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PAG EBOY
Memórias
título original
Pageboy
copidesque
Theo Araújo
revisão
Ilana Goldfeld
Laiane Flores
design de capa
Keith Hayes
fotos de capa
Catherine Opie
P149p
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Page, Elliot, 1987-
P149p
Pageboy : memórias / Elliot Page ; tradução Arthur Ramos. - 1. ed. - Rio de
Janeiro Page,
: Intrínseca, 2023.
Elliot, 1987-
304Pageboy
p. ; 21: cm.
memórias / Elliot Page ; tradução Arthur Ramos. - 1. ed. - Rio de
Janeiro : Intrínseca, 2023.
304 p. ; 21 cm.
Tradução de: Pageboy : a memoir
ISBN 978-65-5560-724-6
Tradução de: Pageboy : a memoir
ISBN 978-65-5560-724-6
1. Page, Elliot, 1987-. 2. Atores - Canadá - Biografia. 3. Atores - Estados
Unidos -1.Biografia.
Page, Elliot,4.1987-.
Homens transgênero
2. Atores - Biografia.
- Canadá - Biografia. I. Ramos,
3. Atores - Estados Arthur.
Unidos II. Título.
- Biografia. 4. Homens transgênero - Biografia. I. Ramos, Arthur. II. Título.
23-83587 cdd: 791.43028092
CDD: 791.43028092
cdu:
23-83587 CDU: 929:791.071929:791.071
Meri Gleice
Meri GleiceRodrigues deSouza
Rodrigues de Souza- Bibliotecária
- Bibliotecária - CRB-7/6439
- CRB-7/6439
20/04/2023 25/04/2023
[2023]
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Intrínseca Ltda.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 6o andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
Para quem veio antes de mim
Nota do autor
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ser queer é intrinsecamente não linear, são jornadas que con-
vergem e dialogam entre si. Dois passos para a frente, um passo
para trás. Passei parte de minha vida em busca da verdade, ao
mesmo tempo que estava morrendo de medo de desmoronar.
Isso se revela em minha escrita de maneira intencional. De vá-
rias formas, este livro é a história de minha autodescoberta.
O ato de escrever, ler e compartilhar a multiplicidade de
nossa experiência é um passo importante para lutar e resis-
tir contra aqueles que querem nos silenciar. Não tenho nada
profundo a dizer, nada que já não tenha sido dito antes. Mas
os livros me ajudaram, até me salvaram, então talvez este aqui
possa ajudar alguém a se sentir menos só, a se sentir visível, não
importa quem esse alguém seja ou qual seja sua jornada. Obri-
gado por ler sobre a minha.
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1
Paula
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sar, a paisagem sérvia, rural, estética, com suas poucas luzes
brilhando. E pensava em Paula.
Aquela vez no Reflections tinha sido novidade para mim:
estar em um espaço LGBTQIA+ e me sentir tão presente,
curtindo. Havia uma vergonha alojada em meus ossos desde
que me entendia por gente, e eu tentava me livrar daquela an-
tiga essência tóxica e erosiva. Mas naquele lugar existia ale-
gria, uma alegria que me preenchia e me fazia sorrir de forma
involuntária. O suor escorria por minhas costas e meu peito
enquanto eu dançava. Observava o cabelo de Paula balançar
e ela parecia se mexer sem esforço, de uma forma caótica mas
contida, sensual e intensa. Eu pegava ela me olhando, ou era o
contrário? Queríamos ser pegas. Parecíamos gatinhos encurra-
lados, assustados, mas não o suficiente para fugir.
— Posso te beijar? — perguntei, me assustando com minha
própria coragem, como se ela tivesse vindo de outro lugar, em-
balada talvez pela música eletrônica, uma zona de libertação
que exige que você deixe aquilo que o reprime do lado de fora
da porta.
E então a beijei. Num bar LGBTQIA+. Na frente de todo
mundo a nossa volta. Ali entendi todos os poemas sobre amor,
todo o alvoroço. Antes, tudo era frio, sem emoção, sem vida.
Todas as mulheres que amei não me amaram de volta, e aque-
las que talvez tenham amado amaram da maneira errada.
Mas lá estava eu, na pista de dança, com uma mulher que
queria me beijar, e aquela voz angustiante e cruel que ouvia em
minha cabeça sempre que sentia desejo estava calada. Talvez
por um mísero momento eu pudesse me permitir sentir prazer.
Encostamos os lábios tão de leve, a ponta das línguas mal se
encostando, testando, a eletricidade percorrendo meu corpo.
Nós nos encaramos, uma compreensão mútua.
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Lá estava eu, à beira do precipício. Mais perto de meus de-
sejos, de meus sonhos. Eu, sem o peso insuportável do autodes-
prezo que carreguei por tanto tempo. Mas muita coisa pode
mudar em poucos meses. E, dali a alguns meses, Juno estrearia.
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2
Bolão
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patear para longe dali. Como um cachorro molhado, eu me ba-
lançava para me livrar daquilo, para tirar tudo aquilo de mim.
Não me lembro do que foi dito depois, só das risadas ecoando
pelo quarto e da superfície dura da cama.
Sem conseguir dormir, fugi para o corredor de luz fluores-
cente por volta de cinco da manhã e me sentei no chão para ler.
Kurt Vonnegut foi o primeiro autor do qual gostei de verdade
— ignorando você-sabe-quem. Eu estava lendo O espião america-
no, um romance de ambiguidade moral. “Cuidado com o que
você finge ser, pois você é o que finge ser”, escreveu Vonnegut.
Sentado sozinho no corredor, fiquei refletindo sobre aquelas
palavras. Sentia a vergonha percorrendo meu corpo num ritmo
constante. Algo havia escapado por entre meus dedos, não ti-
nha como pegar de volta. Esperei o sol nascer.
Todos nós tomamos café da manhã juntos na área de convi-
vência. Havia bagels da Tim Hortons e o pai de uma das meni-
nas tinha levado um saco grande de laranjas. Os adultos bebiam
café e nos vigiavam. Comi em silêncio. Não sabia como olhar
para Fiona, então achei melhor fingir que nada havia aconteci-
do. Peguei minhas caneleiras na intenção de ir mais cedo para
o campo e começar a me aquecer.
— Sapatão.
A palavra foi como um tapa na cara, dita com um sorrisinho
maldoso que eu viria a conhecer tão bem. Era como se dissesse:
“Ahá! Não sou igual a você.” Veio de uma garota popular, amiga
de Fiona. E doeu. Uma dor isolada, um piscar de olhos, mas é o
tipo de coisa que permanece com você.
As coisas mudaram depois disso. Algo havia sido arruina-
do. Eu conseguia ouvir os sussurros, sentir a mudança no cli-
ma que pairava, a especulação... Quem sabe fosse bom? Aquele
dente mole precisava ser arrancado.
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sobrevoavam, mergulhando na gordura flutuante. Não, eu nun-
ca tentei.
Minha avó ainda morava na casa em que meu pai havia
crescido. Uma casinha de dois andares com três quartos e fa-
chada branca. Atrás dela, se estendia uma floresta sem fim. A
mercearia de meu avô, Page’s Store, ficava do outro lado da
rua. Ainda está lá, mas não sei como se chama hoje em dia. O
estabelecimento agora tem uma bomba de gasolina.
Os quartos do andar de cima eram conectados entre si por
um closet. Quando criança, eu me escondia lá, onde me trans-
portava, confiante, para uma realidade imaginária cuja porta,
pequenininha, parecia ter sido feita para mim. Eu puxava a
corda da lâmpada que pendia do teto, iluminando meu monte
de tesouros. Era bastante cinematográfico. Ficava mexendo em
caixas de munições, fascinado que algo tão minúsculo como
uma bala pudesse matar os bichos que eu via correndo no mato.
Os corpos estoicos, parecendo magníficos demais para que algo
tão pequeno pudesse atingi-los.
— Dennis, o que você vai fazer se a Ellen for sapatão? —
perguntou minha avó a meu pai quando nos sentamos ao sol,
com o mesmo tom rude que ela usava para dizer coisas racistas.
Numa ironia digna de Alanis Morissette, essa era a mesma
avó que me dera um ursinho com arco-íris nas patas quando
eu nasci.
Eu estava com 16 anos e tinha acabado de raspar minha
cabeça para um filme. Um jogo do Blue Jays passava na TV.
Ela amava beisebol, torcia para o time de Toronto. Ou era para
o de Boston? Essa foi uma das últimas vezes que vi minha avó
antes de ela morrer. Me pergunto o que ela acharia de seu neto
agora, se ainda estivesse viva. Duvido que ainda escolheria algo
com arco-íris. Contudo, algumas pessoas realmente mudam.
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cos dela eram exatamente o que as pessoas avisam a você sobre
Hollywood: artificiais, vazios e homofóbicos. Mesmo assim, eu
não estava preparado nem tinha experiência suficiente para li-
dar com essa nova fama sozinho.
Tornar-se ator no Canadá é diferente, em especial naquela
época. O Canadá não era envolto em glamour. Nós não tínha-
mos essa obsessão por sermos estrelas. A insistência em masca-
rar as coisas veio, sobretudo, com Juno.
Eu planejava usar calça jeans e uma camisa (meio) chique
para o evento internacional de estreia de Juno. Achei que era um
look legal, a blusa tinha até um colarinho. Chique, hein?, pensei.
Quando a equipe de publicidade da Fox Searchlight descobriu
qual seria minha roupa, eles correram comigo para a Holt Ren-
frew da Bloor Street, com uma pressa dramática que é caraterís-
tica de Hollywood. Sugeri um terno, mas eles me recomendaram
um vestido e salto alto. Discutiram isso com o diretor e então ele
me ligou, disse que concordava com a equipe e insistiu para que
eu cumprisse meu papel. Michael Cera foi de tênis, calça social
e camisa de colarinho, e estava lindo. Chique, a meu ver. Por que
não o levaram à Holt Renfrew? Acho que ele não tinha nada a
esconder, então foi aprovado. Ele se encaixava no papel.
Ser informado de que eu era inadequado, errado, o pequeno
invertido que precisava ser escondido, e ficar mais famoso à me-
dida que me repudiava, era uma corda bamba na qual eu andava
desde que me entendia por gente. Era como uma tatuagem gru-
dada em minha pele, da qual não conseguia me desvencilhar.
Um ímpeto de rasgar minha carne, uma forma de reprimir a
mim mesmo... Eu tinha nojo de mim tanto quanto eles.
Comecei a passar cada vez mais tempo em Los Angeles.
Compromissos de imprensa para Juno, reuniões, “temporada de
premiações”... na verdade, ocupou duas temporadas. Na Nova
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Escócia, saiu mais uma matéria investigando minha sexualida-
de, talvez tentando ganhar o “bolão da sexualidade de Ellen
Page” que Michael Musto havia começado. Foi na Frank, uma
“revista” que era publicada em Halifax desde 1987 e se consi-
derava “satírica”, contudo parecia mais um tabloide. Eu estava
em Santa Mônica quando meu pai me ligou falando que uma
foto minha no Sundance estampava a capa da Frank, acompa-
nhada de uma manchete gigante: “Ellen Page é lésbica?”
Meus joelhos cederam. Na cama do albergue de um amigo,
fechei os olhos com força, as lágrimas rolando pelo rosto. Por
favor, que isso seja só um pesadelo. Por favor.
Quando voltei para Halifax, a revista estava em todos os
lugares. Sempre à vista no mercado, no posto de gasolina, na
lojinha da esquina... em todos os lugares, exibindo a pergun-
ta “Ellen Page é lésbica?”. Paula virava as revistas, escondia-as
atrás de outras. Uma vez ela roubou um monte de um posto de
gasolina na cidade.
A liberdade que senti durante o verão com Paula tinha aca-
bado.
Dentro da revista, Paula aparecia em uma foto. Estávamos
com um pequeno grupo em uma festa. Eu me lembro daquela
noite, uma reuniãozinha em um apartamento daqueles prédios
sem graça que ainda existem em Halifax. A matéria especulava
se nós estávamos em um relacionamento ou não, estudava os
rumores. Paula não era aberta sobre sua sexualidade com a fa-
mília. Olhando a foto, me dei conta: Foi um amigo nosso quem deve
ter enviado isso para a revista. Nunca descobri quem foi.
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Elliot Page cresceu sob os holofotes. Seu talento e seu ca-
risma sempre chamaram atenção, mas não apenas isso: sua
vida pessoal também era muito comentada na imprensa
e nos sites de fofoca. Com o enorme sucesso de Juno, em
2007, Elliot tornou-se um dos atores mais amados do mun-
do. À medida que seus anseios profissionais se tornavam
realidade, porém, a pressão para atender as expectativas da
indústria o consumia. Enquanto ainda vivia um turbilhão
de sentimentos e tentava compreender a si mesmo, viu-se
forçado a interpretar um papel de jovem estrela glamorosa
na própria vida, algo que o assombrava para além dos sets.
A carreira — que até então tinha sido uma válvula de esca-
pe, transportando-o da infância complicada para um mun-
do imaginário — de repente se transformou num pesadelo.
SAIBA MAIS:
https://www.intrinseca.com.br/livro/1268/