Você está na página 1de 29

1

Av. Guararapes, 120, 4º andar - Santo Antônio - Recife - PE


Fone: 81 99506 1034 | 99590 7790

Direção Editorial: Carlos Lopes

Diretora Executiva: Juliana Karla Pajeú

Conselho Editorial: Profª. Alba Nídia Ortiz Monges - PY


Prof. Cristiano Carrilho S. de Medeiros - PE
Prof. Francisco Caetano Pereira - PE
Profª. Karla Luzia Alvares dos Prazeres - PE
Profª. Maria Creuza de Araújo Borges - PB
Prof. Paulo Joviniano Álvares dos Prazeres - PE

Revisão: Dos Autores

Projeto Gráfico: Carlos Lopes

Printed in Brazil - Impresso no Brasil


Todos os direitos reservados. Nos termos da Lei que resguarda os direitos autorais é proibida
a reprodução total ou parcial desta obra por qualquer forma ou meio, eletrônico ou mecânico,
inclusive através de fotocópias e gravação, sem permissão por escrito do autor.

2
Prefácio

Qual Brasil?
A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, em uma
palestra chamada “O perigo de uma única história”, comenta
sobre o que significou para ela o encontro com uma literatura de
origem africana que tivesse personagens nos quais ela se visse. Nas
palavras da autora, “o que a descoberta dos escritores africanos
fez por mim foi: salvou-me de ter uma única história sobre o que
os livros são”. Adichie fazia referência aos livros infantis ingleses
aos quais teve acesso quando criança, cujos enredos retratavam
um universo muito diferente daquele no qual ela estava inserida.
Ossos, da autora recifense Fátima Soares, tem o mesmo potencial:
convida-nos a conhecer um universo que é o de milhares de
brasileiros, mas que não é o retratado na maior parte das páginas
de nossa literatura, nem como motivo nem como protagonismo
do ponto de vista da autoria. Trata-se de uma história que tece a
força da luta por quebrar as histórias únicas e reclamar um lugar
de escuta. É, a um só tempo, soco e pulsão de vida: lembrando-
nos, a cada marca temporal, de que o equilíbrio da vida é sempre
tênue e a esperança, uma possibilidade.
A partir do motivo do osso, sustento para a barriga vazia
e para o corpo franzino, além de sustentáculo da passagem do
tempo, o enredo faz um apanhado do Brasil que não vemos
nas propagandas, as quais o vendem como paraíso tropical,
o verdadeiro Eldorado. Nas palavras da voz narrativa, que
3
acompanha a chegada de uma jovem que vemos partir de Recife
para o Rio de Janeiro, ao descrever a cidade maravilhosa, “era o
avesso ao das leituras e propagandas de turismo; a periferia da
periferia”. É desse lugar periférico e com a força da protagonista
que percorremos 52 anos de uma jornada que inicia em 1968,
chegando até o presente, 2020. Passamos, então, do que ficou
conhecido como “o ano que não terminou” – em vista do
endurecimento da ditadura militar em vigor no Brasil, marcado
especialmente pelo Ato Institucional Número Cinco (AI-5),
de 13 de dezembro de 1968 – a 2020, em que o presidente do
Brasil descreveu, em rede nacional, um vírus que matou – e está
matando – tantas pessoas pelo mundo, como “uma gripezinha”.
Se, sobre o contexto da ditadura, há versões, provavelmente
narradas por quem não conhece a fome, de que o período entre
1964 e 1985 foi promissor, de expansão econômica, a narrativa
de Fátima Soares instaura, desde o primeiro parágrafo, outra
versão, posto que fala da fila para comprar ossos, destinada àqueles
que não tinham dinheiro para a carne. Uma fila que é o retrato
de várias histórias, todas à margem de um “país em ascensão”.
Hoje, em 2020, ela pode ser a que se forma para receber o
auxílio emergencial oferecido no contexto de um desafio para
a saúde mundial: a pandemia de Covid-19. Em sua tessitura, o
enredo traduz a dança da vida, dinamizando os seus muitos tons.
Lembremos: não há apenas uma única história. Por isso, o livro
revela que uma mudança é sempre eminente: os mesmos ossos
que se mostram, pela ausência da carne a cerceá-los, podem,
também, desaparecer, tornando-se outros, como os “do ofício”.
Como um exercício de esperança, Ossos ilustra uma ruptura
com a lógica das histórias únicas, construídas antes mesmo do

4
nascimento de tantas brasileiras e brasileiros. De mãos dadas,
leitora, adentremos a História do Brasil de Fátima Soares, esse
Brasil que também é o meu e o de tantas outras pessoas e que
ainda pode ser um Brasil de liberdade e sonho. À luta.

Cris Lira, PhD
Diretora do Programa de Português da Universidade de Iowa,
nos Estados Unidos

5
6
1968, Recife, Av. Norte, FIGRORÍFICO RIWI, 14 horas.
A fila para comprar ossos era a humilhação maior, em média
duas horas em pé no sol. Era comum essa tarefa ser delegada a
crianças e adolescentes, pois as mulheres e homens adultos tinham
vergonha de ser vistos ali. Com 13 anos, aparentava 10. Às vezes
aconteciam brigas, empurra-empurra, gente tentando furar a fila.
A angústia vinha da incerteza, pois muitas vezes não havia ossos
para atender toda a fila, que se estendia quase sem fim. Quem
tinha dinheiro para comprar carne se dirigia tranquilamente ao
balcão.
O atendimento na fila dos ossos era rápido, sem muita
conversa. No máximo algum pedido discreto: – Bote um osso
com tutano. As mocinhas podiam jogar um sorriso, ouvir um
gracejo e conseguir que o balconista lhes premiasse com uns
ossos mais gordinhos.
A sopa de ossos no jantar, muitas vezes foi a única refeição
do dia. A mãe orientava bem: não brincar com homens, fazer a
sua parte, ser estudiosa, sobreviver. Não faltar ás aulas (mesmo
com fome), não baixar os olhos e fingir surdez com os colegas
que colocavam apelidos nas crianças magrelas. Eles a chamavam
de “saco de osso”.
1975, maio, Nordeste Brasileiro. A fome já havia matado
milhões de pessoas, principalmente crianças. Com 20 anos,
7
1,55cm de altura e 38 quilos, sobrevivente. Terminava o ensino
secundário. Cabelos ressecados, cara queimada de sol. Clavícula,
manúbrio, costelas e ílio mal cobertos. Roupas velhas, calçados
rotos. Boca fechada para não expor as cáries. Era impossível
arranjar um emprego formal em Recife. Com ajuda de familiares
e amigos adquire uma passagem de ônibus para o Rio de Janeiro.
Dias na estrada, dias de pouco alimento, solidão, medo. Dias
também de esperança e encantamento com a paisagem que
vislumbrava pela janela. Quando o ônibus se aproximou da
Rodoviária Novo Rio vê a primeira mensagem de boas vindas,
uma imensa pichação na parede de um viaduto: “ABAIXO A
DITADURA”. Alegria, emoção de chegar à maravilhosa cidade
já conhecida através de livros e revistas, e, das cartas de parentes
e conhecidos que imigram antes.
Junho, Baixada Fluminense. Chegou o inverno, céu cinzento,
serração, noites geladas. Fala-se na TV que a noite passada foi a
noite mais fria dos últimos 10 anos. Não ddá para lembrar a data
exata, a lembrança mais nítida é da falta de roupas e cobertores
adequados. Ao sair de Recife não sabia o que era inverno.
Conhecia a temporada de chuvas, alegria de quem trabalha na
agricultura. No Rio compartilhava uma cama de campanha com
um menino de oito anos. Assim aprendeu que há desconforto
maior que a fome; o frio que vara a pele e gela os ossos, faz
acordar com o corpo doído. Era um Rio de Janeiro avesso ao das
leituras e propagandas de turismo; a periferia da periferia. Viver
em um loteamento sem nenhuma infra-estrutura urbana para lá de
Belfort Roxo. Ali a maioria das famílias era imigrante, gente fugida
da seca, do desemprego, da perseguição política. Os homens
tinham emprego de salário mínimo, as donas de casas faziam
milagres para cuidar da família com os parcos recursos. Algumas
famílias se dedicavam à mendicância. Havia uma família que se
identificava como carioca, o homem era ladrão, saía de casa com
a melhor roupa e uma pasta 007 debaixo do braço. Informado

8
das datas de pagamento de funcionários públicos e pensionistas,
batia carteiras nas saídas de bancos. Homem discreto, não
tomava cachaça, não se envolvia em bate bocas. A esposa e os
filhos viviam mais fechados em sua casa, que era mais espaçosa
e confortável que as demais. Porém, a mulher às vezes oferecia
alimentos para os vizinhos mais necessitados. Os mendigos
saíam para trabalhar com as piores roupas, remendadas e sujas.
As moças bebiam um trago de aguardente para ter coragem de
pedir e suportar ouvir os gracejos, censuras, humilhações, “ossos
do ofício”. Frequentemente viajavam de trem para São Paulo,
passavam alguns dias e voltavam felizes. Comentavam que o povo
de São Paulo era mais sisudo, passava pelos mendigos sem ver.
Ou paravam e davam o dinheiro sem fazer perguntas, sem dizer
lorotas. Já os cariocas eram gaiatos, zombavam, riam, colocavam
apelido e davam menos dinheiro. Quis acompanhar uma daquelas
famílias na viagem a São Paulo. Não pensava em pedir esmolas,
mas conhecer a cidade, andar a pé, pesquisar se havia alguma
oportunidade de viver melhor. Como viajar sem dinheiro? Dormir
na rua sozinha? Tinha medo. Aquelas famílias já conheciam a
cidade, sabiam os perigos, poderiam ajudar. Sem reunir a coragem
necessária, não há viagem. São Paulo se distanciou, enquanto a
vida vai roendo os ossos da insegurança.
Julho. Com ajuda de um vizinho, foi apresentada para a
seleção na Indústria de Tecidos Nova América. Aprovada no teste,
é contratada como vendedora no setor de varejo. Com sapatos,
roupa, bolsa e maquiagem cedidas esposa do ladrão, assume o
primeiro emprego formal. Salário pequeno, mas suficiente para os
poucos gastos e para fazer uma poupança. A alimentação farta no
refeitório da fábrica faz ganhar peso, alguma carne entre os ossos
e a pele. Saía para trabalhar às quatro da manhã, enfrentando a
escuridão, o frio e a loucura do trem lotado. Retornava às dez da
noite. Horas extras para engordar a poupança que permitiria, um
ano depois, voltar para Recife.

9
1976, Brasil, o caminho de volta. Outra vez o ônibus os
dias de estrada, porém sem medo, tristeza ou fome. O matolão
da volta é maior e mais pesado que o da partida. Carrega uma
farta provisão de bananas, laranjas, pão e carne frita. Também
carrega além de um corte de tecido Nova América para cada
membro da família, a esperança em dias melhores e um novo
entendimento do que é a política e a economia da ditadura.
Sem lágrimas a paisagem vista da janela do ônibus ganha novo
contorno e colorido. A experiência bem sucedida fossilizava-se
para estruturar a resistência.
1976, fevereiro, Recife. O inverno do ano anterior, que
determinou as noites geladas no Rio de Janeiro, em Recife
havia se traduzido em temporada de chuvas torrenciais, rios
transbordando, cheias nos córregos e desmoronamentos nos
altos. A casa da família estava reduzida a três cômodos, pois
não houve recursos para reconstruir o que desabou. A lição
aprendida com a mãe “faça sua parte, estude, sobreviva”, e o
dinheiro da poupança foram tábuas de salvação, em um ano
oceano de estudo em condições adversas. Madrugadas de leituras
e escrita aproveitando o silêncio e a disponibilidade da única mesa
que, durante o dia, era local das refeições da família, tábua de
engomar, mesa de corte e costura. Nesse processo se queima a
gordura acumulada na experiência anterior, ossos e juntas voltam
à conhecida visibilidade.
1977, janeiro. Aprovação no vestibular da UFPE
comemorada com parentes e vizinhança, pois sabiam que
esse tipo de êxito não é apenas mérito individual. Fortalecer o
esqueleto requer ferramentas coletivas. Articulações e afetos
para romper a barreira de classe que afasta o povo trabalhador
da universidade pública.
Março. UFPE, turma de Serviço Social. Sair de casa cedinho,
dois ônibus para ir e dois para voltar, conduzindo a alegria da
dedicação prioritária ao estudo. Nessa viagem diária da miséria à

10
classe média, vestir o melhor possível e viver uma luta permanente
para dar ao cabelo uma forma, aparência aceitável ao olhar
branco predominante naquele ambiente. A Biblioteca Central
proporcionava um estágio, um salário mínimo por quatro horas
diárias de trabalho, e, um mundo de livros. Oportunidade de
confirmar a sapiência da mãe: estudar é a única porta para escapar
de todas as fomes. No Restaurante Universitário acesso gratuito
ao bandejão, almoço e jantar para estudantes com atestado de
pobreza, condição para cobrir os ossos outra vez.
Na sala de aula Fundamentos das Ciências Humanas e
Sociais para “dar nomes aos bois”. Compreender um país que
condenava milhões de pessoas á fome, á desesperança e pensava
a universidade como privilégio para poucos. Nas brechas desse
sistema se destacavam as aulas do jovem e belo professor Pedro
Eugênio. Com sua cabeleira cacheada e tudo que estava abaixo
da cabeleira: Ciência e sonhos. Futuro, possíveis lutas, simpatia
e fé no povo brasileiro. Ensinava Economia e driblava o policial
dedo-duro mal disfarçado no fundo sala. A jovem, que descia a
ladeira ás cinco da matina, ia integrar o grupinho de estudantes
mais inquietas que o cercavam. Queriam beber todo o seu
conhecimento, queriam seus livros emprestados, queriam que
ele lesse e comentasse cada linha que escreviam, queriam mais,
sempre mais. Algumas até sonhado em ser sua namorada, ou
em encontrar um namorado parecido com ele. Neste universo
o Magistério é descoberto como vocação, um novo cardápio de
lutas, uma profissão, ferramenta para revolver e analisar ossos
enterrados sob o silenciamento que desumaniza.
Noticias sobre coletivos de enfrentamento e resistência ao
arbítrio circulavam pelo campus, atiçando o desejo de revolução.
Arte, Filosofia e Ciência para a liberdade. Música, cinema, teatro,
passeatas eram fontes e celeiros para saciar sedes, matar as fomes
que matavam a juventude naquele tempo. O conhecimento
funcionando como espelho para a jovem que descia o morro.

11
Espelho onde ver pobre, se ver povo brasileiro. Portanto, gente
que fatalmente vive expondo ossos.
1982. Recife. Voltar para o Morro da Conceição, sítio
dos avós, bisavós, fonte permanente de saber e esperança. Na
comunidade engrossar o caldo feito de memórias, grupos de
estudo, solidariedade, luta cotidiana: Ciência sapiência do povo é
felicidade em processo, revolução diária que não espera a morte
de ditadores. A receita de osteossopa comunitária/socialista se
faz com alimentos, livros, sonhos e amor a vida. É o tempo e
lugar para gestação. Numa noite de primavera e lua cheia nasceu
a filha. Questão de honra: ela não passou fome, não roeu os
mesmos ossos que a mãe.
1990, Brasil. Redemocratização sem incluir os pobres. São
trinta milhões de esfomeados no país. Uma nação de esqueletos
nas filas da caridade. Pessoas mais infelizes disputavam alimento
com ratos e urubus nos lixões das prefeituras, cemitérios do
desperdício e da maldade capitalista. No Morro da Conceição,
a sopa comunitária alimenta os corpos, fortalece a identidade,
a união, o protesto. Cantando e gritando contra a injustiça sem
descanso, se fez a travessia da “Década Perdida”. Entre rezas e
carnavais fundam um bloco, o *Osso Duro de Roer.
Algo da Constituição Cidadã começa a sair do papel, são os
concursos públicos. Assim abrem-se algumas portas. A ampliação
das redes de educação municipais e estadual proporciona
emprego formal para muitos profissionais formados na luta.

* Osso Duro de Roer é nome de bloco de carnaval fundado em 1992


pelo Conselho de Moradores do Morro da Conceição, Recife. Desfila
na segunda feira de carnaval a partir da dez horas na comunidade e
arredores. Esse nome foi escolhido por votação numa assembléia e
faz referência a luta comunitária. Resistência contra a fome a falta
de acesso a água encanada e outras injustiças sociais. Durante o
desfile os foliões compartilham uma sopa de ossos e banho coletivo
proporcionado por um caminhão pipa.

12
Mestres temperam os ossos das péssimas condições de trabalho
fundadas em autoritarismo e burocracia. Tal qual mestres-cucas
criam novos pratos, sindicatos. A mulher que desse o Morro para
trabalhar, agora mãe e professora será parceira de crianças e jovens
esfomeados. Cultivar amizade, alegria, curiosidade ao mesmo
tempo em que a escola se torna local de refeição, merenda nossa
de cada dia. O Brasil faminto, abandonado, sem políticas públicas
eficientes, só a cidadania de Betinho vem socorrer. Cada quilo de
alimento não perecível doado é ingresso da cidadania na festa da
cultura de paz e solidariedade. Cresce a compreensão que, não se
pode almejar uma paz duradoura enquanto milhões de pessoas
não têm acesso ao direito básico de três refeições diárias.
2001, Universidade de Pernambuco. Graduação em
Pedagogia, Inicio da pesquisa biográfica e autobiográfica e
da audácia de publicar. Maturidade e Arte para expor dores e
esperanças. Prospecção e escavação de vidas e amores anônimos,
encobertos pela poeira da exclusão social. Arqueologia íntima
buscando vestígios de humanidade, ossos simbólicos que dão
forma á poesia.
2003, Brasil. Início de tempo de saciedade. Direitos, aviões,
pós-graduações, publicações, quase certezas. Algum descanso e
três refeições diárias. Sem a urgência da fome, tratar esqueletos
como herança cultural, forças do passado, documentos da vida.
Até que novos golpes nos retalhem a carne ainda tão tenra.
2016. Pobre de quem imaginava a História como uma marcha
progressiva para o futuro, sem contar com os possíveis retrocessos.
O golpe contra a primeira mulher eleita presidenta do Brasil tira
o chão, desnorteia, fratura colunas, sustentáculos de nossa frágil
democracia. Começa o desmonte de instituições trabalhosamente
construídas e a caça a direitos duramente conquistados. Maldade,
traições, necropolítica. Aos pobres se oferecem os cemitérios, a
violência de uma guerra do Estado armado de fuzil e mentiras,
que alveja as populações mais vulneráveis.

13
2016. Outra madrugada de lua cheia, em meio ao caos que se
instala, chega uma neta. Abraço de crescimento e envelhecimento,
ossificação e osteopenia, amor que ata as duas pontas. Opostos
que se tocam, se reconhecem, se identificam. A neta é chuva
de graça para esse ser, que já se via tão ressequido. Outono e
primavera, pausa para suavidade e poesia. Amor que faz o laço
e gira a roda da vida.
2017. Aposentadoria é consciência de envelhecer carregando
esqueletos enterrados na memória. Envelhecer traz a necessidade
de escavar a vida, revolver o pó que esconde e silencia. É
resistência em duros tempos, quando os senhores da fome e das
armas buscam nos recambiar para a miséria. Lançar livros, atirar
sebos, distribuir sopas em cada canto, em cada beco. Ossos e
letras compõem o prato para transcender contando História.
Brasil 2020. Enquanto escreve, os jornais falam em mais
de cento e vinte mil mortos. Crueldade e pandemia. Genocidas
produzem morte e cemitérios sem lápides e epitáfios.

14
15
16
Prefacio

¿Cuál Brasil?
La escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, en
una charla llamada “El peligro de una única historia”, comenta
sobre lo que significó para ella el encuentro con una literatura de
origen africana que tuviese personajes en los cuales ella se viese.
En palabras de la autora, “lo que el hallazgo de los escritores
africanos hizo por mí fue: me salvó de tener una única historia
sobre lo que los libros son”. Adichie hacía referencia a los libros
infantiles ingleses a los cuales tuvo acceso cuando niña, cuyas
tramas retrataban un universo muy diferente de aquel al cual ella
hacía parte. Huesos, de la autora recifense Fátima Soares, tiene
el mismo potencial: nos invita a conocer un universo que es el
de millares de brasileros, aunque no sea retratado en la mayor
parte de las páginas de nuestra literatura, ni como motivo ni
como protagonismo del punto de vista de la autoría. Se trata
de una historia que teje la fuerza de la lucha por quebrar las
historias únicas y reclamar un lugar de escucha. Y, al unísono,
golpe y pulsión de vida: recordándonos, a cada marca temporal,
de que el equilibrio de la vida es siempre tenue y la esperanza,
una posibilidad.
A partir del motivo del hueso, sustento para la barriga
vacía y para el cuerpo flaquito, además de base del paso del
tiempo, la trama hace un recorrido de Brasil que no vemos en
las propagandas, las cuales lo venden como paraíso tropical, el
17
verdadero Eldorado. En las palabras de la voz narrativa, que
acompaña la llegada de una joven que vemos partir de Recife
para Rio de Janeiro, al describir la ciudad maravillosa, “era lo
opuesto al de las lecturas y propagandas de turismo; el suburbio
del suburbio”. Es desde ese lugar periférico y con la fuerza de la
protagonista que recorremos 52 años de una jornada que inicia
en 1968, llegando hasta el presente, 2020. Pasamos, entonces,
de lo que quedó conocido como “el año que no terminó” –
en vista del endurecimiento de la dictadura militar en vigor
en Brasil, marcado especialmente por el Acto Institucional
Número Cinco (AI-5), del 13 de diciembre de 1968 – a 2020, en
que el presidente de Brasil describió, en red nacional, un virus
que mató – y está matando – tantas personas por el mundo,
como “una gripecita”. Si, sobre el contexto de la dictadura,
hay versiones, probablemente narradas por quien no conoce el
hambre, de que el período entre 1964 y 1985 fue promisor, de
expansión económica, la narrativa de Fátima Soares instaura,
desde el primer párrafo, otra versión, pues habla de la fila para
comprar huesos, destinada a aquellos que no tenían dinero para
la carne. Una fila que es el retrato de varias historias, todas al
margen de un “país en ascensión”. Hoy, en 2020, ella puede ser
la que se forma para recibir el auxilio emergencial ofrecido en
el contexto de un desafío para la salud mundial: la pandemia
de Covid-19. En su tejido, la trama traduce la danza de la vida,
dinamizando sus muchos tonos. Recordando: no hay apenas
una única historia. Por eso, el libro revela que un cambio es
siempre eminente: los mismos huesos que se muestran, por la
ausencia de la carne a cercenarlos, pueden, también, desaparecer,
tornándose otros, como los “del oficio”.

18
Como un ejercicio de esperanza, Huesos ilustra una ruptura
con la lógica de las historias únicas, construidas antes del
nacimiento de tantas brasileras y brasileros. De manos dadas,
lectora, entremos en la Historia de Brasil de Fátima Soares, ese
Brasil que también es el mío y el de tantas otras personas y que
aún puede ser un Brasil de libertad y sueño. ¡A la lucha!

Cris Lira, PhD


Directora del Programa de Portugués de la Universidad de Iowa,
en los Estados Unidos

19
20
1968, Recife, Av. Norte, FIGRORÍFICO RIWI, 2 de la tarde.
La fila para comprar huesos era la mayor humillación, dos horas y
media de pie y al sol en media. Era común esta tarea ser delegada
a los niños y adolescentes, pues mujeres y hombres adultos tenían
vergüenza de ser vistos allí. Con 13 años, aparentaba 10. A veces
había peleas, empujones, gente queriendo colarse en la fila. La
angustia venía de la incerteza, pues muchas veces no había huesos
para atender toda la fila, que se extendía casi sin fin. Quien tenía
dinero para comprar carne se dirigía tranquilamente al mostrador.
El atendimiento en la fila de los huesos era rápido, sin
mucha conversa. A lo sumo algún pedido discreto: ¬_ Coloque
un hueso con tuétano. Las jóvenes podían lanzar una sonrisa, oír
un piropo y conseguir que el vendedor las premiara con unos
huesos más gorditos.
La sopa de huesos en la cena, muchas veces fue la única
comida del día. La madre orientaba bien: no jugar con hombres,
hacer su parte, ser estudiosa, sobrevivir. Ir a las clases (aunque
con hambre), no bajar los ojos y hacerse de sorda con los colegas
que colocaban apodos en quienes eran flaquitos. Ellos la llamaban
“saco de huesos”.
1975, mayo, Nordeste Brasileiro. El hambre ya había matado
millones de personas, principalmente niños. Con 20 años, 1,55cm
21
de altura y 38 kilos, sobreviviente. Terminaba la enseñanza
secundaria. Cabellos resecos, cara quemada del sol. Clavícula,
manubrio, costillas e ilion mal cubiertos. Ropas viejas, calzados
rotos. Boca cerrada para no exponer las caries. Era imposible
conseguir un empleo formal en Recife. Con ayuda de familiares y
amigos adquiere un pasaje de autobús para Rio de Janeiro. Días de
carretera, días de poco alimento, soledad, miedo. Días también de
esperanza y encantamiento con el paisaje que vislumbraba por la
ventana. Cuando el autobús se aproximó de la Estación Rodoviária
Novo Rio ve el primer mensaje de bienvenida, un inmenso grafiti
en la pared de un viaducto: "ABAJO LA DICTADURA". Alegría,
emoción de llegar a la maravillosa ciudad ya conocida a través
de libros y revistas, y, de las cartas de parientes y conocidos que
inmigran antes.
Junio, Baixada Fluminense. Llegó el invierno, cielo gris,
neblina, noches heladas. En la TV se comenta que la noche pasada
fue la noche más fría de los últimos 10 años. No da para recordar la
fecha exacta, la memoria más nítida es de la falta de ropas y cobijas
adecuadas. Al salir de Recife no sabía qué era un inverno. Conocía
la temporada de lluvias, alegría de quien trabaja en la agricultura.
En Rio compartía una cama de campaña con niño de ocho años.
Así aprendió que hay molestia mayor que el hambre; el frio que
se incrusta en la piel y congela los huesos, hace despertar con el
cuerpo adolorido. Era un Rio de Janeiro opuesto al de las lecturas
y propagandas de turismo; al suburbio del suburbio. Vivir en un
lote sin ninguna infraestructura urbana más allá de Belfort Roxo. Ahí
la mayoría de las familias era inmigrante, gente huida de la sequía,
del desempleo, de la persecución política. Los hombres tenían
empleo de salario mínimo, las dueñas de casas hacían milagros

22
para cuidar de la familia con los escasos recursos. Algunas
familias se dedicaban a la mendicidad. Había una familia que se
identificaba como carioca, el hombre era ladrón, salía de casa con
la mejor ropa y un maletín 007 debajo del brazo. Informado de
las fechas de pago de empleados públicos y pensionistas, robaba
carteras en las salidas de bancos. Hombre discreto, no tomaba
cachaça, no se metía en discusiones. La esposa y los hijos vivían
más cerrados en su casa, que era más espaciosa y cómoda que
las demás. Sin embargo, la mujer a veces ofrecía alimentos para
los vecinos más necesitados. Los mendigos salían para trabajar
con las peores ropas, remendadas y sucias. Las jóvenes bebían
un trago de aguardiente para tener coraje de pedir y soportar oír
los piropos, censuras, humillaciones, ossos do oficio1.
Frecuentemente viajaban en tren para São Paulo, pasaban
algunos días y volvían felices. Comentaban que el pueblo de São
Paulo era más serio, pasaba por los mendigos sin ver. O paraban
y daban el dinero sin hacer preguntas, sin decir tonterías. Ya los
cariocas eran burlones, hacían bromas, reían, colocaban apodo y
daban menos dinero. Quiso acompañar una de aquellas familias
en viaje a São Paulo. No pensaba pedir limosna, sino conocer
la ciudad, andar a pie, investigar si había alguna oportunidad de
vivir mejor. ¿Cómo viajar sin dinero? ¿Dormir en la calle sola?
Tenía miedo. Aquellas familias ya conocían la ciudad, sabían los
peligros, podrían ayudar. Sin reunir el coraje necesario, no hay
viaje. São Paulo se alejó, mientras la vida va royendo los huesos
de la inseguridad.

1
Ossos do oficio: expresión em português que en castellano se traduce como
gajes del oficio. Permanece em português por el sentido poético que tiene
en el texto; ossos significa huesos.

23
Julio. Con ayuda de un vecino, fue presentada para la
selección en la Industria de Tejidos Nova América. Aprobada en
la prueba, es contratada como vendedora en el sector de ventas
al menor. Con zapatos, ropa, cartera y maquillaje cedidas por
la esposa del ladrón, asume el primer empleo formal. Salario
pequeño, pero suficiente para los pocos gastos y para comenzar
a ahorrar. La alimentación vasta en el comedor de la fábrica le
hace subir unos kilos, alguna carne entre los huesos y la piel. Salía
para trabajar a las cuatro de la mañana, enfrentando la madrugada
oscura, el frio y la locura del tren lleno. Retornaba a las diez de la
noche. Horas extras para engordar los ahorros, que permitirían,
un año después, volver a Recife.
1976, Brasil, el camino de vuelta. Otra vez el autobús, los
días en la carretera, pero sin miedo, tristeza o hambre. El fardo de
vuelta es mayor y más pesado que el de la partida. Carga una vasta
provisión de bananas, naranjas, pan y carne frita. También carga
además de un corte de tela Nova América para cada miembro de la
familia, la esperanza en días mejores y un nuevo entendimiento de
lo que es la política y la economía de la dictadura. Sin lágrimas, el
paisaje visto desde la ventana del autobús gana nuevos contornos
y colores. La experiencia exitosa se fosilizaba para estructurar la
resistencia.
1976, febrero, Recife. El invierno del año anterior, que
determinó las noches heladas en Rio de Janeiro, en Recife se
tradujo en temporada de lluvias torrenciales, ríos transbordando,
inundaciones en los arroyos y derrumbes en los cerros. La casa
de la familia estaba reducida a tres habitaciones, pues no hubo
recursos para reconstruir lo que se desmoronó. La lección
aprendida con la madre “haga su parte, estudie, sobreviva”, y el

24
dinero de los ahorros fue la salvación, en un añocéano de estudio
en condiciones adversas. Madrugadas de lecturas y escritura
aprovechando el silencio y la disponibilidad de la única mesa que,
durante el día, era local para las comidas de la familia, mesa de
almidonar, de corte y costura. En ese proceso se quema la grasa
acumulada en la experiencia anterior, huesos y articulaciones
vuelven a la vista.
1977, enero. Aprobación en la prueba de la UFPE celebrada
con parientes y vecinos, pues sabían que ese tipo de éxito no
es apenas mérito individual. Fortalecer el esqueleto requiere
herramientas colectivas. Articulaciones y afectos para romper la
barrera de clase que aleja el pueblo trabajador de la universidad
pública.
Marzo, UFPE. Grupo de Servicio Social. Salir de casa
tempranito, dos autobuses para ir y dos para volver, conduciendo
la alegría de la dedicación prioritaria al estudio. En ese viaje diario de
la miseria a la clase media, vestir lo mejor posible y vivir una lucha
permanente para dar al cabello una forma, apariencia aceptable a
la mirada blanca predominante en aquel ambiente. La Biblioteca
Central proporcionaba una pasantía, un salario mínimo por cuatro
horas diarias de trabajo, y, un mundo de libros. Oportunidad de
confirmar la sapiencia de la madre: estudiar es la única puerta para
escapar de todas las hambres. En el Restaurante Universitario
acceso gratis a la bandeja, almuerzo y cena para estudiantes con
certificado de pobreza, condición para cubrir los huesos otra vez.
En la clase de Fundamentos de las Ciencias Humanas y
Sociales para “dar nombres a las cosas”. Comprender un país
que condenaba millones de personas al hambre, a la desesperanza
y pensaba la universidad como privilegio para pocos. En las

25
brechas de este sistema se destacaban las clases del joven y bello
profesor Pedro Eugênio. Con su cabellera rizada y todo lo que
estaba debajo de la cabellera: Ciencia y sueños. Futuro, posibles
luchas, simpatía y fe en el pueblo brasilero. Enseñaba Economía
y driblaba al policial delator mal disfrazado en el fondo del salón.
La joven, que bajaba la ladera a las cinco de la madrugada, iba a
integrar el grupito de estudiantes más inquietas que lo rodeaban.
Querían beber todo su conocimiento, querían sus libros prestados,
querían que él leyese y comentase cada línea que escribían, querían
más, siempre más. Algunas hasta soñando en ser su novia, o en
encontrar un novio parecido con él. En este universo la docencia
es descubierta como vocación, un nuevo menú de luchas, una
profesión, herramienta para revolver y analizar huesos enterrados
bajo el silenciamiento que deshumaniza.
Noticias sobre colectivos de enfrentamiento y resistencia
a lo impuesto circulaban por el campus, inflamando el deseo de
revolución. Arte, Filosofía y Ciencia para la libertad. Música,
cine, teatro, marchas eran fuentes y semilleros para saciar sedes,
matar las hambres que mataban la juventud en aquel tiempo. El
conocimiento funcionando como espejo para la joven que bajaba
del cerro. Espejo donde ver pobre, verse pueblo brasilero. Por lo
tanto, gente que fatalmente vive exponiendo huesos.
1982. Recife. Volver para el Morro da Conceição, lugar de los
abuelos, bisabuelos, fuente permanente de saber y esperanza.
En la comunidad dar consistencia al caldo hecho de recuerdos,
grupos de estudio, solidaridad, lucha cotidiana: Ciencia sapiencia
del pueblo es felicidad en proceso, revolución diaria que no espera
la muerte de dictadores. La receta de osteosopa comunitaria/
socialista se hace con alimentos, libros, sueños y amor a la vida.

26
Es el tiempo y lugar para la gestación. En una noche de primavera
y luna llena nació la hija. Cuestión de honor: ella no pasó hambre,
no royó los mismos huesos que la madre.
1990, Brasil. Redemocratización sin incluir a los pobres.
Son treinta millones de hambrientos en el país. Una nación
de esqueletos en las filas de la caridad. Personas más infelices
disputaban alimento con ratones y zamuros en los basureros de
las alcaldías, cementerios de desperdicio y de maldad capitalista.
En el Morro da Conceição, la sopa comunitaria alimenta los
cuerpos, fortalece la identidad, la unión, la protesta. Cantando y
gritando contra la injusticia sin descanso, se hizo la travesía de la
“Década Perdida”. Entre rezos y carnavales fundan una comparsa
carnavalesca, el Osso Duro de Roer2.
Algo de la Constitución Ciudadana3 comienza a salir del
papel, son los concursos públicos. Así se abren algunas puertas.
La ampliación de las redes de educación municipal y estadual
proporciona empleo formal para muchos profesionales formados
en la lucha. Maestros condimentan los huesos de las pésimas
condiciones de trabajo fundadas en autoritarismo y burocracia.
Tal cual sabios cocineros crean nuevos platos, sindicatos. La mujer
que baja el Morro para trabajar, ahora madre y profesora será
aliada de niños y jóvenes hambrientos. Cultivar amistad, alegría,

2
Osso Duro de Roer es el nombre de la comparsa de carnaval fundada en 1992
por el Conselho de Moradores do Morro da Conceição, Recife, Pernambuco.
Desfila el lunes de carnaval a partir de las diez de la mañana en la comunidad
y sus alrededores. Ese nombre fue escogido por votación en una asamblea y
hace referencia a la lucha comunitaria. Resistencia contra el hambre y la falta
de acceso al agua canalizada y otras injusticias sociales. Durante el desfile los
foliones comparten una sopa de huesos y baño colectivo proporcionado por
un camión cisterna.
3
Constitución Brasilera de 1985 escrita con amplia participación de los
movimientos sociales.

27
curiosidad al mismo tiempo en que la escuela se torna local de
alimentación, merienda nuestra de cada día. El Brasil hambriento,
abandonado, sin políticas públicas eficientes, solo la ciudadanía
de Betinho 4 viene a socorrer. Cada kilo de alimento no perecible
donado es ingreso de tierna ciudadanía en la fiesta de la cultura de
paz y solidaridad. Crece la comprensión que, no se puede desear
una paz duradera mientras millones de personas no tienen acceso
al derecho básico de tres comidas diarias.
2001, Universidad de Pernambuco. Graduación en
Pedagogía, inicio de la investigación biográfica y autobiográfica
y de la audacia de publicar. Madurez y arte para exponer dolores
y esperanzas. Prospección y excavación de vidas y amores
anónimos, encubiertos por el polvo de la exclusión social.
Arqueología íntima buscando vestigios de humanidad, huesos
simbólicos que dan forma a la poesía.
2003, Brasil. Inicio de tiempo de saciedad. Derechos, aviones,
posgrados, publicaciones, casi certezas. Algún descanso y tres
comidas diarias. Sin la urgencia del hambre, tratar esqueletos
como herencia cultural, fuerzas del pasado, documentos de la
vida. Hasta que nuevos golpes nos rasguen la carne aún tan tierna.
2016. Pobre de quien imaginaba la Historia como una
marcha progresiva para el futuro, sin contar con los posibles
retrocesos. El golpe contra la primera mujer electa presidenta
de Brasil mueve el piso, deja sin norte, fractura columnas,
pilares de nuestra frágil democracia. Comienza el desmonte de
instituciones trabajosamente construidas y la caza a derechos

4
Hébert José de Sousa, sociólogo brasilero activista por los derechos humanos,
idealizador de la Acción de Ciudadanía contra el Hambre y la Miseria y por
la Vida.

28
duramente conquistados. Maldad, traiciones, necropolítica. A los
pobres se ofrecen los cementerios, la violencia de una guerra del
Estado armado de fúsil y mentiras, que hiere a las poblaciones
más vulnerables.
2016. Otra madrugada de luna llena, en medio al caos que se
instala, llega una nieta. Abrazo de crecimiento y envejecimiento,
osificación y osteopenia, amor que ata las dos puntas. Opuestos
que se tocan, se reconocen, se identifican. La nieta es lluvia de
gracia para ese ser, que ya se veía tan reseco. Otoño y primavera,
pausa para suavidad y poesía. Amor que hace el lazo y gira la
rueda de la vida.
2017. Jubilación es consciencia de envejecer cargando
esqueletos enterrados en la memoria. Envejecer viene con la
necesidad de escavar la vida, revolver el polvo que esconde y
silencia. Es resistencia en duros tiempos, cuando los señores
del hambre y de las armas buscan sumergirnos en la miseria.
Lanzar libros, arrojar sebos, distribuir sopas en cada esquina, en
cada callejón. Huesos y letras componen el plato para trascender
contando Historia.
Brasil, 2020. Mientras escribe, las noticias registran más de
cien mil muertos. Crueldad y pandemia. Genocidas producen
muerte y cementerios sin lápidas ni epitafios.

29

Você também pode gostar