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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
CDD - 869.98
92-679 CDU - 869.0(81)-94
Impresso no Brasil
ISBN 85-01-04014-2
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052 — Rio de Janeiro, RJ — 20922-970
A MEMÓRIA DA VIDA
Eduardo Portella
O Chão de Meninos, novo livro de Zélia Gattai, contém e irradia uma vitalidade
contagiante, como se Zélia se escrevesse o tempo todo, do jeito que ela é, sem
jamais recorrer ao truque ou à encenação. O que se afirma, ao longo destas
páginas verdadeiras, é antes o canto de amor à vida — à vida áspera, desafiante,
cercada de obstáculos por todos os lados mas, de qualquer modo, vida para ser
vivida: de frente, cara a cara, nenhuma fuga, nenhuma dramatização. A vida como
vontade, sem medo e sem resignação. Sem permitir que o desânimo contamine
episódios freqüentemente desanimadores, e sem deixar que o ressentimento
substitua a generosidade. O livro de Zélia é como ela — um livro de bem com a
vida e, por isso mesmo, destinado a nos animar com a séria alegria do viver.
O Chão de Meninos reconstitui o percurso humano, social, político, de Zélia
Gattai, e o seu personagem principal é Jorge Amado, esse exemplar criador de
personagens. Mas na cena espaçosa dos Gattai Amado os amigos são sempre
bem recebidos, alvos de atenções especiais, e nunca extensões de aventuras
personalistas ou motivos para rememorações fraudulentas.
Os gêneros pessoais se desacreditaram no Brasil. Menos por uso do que por
abuso. Os diários, as memórias, os depoimentos perderam boa parte da sua antiga
credibilidade. Os usuários, ou os abusuários de hoje, tornaram-se mais conhecidos
como fabricantes de máscaras, ou de bustos, ou de estátuas, com que procuram
trapacear a sempre duvidosa imortalidade. A literatura pessoal, por excesso de
maquiagem, e por recorrência freqüente a todas as formas de prótese, passou a
ser uma edificação enganosa a serviço da egolatria. Enredado na própria peripécia
individual, a fraqueza do proselitismo solitário supõe substituir o vigor do olhar
solidário.
O texto de Zélia Gattai está vacinado contra esse vírus do exibicionismo. Um
saudável contraponto de cenário imediato e horizonte histórico, de sonho político e
realidade nacional, orienta e conduz o Chão de Meninos. A cotidianidade, quando
vivida enraizadamente, é o minuto e a permanência; mais do que a usura, é a
partilha, talvez a doação. Somente os livros votados a essa proeza silenciosa são
capazes de nos acompanhar para sempre. É o que acontece com estas
lembranças vincadas sobre a memória da vida.
ABRIL DE 1963
Acordei num pulo, sobressaltada com o toque do telefone. Por que tanto susto
se estava ali à espera da chamada? Recostada na poltrona enquanto aguardava,
adormeci. Que horas podiam ser? Quanto tempo dormira? Não devia ter sido
muito, ainda não dera meia-noite.
Do outro lado do fio João Jorge me falava: "Mãe, pode vir..." Ainda bem que
eu não devia ir longe para apanhá-lo, ainda bem. Estava morta de cansaço,
trabalhara o dia todo. O carro ficara em frente ao edifício, me pouparia de
manobrá-lo na garagem sempre repleta àquela hora. O apartamento do colega,
onde se dera o "arrasta", ficava logo ali no Leme, a dois passos do nosso;
residíamos no posto 2, em Copacabana.
Tratei de recomendar: "Aguarde dez minutos antes de descer, meu filho, não
fique esperando na rua..."
PRIMEIRO CONTATO
APARTAMENTO DE FUNDOS
Nosso apartamento era de fundos e tinha seus encantos. Por um espaço entre
dois edifícios à esquerda, avistava-se a avenida Copacabana e, por coincidência,
podíamos ver de nossa janela o apartamento de Joelson, irmão de Jorge, situado
na movimentada artéria. O lado direito dava para os fundos de edifícios da avenida
Atlântica, moradias de gente de posse que, em dias de muito calor, ao abrirem as
amplas janelas, à frente e atrás, nos ofereciam a vista da praia e do mar. Num
desses prédios morava um pianista que tocava pela manhã exercícios de várias
horas seguidas.
Via-se de meu quarto, da janela quase sempre aberta de um apartamento, à
esquerda, um enorme quadro, um nu. Assim, a distância, dava a impressão de ser
realmente uma mulher de carne e osso, mais carne do que osso. Esse quadro,
certo dia, impressionou Vera, minha irmã, ingênua e recatada, de passagem lá por
casa:
— Venha ver só, Zélia — chamou-me apontando o quadro, escandalizada —,
que mulher mais sem-vergonha! Fica junto da janela, se exibindo... Imagine só se
Jorge vê uma coisa dessas!... Você já pensou?...
Para sua grande surpresa eu lhe respondi:
— Até que ele ia gostar...
— Gostar? Não acredito... Aproveitei a ocasião para me divertir:
— Cuidado, Vera, não fique olhando, não! O homem se zanga!
— O homem? Que homem?...
Inventei na hora uma história: "Ali mora um pintor, uma fera, e a moça é
modelo. A pobrezinha fica posando, parada, horas a fio, para ganhar um mísero
dinheirinho, seu sustento..!' Vera acreditou: "Profissão mais triste!... Deus me livre!"
Com o passar dos dias, porém, depois de fiscalizar a janela em horas diferentes,
ela chegou à conclusão de que a irmã não passava de uma boa gozadora. Não
gostou, com toda a razão.
Bem em frente às janelas da sala, debaixo de nosso nariz, sobretudo de
nossos ouvidos, havia o Beco das Garrafas, com entrada pela rua Duvivier. Quem
visse esse beco durante o dia nem diria: verdadeiro jardim-de-infância, crianças
moradoras dos edifícios em redor brincando de roda, de amarelinha, de cabra-
cega... jogos infantis em lugar adequado onde não entravam automóveis. À noite,
no entanto, a coisa mudava de figura. No beco funcionavam três boates elegantes
com shows de cantores da melhor qualidade. No Little Club, podia-se encontrar
Dolores Duran interpretando composições de sua autoria, românticas e doridas,
com Ribamar ao piano. As outras duas costumavam apresentar intérpretes
estrangeiros; eram o Bacará e o Arpège. Ou seria Ma Griffe? Nome de perfume
francês, lembro-me. As três boates encarreiradas não davam conta do recado,
viviam sempre repletas de uma clientela assídua, homens e mulheres amantes de
shows, de uísques, de mulheres, de homens... Era muito comum chegarem de
surpresa lá em casa amigos de passagem para o beco. Foi o que aconteceu
naquela noite quando apareceram, sem avisar, Eduardo Portella, João Conde e
Antônio Maria comboiando Louis Malle, meteur-en-scène, um dos pais da nouvelle
vague, que viera ao Brasil para a estréia de seu filme Les Amants. Louis Malle
completava 26 anos naquele dia, e eles pensavam comemorar a data no Little
Club; acabaram comemorando em nosso apartamento. Ao saber do aniversário do
cineasta, não perdi tempo, fui à cozinha e voltei trazendo o bolo de puba que fizera
para o café da manhã; espetara nele a única vela que encontrara pela frente.
Cantando parabéns pra você..., levei o bolo para o aniversariante. Lembro, como
se fosse hoje, de sua surpresa e de quanto se emocionou.
A elegância e a qualidade dos artistas das boates não impediam, no entanto,
os fuzuês sucessivos no meio da noite, alvoroçando Deus e o mundo. Acontecia
despertarmos de madrugada com gritos, insultos e até tiros nos rififis do beco
aonde mulheres iam surpreender os maridos com outras e maridos flagrar as
mulheres com outros, desencadeando a pancadaria. Os vizinhos de cima,
cansados da barulheira noturna, muniam-se de garrafas vazias e as atiravam
sobre os beligerantes. Por isso o nome Beco das Garrafas.
MILITANTE DO PARTIDO
Militante do Partido Comunista, Jorge já não tinha tempo para escrever. Nem
tempo nem cabeça, sempre às voltas com reuniões e tarefas partidárias, tarefas
que o obrigavam, muitas vezes, a fazer viagens pelo Brasil e no estrangeiro.
Eu também me ligara ao Partido, mesmo não sendo inscrita. Indisciplinada por
natureza, nunca me inscrevi em partido algum, sempre prezei minha
independência e minha liberdade. Liberdade de pensar por minha cabeça, dizer
não ao que acho errado, aplaudir o que acho certo. Um exemplo: quando da
eleição presidencial, em 1960, à qual concorriam Jânio Quadros e o Marechal
Henrique Teixeira Lott, o Partido se empenhou na campanha a favor de Lott, e a
palavra de ordem aos militantes era votar no Marechal. Ao receber a diretiva
transmitida por Giocondo Dias, da direção do Partido, que fora lá em casa
conversar com Jorge, lhe disse com todas as letras que em Lott não votaria nem
morta, jamais! Na véspera mesmo, ele estivera na televisão e dissera não querer
votos de comunistas. Não fosse por outra razão, esta já me bastava. Giocondo
sorriu, não tentou me dissuadir. Creio até que ele, pessoa da maior dignidade,
pensava como eu, mas era disciplinado e uma resolução do Comitê Central devia
ser cumprida à risca, sem discussão.
Eu trabalhava com prazer, não media sacrifícios, consciente de estar fazendo
uma coisa certa, de estar ajudando a resolver os problemas de nosso povo sofrido
ao lado de um Partido sério.
Designada para a comissão de finanças, incumbência das mais ingratas, eu a
executava sem reclamar. Participava de reuniões nas quais entregava o dinheiro
da minha quota semanal.
O Partido vivia de contribuições, de donativos, da renda de atividades culturais
e de festas, da venda de objetos e obras de arte. As visitas de finanças eram feitas
em geral por duas pessoas; minha companheira constante era Vitória Sampaio
Lacerda, que não era inscrita no Partido, apenas solidária com o marido, João
Felipe, antigo militante que também fazia parte de nosso grupo de finanças.
Pessoa simpática e agradável, Vitória e eu nos dávamos bem, juntas estudávamos
as visitas a fazer, voltávamos de nossas andanças muitas vezes desanimadas
mas, mesmo assim, não desistíamos de recomeçar tudo no dia seguinte.
Era duro e difícil conseguir-se dinheiro para um Partido ilegal, sobretudo para
o Partido Comunista, e eu vivia dando tratos à bola, imaginando como cumprir
minha quota.
Em geral as pessoas com posses, que poderiam contribuir, não se dispunham
a alimentar um Partido cuja linha era contrária aos seus princípios e aos seus
interesses financeiros. Não adiantava querer convencê-las a nos ajudar, esforço
inútil, não davam nada.
Havia os que não desejavam a vitória do comunismo mas, como não
acreditavam nela, contribuíam com pequenas somas simplesmente por
amabilidade, para atender a moças tão simpáticas, coitadas.
Havia os que davam um dinheirinho com medo de... se por acaso... Esperando
sempre que não houvesse nunca esse por acaso, que sua ajuda financeira não
fosse pesar na balança, não fosse contribuir para a vitória da foice e do martelo.
Mas, quem sabe?
Em compensação, havia os que ajudavam por convicção, com prazer, não
medindo sacrifícios, e esses eram muitos. Mas a esses eu não procurava, pois já
tinham quem deles se ocupasse. Por exemplo, Oscar Niemeyer, membro do
Partido, era contribuinte cativo de Maria Barata, e mesmo sendo Oscar nosso
amigo, nunca lhe toquei em assunto de dinheiro, respeitava os direitos de Maria.
Embora me sentisse constrangida ao fazer essas visitas de finanças, distraía-
me ao mesmo tempo estudando a reação de cada vítima, divertido estudo de
psicóloga amadora.
Quando o dinheiro apertava, a comissão de finanças criava uma emulação
entre os grupos e aí as quotas aumentavam, iam parar lá nas alturas, exigindo
esforços ainda maiores dos estacanovistas.
O Coronel João Amado se interessava e se divertia muito com as minhas
proezas para conseguir dinheiro e, algumas vezes, ao ver-me aflita, me
emprestava o que faltava para completar a quota, dinheiro sagrado que nunca
deixei de devolver. Certa vez precisei recorrer à venda de um colar de âmbar do
qual gostava muito, para devolver o dinheiro ao velho. Mas disso ele nunca soube.
Certa ocasião, a seu conselho, acompanhei-o a Pirangi, no sul da Bahia, onde
possuía uma fazenda de cacau. "Venha comigo, menina, lá na roça tem muito
coronel graúdo, tu pode dar boas facadas." O conselho deu certo, por incrível que
pareça, consegui o prodígio de convencer alguns fazendeiros atrasados e
reacionários a contribuir para o Partido.
Dessa viagem, quase levo para o Rio uma galinha de três pernas — duas
normais e a terceira pendurada atrás. Chegava gente de longe para ver o
fenômeno, e isso me deu a idéia de levá-la para o Rio e fazer uma financinha,
colocando-a numa gaiola, cobrando entradas a quem quisesse vê-la. João Jorge,
que fora comigo, ficou eufórico, "...deixa comigo, mãe, eu tomo conta do negócio".
O que dirá Jorge, pensei, ao me ver chegar com uma galinha aleijada debaixo do
braço? Não! A maluquice era grande demais, acabei desistindo.
Trouxe tanto dinheiro dessa viagem que, mesmo sem a ajuda da galinha,
dobrei minha quota. Ganhei como premia um vale de 20 cruzeiros para retirar
livros na livraria Vitória, que pertencia ao Partido, uma medalha e uma coleção de
pequenos budas de marfim, recebidos numa das reuniões festivas que eram
realizadas para premiar os campeões.
VISITAS DE PESO
A campeã de nosso grupo era Maria Barata, mulher de Agildo Barata,
tesoureiro do Partido, que vivia em semi-ilegalidade. Maria dedicava seu tempo ao
trabalho de finanças, tarimbada e competente como ela só. Mulher sofrida mas
corajosa, passara maus pedaços na mocidade com o marido encarcerado e um
filho por criar. Anistiado em 1945, Agildo concorrera às eleições e fora eleito
vereador pelo Rio de Janeiro, mas, com o retorno do Partido à ilegalidade em
1947, ele e os demais companheiros de direção voltaram a agir clandestinamente.
O filho, Agildo Ribeiro, era a menina dos olhos da mãe. Desde pequeno, ao
revelar seus dotes de artista, enchera-a de vaidade. O sucesso crescente do jovem
ator em programas de televisão e teatro compensava-a dos maus momentos
passados, o filho era seu orgulho, sua alegria e sua glória. Com Maria Barata fiz
apenas duas visitas, duas visitas de peso, como ela costumava dizer.
A primeira foi a Maria Gouveia, filha do célebre Delmiro Gouveia, da fábrica
têxtil de Pedras, em Paulo Afonso. Delmiro Gouveia deixara fama de liberal e
progressista. Um pedido à sua filha, portanto, não era coisa descabida.
Íamos cheias de esperanças ao apartamento da senhora, imaginando
conseguir mundos e fundos. Chegamos depois do jantar, à hora combinada.
Conversa vai, conversa vem, falou-se em assuntos os mais diversos, a anfitriã,
inteligente, esperta, sabendo do objetivo da visita, desviava caminho... Maria
Barata também era esperta e, num dado momento, aproveitando uma brecha,
entrou no assunto, buscou explicar que nosso trabalho se destinava
exclusivamente à ajuda das famílias de presos políticos, famílias de companheiros
na ilegalidade... Crianças precisando comer, precisando estudar... precisando de
roupa... não pedíamos dinheiro para fazer revolução, nem pensar!...
Eu não sentia necessidade de reforçar tão convincentes argumentos,
colaborava emprestando apenas minha insignificante presença. Calada, assistia ao
duelo entre as duas Marias e, por experiência própria, aos poucos fui
desanimando, perdendo a esperança. A adversária não se comovia! Ocorreu-me
naquele momento uma expressão muito de minha mãe: "Deste mato não sai
coelho."
Os argumentos comoventes de Maria Barata, como eu previra, não
convenceram, não amoleceram o coração, nem abriram a bolsa da dona da casa,
que nos concedia a honra de visitá-la e já era bastante.
Saímos tarde da noite daquele luxuoso apartamento em Copacabana, as
mãos abanando. Maria Gouveia sozinha fora mais competente do que nós duas
juntas.
VISITAMOS OS DUPRÉ
A segunda visita não tinha sido programada, aconteceu por acaso. Eu estava
em São Paulo para ver meu filho, numa de minhas periódicas viagens de dois ou
três dias, e encontrei Maria Barata na rua: "Veja só que coincidência... estava
pensando em você! Que bom ter te encontrado! Estou com uma visita marcada
para hoje à noite, visita de peso, e você é a pessoa indicada para me
acompanhar." A visita de peso seria ao senhor e à senhora Leandro Dupré. "Visitar
os Dupré?", perguntei admirada. "E você acha que eles têm alguma simpatia pelo
Partido?" Maria estava muito confiante, não contava apenas com a senhora
Leandro Dupré — escritora de muito nome em São Paulo, seu livro de estréia,
Éramos Seis, fizera sucesso junto ao público e aos críticos — mas, sobretudo, com
esperanças no marido, o engenheiro dr. Leandro Dupré, homem conceituado e
rico.
Eu conhecia o casal pessoalmente, mas nunca me ocorrera fazer-lhes uma
visita de finanças, coisa que jamais poderia passar por minha cabeça, achava a
idéia absurda. Eles viviam noutro mundo que não o nosso, não deviam,
certamente, se interessar pelos problemas do Partido Comunista. Não quis, no
entanto, desanimar Maria e, embora certa da inutilidade da empreitada, marquei
encontro com ela para depois do jantar.
Os Dupré moravam num sobrado rodeado de jardins. Receberam-nos com
simpatia, embora admirados de me verem, pois não contavam com minha visita.
Acomodadas numa luxuosa sala de visitas, a conversa se iniciou, conversa
sobre literatura, o casal interessado, querendo saber dos projetos de Jorge, se
estava escrevendo, querendo saber sobre a nossa estada no mundo socialista,
sobre o movimento literário nesses países, assunto inesgotável, uma conversa
sem fim. Bons anfitriões, nos ofereceram uísque do melhor e, sempre atento, dr.
Dupré não deixava que nossos copos esvaziassem, ia sempre completando a
dose.
O tempo passava e Maria Barata, inquieta, apenas ouvindo aquilo que ela
devia considerar uma enfadonha lenga-lenga, sem futuro. Agoniada ela buscava,
sem conseguir, entrar no assunto que a interessava, mas qual! Não conseguia...
Eu podia até estar enganada, mas tive a impressão clara de que o casal, ciente da
intenção da mulher de Agildo Barata, ao que ela vinha, se divertia não lhe dando
vaza, num jogo de gato e rato, procurando outras conversas com a mulher de
Jorge Amado. Maria devia estar arrependida de ter me levado.
Lá pelas tantas, depois de dois ou três uísques, Maria resolveu: consultou o
relógio, ostensivamente, quase meia-noite, era demais, passara da conta! Encheu-
se de coragem, mostrou sua competência interrompendo uma conversa pelo meio
e entrou de sola: "Bem, o motivo de nossa visita..." Falou com veemência, como só
ela sabia fazer, desfilou com maestria seus argumentos e suas pretensões.
Comoveu a mim mas não comoveu nem convenceu o casal a comparecer com a
soma que ela pedia. Nem com a que ela pedia nem com nenhuma.
Ainda uma vez tínhamos perdido nosso precioso tempo, Maria gastara seu
latim à toa. Minha presença não adiantara coisa alguma, só fizera atrapalhar, e
saímos do palacete dos Leandro Dupré com as mãos vazias e mais uma triste
experiência.
A MOÇA DE CARUARU
A MOÇA DA BAHIA
Ainda uma vez dona Zélia ia para o fogão, assumia os trabalhos pesados da
casa até que outra ave rara caísse do céu para substituí-la.
Minha irmã, Vera, estava morando no Rio com Paulo, seu marido, e Fábio, seu
filho, e aparecia sempre para me dar uma ajuda, sobretudo com as crianças,
levando-as a passear, acompanhando Paloma à aula de bale... Ainda bem que
podia contar com minha irmã, sempre contara. Em circunstâncias difíceis de minha
vida, ela fora meu porto de arrimo.
Felizmente, depois de muita consumição, conseguimos uma ótima
empregada, Roberta, vinda de Feira de Santana — caída do céu —, mandada por
um amigo, João Falcão, homem rico e membro do Partido Comunista, da comissão
de finanças, na Bahia (diga-se de passagem, com João Falcão fiz algumas visitas
de finanças, em Salvador, quando ainda não morávamos lá).
Sabendo o quanto necessitava de alguém para me ajudar, João Falcão
conseguiu Roberta, pessoa de confiança e competente cozinheira, doutora em
vatapá e caruru, em frigideiras de toda a espécie, xinxim de galinha... um regalo!
Ai, meu Deus! Eu não pedira tanto!
Agora sim, me sentia aliviada, cabeça fresca, tempo sobrando. Podia dar mais
assistência às crianças, cobrir minhas quotas semanais, cada vez mais altas, sem
tanto sacrifício. Francamente, eu já não estava dando conta do recado, pesado
demais. Não estava mesmo!
SURTO DE POLIOMIELITE
CANDIDATO À POLIOMIELITE
Diz o provérbio que "não há dois sem três", e chegara, pois, a vez de Janaína
adoecer. Amanhecera queixando-se de fortes dores no ventre, não suportava que
se lhe tocasse. Tomou café na cama e vomitou em seguida. James estava
viajando, sem poder dar assistência à filha, e eu novamente na aflição,
desamparada. Joelson saíra para o hospital e só apareceu depois do almoço.
Como de hábito veio acompanhado, desta vez de dois colegas.
— Onde é que está doendo, Janinha? — perguntou Joelson.
— Está doendo aqui, tio... — apontava o lado esquerdo da barriguinha —, dói
muito, tio...
Ele tentou examiná-la, mas não conseguiu, um grito da menina o fez recuar a
mão.
— Por favor, tio... Não toque, eu não agüento... Após confabularem, os
médicos chegaram à conclusão
de que se tratava de um caso de apendicite aguda. Chamaram imediatamente
doutor Alcedo Coutinho, cirurgião competente, camarada de Partido, ele daria a
última palavra. E lá veio novamente Sidney Rezende para as devidas análises
caso fosse preciso operar de urgência.
Antes de ver a paciente, Alcedo foi inteirado da situação da criança, das dores
insuportáveis que sentia no ventre...
Um verdadeiro leva-e-traz, João espichava o ouvido às conversas dos
médicos e saía correndo reportar tudo à prima: "Oba! Parece que você vai ser
operada!... O Alcedo já chegou."
"Onde é que está doendo, minha filha? Aqui?" Alcedo calcou-lhe a barriga.
"Não...", respondeu ela, dengosa, deixando que o médico comprimisse. O exame
continuava, aperta aqui, calca ali, dobra a perna, estira a perna, Janaína
permitindo tudo sem reclamar, diante da perplexidade do tio, que acabara de
relatar ao cirurgião um quadro inteiramente oposto daquele a que assistia.
Desmoralizado, intrigado, Joelson resolveu, ele também, comprimir o ventre da
sobrinha:
— É aqui que está doendo, Janinha? Ou aqui? — apertava a barriga da
menina, como um padeiro a amassar o pão.
— Não está doendo, não, tio...
— E o que é que você está sentindo? — quis saber Alcedo.
— Fome... até agora não comi nada...
— Ora, Zélia — pilheriou Alcedo —, você quer matar essa menina de fome?
Vá depressa dar comida a ela!...
Sentada à mesa, Jana se banqueteou, estava mesmo com muita fome. A seu
lado, João a observava, talvez com alguma esperança de que as dores voltassem
e a pagodeira prosseguisse. Mas ele se enganava, dessa vez perdera a partida:
— João — perguntou-lhe a prima —, quantos médicos você teve para tuas
dores nas pernas?
— Três — respondeu ele prontamente.
— Pois eu tive cinco... Dois a mais!
CONFERENCISTA IMPROVISADA
MEU PAI
Com meu pai aprendi o que seria um mundo socialista, um mundo de paz,
liberto de injustiças, um mundo de fartura em que não mais existisse fome, um
mundo de liberdade e democracia.
Assim meu pai ensinava aos filhos. Contava-nos histórias verdadeiras — Luís
Carlos Prestes, montado em seu cavalo, atravessando o Brasil à frente da heróica
coluna Prestes, foi o Robin Hood de minha infância; a legendária figura de Stalin,
com seus bigodes negros, representava, para a criança sonhadora que eu era,
Aladim, a iluminar os destinos do mundo com sua lâmpada maravilhosa.
Meu pai morreu há 51 anos, aos 54 de idade. Deixou de ver tantas coisas
terríveis, perdeu ver tantas coisas belas nesse meio século transcorrido. Coisas
vistas e julgadas pelos olhos e pelo coração da fiel discípula, sua filha caçula. Mas
ele, o que teria ele pensado da bomba atômica e dessas guerras monstruosas a
que assistimos pela televisão, guerras entre irmãos a explodirem por toda parte?
Que teria ele pensado dos crimes de Stalin, denunciados por Nikita Kruchov, em
seu relatório no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em
1956? Teria ficado, como eu, perplexo e desencantado? E sobre a revolução
política que se desenrola hoje no mundo socialista? O que pensaria seu Ernesto?
Pelo que o conheci, posso jurar que, como sua filha, ele continuaria apostando no
socialismo, desconfiando cada vez mais dos ideólogos e dos dirigentes, homens
incompetentes e ambiciosos, responsáveis pela deturpação do socialismo e o seu
conseqüente fracasso.
APARTAMENTO NOVO
MORTE DE STALIN
Foi nesse mesmo ano de 1953, ano da morte de Stalin, que se realizou, em
Santiago do Chile, o Congresso Continental de Cultura, sob a égide do Movimento
Mundial dos Partidários da Paz.
Membro do Bureau do Conselho Mundial da Paz, na Europa, havia anos,
Jorge era também um dos dirigentes do movimento dos partidários da paz no
Brasil, em cuja sede, no centro, à rua São José, reunia-se com outros dirigentes,
dr. Valério Konder, renomado médico sanitarista, o engenheiro dr. Pita Pinheiro e o
presidente nacional, ex-senador dr. Abel Chermont.
Dessa vez eu iria com Jorge ao Chile e estava feliz. Essa escapada a
Santiago ia ser uma beleza! Ao menos por uns 15 dias me veria livre dos encargos
da casa, das tarefas partidárias, e, mais do que tudo, Jorge e eu teríamos tempo
de nos curtir, coisa difícil desde nossa chegada da Europa. íamos ter a alegria de
reencontrar velhos e queridos amigos vindos de várias partes do mundo para o
Congresso e que já haviam confirmado sua presença, uma festa! Podia inclusive
partir tranqüila, pois Vera, minha irmã, cuidaria das crianças.
CONGRESSOS INTERNACIONAIS
Com Jorge acontece com freqüência fazer amigos antes mesmo de conhecê-
los pessoalmente. Esse o caso de sua amizade com Yashar Kemal, o romancista
turco, de quem se considerava fraterno há longo tempo: só há dois anos veio a
encontrá-lo em Istambul.
Manteve durante anos longas e animadas conversas telefônicas com
Guimarães Rosa sem no entanto jamais se terem visto, nunca terem se
encontrado, embora morando na mesma cidade do Rio e Janeiro, em bairros
vizinhos. Foi preciso que um dia Pedro Bloch, médico e escritor, amigo fraterno de
ambos, os reunisse num almoço em sua casa. Pedro Bloch não sabia que os dois
convivas não se conheciam pessoalmente, assistiu com a maior surpresa aos
abraços efusivos dos romancistas ao se verem pela primeira vez. Ao que tudo
indica, nem Yashar Kemal, nem Guimarães Rosa e nem Jorge Amado assistiam
aos mesmos congressos.
Pablo Neruda apelidara sua mulher, Delia del Carril, de "Hormiga". "Por que
formiga?", perguntei-lhe curiosa, um dia. Pablo riu: "Porque mepellizca,
pellizcotezitos finos..."
Pessoa adorável, Delia vivia em função do marido. Devia ter sido muito bela
quando jovem, pois suas rugas não haviam conseguido apagar os traços finos e a
suavidade de seu rosto. Mulher de fino trato, de família de latifundiários argentinos,
Delia era a negação da dona-de-casa "ai, que soy burra para esas cosas...",
costumava dizer quando precisava da ajuda de alguém. E sempre havia alguém
para ajudá-la. A casa vivia cheia de mulheres, jovens e maduras, num entra-e-sai,
de manhã à noite, adoradoras do poeta, a adivinhar-lhe os pensamentos, a
saborear-lhe as palavras, a servi-lo de tudo que pudesse lhe dar prazer, sempre às
ordens para colaborar nos jantares e almoços improvisados, levando pratos
quentes, vinhos, guloseimas, frutas, queijos, doces... Muito paparicada também,
Hormiguita pra cá, Hormiguita pra lá, Delia tratava a todas com carinho e não fazia
cerimônia ao pedir-lhes favores, dando-lhes ordens, algumas vezes recrutando-as
por telefone.
Se Delia não sabia dirigir uma casa, em compensação era mestra em receber
as pessoas, telefonar a um e outro, sempre com uma palavra amável e um sorriso
simpático convocava ou despachava "a clientela", "clientela" no dizer do poeta.
Mulher sábia, la Hormiga não sentia ciúmes desse batalhão de mulheres
bonitas, bem-tratadas, inteligentes e elegantes. Sabia farejar o perigo e localizá-lo,
explicou-me: "A mulher não deve se consumir à toa, criando fantasmas onde eles
não existem, não deve se humilhar provocando cenas e atritos com o marido. É
preciso usar de argúcia, de tino, saber empregar o sexto sentido — e isso nós,
mulheres, temos de sobra — para saber cortar rente, na hora exata, o que nos
ameaça. As amigas de Pablo não me ameaçam..." "E os pellizcotezitos finos, por
quê? Não seriam por ciúmes?", provoquei, um dia. "Ah! Para los pellizcotes ay su
hora y su tiempo. Por veces se hacen necesarios." Hormiguita me dava conselhos.
Bons conselhos.
Quanto à casa, quem conduzia o leme era Laurita, irmã de Pablo, discreta e
competente.
Somente depois de separar-se do marido, separação dolorosa para ambos,
aos setenta e poucos anos, Delia del Carril começou a pintar profissionalmente.
Talvez já tivesse pintado antes, não sei. Morreu, aos 101 anos, pintora e gravadora
consagrada.
A FEIJOADA
O PEIXINHO DOURADO
Quero contar ainda uma pequena história de peixinhos e aquários, não vou
deixar Jorge sozinho com a fama de peixicida.
A história do peixinho dourado, Pablo gostava de contar, e eu a ouvi ainda
uma vez no dia da feijoada, enquanto tomávamos "aguita caliente" — infusão com
as mais diversas folhas aromáticas, ao gosto de cada um — depois do almoço
para ajudar a digestão, hábito salutar dos chilenos.
O cuento que Pablo gostava de repetir passara-se no tempo de sua juventude,
caso verídico, ocorrido em Santiago, nos tempos em que era hábito realizar-se
saraus literários em residências particulares, onde os poetas liam suas poesias.
Com Angel Cruchaga e outros amigos, Pablo costumava freqüentar a casa de
uma senhora muito rica, colecionadora de antigüidades, pretensiosa e tola, que
adorava a convivência de jovens literatos — todos eles uns pés-rapados, sem um
níquel no bolso —, de recebê-los, de matar-lhes a fome com as melhores iguarias
e a sede com as melhores bebidas e, em troca, eles davam aos seus saraus
literários o status que repercutia na imprensa.
Certa ocasião, ao regressar de uma viagem pelo mundo, a rica colecionadora
os convocou para um jantar, queria mostrar-lhes a mais preciosa das antigüidades,
coisa rara e única, que trouxera do Egito, uma surpresa.
No centro do salão de festas, ela colocara um pedestal e em cima dele a
surpresa se escondia sob um manto de velu-do vermelho.
Enquanto o suspense era mantido, o uísque escocês corria a rodo, espocava
o champanhe... vinhos e licores...
O tempo passava, a festa cada vez mais animada, a euforia se generalizava,
quando a dona da casa anunciou que era chegado o grande momento. Pediu
silêncio, encaminhou-se para o meio do salão, retirou a manta de veludo que
cobria o misterioso vulto e debaixo dela surgiu um rico aquário de cristal onde
nadava um peixinho dourado. Cheia de emoção, ela revelava o segredo:
— Este peixinho, meus amigos, pertenceu a Cleópatra. Comprei-o no Egito,
aqui está o certificado de garantia — brandia uma folha de papel escrita em árabe
—, custou-me uma fortuna...
O discurso ainda não estava terminado quando Angel Cruchaga de
Santamaría, que chegara alto e mais alto ficara com os uísques que emborcara,
deu um passo à frente, como se quisesse examinar de perto a antigüidade rara e...
diante da perplexidade de todo mundo, meteu a mão no aquário; com uma
precisão espantosa, agarrou o peixinho pela cauda, levantou-o acima da cabeça,
soltou-o na boca, que o esperava aberta, engolindo de um trago o peixinho que
pertencera a Cleópatra, pelo qual a anfitriã pagara uma pequena fortuna.
LUA-DE-MEL NO QUITANDINHA
João Gilberto, o papa da bossa nova, estava noivo, trouxera Astrud, a noiva,
para a conhecermos e dela ficamos igualmente amigos.
O dia do casamento se aproximava, João Gilberto nos convidara para a
cerimônia e fizera um pedido a Jorge. Desejava ser o primeiro da fila dos vários
casamentos que seriam realizados naquele dia, no cartório de Aníbal Machado, em
Copacabana.
— Você que conhece bem o Aníbal, por favor, Jorge, peça a ele que me
atenda logo, não quero ficar lá esperando no meio de tanta gente...
Jorge tomou do telefone e em menos de cinco minutos tudo ficou acertado.
Primeirão na fila. Eu quis saber onde seria a lua-de-mel, e eles ainda não sabiam.
Sugerimos que fossem para o nosso apartamento em Quitandinha, lá teriam paz e
privacidade. Nos vários fins de semana passados lá na serra, constatáramos que
os raros hóspedes que perambulavam pelo hotel eram, na maioria, casais em lua-
de-mel.
Astrud e João ficaram de pensar e até decidirem João nos deu várias
telefonemas querendo saber detalhes sobre o apartamento e seu funcionamento.
Chamava sempre a mim, não tinha coragem de incomodar Jorge com tais
perguntas. Por fim decidiram aceitar nosso convite, passariam a lua-de-mel em
Quitandinha.
Agora, os telefonemas diários de Joãozinho já eram por outro assunto, estava
querendo muito saber se iríamos ao casamento:
— Claro que vamos!
— Mas Jorge vai mesmo?
— Vai, João!
— Posso contar com vocês?
— Claro que pode, João!
Até o dia do casamento as perguntas e as respostas se repetiram, idênticas:
— Vocês vão ao casamento?
— Claro que vamos, João...
A cerimônia seria realizada ao meio-dia. Chegamos ao cartório às 12 em
ponto. João Gilberto nos esperava na porta, embaixo, o cartório ficava no primeiro
andar:
— Eu estava aflito, temendo que não viessem... Achamos graça, e Jorge
perguntou:
— ...e nós somos tão indispensáveis assim?... Encabulado, João disse:
— ...é que vocês vão ser meus padrinhos de casamento... Antes de viajarem
para Petrópolis, depois do almoço na casa dos pais de Astrud, Joãozinho me pediu
um favor: "Quero que você telefone ao Vinícius e diga que não fiquei magoado
com ele por não ter vindo ao casamento. Sei que ele acorda tarde, perdeu a hora e
agora deve estar morrendo de remorsos... Diga a ele que não tenha remorsos... Eu
entendo..." Ao telefonar para Vinícius de Moraes, a primeira coisa que ele me disse
foi: "...Acordei tarde, estou morrendo de remorsos!"
GLÁUBER ROCHA
AEROPORTO DO GALEÃO
Ehremburg tinha muita vontade de conhecer o Brasil e essa era a
oportunidade, poderia parar no Rio de Janeiro, na volta de Santiago, onde o avião
fazia escala. Havia apenas um problema, e grande: conseguir visto de entrada no
país. A situação no Brasil andava crítica, convulsa, todo mundo tenso, a crise
política crescia, Vargas atacado sem tréguas por seus inimigos, encurralado,
acabaria encontrando uma única saída: o suicídio.
Antes de viajarmos para Santiago, Jorge fora direto aos altos escalões do
governo a fim de pleitear vistos para os Ehremburg. Procurara o Ministro Oswaldo
Aranha, a quem conhecia pessoalmente, pedindo-lhe sua intervenção junto ao
Presidente. Consultado, Vargas lamentara não poder atender ao pedido, era
admirador de Ilya Ehremburg, fora leitor assíduo de suas crônicas, escritas no
front, durante a última guerra, mas, na situação em que se encontrava, mal
podendo manter-se no poder, diante do crescimento da campanha para depô-lo
antes da realização de novas eleições, um golpe de Estado em preparação...
Lamentavelmente não podia autorizar a entrada do escritor soviético no país. Um
visto para Ehremburg poderia ser a gota d'água de que necessitavam seus
adversários. Oswaldo Aranha lastimou, mas de fato o Presidente tinha razão, não
podia. Aliás, Getúlio se suicidaria dias depois da passagem de llya e Luba pelo
aeroporto do Rio.
PASSAGEIROS EM TRÂNSITO
Sobre o destino das frutas fomos sabendo aos poucos; da jaca com seu
perfume doce e penetrante invadindo o avião sem que ninguém conseguisse
descobrir de onde vinha; do susto que Lida — a empregada russa — levou ao ver
a fruta enorme e espinhenta sobre a mesa, pensando tratar-se de um animal; das
mudas de cacau indo parar no Jardim Botânico de Moscou, assim como as de
jaca, nascidas dos caroços plantados por Ilya; das mudas de café florescendo e
dando frutos, assuntos de longas cartas cheias de detalhes e de humor recebidas
no correr dos anos.
PERSONAS GRATAS
Pilheriavam com Jan Drda e Kuchválek, que haviam obtido visto para virem ao
Brasil, chamando-os de personas gratas. O visto lhes fora concedido ainda na
Tchecoslováquia, não havia por que negar-lhes, pois os dois países mantinham
relações diplomáticas.
Ficáramos tristes e desapontados ao vermos Ilya e Luba partirem, proibidos de
pisarem em nossa terra. Agora teríamos ao menos a satisfação de acolher nossos
amigos tchecos, que deviam chegar a qualquer momento.
Drda e Kuchválek chegaram a tempo de assistir, atônitos, às escaramuças e
ao quebra-quebra nas ruas do Rio de Janeiro, o povo revoltado, exaltado, triste
com o suicídio de Getúlio Vargas, pedindo vingança.
"JUAREZ ESTUPIDEZ"
BRIGADISTA DE BASE
CARLOS LACERDA
12 DE MAIO DE 1976
Juscelino Kubitschek fora eleito, e neste seu primeiro ano de governo podia-se
respirar, a liberdade e a democracia se instalavam.
A idéia de fazer um jornal de literatura e arte não abandonara Jorge,
continuara a bulir em sua cabeça. Chegara, pois, a hora de pôr seu plano de pé,
havia clima para isso e, liberado dos encargos partidários, já podia dispor de seu
tempo para dedicar-se a um trabalho que só ia lhe dar prazer.
Não faltavam intelectuais que quisessem juntar-se a ele na grande e difícil
empreitada, eles eram muitos e da melhor qualidade. Fariam um belo jornal,
divulgariam o que havia de melhor em literatura e arte, jornal amplo, sem
sectarismos, que terminasse com as divisões de esquerda e direita, castradoras, e
reunisse setores de todas as tendências. Unidos, fariam um quinzenário que viria
preencher uma lacuna, jornal que fazia falta no Brasil. Dentro desse princípio e
desse espírito, surgiu o Paratodos.
Um grupo disposto a trabalhar formou-se rapidamente, cada qual assumiu sua
função. Diretores: Oscar Niemeyer e Jorge Amado; redator-chefe, Moacir Werneck
de Castro; secretário de redação, James Amado; diretor comercial, Alberto Passos
Guimarães; Dalcídio Jurandir, Renard Perez, Miécio Tati e Dias da Costa
cuidariam da parte literária; Vera Tormenta e Ana Letícia, das artes plásticas; Alex
Vianni, de cinema; Antônio Bulhões de Carvalho, de teatro; Aparício Torelly, o
Barão de Itararé, preencheria as colunas de humor; Edi-no Krieger, as de música;
o pintor Carlos Scliar, convocado, não pôde se incorporar à equipe, empenhado na
ocasião na revista Senhor, não podia dispor de tempo integral, colaborou
esporádica porém intensamente.
Aos poetas a poesia, e foi Vinícius de Moraes quem abriu ' lindamente o
primeiro número do Paratodos com seu poema inédito, "Operário em Construção";
Joaquim Cardozo, engenheiro calculista de estruturas mas antes de tudo grande
poeta, dos maiores críticos de arte, foi colaborador efetivo do Paratodos desde o
início; os escritores José Geraldo Vieira e Maria de Lourdes Teixeira asseguravam
a sucursal de São Paulo; os gravadores Fayga Ostrower e Oswaldo Goeldi, os
pintores Iberê Camargo, Di Cavalcanti, Antônio Bandeira e tantos outros artistas e
escritores de alto gabarito incorporaram-se ao jornal. O entusiasmo em torno do
projeto e a disposição geral de participar dele eram o que mais havia, não faltavam
braços e nem cabeças. Faltava apenas uma coisa: dinheiro.
Alguns editores, considerando a importância do jornal, davam anúncios,
anúncios de pouca monta, que não chegavam nem para cobrir o aluguel do
escritório, uma sala apenas porém ampla, no edifício Marquês do Herval, projeto
audacioso dos irmãos Roberto, na avenida Rio Branco.
Livre do pesadelo das finanças do Partido, eu repetia aliviada, "finanças nunca
mais!" Tratava de minha vida, matriculara-me na Aliança Francesa de
Copacabana, colega de João, disposta a fazer o curso completo. Iniciava vida nova
quando fui convocada pelo diretor comercial do Paratodos, Alberto Passos
Guimarães, que, sabendo de minha experiência no assunto, tarimbada, dizia,
pedia-me ajuda para o setor de finanças do jornal, precisavam de dinheiro com
urgência para mantê-lo.
Ouvi calada seus argumentos. Alberto gastava comigo seu latim, eu estava
dentro do problema tanto quanto ele. Assistia de perto ao esforço da equipe para a
saída de cada número do jornal, tarefa de amor, sem horário de trabalho, salário
incerto no fim do mês — a maioria não recebia nada, passava apertos... Não
discuti, não tinha por quê. Eu devia ajudá-los por obrigação e vontade. Faria o que
estava ao meu alcance, não possuía outra aptidão senão correr atrás de dinheiro:
"Cada macaco no seu galho", diria minha mãe.
Talvez fosse mais fácil, pensei, conseguir dinheiro para um jornal como o
Paratodos do que para um Partido ilegal, podia bater em qualquer porta e ser
recebida de braços abertos, não havia dúvida!
Organizei uma lista de pessoas a procurar mas recuei na primeira porta que
bati. Fiquei sabendo em seguida que não adiantava ir diretamente a diretores de
empresas, pois a publicidade de suas firmas estava entregue a agências
especializadas.
Procurei o gerente de uma agência de publicidade no Rio, ex-membro do
Partido Comunista que, ao desligar-se das atividades partidárias, dedicara-se à
propaganda. Aliás, eu conhecia ainda outros ex-militantes no Rio e em São Paulo,
também no ramo da publicidade, bem-montados na vida, com altos salários,
funcionários competentes, formados na escola do Partido, a da disciplina, da
argúcia e da perseverança.
O gerente da agência me reconheceu logo e, ao saber o que eu pretendia, não
fez rodeios, foi taxativo:
— Nenhuma firma comercial tem interesse em anunciar no Paratodos... é um
bom jornal, não há dúvida, mas quinzenário ainda desconhecido, de pouca
circulação, lido apenas por literatos e artistas que jamais compram coisa alguma e
desprezam anúncios comerciais. É verdade ou não é? — fez uma pausa. — Quer
ouvir um conselho de amigo, dona Zélia? Desista de procurar outras agências, só
vai perder tempo e se cansar, ninguém dará anúncios para seu jornal.
Foi assim que o gerente e ex-comuna me despachou, com um conselho de ex-
camarada, tirando-me qualquer ilusão. Eu devia bater em outra freguesia, bolar
coisa diferente.
Na casa de Oscar Niemeyer, nas Canoas, seria dada a grande virada nas
finanças do Paratodos. Transformado em sociedade anônima, o jornal lançava à
venda suas ações num coquetel de alto bordo, oferecido pelo grande arquiteto,
presidente da empresa, com a presença de intelectuais importantes e da fina nata
de ricaços da sociedade carioca.
Um livro aberto recebia assinaturas dos candidatos às ações. Dos presentes
não falhara um sequer, todos se inscreveram. Estávamos eufóricos, o Paratodos ia
sair do poço. Maravilha!
Várias páginas preenchidas lá estavam, mas "alegria de pobre dura pouco" —
lá vem dona Angelina — dali não saiu um tostão furado. Procuramos em vão
concretizar a venda das ações, nos cansamos à toa na busca dos candidatos que
se haviam inscrito. Não conseguíamos ser recebidos. Esbarrávamos sempre com
uma secretária treinada em despachar chatos. Nem mesmo as cartas enviadas,
tratando do assunto, foram respondidas. Venderam-se umas poucas ações, não
passou de uma "ação entre amigos", foi tudo.
Eu não trabalhava sozinha, havia outras pessoas que, como eu, se viravam
mas também pouco ou nada conseguiam. Depois do fracasso financeiro do
excelente coquetel na casa das Canoas, convocou-se uma reunião para estudar a
situação, e daí surgiu a idéia de fazer-se um suplemento sobre o movimento
cultural de cada estado brasileiro, pago pelo Estado, a ser incluído em cada
número do jornal.
Divididas as tarefas, os primeiros escalados para viajar foram Antônio Bulhões
e eu própria. Devíamos conseguir material para o encarte e, obviamente, dinheiro.
Isso decidido, Bulhões partiu para um lado e eu para outro.
GOIÂNIA
RECIFE
Em Recife, fiquei na casa do Prefeito Pelópidas Silveira e Marilu, sua mulher.
Casados havia pouco, o casamento realizara-se em São Paulo na casa da noiva.
De volta para Recife o casal parará no Rio onde, em nosso apartamento,
reuníramos alguns amigos para recepcioná-los.
Amigo de longa data, ainda solteiro, Pelópidas fora candidato a Governador de
Pernambuco e nós participáramos de sua campanha eleitoral. Além de Pelópidas e
de Marilu, que me ajudaram abrindo-me as portas mais difíceis, contei com a
assistência de velhos e queridos amigos como Paulo Loureiro e Dóris, Rui Antunes
e Laís, Carlos Penna Filho e Tânia, amigos que, com seu carinho, me ajudaram a
transformar uma tarefa difícil e cansativa numa quase brincadeira. Missão
cumprida em tempo recorde, decidi partir para o Ceará, onde reiniciaria minhas
andanças, em lugar de voltar ao Rio. Economizava assim tempo e dinheiro.
Fortaleza ficava a poucos minutos de avião, e o preço da viagem diminuiria
consideravelmente, além de que, registrada no Ministério do Trabalho e no
sindicato, possuía carteira de jornalista que, na época, era beneficiada por um
grande desconto nas passagens aéreas.
FORTALEZA
PORTO ALEGRE
A FAZENDA EM CRISTALINA
WEEKEND
BRASÍLIA
"DEPOIS DA RENASCENÇA..."
OS CAMPEÕES DO MUNDO
Cedido por Juscelino ao famoso casal para levá-lo à ilha do Bananal conhecer
a reserva dos índios carajás, o jatinho da Presidência da República devia decolar
logo cedo.
A par do horror que o irmão tinha de viagens aéreas, James resolveu se
divertir assustando-o: "Viagem perigosa... tanque pequeno, pouco combustível...
autonomia de vôo reduzida... se der pane no motor... babau!... entramos pelo cano,
caímos em plena floresta virgem...", dizia o danado, cego aos sinais — primeiro
discretos depois ostensivos —, olhares a suplicar que parasse de assustar o outro.
O jatinho da Presidência levantou vôo à hora marcada. Jorge não foi, por seu
gosto eu também não teria ido. "Vou ficar preocupado", disse-me ao nos
despedirmos, numa última tentativa de me fazer desistir. A viagem de pouco mais
de uma hora, vôo baixo sobre florestas de não acabar, transcorreu tranqüila, Sartre
e Simone junto às janelinhas, apreciando a paisagem, eu furiosa com James, sem
querer aceitar suas desculpas, ele encabulado: "...Ora veja! Que besteira... Jorge
se impressionar com brincadeiras..."
O avião baixava, em breve estaríamos na pista. De seu posto de observação,
Sartre de repente exclamou: "...et les voilà! Tous déguisès!... Nas proximidades do
campo de pouso, por um estreito caminho entre a mata, aproximavam-se índios de
rostos pintados, tangas sumárias enfeitadas de penas e plumas, cocares coloridos,
arcos e flechas, instrumentos musicais... Sartre continuava afirmando que os
índios estavam fantasiados, ou antes, que se haviam paramentado para nos
receber. Simone não era da mesma opinião, a seu ver Sartre exagerava: ...Pelo
que sei os índios se vestem assim mesmo...", retrucara. A teima continuou até
pousarmos. Não demorou muito os carajás chegaram, saltando, cantando, eu
aproveitando para fotografar, aliás não fizera outra coisa a viagem toda. Terminada
a dança, Sartre e Simone foram mimoseados com vistosos cocares, receberam
flechas, chocalhos de cabaças e colares de plumas. Simone sonhava com uma
cervejinha gelada, estava de garganta seca, o sol castigava, calor insuportável! No
Posto de Proteção ao índio, para onde nos conduziram, busquei providenciar a
cerveja tão desejada, mas cadê cerveja? Não havia cerveja, pois era proibida a
entrada na reserva de qualquer espécie de álcool.
Penetramos mato adentro, visitando malocas, vimos uma coisa tão
impressionante que jamais vou esquecer: caminhavam nas clareiras, meio
desequilibrados, tucanos, araras e papagaios completamente depenados; o
enorme bico dos tucanos era o que restava das belas aves, pobres, humilhadas,
exibindo mirrados corpos nus. Papagaios e araras viviam na mesma triste
situação. Forneciam as plumas necessárias para os lori-loris, os colares de penas,
cocares, faixas, artesanato confeccionado pelos índios e vendido pelo Brasil afora,
uma das fontes de renda do Posto. Um índio nos explicou por que não matavam as
aves de plumagem colorida: não prestavam para comer, eram só beleza e osso,
não tinham a carne gostosa de uma perdiz ou de uma codorna. Além do mais, as
penas arrancadas nasciam novamente, mantendo o mesmo viço, e novamente
eram depenadas. Outra fonte de recursos dos carajás eram as cerâmicas de barro,
trabalho de arte, peças lindas, vendidas a bom preço.
Almoçamos na casa de hóspedes do governo, construção de madeira, do
outro lado do rio, afastada da reserva. Em barco descoberto, sob o sol abrasador,
atravessamos até a outra margem. Tratei de me informar sobre a possibilidade de
se conseguir uma cerveja, e foi com o maior prazer que dei a boa nova a Simone e
a Sartre, que quase mortos de sede já não disfarçavam o mau humor, de que uma
cervejinha estupidamente gelada (a expressão estupidamente gelada os
encantara) seria servida no almoço.
O comandante do jatinho dava pressa, devíamos partir. Reunidos no posto da
reserva, nos esperava para as despedidas o mesmo grupo que, pela manhã, nos
recebera no campo. Já não estavam pintados, usavam shorts, camisetas,
sandálias de borracha, relógios... Simone riu ao ver o índio que se aproximava,
rádio de pilha colado ao ouvido, envergando a camisa da seleção, Brasil 58. "...et
les voilà!", exclamou Sartre.
O TRABALHO NO RIO
Deixo Sartre e Simone com os índios, volto às memórias que estava contando.
Para Jorge a hora boa para trabalhar sem ser perturbado era de manhã muito
cedo, cabeça fresca, as idéias surgindo antes mesmo de serem chamadas. Cedo?
A que horas? Ao relógio com mostrador e ponteiros Jorge nem olhava; na urgência
de escrever, ia para a máquina ainda com estrelas no céu, ao nascer do dia,
enquanto todos dormiam e o telefone ainda não despertara.
Durante um mês, não mais, Jorge trabalhou dia e noite no livro, embora
interrompido a toda hora. Os capítulos sucediam-se; nesse curto espaço de tempo
eu já copiara quase uma centena de páginas e, entusiasmada, esperava ansiosa a
continuação da história.
Os problemas do Paratodos, no entanto, o preocupavam, ele próprio
procurava saber o que se passava — era de sua natureza —, tomava
conhecimento, buscava ajudar, perturbava seu trabalho.
FESTA EM LARANJEIRAS
Partíamos agora para uma iniciativa festiva a fim de angariar fundos para o
jornal. Bulhões propusera e organizara uma festa nos jardins de sua casa, palacete
antigo da família Bulhões de Carvalho, um dos raros que ainda restavam na rua
das Laranjeiras, onde ele vivia com sua mulher, a atriz Glauce Rocha, a mãe, a tia
e dois filhos.
Quanto ao sucesso da festa, não tínhamos a menor dúvida, era garantido,
contávamos com a colaboração dos escritores ligados ao jornal, de artistas
plásticos e de músicos. Participaria do show a estrela principal, Elizeth Cardoso.
Romancistas e poetas estariam entre o público, autografando seus livros. Vera
Tormenta e Ana Letícia ajudariam na decoração, Djanira pintaria os painéis para o
grande palco armado no jardim.
Não havia entradas de favor, nem fiado, e o preço cobrado era alto. Saímos
em campo, cada qual com sua quota de bilhetes, o compromisso de não trazer
nenhum de volta.
Na lufa-lufa da festa invadindo a casa, o telefone tocando sem parar, gente
pedindo informações sobre o local, quem ia, quem não ia, quanto custava, se
podia pagar em duas vezes, se um convite dava direito a duas pessoas, qual o
traje, alguns artistas oferecendo seus préstimos etc... — a cabeça mais voltada
para o movimento em torno do que para o romance —, Jorge suspendeu o
trabalho, Gabriela foi posta na geladeira à espera de calmaria.
A festa, como se esperava, foi aquele sucesso, valera a pena tanto trabalho.
Quem a assistiu não a esquecerá e, para nós, das finanças do Paratodos, um
suspiro de alívio: ao menos dois números do jornal estariam garantidos,
tranqüilamente...
OS POMBOS NA CARTOLA
NOTA TRISTE
REFÚGIO NA SERRA
A solução foi mesmo Quitandinha. "Um túmulo", como dissera Glorinha, porém
não encontráramos alternativa. Necessidade urgente de escrever, de terminar seu
livro fez com que Jorge se resignasse a trabalhar trancado num quarto, isolado de
tudo e de todos.
Ao voltarmos diariamente do almoço e do jantar, achávamos divertido nos
encontrarmos, os dois sozinhos, naquele hotel deserto, atravessando corredores
quilométricos, pouco iluminados, lúgubres, antes de alcançarmos nosso quarto.
No terraço fechado, junto ao quarto, além das duas camas de armar para as
crianças, eu improvisara uma copa com forno e fogareiro elétricos e neles
preparava o café da manhã. Saíamos para comer nas imediações, dávamos um
passeio agradável, ótimo para refrescar a cabeça. Em dias de grandes chuvas,
comíamos no restaurante do hotel, que funcionava normalmente, caríssimo.
O apartamento em si era alegrinho, claro, acolhedor. Eu descia ao Rio às
sextas-feiras, no ônibus das dez — naquele tempo ainda não tínhamos automóvel
—, para apanhar as crianças, que subiam comigo à tarde. Paloma e João
passavam fins de semana e feriados conosco, às vezes Janaína também subia, e
aí então a festa era completa.
A presença de João e Paloma não perturbava o trabalho do pai, ao contrário,
deixava-o na maior felicidade. Os meninos conheciam tudo e todos no hotel,
populares entre os empregados e as famílias que, também como eles, subiam
apenas nos fins de semana. Logo pela manhã, ao acordarmos, já encontrávamos
suas camas vazias, haviam ganhado o mundo.
A IMPREVISÍVEL PALOMA
Outros amigos que vez ou outra apareciam, nos fins de semana, eram Zora e
Antônio Olinto, também nossos vizinhos em Copacabana.
Nas movimentadas e barulhentas noites de festa de São João, no Rio, Olinto
não falhava, aparecia com fogos e balões, levava os meninos para a praia, onde
podiam, à vontade, saltar fogueiras, queimar estrelinhas, soltar busca-pés, soltar
balões e assistir aos espetaculares fogos de artifício.
Zora e Olinto se encantavam com os meninos no Quitandinha e os
carregavam para todo lado, divertiam-se com as coisas que diziam, tomavam nota
e as repetiam. "Zora, adivinha no que eu estou de olho? Eu estou de olho naquele
drops em cima da tua mesa...", dissera-lhe Paloma, um dia. Entre tantas histórias
que poderia contar de minha filha, todas elas com saídas surpreendentes, há uma
que nos faz rir até hoje quando Jorge e eu a recordamos.
Num domingo cedo, após o café da manhã, saí pelo jardim à procura das
crianças que haviam saído do quarto enquanto dormíamos. Fui direto ao
playground e ao me aproximar das barras de ginástica notei um amontoado de
gente interessada em algo que despertava curiosidade. Aproximei-me, curiosa, e
qual não foi minha surpresa! A grande atração era Paloma, ali nas barras de
ginástica fazendo acrobacias infernais. Subia por uma corda, qual um macaco,
chegava à trave superior, descia pela própria corda de cabeça para baixo, metia
um pé na argola, se soltava... Parada, pasma, eu continuava a espantar-me com
as evoluções, cada uma mais extraordinária que a outra, de minha filha, criança de
cinco anos, de hábito tranqüilo e tímida... De repente, numa das viravoltas ela me
viu e me acenou: "Mamãe!" Um rapazinho que assistia a meu lado, ao vê-la me
chamar e eu responder ao aceno, olhou-me, surpreso:
— A senhora é a mãe da Sônia? Sônia? Até o nome ela mudara?
— Sou, sim, sou a mãe dela.
Depois de medir-me dos pés à cabeça, o garoto perguntou:
— A senhora ainda trabalha em circo?
Em circo? Ah, essa menina! Sem dar-me tempo para responder, o garoto se
adiantou:
— Eu estive aqui ontem e ela me disse que aprendeu a fazer acrobacias com
a mãe, que a mãe dela é artista de circo...
MENTIRA OU IMAGINAÇÃO?
PERSONAGENS VIVOS
CAMARONES
CAIS DO PORTO
No cais do porto, Vinícius, Moacir, nós e as crianças. Do tombadilho, Pablo e
Matilde acenavam.
"Contame cuentos, comadre...", disse-me Pablo, sorridente, repetindo o que
sempre me dizia ao nos encontrarmos. "Para ti, compadre, tengo un cuento muy
bueno...", disse-lhe também sorrindo. A história boa que tinha a lhe contar era que
ele daria um recital no Rio, naquela noite mesma, em benefício do Paratodos.
Antes que meu compadre se refizesse do susto, falei-lhe nos 50% da renda. Ficou
um instante calado, cara de quem não gostou. "Por que não me preveniram?"
Procurei explicar-lhe que não houvera tempo, mas ele continuou sério: "No, no
puede ser." Vinícius e Moacir se aproximavam e Pablo foi ao encontro deles,
interrompendo a conversa. Jorge dava atenção a Matilde enquanto eu, fria,
completamente desfeita, não saí de onde estava. Que fazer? Os bilhetes estavam
todos vendidos... ia ter que pedir desculpas a cada pessoa antes de devolver o
dinheiro. Ia passar pelo vexame de confessar a minha irresponsabilidade!... Valia
como lição. Ai, que vontade de chorar!...
Novamente Pablo se aproximou, vinha com Paloma pela mão, já não tinha
cara feia, sorria: "Comadrita,\ voltava ao assunto," icomo quieres que hagaun
recital si no tengo mis libros?" Explicava, com riso maroto, que não podia dizer
seus poemas pois não os sabia de cor. O compadre refletira e estava com pena de
mim ou quisera dar um susto na atrevida que não o consultara antes de tomar uma
decisão? "Si conseguires los libros...'" Os livros, compadre? Ora, compadre, se o
problema é só esse...
No Albamar, Neruda deliciou-se com os camarones, "sonhava com eles", ria
Matilde, simpática.
Em nosso apartamento, ele dormiu sua indispensável siesta, à noite estava
novo em folha, os livros à sua disposição. Ele os folheou e selecionou as poesias
que iria ler.
AMÁLIA RODRIGUES
VIAGEM AO CEILÃO
FAÇO UM PARÊNTESE
Somente ao regressar da viagem, dois meses depois, Jorge pôde terminar seu
romance. A máquina de escrever não fora aberta uma única vez enquanto
corremos mundo.
Quitandinha voltou a ser nosso refúgio, e em regime de trabalho duro o livro foi
terminado.
Partiram todos de vez: Gabriela, Nacib, Gerusa, Malvina, Mundinho Falcão,
Tônico Bastos, Coronel Ramiro... deixando um vazio em nosso quotidiano, alívio e
nostalgia. "Lá se vão eles para outros braços, correr mundo...", disse a Jorge, sem
esconder uma ponta de ciúme e incontrolável melancolia, ao ver os originais do
romance seguirem para a editora, em São Paulo, onde seriam impressos e
receberiam uma capa de Clóvis Graciano para embelezar o livro.
Gabriela seria lançada em breve, naquele ano de 1958.
Enquanto isso...
SERIA FLORO?
ENEIDA — BELEZA!
Nem sei dizer como foi que aconteceu, como se deu ao certo a capitulação.
Estávamos na casa do ator Procópio Ferreira e sua mulher Hamilta, em
Copacabana. Procópio nos convidara para um picadinho de agrião, especialidade
de sua cozinha, na companhia de velhos amigos. Lá estavam Pedro Bloch e
Miriam, Orígenes Lessa e Edith, e Kuchválek, que nos fizera a surpresa de chegar
ao Brasil como Embaixador da Tchecoslováquia. O solteirão inveterado casara-se
e estava entre nós, havia pouco, com sua bela esposa, Dana.
Enquanto passava na rua um animado bloco carnavalesco ensaiando para os
próximos festejos, no embalo da conversa e das gargalhadas surgiu a idéia, não
sei de quem, de formarmos um bloco de palhaços para o baile do High Life, idéia
acolhida com o maior entusiasmo por todos. Jorge não tirou o corpo fora como de
hábito, mostrou-se até disposto a topar a parada.
O High Life, situado na rua Santo Amaro, era o mais quente dos bailes
carnavalescos nos festejos do Rei Momo, no Rio. Estávamos a poucos dias da
abertura do carnaval e, se quiséssemos mesmo formar o bloco, devíamos decidir
logo.
FANTASIAS E MAQUIAGENS
OS ETERNOS PALHAÇOS
O LEILÃO
NA BOCA DO MUNDO
GABRIELA NA TELEVISÃO
LANÇAMENTO NA BAHIA
FESTA DE ANIVERSÁRIO
O INESQUECÍVEL "RABO-QUENTE"
O conselho que Jorge me passou por telegrama não serviu grande coisa pois
dias depois, acompanhada de Misette, recém-chegada da França — a mesma
Misette, Marie Louise Nadreau, mais do que amiga, uma irmã, dos anos de
Europa, de quem falo nos livros anteriores —, parti dirigindo o carro para o centro
da cidade a fim de apanhar minha carteira, já pronta.
Na ida tudo bem, cheguei tranqüila ao meu destino, não era hora de grande
circulação, e, além do mais, Misette ao meu lado me enchia de vaidade e coragem:
elogiava exageradamente minhas qualidades de motorista, numa fartura de "três
bien' e "formidable!"...
Esperei muito tempo na fila antes de ser atendida, tempo suficiente para que o
rush tomasse conta do centro da cidade.
Na volta, ao chegarmos à rua Uruguaiana, em pleno engarrafamento, parei
num sinal vermelho e quando o verde apareceu, na afobação de engrenar a
marcha, cometi uma barbeiragem e a "bagnole", como dizia Misette, empacou. O
motor se recusava a pegar, vira a chave pra cá, vira a chave pra lá, afunda o pé no
acelerador mas, qual! Nada! Parecia morto para sempre. O sinal fechou e abriu
novamente e eu continuava afobada sem saber o que fazer, pra que lado me virar,
os carros de trás buzinando, os do lado passando rápidos antes que o sinal
fechasse novamente... Misette, sempre solidária, me encorajava: "Ça va allef, "Ça
va aller..." mas quem diz?... Não ia. Enquanto isso eu ouvia as piadas dos
curiosos, que adoram gozar a caveira dos outros, a se divertirem: "O que é que há,
dona Maria?... a caçamba não marcha?..." "Dá duro, boneca..." O jeito era pedir
ajuda ao motorista de trás, se ele empurrasse com seu carro... o motor devia estar
afogado. Só então me dei conta de que o vizinho de trás era um ônibus enorme,
nada mais, nada menos, e o motorista, com razão, temia amassar, desmontar,
desintegrar o mísero calhambeque agonizante ali em sua frente. Por fim, não
vendo outro jeito, ele decidiu, ou vai ou racha, encostou de mansinho e foi
empurrando com cuidado... Só tive tempo de ouvir os aplausos da assistência
reunida na calçada ao me ver partir feito uma bala, o motor roncando.
Depois dessa experiência, quem é que ia acreditar que eu teria coragem de
me meter noutra?
Jorge chegaria no dia seguinte, às seis e meia da tarde, exatamente na hora
do engarrafamento, e as crianças, no maior assanhamento, atrás de mim pedindo
que fôssemos buscá-lo. "Deus me livre ir ao Galeão numa hora dessas, meninos!
De jeito nenhum! Não sou louca!" Mas resistir a apelos de crianças, quem pode?
Eu pelo menos não pude. João e Paloma iam se sentir tão infelizes se eu não
fosse, podiam até perder a confiança em mim. Misette, sempre otimista, desta vez
não deu palpite, ria apenas. Nem ela nem Janaína iriam, se bem Janaína,
coitadinha, estivesse doida para embarcar na aventura, mas não pude levá-la, não
haveria lugar na volta com Jorge e mais a bagagem.
Irresponsável total, louca, assumi a audácia, sem saber mesmo qual a reação
de Jorge ao me ver motorizada.
Metida no meu pobre carrinho, atravessei o cais do porto e entrei na avenida
Brasil espremida, sumida entre ônibus enormes e gigantescos caminhões de
carga, me sentindo o próprio náufrago a se debater num mar encapelado. Suava
em bicas, apavorada, temendo que o motor empacasse como na véspera. Ainda
bem que criança não tem noção de perigo, e as minhas riam na maior
descontração, brincando de adivinhas: João perguntou: "Por que é que constroem
sempre um morro em cima de cada túnel, hein, Paloma? Você sabe?" Paloma se
ofendeu: "você pensa que eu sou boba?" João estava a fim de provocar a irmã:
"Então me diga por que é que eu fui à Europa e voltei e você só voltou?"
Felizmente Paloma não topou a provocação: "Eu respondo só se você me disser
por que é que o azul é azul." Gostei de ver como a sabidinha aprendia a lidar com
o irmão. Num dado momento, momento da maior aflição, quando eu repetia
baixinho, sem parar, "ai meu Deus! Ai meu Deus do céu!...", João resolveu me
fazer uma pergunta: "Me diga uma coisa, mãe, afinal de contas, você acredita ou
não acredita em Deus?" Sem desgrudar os olhos do volante, respondi: "A esta
altura da situação, menino, não ponho em dúvida a existência de ninguém!..."
Esquecido da ameaça — ou, certamente, não querendo me desapontar —,
Jorge não disse nada quando, fingindo descontração, pedi a ele que esperasse um
pouco, ia encostar o carro.
Sem dizer palavra ele embarcou com armas e bagagens, sentou-se ao meu
lado e, com o máximo cuidado, devagarinho, chegamos em casa sãos e salvos.
Valera a pena a ousadia: daquele raid heróico ao aeroporto do Galeão na hora
do rush, conquistei para sempre a confiança de Jorge, que passou a ser desde
então meu co-piloto; inclusive nas longas viagens pela Europa.
Alguns meses mais tarde, ele me ofereceu um Peugeot 403, carro de segunda
mão mas em ótimo estado, o motor tinindo de bom — como diria James — e
ausência total de ferrugem.
PASSAGEIROS ILUSTRES
Vendi o renozinho pelo que paguei, não ganhei nem perdi. Antes de vendê-lo,
antes da chegada do Peugeot, tive a prova de coragem e de confiança de amigos
que nele entraram sem hesitar: de Misette, já se sabe, já falei, mas não falei tudo,
foi ela quem me encorajou a subir a serra de Petrópolis, chegar a Quitandinha
motorizada; de Rosinha Casoy, que se aventurava ao meu lado por movimentadas
avenidas e becos sem saída, nos meus primeiros treinos, antes de me brevetar;
que dizer de Luisa Amado, minha cunhada, heróica, que aceitou minha carona ao
sair da maternidade com Fernanda nos braços, recém-nascida?
Nesse carrinho, caindo aos pedaços, passearam e visitaram o Rio de Janeiro
o escritor português Ferreira de Castro com Helena Muriel, sua mulher, numa
temporada no Rio em 1959.
Até o fim de sua vida, Ferreira de Castro não esqueceu, recordava sempre
nossos passeios no "rabo-quente". Costumava dizer, rindo divertido: "Com tal
nome a parecer mais um brinquedo de criança..."
Simone de Beauvoir e Sartre ainda alcançaram o valente carrinho e nele
fizeram belos passeios, quando de sua estada no Brasil, em fins de 1959.
Ao saber que Jorge não sabia dirigir, Simone pilheriou: "Somos mulheres de
homens inúteis. Sartre também não dirige, nunca se interessou. A única
experiência que ele teve com veículo de rodas foi com uma bicicleta: montou,
partiu em frente e, completamente desgovernado, acabou se chocando contra um
carrinho de frutas. Quem dirige sou eu."
Em meu renozinho cor de abacate, subi muitas vezes a serra de Petrópolis. O
pobrezinho chegava sempre à tenda do Alemão, lá no alto, botando os bofes pela
boca, envolto em nuvens de fumaça, morto de sede, pedindo água. Enquanto nos
regalávamos com os deliciosos cachorros-quentes e os também famosos doces do
Alemão, o carrinho descansava, esfriava um pouco, tomava água e depois nos
conduzia, tranqüilo, para o Hotel Quitandinha, nosso destino.
ASSISTÊNCIA MÉDICA
A CASA DO ALEMÃO
PEÇO LICENÇA
ESTAFETA COMPETENTE
SÉRGIO PORTO
Logo depois desse desencontro Sérgio telefonou para Jorge e daí nasceu uma
grande amizade, amizade que durou até a morte prematura daquele que foi um
extraordinário mestre da crônica, do humorismo, da literatura colocada a serviço do
povo. Servia-se do humor para denunciar as mazelas da vida política brasileira.
Os personagens das histórias de Sérgio Porto, criaturas de carne e osso, tia
Zulmira, a sábia, o primo Altamirando, o Mirinho, o mau-caráter, Rosamundo, o
distraído, Bonifácio Ponte Preta, o patriota, movimentavam, alegravam e
engrandeciam diariamente o jornal de Samuel Wainer.
Além das peripécias da família de tia Zulmira, narradas com enorme graça,
Stanislaw Ponte Preta estampava diariamente a foto de uma jovem em trajes
sumários, a certinha do Lalau, diminutivo de Stanislaw, Sérgio Porto em pessoa.
Essas "certinhas", cada qual mais bela e perfeita do que a outra, ele as escolhia a
dedo nos shows de Carlos Machado, no teatro rebolado, sem contar as que iam
procurá-lo espontaneamente oferecendo-se candidatas, desejosas de aparecer.
Pela manhã, antes de ler as notícias, abríamos o jornal na página do Lalau, assim
começávamos o dia de bom humor.
FEBEAPÁ
OS AMIGOS
Quem pensar que Jorge é pessoa de amizade fácil, ao vê-lo sempre rodeado
de gente, engana-se redondamente. Os amigos do peito não são tantos assim, e
ele os escolhe a dedo. É gentil e amável com os que o procuram, porém facilmente
esquece nomes e fisionomias, o que por vezes lhe causa embaraços, sobretudo
em tardes de autógrafos. É comum aparecer uma pessoa que lhe pede, sorridente:
— Oi, Jorge, ponha aí um autógrafo para mim! Dedicatória bem íntima...
Jorge dá tratos à bola para descobrir quern é o cidadão que o trata com tanta
familiaridade, recorre ao golpe.
— Em nome de quem? — pergunta.
— No meu mesmo, ora! Não acredito que você não esteja lembrando...
Muitas vezes a pessoa é conhecida, até muito conhecida, mas como se
chama mesmo? O nome não vem. Um vexame.
Sentada a seu lado na intenção de ajudá-lo, nem sempre consigo, pois comigo
também acontece esquecer, dá-me um branco de repente.
O pior é quando uma pessoa o aborda com intimidade, relembrando fatos que
ele absolutamente não recorda. Incapaz de desapontar quem quer que seja, deixa
que o papo se estenda na maior camaradagem e depois da despedida me
pergunta curioso:
— Quem é? Me esclareça, por favor!
Certa vez Jorge descia no elevador de um arranha-céu, em São Paulo,
quando, alguns andares abaixo, o elevador parou e nele entrou um senhor que lhe
abriu os braços, "Oh! meu querido!..." Jorge não teve dúvida, atirou-se. O abraço,
melhor dito, o amplexo, durou até o térreo. Ao se separarem, depois de fitá-lo,
encabulado, o cidadão lhe disse: "Me desculpe, me enganei... não era o senhor..."
Com Sérgio Porto a amizade foi fulminante. Só podia ser. Afinidade perfeita,
admiração mútua. Sérgio era amigo de nossos amigos Vinícius de Moraes, Aloysio
de Oliveira, de Cyva, a valente comandante do Quarteto em Cy, de Antônio Maria,
Caymmi, João Gilberto e de tantos mestres da música popular brasileira, ele
também compositor, pleno de graça popular, autor de duas composições
carnavalescas: a. Marcha da Bicha Louca ou Sonata Opus 24 para Pederasta e
Orquestra e O Samba do Crioulo Doido.
Sérgio passou a freqüentar nossa casa e sempre que vinha filar o almoço não
esquecia de telefonar antes me pedindo que lhe preparasse jiló, "jiló de qualquer
jeito", dizia, "porém prefiro em rodelas finas, frito com alho". Com o novo comensal,
passei a ter companhia, além da de dona Eulália, a única na família a gostar do
amargo legume, para o meu jilózinho, vilipendiado, repudiado por todos os demais
da casa.
Dorival Caymmi chegava sempre com a maleta onde costumava carregar seus
pertences: carteiras de notas e de níqueis, talão de cheques, documentos de
identidade, pente, chaves, lápis, caneta, blocos de papel, etc, já que não usava
paletó nem bolsos. Nessa maleta, verdadeiro cofre que ele não largava por nada
deste mundo, havia ainda lugar para as prendas que ia ganhando aqui e ali. Eu
tinha sempre uma coisinha para lhe dar, coisas que trazia das viagens, desde
marcadores de livros, tesourinhas, escovas e carteirinhas a tecidos africanos e
bubus. Dava gosto oferecer um presentinho a Dorival, ver como o valorizava
elogiando, fosse ele o mais banal e insignificante.
Naquele dia ele foi chegando e, como de hábito, insinuando: "Uma
prendazinha, minha comadre?" Paloma estava pelas cercanias e disse: "Tenho
uma coisa pra você, Caymmi, e sei que vai gostar. Espera aí." Subiu para seu
quarto e voltou com uma conta de coral que havia ganhado do antiquário Manolo,
da Casa Moreira, na Bahia, em viagem recente. Ao mostrar uns colares, uma conta
caíra no chão e, procura daqui, procura dali, quando já havíamos desistido de
procurar Paloma a encontrou. Manolo deu-lhe a conta de presente.
Ao receber o mimo das mãos da menina, Dorival assombrou-se, não podia
acreditar no que acontecia. Sem dizer palavra, abriu a maleta e dela retirou uma
pulseira de coral, o fio partido. Ao romper-se, havia meses, uma conta rolara pelo
chão, ele a procurara exaustivamente sem conseguir encontrá-la. Era exatamente
igual, formato, tamanho e cor da que Paloma lhe oferecia. Mistério ou
coincidência? Preferimos — Caymmi e eu — optar pelo mistério, mais sedutor,
sem comparação.
JANTAR BAIANO
Foi Dorival Caymmi quem nos contou nesse dia que Aloysio de Oliveira
trabalhava na montagem de um show para o Quarteto em Cy, o conjunto das irmãs
mais afinadas do planeta, segundo voz geral, que cantariam o Samba do Crioulo
Doido, de Sérgio Porto. Falou-nos também na nova composição de Sérgio, a
Marcha da Bicha Louca, ".. .uma graça...", dizia Caymmi, encantado. Vinícius e
Caymmi participavam do projeto de Aloysio.
Combinamos fazer um jantarzinho para reunir a turma: Sérgio Porto, Caymmi,
Aloysio, Vinícius, João Gilberto, Astrud, Antônio Maria. Roberta faria pratos
baianos, sem esquecer o jiló para Sérgio. Haveria violão, como de hábito, e, após
o jantar, ouviríamos as novidades.
Vinícius, que fazia temporada na boate do Beco das Garrafas, poderia voltar
depois de seu número.
Eram quase onze horas quando, com evidente má vontade, Vinícius
abandonou a animada companhia, um copo de uísque na mão. Voltou uma hora
depois: "...Aproveitei o intervalo..." Assim como todos nós, Vinícius queria ouvir a
badalada Marcha da Bicha Louca, que Sérgio prometera cantar naquela noite.
Dos convidados, apenas Antônio Maria não chegara a tempo para a moqueca
e o vatapá. Havíamos demorado o máximo para servir o jantar, mas ele só
apareceu depois de meia-noite. Para compensar, trazia pela mão Amália
Rodrigues.
Vinícius entusiasmou-se com a chegada da fadista portuguesa, figura de seu
encanto, mas tinha que partir para a lida, cantaria novamente à uma da madrugada
e já estava quase na hora. Serviu-se de uísque e de copo em punho saiu
apressado: "Volto daqui a pouco..."
Antônio Maria tirou da algibeira um frevo novo de sua autoria, um regalo de
frevinho que, interpretado por ele, ficava ainda mais saboroso. Todo mundo cantou
e até nosso pássaro sofre, que dormia entre as folhagens de uma cantoneira, na
sala, despertou alvoroçado e num trinado afinadíssimo passou a imitar João
Gilberto, sem dúvida, entre os cantores presentes, o seu preferido.
A noite se estendia pela madrugada, mais uma vez Vinícius apareceu e só
então, encostada a uma coluna da sala, Amália cantou o fado como só ela sabia
cantar.
FOTÓGRAFO A DOMICÍLIO
P.S.
BEATRIZ COSTA
Falando em Beatriz, aproveito para contar a história do búzio que Wilson Lins
lhe ofereceu de presente. Muita gente acredita que um búzio possa trazer azar,
outros colecionam búzios. Beatriz Costa não está no rol dos que os colecionam.
Muito pelo contrário.
Depois de abandonar o teatro, a atriz passara a dividir sua vida entre Portugal
e Brasil, mais precisamente o Rio de Janeiro, onde hospedava-se no Hotel Glória.
Enquanto moramos no Rio, Beatriz almoçava conosco todos os domingos. Ela
nunca chegava de mãos abanando, comprava, no carrinho da esquina, as
melhores frutas que havia. Levava caramelos e chocolates para os meninos.
Ao mudarmos para a Bahia, de quando em vez Beatriz ia passar uma
temporada em nossa casa no Rio Vermelho, tornando-se amiga dos baianos, seus
admiradores.
Naquele ano ela fora para o Natal. Dois ou três dias depois das festas
apareceu lá em casa o escritor Wilson Lins, velho amigo nosso e grande fã da
artista portuguesa, trazendo-lhe uma lembrança: um caramujo espetacular,
enorme, cor-de-rosa, aba larga... Colocando-o no ouvido, podia-se ouvir o marulho
das ondas, o ronco do oceano.
— Para você, Beatriz... — disse, estendendo-lhe a prenda.
Eu sabia da cisma de minha amiga contra os búzios, de seu horror pelas
desgraças que eles podiam trazer, fossem bonitos ou feios, grandes ou pequenos.
Tomei-o das mãos de Wilson para evitar o vexame de vê-lo cair ao chão e
espatifar-se, pois, pela expressão de pavor que Beatriz esboçara, concluí que ela
não ia ter condições de segurá-lo, mesmo que se esforçasse. A muito custo, por
muito favor conseguira balbuciar umas palavras de agradecimento, e olhe lá! Tratei
de levar o presente para longe de seus olhos.
Ainda perturbada, depois que Wilson partiu ela nos pediu que déssemos o
rumo que bem entendêssemos ao que ela chamava de "asa negra", não queria
nem ver... Que fazer com o maldito caracol?
QUITÉRIA
Quitéria era a costureira da casa dos Pena, passava os dias ali sentada a
fazer suas costurinhas, os olhos apertados, dois fios de linha, inacreditável que
conseguisse enxergar algo, mesmo que fosse um foco de luz, através de tão
estreitas brechas. Mas nem óculos usava. Rosto largo, redondo, achatado, tipo
estranho de mestiça, não era mulata nem cafuza, também não era branca, pele
morena rosada com sardas, cabelo espichado preso num coque ao alto do
cocuruto. Alta, corpo tipo balde, como ouvi dizer na Bahia, largo em cima, fino
embaixo. Personagem singular!
O sonho de Quitéria era morar no Rio de Janeiro, a cabeça voltada para a filha
que sumira, cismara que talvez a encontrasse no Rio.
Um belo dia, Quitéria apareceu de surpresa na Rodolfo Dantas. Hospedara-se
com um pessoal conhecido, num subúrbio distante, e andava atrás de trabalho.
Trabalho de costura era o que não faltava lá em casa, porém quarto para Quitéria
não havia. Nem para Misette tivéramos um quarto; Misette chegara da França e
dormira por algum tempo no diva da sala, até mudar-se, aproveitando o
oferecimento de Clara e Nissin Castiel, que, de partida para o sul, puseram o
apartamento em Copacabana à disposição da amiga francesa.
Falei com Glauce Castro, mulher de Josué de Castro, pernambucanos como
Quitéria. O apartamento de Glauce, próximo ao nosso, era enorme e talvez
sobrasse um quartinho para a costureira. Por sorte sobrava, e foi assim que
Quitéria passou a dormir na casa de Glauce e a trabalhar para as duas famílias.
Entre Quitéria e Milu não saberia dizer qual a mais surpreendente e divertida,
ambas gentis e educadas, ambas faziam companhia aos velhos, ambas nos
prestavam serviços, ambas alegravam a casa.
VALENTIM APARECE
DONA RAIMUNDA
Cheguei em casa mais tarde do que previra, não fora fácil enfrentar o trânsito
por bairros populosos: Alto da Tijuca, São Cristóvão, Vila Isabel... De pijama
branco, estendido na poltrona reclinável, seu João gemia. Dessa vez queixava-se
em voz alta: "Hoje ele está danado!" O atraso o afligira demais, deixara-o
agoniado.
Milu fazia companhia à dona Eulália na descrença e Quitéria se desmanchava
em préstimos, enquanto esperava que o milagre acontecesse.
João Jorge ficou no maior assanhamento ao ver-me entrar comboiando o
bando de mulheres. Na sua maioria, as irmãs eram moças de maior, pessoas
simples, vestidas modestamente, de branco, um branco impecável. Paloma
mantinha-se calada, sentadinha, só observando.
Dona Raimunda cumprimentou o paciente.
— Está doendo muito?
— Muito! — respondeu ele. — E fogo, a mão de brasa me aperta aqui —
mostrava-lhe a virilha.
Dona Eulália postara-se atrás do Coronel, vigilante, e não gostou quando dona
Raimunda apalpou a virilha do marido:
— Epa! — reclamou. — Tá danado! Chiii...
Aflito, seu João olhou para mim, como a me suplicar que a afastasse da sala,
temeroso de que, "descrente como ela só", viesse a entornar o caldo. Ele bem que
lhe pedira para não aparecer mas ela, teimosa, não arredava pé.
Corrente feita, as irmãs de mãos dadas repetiam em coro preces, palavras
simples, improvisadas, bonitas, oração diferente das orações católicas que eu
sabia, decoradas na ponta da língua.
Dona Raimunda comandava a ciranda docemente quando, num dado
momento, transfigurou-se, deixou de ser a frágil criatura de fala mansa, delicada,
débil, tornou-se forte, altiva, enérgica, e até a estatura parecia ter aumentado. Voz
de comando, dirigia-se ao invisível, a alguém que somente ela enxergava:
— Larga o médium! Suma daqui! Você já não é da terra! Larga o médium!...
— repetia com veemência.
Passava a mão sobre o corpo do médium como se tentasse afastar algo e
com gestos largos atirava o algo para longe...
As exclamações de dona Eulália prosseguiam entre dentes. Milu a seu lado
fazia-lhe eco, resmungava palavras sacras, formavam um curioso dueto.
Dona Eulália:
— Eta ferro! Milu:
— Ave Maria! Dona Eulália:
— Chiii! Milu:
— Cruz credo! Dona Eulália:
— Eta!
Milu:
— Valei-me, Nossa Senhora!
Ainda bem que seu João, concentrado, já não prestava atenção às duas,
ainda bem pois o esbregue que elas iriam levar seria daqueles que só o Coronel
era capaz de dar.
A reza prosseguia, as irmãs lavadas em suor, dona Raimunda, encharcada,
discutia com o espírito do Negro Valentim, teimoso, grudado no médium feito
carrapato, sem querer desgrudar, sem ouvir seus conselhos e seus ralhos
repetidos ora mansamente ora aos gritos: "Larga o médium, já disse! Você já não
pertence à terra!..."
Tudo indicava que o teimoso, por fim, cedera, aos poucos dona Raimunda ia
voltando ao seu normal.
Ainda uma vez ela dirigiu-se ao paciente:
— Está doendo ainda?
Para surpresa e alívio de todos, o velho respondeu:
— Não, não está doendo mais. A dor passou. Dona Eulália não era de dar o
braço a torcer:
— Vá atrás...
Desta vez não houve eco, Milu engasgara-se.
Ao despedir-se, dona Raimunda explicou a situação:
— Preciso vir aqui ainda duas ou três vezes para terminar o trabalho. Ele é
capaz de voltar... É teimoso...
Falava com tanta naturalidade sobre o ser do além que eu até cheguei a
visualizar o Negro Valentim, pessoa que não conhecera, não fora de meu tempo.
Arteiro mas cuidadoso, filho atento, João Jorge não abriu mão de me
acompanhar, pois não queria que a mãe voltasse sozinha àquela hora tardia da
noite.
No Peugeot, como sardinhas em lata, espremidas uma sobre a outra, as irmãs
ouviram minhas palavras de gratidão enquanto eu as ia deixando uma a uma em
suas casas. Deviam levantar muito cedo no dia seguinte a fim de pegar no batente.
SERIA REI?
Dentro do vistoso fardão de feltro verde com bordados a ouro, espada, capa,
chapéu bicorne ornado de arminho, o filho foi despedir-se dos pais antes de sair
para a posse. O padecimento do Coronel já não existia, as dores haviam cessado,
porém ele continuava muito fraco, em repouso. Não poderia ir à Academia na noite
da festa de Jorge, e isso o entristecia. Perdia a grande oportunidade de brindar,
dar vazão ao seu orgulho de assistir à posse daquele filho que só lhe dava
satisfações. Dona Eulália faria companhia ao marido, ela também perderia a
ocasião de constatar que, apesar de não ter ouvido seu conselho, de não ter
querido ser médico para levantar o nome da família, como ela dizia, Jorge não o
desmerecia.
Ao verem o filho assim paramentado, os velhos não esconderam seu
entusiasmo, "Coisa mais linda!..!', exclamou dona Eulália. "Uma beleza!",
sentenciou o pai, na maior vaidade. Waldomiro, nosso jovem faxineiro baiano, não
pôde esconder seu espanto: "E eu que não sabia que doutor Jorge era rei!..!'
Acostumado a andar à vontade, short e sandálias, Jorge sentia-se pouco à
vontade no fardão bordado a ouro, e, além do mais, havia qualquer coisa que o
incomodava terrivelmente. Já estávamos de saída, esperando o elevador, quando
ele resolveu voltar. "Depressa, uma tesoura!", pediu. " Uma tesoura? Para quê?"
Não obtive resposta. Preocupado em desabotoar a casaca e despi-la, impaciente,
ele voltava a me apressar: "Depressa, a tesoura!"
Descobrira a tempo o que o incomodava: o diabo do colarinho engomado,
duro feito celulóide, lhe entrava pelas carnes, um horror! De tesoura em punho,
sem dizer palavra, nem tampouco me ouvir — eu poderia facilmente tirar os pontos
que prendiam o incômodo colarinho ao feltro —, ele não quis conversa, foi
cortando, cortando até separar de vez a parte alta que o martirizava.
AMIGA FIEL
Paloma chegara em casa aos prantos. O que foi? O que não foi?
— Meu amigo morreu... — chorava sentida.
— Qual amigo, Paloma? — perguntei pensando tratar-se de um colega de
colégio.
— Narcélio...
Eu nunca soubera de um colega chamado Narcélio...
— Narcélio? Que Narcélio? — perguntei curiosa.
— Narcélio de Queirós, meu amigo...
— O marido da Dinah?
Eu me assombrava. De onde vinha essa intimidade com o eminente jurista,
marido da escritora Dinah Silveira de Queirós? Velhos conhecidos e vizinhos,
moravam num edifício ao lado do nosso, víamos Dinah com freqüência, a Narcélio
raramente.
— É ele mesmo, mãe... Tão bonzinho, todos os dias, quando eu voltava da
escola, ele me chamava no bar onde tomava seu aperitivo, conversava comigo, me
pagava Coca-Cola...
Dias depois da morte do amigo, Paloma pediu-me — já que me negara a levá-
la ao enterro — para ir à casa de Dinah, também sua íntima, queria fazer-lhe uma
visita. Dei-lhe dinheiro para comprar flores, "talvez um buquezinho de violetas",
sugeri. Lá se foi ela em companhia de Janaina. Ao voltarem, mais tarde, perguntei-
lhe se Dinah havia gostado das flores. "Não comprei flores não, mãe, resolvi outra
coisa, achei melhor levar para ela uma calcinha V8, preta." Notando meu
assombro, explicou: "Preta porque ela está de luto, não é?"
Bobagem me impressionar com a intimidade da menina de nove anos com
pessoas ilustres. Os maiores amigos de Paloma além de Renato, nosso vizinho, e
Janaina, os demais eram adultos e com eles a menina mantinha um
relacionamento de igual para igual. Amiga de Antônio Olinto e Zora, que, entre
outras considerações, a convidaram, certa vez, a integrar um júri de escritores
conhecidos, entre os quais Viriato Correia, para julgar e premiar peças infantis.
Amiga de Eduardo Por-tella, de Eneida, de Myriam e Pedro Bloch, que incluiu
histórias de Paloma e de João num de seus livros.
Havia pouco tempo minha filha passara por outro desgosto com a morte de um
amigo — dela e nosso —, o poeta Carlos Pena Filho, que perdera a vida num
acidente de automóvel. Ao completar oito anos, em Recife, haviam trocado versos,
Carlinhos escrevera poema para ela: "...Só para Paloma este verso é feito/ pois só
ela entende um verso desfeito..." Ela retrucara, na hora: "...Para Carlos Pena/ uma
pluma, uma pomba, uma pena/e para Tânia e Clarinha uma peninha azulzinha..."
No dia da morte de Carlinhos, curtida em tristeza, eu não sabia a quem
consolar, se a Jorge ferido com o fim trágico do amigo ou a Paloma desfeita em
prantos, inconsolável. Dia de luto, o rádio e a televisão repetiram muitas vezes, em
homenagem ao grande poeta que partia, "Rosa Amarela", poema de Carlos Pena
musicado por Capiba.
De Vinícius de Moraes, outro amigo íntimo, ela também ganhou um versinho:
"Vai e voa Palomita / voa e volta a me dizer/ se eu vou merecer a dita/ de viver
para te ver/ ficar moça e bem bonita/ assim como deve ser/ uma linda Palomita."
Assim cresceu Paloma cercada de amizade e poesia.
JÂNIO QUADROS
ANNA SEGHERS
EMBAIXADOR ITINERANTE
INVERNO CARIOCA
Viajando num cargueiro polonês, que parava de porto em porto para carregar
e descarregar, Anna Seghers e o professor Rodolfo Schmidt chegaram ao Rio de
Janeiro com Jânio ainda no poder.
Ao receber o convite oficial para conhecer o Brasil, Anna se entusiasmara e,
como boa alemã, passara a estudar tudo sobre o país que ia conhecer. Ela até nos
escrevera querendo saber quem fora Rodolfo Dantas, que dera nome à nossa rua.
Nem Jorge nem eu sabíamos, nunca tivéramos essa curiosidade, mas, graças a
Anna Seghers, acabamos descobrindo que Rodolfo Dantas fora um médico
eminente.
Hospedados no Hotel Novo Mundo, na praia do Flamengo, Anna se encantou
com a paisagem em seu redor, o Pão de Açúcar, o mar imenso povoado de
pequenas ilhas, o jardim da Glória arborizado, tudo verdinho de fazer gosto. Rindo
ela me disse apontando as árvores: "Se fosse na Europa elas estariam
completamente peladas, pois é inverno." Ao deparar-se com um grupo de
amendoeiras quase nuas, as folhas antes verdes, agora vermelhas, forrando o
chão, Anna não se conteve: "Essas sim! Essas têm caráter!... respeitam o inverno,
embora tropical, fiéis à tradição dos ancestrais europeus."
NOTÍCIA BOMBA!
A RENÚNCIA
O Professor Schmidt não deixava de ter razão ao não entender o que estava
acontecendo. Reinava grande confusão em torno da renúncia de Jânio Quadros, e
não se descobria a razão de seu gesto. Mesmo preocupado, mesmo dando-se
conta da gravidade do momento, o povo contava anedotas e ria.
Até hoje não se apurou devidamente a causa da renúncia. As interpretações
são muitas, mas a que prevalece, para mim, é a de que Jânio não desejava
realmente deixar o poder.
Enganara-se ao pensar que a sua renúncia deveria ser objeto de longa
discussão parlamentar, o que lhe daria tempo para arregimentar forças,
possivelmente levantar a massa, como acontecera por ocasião da campanha
eleitoral, quando ameaçara renunciar à sua candidatura e obtivera do povo
resposta imediata.
Durante sete meses Jânio governara no grito. Por detrás dele não havia nada,
não havia outra força política além da pressão para derrubá-lo. As chamadas
"forças ocultas" não podiam admitir um Presidente da República tão independente
e audaz, que tivera inclusive o topete de condecorar um guerrilheiro, "comparsa"
de Fidel Castro, o polêmico e temido Che Guevara! As forças ocultas não podiam
admitir um Presidente encampando uma política terceiro-mundista, cercando-se de
intelectuais prestigiosos, governando por sua cabeça, irreverente, disposto a não
acatar ordens, viessem de onde viessem.
Os entendidos em leis que o assessoravam não o alertaram, possivelmente
não eram assim tão entendidos, ignoravam que a renúncia do Presidente da
República é um ato unilateral, não dá lugar a discussão: renunciou está
renunciado! Jânio caíra, vítima de seu próprio estratagema. Enganara-se, ou fora
enganado?
OS PROGRAMAS DE ANNA
Vinitcius, com tê antes do cê, era assim que Anna chamava o poeta Vinícius
de Moraes. Ele lhe dizia Aninha, no diminutivo, na sua maneira carinhosa de tratar
as pessoas. Era um amor recíproco, ele curtindo seus romances, ela sua poesia.
Antes da partida de Anna, Vinícius convidou um grupo de amigos para
homenagear a amiga, em sua casa, no Parque Guinle.
Naquela noite, conhecemos Tom Jobim. É a tal história, conhecer, admirar e
amar uma pessoa a distância, sem nunca tê-la visto pessoalmente. Ali estava
Antônio Carlos Jobim. Apaixonados por suas músicas, fomos conhecê-lo somente
naquela noite em casa de Lucinha e de Vinícius. "Vocês e Tonzinho não se
conhecem?", assombrara-se Vinícius, "nunca se encontraram antes?..."
Conhecemo-nos nessa noite e desde então nos tornamos amigos, para sempre:
amizade iniciada no encantamento de Lúcia e do poeta, amizade que se
enriqueceu, anos depois, ao conhecermos Ana, sua mulher, a Aninha do Tom,
segundo Vinícius.
Ao embarcar no navio, de volta para a Alemanha, Anna MIOS deixou mortos
de saudades. Ela havia gostado tanto do Brasil que partia querendo ficar. Ela e o
Professor Schmidt se iam com saudades, tantas que voltaram dois anos mais tarde
para serem nossos hóspedes, na Bahia.
ASUNCIÓN FLORES
ASUNCIÓN NO BRASIL
EM COPACABANA
Asunción Flores chegara sem um tostão furado no bolso, sem ter com que
pagar hotel, nada! Conseguimos hospedá-lo, provisoriamente, no apartamento de
uns amigos, em Copacabana. Dormida e café da manhã, mais nada, pois os donos
da casa atravessavam um momento de aperto, não podiam ir mais além. Ficou
acertado então que, enquanto ele não entrasse em contato com as gravadoras
responsáveis pelas edições de suas músicas, não recebesse os milhões que lhe
deviam, faria as refeições em nossa casa.
Na manhã seguinte, Clara, hospedeira de Flores, apareceu alarmada:
"...Desculpem, mas o amigo de vocês não vai poder continuar lá em casa.
Impossível! Ele come demais!..."
Asunción acordara cedíssimo e devorara tudo que encontrara sobre a mesa
posta com o café da manhã e a comida da véspera, na geladeira... mais houvesse!
Meu cunhado James Amado aparecera atrás de notícias do ilustre recém-
chegado; eu pedi-lhe que fosse buscá-lo na casa de Clara e o trouxesse na hora
do almoço. Um arquiteto paraguaio, seu amigo, que vivia no Rio, encarregar-se-ia
de pô-lo em contato com os editores de música. Enquanto esperava resolver os
problemas profissionais, Asunción aproveitaria para conhecer o Rio de Janeiro.
Apaixonado por "mosto", nome dado ao caldo de cana no Paraguai,
acompanhou James à Galeria Cruzeiro, na avenida Rio Branco, onde havia uma
casa especializada em sucos de frutas frescas e caldo de cana espremida na hora.
Asunción adorou o mosto brasileiro, tomou um litro, "bueno para hacer pipi...",
disse e pediu ainda um litro para levar. Na base da educação, "deixe que eu pago",
James adiantou-se e, mesmo sem estar em condições de fazer despesas extras,
desembolsou o dinheiro, bancou o consumo.
Ainda era cedo para o almoço, quando voltaram dava tempo para uma andada
pela avenida Copacabana, movimentada e alegre. Flores encantava-se ao ver as
banhistas passando em direção à praia, meio desnudas, sobraçando esteiras e
guarda-sóis, "son Ias muchachas más bellas dei mondo..." Entusiasmou-se
também com as carrocinhas de frutas estacionadas em algumas esquinas, frutas
tropicais, brasileiras, frutas estrangeiras, importadas, umas e outras perfumadas e
coloridas, verdadeiras tentações.
- Vamos comer unas frutitas? — convidou Asunción.
— Não, muito obrigado — disse James, cauteloso.
Sabendo o preço das frutas, ele se abstinha, embora tentado pelas uvas
argentinas arrumadas em cascata — enxames de abelhas sobrevoavam-nas em
busca de mel —, ...ai, como deviam estar doces! James não se dispunha e nem
podia arcar com tais despesas. Por mais que o amigo insistisse a acompanhá-lo,
ele ficou firme, irredutível. Água na boca, assistia ao compositor deliciar-se à farta,
saboreando uma fruta atrás da outra, o sumo do caqui e o da manga a escorrerem-
lhe pelo queixo, a ameixa negra, depois a branca, agora eram as uvas, três, quatro
bagos de vez, estalos de língua, exclamações... "...ai que dulces, ai que buenas..."
James engolindo em seco. Finalmente, o papa-frutas pareceu satisfeito. Enxugou
as mãos e o rosto com o lenço e, voltando-se para o amigo, com a maior
tranqüilidade, disse: "Já termine... pague!" Pague? Por essa James não esperava.
O que é que podia fazer? Sem tugir nem mugir, contou os caraminguás.
Apresentaria a conta a Jorge, acrescentaria a despesa do mosto, Asunción não era
seu convidado e sim de Jorge, a ele cumpria alimentá-lo de frutas e de mosto. Não
estava a fim e nem em condições de alimentar o Pantagruel a frutas, por mais o
admirasse.
Prevenida com a inesperada visita de Clara pela manhã, eu reforçara o
almoço. Além do almoço trivial, diário, mandara preparar uma frigideira de
camarão.
Sentado à cabeceira da mesa, Asunción lançou uma mirada nas travessas.
Apontou a frigideira e, antes que alguém se servisse, não fez cerimônia, afastou
seu prato, substituiu-o pela travessa da apetitosa frigideira e a devorou inteirinha.
Lambeu os beiços, voltou-se para mim: "Mi querida Celita", era assim que me
chamava, "tu comida es muy buena pero tiene un defecto: es poça."
Asunción Flores não havia resolvido seu problema de dinheiro quando Jorge
chegou, dias depois. Ramiro, o amigo paraguaio, não conseguira contactar as
gravadoras. Os responsáveis tiravam o corpo fora, não querendo conversa com o
compositor que lhes dava a ganhar rios de dinheiro, dispostos a pregar-lhe um
calote. A pedido de Jorge, um advogado de confiança foi encarregado de tratar do
assunto mas ele também viu a coisa malparada: os homens eram osso duro de
roer, diziam, para assombro do autor, não ter nada a pagar. Como não tinham
nada a pagar se jamais lhe haviam prestado contas das edições de suas músicas
no Brasil? Nunca se deparara com gatunos tão cínicos.
Enquanto prosseguiam as demarches, Flores continuava no Brasil, já havia
mudado duas vezes de casa, encantavam a todos a simplicidade de um artista tão
importante, sua simpatia, suas histórias divertidas. Casos pitorescos e
surpreendentes sucediam-se, tendo o compositor de índia como personagem
principal.
OS TURISTAS
Asunción esquecera o calção de banho na casa de Pita Pinheiro, que o
convidara a almoçar, num domingo. Antes do almoço ele fora à praia e deixara o
calção secando em casa do amigo. Querendo voltar novamente ao banho de mar,
convidou James a ir com ele buscá-lo no apartamento onde ficara. Sem lembrar-se
o andar do apartamento, ao chegarem ao segundo Asunción declarou: "es acá",
desceu e tocou a campainha. Foram atendidos por um senhor idoso. "Está Pita?",
perguntou Flores. " Vengopor mi traje de bano." O velhinho não entendeu patavina
mas, educado, mandou-os entrar. "Es ei padre de Pita", informou a James.
O "pai de Pita" apanhou o jornal que abandonara sobre a mesa para atender a
porta, sentou-se numa cadeira de balanço, um rádio ao lado, ouvido na música, um
olho no jornal, outro nos visitantes. La mujer de Pita, tampoco está?" O velhinho
sorriu, cortês. Sem dizer mais nada, Asunción resolveu procurar o calção, ele
próprio, entrou num quarto, abriu várias gavetas, revolveu as roupas, nada de
encontrar. Num segundo dormitório, repetiu a operação, também sem resultado. O
velhinho o acompanhou nas buscas, em silêncio, apenas observando. Decidiu
então esperar por alguém da casa, alguém que soubesse do paradeiro da peça
procurada. O "pai de Pita" retornou à cadeira de balanço e ao rádio. Na fruteira
sobre a mesa, uma penca de bananas madurinhas chamara a atenção de Flores:
"Que tal comer unas bananitas, James?" James não queria saber de comer
bananas, só tinha vontade de dar o fora, preocupado com a bagunça que o
"compadre" deixara lá por dentro, na busca infrutífera. Já que James não queria
acompanhá-lo, " como puedes no gostar de frutas?!...", ele começou,
tranqüilamente, a devorar as bananas, uma, depois outra, até chegar ao fim da
penca. O velhinho só olhava.
Um ruído de chave na porta animou-os, finalmente Pita chegava. Mas não era
propriamente Pita quem entrava, surgia diante deles um senhor desconhecido, o
dono do apartamento que era — souberam depois — nada mais, nada menos que
um delegado de polícia. Ao ver os dois estranhos refestelados em sua sala, o
monte de cascas de bananas sobre a mesa, mosquitinhos sobrevoando, a fruteira
vazia, intrigado com a invasão de sua intimidade, cara amarrada, perguntou ao
velho:
— Quem são?
— Turistas! — respondeu o velhinho, sorridente.
Ao mesmo tempo em que informava ao genro sobre os
gringos, o rádio começava a tocar sua música preferida. Aumentou o volume,
e a índia invadiu a sala com sua nostálgica melodia.
— India, mi música! — anunciou Asunción, pondo-se de pé, apontando o
rádio.
Foi o quanto bastou para salvá-los do aperto. Salvaram-se as almas do
purgatório.
Compromissos urgentes aguardavam Asunción Flores em Buenos Aires, e ele
teve que partir. Chegara ao Brasil sem um tostão furado no bolso, se fora sem um
tostão furado no bolso: deixou uma quantidade de amigos que se somaram à
multidão de admiradores do autor de índia.
ASTROJILDO PEREIRA
O Coronel João Amado andava de repouso depois de ter sido atropelado por
uma bicicleta. Machucara-se pouco, nenhuma gravidade, porém devia ficar em
casa devido ao ferimento na perna que, apesar de superficial, custava a cicatrizar.
Em sua poltrona reclinável, o Coronel recebia amigos e parentes que iam vê-
lo. Naquela tarde seu João recebera a visita, muito especial, de um velho
conhecido, Astrojildo Pereira, fundador do Partido Comunista Brasileiro, homem da
velha guarda, escritor, crítico literário especialista em Machado de Assis. Fora
Astrojildo quem fizera, na década de 20, o necrológio de meu avô anarquista,
Francisco Arnaldo Gattai, numa revista da época.
Conversa vai, conversa vem, o Coronel mostrava-se interessado em saber
sobre a situação política, vendo no dirigente comunista boa fonte de informações,
curioso por detalhes sobre a posse de João Goulart, novo Presidente, posse que
se dera apesar dos pesares. A razão vencera a força, excepcionalmente, mas
ninguém sabia por quanto tempo. A inquietação perdurava.
Junto ao rádio, Quitéria costurava prestando mais atenção à visita do que à
costura. Num dado momento, largou seu trabalho bruscamente, levantou-se e,
rápida, correu para meu quarto, no fim do corredor. Ouvi então um grito agudo de
socorro. Quitéria me chamava aflita: "Dona Zééélia!!!..." Corri assustada para ver o
que se passava.
De pé, no meio do quarto, vermelha, esbaforida, Quitéria soltava o coque,
libertando uma basta cabeleira crespa.
— Dona Zélia, dona Zélia! — repetia aflita. — O senhor que está na sala é
viúvo?
— Não é viúvo, não — respondi-lhe.
Astrojildo não era viúvo, tinha certeza. Essa curiosidade de Quitéria me
surpreendia e intrigava. Que se passava com ela?
— Mas eu vi atrás dele o espírito de uma mulher loira...
— Espírito de mulher loira? — me assombrei.
— Loira e de nariz comprido, com a mão no ombro dele... Ela está lá na
sala...
Nem mal terminara de falar, vapt-vupt, aplicou-se, ela própria, duas valentes
bofetadas no rosto. Quitéria rodopiava, gemia, entrava em transe.
Diante de tal situação, não tive dúvidas, não vacilei, tratei de empregar os
ensinamentos de dona Raimunda, aprendidos nas três sessões a que assistira, em
torno de seu João. Berrei alt© e, com vigor, dei a ordem: "...Larga o médium!" Não
foi preciso uma segunda vez. Quitéria voltava a si, como se despertasse de um
pesadelo, esfregando os olhos, passando a mão no rosto, acabrunhada, sem
lembrar-se do que havia sucedido. Nem mesmo das bolachas que se auto-
aplicara, causando-lhe incômodo ardor, queimando-lhe as faces, ela recordava.
Sua amnésia, no entanto, não era total, pois continuava a insistir na visão da loira
nariguda, a mão pousada no ombro do homem que se encontrava na sala.
Vieram me chamar, a visita se despedia. Acompanhei Astrojildo ao elevador e
enquanto esperávamos resolvi contar-lhe a história de Quitéria. Imaginei que ele,
comunista, marxista, materialista, fosse achar graça mas, para surpresa minha,
não achou.
— Mulher loira, de nariz adunco? — monologou, repetindo o que ouvira.
— Isso mesmo, e com a mão em teu ombro... — ri, esperando que ele
também risse.
Ele não riu, ao contrário, ficou sério, e até achei que ficara pálido. O elevador
chegou e sem nenhuma palavra, apenas um aceno de mão, ele desceu.
Eu não podia nem de longe supor o que só vim a saber dias depois: uma
senhora alemã, ligada por laços afetivos ao velho dirigente, falecera recentemente.
Nariz adunco, confirmaram-me.
GAGARIN NO BRASIL
ADEUS, QUITANDINHA
— Alô!
— É Zélia? Aqui é o Marcelo.
— Marcelo Reis?
— Que Reis, o quê! Figueiredo!
Pela impetuosidade, vi logo que só poderia ser mesmo o menino de Alba e
Guilherme Figueiredo, nossos amigos.
— Como vai, Marcelo? O que é que manda?
— Paloma está aí?
— Aqui ao meu lado. Quer falar com ela?
— Não. É com você mesma. Quer me fazer um favor, Zélia?
— Diga...
— Pergunte a Paloma se ela quer namorar comigo. Fiz-me de desentendida:
— O quê?
— É isso mesmo. Se ela quer namorar comigo.
— Marcelo, você está brincando? — resolvi me divertir. — Quer que eu, a
mãe, pergunte à minha filha se ela quer namorar você?
— Vambora, Zélia, pergunte logo, não seja chata! A meu lado, Paloma seguia
interessada a conversa.
— Então eu sou chata? — continuava a dar corda. — Que ousadia!
— Vá, vá depressa, não perca tempo!
Se era para não perder tempo, tranqüilizar o apaixonado, tratei de não perder
tempo. Dando uma de postillon d'amour, ou seja, de cupido, o próprio correio sem
selo, perguntei solenemente a Paloma o que ela já estava farta de saber, pois não
perdera uma única palavra do que eu dissera ao pretendente:
— Paloma, o Marcelo Figueiredo quer saber se você quer namorar com ele.
A resposta veio gritada:
— Nããão!
Repita aqui no fone:
— Nãããão!
Do outro lado da linha, uma gargalhada de satisfação:
— Oba! Se ela disse não é porque quer dizer sim. Vou já aí.
Marcelo Figueiredo se bandeara lá para casa, amigo das crianças, mais de
Paloma do que de João, devido à diferença de idade. Um menino de quinze anos
que se preze não enturma com um de doze, dificilmente com um de treze. O outro
Marcelo, o Reis, por exemplo, da idade de João, nunca pensaria em namorar
Paloma, jamais esticou-lhe um olho, pirralha de onze anos, bebê de mamadeira!...
Bonitões de barba despontando, João, Marcelo Reis e companhia, tinham outros
planos, andavam em altas cavalarias, buscavam gatinhas mais velhas, de quinze
para cima, quanto mais velha melhor, maior era o sucesso. Eu acompanhava o
desenvolvimento desses meninos e sentia que já estava chegando a hora em que
não mais me seria possível segurar as rédeas de João. Por quanto tempo ainda,
por quanto tempo poderia exercer controle sobre ele?
Estava eu nesses devaneios quando a campainha da porta tocou.
— Deve ser Marcelo — disse a Paloma —; se você não quer vê-lo, suba logo
que eu vou abrir a porta.
Ela não subiu e eu me dei conta de sua perturbação, ficara vermelha, os olhos
brilhando.
Marcelo mais danado! Pensei: não é que ele tem razão? O mundo anda tão
virado que no entender dos meninos de hoje o não quer dizer sim...
COROA OU MUSEU?
Um dia João chegou do colégio entusiasmado: "Se você quiser, mãe, pode
ficar esperando até acabar o 'arrasta' na casa do Miranda... ele me disse que tem
uma sala só para 'coroas'."
— Sala para "coroas"? — fingi me ofender. — "Coroa", eu? Ora veja! Mais
respeito, menino!
João se torcia de rir diante de minha reação, mas Paloma, que ouvia a
conversa, não achou graça, ofendeu-se de verdade e revoltada reclamou:
— Olha, João, minha mãe não é coroa, não... Muito na dele, o moleque
continuava provocando:
— Eu nem chamei ela de museu...
— Museu? — quando se zangava de verdade Paloma enrubescia, os olhos
rasos d'água. — Se minha mãe é museu, seu burro, só pode ser museu de arte
moderna, viu?...
A verdade é que, "coroa" ou não, eu preferia mil vezes ir buscar meu filho,
longe ou perto, cedo ou tarde, à hora que fosse, a ter que ficar de plantão em casa
estranha a conversar, sem assunto, com outras mães ali também na penitência.
BIG PARTY
A GATINHA DO LEME
João crescia a olhos vistos, barba e bigode despontando, voz de falsete
engrossando a cada dia; ansioso, começava a descobrir os segredos e os
encantos das mulheres, namorador como ele só!
Um dia ele me confidenciou que andava às voltas com uma certa "Gatinha do
Leme", menina de uns 15 anos — calculava ele — que favorecia João e vários
colegas de colégio, iniciando-os nos mistérios do amor. Os meninos faziam fila
para receber os carinhos da dadivosa que, por uns trocados, abria-lhes as portas
de um mundo de emoções, nas pedreiras do Leme, no lado oculto, sobre o mar
aberto, onde as ondas violentas estouravam na pedra.
Quem era louco de dar conselhos a meninos daquela idade? Eu era, dava
conselhos e tratava de me informar: "Cuidado, meu filho, você conhece bem a
menina? Ela tem boa saúde? Tem pai e mãe? Você já imaginou se o pai
descobre?..." Não parava aí, quanto mais conselhos melhor, e mãe é para isso:
"Faça atenção, menino, não vá escorregar nas pedras... se alguém cair naquele
mar violento, nem a alma se salva... cuidado!"
João só faltava morrer de rir com as minhas preocupações: "Você está por
fora, mãe, aqui é Rio de Janeiro, em Copacabana tudo é permitido... Sai dessa,
mãe...!"
PLEASE
DUAS CONQUISTAS
Desta vez João parecia apaixonado de verdade. A menina era Rosinha, filha
de Magalhães Júnior e Lúcia Benedetti. Amor à primeira vista, começou numa
festa de aniversário e em seguida João se passou de armas e bagagens para a
rua, Mascarenhas de Morais, onde morava a bela.
Amor fulminante, "amor louco dura pouco", segundo um provérbio de dona
Angelina, esse até que durou, rendeu poesia escrita no auge da paixão. João
estava fadado a namorar filhas únicas, e Rosinha não escapava à regra: cercada
de cuidados especiais, sobretudo da vigilância do pai que não facilitava —
experimentado, Raimundo Magalhães não dormia no ponto. Convidá-la para um
"arrasta"? Nem pensar! Não adiantava João ser filho de um amigo de toda a vida.
E daí? Não os deixava a sós nem mesmo para as despedidas no elevador:
"...Assim não dá, mãe ...não dá pé...", dizia-me desconsolado. "Na saída vai a
família toda: Raimundo, Lúcia, Zezé, a empregada e até o cachorro..."
ANIVERSÁRIO DO BARULHO
PROPOSTA DA METRO
Não fora fácil descobrir casa de nosso agrado, na Bahia. Rodamos aquilo tudo
sem sucesso e; quando já começávamos a desanimar, encontramos uma que
pertencia a um pianista austríaco, Jean Sebastian Benda, que partia com a família
para a Europa. Não era a casa ideal, a que sonháramos, pois necessitava ser
reformada, em realidade devia ser reconstruída. Tinha a vantagem de ser situada
no alto de uma ladeira com surpreendente vista sobre o bairro do Rio Vermelho e o
mar. Nossos amigos viviam nas imediações, e isso nos entusiasmava. O terreno
era grande porém minado de formigueiros e as únicas árvores que havia era um
velho sapotizeiro, um pé de manga-carlotinha e um pé de jambo do Pará, ainda
novos.
Dona Eulália não gostou nem um pouco da conversa de mudança, seu João
também não gostou mas ficou calado, não disse nada. Ao saber que já havíamos
comprado a casa, dona Eulália não se conformou:
— Menina! Tu mais Jorge vão embora mesmo? O que é que vão fazer lá na
Bahia? Que graça vocês acham naquilo?
— A Bahia é mais tranqüila, dona Eulália, vai ser melhor para as crianças e
para nós também... A casa é grande, tem um quarto para a senhora e seu João.
Vamos morar todos na Bahia...
— Morar na Bahia, eu? Deus me livre! Tu tá doida? Aquilo é só mato... João
mais eu gostamos de cidade... Lá não tem divertimento... Qual é o divertimento
que tem? Diga! — voltava-se para mim. — Tu que gosta tanto de festa! Lá não tem
Embaixador que convida pra festas... Como é que tu vai te arranjar?...
As perguntas e as respostas dadas por ela própria e suas afirmações me
faziam rir. Vivera infância e juventude em fazendas de cacau, em meio a jagunços
e tiroteios, ficara traumatizada para sempre. Da Bahia ela guardava apenas as
antigas lembranças, tristes. Sem coragem de dizer diretamente ao filho que não se
fosse... tentava pressioná-lo por meu intermédio.
— Não bastava Joelson ter arribado com a família para São Paulo? —
prosseguia ela. — Que necessidade tinha ele de ir? — Segundo dona Eulália, no
Rio tinha muito mais gente doente precisando de médico do que em São Paulo,
"terra de pessoal estrangeiro como tu, filha de italianos, gente forte... Agora dá
essa maluquice também em Jorge..." James e Luisa moravam no Rio, em
Copacabana, estariam sempre com os velhos, lhes fariam companhia... Mas para
dona Eulália era pouco, não queria saber de conversa, pusera três filhos ao
mundo, penara anos de saudades do filho andejo... "...já está na hora de Jorge se
aquietar, tu não acha, Zélia? Filho deve ficar junto dos pais quando ficam velhos..."
Tentava me comover, e eu morta de pena procurava convencê-la a ir conosco para
a Bahia. Mas isso ela não aceitava.
De passagem pelo Rio, Carybé, que pintara uma série de azulejos para a casa
do Rio Vermelho, nos desanimara, as obras estavam atrasadas: "longe dos olhos
do dono o gado não engorda", dissera, e resolvemos ir a Salvador, dar uma
espiada, dar um empurrão, acelerar a marcha dos trabalhos.
Seu João me pedira que não esquecesse de deixar escrito num papel o
telefone de dona Raimunda, já que eu telefonara para sua casa sem encontrá-la,
ela viajara para Minas, certamente em missão de caridade. Ele já não sentia dores,
mas tinha grande desejo de revê-la. Deixei com James seu telefone. O Coronel
ficara tranqüilo.
ENCONTRO HISTÓRICO
DESPEDIDA
Acordei num pulo, sobressaltada com o toque do telefone. Por que tanto susto
se estava ali à espera da chamada? Recostada na poltrona enquanto aguardava,
adormecera. Que horas podiam ser? Quanto tempo dormira? Não devia ter sido
muito, ainda não dera meia-noite.
Do outro lado do fio, João Jorge me falava: "Mãe, pode vir..." Ainda bem que
eu não devia ir longe para apanhá-lo, ainda bem. Estava morta de cansaço,
trabalhara o dia todo na arrumação de malas... O carro ficara em frente ao edifício,
me pouparia de manobrá-lo na garagem sempre repleta àquela hora. O
apartamento do colega onde se dera a festa de despedida ficava logo ali no Leme,
a dois passos do nosso. Tratei de recomendar: "Aguarde dez minutos antes de
descer, meu filho, não fique esperando na rua..." Pela última vez iria apanhar João
à noite, dava adeus aos sobressaltos.
Os meninos partiriam para Salvador no dia seguinte, Jorge e eu iríamos
quando a casa estivesse pronta. Já fora tudo acertado: Paloma e João passariam
as férias na Bahia, providenciariam as matrículas no colégio. Enquanto não
mudássemos definitivamente, Paloma ficaria com Dorothy e Moisés Alves, João
com Norma e Mirabeau Sampaio, amigos de confiança, podíamos dormir
tranqüilos.
Aquela era a última festa, o "arrasta" de despedida, derradeiro evento do Big
Party, que se dissolvia com a partida do secretário-geral, a bem dizer a alma do
negócio. João se despedia do Rio de Janeiro, das gatinhas, as do Leme e
adjacências. Despedia-se também dos cabulosos cuidados da mãe, que não abria
mão de ir apanhá-lo à noite nas festinhas — rapaz de barba despontando — por
mais ele reclamasse.
João Jorge se iniciava no prazer da leitura, descobrira os livros do pai.
Começara por Capitães da Areia, que o fascinara, prosseguira a ler com avidez os
outros romances, passou a conviver com os personagens: Pedro Bala, o Sem-
Pernas, Antônio Balduíno, Guma, Vasco Moscoso, Quincas... as mulheres
românticas e sensuais: Rosenda Rosedá, Lívia, Rosa Palmeirão, Ester, Gabriela. A
acreditar no que sobre elas o pai escrevia, na Bahia ele não iria ficar
desamparado, bem ao contrário! Ao vê-lo comentar, entusiasmado, as mulheres
baianas, a sonhar com elas, avó Angelina, que viera de São Paulo para as
despedidas, aplicara em seguida um de seus provérbios preferidos: "Tem? Procura
e acha. Não tem? Procura não acha..." Ao que a avó Eulália acrescentou: "Esse
moleque na Bahia vai estar de grande!" Não só João, também Jorge e eu íamos
estar de grande. Teríamos na Bahia um chão menos violento, menos ameaçador,
mais seguro para os nossos meninos.
INÍCIO, MEIO, FIM
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