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El l i ot Page

PAG EBOY
Memórias

Tradução de Arthur Ramos


Copyright © 2023 by Selavy Inc.
Todos os direitos reservados.

título original
Pageboy

copidesque
Theo Araújo

revisão
Ilana Goldfeld
Laiane Flores

revisor técnico em diversidade


Bruno Ferreira

projeto gráfico e diagramação


Ilustrarte Design

design de capa
Keith Hayes

fotos de capa
Catherine Opie

cip-brasil. catalogação na publicação


sindicato nacional dos editores de livros, rj

P149p
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Page, Elliot, 1987-
P149p
Pageboy : memórias / Elliot Page ; tradução Arthur Ramos. - 1. ed. - Rio de
Janeiro Page,
: Intrínseca, 2023.
Elliot, 1987-
304Pageboy
p. ; 21: cm.
memórias / Elliot Page ; tradução Arthur Ramos. - 1. ed. - Rio de
Janeiro : Intrínseca, 2023.
304 p. ; 21 cm.
Tradução de: Pageboy : a memoir
ISBN 978-65-5560-724-6
Tradução de: Pageboy : a memoir
ISBN 978-65-5560-724-6
1. Page, Elliot, 1987-. 2. Atores - Canadá - Biografia. 3. Atores - Estados
Unidos -1.Biografia.
Page, Elliot,4.1987-.
Homens transgênero
2. Atores - Biografia.
- Canadá - Biografia. I. Ramos,
3. Atores - Estados Arthur.
Unidos II. Título.
- Biografia. 4. Homens transgênero - Biografia. I. Ramos, Arthur. II. Título.
23-83587 cdd: 791.43028092
CDD: 791.43028092
cdu:
23-83587 CDU: 929:791.071929:791.071

Meri Gleice
Meri GleiceRodrigues deSouza
Rodrigues de Souza- Bibliotecária
- Bibliotecária - CRB-7/6439
- CRB-7/6439

20/04/2023 25/04/2023
[2023]
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Intrínseca Ltda.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 6o andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
Para quem veio antes de mim
Nota do autor

Durante muitos anos pensei em escrever um livro, mas nunca


pareceu o momento certo e, para ser sincero, não parecia algo
possível. Eu mal conseguia ficar sentado quieto, muito menos
permanecer assim por tempo suficiente para concluir uma ta-
refa dessas. A energia de meu cérebro estava se esvaindo num
pinga-pinga infindável enquanto tentava lidar com meu des-
conforto e controlá-lo. Mas agora é diferente. Enfim consigo
ficar sozinho comigo mesmo, neste corpo, presente... digitando
por horas, meu cachorro Mo relaxando ao sol, minhas costas
mais retas, minha mente mais calma. Esse nível de contenta-
mento não seria possível sem os tratamentos médicos que re-
cebi, e, à medida que aumentam os ataques contra os cuidados
afirmadores de gênero, junto aos esforços de pessoas cisgêneras
para nos silenciar, senti que era o momento ideal para colocar
em palavras o que eu sentia.
Então aqui estou eu, grato e apavorado, escrevendo em
especial para você que está lendo. Pessoas trans são alvo de
violência física crescente e nossa humanidade é “debatida” na
mídia. E, quando temos a oportunidade de contar nossa histó-
ria, narrativas queer são com frequência editadas, ou pior, uni-
versalizadas: uma única pessoa se torna porta-voz da verdade.
Há infinitas maneiras de ser uma pessoa queer e de ser trans,
e minha história diz a respeito apenas a uma delas. Como digo
mais à frente neste livro, não somos nada além de um pontinho
no universo, e espero que, ao contar minha história, eu consiga
fazer com que ela contribua com o combate à desinformação
sobre vidas trans e queer. Sugiro que você procure outras den-
tre as extensas e variadas narrativas de autores, ativistas e pes-
soas LGBTQIA+, caso ainda não o tenha feito. O movimento
para a libertação de pessoas trans afeta a todos nós. Todo mun-
do passa por euforia e opressão de gênero de maneiras diferen-
tes. Como Leslie Feinberg escreve em Trans Liberation: Beyond
Pink or Blue [Libertação trans: além do rosa ou do azul], “esse
movimento lhe dará mais espaço para respirar — para ser você.
Para descobrir verdadeiramente o que significa ser você”.
Para escrever esta história, tentei ao máximo me recordar
de cada momento de minha transição. Quando não consegui
me lembrar dos detalhes, consultei outras pessoas que passaram
pela mesma experiência para elucidar melhor as coisas. Alguns
nomes foram mudados e informações específicas foram alte-
radas para proteger a identidade de certas pessoas. Em alguns
momentos, usei meu nome morto* e os antigos pronomes de
tratamento para falar sobre mim, apenas em ocasiões anteriores
à transição. Tomei essa decisão porque pareceu o mais adequa-
do para mim, mas não é um convite ou uma autorização para
que você também o faça. É importante ter em mente que, ainda
que em minha vida identidade de gênero e sexualidade sempre
tenham dialogado, são coisas distintas. Me afirmar como lésbi-
ca e me afirmar como trans foram experiências completamente
diferentes, e cresci muito depois de me libertar da expectativa
alheia. Estas memórias formam uma narrativa não linear porque

* A expressão “nome morto” é utilizada por algumas pessoas trans para se


referir ao nome pelo qual eram conhecidas antes da transição de gênero.
[N. da E.]

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ser queer é intrinsecamente não linear, são jornadas que con-
vergem e dialogam entre si. Dois passos para a frente, um passo
para trás. Passei parte de minha vida em busca da verdade, ao
mesmo tempo que estava morrendo de medo de desmoronar.
Isso se revela em minha escrita de maneira intencional. De vá-
rias formas, este livro é a história de minha autodescoberta.
O ato de escrever, ler e compartilhar a multiplicidade de
nossa experiência é um passo importante para lutar e resis-
tir contra aqueles que querem nos silenciar. Não tenho nada
profundo a dizer, nada que já não tenha sido dito antes. Mas
os livros me ajudaram, até me salvaram, então talvez este aqui
possa ajudar alguém a se sentir menos só, a se sentir visível, não
importa quem esse alguém seja ou qual seja sua jornada. Obri-
gado por ler sobre a minha.

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1
Paula

Conheci Paula quando eu tinha 20 anos. Sentada com as pernas


para cima no sofá de um amigo nosso, comendo amêndoas, ela
se apresentou:
— Meu nome é Paula.
Sua voz era calorosa e gentil. Ela não chegou a irradiar um
brilho no olhar, mas seus olhos eram penetrantes. Eu podia
senti-la me olhando com atenção.
Fomos ao Reflections. Era minha primeira vez num bar
LGBTQIA+... e seria a única por muito tempo. Eu flertava
muito mal. Flertava por acidente, e não quando queria. Eu e
Paula estávamos perto, mas não perto demais. Havia uma ten-
são no ar, o clima entre nós quase palpável.
Naquele verão, pegamos emprestado o barco de um ami-
go para ir acampar em uma ilha deserta. Usamos cogumelos
alucinógenos diante de fogueiras e cozinhamos salmão no papel-
-alumínio. As estrelas pulsavam e piscavam, como se estives-
sem nos saudando. Cogumelos sempre me faziam chorar, mas
Paula adorava, e em determinado momento meus medos vira-
ram alegria. Eu invejava a segurança dela em relação ao próprio
corpo. Nós dançamos na praia. Alguém dedilhava um violão, e
nós nos revezamos tocando covers ruins.
Eu havia acabado de voltar de um mochilão de um mês que
fiz com meu melhor amigo de infância, Mark, no Leste Euro-
peu. Começamos em Praga e fomos de trem para Viena, Buda-
peste, Belgrado e Bucareste. Ficamos em albergues, exceto em
um dia em Budapeste que Mark estava se sentindo muito mal,
então fomos para um quarto de hotel com ar-condicionado. Na
ocasião, comprei em um supermercado fatias de queijo em-
baladas individualmente e guardei no pequeno congelador do
pequeno frigobar do pequeno quarto de hotel. Enquanto espe-
rávamos que elas gelassem, coloquei toalhas úmidas na nuca e
na coluna de Mark. Quando as fatias de queijo por fim conge-
laram, espalhei-as pelo corpo dele, o que pareceu ajudar um
pouco. O quarto tinha uma jacuzzi, então nós nos acomodamos
nela, sem enchê-la, enquanto procurávamos alguma coisa na
TV, e acabamos parando em um pornô que, por acaso, tinha
uma jacuzzi. Mark comeu o queijo.
Isso foi antes de existir smartphone. Nós navegávamos por
trens, albergues, homens... tudo com um guia de bolso. Íamos
a lan houses para mandar notícias para casa: “Ei, estamos vi-
vos.” Eu mandava e-mails para Paula, ansiosa por estar com
ela. Pensava nela o tempo todo: enquanto explorávamos a
Áustria, procurando pelo mar de girassóis; enquanto eu bebia
cerveja de mirtilo num porão em Belgrado, os lábios roxos, a
cabeça girando, igual estava na última vez que nos beijamos,
que também havia sido a primeira; durante uma viagem de
trem de doze horas de duração de Belgrado a Bucareste, em
meio a uma das piores ondas de calor em décadas. Mark e
eu estávamos deitados lado a lado na mesma cabine, a jane-
la aberta e nossa cabeça o mais perto possível da abertura.
Não havia ar-condicionado e não tínhamos água. Dividindo
os fones de ouvido, escutávamos Cat Power e bebericávamos
absinto. Será que você está ouvindo também? O CD que fiz para você?,
eu me perguntava, quase em voz alta. Observava a noite pas-

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sar, a paisagem sérvia, rural, estética, com suas poucas luzes
brilhando. E pensava em Paula.
Aquela vez no Reflections tinha sido novidade para mim:
estar em um espaço LGBTQIA+ e me sentir tão presente,
curtindo. Havia uma vergonha alojada em meus ossos desde
que me entendia por gente, e eu tentava me livrar daquela an-
tiga essência tóxica e erosiva. Mas naquele lugar existia ale-
gria, uma alegria que me preenchia e me fazia sorrir de forma
involuntária. O suor escorria por minhas costas e meu peito
enquanto eu dançava. Observava o cabelo de Paula balançar
e ela parecia se mexer sem esforço, de uma forma caótica mas
contida, sensual e intensa. Eu pegava ela me olhando, ou era o
contrário? Queríamos ser pegas. Parecíamos gatinhos encurra-
lados, assustados, mas não o suficiente para fugir.
— Posso te beijar? — perguntei, me assustando com minha
própria coragem, como se ela tivesse vindo de outro lugar, em-
balada talvez pela música eletrônica, uma zona de libertação
que exige que você deixe aquilo que o reprime do lado de fora
da porta.
E então a beijei. Num bar LGBTQIA+. Na frente de todo
mundo a nossa volta. Ali entendi todos os poemas sobre amor,
todo o alvoroço. Antes, tudo era frio, sem emoção, sem vida.
Todas as mulheres que amei não me amaram de volta, e aque-
las que talvez tenham amado amaram da maneira errada.
Mas lá estava eu, na pista de dança, com uma mulher que
queria me beijar, e aquela voz angustiante e cruel que ouvia em
minha cabeça sempre que sentia desejo estava calada. Talvez
por um mísero momento eu pudesse me permitir sentir prazer.
Encostamos os lábios tão de leve, a ponta das línguas mal se
encostando, testando, a eletricidade percorrendo meu corpo.
Nós nos encaramos, uma compreensão mútua.

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Lá estava eu, à beira do precipício. Mais perto de meus de-
sejos, de meus sonhos. Eu, sem o peso insuportável do autodes-
prezo que carreguei por tanto tempo. Mas muita coisa pode
mudar em poucos meses. E, dali a alguns meses, Juno estrearia.

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2
Bolão

“Bolão da sexualidade de Ellen Page”. Li a manchete, a cor


sumindo de meu rosto. Era uma matéria de Michael Musto no
jornal The Village Voice, publicada em meio ao sucesso de Juno.
Passei os olhos pelo texto. Junto à especulação sobre a sexua-
lidade de uma pessoa de 20 anos de idade, Michael incluiu:
“Qual é, sejamos francos... Ela é? Você sabe... sapatão! Ela já se
veste como um machinho... Vamos juntar as peças de velcro! A
Juno é uma você-sabe-o-quê?”
Eu fui jogado sob os holofotes de um dia para o outro, mas
já haviam me chamado de sapatão muitas vezes no Canadá,
durante minha adolescência. No ensino médio, o bullying al-
cançou um novo patamar, passou de um sussurrar discreto das
meninas populares ao ato relativamente dramático de ser for-
çado a entrar no banheiro masculino. Empurrado, com o nariz
franzido por conta daquele cheiro estranho de mictório, espe-
rei um pouco e ouvi a confusão se dispersar, se suavizar a dis-
tância. Quando saí do banheiro, dei de cara com meu professor
de inglês, que me encarava com uma expressão dura e rude, e
me disse: “Já para a direção!” Eu me desculpei. Não disse que
tinha sido forçado a entrar ali.
Não muito antes do bullying se intensificar, eu havia dividi-
do quarto com uma menina chamada Fiona durante o torneio
de futebol na St. Francis Xavier University. A Universidade SFC
fica em Antigonish, uma cidade no extremo nordeste da Nova
Escócia, a um pulo de Cape Breton, e tem os mais antigos High-
land Games fora da Escócia. Apesar do nome de “Nova Escócia”
(do latim, Nova Scotia), o povo Mi’kmaq vive lá há 10 mil anos.
Ainda me lembro da risada de Fiona. Eu conseguia ouvi-la
sobressaindo-se a qualquer barulho, em meio a toda a estáti-
ca, penetrando meus ouvidos, ecoando dentro de mim. Queria
ficar perto dela, queria que ela me quisesse. Eu jogava como
volante direito, era rápido e pequeno, mas desajeitado. Ela era
zagueira, a última na linha de defesa de nosso time e cocapitã,
dividindo a braçadeira com nossa meio-campista central. Uma
líder nata, mandona mas gentil, e que nos apoiava. Eu amava
vê-la chutar a bola: com força, naturalidade e uma confiança
que eu invejava. Eu estava me apaixonando.
Deitados em camas duras em lados opostos do quarto, as
paredes revestidas de madeira escura e barata, olhei para o teto
e inspirei profundamente... Deveria segurar o ar ou soltá-lo? A
sensação era sobrenatural, como se eu estivesse vislumbrando
um possível futuro.
— Acho que talvez eu seja bissexual — anunciei, meio que
do nada, já que nunca tinha falado isso para ninguém.
— Não, você não é — respondeu ela de imediato, um refle-
xo ligeiro, e logo após riu.
Daquela vez, o som de sua risada foi duro e cortante. Mes-
mo assim, quis rir junto. Quer dizer, ser LGBTQIA+ é engraçado
e é algo ruim, certo? A palavra “homossexualidade” pronunciada
na aula de educação sexual era seguida por uma cacofonia de
risadas. Todos os seriados a que eu assistia depois da aula re-
forçavam isso. Sempre que rolava uma piada, ou eu fazia uma,
aquilo grudava, como cocô na sola do sapato. O holofote sendo
deslocado de um lado para outro em um palco. Eu tentava sa-

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patear para longe dali. Como um cachorro molhado, eu me ba-
lançava para me livrar daquilo, para tirar tudo aquilo de mim.
Não me lembro do que foi dito depois, só das risadas ecoando
pelo quarto e da superfície dura da cama.
Sem conseguir dormir, fugi para o corredor de luz fluores-
cente por volta de cinco da manhã e me sentei no chão para ler.
Kurt Vonnegut foi o primeiro autor do qual gostei de verdade
— ignorando você-sabe-quem. Eu estava lendo O espião america-
no, um romance de ambiguidade moral. “Cuidado com o que
você finge ser, pois você é o que finge ser”, escreveu Vonnegut.
Sentado sozinho no corredor, fiquei refletindo sobre aquelas
palavras. Sentia a vergonha percorrendo meu corpo num ritmo
constante. Algo havia escapado por entre meus dedos, não ti-
nha como pegar de volta. Esperei o sol nascer.
Todos nós tomamos café da manhã juntos na área de convi-
vência. Havia bagels da Tim Hortons e o pai de uma das meni-
nas tinha levado um saco grande de laranjas. Os adultos bebiam
café e nos vigiavam. Comi em silêncio. Não sabia como olhar
para Fiona, então achei melhor fingir que nada havia aconteci-
do. Peguei minhas caneleiras na intenção de ir mais cedo para
o campo e começar a me aquecer.
— Sapatão.
A palavra foi como um tapa na cara, dita com um sorrisinho
maldoso que eu viria a conhecer tão bem. Era como se dissesse:
“Ahá! Não sou igual a você.” Veio de uma garota popular, amiga
de Fiona. E doeu. Uma dor isolada, um piscar de olhos, mas é o
tipo de coisa que permanece com você.
As coisas mudaram depois disso. Algo havia sido arruina-
do. Eu conseguia ouvir os sussurros, sentir a mudança no cli-
ma que pairava, a especulação... Quem sabe fosse bom? Aquele
dente mole precisava ser arrancado.

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***

Alguns meses depois, meu pai e eu fomos visitar minha avó em


Lockeport, um pequeno vilarejo de pescadores com pouco mais
de quinhentos habitantes na costa sul da Nova Escócia. Barcos
pesqueiros se alinhavam no porto, amarrados ao longo píer, as
cores parecendo luzes de Natal... Amarelo batido, vermelho des-
gastado e diversos tons de azul. Um cartão-postal da Nova Es-
cócia.
Quando eu era criança, meu pai me levava a Lockeport no
1 de julho, feriado nacional do Dia do Canadá. É tipo o 4 de
o

Julho nos Estados Unidos, mas com menos “independência da


Coroa” e mais “aniversário do Canadá”. Como uma criança
branca que vivia na Nova Escócia, eu não tinha ideia de nossa
história. Não me ensinaram sobre nossas raízes genocidas, o
racismo sistemático ou a segregação.
Costumava pensar que o Dia do Canadá tinha a ver com
fogos de artifício, desfiles, bolo de morango no porão da igreja
e o pau de sebo — minha parte favorita. Um poste comprido
e fino de madeira era colocado no final do cais, projetando-
-se por cima do píer, com uma longa queda até a água, e be-
suntavam toda a extensão dele com banha. Na ponta do poste,
estendendo-se sobre o oceano, ficava um saco com um montão
de dinheiro também envolto em banha que os competidores
tentavam pegar. Na verdade, só havia duas estratégias. A pri-
meira era se agarrar ao poste e deslizar aos poucos (o que em
geral não funcionava) e a segunda, e mais eficiente, deslizar na
maior velocidade possível, de uma só vez, agarrando o máximo
de dinheiro que conseguisse na descida em direção ao Atlânti-
co congelante. Ao emergir, você poderia recuperar as notas que
tivesse perdido por causa do choque de temperatura. Gaivotas

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sobrevoavam, mergulhando na gordura flutuante. Não, eu nun-
ca tentei.
Minha avó ainda morava na casa em que meu pai havia
crescido. Uma casinha de dois andares com três quartos e fa-
chada branca. Atrás dela, se estendia uma floresta sem fim. A
mercearia de meu avô, Page’s Store, ficava do outro lado da
rua. Ainda está lá, mas não sei como se chama hoje em dia. O
estabelecimento agora tem uma bomba de gasolina.
Os quartos do andar de cima eram conectados entre si por
um closet. Quando criança, eu me escondia lá, onde me trans-
portava, confiante, para uma realidade imaginária cuja porta,
pequenininha, parecia ter sido feita para mim. Eu puxava a
corda da lâmpada que pendia do teto, iluminando meu monte
de tesouros. Era bastante cinematográfico. Ficava mexendo em
caixas de munições, fascinado que algo tão minúsculo como
uma bala pudesse matar os bichos que eu via correndo no mato.
Os corpos estoicos, parecendo magníficos demais para que algo
tão pequeno pudesse atingi-los.
— Dennis, o que você vai fazer se a Ellen for sapatão? —
perguntou minha avó a meu pai quando nos sentamos ao sol,
com o mesmo tom rude que ela usava para dizer coisas racistas.
Numa ironia digna de Alanis Morissette, essa era a mesma
avó que me dera um ursinho com arco-íris nas patas quando
eu nasci.
Eu estava com 16 anos e tinha acabado de raspar minha
cabeça para um filme. Um jogo do Blue Jays passava na TV.
Ela amava beisebol, torcia para o time de Toronto. Ou era para
o de Boston? Essa foi uma das últimas vezes que vi minha avó
antes de ela morrer. Me pergunto o que ela acharia de seu neto
agora, se ainda estivesse viva. Duvido que ainda escolheria algo
com arco-íris. Contudo, algumas pessoas realmente mudam.

pageboy 23
***

O sucesso de Juno coincidiu com pessoas da indústria me falan-


do que ninguém podia saber que eu era LGBTQIA+. Disseram
que não seria bom para mim, que eu precisava ter opções, e que
acreditasse que isso era para o meu bem. Assim, usei vestidos e
maquiagem. Fiz sessões de fotos. Mantive a relação com Paula
escondida. Eu estava lutando contra a depressão e tendo ataques
de pânico tão fortes que chegava a desmaiar. Mal conseguia ser
funcional. Anestesiado e quieto, sentindo garras apertando mi-
nhas entranhas, não conseguia verbalizar a profundidade da dor
que me assolava, ainda mais porque “meus sonhos estavam se
realizando”, ou pelo menos era isso que me diziam. Desconside-
rei meus sentimentos, como se fossem drama, e me recriminei
por estar sendo ingrato. Senti culpa por dizer que estava magoa-
do, impotente, que não via futuro para mim.
Depois de ler a matéria de Michael Musto, liguei para meu
agente, mas isso só serviu para me deparar, mais tarde, com
uma postagem num blog que detalhava a conversa dos dois ao
telefone. “Não tem nada de errado em se perguntar se alguém
é gay”, dizia. Dei um grito, tomado pela raiva. Sim, não há nada
de errado em somente se perguntar se alguém é gay, mas é im-
prudente e perigoso escrever sobre isso sem considerar a jornada
de uma pessoa LGBTQIA+ jovem.
Juno havia estreado no Festival Internacional de Cinema de
Toronto, com uma recepção calorosa. Eu não tinha um agente
naquela época. Havia decidido que conseguiria ir sozinho de-
pois de uma experiência anterior em que uma pergunta ino-
cente de adolescente (“Você já assistiu a Xena?”) foi respondida
com “Não, porque não sou lésbica”. Estava feliz de não precisar
mais trabalhar com aquela agente, os comentários emblemáti-

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cos dela eram exatamente o que as pessoas avisam a você sobre
Hollywood: artificiais, vazios e homofóbicos. Mesmo assim, eu
não estava preparado nem tinha experiência suficiente para li-
dar com essa nova fama sozinho.
Tornar-se ator no Canadá é diferente, em especial naquela
época. O Canadá não era envolto em glamour. Nós não tínha-
mos essa obsessão por sermos estrelas. A insistência em masca-
rar as coisas veio, sobretudo, com Juno.
Eu planejava usar calça jeans e uma camisa (meio) chique
para o evento internacional de estreia de Juno. Achei que era um
look legal, a blusa tinha até um colarinho. Chique, hein?, pensei.
Quando a equipe de publicidade da Fox Searchlight descobriu
qual seria minha roupa, eles correram comigo para a Holt Ren-
frew da Bloor Street, com uma pressa dramática que é caraterís-
tica de Hollywood. Sugeri um terno, mas eles me recomendaram
um vestido e salto alto. Discutiram isso com o diretor e então ele
me ligou, disse que concordava com a equipe e insistiu para que
eu cumprisse meu papel. Michael Cera foi de tênis, calça social
e camisa de colarinho, e estava lindo. Chique, a meu ver. Por que
não o levaram à Holt Renfrew? Acho que ele não tinha nada a
esconder, então foi aprovado. Ele se encaixava no papel.
Ser informado de que eu era inadequado, errado, o pequeno
invertido que precisava ser escondido, e ficar mais famoso à me-
dida que me repudiava, era uma corda bamba na qual eu andava
desde que me entendia por gente. Era como uma tatuagem gru-
dada em minha pele, da qual não conseguia me desvencilhar.
Um ímpeto de rasgar minha carne, uma forma de reprimir a
mim mesmo... Eu tinha nojo de mim tanto quanto eles.
Comecei a passar cada vez mais tempo em Los Angeles.
Compromissos de imprensa para Juno, reuniões, “temporada de
premiações”... na verdade, ocupou duas temporadas. Na Nova

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Escócia, saiu mais uma matéria investigando minha sexualida-
de, talvez tentando ganhar o “bolão da sexualidade de Ellen
Page” que Michael Musto havia começado. Foi na Frank, uma
“revista” que era publicada em Halifax desde 1987 e se consi-
derava “satírica”, contudo parecia mais um tabloide. Eu estava
em Santa Mônica quando meu pai me ligou falando que uma
foto minha no Sundance estampava a capa da Frank, acompa-
nhada de uma manchete gigante: “Ellen Page é lésbica?”
Meus joelhos cederam. Na cama do albergue de um amigo,
fechei os olhos com força, as lágrimas rolando pelo rosto. Por
favor, que isso seja só um pesadelo. Por favor.
Quando voltei para Halifax, a revista estava em todos os
lugares. Sempre à vista no mercado, no posto de gasolina, na
lojinha da esquina... em todos os lugares, exibindo a pergun-
ta “Ellen Page é lésbica?”. Paula virava as revistas, escondia-as
atrás de outras. Uma vez ela roubou um monte de um posto de
gasolina na cidade.
A liberdade que senti durante o verão com Paula tinha aca-
bado.
Dentro da revista, Paula aparecia em uma foto. Estávamos
com um pequeno grupo em uma festa. Eu me lembro daquela
noite, uma reuniãozinha em um apartamento daqueles prédios
sem graça que ainda existem em Halifax. A matéria especulava
se nós estávamos em um relacionamento ou não, estudava os
rumores. Paula não era aberta sobre sua sexualidade com a fa-
mília. Olhando a foto, me dei conta: Foi um amigo nosso quem deve
ter enviado isso para a revista. Nunca descobri quem foi.

26 elliot page
Elliot Page cresceu sob os holofotes. Seu talento e seu ca-
risma sempre chamaram atenção, mas não apenas isso: sua
vida pessoal também era muito comentada na imprensa
e nos sites de fofoca. Com o enorme sucesso de Juno, em
2007, Elliot tornou-se um dos atores mais amados do mun-
do. À medida que seus anseios profissionais se tornavam
realidade, porém, a pressão para atender as expectativas da
indústria o consumia. Enquanto ainda vivia um turbilhão
de sentimentos e tentava compreender a si mesmo, viu-se
forçado a interpretar um papel de jovem estrela glamorosa
na própria vida, algo que o assombrava para além dos sets.
A carreira — que até então tinha sido uma válvula de esca-
pe, transportando-o da infância complicada para um mun-
do imaginário — de repente se transformou num pesadelo.

Em meio às críticas recebidas e aos abusos praticados por


algumas das pessoas mais poderosas da indústria do cine-
ma, ao passado que o perseguia e a uma sociedade deter-
minada a enquadrá-lo na binariedade, Elliot calava-se, sem
saber o que fazer. Até que se cansou. E, aos poucos, come-
çou a se aproximar de seus desejos, de seus sonhos e de si
mesmo, sem a repressão que o sufocou por tanto tempo.

Repleto de detalhes de bastidores do cinema e de questio-


namentos íntimos sobre sexo, amor, traumas e Hollywood,
Pageboy é a história de uma vida que chegou ao limite. Em
essência, uma narrativa emocionante sobre a trajetória si-
nuosa de uma pessoa queer e trans que lutou para se des-
vencilhar das expectativas dos outros. Contada de forma
visceral, em que o leitor quase ouve a voz de Elliot, é uma
celebração ao ato de assumir quem realmente somos com
rebeldia, força e alegria.

SAIBA MAIS:
https://www.intrinseca.com.br/livro/1268/

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