pela sua calma
silenciosa, pela posição exata do seu braço.
– Alguém se importa de levar o livro-razão lá acima? – perguntou Eve aos
restantes empregados no final da noite, mas eles limitaram-se a rir.
– Agora, essa é a tua tarefa, Marguerite! Ele fica sempre mais bem-
disposto se fores tu a levá-lo e nós gostamos do Monsieur René bem-
disposto.
Soltaram risinhos abafados e Eve apercebeu-se de que os olhares de René
não tinham passado despercebidos.
– Vocês são uns p-porcos – rosnou e, irritada, subiu as escadas de serviço.
Fez uma vénia a René e, ao passar-lhe as contas do dia, os dedos dele
roçaram levemente nos seus.
– Está com pressa, Mademoiselle Le François? – disse ele, analisando as
contas do dia.
– Não, monsieur.
Ele demorou-se, folheando calmamente as páginas. Era uma noite quente
de verão e ele, tendo despido o casaco, estava sentado só de camisa
imaculadamente branca, o cabelo penteado para trás com brilhantina, tão
lustroso quanto os sapatos de couro. Os botões de punho eram salpicos
inesperados de cor, de um vermelho rubi com lascas de ouro.
– Vidro art nouveau – disse ele, observando na direção do olhar dela.
Repararia ele em tudo? – Ao estilo de Klimt. Já ouviu falar de Klimt? Tive a
sorte de ver alguns quadros dele em Viena, antes da guerra. Obras
extraordinárias. Havia um chamado Danaë, a mulher do mito grego a quem
Zeus visitou sob a forma de chuva dourada… Klimt mostra-a excitada pelo
ouro que lhe cai entre as pernas.
Eve não tinha vontade de falar sobre qualquer tipo de excitação ali dentro,
fosse artística ou outra.
– Não, n-nunca ouvi falar disso.
– É entrega. – Ele tirou os botões de punho e colocou-os na mão dela,
para que ela os examinasse. Em seguida, arregaçou as mangas, revelando
braços elegantes, de pele branca e macia, e Eve desviou o olhar para os
pequenos objetos de vidro, levando-os à luz e admirando o jogo de luzes. – A
entrega sensual representada pelo ouro. As pessoas consideraram o quadro
obsceno, mas que importa? Também achavam Baudelaire obsceno.
Eve pousou cuidadosamente os botões de punho ao lado do busto do
poeta, estudando o impressionante perfil de mármore e perguntando-se se a
amante de Baudelaire o teria desprezado tanto quanto ela desprezava René.
– Posso pedir-lhe um favor, m-monsieur?
– Um favor? Que intrigante.
– Posso faltar daqui a duas noites? Prometi a uma amiga que iria com ela
visitar o tio, e ele mora um pouco longe. – Tudo perfeitamente verdade. Com
René, Eve fazia o possível por mentir apenas no que não era dito.
– Pretende faltar ao trabalho. – Ele mediu as palavras. – Há muitas jovens
que a substituiriam e nunca faltariam ao trabalho, sabe.
– Eu sei, monsieur. – Eve olhou para ele, implorando com o seu olhar
doce. – Esperava que estivesse suficientemente s-satisfeito com o meu
trabalho para…
Ele deixou-a pendurada por alguns instantes, pondo o livro-razão de lado.
– Muito bem – disse ele, finalmente, e Eve quase suspirou de alívio. –
Pode tirar a noite de folga.
– Obrigada…
Ele interrompeu-a.
– Já é muito tarde. Lembrou-se de trazer a sua dispensa do recolher
obrigatório ou vou ter de a acompanhar novamente? – Desapertou o nó da
gravata. – Talvez te acompanhe de qualquer maneira. Gostava de te conhecer
melhor, Marguerite.
Ele tomou posse do nome dela, ou o que ele pensava ser o nome dela,
abandonando a formalidade e o mademoiselle de modo casual. Eve pensou,
ao vê-lo tirar a gravata, que a intenção dele era não sair. A intenção dele era
conhecê-la melhor ali mesmo.
Porque eu lhe pedi um favor.
Ela quis engolir o nó que tinha na garganta, e foi isso mesmo o que fez,
para que ele a observasse a fazê-lo. O nervosismo dela agradar-lhe-ia.
Ele deixou cair a gravata no braço de couro do cadeirão.
– Pensaste bem na minha proposta da outra noite?
Eve não fingiu não perceber.
– A sua proposta s-surpreendeu-me, monsieur.
– Ah, sim?
– Não sou a c-companhia certa para um homem de bom gosto. Sou uma
empregada. Não possuo beleza nem modos r-r-respeitáveis, não conheço o
mundo. Por isso, sim, a sua proposta surpreendeu-me muito.
Ele levantou-se do cadeirão fundo, sem pressa, e dirigiu-se à mesinha de
pau-cetim com os decantadores de cristal. Tirou a tampa de um deles e verteu
dois dedos de um líquido claro e brilhante para um copo baixo. Brilhava
como um diamante e ele ofereceu-o a Eve.
– Prova.
Sem outra alternativa, ela bebeu um gole. Queimou-lhe a garganta:
ardente e doce, ligeiramente floral, muito forte.
– Licor de flor de sabugueiro. – Ele apoiou o cotovelo no lintel de ébano
da lareira. – Compro-o diretamente a um vinhateiro de Grasse. Uma região
linda, Grasse: o ar cheira ao licor, floral e inebriante. É um licor único, por
isso não o sirvo no meu restaurante. Aos alemães, ofereço brandy, schnaps,
champanhe. Guardo o que é único para mim. Creio que gostas, não?
– Gosto, sim. – Não valia a pena mentir a René sobre algo que não tinha
necessidade de fazer. – Mas porquê partilhá-lo c-comigo, se n-n-ão partilha o
que é único com ninguém?
– Porque tu também és única. Tens bom gosto… muito bom gosto, podia
até dizer, mas és completamente desprovida de educação. És como Eva no
Jardim do Éden.
Eve quase saltou ao ouvir o seu nome verdadeiro, mas conseguiu manter-
se impávida e bebeu um pouco mais do licor ardente.
– Sempre apreciei o bom gosto e a elegância nas minhas companhias –
continuou ele. – Até agora, tenho preferido o produto final à matéria-prima,
mas hoje em dia Lille tem pouca oferta de mulheres elegantes. A fome e o
patriotismo fizeram de todas as que eu conhecia megeras. Para conseguir a
companhia adequada, parece-me que vou ter de fazer o papel de Pigmalião da
mitologia grega e esculpi-la só para mim. – Esticou o braço e, com um dos
seus dedos compridos, desviou uma madeixa de cabelo da testa de Eve. –
Não pensei que pudesse gostar de o fazer. Por isso, já vês, também eu fiquei
surpreendido contigo.
Eve não conseguia pensar em nada para dizer. Ele apontou para o copo,
parecendo não estar à espera de resposta.
– Mais?
– Sim.
Encheu generosamente o copo. Ele está a tentar embebedar-me, pensou
Eve. Marguerite, com os seus 17 anos, não aguentaria bebidas fortes. Dois
copos deste licor fá-la-iam ficar dócil e solícita.
Eve olhou para o copo e viu os carris que levariam o Kaiser a Lille. Viu
as figuras indolentes do Kommandant e dos seus oficiais reunidos à mesa, a
revelar despreocupadamente segredos de schnaps na mão. Viu o rosto
radiante de Lili no dia em que lhe passara pela primeira vez aquela
informação. Ouviu até a voz de Lili: Este trabalho é lixado.
Sim, pensava naquele momento Eve, tal como respondera na altura. Mas
alguém tem de o fazer. Sou boa a fazê-lo. Porque não eu?
Bebeu o licor de uma vez só. Quando baixou o copo, René estava bastante
mais próximo. Cheirava a colónia parisiense, um aroma subtil e civilizado.
Perguntou-se se ele a beijaria nesse momento. Pensou fugazmente no Capitão
Cameron a olhar para ela na praia, ensinando-a a carregar uma pistola.
Afastou a recordação no momento em que René inclinava a cabeça.
Não te retraias.
Ele aproximou-se dela, inspirando a pele na base do pescoço, e depois
endireitou-se, fazendo uma ligeira careta.
– Talvez um banho. Podes usar o meu quarto de banho.
Ela sentiu os lábios entorpecidos, mas ele não lhes tocara. Por momentos,
não compreendeu. Então, olhou para as suas mãos, para os punhos,
salpicados de beurre blanc e vinho tinto, por mais cuidado que tivesse, e
apercebeu-se de que tinha uma leve camada de suor seco por baixo do
vestido, depois da rápida caminhada com Lili nos arredores de Lille, nessa
manhã. Cheiro mal, pensou Eve, sentindo-se tão humilhada que lhe apeteceu
chorar. Cheiro a suor e a sabão barato e, antes de ser desflorada, devo ser
convenientemente lavada.
– Há sabonete – disse René, virando costas e desapertando casualmente o
colarinho. – Escolhi-o para ti.
Ele esperava gratidão.
– Obrigada – conseguiu Eve dizer, enquanto ele apontava para a porta
atrás de si.
A casa de banho tinha o mesmo luxo obsceno que o escritório: azulejos
pretos e brancos, uma enorme banheira em mármore, um espelho de moldura
dourada. Havia um sabonete por estrear, lírio-do-vale, sem dúvida confiscado
da casa de banho de uma mulher durante uma rusga, e Eve lembrou-se de
René lhe dizer que essa fragância lhe ficaria bem. Leve, doce, perfumado,
jovem.
Vieram-lhe à cabeça todos os conselhos que Lili lhe dera sobre as coisas
que agradavam aos homens e, por um momento, Eve pensou que ia vomitar.
Mas conseguiu conter-se. Repara no que ele gosta, dissera Lili. De olhar fixo
no sabonete, Eve soube. Leve, doce, perfumado, jovem. Era o que ele gostava
que ela fosse, não apenas o seu cheiro. Que amável da parte dele,
providenciar-lhe um guião.
Encheu a banheira, esparrinhando água quente, esbanjando-a com
vingança, e mergulhou no seu calor com um arrepio. Havia mais de dois
meses que tinha de se lavar com uma bacia e um trapo. O calor e os dois
copos de licor estavam a fazê-la sentir-se tonta. Era capaz de ficar naquela
água quente e perfumada para sempre, mas tinha uma tarefa a cumprir.
Quanto mais depressa, melhor.
Eve deixou a roupa interior e o vestido no chão, em vez de os vestir
novamente depois de lavada, e embrulhou-se numa toalha muito branca.
Olhou para o seu reflexo no espelho e não reconheceu a jovem que viu. Tinha
as maçãs do rosto chupadas – um sinal das rações diminutas que eram o seu
sustento –, mas era mais do que isso. O rosto suave de Evelyn Gardiner
nunca parecera tão duro. Marguerite Le François não era, de modo algum,
dura, por isso Eve treinou ao espelho – lábios entreabertos, um pestanejar
nervoso – até sentir que estava perfeita.
– Ah! – René recebeu-a com um sorriso, inspecionando-a desde os pés
descalços até ao cabelo castanho solto. – Muito melhor.
– Obrigada – disse ela. – Já não tomava um b-banho assim há meses. –
Gratidão. Ela sabia o que lhe era exigido.
Ele enfiou a mão no cabelo húmido dela, levando uma madeixa grande ao
nariz.
– Adorável.
Ele não deixava de ser atraente, magro e elegante; tinha trocado o fato por
um roupão de seda cinzento azulado. A mão fria deslizou pelo cabelo de Eve
e envolveu o pescoço dela, os dedos compridos quase rodeando-o por
completo. Então, beijou-a, sem pressa, de boca aberta e com habilidade. Os
olhos permaneceram sempre abertos.
– Vais ficar cá a dormir – murmurou ele, acariciando o contorno da anca
dela por cima da toalha. – Amanhã de manhã cedo, tenho um encontro com o
Kommandant Hoffman, que quer falar sobre uma festa aqui no restaurante em
honra de um piloto fantástico deles, chamado Max Immelmann, agora que ele
vai ficar responsável pela defesa área de Lille. Mas não me importo de ir ao
encontro do Kommandant ligeiramente cansado.
Ali estava – a razão por que Eve estava ali. René baixara suficientemente
a guarda para lhe oferecer aquela informação, a qual seria seguramente útil
para a Royal Flying Corps. Eve guardou-a mentalmente, o seu coração a
bater a um ritmo calmo de terror e determinação.
René sorriu para ela.
– Então – disse, agarrando na toalha que lhe cobria os seios. – Mostra-me.
Aguenta, pensou Eve, com fúria. Porque tu podes usar isto em teu
proveito. Ah, se podes.
Ela deixou a toalha cair, inclinando o rosto para receber o beijo seguinte.
Que importava se algo a assustava, se tinha de ser feito de qualquer maneira?
Capítulo 17
Charlie
Maio de 1947

Estávamos a meio caminho de Paris e eu admirada por ainda não termos


ido parar à valeta. Era maio e em nosso redor os campos estavam
completamente em flor; no entanto, nem eu nem Finn prestávamos a menor
atenção à paisagem, pois Eve, do banco de trás, contava-nos a sua história
como espia.
Espia. Eve. Uma espia? Eu estava no assento da frente, mas virada
totalmente para trás, escutando-a boquiaberta enquanto ela falava, e até Finn
virava constantemente a cabeça por cima do ombro para olhar para ela.
– Vais bater com a porcaria do carro – disse-lhe Eve, num tom cáustico. –
E tu, ianque, não tarda nada vai entrar uma mosca pela tua boca adentro.
– Continue – pedi. Aquilo que eu sabia sobre espiões tinha aprendido nos
filmes, mas nunca pensei que fosse verdade; no entanto, aqui estava Eve.
Talvez não correspondesse à imagem de uma espia de Hollywood, mas havia
algo na voz áspera e prática, ao falar de Folkestone, de mensagens
codificadas e do Tio Edward, que me fazia acreditar em tudo o que ela dizia.
O Lagonda devorava quilómetros de estradas serpenteantes francesas
enquanto ela contava a sua história. Um restaurante chamado Le Lethe. O
dono elegante. Versos e versos e mais versos de Baudelaire. Uma outra espia
com óculos redondos e nome de código Violette.
– A mulher da loja de antiguidades! – exclamei, recebendo em troca um
olhar mordaz.
– Não há como te enganar, pois não?
Sorri, imune ao seu sarcasmo. Continuava a sentir-me zonza, sem
acreditar que deixara a minha mãe naquele hotel; a minha mãe e a Consulta e
toda a minha vida planeada por ela. Mas tinha tomado um enorme pequeno-
almoço e, de estômago cheio, o nervosismo transformara-se em espírito de
aventura. Viajava num carro com um ex-presidiário e uma antiga espia em
direção a um futuro desconhecido – se essas não eram variáveis matemáticas
que igualavam aventura, então não sabia que outras podiam ser.
Eve falava intermitentemente. Sobre Lille em tempo de guerra, escassez
de alimentos e requisições por parte dos militares germânicos. O nome de
René Bordelon aparecia e desaparecia. Era o patrão dela, mas, pelo ódio na
sua voz, eu sabia que fora mais do que isso.
– O René – disse Finn, com o braço pousado em cima do assento, olhando
por cima do ombro para Eve. – Acha que ele ainda está vivo?
Ela recusou-se a responder, limitando-se a grunhir e a beber goles do
frasco de whisky. Finn fez uma pergunta sobre a pessoa para quem ela
trabalhava, se havia mais alguém na rede para além da Violette. Eve ficou em
silêncio durante algum tempo e depois limitou-se a responder:
– Uma ou duas.
Eu queria fazer mais perguntas, estava em pulgas para fazer mais
perguntas, mas o meu olhar cruzou-se com o de Finn e ficámos os dois
calados. Construía-se entre nós um novo e provisório triunvirato – Eve não
estava ali porque eu lhe pagava; estava ali porque queria e eu já não tinha o
direito de me meter na vida dela. Além disso, eu tinha ainda mais respeito por
ela, pois sabia alguma coisa da sua verdadeira história, por isso, coloquei uma
tampa na minha panela cheia de perguntas. Ela bebeu outro gole do frasco,
que manuseou desajeitadamente com as mãos estropiadas, e o meu espírito de
aventura atenuou. O que quer que lhe tivesse feito aquilo às mãos acontecera
durante o período em que ela trabalhara como espia, e era tanto um ferimento
de guerra quanto o coxear com que o meu irmão voltara para casa, depois da
batalha de Tarawa. Ele recebera uma medalha Purple Heart dentro de uma
caixa, que estava ao seu lado quando estourou os miolos. Que tipo de feridas
interiores trazia Eve?
Ela estava a ficar mole com o sol da tarde, falando e calando-se de
seguida. A meio de uma frase, começou a ressonar.
– Deixa-a dormitar – disse Finn. – De qualquer maneira, tenho de parar
para meter gasolina.
– Quanto tempo falta para chegarmos a Paris? – Todos tínhamos
concordado em ficar uma noite em Paris, a caminho de Limoges.
– Umas duas horas.
– Mas estamos na estrada há horas. Não é assim tão longe.
Finn fez um sorriso de orelha a orelha.
– Virei na estrada errada, distraído a ouvi-la descrever como decifrar
códigos e, quando dei conta, já estávamos quase a chegar a Reims.

Chegámos a um hotel sem graça nos arredores da cidade já depois do pôr


do sol, por entre um crepúsculo róseo e nacarado. Nada de hotéis em
avenidas nobres, pois o meu porta-moedas estava bastante mais leve. Mas,
leve ou não, havia algo que eu tinha de comprar, depois de Eve e Finn se
dirigirem à receção do hotel malcheiroso para fazer o check-in. Não tive de
andar muito até me deparar com uma casa de penhores na rua abaixo.
Demorei apenas alguns minutos a encontrar o que precisava, e a caminho do
hotel passei por outra loja, de roupas em segunda mão. Estava farta de usar os
mesmos três conjuntos e de dormir com a minha combinação.
A empregada da loja olhou para mim do outro lado do balcão: era uma
daquelas mulheres tipicamente francesas, pequenina, de lábios a fazer bico,
muito chique, como um macaquinho bem vestido.
– Mademoiselle…
– É Madame. – Pousei o meu porta-moedas no balcão, para que ela
pudesse ver a minha aliança na mão esquerda. – Preciso de algumas roupas.
Disse-lhe quanto queria gastar e ela avaliou o meu tamanho num
pestanejar de olhos, enquanto eu tentava não rodar a aliança de ouro que
comprara na casa de penhores. Era um pouco grande, tal como o título
Madame. Mas a guerra acabara havia dois anos, pelo que era normal
aparecerem viúvas jovens. Eu podia ter decidido não me livrar do Pequeno
Problema, mas não tinha qualquer intenção de ser tratada como uma mãe
solteira. Eu sabia como as coisas funcionavam: arranjava-se uma aliança,
inventava-se uma história sobre como o marido morrera durante a guerra (ou,
no meu caso, depois) e embelezava-se a história com alguns detalhes
convincentes. Talvez as pessoas duvidassem da história, mas nunca diriam
nada, porque eu tinha os adereços certos: uma aliança em segunda mão e um
marido morto.
Donald, decidi, quando entrei no provador. Donald… McGowan era o
meu inexistente falecido marido. De ascendência escocesa e americana,
moreno. Servira nos Tank Corps, com o General Patton. Donald fora o
grande amor da minha vida e morrera recentemente num acidente de
automóvel. Ele guiava sempre tão depressa; eu avisara-o tantas vezes. Se
fosse um menino, o meu bebé teria o nome do pai…
Imaginei a Rose a torcer o nariz.
“Não vais ter um filho chamado Donald, Charlie. Francamente!”
“Tens razão”, disse-lhe eu. “Mas eu acho que é uma rapariga. Por isso,
Donald está muito bem.”
“Vai ser um chato!”
“Não insultes o meu Donald!”
– Madame? – A assistente aproximou-se, desconfiada, e eu reprimi as
minhas gargalhadas, experimentando uma peça de roupa após outra. Para lá
destes devaneios, eu matutava planos, ainda que vagos. A pensar que, se
encontrasse a Rose, talvez pudéssemos viver juntas em algum lado. Talvez ali
em França, porque não? Eu tinha dinheiro, poupanças – que impedimento
haveria se quiséssemos comprar uma nova vida, em que duas madames falsas
com duas alianças falsas podiam viver uma vida honesta? Pensei no café
provençal onde eu tinha passado o dia mais feliz da minha infância ao lado de
Rose. Haveria algures um porto de abrigo para nós, quando já éramos
adultas?
Um café, pensei, recordando como eu gostara tanto não só daquela tarde
na Provença, mas também do breve período como empregada de café em
Bennington. Servir clientes, a comida deliciosa, o simples prazer de gerir
pedidos e fazer trocos de cabeça. Um café, algures em França? Imaginei um
lugar com postais à venda e sanduíches de queijo de cabra mole e fiambre,
onde a Édith Piaf cantava à noite e as mesas eram afastadas para se dançar.
Onde duas jovens viúvas tomavam conta da caixa registadora, a namoriscar
os jovens franceses, mas sempre com um olhar pesaroso para as fotografias
dos maridos. Eu teria de arranjar algumas fotografias falsas…
– Bien – disse a empregada, quando saí do provador, acenando com ar de
aprovação diante das minhas calças pretas justas e da blusa de malha às riscas
de gola alta, mas curta de comprimento, quase a mostrar a barriga. – O New
Look não é para si – informou ela com brusquidão, passando em revista as
roupas que me tinham servido e escolhendo apenas as saias mais estreitas, as
camisolas mais apertadas e as calças mais justas. – A madame veste-se ao
estilo Dior, mas foi feita para o estilo Chanel. Eu conheço a Coco… Ela
também é baixa, morena e sem grande beleza.
– Bem, muito obrigada. – Olhei irritada à minha volta, para a loja
sombria. – Duvido que conheça a Coco Chanel.
– Trabalhei no ateliê dela antes da guerra! Se ela voltar para Paris,
voltarei a trabalhar para ela, mas até lá tenho de sobreviver. Todos temos,
mas não com roupas horríveis. – A mulher lançou-me um olhar furioso,
apontando-me um dedo com unha pintada. – Nada de folhos! Quando fizer
compras, tem de pensar em cortes justos, riscas, sabrinas. E pare de torturar
esse cabelo para que fique ondulado; corte-o pelo queixo…
Olhei para o meu reflexo no espelho. As calças e a blusa eram em
segunda mão, mas ficavam-me muito bem. Um estilo um pouco arrapazado.
E confortável, sem cintas nem crinolinas. A empregada colocou um pequeno
chapéu de palha inclinado sobre o olho e eu abri um enorme sorriso. Nunca
havia escolhido as minhas próprias roupas; era sempre a Maman que
estipulava o que eu devia vestir. Mas naquele momento eu era uma madame,
uma mulher adulta, não uma rapariga indefesa, e era altura de me vestir de
acordo com o meu estatuto.
– Quanto é?
Regateámos. Não tinha muitos francos para gastar, mas reparara que a
mulher, mesmo torcendo o nariz ao meu estilo New Look, olhava com cobiça
para o meu fato de viagem.
– Comprei-o diretamente da coleção Dior e tenho outro no meu hotel. Se
me der as calças, duas saias, as blusas e o vestido preto, trago-lho amanhã.
– Só a deixo levar o vestido preto se me prometer usá-lo com um colar de
pérolas e batom vermelho-vivo.
– De momento, não tenho colar de pérolas, mas tenho o batom.
– Combinado.
Voltei para o hotel com um saco de roupas e um gingar de ancas, e tive o
prazer de ver as sobrancelhas de Finn a erguerem-se quando me juntei a ele e
à Eve no café do hotel, onde bebiam cocktails.
– Muito gosto em conhecer-vos – disse eu, mostrando a minha mão com a
aliança no dedo. – Chamo-me Sra. Donald McGowan.
– Que diabo! – soltou Eve, bebendo de um trago o martini, que mais
parecia gin puro.
Dei uma palmadinha no Pequeno Problema.
– Pareceu-me útil arranjar um disfarce.
– Donald McGowan? – perguntou Finn. – Quem é ele?
– Moreno, de queixo saliente, curso de Direito em Yale, serviu no Tank
Corps. – Fingi que limpava as lágrimas com um lenço da mão debruado a
preto. – O amor da minha vida.
– Não está mal, para começar – avaliou a Eve. – Ele gostava das meias
enroladas ou d-dobradas?
– Hum. Dobradas.
– Sem hum. Café simples ou com leite? Tinha irmãos e irmãs? Jogava
futebol americano na universidade? Detalhes, ianque. – Eve apontou-me um
dedo implacável. – São os pequenos detalhes que fazem um disfarce
convincente. Inventa uma biografia para o teu Donald e estuda-a até a
conseguires debitar sem deslizes. E usa sempre essa aliança, até teres aquele
sulco no dedo que as m-mulheres casadas há muito tempo têm. As pessoas
procuram essa marca, quando veem raparigas jovens que se apelidam de
senhora a empurrar carrinhos de bebé.
Sorri.
– Sim, senhora. Vamos jantar?
– Sim, e d-desta vez pago eu. Até agora, tens sido sempre tu.
Uma pequena confirmação de que ela já não estava ali pelo meu dinheiro
– aquilo comoveu-me, mas era óbvio que não o ia dizer.
– Desde que me deixe verificar a conta – respondi. – A Eve é capaz de
aceitar quaisquer números que lhe ponham à frente.
– Como queiras. – Ela pegou na conta das bebidas que o empregado
acabara de trazer e empurrou-a na minha direção. – Tu és a banqueira.
– É que sou mesmo, não é verdade? – No decurso da última semana, as
questões de dinheiro tinham sido deixadas de forma natural para mim, ainda
que eu fosse a mais nova dos três. Finn e Eve olhavam automaticamente para
mim para discutir o preço dos quartos com os rececionistas dos hotéis; os
recibos eram passados rapidamente para as minhas mãos, de modo a serem
verificados; moedas e notas eram-me entregues para serem guardados, já que
os meus companheiros de viagem deixariam o dinheiro à solta em diversos
bolsos. – Francamente, vocês os dois… – ralhei, enquanto assinava a conta
das bebidas. – A Eve é especialista em técnicas de espionagem e tu, Finn, és
capaz de fazer aquele carro andar a sumo de laranja, no entanto, nenhum dos
dois consegue calcular uma gorjeta em menos de dez minutos e sem a ajuda
de um bloco de notas.
– É mais fácil deixarmos isso para ti – disse Finn. – A tua cabeça é uma
pequena máquina de calcular, é o que é.
Sorri novamente, ao lembrar-me do banqueiro em Londres que me
considerara demasiado jovem e estúpida para gerir o meu próprio dinheiro.
Ali estava eu, a gerir o dinheiro de três pessoas. Fazia-me pensar que outras
coisas eu seria capaz de gerir.
Rodei a minha aliança falsa no dedo, imaginando-me sentada atrás de
uma caixa registadora bem organizada, com um pano de cozinha metido nas
minhas calças justas e o cabelo cortado com estilo pelo queixo. Imaginei
Rose comigo, com os caracóis louros e um vestido preto chique, a ouvir jazz
no gramofone e dois bebés a palrar – não Pequenos Problemas, mas
Problemas em Crescimento, com pezinhos gorduchos, a palrar
simultaneamente em francês e inglês…
Imaginei a Sra. Donald McGowan e a Madame Étienne Fournier, e a vida
a correr-lhes bem. Muito bem.
Capítulo 18
Eve
Julho de 1915

Eve nunca tinha visto Lili tão exasperada.


– Concentra-te, margaridazinha! Estás num planeta completamente
diferente.
– Vou t-tentar – prometeu Eve, mas não conseguia parar de pensar: estou
dorida.
Não muito dorida. René Bordelon tivera algum cuidado para não a
magoar. Não demasiado – só o suficiente para não interferir com o seu
próprio prazer –, mas tivera cuidado, sim. Tinha havido um pouco de sangue,
mas não muita dor. É tudo, pensou Eve, quando foi autorizada a vestir-se e a
ir para casa. Mais uma noite de trabalho e, na manhã seguinte, apanharia com
Lili o comboio em direção a Bruxelas e ao Capitão Cameron, para relatar a
visita do Kaiser a Lille. E não teria de pensar em René até voltar.
Mas, na noite seguinte, ele não a deixou ir para casa depois de ela
terminar o turno, o que a deixou chocada.
– Eu sei que te deveria dar um pouco mais de tempo para recuperares –
disse ele, com um ligeiro sorriso. – Mas és muito tentadora. Importas-te?
– Não – respondeu Eve. Que mais poderia dizer? Portanto, tinha havido
uma segunda vez; depois, ela saiu da cama e vestiu-se, sob o olhar
observador de René.
– Aguardarei ansiosamente o teu regresso – disse ele. Estava sentado na
cama, fazendo pregas no lençol por cima de um joelho com os seus dedos
extraordinariamente compridos.
– Eu t-t-t… Eu também – respondeu Eve, com um olho no relógio, que já
marcava 4h00. Ela combinara encontrar-se com Lili na estação de comboios
de Lille dentro de quatro horas. – Mas agora t-tenho de ir. Obrigada. – Nunca
esquecer a gratidão. – Pelo dia de f-f-f-olga, monsieur.
Ele não lhe pedira para o tratar por René, embora tivesse tomado posse do
nome dela. Limitou-se a sorrir, enquanto ela enfiava o casaco.
– Como é possível que fales tão pouco, Marguerite. A maioria das
mulheres são umas galinhas, sempre a cacarejar. Ó grande taciturna, e mais
ainda te adoro quanto mais te ausentas…
Eve não tinha de perguntar quem era o poeta. Baudelaire, pensou. É
sempre o maldito Baudelaire.
Quatro horas mais tarde, encontrava-se com Lili descomposta, cautelosa e
concentrada na tarefa que tinha pela frente, como devia, mas com falta de
sono e a cheirar a René Bordelon.
E dorida.
Eve teve o cuidado de não o deixar transparecer enquanto caminhavam
para o comboio. Lili teria de saber, mais cedo ou mais tarde, mas não naquele
momento, concentrada que estava em fazê-las passar a fronteira. E o Capitão
Cameron nunca saberia. Eve Gardiner não estava a trocar a virgindade por
uma viagem de volta a Inglaterra, longe da guerra. Ela voltaria à cama de
René porque, depois de apenas duas noites, ela já tinha percebido que ele
gostava de falar na cama. Ele deixara escapar a tal informação sobre Max von
Immelmann e outros pormenores sobre a visita iminente do Kaiser. Sim,
René gostava de falar na cama e Eve tinha intenção de o ouvir. Quanto ao
resto… Bem, tinha de se habituar aquilo e mais nada.
– Não é bom sinal – disse Lili entre dentes, e Eve apercebeu-se de que
estava novamente distraída. Concentra-te, disse a si mesma de modo severo,
e então viu o que preocupava Lili. A plataforma fervilhava de oficiais
alemães, soldados alemães, funcionários alemães. Eve sentiu as palmas das
mãos começarem a transpirar sob as luvas.
– Terão capturado alguém? – sussurrou Eve, quase impercetivelmente. O
maior medo na Rede Alice era que um dos informadores de Lili fosse
apanhado e forçado a dizer o que sabia. Todos tinham cuidado em saber o
menos possível uns dos outros, mas…
– Não – murmurou Lili, esticando discretamente o pescoço para ver o que
se passava entre a agitação de uniformes. – Parece-me ser um general
presunçoso a receber as boas-vindas. Logo hoje…
Elas avançaram com dificuldade em direção ao guarda que verificava os
bilhetes, mas a multidão era compacta e o comboio, já na linha, parecia
relinchar como um cavalo impaciente para partir. Além disso, com tantos
oficiais na plataforma, os guardas estavam a ser meticulosos.
– Eu falo – avisou Lili. Hoje, ela era Vivienne, a vendedora de queijo,
com um chapéu de palhinha e uma camisa de renda com uma gola alta muito
gasta, e a estratégia estava preparada: ela dirigir-se-ia aos guardas, enquanto
Eve carregava uma braçada de pacotes prontos para serem baralhados e
deixados cair, de forma que os guardas se impacientassem e as deixassem
passar mais depressa. Mas eles tinham os olhos impiedosamente postos nas
pessoas que não usavam uniforme alemão, e as filas acumulavam-se. Não
podemos perder o comboio, pensou Eve, mordendo o lábio até chegarem ao
início da fila. Lili ia tirar o cartão de identidade, quando se ouviu uma voz de
sotaque germânico a chamar em francês:
– Mademoiselle de Bettignies! Poderá ser?
Eve foi a primeira a ver o alemão, por cima do ombro de Lili – bigode,
uns 45 anos, cabelo penteado para a frente. Transpirava dourados e
hierarquia: galões pesados, uma fila dupla de medalhas. Eve reconheceu-o;
era Rupprecht, o príncipe herdeiro da Baviera, Generaloberst do 6.° Exército
e um dos melhores generais alemães. Ele tinha estado em Lille três semanas
antes, recordou Eve com perfeita clareza, tendo jantado no Le Lethe, onde
elogiara a tarte Alsacienne de René Bordelon e os novos aviões Fokker
Eindecker ao serviço da força aérea alemã. Eve servira-lhe o brandy,
memorizando simultaneamente os seus comentários sobre as aeronaves.
E naquele momento ali estava ele, a aproximar-se rapidamente das duas
no meio de uma multidão de soldados alemães. A mão dele pousou no ombro
de Lili e ele exclamou:
– Louise de Bettignies, é mesmo a mademoiselle!
Por um breve instante, Lili continuou de rosto concentrado no seu saco,
onde a mão segurava o cartão de identidade de Vivienne, a vendedora de
queijo – e Eve viu a expressão confusa nos olhos dela, mas apenas por uma
fração de segundo. Imediatamente, Lili atirou o cartão de Vivienne para o
interior do saco, como um jogador de cartas atiraria uma mão perdedora para
cima da mesa. Os ombros endireitaram-se quando ela se virou para trás e o
seu sorriso passou do sorriso dengoso e suplicante de Vivienne para outro
bastante mais radiante, enquanto fazia uma vénia, gesto que Eve rapidamente
imitou.
– Vossa Alteza Real! Vossa Alteza sabe muito bem como lisonjear uma
senhora, reconhecendo-a apenas pelo seu pescoço, tapado por um chapéu
extraordinariamente feio!
O general beijou a mão de Lili, com as suas estrelas e medalhas a brilhar.
– A mademoiselle não precisa de um ramo de rosas de seda para
deslumbrar.
Lili (Louise?) esboçou um sorriso que lhe fez covinhas no rosto e Eve,
mesmo atordoada pelo choque, ficou completamente maravilhada com a
transformação absoluta da líder da Rede Alice. O seu sorriso mostrava
confiança, o queixo inclinado e altivo e, com a ponta de um dedo, ela
posicionou o chapéu desengraçado por cima de um olho, num ângulo
elegante – tal como todas aquelas rodas gigantes de gaze que ela deixara em
compartimentos de comboios por toda a França. O sotaque era de uma
perfeita aristocrata francesa – talvez o de uma aristocrata empobrecida, mas
com o tom inequivocamente arrastado da nobreza:
– Mas que pouca sorte a minha, encontrar o príncipe herdeiro da Baviera
vestida com a moda do ano passado! – Deu um piparote na blusa velha. – A
princesa Elvira nunca me perdoaria.
– A minha prima sempre gostou de si. Lembra-se daquele jogo de xadrez
que jogámos na sala de estar dela, em Holleschau, na noite de…
– Sim! E Vossa Alteza ganhou. Cercou os meus cavalos por trás e forçou
o meu rei a sair do castelo. Não me surpreende que agora chefie o 6.°
Exército, Vossa Alteza Real…
Mais conversa. Ninguém olhara para Eve; nem o general, nem os seus
ajudantes, nem Lili. Ela segurava a braçada de pacotes atrás de Lili, como
uma criada. Também com um chapéu feio, mas sem o brilho de Lili, Eve
parecia, sem dúvida, uma criada. O comboio, observou ela com um arrepio
de receio, estava a partir.
– O que faz em Lille, Mademoiselle de Bettignies? – perguntou o general,
indiferente ao comboio e aos ajudantes que o rodeavam. As gargalhadas
acentuavam as rugas nos cantos dos olhos e o seu sorriso era o de um tio
querido. Se não fosse um dos melhores líderes de que o Kaiser dispunha, Eve
teria provavelmente simpatizado com ele. – É um lugar tão desolador!
Vocês fizerem dele desolador, pensou Eve, e aquela possibilidade de
simpatizar com ele desapareceu.
– Vou a caminho da Bélgica, para visitar o meu irmão. Se conseguir
passar a fronteira, mon Dieu, agora que o meu comboio acaba de partir… –
Lili fez uma expressão de desespero cómica, digna de uma trágica
Columbina, e o general estalou imediatamente os dedos a um dos ajudantes.
– Um carro para a Mademoiselle de Bettignies e a sua criada. O meu
motorista vai levá-las à Bélgica.
– Se a mademoiselle tiver o seu cartão de identidade – disse o homem, e
Eve gelou. O único cartão que Lili trazia era o de uma vendedora de queijo
chamada Vivienne, e se ela fosse apanhada com ele, sendo outra pessoa…
Mas Lili soltou uma gargalhada, perfeitamente à vontade, enquanto
vasculhava o saco.
– Tenho-o algures por aqui… – Tirou um lenço da mão, algumas chaves,
um punhado de ganchos do cabelo. – Marguerite, tens os meus documentos
de identidade?
Eve sabia o que devia fazer nesta circunstância: começou a abrir, de modo
laborioso, cada um dos pacotes que carregava nos braços, abanando a cabeça
como uma pacóvia, enquanto o general observava, divertido, e os ajudantes
se impacientavam.
– Vossa Alteza Real – murmurou um deles –, o Kommandant está à
espera…
– Não precisa de cartão de identidade. Eu conheço perfeitamente a
Mademoiselle de Bettignies. – O general pareceu entristecer-se ao beijar-lhe a
mão. – De dias mais pacíficos já idos.
– Mais felizes – concordou Lili e, quando o carro chegou e parou à frente
da estação, o general segurou-lhe na mão para ela entrar. Eve, sem saber o
que pensar, entrou rapidamente a seguir, ainda a manobrar os pacotes. Os
assentos dos carros eram luxuosamente forrados; o cheiro ostentoso do couro
suplantava o do óleo do motor. Lili acenou o lenço da mão fora da janela na
direção do general, as portas do carro fecharam-se logo de seguida e elas
partiram. Com bastante mais luxo do que numa carruagem de comboio à
pinha.
Lili não falou. Apontou com o olhar para o motorista e depois fez um
comentário ou dois a queixar-se do calor, como qualquer senhora aristocrata
a viajar no verão. As perguntas entaladas na garganta de Eve sufocavam-na,
mas ela tinha os olhos postos no colo, como era esperado da criada de uma
senhora nobre. O carro permaneceu em silêncio durante a viagem até à
Bélgica. Dentro do carro de um general – ainda por cima, um príncipe
herdeiro –, elas foram autorizadas a passar livremente nos postos de controlo.
E, embora o motorista se tivesse oferecido para as levar ao seu destino, Lili
recusou com um sorriso cheio de charme e pediu-lhe para as levar até à
estação de comboio mais próxima. Era bastante mais pequena do que a de
Lille: apenas uma plataforma com alguns bancos.
– Merde – soltou ela, vendo o carro reluzente a afastar-se de regresso à
estrada. – Não me importava de ter uma boleia até Bruxelas, mon Dieu, estou
tão farta de comboios, mas levar o ajudante de um general alemão até à porta
do Tio Edward seria visto com maus olhos, não?
Eve permanecia em silêncio. Nem sequer sabia por onde começar. Estava
calor e muita poeira na plataforma; não havia mais ninguém, à exceção de
uma velha que dormitava do outro lado, suficientemente longe para não as
ouvir.
Lili deixou-se cair no banco mais próximo, pousando a malinha de
viagem a seu lado.
– Então, margaridazinha – disse ela, descontraída. – Vais acusar-me de
ser uma espia alemã, só porque o general do 6.° Exército me conhece de
vista?
– Não. – Isso passara brevemente pela cabeça de Eve, quando o general
sorrira a Lili pela primeira vez. Eve sentia vergonha de o admitir, mas abanou
a cabeça. Se mais não sabia, pelo menos tinha certeza de que Lili não era uma
agente dupla.
– Bem, agora sabes o meu nome verdadeiro. – Lili sorriu, tirando as
luvas. – Muito poucos na rede o sabem. Só a Violette e o Tio Edward.
Violette, como tenente fiel que era, mataria lentamente Eve se ela alguma
vez colocasse a líder da rede em perigo ao revelar a sua identidade. Eve
aceitou o segredo, ponderando-o.
– Louise de Bettignies. Quem é ela, então?
– A filha de um nobre francês falido, que, na verdade, devia ter sido atriz,
já que tanto adora personificar outras identidades. – Lili tirou um lenço e, sob
o calor da manhã, limpou a testa. – Mas as filhas de nobres franceses falidos
não se tornam atrizes, minha cara.
– O que f-fazem elas, então?
– Quando vêm de famílias tão pobres como ratazanas? Tornam-se
governantas de crianças de lordes italianos devassos, ou condes polacos, ou
princesas austríacas. – Louise estremeceu. – Deixa-me dizer-te que prefiro a
possibilidade de levar com uma bala na cabeça do que tentar ensinar verbos
franceses a uma data de crianças presunçosas, herdeiras de castelos em ruínas
e brasões defuntos.
Eve apalpou terreno, cautelosa, mas sôfrega de curiosidade.
– E como é que Louise de Bettignies conheceu o príncipe herdeiro da
Baviera? Foi professora dos filhos?
– Dos filhos da prima, a princesa Elvira. Uma cabra. Tinha a cara de uma
batata e o feitio de um guarda de prisão. Os filhos dela eram pretensiosos,
burros como portas e achavam-se os donos do mundo. A minha experiência
veio a ser útil: as governantas ganham prática em estar à espreita e escutar às
escondidas. Ainda assim… – Suspirou. – Era tão aborrecido. Eu dizia a mim
mesma que pelo menos não trabalhava numa mina ou 18 horas por dia numa
lavandaria a entalar os dedos numa calandra. Mas estava tão cansada de tudo
aquilo que cheguei a um ponto em que só tinha duas soluções: ou atirar-me
para debaixo de um comboio, como a Anna Karenina, ou tornar-me freira. E
pensei seriamente em entrar para um convento, mas, francamente, sou
demasiado leviana.
Foram rodeadas pelo típico zumbido estival de insetos; o calor era
sufocante e a velha sentada no banco, do outro lado da linha, continuava a
ressonar.
– Enfim – concluiu Lili. – Essa era a Louise de Bettignies. Mas, na
verdade, já não sou eu. Tornei-me a Lili e gosto muito mais dela.
– Compreendo porquê. – Louise de Bettignies parecia vaidosa e algo
tonta, uma mulher de golas rendadas e sem outras qualificações que não uma
letra bonita. Não combinava nada com a frágil e pequena Lili, com um olhar
perspicaz e o saco com fundo falso forrado com metade dos segredos do
exército alemão. – Nunca o direi a ninguém, Lili. A ninguém.
Ela sorriu.
– Confio em ti, margaridazinha.
Eve retribuiu o sorriso, emocionada com a confiança dela.
– Merde. – Lili suspirou novamente. – Este maldito comboio, será que
alguma vez vai chegar? – E o assunto nunca mais voltou a ser mencionado.

A viagem de comboio foi sombria, mas curta; a excitação do encontro


delas com o general foi lentamente esmorecendo, até que Eve se viu
novamente com os seus pensamentos perturbantes sobre René e a noite
anterior. Eve não se deu ao trabalho de reparar nas ruas que percorriam a
caminho do ponto de encontro. Não queria, de modo nenhum, ser capaz de
identificar a casa de porta azul desbotado que rapidamente se abriu para elas
entrarem.
Lili foi a primeira a entrar no escritório do Tio Edward. Eve esperou na
sala de estar ao lado, sob o olhar atento de um jovem tenente. Lili saiu e
piscou o olho.
– Vá, entra. Vou ver se encontro algum brandy. – Inclinou-se e
aproximou-se do ouvido de Eve, de modo que o tenente não pudesse ouvir. –
O nosso tio querido parece estar bastante impaciente para te ver. Talvez mais
do que apenas profissionalmente…
– Lili! – sibilou Eve, olhando para o tenente.
– Se apanhares o nosso bom capitão sem roupa ou desprevenido,
pergunta-lhe porque decidiu ir para a prisão em vez da mulher – rematou Lili,
num sussurro. – Estou morta por saber!
Eve entrou para o interrogatório de orelhas a arder.
– Miss Gardiner. – O Capitão Cameron levantou-se e Eve estacou
subitamente. Não sabia se era o som do seu nome verdadeiro, que ela não
ouvia há uma eternidade, ou pelo menos assim lhe parecia, ou se era o facto
de o ver. Tinha-me esquecido da cara dele. Ela tinha-se convencido de que se
lembrava muito bem do capitão: o rosto magro, tão inglês, o cabelo louro
arruivado, as mãos afuniladas. Mas esquecera-se das pequenas coisas, como o
modo como ele cruzava descontraidamente as pernas quando se sentava,
como entrelaçava as mãos magras e como o sorriso ia até aos cantos dos
olhos. – Sente-se, por favor – disse ele, e Eve apercebeu-se de que ainda
estava à porta. Sentou-se numa cadeira de costas direitas, do lado oposto da
mesa onde ele estava sentado, e demorou-se a ajeitar a saia.
– É bom vê-la, Miss Gardiner. – Ele sorriu novamente, e na mente de Eve
surgiu a recordação da primeira conversa deles, na sala de visitas da pensão.
Seria possível que tivesse sido havia apenas dois meses? Quanta coisa podia
acontecer em dois meses. Por exemplo, um par de mãos frias de um francês a
explorar-lhe a cintura na noite anterior, e as concavidades dos cotovelos e
pulsos, o interior das coxas, não, ela não queria pensar nisso. Não ali.
Cameron, com as mãos juntas nas pontas dos dedos, olhou para ela e uma
ruga apareceu-lhe entre as sobrancelhas.
– Sente-se bem? Parece…
– Mais magra? Não comemos m-muito em Lille.
– É mais do que isso. – O vestígio de sotaque escocês na voz dele;
também se esquecera disso. – Como se está a dar, Miss Gardiner?
Dedos compridos como aranhas a delinearem-lhe lentamente os lóbulos
das orelhas.
– Muito bem.
– Tem a certeza?
Lábios finos a delinearem-lhe o umbigo e os espaços entre os dedos.
– Faço o q-q-q… Faço o que é preciso.
– Faz parte do meu trabalho avaliar os nossos agentes, e não apenas
receber as informações. – A ruga entre os olhos do Capitão Cameron ainda
não tinha desaparecido. – O seu trabalho tem sido esplêndido. Alice
Dubois… O quê?
– Nada, Capitão. Eu chamo-lhe Lili. No dia em que nos conhecemos, ela
disse que “Alice Dubois” soava a professora magricela com cara de cão.
Ele soltou uma gargalhada.
– Sim, é típico dela. Ela não lhe poupou elogios, agora mesmo. Tem feito
um trabalho de primeira classe, mas – os olhos dele fixaram-se nela – o preço
a pagar por isso pode ser alto.
– Não para mim. – Beijos de olhos abertos, sempre a olhar, a olhar, a
olhar. Eve olhou Cameron nos olhos, assegurando-se de que não tinha os
punhos cerrados no colo. – Fui f-feita para isto.
O Capitão Cameron continuava a fitá-la, tomando nota de cada detalhe do
rosto de Eve. Não estava de uniforme; vestia um fato, com o casaco
pendurado nas costas da cadeira, e as mangas da camisa arregaçadas,
revelando pulsos magros – embora parecesse um professor universitário,
seria perigoso esquecer que era um interrogador. Era capaz de arrancar
informações de alguém sem que ele se apercebesse que as palavras lhe saíam
da boca.
Por essa razão, Eve esboçou um sorriso alegre, de rapariga bem-
comportada que aguenta tudo sem se queixar.
– Pensei que estávamos aqui para falar da v-v-v… – Bateu o punho no
joelho para soltar a palavra. – Da visita do Kaiser, Capitão.
– A Eve foi a primeira pessoa que ouviu falar da visita. Conte-me tudo,
desde o princípio.
Eve transmitiu-lhe novamente todos os detalhes, de modo claro e conciso.
Ele escutou, enquanto tomava notas. De vez em quando, piscava os olhos.
Era tão bom ver um homem que conseguia pestanejar.
Ele encostou-se para trás, dando uma vista de olhos às notas.
– Mais alguma coisa?
– A hora de chegada do Kaiser acabou de mudar… Ele vai chegar uma
hora mais tarde do que o planeado.
– Isso é novidade. Onde ouviu essa informação?
– A s-servir às mesas. – Do René, depois de ele ter chegado ao fim, mas
antes de sair de dentro de mim. Ele gosta de ficar ali algum tempo, até parar
de transpirar, por isso… começa a falar.
O Capitão Cameron viu-lhe algo no olhar.
– O que se passa, Miss Gardiner?
Como Eve gostava de ouvir o seu nome outra vez, especialmente vindo
dos lábios dele. Ela gostava tanto que tinha perfeita consciência de que não
era uma boa ideia.
– É melhor continuar a chamar-me M-Marguerite Le François –
aconselhou ela. – É mais seguro.
– Muito bem. – As perguntas sobre a visita do Kaiser prosseguiram. O
Capitão Cameron examinou o assunto de todos os ângulos, isolando os
detalhes de que Eve se lembrava. Concluiu duas ou três coisas em que ela não
tinha pensado e pareceu satisfeito. – Parece-me suficiente – disse,
levantando-se. – A Eve foi uma grande ajuda.
– Obrigada. – Eve ergueu-se. – Diga à Royal Flying Corps para não
falhar. Diga-lhes para bombardear o c-comboio até não restar nada.
A intensidade de Eve provocou um fulgor no olhar dele.
– De acordo.
Ao dirigir-se para a porta, ela ouviu novamente a voz do capitão, com o
seu leve sotaque escocês.
– Tenha cuidado.
– Eu tenho cuidado. – Ela agarrou no puxador da porta.
– Tem mesmo? A Lili está preocupada. Ela preocupa-se com todos os
contactos dela, é um bocadinho mãe-galinha. Mas diz que a Eve está numa
situação de muito perigo.
O corpo leve de René a pousar em cima de mim, no escuro.
– Como o capitão disse, ela é mãe-galinha.
A voz dele aproximou-se.
– Eve…
– Não me chame isso. – Ela deu meia-volta, dando um passo em frente,
até ficarem quase de rosto colado. – Esse já não é o meu nome. Sou
Marguerite Le François. O capitão fez de mim Marguerite Le François. Não
vou voltar a ser Eve, pelo menos até esta guerra acabar ou até morrer. Está a
ouvir-me?
– Não há necessidade de ninguém morrer. Tenha cuidado…
– Pare. – Ela queria inclinar-se e colar a boca à dele. Fá-lo-ia parar de
falar; ela sabia que os lábios dele seriam calorosos. Não podes. Vais gostar
demasiado. Tal como ouvir o seu nome na voz suave dele; era mau para
Marguerite e era mau para o seu trabalho.
Ela fez um movimento para se afastar, mas a mão do Capitão Cameron
pousou na sua cintura.
– É muito difícil – disse ele suavemente. – O que nós fazemos. Não faz
mal admitir que é difícil. Se quiser falar comigo…
– Não quero falar – disse ela, irritada.
– Talvez lhe fizesse bem, Eve.
Não podia ouvi-lo a dizer o seu nome outra vez. Não podia. Claro que era
por isso que ele o dizia – ela revelara um ponto fraco e ele estava a explorá-
lo, o instrutor a testar a aluna, a verificar se ela estava prestes a ir-se abaixo.
Fazia parte do trabalho dele, avaliá-la. Eve ergueu o queixo e, sem refletir,
mudou radicalmente de assunto, tentando que ele virasse costas.
– Cameron, deixe-me sair daqui, ou então l-leve-me para um sítio onde
não precisemos de falar.
Ela não fazia ideia de onde aquelas palavras tinham vindo. Idiota, idiota!
Cameron ficou a olhar para ela, surpreendido, mas a mão continuava na
cintura dela. Eve sabia que se devia afastar, mas uma parte de si desejava
aproximar-se, sôfrega, e que se lixassem as consequências. Queria deitar-se
com este homem, cujas palavras e reações ela não teria de filtrar, medir e
pesar.
Mas Cameron afastou-se, silencioso, ajustando a aliança de ouro no dedo.
– A sua mulher m-meteu-o na prisão – disse Eve, sem rodeios. – Foi o
que ouvi. – As palavras por dizer eram: O que deve a uma mulher dessas?
Ele recuou.
– Quem lhe disse…
– O Major Allerton, em Folkestone. Porque se conf-f-f…. confessou
culpado, quando foi a sua mulher que c-c-cometeu a fraude? – Era a primeira
vez que Eve apanhava Cameron na defensiva, e não hesitou em pressionar.
– Suponho que não é segredo. – Ele virou-se de costas, apoiando as mãos
numa cadeira. – Pensei que a podia salvar da prisão. A minha mulher…
sempre foi muito infeliz. Queria desesperadamente ter filhos, mas não podia.
A cada duas semanas, achava que era dessa vez… e depois, a desilusão que
todos os meses sentia levava-a a fazer coisas estranhas. Roubava coisas, e
depois zangava-se muito quando desapareciam. Despedia as empregadas por
escutarem às portas, quando elas estavam do outro lado da casa. Ficou
obcecada com dinheiro, poupava dinheiro para o futuro de um filho que não
tínhamos, e inventou que o colar de pérolas fora roubado para poder reclamar
ao seguro… – Ele esfregou a testa. – Quando foi descoberta, implorou-me
para assumir a culpa. Alguém tinha de ir para a prisão e ela disse que tinha
muito medo. Quis poupá-la. Ela é tão frágil.
É uma mentirosa que não se importou que assumisse a culpa pelo crime
dela, pensou Eve. Mesmo que isso destruísse a carreira e a vida dele. Mas
dizê-lo seria cruel e implacável, pelo que se manteve em silêncio.
– Ela vai ter um bebé na primavera. – Ele voltou-se. – Está muito mais
calma, agora que finalmente aconteceu. Está… mais feliz.
– Mas o capitão não está.
Ele abanou a cabeça, uma negação pouco convincente, mas Eve lia-o
como se ele fosse um livro. O capitão estava cansado e de coração partido, e
ela também, e mais valia morrerem em breve neste mundo infernal de guerra
e sangue. Ela aproximou-se dele, sabendo que era má ideia, mas incapaz de
parar, desejando fervorosamente afastar do pensamento as mãos de aranha de
René e a sua voz monocórdica. Estou aqui, pensou ela. Possua-me.
Cameron pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios. O gesto triste de um
cavaleiro andante, incapaz de abusar de uma mulher. Ela queria dizer-lhe que
já não era inocente, que ele não lhe tiraria nada que René Bordelon já não
tivesse tirado, estava-lhe na ponta da língua. Mas não lhe conseguia dizer
isso. Ele podia retirá-la de Lille. Talvez fizesse isso de qualquer maneira, se
ela dormisse com ele, como era seu desejo. Tonta, a voz de Marguerite
sibilou na cabeça de Eve. Sua estúpida, o que te disse a Lili? Todos acham
que não se pode confiar numa horizontale, e tu vais e atiras-te assim a ele,
como uma galdéria?
Ele não vai pensar isso de mim, cogitou Eve. Ele não é assim tão
tacanho.
Mas Marguerite era mais prudente. Não arrisques.
Eve deu um passo atrás. Não fora dito nada de evidente, pelo menos, de
muito evidente – ela podia negar intenções íntimas, mesmo que os dois, no
fundo, soubessem.
– Perdoe-me, Tio Edward. Já terminámos?
– Tudo terminado, mademoiselle. Cuide de si em Lille.
– A Lili cuida de mim. Ela e a Violette.
– Marguerite, Lili e Violette. – Ele sorriu, e a preocupação no seu olhar
pareceu transformar-se em dor. – As minhas flores.
– As Flores do Mal. – Eve ouviu-se a si própria dizer, com um arrepio.
– O quê?
– Baudelaire. Nós não somos flores para serem colhidas e protegidas,
capitão. Somos flores que desabrocham no mal.
Capítulo 19
Charlie
Maio de 1947

Quatro martinis levaram Eve diretamente do jantar à cama, mas eu ainda


me sentia sem sono. Estava demasiado cansada para ir dar um passeio a pé –
o Pequeno Problema bebia a minha energia como se fosse chocolate quente, e
eu esperava que essa parte da gravidez desaparecesse rapidamente –, mas
mesmo cansada, não me sentia pronta para subir ao quarto. Nesse momento,
Finn afastou a sua cadeira da mesa, metendo as balas da Luger, que Eve lhe
dera, no bolso:
– Tenho de fazer uns arranjos no carro. Queres vir segurar a lanterna?
Chovera enquanto estávamos a jantar, por isso o ar da noite era morno e
cheirava a chuva. O passeio refletia a luz dos candeeiros de rua e os carros
passavam com o som de pneus molhados. Finn vasculhou a mala do carro,
tirando uma lanterna e uma caixa de ferramentas.
– Segura-a com firmeza – disse ele, entregando-me a lanterna para a mão
e abrindo depois a capota do carro.
– O que se passa agora com o velhote? – perguntei.
Finn meteu a cabeça sob a capota do Lagonda.
– Tem uma fuga algures. Tenho de apertar umas porcas de vez em
quando, para ter a certeza de que a coisa não fica pior.
Eu apontava a lanterna em bicos de pés, quando um grupo de raparigas
aos risinhos passou por nós a correr.
– Não era mais fácil procurar a origem da fuga e remendá-la?
– Queres que eu perca tempo a desmontar o maldito do motor e a montá-
lo outra vez?
– Não, nem por isso. – Por mais agradável que a viagem tivesse sido
nesse dia, com o calor do sol e a nova camaradagem que se desenvolvia entre
nós, eu estava em pulgas para chegar a Limoges. Rose. Quanto mais me
aproximava do último lugar onde ela tinha estado, mais crescia em mim a
esperança de ela estar viva e à minha espera. E, assim que estivéssemos
novamente juntas, a Rose e eu, de braço dado contra o mundo, eu seria capaz
de fazer qualquer coisa.
– Vá lá – disse Finn entre dentes para a porca de um parafuso, ou a cabeça
de um parafuso, ou o que quer que fosse. A pronúncia escocesa adensou-se,
como sempre acontecia quando ele tentava convencer o carro a cooperar. –
Velho ferrugento dos diabos… – Ele apertava incessantemente para um lado
e para o outro com a chave inglesa. – Segura a lanterna um pouco mais alto,
menina…
– Finn, se me continuas a chamar menina, vais estragar o meu disfarce.
Era o que diria uma espia como a Eve. – Apontei para a minha aliança falsa.
– Sou a Sra. Donald McGowan, lembras-te?
Ele conseguiu que o parafuso se desapertasse, ou apertasse, ou o que quer
que fosse.
– Grande ideia, a da aliança.
– Preciso de uma fotografia do meu Donald – meditei, em voz alta. –
Algo para onde olhar com nostalgia, quando disser que o meu coração foi
sepultado.
– O Donald ia certamente querer que continuasses com a tua vida – disse
Finn. – Ainda és jovem. Ele diria que te deves voltar a casar.
– Não quero casar. Quero encontrar a Rose e, depois, talvez abrir um café.
– Um café? – Finn olhou para mim das entranhas do Lagonda, com uma
madeixa caída por cima dos olhos. – Porquê?
– Passei o dia mais feliz da minha vida num café em França com a Rose.
Pensei que, talvez, se eu a encontrar… É só uma ideia. Tenho de fazer
alguma coisa com o meu futuro. – Naquele momento, eu tinha o Pequeno
Problema com que me preocupar e precisava de um novo plano (que não o da
minha mãe, que consistia em tirar boas notas em Bennington até conseguir
arranjar um jovem advogado para marido). Estranhamente, não estava a ver
o meu futuro incerto de forma tão assustadora quanto poderia ser. Eu já podia
fazer algo de que gostava. Arranjar um trabalho. O que faziam as pessoas
licenciadas em Matemática no mundo real? Não queria ser professora e não
tinha qualificações para ser contabilista, mas… – Podia ter um negócio
pequeno, como um café – disse eu, a divagar, imaginando uma fila ordenada
de livros de contabilidade, preenchidos com colunas de números alinhados.
– O Donald não ia gostar disso. – Finn esboçou um sorrisinho irónico,
trocando a chave de fendas que tinha na mão por uma mais pequena. – A
viúva dele a servir às mesas e a fazer trocos numa caixa registadora?
– O Donald era, por vezes, um pouco presunçoso – confessei.
– Deus tenha a sua alma – disse Finn, muito sério.
Que diferença alguns dias tinham feito. Antes, ele falava como se lhe
cobrassem dinheiro por cada palavra que lhe saía da boca, e naquele
momento ali estava ele a fazer piadas.
– E tu, o que gostavas de fazer?
– Como assim, Sra. McGowan?
– Bem, não vais trabalhar para a Eve para sempre, fazer-lhe pequenos-
almoços à inglesa para lhe curar as ressacas e desarmá-la todas as noites antes
de ela ir dormir. – Inspirei a brisa húmida da noite; pelo cheiro, pareceu-me
que ia chover outra vez. Dois homens idosos de boinas encorrilhadas
atravessavam a rua em passo apressado, a olhar ansiosamente para o céu. –
Se pudesses fazer o que quisesses, o que escolherias?
– Eu trabalhava numa oficina, antes da guerra. Sempre pensei que, um
dia, teria a minha própria oficina. Arranjar carros e restaurar carros antigos…
– Finn acabou o trabalho no Lagonda e baixou devagar o capô do carro. –
Acho que isso nunca vai acontecer.
– Porque não?
– Eu não seria muito bom a gerir o negócio. Além disso, há muitos
antigos soldados à procura de trabalho, e mais ainda a pedir empréstimos aos
bancos. Quem é que vai oferecer um bom trabalho numa oficina ou um
empréstimo para começar um negócio a um ex-soldado com tempo de prisão
no cadastro? – O tom dele era prático.
– É por isso que não hesitaste em vir a Limoges comigo e com a Eve? –
Desliguei a lanterna e devolvi-a. A luz ténue dos candeeiros de rua
iluminava-nos, mas tudo ficou mais escuro sem o feixe de luz da lanterna. –
Eu sei porque vou a Limoges e sei porque vai a Eve. Mas, e tu?
– Não tenho muito mais para fazer. – A voz suave dele continha um
sorriso. – Além disso, gosto de vocês.
Hesitei.
– Porque foste parar à prisão? E não digas que foi por teres roubado um
cisne do Jardim Botânico de Kew ou as joias da coroa – apressei-me a dizer,
rodando a minha falsa aliança. – A sério… O que aconteceu?
Ele limpava calmamente o óleo das mãos com um trapo.
– A Eve contou-nos que foi espia na primeira guerra. Eu contei-te que
dormi com metade da universidade. Tu conheces os nossos segredos.
Ele voltou a arrumar a caixa de ferramentas na mala do carro. Virou o
trapo do lado limpo e começou a secar as gotas da chuva do guarda-lamas
azul-escuro. Através da janela grande do hotel, o rececionista do turno da
noite observava-nos indolentemente.
– Assisti a coisas muito más, durante o último ano da guerra – revelou
Finn.
Fez uma pausa tão longa que eu pensava que ele já não ia dizer mais
nada.
– Tenho mau génio – acabou por confessar.
Sorri.
– Não tens nada. És o homem mais equilibrado que conheço…
Ele bateu com a mão no guarda-lamas, o que me fez sobressaltar e parar
de falar.
– Tenho mau génio – repetiu ele com calma. – Os meses depois de eu ter
deixado o meu regimento não foram fáceis. Saía à noite, embebedava-me,
metia-me em rixas. Acabei por ser preso por causa de uma delas. O que me
valeu uma pena na prisão de Pentonville por agressão.
Agressão. Que palavra feia. Olhei para Finn e não o consegui imaginar
numa situação dessas.
– E agrediste quem? – perguntei suavemente.
– Não sei. Nunca o tinha visto antes dessa noite.
– E porque o agrediste?
– Não me lembro. Estava bêbedo, a vaguear, zangado. – Finn encostou-se
ao Lagonda, com os braços firmemente cruzados no peito. – Ele disse uma
coisa qualquer, sabe-se lá o quê. E eu bati-lhe. E depois continuei a bater-lhe.
Foram precisas seis pessoas para me fazer parar de lhe bater a cabeça contra a
ombreira da porta. Graças a Deus, detiveram-me antes que eu lhe rachasse a
cabeça.
Fiquei em silêncio. O nevoeiro estava lentamente a baixar.
– Ele recuperou – continuou Finn. – Mais cedo ou mais tarde. E eu fui
para Pentonville.
– Depois disso, bateste em mais alguém? – perguntei, só para dizer
alguma coisa.
Ele olhava fixamente para longe, sem observar nada em particular.
– Não.
– Talvez o problema não seja o teu temperamento.
Ele soltou uma curta risada.
– Dou uma sova valente a um homem, parto-lhe o nariz e o queixo, dou-
lhe cabo de um olho e de quatro dedos, e o meu temperamento não é o
problema?
– Metias-te em brigas antes de a guerra começar?
– Não.
– Então, talvez o teu temperamento não venha de ti. Mas da guerra. – Ou
melhor, do que ele vira na guerra. Perguntei-me o que teria sido, mas não o
questionei sobre isso.
– Essa é uma péssima desculpa, Charlie. Se fosse assim, todos os
soldados que voltaram para casa acabariam na prisão.
– Alguns vão para a prisão. Alguns voltam ao trabalho. Outros matam-se.
– Pensei dolorosamente no meu irmão. – Todas as pessoas são diferentes.
– Devias voltar para o hotel – disse ele subitamente, com o sotaque
escocês. – Antes que te tornes um pintainho.
– Sou ianque, lembras-te? O que significa isso?
– Antes que fiques ensopada. Não é bom para o petiz, Sra. McGowan.
Ignorei-o, encostando-me ao lado dele no Lagonda.
– A Eve sabe?
– Sim.
– O que disse ela?
– Tenho um fraquinho por homens bem-parecidos com sotaque escocês e
registo criminal, por isso vou dar-te uma oportunidade. E não voltou a tocar
no assunto. – Ele abanou a cabeça e o cabelo voltou a cair-lhe sobre os olhos.
– Ela não é do tipo que julga as pessoas.
– Eu também não.
– Mesmo assim, tu não te devias dar com más companhias como eu.
– Finn, eu era boa rapariga, mas atualmente sou mãe solteira. A Eve já foi
espia e agora é bêbeda. Tu foste prisioneiro, mas agora és mecânico,
motorista e cozinheiro de pequenos-almoços à inglesa. Sabes porque é que
nenhum de nós julga as pessoas? – Dei-lhe um pequeno encontrão no ombro
até que, por fim, ele olhou para mim. – Porque nenhum de nós tem o direito
de julgar os pecados dos outros.
O seu olhar fixo em mim tinha um sorriso invisível, que começava num
canto dos olhos e acabava no outro.
Apoiei as mãos atrás e ergui-me, sentando-me no capô comprido do
Lagonda, o que me colocou quase ao mesmo nível do rosto de Finn. Ele
voltou-se, ficou de frente para mim, e eu inclinei-me, de modo a encaixar a
minha boca, num gesto cuidado e meigo, na dele. Os seus lábios eram macios
e o rosto áspero, como da primeira vez que o tentara beijar. Tal como naquela
noite, ele levou as mãos à minha cintura – mas, desta vez, fui eu que
interrompi o beijo, antes que ele me pudesse afastar. Pensei que não
suportaria uma nova rejeição.
Mas ele não o fez. Voltou a baixar a cabeça na direção da minha e deu-me
um longo beijo. Senti as mãos dele, grandes e calorosas, em cada um dos
lados da minha cintura, puxando-me para ele por cima do capô do Lagonda.
Deixei que as minhas mãos se perdessem por entre o cabelo desgrenhado
dele, por onde há muito desejavam deslizar. Ele enfiou as mãos sob a minha
camisola nova de malha às riscas, mas não passou da cintura para cima.
Percorreu com as costas dos dedos a minha pele, para cima e para baixo,
enquanto nos beijávamos. Quando nos separámos, eu tremia da cabeça aos
pés.
– Sujei-te com óleo de motor – disse ele, olhando para as mãos sujas. –
Desculpa, miúda.
– Sai com sabão – consegui dizer. Não o queria lavar de mim, nem tirar o
seu gosto da minha boca, nem o óleo de motor da minha pele. Queria
continuar a beijá-lo, mas estávamos em plena rua e, em breve, o nevoeiro
daria lugar à chuva, por isso deslizei do capô e voltámos para o hotel. Sobe
ao meu quarto, queria eu pedir-lhe, vem comigo – mas o rececionista olhava
para nós com um relancear tipicamente francês, de expressão indiferente, mas
olhar astuto.
– Bon soir, Monsieur Kilgore – cumprimentou ele, passando os olhos pelo
registo dos hóspedes. – Madame McGowan.
– Lindo – disse eu entre dentes, irritada, ao entrar no meu quarto solitário.
– Não só arruinei a reputação da Miss Charlie St. Clair, como acabo também
de arruinar oficialmente a da Sra. Donald McGowan. O meu Donald ficaria
chocado.
Capítulo 20
Eve
Julho de 1915

O presente de René, oferecido a Eve com um gesto teatral e pouco depois


de ela voltar da sua viagem, era um robe de seda. Vermelho rosa, tão fino que
se poderia enfiá-lo através de um anel – mas não novo. Cheirava vagamente a
perfume de senhora, tinha sido, sem dúvida, confiscado a uma mulher
durante uma rusga, e estava agora no corpo de Eve.
Ela imaginou o comboio do Kaiser a explodir em mil pedaços, deixou que
essa imagem lhe desse prazer e deixou que esse prazer transparecesse na sua
expressão, quando passou a seda pelo rosto.
– Obrigada, m-monsieur.
– Fica-te bem. – Ele encostou-se para trás, claramente satisfeito por ela
ter uma peça de roupa digna dos seus aposentos. Eve viu uma ironia sombria
no alívio estético dele. Estavam no escritório opulento; ele vestira um dos
seus magníficos roupões, como era habitual enquanto esperava que Eve
terminasse o banho, eliminando qualquer cheiro a comida depois de mais um
longo turno. Naquele momento, saída da casa de banho num robe de seda, em
vez de uma toalha ou da farda preta do trabalho, já não era uma visão
desagradável.
– Tenho na ideia levar-te a algum lado. – Ele tirou a tampa do decantador
com o licor de flor de sabugueiro e serviu uma quantidade discreta para si e a
dose generosa que faria Marguerite sentir-se tonta.
– Estes encontros noturnos apressados não me agradam. Tenho estado a
planear uma curta viagem a Limoges, para breve. Talvez te leve comigo.
Eve bebericou um pouco do licor.
– Porquê Limoges?
– Lille é tão aborrecido. – Fez uma careta. – Vai ser agradável passear
numa rua que não tenha um nome germânico. Além disso, estou a pensar
abrir um segundo restaurante. Limoges poderá ser a escolha. Vou tirar um
fim de semana, para inspecionar locais adequados.
Um fim de semana com René Bordelon. Não eram as noites que davam
arrepios a Eve, eram os dias. Jantares demorados, chás, passeios de fim de
tarde ao lado dele, ter de filtrar cada palavra e ser cuidadosa em todas as
reações. Sentir-se-ia exausta muito antes de chegar à cama e ao que aí
aconteceria.
Meio jogo de xadrez e dois copos do licor ardente e aromático depois,
retiraram-se para o quarto. Passado o tempo apropriado depois de ele ter
concluído, Eve voltou a vestir a farda de trabalho e preparou-se para ir para
casa. Observando-a enquanto ela se vestia, René emitiu um som de
desaprovação.
– Esta pressa de sair quando a cama ainda nem arrefeceu – disse ele. –
Não é nada civilizado.
– Não q-quero que haja falatório, monsieur. – Para não falar no facto de
Eve não ousar adormecer na presença dele. E se murmurasse algo em alemão
ou inglês durante o sono, ou outra coisa que não pudesse explicar? Ela nem
queria pensar nisso. Se passares a noite com ele em Limoges, vais ter de
pensar nisso. – Se eu não voltar para casa à noite, as pessoas vão começar a
bisbilhotar – disse ela, enquanto vestia as meias de vidro. – O p-padeiro urina
na massa quando faz pão para as mulheres que… se deitam com os alemães.
René parecia divertido.
– Não sou alemão, minha querida.
És pior. Um judas francês que trai os seus compatriotas por dinheiro – os
alemães eram odiados em Lille, mas homens como René Bordelon eram
detestados ainda mais intensamente. Quando os alemães perderem a guerra,
tu serás o primeiro a ser enforcado num poste de rua.
– Ainda assim, eu s-seria insultada. – Eve tentou defender-se. –
Ameaçada.
Ele encolheu de ombros.
– Se alguém te ameaçar, dizes-me. Denuncio-os aos alemães e eles vão
ficar a braços com uma multa ruinosa, ou algum tempo na prisão, ou até pior.
O Kommandant far-me-ia a vontade: está sempre disponível para reduzir as
discórdias entre os civis.
A possibilidade de alguém poder ser levado para uma cela de prisão ou
multado a ponto de ter de passar fome, a seu pedido, não parecia perturbar
René. Eve ouvira-o várias vezes a passar nomes aos oficiais alemães,
enquanto tomavam o habitual brandy de fim de jantar: pessoas que não lhe
agradavam, que guardavam víveres confiscados, que falavam contra os
invasores. Mas ouvir a sugestão atirada assim para o ar, de um modo tão
casual… Ela estudou com espanto a expressão dele. De facto, aquilo não
perturbava em nada a consciência de René.
– Ainda és assim tão envergonhada, minha querida? – Ele inclinou a
cabeça. – Tão envergonhada a ponto de não quereres que as pessoas saibam
que agora és minha?
– Só não quero comer p-pão com urina – sussurrou Eve, como se sentisse
a dor da humilhação. Na verdade, sentia-se horrorizada.
René parecia indeciso entre uma gargalhada e um olhar carrancudo,
diante da honestidade dela. Para alívio de Eve, decidiu-se por uma
gargalhada.
– Um dia, conseguirei ensinar-te a ser indiferente à opinião das pessoas,
Marguerite. É uma libertação, não nos importarmos com nenhuma opinião,
exceto a nossa. – Mesmo nu, ele mantinha o ar sofisticado, com a pele macia
e pálida por entre os lençóis. – Limoges, em breve… Vou levar-te comigo.
Podes inventar uma história qualquer para contar aos outros empregados;
uma tia que ficou doente, ou algo do género. E eu farei questão de mostrar
publicamente o meu descontentamento contigo.
– Obrigada, monsieur. – Mas Eve não tinha intenções de ir com ele a
Limoges. Se tudo corresse bem, daí a dois dias o Kaiser estaria morto e o
mundo poderia ser refeito.
Não vai ser assim tão fácil, disse para si. As guerras eram máquinas
gigantes; não paravam subitamente quando um homem morria, mesmo se ele
fosse um rei. Mas ainda que a guerra não terminasse, o mundo seria um lugar
muito diferente. Nesse mundo, René Bordelon teria, sem dúvida, de contar os
seus inimigos, para além dos aliados, e não se poderia dar ao luxo de passar
fins de semana em Limoges.
Os dias anteriores à visita do Kaiser passaram a passo de caracol, e as
noites na cama imaculada de René ainda mais lentamente, apesar de Eve ter
ficado a saber de alguns factos e números interessantes sobre os aeródromos
da região, e que o Tio Edward consideraria relevantes. Finalmente, O Dia
amanheceu, quente e húmido, mesmo àquela hora da manhã, e as fleurs du
mal encontraram-se em segredo. Eve viu expressões semelhantes no olhar
penetrante de Lili e no olhar cauteloso de Violette: uma esperança tão
violenta que tinha de ser esmagada. Saíram apressadamente da cidade, em
silêncio, em direção às colinas dos arredores.
– Não devíamos ir ver o comboio – avisou Violette.
– Tais-toi – reagiu Lili. – Eu ia dar em louca se tivesse de ficar em casa a
ouvir os aviões por cima de nós. Além disso, não posso escrever o relatório
para o Tio Edward até ver os resultados, por isso, não vale a pena seguir a
rotina habitual.
– É má ideia – resmungou Violette. Mas nenhuma delas voltou para trás.
Passaram pelas pequenas quintas da região, já saqueadas, e instalaram-se no
topo de um morro baixo, de onde conseguiam ver ao longe os carris da linha
de comboio. Violette mastigava a ponta de uma erva num silêncio cortante;
Eve abria e fechava os dedos das mãos. Lili tagarelava como se estivesse
numa festa:
– Comprei o chapéu mais horroroso de sempre na minha última visita a
Tournai. Rosas de cetim azul e gaze às bolinhas; deixei-o no comboio e é
provável que ainda lá esteja. Nenhum passageiro respeitável seria capaz de
levar aquela pilha de cetim azul de…
– Lili – disse Eve –, cala-te.
– Obrigada – agradeceu Violette, falando pela primeira vez em duas
horas. Observavam fixamente os trilhos de comboio, como se só a
concentração delas pudesse desencadear o ataque. O sol já ia alto.
Lili foi quem viu primeiro.
– Aquilo será…
Um vestígio minúsculo de fumo. Um comboio. Surgiu muito devagar no
horizonte, demasiado longe para se poder ouvir o ruído das rodas nos carris
ou o estrépito do vapor a sair da locomotiva. Vinha ainda demasiado longe
para se poderem distinguir os pormenores… Mas, segundo as informações de
Eve, tinha de ser este. O comboio que transportava em segredo o Kaiser
Wilhelm para visitar a frente de combate.
Eve olhou para cima. No vasto céu azul não se via nada.
Lili pousou a sua pequena mão sobre a de Eve, na erva, e apertou-a.
– Nique ta mère – disse ela, olhando igualmente para cima. – Os canalhas
da RFC…
O comboio avançava lentamente. O aperto de Lili era como um torno.
Eve agarrou na mão de Violette, do outro lado, e apertou-a também. Violette
correspondeu ao aperto.
Assim que Eve ouviu o ruído dos aviões, ao longe, pensou que o seu
coração ia parar. De início, não passava de um zumbido, como se fosse um
enxame de abelhas; depois, viu-os, dois aviões em formação, como águias ao
ataque. Não sabia se eram monoplanos ou biplanos; não percebia nada de
aviões, só conhecia as palavras técnicas sem sentido que memorizara quando
os alemães as proferiam à mesa. Mas estes aviões eram lindos e ela soltou um
arquejo. Lili resmungou obscenidades que soavam mais a rezas e Violette
ficou petrificada.
– Sabes – disse Eve, tensa e sem pensar –, nem sequer sei como é que os
aviões bombardeiam os alvos. Será que atiram os explosivos janela fora?
Desta vez, foi Lili quem disse:
– Cala-te.
O comboio aproximou-se. Os aviões rasgavam os céus. Por favor,
pensavam as três. Por favor, ataquem. Acabem com isto, neste dia de verão
com cheiro a erva morna e o canto dos pássaros.
Estavam demasiado longe para verem os explosivos a cair, ou as
descargas, ou o que quer que se chamassem. Veriam apenas a explosão, as
chamas, o fumo. Os aviões voavam como pássaros preguiçosos sobre o
comboio, sem fazer nada. Agora, pensou Eve.
Mas não houve qualquer explosão.
Nem fumo. Nem chamas. Nem um descarrilamento estrondoso, com
carruagens a serem projetadas para fora dos trilhos.
O Kaiser continuou a avançar placidamente em direção a Lille.
– Eles falharam – disse Eve, paralisada. – Eles f-falharam.
Violette falou, com uma raiva triste:
– Ou os explosivos tinham algum defeito.
Façam outra tentativa, rugiu Eve para si. Tentem outra vez! Mas os
aviões tinham desaparecido, não como águias orgulhosas, mas como pardais
envergonhados. Porquê?
Que interesse tinha o porquê? O Kaiser continuava vivo. Visitaria a frente
de combate; observaria os soldados nas trincheiras; talvez passasse por Lille e
aprovasse com satisfação os relógios acertados com a hora de Berlim, as
avenidas rebatizadas com nomes alemães. A não ser que ele fosse comer ao
Le Lethe – o que daria a oportunidade a Eve de lhe enterrar uma faca de bife
na nuca ou de polvilhar a mousse de chocolate com veneno para ratos –, o
Kaiser voltaria à Alemanha vivo e com saúde, continuando a controlar a
máquina de guerra tão facilmente como tinha viajado intacto naquele
comboio para Lille.
– Se calhar, é melhor assim. – A voz de Violette era rouca, como se
estivesse cheia de gravilha. Ergueu-se. – A morte do Kaiser em Lille atrairia
todas as atenções dos alemães para aqui. Provavelmente, seríamos apanhadas.
– E a guerra também n-não terminaria de repente. – Foi o que Eve se
ouviu dizer, num tom de desespero. – Não teria mudado m-m-m-m… – Não
conseguiu fazer com que a palavra saísse e não tinha vontade de a forçar.
Deixou a frase incompleta, pôs-se de pé e limpou a saia com movimentos
mecânicos.
Lili não se movera. Continuava a fitar o comboio a desaparecer e o seu
rosto parecia muito velho.
Violette baixou o olhar para ela, os óculos a refletir a luz.
– Levanta-te, Lili.
– Aqueles malditos… – Lili abanou a cabeça. – Ah, sacanas.
– Ma p’tite, por favor. Levanta-te.
Lili pôs-se de pé. Olhou momentaneamente para o chão, pontapeando a
erva, e quando, por fim, ergueu o queixo sorria. Um sorriso leve e amargo,
mas um sorriso.
– Não sei o que vos apetece, mes anges, mas esta noite apetece-me
apanhar uma bebedeira.
Eve, no entanto, não estaria lá para partilhar a zurrapa de brandy ou
whisky que Lili conseguiria arranjar. Tenho o René hoje, pensou. E amanhã à
noite. E, em breve, se ele me levar a Limoges, vou tê-lo por dois dias e duas
noites inteiros.

Todas as noites tinham um ritmo. O banho. Os cerca de dez minutos de


calma depois disso, a bebericar um copo cheio de licor de flor de sabugueiro
e o robe de seda a roçar-lhe a pele húmida. Enquanto Eve bebia, René punha
o disco a tocar e falava-lhe, talvez, da peça de Debussy que ouviam e de
como o impressionismo era expresso orquestralmente, e quem eram os outros
impressionistas na arte e literatura, para além da música. Esse era a parte
fácil. Tudo o que Eve tinha de fazer era ouvir com admiração.
Então, chegava o momento em que René lhe tirava o copo da mão e a
levava para o quarto ao lado. E aí tudo se tornava difícil.
Os beijos dele eram lentos e prolongados, e ficava sempre de olhos
abertos. Permaneciam assim durante todo o tempo, sem pestanejar, a medir
tudo, atento ao mais pequeno arquejo ou sobressalto. Ele despia-lhe
lentamente o robe de seda vermelha, deitava-a sem pressa em cima dos
lençóis imaculados, atirava o robe para o lado e depois esticava-se por cima
dela, fazendo tudo com muita calma.
Eve desejava sempre intensamente que ele tivesse rapidamente o seu
momento de prazer e saísse de cima dela. Isso seria tão mais fácil.
– Nunca treinei uma virgem – comentara ele da primeira vez. –
Normalmente, dou mais valor à experiência do que à inocência. Veremos se
aprendes rápido. Não conto satisfazer-te das primeiras vezes. Com as
mulheres, é assim. Sempre pensei que é um pouco injusto.
René gostava de explorar todas as partes do corpo de Eve, delineando
cada abertura e cada canto dela com a língua, demorando-se longamente atrás
das orelhas e dos joelhos, além dos lugares mais óbvios. Prolongava
infinitamente o tempo, satisfeito por poder brincar durante horas, pegando na
mão dela e usando-a para explorar a sua própria pele, branca e sem marcas.
Ele virava-a e fazia-a posar, posicionava-a e explorava-a, observando e
apreendendo todos os pormenores.
– Os teus olhos abrem-se ligeiramente quando te surpreendo – observou
ele, certa noite. – Como os de um veado… – E levou a boca ao seio dela,
mordendo-a um pouco, num gesto súbito e conhecedor de brutalidade
sensual. – Assim mesmo – disse ele, levando o polegar às pestanas dela.
Não era algo em que Eve alguma vez tivesse pensado: como a intimidade
da pele nua de alguém contra a pele nua de outra despia algo mais do que
roupas, constituindo outra forma de as pessoas se conhecerem umas às outras.
Não quero que ele me conheça, pensou ela com desespero. O seu trabalho
dependia de ele não a conhecer, contudo, a cada noite que passava, ele
aprendia um pouco mais sobre ela.
“É mais difícil mentirmos àqueles que nos conhecem melhor”, dissera o
Capitão Cameron em Folkestone. Eve afastou rapidamente a recordação, não
querendo a presença dele no seu pensamento naquelas noites na cama de
René, mas o medo persistia. Se René a ficasse a conhecer suficientemente
bem, poderia ela continuar a enganá-lo?
Sim, pensou, zangada. Implica ter de mentir mais e melhor, mas vais
conseguir fazê-lo. E lembra-te: também estás a aprender coisas sobre ele.
Noite após noite, Eve aprendeu a ler cada espasmo de cada músculo de
René, cada brilho nos seus olhos. O homem por detrás dos fatos elegantes era
mais fácil de ler, pois ela já sabia como os músculos nus se moviam por
baixo.
Quando ele acabava de brincar com ela, a união era rápida. Ele preferia
tomá-la por trás ou por cima, com a mão por entre o cabelo dela, para lhe
poder inclinar a cabeça para trás e segurá-la, observando todas as reações. Ele
gostava que ela olhasse para ele: “Olhos abertos, minha querida”, instruía ele
frequentemente, nunca desatento. E quando finalmente permitia que o seu
próprio prazer chegasse ao fim, deixava-se cair sobre ela, fazendo do corpo
de Eve uma almofada, enquanto as suas pulsações acalmavam – e então
retomava a conversa, interrompida no escritório, sobre Débussy, Klimt ou o
vinho da Provença.
Hoje, era sobre o Kaiser.
– Aparentemente, ficou contente com a visita. O aeródromo teve a sua
aprovação, mas não sei o que terá achado das trincheiras. São sítios
horrorosos, ao que parece.
– O senhor c-c-conheceu-o? – Eve permaneceu imóvel, os dedos
entrelaçados com os de René sobre a almofada e as pernas enlaçadas nas
coxas magras dele. Era em momentos como este que ele era mais imprudente.
– Eu esperava que ele v-viesse ao Le Lethe…
René percebeu um rasgo de emoção na frase dela, por mais que ela
disfarçasse com a sua expressão inocente.
– Para poderes cuspir na vichyssoise dele?
Eve não deu importância e não mentiu. Ela nunca mentia quando René
estava nu por cima dela – a menos que não tivesse como evitar. Os
pensamentos transmitiam-se mais depressa no contacto pele com pele.
– Não lhe ia cuspir na sopa – disse ela com franqueza. – Mas se calhar p-
p-pensava nisso.
René soltou uma gargalhada e rolou para o lado. O corpo dele desuniu-se
do dela, e Eve reprimiu o habitual arrepio.
– Kaiser ou não, dizem que ele é um homem vulgar. Ainda assim,
esperava que ele viesse ao restaurante. Que golpe teria sido, ser o anfitrião de
um imperador.
Eve cobriu-se com o lençol.
– Ele deu instruções d-diferentes, depois de visitar Lille?
– Sim, bastante interessantes…
E René contou-lhe.
– Mas que boas informações tens obtido – comentou Lili na visita
seguinte, alguns dias depois da partida do Kaiser. Chegara quando Eve se
preparava para ir trabalhar.
Eve estava sentada a escovar o cabelo, enquanto Lili copiava o relatório.
Segurou o papel de arroz no ar e abanou a cabeça, com um ar de desprezo e
simultaneamente divertido.
– O Kommandant anda mesmo a falar das melhorias da artilharia em
público, enquanto come cerejas e bebe brandy?
– Não. – Eve tinha o olhar fixo no espelho titubeante do lavatório. –
Quem fala é o René Bordelon, em privado e na cama.
Ela sentiu os olhos de Lili postos nas suas costas.
Eve falou o mais formal e secamente possível, mas não deixou de
tropeçar na primeira barreira.
– Mesmo antes do nosso encontro com o Tio Edward, eu t-tornei-me… –
O quê? Concubina? René podia ser o patrão dela, mas não a mantinha.
Meretriz? Ele não lhe pagava mais do que o ordenado, só lhe oferecia o licor
de flor de sabugueiro e deu-lhe o robe que ela não estava autorizada a usar
senão no escritório dele. Amante? Não havia ali amor.
Mas Lili não precisou que ela terminasse a frase.
– Pauvre petite – soltou. Atravessou o quarto e tirou a escova da mão de
Eve. – Lamento. Ele magoa-te?
– Não. – Ela piscou os olhos com força. – Pior.
– Como assim?
– Eu… – Eve engasgou-se. – Lili, eu… eu s-sinto-me tão envergonhada.
A escova deslizou no cabelo de Eve.
– Eu sei que tu não és do tipo que se deixa levar facilmente, razão por que
achei que podias dar um passo desses sem te comprometeres. Mas essas
coisas complicam-se sempre mais do que aquilo que esperamos. Começas a
sentir tendresse por ele, é isso?
– Não. – Eve abanou veementemente a cabeça. – Nunca!
– Ótimo. Se eu achasse que começavas a ter interesses conflituosos, teria
de o comunicar. E olha que o faria mesmo – revelou calmamente Lili,
continuando a escovar o cabelo de Eve. – Gosto muito de ti, mas o trabalho é
demasiado importante e não pode ser posto em causa. Então, se não é
tendresse, o que te faz sentir tão envergonhada?
Eve esforçou-se por manter os olhos abertos, de forma a cruzar o olhar
com Lili no espelho.
– As primeiras v-vezes que eu fui para a cama com ele, não me pediu para
sentir… p-p-prazer. – Nem esperou. – Agora…
Por aqueles dias, contudo, Eve acostumara-se ao que acontecia entre os
lençóis limpos e imaculados da cama de René Bordelon. Os padrões dele
eram elevados, no que respeitava às companheiras de cama, como, aliás, em
tudo na vida. Ele esperava prazer. Esperava dar prazer e obter prazer.
Isso tinha levado a algo totalmente inimaginável.
– Conta-me. – Lili parecia descontraída. – Não há muito que me choque,
podes ter a certeza disso.
– Estou a começar a gostar – disse Eve, fechando novamente os olhos
com força.
Lili não parou de escovar o cabelo.
– Sinto desprezo por ele. – Eve conseguiu manter a sua voz firme. –
Como é possível sentir prazer naquilo que ele m-m-m… naquilo que ele me
f-f… – A palavra não saía. Eve deixou-a morrer.
– Ele deve ser bom – comentou Lili.
– Ele é o inimigo. – Eve apercebeu-se de que tremia dos pés à cabeça. De
raiva, vergonha ou repugnância, ela não sabia. – Há colaboradores nesta
cidade de quem podemos ter p-pena: mulheres que dormem com oficiais para
poderem alimentar as famílias; homens que trabalham para os alemães para
poderem manter os filhos aquecidos. Mas o René Bordelon não é senão um
especulador. Ele é tão mau como os boches.
– Talvez seja – respondeu Lili. – Mas fazer amor é um talento como outro
qualquer, sabes. Um homem mau pode ser um bom carpinteiro, ou um bom
chapeleiro, ou um bom amante. O talento não tem qualquer relação com a
alma.
– Oh, Lili… – Eve esfregou as têmporas. – Tu és tão f-francesa.
– Sim, e a pessoa ideal para se falar sobre estas coisas é precisamente
uma mulher francesa. – Lili endireitou a cabeça de Eve na direção do
espelho. – Com que então, o Monsieur Especulador é bom na cama e tu
sentes-te culpada por teres prazer?
Eve pensou em René a decantar um vinho de qualidade e a cheirar-lhe o
bouquet, em René a engolir lentamente uma ostra.
– Ele é sofisticado. Quer esteja a saborear um vinho de Bordéus, ou um
charuto caro, ou… a mim, ele demora o tempo necessário para que seja
perfeito.
– A consequência física de um talento – explicou cuidadosamente Lili –
não é sinal do que se passa na cabeça ou no coração da pessoa, sabes.
– A consequência física que não está ligada ao coração ou à cabeça é o
que d-define uma galdéria – reagiu Eve, com brutalidade.
– Chiça. Isso soa a conversa de tia da província. Nunca dês ouvidos a
pessoas dessas, margaridazinha. Não só são chatas e infelizes, mas também
usam vestidos de chita e pensam que as tarefas domésticas são sinal de
virtude.
– Mesmo assim, sinto-me uma galdéria – sussurrou Eve.
Lili parou de escovar e pousou o queixo em cima da cabeça de Eve.
– Imagino que terá sido a tua mãe quem te disse que uma mulher que tem
prazer com um homem que não o marido é uma galdéria, certo?
– Sim, algo p-parecido. – Eve tinha dificuldade em contrariar esse
argumento. Ela olhava para René apenas com aversão: como era possível que
as suas mãos frias, pacientes e habilidosas pudessem suscitar algo
remotamente deleitável? – As mulheres normais não sentiriam isto –
começou a dizer, mas Lili fez um aceno de mão.
– Se nós fôssemos normais, estaríamos em casa a reutilizar as folhas de
chá e a enrolar ligaduras para apoiar o esforço de guerra, e não aqui, com
armas nos sacos de mão e a passar mensagens codificadas em ganchos de
cabelo. Mulheres corajosas, como tu e eu, não se medem pelos mesmos
padrões das mulheres normais. – Lili levantou o queixo de cima da cabeça de
Eve. – Escuta-me. Sou mais velha do que tu e consideravelmente mais
sensata. Acredita em mim quando te digo que é inteiramente possível
desprezar um homem e, ainda assim, sentir prazer com ele na cama. Merde,
às vezes, até é melhor assim. O desprezo confere uma certa intensidade…
“Acessos de amor, acessos de ódio, é tudo o mesmo.” Já dizia o Puccini na
Tosca, e tinha toda a razão.
Marguerite Le François não saberia com certeza o que era a Tosca, mas
Eve sabia.
– A Tosca mata o homem antes de ele abusar dela.
– Talvez um dia também mates o Bordelon. Pensa nisso quando ele
estiver em cima de ti; vai dar-te um espasmo de prazer, acredita.
Eve soltou uma gargalhada frouxa. O tom de Lili era ligeiro, mas aquela
presença calorosa e firme era como um escudo nas costas de Eve.
– Então… – A líder da Rede Alice afastou-se, preparou duas chávenas da
mistura de folhas de nogueira fervidas com alcaçuz, que em nada substituía o
chá, e depois sentou-se em frente a Eve. – Tu foste para a cama com o
Monsieur Especulador com a intenção de lhe dar prazer para o poderes
continuar a espiar.
– Sim.
– As informações que obténs dele são boas, muito melhores do que as que
consegues obter a servir às mesas – reconheceu Lili. – E aprendeste,
entretanto, que parte do que dá prazer ao teu especulador é deixá-lo dar-te
prazer. Se queres continuar na cama dele e a recolher informações preciosas,
vais ter de continuar a deixá-lo.
– Preferia f-fingir que tenho prazer – ouviu-se Eve dizer. Que estranha
conversa para se ter assim, num quarto pequeno e vazio, ao sabor de um chá
improvisado, e de um modo tão prosaico, como se fossem senhoras inglesas a
discutir assuntos da igreja durante o chá das cinco. – Mas eu não sou b-boa
mentirosa, Lili. Quer dizer, sou uma grande mentirosa, mas não consigo
reprimir p-p… reprimir prazer e fingi-lo ao mesmo tempo. Ele agora é m-m-
muito bom a ler-me.
– E ele está feliz com o que lê em ti?
– Sim. Creio que ele simpatiza comigo. Vai levar-me com ele a Limoges
para um fim de semana, em breve.
– Então, vai e aproveita o mais que puderes dele. – Lili tinha um ar feroz.
– Cada copo de vinho antes da cama, cada petit mort depois do prazer, cada
pedacinho de informação que ele deixa passar depois disso. O nosso trabalho
já tem poucos momentos de prazer. A comida é horrível, o licor praticamente
inexistente, os cigarros são cada vez mais escassos e as roupas, atrozes.
Temos pesadelos, a cor da nossa pele é igual à de um cinzeiro e vivemos na
expectativa constante de sermos apanhadas. Por isso, não te sintas culpada
por qualquer bocadinho de prazer que consigas ter, seja de que forma for.
Aceita-o.
Eve deu outro gole do líquido azedo.
– Não vais falar sobre o p-pecado? – Lili era estranhamente devota,
apesar da frivolidade aparente; levava sempre um terço com ela quando
atravessava os pontos de controlo e falava com afeto do seu confessor e das
freiras de Anderlecht.
– Somos mortais, logo pecamos. – Lili encolheu os ombros. – É a nossa
tarefa na vida. Le Grand Seigneur perdoa-nos, e essa é a tarefa Dele.
– E qual é a tua tarefa? Salvar-nos quando estivermos a chafurdar na l-
lama? – Até Violette, sempre imperturbável, tinha os seus momentos negros:
Eve vira-a certa noite desanimada e a tremer, depois de ter perdido um piloto
inglês, abatido por um sentinela alemão quando atravessavam a fronteira, e
fora Lili quem a salvara da escuridão, tal como o fazia nessa noite com Eve. –
Alguma vez te sentes com medo e desanimada?
Lili encolheu um ombro, quase arrogante.
– O perigo não me assusta, mas não gosto de o presenciar. E agora, não
tens trabalho para fazer? Eu tenho, e muito.
Partiu dez minutos depois, com o relatório no papel de arroz enrolado
dentro do cabo do guarda-chuva. Eve partiu na outra direção, para o Le Lethe.
Quando entrou no restaurante, onde as pratas e as toalhas já estavam a ser
postas nas mesas, cruzou-se com Christine, que desviou a saia para não a
tocar.
– Galdéria – sussurrou, a voz quase inaudível. Eve estacou, olhando por
cima do ombro. Arqueou as sobrancelhas, ao jeito cáustico de Lili.
– O que queres dizer com isso?
– Eu vi-te. – O sibilar de Christine era venenoso, embora o seu olhar
estivesse fixo nas velas que acendia. – A subir as escadas para os aposentos
do Monsieur Bordelon, depois de o turno terminar. Ele é um especulador e tu
não passas de uma…
Eve deu um passo rápido e agarrou o pulso de Christine.
– Mais uma palavra e farei com que sejas despedida. Uma palavra que
seja de bisbilhotice e perdes o emprego que te dá restos de tartiflette e bisque
de lagosta ao fim da noite. Ouviste bem? – Enterrou as unhas no pulso de
Christine, mudando de posição para que os empregados que passavam por
elas a carregar tabuleiros de copos de cristal não reparassem. – Posso fazer
com que sejas despedida – repetiu Eve, sem gaguejar uma só vez. – E que vás
para a lista negra. Nunca mais vais conseguir arranjar um emprego nesta
cidade, e vais passar fome.
Christine libertou-se com um puxão.
– Galdéria – sussurrou novamente.
Eve encolheu os ombros e afastou-se discretamente. Havia alguns dias
que se fustigava a si mesma com aquela palavra. Mas, naquele momento,
descobriu que não estava disposta a ser chamada de galdéria por mais
ninguém, muito menos por uma mulher mais idiota do que uma sopa de
marisco.
Capítulo 21
Charlie
Maio de 1947

– Lembro-me disto. – Eve apontou para a ponte de arco em pedra sobre o


rio de águas azuis e paradas que serpenteava por Limoges. Uma ponte
romana, de aspeto desmoronado e romântico, sobre a qual os pequenos carros
dos franceses, a buzinar e cheios de pressa, pareciam incongruentemente
modernos. – Era o despontar do dia, não o entardecer – continuou Eve. – O
René Bordelon parou ali, mesmo ao lado do rio, e disse que sempre achara
que uma esplanada era uma abominação em qualquer restaurante que não um
café, mas, se ele pudesse ter esta vista, talvez considerasse a hipótese de ter
uma esplanada.
Deu meia-volta, metendo as mãos nos bolsos da camisola puída, e
observou a ladeira relvada, as árvores, os edifícios ao longo da margem.
– O filho da puta conseguiu concretizar o desejo. Abriu o segundo
restaurante mais à frente, com esta vista.
Eve continuou a caminhar no seu passo comprido pela rua de paralelos.
Olhei para Finn; ambos encolhemos os ombros ao mesmo tempo e seguimo-
la. Ela acordara cedo nesse dia, e a viagem entre Paris e Limoges fora rápida.
Voltara a estar faladora, pelo que cada quilómetro percorrido trazia novas
histórias sobre a guerra, embora eu tivesse dificuldade em acreditar em
algumas delas (um ataque falhado ao Kaiser?). Levara-nos até um hotel perto
da catedral medieval de Limoges; mandara Finn estacionar o Lagonda e
entrara no hotel, onde, no seu francês fluente, perguntara ao concierge sobre
o endereço que eu tinha escrevinhado num papel – o endereço do segundo Le
Lethe, onde Rose trabalhara. Quando Finn regressou, Eve levou-nos a
conhecer a cidade a pé, pelas ruas calcetadas e sinuosas de Limoges. Era uma
cidade bonita: salgueiros-chorões tombados para a água ao longo do rio;
igrejas góticas com torres viradas ao céu; vasos de sardinheiras pendurados
nas varandas – e não aparentava nem metade da destruição do norte de
França, região que fora muito mais devastada com a ocupação nazi.
– É mais tranquila do que Paris – comentou Finn, fazendo eco dos meus
pensamentos. Estava apenas em mangas de camisa, o que lhe merecia olhares
desaprovadores de alguns homens franceses, nos seus fatos de verão
impecáveis. As mulheres, no entanto, não se pareciam importar com o aspeto
amarrotado dele, a julgar pelos relances. Finn olhou para trás, para todos os
rostos das pessoas que iam passando: jovens mães atarefadas com os seus
chapéus de palhinha, homens a ler o jornal nas esplanadas dos cafés, de
sobrolho franzido. – Faces rosadas – observou ele. – Não tão magros nem tão
abatidos como as pessoas que vimos no Norte.
– Esta era a Zona Livre – esclareci, conseguindo finalmente acompanhar
o passo largo de Finn, pois vestia calças curtas e calçava sandálias rasas, em
vez dos cambaleantes sapatos de salto alto. – O Governo de Vichy não era
flor que se cheirasse, ainda assim as pessoas aqui tinham uma vida melhor do
que no Norte.
– Eh – resmungou Eve, à nossa frente. – Não tenhas assim tanta certeza.
Eles aqui tinham de viver com a Milice, e a Milice era uma cambada de
sacanas maus como tudo.
– A Milice? – perguntou o Finn.
– A milícia francesa recrutada para perseguir os seus próprios
compatriotas, em nome dos alemães. Sempre odiei aqueles s-sacanas.
– Mas a Milice não existiu durante a sua guerra, Eve. – Inclinei a cabeça,
curiosa. – A Eve não participou na última guerra.
– Isso é o que tu dizes, ianque.
– Espere… Então também trabalhou na segunda guerra? O que…
– Não interessa. – Eve estacou subitamente, levantando a cabeça ao ouvir
o som dos sinos, transportado pela brisa lenta de verão. – Estes sinos.
Lembro-me destes s-sinos. – Recomeçou a andar ao longo da margem, com
uma postura de costas muito direitas, e eu seguia-a, abanando a cabeça.
– Quando foi a última vez que esteve aqui em Limoges, Gardiner? –
interrogou Finn.
– Agosto de 1915 – replicou Eve, sem olhar para trás. – O René Bordelon
trouxe-me aqui para passar um fim de semana.
Era apenas uma frase, mas a suspeita que me acompanhava tornava-se
finalmente certeza – a minha suspeita sobre o dono elegante do Le Lethe.
Pelo ódio que Eve revelava na voz sempre que falava dele, eu sabia que ele
representava algo de especial; não se odeia tanto alguém sem que haja um
envolvimento pessoal. Naquele momento, fiquei a saber: ele tinha sido seu
amante. Eve tinha ido para a cama com o inimigo para o poder espiar.
Olhei para ela e para aquele rosto orgulhoso e estragado, e observei a
postura militar no andar enquanto seguia rua abaixo. Ela não seria muito mais
velha do que eu, na altura. Conseguias ir para a cama com um alemão para o
espiar, Charlie? Fingir que gostava dele, rir das piadas dele, deixá-lo
desapertar-me a blusa, tudo para lhe poder revistar a secretária e espiar a
conversa, em busca de informações úteis? Sabendo que podia ser apanhada e
morta a qualquer momento?
Voltei a olhar para Eve e admirei-a imensamente. Não queria apenas que
ela gostasse de mim; queria ser mais parecida com ela. Queria apresentá-la a
Rose: “Esta é a velha louca que me ajudou a encontrar-te quando toda a gente
desistiu.” Imaginei a Eve a olhar para Rose com o seu ar altivo e a minha
prima a responder-lhe na mesma moeda. Imaginei-nos às três a
embebedarmo-nos juntas e a falar por cima umas das outras – um trio de
mulheres, cada uma mais estranha do que a outra, a ficarem amigas.
Será que Eve alguma vez tinha tido uma amiga tão importante para ela
quanto Rose era para mim? Em todas as suas histórias, a única mulher que ela
mencionava era Violette, que, em Roubaix, lhe cuspira na cara.
– Ficaste subitamente com uma expressão tão séria – comentou Finn,
enquanto me observava.
– Estou a devanear. – Não conseguia estar triste. Sentia o calor do sol na
minha cabeça e o meu braço roçava o de Finn a cada dois ou três passos, o
que me enchia de uma sensação ridiculamente arrepiante. – Estamos cada vez
mais próximos da Rose.
Ele ergueu uma sobrancelha.
– O que te faz ter a certeza de que ela está à espera de ser encontrada?
– Não sei. – Tentei encontrar as palavras certas. – A esperança cresce a
cada dia que passa.
– Apesar de ela não te escrever há… quê? Três, quatro anos?
– Talvez me tenha escrito, na realidade. Durante a guerra, o correio
perdia-se frequentemente. Além disso, na última vez que ela me viu, eu só
tinha 11 anos. Ela podia achar que eu era demasiado jovem para ouvir algo
tão escandaloso como… – Dei uma palmadinha muda na minha barriga. –
Sinto cada vez com mais intensidade que ela está aqui. A Eve faz pouco de
mim quando eu digo que a consigo sentir, mas…
Eve parou tão repentinamente que quase a atropelei.
– O Le Lethe – sussurrou ela.
Devia ter sido um restaurante muito agradável alguns anos antes. Ainda
se viam as bonitas linhas do edifício, com as vigas de madeira antigas à
mostra nas paredes exteriores e uma vedação em ferro forjado a delimitar a
esplanada, que tirava vantagem completa da vista. Mas o letreiro baixo que
tinha entalhadas as letras que compunham a palavra Le Lethe fora manchado
de maneira tosca com tinta vermelha e as enormes janelas da fachada estavam
tapadas com tábuas. Havia muito tempo que não era ali servida uma
vichyssoise ou um mille-feuilles.
– O que aconteceu? – perguntei. Mas Eve já estava junto às portas de
estilo medieval, fechadas a cadeado. Apontou para as letras gravadas na
madeira, um pouco escondidas por borras de tinta: COLLABOR…
– Collaborateur – murmurou ela. – Fizeste das tuas, René? Devias ter
aprendido da primeira vez: os sacanas dos alemães perdem sempre.
– É fácil dizer isso agora, ao olhar para trás – disse suavemente o Finn. –
Mas na altura isso não era tão evidente nas linhas da frente.
Eve, no entanto, já avançara até ao edifício seguinte, onde estava a bater à
porta. Ninguém respondeu e dirigimo-nos à casa seguinte. Precisámos de três
tentativas e uma conversa sem sucesso com uma dona de casa, que nada sabia
sobre o antigo restaurante, até encontrarmos, por fim, uma francesa idosa,
com um cigarro pendurado nos dedos e um olhar intensamente amargo.
– O Le Lethe? – respondeu ela à pergunta de Eve. – Fechou no final de
44, e já foi tarde.
– Porquê?
O lábio da mulher franziu-se.
– Era um antro de alemães. Todos os oficiais da SS iam lá parar nas
noites de folga, com uma prostituta francesa pelo braço.
– O dono permitia isso? – A postura de Eve alterou-se, tornando-se mais
suave, mais humilde e conversadora. Transformara-se noutra pessoa, do
mesmo modo que eu a tinha visto transformar-se na loja de penhores em
Londres; eu e o Finn ficámos para trás, para a deixar fazer a sua magia. – E
como se chamava o dono?
– René du Malassis – respondeu a mulher, cuspindo de seguida para o
chão. – Um oportunista. Havia pessoas que diziam que a Milice o tinha na
mão… E não me admirava nada se assim fosse.
Du Malassis. Memorizei o nome, enquanto Eve perguntava:
– O que aconteceu ao Monsieur du Malassis?
– Desapareceu da noite para o dia, no Natal de 44. Ele pressentiu que o
vento estava a mudar. Ninguém sabe para onde foi, mas nunca mais apareceu
por aqui. – A mulher esboçou um sorriso lento e desagradável. – Se o tivesse
feito, tinha sido recebido com uma corda de forca num poste público.
– Por ser colaborador?
– Madame, há colaboradores e depois há homens como ele. Sabe o que
ele fez em 43? Arrastou um sous-chef para a rua no fim de um turno da noite
e anunciou que o rapaz era ladrão. Revistou-o ali mesmo, na rua, com toda a
gente a ver: os empregados do restaurante, os transeuntes, os vizinhos que,
como eu, vieram a correr ver que barulho era aquele.
Imaginei a cena: a névoa a emergir do rio, as pessoas que passavam de
olhos esbugalhados, um rapaz a tremer num avental de sous-chef. Eve não
dizia nada; estava tão atenta ao que ouvia que parecia ter-se transformado em
pedra. A velha continuou:
– Du Malassis tirou um punhado de talheres de prata do bolso do rapaz e
disse que ia telefonar à polícia. Prometeu que ia fazer com que o rapaz fosse
preso e enviado para Este. Sabe-se lá se o que realmente poderia ter feito,
embora toda a gente soubesse que os nazis lhe deviam muitos favores. O
rapaz tentou fugir. Du Malassis tirou uma pistola do bolso do seu fato
elegante e atingiu o rapaz por trás, antes de ele ter dado sequer dez passos.
– Ah, foi… – sussurrou a Eve. Estremeci.
– Sim, foi. – A velha falava com brusquidão. – E Du Malassis limitou-se
a limpar as mãos com um lenço e a fazer uma careta por causa do fumo da
pistola. Disse ao maître d’ para telefonar às autoridades para virem limpar a
porcaria. Depois, virou as costas ao rapaz morto e foi para dentro, calmo
como se nada tivesse acontecido. Esse é o tipo de homem que ele era. Não
era apenas um colaborador. Era um assassino elegante.
Finn perguntou:
– E os nazis protestaram?
– Que eu saiba, não. Devem ter-lhe retribuído os favores, porque ele não
foi preso nem repreendido, e o restaurante continuou a prosperar. Oh… há
muita gente em Limoges que lhe teria posto uma corda à volta do pescoço, e
ele sabia. Foi por isso que fugiu, assim que ficou claro que os alemães iam
perder. – A velha deu uma passa no cigarro e olhou-nos de um modo ríspido.
– Porquê a curiosidade? Du Malassis era vosso familiar?
– Do diabo, talvez – soltou Eve, com maldade, e as duas mulheres
trocaram sorrisinhos sarcásticos. – Obrigada pelo seu tempo – despediu-se
Eve, voltando costas. Mas eu dei um passo à frente e dirigi-me à velha no
meu francês americanizado.
– Pardonnez-moi, madame. Estou à procura de uma familiar… É possível
que tenha trabalhado no Le Lethe. Mas não era colaboradora – disse eu
apressadamente, quando vi que a mulher carregava o sobrolho. – Talvez se
lembre dela. As pessoas costumavam reparar na Rose. Jovem, loura, a
gargalhada dela era como um sino. – Mostrei-lhe a fotografia gasta de Rose,
que ela me tinha enviado juntamente com uma das suas cartas, em 43. Na
fotografia, ela olhava para trás, por cima do ombro, a sorrir, como a famosa
fotografia da atriz Betty Grable. Percebi imediatamente que ela reconhecera a
Rose, mesmo antes de me responder:
– Sim – disse. – Uma rapariga bonita. Era ver aqueles sacanas da SS a
darem-lhe beliscões na anca quando ela lhes trazia as bebidas. Mas ela não
lhes ligava nenhuma, não era como as pegas que o Du Malassis contratava.
Ela encontrava sempre uma maneira de lhes entornar as bebidas em cima e
depois pedia-lhes mil desculpas, doce como mel. Eu, daqui, via tudo o que se
passava na esplanada.
Aquilo deixou-me em choque. Uma nova recordação de Rose que não era
minha. Rose a entornar cerveja sobre os soldados alemães. As lágrimas
picaram-me os olhos. Era mesmo típico dela.
– Quando foi a última vez que a viu? – A voz saiu-me rouca, e só então
percebi que Finn me pegara na mão e que a apertava.
– Antes de o restaurante fechar. Deve ter deixado de trabalhar ali. – A
mulher voltou a cuspir no chão. – Não era um lugar decente para raparigas.
Senti-me a desanimar. Tinha tanta esperança de que Rose ainda estivesse
viva e a morar ali, em Limoges. Mas olhei para a mulher e forcei-me a sorrir.
– Obrigada pela sua ajuda, madame.
Ainda não estava pronta para desistir.

Nessa noite, Eve teve outro dos seus pesadelos. Dessa vez, não começou a
gritar, mas fui acordada por uma série de baques na parede entre os nossos
quartos. Fui espreitar ao corredor. Nada de Finn. Só eu.
Vesti uma camisola por cima da minha combinação e fui calmamente até
ao quarto de Eve. Encostei o ouvido à porta. Ainda se ouviam as pancadas
secas, como se ela estivesse a bater com alguma coisa contra a parede.
Espero que não seja a cabeça, pensei, e bati suavemente à porta.
– Eve?
Os baques continuaram.
– Não me aponte a pistola. Vou entrar.
Ela estava sentada no chão, no canto do quarto mais afastado da porta,
mas desta vez parecia lúcida, e não balbuciava com o terror dos pesadelos.
Olhava fixamente para o teto, com a Luger na mão, cujo punho batia
metodicamente contra a parede. Baque. Baque. Baque.
Pus as mãos nas ancas.
– Tem mesmo de fazer isso?
– Ajuda-me a pensar. – Baque. Baque.
– É meia-noite. Não é melhor dormir, em vez de pensar?
– Nem sequer ainda tentei. Os pesadelos estão à espera. É melhor eu ficar
acordada até amanhecer. – Baque. Baque.
– Bem, então, tente bater mais suavemente. – Virei costas, a bocejar. Ela
chamou-me.
– Fica. Posso fazer uso das tuas mãos.
Olhei por cima do ombro.
– Para quê?
– Sabes desmontar uma Luger?
– Não ensinam isso em Bennington, não.
– E eu a pensar que todos os americanos eram malucos por armas. Eu
ensino-te.
Sentei-me em frente a Eve, de pernas cruzadas, enquanto ela me mostrava
as diferentes partes da pistola, que eu desmontava de modo desastroso.
– O cano… O ferrolho… O retém do ferrolho…
– Porque me está a ensinar isto? – perguntei, dando um gritinho quando
ela me bateu com a pistola nos nós dos dedos, por ter puxado o carregador do
lado errado.
– Desmontar a Luger ajudava-me a pensar. Já não o consigo fazer por
causa das minhas mãos todas lixadas, por isso vou usar as tuas emprestadas.
Tira o óleo do meu saco.
Comecei a espalhar no chão as partes desmontadas.
– Em que está a pensar? – O olhar dela adquirira um brilho apreensivo
que não vinha do whisky, embora eu visse que ela tinha, ao lado do joelho, o
habitual copo meio cheio daquele líquido cor de âmbar.
– René du Malassis – disse ela. – Ou, melhor, René Bordelon. E para
onde terá fugido.
– Está a partir do princípio de que ele ainda está vivo, então. – Ela tinha-o
negado de forma obstinada em Roubaix.
– Ele teria agora 72 anos – sussurrou Eve. – Mas, sim, a minha aposta
agora é que ainda está vivo.
Ela não conseguiu evitar a expressão que dominou o seu rosto, uma
expressão de ódio por ele e, ao mesmo tempo, por si mesma. Era raro ver-lhe
uma emoção que ela não conseguia disfarçar. Tinha um aspeto quase frágil, e
um estranho sentimento de proteção apertou-me o peito.
– O que a faz ter tanta certeza de que o du Malassis é o seu Bordelon? –
perguntei suavemente.
Ela esboçou um meio sorriso.
– Malassis é o nome do editor que publicou o texto original de Les Fleurs
du Mal, de Baudelaire.
– Estou a começar a odiar esse Baudelaire. E nunca o li, sequer. – Na
verdade, já não precisava.
– Sorte a tua. – O tom dela era seco. – Tive de ouvir o René citar a
maldita da œuvre do gajo de uma p-ponta à outra.
Fiz uma pausa, com o cano da Luger numa mão e o trapo com óleo na
outra.
– Então, a Eve e ele eram…
Ela ergueu um sobrolho.
– Estás chocada?
– Não. Não sou santa nenhuma. – Dei uma palmadinha no Pequeno
Problema, que, por esses dias, parecia andar mais feliz. Ainda me fazia sentir
cansada, mas já não tinha tantos enjoos nem era assolada por pensamentos
estranhamente articulados com origem nas minhas entranhas.
– O René trouxe-me a este hotel. – Eve olhou em redor do quarto, sem
realmente o observar. – Não este quarto. Ele nunca escolheria um quarto tão
pequeno. Tinha de ser o melhor do hotel: quarto andar, janelas grandes,
cortinas de veludo azul. Uma cama enorme…
Não perguntei o que acontecera nessa cama. Havia uma razão para ela
decidir ficar a pé a noite toda, em vez de arriscar sonhar.
– Como é que isto funciona? – interroguei, enquanto segurava várias
peças de pistola; ela mostrou-me como esfregar o trapo oleado em cada uma
das peças. – Portanto, quando o René Bordelon teve de fugir de Lille, tornou-
se René du Malassis – disse eu, por fim. – E, quando teve de fugir de
Limoges, desapareceu sem rasto. Como é possível que isso tenha acontecido
tão facilmente, quando tantos colaboradores foram apanhados? – Pensei nas
imagens que vira nos jornais dessas pessoas, homens e mulheres, humilhadas,
ou pior. A velha francesa não falara em enforcar pessoas em postes por acaso.
– O René não era parvo nenhum. – Eve pousou o óleo com as suas mãos
desastradas. – Ele tratava muito bem os que estavam no poder, mas sempre
soube que eles podiam perder. E, quando teve a certeza de que realmente iam
perder, pensou seguramente num plano para se esconder com o seu dinheiro e
adotar um nome novo… E recomeçar a vida, depois de Lille e depois de
Limoges. – Ela parou, a refletir. – Creio que ele estava a matutar no primeiro
desses planos quando me trouxe aqui, em 1915. Não me apercebi disso, na
altura; disse-me que queria visitar locais para abrir um segundo restaurante.
Eu pensei que ele queria expandir o negócio, mas talvez ele nunca tenha
sequer pensado nisso. Talvez estivesse a explorar um novo local para
começar uma vida nova, no caso de precisar de uma. E precisou.
– Hum. – Coloquei a última peça da pistola no chão, já oleada. As minhas
mãos estavam completamente oleosas, mas achava tudo aquilo interessante.
Se me tivessem ensinado a desmontar pistolas, em vez de fazer biscoitos, na
disciplina de Economia Doméstica, talvez eu tivesse prestado mais atenção. –
Sabe, há uma coisa muito diferente entre o René Bordelon e o René du
Malassis, para além do nome.
– E o que é, ianque?
– A vontade de apertar o gatilho. – Olhei para o gatilho da Luger,
pousado inocentemente no chão, por entre as restantes peças desmontadas. –
Pela maneira como a Eve o descreveu na primeira guerra, ele era demasiado
afetado para fazer o seu próprio trabalho sujo. Quando apanhou um
empregado a roubar no restaurante de Lille, o seu predecessor, ele chamou os
alemães e foram eles que trataram do assunto. Da segunda vez, pelo que a
velha contou, ele não hesitou em apertar o gatilho.
– E não é uma diferença pequena – concordou Eve. Pareceu-me que ela já
teria meditado bastante nessa questão.
– Então, o que terá mudado nele? – perguntei. – O que o terá
transformado, no final da primeira guerra, de um esteta oportunista num… –
recordei as palavras da velha – assassino elegante?
Eve esboçou um sorriso torto.
– Suponho que terei sido eu.
Havia uma parte desta equação que eu ainda não tinha descoberto, mas,
antes que pudesse perguntar, Eve fez-me um gesto para que voltasse a montar
a Luger e não dissesse mais nada. Mudei de tática.
– Como vamos fazer para o encontrar? Ele já não se chamará Du
Malassis, terá certamente mudado de nome outra vez. – Encaixei o ferrolho
na armação. – Para onde terá fugido depois de Limoges? – E que excitação
saber que não estávamos apenas à procura de um velho especulador ou de um
velho inimigo… mas de um assassino.
– Conheço um oficial inglês com quem posso falar – revelou Eve,
permitindo a mudança na conversa. – Alguém dessa época. Ele dirigia redes
de espiões como a minha e continuou a fazê-lo na última guerra. Está
atualmente sediado em Bordéus. Tentei telefonar-lhe de Londres, mas ele
estava de férias, na caça aos patos. Já deve ter voltado. Se existe alguém
capaz de descobrir informações sobre um antigo colaborador, é ele.
Perguntei-me se ele seria o Capitão Cameron, de quem ela falara. Pelo
que contara, parecia ser boa pessoa. Queria conhecê-lo, para ver se coincidia
com a imagem mental que eu criara, mas tinha o meu próprio rasto para
seguir.
– Contacte o seu amigo em Bordéus, Eve – disse-lhe. – Eu levo o Finn e o
carro, para irmos à procura da minha prima.
Eve ergueu uma sobrancelha, ao mesmo tempo que me mostrava como
pressionar o cano da Luger para aliviar a pressão da mola.
– À procura da tua prima? Se ela ainda estiver viva, pode estar em
qualquer lugar.
– A minha tia disse que ela tinha sido enviada para uma aldeia nos
arredores de Limoges para ter o bebé. O tipo de sítio totalmente isolado para
onde se mandam as raparigas caídas em desgraça. – Começava a perceber
como a pistola funcionava; as peças encaixavam facilmente nos meus dedos
oleados. – A Rose ficou lá até ter o bebé e, quatro meses mais tarde, veio
trabalhar para Limoges. Mas talvez tenha deixado o bebé na aldeia ao
cuidado de uma família. Talvez tenha voltado à aldeia quando deixou de
trabalhar no Le Lethe. Quem sabe? É uma aldeia pequena, onde toda a gente
conhece toda a gente. Alguém vai certamente reconhecer a Rose. – Encolhi
os ombros. – É um começo, pelo menos.
– É um bom p-plano – concordou Eve, e subitamente corei de orgulho. –
Desmonta a pistola outra vez. – Desmontei a Luger e a Eve começou a contar
outra história: o fim de semana que ela e René Bordelon tinham passado ali,
no verão de 1915. – Viemos de comboio e ele levou-me a comprar um
vestido novo. Uma coisa era eu subir ao apartamento dele na minha farda de
trabalho; outra era ele ser visto na rua ou no teatro comigo vestida assim. Era
um vestido em seda, do costureiro Poiret, de cor verde amêndoa, detalhes em
veludo preto e 43 botões forrados nas costas. Ele mesmo os contou, à medida
que os ia desapertando.
Voltei a montar o retém do ferrolho, a pensar no que Eve planeava fazer
quando encontrasse o seu velho inimigo. Fazer com que o prendessem? Toda
a gente sabia que os franceses tratavam os colaboradores com dureza. Ou
simplesmente confiar à Luger o destino dele? Não afastei de todo esta
possibilidade.
O que te fez ele, Eve? E o que lhe fizeste?
Ela estava a contar-me como a água do rio em Limoges era cinzenta, da
primeira vez que ali estivera, e não o azul vivo que apresentava por aqueles
dias. Como as folhas tinham esvoaçado em redor dos seus sapatos novos de
verniz, comprados para combinar com o vestido verde amêndoa.
– Lembra-se de tudo tão vivamente – comentei, entregando-lhe a pistola
limpa e oleada.
– É verdade. – Eve bebeu de golada o resto do whisky. – Foi esse o fim de
semana em que não me veio o período e eu comecei a recear que o René me
tivesse engravidado.
Capítulo 22
Eve
Setembro de 1915

O outono mal tinha começado e o frio já apertava como se fosse inverno.


Lille era uma cidade de dois mundos que existiam em paralelo e as
temperaturas a pique delimitavam a fronteira entre os dois de um modo mais
definido do que qualquer linha. De um lado, os alemães, que possuíam todo o
carvão, velas e café de que necessitavam. Do outro, os franceses, que
praticamente não tinham nada dessas coisas. Os dois mundos, que haviam
sido designados francês e alemão, ou conquistado e conquistador, eram por
aqueles dias, simplesmente, frio e não frio.
Eve não reparou. Estava grávida e só isso fizera com que tudo o resto
desaparecesse da sua mente.
Não passara muito tempo, mas os sinais não eram difíceis de ler. Tinha
falhado dois períodos – algumas mulheres em Lille diziam discretamente que
os seus ciclos se tinham tornado irregulares, devido à fome, mas Eve não
acreditava que teria tal sorte. Estava magra como um espeto, mas continuava
a receber os restos do Le Lethe, evitando ficar esfomeada. Além disso,
começou rapidamente a ter outros sintomas: os seios tornaram-se sensíveis,
sentia-se sempre cansada e tinha de reprimir os vómitos quando um
empregado passava por ela com um assado suculento da cozinha ou quando
tinha de levar um pedaço do pungente queijo Morbier à mesa.
Eve tinha a certeza. René Bordelon tinha-a engravidado.
Era uma constatação que a devia ter levado ao desespero absoluto, mas
não havia tempo para isso. A Rede Alice andava muito ocupada. As linhas da
frente francesas tinham avançado no terreno, numa operação de ataque
prolongado; o Kommandant alemão e os seus generais haviam comentado a
situação ao jantar, num tom tenso, comentários que Eve transmitia aos seus
superiores. Ela passava horas a servir às mesas e depois mais horas na cama
de René, o que somava pelo menos 19 horas de trabalho por dia. Ela
transmitia informação sobre posições da artilharia, listas de mortos e feridos,
horários dos comboios e centros de abastecimento. Estava tão habituada a
viver no fio da navalha que lhe parecia quase normal viver daquela forma;
tinha as expressões faciais e a voz constantemente sob controlo, de tal
maneira que, por vezes, se perguntava se ainda lhe restaria alguma
espontaneidade. Não podia entrar em pânico ou cair em desespero
simplesmente porque o seu corpo decidira traí-la. Não podia.
Naquele sábado, Eve abriu a porta a Violette, que, como habitualmente,
ficava a dormir no quarto de Eve na sua ronda habitual a Lille, e quase
chorou de alívio. Durante essa semana, fora assolada por pesadelos em que
Violette era presa, ainda por cima naquela altura. Eve nunca gostara muito
de Violette, mas ah, como precisava dela.
Violette devia ter reparado na expressão de alívio de Eve, porque os seus
olhos mostraram surpresa, por detrás dos óculos redondos.
– Estás contente por me ver – comentou ela, limpando a lama das botas
muito usadas. E, franzindo o sobrolho, acrescentou: – Há notícias?
– Não – respondeu Eve. – Mas preciso de ajuda e tu és a única pessoa a
quem posso recorrer.
Violette tirou as luvas, esfregando as mãos frias, e olhou para Eve com
curiosidade.
– Porquê eu?
Eve suspirou fundo.
– A Lili disse q-q-q-que foste enfermeira.
– Cruz Vermelha, sim. Mas não por muito tempo. A guerra começara
pouco antes.
Eve afastou uma súbita onda de dúvida e continuou a falar – que outra
escolha tinha?
– Estou grávida – disse bruscamente, e obrigou-se a olhar Violette nos
olhos. – Podes ajudar-me a tratar do assunto?
Violette olhou para ela durante alguns instantes e depois suspirou
subitamente.
– Merde, não sabia que eras tão estúpida a ponto de misturar romance
com trabalho! Não me digas que te apaixonaste pelo Antoine ou…
– Não sou nenhuma menininha idiota – replicou Eve, zangada. – Tive de
me deitar com o meu patrão para poder obter informações, Violette. A Lili n-
não te disse?
– Claro que não. – Violette empurrou os óculos no nariz. – E não te
passou pela cabeça tomar precauções?
– Eu tentei. Mas não r-resultaram. – Sair da cama dele em bicos de pé
durante a noite, para se lavar naquela casa de banho de luxo, fizera-a sentir-se
mais imunda do que aquilo que se passava na própria cama, mas Eve nunca
deixara de o fazer. Se pelo menos tivesse resultado. – E, antes que perguntes,
nada mais r-resultou também. Descer as escadas aos saltos, banhos muito
quentes, b-beber brandy. Nada.
Violette soltou outro suspiro, menos explosivo, e sentou-se na beira da
cama.
– Quanto tempo?
– Dois m-meses, creio. – Pelas contas de Eve, devia ter acontecido muito
cedo, talvez à segunda ou terceira vez.
– Então, está no início. Ainda bem.
– Podes ajudar-me ou não? – Eve tinha o coração nas mãos, por isso a voz
saía-lhe áspera.
– Lidei mais com feridas de batalha do que com mulheres grávidas. –
Violette cruzou os braços no peito. – Porque não contas ao Bordelon? Um
homem rico como ele pode pagar a um médico a sério.
Eve já tinha pensado nisso.
– E se ele quiser o bebé? – Ela não sabia se René o quereria, uma vez que
não era exatamente um homem de família, mas Eve suspeitava que talvez ele
tivesse a vaidade de formar uma dinastia. E se ele pensasse que Eve podia ter
um rapaz e que isso poderia ser… interessante?
– Nesse caso, podes livrar-te dele às escondidas. Dizes-lhe que tiveste um
aborto espontâneo.
Eve abanou a cabeça. Ela conhecia bem René; ele odiava desordem e
despesas. Para ele, uma amante era uma coisa bonita que nunca dava
problemas. Quer abortasse uma criança que ele desejava, quer ele tivesse de
pagar para lidar com a questão, ela era uma fonte de problemas. E podia
facilmente perder o emprego no Le Lethe. Não, se queria continuar a
trabalhar para Lili, a melhor solução era deixar as coisas como estavam.
– Hum. – Violette não sugeriu contar ao Capitão Cameron ou aos outros
oficiais que supervisionavam a Rede Alice. – Sabes que a operação pode ser
perigosa. Tens a certeza de que é isso que queres?
Eve fez um único aceno de cabeça, violento.
– Sim.
– Ao fazê-lo desta maneira, podes sangrar até à morte. Ainda estás no
início; talvez até tenhas um aborto espontâneo ou…
– Faz.
A voz saiu-lhe como uma rosnadela desesperada. Era mais do que a sua
determinação em ficar, em continuar a trabalhar. Era o facto de, por detrás da
superfície calma, Eve lutar com um pânico que roçava a loucura. Ela desistira
de tanto, ao ir para Lille – casa, segurança, virgindade, até o nome –, e tinha-o
feito de livre vontade, por um futuro invisível, uma clareira de céu limpo e de
luz algures muito para lá da guerra e dos invasores. E naquele momento o
invasor estava dentro dela, reivindicando-a tão completamente quanto os
alemães revindicavam a França, e o futuro escapava. De um dia para o outro,
de espia e soldado, alguém que lutava contra os inimigos e salvava vidas, ela
fora transformada em mais uma mulher grávida, que teria de ser recambiada
para casa sem cerimónias, tratada como uma prostituta. Eve sabia exatamente
o tipo de futuro que a esperaria daí a sete meses, se não fizesse nada: solteira,
indesejada, desempregada, sem dinheiro, desprezada, algemada para toda a
vida a um invasor semeado por um inimigo num buraco infernal, torturado
pelo frio e pela fome, algures numa zona de guerra. O seu corpo traíra-a por
completo: cedeu ao prazer nos braços de um oportunista e depois reteve uma
parte dele, quando ela todas as noites tanto se esforçava por se livrar de todos
os vestígios dele. Não ia agora deixar que o corpo a traísse ainda mais.
Eve passara semanas encolhida na sua cama fria, a batalhar contra ondas
de puro pânico e pavor gelado, e sabia bem que correria alegremente o risco
de sangrar até à morte pela oportunidade de resgatar o seu futuro das mãos do
invasor.
Violette acenava com a cabeça de modo brusco.
– Há um cirurgião na rede que trabalha para nós – revelou ela, enquanto
Eve lutava contra as suas próprias emoções. – Ele nunca faria uma coisa
destas (vai à missa todos os dias), mas eu amanhã posso pedir-lhe alguns
instrumentos cirúrgicos sob um pretexto qualquer.
– Amanhã – repetiu Eve, de boca seca. – Sim.

Domingo. Dia santo, dia abençoado, dia irónico, pois era o dia em que
Eve decidira fazer algo que seria suficiente para a maioria dos homens lhe
chamarem prostituta assassina, mesmo que fosse só pelo facto de pensar
nessa possibilidade. Só poderia ser domingo, porque o Le Lethe estava
fechado nesse dia. Isso significava que ela tinha o dia inteiro para sangrar e
morrer ou sangrar e recuperar.
– E se eu morrer? – conseguiu Eve perguntar, quando Violette chegou
com um saco de instrumentos emprestados. – Durante a operação ou…
depois?
– Deixo-te aqui e nunca mais volto. – Violette estava a ser pragmática. –
Não poderia fazer outra coisa. Se tentasse fazer-te um funeral, seria presa.
Provavelmente, o teu vizinho encontrar-te-ia um ou dois dias depois, e depois
terias um enterro em vala comum e a Lili notificaria o Tio Edward.
A realidade sórdida daqueles planos atingiu Eve como a estocada de uma
faca.
– Bem. Vamos l-lá a isto então. – E tenta não morrer.
– Deita-te e não te mexas. – Violette disse aquilo vezes sem conta naquela
tarde. Eve não sabia porquê; ela ficou deitada e imóvel como uma estátua de
mármore num túmulo. Talvez fosse para a tranquilizar. Tinham posto lençóis
limpos por cima da cama; Violette vestira um avental de trespasse à frente,
seguramente do tempo da Cruz Vermelha, e a voz tinha uma secura própria
de enfermeira. Os instrumentos cintilavam em cima de um pano dobrado,
mas Eve preferia não olhar para eles. Despiu as combinações, a roupa interior
e as meias, toda a roupa abaixo da cintura, e deitou-se. Frio. Sentia frio.
– Láudano – disse Violette, tirando a tampa a um pequeno frasco de
vidro; Eve abriu obedientemente a boca, engolindo as gotas. – Vais sentir
dor, aviso-te já. – A voz dela era brusca e autoritária, e Eve recordou Lili:
Não tenhas dúvidas de que, independentemente do que ela faça, ser chata
anda a par com ser enfermeira. Naquele momento, Eve achou isso
reconfortante.
Violette desinfetou os instrumentos com algo assético. Depois, limpou os
dedos com a mesma solução de cheiro intenso e aqueceu o metal dos
instrumentos entre as mãos.
– Os médicos – disse – nunca aquecem os instrumentos. Não se
apercebem de que sentimos o frio do metal nas nossas partes privadas.
O láudano já fazia a cabeça de Eve andar à roda. Via o quarto desfocado.
Sentia o corpo adormecido e pesado.
– Já alguma vez fizeste isto? – ouviu-se a perguntar, ao longe.
– Uma vez – respondeu bruscamente Violette. – No início deste ano, à
irmã mais nova do Antoine, Aurélie. Ela trabalha para nós, acompanha os
mensageiros para que os habitantes locais não desconfiem, e foi apanhada à
noite por uns soldados alemães que se queriam divertir. Só tem 19 anos,
coitada. A família veio falar comigo, quando descobriu que os filhos da puta
a tinham deixado enceinte.
– Ela sobreviveu… a isto? – Eve olhou para os instrumentos nas mãos de
Violette.
– Sim, e depois voltou logo a trabalhar para a rede. Uma jovem boa e
valente, é o que é.
Se ela o fez, eu também posso, pensou Eve. Mas não conseguiu evitar
retrair-se quando sentiu as mãos de Violette a abrirem-lhe os joelhos nus e a
ouviu dizer:
– Prepara-te.
Apesar dos esforços de Violette para aquecer o instrumento, Eve gelou
por dentro. A dor, quando surgiu, foi aguda. “Não te mexas”, chegou a
ordem, embora Eve estivesse imóvel. Violette fez algo, Eve não soube bem o
quê, sentia tudo muito distante. A dor apareceu subitamente, depois
desapareceu gradualmente. Voltou a aparecer e a desaparecer. Frio. Eve
fechou os olhos, desejando que tudo passasse rápido, muito rápido. Não te
mexas.
Os instrumentos já não estavam ali. Estava feito, mas ainda não
terminado. Violette dizia algo.
– … vai haver sangue. Não entras em pânico ao ver sangue, pois não?
– Eu não entro em pânico com nada – disse Eve, por entre os lábios
dormentes, e Violette soltou um sorriso relutante.
– Lá isso é verdade. Quando te vi pela primeira vez, pensei que não
tardarias uma semana a correr para os braços da mamã a gritar.
– Dói. – Eve ouviu-se a dizer. – Dói.
– Eu sei – anuiu Violette, dando-lhe mais algumas gotas de láudano.
Amargo. Porque é que tudo em Lille era amargo, exceto o que vinha de
René? Ele era fonte de comida boa, vinho delicioso e chávenas de chocolat
quente, ao passo que tudo o que era partilhado com Lili e Violette era amargo
e nojento. Em Lille, tudo estava de pernas para o ar: o mal era delicioso e o
bem sabia a bílis.
Violette retirava os panos ensanguentados para o lado, substituindo-os por
outro limpos, sob as ancas e entre as pernas de Eve.
– Está tudo a correr bem – disse ela. – Não te mexas.
Os sinos da igreja tocaram, sinalizando a missa da tarde. Iria alguém à
missa? Alguém pensaria que rezar fazia algum bem a este lugar?
– Lille – disse Eve, ouvindo-se a si mesma citar Baudelaire. – Seus negros
encantos, seu cortejo infernal de alarmes, seus frascos de veneno e seus
prantos, seus barulhos de correntes e ossos…
– Estás a divagar – observou Violette. – Tenta não te mexer.
– Eu sei que estou a divagar – respondeu Eve. – E estou quieta, sua cabra
mandona.
– Ah, isso é que é gratidão – comentou Violette, enquanto cobria Eve com
mais cobertores.
– Tenho frio.
– Eu sei.
E Eve chorou violentamente. Não de dor nem de tristeza. De alívio. René
Bordelon já não tinha controlo sobre o seu futuro e o alívio que Eve sentiu
trouxe lágrimas em catadupa.

Quando amanheceu, estava tudo acabado.


Violette tinha uma lista de instruções.
– Talvez sangres mais. Deves ter panos à mão; panos limpos. E toma isto
para as dores. – Colocou o pequeno frasco de láudano na mão de Eve. – Eu
ficava para tomar conta de ti, mas esperam por mim em Roubaix, ainda hoje.
Há uns relatórios que têm de ser passados na fronteira.
– Sim. – Afinal, havia trabalho a fazer. – Tem cuidado, Violette. Na tua
última viagem, disseste que os boches te tinham na mira.
– Se for preciso, sigo por caminho diferente. – Se Violette estava com
medo, e naquele momento ninguém na rede podia evitar não sentir medo,
pois os alemães sabiam que havia espiões na região e os postos de controlo
estavam a ser muito apertados, ela nunca o mostraria. Era algo que ela e Eve
tinham em comum. – Podes arranjar maneira de te manteres longe da cama
desse oportunista? Vais precisar de tempo para sarar.
– Vou-lhe dizer que estou a ter um período mau. Ele acha tudo isso muito
desagradável. – Isso dar-lhe-ia pelo menos uma semana.
Violette franziu os lábios.
– Como vais fazer para evitar que isto aconteça novamente?
Eve estremeceu.
– N-não sei. Aquilo que eu estava a fazer claramente não resulta. – Ela
não podia, de forma alguma, voltar a passar por aquilo. Jamais.
– Há dispositivos, mas tem de ser um médico a colocá-lo e eles não o
fazem em raparigas solteiras. Pega numa esponja, encharca-a de vinagre e
empurra-a para dentro. – Violette fez o gesto. – Não é infalível, mas é melhor
do que nada.
Eve acenou com a cabeça.
– Obrigada, Violette.
Ela fez um gesto rápido, como que a afastar o agradecimento de Eve.
– Nunca mais voltaremos a falar disto. Tu sabes o que os homens fazem
às mulheres que fazem isto. Não só a ti, mas também a mim, por ajudar.
– Nem uma só palavra.
Olharam momentaneamente uma para a outra, e Eve pensou que, se
fossem amigas, naquele momento dariam um abraço. Limitaram-se a trocar
acenos de cabeça e depois Violette enrolou o cachecol ao pescoço e saiu para
a rua – ainda assim, talvez fossem amigas. Talvez fossem amigas como os
homens muitas vezes o são: com rudeza e sem conversas superficiais, só um
entendimento mudo de partilha.
– Boa sorte em Roubaix – despediu-se Eve da figura que se afastava, e
Violette levantou a mão sem olhar para trás.
Mais tarde, Eve desejou ter dado um abraço a Violette. Sim, como
desejou tê-la abraçado.
Levantar-se da cama para ir à porta dizer adeus deixou Eve exausta e de
cabeça à roda. Arrastou-se para a cama, cobriu-se com os cobertores finos e
aí ficou, a barriga apertada de dores longas e ritmadas. Era uma dor lenta que
ia e vinha em ondas. Não havia nada a fazer senão aguentar e, por vezes,
chorar. As lágrimas também a assaltavam em ondas, aparecendo e
desaparecendo como as dores.
Quando a noite caiu, Eve já não via sangue, mas ainda se sentia muito
fraca. Enviou uma mensagem ao Le Lethe, a queixar-se de uma gripe terrível.
René não ficaria satisfeito, mas não havia nada a fazer; Eve não conseguiria
passar a noite em pé, a levar pratos da sala de jantar para a cozinha e vice-
versa. Por isso, deixou-se ficar quieta, sempre a transpirar, passando o tempo
a desmontar a Luger. Acalmava-a, o cheiro do óleo da pistola e a frieza do
cano nas mãos, e ela apontava-a para o ar e imaginava que disparava uma
bala na testa de René. Ao terceiro dia, a sua Luger era a pistola mais limpa de
França e Eve estava quase convencida de que não ia morrer. Regressou ao
trabalho, evitando o mau humor de Christine, que claramente achava que Eve
devia ser despedida por faltar a três turnos, mesmo sabendo que isso não
aconteceria. Eve pediu suavemente desculpa a René em privado, sabendo que
o seu aspeto era tão doentio que a história da gripe e do período era
perfeitamente credível. Ele não a convidou a subir aos seus aposentos no final
do turno. Uma pequena bênção, pensou Eve, enquanto cambaleava para casa,
ansiosa por chegar ao seu quarto e à sua cama vazia, mesmo não tendo as
almofadas de penugem de pato de René.
Mas o quarto, viu Eve quando entrou, já estava ocupado.
– Não te preocupes comigo – acenou Lili, apática. – Vou só sentar-me
aqui e tremer.
– Pensei que ias a caminho da Bélgica. – Eve fechou a porta à chave. – A
acompanhar aquele piloto, cujo avião foi atingido.
– E ia. – Lili estava sentada no chão, no canto mais afastado da porta, de
pernas encolhidas e joelhos no peito, com as contas gastas do seu rosário de
marfim firmemente agarradas na mão. – Uma mina explodiu e matou o
piloto. Recolhi as minhas mensagens em Bruxelas e voltei logo para cá.
O quarto estava gelado e Lili tremia na sua camisa branca e saia cinzenta.
Eve tirou um cobertor da cama e passou-o em volta dos ombros dela.
– Tens sangue na bainha da saia.
– É do piloto. – Os olhos de Lili estavam vidrados, como se também ela
tivesse tomado láudano. – Ou talvez da mulher que ia à frente dele, ou do
marido dela… A mina matou-os a todos.
Eve sentou-se, encostando suavemente a cabeça loura de Lili no seu
ombro. Afinal, havia noites ainda piores do que as passadas com
instrumentos frios e dores de barriga agonizantes e pesadelos terríveis
fomentados por láudano.
– Os holofotes das fronteiras iluminam tudo como se fosse dia. – O
polegar de Lili esfregava as contas do rosário. – Quando se passa a fronteira e
os atiradores, há uma zona de floresta. Os alemães minam o terreno, sabes. O
piloto não se mantinha atrás de mim… Foi a correr ter com um casal que
caminhava à nossa frente. Deve ter achado que a mulher era bonita… Os três
devem ter calcado a mina ao mesmo tempo, porque se desfizeram em
pedacinhos algumas dezenas de metros à minha frente.
Eve fechou os olhos. Viu a explosão, as luzes fortes.
– E depois fui buscar os meus documentos novos a casa do Antoine. – A
voz de Lili era calma, mas os seus ombros magros davam pequenas
sacudidelas por baixo do braço de Eve. – Ele informou que…
– Chiu. – Eve encostou o rosto ao cabelo louro que cheirava a sangue. –
Não precisas de falar. Fecha os olhos.
– Não posso. – Lili olhava fixamente para a frente, as lágrimas caíam-lhe
lentamente pelas faces. – Eu vejo-a.
– A mulher que calcou a mina?
– Não. A Violette. – Então, Lili enterrou o rosto nos braços cruzados e
começou a soluçar. – O Antoine deu-me as notícias, margaridazinha. A
Violette foi presa. Os alemães apanharam-na.
Capítulo 23
Charlie
Maio de 1947

– Vocês não foram convidados para jantar – disse Eve para o Finn e para
mim. – Nenhum dos dois.
A chamada telefónica que ela fizera para o oficial inglês dera frutos: ele
vinha de Bordéus nessa noite jantar ao hotel. Eve colocou a sua máscara
feroz logo depois de o encontro se ter confirmado, mas naquele momento eu
era capaz de ver um pouco para lá da máscara. Comecei a olhar para ela com
admiração desde que ela me contou que ficara grávida. Grávida. Tinha
praticamente a minha idade, na altura, e foi apanhada na mesma situação – só
que ela passava fome numa cidade cheia de inimigos, que a teriam levado
para a frente de um pelotão de fuzilamento, se tivessem descoberto para
quem ela realmente trabalhava. De repente, por comparação, o meu Pequeno
Problema parecia bastante mais pequeno. Eu sabia o que me haviam ensinado
em pequena – o que ela tinha feito estava errado –, mas não conseguia
condenar Eve. Ela foi engolida numa guerra e não teve outra alternativa. Na
verdade, eu admirava-a por continuar o seu trabalho.
Eu sabia que ela repudiaria qualquer gesto meu de admiração, por isso
limitei-me a sorrir.
– Diga-me só uma coisa: é o Capitão Cameron com quem se vai encontrar
esta noite?
Eve encolheu os ombros, misteriosa como sempre:
– Não ias para a tal aldeia onde a tua prima viveu?
– Sim. – Estávamos em Limoges havia três dias. Por mim, já teríamos ido
à aldeia da Rose, mas Finn tinha mais alguns arranjos para fazer às entranhas
do Lagonda, antes de poder confiar no velho carro para fazer a viagem.
Naquele dia, declarou finalmente que estava pronto, pelo que íamos partir,
deixando a Eve no hotel para jantar com o seu misterioso companheiro.
– O que achas? – perguntei eu a Finn, deslizando para o banco do
passageiro. – Que a pessoa com quem ela se vai encontrar é o Capitão
Cameron?
– Não me surpreenderia.
– Achas que voltaremos a tempo de o ver?
– Isso depende, não é? – Ele ajustou a mistura de ar e combustível do
Lagonda e adiantou o tempo de injeção. – Depende do facto de descobrirmos
alguma coisa sobre a tua prima ou não.
Estremeci, devido à expectativa, por um lado, e ao medo, por outro,
enquanto arrancávamos rua abaixo.
– Hoje pode ser o grande dia.
Finn sorriu em resposta, conduzindo o Lagonda a um ritmo lento, só com
um braço no volante. Usava a habitual camisa coçada com as mangas
arregaçadas, mas tinha feito a barba; o rosto estava macio, em vez de áspero,
e eu tive vontade de me esticar e de lhe passar a mão pela face. Desejei tanto
fazê-lo que tive de me forçar a manter as mãos apropriadamente cruzadas no
regaço. Como era possível sentir que estava mais alguém no Lagonda,
quando Eve nem sequer estava ali?
– Não devemos demorar a lá chegar – disse eu, só para não ficar calada.
De acordo com o mapa amarrotado de Finn, o nosso destino ficava a apenas
25 quilómetros a oeste de Limoges.
– Acho que sim – confirmou Finn, enquanto passávamos por um campo
cercado, onde vacas pastavam calmamente, com uma casa de quinta ao longe,
feita de pedra cinzenta. Passámos rapidamente pelos arredores de Limoges e
estávamos em plena província, com estradas estreitas e caminhos de terra
batida. Não podia ser mais pitoresco e eu ali sentada, dura como uma
prancha. Não sabia por que razão me sentia nervosa, mas sentia. Finn tinha
respondido ao meu beijo, algumas noites antes, mas não falara no assunto
desde então. Eu queria que as coisas se desenrolassem, mas não sabia como.
Eu podia ser um ás a fazer contas, mas era um desastre na arte de cortejar.
– Diz-me outra vez qual é o nome da aldeia? – perguntou o Finn,
quebrando o meu estranho remoinho de pensamentos.
– Oradour-sur-Glane. – No velho mapa das estradas, parecia um lugar
muito pequeno. Era difícil imaginar Rose numa aldeia francesa tão pequena
que nem sequer podia ser chamada vila. Ela, que sempre sonhara com os
boulevards de Paris e as luzes de Hollywood. Recordei as palavras de Rose:
Em caso de emergência, Nova Iorque. Nova Iorque é suficientemente chique
para mim. Em vez disso, ela viera para Oradour-sur-Glane, uma aldeia no
meio do nada.
O Lagonda fez a curva, seguindo ao longo de um muro de pedra
salpicado de flores silvestres, e eu vi uma menina a caminhar descalça por
cima do muro, de braços abertos para se equilibrar. Tinha cabelo escuro, mas,
aos meus olhos, logo se transformou na Rose, com os caracóis louros a
baloiçar sobre um vestido azul de verão, o mesmo que eu lhe tinha visto
havia tanto tempo. Fui tomada por uma onda de premonição tão intensa que
era quase uma certeza. Estás em Oradour-sur-Glane, pensei. Eu sei que
estás. Mostra-me o caminho e eu encontrar-te-ei.
– Não vamos chegar lá mais depressa com a ajuda da tua sandália –
comentou Finn e, ao olhar para baixo, dei conta de que o meu pé pressionava
o chão como se fosse um pedal. – Porque estás sentada dessa forma, como se
estivesses na missa?
– Como assim?
Chegámos a uma ponte de pedra e deparámo-nos com uma bicicleta que a
atravessava na direção contrária. Finn travou para a deixar passar, depois
inclinou-se para o chão, agarrou-me os tornozelos e colocou os meus pés em
cima do assento.
– Normalmente, sentas-te assim, com as pernas encolhidas.
Corei e ele voltou a pôr o carro em movimento. Os dedos dele quase
davam a volta ao meu tornozelo. Desejei que as minhas pernas não fossem
tão magras. Eu vestia uma saia vermelha justa, que tinha comprado em Paris,
e uma camisa branca larga, com botões como as camisas de homem,
arregaçada até aos cotovelos e atada na cintura, em vez de estar por dentro da
saia, e sabia que me ficava muito bem – ainda assim, desejava que as minhas
pernas não fossem tão magras. Rose tinha pernas bonitas, mesmo aos 13
anos. A primeira coisa que eu faria quando a encontrasse era dar-lhe um
abraço até ela não conseguir respirar; depois, pedir-lhe as pernas
emprestadas.
– Acho que nos enganámos no caminho – disse Finn, alguns minutos mais
tarde. – Estamos a ir para sul, não para oeste. Estas estradas sem sinais… Ali,
espera um momento.
Parou o carro à frente de uma loja com um expositor de postais e um gato
a dormitar à porta. O gato bocejou quando o Finn passou por cima dele para
ir falar com o dono, no seu francês tosco com sotaque escocês. A Rose e eu
podemos arranjar um gato, sonhei acordada, enquanto o gato lambia a cauda.
O meu querido falecido Donald (Deus dê paz à sua alma) não me deixava ter
gatos porque o faziam espirrar. “Decidi que odeio o Donald”, disse Rose na
minha imaginação. “Não podias, pelo menos, ter inventado um marido morto
que fosse simpático?”
– Estás a sorrir – observou Finn, voltando para o carro, com o motor
ainda a trabalhar.
– Estava a pensar no que vais achar da minha prima, quando a
conheceres. Bem, não há nada a pensar. Toda a gente gosta da Rose.
– Ela é parecida contigo?
– Em nada. É mais engraçada, mais corajosa. Bonita.
Finn preparava-se para voltar à estrada, mas, ao ouvir-me, parou e lançou-
me um olhar prolongado com os seus olhos escuros. Por fim, desligou o
motor do carro, aproximou-se e puxou-me contra ele no banco do carro.
Passando a mão pelo meu cabelo, encostou os lábios ao meu ouvido:
– Charlie, miúda. – O hálito era quente e, quando me beijou o pescoço,
por baixo da orelha, senti uma faísca a percorrer toda a superfície da minha
pele. – Tu. – Beijou o canto do meu maxilar. – És. – Beijou o canto da minha
boca. – Corajosa. – Beijou os meus lábios, muito suavemente. – E bonita.
Linda como um dia de primavera.
– Sabes o que se diz dos homens escoceses, não sabes? – consegui dizer.
– Que são todos uns mentirosos.
– Isso são os irlandeses. Não se dizem esses disparates dos escoceses.
A boca dele voltou a encontrar a minha e beijou-me durante algum tempo.
Ouvi vagamente a campainha de uma bicicleta a passar por nós, mas eu tinha
os meus braços apertados à volta do pescoço do Finn e o meu coração
estrondeava no peito firme dele.
Por fim, ele afastou-se, mas continuou a abraçar-me a seu lado.
– Era capaz de ficar aqui a tarde toda – disse ele. – Mas que tal irmos à
procura da tua prima?
– OK – retorqui simplesmente. Havia muito tempo que não me sentia
assim tão feliz.
– Queres conduzir um pouco?
Olhei para ele, e Finn sorriu.
– Confias-me o teu velhote?
– Vem para aqui.
Trocámos de lugares. Estiquei os meus pés para chegar aos pedais, ainda
a sorrir. Finn explicou-me como ligar o carro:
– Se o motor estivesse frio, ajustávamos para uma mistura de ar e
combustível mais rica, mas, neste caso, ajustamos mais para o centro.
Por fim, dei a volta ao Lagonda, em direção a oeste. Ele ronronou nas
minhas mãos.
– Curioso – comentou Finn. – O velhote da loja que me deu as direções…
olhou para mim de um modo estranho, quando lhe disse que queria ir para
Oradour-sur-Glane.
– Que tipo de olhar?
– Estranho.
– Hum. – Passei a mão pelo volante do Lagonda, sentindo no meu braço o
toque macio da manga de Finn. Os raios quentes do sol aqueciam a minha
cabeça e enquanto conduzia o descapotável pela estrada fora, comecei a
cantarolar entre dentes La Vie en Rose. Eu queria ficar neste carro para
sempre.

– Olha – disse Finn, apontando o dedo, mas eu já tinha visto. Era a


silhueta indistinta de uma torre de igreja. – Deve ser a aldeia.
O sangue borbulhou em mim, como se se tivesse transformado em
champanhe. Tínhamos voltado a trocar de lugares ao aproximarmo-nos de
Oradour-sur-Glane, uma vez que eu estava demasiado nervosa. A estrada à
nossa frente virava para a parte sul da aldeia, atravessando o rio Glane – eu
via a torre da igreja, alguns edifícios de pedra atarracados em redor e cabos
de telefone. Achei estranha a forma como os telhados estavam inclinados.
– Que silêncio – comentou Finn. Não se ouviam cães a ladrar, nem o
retumbar de elétricos, nem buzinas de bicicletas, à medida que nos
aproximávamos dos arredores da aldeia. Finn abrandou o Lagonda, mas não
se viam crianças a brincar na rua. Eu estava mais espantada do que outra
coisa, mas depois reparei que a casa mais próxima de nós tinha marcas de
fumo nas paredes de pedra. E o telhado caíra.
– Deve ter havido um incêndio – observei, embora as marcas parecessem
antigas, deslavadas pela chuva.
Finn abrandou ainda mais, quase parando o carro. O motor do Lagonda
queixou-se, como se sentisse desconfortável. Olhei para os dois lados da rua.
Não se via ninguém. Mais marcas de fumo ou de fogo. Vi um enorme relógio
no chão, como se alguém o tivesse deixado cair e abandonado. Estava quase
derretido, mas ainda se via que os ponteiros tinham parado às 16h00.
– Nenhuma destas casas tem telhado. – Finn apontou e eu vi mais ripas de
madeiras escurecidas e destruídas. Não admirava que, ao longe, as silhuetas
das casas me tivessem parecido tão estranhas. Tinha sido um incêndio, de
certeza, mas estas casas eram todas de pedra, robustas e espaçadas. Como era
possível que o fogo tivesse passado de umas para as outras?
O meu sangue efervescente secara totalmente nas minhas veias.
A enorme igreja estava do nosso lado esquerdo, construída no mesmo tipo
de pedra da região. Também não tinha telhado.
– Porque não terá sido reconstruída? – sussurrei. – Mesmo que tenha
havido um incêndio, porque é que os habitantes não voltaram?
O pensamento atingiu-me como um comboio em andamento: se calhar,
morreram todos.
– Não – soltei eu em voz alta, como se estivesse a discutir comigo
mesma. – Não é possível que uma aldeia inteira morra num incêndio. – As
pessoas teriam fugido. E não havia vestígios de destroços e entulho: as
pessoas tinham-se dado ao trabalho de limpar as ruas e os edifícios de
Oradour-sur-Glane.
Então, porque não tinham ficado? Porque não tinham reconstruído a
aldeia?
O Lagonda aproximou-se do centro da aldeia, passando pelos edifícios
abandonados do posto de correio e da estação do elétrico. Os carris pareciam
novos, como se um elétrico pudesse chegar a qualquer momento. Mas só
havia silêncio, não se ouviam passos ou o miar de um gato. Como era
possível nem sequer se ouvirem os pássaros a cantar?
– Para – pedi, a tremer. – Tenho de sair… tenho de…
Finn parou o carro no meio de uma rua calcetada. Afinal, quem buzinaria
para ele tirar o carro dali? Não havia carros. Saí, titubeante, quase a cair, e o
Finn agarrou-me o braço.
– Não admira que o homem me tenha olhado de um modo estranho.
– O que aconteceu aqui? – Era como um navio abandonado em alto-mar,
com uma refeição servida ainda em cima da mesa. Era como uma aldeia de
bonecas sem bonecas. Rose, onde estás?
Voltámos a percorrer o caminho que tínhamos feito de carro. Espreitei
pela janela de um hotel calcinado e vi a mobília no interior: pequenas mesas
cheias de pó, cadeiras à espera dos hóspedes, o balcão abandonado onde os
rececionistas tinham trabalhado. Se entrasse, provavelmente ainda
encontraria a campainha meio derretida em cima do balcão, à espera de
chamar os paquetes.
– Queres entrar? – perguntou Finn. Abanei violentamente a cabeça.
Uma praça vazia, talvez o mercado ou a feira, surgiu à nossa esquerda.
Um carro abandonado, enferrujado em redor das portas. Finn passou a mão
pelo guarda-lamas a pender.
– Um Peugeot – reconheceu. – Modelo 202. O orgulho de alguém.
– Então, porque o deixaram aqui?
Nenhum de nós tinha respostas. Mas, a cada passo que dávamos, o medo
crescia dentro de mim.
A igreja novamente, erguida atrás do muro de pedra na estrada e de uma
ladeira inclinada coberta de relva. Um trio de janelas em arco, a olhar para
nós como cavidades abertas sem olhos. O Finn passou a mão pela parede
baixa e estacou, gelado.
– Charlie – chamou. – Buracos de balas.
– Buracos de balas?
Ele passou a mão por cima das pequenas reentrâncias.
– E não são buracos de espingardas de caça. Vê como estão tão
simetricamente espaçados. Foram soldados que dispararam estas balas.
– Mas esta aldeia fica no meio do nada. Quem poderia…
– Vamos embora daqui. – Ele deu meia-volta, pálido. – Perguntamos na
próxima aldeia que encontrarmos. Alguém nos poderá contar o que
aconteceu…
– Não. – Recuei. – A Rose estava aqui.
– Mas agora não está, Charlie, miúda. – O olhar dele moveu-se
rapidamente entre um lado e o outro da rua vazia. – Não está ninguém.
Vamos embora daqui.
– Não… – Mas a minha pele estava toda arrepiada e o silêncio
enlouquecia-me, e eu já estava a dar um passo na direção do Lagonda. Tal
como Finn, também não queria ficar ali.
Foi nesse momento que vi o rasto de um movimento pelo canto do olho.
– Rose! – Saiu da minha boca em forma de grito. Não conseguia ver-lhe o
rosto, mas era, sem dúvida, uma figura feminina, encolhida e embrulhada
num casaco velho, apesar do calor, sentada na relva abaixo do muro da igreja.
Libertei-me do Finn e desatei a correr à volta do muro, subindo a ladeira e
passando por outro muro, sem nunca tirar os olhos daquela figura. – Rose! –
gritei novamente, ouvindo o Finn a correr atrás de mim, mas a figura junto ao
muro da igreja não se virou. – Rose – gritei pela terceira vez, como um
feitiço, como uma oração, e a minha mão, desesperada e suplicante, caiu no
ombro dela.
Ela virou-se.
Ela não era Rose.
Eve?, quase perguntei, embora a mulher não se parecesse nada com Eve.
Era roliça, com ar de avó e tinha o cabelo grisalho penteado num puxo –
porque me fazia ela lembrar Eve, que era alta e magra? Então, os olhos
escuros dela encararam-me, totalmente inexpressivos, e eu vi a semelhança.
Tinha o mesmo olhar esgazeado e desolado de uma mulher que fora torturada
e ferida até ao fundo da alma. Como Eve, ela podia ter qualquer idade entre
os 50 e os 70 anos. Era tudo igual para ela: como o relógio derretido, parecia
ter parado para sempre às 16h00, quando aquela aldeia morrera… Mas como
morrera?
– Quem é a senhora? – sussurrei. – O que aconteceu aqui?
– Sou a Madame Rouffanche. – A voz era límpida, não um resmungo de
velha. – E estão todos mortos, exceto eu.

O sol aquecia-me a cabeça. O restolhar da relva. Estas pequenas coisas


estabeleciam o pano de fundo para o horror silencioso da voz de Madame
Rouffanche.
Ela não tinha a mais pequena curiosidade sobre quem éramos nem parecia
surpreendida por nos ver. Era uma espécie de coro numa peça de
Shakespeare: a cortina subiu num cenário tão estranho e horrífico que o
público não o conseguia compreender, pelo menos até ela aparecer e, numa
voz calma e morta, explicar a cena. O que acontecera. Quando acontecera.
Como acontecera.
Não o porquê.
Não sabia porquê. Ninguém conseguiria explicar o porquê, suponho.
– Foi em 44 – revelou ela, em pé, sob as janelas sem olhos da igreja
parcialmente queimada. – 10 de junho. Esse foi o dia em que eles vieram.
– Quem? – perguntei baixinho.
– Os alemães. Desde fevereiro desse ano que uma divisão Panzer da SS
estava estacionada a norte de Toulouse. Depois de os Aliados terem
desembarcado, em junho, a divisão dirigiu-se para Norte. No dia 10 de junho,
passaram por aqui. – Uma pausa. – Mais tarde, soubemos que alguém
denunciara Oradour-sur-Glane como sendo um abrigo da Resistência… Ou
que Oradour-sur-Vayres é que era. Não sei. Isso nunca ficou esclarecido.
O Finn pegou na minha mão; os dedos dele estavam gelados.
– Continue – consegui dizer, por entre os meus lábios paralisados.
Madame Rouffanche não precisava que lho dissesse. A história tinha
começado; ela contá-la-ia até ao fim e depois sairia novamente de cena. O seu
olhar passou por mim e foi além de mim, até ao dia 10 de junho de 1944.
– Seriam 14h00. Os soldados alemães entraram de rompante em minha
casa e ordenaram-nos, a mim, ao meu marido, às minhas duas filhas e à
minha neta, que fôssemos para o recinto da feira. – Apontou para a praça
onde víramos o Peugeot abandonado. – Havia muitas pessoas da aldeia já lá
reunidas. E mais homens e mulheres continuavam a chegar de todas as
direções. As mulheres e as crianças foram levadas para o interior da igreja. –
Ela afagou a pedra esburacada e enegrecida pelo fumo, como se fosse a testa
de um cadáver. – As mães levavam os bebés nos braços ou nos carrinhos de
bebé. Éramos centenas.
Mas não a Rose, pensei eu, doente. Rose não podia estar entre elas. Ela
não vivia na aldeia; ela vivia e trabalhava em Limoges. Eu estava tão segura
de que a ia encontrar ali, mas não assim. Ela não podia ter estado ali no dia
10 de junho.
– Esperámos horas – continuou calmamente Madame Rouffanche. – A
conjeturar, a sussurrar, cada vez mais assustadas. Por volta das 16h00…
16h00. Pensei no relógio derretido.
– … alguns soldados entraram na igreja. Não passavam de rapazes, na
verdade. Carregavam uma caixa, com cordões pendurados que se arrastavam
pelo chão. Colocaram-na na nave, perto do coro e acenderam as réstias.
Retiraram-se e a caixa explodiu. A igreja encheu-se de fumo negro. Havia
mulheres e crianças a correr em todas as direções, aos encontrões, a gritar, a
sufocar.
A voz era totalmente desprovida de entoação, como as letras de uma
página de um livro. Eu queria tapar os ouvidos com as mãos para não ter de
escutar as palavras, mas estava paralisada, horrorizada. Finn, a meu lado, nem
sequer respirava.
– Arrombámos a porta para a sacristia e entrámos aos trambolhões. Eu
sentei-me num degrau: estava a tentar baixar-me para conseguir respirar ar
sem fumo. A minha filha correu para mim, e foi aí que os alemães abriram
fogo sobre nós, a partir das portas e das janelas. Andrée foi morta ali mesmo.
– Uma pausa. Um piscar de olhos. – Tinha 18 anos. – Uma pausa. Um piscar
de olhos. – Caiu por cima de mim, e eu fechei os meus olhos e fingi que
estava morta.
– Meu Deus – soltou Finn, num sussurro.
– Houve mais tiros e depois os alemães atiraram braçadas de palha e
lenha e cadeiras partidas para cima dos corpos caídos nas lajes. O fumo
continuou. Rastejei de debaixo da minha filha e escondi-me atrás do altar.
Havia três janelas na parede atrás do altar: fui à do meio, a maior, e puxei o
banco que o padre costumava usar para acender as velas. Tentei içar-me o
mais alto que conseguia.
Esta mulher encolhida e com ar de avó agarrara-se a uma parede de pedra,
por cima do chão coberto de corpos e um miasma de fumo e balas. Não sei
que expressão a Madame Rouffanche viu no meu rosto, mas encolheu os
ombros.
– Não sei como, as minhas forças multiplicaram-se.
– Isso acontece. – A voz de Finn quase não se ouvia.
– O vidro da janela já se tinha partido. Icei-me e atirei-me para o exterior.
Caí de uma altura de três metros. – Olhou para cima, diretamente sobre as
nossas cabeças, para a janela escura e escancarada no meio da parede da
igreja. – Aqui.
Fui engasgada por um grito mudo. Aqui, ecoou a palavra, aqui. Três anos
antes, esta mulher atirara-se desta janela para este chão relvado que
pisávamos agora, num dia perfumado de primavera. Aqui.
– Uma mulher tentou seguir-me. Os alemães abriram fogo assim que nos
viram. – Madame Rouffanche começou a andar lentamente e com muita
dificuldade. – Fui atingida cinco vezes. Rastejei por aqui. – Nós seguimo-la,
mudos, em redor da parede da igreja. – Consegui chegar à horta da sacristia.
Nessa altura, havia plantas muito densas. – Ficámos algum tempo a olhar
para a horta, agora árida. – Escondi-me por entre as filas das ervilheiras. Ouvi
mais tiros, mais gritos, mais berros… Foi quando a maioria dos homens e dos
rapazes morreram. Mortos a tiro. E depois veio o fogo violento, porque os
telhados foram todos incendiados. A noite caiu e depois ouvi o desarrolhar de
garrafas… Os alemães ficaram durante a noite e beberam champanhe.
Os meus lábios abriram-se, mas nenhuma palavra saiu. Não havia
palavras. Finn virou abruptamente as costas, mas não largou a minha mão.
Segurava-a com tanta força que me pareceu que os meus dedos iam estalar, e
eu agarrava a mão dele com a mesma força. Madame Rouffanche olhava para
lá de nós, serena, e os dedos moviam-se como se estivesse a mexer em contas
de um rosário inexistente.
– Os alemães ficaram alguns dias… Tentaram cavar valas, esconder os
corpos. Nunca cheguei a saber porquê. Não era possível esconder o que eles
tinham feito. Era um cheiro nauseabundo a carne queimada. Os cães corriam
para todo o lado, em pânico, à procura dos donos… Os alemães mataram
quase todas as pessoas, mas tiveram pena dos cães; não mataram um único.
Cavaram uma vala para os mortos no jardim do presbitério, mas era tão
pouco profunda que a mão de um homem ficou à mostra, espetada na terra,
depois de a taparem.
Olhei para Finn. Ele continuava virado de costas, os ombros a moverem-
se para cima e para baixo. Não me conseguia mexer, não conseguia dizer
nada. Estava paralisada.
– Quando os alemães finalmente desistiram de limpar e foram embora, eu
já tinha sido salva. Dois homens tinham voltado às escondidas à aldeia, para
ver se os filhos tinham sobrevivido… Implorei que me levassem ao rio e me
afogassem, mas eles levaram-me a um médico. Fiquei internada no hospital
durante um ano. Quando saí, a guerra tinha acabado e os alemães já tinham
ido embora de vez. Mas a aldeia continuava…
Uma pausa. Um piscar de olhos.
– … assim.
Uma pausa. Um piscar de olhos.
– Sobrevivi – continuou ela calmamente. – Outros também sobreviveram.
Homens que se arrastaram para fora de armazéns, depois de atingidos a tiro;
homens que estavam nos campos ou de visita a outras aldeias nesse dia;
algumas crianças que se esconderam nas ruínas ou que escaparam ao tiroteio.
– Algo no olhar dela parecia estar a esforçar-se por vir à superfície: como se
ela estivesse a emergir lentamente para o presente, a regressar de uma ilha no
tempo, o dia 10 de junho de 1944. Pela primeira vez, olhou para mim como
se realmente me estivesse a ver. Viu Charlie St. Clair na sua saia vermelha e
sandálias de cortiça, de pé sobre os escombros de todos os fantasmas.
O Finn virou-se.
– Porque vem aqui? – Ele fez um gesto a abarcar os edifícios vazios e
queimados em nosso redor. – Porque continua aqui?
– É a minha casa – replicou Madame Rouffanche. – Continua a ser a
minha casa, e eu sou uma testemunha viva do que aconteceu. Vocês não são
as primeiras pessoas que vêm cá ver… É mais fácil encontrar-me do que não
encontrar nada. Por isso, digam-me quem procuram. Eu dir-lhes-ei se
sobreviveu. – Os seus olhos eram compassivos, sem fundo. – E eu dir-lhes-ei
se morreu.

Durante um longo momento, ninguém falou. Ficámos ali, naquele lugar


terrível, como uma trindade, com a brisa suave a despentear o cabelo de Finn
e a agitar a bainha do casaco de Madame Rouffanche. Então, tirei a fotografia
gasta da Rose do meu porta-moedas. Coloquei-a nas mãos enluvadas de
Madame Rouffanche.
E rezei. Rezei com muita força.
Ela olhou atentamente para a fotografia, segurando-a perto dos olhos
cansados.
– Ahhhh… – murmurou, os olhos a brilhar de reconhecimento. – Hélène.
– Hélène? – repetiu rapidamente Finn, ainda antes de mim.
– Hélène Joubert, disse ela que se chamava quando veio para cá viver,
para ter o bebé. Viúva, muito jovem. Acho que todos adivinhámos, mas… –
Um encolher de ombros. – Uma rapariga simpática. Ninguém se importou.
Ela deixava o bebé com a família Hyvernaud, quando ia trabalhar para
Limoges. A Madame Hyvernaud dizia que ela voltava todos os fins de
semana no elétrico. – Um sorriso. – Hélène. Um nome bonito, mas nunca a
chamávamos assim. Ela disse que a chamavam Rose quando era pequena, por
causa das faces rosadas, por isso era assim que a chamávamos. La belle Rose.
Algo dentro de mim começou a gritar.
– Por favor – implorei, com a voz a falhar-me. – Diga-me que ela não
estava aqui. Diga-me que ela estava em Limoges. Diga-me que ela não estava
aqui.
Madame Rouffanche ficou em silêncio durante algum tempo. Olhou para
a fotografia, para o rosto sorridente de Rose, e eu via-a afundar-se outra
vez… de volta ao ciclo infindável de 10dejunho10dejunho10dejunho.
– Dentro da igreja – começou ela – havia três janelas na parede: eu fui à
do meio, a maior, e puxei o banco que o padre costumava usar para acender
as velas. Icei-me e atirei-me para fora. Caí de uns três metros.
Para meu horror, eram quase exatamente as mesmas palavras que ela
dissera da primeira vez. Quantas vezes teria ela contado esta história a
pessoas como eu, à procura dos seus, para que o seu conto se tivesse fixado
numa sequência fixa, as mesmas palavras pela mesma ordem? Era assim que
ela se mantinha mentalmente sã, enquanto diariamente passava a pente fino
as suas recordações para nosso benefício?
– Madame, por favor…
Ela recomeçou a andar, pelo mesmo caminho de onde tínhamos vindo,
com passadas irregulares e desconcertadas. Tive de correr para a acompanhar.
– Uma mulher tentou seguir-me pela janela. – Uma pausa. Um piscar de
olhos. Então, ao voltarmos para a janela escura de onde Madame Rouffanche
tinha saltado, três anos antes, a história dela mudou. – Quando olhei para
cima… – Ela olhou para cima, e o meu olhar voou para o dela. Eu vi o que
ela descrevia. Vi o que ela tinha visto. – Fui seguida por uma mulher, que
tinha nos braços um bebé e que mo queria passar pela janela.
Vi uma cabeça loura, uns braços pálidos esticados daquela janela. Aqui.
– Peguei na criança, que gritava de medo.
Vi um bebé choroso a agitar os punhos.
– A mulher saltou e caiu a meu lado. Tirou-me o bebé dos braços e
voltou-se para começar a correr.
Vi a figura magra saltar, graciosa, mesmo estando aterrorizada. Vi o
vestido branco manchado do verde da relva e do vermelho do sangue; vi-a a
levantar-se, agarrar no bebé a chorar e correr à procura de um lugar seguro…
– Mas os alemães dispararam dezenas de tiros contra nós. Caímos.
Vi a saraivada de tiros, a névoa esbatida do fumo das armas. Os estilhaços
de pedra a voar quando a parede da igreja foi atingida pelas balas. As gotas
de sangue no cabelo louro.
– Fui atingida cinco vezes. Consegui fugir a rastejar. – Madame
Rouffanche colocou de forma doce a fotografia na minha mão. – Mas a tua
amiga, la belle Rose, e o bebé Charlotte foram mortos.
Nesse momento, ouvi um restolhar brando e fechei os olhos. Era o som de
um vestido de verão a bater contra a brisa quente. Rose estava de pé, mesmo
atrás de mim – se eu me virasse, poderia vê-la. Veria o vestido branco
manchado de vermelho, veria as balas que lhe tinham atravessado o pescoço
macio e os olhos brilhantes. Vê-la-ia caída, as pernas a contraírem-se,
enquanto ela ainda tentava, com toda a sua coragem, fugir. Veria a sua filha
nos braços, o bebé que eu nunca conheceria, o bebé que nunca cresceria ao
lado da prima. O bebé a quem ela chamara Charlotte.
Rose estava atrás de mim e respirava. Só que ela não respirava. Havia três
anos que estava morta. Ela estava morta e todas as minhas esperanças eram
mentiras.
Capítulo 24
Eve
Outubro de 1915

Ela morreu numa saraivada de balas. Os pormenores foram difundidos


por jornais contrabandeados e toda a gente os leu, enojada e fascinada. Fora
executada por um pelotão de fuzilamento na Bélgica: enfermeira da Cruz
Vermelha e espia inglesa, tornou-se famosa, heroína e mártir de um dia para
o outro. O seu nome estava em todo o lado.
Edith Cavell.
Não Violette Lameron. Edith Cavell estava morta, mas Violette, pelas
informações que a Rede Alice tinha conseguido recolher, continuava viva.
– A Cavell é parecida com a Violette – observou Eve, devorando às
escondidas o jornal proibido. Cavell fora presa em agosto, mas só agora a
execução tinha avançado para a sua conclusão brutal. – São os olhos. – A
maioria das fotografias de Edith Cavell eram romantizadas: ela era desenhada
a desmaiar perante a fila de armas, as suas fotografias eram retocadas para a
fazer parecer frágil e feminina. No entanto, Eve achava que o seu olhar era
tudo menos frágil. Edith Cavell ajudara centenas de soldados a fugir
clandestinamente da Bélgica, e isso não era tarefa para pessoas frágeis. Ela
tinha o mesmo olhar pragmático de Violette, de Lili, da própria Eve. Outra
fleur du mal, pensou Eve.
– Isto é bom. Não quero ser cruel, mas a morte da Edith Cavell só
beneficia a Violette. – Lili andava de um lado para o outro no quarto. Desde
que Violette fora presa, quase três semanas antes, ela deixara de trabalhar e
estava escondida em casa de Eve, situação que não se adequava à sua
personalidade. Andava de um lado para o outro como uma tigresa enjaulada,
o pequeno rosto tenso. – Os alemães estão a ser duramente criticados pela
execução da Cavell e não se atreverão a mandar outra mulher para a frente de
um pelotão de fuzilamento.
O que lhe vão fazer, em vez disso?, perguntou-se Eve, apavorada. A
tortura não era um método que os alemães usassem com os seus prisioneiros,
nem mesmo com espiões. Interrogatórios, espancamentos, aprisionamento,
sim. E, claro, havia sempre a terrível possibilidade da execução. Mas ainda
que isso pudesse acontecer, eles não arrancavam as unhas dos dedos dos
condenados e toda a gente na rede sabia disso.
Mas, e se eles tivessem feito uma exceção com Violette?
Eve não o disse em voz alta, pois sabia que Lili já estava em sofrimento.
Tal como ela, aliás, sempre que recordava as mãos de Violette a tratar de si
com tanto cuidado, tentando aquecer os instrumentos de aço. Sem Violette,
Eve estaria naquele momento entalada com a semente de René a consumi-la
por dentro. Ou morta, porque sem o conhecimento de Violette, Eve teria sido
suficientemente louca para tomar uma poção qualquer que pudesse ter o
mesmo efeito. Eve devia muito a Violette.
– Vão interrogá-la. – Os ombros de Lili caíram. – O Antoine diz que eles
não têm nada de concreto. Ela não foi apanhada com papéis. O seu nome foi
revelado quando um rapaz de Bruxelas que faz parte da rede foi preso; ele só
sabia o nome dela. Por isso, os boches vão interrogá-la, mas se estão à
procura de um ponto fraco na Violette, só vão encontrar rocha dura.
Eve imaginou Violette sentada a uma mesa esquálida, com um
interrogador alemão sentado no outro lado, a inclinar a cabeça para que a luz
refletisse nas lentes dos seus óculos impenetráveis. Não, Violette não seria
uma pessoa fácil de interrogar. Desde que não a torturem.
– Se pelo menos eu pudesse fazer alguma coisa – desabafou Lili, irritada.
– Se eu pudesse sair e recolher novas informações… E há relatórios para
passar. – O seu tom era duro. – Não vou deixar que os boches matem alguém
da minha rede. Prefiro que me encostem a uma parede e me executem a
perder mais alguém.
– Não sejas tonta. – Eve viu-se a adotar a atitude autoritária e severa de
Violette, na ausência da sua tenente de óculos, tentando refrear a chefe. –
Deixa-me ver o que consigo d-descobrir no Le Lethe.
Talvez não fiques no Le Lethe por muito mais tempo, sussurrou-lhe a
mente. Com a rede comprometida, Eve e Lili poderiam facilmente ser
retiradas de Lille. Seria esse o passo lógico seguinte, mas Eve não podia
fantasiar com a sua saída de Lille e a possibilidade de nunca mais voltar a ver
René. Por enquanto, ainda estás aqui, portanto, continua a escutar.
Mas, no mar da tagarelice, não havia qualquer murmúrio sobre Violette.
Ninguém conseguia falar de mais nada senão da execução de Cavell. Os
oficiais alemães sentavam-se com ar sério ou faziam brindes com schnaps.
– Que raios, a mulher era uma espia! Porque é que temos de limpar as
lágrimas por um maldito espião, só porque era uma mulher? – Eve ouviu um
capitão enfurecido a dizer.
– A guerra já não é o que era – acrescentou um coronel. – Espiões de
saias…
– Colocar uma mulher em frente a um pelotão de fuzilamento é uma
vergonha para a nossa pátria. Não é assim que nós fazemos guerra…
– Espiar é uma atividade cobarde. Deve haver espiões em Lille, a região
inteira está minada deles. Houve um que foi descoberto em Bruxelas algumas
semanas antes do fuzilamento da Cavell, e também era uma mulher…
Eve apurou o ouvido, mas nada mais foi dito sobre Violette. Por favor,
que ela não acabe como Cavell.
Tudo aquilo fez René soltar um risinho abafado, quando, mais tarde nessa
noite, nu, pegou numa garrafa que continha um líquido verde. Dera
recentemente absinto pela primeira vez a Eve.
– Que românticos me saíram estes alemães! Como se houvesse um modo
mais honrado de fazer guerra! A guerra simplesmente faz-se. A única coisa
que importa, no fim, é saber quem está vivo e quem está morto.
– E não só isso – disse Eve, de pernas cruzadas em cima da cama macia,
com um lençol sobre os ombros. – Também importa q-quem sai da guerra p-
pobre e quem sai rico. – O comentário mereceu-lhe um sorriso aprovador,
como Eve planeara. Marguerite tivera de evoluir a partir da rapariga do
campo pasmada por quem ele se interessara. Ela tinha conquistado uma certa
camada de sofisticação: já não ficava tonta quando bebia champanhe e
desenvolvera um gosto pelas coisas boas da vida que o amante lhe mostrava
com tanto prazer e pelas quais ela se mostrava sempre grata. Era subserviente
e ardente na cama, e fazia comentários cínicos ao estilo de René, o que o
fazia sorrir, porque ela o copiava com seriedade. Sim, Eve tinha feito
Marguerite crescer em fases calculadas com precisão, e René parecia
satisfeito com o que ele via como a sua criação. – Não vejo porque é tão t-
terrível querer prosperar em tempo de guerra – continuou Eve, provocadora,
como se estivesse a espicaçar o lado especulador de René, tentando
simultaneamente justificá-lo. – Quem, q-q-q-quem é que quer passar fome?
Quem é que se quer vestir com trapos?
René equilibrou uma colher de prata perfurada com um cubo de açúcar
por cima de cada um dos copos de absinto.
– Tu és uma jovem esperta, Marguerite. Se os alemães pensam que as
mulheres não são suficientemente inteligentes ou astutas para serem espias,
então são tontos e ingénuos.
Eve afastou a conversa do tema sobre a sua inteligência.
– Eles dizem que os ingleses estão f-furiosos com a execução da Cavell.
– Furiosos, talvez. – René verteu água gelada sobre o açúcar, para os
cubos se dissolverem lentamente para dentro do absinto. – Mas, mais do que
isso, penso que estarão agradecidos.
– Porquê? – Eve pegou no seu copo. La fée verte não lhe provocava
alucinações nem a fazia tagarelar, como ela receara (René dissera que essa
era uma tolice inventada pelos produtores de vinho franceses, invejosos pela
redução das suas vendas), ainda assim fazia questão de beber com
moderação.
– Não imaginas as listas de mortos e feridos que os ingleses têm tido,
minha querida. Tantos homens têm morrido nas trincheiras, todos os meses…
A sua guerrinha gloriosa já vai no segundo ano e as pessoas estão a ficar
fartas de sangue. Mas quando os alemães matam uma mulher inglesa de boas
famílias e reputação imaculada – haverá algo mais íntegro do que uma
enfermeira – isso dá um novo estímulo e entusiasmo à opinião pública
inglesa. – René bebericou o absinto e deslizou para debaixo dos lençóis.
– Será que os alemães vão executar a outra espia? – ousou perguntar Eve.
– A mulher apanhada em B-Bruxelas?
– Se forem espertos, não. Eles não vão querer fomentar má imprensa.
Pergunto-me se esta será jovem e bonita? – Absorto, René olhou através do
líquido verde do seu copo. – Se for, os ingleses deviam querer que os boches
a matem. Muito melhor do que uma mártir de meia-idade, como a Cavell, é
uma mártir bonita. Não há nada melhor para espicaçar o ultraje do povo do
que uma rapariga jovem, bonita e morta. Engole isso, Marguerite, e vem cá…
Nunca experimentaste ópio, pois não? Devíamos experimentar um dia. Fazer
amor por entre um devaneio de ópio pode ser algo extremamente
surpreendente…
Mas o fantasma de Edith Cavell continuou a pairar sobre elas. Quando,
nessa noite, Eve voltou ao seu quarto, Lili estava acordada e sentada à mesa,
com enormes olheiras negras sob os olhos.
– Temos notícias interessantes do Tio Edward, margaridazinha.
– Fomos chamadas a regressar? – A cabeça de Eve continuava à roda,
devido ao absinto, mas ela conseguira esquivar-se à proposta do ópio. Não ia,
de modo algum, tomar qualquer substância que a deixasse a balbuciar em
frente a René. – Vão mandar-nos embora de Lille? – A sua cabeça rodopiou
ainda mais com esperança, numa altura em que o momento chegara.
– Não. – Lili hesitou e o coração de Eve parou. – E, por outro lado…
talvez.
Irritada, Eve desabotoou o casaco.
– Explica-te.
– O Antoine trouxe uma mensagem direta do Tio Edward. A decisão de
nos chamarem definitivamente foi discutida, mas o Bigodes chefe decidiu que
devemos continuar a trabalhar aqui. – Ela provavelmente referia-se ao
intrujão e bisbilhoteiro Major Allenton, de quem Eve se recordava dos dias
em Folkestone.
– Mesmo com os alemães a tentarem desmantelar a rede, agora que
prenderam um de nós?
– Mesmo assim. – Lili desembrulhou a beata de um cigarro do lenço de
papel e começou à procura de fósforos. – A opinião do Bigodes é que a nossa
excelente situação compensa o risco. Por isso, as nossas ordens são para não
darmos nas vistas e continuarmos o trabalho durante, pelo menos, mais duas
semanas.
– É arriscado – admitiu Eve. Imprudente, até. Mas as guerras ganham-se a
correr riscos, e os soldados eram aqueles que os enfrentavam. Quando Eve
aceitara aquele trabalho, colocara a sua vida ao dispor da Coroa – que
adiantava reclamar, por mais que quisesse deixar Lille e René? Deixou-se
cair, sentando-se na beira da cama, a limpar a poeira dos olhos. – Então,
continuamos – disse ela, um pouco amarga.
Lili acendeu a beata do cigarro.
– Talvez não.
– Explica-te, Lili.
– O Tio Edward não pode contrariar abertamente um superior, mas ele
tem… formas de mostrar o seu desacordo. É óbvio que ele discordou da
decisão de nos manter aqui. E fez tudo para que isso não acontecesse. Sem
dizê-lo por palavras, ele deixou clara a sua opinião de que é demasiado
perigoso ficarmos aqui a trabalhar. Ele teme que a Violette seja executada,
como a Cavell, e que nós sejamos apanhadas e tenhamos o mesmo destino.
– E isso pode acontecer. – Eve vivia com esse medo havia tanto tempo
que já lhe parecia normal. – Os alemães estão a ceder. Eles já se deram conta
de que há dezenas de quilómetros de frente nesta zona, e que só têm artilharia
suficiente para 15 dias.
Lili expirou longamente depois de uma passa.
– O Tio Edward acha que o Bigodes é um idiota, mas não pode revogar as
ordens diretas dele. Contudo, deu a entender, de forma bastante indireta, que,
se fôssemos nós a requerer uma transferência de Lille, argumentando
exaustão física ou esgotamento nervoso, ele podia fazer com que isso
acontecesse.
Eve olhou para Lili, pasmada.
– Como se os soldados pudessem suplicar as suas ordens…
– Os soldados comuns, não. Mas aqueles com o nosso tipo de trabalho são
diferentes. Um elemento valioso à beira de um colapso emocional não é
fiável. Causaríamos mais danos se ficássemos; seria muito mais seguro
retirar-nos de funções. Por isso…
– Por isso. – Por um momento, Eve deixou-se assoberbar por essa visão.
Acabaria a fome, acabariam as horas alemãs, assim como as mãos frias a
deslizar pelo seu corpo. Acabariam os pesadelos de apanhar uma bala nas
costas. Acabaria o perigo, embora isso também tivesse um lado negativo. –
Se p-pedirmos para sair daqui, achas que eles nos enviam para outro local?
Bélgica ou…
– Provavelmente, não. – Lili sacudiu a cinza do cigarro. – Seríamos vistas
como aquelas que quebraram sob pressão. Ninguém põe uma caneca rachada
em cima da mesa à espera que ela vede a água.
Se naquela altura voltasse para casa, a luta acabaria. Independentemente
de quanto esta guerra durasse, Eve já não teria mais oportunidades de dar a
sua contribuição.
– Se calhar, devíamos fazer isso. – O tom de Lili era objetivo. – Pedir
para ir embora. Confio mais no instinto do Tio Edward do que no do Bigodes.
Se ele acha que o perigo é elevado, provavelmente tem razão.
– Sim – concordou Eve. – Mas, de qualquer forma, nós temos uma ordem
direta para ficar. Uma ordem. E só por mais duas semanas. Se não dermos
nas vistas, assim que voltarmos, podemos ser enviadas para trabalhar noutro
lugar.
– E temos tido sorte, até agora. – Lili encolheu os ombros magros. – Mais
do que sorte, temos sido excelentes.
Eve soltou um longo suspirou, libertando a visão do regresso a casa.
– Eu digo que devemos ficar. Pelo menos, um pouco m-mais.
– Eu já tinha decidido isso para mim, mas não queria influenciar a tua
decisão. Tens a certeza?
– Sim.
– Está decidido, então. – Lili inspecionou a beata. – Raios. Há 15 dias que
estou a guardar esta beata e só tirei duas passas. Não imaginas como adoro
esta vida primitiva…
Eve esticou-se e agarrou na outra mão de Lili.
– Promete-me que vais ter mais cuidado. Preocupo-me contigo.
– Que sentido faz, preocupares-te? – Lili enrugou o nariz. – Sabes, no
mês passado, estava tão preocupada. Tive uma espécie de premonição tão
forte que fui visitar a minha família. Estava convencida de que tinha de fazer
uma última visita enquanto podia… Quando os deixei, não parava de pensar:
“Acabou tudo; vão apanhar-me e vou ser morta”. Mas não aconteceu nada,
rigorosamente nada. A preocupação é uma perda de tempo, margaridazinha.
Eve ficou em silêncio por um instante, a tentar escolher as palavras.
– E se eles forçarem a Violette a revelar o teu nome?
– Mesmo que a forcem a dizer alguma coisa sobre mim, não vão
conseguir encontrar-me. Sou como água, que corre para todo o lado. – Lili
sorriu. – Vou variar a minha rotina, alterar os meus caminhos habituais.
Prometo. – O sorriso esvaneceu-se. – O Bigodes tem razão numa coisa: isto
não vai durar muito mais tempo, disso tenho certeza. Tem havido um grande
avanço em Champanhe; eles estão convencidos de que, pelo Ano Novo, terão
conseguido vencer. Só temos de aguentar um pouco mais. – E num tom
suave: – E então, a Violette será libertada. Se eles lhe derem apenas sentença
de prisão, ela vai conseguir sobreviver.
– E se não forem apenas alguns m-meses. – Eve estava em Lille havia
apenas alguns meses, mas sentia que era uma eternidade. – E se esta guerra
durar anos?
– Serão anos. Que importa? – respondeu Lili.
Que importância tinha, de facto. E nenhuma delas voltou a pensar num
pedido para regressar a casa.

As notícias chegaram aos ouvidos de Eve alguns dias depois, pelo


Kommandant Hoffman e um par de coronéis, todos já bem aquecidos pelo
brandy. Não foi uma pepita de ouro, como fora a notícia da visita do Kaiser,
mas foi suficientemente importante para pôr Eve em alerta.
– Tens a certeza? – Lili voltara das rondas, com novos cartões de
identidade preparados, para o caso de os nomes antigos terem sido revelados.
Eve acenou com a cabeça, inclinada sobre a mesa.
– Os alemães estão a planear um ataque em massa em janeiro ou fevereiro
do próximo ano. Está confirmado.
– E o alvo?
– Verdun. – Eve tremeu ligeiramente. Havia alguma coisa estranha no
nome daquele lugar onde ela nunca tinha estado. Um carácter definitivo
absoluto. Soa a zona de morte. Mas não o seria, se os generais fossem
prevenidos. Talvez Verdun marcasse o fim da matança.
– É um risco para ti, passar esta informação – avaliou Lili. Nem toda a
informação que Eve recebia podia ser transmitida, particularmente se a ação
consequente pudesse identificar e expor a fonte da fuga da informação no Le
Lethe.
– Isto é importante – respondeu Eve. – Foi por este tipo de informação
que não pedimos para sermos enviadas para casa.
Lili refletiu e acabou por concordar.
– Já estava nos meus planos encontrar-me com o Tio Edward em Tournai,
daqui a dois dias. Terás de vir comigo. Com esta informação, eles vão querer
questionar-nos às duas, como fizeram com o relatório sobre o Kaiser.
Eve fez um aceno de cabeça. Seria no domingo, pelo que não teria de
faltar ao trabalho.
– Consegues mais um salvo-conduto a t-tempo?
– O meu contacto ainda não me deixou ficar mal, Deus o abençoe.
Eve roeu a unha do polegar, já roído até ao sabugo. Talvez fosse a prisão
de Violette ou o frio violento daquele outubro, mas durante toda essa semana
ela vinha a lutar contra uma vaga de pavor supersticioso. Estaria Christine a
olhar para ela como se suspeitasse de alguma coisa, e não apenas por
desdém? O tenente alemão que subitamente parara de falar quando Eve
chegou à mesa com o seu café – ter-se-ia ele apercebido de que ela estava a
ouvir? Teria René, tão solícito com ela ultimamente, descoberto uma das suas
mentiras e decidido embalá-la com um falso sentido de segurança, para a
poder atacar de repente?
Para com isso.
Essa noite com René durou até tarde. Ele acendeu a lareira no quarto, por
causa do frio, e leu À Rebours em voz alta para Eve, pousando o livro de vez
em quando para poder reconstituir algumas das passagens mais depravadas
de Huysman. A depravação aborrecia Eve, em vez de a excitar, mas
Marguerite era apropriadamente impressionável e insegura, e René parecia
satisfeito.
– Estás a progredir muito bem, minha querida – murmurou ele, passando
o dedo pelo lóbulo da orelha dela. – Talvez nos devêssemos retirar para o
campo por uns tempos, como o herói de Huysman, hã? Para um sítio mais
quente do que Limoges, onde nos podemos divertir sem esta vulgaridade
teutónica. Grasse é particularmente agradável nesta altura do ano. O cheiro
das flores é trazido pelo vento, e vem de todas as direções. Sempre pensei
que me retiraria para Grasse quando me fartasse do negócio da restauração.
Tenho uma pequena propriedade delapidada lá, que está à espera de ser
transformada numa encantadora casa de campo… Gostavas de ir viver para
Grasse, Marguerite?
– Em qualquer lado q-q-q-quente – retorquiu Eve, arrepiada de frio.
– Estás sempre com frio nestes últimos dias. – A mão de René abrandou,
afagando a pele dela. – Não estás grávida, pois não?
Aquilo surpreendeu tanto Eve que ela esteve na iminência de reagir de
forma descuidada. Quase não conseguiu evitar retrair-se, tal o nojo que
sentiu.
– Não – respondeu ela, acrescentando uma gargalhada despreocupada.
– Hum. Se estivesses, não seria uma tragédia, minha querida. – Ele
pousou a mão aberta por cima da barriga dela, os dedos compridos a tocarem
ambos os lados da sua bacia. – Nunca me achei especialmente paternal, mas
um homem chega a uma certa idade e começa a pensar no seu legado. Ou
talvez me tenha tornado melancólico com este tempo monótono. Vira-te,
sim?
Eu tinha razão em não lhe contar, pensou Eve, movendo o corpo sob o
toque dele. Ele podia tê-la mandado para algum sítio para ser mimada, como
uma égua de raça, e onde poderia ela estar naquele momento?
O dia já despontava quando Eve se escapuliu. Não havia tempo para
dormir – preparou rapidamente um embrulho falso, para ter algo que
atrapalhasse os guardas do posto de controlo, e dirigiu-se à estação. Lili
estava atrasada e Eve sentia-se num estado de pânico reprimido, quando viu
aquela figura familiar descer de uma carruagem. A manhã era fria e de
nevoeiro, e as pequenas gotículas de humidade pareciam agarrar-se ao chapéu
de palha de Lili e ao seu casaco azul acinzentado. Ela parecia
extraordinariamente pequena ao caminhar por entre o nevoeiro.
– Temos um problema – murmurou Lili, baixando a voz para que
ninguém a pudesse ouvir. – Temos apenas um salvo-conduto. Permite a
viagem a Tournai, mas só para uma pessoa.
– F-fica tu com ele. Não preciso de ir.
– Com um relatório destes, precisas, sim. Eles vão querer questionar a
fonte da informação.
– Vou sozinha, então…
– Tu nunca passaste num posto de controlo sozinha. Os guardas andam
muito nervosos e não estão habituados a ver-te ir e voltar, como acontece
comigo. Essa tua língua presa pode fazer com que reparem em ti. E, se isso
acontecer, quero estar presente para te ajudar. – Lili hesitou, mordendo o
lábio. – Não podemos esperar até às rondas da próxima semana, não com
uma informação importante como esta. Se conseguirmos enganar os
sentinelas só com um salvo-conduto, facilmente obteremos outro em Tournai
para voltar a casa.
Eve observou os guardas alemães na estação, do outro lado da rua.
Pareciam ensopados e de aspeto mal-humorado. Com disposição para serem
impiedosos, talvez; mas, por outro lado, também deprimidos e gelados, a
ponto de serem descuidados.
– Por mim, avançamos.
– Por mim, também. Toma o passe, margaridazinha, e põe-te na fila.
Deixa três pessoas entre nós e não olhes para trás.
Depois de receber algumas instruções rápidas, Eve atravessou a rua por
entre um grupo de rapazes que jogava à apanhada em redor da praça, apesar
do nevoeiro frio. Eve passou o embrulho para a outra mão, conseguindo um
olhar de relance para Lili, que agarrou na ponta de um cachecol verde que
passava a correr, detendo o seu dono, um dos rapazes que brincava. Um
sussurro no ouvido dele – e uma moeda na sua mão, embora Lili tenha
escondido isso com destreza – e o rapaz desatou a correr novamente. Lili
caminhou em direção à fila, e Eve ficou subitamente tão nervosa que mal se
aguentava de pé. Tentou afastar o medo.
O sentinela assoou o nariz num lenço enorme, claramente engripado. Eve
mostrou-se humilde e atenciosa, entregando o seu salvo-conduto sem uma
palavra. Ele examinou-o cuidadosamente e deixou-a passar – o coração
saltou-lhe no peito e ela voltou as costas para os guardas, fingindo colocar o
cartão de volta no porta-moedas, mas na realidade manteve-o dobrado entre
os dedos enluvados. Num instante, o rapaz com o cachecol verde passou
pelos alemães – eles mal reparavam nas crianças, exceto para os enxotar do
caminho – e, a correr, esbarrou contra Eve, caiu ao chão e fez cair igualmente
o pacote das mãos dela.
– Levanta-te! – Eve ajudou-o a levantar-se, limpando a lama da manga do
casaco dele, e o salvo-conduto dobrado foi discretamente puxado para o
interior da manga dele. – Tem mais c-cuidado – ralhou ela, com a voz a sair-
lhe terrivelmente encenada aos seus ouvidos, enquanto apanhava o pacote do
chão; a criança recomeçou a correr. Uma corrida à volta da praça – Lili deve
ter-lhe dito para não se dirigir diretamente ao alvo – e lá estava ele a esbarrar
contra Lili, que o agarrou pelo pulso, para lhe dar um raspanete. Eve
observava discretamente e, mesmo estando à espera, não conseguiu ver Lili a
tirar o passe da manga do rapaz. Mas Lili tinha-o na mão quando, cinco
minutos mais tarde, chegou à frente da fila.
O coração de Eve começou novamente a martelar-lhe no peito, no
momento em que o sentinela alemão passou os olhos pelo salvo-conduto.
Não tinha fotografia de identificação, era apenas um pedaço de papel a
autorizar a passagem – eram todos iguais; certamente, ele não repararia que
era o mesmo de pouco antes… Eve sentiu um alívio violento quando ele
assoou o nariz e deixou passar Lili.
– Vês? – murmurou Lili, sob o apito ensurdecedor da locomotiva, ao
juntar-se a Eve. – São demasiado estúpidos. Espeta-se-lhes um papel
qualquer debaixo do nariz e conseguimos sempre passar!
Eve, aliviada, riu-se um pouco estouvadamente.
– Tens sempre uma piada para tudo!
– Até agora – replicou Lili, airosa. – Achas que vamos ter tempo de
comprar chapéus tontos em Tournai? Apetece-me tanto um de cetim cor-de-
rosa…
Eve ainda se ria quando aquilo aconteceu. Mais tarde, pensou se teria sido
a sua gargalhada a chamar a atenção, se teria sido demasiado descuidada.
Mais tarde, perguntou-se: O que poderia eu ter feito? Mais tarde, pensou: Se
pelo menos…
Uma voz alemã ecoou atrás delas, estacando a gargalhada de Eve como se
fosse uma faca.
– Os vossos papéis, frauleins.
Lili voltou-se, erguendo as sobrancelhas louras. Este não era o sentinela
engripado, mas um jovem capitão de uniforme impecável. Gotas de nevoeiro
colavam-se-lhe à aba da boina; o rosto era duro e desconfiado. Eve reparou
na pequena ferida no queixo dele, onde talvez se tivesse cortado a fazer a
barba, viu que tinha pestanas muito louras e sentiu a língua a paralisar-se
dentro da boca. Se ela tentasse falar, não conseguiria tirar uma única palavra
inteira antes de começar a gaguejar, como aquelas metralhadoras Chauchat
que acumulavam soldados mortos nas trincheiras…
Mas foi Lili quem falou, e o seu tom era descontraído e impaciente.
– Papéis? – Ela apontou para o sentinela, contrariada. – Já os mostrámos
ali.
O capitão esticou a mão.
– Ainda assim, eu quero vê-los.
Lili indignou-se, como uma insignificante dona de casa francesa o faria.
– Quem é o senhor…
Ele olhou para elas com uma expressão ameaçadora.
– Se têm passaportes, eu quero vê-los.
E pronto, pensou Eve, e o terror que sentiu era tão avassalador que quase
a acalmou. O bluff delas tinha sido descoberto, não havia nada mais a fazer.
Vão levar-me. Vão levar-me…
Ela ergueu os olhos no momento em que Lili entregava o seu salvo-
conduto ao capitão. Quando ele inclinou a cabeça para o examinar, os olhares
de Eve e Lili encontraram-se. Quando eles me levarem, vira costas e vai
embora, tentou Eve dar a entender. Vai embora.
E Lili sorriu – aquele sorrisinho rápido e traquinas.
– O passe é dela – confessou Lili, com clareza. – Eu pedi-lho emprestado
ilegalmente, seu boche idiota.
Capítulo 25
Charlie
Maio de 1947

Ela estava morta.


A minha melhor amiga estava morta.
Não bastava que o monstro devorador da guerra tivesse esticado os seus
dedos insaciáveis e roubado o meu irmão. A mesma besta também tinha
engolido a Rose, a rapariga que eu amava como uma irmã, cravando-a de
balas.
Tive a impressão de ter estado ali, naquele pedaço de relva maculada,
entorpecida pelo horror, tolhida entre a parede da igreja repleta de buracos de
balas e a figura de Madame Rouffanche, durante uma eternidade. Ela bem
podia ser uma estátua feita de sal, como a mulher de Ló, transformada numa
aberração estática por algo que jamais deveria ter visto. Senti um grito a
arranhar-me a garganta, como uma lâmina ferrugenta, mas antes que o
pudesse soltar, o Finn abanou-me com força. Olhei para ele, atordoada.
Charlie, via-o a dizer. Charlie, miúda, mas não o conseguia ouvir. Era como
se uma bomba tivesse detonado perto dos meus ouvidos. Não conseguia ouvir
mais nada senão um zumbido monstruoso.
Madame Rouffanche continuava calma e de olhar fixo em mim. Ela
merecia a minha gratidão por ter sido testemunha. Merecia alívio para a sua
dor e medalhas pela sua coragem. Mas eu não a conseguia encarar. Ela tinha
estado com Rose, tinha-a visto cair e morrer. Porquê ela, e não eu? Porque
não tinha sido eu a estar ali, a enfrentar os nazis com Rose? Porque não tinha
estado eu ao lado de James, a ouvi-lo no seu estado de fúria, a dizer-lhe que o
amava, a abafar a terrível cacofonia das suas recordações? Eu tinha-os amado
tanto e, no entanto, falhara-lhes de forma absoluta. Tinha deixado que o meu
irmão saísse de casa sozinho, numa noite fria, recusando o seu pedido para ir
tomar uma cerveja com ele, em troca de uma bala. Pensei que podia redimir
esse erro ao tentar encontrar Rose, numa altura em que toda a gente perdera
essa esperança – mas eu não conseguira redimir nada. Num café provençal,
eu tinha dito a Rose que não a abandonaria, mas a verdade é que a tinha
abandonado. Deixei que um oceano e uma guerra se tivessem interposto entre
nós, e agora também ela estava morta. Tinha-os perdido aos dois.
Falhaste, dizia repetidamente a voz cruel dentro de mim. Era a ladainha
da minha vida. Falhaste.
Pus as mãos no braço de Madame Rouffanche e dei-lhe um pequeno
aperto – foi toda a gratidão que pude oferecer. Depois, afastei-me e corri rua
abaixo aos tropeções. Caí por cima de um vaso de flores abandonado – uma
coisa de barro partida, outrora cheia de sardinheiras vermelhas na soleira da
porta de uma dona de casa francesa abatida a tiro naquele 10 de junho.
Esfreguei as mãos, apoiando-me no chão para me erguer, mas continuei a
tropeçar. Vi as linhas de um carro por entre as lágrimas e dirigi-me a ele, mas
dei conta de que não era o Lagonda, e sim o Peugeot abandonado que ali
enferrujava desde o dia em que o dono fora fuzilado no meio de um campo.
Afastei-me aos tropeções daquele carro inocente e horrendo, olhando
desvairadamente em redor à procura do Lagonda. Foi então que Finn me
apanhou e apertou firmemente contra o seu peito. Enterrei a cabeça na camisa
áspera dele e fechei os olhos com força.
– Tira-me daqui – disse eu, ou tentei dizer. O que me saiu da boca foi um
conjunto de sons roucos truncados por soluços, que mal pareciam palavras,
mas Finn compreendeu. Num gesto rápido, levantou-me do chão e levou-me
para o Lagonda, pousando-me no assento sem abrir a porta e saltando para o
lado do condutor. Fechei os olhos e inalei o cheiro reconfortante do couro e
do óleo do motor, enrolando-me no banco, enquanto o Finn punha o carro a
trabalhar. Ele arrancou como se uma horda de fantasmas viesse atrás de nós;
e a verdade é que vinham – oh, meu Deus, se vinham. À frente, eu imaginava
uma bebé a caminhar com passos vacilantes. Ela tinha os braços esticados
para mim; queria a Tante Charlotte, mas o topo da sua cabeça tinha sido
desfeito por balas. Rose batizara-a com o meu nome, mas já estava morta.
Estava morta havia quase três anos. Produzi outro som inarticulado
enquanto atravessávamos o rio aos solavancos. Tudo o que ali me trouxe era,
afinal, mentira.
Quando já estávamos longe de Oradour-sur-Glane, Finn parou
atabalhoadamente o carro num auberge de estrada e arrendou um quarto para
passarmos a noite. Talvez o proprietário tivesse visto a aliança no meu dedo
(Sra. Donald McGowan; Rose nunca se riria do meu Donald) ou talvez não se
importasse. Entrei a cambalear para o quarto bafiento e, por entre as lágrimas,
estaquei perante a visão turva da cama.
– Vou sonhar – murmurei para Finn, atrás de mim. – Assim que
adormecer, vou sonhar. Vou sonhar com ela, da maneira como ela… – Parei
e fechei os olhos com força, tentando agarrar aquele entorpecimento
reconfortante de antes… mas tinha-se desfeito por completo. As lágrimas
assolavam-me em ondas gigantes, deixando-me prostrada. Não conseguia
respirar. Não conseguia ver. – Não me deixes sonhar – implorei, e Finn
segurou-me o rosto com as suas mãos grandes.
– Esta noite não vais sonhar – disse ele, e eu vi lágrimas também nos seus
olhos. – Prometo.
Ele encontrou uma garrafa de whisky algures e trouxe-a para o quarto.
Não nos preocupámos em jantar; limitámo-nos a tirar os sapatos, sentámo-
nos em cima da cama, com as costas encostadas à parede, e começámos a
beber metodicamente a garrafa até ao fim. Por vezes eu chorava, outras
olhava fixamente para a janela, que passou de iluminada pela luz do sol ao
azul do lusco-fusco e do negro da noite ao céu estrelado. Por vezes, eu falava,
relatando memórias de Rose como contas de um rosário; depois surgiam as
recordações de James e logo me vinham as lágrimas por ambos. O Finn
deixava-me falar, chorar, falar mais um pouco, e eu deslizei o meu corpo
lasso até ficar com a cabeça pousada no colo dele. A certa altura, por volta da
meia-noite, olhei para cima e vi lágrimas silenciosas a rolarem pelo rosto
imóvel de Finn.
– Que lugar – sussurrou. – Meu Deus, que lugar…
Limpei-lhe a face molhada com a mão.
– Alguma vez viste algum lugar pior do que aquele?
Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia
responder. Depois, ele bebeu o resto do whisky com um movimento enérgico
e disse:
– Sim.
Eu não sabia se queria mesmo conhecer o que poderia ser pior do que
Oradour-sur-Glane, mas ele já começara a falar.
– Royal Artillery, 63.° Regimento Antitanques. – A mão enorme de Finn
afagava o meu cabelo. – Abril de 45. Estávamos no norte da Alemanha, perto
de Celle. Já ouviste falar dos campos de extermínio?
– Sim.
– Nós libertámos um. Belsen.
Sentei-me na cama e agarrei os joelhos contra o peito. Ele fez uma pausa.
Pestanejou.
– Esquadrão C. Fomos a primeira unidade militar a atravessar os portões,
depois das equipas médicas. Deparámo-nos com uma cidade fantasma, como
aquela que vimos hoje. Mas em Belsen eram fantasmas vivos. – A voz era tão
monocórdica como a de Madame Rouffanche, nessa tarde, com a mesma
cadência repetitiva do horror enraizado na alma. – Milhares de pessoas,
esqueletos animados dentro de uniformes às riscas cinzentas, a vaguear por
entre corpos amontoados. Havia pilhas de corpos por todo o lado, como se
fossem detritos domésticos. Mesmo aqueles que ainda andavam não pareciam
estar vivos. Pareciam só… flutuar. E havia um silêncio absoluto. – Fez uma
pausa. Pestanejou. – O sol brilhava. Como hoje…
As lágrimas voltaram a correr-me pelo rosto. Lágrimas inúteis. Que
utilidade têm as lágrimas para todos aqueles mortos? Os mortos de Oradour-
sur-Glane e os mortos de Belsen. James, Rose. Maldita guerra.
– Vi uma rapariga cigana deitada no chão – continuou Finn. – Só soube
que era cigana depois, quando alguém me explicou o significado do seu
crachá de prisioneira. Para as mulheres ciganas era um triângulo escuro com
um Z de Zigeuner… Mas ela não é uma mulher, é apenas uma miúda. Uns 15
anos talvez. Mas parece ter 100 anos, só pele e ossos, cabeça rapada e olhos
enormes. Está a olhar fixamente para mim, os olhos são como pedras no
fundo de um poço, e a mão dela está pousada na minha bota como uma
aranha branca. E morre, ali mesmo. A sua vida extingue-se enquanto olhamos
um para o outro. Estou ali para a salvar, eu e o meu regimento… E é neste
momento que ela morre. Ela sobrevive a tanta coisa, e morre agora.
Suspeitei que sempre que ele pensava na rapariga cigana, era
invariavelmente agora. Sempre que ele pensava nos olhos cavados e na mão
como uma aranha branca em cima da sua bota, ela morria no presente, na sua
cabeça, uma e outra vez.
– Há muita coisa que eu esqueci. – A voz dele enrouqueceu e o sotaque
escocês acentuou-se. – Não porque tivesse tentado, mas… os detalhes
ficaram turvos. Cavar valas, carregar corpos para fora das barracas. Catar os
piolhos às pessoas, dar-lhes de comer. Mas da miúda cigana, lembro-me. Ela
sobressai de entre tudo.
Eu não tinha palavras para o reconfortar. Talvez não existissem palavras.
Talvez o único consolo fosse o toque e o calor da minha mão, a dizer-lhe:
Estou aqui. Peguei-lhe na mão e apertei-a com força entre as minhas.
– O cheiro… – Um calafrio percorreu o seu corpo esguio de uma ponta à
outra. – Tifo e morte e podridão. E poças de merda líquida por todo o lado. –
Olhou para mim com os seus olhos negros sem fundo. – Dá-te por satisfeita
por teres chegado a Oradour-sur-Glane três anos depois, Charlie, miúda.
Viste o sol e a calma e os fantasmas… mas não sentiste o cheiro.
Finn parecia não ter mais nada para dizer. Eu servi-nos de mais whisky.
Bebemo-lo de um trago, procurando esquecer o mais rapidamente possível.
Salut!, disse Rose; mas não, ela não dizia nada, porque estava morta, tal
como a rapariga cigana do Finn. Sentindo o quarto começar a andar à roda,
voltei a deitar a cabeça no colo dele e ele afagou-me o cabelo.
A lua apareceu na janela, mais brilhante a cada hora que passava, até que
me apercebi de que era o sol, que já ia alto e raiava através do vidro, ferindo-
me os olhos como uma espada.
Pestanejei, tentando perceber o sentido da realidade. Estava enrolada no
Finn, os dois totalmente vestidos em cima da cama, o braço dele pousado de
modo frouxo sobre a minha cintura e o meu rosto encostado às suas costelas,
que se moviam ao ritmo da sua respiração de adormecido. Eu tinha uma dor
de cabeça terrível e, ao libertar-me, senti uma volta no estômago. Mal tive
tempo de sair da cama e chegar ao lavatório no canto oposto do quarto.
Vomitei, e depois voltei a vomitar, engasgando-me com o sabor amargo
do whisky mal digerido. Finn acordou pouco depois.
– Parece que estás um bocadinho doente – observou ele.
Levantou-se da cama e veio até mim, com a camisa meio desabotoada e
os pés descalços, segurando-me no cabelo caído quando me debrucei
novamente sobre o lavatório.
– Tiveste algum sonho? – perguntou baixinho.
– Não. – Endireitei-me, limpei a boca e peguei no copo para a água, sem
olhar bem para ele. – E tu?
Ele abanou a cabeça. Não conseguíamos olhar nos olhos um do outro.
Éramos como os cotos das pernas de um mesmo corpo, doridos, ainda em
carne viva, a tentar não esbarrar um no outro. Sempre que eu tentava virar a
cabeça, sentia uma pontada de dor. Rose, pensei, sentindo nova pontada de
dor, seca e profundamente chocante. Não tinha sido um pesadelo. Eu tinha
adormecido, tinha acordado e era tudo real. Não tinha havido pesadelos, só o
horror da realidade. Os meus olhos ardiam, mas eu não tinha mais lágrimas.
Apenas uma pergunta se assomava, em toda a sua vastidão.
Lavámo-nos e vestimo-nos, e Finn trouxe café, feito pelo dono da pensão
a seu pedido. O meu estômago irritado aceitou o café de má vontade e não
tardou a voltarmos à estrada rumo a Limoges, com Finn a conduzir o carro
em silêncio. E eu, nas minhas roupas encorrilhadas, tentava aliviar a dor de
cabeça esfregando as têmporas, enquanto ponderava a questão que se me
impunha.
E agora, Charlie St. Clair?
E agora?

O regresso a Limoges foi tranquilo. Dei por mim a admirar a beleza


estival da cidade, como se fosse um cenário de uma peça de teatro: os
salgueiros-chorões na margem do rio, as casas com as vigas de madeira à
mostra e a bonita ponte romana que Rose teria visto todos os dias, enquanto
servia às mesas do Le Lethe. Já não tinha motivo para ficar mais tempo
naquela cidade – no entanto, também não tinha um destino pelo qual a deixar.
– Será que a Gardiner já chegou? – interrogou-se Finn. Eram as primeiras
palavras que dizia desde que me perguntara se eu tinha sonhado.
Olhei para ele, confusa.
– Chegou de onde?
– Do encontro com o tal oficial inglês que veio de Bordéus – respondeu
ele. – Não te lembras?
Tinha-me esquecido.
– Isso não foi ontem?
– Se calhar foi. – Não tínhamos planeado ficar a noite fora de Limoges. E
agora? A pergunta continuava a ecoar. E agora?
Finn estacionou o Lagonda e entrámos no hotel. O hall do auberge tinha
sido encerado há pouco tempo, e eu senti o cheiro da cera de abelhas a
sobrepor-se ao perfume das flores em cima da secretária. Eram rosas, da cor
das faces de Rose, e a minha cabeça latejou novamente. Uma empregada
irritadiça estava sentada à secretária e à sua frente encontrava-se um homem
inglês, do tipo que acreditava que, ao falar num tom muito alto, os
estrangeiros automaticamente o compreenderiam.
– EVELYN… GARDINER? Ela… está… ICI? Ici, aqui, comprenez?
GARDINER…
– Oui, monsieur – disse a empregada, com ar de quem já tinha dito aquilo
antes. – Elle est ici, mais elle ne veut pas vous voir.
– Inglês, anglais? Alguém fala inglês? – O homem olhou em redor. Era
alto, com um bigode grisalho, com uns 50 e poucos anos, a ostentar
orgulhosamente uma enorme barriga. Vestia um fato à civil, mas o porte do
homem era agressivamente militar.
Finn e eu trocámos olhares e de seguida Finn apresentou-se.
– Sou o motorista da Miss Gardiner.
– Ótimo, ótimo. – O homem vistoriou Finn de alto a baixo com olhar
reprovador, perante a aparência desleixada dele, mas o tom era cordial. –
Diga à Miss Gardiner que estou aqui, por favor. Ela vai receber-me.
– Não vai – contrariou Finn.
O homem olhou para ele, espantado e de bigode eriçado.
– Claro que vai! Estive com ela ao jantar ontem à noite, que raios, e
fomos perfeitamente cordiais…
Finn encolheu os ombros.
– É evidente que ela agora não o quer ver.
– Ouça lá…
– Não é o senhor que me paga o salário. É ela.
A empregada francesa revirou os olhos atrás do inglês. Decidi intervir: a
curiosidade perfurava lentamente o nevoeiro da minha dor.
– O senhor não se chama Capitão Cameron, pois não? – Ele não
correspondia à imagem que eu tinha vindo a construir do Cameron, mas que
outro oficial inglês viria a correr de Bordéus à chamada de Eve?
– Cameron? Aquele impostor miserável? – O homem emitiu um
resmungo de desprezo. – Sou o Major George Allenton e estou a desperdiçar
tempo valioso, por isso, rapariga, toca a subir as escadas para dizer à Miss
Gardiner que estou aqui.
– Não. – Soou a insolência, mas era apenas exaustão. Francamente, não
via porque deveria mexer sequer um dedo por uma pessoa assim tão mal-
educada. Fiquei contente por ele não ser o Capitão Cameron: tinha gostado
das histórias que Eve contara dele.
O major olhou para mim, com o rosto vermelho de fúria, e abriu a boca
como se fosse argumentar. Mas desistiu imediatamente.
– Muito bem – disse, remexendo no bolso. – Diz a essa velha magricelas
que o Ministério da Guerra não lhe deve mais favores, independentemente do
que ela tenha feito por nós no passado. – Arremessou uma pasta preta fina
para a minha mão. – E, se quiser, pode deitar estas coisas pela retrete abaixo,
que eu já estou farto de tomar conta delas.
– Quando é que a conheceu? – perguntou Finn, enquanto o major enfiava
o chapéu na cabeça.
– Ela trabalhou para mim nas duas guerras. E arrependo-me de a ter
recrutado na primeira, aquela cabra traiçoeira de língua presa.
O major saiu, irritado, a bater com os pés no chão, e Finn e eu olhámos
um para o outro. Por fim, abri a pasta, à espera de encontrar… o quê? Joias,
documentos, uma bomba-relógio? Com Eve, nunca se sabia. Mas eram
medalhas: quatro, presas a uma cartolina.
– A Medaille de Guerre, a Croix de Guerre com palma, a Croix de la
Legion d’Honneur… – Finn assobiou baixinho. – E esta é a Ordem do
Império Britânico.
Soltei um suspiro lento. Eve não fora apenas uma espia. Ela tinha sido
condecorada como heroína, uma lenda do passado por quem oficiais
superiores do exército ainda se mexiam, mesmo não gostando dela. Toquei na
medalha da Ordem do Império Britânico com a ponta de um dedo.
– Se ela foi galardoada com estas medalhas há tantos anos, porque não
ficou com elas, na altura?
– Não sei.
Capítulo 26
Eve
Outubro de 1915

Enquanto eram levadas à força para a esquadra, Lili conseguiu resmonear


uma instrução a Eve. Os alemães gritavam, os alarmes soavam e, no meio de
toda aquela agitação, Lili murmurou entre dentes: Faz de conta que não me
conheces. Eu vou tirar-te daqui.
Eve abanou a cabeça quase impercetivelmente, sem ousar olhar para Lili.
Estavam a ser arrastadas por um par de soldados enormes: Lili, meio içada,
mal tocava com os pés no chão, e Eve tinha as mãos dormentes, tal era o
aperto com que os soldados lhe seguravam os braços. O terror da situação
ainda não era completamente evidente para Eve. Os pensamentos dela
fugiam-lhe como ratos subitamente expostos à luz. A sua recusa fora
instintiva: ela não podia, de forma alguma, sair em liberdade e deixar Lili nas
mãos dos alemães. Nunca.
Mas os alemães recomeçaram a gritar e os lábios de Lili formaram uma
palavra.
Verdun.
Eve estacou. O ataque em grande escala contra Verdun planeado para o
ano seguinte. O Capitão Cameron em Tournai à espera do relatório. A tira de
papel com todos os detalhes do ataque, enrolada no interior do anel da mão
direita de Lili. Santo Deus, se os alemães apanhassem o papel…
Mas já não havia mais tempo para pensar, nem tão-pouco para trocar um
olhar de desespero. Foram empurradas para o interior da estação, passaram
pelo telefone e por um grupo de soldados, e o capitão alemão vociferou as
ordens: “Separem-nas, eu vou lançar um aviso…” Eve foi atirada para uma
sala estreita com vista para a rua, onde já se encontravam meia dúzia de
soldados, parcialmente vestidos e a bocejar, a realizar a rotina matinal. Um
jovem sargento louro, vestido apenas de camisa, olhou com espanto para Eve,
enquanto outro continuou a fazer a barba num balde de água. Eve retribuiu o
olhar espantado, evitando que os olhos procurassem uma saída. Não havia
possibilidade de fuga. Se ela se movesse um centímetro que fosse em direção
à janela, eles atirar-se-iam a ela como uma matilha de lobos. À sua esquerda,
havia uma porta envidraçada, que dava acesso a outra sala ainda mais
pequena, e Eve sentiu um nó na garganta quando viu Lili ser empurrada para
lá. O chapéu desaparecera e o cabelo louro caía-lhe emaranhado pelos
ombros; parecia uma criança vestida com a saia e a blusa da mãe. Lili
conseguiu encostar-se ao balcão que percorria o comprimento da sala e, de
olhos a brilhar e sorriso nos lábios, tirou as luvas, como se estivesse a
preparar para tomar um chá.
– Não me t-t-toquem! – gritou subitamente Eve, e os soldados olharam
todos para ela. Nenhum deles fizera qualquer movimento, pois tinham sido
apanhados de surpresa, ainda assim ela emitiu um guincho estridente. Queria
atrair a atenção deles e evitar que olhassem pela janela para Lili, que naquele
momento arrancava rapidamente o anel da mão direita e o papel enrolado no
aro. – Não me t-t-toquem – guinchou novamente Eve, e o soldado mais
jovem do grupo avançou para a acalmar. Eve olhava para lá dele, na direção
de Lili, que continuava com o seu meio sorriso estampado no rosto. Eve viu a
companheira meter o papel na boca e engoli-lo.
O capitão alemão entrou a gritar na sala de Lili, antes que Eve pudesse
sentir uma ponta de alívio. Ele viu, ele viu… Agarrando Lili pelo pescoço, o
capitão tentou abrir-lhe a boca para lhe meter os dedos. Ela cerrou os dentes,
exibindo-os como uma loba, e ele empurrou-a para o lado, enojado. Eve
ouviu as botas do capitão baterem rapidamente e com força pelo corredor
fora. Deixou-se cair no chão e desatou a soluçar. Não apenas porque Lili
tinha sido apanhada em flagrante a destruir uma mensagem, mas porque isso
era o que Marguerite faria. A inocente Marguerite ficaria aterrorizada e não
saberia quem era aquela mulher na sala ao lado. Eve queria atirar-se àqueles
porcos alemães e arrancar-lhes os olhos, mas tinha uma tarefa a cumprir.
Verdun.
Por isso, aninhou-se no chão a chorar, enquanto botas alemãs se moviam
desconfortavelmente em seu redor. Os soldados fitavam-na e falavam em
sussurros, que Eve ignorou, porque, claro, Marguerite não compreendia
qualquer palavra de alemão, exceto ja e nein. Todos os seus nervos em franja
estavam focados na sala do lado, onde não se ouvia um único som – nem um
pio – da líder da Rede Alice.
Eles não sabem que ela é a líder da rede, pensou bruscamente Eve. Eles
não fazem ideia do filão que têm nas mãos. Ainda assim, ela via a imagem
horrenda de Lili atirada contra uma parede, como Edith Cavell, com uma
venda nos olhos, as mãos atadas e um X marcado no peito a servir de alvo
para as armas. Lili a cair no chão desamparada, certamente ainda com um
sorriso nos lábios.
Não, gritou Eve dentro de si, mas ela sabia como usar aquele horror, e
deixou que a imagem de Lili lhe provocasse uma nova onda de lágrimas. As
lágrimas e um desespero miserável ajudariam mais do que qualquer
manifestação de coragem. Ninguém receava uma rapariga indefesa e chorosa.
Pouco tempo depois, um polícia entrou na sala e, com ele, veio também
uma mulher carrancuda, vestida de sarja verde, que Eve reconheceu. Ela
ajudava muitas vezes nos postos de controlo alemães – uma cabra
implacável, que Lili apelidara de Sapo, devido ao uniforme verde e dedos
papudos, que revistava insaciavelmente os pertences das pessoas. Ela olhou
para Eve, de expressão dura, e ladrou uma palavra em francês:
– Despe-te.
– Aq-q-qui? – Eve ergueu-se, de olhos inchados e abraçada ao torso,
encolhendo-se de vergonha por todos aqueles homens curiosos. – Eu n-n-n-
n…
– Despe-te! – rosnou a Sapo, mas o polícia pareceu um pouco
embaraçado e ordenou aos soldados que saíssem. Eve viu-se sozinha com a
Sapo, que começou a puxar-lhe os botões.
– Se trazes contigo mensagens como aquela outra galdéria, eu vou
encontrá-las e tu vais direitinha para as mãos de um pelotão de fuzilamento –
advertiu ela. Arrancou a camisa de Eve, revelando a combinação coçada por
baixo, e Eve desapertou a saia de modo atabalhoado. Isto não pode estar a
acontecer. Nem duas horas antes, ela tinha vestido aquela mesma saia diante
da lareira quase apagada do quarto de René, que franzira o nariz ao ver a
combinação, dizendo: “Pareces uma criancinha desgraçada, minha querida.
Vou comprar-te uma combinação em condições, algo com renda de
Valenciennes…” Eve foi assolada por uma onda de tonturas e decidiu tirar
vantagem disso, atirando-se ao chão como se estivesse a desmaiar. Encolheu-
se e começou a gemer debilmente, enquanto a Sapo lhe despia o resto das
roupas e a revistava escrupulosamente de um modo humilhante. Verdun,
pensou Eve, fechando os olhos com força, à medida que os dedos brutos da
mulher a apalpavam debaixo dos seios, por entre os dedos e entre o cabelo.
Verdun, pensou ela, enquanto os seus ganchos iam sendo retirados do cabelo,
um por um. Graças a Deus, desta vez ela não trazia informações enroladas
num gancho.
Não durou muito tempo, talvez uns dez minutos. A Sapo revistou o corpo
de Eve e depois as roupas, procurando inchaços e tiras de papel – a bainha da
saia, os tacões dos sapatos. Por fim, uma bofetada súbita atingiu-lhe a face e
Eve abriu os olhos, ainda rasos de lágrimas.
– Veste-te – disse a Sapo, com ar desiludido.
Eve sentou-se, abraçando a sua própria nudez.
– P-p-posso pedir um copo de ág-g-g…
A Sapo fez troça da gaguez dela.
– Copo de quê, r-r-r-apariga?
– Água – gritou Eve, a fungar, com vontade de lhe dar um beijo de
agradecimento pelo escárnio dela. Eles que pensem que sou uma idiota. Que
não passo de uma rapariga estúpida que emprestou o salvo-conduto a uma
estranha.
– Queres água? – A Sapo apontou para um copo cheio de um líquido
espumoso, onde os soldados tinham claramente lavado as escovas de dentes.
– Serve-te. – E saiu com uma gargalhada, satisfeita com o seu próprio sentido
de humor.
Eve vestiu-se desajeitadamente. Por fora, Marguerite Le François tremia e
mostrava-se agitada e nervosa, mas, por dentro, a mente de Evelyn Gardiner
trabalhava a um ritmo desenfreado. Ela olhou para a sala ao lado, onde
naquele momento a Sapo entrava de rompante, e soube instantaneamente o
que Lili ia fazer.
A Sapo ladrou a Lili para que se despisse.
Vais resistir, pensou Eve.
Lili permaneceu imóvel, como um pilar, recusando-se a mexer. A Sapo
agarrou em Lili, que era bastante mais pequena do que ela, e arrancou-lhe a
saia.
Vais continuar a resistir, pensou Eve.
Lili ofereceu resistência, mas a Sapo era forte e bruta e arrancou as roupas
a Lili peça a peça. Nua, Lili parou de se defender, mas não se aninhou, como
Eve tinha feito; ficou de pé, estoica, enquanto a Sapo a apalpava. Cada uma
das suas costelas era visível e os ossos do esterno estavam salientes como
uma escada. Ela era tão pequena. A Sapo concentrou-se então num monte de
roupas por cima da sacola de Lili, afastando-a para o lado com tanta força
que ela se desequilibrou – sem que, em momento algum, o seu sorriso
insolente esmorecesse, mesmo quando a sacola estava a ser esquadrinhada.
Não encontres nada, rezou Eve, mas ouviu os clamores ao serem
encontrados os cartões de identificação de Lili, cinco ou seis diferentes,
preparados para serem exibidos na travessia dos postos. A Sapo abanou os
cartões na cara de Lili, enquanto guinchava de contentamento, mas Lili
limitou-se a olhar de forma imperturbável para ela.
Por fim, deixaram que Lili se voltasse a vestir e, quando ela abotoava os
últimos botões da gola da blusa, um homem entrou com um copo na mão.
Eve mudara de posição para a conseguir ver através da cortina formada
pelo seu cabelo solto, mesmo estando aninhada a chorar, e reconheceu o
recém-chegado: Herr Rotselaer, o chefe da polícia da vizinha Tournai. Eve
vira-o apenas ao longe, em Lille, mas tinha compilado um relatório sobre ele
com base em comentários feitos por outros oficiais. Era um homem baixo e
moreno, vestido primorosamente com um casaco de bom corte. Os seus olhos
eram penetrantes e devoraram Lili.
– Mademoiselle – disse ele em francês. – Tem sede?
Ele ofereceu-lhe o copo que tinha na mão. Mesmo através do vidro da
porta, Eve reparou que o líquido era amarelado; tinha certamente algo para
fazer Lili vomitar a mensagem que engolira.
– Obrigada, monsieur – disse educadamente Lili. – Não tenho sede, pelo
menos não de leite. O senhor tem brandy? Tem sido uma estopada de um dia.
– Exatamente o que ela dissera no dia em que conheceu Eve, em Le Havre.
Eve recordou as duas sentadas naquele café abafado, a chuva a cair a cântaros
lá fora, Lili com o seu chapéu extravagante. A recordação apunhalou-a como
uma faca. Bem-vinda à Rede Alice.
– Vá, não complique as coisas! – Herr Rotselaer tentou soar jocoso,
esticando-lhe o copo. – Engula ou então explique porquê!
A Sapo abanou Lili pelo cotovelo, mas ela simplesmente sorriu e abanou
a cabeça.
Herr Rotselaer tentou-lhe abrir a boca, forçando o copo entre os lábios
dela, enquanto a Sapo lhe puxava a cabeça para trás, mas Lili deu um murro
no copo e ele voou, salpicando o chão de leite amarelado. A Sapo esbofeteou
Lili, mas Herr Rotselaer levantou uma mão.
– Vamos levá-la para interrogatório – anunciou ele, e Eve sentiu um
baque no coração. – Esta e a outra.
– A outra? – resmungou Lili. – É uma tonta, uma empregadazinha de loja,
não uma espia. Escolhi-a porque era a única da fila que parecia
suficientemente burra para me emprestar o salvo-conduto!
Herr Rotselaer olhou pelo vidro da porta, observando a sala onde Eve
continuava aninhada, a chorar.
– Trá-la aqui. – A Sapo irrompeu pela porta entre as duas salas, agarrou
Eve pelo cotovelo e empurrou-a para dentro da sala onde Lili estava. Eve
ajoelhou-se diante do chefe de polícia, aumentando o volume dos soluços
para gritos lamuriantes. Constatou que lhe era fácil simular um ataque de
histeria. Sentia-se gelada por dentro, a observar a choradeira que acontecia
por fora. Pelos seus olhos inchados, ela conseguia ver os pés de Lili,
pequenos e descalços, a pouco mais de 15 centímetros de distância.
– Mademoiselle… – Herr Rotselaer tentou olhar nos olhos de Eve, mas
ela retraiu-se. – Mademoiselle Le François. Se esse é o seu verdadeiro
nome…
– Eu conheço-a, senhor – disse outra voz alemã. Era do jovem capitão que
acabara de entrar e que as tinha capturado na estação de comboios. Teria sido
por isso que ele se aproximara para ver os papéis, porque reconhecera Eve?
Minha culpa, minha culpa… – Ela mora na Rue Saint-Cloux; lembro-me dela
das vistorias. É uma rapariga respeitável.
– Mademoiselle Le François. – Herr Rotselaer brincava com os papéis de
Eve na mão, apontando o queixo na direção de Lili. – Conhece esta mulher?
– N-n… – A palavra formou-se nos lábios de Eve, que a sentiu como uma
traição. – N… – Sentiu-se a trair Lili com um beijo no rosto dela, as 30
moedas de prata a pesarem-lhe na língua, metálicas e azedas. – Não –
sussurrou Eve.
– Claro que ela não me conhece. – A voz de Lili soou brusca e entediada.
– Nunca a vi na vida. Acha que eu ia tentar passar um posto de controlo com
uma gaga idiota?
Herr Rotselaer olhou para Eve: o cabelo colado no rosto molhado, as
mãos a tremer tanto que parecia estar a ser trespassada por uma corrente
elétrica.
– Para onde ias, rapariga?
– P-p-p…
– Por amor de Deus, és capaz de falar direito? Para onde ias?
– P-p-p-p… – Não estava a fingir; Eve nunca sentira a língua tão presa. –
C-c-comunhão da m-m-m… da minha s-s-sobrinha. Tour… Tour…
– Tournai?
– Sim, H-H-H… sim, Herr R-R…
– Tens família lá?
Eve demorou alguns minutos a responder. Herr Rotselaer começou a ficar
impaciente. Lili permanecia impassível, mas Eve sentia na pele a tensão que
emanava dela. Estava à distância agonizante de um braço, mas os seus
pensamentos eram claros como água.
Continua a teu pranto, margaridazinha. Continua a chorar copiosamente.
Herr Rotselaer tentou fazer-lhe mais algumas perguntas, mas Eve desfez-
se em soluços histéricos e caiu no chão. As tábuas de madeira tinham um
cheiro forte a desinfetante. Ela gania como um cachorro pontapeado. O seu
pulso era lento e frio.
– Oh, por amor de Deus… – Herr Rotselaer fez um gesto de nojo na
direção do jovem capitão. – Dê à rapariga um novo salvo-conduto para
Tournai e liberte-a. – Voltou as atenções para Lili, com olhos a brilhar. –
Quanto a si, Mademoiselle l’Espionne, vai responder a algumas perguntas.
Temos connosco outras amigas suas…
Violette, pensou Eve, enquanto o capitão a ajudava a levantar-se.
– … e as coisas não vão correr bem, caso recuse falar.
Lili fitou o chefe de polícia.
– Está a mentir – disse ela, por fim. – Porque o senhor tem receio. Isso é
bom, Herr Rotselaer. E mais não digo.
Os olhos dela pousaram em Eve; havia uma saudação neles. De seguida,
fitou a parede e cerrou a boca.
Herr Rotselaer agarrou-a pelos braços e começou a abaná-la com tanta
força que a cabeça dela era atirada para a frente e para trás.
– É uma espia, uma espia imunda, e vai falar…
Mas Lili nada disse. Eve foi levada para fora da sala, e soluçava tanto que
mal conseguia falar. Mas desta vez os soluços eram bem reais.
O capitão repreendeu-a severamente, advertindo-a dos perigos de
emprestar documentação oficial, e depois, face às lágrimas infindáveis,
pareceu ceder um pouco, em parte por irritação, em parte por pena.
– Este sítio não é apropriado para raparigas – disse ele, estalando os dedos
para os funcionários encarregados de emitir salvos-condutos. – Comportou-se
de maneira muito tola, mademoiselle, mas lamento muito esta situação
bastante desagradável.
Eve não conseguia parar de chorar. Lili, pensava ela com desespero. Oh,
Lili! Queria cortar o braço, dar meia-volta e correr para trás, para aquela sala
onde Rotselaer continuava a gritar. Queria arrancar-lhe a garganta com os
dentes. Mas ficou onde estava, a chorar com as mãos no rosto, enquanto o
capitão ralhava, agitado.
– Volte para casa – disse ele novamente, pressionando o novo salvo-
conduto contra a palma da mão dela, claramente desejoso por se ver livre dela
o mais rapidamente possível. – Vá para Tournai, volte para os seus pais. Vá
para casa.
E foi assim que Eve, apertando na mão o seu novo salvo-conduto e
sentindo-se Judas, voltou as costas à sua amiga e se livrou do cativeiro
alemão.

A casa em Tournai onde o encontro estava marcado era pequena e


sombria, semelhante às casas que a ladeavam, tanto de um lado como do
outro. Eve subiu penosamente as escadas e bateu à porta da forma
combinada. A sua mão mal tinha parado de bater quando a porta se abriu
violentamente. O Capitão Cameron fitou-a momentaneamente com expressão
de choque e depois puxou-a para o interior da casa e para os seus braços.
– Graças a Deus que teve o bom senso de vir – murmurou, por entre
dentes. – Mesmo depois de a Violette ser presa, pensei que ia ser demasiado
teimosa para partir.
Eve inalou os odores do tweed, do fumo do cachimbo, do chá – ele
cheirava a inglês. Ela estava habituada ao abraço de um homem que cheirava
a água-de-colónia de Paris, cigarros Gauloises e absinto.
Cameron afastou-se, lembrando-se subitamente da sua posição. Estava
sem gravata, de colarinho desapertado, e enormes círculos de exaustão
sobressaíam à volta dos seus olhos.
– Teve uma boa viagem, sem problemas para passar?
Eve sentiu um nó na garganta.
– Cameron, a Lili…
– Onde está ela? A tentar obter notícias da Violette e, por isso, atrasou-se?
Ela arrisca demasiado…
Eve quase gritou.
– A Lili foi detida. – Sentiu uma dor violenta na barriga. – Ela não vem.
Está nas mãos dos alemães.
– Oh, meu Deus. – Cameron disse-o em voz muito baixa, como uma
oração. O seu rosto envelheceu anos num só instante. Eve começou a dar
explicações, mas ele pediu-lhe silêncio. – Aqui não. Isto tem de ser oficial.
Claro. Tudo tinha de ser oficial, até a desgraça absoluta. Entorpecida, Eve
seguiu Cameron até uma sala exígua, onde as mesas tinham sido encostadas à
parede, de forma a arranjar espaço para os armários de arquivo, a abarrotar de
papéis. Dois homens estavam sentados a analisar ficheiros: um funcionário
magricela em mangas de camisa e um militar do tipo agressivo com um
bigode encerado, que olhou Eve de alto a baixo assim que ela entrou. Era o
Major George Allenton, vulgo Bigodes. Fora ele quem contara
deliberadamente a Eve que Cameron tinha estado na prisão.
– Esta não pode ser a famosa Louise de B – disse ele, com grande
galantaria, claramente sem reconhecer Eve, do treino realizado em
Folkestone. – É demasiado jovem e bonita…
– Agora não, Major – interrompeu asperamente Cameron, puxando uma
cadeira para Eve e ordenando ao funcionário que saísse. – A Rede Alice está
comprometida. – Quando a porta se fechou, Cameron virou-se para trás e,
lentamente, como um velho, foi sentar-se à mesa em frente a Eve. – Conte-
me.
Eve contou-lhe tudo em frases curtas. Quando terminou, o rosto de
Cameron tinha empalecido. Os seus olhos, no entanto, estavam cheios de
raiva, e ele lançou um olhar a Allenton.
– Eu disse que manter as mulheres em posição era demasiado arriscado –
sussurrou.
Allenton encolheu os ombros.
– Em tempo de guerra, temos de correr riscos.
Eve quase se debruçou sobre a mesa para o esbofetear, mas refreou-se, ao
ver que Cameron lhe respondia com palavras desagradáveis. Allenton roía a
unha do polegar, indiferente, enquanto Cameron esfregava as mãos no rosto
cansado.
– Lili – disse ele, abanando a cabeça. – Não sei porque estou tão chocado.
Ela corria sempre tantos riscos. Mas safava-se sempre… Talvez eu pensasse
que iria continuar a safar-se para sempre.
– Desta vez, não se safou. – Eve sentia-se tão exausta que não sabia como
alguma vez se conseguiria erguer daquela cadeira. – Agora está nas mãos
deles, ela e a Violette. Espero que os boches as ponham na mesma cela.
Juntas, elas conseguem vencer tudo.
O Major Allenton abanou a cabeça.
– Os boches, libertarem-te assim…!
– Eles pensaram que eu era uma simplória. – Todo aquele choro
histriónico. Tudo o que Eve sentia era apenas um longo grito de sofrimento
por dentro, mas naquele momento não conseguiria verter nem mais uma
lágrima. Queria encolher-se como um animal moribundo, mas tinha um
trabalho a fazer, por isso recitou o relatório completo sobre Verdun,
observando a expressão de Cameron passar de exausta a alerta. Ele começou
a tomar notas rapidamente, e era evidente que tentava afastar a dor que sentia.
O Major Allenton interrompia Eve com perguntas, o que a irritava. Cameron
deixava-a sempre relatar todas as informações de uma só vez e depois
passava a história a pente fino, para saber mais detalhes. Allenton, no
entanto, interrompia-a a cada duas frases.
– Verdun, diz?
– Verdun. – Eve imaginou-se a arrancar-lhe o bigode encerado. –
Confirmado.
Allenton lançou a Cameron um olhar presunçoso.
– Foi por isto que eu decidi deixá-la em funções.
– Claro. – Cameron suspirou. – Mas creio que o Major concorda que
neste momento a Miss Gardiner deve voltar a Folkestone. Não há outra opção
senão dissolver a Rede Alice.
– Porquê? – Allenton olhou para Eve. – Creio que a devemos enviar
novamente para Lille.
O coração de Eve parou, mas ela anuiu com a cabeça, cansada,
concordando com o Major. Cameron estava estupefacto, de sobrancelhas
erguidas para a linha do seu cabelo alourado.
– Não pode estar a falar a sério.
Nenhum deles se dirigira a Eve, ainda assim ela respondeu.
– Vou para onde me mandarem. Tenho um trabalho a fazer.
– O seu trabalho está concluído. – Cameron voltou-se para ela. – Fez um
trabalho de primeira classe, mas Lille é uma área demasiado perigosa para
continuar a ter informantes. Sem a Lili, a rede inteira vai desintegrar-se.
– Outra pessoa pode liderá-la. – Allenton encolheu os ombros. – Esta
jovem parece-me ter o entusiasmo necessário.
O tom de Cameron era frio.
– Permita-me registar o meu desacordo da forma mais veemente possível,
Major.
– Oh, não vai ser por muito tempo. Mais algumas semanas.
– Pelo tempo que precisarem de mim. – Eve afastou o medo. Ela não
desistiria, não quando estavam vidas em jogo, independentemente de quanto
o desejava. – Posso apanhar o comboio de regresso esta noite.
Cameron ergueu-se. O maxilar estava tenso de fúria e a forma como
agarrou em Eve para a levantar da cadeira não foi gentil.
– Major, eu gostaria de dar uma palavrinha a Miss Gardiner em privado.
Se não se importa, vamos discutir isto lá em cima.
Eve deixou que ele a conduzisse para fora da sala, enquanto Allenton
soltava um riso abafado. Subiram um lanço de escadas e chegaram a um
quarto improvisado, com nada mais do que uma cama de ferro estreita e
alguns cobertores. Cameron entrou no quarto com ela e bateu com a porta
atrás dele.
– A entrar no q-quarto de uma senhora sem ser convidado? – disse Eve. –
Deve estar mesmo zangado.
– Zangado? – Ele estava quase a sussurrar, com a voz a vibrar, tensa. –
Sim, estou zangado. Porque não quer pedir escusa de uma ordem que é
claramente pura idiotice? Posso apenas concluir que quer ser morta!
– Sou uma espia. – Eve pousou o saco no chão. – Algumas pessoas
podem até argumentar que a minha tarefa é s-ser morta. Mas a minha tarefa é
seguramente cumprir ordens.
– Estou a dizer-lhe que aquela ordem é absurda. Acha que não há idiotas
no meio da espionagem, que os seus superiores são todos homens brilhantes
que compreendem o jogo? – Uma mão furiosa brandiu na direção do Major
Allenton. – Este meio está repleto de idiotas. Eles brincam, e mal, com as
vidas das pessoas, e quando alguém como a Miss Gardiner morre, encolhem
os ombros e dizem: “Em tempo de guerra, temos de correr riscos”. Está
mesmo disposta a enfrentar um pelotão de fuzilamento por um idiota destes?
– Eu quero recusar a ordem, acredite em mim. – Eve tocou na manga
dele, interrompendo-lhe o acesso de fúria. – Mas não posso alegar que estou
d-debilitada quando não estou. Se me transferirem de Lille porque tive um
esgotamento nervoso ou por exaustão, nunca mais arranjarei trabalho nesta
guerra. – Ela fez uma pausa. Cameron enterrou os dedos no cabelo, mas não a
contrariou. – É só por mais algumas semanas – prosseguiu Eve. – Posso
sobreviver mais umas semanas e depois…
– Sabe o que ele disse quando a Edith Cavell foi executada? –Cameron
baixou a voz e fez outro gesto zangado na direção de Allenton. – Que foi a
melhor coisa que podia ter acontecido, porque enraiveceu toda a gente no
Reino Unido no momento certo. Não gosto de falar mal de um colega, mas
tem de me compreender: ele não se vai importar que a Eve seja apanhada,
como a Violette e a Lili foram, porque jovens mortas significam mais vendas
de jornais e mais apoio aos soldados nas trincheiras. Eu, contudo, não tenho o
hábito de colocar as pessoas em risco de vida inutilmente.
– Não estou a fazer isto inutilmente…
– A Eve quer vingar-se pela Violette e pela Lili, porque gosta delas. Quer
vingar-se e, se não o conseguir, quer morrer a tentar. Acredite em mim, sei
muito bem o que é sentir isso.
– Se eu fosse um homem, estaria a qualificar-me de patriota por querer
continuar a cumprir o meu dever para com a minha pátria. – Eve cruzou os
braços. – Uma mulher quer a mesma coisa e é apelidada de suicida.
– Um elemento valioso que está emocionalmente abalado não é um
elemento valioso para a sua pátria. E as suas emoções estão mais à flor da
pele do que aquilo que mostra. Qualquer pessoa sentiria o mesmo numa
situação como esta. A sua expressão é calma, mas eu conheço-a.
– Então sabe que, perante o dever, sou capaz de pôr as emoções de lado,
como qualquer soldado com ordens para cumprir. Como qualquer homem
que prestou juramento.
– Eve, não. Eu proíbo-a.
Chamou-a de Eve… ali estava um deslize. Ela sorriu friamente por dentro.
Ele não devia deixar escapar os sentimentos daquela maneira.
– A Eve vai convencer o Allenton de que não está condições de regressar
a Lille – ordenou Cameron, endireitando os punhos da camisa. – E depois
vou enviá-la para Folkestone. Não gosto de passar por cima das ordens de um
superior hierárquico, mas não vejo outra solução. Este assunto está encerrado.
Ele preparava-se para se voltar e dirigir-se à porta, com a intenção de ir
dizer a Allenton que ela alegava esgotamento nervoso e que não podia voltar.
Eve agarrou-lhe a mão, detendo-o.
– Fique comigo – sussurrou ela.
Ele recuou, com a raiva a dar a vez a algo secreto, cauteloso.
– Miss Gardiner…
Ela aproximou-se e agarrou-lhe nas pontas do colarinho desapertado,
premindo os lábios na base côncava do pescoço. Ele cheirava a sabonete
Lifebuoy.
– Eve – corrigiu ela.
– Eu não devia estar aqui, Miss Gardiner. – Ele pôs as mãos por cima das
dela. Eve ficou em bicos de pés, sussurrando de forma sedutora ao ouvido
dele.
– Não me deixe sozinha.
Era um golpe baixo, ela tinha consciência disso. Cameron estacou, as
mãos quentes sobre as dela. Ela continuou, e sabia exatamente o que dizer.
– Esta manhã, eu vi a Lili ser arrastada pelos alemães. Eu… Por favor,
não me deixe sozinha agora. N-não aguento mais.
Ah, mas que golpe tão baixo. E só podia resultar, pois Cameron era um
cavalheiro, um homem que não suportaria ver uma mulher aflita. Jamais
resultaria com um homem como René.
A voz de Cameron tornou-se mais grave.
– Eu também tenho perdido amigos, Eve. Sei o que está a sentir…
– Quero sentir-me quente – disse ela, num murmúrio, as mãos a deslizar
pelo cabelo dele. Há quanto tempo ela o desejava? – Quero deitar-me e ficar
quente e esquecer.
– Eve… – Ele tentou afastar-se novamente. Tinha a mão no pescoço dela
e a aliança de ouro no seu quarto dedo aquecera com o calor de Eve. – Não
posso…
– Por favor. – Sentiu uma punhalada de dor, como se alguém o tivesse
realmente feito. Nem que fosse por alguns minutos, ela queria esquecer.
Inclinou-se e beijou-o. A cama estava mesmo atrás dos seus joelhos.
– Não quero abusar de si – disse ele, sussurrando nos lábios dela.
– Faça-me esquecer – murmurou Eve. – Faça-me esquecer, Cameron… –
E ele cedeu. Cedeu como uma parede a desmoronar-se, com um gemido
abafado, e arrastou Eve com ele. Beberam-se um ao outro de um trago, de
bocas abertas, desvairados. Eve puxou-o para a cama, antes que ele se desse
conta do que estava a acontecer, e despiu-lhe a camisa dos ombros. Aquilo
era errado e traiçoeiro, ela sabia. Não começara aquilo por paixão, mas
porque o queria impedir de dificultar o seu regresso a Lille. No entanto, isso
não significava que a paixão não estivesse envolvida, juntamente com o
calculismo, pois a verdade tornava real a melhor das mentiras. E a verdade
estava no facto de Eve desejar Cameron havia muito tempo: desde que ele
olhara para uma secretária e vira uma espia.
– Deus meu, Eve – disse ele, com sofrimento no olhar, enquanto lhe
despia a blusa e a combinação; viu os hematomas nos braços nus dela, onde
os guardas alemães a tinham agarrado. – Aqueles brutos imundos… – Beijou-
lhe cada uma das nódoas negras, as mãos a abarcar as costelas magras dela. –
Está tão magra – murmurou entre beijos. – É tão corajosa, pobre de si…
Eve abraçou-o, erguendo o tronco, enrolando as pernas nas dele,
puxando-o para si. Talvez até o conseguisse enganar, fazendo-o pensar que
ele era o seu primeiro homem – talvez o devesse fazer: fingir que era tímida,
portar-se de uma maneira estranha. Seria a atitude sensata a tomar, mas ela
não suportava ter de fingir, não ali. Ela, que não fingia quando René se
deitava sobre ela com o seu corpo frio e marmóreo, também não fingiria
naquele momento, quando o homem nos seus braços era esguio e coberto de
sardas, com uma voz enevoada como a Escócia e que fechava os olhos
quando a beijava. Ela envolveu-o com o seu corpo, cerrando os olhos e
deixando-se levar; quando tudo acabou, deu por si a choramingar
silenciosamente nos braços dele.
– Eu sei – sussurrou ele, os dedos a pentearem-lhe os cabelos soltos. –
Acredite em mim, Eve… eu sei. Também já vi pessoas de quem gostava
muito serem capturadas.
Ela ergueu o olhar na direção dele e deixou que as lágrimas lhe caíssem.
– Quem?
– Um rapaz chamado Léon Trulin, um dos meus agentes. Nem 19 anos
tem. Foi preso há algumas semanas. E já houve outros. – Cameron passou
lentamente a mão pelo seu cabelo salpicado de brancas. – Não me habituo a
isso. Esta é uma profissão terrível.
Era realmente uma profissão terrível e Eve ia justamente voltar para ela,
mas, com alguma sorte, conseguiria distraí-lo por mais algumas horas. Ela
rodou nos braços dele; estavam tão próximos que as suas pestanas húmidas
tocaram levemente na face dele.
– Há chá? – perguntou ela com seriedade. – Há meses que só tomo água
fervida com folhas de nogueira.
Ele sorriu, e o seu rosto tornou-se subitamente mais jovem. Eve sabia que
ele não tardaria a sentir-se atormentado pela culpa e pela consciência,
flagelando-se por ter abusado da inocência da sua subordinada e da ausência
da mulher, mas naquele instante ele estava contente.
– Sim – respondeu ele, com outro sorriso. – Chá e açúcar de verdade.
Ela resmungou e quase o empurrou para fora da cama.
– Então, prepare-me um!
Ele vestiu as calças e saiu, os pés descalços a ressoar no soalho. Tão
diferente do que costumava acontecer com René: os cigarros, o robe de seda,
a conversa de travesseiro que Eve analisava e gravava… Ela não queria
pensar em René, por isso pegou na caneca de chá que Cameron lhe ofereceu
ao regressar e bebericou-o, soltando um suspiro:
– Era capaz de m-m-morrer aqui e agora.
Uma parte dela desejava-o. Morrer ali, sentada na cama, encostada ao
peito de Cameron, e nunca mais ter de se preocupar com Lille ou o trabalho
que a aguardava, escondido e implacável como um crocodilo num pântano.
Eve afastou o pensamento, mas Cameron tinha-se apercebido.
– Em que pensa? – Prendeu uma madeixa do cabelo de Eve atrás da
orelha dela.
– Em nada. – Eve bebeu mais um gole de chá.
Cameron hesitou, a mão deteve-se no pescoço dela.
– Eve… Quem é ele?
Ela não fingiu não perceber. Era uma jovem muito inocente quando ele a
enviara para Lille, mas já não era a mesma pessoa que se tinha enrolado tão
apaixonadamente com ele entre aqueles lençóis.
– Não é ninguém – disse ela, num tom neutro. – É só alguém que se
descai com informações úteis na cama.
Cameron disse, de forma quase inaudível:
– Bordelon?
Um aceno. Ela não se atrevia a olhar para ele, mas o coração subiu-lhe à
garganta. Ele devia ter lido os relatórios sobre René, quem ele era e o que era.
Se Cameron sentisse repugnância por ela…
Bem, não importava. Ainda assim, ela tinha um trabalho para fazer.
– Não tem de voltar a ir ter com ele. – Cameron pousou a caneca de chá e
abraçou-a com força. – Vou levá-la comigo para Folkestone amanhã de
manhã. Não precisa de o ver nunca mais.
Era óbvio que, uma vez que ela parara de discutir com ele, Cameron
assumira que Eve concordaria em pedir recusa da ordem de regresso a Lille.
Por instantes, Eve entregou-se a essa tentação. Regressar a casa, voltar à
segurança, a Inglaterra. Voltar ao chá.
Depois, soltou um suspiro e libertou o pensamento, pondo de lado a sua
caneca e virando-se para pousar o rosto no ombro de Cameron. Ele
resmungou algo sobre levantar-se, mas ela puxou-o para baixo, para dentro
dos lençóis. Fizeram amor uma vez mais, devagar e com ternura. Eve abafou
os seus gemidos no ombro dele e, em seguida, Cameron, exausto, caiu num
sono profundo. Ela esperou até a que respiração dele entrasse numa cadência
ritmada, saiu da cama sem fazer barulho e vestiu-se. Olhou para ele durante
um instante e, sentindo um espasmo de dor, perguntou-se se alguma vez ele
lhe perdoaria por isto. Talvez não deva, pensou. Ele não se pode dar ao luxo
de me amar. Embora, sem dúvida, ela o amasse. Afastou uma madeixa de
cabelo alourado da testa dele, que, mesmo durante o sono, permanecia
enrugada, como se algo nos seus sonhos o preocupasse, e de seguida desceu
as escadas.
O Major Allenton fez um sorriso afetado quando ela entrou na sala de
arquivo improvisado. Era evidente que ele desconfiava do que tinha
acontecido no andar de cima. Eve não se importava. Galdéria ou não, ele já
tinha decidido enviá-la de volta.
– Vou precisar de um salvo-conduto – disse ela, sem rodeios. – Estou
pronta para apanhar o comboio de regresso a Lille.
Aquilo surpreendeu-o.
– Pensei que o Cameron ia tentar convencê-la a não acatar essa ordem.
Ele tem uma maneira de ser traiçoeira. Isso acontece frequentemente, sabe,
quando os militares passam muito tempo numa atividade suja como a
espionagem. Tornam-se dissimulados.
Ele tinha uma expressão de verdadeira antipatia no rosto. Depois de ser
ver compelida a analisar as expressões faciais minimais de René, observar os
pensamentos do Major estampados na cara dele era como observar um cão a
arrastar o dono por uma trela. Eve deu à trela o pequeno puxão que ele
precisava, pestanejando os olhos com obediência inocente.
– O senhor é o superior hierárquico do Capitão Cameron. Claro que
obedeço às suas ordens. Se quer que eu regresse, eu r-r-regresso.
– Tem mesmo muito entusiasmo, não tem? – Satisfeito, o Major pegou
numa caneta. O funcionário magricelas tinha voltado para casa; era quase
noite. Os candeeiros reles mostravam todas as manchas desbotadas do papel
de parede. – Estou a ver porque o Cameron… gosta de si. – O olhar dele
percorria-a de cima a baixo. – Ele tem estado frenético, preocupado com as
raparigas da rede, mas na verdade ele está obcecado consigo. – Ao ouvir
aquilo, Eve sentiu uma ponta de prazer misturada com culpa: ela estava
prestes a preocupá-lo novamente.
– O meu s-salvo-conduto, meu Major? – disse ela para o apressar,
consciente de que não tinha tempo a perder. Cameron podia ter um sono leve:
se ele acordasse e descesse as escadas, haveria mais uma ronda de discussão.
Seria muito melhor que ela já não estivesse ali quando ele despertasse.
O Major começou a preparar um salvo-conduto.
– Aposto que o Cameron nunca lhe disse qual é o nome de código dele. –
Eve reprimiu a vontade de revirar os olhos perante o ar de intimidade e
confiança dele. Felizmente, Allenton não trabalhava em campo, porque
arrancar informações dele seria tão fácil como tirar um rebuçado a uma
criança. És mesmo um idiota, Eve queria dizer, mas em vez disso deu-lhe a
resposta que ele queria.
– Não, qual é o nome de código do Cameron?
Allenton sorriu presunçosamente, entregando-lhe o salvo-conduto.
– Evelyn.
Capítulo 27
Charlie
Maio de 1947

A noite caía, a segunda desde que eu descobrira que Rose estava morta.
Ainda receava o que poderia aparecer nos meus sonhos, mas não me queria
embebedar outra vez para esquecer. A minha cabeça parara de doer não havia
muito tempo.
Eu já devia estar lá em baixo para jantar com Eve e Finn, mas continuava
a rebuscar as minhas roupas à procura de alguma coisa limpa. Não tinha
lavado nada desde Oradour-sur-Glane e tudo o que me restava era um vestido
preto que eu tinha regateado e comprado àquela mulher parisiense. Tinha
corte a direito, simples, severo e geométrico, de gola alta, mas com decote
fundo atrás, e colava-se ao meu corpo desprovido de curvas, em vez de as
tentar disfarçar. “Très chic”, ouvia eu Rose dizer, a rir-se, e fechei os olhos
com força, porque ela dissera o mesmo quando eu tinha 7 anos e ambas nos
tínhamos metido no armário da minha mãe a experimentar os vestidos de
noite dela. Rose, de lantejoulas Schiaparelli, a puxar para baixo a sua blusa à
marinheiro nos ombros e a arrastar metros e metros de tafetá preto, a rir e a
dizer “très chic”, enquanto eu cambaleava em cima de uns sapatos de salto
em cetim, demasiado grandes para os meus pés.
Pestanejei, afastando a recordação, e olhei para o espelho pouco firme do
meu quarto de hotel. Rose teria gostado do vestido preto, pensei, e desci para
jantar.
Eve, Finn e eu tomávamos as nossas refeições no café ao lado: pequeno,
confortável, muito francês, com toldos vermelhos e toalhas de mesa às riscas.
Alguém tinha acabado de ligar o rádio, que tocava Edith Piaf. Claro que era
Edith Piaf. Les trois cloches, Os Três Sinos, e perguntei-me se os sinos da
igreja teriam tocado em Oradour-sur-Glane, quando as mulheres se reuniram
no interior do edifício.
Vi a mão deformada de Eve a acenar da mesa mais afastada e caminhei na
direção deles, desviando-me dos empregados e das suas bandejas.
– Olá, ianque – saudou ela. – O Finn contou-me que vocês conheceram o
Major Allenton. Ele não é uma preciosidade?
– Bigode estúpido.
– Estive quase a arrancá-lo com as minhas próprias mãos, certa vez. – Eve
abanou a cabeça, revirando um pedaço de baguete com os dedos. – Quem me
dera tê-lo feito.
Finn estava sentado em frente a Eve, com o cotovelo em cima do encosto
da cadeira. Não disse nada, mas vi que ele observava o meu vestido preto.
Recordei como tínhamos acordado nessa manhã, enroscados um no outro, a
tresandar a whisky, e tentei cruzar o olhar com ele, mas ele evitou-me.
– O Finn contou-me de Oradour-sur-Glane. – Eve olhou-me nos olhos. –
E da tua prima.
Edith Piaf chilreava Les Trois Cloches atrás de mim. Esperei que Eve
dissesse “eu bem te disse”, que dissesse que bem sabia desde o início que eu
estava enganada.
– Lamento – ofereceu ela. – Se serve de consolo, quando se p-perde um
amigo. Não serve de nada, ainda assim, lamento.
Descerrei os dentes.
– A Rose está morta. Eu… eu não… – Parei. Recomecei. – O que
fazemos agora?
– Bem – começou Eve –, eu continuo à procura do René Bordelon.
– Desejo-lhe sorte. – Tirei um pedaço de baguete. Finn rodava o copo de
água entre os dedos compridos, silencioso.
As sobrancelhas de Eve ergueram-se.
– Pensei que também o quisesses encontrar.
– Só porque achei que ele me podia levar até à Rose.
Eve soltou um suspiro. A sua bebida, junto ao cotovelo, só estava a meio
e os olhos tinham um brilho contemplativo.
– Talvez a caça ao homem ainda te possa interessar. O Allenton, apesar
de ser um idiota, contou-me algumas coisas fascinantes.
– E porque é que a Eve quer encontrar o René? – reagi, irritada. – Disse-
nos que ele era um especulador e que o espiava. – Que dormira com ele para
obter informações, que ele a engravidara e que ela tratara do assunto. Mas eu
não podia falar disto num café onde os empregados apareciam de todos os
lados. – Que mais há de tão mau para que um velho de 72 anos tenha de ser
caçado como uma perdiz?
Os olhos dela brilharam.
– E tem de haver mais alguma coisa?
– Sim. Está relacionado com as suas medalhas? Aquelas Croix de Guerre
e a Ordem do Império Britânico? – Olhei fixamente para ela. – Está na hora
de nos contar tudo, Eve. Pare de insinuar e comece a contar tudo tintim por
tintim.
Finn levantou-se repentinamente e dirigiu-se ao bar.
– Ele está cá com um mau humor – comentou Eve, observando o
motorista a abrir caminho entre os clientes do café. – Oradour-sur-Glane deve
ter mexido com alguma coisa. – De seguida, voltou-se para mim, lançando-
me um olhar apreciativo. – És corajosa, ianque?
– O quê?
– Preciso de saber. A tua p-prima está morta. E agora? Vais voltar para
casa e tricotar botinhas de bebé? Ou queres fazer algo mais estimulante?
Aquelas palavras acertaram de forma precisa na pergunta que eu andava a
matutar. E agora, Charlie St. Clair?
– E como vou saber se quero ou não, se a Eve não me diz o que é?
– Tem que ver com uma amiga – revelou ela. – Uma mulher loura com
uma gargalhada cheia de sol e coragem suficiente para atear o mundo.
Rose?, pensei.
– Lili. – A Eve sorriu. – Louise de Bettignies, Alice Dubois, quem sabe
quantos mais nomes ela tinha. Para mim, foi sempre Lili. A melhor amiga
que alguém pode ter.
Lili. Com que então, Eve tinha uma Lili, tal como eu tinha a Rose.
– Tantas flores.
– No que toca a mulheres, há dois tipos de flores – disse Eve. – O tipo que
se sente segura numa jarra bonita ou o tipo que sobrevive em quaisquer
condições… até mesmo no meio do mal. Lili era do segundo tipo. Qual das
duas és tu?
Eu gostava de pensar que também era do segundo tipo. Mas o mal (que
melodramática soava a palavra) nunca me tinha testado, como o fizera com
Eve ou Rose ou a esta desconhecida Lili. Nunca me cruzara com o mal,
apenas com tristeza e fracasso e escolhas erradas. Balbuciei umas palavras
dentro desta linha de pensamento e apressei-me a fazer uma pergunta.
– A Eve nunca mencionou qualquer amiga do tempo da guerra. Nem por
uma única vez. Por isso, se a Lili foi a melhor amiga que a Eve alguma vez
teve, que mais foi ela? Porque era ela tão importante?
Eve começou a falar e eu fiquei imóvel a ouvir. Contou-me do primeiro
encontro com Lili em Le Havre. Do “Bem-vinda à Rede Alice”, dito com
ironia na sua voz calorosa. Do aperto de mãos repleto de esperança, enquanto
observavam o ataque falhado ao Kaiser. Das lágrimas derramadas, do
conselho amistoso, da sua detenção. As palavras de Eve desenhavam tão
vivamente Lili que eu quase conseguia ver a amiga dela diante de mim. Para
mim, ela era parecida com Rose, se Rose tivesse vivido até aos 35 anos.
– A sua amiga era muito especial – disse Finn quando a voz de Eve
esmoreceu. Ele juntara-se a nós um pouco antes de Eve ter começado a contar
a história de Lili, e estava sentado com a cerveja à sua frente, na qual mal
tocara. Pela expressão surpreendida dele, percebi que estas histórias eram tão
novas para ele como para mim. – Ela era um soldado e peras.
Eve terminou a bebida num longo trago.
– Oh, se era. Mais tarde, as pessoas começaram a chamá-la rainha das
espias. Houve outras redes de espionagem durante a primeira guerra, e mais
tarde conheci as histórias das mulheres que nelas trabalharam, mas nenhuma
foi tão rápida e precisa como a de Lili. Ela geria cerca de 100 informadores,
que cobriam dezenas de quilómetros de frente, só uma mulher… Todas as
altas patentes lamentaram a sua detenção. Sabiam que, com ela nas mãos dos
alemães, não voltariam a obter informações com a mesma qualidade. –
Mostrou um sorriso triste. – E, na verdade, não voltaram a ter.
Rose e eu, Finn e a menina cigana, Eve e Lili. Seríamos nós três
fantasmas à caça do passado, de mulheres perdidas no redemoinho da guerra?
Eu perdera Rose em Oradour-sur-Glane e Finn perdera a menina cigana em
Belsen, mas talvez Lili ainda estivesse viva e bem de saúde. Poderia Eve ser
curada do que a fazia sofrer, da culpa e da dor, se a pudesse ver novamente?
Abri a boca para perguntar sobre o destino de Lili, mas Eve já estava
novamente a falar, de olhos fixos em mim.
– Passei mais de 30 a-a-anos a tentar recuperar do que se passou em Lille.
É por isso que não deves demorar muito tempo a fazer o luto pela tua prima,
ianque. Porque não fazes ideia de como as semanas facilmente se
transformam em anos. Faz o teu luto: dá cabo de um quarto, bebe uma
cerveja, come um marinheiro, faz o que tiveres de fazer, mas arruma o
assunto. Gostes ou não, ela está morta e tu estás viva. – Eve levantou-se. – E
diz-me se decidires que és realmente uma fleur du mal, e eu dir-te-ei porque
deves vir comigo à procura do René Bordelon.
– Tens de ser sempre assim tão irritantemente enigmática? – murmurei,
mas Eve já se afastava no seu passo largo, deixando para trás o copo vazio.
Fiquei a observá-la, sentindo frustração e dor, como dois rios a colidirem
dentro de mim. E agora, Charlie St. Clair?
– Louise de Bettignies – repetiu Finn, de sobrolho carregado. – Rainha
das espias… Agora que penso nisso, acho que já ouvi falar dela.
Provavelmente, seria o título de um artigo sobre heroínas de guerra…
Ele calou-se, rodando a cerveja entre as mãos. Vi-o retrair-se e tornar-se
tenso, como tinha estado antes de as histórias de Eve o terem distraído, com a
habitual descontração dos seus braços compridos a transformarem-se em total
rigidez.
– O que se passa, Finn?
– Nada. – Ele não olhou para mim, limitou-se a observar fixamente o
espaço deixado pelas mesas, que tinham sido empurradas para o lado para
que as pessoas pudessem dançar, onde casais se moviam ao som da música. –
Este é o meu estado normal.
– Não, não é.
– Quando regressei do 63.° regimento, era assim que eu era, sempre.
O meu irmão costumava ficar tenso e de mau humor sempre que as
pessoas lhe perguntavam como era ter estado em Tarawa. Assumia a mesma
expressão fechada e, se as pessoas insistissem, explodia, gritava obscenidades
e saía disparado. Sentia-me sempre demasiado assustada para o seguir, temia
que ele também se zangasse violentamente comigo, mas naquele momento
desejava tê-lo seguido e pegado na mão dele, nem que fosse apenas por uma
vez. Queria só… segurar-lhe na mão, para ele saber que eu estava ali, que o
amava, que compreendia o sofrimento dele. Mas eu não tinha percebido nada
até ser demasiado tarde, até ele ter morrido.
Olhei para o rosto fechado de Finn e tive vontade de lhe dizer: Não é
demasiado tarde para ti. Mas eu sabia que ele não ouviria qualquer palavra
naquele estado, do mesmo modo que o James não as tinha ouvido, por isso
limitei-me a tocar-lhe na mão.
Ele sacudiu-a.
– Eu vou recuperar.
Será que alguma vez alguém recupera? Observei a cadeira onde Eve se
sentara. Três pessoas a perseguir recordações dolorosas por entre os destroços
de duas guerras; nenhum de nós parecia ter recuperado grande coisa. Pensei
no que Eve tinha dito. Talvez não precisássemos exatamente de recuperar,
mas de tentar. De outro modo, as semanas transformavam-se em meses e,
quando olhássemos para cima, como Eve, veríamos que se haviam
desperdiçado 30 anos.
A voz de Edith Piaff continuava a flutuar, vinda do rádio. Levantei-me.
– Queres dançar, Finn?
– Não.
Eu também não. Sentia os meus pés pesados como chumbo. Mas a Rose
adorava dançar. O meu irmão também – lembrei-me de quando dançara o
boogie-woogie com ele, sem jeito nenhum, na noite anterior a ele ter partido
para se juntar aos fuzileiros. Os dois já estariam na pista de dança a esta hora.
Por eles, eu podia arrastar os meus pés pesados.
Dirigi-me à multidão que dançava e um francês sorridente puxou-me.
Mexi-me em sincronia com o braço dele na minha cintura e depois aceitei o
braço do amigo dele na música seguinte. Não escutei nenhum dos seus
galanteios sussurrados em francês; limitei-me a fechar os olhos, a mexer os
pés e a tentar… Bem, não esquecer a nuvem de dor que pairava sobre mim,
mas pelo menos a tentar dançar debaixo dela. Os meus pés podiam estar
pesados, mas talvez um dia eu fosse capaz de sair de debaixo da nuvem a
dançar.
Por isso, continuei a mover-me ao som da música, uma após a outra,
enquanto Finn embalava a sua cerveja e me observava, e se calhar tudo teria
ficado bem, se não fosse a mulher cigana.
Eu tinha parado de dançar para apertar a minha sandália. Finn levantou-
se, para deitar fora a cerveja morta, e ambos vimos uma velha com um
carrinho de mão, vestida com xailes coloridos desbotados. Talvez não fosse
sequer cigana – tinha o rosto muito moreno e as saias garridas das ciganas,
mas como podia eu ter a certeza de que esse era o verdadeiro aspeto de uma
cigana? Ela resmoneou qualquer coisa e o dono do café apareceu a correr. A
mulher estendeu uma mão, a pedir, e ele abanou as mãos, como se um rato
tivesse passado a correr pela cozinha.
– Não quero pedintes aqui! – Ele deu um empurrão à mulher. – Vá-se
embora!
Ela afastou-se devagar, claramente habituada à situação. O dono do café
virou costas, limpando as mãos no avental.
– Cabra cigana – resmungou entre dentes. – Que pena não terem sido
todos levados e presos.
Vi o rosto de Finn ser invadido por uma onda de raiva absoluta.
Avancei na direção dele, mas ele já deixara cair a garrafa de cerveja, que
se desfez em mil estilhaços no chão. Finn atravessou o café em três passadas,
enterrou uma mão no colarinho do pasmado dono do café, deu-lhe um puxão
e atingiu-o em cheio com um soco dado de baixo para cima.
– Finn!
O meu grito perdeu-se por entre o som de estilhaços de louça, com o dono
do café a cair por cima de uma mesa e a estatelar-se no chão. Finn deu-lhe
um encontrão com a bota, virando-o de costas, a fúria ainda bem acesa nos
seus olhos, e vincou um joelho em cima do peito do homem.
– Seu… miserável… porco… de merda… – disse ele, com palavras
medidas e calmas, intercalando cada uma delas com um soco. Os murros
curtos e eficientes tinham o mesmo som de um macete de madeira a cair em
carne.
– Finn!
O meu coração parou. Tentei abrir caminho por entre mulheres agitadas e
homens que se erguiam das mesas com guardanapos ao pescoço, todos
desorientados e pasmados, mas um empregado chegou antes de mim e
agarrou no braço de Finn. Ele acertou um soco rápido e explosivo em cheio
no nariz do empregado e eu vi um espirro de sangue perfeitamente definido
atingir a toalha de uma mesa caída no chão. O empregado recuou,
cambaleante, e Finn dirigiu novamente a sua fúria para o dono, que gritava
enquanto tentava proteger o rosto.
Foram precisas seis pessoas para me fazer parar de lhe bater a cabeça
contra a ombreira da porta, dissera Finn sobre a rixa que o lançara na prisão.
Graças a Deus, fizeram-no antes que eu lhe rachasse a cabeça.
Eu podia não ser seis pessoas, mas não ia deixar que naquele dia uma
cabeça fosse rachada. Agarrei Finn pelo seu ombro tenso e rígido e puxei-o
para trás com toda a minha força.
– Finn, para!
Ele virou-se para trás, preparado para atacar quem o estava a tentar deter.
Os olhos arregalaram-se no instante em que me reconheceu e ele refreou a
pujança com que a sua mão vinha na minha direção, mas era demasiado tarde
para interromper o movimento. Os nós dos dedos dele atingiram o canto da
minha boca com força suficiente para eu sentir uma dor aguda. Recuei um
passo e levei instantaneamente a mão ao rosto.
Ele empalideceu subitamente, deixando cair a mão.
– Oh, meu Deus… – Ergueu-se, ignorando o homem que gemia no chão,
com o nariz cheio de sangue. – Meu Deus, Charlie…
Toquei os lábios com a mão, em choque.
– Não faz mal. – Na verdade, sentia-me aliviada por ele ter deixado de
esmurrar o dono do café e por já não ter a expressão de fúria absoluta no
rosto. O meu coração batia acelerado no peito, como se tivesse acabado de
fazer uma corrida. Dei um passo à frente para lhe tocar. – Não faz mal.
Ele retraiu-se. O seu olhar era de horror.
– Meu Deus – repetiu, e, trôpego, desatou a fugir de mim, do café e dos
clientes que sussurravam entre eles.
O dono do café estava a levantar-se do chão com a ajuda de alguns
empregados, confuso e zangado, mas nem sequer olhei para ele. Corri o mais
depressa que conseguia na direção que Finn tomara. Ele tinha passado o
auberge, por entre dois edifícios, e eu vi-o entrar na garagem, que ficava nas
traseiras. Segui-o por entre as filas de automóveis Peugeot e Citroën até à
silhueta comprida do Lagonda. Finn estava sentado no banco de trás, como
naquela noite em que tínhamos falado até às 3h00, em Roubaix. Tinha a
cabeça baixa e os ombros oscilavam ritmicamente; só me viu quando eu abri
a porta repentinamente e me sentei ao lado dele.
A voz dele soou abafada.
– Vai-te embora.
Peguei-lhe na mão.
– Estás magoado… – As mãos tinham feridas abertas nos nós dos dedos.
Eu não tinha um lenço, por isso toquei-lhe gentilmente na pele lacerada.
Ele tirou a mão e passou os dedos pelo cabelo.
– Queria tê-lo desfeito, àquele miserável porco de merda.
– E depois ias parar outra vez à prisão.
– Eu mereço estar na prisão. – Continuava encolhido, com os punhos
fechados entre o cabelo. – Eu bati-te, Charlie.
Toquei no meu lábio, sentindo que não tinha aberto ferida.
– Não sabias que era eu, Finn. Assim que me viste, paraste…
– Ainda assim acertei-te. – Olhou para mim nesse momento, os olhos
eram poços de culpa e raiva. – Estavas a tentar impedir que eu o matasse e eu
bati-te. Porque estás aqui, Charlie? Sentada no escuro com um homem mau
como eu?
– Não és um homem mau, Finn. Estás feito num caco, mas não és mau.
– Que sabes tu…
– Sei que o meu irmão não era mau quando esmurrava paredes e gritava
palavrões e ficava em pânico no meio da multidão! Ele não era mau, estava
destroçado. Como tu estás. Como está a Eve. Como eu estava, quando faltava
à escola para ficar na cama a chorar ou me deitava com rapazes de quem não
gostava. – Fixei o olhar no Finn, esforçando-me para que ele compreendesse.
– Mas ninguém tem de permanecer destroçado.
Queria tanto ajudá-lo. Pegar nele com as minhas mãos e colar todos os
cacos, como não tinha conseguido fazer com James. Como não tinha sequer
conseguido fazer com os meus pais, quando eles sofriam horrores pelo meu
irmão.
– Este lugar não é para ti. – A voz de Finn era áspera, cortante. Eu via a
tensão e a fúria a trespassarem-lhe novamente os ombros. – Devias ir para
casa. Ter o teu bebé, recomeçar a tua vida. Nada de bom resultará da
convivência com um par de almas destroçadas como a Gardiner e eu.
– Não vou a lado nenhum. – Voltei a tocar-lhe na mão.
Ele tirou a dele com brusquidão.
– Não.
– Porquê? – Na noite passada, tínhamo-nos sentado um ao lado do outro a
beber whisky; eu deitei a minha cabeça no ombro dele, ele afagou-me o
cabelo, e não houve desconforto entre nós. Mas naquele instante, Finn tinha
os nervos à flor da pele e o espaço entre nós vibrava de tensão.
– Sai do carro, Charlie.
– Porquê? – perguntei novamente. Não ia ceder naquele momento, era só
o que faltava.
– Porque quando estou com este mau humor, só me dá para beber, lutar
ou dar uma queca. – Ele olhava para a frente, para a escuridão, e as palavras
saíam-lhe num tom irado e monocórdico. – Ontem fiz a primeira, e há 20
minutos a segunda. Tudo o que quero agora é arrancar-te esse vestido preto. –
Ele olhou para mim e aquele olhar incendiou-me de alto a baixo. – Devias
mesmo ir embora.
Se eu o deixasse, ele ia ficar ali sentado a noite toda com a sua culpa, a
sua raiva e a sua menina cigana.
– Gostes ou não – disse eu, repetindo as palavras de Eve –, ela está morta
e tu estás vivo. Estamos ambos vivos. – Com isto, aproximei-me, deslizei os
dedos no cabelo dele e puxei-lhe a cabeça de encontro à minha.
As nossas bocas colidiram com brutalidade e não se separaram, mesmo
quando ele me levantou para que eu me sentasse no colo dele. As faces dele
estavam húmidas, tal como as minhas. Ele começou a arrancar o meu vestido
preto pelos ombros e eu a camisa dele pelos botões, despindo peça de roupa
após peça de roupa até ficarmos pele quente contra pele quente,
despreocupados com a possibilidade de alguém passar pelo Lagonda e nos
ver através das janelas. Na viagem para Oradour-sur-Glane Finn tinha-me
beijado com intensa ternura, mas naquele instante a boca dele era
destemperada, devorando a pela macia entre os meus seios, com as pestanas
dele a tocarem-me no peito. Encostei o rosto ao seu cabelo, enquanto as
minhas mãos deslizavam pelo torso esguio até ao cinto; ele parou por um
instante, com a respiração aos soluços e as mãos enormes nas minhas costas
nuas.
– Meu Deus, Charlie – disse ele, de modo pouco distinto. – Não era assim
que eu queria que isto acontecesse.
Talvez não houvesse flores, nem velas, nem romance. Mas isto, ali,
naquele momento, era o que ambos precisávamos. A noite anterior fora cheia
de torpor, sofrimento e vontade de esquecer – eu não podia continuar assim,
ou afundar-me-ia. E não ia deixar que Finn também se afundasse. Não o ia
perder, não como aos outros com quem falhei e perdi.
– Fica comigo – murmurei nos lábios de Finn, a minha respiração tão
irregular como a dele. – Fica comigo… – E não tardou que estivéssemos
enrolados ao comprido no banco de couro, com o meu vestido preto atirado
para o lado e a camisa e o cinto de Finn no chão.
Era normalmente nesta altura que a minha mente começava a vaguear
para longe do que estava a acontecer. Era o momento em que eu parava de
tentar sentir alguma coisa e tornava-me distante, desiludida por não sentir
nada – por concluir que a equação mais fácil do mundo, homem mais mulher,
igualava sempre zero. Não desta vez. A confusão agitada de braços e pernas
no banco de trás, a chiadeira do assento de couro e a respiração pesada eram
iguais a todas as outras situações, mas desta vez a minha mente não vagueou.
Eu estava derretida, ardente, tremente de desejo. Finn também tremia, a
sombra dele por cima de mim confundia-se com as outras sombras, as mãos
enredadas no meu cabelo magoavam-me por me agarrarem com tanta força e
a sua boca bebia-me a pele, no pescoço, nas orelhas, nos seios, como se ele
me pudesse devorar. Firmei os braços e as pernas à volta do seu corpo e
agarrei-me a ele como se estivesse a tentar trepar para dentro dele,
enterrando-lhe as unhas nas costas. Abraçámo-nos intensamente, pele com
pele, suados, mas ainda não estávamos suficientemente próximos. Puxei-o
para dentro de mim, escutando ao longe os meus gemidos, à medida que
íamos colidindo em ritmo desesperado e furioso. Foi rápido, selvagem e bom;
foi desarrumado e fez transpirar; fervilhou de vida. O rosto dele, pesado,
encostou-se ao meu, após o arrepio final que atravessou os nossos corpos, e
eu senti uma lágrima a cair entre as nossas faces unidas.
Não sabia se era minha ou dele. E não queria saber.
Não era uma lágrima de dor, e isso era suficiente.
Capítulo 28
Eve
Outubro de 1915

Se havia um dia da semana bom para se ser preso, era ao domingo. Era a
única noite da semana em que Eve não tinha de ir trabalhar, porque até o
decadente Le Lethe fechava no dia do Senhor. Eve regressou a Lille no
domingo à noite, sem precisar de faltar um turno. “Pequenas bênçãos”, disse
ela em voz alta. Estava um frio de rachar no interior do quarto e, embora nada
tivesse mudado – nem a cama estreita, nem o saco com fundo falso ao canto,
onde ela guardava a Luger –, o espaço tinha um ar abandonado. Violette não
entraria de rompante com as suas botas pesadas, queixando-se de que os
pilotos ingleses eram demasiado imprudentes para se manterem devidamente
escondidos. Lili não entraria alegremente com uma história sobre como tinha
subornado um guarda num posto de controlo com uma salsicha
contrabandeada. Eve olhou em redor, para o quarto pequeno e sem graça,
recordando as noites que elas tinham passado ali a fumar e a rir, e uma onda
de desespero atingiu-a com tanta força que quase parou de respirar. Ela tinha
um trabalho a fazer e iria fazê-lo – mas não haveria nele mais momentos de
alegria. Haveria dias passados no Le Lethe e noites na cama de René, e nada
mais. Ninguém usaria aquele quarto, exceto Eve.
Talvez o Antoine, pensou ela. Podemos arranjar um novo plano de
trabalho. Antoine, calmo e inabalável, era quem mais sabia sobre os
informadores de Lili, uma vez que fora ele a fazer os documentos falsos para
muitos deles, sob o balcão da sua livraria – talvez ele conseguisse reconstruir
a ronda de Lili para que outra pessoa a pudesse fazer. Tinham de encontrar
uma maneira de a retomar. Ela cedeu a uma onda de fadiga e deitou-se sem
sequer despir o casaco. Deveria estar com fome, mas alguma coisa a fez
imaginar o perfume da colónia de René – o facto de temer o momento em que
voltaria para ele, no dia seguinte, sem dúvida – e, mesmo sendo um cheiro
imaginado, deu-lhe uma volta ao estômago. Ela enterrou o nariz na almofada
baixa, tentando pensar no cheiro do chá e de tweed inglês. “Cameron”,
sussurrou ela, e a doce lembrança tátil do cabelo dele nas suas mãos, dos
lábios dele a beijarem-lhe o espaço atrás da orelha, surgiu-lhe no escuro.
Perguntou-se se ele lamentaria o tempo passado juntos nessa tarde.
Perguntou-se se ele a odiaria por o ter seduzido e depois saído
sorrateiramente. Perguntou-se…
Mas estava exausta pelo terror e pela prisão, pela dor e pelo amor, e o
sono abateu-se sobre ela como uma onda negra.
O dia seguinte estava limpo e frio, e Eve arrastou-se penosamente até ao
Le Lethe, embrulhada em roupa até à ponta do nariz. Normalmente, àquela
hora da tarde, o restaurante estava movimentado: empregados a pôr as mesas
para os primeiros clientes, cozinheiros a praguejar enquanto preparavam a
comida. Nessa noite, o Le Lethe estava às escuras e as cozinhas fechadas. Eve
parou, espantada, e depois desabotoou o casaco. Não havia qualquer letreiro
na porta ou no bar a dizer que o restaurante estaria fechado nessa noite, e
René gostava demasiado de lucros para fechar as portas sem necessidade.
Uma voz chegou-lhe do apartamento de René.
– Marguerite, és tu?
Eve hesitou, tentada a fingir que não ouvira nada e a voltar para o frio da
rua. Tinha os nervos à flor da pele, em alerta, mas suscitaria mais suspeitas se
saísse a correr.
– Sim, sou eu – respondeu.
– Sobe.
O escritório de René resplandecia de luz, embora as cortinas estivessem
fechadas. A lareira emitia calor do outro lado do tapete Aubusson e o
candeeiro multicolorido Tiffany refletia desenhos em azul safira e violeta
ametista na seda verde das paredes. René estava sentado no seu cadeirão
habitual, com um copo de vinho de Bordéus na mão.
– Ah. Cá estás tu – saudou ele.
Eve deixou que o seu espanto transparecesse.
– O restaurante não vai abrir?
– Hoje, não. – Ele marcou o livro que estava a ler com uma fita de seda
bordada e pô-lo de lado. Eve sentiu um arrepio, apesar de o sorriso dele
parecer amável. – Queria fazer-te uma surpresa.
Corre, disse uma voz muda na cabeça de Eve.
– Uma surpresa? – Ela entrelaçou as mãos atrás das costas, agarrando o
puxador da porta, que rodou silenciosamente. – Outro f-fim de semana fora?
O monsieur disse que gostava de visitar a G-Grasse…
– Não, outro tipo de surpresa. – René bebeu um gole de vinho, sem
pressa. – Uma surpresa que tu me vais dar.
Os dedos de Eve apertaram o puxador. Um movimento rápido e ela
poderia fugir.
– Vou?
– Sim. – René meteu a mão sob a almofada que estava em cima do braço
do cadeirão e tirou uma pistola. Apontou-a a Eve: uma Luger de 9mm P08,
exatamente igual à dela. Eve sabia que, àquela distância, um tiro lhe
perfuraria a cabeça muito antes de ela conseguir abrir a porta.
– Senta-te, querida. – René apontou com um gesto para o cadeirão à sua
frente. Ao sentar-se, Eve viu um risco no cano da arma. Ela conhecia bem
aquele risco, polia-o sempre que desmontava a sua arma. A Luger que René
tinha na mão não era apenas uma Luger, era a Luger dela. Subitamente, Eve
recordou o odor da colónia de René no seu quarto, na noite anterior, e o medo
atingiu-a como um comboio de mercadorias estridente.
René Bordelon tinha revistado o seu quarto. Tinha a sua pistola. Que mais
saberia ele?
– Marguerite Le François – disse René, como se estivesse para começar
um dos seus discursos sobre arte –, diz-me quem realmente és.

– Porque é tão d-difícil de acreditar? – Eve exagerava a gaguez, deixando


que as mãos lhe tremessem, em sinal de confusão, enquanto se esforçava por
apresentar argumentos convincentes da sua inocência. – É a pistola do meu p-
pai. Fiquei com ela porque tinha medo da m-m-maneira como os oficiais
alemães se pavoneiam pelas ruas a olhar para as raparigas francesas…
Os olhos desconfiados de René penetraram nos dela.
– Foste detida na companhia de uma mulher que tinha seis cartões de
identificação diferentes. Ela é, sem qualquer dúvida, uma espia; o que estavas
a fazer com ela?
– Eu n-não a conheço! Começámos a falar na estação e ela disse que se
esquecera do s-s-s… do salvo-conduto. Ofereci-lhe o meu para ela p-passar. –
O pensamento de Eve corria muito à frente da sua língua, tentando
freneticamente encontrar uma defesa, qualquer defesa, que ele pudesse
engolir. Não lhe passara pela cabeça que a sua detenção pudesse chegar aos
ouvidos dele. Tudo aconteceu por puro azar: um alemão amigo de René
contou-lhe com entusiasmo a captura de Lili, mencionando de passagem a
rapariga gaga que fora presa com ela. Uma rapariga chamada Marguerite
qualquer coisa, libertada porque ninguém duvidara da sua inocência.
Se pelo menos o nome dela não tivesse sido mencionado, René nunca
teria tido conhecimento. Mas a realidade era diferente, e as implicações
devem ter surgido a René como uma onda gigante, porque ele foi
imediatamente ao quarto dela. Só conseguiu encontrar a Luger; Eve não
guardava códigos ou mensagens codificadas. Mas, para ele, isso era o
suficiente para o deixar desconfiado, por isso ali estavam os dois, sentados
frente a frente.
– Tu não serias suficientemente estúpida para deixar uma estranha usar o
teu salvo-conduto, querida – disse ele.
– Eu n-não vi mal nisso! – Eve tentou que os seus olhos se enchessem de
lágrimas, mas estava desprovida delas. Chorara até à histeria para Herr
Rotselaer na manhã do dia anterior; chorara de dor por Lili, depois disso.
Naquele momento, os olhos estavam secos como um deserto, justamente
quando ela precisava deles húmidos e patéticos. Em vez disso, baixou o
olhar. Tu consegues sair disto, disse a si mesma. Tu consegues.
Mas René não permitia que a Luger ou a sua atenção esmorecessem.
– Onde estiveste ontem? E porque ias apanhar um comboio?
– Ia à c-c-c-comunhão da minha sobrinha em T-T-Tournai.
– Nunca disseste que tinhas família em Tournai.
– O senhor n-nunca perguntou!
– A tua gaguez é verdadeira, sequer? Ou finges ser gaga para que as
pessoas pensem que és meia atrasada? Isso demonstraria muita astúcia da tua
parte.
– Claro q-que é verdadeira! Acha que gosto de falar assim? – gritou Eve.
– N-Não sou uma espia! Encontrou alguma coisa suspeita no m-meu quarto?
– Isto. – Bateu o cano da Luger contra o braço de madeira esculpida do
cadeirão. – Porque não entregaste esta arma quando os alemães proibiram o
porte de armas aos civis?
– Eu n-não me podia separar dela, era do meu p-p-p…
– Para de gaguejar! – vociferou ele, e fê-lo tão repentinamente que o
estremecimento dela foi totalmente real. – Achas que eu sou estúpido?
Existia nele um receio genuíno, pensou Eve. O receio de que alguém o
enganara. Estaria ele a recordar as conversas de travesseiro, os mexericos que
lhe contava? Ou a pensar no que aconteceria à sua posição privilegiada se os
alemães descobrissem que a sua amante passava segredos aos ingleses?
A primeira, pensou Eve, mais do que a segunda. Não era a confiança e os
favores dos alemães que ele mais receava perder, mas o seu orgulho. René
Bordelon tinha de ser o homem mais inteligente em qualquer situação,
sempre. Que pensamento insuportável, a possibilidade de uma rapariga
ignorante com metade da sua idade poder ter sido muito mais inteligente.
Infelizmente, Eve não se sentia inteligente naquele momento. Tudo o que
sentia era terror.
Tu consegues sair disto, pensou ela, porque pensar na alternativa era
inaceitável. Mas e depois? Mesmo que ela convencesse René de que era
inocente, o seu tempo no Le Lethe tinha acabado. O seu tempo em Lille
estava contado, independentemente das ordens de Allenton, e sentiu-se
apunhalada pela consciência desse fracasso – mas se pelo menos conseguisse
fugir, talvez pudesse ser enviada para outro lado.
Um pensamento mais doce passou-lhe pela cabeça: Nunca mais vou ter de
partilhar a cama com o René Bordelon.
Os seus olhos devem ter brilhado, pois de repente ele chegou-se para a
frente no cadeirão.
– Em que estás a pensar? Porque estás…
Ele estava tão próximo dela. Sem pensar, Eve deu uma guinada para fora
com o pé, como uma chicotada, acertando no cano da Luger. Foi um golpe de
esguelha, mas fez rodopiar a pistola na direção da lareira, arrancando-a das
mãos de René. Não tinha tempo de a ir buscar; Eve disparou na outra direção,
a da porta. Se a conseguisse abrir antes de ele apanhar a pistola e descesse as
escadas, teria a hipótese de escapar pelas ruas de Lille. Não arriscaria apanhar
um comboio; em vez disso, atravessaria a fronteira para a Bélgica a pé. Tudo
isso passou-lhe pela cabeça num fragmento de segundo, enquanto corria pelo
tapete sumptuoso. Conseguiu agarrar o puxador prateado e polido da porta
com uma mão e pensou: Eu consigo sair disto.
Mas René não foi apanhar a pistola. Sem hesitar, correu atrás de Eve e, no
momento em que os dedos dela apertavam o puxador da porta do escritório, o
braço dele desceu num arco curto e brutal e o busto miniatura de Baudelaire
acertou em cheio na mão de Eve.
O impacto produziu uma faísca de dor lancinante pelo seu braço direito
acima. Eve ouviu o som distinto de ossos a estilhaçar: três das articulações
dos seus dois primeiros dedos da mão direita esmagados entre o busto e o
puxador. Eve caiu de joelhos diante da porta, arquejando com as ondas
agonizantes de dor que lhe percorriam o corpo. Viu os sapatos brilhantes de
René a aproximarem-se e a pequena peça de mármore a balançar casualmente
na mão dele, quando René parou entre ela e a porta, ofegante.
– Que raio… – conseguiu ela dizer entre dentes cerrados de dor, agarrada
à mão trémula. – Porra.
Disse-o irrefletidamente em inglês, não em francês, e ouviu René
subitamente a inspirar fundo. Ele agachou-se ao lado dela, de modo que os
olhos dos dois se encontrassem ao mesmo nível, e o seu olhar estava aceso
com… quê? Medo, dúvida. Acima de tudo, fúria.
– És uma espia – expirou ele, e a dúvida desaparecera-lhe da voz.
Ali estava. Eve atraiçoara-se a si própria. Depois de recear durante tanto
tempo aquele momento, ele chegou curiosamente vazio. Talvez por saber que
nada do que pudesse dizer o iria convencer de que estava inocente. Porque
não admitir a culpa?
Ele agarrou-lhe o pescoço com a sua mão livre, os dedos
extraordinariamente longos a cercarem-na quase até à nuca. Não largou o
busto na outra mão, e Eve sabia como seria fácil ele dar-lhe uma pancada na
cabeça.
– Quem és tu?
A mão doía-lhe tanto que Eve mal conseguia respirar. Mordeu o grito que
lhe crescia na garganta até ele perecer antes de sair. Conseguiu esboçar um
sorrisinho torto, sem lutar contra o aperto no pescoço, e cravou os olhos nos
dele. Ofereceu-lhe, pela primeira vez, o seu próprio olhar, não o olhar
modesto da sua querida.
Era possível que viesse a morrer ali, naquela sala quente e opulenta. Mas,
nem que fosse apenas por uma vez, Eve queria atirar-lhe à cara o facto de ele
ter sido enganado. Ela bem podia vir a arrepender-se do impulso irrefletido e
arrogante, mas não tinha força para o reprimir.
– O meu nome é Eve – disse ela num suspiro, cada palavra suave como
seda. – Eve, não a porra da Marguerite. E, sim: sou uma espia.
Ele olhava-a fixamente, petrificado. Eve mudou para alemão.
– E falo alemão perfeitamente, seu cobarde oportunista. Há meses que
escuto tudo o que os teus preciosos clientes dizem.
Ela observou o horror, a incredulidade, a raiva invadirem-lhe o olhar.
Conseguiu esboçar outro sorriso e acrescentou mais uma coisa em francês,
para rematar.
– Não te vou contar um único e singelo facto sobre o meu trabalho, os
meus amigos ou a mulher com quem fui detida. Mas uma coisa vou dizer-te,
René Bordelon. És um pateta fácil de enganar. És um péssimo amante. E eu
odeio Baudelaire.
Capítulo 29
Charlie
Maio de 1947

– Volta para o hotel, Charlie. Vai dormir. – Finn estava sentado no


Lagonda, afundado nas sombras do carro, a abotoar a camisa. E a evitar olhar
para mim. Todo o meu corpo continuava a vibrar com o que acabara de
acontecer, e eu fiquei pensativa por alguns instantes, a tentar encontrar as
palavras para lhe dizer como aquilo tinha sido diferente de todas as minhas
experiências anteriores. Mas Finn olhou para mim e eu vi que ele se
escondera novamente por detrás do seu muro, impossível de alcançar. – Vai
para a cama, miúda.
– Não te vou deixar aqui a matutar sozinho – objetei baixinho. Nunca
mais o faria a alguém que amasse.
– Não vou ficar aqui – revelou ele. – Vou voltar para o café. Tenho de
pedir desculpas a algumas pessoas.
Era um começo, algo que o faria sentir-se melhor, por isso acenei com a
cabeça. Saímos do carro, cada um por seu lado, e parámos momentaneamente
a olhar um para o outro por cima do tejadilho do Lagonda. Por um instante,
pensei que Finn fosse dizer alguma coisa, mas ele olhou para os meus lábios
feridos e retraiu-se.
– Boa noite.
– Boa noite.
E vi-me sozinha no meu quarto de hotel, deitada na cama, sem conseguir
dormir. A luz amarelada dos candeeiros de rua chegava filtrada através das
portadas, tal como os sons abafados do trânsito da noite. Eu passava
incessantemente os dedos pela minha barriga, de um lado para o outro. Desde
que eu decidira não ir para Vevey, o Pequeno Problema estava mais calmo.
Provavelmente, tinha adivinhado que podia ficar tranquila e concentrar-se em
crescer, crescer, crescer até chegar a hora de nascer. Só então ela se
aperceberia de que o mundo era um lugar frio e que a mãe não tinha ideia de
como lhe proporcionar uma vida boa. Antes de Oradour-sur-Glane, pelo
menos eu tinha uma ideia fantasiosa: uma equação maravilhosa em que
Charlie mais Rose era magicamente igual a um futuro feliz para todos.
Naquele momento, nem sequer isso tinha.
– Desculpa – disse suavemente à barriga ainda lisa, sob os meus dedos
exploradores. – A tua mamã é tão impotente como tu, bebé pequenina. – Não
sei porque estava convencida de que era uma menina, mas estava. A bebé
Rose, pensei, e subitamente ela tinha um nome. Claro que tinha. Outra Rose.
Uma Rose só minha.
O sino de igreja tocou a meia-noite. O meu estômago roncou: era o
recém-batizado Pequeno Problema a queixar-se de que não tinha jantado. Era
estranho como os corpos continuavam a funcionar no meio da dor, da culpa
ou do choque.
– Aqui está algo que eu realmente sinto por tua causa, meu Botão de Rosa
– disse eu à minha barriga. – Ainda podes passar despercebida, mas eu
preciso de ir à casa de banho o dobro das vezes.
Saí da cama, vesti uma camisola, fui à casa de banho e depois decidi dar
uma voltinha pelo corredor. Não se via luz por baixo da porta de Finn. Eu
esperava que ele tivesse conseguido apresentar as desculpas no café ao lado e
que tivesse voltado para uma noite de sono tranquila. Perguntei-me se ele se
arrependia do que tínhamos feito no banco de trás. Eu não. Hesitei diante da
porta do quarto dele, mas continuei até à porta de Eve em bicos de pés. Uma
faixa de luz amarela sob a porta: ela estava acordada. Abri a porta sem bater e
entrei.
Eve estava sentada no peitoril da janela, a olhar para a rua escura. A luz
ténue escondia-lhe as rugas da cara – ela podia ter qualquer idade, alta e
magra como era, com perfil austero e os pés compridos e descalços enrolados
debaixo do corpo. Podia até ser a jovem que tinha ido para Lille em 1915…
não fossem aquelas mãos terrivelmente mutiladas pousadas no colo. Tudo
voltava invariavelmente ao assunto das mãos. Tudo tinha começado com
aquelas mãos. Recordei como o meu estômago deu uma volta quando as vi
pela primeira vez naquela noite, em Londres.
– Vocês, ianques, não sabem bater à porta? – Deu uma passa comprida e a
ponta de um cigarro iluminou-se.
Cruzei os braços.
– A questão é que – comecei, como se estivéssemos a meio de uma
conversa – não sei o que vem a seguir.
Eve acabou por olhar para mim. Ergueu o sobrolho.
– Eu tinha um plano, todo bem detalhado como um simples problema de
geometria. Encontrar a Rose, se ela estivesse viva, ter o meu bebé, aprender a
safar-me sozinha. Agora, não tenho plano nenhum. Mas não estou preparada
para voltar a casa. Não estou preparada para voltar para a minha mãe e
recomeçar a discussão sobre como vou viver a minha vida. Não estou
preparada para me sentar no sofá a tricotar botinhas para bebé.
Acima de tudo, não estava preparada para perder este pequeno trio que se
tinha criado, composto pela Eve, pelo Finn e por mim, dentro de um carro
azul-escuro. Parte de mim já estava farta de sofrer, e essa parte preferia parar
e voltar para casa a correr o risco de ser rejeitada pelo Finn na manhã
seguinte. Mas outra parte de mim – pequena, mas cada vez mais exigente, tal
como o Botão de Rosa – desejava lutar por isto, o que quer que isto fosse. Eu
não sabia o que nos tinha unido ou porque, por coincidência, tínhamos
acabado os três a perseguir a mesma coisa sob formas diferentes: os legados
deixados por mulheres desaparecidas em guerras passadas. Eu já não tinha
um destino ou um objetivo para o meu caminho, mas juntos íamos a algum
lado e eu não estava preparada para abandonar a viagem.
– Eu sei o que quero, Eve. Quero ter tempo para perceber o que vem a
seguir. – Avançava às apalpadelas, uma vez que Eve não me dava qualquer
sinal de que as minhas palavras faziam sentido. Olhei para as mãos dela e
inspirei fundo. – E quero ouvir o resto da sua história.
Eve expirou o fumo de uma passa. Escutei o som da buzina de um
condutor noturno, vindo da rua.
– Perguntou-me há pouco, no café, se eu era corajosa. – Senti o coração a
bater muito depressa. – Não sei se sou ou não. A Eve, mais ou menos com a
minha idade, acumulava medalhas numa zona de guerra; eu não fiz nada
remotamente parecido com isso. Mas sou suficientemente corajosa para não
voltar para casa com o rabo entre as pernas. Sou corajosa para ouvir o que lhe
aconteceu, por mais terrível que tenha sido. – Sentei-me em frente àqueles
olhos fixos em mim, ardentes com a recordação do sofrimento e da brutal
aversão por si mesma. – Acabe a história. Dê-me uma razão para ficar.
– Queres uma razão? – Ela passou-me o maço de cigarros. – Vingança.
Senti o maço escorregadio na minha mão.
– Vingança porquê?
– Pela prisão de Lili. – No escuro da noite, a voz de Eve era grave, dura e
feroz. – E pelo que me aconteceu, na noite em que fui apanhada.
E, enquanto o escuro da noite dava lugar à madrugada, Eve contou-me o
resto da sua história.
Capítulo 30
Eve
Outubro de 1915

Não importava o que ela dizia ou deixava de dizer. Quer Eve insultasse
René, quer respondesse educadamente, quer se recusasse de todo a responder,
ele levantava a mão que agarrava o busto de Baudelaire e, num movimento
preciso e feroz, esmagava-lhe outra articulação.
Mesmo entre convulsões de dor, Eve conseguiu olhar para as mãos e
contar. Ao todo, as suas mãos tinham 28 articulações.
René esmagara nove delas até esse momento.
– Vou entregar-te aos alemães. – O tom da sua voz metálica era calmo,
mas ela sentia tensão e emoção para lá da superfície. – Antes disso, vais falar
comigo. Vais contar-me tudo o que eu quero saber.
Ele estava sentado em frente a ela, a bater levemente com o dedo no
cocuruto da cabeça de Baudelaire. A peça de mármore, antes imaculada,
estava naquele momento manchada de sangue. Ele tinha-lhe partido as
primeiras articulações de forma desajeitada, mostrando-se algo desastrado,
retraindo-se ao ouvir o ruído dos ossos a serem esmagados. Mas estava a
ficar mais hábil, embora o sangue ainda lhe fizesse dilatar as narinas de
aversão. Tens tanta prática nesta coisa de tortura quanto eu, pensou Eve. Ela
não fazia ideia de quanto tempo teria passado. O tempo tornara-se elástico,
moldando-se de acordo com a palpitação das suas dores. O lume tremeluzia
na lareira e os dois estavam sentados nos cadeirões de couro, com a mesinha
entre eles, como era habitual quando jogavam xadrez antes de se deitarem. Só
que naquele momento as mãos de Eve estavam em cima da mesa, atadas uma
à outra com o cinto de um dos robes de seda de René. Atadas com tanta força
que lhe doíam, atadas de tal maneira que ela não tinha esperança de se
conseguir libertar.
Não tentou. Fugir não era uma possibilidade. As únicas coisas que podia
fazer eram não falar e não mostrar medo. Por isso, manteve as costas direitas,
por mais que tivesse vontade de se enrolar por cima das mãos e guinchar de
dor, e conseguiu esboçar um sorriso para René. Ele nunca saberia o quanto
aquele sorriso lhe custava.
– Não preferes jogar xadrez? – sugeriu ela. – Deixei que me ensinasses,
porque a Marguerite era d-demasiado ignorante para saber jogar xadrez, mas
na verdade jogo bastante bem. Adorava jogar a sério contigo, em vez de
perder sempre de p-propósito para te fazer sentir superior.
O rosto dele contraiu-se de raiva. Eve mal teve tempo de se preparar,
quando o busto lhe acertou novamente na mão e se ouviu o já familiar ruído
de ossos a serem esmagados.
Ela gritou por entre os dentes cerrados, fazendo com que René levantasse
abruptamente o queixo. De início, ela disse a si mesma que não iria gritar,
mas cedeu à quinta articulação. Esta era a décima. Não conseguia fingir que
não doía. Também já não conseguia olhar diretamente para a mão. Pelo canto
do olho, via uma trapalhada de sangue, nódoas negras e articulações
grotescamente retorcidas. Todas as contusões tinham sido até aí produzidas
na sua mão direita – a esquerda permanecia ao lado, ilesa, cerrada num
punho.
– Quem é a mulher com quem foste presa? – A voz de René era tensa. –
Ela não pode ser o líder da rede local, mas é capaz de o conhecer.
Por dentro, Eve sorria. René e os boches subestimavam Lili.
Subestimavam tudo o que era feminino.
– O nome dela é Alice Dubois. Não é ninguém.
– Não acredito em ti.
Ele não acreditava em nada do que ela tinha dito até aí. Depois da sexta
articulação ter estourado numa explosão de sangue, Eve tinha tentado dar-lhe
falsas informações, qualquer coisa que a sua imaginação pudesse produzir.
Na esperança de o fazer parar. Mas nada o deteve, mesmo quando ela fingiu
que concordava em falar. Ele podia ser inexperiente nesta coisa da tortura,
mas mostrava muita vontade de praticar.
– Qual é o verdadeiro nome dela? Diz-me!
– Porquê? – reagiu Eve, com dificuldade. – Não vais acreditar em nada
que eu diga. Entrega-me aos b-boches e deixa-os fazer as perguntas. –
Naquele momento, ela desejava estar numa cela dos alemães. Eles iriam
certamente interrogá-la, talvez até a atirassem ao chão e lhe dessem uns
pontapés, mas não a odiariam pessoalmente, como René a odiava, por ter sido
atraiçoado e enganado por ela. Vá, entrega-me, rezou Eve, mordendo o lábio
por dentro para reprimir um gemido, sentindo o sabor do sangue.
– Não te vou entregar até arrancar a informação que pretendo – disse
René, como se lhe tivesse lido o pensamento. – Se quero que os alemães
ultrapassem a desconfiança que vão sentir por eu ter tomado como amante
uma espia, tenho de lhes oferecer algo valioso em troca. Se não o fizer, mais
vale poupar-me às suspeitas deles e matar-te já. – Pausa. – Ninguém vai fazer
perguntas sobre o paradeiro de uma empregada de mesa.
– Não me podes matar. Não ias conseguir safar-te. – Claro que ele se
safaria, ainda assim Eve começou a lançar-lhe dúvidas. Ela pensou nisso no
momento em que ele lhe apontou a pistola. – Achas que me podes levar a pé
do teu escritório para um sítio remoto qualquer, dar-me um tiro e deixar-me a
apodrecer no meio do matagal? Eu não ia parar de gritar e de dar luta durante
todo o caminho. Alguém nos iria ver.
– Posso matar-te aqui…
– E depois tinhas de me largar em algum sítio, sozinho. Os teus amigos
alemães podem dever-te favores, mas não vão querer livrar-se de um corpo
por ti. Pensas que vais conseguir levar um corpo para fora do teu restaurante
e desfazer-te dele sem que ninguém repare? Esta é a cidade dos espiões,
René, e não só de espiões ingleses, mas também alemães e franceses. Toda a
gente vê tudo. Nunca te vais conseguir safar…
Ah, sim, claro que conseguiria. Dinheiro, sorte e um bom plano tornavam
sempre possível escapar de um assassínio. Mesmo assim, Eve continuava a
atirar argumentos contrários e, pelo olhar de René, ela percebia que as
dúvidas surtiam efeito. Ele não tinha um plano firme e, apesar de ter a
situação sob tenso controlo, parecia estar hesitante. Fazes planos brilhantes,
pensou Eve, mas, ao contrário de mim, não tens nenhuma capacidade de
improvisação. René raramente era surpreendido por outras pessoas e, quando
era apanhado de surpresa, não fazia ideia de como proceder. Eve guardou
esse pensamento. Só Deus sabia se alguma vez ela poderia usar esse facto
contra ele, ainda assim guardou-o.
– Podia matar-te – disse ele, por fim –, mas prefiro arrancar-te todas as
informações que tens. Se eu conseguir dar aos alemães os nomes dos agentes
da rede que tantos estragos tem feito na zona, eles ficarão extremamente
agradecidos. Porque, tal como estão as coisas, eles não têm provas para
sentenciar à morte as duas mulheres que estão presas.
Eve também guardou essa informação.
René sorriu, os dedos a baterem levemente na cabeça de mármore de
Baudelaire, e ela sentiu um arrepio gelado dardejar-lhe pelo corpo inteiro,
exceto na sua mão destruída.
– Portanto… quem era a mulher, Eve?
– Ninguém.
– Mentirosa.
– Sim – replicou Eve, com raiva. – Sou mentirosa e tu sabes d-disso, e por
essa razão não vais acreditar em nada do que possa sair da minha boca. Não
fazes ideia de como c-conduzir este interrogatório. Estás a fazer isto não para
me sacar informações, mas porque eu te enganei. Estás a destruir-me porque
eu fui mais esperta do que tu.
Ele olhava fixamente para Eve, os lábios cerrados, duas manchas de cor a
brilharem-lhe nas faces, por baixo dos olhos.
– Tu não passas de uma cabra mentirosa.
– Vou dizer-te uma coisa na qual podes acreditar. – Eve inclinou-se para a
frente, por cima da mão mutilada. – Todo e cada gemido que dei na tua cama
foi fingido.
Ele baixou o busto com violência. A primeira articulação do polegar
direito foi despedaçada e, desta vez, Eve não conseguiu conter o grito entre
os dentes. Ao gritar, perguntou-se se os vizinhos a poderiam ouvir através das
janelas, das pesadas cortinas brocadas, das paredes grossas. Ninguém te pode
ajudar, mesmo que te ouçam. A cidade escura, lá fora, bem podia ficar do
outro lado do mundo. Deus, deixa-me desmaiar, rezou Eve, deixa-me
desmaiar – mas René pegou no copo a seu lado, atirou-lhe água ao rosto e o
mundo tornou-se subitamente nítido.
– O teu plano inicial era seduzir-me? – A voz dele era tensa.
– Tu caíste sozinho na armadilha, seu maricas cobardolas. – Eve
conseguiu emitir uma gargalhada, que soou mais como uma tosse, ao mesmo
tempo que a água deslizava pelo queixo abaixo. – Mas fiquei contente por o
teres feito. A maneira como depois a-abrias a boca na cama valia bem os
meus quatro minutos de gemidos e arfadas anteriores…
Ela tinha apenas três articulações intactas na mão direita e René partiu-as
todas numa sucessão de golpes que naquele momento se revelavam hábeis.
Eve soltou um grito lancinante. Um cheiro súbito e nauseabundo emergiu no
ar do escritório luxurioso. Indistintamente, por entre a dor agonizante, Eve
apercebeu-se de que perdera o controlo do corpo. Urina e fezes escorregaram
pelo couro macio do cadeirão de René, caindo no tapete Aubusson. Mesmo
por entre a agonia que lhe consumia a mão, ela sentiu-se esmagada por uma
onda profunda de vergonha.
– Que cabra imunda és – disse ele. – Não admira que eu insistisse em que
tomasses banho antes de te foder.
Foi assolada por uma nova onda de vergonha, mas o medo era mais forte.
Ela estava mais aterrorizada do que alguma vez pensara ser possível.
Encurralada – a palavra vinha-lhe constantemente ao pensamento, como um
rato a resvalar diante de um gato. Encurralada… encurralada. Ninguém viria
em sua ajuda. Era muito provável que morresse ali, no momento em que ele
se cansasse de lhe infligir dor e decidisse que lhe dava menos trabalho matá-
la com um tiro do que entregá-la aos alemães. Tinha a boca tão seca de terror
que parecia gravilha.
– Uma mão já está – comentou René, com indiferença, enquanto pousava
o busto. Os olhos dele brilhavam, talvez de excitação sexual, talvez da sua
própria vergonha – a vergonha de ter sido enganado. De qualquer modo, já
não se retraía nem dilatava as narinas por causa da sujidade, do sangue, dos
sons e dos cheiros. – Ainda tens a mão esquerda. É o suficiente para
continuarmos. Se começares a falar, poupo-te os restantes dedos. Diz-me
quem é a mulher que foi presa na estação. Diz-me quem liderava a rede. Diz-
me porque regressaste a Lille quando já tinhas fugido para Tournai.
Verdun, pensou Eve. Pelo menos, a mensagem tinha sido passada. Ela só
esperava que a mensagem pela qual ela e Lili tinham sido apanhadas pudesse
salvar vidas.
– Diz-me essas coisas e eu ligo-te a mão, dou-te láudano para as dores e
levo-te aos alemães. Até peço um cirurgião para reparar os teus dedos. –
René aproximou-se e afagou-lhe o rosto. O traço dos dedos dele trouxe a Eve
outra onda de sofrimento e um arrepio de repulsa tão profundo que os seus
ossos estremeceram. – Só tens de começar a falar.
– Não vais acreditar em mim, mesmo que eu…
– Vou sim, querida, vou sim. Porque creio que te quebrei. Acho que estás
finalmente pronta para falar a verdade.
Os olhos de Eve turvaram-se. Ela queria contar-lhe, essa era a parte
terrível. Tinha as palavras debaixo da língua: Trabalhei para a Louise de
Bettignies, nome de código Alice Dubois, e era ela quem geria a rede inteira.
Lili, cujo nome Eve nunca saberia se elas não tivessem encontrado aquele
general alemão na plataforma da estação de comboios. Se pelo menos isso
nunca tivesse acontecido.
Trabalhei para a Louise de Bettignies e ela liderava a rede – uma mulher
de metro e meio e valente como uma leoa. E, se ela estivesse aqui no meu
lugar, não diria uma só palavra, mesmo que perdesse os dedos todos.
Ou diria? Como saber o que alguém faria se lhe esmagassem 14
articulações de forma metódica?
Mas não era Lili quem estava naquela cadeira com as mãos atadas à sua
frente. Era Eve. Quem podia saber o que Lili faria? Eve só podia ter a certeza
do que Eve Gardiner faria.
– Quem é a mulher? – sussurrou René. – Quem é?
Eve desejou ser capaz de fazer um sorriso de escárnio, mas já não tinha
mais sorrisos para dar. Desejou ser capaz de dizer uma frase cortante, mas já
não lhe restavam insultos. Por isso, limitou-se a cuspir sangue na cara dele,
salpicando-lhe a face imaculadamente barbeada.
– Vai para o inferno, seu cabrão colaboracionista.
Os olhos dele incendiaram-se.
– Oh, querida… Obrigado – murmurou.
Ele pegou carinhosamente na mão esquerda de Eve. Ela fechou os dedos
num punho, resistindo, mas ele abriu-lhe a mão à força e espalmou-a em cima
da mesa, segurando-a enquanto pegava no pequeno busto de mármore. O
cabrão do Baudelaire, pensou Eve, mostrando os seus dentes ensanguentados
a René. O terror que sentia era avassalador.
– Quem é a mulher? – perguntou René, com prazer, posicionando o busto
por cima do dedo mindinho da mão esquerda de Eve.
– Mesmo que acreditasses em mim… – disse Eve – Não te vou dizer.
– Tens 14 possibilidades de mudar de ideias – avisou René, e baixou
brutalmente o busto.

O tempo estilhaçou-se depois disso. Havia dor tingida de vermelho,


seguida de ausência de consciência num preto aveludado. A voz metálica de
René penetrava ambas como uma agulha de aço, cosendo o pesadelo
acordado com o alívio desmaiado. Quando a água de um copo atirada ao seu
rosto com violência já não a fazia regressar à consciência, ele pressionava o
polegar numa das articulações desfeitas de Eve até ela acordar aos gritos.
Depois, René limpava lentamente os dedos num lenço limpo e as perguntas
recomeçavam. Tal como o ruído dos ossos a serem esmagados.
A dor vinha e ia, mas o terror era constante. Por vezes, Eve aninhava-se,
com as lágrimas a caírem-lhe pelo rosto; outras, era capaz de se sentar direita
no seu cadeirão sujo e encarar René. Em qualquer dos casos, tinha parado de
responder às perguntas dele. O sofrimento roubara-lhe a capacidade de
formar palavras ou até de soltar uma gargalhada irónica.
Sentiu uma espécie de alívio quando a última articulação se despedaçou.
Eve olhou para baixo, para a carnificina que antes eram as suas mãos, e foi
como se tivesse atravessado a linha de chegada. Suponho que ele pode
continuar com os dedos dos pés, pensou ela, muito lá longe, no interior da
sua carapaça tremente e soluçante. Ou os joelhos… Mas a dor era já tão
esmagadora que a ideia de mais dor já não tinha o poder de a assustar. Ela
chegara até ali, por isso podia manter o seu silêncio.
Porque René não a podia manter naquele escritório para sempre, a sangrar
para cima do tapete Aubusson, com o restaurante fechado e sem obter lucros,
e os vizinhos a começarem a perguntar-se que barulho era aquele que vinha
do apartamento dele. Em algum momento, ele teria de desistir deste jogo.
Podia entregá-la aos alemães ou matá-la. Eve já pouco se importava com o
seu destino. As duas possibilidades significavam que a dor pararia.
Resiste, chegou-lhe um murmúrio. A voz de Lili; Lili nunca a
abandonaria. Resiste-lhe, margaridazinha. Resistir aos alemães, assim que
eles a tivessem nas mãos deles, seria um jogo muito diferente – ao contrário
de René, eles tinham a capacidade de verificar as mentiras e confirmar as
verdades. Mas ela não tinha força para se preocupar com o sofrimento que a
esperava, mas apenas com o sofrimento por que passava.
Resiste. Era simples, na verdade. Não havia necessidade de fingir, de
manter um disfarce, de correr riscos. Eve já não caminhava sobre o fio da
navalha, porque o fio a tinha cortado aos pedacinhos, mas pelo menos já não
havia necessidade de mentir. Só resistir.
E foi isso que ela fez.

Acordou de um dos seus desmaios, que se tornavam mais frequentes, não


com um grito de dor, mas com um líquido ardente a correr-lhe pela garganta
abaixo. René estava de pé na retaguarda de Eve, a segurar-lhe o queixo para
trás enquanto lhe levava um copo de brandy à boca. Eve tossiu ao engolir o
líquido e tentou cerrar a boca, mas ele forçou o copo por entre os dentes dela.
– Bebe isto, ou arranco-te um olho com uma colher de absinto.
Eve acreditava que o terror tinha alcançado o seu auge, mas havia sempre
novos píncaros, novos graus de medo que ela tinha de escalar. Abriu a boca e
engoliu o brandy, numa dose tal que lhe queimou o estômago. René voltou a
sentar-se em frente a ela, devorando-a com os olhos.
– Eve – recomeçou ele, saboreando o verdadeiro nome dela. – Um nome
adequado. Como Eva, foste uma grande tentação. Nem sequer tiveste de me
dar uma maçã; recebi-te sem nada em troca e fiz de ti uma musa. Olha para ti
agora. E vejo desfilar na tua tez como slides a loucura e o horror, à vez, frios
e taciturnos…
– Lá vem o cabrão do Baudelaire… – disse Eve, a custo.
– De A Musa Doente. Também adequado.
Ficaram sentados em silêncio. Eve esperava mais perguntas, mas René
parecia contentar-se em olhar para ela. Eve deslizou lentamente para o
interior de um poço escuro e, quando voltou a emergir à superfície da
consciência, a dor parecia ter-se estranhamente desvanecido. O cadeirão de
René estava vazio. Ao procurá-lo com o olhar, a textura sinuosa e
escorregadia das paredes de seda verde jade pareceu ganhar vida e mover-se.
Eve piscou os olhos, mas as paredes expandiam-se e voltavam a contrair-se,
como um caleidoscópio. Abanou a cabeça para a clarear, fixando o olhar no
candeeiro Tiffany. O abajur de vidro tinha um pavão com a cauda aberta em
leque, revelando mil tonalidades de azul e verde, e Eve soltou um grito
quando o pavão virou a cabeça. Os olhos cintilantes da ave cruzaram-se com
os seus e todos os olhos nas penas da cauda também se voltaram, de forma a
encará-la. Olhos do mal, não era assim que as pessoas chamavam aos olhos
das penas dos pavões? Os olhos empinaram-se na direção de Eve e saíram do
abajur, produzindo uma pequena agitação no vidro e um tinido.
É imaginação tua, pensou Eve, confusa. Mas quando piscou novamente
os olhos, o pavão de vidro continuava ali, empoleirado no cimo do candeeiro,
com a cauda maligna aberta e todos aqueles olhos acusadores fixados nela.
Começou a transpirar profusamente.
O pavão falou, e a voz dele era tão límpida como o vidro de que era feito.
– Quem é a mulher com quem foste detida?
Ela soltou outro grito. A sua mente estava em delírio; ela tinha
enlouquecido por completo. Ou o René deu-me alguma coisa, pensou ela,
alguma coisa no brandy… Mas o pensamento fugiu-lhe, desaparecendo antes
que ela o pudesse agarrar e tirar dele a verdade.
O pavão falou novamente.
– Quem é a mulher, Eve?
– Eu… eu não sei. – Ela já não sabia nada; tinha caído num mundo de
pesadelos onde nada era certo. O busto de Baudelaire estava em cima da
mesa, com os olhos de mármore abertos e repletos de sangue. Lágrimas de
sangue corriam pelas maçãs do rosto de mármore.
– Quem é a mulher? – As palavras pareciam sair trituradas da garganta de
mármore do busto. – Claro que sabes.
No lintel da lareira estava pousado um jarro de vidro estreito com lírios
compridos e graciosos. Lírios do mal, fleurs du mal, mantidas eternamente no
interior de vidro. Eve sentiu a boca a arder, ao olhar para a água onde os
caules verdes estavam mergulhados.
– Sede – murmurou ela. A língua transformara-se em pedra árida.
– Dar-te-ei água quando me disseres quem é a mulher.
Eve continuava a fitar os lírios, os quais, por sua vez, a fitavam com olhos
ensanguentados.
– Para saciar esta sede atroz que me põe louco, teria de beber todo o
vinho que caberia no seu túmulo. – O túmulo dos lírios. O túmulo de Lili.
Eve gritou. A sepultura abria-se a seus pés, no meio do tapete Aubusson, a
cuspir terra negra… – Le vin de l’assassin – disse a estátua de mármore,
citando o nome do poema. – O vinho do assassino. Muito bem, Eve. Quem é
a mulher?
O cacarejo parecia vir de René, mas Eve não o conseguia ver. Ele tinha
desaparecido. Ela via apenas as paredes verdes deslizantes, que oscilavam ao
mesmo ritmo da sua pulsação acelerada, o pavão com a cauda de vidro aberta
e o busto de faces ensanguentadas. O túmulo que cuspia terra a seus pés.
Havia algo lá em baixo, no fundo, um monstro enorme e esfomeado. Ela
puxou a corda que lhe amarrava os pulsos e a dor das mãos despertou. O
monstro tinha saído do túmulo e estava a comer-lhe as mãos, mastigando-lhe
os pulsos. Se ela abrisse os olhos, poderia ver os dentes cintilantes do
monstro a devorar lentamente os seus dedos partidos. Voltou a gritar,
tentando livrar-se da corda, e a dor agonizante intensificou-se. Ela ia morrer
desta dor, ia ser comida viva e estaria consciente até ao fim. Desatou aos
soluços, movendo a cabeça de forma desequilibrada para trás e para a frente,
ao mesmo tempo que aquele monstro corcunda e feroz lhe comia
languidamente as mãos.
– Quem é a mulher, Eve?
Lili, pensou ela. O monstro já te matou? Ela não sabia. Não se conseguia
lembrar. Gotas de suor corriam-lhe do cabelo encharcado para o pescoço.
– Quem é a mulher?
Eve forçou-se a abrir os olhos. Encararia o monstro ao ser morta por ele.
Olhou para as mãos, esperando vê-las presas dentro de umas mandíbulas com
dentes aguçados, e soltou um grito estridente. As mãos não tinham
desaparecido – tinham-se transformado, como se os dedos estivessem a tentar
crescer outra vez. Tinha o dobro dos dedos, cada um pintado com sangue e a
terminar, não numa unha, mas num olho. Todos os olhos piscaram
simultaneamente para ela, cegos e acusadores.
O monstro sou eu, pensou ela por entre um sofrimento atroz e absoluto. O
monstro sou eu. Eu matei a Lili? Eu matei-a?
– Quem é a mulher, Eve?
Eu matei-a?
Os lábios de Eve entreabriram-se às cegas e o mundo louco e cadente
escureceu. Ondas e mais ondas de escuridão e dor, terror e dentes.

– Hora de acordar, querida.


A luz apunhalou-lhe os olhos, quando Eve os tentou abrir, mas nada a
feria mais do que a voz penetrante e metálica de René. Endireitou-se na
cadeira e uma vaga de dor percorreu-lhe as mãos. Continuava amarrada ao
cadeirão, tinha a boca seca como algodão e sentia a cabeça quase a explodir.
René sorriu, encostado à janela com vista para a rua. Vestia um fato cinzento,
tinha o cabelo penteado para trás com brilhantina e uma chávena de chá na
mão. A luz forte do sol penetrava pela janela. Era de manhã, mas Eve não
sabia que manhã: se teriam passado uma ou duas noites ou todas as noites de
um mês, durante aquela tempestade de dor e…
Dentes. Paredes deslizantes, olhos do mal, dentes. Eve olhou
descontroladamente em redor, mas o escritório estava igual ao que sempre
fora. As paredes verdes de seda não oscilavam, o pavão no candeeiro Tiffany
estava confinado ao vidro do abajur e os lírios no jarro eram apenas flores.
Lírios. Lili. O coração de Eve deu um salto e ela olhou para trás, na
direção de René. Ele sorriu e bebeu um gole do chá quente.
– Espero que estejas mais confortável.
Eve olhou pela primeira vez para as mãos. Tinham sido ligadas com um
pano limpo – luvas volumosas e anónimas que escondiam o horror. Ela ainda
vestia as roupas sujas, mas o rosto e o cabelo tinham sido limpos. René dera-
se ao trabalho de a tornar apresentável.
– Herr Rotselaer mandou os seus soldados virem buscar-te – explicou
René, olhando através da janela para a rua lá em baixo. – Devem estar a
chegar… Oh, talvez dentro de meia hora. Achei que devias ter um aspeto
minimamente arrumado para os teus captores. Alguns destes jovens soldados
ainda se sentem melindrados em magoar mulheres. Mesmo espias inglesas.
Eve sentiu-se esmagada por um sentimento de alívio, como uma
avalanche. Os boches vêm buscar-me. Ela não ia morrer naquela sala. Ia para
uma cela de prisão alemã. Talvez só voltasse a sair dessa sala para enfrentar
um pelotão de fuzilamento, mas, naquele momento, o facto de aquela cela
não incluir René era o suficiente. Ele desistira de a torturar. Desistira.
Aguentei, pensou ela, por entre um espanto entorpecido. Resisti.
Na sua mente, Lili sorriu. Talvez fosse ver Lili na prisão, assim como
Violette. Se pudessem ficar juntas, conseguiriam enfrentar qualquer coisa.
Até uma fileira de armas.
– A tua amiga – disse René, como se lhe lesse o pensamento. – Diz-lhe
olá por mim, se a vires na cela ao lado. Parece uma mulher extraordinária,
essa tua Louise de Bettignies. Tenho pena de nunca a ter conhecido.
Ele bebericava o chá, de pé e à luz do sol. Eve fitou-o: as marcas do pente
no cabelo, o rosto barbeado de fresco.
– Tu contaste-me – disse ele. – Se é isso que estás a pensar.
– Não te contei n-n… – tentou ela dizer, por entre os lábios dormentes. –
N-N… Eu não te contei n… – Nada. Rien. Uma palava tão pequena e não
queria sair. A língua tinha paralisado.
– Louise de Bettignies, ou Alice Dubois, ou outra dezena de nomes. Tu
disseste-mos todos. O Kommandant vai ficar muito satisfeito por saber quem
Herr Rotselaer tem nas mãos. A líder da rede de espionagem que atua na
área. É espantoso que seja uma mulher.
Eve repetiu:
– Não te contei n-n… – A língua presa falhava na palavra mais
importante que ela alguma vez tivera de dizer, gaguejando por entre um
sentimento de pânico tão para lá de aterrorizador que ela mal o sentia. Era
uma reação de tal tamanho que o seu corpo não a conseguia conter; flutuava
acima dela como uma montanha, pronta a achatá-la por completo. Não lhe
contei nada.
Mas Eve recordou os sonhos febris inexplicáveis, o busto de Baudelaire a
ganhar vida…
René fez um aceno de cabeça, sem dúvida por ver as expressões
estampadas no rosto dela. Durante muito tempo, ela mantivera o rosto
fechado a René, como uma caixa-forte. Naquele momento, ela tinha sido
arrombada e ele folheava cada pensamento e emoção de Eve como se fossem
páginas de um livro.
– Tinhas razão numa coisa que me disseste ontem: eu não tinha maneira
de distinguir a verdade da mentira em nada que me dissesses. Mas o ópio –
fez rodar o chá dentro da chávena – provoca visões estranhas quando
administrado em quantidade. E também reduz a resistência. Parece-me que
viste coisas bem estranhas ontem à noite… o que acabou por te tornar muito
maleável.
Como um disco quebrado, Eve só conseguia repetir:
– Não te contei n-n-n…
– N-N-N-Não, minha querida. Tu palraste como um passarinho. Disseste-
me o nome da tua amiga Louise, pelo qual te fico devidamente agradecido. –
Ele brindou a Eve com a chávena. – Tal como os alemães.
Traída. A palavra uivava dentro da cabeça de Eve. Traída. Não, ela nunca
trairia Lili.
Ele sabe o nome dela. Quem lhe disse, senão tu?
Não.
Traidora
Não…
– Na verdade – continuou René em tom despreocupado, ignorando o
silêncio de Eve –, se eu soubesse que o ópio era a melhor forma de te fazer
tão disponível para falar, talvez neste momento tivesses as duas mãos intactas
e o meu escritório não cheirasse a urina. Não sei como vou conseguir tirar as
nódoas do meu Aubusson. – O sorriso dele abriu-se; havia nele uma ponta de
inquietude e sarcasmo. – Mas talvez tenha valido a pena estragar um tapete.
Destruir-te deu-me prazer, Marguerite. Eve. Sabes, acho que nenhum desses
nomes se adequa a ti.
Lili encostada a uma parede, com uma venda nos olhos, as espingardas
apontadas a ela…
Traidora. Traidora. Evelyn Gardiner, sua fraca nojenta cobarde.
– Tenho um nome melhor para ti. – René pousou a chávena e aproximou-
se. Baixou-se até encostar a face à de Eve e ela sentiu o cheiro da colónia
dele. – Judas, minha querida.
O coração de Eve disparou. Estava amarrada à cadeira e tinha as mãos
envoltas em panos, mas Eve apanhou o lábio inferior de René com os dentes
e mordeu com força. Sentiu o sabor ferruginoso do sangue dele, amargo
como o seu próprio fracasso. Cravou os dentes mais fundo, e depois mais
ainda, mesmo quando ele gritou e começou a puxar-lhe os cabelos. Era o
último beijo entre espia e espiado, cativa e captor, traidora e colaborador, as
bocas unidas por dentes e sangue. René teve de se arrancar daquele beijo
brutal para se libertar. A cadeira de Eve caiu para a frente e a cabeça dela
bateu no chão com tanta força que o mundo se tornou turvo e palpitante.
– Cabra – sibilou René, a gola salpicada de sangue, os olhos negros de
fúria, a voz metálica finalmente a elevar-se da habitual calma pretensiosa e
monótona. – Sua espia inglesa de merda, sua empregadinha de meia-tigela,
sua galdéria venenosa…
Ele continuou, o seu vocabulário elegante a dar finalmente lugar ao calão
de rua mais obsceno da língua francesa, a boca vermelha do seu próprio
sangue, como se tivesse estado a comer almas – o que era verdade. Ele tinha
estado a comer almas e corações e vidas nos últimos meses, qualquer coisa
em nome do lucro. René Bordelon tinha naquele momento o aspeto do
monstro esfomeado que era, mas Eve não sentiu nem uma ponta de triunfo
por isso. Também ela o tinha quebrado, com uma dentada mais audível do
que o esmagar das suas articulações. Ela estava caída no chão, amarrada ao
cadeirão, e chorava, chorava, chorava, mas não havia lágrimas suficientes no
mundo para a vergonha e o horror que sentia. Ela era Judas; ela entregara a
melhor amiga de sempre ao pior inimigo de sempre.
Quero morrer, pensou Eve, enquanto René se recompunha e voltava para
a janela, pegando furiosamente num lenço para limpar o lábio. Quero morrer.
Ela continuava a desejá-lo, continuava a chorar, quando os alemães
chegaram. Quando soltaram as cordas e a levaram dali.
Capítulo 31
Charlie
Maio de 1947

– Meu Deus – sussurrou Finn. Eu tinha estado demasiado atenta à história


de Eve para me aperceber de que ele, entretanto, entrara no quarto.
– Não – disse Eve na sua voz grave e rouca. – Deus não esteve sequer
perto daquela sala de paredes verdes. Só Judas. – Pegou no pacote de
cigarros, mas ele estava vazio havia muito tempo. – É o escritório q-que me
aparece em sonhos. Não o rosto do René nem o som dos meus dedos a partir.
É o escritório. Aquelas paredes ondulantes e o pavão Tiffany e o busto de B-
Baudelaire…
A voz dela esmoreceu e ela desviou a expressão endurecida do seu rosto.
Algures no exterior, o sino da igreja tocou e os três escutámos o som
melancólico: Finn com o ombro encostado à parede, de braços cruzados
sobre o peito; eu, enrolada no banco da janela; Eve à minha frente, imóvel
como uma estátua, mãos cruzadas no regaço.
Aquelas mãos. Desde o início que eu queria saber o que lhe tinha
acontecido às mãos, e naquele momento já sabia. Eram o preço que Eve
pagara por servir o seu país, as feridas de guerra que todos os dias a faziam
recordar como ela tinha quebrado. Um coração intransigente como o dela
nunca aceitaria que ela não tinha qualquer culpa por ter sucumbido. Ela via
apenas cobardia, o que a envergonhava tanto que ela se recusava a guardar as
medalhas que lhe tinham sido atribuídas. Olhei para as minhas mãos intactas
e imaginei um busto de mármore a esmagar cada um dos meus dedos até as
minhas mãos ficarem iguais às de Eve e um arrepio profundo percorreu todos
os ossos do meu corpo.
– Eve – ouvi-me a mim própria dizer num murmúrio. – És a alma mais
corajosa que alguma vez conheci.
Ela ignorou o meu comentário.
– Quebrei. Bastou um pouco de ópio num copo de brandy para eu desatar
a falar.
Havia algo que me incomodava naquilo. Não batia certo, e eu abri a boca
para dizer porquê, mas Finn começou a falar num tom suave, ainda que
zangado.
– Não seja tonta, Gardiner. Toda a gente quebra. Basta descobrir o ponto
fraco da pessoa, algo de muito importante para ela, e depois torturá-la durante
o tempo que for preciso… Todos nós quebramos. Não há vergonha nisso.
– Sim, claro que há, seu escocês tonto. A Lili foi condenada em tribunal
por causa disso, tal como a Violette e eu.
– Então, culpe o René Bordelon por a ter torturado e feito contar tudo.
Culpe os alemães por terem dado a sentença…
– Oh, há culpa suficiente para todos nós no meu coração mirrado. – O
tom dela era impiedoso na sua autocondenação, e ela continuava sem olhar
diretamente para nós. – O René e os alemães tiveram o seu papel, mas eu
também. A Violette nunca me perdoou, e não a censuro por isso.
– O que aconteceu à Lili? – perguntei. – Sempre foi… o pelotão de
fuzilamento? – Imaginei-a de pé contra a parede, pequena e corajosa, de
olhos vendados, e vi também a minha bela Rose. Eve tinha feito com que Lili
fosse tão real e tão perfeita para mim quanto Rose.
– Não – retorquiu Eve. – Tinha passado muito pouco tempo desde a
execução da Cavell. Os alemães acharam que haveria muito alarido se
matassem outra mulher à q-queima roupa. O nosso destino foi bem diferente.
– Eve estremeceu, como se um rato lhe tivesse passado a correr por cima dos
pés.
– Mas tu sobreviveste – disse-lhe, sentindo a boca seca. – A Violette
sobreviveu. E a Lili…
– Não falemos mais sobre o julgamento e o resto. Não é uma história para
noites escuras e, de qualquer maneira, não é importante neste momento. –
Eve afastou o pensamento que lhe ia na cabeça de um modo quase visível e
fixou o olhar no meu. – O que é importante agora é o René Bordelon. Já
sabes o que ele me fez, que tipo de homem era. Quando a guerra acabou e eu
voltei para casa, o meu plano era regressar a Lille e estourar-lhe os miolos.
Há anos que sonhava com isso. O Capitão Cameron deitou os meus planos
por terra… No dia em que cheguei a Inglaterra, mentiu-me na cara ao dizer-
me que o René estava morto. – De rouca com emoção, a sua voz voltava à
secura habitual, afastada que estava da narração da sua própria tortura. –
Provavelmente, o Cameron pensou que desta forma eu teria paz. Aquele
homem era demasiado nobre para compreender a vingança, e como ela nos
mantém acordados noite após noite, a tremer com o ódio, a sonhar que, se
pelo menos pudéssemos sentir o sangue da vingança na boca, dormiríamos
finalmente sem s-s-s-sonhos.
Finn acenou vigorosamente com a cabeça. Ele compreendia. E eu
também. Pensei nos soldados alemães que tinham matado Rose e a sua filha,
e o ódio que senti foi imediato e violento.
– Bem, posso estar quase 30 anos at-t-t… – Eve bateu com força o punho
deformado no joelho, e a palavra soltou-se instantaneamente – … 30 anos
atrasada, mas vou ajustar contas com ele. O René tem uma dívida para
comigo. – Os olhos de Eve não despregaram dos meus. – E ele também tem
uma dívida para contigo.
Pisquei os olhos.
– Comigo?
– Dizes que precisas de uma razão para continuares nesta busca, ianque, e
eu vou dar-ta, mas tenho de te perguntar. Queres mesmo ouvir o que te vou
dizer?
Pisquei novamente os olhos. Estávamos tão entrincheirados no passado de
Eve que me senti uma atriz a ser arrastada para a peça errada.
– Sim. Quero ouvir. Mas não compreendo, não conheço o René Bordelon.
– Ainda assim, ele tem uma dívida para contigo. Ele fez muito mais do
que simplesmente dar emprego à tua prima. – Eve soava tão lacónica como
um oficial do exército. – Eu precisava de s-saber o que o René andou a
tramar desde que se instalou em Limoges como René du Malassis, pelo que
perguntei ao Major Allenton. Ele é um idiota, por isso é óbvio que subiu na
carreira ao longo dos anos. Fez uns trabalhos importantes durante a segunda
guerra… Eu estive envolvida em alguns deles, o que me deu um motivo para
começar a conversa que, por fim, chegou ao tema René du Malassis. Com
uma dose generosa de vinho e de lisonja, o Allenton não hesitou em despejar
informação para cima do meu colo: algumas coisas do conhecimento público
e outras bastante secretas. Graças a Deus que existem idiotas de língua solta
como ele. O Allenton trabalhou com algumas redes da resistência francesa na
última guerra, coordenando o lançamento de víveres, recolhendo
informações. Era bem sabido em Limoges que o Monsieur du Malassis era
um colaborador. Em troca de favores políticos, ele passava informação aos
nazis e à Milice que trabalhava para a escumalha de Vichy. – Eve puxou o
saco e tirou de lá algo que apresentou com as pontas de dois dedos disformes.
– Este é o René em 1944. Era uma pessoa de interesse, por isso o Allenton
tinha uma fotografia dele.
Peguei nela. Era uma fotografia tirada num jantar formal, com os ilustres
locais e os oficiais nazis alinhados para o retrato. No canto esquerdo, alguém
tinha feito um círculo à volta de um homem, e eu olhei mais de perto. O
arqui-inimigo de Eve tinha finalmente um rosto – mas não o rosto elegante e
sanguinário que eu imaginava com base nas histórias dela. Um homem velho
num fato escuro fitava-me, de rosto magro, o cabelo grisalho penteado para
trás a mostrar uma testa alta. A idade tornara-o esquelético, e não entroncado,
mas não era débil; a bengala com castão de prata estava pendurada num
braço, como um acessório. Examinei o sorriso vago naquele rosto enrugado,
o modo como segurava o pé do copo de vinho entre dois dedos, e perguntei-
me se estaria a projetar o passado nesta imagem, ao pensar que o olhar dele
era frio, frio, frio.
Finn debruçou-se por cima do meu ombro para observar a fotografia e
praguejou em voz baixa. Eu sabia o que ele estava a pensar. Este velho tinha
destruído Eve no seu escritório de paredes verdes. Ela transformara-se
precocemente numa velha, curvada sob uma corcunda de pesadelos e whisky,
enquanto ele continuara a ganhar mais dinheiro, a fazer mais amigos entre os
invasores alemães, a destruir mais vidas. Tinha matado pelas costas um
jovem sous-chef por ele o ter roubado. Tinha participado em banquetes
repletos de cristais e suásticas e sorria ao ser fotografado…
Olhei para o rosto dele e odiei-o.
– Durante a segunda guerra, toda a gente sabia que ele era um oportunista
– continuou calmamente Eve. – Mas o que nem toda a gente sabe é que ele
foi parcialmente responsável por um m-m-m… por um massacre. Através de
fontes na Milice, chegou aos ouvidos do Major Allenton que um informador
civil em Limoges tinha passado informações sobre a atividade da Resistência
francesa numa pequena aldeia ali perto. Especificamente, ele deu à Milice o
nome de uma jovem e disse que ela e outros membros da Resistência tinham
raptado e matado um oficial alemão. Esse oficial era um amigo próximo do
SS Sturmbahnführer Diekmann, do Der Führer Regiment, que pertencia à
Das Reich Division. Quando a Milice passou esta informação aos alemães e
eles confirmaram que o oficial capturado estava morto, toda a gente esperava
que Diekmann prendesse e mandasse enforcar a jovem. Mas ele decidiu fazer
um exemplo não só dela, mas de toda a aldeia. – Os olhos de Eve não se
desviavam dos meus. – A jovem dava pelo nome de Hélène Joubert. A aldeia
era Oradour-sur-Glane. O homem que denunciou ambos foi o René.
Fui assolada por uma onda de pavor. Recordei a voz de Madame
Rouffanche a dizer: Hélène Joubert, disse ela que se chamava… Nós
chamávamos-lhe Rose.
– Não se sabe ao certo se a tua prima fazia realmente parte da Resistência
– continuou Eve. – Mas, se o pai da filha dela estava envolvido, ela tinha
certamente ligações. Ela não estava na lista dos elementos ativos em
nenhuma das redes de contactos que o Allenton conhecia, embora isso não
prove que não pertencia à Resistência. Talvez não tivesse tido mais contacto
com eles depois de ter tido a filha ou talvez passasse informações a partir do
restaurante em Limoges. Quem sabe? Quer tenha espiado os nazis que
frequentavam o Le Lethe ou não, creio que o René concluiu que a tua Rose
era suspeita. Por essa altura, ele estava escaldado no que dizia respeito a
empregadas que escutavam conversas às escondidas. – Um sorriso curto e
amargo. – Mesmo que ela pertencesse à Resistência, a tua prima não teria
estado envolvida no rapto e na morte de um oficial alemão, pois seria uma
operação executada por combatentes mais experientes. Mas o René queria
que ela desaparecesse, por isso…
– Por isso passou o nome dela aos alemães? – sussurrei. – Porque não se
limitou a despedi-la, se queria que ela fosse embora do restaurante?
– Provavelmente, achou que seria mais seguro ver-se definitivamente
livre dela. Ele podia tê-la matado com as suas próprias mãos. Por essa altura,
ele não teria escrúpulos nenhuns em apertar um gatilho. Mas talvez não
quisesse voltar a fazer uma coisa dessas, não depois do incidente público do
sous-chef. Isso poderia custar-lhe demasiados favores nazis. Então, limitou-se
a passar o nome dela e a aldeia onde ele sabia que ela passava os fins de
semana, e foi assim que se livrou da tua prima. – Eve inclinou a cabeça. –
Para ser justa, ele não poderia saber que a cidade inteira seria massacrada.
Mas mesmo que os alemães tivessem tido misericórdia do resto de Oradour-
sur-Glance, a tua prima teria sido, sem dúvida, apanhada e executada pela SS.
Por causa do René Bordelon.
Senti a pele do meu corpo arrepiar-se. A fotografia ardia-me na mão.
Olhei outra vez para aquele rosto velho e presunçoso.
– Não há vingança possível contra os alemães que efetivamente acabaram
com a vida da tua prima – disse Eve. – O Sturmbahnführer Diekmann, o
homem que ordenou o massacre, morreu apenas duas semanas depois, num
ataque dos Aliados. Está nos registos militares, o Allenton confirmou. Os
soldados que executaram as ordens dele devem ter morrido com ele, ou
voltado para a Alemanha sem deixar rasto, depois da guerra, ou ainda estarão
nos campos de prisioneiros de guerra. Nenhum deles foi identificado e levado
a tribunal pelo que aconteceu em Oradour-sur-Glane, nem em Nuremberga
nem depois, e sem outro julgamento coletivo é improvável que alguma vez se
venha a descobrir quem foi o homem que disparou os tiros que mataram a tua
prima. Esses homens estão provavelmente fora do nosso alcance. Mas o
René, não. Ele não apertou o gatilho, mas não há dúvidas de que fez tudo
para que a tua prima fosse morta.
Não me conseguia mexer. Não conseguia sequer respirar. Continuei a
olhar fixamente para aquele rosto presunçoso. Oh, Rose…
– Vou descobrir onde está o René Bordelon e vou fazê-lo pagar por tudo
aquilo que fez. – Eve virou as suas mãos destruídas. – Vens comigo, Charlie
St. Clair?
Capítulo 32
Eve
Março de 1916
Bruxelas

O julgamento durou apenas um dia.


Para Eve, as horas dolorosas passadas naquela sala imponente ficaram
envoltas numa névoa de confusão. Quando entraram, levadas pelos guardas,
Violette olhava fixamente para a frente, enquanto Lili, no seu jeito curioso,
olhava em redor, para o teto alto e envidraçado, as cadeiras curul e os
orgulhosos leões belgas – Eve, no entanto, focava o olhar na pele manchada
dos seus dedos mal cicatrizados, cruzados à sua frente. Ainda lhe doíam
atrozmente, apesar dos meses que tinham já passado; a dor parecia-lhe muito
mais relevante do que o rebuliço de palavras em alemão à sua volta.
Cumpriram-se mais formalidades, à medida que outros oficiais alemães
entravam ordenadamente na sala. O olhar de Eve percorria cada um daqueles
rostos. Soldados alemães, oficiais alemães, funcionários alemães… Não
havia franceses, os civis não estavam autorizados a assistir ao espetáculo.
René Bordelon não estava presente para poder espreitar e ver o destroço que
tinha feito dela, e Eve estava grata por isso. Ela tinha mais receio de ver o
rosto dele do que de ouvir a sentença. Ela sabia que, se o visse, cairia como
um tordo a tremer na carpete grossa da sala.
Eu não costumava ser assim, fraca e medrosa, pensou Eve, enquanto um
dos juízes fazia um discurso a descompô-las. Havia meses que ela se tinha
tornado nesta coisa quebrada que, perante a mais pequena provocação, se
deitava na cela a tremer e a soluçar, e ainda não se habituara a isso. A única
coisa feroz em Eve era o seu profundo desprezo por si própria.
Traidora. Esse sussurro era agora parte do seu sangue, pulsava com todos
os batimentos do seu coração, venenoso e prosaico. Traidora.
Lili sabia da sua traição. Mal tinham sido autorizadas a falar uma com a
outra durante os últimos meses, separadas nas suas celas de prisão em Saint-
Gilles, mas Eve subornou um dos guardas para contar a Lili o que tinha feito.
Ela não podia carregar o peso da sua traição como uma mentira. O coração de
Eve martelava-lhe no peito quando ela levantou a cabeça para olhar em redor,
forçando-se a ignorar o perfil imperturbável de Violette para se fixar em Lili.
Cospe na minha cara, implorou Eve em silêncio. Eu mereço.
Mas tudo o que Lili fez foi sorrir. Tinha o pequeno rosto iluminado por
um dos seus olhares traquinas, como se ela não estivesse cercada por guardas
inimigos, como se ela ainda fosse uma mulher livre – e levou dois dedos aos
lábios e soprou um beijo a Eve.
Eve retraiu-se, como se o beijo fosse um golpe.
Foram questionadas à vez e impedidas de ouvir o testemunho das outras.
Violette foi a primeira; Eve ouvira o verdadeiro nome dela, Léonie van
Houtte, durante o seu primeiro interrogatório, mas não conseguia pensar na
tenente de Lili senão como Violette. Pelo menos ela via Eve como a traidora
que era. Quando Eve foi levada para fora da sala, Violette olhou para ela com
um olhar carregado de ódio. Eve foi novamente conduzida à sala para ser
interrogada, e não se deu ao trabalho de se defender. Toda a gente aqui sabe
qual vai ser o resultado disto. Permaneceu de pé e em silêncio, a ouvir o
discurso em alemão, a sentir as mãos a latejarem, a respirar os cheiros
insípidos a brilhantina e a graxa de sapatos, e não tardou a ser levada
novamente para fora da sala. Lili era aquela em quem eles estavam mais
interessados; Eve podia praticamente sentir na pele a onda de antecipação que
percorria a sala, quase feroz, e perguntou-se se seria semelhante à que
passava pelos espectadores do Coliseu antes de os leões serem libertados na
arena. Os leões nesta sala eram dourados e esculpidos, ainda assim podiam
impor a morte.
Os juízes desapareceram; passou meia hora, medida pela precisão do
relógio – e tudo estava acabado. Eve, Lili, Violette e vários outros acusados
de menor importância foram levados novamente à presença dos juízes, e um
silêncio descomunal caiu sobre a sala. A boca de Eve ficou seca como papel e
ela começou a tremer. Pelo canto do olho, viu os dedos de Violette mexerem-
se, como se ela tentasse alcançar a mão de Lili. Lili estava imóvel como uma
estátua.
As palavras foram ditas num alemão anasalado.
– Para Louise de Bettignies, a morte.
– Para Léonie van Houtte, a morte.
– Para Evelyn Gardiner, a morte.
Ouviu-se um burburinho na sala e Eve sentiu uma espécie de pontapé no
peito. Mas não de medo.
De alívio.
Com os olhos turvos, baixou o rosto para as suas mãos deformadas e
pensou, tal como tinha pensado quando chorava copiosamente no chão do
escritório de paredes verdes de René: Quero morrer.
Os meses de prisão, monotonia, dor, morfina e culpa terminariam.
Restava-lhe apenas a boca das armas dispostas diante dela. A visão que
imaginou era bela. Uma saraivada de balas e depois… nada.
Mas antes que o seu coração se pudesse inundar de alívio, Lili avançou.
Falou num alemão suave e perfeito, o único momento durante o julgamento
em que falou na língua do inimigo.
– Meus senhores, peço-vos que não condeneis à morte as minhas amigas.
Elas são jovens e eu imploro-vos misericórdia para elas. – A sua cabeça loura
inclinou-se. – Quanto a mim, quero morrer bem.
– Aceito a minha sentença. – Violette falou num tom cristalino e
insolente, interrompendo a líder. – Matem-me. Mas, antes de morrer, peço-
vos, e não me podem recusar, que não me separem da Lil… da Louise de
Bettignies.
Eve ouviu a sua própria voz.
– Nem a mim.
Uma fila de rostos alemães olhou para baixo, encarando-as, e Eve viu
confusão nas suas expressões. Tinha observado a mesma expressão nos rostos
dos guardas de Saint-Gilles: perplexidade, perante uma mulher pequenina
como Lili, outra gaga como Eve, e Violette, com os seus óculos de professora
primária; perguntavam-se como era sequer possível que qualquer uma delas
fosse espia?
Os boches têm-nos presas há meses, pensou Eve, e ainda não sabem bem
o que pensar destas fleurs du mal. Este pensamento produziu uma centelha
de orgulho visceral nela, o que a fez endireitar as costas por instantes, antes
de o peso da culpa a encurvar novamente.
As três mulheres da Rede Alice foram autorizadas a ficar juntas enquanto
os oficiais alemães discutiam em voz baixa. Outra hora passou, lenta. As
mãos de Eve latejavam. Outra declaração dos juízes. Outro pontapé seco no
peito de Eve, mas desta vez não era alívio. Era desespero.
O julgamento acabara.

– Eles não nos vão executar – disse Lili.


Violette ainda tremia em reação à sentença, enquanto esperavam entre os
guardas, no pátio do tribunal. Eve estava entorpecida, de pé, mas a decisão
quase destroçara Violette, que parecia preparada e disposta a ser executada ali
mesmo, naquela sala de tribunal.
– Vão mandar-nos para a Alemanha… – murmurou entre dentes.
A sentença tinha sido emendada: as três seriam sujeitas a 15 anos de
trabalhos forçados na prisão de Siegburg.
– Quinze anos? – Lili torceu o nariz. – Não. Trabalharemos só até à
vitória da França.
– Eu p-p-preferia o pelotão de fuzilamento – ouviu-se Eve dizer.
Os olhos vermelhos de Violette penetraram os dela, amargos e
acusadores.
– Era o que merecias – soltou, cuspindo na cara de Eve. – Judas.
Os guardas intervieram, arrastando Violette para o lado. Eve ficou
imóvel, deixando que a saliva morna lhe corresse pela cara, e os outros
guardas permitiram que Lili se aproximasse, ao afastarem-se ligeiramente.
Era apenas um minúsculo oásis de privacidade, mas era tudo o que um
prisioneiro podia esperar.
– Lamento, margaridazinha. – Sentiu o toque de uma manga gasta a
limpar o seu rosto. A sensação quase fez estremecer Eve. Havia tanto tempo
que ninguém a tocava com amabilidade. – A Violette é muito dura.
– Ela odeia-me. – Eve disse-o sem rancor. – Por te ter t-traído.
– Pff… Quem sabe como os boches obtiveram o meu nome e descobriram
que era eu quem geria a rede? Tu não te lembras de o revelar, com ópio ou
sem ópio. – Lili encolheu os ombros, completamente indiferente. – Fui
identificada. Como isso aconteceu, não importa.
– Importa – afirmou Eve.
Um sorriso.
– Para mim, não.
Eve quase desatou a chorar. Não me perdoes, ela queria gritar. Por favor,
não me perdoes! O perdão doía muito mais do que o ódio.
Violette foi autorizada a juntar-se-lhes novamente. O olhar era
fulminante, mas ela estava tranquila, e Eve acolheu com gratidão o seu ódio
silencioso. Permaneceram as três em silêncio, à espera do carro que as levaria
de regresso às respetivas celas. Dali, seria provavelmente uma questão de
dias até serem transportadas para a prisão de Siegburg.
Siegburg. Eve tinha ouvido horrores desse lugar. Olhou para este, na
direção da Alemanha, e reparou que as outras faziam o mesmo, como se as
paredes frias e húmidas da prisão já estivessem à vista.
– Não pensem nisso, mes anges. – Lili colocou-se entre Eve e Violette,
pôs um braço nos ombros de cada uma e apertou com força. – Vamos
aproveitar o presente. Vocês estão aqui e eu estou perto de vocês.
Eve pousou a cabeça no ombro de Lili, e as três ficaram sob o sol pálido
de março à espera de serem levadas.
Capítulo 33
Charlie
Junho de 1947

Fiquei a olhar fixamente para a fotografia daquele monstro durante o resto


da noite, enquanto tentava compreender os atos dele. Tu fizeste com que a
Rose fosse morta, pensava eu repetidamente. Fizeste com que a Rose fosse
morta. A ordem de disparo fora dada por um oficial da SS e o gatilho tinha
sido premido por um soldado alemão – mas a minha prima nunca teria sido
um alvo se não fosse aquele homem de fato elegante e bengala de castão de
prata.
Eu não fora capaz de responder à pergunta de Eve. Estava demasiado
transtornada; limitei-me a pegar na fotografia, em silêncio, e a voltar trôpega
para o quarto. Atravessada em cima da cama, era como se tivesse sido
atingida por um pedregulho, sentindo-me sem energia e esmagada sob aquele
peso.
René Bordelon. O nome ecoava na minha cabeça. Tu fizeste com que a
Rose fosse morta.
Ele foi sempre o elo entre mim e Eve. Rose tinha trabalhado para ele, Eve
tinha trabalhado para ele – duas mulheres, provavelmente entre milhares, que
tinham trabalhado para ele ao longo das décadas – e, por causa desse facto
corriqueiro, o nome dele num pedaço de papel levou-me a Eve e,
eventualmente, àquele quarto de hotel. Mas eu nunca tinha pensado nesse elo
como mais do que um pedaço de papel.
Assim que o dia amanheceu, eu estava vestida e de mala feita, e dirigi-me
à porta do auberge. Não fiquei surpreendida por ver que Eve já lá estava,
com a sua sacola aos pés, de costas direitas e enérgica, a fumar o primeiro
cigarro do dia. Ela virou-se e eu vi que os olhos dela estavam raiados e
vermelhos, como os meus.
– Eu vou consigo – disse-lhe. – Vou ajudá-la a encontrá-lo.
– Ótimo – respondeu Eve, num tom descontraído, como se eu tivesse
concordado em ajudá-la a preparar um café. – O Finn foi buscar o carro.
Ficámos à espera dele, sob a luz rosada da manhã.
– Porque é que precisa da minha ajuda? – Não pude deixar de lhe
perguntar. Era outra questão que me tinha intrigado na noite anterior. – Há
mais de 30 anos que a Eve quer levar este homem a tribunal. Não seria mais
fácil fazê-lo sem uma jovem universitária grávida atrás? A Eve não precisa
de mim. – Embora uma grande parte de mim desejasse que sim. Eu queria
tomar conta dela, mesmo que ela fosse tão difícil de lidar como um punhado
de agulhas.
– Não, não preciso de ti – respondeu ela com brusquidão. – Mas o cabrão
fez mal às duas, não só a mim, e isso significa que tens o direito de te vingar,
se quiseres. Eu acredito na vingança. – Eve olhou para mim, com um olhar
impenetrável. – Perdi a fé em muita coisa ao longo dos anos, mas nisso, não.
Ela permaneceu ali, alta e rígida como um obelisco, e eu perguntei-me
que forma tomaria a sua vingança. O pensamento preocupou-me e, no mesmo
instante, o Lagonda surgiu ao fundo da rua.
– Além disso – sussurrou Eve, enquanto Finn colocava os nossos sacos na
mala do carro –, posso não precisar de ti, mas dele preciso, com toda a
certeza. E posso apostar com alguma confiança que para onde tu fores, ele
também vai.
Pestanejei.
– O que a faz pensar assim?
Ela tocou numa marca avermelhada no meu pescoço, que eu vislumbrara
ao espelho nessa manhã e tentado cobrir ao soltar o cabelo; uma marca que os
lábios de Finn tinham deixado na noite anterior.
– Sei ver a diferença entre a mordidela de um mosquito e um chupão,
ianque.
– Já acabaram de palrar, minhas senhoras? – Finn aproximou-se do lado
do condutor. – Está um dia excelente para um passeio de carro – observou
ele, no seu sotaque escocês.
– Sim – balbuciei, de orelhas a arder. Eve fez um sorriso de orelha a
orelha, entrando para o banco de trás. Finn não reparou no sorriso dela, mas
viu-me a corar e fez uma pausa depois de se sentar ao volante.
– Tudo bem, miúda? – perguntou suavemente.
Não havia uma palavra que descrevesse de forma precisa o meu estado,
depois do dia e da noite anteriores. Desolada e esperançosa, profundamente
chocada e profundamente zangada – cada vez mais zangada, sempre que
olhava para a fotografia do velho que os três tínhamos acordado em procurar.
Por outro lado, se eu olhasse para Finn, toda a pele do meu corpo se
arrepiaria ao recordar o que se passara entre nós havia menos de 12 horas.
– Sim, tudo bem – respondi por fim. Ele acenou com a cabeça, e eu fiquei
sem perceber como estavam as coisas entre nós: se ele lamentava o que se
passara ou não. Assim, deixei-o meter a primeira velocidade e voltei-me para
Eve, no banco de trás.
– Há uma coisa que ainda não nos disse: como é que vamos encontrar o
René Bordelon? Ele já não tem esse nome, seguramente, nem René du
Malassis. Além disso, não sabemos para onde foi, quando fugiu de Limoges.
Portanto, como vamos encontrar o rasto dele?
Eve deu uma última passa no cigarro e atirou a beata para a rua.
– Tenho uma ideia de c-c… como o encontrar. Ele disse-me, mais do que
uma vez, que tinha a intenção de ir viver para Grasse, quando se reformasse,
que tinha comprado lá uma casa em ruínas e que talvez um dia até a
reconstruísse. Ele tem agora 72 anos, não vai abrir outro restaurante. Quanto
a mim, deve estar reformado. Aposto que foi para lá reconstruir a tal casa, ler
os livros dele, ouvir a música de que gosta e desfrutar do sol do Sul. Acho
que devemos ir para G-G-Grasse.
– E fazer o quê? – Ergui o sobrolho. – Andar às voltas de carro a olhar
pela janela?
– Não me subestimes, ianque. O René nunca me disse onde era a casa em
Grasse, mas tenho algumas ideias sobre como a encontrar.
– E se ele nem sequer estiver em Grasse? – Finn parecia duvidar. – Tudo
o que temos são uns comentários feitos por acaso há mais de 30 anos.
– E vocês têm uma ideia m-m-melhor, para começar?
Na verdade, eu não tinha. Encolhi os ombros. Finn dobrou-se e pegou no
monte de mapas amarrotados aos meus pés.
– Sem pressas, conseguiremos chegar a Grasse em dois dias. Podemos
parar em Grenoble para dormir…
– Grenoble será. – Eve inclinou a cabeça para trás, fechando os olhos para
o céu. – Carrega no acelerador, escocês.
O Lagonda lá seguiu, a zumbir para sudeste, com os três perdidos nos
seus próprios pensamentos. Dei por mim a analisar novamente a fotografia de
René. E a pensar qual teria sido o aspeto do oficial da SS, o tal que dera a
ordem para massacrar a aldeia. Perguntei-me também qual seria o aspeto dos
soldados alemães, aqueles que tinham visto uma jovem com um bebé nos
braços a fugir de uma igreja em chamas e tinham sido capazes de apertar o
gatilho. Senti-me invadida por uma raiva lenta e ardente, e pensei no que Eve
tinha dito sobre esses homens, que seria quase impossível descobrir quais os
soldados que mataram Rose.
Talvez um dia conseguisse descobrir. Tinham de existir nomes, registos.
Talvez os soldados que sobreviveram pudessem ser levados a tribunal, não só
por Rose, mas também por Madame Rouffanche e a sua aldeia assassinada.
Oradour-sur-Glane merecia justiça pelos seus mortos, tanto como qualquer
uma das atrocidades que estavam a ser investigadas em Nuremberga.
Mas esse era um problema para outro dia. Naquele momento e naquele
carro, a caminho de Grasse, os nazis que tinham participado na morte da
Rose estavam fora do meu alcance. Já René Bordelon, pelo contrário, poderia
estar bem próximo.
Enquanto o carro nos levava por montes cada vez mais altos e por
maravilhosas extensões de lagos e prados, eu meditava sobre uma nova
equação: Rose mais Lili, dividida por Eve mais eu, igual a René Bordelon.
Quatro mulheres com um homem em comum. Perscrutei o rosto daquela
fotografia granulada, à procura de remorso, culpa, crueldade. Mas essas
coisas não se podiam ver numa imagem. Ele era apenas um velhote que saíra
para jantar.
Tentei enfiar a fotografia na sacola de Eve, mas a sua mão deformada
surgiu como um chicote e afastou a minha com um pequeno açoite:
– Fica com ela.
Coloquei a fotografia no meu porta-moedas e, sentindo os olhos vazios
daquele homem fixarem-se em mim através do couro, virei-me para trás, de
modo a olhar para Eve. Ela parecia mais confiante, mais leve do que aquela
figura corcunda e consumida pela culpa que estivera sentada comigo à janela,
na noite anterior, a recontar na primeira pessoa o relato de tortura e de ódio.
Estiquei o braço e toquei-lhe gentilmente na mão.
– Ontem à noite, não nos quis contar como foi o seu julgamento ou o que
lhe aconteceu depois a si, à Lili e à Violette – disse eu.
– Não é uma história para noites escuras.
Inclinei a cabeça para o sol quente acima de nós.
– Pois agora não há sombras.
Ela soltou um longo suspiro.
– Suponho que não.
Finn e eu escutávamos atentamente enquanto ela nos contava o que se
tinha passado no julgamento: os leões belgas, as perguntas insistentes em
alemão, as sentenças reduzidas. Violette a cuspir-lhe na cara. Recordei
Violette mais velha, em Roubaix, a fazer o mesmo, e estremeci perante o eco.
Violette… Fui picada por uma ideia, um pequeno e insistente pensamento
que já me tinha passado pela cabeça na noite anterior – uma equação que não
dava certo –, mas afastei-o no momento em que Eve disse:
– E foi então que chegámos a Siegburg.
Capítulo 34
Eve
Março de 1916

Depois de a guerra acabar, Eve ficou surpreendida pelas poucas


recordações que o fluxo interminável de dias em Siegburg tinha deixado na
sua memória. O tempo passado como espia em Lille não chegara sequer a
seis meses, contudo, ela lembrava-se de tudo com uma clareza cristalina. Os
dois anos e meio em Siegburg tinham passado como um sonho cinzento e
sórdido, com o dia seguinte sempre igual ao anterior.
– Levem-na para a cela.
Esta foi a sua receção em Siegburg, na primavera de 16 – uma ordem
brusca e depois uma mão pesada no meio das costas a empurrá-la pelo
corredor fora, atrás de Lili e Violette. Nenhuma delas tinha conseguido
vislumbrar o exterior da prisão: já era noite escura quando a carrinha entrou a
chocalhar no pátio da prisão.
– Não importa – sussurrou Lili. – No dia em que formos libertadas, vamos
ver o exterior da prisão por cima do ombro.
Mas era difícil pensar no dia de libertação enquanto era empurrada por
um corredor que tresandava a urina, suor e desespero. Eve deu por si a
tremer, cerrando os dentes para que não batessem. O ruído de uma chave a
ser rodada, dobradiças a chiar e uma porta enorme a escancarar-se.
– Gardiner – ladrou o guarda, e a mesma mão brusca deu um encontrão a
Eve.
– Espere… – Voltou-se, frenética por um relance de Lili e Violette, mas a
porta já tinha sido fechada com um estrondo. A negrura era absoluta, um
poço sufocante e gelado de escuridão.
Toda a gente se vai abaixo na primeira noite. Ouviria Eve das colegas de
prisão, mais tarde. Mas Eve chegara a Siegburg já quebrada. A escuridão não
era tão terrível como o interior da sua mente, por isso limitou-se a descerrar
os dentes tiritantes e a apalpar com os dedos disformes a cela à sua volta.
Paredes de pedra, a cela mais pequena do que a de Saint-Gilles. Uma cama
imunda, dura como pedra, e o fedor a suor velho, vómito e terror. Eve
perguntou-se quantas mulheres teriam dormido, chorado e abafado os seus
gritos naquela cama. Indistintamente, através da porta ouviu gritos e até um
rebentar de riso histérico, mas nenhum guarda respondeu às chamadas. Assim
que as celas eram trancadas, à noite, não eram abertas até à manhã seguinte.
Uma mulher podia estar a morrer lentamente de febre ou de septicemia, podia
berrar de sofrimento devido a um osso fraturado ou a contorcer-se com as
dores de parto – a porta não se abriria até à madrugada. Muitas morreram
dessa forma. Esse era, supôs Eve, o objetivo
Não era capaz de se deitar naquela cama imunda. Enrolou-se num canto
sobre o chão de pedra, a tremer de frio, e esperou pela manhã. O despontar do
dia chegou na companhia de um guarda sisudo, que entrou na sua cela com
uma pilha de roupas – meias azuis grossas, bata branca suja com uma enorme
cruz no peito. E assim começava a sequência interminável dos dias de
cativeiro.

Fome. Frio. Piolhos. As bofetadas dos guardas. O trabalho diário: coser


incessantemente à mão, com dedos picados pela agulha, polir trincos com
produtos abrasivos, encaixar duas pequenas tampas de metal. Conversas
sussurradas com as outras mulheres: era verdade que tinha havido uma
batalha no Monte Sorrel? No Somme? Era verdade que os britânicos tinham
capturado La Boisselle? Contalmaison? Muito mais do que comida, as
prisioneiras ansiavam por notícias. Tudo o que os guardas diziam era que os
alemães estavam a ganhar.
– Mentirosos – resmungou Lili. – São muito mentirosos! Estão a perder e
sabem disso. Nós só precisamos de aguentar.
Aguentar, pensou Eve. Um ano passou – mais dias cinzentos e sórdidos,
mais bofetadas, mais piolhos, mais gritos durante a noite. A confiança serena
de Lili, que continuava ardente e luminosa, enquanto o seu corpo se reduzia a
um punhado de ossos. Noites negras sem sonhos naquela cama nauseabunda.
Ver mulheres a morrer em suores provocados pela febre amarela, a definhar
sob a moedura do frio e da fome. Vê-las a cambalear para a enfermaria, uma
sala enorme com cortinas de separação, verdes e feias, que cheiravam a
merda e sangue – algumas chamavam-na Lazaretto, outras apenas inferno.
Ninguém ia para a enfermaria para ser tratada, iam para a enfermaria para
morrer. Os alemães não precisavam de desperdiçar balas a matar as
prisioneiras, quando a negligência e a doença faziam isso por eles. Uma
estratégia perfeita, pensou Eve, distante. Mulheres a morrer em camas de
hospital causavam bem menos alarido internacional do que mulheres a
morrer diante de um pelotão de fuzilamento.
E que mulheres estas eram. Esqueletos idênticos que vestiam as mesmas
batas de prisioneiras com a cruz, de cabelo sujo, olhos cavados, todas fleurs
du mal: a feroz Louise Thuliez, que ajudou soldados a passar a fronteira sob a
liderança de Edith Cavell; Madame Ramet, nascida na Bélgica, cujo filho foi
morto e cujas duas filhas a acompanharam na prisão; a estoica Princesa de
Croy, que organizou uma rede de espionagem na Bélgica… Antes de
Siegburg, Eve nunca se apercebera de quantas mulheres tinham arriscado
tudo pela guerra. Até ali na prisão, cada uma à sua maneira, elas continuavam
a lutar.
– A Madame Blankaert diz que aquelas tampinhas de aço que nos deram
para encaixar são tampas das espoletas de granadas – murmurou Lili. –
Temos de fazer alguma coisa!
– Lili – disse Violette, desgastada –, não os provoques.
– Ta gueule. É inconcebível que nos ponham a trabalhar em munições que
vão ser usadas contra os nossos compatriotas. – E assim, no dia seguinte, ela
deu as palavras de ordem: Em nome da Grã-Bretanha, da França, da Bélgica
e de todos os países Aliados, peço às minhas companheiras que
categoricamente se recusem a trabalhar em munições. A Alemanha não tem
o direito de nos exigir este trabalho mortífero contra a nossa pátria, de nos
obrigar a fazer os mecanismos que, em batalha, irão ferir os nossos pais, os
nossos irmãos, os nossos maridos, os nossos filhos. Todas continuamos aqui
a lutar e a sofrer corajosamente pelo nosso rei, pelas nossas bandeiras, pelas
nossas pátrias…
Por toda a prisão de Siegburg, os esqueletos femininos de rosto cinzento
ficaram subitamente iluminados e gritaram como valquírias, enquanto os
guardas corriam de um lado para o outro, a empurrar, a esbofetear, a berrar.
Eve gritou até a garganta lhe doer, mesmo quando recebeu um soco no
maxilar que lhe projetou a cabeça para trás com a rapidez de um chicote. Por
momentos, o mundo era luminoso, radiava cor, em vez do cinzento barrela
que lhes carcomia a alma. Eve gritou até ser arrastada para a cela, e Lili
continuava a rir, mesmo quando os guardas a levaram à força, juntamente
com Madame Blankaert, para a cela de isolamento, por terem incitado a
greve. “Valeu bem a pena”, disse ela um mês mais tarde, quando a deixaram
sair da solitária.
Eve não tinha tanta certeza – Lili era só pele e osso, tão insubstancial
como uma sombra. Eve colocou o seu cobertor à volta dos ombros da amiga.
Aguenta. Nós só precisamos de aguentar.
Outro interminável ano cinzento passou. Uma primavera fria chegou tarde
em 1918, trazendo com ela uma esperança cautelosa que tocou levemente
todas as prisioneiras. “Os boches estão a perder a guerra”, murmurava-se por
todos os cantos, à medida que o ano avançava. “Estão a sucumbir, a recuar ao
longo de toda a frente de combate…” Não eram apenas os rumores
murmurados que chegavam ao interior da prisão – rumores de vitórias dos
ingleses e avanços dos franceses em território alemão. Toda a gente via como
os guardas andavam cabisbaixos; toda a gente ouvia a crescente estridência
com que eles reivindicavam a vitória alemã. Pairava no ar: o maldito estirão
da guerra podia finalmente estar a chegar ao fim.
Se pelo menos tivesse terminado antes, Eve pensou mais tarde, durante
aquelas longas noites em que ficava a olhar para o cano da Luger. Se pudesse
ter terminado só alguns meses antes.

Setembro de 1918

– Obrigada por teres vindo, margaridazinha.


Lili estava deitada numa cama da enfermaria gelada, o corpo mal fazia
relevo sob os cobertores sujos. Eve estava empoleirada na beira da cama,
vestida só com a bata da prisão, a tremer. Deveria estar a trabalhar junto das
outras mulheres, mas tinha havido uma epidemia de tifo pouco antes e,
quando Eve informou que se sentia febril e com dores de cabeça, rapidamente
a levaram para a enfermaria. Desta forma, era fácil dar um saltinho à cama de
Lili.
– Como te sentes? – conseguiu perguntar Eve.
– Não muito mal. – Lili deu uma palmadinha nas costelas: havia algum
tempo que sofria de um abcesso pleural entre duas costelas, mas não tinha
ligado. – O médico vai lancetar a coisa e vai ficar tudo arrumado. – A
cirurgia estava marcada para as 16h00. Já não faltava muito.
– Eles chamaram um médico de Bona? – Eve tentou reprimir a apreensão
que sentia. Lancetar um abcesso era seguramente uma cirurgia pequena, mas
fazê-lo neste buraco infernal, sem pessoal adequado e numa mulher
malnutrida…
A Lili não tem medo, Eve recordou para si mesma. Também não deves ter
medo.
Mas talvez Lili sentisse medo, porque olhava fixamente para Eve de um
modo estranhamente sério. Os olhos cheios de vida estavam enterrados num
rosto que pouco mais era do que uma caveira.
– Toma conta da Violette por mim, se… – Um encolher de ombros
expressivo.
– Vais ficar bem. – Eve interrompeu-a antes que ela pudesse continuar. –
Tens de ficar bem.
Ela tinha-se agarrado a isso durante mais de dois anos. Evelyn Gardiner
tinha traído as suas amigas, tinha quebrado e feito com que elas fossem
trazidas para este lugar sórdido. Se Eve conseguisse tirá-las dali em
segurança, de algum modo parte da sua traição poderia ser esquecida, ainda
que nunca perdoada. Era o que ela pensava todos os dias, quando passava
metade da sua ração de pão para as mãos de Lili e tentava dar os seus
cobertores a Violette, embora esta continuasse a olhar para ela com uma
expressão dura. Leva-as daqui em segurança e a tua falha será expiada.
E estava quase a consegui-lo – a guerra não podia seguramente continuar
por muito mais tempo. Estamos quase lá. Quase a ir para casa.
Talvez Lili tivesse visto algum deste desespero no olhar de Eve, pois
esticou a mão e colocou os seus dedos macilentos por cima dos dedos
deformados de Eve.
– Toma conta de ti, margaridazinha. Se eu não estiver cá para te tirar de
apuros…
– Não digas isso. – Eve agarrou na mão de Lili, engasgada pelo pânico.
Não ia perder Lili, não por causa de um abcesso. Não depois de mais de dois
anos de prisão, não quando estavam tão próximas do fim. – É uma operação
simples, lancetar e drenar. Claro que vais sobreviver!
A voz de Lili era firme:
– Mas os alemães não têm interesse na minha sobrevivência, ma petite.
Os olhos de Eve encheram-se de lágrimas – ela não o podia negar, os
oficiais de Siegburg odiavam visceralmente Lili e não faziam segredo disso.
– Não devias ter liderado aquela greve ou… – Ou quê? Causado conflitos
desde o primeiro dia em que pôs os pés em Siegburg? Planeado fugas
elaboradas, mantido o moral elevado com piadas e histórias? Se Lili tivesse
sido o tipo de pessoa que mantinha a cabeça baixa, jamais teria liderado a
rede de espionagem mais eficiente de França. – Vais ficar bem – repetiu
teimosamente Eve, e teria dito mais, não fossem dois guardas terem
aparecido.
– Levanta-te, Bettignies. O médico chegou.
Lili mal se podia levantar da cama. Eve passou-lhe um braço pelo ombro
e ajudou-a a pôr-se de pé. Lili vestia um trapo desbotado e sem forma e, ao
olhar para si própria, fez uma careta.
– Quelle horreur. O que eu não daria por um vestido de seda cor-de-rosa!
– E um chapéu moralmente duvidoso? – conseguiu Eve dizer.
– Preferia um sabão moralmente duvidoso. O meu cabelo está nojento.
Eve sentiu um nó na garganta.
– Lili…
– Rezas por mim quando eu entrar ali? – Com o seu pequeno queixo
afiado, apontou na direção da sala de operações. – Preciso que rezem por
mim. Escrevi uma carta à minha antiga madre prioresa em Anderlecht, mas
aceito as tuas orações sem problemas, Evelyn Gardiner.
Era a primeira vez que Lili chamava Eve pelo seu verdadeiro nome.
Mesmo depois do julgamento, elas continuaram a usar os nomes de código.
Eram os nomes que lhes pareciam verdadeiros.
– Não posso rezar por ti – sussurrou Eve. – Já não acredito em Deus.
– Mas eu acredito. – Lili beijou o terço que tinha entrelaçado nos dedos,
mas os guardas levaram-na pelos cotovelos.
Eve fez um aceno brusco de cabeça.
– Então, eu vou rezar – disse. – E vou ver-te daqui a algumas horas. Vou
sim!
Arrastaram-na para fora da enfermaria e Eve segui-os. Uma enfermeira
saiu da sala de operações ao fundo do corredor e, por momentos, Eve viu de
relance o médico que tinha vindo de Bona a fumar um cigarro. Eve constatou
que não havia qualquer azáfama: ninguém esterilizava instrumentos, ninguém
preparava o clorofórmio…
Lili, pensou ela, inundada por um medo terrível. Lili, não entres aí.
Adiante, ouviu a voz cristalina de Lili a rezar o terço.
– Rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte…
Lá fora, o corredor estava apinhado de mulheres. Louise Thuliez, a
Princesa de Croy, Violette – todas as fleurs du mal que tinham conseguido
escapar aos seus turnos, de olhares ansiosos, a rezar em voz baixa pela rainha
das espias. Os dois guardas aceleraram o passo, apressando Lili, e a voz dela
interrompeu a sua calma recitação. Por momentos, Eve pensou que Lili fosse
finalmente quebrar, que caísse e desatasse a chorar, que, sem forças, tivesse
de ser levada ao colo para a mesa de operações.
Não. Lili endireitou-se entre os guardas, erguendo o queixo ao seu velho
jeito traquinas, enquanto lançava olhares ao longo da fila de amigas. A luz
pálida refletiu no seu cabelo, as tranças louras baças enroladas num punho
atrás da cabeça.
– Mes amies – disse ela suavemente, e, ao passar por Violette, esticou a
mão e comprimiu o terço nas mãos trementes dela. – Je vous aime…
E assim passou por elas, pequenina como uma criança, entre dois guardas,
ligeira de passo e de disposição, quase a pairar ao longo do corredor, em
direção à sala de operações. Eve sentiu o seu coração bater debilmente, triste
como um tambor. Lili…
Antes de ela desaparecer, Lili virou a cabeça para trás uma última vez e
ofereceu-lhe um dos seus olhares traquinas. Atirou um beijo às fleurs du mal
e Eve sentiu fisicamente aquele sopro. De seguida, desapareceu no interior da
sala de operações, apesar de a sua voz ainda se ouvir a flutuar, contente e
serena.
– O senhor deve ser o médico. Pergunto-me se seria possível dar-me
clorofórmio? É que tive uma estopada de dia.
Foi então que os joelhos de Eve cederam. Foi então que ela soube.
– Ela vai ficar bem – dizia Louise Thuliez. – É preciso mais do que um
abcesso pulmonar para deitar abaixo a nossa Lili.
– Não é nada de grave…
Mais murmúrios de concordância, garantias oferecidas com olhares
repletos de preocupação. Violette agarrou o terço com tanta força que as
contas enroladas nos dedos lhe cortaram a pele.
– Daqui a uma semana, já está a pé. Menos de uma semana…
Mas Violette não esteve na enfermaria nas quatro horas seguintes, como
Eve. Os guardas enxotaram as prisioneiras, mas Eve continuava sob
observação, devido aos sintomas de tifo. Havia apenas um corredor e uma
porta trancada entre Eve e Lili, quando se começaram a ouvir os gemidos, os
queixumes e os gritos sufocados. Os sons de uma mulher a ser operada sem
éter, sem clorofórmio, sem morfina. Eve enrolou-se, sentada na sua cama, a
sua esperança teimosa a esvaziar-se, e chorou tanto que quase abafou o som
do sofrimento atroz de Lili. Mas não: Eve ouviu tudo, do início ao fim.
Quando a manhã chegou, estava muda de tanto chorar; a sua voz tinha
desaparecido.
E Lili também.
Excerto de La Guerre des Femmes, as memórias do trabalho de guerra de
Louise de Bettignies, por Antoine Redier, tal como lhe foram contadas por
sua esposa, Léonie van Houtte, nome de código Violette Lameron:

Ela acabou como viveu, um soldado.


Capítulo 35
Charlie
Junho de 1947

O meu coração doía.


Tinha tanta esperança que a rainha das espias ainda estivesse viva e que
eu a pudesse conhecer, tal como conhecera Violette. Seria agora uma senhora
de cabelo branco, mas ainda pequena e destemida e bem-disposta. Era
alguém que eu gostaria muito de conhecer – mas ela não teve a oportunidade
de envelhecer.
Eve, queria eu dizer à figura encurvada do banco de trás, lamento muito –
mas as palavras eram apenas ar, inúteis após uma história daquelas. Finn
parara o Lagonda na beira da estrada 20 minutos antes, enquanto
escutávamos Eve, e naquele momento estávamos os três sentados e
completamente imóveis no meio do silêncio estival.
Eve baixou as mãos nodosas do rosto e, quando eu fiz um gesto para lhes
tocar, ela recomeçou a falar, com o rosto pálido e devastado pelo tempo, sob
a luz implacável do verão.
– E pronto. Agora sabem tudo. Lili teve a morte mais horrível que uma
mulher c-corajosa pode sofrer. E tudo por minha causa. Eu mandei-a para
dentro daquela prisão e não a consegui tirar de lá.
Um sentimento de negação ferveu dentro de mim. Não. Não, a Eve não
tem culpa. Não pode pensar assim. Mas era assim que pensava e não havia
palavras no mundo que eu pudesse dizer que demovessem o ódio que ela
sentia por si própria. Nesse aspeto, eu conhecia bem Evelyn Gardiner. Por
muito que eu estivesse sempre pronta a consertar o que estava quebrado, nada
podia fazer para consertar a Eve.
Ou será que podia?
Ela passou uma mão disforme pela boca; ambas tremiam.
– Toca a pôr o carro a trabalhar, escocês – disse ela, com a voz rouca. –
Sentados à beira da estrada, nunca chegaremos a Grenoble.
Finn arrancou e passámos o resto da longa viagem em silêncio,
extenuados pelo fim horrendo da história de Eve. Ela estava de olhos
fechados, sentada no banco de trás. O Finn conduzia o Lagonda como um
motorista, a olhar sempre em frente e a abrir a boca apenas para pedir um
mapa. Quanto a mim, matutava uma ideia na minha cabeça.
Uma cidade bonita, Grenoble: casas compactas e pequenas igrejas
encantadoras, os rios Drac e Isère preguiçosamente sinuosos e azuis e
emoldurada a toda a volta pelos longínquos Alpes, constantemente envoltos
em nuvens. Outro auberge; Finn ajudou Eve a subir as escadas com a mala,
olhando de relance para trás, na minha direção.
– Tenho de fazer um telefonema – disse eu, e ele achou provavelmente
que era para alguém da minha família. Mas a chamada que fiz na receção do
hotel, depois de uma longa altercação com o operador francês, não era para
os Estados Unidos. Era para uma loja de antiguidades em Roubaix, cujo
nome, felizmente, ainda me lembrava.
– Allô? – Só a tinha visto uma vez, mas reconheci-lhe imediatamente a
voz. Imaginei-a a virar a cabeça e os óculos a refletirem a luz.
– Violette Lameron – cumprimentei-a.
Uma longa pausa.
– Quem fala?
– Charlotte St. Clair, madame. Conhecemo-nos não há muito tempo;
estive na sua loja com a Eve Gardiner… ou melhor, Marguerite Le François,
como a conhecia antigamente. Por favor, não desligue. – Senti que ela estava
quase no limite; deduzi-o pela respiração áspera e controlada que me chegava
do outro lado da linha telefónica.
– O que pretende? – A voz dela ficou nitidamente mais fria. – Eu não
ajudaria aquela cabra, aquela Judas, nem para lhe salvar a pele, por isso, se
me vai pedir um favor para ela…
Asfixiei uma onda de indignação, o impulso de gritar que a Eve não tinha
culpa de nada. Senti uma vontade premente de lhe perguntar como ela se
teria saído com um copo de ópio e dez dedos partidos. Mas Violette estava
tão empenhada na culpa de Eve como a própria Eve, e nada do que pudesse
dizer iria fazer com que mudassem de ideias. Só factos poderiam conseguir
isso e, para os factos, eu precisava de Violette.
– Alguém tem de analisar os registos do julgamento, quando a madame, a
Eve e a Lili foram sentenciadas. – Baixei a voz e virei as costas ao
rececionista, que parecia curioso. – Acredito que há uma mentira escondida
algures.
Suspeitava disso desde o início, quando ouvi a história da troca de
informações que condenara Lili. Algo ali não batia certo. Descobre a
incógnita.
Violette soou algo desdenhosa.
– Não passas de uma miúda americana. O que sabes tu sobre os registos
de um julgamento que aconteceu na Europa há mais de 30 anos?
A minha capacidade de dedução era bastante maior do que ela pensava.
Todos aqueles verões a trabalhar no escritório do meu pai, especializado em
direito internacional, em que eu tinha classificado e anotado livros jurídicos
franceses e alemães, arquivado registos de tribunais, ouvido o meu pai
comentar e comparar, ao jantar, o sistema legal europeu e americano…
– O julgamento de três espias femininas em tempo de guerra foi
seguramente muito bem documentado – disse eu a Violette. – Vocês eram
heroínas, eram famosas. Oficiais alemães, jornais franceses, funcionários
belgas, diplomatas ingleses, todos tinham as atenções voltadas para o
julgamento, nesse dia. Tudo o que diz respeito ao vosso julgamento foi
seguramente arquivado, para que depois pudesse ser apresentado como prova
de um julgamento justo. Se existe uma mentira no processo, ela pode ser
encontrada, é apenas uma questão de analisar os registos. Pode ajudar-me
nisso?
– Qual mentira? – perguntou Violette, a voz espicaçada pela curiosidade,
ainda que contrafeita.
Apanhei-te, pensei. E respondi-lhe.
Seguiu-se um longo silêncio.
– E porquê eu? A mademoiselle não me conhece.
– Mas sei do que a senhora é capaz, porque a Eve me contou tudo sobre
si. A senhora é capaz de tudo para descobrir a verdade. Não sei se, depois de
tanto tempo, os registos do tribunal estão acessíveis ao público ou estão
selados; mas, se estiverem selados, a senhora pode ter acesso a eles mais
facilmente do que eu, porque foi arguida no processo e pode invocar o seu
direito a saber tudo o que se passou nesse dia. E a senhora não sabe tudo o
que se passou, porque não ouviu, tal como a Eve, as deliberações. – De
seguida, ofereci um pouco de mel, pensando que talvez ajudasse. – A Violette
é uma heroína de guerra. Certamente haverá pessoas poderosas que ainda a
respeitam, que lhe devem favores, que podem puxar os cordelinhos por si. Se
a informação estiver lá, a Violette vai arranjar forma de a descobrir.
– E se estiver?
– Basta dizer-me. Dizer-me se tenho razão. Por favor.
Ela ficou calada durante tanto tempo que temi que a ligação tivesse caído.
Esperei, encostada ao balcão da receção, com a boca seca. Por favor,
implorei para mim.
Violette parecia perplexa, quando voltou a falar. Mas também
interessada, como se a espia por detrás da respeitável dona de loja tivesse
aberto os olhos pela primeira vez em muitos anos. Eu não acreditava que essa
parte dela alguma vez morresse, não em mulheres como Eve e Violette.
– Como a posso contactar, se descobrir alguma coisa, Mademoiselle St.
Clair?
Prometi telefonar-lhe de Grasse no dia seguinte, com o nome do nosso
hotel, e depois desliguei, a tremer. Tinha lançado a minha cana de pesca à
água e já não podia fazer mais senão esperar para ver se alguma coisa surgiria
à superfície. Ao subir as escadas, perguntei-me se deveria dizer à Eve o que
tinha feito, mas encontrei imediatamente a minha resposta com um categórico
Não. Ela parecia-me tão frágil no carro, como se fosse possível esfarelar-se
ao mais pequeno sopro. Não lhe podia dar qualquer esperança até ter na mão
provas que a consubstanciassem.
Ao entrar no silêncio do meu pequeno e encantador quarto, abri as
portadas de par em par e olhei lá para fora, para o crepúsculo que
rapidamente desaparecia. Havia casais a passear de braço dado, e recordei os
momentos em que Rose e eu nos ríamos, a imaginar que um dia teríamos
idade para sair juntas com os nossos namorados. Vi uma jovem alta e loura
de mão dada com um rapaz risonho, mas a minha memória não teimou em
dar-lhe o rosto de Rose. Era apenas uma rapariga que eu não conhecia. Os
instantes alucinatórios em que eu via Rose em todo o lado pareciam ter
parado desde Oradour-sur-Glane. Volta, pensei, enquanto observava as
pessoas na rua. Volta, Rose – mas ela não voltaria, claro. Tal como o meu
irmão, ela estava morta.
Ouvi uma pancada na porta. Pensei que pudesse ser Eve, para me dizer o
que planeava fazer assim que chegássemos a Grasse, mas era Finn. Parecia
diferente, e levei algum tempo a perceber porquê. Tinha feito a barba, vestido
um casaco (coçado nos cotovelos, mas de um tom azul-escuro bonito) e os
sapatos tinham sido engraxados até brilharem.
– Vem jantar comigo – disse ele, sem rodeios.
– Pensei que hoje a Eve não queria descer para jantar. Estava com ar de
quem lhe apetecia um jantar de whisky. – Qualquer coisa que a fizesse
esquecer tudo mais rapidamente. O facto de saber como Lili tinha morrido e
como isso a atormentava permitia-me compreendê-la melhor.
– A Gardiner já se foi deitar. – Finn bateu no bolso do casaco, fazendo
chocalhar as balas confiscadas a Eve. – Somos só nós os dois. Vem jantar
comigo, Charlie.
Algo no tom dele prendeu a minha atenção. Pelo modo como se tinha
vestido, não me parecia que ele quisesse ir comer qualquer coisa ao café mais
próximo, como era habitual.
– Isso é… isso é um convite oficial? – perguntei, tentando não levar a
mão ao cabelo despenteado para o arranjar.
– Sim. – O olhar dele era firme. – É o que um homem faz quando gosta de
uma rapariga. Veste um casaco. Engraxa os sapatos. Convida-a para jantar.
– Não conheço nenhum homem que faça isso. Não depois de nós já… –
Tive uma visão do que tínhamos feito no carro, na noite anterior: as janelas
embaciadas e a nossa respiração irregular.
– O teu problema é que até agora só lidaste com rapazes. Não com
homens.
Ergui o sobrolho.
– E essa é a voz grisalha e sensata de um homem que ainda não fez 30
anos?
– O que quero dizer é que não é uma questão de idade. Há rapazes de 50
anos e homens de 15. O que importa é o que fazem, não quantos anos têm. –
Fez uma pausa. – Um rapaz mete-se com uma miúda e esquiva-se a lidar com
os sarilhos. Um homem comete um erro e faz tudo para o reparar. Pede
desculpa.
– Arrependes-te do que aconteceu, então? – Recordei-o na noite anterior,
as mãos a agarrar as minhas costas nuas, ao mesmo tempo que ele dizia, de
modo pouco distinto: Não era assim que eu queria que isto acontecesse.
Senti um aperto no coração. Eu não estava nada arrependida.
– Não me arrependo nem um bocadinho. – O seu tom era claro. – Só
tenho pena que não tivesse sido… com mais calma. Depois de um jantar
romântico, em vez de uma rixa e de um lábio ferido. Não é assim que as
coisas devem começar com uma miúda de quem se gosta; e eu gosto de ti,
Charlie. És mais inteligente do que qualquer mulher que eu conheço, és uma
pequena máquina de calcular dentro de um vestido preto, e eu gosto disso.
Tens a língua afiada, e eu também gosto disso. Estás sempre a tentar salvar
toda a gente que conheces, desde a tua prima ao teu irmão, passando por
casos perdidos, como a Gardiner e eu, e é disso que eu gosto, acima de tudo.
Portanto, estou aqui para te pedir desculpa. Estou aqui para te levar a jantar.
Estou aqui de casaco vestido. – Pausa. – Odeio casacos.
Tentei não sorrir de orelha a orelha, mas falhei. Ele devolveu-me o
sorriso, com rugas pequeninas a formarem-se em torno dos olhos, o que me
fez tremer as pernas. Clareei a garganta, enquanto arranjava a minha camisola
às riscas, e disse:
– Dá-me dez minutos para mudar de roupa.
– Está bem. – Ele fechou a porta. Um instante mais tarde, ouvi a voz dele
perguntar:
– Podes usar outra vez aquele vestido preto?

– Eu não disse que ia ser um banquete – recordou ele. Estávamos


debruçados no parapeito de pedra de uma ponte antiga sobre o rio Isère, com
um pacote de sanduíches entre nós. Finn tinha-as comprado num café perto
da Place Saint-André, e estávamos a comê-las diretamente da embalagem de
papel. – Estou ligeiramente falido.
– Se estivéssemos num restaurante, não tínhamos uma vista tão bonita. –
Era uma noite limpa, cheia de estrelas, o luar difundia reflexos quebrados na
água corrente do rio e à nossa volta ouvia-se o burburinho apressado da
cidade.
– A tua comida preferida… – disse subitamente Finn. – Qual é?
Ri-me.
– Porquê?
– É algo que não sei sobre ti. Há muita coisa que não sei sobre ti, Miss St.
Clair. – Ele esticou a mão e limpou-me uma migalha do canto da boca. – É
para isso que serve o primeiro encontro romântico. Então, comida preferida?
– Costumava ser hambúrguer. Com cebola, alface, um pouco de
mostarda, sem queijo. Mas, desde o Botão de Rosa – dei uma palmadinha na
barriga –, é bacon. Estaladiço, ligeiramente tostado. Da maneira como estou a
comer, não vai haver um só porco vivo em França, quando este bebé nascer.
Qual é a tua comida preferida, Sr. Kilgore?
– Peixe frito com batata frita e muito vinagre de malte. Cor preferida?
Observei o casaco dele, que lhe fazia o cabelo mais escuro e os ombros
mais largos.
– Azul.
– A minha também. O último livro que leste?
Continuámos a trocar detalhes, ambos um pouco tontos, enquanto
desfrutávamos do momento. Finn perguntou-me sobre a faculdade e eu
contei-lhe de Bennington e das aulas de Álgebra. Perguntei-lhe como é que
ele sabia tanto sobre carros e ele contou-me que trabalhara na garagem do tio
desde os 11 anos. Pequenas coisas, os pormenores de cada um. Normalmente,
este tipo de conversas acontecia no início de uma relação, antes de as pessoas
se despirem no banco de trás de um descapotável, mas nós estávamos a fazer
tudo de trás para a frente.
– A primeira coisa que comprarias se tivesses 10 mil libras no bolso?
– Compraria de volta o colar de pérolas da minha avó. Adoro aquele
colar. E tu?
– Um Bentley Mark VI – replicou Finn, sem hesitar. – É o primeiro carro
produzido pela Bentley e pela Rolls-Royce, foi lançado no ano passado. É
uma beleza. Mas, se tivesse 10 mil libras, talvez comprasse um Ferrari 125S.
Acabou de estrear no circuito de Piacenza, ganhou seis das 13 corridas…
Ele começou a falar do motor V12 e eu achei tudo absolutamente
adorável. Não sei porque achei tudo tão adorável – quando Trevor Preston-
Green me comprou um batido de chocolate, depois de uma aula de Literatura,
e passou a hora seguinte a falar do seu Chevrolet Stylemaster Coupé, tive
vontade de lhe entornar o batido pela cabeça abaixo. No entanto, naquele
momento estava completamente babada ao ouvir Finn contar-me tudo sobre a
suspensão de Dion.
– Estou a dizer disparates – reconheceu ele, finalmente, ao ver-me sorrir.
– Sim – respondi. – Estou aborrecida de morte. Conta-me mais sobre a
caixa de cinco velocidades.
– Faz o carro ir… zoom! – brincou ele, com expressão séria. – Agora é a
tua vez de dizer disparates sobre um tema aborrecido.
– O teorema de Pitágoras – disse eu, escolhendo algo fácil. – “a” ao
quadrado mais “b” ao quadrado igual a “c” ao quadrado. Significa que em
qualquer triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos
quadrados dos catetos… – Finn fingiu que agarrava o cabelo. – Então,
francamente! Trata-se de simples geometria euclidiana, não é razão para
desesperar!
Ambos desatámos a rir, atirando as côdeas para os gansos que grasnavam
ruidosamente lá em baixo. Deixámo-nos ficar debruçados no parapeito de
pedra, a observar a água, num silêncio confortável. Eu não estava habituada
ao silêncio, quando saía com rapazes. Não era suposto que as raparigas
permitissem que o silêncio caísse entre ela e um rapaz; era preciso manter a
conversa, para que ele não pensasse que ela era enfadonha na cama. Sê
interessante! Sê animada! Ou ele não te vai voltar a convidar para sair! Mas
naquele momento o silêncio era tão confortável como a conversa.
Ele foi o primeiro a quebrá-lo, com uma voz pensativa.
– Achas que a Gardiner tem razão ao pensar que o Bordelon está em
Grasse, reformado, à espera de ser encontrado? Ou estará maluca?
Hesitei, sem vontade de perturbar a nossa paz amena com a realidade.
– Acho que é uma possibilidade remota, mas ela tem acertado mais
frequentemente do que errado. – Surgiu-me uma pergunta repentina. – E o
que acontece se, de facto, o encontrarmos? O que vai a Eve fazer?
– Se ela conseguir provar que ele é o René du Malassis que esteve em
Limoges, que colaborou com os nazis, passou informação à Milice e matou
um empregado com um tiro nas costas só porque ele pilhou umas coisinhas,
pode entregá-lo às autoridades. – Finn limpou as últimas migalhas das mãos.
– O De Gaulle não trata especuladores assassinos com bondade, nem mesmo
os idosos. O Bordelon pode ir parar à prisão, especialmente no caso de se
poder provar que a colaboração dele com os alemães resultou na… no que se
passou em Oradour-sur-Glane. Pode perder a liberdade, a reputação…
– E será isso o suficiente para a Eve?
Finn olhou para mim. Retribuí o olhar.
– Não – dissemos os dois simultaneamente, e a mão dele cobriu a minha,
em cima do parapeito da ponte.
– Temos de a impedir de fazer algo sem retorno, Finn. – A vida real não
era um filme; na vida real, a vingança trazia consequências. Consequências
como a prisão, e Eve até podia ter aguentado em Siegburg, quando era jovem,
mas eu não acreditava que ela pudesse sobreviver novamente, se fosse parar à
prisão por agressão ou o que quer que lhe chamassem em França. – Não vou
deixar que ela desperdice o resto da vida só porque quer acabar com aquele
canalha.
– Mas a vida é dela, não é? – Os dedos de Finn deslizaram por entre os
meus e as nossas mãos entrelaçaram-se suavemente. – Trabalho para a
Gardiner há já algum tempo. Percebo que ela queira arriscar tudo para fazer
justiça.
– Matar um velho é fazer justiça? Não posso participar numa coisa
dessas, mesmo que ele seja um assassino cobarde que mata pessoas pelas
costas. – Estremeci, em parte pelo horror que essa ideia me causava e em
parte porque Finn passava o polegar para a frente e para trás nas costas da
minha mão, fazendo-me cócegas. – Temos de garantir que ela não perde a
cabeça. – Ah, isso ia ser uma tarefa e peras.
– Uma tarefa para amanhã. – Finn afastou-me da ponte com um puxão. –
Promete-me uma coisa, Charlie.
– O quê?
– Amanhã, não olhes para aquela fotografia. Aproveita a viagem.
Regressámos ao hotel, a vaguear pelas ruas de mão dada em silêncio,
durante a maior parte do tempo. Finn abriu a porta para eu passar, pousando
as pontas dos dedos nas minhas costas, descobertas pelo decote em V do meu
vestido preto, e toda a minha pele se arrepiou. Acompanhou-me pelo corredor
até ao meu quarto, de modo formal, como se eu tivesse um pai à minha
espera, a olhar para o relógio.
– Foi uma noite muito agradável – disse ele, muito solene. – Amanhã
ligo-te.
– Os rapazes nunca ligam.
– Os homens ligam.
Deixámo-nos ficar dentro da nossa delicada bolha de felicidade,
ligeiramente melancólica. Eu não queria nunca mais sair dela.
– Não sou muito boa nestas coisas, Finn – disse eu, por fim. Uma ianque
de vestido preto mais um escocês de casaco, multiplicado por uma noite de
verão e algumas sanduíches, dividido por um silêncio desconfortável e pelo
facto de a ianque estar grávida… Eu não sabia o resultado dessa equação, a
que igualava. – E o que acontece agora?
A voz dele soou rouca:
– O que acontece agora depende inteiramente de ti.
– Ah. – Fiquei a olhar para ele por um instante e depois pus-me em bicos
de pés. Os nossos lábios encontraram-se, macios como penas a flutuar na
água, e eu derreti-me no abraço dele. Beijámo-nos devagar e por muito
tempo, com Finn a pressionar-me leve e docilmente entre a dureza da porta e
a firmeza do seu peito. Procurei desajeitadamente o puxador da porta atrás de
mim. A porta abriu-se de repente e entrámos atabalhoadamente no quarto, aos
beijos e aos tropeções. Os meus sapatos aterraram no chão, em cima do
casaco dele. Finn tirou uma mão do meu cabelo e bateu com a porta. Então,
pegou em mim e, segurando-me no ar para me dar outro beijo, atirou-me para
cima da cama, de uma altura que me pareceu enorme e que me fez soltar um
guincho. Ele ficou em pé durante alguns segundos, a olhar para mim, e eu
achei inacreditável que estivesse tão nervosa. Já tínhamos feito amor, mas
não numa cama, não com as luzes acesas…
Ele deitou-se sobre mim com um gemido, esticando-se, comprido e
exuberante.
– As camas – disse ele, repenicando-me o pescoço com beijos, o seu
sotaque escocês cada vez mais forte – são muito melhores do que o banco de
trás dos carros.
– Eu caibo muito bem em ambos… – E puxei-lhe a camisa.
– Porque és minúscula. – Ele deixou que eu lhe puxasse a camisa,
despindo-a por cima da cabeça, e depois deitou-me novamente com um
empurrão e um sorriso. – Não vás tão depressa! Isto não é uma corrida…
– Pensei que gostasses de velocidade – consegui dizer. À luz, ele era
magro, bronzeado e bonito. – Tu e as tuas caixas de cinco velocidades…
– Os carros devem ser velozes. As camas, lentas.
Enredei as minhas mãos no cabelo dele, e senti as minhas costas a
arquearem à medida que ele abria o fecho-éclair do vestido, centímetro a
centímetro.
– Quão lentas?
– Muito… muito… lentas… – murmurou ele, com a boca nos meus
lábios. – Para chegar onde nós vamos, precisamos da noite toda.
– A noite toda? – Prendi as pernas em gancho no torso dele, olhei-o nos
olhos escuros, tão próximos que as nossas pestanas se tocavam. Estou a
apaixonar-me por ti, pensei, perplexa. Estou a apaixonar-me
irremediavelmente. – Amanhã, vamos para Grasse e tu tens de conduzir –
murmurei. – E dormir?
– Dormir? – Ele passou as mãos pelo meu cabelo, agarrando-me a cabeça,
ao mesmo tempo que resmungava ao meu ouvido. – Para de dizer disparates.
Capítulo 36
Eve
Março de 1919

Era a primeira vez que Eve voltava a Inglaterra desde que a sua carreira
como espia começara. Folkestone, onde Cameron se tinha despedido de Eve,
quando ela partira de barco para Le Havre. E onde ele estava naquele
momento à espera dela, com o casaco até aos joelhos a ondular ao vento.
– Miss Gardiner – saudou ele, quando Eve saiu do ferry. Tinham passado
alguns meses desde que ela fora libertada, e Eve viveu esse tempo
praticamente todo dentro da banheira, a esfregar-se obsessivamente, enquanto
se faziam os preparativos em Louvain, onde era o seu alojamento temporário,
para a trazer de volta a Inglaterra.
– Capitão Cameron – respondeu ela. – Não… É Major Cameron, agora,
não é? – observou ela, fitando as insígnias dele. Para além destas, ele tinha a
fita azul e vermelha da Ordem de Serviços Distintos no lado esquerdo do
peito. – Falharam-me algumas n-n… notícias, estando fora.
– Contava trazê-la mais cedo para Inglaterra.
Eve encolheu os ombros. As mulheres de Siegburg tinham sido libertadas
antes de o Armistício ter sido sequer assinado, soltas das suas celas pelos
guardas derrotados e desmotivados da prisão, e fugiram em debandada, a
chorar e a rir, em direção aos comboios que as levariam para casa. Eve
também teria chorado de alegria, se tivesse Lili para lhe dar o braço a
caminho do comboio. Depois da morte de Lili, não lhe importava se saía de
Siegburg rapidamente ou não.
Os olhos de Cameron estudaram-na, registando as mudanças. Eve tinha
consciência de que continuava muito magra; o seu cabelo estava seco como
palha, devido aos tratamentos contra os piolhos, e fora cortado muito curto.
Manteve as mãos nos bolsos, para que ele não lhe pudesse ver os dedos
deformados, mas não podia fazer nada para esconder os olhos, que nunca
paravam quietos. Eve olhava constantemente em seu redor, com relances
rápidos, em busca de possíveis perigos de todos os lados. Até mesmo ali, no
cais, ela encostara-se à estaca mais próxima, como forma de proteção. Eve
reparou no aspeto chocado do olhar habitualmente firme de Cameron, à
medida que ele observava as marcas deixadas pelos últimos anos.
O tempo também não tinha sido meigo com ele: rugas profundas em redor
da boca, pequenos derrames na testa, cabelos grisalhos nas têmporas. Eu
amava-te, pensou Eve, mas era um pensamento vazio, quase sem sentido. Ela
costumava sentir muitas coisas, antes de Lili morrer. Agora, o que sentia era
sobretudo pesar, raiva e culpa – sentimentos que se devoravam uns aos outros
como serpentes com fome. E o sussurro interminável do seu sangue, que
dizia: Traidora.
– Pensei que iria haver fanfarra – disse Eve, por fim, acenando com a
cabeça para o cais vazio.
Tinha sido praticamente a única pessoa a desembarcar – depois de a
guerra terminar, Folkestone passou a ser um lugar bastante mais pacato –, e
não havia adidos militares em seu redor.
– O Major Allenton foi enviando mensagens. E não se calava com a ideia
de uma cerimónia de boas-vindas.
Aparentemente, Evelyn Gardiner era uma heroína. Tal como muitas das
suas colegas de prisão – Violette, ouviu Eve dizer, fora recebida com honras
em Roubaix, ao regressar a casa. Eve também seria recebida com honras, se
deixasse. Mas não ia deixar.
– Convenci o Allenton a desistir da ideia de uma receção pública –
revelou Cameron. – Ele queria que a Eve fosse recebida por alguns generais,
jornalistas e isso. E uma banda de música.
– Ainda bem que o convenceu. Embora me tivesse dado gozo bater-lhe
com uma tuba na cabeça. – Eve lançou a sacola por cima do ombro e
começou a avançar pelo cais.
– Pensei que a iria ver em França. – Cameron acompanhou-lhe o passo. –
No funeral da Louise de Bettignies.
– Tinha intenções de ir. – Eve viajou até Colónia, onde a sepultura
original de Lili fora aberta para que o seu corpo pudesse ser repatriado para
França, mas não chegou a sair do quarto de hotel. Em vez disso, acabou por
se embebedar e quase matou com um tiro a empregada que lhe foi levar o
jantar. A rapariga era atarracada e de rosto quadrado, como aquela mulher
horrível, a quem chamavam Sapo, que tinha despido e interrogado Eve e Lili
em Lille. Aquela recordação deixou Eve momentaneamente desorientada, e
ela respirou fundo a brisa do mar.
A voz de Cameron era grave.
– E porque não foi?
– N-N-Não consegui encarar a situação. – Ela tinha dito adeus a Lili
naquele corredor que tresandava a tifo e sangue. Não precisava de uma
sepultura oficial, com palmas e generais franceses. Mas não o disse a
Cameron, limitando-se a acelerar o passo, sentindo uma necessidade súbita
de se afastar dele.
O passo longo de Cameron apanhou-a.
– Vem alguém recebê-la? Tem sítio para ficar?
– Eu encontro alguma coisa.
A mão dele agarrou-lhe o cotovelo.
– Eve. Pare. Deixe-me ajudá-la, por amor de Deus.
Ela libertou-se com um puxão. Ele não tinha intenção de a magoar, mas
ela não suportava ser tocada. Havia muitas coisas que ela não suportava,
depois de sair da prisão. Janelas abertas. Multidões. Espaços abertos sem
cantos onde se encostar. Dormir…
– Chame-me Miss Gardiner, Cameron. É melhor assim. – Ela afastou o
olhar para o mar, evitando o rosto dele. Os olhos meigos de Cameron podiam
engoli-la, e Eve não podia ser meiga. Não naquele momento. – Conte-me… –
disse ela. – Nós n-n-não recebíamos muitas notícias da guerra, na prisão, e
agora ninguém quer falar de batalhas antigas. A última mensagem da Lili,
aquela sobre o ataque a Verdun. – Eve perguntava-se repetidamente como se
teria desenrolado o ataque e o que tinham eles mudado por terem recebido
aquela mensagem. – Como é que tudo aconteceu?
– Foi o comandante francês que recebeu a vossa informação. – Cameron
parecia querer parar por aí, mas o olhar de Eve trespassou-o e ele, apesar de
renitente, continuou. – O relatório sobre o ataque iminente foi transmitido,
mas eles não acreditaram. As perdas foram… bem. Muito más.
Eve fechou os olhos com força, sentindo algo subir-lhe pela garganta.
Uma gargalhada ou um grito.
– Então, de nada valeu. – De nada valera Lili abdicar da sua liberdade
para que o relatório pudesse passar; Eve deixar os braços adormecidos de
Cameron e voltar para o perigo mortal e arriscar a sua vida por aqueles
relatórios. Tudo fora em vão. Nada do que Eve ou Lili ou Violette fizeram
tinha evitado um banho de sangue. – Nada do que eu fiz em França teve
importância.
A voz dele soou forte.
– Não. Não pense assim. – Ele quis agarrar-lhe os ombros, mas sentiu-a
recuar. – A Rede Alice salvou centenas de pessoas, Eve. Talvez milhares.
Vocês foram a melhor rede de espionagem da guerra. Nenhuma outra, na
França ou na Bélgica, a igualou.
Eve sorriu, mas era um sorriso triste. Que importância tinham os elogios,
quando os fracassos eram tão maiores do que as vitórias? Aquela
oportunidade milagrosa de matar o Kaiser, em 1915: um fracasso. Impedir o
ataque a Verdun: um fracasso. Manter a rede a funcionar depois da detenção
de Lili: um fracasso.
Cameron continuava a falar.
– Não sei se terá lido as mensagens do Major Allenton. Ele diz que não
recebeu respostas suas. Mas a Eve foi agraciada com estas medalhas. Ele
queria congratulá-la no funeral da Louise. Ela recebeu as mesmas medalhas,
postumamente.
Eve recusou pegar no estojo e, depois de um momento de embaraço,
Cameron abriu-o. Quatro medalhas brilharam diante da vista desfocada de
Eve.
– A Medaille de Guerre. A Croix de Guerre, com palma. A Croix de la
Legion d’Honneur. E a Ordem do Império Britânico. Atribuída em
homenagem ao seu esforço de guerra.
Pedaços de lata. Eve tirou finalmente a mão do bolso e atirou-as ao chão,
a tremer.
– Não quero medalhas nenhumas.
– Então, o Major Allenton vai guardá-las por si…
– Ele sabe muito bem onde as pode meter!
Cameron apanhou as medalhas de Eve e voltou a colocá-las no estojo.
– Eu também não queria as minhas, acredite.
– Mas teve de as aceitar, porque ainda faz parte do exército. – Eve soltou
uma gargalhada que mais pareceu um latido de uma nota só. – O exército já
não me quer. Fiz a minha parte e a guerra terminou, por isso querem pregar-
me uns p-pedaços de lata no peito e mandar-me de volta para o meu trabalho
de secretária. Pois podem ficar com os malditos pedaços de lata e que vão
todos para o raio que os parta!
Cameron retraiu-se, ao ouvi-la falar assim. Baixou o olhar e Eve deu
conta de que não tinha voltado a meter a mão no bolso. Os olhos dele
dançaram entre os dedos e o rosto de Eve, como se ele estivesse a ver a
rapariga modesta e calada que tinha enviado para França com o seu saco de
viagem, as mãos macias e a sua inocência. A guerra, a tortura, a prisão e
René Bordelon tinham acontecido na vida de Eve, e nada mais restava dessa
rapariga. Naquele momento, ela era uma mulher destruída e defeituosa,
desbocada, com as mãos deformadas e desprovida de inocência. A culpa não
é sua, quis Eve dizer diante da mágoa cheia de culpa no olhar dele; mas ele
não acreditaria nela. Eve soltou um suspiro e encolheu os dedos disformes.
– Pensei que s-s-s… que soubesse – disse ela. – Foi passado um relatório.
– Saber não é a mesma coisa que ver. – Ele esticou o braço, como que a
querer agarrar-lhe a mão, mas parou a meio. Ela ficou satisfeita. Não queria
continuar a enxotá-lo; ele não o merecia. Foi a vez dele soltar um suspiro. –
Vamos tomar qualquer coisa.
Era um bar horrendo nas docas, o tipo de lugar onde mulheres roufenhas
enchiam copos sujos com gin, para os servir a homens já bêbedos às 10h00;
mas era precisamente isso de que Eve precisava: um sítio anónimo, reles e
sem janelas, para que ela não tivesse de se preocupar com a possibilidade de
ser apanhada de surpresa. Dois copos de gin, seguidos de uma cerveja
amarga, serenaram-lhe o pulso acelerado. Ela costumava orgulhar-se do seu
pulso calmo, algo que a ajudava em situações de perigo, mas havia muito
tempo que não conseguia manter a calma sob pressão. Talvez a última vez
tivesse sido no escritório de paredes verdes de René Bordelon.
René. Ela bebeu outro trago, sentindo o sabor do ódio juntamente com o
da cerveja. Em Siegburg, o ódio tinha um sabor amargo; naquele momento,
era doce. Porque ela já podia fazer alguma coisa. A sacola aos seus pés tinha
no interior uma Luger. Não a sua velha Luger, com o arranhão no cano, que
René lhe tinha tirado – mas também servia.
Cameron, apesar do seu aspeto distinto, emborcou o gin com tanta
sofreguidão como Eve, murmurando baixinho “Gabrielle”. Ao ver que Eve
erguia as sobrancelhas, ele explicou:
– Outra das minhas recrutas. Morta em abril de 16. Vou fazendo brindes
de rodada com aqueles que perdi. – Ele ergueu a cerveja e disse “Léon” antes
de dar mais um gole.
– E eu, fazia parte da sua rodada?
– Não, só os mortos confirmados. – Os olhos de Cameron voltaram a ter
aquela meiguice arrebatadora. – Após o seu julgamento, todas as semanas eu
temia receber a notícia da sua morte em Siegburg.
– Depois da Lili, quase morri.
Eles olharam um para o outro durante muito tempo, e depois pediram
mais uma rodada de gin.
– Lili.
Permaneceram em silêncio até que Cameron começou subitamente a falar
algo sobre uma pensão para Eve.
– Vai ser mais útil do que as medalhas. Eu sei que a Eve não tem família,
por isso pressionei o Ministério da Guerra para lhe dar uma pensão. Não é
muito, mas vai ajudá-la a sobreviver. Talvez a ajude a comprar uma casa em
Londres.
– Obrigada. – Eve não queria as medalhas, mas aceitaria uma pensão. Não
podia voltar a dactilografar, com as mãos assim, e precisava de dinheiro para
viver.
Cameron estudou-a.
– A sua gaguez está melhor.
– Na prisão, descobrimos que há coisas piores do que uma língua perra. –
Deu outro gole na cerveja. – E isto ajuda.
Ele pousou o copo.
– Eve, se eu puder…
– E então, o que vai fazer agora? – Ela interrompeu-o rapidamente, antes
que ele dissesse algo de que se pudesse arrepender.
– Mandaram-me para a Rússia por algum tempo, durante aquela altura
conturbada. Sibéria. As coisas que eu vi… – Ele ficou pálido por um
momento, e Eve perguntou-se o que ele estaria a ver nas neves russas através
da cortina da memória. Não lhe perguntou. – A seguir, vou para a Irlanda –
continuou ele. – Gerir uma escola de treino.
– Escola para quem?
– Pessoas como a Eve.
– Quem p-precisa de pessoas como eu? A guerra acabou.
Ele soltou um riso amargo.
– Há sempre uma guerra a seguir, Eve.
Eve não queria pensar na guerra a seguir ou na nova geração de espiões
jovens e tenros que seriam dados como alimento à boca escancarada da
guerra. Pelo menos, teriam um bom professor.
– Quando parte?
– Em breve.
– A sua mulher também vai?
– Sim. E a nossa filha.
– Fico contente que tenha tido… Quero dizer, sei que a sua mulher queria
ter filhos. – Como eram fastidiosas estas cortesias; Eve sentiu que estava a
debater-se sob um pedregulho. – Que nome decidiu pôr-lhe…
Ele falou docemente.
– Evelyn.
Ela fixou o olhar no tampo pegajoso da mesa.
– Porque não Lili? – ouviu-se a perguntar. – Porque não Gabrielle ou uma
das outras? Porquê eu, Cameron?
– Se pudesse ver-se a si mesma, não me perguntava.
– Eu vejo-me: sou um d-destroço.
– Nada a pode destroçar, Eve. É feita de aço.
Eve respirou fundo, a tremer.
– Lamento tê-lo e-enganado. Ter fugido quando o Cameron estava a
dormir e ter voltado a Lille, quando não queria que eu regressasse. – A voz
dela era pastosa. – Lamento muito.
– Eu sei.
Eve olhou para a mesa, onde a mão dele repousava junto à sua mão
defeituosa. Ele mexeu-a um pouco, para que o seu polegar tocasse
suavemente a ponta do dedo mais próximo dela.
– Eu gostava… – começou Eve, mas parou logo de seguida. Gostava o
quê? Que ele não fosse casado? Eve estava demasiado destruída para poder
tomar o lugar ao lado dele, mesmo se esse lugar estivesse vazio. Que, apesar
disso, eles pudessem deitar-se numa cama e ficar aninhados lado a lado? Eve
não suportava partilhar um quarto com ninguém: os pesadelos eram
demasiado terríveis. Que pudessem voltar alguns anos atrás, a “antes”? Antes
de quê… Siegburg? Lili? A guerra? – Gostava que fosse feliz – disse, por
fim.
Cameron não levou a mão dela aos seus lábios, como antigamente. Em
vez disso, baixou a cabeça ao nível da mesa e pressionou a sua boca enrugada
contra os dedos destruídos de Eve.
– Sou um oficial destroçado do exército, com muitos recrutas mortos nas
mãos, Eve. Não posso ser feliz.
– Podia demitir-se do exército.
– Não posso, não. Porque, por mais mortos que tenha atrás de mim, há
mais à minha frente, à espera de serem treinados por mim na Irlanda… E sei
que farei mais por eles do que asnos como o Allenton.
Eve deu-se conta de que ele estava quase bêbedo. Ele nunca tinha
insultado um superior em voz alta.
– Ainda sou útil – garantiu Cameron, enunciando cuidadosamente as
palavras. – Posso ir para a Irlanda e treinar a próxima geração de carne para
canhão. Portanto, é isso o que vou fazer. Vou continuar a trabalhar até não
poder mais. E então, virá a morte.
– Ou a reforma.
– A reforma mata pessoas como nós, Eve. É como morremos, se as balas
não nos matam primeiro. – Esboçou um sorriso amargo. – Balas,
aborrecimento ou brandy: é assim que pessoas como nós morrem, porque
Deus sabe que não somos feitos para a paz.
– Não, não somos. – Eve baixou a cabeça e beijou a mão dele. E depois
beberam até à hora de partida do comboio de Cameron. Ele aguentou a
bebida como um cavalheiro inglês, de olhar vidrado, mas de costas direitas –
e assim caminharam pelo cais.
– Vou para a Irlanda na próxima semana. – O tom de voz dele era
sombrio, como se estivesse prestes a ir para o inferno. – E a Eve, para onde
vai?
– Vou voltar para França. O mais rapidamente possível.
– O que há em França?
– Um inimigo. – Eve olhou para ele e afastou as madeixas de cabelo seco
dos olhos, sentindo o peso da arma na sacola. – René Bordelon, Cameron.
Vou matá-lo, nem que seja a última coisa que faço nesta vida.
Esse era o propósito de Eve, depois de a guerra ter acabado.
O olhar de Cameron, com uma expressão entre a dor e a indecisão,
confundiu-a. Mais tarde, Eve analisaria aquele olhar cuidadosamente e dar-
se-ia conta de como ele lhe tinha atirado areia para os olhos tão bem.
– Eve – disse ele, por fim. – Não sabe? O René Bordelon está morto.
Capítulo 37
Charlie
Junho de 1947

No dia seguinte, preparei-me para as piadas sarcásticas de Eve, porque era


impossível alguém olhar para mim e para Finn e não saber exatamente o que
se tinha passado. Ambos estávamos de olhos pesados, devido à falta de
descanso, eu não conseguia parar de sorrir e Finn lançava-me tantos olhares
de relance que eu estava admirada como é que o carro não tinha ido parar à
valeta ainda antes de sairmos de Grenoble.
Mas Eve mantinha-se em silêncio desde o momento em que entrou no
Lagonda. Quando olhei para trás, ela estava a admirar as colinas, e isso
agradou-me mais do que ouvir comentários mordazes sobre o modo como
Finn e eu dissimuladamente dávamos as mãos no banco da frente.
– O que vai acontecer quando chegarmos a Grasse? – tentei saber.
Um sorriso enigmático.
Resmunguei:
– Por vezes, a Eve é muito irritante, sabe? – Mas não consegui ficar
zangada. Os dedos de Finn entrelaçados nos meus eram ásperos e quentes, e
eu sentia-me tão feliz que estava meio atordoada. Durante muito tempo, não
senti mais do que entorpecimento, e depois senti esse entorpecimento ser
estilhaçado por sofrimento, culpa e raiva – tudo isso continuava dentro de
mim, mas encoberto por este sentimento caloroso, esplêndido e calmo. Não
era só a noite partilhada e em claro. Era o modo como Finn tinha ido buscar
um café enquanto eu me sentara a pentear o cabelo, tendo voltado não apenas
com o café, mas também com um prato de bacon estaladiço, que ele pedira
ao cozinheiro do hotel, porque sabia dos meus desejos. Era o modo como eu
me tinha olhado ao espelho e visto, não a rapariga zangada com o queixo na
posição quero lá saber, mas uma jovem feliz com sardas no nariz e
bronzeada pelo sol francês. Era o rosto de uma pessoa que queria bem a
alguém e que, por sua vez, também era querida.
Abanei ligeiramente a cabeça, de forma a interromper os meus próprios
pensamentos. Não queria examinar muito minuciosamente a felicidade que
sentia; tinha demasiado receio de que se desfizesse. Estava contente por
deixá-la existir, mas, sem nunca largar a mão de Finn, voltei a virar-me para
trás ao aproximarmo-nos de Grasse, numa nova tentativa de fazer Eve falar.
– Então, vá, conte-nos. Como é que vamos encontrar o Bordelon?
– Ainda estou a passar o plano a limpo na cabeça, ianque, para ver se não
há pontos fracos – respondeu ela. – Eu sei muito bem que quando o tema é o
René, não sou completamente imparcial…
– O que a Eve quer dizer é que não é completamente equilibrada –
resmungou Finn, baixinho.
– Eh, escocês, ouvi o que disseste. – Não parecia estar zangada. – Não
tenho os parafusos todos, e nós três sabemos disso, portanto, tenho de ter a
certeza de que este plano não tem erros. Porque pode dar para o torto, e não
vou deixar que isso aconteça.
– Como posso ajudar neste seu plano? – perguntei, mas Finn resmungou
novamente, quando Eve ia responder. – O que se passa?
– É aquela fuga de óleo. – Ele largou a minha mão e apontou para um
mostrador no painel de instrumentos. – Tenho de fazer uns apertos…
– Estamos apenas a uma hora de Grasse. – Bati no painel do carro. – Que
lata velha!
– Tento na língua, miss. Ele é velhote e merece descanso, se quiser.
– Finn, o carro não está vivo.
– Isso é o que tu dizes, miúda. – Finn abrandou e saiu do meio estrada,
enquanto trocávamos comentários trocistas. Quem diria que isso poderia ser
tão agradável? Estávamos rodeados por colinas verdejantes e havia no ar uma
fragrância inebriante que não reconheci. Não muito longe, a sul, estava o mar,
pensei. Sentia-se cada vez mais a atmosfera indolente do Mediterrâneo.
Então, eu soltei um “Oh…” ofegante, quando o Lagonda virou para uma
estrada de terra batida e parou na berma. Por um instante, ficámos os três
especados a olhar. A encosta abaixo era como um tapete deslumbrante de
flores azul arroxeadas, cujo perfume doce e envolvente se elevava no ar.
Jacintos – milhares e milhares de jacintos.
Debrucei-me por cima da porta, inalando profundamente, e quase caí.
– Esta estrada deve ser de um dos viveiros de flores.
Eu sabia que Grasse era a capital dos perfumes, mas nunca tinha visto os
campos de flores que abasteciam essa indústria. Saí atabalhoadamente do
carro, deixando a porta aberta, e baixei-me para enfiar o nariz no grupo de
flores mais próximo. O aroma era estonteante. Mais abaixo, viam-se
extensões de rosas cor-de-rosa. E de mais longe chegava-nos a fragrância
opulenta do jasmim. Olhei para trás e vi Eve sentada muito quieta, a inspirar
os aromas, e Finn a sorrir, enquanto tirava a caixa de ferramentas do carro.
Não resisti a lançar-me por entre as ondas de azul e a passar os dedos pelo
topo das flores. Era como patinhar num lago perfumado cor de safira.
Quando voltei ao carro, Finn estava a fechar o capô.
– Eve! – chamei e, debruçando-me pela janela, depositei uma braçada de
jacintos no colo dela. – São para si.
Ela admirou o volume de flores, os seus dedos torturados a moverem-se
gentilmente entre as pétalas macias, e eu senti lágrimas a picarem-me os
olhos. Adoro-a, sua velha rabugenta e teimosa, pensei.
Eve olhou para mim, com um sorriso algo enferrujado, e eu perguntei-me
se ela estava prestes a dizer qualquer coisa igualmente carinhosa.
– O plano, assim q-que chegarmos a Grasse, é este… – foi o que ela disse.
Ri-me. Eu devia saber que um momento sentimental com a Eve era
improvável. Finn aproximou-se e ela piscou-lhe o olho.
– Vais precisar de um fato elegante, escocês, e de alguns cartões de visita.
Tu, ianque, vais fazer o papel de minha neta devota. E vamos precisar todos
de paciência, porque isto vai demorar algum tempo.
Ela expôs o resto do plano de modo sucinto. Finn e eu escutámos com
atenção, acenando as cabeças.
– Pode resultar – disse Finn. – Isto é, se o Bordelon estiver em Grasse.
– E se o encontrarmos? – perguntei.
Eve sorriu maliciosamente.
– Porque perguntas?
– Responda-me. – Eu estava a pensar na conversa da noite anterior, na
ponte, e o meu medo corrosivo de que Eve ansiava por sangue. Eu não queria
fazer parte de um homicídio. – O que vai fazer quando o encontrar, Eve?
Eve citou o verso em francês:
– Voltarei à tua alcova e em silêncio deslizarei para ti pelas sombras da
noite… Dar-te-ei beijos mais frígidos do que a lua e afagos de serpentes em
redor de um túmulo.
Resmunguei.
– Deixe-me adivinhar… Baudelaire?
– O meu p-poema preferido, Le Revenant, A Alma do Outro Mundo, mas
soa melhor em francês. Revenant vem do verbo revenir.
Voltar.
– Ele nunca imaginou que eu pudesse voltar. Mas está muito enganado. –
Finn e eu trocámos olhares, e Eve ficou novamente impaciente. – Voltem
para o carro, meninos. Não podemos ficar pasmados a olhar para as flores o
dia todo.
Chegámos a Grasse ao final da tarde: uma praça com torres quadradas,
ruas estreitas e sinuosas, telhados cor de alperce, cores mediterrânicas e,
acima de tudo, o perfume dos campos de flores. Eve abriu passo até ao
rececionista de hotel, mas eu adiantei-me:
– Dois quartos – disse eu, olhando para Finn. – Um para a Grandmaman e
outro para nós, não é, querido?
Disse-o sem hesitar, pousando casualmente a minha mão no braço dele,
para que o rececionista pudesse ver a minha aliança. Tal como Eve dissera,
uma história convincente é aquela que recita os pequenos detalhes com
convicção.
– Dois quartos – confirmou Finn, sufocando o riso. O rececionista não
pestanejou. Mais tarde, pedi uma ligação a Roubaix, para a Violette, para lhe
dizer onde me poderia contactar. Estávamos em Grasse e a caça começava.

Os cartões novos de Finn eram gravados em relevo e aparentavam ser


caros.
– Dá-os sempre com uma expressão condescendente – instruiu Eve. – E,
por amor de Deus, podem parar com os risinhos?
Mas Finn e eu continuámos a rir às gargalhadas. Os cartões, em toda a sua
elegância, diziam:

Donald McGowan, Solicitador

– O meu Donald! – consegui dizer, por fim. – Bem, a minha mãe sempre
quis que eu casasse com um advogado.
– Solicitador – corrigiu Eve. – Os bifes têm solicitadores, e eles têm
sempre um ar de superioridade. Vais ter de trabalhar o sobrolho, Finn. – E
que sobrolho impressionante ele tinha, quando, quatro dias mais tarde,
entregou o cartão ao maître d’ de Les Trois Cloches. Por essa altura, Finn já
tinha alguma prática de outros restaurantes. – Faço averiguações em nome de
uma senhora – sussurrou ele. – É um assunto algo delicado.
O maître d’ avaliou-o num só relance. Finn Kilgore, com a sua camisa
amarrotada e o cabelo desgrenhado, teria sido completamente ignorado pelo
maître d’ de Les Trois Cloches, um dos restaurantes mais chiques de Grasse –
mas Donald McGowan, no seu fato cinzento escuro e gravata às riscas finas,
ganhou um endireitar de costas subtil.
– Como o posso ajudar, monsieur?
Era a hora morta entre o almoço e o jantar, e havia poucos clientes; Eve
escolhia sempre cuidadosamente o momento da nossa chegada, para que os
empregados tivessem tempo para tagarelar. Ou para responder a perguntas.
– A minha cliente, a Sra. Knight. – Finn lançou um olhar para trás, para
onde estava Eve, apoiada no meu braço, com um vestido de seda preta e um
chapéu de aba larga, as mãos escondidas sob luvas de pelica, aparentando um
ar frágil enquanto limpava os olhos com um lenço debruado a preto. – Ela
emigrou para Nova Iorque há muitos anos, mas a maioria da família ficou em
França – explicou ele. – E com tanta mortandade durante a guerra…
O maître d’ fez o sinal da cruz.
– Tanta.
– Descobri o óbito do pai dela, da tia, dois tios. Mas há um primo que
ainda falta descobrir.
Se tu podes passar França a pente fino à procura da tua prima
desaparecida, eu também posso, tinha dito Eve quando nos contou de onde
lhe viera a ideia. Quem é que na Europa não tem um ou dois primos
desaparecidos, nos dias que correm?
– Descobrimos que saiu de Limoges e veio para Grasse em 44, para fugir
da Gestapo… – Finn baixou a voz, fazendo algumas alusões vagas à
atividade da Resistência e aos inimigos de Vichy. Pintou a imagem do
companheiro de infância da Eve (um patriota corajoso, que escapou à prisão
por pouco), que por aqueles dias o procurava com saudade (como única
sobrevivente de uma família massacrada).
– E alguém vai acreditar nessa história? – perguntei-lhe, quando
estávamos no campo de jacintos. – É demasiado à Hollywood.
– Vão acreditar porque é à Hollywood. Depois de uma guerra como esta,
toda a gente d-deseja um final feliz, mesmo que não seja a sua história.
E, de facto, este maître d’, como os outros antes dele, acenava com a
cabeça, claramente compreensivo.
– René du Malassis – disse Finn, prosseguindo. – Mas talvez tenha
adotado um nome diferente. A Milice andava à procura dele. – Trocaram
esgares; mesmo dois anos após o fim da guerra, toda a gente ficava nervosa
quando a Milice era mencionada. – E isso fez com que as averiguações da
Sra. Knight se tenham complicado. Mas temos uma fotografia.
A fotografia de René, dobrada para que todos os seus convivas repletos de
suásticas não aparecessem, foi passada ao maître d’, que a observou
atentamente. Eve fingiu que os ombros lhe tremiam, e eu dei-lhe uma
palmadinha nas costas com ar preocupado.
– Grandmaman, não se aflija. – O meu papel aqui era reforçar o fator
compaixão. Esfreguei a mão enluvada de Eve entre as minhas, de coração aos
pulos, enquanto o maître d’ hesitava.
– Não – disse ele, abanando a cabeça, e o meu coração bateu mais lento. –
Não, lamento, mas não conheço este cavalheiro.
Risquei o Les Trois Cloches da lista, enquanto Finn passava
discretamente uma nota ao maître d’, murmurando:
– Se vir o cavalheiro, por favor, contacte-me…
Restavam umas duas centenas de lugares para visitar.
– Não desanimem – incentivou Eve, assim que saímos para a rua. – Eu
disse que era preciso trabalho e sorte, n-não disse? Esta é a parte que não é à
Hollywood. Não se pode ir à procura de alguém à espera que ela apareça de
repente, como um coelho no chapéu do mágico.
– Tem a certeza de que esta é a melhor forma de o encontrar? – perguntou
Finn, colocando o chapéu na cabeça. Nada de passear pela rua sem chapéu;
Donald MacGowan (solicitador) era um homem de negócios.
– Alguém num destes lugares vai reconhecê-lo. – Eve deu um piparote na
lista amarrotada dentro da carteira.
O argumento dela era simples: René Bordelon apreciava as coisas boas da
vida. Algumas características podiam ter mudado nele, mas isso, não. Ele
ainda frequentaria os melhores clubes, tomaria a sua bebida nos melhores
cafés, iria às melhores salas de teatro; e era o tipo de cliente em que os
empregados reparavam, pois dava gorjetas e vestia-se bem, e podia conversar
sobre vinhos com o sommelier e sobre Klimt com o guia do museu.
Tínhamos uma fotografia relativamente recente – se visitássemos os melhores
lugares de cultura em Grasse, argumentava ela, alguém iria seguramente
reconhecer aquele rosto. E, então, teríamos um nome.
Naquele dia cheio de sol, por entre as flores, eu perguntei:
– Quanto tempo vamos demorar a encontrá-lo?
– Se fosse em Paris, para sempre. Mas Grasse não é muito grande.
Finn mostrou-se preocupado com algo mais sinistro.
– E se ele descobre que há uma mulher à procura dele? Uma mulher com
as mãos deformadas, mais ou menos da mesma idade que a sua pequena
Margarida teria agora?
A Eve olhou para ele, com ar zangado.
– Sou uma profissional, Finn. Achas que sou uma idiota? Achas que vou
entrar nos restaurantes de Grasse com uma corneta a anunciar a minha
presença? – Daí a criação da Sra. Knight e do Sr. McGowan, e das luvas para
esconder as mãos da Eve.
– Tenho uma condição, Gardiner – respondeu Finn. – Tens de deixar a
Luger no hotel.
– Achas que se eu visse o René Bordelon nas ruas de Grasse iria ter com
ele para lhe dar um tiro na cabeça?
– Não sou imbecil. Prefiro não correr riscos.
Andávamos naquilo havia quatro dias. Mal tínhamos desfeito as malas no
hotel e já a Eve recolhia informação, compilando listas. Assim que Finn
recebeu os cartões de visita e o fato, e a Eve comprou um bom par de luvas
de pelica e um chapéu grande de viúva para lhe esconder o rosto, sem que
parecesse que estava esconder o rosto, saímos para a nossa missão.
A primeira vez que entrámos num café chique com a nossa cena ensaiada,
eu estava demasiado nervosa para falar. Mas seis restaurantes, três museus,
um teatro, cinco clubes e quatro dias depois, estava quase aborrecida. Exceto
no momento de clara antecipação sempre que, pela primeira vez, um
empregado ou um porteiro se inclinava para ver a fotografia do René e eu
pensava que talvez fosse desta…
– Bem-vinda à realidade do trabalho de espião – disse Eve, à porta do Les
Trois Cloches, endireitando as costas e deixando de ser, diante dos meus
olhos, a avozinha cambaleante. – Entediante a maior parte do tempo,
ocasionalmente emocionante.
Os olhos dela brilharam e eu pensei em como ela estava com melhor
aspeto do que no dia em que eu a conhecera. Nesse dia, ela parecia ter 60 ou
70 anos e encontrava-se devastada, enrugada e pálida. Naquele momento,
tinha sacudido o peso da dor e da inércia que a faziam parecer velha e frágil,
e eu estava espantada com a mudança. O seu rosto voltou a ter uma cor
saudável, ainda que continuasse a ter as rugas profundas em redor dos olhos e
da boca; mexia-se com rapidez e eficiência, em vez de ficar encolhida e na
defensiva; o cabelo grisalho brilhava, tal como os olhos astutos. Parecia ter
novamente a sua idade, 54 anos vigorosos e ainda com muito para viver.
– Desde que chegámos a Grasse, ela não tem tido aqueles pesadelos
estridentes – comentei com o Finn, depois do jantar dessa noite, enquanto
observava a Eve a subir as escadas para se ir deitar. – E também não tem
bebido tanto whisky.
– A perseguição faz-lhe bem. – Finn terminou de beber o café. – No
fundo, ela é uma caçadora. Durante os últimos 30 anos, esteve quieta, a
morrer devagar, sem nada para perseguir. Talvez não seja mau esta caça ao
homem demorar algum tempo.
– Bem – disse eu –, eu não me importava nada.
Ele ofereceu-me aquele sorriso invisível que me deixava derretida.
– Estou totalmente estafado de todas estas andanças. E tu?
– Exausta. Devíamos ir para a cama cedo, descansar.
Mas não houve muito descanso no nosso pequeno quarto de portadas
azuis e cama grande macia. Nem eu nem Finn objetámos quando a busca de
Eve se alargou para uma semana, dez dias. As manhãs eram para os três:
croissants de massa folhada e chávenas de café a uma mesa tão pequena que
os nossos joelhos se atropelavam. Depois, vinha a caça, a repetição da nossa
peça, agora perfeita e sem falhas: parar na loja de sapatos feitos à mão na
Place aux Aires, depois uma perfumaria artesanal para comprar uma água-de-
colónia caríssima. Passear pelas ruas estreitas e tortuosas da vieille ville, com
destino aos clubes e teatros que pudessem reconhecer um cliente especial, e
finalmente, durante a hora de calma nos restaurantes, antes de jantar, visitar
os mais chiques, repletos de candeeiros de abajures e talheres de prata
pesados. Ao fim do dia, regressar ao hotel e jantar, acompanhados de uma
garrafa de rosé provençal e pratinhos repletos de batatas fritas aos palitos.
Foram dias felizes, com o Finn e eu contentes por deixar que a Eve tomasse
as decisões durante o dia, porque a noite era só nossa.
– Já te disse que ficas uma brasa vestido de fato completo? – perguntei
certa noite, com a cabeça encostada ao braço de Finn.
– Sim, já disseste.
– Pareceu-me que valia a pena repeti-lo. – Debrucei-me para beber o
último gole do vinho que tínhamos trazido para o quarto. Eu estava
completamente nua, já nem um pouco envergonhada dele, e ele estava
deitado de mão atrás da nuca, a admirar-me. – Quando é que o Lagonda está
pronto?
– Talvez daqui a uma semana. – Quando soube que íamos ficar em Grasse
algum tempo, Finn encontrou uma oficina para arranjar aquela persistente
fuga de óleo. Ele telefonava à garagem dia sim, dia não, para perguntar como
ia o arranjo, como uma mãe ansiosa.
– Precisas de um carro novo, Finn.
– Sabes quanto custa um carro novo, com a falta de metal provocada pela
guerra?
– Bem, então brindemos à saúde do Lagonda. – Passei-lhe a caneca que
estávamos a usar para beber vinho. – Não me importava de andar de carro em
Grasse, em vez de ir a pé para todo o lado. Doem-me tanto os pés, e eu estava
a contar com mais uns meses antes que inchem com a gravidez. – Assim que
chegámos a Grasse, os meus enjoos matinais desapareceram, tal como o meu
cansaço constante e esgotante. Não sabia se eram as brisas perfumadas, ou o
amor que tanto fazíamos, ou simplesmente o facto de o Botão de Rosa estar
no seu quarto mês, mas subitamente eu sentia-me maravilhosa, cheia de uma
energia sem limites e pronta para qualquer coisa, até para as nossas
caminhadas infindáveis por toda a Grasse. Ainda assim, sentia falta do carro.
Finn acabou o rosé e depois deu meia-volta, encostando-se aos pés da
cama. Começou a massajar-me os dedos dos pés debaixo do lençol e eu torci-
me com prazer. A noite estava quente, as portadas das janelas do quarto
estavam abertas e o aroma dos jasmins e das rosas perfumava o ar, vindo do
exterior. A luz do candeeiro do teto formava um círculo em redor da cama,
fazendo com que parecesse um navio à deriva num mar negro. Tínhamos
acordado que, no quarto, não falaríamos de René, ou da guerra, ou das coisas
horríveis que tinham acontecido por causa destes dois fatores. As conversas
mais felizes pertenciam às horas da noite.
– Espera até chegares ao oitavo mês de gravidez – vaticinou Finn,
massajando-me a planta de um pé. – Aí é que os pés começam a doer a sério.
– O que percebe o senhor de gravidezes e do oitavo mês, Sr. Kilgore?
– Vi as mulheres dos meus amigos. Devo ser o único que ainda não
casou… A primeira coisa que a maioria dos meus camaradas do 63.° fizeram,
assim que voltaram para casa, foi engravidar uma rapariga e casar com ela.
Sou padrinho de, pelo menos, três crianças.
– Estou mesmo a ver-te ao lado de uma pia batismal com um embrulho
rendado aos berros nos braços!
– Aos berros? Nunca. Os bebés gostam de mim. Adormecem assim que
pego neles ao colo. – Uma pausa. – Eu gosto de bebés. Sempre quis ter uns
dois ou três.
Deixámos a frase pairar no ar por um momento, antes de a evitarmos com
pezinhos de lã.
– E de que mais gostas? – perguntei, dando-lhe o outro pé. – Para além de
Bentleys. – A noite passada, ele tinha lido em voz alta um artigo inteiro da
revista de automóveis sobre o Bentley Mark VI, imitando o meu sotaque
americano de forma ultrajante, tanto que tive de o agredir com a almofada.
– Se um homem tem um Bentley, tem tudo o que precisa, miúda. Exceto
talvez uma boa oficina para manter o carro em excelentes condições. Aquela
onde o Lagonda está agora é muito boa.
Fiz-lhe cócegas no peito com os meus dedos dos pés.
– Tu podias ter a tua própria oficina, sabes.
– Não basta ser bom a arranjar carros para se ter uma garagem. – A
expressão dele era pesarosa. – Tu conheces-me. O livro de cheques ia acabar
debaixo de uma lata de óleo, seria impossível lê-lo de tão sujo, e não tardaria
a ter de devolver o negócio ao banco.
Não se fosse eu a gerir as contas… Não acabei o pensamento, nem
mesmo para mim própria; deixei que desaparecesse e comecei a contar a Finn
tudo sobre o café na Provença que eu recordava com tanta felicidade, e como
esse dia tinha feito com que toldos às riscas, Edith Piaf e sanduíches de
queijo de cabra se tornassem o meu ideal de paraíso na terra.
– Embora tenha de haver um pequeno-almoço à inglesa. No café ideal,
quero eu dizer.
– Bem, eu faço um pequeno-almoço à inglesa de se lhe tirar o chapéu…
Ambos sabíamos o que estávamos a fazer, durante aquelas conversas
noturnas descontraídas. Estávamos a delinear um futuro e, lentamente, quase
a medo, começávamos a desenhar a presença dos dois nesse futuro, ao
mesmo tempo que evitávamos chamar as coisas pelos nomes, esboçando
meios sorrisos. Por vezes, a noite trazia sonhos maus para um de nós, mas os
pesadelos eram mais fáceis de suportar quando, no escuro, havia dois braços
carinhosos onde nos podíamos aninhar. Quando o sofrimento nos vinha
visitar, serpenteava através da noite até se tornar parte da sua doçura.
Não te conheço há tempo suficiente para estar assim tão apaixonada por
ti, pensei, observando o perfil do Finn sob a luz suave. Mas estou.
Certa tarde, duas semanas e meia depois de termos chegado a Grasse, Eve
disse, enquanto tomávamos um café depois do almoço:
– Se calhar, o René não está aqui.
Finn e eu trocámos olhares, os dois a pensar na quantidade de cabeças que
tinham abanado ao ver a fotografia. Três gerentes de restaurante e um alfaiate
de luxo tinham dito que reconheciam vagamente o rosto, mas não
conseguiam associar-lhe um nome. Para além disso, nada.
– Se calhar, d-devia desistir. Deixar que a Charlie volte para casa, para
tricotar botinhas de bebé, e pedir-te –Eve acenou para Finn – para me levares
para a terra do peixe frito com batata frita.
– Ainda não me sinto preparada para voltar para casa. – O meu tom de
voz era ligeiro, mas Finn apertou-me a mão e eu retribuí.
– Vamos dar-lhe mais uma semana ou duas – sugeriu Finn. Eve fez um
aceno de cabeça. – Mas vamos tirar a tarde. Gostava de ir com tempo à
oficina, para ver como vai o arranjo do Lagonda.
– Coitados dos mecânicos, vai-lhes azucrinar a cabeça – a Eve, soltando
risinhos abafados, quando Finn se afastou.
– Ou pedir perdão ao carro por não o visitar mais vezes – disse eu,
concordando.
Ficámos sentadas durante um bom bocado, a acabar de tomar os nossos
cafés, e depois Eve olhou para mim.
– Não sou muito boa a tirar tardes. Vamos escolher dois ou três
restaurantes. Acho que juntas c-conseguimos enfrentar os empregados sem
ter o solicitador atrás.
Observei-a: os olhos cinzentos brilhavam-lhe no rosto bronzeado,
enquanto colocava o chapéu ligeiramente inclinado, para lhe tapar a testa.
– Talvez seja melhor apresentar-me como sua filha, desta vez. A Eve já
não tem credibilidade como minha avó.
– Pff!
– Estou a falar a sério! É o ar floral de Grasse. É como o elixir da
juventude. – Ao passearmos pela parte velha da cidade, onde os edifícios se
arqueavam sobre nós, encostados uns aos outros como velhos amigos,
apercebi-me do quanto estava a adorar Grasse. Todas as outras cidades por
que tínhamos passado (Lille, Roubaix, Limoges) tinham sido ofuscadas pela
minha busca pela Rose. Mas aqui, em Grasse, tínhamos finalmente parado
para respirar e a cidade desdobrava-se aos meus olhos como as flores de
jasmim nos campos. Nunca mais quero deixar este lugar, pensei, antes de me
obrigar a concentrar na nossa perseguição.
Depois de mais duas tentativas falhadas em restaurantes, Eve tirou o
mapa para escolher um terceiro. Eu mastigava uma iguaria com flores de
curgetes fritas, que o Botão de Rosa adorava quase tanto como bacon,
enquanto admirava a montra de uma loja. Exibia apenas roupas de criança:
fatos de marinheiros, saias com folhos e, por cima de um carrinho de bebé,
um vestido minúsculo de renda bordado com rosas trepadeiras. Olhei para o
vestido e senti um desejo intenso de o comprar. Imaginei o Botão de Rosa
com ele vestido no dia do seu batizado. Eu sentia-o naquele momento – no
que me pareciam apenas dois dias, a minha barriga passara de completamente
lisa a ligeiramente arredondada. Não que fosse visível através da minha
roupa, mas estava lá: uma barriga pequenina. Finn não comentava, mas,
durante a noite, não parava de passar os dedos por cima do meu abdómen,
como se fossem beijinhos de borboletas.
– Compra – sugeriu Eve, ao reparar no meu olhar ávido. – Aquela braçada
de rendas que te estão a fazer babar… Vai lá e c-compra.
– Não tenho dinheiro para isso. – Melancólica, engoli a minha última flor
de curgete. – Aposto que é mais caro do que todas as minhas roupas em
segunda mão juntas.
Eve meteu o mapa na carteira, dirigiu-se à loja, entrou, saiu alguns
minutos mais tarde com um embrulho de papel castanho e atirou-mo para as
mãos sem cerimónia nenhuma.
– Talvez agora entres no ritmo.
– A Eve não precisava de…
– Detesto que me agradeçam. Toca a marchar, ianque!
E eu marchei.
– Anda a gastar muito dinheiro ultimamente, Eve. – O dinheiro da
penhora do meu colar de pérolas já se tinha esgotado, e era Eve quem pagava
todas as nossas despesas, embora eu lhe tivesse prometido que lhe devolveria
o dinheiro assim que conseguisse ter acesso à minha conta em Londres.
– Em que posso gastar dinheiro? Whisky, vingança e vestidos de bebé.
Sorri abertamente, abraçando o embrulho.
– Gostava de ser a madrinha dela, Eve?
– Continua a chamar-lhe ela e vais ver que te vai sair um rapaz, só para te
contrariar.
– A madrinha dele, então. – Fiz uma pausa, subitamente séria, embora o
tivesse dito de ânimo leve. – A sério, Eve… gostava?
– Não me comporto bem na igreja.
– Espero que não.
– Está bem. – Ela sorriu atabalhoadamente e começou a andar, majestosa
como uma garça num lago. – Já que insistes.
– Insisto, sim – disse eu, e as palavras saíram-me roucas de emoção.

O restaurante ficava numa rua que ia dar à Place du Petit Puy, com a sua
catedral de fachada esbranquiçada. Já passava muito da hora de almoço; não
tardaria nada, os clientes começariam a entrar para uma bebida de fim de
tarde. Pisquei os olhos, para me ajustar à escuridão do interior, depois do sol
ofuscante, e para me preparar para o meu papel de neta devota e atenta. Eve
tropeçou em mim nesse momento, como se estivesse demasiado fraca para
caminhar sem ajuda.
Dei um passo na direção do maître d’ e desfiei o rosário de Finn, que eu
já sabia de cor e salteado. Eve limpou as lágrimas com um lenço e, pouco
depois, tirei a fotografia para mostrar ao empregado. A minha mente pensava
no vestido de bebé; eu não estava de todo concentrada na nossa perseguição.
Mas subitamente concentrei-me, pois o maître d’ acenava a cabeça em
sinal de reconhecimento. Aquele aceno de cabeça atingiu-me como a pancada
de um martelo.
– Bien sûr, mademoiselle. Conheço bem o cavalheiro, é um dos nossos
melhores clientes. Monsieur René Gautier.
Por um instante, fiquei paralisada. René Gautier. O nome ecoou dentro da
minha cabeça como uma bala em ricochete. René Gautier…
Eve pôs-se a meu lado. Não sei como conseguiu manter a sua aparente
fragilidade idosa, mas a verdade é que lhe tinham sido atribuídas quatro
medalhas por espionagem. E eu pude constatar porquê, quando ela disse com
voz trémula, mas sem gaguejar ou pestanejar:
– Oh, monsieur, como me deixa feliz! O meu René, há tantos anos que
não o vejo! René Gautier, é esse o nome que ele tem agora?
– Sim, madame. – O maître d’ sorriu, claramente a saborear a
oportunidade de ser o portador de boas notícias. Eve tinha razão: depois da
guerra, toda a gente ansiava por um final feliz. – Ele tem uma casa de campo
encantadora nos arredores de Grasse, mas vem aqui com frequência. Pede
sempre as rilletes de canard, nós servimos as melhores rilletes da Riviera, se
me permitem que o diga…
Eu queria lá saber das rilletes. Aproximei-me dele, o coração aos pulos.
– E a casa de campo… por acaso, não tem o endereço dela?
– É depois dos campos de mimosas, quem sai da Rue des Papillons,
mademoiselle. Por vezes, entregamos-lhe em casa uma caixa de vinho, um
Vouvray que mais ninguém tem em Grasse…
Eve já endireitava o chapéu.
– Obrigada, monsieur, deixou-nos muito felizes – agradeci
atabalhoadamente, enquanto dava o braço à Eve. Mas o maître d’ olhou por
cima de nós e fez um sorriso de orelha a orelha.
– Ah, que sorte! O monsieur acaba de chegar.
Capítulo 38
Eve
Quando Eve se virou para enfrentar o inimigo, o tempo curvou-se sobre si
mesmo. Era simultaneamente 1915 e 1947. Ela tinha 22 anos, estava coberta
de sangue e tinha a alma quebrada, mas também tinha 54 anos, tremia e
continuava quebrada. René Bordelon era um bon vivant moreno e melífluo,
mas também era um velho de ombros perros, cabelo grisalho e fato
impecável. Nesse momento em que o tempo colidiu, ambas as versões eram
verdadeiras.
Então, o passado e o presente fundiram-se num único instante e o tempo
tornou-se apenas 1947, uma tarde maravilhosa de verão em Grasse, e nada
mais que dois metros de chão ladrilhado separavam uma antiga espia do seu
antigo inimigo. Quando Eve o fitou – alto e magro, a mesma bengala de
castão de prata pendurada no braço –, o terror abriu-se dentro de si como um
alçapão e toda a sua coragem remendada afundou-se num longo e silencioso
grito.
Ele não a reconheceu. Rodou o chapéu de feltro preto nas mãos e ergueu
uma sobrancelha ao ver a expressão entusiasmada do maître d’:
– Vejo que estavam à minha espera …
Eve foi invadida por um calafrio ao ouvir a voz monocórdica dos seus
pesadelos. As mãos começaram a doer-lhe por dentro das luvas, enquanto ela
olhava, paralisada e incrédula, para o homem que as tinha destruído. Não lhe
passara pela cabeça que o poderia encontrar antes de estar preparada para
isso. Imaginara que seria capaz de encarar o primeiro encontro dos dois nos
seus próprios termos, que o surpreenderia quando estivesse bem preparada
para isso. Ao invés, o destino surpreendeu-a quando ela não estava de todo
preparada.
Ele não tinha mudado. O cabelo grisalho, as rugas na testa – essas eram
coisas superficiais. Os dedos aranhosos, a voz monótona, a alma vil de um
torturador à espreita por sob o fato dispendioso de um homem sofisticado –
tudo isso permanecia igual.
Exceto a cicatriz no lábio. A marca dela, Eve deu-se conta, deixada
quando o mordera naquele último beijo maligno.
O maître d’ debitava explicações e Eve sentiu vagamente Charlie a tocar-
lhe no cotovelo, murmurando algo que não conseguiu distinguir por entre o
zumbido nos seus ouvidos. Ela sabia que devia dizer algo, fazer alguma
coisa, mas estava paralisada.
Os olhos escuros de René voltaram a pousar no rosto dela e ele deu um
passo à frente.
– Sra. Knight? Não reconheço o nome, madame…
Eve não soube como foi capaz, mas também ela deu um passo à frente,
esticando a mão para o cumprimentar. Ele pegou-lhe na mão e, ao sentir o
familiar aperto daqueles dedos compridos, foi invadida por um velho
sentimento de repulsa. Teve vontade de atirar a mão dele para o lado e fugir
cobardemente, lamuriando o sofrimento e o terror do passado.
Tarde de mais. Ele estava aqui e ela também. E Evelyn Gardiner estava
farta de fugir.
Apertou a mão dele com força e viu-lhe o rosto mudar de expressão
quando sentiu as deformidades por baixo da luva dela. Inclinou-se para a
frente, para que ele a pudesse escutar. As palavras saíram-lhe graves, calmas
e perfeitamente distintas.
– Talvez reconheças o nome Marguerite Le François, René Bordelon. Ou
devo dizer Evelyn Gardiner?

Subitamente, o burburinho no restaurante aumentou, com os empregados


a sorrir, radiantes, e o maître d’ a oferecer-lhes a melhor mesa da casa – que
reencontro feliz se desenrolava naquele estabelecimento! No meio de todo
aquele rebuliço, Eve e René continuavam de mãos apertadas e olhos fixos um
no outro, como se tivessem espadas desembainhadas.
Por fim, o patife tirou a mão e apontou-a na direção da mesa que os
empregados tão entusiasticamente preparavam.
– Vamos?
Eve conseguiu inclinar a cabeça, em concordância. Virou-se,
surpreendida por ser capaz de caminhar sem tropeçar. Charlie, de rosto
pálido, pôs-se a seu lado, qual escudeiro de um cavaleiro, e segurou-a pelo
cotovelo. Aquela mão ágil e pequena era maravilhosamente firme.
– Eve – chamou Charlie, em voz baixa, olhando de relance para o homem
que as seguia. – Que posso fazer?
– Não te metas na conversa – resmungou Eve. Este campo de batalha não
era lugar para Charlie St. Clair; René esmagá-la-ia facilmente, como sempre
havia esmagado e mutilado tantas outras que se tinham atravessado no
caminho dele. Mas Eve não ia deixar que ele magoasse mais uma pessoa de
quem ela gostava: ela esfolá-lo-ia vivo.
Esfolá-lo vivo?, escarneceu algo dentro de si. Tu mal consegues olhá-lo
nos olhos. Mas afastou o pensamento com veemência, juntamente com o
terror que sentia, e sentou-se à mesa de frente para René, com a vastidão da
toalha branca entre os dois. Charlie sentou-se numa cadeira ao lado de Eve,
invulgarmente silenciosa. Os empregados, zelosos, afastaram-se para dar
privacidade a esta feliz reunião.
René encostou-se para trás na cadeira e juntou as mãos nas pontas dos
dedos. Eve sentiu uma náusea súbita, ao recordar aqueles dedos a agarrar o
busto ensanguentado de Baudelaire… ao recordá-lo enquanto delineava os
seus seios nus na cama.
– Com que então… – disse ele suavemente, em francês. – Marguerite.
Ao ouvir aquele nome da boca dele, Eve sentiu o coração parar. Mas a
frieza que a caracterizara outrora regressou de repente, e com ela a sua antiga
identidade, tomando-a como uma onda. O seu pulso começou a bater
lentamente e, pela primeira vez desde que o vislumbrara à entrada do
restaurante, ela olhou calmamente para aquele velho tóxico.
– René Gautier – respondeu ela. – Por causa de Théophile Gautier,
presumo? O poeta a quem Baudelaire dedicou As Flores do Mal? Em
Limoges, o teu nome era Du Malassis, em homenagem ao editor de
Baudelaire, por isso vejo que ainda não descobriste outro poeta.
René encolheu os ombros de forma descontraída, como se estivessem a
ter uma conversa normal ao jantar.
– Porquê procurar outro, se o que temos é o melhor?
– É uma forma elaborada de dizer que tens uma mente estagnada.
Um empregado interrompeu-os efusivamente para oferecer uma garrafa
de champanhe.
– Já que esta é uma ocasião para ser celebrada, monsieur…
– Se é – murmurou René. – Porque não?
– Estou a precisar de uma bebida – concordou Eve. Um whisky do
tamanho de um balde seria melhor, mas ela não ia recusar uma taça de
champanhe. Fechou os punhos no regaço e, ao ver que René estremecera ao
ouvir a rolha da garrafa saltar, concluiu que ele não estava tão descontraído
quanto queria fazer parecer. Ótimo.
O empregado afastou-se e ambos pegaram nas taças ao mesmo tempo.
Nenhum sugeriu um brinde.
– Tantas rugas nesse rosto – comentou ele. – O que fizeste, ao longo
destes anos todos?
– Tive uma vida dura. Não preciso de te perguntar o mesmo. Continuaste
a fazer o que fazias durante o tempo em que convivemos: vida boa, a ajudar
os alemães, a fazer com que os teus compatriotas fossem mortos. Embora
agora não te custe tanto a matar com as tuas próprias mãos. Perdeste os
melindres, na tua terceira idade?
– Foi graças a ti que os perdi, querida.
Aquela palavra percorreu-lhe a pele do corpo como uma ratazana.
– Nunca fui a tua querida.
– Achas que Judas se adequa melhor a ti?
Aquilo bateu-lhe com força, mas Eve conseguiu, à justa, não estremecer.
– Quase tão bem como lorpa se adequa a ti.
Ele esboçou um sorriso tenso. Eve observou-o, enquanto René se
recostava na cadeira com o seu fato caro, o nariz comprido a apreciar a
efervescência do champanhe perfeitamente fresco. Uma onda de fúria
invadiu-a. Tinham morrido tantas pessoas – Lili numa prisão esquálida, a
prima de Charlie e a sua bebé numa saraivada de balas, um jovem sous-chef
com um bolso cheio de talheres de prata roubados – e este homem tinha
passado todos esses anos a fazer o quê? A beber champanhe e a dormir sem
pesadelos.
Os pesadelos de Eve começaram só depois de Siegburg. Na cela da
prisão, a tremer em agonia com o frio, em cima de uma cama imunda, não
sonhou com nada. Mas depois começaram as imagens terríveis das paredes
verdes, dos lírios de olhos malignos, do busto a acertar-lhe nas mãos. Eram
sempre do escritório, nunca do homem. Os pesadelos com o escritório onde
ele lhe quebrara a alma tinham-lhe sulcado rugas em redor dos olhos, que ele
agora analisava com tanto desdém. Ele tinha aspeto de quem passara os
últimos 30 anos a dormir muito bem.
Eve olhou de relance para o rosto de Charlie, pálido e imóvel, ela que era
habitualmente tão animada, e perguntou-se se a ianque estaria a pensar o
mesmo. Recordou o momento em que Charlie lhe disse que nunca na vida
tinha visto o mal à sua frente, como Eve o vira.
Estás a vê-lo agora.
René bebeu outro gole, emitiu um pequeno som em sinal de apreciação e
limpou ao de leve os lábios com o guardanapo.
– Confesso que estou surpreendido por te ver, Marguerite. Posso tratar-te
por Marguerite? Nunca consegui pensar em ti de outra maneira.
– Eu estou surpreendida por pensares em mim, sequer. Nunca foste o tipo
de pessoa que olha para trás para medir os estragos.
– Bem, tu foste especial. Pensei que pudesses aparecer em Limoges à
minha procura, depois da primeira guerra.
Se não fosse a mentira de Cameron…
– Escondeste bem o teu rasto quando trocaste Lille por Limoges.
– Não é difícil arranjar papéis de identificação falsos quando se tem
ligações ao mercado negro. – Ele acenou com a mão. – Podias ter-me
encontrado, quando te deixaram sair de Siegburg. Fui acompanhando os
jornais para saber notícias da tua libertação. Porque é que só agora me
procuraste?
– Que importa isso? – Eve engoliu metade do seu champanhe num único
trago. As palavras surgiam-lhe naquele momento mais rapidamente, ao
retomar o velho ritmo pingue-pongue que ela costumava fazer tão bem em
conversa com René. – Estou aqui agora.
– Para me dar um tiro entre os olhos? Creio que o terias feito ali à porta,
se tivesses uma arma.
Que Deus amaldiçoe Finn Kilgore e o mande para o inferno, pensou Eve.
Se não fosse ele, Eve teria a Luger ali com ela.
– Isto é, se esses cacos espatifados a que chamas mãos ainda conseguirem
disparar uma arma. – René chamou um empregado com um dedo no ar. – As
rilletes de canard. Estou com fome.
– Com certeza, monsieur. E para a madame?
– Nada, obrigada.
– A tua gaguez melhorou – observou René, assim que o empregado se
afastou. – Desaparece quando sentes medo?
– Quando sinto raiva. – Eve sorriu. – Quando tu sentes raiva, aparece-te
um pequeno tique nervoso no canto do olho. Estou a vê-lo agora.
– Acho que és a única mulher que alguma vez me fez perder a calma,
Marguerite.
– Pequenas vitórias. Ainda tens aquele busto de Baudelaire?
– Estimo-o muito. Por vezes, à noite, ouço o som dos teus dedos a
partirem-se e adormeço com um sorriso.
Uma visão do escritório de paredes verdes, o cheiro a sangue e a medo –
mas Eve conseguiu afastá-los.
– Quando eu quero adormecer, penso na tua cara no momento em que
deste conta de que estavas a ser enganado por uma espia.
Ele não pestanejou, mas algo no seu olhar se tornou rígido. O escalpe de
Eve arrepiou-se, mas ela sorriu novamente, engoliu de golada o resto do
champanhe e serviu-se de mais. Ainda sei como te irritar, sacana.
– Suponho que pretendes vingança – disse abruptamente René. – A
vingança é o prémio de consolação de quem perde.
– O meu lado ganhou.
– Mas tu perdeste. Portanto, como pretendes concretizar a tua vingança,
Marguerite? Não acredito que tenhas coragem de matar. Aquela coisinha
quebrada e coberta de urina que vi da última vez, a chorar baba e ranho em
cima do meu Aubusson, nem conseguia levantar a cabeça, quanto mais uma
pistola.
Eve sentiu os ossos estremecerem até ao âmago. Ela tinha sido aquela
coisinha quebrada e coberta de urina durante mais de 30 anos, e de muitas
formas diferentes. Até alguém lhe ter batido à porta, numa noite tipicamente
chuvosa de Londres, havia pouco menos de um mês. Até ouvir um clique
naquele restaurante, quando passado e presente se uniram. Até àquele
instante.
Ela não seria mais aquela coisinha quebrada e coberta de urina. Nunca
mais.
René continuava a falar.
– Talvez penses que me podes desgraçar, entregando-me às autoridades?
Sou um homem respeitado aqui em Grasse, e tenho amigos poderosos. Tu és
uma velha enlouquecida pela dor. Achas que eles vão acreditar em quem?
– O senhor é o homem que denunciou Oradour-sur-Glane. – A voz de
Charlie caiu na conversa como um pedaço de gelo. Eve olhou para ela,
surpreendida. Não fales, não chames a atenção dele. Mas Charlie continuou,
com os olhos acesos como brasas. – O senhor é responsável pelo massacre de
600 almas. Não me interessa se tem muitos amigos poderosos ou não, seu
velho sacana. A França não o vai perdoar por isso.
O olhar de René perscrutou demoradamente o rosto de Charlie, mas ele
falou para Eve:
– Quem é esta coisinha, Marguerite? Julgo que não é filha nem neta. Essa
tua rata murcha jamais produziria algo assim tão bonito, seguramente.
Eve não respondeu. Em vez disso, olhou para Charlie e sentiu o aperto de
uma emoção estranha dentro de si. Amor, talvez.
– Podes chamá-la de Mercúrio, René. A mensageira com asas que veio
bater à minha porta. Ela é a razão pela qual estou aqui. Ela é a razão pela
qual, desta vez, não te vou deixar escapar. Ela vai ser a tua ruína. – Eve
ergueu a taça de champanhe, em jeito de brinde. – Apresento-te Charlotte St.
Clair.
Ele franziu o sobrolho.
– Não conheço o nome.
– Conhece o da minha prima. – Os dedos de Charlie apertaram a taça de
champanhe com tanta força que Eve temeu que o vidro se estilhaçasse. –
Rose Fournier, também conhecida pelo nome de Hélène Joubert. Era loira e
adorável. Trabalhou para si em Limoges e o René fez com que ela fosse
morta, seu filho da mãe. Deu o nome dela à Milice, porque teve medo de que
ela o estivesse a espiar, e ela morreu, juntamente com quase todas as almas de
Oradour-sur-Glane.
O empregado escolheu esse momento para trazer as rillettes de canard.
René continuou a olhar pensativamente para Charlie, enquanto desdobrava o
guardanapo, barrava uma tosta com patê de pato e a saboreava com um som
apreciativo.
– Recordo-me dela – disse, por fim, quando o empregado se afastou
discretamente. – Uma pequena galdéria que gostava de ouvir às escondidas.
Não me agradam as empregadas coscuvilheiras. – Lançou um olhar a Eve. –
Não se pode dizer que não aprendi com o passado.
– Porque não se limitou a despedi-la? – As palavras arranhavam a
garganta de Charlie. – Porque a denunciou?
– Só para me sentir seguro. E, para ser franco, porque me trouxe
satisfação. Fiquei com uma grande antipatia por mulheres espias. – Encolheu
os ombros. – Mas espero que não me esteja a culpar pela morte da aldeia
inteira. Isso revela um raciocínio sem lógica. Que culpa tenho eu que um
general alemão tenha decidido exceder as ordens de forma tão meticulosa?
– Eu culpo-o pela morte dela – sussurrou Charlie. – O René não sabia se
ela fazia parte da Resistência ou não, ainda assim denunciou-a. Ela podia
estar inocente, mas não quis saber. Seu canalha…
– Silêncio, menina. Os adultos estão a conversar. – René pegou noutra
tosta. – Mais champanhe, Marguerite?
– Creio que já terminámos. – Eve bebeu o champanhe todo do copo e
levantou-se. – Vamos, Charlie.
A rapariga estava paralisada. Eve viu que ela tremia; conhecia o tipo de
raiva que a dominava, que a fazia querer atirar-se por cima da mesa e abrir a
garganta àquele velho com uma faca de manteiga. Eve conhecia esse
sentimento muito bem.
Ainda não, ianque. Ainda não.
– Charlie. – A voz de Eve estalou como um chicote.
A jovem ergueu-se, visivelmente agitada. Olhou para René, sentado
descontraidamente com restos de paté nos lábios, e murmurou:
– Esta conversa ainda não acabou.
– Acabou, sim. – Ele falou por cima dela, para Eve. – Se eu te vir outra
vez, cabra desleixada, ou se souber que estás a tentar encontrar a minha casa
ou a denegrir a minha reputação, farei com que sejas presa por assédio. Farei
com que sejas esquecida para sempre e voltarei a viver uma vida em que
nunca mais tenha de pensar em ti.
– Tu pensas em mim constantemente – disse Eve. – A minha recordação
atormenta-te todos os dias. Porque eu sou prova viva de que tu nunca foste
tão esperto quanto pensavas.
O olhar dele incandesceu.
– És uma vira-casaca que traiu os seus, graças a uma colher de ópio.
– Ainda assim enganei-te completamente. E isso tem-te devorado por
dentro, nos últimos 30 anos.
A máscara caiu, por fim, e Eve viu fúria genuína nos olhos dele. Ardiam
como se ele fosse capaz de a matar ali mesmo, e ela esboçou então um sorriso
lento e desdenhoso. Não se mexeram, limitaram-se a trocar olhares
desafiantes por entre uma calma peçonhenta, enquanto os empregados
trocavam olhares perplexos. Esta não era, claramente, a reunião feliz que
esperavam.
– Au revoir. – Eve esticou-se e tirou uma tosta do prato dele, comendo-a
lentamente. – Agora, sem escada, fico onde a escada sempre começou, na
loja de osso e trapo do coração.
– Isso não é Baudelaire – comentou ele.
– Yeats. Eu disse-te para descobrires outros poetas. – Eve pegou no seu
chapéu. – Nessa loja de osso e trapo a que tu chamas coração, René, deves
admitir que sentes medo. Porque a tua fleur du mal voltou. – Eve pegou no
braço de Charlie, que apertou firmemente, e dirigiu-se para a porta. – Pensa
nisso.
Capítulo 39
Charlie
Parei à saída do restaurante para recuperar o fôlego, como se tivesse
acabado de sair de uma nuvem de veneno. Ainda ressoava nos meus ouvidos
a voz monocórdica dele a dizer-me que enviara Rose para a morte só para se
sentir seguro. Que isso lhe trouxera satisfação.
Eve descrevera-o várias vezes. O olhar inquebrantável, os dedos
compridos, a aparência elegante. Mas não lhe tinha feito justiça. Quem tinha
estado sentado do outro lado da mesa não era um homem. Era uma víbora
humana.
Tive vontade de vomitar. Mas Eve passou por mim, descendo rua abaixo
quase a correr, e eu forcei-me a mexer.
– Eve, não temos de correr. – Apressei-me para a apanhar. – Ele não vem
atrás de si.
– Não. – Eve não parou. – Eu é que vou atrás dele.
Por um instante, o meu coração vibrou em concordância. Pensei naquele
homem e não senti nenhum dos escrúpulos que experienciei quando me
apercebi de que a vingança de Eve podia ser homicida. Meio copo de
champanhe na companhia de René Bordelon seria o suficiente para convencer
qualquer pessoa que, por vezes, até os velhos merecem morrer.
Mas o senso comum lutava dentro de mim, por entre a névoa escarlate da
fúria, e o meu coração oscilou.
– Eve, espere. Não pode arriscar a sua…
– Despacha-te! – Ela continuou a andar a passos largos pelas ruas
sinuosas; o olhar era ardente. Um homem alto olhou para a expressão dela e
desviou-se. Os pensamentos corriam-me pela mente em duas direções.
Detém-na, dizia o senso comum e simultaneamente a raiva gritava: Porquê?
Ao virar a última esquina, vi o Lagonda parado em frente ao nosso hotel,
azul e reluzente. Suspirei de alívio. Precisava do Finn: da sua calma, da sua
lógica tranquila e, se tudo o mais falhasse, dos seus braços implacáveis para
evitar que Eve se atirasse para uma desgraça. Mas ele não estava ao lado do
seu estimado carro, e, no hotel, o rececionista deu-me uma nota escrita na sua
letra inclinada para trás.
– Ele saiu para tomar uma bebida com o mecânico da garagem – revelei,
respondendo ao olhar brusco e inquiridor de Eve. – Ofereceram-lhe um
trabalho, qualquer coisa relacionada com arranjar motores antigos…
– Ótimo. – Eve subiu os degraus das escadas dois a dois. Meti a nota no
meu bolso e segui-a.
O rececionista chamou-me.
– Madame, chegou um telegrama para si, de Roubaix…
– Já o venho buscar – respondi, por cima do ombro. Quando entrei de
rompante no quarto da Eve, já ela tinha tirado a Luger da gaveta da mesinha
de cabeceira. A visão da arma deixou-me gelada. – Merda – disse eu, pela
primeira vez na vida.
Eve tirou as luvas e sorriu de um modo sombrio.
– Não me digas que estás surpreendida.
Levei as mãos às minhas têmporas. A fúria estava, sem dúvida, a dar
lugar ao medo.
– A Eve vai a casa dele matá-lo, é? Vai esperar que ele volte para casa das
rilletes e espetar-lhe sete tiros na cabeça?
– Sim. – Ela meteu a primeira bala no cartucho. – “Uma casa
encantadora”, foi o que o empregado disse. Fica logo depois dos campos de
mimosas, quem sai da Rue des Papillons. Não deve ser difícil de encontrar.
Cruzei os braços no peito.
– Pouse a pistola e escute-me. Não percebe que, quer o consiga matar ou
não, vai parar à prisão?
– Não me importo.
– Mas eu importo-me. – Agarrei-lhe o braço. – Eu quero que a minha
filha tenha uma madrinha.
A Eve meteu a última bala no carregador.
– E eu quero aquele homem morto.
Uma parte de mim concordava. Mas a vida dele não valia o suficiente
para a trocar pelo futuro de Eve – ele já tinha consumido demasiado tempo
do passado dela. E eu não queria arruinar o meu próprio futuro, precisamente
quando o começava a construir, ao ser cúmplice de um assassínio.
– Eve, pare e pense.
– Já pensei. – Ela verificou o cano da Luger. – Se matar o René em casa
dele, não haverá testemunhas. Ele não usa aliança, por isso, não há mulher ou
filhos que se possam intrometer. Pretendo deixar o cadáver dele no chão e
sair daquela casa livre como um passarinho.
– Os empregados do restaurante sabem que estava à procura dele, que
perguntou pela morada dele. E não apenas no restaurante de hoje. Há
semanas que andamos a fazer perguntas por toda a Grasse. – Talvez ela
percebesse a lógica dos meus argumentos, que eu tentava ordenar. – Se ele
aparecer morto agora…
– A polícia vai procurar-nos? Mas como? Demos nomes falsos, tanto no
hotel como a todas as outras pessoas. Além disso, eu n-não tenho intenções
de ficar em Grasse tempo suficiente para que venham à minha procura.
– E como acha que vai sair de Grasse, se o Finn não está aqui para
conduzir? Como é que vai chegar à casa do René, antes de mais?
– De táxi, se for preciso. – Ela parecia muito calma, como se estivesse a
planear um lanche. No restaurante, eu pressenti medo por detrás do gelo, vi
as mãos dela a tremerem no colo, debaixo da mesa. Naquele momento, Eve
pairava numa zona muito para lá do medo, distante e implacável como uma
águia a planar no ar. Atirando a pistola para a sacola, arremessou para o lado
as sabrinas que usara como a respeitável Sra. Knight e enfiou os pés nas
velhas sandálias. – Anda ajudar-me a matá-lo, se quiseres. Também tens o
direito de o querer ver morto.
– Não. Não a vou ajudar a assassinar aquele homem.
– Achas que ele não merece morrer?
– Merece, mas quero para ele algo pior do que a morte. Quero vê-lo
exposto, humilhado, preso. Quero que o mundo veja o que ele realmente é.
Isso vai matá-lo lentamente, Eve. É o pior castigo no mundo para um homem
orgulhoso como ele. – Inspirei fundo, desejando que ela me ouvisse. – Vamos
à polícia. Temos a fotografia dele, rodeado por nazis, temos o teu
testemunho, podemos pedir o testemunho daquela mulher em Limoges, que o
viu matar o sous-chef a sangue-frio. O René Bordelon pode ter amigos
poderosos, mas a Eve também tem. A Eve é uma heroína de guerra; as
pessoas vão acreditar em si. Por isso, entregue-o à polícia e faça a vida dele
um inferno.
Para mim, isso seria suficiente. Ver aquele homem numa cela de prisão,
sabendo que eu e Eve tínhamos sido as responsáveis por isso, a sofrer os
maus tratos públicos da França de De Gaulle, que tratava os colaboradores e
os especuladores com absoluto desprezo. Acabar-se-iam o champanhe e as
rillettes, restariam apenas a humilhação e os dias sem esperança na prisão,
iguais aos que Eve havia sofrido.
– Ele nunca irá parar a uma cela de prisão, ianque. – A voz de Eve era
implacável. – O René Bordelon passou a vida inteira a evitar c-c-
consequências. Acusar um homem respeitado na cidade, com dinheiro e
amigos poderosos, vai ser complicado, e provar as nossas acusações pode
demorar muito tempo. Ele usaria esse tempo para escapar, porque ele foge
sempre. Ele ultrapassou as más decisões que tomou em duas guerras, e vai
continuar a fugir, pois sabe que não vou parar de o perseguir. Se eu confiar
num mandado de captura, ele vai desaparecer antes sequer de o receber, e
depois vai reinstalar-se noutro sítio qualquer, algures onde eu não o consiga
encontrar. – Ela pegou na sacola com a Luger. – Por isso, prefiro confiar
numa bala.
Apetecia-me esganá-la.
– Não vê que esse plano pode dar errado de muitas maneiras? Ele pode
facilmente matá-la ou chamar a polícia para a algemar…
– Prefiro correr esse risco. – Ela olhou para mim, quando eu me interpus
entre ela e a porta.
– Sai do meu caminho, Charlie St. Clair.
Olhei-a bem nos olhos.
– Não.
Ela avançou para mim. Não a tentei empurrar. Pus os meus braços em
redor da cintura dela e agarrei-a com força.
– Vai arrastar-me pelas escadas abaixo aos gritos? – disse eu, dando-me
conta de que estava quase a chorar. – Não a vou largar, Eve. Não vou.
Eu tinha perdido o meu irmão. Tinha perdido Rose. E não estava disposta
a perder mais ninguém que amava.
Eve endureceu nos meus braços, como se fosse dar-me luta – mas depois
esmoreceu. Ouvi o som gutural de um soluço a soltar-se da sua garganta,
seguida da sacola a cair ao chão. Ficámos ali paradas durante muito tempo,
com Eve a chorar, enquanto o céu lá fora tomava uma cor púrpura,
crepuscular. Limitei-me a abraçá-la, sentindo um alívio dentro do peito.
Ela não disse nada quando as lágrimas secaram. Deixou que a
convencesse a deitar-se, bebeu o whisky que lhe ofereci e arrepiou-se de vez
em quando, debaixo do cobertor que pus por cima dela. Sentei-me ao lado da
cama, a roer a unha do polegar, desejando silenciosamente que Finn estivesse
ali. Ele saberia melhor do que eu como tomar conta dela durante estas crises.
Ouvi a sua respiração tornar-se profunda e ritmada, e desci em bicos de pés
até à receção do hotel, mas eles não sabiam onde Finn tinha ido com o amigo
mecânico.
– O seu telegrama, madame – relembrou o rececionista. – De Roubaix.
Eu tinha-me esquecido por completo. Só podia ser de Violette. O meu
coração disparou subitamente, por uma razão completamente nova, assim que
li o papel. As palavras eram secas, até para um telegrama.

Mentira confirmada. Uma Mlle. Tellier, a responsável.

Uma música celestial ecoou na minha cabeça. Senti-me da altura de um


gigante. Eu tinha razão nas minhas suspeitas; eu estava certa. Por uma vez na
vida, eu tinha nas mãos o poder de consertar o que estava quebrado. Isto –
isto – era do que a Eve precisava.
Corri de volta ao quarto, com o coração aos pulos.
– Eve, veja…
A porta estava aberta. A cama vazia. A sacola com a Luger desaparecera.
Eu estivera ausente nem cinco minutos. Ela deve ter-se levantado e saído
assim que eu deixei o quarto, em bicos de pés, tão fria e calculadamente
como poucos minutos antes tinha tremido e chorado. O medo apoderou-se
novamente de mim, latejando nas minhas têmporas como picos de gelo. Corri
para a janela aberta, procurando-a na rua lá em baixo, mas não vi a figura
esguia dela. Sua cabra traiçoeira, pensei, cheia de raiva por ela me ter
enganado e por eu me ter deixado enganar.
Eu sabia para onde ela ia. Não podia telefonar à polícia e não podia
esperar pelo Finn. O Lagonda estava estacionado lá em baixo.
Meti o telegrama de Violette no bolso, peguei nas chaves do carro de
cima da mesinha de cabeceira e saí a correr.
Capítulo 40
Eve
Tinha sido um truque baixo, pensou Eve.
– Mais depressa – disse ela ao taxista, atirando um punhado de francos
para o banco da frente. Ela não se importava de gastar o último tostão que
tinha. Não ia precisar deles para a viagem de regresso.
O táxi seguia a toda a velocidade, enquanto Eve gozava o prazer
tranquilizante de sentir o peso da Luger sobre o colo. Tinha os olhos secos.
Todas aquelas lágrimas de crocodilo, facilmente choradas e facilmente
limpas. Fora dissimulada e não tinha tido escrúpulos, mas não teve outra
opção, quando Charlie se interpôs tão implacavelmente entre ela e a porta,
com os lábios doces firmemente franzidos. Eve sorriu. Que jovem tão
diferente daquela menininha truculenta e hesitante que lhe aparecera à porta
umas semanas antes.
Tenho pena de nunca mais te ver, pensou. Tenho mesmo muita pena.
– Mas que expressão tão séria, madame – disse o taxista em tom
brincalhão. – Não disse que ia visitar um amigo?
– Sim.
– Uma visita prolongada?
– Sim. – Eterna, na realidade. Eve não tinha intenções de voltar a deixar a
casa de René Bordelon depois de lá entrar. Essa era a razão por que não temia
ser presa. Uma mulher morta não podia ser mandada para a prisão.
A Luger tinha sete balas no carregador. Seis eram destinadas a René; se
calhar, ia mesmo precisar das seis – os homens maus agarravam-se à vida
com toda a força. A última bala, Eve guardava-a para si.
– Tal como tu, Cameron – disse ela em voz alta, indiferente às ruas de
Grasse por onde passavam e que começavam a escurecer com o cair da noite.
O que ela via era o título de um recorte de jornal: Soldado Morto. Quando
tinha sido isso… 22? Não, 24. As palavras apunhalaram Eve por entre uma
ressaca monumental. Falecimento do Major C. A. Cameron…
O mundo desligou-se nesse momento. Algum tempo depois, Eve
conseguiu pegar novamente no recorte – era de um jornal estrangeiro e fora-
lhe enviado por um solicitador – e lê-lo sem chorar, mas com os olhos a
arder. Ouviu um som estrangulado e demorou alguns segundos a perceber
que vinha da sua própria garganta.
… falecimento do Major C. A. Cameron, da Royal Field Artillery.
Morreu no Quartel de Sheffield, em consequência de uma ferida de revólver;
a certidão de óbito regista suicídio.
Cameron… morto. Cameron, com os olhos calorosos e o sotaque escocês.
Cameron, a beijar-lhe as nódoas negras e a murmurar: É tão corajosa, pobre
de si…
Em 1924, eles não se viam havia quê… cinco anos? Desde aquele dia em
Folkestone. Mas falaram por telefone umas quantas vezes, normalmente
durante a noite, quando um deles, já bêbedo, ligava ao outro. Eve sabia que
ele voltara da Irlanda; tinha falado um pouco sobre a escola de treino e
contado com grande entusiasmo que ia ser nomeado adido militar em Riga.
Mas, em vez disso, tinha estourado os miolos.
Ao que se sabe, o falecido terá sofrido uma grande desilusão por não ter
sido nomeado adido em Riga, dizia o artigo do jornal, um cancelamento feito
à última hora por ele ter sido alvo de uma sentença penal no passado.
O exército tinha-o castigado pelo seu crime, pensou Eve com amargura.
Eles não se importavam de ter um oficial com reputação manchada em
situação de guerra, mas depois de o conflito acabar, ele não passava de um
embaraço.
Vou continuar a trabalhar até não poder mais. A voz dele soou
novamente nos seus ouvidos, tão alta e tão claramente que era como se ele
estivesse sentado no táxi com ela. E então virá a morte. Balas, aborrecimento
ou brandy: é assim que pessoas como nós morrem, porque Deus sabe que
não somos feitos para a paz.
– Não, não éramos – murmurou Eve.
Só depois de o solicitador bater à sua porta, no dia seguinte, é que ela se
foi completamente abaixo. Era o mesmo solicitador que lhe tinha enviado por
correio o artigo do jornal com a notícia da morte de Cameron, e que lhe levou
documentos legais para ela assinar, assegurando-lhe a sua absoluta
discrição… Disse-lhe que, afinal, a pensão que ela tinha recebido na sua
conta bancária nos últimos cinco anos não tinha sido paga pelo Ministério da
Guerra, mas por Cameron. Ele tinha tomado providências para que a pensão
continuasse a ser paga depois da sua morte; tinha-o deixado escrito em
testamento, em doação privada, sem o conhecimento da família e sem
interferência nos fundos deixados à mulher. O solicitador, em tom sério,
disse-lhe também que o dinheiro estava bem investido e que assim
continuaria, para que Eve recebesse a pensão até morrer.
Ela expulsou o solicitador aos gritos e depois caiu no chão, sem forças,
gatinhando até à cama como um animal ferido, e aí se escondeu durante
meses. Como o fizeste, Cameron?, pensava ela, de olhar fixo na Luger. O
cano encostado à têmpora? Debaixo do queixo? Ou entre os dentes, com um
último beijo na Terra, um beijo gelado de aço e óleo? Eve pensou muitas
vezes nesses detalhes durante os anos que se seguiram, em noites escuras,
quando a culpa não a deixava dormir. Colocara a Luger no caminho do
suicídio… mas nunca tinha apertado o gatilho.
És uma cabra demasiado teimosa, costumava ela pensar. Não havia
vestígios de fatalidade ou romanticismo ou nobreza na sua alma, ao contrário
de Cameron. Mas naquele momento, à medida que o táxi deixava Grasse e
passava pelos campos de mimosas com grande rapidez, Eve perguntou-se se
teria sido, não teimosia, mas destino. Talvez a culpa e a dor não pudessem ser
saciadas até a justiça ter a sua vez. Talvez fosse aquela parte do seu cérebro,
característica de uma espia impassível e treinada, a segredar-lhe que – apesar
da mentira de Cameron – o inimigo continuava à solta e devia ser apanhado.
E, até isso acontecer, a bala entre os dentes não podia ser disparada.
Pois bem, naquela noite o inimigo ia morrer. Por Lili, por Rose, por
Charlie, por Eve. Naquela noite, a luta de Evelyn Gardiner chegaria ao fim.
Trinta malditos anos depois, mas era melhor tarde do que nunca.
Ela pensou na última bala, sabendo que Charlie a odiaria por a ter
disparado, tal como Finn – mas, em parte, era também por eles, como
posteriormente se aperceberiam. Uma assassina morta ao lado da vítima
deixava-os totalmente ilibados. Ninguém seria punido pelo crime senão a
culpa. Eles poderiam então partir juntos em direção ao pôr do sol, com a
bênção de Deus.
– Madame, chegámos.
O táxi parou no início de um caminho, que teria talvez uns 500 metros e
que dava acesso a uma pequena e graciosa casa de campo. As paredes
brancas brilhavam à luz do luar e o telhado em bico apontava em direção ao
céu escuro. Via-se luz através das cortinas de algumas das janelas. Ele estava
em casa. Eve perguntou-se quanto tempo teria René ficado sentado no
restaurante a saborear as tostas, depois de ela e Charlie terem saído. Não
muito, desconfiou. Isso fê-la concluir algo: ele ainda tinha medo dela.
Bem podes ter medo, pensou ela.
– Quer que a leve até à porta, madame?
– Eu vou a pé – respondeu ela, e saiu rapidamente do táxi.
Capítulo 41
Charlie
Perdoa-me, Finn, pensava eu, sempre que ouvia as velocidades do
Lagonda arranharem a caixa. Eu não tinha conduzido muitas vezes no último
ano, a noite já tinha caído por completo e eu mal conseguia chegar com os
pés aos pedais – o carro resmungava comigo à medida que o conduzia pelas
ruas estreitas de Grasse. Juro que, se houver um arranhãozinho sequer no teu
querido carro quando isto tudo acabar, eu compenso-te. Os travões chiaram
em protesto e eu encolhi-me.
Eu não conduzia particularmente bem, mas não tinha problemas em
acelerar. Não tardei a chegar aos arredores de Grasse, e foi aí que a coisa
ficou divertida. “Depois dos campos de mimosas” não era exatamente uma
instrução precisa numa cidade rodeada por hectares de flores. A meia-lua
trepava no céu, à medida que a minha busca prosseguia; eu sabia que Eve ia à
minha frente e que o tempo estava a passar. Pensei nela no quarto do hotel, a
dizer-me para sair do caminho. Tinha o aspeto de um cavaleiro cansado, a
baixar o visor para um último ataque: magro, calmo, descomposto, sereno.
Apercebi-me de que eu tinha visto a mesma expressão no meu irmão, da
última vez que o vi com vida. Uma expressão que dizia: “Estou pronto para
morrer”.
Não, Eve, pensei. Por favor, não, Eve! Se eu falhasse com ela, se a
perdesse, nunca me perdoaria.
Da Rue des Papillons saíam várias estradas privadas de acesso às casas de
campo dos ricos. A primeira em que virei levou-me a uma casa com uma
tabuleta em grande destaque, onde se lia: “vende-se”; a segunda, a uma casa
de família com cerca de seis crianças a entrar em casa para jantar (esse não
era, claramente, o domicílio de René). De volta à estrada, inclinei-me para a
frente e, sobre o céu escuro, vislumbrei o telhado de outra casa. Com o
coração aos saltos, parei o carro na berma o melhor que pude e saí
apressadamente. Vi uma caixa de correio, e o luar da noite permitiu-me ler a
letra redonda: GAUTIER.
Era esta a casa. Não vi qualquer táxi nem sinal de Eve. Meu Deus, faz
com que eu não tenha chegado tarde de mais, rezei, e comecei a correr em
direção à casa. O perfume doce e difuso das mimosas pairava no ar; aquele
era o cheiro que eu imaginava que o cabelo de um bebé teria. Levei a mão à
minha pequena barriga enquanto corria, e fui tomada por um súbito
sentimento de terror, não pela segurança da Eve, mas pela minha, porque não
era só eu que poderia ficar ferida naquele dia.
Ninguém se vai ferir. Eu ia assegurar-me disso. De algum modo.
Dei a volta à casa, de maneira a entrar pela porta das traseiras.
Capítulo 42
Eve
A maioria das casas de campo não tinham as portas das traseiras fechadas
à chave, pelo menos em tempo de paz. Mas a de René Bordelon tinha. Eve
contara com isso; pousou a sacola no chão e tirou dois ganchos do puxo do
cabelo. Passaram-se vários anos desde que aprendera a abrir fechaduras em
Folkestone, mas não era tarefa complicada: precisava apenas de um gancho
para segurar e de outro para libertar gentilmente o ferrolho.
Ainda assim, manipular os ganchos com os seus dedos deformados
demorou longos e aflitivos minutos. Se não fosse uma fechadura antiga e de
mecanismo básico, Eve não a teria conseguido abrir. Quando ouviu o clique,
endireitou-se por uns instantes para se recompor e respirou fundo e devagar.
Ela só tinha uma oportunidade para completar a sua missão e não podia entrar
de rompante, com o coração a galopar e a mão a tremer. Após alguns
momentos, sentiu-se preparada para entrar: tirou a Luger e deixou cair a
sacola no chão, na soleira da porta.
Era uma cozinha grande, vazia. Nada mais do que mesas com pernas de
metal e panelas penduradas a refletirem a luz do luar. Eve caminhou
cuidadosamente por entre as sombras e rodou o puxador da porta do outro
lado da cozinha. A porta chiou ligeiramente e ela ficou gelada durante outro
angustiante minuto, à escuta.
Nada.
Saiu silenciosamente para o corredor, decorado com pinturas a óleo e
apliques de velas nas paredes. Um tapete comprido e muito macio abafou-lhe
o som das passadas, o gosto caro e luxuoso de René ajudava-a no seu
percurso para o matar. O som indistinto de música a tocar chegou-lhe aos
ouvidos. Eve inclinou a cabeça, escutou com atenção e depois dirigiu-se
silenciosamente para um átrio que saía do corredor, à direita. A música ia
aumentando de volume; era uma peça complicada e opulenta. Débussy,
pensou ela, e sorriu.
Capítulo 43
Charlie
– Não – disse eu baixinho. – Não…
A porta dos fundos estava escancarada. A sacola de Eve encontrava-se
caída no degrau. Vasculhei-a. Tinha chegado tarde de mais.
Mas não ouvi tiros nem vozes. A casa estava em silêncio, como uma
granada por explodir.
Tive vontade de entrar a correr e gritar pelo nome dela, mas agora
encontrava-me no território de René Bordelon e não podia acordar a víbora,
se é que ele ainda não sabia o que o esperava. Talvez ele já não tivesse defesa
possível. Tê-lo-ia Eve já matado? O sangue gritava-me nas veias, dizia-me
para fugir, para me proteger, a mim e ao Botão de Rosa, para não entrar neste
antro de perigo. Mas a minha amiga estava lá dentro, e eu continuei.
A cozinha estava escura. Uma porta aberta. Um corredor comprido,
opulento e silencioso. O meu coração ribombava. Ouvi o som indistinto de
música a tocar. Terei ouvido passos também? A obscuridade parecia latejar.
Segui a música e, ao virar uma esquina, vi-os, emoldurados pela porta larga
em arco, como um quadro.
Eve em silhueta, uma figura escura contra a luz brilhante do escritório. A
divisão parecia exatamente igual ao escritório de Lille que Eve me
descrevera: paredes forradas a seda verde, um gramofone a tocar um disco,
um candeeiro Tiffany a projetar as cores de um pavão. René estava de pé, em
mangas de uma camisa imaculada, diante de uma mala de viagem aberta, de
costas para a porta e alheio ao que se passava. A Eve ergueu a Luger. Era
demasiado tarde para eu intervir. Fiquei paralisada, o coração a pular-me no
peito.
Nem eu nem Eve fizemos qualquer som, mas os instintos de uma vida
inteira de víbora devem ter sibilado como um aviso subliminar, porque virou-
se abruptamente para trás. O seu movimento súbito pareceu sobressaltar Eve.
Ela apertou o gatilho antes de o cano da Luger estar na mira. O tiro
ricocheteou no lintel de mármore da lareira e os meus ouvidos ressoaram.
René esgaravatou na mala de viagem. Não houve sinal de surpresa no seu
rosto, nem de medo – só um arrebatamento venenoso de ódio ao erguer algo
na direção de Eve, ao mesmo tempo que ela endireitava novamente o braço.
Aconteceu lentamente, como se a cena tivesse sido apanhada em âmbar: duas
Lugers a fazer pontaria, dois gatilhos premidos, dois tiros disparados.
Um corpo a cair.
O de Eve.

Depois de um momento infindável, tudo aconteceu em simultâneo. A


Luger de Eve caiu ao chão com um estrépito e o seu corpo esguio caiu bambo
no tapete. Eu precipitei-me pelo corredor fora, mas não fui suficientemente
rápida. René já tinha dado um passo à frente e pontapeado a pistola de Eve,
atirando-a para um canto. Quis correr para ele, antes que ele pudesse disparar
novamente, mas René estava a afastar-se para trás com a pistola apontada a
mim.
– De joelhos – disse ele.
Tão rápido. Acontecera tudo tão rápido. Eve emitiu um vago ruído aos
meus pés, as mãos deformadas juntas por cima do seu ombro esquerdo, e eu
ajoelhei-me a seu lado. Ao agarrar-lhe os dedos, senti a viscosidade morna do
sangue.
– Eve, não, não… – Os olhos dela estavam abertos, sem cor, a pestanejar
muito devagar.
– Que raio… – soltou ela, num tom agudo e sem expressão. – Merda.
O disco no gramofone terminou de tocar com um silvo. Eu ouvia o som
áspero da nossa respiração em uníssono, a minha em arfadas agitadas e a da
Eve em pequenos soluços. René Bordelon respirava rápida e profundamente,
fitando-nos do outro lado do escritório, que tresandava ao fumo das pistolas.
Tinha metade de uma orelha pendurada por um pedaço de carne. Um grito
silencioso rasgou-me de cima a baixo.
Quase. A Eve tinha quase conseguido… Este pensamento veio-me à
cabeça enquanto eu olhava fixamente para o buraco infinito da Luger
apontada bem entre os meus olhos.
– Chega-te para lá, rapariga. – O cano acenou para o lado. – Afasta-te
dessa cabra.
– Não. – As minhas mãos faziam pressão sobre as de Eve, por cima da
sua ferida. Eu não era enfermeira, mas sabia que a ferida necessitava de ser
pressionada e ligada. Ele não vai deixar que eu faça nenhuma dessas coisas;
ele quer que ela morra –ainda assim, disse:
– Não.
Ele disparou outro tiro, a ombreira da porta desfez-se em estilhaços e eu
soltei um grito.
– Larga-a, encosta-te à parede e desliza para aquele lado.
A voz de Eve soou rouca, mas límpida:
– Faz o que ele te diz, ianque.
Os meus dedos apertavam os de Eve com tanta força que tive de me
forçar a abri-los. As mãos dela estavam cobertas de sangue, que corria
também pelo seu dorso abaixo, de forma lenta e implacável. A pistola de
René seguiu-me enquanto eu me afastava e encostava, por fim, a uma estante
alta; contudo, os olhos dele continuavam fixados em Eve, que se esforçava
para se sentar, apoiando-se na moldura da porta. Os olhos dela eram duas
pedras rasas cheias de dor, mas suspeitei que a dor não fosse da ferida. Era a
dor por o ver ainda de pé.
Falhei, parecia o olhar dela dizer, repleto de aversão por si mesma.
Falhei.
Mas quem tinha falhado era eu. Eu não consegui evitar o pior.
– Tira as mãos da ferida, Marguerite. – A voz calma e sem entoação que
René mostrara no restaurante tinha sido perturbada. – Quero ver-te morrer.
– Pode demorar algum tempo. – Eve olhou para o ombro. – Não há
órgãos v-v-vitais no ombro que uma bala possa atingir.
– Mesmo assim, vais esvair-te de s-s-s-sangue até morreres, querida.
Gosto mais assim, é mais demorado.
Eve tirou as mãos ensanguentadas da mancha escura que se alastrava.
Senti um nó na garganta quando a vi. Era só uma ferida no ombro, mas ia
matá-la. Íamos ficar sentados no elegante escritório de René, a fonte de todos
os pesadelos de Eve, a vê-la esvair-se em sangue.
René ignorou a ferida de Eve. Estava hipnotizado a olhar para as mãos
nodosas e ensanguentadas dela.
– Esta tarde, trazias luvas calçadas – comentou ele. – Mas eu queria ver
como elas estão, depois deste tempo todo.
– Não são muito bonitas.
– Oh, eu acho que são lindas. Fiz uma obra de arte.
– Podes regozijar-te o quanto quiseres. – Eve acenou com a cabeça na
minha direção. – Mas deixa a rapariga ir embora. Ela n-não tem nada que ver
com isto; não era suposto estar aqui…
– Mas está – interrompeu René. – E como não tenho maneira de saber o
que lhe contaste, e que tipo de problemas pode causar, ela também vai morrer
aqui. Assim que estiveres morta, vou tratar dela. Pensa nisso enquanto te
esvais em sangue, Marguerite. Vejo que ela é importante para ti.
Eu sentia-me paralisada, numa poça gelada de terror, com os braços
cruzados por cima da minha barriga saliente. Eu nem sequer tinha 20 anos, e
ia morrer. E o meu Botão de Rosa nunca viveria.
– Tu não a podes matar, René. – A voz de Eve soou calma e coloquial; eu
não podia imaginar o quanto isso lhe estava a custar. – Sou um trapo velho,
sem amigos nem f-f-família para cuidar de mim, mas ela tem ambos, e eles
têm dinheiro. Mata-a e terás muitos mais problemas do que aqueles que até tu
estás preparado para lidar.
René fez uma pausa e o meu coração quase parou.
– Não – disse ele, por fim, levando a mão à orelha retalhada e retraindo-
se. – Vocês entraram à força em minha casa e tentaram roubar um homem
idoso e frágil que vive sozinho. Eu consegui disparar em resposta, mas no
escuro, naturalmente, não tinha como perceber que vocês eram mulheres,
muito menos as mesmas que me abordaram esta tarde no restaurante. Tive de
me sentar por causa das palpitações, depois de disparar, e, quando consegui
finalmente ligar à polícia, vocês já tinham morrido, infelizmente. As pessoas
simples do campo, como os meus vizinhos, não gostam nada de intrusos.
As minhas esperanças despedaçaram-se. Eu não estava convencida de que
ele escaparia assim tão facilmente, uma vez que os empregados do
restaurante seguramente testemunhariam que ele nos conhecia… mas não
restavam dúvidas de que ele empataria as coisas por tempo suficiente para
poder fugir, se necessário. Era óbvio que ele já se estava a preparar para
escapar; a mala de viagem assim o provava. Eve tinha razão: René Bordelon
fugia sempre às consequências. Ele tinha escapado às consequências de duas
guerras e, com dinheiro e sorte – duas coisas que ele parecia nunca esgotar –,
era provável que conseguisse escapar a estas também.
Só por cima do meu cadáver, caramba, pensei, e quase desatei a rir às
gargalhadas, porque isso era exatamente o que iria acontecer. Eve ia morrer,
depois seria a minha vez, e de seguida ele fugiria por cima dos nossos
cadáveres. Se ele tivesse pensado com mais clareza sobre o assunto, era
provável que já me tivesse matado: eu era jovem e forte e, fisicamente, ainda
era uma ameaça para ele. Mas ele não estava a pensar com clareza. A mulher
que o tinha humilhado e que tinha sido mais esperta do que ele estava a
morrer diante dos seus olhos. Até que Eve desaparecesse, o mundo inteiro
dele seria ocupado apenas por ela, e eu era uma questão a resolver depois. Os
olhos dele devoravam-na.
– Tu achas q-q-que és capaz de matar uma rapariga desconhecida
enquanto ela te olha nos olhos, René? – Eve ainda argumentava, continuava a
olhar fixamente para ele; mas o sangue que lhe jorrava do ombro saía com
crescente pujança. – A única vez que apertaste o gatilho foi para matar um
homem pelas costas…
Eu não tinha dúvidas absolutamente nenhumas de que ele seria capaz de
me matar a sangue-frio. Ele podia ter sido demasiado picuinhas para fazer o
seu próprio trabalho sujo quando Eve o conhecera, mas naquele momento era
um homem diferente.
– Eve, não fale. – A minha voz saiu-me pequenina. – Guarde as suas
forças…
– Para quê? – A expressão de René era de desdém. – Socorro? Asseguro-
vos que ninguém ouviu os disparos. O vizinho mais próximo está pelo menos
a cinco quilómetros.
Socorro. A minha mente desviou-se para outros pensamentos, na direção
de Finn, a quem eu deixara apressadamente uma mensagem na receção do
hotel, dizendo-lhe para onde tinha ido e porquê, no caso de as coisas darem
para o torto. Bem, as coisas tinham mesmo dado para o torto. Tive uma visão
breve e delirante, em que ele saía a vociferar da escuridão da noite para nos
salvar, mas não acreditei que o destino nos fosse assim tão favorável.
– Asseguro-te de que eu não tenho escrúpulos nenhuns em matar aqui a
tua querida americana. – René tirou um lenço do bolso com uma mão e
espalmou-o contra a orelha despedaçada. – O meu escritório já está destruído.
Mais um pouco de sangue nas paredes não me faz diferença…
Rose, pensei, com uma pontada de angústia, Rose, o que faço agora? Não
sabia se a pergunta era para a minha prima ou para a minha filha. Os meus
olhos procuravam uma arma por todo o lado, mas a pistola de Eve estava
caída do outro lado do escritório. O meu olhar percorreu a estante atrás de
mim… Um par de castiçais em prata na prateleira de cima, demasiado longe;
ele matar-me-ia antes que eu me pudesse pôr de pé. Mas, mais perto de mim,
na prateleira do meio…
– Deixa-a viver, René. Imploro-te.
Mal ouvi Eve a suplicar. Na prateleira do meio, acima da minha cabeça,
estava uma coisa branca. Um busto em miniatura que olhava cegamente para
o outro lado da sala. Eu nunca tinha visto aquele busto, mas estava
razoavelmente convencida de que o conhecia.
Baudelaire.
– Confesso que não pensei que encontrasses a minha casa assim tão
rapidamente. – René deu um passo, movendo-se de forma rígida, como se a
idade se voltasse a instalar nos seus ossos magros depois de um sobressalto
cheio de ação. – Quem te deu o meu endereço, Marguerite?
– Eu sou capaz de obter informações de qualquer pessoa, René. Não p-
provei isso contigo?
Os efeitos da raiva no rosto dele foram instantâneos. Que ridículo ele era,
corroído pela fúria por causa de um erro cometido havia décadas. Mas a raiva
dele era útil. Podia ser usada contra ele. Medi o busto acima da minha cabeça
com um último olhar. Um movimento rápido para me erguer, outro para o
apanhar, e poderia tê-lo na mão.
– E o oculto inimigo que nos rói os corações cresce e se fortalece do
sangue que perdemos – citou René. – Afinal, o oculto inimigo não é tão
perigoso como pensava.
– Claro que é – disse eu. – O seu oculto inimigo não é a Eve, seu filho da
mãe. O seu oculto inimigo sou eu.
Os olhos dele precipitaram-se sobre mim, com uma expressão de
surpresa. Como se ele se tivesse esquecido de que eu estava ali. Uma parte de
mim queria encolher-se e esconder-se do olhar dele e da pistola apontada a
mim, mas coloquei o meu queixo naquela posição desdenhosa que dizia que
me importa. Nunca antes eu me importara tanto.
– Cala-te, ianque – rosnou Eve. Ela transpirava, e o seu rosto estava
pálido. Quanto tempo lhe restaria? Eu não tinha ideia.
Faz com que ele se aproxime. Eve tinha dito, certa vez, que René era um
excelente a planear, mas improvisava muito mal. Eu tinha de o atrair de
forma audaz e sabia que era capaz de o fazer. Podia nunca ter conhecido o
homem até esse dia, mas conhecia-o através de Eve. Conhecia-o como a
palma da minha mão.
Lancei-lhe o olhar mais trocista que pude.
– O inimigo sou eu – voltei a dizer. – Fui eu que descobri o seu
restaurante em Limoges. Fui eu que procurei a Eve. Fui eu que a arrastei de
Londres até aqui. Eu. O René pensou que era muito esperto ao começar uma
vida nova, mas não foi preciso mais do que uma estudante de universidade e
alguns telefonemas para o descobrir aqui.
A voz dele era glacial.
– Cala-te.
Ah, como eu gostava de me calar. Mas isso não salvaria a minha pele,
nem o Botão de Rosa. Ou aproveitava aquela oportunidade para o provocar,
ou esperava passivamente pela minha morte, depois da de Eve.
– Não obedeço a ordens vindas de um idiota como o René – disse eu,
sentindo um fio de suor a deslizar-me pelas costas. – Esta sua obsessão por
Baudelaire não só é extremamente maçadora, como faz com que seja muito
fácil de encontrar. O René não é esperto, é previsível. Se não tivesse batizado
duas vezes seguidas os seus restaurantes com o nome do mesmo maldito
poema, ainda estaria a bebericar champanhe ao jantar, não a fazer a mala para
fugir. Pela terceira vez na sua miserável vida!
– Eu disse para te calares.
– Porquê? Para que o René fale? Adora falar. Todas aquelas coisas que
contou à Eve, só porque ela olhou para si com uns olhos doces e inocentes. É
um grande falador, René. – Nunca na vida me tinha dirigido a um homem
idoso pelo seu primeiro nome, nunca sem usar um Sr. ou um Monsieur, mas
pensei que já nos conhecíamos suficientemente bem. Balas mais sangue mais
ameaças de morte iminente igualavam uma certa intimidade.
– Nem pense sequer em matar-me – acrescentei, ao ver os lábios dele
cerrarem-se e a Luger agitar-se. – O meu marido está de volta a Grasse e, se
me matar, ele vai enterrá-lo vivo. Deixei-lhe uma nota; ele já deve estar a
caminho. O René até se pode safar por deixar a Eve esvair-se em sangue até
morrer, mas não se vai safar, caso me mate a sangue-frio.
Claro que ele se safaria. Eu estava apenas a tentar confundi-lo, enervá-lo.
A pistola voltou a agitar-se e o medo paralisou-me, até eu perceber que ele
estava a olhar para a minha aliança no dedo e a sondar o meu rosto. A tentar
ver se eu estava a dizer a verdade.
– É verdade – disse Eve; mesmo a esvair-se em sangue, ela ainda
conseguia mentir como a espia que fora. – O marido dela é um escocês com
mau génio, um solicitador com conhecimentos dos dois lados do Atlântico…
– Está a perder o controlo da situação – continuei. – Olhe para si, aí de pé,
como se tivesse vencido o jogo. Mas perdeu. Não é capaz de controlar toda a
situação. Deixe-me ir, deixe-me ligar o ombro da Eve…
Os olhos dele voltaram-se novamente para ela.
– Esperei 30 anos para a ver morrer, sua cabrazinha americana. Não vou
abdicar desse prazer por nada no mundo. Quando ela morrer, vou beber
champanhe por cima do cadáver dela e vou demorar-me a relembrar como ela
chorou no meu tapete depois de me ter contado todos os segredos…
– Ela não lhe contou quaisquer segredos, seu mentiroso imundo.
– Tu não sabes de nada – disse calmamente René Bordelon. – Aquela
cabra ranhosa era uma cobarde tagarela.
Do canto do olho, vi o queixo de Eve erguer-se subitamente. Era a velha e
profunda ferida: ter traído Lili. Senti o telegrama de Violette a arder no meu
bolso. Se pelo menos tivesse chegado um dia antes, talvez eu pudesse ter
evitado tudo isto.
Ela estava a esvair-se em sangue, mas não era demasiado tarde para saber
a verdade.
– O René mentiu-lhe – disse eu. – A Eve nunca lhe contou nada, nem
mesmo sob os efeitos do ópio. A informação que condenou Louise de
Bettignies foi dada por outra pessoa, uma Mademoiselle Tellier. – A
investigação feita por Violette nos registos do julgamento, a partir dos
trechos que não tinham sido ouvidos pelas arguidas, na altura, devia ter
revelado essa informação. Eu não fazia ideia de quem era Mademoiselle
Tellier; se sobrevivêssemos àquela noite, poderíamos tentar saber. – O René
soube pelos seus amigos alemães que eles já tinham a informação de que
precisavam para condenar Louise de Bettignies, por isso percebeu que não
valia a pena continuar a torturar Eve. Mas, antes de a entregar, fez questão de
a convencer de que ela era a delatora. – Respirei fundo. – Admita-o, René. A
Eve derrotou-o. Ela ganhou. O René mentiu para que ela pensasse que tinha
perdido.
O olhar perfurante dele vacilou. Sob o meu medo intenso, fui atingida por
um raio de triunfo luminoso. Eve já mal conseguia estar sentada de costas
direitas contra a parede. Não sabia dizer se ela tinha compreendido o sentido
das minhas palavras. A Luger de René voltou a apontar na direção dela. Não,
não. Para mim, olha para mim!
– Como se sente – piquei-o – ao saber que tentou quebrar a Eve e não
conseguiu? Nada na sua vida tem corrido bem, desde o dia em que ela provou
ser mais esperta do que o René. Ela acabou condecorada como heroína de
guerra e o René acabou por ter de recomeçar a sua vida duas vezes, porque
foi demasiado burro ao escolher o lado errado em duas guerras sucessivas…
Ele soçobrou. Demasiado irado para me matar a uma distância segura,
caminhou até mim: o homem que matara Rose apontava-me a Luger,
enquanto avançava para mim. Mas, num movimento rápido, ergui-me do
chão, a minha mão começou a esquadrinhar a prateleira acima de mim, e os
segundos estenderam-se atrozmente enquanto eu tateava… e tateava… até
que finalmente consegui agarrar o busto de Baudelaire. Trazendo-o para a
frente num movimento frenético de vaivém, acertei no braço de René,
fazendo-o sacudir para trás, antes que ele pudesse disparar a arma. Ele
tropeçou para trás, perdendo o equilíbrio, e apoiou-se na secretária. O meu
coração deu um salto. Deixa cair a pistola, deixa-a cair… Mas, tendo caído
com o cotovelo no chão ao lado do candeeiro, aquela mão velha apoiada na
secretária ainda agarrava teimosamente a Luger.
– Charlie – disse Eve, num tom claro e decidido. Eu sabia o que ela
queria. Avancei para a frente com um grito de ódio e lancei brutalmente o
busto de mármore num movimento descendente. Ele ergueu a outra mão para
proteger a cabeça, mas eu não fiz pontaria à cabeça dele. Em vez disso, o
busto de Baudelaire esmagou-lhe os dedos compridos e aranhosos que
agarravam a Luger, produzindo um ruído seco e revoltante. Ouvi os ossos
despedaçarem-se debaixo do mármore e ele gritou – gritou como Eve gritara
quando ele lhe esmagara as articulações dos dedos uma a uma; como Lili
gritara na mesa de operações na prisão de Siegburg; como Rose gritara
quando as primeiras balas alemãs trespassaram o corpo da sua bebé e depois
o seu. E eu gritei também, ao bater-lhe com o busto outra vez na mão,
ouvindo outro ruído seco de ossos a partirem, e ao esmagar-lhe aqueles dedos
compridos, transformando-os em destroços ensanguentados.
Ele largou a Luger.
A arma caiu ao chão e eu atirei-me para a apanhar, mas René esticou a
outra mão e agarrou-me o cabelo, uivando de dor, e impediu-me de a
apanhar. Dei um pontapé na pistola, atirando-a para o outro lado do
escritório, onde Eve estava sentada.
Ela ergueu as mãos ensanguentadas e pegou na Luger de René do chão
vermelho de sangue. Enquanto ela levantava a pistola para fazer pontaria,
num esforço que a fez retrair os lábios até só se verem as gengivas, eu libertei
o meu cabelo daquele aperto vingativo com um puxão e atirei-me ao chão…
Eve cravou calmamente uma bala entre os olhos de René Bordelon.
O rosto dele desapareceu numa névoa encarnada. A pistola estalou
novamente, à medida que Eve disparava mais três balas no peito dele.
Ele tombou para trás, caindo lentamente no chão, com a mão destroçada
levantada, como que surpreendido. Surpreendido até ao fim por haver uma
dor da qual não podia fugir, vingança de que não podia escapar,
consequências que não podia evitar. Mulheres que não podiam ser derrotadas.
O ar estava empestado com o fumo acre da pistola e o cheiro ainda mais
forte do sangue derramado. O silêncio abateu-se como um peso de chumbo.
Levantei-me do chão a custo, ainda agarrada ao busto de Baudelaire. Não
conseguia desviar o olhar do corpo amarfanhado de René. Na morte, ele
deveria parecer idoso e pequeno, deplorável. Mas tudo o que via era uma
víbora velha com a cabeça decepada, venenosa até ao fim. O meu estômago
deu uma volta e eu tive uma súbita vontade de vomitar. Virei-me, envolvendo
a barriga com um braço, e cambaleei na direção de Eve, que continuava com
a Luger na sua mão deformada. Ela tinha um aspeto esfarrapado, salpicada de
sangue, esplêndida e terrível, e ofereceu-me um sorriso lento e impiedoso,
como uma valquíria a cavalgar em vociferante triunfo sobre uma horda de
inimigos mortos.
– Resta uma bala – disse ela em voz alta e clara, mantendo os olhos no
corpo de René.
E, sob o meu olhar de súbito horror, ela ergueu a Luger e apontou-a à sua
própria cabeça.
Capítulo 44
Eve
O dedo de Eve apertava o gatilho, no momento em que ela sentiu uma dor
dilacerante. Não era a dor entorpecida do ombro, que jorrava sangue ao ritmo
dos batimentos do coração, mas uma dor quente, aguda e viva que lhe
atravessava os dedos. Charlie St. Clair tinha atingido em cheio a mão de Eve
com o busto de Baudelaire, com o mesmo grito louco e furioso que lhe tinha
saído da garganta ao atirar-se a René. A bala saiu disparada, ensurdecendo os
ouvidos já algo surdos de Eve, e foi cravar-se na parede, desviada do alvo
pela pancada no braço. Eve abafou o seu próprio grito, levando a mão e a
pistola vazia ao peito.
– Ianque de merda – conseguiu dizer entre dentes, com os olhos rasos de
lágrimas. – A maldita mão está partida. Outra vez.
– A Eve merece, pela maneira como me enganou e fugiu do hotel. –
Charlie ajoelhou-se e, num gesto rápido, sacou a Luger dos dedos em garra
de Eve e atirou-a para o lado. – Não vou deixar que se mate.
– Não preciso da pistola para me m-matar. – A Luger teria sido a melhor
maneira, de uma justiça poética: quando Eve olhou, pelo cano arranhado da
pistola, para os olhos subitamente arregalados de René, percebeu que aquela
era a sua própria Luger, a mesma que ele lhe tinha roubado tantos anos antes.
A que Cameron lhe tinha dado. Mas Eve não precisava de uma bala para
morrer. Podia esvair-se em sangue ali mesmo; só precisava de fazer… nada.
– Deixa-me em paz – ralhou ela a Charlie, que tentava ver melhor a ferida no
ombro. A dor dilacerava-a, mordia-a como um animal, de forma lenta e
constante. – Deixa-me, rapariga. Vá, deixa-me.
– Não deixo – gritou Charlie. Lançou-se numa busca por algo que
pudesse usar na ferida, ignorando por completo o cadáver no chão. Voltou
com uma braçada de camisas limpas de René, retiradas da mala de viagem, e
um decantador com brandy. – Deixe-me limpar a ferida; isto vai servir de
desinfetante até ser vista por um médico…
Eve afastou-a com a mão partida. A dor era agonizante. Mais uma vez,
teve a sensação de que as suas articulações estavam a ser trituradas em areia
incandescente. Teve vontade de se aninhar e chorar, de se aninhar e morrer.
Estava fraca, abalada e liquidada. Já não tinha mais inimigos para matar. O
ódio tinha sido o contraforte de aço que a mantinha de pé; naquele momento,
sentia-se como um caracol sem casca, mole e indefesa. Era altura de partir –
será que a rapariga não via isso?
Claro que não. Charlie movia-se com rapidez, recusando-se a desistir. No
momento em que ela atirara à cara de René que ele era demasiado burro para
escolher o lado certo nas duas guerras… Eve quis aplaudir. Era como se
Charlie se tivesse transformado em Lili diante dos seus olhos, pequena e
feroz, a arriscar a vida a um pequeno passo do precipício, a improvisar para
evitar a morte. Lili acabou por ser derrotada, mas Charlie não.
– Não precisa de morrer, Eve. – Charlie forrou o ombro de Eve com os
panos das camisas, estancando o sangue. – Eve, não precisa de morrer.
Precisar? Eve queria morrer. Ela era inválida, bêbeda e uma gaga sem
futuro. Tinha passado a maior parte da vida devastada pela culpa, pela dor e
por um homem mau. E sabia o suficiente sobre justiça para ter consciência de
que matar René não ia fazer com que a sua vida voltasse a ser doce.
Devia ter resmungado algumas destas coisas em voz alta, porque Charlie
argumentava:
– Não ouviu o que eu lhe disse? A Eve não traiu a Lili. Os alemães
obtiveram as informações sobre ela de outra pessoa. Quando a Eve me contou
que a tinha traído porque fora drogada, fiquei a matutar…
Eve abanou a cabeça, sentindo as lágrimas picarem-lhe os olhos.
– Não. Fui eu. – Tinha de ser. A acusação que Charlie atirara à cara de
René passara-lhe ao lado. Ela vivia com a culpa havia tanto tempo que já
fazia parte da sua alma. Umas poucas de palavras não tinham o poder de
mudar isso.
– … o ópio não é um soro da verdade, Eve! Provocou-lhe alucinações,
mas isso não significa que a tenha levado a contar os segredos! Pedi à
Violette para analisar os registos do julgamento, as coisas que foram ditas
quando vocês, as arguidas, não estavam presentes, e eu tinha razão. Foi uma
tal de Tellier, outra prisioneira, quem quer que ela fosse…
Eve continuou a abanar a cabeça para a frente e para trás.
– Não vale a pena tentar saber mais? Analisar os registos com os seus
próprios olhos? A Eve é uma espia, tem uma medalha da Ordem do Império
Britânico, e pessoas como o Major Allenton devem-lhe favores! Telefone à
Violette, obtenha mais pormenores…
– Não. – Para a frente e para trás, para a frente e para trás.
– Sua parva, não se quer livrar desse cobertor pesado de culpa? Ou vai
limitar-se a morrer assim, como um asno com arreios? – Charlie encostou o
rosto astuto ao de Eve e gritou: – A Eve não traiu a Lili!
As lágrimas caíram pelo rosto de Eve. Nessa mesma tarde, ela tinha
chorado lágrimas de crocodilo para se livrar daquela rapariga, mas aquelas
lágrimas eram reais. Chorou e chorou e, por um momento, Charlie abraçou-a,
e Eve soluçou no ombro pequeno e magro da rapariga.
Não tardou até que Charlie a empurrasse e a puxasse, insistindo para que
ela se levantasse.
– Não podemos ficar aqui. Apoie-se em mim e mantenha a pressão sobre
a ferida.
Eve queria tirar tudo e deixar que o sangue jorrasse livremente. Deixar
que a polícia encontrasse dois cadáveres aninhados na manhã seguinte:
informador e espia, captor e cativa, colaborador e traidora ligados de modo
amargo até ao fim. Mas…
Não a traíste.
O sangue corria-lhe em fio pelo tronco, enquanto Charlie a segurava e a
arrastava pelo corredor, de volta à cozinha escura e depois para a noite amena
de verão. Eve continuava a tremer com os soluços, e a dor na mão era
esmagadora.
– Fique aqui enquanto eu vou buscar o carro – disse Charlie. – A Eve não
está em condições de caminhar estes 400 metros…
Mas os faróis dianteiros de outro carro apareceram na estrada, ao lado da
sombra do Lagonda. A luz dos faróis ofuscou a visão de Eve, turva pela dor e
pelas lágrimas. Seria a polícia?
– A p…p…p…p… – A língua dela desistira. Eve não conseguia dizer
uma única palavra. Desajeitadamente, tentou arrancar a atadura do ombro.
Era melhor sangrar até à morte do que ir parar novamente à prisão.
Mas Charlie gritou “Finn!” e pouco depois ouviu-se um conhecido
sotaque escocês a tagarelar palavras de fúria. Um braço forte passou em volta
da cintura de Eve e pegou nela. Eve sentiu-se cair num estado de
inconsciência e esperou que fosse a morte, esperou que fosse o fim.
Mas uma parte acordada do seu cérebro inquisidor continuava a pensar:
Não a traíste.
Capítulo 45
Charlie
Vinte e quatro horas mais tarde, estávamos em Paris.
– A Eve precisa de um médico. – Foi a primeira coisa que eu disse a Finn,
à porta de casa de René, depois do frenesim inicial de explicações. – Mas, se
a levarmos a um hospital, seremos apanhadas. Qualquer pessoa com uma
ferida de bala vai ser seguramente investigada, assim que eles encontrarem…
– Olhei para trás, para a casa.
– Acho que consigo tratar da ferida, pelo menos até deixarmos Grasse. –
Finn ensopou as ataduras em mais um pouco de brandy e ligou com firmeza
o ombro de Eve, que estava débil e inconsciente no banco de trás do
Lagonda. – Parece-me que a bala não partiu nada. Ela perdeu muito sangue,
mas com ataduras bem apertadas…
Apanhadas. A palavra continuava a ecoar na minha cabeça. Vamos ser
apanhadas. Deixei Finn a tratar de Eve e voltei a correr ao escritório, que
tresandava a sangue. Envolvendo a mão na fralda da minha camisa e evitando
pisar o sangue com os meus pequenos pés, para não deixar pistas, deitei o
gramofone e o candeeiro com cores de pavão ao chão e puxei todas as
gavetas para fora, como se alguém tivesse estado ali à procura de um cofre.
Talvez pudesse parecer um assalto que correra mal. Talvez… Usando a fralda
da camisa, meti a mão ao bolso e tirei a fotografia de René que tínhamos
mostrado por toda a Grasse, dobrada de forma a mostrar apenas o rosto dele.
Desdobrei-a e abria-a, para que a fila de nazis com suásticas que o ladeava
pudesse ser claramente vista, e deixei cair a fotografia em cima do cadáver
cravado de balas no chão.
Senti uma vaga de náuseas, mas Finn começou a gritar por mim e, como
eu já não tinha mais tempo, enfiei as duas Lugers e o pequeno busto de
Baudelaire na sacola de Eve, limpei rapidamente os puxadores das portas e
qualquer outra coisa que pudéssemos ter tocado, e corri. Conduzi o Lagonda
de volta ao hotel com Eve deitada no banco de trás, e Finn seguiu-nos no
carro que pedira emprestado ao gerente do hotel.
Aquela primeira noite foi a pior. Eve recuperou por breves momentos os
sentidos, apenas o suficiente para entrar no hotel com o casaco de Finn a
esconder-lhe o ombro ferido e passar discretamente pelo ensonado
rececionista, mas acabou por desmaiar ao cimo das escadas. Finn deitou-a na
cama, limpou e ligou a ferida com alguns lençóis roubados à arrecadação do
hotel, e depois ficámos de vigília a noite toda, durante a qual ela permaneceu
assustadoramente quieta. Observei-a com olhos turvos e Finn puxou-me para
os braços dele.
– Apetece-me matá-la – sussurrou. – A pôr a tua vida em perigo…
– Fui eu que a segui – respondi, também num sussurro. – Eu estava a
tentar detê-la. Correu tudo mal. Finn, ela pode ser presa…
Os braços dele apertaram-me.
– Não vamos deixar que isso aconteça.
Não. Não íamos. Deus sabia que eu tentara evitar que Eve matasse René,
mas, depois de isso ter acontecido, eu não ia deixar, de maneira alguma, que
a polícia a apanhasse. Eve já tinha sofrido o suficiente.
Olhei para ela, deitada na cama, frágil e inconsciente, e desatei a soluçar.
– Finn, ela tentou m-matar-se.
Ele beijou-me a cabeça.
– Também não vamos deixar que isso aconteça.
Deixámos o hotel logo ao amanhecer, com o meu braço a rodear a cintura
de Eve para lhe dar apoio. O rececionista bocejou, indiferente, e em menos de
uma hora tínhamos saído de Grasse, com Finn a acelerar o Lagonda acima da
velocidade habitual do carro.
– Gardiner – resmungou ele, ao ouvir a caixa de velocidades chiar –,
deves-me um carro novo. Nunca mais vou conseguir tirar essas nódoas de
sangue dos assentos, e este motor nunca mais vai ser o mesmo.
Durante aquele longo dia de viagem, Eve não falou, aninhada no banco de
trás como uma coleção lúgubre de ossos. Mesmo quando entrámos em Paris e
atravessámos as águas escuras do Sena, e ela viu-me a atirar pela janela o
busto de Baudelaire para o rio, Eve não disse uma palavra. Mas eu vi que ela
tremia convulsivamente.
Só Deus soube como, mas Finn conseguiu encontrar um médico disposto
a ver a ferida de Eve sem fazer perguntas.
– Encontram-se sempre homens desses – disse ele após o homem sair,
depois de ter desinfetado e cosido a ferida. – Médicos que perderam a
licença, antigos soldados. Como achas que os ex-presidiários curam os
ferimentos, quando se metem em rixas e não querem ficar com registo?
Agora que Eve tinha talas nos dedos, o ombro ligado, comprimidos para
as dores e comprimidos para evitar infeções, decidimos não nos expor
demasiado.
– Ela precisa de tempo para sarar – disse eu, porque a sua apatia era
alarmante, quando não nos dirigia obscenidades. – E Paris é suficientemente
grande para nos escondermos, se alguém…
Se alguém vier à nossa procura quando o corpo de René for encontrado,
pensámos os dois ao mesmo tempo. Mas nunca mencionámos o nome de
René a Eve, nem entre nós. Encontrámos um hotel barato em Montmartre e
deixámos que Eve dormisse, tomasse os comprimidos e nos insultasse por
não lhe darmos whisky. Passaram-se cinco dias até Finn ver a notícia no
jornal.
Antigo proprietário de restaurante morto nos arredores de Grasse.
Tirei-lhe o jornal e devorei os detalhes. A empregada de René Bordelon
tinha ido fazer a limpeza semanal à casa, quando descobriu o cadáver. O
falecido era um homem abastado que vivia sozinho; o escritório tinha sido
vasculhado. O tempo que passara entre o momento da morte e a descoberta
do corpo tornava complicada a recolha de indícios…
Deitei a cabeça no jornal, sentindo-me subitamente tonta. Não havia
referências a uma senhora idosa e ao seu advogado a fazer perguntas pela
cidade inteira. Talvez a polícia soubesse da sua existência, ou talvez não, mas
os jornais não mencionaram investigações em curso. Ninguém procurava a
ligação entre uma viúva rica americana e o seu advogado de estatura alta com
uma mulher inglesa e o seu motorista de mau aspeto em Paris.
– Cinco dias para o encontrarem – disse Finn, pensativo. – Se ele tivesse
família ou amigos, isso teria acontecido mais cedo. Alguém teria telefonado,
ficado preocupado. Mas ele não era capaz de fazer amigos. Não se
preocupava com ninguém, não era amigo de ninguém.
– Deixei a fotografia em cima do peito dele. Aquela em que estava
acompanhado dos seus amigos nazis. – Expirei lentamente ao reler a notícia.
– Pensei que, se a polícia visse que ele tinha sido um colaborador, podia não
ficar muito interessada em investigar quem o matou. Roubo ou vingança, eles
só… deixariam cair o assunto.
Finn deu-me um beijo na nuca.
– Miúda esperta.
Atirei o jornal para o lado. Tinham publicado uma fotografia de René, em
que ele aparecia elegante e sorridente, e aquilo deu-me uma volta ao
estômago.
– Eu sei que não o conheceste, mas acredita em mim. Era monstruoso. –
Agora era eu quem tinha pesadelos com salas de paredes verdes de seda
cheias de gritos.
– Ainda bem que não o conheci – respondeu Finn, em voz baixa. – Já vi
coisas monstruosas que cheguem. Ainda assim, queria ter lá estado. E ter
protegido as duas.
Eu estava contente por ele não ter estado lá. Ele tinha registo criminal e
teria arriscado ir parar atrás das grades, se tivéssemos sido apanhados. Eu e
Eve tínhamos sido suficientes para, no fim, dar conta de René – mas não lhe
disse isto. Não queria ferir o orgulho dele. Em vez disso, perguntei-lhe:
– Vamos contar à Eve que, provavelmente, já está fora de perigo?
– Sim, talvez ela pare de nos insultar.
Eve escutou-nos sem fazer comentários. Em vez de a acalmar, a notícia
pareceu aumentar a sua inquietação, começando a queixar-se das talas nos
dedos e das ligaduras no ombro. Pensei que ela me quisesse fazer mil
perguntas sobre o seu julgamento de 1916 e as provas que Violette tinha
descoberto a meu pedido, mas ela não tocou no assunto.
Dez dias depois de ter sido ferida, bati à porta do seu quarto para lhe dar
um croissant de pequeno-almoço, mas só encontrei um bilhete em cima da
almofada.
Finn desfiou um extenso rol de palavrões, mas eu não consegui tirar os
olhos daquelas palavras bruscas. Fui para casa. Não se preocupem.
– Não se preocupem. – Finn enfiou a mão no cabelo. – Para onde terá ido
aquela velha tonta? Achas que foi ver a Violette? Para tentar saber mais sobre
o julgamento?
Ele desceu as escadas a correr, para fazer uma chamada para Roubaix,
mas eu fiquei a olhar para o bilhete de Eve, com outra suspeita a formar-se na
minha cabeça. Revistei o quarto, mas não encontrei as duas Lugers.
Finn regressou pouco depois.
– A Violette jura que não viu a Eve nem falou com ela.
– Não acho que ela tenha ido para Lille ou para Roubaix – murmurei. –
Acho que foi para casa, para morrer. Para o lugar onde nós não a podemos
impedir de apertar o gatilho.
De forma ingénua, eu tinha acreditado que, se Eve soubesse que não traíra
Lili, a ferida antiga que ela carregava havia tanto tempo seria curada. Ela já
sabia que não era traidora e tinha matado o inimigo com as suas próprias
mãos – eu tinha esperança de que isso tivesse sido suficiente. Esperança de
que ela olhasse para o futuro, e não para o seu passado manchado. Mas talvez
se tivesse olhado ao espelho e não tivesse visto nada que lhe desse uma razão
para viver, numa altura em que o ódio e a culpa tinham desaparecido. Nada
senão o cano de uma pistola.
Tal como o meu irmão.
Comecei a sentir dificuldade em respirar.
– Temos de ir, Finn. Temos de voltar já para Londres.
– Ela pode não ter ido para Londres, miúda. Se a intenção dela é suicidar-
se, pode ter arrendado um quarto não muito longe daqui; nunca a vamos
encontrar. Ou pode ter ido visitar a campa da Lili ou…
– O bilhete dela diz casa. Há mais de 30 anos que a casa dela é em
Londres. Se ela quer morrer lá… – interrompi.
Não. Por favor, não.
A segunda travessia de França foi muito diferente da primeira. O carro
parecia vazio sem aquela presença cáustica no banco de trás, e não fizemos
desvios a Rouen ou Lille. Apenas uma viagem em linha reta e a grande
velocidade que, numa questão de horas, nos levou de Paris a Calais; e depois
o ferry, que nos transportou de volta ao nevoeiro inglês. Na manhã seguinte,
o Lagonda avançou aos soluços para Londres. Senti um nó na garganta
quando subitamente dei conta, chocada, que era o dia do meu 20.°
aniversário. Tinha-me esquecido por completo.
Vinte anos.
Aos 19, havia nem sequer dois meses, eu tinha saído de um comboio para
a noite escura, com uma fotografia de Rose e as minhas esperanças
impossíveis. Não conhecia Eve, nem Finn, nem René Bordelon. Nem me
conhecia a mim mesma.
Nem sequer dois meses. Quanta coisa mudara em tão pouco tempo.
Afaguei a barriga, que se arredondava, e perguntei-me se o Botão de Rosa
começaria em breve a mexer-se.
– Hampson Street, número 10 – resmungou Finn, conduzindo o Lagonda
pelas ruas esburacadas. Londres ainda apresentava as cicatrizes da guerra,
mas as pessoas que passeavam naquelas ruas semidestruídas mostravam mais
otimismo no andar e na expressão naquele dia quente de verão do que no dia
em que eu chegara a Londres. Finn e eu éramos os únicos carrancudos.
– Gardiner, é bom que estejas em casa.
Em casa, sã e salva, rezei, porque se eu entrasse na casa de Eve e a
encontrasse rígida com a pistola na mão, nunca me perdoaria. Não a deixo,
dissera-lhe eu em Grasse. Não a posso perder. Se eu a perder…
Mas o número 10 de Hampson Street estava vazio. E não só vazio: tinha
um letreiro a dizer: VENDE-SE.

Seis semanas mais tarde

– Pronta? – perguntou Finn.


– Nem por isso. – Dei uma volta, para ele me inspecionar. – Estou
suficientemente chique para Park Lane?
– Estás linda, miúda – elogiou Finn, com o seu sotaque escocês.
– Já não sou assim tão miúda. – A minha gravidez era naquele momento
óbvia, com o meu vestido preto apertado a evidenciar a barriga redonda. Já
não me serviria por muito mais tempo, mas eu tinha-o enfiado a custo nesse
dia para me dar sorte. Fazia-me parecer muito elegante e adulta, e era disso
que eu precisava nessa tarde, pois a minha mãe e o meu pai tinham vindo a
Londres e estavam à minha espera no Hotel Dorchester, em Park Lane.
Eu e a minha mãe falávamos ao telefone com alguma regularidade desde
que eu voltara a Londres. Apesar das coisas que ela tinha dito da última vez
que estivéramos juntas, era a minha mãe e eu sabia que se preocupava
comigo.
– Chérie, tens de ter um plano para a tua vida – atrevera-se ela a dizer,
algumas semanas antes. – Podemos encontrar-nos, para falarmos todos…
– Desculpe, mãe, mas não quero voltar para Nova Iorque.
O facto de ela não ter discutido comigo era um sinal de como estava
nervosa.
– Então, vamos nós a Londres. O teu pai tem uns negócios para tratar aí
em breve, de qualquer maneira. Vou com ele, e podemos encontrar-nos todos
e fazer planos.
Mas eu já tinha os planos feitos. Tinha-os refinado nas semanas
anteriores, enquanto vivia com Finn no estúdio dele. Estávamos preocupados
com Eve, íamos a casa dela todos os dias bater à porta, mas ela não era o
único tema de conversa durante os nossos enormes pequenos-almoços
ingleses. Também falávamos do Botão de Rosa, para quem eu estava a fazer
um enxoval de bebé. E do futuro e de como viveríamos: Finn com muitas
ideias e eu a escrevinhar números nos meus extratos de conta, para ver como
essas ideias se podiam tornar realidade (os bancos tinham deixado de me
colocar entraves ao levantamento do meu próprio dinheiro, quando eu lhes
mostrei a minha aliança de casamento falsa). No entanto, eu não tinha a
certeza se os meus pais ficariam interessados nos meus planos. Por isso,
preparei-me para que me dissessem que planos eles tinham feito para mim e
também para lhes responder que não. Quer eu fosse menor de idade ou não,
eles iam descobrir que eu já não era tão fácil de manipular como antes. É que
ter enfrentado um assassino de arma empunhada fez com que os meus pais
descessem consideravelmente no ranking de coisas que me intimidavam.
Contudo, eu receava que este encontro desse para o torto assim que eu
batesse o pé – e eu não queria nada que ele desse para o torto. Eu tinha
saudades dos meus pais, apesar de tudo. Queria pedir-lhes desculpa por lhes
ter causado tanta preocupação, dizer-lhes que compreendia melhor como a
morte de James os tinha desfeito. Queria dizer-lhes o quanto desejava fazer as
pazes com eles.
– Queres mesmo que vá contigo? – Finn vestia o fato cinzento-escuro que
usara em Grasse, como Donald McGowan, o meu solicitador. (O meu
Donald!)
– A tua mãe não ficou com muito boa impressão minha, em Roubaix.
– Não te safas desta assim tão facilmente, Finn Kilgore. Vamos.
Ele fez um sorriso de orelha a orelha.
– Vou chamar um táxi. – O Lagonda tinha voltado para a garagem, onde
Finn andava a reconstruir-lhe o motor, quando não estava ocupado a reparar
os carros de outras pessoas. Infelizmente, o último trecho da viagem que
começara em Paris tinha sido realmente demasiado para o carro velhote.
Chegar ao Dorchester no Lagonda ter-me-ia dado uma grande dose de
confiança. Sob o capô, podia ser um caco, mas por fora era um carro muito
elegante.
Peguei no chapéu – uma peça formidável em preto na qual eu gastara
bastante dinheiro, porque recordara Eve a abanar a cabeça ao contar a paixão
da rainha das espias por chapéus moralmente duvidosos – e sorri ao incliná-lo
sobre a cabeça. “Muito bem, ianque”, imaginei Eve a dizer, e senti o habitual
aperto no estômago. A agência que tinha posto a casa dela à venda não tinha
informações para nos dar; tinham recebido as instruções via telegrama.
Deixámos com eles um bilhete para Eve, com a morada de Finn, a implorar-
lhe que nos contactasse, e íamos lá a casa sempre que possível, para ver se a
apanhávamos. Mas tudo o que vimos, uma semana antes, foi um aviso na
porta a informar que a casa fora vendida.
Onde estás? Parecia que Eve não se importava nada em deixar-nos nessa
dúvida. Nos dias em que eu não temia que ela estivesse morta, queria matá-la
com as minhas próprias mãos por me fazer sentir tanto medo.
– Charlie, miúda. – A voz de Finn, vinda da porta da entrada, soou
estranha. – Vem cá ver isto.
Peguei na carteira e fui ter com ele à porta. O que eu ia dizer morreu-me
na garganta assim que olhei para a rua. Lá fora, no passeio, com um aspeto
folgazão e elegante, estava estacionado um carro absolutamente esplêndido.
Um descapotável numa cor prateada resplandecente e aristocrata, a brilhar à
luz do sol da manhã.
– Um Bentley Mark VI novo em folha – sussurrou Finn, caminhando
lentamente na direção do carro, como um sonâmbulo. – Motor de 4,5 litros…
Suspensão frontal independente com molas helicoidais… Eixo da hélice
dividido… – Ele passou um dedo incrédulo pelo guarda-lamas.
Mas não foi o carro, por mais bonito que fosse, que me fez acelerar a
pulsação. Preso no limpa-para-brisas estava um enorme envelope branco com
os nossos nomes escritos à mão, numa letra familiar. A minha boca secou-se
ao rasgar o envelope para o abrir. Havia algo volumoso no fundo, mas eu tirei
primeiro o pedaço de papel. O início da nota não tinha desculpas nem
saudações ou cumprimentos. Claro que não.

Tu deste início ao processo com Violette, ianque,


mas eu tinha de investigar e ver os detalhes com os
meus próprios olhos, para poder acreditar. O nome de
Lili e o seu envolvimento na Rede Alice foram dados
por uma sua antiga companheira de cela, Mlle. Tellier,
que, em troca de uma pena mais ligeira, passou cinco
cartas e uma confissão aos alemães, enquanto eu
estava a ser torturada por René Bordelon. Isto foi
confirmado através dos registos do julgamento,
documentos confidenciais e outras fontes anónimas –
foi difícil, mas está confirmado. Também confirmado:
Tellier envenenou-se depois do Armistício.
René mentiu. Não fui eu.
Tu tinhas razão.
Dei-me conta de que estava a chorar como uma bebé indefesa. Mas eu
não era, de forma alguma, indefesa. Durante tanto tempo ouvi a voz manhosa
dentro de mim a dizer-me que tinha falhado com o meu irmão, com os meus
pais, com Rose, comigo mesma. Mas não tinha falhado com Eve. E talvez
não tivesse falhado com os outros tanto quanto sempre pensara. Tinha feito o
que podia por Rose e James – não os consegui salvar, mas a morte deles não
tinha sido por minha culpa. E ainda estava a tempo de resolver as coisas com
os meus pais.
Quanto a Charlotte St. Clair, eu era capaz de tomar conta dela. Ela tinha
pegado na confusão sem esperança que a rodeava, deitado fora as variáveis
sem sentido, os y e o z sem importância, e descoberto a incógnita. Tinha
decomposto tudo até chegar a uma simples equação – ela própria mais Finn
mais o Botão de Rosa – e ela sabia o resultado exato dessa equação.
Continuou a ler o bilhete de Eve:

A Violette escreveu-me. Vou a caminho de França,


onde me vou encontrar com ela, para juntas visitarmos
a campa de Lili. Depois disso, vou viajar. Volto a
tempo do batizado. Enquanto isso, devo umas pérolas a
ti e um carro ao Finn.

Finn pegou no envelope e virou-o de cabeça para baixo. Um emaranhado


de coisas caiu-lhe na sua mão grande: as chaves do Bentley, enroladas num
colar de pérolas de um branco leitoso – as minhas pérolas. Eu tinha voltado à
casa de penhores assim que regressara a Londres, mas a minha cautela tinha
caducado e elas já tinham sido vendidas. E, contudo, ali estavam elas. Eu mal
as conseguia ver, tantas eram as lágrimas que chorava. Restava uma linha:

São os meus presentes de casamento.


EVE

Fizemos parar o trânsito, tanto nas ruas como no Dorchester. Porteiros,


paquetes, homens elegantes de chapéu e as respetivas esposas de luvas
brancas – toda a gente se voltou para olhar, quando o Bentley parou à frente
do hotel. Ronronava como um gato e funcionava às mil maravilhas, e o banco
cinzento pérola parecia abraçar-me, de tão confortável. Finn entregou as
chaves ao porteiro com grande relutância.
– Leve-o – disse ele, saindo e circundando a frente do carro para me abrir
a porta. – Eu e a minha patroa vamos ficar para almoçar.
Debaixo do toldo do hotel, vi a minha mãe num vestido azul franzido e o
meu pai a olhar para um lado e para o outro da rua. Vi a minha mãe a olhar
para Finn, no seu fato elegante, com ar apreciativo; vi o meu pai lançar um
olhar de admiração às linhas magníficas do carro – e depois vi os lábios deles
a entreabrirem-se de surpresa, quando Finn me deu a mão e eu saí do
automóvel com o meu chapéu arrojado e as minhas pérolas francesas.
– Maman – disse eu, dando o braço a Finn e sorrindo. – Pai. Apresento-
vos o Sr. Finn Kilgore. Ainda não oficializámos – esclareci, ao ver que os
olhos da minha mãe voavam para a minha mão esquerda –, mas estamos a
planear fazê-lo muito em breve. Temos muitos planos para o futuro e eu
gostava que vocês fizessem parte deles.
A minha mãe ficou agitada e o meu pai também, no seu jeito mais
reservado, e Finn estendeu-lhes a mão, enquanto eu continuava com as
apresentações. De seguida, ao virarmos costas para entrarmos no pátio
interior incrivelmente elegante do Dorchester, olhei por cima do ombro e vi-a
uma última vez. Rose estava debaixo do toldo do hotel, com um vestido
branco e o cabelo louro a ondular sob a brisa de verão. Ela olhou para mim
com a sua expressão traquinas, que eu tão bem recordava, e acenou com a
mão.
Retribuí o aceno e engoli em seco. Sorri.
E entrei no hotel, seguida dos outros.
Epílogo
Verão de 1949

Os campos de flores nos arredores de Grasse estavam no seu máximo


esplendor, extensões a perder de vista de rosas, jasmins e jacintos. O aroma
no ar era inebriante e o café era um sítio bonito para fazer uma pausa. Os
toldos às riscas convidavam as pessoas a abandonarem a pressa de chegar a
Cannes ou Nice e a pedir outra garrafa de rosé, enquanto admiravam a
paisagem. A mulher magra com uma trança cinza-prata estava ali havia
tempo suficiente para ter amontoado algumas garrafas vazias durante a tarde.
O seu rosto era muito bronzeado, usava botas, vestia calças caqui e trazia um
conjunto de pulseiras de dente de javali num dos pulsos – e estava sentada a
um canto, encostada a uma parede, de modo a poder observar todas as
possíveis linhas de ataque. Mas, naquele momento, ela não pensava em linhas
de ataque: observava os carros que iam e vinham na estrada mais abaixo.
– Vai ter de esperar durante algum tempo – tinham-na prevenido as
empregadas do café, depois de ela ter entrado e perguntado pelos donos. – O
monsieur e a madame fazem um piquenique nos campos de flores todos os
domingos. Vão demorar algumas horas.
– Eu espero – respondeu Eve. Ela estava habituada a esperar. Afinal,
esperou mais de 30 anos para matar René Bordelon e, depois disso, teve de
esperar muito tempo pelas suas presas, sob um sol tórrido. Matar René fê-la
perceber como gostava de perseguir, caçar e matar animais perigosos.
Não lhe interessava caçar gazelas tímidas ou girafas graciosas, mas os
enormes javalis selvagens da Polónia ou os bandos de leões que comiam
humanos nas aldeias da África oriental eram alvos justos para o par de Lugers
que descansavam, bem oleados e imaculadamente limpos, dentro da sua
sacola, debaixo da cadeira. Para além disso, ninguém num grupo de
caçadores se importava se ela dizia muitos palavrões ou não, bebia
demasiado ou não, ou se acordava a tremer de vez em quando com pesadelos
– afinal, não era invulgar os seus companheiros de caça mostrarem
semelhantes mazelas. Não nas mãos, talvez, mas no olhar; olhos de quem vira
coisas terríveis e procurava tréguas nos cantos mais remotos e perigosos do
mundo. No último safari de Eve, participara igualmente um coronel inglês,
tenso e grisalho, que não falava sobre os dedos deformados de Eve desde que
ela não o inquirisse sobre a razão da sua saída do regimento, após El
Alamein. Ele costumava ficar sentado até tarde a beber umas quantas garrafas
de whisky, e um dia perguntou a Eve se ela gostaria de viajar com ele nesse
inverno para ir ver as pirâmides. Talvez. As mãos dele tinham dedos
compridos, um pouco semelhantes às de Cameron.
Um carro passou ruidosamente pelo café-garagem: um Bugatti com a
capota aberta, cheio de italianos barulhentos a caminho da costa. Aquele sítio
devia fazer bom dinheiro com os condutores de carros velozes que gostavam
de percorrer as estradas da Riviera, concluiu Eve, avaliando a dimensão da
garagem. O Bentley prateado de Finn, o mesmo que ela lhe dera, estava lá
estacionado, e, a seu lado, estava um Peugeot com a capota subida e um
Aston Martin em cima de blocos. Ela imaginou as pessoas a virem à garagem
para reparações e a esperarem no café ao lado, a mordiscar biscoitos com
compota de rosa, beber demasiado vinho, cantarolar ao som do rádio. Estava
a tocar Edith Piaf, nesse momento… Mon Legionnaire, uma das suas músicas
favoritas.
Já era fim de tarde quando viu o carro a subir a encosta: o Lagonda, num
ritmo digno e pachorrento, os flancos azuis escuros polidos e reluzentes.
Parou na garagem, e Eve aguardou, de sorriso nos lábios. Instantes mais
tarde, Charlie saiu do carro, vestida com calças justas pretas e uma blusa
branca, a pele dourada pelo sol, o cabelo cortado por debaixo das orelhas.
Trazia um cesto de piquenique numa mão e, com a outra, agarrava com
firmeza o vestido empoeirado de uma menina pequena. Eve perguntou-se que
idade teria a sua afilhada; não tinha ideia. Dezoito meses? Eve não a via
desde o batizado, e esta criatura loura de queixo arrebitado e olhar carrancudo
era muito diferente da trouxinha gorgolejante embrulhada em folhos e
bordados que Eve segurara por cima da pia batismal. Tinha usado as suas
medalhas para a ocasião, as insígnias colocadas com orgulho e a preceito no
ombro, e a pequena Evelyn Rose Kilgore quase lhe arrancara a Croix de
Guerre com a sua mãozinha de bebé.
– Finn – chamou Charlie, por cima do ombro. – Para lá os arranjinhos. É
domingo. Não se pode trabalhar aos domingos.
A voz dele soou do interior do carro.
– Estou quase. É aquela fuga de óleo…
– Ainda bem que não usamos o Lagonda para mais nada senão para os
piqueniques. É praticamente ferro-velho.
– Tem um pouco de respeito, Charlie, miúda. – Finn saiu, então, esguio e
de cabelo despenteado, com o colarinho desabotoado a revelar a pele
bronzeada do pescoço. As empregadas do café fitaram com admiração aquele
triângulo de pele, como se o quisessem comer, mas ele tinha um braço em
redor da sua mulher e o outro esticado para pegar na filha. – Oh, Evie Rose,
tu és um montinho de sarilhos, sua pequenita – disse ele com o seu sotaque
escocês.
– Ela é terrível – disse Charlie, quando a filha soltou um grito tão agudo
que seria capaz de cortar uma folha de aço. – Uma bebé rabugenta menos
uma sesta, igual a uma birra elevada a dez. Temos de a deitar cedo hoje…
Eles ainda não tinham visto Eve, sentada na mesa mais afastada e
escondida pelo toldo. Ela acenou com uma mão deformada por cima da
cabeça. As mãos ainda eram alvo de muitos olhares, e continuavam incapazes
de fazer alguma coisa, exceto carregar no gatilho, mas ela não se importava.
Qualquer fleur du mal que vivesse até à sua idade tinha direito a sofrer alguns
danos.
Vendo a figura que lhes acenava debaixo do toldo, Charlie protegeu os
olhos com as mãos e soltou um grito na direção de Eve.
– Ah, vais-me d-dar um abraço, não vais? – disse Eve para ninguém em
particular. Soltou um suspiro, ergueu-se da cadeira e aproximou-se para ser
abraçada. – Raio de ianque.
Agradecimentos
Devo os meus sinceros agradecimentos a muitas pessoas que me
ajudaram a escrever este livro. À minha mãe, que comigo debateu até à
exaustão incontáveis emaranhados do enredo, durante longos passeios e ainda
mais longas conversas ao telefone. Ao meu marido, que afinou a gaguez de
Eve em todas as cenas e me disse tantas vezes: “Continua a escrever, eu faço
o jantar”. Às minhas maravilhosas companheiras críticas, Stephanie Dray e
Sophie Perinot, cujo discernimento e correções demonstraram ser
absolutamente inestimáveis. Ao meu agente, Kevan Lyon, e editoras,
Amanda Bergeron e Tessa Woodward, incentivadores por excelência. A Lisa
Christie, minha companheira da MRW (Maryland Romance Writers) e o
marido, Eric, por responderem às minhas perguntas sobre carros antigos,
verificarem os detalhes mecânicos e terem oferecido uma visita guiada à
maravilhosa coleção de carros antigos de Henry Petronis. E, finalmente, a
Annalori Ferrell, que, com o seu talento linguístico, me ajudou
incomensuravelmente na tradução de documentos de investigação em
francês, me ensinou os palavrões franceses certos e me transmitiu uma visão
conhecedora da ocupação do norte de França durante a Primeira Guerra
Mundial, sob a qual viveram gerações passadas da sua família. Foi com a
autorização da Anna e dos respetivos familiares que a carta escrita pelo seu
tio-bisavô, Antoine de Four, na secção P.S. deste livro, foi traduzida e é aqui
publicada… e que o próprio Antoine, juntamente com a sua corajosa irmã
Aurélie, são mencionados no livro como membros da Rede Alice.

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