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Título original:
The Alice Network
© 2017, Kate Quinn
www.portoeditora.pt
ISBN 978-972-0-67825-6
Para a minha mãe
A primeira leitora, a primeira crítica, a primeira fã
Isto é para ti
Capítulo 1
Charlie
Maio de 1947
Southampton
Não era a ideia mais sensata que eu alguma vez tivera: uma cidade
estranha, uma rapariga sozinha. Tinha passado as duas últimas semanas num
estado tal de estupefação, devido ao meu azar interminável – o Pequeno
Problema, os gritos em francês da minha mãe, o silêncio gelado do meu pai –,
que estava disposta a ir a qualquer lado que me levassem. Ter-me-ia até
atirado de um precipício, impassível e submissa, sem me importar ou pensar
na razão pela qual o fazia até chegar ao fundo. Estava quase a chegar ao
fundo do buraco em que a minha vida se tornara, dando incontáveis voltas no
ar. Mas agora tinha algo onde me agarrar.
Era, concedo, algo com a forma de uma alucinação, uma visão que eu
vinha a ter desde havia meses, com o meu pensamento a insistir em desenhar
o rosto de Rose em todas as raparigas louras que passavam por mim.
Assustara-me muito da primeira vez, não por achar que Rose era um
fantasma, mas por acreditar que estava a ficar louca. Talvez eu estivesse
louca, mas não via fantasmas. Porque, independentemente do que os meus
pais dissessem, eu não estava completamente convencida de que Rose
morrera.
Agarrei-me a essa esperança enquanto me apressava rua fora em direção à
estação de comboios, nos meus sapatos de salto alto muito pouco práticos
(“uma jovem baixa como tu deve usar sempre saltos altos, ma chère, ou
parecerás sempre uma menina”). Avancei pelo meio da multidão, entre os
trabalhadores que se dirigiam para as docas, brutos e fanfarrões; as
empregadas de lojas muito bem vestidas; os soldados que conversavam nas
esquinas. Acelerei até perder o fôlego, e deixei que a esperança florescesse
dentro de mim, crescendo por entre uma dor que me fazia arder os olhos.
Volta para trás, repreendeu a voz dura da consciência. Ainda estás a
tempo de voltar para trás. De voltar para um quarto de hotel, para a minha
mãe a tomar todas as decisões, para o abrigo do meu estado alheado de
confusão. Mas continuei a andar depressa. Ouvi o apito de um comboio e
inspirei o cheiro do carvão e as vagas de vapor. Terminal de Southampton.
Uma multidão de passageiros desembarcava – homens de chapéu, crianças de
faces coradas, mulheres a proteger os cabelos ondulados da chuva miudinha
com jornais amarrotados. Quando teria começado a chover? Sentia o cabelo
escuro a achatar sob a aba do chapéu verde que a minha mãe escolhera para
mim, o mesmo que me fazia parecer um duende. Continuei a correr e entrei
na estação.
O revisor de um comboio gritava qualquer coisa. A partida dentro de dez
minutos de um comboio direto para Londres.
Olhei novamente para o papelinho que apertava na mão. Hampson Street,
número 10, Pimlico, Londres. Evelyn Gardiner.
Quem quer que ela fosse.
A minha mãe provavelmente já estaria à minha procura no Hotel Dolphin,
lançando instruções imperiosas aos rececionistas do hotel. Mas eu não me
importava nada. Estava apenas a 120 quilómetros de Hampson Street,
número 10, Pimlico, Londres, e havia um comboio mesmo à minha frente.
– Cinco minutos! – gritou o revisor.
Os passageiros apressaram-se a subir para as carruagens, erguendo as
malas.
Se não fores agora, nunca mais irás, pensei.
Por isso, comprei um bilhete e embarquei no comboio. E assim, sem mais
nem menos, desapareci por entre a bruma.
França. Era aí que Eve iria trabalhar como espia. Uma espia, pensou ela
ainda a medo, examinando cuidadosamente a ideia, da mesma forma que uma
criança analisa o buraco deixado por um dente acabado de cair. Sentiu
borboletas na barriga, em parte pelos nervos e em parte pela excitação. Vou
ser uma espia em França.
Mas antes de França, Folkestone.
– Acha que eu podia tirá-la do seu trabalho e largá-la imediatamente em
território inimigo? – interrogou o Capitão Cameron, que fizera o favor de
carregar com o saco de viagem a abarrotar de Eve, quando chegaram ao
comboio. Passara apenas um dia desde que ele a recrutara enquanto tomavam
chá na sala de visitas da pensão. Ela teria ido com ele nessa mesma noite,
vestida como estava – sem se importar com o decoro –, mas o Capitão
insistira em fazer as coisas com decência, indo buscá-la no dia seguinte à
tarde e caminhando com ela de braço dado até à estação, como se fossem de
férias para algum lado. A única criatura que se despedira dela fora o gato
malhado, a quem ela tinha dado um beijo no focinho e dito baixinho: Vai ter
com a Sra. Fitz aqui ao lado; fi-la prometer que te vai dar restos enquanto eu
estiver fora.
– Se alguém perguntar – disse o Capitão Cameron, quando eles se
instalaram num compartimento vazio – eu sou um tio dedicado que leva a sua
sobrinha preferida a Folkestone para apanhar um pouco de sol. – Fechou as
portas com firmeza, para que tivessem o compartimento só para eles, e
verificou novamente que não havia ninguém à escuta.
Eve inclinou a cabeça, analisando o rosto magro do Capitão e o fato em
tweed amarrotado.
– É um bocadinho jovem para ser meu tio, não?
– A Eve tem 22, mas aparenta 16; eu tenho 32 e pareço ter 45. Eu sou o
seu Tio Edward. Este será o nosso disfarce, daqui em diante.
O verdadeiro nome dele, Cecil Aylmer Cameron, ela já sabia. Colégios
particulares, Royal Military Academy, servira em Edimburgo durante algum
tempo, o que teria dado a leve entoação escocesa ao seu sotaque inglês –
estas referências ele listara meticulosamente quando Eve aceitou a proposta.
Quanto aos pormenores pessoais, esses eram revelados apenas quando
necessário neste mundo tão secreto… E naquele momento, ela recebia o
primeiro: o nome de código dele.
– Tio Edward será. – Eve sentiu mais borboletas na barriga. – E qual é o
meu nome de c-código? – Ela lera Kipling, Childers e Conan Doyle; até em
livros ridículos, como O Pimpinela Escarlate, os espiões tinham nomes de
código, disfarces.
– Em breve saberá.
– P-P-P… Para onde irei em França? – Ela perdera a vergonha de
gaguejar à frente dele.
– Espere e verá. Em primeiro lugar, o treino. – Ele sorriu, as rugas à volta
dos olhos a franzirem. – Tenha cuidado, Miss Gardiner. O seu entusiasmo
está a fazer-se notar.
Eve suavizou a expressão, revelando uma inocência límpida.
– Melhor.
Folkestone. Fora uma vila costeira pacata antes da guerra, mas
transformara-se num porto movimentado; todos os dias chegavam ferries
com refugiados e ouvia-se mais francês e flamengo nos cais do que inglês. O
Capitão Cameron só voltou a falar quando saíram da estação apinhada e
caminhavam pelo passadiço, ao abrigo de ouvidos estranhos.
– Folkestone é a primeira paragem depois de Vlissingen, na Holanda –
disse ele, apressando-se para que os outros casais que passeavam ali não o
escutassem. – Parte do meu trabalho consiste em assegurar que os refugiados
são entrevistados antes de lhes ser autorizada a entrada na Grã-Bretanha.
– Para tentar encontrar pessoas como eu?
– Sim, e também as que são como a Eve, mas que trabalham para o outro
lado.
– Quantas encontrou d-de cada até agora?
– Seis de um lado, meia dúzia do outro.
– Há muitas mulheres? – Eve queria saber. – Entre os… os recrutas? –
Que nome lhes podia dar? Aprendizes de espias? Espiões-estagiários? Tudo
lhe parecia absurdo. Uma parte de Eve ainda não acreditava que tudo aquilo
lhe estava a acontecer. – Nunca pensei que as mulheres fossem consideradas
para tal função – disse ela com sinceridade. O Capitão Cameron (Tio
Edward) parecia ter a capacidade de lhe arrancar a verdade de uma forma
estranha. Ele devia ser um prodígio como interrogador, pensou ela. Sacava
informação de uma maneira tão gentil que uma pessoa mal dava conta que
estava a abrir a boca.
– Pelo contrário – esclareceu o Capitão. – Eu gosto de recrutar mulheres.
Elas conseguem muitas vezes passar despercebidas em situações que um
homem seria considerado suspeito e detido. Há alguns meses, recrutei uma
mulher francesa – sorriu repentinamente, de forma afetuosa, como se
recordasse algo particularmente bom – que neste momento gere uma rede de
mais de 100 informadores, e faz com que isso pareça simples. Os relatórios
que envia sobre posições de artilharia chegam-nos com tanta rapidez e são tão
precisos que nós conseguimos bombardeá-los numa questão de dias. É
absolutamente notável. Ela é do melhor que temos, seja homem ou mulher.
O espírito de competição de Eve inflamou-se. Eu vou ser a melhor.
Ele fez sinal a um táxi.
– Para o número 8, em The Parade. – Era um lugar decrépito, não muito
diferente da pensão onde Eve vivera, e “pensão” era provavelmente a
resposta dada aos vizinhos que manifestavam a sua curiosidade. Mas quando
o Capitão a convidou a entrar e ela se viu em cima do tapete desbotado da
sala de visitas, não foram recebidos por uma criada empertigada e azeda, mas
por um major alto de uniforme.
Ele olhou de lado para Eve, enrolando as pontas do seu impressionante
bigode.
– Muito jovem – disse, num tom desaprovador, olhando para ela de cima
a baixo.
– Dê-lhe uma oportunidade – disse calmamente o Capitão Cameron. –
Miss Evelyn Gardiner, este é o Major George Allenton. Deixo-a ao cuidado
dele.
Eve teve um momento de receio, ao ver Cameron e o seu fato em tweed a
desaparecerem, mas afastou-o. Não posso sentir medo de nada, relembrou-se
a si mesma. Caso contrário, vou falhar.
O Major não pareceu entusiasmado. Eve supôs que ele não partilhava a
preferência do Capitão Cameron por recrutas femininos.
– O seu quarto é o primeiro do segundo andar. Espero-a cá em baixo
dentro de 15 minutos. – E, com esta facilidade, o mundo dos serviços
secretos abriu-se para ela.
O curso em Folkestone durou duas semanas. Duas semanas metida em
salas abafadas, de teto baixo e janelas fechadas ao calor de maio. Salas com
alunos que não tinham aspeto de espiões, a aprender coisas estranhas e
sinistras de homens que não aparentavam ser soldados.
Apesar da preferência do Capitão Cameron por recrutas femininos, Eve
era a única mulher. Os instrutores ignoravam-na; os olhares deles dirigiam-se
aos homens presentes na sala, e não a deixavam responder a nada, mas isso
não a incomodava, pois dava-lhe tempo para avaliar os colegas. Havia apenas
quatro e eram muito diferentes. Esse facto era o que mais surpreendera Eve.
Os pósteres de recrutamento de forças de combate mostravam uma fila de
tommies, todos iguais, robustos e corajosos, anónimos na sua similitude. Esse
era o soldado ideal: uma linha, um regimento, um batalhão de homens fortes,
todos exatamente iguais. Mas um póster de recrutamento de espiões,
apercebeu-se ela, mostraria apenas uma fila de pessoas que não tinham aspeto
de espiões e que eram todas diferentes.
Havia um belga entroncado com uma barba grisalha; dois franceses, um
com sotaque lionês e outro coxo; e um rapaz franzino inglês que demonstrava
um tal ódio incandescente pelos boches que quase brilhava de ardor. Este não
vai servir de nada, concluiu Eve. Não tem autocontrolo – e o francês que
coxeava também não a convencia; as mãos dele fechavam-se em punhos à
mais leve frustração. O curso inteiro era um exercício de frustração,
minuciosas perícias para aprender com infinita paciência: abrir fechaduras,
escrever códigos, aprender cifras. Os vários tipos de tinta invisível, como se
fazia e como se lia. Como ler e desenhar mapas, como esconder mensagens –
a lista não tinha fim. O belga praguejava baixinho sempre que tinham de
aprender a compilar relatórios em papelinhos de arroz o mais minúsculos
possível, porque as suas mãos eram como presuntos. Mas Eve rapidamente
aprendeu a controlar o sistema de letras pequeninas, mais pequenas do que
uma vírgula numa máquina de escrever. E o professor, um Cockney magro
que mal tinha olhado para Eve desde que ela chegara, sorriu ao ver o trabalho
dela e começou a tomar mais atenção ao que ela fazia.
Passados 15 dias, Eve pensou como era possível mudar tanto em duas
semanas. Ou talvez não tivesse mudado, mas sim transformado no que já era?
Ela sentia-se como se estivesse a ser queimada, descartando-se de todas as
camadas exteriores, de todos os contrapesos de mente e corpo que a puxavam
para baixo. Todas as manhãs, ela acordava pronta, atirava as cobertas para
trás e saltava da cama de mente esfomeada por tudo aquilo que o dia tinha
para lhe oferecer. Controlava os movimentos dos dedos à volta dos
minúsculos pedaços de papel – o tipo de movimentos hábeis que persuadiam
uma fechadura a revelar os seus segredos – e arrepiava-se de puro e intenso
prazer sempre que sentia o mecanismo da fechadura estalar pela primeira vez,
mais do que alguma vez se arrepiara quando um homem a tentara beijar.
Fui feita para isto, pensava. Eu sou a Evelyn Gardiner, e este é o meu
lugar.
O Capitão Cameron foi vê-la no fim da primeira semana.
– Como está a minha aluna? – perguntou ele, entrando sem aviso prévio
na sala de improviso abafada.
– Muito bem, Tio Edward – replicou modestamente Eve.
Os olhos dele sorriram.
– O que está a praticar?
– A esconder mensagens. – Como abrir um buraco na bainha de um
punho e enfiar uma mensagem minúscula enrolada, e como tirá-la
rapidamente da bainha. Era preciso rapidez e dedos desembaraçados, mas
Eve tinha as duas coisas.
O Capitão encostou-se à mesa. Vestia o seu uniforme, nesse dia; era a
primeira vez que ela o via assim e assentava-lhe bem.
– Em quantos sítios consegue esconder uma mensagem, com a roupa que
traz vestida hoje?
– Punhos, bainhas, pontas das luvas – recitou Eve. – Num alfinete no
cabelo, claro. Enrolado à volta do interior de um anel, ou dentro de um tacão
de s-sapato…
– Hum, é melhor esquecer esse último. Dizem-me que os boches já
descobriram o truque do tacão.
Eve acenou com a cabeça, arquivando a informação. Desenrolou a
pequeníssima mensagem em branco e começou a enfiá-la na bainha do lenço
da mão.
– Os seus colegas estão a praticar tiro ao alvo – observou o Capitão. –
Porque é que a Eve também não está?
– O Major Allenton não achou necessário. – Não vejo porque uma mulher
alguma vez precise de disparar uma pistola, tinham sido as palavras dele; por
isso, Eve ficara para trás, enquanto os colegas tinham ido para as carreiras de
tiro com as Webleys emprestadas. Só restavam três colegas – o rapaz
franzino inglês fora declarado inapto, por entre lágrimas e palavrões. Junta-te
aos Tommies, se queres lutar contra os alemães, pensou Eve, sentindo
alguma compaixão.
– Eu acho que devia aprender a disparar uma pistola, Miss Gardiner.
– Isso não vai contra as ordens do Major? – Cameron e Allenton não
gostavam um do outro; Eve percebera isso no primeiro dia.
Cameron limitou-se a dizer:
– Venha comigo.
Ele não levou Eve para o campo de tiro, mas para uma praia deserta,
longe da agitação do cais. Ele caminhou em direção à água, com uma
mochila de lona às costas que tinia a cada passo, e Eve seguiu-o, com as
botas a afundarem-se na areia e o vento a despentear-lhe o cabelo do puxo
asseado. A manhã estava quente e Eve desejou poder despir o casaco, mas
esta expedição a sós até uma praia isolada com um homem que não era, de
forma nenhuma, seu tio seria, por si só, considerada imprópria. A Miss
Gregson e o resto das secretárias iam pensar que eu sou uma galdéria.
Nesse mesmo momento, Eve afastou o pensamento, tirou o casaco e ficou só
em camisa, argumentando para si mesma que, se pensasse muito sobre o que
era impróprio ou não, não seria grande coisa como espia.
O Capitão encontrou um tronco, tirou uma série de garrafas de vidro da
mochila tiritante e alinhou-as em cima do tronco.
– Isto deve servir. Dê dez passos para trás.
– Eu não deveria ser capaz de disparar mais longe do que isso? –
protestou Eve, deixando cair o casaco em cima de um monte de sargaço.
– Se o seu alvo for um homem, é provável que se encontre perto dele. – O
Capitão Cameron contou os passos e tirou a pistola do coldre.
– Esta é uma Luger 9mm P08…
Eve franziu o nariz.
– Uma p-pistola alemã?
– Não faça troça, Miss Gardiner. É bastante mais precisa e fiável do que
as nossas pistolas inglesas. Os nossos rapazes recebem a Webley Mk IV; é a
pistola que os seus colegas estão a usar para treinar, mas a verdade é que
mais valia nem treinarem, porque são precisas semanas para se atirar bem
com a Webley, tal é o coice que dá quando é disparada. Com a Luger, vai
conseguir acertar no alvo apenas com algumas horas de prática.
O Capitão Cameron desmontou rapidamente a pistola, disse o nome de
cada peça e ordenou a Eve que a voltasse a montar e desmontar até não sentir
dificuldade em fazê-lo. Quando Eve apanhou o jeito e reparou que as suas
mãos se moviam com rapidez e habilidade, sentiu a excitação pura que vinha
a sentir desde que chegara, sempre que conseguia decifrar um mapa ou
descodificar uma mensagem. Mais, pensou. Quero mais.
Cameron mandou-a carregar e descarregar a arma, e Eve percebeu que ele
queria ver se ela lhe pedia para disparar, em vez de se limitar a mexer e
remexer na pistola. Ele quer ver se sou paciente. Ela prendeu uma madeixa
de cabelo solta pelo vento atrás da orelha e aceitou as instruções em silêncio.
Posso esperar o dia todo, Capitão.
– Ali. – Por fim, ele apontou para a primeira garrafa alinhada no tronco. –
Tem sete balas. Faça mira ao longo do cano, assim. Esta não dá um coice tão
grande como a Webley, ainda assim dá. – Ele bateu levemente no ombro, no
queixo e nos nós dos dedos de Eve, corrigindo a posição. Nada disto teve
intenção de intimidade – Eve lembrou-se dos rapazes franceses em Nancy,
sempre que ela aparecia para caçar patos. Deixa-me mostrar-te como deves
fazer pontaria! E punham os braços à sua volta.
O Capitão acenou com a cabeça e deu um passo atrás. A forte brisa
marítima despenteava-lhe o cabelo e encrespava o azul baço da água do canal
da Mancha, atrás dele.
– Fogo.
Eve esvaziou a câmara do carregador e os estrondos dos sete disparos
ecoaram pela praia vazia. Não acertou em nenhuma garrafa. Sentiu uma
pontada de desilusão, mas sabia que não o podia mostrar. Limitou-se a
recarregar a arma.
– Porque quer esta vida, Miss Gardiner? – perguntou o Capitão,
acenando-lhe para disparar novamente.
– Quero fazer a minha parte. – Não gaguejou ao dizer aquilo. – É assim
tão estranho? No verão passado, quando a guerra começou, todos os homens
jovens na Grã-Bretanha desejaram ardentemente alistar-se para combater,
fazer a sua parte. Alguém lhes perguntou porquê? – Ela levantou a Luger,
puxou o gatilho e disparou mais sete balas, cuidadosamente espaçadas. Desta
vez, acertou de raspão numa das garrafas, fazendo voar um estilhaço de
vidro, mas a garrafa não se escacou. Outra pontada de desilusão. Mas, um
dia, vou ser a melhor, prometeu. Melhor ainda do que a preciosa recruta de
Lille, seja ela quem for.
A voz do Capitão continuou.
– Odeia os boches?
– Eles não estavam longe de Nancy, onde eu cresci. – Eve começou a
recarregar a pistola. – Eu não os odiava, nessa altura. Mas eles invadiram a
França, destruíram-na, roubaram para eles o que ela tinha de m-m-melhor. –
Enfiou com um gesto brusco a última bala na câmara. – Que direito têm eles
de fazer isso?
– Nenhum. – Ele estudou-a. – Mas eu acho que a sua razão não é tanto o
patriotismo. É mais o ímpeto de provar que é capaz.
– Sim – admitiu Eve, sentindo-se bem ao dizê-lo. Acima de tudo, era isso
que ela queria. E queria-o tanto que doía.
– Relaxe ligeiramente o punho. Está a puxar o gatilho, em vez de o
apertar, e é isso que lhe está a desviar a pontaria para a direita.
Ao segundo disparo, uma garrafa explodiu. Eve fez um sorriso rasgado.
– Não pense que isto é uma brincadeira. – O Capitão olhou para ela. –
Vejo muitos jovens oficiais a quererem ardentemente derrotar os suínos
alemães. E isso está bem para os soldados rasos; eles perdem essa ilusão na
primeira semana que passam nas trincheiras, e não há mal nenhum nisso, a
não ser para a sua inocência. Mas os espiões não podem desejar nada
ardentemente. Os espiões que acham que isto é uma brincadeira acabam
mortos, e fazem com que os colegas também acabem mortos.
Independentemente do que possa ter ouvido acerca dos boches, os alemães
são espertos e implacáveis e, a partir do momento em que a Eve puser os pés
em França, eles farão tudo para a apanhar. Como mulher, é provável que não
a encostem a uma parede e a executem, como aconteceu a um rapaz de 19
anos que mandei para Roubaix o mês passado. Mas pode ser atirada para uma
prisão alemã, deixada a apodrecer, a morrer à fome entre as ratazanas, sem
que ninguém a possa ajudar, nem mesmo eu. Compreende o que lhe estou a
dizer, Evelyn Gardiner?
Outro teste, pensou Eve, sentindo o coração a bater com força. Se
falhasse, não poria os pés em França. Se falhasse, voltaria para um quarto
arrendado e para a sala de arquivo do escritório. Não.
Mas qual era a resposta certa?
O Capitão Cameron estava à espera, de olhos postos nos dela.
– Nunca pensei nisto como uma brincadeira – garantiu Eve, por fim. – Eu
n-não brinco. As brincadeiras são para crianças, e até posso parecer que tenho
16 anos, mas nunca fui uma criança. –. – Não posso prometer que não vou
falhar, mas, se falhar, não vai ser por achar que isto é uma brincadeira.
Ela devolveu o olhar dele, irritada, ainda de coração aos pulos. Seria esta
a resposta certa? Não fazia ideia. Mas era a única que tinha.
– Vai ser enviada para território ocupado pelos alemães, para Lille –
revelou finalmente o Capitão Cameron, e os joelhos de Eve quase cederam
com o alívio. – Mas antes vai a Le Havre, para conhecer o seu contacto. O
seu nome vai ser Marguerite Le François. Aprenda a reagir ao nome como se
ele fosse seu.
Marguerite Le François. Em inglês, significava algo como “Margarida
Francesa”, o que fez Eve sorrir. Um nome perfeito para uma jovem inocente
e apagada, em quem ninguém repara. Nada mais do que uma pequena
margarida, viçosa e à espreita no meio da relva.
O Capitão Cameron retribuiu o sorriso.
– Pensei que lhe assentaria bem. – Ele apontou para a fila de garrafas, só
restavam seis. As mãos dele eram magras e bronzeadas pelo sol, e Eve
vislumbrou o brilho dourado de uma aliança na mão esquerda. – Outra vez.
– Bien sûr, Oncle Édouard.
Quando o final da tarde chegou, todas as garrafas tinham sido partidas.
Com mais uns dias de prática, sob a supervisão dele, ela poderia facilmente
acertar em sete garrafas com sete tiros consecutivos.
– Anda a dedicar-lhe muito tempo, o Cameron – observou, certa tarde, o
Major Allenton, quando Eve voltava para a sala de aula após um treino. Ele
não se tinha dado ao trabalho de falar com Eve desde que ela chegara, mas
naquele momento olhava para ela com suspeita. – Tenha cuidado, minha
cara.
– Não percebo que quer d-dizer com isso. – Eve sentou-se à sua
secretária, a primeira a chegar à aula prática de descodificação. – O Capitão é
um perfeito cavalheiro.
– Bem, talvez não perfeito. Houve aquela questão horrível que o levou à
prisão durante três anos.
Eve quase caiu da cadeira. Cameron, com a sua distinta voz e melodioso
sotaque escocês, a gramática impecável de colégio privado, o olhar suave e
graciosidade esguia. Prisão?
O Major enrolou as pontas do bigode encerado, claramente à espera que
ela perguntasse os detalhes. Eve endireitou as saias e ficou em silêncio.
– Fraude – disse ele, por fim, evidentemente satisfeito por estar a censurar
um subordinado. – Se tem curiosidade. A mulher dele declarou ao seguro que
o colar de pérolas lhe tinha sido roubado, o que era mentira. Foram
condenados por fraude. Um assunto muito duvidoso. Ele assumiu a culpa por
ela, mas quem sabe o que realmente aconteceu? – O Major parecia muito
satisfeito com a expressão de Eve. – Suponho que ele não lhe contou nada
sobre a pena de prisão, hã? – Piscou o olho. – Ou sobre a mulher.
– Nada disso – começou Eve, num tom frio – é da minha c-conta. E, uma
vez que foi reintegrado no exército de Sua Majestade numa posição de
confiança, não me c-c… não me compete q-questionar a autoridade dele.
– Eu não diria que é uma posição de confiança, minha cara. A guerra tem
destas coisas: precisamos de todos os homens, mesmo daqueles que têm um
passado sujo. O Cameron recebeu um perdão e foi reintegrado, mas isso não
significa que eu queira uma filha minha a passear na praia sozinha com ele.
Depois de um homem passar algum tempo atrás das grades, bem…
Eve pensou nas mãos elegantes de Cameron a carregar a Luger para lhe
dar. Não conseguia imaginar aquelas mãos a roubar o que quer que fosse.
– P-p-pretende mais alguma coisa, Major? – Ela estava ansiosa por saber
mais, claro, mas preferia morrer a fazer uma única pergunta que fosse a este
homem venenoso de bigode ridículo. O Major foi-se embora, claramente
desiludido, e, no dia seguinte, Eve observou Cameron às escondidas. Mas não
lhe fez qualquer pergunta, pois toda a gente em Folkestone tinha segredos. E,
no dia em que o curso terminou, ele enfiou a Luger no saco de viagem de
Eve, de presente, e disse:
–Amanhã de manhã, parte para França.
Capítulo 5
Charlie
Maio de 1947
Eve foi tomada de surpresa, não pelos vários horrores de Lille – e bem os
havia –, mas por um cartaz. Afixado com um prego no exterior de uma igreja,
abanava ao vento, e nele estava escrito, em francês e alemão:
– Ah, estes. – O tom de Lili era prático. – Foram afixados no final do ano
passado. Acho que, a princípio, ninguém os levou a sério. Depois, em janeiro,
uma mulher foi morta a tiro por dar abrigo a dois soldados franceses, e ficou
tudo muito claro.
Eve recordou o cartaz de recrutamento com o qual ela se demorara em
Londres, sob o olhar atento do Capitão Cameron. A fila de tommies corajosos
e determinados, o espaço em branco no meio: Ainda há lugar na fila para TI!
VAIS SER TU A PREENCHÊ-LO?
Sim, ela preenchera-o. E agora tinha diante de si um cartaz que lhe
garantia a morte, se fosse apanhada, e tudo se tornara real, muito real. Mais
real do que a garantia dada pelo Capitão Cameron, na praia ventosa de
Folkestone, de que os boches não matavam mulheres.
Eve olhou para os olhos fundos no rosto versátil e sorridente de Lili.
– Aqui estamos mesmo na b-b-boca do lobo, não é?
– Sim. – Lili deu o braço a Eve, afastando-a do cartaz. O seu aspeto era
completamente diferente do de Le Havre: nada de chapéus chocantes ou
penteados elaborados. Tinha um ar asseado e sóbrio, vestia um fato simples
em sarja, calçava luvas muito remendadas e levava um saco ao ombro. Os
seus papéis de identificação, com outro nome falso, declaravam que a sua
profissão era costureira, e o saco continha agulhas e carrinhos de linhas.
Tinha também um conjunto de mapas cosidos ao forro – mapas marcados
com pontos-alvos. Felizmente, Eve só soube disso depois de terem passado
os postos de controlo de acesso a Lille. Ela quase desmaiou quando Lili lhe
disse, com um riso abafado:
– Os boches iam adorar encontrar os mapas! Estão marcados com as
novas posições de artilharia, para serem bombardeadas.
– Estavas a f-f-fazer piadas com os sentinelas alemães enquanto eles
inspecionavam os papéis, e tinhas isso tudo no teu saco?
– Oui. – respondeu serenamente Lili, e Eve olhou para ela com um misto
de admiração e horror. Soube nesse momento que a confiança com que
prometera ao Capitão Cameron que ultrapassaria a sua agente perfeita não era
mais do que jactância, e que essa promessa estava destinada a não se cumprir,
pois nunca ninguém seria melhor do que Lili e os seus nervos de aço. Eve
pensou se a sua chefe não seria ligeiramente doida, ao mesmo tempo que
sentia uma admiração arrebatadora por ela.
O mesmo claramente se podia dizer de Violette Lameron, que as recebeu
num sombrio quarto arrendado, algures perto da Grand Place. Violette era
forte e carrancuda, com o cabelo apanhado num puxo e óculos redondos;
abraçou Lili com evidente alívio, ao mesmo tempo que ralhava com ela:
– Devias ter-me deixado ir buscar a nova rapariga. Tens passado
demasiadas vezes pelos postos de controlo; vais acabar por dar nas vistas!
– Tais-toi, preocupas-te demasiado! – Lili começou a falar inglês, tal
como tinha dito a Eve que o fariam quando estivessem sozinhas. Era muito
melhor inventar uma história para justificar o facto de falarem em inglês, se
alguém as escutasse – explicou ela –, do que perceberem que discutiam
coisas como mensagens secretas e códigos britânicos em francês. O inglês de
Lili era impecável, mas ela salpicava-o casualmente com palavrões em
francês. – Agora temos de preparar a Marguerite, antes de tu e eu partirmos
para a fronteira para enviarmos os relatórios. – Ela sorriu para Violette. – A
nossa nova amiga tem um ar de pateta esplêndido, e vai sair-se muito bem,
mas tem muito para aprender.
Em Folkestone, o treino de Eve tinha sido formal: os instrutores, as filas
de secretárias, os uniformes e as bandeiras. Este treino era muito diferente.
Tinha lugar num pequeno quarto húmido, com uma cama estreita e um
simples lavatório e uma racha que atravessava o teto de um lado ao outro,
onde tudo cheirava a mofo devido à chuva miudinha que nunca parava de cair
lá fora. Um quarto escolhido não pelo conforto, mas por ser à prova de
ouvidos curiosos, uma vez que, de um lado, o prédio estava isolado pela
parede grossa de uma capela; do outro, por um edifício de apartamentos em
ruínas; e em cima por um sótão vazio. Um quarto onde as três mulheres se
sentavam a beber canecas de uma bebida pouco apetitosa, feita de folhas de
nogueira fervidas com alcaçuz – os alemães tinham confiscado todo o café –
e falavam prosaicamente de coisas indizíveis.
– Um oficial alemão caminha pela rua na tua direção – começou Violette,
depois de a porta e a janela serem inspecionadas e fechadas. O seu aspeto
carrancudo contrastava com a descontração de Lili; a chefe recusava-se a ser
sisuda e era evidente que Violette carregava a seriedade pelas duas. – O que
deves fazes?
– Deixá-lo passar, não olhar para ele…
– Errado. Cumprimenta-o. Se não o fizeres, arriscas-te a apanhar uma
multa e a uma pena de prisão de três dias. – Violette olhou para Lili. – Mas
eles ensinam alguma coisa em Folkestone?
Eve indignou-se.
– Ensinam-nos muita coisa…
– Nós vamos conseguir prepará-la – assegurou Lili à sua tenente. – Um
alemão pede para ver os teus papéis e depois começa a apalpar-te. O que
deves fazer?
– Nada? – tentou adivinhar Eve.
– Não. Sorri, porque se não conseguires simular um pouco de solicitude,
vais levar uma bofetada na cara e, possivelmente, ser revistada. Um alemão
pergunta porque tens as mãos nos bolsos. O que deves fazer?
– T-tirá-las dos bolsos muito rapidamente…
– Não. Nunca metes as mãos nos bolsos, porque os boches vão pensar que
vais sacar de uma faca e vão espetar-te uma baioneta no corpo.
Eve esboçou um sorriso desconfortável.
– De certeza que não…
A mão de Violette estalou o rosto de Eve, produzindo um som semelhante
ao de um tiro de espingarda.
– Achas que estamos a exagerar? Foi o que aconteceu a um rapaz de 14
anos na semana passada!
Eve levou imediatamente a mão ao rosto dolorido. O olhar voltou-se para
Lili, sentada com as suas pequenas mãos à volta da caneca.
– O que foi? – reagiu Lili. – Achas que estamos aqui para sermos tuas
amigas? Estamos aqui para te treinar, margaridazinha.
Eve foi trespassada por uma onda de ira; mais do que ira, traição. Lili fora
tão calorosa e acolhedora em Le Havre; naquele momento, tudo parecia
correr mal.
– Eu já fui treinada.
Violette revirou os olhos.
– Acho que a devemos mandar de volta para casa. Ela é inútil.
Eve abriu a boca para responder, mas Lili pousou-lhe um dedo nos lábios.
– Marguerite – começou ela, e o seu tom era prático. – Tu não tens ideia
nenhuma do que se passa aqui. E o Tio Edward também não. Ele deu-te o
treino que te permitia chegar até aqui, mas a Violette e eu temos de te dar o
treino que te vai fazer ser útil aqui… e que te vai manter viva. Temos só
alguns dias para o fazer. Se não aprenderes, não serás mais do que um
empecilho.
O olhar era firme e irremissível. Ela parecia um capataz de uma fábrica a
pregar um sermão a um novo trabalhador, e Eve sentiu o rosto a arder de
vergonha. Soltou lentamente um suspiro, descerrou os dentes e conseguiu
fazer um aceno de cabeça.
– Cumprimentar todos os oficiais alemães. Não oferecer resistência
quando apalpada. Não meter as m-m-m… as mãos nos bolsos. O que mais?
Elas repetiram as instruções, vezes e vezes sem conta. Treinaram
encontros: O que fazes se…? Treinaram esconder coisas rapidamente: Se eles
te apanham antes de poderes esconder um relatório, o que fazer para os
distrair e atrasar? E ensinaram-lhe as regras para viver em Lille.
– Não acredites em nada do que os jornais ou os boletins dizem. Se está
escrito, é mentira – afiançou Lili.
– Anda sempre com os teus papéis de identificação, mas esconde a
pistola. – Violette também tinha uma Luger, que manejava de forma
descontraída, mas autoritária. – Os civis não podem usar armas.
– Mantém-te longe dos oficiais alemães. Eles acham que podem ter todas
as mulheres que quiserem, com ou sem o consentimento delas…
–… e, se isso acontecer, há muita gente em Lille que te vai desprezar por
achar que és colaboradora e que te deitaste com eles para obter favores.
– Vais viver aqui, neste quarto. Temo-lo usado como esconderijo para
dormir, mas agora que vais morar aqui, tens de afixar uma notificação com o
teu nome e idade no lado de fora da porta, no caso de haver uma chamada…
– Não são permitidos ajuntamentos de mais de dez pessoas…
– Como é que alguém consegue v-viver assim? – Eve perguntou no
segundo dia, quando, por fim, ganhou alguma aprovação para se aventurar a
fazer uma pergunta ou outra.
– A vida aqui é uma merda – reconheceu Lili. – E é provável que
continue a ser uma merda até conseguirmos expulsar os alemães.
– Quando é que começo a passar informações? S-s-se eu souber de
alguma coisa.
– Nós voltaremos regularmente, a Violette e eu. – Lili sorriu para a sua
tenente. – Vamos continuar a dormir aqui contigo, sempre que precisarmos
de passar a noite em Lille. Mas como estamos sempre a viajar, a visitar os
nossos informadores, é provável que passes muito tempo sozinha.
Violette olhou para Eve com completa falta de entusiasmo.
– Espero que estejas à altura.
– Salope! – Lili deu um esticão no puxo teso de Violette. – Não sejas tão
cabra!
Eve rapidamente se apercebeu que Lille, governada pelos alemães, era um
lugar horrível. Antes da guerra, devia ter sido uma cidade bonita, luminosa,
cheia de vida – os pináculos das torres das igrejas erguidas para o céu, as
pombas a esvoaçar na Grand Place, os candeeiros das ruas a emanar uma luz
calorosa no escuro da noite. Agora, a cidade estava apagada e infeliz, e os
rostos caídos e chupados da fome. Não estavam longe das trincheiras, dos
soldados e da verdadeira ação da guerra – o troar das armas ao longe
ribombava como o som de uma trovoada suave e, de vez em quando, um
biplano sobrevoava a cidade, zumbindo como uma vespa venenosa. Os
boches tinham tomado Lille no outono anterior e estavam para ficar: as
avenidas tinham placas novas com nomes em alemão, as botas alemãs batiam
nas calçadas das ruas com confiança e a língua alemã era falada alto e bom
som em todos os locais públicos. Os únicos rostos saudáveis eram os dos
alemães, e só isso foi suficiente para rapidamente transformar a antipatia algo
impessoal que Eve sentia pelo Inimigo num ódio inflamado e total.
– Não deixes que o teu olhar brilhe com emoção – avisou Lili, ajudando
Eve a vestir-se para a entrevista. Uma saia e uma camisa simples e limpas,
mas havia mais a fazer do que escolher roupas. Lili empalidecia a pele de Eve
com umas aplicações estratégicas de giz e fuligem, tentando atenuar a cor
saudável das suas faces.
– Tens de parecer abatida e estourada, margaridazinha. É isso que os
alemães querem ver. Um brilho nos olhos vai fazer com que reparem em ti.
– Abatida – repetiu sombriamente Eve. – Oui.
Violette examinou-a de alto a baixo, dardejando-a com os óculos
redondos.
– O cabelo dela está brilhante.
Embaçaram-no com um pouco de terra. Eve ergueu-se, calçando luvas
remendadas.
– Sou uma jovem provinciana recém-chegada de Roubaix – recitou ela. –
Desesperada por encontrar um trabalho, com pouca educação. Limpa, capaz,
um pouco b-b-burra.
– Tens ar de burra – observou Violette, num tom de indiferença; Eve
lançou-lhe um olhar furioso. Não simpatizava com Violette, mas não havia
dúvidas de que ela era excelente no que fazia. Evelyn Gardiner desaparecera;
o espelho sujo daquele pequeno quarto refletia Marguerite Le François, uma
rapariga de aspeto esfomeado e pele baça.
Eve olhou para Marguerite e sentiu-se nervosa, como uma atriz que se
prepara para subir ao palco.
– E s-s-s… E se eu falhar? E se o dono do Le Lethe não me contratar?
– Nesse caso, voltas para casa. – Lili não estava a ser indelicada, apenas
direta. – Porque não te podemos usar em mais nenhum sítio, margaridazinha.
Por isso, vai, mente o mais que possas, tenta ser contratada e tenta não ser
morta.
René Bordelon podia ser uma besta, mas a verdade é que tinha uma
caverna muito elegante. Esse foi o primeiro pensamento de Eve enquanto
esperava no Le Lethe.
Seis raparigas, incluindo Eve, sentadas na sala de jantar, com mesas
atoalhadas e paredes forradas a madeira escura, aguardavam o momento de
serem entrevistadas. Havia outras duas, mas essas foram dispensadas quando
o maître d’ lhes perguntara se falavam alemão e elas admitiram que sim.
“Nenhuma pessoa que trabalhe aqui pode ser fluente na língua dos nossos
clientes habituais, que exigem privacidade total para poderem conversar
livremente.” Eve pensou que seria difícil para os habitantes de Lille evitar
aprender alemão, se a ocupação pelos inimigos se prolongasse por muito
tempo; mas, em vez de exprimir essa observação, declarou com firmeza a sua
mentira: não, ela não compreendia uma só palavra de alemão, para além de
nein e ja, pelo que lhe foi mostrada uma cadeira para que esperasse.
O Le Lethe era um oásis de elegância na monótona e oprimida Lille: os
candelabros de cristal, que emanavam uma luz suave, a carpete cor de vinho
escura e felpuda, que absorvia o som dos sapatos, e as toalhas em cima das
mesas, perfeitamente espaçadas para proporcionar privacidade – tudo era
perfeito. A janela para a rua era saliente e com caixilhos dourados, e tinha
vista para o rio Deûle. Eve compreendia por que motivo os alemães jantavam
ali. Era um lugar civilizado, onde podiam relaxar depois de um longo dia a
espezinhar a populaça subjugada.
Naquele momento, o ambiente, no entanto, não era civilizado. Era tenso e
cru, por entre olhares cruzados das seis jovens, seguramente a pensarem
quem seriam as duas escolhidas e as quatro que iriam para casa. Trabalhar ali
ou não significava a diferença entre comer e não comer – Eve estava em Lille
havia apenas alguns dias, mas já se apercebera de que ali se vivia no fio da
navalha. Mais dois meses e o seu rosto ficaria exatamente como o de Lili.
Ótimo, pensou. A fome vai manter-te alerta.
Uma por uma, as raparigas foram levadas ao andar de cima. Eve
aguardou, agarrada à carteira, sentindo-se nervosa, mas não se permitindo
pensar na possibilidade de não ser contratada. Ela ia ser contratada, e ponto
final. Não seria mandada para casa como um falhanço, mesmo antes de ter a
oportunidade de se provar como um sucesso.
– Mademoiselle Le François, Monsieur Bordelon vai recebê-la.
Foi conduzida ao andar de cima por umas escadas alcatifadas,
caminhando até a uma porta robusta de carvalho polido. Aparentemente,
René Bordelon vivia num apartamento espaçoso por cima do restaurante. A
porta abriu-se, revelando um escritório privado. Era obsceno.
Essa foi a palavra que Eve encontrou para descrever o que via. Obsceno,
mas também belo, com um relógio dourado sobre uma lareira em marfim, um
tapete Aubusson e cadeirões em couro castanho-avermelhado. Estantes em
pau-cetim repletas de livros com capas de couro, peças decorativas em vidro
Tiffany e o pequeno busto em mármore de um homem a fazer uma vénia. A
sala, com as paredes forradas a seda verde jade, transpirava dinheiro e bom
gosto, luxo e pomposidade. Com o aterrador mundo subjugado de Lille
visível através das cortinas imaculadas de musselina, aquela opulência era
obscena.
Eve detestou aquele escritório e o seu dono ainda antes de ser dita
qualquer palavra.
– Mademoiselle Le François – disse René Bordelon. – Sente-se, por favor.
Indicou-lhe um dos cadeirões fundos e sentou-se no outro com delicada
elegância. Vestia calças de dobra vincada, camisa branca como a neve e um
colete de corte impecável, feito com precisão parisiense. Teria talvez 40 anos,
era alto e esguio, de cabelo grisalho nas têmporas e penteado para trás,
revelando um rosto magro e impenetrável. Se o Capitão Cameron era, para
Eve, o exemplo perfeito do cavalheiro inglês, René Bordelon era seguramente
o exemplo acabado de um cavalheiro francês.
E, contudo, todas as noites, no restaurante lá em baixo, fazia o papel de
anfitrião atencioso dos alemães.
– Parece-me muito jovem. – Mounsieur Bordelon inspecionou-a enquanto
ela se acomodava na borda do cadeirão. – A menina é de Roubaix?
– Sim, monsieur. – Violette, que crescera nessa pequena vila, tinha
transmitido a Eve todos os detalhes pertinentes, caso fossem necessários.
– Porque não ficou lá? Lille é um lugar muito vasto para uma órfã de… –
Olhou para os papéis de identificação dela. – 17 anos.
– Não há trabalho. Pensei que aqui em L-L-Lille podia arranjar um
trabalho. – Eve juntou os joelhos e agarrou ainda mais a carteira, aparentando
estar assoberbada e perdida no meio de todo aquele luxo. Marguerite Le
François nunca teria visto um relógio dourado ou uma coleção de livros com
capas de couro escritos por Rousseau e Diderot, por isso olhava em redor de
boca aberta e olhos arregalados.
– Pode pensar que trabalhar num restaurante é tarefa simples. Pôr a mesa,
recolher pratos. Mas não é. – A sua voz não entoava para cima e para baixo,
como as vozes normais. Era feita de metal, ligeiramente arrepiante. – Exijo
perfeição, mademoiselle. Na comida que sai da cozinha, nos empregados que
a levam às mesas, no ambiente no qual ela é consumida. Aqui, eu sou criador
de civilização, de paz em tempo de guerra. Um lugar para esquecer,
temporariamente, que a guerra existe. Daí o nome, Le Lethe.
Eve abriu os olhos o mais possível, mostrando perplexidade.
– Monsieur, não sei que o isso quer d-d-dizer.
Ela esperava um sorriso, um olhar condescendente, até mesmo irritação,
mas ele limitou-se a estudá-la.
– Eu já t-trabalhei num café, monsieur – apressou-se Eve a dizer, como se
estivesse nervosa. – Eu sou c-capaz e r-r-rápida. Ap-prendo depressa. Sou
esforçada. Só quero t-t-t-t-t-t…
Ela tropeçou intensamente na palavra. Nas duas semanas anteriores, quase
não tinha reparado na sua própria gaguez – talvez porque falara sobretudo
com o Capitão Cameron e com Lili, que tinham o dom de também não
reparar nela –, mas, agora, a sílaba estava encravada atrás dos seus dentes,
recusando-se a sair, e René Bordelon observava o esforço dela com a maior
calma. Tal como o Capitão Cameron, não se apressou a terminar a frase por
ela. Mas, ao contrário do Capitão Cameron, Eve não pensou que fosse por
cortesia.
Eve Gardiner teria fechado o punho e batido com ele na coxa, furiosa e
teimosa, até a palavra se soltar. Marguerite Le François limitou-se a gaguejar
até se calar, vermelha de vergonha, pronta a desaparecer por entre a carpete
sumptuosa.
– A menina gagueja – observou Mounsieur Bordelon. – Mas duvido que
seja estúpida, mademoiselle. Uma língua trôpega não significa
necessariamente um cérebro trôpego.
A vida de Eve seria consideravelmente mais fácil se toda a gente pensasse
assim, mas não naquele momento, por amor de Deus. Seria muito melhor se
ele pensasse que sou uma imbecil, disse para si, e pela primeira vez os nervos
afloraram-lhe à pele. Ele tinha de pensar que ela era estúpida. E não apenas
devido à gaguez – Eve estava a desenhar uma Marguerite em pinceladas
precisas desde que entrara pela porta do escritório. Se ele não engolia a
camuflagem fácil que a gaguez lhe dava, ela ia precisar de uma máscara
diferente. Baixou o olhar, fingindo sentir-se totalmente confusa.
– Monsieur?
– Olhe para mim.
Ela engoliu em seco e ergueu o olhar. Os olhos dele não tinham uma cor
definida e pareciam não precisar sequer de pestanejar.
– Pensa que sou um colaborador? Um especulador?
Sim.
– Estamos em guerra, monsieur – respondeu Eve. – Cada um faz o que
tem de fazer.
– Pois é. E a menina, também vai fazer o que tem de fazer e servir os
alemães? Aqueles que nos invadiram? Que nos conquistaram?
Ele lançara-lhe um engodo, e Eve gelou. Não tinha dúvidas de que, se ele
visse brilho no olhar dela – como Lili tinha dito –, a possibilidade de ela
conseguir o trabalho estaria perdida. Monsieur Bordelon nunca contrataria
uma rapariga que pensasse ser capaz de cuspir no boeuf bourguignon dos
alemães. Mas qual era a resposta certa?
– Não me minta – avisou ele. – Sou muito bom a farejar mentiras,
mademoiselle. Vai ser difícil servir os meus clientes alemães? Servi-los com
um sorriso?
Não seria uma mentira demasiado absurda sequer para tentar. Sim era
uma honestidade a que ela não se podia dar ao luxo.
– É d-d-difícil estar sem comer – respondeu por fim, exagerando um
pouco a gaguez. – Não tenho t-tempo para outras dificuldades, monsieur. Só
essa. Porque se o senhor não me contratar, não vou encontrar outro t-trabalho.
Ninguém quer contratar uma rapariga g-g-g-gaga. – Isto era a verdade. Eve
pensou no tempo que passara em Londres e em como tinha sido difícil
encontrar aquele trabalho tonto como secretária, uma vez que trabalhos que
não requeriam falar com clientes eram raros. Recordou a frustração que
sentiu ao procurar trabalho nessa altura, e deixou que Monsieur Bordelon
visse essa amargura no seu rosto. – Não posso atender o telefone ou ajudar
clientes numa loja, não com esta língua t-t-trôpega. Mas sou capaz de
levantar pratos e pôr a mesa em silêncio, monsieur, e posso fazê-lo de modo
perfeito.
Ela voltou a arregalar inocentemente os olhos: uma jovem desesperada,
esfomeada, humilhada. Ele juntou as mãos nas pontas dos dedos –
extraordinariamente longos, sem aliança – e olhou para ela.
– Que descuidado estou a ser – acabou por dizer. – Se tem fome, eu dou-
lhe de comer.
Disse isto de modo despreocupado, como se estivesse a falar de oferecer
um prato de leite a um gato vadio. Não teria, certamente, oferecido comida às
outras raparigas? Não é bom que ele me trate de maneira diferente, pensou
Eve, mas ele já tocara uma campainha e falava com um empregado que tinha
vindo do restaurante. Segredaram algumas palavras e o empregado partiu,
para logo de seguida voltar com um prato. Uma torrada muito quente; Eve
reparou que era pão branco do bom, do tipo que era quase impossível arranjar
em Lille, com manteiga – manteiga verdadeira – barrada de forma generosa e
extravagante. Eve não estava tão faminta que pudesse ficar hipnotizada com a
visão de uma torrada, mas Marguerite sim, estava, e Eve deixou que a mão
tremelicasse quando pegou num pedaço de torrada e o levou à boca. Ele ficou
sentado, a ver se ela devorava a torrada, mas ela deu uma pequena dentada.
Marguerite não podia ser tão parola como Eve a planeara; era evidente que
René Bordelon queria alguém mais civilizado para empregada. Eve mastigou
a torrada, engoliu, deu outra dentada. A compota de morango era feita com
açúcar verdadeiro, e ela pensou na beterraba cozida que Lili usava como
adoçante.
– Há vantagens em trabalhar para mim – revelou, por fim, Monsieur
Bordelon. – Os restos da cozinha são todas as noites divididos pelos
empregados. As pessoas que trabalham para mim estão isentas do recolher
obrigatório. Nunca tive mulheres a trabalhar no meu estabelecimento, mas,
como é inevitável, asseguro-lhe que não se espera que… entretenha a
clientela. Esse tipo de coisas estraga a reputação de um restaurante. – O seu
tom revelava repugnância. – Sou um homem civilizado, Mademoiselle Le
François, e é esperado que os oficiais que comem na minha casa se portem
como homens civilizados.
– Sim – murmurou Eve.
– Contudo – acrescentou ele, de modo desinteressado –, se me roubar,
seja comida, prata ou até uma pinga de vinho, eu entrego-a aos alemães. E
depois verá que eles nem sempre são civilizados.
– Compreendo, monsieur.
– Muito bem. Começa amanhã, logo às 8h00. Vai ser treinada pelo meu
braço-direito.
Ele não falou na questão do pagamento. Sabia que ela aceitaria qualquer
valor que lhe oferecesse; qualquer uma delas aceitaria. Eve engoliu o último
pedaço de torrada, de modo elegante, mas apressado – ninguém naquela
cidade deixaria torrada com manteiga por comer num prato –, e, fazendo uma
reverência, saiu rapidamente do escritório.
– Então? – Violette ergueu os olhos da minúscula mensagem que estava a
escrever em papel de arroz, quando Eve entrou abruptamente no quarto
bafiento.
Eve quase gritou de alegria e triunfo, mas, como não queria parecer uma
rapariguinha pateta, fez apenas um aceno de cabeça casual.
– Fui contratada. Onde está a Lili?
– Foi buscar um relatório de um contacto dela nos caminhos de ferro. E
depois vai até à fronteira. – Violette abanou a cabeça. – Não sei como não é
apanhada. Aqueles holofotes nas fronteiras são capazes de revelar uma pulga
aninhada num chão a arder, mas ela safa-se sempre.
Até ao dia em que não se safará, Eve não pode deixar de pensar,
enquanto desapertava as botas. Mas não valia a pena pensar nas várias formas
de serem apanhadas. Faz como a Lili disse: sente medo, mas só depois. Antes
disso, é um luxo.
E, de facto, naquele momento, em que René Bordelon, com as suas
elegantes mãos bem cuidadas e os olhos que não pestanejavam, já não a
podia ver, Eve sentiu medo; sentiu o medo deslizar na sua pele como uma
brisa venenosa. Soltou um longo suspiro.
– Já te estão a dar os tremeliques? – Violette ergueu as sobrancelhas, a luz
refletida nos seus óculos redondos. Óculos assim devem ser úteis, pensou
Eve; ela só precisava de inclinar a cabeça contra a luz e os olhos ficavam
encobertos. – Espera até passares um posto de controlo mais complicado ou
até teres de convencer um sentinela a deixar-te passar.
– René Bordelon. – Eve deitou-se de costas no colchão duro de palha,
cruzando os braços debaixo da cabeça. – O que sabes sobre ele?
– É um colaborador nojento. – Violette voltou a debruçar-se sobre o
papel. – Que mais há para saber?
Não me minta, sussurrou a voz metálica dele. Sou muito bom a farejar
mentiras, mademoiselle.
– Acho – começou lentamente Eve, o medo a arranhá-la ligeiramente –
que vai ser muito difícil espiar debaixo do nariz dele.
Capítulo 9
Charlie
Maio de 1947
– Não – recusou Eve. – Odeio Lille e nós não vamos ficar nessa maldita
cidade nem uma noite.
– Não temos alternativa – disse suavemente Finn, tirando a cabeça das
entranhas do Lagonda e endireitando-se. – Quando conseguir pô-lo a
ronronar outra vez, vai ser hora de pararmos.
– Mas não nesta maldita cidade. Podemos continuar para Roubaix mesmo
no escuro.
Eu tinha tido mais do que a minha dose de Eve nas últimas 24 horas.
– Paramos em Lille.
Ela olhou para mim, furiosa.
– Porquê, isso que tens dentro da barriga está outra vez a dar-te
problemas?
Retribuí o olhar furioso.
– Não, porque sou eu quem vai pagar o hotel.
Eve chamou-me um nome ainda mais inenarrável do que as obscenidades
habituais, e começou a andar de um lado para o outro na berma da estrada.
Que dia, pensei, enquanto Finn continuava a remexer no interior do Lagonda.
A noite anterior fora passada quase em branco num quarto de hotel barato em
Rouen, recheada de sonhos difusos e infelizes, com Rose a desaparecer em
corredores intermináveis e a mãe dela a cochichar “galdéria…” A viagem de
carro da manhã fora longa e desconfortável, com a Eve a soltar comentários
cáusticos sempre que eu tinha de vomitar e o Finn sem fazer qualquer
comentário, o que, de certo modo, era ainda pior.
Galdéria, sussurrara a minha tia nos meus pesadelos, e eu estremeci ao
pensar nisso. Eu gostara tanto do início daquela viagem, quando saboreava o
facto de ninguém naquele carro saber o que eu era ou o tipo de nuvem que
me acompanhava. Bom, esse começar do zero fora uma ilusão; Charlie St.
Clair era uma galdéria, e agora todos sabiam, graças àquela velha desbocada.
Ao chegarmos aos arredores de Lille, o Lagonda começou a deitar fumo
sob o capô reluzente e Finn estacionou para tirar a caixa de ferramentas da
mala.
– Consegue pô-lo a trabalhar outra vez? – perguntei, quando ele anunciou
que tinha de olear as válvulas ou pôr água no motor; tanto quanto eu
percebia, ele podia até dizer que precisava de pôr girafas bebé na alavanca de
velocidades. – Pelo menos, para nos levar até Lille?
Ele limpava as mãos a um trapo sujo, enquanto Eve rondava o carro, a
praguejar.
– Se formos devagar.
Fiz um aceno de cabeça sem o fitar nos olhos. Quase não olhara para ele,
desde que o meu Pequeno Problema fora revelado. Com Eve, eu era capaz de
encarar a situação – quando ela era malcriada comigo, eu erguia a minha
concha de cínica e respondia-lhe de forma ainda mais rude. Mas Finn não
falava e eu não o conseguia vencer naquele jogo de “vamos ver quem diz
menos palavras”. Não podia fazer mais do que fingir que não me importava.
Voltámos a entrar no Lagonda e partimos para Lille a passo de caracol. A
cidade parecia suficientemente agradável, com as casas geminadas, feitas de
tijolo flamengo e pedra francesa, sinal da proximidade com a Bélgica, e o
vasto espaço gracioso que era a Grand Place. A cidade fora alvo de um cerco
durante a guerra, mas não tinha sido bombardeada. Havia mais alegria ali do
que a que eu vira em Le Havre; mais energia nas pessoas que eu via na rua,
atarefadas com as compras ou com os pequenos cães terriers. Apesar disso,
quanto mais entrávamos na cidade, mais carrancuda Eve se tornava.
– “Qualquer civil” – começou ela, claramente a citar alguma coisa –,
“incluindo funcionários públicos do Governo francês, apanhado a ajudar
tropas inimigas da Alemanha, ou que atue de forma a prejudicar a Alemanha
e os seus aliados, será punido com a morte.”
Abanei a cabeça.
– Nazis…
– Não foram os nazis. – Eve olhou pela janela, o rosto endurecido como
pedra. O Lagonda passou por um café com um toldo às riscas e mesas no
passeio, com vista para o Deûle, e eu olhei para ele de modo nostálgico,
recordando o café provençal onde Rose e eu passámos aquela tarde
encantada. Perguntei a mim mesma se qualquer outro lugar no mundo alguma
vez me teria feito sentir tão feliz. Uma das empregadas do café, com mais ou
menos a minha idade, levava baguetes e um jarro de vinho, e eu senti inveja
dela. Não tinha um Pequeno Problema, só sardas no nariz, um avental ao
xadrez branco e vermelho e o cheiro a pão acabado de cozer.
A voz de Eve, intensa e fria, interrompeu os meus pensamentos.
– Eles deviam ter queimado o prédio todo, até não haver mais nada e
deitado sal na terra, depois de ele ter desaparecido. Deviam ter vertido as
águas do verdadeiro rio Letes sobre este lugar, para que toda a gente se
esquecesse. – Eve olhava fixamente para o mesmo café encantador, com a
sua distintiva janela saliente de caixilhos dourados.
– Gardiner? – Finn olhou por cima do ombro. A voz dela era intensa, mas
o aspeto era encolhido e frágil, com os dedos entrelaçados, para evitar que
tremessem. Troquei olhares perplexos com Finn, demasiado estupefacta para
me lembrar que andava a evitar o olhar dele.
– Temos de arranjar um hotel – sussurrou. – Já.
Ele parou no primeiro auberge que vimos e pediu três quartos. O
empregado fez mal as contas aos preços e, quando eu mencionei o erro, ele
subitamente deixou de perceber o meu sotaque francês americanizado. Então,
Eve debruçou-se sobre o balcão e disparatou num francês fluente do norte, o
que me apanhou completamente de surpresa e fez com que o empregado
ajustasse rapidamente os números.
– Não sabia que falava francês tão bem – comentei. Eve encolheu os
ombros e espalmou as chaves dos quartos em cada uma das nossas mãos.
– Melhor do que tu, ianque. Boa noite.
Olhei lá para fora, na direção do céu. O sol tinha-se posto e nenhum de
nós tinha comido.
– Não quer jantar?
– O jantar hoje vai ser líquido. – Eve deu uma palmadinha na sacola.
Ouviu-se o tilintar de um frasco lá dentro. – Vou embebedar-me até às
orelhas, mas, se esperares que eu acorde até me passar a ressaca, eu acabo
contigo. Temos de acordar bem cedo e estar prontos para partir de
madrugada, porque quero sair deste buraco maldito, e vou a pé, se for
preciso.
Desapareceu para o quarto e eu também me retirei rapidamente para o
meu. Não tinha vontade nenhuma de ficar sozinha no corredor com Finn.
O meu jantar foi uma sanduíche barata, comida em cima da minha cama
estreita. Lavei a blusa e a roupa interior no pequeno lavatório, pensando que,
em breve, necessitaria de mais roupas, e finalmente ganhei coragem para
descer à receção e usar o telefone do hotel. Não tinha intenção de dizer à
minha mãe para onde ia, no caso de ela aparecer com a polícia atrás – eu
ainda era menor –, mas não queria que ela se preocupasse a pensar que eu
estava em perigo. Contudo, o rececionista no Hotel Dolphin disse-me que ela
já não estava ali hospedada. Mesmo assim, deixei-lhe uma mensagem e
desliguei, algo inquieta. Voltei para o quarto, a sentir-me subitamente
exausta. Não tinha feito nada senão estar sentada no carro o dia inteiro, mas
sentia-me mais cansada do que alguma vez tinha estado. Estas estranhas
ondas de cansaço assolavam-me havia semanas – era seguramente outro sinal
do Pequeno Problema.
Afastei todos os pensamentos que estivessem relacionados com o P.P. e
fui para o quarto. No dia seguinte, Roubaix. Parte de mim não queria ir – Eve
continuava a insistir que havia alguém com quem ela tinha de falar, uma
mulher que talvez soubesse de alguma coisa, mas graças à minha tia eu já
sabia algo. Sabia que Rose fora mandada para uma pequena cidade mais a
sul, para ter o bebé, e sabia que ela partira depois para procurar trabalho não
longe dali, em Limoges. Limoges era para onde eu queria ir, não Roubaix e o
contacto duvidoso que Eve pensava ter.
Sentei-me na beira da cama e deixei-a crescer em mim: a esperança.
Ainda que aquela hora passada com a Tante Jeanne tenha sido horrível, dera-
me esperança. Porque por muito que eu me esforçasse para me convencer de
que havia uma possibilidade de Rose estar viva, parte de mim continuava a
pensar que os meus pais estavam certos, e que ela tinha morrido. É que a
rapariga que eu amava como se fosse minha irmã – a rapariga que tinha medo
da solidão – já teria, com certeza, encontrado um modo de voltar para nós.
Por outro lado, se toda a família a havia rejeitado, mandando-a para longe
para dar à luz o bastardo, e se, depois, todos tinham lavado daí as mãos…
Bem, eu conhecia Rose. Ela era orgulhosa e cheia de paixão. Jamais voltaria
à casa de Rouen depois se ter sido expulsa pelos pais daquela maneira.
Eu até percebia que ela não me tivesse escrito a contar do seu dilema.
Porque haveria de o fazer? Eu não passava de uma menina da última vez que
nos vimos, alguém a proteger, não a quem fazer confidências de assuntos
desagradáveis. Eu própria não sabia se lhe conseguiria contar do meu
Pequeno Problema, mesmo que tivesse um endereço para a contactar.
Pessoalmente, ter-lhe-ia contado tudo e chorado no ombro dela, mas transpor
estas coisas para papel implicava desembrulhar a minha própria desgraça e
expô-la preto no branco.
Se estivesse viva, podia estar a morar em Limoges. Talvez com a sua
criança. Um menino ou uma menina?, pensei, e ouvi-me a rir com receio.
Rose com um bebé. Olhei para a minha barriga, lisa e inócua, que
alternadamente me fazia sentir cansada ou enjoada, e os meus olhos
encheram-se de lágrimas.
– Oh, Rosie – sussurrei. – Como foi que nos metemos nestas terríveis
alhadas?
Bem, eu tinha-me metido numa alhada. Rose apaixonara-se por um
empregado de uma livraria francesa que se juntara à Resistência. Parecia
mesmo o género de rapaz de quem Rose poderia gostar. Perguntei-me se o
seu Étienne teria sido moreno ou louro, se o bebé deles teria herdado o cabelo
do pai. Perguntei-me para onde teria ele sido enviado depois de preso e se
estaria vivo ou não. Provavelmente, não. Tantas pessoas tinham desaparecido
e morrido, só agora se começava a perceber a extensão de todas as mortes. O
namorado da Rose estaria provavelmente morto. E, nesse caso, se ela
estivesse viva, estaria sozinha. Abandonada, tal como no café da Provença.
Mas não por muito tempo, Rose. Vou encontrar-te, prometo. Não tinha
sido possível salvar o meu irmão, mas ainda podia salvar Rose.
– E então, talvez eu saiba o que fazer contigo – disse à minha barriga. Eu
não queria aquele bebé, não fazia ideia do que fazer com ele. Mas os enjoos
dos últimos dias tinham deixado claro que ignorar já não era uma opção.
A noite lá fora estava negra, suave e quente. Meti-me na cama; as
pálpebras pesavam-me. Não me apercebera sequer de que tinha adormecido,
quando ouvi um grito a romper a noite.
Um grito que me fez levantar da cama. Vi-me de pé, o coração a galopar e
a boca seca, enquanto aquele uivo terrível continuava. Era o grito de uma
mulher, repleto de terror e agonia, e eu saí disparada do quarto.
Finn apareceu no corredor no mesmo instante, descalço e de braços nus.
– O que é aquilo? – perguntei, a arfar, ao mesmo tempo que as portas dos
outros quartos ao longo do corredor também começavam a abrir.
Finn não respondeu e dirigiu-se diretamente à porta que separava os
nossos quartos, debaixo da qual emergia uma linha de luz. Era daí que o grito
vinha.
– Gardiner! – Ele abanou o puxador. O grito parou, como se uma faca
tivesse cortado uma garganta tensa. Ouvi o clique inconfundível do cão de
uma Luger.
– Gardiner, vou entrar.
Finn encostou o ombro à porta e deu-lhe um encontrão com força. A
fechadura de má qualidade libertou-se da parede com um guinchar de pregos
e a luz invadiu o corredor. Eve estava de pé, imponente na sua altura, o
cabelo grisalho solto e despenteado, os olhos pareciam duas covas fundas
assombradas – e, assim que viu Finn na ombreira da porta e eu atrás dele,
ergueu a Luger e disparou.
Eu gritei e atirei-me ao chão, encolhendo-me numa bola – mas o cão da
Luger bateu numa câmara vazia do tambor. Finn arrancou a Luger da mão de
Eve e ela, enraivecida, proferiu uma obscenidade e atirou-se a ele, espetando-
lhe os dedos nos olhos. Ele atirou a pistola para cima da cama e agarrou-lhe
os pulsos magros com as duas mãos. Ao olhar para mim, vi com espanto que
ele estava bastante calmo.
– Procure o rececionista do turno da noite e diga-lhe que está tudo bem,
antes que alguém chame a polícia – disse, enquanto segurava Eve com força.
Ela continuava a praguejar em francês e em alemão. – Só nos faltava agora
ter de procurar outro hotel a meio da noite.
– Mas… – Eu não conseguia tirar os olhos da pistola em cima da cama.
Ela tinha disparado contra nós. Os meus braços, reparei então, estavam
agarrados ao Pequeno Problema.
– Diga-lhe que ela teve um pesadelo. – Finn olhou para Eve. Ela parara de
praguejar e respirava aos soluços bruscos e rápidos. Os olhos dela fitavam a
parede, mas ela não parecia ver nada. Onde quer que ela estivesse, não era ali.
Ouvi alguém rabujar estridentemente em francês atrás de mim e, virando-
me, vi a dona do auberge, ensonada.
– Pardonnez-moi – disse eu, fechando rapidamente a porta entre ela e
aquele cenário estranho. – Ma grandmère, elle a des cauchemars…
Adocei o meu francês americanizado o mais que pude até a indignação
dela acalmar, ajudada por um punhado de francs. Por fim, a senhora lá se
arrastou para o quarto e eu tomei coragem para espreitar novamente pela
porta do quarto.
Finn conseguira sossegar Eve, não na cama dela, mas no canto mais
afastado – aquele que tinha a vista mais clara para a porta e a janela. Ele
desviara uma cadeira para o lado, de forma que ela se aninhasse contra a
parede, e colocara um cobertor sobre os ombros de Eve. Estava acocorado ao
seu lado, a falar-lhe docemente e colocando-lhe um frasco de whisky no colo
com um movimento suave.
Ela resmoneou algo, um nome. Pareceu-me ouvir René e a minha pele
arrepiou-se.
– O René não está aqui – disse Finn no seu sotaque escocês,
tranquilizando-a.
– A besta sou eu – murmurou ela.
– Eu sei. – Finn deu-lhe a Luger para a mão, com o cabo virado para ela.
– Está maluco? – sussurrei-lhe, mas ele fez um gesto para trás, como que
a calar-me.
Eve não olhou para cima. Estava em silêncio, mas o seu olhar permanecia
desvairado, movendo-se agitadamente entre a janela e a porta. Os seus dedos
deformados voltaram a agarrar a pistola, e Finn largou a arma.
Ele ergueu-se e, descalço, caminhou calmamente até mim. Recuei para o
corredor e ele seguiu-me, fechando lentamente a porta atrás dele e suspirando
fundo.
– Porque lhe voltou a dar a pistola? – perguntei eu, num murmúrio. – Se
ela estivesse carregada, um de nós podia ter morrido!
– E quem acha que tirou as balas da pistola? – Ele olhou para mim. –
Faço-o todas as noites. Ela roga-me algumas pragas, mas tendo em conta que
quase me arrancou uma orelha com um tiro na primeira noite que trabalhei
para ela, não há margem para discussão.
– Quase lhe arrancou a orelha?
Finn olhou para a porta.
– Ela vai ficar bem até de manhã.
– Ela faz isto muitas vezes?
– De vez em quando. Qualquer coisa pode desencadear a reação: vê-se no
meio de uma multidão e entra em pânico ou ouve o barulho de andaimes a
cair e pensa que é uma explosão. Não se pode prever.
Apercebi-me de que ainda tinha os braços cruzados à volta do torso. Eu
não pensava no Pequeno Problema a não ser como, bem, como um problema
– mas assim que vi a arma da Eve, os meus braços protegeram-no
instintivamente. Ainda a tremer, baixei as mãos. Não me sentia assim tão
cheia de vida – em cada músculo tremente, em cada bocadinho arrepiado de
pele, em cada cabelo em pé – havia muito, muito tempo.
– Preciso de uma bebida.
– Eu também.
Segui Finn até ao quarto dele, o que não era de todo apropriado, uma vez
que eu estava quase nua, vestida só de combinação, que usava como camisa
de noite. Mas calei a voz desagradável dentro de mim e fechei a porta,
enquanto Finn ligava a luz de um candeeiro. Depois, revolveu o saco e
ofereceu-me um frasco, bastante mais pequeno do que o de Eve.
– Não há copos, lamento.
Nada de miss, agora, claro. Encolhi os ombros, não esperando outra coisa.
Eu sabia muito bem que tipo de equação se escrevia ali.
– Copos para quê? – Engoli um trago de whisky, apreciando o ardor. –
Pronto, vamos lá então. René. Afinal, a Eve conhece o nome. Se é o mesmo
do relatório, para quem a Rose trabalhava…
– Não sei. Mas sei que ela diz esse nome muitas vezes quando tem estas
crises.
– Porque não me disse isso antes?
– Porque trabalho para ela. – Ele bebeu um gole de whisky. – Não para si.
– Vocês saíram-me cá um par – resmunguei. – Os dois são uns novelos de
arame farpado cheios de segredos.
– E por boas razões.
Voltei a pensar no sussurro de Eve quando dissera que a morte era o
destino que aguardava os inimigos da Alemanha. Havia algo nela que me
fazia lembrar um combatente. Eu vira o meu irmão voltar da guerra e
observara as mudanças nele com preocupação e carinho; e James não fora o
único ex-soldado que eu observara. Tinha dançado e conversado com eles em
festas e adquirira o hábito de os observar, pois esperava descobrir algo que
me ajudasse a apoiar James. Falhara esse objetivo; nada do que eu fizera
ajudara James, e eu continuava a odiar-me por isso – mas sabia reconhecer os
sinais de um ex-combatente e na Eve eu via todos esses sinais.
– Ela vai estar bem, amanhã? – James nunca saía do quarto na manhã
seguinte a um episódio destes.
– Provavelmente. – Finn inclinou-se sobre o parapeito da janela aberta e
olhou para baixo, para a fila de candeeiros de luz na rua, bebendo outro gole
de whisky. – Normalmente, no dia seguinte comporta-se como se nada tivesse
acontecido.
Queria continuar a sondá-lo, mas aquela questão espinhosa de Eve e dos
seus segredos estava a dar-me uma grande dor de cabeça. Decidi abandonar o
assunto e fui até junto de Finn, à janela. Afinal, era isso que se seguia na
equação: rapariga mais rapaz, multiplicado por whisky. Depois, acrescenta-se
proximidade.
– Portanto, amanhã chegaremos a Roubaix, se o carro não avariar de
novo. – O meu ombro tocou ligeiramente o dele.
Ele deu-me o frasco para a mão.
– Eu consigo mantê-lo a funcionar.
– O Finn sabe bem como usar a caixa de ferramentas. Onde aprendeu? –
Na prisão? A curiosidade estava a matar-me.
– Desde pequeno que trabalho em garagens. Já brincava com chaves
inglesas no berço.
Tomei outro trago.
– Posso experimentar conduzir o Lagonda amanhã ou é carro de um
homem só?
– Conduz? – Ele lançou-me um olhar tão surpreendido quanto aquele que
lançara quando eu lhe disse que tinha tido um emprego. – Pensei que a sua
família teria um motorista.
– Não somos os Vanderbilts, Finn. Claro que conduzo. O meu irmão
ensinou-me. – Uma recordação simultaneamente doce e dolorosa: James
fugira a um churrasco de família, arrastando-me com ele no seu Packard,
para me dar uma aula de condução. – Creio que só o fez para escapar aos
nossos familiares barulhentos. Mas foi um bom professor. – Despenteou-me e
disse-me: “Conduz tu para casa; agora já sabes”. Depois de eu ter parado o
carro com um chiar de pneus, orgulhosa, ainda ficámos mais um pouco
dentro do carro, antes de nos juntarmos ao rebuliço familiar. Perguntei-lhe se
ele queria ser o meu acompanhante no próximo baile formal. “Não vou
arranjar ninguém até lá, James, e podemos sentar-nos a fazer pouco das
estudantes universitárias.” Ele esboçou um sorriso e disse: “Gostava muito,
mana”. Eu fiquei a pensar que, pelo menos uma vez, eu ajudara-o numa das
suas crises.
Menos de três semanas depois, ele suicidou-se.
Pisquei os olhos, afastando aquela dolorosa recordação.
– Talvez um dia eu a deixe conduzir. – Finn olhou para mim, por cima do
ombro magro; a luz refletia no seu cabelo escuro. – Vai ter de ser paciente
com ela. Não passa de uma senhora esquisita. Um pouco rabugenta. É preciso
ter pezinhos de lã com ela. Mas é uma sobrevivente.
– Não me venha com metáforas escocesas. – Dei outro gole do frasco e
devolvi-o, passando levemente os meus dedos pelos dele. – Já passa das
2h00.
Ele sorriu, voltando a atenção para as luzes noturnas do exterior. Esperei
que ele chegasse mais perto de mim. Mas ele limitou-se a engolir o whisky e
depois foi sentar-se no banco encostado à parede.
A voz manhosa dentro de mim continuava a dizer coisas desagradáveis.
Antes que se tornasse mais alta, fui acabar a equação: rapaz mais rapariga,
multiplicado por whisky e proximidade, igual a… Tirando o frasco da mão de
Finn, subi para o colo dele e beijei-o. Senti o sabor do whisky na sua boca
macia e a aspereza do rosto com a barba por fazer. Ele afastou-se.
– O que está a fazer?
– O que achas que estou a fazer? – Enrosquei os braços à volta do
pescoço dele. – Estou a oferecer-me para dormir contigo.
Ele olhou-me deliberadamente de cima a baixo. Encolhi um ombro,
descontraída, e deixei que a alça da minha combinação deslizasse pelo meu
braço. As mãos dele tocaram ao de leve os meus joelhos nus de cada lado e
depois deslizaram por cima da combinação, e não por baixo, até à minha
cintura, segurando-me com firmeza enquanto eu tentava inclinar-me para lhe
dar outro beijo.
– Bem – disse ele –, esta noite está a ser um poço de surpresas.
– Ah, sim? – Senti as mãos dele na minha cintura, grandes e muito
quentes, através da combinação fina. – Passei o dia a pensar nisto. – Desde
que o tinha visto ficar só em camisa para consertar o Lagonda. Os braços dele
eram mais fortes do que os da maioria dos rapazes da faculdade,
normalmente esgalgados ou pastosos.
A voz de Finn soava ligeiramente rouca, mas firme.
– O que faz uma boa rapariga como tu querer ir para a cama com um ex-
presidiário?
– Tu sabes que não sou boa rapariga. A Eve deixou isso bem claro. Além
disso, não te estou a pedir para me levares a um baile – acrescentei, sem
rodeios. – Não vais conhecer os meus pais. É apenas sexo.
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Mas pergunto-me o que terás feito – acrescentei com franqueza,
passando o meu dedo pela nuca dele – para teres ido parar à prisão.
– Roubei um cisne em Kew Gardens. – Ele continuava a segurar-me pela
cintura, afastando-me dele.
– Mentiroso.
– Pilhei uma tiara de diamantes das joias da coroa, na Torre de Londres.
– Continuas a mentir.
Os olhos dele pareciam negros e cavados, sob a luz fraca.
– Porque me perguntas, então?
– Gosto de te ouvir mentir. – Enrolei novamente os braços à volta do
pescoço dele, deslizando os dedos por entre o cabelo macio. – Porque é que
ainda estamos a falar? – A maioria dos rapazes não tirava as mãos de cima,
assim que as luzes se apagavam; porque não Finn? Assim que Eve deixara
claro que tipo de rapariga eu realmente era, supus que ele largaria o ar
respeitável e tentaria levar-me para a cama. Era a isso que eu estava
habituada. E, nesse caso, podia desandá-lo ou alinhar, e já decidira alinhar.
No entanto, não estava habituada a tomar a iniciativa. Podia não ser bonita,
mas estava disponível, e isso, normalmente, era o suficiente para que um
homem me despisse sem precisar da minha ajuda.
Mas Finn não se mexia, limitava-se a olhar para mim. Os seus olhos
fixaram-se na minha cintura e ele disse:
– Não tens um namorado? Um noivo?
– Vês algum anel?
– Quem é o pai, então?
– Harry S. Truman – respondi.
– E agora, quem é o mentiroso?
O ar estava espesso e quente. Mexi as ancas e senti uma reação nele. Eu
sabia o que ele queria. Porque não me aceitava?
– Porque te importas com quem me engravidou? – sussurrei, mexendo
mais as ancas. – Tu não me podes engravidar agora e isso é que importa.
Podemos ter sexo sem qualquer risco.
– Isso é feio – murmurou ele.
– Mas é verdade.
Puxou-me para ele, o rosto muito próximo do meu, e a minha pele
arrepiou-se.
– Porque é que te estás a atirar a mim desta maneira?
Galdéria. A palavra ecoou na minha cabeça, dita pela voz da minha mãe
ou talvez pela da minha tia. Estremeci, mas disfarcei com um encolher de
ombros.
– Sou uma vagabunda – disse eu, de modo frívolo. – Toda a gente sabe
que as vagabundas dormem com toda a gente. E tu até és uma brasa. Por isso,
porque não?
Ele sorriu, um sorriso a sério, não aquele movimento rápido no canto da
boca que eu estava habituada a ver.
– Charlie, miúda – disse ele, e eu tive tempo de pensar o quanto gostava
do meu nome dito com o seu sotaque escocês –, precisas de uma razão
melhor do que essa.
Ele levantou-me do colo como se fosse uma boneca e pousou-me de pé no
chão. Depois ergueu-se, dirigiu-se à porta e abriu-a. Eu senti um fluxo de
vergonha pelo pescoço abaixo.
– Boa noite, menina. Durma bem.
Capítulo 10
Eve
Junho de 1915
Eve fez a estreia como espia e como empregada do Le Lethe duas noites
depois. Dos dois trabalhos, o segundo era o mais esgotante: René Bordelon
não aceitava nada menos do que a perfeição e dois dias de treino não era
muito tempo para atingir a perfeição. Mas Eve conseguira-o. Afinal de
contas, falhar não era uma opção. Ela assimilou as regras que o seu novo
patrão lhe repetiu mais uma vez, na sua voz metálica, mesmo antes de ela e a
outra nova empregada começarem o primeiro turno.
Vestido preto, cabelo arranjado. “Nada de dar nas vistas; vocês são
sombras.” Pezinhos de lã, passinhos curtos. “Os vossos movimentos devem
ser suaves e deslizantes. Não quero que os clientes interrompam as
conversas.” Silêncio em todas as circunstâncias; nada de falar ou murmurar
com os convidados. “Não preciso que memorizem as cartas dos vinhos ou
tomem nota dos pedidos. A vossa função é levar os pratos para as mesas e
depois levantá-los.” Servir o vinho com o braço graciosamente fletido. “Tudo
no Le Lethe é gracioso, até aquilo que não se nota.”
E a última regra, a mais importante. “Se infringirem as regras, serão
despedidas. Há muitas raparigas com fome em Lille que estão ansiosas por
ocuparem o vosso lugar.”
O Le Lethe ganhava vida à noite. Era um fragmento artificial de luz, calor
e música numa cidade que escurecia por completo depois do pôr do sol.
Posicionada no canto que lhe fora designado e com o seu vestido preto, Eve
lembrou-se da lenda dos vampiros. Em Lille, os franceses iam para a cama
quando o sol se punha, porque, mesmo que não houvesse recolher
obrigatório, havia escassez de parafina e carvão para iluminar as casas. Só os
alemães saíam à noite, como os mortos-vivos, para comemorar o seu
incontestado domínio. Iam ao Le Lethe com os uniformes vistosos e
medalhas reluzentes, e falavam muito alto. René Bordelon recebia-os no seu
smoking impecavelmente feito à medida, com um sorriso natural. Tal qual
Renfield, da história de Bram Stoker, um ser humano tornado ignóbil e
cobarde ao serviço dos vampiros, pensou Eve.
Estás a fantasiar, disse a si própria. Desliga o cérebro e liga os ouvidos.
Durante as horas de servir o jantar, moveu-se como um autómato
gracioso, levantando pratos em silêncio, limpando migalhas das mesas,
enchendo copos vazios. Ninguém diria que se travava uma guerra: havia
velas por todo o lado, todas as mesas tinham pão branco e manteiga
verdadeira, todos os copos cheios até cima. Metade da comida do mercado
negro de Lille devia passar por ali, pois era óbvio que os alemães gostavam
de comer bem.
– A comida… – sussurrou a outra empregada, uma jovem viúva de ancas
largas com dois bebés em casa. – Só olhar é uma tortura!
Levando um prato de volta para a cozinha, a garganta dela mexia-se.
Havia restos de comida no prato – numa cidade onde os franceses lambiam
até as migalhas. Um pouco de molho béchamel, uns pedacinhos de vitela… O
estômago de Eve também roncava, mas lançou um olhar de advertência à
colega.
– Nem uma só trinca. – Olhou de relance para trás, para Monsieur
Bordelon, que circulava pela sala como um tubarão bem vestido. – Nem uma
só trinca até ao fim do turno, tu –s-s-sabes isso. – Ao fim da noite, todos os
restos da cozinha eram reunidos e divididos pelos empregados. Nenhum deles
sentiria pejo em fazer queixa de outro que roubasse comida antes da divisão
ser feita, porque todos tinham fome. Eve admirava cinicamente esse sistema:
Monsieur Bordelon conseguira inventar um método de recompensa que
obrigava os empregados a serem honestos, ao mesmo tempo que os
encorajava a espiarem-se uns aos outros.
Mas se os empregados eram ansiosos e pouco amistosos, os clientes eram
piores. Como era fácil detestar os alemães quando se constatava de perto o
quanto eles desperdiçavam. O Kommandant Hoffman e o General von
Heinrich foram jantar ao restaurante três vezes durante a primeira semana de
Eve, pedindo champanhe e codorniz assada para comemorar as últimas
vitórias alemãs, dando grandes gargalhadas por entre um conjunto de
acólitos. Monsieur Bordelon era sempre convidado a juntar-se a eles, para
tomar o brandy depois do jantar, sentando-se indolentemente de pernas
cruzadas e distribuindo charutos de uma caixa de prata com monograma. Eve
esforçava-se por ouvir o que eles diziam, mas não se podia demorar muito a
encher os copos de água, de forma a não correr o risco de ser óbvia. De
qualquer modo, eles não falavam de planos de batalha ou de plataformas de
canhões, mas sim das jovens que tinham tomado como amantes, comparando
as melhores características físicas e debatendo se a amante do General era
loura natural ou não.
Então, na quarta noite, o Kommandant Hoffman pediu brandy e Eve
trouxe silenciosamente o decantador.
– … bombardeado – dizia ele em alemão aos acólitos –, mas a nova
bateria de artilharia ficará posicionada dentro de quatro dias. Quanto à
localização…
O coração de Eve abrandou, alvo de um feixe de excitação tão luminoso
como um diamante. Pegou no copo de balão do Kommandant e encheu-o o
mais lentamente que ousava, deixando o líquido acumular-se, enquanto ele
explicava a localização da artilharia. As suas mãos, reparou, não tremiam
absolutamente nada. Voltou a pousar o copo, implorando silenciosamente por
uma desculpa para se demorar. Um dos ajudantes respondeu à sua prece,
estalando os dedos a pedir mais brandy, ao mesmo tempo que fazia uma
pergunta sobre as capacidades das novas armas. Eve virou-se para pegar no
copo dele e viu que Monsieur Bordelon olhava para ela da mesa ao lado,
onde cumprimentava efusivamente um capitão alemão e um par de tenentes.
A mão dela agarrou o copo com mais força e ela perguntou-se, subitamente
em pânico, se a sua expressão teria dado a entender que ela compreendera as
palavras do Kommandant. Se ele suspeitasse que Marguerite Le François
falava alemão…
Não suspeita, convenceu-se Eve, fazendo com que a sua expressão fosse
absolutamente impávida e lembrando-se de que devia curvar graciosamente o
braço ao servir o brandy. O seu patrão acenou a cabeça em jeito de
aprovação, o Kommandant acenou a cabeça para ela se afastar e Eve deslizou
até ao seu canto, com uma expressão impenetrável e os ouvidos repletos de
informação valiosa: as novas localizações exatas da artilharia alemã nos
arredores de Lille.
Passou o resto do turno a recitar aquela informação na sua cabeça: os
números, os nomes, as capacidades, a rezar para não se esquecer de nada.
Depois, Eve correu para casa e transcreveu tudo para um pequeno pedaço de
papel de arroz na letra minúscula que aprendera em Folkestone. Enrolou o
papel à volta de um gancho de cabelo, enfiou o gancho no puxo do cabelo e
suspirou de alívio. Lili apareceu na noite seguinte, na habitual visita para
recolha de informação, e foi com alguma cerimónia – como se se tratasse da
apresentação de uma medalha – que Eve fez uma vénia de cabeça, retirou o
gancho do cabelo e ofereceu-o à líder da Rede Alice.
Lili leu a mensagem, festejando à medida que a lia, passou um braço à
volta do pescoço de Eve e deu-lhe dois beijos com satisfação.
– Mon dieu, eu sabia que te ias sair bem.
Se a carrancuda Violette estivesse ali com os óculos redondos e a sua
desaprovação austera, Eve tentaria esconder a alegria, mas, face à felicidade
de Lili, soltou as gargalhadas que reprimia desde a noite anterior.
Lili semicerrou os olhos quando viu o rolinho de papel.
– Passar isto para o meu relatório geral vai dar cabo dos meus olhos! Da
próxima vez, escreve em código rápido.
– Eu p-passei quatro horas a escrever isso – revelou Eve, desconsolada.
– Os agentes novos põem sempre seis vezes mais trabalho na primeira
mensagem do que o que devem. – Lili riu-se, dando uma palmadinha no rosto
de Eve. – Não desanimes, fizeste um bom trabalho! Vou passar a informação
ao Tio Edward, e a nova bateria deles será bombardeada antes de quinta-feira.
– Quinta-feira? Vocês conseguem b-b-b… bombardear uma posição
assim tão rápido?
– Bien sûr. Tenho a rede de informações mais célere de toda a França. –
Lili enrolou novamente a mensagem à volta do gancho de cabelo e enfiou-o
na sua enorme poupa loura. – E tu vais ser um trunfo valioso,
margaridazinha. Eu sinto-o.
O seu rosto versátil brilhou com tanta alegria que aquele quarto sem graça
ficou iluminado, como se tivesse sido atingido por um holofote da fronteira.
Eve deu por si a sorrir de orelha a orelha. Conseguira; tinha feito uso do que
aprendera no treino; realizara o seu dever. Era uma espia.
Lili pareceu intuir a onda de triunfo interior que inundou Eve, porque deu
outra gargalhada enquanto se deixava cair na única cadeira existente no
quarto.
– Dá muito, muito prazer, não dá? – disse ela, como se confessasse um
segredo picante. – Talvez não devesse ser assim. É algo muito sério, servir la
belle France contra os seus inimigos, mas também dá muito gozo. Não há
outro trabalho que proporcione tanta satisfação como espiar. As mulheres
com filhos dirão que ser mãe é a vocação que mais satisfação dá na vida, mas
merde – prosseguia Lili, com sinceridade –, elas estão demasiado
entorpecidas pela rotina infindável do dia a dia para saberem do que falam.
Prefiro o risco de uma bala do que a certeza de uma fralda suja, venha o que
vier.
– Sabes do que gostei mais? – questionou Eve. – Afastar-me daquela
mesa cheia de bestas em uniformes, deixá-los com o brandy e os charutos,
sem nenhum deles saber… – Estava tão feliz que nem gaguejara e
posteriormente, quando parou para pensar nisso, ficou surpreendida.
– Pffft para os alemães – soltou Lili, começando a desenrolar um pedaço
do tecido de uma combinação em cima da mesa. – Vem cá, vou ensinar-te o
meu método para transcrever posições em mapas. É um padrão simples de
grelha, muito mais eficiente para comunicar posições…
Aquele quarto sem graça tornou-se mais dourado do que o Le Lethe
iluminado por 100 velas. Ficaram acordadas até muito tarde, muito depois de
terem terminado a transcrição do mapa, com Lili a partilhar um pouco do
brandy que roubara e a contar histórias.
– Certa vez, consegui enganar um sentinela metediço de um posto de
controlo com um conjunto de despachos que tinha roubado, colocando-os no
fundo de uma caixa para bolos. Devias ter visto a cara do Tio Edward quando
lhe entreguei uma caixa com despachos cobertos de açúcar em pó!
– Quando entregares o relatório ao Tio Edward, elogia o meu trabalho –
pediu Eve. – Quero que ele se sinta orgulhoso de mim.
Lili inclinou a cabeça para o lado, com um olhar malandro.
– Margaridazinha, estás apaixonada?
– Um pouquinho – admitiu Eve. – Ele tem uma voz tão bonita… – E ele
percebera que ela tinha potencial para estar aqui, para fazer isto. Sim, era
difícil não se apaixonar um bocadinho pelo Capitão Cameron.
– Merde. – Lili riu-se. – Também eu poderia facilmente sentir uma
tendresse por ele. Não te preocupes, vou elogiar desavergonhadamente o teu
trabalho. Talvez o vejas em breve, sabes: ele vem a território ocupado de vez
em quando, em missões altamente secretas. Se vier, promete-me que vais
fazer o teu melhor para lhe arrancar do corpo aquele fato em tweed.
– Lili! – Eve balançou-se de riso. Não se lembrava da última vez que rira
daquela maneira. – Ele é casado!
– E isso é impedimento para ti? A mulher dele é uma cabra, nunca o
visitou na prisão.
Portanto, Lili sabia que ele passara tempo na prisão.
– Pensei que devíamos manter a nossa vida pessoal em segredo, a não ser
quando necessário…
– Toda a gente sabe da vida pessoal do Tio Edward; veio em todos os
jornais, por isso é difícil manter segredo. Ele assumiu a pena de prisão da
mulher e, pelo que sei, ela nunca o visitou. – Eve não conseguiu reprimir um
sopro de indignação, e Lili sorriu. – Acho que deves ir à conquista. Se a tua
consciência te pesa devido a uma coisinha como o adultério, confessa-te e
reza uns Pai-Nossos.
– S-Sabes, nós, protestantes, acreditamos que devemos sentir a nossa
culpa, e não apenas saldá-la com rezas.
– É por isso que os ingleses não são bons amantes: sentem-se demasiado
culpados – afirmou Lili. – A não ser em tempo de guerra, já que até a guerra
dá aos ingleses uma desculpa para se divertirem. Quando a vida pode acabar
a qualquer momento na ponta de uma baioneta alemã, não se pode permitir
que a moralidade burguesa atrapalhe uma boa traquinice com um ex-
presidiário casado e vestido de tweed.
– Não estou a ouvir isto – disse Eve, com uma risadinha, levando as mãos
aos ouvidos. O resto da noite passou a correr, por entre gargalhadas e
brilharetes. Eve ainda tinha um sorriso no rosto no dia seguinte, quando
acordou e viu que Lili já tinha saído e levado o rolinho de papel de arroz,
deixando o pedaço de combinação sarrabiscado com uma mensagem: “Volta
ao trabalho e lembra-te: não fiques vaidosa! Voltarei dentro de cinco dias.”
Cinco dias, pensou Eve, vestindo o seu vestido preto e saindo para o Le
Lethe. Vou ter mais informações para ela. Estava serenamente convencida
disso. Fizera-o uma vez e fá-lo-ia novamente.
Pensando na aprovação de Lili e no olhar sorridente do inglês vestido de
tweed, talvez estivesse mesmo a ficar vaidosa. Foi assim que entrou pela
porta lateral do Le Lethe e deu de caras com a figura indolente de René
Bordelon e o som da sua voz monocórdica a dizer:
– Diga-me, Mademoiselle Le François, vem de onde, na verdade?
Eve gelou. Não exteriormente – por fora, foi rápida a tirar o chapéu, a
cruzar as mãos enluvadas e a deixar transparecer uma expressão confusa. As
reações naturais da inocência rapidamente implementadas. Mas, por dentro,
passou de um estado de leveza efervescente a um bloco de gelo num bater do
coração.
– Monsieur? – disse ela.
René Bordelon virou costas e dirigiu-se para as escadas que davam acesso
aos aposentos privados.
– Venha daí.
De volta àquele escritório obsceno, onde as cortinas se mantinham
fechadas para afastar a crueldade da guerra e os candeeiros estavam acesos
durante o dia, com tal abundância e desperdício de parafina que era quase
como levar uma estalada no rosto. Eve parou em frente ao cadeirão de couro
onde fora aceite neste emprego havia menos de uma semana, e esperou
calmamente, como um animal numa moita de silvas à espera que o caçador
passe. O que sabe ele? O que pode ele saber?
Ele não sabe de nada, disse a si própria. Porque Marguerite Le François
não sabe nada.
Ele sentou-se, juntando as pontas dos dedos compridos enquanto a
observava, sem pestanejar. Eve manteve a sua expressão de confusa
inocência.
– Passa-se alguma c-coisa com o meu trabalho, m-m-monsieur? –
perguntou, por fim, quando ficou evidente que ele esperava que fosse ela a
quebrar o silêncio.
– Pelo contrário – respondeu ele. – O seu trabalho é excelente. Não é
preciso dizer-lhe como se fazem as coisas mais do que uma vez e a
mademoiselle tem uma certa graça natural. A outra jovem é néscia, por isso
decidi substituí-la.
Então, porque estou a ser interrogada?, pensou Eve, ao mesmo tempo
que sentia pena por Amélie, a colega de anca larga, e os seus dois filhos em
casa.
– A mademoiselle tem-me agradado em tudo, exceto numa coisa. – Ele
ainda não pestanejara. – Creio que me mentiu quanto à sua origem.
Não, pensou Eve. Ele não podia suspeitar que ela era meio inglesa. O seu
francês era perfeito.
– De onde é que disse que era?
Ele sabe.
Ele não sabe de nada.
– Roubaix – replicou Eve. – Tenho os meus p-papéis comigo. – Ela
ofereceu os cartões de identidade, grata por dar alguma coisa que fazer às
mãos e aos olhos, para além de confrontar aquele olhar penetrante.
– Eu sei o que os seus papéis dizem. – Ele não olhou para os cartões. –
Dizem que Marguerite Duval Le François é de Roubaix. Mas não é.
Ela ajustou a expressão.
– Sou, sim.
– Mentira.
Aquilo abalou-a. Havia muito tempo que Eve não era apanhada a mentir.
Talvez ele tivesse lido a surpresa no rosto dela, ainda que dissimulada, pois
esboçou um sorriso completamente desprovido de empatia.
– Eu avisei-a de que sou bom nestas coisas, mademoiselle. Quer saber
como a apanhei? Porque não fala o francês desta região. Ou muito me
engano, ou o seu sotaque é da Lorena. Viajo frequentemente para essa região,
para comprar vinhos para o restaurante, e conheço o sotaque tão bem como
os vinhos. Por isso… porque dizem os seus papéis Roubaix, quando as suas
vogais dizem, talvez, Tomblaine?
Que excelente ouvido ele tinha. Tomblaine era mesmo do outro lado do
rio que percorria Nancy, onde Eve crescera. Ela hesitou; ouviu a voz do
Capitão Cameron dentro de si, baixa e calma, com a ligeira entoação
escocesa. Se forçada a mentir, é melhor dizer o mais possível a verdade.
Palavras ditas durante o treino, numa das tardes em que ele a levara para a
praia deserta, para praticar o tiro a garrafas.
René Bordelon continuava sentado à espera da verdade.
– Nancy – sussurrou. – F-foi onde eu n-n-n-n…
– Nasceu?
– Sim, m-m-m-m…
Ele interrompeu-a com um aceno de mão.
– Então, porquê mentir?
Uma resposta verdadeira sustentada por uma razão falsa. Eve esperava ser
convincente, porque não conseguia pensar em mais nada.
– Nancy é p-p-p-perto da Alemanha – apressou-se a dizer, como se
sentisse vergonha. – Toda a gente em França pensa que nós somos t-t-t-
traidores, que estamos do lado dos alemães. Como vinha para L-L-Lille,
sabia que seria odiada, se… Sabia que não encontraria t-t-trabalho. E não
teria comida. Por isso m-m-m… por isso menti.
– Onde arranjaste os papéis falsos?
– N-n-não arranjei. Só p-p-paguei ao funcionário para ele escrever uma
cidade diferente. Ele teve pena de m-mim.
O patrão recostou-se, dando pancadinhas com as pontas dos dedos.
– Fale-me de Nancy.
Eve ficou contente por não ter tentado mentir novamente ao dar-lhe o
nome de outra cidade. Ela conhecia Nancy como a palma da mão, muito
melhor do que os factos que memorizara acerca de Roubaix. Falou de ruas,
monumentos, igrejas, cada um deles uma memória da sua infância. A língua
tropeçava-lhe tanto que tinha o rosto a arder, mas continuou a gaguejar,
assegurando uma voz suave e os olhos bem abertos.
Mas as palavras devem ter soado a verdade, porque ele interrompeu-a a
meio de uma frase.
– É óbvio que conhece bem Nancy.
Eve não teve sequer tempo de expirar, antes de ele prosseguir, com a
cabeça estreita inclinada.
– Estando tão perto da fronteira alemã, há uma mistura considerável das
populações da região. Diga-me, mademoiselle, fala alemão? Se me mentir
outra vez, despeço-a sem contemplações.
Eve voltou a gelar até aos ossos. Ele pusera de parte a possibilidade de
empregar raparigas que fossem fluentes em alemão. A garantia aos clientes
alemães que o Le Lethe era um oásis de privacidade proporcionava-lhe a
maioria dos lucros. O olhar dele era cortante como um escalpelo, devorando-
a por completo: cada movimento de Eve, cada espasmo muscular, cada tique
de expressão.
Mente, Eve, pensou ela bruscamente. A melhor mentira da tua vida.
Eve olhou bem fundo nos olhos do patrão, de forma direta e franca, e
disse sem gaguejar:
– Não, monsieur. O meu pai odiava os alemães. Não permitia que a língua
deles fosse falada na sua casa.
– E a mademoiselle odeia-os? – perguntou ele. – Os alemães?
Ela não se atrevia a arriscar outra mentira imediatamente a seguir à
última. Decidiu esquivar-se, baixando o olhar para o colo e deixando que os
lábios lhe tremessem.
– Quando eles mandam para trás metade do b-b-boeuf en croûte por
comer, sim… – confessou ela, com uma expressão fatigada. – É difícil não os
odiar. M-Mas eu estou demasiado cansada para sentir ódio, monsieur. Tenho
de me adaptar ao mundo, ou n-n-não sobreviverei a esta guerra.
Ele riu-se suavemente.
– Não é uma perspetiva muito popular para se ter, pois não? Eu vejo a
questão de um modo muito semelhante ao seu, mademoiselle. Só que o meu
objetivo não é apenas sobreviver. – Ele abriu as mãos para mostrar o seu belo
escritório. – Vou enriquecer.
Eve não tinha dúvidas de que ele conseguiria. Se alguém pusesse o lucro
acima de todas as outras coisas – país, família, Deus –, não restaria nada para
impedir esse objetivo.
– Diga-me, Marguerite Le François. – René Bordelon parecia quase
divertido, mas Eve não se deixou relaxar nem por um segundo. – Deseja
enriquecer? Alcançar mais do que apenas sobreviver?
– Sou apenas uma r-rapariga, monsieur. As minhas ambições são muito
modestas. – Ergueu o olhar, aberto e desesperado, e encarou-o nos olhos. –
Por favor… não vai contar a ninguém que sou de N-N-Nancy, pois não? Caso
se saiba que venho dessa região…
– Imagino. As pessoas em Lille são… – Ele semicerrou os olhos, em jeito
cúmplice. – São patriotas arrebatados. E, por vezes, são cruéis. O seu segredo
está guardado.
Era um homem que gostava de segredos, intuiu Eve. Quando era ele o
guardião deles.
– O-O-Obrigada, monsieur. – Eve agarrou-lhe nas mãos e deu-lhe um
pequeno e desajeitado apertão, inclinando muito a cabeça para frente e
trincando a bochecha dentro da boca até as lágrimas lhe virem aos olhos. Este
era um homem que apreciava a gratidão servil, tanto quanto segredos. –
Obrigada.
Ela largou-lhe as mãos antes que ele se sentisse irritado por ter sido
tocado por uma empregada, e depois deu um passo atrás, alisando a saia. O
comentário dele chegou depressa e em alemão:
– Como é graciosa, mesmo quando tem medo.
Ela endireitou-se e cruzou o olhar com o dele. Ele devorou a expressão de
Eve, procurando o mais pequeno sinal de compreensão. Ela piscou
longamente os olhos, mostrando não ter percebido.
– Monsieur?
– Nada. – Ele sorriu, por fim, e Eve teve a sensação de que um dedo fora
retirado do gatilho. – Pode ir.
As unhas de Eve tinham cravado sulcos fundos nas palmas das mãos,
quando voltou ao restaurante, mas teve a presença de espírito para desfazer os
punhos antes de fazer sangue. Porque René Bordelon repararia nisso. Ah,
sim, claro que repararia.
Esquivaste-te a uma bala, pensou ela, assim que começou o turno, à
espera de se sentir maldisposta, pois o perigo tinha passado. Mas as suas
entranhas aguentaram. É que o perigo ainda não tinha passado – enquanto ela
tivesse de trabalhar e espiar sob o olhar atento do seu astuto patrão, ela
permaneceria em perigo. Eve sempre fora boa a mentir, mas, pela primeira
vez na vida, perguntou-se se seria suficientemente boa.
Não há tempo para sentir medo, relembrou a si mesma. O medo é um
luxo. Desliga o cérebro e liga os ouvidos.
E voltou ao trabalho.
Capítulo 11
Charlie
Maio de 1947
Ali estava ela. A minha mãe: com perfume de alfazema e linda como
sempre… Mas, por detrás do chapéu azul elegante, os olhos estavam rasos de
lágrimas. Só isso foi suficiente para me deixar estupefacta, enquanto ela me
abraçava.
– Ma chère, como pudeste? Fugires para um país estranho! – Ela estava a
repreender-me, mas com aquele abraço, a mão enluvada a esfregar-me as
costas como se eu fosse um bebé. Afastou-me e deu-me um pequeno abanão.
– Causar-me tanta preocupação, e por razão nenhuma!
– Mas havia uma razão – consegui dizer, antes de ela me abraçar
novamente. Dois abraços em dois minutos. A minha mãe não me abraçava
havia muito tempo, pelo menos desde que se descobrira o Pequeno Problema.
Talvez até antes disso. Sem eu querer, os meus braços rodearam a sua cintura
fina.
– Oh, chérie… – Afastou-me novamente, limpando as lágrimas dos olhos,
e eu consegui encontrar a minha voz.
– Como me conseguiu encontrar?
– Quando telefonaste de Londres, disseste que estavas à procura da Rose.
Que mais poderia isso significar senão que irias a correr ver a Tante Jeanne a
Rouen? Apanhei o barco e telefonei-lhe quando cheguei a Calais. Ela disse
que a tinhas visitado e que tinhas ido para Roubaix.
– Como é que ela sabia… – Mas eu própria lhe tinha dito. Não, Tante,
não posso ficar. Tenho de ir para Roubaix. Esforcei-me tanto para não gritar
com ela por ter expulsado a Rose de casa que me descaí.
– Roubaix não é uma cidade muito grande. – A minha mãe apontou para o
hotel. – Este foi apenas o quarto hotel onde perguntei.
Maldita sorte, pensei eu, mas uma parte de mim dizia, num sussurro: Ela
abraçou-me.
– Um chá – decidiu a minha mãe, tal como decidira no Hotel Dolphin, em
Southampton, nem uma semana antes. Uma mão-cheia de dias parecia muito
pouco tempo para incluir a Eve e o Finn e tudo o que entretanto soubera
sobre a Rose.
A minha mãe pediu o chá e depois olhou para mim com ansiedade,
abanando a cabeça.
– Que mau aspeto tens! Tens dormido na rua? Mon Dieu…
– Não, eu tenho dinheiro. Eu… eu empenhei as pérolas da Grandmaman.
– A vergonha de o ter feito feriu-me subitamente; era a única coisa que eu
possuía da mãe da minha mãe, e tinha-a trocado por uma busca sem
esperança. – Eu consigo reavê-las, prometo. Tenho a cautela do penhor.
Pagarei com o dinheiro das minhas poupanças.
– Fico feliz por saber que não dormiste numa valeta – revelou a minha
mãe, tentando esquecer as pérolas da minha avó. Surpreendi-me novamente.
A minha mãe não se importava com as pérolas que, como ela sempre dizia,
devia ter herdado? – Atravessar o Canal da Mancha sozinha! Chérie, que
perigo!
Não estava sozinha, quase disse, mas pensei que a Maman não se sentiria
melhor ao saber que eu viajara com um ex-presidiário e uma bêbeda de
pistola em riste. Naquele momento, dei muitas graças a Deus por Eve e Finn
já terem subido aos quartos. – Lamento tê-la preocupado, não era essa a
minha intenção…
– O teu cabelo – cacarejou ela, afastando uma madeixa de cabelo solto
para trás da minha orelha.
Como era possível eu sentir-me subitamente tão pequenina e indefesa
quando nos últimos dias eu arrombara a porta de Eve, tivera uma Luger
apontada à cabeça e atravessara o Canal da Mancha…?
Endireitei-me na cadeira, tentando ordenar os meus argumentos. Maman
não me ia dar ouvidos, a não ser que eu me apresentasse como uma mulher
adulta com um plano, e não como uma criança birrenta com um ataque de
fúria.
– Não fugi porque sou ingrata e não queria ir à Consulta. Fugi porque…
– Eu sei. – A minha mãe pegou na chávena de chá. – Nós apressámos-te,
eu e teu pai…
– Não, não é isso. Foi por causa da Rose.
– … com esta coisa na Suíça. A Consulta. – Novamente aquela letra
maiúscula. – Entraste em pânico quando desembarcámos em Southampton.
Encolhi os ombros. Era verdade, mas…
– Eu e o teu pai só queremos o melhor para ti. – Fez-me uma festa na
mão. – É o que todos os pais querem. Empurrámos-te para o barco e nem
sequer te demos tempo para pensar no que estava a acontecer.
– Estraguei tudo? – perguntei a custo, olhando nos olhos dela. – Será
demasiado tarde para… – Eu não sabia o que era “demasiado tarde” para que
aquele procedimento fosse seguro. Eu não sabia nada.
– Podemos marcar outra consulta, ma chère. Ainda não é demasiado tarde
para isso.
Senti uma pontada de dor a atravessar o meu peito: parte desilusão, parte
alívio. Senti o Pequeno Problema dentro de mim a vibrar, embora a minha
barriga estivesse perfeitamente imóvel.
A mão da minha mãe, quente e macia, cobriu a minha.
– É assustador, eu sei. Mas, nestes casos, quanto mais cedo, mais seguro
é. Assim que esteja terminado, podemos voltar para casa e terás tempo para
descansar, refletir…
– Não quero descansar. – Olhei para ela, sentindo um familiar fio de raiva
a desenrolar-se no meio da minha confusão. – Não quero ir para casa. Quero
tentar encontrar a Rose, se ela ainda estiver viva. Oiça o que lhe estou a dizer.
A minha mãe soltou um suspiro.
– Naturalmente, já perdeste essa esperança…
– Não – afirmei. – Até saber que ela morreu, não. Porque depois do que
aconteceu ao James, não posso simplesmente aceitar que não há esperança.
Não até tentar tudo o que puder.
Ela enrolou a ponta do guardanapo, com a expressão tensa que sempre
mostrava quando o nome do meu irmão era mencionado.
– Há esperança, Maman – disse eu, tentando convencê-la. – É demasiado
tarde para o James, mas talvez ainda seja possível salvar a Rose. Ela saiu de
casa e a Tante Jeanne contou-me porquê.
Um movimento vacilante. Sim, a minha mãe sabia. O fio de raiva
desenrolou-se ainda mais ao pensar que a minha mãe decidira não me contar,
mas consegui reprimi-lo.
– A Rose não ia querer voltar para casa dos pais depois do que aconteceu.
É possível que ainda esteja em Limoges. Se estiver lá, tenho de a encontrar.
– E tu? – A minha mãe olhou para mim. – Não podes suspender o teu
futuro por causa dela. A Charlotte St. Clair é tão importante como a Rose
Fournier. A própria Rose teria sido a primeira a dizê-lo.
Olhei para o outro lado da esplanada do hotel, pensando que talvez
pudesse ver o cabelo louro de Rose, o seu perfil. Nada.
– A Consulta. – A voz da Maman era meiga. – Deixa-me levar-te à
clínica, ma chère.
– E se eu não quiser uma Consulta? – As palavras surgiram de repente,
deixando-me tão surpreendida quanto à minha mãe.
Ela olhou momentaneamente para mim, e de seguida soltou um suspiro.
– Se tivesses um anel no dedo, a questão era outra. Antecipávamos o
casamento, tu serias uma noiva maravilhosa e, seis meses depois, uma mãe
maravilhosa. Estas coisas acontecem.
Pois aconteciam. Essa aritmética era compreendida por todas as mulheres:
uma aliança mais um bebé prematuro eram magicamente iguais a
respeitabilidade.
– Mas a tua situação é diferente, Charlotte. Sem um noivo…
Ela não terminou a frase e eu encolhi-me. Sabia o que acontecia a
raparigas solteiras que engravidavam e tinham os bebés. Ninguém falava
delas, mas sabia-se. Ninguém queria casar com essas raparigas perdidas ou
dar-lhes emprego, as famílias tinham vergonha delas e as amigas deixavam
de lhes falar. Ficavam com a vida destruída.
– Não há outra opção – pressionou a Maman. – Um pequeno
procedimento e terás a tua vida de volta.
Eu não podia negar que desejava regressar à normalidade. Passei o dedo
no rebordo da minha chávena.
– Por favor, chérie. – A Maman largou o chá morno e esticou os braços
por cima da mesa, para agarrar as minhas mãos. – Voltaremos a procurar a
Rose, se é isso que queres. Mas, pelo teu futuro, é melhor fazeres primeiro o
que está certo para ti, não achas?
– Eu vou à clínica – anuí, apesar do nó na minha garganta. – Depois
disso, procuraremos a Rose. Prometa-me isso, Maman. Por favor.
As mãos dela apertaram as minhas.
– Eu prometo.
Dentro de dez dias, o Kaiser estaria morto. Era o que Eve dizia a si
mesma.
– Despacha-te! – pediu Lili, apressando o passo encosta acima. Eve sentia
o cabelo colado ao pescoço, mas Lili parecia insensível ao calor estival,
caminhando a passos largos com as saias arregaçadas e o chapéu pendurado
para trás. – Lesma!
Eve pôs o cobertor dobrado debaixo do braço e acelerou o passo. Lili
conhecia os arredores de Lille como a palma da mão.
– Mon Dieu! Como é bom palmilhar estas colinas em pleno dia e não no
escuro da noite, com pilotos enlameados a reboque! Vá, só mais uma
colina…
Lili desatou a correr encosta acima. Eve ficou a olhar para ela, banhada
em suor, a pensar como aquelas seis semanas de pouca comida a tinham
enfraquecido; mas rapidamente recuperou o ânimo ao chegar ao cimo da
colina. O céu estava limpo e as ervas das encostas, verdes e douradas,
brilhavam à luz do sol. Estavam a apenas alguns quilómetros de Lille, mas
era como se tivessem fugido da sombra de uma nuvem negra, longe dos
letreiros alemães e dos soldados alemães. Não que tudo fossem rosas no
campo. As pequenas quintas por que Eve e Lili haviam passado também
sentiam os efeitos da fome e do desespero, uma vez que tinham visto os
porcos, a manteiga e os ovos confiscados pelo inimigo. Mas do cimo daquela
pequena colina era possível fingir, por momentos, que os omnipresentes
invasores tinham desaparecido.
E talvez eles desaparecessem em breve, de facto. Se os pilotos da Royal
Flying Corps fizessem bem o seu trabalho.
As duas mulheres ficaram no cimo da colina, ambas de braços cruzados, a
observar a linha férrea que se estendia até à Alemanha. Dez dias para o
Kaiser passar por aqueles carris. Mais dez dias e o mundo poderia ser muito
diferente.
– Aqui. – Lili acenou com a cabeça na direção da linha de comboio. –
Tenho andado a estudar esta zona. Tal como a Violette e o Antoine. –
Antoine era um livreiro de Lille, de expressão enganadoramente dócil, que
falsificava documentos de identificação e passes para Lili. Para além de
Violette, era o único membro da Rede Alice que Eve conhecia, um contacto
necessário no caso de ela precisar de papéis novos numa situação de
emergência. – E todos concordamos que este trecho da linha é o melhor para
o ataque. – Lili levantou a saia e começou a despir o saiote de cima – Sabe-se
lá se os oficiais vão aceitar a sugestão.
– Estende o c-cobertor – aconselhou Eve. – Estamos a fazer um
piquenique, lembras-te? – Essa era a história que contariam, se algum batedor
alemão as encontrasse ali: Marguerite Le François e a sua amiga costureira
tinham levado modestas sanduíches para comer ali e aproveitar o bom tempo.
Mas, quando Eve estendeu o cobertor coçado, Lili não se deu ao trabalho de
tirar as sanduíches. Em vez disso, tirou um pedaço de carvão e começou a
mapear rapidamente o terreno em seu redor no saiote estendido.
– Está cada vez mais difícil passar mensagens escritas em papel – revelou
ela, com a habitual vivacidade, apesar da intensa concentração. – Mas aqueles
guardas não fazem ideia de quanta informação pode ser escrita num saiote de
senhora.
– Porque me trouxeste? A Violette conhece a região melhor do que eu.
Não seria melhor ser ela a ajudar-te a o-organizar o relatório?
– Sim, ela já o fez. Mas foste tu que ouviste em primeira mão a
informação sobre a visita do Kaiser, margaridazinha. Mereces saber o que se
passa. – A mão de Lili desenhava depressa, marcando o solo, as
irregularidades, os carris, as árvores. – Quando entregar o relatório ao Tio
Edward, vais comigo; ele pediu-me para te levar.
– A m-mim?
– Quer entrevistar-te, para ver se há mais algum detalhe que possa extrair
da tua memória. Trata-se de algo muito importante e ele não quer correr
riscos. Partimos daqui a dois dias.
Iam ver o Capitão Cameron dentro de dois dias. Sabê-lo devia ter sido um
conforto para Eve; no entanto, sentiu-se estranha. Ele parecia-lhe tão distante
que era como se vivesse noutro mundo. E a logística de uma visita dessas
dava-lhe uma volta ao estômago ainda maior do que pensar nos olhos
calorosos dele.
– N-Não posso ir a Folkestone. Não tenho coragem de faltar ao trabalho.
– Não temos de ir até Folkestone. – Lili terminou calmamente as suas
notas. – O Tio Edward vai encontrar-se connosco do outro lado da fronteira,
em Bruxelas. Voltaremos no dia seguinte.
– A minha m-maneira de falar… Vão reparar em mim no posto de
controlo. Vou fazer com que te a-apanhem. – Se Lili fosse apanhada devido à
sua gaguez, ela cortaria a própria língua com uma lâmina de barbear
ferrugenta.
– Je m’en fou! – Lili despenteou-lhe o cabelo. – Quem vai falar sou eu!
Estou habituada a desenrascar-me nas estações de comboios com palavreado.
Tens apenas de fazer uma expressão de doce inocência e tudo vai sair right as
rain, como vocês, ingleses, dizem. A propósito, quem disse que a chuva cai
sempre a direito? Vocês têm cada expressão mais estranha.
Lili tentava aligeirar a situação, Eve bem o sabia. Aqueles comentários
descontraídos, enquanto voltava a vestir o saiote com o mapa desenhado a
carvão, eram intencionais.
– Devias ter mais cuidado – aconselhou Eve, recolhendo as coisas do
piquenique. – Não leves tudo tão a b-brincar. A vida não vai ter piada se te
vires em frente a um pelotão de f-fuzilamento.
– Bah. – Lili acenou com a mão, uma mão tão magra que, à luz do sol, era
quase transparente. – Eu sei que um dia serei apanhada, mas o que importa?
Pelo menos, terei servido o meu país. Por isso, apressemo-nos e façamos
coisas importante enquanto há tempo.
– Não há m-muito tempo – resmungou Eve, seguindo Lili encosta abaixo.
– Daqui a dois d-dias partimos para Bruxelas. Como vou fazer para ter um
dia de folga?
– Vê se consegues arranjar uma desculpa no Le Lethe. – Lili lançou-lhe
um olhar de esguelha enquanto desciam a colina de regresso à cidade. –
Como vai o teu horrível pretendente?
Eve não queria pensar em René Bordelon. Desde a noite em que ele a
acompanhara a casa, ela tinha tentado evitar cruzar-se com ele; no Le Lethe,
levantava pratos, servia schnaps e escutava. Até conseguira escrever um
relatório sobre um excelente piloto germânico, de nome Max Immelmann –
sempre tentando evitar o olhar do patrão. Mas ele encontrava maneira de lhe
dizer que a observava e que continuava à espera de uma resposta. Por vezes,
era um olhar silencioso direcionado ao pescoço dela, onde ainda sentia a
língua dele a saborear a sua pele. Outras vezes, era o resto de um gole de
vinho que ele lhe oferecia de um copo usado, à hora do fecho. Que mundo era
este, quando uns goles de vinho do copo de um estranho podiam servir para
seduzir uma jovem presumivelmente esfomeada e desesperada.
– Persistente – respondeu Eve, por fim.
Lili prendeu uma madeixa de cabelo atrás da orelha.
– Tens conseguido repeli-lo?
– Até agora, s-sim.
Na realidade, haveria algo mais para além do agora na vida que ela
levava? Ver o Capitão Cameron dentro de dois dias e a chegada do Kaiser daí
a dez eram factos que existiam numa mesma zona cinzenta. Havia o passado
e o presente. Nada mais era certo. Nada mais era real.
Nessa noite, a conversa parecia mais viva do que o habitual no Le Lethe, a
azáfama dos oficiais mais barulhenta, o riso das mulheres nos seus braços
mais histérico.
– Galdérias – sussurrou Christine, num momento em que ela e Eve
estavam encostadas à parede, à espera de serem chamadas por um dedo em
riste. – Aquela ali, aperaltada num vestido de seda e agarrada àquele capitão,
é Françoise Ponceau. Sabes, o padeiro faz pão especial para gajas como
aquela. Ele mija na massa antes de a estender…
– Elas m-merecem – concordou Eve, embora sentisse o estômago
embrulhado. A jovem tinha um olhar ansioso, apesar dos sorrisos, e estivera a
noite toda a meter pãezinhos dentro da carteira, sempre que o capitão virava
costas. Teria alguém em casa que tinha de alimentar, provavelmente até mais
do que uma pessoa; em troca, recebia pão com urina e insultos. Mas era mais
seguro concordar com a opinião segredada de Christine, já que essa era a
opinião da maioria dos habitantes de Lille.
René olhou para as suas empregadas e Eve reparou no brilho do olhar
dele à luz das velas. Olha para a Christine, implorou Eve em silêncio.
Bonita, loura e burra como um poste; porque não olhas para a Christine?
Mas ele fez sinal com o dedo a Eve, e ela aproximou-se para servir os
digestivos, enquanto René esboçava um sorriso de apreciação pela sua calma
silenciosa, pela posição exata do seu braço.
– Alguém se importa de levar o livro-razão lá acima? – perguntou Eve aos
restantes empregados no final da noite, mas eles limitaram-se a rir.
– Agora, essa é a tua tarefa, Marguerite! Ele fica sempre mais bem-
disposto se fores tu a levá-lo e nós gostamos do Monsieur René bem-
disposto.
Soltaram risinhos abafados e Eve apercebeu-se de que os olhares de René
não tinham passado despercebidos.
– Vocês são uns p-porcos – rosnou e, irritada, subiu as escadas de serviço.
Fez uma vénia a René e, ao passar-lhe as contas do dia, os dedos dele
roçaram levemente nos seus.
– Está com pressa, Mademoiselle Le François? – disse ele, analisando as
contas do dia.
– Não, monsieur.
Ele demorou-se, folheando calmamente as páginas. Era uma noite quente
de verão e ele, tendo despido o casaco, estava sentado só de camisa
imaculadamente branca, o cabelo penteado para trás com brilhantina, tão
lustroso quanto os sapatos de couro. Os botões de punho eram salpicos
inesperados de cor, de um vermelho rubi com lascas de ouro.
– Vidro art nouveau – disse ele, observando na direção do olhar dela.
Repararia ele em tudo? – Ao estilo de Klimt. Já ouviu falar de Klimt? Tive a
sorte de ver alguns quadros dele em Viena, antes da guerra. Obras
extraordinárias. Havia um chamado Danaë, a mulher do mito grego a quem
Zeus visitou sob a forma de chuva dourada… Klimt mostra-a excitada pelo
ouro que lhe cai entre as pernas.
Eve não tinha vontade de falar sobre qualquer tipo de excitação ali dentro,
fosse artística ou outra.
– Não, n-nunca ouvi falar disso.
– É entrega. – Ele tirou os botões de punho e colocou-os na mão dela,
para que ela os examinasse. Em seguida, arregaçou as mangas, revelando
braços elegantes, de pele branca e macia, e Eve desviou o olhar para os
pequenos objetos de vidro, levando-os à luz e admirando o jogo de luzes. – A
entrega sensual representada pelo ouro. As pessoas consideraram o quadro
obsceno, mas que importa? Também achavam Baudelaire obsceno.
Eve pousou cuidadosamente os botões de punho ao lado do busto do
poeta, estudando o impressionante perfil de mármore e perguntando-se se a
amante de Baudelaire o teria desprezado tanto quanto ela desprezava René.
– Posso pedir-lhe um favor, m-monsieur?
– Um favor? Que intrigante.
– Posso faltar daqui a duas noites? Prometi a uma amiga que iria com ela
visitar o tio, e ele mora um pouco longe. – Tudo perfeitamente verdade. Com
René, Eve fazia o possível por mentir apenas no que não era dito.
– Pretende faltar ao trabalho. – Ele mediu as palavras. – Há muitas jovens
que a substituiriam e nunca faltariam ao trabalho, sabe.
– Eu sei, monsieur. – Eve olhou para ele, implorando com o seu olhar
doce. – Esperava que estivesse suficientemente s-satisfeito com o meu
trabalho para…
Ele deixou-a pendurada por alguns instantes, pondo o livro-razão de lado.
– Muito bem – disse ele, finalmente, e Eve quase suspirou de alívio. –
Pode tirar a noite de folga.
– Obrigada…
Ele interrompeu-a.
– Já é muito tarde. Lembrou-se de trazer a sua dispensa do recolher
obrigatório ou vou ter de a acompanhar novamente? – Desapertou o nó da
gravata. – Talvez te acompanhe de qualquer maneira. Gostava de te conhecer
melhor, Marguerite.
Ele tomou posse do nome dela, ou o que ele pensava ser o nome dela,
abandonando a formalidade e o mademoiselle de modo casual. Eve pensou,
ao vê-lo tirar a gravata, que a intenção dele era não sair. A intenção dele era
conhecê-la melhor ali mesmo.
Porque eu lhe pedi um favor.
Ela quis engolir o nó que tinha na garganta, e foi isso mesmo o que fez,
para que ele a observasse a fazê-lo. O nervosismo dela agradar-lhe-ia.
Ele deixou cair a gravata no braço de couro do cadeirão.
– Pensaste bem na minha proposta da outra noite?
Eve não fingiu não perceber.
– A sua proposta s-surpreendeu-me, monsieur.
– Ah, sim?
– Não sou a c-companhia certa para um homem de bom gosto. Sou uma
empregada. Não possuo beleza nem modos r-r-respeitáveis, não conheço o
mundo. Por isso, sim, a sua proposta surpreendeu-me muito.
Ele levantou-se do cadeirão fundo, sem pressa, e dirigiu-se à mesinha de
pau-cetim com os decantadores de cristal. Tirou a tampa de um deles e verteu
dois dedos de um líquido claro e brilhante para um copo baixo. Brilhava
como um diamante e ele ofereceu-o a Eve.
– Prova.
Sem outra alternativa, ela bebeu um gole. Queimou-lhe a garganta:
ardente e doce, ligeiramente floral, muito forte.
– Licor de flor de sabugueiro. – Ele apoiou o cotovelo no lintel de ébano
da lareira. – Compro-o diretamente a um vinhateiro de Grasse. Uma região
linda, Grasse: o ar cheira ao licor, floral e inebriante. É um licor único, por
isso não o sirvo no meu restaurante. Aos alemães, ofereço brandy, schnaps,
champanhe. Guardo o que é único para mim. Creio que gostas, não?
– Gosto, sim. – Não valia a pena mentir a René sobre algo que não tinha
necessidade de fazer. – Mas porquê partilhá-lo c-comigo, se n-n-ão partilha o
que é único com ninguém?
– Porque tu também és única. Tens bom gosto… muito bom gosto, podia
até dizer, mas és completamente desprovida de educação. És como Eva no
Jardim do Éden.
Eve quase saltou ao ouvir o seu nome verdadeiro, mas conseguiu manter-
se impávida e bebeu um pouco mais do licor ardente.
– Sempre apreciei o bom gosto e a elegância nas minhas companhias –
continuou ele. – Até agora, tenho preferido o produto final à matéria-prima,
mas hoje em dia Lille tem pouca oferta de mulheres elegantes. A fome e o
patriotismo fizeram de todas as que eu conhecia megeras. Para conseguir a
companhia adequada, parece-me que vou ter de fazer o papel de Pigmalião da
mitologia grega e esculpi-la só para mim. – Esticou o braço e, com um dos
seus dedos compridos, desviou uma madeixa de cabelo da testa de Eve. –
Não pensei que pudesse gostar de o fazer. Por isso, já vês, também eu fiquei
surpreendido contigo.
Eve não conseguia pensar em nada para dizer. Ele apontou para o copo,
parecendo não estar à espera de resposta.
– Mais?
– Sim.
Encheu generosamente o copo. Ele está a tentar embebedar-me, pensou
Eve. Marguerite, com os seus 17 anos, não aguentaria bebidas fortes. Dois
copos deste licor fá-la-iam ficar dócil e solícita.
Eve olhou para o copo e viu os carris que levariam o Kaiser a Lille. Viu
as figuras indolentes do Kommandant e dos seus oficiais reunidos à mesa, a
revelar despreocupadamente segredos de schnaps na mão. Viu o rosto
radiante de Lili no dia em que lhe passara pela primeira vez aquela
informação. Ouviu até a voz de Lili: Este trabalho é lixado.
Sim, pensava naquele momento Eve, tal como respondera na altura. Mas
alguém tem de o fazer. Sou boa a fazê-lo. Porque não eu?
Bebeu o licor de uma vez só. Quando baixou o copo, René estava bastante
mais próximo. Cheirava a colónia parisiense, um aroma subtil e civilizado.
Perguntou-se se ele a beijaria nesse momento. Pensou fugazmente no Capitão
Cameron a olhar para ela na praia, ensinando-a a carregar uma pistola.
Afastou a recordação no momento em que René inclinava a cabeça.
Não te retraias.
Ele aproximou-se dela, inspirando a pele na base do pescoço, e depois
endireitou-se, fazendo uma ligeira careta.
– Talvez um banho. Podes usar o meu quarto de banho.
Ela sentiu os lábios entorpecidos, mas ele não lhes tocara. Por momentos,
não compreendeu. Então, olhou para as suas mãos, para os punhos,
salpicados de beurre blanc e vinho tinto, por mais cuidado que tivesse, e
apercebeu-se de que tinha uma leve camada de suor seco por baixo do
vestido, depois da rápida caminhada com Lili nos arredores de Lille, nessa
manhã. Cheiro mal, pensou Eve, sentindo-se tão humilhada que lhe apeteceu
chorar. Cheiro a suor e a sabão barato e, antes de ser desflorada, devo ser
convenientemente lavada.
– Há sabonete – disse René, virando costas e desapertando casualmente o
colarinho. – Escolhi-o para ti.
Ele esperava gratidão.
– Obrigada – conseguiu Eve dizer, enquanto ele apontava para a porta
atrás de si.
A casa de banho tinha o mesmo luxo obsceno que o escritório: azulejos
pretos e brancos, uma enorme banheira em mármore, um espelho de moldura
dourada. Havia um sabonete por estrear, lírio-do-vale, sem dúvida confiscado
da casa de banho de uma mulher durante uma rusga, e Eve lembrou-se de
René lhe dizer que essa fragância lhe ficaria bem. Leve, doce, perfumado,
jovem.
Vieram-lhe à cabeça todos os conselhos que Lili lhe dera sobre as coisas
que agradavam aos homens e, por um momento, Eve pensou que ia vomitar.
Mas conseguiu conter-se. Repara no que ele gosta, dissera Lili. De olhar fixo
no sabonete, Eve soube. Leve, doce, perfumado, jovem. Era o que ele gostava
que ela fosse, não apenas o seu cheiro. Que amável da parte dele,
providenciar-lhe um guião.
Encheu a banheira, esparrinhando água quente, esbanjando-a com
vingança, e mergulhou no seu calor com um arrepio. Havia mais de dois
meses que tinha de se lavar com uma bacia e um trapo. O calor e os dois
copos de licor estavam a fazê-la sentir-se tonta. Era capaz de ficar naquela
água quente e perfumada para sempre, mas tinha uma tarefa a cumprir.
Quanto mais depressa, melhor.
Eve deixou a roupa interior e o vestido no chão, em vez de os vestir
novamente depois de lavada, e embrulhou-se numa toalha muito branca.
Olhou para o seu reflexo no espelho e não reconheceu a jovem que viu. Tinha
as maçãs do rosto chupadas – um sinal das rações diminutas que eram o seu
sustento –, mas era mais do que isso. O rosto suave de Evelyn Gardiner
nunca parecera tão duro. Marguerite Le François não era, de modo algum,
dura, por isso Eve treinou ao espelho – lábios entreabertos, um pestanejar
nervoso – até sentir que estava perfeita.
– Ah! – René recebeu-a com um sorriso, inspecionando-a desde os pés
descalços até ao cabelo castanho solto. – Muito melhor.
– Obrigada – disse ela. – Já não tomava um b-banho assim há meses. –
Gratidão. Ela sabia o que lhe era exigido.
Ele enfiou a mão no cabelo húmido dela, levando uma madeixa grande ao
nariz.
– Adorável.
Ele não deixava de ser atraente, magro e elegante; tinha trocado o fato por
um roupão de seda cinzento azulado. A mão fria deslizou pelo cabelo de Eve
e envolveu o pescoço dela, os dedos compridos quase rodeando-o por
completo. Então, beijou-a, sem pressa, de boca aberta e com habilidade. Os
olhos permaneceram sempre abertos.
– Vais ficar cá a dormir – murmurou ele, acariciando o contorno da anca
dela por cima da toalha. – Amanhã de manhã cedo, tenho um encontro com o
Kommandant Hoffman, que quer falar sobre uma festa aqui no restaurante em
honra de um piloto fantástico deles, chamado Max Immelmann, agora que ele
vai ficar responsável pela defesa área de Lille. Mas não me importo de ir ao
encontro do Kommandant ligeiramente cansado.
Ali estava – a razão por que Eve estava ali. René baixara suficientemente
a guarda para lhe oferecer aquela informação, a qual seria seguramente útil
para a Royal Flying Corps. Eve guardou-a mentalmente, o seu coração a
bater a um ritmo calmo de terror e determinação.
René sorriu para ela.
– Então – disse, agarrando na toalha que lhe cobria os seios. – Mostra-me.
Aguenta, pensou Eve, com fúria. Porque tu podes usar isto em teu
proveito. Ah, se podes.
Ela deixou a toalha cair, inclinando o rosto para receber o beijo seguinte.
Que importava se algo a assustava, se tinha de ser feito de qualquer maneira?
Capítulo 17
Charlie
Maio de 1947
Nessa noite, Eve teve outro dos seus pesadelos. Dessa vez, não começou a
gritar, mas fui acordada por uma série de baques na parede entre os nossos
quartos. Fui espreitar ao corredor. Nada de Finn. Só eu.
Vesti uma camisola por cima da minha combinação e fui calmamente até
ao quarto de Eve. Encostei o ouvido à porta. Ainda se ouviam as pancadas
secas, como se ela estivesse a bater com alguma coisa contra a parede.
Espero que não seja a cabeça, pensei, e bati suavemente à porta.
– Eve?
Os baques continuaram.
– Não me aponte a pistola. Vou entrar.
Ela estava sentada no chão, no canto do quarto mais afastado da porta,
mas desta vez parecia lúcida, e não balbuciava com o terror dos pesadelos.
Olhava fixamente para o teto, com a Luger na mão, cujo punho batia
metodicamente contra a parede. Baque. Baque. Baque.
Pus as mãos nas ancas.
– Tem mesmo de fazer isso?
– Ajuda-me a pensar. – Baque. Baque.
– É meia-noite. Não é melhor dormir, em vez de pensar?
– Nem sequer ainda tentei. Os pesadelos estão à espera. É melhor eu ficar
acordada até amanhecer. – Baque. Baque.
– Bem, então, tente bater mais suavemente. – Virei costas, a bocejar. Ela
chamou-me.
– Fica. Posso fazer uso das tuas mãos.
Olhei por cima do ombro.
– Para quê?
– Sabes desmontar uma Luger?
– Não ensinam isso em Bennington, não.
– E eu a pensar que todos os americanos eram malucos por armas. Eu
ensino-te.
Sentei-me em frente a Eve, de pernas cruzadas, enquanto ela me mostrava
as diferentes partes da pistola, que eu desmontava de modo desastroso.
– O cano… O ferrolho… O retém do ferrolho…
– Porque me está a ensinar isto? – perguntei, dando um gritinho quando
ela me bateu com a pistola nos nós dos dedos, por ter puxado o carregador do
lado errado.
– Desmontar a Luger ajudava-me a pensar. Já não o consigo fazer por
causa das minhas mãos todas lixadas, por isso vou usar as tuas emprestadas.
Tira o óleo do meu saco.
Comecei a espalhar no chão as partes desmontadas.
– Em que está a pensar? – O olhar dela adquirira um brilho apreensivo
que não vinha do whisky, embora eu visse que ela tinha, ao lado do joelho, o
habitual copo meio cheio daquele líquido cor de âmbar.
– René du Malassis – disse ela. – Ou, melhor, René Bordelon. E para
onde terá fugido.
– Está a partir do princípio de que ele ainda está vivo, então. – Ela tinha-o
negado de forma obstinada em Roubaix.
– Ele teria agora 72 anos – sussurrou Eve. – Mas, sim, a minha aposta
agora é que ainda está vivo.
Ela não conseguiu evitar a expressão que dominou o seu rosto, uma
expressão de ódio por ele e, ao mesmo tempo, por si mesma. Era raro ver-lhe
uma emoção que ela não conseguia disfarçar. Tinha um aspeto quase frágil, e
um estranho sentimento de proteção apertou-me o peito.
– O que a faz ter tanta certeza de que o du Malassis é o seu Bordelon? –
perguntei suavemente.
Ela esboçou um meio sorriso.
– Malassis é o nome do editor que publicou o texto original de Les Fleurs
du Mal, de Baudelaire.
– Estou a começar a odiar esse Baudelaire. E nunca o li, sequer. – Na
verdade, já não precisava.
– Sorte a tua. – O tom dela era seco. – Tive de ouvir o René citar a
maldita da œuvre do gajo de uma p-ponta à outra.
Fiz uma pausa, com o cano da Luger numa mão e o trapo com óleo na
outra.
– Então, a Eve e ele eram…
Ela ergueu um sobrolho.
– Estás chocada?
– Não. Não sou santa nenhuma. – Dei uma palmadinha no Pequeno
Problema, que, por esses dias, parecia andar mais feliz. Ainda me fazia sentir
cansada, mas já não tinha tantos enjoos nem era assolada por pensamentos
estranhamente articulados com origem nas minhas entranhas.
– O René trouxe-me a este hotel. – Eve olhou em redor do quarto, sem
realmente o observar. – Não este quarto. Ele nunca escolheria um quarto tão
pequeno. Tinha de ser o melhor do hotel: quarto andar, janelas grandes,
cortinas de veludo azul. Uma cama enorme…
Não perguntei o que acontecera nessa cama. Havia uma razão para ela
decidir ficar a pé a noite toda, em vez de arriscar sonhar.
– Como é que isto funciona? – interroguei, enquanto segurava várias
peças de pistola; ela mostrou-me como esfregar o trapo oleado em cada uma
das peças. – Portanto, quando o René Bordelon teve de fugir de Lille, tornou-
se René du Malassis – disse eu, por fim. – E, quando teve de fugir de
Limoges, desapareceu sem rasto. Como é possível que isso tenha acontecido
tão facilmente, quando tantos colaboradores foram apanhados? – Pensei nas
imagens que vira nos jornais dessas pessoas, homens e mulheres, humilhadas,
ou pior. A velha francesa não falara em enforcar pessoas em postes por acaso.
– O René não era parvo nenhum. – Eve pousou o óleo com as suas mãos
desastradas. – Ele tratava muito bem os que estavam no poder, mas sempre
soube que eles podiam perder. E, quando teve a certeza de que realmente iam
perder, pensou seguramente num plano para se esconder com o seu dinheiro e
adotar um nome novo… E recomeçar a vida, depois de Lille e depois de
Limoges. – Ela parou, a refletir. – Creio que ele estava a matutar no primeiro
desses planos quando me trouxe aqui, em 1915. Não me apercebi disso, na
altura; disse-me que queria visitar locais para abrir um segundo restaurante.
Eu pensei que ele queria expandir o negócio, mas talvez ele nunca tenha
sequer pensado nisso. Talvez estivesse a explorar um novo local para
começar uma vida nova, no caso de precisar de uma. E precisou.
– Hum. – Coloquei a última peça da pistola no chão, já oleada. As minhas
mãos estavam completamente oleosas, mas achava tudo aquilo interessante.
Se me tivessem ensinado a desmontar pistolas, em vez de fazer biscoitos, na
disciplina de Economia Doméstica, talvez eu tivesse prestado mais atenção. –
Sabe, há uma coisa muito diferente entre o René Bordelon e o René du
Malassis, para além do nome.
– E o que é, ianque?
– A vontade de apertar o gatilho. – Olhei para o gatilho da Luger,
pousado inocentemente no chão, por entre as restantes peças desmontadas. –
Pela maneira como a Eve o descreveu na primeira guerra, ele era demasiado
afetado para fazer o seu próprio trabalho sujo. Quando apanhou um
empregado a roubar no restaurante de Lille, o seu predecessor, ele chamou os
alemães e foram eles que trataram do assunto. Da segunda vez, pelo que a
velha contou, ele não hesitou em apertar o gatilho.
– E não é uma diferença pequena – concordou Eve. Pareceu-me que ela já
teria meditado bastante nessa questão.
– Então, o que terá mudado nele? – perguntei. – O que o terá
transformado, no final da primeira guerra, de um esteta oportunista num… –
recordei as palavras da velha – assassino elegante?
Eve esboçou um sorriso torto.
– Suponho que terei sido eu.
Havia uma parte desta equação que eu ainda não tinha descoberto, mas,
antes que pudesse perguntar, Eve fez-me um gesto para que voltasse a montar
a Luger e não dissesse mais nada. Mudei de tática.
– Como vamos fazer para o encontrar? Ele já não se chamará Du
Malassis, terá certamente mudado de nome outra vez. – Encaixei o ferrolho
na armação. – Para onde terá fugido depois de Limoges? – E que excitação
saber que não estávamos apenas à procura de um velho especulador ou de um
velho inimigo… mas de um assassino.
– Conheço um oficial inglês com quem posso falar – revelou Eve,
permitindo a mudança na conversa. – Alguém dessa época. Ele dirigia redes
de espiões como a minha e continuou a fazê-lo na última guerra. Está
atualmente sediado em Bordéus. Tentei telefonar-lhe de Londres, mas ele
estava de férias, na caça aos patos. Já deve ter voltado. Se existe alguém
capaz de descobrir informações sobre um antigo colaborador, é ele.
Perguntei-me se ele seria o Capitão Cameron, de quem ela falara. Pelo
que contara, parecia ser boa pessoa. Queria conhecê-lo, para ver se coincidia
com a imagem mental que eu criara, mas tinha o meu próprio rasto para
seguir.
– Contacte o seu amigo em Bordéus, Eve – disse-lhe. – Eu levo o Finn e o
carro, para irmos à procura da minha prima.
Eve ergueu uma sobrancelha, ao mesmo tempo que me mostrava como
pressionar o cano da Luger para aliviar a pressão da mola.
– À procura da tua prima? Se ela ainda estiver viva, pode estar em
qualquer lugar.
– A minha tia disse que ela tinha sido enviada para uma aldeia nos
arredores de Limoges para ter o bebé. O tipo de sítio totalmente isolado para
onde se mandam as raparigas caídas em desgraça. – Começava a perceber
como a pistola funcionava; as peças encaixavam facilmente nos meus dedos
oleados. – A Rose ficou lá até ter o bebé e, quatro meses mais tarde, veio
trabalhar para Limoges. Mas talvez tenha deixado o bebé na aldeia ao
cuidado de uma família. Talvez tenha voltado à aldeia quando deixou de
trabalhar no Le Lethe. Quem sabe? É uma aldeia pequena, onde toda a gente
conhece toda a gente. Alguém vai certamente reconhecer a Rose. – Encolhi
os ombros. – É um começo, pelo menos.
– É um bom p-plano – concordou Eve, e subitamente corei de orgulho. –
Desmonta a pistola outra vez. – Desmontei a Luger e a Eve começou a contar
outra história: o fim de semana que ela e René Bordelon tinham passado ali,
no verão de 1915. – Viemos de comboio e ele levou-me a comprar um
vestido novo. Uma coisa era eu subir ao apartamento dele na minha farda de
trabalho; outra era ele ser visto na rua ou no teatro comigo vestida assim. Era
um vestido em seda, do costureiro Poiret, de cor verde amêndoa, detalhes em
veludo preto e 43 botões forrados nas costas. Ele mesmo os contou, à medida
que os ia desapertando.
Voltei a montar o retém do ferrolho, a pensar no que Eve planeava fazer
quando encontrasse o seu velho inimigo. Fazer com que o prendessem? Toda
a gente sabia que os franceses tratavam os colaboradores com dureza. Ou
simplesmente confiar à Luger o destino dele? Não afastei de todo esta
possibilidade.
O que te fez ele, Eve? E o que lhe fizeste?
Ela estava a contar-me como a água do rio em Limoges era cinzenta, da
primeira vez que ali estivera, e não o azul vivo que apresentava por aqueles
dias. Como as folhas tinham esvoaçado em redor dos seus sapatos novos de
verniz, comprados para combinar com o vestido verde amêndoa.
– Lembra-se de tudo tão vivamente – comentei, entregando-lhe a pistola
limpa e oleada.
– É verdade. – Eve bebeu de golada o resto do whisky. – Foi esse o fim de
semana em que não me veio o período e eu comecei a recear que o René me
tivesse engravidado.
Capítulo 22
Eve
Setembro de 1915
Domingo. Dia santo, dia abençoado, dia irónico, pois era o dia em que
Eve decidira fazer algo que seria suficiente para a maioria dos homens lhe
chamarem prostituta assassina, mesmo que fosse só pelo facto de pensar
nessa possibilidade. Só poderia ser domingo, porque o Le Lethe estava
fechado nesse dia. Isso significava que ela tinha o dia inteiro para sangrar e
morrer ou sangrar e recuperar.
– E se eu morrer? – conseguiu Eve perguntar, quando Violette chegou
com um saco de instrumentos emprestados. – Durante a operação ou…
depois?
– Deixo-te aqui e nunca mais volto. – Violette estava a ser pragmática. –
Não poderia fazer outra coisa. Se tentasse fazer-te um funeral, seria presa.
Provavelmente, o teu vizinho encontrar-te-ia um ou dois dias depois, e depois
terias um enterro em vala comum e a Lili notificaria o Tio Edward.
A realidade sórdida daqueles planos atingiu Eve como a estocada de uma
faca.
– Bem. Vamos l-lá a isto então. – E tenta não morrer.
– Deita-te e não te mexas. – Violette disse aquilo vezes sem conta naquela
tarde. Eve não sabia porquê; ela ficou deitada e imóvel como uma estátua de
mármore num túmulo. Talvez fosse para a tranquilizar. Tinham posto lençóis
limpos por cima da cama; Violette vestira um avental de trespasse à frente,
seguramente do tempo da Cruz Vermelha, e a voz tinha uma secura própria
de enfermeira. Os instrumentos cintilavam em cima de um pano dobrado,
mas Eve preferia não olhar para eles. Despiu as combinações, a roupa interior
e as meias, toda a roupa abaixo da cintura, e deitou-se. Frio. Sentia frio.
– Láudano – disse Violette, tirando a tampa a um pequeno frasco de
vidro; Eve abriu obedientemente a boca, engolindo as gotas. – Vais sentir
dor, aviso-te já. – A voz dela era brusca e autoritária, e Eve recordou Lili:
Não tenhas dúvidas de que, independentemente do que ela faça, ser chata
anda a par com ser enfermeira. Naquele momento, Eve achou isso
reconfortante.
Violette desinfetou os instrumentos com algo assético. Depois, limpou os
dedos com a mesma solução de cheiro intenso e aqueceu o metal dos
instrumentos entre as mãos.
– Os médicos – disse – nunca aquecem os instrumentos. Não se
apercebem de que sentimos o frio do metal nas nossas partes privadas.
O láudano já fazia a cabeça de Eve andar à roda. Via o quarto desfocado.
Sentia o corpo adormecido e pesado.
– Já alguma vez fizeste isto? – ouviu-se a perguntar, ao longe.
– Uma vez – respondeu bruscamente Violette. – No início deste ano, à
irmã mais nova do Antoine, Aurélie. Ela trabalha para nós, acompanha os
mensageiros para que os habitantes locais não desconfiem, e foi apanhada à
noite por uns soldados alemães que se queriam divertir. Só tem 19 anos,
coitada. A família veio falar comigo, quando descobriu que os filhos da puta
a tinham deixado enceinte.
– Ela sobreviveu… a isto? – Eve olhou para os instrumentos nas mãos de
Violette.
– Sim, e depois voltou logo a trabalhar para a rede. Uma jovem boa e
valente, é o que é.
Se ela o fez, eu também posso, pensou Eve. Mas não conseguiu evitar
retrair-se quando sentiu as mãos de Violette a abrirem-lhe os joelhos nus e a
ouviu dizer:
– Prepara-te.
Apesar dos esforços de Violette para aquecer o instrumento, Eve gelou
por dentro. A dor, quando surgiu, foi aguda. “Não te mexas”, chegou a
ordem, embora Eve estivesse imóvel. Violette fez algo, Eve não soube bem o
quê, sentia tudo muito distante. A dor apareceu subitamente, depois
desapareceu gradualmente. Voltou a aparecer e a desaparecer. Frio. Eve
fechou os olhos, desejando que tudo passasse rápido, muito rápido. Não te
mexas.
Os instrumentos já não estavam ali. Estava feito, mas ainda não
terminado. Violette dizia algo.
– … vai haver sangue. Não entras em pânico ao ver sangue, pois não?
– Eu não entro em pânico com nada – disse Eve, por entre os lábios
dormentes, e Violette soltou um sorriso relutante.
– Lá isso é verdade. Quando te vi pela primeira vez, pensei que não
tardarias uma semana a correr para os braços da mamã a gritar.
– Dói. – Eve ouviu-se a dizer. – Dói.
– Eu sei – anuiu Violette, dando-lhe mais algumas gotas de láudano.
Amargo. Porque é que tudo em Lille era amargo, exceto o que vinha de
René? Ele era fonte de comida boa, vinho delicioso e chávenas de chocolat
quente, ao passo que tudo o que era partilhado com Lili e Violette era amargo
e nojento. Em Lille, tudo estava de pernas para o ar: o mal era delicioso e o
bem sabia a bílis.
Violette retirava os panos ensanguentados para o lado, substituindo-os por
outro limpos, sob as ancas e entre as pernas de Eve.
– Está tudo a correr bem – disse ela. – Não te mexas.
Os sinos da igreja tocaram, sinalizando a missa da tarde. Iria alguém à
missa? Alguém pensaria que rezar fazia algum bem a este lugar?
– Lille – disse Eve, ouvindo-se a si mesma citar Baudelaire. – Seus negros
encantos, seu cortejo infernal de alarmes, seus frascos de veneno e seus
prantos, seus barulhos de correntes e ossos…
– Estás a divagar – observou Violette. – Tenta não te mexer.
– Eu sei que estou a divagar – respondeu Eve. – E estou quieta, sua cabra
mandona.
– Ah, isso é que é gratidão – comentou Violette, enquanto cobria Eve com
mais cobertores.
– Tenho frio.
– Eu sei.
E Eve chorou violentamente. Não de dor nem de tristeza. De alívio. René
Bordelon já não tinha controlo sobre o seu futuro e o alívio que Eve sentiu
trouxe lágrimas em catadupa.
– Vocês não foram convidados para jantar – disse Eve para o Finn e para
mim. – Nenhum dos dois.
A chamada telefónica que ela fizera para o oficial inglês dera frutos: ele
vinha de Bordéus nessa noite jantar ao hotel. Eve colocou a sua máscara
feroz logo depois de o encontro se ter confirmado, mas naquele momento eu
era capaz de ver um pouco para lá da máscara. Comecei a olhar para ela com
admiração desde que ela me contou que ficara grávida. Grávida. Tinha
praticamente a minha idade, na altura, e foi apanhada na mesma situação – só
que ela passava fome numa cidade cheia de inimigos, que a teriam levado
para a frente de um pelotão de fuzilamento, se tivessem descoberto para
quem ela realmente trabalhava. De repente, por comparação, o meu Pequeno
Problema parecia bastante mais pequeno. Eu sabia o que me haviam ensinado
em pequena – o que ela tinha feito estava errado –, mas não conseguia
condenar Eve. Ela foi engolida numa guerra e não teve outra alternativa. Na
verdade, eu admirava-a por continuar o seu trabalho.
Eu sabia que ela repudiaria qualquer gesto meu de admiração, por isso
limitei-me a sorrir.
– Diga-me só uma coisa: é o Capitão Cameron com quem se vai encontrar
esta noite?
Eve encolheu os ombros, misteriosa como sempre:
– Não ias para a tal aldeia onde a tua prima viveu?
– Sim. – Estávamos em Limoges havia três dias. Por mim, já teríamos ido
à aldeia da Rose, mas Finn tinha mais alguns arranjos para fazer às entranhas
do Lagonda, antes de poder confiar no velho carro para fazer a viagem.
Naquele dia, declarou finalmente que estava pronto, pelo que íamos partir,
deixando a Eve no hotel para jantar com o seu misterioso companheiro.
– O que achas? – perguntei eu a Finn, deslizando para o banco do
passageiro. – Que a pessoa com quem ela se vai encontrar é o Capitão
Cameron?
– Não me surpreenderia.
– Achas que voltaremos a tempo de o ver?
– Isso depende, não é? – Ele ajustou a mistura de ar e combustível do
Lagonda e adiantou o tempo de injeção. – Depende do facto de descobrirmos
alguma coisa sobre a tua prima ou não.
Estremeci, devido à expectativa, por um lado, e ao medo, por outro,
enquanto arrancávamos rua abaixo.
– Hoje pode ser o grande dia.
Finn sorriu em resposta, conduzindo o Lagonda a um ritmo lento, só com
um braço no volante. Usava a habitual camisa coçada com as mangas
arregaçadas, mas tinha feito a barba; o rosto estava macio, em vez de áspero,
e eu tive vontade de me esticar e de lhe passar a mão pela face. Desejei tanto
fazê-lo que tive de me forçar a manter as mãos apropriadamente cruzadas no
regaço. Como era possível sentir que estava mais alguém no Lagonda,
quando Eve nem sequer estava ali?
– Não devemos demorar a lá chegar – disse eu, só para não ficar calada.
De acordo com o mapa amarrotado de Finn, o nosso destino ficava a apenas
25 quilómetros a oeste de Limoges.
– Acho que sim – confirmou Finn, enquanto passávamos por um campo
cercado, onde vacas pastavam calmamente, com uma casa de quinta ao longe,
feita de pedra cinzenta. Passámos rapidamente pelos arredores de Limoges e
estávamos em plena província, com estradas estreitas e caminhos de terra
batida. Não podia ser mais pitoresco e eu ali sentada, dura como uma
prancha. Não sabia por que razão me sentia nervosa, mas sentia. Finn tinha
respondido ao meu beijo, algumas noites antes, mas não falara no assunto
desde então. Eu queria que as coisas se desenrolassem, mas não sabia como.
Eu podia ser um ás a fazer contas, mas era um desastre na arte de cortejar.
– Diz-me outra vez qual é o nome da aldeia? – perguntou o Finn,
quebrando o meu estranho remoinho de pensamentos.
– Oradour-sur-Glane. – No velho mapa das estradas, parecia um lugar
muito pequeno. Era difícil imaginar Rose numa aldeia francesa tão pequena
que nem sequer podia ser chamada vila. Ela, que sempre sonhara com os
boulevards de Paris e as luzes de Hollywood. Recordei as palavras de Rose:
Em caso de emergência, Nova Iorque. Nova Iorque é suficientemente chique
para mim. Em vez disso, ela viera para Oradour-sur-Glane, uma aldeia no
meio do nada.
O Lagonda fez a curva, seguindo ao longo de um muro de pedra
salpicado de flores silvestres, e eu vi uma menina a caminhar descalça por
cima do muro, de braços abertos para se equilibrar. Tinha cabelo escuro, mas,
aos meus olhos, logo se transformou na Rose, com os caracóis louros a
baloiçar sobre um vestido azul de verão, o mesmo que eu lhe tinha visto
havia tanto tempo. Fui tomada por uma onda de premonição tão intensa que
era quase uma certeza. Estás em Oradour-sur-Glane, pensei. Eu sei que
estás. Mostra-me o caminho e eu encontrar-te-ei.
– Não vamos chegar lá mais depressa com a ajuda da tua sandália –
comentou Finn e, ao olhar para baixo, dei conta de que o meu pé pressionava
o chão como se fosse um pedal. – Porque estás sentada dessa forma, como se
estivesses na missa?
– Como assim?
Chegámos a uma ponte de pedra e deparámo-nos com uma bicicleta que a
atravessava na direção contrária. Finn travou para a deixar passar, depois
inclinou-se para o chão, agarrou-me os tornozelos e colocou os meus pés em
cima do assento.
– Normalmente, sentas-te assim, com as pernas encolhidas.
Corei e ele voltou a pôr o carro em movimento. Os dedos dele quase
davam a volta ao meu tornozelo. Desejei que as minhas pernas não fossem
tão magras. Eu vestia uma saia vermelha justa, que tinha comprado em Paris,
e uma camisa branca larga, com botões como as camisas de homem,
arregaçada até aos cotovelos e atada na cintura, em vez de estar por dentro da
saia, e sabia que me ficava muito bem – ainda assim, desejava que as minhas
pernas não fossem tão magras. Rose tinha pernas bonitas, mesmo aos 13
anos. A primeira coisa que eu faria quando a encontrasse era dar-lhe um
abraço até ela não conseguir respirar; depois, pedir-lhe as pernas
emprestadas.
– Acho que nos enganámos no caminho – disse Finn, alguns minutos mais
tarde. – Estamos a ir para sul, não para oeste. Estas estradas sem sinais… Ali,
espera um momento.
Parou o carro à frente de uma loja com um expositor de postais e um gato
a dormitar à porta. O gato bocejou quando o Finn passou por cima dele para
ir falar com o dono, no seu francês tosco com sotaque escocês. A Rose e eu
podemos arranjar um gato, sonhei acordada, enquanto o gato lambia a cauda.
O meu querido falecido Donald (Deus dê paz à sua alma) não me deixava ter
gatos porque o faziam espirrar. “Decidi que odeio o Donald”, disse Rose na
minha imaginação. “Não podias, pelo menos, ter inventado um marido morto
que fosse simpático?”
– Estás a sorrir – observou Finn, voltando para o carro, com o motor
ainda a trabalhar.
– Estava a pensar no que vais achar da minha prima, quando a
conheceres. Bem, não há nada a pensar. Toda a gente gosta da Rose.
– Ela é parecida contigo?
– Em nada. É mais engraçada, mais corajosa. Bonita.
Finn preparava-se para voltar à estrada, mas, ao ouvir-me, parou e lançou-
me um olhar prolongado com os seus olhos escuros. Por fim, desligou o
motor do carro, aproximou-se e puxou-me contra ele no banco do carro.
Passando a mão pelo meu cabelo, encostou os lábios ao meu ouvido:
– Charlie, miúda. – O hálito era quente e, quando me beijou o pescoço,
por baixo da orelha, senti uma faísca a percorrer toda a superfície da minha
pele. – Tu. – Beijou o canto do meu maxilar. – És. – Beijou o canto da minha
boca. – Corajosa. – Beijou os meus lábios, muito suavemente. – E bonita.
Linda como um dia de primavera.
– Sabes o que se diz dos homens escoceses, não sabes? – consegui dizer.
– Que são todos uns mentirosos.
– Isso são os irlandeses. Não se dizem esses disparates dos escoceses.
A boca dele voltou a encontrar a minha e beijou-me durante algum tempo.
Ouvi vagamente a campainha de uma bicicleta a passar por nós, mas eu tinha
os meus braços apertados à volta do pescoço do Finn e o meu coração
estrondeava no peito firme dele.
Por fim, ele afastou-se, mas continuou a abraçar-me a seu lado.
– Era capaz de ficar aqui a tarde toda – disse ele. – Mas que tal irmos à
procura da tua prima?
– OK – retorqui simplesmente. Havia muito tempo que não me sentia
assim tão feliz.
– Queres conduzir um pouco?
Olhei para ele, e Finn sorriu.
– Confias-me o teu velhote?
– Vem para aqui.
Trocámos de lugares. Estiquei os meus pés para chegar aos pedais, ainda
a sorrir. Finn explicou-me como ligar o carro:
– Se o motor estivesse frio, ajustávamos para uma mistura de ar e
combustível mais rica, mas, neste caso, ajustamos mais para o centro.
Por fim, dei a volta ao Lagonda, em direção a oeste. Ele ronronou nas
minhas mãos.
– Curioso – comentou Finn. – O velhote da loja que me deu as direções…
olhou para mim de um modo estranho, quando lhe disse que queria ir para
Oradour-sur-Glane.
– Que tipo de olhar?
– Estranho.
– Hum. – Passei a mão pelo volante do Lagonda, sentindo no meu braço o
toque macio da manga de Finn. Os raios quentes do sol aqueciam a minha
cabeça e enquanto conduzia o descapotável pela estrada fora, comecei a
cantarolar entre dentes La Vie en Rose. Eu queria ficar neste carro para
sempre.
A noite caía, a segunda desde que eu descobrira que Rose estava morta.
Ainda receava o que poderia aparecer nos meus sonhos, mas não me queria
embebedar outra vez para esquecer. A minha cabeça parara de doer não havia
muito tempo.
Eu já devia estar lá em baixo para jantar com Eve e Finn, mas continuava
a rebuscar as minhas roupas à procura de alguma coisa limpa. Não tinha
lavado nada desde Oradour-sur-Glane e tudo o que me restava era um vestido
preto que eu tinha regateado e comprado àquela mulher parisiense. Tinha
corte a direito, simples, severo e geométrico, de gola alta, mas com decote
fundo atrás, e colava-se ao meu corpo desprovido de curvas, em vez de as
tentar disfarçar. “Très chic”, ouvia eu Rose dizer, a rir-se, e fechei os olhos
com força, porque ela dissera o mesmo quando eu tinha 7 anos e ambas nos
tínhamos metido no armário da minha mãe a experimentar os vestidos de
noite dela. Rose, de lantejoulas Schiaparelli, a puxar para baixo a sua blusa à
marinheiro nos ombros e a arrastar metros e metros de tafetá preto, a rir e a
dizer “très chic”, enquanto eu cambaleava em cima de uns sapatos de salto
em cetim, demasiado grandes para os meus pés.
Pestanejei, afastando a recordação, e olhei para o espelho pouco firme do
meu quarto de hotel. Rose teria gostado do vestido preto, pensei, e desci para
jantar.
Eve, Finn e eu tomávamos as nossas refeições no café ao lado: pequeno,
confortável, muito francês, com toldos vermelhos e toalhas de mesa às riscas.
Alguém tinha acabado de ligar o rádio, que tocava Edith Piaf. Claro que era
Edith Piaf. Les trois cloches, Os Três Sinos, e perguntei-me se os sinos da
igreja teriam tocado em Oradour-sur-Glane, quando as mulheres se reuniram
no interior do edifício.
Vi a mão deformada de Eve a acenar da mesa mais afastada e caminhei na
direção deles, desviando-me dos empregados e das suas bandejas.
– Olá, ianque – saudou ela. – O Finn contou-me que vocês conheceram o
Major Allenton. Ele não é uma preciosidade?
– Bigode estúpido.
– Estive quase a arrancá-lo com as minhas próprias mãos, certa vez. – Eve
abanou a cabeça, revirando um pedaço de baguete com os dedos. – Quem me
dera tê-lo feito.
Finn estava sentado em frente a Eve, com o cotovelo em cima do encosto
da cadeira. Não disse nada, mas vi que ele observava o meu vestido preto.
Recordei como tínhamos acordado nessa manhã, enroscados um no outro, a
tresandar a whisky, e tentei cruzar o olhar com ele, mas ele evitou-me.
– O Finn contou-me de Oradour-sur-Glane. – Eve olhou-me nos olhos. –
E da tua prima.
Edith Piaf chilreava Les Trois Cloches atrás de mim. Esperei que Eve
dissesse “eu bem te disse”, que dissesse que bem sabia desde o início que eu
estava enganada.
– Lamento – ofereceu ela. – Se serve de consolo, quando se p-perde um
amigo. Não serve de nada, ainda assim, lamento.
Descerrei os dentes.
– A Rose está morta. Eu… eu não… – Parei. Recomecei. – O que
fazemos agora?
– Bem – começou Eve –, eu continuo à procura do René Bordelon.
– Desejo-lhe sorte. – Tirei um pedaço de baguete. Finn rodava o copo de
água entre os dedos compridos, silencioso.
As sobrancelhas de Eve ergueram-se.
– Pensei que também o quisesses encontrar.
– Só porque achei que ele me podia levar até à Rose.
Eve soltou um suspiro. A sua bebida, junto ao cotovelo, só estava a meio
e os olhos tinham um brilho contemplativo.
– Talvez a caça ao homem ainda te possa interessar. O Allenton, apesar
de ser um idiota, contou-me algumas coisas fascinantes.
– E porque é que a Eve quer encontrar o René? – reagi, irritada. – Disse-
nos que ele era um especulador e que o espiava. – Que dormira com ele para
obter informações, que ele a engravidara e que ela tratara do assunto. Mas eu
não podia falar disto num café onde os empregados apareciam de todos os
lados. – Que mais há de tão mau para que um velho de 72 anos tenha de ser
caçado como uma perdiz?
Os olhos dela brilharam.
– E tem de haver mais alguma coisa?
– Sim. Está relacionado com as suas medalhas? Aquelas Croix de Guerre
e a Ordem do Império Britânico? – Olhei fixamente para ela. – Está na hora
de nos contar tudo, Eve. Pare de insinuar e comece a contar tudo tintim por
tintim.
Finn levantou-se repentinamente e dirigiu-se ao bar.
– Ele está cá com um mau humor – comentou Eve, observando o
motorista a abrir caminho entre os clientes do café. – Oradour-sur-Glane deve
ter mexido com alguma coisa. – De seguida, voltou-se para mim, lançando-
me um olhar apreciativo. – És corajosa, ianque?
– O quê?
– Preciso de saber. A tua p-prima está morta. E agora? Vais voltar para
casa e tricotar botinhas de bebé? Ou queres fazer algo mais estimulante?
Aquelas palavras acertaram de forma precisa na pergunta que eu andava a
matutar. E agora, Charlie St. Clair?
– E como vou saber se quero ou não, se a Eve não me diz o que é?
– Tem que ver com uma amiga – revelou ela. – Uma mulher loura com
uma gargalhada cheia de sol e coragem suficiente para atear o mundo.
Rose?, pensei.
– Lili. – A Eve sorriu. – Louise de Bettignies, Alice Dubois, quem sabe
quantos mais nomes ela tinha. Para mim, foi sempre Lili. A melhor amiga
que alguém pode ter.
Lili. Com que então, Eve tinha uma Lili, tal como eu tinha a Rose.
– Tantas flores.
– No que toca a mulheres, há dois tipos de flores – disse Eve. – O tipo que
se sente segura numa jarra bonita ou o tipo que sobrevive em quaisquer
condições… até mesmo no meio do mal. Lili era do segundo tipo. Qual das
duas és tu?
Eu gostava de pensar que também era do segundo tipo. Mas o mal (que
melodramática soava a palavra) nunca me tinha testado, como o fizera com
Eve ou Rose ou a esta desconhecida Lili. Nunca me cruzara com o mal,
apenas com tristeza e fracasso e escolhas erradas. Balbuciei umas palavras
dentro desta linha de pensamento e apressei-me a fazer uma pergunta.
– A Eve nunca mencionou qualquer amiga do tempo da guerra. Nem por
uma única vez. Por isso, se a Lili foi a melhor amiga que a Eve alguma vez
teve, que mais foi ela? Porque era ela tão importante?
Eve começou a falar e eu fiquei imóvel a ouvir. Contou-me do primeiro
encontro com Lili em Le Havre. Do “Bem-vinda à Rede Alice”, dito com
ironia na sua voz calorosa. Do aperto de mãos repleto de esperança, enquanto
observavam o ataque falhado ao Kaiser. Das lágrimas derramadas, do
conselho amistoso, da sua detenção. As palavras de Eve desenhavam tão
vivamente Lili que eu quase conseguia ver a amiga dela diante de mim. Para
mim, ela era parecida com Rose, se Rose tivesse vivido até aos 35 anos.
– A sua amiga era muito especial – disse Finn quando a voz de Eve
esmoreceu. Ele juntara-se a nós um pouco antes de Eve ter começado a contar
a história de Lili, e estava sentado com a cerveja à sua frente, na qual mal
tocara. Pela expressão surpreendida dele, percebi que estas histórias eram tão
novas para ele como para mim. – Ela era um soldado e peras.
Eve terminou a bebida num longo trago.
– Oh, se era. Mais tarde, as pessoas começaram a chamá-la rainha das
espias. Houve outras redes de espionagem durante a primeira guerra, e mais
tarde conheci as histórias das mulheres que nelas trabalharam, mas nenhuma
foi tão rápida e precisa como a de Lili. Ela geria cerca de 100 informadores,
que cobriam dezenas de quilómetros de frente, só uma mulher… Todas as
altas patentes lamentaram a sua detenção. Sabiam que, com ela nas mãos dos
alemães, não voltariam a obter informações com a mesma qualidade. –
Mostrou um sorriso triste. – E, na verdade, não voltaram a ter.
Rose e eu, Finn e a menina cigana, Eve e Lili. Seríamos nós três
fantasmas à caça do passado, de mulheres perdidas no redemoinho da guerra?
Eu perdera Rose em Oradour-sur-Glane e Finn perdera a menina cigana em
Belsen, mas talvez Lili ainda estivesse viva e bem de saúde. Poderia Eve ser
curada do que a fazia sofrer, da culpa e da dor, se a pudesse ver novamente?
Abri a boca para perguntar sobre o destino de Lili, mas Eve já estava
novamente a falar, de olhos fixos em mim.
– Passei mais de 30 a-a-anos a tentar recuperar do que se passou em Lille.
É por isso que não deves demorar muito tempo a fazer o luto pela tua prima,
ianque. Porque não fazes ideia de como as semanas facilmente se
transformam em anos. Faz o teu luto: dá cabo de um quarto, bebe uma
cerveja, come um marinheiro, faz o que tiveres de fazer, mas arruma o
assunto. Gostes ou não, ela está morta e tu estás viva. – Eve levantou-se. – E
diz-me se decidires que és realmente uma fleur du mal, e eu dir-te-ei porque
deves vir comigo à procura do René Bordelon.
– Tens de ser sempre assim tão irritantemente enigmática? – murmurei,
mas Eve já se afastava no seu passo largo, deixando para trás o copo vazio.
Fiquei a observá-la, sentindo frustração e dor, como dois rios a colidirem
dentro de mim. E agora, Charlie St. Clair?
– Louise de Bettignies – repetiu Finn, de sobrolho carregado. – Rainha
das espias… Agora que penso nisso, acho que já ouvi falar dela.
Provavelmente, seria o título de um artigo sobre heroínas de guerra…
Ele calou-se, rodando a cerveja entre as mãos. Vi-o retrair-se e tornar-se
tenso, como tinha estado antes de as histórias de Eve o terem distraído, com a
habitual descontração dos seus braços compridos a transformarem-se em total
rigidez.
– O que se passa, Finn?
– Nada. – Ele não olhou para mim, limitou-se a observar fixamente o
espaço deixado pelas mesas, que tinham sido empurradas para o lado para
que as pessoas pudessem dançar, onde casais se moviam ao som da música. –
Este é o meu estado normal.
– Não, não é.
– Quando regressei do 63.° regimento, era assim que eu era, sempre.
O meu irmão costumava ficar tenso e de mau humor sempre que as
pessoas lhe perguntavam como era ter estado em Tarawa. Assumia a mesma
expressão fechada e, se as pessoas insistissem, explodia, gritava obscenidades
e saía disparado. Sentia-me sempre demasiado assustada para o seguir, temia
que ele também se zangasse violentamente comigo, mas naquele momento
desejava tê-lo seguido e pegado na mão dele, nem que fosse apenas por uma
vez. Queria só… segurar-lhe na mão, para ele saber que eu estava ali, que o
amava, que compreendia o sofrimento dele. Mas eu não tinha percebido nada
até ser demasiado tarde, até ele ter morrido.
Olhei para o rosto fechado de Finn e tive vontade de lhe dizer: Não é
demasiado tarde para ti. Mas eu sabia que ele não ouviria qualquer palavra
naquele estado, do mesmo modo que o James não as tinha ouvido, por isso
limitei-me a tocar-lhe na mão.
Ele sacudiu-a.
– Eu vou recuperar.
Será que alguma vez alguém recupera? Observei a cadeira onde Eve se
sentara. Três pessoas a perseguir recordações dolorosas por entre os destroços
de duas guerras; nenhum de nós parecia ter recuperado grande coisa. Pensei
no que Eve tinha dito. Talvez não precisássemos exatamente de recuperar,
mas de tentar. De outro modo, as semanas transformavam-se em meses e,
quando olhássemos para cima, como Eve, veríamos que se haviam
desperdiçado 30 anos.
A voz de Edith Piaff continuava a flutuar, vinda do rádio. Levantei-me.
– Queres dançar, Finn?
– Não.
Eu também não. Sentia os meus pés pesados como chumbo. Mas a Rose
adorava dançar. O meu irmão também – lembrei-me de quando dançara o
boogie-woogie com ele, sem jeito nenhum, na noite anterior a ele ter partido
para se juntar aos fuzileiros. Os dois já estariam na pista de dança a esta hora.
Por eles, eu podia arrastar os meus pés pesados.
Dirigi-me à multidão que dançava e um francês sorridente puxou-me.
Mexi-me em sincronia com o braço dele na minha cintura e depois aceitei o
braço do amigo dele na música seguinte. Não escutei nenhum dos seus
galanteios sussurrados em francês; limitei-me a fechar os olhos, a mexer os
pés e a tentar… Bem, não esquecer a nuvem de dor que pairava sobre mim,
mas pelo menos a tentar dançar debaixo dela. Os meus pés podiam estar
pesados, mas talvez um dia eu fosse capaz de sair de debaixo da nuvem a
dançar.
Por isso, continuei a mover-me ao som da música, uma após a outra,
enquanto Finn embalava a sua cerveja e me observava, e se calhar tudo teria
ficado bem, se não fosse a mulher cigana.
Eu tinha parado de dançar para apertar a minha sandália. Finn levantou-
se, para deitar fora a cerveja morta, e ambos vimos uma velha com um
carrinho de mão, vestida com xailes coloridos desbotados. Talvez não fosse
sequer cigana – tinha o rosto muito moreno e as saias garridas das ciganas,
mas como podia eu ter a certeza de que esse era o verdadeiro aspeto de uma
cigana? Ela resmoneou qualquer coisa e o dono do café apareceu a correr. A
mulher estendeu uma mão, a pedir, e ele abanou as mãos, como se um rato
tivesse passado a correr pela cozinha.
– Não quero pedintes aqui! – Ele deu um empurrão à mulher. – Vá-se
embora!
Ela afastou-se devagar, claramente habituada à situação. O dono do café
virou costas, limpando as mãos no avental.
– Cabra cigana – resmungou entre dentes. – Que pena não terem sido
todos levados e presos.
Vi o rosto de Finn ser invadido por uma onda de raiva absoluta.
Avancei na direção dele, mas ele já deixara cair a garrafa de cerveja, que
se desfez em mil estilhaços no chão. Finn atravessou o café em três passadas,
enterrou uma mão no colarinho do pasmado dono do café, deu-lhe um puxão
e atingiu-o em cheio com um soco dado de baixo para cima.
– Finn!
O meu grito perdeu-se por entre o som de estilhaços de louça, com o dono
do café a cair por cima de uma mesa e a estatelar-se no chão. Finn deu-lhe
um encontrão com a bota, virando-o de costas, a fúria ainda bem acesa nos
seus olhos, e vincou um joelho em cima do peito do homem.
– Seu… miserável… porco… de merda… – disse ele, com palavras
medidas e calmas, intercalando cada uma delas com um soco. Os murros
curtos e eficientes tinham o mesmo som de um macete de madeira a cair em
carne.
– Finn!
O meu coração parou. Tentei abrir caminho por entre mulheres agitadas e
homens que se erguiam das mesas com guardanapos ao pescoço, todos
desorientados e pasmados, mas um empregado chegou antes de mim e
agarrou no braço de Finn. Ele acertou um soco rápido e explosivo em cheio
no nariz do empregado e eu vi um espirro de sangue perfeitamente definido
atingir a toalha de uma mesa caída no chão. O empregado recuou,
cambaleante, e Finn dirigiu novamente a sua fúria para o dono, que gritava
enquanto tentava proteger o rosto.
Foram precisas seis pessoas para me fazer parar de lhe bater a cabeça
contra a ombreira da porta, dissera Finn sobre a rixa que o lançara na prisão.
Graças a Deus, fizeram-no antes que eu lhe rachasse a cabeça.
Eu podia não ser seis pessoas, mas não ia deixar que naquele dia uma
cabeça fosse rachada. Agarrei Finn pelo seu ombro tenso e rígido e puxei-o
para trás com toda a minha força.
– Finn, para!
Ele virou-se para trás, preparado para atacar quem o estava a tentar deter.
Os olhos arregalaram-se no instante em que me reconheceu e ele refreou a
pujança com que a sua mão vinha na minha direção, mas era demasiado tarde
para interromper o movimento. Os nós dos dedos dele atingiram o canto da
minha boca com força suficiente para eu sentir uma dor aguda. Recuei um
passo e levei instantaneamente a mão ao rosto.
Ele empalideceu subitamente, deixando cair a mão.
– Oh, meu Deus… – Ergueu-se, ignorando o homem que gemia no chão,
com o nariz cheio de sangue. – Meu Deus, Charlie…
Toquei os lábios com a mão, em choque.
– Não faz mal. – Na verdade, sentia-me aliviada por ele ter deixado de
esmurrar o dono do café e por já não ter a expressão de fúria absoluta no
rosto. O meu coração batia acelerado no peito, como se tivesse acabado de
fazer uma corrida. Dei um passo à frente para lhe tocar. – Não faz mal.
Ele retraiu-se. O seu olhar era de horror.
– Meu Deus – repetiu, e, trôpego, desatou a fugir de mim, do café e dos
clientes que sussurravam entre eles.
O dono do café estava a levantar-se do chão com a ajuda de alguns
empregados, confuso e zangado, mas nem sequer olhei para ele. Corri o mais
depressa que conseguia na direção que Finn tomara. Ele tinha passado o
auberge, por entre dois edifícios, e eu vi-o entrar na garagem, que ficava nas
traseiras. Segui-o por entre as filas de automóveis Peugeot e Citroën até à
silhueta comprida do Lagonda. Finn estava sentado no banco de trás, como
naquela noite em que tínhamos falado até às 3h00, em Roubaix. Tinha a
cabeça baixa e os ombros oscilavam ritmicamente; só me viu quando eu abri
a porta repentinamente e me sentei ao lado dele.
A voz dele soou abafada.
– Vai-te embora.
Peguei-lhe na mão.
– Estás magoado… – As mãos tinham feridas abertas nos nós dos dedos.
Eu não tinha um lenço, por isso toquei-lhe gentilmente na pele lacerada.
Ele tirou a mão e passou os dedos pelo cabelo.
– Queria tê-lo desfeito, àquele miserável porco de merda.
– E depois ias parar outra vez à prisão.
– Eu mereço estar na prisão. – Continuava encolhido, com os punhos
fechados entre o cabelo. – Eu bati-te, Charlie.
Toquei no meu lábio, sentindo que não tinha aberto ferida.
– Não sabias que era eu, Finn. Assim que me viste, paraste…
– Ainda assim acertei-te. – Olhou para mim nesse momento, os olhos
eram poços de culpa e raiva. – Estavas a tentar impedir que eu o matasse e eu
bati-te. Porque estás aqui, Charlie? Sentada no escuro com um homem mau
como eu?
– Não és um homem mau, Finn. Estás feito num caco, mas não és mau.
– Que sabes tu…
– Sei que o meu irmão não era mau quando esmurrava paredes e gritava
palavrões e ficava em pânico no meio da multidão! Ele não era mau, estava
destroçado. Como tu estás. Como está a Eve. Como eu estava, quando faltava
à escola para ficar na cama a chorar ou me deitava com rapazes de quem não
gostava. – Fixei o olhar no Finn, esforçando-me para que ele compreendesse.
– Mas ninguém tem de permanecer destroçado.
Queria tanto ajudá-lo. Pegar nele com as minhas mãos e colar todos os
cacos, como não tinha conseguido fazer com James. Como não tinha sequer
conseguido fazer com os meus pais, quando eles sofriam horrores pelo meu
irmão.
– Este lugar não é para ti. – A voz de Finn era áspera, cortante. Eu via a
tensão e a fúria a trespassarem-lhe novamente os ombros. – Devias ir para
casa. Ter o teu bebé, recomeçar a tua vida. Nada de bom resultará da
convivência com um par de almas destroçadas como a Gardiner e eu.
– Não vou a lado nenhum. – Voltei a tocar-lhe na mão.
Ele tirou a dele com brusquidão.
– Não.
– Porquê? – Na noite passada, tínhamo-nos sentado um ao lado do outro a
beber whisky; eu deitei a minha cabeça no ombro dele, ele afagou-me o
cabelo, e não houve desconforto entre nós. Mas naquele instante, Finn tinha
os nervos à flor da pele e o espaço entre nós vibrava de tensão.
– Sai do carro, Charlie.
– Porquê? – perguntei novamente. Não ia ceder naquele momento, era só
o que faltava.
– Porque quando estou com este mau humor, só me dá para beber, lutar
ou dar uma queca. – Ele olhava para a frente, para a escuridão, e as palavras
saíam-lhe num tom irado e monocórdico. – Ontem fiz a primeira, e há 20
minutos a segunda. Tudo o que quero agora é arrancar-te esse vestido preto. –
Ele olhou para mim e aquele olhar incendiou-me de alto a baixo. – Devias
mesmo ir embora.
Se eu o deixasse, ele ia ficar ali sentado a noite toda com a sua culpa, a
sua raiva e a sua menina cigana.
– Gostes ou não – disse eu, repetindo as palavras de Eve –, ela está morta
e tu estás vivo. Estamos ambos vivos. – Com isto, aproximei-me, deslizei os
dedos no cabelo dele e puxei-lhe a cabeça de encontro à minha.
As nossas bocas colidiram com brutalidade e não se separaram, mesmo
quando ele me levantou para que eu me sentasse no colo dele. As faces dele
estavam húmidas, tal como as minhas. Ele começou a arrancar o meu vestido
preto pelos ombros e eu a camisa dele pelos botões, despindo peça de roupa
após peça de roupa até ficarmos pele quente contra pele quente,
despreocupados com a possibilidade de alguém passar pelo Lagonda e nos
ver através das janelas. Na viagem para Oradour-sur-Glane Finn tinha-me
beijado com intensa ternura, mas naquele instante a boca dele era
destemperada, devorando a pela macia entre os meus seios, com as pestanas
dele a tocarem-me no peito. Encostei o rosto ao seu cabelo, enquanto as
minhas mãos deslizavam pelo torso esguio até ao cinto; ele parou por um
instante, com a respiração aos soluços e as mãos enormes nas minhas costas
nuas.
– Meu Deus, Charlie – disse ele, de modo pouco distinto. – Não era assim
que eu queria que isto acontecesse.
Talvez não houvesse flores, nem velas, nem romance. Mas isto, ali,
naquele momento, era o que ambos precisávamos. A noite anterior fora cheia
de torpor, sofrimento e vontade de esquecer – eu não podia continuar assim,
ou afundar-me-ia. E não ia deixar que Finn também se afundasse. Não o ia
perder, não como aos outros com quem falhei e perdi.
– Fica comigo – murmurei nos lábios de Finn, a minha respiração tão
irregular como a dele. – Fica comigo… – E não tardou que estivéssemos
enrolados ao comprido no banco de couro, com o meu vestido preto atirado
para o lado e a camisa e o cinto de Finn no chão.
Era normalmente nesta altura que a minha mente começava a vaguear
para longe do que estava a acontecer. Era o momento em que eu parava de
tentar sentir alguma coisa e tornava-me distante, desiludida por não sentir
nada – por concluir que a equação mais fácil do mundo, homem mais mulher,
igualava sempre zero. Não desta vez. A confusão agitada de braços e pernas
no banco de trás, a chiadeira do assento de couro e a respiração pesada eram
iguais a todas as outras situações, mas desta vez a minha mente não vagueou.
Eu estava derretida, ardente, tremente de desejo. Finn também tremia, a
sombra dele por cima de mim confundia-se com as outras sombras, as mãos
enredadas no meu cabelo magoavam-me por me agarrarem com tanta força e
a sua boca bebia-me a pele, no pescoço, nas orelhas, nos seios, como se ele
me pudesse devorar. Firmei os braços e as pernas à volta do seu corpo e
agarrei-me a ele como se estivesse a tentar trepar para dentro dele,
enterrando-lhe as unhas nas costas. Abraçámo-nos intensamente, pele com
pele, suados, mas ainda não estávamos suficientemente próximos. Puxei-o
para dentro de mim, escutando ao longe os meus gemidos, à medida que
íamos colidindo em ritmo desesperado e furioso. Foi rápido, selvagem e bom;
foi desarrumado e fez transpirar; fervilhou de vida. O rosto dele, pesado,
encostou-se ao meu, após o arrepio final que atravessou os nossos corpos, e
eu senti uma lágrima a cair entre as nossas faces unidas.
Não sabia se era minha ou dele. E não queria saber.
Não era uma lágrima de dor, e isso era suficiente.
Capítulo 28
Eve
Outubro de 1915
Se havia um dia da semana bom para se ser preso, era ao domingo. Era a
única noite da semana em que Eve não tinha de ir trabalhar, porque até o
decadente Le Lethe fechava no dia do Senhor. Eve regressou a Lille no
domingo à noite, sem precisar de faltar um turno. “Pequenas bênçãos”, disse
ela em voz alta. Estava um frio de rachar no interior do quarto e, embora nada
tivesse mudado – nem a cama estreita, nem o saco com fundo falso ao canto,
onde ela guardava a Luger –, o espaço tinha um ar abandonado. Violette não
entraria de rompante com as suas botas pesadas, queixando-se de que os
pilotos ingleses eram demasiado imprudentes para se manterem devidamente
escondidos. Lili não entraria alegremente com uma história sobre como tinha
subornado um guarda num posto de controlo com uma salsicha
contrabandeada. Eve olhou em redor, para o quarto pequeno e sem graça,
recordando as noites que elas tinham passado ali a fumar e a rir, e uma onda
de desespero atingiu-a com tanta força que quase parou de respirar. Ela tinha
um trabalho a fazer e iria fazê-lo – mas não haveria nele mais momentos de
alegria. Haveria dias passados no Le Lethe e noites na cama de René, e nada
mais. Ninguém usaria aquele quarto, exceto Eve.
Talvez o Antoine, pensou ela. Podemos arranjar um novo plano de
trabalho. Antoine, calmo e inabalável, era quem mais sabia sobre os
informadores de Lili, uma vez que fora ele a fazer os documentos falsos para
muitos deles, sob o balcão da sua livraria – talvez ele conseguisse reconstruir
a ronda de Lili para que outra pessoa a pudesse fazer. Tinham de encontrar
uma maneira de a retomar. Ela cedeu a uma onda de fadiga e deitou-se sem
sequer despir o casaco. Deveria estar com fome, mas alguma coisa a fez
imaginar o perfume da colónia de René – o facto de temer o momento em que
voltaria para ele, no dia seguinte, sem dúvida – e, mesmo sendo um cheiro
imaginado, deu-lhe uma volta ao estômago. Ela enterrou o nariz na almofada
baixa, tentando pensar no cheiro do chá e de tweed inglês. “Cameron”,
sussurrou ela, e a doce lembrança tátil do cabelo dele nas suas mãos, dos
lábios dele a beijarem-lhe o espaço atrás da orelha, surgiu-lhe no escuro.
Perguntou-se se ele lamentaria o tempo passado juntos nessa tarde.
Perguntou-se se ele a odiaria por o ter seduzido e depois saído
sorrateiramente. Perguntou-se…
Mas estava exausta pelo terror e pela prisão, pela dor e pelo amor, e o
sono abateu-se sobre ela como uma onda negra.
O dia seguinte estava limpo e frio, e Eve arrastou-se penosamente até ao
Le Lethe, embrulhada em roupa até à ponta do nariz. Normalmente, àquela
hora da tarde, o restaurante estava movimentado: empregados a pôr as mesas
para os primeiros clientes, cozinheiros a praguejar enquanto preparavam a
comida. Nessa noite, o Le Lethe estava às escuras e as cozinhas fechadas. Eve
parou, espantada, e depois desabotoou o casaco. Não havia qualquer letreiro
na porta ou no bar a dizer que o restaurante estaria fechado nessa noite, e
René gostava demasiado de lucros para fechar as portas sem necessidade.
Uma voz chegou-lhe do apartamento de René.
– Marguerite, és tu?
Eve hesitou, tentada a fingir que não ouvira nada e a voltar para o frio da
rua. Tinha os nervos à flor da pele, em alerta, mas suscitaria mais suspeitas se
saísse a correr.
– Sim, sou eu – respondeu.
– Sobe.
O escritório de René resplandecia de luz, embora as cortinas estivessem
fechadas. A lareira emitia calor do outro lado do tapete Aubusson e o
candeeiro multicolorido Tiffany refletia desenhos em azul safira e violeta
ametista na seda verde das paredes. René estava sentado no seu cadeirão
habitual, com um copo de vinho de Bordéus na mão.
– Ah. Cá estás tu – saudou ele.
Eve deixou que o seu espanto transparecesse.
– O restaurante não vai abrir?
– Hoje, não. – Ele marcou o livro que estava a ler com uma fita de seda
bordada e pô-lo de lado. Eve sentiu um arrepio, apesar de o sorriso dele
parecer amável. – Queria fazer-te uma surpresa.
Corre, disse uma voz muda na cabeça de Eve.
– Uma surpresa? – Ela entrelaçou as mãos atrás das costas, agarrando o
puxador da porta, que rodou silenciosamente. – Outro f-fim de semana fora?
O monsieur disse que gostava de visitar a G-Grasse…
– Não, outro tipo de surpresa. – René bebeu um gole de vinho, sem
pressa. – Uma surpresa que tu me vais dar.
Os dedos de Eve apertaram o puxador. Um movimento rápido e ela
poderia fugir.
– Vou?
– Sim. – René meteu a mão sob a almofada que estava em cima do braço
do cadeirão e tirou uma pistola. Apontou-a a Eve: uma Luger de 9mm P08,
exatamente igual à dela. Eve sabia que, àquela distância, um tiro lhe
perfuraria a cabeça muito antes de ela conseguir abrir a porta.
– Senta-te, querida. – René apontou com um gesto para o cadeirão à sua
frente. Ao sentar-se, Eve viu um risco no cano da arma. Ela conhecia bem
aquele risco, polia-o sempre que desmontava a sua arma. A Luger que René
tinha na mão não era apenas uma Luger, era a Luger dela. Subitamente, Eve
recordou o odor da colónia de René no seu quarto, na noite anterior, e o medo
atingiu-a como um comboio de mercadorias estridente.
René Bordelon tinha revistado o seu quarto. Tinha a sua pistola. Que mais
saberia ele?
– Marguerite Le François – disse René, como se estivesse para começar
um dos seus discursos sobre arte –, diz-me quem realmente és.
Não importava o que ela dizia ou deixava de dizer. Quer Eve insultasse
René, quer respondesse educadamente, quer se recusasse de todo a responder,
ele levantava a mão que agarrava o busto de Baudelaire e, num movimento
preciso e feroz, esmagava-lhe outra articulação.
Mesmo entre convulsões de dor, Eve conseguiu olhar para as mãos e
contar. Ao todo, as suas mãos tinham 28 articulações.
René esmagara nove delas até esse momento.
– Vou entregar-te aos alemães. – O tom da sua voz metálica era calmo,
mas ela sentia tensão e emoção para lá da superfície. – Antes disso, vais falar
comigo. Vais contar-me tudo o que eu quero saber.
Ele estava sentado em frente a ela, a bater levemente com o dedo no
cocuruto da cabeça de Baudelaire. A peça de mármore, antes imaculada,
estava naquele momento manchada de sangue. Ele tinha-lhe partido as
primeiras articulações de forma desajeitada, mostrando-se algo desastrado,
retraindo-se ao ouvir o ruído dos ossos a serem esmagados. Mas estava a
ficar mais hábil, embora o sangue ainda lhe fizesse dilatar as narinas de
aversão. Tens tanta prática nesta coisa de tortura quanto eu, pensou Eve. Ela
não fazia ideia de quanto tempo teria passado. O tempo tornara-se elástico,
moldando-se de acordo com a palpitação das suas dores. O lume tremeluzia
na lareira e os dois estavam sentados nos cadeirões de couro, com a mesinha
entre eles, como era habitual quando jogavam xadrez antes de se deitarem. Só
que naquele momento as mãos de Eve estavam em cima da mesa, atadas uma
à outra com o cinto de um dos robes de seda de René. Atadas com tanta força
que lhe doíam, atadas de tal maneira que ela não tinha esperança de se
conseguir libertar.
Não tentou. Fugir não era uma possibilidade. As únicas coisas que podia
fazer eram não falar e não mostrar medo. Por isso, manteve as costas direitas,
por mais que tivesse vontade de se enrolar por cima das mãos e guinchar de
dor, e conseguiu esboçar um sorriso para René. Ele nunca saberia o quanto
aquele sorriso lhe custava.
– Não preferes jogar xadrez? – sugeriu ela. – Deixei que me ensinasses,
porque a Marguerite era d-demasiado ignorante para saber jogar xadrez, mas
na verdade jogo bastante bem. Adorava jogar a sério contigo, em vez de
perder sempre de p-propósito para te fazer sentir superior.
O rosto dele contraiu-se de raiva. Eve mal teve tempo de se preparar,
quando o busto lhe acertou novamente na mão e se ouviu o já familiar ruído
de ossos a serem esmagados.
Ela gritou por entre os dentes cerrados, fazendo com que René levantasse
abruptamente o queixo. De início, ela disse a si mesma que não iria gritar,
mas cedeu à quinta articulação. Esta era a décima. Não conseguia fingir que
não doía. Também já não conseguia olhar diretamente para a mão. Pelo canto
do olho, via uma trapalhada de sangue, nódoas negras e articulações
grotescamente retorcidas. Todas as contusões tinham sido até aí produzidas
na sua mão direita – a esquerda permanecia ao lado, ilesa, cerrada num
punho.
– Quem é a mulher com quem foste presa? – A voz de René era tensa. –
Ela não pode ser o líder da rede local, mas é capaz de o conhecer.
Por dentro, Eve sorria. René e os boches subestimavam Lili.
Subestimavam tudo o que era feminino.
– O nome dela é Alice Dubois. Não é ninguém.
– Não acredito em ti.
Ele não acreditava em nada do que ela tinha dito até aí. Depois da sexta
articulação ter estourado numa explosão de sangue, Eve tinha tentado dar-lhe
falsas informações, qualquer coisa que a sua imaginação pudesse produzir.
Na esperança de o fazer parar. Mas nada o deteve, mesmo quando ela fingiu
que concordava em falar. Ele podia ser inexperiente nesta coisa da tortura,
mas mostrava muita vontade de praticar.
– Qual é o verdadeiro nome dela? Diz-me!
– Porquê? – reagiu Eve, com dificuldade. – Não vais acreditar em nada
que eu diga. Entrega-me aos b-boches e deixa-os fazer as perguntas. –
Naquele momento, ela desejava estar numa cela dos alemães. Eles iriam
certamente interrogá-la, talvez até a atirassem ao chão e lhe dessem uns
pontapés, mas não a odiariam pessoalmente, como René a odiava, por ter sido
atraiçoado e enganado por ela. Vá, entrega-me, rezou Eve, mordendo o lábio
por dentro para reprimir um gemido, sentindo o sabor do sangue.
– Não te vou entregar até arrancar a informação que pretendo – disse
René, como se lhe tivesse lido o pensamento. – Se quero que os alemães
ultrapassem a desconfiança que vão sentir por eu ter tomado como amante
uma espia, tenho de lhes oferecer algo valioso em troca. Se não o fizer, mais
vale poupar-me às suspeitas deles e matar-te já. – Pausa. – Ninguém vai fazer
perguntas sobre o paradeiro de uma empregada de mesa.
– Não me podes matar. Não ias conseguir safar-te. – Claro que ele se
safaria, ainda assim Eve começou a lançar-lhe dúvidas. Ela pensou nisso no
momento em que ele lhe apontou a pistola. – Achas que me podes levar a pé
do teu escritório para um sítio remoto qualquer, dar-me um tiro e deixar-me a
apodrecer no meio do matagal? Eu não ia parar de gritar e de dar luta durante
todo o caminho. Alguém nos iria ver.
– Posso matar-te aqui…
– E depois tinhas de me largar em algum sítio, sozinho. Os teus amigos
alemães podem dever-te favores, mas não vão querer livrar-se de um corpo
por ti. Pensas que vais conseguir levar um corpo para fora do teu restaurante
e desfazer-te dele sem que ninguém repare? Esta é a cidade dos espiões,
René, e não só de espiões ingleses, mas também alemães e franceses. Toda a
gente vê tudo. Nunca te vais conseguir safar…
Ah, sim, claro que conseguiria. Dinheiro, sorte e um bom plano tornavam
sempre possível escapar de um assassínio. Mesmo assim, Eve continuava a
atirar argumentos contrários e, pelo olhar de René, ela percebia que as
dúvidas surtiam efeito. Ele não tinha um plano firme e, apesar de ter a
situação sob tenso controlo, parecia estar hesitante. Fazes planos brilhantes,
pensou Eve, mas, ao contrário de mim, não tens nenhuma capacidade de
improvisação. René raramente era surpreendido por outras pessoas e, quando
era apanhado de surpresa, não fazia ideia de como proceder. Eve guardou
esse pensamento. Só Deus sabia se alguma vez ela poderia usar esse facto
contra ele, ainda assim guardou-o.
– Podia matar-te – disse ele, por fim –, mas prefiro arrancar-te todas as
informações que tens. Se eu conseguir dar aos alemães os nomes dos agentes
da rede que tantos estragos tem feito na zona, eles ficarão extremamente
agradecidos. Porque, tal como estão as coisas, eles não têm provas para
sentenciar à morte as duas mulheres que estão presas.
Eve também guardou essa informação.
René sorriu, os dedos a baterem levemente na cabeça de mármore de
Baudelaire, e ela sentiu um arrepio gelado dardejar-lhe pelo corpo inteiro,
exceto na sua mão destruída.
– Portanto… quem era a mulher, Eve?
– Ninguém.
– Mentirosa.
– Sim – replicou Eve, com raiva. – Sou mentirosa e tu sabes d-disso, e por
essa razão não vais acreditar em nada do que possa sair da minha boca. Não
fazes ideia de como c-conduzir este interrogatório. Estás a fazer isto não para
me sacar informações, mas porque eu te enganei. Estás a destruir-me porque
eu fui mais esperta do que tu.
Ele olhava fixamente para Eve, os lábios cerrados, duas manchas de cor a
brilharem-lhe nas faces, por baixo dos olhos.
– Tu não passas de uma cabra mentirosa.
– Vou dizer-te uma coisa na qual podes acreditar. – Eve inclinou-se para a
frente, por cima da mão mutilada. – Todo e cada gemido que dei na tua cama
foi fingido.
Ele baixou o busto com violência. A primeira articulação do polegar
direito foi despedaçada e, desta vez, Eve não conseguiu conter o grito entre
os dentes. Ao gritar, perguntou-se se os vizinhos a poderiam ouvir através das
janelas, das pesadas cortinas brocadas, das paredes grossas. Ninguém te pode
ajudar, mesmo que te ouçam. A cidade escura, lá fora, bem podia ficar do
outro lado do mundo. Deus, deixa-me desmaiar, rezou Eve, deixa-me
desmaiar – mas René pegou no copo a seu lado, atirou-lhe água ao rosto e o
mundo tornou-se subitamente nítido.
– O teu plano inicial era seduzir-me? – A voz dele era tensa.
– Tu caíste sozinho na armadilha, seu maricas cobardolas. – Eve
conseguiu emitir uma gargalhada, que soou mais como uma tosse, ao mesmo
tempo que a água deslizava pelo queixo abaixo. – Mas fiquei contente por o
teres feito. A maneira como depois a-abrias a boca na cama valia bem os
meus quatro minutos de gemidos e arfadas anteriores…
Ela tinha apenas três articulações intactas na mão direita e René partiu-as
todas numa sucessão de golpes que naquele momento se revelavam hábeis.
Eve soltou um grito lancinante. Um cheiro súbito e nauseabundo emergiu no
ar do escritório luxurioso. Indistintamente, por entre a dor agonizante, Eve
apercebeu-se de que perdera o controlo do corpo. Urina e fezes escorregaram
pelo couro macio do cadeirão de René, caindo no tapete Aubusson. Mesmo
por entre a agonia que lhe consumia a mão, ela sentiu-se esmagada por uma
onda profunda de vergonha.
– Que cabra imunda és – disse ele. – Não admira que eu insistisse em que
tomasses banho antes de te foder.
Foi assolada por uma nova onda de vergonha, mas o medo era mais forte.
Ela estava mais aterrorizada do que alguma vez pensara ser possível.
Encurralada – a palavra vinha-lhe constantemente ao pensamento, como um
rato a resvalar diante de um gato. Encurralada… encurralada. Ninguém viria
em sua ajuda. Era muito provável que morresse ali, no momento em que ele
se cansasse de lhe infligir dor e decidisse que lhe dava menos trabalho matá-
la com um tiro do que entregá-la aos alemães. Tinha a boca tão seca de terror
que parecia gravilha.
– Uma mão já está – comentou René, com indiferença, enquanto pousava
o busto. Os olhos dele brilhavam, talvez de excitação sexual, talvez da sua
própria vergonha – a vergonha de ter sido enganado. De qualquer modo, já
não se retraía nem dilatava as narinas por causa da sujidade, do sangue, dos
sons e dos cheiros. – Ainda tens a mão esquerda. É o suficiente para
continuarmos. Se começares a falar, poupo-te os restantes dedos. Diz-me
quem é a mulher que foi presa na estação. Diz-me quem liderava a rede. Diz-
me porque regressaste a Lille quando já tinhas fugido para Tournai.
Verdun, pensou Eve. Pelo menos, a mensagem tinha sido passada. Ela só
esperava que a mensagem pela qual ela e Lili tinham sido apanhadas pudesse
salvar vidas.
– Diz-me essas coisas e eu ligo-te a mão, dou-te láudano para as dores e
levo-te aos alemães. Até peço um cirurgião para reparar os teus dedos. –
René aproximou-se e afagou-lhe o rosto. O traço dos dedos dele trouxe a Eve
outra onda de sofrimento e um arrepio de repulsa tão profundo que os seus
ossos estremeceram. – Só tens de começar a falar.
– Não vais acreditar em mim, mesmo que eu…
– Vou sim, querida, vou sim. Porque creio que te quebrei. Acho que estás
finalmente pronta para falar a verdade.
Os olhos de Eve turvaram-se. Ela queria contar-lhe, essa era a parte
terrível. Tinha as palavras debaixo da língua: Trabalhei para a Louise de
Bettignies, nome de código Alice Dubois, e era ela quem geria a rede inteira.
Lili, cujo nome Eve nunca saberia se elas não tivessem encontrado aquele
general alemão na plataforma da estação de comboios. Se pelo menos isso
nunca tivesse acontecido.
Trabalhei para a Louise de Bettignies e ela liderava a rede – uma mulher
de metro e meio e valente como uma leoa. E, se ela estivesse aqui no meu
lugar, não diria uma só palavra, mesmo que perdesse os dedos todos.
Ou diria? Como saber o que alguém faria se lhe esmagassem 14
articulações de forma metódica?
Mas não era Lili quem estava naquela cadeira com as mãos atadas à sua
frente. Era Eve. Quem podia saber o que Lili faria? Eve só podia ter a certeza
do que Eve Gardiner faria.
– Quem é a mulher? – sussurrou René. – Quem é?
Eve desejou ser capaz de fazer um sorriso de escárnio, mas já não tinha
mais sorrisos para dar. Desejou ser capaz de dizer uma frase cortante, mas já
não lhe restavam insultos. Por isso, limitou-se a cuspir sangue na cara dele,
salpicando-lhe a face imaculadamente barbeada.
– Vai para o inferno, seu cabrão colaboracionista.
Os olhos dele incendiaram-se.
– Oh, querida… Obrigado – murmurou.
Ele pegou carinhosamente na mão esquerda de Eve. Ela fechou os dedos
num punho, resistindo, mas ele abriu-lhe a mão à força e espalmou-a em cima
da mesa, segurando-a enquanto pegava no pequeno busto de mármore. O
cabrão do Baudelaire, pensou Eve, mostrando os seus dentes ensanguentados
a René. O terror que sentia era avassalador.
– Quem é a mulher? – perguntou René, com prazer, posicionando o busto
por cima do dedo mindinho da mão esquerda de Eve.
– Mesmo que acreditasses em mim… – disse Eve – Não te vou dizer.
– Tens 14 possibilidades de mudar de ideias – avisou René, e baixou
brutalmente o busto.
Setembro de 1918
Era a primeira vez que Eve voltava a Inglaterra desde que a sua carreira
como espia começara. Folkestone, onde Cameron se tinha despedido de Eve,
quando ela partira de barco para Le Havre. E onde ele estava naquele
momento à espera dela, com o casaco até aos joelhos a ondular ao vento.
– Miss Gardiner – saudou ele, quando Eve saiu do ferry. Tinham passado
alguns meses desde que ela fora libertada, e Eve viveu esse tempo
praticamente todo dentro da banheira, a esfregar-se obsessivamente, enquanto
se faziam os preparativos em Louvain, onde era o seu alojamento temporário,
para a trazer de volta a Inglaterra.
– Capitão Cameron – respondeu ela. – Não… É Major Cameron, agora,
não é? – observou ela, fitando as insígnias dele. Para além destas, ele tinha a
fita azul e vermelha da Ordem de Serviços Distintos no lado esquerdo do
peito. – Falharam-me algumas n-n… notícias, estando fora.
– Contava trazê-la mais cedo para Inglaterra.
Eve encolheu os ombros. As mulheres de Siegburg tinham sido libertadas
antes de o Armistício ter sido sequer assinado, soltas das suas celas pelos
guardas derrotados e desmotivados da prisão, e fugiram em debandada, a
chorar e a rir, em direção aos comboios que as levariam para casa. Eve
também teria chorado de alegria, se tivesse Lili para lhe dar o braço a
caminho do comboio. Depois da morte de Lili, não lhe importava se saía de
Siegburg rapidamente ou não.
Os olhos de Cameron estudaram-na, registando as mudanças. Eve tinha
consciência de que continuava muito magra; o seu cabelo estava seco como
palha, devido aos tratamentos contra os piolhos, e fora cortado muito curto.
Manteve as mãos nos bolsos, para que ele não lhe pudesse ver os dedos
deformados, mas não podia fazer nada para esconder os olhos, que nunca
paravam quietos. Eve olhava constantemente em seu redor, com relances
rápidos, em busca de possíveis perigos de todos os lados. Até mesmo ali, no
cais, ela encostara-se à estaca mais próxima, como forma de proteção. Eve
reparou no aspeto chocado do olhar habitualmente firme de Cameron, à
medida que ele observava as marcas deixadas pelos últimos anos.
O tempo também não tinha sido meigo com ele: rugas profundas em redor
da boca, pequenos derrames na testa, cabelos grisalhos nas têmporas. Eu
amava-te, pensou Eve, mas era um pensamento vazio, quase sem sentido. Ela
costumava sentir muitas coisas, antes de Lili morrer. Agora, o que sentia era
sobretudo pesar, raiva e culpa – sentimentos que se devoravam uns aos outros
como serpentes com fome. E o sussurro interminável do seu sangue, que
dizia: Traidora.
– Pensei que iria haver fanfarra – disse Eve, por fim, acenando com a
cabeça para o cais vazio.
Tinha sido praticamente a única pessoa a desembarcar – depois de a
guerra terminar, Folkestone passou a ser um lugar bastante mais pacato –, e
não havia adidos militares em seu redor.
– O Major Allenton foi enviando mensagens. E não se calava com a ideia
de uma cerimónia de boas-vindas.
Aparentemente, Evelyn Gardiner era uma heroína. Tal como muitas das
suas colegas de prisão – Violette, ouviu Eve dizer, fora recebida com honras
em Roubaix, ao regressar a casa. Eve também seria recebida com honras, se
deixasse. Mas não ia deixar.
– Convenci o Allenton a desistir da ideia de uma receção pública –
revelou Cameron. – Ele queria que a Eve fosse recebida por alguns generais,
jornalistas e isso. E uma banda de música.
– Ainda bem que o convenceu. Embora me tivesse dado gozo bater-lhe
com uma tuba na cabeça. – Eve lançou a sacola por cima do ombro e
começou a avançar pelo cais.
– Pensei que a iria ver em França. – Cameron acompanhou-lhe o passo. –
No funeral da Louise de Bettignies.
– Tinha intenções de ir. – Eve viajou até Colónia, onde a sepultura
original de Lili fora aberta para que o seu corpo pudesse ser repatriado para
França, mas não chegou a sair do quarto de hotel. Em vez disso, acabou por
se embebedar e quase matou com um tiro a empregada que lhe foi levar o
jantar. A rapariga era atarracada e de rosto quadrado, como aquela mulher
horrível, a quem chamavam Sapo, que tinha despido e interrogado Eve e Lili
em Lille. Aquela recordação deixou Eve momentaneamente desorientada, e
ela respirou fundo a brisa do mar.
A voz de Cameron era grave.
– E porque não foi?
– N-N-Não consegui encarar a situação. – Ela tinha dito adeus a Lili
naquele corredor que tresandava a tifo e sangue. Não precisava de uma
sepultura oficial, com palmas e generais franceses. Mas não o disse a
Cameron, limitando-se a acelerar o passo, sentindo uma necessidade súbita
de se afastar dele.
O passo longo de Cameron apanhou-a.
– Vem alguém recebê-la? Tem sítio para ficar?
– Eu encontro alguma coisa.
A mão dele agarrou-lhe o cotovelo.
– Eve. Pare. Deixe-me ajudá-la, por amor de Deus.
Ela libertou-se com um puxão. Ele não tinha intenção de a magoar, mas
ela não suportava ser tocada. Havia muitas coisas que ela não suportava,
depois de sair da prisão. Janelas abertas. Multidões. Espaços abertos sem
cantos onde se encostar. Dormir…
– Chame-me Miss Gardiner, Cameron. É melhor assim. – Ela afastou o
olhar para o mar, evitando o rosto dele. Os olhos meigos de Cameron podiam
engoli-la, e Eve não podia ser meiga. Não naquele momento. – Conte-me… –
disse ela. – Nós n-n-não recebíamos muitas notícias da guerra, na prisão, e
agora ninguém quer falar de batalhas antigas. A última mensagem da Lili,
aquela sobre o ataque a Verdun. – Eve perguntava-se repetidamente como se
teria desenrolado o ataque e o que tinham eles mudado por terem recebido
aquela mensagem. – Como é que tudo aconteceu?
– Foi o comandante francês que recebeu a vossa informação. – Cameron
parecia querer parar por aí, mas o olhar de Eve trespassou-o e ele, apesar de
renitente, continuou. – O relatório sobre o ataque iminente foi transmitido,
mas eles não acreditaram. As perdas foram… bem. Muito más.
Eve fechou os olhos com força, sentindo algo subir-lhe pela garganta.
Uma gargalhada ou um grito.
– Então, de nada valeu. – De nada valera Lili abdicar da sua liberdade
para que o relatório pudesse passar; Eve deixar os braços adormecidos de
Cameron e voltar para o perigo mortal e arriscar a sua vida por aqueles
relatórios. Tudo fora em vão. Nada do que Eve ou Lili ou Violette fizeram
tinha evitado um banho de sangue. – Nada do que eu fiz em França teve
importância.
A voz dele soou forte.
– Não. Não pense assim. – Ele quis agarrar-lhe os ombros, mas sentiu-a
recuar. – A Rede Alice salvou centenas de pessoas, Eve. Talvez milhares.
Vocês foram a melhor rede de espionagem da guerra. Nenhuma outra, na
França ou na Bélgica, a igualou.
Eve sorriu, mas era um sorriso triste. Que importância tinham os elogios,
quando os fracassos eram tão maiores do que as vitórias? Aquela
oportunidade milagrosa de matar o Kaiser, em 1915: um fracasso. Impedir o
ataque a Verdun: um fracasso. Manter a rede a funcionar depois da detenção
de Lili: um fracasso.
Cameron continuava a falar.
– Não sei se terá lido as mensagens do Major Allenton. Ele diz que não
recebeu respostas suas. Mas a Eve foi agraciada com estas medalhas. Ele
queria congratulá-la no funeral da Louise. Ela recebeu as mesmas medalhas,
postumamente.
Eve recusou pegar no estojo e, depois de um momento de embaraço,
Cameron abriu-o. Quatro medalhas brilharam diante da vista desfocada de
Eve.
– A Medaille de Guerre. A Croix de Guerre, com palma. A Croix de la
Legion d’Honneur. E a Ordem do Império Britânico. Atribuída em
homenagem ao seu esforço de guerra.
Pedaços de lata. Eve tirou finalmente a mão do bolso e atirou-as ao chão,
a tremer.
– Não quero medalhas nenhumas.
– Então, o Major Allenton vai guardá-las por si…
– Ele sabe muito bem onde as pode meter!
Cameron apanhou as medalhas de Eve e voltou a colocá-las no estojo.
– Eu também não queria as minhas, acredite.
– Mas teve de as aceitar, porque ainda faz parte do exército. – Eve soltou
uma gargalhada que mais pareceu um latido de uma nota só. – O exército já
não me quer. Fiz a minha parte e a guerra terminou, por isso querem pregar-
me uns p-pedaços de lata no peito e mandar-me de volta para o meu trabalho
de secretária. Pois podem ficar com os malditos pedaços de lata e que vão
todos para o raio que os parta!
Cameron retraiu-se, ao ouvi-la falar assim. Baixou o olhar e Eve deu
conta de que não tinha voltado a meter a mão no bolso. Os olhos dele
dançaram entre os dedos e o rosto de Eve, como se ele estivesse a ver a
rapariga modesta e calada que tinha enviado para França com o seu saco de
viagem, as mãos macias e a sua inocência. A guerra, a tortura, a prisão e
René Bordelon tinham acontecido na vida de Eve, e nada mais restava dessa
rapariga. Naquele momento, ela era uma mulher destruída e defeituosa,
desbocada, com as mãos deformadas e desprovida de inocência. A culpa não
é sua, quis Eve dizer diante da mágoa cheia de culpa no olhar dele; mas ele
não acreditaria nela. Eve soltou um suspiro e encolheu os dedos disformes.
– Pensei que s-s-s… que soubesse – disse ela. – Foi passado um relatório.
– Saber não é a mesma coisa que ver. – Ele esticou o braço, como que a
querer agarrar-lhe a mão, mas parou a meio. Ela ficou satisfeita. Não queria
continuar a enxotá-lo; ele não o merecia. Foi a vez dele soltar um suspiro. –
Vamos tomar qualquer coisa.
Era um bar horrendo nas docas, o tipo de lugar onde mulheres roufenhas
enchiam copos sujos com gin, para os servir a homens já bêbedos às 10h00;
mas era precisamente isso de que Eve precisava: um sítio anónimo, reles e
sem janelas, para que ela não tivesse de se preocupar com a possibilidade de
ser apanhada de surpresa. Dois copos de gin, seguidos de uma cerveja
amarga, serenaram-lhe o pulso acelerado. Ela costumava orgulhar-se do seu
pulso calmo, algo que a ajudava em situações de perigo, mas havia muito
tempo que não conseguia manter a calma sob pressão. Talvez a última vez
tivesse sido no escritório de paredes verdes de René Bordelon.
René. Ela bebeu outro trago, sentindo o sabor do ódio juntamente com o
da cerveja. Em Siegburg, o ódio tinha um sabor amargo; naquele momento,
era doce. Porque ela já podia fazer alguma coisa. A sacola aos seus pés tinha
no interior uma Luger. Não a sua velha Luger, com o arranhão no cano, que
René lhe tinha tirado – mas também servia.
Cameron, apesar do seu aspeto distinto, emborcou o gin com tanta
sofreguidão como Eve, murmurando baixinho “Gabrielle”. Ao ver que Eve
erguia as sobrancelhas, ele explicou:
– Outra das minhas recrutas. Morta em abril de 16. Vou fazendo brindes
de rodada com aqueles que perdi. – Ele ergueu a cerveja e disse “Léon” antes
de dar mais um gole.
– E eu, fazia parte da sua rodada?
– Não, só os mortos confirmados. – Os olhos de Cameron voltaram a ter
aquela meiguice arrebatadora. – Após o seu julgamento, todas as semanas eu
temia receber a notícia da sua morte em Siegburg.
– Depois da Lili, quase morri.
Eles olharam um para o outro durante muito tempo, e depois pediram
mais uma rodada de gin.
– Lili.
Permaneceram em silêncio até que Cameron começou subitamente a falar
algo sobre uma pensão para Eve.
– Vai ser mais útil do que as medalhas. Eu sei que a Eve não tem família,
por isso pressionei o Ministério da Guerra para lhe dar uma pensão. Não é
muito, mas vai ajudá-la a sobreviver. Talvez a ajude a comprar uma casa em
Londres.
– Obrigada. – Eve não queria as medalhas, mas aceitaria uma pensão. Não
podia voltar a dactilografar, com as mãos assim, e precisava de dinheiro para
viver.
Cameron estudou-a.
– A sua gaguez está melhor.
– Na prisão, descobrimos que há coisas piores do que uma língua perra. –
Deu outro gole na cerveja. – E isto ajuda.
Ele pousou o copo.
– Eve, se eu puder…
– E então, o que vai fazer agora? – Ela interrompeu-o rapidamente, antes
que ele dissesse algo de que se pudesse arrepender.
– Mandaram-me para a Rússia por algum tempo, durante aquela altura
conturbada. Sibéria. As coisas que eu vi… – Ele ficou pálido por um
momento, e Eve perguntou-se o que ele estaria a ver nas neves russas através
da cortina da memória. Não lhe perguntou. – A seguir, vou para a Irlanda –
continuou ele. – Gerir uma escola de treino.
– Escola para quem?
– Pessoas como a Eve.
– Quem p-precisa de pessoas como eu? A guerra acabou.
Ele soltou um riso amargo.
– Há sempre uma guerra a seguir, Eve.
Eve não queria pensar na guerra a seguir ou na nova geração de espiões
jovens e tenros que seriam dados como alimento à boca escancarada da
guerra. Pelo menos, teriam um bom professor.
– Quando parte?
– Em breve.
– A sua mulher também vai?
– Sim. E a nossa filha.
– Fico contente que tenha tido… Quero dizer, sei que a sua mulher queria
ter filhos. – Como eram fastidiosas estas cortesias; Eve sentiu que estava a
debater-se sob um pedregulho. – Que nome decidiu pôr-lhe…
Ele falou docemente.
– Evelyn.
Ela fixou o olhar no tampo pegajoso da mesa.
– Porque não Lili? – ouviu-se a perguntar. – Porque não Gabrielle ou uma
das outras? Porquê eu, Cameron?
– Se pudesse ver-se a si mesma, não me perguntava.
– Eu vejo-me: sou um d-destroço.
– Nada a pode destroçar, Eve. É feita de aço.
Eve respirou fundo, a tremer.
– Lamento tê-lo e-enganado. Ter fugido quando o Cameron estava a
dormir e ter voltado a Lille, quando não queria que eu regressasse. – A voz
dela era pastosa. – Lamento muito.
– Eu sei.
Eve olhou para a mesa, onde a mão dele repousava junto à sua mão
defeituosa. Ele mexeu-a um pouco, para que o seu polegar tocasse
suavemente a ponta do dedo mais próximo dela.
– Eu gostava… – começou Eve, mas parou logo de seguida. Gostava o
quê? Que ele não fosse casado? Eve estava demasiado destruída para poder
tomar o lugar ao lado dele, mesmo se esse lugar estivesse vazio. Que, apesar
disso, eles pudessem deitar-se numa cama e ficar aninhados lado a lado? Eve
não suportava partilhar um quarto com ninguém: os pesadelos eram
demasiado terríveis. Que pudessem voltar alguns anos atrás, a “antes”? Antes
de quê… Siegburg? Lili? A guerra? – Gostava que fosse feliz – disse, por
fim.
Cameron não levou a mão dela aos seus lábios, como antigamente. Em
vez disso, baixou a cabeça ao nível da mesa e pressionou a sua boca enrugada
contra os dedos destruídos de Eve.
– Sou um oficial destroçado do exército, com muitos recrutas mortos nas
mãos, Eve. Não posso ser feliz.
– Podia demitir-se do exército.
– Não posso, não. Porque, por mais mortos que tenha atrás de mim, há
mais à minha frente, à espera de serem treinados por mim na Irlanda… E sei
que farei mais por eles do que asnos como o Allenton.
Eve deu-se conta de que ele estava quase bêbedo. Ele nunca tinha
insultado um superior em voz alta.
– Ainda sou útil – garantiu Cameron, enunciando cuidadosamente as
palavras. – Posso ir para a Irlanda e treinar a próxima geração de carne para
canhão. Portanto, é isso o que vou fazer. Vou continuar a trabalhar até não
poder mais. E então, virá a morte.
– Ou a reforma.
– A reforma mata pessoas como nós, Eve. É como morremos, se as balas
não nos matam primeiro. – Esboçou um sorriso amargo. – Balas,
aborrecimento ou brandy: é assim que pessoas como nós morrem, porque
Deus sabe que não somos feitos para a paz.
– Não, não somos. – Eve baixou a cabeça e beijou a mão dele. E depois
beberam até à hora de partida do comboio de Cameron. Ele aguentou a
bebida como um cavalheiro inglês, de olhar vidrado, mas de costas direitas –
e assim caminharam pelo cais.
– Vou para a Irlanda na próxima semana. – O tom de voz dele era
sombrio, como se estivesse prestes a ir para o inferno. – E a Eve, para onde
vai?
– Vou voltar para França. O mais rapidamente possível.
– O que há em França?
– Um inimigo. – Eve olhou para ele e afastou as madeixas de cabelo seco
dos olhos, sentindo o peso da arma na sacola. – René Bordelon, Cameron.
Vou matá-lo, nem que seja a última coisa que faço nesta vida.
Esse era o propósito de Eve, depois de a guerra ter acabado.
O olhar de Cameron, com uma expressão entre a dor e a indecisão,
confundiu-a. Mais tarde, Eve analisaria aquele olhar cuidadosamente e dar-
se-ia conta de como ele lhe tinha atirado areia para os olhos tão bem.
– Eve – disse ele, por fim. – Não sabe? O René Bordelon está morto.
Capítulo 37
Charlie
Junho de 1947
– O meu Donald! – consegui dizer, por fim. – Bem, a minha mãe sempre
quis que eu casasse com um advogado.
– Solicitador – corrigiu Eve. – Os bifes têm solicitadores, e eles têm
sempre um ar de superioridade. Vais ter de trabalhar o sobrolho, Finn. – E
que sobrolho impressionante ele tinha, quando, quatro dias mais tarde,
entregou o cartão ao maître d’ de Les Trois Cloches. Por essa altura, Finn já
tinha alguma prática de outros restaurantes. – Faço averiguações em nome de
uma senhora – sussurrou ele. – É um assunto algo delicado.
O maître d’ avaliou-o num só relance. Finn Kilgore, com a sua camisa
amarrotada e o cabelo desgrenhado, teria sido completamente ignorado pelo
maître d’ de Les Trois Cloches, um dos restaurantes mais chiques de Grasse –
mas Donald McGowan, no seu fato cinzento escuro e gravata às riscas finas,
ganhou um endireitar de costas subtil.
– Como o posso ajudar, monsieur?
Era a hora morta entre o almoço e o jantar, e havia poucos clientes; Eve
escolhia sempre cuidadosamente o momento da nossa chegada, para que os
empregados tivessem tempo para tagarelar. Ou para responder a perguntas.
– A minha cliente, a Sra. Knight. – Finn lançou um olhar para trás, para
onde estava Eve, apoiada no meu braço, com um vestido de seda preta e um
chapéu de aba larga, as mãos escondidas sob luvas de pelica, aparentando um
ar frágil enquanto limpava os olhos com um lenço debruado a preto. – Ela
emigrou para Nova Iorque há muitos anos, mas a maioria da família ficou em
França – explicou ele. – E com tanta mortandade durante a guerra…
O maître d’ fez o sinal da cruz.
– Tanta.
– Descobri o óbito do pai dela, da tia, dois tios. Mas há um primo que
ainda falta descobrir.
Se tu podes passar França a pente fino à procura da tua prima
desaparecida, eu também posso, tinha dito Eve quando nos contou de onde
lhe viera a ideia. Quem é que na Europa não tem um ou dois primos
desaparecidos, nos dias que correm?
– Descobrimos que saiu de Limoges e veio para Grasse em 44, para fugir
da Gestapo… – Finn baixou a voz, fazendo algumas alusões vagas à
atividade da Resistência e aos inimigos de Vichy. Pintou a imagem do
companheiro de infância da Eve (um patriota corajoso, que escapou à prisão
por pouco), que por aqueles dias o procurava com saudade (como única
sobrevivente de uma família massacrada).
– E alguém vai acreditar nessa história? – perguntei-lhe, quando
estávamos no campo de jacintos. – É demasiado à Hollywood.
– Vão acreditar porque é à Hollywood. Depois de uma guerra como esta,
toda a gente d-deseja um final feliz, mesmo que não seja a sua história.
E, de facto, este maître d’, como os outros antes dele, acenava com a
cabeça, claramente compreensivo.
– René du Malassis – disse Finn, prosseguindo. – Mas talvez tenha
adotado um nome diferente. A Milice andava à procura dele. – Trocaram
esgares; mesmo dois anos após o fim da guerra, toda a gente ficava nervosa
quando a Milice era mencionada. – E isso fez com que as averiguações da
Sra. Knight se tenham complicado. Mas temos uma fotografia.
A fotografia de René, dobrada para que todos os seus convivas repletos de
suásticas não aparecessem, foi passada ao maître d’, que a observou
atentamente. Eve fingiu que os ombros lhe tremiam, e eu dei-lhe uma
palmadinha nas costas com ar preocupado.
– Grandmaman, não se aflija. – O meu papel aqui era reforçar o fator
compaixão. Esfreguei a mão enluvada de Eve entre as minhas, de coração aos
pulos, enquanto o maître d’ hesitava.
– Não – disse ele, abanando a cabeça, e o meu coração bateu mais lento. –
Não, lamento, mas não conheço este cavalheiro.
Risquei o Les Trois Cloches da lista, enquanto Finn passava
discretamente uma nota ao maître d’, murmurando:
– Se vir o cavalheiro, por favor, contacte-me…
Restavam umas duas centenas de lugares para visitar.
– Não desanimem – incentivou Eve, assim que saímos para a rua. – Eu
disse que era preciso trabalho e sorte, n-não disse? Esta é a parte que não é à
Hollywood. Não se pode ir à procura de alguém à espera que ela apareça de
repente, como um coelho no chapéu do mágico.
– Tem a certeza de que esta é a melhor forma de o encontrar? – perguntou
Finn, colocando o chapéu na cabeça. Nada de passear pela rua sem chapéu;
Donald MacGowan (solicitador) era um homem de negócios.
– Alguém num destes lugares vai reconhecê-lo. – Eve deu um piparote na
lista amarrotada dentro da carteira.
O argumento dela era simples: René Bordelon apreciava as coisas boas da
vida. Algumas características podiam ter mudado nele, mas isso, não. Ele
ainda frequentaria os melhores clubes, tomaria a sua bebida nos melhores
cafés, iria às melhores salas de teatro; e era o tipo de cliente em que os
empregados reparavam, pois dava gorjetas e vestia-se bem, e podia conversar
sobre vinhos com o sommelier e sobre Klimt com o guia do museu.
Tínhamos uma fotografia relativamente recente – se visitássemos os melhores
lugares de cultura em Grasse, argumentava ela, alguém iria seguramente
reconhecer aquele rosto. E, então, teríamos um nome.
Naquele dia cheio de sol, por entre as flores, eu perguntei:
– Quanto tempo vamos demorar a encontrá-lo?
– Se fosse em Paris, para sempre. Mas Grasse não é muito grande.
Finn mostrou-se preocupado com algo mais sinistro.
– E se ele descobre que há uma mulher à procura dele? Uma mulher com
as mãos deformadas, mais ou menos da mesma idade que a sua pequena
Margarida teria agora?
A Eve olhou para ele, com ar zangado.
– Sou uma profissional, Finn. Achas que sou uma idiota? Achas que vou
entrar nos restaurantes de Grasse com uma corneta a anunciar a minha
presença? – Daí a criação da Sra. Knight e do Sr. McGowan, e das luvas para
esconder as mãos da Eve.
– Tenho uma condição, Gardiner – respondeu Finn. – Tens de deixar a
Luger no hotel.
– Achas que se eu visse o René Bordelon nas ruas de Grasse iria ter com
ele para lhe dar um tiro na cabeça?
– Não sou imbecil. Prefiro não correr riscos.
Andávamos naquilo havia quatro dias. Mal tínhamos desfeito as malas no
hotel e já a Eve recolhia informação, compilando listas. Assim que Finn
recebeu os cartões de visita e o fato, e a Eve comprou um bom par de luvas
de pelica e um chapéu grande de viúva para lhe esconder o rosto, sem que
parecesse que estava esconder o rosto, saímos para a nossa missão.
A primeira vez que entrámos num café chique com a nossa cena ensaiada,
eu estava demasiado nervosa para falar. Mas seis restaurantes, três museus,
um teatro, cinco clubes e quatro dias depois, estava quase aborrecida. Exceto
no momento de clara antecipação sempre que, pela primeira vez, um
empregado ou um porteiro se inclinava para ver a fotografia do René e eu
pensava que talvez fosse desta…
– Bem-vinda à realidade do trabalho de espião – disse Eve, à porta do Les
Trois Cloches, endireitando as costas e deixando de ser, diante dos meus
olhos, a avozinha cambaleante. – Entediante a maior parte do tempo,
ocasionalmente emocionante.
Os olhos dela brilharam e eu pensei em como ela estava com melhor
aspeto do que no dia em que eu a conhecera. Nesse dia, ela parecia ter 60 ou
70 anos e encontrava-se devastada, enrugada e pálida. Naquele momento,
tinha sacudido o peso da dor e da inércia que a faziam parecer velha e frágil,
e eu estava espantada com a mudança. O seu rosto voltou a ter uma cor
saudável, ainda que continuasse a ter as rugas profundas em redor dos olhos e
da boca; mexia-se com rapidez e eficiência, em vez de ficar encolhida e na
defensiva; o cabelo grisalho brilhava, tal como os olhos astutos. Parecia ter
novamente a sua idade, 54 anos vigorosos e ainda com muito para viver.
– Desde que chegámos a Grasse, ela não tem tido aqueles pesadelos
estridentes – comentei com o Finn, depois do jantar dessa noite, enquanto
observava a Eve a subir as escadas para se ir deitar. – E também não tem
bebido tanto whisky.
– A perseguição faz-lhe bem. – Finn terminou de beber o café. – No
fundo, ela é uma caçadora. Durante os últimos 30 anos, esteve quieta, a
morrer devagar, sem nada para perseguir. Talvez não seja mau esta caça ao
homem demorar algum tempo.
– Bem – disse eu –, eu não me importava nada.
Ele ofereceu-me aquele sorriso invisível que me deixava derretida.
– Estou totalmente estafado de todas estas andanças. E tu?
– Exausta. Devíamos ir para a cama cedo, descansar.
Mas não houve muito descanso no nosso pequeno quarto de portadas
azuis e cama grande macia. Nem eu nem Finn objetámos quando a busca de
Eve se alargou para uma semana, dez dias. As manhãs eram para os três:
croissants de massa folhada e chávenas de café a uma mesa tão pequena que
os nossos joelhos se atropelavam. Depois, vinha a caça, a repetição da nossa
peça, agora perfeita e sem falhas: parar na loja de sapatos feitos à mão na
Place aux Aires, depois uma perfumaria artesanal para comprar uma água-de-
colónia caríssima. Passear pelas ruas estreitas e tortuosas da vieille ville, com
destino aos clubes e teatros que pudessem reconhecer um cliente especial, e
finalmente, durante a hora de calma nos restaurantes, antes de jantar, visitar
os mais chiques, repletos de candeeiros de abajures e talheres de prata
pesados. Ao fim do dia, regressar ao hotel e jantar, acompanhados de uma
garrafa de rosé provençal e pratinhos repletos de batatas fritas aos palitos.
Foram dias felizes, com o Finn e eu contentes por deixar que a Eve tomasse
as decisões durante o dia, porque a noite era só nossa.
– Já te disse que ficas uma brasa vestido de fato completo? – perguntei
certa noite, com a cabeça encostada ao braço de Finn.
– Sim, já disseste.
– Pareceu-me que valia a pena repeti-lo. – Debrucei-me para beber o
último gole do vinho que tínhamos trazido para o quarto. Eu estava
completamente nua, já nem um pouco envergonhada dele, e ele estava
deitado de mão atrás da nuca, a admirar-me. – Quando é que o Lagonda está
pronto?
– Talvez daqui a uma semana. – Quando soube que íamos ficar em Grasse
algum tempo, Finn encontrou uma oficina para arranjar aquela persistente
fuga de óleo. Ele telefonava à garagem dia sim, dia não, para perguntar como
ia o arranjo, como uma mãe ansiosa.
– Precisas de um carro novo, Finn.
– Sabes quanto custa um carro novo, com a falta de metal provocada pela
guerra?
– Bem, então brindemos à saúde do Lagonda. – Passei-lhe a caneca que
estávamos a usar para beber vinho. – Não me importava de andar de carro em
Grasse, em vez de ir a pé para todo o lado. Doem-me tanto os pés, e eu estava
a contar com mais uns meses antes que inchem com a gravidez. – Assim que
chegámos a Grasse, os meus enjoos matinais desapareceram, tal como o meu
cansaço constante e esgotante. Não sabia se eram as brisas perfumadas, ou o
amor que tanto fazíamos, ou simplesmente o facto de o Botão de Rosa estar
no seu quarto mês, mas subitamente eu sentia-me maravilhosa, cheia de uma
energia sem limites e pronta para qualquer coisa, até para as nossas
caminhadas infindáveis por toda a Grasse. Ainda assim, sentia falta do carro.
Finn acabou o rosé e depois deu meia-volta, encostando-se aos pés da
cama. Começou a massajar-me os dedos dos pés debaixo do lençol e eu torci-
me com prazer. A noite estava quente, as portadas das janelas do quarto
estavam abertas e o aroma dos jasmins e das rosas perfumava o ar, vindo do
exterior. A luz do candeeiro do teto formava um círculo em redor da cama,
fazendo com que parecesse um navio à deriva num mar negro. Tínhamos
acordado que, no quarto, não falaríamos de René, ou da guerra, ou das coisas
horríveis que tinham acontecido por causa destes dois fatores. As conversas
mais felizes pertenciam às horas da noite.
– Espera até chegares ao oitavo mês de gravidez – vaticinou Finn,
massajando-me a planta de um pé. – Aí é que os pés começam a doer a sério.
– O que percebe o senhor de gravidezes e do oitavo mês, Sr. Kilgore?
– Vi as mulheres dos meus amigos. Devo ser o único que ainda não
casou… A primeira coisa que a maioria dos meus camaradas do 63.° fizeram,
assim que voltaram para casa, foi engravidar uma rapariga e casar com ela.
Sou padrinho de, pelo menos, três crianças.
– Estou mesmo a ver-te ao lado de uma pia batismal com um embrulho
rendado aos berros nos braços!
– Aos berros? Nunca. Os bebés gostam de mim. Adormecem assim que
pego neles ao colo. – Uma pausa. – Eu gosto de bebés. Sempre quis ter uns
dois ou três.
Deixámos a frase pairar no ar por um momento, antes de a evitarmos com
pezinhos de lã.
– E de que mais gostas? – perguntei, dando-lhe o outro pé. – Para além de
Bentleys. – A noite passada, ele tinha lido em voz alta um artigo inteiro da
revista de automóveis sobre o Bentley Mark VI, imitando o meu sotaque
americano de forma ultrajante, tanto que tive de o agredir com a almofada.
– Se um homem tem um Bentley, tem tudo o que precisa, miúda. Exceto
talvez uma boa oficina para manter o carro em excelentes condições. Aquela
onde o Lagonda está agora é muito boa.
Fiz-lhe cócegas no peito com os meus dedos dos pés.
– Tu podias ter a tua própria oficina, sabes.
– Não basta ser bom a arranjar carros para se ter uma garagem. – A
expressão dele era pesarosa. – Tu conheces-me. O livro de cheques ia acabar
debaixo de uma lata de óleo, seria impossível lê-lo de tão sujo, e não tardaria
a ter de devolver o negócio ao banco.
Não se fosse eu a gerir as contas… Não acabei o pensamento, nem
mesmo para mim própria; deixei que desaparecesse e comecei a contar a Finn
tudo sobre o café na Provença que eu recordava com tanta felicidade, e como
esse dia tinha feito com que toldos às riscas, Edith Piaf e sanduíches de
queijo de cabra se tornassem o meu ideal de paraíso na terra.
– Embora tenha de haver um pequeno-almoço à inglesa. No café ideal,
quero eu dizer.
– Bem, eu faço um pequeno-almoço à inglesa de se lhe tirar o chapéu…
Ambos sabíamos o que estávamos a fazer, durante aquelas conversas
noturnas descontraídas. Estávamos a delinear um futuro e, lentamente, quase
a medo, começávamos a desenhar a presença dos dois nesse futuro, ao
mesmo tempo que evitávamos chamar as coisas pelos nomes, esboçando
meios sorrisos. Por vezes, a noite trazia sonhos maus para um de nós, mas os
pesadelos eram mais fáceis de suportar quando, no escuro, havia dois braços
carinhosos onde nos podíamos aninhar. Quando o sofrimento nos vinha
visitar, serpenteava através da noite até se tornar parte da sua doçura.
Não te conheço há tempo suficiente para estar assim tão apaixonada por
ti, pensei, observando o perfil do Finn sob a luz suave. Mas estou.
Certa tarde, duas semanas e meia depois de termos chegado a Grasse, Eve
disse, enquanto tomávamos um café depois do almoço:
– Se calhar, o René não está aqui.
Finn e eu trocámos olhares, os dois a pensar na quantidade de cabeças que
tinham abanado ao ver a fotografia. Três gerentes de restaurante e um alfaiate
de luxo tinham dito que reconheciam vagamente o rosto, mas não
conseguiam associar-lhe um nome. Para além disso, nada.
– Se calhar, d-devia desistir. Deixar que a Charlie volte para casa, para
tricotar botinhas de bebé, e pedir-te –Eve acenou para Finn – para me levares
para a terra do peixe frito com batata frita.
– Ainda não me sinto preparada para voltar para casa. – O meu tom de
voz era ligeiro, mas Finn apertou-me a mão e eu retribuí.
– Vamos dar-lhe mais uma semana ou duas – sugeriu Finn. Eve fez um
aceno de cabeça. – Mas vamos tirar a tarde. Gostava de ir com tempo à
oficina, para ver como vai o arranjo do Lagonda.
– Coitados dos mecânicos, vai-lhes azucrinar a cabeça – a Eve, soltando
risinhos abafados, quando Finn se afastou.
– Ou pedir perdão ao carro por não o visitar mais vezes – disse eu,
concordando.
Ficámos sentadas durante um bom bocado, a acabar de tomar os nossos
cafés, e depois Eve olhou para mim.
– Não sou muito boa a tirar tardes. Vamos escolher dois ou três
restaurantes. Acho que juntas c-conseguimos enfrentar os empregados sem
ter o solicitador atrás.
Observei-a: os olhos cinzentos brilhavam-lhe no rosto bronzeado,
enquanto colocava o chapéu ligeiramente inclinado, para lhe tapar a testa.
– Talvez seja melhor apresentar-me como sua filha, desta vez. A Eve já
não tem credibilidade como minha avó.
– Pff!
– Estou a falar a sério! É o ar floral de Grasse. É como o elixir da
juventude. – Ao passearmos pela parte velha da cidade, onde os edifícios se
arqueavam sobre nós, encostados uns aos outros como velhos amigos,
apercebi-me do quanto estava a adorar Grasse. Todas as outras cidades por
que tínhamos passado (Lille, Roubaix, Limoges) tinham sido ofuscadas pela
minha busca pela Rose. Mas aqui, em Grasse, tínhamos finalmente parado
para respirar e a cidade desdobrava-se aos meus olhos como as flores de
jasmim nos campos. Nunca mais quero deixar este lugar, pensei, antes de me
obrigar a concentrar na nossa perseguição.
Depois de mais duas tentativas falhadas em restaurantes, Eve tirou o
mapa para escolher um terceiro. Eu mastigava uma iguaria com flores de
curgetes fritas, que o Botão de Rosa adorava quase tanto como bacon,
enquanto admirava a montra de uma loja. Exibia apenas roupas de criança:
fatos de marinheiros, saias com folhos e, por cima de um carrinho de bebé,
um vestido minúsculo de renda bordado com rosas trepadeiras. Olhei para o
vestido e senti um desejo intenso de o comprar. Imaginei o Botão de Rosa
com ele vestido no dia do seu batizado. Eu sentia-o naquele momento – no
que me pareciam apenas dois dias, a minha barriga passara de completamente
lisa a ligeiramente arredondada. Não que fosse visível através da minha
roupa, mas estava lá: uma barriga pequenina. Finn não comentava, mas,
durante a noite, não parava de passar os dedos por cima do meu abdómen,
como se fossem beijinhos de borboletas.
– Compra – sugeriu Eve, ao reparar no meu olhar ávido. – Aquela braçada
de rendas que te estão a fazer babar… Vai lá e c-compra.
– Não tenho dinheiro para isso. – Melancólica, engoli a minha última flor
de curgete. – Aposto que é mais caro do que todas as minhas roupas em
segunda mão juntas.
Eve meteu o mapa na carteira, dirigiu-se à loja, entrou, saiu alguns
minutos mais tarde com um embrulho de papel castanho e atirou-mo para as
mãos sem cerimónia nenhuma.
– Talvez agora entres no ritmo.
– A Eve não precisava de…
– Detesto que me agradeçam. Toca a marchar, ianque!
E eu marchei.
– Anda a gastar muito dinheiro ultimamente, Eve. – O dinheiro da
penhora do meu colar de pérolas já se tinha esgotado, e era Eve quem pagava
todas as nossas despesas, embora eu lhe tivesse prometido que lhe devolveria
o dinheiro assim que conseguisse ter acesso à minha conta em Londres.
– Em que posso gastar dinheiro? Whisky, vingança e vestidos de bebé.
Sorri abertamente, abraçando o embrulho.
– Gostava de ser a madrinha dela, Eve?
– Continua a chamar-lhe ela e vais ver que te vai sair um rapaz, só para te
contrariar.
– A madrinha dele, então. – Fiz uma pausa, subitamente séria, embora o
tivesse dito de ânimo leve. – A sério, Eve… gostava?
– Não me comporto bem na igreja.
– Espero que não.
– Está bem. – Ela sorriu atabalhoadamente e começou a andar, majestosa
como uma garça num lago. – Já que insistes.
– Insisto, sim – disse eu, e as palavras saíram-me roucas de emoção.
O restaurante ficava numa rua que ia dar à Place du Petit Puy, com a sua
catedral de fachada esbranquiçada. Já passava muito da hora de almoço; não
tardaria nada, os clientes começariam a entrar para uma bebida de fim de
tarde. Pisquei os olhos, para me ajustar à escuridão do interior, depois do sol
ofuscante, e para me preparar para o meu papel de neta devota e atenta. Eve
tropeçou em mim nesse momento, como se estivesse demasiado fraca para
caminhar sem ajuda.
Dei um passo na direção do maître d’ e desfiei o rosário de Finn, que eu
já sabia de cor e salteado. Eve limpou as lágrimas com um lenço e, pouco
depois, tirei a fotografia para mostrar ao empregado. A minha mente pensava
no vestido de bebé; eu não estava de todo concentrada na nossa perseguição.
Mas subitamente concentrei-me, pois o maître d’ acenava a cabeça em
sinal de reconhecimento. Aquele aceno de cabeça atingiu-me como a pancada
de um martelo.
– Bien sûr, mademoiselle. Conheço bem o cavalheiro, é um dos nossos
melhores clientes. Monsieur René Gautier.
Por um instante, fiquei paralisada. René Gautier. O nome ecoou dentro da
minha cabeça como uma bala em ricochete. René Gautier…
Eve pôs-se a meu lado. Não sei como conseguiu manter a sua aparente
fragilidade idosa, mas a verdade é que lhe tinham sido atribuídas quatro
medalhas por espionagem. E eu pude constatar porquê, quando ela disse com
voz trémula, mas sem gaguejar ou pestanejar:
– Oh, monsieur, como me deixa feliz! O meu René, há tantos anos que
não o vejo! René Gautier, é esse o nome que ele tem agora?
– Sim, madame. – O maître d’ sorriu, claramente a saborear a
oportunidade de ser o portador de boas notícias. Eve tinha razão: depois da
guerra, toda a gente ansiava por um final feliz. – Ele tem uma casa de campo
encantadora nos arredores de Grasse, mas vem aqui com frequência. Pede
sempre as rilletes de canard, nós servimos as melhores rilletes da Riviera, se
me permitem que o diga…
Eu queria lá saber das rilletes. Aproximei-me dele, o coração aos pulos.
– E a casa de campo… por acaso, não tem o endereço dela?
– É depois dos campos de mimosas, quem sai da Rue des Papillons,
mademoiselle. Por vezes, entregamos-lhe em casa uma caixa de vinho, um
Vouvray que mais ninguém tem em Grasse…
Eve já endireitava o chapéu.
– Obrigada, monsieur, deixou-nos muito felizes – agradeci
atabalhoadamente, enquanto dava o braço à Eve. Mas o maître d’ olhou por
cima de nós e fez um sorriso de orelha a orelha.
– Ah, que sorte! O monsieur acaba de chegar.
Capítulo 38
Eve
Quando Eve se virou para enfrentar o inimigo, o tempo curvou-se sobre si
mesmo. Era simultaneamente 1915 e 1947. Ela tinha 22 anos, estava coberta
de sangue e tinha a alma quebrada, mas também tinha 54 anos, tremia e
continuava quebrada. René Bordelon era um bon vivant moreno e melífluo,
mas também era um velho de ombros perros, cabelo grisalho e fato
impecável. Nesse momento em que o tempo colidiu, ambas as versões eram
verdadeiras.
Então, o passado e o presente fundiram-se num único instante e o tempo
tornou-se apenas 1947, uma tarde maravilhosa de verão em Grasse, e nada
mais que dois metros de chão ladrilhado separavam uma antiga espia do seu
antigo inimigo. Quando Eve o fitou – alto e magro, a mesma bengala de
castão de prata pendurada no braço –, o terror abriu-se dentro de si como um
alçapão e toda a sua coragem remendada afundou-se num longo e silencioso
grito.
Ele não a reconheceu. Rodou o chapéu de feltro preto nas mãos e ergueu
uma sobrancelha ao ver a expressão entusiasmada do maître d’:
– Vejo que estavam à minha espera …
Eve foi invadida por um calafrio ao ouvir a voz monocórdica dos seus
pesadelos. As mãos começaram a doer-lhe por dentro das luvas, enquanto ela
olhava, paralisada e incrédula, para o homem que as tinha destruído. Não lhe
passara pela cabeça que o poderia encontrar antes de estar preparada para
isso. Imaginara que seria capaz de encarar o primeiro encontro dos dois nos
seus próprios termos, que o surpreenderia quando estivesse bem preparada
para isso. Ao invés, o destino surpreendeu-a quando ela não estava de todo
preparada.
Ele não tinha mudado. O cabelo grisalho, as rugas na testa – essas eram
coisas superficiais. Os dedos aranhosos, a voz monótona, a alma vil de um
torturador à espreita por sob o fato dispendioso de um homem sofisticado –
tudo isso permanecia igual.
Exceto a cicatriz no lábio. A marca dela, Eve deu-se conta, deixada
quando o mordera naquele último beijo maligno.
O maître d’ debitava explicações e Eve sentiu vagamente Charlie a tocar-
lhe no cotovelo, murmurando algo que não conseguiu distinguir por entre o
zumbido nos seus ouvidos. Ela sabia que devia dizer algo, fazer alguma
coisa, mas estava paralisada.
Os olhos escuros de René voltaram a pousar no rosto dela e ele deu um
passo à frente.
– Sra. Knight? Não reconheço o nome, madame…
Eve não soube como foi capaz, mas também ela deu um passo à frente,
esticando a mão para o cumprimentar. Ele pegou-lhe na mão e, ao sentir o
familiar aperto daqueles dedos compridos, foi invadida por um velho
sentimento de repulsa. Teve vontade de atirar a mão dele para o lado e fugir
cobardemente, lamuriando o sofrimento e o terror do passado.
Tarde de mais. Ele estava aqui e ela também. E Evelyn Gardiner estava
farta de fugir.
Apertou a mão dele com força e viu-lhe o rosto mudar de expressão
quando sentiu as deformidades por baixo da luva dela. Inclinou-se para a
frente, para que ele a pudesse escutar. As palavras saíram-lhe graves, calmas
e perfeitamente distintas.
– Talvez reconheças o nome Marguerite Le François, René Bordelon. Ou
devo dizer Evelyn Gardiner?