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© - EDITORA UNIMONTES - 2022

Universidade Estadual de Montes Claros

REITOR CONSELHO EDITORIAL


Prof. Antônio Alvimar Souza Prof.ª Adelica Aparecida Xavier;
Prof. Alfredo Maurício Batista de Paula;
Prof. Antônio Dimas Cardoso;
VICE-REITORA Prof. Carlos Renato Theóphilo;
Prof.ª Ilva Ruas de Abreu Prof. Casimiro Marques Balsa;
Prof. Elton Dias Xavier;
EDITORA UNIMONTES Prof. Laurindo Mékie Pereira;
Prof. Marcos Esdras Leite;
EDITOR GERAL
Prof. Marcos Flávio Silva Vasconcelos Dângelo;
Prof. Antônio Dimas Cardoso Prof.ª Regina de Cássia Ferreira Ribeiro.

REVISÃO LINGUÍSTICA
Noêmia Coutinho Pereira Lopes
Waldir de Pinho Veloso
PROJETO GRÁFICO/SELO/CAPA
Chorró Morais

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Associação Brasileira das Editoras Universitárias (ABEU)

C837d Costa, João Batista de Almeida


Darcy Ribeiro : o homem e suas peles / João Batista de Almeida
Costa. – Montes Claros : Editora Unimontes, 2022.
216 p.:il.; 31 cm.

ISBN: 978-65-86467-36-9

1. Darcy Ribeiro. 2. Centenário – Darcy Ribeiro. 3. Homenagem


– Darcy Ribeiro. 4. Memórias. I. Título

CDU : 316

Elaborado por Neide Maria J. Zaninelli - CRB-9/884


Este livro, ou parte dele, não podem ser reproduzidos, por qualquer meio, sem autorização escrita do Editor.

EDITORA UNIMONTES
Campus Universitário Professor Darcy Ribeiro
Montes Claros - Minas Gerais - Brasil
CEP 39401-089 - CAIXA POSTAL 126
www.unimontes.br
editora@unimontes.br
Filiada à
SOBRE OS AUTORES

ADÉLIA MIGLIEVICH-RIBEIRO
Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (PGCS) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Doutora em
Sociologia (PPGSA-UFRJ), com pós-doutorado em Educação (PDS-FAPERJ-PROPED/
UERJ) e em Sociologia (PPGSol-UnB). Ocupou a Cátedra Darcy Ribeiro – Patronos do
Desenvolvimento (IPEA-CAPES). Atualmente, é bolsista PQ-Produtividade CNPq e líder
do Núcleo de Estudos em Transculturação, Identidade e Reconhecimento (Netir – DGP-
CNPq).

ANDRÉ BORGES DE MATTOS


Antropólogo e Professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
(UFVJM), no curso de Ciências Humanas-Políticas Públicas (BCH) e no Programa de
Pós-Graduação em Ciências Humanas (PPGCH). Autor da tese de doutorado Darcy Ri-
beiro: uma trajetória (1944-1982).

ANDREA JAKUBASZKO
Nascida (1971) e criada no Bixiga/SP. É bacharel (1991-96) e mestre (2001-03) em
Ciências Sociais pela PUC/SP, indigenista e Professora (do ensino superior a partir de 2004).
Ainda na época da graduação iniciou sua trajetória nas Ciências Sociais como estagiária
no Memorial da América Latina e quando concluído seu bacharelado, mudou-se para o
Mato Grosso a fim de realizar seu desejo de conhecer e viver entre os povos originários.
Tendo atuado por vinte anos na política indigenista, como membro da Operação Amazônia
Nativa (OPAN), conviveu com povos indígenas no Centro-Oeste e Norte do País e viveu
por cinco anos entre os Enawene Nawe. Durante este longo período, trabalhou com
políticas de educação e saúde indígena, patrimônio e meio ambiente, tendo coordenado
programas, ações e os Grupos de Trabalho para elaboração dos laudos de identificação
da Terra Indígena Myky (FUNAI); Comunidade Quilombola do Laranjal no Pantanal
Mato-Grossense (INCRA) e da pesquisa para Registro do Ritual Yaokwa (Povo Enawene
Nawe) como Patrimônio Imaterial do Brasil (IPHAN) e da Humanidade (UNESCO).
Em 2016, realizou seu outro sonho, o de viver em Minas Gerais, e hoje é professora do
Departamento de Política e Ciências Sociais, na cidade natal de Darcy Ribeiro, lecionando
Antropologia no Campus que leva seu nome. Atualmente é Pró-Reitora Adjunta de Ensino
da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
CLÁUDIA ZARVOS
Nasceu em São Paulo em 1955 e mudou-se para o Rio Janeiro aos quatro anos de idade.
Graduou-se em Programação Visual e Desenho Industrial em 1977 e, nos primeiros dez
anos de atividades, trabalhou como designer para algumas das principais editoras do
país. Posteriormente, por mais uma década, integrou a direção da Fundação Casa Fran-
ça-Brasil, no Rio de Janeiro, inicialmente como Diretora de Projetos e posteriormente
como Vice-Presidente da instituição. Atuou sobretudo como Coordenadora de produção,
montagem e design das exposições de arte. Em 2001, desligou-se daquele centro cultu-
ral e criou sua própria empresa, Claudia Zarvos Consultoria e Design, especializada em
comunicação visual, design e produção de exposições. Diferentes mostras foram apre-
sentadas no Brasil e no exterior.

DEMETRIUS RICCO ÁVILA


Professor, licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, pós-graduado em História e Ciências Sociais pelo IUPERJ, Mestre e Doutorando em
História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Ademais, exerce
função de secretário de formação política do Movimento Cultural Darcy Ribeiro.

GISELE JACON DE ARAÚJO MOREIRA


Antropóloga, foi assessora técnica do Gabinete do Senador Darcy Ribeiro (1991-1997)
e Secretária-Executiva da Fundação Darcy Ribeiro (1997-2001). Atuou na edição e
revisão das obras de Darcy Ribeiro e organizou as primeiras atividades institucionais
da Fundação. Pesquisadora do Instituto de Pesquisas Antropológicas do Rio de Janeiro/
IPARJ (1987-1989), Professora Substituta do Departamento de História do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais - UFRJ (2001-2004), Professora de Filosofia na Fundação
Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1987) e Professora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (1986-1987). Atualmente, é consultora na área de projetos culturais
e socioambientais.

HAYDÉE RIBEIRO COELHO


Mestre em Literatura brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais (1981). Dou-
tora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo
(1990), com Pós-Doutorado pela Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación,
Universidad de La República, Uruguai (2003). Professora Associada de Teoria da Litera-
tura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, onde atua como
Professora de Pós-Graduação em Estudos Literários. É pesquisadora do CNPq. Foi orga-
nizadora do livro Darcy Ribeiro (1997) e Las memorias de la memoria: el exilio de Darcy
Ribeiro en Uruguay: entrevistas (2003) e coorganizadora de Diálogos latino-americanos:
correspondência entre Ángel Rama, Berta e Darcy Ribeiro (2015); Modos de arquivo:
literatura, crítica cultura (2018) e Literatura, outras artes e violência nas Américas (2019).
Pertence ao Conselho Curador da Fundação Darcy Ribeiro desde 2013.

ILDENILSON MEIRELES
Doutor em Filosofia pela UFSCar; Professor do Departamento de Filosofia da Unimontes,
MG; Professor nos Programas de Pós-Graduação em História (PPGH), Filosofia (PROF.
FILO) e Desenvolvimento Social (PPGDS) da Unimontes.

JOÃO BATISTA DE ALMEIDA COSTA (Organizador)


Mestre e Doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
da Universidade de Brasília. É Professor de Ensino Superior na Universidade Estadual
de Montes Claros, vinculado ao Departamento de Política e Ciências Sociais por meio
do qual leciona Antropologia em diversos Cursos dessa Instituições de Ensino Superior.
Membro do corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social,
além de aulas, também orienta mestrandos e doutorandos. Publicou diversos artigos
em revistas acadêmicas, os livros Norte de Minas: cultura catrumana, suas gentes, razão
liminar (2021), Mineiros e baianeiros: a configuração do englobamento, da exclusão
e do entre-lugar (2017), Brejo dos Crioulos: processos sociais, identidade e resistência
quilombola. Organizou o livro Cerrado, gerais, sertão: comunidades tradicionais no sertão
roseano (2012).

LIA CIOMAR MACEDO DE FARIA


Professora Titular da Faculdade de Educação da UERJ e do Programa de Pós-Graduação
em Educação PROPEd/UERJ. Mestre e Doutora em Educação com pós-doutorado em
Educação pela Universidade de Lisboa e em Ciência Política pelo IUPERJ. Graduada em
História e Jornalismo. Procientista (UERJ/FAPERJ). Coordena o Laboratório Educação
e República (LER). Atua na área de educação, com ênfase em história da educação,
gestão dos sistemas educacionais e memória fluminense. É autora dos livros Chaguismo
e Brizolismo: territorialidades políticas da escola fluminense; Ideologia e Utopia nos anos
60: um olhar feminino e CIEP: a utopia possível, dentre outros.

LÚCIA VELLOSO MAURÍCIO


Mestra, Doutora e Pós-Doutora em Educação. Conselheira da Fundação Darcy Ribeiro
(FUNDAR). Professora Associada aposentada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Ex-Professora do Mestrado em Educação Processos Formativos e Desigualdades
Sociais (UERJ/FFP). Participante como Diretora de Capacitação do Magistério da
implementação dos CIEP’s. Principais publicações recentes: Educação como prioridade:
Darcy Ribeiro (2018); Tempos e espaços escolares: experiências, políticas e debates no
Brasil e no mundo (2014); Cacos de sonhos: cartas de uma ex-prisioneira na Vila Militar
- 1971-1974 (2015).

MARIVALDO APARECIDO CARVALHO


Bacharel licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (1996), Mestrado em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho (2001) e Doutorado em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho (2006). Líder do GEPIMG/UFVJM/CNPq. Professor Associado da
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Tem experiência na área de
Antropologia, com ênfase em Etnologia Indígena e estudos de população rural; atuando
principalmente nos seguintes temas: natureza; cultura; identidade; resistência, educação,
natureza/cultura e teoria-antropológica. É Professor no programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu, Mestrado Profissional em Saúde, Sociedade & Ambiente, na FCBS/UFVJM,
e do Mestrado Acadêmico Estudos Rurais PPGER na FIH/UFVJM. Desenvolve estudos
e extensão universitária com populações tradicionais e rurais. Coordenador do Grupo
de Estudos dos Povos Indígenas de Minas Gerais (GEPIMG/UFVJM), desenvolvendo
pesquisas junto aos povos indígenas de Minas Gerais e especificamente com os Maxakali,
os Pataxó e Pankararu.

ROBERTA BRANGIONI FONTES


Bacharel licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2009), com ênfase em Antropologia e Mestrado em Extensão Rural pela Universidade
Federal de Viçosa (2017). Atualmente é pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), como
doutoranda bolsista da CAPES, na linha de pesquisa “Movimentos sociais, identidade
e territorialidades”. Atuação principal nas áreas da antropologia rural e educação, com
pesquisas e projetos de extensão relacionados aos saberes tradicionais, memória e
territorialidades dos povos do campo, indígenas e comunidades tradicionais. Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual
de Montes Claros (Unimontes), bolsista da CAPES. Integrante dos grupos de pesquisa
Opará-Mutum/Unimontes e do GEPIMG/UFVJM.

ROSEMARIA J. V. SILVA
Pedagoga, Doutora e Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ) na Linha Instituições,
Práticas Educativas e História. Atua como mediadora à distância do Curso de Pedagogia
da UERJ/Consórcio CEDERJ e Professora de Disciplinas Pedagógicas do Curso Normal
da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC/RJ).

UCHO RIBEIRO
Sobrinho de Darcy, filho de Mário Ribeiro da Silveira, estudou Economia no CEDEPLAR
UFMG, Mestrado em Economia na UFCE, Mestrado em Desenvolvimento Agrícola na
Fundação Getúlio Vargas, Pós-Graduado em Auditoria pela Unimontes, Auditor Fiscal
aposentado da Receita Federal do Brasil. Escritor, publica crônicas sobre acontecimentos
do passado e do presente em sua página no Facebook https://www.facebook.com/mario.
ribeirofilho.146 e na página on-line Montes Claros http://montesclaros.com/mural/
cronistas.asp?cronista=Ucho%20Ribeiro
SUMÁRIO

Nota da Editora......................................................................................13

Nota do Organizador..............................................................................15

O HOMEM

Darcy Ribeiro, como eu o vi


Ucho Ribeiro............................................................................................23

Memórias Afetivas
Cláudia Zarvos.........................................................................................29

Para lembrar Darcy Ribeiro


Gisele Jacon de Araújo Moreira..............................................................39

SUAS PELES

Darcy Ribeiro 100 anos depois: uma justa homenagem


André Borges de Mattos.........................................................................49

Darcy Ribeiro: pensando os povos indígenas no Brasil


Marivaldo Aparecido de Carvalho e Roberta Brangioni Fontes..............63
O chabu da utopia Brasil
Andrea Jakubaszko..................................................................................81

Darcy Ribeiro, mestre educador brasileiro


Lúcia Velloso Maurício.............................................................................91

Darcy Ribeiro e a universidade necessária


Ildenilson Meireles.................................................................................103

Darcy Ribeiro: as utopias e fazimentos de um intelectual brasileiro


Lia Ciomar Macedo de Faria e Rosemaria J. V. Silva.............................119

Espaço Biográfico: política da memória e arquivo em Darcy Ribeiro


Haydée Ribeiro Coelho.........................................................................131

“Raça”, classe e nação em Darcy Ribeiro: contribuições a um debate


incandescente
Adélia Miglievich-Ribeiro......................................................................149

Eneida Tropical: o povo brasileiro como grande narrativa sobre o Brasil


Demetrius Ricco Ávila............................................................................171

Galeria de fotos....................................................................................213
NOTA DA EDITORA

Este livro Darcy Ribeiro: o homem e suas peles, organizado pelo antropólogo João
Batista de Almeida Costa, contém memórias, narrativas da trajetória pessoal, ações públicas
e análises científicas das contribuições intelectuais de uma das maiores personalidades
do Brasil de todos os tempos. A coletânea que a Universidade Estadual de Montes Claros
(Unimontes), por meio de sua editora, ora disponibiliza ao público leitor, especialmente
aos estudantes de Minas Gerais, tem a pretensão de integrar o rol de homenagens a Darcy
Ribeiro (1922-1997) no ano do centenário de seu nascimento.
Alguns dos escritos aqui selecionados já foram disponibilizados ao leitor em
publicações diversas ou em eventos acadêmicos, de forma integral ou parcial. Há capítulos
que são inéditos, elaborados especialmente para esta coletânea. O leitor notará que aqui
e acolá há repetição, caleidoscópia, de relatos de algumas passagens da vida de Darcy,
em razão dos olhares múltiplos de nossos autores.
O momento parece oportuno para lembrar, também, que o conceito de que o
homenageado tinha “muitas peles” é

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próprio Darcy Ribeiro, como se pode ler no livro “Testemunho” (edição de 1997,
p. 150).
Vale registrar que esta edição foi custeada por meio de recursos públicos, do
orçamento da Unimontes, não sendo permitido, portanto, a comercialização deste livro,
cujos exemplares deverão ser direcionados às escolas estaduais, bibliotecas públicas,
autores desta coletânea e instituições culturais no Norte de Minas Gerais.
Por fim, a Editora Unimontes agradece à Fundação Darcy Ribeiro por apoiar esta
publicação, especialmente com a disponibilização de seu acervo documental fotográfico.

Antônio Dimas Cardoso


Editor

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NOTA DO ORGANIZADOR

O CATRUMANO DE MONTES CLAROS: INTELIGÊNCIA E AÇÃO PARA


MUDAR O MUNDO

Este livro, em comemoração ao centenário de nascimento de Darcy Ribeiro, foi


pensado por Paulo de F. Ribeiro (in memoriam), seu sobrinho e ex-Presidente da Fundação
Darcy Ribeiro, e solicitado a mim para que o organizasse. “Paulin”, como era conhecido,
desde a primeira conversa, disse-nos que gostaria que o livro articulasse algumas das
pessoas que trabalharam com seu tio e pessoas que estão estudando o pensamento desse
tão importante e cada vez mais lido intelectual brasileiro. Houve recusa de alguns dos
antigos companheiros de fazeres do homenageado, mas nenhuma recusa dos acadêmicos
emergentes que, cada vez mais, mergulham nas diversas obras antropológicas, escritas,
principalmente, em seu exílio em Montevidéu – Uruguai.
Os Silveiras, vindos de Portugal e que se fixaram no Norte de Minas, nas encostas
da Serra do Espinhaço, na área municipal de Mato Verde atualmente, tiveram uma filha,
Josefina Augusta da Silveira, conhecida como Mestra Fininha. Casada com Reginaldo
Ribeiro dos Santos, deram nascimento, em 26 de outubro de 1922, a um garoto que,
posteriormente, afirmou ter sido fundado e não nascido. Esse garoto, Darcy Ribeiro,
nasceu em Montes Claros, onde passou sua infância fazendo estripulias, sendo a mais
tocante, a colocação de azul de metileno na caixa d´água da cidade, propiciando que,
das torneiras, saísse um líquido azul.
Leitor da biblioteca de seu tio paterno, Professor Plínio Ribeiro, foi, com seu
irmão, Mário Ribeiro da Silveira, financiado pelo tio paterno, Filomeno Ribeiro, para
Belo Horizonte, com o objetivo de estudar medicina.
Em pouco tempo, abandona o curso e, no contato mantido com comunistas,
estabelece vínculos com o Partido Comunista do Brasil; na Universidade de Minas Gerais,
envolve-se com aulas de Filosofia e/ou Literatura.
Definida pelo partido a sua transferência para São Paulo, em 1944, torna-se
estudante da Escola Livre de Sociologia e Política onde foi orientado por Herbert Baldus
e Donald Pierson, que lhe exigiram ler a bibliografia nacional existente naquele período.
E, em 1946, cola grau em Ciências Sociais, tendo sido influenciado, sobretudo, pela
Antropologia Cultural instituída, como escola, nos Estados Unidos, por Franz Boas.
Tendo sido selecionado pelo Marechal Cândido Mariano Rondon, vincula-se ao
Serviço de Proteção aos Índios quando desenvolve pesquisas etnológicas. Acompanhado
de sua esposa, Berta Gleizer Ribeiro, também etnóloga como ele, permanece por dez
anos entre as sociedades indígenas que estudou. Na região do Pantanal, em Mato
Grosso, desenvolve seus variados estudos etnológicos sobre os Kadiwéu, em que aborda

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diversos aspectos dessa sociedade indígena. Ao se fixar na região amazônica, Maranhão
e Pará, com os índios Urubu-Kaapor, começa a se preocupar com a situação vivida pelas
comunidades indígenas nas frentes de expansão agrícola no interior do Brasil. Entre
seus estudos deste período, ele e Berta, dedicada à cultura material, publicam um livro
sobre A arte plumária dos índios Kaapor, e, sobre o tema da “terra sem males”, no livro
Uirá, um índio em busca de deus.
Posteriormente, junto com Gustavo Dahl, escreveu o roteiro que foi filmado, em
que se mostra o tratamento dado aos indígenas, situação que lhe havia deixado indignado.
Como cobra, mudando suas peles, abandona uma delas, a do etnólogo. E, desde
então, Darcy Ribeiro passa a atuar politicamente – a primeira ação daquilo que ele chamou
de seus fazimentos – e se dedica a defender os indígenas. Seu primeiro fazimento, nesse
período, foi a organização do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em 1954, dirigindo-o até
1957. Em 1954, também auxilia os irmãos Orlando e Cláudio Villas-Bôas na elaboração
do plano do Parque Indígena do Xingu, reserva criada no Governo de Getúlio Vargas e
homologada pelo Governo Federal em 1961. Darcy foi o relator do projeto e conseguiu
convencer o Presidente a criá-lo.
O Parque Indígena do Xingu é situado em Mato Grosso, na porção Sul da Amazônia
brasileira em uma região plana, de mata de cerrado, em uma área de 27 mil quilômetros
quadrados. O Parque é atravessado pelo Rio Xingu e seus afluentes e nele coexistem
diversas sociedades indígenas, distribuídas nas aldeias Aweti, Ikpeng, Kaiabi, Kalapalo,
Kamaiurá, Kĩsêdjê, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvotu, Wauja, Tapayuna,
Trumai, Yudja, Yawalapiti. Os indígenas aí localizados são falantes de diversas línguas,
como Tupi-Guarani, principalmente, bem como Aruák, Karíb, Jê, e por fim, a língua isolada
Trumai. No espaço de aproximadamente 2.800.000 hectares, as inúmeras etnias convivem
com uma diversidade linguística que vincula todas as etnias com muitas similaridades
culturais. Cada sociedade localizada no Parque afirma sua identidade específica e, em
suas manifestações culturais, celebram suas diferenças.
Em 1955, assume uma cadeira disciplinar na Universidade do Brasil e cria, no Museu
do Índio, o primeiro curso brasileiro de pós-graduação em Antropologia. Aproxima-se,
então, de Anísio Teixeira e, em 1957, torna-se Diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas
Educacionais (CBPE), do Ministério da Educação, com as funções de orientar pesquisas
que contribuíssem para políticas educacionais. Em 1959, inicia o planejamento de uma
universidade na nova Capital Federal que Juscelino Kubitschek de Oliveira construía
em pleno cerrado no Planalto Central brasileiro. Em 1961, torna-se seu primeiro Reitor.
Desde esse período, assume a vida político-partidária e se filia ao Partido Trabalhista
Brasileiro, como um de seus membros. Em 1962, é nomeado Ministro da Educação e, em
1963, Chefe da Casa Civil do Governo de João Belchior Marques Goulart. Nesse cargo,
assume a campanha das Reformas de Base. Após o golpe militar, apoiado pelos Estados
Unidos, é exonerado da Universidade do Brasil, tem seus direitos políticos cassados e se
exila no Uruguai, onde passa a lecionar na Universidade de Montevidéu, quando inicia
a escrita de sua obra antropológica composta dos livros:

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• Processo Civilizatório – etapas da evolução sociocultural;
• As Américas e a civilização – processo de formação e causas do desenvolvimento
cultural desigual dos povos americanos;
• Os índios e a civilização – a integração das populações indígenas no Brasil moderno;
• Os brasileiros – teoria do Brasil;
• The culture – historical configurations of the American peoples;
• O dilema da América Latina – estruturas do poder e forças insurgentes;
• O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil.

Durante o exílio no Chile, presta assessoria ao Governo de Salvador Allende e, no


Peru, ao Governo de Velasco Alvarado, tendo como foco de atuação reformas e criação
de universidades. Em Caracas, leciona na Universidade Central da Venezuela. Acometido
de câncer, vem ao Brasil para ser operado e regressa definitivamente ao país em 1976.
Anistiado em 1979, reassume sua cadeira de antropólogo na Universidade Federal do
Rio de Janeiro, antiga Universidade do Brasil. Contribui para a criação do Partido
Democrático Trabalhista (PDT), junto a Leonel Brizola e outros companheiros que
retornaram do exílio. Em 1982, é eleito Vice-Governador do Rio de Janeiro, na chapa
encabeçada por Brizola. Nesse período, exerce os cargos de Vice-Governador, Secretário
Estadual Extraordinário de Ciência e Cultura, Coordenador do Programa Especial de
Educação, para a implantação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEP’s) – o
qual idealizou – e chanceler da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Terminado o
mandato para o qual foi eleito, candidata-se à sucessão de Brizola, em 1986, mas foi
derrotado. Em 1990, elege-se Senador, pelo Rio de Janeiro e pelo PDT, vindo a falecer
em 1997.
No programa Roda Viva, em 1991, Darcy disse ter saudades de si mesmo, inda-
gando-se por que não ficou cuidando de uma só questão, ao que ele mesmo responde
que a sua vida era uma variação constante. Ele era um homem inconstante e cada nova
possibilidade de fazimento era irresistível para ele. A metáfora da cobra que troca de peles,
como um processo necessário ao seu crescimento, cabe bem ao Darcy quando vemos sua
trajetória humana. A primeira pele, que nem estava ainda plenamente construída, foi a
de médico. Deixou o curso de Medicina e migrou-se para as Ciências Sociais, ao mesmo
tempo em que ajustou, sobre sua profissão intelectual, seu perfil político inicial como
membro do Partido Comunista do Brasil (PCB). Com Herbert Baldus e Donald Pierson,
seus Professores e hierofantes que lhe abriram a visão para compreender nosso país ao
exigirem que fizesse a leitura da bibliografia brasileira então existente e definiram seu
caminhar acadêmico, experimentou a dupla pele de etnógrafo no estudo dos Kadiwéu
e dos Urubu-Kaapor e de antropólogo, vivida no exílio, quando constrói os estudos do
Brasil e da América Latina compreendidos, por ele, como um problema, colocando sua
inteligência para modificá-los por sua ação.

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Ao se aproximar do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, passa a habitar
uma das peles que julgava ser das mais importantes por sua comoção com o destino
dos indígenas brasileiros, ao mesmo tempo em que dá início a sua carreira política, não
partidária. Como funcionário público, no contato com o Anísio Teixeira, começa a pensar
a problemática da educação, vista por ele como um projeto da elite para assegurar sua
dominação sobre as gentes brasileiras. Como político, ocupou o cargo de Ministro da
Educação e, posteriormente, Chefe da Casa Civil no curto Governo de João Goulart,
derrubado pelo golpe militar sustentado pelos Estados Unidos para impedir as reformas
de base e, pretensamente, afastar o Brasil do caminho comunista da União Soviética.
Nesse período, é criada e instalada a Universidade de Brasília (UnB).
Ao se exilar no Uruguai, leciona na Universidade de Montevidéu, onde tem o
encontro fundamental com Ángel Rama e dá início à escrita de sua leitura do mundo
com o livro O processo civilizatório – etapas de evolução sociocultural, e os estudos sobre
os índios, sobre o Brasil e sobre a América Latina, que têm, atualmente, fundamentado
a construção do pensamento decolonial, somando-se a outros autores. Viveu, por algum
tempo, na Venezuela, no Chile – assumindo assessoria no Governo de Salvador Allende
– no Peru – onde assessorou o Governo de Velasco Alvarado – e, posteriormente, viveu
no México. Durante esse período, esteve no Brasil para operar-se de câncer no pulmão.
Em um encontro com Leonel Brizola e outros brasileiros exilados, em Lisboa,
tem início a construção do partido político que, impedido de assumir a denominação de
Partido Trabalhista Brasileiro, é fundado como Partido Democrático Trabalhista (PDT),
por meio do qual foi Vice-Governador no Rio de Janeiro e Senador pelo mesmo Estado.
Vestiu sobre sua pele o fardão de membro da Academia Brasileira de Letras e, antes
de falecer, em 1997, escreveu seu livro mais lido em nosso país, O Povo Brasileiro. Como
um catrumano que era, “fundado” no sertão do Médio São Francisco, lutou bravamente
para mudar o Brasil, que considerava ter a vocação de ser a mais bela civilização entre
todos os países do mundo.
Encerrando essa diminuta apresentação – cada um dos autores, em seus respectivos
capítulos, irá explorar as diversas peles de Darcy Ribeiro – quero focalizar que há uma
contradição na sociedade dos homens de agora, no Brasil. Essa contradição pode ser
compreendida na relação que a intelectualidade brasileira mantém, mesmo após a morte,
com Darcy. Enquanto os intelectuais que se consideram partícipes de uma ágora intelectual,
cuja consciência cientificista os impedem da ação, continuam a se posicionar inferiorizando
o pensamento desse tão importante e caro intelectual, há outros intelectuais que vêm
sendo formados desde o início dos anos 2000, assim como a população esclarecida,
como pode ser amplamente percebido nas redes sociais, que têm tornado premente
mergulhar em sua obra antropológica. Nas frases de Darcy Ribeiro postadas nas redes
sociais aparecem, sobretudo, aquelas que evidenciam a leitura de que o Brasil é uma
sociedade fracassada na histórica devido à apreensão do Estado pelas elites ranzinzas,
azedas, medíocres, cobiçosas, que só sabem vender o patrimônio nacional para atender a
seus interesses particulares e que não deixam o país estar a serviço de seu próprio povo.

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Nesses 25 anos sem sua presença física e na celebração do centenário de seu
nascimento, cabe lembrar o ensinamento de Darcy Ribeiro: temos que usar nossa
inteligência para modificar, por nossa ação, a sociedade dos homens de agora, divididos
entre os que moem gente e as gentes moídas que não podem se realizar plenamente em
sua humanidade.
Daí a cisão que se instalou no país entre os que odeiam direitos, mas amam
privilégios e os que são impedidos de ter acesso a direitos e vivem de favor dos privilegiados.
Apenas nomeando as seções em que o livro se divide e os autores que as compõem, O
Homem Darcy Ribeiro é apresentado por seu sobrinho Ucho, sua última esposa Cláudia
Zarvos, e sua Secretária Gisele Jacon de Araújo Moreira. Em suas peles, há os companheiros
de fazimentos, principalmente, no Rio de Janeiro: Lia Ciomar Macedo de Faria / Rosemaria
J. Vieira da Silva e Lúcia Velloso Maurício que, com ele, compartilharam as ações
educacionais. Há os novos intelectuais que têm se inspirado na obra darcyana, como
Adélia Miglievich-Ribeiro, André Borges de Mattos, Demetrius Ricco Ávila, Haydée Ribeiro
Coelho, Roberta Brangioni Fontes / Marivaldo Aparecido de Carvalho. E, por fim, dois
intelectuais da Universidade Estadual de Montes Claros, Andrea Jakubazcko e Idenilson
Meirelles, que dão início no universo acadêmico da cidade cujo campus universitário o
homenageia aos estudos de sua obra.
E, para finalizar, agradeço a Cláudia Luz de Oliveira o diálogo mantido, que
contribuiu para a construção dessa apresentação.

João Batista de Almeida Costa

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DARCY RIBEIRO, COMO EU O VI

Ucho Ribeiro

Darcy teve muitos couros na vida. Trocou de peles diversas vezes. Dedicou-se,
apaixonadamente, a várias atividades. Foi educador, antropólogo, sociólogo, romancista,
político, indigenista... e namorador.
Escrever sobre Darcy não é tarefa fácil e nem sou eu a pessoa adequada para tratar
de cada uma de suas paixões, obras e ardores. Seus frutos, partos e legados já estão
muito bem registrados e divulgados em vasta produção bibliográfica essencial para o
entendimento da cultura indígena e da formação do povo brasileiro.
Faço um simples depoimento de como era a relação familiar de Darcy e como foi
minha vivência com ele. Começo por relatar que, na infância, havia a expectativa de
reencontrar o “tio doido”, que tinha histórias inventivas para as cabecinhas da meninada
e planos mirabolantes e audaciosos para a carranquice dos adultos de Montes Claros.
Relembro-me de muitos fatos, desde a minha primeira visita ao apartamento dele,
em Copacabana, cheio de artefatos indígenas, quando tomei consciência de que indígena
não era bugre, nem bicho, mas um humano muito criativo. Recordo, também, de suas
visitas à terra natal e da procissão de gente norte-mineira curiosa para ouvir o falatório
destrambelhado e otimista do Ministro da Casa Civil sobre o futuro – do Brasil que poderia
ser, que haveria de ser. Viva, ainda, está nas minhas memórias, a viagem ao Uruguai,
para visitá-lo no exílio. Em Montevidéu, meninote, assisti, caladíssimo, seu encontro com
Jango, Brizola e Waldir Pires, para tratar de assuntos assisados, incompreensíveis para
minha pouca idade. Depois, quando ele voltou para o Brasil, em 1968, e foi preso na
Ilha das Cobras. Revivo o medo do mano Fred e o meu, de mãos dadas com a coragem
de Tia Berta, para visitá-lo num quase calabouço no presídio da Marinha. Temor que
só se abrandava quando o víamos e ouvíamos as suas historietas ledas e espetaculosas.
Poderia contar uma série de passagens de sua vida pública, como quando ele
voltou em 1974 para ser operado de câncer e sua insistência em permanecer no Brasil.
Ou mesmo, após a anistia aos presos políticos, quando Brizola e ele foram candidatos
vitoriosos ao Governo do Rio de Janeiro e, posteriormente, sua candidatura ao Senado.
Seria descomplicado arrazoar, pontualmente, sobre cada uma das suas obras no
Rio de Janeiro e no Brasil. Mas, para mim, o mais interessante é me lembrar do que ele
falava, imaginosamente, no cotidiano. Darcy não teve cabresto, não teve rédea, talvez
pela ausência da figura paterna em sua criação. Perdeu o pai, Reginaldo Ribeiro, aos três
anos. Portanto, faltou-lhe a presença da autoridade. Nunca sofreu o mando sobre ele
e, por não ter tido filho, não precisou exercer o julgo. Sentia-se uma pessoa livre, solta,
que tinha como característica maior não se exercer como pai; e sua despreocupação em

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sustentar uma família, em gastar tempo com educação de filhos ou deixar patrimônio
material.
Cheguei a ouvi-lo dizer que sempre seria um servidor do Estado e, por conseguinte,
não precisaria criar nenhuma riqueza.
Darcy era o inusitado, irreverente até o topo. Nunca podíamos imaginar o que ele
iria falar e qual seria sua conduta para um fato corriqueiro. Não era um comportamento
habitual. Normalmente, ele tinha uma visão diferente, uma óptica dessemelhante para
tudo. Quando indagado sobre qualquer assunto, a resposta era sempre inesperada e,
algumas vezes, incompreensível ou até mesmo dura. Cabia a nós decifrar o rebate, pois
sempre cutucava, mexia, questionava, ou, no mínimo, provocava-nos o pensar.
O admirável sobre Darcy era sua erudição. Ele falaria uma tarde inteira sobre
galinhas assim como discorreria o dia todo sobre islamismo, mecatrônica ou mesmo
sobre minhocas. Por outro lado, ao encontrar alguém que dominava algum tema, fazia
questão de ouvi-lo e, se o interessasse, ficava horas conversando, extraindo à exaustão
todo conhecimento do sujeito.
Lembro-me de que Darcy, certa vez, encontrou com um Senhor que havia sido
condutor de tropa (arrieiro, cometa), profissão que existia antigamente. Como não tinha
domínio sobre as vivências e habilidades desses bruaqueiros, esmiuçou tudo, perguntou
detalhes de cada aparelho e ferragem dos tropeiros. Guardava, sem anotar, todas as
informações. Sua memória era fabulosa.
À época em que eu fazia Mestrado no Ceará, comuniquei a meus pais a intenção
em transferir-me para a Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Passados alguns
dias, surpreso, recebi uma carta de Darcy. Achei interessante que, logo no começo, ao me
saudar, ele explicou a origem do meu apelido “Ucho”, corruptela de Marucho, filho de
Mário. Elucidou a etimologia de Uxor, relativo a “mulhero”, e professorou conhecimentos do
idioma grego e de latim. Em seguida, disse que iria para a Europa a estudos. Inicialmente
para Inglaterra, a fim de entender por que os negros nunca se consolidaram por lá, por
mais que os ingleses estivessem à frente do comércio de escravizados. De Londres iria à
Espanha, investigar por que os catalães e os bascos insistiam em se separar da Espanha
e qual a causa de os povos da Península Ibérica quererem tanto se apartar. Iria dedicar a
fundo àquelas pesquisas. No meio da carta, logo depois de explicitar seus interessantes
estudos e preocupações, escreveu:

Bem, mas não é esse o objetivo desta carta. Estou lhe escrevendo porque seu pai
me pediu que eu lhe aconselhasse a não largar o seu Mestrado, e lhe convencesse
terminá-lo bem e voltar para Montes Claros..., para casar-se com uma montes-
-clarense, uma mineirinha, arranjar um empreguinho num banco e morrer de
medo de ser cornudo. Mas você faz o que bem entender e me ligue para dizer o
que está pensando da vida.

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Darcy sempre nos catapultava, lançava-nos para a vida. Continuamente, seu
questionamento era um alerta, ou um incentivo para a gente abrir os olhos e dizer: Ahh!
Lembro-me de que, jogando baralho, quando ele precisava de certa carta, começava
a solfejar uma música indígena: “Hááá Eeia rá reiá. A reiá reiá rá Heinahá!”. Dizia
que era para dar sorte. Outras vezes, Darcy blasfemava para conseguir a carta: “Exu...
Exu... Exu... vai tomar no cu. Exu. Exu vai tomar no cu”. A irreverência dele nessas
brincadeiras era imensa. Mas gostava mesmo era de ensinar, de nos desasnar. Porém,
quando perguntávamos muito, durante longo tempo, ele se enfastiava e dizia: “Ô... vamos
parar por aqui, porque eu preciso pensar. Meu trabalho é pensar, necessito de silêncio,
tenho que refletir sobre algumas coisas.”. E, professava: “Pensar cansa e dói e eu ganho
é para isso, para pensar”.
De vez em quando, ele aparecia para passar com a família um fim de semana,
um feriado. E sempre havia uns fartos almoços. Não raro, minha mãe ou algum parente
falava: “Ô, gente, vamos agradecer, rezar alguma coisa.”. Darcy não dava muita bola
para esses ritos religiosos. Ficava na dele, mas, às vezes, alguma visita inadvertidamente
dizia: “Ah... Darcy podia rezar para a gente.”. Aí, meu pai retrucava: “Não mexe com
Darcy não, deixa Darcy...”. Mas insistiam: “Não... não, Darcy, reza aí”. Ele, então, rebatia
assim: “Ó... eu rezar o quê? Eu não acredito em Deus! Não acredito por culpa Dele! Ele
não é onipotente, onipresente?” E destrambelhava, olhando para o céu:

Ô Deus, Você podia ter me dado fé, mas não me deu, a culpa é Sua. Você não é o
todo poderoso? Eu podia estar aqui igual a todo mundo. Morro de inveja desse
pessoal que acredita em Você, que tem fé, mas eu não tenho e a culpa é unicamente
Sua. Se quiser que eu passe a respeitá-Lo, eu posso até propagá-Lo, mas antes
disso terá que me dar fé, mas como Você nunca me deu..., estou aqui, aguardando.

Curioso é que Darcy não escrevia seus livros, nem a mão, nem à máquina, pois não
sabia datilografar, como também não sabia dirigir autos. Ele ditava suas publicações...
sentava-se numa posição de yoga, com as pernas cruzadas em um sofá especial do
apartamento, e ditava o texto para um gravador que ficava em seu colo. Passávamos longe
para não o incomodar. Era capaz de passar três, quatro, cinco horas falando em voz alta.
Depois, suas secretárias colocavam aquelas fitas no aparelho de toca-cassetes e, enquanto
ouviam, registravam tudo que foi dito. Lembro-me de um pedalzinho que parava a fita,
para pausar o áudio enquanto as anotações eram feitas. Tudo era datilografado em espaço
dois e o primeiro texto escrito era entregue a Darcy para as devidas correções. Eram dias
inteiros naquele trabalho: gravar, digitar, corrigir, revisar, datilografar de novo. Quando
ele estava em casa, trabalhava o tempo todo. Nunca vi alguém trabalhar tanto e ser tão
ocupado. Era um cara diferente, genial, criativo e afoito. Ousava ter ideias próprias em
vez de ser um aplicado comentarista das ideias alheias. Meu pai dizia: “Ô, Darcy, você não
foi parido por minha mãe, você foi fundado, teve fita para cortar e banda de música.”.

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Enfim, o importante é que Darcy era um homem de fazimentos, era um homem
que não se aquietava hora nenhuma. Ele sempre dizia: “Eu só descanso fazendo outra
coisa. Quando estou cansado de alguma coisa, eu passo a fazer outra.”. Ele era uma
pessoa que gostava de fazer, de construir, de realizar, tanto que idealizou, fundou e
cofundou o Museu do Índio, o Memorial da América Latina, o Parque Indígena do Xingu
e a Universidade de Brasília – UnB. No Estado do Rio de Janeiro, criou a Universidade
Estadual do Norte Fluminense – idealizada para ser a Universidade do Terceiro Milênio
–, o Sambódromo, a Casa Laura Alvim, a Casa França-Brasil e a Biblioteca Pública do
Estado do Rio de Janeiro. Tombou cem quilômetros de praias do litoral sul-fluminense e
implantou a fábrica de escolas, além de elaborar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
A maior de suas paixões foi a educação. Era indignado com a educação brasileira.
Advertia que, em todo o mundo, o ensino fundamental era em tempo integral. Não existia,
no planeta, escola de meio horário, aula só de manhã ou só à tarde. Darcy escancarava
que “nenhum país decente tem menor abandonado. No Brasil, você não vê carneiro,
porco ou bezerro abandonado, mas criança abandonada, sim. Isso é a coisa mais triste
do mundo!”.
Nos Governos de Brizola, Darcy se dedicou à implementação dos 506 Centros
Integrados de Educação Pública (CIEP’s), que ofereciam educação em tempo integral e
gratuita para crianças e adolescentes de baixa renda do Rio de Janeiro. No período da
manhã, os alunos tinham aulas das disciplinas regulares e, no período da tarde, recebiam
reforço escolar, formação técnica profissional, esportes e educação artística. Alguns
dos CIEP’s atuaram como casas de amparo às crianças de rua. Os Governos posteriores
repudiaram o projeto de Darcy e deixaram de investir nos CIEP’s. Os prédios foram
transformados em escolas comuns da rede estadual de ensino e o sonho da escola pública
de tempo integral foi ignorado. Resultado: a profecia de Darcy se tornou realidade:
“Se nossos governantes não investirem em escolas, em vinte anos faltará dinheiro para
construírem presídios.”.
Sua maior repulsa era a “esses prefeitinhos que desviam dinheiro da educação,
que têm a obrigação de gastar vinte e cinco por cento da receita municipal na educação
e gastam o dinheiro com outra coisa ou roubam a merenda.” Darcy tinha verdadeira
aversão a essas pessoas.
O melhor de Darcy era o amor pela vida, a alegria de viver. Ele ficou muito
aborrecido quando soube que findaria. Tinha mil coisas para fazer e se indignava com
aqueles que se acomodavam e deixavam a vida passar. Ele daria tudo para ter mais um
ano de vida, e realizar mais alguns projetos.
Darcy nos comovia, instigava-nos a viver, a acreditar que podemos melhorar
o mundo, que o Brasil é a grande nação, que esse país poderia ser passado a limpo.
Despertava nossas consciências ao afirmar que “o Brasil já é a maior das nações neolatinas,
pela magnitude populacional, e começa a sê-lo, também, por sua criatividade artística
e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se
fazer uma potência econômica, de progresso autossustentado.”.

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Vaticinava que a América Latina será a nova Roma, uma Roma melhor, porque
lavada em sangue índio, em sangue negro e que as grandes transformações, mesmo com
tantos deslizes, irão surgir e florescer nessa nova civilização, mestiça e tropical, que está
sediada na província mais bonita, mais generosa, mais fraterna do universo.
Enfim, seu maior legado foi o amor à vida, ao Brasil, à América Latina, a tudo.

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MEMÓRIAS AFETIVAS

Cláudia Zarvos

Foi em um fim de semana em Petrópolis. Como fazia habitualmente, minha mãe


recebeu, em sua casa, um grupo de amigos para almoçar. Naquela vez, o centro das
atenções foi Darcy Ribeiro – que eu ainda não conhecia pessoalmente –, festejado pela
volta definitiva do exílio. O ambiente era só alegria e entusiasmo. Com as histórias que
contou, Darcy esbanjou charme e empolgação que cativaram toda a gente. Ele já havia
estado no Brasil poucos anos antes, para operar um câncer no pulmão, mas com os
direitos civis cassados, tinha dificuldade de exercer alguma atividade profissional em
sua área, o que o levou de volta aos nossos vizinhos latino-americanos para trabalhar.
Depois daquele dia, reencontrei Darcy, esporadicamente, em eventos públicos,
como os debates no Teatro Casa Grande, no Leblon. Eu percebia um certo “clima”, mas
não passava disso.
Embora morasse no Rio de Janeiro, naquela época trabalhava como designer da
Editora Vozes, em Petrópolis. Certa tarde, fui convocada pelo Diretor da Editora, Frei
Ludovico, para uma reunião em seu gabinete com os editores e o novo autor da casa:
Darcy Ribeiro. Ficou acertado que eu seria a responsável pela programação visual das
capas de seus livros. Terminada a reunião, Darcy me ofereceu carona no carro da Editora
que o levaria de volta ao Rio, mas, como ainda tinha trabalho a fazer, não pude aceitar.
De qualquer modo, à medida que os projetos das capas evoluíam, nossos encontros para
a apresentação dos layouts se tornaram mais frequentes.
No mesmo ano, a Editora Civilização Brasileira organizou a noite de autógrafos de
“Maíra”, romance de estreia de Darcy. Para me acompanhar ao lançamento, convidei meu
amigo de infância, Fernando Bueno, designer como eu. No momento em que autografou
meu exemplar, Darcy pediu que o esperasse até o final do evento. Na saída, ele propôs um
drink e Fernando, que nos aguardava, ofereceu sua casa para a esticada. Darcy tornou a
noite muito agradável, desdobrando-se em gentilezas, conquistando a simpatia do dono
da casa e reforçando a minha. Na despedida, sugeriu-me que nos víssemos, novamente,
na tarde seguinte. Desde então, vivemos juntos por doze anos.
Nos primeiros meses de relacionamento, procuramos nos adaptar um ao outro,
afinal, tínhamos 33 anos de diferença de idade. Não era difícil conviver com Darcy,
sempre amoroso, gentil e muito disciplinado nos hábitos do dia a dia. Mas confesso que
estranhei alguns desses hábitos, como o de se vestir com típicas batas peruanas para ir
a uma festa. Felizmente, aos poucos, adaptou-se ao “visual carioca”. Não deixava de ser
engraçado aquela mistura de intelectual do mundo com os costumes de povos de outras
culturas, resultado de seu olhar e vivência como antropólogo – um contraste que moldava

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sua personalidade, simples e brincalhona, que o deixava à vontade em qualquer lugar
sem precisar mudar seu modo de ser.

A casa

Quando conheci o apartamento que Darcy alugava na Avenida Atlântica, em


Copacabana, logo notei o estilo característico de decoração de uma casa de intelectual.
À esquerda da porta de entrada, uma parede encoberta por estantes se estendia até o
outro lado da sala, onde havia uma janela que dava vista para o mar. As prateleiras
abrigavam muitos livros e variadas lembranças dos lugares por onde andou. Na parede
oposta, havia três portas. A primeira dava acesso ao banheiro e à cozinha; a segunda,
era a entrada do quarto de dormir; e a terceira, levava ao escritório.
Naquela primeira visita, chamou-me a atenção a disposição pouco comum dos
móveis da sala. De um lado, uma passagem estreita entre a estante de livros e um
enorme sofá dinamarquês; do outro, com a parede livre, havia apenas uma poltrona de
couro. Nela, acomodado, Darcy passava o dia trabalhando com uma prancheta no colo
e uma caneta, escrevendo textos com uma caligrafia que só Bertha, sua primeira mulher,
conseguia decifrar para depois ela mesma datilografar. Não à toa, a poltrona ganhou o
apelido de “Trono”. Quando nos conhecemos, ele tinha substituído a ajuda da ex-mulher
pela gravação dos textos, que eram datilografados em seguida pelas assistentes que
passaram a trabalhar no pequeno escritório.
Já me sentindo totalmente em casa, aproveitei uma viagem dele ao exterior para
reposicionar os móveis de uma maneira mais racional. Ao voltar, achou graça na iniciativa
e ficou contente com o resultado. Moramos naquele apartamento por aproximadamente
dois anos.
Com a Lei da Anistia, em 1979, Darcy recuperou seus direitos civis e quis continuar
vivendo e trabalhando no Rio de Janeiro. Daí decidiu comprar o apartamento que viria
a ser seu endereço definitivo na cidade. Por mais de um ano procuramos um imóvel
que atendesse às duas principais exigências: ter ao menos 150m2 e vista para o mar de
Copacabana. Não foi fácil encontrar.
As economias dos anos de exílio não eram suficientes para adquirir a maioria
dos imóveis com essas características. Não encontramos nada anunciado nos jornais e
passamos a bater pernas entre as portarias dos edifícios até que achamos. Era um prédio
antigo, com a solidez dos prédios de época. O apartamento, com 180m2 e cômodos
confortáveis, precisava, no entanto, de uma reforma completa.
Darcy chamou o amigo arquiteto Oscar Niemeyer para pedir sua opinião. Oscar
entrou no apartamento, olhou rapidamente e disparou: “Compra”! Depois mandou um
primeiro croqui que transformava a espaçosa sala e três quartos em um grande quarto e
sala. Na entrada ficaria o escritório, onde a assistente receberia o correio, as encomendas e

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as pessoas que o procuravam por razões profissionais. Também ali atenderia ao telefone e
datilografaria os textos, sem invadir nossa privacidade. Na sala, sentado no “Trono”, Darcy
parecia boiar no mar de Copacabana. Embora trabalhasse em um local por onde outras
pessoas transitavam, nunca perdia o foco no que estava fazendo. Por vezes, desenvolvendo
um projeto de design no mesmo ambiente, Fernando e eu podíamos, tranquilamente,
conversar sobre os detalhes sem preocupação de atrapalhar a concentração de Darcy.

A família

Darcy teve dois amores incondicionais na vida: a mãe, Dona Fininha, e o único
irmão, Mário. Acredito que o fato de ter ficado órfão de pai muito cedo e criado e guiado
pela mãe, Professora inteligente e firme, fez com que adquirisse uma visão da capacidade
das mulheres, nada convencional para um homem nascido em 1922.
O percurso de Mário foi diferente ao do irmão mais velho. Mário, depois de
formado em Medicina, voltou para Montes Claros, onde se casou com Maria Jacy, sua
única companheira por toda a vida. Com ela, teve oito filhos. Darcy era muito grato por
ter recebido, em três ocasiões, a visita no exílio de Mário, mulher e filhos, que levavam
o carinho familiar que tanta falta lhe fazia.
Darcy não podia ter filhos e creditava a isso construir o percurso profissional com
total liberdade. Como não precisava se preocupar com a manutenção da família, podia se
dedicar, integralmente, a seus projetos. Mas acho que ele gostaria de ter sido pai. Achava
graça nos sobrinhos, nos filhos dos amigos e mesmo em crianças que encontrava ao acaso.
Gosto, especialmente, de duas de suas histórias. A primeira foi durante sua
experiência como etnólogo entre os índios Kadiwéu. Ele viu uma índia extraindo o líquido
venenoso da mandioca brava com o tipiti, enquanto o filho, com menos de dois anos,
brincava passando a mão no caldo. Darcy perguntou se ela não tinha medo de que ele
se envenenasse levando a mão à boca e ela respondeu que não, porque o indiozinho
sabia que não podia fazer isso.
Em outra oportunidade, estava apreciando a paisagem da praia de Copacabana
à beira-mar quando um menininho se aproximou e falou para a marola que batia em
seus pés: “Eu vim, viu”?
De qualquer forma, as crianças mais próximas afetivamente foram os sobrinhos.
Quando Darcy voltou definitivamente ao Brasil, já tinham crescido. Foi como os conheci.
Cada qual com sua personalidade marcante, eram bem diferentes entre si. Paty se
destacava pela inteligência; Fred, pela seriedade diante dos desafios; Ucho, pela beleza
em todos os sentidos, principalmente da alma; Mônica, pela proatividade, espontaneidade
e alegria; Marquinho, pelo temperamento calmo e capacidade de projetar e perseguir
até o fim seus objetivos; Paulinho, ousado, irreverente, empreendedor, era, em todos

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os aspectos, inclusive fisicamente, o mais parecido com o tio; Márcia, doce e gentil; e a
caçula Bertinha, que quando conheci ainda era criança, nessa época pura energia.
Darcy admirava bastante a cunhada Jacy, tanto pela capacidade que ela tinha de
gerir com amor e perfeição todas suas atividades quanto pela dedicação à família. Ela
sempre nos recebia em Montes Claros com muita generosidade. Não esqueço a ampla
mesa coberta por variados quitutes mineiros encomendados para o lanche da tarde.

Relação com minha família

Minha mãe e Darcy eram amigos há muitos anos. A afinidade entre eles se dava
em todos os aspectos: no interesse pela política e pela cultura brasileira, na alegria nos
encontros com amigos comuns. Inesperada, para mim, foi a rápida relação amistosa que
se estabeleceu entre ele e meu pai, um homem conservador. Os dois encontraram pontos
de interesse comum, que não fosse a política. Ambos tinham adoração pelo Brasil, pela
natureza do país e por se aventurar por lugares desconhecidos. Meu pai era fazendeiro
e Darcy, da mesma forma, tinha familiaridade com esse mundo do interior do país.
Meus irmãos também tinham ótima relação com ele. Dos cinco, Guilherme foi
o que teve mais contato e recebeu influência intelectual. Quando se conheceram, não
houve uma sinergia imediata. Os cunhados tinham visões destoantes da economia e da
política, mas depois de conhecer a obra teórica de Darcy, o olhar do meu irmão começou
a mudar. Quando Darcy decidiu concorrer à eleição como Vice-Governador do Rio de
Janeiro na chapa encabeçada por Leonel Brizola, convidou Guilherme para se engajar
na campanha e, posteriormente vitorioso, para participar do projeto do CIEP.
Nick, o mais velho, adorava as histórias que Darcy contava nas reuniões familiares,
uma em particular: quando veio tratar do câncer no Brasil, Darcy consultou um dos
“papas” da especialidade médica, na época. Naquele tempo, os recursos da medicina
eram bem mais modestos e o médico foi sincero.
- Professor, só 5% dos doentes no seu estágio conseguem se recuperar.
- Tenho muita pena dos outros 95% – respondeu Darcy.
Adriana, minha irmã, e o marido Zoza Médicis, como era conhecido, também se
davam muito bem com Darcy. Essa simpatia mútua se limitava ao ambiente familiar.
Zoza, diplomata de carreira, não compartilhava a mesma linha ideológica de Darcy.
Apesar disso, sempre que estavam no Rio, visitavam-nos. Numa dessas ocasiões, fomos
almoçar no restaurante Nino, que ficava na esquina de nossa casa. Esse programa acabou
resultando em uma grande injustiça para meu cunhado. Um fofoqueiro de plantão levou
ao conhecimento de seus superiores que o então Chefe do Cerimonial do Itamaraty
estava confraternizando com um inimigo político do governo federal. De nada adiantou
a informação de que se tratava de um encontro familiar. Zoza foi afastado de sua função
e, por essa razão, impedido de receber o Papa João Paulo II, depois de ter organizado a

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viagem do pontífice ao Brasil. Elegantemente, sem cobranças, continuou a nos visitar.
Mais do que isso, passados alguns anos, quando servia em Roma, hospedou Darcy, que
tinha ido participar de um encontro de uma importante instituição cultural da Itália.
Darcy morreu como Senador da República, em Brasília, e Adriana e Zoza velaram
o amigo durante a madrugada, enquanto o Senado preparava o velório oficial.

Amigos

Embora sempre cercado por amigos, no período em que convivemos, alguns foram
mais constantes. Era o caso do antropólogo Carlos de Araújo Moreira Neto que, com
seu vozeirão, gostava de anunciar que trouxera de Minas Gerais o doce de leite talhado
feito por mãos de fada, o preferido de Darcy. Dono de grande erudição, ele e Darcy
batiam longos papos sobre o destino dos indígenas brasileiros. Era o principal leitor dos
originais de Darcy antes de serem entregues a uma editora, apontando equívocos que,
porventura, encontrasse.
No fim dos anos 70, estávamos sempre com o grupo de amigos que criou os
Debates do Teatro Casa Grande e com outros amigos que pertenciam ao Centro Brasileiro
de Estudos e Pesquisas sobre a Democracia (CEBRAD), do qual Darcy fazia parte como
Conselheiro. Mas essas relações ficaram mais distantes nas eleições de 1982. Darcy saiu
como candidato a Vice-Governador na chapa de Leonel Brizola, do Partido Democrático
Trabalhista (PDT), e a maioria daqueles amigos formava um bloco político que apoiava
Miro Teixeira, candidato do MDB. Ele compreendeu, mas por um breve período, ficou
sentido, “ficou com preguiça”, em suas palavras. Houve exceções, é certo, como Oscar
Niemeyer, Neném e Moacyr Werneck de Castro, Ana e Antônio Callado, que apoiaram
sua candidatura.
Com Brizola eleito Governador, Darcy retomou a atividade política acumulando
os cargos de Vice-Governador, Secretário de Cultura e Secretário Especial de Educação
do Rio de Janeiro. Como Darcy não dissociava o trabalho da vida privada, passamos a
frequentar novas rodas de amigos. O Jornalista Tarso de Castro e o editor Leonel Kaz
foram dos mais próximos. Rosiska e Miguel Darcy de Oliveira, Vera da Paula e Zelito Viana
e José Carlos Sussekind eram também muito queridos. Alguns entre eles eram relações
antigas, como o amigo de infância, de Montes Claros, José Prates, e a chefe de gabinete
de Darcy, Iracema Kemp, que merecia sua total confiança desde o tempo em que ele foi
Ministro da Educação, e depois Chefe da Casa Civil, no Governo de João Goulart. Entre
os políticos que víamos com mais frequência estavam Bocayuva Cunha e Waldir Pires.
Posteriormente, uma grande amizade se formou entre ele e Tatiana Chagas Memória.
Mulher de muita garra e enorme capacidade de trabalho, foi mantida como Diretora
da Central Técnica da Fundação de Artes do Rio de Janeiro, responsável pela execução
dos cenários e figurinos do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Também correspondeu

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às expectativas quanto à gestão de diversos projetos culturais e educacionais que tocou.
E, ainda, foi por sua influência e contribuição logística que Darcy construiu uma casa
para descansar nos fins de semana em Maricá, cidade litorânea a 60km do Rio, onde ela
morava. O projeto de Oscar Niemeyer evocava uma taba indígena de frente para o oceano.
Durante a vida, Darcy influenciou muitos jovens e vários se tornaram próximos
dele. Alguns se tornaram meus amigos queridos até hoje. É o caso do cearense José Mário
Pereira, atualmente editor de livros. Darcy gostava de contar que o conheceu quando o
então “projeto de intelectual”, recém-chegado de Quixadá, apareceu em seu apartamento
para pedir um autógrafo. Com quinze anos, já tinha lido toda a obra de Darcy.
A presença de José Mário em nosso apartamento era tão constante que quase
chegou ao ponto de não precisar ser anunciado pelo porteiro quando nos visitava. Muitas
vezes, nós três almoçávamos em casa ou em algum restaurante de Copacabana, quando
se juntavam amigos como Oscar Niemeyer, José Aparecido ou Gerardo de Mello Mourão.
Com uma memória prodigiosa, José Mário lembra de tantos episódios que
permitiriam a ele escrever uma biografia de Darcy (pós-exílio) com riqueza de detalhes.
Os dois conversavam por horas, trocando opiniões sobre livros e autores. Ele, também,
era o companheiro favorito nos garimpos pelos sebos do Centro da cidade.
Foi em consequência dessa afinidade que, no primeiro ano do Governo de Leonel
Brizola, ao assumir a Secretaria de Cultura, Darcy convidou José Mário, que então tinha
dezoito anos, para fazer a curadoria dos títulos que comporiam o acervo das bibliotecas
públicas do Estado do Rio de Janeiro. Havia entre os dois uma verdadeira troca intelectual,
embora divergissem ideologicamente. Talvez isso incomodasse Darcy, que gostaria de
influenciar ainda mais o amigo com suas ideias.
Passada essa experiência profissional, José Mário procurou novos rumos. Abriu
o leque de relações com intelectuais com pensamentos diferentes, e até contrários aos
de Darcy. Mas, quando era de interesse comum, fez a ponte entre eles. Foi o caso da
aproximação com o diplomata e escritor José Guilherme Merquior, graças a quem o
British Museum, de Londres, autorizou a reprodução em escala ampliada da belíssima
escultura do Benin, que resultou no monumento de Zumbi dos Palmares, localizado na
Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio de Janeiro.
Anos depois, José Mário também foi companhia em eventuais saídas para algum
barzinho na Zona Sul do Rio ou, passando por Brasília, hospedando-se no apartamento
do então Senador Darcy Ribeiro.
Outra amiga que se tornou assídua foi Márcia, filha de Cibilis Viana, antigo
companheiro de exílio e, posteriormente, de Partido e Governo. Ela foi uma das
organizadoras do grupo de apoio de mulheres do PDT na campanha de 1982. Gaúcha,
Márcia Viana se mudou para o Rio no início da década de sessenta, acompanhando os
pais. Foi quando ela, com onze anos, esteve pela primeira vez com Darcy e Bertha, a
quem fizeram uma visita para pedir sugestão de escola na qual matricular as crianças.
Dois anos depois, ela o reencontrou em Brasília, a nova Capital do País, onde Cibilis
assumiu um cargo no Governo de João Goulart.

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O golpe de Estado de 1964 obrigou Cibilis a se exilar no Uruguai enquanto Leda,
sua mulher, voltou para o Rio de Janeiro com os filhos para que pudessem continuar
estudando em uma escola brasileira. Nas férias de fim de ano, a família viajava para o
Uruguai para visitar o marido e pai. Coincidindo com a temporada, um grupo de exilados
criou um curso sobre cultura, sociologia e política brasileira voltado para os jovens das
famílias expatriadas. Darcy dava um curso sobre o processo civilizatório, tema do livro
que escrevia naquele momento. Os alunos, em sua maioria adolescentes, sentiam-se muito
à vontade na casa daquele Professor cabeludo e informal, a ponto de terem liberdade de
tocar a campainha, na volta do cinema ou teatro, e pedir para trocarem umas palavras
sobre o conteúdo cultural da experiência que tinham acabado de vivenciar. Márcia foi
testemunha da influência que Darcy teve, a partir de então, sobre o pensamento e a visão
de mundo daqueles jovens alunos brasileiros, ela inclusive.
Antes de abraçar a atividade partidária, Darcy atuava politicamente com muita
intensidade em duas de suas principais preocupações. Como antropólogo, o destino e
a preservação dos indígenas do Brasil; e, como educador, o futuro das novas gerações
do País. Esses assuntos levaram Darcy a difundir suas ideias como palestrante por todo
o Brasil e por outros países.
Em uma dessas ocasiões, uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência (SBPC), fui apresentada à jovem Lígia Costa Leite durante o jantar que se
seguiu a um dos eventos. Mais tarde, no hotel, Darcy contou que tinha enorme gratidão
e respeito por ela. Disse que foi das poucas pessoas próximas que tiveram coragem de
visitá-lo na prisão. Posteriormente, eu quis saber a versão de Lígia sobre esse fato.
Ela conheceu Darcy em 1968, quando trabalhava na Editora Paz e Terra, que
editava seus textos e de outros autores de esquerda. Ele tinha voltado do exterior certo
de que seria absolvido das acusações que o levaram ao exílio. Mas isso não aconteceu e,
dias depois de decretado o Ato Institucional n.o 5 (AI 5), foi preso no Arsenal da Marinha
nas dependências da Ilha das Cobras. Por ter sido condecorado com a Ordem do Mérito
Naval de Grão Cavalheiro, teve direito à prisão especial de Almirante, que lhe permitia
falar no telefone e receber visitas. Sozinho e ansioso, telefonava para a Editora e pedia
que fossem visitá-lo.
Acompanhada por Regina Bezerra, também funcionária da Paz e Terra, dirigiu-
se até a prisão. Inicialmente, passaram por um interrogatório, mas tudo ficou resolvido
com uma carteirada de Lígia: ela mostrou – sem necessidade – que era filha de um
Contra-Almirante; e a visita foi liberada. Ao chegar ao “camarote”, encontraram mais
duas visitas, Cleo e Ênio Silveira, então donos das Editoras Civilização Brasileira e Paz e
Terra. Depois de solto, Darcy passou na Editora para deixar um livro autografado para
Lígia e seguiu para uma nova temporada no exílio, dessa vez na Venezuela.
Uma característica de Darcy que pouca gente se dava conta é que era pouco afeito
a conversas “jogadas fora”. Estava sempre focado em assuntos de seu interesse, o que
explica porque em determinados momentos se afastava de certas rodas.

35
Andanças

Darcy viajava bastante atendendo a convites de Universidades e instituições


culturais, para dar palestras ou lançar seus livros. Os destinos mais constantes, no Brasil,
eram São Paulo, Minas Gerais e Brasília. Vez por outra, reclamava das andanças, mas
era a vida que combinava com sua personalidade irrequieta.
Em São Paulo, costumava encontrar seus colegas antropólogos. Lá, o ambiente
era mais amistoso e receptivo do que no Rio de Janeiro. Entre os amigos que mais
gostava de rever estavam a antropóloga Carmem Junqueira, os arqueólogos Marlene
Suano e Ulpiano Bezerra, a fotógrafa Maureen Bisilliat, Maria Amélia e Sérgio Buarque
de Hollanda, entre tantos.
Independentemente de compromissos profissionais, ao menos uma vez por ano,
Minas Gerais era destino obrigatório. A passagem por Belo Horizonte ou Ouro Preto era
a chance de encontrar José Aparecido, Ângelo Oswaldo, José Alberto Nemer e Carlos
Bracher. Não se esquecia de Montes Claros, onde revia suas raízes e as pessoas que mais
amava: a mãe, Dona Fininha, e o irmão Mário, com a cunhada Jacy e os oito sobrinhos.
Até a sua eleição, nem sempre eu podia acompanhá-lo. Mas, depois dela, pediu
para que eu parasse de trabalhar durante os quatro anos do mandato e viajasse com
ele ou participasse das atividades oficiais que demandavam minha presença. Algumas
viagens foram marcantes para mim.
Por três vezes fomos ao México, onde os estudantes universitários estavam mais
por dentro da obra de Darcy do que os brasileiros. Darcy tinha paixão por esse país; na
capital havia tudo que ele apreciava: história das diferentes civilizações que lá viveram,
uma riqueza cultural extraordinária externada pelo meio intelectual sofisticado e,
principalmente, os vestígios materiais dos povos astecas e maias.
Qualquer que fosse o destino, por mais trabalho que tivesse, não dispensava
o tempo para o lazer. Gostava de flanar pelas cidades, rever os amigos locais ou ir a
restaurantes saborear as especialidades do lugar, especialmente novidades. Não era guloso,
mas apreciador da boa comida e da boa bebida. Em geral comedido, bebia socialmente,
podendo se soltar eventualmente em algumas comemorações.
Em uma de nossas viagens ao México, hospedamo-nos na casa de Mercedes e
Gabriel García Márquez. Que maravilha de casal e de casa! Darcy, que não fazia cerimônia
entre os amigos, quando o almoço caprichadíssimo foi servido perguntou se não comiam
a comida típica do lugar. Darcy gostava muito de comida mexicana. Mercedes respondeu
que, de vez em quando, sim. Mas não era um hábito cotidiano, pois era uma comida mais
condimentada. De qualquer forma, como os empregados estavam acostumados com os
pratos tradicionais, sempre tinha em casa esse tipo de iguaria. Mandou servir, então, um
feijão dos deuses com os devidos complementos.
O grande amigo de Darcy no México era o filósofo Leopoldo Zea, um defensor da
unidade cultural latino-americana. Ele sustentava a existência de uma filosofia autêntica

36
do continente e Darcy simpatizava com a ideia de unir a América Latina em uma Pátria
Grande. Juntamente com suas duas Helenas, mãe e filha, era o anfitrião perfeito. Eles
nos proporcionaram passeios e encontros memoráveis, que me fizeram comungar com
Darcy a vontade de sempre retornar.
Outro destino internacional frequente, e que adorávamos, era Paris. Lá, Darcy
cultivava hábitos quase metódicos. Começava o dia com o desjejum em um café próximo
de onde estivéssemos hospedados. Só depois partia para seus compromissos profissionais.
Quando estava dando os últimos retoques em seu romance “O Mulo”, passamos um mês
em um apartamento que Oscar Niemeyer alugava no Boulevard Raspail. De manhã, ele
mergulhava no trabalho enquanto eu ia para a Aliança Francesa. Interrompia para o
almoço, quando nos encontrávamos, e a sesta, retomando em seguida. Nesse apartamento,
passamos o réveillon com um casal adorável. Linette, de origem peruana, era bibliotecária
sênior da Unesco. O marido, Marcel d’Ans, de origem francesa, era antropólogo e
Professor da Sorbonne, a Universidade mais tradicional da França. Queridíssimos, foram
merecedores de nosso capricho em escolher os ingredientes para a ceia.
Duas amigas com quem nos encontrávamos sempre que estávamos em Paris eram
Alice Raillard, tradutora dos livros dele, e Ugnés Carvellis, responsável pelo departamento
de literatura latino-americana na Editora Gallimard. Através delas, tínhamos contato com
outros intelectuais latino-americanos que, porventura, estivessem na cidade no mesmo
momento e com amigos comuns, como Zélia Gaitai e Jorge Amado.
Um dos momentos mais emocionantes que vivemos lá foi quando Darcy ganhou o
título de Dr. Honoris Causa da Sorbonne. Vários intelectuais de diferentes países estavam
presentes. Entre os franceses, os antropólogos e Professores daquela instituição Claude
Levi-Strauss, Robert Jaulin e Marcel d’Ans. Entre os brasileiros, o sociólogo Fernando
Henrique Cardoso. Nessa ocasião, fui apresentada à mineira de Rio Branco, Gisele Rocha
Silva Catel, que teve seu percurso profissional como curadora de exposições influenciado
por Darcy. Ela e seu marido, o museógrafo francês Pierre Catel, realizaram vários projetos
de museus e exposições temáticas em países da Europa e no Brasil, incluindo colaborações
com Darcy. No dia seguinte ao evento da Sorbonne, Darcy recebeu no quarto do hotel um
lindo buquê de flores. Vinha acompanhado por um bilhete da Diretora do Departamento
de Língua Inglesa da Universidade. Dizia que o discurso proferido por ele foi dos mais
belos que ouviu na vida.
Mas a vida de Darcy em Paris não se resumia ao trabalho. Perambulava pelas ruas
com prazer, visitando os mercados, especialmente o de flores, às margens do Sena, pelo
qual tinha um apreço particular. Gostava de se sentar em algum café na Rive Gauche
para, simplesmente, acompanhar as pessoas passando. Embora não fosse consumista,
aproveitava a estada naquela cidade para encomendar um novo par de óculos e comprar
alguma roupa – blazer ou jaqueta – que achasse bonita e conveniente para ser usada
no Brasil. Generoso, nesses momentos sempre me presenteava com algo bom e bonito.

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Afetos e desafetos

Darcy não fazia segredo de que era um homem vaidoso. Dizia, sem rodeios, que
se achava inteligente, que apreciava elogios como bombons e que os modestos deviam
ter razão. Certamente, havia quem o considerasse arrogante, mas eu não o via assim.
Reconheço que era audacioso, atrevido e até desaforado com seus desafetos. Características,
aliás, que exercia com humor e, muitas vezes, com grande charme. Porém, na maior parte
do tempo, era um ser amoroso e amigável – gostava de ser querido, fazia questão de
retribuir. Não à toa sua fama de sedutor. No entanto, a reputação de Dom Juan – que por
sinal ele adorava – desmerece sua verdadeira natureza. Capaz de viver com profundidade
as verdadeiras relações de amor, reveladas em seu livro “Confissões”, foi um companheiro
extraordinário e um amigo de todas as horas, com quem sempre pude contar.
Penso que poderíamos ter continuado juntos se não fosse sua dedicação à política,
um meio que não me interessava. Uma coisa era estar no mundo da cultura junto a
amigos inteligentes e criativos. O oposto era o ambiente político-partidário, com gente
desinteressante e bajuladora que cercava o candidato vinte e quatro horas por dia e
invadia nossa privacidade. Darcy não se incomodava, mas eu achava insuportável.
Convivendo com ele por mais de uma década, testemunhei suas qualidades e
defeitos. Digo, com tranquilidade, que as qualidades superavam largamente os defeitos.
Quando percebi que nossos projetos estavam se distanciando, avisei que ia retomar
minhas atividades profissionais. Entre o sério e o cômico, ele perguntou o que eu faria
de mais interessante do que pegar carona na vida dele. Na época fiquei furiosa, mas
hoje acho graça e recordo com ternura e gratidão a carona de tantos anos na boleia de
um Fórmula 1.

38
PARA LEMBRAR DARCY RIBEIRO

Gisele Jacon de Araújo Moreira

Em 1991, há trinta e poucos anos, Darcy Ribeiro assumiu seu mandato de Senador
da República pelo Rio de Janeiro. Entre tantos papéis importantes que ele desempenhou
ao longo da vida como antropólogo, educador, escritor e intelectual, aquele que talvez
mais nos honre e dignifique enquanto povo foi o de sua atuação política.
Um político comprometido com o Brasil que pode dar certo, dedicado a destacar
qualidades essenciais de um povo novo, um povo em ser, qualidades obliteradas por
discursos alienados sobre a nossa Constituição, que deixam marcas tão negativas das
gentes que somos, que nos fazem desacreditar repetidas vezes sobre um futuro melhor,
mais generoso, mais feliz.
Nesse momento de grave crise política e humanitária, ao lembrar Darcy Ribeiro, é
essa face engajada que mais sobressai na memória. Sem esmorecer, ele buscou enaltecer
o melhor futuro possível da nação, mesmo nos momentos mais difíceis de seu retorno
do exílio e da reconstrução democrática no País.
Nos anos de chumbo da ditadura, os bordões nacionalistas haviam sido usurpados
pelos militares com campanhas ufanistas de patriotismo exagerado. Nós, os estudantes
de esquerda e opositores da ditadura, sentíamos que a Pátria nos traíra, não era amada,
não iria para a frente, melhor deixá-la. A saída era o aeroporto. Foi difícil comemorar
os gols do time brasileiro na copa de 1970. Estávamos embrutecidos, tristes, o futuro
era cinza e feio.
Não para Darcy. Era para cá que ele queria voltar, que teimava em regressar apesar
dos inúmeros avisos do risco que corria como ex-Ministro-Chefe do Gabinete Civil do
Governo João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964. Voltou mesmo assim e duas
outras vezes foi compelido a partir novamente para o exílio. A primeira vez, em outubro
de 1968, quando os processos contra ele haviam sido anulados no Supremo Tribunal
Federal. Com o advento do Ato Institucional n.o 5 em dezembro daquele mesmo ano, foi
preso e indiciado sob a acusação de infringir a Lei de Segurança Nacional. Ficou detido
até setembro de 1969, quando foi julgado e absolvido por Auditoria da Marinha, mas
coagido a partir para o segundo exílio.
A pretexto de tratar um câncer pulmonar, Darcy voltou de novo em 1974. Ficou
seis meses por aqui, recuperando-se da retirada de um pulmão. Mais uma vez partiu,
agora no terceiro exílio. Regressou, definitivamente, em 1976, antes da Lei da Anistia,
promulgada em 1979, e foi ficando, feliz por pisar nas areias de Copacabana novamente,
como mostra uma conhecida foto dele, um registro da parada que fez no caminho entre

39
o aeroporto e sua casa, sorridente, descalço na praia, com os braços abertos, olhando
para o mar.
Foi com a volta de tantos exilados que recuperamos nossa memória histórica
e política. Mas foi Darcy Ribeiro, em particular, que se dedicou, com afinco, a nos
reeducar enquanto povo, resgatar nossos heróis fundadores, reler nossa fundação com
brio desbravador e colorir a formação mestiça do povo brasileiro com matrizes étnicas
indígenas e africanas. Registrou em livros e ensaios sua teoria de formação do Brasil.
E nos devolveu símbolos maiores. Com ele, pudemos recuperar Tiradentes como nosso
herói libertário; louvar o Marechal Rondon, protetor dos indígenas e herói pacifista;
requalificar Gilberto Freire como intelectual e intérprete do Brasil; admirar o estadista
Getúlio Vargas e as qualidades de políticos que sabiam ler gente, como João Goulart e
Leonel Brizola. E nos orgulhar de outros tantos personagens louváveis de nossa história.
Darcy conferiu um sentido ao Brasil, para que pudéssemos nos reerguer soberanos
enquanto nação autônoma e sem peias autoritárias no caminho da redemocratização. Era
admirador de nossas melhores qualidades, do potencial criativo e das belezas da Nação.
Era, também, um indignado com a mediocridade das elites usurpadoras e traidoras,
vendidas a interesses externos.
Deixou marcas importantes na educação e na cultura nacionais. Criou os Centros
Integrados de Educação Pública, os CIEP’s, no Rio de Janeiro, escolas de tempo integral
para que nossas crianças pudessem se elevar ao patamar civilizatório do mundo letrado.
Dedicou-se a fazimentos memoráveis na salvaguarda do patrimônio histórico, cultural
e natural brasileiro. Como Secretário de Ciência e Cultura do Estado do Rio de Janeiro,
criou monumentos à brasilidade, deu cara a Zumbi dos Palmares na Av. Presidente Vargas,
projetou a passarela do Samba com a Praça da Apoteose no Rio de Janeiro. Plantou um
Memorial da América Latina em São Paulo, com a beleza dos traços de Niemeyer. Tantos
belos e incontáveis fazimentos marcaram a passagem de Darcy na nossa história.
Sua trajetória política o levou ao Senado Federal, onde encontrou o palco maior
para suas falas sobre as causas de nosso atraso, denunciando a hegemonia de velhas
oligarquias neoliberais, infecundas e espoliadoras, e destacando as potencialidades da
Nação na construção de um futuro mais decente para a maioria do povo brasileiro. Ele
gostava muito de ser Senador porque podia se dedicar, afinal, a fazer o que sempre
havia feito como intelectual: estudar e pensar os problemas do Brasil, ao mesmo tempo
em que exercia seus princípios éticos e políticos. Suas falas e escritos indignados eram
dirigidos, muitas vezes, aos jovens, buscando resgatar toda uma geração que fora alienada
e despolitizada pela ditadura militar.
Foi nessa época que iniciei minha experiência de trabalho com ele, assessorando-o
na organização e elaboração de textos, ensaios e livros que produziu entre 1991 e sua
morte, em fevereiro de 1997.
Aqueles foram anos muito frutíferos para Darcy Ribeiro na elaboração e publicação
de livros. Concluiu seis obras volumosas. Por ordem de publicação:

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• A fundação do Brasil: testemunhos 1500-1700 (em coautoria com Carlos de Araújo
Moreira Neto, 1992), um livro composto pela seleção, organização e transcrição
de testemunhos e documentos históricos sobre o Brasil;
• O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995), um ensaio antropológico
que conclui a série de Estudos de Antropologia da Civilização, um conjunto de
cinco volumes iniciados por Darcy durante o exílio, na década de 1960;
• O Brasil como problema (1995) reúne vários textos inéditos, debatendo temas de
interesse nacional com a verve de indignação e militância política de esquerda
do autor;
• Noções de Coisas (1995), voltado para o público infantojuvenil, este livro é composto
por ensaios curiosos com ilustrações de Ziraldo;
• Diários Índios: os Urubus-Kaapor (1996) compreende os diários de campo do
etnólogo, escritos durante duas expedições às aldeias daqueles índios, localizados
na fronteira entre o Pará e o Maranhão, durante os anos de 1949 e 1951;
• e finalmente o livro autobiográfico Confissões (1997), concluído no início de 1997
e publicado postumamente.

Trabalhei, intensamente, na edição de A fundação do Brasil durante boa parte


do ano de 1991 ao lado do etno-historiador Carlos Moreira Neto. Foi ele o responsável
pela pesquisa, localização e seleção de trechos dos documentos e relatos de época,
compreendendo os séculos XVI e XVII, preparando, também, textos introdutórios, que
permitem ambientar o leitor com as narrativas e o autor de cada testemunho selecionado,
incluindo preciosas referências bibliográficas. O livro foi elaborado a pedido da prestigiosa
Biblioteca Ayacucho, da Venezuela, para comemorar os quinhentos anos da chegada dos
europeus às Américas. Preparamos duas versões, sendo uma em Espanhol e outra em
Português. A estrutura do livro equivale à interpretação de Darcy Ribeiro sobre as forças
coloniais que resultaram na formação do Brasil. A cada testemunho editado, eu levava
os originais para Darcy ler e rever o esquema geral.
Já no início de 1992, Darcy me chamou e ditou, em uma semana, tendo como base
um resumo sistematizado que eu deixara com ele, o ensaio inicial do livro, intitulado
A invenção do Brasil. Fiquei encantada com a agilidade intelectual daquele homem,
alcançando explicar com precisão de linguagem, ao mesmo tempo acessível para qualquer
leitor leigo, sua interpretação sobre período histórico tão longo e testemunhos tão diversos.
E o texto era uma beleza!
Para concluir a edição, ele me incumbiu de preparar uma cronologia dos principais
eventos e bibliografia histórica daqueles dois séculos, ano a ano, em sincronia com marcos
históricos mundiais em paralelo. Um “Sincronótico”, assim nomeado por ele. Sempre sob
sua orientação, que acompanhava pari passu todo o trabalho. Mas ele ainda não estava
satisfeito e me fez diagramar o livro tal como gostaria que fosse publicado, em formato
quadrado, com duas colunas de texto, as ilustrações na abertura de cada um dos seis

41
capítulos, definindo a tipologia, distinguindo o texto da vasta documentação de época
com mudança no tamanho da fonte, e outros detalhes mais.
Assim era Darcy Ribeiro. Sabia o que queria e queria sempre mais e com mais
beleza, concentrado em seus propósitos. Exigia sempre a mesma dedicação de todos que
trabalhavam com ele. Acho que aprendi mais naqueles dois anos iniciais trabalhando
com ele do que em toda a minha vida acadêmica anterior.
Em dedicatória no exemplar que me coube quando da publicação daquele livro
no Brasil, ele afagou carinhoso o meu ego. Poderia ser a minha própria retribuição, num
reverso perfeito dirigido a ele:

Gisele
- querida, gosto cada vez mais de trabalhar com você
- também gosto demais de você mesma como a bela gente que você é
- ainda vamos fazer muitos livros mais belos que este
Darcy
Rio, dez. 92

Outro livro dele em que trabalhei muito, demais, foi na versão final de O povo
brasileiro, publicado em 1995. Em dezembro do ano anterior, Darcy fora internado às
pressas numa manhã ao se sentir mal e desfalecer devido a uma pneumonia, resultado
do tratamento de um novo câncer que o assolava. Lembro que fui vê-lo logo em seguida
no hospital Samaritano e ele, exausto, tentando falar, foi carregado pelos enfermeiros
para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Quando o levantaram da cama, toda sua
cabeleira, vasta, ficou no travesseiro. Suas ordens, em poucas palavras, eram:
• uma, entregar a Cláudia Zarvos os originais de O Brasil como problema, obra que
estava pronta, para que ela preparasse a capa e entregasse à Editora;
• duas, digitar todos os originais da versão inicial de O povo brasileiro, que fora
datilografada quando ele ainda estava no exílio no Peru, no início da década de
1970.

Darcy quase morreu naquele momento. Os médicos o salvaram. Mas era rebelde e,
assim, que melhorou, saiu da UTI e foi para sua casa de praia em Maricá. Já tinha tudo
planejado em sua cabeça. Queria se isolar para terminar seu livro, aquele que coroava
uma série de estudos que lhe custara anos de trabalho e esforço acadêmico e que fora
o objetivo inicial de todo aquela coleção de cinco livros, que o levara a uma digressão
teórica aos dez mil anos de história da civilização e quinhentos anos de história das
Américas, para construir uma tipologia explicativa do desenvolvimento desigual dos
povos americanos.
Ele estava ansioso por concluir aquele livro, inacabado e abandonado quando
descobriu seu primeiro câncer, em 1974. Agora, recuperando-se de um novo câncer,

42
dedicou-se a coroar seus Estudos de Antropologia da Civilização com o livro final, aquele
que nos explica como povo novo, um povo em ser, que ainda seremos.
Foi lá, em Maricá, no litoral do Rio de Janeiro, que passei semanas de janeiro e
fevereiro de 1995 com ele, dedicado, exclusivamente, à tarefa de terminar aquele livro.
Ele só tinha tempo para isso. Não se distraía com nada mais, economizando as energias
para concluir o livro. No fim de fevereiro, o livro estava finalizado, pronto para a Editora.
Era um homem muito disciplinado para a tarefa intelectual. Trabalhava quase
sempre em casa, onde mantinha sua biblioteca, arquivos pessoais e um escritório. Levamos
o necessário para Maricá: um computador, as caixas de arquivos com manuscritos anteriores
do livro e disquetes com os arquivos digitados. De segunda a sexta, trabalhávamos toda
a manhã e, depois da sesta, até o anoitecer. À noite, ele lia um pouco, jogávamos cartas
às vezes. Recebia amigos feliz, brincalhão, mas, brevemente, não queria dispersar.
Sabia que ele estava consciente do câncer terminal e que sentia incômodos e exaustão,
mas nunca o ouvi reclamar de dores ou da vida. Solitário e reflexivo, gostava de estar
concentrado no trabalho.
O povo brasileiro foi publicado em abril e o lançamento no Rio de Janeiro aconteceu
em maio daquele ano de 1995, junto com o livro O Brasil como problema. Mais uma
vez, Darcy não perdeu a oportunidade de demonstrar seu propósito político com aquela
publicação e, no prefácio, escreveu uma advertência sobre o livro, que

além de um texto antropológico explicativo, é, e quer ser, um gesto meu na nova


luta por um Brasil decente. [...] não se iluda comigo, leitor. [...] Faço política e
faço ciência movido por razões éticas e por um fundo patriotismo. Não procure,
aqui, análises isentas. Este é um livro que quer ser participante, que aspira influir
sobre as pessoas, que aspira ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo.

Tanto precisamos nos encontrar que esse é o livro mais lido e recomendado de
Darcy Ribeiro. Deveria ser indicado a todos os jovens do Brasil, antes que comecem a
vida profissional de fato.
Conforme o tempo passava, depois que esteve internado na UTI no Rio de Janeiro,
Darcy Ribeiro ficava mais ansioso e queria realizar mais coisas. A última, no fim de 1996,
era dar início a uma antiga pretensão sua: o Projeto Caboclo, um projeto alternativo de
assentamento de comunidades caboclas na Amazônia.
Em janeiro de 1997, ele me incumbira de resgatar em seus arquivos o texto daquele
antigo projeto e digitá-lo com algumas alterações e atualizações. Uma delas era a de que
sua gestão se daria na Fundação que ele criara um ano antes, e na qual me atribuíra a
função de Secretária-Executiva.
Em seguida, já quase no fim daquele mês, ele iniciou o planejamento de um
“Simpósio da Amazônia”, onde apresentaria o Projeto, e que se realizaria em Brasília
no dia 17 de fevereiro, graças a um patrocínio inicial da Petrobras. Participariam quinze
especialistas em Amazônia para que formulassem, cada um em sua área – agronomia,

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biotecnologia, antropologia, ecologia –, subprogramas para as comunidades caboclas.
Enviamos cartas-convite para todos eles – cada um de diferentes partes do Brasil: Belém,
Piracicaba, Rio Branco, São Gabriel da Cachoeira, São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro – e
providenciamos passagens e estada em Brasília.
Na carta-convite, Darcy se referia ao Projeto Caboclo como se fosse do conhecimento
de todos – e não era. Comecei a receber telefonemas de várias dessas pessoas perguntando
sobre do que se tratava, o que se esperava deles. Eu acreditava que – como vinha
economizando saliva e sempre tinha tudo na cabeça – na hora certa ele explicaria tudo,
colocaria as ideias em seus devidos lugares, coerentemente, e explicaria o que cada um
podia fazer de forma integrada com o que os outros estariam fazendo. Tudo se esclareceria
quando Darcy Ribeiro apresentasse o projeto no dia 17, durante o Simpósio. Ele tinha
essa capacidade de juntar gente e de fazê-las acreditar no impossível até que todos
vislumbrássemos o caminho possível.
Mas quando cheguei em Brasília no dia 16, um domingo, Darcy ainda estava no
hospital, onde se internara na semana anterior sob o pretexto de receber plasma e ficar
mais forte para atender aquela programação. Ao visitá-lo, percebi logo que não poderia
participar da reunião no dia seguinte. Mal conseguia falar e, com o olhar aceso, ansiava
por notícias dos preparativos. De volta ao hotel, reuni-me com outros participantes do
Simpósio, entre eles Carlos Moreira Neto, para organizar os trabalhos do dia seguinte.
Sabíamos que Darcy pretendia estar presente – se conseguisse – mas não se
sabia a que horas ou por quanto tempo. Combinamos que Carlos coordenaria a mesa
de trabalhos e tinha a incumbência de nomear o Professor Warwick Kerr – engenheiro
agrônomo, biólogo e geneticista, cientista reconhecido mundialmente, que organizara
o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o INPA –, como Presidente da Comissão
Científica que se formaria a partir da reunião daqueles especialistas para pensar e
formatar o projeto. O objetivo era criar um plano alternativo de ocupação da Amazônia,
utilizando a experiência histórica dos povos da floresta e as novas possibilidades que
a biotecnologia abria para a região, unindo de forma sustentável diferentes formas de
exploração econômica, a pesca, o extrativismo, a caça e a agricultura.
No decorrer do dia, cada um dos participantes falou sobre sua experiência na
Amazônia e como poderia contribuir com o projeto. À tarde, procurou-se estabelecer
etapas e a continuidade dos trabalhos. Acordou-se que o próximo passo seria escolher
uma comunidade e o local de implantação de uma experiência-piloto e que esse seria o
objetivo de um segundo simpósio, a se realizar em Belém do Pará. Este era, também, o
propósito de Darcy Ribeiro, iniciar em uma área de fácil acesso e próxima de um centro
urbano que oferecesse mercado para os produtos dos programas econômicos alternativos
que se pretendia gerar na comunidade.
Encerramos o simpósio no fim da tarde, sem que Darcy comparecesse. Enquanto nos
despedíamos no lobby do hotel onde se realizara a reunião, um noticiário extraordinário
interrompeu a programação da televisão para anunciar sua morte.

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Nos anos seguintes, a Fundação Darcy Ribeiro deu continuidade a outros tantos
de seus projetos. Durante a gestão de Paulo Ribeiro, fez construir o Memorial Darcy
Ribeiro no campus da Universidade de Brasília com projeto do arquiteto João Filgueiras
Lima. Uma belíssima construção, conforme idealizado por Darcy, que guarda todo o seu
acervo documental e bibliográfico. Para o Projeto Caboclo, no entanto, não se encontrou
viabilidade ainda.
As lembranças da convivência cotidiana foram ficando borradas e a memória dos
fatos um pouco obliterada com o passar dos anos. Apesar de algumas dúvidas sobre
a realidade dos acontecimentos de então, as marcas que aquela convivência trouxe
ao espírito dos que conviveram e trabalharam com ele não se apagam, estão tatuadas
no inconsciente, e afloram, às vezes, com maior nitidez. Aprendemos a ler a realidade
nacional com mais lucidez e propósito de ação.
Guardo até hoje a sensação de que Darcy continua nos olhando, como quando o
vi pela última vez no hospital naquele fevereiro de 1997, cobrando que façamos mais e
mais pelo Brasil.

Havemos de florescer como a mais bela nação!


Não sou bom no sentido cristão, de bondade caridosa. Essa de contentar-se em dar
uma escolinha boa ou uma sopa para os famintos. Odeio essa postura dadivosa,
que só serve para consolar os culpados da ignorância e da pobreza generalizadas.
Quero é fartura para todos comerem, para crescerem sadios e manterem seus corpos.
Quero é boas escolas, para a criançada toda, custe o que custar, porque não há
nada mais caro que o suceder de gerações marginalizadas pela ignorância. Quero
é lotear essa metade do Brasil possuída pelos fazendeirões que nunca plantaram,
nem pretendem plantar, para entregá-la em milhões de fazendinhas familiares
à gente que se estiola desempregada e decaída na pobreza e na criminalidade.
Encanta-me sonhar com o que seria a Amazônia, com a mata devolvida aos
caboclos, que são o povo da floresta, para ali se assentarem tão sabiamente como os
franceses se assentam na França para produzir queijo de cabra e vinho (RIBEIRO,
Darcy. Confissões. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. p. 525-526).

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DARCY RIBEIRO 100 ANOS DEPOIS: UMA JUSTA
HOMENAGEM1

André Borges de Mattos

A melhor maneira de homenagear um grande autor é mantê-lo vivo na memória


coletiva. Se assim for, como homenagear Darcy Ribeiro, ele mesmo um grande memorialista?
A meu ver, com um duplo movimento. Primeiro, lembrando o que o já foi dito, para,
logo em seguida, esquecer. Ou, pelo menos, deixar, temporariamente, de lado. Para ser
bem direto: neste momento em que todos devemos celebrar os cem anos de nascimento
de Darcy, um dos maiores pensadores do Brasil, precisamos ajustar o foco e colocar as
lentes sobre as lacunas, sobre os aspectos menos conhecidos de sua obra, ou sobre suas
obras menos conhecidas. Só assim conseguiremos celebrar toda a riqueza e atualidade
de seu pensamento.
Quem conhece a história sabe bem: Darcy Ribeiro foi homem de muitos talentos.
E foi também bom de briga. Um “iracundo”, dizia, sempre pronto para enfrentar de peito
aberto o desafio de livrar o Brasil do atraso e de uma elite mesquinha e predadora que,
ao longo de séculos de exploração colonial, nada fez – e nada faz – a não ser garantir
sua posição de privilégio em uma das sociedades mais desiguais do mundo.
Talvez seja esse o encanto de Darcy Ribeiro: um intelectual apaixonado pelo
Brasil, que dominava como poucos a arte de se comunicar com o grande público, sem
se deixar levar pelo brilho fácil do pensamento raso. Não sei dizer o quanto já se leu e
ainda se lê de sua obra, mas sempre me surpreendeu o fato de Darcy conseguir fazer do
trabalho intelectual um ofício sem compromisso com a frieza do saber acadêmico, cujos
parâmetros – é preciso reconhecer – continuam tornando-o pouco convidativos para
pessoas não iniciadas nos ritos universitários. Existem, claro, intelectuais igualmente
conhecidos. Porém, muito mais por sua condição de figuras públicas, não por suas ideias.
Pode-se conhecer Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, mas quantos conseguiriam

1
Neste texto, retomo, de forma ampliada, algumas discussões realizadas em minha Tese de Doutorado
sobre a trajetória de Darcy Ribeiro (Cf. MATTOS, 2007). Passados quase quinze anos de sua conclusão,
procurei, na medida do possível, repensá-las e não apenas reproduzi-las. Reconheço, porém, que o cenário
atual de pesquisas sobre o autor é muito mais amplo, conforme mencionado adiante, o que, se, em certo
sentido, representa um avanço mais que desejável – embora tardio – do interesse por Darcy Ribeiro e sua
obra, por outro sentido pode impor limites às questões apresentadas aqui. De todo modo, tenho a espe-
rança de que o texto possa, ao menos, suscitar novas indagações em seus eventuais leitores. Minha dívida
de gratidão com todas as pessoas e instituições que contribuíram para a realização de minha pesquisa
está registrada, na Tese, em meus agradecimentos. Para este texto, agradeço especialmente a Ana Paula
Hemmi a leitura da primeira versão.

49
mencionar o tema mais recorrente na obra desse que é um dos mais importantes sociólogos
de sua geração?
Com Darcy é diferente. Ele soube se fazer presente de várias maneiras. Para olhos
mais atentos, é impossível não notar seus feitos e projetos, grandiosos na forma e no estilo,
como atestam a Universidade de Brasília, o sambódromo e os CIEP’s no Rio de Janeiro,
só para citar alguns dos mais notórios. Mas o que dizer, então, da capilaridade de suas
ideias, tão bem representada pela notoriedade do livro O Povo Brasileiro, um best seller
entre os livros acadêmicos? Não vejo melhor exemplo do lugar ocupado pelo pensamento
de Darcy em nossa memória. Na nossa e na do próprio autor, que fez questão de envolver
essa última obra com uma aura especial. A começar pela história quase lendária de sua
“fuga” da UTI do hospital, onde se encontrava gravemente enfermo, para sua casa em
Maricá, a fim de terminar o que se transformou em sua “maior obsessão intelectual”
(RIBEIRO, 1997, p. 538).2
O livro tem mesmo muitos encantos. O tom é um deles. Seu texto, semelhante na
forma a tantos outros, faz lembrar a grande tradição de ensaístas que marcou o período
de consolidação do pensamento social no Brasil, no início do século XX. Deles, Darcy foi
um leitor obstinado e autodeclarado herdeiro3. Por isso, sabia o valor de uma linguagem
direta, sem verborragia e com certo pendor literário, ao mesmo tempo, carregada de
profundidade. Não é difícil se sentir seduzido pelo chamado de O Povo Brasileiro. Afinal,
as palavras foram colocadas ali para convencer, como pano de fundo de uma estratégia de
conquista ideológica, conforme adverte o autor logo no prefácio, quando fala das “razões
éticas” e do “fundo de patriotismo” que permearam sua prática política e científica, nada
neutra (RIBEIRO, 1995, p. 17).
Além do mais, O Povo Brasileiro fala de nós mesmos, de um Brasil dos brasileiros
e para os brasileiros. É a tradução da maneira como nos vemos, sempre às voltas com o
tema da “mestiçagem”, marca indelével do imaginário nacional. Darcy, portanto, estava
certíssimo ao dizer que o livro “aspira a ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo”
(RIBEIRO, 1995, p. 17), principalmente quando o assunto é o dilema de nossa identidade
forjada a partir da mistura.
O assunto é antigo e mobilizou boa parte da produção do autor. Já nos textos
produzidos a partir do final dos anos de 1960, que mais tarde dariam forma aos seus
Estudos de Antropologia da Civilização, a questão foi colocada no centro da discussão sobre
as populações formadoras do Brasil, espinha dorsal de sua teoria sobre a configuração
dos povos americanos. Darcy não fala de raças, pelo menos, não no sentido biologizante
que aparece na obra de alguns de seus predecessores. Recoloca o dilema da mistura em
outros termos, de forma mais sutil e sofisticada, particularmente em O Povo Brasileiro,
com a teoria das “matrizes étnicas” formadoras do Brasil.

2
Sobre esse e outros episódios da vida de Darcy Ribeiro, vale conferir o belo relato de Gisele Jacon de
Araújo Moreira (2017), na época, sua assistente.
3
Abordei, sucintamente, esta e outas questões apontadas neste capítulo em minha apresentação a uma
edição recente do livro América Latina: a Pátria Grande (MATTOS, 2017).

50
Estamos falando de um entusiasta de um país mestiço. Certo ou errado, a mestiçagem
representava para ele, a negação, ou pelo menos a possibilidade de negação dos valores
arcaicos da velha Europa lançados sobre a sociedade colonial em seu nascedouro. Mas
não sem sofrer em seguida um processo de destruição simbólica que teria resultado em
um tipo de “tábula rasa” de nossa formação social. Darcy explica esse processo com a
imagem, às vezes, mal compreendida, da “ninguendade”. Ser “ninguém” refere-se antes
a uma “carência essencial” (RIBEIRO, 1995, p. 131), isto é, à descaracterização dos
grupos originais formadores da sociedade brasileira, em decorrência da mistura. Assim,
não sendo indígenas, europeus e africanos, tornamo-nos detentores de uma identidade
transcendente: a de brasileiros. Ou, melhor ainda, parte de uma “etnia brasileira”, cuja
essência seria, paradoxalmente, a negação da própria mestiçagem em sua condição de
produtora de diversidade, isto é, “mulatos (negros com brancos), caboclos (brancos
com índios), ou caribocas (negros com índios).” (RIBEIRO, 1995, p. 133). Dessa massa
formada por elementos diferenciados, tornamo-nos, enfim, “[...] uma gente só, que se
reconhece como igual e, alguma coisa tão substancial que anula suas diferenças e os
opõe a todas as outras gentes.” (RIBEIRO, 1995, p. 133). A mestiçagem, para Darcy, era,
portanto, um valor positivo, que se abria para a realização de um “povo novo”, voltado
para o futuro porque sem as amarras da tradição e o peso do passado.
Porém, não se deve concluir que Darcy Ribeiro tenha atualizado uma visão
romantizada da convivência entre as raças. Como se lê no próprio O Povo Brasileiro, mas
não apenas nele, o caldo de cultura resultante da relação entre portugueses, de um lado,
e indígenas e africanos de outro, foi construído em meio à brutalidade dos colonizadores
e seu “moinho de gastar gente”, tradução da famigerada “empresa escravista, fundada na
apropriação de seres humanos através da violência mais crua e da coerção permanente,
exercida através dos castigos mais atrozes, [que] atua como uma mó desumanizadora e
deculturadora de eficácia incomparável.” (RIBEIRO, 1995, p. 118).
Mas aqui a questão é outra. Cito brevemente O Povo Brasileiro não para presti-
giá-lo, embora muito menos para desmerecê-lo. Só o faço porque me parece uma boa
oportunidade para colocar em prática o exercício que estou propondo: esquecer o já
sabido. Portanto, reafirmo o lugar privilegiado do livro no imaginário de muitos leitores
para colocá-lo em suspenso, redirecionar o foco e ir além, pois, repito, Darcy tem mais
a nos dizer. Só precisamos saber ouvir. Com um detalhe, não mencionado no início: a
tarefa será mais fácil se tivermos cuidado e distanciamento. Nesse caso, de nosso autor. É
uma mensagem para novos pesquisadores e estudantes: para entender Darcy, precisamos
nos afastar dele, desenredar-nos de sua imagem e de seu personagem, para nos manter
a uma distância segura. Nem que seja por rigor metodológico.
Explico. Entre os muitos talentos de Darcy Ribeiro, é, curiosamente, sua criatividade
para narrar a própria história aquela que menos atenção despertou em pesquisadores
e admiradores. “Criatividade”, é bom lembrar, não é palavra depreciativa e aqui está
sendo usada apenas para assinalar a força criativa do gênio de Darcy e seu talento raro
para construir a própria memória e contar a própria história. Tanto que sua história –

51
escrita por ele – tornou-se a história que, uma vez apropriada pelo senso comum, logo
se converteu em uma história “oficial”, sempre evocada junto a temas mais ou menos
obrigatórios. Além do mais, convenhamos, Darcy Ribeiro foi um autodeclarado sujeito
carente de “louvações”, recebidas aos montes, e não é muito difícil sucumbirmos à
tentação de exaltar ainda mais seus muitos encantos. Por isso, temos que ser cuidadosos
ao caminhar no campo minado e apaixonado das representações sobre esse intrigante
personagem4.
Esse dilema, que senti na pele junto à dificuldade de me desvencilhar da rede de
narrativas que envolve esse grande autor, foi o ponto de partida de minha pesquisa de
doutorado (MATTOS, 2007). Municiado de uma extensa bibliografia sobre o “método
biográfico”, presumi que, para entender o mundo de Darcy, seria necessário partir da
desconstrução de seu personagem, ou melhor, da imagem que foi popularizada em seus
escritos autobiográficos e nas inúmeras entrevistas que ele concedeu falando da própria
vida.
Comecei, assim, por questionar a poderosa escrita de Confissões, livro que ainda
hoje permanece como uma das principais fontes de informação sobre a obra e a vida do
autor. Não por duvidar do conteúdo do livro, apenas para lhe dar a devida complexidade,
situando-o no jogo de memória e esquecimento que, inevitavelmente, permeiam as
narrativas biográficas.5
No fundo, vejam bem, nunca propus nada além de um exercício de crítica social,
particularmente de crítica antropológica, afinado com o propósito de desafiar, sempre, as
verdades estabelecidas e o senso comum, mesmo o acadêmico. Algo, aliás, que aprendi
com o próprio Darcy, o que, na prática, significa colocar no horizonte outras possibilidades
interpretativas e, no que se refere à sua obra, começar por lugares menos comuns.
Existem inúmeras frentes de pesquisa a serem exploradas, como demonstra,
felizmente, um número crescente de estudos sobre Darcy em diversas áreas de conhecimento.
Um cenário muito diferente de dez ou vinte anos atrás, quando era, consideravelmente,
menor o interesse acadêmico pelo tema. Por isso, reconheço que não tenho condições
de avaliar o estado da arte das produções sobre sua vida e obra. Mesmo assim, sempre
haverá algo a ser dito, sobretudo se deixarmos de lado ideias pouco originais, muitas
delas representativas antes da própria visão de mundo de Darcy, e partirmos para outras
frentes de reflexão.
Entre essas ideias, talvez a mais conhecida seja a imagem do intelectual camaleônico,
recorrentemente exaltada como um tipo de marca diferenciada da biografia de nosso
autor. Não me parece muito atraente rediscutir, ao todo ou em partes, as feições que
compõem a imagem mais conhecida de Darcy, aquela do homem de muitas “peles”, isto
é, um antropólogo, um literato, um educador, um intelectual e um político antes e acima
de tudo. São temas legítimos e relevantes, não há dúvida, porém, nem sempre pertinentes
para a compreensão das nuances de seu pensamento. Mas, pode-se argumentar, ele

4
O mesmo tipo de alerta se encontra nas páginas iniciais do excelente trabalho de Bomeny (2001).
5
Para um belo resumo de algumas das questões centrais nesse debate, ver Kofes (2001).

52
não foi exatamente tudo isso? Correto. Ele foi. No entanto, conforme discuti em minha
própria pesquisa, demarcando a importância da utilização de seu acervo pessoal como
fonte6, não se pode perder de vista algo que deveria ser uma obviedade, isso é, que ele
não foi, sempre, tudo isso.
Para melhor enfrentar essa questão, na época optei por analisar a trajetória de
Darcy Ribeiro, ou melhor, por colocar em pauta a construção de uma trajetória a partir da
qual diversos acontecimentos de sua vida pudessem ser compreendidos em seu sentido
histórico. Em outras palavras, busquei seguir de perto os passos ou o trajeto de Darcy ao
longo de quatro décadas, sem qualquer pretensão de esgotar o que quer que se entenda
por uma vida, sobretudo aquelas retratadas em “biografias definitivas.”7. E, ainda mais
importante, começando do início8. O resultado foi o que chamei, parafraseando Jacques
Le Goff (1999) em sua biografia sobre São Luís, o meu Darcy, diferente, no todo ou em
parte, do Darcy do Darcy e de outros pesquisadores que também se aventuraram pelo
árduo caminho de narrar a vida desse personagem tantas vezes narrada.
Retomando, agora, essas reflexões, continuo a pensar na necessidade de ressignificar
velhos temas, propondo olhares desafiadores que se coloquem além do que já sabemos

6
Trata-se do acervo da Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR), composto de cartas, textos, aulas, discursos,
recortes de jornais, entre tantos outros documentos que o autor acumulou ao longo da vida. Em 2011,
a Fundar publicou os “Inventários dos arquivos pessoais de Darcy e Berta Ribeiro.” (FUNDAR, 2011),
item obrigatório para todos os pesquisadores interessados nesse acervo. O livro está disponível no site da
Fundação (www.fundar.org.br). Para uma boa discussão sobre a importância desse acervo, ver também
Heymann (2005).
7
Sobre as biografias, concordo com a visão exposta por Lira Neto em uma entrevista recente sobre Getúlio
Vargas: “Por princípio, não acredito em biografias definitivas. Nesse sentido, penso que sempre haverá
espaço para novas pesquisas e enfoques sobre qualquer personagem histórico, quem quer que seja ele.
Nenhuma vida, acredito, cabe inteiramente em um livro. E Getúlio, de modo específico, é um personagem
inesgotável. Seu acervo compreende centenas de milhares de documentos e constitui um universo de
possibilidades ainda a ser explorado. Busquei trabalhar o maior número possível de fontes, para oferecer
ao leitor a visão mais completa e multifacetada do biografado. Mas, claro, não esgotei o assunto. Há
muito a ser escrito, analisado e interpretado por outros pesquisadores que se disponham a mergulhar no
universo ‘getuliano’.”. Entrevista concedida à Revista do Instituto Humanitas Unisinos – IHU ON-LINE.
Edição 451, agosto de 2014. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/5640-lira-neto>.
Acesso em: 23 jul. 2021.
8
Não seria pertinente reproduzir aqui o debate acerca do “método biográfico”, já realizado em Mattos
(2007), principalmente no capítulo 1. Mas não é demais reiterar, acerca deste ponto, a necessidade de se
precaver contra o risco, familiar aos (bons) historiadores, de ajustar o passado ao presente, ou, no caso de
Darcy, de olhar a sua vida a partir de parâmetros estabelecidos a posteriori. No fim das contas, voltando
às biografias, é imperioso não sucumbir ao equívoco comum de buscar no passado as origens daquilo
que se sabe no momento da escrita e que normalmente, acredita-se, define uma vida. É o caso da busca
pela primeira manifestação de um talento, de uma vocação, de uma qualidade ou de um grande defeito.
Sempre do fim para o começo. No campo da antropologia, a primeira questão está bem elaborada na dis-
tinção entre “historicismo” e “presentismo” realizada por Stocking Jr. (1968). Mais especificamente, sobre
os personagens de institucionalização dessa disciplina, o problema foi muito bem pontuado por Mariza
Corrêa (2003) em sua concepção de “notoriedade retrospectiva”, ou seja, a transformação do renome em
uma marca diferenciada que retrospectivamente dá sentido à vida inteira de um determinado personagem.

53
e, às vezes, reproduzimos sem intenção. Para citar outro exemplo, sobre o qual me
deterei um pouco mais, lembro, em alguns momentos, que li ou ouvi, não raro de vozes
apaixonadas, sobre um certo antiacademicismo de Darcy Ribeiro, responsável por uma
imagem, no meu entender, equivocada de que se trata essencialmente de um pensador
outsider e avesso ao intelectualismo. Volto agora a esse tema, já discutido em outros
textos e por outros autores, porque, ademais, parece-me fundamental um certo cuidado
ao falar das críticas de Darcy à academia, datadas e muito marcadas por uma percepção
muito particular em relação à universidade e ao trabalho acadêmico. Avaliá-las com
cuidado é fundamental, especialmente para quem quer se aproximar pela primeira vez da
obra do autor. Sem falar que qualquer crítica à intelectualidade, válida ou não, quando
descontextualizada e dissociada de seu momento histórico, é sempre uma porta aberta
para o conservadorismo, uma postura abominada por Darcy.
A possibilidade de dar os devidos contornos sociais à posição divergente de
Darcy dentro do campo acadêmico foi decisiva na construção de meu próprio interesse
pela vida do autor e, paralelamente, de um olhar de certa forma menos vulnerável às
narrativas prévias sobre Darcy Ribeiro ou dele próprio. Assim, optei por tentar entender
as descontinuidades de sua trajetória e, na medida do possível, interpretar o início de
sua história a partir de parâmetros da época. O que encontrei reforça o que eu disse há
pouco e pode ser formulado de forma simples: se foi real a discordância profunda entre
Darcy e a academia brasileira a partir do fim dos anos de 1960, quando ele retorna do
exílio, isso não significa que ele foi sempre hostil ao ambiente acadêmico. Muito pelo
contrário, sua participação no campo intelectual brasileiro foi ativa e fundamental. Não
existe outra forma de ver Darcy. Mais do que querer reconciliá-lo com a academia, trata-
se de fazer justiça histórica.
No caso específico da Antropologia, campo que mais me interessa, são conhecidas
as suas iniciativas pioneiras, fundamentais para moldar a prática antropológica no Brasil.
Em um artigo escrito para a Folha de São Paulo, em 1995, João Pacheco de Oliveira,
na época Presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), apresentou um
excelente quadro sinóptico da trajetória de Darcy, elencando algumas de suas principais
contribuições nesse campo e distribuindo-as em cinco eixos de atuação. Primeiro, diz
ele, sua contribuição “como etnógrafo”, em uma referência aos estudos inaugurais com
grupos indígenas, realizados na época em que Darcy fez parte dos quadros do Serviço
de Proteção aos Índios (SPI), nas décadas de 1940 e 1950. No mesmo período, viriam os
trabalhos das “teorias do contato interétnico”, que ajudaram a firmar Darcy, ao lado de
Roberto Cardoso de Oliveira e Eduardo Galvão, todos do mesmo quadro do SPI, “como
estudioso do processo de integração das populações indígenas.”.
Além dessas importantes contribuições, Oliveira destaca, ainda, o papel de Darcy
“como o idealizador de um museu de novo tipo”, numa clara referência à idealização
do Museu do Índio, além de sua atuação “como formulador de uma nova política
indigenista” e, ainda, “como autor de uma representação geral e amplamente difundida
sobre o índio do Brasil”. Neste último caso, particularmente, é digno de nota o destaque

54
dado por Oliveira ao livro Os Índios e a Civilização, que “poderia ser colocado dentro de
um conjunto seleto de obras que configuram, ao lado, portanto, de clássicos como ‘Casa
Grande & Senzala’ ou ‘Raízes do Brasil’, referências básicas para o pensamento social
brasileiro.” (OLIVEIRA, 1995).
Não é pouco. Principalmente se lembrarmos que muitas dessas ações foram
realizadas pelo jovem Darcy Ribeiro. Ou seja, um egresso da Escola Livre de Sociologia e
Política de São Paulo (ELSP), onde ser formou na década de 1940, que buscava construir
uma carreira na área de Antropologia e firmar seu lugar em um campo intelectual ainda
não consolidado. Por isso, a trajetória de Darcy foi tão importante para a Antropologia,
conforme reconhece Oliveira, entre outros, da mesma maneira que ele se tornou, de
algum modo, o produto daquele contexto.
Como faria qualquer jovem antropólogo em início de carreira, Darcy buscou ocupar,
sempre que possível, posições estratégicas e, assim, aumentar suas possibilidades de ação
e projeção. Ele nunca se furtou a reconhecer o valor e o papel de certas instituições.
Prova disso foi sua atuação como Professor da Cadeira de Etnografia Brasileira e Língua
Tupi, da prestigiada Universidade do Brasil, função que assumiu em 1956, ou então a
Presidência da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que ocupou entre 1959
e 1961, entre outros cargos importantes assumidos na época na mesma entidade. São
evidências menos lembradas de suas tentativas de inserção institucional. Às vezes com
sucesso, às vezes, não.
É muito emblemática, neste sentido, sua primeira tentativa de ingressar, em 1950,
na Faculdade de Filosofia da mesma Universidade do Brasil, quando quis se candidatar
para a vaga da cadeira de Arthur Ramos, que assumira o Departamento de Ciências Sociais
da Unesco, deixando desocupado seu lugar na Instituição. Aliás, foi para esse concurso
que, por sugestão de Herbert Baldus, seu antigo Professor e mentor desde a ELSP, Darcy
começou a sistematizar pela primeira vez seus estudos sobre os Kadiwéu, publicados
em livro no mesmo ano pelo Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI)9. Apesar
dos preparativos, Darcy não se candidatou à vaga, conforme discuti com detalhes em
Mattos (2007). Mais importante, no entanto, é registrar sua intenção: realizar seu “grande
sonho [que era] um dia conquistar uma Cátedra de Antropologia.”10. Não seria essa uma
postura mais de adequação do que insubmissão aos padrões da época?
O papel de Darcy Ribeiro na definição dos parâmetros particularmente do campo
da Antropologia brasileira a partir da década de 1940, tanto quanto o seu protagonismo
em diferentes instituições de ensino e pesquisa do país, que culminaram em iniciativas
grandiosas e o projetaram nacionalmente, já foram alvos de inúmeros estudos e não são
objetos de controvérsias11.
9Trata-se de Religião e mitologia Kadiwéu, ganhador do prêmio Fábio Prado no mesmo ano de 1950, que gerou
grande repercussão entre intelectuais. Sobre os pormenores do concurso e a repercussão do livro, ver Mattos (2007),
capítulo 2.
10
O trecho é de uma carta de Darcy Ribeiro, escrita para Herbert Baldus em 1950, pertencente ao acervo
da Fundar, citada em Mattos (2007, p. 64).
11
É extensa a bibliografia sobre a atuação de Darcy Ribeiro no Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e pos-

55
A grande questão, a meu ver, foi a descontinuidade desse protagonismo, imposta
pelo exílio, a partir de 1964. Esta é, sem dúvida, uma experiência fundamental para
entender seu pensamento – além de um campo fértil de pesquisa12, que diz muito sobre a
radicalização das ideias do autor13. Lembremos que, ao deixar o Brasil rumo ao Uruguai,
local de sua primeira residência, Darcy já era membro do primeiro escalão da elite
estatal do país comandada por João Goulart, com grande influência ideológica sobre o
Governo14. Para alguém naquela condição, o golpe só poderia ter significado um tipo de
derrota pessoal.
O próprio Darcy jamais deixou de mencionar os impactos dramáticos dessa
experiência em sua visão de mundo e o quanto ela foi decisiva para a guinada de sua
produção intelectual que, aos poucos, passou a expressar maior preocupação com os
grandes sistemas explicativos e teorias, até então inéditos em seus escritos. Isso fica
claro quando analisamos, talvez com exceção de Os Índios e a Civilização, os livros que
compõem os Estudos de Antropologia da Civilização, sua obra mais influente, produzida a
partir do fim da década de 1960, voltada quase totalmente ao entendimento das agruras
de um país, tão bem conhecido por ele, que insistia em não dar certo. Por isso, Darcy fala
de seu primeiro exílio, no Uruguai, ao se referir à versão inicial do texto que, décadas
depois, se tornaria o livro O Povo Brasileiro, título que encerra a citada coletânea, como

[...] a versão resultante de minhas vivências nos trágicos acontecimentos do


Brasil de que havia participado como protagonista. Esse era o nervo que pulsava
debaixo do texto, a busca por uma resposta histórica, científica, na arguição, que
nós fazíamos, nós, os derrotados pelo golpe militar. Por que, mais uma vez, a
classe dominante nos vencia? (RIBEIRO, 1995, p. 13).

O exílio foi importante também por outras razões. Se, por um lado, da perspectiva
da trajetória de Darcy, impôs limites severos à sua atuação, afastando-o do próprio país e
forçando-o a abandonar sonhos e projetos, por outro deu ensejo a um olhar mais distanciado
e crítico do Brasil e seu fracassado projeto político. Além disso, propiciou uma ampliação
extraordinária de suas atividades e possibilidades de atuação. Apesar de tudo, de todo o
sofrimento, Darcy continuou fazendo exatamente o mesmo, só que em outro patamar:
lecionou Antropologia em diferentes Universidades, participou de projetos de reforma
universitária em diferentes países, manteve contatos, trocou correspondências, auxiliou
líderes políticos importantes, firmou convênios de pesquisa, tudo isso se mantendo muito
próximo da efervescência política que marcou a América Latina e particularmente os
teriormente no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), até sua entrada na política brasileira.
Discuti parte desse conjunto em Mattos (2007).
12
O acervo da Fundar possui um enorme conjunto de cartas e aulas escritas por Darcy, além de outros
documentos, que ilustram suas atividades do período.
13
Sobre o exílio de Darcy, ver os importantes trabalhos de Coelho (2003) e Coelho e Rocca (2017).
14
Sobre a presença e a influência de Darcy Ribeiro no Governo Joao Goulart, conferir Mattos (2007) es-
pecialmente o capítulo 3.

56
países em que viveu até seu retorno ao Brasil, em 1976. No fim das contas, se olharmos
essa história contrastando-a com a história brasileira no mesmo período, fica mais fácil
entender o sentido do desencontro de Darcy com seus pares.
Em Confissões, não por acaso, Darcy inclui o capítulo intitulado “espanto”,
anteriormente publicado em Testemunho, seu primeiro livro autobiográfico, para falar do
país e da universidade que encontrou em seu retorno. Sem mencionar suas declarações
nada elegantes e, às vezes, injustas, acerca de seus pares, feitas em várias ocasiões, o
fato é que ele se deparou com uma realidade acadêmica diferente, não mais orientada
apenas pelos parâmetros que ele mesmo ajudara a estabelecer duas ou três décadas
antes15. Some-se a isso seu lugar já estabelecido no rol dos grandes pensadores. Àquela
altura, Darcy já era conhecido internacionalmente, sobretudo na América Latina, e estava
inserto em uma ampla rede de intelectuais e políticos importantes, inclusive brasileiros,
movidos pelo interesse nos mais diversos temas e questões nacionais. Tal experiência,
inevitavelmente, acabou contribuindo para acentuar e radicalizar o seu nacionalismo
e, penso eu, o seu senso de salvacionismo. O resultado foi a construção de um olhar
enviesado e, verdade seja dita, pouco sensível à realidade e à luta dos que haviam ficado.
No campo mais restrito onde transitam antropólogos, tornou-se conhecida a
divergência entre Darcy Ribeiro e seus colegas, que chegou às raias de trocas de insultos
e acusações de ambas as partes16. Sentindo-se abandonado e traído, Darcy passou a
desqualificar o trabalho acadêmico e a acusar a nova geração de antropólogos de alienação
e descompromisso com os temas que ele considerava os mais relevantes. Do outro lado,
seus pares julgaram as acusações de Darcy injustas e não aceitaram o seu desdém pelos
novos trabalhos e abordagens. E reagiram. Não por mero revanchismo, obviamente,
mas para mostrar que Darcy não tinha compreendido a questão central: a despeito de
tudo, incluindo as dificuldades impostas pela ditadura, a Antropologia tinha mudado e
se tornado mais forte, independente e diversificada. Suas acusações, portanto, não eram
justas. Até porque, no bojo daquelas discussões, o errado se tornou ele. Também a nova
abordagem de Darcy, marcada por temas mais genéricos e uma análise construída com
base na Antropologia neoevolucionista norte-americana, já meio fora de moda (DA MATTA,
1981; CORRÊA, 1995), deixou de ser vista como Antropologia. Os padrões se tornaram
outros, mais condizentes com as regras atuais do trabalho intelectual e acadêmico17.
15
Minhas reflexões sobre a relação entre Darcy Ribeiro e a academia brasileira, que apresento com detalhes
em Mattos (2007), e agora neste texto, são, desde o início, devedoras do trabalho pioneiro de Mariza Corrêa
(1995) sobre a história da Antropologia no Brasil e, particularmente, de sua análise sobre o debate travado
entre Roberto da Matta e Darcy Ribeiro na revista Encontros com a Civilização Brasileira, que cito a seguir.
16
Principalmente a partir da entrevista publicada, em 1979, pela Revista Encontro com as Civilização Brasi-
leira, que mereceu uma réplica de Roberto Da Matta, a época Diretor do Museu Nacional, posteriormente
respondida em uma tréplica de Darcy. Esse debate foi interpretado por Corrêa (1995) como um marco
histórico do confronto entre a Antropologia de Darcy e a nova Antropologia brasileira, representada por
Da Matta, orientada pelos então recentes programas de pós-graduação.
17
Neste ponto reside a explicação de que Darcy seria um intelectual de formação mais generalista, condi-
zente com o campo de atuação que vigorou até os anos de 1960, no qual as fronteiras disciplinares eram
menos rígidas em contraste com a organização atual do campo acadêmico, o que permitia maior trânsito

57
Mesmo assim, a importância de Darcy jamais seria esquecida: apenas foi relegada a
seus escritos etnológicos e estudos sobre os grupos indígenas, realizados na época do SPI.
Revendo tudo isso anos depois de meu primeiro contato com essas questões, fico
com a sensação de que o tipo de interesse pela obra de Darcy, que identifico, por exemplo,
em estudantes, pesquisadores e admiradores, em geral, não iniciados nos estudos sobre
o autor, de alguma maneira reverberam esse lugar pouco convencional ocupado por
ele e por sua obra no campo intelectual brasileiro e, particularmente, na Antropologia.
E isso, claro, diz muito sobre o próprio lugar da academia e do trabalho acadêmico no
imaginário da sociedade brasileira.
Pode ser apenas uma impressão, obtida mais por minha vivência de pesquisador
e docente do que por uma reflexão sistemática sobre a recepção do conjunto da obra
de Darcy, outro tema que parece em aberto. Uma hipótese, no máximo, talvez marcada
por minhas próprias indagações e dilemas. Mas é sintomático do que estou tentando
dizer o fato de que a obra de Darcy Ribeiro consagrada pelo grande público seja aquela
menos valorizada no campo intelectual com o qual, não se pode negar, ele sempre se
identificou. Da mesma forma que, no imaginário mais amplo de seus leitores, alguns
aspectos relevantes de seus textos acabaram ofuscados por temas mais genéricos e menos
antropológicos, por assim dizer, embora não sem importância, como a própria formação
do povo brasileiro.
Sem descartar as obras, hierarquizar abordagens ou menosprezar qualquer
possibilidade de interpretação, são esses os temas que devemos resgatar. Dilemas com
as quais ele se debateu com a mesma paixão, às vezes deixados à sombra de assuntos
com maior apelo popular, que não obstante permanecem presentes, tornando sua obra
extremamente necessária para enfrentarmos muitos de nossos problemas atuais. A
riqueza do pensamento de Darcy, no meu entender, não reside tanto nos aspectos
teórico-conceituais apresentados, principalmente, nas obras do exílio. Esses sim, tendo a
concordar com Da Matta (1981), entre outros, datados, como de resto todos os esquemas
teóricos-conceituais, embora plenamente justificáveis18.
Por isso reforço a necessidade de ampliarmos o conhecimento sobre o autor e
mergulharmos em seu universo a partir de outras indagações e perspectivas, inclusive
empíricas, buscando elementos talvez menos formais e mais condizentes com a sua fina
capacidade – antropológica? – de observação e sensibilidade para perceber os problemas
da sociedade brasileira, especialmente os dilemas vivenciados por nossa população mais
vulnerável. Quanto menos atenção dermos a rótulos, conjuntos temáticos, narrativas ou
categorias a priori, e ainda, o que talvez seja mais difícil, sem nos contagiar completamente
por sua construção (auto)biográfica e pelas razões que ele próprio encontrou para justificar
suas escolhas, mais fácil será perceber a complexidade, a diversidade, a atualidade e,

entre instituições e disciplinas, como mostrou Mariza Corrêa (1988) em sua pesquisa sobre os antropólogos
atuantes no Brasil dos anos de 1930 aos anos de 1960.
18
Conforme argumentei na já citada apresentação do excelente América Latina: a pátria grande (MATTOS,
2017).

58
por que não, as contradições e equívocos de seu pensamento. Tudo aquilo que faz dele
um grande autor.
Um caminho promissor para novas pesquisas seria enfrentar a sofisticada crítica de
Darcy Ribeiro ao poder e às elites, este sim, um tema extremamente necessário e urgente,
central em suas reflexões sobre o Brasil e a América Latina, independentemente das
diferentes fases de sua vida e de suas posturas políticas mais ou menos transgressoras. Aí
está um aspecto talvez mais interessante de sua iconoclastia, que enseja a oportunidade
de prestar atenção ao lado menos formalista e conceitual de seu pensamento, situando-o
em uma linha de continuidade com uma tradição intelectual mais ampla de crítica social.
Este último ponto, particularmente, aparece em trabalhos como os de Adelia Miglievitch-
-Ribeiro, que busca dar a algumas reflexões de Darcy Ribeiro os contornos da crítica
pós-colonial, ligando-o ao contexto do pensamento social latino-americano e da produção
intelectual de autores importantes como Manoel Bomfim (MIGLIEVITCH-RIBEIRO, 2013).
Se olharmos bem, a crítica às elites está na base do conjunto da obra e do pensamento
de Darcy Ribeiro porque expressa sua própria forma de inserção no mundo. Os temas
abordados por eles refletem sua experiência em diferentes momentos e contextos, sejam
aqueles mais voltados para o problema da integração de indígenas na sociedade nacional,
expostos principalmente, mas não apenas, no já citado – e infelizmente pouco lembrado –
livro Os Índios e a Civilização, sejam aqueles tratados nos demais volumes dos Estudos de
Antropologia da Civilização, sejam ainda aqueles relativos às universidades, entre outros
tópicos abordados em textos avulsos. Sua crítica à intelectualidade, inclusive, deve ser
lida nessa mesma chave explicativa, tanto quanto sua defesa obstinada da educação,
apenas o outro lado da mesma moeda.
Via de regra, Darcy acreditava, antes de tudo, no papel histórico a ser representado
pelas elites dominantes e pensantes. Dessa visão, decorrem algumas posições mais
heterodoxas, como sua simpatia pelo “nacional-sindicalismo de Getúlio Vargas” (RIBEIRO,
1985, p. 120), que explica sua adesão ao trabalhismo de Jango e, depois, ao PDT de
Leonel Brizola. No fundo, o ponto de Darcy é a alienação. Ou melhor, a “consciência
alienada” das “classes afortunadas”, brasileiras e latino-americanas, ignorantes de seu lugar
(RIBEIRO, 2017, p. 83).19 Uma elite, não inculta, apenas incapaz de se comprometer com
os interesses nacionais e se libertar de sua posição colonizada e subserviente, construída
ao longo de séculos.
Ora, para a superação desse quadro, que conheceu bem de perto, dentro e fora
do país, Darcy apostou desde o início no papel da educação em seu sentido mais amplo.
Primeiro, no SPI, com a criação do Museu do Índio, idealizado para combater o pensamento
racista das elites, e do Curso de Aperfeiçoamento em Antropologia Cultural (CAAC),
destinado ao aperfeiçoamento dos quadros indigenistas. Depois, já na segunda metade
dos anos de 1950, com o Curso de Aperfeiçoamento de Pesquisadores Sociais (CAPS),
19
Nas palavras de Darcy: “Falo, evidentemente, é da visão de mundo das classes afortunadas, cultas. O
povo mal sabe de que país é. Sua pátria verdadeira é a patriazinha do quarteirão rural onde nasce e onde
vive; ou o vasto mundo estranho e inóspito das estradas em que transita de fazenda a fazenda, servindo
a seus patrões.” (RIBEIRO, 2017, p. 83).

59
criado no CBPE com o intuito de capacitar profissionais na área de Ciências Sociais
para o enfrentamento dos diferentes problemas da sociedade brasileira. Sem falar em
sua tantas vezes demonstrada devoção à universidade e à escola básica, que resultou
em projetos grandiosos, como a criação da Universidade de Brasília (UnB), as famosas
reformas de universidade latino-americanas durante o exílio, e, já no fim de sua vida,
como Senador da República, na elaboração do texto que culminou na criação da nova
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sancionada na década de 1990
como “Lei Darcy Ribeiro”.
Tudo isso, enfim, reflete a sua crença inabalável no papel imprescindível da
educação para a tomada de consciência tão necessária para a superação de nossas
mazelas históricas.
E ele estava certo. Não por acaso, ambas, escola e universidade, continuam sendo
dois objetos do mais profundo descaso dessa mesma elite alienada e alienante que insiste
em se perpetuar como a causa maior das injustiças contra as quais Darcy Ribeiro dedicou
uma vida, em pensamento e ação.
Se pensarmos no triste Brasil de hoje, o que poderia ser mais atual?

REFERÊNCIAS

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Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Ed. Anapocs / Vértice, v. 5, n.o 6, p. 79-98,
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1981.

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Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2011.

60
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razão ocidental. In: Realis. Revista de Estudos AntiUtilitaristas e PosColoniais, Recife, Ed. Programa
de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco - PPGS-UFPE, v. 3, n.o 2, p.
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MOREIRA, Giselle Jacon de Araújo. Um relato para lembrar Darcy Ribeiro. In: Revista
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Faculdade de Formação de Professores (UERJ/FFP); Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ/IM-IE) e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), v. 3, n. 2, p. 154-165,
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em: <www.fundar.org.br>.

STOCKING JÚNIOR, George. Race, culture and evolution. Chicago: University of Chicago Press, 1968.

61
DARCY RIBEIRO: PENSANDO OS POVOS INDÍGENAS NO
BRASIL

Marivaldo Aparecido de Carvalho


Roberta Brangioni Fontes

Introdução

Darcy Ribeiro se relacionou com a temática indígena de forma intensa e apaixonada,


tanto em sua produção intelectual como em suas ações políticas em prol dos povos
indígenas do Brasil. Destacava a importância desses povos para a formação sociocultural
brasileira. Com frequência, deixando transparecer sua admiração por aspectos das culturas
indígenas, como sua espiritualidade, a impressionante adaptação ao meio natural e aquilo
que ele chamou de “vontade de beleza”. Ao mesmo tempo, era também com ênfase que
manifestava sua preocupação com o destino desses povos frente ao processo civilizatório,
como transparece no trecho a seguir, retirado de sua obra Diários Índios.

Guardarei no peito esse povo de Ianawakú, com minha imagem do índio silvícola
ainda posto em seus pés, mas com o coração já afetado pelo desejo de conviver
com os brasileiros. Sabe da civilização que vem e é inevitável, mas nem suspeita
de seu horror, que virá destruir a adaptação ecológica e a convivência solidária
que têm, raríssima. Nossa civilização é incapaz de criá-las ou preservá-las. No
mundo inteiro, seu papel foi destruí-las, empobrecendo, apropriando, dizimando
os povos que encontrou (RIBEIRO, 1996, p. 158-159).

A produção etnológica de Darcy é ampla, e, apesar das críticas que recebe, algumas
das quais descreveremos ao longo desse texto, teve papel fundamental para traçar um
diagnóstico até então inédito sobre a situação dos indígenas no Brasil até meados do
século XX. Seu modo de fazer etnologia, permeado pela influência de um indigenismo
humanista, combinava a análise científica com a dimensão da denúncia e ações propositivas
diante dos problemas da realidade estudada.
Neste trabalho, buscamos inicialmente contextualizar a atuação e a obra de
Darcy Ribeiro relacionadas aos povos indígenas do Brasil, para depois nos focarmos em
apresentar e discutir alguns elementos de suas contribuições etnológicas, a partir de
dois de seus livros Os índios e a civilização (2017), publicado originalmente em 1970,
e Uirá sai à procura de Deus: ensaios de Etnologia e Indigenismo (1976), publicado em

63
sua primeira edição em 1974. Com base nesses trabalhos e nos elementos destacados,
tecemos reflexões sobre a atualidade de seu pensamento e legado para tratarmos a
questão indígena no século XXI. Para cumprir esses objetivos, dedicamo-nos a uma revisão
bibliográfica e documental, consultando suas obras, teses, artigos científicos, entrevistas
e documentários sobre a obra etnológica de Darcy.
As reflexões que partilhamos aqui sobre a obra de Darcy Ribeiro permeiam
nossos estudos e atuação como pesquisadores/ativistas da causa indígena, atualmente
trabalhando através do Grupo de Estudo dos Povos Indígenas de Minas Gerais (GEPIMG/
UFVJM), com especial atenção aos povos Maxakali, Pankararu e Pataxó, na elaboração
de laudos antropológicos e apoio às suas lutas atuais. Com a pandemia da COVID 19,
as atividades que desenvolvemos se centralizaram em doações para as manifestações
indígenas contra o marco temporal, apoio à comercialização de artesanato, no caso
Maxakali, no apoio ao combate à COVID e na conquista da “Aldeia Nova” Maxakali, na
região da Ladainha (MG).

Trajetória de um antropólogo entre a etnologia e a política

Darcy iniciou seu caminho profissional na Antropologia, após se graduar em Ciências


Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1946, especializando-se
em Etnologia. Em 1947, ingressou como etnólogo na Seção de Estudos do Serviço de
Proteção aos Índios (SPI), onde conheceu e colaborou com o Marechal Rondon, à época
Presidente do Conselho Nacional de Proteção aos Índios.
O órgão vinha sendo criticado pela ausência de pessoal qualificado em seu quadro
de funcionários, pois a assistência aos indígenas era feita por sertanistas ou assistentes
de postos, em detrimento de especialistas e etnólogos, o que levava a uma intervenção
despreparada na dinâmica social dos grupos indígenas. Um desses críticos era o Professor
Herbert Baldus, o orientador de Darcy Ribeiro que o indicou para o cargo no SPI. Logo,
o trabalho de Darcy imprimiu nova dinâmica ao órgão, no sentido de lhe atribuir um
caráter mais científico (BRITO, 2017).
Junto ao SPI, onde permaneceu até 1956, Darcy realizou diversos trabalhos
etnológicos de campo, pesquisando os Kadiwéu, no Estado do Mato Grosso; os Kaapor
na Amazônia; os Kaingang e Xokleng no Sul do Brasil; Karajá em Tocantins, e outras
diversas etnias no Alto Xingu.
Em 1948, casou-se com a Berta Gleizer, que foi sua parceira em diversos trabalhos
etnológicos. Junto a ela, pesquisou os Kadiwéu no Mato Grosso, trabalho que rendeu
ensaios sobre o sistema familiar, religião, mitologia e arte desse povo. Além disso, em
seu período no SPI, publicou outros ensaios sobre as atividades científicas do órgão,
sobre os Ofaié-Xavante e sobre os Urubu. Também denunciou abusos e corrupções na
estrutura do SPI (RIBEIRO, 2017).

64
Dos doze anos de sua vida dedicados à Etnologia, Darcy Ribeiro destaca suas
duas grandes expedições, nas quais considera ter trabalhado com profundidade sobre
as etnias Kadiwéu e Kaapor. Elas renderam os livros Religião e Mitologia Kadiwéu (1950)
e Arte Plumária dos Índios Kaapor (1957), este último em parceria com Berta Ribeiro.
Como dissemos, é difícil pensar separadamente o trabalho etnológico, acadêmico
de Darcy, e sua atuação política. Em entrevista a Luís Donisete Benzi Grupioni e Maria
Denise Fajardo Grupioni, ele relata o momento em que percebeu seu chamado a um
engajamento mais político com a causa indígena.

Numa certa altura, ocorreu dentro de mim uma quebra, até então minha postura
era lévi-straussniana, era aquela de recolher os fósseis do espírito humano, procurar
o mito mais perfeito, mais antigo, mais arcaico [...] Começou uma atitude mais
profunda em mim de verificar que o etnólogo que vai ao encontro dos índios, vai
ao encontro deles como quem vai ao encontro do primitivo, do arcaico e poucas
vezes tem olhos para ver o índio presente, o destino dele. E eu comecei a ver que
é muito mais explicativo para um grupo indígena, sua condição de distância, do
que o grau de conservação de sua cultura. Foi então que eu inventei uma coisa
que causou muita irritação nos antropólogos bestas: o “complexo de Berlim”. Na
época, eu dizia que a ninguém ocorreria jamais, chegar em Berlim, em 1945,
quando Berlim era bombardeada com uma quantidade de aviões diariamente,
estudar a forma da família alemã ou estudar a literatura alemã, porque é evidente
que nada era observável ali, senão aquela desgraça. E, no caso dos índios, é como
se estivessem sob o bombardeio de Berlim, sob um bombardeio tremendo de
enfermidade, de violência, do diabo; enquanto o antropólogo fica ali, querendo
ver o que é o índio puro, subsumindo daquilo uma realidade outra sem valor
explicativo. Na maior parte das etnografias que andam por aí, você pode ler uma
inteira sem ver nada do que o índio está sofrendo, que a terra foi tomada, que a
filha dele foi roubada, que a mulher dele foi estuprada, que ele é vítima de toda
violência, porque só aparece o que interessa ao antropólogo que foi lá. Então essa
foi uma mudança muito profunda na minha atitude, e uma mudança que acabou
fazendo com que eu me afastasse da etnologia de campo. Fui fazer outra coisa e
me converti num combatente da causa indígena (GRUPIONI; GRUPIONI, 1997,
p. 177-178).

Abraçando essa perspectiva, Darcy foi responsável pela criação do Museu do Índio,
no Rio de Janeiro, inaugurado em 19 de abril de 1953. No documentário “Bet´rra, o
Darcy dos índios”, produzido por Maria Goretti Moreira e Sheila Maria Guimarães Sá
(2004), ele afirma que esse foi o primeiro museu do mundo projetado para lutar contra
o preconceito, cujo objetivo era semear mais e melhores informações sobre os indígenas
brasileiros. Enquanto os museus europeus mostravam o “bizarro” sobre as populações
indígenas, o Museu do Índio exaltaria sua beleza. No trecho a seguir, ele descreveu
algumas dimensões do trabalho do Museu.

65
A experiência diária do museu era pegar crianças de quarta série primária mais ou
menos, nas várias escolas do Rio, mandar escrever sobre “O índio”, antes de ir ao
museu, e escrever novamente, na volta do museu. A comparação das duas descrições
era uma beleza. Dava para ver o trabalho bonito que o museu fazia mudando
atitudes em relação ao índio. Na escadaria da entrada do museu, o visitante se
deparava com uns quarenta retratos de índio sorrindo. Já aí quebrava aquela
imagem do índio feroz, comedor de gente. Era um índio sorrindo, índio beijando
criança. Então isso contribuía para mudar atitudes. Depois, mostrava-se a beleza
da arte plumária, a delicadeza das cores. Tinha, também, um painel muito grande
em que eu dizia que os índios tinham domesticado quarenta plantas importantes,
como milho, mandioca, amendoim, abacaxi, etc. (GRUPIONI; GRUPIONI, 1997,
p. 178-179).

Sob sua orientação, o Museu produziu documentários sobre os Kaapor e os Bororo.


A Primeira expedição de Darcy aos Kaapor deu origem ao documentário “Os Índios
Urubus”, de 1950, produzido por Darcy Ribeiro e Heinz Foerthmann. O filme, que mostra
um dia comum na vida desse grupo, teve grande repercussão e ganhou prêmio de melhor
filme etnográfico do Museu do Homem, em Paris. Outra parceria com Foerthmann foi o
documentário “Funeral Bororo”, de 1953 (MENDES, 2006).
Um feito marcante na trajetória de Darcy foi sua participação na criação do Parque
do Xingu, junto aos irmãos Orlando e Cláudio Villas-Bôas. Após longa campanha nacional,
o Parque foi efetivamente criado em 1961. Localizado no Estado do Mato Grosso, a reserva
foi a primeira terra indígena homologada pelo Governo Federal. E abriga diversas etnias.
Segundo o antropólogo João Pacheco de Oliveira (2020, p. 34), a criação do
Parque, que contou também com colaboração de Roberto Cardoso de Oliveira, foi um
marco na construção de uma nova argumentação sobre a atribuição de terras aos povos
indígenas em função da conservação de seus usos e costumes.

Ao associar a definição de terras indígenas à manutenção de uma (valorizada)


diversidade cultural, os formuladores da proposta de criação do parque indígena
do Xingu propiciaram o fundamento de um dos atos e momentos mais importantes
do indigenismo brasileiro. A argumentação elaborada foi inovadora e fecunda,
sinalizando caminhos novos para a administração pública, a legislação e a
jurisprudência no reconhecimento de direitos indígenas.

Após sair do SPI, Darcy Ribeiro continuou realizando estudos e publicações


sobre os indígenas, alguns por incumbência da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), sobre o problema da integração das populações indígenas no Brasil moderno. É
no contexto dessa temática que surge o livro “Os índios e a civilização”, construído, em

66
grande parte, a partir de dados e outros escritos produzidos pelo antropólogo ainda na
década de 1950.
O livro, organizado e finalizado nos anos em que Darcy esteve no exílio em função
do golpe militar de 1964, foi publicado em 1970. Representa um esforço de sistematização,
análise e teorização sobre os desafios e condições de vida a que estavam submetidos os
indígenas diante da expansão da civilização moderna, tendo como cerne as discussões
sobre aculturação, integração e transfiguração étnica.
Outras obras importantes com a temática indígena são:
• o livro Uirá sai à procura de Deus, de 1976, que reúne ensaios publicados ao longo
dos anos sobre os modos de ser e pensar dos grupos indígenas com os quais conviveu
e que inspirou o filme Uirá, Um índio em busca de Deus, de 1974, direção Gustavo
Dahl; a Suma etnológica brasileira, de 1986, publicado junto com Berta Ribeiro;
• Diários Índios: os Urubu-Kaapor, contendo registros de seus diários escritos durante
duas temporadas junto a esse povo; e
• O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, publicado em 1995, dois anos
antes de sua morte.

Essa última obra, apesar de não tratar unicamente da questão indígena, aborda
de forma central a contribuição da matriz tupi para a formação do povo brasileiro. Darcy
também publicou romances inspirados em suas experiências com a cultura indígena,
como Maíra (1983).
Esperando ter traçado nesta seção um panorama das principais obras e atuações
de Darcy junto aos povos indígenas, escolhemos dois de seus livros, que expressam
dimensões diferentes de seu fazer antropológico, para apresentarmos elementos de suas
contribuições no campo da etnologia, discutirmos sua atualidade e legado. Um deles é
Os índios e a civilização, que aponta para a elaboração de uma teoria sobre a mudança
sociocultural; e o outro, Uirá sai à procura de Deus: ensaios de Etnologia e Indigenismo,
de caráter mais etnográfico que aborda categorias e modos do pensar indígena.

O problema da integração indígena à sociedade nacional

No livro Os índios e a civilização (2017), percebemos um esforço teórico de Darcy


Ribeiro para sistematizar e analisar uma grande quantidade de dados etnográficos com o
objetivo de teorizar, a partir deles, sobre o processo de integração do indígena na sociedade
nacional e contribuir para a formulação de uma teoria geral da mudança sociocultural.
Ao mesmo tempo, traz uma dimensão de denúncia e alerta. Em suas palavras,

O tema deste livro é o estudo do processo de transfiguração étnica, tal como ele
pode ser reconstituído com os dados da experiência brasileira, e a apreciação crítica
dos ingentes esforços para salvar povos que não foram salvos. Como alguns desses

67
povos conseguiram sobreviver às compulsões a que estiveram sujeitos – e alguns
outros ainda não experimentaram o contato com a civilização – confiamos que
tanto as análises como as denúncias aqui contidas ajudem a definir formas mais
justas e adequadas de relações com os índios, capazes de abrir-lhes perspectivas
de sobrevivência e um destino melhor (RIBEIRO, 2017, p. 19).

Para construir o livro, ele utilizou três fontes de estudo: observações diretas que
realizou ao longo de quase dez anos de trabalho no SPI; análise dos arquivos do órgão,
entrevistas com etnólogos, indigenistas e funcionários, além de missionários religiosos;
e, por fim, uma vasta bibliografia etnológica, da qual podemos citar, dentre outros, os
estudos de Curt Nimuendaju, Eduardo Galvão, Egon Schaden e Roberto Cardoso de
Oliveira.
A obra foi organizada de modo a caracterizar, em sua primeira parte, as frentes
de expansão da sociedade nacional: a extrativista, na Amazônia; a agrícola, na floresta
atlântica, abrangendo áreas do Leste de Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, São Paulo e
Sul do Brasil; e a pastoril, no Nordeste e no Brasil Central. Ao descrever as peculiaridades
das frentes e a forma como configuravam a dinâmica do contato interétnico, mostrou
como cada grupo indígena lidava com cada uma delas.
Vemos que a frente extrativista, por exemplo, não expulsava os indígenas da terra,
dada sua importância no conhecimento do território. Todavia, essa frente se apropriava
da mão de obra masculina para trabalharem como remeiros e tarefeiros na extração
da borracha; bem como das mulheres, para usá-las sexualmente e como produtoras de
mantimentos. Mais distante das instituições reguladoras da sociedade nacional, os patrões
e trabalhadores da frente extrativista atuavam com grande agressividade, exterminando
os que resistiam a suas imposições e controle.
Já a frente agrícola não possuía interesse na mão de obra indígena, e sim na terra,
almejada para expansão das lavouras. Tendia a ser menos agressiva que a extrativista. A
frente pastoril, por sua vez, também estava interessada em expulsar os indígenas de suas
terras e destiná-las ao gado, sem ambição de exploração de sua mão de obra. Porém,
apresentava características mais agressivas que a frente agrícola, pois os indígenas expulsos
das terras costumavam caçar o gado, ao que os criadores revidavam violentamente. Para
exemplificar de forma sintética as reações dos diversos povos a essas frentes, vejamos
o caso de etnias de três áreas diferentes – Rios Negro, Tapajós-Madeira e Juruá-Purus –
diante da frente extrativista na Amazônia.
Entre grupos indígenas do Rio Negro, o conflito aberto com a frente de expansão,
passou para uma situação em que os indígenas sobreviventes se acomodaram às exigências
de sua integração na economia regional, conseguindo, porém, conservar traços da sua
cultura tradicional. Nas regiões do Madeira e Tapajós, os grupos indígenas reagiram
aguerridamente e de forma sucessiva aos ataques sofridos, configurando uma situação
de conflito permanente. Já nos vales do Juruá-Purus, as populações chamadas por Darcy
de neobrasileiros, lançaram-se com brutalidade à conquista dos seringais, sobre grupos

68
indígenas menos aguerridos, o que fez com que muitos grupos desaparecessem em curto
período de tempo (RIBEIRO, 2017, p. 36).
Após proceder às análises de cada uma das frentes de expansão, na segunda parte
do livro, Darcy analisa criticamente a política indigenista brasileira e a pacificação das
tribos hostis. Avalia a atuação do órgão estatal de proteção aos indígenas e das missões
religiosas, criticando as atitudes etnocêntricas, românticas, absenteístas e fatalistas, que
segundo ele, deveriam ser superadas.
Destaca a atuação da Comissão de Linha Telegráficas e Estratégicas de Mato
Grosso ao Amazonas, mais tarde conhecida como Comissão Rondon, quando Cândido
Mariano da Silva Rondon assumiu sua direção. Darcy atribui uma perspectiva humanista
à política indigenista desse grupo, que consistia em uma exceção no trato destinado aos
povos indígenas de forma geral. A comissão se encarregava da proteção dos indígenas que
estivessem no caminho das obras telegráficas, atuando numa perspectiva pacificadora.
A comissão interveio para que os indígenas conseguissem demarcar algumas terras,
criaram escolas para alfabetizá-los, deram prioridade para empregar aqueles que já
estavam em situação precária de integração à sociedade regional como assalariados nas
obras telegráficas, e sobretudo, demonstravam respeito pelas instituições indígenas e
suas autoridades.
Por fim, na terceira parte do livro, Darcy discute a integração do indígena em
debate com o tema da aculturação, que à época era muito aceito no meio antropológico,
porém, posiciona-se de forma diferente de algumas tendências que consideravam que
os indígenas poderiam ser completamente assimilados pela cultura nacional. E é isso
que busca demonstrar através do conceito de transfiguração étnica, que ele explica no
trecho a seguir:

[...] para os efeitos deste trabalho, pode ser definida como o processo através do
qual as populações tribais que se defrontam com sociedades nacionais preenchem
os requisitos necessários à sua persistência como entidade étnicas, mediante
sucessivas alterações em seu substrato (RIBEIRO, 2017, p. 27).

Nesse sentido, ele sistematiza uma sequência típica em que se dá a transfiguração


e descreve como seus fatores causais os processos de compulsão ecológica e biótica,
coerções tecnológico-culturais, socioeconômicas e ideológicas das frentes de expansão
nacional. A tese central da obra é que diante dos diversos conflitos interétnicos que os
indígenas vivenciam, em função das compulsões e coerções mencionadas, o que acontece
em termos de mudança sociocultural, são processos de transformações que podem ocorrer
em diversos graus, mas nos quais os indígenas continuam se reconhecendo e identificando
como tais, sem se dissolver completamente numa assimilação pela nação. Assim, Darcy
refuta a ideia da assimilação grupal, que não ocorreu em nenhum dos grupos estudados.

69
Aquilo com que nos defrontamos e que foi designado como estado de integração
ou como condição de índio genérico representa uma forma de acomodação que
concilia uma identificação étnica específica com uma crescente participação na
vida econômica e nas esferas de comportamento institucionalizado da sociedade
nacional (RIBEIRO, 2017, p. 378).

Para ele, o gradiente da transfiguração vai do indígena tribal ao que chama de


indígena genérico, e não do indígena ao brasileiro, passando por categorias que expressa
diferentes graus de contato com a sociedade nacional:
a) indígenas isolados;
b) contato intermitente;
c) contato permanente;
d) integrados.

Quando a etnia não desaparece totalmente, subsiste em algum grau de integração.


Porém, nesse caso, a integração não significa assimilação, e sim uma forma de acomodação,
num contexto de condição econômica subordinada e que, infelizmente, continua atravessada
por sistemas de representações sociais que perpetuam o preconceito e a distância entre
os indígenas e a sociedade nacional.
Darcy chega à conclusão de que as etnias são mais resistentes do que se supõe, pois
a vinculação étnica permanece, ainda que existam transformações na língua, costumes,
crenças, a ponto de que externamente o indígena pareça quase indiferenciado de outras
parcelas da população nacional. Entende que as etnias “são categorias relacionais entre
agrupamentos humanos, compostas antes de representações recíprocas e de lealdades
morais do que de especificidades culturais e raciais.” (RIBEIRO, 2017, p. 387-388).
Nas perspectivas finais do livro, o autor constata que até a década estudada, o
século XX presenciou uma redução drástica da população indígena. De 1900 a 1957, 87
grupos indígenas foram exterminados, o que corresponde a uma proporção de 73,4%.
Logo, a população indígena era estimada em 1957 entre 68.100 e 99.700 indígenas,
representando cerca de 0,2% da população brasileira. A partir desses dados, traça um
quadro sombrio, indicando que se prevalecessem as mesmas condições, 57 dos 143 grupos
existentes em 1957 desapareceriam até o fim do século (op. cit. p. 376).
Analisando sua obra criticamente no tempo atual, verificamos que essa previsão
não se confirmou, dado que os povos indígenas vêm aumentando consideravelmente,
apesar dos desafios e conflitos que seguem enfrentando. Percebemos também que a
argumentação de “Os índios e a civilização” é permeada por um evolucionismo cultural,
que compreendia a existência de diversos estádios evolutivos da humanidade, perspectiva
hoje considerada ultrapassada. Essa abordagem se reflete, por exemplo, na sua classificação
das etapas da transfiguração étnica.

70
O antropólogo João Pacheco de Oliveira (2020), une a essas considerações outras
importantes críticas à obra, desenvolvidas em um artigo seu recente. Algumas delas
são a crítica à noção de aculturação, conceito presente no livro e que também caiu em
desuso, e à visão de Darcy sobre o papel do Estado. Darcy considerava que era o Estado,
através de sua agência oficial, à época o SPI, que devia zelar politicamente pela proteção
indígena frente às investidas conflituosas dos grupos regionais.
Hoje, embora o Estado seja responsável pelo respeito aos direitos indígenas, “não
mais possui um poder de tutela sobre eles, que se fazem representar por organizações
próprias, que já operam com recursos e parcerias múltiplas, mobilizando apoios em muitos
níveis de ação [...]” (OLIVEIRA, 2020, p. 39). João Pacheco também lembra que é preciso
considerar o ressurgimento recente de afirmações identitárias em grupos que, segundo
visões estatais restritivas, aparentemente estariam assimilados (OLIVEIRA, 2020, p. 38).
Por outro lado, destaca contribuições da obra que se mantém atuais e instigantes
para pensar os povos indígenas. Por exemplo, a reflexão do livro sobre etnia caminhou em
direção a concepções mais atuais de etnicidade, que se afastam da concepção culturalista.
Além disso, demarcou uma linha nova de investigações etnológicas, que implica “buscar,
mais além do estudo localizado da manipulação de identidades em um grupo indígena, os
mecanismos econômicos e sociológicos de exclusão e subordinação do índio.” (OLIVEIRA,
2020, p. 30). Nesse sentido, ele enfatiza a crítica de Darcy ao relativismo cultural e à
postura da neutralidade científica, propondo uma antropologia brasileira autêntica e
engajada. Portanto, João Pacheco de Oliveira (2020, p. 39) acredita que essa é uma das
contribuições mais fundamentais do legado de Darcy:

É dentro deste movimento, acredito, que uma retomada da produção e das


intervenções de Darcy Ribeiro deve ser realizada, pois ele aponta para os cientistas
brasileiros uma direção original e crítica – a de uma ciência social consciente de
seu enraizamento em uma conjuntura histórica específica [...], preocupada com
o exercício da pesquisa empírica e com a elaboração teórica compromissada com
os grupos sociais desfavorecidos.

Concordamos com o autor nesse sentido e destacamos a seguir mais uma dimensão
da obra de Darcy Ribeiro, que consideramos relevante quando falamos de seu legado:
a atualidade de alguns de seus trabalhos etnográficos para o estudo das categorias e
modos do pensar indígena.

Categorias e modos do pensar indígena

Ao fazermos uma leitura do livro “Uirá sai à procura de Deus: ensaios de Etnologia e
Indigenismo” publicado em sua segunda edição em 1976, encontramos um Darcy Ribeiro

71
pesquisador de campo, etnógrafo que, através de sua vivência com o povo Urubu-Kaapor,
escreve o capítulo “Uirá vai ao encontro de Maíra: as experiências de um índio que saiu
à procura de Deus.”. Uma leitura de Darcy que envolve a vida “real” da família indígena
tratada no capítulo e sua relação com as possibilidades míticas de se buscar um novo
lugar, “território existencial”, tanto no plano físico como no plano espiritual.
Como o próprio autor nos diz, seus registros de campo buscam demonstrar “modos
de ser e de pensar de grupos indígenas com os quais convivi longamente e cujas vivências
e visões procurei entender” (RIBEIRO, 1976, p. 9). Nessa busca de entender vivências
e visões dos indígenas, neste texto sobre Uirá, o autor desvela categorias êmicas sobre
a percepção do indígena Urubu-Kaapor sobre a saúde mental, e como a comunidade se
envolve no processo de cura ou nas várias atitudes de um indivíduo que busca se afastar
da angústia existencial que sente ao ver seu povo invadido e desestruturado pela ação
“civilizatória” do não indígena.
Nesse sentido, o capítulo sobre Uirá indica uma vinculação entre indivíduo e
grupo social, quando o indivíduo incorpora em sua realidade vivida os marcos míticos
que constituem sua sociedade e cultura. Mas, ao mesmo tempo em que incorpora essa
relação entre indivíduo e sua sociedade pela perspectiva mítica, Darcy Ribeiro localiza o
contexto vivido na interação do indígena com as violências vindas do mundo do branco que
invadiu e desestruturou o modo de vida de uma população. E, também, a demonstração
de preconceito da sociedade em geral, principalmente as pequenas cidades e vilarejos
por onde caminhou Uirá.
Darcy Ribeiro, na abertura do capítulo sobre Uirá, indica-nos que busca narrar e
interpretar os

[...] fundamentos sociais e míticos-religiosos das experiências de um índio Urubu


que saiu à procura de Deus. As desventuras de Uirá que, em novembro de 1939,
depois de uma série de desenganos, se matou na vila de São Pedro, no Maranhão,
lançando-se ao rio Pindaré (RIBEIRO, 1976, p 13).

Desse modo, Darcy Ribeiro toca na questão do suicídio envolvendo povos indígenas,
assunto extremamente atual e de difícil interpretação e estudo. Darcy lançará, através
desse texto sobre Uirá, luzes sobre essa questão como indicaremos mais adiante. Darcy
compreende que diante de todos os desenganos vividos pelos indígenas Urubu-Kaapor,
atitudes individuais se destacam, mas essas atitudes, apesar de individuais, não se
desvinculam da tradição e do modo de ser desse povo.
Como indica o trabalho de dissertação de mestrado de Alexandre Lopes Fonseca,
Entre o cultural e o patológico: análise psicossociocultural do suicídio em comunidades
indígenas brasileiras (2020), neste trabalho o autor conclui que,

Neste sentido, Darcy Ribeiro (1976) indica que o “suicídio” de Uirá foi uma
resposta estruturada pela cultura do povo Urubu-Kaapor, obviamente ativada

72
pelas questões sociais concretas que envolveram a vida de Uirá, ou seja, não seria
uma resposta meramente patológica, representa o momento em que viver se torna
menos importante que morrer (como mencionado anteriormente por Camus),
ou melhor dizendo, que o morrer de forma ritualística e espiritual seria a última
resposta do modo de viver de Uirá diante de uma realidade que impossibilita o
modo verdadeiro de estar-no-mundo (folhas 53).

O convívio com o branco de forma “pacífica” durante vinte e cinco anos levou
à morte cerca de dois terços da população dos Urubu-Kaapor, afirma Darcy. Mortes
ocorridas devido a epidemias de sarampo, gripe, entre outras, ou seja, desde os primeiros
contatos os povos indígenas sofreram de forma quase constante com pandemias, como
acontece hoje em relação à COVID 19. Mas o autor destaca que quanto mais crescem os
desenganos, as estruturas geradas pela tradição são buscadas pelos indivíduos:

E, à medida que cresce o desengano, voltam-se para as velhas fontes de emoção. A


pajelança, só recordada nos mitos, cujas técnicas mesmo se tinham perdido, ganha
vigor, praticada por pajés Tembé que aos poucos vão conquistando a liderança
religiosa do grupo (RIBEIRO, 1976, p. 15).

Darcy, nesse momento, demonstra traços de sua concepção sobre o contato


“civilizatório” e os povos indígenas, ou seja, que os povos contatados dificilmente existiriam
como povos autônomos, visão essa que sofreu várias críticas por outros estudiosos, mas
por outro lado, a citação acima também demonstra a capacidade plástica dos indígenas de
buscarem seus fundamentos tradicionais por meio de outros povos indígenas, nesse caso
os Tembé. Podemos afirmar que essa prática de resistência ainda hoje se faz presente entre
os povos indígenas que buscam dialogar com outras culturas indígenas sobre mecanismos
culturais/míticos que relembram e alimentam os seus processos identitários atuais.
No que se refere ao plano da sociedade indígena, Darcy Ribeiro indica que os fatos
que envolvem Uirá se aproximam do messianismo que se caracteriza por um movimento
guiado por um redentor reconhecido pela própria comunidade. Uirá não tem esse papel
de redentor de uma comunidade inteira, pois se trata de uma experiência de cunho
individual.

O caso de Uirá, não tendo a mesma amplitude, não pode ser caracterizado como
messianismo. Trata-se de uma experiência individual, movida embora pelos
mesmos fundamentos. Uirá não arrastou seu povo à sua aventura, nem foi, em
qualquer momento, reconhecido como um profeta ou messias. Simplesmente,
diante de uma situação de desengano seguiu um caminho prescrito pela tradição
tribal, caminho que no passado foi palmilhado por muitos e que talvez volte a
atrair outros no futuro (RIBEIRO, 1976, p. 14).

73
Os caminhos prescritos pela tradição seguem uma ordem de atitudes que deve ser
tomada pelo indivíduo. Assim, Uirá percorre várias atitudes referendadas pela tradição de
seu povo, na busca de acalmar os sentimentos gerados pelos desenganos que assolaram
seu povo e sua família. Darcy Ribeiro nos relata que Uirá perdeu um filho “que se fazia
rapaz” para uma epidemia de gripe. Neste sentido, segundo a tradição de seu povo,
Uirá ficou Inãron. Para os Urubu-Kaapor essa condição psicológica indica um grau de
“extrema irritabilidade”.
Para se curar deste estado, o indígena deve ficar isolado, a comunidade o deixa só,
mas a casa, os animais e todos os utensílios ficam à disposição para o uso. Normalmente,
a cura vem rápido: ao quebrar potes, derrubando a casa, flechando os animais domésticos
entre outras atitudes. Mas, no caso de Uirá, a cura não veio, ficou apiay. Nesse momento,
Uirá busca outro mecanismo cultural para se livrar de seus desenganos e prostração
profunda: vai à guerra contra o povo Guajá. Tornar-se guerreiro seria outra forma de
se curar, mas mesmo ficando isolado e fazendo a guerra, Uirá não consegue recuperar
seu gosto pela vida. É nesse momento que Uirá busca o caminho que leva a Maíra, um
caminho traçado pelos heróis míticos que chegam com vida na casa de Maíra. Um caminhar
“terrível”, pois nada indica, segundo Darcy Ribeiro, que Maíra acolha seu povo de boa
vontade. “Maíra é o herói-civilizador dos povos Tupi, aquele a quem atribuem a criação
do mundo, dos homens e dos bens de cultura.” (RIBEIRO, 1976, p. 20).
No decorrer do texto, Darcy Ribeiro narra as desventuras de Uirá, pois num certo
momento ele deixa a aldeia e faz o caminho que, segundo a tradição, levaria para a casa
de Maíra. Nesse caminho, encontraria o grande mar que indica a aproximação da casa
de Maíra.

Esta foi a decisão de Uirá em seu desencantamento. Segundo prescrevem as tradições


tribais, fez pintar seu corpo com tintas vermelha e preta do urucu e jenipapo,
conforme ensinara Maíra aos kaapor. Paramentou-se com adornos plumários que
foram também dádiva de Maíra. Tomou as armas, o arco e as flechas, igualmente,
criação de Maíra para seu povo e, finalmente, um paneiro de farinha que deveria
levar para, ao deparar-se com o herói, tomar um punhado nas mãos e dizer: “Eu
sou sua gente, a que come farinha”. Com toda esta paramentália, estava certo de
que seria reconhecido por Maíra como Kaapor e teria ingresso com sua mulher
e filhos em sua morada, onde não há morte, onde as flechas caçam sozinhas;
os machados, a uma simples ordem, partem para a mata e fazem as derrubadas
(RIBEIRO, 1976, p. 25).

No entremeio do caminho, Uirá foi preso, espancado pela sociedade não indígena,
foi considerado louco, sofreu em seu corpo as dores do seu povo diante do preconceito
da sociedade envolvente. Como já dito mais acima, o desfecho dessas andanças foi a
morte por suicídio, mas um suicídio com a última tentativa de se buscar Maíra e a “Terra
sem Mal”.

74
O último capítulo é a viagem de volta pelo rio Pindaré e, já ao fim, diante do
caminho de casa, o suicídio pela forma mais terrível aos olhos dos índios Urubus.
Contudo, Uirá sempre cumpriu a destino que se propôs. Não podendo ir vivo ao
encontro de Maíra, sempre foi, porque a morte também é um caminho para ele
(RIBEIRO, 1976, p. 29).

Compreendemos que, ao narrar e interpretar as desventuras de Uirá, Darcy


Ribeiro coloca em prática sua visão da ciência antropológica e do papel do pesquisador
engajado com a causa indígena, pois, pelo que nos parece, ao se ater no caso de Uirá,
Darcy Ribeiro buscou demonstrar a força avassaladora do contato entre as sociedades
indígenas e o mundo dito civilizado; e como esse desencontro entre povos afetou não
só a sociedade indígena, mas também seus indivíduos. Ou seja, as dores também foram
sentidas pelas pessoas em suas individualidades. E individualidades que não podem ser
confundidas por individualismos, pois a individualidade é dada pela própria sociedade
em seus fundamentos míticos e espirituais.
Darcy Ribeiro também demonstra o saber indígena no que se refere à saúde mental
e como a cura precisa da participação de toda aldeia. O texto sobre Uirá, escrito por
Darcy Ribeiro, retrata as ideias teóricas e, ao mesmo tempo, a postura ética de Darcy,
diante dos povos indígenas, pois ao retratar a vida de Uirá, ele retrata os preconceitos e
desafios dos povos indígenas. Além disso, revela seus aspectos etnográficos e suas técnicas
de pesquisa e interpretação. Darcy, no decorrer do texto sobre Uirá, enfatiza a visão de
mundo dos povos indígenas e os mecanismos culturais que buscam dar respostas ao seu
modo de viver e de se curar. Nesse sentido, queremos terminar essa parte do capítulo,
com estas palavras sobre como os indígenas enfrentam suas crises emocionais, que hoje
continuam assolando o mundo contemporâneo:

Assim o grupo reconhece e salienta o interesse coletivo na crise emocional individual,


proporcionando ao raivoso um amparo e uma reverência que devem contribuir
muito para fazê-lo voltar prontamente ao normal. Graças a esta instituição, as
tensões dissociativas são desviadas, evitando-se os conflitos dentro do povo
(RIBEIRO, 1976, p. 19).

Outro capítulo que destacamos no livro Uirá sai à procura de Deus: ensaios de
Etnologia e Indigenismo que estamos aqui apresentando aos/as leitores/as é: “Os índios
Urubu: ciclo anual das atividades de subsistência de uma tribo da floresta tropical”.
Neste escrito, Darcy descreve, de maneira pormenorizada, as atividades dos indígenas
Urubu-Kaapor com a natureza envolvente e a maneira que usam ao se relacionar e criar
seus conceitos sobre as outras formas de vida, seja animal ou vegetal, sua relação com
o clima, seca e tempos úmidos, o tempo das coletas e das caças.

75
No decorrer do seu trabalho, Darcy Ribeiro esquematiza um calendário anual
criado pelo povo Urubu-Kaapor, ao classificar seu mundo envolvente e suas ações para
responderem às necessidades materiais de sua existência em meio à selva amazônica.
Se no capítulo sobre a história de Uirá, Darcy demonstra a capacidade desse povo de
formular conceitos sobre a condição humana e suas dores, sobre a saúde mental do
indígena, neste capítulo, ele revela a capacidade de conceitualizar, pensar o mundo dito
por nós, ocidental de natureza, e a relação íntima dos indígenas com esse mundo natural,
relação essa que se dá, segundo Darcy, pela autodesignação kaapor.

A cultura dos índios Urubus é, em grande parte, uma adaptação especializada à


vida nesta mata. A própria autodesignação tribal – KAAPOR (moradores da mata,
silvícolas) talvez denuncie mais sua íntima identificação com a floresta que o
sentido de uma oposição à gente que vive à margem dos rios e cerrados. O certo
é que a mata se inscreve em sua mitologia como um dos temas mais constante e
mais elaborados. Um dos feitos mais relevantes atribuído ao seu herói-civilizador
foi a criação da floresta. De certas árvores foram feitos os homens das várias nações
e suas diferentes características são explicadas pelas diferenças de qualidades das
madeiras de que provieram: os brancos e eles próprios de madeira mais forte;
seus inimigos, Guajá, de madeira frouxa. Uma árvore transmutada em mulher foi
a mãe do segundo personagem mitológico em importância, exatamente aquele
que vincula o criador a seu povo, os KAAPOR, por um interesse mais vivo pelo
seu destino. É, ainda, pelas árvores que o criador fala à sua criação na alegoria
que explica a perda da imortalidade (RIBEIRO, 1976, p. 35). (Grifo do autor).

Podemos observar nessa citação de Darcy a relação íntima entre a cultura kaapor
e o mundo dito natural; a humanidade kaapor veio das árvores, da floresta indicando
uma relação mais próxima às árvores do que aos animais. Hoje em dia, estudos atuais
no campo da Antropologia, da Biologia, ou da Etnoecologia, por exemplo, voltam a
identificar a importância de compreendermos a maneira de os indígenas se relacionarem
com as outras formas de vida, principalmente diante da crise ambiental que vivemos.
E, também, a importância de demonstrar que o território indígena é traduzido pelos
conceitos elaborados mentalmente pelos indígenas. “Para sobreviver na mata os índios
Urubu tiveram de recriá-la mentalmente, dar nome às coisas, atribuir-lhes sentido,
encontrar-lhes utilidade.” (RIBEIRO, 1976, p. 35).
Em linhas gerais, podemos afirmar que, com esse ensaio, Darcy Ribeiro ganha
em importância ao demonstrar a ciência do saber tradicional dos Kaapor, a vinculação
íntima entre “natureza” e o modo de ser humano kaapor. Assim, este trabalho de Darcy
Ribeiro é atual, pois estamos vivendo um momento crítico que nos instiga a respeitar e
aprender com nossos indígenas e Darcy demonstrou isso em seus trabalhos datados de
quase mais de cinquenta anos. Por fim, vale a pena reproduzir a passagem que se segue:

76
A mesma elaboração mental foi realizada em relação à fauna, esta também foi
catalogada, recebeu nomes e significados. Elegeram algumas espécies para comer,
cercaram outras de restrições e ainda proibiram completamente a utilização
alimentar da maioria. Têm um profundo conhecimento dos hábitos não só das
espécies de que se utilizam na alimentação ou para fabricação de adornos e artefatos,
mas de quase toda a fauna regional. Esta representação mental do ambiente, que
além do revestimento florístico e da fauna compreende as várias classes de terra
e pedras que têm importância em sua vida, é a ciência, o saber tradicional dos
índios Urubus que os guia na luta diária pela sobrevivência (RIBEIRO, 1976, p. 36).

Considerações finais


Esperamos ter demonstrado nesse breve capítulo, escrito em homenagem ao
centenário de Darcy Ribeiro, a importância de sua obra e vida para a história dos povos
indígenas no Brasil.
Com a análise de dois de seus trabalhos, não buscamos enfatizar os mecanismos
teóricos de Darcy, pois compreendemos que essa abordagem já vem sendo bastante
desenvolvida por outros autores e autoras. Apontamos alguns aspectos teóricos, suas
contribuições e críticas. Todavia, nossa ênfase foi em destacar a dimensão crítica e engajada
do seu fazer antropológico, sua capacidade de leitura sobre os povos indígenas e sobre
as categorias elaboradas mentalmente por eles, que se relacionam com seus modos de
vida e desafios concretos para o desenvolvimento de sua existência enquanto povos
diferenciados e possuidores de processos cognitivos intimamente relacionados com a
materialidade da vida e a espiritualidade do viver.
O que buscamos realizar em nosso trabalho, está de certa forma associado à
citação a seguir, quando Darcy relata um diálogo seu com Lévi-Strauss.

Uma vez fui lá falar com o Lévi-Strauss e perguntei o que ele achou do meu
livro O processo civilizatório. Eu tinha mandado para ele a edição em inglês
do Smithsonian, e ele disse: “me interessou”, assim com um certo muxoxo. O
problema é que ele tem horror a qualquer interpretação diacrônica, e a questão
dele é gramática, é tratar a cultura como se fosse língua, porque qualquer coisa que
não seja gramatical, que seja diacrônica, horroriza-o. Mas aí ele me disse que eu
era um dos príncipes da observação, que várias vezes ele tinha utilizado os mitos
que eu colhia, o meu material etnográfico e que isso era o nobre que eu tinha. Eu
me irritei e disse: “Então tá, eu sou o coletor de material de campo e você faz a
interpretação teórica”. E ele respondeu: “Não, a minha obra teórica não vai durar
vinte anos, nem a sua, mas a etnografia vai, porque todos os bons registros do
século passado são sempre reeditados.” (GRUPIONI; GRUPIONI, 1997, p. 177).

77
Ou seja, nesse capítulo, destacamos a capacidade de observação de Darcy Ribeiro,
elogiada por Lévi-Strauss, que aponta a maior vitalidade das boas etnografias sobre as
teorias.
Entendemos que, ainda que algumas das perspectivas teóricas de Darcy estejam
superadas e não tenham se confirmado, seu olhar acurado, suas boas etnografias, sua
postura ética e política, guardam dimensões relevantes, não só para pensarmos os povos
indígenas, mas também para inspirar nossas ações concretas nas suas lutas e desafios
atuais.

REFERÊNCIAS

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Ribeiro no serviço de proteção aos índios (1947-1956). 2017. 240f. Tese (Doutorado em História das
Ciências e da Saúde)–Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de
Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro, 2017.

FONSECA, Alexandre Lopes. Entre o Cultural e o Patológico: análise psicossociocultural do suicídio


em comunidades indígenas brasileiras. 2020. 82 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Sociedade e
Ambiente)–PPGSaSA-FCBS/UFVJM, Diamantina, 2020.

GRUPIONI, Luís Donisete Benzi; GRUPIONI, Maria Denise Fajardo. Entrevista com Darcy Ribeiro. In:
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 3, n. 7, p. 158-200, nov. 1997. Disponível em: <http://
dx.doi.org/10.1590/S0104-71831997000300010>. Acesso em: 25 ago. 2021.

MENDES, Marcos de Souza. Heinz Forthmann e Darcy Ribeiro: cinema documentário no Serviço de
Proteção aos Índios, SPI, 1949-1959. 2006. 445 f. Tese (Doutorado em Multimeios)–Instituto de Artes,
Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Campinas, 2006.

MOREIRA, Maria Goretti A.; SÁ, Sheila Guimarães. Bet´rra, o Darcy dos índios. 2004. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=HJfUmY8_uew&t=29s>. Acesso em: 29 set. 2021.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Proteger os índios e descolonizar a pesquisa: Darcy Ribeiro como
antropólogo. In: Revista Mundaú, Maceió, n. 8, p. 22-41, out. 2020. Disponível em: <https://www.seer.
ufal.br/index.php/revistamundau/article/view/10084>. Acesso em: 26 set. 2021.

RIBEIRO, Darcy. Arte plumária dos índios Kaapor (1957). Disponível em: <http://etnolinguistica.
wdfiles.com/local--files/biblio%3Aribeiro-ribeiro-1957-arte/Ribeiro%26Ribeiro_1957_
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RIBEIRO, Darcy. Diários índios: os Urubus-Kaapor. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

RIBEIRO, Darcy. Maíra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.

78
RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno.
7. ed. São Paulo: Global, 2017.

RIBEIRO, Darcy. Religião e mitologia kadiwéu (1950). Disponível em: <http://etnolinguistica.wdfiles.


com/local--files/biblio%3Aribeiro-1950-religiao/Ribeiro_1950_ReligiaoMitologiaKadiweu_CNPI%20
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RIBEIRO, Darcy. Uirá sai à procura de Deus: ensaios de etnologia e indigenismo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1976.

79
O CHABU DA UTOPIA BRASIL

Andrea Jakubaszko

O que tenho é uma incurável nostalgia de


um mundo que bem podia ser, mas jamais foi
e que eu nem sei como seria
e se soubesse não diria.

(Darcy Ribeiro, Utopia Selvagem)

O povo é o inventalínguas na malícia da maestria


No matreiro
Da maravilha no visgo do improviso
Tenteando a travessia, azeitava o eixo do sol
Circuladô de fulô, ao deus, ao demo dará
Que deus te guie porque eu não posso guiar
É viva quem já me deu circuladô de fulô
E ainda quem falta me dar
(Haroldo de Campos, Circulado de Fulô)

É muito difícil, como habitantes de sistemas político-sociais, não permanecer


elegendo e classificando clivagens, distinções ora tênues, ora tensas, em equações com-
plexas. Tendemos sempre a situar novos centros e novas margens para definir zonas de
exclusão. E, nessa dinâmica de zonas que dançam em cena, foi possível perceber atra-
vés da ciência antropológica, que a(s) fronteira(s) Nós-Outros, não raro e para além do
bem e do mal, é irredutível. Recolocaremos, diária e incessantemente, novas fronteiras
Nós-Outros, tantas quantas formos capazes de imaginar, afinal, é a criação a única on-
tologia do humano, fronteira intransponível e sempre subjacente à destruição. Então,
enquanto humanos formos, a Cultura segue sendo seu próprio movimento irredutível,
o mecanismo da diferenciação.
Contudo, as formas de lidar com este inevitável é que variam conforme diferentes
organizações socioculturais, podendo atingir extremos de horror que institucionalizam
os meios de exterminar o Outro, reificando e naturalizando desigualdades. Ou, de outros
modos, o extremo de dar vazão a catarses coletivas muito bem orquestradas, como festas
ou ritos que tematizam dissolução, fusão, transmorfismos que embaralham as posições no

81
jogo não deixando pedra sobre pedra na tentativa de neutralizar efeitos indesejados da
desordem, capturando-os em suas próprias armadilhas e domesticando-os para garantir
alguma ordem minimamente possível que favoreça uma coexistência melhor equilibrada.
Mais ainda do que o teatro grego, os rituais ameríndios e tantos outros, aborígenes,
tribais, praticam a transitoriedade tanto para se situar em outra perspectiva quanto para
conceber a efemeridade dos instantes. Menos trágicos e mais astutos, mesmo sem abrir mão
da guerra (marcador de irredutibilidade da diferença), no entre-si permitem os avessos,
o drible do desejo da transgressão da regra, incursionam em trânsitos performáticos
(em estado de transe ou não), deixam, com frequência, de ser o que são para se vestir
de outro(s), experimentando a plenitude da vida em diferentes peles, garras, dentes,
penetrando diferentes sons, visões, toques, cheiros, paladares, enfim, outras posições,
outros topos.
“[...] viram caititus, tamanduás, cobras e todo outro bicho [...]”. Foi o Homem-
-Anta, amante da Mulher-Sucuri quem ensinou como fazer a alma voar “para conversar
com os bichos, entrando no segredo deles [...]”. Tendo aprendido a falar com os bichos,
entender as árvores, perderam o medo e foram, também, transformando-se em bichos:
“um virava jacaré... esvoaçando... cada bicho [...] com seus pelos ou escamas ou plumas,
bocarras, bafos, urros, caudas e garras.” (trechos extraídos de RIBEIRO, 2007, p. 108).
Quando Darcy Ribeiro escreve Utopia Selvagem, em 1981, apresenta-nos, de um
modo descontraído, concepções que imprimem suas marcas em diferentes Brasis que
figuram na cabeça de cada um dos personagens, onde uns duvidam das representações
dos outros, num entre-si esquizo, deixando o chefe da tribo bastante confuso e um tanto
curioso sobre que lugar seria esse onde não há consenso sobre suas autonarrativas e
tantas descrições desencontradas.
O modernismo de Darcy Ribeiro guarda, certamente, aspectos comuns com outros
intelectuais que se dedicaram a pensar e representar o Brasil, tais quais a valorização e
reconhecimento das influências e sincretismo entre diferentes matrizes étnicas/históricas,
compondo uma possível – ou impossível – brasilidade. Mas, também, traz aspectos que
são distintos na medida em que vai, ao longo da construção de uma complexa teoria
sobre o Brasil, identificando suas forças disjuntivas e unificadoras (RIBEIRO, 1975, p.
99 – “forças aglutinadoras e tensões dissociativas.”).
Não se preocupa propriamente em eleger ícones/emblemas de representação nacio-
nal. Preocupa-se mais com as idiossincrasias nefastas e em como explicá-las, tornando-as
inteligíveis para permitir ações corretivas na direção do combate à desigualdade. Intenta
decifrar o fenômeno do subdesenvolvimento, encontrando na história, em particular da
formação do Brasil (em suas similaridades e distinções com outros contextos), categorias
adequadas para propor explicações.
Ou seja, o que significa ser identificado e ocupar um topos a partir de uma noção
histórica – a de atraso? Enfim, para dar conta desta compreensão, embrenhou-se em
rever e reescrever a história do processo civilizatório (por meio do método científico

82
que opera o movimento particular-geral-particular) ao tempo em que, nesse exercício,
experimenta categorias antropológicas/sociológicas e políticas bastante autorais.
Assim, nesta toada, era também interessado em perscrutar fusões, mestiçagens,
hibridismos, compreendendo a cisão estrutural que situa no Brasil de um lado o Povo-
-Nação e de outro o Estado-Nação, esforçando-se ao máximo por decodificar a plurali-
dade irredutível das matrizes que compõem a primeira categoria e descortinar o modus
operandi da segunda, entendendo ainda que não são categorias estanques, mas que se
interpenetram, considerando que são ambas atravessadas pelo signo do colonialismo e da
modernidade. Portanto, transitando por equações complexas de inúmeras combinações
possíveis, interessava-se igualmente em também imaginar mundos, relações, espaços,
instituições, estéticas, sempre na arena da ação política – refletida, intencional. Situava-se,
dessa forma, como um intelectual, comprometido com seu lugar, seu tempo e suas gentes.
Com toda sua erudição, sua forma pouco ortodoxa de pensar e agir desconcertou
alguns políticos e acadêmicos. Darcy era, conforme a conveniência, (des)tratado por seu
avesso: para os políticos era acadêmico (comunista, subversivo); para acadêmicos era
político. Pela via da crítica reducionista (quando uma obra é vultosa, a vantagem pode
mesmo recair para os reducionistas), alguns acadêmicos procuraram desqualificar de
forma rasa toda a coesão incômoda de sua obra e a coerência de seu pensamento, que
vazava para além dos muros da academia em manifestos, peças legislativas, literatura,
entrevistas, atos políticos e burocráticos que como um giroscópio se dirigia aos quatros
ventos...
Apesar de ter se detido por breves momentos com estas divergências, mantinha-se
firme como sujeito do conhecimento por meio do exercício analítico incessante diante de
seu objeto sociológico como coisa – como Problema, atado à sua obsessão chamada Brasil.
A coesão de sua obra não apenas forjou uma teoria acadêmico-científica, mas
gerou múltiplas teorias, de onde três se destacam como centrais: uma teoria sobre o
processo civilizatório; uma teoria sobre o desenvolvimento (a partir da compreensão do
subdesenvolvimento) e uma teoria sobre o Brasil. Haja fôlego! Vigor e rigor.
Nessa rota, não há em Darcy Ribeiro um Brasil unívoco, só da bossa ou do samba,
do futebol ou do carnaval. Não há Brasil de alegorias. Há o Brasil dos esfomeados,
desvalidos, estuprados, expropriados, desgastados de ser tão moídos, exaustos de não
poder ser Gente. Há então, de fato, Brasis, no plural, cuja invenção de uma identidade
nacional compreendida como macroetnia não é a marca mais singular que nos define,
pois “A assunção de sua própria identidade pelos brasileiros, como de resto por qualquer
outro povo, é um processo diversificado, longo e dramático.” (RIBEIRO, 1995, p. 130).
Demonstra que, no caso do Brasil, dramas da ambiguidade, consequente de sua
gênese na ninguendade, essa sim, marca singular, teve que experimentar, historicamente,
constantes operações de fazimentos e refazimentos “acercando-se dos seus similares
outros” para tentar construir uma representação coparticipada, compondo “um nós coletivo
viável”, “como uma nova entidade étnica com suficiente consistência cultural e social

83
para torná-la viável para seus membros e reconhecível por estranhos pela singularidade
dialetal de sua fala e por outras singularidades.” (RIBEIRO, 1995, p. 132).
Nesse processo que vai surgindo de “uma etnologia recíproca, através da qual
uns iam figurando o outro” (RIBEIRO, 1995, p. 57), sublinha que a diversidade de seus
membros será ainda maior, com frequência, que suas diferenças em relação a outras
etnias. Ainda assim, essa diversidade transformada numa qualidade coparticipada em
que a operação consiste na função do reconhecimento “de peculiaridades próprias que
tanto diferencia e o opõe aos que a não possuem, como o assemelha e associa aos que
portam igual peculiaridade.” (RIBEIRO, 1995, p. 133).
Aqui é importante se atentar com esmero nestas análises de Darcy que, aliás, são
o gancho para compreender a fórmula do subdesenvolvimento, as cisões presentes nos
traumas e chagas ainda hoje abertas de nosso edifício quase sempre em ruínas, embora
parecendo construção, são menos fruto da irredutibilidade de nossas diferenças e mais
resultado da ação de minorias dominantes20.
O papel das elites políticas e econômicas em manter tudo como está foi perpetuando
as diversas práticas de expropriação e adubando a miséria como terreno fértil para garantir
massas subservientes como gado, e não como gente, mantendo o status quo escravista e
escravagista. E, assim, a ideologia das superioridades de uma minoria dominante diante
de qualquer alteridade. Não pela via da aceleração histórica, mas sempre pela reprodução
de atualizações históricas numa modernização reflexa, vigora lado a lado por aqui “uma
prosperidade empresarial e a penúria generalizada da população local” que luta, desde
os primórdios de nossa trajetória, para “tomar consciência de si mesmo e realizar suas
potencialidades.” (RIBEIRO, 1995, p. 442).
Em um parêntese, a memória da luta para se defender da opressão e do esbulho
renitente é um dos aspectos similares, que unifica a narrativa de diferentes grupos/
comunidades/coletivos espalhados por todo o território nacional, seja em zonas rurais ou
urbanas. Com a intensificação, por exemplo, de movimentos na defesa de determinados
biomas, rios, mares e terras, que acabam por promover o (re)encontro de tantas “tribos”
na defesa da integridade de territórios extremamente ameaçados21. Territórios que são
direta ou indiretamente compartilhados pela fauna, flora e todas as gentes, indígenas,
ribeirinhos, quilombolas, pescadores, extrativistas, camponeses, caiçaras, sertanejos. O
que permite notar em seus depoimentos e testemunhos sobre aquela dada realidade local,
o quanto viveram por longo tempo apartados e até de certo modo se relacionando como
inimigos em um estranhamento que, segundo a história oral desses diferentes grupos,
não havia em momentos anteriores.
20
Essas minorias correspondem, na obra de Darcy, às classes dominantes que, em nosso contexto de ordenação
sociopolítica, estrutura-se em quatro grandes estratos (classes dominantes, setores intermediários, classes subalternas
e classes oprimidas) e suas subdivisões em setores. E estes, em corpos e segmentos, que vão configurando tipologias
para situar as complexas dinâmicas de interação, marcadas por tensões de antagonismos intermediadas por um
conglomerado de ambiguidades (cf. RIBEIRO, 1975).
21
Destaco aqui, como referência, os que acompanhei mais de perto entre 2013 e 2016: Rede Juruena Vivo,
Xingu Vivo, Movimento Tapajós Vivo e Pantanal.

84
Trazem à tona a memória de tempos em que viviam em vizinhanças amistosas e
que os conflitos vieram depois, junto com os cercos. Esse tempo anterior que relembram,
com nostalgia, estava marcado por laços de solidariedade, e é comumente referido como
“tempo dos antigos”, relatando que apesar da presença de ameaças e convulsões ou
injustiças permanentes, era um período de fartura, festejos, alegrias e abonança.
Cada vez mais essas narrativas aparecem cotejadas por documentos formais,
conforme se adensa a historiografia do Brasil. Em todas as regiões, essa produção dos
historiadores contemporâneos na Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso, Rio de Janeiro,
Recife, São Paulo, tem detalhado com esmero que, ao par de convulsões sociais intensas
do século XIX, o Brasil viu florescer, no pós-declínio do ouro, uma diversificação produtiva
sem precedentes, em teses que refutam a ideia de um isolamento ou incipiência das
economias locais. O que demonstra um período de expansão de ofícios e grande fartura
e diversidade agrícola, antes de se consolidar, já nó século XX, a expulsão massiva dessas
famílias de suas terras para as cidades, a partir da manipulação de conflitos e crises
que impõem a escassez. Foi a era dos mestiços, pardos, livres e pobres que, por breves
instantes, vislumbraram possibilidades de cultivar trabalho e liberdade.
A abolição como uma luta que, sim, foi antes de tudo dos próprios escravizados
de um lado e, de outro, dos próprios interesses políticos e de mercado presentes na
geopolítica da época, mas amplificada por um espírito de liberdade que soprava alto das
senzalas e espalhava frescor inspirando novos e fortes laços de solidariedade em todas
as direções.
Enfim, para não estender pela divagação da rota que não seguimos e voltando
ao trilho do subdesenvolvimento, Darcy não o aborda pela via da dimensão temporal, o
atraso a que recorrentemente recaímos, não é explicado como marcha à ré, embora seja
essa frequentemente nossa impressão sobre nosso tempo histórico, de que sempre que
seguimos três passos para a frente somos compelidos a dar dois para trás.
Mas, não é tão simples, pois o deslocamento é aparente, já que o subdesenvolvimento
ocorre em compasso contínuo, pois é pouco permeável a rupturas, posto que se trata de
um dado da estrutura e não do tempo (ainda que historicamente forjado).
Darcy Ribeiro sonhava muito e alto. Mas, não se iludia: o subdesenvolvimento não
corresponde a uma etapa a ser superada numa sucessão histórica linear; corresponde
antes a um modo de ordenação da sociedade sempre orquestrada

contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios


alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui, um povo livre, regendo
seu destino na busca de sua própria prosperidade. O que houve e o que há é
uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria
dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio
projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma
da ordem social vigente (RIBEIRO, 1995, p. 446).

85
Em 1995, Darcy Ribeiro esteve presente no programa Diálogos Impertinentes,
promovido pela TV PUC/SP e filmado no TUCA, juntamente com Rubem Alves. Tratava-se
de um debate que teve como tema “Utopia”22. Quando questionados se era possível ou
desejável ter ou falar em utopia para o Brasil, como num rastro de pólvora, os convidados
se situaram em lados opostos da trincheira.
Darcy Ribeiro, ainda que declarando “Sou utopia por todos os lados, de cima em
baixo”, concentra-se em situar o problema: “Sempre os outros tiveram projetos para
nós.”. Nesse sentido, reitera o que para ele é um imperativo da ação, qual seja, que o
papel de políticos e intelectuais deve ser o compromisso de imaginar, desenhar e agir
para transformar, por meio da ação política, a vida coletiva.
Rubem Alves, por sua vez, imediatamente declara que para ter uma nação é preciso
antes ter um povo e isso parecia não existir por aqui. Suas utopias são mais modestas,
cotidianas, ordinárias. E também que não alimentava mais fervores de mudar o mundo
e até desconfia daqueles que o fazem.
Ainda sobre a posição de Rubem Alves, vale destacar que, ao longo de todo o
debate, ele expressa visões que são recorrentes em falas de políticos e acadêmicos no
Brasil.
Primeiro, cumpre observar que, em muitos momentos e contextos do período
colonial, falar bem do Brasil não era algo bem visto. Ao contrário, era cerceado, quando
não censurado, pois mobilizava forças de autodeterminação (RIBEIRO, 1995, p. 136-
137). À espreita da autoestima pairava um caráter suspeito. Já em outros momentos e
contextos do século XX, durante as décadas da ditadura militar, vigorava o inverso: não
falar bem do Brasil é que era visto como suspeito; e quem desnudasse sua face perversa
ficaria exposto ao perigo da tortura ou do exílio.
Parece que não à toa, em mais essa ambiguidade, herdamos essa suspeição em se
dedicar a pensar o Brasil, de tal modo que muitos acadêmicos passaram a refletir o Brasil
na chave da ficção, como produto da criação autoritária de políticos, de intelectuais ou da
própria imprensa e, sobretudo, dos militares, em investidas ocorridas desde a República,
passando pelo Estado-Novo e seguindo pela ditadura até desaguar na reedição do “pátria
amada Brasil”.
Utopia nacional no Brasil permanece realmente um tabu complicado.
Nessa hora, vira mesmo cada um por si e os interesses privados devem prevalecer
sobre o bem comum. Sendo assim, então para que perder tempo com isso? Utopias nacio-
nalistas superadas ou mais ainda com projeções de um projeto nacional? Tão “demodê!”.
Muitos acadêmicos consideraram mais interessante embarcar em um pós-modernismo
que deixa para trás essas mazelas periféricas de sociologias regionalistas já teoricamente
ultrapassadas, para falar em distopias! E, assim, escapa-se com algum “glamour” dos
dilemas cruéis que nos despedaçam abaixo da linha do Equador.

22
Vale a pena assistir (https://www.youtube.com/watch?v=Xp6VW1jwnRM). Importante lembrar que,
tendo falecido em 1997, Darcy não assistiu à ascensão e queda dos governos de esquerda na América Latina.

86
Poderia ser até divertido, se não fosse trágico, pensar nessa linhagem de acadêmicos
que sustentam críticas tão ácidas e implacáveis sobre os intelectuais que tomaram o Brasil
como objeto sociológico, não como negacionistas da necessidade de discutir uma identidade
nacional, por que isso eles até podem fazer e mostrar o quão fictícia é essa discussão. E
esse é o ponto. Não são intelectuais, mas acadêmicos negacionistas da existência de um
povo! É como parafrasear a famosa frase “se não tem pão, que comam brioches!”, que
traduzindo para nosso contexto ficaria: se querem uma nação que inventem um povo
primeiro, ora bolas!
Ou seja, por aqui a situação é realmente bem degradante, pois os parasitas e
sanguessugas travestidos de elites pretensamente cosmopolitas que se libertaram dessa
opressão de aderir a uma identidade macroétnica para pertencer, pois são do mundo!
Suas origens são arremedos de presunçosas raízes brasonadas. Assim, sem coletivos e,
portanto, sem utopias para concretizar é cada um por si, que brinde em sua bolha, com
champanhe, no conforto de sua ilha particular. Nesse lugar que não existe, não se admite
sequer nem que possa haver algum povo e, por isso mesmo, explicam por que falar em
nação é tão sem sentido.
Darcy conhece bem essa conversa... Quem o leu, sabe muito bem que ele admite:

Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando todos os trabalhadores


e atribuindo-lhes direitos. Nem mesmo o direito elementar de trabalhar para
nutrir-se, vestir-se e morar. Essa primazia do lucro sobre a necessidade gera um
sistema econômico acionado por um ritmo acelerado de produção do que o mer-
cado externo dela exigia, com base numa força de trabalho afundada no atraso,
famélica, porque nenhuma atenção se dava à produção e reprodução das suas
condições de existência (RIBEIRO, 1995, p. 441).

O pior é não ter nem o direito de existir nem que seja como conceito!
Assim, nossa pluralidade indissolúvel que poderia compor férteis destinos, vira
terra arrasada, sem lugar para existir nem na prática e nem na teoria, tem, por uma
minoria dominante, seus territórios existenciais demarcados em áreas descontínuas.
Essa demarcação está tanto delimitada em sua geofísica enquanto efeito concreto dos
conflitos e interesses fundiários e imobiliários, marcados pela oposição propriedade
privada e propriedade coletiva, quanto está delimitada também pela disputa de narrativas
de afirmação e negação do povo23.
Diante da difícil tarefa de conceituá-lo, alguns acadêmicos, preferem mantê-lo
como categoria desprezível, inclusive nas tentativas de existir, nem que seja em tese.
O fato é que o Brasil tanto (sub)existe como dado empírico concreto quanto
existe como fato social. E, por não cessar de se enunciar como problema, segue também
atualizando a obra de Darcy Ribeiro. Mesmo frente aos complexos dilemas de situar e

Para esta discussão, ver o capítulo “Afirmação e negação do povo como sujeito.” (MARTÍN-BARBERO,
23

2008, p. 26-42). No capítulo indicado, o autor situa as matrizes discursivas destas narrativas.

87
conceituar a existência de um povo brasileiro, terreno minado e espinhoso por aqui, como
acabamos de ver, situa a utopia como clamor profundo que precisa ser ouvido, visto,
admitido. Jamais deixar de ouvir o “som profundo que vem de baixo” – ter emprego,
saúde, educação, moradia, comida... desabafa o quanto é tarefa difícil explicar o Brasil
fartura-penúria, “com sua ordem social que mata, onde o domínio é brutal e estreito,
que usurpa a todos para obter uma quantidade de terra muito maior... isso é de uma
imensa brutalidade! E sempre insiste: como uma ordem social pode se organizar tanto
contra o povo!?”
Assim, ouvir o clamor das pessoas e tomar o poder nas mãos e se fazer sujeito
da história tendo um plano realizado a partir de realidades concretas, indica um traço
central da visão de utopia presente em Darcy. Durante o acalorado debate, a utopia
aparece também compreendida como invenção, criação de um lugar perfeito, ou seja, um
“lugar nenhum”, posto que se refere a um topos pertencente ao domínio do imaginário.
Nesse itinerário, esse domínio da imaginação deve percorrer o caminho da ação
e da realização de modo a ocorrer no tempo do aqui e agora. É da ordem do tempo do
presente.
Nesse ponto do debate, cita a utopia de D. Henrique, o navegante, que sonhava
com o paraíso na terra no aqui e agora, porque acreditava que o tempo do Pai e do Filho
já havia passado e que se havia adentrado a Era do Espírito Santo – tempo em que Deus
está solto. Essa teimosia de Darcy em fazer menção recorrente a esta utopia nos aponta
uma espécie de brecha antropológica já presente na idade média, como que querendo
nos instigar a alguma coragem para promover rupturas radicais inadiáveis.
Quando, herdeiros da sabedoria acumulada sobre a floresta, ocupando terras
agricultáveis bombardeadas pelo sol poderão adentrar pela biotecnologia, produção
energética e de alimentos? Quando irão poder explorar as possibilidades fantásticas
e mais prósperas que qualquer fonte de petróleo, quando poderão experimentar sua
autodeterminação e soberania?
Diz imaginar lindas paisagens, estradas ladeadas de pomares, jardins, com margens
de mangueiras, jaqueiras, jabuticabeiras ou hidrovias ladeadas de florestas, buritizais,
“o homem sabe há muito mais tempo do que se imagina criar a fartura total [...] há uma
quantidade enorme de ilusões que precisam ser compreendidas para esclarecer nosso
papel no mundo [...]”.
Com esse impulso utópico, em um elogio das nossas capacidades e forças criadoras
nos impele, realmente, a perguntar o que nos impede de realizar “diversas harmonias
bonitas possíveis sem juízo final” neste Circuladô de Fulô24. Darcy sempre enfatizou também
a importância que teve para si sua relação com os povos originários para definitivamente
esculpir sua visão de mundo, pois eles permitiram que Darcy entrevisse a concretude tão
bem formulada da possibilidade de realização do tal ideal de liberdade, porque sabiam
melhor do que qualquer outra civilização vivenciar a arte do conviver.
A frase citada entre aspas é da canção “Fora da Ordem”, de Caetano Veloso, primeira faixa do Álbum
24

“Circuladô de Fulô”, de 1991, sendo a segunda faixa o poema de mesmo título (citado na epígrafe deste
artigo), de Haroldo de Campos, musicado por Caetano.

88
“Seu forte [...] é nas artes do conviver. Nisto estão sozinhos. Organizam suas
vidas em comunidade como quem acha que o importante na vida é só viverem todos
juntos, convivendo livremente, sem medo de donos, nem de reis, nem de deuses [...]”
(RIBEIRO, 2007, p. 150).
Nesse sentido, mais do que um vir-a-ser, Darcy propõe explicações analíticas para
compreender nosso passado/presente. As projeções em um tempo futuro são desejos,
utopias, não premonições ou previsões sobre o país do futuro e, sim, muito mais, a
constatação do que poderia ter sido e não foi. “[...] um povo em ser, impedido de sê-
lo [...] na dura busca de seu destino.” (RIBEIRO, 1995, p. 447). E sempre gostava de
acrescentar que este destino é incerto e pode sempre, por pior que seja ou esteja, piorar.
Mas o nó em que estamos metidos em um Brasil de agora, diferente do que nos
querem fazer acreditar a imprensa e alguns acadêmicos (para variar), não é fruto de uma
politização. Ao contrário, se for pensar com as categorias politicas propostas por Hannah
Arendt, nunca estivemos tão despolitizados! Nunca houve em um único (des)governo
tanto analfabeto político junto ao mesmo tempo. Mas aí, deixamos para outra prosa.
Sem alinhavar comunidades políticas de destino, seguimos à deriva de onde do vácuo de
poder brotam os piores totalitarismos, títeres dos interesses sombrios que produzem lama,
óleo, fogo, enchente, desmatamento, sem INPE, sem IBGE (a lista é longa), a verdadeira
“arquitetura da destruição.”25. Como canta, por aqui, o poeta26: “O carneiro sacrificado
morre, o amor morre, só a arte não”. E viva nossos artistas, guerreiros intelectuais que
não se rendem, sem abrir mão, nem por um instante, das utopias!
“Este mundo é mundos [...] O que nós loucos somos é isto: testemunhas do
impossível. O tempo é muitos tempos simultâneos. Impossíveis. O espaço também. Quem
atravessou a cortina branca sabe. Todo impossível é possível em algum lugar.” (RIBEIRO,
2007, p. 80).
Então, vamos abrir alas e navegar os horizontes impossíveis. Gosto de imaginar
Darcy se regozijando em seu centenário, pois apesar de por aqui andar tudo despedaçado
e da intensificação da violência de Estado, a sociedade civil nunca foi tão madura em suas
organizações, MST adentrando bolsas de investimento, indígenas concretizando planos
de gestão territorial, crescimento de laços de solidariedade e organização nas favelas e
periferias do país, redes urbanas de sustentabilidade, autoestima dos afrodescendentes,
guardiões de toda espécie, dentre tantas forças desses Brasis que continuam a buscar as
vias mais férteis para a criação de laços genuínos de pertença em coletivos prósperos.
Para além da tragédia existencial, esse drama permanece inconcluso.
Para você, Darcy, o Brasil é sempre passado e aqui-agora, violentamente real, ora
sonho, ora pesadelo, mas indubitavelmente real, esculpido em fazimentos e desfazimentos
que se desdobram em miríades de devires. Pensou o brasileiro como invenção, sim, não
como ficção. Acomete-se de suas dores e por isso lutou de forma obsessiva e incansável,
edificando instituições, materializando leis e concretizando ideias. Dedicou sua vida a

25
Menção ao documentário Arquitetura da destruição, Peter Cohen, 1989.
26
Chico César, “Saharienne”, faixa do álbum “Aos Vivos”, de 1995.

89
querer inventar futuro para os Brasis. Cruzou ruas, estradas e caminhos, decifrando o
subdesenvolvimento na América Latina e lutou de forma obsessiva e incansável contra
esse moinho de gastar gente. Nosso Quixote Moreno, que se entregou apaixonadamente
à miragem de tantas outras topografias possíveis.

Toda a tribo é de santos bichos falantes, amorosos, coçantes. A roda da festa gira
que gira. Cada parente bicho quer contribuir mais para o moquém da festança.
Principalmente os primos Anta, Caititu e Queixada. Mas também os Veados, que
sendo cunhados, devem ser comidos com cuidado. Importantes são os avós Onças
Sussuaranas e Onças Pixunas. [...] a vovó Ema, que ninguém come jamais, é
impossível. Menos ainda a comadre Saracura que canta fino com o bico e grosso
como o cóbi. Quem come desafina. Peixe é bom demais. Mas gostoso mesmo no
moquém é Pacu. Tucunaré. Piranha. Cachorra. Tambaqui. Não se come é Piraquê.
Por quê? Bicho d´água que não é peixe, bom de comer, é só Jacaré e Cobra. Uns se
enroscando nos outros, roçando os pelos nas peles, as penas nos couros, os pelos
e as peles e as penas nas escamas e nas cerdas e vice-versa ao contrário. Quem
é quem? Quem é ninguém? O jacaré namora a onça, que namora a sucuri, que
namora o veado, que namora a garça, que namora o tatu, que namora o pacu,
que namora o pirarucu, que namora o bugio, que namora a si mesmo (RIBEIRO,
2007, p. 153, 158, 157, passim).

Estimado Darcy, envie minhas lembranças aos Galibi e também a Pitum e Axi,
Uxa, Tivi...
Abraços saudosos daqui de Montes Claros, período das Festas de Agosto, mas
ainda estamos na pandemia, então, daí é outro Xabu...

REFERÊNCIAS

MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Tradução de


Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

RIBEIRO, Darcy. Teoria do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

RIBEIRO, Darcy. Utopia selvagem: saudades da inocência perdida, uma fábula. Belo Horizonte:
Leitura, 2007.

90
DARCY RIBEIRO, MESTRE EDUCADOR BRASILEIRO

Lúcia Velloso Maurício

Quem sou eu para falar de Darcy?

Gosto de começar a falar de Darcy Ribeiro com um apelo que ele fez aos jovens:

Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando, como um cruzado,


pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios,
a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a
universidade necessária. [...] me atrevo a recomendar duas coisas aos jovens de
hoje. Primeiro, que não respeitem seus pais, porque estão recebendo, como herança,
um Brasil muito feio e injusto, por culpa deles. Minha também, é claro. Segundo,
que não se deixem subornar por pequenas vantagens em carreirinhas burocráticas
ou empresariais, pelo dinheirinho ou dinheirão que poderiam render. [...]
Meu apego apaixonado pela unidade nacional começa pela preservação desse
território como a base física em que nosso povo viverá seu destino. [...] Outro
valor supremo, e até sagrado, que quero comunicar à juventude, é o sentimento
de responsabilidade pelo atroz processo de fazimento de nosso povo, que custou
a vida e a felicidade de tantos milhões de índios caçados nas matas e de negros
trazidos de África, para serem desgastados no moinho brasileiro de matar gente.
[...] Éramos, ainda somos, um proletariado externo aqui posto para servir ao
mercado mundial. Criá-lo foi a façanha e a glória das classes dominantes brasileiras,
cujo empenho maior consistia, e ainda consiste, em nos manter nessa condição
(RIBEIRO, 1995, p. 263-265, passim).

Aí está a atualidade do engajamento social de Darcy Ribeiro, daí minha identificação


já longa com o autor. Para este texto, foi-me solicitado escrever sobre a proposta de
educação de Darcy Ribeiro, que é amplíssima, envolvendo da escola básica ao ensino
superior. Vou me atribuir à formação de professores para alunos da educação básica.
A visão de Darcy sobre este tema pode ser analisada por muitos ângulos, pois as
suas proposições mantêm elos entre todas as causas e fazimentos em que se envolveu na
vida. Destaco que sua formação de etnólogo e dez anos de convivência com indígenas
brasileiros deixaram marcas sobre suas propostas de sociedade, em particular na educação,
com um sentido coletivo de formação da infância e de responsabilidades na sociedade.
Agregue-se a esta característica, a formação adquirida na militância no Partido Comunista
Brasileiro e seu conhecimento teórico do marxismo.

91
Mas quem sou eu para ser convidada a escrever sobre Darcy em uma publicação
comemorativa de seu centenário? O que andei fazendo para chegar a ser conselheira da
Fundar? Conheci Darcy por acaso, quando trabalhei brevemente na Editora Paz e Terra.
Sabendo da minha trajetória de ex-presa política, saída da prisão recentemente, Darcy se
encantou com minha juventude e garra, falava comigo como se eu fosse representante de
minha geração. Logo que voltou do exílio, eleito junto com Leonel Brizola para o Governo
do Estado, convidou-me para um projeto de escola de demonstração no Município de
São Gonçalo, periferia do Rio de Janeiro, no I Programa Especial de Educação (I PEE).
Retratei esta fantástica e caótica experiência em minha dissertação de mestrado.
Convidei-o para a banca de defesa. Desta vez, encantou-se com o que para ele era um
valor, que reconheceu em minha dissertação (MAURÍCIO, 1990): mostrar o óbvio. Daí,
no 2.o Governo de Leonel Brizola, colocou-me como responsável pela formação de
professores de toda a rede de Centros Integrados de Educação Pública (CIEP’s). Discuti
este privilégio de participação no maior programa de educação do Brasil em minha tese
de doutorado (MAURÍCIO, 2004).
De lá para cá, tenho estudado, pesquisado, discutido, divulgado o projeto de
educação fundamental em tempo integral, através de vários caminhos que a universidade
viabiliza. Ou seja, há mais de 35 anos estou envolvida com a escola de tempo integral
que Darcy Ribeiro lançou, no Estado do Rio de Janeiro, o CIEP.
Em 2017, revivi intensamente o espírito de Darcy Ribeiro, seja organizando o
seminário promovido pela Fundação Darcy Ribeiro (Fundar), denominada “Darcy Ribeiro
20 anos – que falta ele nos faz”, seja participando de mesa neste mesmo Seminário; ou
organizando um livro com textos de Darcy Ribeiro sobre educação – Educação como
prioridade (RIBEIRO, 2018) – publicado pela Editora Global; ou editando um número
especial da Revista Interinstitucional Artes de Educar (MAURÍCIO, 2017), que reúne
três programas de pós-graduação em educação de três universidades públicas do Rio de
Janeiro – UERJ, UFF, UNIRIO.

Concepção de Darcy Ribeiro sobre educação básica

Para Anísio Teixeira (1994), a escola primária obrigatória deveria formar a massa
do trabalhador nacional. E sua finalidade não seria preparar para o futuro, mas a própria
vivência na escola. Ela deveria ser, sobretudo, prática, de formação de hábitos de pensar,
de fazer, de conviver, de trabalhar, de participar de um ambiente democrático. Por isso,
seus períodos não poderiam ser curtos, porque um programa de atividades práticas,
para formar hábitos de vida real, para organizar a escola como uma comunidade com
todo tipo de atividade – trabalho, estudo, recreação e arte – requer tempo. Para o autor,
as habilidades necessárias para a vida no século XX – ler, escrever, contar e desenhar
– precisam ser ensinadas como técnicas sociais, em contexto real. Por isso o currículo

92
da escola necessita se harmonizar com as características da vida da comunidade, suas
tradições, seus trabalhos.
Anísio Teixeira considerava que a escola era a instituição para a sobrevivência,
suprindo deficiências de outras instituições. Aos que criticavam o custo desta proposta
de educação, respondia que não há preço para a sobrevivência. Afirmava que o brasileiro
tinha razão em desacreditar da educação escolar, porque o que ele conhecia até então
era a improvisação. Considerava que a maior dificuldade da educação primária era
conseguir um professor que pudesse atender aos requisitos de ensino tão diversificado.
Darcy Ribeiro, discípulo confesso de Anísio Teixeira, tem concepção de escola
pública de tempo integral profundamente marcada pelas ideias de seu mestre. Das
diferenças que se podem verificar entre a experiência de Anísio Teixeira, na Bahia, com
o Centro Educacional Carneiro Ribeiro e a de Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro, com o
CIEP, muitas se devem à operacionalização das escolas, tendo em vista o intervalo de
trinta anos entre uma e outra e os contextos socioeconômicos diversos de Salvador e
Rio de Janeiro. Destaque-se que foram implantadas durante a vigência de diferentes leis
reguladoras da educação, a Lei 4.024, de 1961, e a Lei 5.692, de 1971 (MAURÍCIO, 2007).
A proposta de escola de tempo integral de Darcy Ribeiro (1986) se baseou no seu
diagnóstico de que a incapacidade brasileira para educar sua população ou alimentá-
la se devia ao caráter deformado de nossa sociedade, de descaso por sua população.
Atribuía essa característica à maneira como nossa classe dominante via o povo: mera
força de trabalho. Atribuía nosso atraso educacional a uma sequela do escravismo,
preço que pagávamos por ter sido o último país do mundo a acabar com a escravidão.
Darcy enfatizava que a transição da cultura oral para a escola moderna não se processa
automaticamente. Só é alcançada como resultado de vontade política, para universalizar
uma escola de qualidade. Para ele, é inegável a relação entre sociedade industrializada e
escolarização de sua população, mas uma não produz a outra, necessariamente. A escola
por si só não produz o desenvolvimento, nem ele universaliza automaticamente a escola
(1994). A função da escola na sociedade industrializada é formar uma força de trabalho
competente e uma cidadania lúcida (1991).
Segundo o autor, nossa escola incorporou a ilusão de que ela seleciona e promove
os melhores alunos, através de procedimentos pedagógicos objetivos. Ela apenas peneira
e separa o que recebe da sociedade já devidamente diferenciado. Ao tratar da mesma
maneira crianças socialmente desiguais, a escola privilegia o aluno já privilegiado e
discrimina crianças que renderiam muito mais se fossem tratadas a partir de suas próprias
características (RIBEIRO, 2018). A tarefa da escola é introduzir a criança na cultura da
cidade, servindo de ponte entre o conhecimento prático que a criança pobre já adquiriu
e o conhecimento formal que é exigido pela sociedade letrada (RIBEIRO, 2018).
Darcy Ribeiro considerava que um fator importante do baixo rendimento da
escola brasileira residia na exiguidade do tempo de atendimento. Para ele, a criança das
classes abonadas que têm em casa quem estude com ela algumas horas extras, enfrenta
galhardamente esse regime escolar em que quase não se dá aula. Ele só apena, de fato,

93
a criança pobre oriunda de meios desassistidos, porque ela só conta com a escola para
adquirir o conhecimento formal. Só uma escola de tempo integral, como as que todo o
mundo desenvolvido oferece às suas crianças, pode tirar a infância brasileira, proveniente
das famílias de baixa renda, do abandono das ruas ou de situações de falta de assistência
em lares onde seus pais não podem estar, levando as crianças das classes populares a
terem sua infância suprimida, assumindo funções de adultos.
O número de anos que as crianças devem passar na escola não se explica apenas
pela quantidade de conteúdos e matérias que devem aprender. A faixa dos sete aos
quatorze anos corresponde a um período decisivo do seu amadurecimento. Não é o ensino
que permite o desenvolvimento físico e mental da criança. É este desenvolvimento que
permite a aprendizagem. Brincar é uma atividade essencial nesse processo. O recreio
não é um favor que se faz ao aluno, e a escola não é prisão. A escola é um lugar de vida
e alegria; o recreio é tão importante quanto a sala de aula (RIBEIRO, 2018).
Darcy Ribeiro advogava que toda a infância brasileira é capaz de ingressar no
mundo das letras para se formar como um trabalhador hábil e um cidadão lúcido, se
lhe forem compensadas as condições de pobreza em que vivem; de ignorância de suas
famílias, que não tiveram escolaridade prévia; e de falta de algum parente letrado que
oriente seus filhos nas tarefas escolares. Para ele, é necessária educação de dia completo;
escola ampla para que passem o dia estudando, fazendo exercícios físicos e brincando;
além das aulas comuns, deve-se oferecer orientação complementar em estudo dirigido;
e atividades diversificadas, de modo a aproximar a educação das crianças das classes
populares daquela que é recebida pelas crianças das classes abastadas; dieta alimentar
balanceada, banho diário, assistência médica e dentária. Esta era a proposta dos CIEP’s.
Em síntese, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro comungam a compreensão sobre o que
se faz necessário para escolarizar a criança brasileira. Tanto um como outro explicitam
que a criança popular precisa ter na escola, coletivamente, oportunidades que o filho da
classe média tem na sua própria casa. E esse ponto de vista vai se desdobrar na necessidade
da escola de tempo integral. Anísio enfatiza que, para uma escola desenvolver a criança
integralmente, e isso só se faz com atividades práticas, requer tempo. Darcy mostra
como as carências sociais implicam uma escola de dia completo e, em consequência, os
serviços que ela deve prestar e prestou nos CIEP’s.
Outro aspecto desenvolvido por ambos é a ideia de enraizar culturalmente a
escola na comunidade, apesar desta noção aparecer em propostas de operacionalização
diferentes. Em Anísio, ela vai se consolidar na defesa da municipalização. Darcy defende
a interação da cultura popular com a letrada dentro da escola, através da participação
da comunidade e da introdução da figura do animador cultural.
Sintetizando, cito abaixo as condições que Darcy Ribeiro advogava para a educação
básica. Ele repetia reiteradamente as condições para uma boa escola pública, que, entre
outras ações, ele semeou no formato de CIEP’s.

94
Espaço para a convivência e as múltiplas atividades sociais durante todo o largo
período da escolaridade, tanto para as crianças como para as professoras. O
Tempo indispensável, que é igual ao da jornada de trabalho dos pais, em que a
criança está entregue à escola. Essa larga disponibilidade de tempo possibilita a
realização de múltiplas atividades educativas, de outro modo inalcançáveis, como
as horas de Estudo Dirigido, a frequência à Biblioteca e à Videoteca, o trabalho
nos laboratórios, a educação física e a recreação. O terceiro requisito fundamental
para uma boa educação é a Capacitação do Magistério (RIBEIRO, 1995, p. 22).

Uma experiência de formação de professores

Como não é possível abordar todas as preocupações de Darcy Ribeiro com a


educação básica, vou me concentrar na formação do professor, na época nomeado
Capacitação do Magistério, porque o fator “mais tempo” já está entranhado na proposta
do CIEP; o fator “espaço compatível com o tempo”, está imortalizado por Oscar Niemeyer
no projeto arquitetônico do CIEP. Assim, abordando a formação do professor no 2.o
Programa Especial de Educação que implantou os CIEP’s, entre 1992 e 1994, quando a
nova Constituição já estava em vigor, consigo rememorar a concepção de Darcy Ribeiro
sobre ensino fundamental e formação docente, além de ilustrar sua ousadia e criatividade
(MAURÍCIO, 2012).
Em 1992, quando Leonel Brizola assumiu o Governo do Estado do Rio de Janeiro,
na sua segunda gestão, recebemos um terço dos prédios dos CIEP’s já construído, sem
contar com os 97 pertencentes ao Município do Rio de Janeiro. Os CIEP’s estaduais que
recebemos estavam sem manutenção desde o Governo anterior e com funcionamento em
turnos, já que o projeto de tempo integral fora desarticulado pelo Governador Moreira
Franco. Todos os outros prédios de CIEP estavam no esqueleto ou para serem construídos.
Ou seja, eram 409 CIEP’s estaduais para serem erguidos, ou terminados e reequipados,
além da lotação e preparação dos professores, equipes gestoras e funcionários para o
desafio de implantar a escola de tempo integral.
Vamos enfatizar bem: para que esta meta fosse alcançada, após seis meses iniciais de
organização do Governo, seria necessário um ritmo de operacionalização que colocasse em
funcionamento dez CIEP’s por mês, durante 42 meses, para dar conta dos 409 propostos.
Isto significava construir ou reconstruir, equipar, lotar e preparar professores, matricular
alunos em escolas com capacidade para setecentos alunos em turno integral, com cerca
de quarenta profissionais, em mais de cinquenta municípios do Estado, na época.
Darcy tinha preocupação primordial com a formação dos professores. Acalentava
que os professores passassem por uma residência pedagógica, para que sua prática fosse
erigida dentro do conhecimento científico.
Nossas faculdades de educação, integradas em universidades que jamais formariam
médicos sem um hospital de clínicas, mas pretendendo formar professores sem qualquer

95
experiência das artes da educação. Convertem a pedagogia numa série de discursos ocos,
pretensamente educativos, sobre disciplinas científicas e humanísticas, supostamente
indispensáveis à formação de um professor (RIBEIRO, 1991, p. 4).
Por outro lado, precisava disponibilizar quatrocentos profissionais por mês para
colocar em funcionamento cada dez CIEP’s. Como criar cargos nesta velocidade? Como
preparar o magistério nesta premência de tempo? Onde encontrar estes profissionais?
Como selecioná-los? Sem esquecer o fato de que estariam dispersos por todo o Estado
do Rio de Janeiro.
Aí reside a genialidade de transformar uma situação com tantas limitações e
desafios, em uma oportunidade de solução inovadora, sem abrir mão dos princípios que
embasavam sua concepção de formação do magistério.
Sua proposta de formação estava calcada na concepção de residência médica,
mencionada na publicação Falas ao Professor (PEE, 1985), a qual o Senador Darcy
Ribeiro, autor do projeto, referiu-se em público, diversas vezes. O curso era dirigido a
recém-formados de nível médio, ou seja, já tinham certificação, mas ela era recente, pois
foi proposto como critério de ingresso que o candidato tivesse no máximo cinco anos
de conclusão do Curso Normal. Por outro lado, o candidato não podia ter vínculo com
instituição pública, ou seja, não era servidor público ainda. Portanto, poderia passar por
processo de avaliação e ser integrado ou não à rede de escolas. Como os participantes
do curso eram estudantes, sua remuneração era em forma de bolsa de estudos e sua
certificação era garantida pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em forma de
curso de extensão.
Além disso era um curso a distância, em termos de distribuição de material didático,
mas era um curso presencial no que diz respeito à orientação por profissional qualificado
e no que diz respeito à formação de uma turma. O projeto se distanciava de qualquer
perspectiva de precarização salarial dos professores, como foi acusado, já que a bolsa
que os participantes recebiam correspondia ao piso salarial de professor estatutário em
início de carreira. Recebiam o dobro do piso, pois permaneciam na escola o dobro da
carga horária do professor efetivo, parte em regência de turma, parte no curso.
O projeto pedagógico do Curso Livre de Atualização para professores de escola
de tempo integral fez do CIEP um centro de formação para a educação básica e para o
magistério. A orientação das bolsistas, como eram chamadas as professoras-cursistas, era
feita por professor-orientador, profissional efetivo do Estado selecionado para exercer
esta função, que além de dinamizar diariamente o curso na parte da manhã ou da tarde,
exercia regência de turma no contraturno. Desta forma, não se afastava da prática de
sala de aula. Com a utilização desta dinâmica, cada CIEP contava com duas turmas de
formação em serviço, uma com atividades teórico-metodológicas pela manhã e outra à
tarde. Cada uma, com um professor-orientador. Estes profissionais, além da formação
inicial, participavam de reuniões mensais com a coordenação do projeto para que
pudessem desempenhar sua função (MONTEIRO, 2002).

96
O curso, com duração de 1.600 horas, foi organizado em três módulos de 640
horas, cada um correspondendo a um semestre letivo. Era realizado dentro de cada CIEP e
distribuía a carga horária de oito horas diárias em quatro horas de prática docente orientada
e quatro horas de estudos teórico-pedagógicos. Utilizava-se de programas de vídeo e
material impresso. Assim, as turmas da escola contavam com duas professoras-bolsistas
cada uma, a docente da manhã e a da tarde, com reunião semanal para planejamento
das atividades.
No cotidiano do curso, eram exibidos três programas de vídeo, com duração de
vinte minutos cada, todos os dias. A programação televisiva era veiculada pela antiga Rede
Manchete, em canal aberto. A grade de programas era informada pela própria emissora
antecipadamente. Essa programação era gravada nos CIEP’s pela videoeducadora, de
forma que, ao fim do curso, cada CIEP tivesse gravado o acervo completo dos filmes. Os
filmes eram assistidos e debatidos pelas professoras-bolsistas junto com a professora-
orientadora (PO), que poderiam rever a programação, se quisessem. Assim, a programação
era única, mas sua utilização ficava a critério de cada escola e/ou grupo de ex-bolsistas,
que estabeleciam seu próprio ritmo (RODRIGUES, 2011).
Este curso de formação em serviço se desenvolveu entre 1992 e 1993. Os 6.426
professores recém-formados em nível médio foram selecionados entre 22.118 candidatos
em 54 municípios dos 81 então existentes no Estado do Rio de Janeiro. A seleção era
realizada por município e incluía uma redação sobre tema educacional e uma prova
elementar de matemática. Para serem aprovados, inicialmente, os candidatos tinham
que alcançar nota cinco nas duas avaliações.
Para avaliação do desempenho no curso, cada dupla de bolsistas responsável por
uma turma, ao fim de cada módulo, elaborava um relatório das atividades realizadas no
período, argumentando, com base no conhecimento adquirido, o que fora desenvolvido;
e avaliando os resultados alcançados. Estes relatórios eram analisados e devolvidos às
bolsistas com comentários. Caso os relatórios não mostrassem capacidade de refletir
sobre a prática, pedia-se às bolsistas que fossem refeitos. Este foi um dos fatores mais
importantes para a credibilidade do curso. Os professores aprovados no curso receberam
certificado que serviu como título no concurso público, realizado no fim de 1993 para
preenchimento de vagas em todos os CIEP’s, por profissionais concursados, antes do
término do Governo.
Como docente e pesquisadora, em contato com profissionais de outras Universidades
do Estado do Rio de Janeiro, tenho reunido indícios do impacto que aquele curso imprimiu
em diversos professores que passaram por aquela experiência dos anos 90. Em 2004,
um dos cursos realizados pela Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR), em contrato com
a Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEE-RJ), teve como
trabalho final a construção de um memorial que relacionasse a história de vida pessoal
e profissional ao curso do momento. Todos os memoriais de “ex-bolsistas” mencionaram
aquela formação em serviço como definidora de sua opção profissional. Vejam dois
depoimentos:

97
Tenho muita saudade daquele primeiro ano em 1993, tudo funcionava, tudo era
novo, nossos olhos brilhavam pelo encanto de participar de um programa de alto
nível, chamado CIEP [...]. Em 1993 fiz a prova para o Estado, passei e optei em
retornar para o mesmo Ciep.

Tive um choque com CIEP: salas lotadas, alunos sem limites, carentes de tudo [...]
precisavam de auxílio tanto quanto eu [...] não agiria com eles com a repressão
[...]. Em 1992, optei por trabalhar 40 horas, comecei então ter mais tempo para
os alunos o que facilitou nosso relacionamento.

Gatti e Barreto (2009), examinando propostas curriculares de experiências de


formação em serviço anteriores à LDB, destacaram características comuns como fatores
que favoreceram os resultados inovadores: preocupação com a formação dos formadores,
ou seja, através de encontros regulares ou de materiais próprios para orientação. Esta
ação foi cuidadosamente desenvolvida no Curso de Atualização para os professores dos
CIEP’s. Os professores orientadores passavam por seleção, formação inicial e mensal,
para exercerem sua função de dinamizadores do curso em serviço. As autoras destacaram
outros pontos que também se fizeram presentes no curso dos CIEP’s, como a avaliação
formativa, que no caso dos CIEP’s correspondia ao relatório que articulasse as discussões
teóricas do período com a prática em sala de aula. E mais além: o concurso público
realizado em 1993 constituiu um processo avaliativo do próprio curso, pois as bolsistas
conseguiram índice de aprovação 10% mais alto que o dos candidatos que não haviam
passado por esta experiência formativa.
Outro aspecto abordado pelas autoras diz respeito à integração de vivências na
escola e experiências pessoais de formação. No caso do curso de professores para os
CIEP’s, destacam-se dois fatos: primeiro, a permanência em tempo integral no ambiente
que envolvia tanto a prática docente quanto a prática formativa. Assim, teoria e prática
se davam no mesmo espaço e de forma coletiva. Cada um destes fatores, por si só, já
favorece a reflexão sobre sua própria prática inserida em valores e vivências pessoais.
E para coroar este processo, as bolsistas não faziam estágio nas turmas – elas eram as
responsáveis por suas turmas, eram suas professoras, em dupla. Esta dimensão, difícil de
ser encontrada em outros projetos de formação, é intrínseco a um modelo de residência
pedagógica.
Em síntese, foi uma experiência inovadora, utilizando recursos variados e oferecendo
qualidade; sedutora, tendo em vista os recursos oferecidos; e significativa, considerando
a abrangência da população envolvida, sejam docentes, alunos e escolas espalhados em
mais de cinquenta municípios.
Finalmente, quero lembrar como o investimento na formação de professores gerou
adesão ao projeto, mesmo já passados muitos anos. Em maio de 2006, o jornal O Globo
publicou, durante uma semana, uma série de reportagens sobre os Centros Integrados de
Educação Pública (CIEP’s), que completavam 21 anos (MAURÍCIO, 2009). A série exibia

98
a avaliação do jornal: um fracasso. As reportagens atualizaram os argumentos que, na
época, vinte e um anos atrás, legitimaram a condenação do projeto de escola pública de
tempo integral ao abandono: era caro, portanto inviabilizava a universalização do ensino
fundamental; era caro, entretanto não garantia eficiência; era caro porque atribuía à
escola funções assistenciais; era caro porque a escola ficava ociosa; era caro porque seu
objetivo de fato era a visibilidade necessária – projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer
em beira de estrada – para favorecer a virtual chegada de Leonel Brizola à Presidência da
República. Veja-se a maneira como o jornal O Globo abordou o projeto, sem mencionar
o processo de abandono ao qual os Governos subsequentes submeteram os CIEP’s:

os Cieps foram criados para serem a escola pública dos sonhos [...] continuam
sendo apenas um sonho; dos 501 (Cieps) existentes no Estado, apenas 113 (22,5%)
funcionam exclusivamente em horário integral; dos 21 alunos da turma 101 do
primeiro Ciep inaugurado, só um chegou à faculdade e metade não concluiu o
ensino fundamental.

No terceiro dia das reportagens, lemos o editorial: Fracasso dos Cieps. Afirma que
“o aluno custa quatro vezes mais e tem o mesmo desempenho”, sem considerar que o custo
está caro porque os CIEP’s estão vazios, e estão vazios porque os governantes destituíram
as suas condições de funcionamento. Como a população percebe este movimento, tira
seus filhos desta escola. Os demais argumentos do editorial já são todos conhecidos, a
novidade está na revelação da estratégia considerada mais adequada do que o projeto
dos CIEP’s:

Pode-se imaginar o que se alcançaria se o dinheiro aplicado nesse projeto fosse


investido em construção, reforma e reequipamento de escolas convencionais e
treinamento e mesmo melhoria salarial de seus professores [...] A influência
do projeto dos Ciep’s nesse processo (de melhoria) não é perceptível. Como
seguramente teria sido, e em grande escala, se o foco fosse outro: as milhares de
pequenas escolas públicas, modestas e tão carentes, espalhadas por todo o Estado.

O editorial apontou o cerne da questão: se o foco fosse outro. Entretanto, é um


sentimento de confiança na possibilidade da escola de tempo integral que transparece
nas cartas de leitor ao lado do editorial, naturalmente selecionadas por outra editoria.
Das sete, três foram escritas por professores que trabalham ou trabalharam nos Ciep’s.
Uma, inclusive, foi ex-aluna. Estes profissionais revelam compromisso com o projeto e
crença na sua viabilidade. As explicações que atribuem ao estado atual dos Ciep’s é a
falta de vontade política e a insensibilidade dos governantes. Adjetivos como lamentável,
urgente, inacreditável perpassam os textos. Dos argumentos usados no editorial, as cartas
rebateram o custo, mencionando seu uso como desculpa mal costurada, melhor escola

99
que penitenciária e que a ideia de luxo é imperdoável. Sobre fracasso, mencionaram
alunos que foram para faculdade ou que exercem atividades dignas. A ex-aluna alcançou
cidadania e profissão através desta escola. E sobre funcionamento em horário integral,
as professoras são testemunhas. Uma das cartas é exemplar:

O Ciep pode dar certo, desde que tenha gestão comprometida com a educação;
corpo docente envolvido na proposta; projeto político pedagógico que envolva
todos os segmentos escolares; participação efetiva da comunidade e da família
[...] mas, dá trabalho.

Este é um exemplo de como professores que se formaram e trabalharam nos CIEP’s


gerou forte adesão a esta proposta de escola. Este é um legado que Darcy Ribeiro nos
deixou, tão forte que até hoje temos a escola de tempo integral na plataforma de campanha
de muitíssimos políticos, mesmo aqueles que de fato não têm qualquer compromisso
com a escola para o povo brasileiro.
Nas palavras de Darcy

Toda uma revolução educacional está se realizando, hoje, debaixo de nossos olhos.
Está em marcha a revolução pela qual nossos educadores lutam há 50 anos. Mas
quase ninguém tem olhos de ver. É sintomático o fato de que os grandes jornais
do mundo deram mais notícias, e notícias mais entusiásticas, desta revolução
educacional, que a nossa mídia. Seria aceitável e até meritória sua crítica, se
apresentassem um corpo de alternativas, se indicassem que este não é um bom
caminho, porque o caminho seria outro, que se estaria prescrevendo. Mas não é
assim. Simplesmente se rejeita, o que só se explica por estarem contentes com
o Brasil tal qual é, e em matéria de educação, só quererem nos manter atados
ao sistema educacional precaríssimo que temos e que condena nosso povo à
ignorância e ao atraso (p. 176).

Concluindo, Darcy insistia que a tarefa da escola é introduzir a criança na cultura da


cidade, valorizando sua vivência; que a escola deve servir de ponte entre o conhecimento
prático que a criança pobre já adquiriu e o conhecimento formal que é exigido pela
sociedade letrada. Afirmava que, ao tratar da mesma maneira crianças socialmente
desiguais, nossa escola privilegia o aluno já privilegiado e discrimina crianças que
renderiam muito mais se fossem tratadas a partir de suas próprias características.
Para compreender a escola brasileira atual, é necessário estudar a relação entre
as formas sociais orais e as formas sociais escritas. Embora a forma escolar escrita
tenha prevalecido, fundamento da própria escola, ela convive simultaneamente com
outras maneiras diferentes de pensar e olhar o mundo, formas de se relacionar com a
história e produzir a memória, de compreender os processos de educação. Boa parte de
dificuldades de aprendizagem dentro das salas de aula tem origem no conflito entre formas

100
de aprendizagem oral internalizadas e a imposição de um modo escrito de ordenar o
pensamento. Esta compreensão precisa ser incorporada pelas instituições educacionais e
pelos próprios professores. Esta era uma compreensão e orientação presentes na formação
das professoras bolsistas no curso descrito.
Darcy Ribeiro (1986) incorporou a compreensão de que a escola para o povo
com acentuada estratificação social se torna mais complexa e difícil de operacionalizar.
Difícil pela diversidade de condições e alunos que deve atender, pela precária formação
e desvalorização do professor, pela pouca compreensão das autoridades das repercussões
sociais da falta de investimento em educação. Compartilhava com Anísio Teixeira que a
preparação do professor deveria levar em consideração que, com a massa de informações
disponíveis através dos meios de comunicação, o professor deixava de ser um informante
privilegiado e de autoridade indiscutível para se tornar um integrador de conhecimentos
e formador do juízo crítico do aluno. O novo mestre não podia ser a jovem adolescente
recém-saída da escola de ensino médio que optou pelo magistério por considerar uma
profissão adequada ao sexo feminino. O novo professor devia ter escolhido o magistério
por vontade própria.
Darcy Ribeiro terminava sua exposição de motivos afirmando que devido à
complexidade da tarefa do professor – de receber uma criança ainda em formação, mas
já dotada de humanidade, para capacitá-la a ser cidadã de sua cultura –, tinha convicção
de que o ensino normal deveria passar para nível superior, com curso de quatro anos em
universidade, tanto para o professor alfabetizador como para qualquer outro especialista
em educação. Para ele, a tarefa do professor era mais desafiante e difícil que a do médico.
Por outro lado, reconhecia que não poderíamos esperar este professor universitário ficar
pronto. Era indispensável oferecer aos professores atuais, que ensinariam milhões de
crianças nos anos seguintes, formação continuada para que prosseguissem se aprimorando
em suas carreiras. Daí, sua proposta de Escola de Demonstração27, que excede o escopo
deste texto.

REFERÊNCIAS

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e desafios. Brasília: UNESCO, 2009.

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Janeiro, Ed. UERJ, v. 3, n. 2, p. 82-97, 2017. (Edição Especial Darcy Ribeiro).

MAURÍCIO, Lúcia Velloso. Escola de horário integral e inclusão social. In: Informativo Técnico-
-Científico Espaço INES, Rio de Janeiro, n. 27, p. 43-53, jan./jul. 2007.

27
Sobre Escola de Demonstração, ver seção sobre o tema em Ribeiro (2018).

101
MAURÍCIO, Lúcia Velloso. Formação em serviço como residência pedagógica: representações sociais
do curso dos Centros Integrados de Educação Pública. In: Revista de Educação Pública, Cuiabá, Ed.
UFMT, v. 21, p. 505-523, 2012.

MAURÍCIO, Lúcia Velloso. Literatura e representações da escola pública de horário integral. In: Revista
Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 27, p. 40-56, set./dez. 2004.

MAURÍCIO, Lúcia Velloso. Por que picharam a escola? Experiência de democratização em escola pública
de 1.o Grau. 1990. Dissertação (Mestrado em Educação) – Fundação Getúlio Vargas/ IESAE, Rio de
Janeiro, 1990.

MAURÍCIO, Lúcia Velloso (Org.). Em Aberto, Brasília, Ed. INEP, v. 22, n. 80, abr. 2009.

MAURÍCIO, Lúcia Velloso (Org.). Tempos e espaços escolares: experiências, políticas e debates no
Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Ponteio/Faperj, 2014.

MONTEIRO, Ana Maria. A formação de professores nos CIEPs: a experiência do curso de atualização
de professores para escolas de horário integral no Estado do Rio de Janeiro – 1991-1994. In: COELHO,
Lígia Martha Coimbra da Costa; CAVALIERE, Ana Maria Vilela (Org.). Educação brasileira e(m)
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RIBEIRO, Darcy. Balanço crítico de uma experiência educacional. In: Carta n.o 15: o novo livro dos
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RODRIGUES, Kesia dos Santos. O curso de atualização para escolas de horário integral: uma análise
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TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. 5. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994.

102
DARCY RIBEIRO E A UNIVERSIDADE NECESSÁRIA

Ildenilson Meireles

O diagnóstico desde o exílio

Numa intervenção no Simpósio sobre Ensino Público, por ocasião da 29.ª Reunião
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada em São Paulo em
julho de 1997, Darcy Ribeiro traça o perfil da classe dominante brasileira reconstituindo
peça a peça o quadro das obviedades ao qual o povo sempre esteve submetido, submisso
e dependente. Não sem a ironia peculiar em seus discursos, Darcy Ribeiro faz o elogio
da classe dominante brasileira no intuito de demonstrar, como ele mesmo diz, “toda a
sua alta competência” na estruturação de um “Brasil como uma sociedade de economia
extraordinariamente próspera.” (RIBEIRO, 2015, p. 17).
A mais nítida das obviedades elencadas por ele diz respeito ao modo como o
Brasil conseguiu, com bastante sucesso, produzir a si mesmo como um país dependente.
Uma espécie de deliberação, um anseio pela subalternidade, um ímpeto ao servilismo
estrangeiro atravessado por um desejo implacável de esvaziar o país de suas riquezas e
entregá-las aos colonizadores, sejam europeus ou norte-americanos.
Esse traço parece ser fundamental quando analisamos de perto os textos de Darcy
Ribeiro. Não há um tema que tratado por ele isoladamente, o que é somente aparência,
que não esteja coordenado pela perspectiva de construção do Brasil. Mas, trata-se de uma
construção em chave problemática, verticalizada a partir dos interesses sempre nefastos
de uma classe economicamente abastada que soube, como ninguém, espoliar a força
de trabalho dos povos escravizados, índios e negros, na elaboração de um projeto de
país economicamente promissor. Desde a façanha genial em saber explorar as riquezas
por meio da força de trabalho escravo, ou seja, produção a custo zero, passando pelo
pioneirismo nos processos de independência na América Latina, a repressão ostensiva a
qualquer tentativa de revoluções sociais, a Lei de Terras (1850) que determina a “compra”
e o registro em cartório, até alcançar, também com sucesso, o prolongamento do fim da
escravidão. O Brasil foi o último país a promover a abolição da escravatura.
O que essa genealogia do fracasso demonstra? Por que remontar às condições de
possibilidade de um país tão vasto como o Brasil para diagnosticar suas mazelas? Que
esperança pode trazer essa reconstituição, dado que ela só nos revela o pior de um país
que tinha tudo para dar certo?
Engana-se quem pensa que Darcy Ribeiro era partidário de um pessimismo
nacionalista. Engana-se, do mesmo modo, quem pensa que ele era partidário de um

103
contentamento sem fim com os resultados alcançados no processo de formação do Brasil.
Não sendo nem uma coisa nem outra, uma chave de leitura plausível da obra de Darcy
Ribeiro é a utopia. Há uma utopia em Darcy que salta de sua obra e de seus projetos
com um vigor incomparável.
O texto de Darcy lança o leitor numa viagem vertiginosa pelo Brasil profundo,
aquele que nos foi negado no material didático do ensino básico e que continua sendo
negligenciado no ensino superior. Mas é justamente essa vertigem que unicamente é
capaz de traduzir as mazelas, as contradições, as aberrações, a exploração, o roubo, o
grande projeto de uma nação que nasceu de joelhos e que se recusou historicamente a
se levantar e caminhar com as próprias pernas. Então, parece que é disso que se trata,
ao fim das contas, na reconstituição das obviedades a que estamos acostumados, isto é,
de uma vertigem necessária para recuperar o sentido de um projeto de país que pode
dar certo e de uma potência histórica que não se perde no tempo e que se torna, no jogo
memória-esquecimento, o combustível necessário para a retomada da utopia.
A via de interpretação da utopia em Darcy Ribeiro que gostaria de arriscar, como
a mais promissora para se pensar o Brasil que foi um dia possível, que não existe ainda,
mas que reencontra sempre sua possibilidade de vicejar, essa via é a educação. Arrisco
a hipótese de que o conjunto dos processos formativos no Brasil foi, desde sempre, o
grande fator de atraso do progresso científico e cultural experimentados por nós. Nem
é necessária uma “hipótese” acerca disso, pois já está no texto de Darcy Ribeiro, ainda
que de modo disperso. O que quero fazer é explicitar essa via de interpretação e arriscar
algumas apostas acerca do cenário atual do nosso sistema de ensino, considerando as
causas do nosso atraso, de modo que o pensamento utópico de Darcy Ribeiro possa
surgir no registro próprio de um pensamento nacional e no contexto da América Latina.
Para tanto, tomarei a perspectiva do ensino em geral e do ensino superior no Brasil
em particular a partir de várias análises feitas por Darcy em vários momentos de sua
trajetória intelectual.
Em 1968, em pleno exílio no Uruguai, Darcy Ribeiro organizou um fórum de
discussão acerca da condição da universidade latino-americana cujas análises atestavam,
naquele momento, o estado de calamidade das instituições de ensino superior nos países
dependentes. Essa constatação a partir de um estudo sistemático do estado atual das
universidades latino-americanas tinha em vista um projeto de recuperação da força política
das universidades, novos propósitos de formação e uma nova cultura acadêmica menos
encastelada e fechada em si mesma, menos europeizada, e mais envolvida com os reais
problemas do seu entorno. Esse projeto foi batizado por Darcy Ribeiro de Universidade
Necessária, um projeto certamente utópico, pois pensava a universidade a partir de um
presente conturbado em direção a um futuro mais promissor em que pudesse contribuir
de forma efetiva nos avanços estruturais do povo latino-americano.
Desse colóquio organizado por Darcy Ribeiro na Universidad de la República de
Uruguai nasceu justamente o livro A Universidade Necessária, que traz uma análise profunda,
em forma de comparação, das estruturas universitárias europeias e norte-americanas em

104
relação às estruturas latino-americanas. Uma das primeiras comparações feitas por ele
reside nessa distância entre processos em sociedades desenvolvidas em que a universidade
é absorvida por condições mais confortáveis a bem do próprio desenvolvimento nacional
e processos em sociedades dependentes, caso dos países latino-americanos, em que a
universidade precisa atuar a contrapelo do subdesenvolvimento:

Todas as grandes estruturas universitárias do mundo moderno podem ser definidas


como produtos residuais da vida de seus povos, somente inteligíveis como resultantes
de sequências históricas singulares. Elas são, na verdade, subprodutos reflexos de
um desenvolvimento social global que não se fez a partir da universidade para
o qual ela contribuiu secundariamente. Pelo contrário, este desenvolvimento,
uma vez alcançado, atuou sobre as universidades, provendo-as de recursos e
exigindo-lhes novos serviços. Às nações subdesenvolvidas cabe enfrentar a tarefa
totalmente distinta de criar uma universidade que seja capaz de atuar como motor
do desenvolvimento. Cumpre-nos perguntar, entretanto, se e possível inverter
aquela sequência, isto é, criar uma estrutura universitária que não seja reflexo
do desenvolvimento atingido pela sociedade, mas que seja ela um agente de
aceleração do progresso global da nação (RIBEIRO, 1969, p. 31).

Em boa hora, tomamos esse texto para pensar o futuro da universidade brasileira,
na perspectiva de Darcy Ribeiro, a partir do diagnóstico preciso que ele contém e que
pode nos fornecer pistas importantes para uma nova aposta institucional capaz de render
expectativas mais promissoras em relação ao futuro da nossa universidade. É certo que há
várias tendências universitárias que tentam hoje promover a universidade a um patamar
de importância política, cultural e econômica, mas tudo dentro da ordem, dentro dos
marcos institucionais que a reduziram à mera função administrativa de governos e a uma
quase inutilidade intelectual. Além disso, é preciso fazer um diagnóstico muito preciso
e sem sabotar a crítica da própria universidade sob pena de repetirmos os termos de um
“progressismo” da classe dominante e mantermos infértil o solo a partir do qual deve
florescer a revolução de um pensamento genuinamente nacional.

A grande utopia

Considerando o conjunto de textos e conferências sobre o pensamento utópico de


Darcy Ribeiro sobre o Brasil, as variações de sua utopia-Brasil, há uma instância estratégica
para aquilo que seria o processo de desenvolvimento nacional e a recusa do servilismo
científico e cultural que ocupou boa parte da produção intelectual e da militância desse
antropólogo inquieto da qual gostaria de partir.

105
Trata-se desse lugar de entremeio, desse espaço que se tornou bunker a proteger a
classe dominante quando deveria ser trincheira de disputa por um país independente, a
universidade. Tomo o estado atual da nossa universidade para alcançar Darcy Ribeiro no
intuito de mostrar que tudo o que temos passado hoje, os ataques à nossa universidade
pública, à ciência de modo geral, às humanidades em particular, e à Filosofia e à Sociologia
de modo mais programático desde o Governo Michel Temer com a reforma do ensino médio
tem tudo a ver com as análises feitas por Darcy Ribeiro em vários textos, conferências,
discursos, em seus livros publicados, todos espalhados, mas organizados aqui e ali por
estudiosos de sua obra.
Meu propósito é articular esse diagnóstico feito por ele na década de 1960 com
o diagnóstico que se pode fazer hoje, decorridos já mais de 40 anos da publicação de
seu texto principal sobre a Universidade, a fim de explorar com mais precisão, a partir
desse diagnóstico crítico, o elemento utópico desse projeto urgente de renovação dos
propósitos institucionais e sociais da universidade brasileira.
Então, o que temos hoje? Temos, por um lado, o que todos têm assistido, um
verdadeiro bombardeio contra a universidade pública desde esse Governo protofascista e
com tendência fortemente genocida que é o Governo Bolsonaro, passando por Governos
estaduais que se submeteram a essa lógica de destruição e privatização do ensino público
que se desenvolve pelo Brasil desde a década de 1980 com o Governo Fernando Henrique
Cardoso, prática que alcança parte significativa da população que colabora nesse processo
de destruição da universidade pública na medida em que repete e intensifica de modo
ostensivo os enunciados privatistas da res pública pronunciados por empresários e políticos
profissionais.
De uns anos para cá, e mais recentemente de forma acelerada com o famigerado
e perigoso Projeto Escola Sem Partido, a universidade brasileira entrou de vez na agenda
das urgências políticas de modo que seu futuro permanece comprometido. Não parece
ser somente a celeridade de uma agenda privatista da educação pública, sua inserção no
mercado objetivando o rentismo de uma necessidade de primeira ordem, mas também
de um discurso ideológico insidioso que alcança a população em geral e a faz acreditar
e defender fervorosamente que “com a privatização será melhor e todos nós vamos ga-
nhar!” Os enunciados, então, circulam e ganham terreno no campo ideológico até que
façam pleno sentido e assumam lugar privilegiado no campo das disputas político-eco-
nômicas quando se materializam nos projetos de lei e de reformas de ensino levados ao
parlamento para desfecho.
O palco dessa disputa político-econômica em que a educação é negociada não
acontece sem certo clamor popular, sem apelo e comoção da sociedade a favor desse
grande negócio. No caso específico do ensino universitário, essa comoção se orienta
pelo ódio à educação pública e por tudo o que ela pode representar de capacidade de
transformação social mais radical se leva a sério.
A primeira tarefa crítica que temos é elaborar uma pergunta cuja resposta parece
óbvia, mas sempre nos desconcerta. Por qual razão esse ódio à universidade? Mesmo

106
considerando o teor crítico da estrutura e organização da universidade brasileira, como
faz Darcy Ribeiro em A Universidade de Brasília (2011), estávamos todos certos de que
a universidade se caracterizava por ser o espaço necessário ao incremento científico do
qual o país sempre dependeu para superar o seu atraso econômico e alçar voos mais
interessantes em direção a uma cultura própria. Desde os movimentos estudantis em
contexto de enfrentamento com a ditatura militar, militância em defesa da universidade
pública, da liberdade de expressão, da luta pelo direito de cátedra, dentre tantas outras
expressões acadêmicas, a representação da universidade no imaginário social nos levava
a crer que o papel da instituição não seria outra senão o de conduzir o país a uma
reestruturação substancial nas prioridades nacionais e a uma revolução cultural com a
qual, de fato, ela flertou de perto. Daí que a universidade se tornava, cada vez mais, um
serviço público essencial, pois se reconhecia nela o centro de gravidade da revolução, uma
potência transformadora de primeira ordem. Não é o que nos comove nesse momento.
A pista dessa defasagem já havia sido informada em A universidade necessária:

A imensa maioria de nossos estudantes, uma vez formados, se convertem em


cidadãos dóceis e em profissionais eficazes na defesa da ordem vigente, com todas
suas desigualdades e injustiças. Um analista malicioso até poderia estimar que a
militância estudantil, do modo como a praticamos, corresponde a um treinamento
que os donos do poder se permitem proporcionar às novas gerações, na sua etapa
de formação, para melhor adestrá-los no exercício de suas futuras funções de
custódios do regime. Que fazer nestas circunstâncias, se tantos professores são
cúmplices da ordem instituída e agentes do conservadorismo e se a maioria dos
jovens, cumprida sua rebeldia juvenil, também se acomodam? (RIBEIRO, 1969,
p. 16).

Por isso, a pergunta feita acima deve orientar nossa reflexão sobre as razões do
ódio ao ensino público em geral e à universidade em particular. Como chegamos a isso?
Como conseguimos inverter essa lógica de pensar a universidade como trincheira de luta
contra o atraso e o conservadorismo em bunker de proteção do academicismo infértil?
No nosso caso brasileiro, a coisa ganha uma proporção desastrosa quando nos deparamos
com uma política nacional de educação que vê no conservadorismo universitário um
“marxismo cultural” ou uma “ideologia de esquerda” que ultrapassa o mínimo razoável.
É nesse contexto que se situa o ódio ao ensino público.
Há vários motivos, claro, que devem explicar essa patologia social do ressentimento
contra a universidade, mas quero destacar alguns que considero os mais importantes
em relação à universidade. Há sempre aquele argumento mais senso comum que coloca
os ataques frequentes na conta da ignorância do governo e seus asseclas, eleitores
fanáticos; há aqueles que creditam todo esse despautério ao tempo de agora, como se
os ataques ao ensino tivessem começado hoje; há aqueles que creditam o discurso de
ódio ao fascismo, à loucura ou insanidade, à vingança do governo contra os pobres e

107
populações minoritárias, ao projeto de poder eterno da direita em estar no interior da
máquina pública e por aí vai...
É certo que todos esses argumentos têm lá seu sentido e sua verdade, seu direito ao
sol, mas eu quero caminhar a partir de outro ponto que me parece conhecido e bastante
repetido, de todo modo ainda pouco explorado em chave crítica nem mesmo levado às
últimas consequências. É o fato de que as causas mais vicejantes da calamidade do nosso
sistema de ensino, especialmente da calamidade da nossa Universidade brasileira, são
causas que têm sua raiz na história de formação do povo brasileiro. E não poderiam
simplesmente ficar ausentes da estruturação da universidade, desde sua concepção mais
originária até alcançar os vários projetos de reformas.
Assim, se quisermos lograr algum êxito nessa análise, só o conseguiremos refazendo
essa história, acompanhando suas nuances, explicitando as perversidades envolvidas no
projeto de elaboração das diretrizes educacionais no país, perseguindo lenta e atentamente
os interesses de classe que atravessam os poros da universidade.
Já destaco aqui uma primeira manifestação de Darcy Ribeiro quando do seu
discurso pronunciado por ocasião da cerimônia de posse de Cristóvão Buarque como reitor
da UnB, em 1985. Darcy Ribeiro relembra o projeto de construção da Universidade de
Brasília, sua concepção como universidade que abriria um novo horizonte para o ensino
superior no país. Nessa esteira, a UnB serviria de modelo para um projeto mais robusto
de universidade, mais próximo das exigências de um país cuja vocação se anunciava na
rubrica do desenvolvimento econômico, científico e cultural.
Atento à nova dinâmica que instaurou na capital do país, Darcy Ribeiro entendia
que era inevitável que se criasse ali um centro universitário capaz de promover um
ensino de excelência.
Brasília, por si só, já era sinal de esperança em relação ao progresso do país.
Aproveitando essa oportunidade que se abria com a nova capital, Darcy, juntamente com
Anísio Teixeira, concebeu o que seria a universidade-modelo para a superação do atraso
acadêmico já demonstrado pelo sistema universitário da época, mas também imaginou
o que seria o modelo de centro de excelência do conhecimento capaz de levar o país a
um nível cultural extraordinário. Tomando a sério o projeto, recrutou, para isso, todas as
potencialidades disponíveis no seu entorno e inaugurou uma nova expectativa acerca da
condição universitária para o futuro do país. Não se tratava de um centro de excelência
isolado, recuado em seus propósitos, tímido na execução de projetos, mas, ao contrário,
um centro de referência que alcançaria em pouco tempo, tivesse ele vingado e sobrevivido
à ditatura, o velho sistema de ensino e o transformaria em algo surpreendente à sombra
dos coturnos.
Essa ideia de Darcy Ribeiro de construir uma universidade diferente tinha como
motivação a recusa da universidade vigente, “a velha universidade estava em crise”
(RIBEIRO, 2018, p. 107), diz ele. Rodeado de figuras públicas importantes no debate
sobre o destino da política nacional de ensino e de instituições históricas na luta pela
consolidação da ciência e da pesquisa no país, como a Sociedade Brasileira para o Progresso

108
da Ciência, a SBPC, o sentimento era o mesmo em relação ao papel da universidade. E
qual era esse sentimento?

Nós nos recusávamos a aceitar a universidade de mentira que se cultivava no


país, tão insciente de si como contente consigo mesma. O que ela gostava era
de fazer cerimônias solenes, em que meu amigo o reitor Pedro Calmon, dizia
aplaudidíssimos discursos de contentamento pleno com a bobaginha que tinha e
que chamavam de “universidade brasileira” (RIBEIRO, 2018, p. 107).

A universidade-modelo

Bem, Darcy Ribeiro está, nessa conferência de 1985, referindo-se à década de 1960
quando a UnB foi concebida e tornada possível pelo então Presidente Juscelino Kubitschek.
Essa descrição que ele faz da velha universidade em crise não é nada diferente da nossa
universidade atual, é possível arriscar sem temer. Daí que o projeto UnB se tornou um
oásis e foi se apagando aos poucos como universidade-modelo. Quero dizer que o que
domina a nossa universidade é a ostentação dos cargos, dos títulos acadêmicos que
conquistamos e carregamos, da produção esfomeada para preenchimento de currículo,
das cerimônias medíocres para puxar saco de políticos e demarcar nosso espaço de poder.
Não passa muito disso. A nossa universidade ostenta poder, grandes cerimônias, grandes
eventos e congressos, ostenta luxo – várias delas –, honrarias concedidas mais a políticos
e autoridades do que a quem de fato deveriam interessar, ao povo.
Em suma, esse aspecto da universidade é uma casca que encobre as razões pelas
quais ela não pode se destinar ao povo e suas necessidades de sobrevivência. É a fachada
que esconde o que há de mais degradante e perverso em suas raízes históricas. Encantados
que somos pela ostentação e pelos títulos acadêmicos, não prestamos muita atenção
à história da nossa universidade. E essa é justamente a tarefa, diz Darcy Ribeiro nos
termos de uma utopia, pois “o Brasil não pode passar sem uma universidade que tenha o
inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição erudita ou
vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como
problema.” (RIBEIRO, 2018, p. 108).
É justamente essa maturidade ainda não alcançada da universidade que cuida de
repetir as “falsas causas naturais” do atraso do Brasil sem se atinar para os problemas
do Brasil profundo. Mesmo em sua boa vontade, a universidade assimilou e internalizou
o discurso ideológico que a orienta desde sempre e que entrava qualquer possibilidade
de alteração em sua estrutura de ensino. Em O Brasil como problema ele dirá: “Trata-se,
obviamente, do discurso ideológico de nossas elites. [...]. De fato, o único fator causal
inegável de nosso atraso é o caráter das classes dominantes brasileiras, que se escondem
atrás desse discurso.” (RIBEIRO, 2015, p. 46).

109
Temos aqui um primeiro aspecto de suma importância nas considerações de Darcy
Ribeiro sobre a universidade necessária. Não esta que se encontra esgotada em sua
calamidade, mas aquela capaz de impulsionar o saber e a cultura nacionais de tal forma
que conduza o país a superar sua condição dependente. A primeira tarefa da universidade
deveria ser pensar o Brasil. Bem, isso não foi feito. Por quê? Porque a nossa universidade
nasceu colonizada. Ela se projetou e foi pensada com uma mentalidade colonizada e a
partir de um extrato europeu, mais especificamente de um certo “figurino francês.”. Os
nossos cursos universitários, em sua grande maioria, são uma demonstração disso. O
próprio Darcy Ribeiro falava da Sociologia brasileira como uma espécie de “cavalo de
santo” da sociologia francesa. Ou seja, uma Sociologia que não tem voz própria e que não
é dominada por um pensamento sobre o Brasil e sobre a condição social dos brasileiros.
Não expressa as necessidades nem os anseios do povo brasileiro, esse povo de maioria
esmagadora que vive em situação de penúria social.
Essa crítica feita por Darcy Ribeiro é retomada pelo Professor Nildo Ouriques, da
Universidade Federal de Santa Catarina, quando escreve um importante livro, O colapso
do figurino francês, sobre o processo de ruptura que é preciso levar a cabo com o modelo
francês que domina o pensamento social brasileiro. Ele tenta mostrar como o pensamento
sociológico brasileiro (e isso serve também ao pensamento filosófico e à Antropologia) não
consegue dar conta dos problemas nacionais, os problemas que nos atingem diretamente
e nos interessam, com esse extrato europeu que domina as universidades brasileiras. O
ponto forte de sua análise é a urgência em exorcizar essa forma de pensamento cativo
que reforça a condição dependente da própria universidade.
Essa crítica, inspirada em Darcy Ribeiro, é retomada por Nildo Ouriques em outra
obra, Crítica à razão acadêmica, desta feita em colaboração com o Professor Waldir
Rampinelli, em que as vísceras do modus operandi da academia são expostas de modo
a constranger os intelectuais mais progressistas. Ou seja, de fato, é inconcebível que a
Sociologia brasileira se interesse mais pela obra de Pierre Bourdieu do que pelas obras de
Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, mesmo Darcy Ribeiro, dentre tantos outros nomes
importantes ainda em anonimato. É inconcebível que a universidade brasileira tenha um
número tão insignificante de produção acadêmica sobre os povos indígenas, sobre o povo
negro e suas lutas, sobre a classe trabalhadora. Certamente há muitos trabalhos nessa
área, mas ainda insuficientes para alterar a condição degradante em que se encontram os
povos originários e os trabalhadores assalariados. É assustador que a nossa universidade
tenha uma produção irrisória a partir de autores nacionais e produza muito mais sobre
as obras de autores europeus e norte-americanos. Esse é o traço mais marcante da velha
universidade a ser vencida pelo projeto de uma universidade necessária.
O projeto da Universidade de Brasília, a UnB, foi concebido como alternativa à
velha universidade em crise e como modelo para um novo e arrojado programa de ensino
superior que integraria as faculdades e institutos centrais e colocaria o conhecimento
em circulação como um bem público.

110
Em 1962, logo após a publicação da lei que autorizou a fundação da UnB, Darcy
Ribeiro publicou A Universidade de Brasília em que apresentou toda a estrutura da
universidade, seu funcionamento, suas diretrizes, perfil de professores e estudantes e
tudo o mais que se poderia exigir de uma universidade para um ensino de excelência
voltado à causa das necessidades reais do povo brasileiro. Mesmo em relação à cidade
de Brasília, ele já sinalizava os ganhos com a fundação de uma nova universidade, pois
sua tarefa seria “dar à população de Brasília perspectiva cultural que a liberte do grave
risco de fazer-se medíocre e provinciana, no cenário urbanístico e arquitetônico mais
moderno do mundo.” (RIBEIRO, 2011, p. 20).

A universidade utópica

Quero tentar mostrar daqui por diante alguns aspectos que considero importantes
até que alcancemos a aposta de Darcy Ribeiro na Universidade Necessária, sua grande
utopia para o país, apesar de que ele mesmo não faz uma coisa separada da outra.
A crítica da universidade brasileira, o diagnóstico de sua calamidade, já contém
em si os elementos da universidade necessária. Esses aspectos que vou apontar parecem-
me ser a grande enrascada na qual entramos e da qual teremos ainda muita dificuldade
de escapar. O primeiro aspecto, portanto, gostaria que fosse a questão do fracasso
educacional brasileiro. É uma formulação do Darcy Ribeiro bastante citada, mas sempre
sem o entendimento do que está em jogo na formulação.
Não é raro ouvir de pesquisadores e professores, ou ler de especialistas em educação,
que o Brasil fracassou em seu projeto educacional, que a escola fracassou, que o ensino
está nessa situação degradante devido ao fracasso dos nossos governantes, que falta
vontade política para que avancemos no nosso projeto de ensino público. Mas não é nada
disso. O que atesta a calamidade da nossa universidade não é o fracasso, como algo que
tinha tudo para certo e deu errado, mas se trata de uma grande façanha, como algo que
foi programado para que as elites fossem bem sucedidas. Um dos grandes momentos de
lucidez na organização do ensino no país foi evitar a universalização do ensino. Darcy
Ribeiro volta sempre a esse ponto porque entendia e defendia que a educação básica
deveria ser oferecida de modo universal e o caminho para isso deveria ser a federalização
do ensino.
Diferentemente de outros países latino-americanos e europeus que conseguiam
universalizar o ensino a partir de reformas estruturais, o Brasil se empenhou em evitar
isso que seria catastrófico para os interesses do império e das elites que se sucederam
na condução do destino do país. Conceder aos Municípios e aos Estados (Prefeitos e
Governadores, portanto) a gestão do ensino básico era a grande artimanha para garantir
o sucesso do empreendimento educacional. Ou seja, àqueles que mais interesse tinham
em manter o povo iletrado, analfabeto e xucro era destinada a tarefa de promover o

111
ensino. Daí que boa parte da nossa história política pode ser contada com o jargão do
“voto de cabresto.”.
Daí também por que a educação, não demorando muito, tornou-se um grande
negócio disputado no mercado. Com o que a política se preocupa? Com o ganho eleitoral
que a educação pode dar. É por isso que não há qualquer projeto de ensino. Não é
interessante para a classe política que domina os interesses públicos, muito menos para a
elite empresarial desse país, que haja educação pública. Educação é coisa de oportunidade,
de momento, nunca foi prioridade do estado brasileiro e está longe de sê-lo.
Por que, de cima a baixo, do governo federal, passando pela política estadual de
ensino, chegando ao município, professores são tratados com tanto descaso? Por que
os nossos governantes têm tanta raiva da educação, mas dela se servem nos processos
eleitorais? É aqui que Darcy Ribeiro é cirúrgico:

A eficácia total, entretanto, eficácia diante da qual devemos nos declinar, aquela
que é realmente o grande feito que nós, brasileiros, podemos ostentar diante do
mundo como único – é a façanha educacional da nossa classe dominante. Esta
é realmente extraordinária! É por isso que eu não concordo com aqueles que,
olhando a educação desde outra perspectiva, falam em fracasso brasileiro no
esforço para universalizar o ensino (RIBEIRO, 2015, p. 24).

E o arremate de Darcy é fantástico porque nos desconcerta. Diz ele, ainda no


mesmo texto “Eu acho que não houve fracasso algum nessa matéria, mesmo porque o
principal requisito de sobrevivência e de hegemonia da classe dominante que temos era
precisamente manter o povo xucro.”.
Lendo Darcy Ribeiro de forma mais rigorosa, não é difícil entender o motivo de
tanta “indiferença” com a educação. Mas não é indiferença como mera “falta de interesse”.
É indiferença programática que se tornou estrutura do nosso sistema político porque
ele é dominado pelas elites. Até mesmo no imaginário social há um certo descaso das
pessoas com o ensino público em geral (quando pedem pela privatização do ensino, ou
quando viram as costas para as greves de trabalhadores da educação). Então, penso
que é nessa chave que é preciso ler o projeto educacional brasileiro e a estruturação da
nossa universidade.
Quero dizer que o descaso, a indiferença, o ódio pelo ensino público, tudo isso está
arraigado na nossa sociedade que encontra nas elites o que há de mais perverso em seu
projeto de reserva cultural somente para si. Esse é o elemento estruturante do projeto
bem sucedido da educação brasileira. É preciso repetir, mais uma vez e muitas vezes mais,
esse projeto bem sucedido é o projeto perpetrado pelas elites brasileiras de garantir para
si as regalias e os privilégios, do Império à República, da Velha República à ditadura,
da ditadura à Nova República. Ou seja, o Brasil nunca deixou de perpetrar esse projeto
bem sucedido de atraso nacional e isso não seria possível sem que a educação do povo
fosse colocada na conta do fracasso. Por isso fracassar é propósito, não é contingência.

112
Outro aspecto bastante tematizado por Darcy Ribeiro e que merece a nossa atenção
é o pensamento da utopia coletiva em relação ao futuro da universidade pública. Ele já
reclamava desse parasitismo que dominava a universidade dos anos 60, do individualismo
e do umbigo que tomaram conta das universidades e que a conduziram, inevitavelmente,
à decadência.
Darcy Ribeiro era um utópico, tinha propósitos bem firmados no chão, mas elevava
esses propósitos ao nível de um pensamento radicalmente universal. Quero dizer, ele
vislumbrava, em chave utópica, uma universidade enraizada no solo brasileiro, uma
universidade que fosse capaz de problematizar as questões nacionais, única forma de o
país se libertar do atraso e da dominação das elites. “Uma universidade”, diz ele, “que não
tem um plano de si mesma, carente de sua própria ideia utópica de como quer crescer,
sem a liberdade e a coragem de se discutir amplamente, sem um ideal mais alto, uma
destinação que busque com clareza, só por isto está debilitada e se torna incapaz de viver
o seu destino.” (RIBEIRO, 2018, p. 111).
A utopia de Darcy Ribeiro era universalizar a educação de modo que os pobres
tivessem condições objetivas de uma vida digna, que a riqueza do país fosse distribuída
de tal forma que nenhum indivíduo passasse fome, que nenhuma criança ficasse sem
escola e educação, que a Universidade tivesse liberdade e coragem para projetar a si
mesma como elemento revolucionário. E esta é a função da utopia. Mais uma vez, é
importante citar textualmente sua perspectiva utópica.

Esta é a função da utopia: ordenar e concatenar as ações, para fazer frente ao


espontaneísmo fatalista e, sobretudo, para impedir que os oportunistas façam
prevalecer propósitos mesquinhos. Impedir que o professor tal, muito competente
às vezes em seu campo, porém, com mais talento ainda apara puxar o saco do
ministro tal, para adular o senador tal (o governador, o prefeito...), a fim de que o
seu pequeno reino da universidade cresça mais que a universidade como um todo.
Esta eficácia daninha destrói a universidade, tal como o câncer destrói um corpo. É
um parasita que vive da carne da instituição que habita (RIBEIRO, 2018, p. 111).

É algo delicado, que mexe com suscetibilidades, mas não podemos nos furtar a
fazer pelo menos uma referência a isso, inquietos que ficamos com esse constrangimento
fornecido pela crítica de Darcy Ribeiro. O que são nossos eventos acadêmicos no Brasil
senão o espaço para o desfile desse tipo parasita? Ele circula livremente, e sorridente,
com o seu currículo lattes estampado na testa, com sua pesquisa profunda do conceito
x ou y em fulano de tal, dá carteirada quando é questionado por algum estudante ralé
de graduação ou mestrado... (“você não leu direito! Você não entendeu o autor! Se
você soubesse ler no original, talvez você entendesse melhor! Fui aluno do Heidegger!
Fui orientado por Deleuze! Se não ler Marx, nada feito. Fui amigo pessoal do Foucault!
Segundo Bourdieu...”).

113
E as carteiradas não param... Alguns desses parasitas só chegam a reconhecer
como pares os de mesma titulação e da mesma paróquia conceitual. Eles encarnam “o
seu” filósofo, “o seu” sociólogo, “o seu” historiador ou antropólogo e são incapazes, por
vaidade e mesquinhez, de fazer a crítica mais honesta, aquela probidade intelectual
reclamada por Nietzsche em Além de Bem e Mal.
De todo modo, são incapazes, com toda a pedra do saber que carregam na barriga
(como dizia Nietzsche de alguns historiadores positivistas...), de pensar as questões
da sua própria rua. Problematizar o Brasil passa longe da perspectiva desse sujeito do
conhecimento.
E aqui reside um dos maiores problemas: não se trata de um indivíduo ou outro,
um pesquisador ou outro, mas é o que domina a nossa universidade. É a música que ela
dança e nós dançamos com ela, somos capturados para dentro desse cercadinho onde os
pavões desfilam suas penas coloridas em competição ininterrupta. E o pior, dormimos com
a boa consciência do trabalho realizado sem nos darmos conta de que somos cúmplices do
nosso próprio atraso. “A dura verdade é que nós, universitários”, informa Darcy Ribeiro,

temos sido e somos, também nós, coniventes com o atraso do povo brasileiro.
Somos coniventes com o projeto que fez de nós um povo de segunda classe,
dentro da civilização a que pertencemos. Como negar que tivemos, como nação,
um desempenho medíocre? É evidente que sim, mas cabe perguntar quais são os
fatores causais desta frustração (RIBEIRO, 2018, p. 112).

A classe dominante e o atraso nacional

Um dos grandes legados de Darcy Ribeiro está em nos alertar para a nossa conivência
com esse escândalo que é o atraso cultural do nosso povo, com a miséria do povo brasileiro.
Pelo texto de Darcy Ribeiro é de se notar que a Universidade tomou outro rumo
que aquele necessário para se pensar o país. Desde sempre a universidade virou as costas
para os problemas nacionais e se dedicou, colonizada que era (e ainda é...), a se ajoelhar
aos princípios e ao modo de ser do modelo europeu. O que se passa aqui?
Acontece que a universidade responde a um comando de classe. Ela foi forjada
para responder a esse comando. Um exemplo claro disso está no fato de que uma das
ideias mais fortes e vigorosas das elites brasileiras, principalmente as elites industriais,
é a exportação de produtos. E nós, aqui embaixo, celebramos o fato de o Brasil ser
o maior exportador disso e daquilo. Orgulhamo-nos disso. Mas logo em seguida a
realidade nos dá um soco na cara ou um chute no estômago. Como explicar que um
país que é o maior produtor de soja do mundo, junto com os Estados Unidos, tenha seu
povo passando fome? Como explicar que um país que é o segundo maior exportador
de carne do mundo tenha seu povo passando fome? Como explicar que um país que
tem um mercado imobiliário superaquecido, com a construção civil sempre em alta, um

114
contingente expressivo de pessoas não tenha onde morar? Como explicar que um país
que tem um dos maiores conglomerados de universidades públicas e privadas – mas
deixo essas últimas sob suspeita –, com tantos pesquisadores financiados por agências de
fomento (agora não mais...), tantos pesquisadores formados nas maiores universidades
da Europa e dos Estados Unidos, não consiga fortalecer a universidade e protegê-la dos
riscos inimigos? É preciso dizer, na questão geral, que a causa disso está, segundo a letra
de Darcy Ribeiro, num certo discurso das classes dominantes que se estruturou na nossa
sociedade e estruturou a nossa universidade.

É preciso entender bem, sem deixar-se iludir, que o discurso explicativo das
classes dominantes, que ressoa por toda a parte, apesar de tão absurdo é da
mais extraordinária atualidade e funcionalidade. Nele, se assentam políticas
governamentais muito presentes. Por exemplo, a justificativa de que precisamos
produzir para exportar é dada como uma compensação da nossa pobreza. A
afirmação de que necessitamos de capital estrangeiro, quando é evidente que ele
nos sangra e que somos de fato um país exportador de capital, também se funda
na ideia esdrúxula de que somos, ainda, um país por fazer, uma área por colonizar,
que estaria até hoje por civilizar (RIBEIRO, 2018, p. 113).

É justamente no epicentro desse cenário que está a universidade brasileira. Então


ela não poderia ter outro destino senão esse em que hoje ela se encontra, de cumprir esse
papel fraudulento de multiplicação das desigualdades sociais e sua impostura científica de
ser conivente com o atraso cultural engendrado pelas elites nacionais. Ora, precisamos,
então, perguntar-nos, com Darcy Ribeiro, qual o destino da nossa universidade? Qual
universidade nos é necessária para encampar outras formas de luta contra a opressão,
contra a miséria, contra o atraso, contra a ignorância? Qual utopia deve orientar o futuro
da nossa universidade?
Penso que um primeiro esboço de resposta está na autonomia que precisa ser exigida
pela comunidade universitária a fim de constituir um horizonte próprio de formação
acadêmica, de liberdade de ensino e pesquisa, de enfrentamento com as forças políticas
vigentes sem a ingerência política de governos. Muitos dirão, como disseram a Darcy
Ribeiro, que isso é a mais pura utopia. Pois bem, é isso mesmo. Longe do conformismo
que nos assola, a Universidade Necessária depende da condição de ser autônoma política
e intelectualmente de modo que possa realizar o que é de fato urgente, colocar as
necessidades do povo pobre desse país na sua agenda.
Darcy Ribeiro não deixou de denunciar o descalabro que é a nossa universidade,
tanto por razões históricas quanto por comodismo de sua estrutura viciada. De todos
os ângulos, uma afronta ao nosso presente e ao nosso futuro. Num país com mais de
50 por cento da população negra, a universidade é predominantemente ocupada por
pessoas brancas. Ela é branca. O que acontece no nosso sistema de ensino público, em
que as crianças negras não atravessam o sistema e por isso não chegam à universidade?

115
Por que a universidade, ela mesma, é incapaz de denunciar, até mesmo reconhecer, essa
atrocidade que é o seu racismo institucional?
Outra pista importante a ser considerada é essa farsa curricular e esse discurso
hipócrita da interdisciplinaridade e que é preciso denunciar. Nossas universidades se
tornaram mesmo em um Império dos especialistas, cada um encastelado no seu gabinete,
na sua “tese”, no seu curso, na sua verdade.
Darcy Ribeiro concebia a universidade como “centro cultural autônomo e criativo”,
espaço para frequentação de artistas que pudessem dar cursos livres, que pudessem
conviver com a dinâmica da vida universitária, que ajudassem a compor uma comunidade
universitária. Uma universidade literalmente aberta à composição com os movimentos
da cidade, aos agenciamentos criativos com indivíduos e grupos interessantes. Essa é a
direção de uma Universidade Necessária!
A Universidade como uma potência criativa, potência de conhecimento, mas
conhecimento do seu próprio solo, do seu próprio país, do seu próprio povo e suas
necessidades. “Uma universidade se faz é com gente”, diz Darcy Ribeiro entusiasmado
com a criação da UnB (2018, p. 118), “é com gente competente, e com gente muito
competente.”. Extensão do modo das relações institucionais diversas, a universidade
padece de um mal crônico que é preciso combater ostensivamente. “É preciso impedir todo
compadrismo. É preciso exterminar todo filhotismo. É preciso vedar todo protecionismo”;
esse espírito paternalista da nossa universidade, “de achar que quem entrou, por medíocre
que seja pode ir ficando; que um professor-auleiro deve ser deixado aí cumprindo seu
papel, ainda que o faça muito mediocremente, mata a universidade.”.
Não se pode, no entanto, entender mal essa sentença de Darcy Ribeiro. Não se
trata em hipótese alguma de instituir a polícia universitária, algo, aliás, muito comum
nos discursos privatistas do ensino público e na excessiva burocracia universitária. Não
se trata de exterminar professores em virtude do seu desempenho baixo ou da sua falta
de produção. Não é isso. Trata-se de um critério de valor indispensável à universidade.
Ser professor não é “bico”; dar aula não é fazer “gambiarra”, atuar de “improviso”. Isso
é irresponsabilidade do nosso sistema de formação. É isso que é preciso evitar.
A fórmula para isso é a universidade ter a capacidade de pensar a si mesma, seu
destino, em virtude daquilo que ela tem como causa primordial. A universidade não
pode se dar ao luxo da incompetência, do paternalismo e da vaidade dos carreiristas
que se aposentam sem nunca terem contribuído efetivamente com as necessidades do
país. “Isso aqui”, afirma Darcy Ribeiro (2018, p. 119), “não é carreira militar que pode
ser gerontocrática e hierárquica, porque de fato eles (os militares) não precisam fazer
guerra nenhuma. Nós sim, temos que travar nossa guerra contra o atraso, e nela só se
vence com competência.”.
Darcy Ribeiro, esse intelectual inquieto com um Brasil que não deu certo e que
transfigurou toda a sua inquietude em imaginação política. Criador do parque nacional
do Xingu, na Amazônia, o Museu do Índio, projetou duas Universidades brasileiras
e tantas outras em países da América Latina, esse nacionalista, inconformado com a

116
superexploração do povo pelas elites, não cansou de esboçar em sua vasta obra um
projeto utópico de universidade. Uma universidade necessária.

REFERÊNCIAS

OURIQUES, Nildo. O colapso do figurino francês: crítica às ciências sociais no Brasil. Florianópolis:
Insular, 2015.

RAMPINELLI, Waldir José; OURIQUES, Nildo (Org.). Crítica à razão acadêmica. v. 1. Florianópolis:
Insular, 2017.

RIBEIRO, Darcy. A universidade necessária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

RIBEIRO, Darcy. Educação como prioridade. Seleção e organização de Lúcia Velloso Maurício. São
Paulo: Global, 2018.

RIBEIRO, Darcy. Ensaios insólitos. São Paulo: Global, 2015.

RIBEIRO, Darcy. O Brasil como problema. São Paulo: Global, 2015.

RIBEIRO, Darcy (Org.). Universidade de Brasília: projeto de organização, pronunciamento de


educadores e cientistas e Lei n.o 3.998, de 15 de dezembro de 1961. Brasília: Ed. UnB, 2011.

117
DARCY RIBEIRO: AS UTOPIAS E FAZIMENTOS DE UM
INTELECTUAL BRASILEIRO

Lia Ciomar Macedo de Faria


Rosemaria J. V. Silva

Introdução

A Escola Pública é a maior invenção do mundo, aquela que


permite que todos os homens sejam herdeiros das bases
do patrimônio mundial mais importante que é a cultura
(RIBEIRO, 1997).

Darcy Ribeiro (1922-1997) iniciou sua trajetória acadêmica na Faculdade de


Medicina (1939). Entretanto, sem vocação para a carreira médica, abandonou a faculdade
em 1943 e iniciou a Escola de Sociologia e Política (SP), graduando-se em 1946. Em 1947,
ingressou no Serviço de Proteção aos Índios (SPI), travando contato com o Marechal
Cândido Mariano Rondon, então Presidente do Conselho Nacional de Proteção ao Índio.
Nos anos seguintes, seus estudos etnológicos levaram-no a viver longos períodos entre
comunidades indígenas.
Com a eleição de Juscelino Kubitschek, em outubro de 1955, para a Presidência
da República, Darcy Ribeiro foi convidado a colaborar na elaboração das diretrizes para
o setor educacional do novo Governo, trabalhando com o educador Anísio Teixeira. Após
a saída da direção da seção de estudos do SPI, irá integrar o corpo docente da Faculdade
Nacional de Filosofia (FNFI) da Universidade do Brasil.
Por indicação de Anísio Teixeira dirigiu, em 1957, a Divisão de Estudos Sociais do
Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), vinculado ao Ministério da Educação.
Em 1959, Darcy foi encarregado de planejar a montagem da Universidade de Brasília
(UnB) e a seguir, em 1961, com a inauguração da UnB, foi nomeado seu primeiro Reitor.
Em agosto de 1962, assumiu o Ministério da Educação e Cultura, sendo substituído na
Reitoria da UnB por Anísio Teixeira.
Por ocasião do retorno do país ao regime presidencialista, em janeiro de 1963,
sai do Ministério para assumir a chefia do Gabinete Civil da Presidência da República.
Ao longo de nossos estudos, objetivamos identificar as relações do processo político

119
nacional, com as trajetórias desses dois educadores, desde o movimento da Escola Nova28
dos pioneiros da educação.
Durante o primeiro Governo Vargas (1930-1945), estrutura-se um novo sistema
educacional. O que se observa é que a luta dos pioneiros ocupou papel relevante na
defesa de um sistema nacional de educação, e o pós-1930 acabou se constituindo em um
verdadeiro palco de disputa de orientações para a redefinição dos rumos da educação
no país.
Os renovadores tiveram suas propostas derrotadas, e o período pós-1935, início
do autoritarismo que teria no Estado Novo (1937-1945) sua manifestação formal, atingiu
diretamente Anísio Teixeira. Após a revolta comunista de novembro e a prisão do Prefeito
do Rio, Pedro Ernesto, sob acusação de envolvimento com a Aliança Nacional Libertadora
(ANL), Anísio é, então, destituído da função de Secretário-Geral de Educação e Cultura
da capital federal.
Por outro lado, os pioneiros estavam no centro das discussões, com propostas
formuladas desde a década de 1920, que expressavam publicamente seu ideário no
Manifesto dos Pioneiros da educação nova29 (1932). O documento redigido por Fernando de
Azevedo, assinado por 26 educadores brasileiros integrantes do movimento de “renovação
nacional”, defendiam com fervor cívico a escola pública, gratuita, laica e universal.
Ao mesmo tempo, tendo em vista a Campanha de Defesa da Escola Pública,
desencadeada no fim da década de 50, uma “nova edição” do Manifesto, veio a público
em 1959. Diferentemente de 1932, o “Manifesto de 1959” não se preocupou com
questões didático-pedagógicas, admitiu válidas as diretrizes de 1932 e buscou um foco
nas questões gerais de política educacional. As principais orientações determinavam que
o ensino público deveria ser obrigatório e gratuito, considerando o espírito republicano.
Por outro lado, assinalava a possibilidade de participação mais consciente, e de bases mais
amplas, afirmando, pois, o aspecto social da educação, ao conclamar o Estado a assumir
seus deveres de mantenedor do sistema escolar e construtor da identidade nacional.
Segundo Simon Schwartzman (1984, p. 53):

O movimento da Escola Nova, sem se constituir em um projeto totalmente definido,


estruturava-se ao redor de alguns grandes temas e de alguns nomes mais destacados.
A escola pública, universal e gratuita ficaria como sua grande bandeira. A educação
deveria ser proporcionada para todos, e todos deveriam receber o mesmo tipo
de educação. Este ensino seria, naturalmente, leigo. Sua grande função era, em
28
Inspirados nas ideias político-filosóficas de igualdade entre os homens e do direito de todos à educação,
esses intelectuais viam em um sistema estatal de ensino público, livre e aberto, o único meio efetivo de
combate às desigualdades sociais da Nação.
29
Além do redator Fernando de Azevedo, assinaram o documento: Afrânio Peixoto, A. de Sampaio Dória,
J. Frota Pessoa, Anísio Teixeira, M. Lourenço Filho, Roquette Pinto, Júlio de Mesquita Filho, Raul Briquet,
Mário Casassanta, Delgado de Carvalho, Ferreira de Almeida Júnior, J. P. Fontenelle, Roldão Lopes de Bar-
ros, Noemi da Silveira, Hermes Lima, Atílio Vivacqua, Francisco Venâncio Filho, Paulo Maranhão, Cecília
Meirelles, Edgar Sussekind de Mendonça, Armanda Álvaro Alberto, Garcia de Resende, C. Nóbrega da
Cunha, Paschoal Leme e Raul Gomes.

120
última análise, formar o cidadão livre e consciente que pudesse incorporar-se,
sem tutela de corporações de ofícios ou organizações sectárias de qualquer tipo,
ao grande Estado Nacional em que o Brasil estava se formando.

Ainda se torna importante sinalizar que um dos grupos em defesa da escola pública
foi liderado por Anísio Teixeira, inspirado na filosofia liberal pragmatista de John Dewey30.
O movimento escola-novista envolve diretamente Darcy Ribeiro e o transformando em um
dos herdeiros mais ilustres. O que se confirma pelo fato de o antropólogo haver lutado
por tal bandeira renovadora até o final de sua vida, em fevereiro de 1997.
A afinidade entre Anísio e Darcy em prol da escola pública para todos é ressaltada
por Bomeny (2003, p. 11): “Darcy deixa em suas memórias e correspondências as confissões
de afinidade com o educador e filósofo Anísio Teixeira, o programa de democratização
educativa e os ideais da Escola Nova.”.
Neste contexto de defesa da escola pública, laica, universal, republicana e gratuita
é importante ainda frisar que o nome de Anísio esteve associado não só aos ideais do
movimento da Escola Nova31 no Brasil, mas também às instituições de ensino superior como
a Universidade do Distrito Federal (1935-39), à Campanha Nacional de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes), em 1951, à direção do Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos (Inep) e, em 1955, à criação do Centro Brasileiro de Estudos Educacionais
(CBPE). Foi, também, um dos principais idealizadores da Universidade de Brasília (UnB),
em 1961.
Neste cenário, ocorre a pressão para a ampliação do sistema educacional, conforme
Bomeny (2003, p. 35):

O contexto democratizante do pós-guerra legitima a demanda de benefícios


educacionais a segmentos maiores da população. O sentido estritamente pragmático
conferido à educação como qualificação de mão-de-obra vai sendo ampliado em
uma dimensão política de mais acesso da população carente aos benefícios públicos
garantidos em um Estado de Bem-estar.

Entretanto, será nas décadas de 50-60, que a demanda por participação política e
social ganha fôlego e abre espaços para se pensar um projeto de educação nacional. De
30
John Dewey, seguindo a tradição empirista inglesa, transformou o pragmatismo antecedente em instru-
mentalismo, fundando um colégio experimental calcado pedagogicamente nesses princípios (MARTINS
FILHO, 1997, p. 291).
31
“A Escola Nova, inspirada em grande medida nos avanços do movimento educacional norte-americano e
de outros países europeus, teve grande repercussão no Brasil. As ideias que lhe deram corpo foram sempre
inspirados na concepção de aprendizado do aluno por si mesmo, por sua capacidade de observação, de
experimentação, tudo isso orientado e estimulado por profissionais da educação que deveriam ser treina-
dos especialmente para esse fim. Duvidando dos métodos convencionais acabava questionando toda uma
maneira convencional do agir pedagógico.” (BOMENY, 2003, p. 43).

121
acordo com os estudos do historiador Eric Hobsbawn (1995), após a II Guerra Mundial,
o sistema capitalista tenta conciliar o liberalismo econômico com os preceitos políticos
da socialdemocracia. Uma nova concepção do mundo do capital se configura, nos dizeres
do autor, como uma “Era de Ouro”, que passou a simbolizar o período que compreende
o chamado pós-guerra até a década de 1970.
A idealização desses novos tempos decorre, em grande medida, do desenvolvimento
no campo da industrialização. Nesse período, viabiliza-se a crença na possibilidade do
progressivo desenvolvimento do país, envolvendo diversos segmentos, como a cultura e
a educação, assim como os campos político e econômico. Logo, a participação política,
via educação, apresentava-se como um caminho promissor.
Ao considerar o contexto mundial e nacional de possibilidades “concretas”, Darcy
aprofunda a questão teórica de Anísio, para forjar o intelectual do “fazimento”. Essa
influência tão marcante, está presente nas próprias palavras de Darcy: “Se me perguntassem
pelo encontro mais importante de minha vida, eu diria que foi o nosso encontro.”. A
própria práxis de Darcy confirma a afirmação, defensor das causas sociais e convencido
de que o papel do intelectual implica em uma ação direta no corpo social, Darcy Ribeiro
acrescentaria o conteúdo social e o fervor militante para desenvolver projetos e programas,
que o pioneiro mantinha em pauta desde a década de 1920.
O que se observa é que o encontro das duas personalidades foi possível pela
paixão reformadora que os animava e pela afinidade em defesa da educação pública.
Tal aliança se consolidou no movimento em defesa da escola pública e na elaboração da
nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional só sancionada em 1961, depois de
longo período no Congresso Nacional (1948-61).
O texto legislativo, reforça, mais uma vez, que a influência de Anísio Teixeira
na concepção de mundo de Darcy Ribeiro é inegável, conforme sua própria declaração
(1984, p. 3):

Aprendi com o mestre Anísio Teixeira – e a duras penas tento cumprir este preceito
– que o compromisso do homem de pensamento é com a busca da verdade. Quem
está comprometido com suas ideias e a elas se apega, fechando-se à inovação,
já não tem o que receber nem o que dar. É um repetidor. Só pode dar alguma
contribuição quem está aberto ao debate.

E ao rever a trajetória de ambos, podemos afirmar que Darcy cumpriu uma agenda
pública pautada por Anísio Teixeira: “O senhor não avaliará o quanto eu lhe devo e como
sou consciente de que em educação nada mais fiz do que pôr meu dínamo de agitação,
zumbindo em torno de suas ideias.” (BOMENY, 2003, p. 72).
Por outro lado, a visão de educação pública republicana de Darcy pressupõe
outros aspectos concernentes às bases do desenvolvimento democrático da nação. Seu
discurso “a educação é um instrumento de revolução”, tem como ideia-força a edificação
do autoconhecimento nacional. Dessa forma, apontando uma preocupação central na

122
reorganização do Estado brasileiro, em busca de sua identidade nacional, ao denunciar o
sistema de dominação ainda existente em nosso país. Logo, sua preocupação em reformar
a educação consiste na construção educacional, através de um projeto de nação que
possibilitasse o pleno exercício da cidadania, banhada em nossas raízes de negritude e
indianidade.

Educação como utopia

Darcy Ribeiro, esse pensador multifacetado com contribuições nas áreas da


etnografia, da educação e da política ocupou os cargos de Ministro da Educação e Cultura
no Gabinete Hermes Lima (Primeiro-Ministro do Governo Jango), Assessor do Presidente
Salvador Allende, no Chile, e de Velasco Alvarado, no Peru, Vice-Governador do Rio de
Janeiro, Senador da República, membro da Academia Brasileira de Letras, enfim, um
intelectual do “fazimento”.
Com tal diversidade de atuação intelectual, foi na educação pública que ele se
sentiu mais indignado:

O fracasso brasileiro na educação – nossa incapacidade de criar uma boa escola


pública generalizável a todos, funcionando com um mínimo de eficácia – é paralelo
à nossa incapacidade de organizar a economia para que todos trabalhem e comam.
Só falta acrescentar ou concluir que esta incapacidade é, também, uma capacidade.
É o talento espantosamente coerente de uma classe dominante deformada, que
condena seu povo ao atraso e à penúria para manter intocada, por séculos, a
continuidade de sua dominação hegemônica (RIBEIRO, 1986, p. 98).

Ao analisar essa situação de suposta incompetência e de controle social pela


hegemonia da classe dominante, Darcy Ribeiro, sendo um apaixonado pelas causas sociais,
irá reforçar a tese de que o papel do intelectual implica em uma intervenção direta no
corpo social. Assim sendo, podemos “definir” Darcy Ribeiro como um cidadão paradoxal,
extremamente crítico e racional, mas, ao mesmo tempo, apaixonado e passional. Esta
crítica ácida se refere à indignação em relação ao sentimento dos marginalizados, que
acabaram se constituindo a maioria da sociedade. Nesse aspecto, poucos homens públicos
puderam perceber e, principalmente, tiveram a coragem e a audácia para atuar de forma
radical em tal estrutura de desigualdades.
Na educação, Darcy Ribeiro defendia a necessidade de uma escola de tempo
integral, pois em seu entendimento, educandos e professores seriam beneficiados com
a implantação do regime integral. Para o antropólogo, dessa forma, os menores sairiam
das ruas e os professores ganhariam maior tempo para se dedicar aos estudos.
Conforme mencionado por Diana Pinto (2000, p. 114):

123
Segundo Darcy Ribeiro, nunca houve no Brasil nada parecido, no plano pedagógico,
com o CIEP. Nos CIEPs, as crianças recebem formação para a vida, brincam, tomam
banho e têm alimentação. As crianças chegam raquíticas nas escolas e depois de seis
meses de alimentação já estão em condições de assimilar os conteúdos oferecidos.
O que as crianças precisam, antes de começarem a estudar, é alimentar-se.

O que se observa é que o mérito de Darcy não foi desenvolver grandes teorias
pedagógicas nem métodos de aprendizagem. Até porque não era um autor de tese, mas
de feitos. Um homem de “fazimentos”, como ele próprio gostava de se apresentar. Nesse
sentido, ele defendeu e idealizou a escola pública como um espaço de instrução, orientação
artística, desenvolvimento das ciências, assistência médica, odontológica e alimentar, com
maior ênfase na formação do cidadão crítico, pois, para Darcy, em apenas uma minoria
dos lares é que os pais “bem-educados” poderiam contribuir para a formação de seus
filhos. Entretanto, na maioria das vezes, as crianças de classes populares ficam à margem
de qualquer possibilidade formativa ou de desenvolvimento de processos democráticos
de construção nacional, ou como ele costumava dizer: de uma “civilização brasileira”.
Se hoje parece óbvia a importância da educação no processo de desenvolvimento
e democratização do país, isso se deve a estudiosos como Darcy Ribeiro, que defenderam
até o final da vida essa ideia “revolucionária”. Ele foi capaz de ver na escola do lado
de fora da sala de aula, uma dimensão política adicionada a esta instituição. Assim,
inspirado pelo movimento dos educadores da Escola Nova, foi um dos primeiros a se
engajar politicamente na causa do ensino público, gratuito e de qualidade.
Dessa forma, Darcy Ribeiro e os signatários partiam da crítica à escola existente, que
se caracterizava pela seletividade social dos seus destinatários, pela forma propedêutica
(estudos que preparam para o ensino superior) e por conteúdos pedagógicos formalistas.
Contra tal modelo propõem: a escola única, dirigida a todos; a compreensão do papel
da instituição escolar na constituição da sociabilidade; uma pedagogia que valorizasse
a individualização do educando e a consciência do ser social do homem; e o caráter
público da educação entendido como exigência de sustentação financeira do Estado, apto
a acolher a diversidade educacional. Esta proposta almejava a reconstrução do sistema
educacional e exigia uma concepção diferenciada de formação docente. Tratava-se,
portanto, de construir um novo professor para uma nova educação.

O principal fazimento educacional de Darcy: o Centro Integrado de


Educação Pública (CIEP)

O programa de Governo Leonel Brizola (1983-1986), no tocante à educação, tinha


como base três focos: o primeiro girava em torno dos Centros Integrados de Educação
Pública (CIEP’s) e diz respeito à organização da rede pública em unidades educacionais,

124
que incorporam outras funções em relação às escolas de turno parcial, introduzindo a
escola de horário integral para professores e alunos.
O segundo é o Programa de Educação Juvenil, orientado para a alfabetização
de jovens para o trabalho vinculado à realidade social e à cidadania, incluindo nos
currículos saúde, educação física e cultura. Por fim, o terceiro foco se refere à implantação
da Universidade do Norte-Fluminense e à ampliação da universidade pública. Dos três
aspectos mencionados, ficaremos no referente aos CIEP’s, pois das obras de Darcy essa
foi uma das mais polêmicas.
Ao analisar o Governo Brizola, de que Darcy Ribeiro foi Vice-Governador (1983-
1986), pode-se assinalar a intenção de fazer do Rio de Janeiro o laboratório do “ensino
público, laico, gratuito e de tempo integral”. Deste modo, os CIEP’s foram a materialização
de um programa de ensino público, que visava atender parte da população em idade
escolar. Entretanto, como aponta Helena Bomeny (2003, p. 76):

Os CIEPs carregaram o peso de uma liderança política tradicionalmente polêmica no


Brasil. Os “brizolões” personificavam em cada estabelecimento público uma direção
particular de política, partido e facção ideológica. Uma ironia à feição da tradição
do personalismo político brasileiro. Os CIEPs acabaram sendo estigmatizados como
escola de pobres, o que se tornou motivo de rejeição pelos pobres, e escola de
Brizola, o que provocava a ira dos governantes seguintes, desmobilizando recursos
e interditando, muitas vezes de forma criminosa, o curso do programa especial.

Apesar da estigmatização dos CIEP’s, Darcy Ribeiro, defendia o projeto afirmando


que a atual escola pública brasileira não atendia às necessidades de seu alunado majoritário,
ou seja, os alunos das classes populares. Paralelamente, apresenta a escola de tempo
integral, como alternativa social visando suprir as carências dos alunos propondo programa
alimentar, de saúde e de educação física para crianças e jovens.
Também no projeto de LDB, Darcy se pronuncia sobre a concepção de escola
integral:

Não há novidade. Os CIEPs são escolas comuns do mundo civilizado. Em nenhum


lugar há escolas de dois turnos. Trata-se de uma escola do mundo civilizado que
temos que fazer aqui no Brasil. Só seria possível a ela se opor se alguém fosse
capaz de inventar uma outra coisa melhor e que ainda não se inventou (RIBEIRO,
1992, p. 22).

Dentre os possíveis sentidos para o termo “integral” em relação à escola, destacamos


dois: o primeiro se refere à educação completa do educando, isso é, no que diz respeito
aos aspectos emocionais, culturais, ambientais e de valores que, em princípio, são de
alçada também da família. O segundo diz respeito ao tempo diário de permanência.

125
Neste caso, a escola integral tem jornada de no mínimo oito horas. O que se observa é
que os dois conceitos se sobrepõem, pois, quanto mais tempo a criança permanece lá,
mais fácil é educá-la em todos os aspectos da vida. Sendo assim, a concepção de escola
pública de Darcy pressupõe os dois sentidos (amplitude e tempo) que são fundamentais
no processo educativo. Em seu discurso “a educação é um instrumento de revolução”,
reforça o caráter da educação no processo de autoconhecimento nacional32. Desta forma,
demonstrando uma preocupação central quanto à reorganização do Estado brasileiro, e
ao mesmo tempo, buscando a identidade nacional e denunciando o sistema de dominação
ainda existente no país.
Por outro lado, sua preocupação em reformar a educação não consiste apenas na
construção de prédios, mas em reformar a educação por meio de uma reflexão pedagógica
associada a um projeto de nação. Tal visão de nacionalidade conduziria o país à inserção
no mundo científico-tecnológico pela democratização do ensino, garantindo, assim, o
pleno exercício da cidadania.
Para melhor compreendermos o pensamento de Darcy Ribeiro se torna importante,
analisar a estrutura desse espaço educativo.
O CIEP, conforme consta no “Livro dos CIEPs” (RIBEIRO, 1986) é uma escola de
horário integral, com funcionamento das 8h às 17h para seiscentos alunos; e das 17h
às 22h para quatrocentos alunos, tendo, assim, capacidade para mil alunos. Construído
em concreto pré-moldado, cada CIEP possui três blocos. No bloco principal, com três
andares, estão as salas de aula, um centro médico, a cozinha e o refeitório, além das
áreas de apoio e recreação. No segundo bloco fica o ginásio coberto, com quadra de
vôlei/basquete/futebol de salão, arquibancada e vestiário. Este ginásio é chamado de
Salão Polivalente porque é utilizado para apresentações teatrais, shows, festas etc. No
terceiro bloco, de forma octogonal, fica a biblioteca e sobre esta existe uma residência
com alojamento para doze crianças, que poderão morar na escola em caso de necessidade.
Segundo Faria (1991, p. 14):

Implantados no governo de Leonel Brizola, em 1985, os CIEPs tinham objetivos


mais abrangentes do que aqueles das escolas tradicionais de 1. o grau. Além das
atividades específicas inerentes a este grau de ensino, os CIEPs teriam funções mais
amplas, como centro comunitário de educação, de cultura e de lazer. Atenderiam,
através do programa de Educação Juvenil, no horário noturno, os jovens entre 14 e
20 anos que não receberam escolaridade de 1.o grau na idade própria; atenderiam a
grupos de alunos de 7 a 14 anos residentes nos CIEPs (Projeto Alunos-Residentes),
a fim de suprir a ausência de pais ou responsáveis; e constituiriam centros de
cultura e lazer abertos também à comunidade em que estivessem inseridos.

A palavra “nação” vem de um verbo latino, nascor (nascer), e de um substantivo derivado desse verbo,
32

natio ou nação, que significa o parto de animais, o parto de uma ninhada. Por significar o “parto de uma
ninhada”, a palavra natio/nação passou a significar, por extensão, os indivíduos nascidos ao mesmo tempo
de uma mesma mãe, e, depois os indivíduos nascidos num mesmo lugar (CHAUÍ, 2000, p. 14).

126
Especificamente, quanto à proposta pedagógica dos CIEP’s, foi apresentado pelo
Programa Especial de Educação (PEE) um modelo que objetivava atender às prioridades
estabelecidas para as classes de alfabetização e de Quinta Série. Ao mesmo tempo é
criada, também, uma Consultoria Pedagógica de Treinamento (CPT) formada por sessenta
professores, constituída por dois grupos voltados para a Classe de Alfabetização (CA) a
Quarta Série e, para Quinta a Oitava Séries. Entre outras atribuições, deveria aperfeiçoar
o corpo docente e funcionários de apoio, através de treinamento em serviço; orientar
as equipes técnico-pedagógicas dos CIEP’s para a organização dos currículos; fazer um
acompanhamento do processo de implantação do trabalho pedagógico, dando especial
atenção ao projeto de alfabetização, ao desenvolvimento do Estudo Dirigido e ao repasse
dos treinamentos em serviço recebidos por professores e funcionários.
Este estudo aponta que a proposta pedagógica dos CIEP’s não escamoteava a dura
realidade em que vivia a maioria de seu alunado, proveniente dos segmentos sociais mais
pobres, mas se comprometia com ela para poder transformá-la. Desse modo, a pesquisa
identifica que a proposta do PEE visava por meio de uma renovação pedagógica, romper
com a violência simbólica proporcionando um ajuste da escola pública a sua clientela
maciça que são, exatamente, os filhos das classes populares. Tinha como objetivos
centrais: edificar uma nova rede escolar urbana projetada por Oscar Niemeyer, na forma
de Centros integrados da Educação Pública – CIEP’s; inaugurar a Fábrica de escolas
com a finalidade de construir unidades escolares médias e pequenas; renovar o ensino
e implantar programas de educação continuada.
Sua abrangência é algo inegável, pois iniciado em 1984 (primeiro Governo Leonel
Brizola) e retomado em setembro de 1991 (segundo Governo Leonel Brizola), conseguiu
totalizar em dezembro de 1994 a entrega de quatrocentas e seis unidades, com a oferta
de 205.800 vagas para o ciclo básico; 137.200 vagas para a Educação Juvenil; 52.800
vagas nos Ginásios Públicos e 30.000 para o Ensino a Distância, em um total de 425.800
alunos atendidos (FUNDAR, 2003).
Como se pode perceber, é uma proposta de escola pública de tempo integral
contendo uma série de atividades, incluindo alimentação, banho e assistência médico-
-odontológica, com o objetivo de priorizar a melhoria da qualidade de ensino, por meio
de uma proposta pedagógica que enfatiza o estudo dirigido como forma de elevar o
rendimento dos alunos. Por outro lado, visa à integração das diversas atividades físicas
no currículo escolar, abrindo espaço para o trabalho de animação cultural, que integra
a escola à vida comunitária, através da promoção de eventos reunindo alunos, pais,
vizinhos, artistas e professores.
Devido à escola ser parte de uma estrutura estatal e, por conseguinte um aparelho
ideológico do Estado (ALTHUSSER, 1985), não podemos esquecer que em função de
nosso passado escravagista esta instituição sempre valorizou o trabalho intelectual
e desqualificou o trabalho manual. Portanto, a proposta do Prof. Darcy Ribeiro, sem
abandonar as transitoriedades do processo histórico, apresentava saídas possíveis para
escapar das armadilhas do tradicionalismo.

127
Paralelamente, entendemos que a educação é um dos meios pelo qual se pode
divisar, fazer valer e controlar os direitos do ser humano, abrindo o mundo em canais
múltiplos, pelos quais o homem se descobre como ente político, biológico, histórico,
geográfico, físico, enfim, um ente com imaginação e razão. Logo, o acesso à luz do
conhecimento é possibilitar o “nascer-de-novo” do ser humano.
Durante a implementação dos CIEP’s, tentou-se discutir com os profissionais
envolvidos como democratizar de fato a Escola Pública. Nesse contexto, para que os
educadores conseguissem de fato realizar um papel transformador, tornava-se necessária
a superação de sua própria alienação política. Assim, um dos objetivos era despertar a
vontade política naqueles que, de uma forma ou de outra, detinham o poder da informação
e, principalmente, aqueles profissionais que lidavam diretamente com as classes populares.
Logo, assinalamos que a “construção” dos CIEP’s se deu em dois momentos. O
primeiro momento, de “implantação” (1983-1987) e o segundo, o da desarticulação,
a partir de 1988. Ao longo desse processo, a viabilidade do projeto democrático se
relacionava, também, às estratégias de planejamento e de participação dos envolvidos.
A princípio, na fase de planejamento e organização, cabe destacar o 1.o Encontro
de Professores do Estado e do Município do Rio de Janeiro, onde todos os professores da
rede pública se envolveram na discussão das metas e da política educacional apresentada
pelo então governo Leonel de Moura Brizola.
O Encontro de Mendes, como ficou conhecido, possibilitou a participação de
aproximadamente 52 mil professores do sistema público de ensino (antigo 1.o grau) de
todo o estado do Rio de Janeiro. Na primeira etapa, dentro de um processo democrático
representativo, foram eleitos mil representantes que se reuniram regionalmente. A seguir,
foi feita uma eleição para a escolha de cem representantes para a fase final realizada em
Mendes, com o objetivo de se debater teses fundamentais para a educação. A coordenação
foi assumida pelo Prof. Darcy Ribeiro (Presidente da Comissão Coordenadora de Educação
e Cultura), pela Professora Yara Vargas (Secretária de Educação do Estado do Rio de
Janeiro) e pela Professora Maria Yeda Linhares (Secretária de Educação e Cultura do
Município do Rio de Janeiro). É importante mencionar as contribuições de mais de
trinta mil professores que escreveram cartas à Comissão Coordenadora, com o intuito
de colaborar no processo de reflexão sobre o sistema de ensino estadual.
Como se pode observar, o processo de organização, planejamento e implantação
dos CIEP’s foi um grande desafio e as dificuldades foram muitas, como os problemas
estruturais na construção dos prédios e a falta de experiência anterior em um projeto
de escola pública de horário integral. Mas, de todos os entraves, o maior foi de caráter
ideológico e partidário, pois, muitas vezes, as críticas através da mídia eram muito mais
em função do “antibrizolismo”.
Ao fim, percebemos que o grande mérito dos CIEP’s foi o fato de polemizar e
desvelar o fracasso da escola pública fluminense, oportunizando o debate com o conjunto
da sociedade e a conscientização política e profissional de um expressivo número de

128
professores. Nesse sentido, os CIEP’s representaram um projeto de resistência política
do governo trabalhista que tinha como meta promover a Educação Pública.

Considerações finais

O presente texto pretendeu sistematizar alguns elementos que facilitassem o


entendimento do pensamento republicano de Darcy Ribeiro associados à atualidade da
defesa da Escola Pública. Deste modo, sinalizamos que o CIEP pretendia representar uma
proposta de valorização dos espaços populares, objetivando a recuperação das vozes que
foram silenciadas ao longo do processo de “construção” nacional.
Ainda, cabe ressaltar que partimos da premissa segundo a qual a educação, antes
de ser considerada como despesa, deve ser vista como investimento e, nesse sentido,
acreditamos que a concepção de educação oferecida em uma escola de horário integral
é a melhor herança democrática que poderemos oferecer para as nossas crianças e os
nossos jovens.
Por outro lado, destacamos no contexto político, a redução da arena pública e
o enfraquecimento dos processos de emancipação popular, principalmente a partir da
década de 90. Portanto, é fundamental ressignificar a Escola Pública, como prioridade
política, para a construção de uma sociedade democrática e participativa. Porém, devemos
questionar de qual democracia estamos falando? Qual o modelo de representação que
queremos? A democracia “liberal” de caráter conservador ou uma democracia popularmente
participativa?
Assim, acreditamos que, para os educadores comprometidos com o projeto
emancipador da educação pública, é tarefa urgente e necessária o debate a respeito do
papel desta escola e, também, do real sentido atribuído ao público. Dessa forma, é vital
o entendimento da Escola Pública enquanto um projeto necessário à coexistência dos
seres humanos.
Portanto, em tempos de desigualdade social e violência crescente, a questão que
se coloca é até quando continuaremos fingindo que uma escola de má qualidade, de
período parcial, dará conta da construção de uma nação efetivamente democrática?

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

BOMENY, Helena. Os intelectuais da educação. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000.

129
DUPAS, Gilberto. Tensões contemporâneas entre o público e o privado. São Paulo: Paz e Terra,
2003.

FARIA, Lia. CIEP: a utopia possível. São Paulo: Livros do Tatu, 1991.

FIORI, José Luís. 60 lições dos 90: uma década de neoliberalismo. Rio de Janeiro: Record, 2001.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 2000.

FUNDAR - FUNDAÇÃO DARCY RIBEIRO. Fazimentos: caderno 1. Rio de Janeiro: Fundação Darcy
Ribeiro, 2003

PINTO, Diana. Trajetórias de liberais e radicais pela educação pública. São Paulo: Loyola, 2000.

PINSKY, Jaime; BASSANEZI, Carla (Org.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003.

RIBEIRO, Darcy. O livro dos CIEPs. Rio de Janeiro: Bloch, 1986.

RIBEIRO, Darcy. Testemunho. São Paulo: Siciliano, 1992.

130
ESPAÇO BIOGRÁFICO: POLÍTICA DA MEMÓRIA E ARQUIVO
EM DARCY RIBEIRO33

Para Paulo Ribeiro (in memoriam)

Haydée Ribeiro Coelho

A obra de Darcy Ribeiro tem grande vitalidade. E sua fortuna crítica reafirma
sua importância além do tempo em que foi produzida. Diários Índios se associa ao
trânsito intelectual do escritor, representando uma obra instigante sob o ponto de vista
etnológico, antropológico, indo além dos limites disciplinares, ao fornecer um conhecimento
transbordante. Nesse sentido, parto de alguns artigos sobre o livro, publicado em 1996,
o que me possibilita refletir sobre textos (ficcionais e correspondência) de Darcy Ribeiro
que compõem seu espaço biográfico34, associando-os à política de memória e às conexões
entre o arquivo e a autobiografia.

Diários Índios e sua recepção crítica

A escolha de textos sobre uma recepção parcial de Diários Índios tem como
finalidade estabelecer um diálogo entre Literatura e Antropologia, a partir de algumas
posições críticas que me permitem transitar para a produção literária de Darcy Ribeiro.
Nesse sentido, evidencio, inicialmente, a resenha “Elo perdido”, escrita pelos antropólogos
Lux Boelitz Vidal e Henyo T. Barreto Filho. Os autores apresentam uma introdução e as
seções: “O texto e os contextos”; “O gênero: um diário-epístola”; “Trabalho de campo:
o formato ‘expedição’ e o antropólogo ‘nativo’”; “Em busca dos tupinambás vivos e do
33
Este texto, ainda inédito, com modificações, foi apresentado originalmente no I Seminário Nacional intitulado
“Darcy Ribeiro: memórias, reflexões e caminhos”, realizado pela Universidade Nacional de Brasília (UnB) em
parceria com a Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR), nos dias 24 e 25 de julho de 2019, no Memorial Darcy Ribeiro.
Infelizmente, por motivo da doença que o levou ao óbito, o sociólogo, sobrinho de Darcy Ribeiro, penúltimo
Presidente da FUNDAR, não compareceu ao evento.
34
O “espaço biográfico” tal como concebe a crítica argentina Leonor Arfuch, “poderia incluir: biografias autorizadas
ou não, autobiografias, memórias, testemunhos, histórias de vida, diários íntimos – e, melhor ainda, secretos –,
correspondências, cadernos de notas, de viagens, rascunhos, lembranças de infância, autoficções, romances, filmes,
vídeo e teatro autobiográficos, a chamada reality painting, os inúmeros registros biográficos da entrevista midiática,
conversas, retratos, perfis, anedotários, indiscrições, confissões próprias e alheias, velhas e novas variantes do show
(talk show, reality show), a videopolítica, os relatos de vida das ciências sociais e as novas ênfases da pesquisa e
da escrita acadêmicas.” (ARFUCH, 2010, p. 60).

131
sentido do Brasil”; “O embrião de teorias e projetos”; “Os Urubu-Kaapor: uma agenda
de pesquisa” e “À guisa de conclusão”.
A leitura da resenha, escrita pelos antropólogos, é importante porque representa
uma fonte de pesquisa; resgata, na visão dos autores, o “elo perdido” entre Diários Índios
e texto de Darcy Ribeiro publicado anteriormente. Traz uma visão prospectiva no âmbito
da produção antropológica de Darcy Ribeiro e constitui uma fonte polêmica e um celeiro
de ideias, cumprindo plenamente o papel de uma resenha.
No âmbito desse debate crítico, situo algumas questões que me servirão para realizar
outras pontes para os aspectos que pretendo destacar na literatura de Darcy Ribeiro.
“Elo perdido” põe em cena, na primeira frase do artigo, a tarefa árdua associada ao fato
de escreverem sobre Diários Índios “em um periódico especializado de antropologia.”
(VIDAL; BARRETO FILHO, 1996, p. 159). Esta dificuldade salientada nutre a resenha.
É observado que Diários Índios apresenta muitos problemas como aquele relacionado
à “tensão entre a pretensão científica e a dimensão literária da obra é constitutiva da
mesma.” (VIDAL; BARRETO FILHO, 1996, p. 163). A afirmação anterior se expande, de
forma múltipla, como se pode verificar nas considerações retiradas da resenha: “Não se
trata, portanto, de um caderno de campo nem de um diário, no sentido estrito do termo.
O que o distingue é que há um destinatário alvo de suas anotações: Berta – e, por meio
dela, o leitor contemporâneo.” (VIDAL; BARRETO FILHO, 1996, p. 165).
Outras citações são igualmente importantes para a comprovação do que foi
apresentado em suas primeiras linhas. Para os antropólogos, Diários Índios apresenta
um “gênero, próximo ao da narrativa de viagem” (VIDAL; BARRETO FILHO, 1996, p.
163) e, ainda, é “narrativa de viagem com referente empírico, mas que se pretende e se
sabe romanceada, ficcional com enredo literário.” (VIDAL; BARRETO FILHO, 1996, p.
166). O livro se inseria “no espírito da antropologia contemporânea” (VIDAL; BARRETO
FILHO, 1996, p. 164) e sua recepção, na década de 70, seria “um desastre.” (VIDAL;
BARRETO FILHO, 1996, p. 164).
A propósito desses últimos aspectos, destaco o seguinte trecho:

[Darcy] teria sido criticado pela falta de rigor teórico, pela ausência de um
problema analítico claro, pelo tipo de expedição montada, por certas atitudes
ali expressas e pelo tratamento dispensado ao seu objeto em algumas passagens.
Tudo poderia ter sido destruído, arruinado. Seria um desastre (VIDAL; BARRETO
FILHO, 1996, p. 164).

Em muitas passagens de “Elo perdido”, os autores destacam a “maestria literária”,


de Darcy Ribeiro. Em decorrência do literário, sugerem que o “leitor se deixe levar pelas
dramatizações ilusórias e artifícios literários malinowskianos dos Diários.” (VIDAL;
BARRETO FILHO, 1996, p. 164). Nesse trecho, tem-se a impressão de que o texto literário
gera ilusão e que, em contrapartida, a ciência é marcada pelo rigor.

132
Sob a perspectiva de quem trabalha com a literatura e sua crítica, torna-se estranho
e fora de propósito reduzir à literatura, às belas letras e ao entretenimento. Considerar
a literatura como entretenimento está no caminho da doxa, apontando para concepção
muito estreita. A literatura pode ser, sim, um entretenimento, mas não se fecha nisso.
Não me é possível discordar dos antropólogos até que ponto Darcy não apresenta “rigor
científico” em Diários Índios, porque não quero antecipar outras considerações que farei
mais adiante.
Na resenha sobre o livro de Darcy Ribeiro, fica clara a intencionalidade dos autores:
separar o joio (focalizando a literatura como entretenimento) do trigo (abordagem da
Antropologia como lugar da ciência). Essa é uma discussão longa que me faz retornar a
um texto que, exatamente, refletiu sobre as Ciências Humanas (“A estrutura, o signo e
o jogo no discurso das ciências humanas”, de Jacques Derrida, em 1971), com base em
um caminho crítico, antes de 1970, anos balizadores do “desastre” da recepção crítica
de Diários Índios. As contribuições do filósofo se estenderam à crítica e à compreensão
da literatura.
A concepção de literatura como entretenimento em Diários Índios tem um alcance
mais amplo: o questionamento da Antropologia realizada por Darcy Ribeiro. No entanto,
essa é outra face que tem sido revista por dissertação (veja-se DAMASCENO, 2009) e
teses (cf. MATTOS, 2007, e BRITO, 2017) na área de Ciências Sociais e de Antropologia
que apontam, com base documental, a inserção histórica de Darcy Ribeiro nesse campo
de conhecimento. Estes aportes são de fundamental importância para a história da
Antropologia no Brasil e para a elucidação do papel de Darcy Ribeiro, graduado em
Sociologia, na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, com Especialização em
Etnologia, orientado pelo eminente professor e de Herbert Baldus.35
Para não perder o fio das observações anteriores, destaco uma das afirmativas
da parte conclusiva da resenha: “Diários não são diários etnográficos, nem diários no
sentido estrito do termo, menos ainda cadernos de campo.” (VIDAL; BARRETO FILHO,
1996, p. 185). A respeito da Antropologia de Darcy Ribeiro, segundo os autores de “Elo
perdido”, assinalo:

Antropologia que consegue ser simultaneamente anacrônica – obra próxima


da produção sociológica brasileira original, voltada para o estudo reflexivo de
nossa própria sociedade (Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, entre outros) –
contemporânea – pós-moderna mesmo, em sua tentativa de desvencilhar-se dos
discursos metropolitanos e estabelecer uma visão própria e autônoma (VIDAL;
BARRETO FILHO, 1996, p. 185).

Outras perspectivas, diferentes da anterior, ajudam-me a fazer o trânsito para a


literatura, com base em Diários Índios, livro transbordante de conhecimento cuja escritura

Para se entender a trajetória de Herbert Baldus, remeto à dissertação de Luiz Henrique Passador, 2002
35

(Antropologia Social).

133
é movente e denunciadora da violência sobre as tribos indígenas brasileiras. Em “Um
senador na aldeia indígena”, Betty Mindlin, ao resenhar Diários Índios, afirma:

Os Diários despretensiosos, coloquiais, fluentes e agradáveis como leitura dando


a impressão de serem escritos ao sabor da pena e dos acontecimentos, contêm
resultados de pesquisa que, em seu conjunto, são um dos melhores estudos
antropológicos brasileiros. Na segunda viagem, em especial, quando a intimidade
com os índios já foi atingida e Darcy alcançou segurança do que observou, a análise
e a escritura saem prontas, como um livro já bem burilado (MINDLIN, 1998, p. 1).

Em nenhum momento da resenha, Betty Mindlin expressa a dificuldade de este


texto ser publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais (1988), o que demonstra
como um mesmo livro tem acolhida diversa mesmo por aqueles que pertencem à mesma
área, no caso, a Antropologia.
Em “Autoetnografia indígena”, de Claude Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro, Alice
Agnes Spíndola Mota, da área de Antropologia (2015), analisa “o olhar do etnógrafo
e as imagens autoetnográficas em Tristes trópicos (1955) e em Diários Índios (1996)”,
com base na comparação entre os trabalhos desenvolvidos pelos antropólogos sobre os
Nambikwara no Estado do Mato Grosso e os Urubus-Kaapor no Estado do Maranhão.
No caminho desse levantamento parcial sobre a crítica, a respeito do livro Diários
Índios, destaco, ainda, “Dom Quixote em Darcy Ribeiro: riso e loucura nos Diários Índios”,
de Erivelto da Rocha Carvalho, Professor de Teoria da Literatura da UnB. O texto busca
“aproximar a escrita autobiográfica de Darcy Ribeiro da ficção novelesca do Dom Quixote.”
(CARVALHO, 2012, p. 361). O autor do estudo esclarece que:

reivindica nos Diários Índios não só o uso da linguagem com fins estritamente
científicos ou documentais. Essa palavra, que se quer ao mesmo tempo escrita
e falada, inscreve o relato das duas expedições numa trama vivencial que inclui
temporalidades diversas, com distintas tonalidades adotadas de acordo com as
circunstâncias e as necessidades de quem escreve (CARVALHO, 2012, p. 360).

A inserção do texto de Darcy Ribeiro no campo da Literatura, distante da concepção


do literário como entretenimento e como belas letras, e o aporte do texto para a compreensão
do biográfico, constituem pontos de convergência entre meu trabalho e o estudo de Erivelto
da Rocha Carvalho. Porém, enveredo-me pelas relações entre espaço biográfico, política
da memória e arquivo. Além disso, os objetivos e os caminhos trilhados são diferentes.
Conceitos teóricos de Diana Taylor, retirados do livro O arquivo e o repertório:
performance e memória cultural nas Américas ajudam-me a repensar na questão relacionada
à dramatização e à denúncia da violência. Para Diana Taylor, “a memória arquival existe na
forma de documentos, mapas, textos literários, cartas, restos arqueológicos, filmes, CDS,

134
todos esses itens resistentes à mudança.” (TAYLOR, 2013, p. 48). Segundo a autora, “O
repertório [...] encena a memória incorporada (performances, gestos, oralidade, dança,
canto), em suma todos aqueles atos geralmente vistos como conhecimento efêmero, não
reproduzível.” (p. 49).
Nesse contexto teórico, destaco o conceito de performance que inclui “teatralidade,
espetáculo, ação, representação.” (TAYLOR, 2013, p. 40). No contexto da teatralidade,
Diana Taylor se refere à “cena inaugural” (Michel de Certeau), instituída pelo colonizador
que “escreverá o corpo do outro e traçará ali sua própria história.” (TAYLOR, 2013, p. 41).
É contra essa “cena inaugural” que Darcy, por meio de sua literatura e de outras
obras, incluindo Diários Índios, destacado neste texto, denuncia a violência. Na esteira
dessas considerações, no que se refere à dramatização, reporto-me ao livro de Nelly
Richard, intitulado Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Já no primeiro
capítulo, a autora chilena ressalta a importância da “arte da avanzada” que desacatou
“o enquadramento militarista” (RICHARD, 2002, p. 14) no Chile.

Outras travessias

Em Diários Índios, o autor parece escrever e viajar ao mesmo tempo. O conhecimento


etnológico de Darcy Ribeiro se desenha para o leitor na medida em que se desloca
no tempo e no espaço. No decorrer da primeira viagem, o etnólogo se depara com a
epidemia do sarampo. Este aspecto se encontra em inúmeras páginas que pude explicitar
em “A trama da violência e seu desenredo em Darcy Ribeiro e em Bernardo Carvalho.”
(COELHO, 2019, p. 91-113).
No livro de 1996, Darcy Ribeiro testemunha a morte daqueles que se propõe a
estudar. Tomo este acontecimento como traumático, que marca para sempre sua literatura
que denunciará a violência, selará seu compromisso com a cultura de forma geral e com
seus modos de transmissão.
Isso não significa que sua obra se torna um panfleto, mas que o espaço do literário,
para Darcy, não se constitui nem se constituirá como neutro. Da mesma forma, nem a
Etnologia, nem a Antropologia, nem a Educação, campos de conhecimento em que atuou,
por meio da escrita e da práxis, ficarão isentos de seu compromisso ético.
Segundo Jeanne Marie Gagnebin, o “trauma é a ferida aberta na alma, ou no corpo,
por acontecimentos violentos, recalcados ou não [...]” (GAGNEBIN, 2009, p. 110). Essa
questão é focalizada pela filósofa no âmbito da memória traumática de Auschwitz. Em
Diários Índios, como pude evidenciar em meu estudo sobre a violência, Darcy Ribeiro
mostrou o crime do Estado, do SPI que “depois de vinte anos de pacificação, não se tinha
vacinado esses índios contra doenças tão comuns.” (RIBEIRO, 1996, p. 205).
As colocações anteriores propiciam refletir sobre a noção de testemunha. No
contexto, posterior a Shoá, a filósofa diz:

135
Testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o histor
do Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não vai
embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que
suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por
culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica,
assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada
reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar
esboçar uma outra história, a inventar o presente (GAGNEBIN, 2009, p. 57).

Ao me referir à questão do testemunho, não quero dizer que os romances de Darcy


Ribeiro são narrativas testemunhais. As relações entre memória e testemunho foram bem
explicitadas no capítulo “Testemunho e memória”, de Lívia Reis (2017, p. 331-346). A
questão da memória na obra de Darcy Ribeiro foi trabalhada por mim na tese intitulada
Exumação da memória (COELHO, 1989). Ao escrever o artigo “Espaço biográfico e políticas
da memória”, assinalei como a questão da memória se fazia presente em Darcy Ribeiro
e em textos críticos de Hugo Achugar e Mabel Moranã. Como os autores mencionados
contribuíram para o enfoque da política da memória (tendo em vista que o testemunho
faz parte dela) destaquei que, segundo Márcio Seligmann-Silva (2000, apud COELHO,
2017), a teoria do “testimonio” está bem exposta nos volumes organizados por René
Jara e Hernán Vidal (Testimonio y literatura, 1986) e John Beverly e Hugo Achugar (La
voz del outro: testimonio, subalternidad y verdad narrativa, 1992). Nesse sentido, meu
texto, no que se refere ao testemunho, guarda relação com o de Lívia Reis, porém não
examino a narrativa testemunhal.
Ao retomar Diários Índios, ressalto que o saber de Darcy Ribeiro, jovem cientista,
posto em movimento, em decorrência de suas viagens de pesquisa como etnólogo, faz
com que descubra ou redescubra a importância de ser testemunha e transmitir. A questão
da transmissão está associada ao conceito de cultura “como herança social de uma
comunidade humana” (RIBEIRO, 1985, p. 127) e pode ser impossibilitada por diferentes
razões, como se lê no trecho:

Em certas condições catastróficas – como as derrotas em guerras, as hecatombes


ou as conquistas – as formas de expressão da cultura podem ser reduzidas a
limites mínimos. Essas vicissitudes às vezes traumatizam tão profundamente uma
cultura que a condenam a desaparecer. Todavia, como cada homem é sempre
essencialmente um ser cultural, detentor da tradição que o humanizou, sua cultura
só desaparecerá com ele se for impossibilitado de transmiti-la socialmente a seus
descendentes (RIBEIRO, 1985, p. 128).

A viagem, o olhar ligado à noção de testemunha e à memória estabelecem neste


texto uma ponte entre Diários Índios e a literatura de Darcy Ribeiro. A dramatização,
incluída no conceito de “repertório”, presente em Maíra, O mulo e Utopia selvagem:

136
saudades da inocência perdida: uma fábula, aliada ao caráter político, na esteira do livro de
Nelly Richard (2002), bem como os aspectos já assinalados, constroem, sob a perspectiva
deste estudo, a memória do arquivo escritural de Darcy Ribeiro desencadeando a relação
entre auto(biografia) e arquivo.
Em Maíra, no capítulo “O bucho”, Alma, personagem feminina do romance,
testemunha na “Missão de Nossa Senhora do Ó, a cena das mulheres indígenas que
fazem ‘um discurso apoplético’.” (RIBEIRO, 1981a, p. 225) que a leva a desistir da ideia
de viagem associada ao sacrifício cristão, expressa no início de sua ida ao Iparanã. Em 26
de outubro de 1974, o cientista suíço ecólogo-entomologista encontra o corpo de Alma.
Em 10 de janeiro de 1975, Peter Becker (o cientista) testemunha o que viu na Delegacia.
Esses marcadores temporais não são aleatórios. O dia 26 de outubro corresponde à
data do nascimento do escritor; 1974 é o ano em que ele descobre que está com câncer e
1975 constitui o ano do assassinato de Vladimir Herzog, na dependência do Destacamento
de Operação Interna, e Centros de Operações e Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo.
No romance, além de o escritor se valer do expediente assinalado, ele utiliza estratégias
para expressar diferentes temporalidades (passado, presente, futuro). De forma alusiva
e fragmentada compõe “Egosum”, capítulo de Maíra que destoa dos outros do romance,
por seu caráter autobiográfico, guardando uma relação mais direta com Diários Índios,
apontando que o escritor estava ali ou esteve presente entre os índios. Portanto, ele
testemunhou o que viu para contar e recordar, mas essas são as muitas interfaces do
romance. Em “Egosum”, podem ser lidas, ainda, muitas referências a diversos momentos
da vida do escritor.
Em O Mulo (1981b), segundo romance do autor, a relação entre a letra e o poder
aparece de forma a reiterar o ato de escrever do protagonista, a partir da Fazenda dos
Laranjos (a “casona”), o que reforça a relação entre a escrita e a propriedade, como se
observa no fragmento: “De tudo o que tenho, o senhor verá, o pedaço bom mesmo é
essa fazenda dos Laranjos, onde escrevo, sentado na sala do meio da casona.” (RIBEIRO,
1981b, p. 24).
Sob a forma de relato biográfico, testemunho, confissão e diálogo com o leitor,
ao longo das 517 páginas, Darcy Ribeiro transforma o narrado em palco. A narrativa,
desencadeada pela memória, capta diversos caminhos da travessia do protagonista pelo
sertão e pelas cidades de Minas Gerais e Goiás. Nesse contexto, o protagonista é vítima
da brutalidade, mas também algoz. Essa visão dicotômica tem muitos meandros e coloca
à tona muitas contradições.
Em relação ao primeiro aspecto, assinale-se que o protagonista foi explorado por
Lopinho, fazendeiro que o trata como afilhado e como empregado e não como seu pai
que era. Não tem nome, o que o leva a se autodenominar de Trem. A orfandade o faz
passar por diversas privações como a fome e a pobreza. É submetido ao abuso sexual na
infância / adolescência e ao abuso sexual no Exército. A ascensão social até à condição
de fazendeiro é marcada pela mudança de nomes.

137
A exclusão, em relação ao aprendizado das letras, constitui um capítulo à parte
diante de tantas violências sofridas pelo personagem. Na fazenda de Duxo, tem duas
escolas: da conversa de seu Lé, no barracão dos vaqueiros e a da Professora, Dona Realina,
que lhe ensinou um tiquinho (RIBEIRO, 1981b, p. 73). É em Grão-Mogol que aprende
a ler, a escrever e tirar contas com seu Romão Quadros, “o preso mais importante de
Grão-Mogol” (RIBEIRO, 1981b, p. 137).
No exercício da violência, o narrador protagonista relata a primeira morte que
foi o assassinato de Lopinho. A este crime se sucederam outros, relacionados à posse
de terras, ao seu poder expansionista e à defesa de si como matador. Pratica ainda
violência em relação às várias mulheres. São inúmeros os casos narrados por ele. Para
exemplificar, veja-se que Inhá foi trazida para o protagonista por Zé Goela e foi trocada
“por dois burros com suas bruacas, carregados de mercadoria boa para ele enricar no
garimpo.” (RIBEIRO, 1981b, p. 268). A mulher é comparada a animal, como se observa
na expressão “Gado mulheril do Nheco” (RIBEIRO, 1981b, p. 297), utilizada para se
referir às mulheres da família de seu Nheco.
Explora sexual e economicamente Calu e tira proveito do trabalho dos negros
que acolhe em sua fazenda, reproduzindo a “Casa Grande” e a “Senzala”. Os negros
lhe serviam para “suprir dos muitos arrieiros, boiadeiros e cozinheiros, baratos, que
[ele] usava e gastava nas tropas e boiadas.” (RIBEIRO, 1981b, p. 240). Reproduzindo a
concepção de raça do século XIX (inferioridade racial do negro), afirma: “Meus negros,
por exemplo, fui e sou meu pai deles; mas negro não conta.” (RIBEIRO, 1981b, p. 145).
Muitas histórias estão entrelaçadas no romance. Menciono como exemplos os
relatos do protagonista sobre o que ouviu dizer sobre os negros, transmitidos por Militão,
seu fiel empregado. E, ainda, a narração da chacina de negros e de brancos, na Fazenda
dos Froes, da qual tem conhecimento por meio de Romão que estava como ele, preso, em
Grão-Mogol. Como fazendeiro, Philogônio não usa suas mãos para matar os indígenas
na conquista das terras do Vão, mas narra o que Cazé, um de seus empregados, fez com
eles, participando de uma chacina que é contada de forma imagética:

Chegaram, apearam, desceram um bornal, comeram e deram pros índios, que


também comeram. Era do bom. Quando trouxeram o bornal ruim, os índios
desconfiaram de alguma coisa. Adivinharam. O certo é que nenhum quis comer.
Aqueles homens tiveram que pegar os índios à viva força para meter a paçoca
na boca deles. Envenenaram assim uns poucos que estrebucharam e os outros
apavorados, começaram a fugir. Aí, os homens de Cazé com ele, a pé e a cavalo,
perseguiram até acabar com a indiada na faca e no tiro (RIBEIRO, 1981b, p. 327).

As referências cronológicas são importantes balizas para situar o personagem


na História. Em Montes Claros, o protagonista chega e se apresenta no exército “com
os papéis que o cabo Vito preparou.” (RIBEIRO, 1981b, p. 165). A data de nascimento
do protagonista é 7 de setembro de 1920 (RIBEIRO, 1981b, p. 165). Em São João del

138
Rey, o personagem, tendo ingressado no Exército, seria enviado à guerra (p. 187), ao
que tudo indica, segunda Guerra Mundial. Tendo se desertado do Exército e matado o
Baiano, foge para Goiás.
Ao tomar posse das Águas Claras, tem sua fazenda e outras propriedades legalizadas
por manobras políticas do seu Catalão, que é eleito vereador numa disputa política entre
a UDN e o PTB, partidos fundados em 1945. É interessante observar que, no título de
eleitor, obtido por Catalão, a data de nascimento do personagem é 26 de outubro de 1922,
correspondendo à data real do nascimento do autor de Maíra. A partir daí, o personagem
passa a assinar seu nome como Philogônio de Castro Maya, ou seja, Philogônio C. Maya,
filho de Cipriano da Rocha Maya e de Roselina Afonso de Castro Maya (p. 244).
Ao se referir às Águas Claras, o narrador conta que “No rastro dos posseiros
apareceram, depois, viajando de jipe, uns homens vindos de outras bandas. O primeiro que
chegou vinha, aparentemente, a negócio. Conversou comigo sobre posseiros amotinados.
Falou mal do governo comunista de Jango, traidor dos fazendeiros.” (RIBEIRO, 1981b,
p. 431).
Evidentemente que o trecho se refere ao Governo de João Goulart (1961-1964).
No mundo de múltiplas violências, na perda do Vão, terra que abre e mapeia
como lhe pertencente, Philogônio testemunha o desequilíbrio entre seu poder de mando
e aquele representado pela sociedade anônima (sociedade de capital), institucionalizada
pelo Estado. No contexto do capital, o perdão dos pecados do matador confesso se torna
um mercado de troca, o que se revela na frase: “Eu tinha mesmo de contar aqui que
minha intenção real, verdadeira, é subornar o amigo.” (RIBEIRO, 1981b, p. 276).
Para trazer a questão testemunhal em Utopia selvagem: saudades da inocência
perdida: uma fábula, Darcy Ribeiro se vale de outro expediente. Um dos personagens da
fábula, ao participar de manobras militares como agente civil do Serviço Nacional de
Informação (SNI), criado na ditadura brasileira de 1964, vê-se em um lugar diferente de
onde estava. Cai no meio das Amazonas, repetindo com diferença, no contexto dos anos
70, a história de Hans Staden, feito prisioneiro por uma tribo tupinambá, em 1549, por
ocasião de sua viagem ao Brasil. Na fábula, o Tenente Carvalhal, rejeitado como manjar
antropofágico pelas amazonas, por sua covardia, é abandonado por elas que o lançam
para a tribo dos galibi.
Na fábula, entrecruzam-se vários sentidos de utopia. Entre os galibi, o escritor
insere a figura de Calibã, personagem de Shakespeare que foi relido pelo poeta e crítico
cubano Roberto Fernández Retamar no livro Calibán y otros ensayos. O narrador, cronista
e intérprete do tempo, no âmbito da ironia e da paródia, apontava – como quem não
quer nada – para o crime do Estado: a tortura na ditadura brasileira, como se lê em:

Metida num pau-de-arara, uma dona dessas resistia mais do que comunista
fanático. Só diria o que quisesse. Mas quem é que teria a doida ideia de torturar
estas índias? Selvagens e cruéis elas são; mas inocentes também de toda perversão
subversiva. Como índias são até tuteladas do Estado, na sua condição de cidadãs
relativamente incapazes (RIBEIRO, 1982, p. 52).

139
Como se pode verificar, o termo testemunho aparece textualmente na fábula:

Reencontrando, viventes, as amazonas o ex-tenente restaura o valor de atualidade


de velhos testemunhos eruditos, ao mesmo tempo que retifica. Por seu relato se vê
como e quanto são estultas as ideias dos clássicos que diziam das ilustres damas
que elas eram emprenhadas pelo vento. Qual! (RIBEIRO, 1982, p. 20).

Migo (1988) é um romance que tem como protagonista Ageu, quem narra e parece
escrever sua própria história, cujo gênero é colocado em questionamento pelo narrador
desde as primeiras páginas do livro: “diário? romance? biografia?” (RIBEIRO, 1988, p.
13). Sem entrar nessas indagações, interesso-me por destacar que, no livro mencionado,
o personagem, ao contar sua história, vincula-a à trajetória daqueles escritores que não
saíram de Minas. Em contrapartida, outros intelectuais como Darcy Ribeiro deixaram
Minas em direção ao Rio de Janeiro. Veja-se a citação:

Minha geração literária se foi. Estão curtindo seus talentos à beira-mar. Desconfio,
às vezes, que o ofício verdadeiro deles, inconfesso, secreto, é de inspetor de
bundas da praia de Copacabana. Mas todos se publicam, são gabados, elogiados.
Fernando tem orgasmos de estilo. Autran, espasmos de fantasias romanescas.
Otto, acadêmico, tira ouro do nariz, romanceia raro, mas se exerce, estilista, em
cronicões globais. Hélio, poeta-servo, sofre a do de servir, servil, a seus clientes,
mas não se nega a pendores poético-cívico-social-petistas. Paulinho, poeta-prosador,
etílico, voa majestoso sobre todos nós; Darcy, político, romanceia, quando não
brizoleia para nos salvar. Queiramos ou não (RIBEIRO, 1988, p. 176).

Ao tratar de sua geração que se foi para o Rio de Janeiro, o narrador religa sua
biografia a do intelectual Eduardo Frieiro, escritor e Professor Universitário que rasgou
seu primeiro diário, em 1942 e, em seguida, escreveu Novo Diário. Ao contrário do que
fez Frieiro, Ageu não rasga seu diário. Em Migo, há a justaposição de planos narrativos
e estratégias de narração, observadas no primeiro romance do autor (Maíra, 1976). Sob
a perspectiva do segundo aspecto (estratégias de narração), outros personagens, amigos
do narrador, passam a contar suas próprias histórias e, com isso, é possível confrontar
trajetos individuais, enredados à história do Brasil e de Minas pelo viés de “gerações [...]
daqueles avós da gente que tiveram bens, escravos e terras que guardaram, passaram a
filhos e netos que também guardaram e legaram, deserdando irmãs e cunhados, roubando
viúvas, enganando órfãos.” (RIBEIRO, 1988, p. 57) e pelo lado da “geração esquecida”,
“gente não recordável, que se gastou nessas lavras de ouro e de pedrarias.” (RIBEIRO,
1988, p. 95).
Migo não traz apenas a memória do passado, mas do presente recente, levando-se
em conta o fato de nele ocorrerem referências às notícias transmitidas pela televisão sobre
o estado debilitado de saúde de Tancredo Neves (Presidente eleito de forma indireta que

140
faria a transição da ditadura para a democracia) e a respeito do funeral do Presidente
acompanhado de forma presencial pelo narrador. Os dois acontecimentos estão narrados,
respectivamente, em “Credo” (p. 34) e em “Choro” (p. 46-47).
A memória não só movimenta Maíra, o primeiro romance de Darcy Ribeiro, bem
como os demais, sem contar Testemunho (1990) e Confissões (1997). O testemunho está
associado à memória, à viagem e ao olhar. Com base na análise de Maíra (COELHO,
1989), pude mostrar as relações entre a memória e as viagens que ocorrem no texto.
Naquele momento, associei o olhar à memória, mas não estabeleci a conexão com a
testemunha e o trauma. Os estudos contemporâneos sobre a memória e a História,
com base na obra de Walter Benjamin e Paul Ricoeur, filósofo da História, ampliaram
bastante os caminhos da crítica voltada para a ética e a política e para as reflexões sobre
o testemunho, considerando as ditaduras no Brasil e nas Américas.
Em Maíra, em O mulo e na fábula Utopia selvagem: saudades da inocência perdida:
uma fábula, os protagonistas se deslocam. Mas, esse trânsito se faz de maneira diferente.
Em Maíra, Isaías/Avá retorna à tribo mairum. Alma, mulher branca, viaja para a tribo
indígena. Em Utopia selvagem, o escritor salva o personagem do ataque indígena das
Amazonas para que ele possa ver, nos anos da ditadura de 70 no Brasil, a realidade
indígena. O protagonista de O mulo não sai de sua “casona” (Fazenda dos Laranjos).
No entanto, percorre diversos tempos e espaços, conforme assinalei anteriormente. Em
Migo, o personagem Ageu, escritor estabelecido em Minas, não viaja. Nesse romance,
Darcy confronta duas gerações de intelectuais e escritores que não saíram de Minas como
evidenciei. No romance, utiliza outras estratégias para tratar do espaço e do tempo.
Marilena Chauí em “Janela da alma, espelho do mundo”, termina seu texto dizendo:
“O olhar ensina um pensar generoso que, entrando em si, sai de si pelo pensamento
de outrem que o apanha e o prossegue. O olhar, identidade do sair e do entrar em si, é
a definição mesma do espírito.” (CHAUÍ, 1988, p. 61). Em “Olhar e memória”, ensaio
também escrito para o livro O olhar, organizado por Adauto Novaes, José Moura Gonçalves
Filho afirma:

a memória rodeia, roça e penetra os materiais de cultura, neles se agarrando, se


apoiando, compondo o campo de uma economia, de uma geografia, e de uma
arquitetura intrinsecamente existenciais: aí onde a paisagem humana convida
não ao olhar insolente, desdenhoso, dos vínculos consumistas, em que as coisas
todas intercambiáveis, reduzidas ao espectro de uma mercadoria, perderam sua
intimidade, sua atmosfera; mas aí onde a paisagem humana convida à fruição de
um olhar semiológico, comovido e distanciado, que toma as coisas em seu valor
distintivo (GONÇALVES FILHO, 1988, p. 107).

O olhar, relacionado à memória, implica uma reflexão sobre a importância da


imagem para a escritura de Darcy Ribeiro. Nessa direção, saliento que Migo traz a imagem
da vida como um “caleidoscópio de imagens.”. Essa metáfora se encontra no capítulo

141
“Calei” (p. 82) que começa com a afirmação: “Sou uma máquina de pensar”. O narrador,
tomado por imagens, por fantasmagorias, diz:

Não tenho qualquer poder sobre essa imagineria. A não ser pela preocupação
de entendê-la, ela não me cansa. Poderia viver uma vida inteira – claro que não
gostaria – com esse apaga-acende de imagens dentro de mim. Tal como vivo com
meu ouvido apagado enquanto durmo, ou com meus olhos de ver só quando
eu abro o olho. O ouvido às vezes zumbe, os olhos dão alumbramentos, mas é
diferente, nenhum deles forma imagens pintadas perfeitas (RIBEIRO, 1988, p. 84).

Darcy Ribeiro constrói narrativas que fazem o leitor percorrer diferentes modos
de olhar a cultura, as culturas. Para que o leitor transmita de forma ética e crítica essa
memória do olhar, apresenta uma literatura que traz uma pluralidade de sentidos, de
vozes em contraponto, atravessadas pela ironia e humor diante de visões estereotipadas
e tradições autoritárias.
Para exemplificar como Darcy Ribeiro apresenta a violência do protagonista de
O Mulo e como a recordação acontece nesse contexto pelo olhar, assinalo os trechos
referentes à traição de Inhá com Fico:

Anos vivi de alcateia, esperando, buscando um rastrozinho que fosse para sair atrás
deles e cumprir minha lei. Para executar neles a vingança que compus detalhada,
em mil dias e mil noites, gozando ver na ideia, o que havia de gozar com os olhos
e com as mãos, sobre os corpos dos dois e da cria.
Nunca tive dúvida nenhuma sobre o que fazer com os dois. Ainda na névoa branca
da chapada, pensei e vi, com toda clareza, como cumpria obrar, sem nenhum
espírito de vingança. Nenhum. Só dando a cada um e aos dois o que tinham
merecido. O que pensei, planejei em detalhes, foi só deixá-los juntos, atrelados
para todo o sempre (RIBEIRO, 1981b, p. 286).

Da fábula Utopia selvagem, recorto o fragmento em que o olhar do protagonista


(Tenente Carvalhal, apelidado de Pitum) se dirige, simultaneamente, para duas margens,
a partir das quais o romancista tira proveito para tratar dos testemunhos antigos sobre
o Brasil e as Américas. E atualizá-los. O aspecto comentado se apresenta na citação:

Olhando para o outro lado da cortina, viu lá parados, no meio da bruma, dois
índios de pé olhando, em espanto. Com seus arcos e flechas nas mãos, lá estavam
eles galantes, pintados de preto e quartejados de vermelho, assim pelos corpos
como pelas pernas (RIBEIRO, 1982, p. 74).

142
Leonor Arfuch, em seu texto “A auto/biografia como (mal) de arquivo”, estabelece
um confronto entre o arquivo literário e o espaço biográfico, considerando suas semelhanças
e diferenças. O arquivo literário se aproxima do espaço biográfico pelo “arco de uma
temporalidade disjuntiva.” (ARFUCH, 2009, p. 373). Sucintamente, pode-se dizer, com
base nas considerações da ensaísta argentina, que isso ocorre em decorrência da profusão
de documentos e da “articulação imprevisível, e por isso mesmo misteriosa, entre vida
e obra.” (ARFUCH, 2009, p. 373).
Outro ponto, a ser assinalado, diz respeito à auto/biografia como arquivo e vice-
versa. Segundo a estudiosa, o “arquivo e a autobiografia [...] trazem consigo o tempo e
o lugar” (p. 373). Além disso, a “acumulação heteróclita da memória [...] na escrita do
auto/biográfico [...] tem seu paralelo com o arquivo, em que os rastros são fragmentários
e a parte somente adquire sentido frente a uma totalidade hipotética, ainda inalcançável.”
(p. 373-374).
Outros aspectos teóricos, além daqueles em destaque, foram estudados pela autora
de O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Em decorrência do corpus
selecionado por mim e, tendo em vista, o percurso de Darcy Ribeiro, quero assinalar,
ainda, com base no estudo de Leonor Arfuch, que o autor de Maíra refaz sua vida pela
narração. O fragmento, retirado do importante ensaio da crítica argentina é iluminador:

A própria vida se refaz, vez ou outra, com sua carga emocional à flor da pele,
em cada trajeto ou narração, sem que nenhum deles aspire a representá-la como
totalidade. Essa impossibilidade de completude, juntamente com a procura
inacabada de novos sentidos, é provavelmente uma das razões da constante
ampliação do espaço biográfico (ARFUCH, 2009, p. 376).

A aproximação entre o arquivo e o biográfico/autobiográfico desencadeia meu


diálogo com a concepção de texto como exílio. Clement Moisan, em “A escritura do exílio
em obras de escritores migrantes do Québec”, afirma que:

toda escritura é exílio, porque ela é um deslocamento para outra parte à qual
é preciso retornar. O artista desdobra-se, sai de si mesmo para entrever um
universo que não é o mesmo que aquele de outros homens e lhe faz descobrir
seres, existências, paisagens que teriam ficado desconhecidas para ele (MOISAN,
2004, p. 93). (Tradução nossa)36.

Na rota deste desenraizamento textual que reencontro a conexão com o conceito


de cultura, no que diz respeito à transmissão. Darcy Ribeiro pode testemunhar, de forma
direta, a violência sobre os índios exercida pelo Estado e pelo branco em relação à etnia
Toute écriture est exil,car elle est déplacement vers un ailleurs, d’où il faut revenir. L’artiste se dédouble,
36

sort de lui-même por entrevoir un univers qui n’est pas le même que celui des autres hommes et leur faire
découvrir des êtres, des existences et des paysages qui leur seraieent restés inconnus.

143
indígena (Diários Índios). Em seus romances, utiliza personagens, máscaras ficcionais
e diferentes estratégias discursivas para se referir a momentos distintos da História do
Brasil e da América Latina. Relaciona seu destino ao de uma geração de escritores que
foi para Rio de Janeiro e que traçou um percurso inverso ao daqueles que não saíram de
Minas Gerais como Ageu, personagem de Migo. A história do Estado, por sua vez, não
está isolada: liga-se à história da exploração “de gentes que se gastou nessas lavras de
ouros e de pedrarias.” (RIBEIRO, 1988, p. 95).
No âmbito da biografia do escritor, saliento seu exílio que decorreu de mais uma
catástrofe, testemunhada e vivida pelo antropólogo, além daquela cujo registro se encontra
em Diários Índios. Pela posição que ocupou no Governo de João Goulart (Ministro da
Casa Civil), com o golpe militar de 1964, Darcy Ribeiro foi obrigado a realizar uma
viagem compulsória.
Em seu primeiro exílio no Uruguai, pode presenciar a democracia e respectiva
mudança para um regime ditatorial. Como já escrevi sobre o exílio de Darcy Ribeiro no
Uruguai, quero registrar sua despedida daquele país e da Universidad de la República
que o acolheu, fazendo menção à carta dirigida ao professor Oscar J. Maggiolo, Reitor
da referida Universidade. Do documento consultado coloco em destaque os parágrafos37:

Aprendi, por observação direta e por participação ativa, como se estrutura e como
funciona uma Universidade efetivamente democrática, regida autonomamente
por seus professores e seus estudantes.
Aprendi, também, como a partir de uma postura nacional afirmativa, podemos
nos situar frente ao mundo como latino-americanos, quer dizer, como partícipes
e como edificadores da grande nação em que amanhã nos integraremos todos.
Aprendi também como e quanto o exercício do co-governo não só prepara os
estudantes para o cumprimento do seu papel de cidadãos, como também lhes
permite incutir na liderança universitária um elevado sentido de responsabilidade
social para com o povo e para com a nação (RIBEIRO, set. 1968).

A carta de Darcy Ribeiro possibilita o enfoque de questões que transcendem o


espaço deste ensaio. Uma delas se refere à função do antropólogo como Assessor de
Cultura no momento da criação do “Memorial da América Latina”, no Governo de Orestes
Quércia, o que resultou em outro arquivo: a Revista Nuestra América/Nossa América

“Aprendí, por la observación directa y por participación activa, como se estructura y como funciona una
37

Universidad efectivamente democrática, regida autonomamente por ss profesores e sus estudiantes./


Aprendí, también, como a partir de una postura nacional afirmativa, podemos ubicarnos frente al mundo
como latino-americanos, vale decir, como partícipes y como edificadores da gran nación en que mañana
nos integraremos todos./Aprendí también como y cuanto el ejercicio del cogobierno no sólo prepara los
estudiantes para el cumplimiento de su papel de ciudadanos, sino también les permite infundir a la dirección
de la Universidad un alto sentido de responsabilidad social hacia el pueblo y hacia la nación.” (Tradução
nossa). A carta foi pesquisada no arquivo de Darcy Ribeiro, Memorial Darcy Ribeiro, Brasília, em 2017.

144
(primeiro número, março-abril-1989) (veja-se RIBEIRO, 2018, p. 167-187), permitindo
evidenciar uma ponte entre o exílio e o pós-exílio do escritor.

Conclusão

Tomando Diários Índios como um texto transbordante, além dos limites disciplinares,
é possível mostrar que a memória, ao atravessar a obra literária de Darcy Ribeiro,
entrelaçada à viagem, ao olhar e ao testemunho, constitui uma forma de interpelação.
As considerações de Nelly Richard sobre a memória e sua vinculação com a política e
a “memória insatisfeita” levam-me a destacar o seguinte trecho do livro Intervenções
críticas, gênero e política:

A memória é um processo aberto de reinterpretação do passado, que desfaz e refaz


seus nós, para que se ensaiem novamente os acontecimentos e as compreensões.
A memória remexe o dado estático do passado com novas significações livres, as
quais colocam sua lembrança para trabalhar, levando começos e finais a reescrever
novas hipóteses e conjecturas, para desmontar com elas o final explicativo das
totalidades, excessivamente seguras de si mesmas. E é a laboriosidade desta
memória insatisfeita, que não se dá nunca por vencida, o que perturba a vontade
de sepultamento oficial da lembrança, vista simplesmente como depósito fixo de
significações inativas (RICHARD, 2002, p. 77).

Refletir sobre a importância da testemunha nos textos de Darcy Ribeiro constitui


um modo parcial de demonstrar como o escritor em cada obra reinterpreta o passado,
tornando-se agente crítico para a transmissão da cultura. O trecho da carta de despedida
de Darcy Ribeiro para o então Reitor Oscar Maggiolo, da Universidad de la República,
reitera a importância da Universidade como espaço de conhecimento e, ao mesmo tempo,
de responsabilidade social. Neste caso, pensando no conceito de cultura elaborado por
Darcy Ribeiro, verifica-se que a educação representa um modo de garantir a herança de
uma cultura. O termo “aprendi”, enfatizado na carta, aponta para a questão da experiência
e demonstra como o aprendizado de forma movente uniu a vida e seus personagens, o que
não quer dizer que sua obra seja o reflexo da vida do escritor, mas como as hecatombes
(a morte dos indígenas e o exílio), aliadas à militância política, trouxeram impactos que
removeram “o dado estático do passado com novas significações livres.”.
A literatura representou este espaço de liberdade que se conecta com toda sua
obra e com o modo de ser no mundo.

145
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148
“RAÇA”, CLASSE E NAÇÃO EM DARCY RIBEIRO:
CONTRIBUIÇÕES A UM DEBATE INCANDESCENTE

[...] a luta mais árdua do negro africano


e de seus descendentes brasileiros foi, ainda é,
a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo
na sociedade nacional.
Darcy Ribeiro, O povo brasileiro

Adélia Miglievich-Ribeiro

Apresentação

Em tempos que a luta antirracista tem ganhado, como nunca, o debate público
e a agenda acadêmica no propósito de reescrita da história brasileira, em verdade, da
história mundial, a partir da crítica pós-colonial, cujo gérmen se remete aos intelectuais
da diáspora e àqueles ligados às lutas independentistas na África, e do giro decolonial
latino-americano, a incluir o pensamento negro38, revisitar a obra de Darcy Ribeiro em
seu peculiar entrelaçamento da questão com o tema candente da identidade nacional, de
um lado, e com a perspectiva das classes sociais, de outro, torna-se um desafio instigante.
Escolho O povo brasileiro (1995) para a análise pretendida. Em um primeiro viés, de
cunho étnico, exponho sua narrativa da brasilidade, erguida sobre a negação das matrizes
originárias da cultura brasileira, a saber, a “deseuropeização”, a “desindianização” e a
“desafricanização”, levada a cabo no “cruel fazimento” de nossa gente. Sua “antropologia
dialética”, entretanto, não lhe permitiria estancar na negatividade do mais violento dos
processos históricos – o colonialismo –, como descreve sob a lupa da indignação, mas
haveria de se enxergar na “transfiguração étnica”, que gerou o “povo nação”, a síntese,
no sentido marxista e a (re)inauguração de nossa história.
O “antropologiano”39 reconhecia que “com efeito, as uniões interraciais aqui nunca
foram tidas como crime nem pecado” e que “nós surgimos efetivamente foi do cruzamento
38
Tenho tido a oportunidade de me dedicar às novas epistemologias pós-coloniais e decoloniais em outras
publicações, algumas vezes tecendo pontes com o anticolonial Darcy Ribeiro. Cito algumas: MIGLIEVI-
CH-RIBEIRO, 2011; MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2017; MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2019.
39
Darcy Ribeiro opta por essa autodenominação em detrimento de antropólogo. Segundo Walter Mignolo
(2003, p. 35-36), “A palavra ‘antropologiano’ constituía, na verdade, um marcador da subalternização do
conhecimento: um antropólogo do Terceiro Mundo (Darcy Ribeiro escrevia em fins dos anos 60 e no meio
da Guerra Fria e da consolidação dos estudos de área) não é o mesmo que um antropólogo do Primeiro
Mundo, pois o primeiro está no local do objeto, não no do sujeito do estudo. É precisamente no interior

149
de uns poucos brancos com multidões de mulheres índias e negras.” (RIBEIRO, 1994,
p. 16). Certamente, Darcy pensa o “fato” da miscigenação como irreversível de maneira
que os rostos e corpos dos brasileiros são de uma variedade impressionante40.

[...] cada família brasileira de antiga extração retrata no fenótipo de seus membros
características isoladas de ancestrais mais próximos ou mais remotos dos três
grandes troncos formadores. Conduzindo em seu patrimônio genético, todas
essas matrizes, os brasileiros se tornam capazes de gerar filhos tão variados como
variadas são as faces do homem (RIBEIRO, 1995, p. 238).

Isso leva ao segundo viés que orienta a presente discussão, de caráter político-
ideológico. Darcy explana acerca da sociedade latifundiária e escravagista, hierarquizada
e profundamente desigual, erguida a partir do colonialismo, que até hoje se mantém
como “modernização reflexa” ou “atualização histórica”, impedindo o país de conduzir
sua “aceleração evolutiva” ou autodesenvolvimento.
Atento à superexploração dos estratos negros após uma abolição traumática, que
negou aos escravizados libertos “qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, escolas
em que pudesse educar seus filhos e qualquer ordem de assistência.”, só lhes sendo
destinadas “a discriminação e a repressão”, sobretudo quando, fugindo do campo para
as cidades, os negros constituíram “os chamados bairros africanos, que deram lugar às
favelas”, “debaixo da permanente ameaça de serem erradicados e expulsos.” (RIBEIRO,
1994, p. 14), não há sombra de dúvidas para o intelectual do racismo brasileiro. Só
quem “não tinha olhos para ver o racismo como mecanismo de manutenção da estrutura
social, especialmente, de seu sistema de classes, em que o negro constitui a infraestrutura
mais oprimida, mais sofrida e mais explorada.” (RIBEIRO, 1994, p. 18), poderia, pois,
atrever-se a falar em democracia no Brasil.
Trazer à luz, no ano em que se comemora o centenário de Darcy Ribeiro, 1922-
2022, sua inteligência crítica – quer se concorde ou não com o estudioso – é, também,
uma forma de “justiça epistemológica”. Estamos diante de um cientista social que
soube prezar sua autonomia intelectual, ao mesmo tempo em que produziu um acervo
impressionante, desde as famosas etnografias indígenas, documentários, análises e

dessa tensão que a observação de Darcy Ribeiro adquire sua densidade, uma tensão entre a situação des-
crita e o local do sujeito no interior da situação que está descrevendo.”.
40
Não há que se deduzir daí afinidades com Gilberto Freyre. E sobre isso deixa explícito o prefácio de
Darcy à Casa Grande & Senzala, quando publicada em espanhol, pela Biblioteca Ayacucho, na Venezuela.
Darcy ataca Freyre, em que pese reconhecer seu estilo e extraordinário fôlego para a pesquisa documental.
Rejeita descrições e explicações que aponta como equivocadas, é crítico de seu método, em verdade, da
“causação circular” e de sua antiteorização, quase como chamando sua obra de uma potente etnografia
que foge a qualquer proposição de uma teoria geral, para além da vida privada (o que é, para outro lado
da crítica, o principal mérito de Freyre). Por fim, afasta-se diametralmente do que denomina como o
pensamento conservador do “fidalgo” pernambucano. Curioso, porém, quando diz que ambos são iguais
quanto ao narcisismo e à vaidade (RIBEIRO, 2011).

150
proposições de políticas indigenistas – também organizando, em 1955, o primeiro curso
de Pós-Graduação em Antropologia do Brasil, no Museu do Índio – até sua volumosa
obra Estudos de Antropologia da Civilização41, ainda, diagnósticos e prognósticos sobre
a universidade “necessária” na América Latina, mais adiante sobre a escola pública e
popular, não satisfeito, Darcy se embrenha, também, no campo da literatura. Em que pese
essa riqueza de contribuições, ainda, há, até hoje, um eloquente silêncio na universidade
brasileira acerca de seu nome e legado. Somo-me aos que não se conformam com isso,
até mesmo porque, “pensar” o Brasil de modo não subserviente às teses exógenas, é
premente: afinal, se não o fizermos, quem fará?

Uma teoria do Brasil

Darcy Ribeiro, ao narrar a saga do povo brasileiro, estabelece como instituição


basilar da formação social brasileira o “cunhadismo”, antiga prática indígena para
incorporar estranhos à sua comunidade. Era a prática de “dar” uma moça índia para o
estranho, que chegava à tribo, casar-se com ela. E, por essa união, o branco deixava de
ser estrangeiro para assumir mil laços de parentesco que o atavam à imensa tribo.

Como cada europeu posto na costa podia fazer muitíssimos desses casamentos, a
instituição funcionava como uma forma vasta e eficaz de recrutamento de mão-
-de-obra para os trabalhos pesados [...]. A função do cunhadismo na sua nova
inserção civilizatória foi fazer surgir numerosa camada de gente mestiça que efe-
tivamente ocupou o Brasil. [...] Sem a prática do cunhadismo, era impraticável a
criação do Brasil (RIBEIRO, 1995, p. 83).

A “gente mestiça” extravasa, como não poderia deixar de ser, a violência pela qual
foi concebida, tornando-a a marca de origem do povo brasileiro. Os primeiros brasileiros
foram os “brasilíndios”, também chamados de “mamelucos” pelos jesuítas espanhóis.
O termo remontava a uma casta de escravizados que os árabes tomavam de seus pais
ainda crianças, para criar e adestrar nas chamadas “casas-criatórios.”. Ao crescer, os
mamelucos se tornavam os mais cruéis algozes no exercício da soberania islâmica sobre
seu próprio povo.
O brasilíndio-mameluco nasce, pois, como “não-ser”, negando a ancestralidade
indígena, rejeitando a mãe índia e os irmãos, castigando as gentes de sangue materno,

41
Compõem seus Estudos de Antropologia da Civilização: 1) O processo civilizatório: etapas da evolução
sócio-cultural (1968); 2) As Américas e a civilização (1969); 3) Os índios e a civilização: a integração das
populações indígenas no Brasil moderno (1970); 4) O dilema da América Latina (1971); 5) Os brasileiros
– teoria do Brasil (1978); e, por fim, 6) O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995). (Cf.
MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2011).

151
enquanto busca exasperado, de todas as formas, o reconhecimento paterno, que jamais
obtém, nem o de seus irmãos brancos.

Assim, um Brasil que nasce “ninguém”, fruto do perverso processo de “desindiani-


zação”, “desafricanização” e “deseuropeização” de contingentes humanos, assim
permanece na continuidade do Brasil arcaico que convive com os efeitos de uma
industrialização dependente. Modernos na periferia do mundo, desenvolvemos
uma forma singular de organização sócio-econômica que combinou o escravismo
e a servidão à economia capitalista internacional. O brasilíndio como o afro-bra-
sileiro existiam numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa
carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não-índios, não-europeus e
não-negros, que eles se vêem forçados a criar a sua própria identidade étnica: a
brasileira (RIBEIRO, 1995, p. 131).

Imerso em sua própria “ninguendade”, recrutando (e recrutado) como mão de obra


servil de seu pai e senhor, esta é a célula mater neobrasileira, uma promissora empresa
mercantil, sob a possessão de Portugal, produzindo riquezas para os propósitos mercantis
alheios “através de processos tão violentos de ordenação e repressão que constituíram,
de fato, um continuado genocídio e um etnocídio implacável.” (RIBEIRO, 1995, p. 23),
coetânea, por conseguinte, ao sistema de acumulação capitalista.
Tal processo de exploração do trabalho gesta o povo brasileiro como “proletariado
externo”, isto é, “implante ultramarino da expansão europeia que não existe para si mesmo,
mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens
para o mercado mundial.” (RIBEIRO, 1995, p. 20). Atenta, assim, para a impossibilidade
de sua gente se perceber como “nação” a compartilhar um patrimônio comum, memórias,
experiências, expectativas e sentidos para o “quem queremos ser”.

Nunca houve, aqui, um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria
prosperidade. O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada,
humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na
formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta
a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente (RIBEIRO, 1995,
p. 446).

O materialismo histórico dialético de Darcy Ribeiro é seu método de análise


para descortinar, contudo, o “novo definitivo” (ANDERSON, 1986). Da tese, antítese,
síntese se plasmou aqui uma nação inédita: “O Brasil emerge assim como um novo
mutante, remarcado de características próprias.” (RIBEIRO, 1995, p. 20). Nasce, assim,
a improvável nação, moldada na fusão de “matrizes raciais díspares e tradições culturais
distintas” que, em sua perspectiva, “apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no
espírito dos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se diferenciaram

152
em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais, vinculadas a lealdades étnicas
próprias e disputantes de autonomia frente à nação.” (idem, ibidem, p. 20).
A utopia darcyana é o povo brasileiro absolvido de sua “ninguendade” como
categoria socioeconômica e política, aquela derivada do fosso por séculos aprofundado
entre a classe dominante e os dominados, os reais produtores das riquezas. Se, etnicamente,
o Brasil se reinventou, como defende o “antropologiano”, isso não se deu ainda no plano
social em que se vê “a dilaceração desse mesmo povo por uma estratificação classista de
nítido colorido racial” (id., p. 24). Para tal, há de se direcionar as políticas públicas, fruto
de lutas, que despertem as potencialidades do povo brasileiro para decidir seus rumos:
“nosso passado, não tendo sido o alheio, nosso presente não era necessariamente o passado
deles, nem nosso futuro um futuro comum.” (id., p. 13). Até poderá se transfigurar em
uma “nova Roma”:

[...] Uma Roma tardia e tropical. O Brasil já é a maior das nações neolatinas, pela
magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e
cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para
se fazer uma potência econômica do progresso auto-sustentado. Estamos nos
construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e
trópica, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque
incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência
com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa
província da Terra (RIBEIRO, 1995, p. 449).

O ufanismo acima inegável é um projeto intelectual e político, em um só tempo,


decididamente produto do enfrentamento dos antagonismos sociais.

“Raça” e classe

No subcapítulo “Moinhos de gastar gente” de “Gestação étnica” de O povo brasileiro


(RIBEIRO, 1995), Darcy menciona que a mão de obra negra traficada vinha, sobretudo,
da costa ocidental da África. Esse Continente era uma “babel” de etnias e línguas que
recusava qualquer uniformidade. Apenas pelo colonialismo, povos das mais distintas
estirpes, religiões, histórias (até mesmo de guerras entre si) se descobriram “negros”
ou mesmo “africanos”. Estrategicamente, o colonizador dispersava as tribos e nações
na colônia de maneira a obstaculizar a recriação do patrimônio original trazido de
seu território além-mar. A Língua Portuguesa era aprendida pelos escravizados não
unicamente para a comunicação com os senhores, mas na senzala e nas plantações para
que pudessem falar entre si. O negro “ladino” foi, inclusive, o maior divulgador da língua

153
do colonizador sobre a “língua-geral”42. Darcy Ribeiro, cônscio do terror da escravidão
sobre os autóctones e os africanos, assim narra:

O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse engenho deculturativo,


consigam permanecer humanos. Só o conseguem, porém, mediante o esforço
inaudito de auto-reconstrução no fluxo do seu processo de desfazimento. Não têm
outra saída, entretanto, uma vez que da condição de escravo só sai pela porta da
morte ou da fuga. Portas estreitas, pelas quais, entretanto, muitos índios e muitos
negros saíram; seja pela fuga voluntarista do suicídio, que era muito frequente,
ou da fuga, mais frequente ainda, que era tão temerária porque quase sempre
resultava mortal [...]. Seu destino era morrer de estafa, que era sua morte natural
[...] (RIBEIRO, 1995, p. 118).

Darcy, atenta, especialmente, à “rebeldia negra”: “as lutas mais sangrentas e mais
cruentas que se travaram no Brasil foram a resistência indígena secular e a luta dos negros
escravos contra a escravidão que duraram os séculos do escravismo.” (RIBEIRO, 1995,
p. 219-20). Destaca o quilombo dos Palmares. Este que, mesmo aniquilado, foi gravado
na imaginação de todo negro que aspirava à liberdade.
Nascidos no cativeiro, multiplicou-se o número de mestiços e “mulatos”. O que
Gilberto Freyre admirou como um prodígio do português, a “civilização nos trópicos”,
para Darcy, implicou a dizimação mais atroz das etnias originais. A mulher negra, “ventre”
que gestou o Brasil, sofrendo os piores abusos, recebe em sua obra a seguinte descrição:

[...] as negrinhas43 roubadas que alcançavam altos preços [...] eram luxos que se
davam aos senhores e aos capatazes. Produziram quantidades de mulatas, que
viveram melhores destinos nas casas-grandes. Algumas se converteram em mucamas
a até se incorporaram às famílias, como amas de leite [...]. A negra-massa, depois
de servir aos senhores [...] caíam na vida de trabalho braçal dos engenhos e das
minas em igualdade com os homens (RIBEIRO, 1995, p. 163).

Darcy Ribeiro estima – admitindo a ausência de dados confiáveis – que até o fim
do período colonial, cerca de doze milhões de escravos tenham produzido a riqueza
brasileira. Observa que a empresa escravagista sustentou uma sociedade que, mesmo
42
Segundo Darcy Ribeiro (1995, p. 122-123), o idioma tupi foi a língua materna de uso corrente dos
neobrasileiros até meados do século 18. Dele, saiu a “língua geral”, o nheengatu, desde o século 16, que
era o esforço dos colonizadores de falar o tupi “com boca de português”, não havendo outra comunicação
com os tupinambá de toda a costa brasileira, entrando ainda, pelo sistema fluvial do Prata, ocupando
ainda vastas regiões do vale do Amazonas. Somente em fins dos 1700, o Português substituiu o nheengatu
como língua materna, partindo-se tal primazia das regiões de maior concentração de escravizados negros.
43
O vocabulário de Darcy Ribeiro é “politicamente incorreto”, nos termos atuais, como se viu no excerto
acima. “Mulato” e “mulata” são usados em profusão e vemos também em sua prosa alusões à “negrinha
retinta ou branquinho desbotado.” (RIBEIRO, 1994, p. 15).

154
no pós-abolição (abolição, aliás, a mais tardia da história), manteve-se rigidamente
hierarquizada e, até hoje, molda as relações sociais no Brasil.
Na cúpula, estão o empresariado e o patriciado – aqueles que desempenham
cargos de mando: “o general, o deputado, o bispo, o líder sindical e tantíssimos outros.”
(RIBEIRO, 1995, p. 208) – suficientemente coniventes entre si para permanecerem no
topo. Chama, nesse bloco, atenção, também, para o estamento gerencial das empresas
estrangeiras. Inclui, nesse estrado, ainda, os tecnocratas que controlam a mídia, formando
a opinião pública, elegendo governantes e parlamentares.
Há as classes intermediárias, formadas, dentre outros, por pequenos oficiais,
profissionais liberais, funcionários públicos medianos, policiais, professores, o baixo-clero
e similares, que tendem, em geral a apoiar a cúpula em troca de favores, devendo-se,
porém, admitir a exceção de alguns. Abaixo, estão os trabalhadores subalternos – operários
especializados e empregados, pequenos proprietários, arrendatários, funcionários das
grandes propriedades rurais – que estão, no entanto, acima da linha mais ampla da
hierarquia social brasileira: a grande massa oprimida, composta majoritariamente
por negros e “mulatos”, os excluídos, marginais, “favelados”, empregados da limpeza,
empregadas domésticas, pequenas prostitutas, boias-frias, enxadeiros, e tantos mais.

As classes sociais brasileiras não podem ser representadas por um triângulo, com
um nível superior, um núcleo e uma base. Elas configuram um losango, com um
ápice finíssimo, de pouquíssimas pessoas, e um pescoço, que se vai alargando
daqueles que se integram no sistema econômico como trabalhadores regulares
e como consumidores. Tudo isso como um funil invertido, em que está a maior
parte da população, marginalizada da economia e da sociedade, que não consegue
empregos regulares nem ganhar o salário mínimo (RIBEIRO, 1995, p. 213).

A profusão dos pobres e miseráveis brasileiros são produto de uma dominação


em um só tempo tradicional e racional instrumental, o colonialismo ou a face oculta da
modernidade (MIGNOLO, 2017), que, em acordo com Enrique Dussel, realiza-se pela
“práxis irracional da violência.” (DUSSEL; KRAUEL; TUMA, 2000, p. 472). Assumir
que a modernidade é inextrincavelmente racional e irracional, ambos os componentes
servindo ao tipo empresarial-monetário, vê-se que seus métodos de lucratividade não
são improvisados, se não muito bem calculados.
Ainda, não há paradoxo na dominância dito “patriciado”, de longínqua origem –
tal como traz Raymundo Faoro em sua obra Os donos do poder (2012) ao historicizar o
“estamento burocrático” e sua capacidade adaptativa, cujas raízes podem ser localizadas
no Brasil-Colônia. A chave da hibridez (BHABHA, 2007) é, assim, a única a elucidar a
complexa relação entre colonizadores e colonizados até hoje.
A inorganicidade e os antagonismos no seio dos excluídos fragilizam a pretensão
de uma luta de classes visando à transformação social, mas, nem por isso, o gigante

155
contingente deixa de provocar “pavor-pânico” nos altos estratos da estratificação. Daí o
aparente intransponível muro entre a diminuta elite e o povo.

Nessas condições de distanciamento social, a amargura provocada pela exacerbação


do preconceito classista e pela consciência emergente da injustiça bem pode eclodir,
amanhã, em convulsões anárquicas que conflagrem toda a sociedade. Esse risco
sempre presente é que explica a preocupação obsessiva que tiveram as classes
dominantes pela manutenção da ordem. Sintoma peremptório de que elas sabem
muito bem que isso pode suceder, caso se abram as válvulas da contenção. Daí
suas “revoluções preventivas”, conducentes a ditaduras vistas como um mal menor
que qualquer remendo na ordem vigente (RIBEIRO, 1995, p. 25).

Joel Rufino define o “fato” da escravidão no Brasil de quatrocentos anos como “a


nossa tradição mais legítima, a que reside no fundo de qualquer invocação do passado
para pensar e agir no presente [...] da política cultural e sua democratização, da política
econômica e sua implementação [...]. A escravidão é o primeiro de nossos fatores de ‘longa
duração’.” (RUFINO, 2004, p. 166). Opressores e oprimidos em uma configuração social
de escandalosa desigualdade se produzem, desse modo, como “humanidades distintas.”
(id., p. 212). Entre os seus, as elites são amáveis, mais hipócritas ou menos; para com
os “inferiores”, destinam a indiferença e os maus-tratos.

Ao vigor físico, à longevidade, à beleza dos poucos situados no ápice – como


expressão do usufruto da riqueza social – se contrapõe a fraqueza, a enfermidade,
o envelhecimento precoce, a feiúra da imensa maioria – expressão da penúria em
que vivem. Ao traço refinado, à inteligência – enquanto reflexo da instrução – aos
costumes patrícios e cosmopolitas dos dominadores, corresponde o traço rude, o
saber vulgar, a ignorância e os hábitos arcaicos dos dominados (RIBEIRO, 1995,
p. 210).

Darcy Ribeiro tem consciência plena de que as classes são racializadas. Classe e
“raça”, pois, são polos inseparáveis, o que o aproxima, das considerações da pensadora
social brasileira e feminista negra, Lélia Gonzales, aquela que possibilitou a ampliação
do olhar sobre o tema do racismo quando viu à “raça” combinadas a classe e o gênero:

Os problemas relacionados à integração dos sistemas impõem padrões específicos


de integração social. É nesse sentido que o racismo – enquanto articulação
ideológica e conjunto de práticas – denota sua eficácia estrutural na medida em
que estabelece uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as
formações socioeconômicas capitalistas multirraciais contemporâneas. Em termos
de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de
maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para as posições
na estrutura de classes e no sistema de estratificação social. Desnecessário dizer

156
que a população negra, em termos de capitalismo monopolista, é que vai constituir,
em sua grande maioria, a massa marginal crescente (GONZALES, 2020, p. 35).

Lélia Gonzales (2020a) advoga que falar em projeto de nação ou projeto de


“continente” – a “Améfrica Ladina”44 – sem incluir a questão racial é uma falácia. Uma
sociedade nacional requer a inclusão de seus mais distintos segmentos no mercado de
trabalho e a chance real de mobilidade social.

[...] excluída da participação no processo de desenvolvimento (desigual e


combinado, não esqueçamos), ficou relegada à condição de massa marginal
crescente: desemprego aberto ou não, ocupação “refúgio” em serviços puros,
trabalho ocasional, ocupação intermitente, trabalho por temporada etc. Ora,
tudo isso implica baixíssimas condições de vida em termos de habitação, saúde,
educação etc. (GONZALES, 2020b, p. 58). (Grifo nosso).

O texto acima, publicado por Lélia, originalmente, visando à apresentação no


Spring Symposium The Politica Economy of the Black World, entre 10 e 12 de maio de
1979, na Universidade da Califórnia, intitulado “A mulher negra na sociedade brasileira:
uma abordagem político-econômica.” (2020b) focaliza, nitidamente, o “negro-povo”
ou, mais especificamente, a mulher negra que é povo45. A tese de Darcy vai dos estudos
inovadores de Lélia ao “racismo estrutural”, quando ela expõe, no caso da trabalhadora
negra, sua sub-representação estatística nos postos de trabalho formais e a predominância
dela nas ocupações subalternas.
Afim com sua ideologia política e programa partidário, Darcy Ribeiro se con-
centra na realidade ultrajante do “negro massa” ou subproletariado que era ne-
gro, quer pela predominância da cor, quer por ser lumpen – não chega a usar
esse termo – bastando isso para “ser negro”. O excluído – preto, pardo, bran-
co – é o povo brasileiro e é o “negro-massa”. Seu “inimigo de classe”, por sua vez,
é o alto empresariado nacional associado ao internacional, ao lado do “patriciado”:

44
Interessante pensar que os “amefricanos”, a incluir os ameríndios, para Lélia, também se conformam como
“povo novo”. Não são mais os africanos nem os indígenas antes da invasão branca, se não a reinvenção
de suas matrizes originais, sufocadas pela violência colonial, fruto de uma resistência que necessita ser,
cada vez, mais estudada.
45
Certamente, Lélia e Darcy se conheceram – ela, embora, primeiramente, filiada ao PT, seguiu, depois,
para o PDT, obtendo de Darcy e Abdias apoio para concorrer, como deputada constituinte, ao Congresso
Nacional, sem que tenha sido, porém, eleita. Também, consta da Carta, a Revista do Gabinete de Darcy
Ribeiro como Senador, no número comemorativo de Palmares, seu artigo “Mulher negra” (1994), com
idêntico foco. Não compõe o escopo desse artigo, mas há de se observar que, em que pese a ênfase na
exploração do trabalho e do sexo da mulher negra pobre, Lélia mantinha o estreito convívio com o mo-
vimento unificado negro e com o Teatro Experimental do Negro (TEN), estando, pois, também motivada
pelas questões mais concernentes às experiências das classes médias negras no combate à discriminação.

157
A essa corrupção senhorial corresponde uma deterioração da dignidade pessoal
das camadas mais humildes, condicionadas a um tratamento gritantemente
assimétrico, predispostas a assumir atitudes de subserviência, compelidas a se
deixarem explorar até a exaustão. São mais castas que classes, pela imutabilidade
de sua condição social (RIBEIRO, 1995, p. 217).

Para o intelectual público, o combate ao racismo passava, pois, impreterivelmente,


pela abolição da atual ordem social classista, estamental e antipopular: “[os excluídos]
só têm perspectivas de integrar a vida social rompendo toda a estrutura de classes.”
(RIBEIRO, 1995, p. 210). Sua posição é polêmica e não menos provocativa a depender
do interlocutor. Senão, vejamos.

A negritude

Em 1994, o Gabinete do então Senador da República, Darcy Ribeiro, publicou


o 13.o número de Carta: falas, reflexões, memórias, Revista de distribuição gratuita,
definida como um enlace entre intelectuais brasileiros “críticos, lúcidos e insatisfeitos”
com a realidade social, como consta da descrição de seu escopo. O respectivo número
se intitulava “1695-1995: 300 anos de Zumbi”. A primeira seção, “Falas e escrituras”,
traz os textos do próprio Darcy Ribeiro e de Abdias do Nascimento, ambos filiados ao
PDT, cabe lembrar. Vinha dos anos 1950, porém, as críticas de Darcy Ribeiro ao Teatro
Experimental do Negro (TEN), em que pese a inegável admiração pelo intelectual que
o fundou:

TEN representou uma notável da expressão tanto da criatividade artística do


negro como, também, o comovente esforço para usar todo o poderio do teatro e
da dramaturgia para livrar o negro da alienação e do sentimento de inferioridade.
Sua metodologia foi a utilização das artes para educar, simultaneamente, ao
branco e ao negro, a fim de forçá-los a formas cordiais de coexistência, através
dos mesmos estilos de conduta. Acreditavam que, por esse caminho, acabariam
por derrubar as barreiras do preconceito racial. Sua crença mais ingênua era a de
que a sociedade está estruturada em bases tais que uma pessoa pode nela ascender
socialmente por caminhos abertos a todos desde que tenham os mesmos gestos
e maneirismos de conduta (RIBEIRO, 1994, p. 17).

A contenda datava do I Congresso do Negro Brasileiro, realizado entre 26 de


agosto e 2 de setembro de 1950, evento público, promovido pelo TEN, no auge de sua
efervescência, com grande comparecimento de público, além dos líderes do TEN e os

158
de outras organizações negras, as quais também convidaram importantes apoiadores
políticos e expressivos intelectuais, dentre os quais Darcy Ribeiro.
O encerramento do Congresso foi marcado por uma forte polêmica. Muryatan
Santana Barbosa (2013) elucida que o pivô da discussão foi a apresentação da tese
de Ironides Rodrigues “A Estética da Negritude”. Nos termos de Guerreiro Ramos, “a
palavra caiu no meio da assembleia como um espantalho.”. Naquele momento, vários
convidados reagiram, enxergando um propósito racista de exaltação do negro, um
“racismo às avessas”, exceção feita a Aguinaldo Camargo, “um dos poucos que percebeu
o valor catártico ou psicanalítico do termo”, argumentando a necessidade premente de
se “reeducar o branco.” (GUERREIRO RAMOS, 1952, apud BARBOSA, 2013, p. 177).
O resultado do conflito foi a redação daquela chamada “Declaração dos Cientistas”,
assinada, dentre outros, por Edison Carneiro, Costa Pinto, Carlos Krebs, Walfrido Moraes,
Joaquim Ribeiro, Pedro Schoonakker, Amaury Porto de Oliveira, Hamilton Nogueira,
Aguinaldo Camargo, Darcy Ribeiro e, para a surpresa dos organizadores, de Guerreiro
Ramos – que, entretanto, mantinha a coerência com sua perspectiva ideológica46 – visto,
pela inteligência negra como dissidente.
O núcleo da argumentação da dita declaração era a crítica de que a ênfase na
“identidade” e na “diferença” que a negritude, tal como recepcionada pelo TEN, atribuía
ao negro brasileiro destoava dos dramas concretos massa de negros proletários ou
subproletários. Estes eram brasileiros e ponto, sequer podendo sonhar que a África os
receberia de volta como africanos. A luta, então, haveria de se concentrar na inclusão
do “povo-negro” nos direitos de cidadania. Lê-se um dos fragmentos da dita declaração:

II – Consideram os signatários que os caracteres físicos intelectuais e morais dos


homens são produto da interação de fatores vários, do que certamente o grupo racial
participa, mas que não dependem, nem principal nem exclusivamente, dele. [...]
O negro brasileiro, por exemplo, embora ainda conserve reminiscências africanas
em certas atitudes sociais, já constitui um ser fundamentalmente brasileiro, parte
da cultura nacional do Brasil, que provavelmente encontraria sérias dificuldades
para se adaptar novamente à vida na África. Assim, os abaixo assinados não se
sentem solidários, nem comprometidos, com qualquer teoria que faça tábua rasa
do ambiente físico, das condições econômicas e sociais, das instituições políticas,
das situações históricas e de outras contingências da vida em sociedade, para
ressaltar apenas o aspecto racial, cientificamente falho, inseguro e perigoso, na
apreciação dos fenômenos de nosso tempo (NASCIMENTO, 1968, apud BARBOSA,
2013, p. 176).

46Segundo Antônio Sérgio Guimarães, alguns intelectuais negros do TEN – provavelmente se referindo a
Guerreiro, menos por adesão ao marxismo, se não pelo ideário de nação – também estavam “em sintonia
com a política nacionalista e populista da época, cuja expressão máxima foi o trabalhismo de Vargas.”
(2001). (cf. GUIMARÃES, 2001, apud RIOS, 2014, p. 12).

159
Em seu artigo de 1994 na Carta, Darcy não retoma esse acontecimento, mas
mantém sua tese de que as elites intelectuais negras, até aquele momento, negligenciaram
a organização da classe trabalhadora, majoritariamente negra, optando por se ocupar “de
batalhas meramente simbólicas de caráter cultural” (id. p. 17). Insurge-se, assim, contra
o “psicologismo ideológico da negritude intelectual” (id., ibid.), que acusa de priorizar
a gradual ascensão do negro de classe média na medida de sua própria assimilação nos
hábitos e atitudes do branco da elite. Flávia Rios (2014), em sua tese, explica que o veio
da interpretação marxista explica essa forte oposição que, como vimos, está longe de ser
uma exclusividade da crítica darcyana. Para os marxistas:

[...] essa elite negra não passava de indivíduos com ideais pequeno-burgueses que
aspiravam uma vida melhor e se viam prejudicados pelas práticas racistas, mas
longe de proporem uma transformação social radical (expressa na luta de classes),
o que efetivamente resolveria os problemas [...] socioeconômicos do “negro-massa”,
esses grupos dispersavam seus recursos políticos em discursos e ações calcados
em problemas raciais. Para intelectuais como Costa Pinto (1955), observador do
segundo ciclo de mobilização negra iniciado no pós-guerra – expresso, sobretudo,
pelo Teatro Experimental do Negro (TEN) – tais elites equivocavam-se no que
toca às suas estratégias e identidades coletivas, estas últimas influenciadas pelo
movimento estético-político de negritude francesa (RIOS, 2014, p. 11-12).

Darcy Ribeiro é, também, incisivo em afirmar que a estratégia da negritude


desfaz a combatividade dos oprimidos, silenciando o “negro-massa”, na verdade, o povo
brasileiro – pretos, pardos e brancos – que haveriam de lutar por reivindicações concretas
de superação da exploração e da pobreza/miséria. Para ele, diversos discursos proferidos
em nome da “raça” em nada tocam ou podem beneficiar aquele que se afunda, cada vez
mais, em sua própria “ninguendade”. Reitera-se que o intelectual público sabia muito
bem que a “ninguendade” era racializada, contudo, a base de sua teorização de Brasil
absolutamente coerente a seu projeto político é o nacional-popular.

O nacional e o popular

Nos anos 1940, 1950 e 1960, o trabalhismo brasileiro, cujas proposições


programáticas obtiveram importância não somente no PTB, como em distintas entidades
do movimento social bem como nas instituições políticas parlamentares e no Executivo,
parecia traduzir melhor “um projeto nacional bastante preciso, bem definido e concatenado
com a visão de futuro que alimentou as esperanças de parte da população brasileira em
um tempo singular da história republicana brasileira.” (NEVES, 2013, p. 173).

160
Darcy Ribeiro havia testemunhado, abismado, o enterro de Getúlio Vargas, cuja
imagem de seu caixão passando pelas mãos do povo enlutado que lotava as ruas foi, junto
à carta-testamento, sua diretriz política desde então, foi a última gota para se afastar dos
comunistas47, aproximando-se dos trabalhistas. Aderiu, assim, nos inícios de 1960, ao PTB.
Aqueles primeiros anos da década de 60, após a renúncia de Jânio Quadros, foram
marcados por uma drástica crise da democracia no Brasil. João Goulart, eleito para o
cargo de Vice-Presidente de Jânio, deveria, constitucionalmente, sucedê-lo, em que pese
seu partido, PTB, não houvesse apoiado Quadros em sua campanha. Contudo, a oposição
dos ministros militares foi severa, temendo a suposta “ameaça comunista” que Jango
representaria48. A tensão chegou ao limite e o Congresso votou pelo parlamentarismo, de
maneira que João Goulart seria o chefe de Estado, mas não de governo. Jango aquiesceu,
para contrariedade da esquerda. Tancredo Neves foi, por sua vez, indicado para Primeiro
Ministro.
Daí em diante, sucessivas greves organizadas de trabalhadores pressionando o
retorno ao presidencialismo – pleito apoiado por Juscelino Kubitschek, Magalhães Pinto,
dentre outros que planejavam sua candidatura em 1965. Em junho de 1962, Tancredo
e todo o seu Gabinete se demitiram. Foi sucedido por Auro Moura Andrade, que ligado
à ala mais à direita do Congresso, sofreu ainda mais represálias da parte do movimento
sindical e da classe trabalhadora, renunciando quase imediatamente.
Seguiu-se a ele Brochado da Rocha, alinhado ao retorno do presidencialismo, em
agosto de 1962. A ele sucedeu Hermes Lima. Nesse ínterim, Darcy Ribeiro é convidado
para ocupar o cargo de Ministro no Ministério da Educação e Cultura (MEC). Enfim,
mediante o plebiscito de 6 de janeiro de 1963, João Goulart conquistou os poderes
presidenciais para governar o Brasil e Hermes Lima se tornou o Chefe da Casa Civil, logo,
porém, indicado para Ministro do Supremo Tribunal Federal por Jango, que o substituiu
por Darcy Ribeiro.
A brava luta pela legalidade foi subitamente interrompida pelo Golpe Civil-
Militar de 1. de abril de 1964, que depôs Jango, condenando-o ao exílio, bem como seus
apoiadores e centenas de intelectuais críticos.
Tudo isso, para dizer que Darcy Ribeiro sempre esteve no “olho do furacão”, e é
deste teórico do Brasil que falamos, quando expomos seu pensamento sobre “raça”, classe
e nação. A contextualização é imprescindível a qualquer análise rigorosa. Doze anos se
passaram até que a reabertura política, ele e tantos pudessem retornar ao Brasil. Homem
de convicções e de partido, como se declarava, com a redemocratização, filiou-se ao PDT
de Brizola – que havia perdido na Justiça a sigla PTB para Ivete Vargas, sobrinha-neta
de Getúlio. E, com Brizola, seguiria sua saga.
47
Darcy Ribeiro, embora filiado do Partidão e lá tendo atuado intensamente quando estudante da Escola
Livre de Sociologia e Política (ELSP), dizia que havia sido “licenciado” do PCB por motivos alheios à sua
vontade, e, desde então, dedicava-se, há anos, inteiramente aos índios (RIBEIRO, 1997, p. 276).
48
Os ministros militares não apenas impediram sua posse aliados aos congressistas mais conservadores,
como, mais do que isso, quiserem prender Jango em seu retorno ao Brasil, que estava na China comunista
naqueles dias, enviado por Jânio Quadros.

161
Conforme já aludido, impressiona a coerência entre vida e obra em Darcy Ribeiro.
O “povo” era para ele uma categoria ético-política, e em seu nome o governo deveria
agir. Tal compreensão lhe rendeu, ao lado de Brizola e de seu “socialismo moreno”, a
acusação de “populista”. Um estranho populista, ouso pensar, que aposta na ciência e
na tecnologia, nas humanidades, na cultura, na universidade e na escola. Na educação
pública, enfim.
Laclau (2013) imputa ao “populismo” a condição de “conceito vazio”. Dito de outro
modo, ou passamos ao estudo de caso a caso das experiências ditas populistas ou qualquer
definição é inócua. Na América Latina e no Brasil, o termo passou a ser mais propagado
quando da emergência das classes populares na vida política, sobretudo a partir de 1930.
Mas, a verdade é que no dito “conceito vazio” já coube perfis de liderança e a ideologias
políticas antípodas entre si, servindo a interesses políticos os mais díspares. A identificação
de Brizola ao “populismo” passava, também, por seu carisma, entendendo-se, de um
modo abrangente, esta prática política à relação a mais direta entre governante e povo.
No que concerne a Darcy Ribeiro, sua aposta fora no nacional-desenvolvimentismo
contra a “modernização reflexa” ou “atualização histórica”, da qual já tratamos aqui, algo
como uma espúria modernização que mantém os neocolonialismos e a “ninguendade”
do povo brasileiro. Eis que a “aceleração evolutiva” vem em sentido oposto, para que a
massa, redescobrindo sua potência, possa se reinventar como nação.
É a cultura popular que Darcy Ribeiro quis, então celebrar naquele 9 de novembro
de 1986, uma cultura eminentemente negra. Nessa data, Darcy Ribeiro, então Vice-
Governador de Leonel Brizola (1983-1987), acumulando outras pastas, inaugurou o
Monumento Zumbi que, junto ao Sambódromo e à escola Tia Ciata, formava o complexo
urbano-arquitetônico de celebração da luta do negro brasileiro. O monumento havia sido
idealizado pelo próprio Darcy que, fascinado pela peça em bronze que representa um rei
do Benim, do século XII, do British Museum, incumbiu o arquiteto e artista João Figueiras
Lima, o Lelé, e o engenheiro Humberto Moura de, a partir dela, moldar o monumento,
ampliando seus 36 centímetros para três metros, fundido em oitocentos quilos de bronze.
Foi fixado sobre um pedestal de quatro metros, na Avenida Presidente Vargas, próxima à
Praça XI, mesma área que serviu, no fim do século 19, de reduto dos/as negros/as com
seus ritos afro-brasileiros. Aliás, um grande show aconteceu quando da inauguração do
monumento, com a presença de mães-de-santo, afoxés e grupos de dança negra.
Aliando cultura e educação, seu maior investimento, entretanto, para “rearrumar”
a hierarquia quase de “castas” no Brasil foi a implementação, também no Governo Brizola
em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, dos Centros Integrados de Ensino
Público (CIEP’s), escolas de tempo integral: “Estas novas escolas proporcionarão às
nossas crianças alimentação completa, aulas, a segunda professora que os pobres nunca
tiveram, esporte, lazer, material escolar, assistência médica e dentária.” (BRIZOLA, 1986),
que guardava a expectativa de que, em sendo eleito Presidente, os tornariam prioridade
nacional, espalhando-os por todo o Brasil, o que jamais se realizou.

162
O CIEP é uma escola que funciona das 8 horas da manhã às 5 horas da tarde, com
capacidade de abrigar 1.000 alunos. Projetado por Oscar Niemeyer, cada CIEP
possui três blocos. No bloco principal com três andares, estão as salas de aula,
um centro médico, a cozinha e o refeitório, além das áreas de apoio e recreação.
No segundo bloco fica o ginásio coberto, com sua quadra de vôlei/basquete/
futebol de salão, arquibancada e vestiários. Esse ginásio é também chamado de
Salão Polivalente, porque também é utilizado para apresentações teatrais, shows
de música, festas etc. No terceiro bloco, de forma octogonal, fica a biblioteca e,
sobre ela, as moradias para alunos residentes49 (RIBEIRO, 1986, p. 42).

Ambicionava-se uma revolução pedagógica que indissociasse escolarização e


cultura popular. Um dos pontos destacados em O livro dos CIEPs (RIBEIRO, 1986) dizia
respeito ao modo pelo qual as crianças pobres seriam introduzidas no domínio do
código culto, na valorização de sua vivência e bagagem, tais como linguagens regionais
ou falas coloquiais – a sua identidade, pois – para daí se partir para o mundo letrado.
Os/as professores/as eram também treinados na nova concepção pedagógica, que não
se tratava de meramente duplicar o tempo escolar – o que era, já, fundamental para o
sucesso da aprendizagem50.
Se não tão revolucionário, o projeto não sofreria toda a sorte de ataques. O primeiro
deles foi o de que pretendia uma “escola de luxo”, quando as escolas da rede – diga-se,
de três turnos – estavam precisando de investimentos. O que se desconheceu é que o
projeto da escola integral, de início, atenderia cerca de 20% da população estudantil e
que esse percentual avançaria (RIBEIRO, 1986). A substituição gradual das escolas da
rede pelo projeto dos CIEPs era gradual. Nenhum professor seria excluído desse processo.
Aliás, os salários daqueles dos CIEPs e dos da “rede” nunca foram diferenciados.
A descontinuidade administrativa, com a não reeleição do PDT para o Governo
do Estado, abortou a experiência de escola popular, antes que ela pudesse sequer ser
reavaliada e ter seus inevitáveis equívocos corrigidos. Conforme Lia Faria e Rosemaria
da Silva foram, em verdade, as mentes colonizadoras que pareciam não conceber tal
investimento do Estado em prol das camadas populares.

[...] o que se observa é que o atendimento dos CIEPs para a camada pobre e
marginalizada da população, da forma como foi executada, foi o deflagrador da
grande resistência analisada neste trabalho [aos CIEPs]. O discurso que exaltava
a educação das camadas populares e sua relevância social, contraditoriamente,
acaba por reproduzir o estigma contra a pobreza e reforça sua marginalização.
49
Aquelas crianças em situação de vulnerabilidade que ou não tinham casa para a qual voltar ou correriam
riscos se para lá retornassem. Haveria, para elas, os “pais” e as “mães” cuidadores/as.
50
A cultura, mais uma vez, é a ponte possível entre mundos, em tese, díspares. A escola haveria de se
integrar à comunidade e vice-versa. Artistas, de músicos, grafiteiros, dançarinos, a turma do teatro, das
artes plásticas, mais conhecidos e estimados na comunidade estariam presentes no cotidiano da escola,
sob o nome de “animadores culturais.”. A escola haveria de ser um continuum do mundo de onde veio o
aluno, jamais uma ruptura (RIBEIRO, 1986).

163
[...] os CIEPs foram rejeitados e difamados muitas vezes, também por parte da
população. Mães não queriam seus filhos estigmatizados de marginais, tampouco
de pobres que não tinham o que comer. O nome CIEP passou a ser sinônimo de
criança desamparada, desnutrida, delinquente, pobre e negra (FARIA; SILVA,
2013, p. 14). (Grifo nosso).

O preconceito ao CIEP, que recebia os filhos dos mais desfavorecidos dentre os


desfavorecidos, faz-nos, uma vez mais, voltar ao O povo brasileiro (1995), de Darcy:

Nem podia ser de outro modo no caso de um patronato que se formou lidando
com escravos, tidos como coisas e manipulados com os objetivos puramente
pecuniários, procurando tirar de cada peça o maior proveito possível. Quando ao
escravo sucede o parceiro, depois o assalariado agrícola, as relações continuam
impregnadas dos mesmos valores, que se exprime na desumanização das relações
de trabalho (RIBEIRO, 1995, p. 212).

Considerações Finais

O propósito de nossa investigação foi explanar acerca da profunda coerência entre


o pensador social brasileiro, autor de uma prolixa obra, e sua atuação como intelectual
público, ocupando cargos eletivos e postos políticos. Sua Teoria de Brasil é aquela que
revela a “ninguendade” do povo brasileiro, produto inesperado da violência colonial e
da diluição da pureza de nossas matrizes originais. Brasileiros e brasileiras nasceram
nesses quatrocentos anos de escravidão e de latifúndio. Não faz qualquer sentido, para
Darcy, entender o negro como uma “minoria racial” a preservar uma identidade étnica
distinta da massa brasileira.
Abre exceção apenas para algumas microetnias tribais “que sobrevivem como
ilhas, cercadas pela população brasileira.” (RIBEIRO, 1995, p. 20). Nem assim, retrocede
em seu postulado de que a macroetnia nacional não mais pode ser desfeita. O que não
significa, em seu argumento, a urgência da

[...] abolição de todas as formas sutis ou grosseiras de discriminação e de exclusão.


São estes retornados que exigem da Nação medidas compensatórias dos séculos
de trabalho, sofrimento e pobreza em que serviram como escravos, para o
enriquecimento dos componentes brancos de sua sociedade (RIBEIRO, 1994, p. 12).

Darcy Ribeiro escreve que não há “democracia racial” no Brasil, a qual não passa
de uma “forma peculiar do racismo brasileiro”. Afinal, “a própria expectativa de que o
negro desapareça pela mestiçagem é um racismo”, que “dilui a negritude numa vasta

164
escala de gradações, que quebra a solidariedade, reduz a combatividade, insinuando a
ideia de que a ordem social é uma ordem natural, se não sagrada.” (RIBEIRO, 1994, p. 16).
O “antropologiano” aponta, pois, para a naturalização do racismo na sociedade
brasileira: “um racismo internalizado, instalado dentro da consciência dos negros,
forçando-os a se manterem no lugar onde o branco os coloca, humilhados e inferiorizados.”
(RIBEIRO, 2008, p. 30).

O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa,


“democracia racial”, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam
os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes
a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos
pobres, como se fossem castas e guetos (RIBEIRO, 1995, p. 24). (Grifo nosso).

Darcy prevê que, pelos meados do século XXI, a população brasileira seja
preponderantemente formada por pretos e “mulatos” (RIBEIRO, 1994, p. 15), caso já
não seja hoje. Nem por isso, a “democracia racial” terá sido realizada a menos que as
conquistas cidadãs para o povo tenham se dado.

Tudo isso demonstra, claramente, que a democracia racial é possível, mas só é


praticável conjuntamente com a democracia social. Ou bem há uma democracia
para todos, ou não há democracia para ninguém, porque à opressão do negro
condenado à dignidade de lutador da liberdade, corresponde o opróbio do branco
posto no papel de opressor dentro de sua própria sociedade (RIBEIRO, 1994, p. 18).

Para o pensador social brasileiro, a nação não é uma quimera, ela existe: “Nós
somos o povo que come farinha de pau.” (RIBEIRO, 1995). Nesse mesmo sentido, Antônio
Carlos Peixoto (2004) encaminhou a questão, recordando Simon Bolívar quando lhe
perguntaram sobre o povo na América Hispânica, disse: “é com este que temos que
contar, é com este que temos que trabalhar.” (PEIXOTO, 2004, p. 58). O povo brasileiro
é o “negro-massa”, o “ninguém”, com quem temos também nós que trabalhar, se não
nos bastar produzir e reproduzir elites.
Por fim, interessa reiterar o lugar de Darcy Ribeiro no pensamento social brasileiro e
inquirir sobre sua ausência nos círculos acadêmicos. Trago para isso Wanderley Guilherme
dos Santos (1978, apud MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2015), que descreve as matrizes pelo
qual este pensamento é estudado. A primeira delas é a “institucionalista”, preocupada,
sobremaneira, em marcar a “pré” e a “pós-institucionalização” dos cursos de Ciências
Sociais no Brasil, tendendo a considerar a produção autodidata de inúmeros intérpretes
da brasilidade como “não ciência”, o que bastava para lhe conceder um menor status.
Efetivamente, Darcy Ribeiro, bem posterior aos pioneiros ensaístas da brasilidade
do período “pré-institucionalização”, nunca escreveu, contudo, colado a uma instituição

165
acadêmica, tendo, por sua atuação público-política, enveredado em outras direções. Foi
no exílio, para sermos mais precisos, que, pela primeira vez, colocou no papel sua análise
preliminar, publicando, em 1978, Os brasileiros – teoria do Brasil, no escopo de seus
Estudos de Antropologia da Civilização. Talvez, o fato de não haver uma universidade
nem um colegiado por trás de sua figura, isso tenha dificultado a circulação de sua obra
na comunidade das Ciências Sociais brasileiras, jamais fora, uma vez tendo recebido o
autor o prestígio de grandes editoras.
É possível, também, que o relativo ostracismo se deva a suas eleições teóricas
que contrariavam a antropologia brasileira em voga, desde seu retorno ao Brasil, com
a anistia, aquela representada exemplarmente pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional51.
Por isso, a matriz institucionalista de análise do pensamento social brasileiro pouca
chance dá à inclusão de Darcy Ribeiro no seu cômputo.
Santos atenta, porém, a uma segunda matriz que chama de “sociológica”, que
focaliza um autor e suas ideias no clima do debate de ideias de um tempo. Mesmo assim,
nas análises sociológicas, ainda se reproduzem os ideais de “ciência” e “não-ciência”.
Há ainda uma terceira matriz, por Santos nomeada “ideológica”, designação pouco
explicativa em verdade. Entretanto, é a intelectual antropóloga Mariza Peirano (1992,
apud MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2015) que melhor explicita essa vertente.
Peirano (1992, apud MIGLIEVICH-RIBEIRO, 2015) questiona a dualidade ciência x
política ou universidade x esfera pública ao observar que não explica a produção intelectual
de nossos estudiosos e pensadores sociais. “Antes” e “depois” da institucionalização das
Ciências Sociais são marcos não somente incertos pouco úteis analiticamente, posto
que houve ensaístas e pesquisadores empíricos, na academia e fora dela, de distintas
gerações. Ainda, houve não poucos que combinaram ambas as estratégias metodológicas.
O que enlaça essas mentes é, sumamente, o denodado esforço em pensar o Brasil, seus
problemas e suas soluções. Sobretudo, o engajamento.
Nesse viés, Darcy Ribeiro passa ser bem acolhido, ao lado de nomes como desde
Manoel Bomfim, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, a Antônio Cândido, Florestan
Fernandes, Guerreiro Ramos, Clóvis Moura e Abdias do Nascimento – cada um, importa
enfatizar, portador de distintos projetos de brasilidade. Podemos, nessa linha, incluir
as mulheres, tais quais Maria Isaura Pereira de Queiroz, Maria Sylvia Carvalho Franco,
Lélia Gonzales. Esta última, redescoberta no pensamento social brasileiro ainda bastante
recentemente.
Para fins da reflexão sobre “raça”, classe e nação em Darcy Ribeiro aqui realizada,
é plausível dizer que se trata de um debate bem longe de ser encerrado. E não ajuda
o amadurecimento das ideias quaisquer juízos apressados. O pensamento darcyano é
complexo e consistente, concorde-se ou não com este, portanto, aos leitores e às leitoras:

Ficou conhecida a troca de cartas abertas entre Darcy Ribeiro e Roberto Da Matta, que respondera em defesa da
51

congregação de professores do Museu as acusações de Darcy Ribeiro acerca da “antropologia colonizada” ali praticada.
Os desafetos nascidos no embate repercutem até hoje na recepção da obra do “antropologiano” nos círculos científicos.

166
“Coragem! Mais vale errar, se arrebentando, do que poupar-se para nada.” (RIBEIRO,
1997, p. 12).

REFERÊNCIAS

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169
ENEIDA TROPICAL: O POVO BRASILEIRO COMO GRANDE
NARRATIVA SOBRE O BRASIL

Demetrius Ricco Ávila

O presente trabalho construir-se-á norteado pelo objetivo de proceder a uma


interpretação da obra O Povo Brasileiro. A orientação desta interpretação será o
estabelecimento de uma articulação entre o conteúdo do texto redigido por Darcy Ribeiro
e o que se situa “fora” do referido texto, em termos da formação do autor e do contexto
de produção da obra, a saber, o Brasil dos anos 1990. Entende-se, aqui, a formação de
Ribeiro no correr de cinco décadas, bem como sua inserção no contexto dos anos 1990, do
ponto de vista da sua produção intelectual e de seus posicionamentos e práticas políticas.
O recurso a seus anos de formação52 buscará levantar elementos para o delineamento
de uma história “de” O Povo Brasileiro.
52
Faz-se conveniente um balizamento espaço-temporal dessa formação, em suas dimensões intelectual e
política, pela consideração dos dados a seguir, apesar da forma sucinta de sua exposição. Darcy Ribeiro
nasce em Montes Claros, Minas Gerais, em 1922. Em 1939, muda-se para Belo Horizonte, a fim de es-
tudar Medicina, sem lograr êxito nesse intento. Na Capital mineira, entra em contato com comunistas e
estabelece suas primeiras formas de militância política. Dentro da Universidade, interessa-se menos pela
formação médica do que por aulas de Filosofia ou Literatura. Em 1944, passa a viver em São Paulo, como
aluno da Escola Livre de Sociologia e Política, vindo a colar grau em Ciências Sociais em 1946. Ao longo
do tempo residido na Capital paulista, milita no PCB. Entre 1947 e 1956, vinculado ao Serviço de Proteção
aos Índios (SPI), sob a chancela do Marechal Cândido Rondon, trabalha em pesquisas etnológicas, fazendo
observação direta de grupos indígenas no Pantanal e na Amazônia. Seus primeiros escritos etnológicos
abordam os índios Kadiwéu, do Mato Grosso. Entre o Maranhão e o Pará, estuda os índios Urubu-Kaapor.
Ao longo daqueles anos, passa de etnólogo a defensor de causas indígenas. Ainda dentro nesse período,
organiza o Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em 1954, dirigindo-o até 1957. Em 1954, também auxilia
os irmãos Orlando e Cláudio Villas-Bôas na elaboração do plano de criação do Parque Indígena do Xingu.
No ano seguinte, no Museu do Índio, cria o primeiro curso brasileiro de Pós-Graduação em Antropologia
e assume cadeira na Universidade do Brasil. Nesta Universidade, estabelece vínculos com Anísio Tei-
xeira. Em 1957, assume a direção do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) do Ministério
da Educação. Sua atuação se dá na orientação de pesquisas, com vistas à elaboração de novas políticas
educacionais. Como consequência desse trabalho, em 1959 recebe a incumbência de planejar a monta-
gem da Universidade de Brasília (UnB). Torna-se seu primeiro Reitor, no ano de 1961. O envolvimento
com pesquisas e políticas educacionais o conduz à vida político-partidária, vinculado ao PTB. Em 1962, é
nomeado Ministro da Educação e, em 1963, chefe da Casa Civil do Governo de João Goulart. Tem a seu
encargo, então, a coordenação da campanha pelas Reformas de Base. Em decorrência do golpe de 1964,
é exonerado da Universidade do Brasil e tem seus direitos políticos cassados. Partindo para o exílio no
Uruguai, dá início à composição de uma extensa obra antropológica. Durante o exílio, também leciona em
universidades, em Montevidéu e Caracas, bem como presta assessoria aos governos de Salvador Allende
e Velasco Alvarado, no Chile e no Peru, respectivamente. Parte da assessoria prestada a governos consiste

171
Quer-se, dessa feita, apurar se e como as nuances reconstituídas – sua formação
em ciências sociais, a “descoberta” do Brasil pela leitura de ensaios e romances, a filiação
ao trabalhismo, o contato, no exílio, com pensadores até então ignorados no Brasil53, a
feitura de romances e as polêmicas com alguns pares54 – terão incidido sobre a escrita
do livro em foco.
Nesse sentido, dado o conhecimento de Darcy Ribeiro quanto a ideias de Manoel
Bomfim, Capistrano de Abreu, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado
Junior, dentre outros, buscar-se-á depreender a retumbância destes pensadores nas linhas
e entrelinhas de O Povo Brasileiro. A interpretação que segue procurará se pontuar de
diálogos incidentais entre Ribeiro e tais pensadores, à medida que se constate terem
os mesmos lhe fornecido aporte à feitura da obra, nela ganhando voz, mais ou menos
explicitamente.
O Povo Brasileiro ambiciona explicar, de maneira totalizante e original, a formação
do Brasil. Desnudando os meandros da geração de seu povo e querendo, destarte, a
este servir como instrumento de conscientização quanto às causas de seu atraso perante
outros povos do mundo. Percebe-se de pronto o enquadramento deste livro, em termos
gerais, no interior da perspectiva do evolucionismo antropológico de Darcy Ribeiro.
Pela reiteração da óptica do atraso, quer dizer, demora em se realizar, de modo pleno,

em reformas ou criação de universidades. Retorna definitivamente ao Brasil em 1976. Anteriormente,


em uma tentativa de regresso, fora preso imediatamente à edição do AI 5, em dezembro de 1968. Após
alguns meses de cárcere, partira para um novo exílio, que se estenderia até 1976. Neste ano, estreia como
romancista. Dada a anistia, em 1979 reassume sua cadeira da Universidade do Brasil, agora UFRJ. Junto
a Leonel Brizola, participa da fundação do PDT, partido do qual viria a ser um dos maiores expoentes,
nos anos 1980 e 1990. Em 1982, é eleito Vice-Governador do Rio de Janeiro, na chapa encabeçada por
Brizola. Exerce, cumulativamente, os cargos de Vice-Governador, Secretário Estadual Extraordinário de
Ciência e Cultura, Coordenador do Programa Especial de Educação, para a implantação dos Centros Inte-
grados de Educação Pública (Ciep’s) – dos quais foi o idealizador – e chanceler da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro. Lança-se candidato à sucessão de Brizola no Governo daquele Estado, em 1986, sendo
derrotado no pleito pelo peemedebista Wellington Moreira Franco. Em 1990, elege-se Senador, pelo Rio
de Janeiro e pelo PDT.
53A exemplo de Manoel Bomfim (1868-1932), de cuja obra A América Latina: males de origem (1903),
Darcy Ribeiro tomou conhecimento em Montevidéu, durante seus anos de exílio na Capital uruguaia
(1964-1968). Após retornar do exílio, Ribeiro fomentou a reedição do livro de Bomfim no Brasil, es-
crevendo-lhe um prefácio. “Nos meus anos de exílio em Montevidéu, passei grande parte do tempo me
desasnando nas bibliotecas públicas uruguaias. Li, ali, então, quase tudo que se escreveu sobre a América
Latina, preparando-me para escrever meus Estudos de antropologia da civilização. Foi lá, lendo e repen-
sando nossas vivências, que rompi com meu provincianismo brasileiro para perceber que somos parte de
um todo: a América Latina. [...] Mas minha maior surpresa, meu encantamento, foi encontrar um dia, ao
acaso, atraído pelo título, esse livro extraordinário que é A América Latina – males de origem, de Manoel
Bomfim. Lendo-o, me vi diante de todo um pensador original, o maior que geramos, nós, latino-ameri-
canos.” (RIBEIRO, 1993, p. 10-11).
54
É o caso das querelas públicas entre Darcy Ribeiro e Roberto Da Matta, no fim da década de 1970, nas
páginas de Encontros com a Civilização Brasileira; e com Florestan Fernandes, na primeira metade dos anos
1990, em textos veiculados pela Folha de S. Paulo. A esse respeito, ver: Ávila (2019, p. 77-83 e 157-168).

172
imputa-se aos brasileiros uma característica que somente se pode significar de modo
relacional. Estaríamos atrasados à vista de outros povos, tidos como mais adiantados.
Em O Povo Brasileiro, ressoa de O Processo Civilizatório a compreensão das sociedades
humanas, concebidas como povos, ordenados na forma de nações com características
identitárias demarcadas. Estas, situadas em uma escala única de tempo, no interior
da qual a variação das posições ocupadas determina sua classificação, em termos de
adiantamento ou atraso.
Interpretado simplistamente como obra antropológica, O Povo Brasileiro seria um
lampejo de evolucionismo sociocultural de raiz dezenovista, às portas do século XXI.
Porém, o livro pretende se tratar da proposição de uma nova enunciação da história
brasileira. Nas bases dessa proposição, em que pese a influência do materialismo histórico
sobre Darcy Ribeiro e sua cruzada em contrário ao neoliberalismo nos anos 1990, a
dimensão econômica é antes apresentada como resultante de arranjos histórico-sociais
e socioculturais do que tomada como explicativa, causalmente, dos males que afligem
o país.
O influxo do materialismo se exibe em outro sentido, contíguo ao raciocínio trazido
pelos Estudos de Antropologia da Civilização55, sobremodo em O Processo Civilizatório.
Também em O Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro sustenta a existência de uma dinâmica
histórica inerente à humanidade, indicada pelos diferentes graus de desenvolvimento
tecnológico percebido nas comparações entre as sociedades.
O Brasil originou-se a partir da expansão ibérica, principiada nos estertores
da Idade Média, porque Portugal desenvolvera o aparato tecnológico indispensável à
realização da travessia oceânica. Esse grau de desenvolvimento faz situar Portugal em
um patamar de maior avanço em relação a outras sociedades à mesma época. Da cultura
evolutivamente “superior” lusitana, de sua condição de pioneiro império mercantil-
salvacionista, engendraram-se, portanto, as condições para a expansão econômica da
Ibéria. A economia resultaria, assim, do grau aprimoramento da tecnologia, sendo esta
expressão absoluta de adiantamento ou detença de uma cultura.
No contexto dos anos 1990, Darcy Ribeiro discursa, na Tribuna do Senado Federal,
a respeito da submissão econômica do Brasil ante outras nações do mundo. Em sendo as
condições econômicas determinadas pelos arranjos histórico-sociais e socioculturais, a
condição dependente do país teria por corretivo o afloramento de uma cultura autônoma,
manifestável mediante um discurso identitário nacional. A superação da dependência
brasileira, agravada pelo espraiamento do neoliberalismo, requereria um tal discurso.
Havendo intelectuais “cavalos-de-santo” (RIBEIRO, 2015a, p. 223-231), no dizer de
55
A série de Estudos de Antropologia da Civilização, redigida por Ribeiro, compõe-se, na ordem estabelecida
pelo autor, de: O Processo Civilizatório (1968), As Américas e a Civilização (1969), O Dilema da América
Latina (1971), Os Brasileiros (I – Teoria do Brasil) (1969) e Os Índios e a Civilização (1970). Alguns desses
livros, como é o caso de As Américas e a Civilização, O Dilema da América Latina e Os Brasileiros tiveram suas
primeiras edições publicadas fora do Brasil, em razão de Darcy Ribeiro se encontrar no exílio. Oportuno
reparar que O Dilema da América Latina, livro de mais aguda conotação política dentre os cinco volumes,
só viria a ser publicado no Brasil em 1978, mesmo ano de revogação do Ato Institucional número 5.

173
Darcy Ribeiro, alienados por estrangeirismos, assim como intelectuais comprometidos
com o desenvolvimento da nação, visando a sua soberania, a estes últimos se imporia
o encargo de criá-lo.
Dessa feita, Ribeiro redige O Povo Brasileiro. Um discurso identitário nacional
que, para se legitimar, mobiliza o passado, a contar das formas originárias dos povos
que habitavam o território onde o Brasil se assentaria. Os elementos que o compõem, a
exemplo de fontes, referenciais, conceitos e categorias analíticas, encontram-se espargidos
na produção intelectual prévia de seu autor, isto é, no conjunto dos referidos Estudos de
Antropologia da Civilização.
Em O Povo Brasileiro, esses elementos não somente se reúnem, como se apresentam
em uma forma narrativa. Enquanto a consideração à formação político-intelectual de Darcy
Ribeiro concede contemplar a história “de” O Povo Brasileiro, o relevo de sua inserção
como parlamentar de oposição nos anos 1990 fornece subsídios para uma apreciação
do sentido da história “em” O Povo Brasileiro.
Ao articular texto e contexto de produção, procurar-se-á desencobrir intenções
intrínsecas ao modo de Ribeiro narrar a formação do Brasil, do ponto de vista da genealogia
de seu povo.
Nas primeiras linhas do livro, manifesta-se uma concepção de Ribeiro segundo a
qual o livro consiste em um acabamento – tardio – à série de Estudos de Antropologia da
Civilização.56 De pronto, tal concepção coloca determinados pontos de inflexão. Estes se
traduzem, primeiramente, no distanciamento de mais de duas décadas entre a escrita
daquela série, engendrada entre 1968 e 1972, e a da forma final de O Povo Brasileiro, em
1995. Em segundo lugar, não somente no tempo se verifica distanciamento. O mesmo
ocorre quanto aos espaços em que se dá a prática da escrita. Ao passo que os Estudos de
Antropologia da Civilização se haviam elaborado durante o exílio, mormente em terras
uruguaias, a pretendida opus magna de Ribeiro é produto dos anos finais de sua vida,
transcorridos no Brasil.

56
No prefácio a O Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro afirma que o livro se trata da terceira e definitiva versão
de uma interpretação do Brasil há muito intentada. A primeira versão teria sido uma compilação das pes-
quisas coordenadas no CBPE, em fins dos anos 1950, a qual não se efetivara. A segunda, que conforme
Ribeiro fora o propulsor dos Estudos de Antropologia da Civilização, se redigira durante o exílio uruguaio:
“Tudo isso resultou, sabe-se, no meu primeiro exílio, no Uruguai. Lá, a primeira versão deste livro, umas
quatrocentas páginas densas, tomou forma, depois de dois anos de trabalho intenso. Não era já a síntese
que me propusera. Era, isto sim, a versão resultante de minhas vivências nos trágicos acontecimentos do
Brasil de que havia participado como protagonista. Esse era o nervo que pulsava debaixo do texto, a busca
de uma resposta histórica, científica, na arguição que nos fazíamos nós, os derrotados pelo golpe militar.
Por que, mais uma vez, a classe dominante nos vencia? [...] Uma vez completado o livro, a primeira leitu-
ra crítica que consegui fazer dele todo me assustou: não dizia nada, ou pouco dizia que não tivesse sido
dito antes. O pior é que não respondia às questões que propunha, resumíveis na frase que, desde então,
passei a repetir: por que o Brasil ainda não deu certo? Meu sentimento era de que nos faltava uma teoria
geral, cuja luz nos tornasse explicáveis em seus próprios termos, fundada em nossa experiência histórica.”
(RIBEIRO, 1999, p. 13).

174
Além da variabilidade de tempo e espaço quanto à produção intelectual, há que
se ressaltar a diferença das condições de existência do autor, entre um período e outro.
Focalizando-se, nesse ínterim, os status políticos que definem essas condições, dado o
hibridismo político-intelectual de sua formação. O Darcy Ribeiro a escrever O Processo
Civilizatório e os livros que a este se seguiram é um ex-Ministro de João Goulart, banido
da vida política nacional. Desterrado, feito apátrida. Investido de uma “cidadania móvel”
(conforme expressão de CARVALHO, 1986, p. 170), a percorrer a América Latina de país
a país.
Diversamente, o Darcy Ribeiro que publica O Povo Brasileiro é Senador da República,
em tempos de restauração da ordem democrática. E estava envolvido ativamente nas
questões políticas de seu tempo, por um envolvimento dotado da legitimidade conferida
por um mandato na mais alta casa legislativa do país. Assim sendo, o interregno de tempo,
a variação dos espaços de produção e das condições de existência do autor assinalam
contextos de produção marcadamente distintos entre a série de Estudos de Antropologia
da Civilização e o livro que, segundo Ribeiro, a esta serve como desfecho.
Além de remate, O Povo Brasileiro é apresentado por Darcy Ribeiro como razão
de ser da série que o antecede. Engendrado para responder à pergunta “por que o Brasil
ainda não deu certo?”, formulada em 1964. Vivificar-se-ia, assim, em período democrático,
um questionamento pronunciado à época do regime de força. Em princípio, nada há de
incongruente nisso em relação à perspectiva de Ribeiro acerca da história brasileira. O
continuum de atraso e subdesenvolvimento arguido em outros discursos, a exemplo dos
entoados na Tribuna do Senado, tornaria tal questionamento presentemente necessário.
Mas – e este é um ponto que se visa demonstrar – em distintos contextos, o
mesmo questionamento ensejou a elaboração de respostas que se diferenciam e, em
determinados aspectos, até mesmo se opõem. Nesse sentido, além dos diálogos incidentais
com outros pensadores, a presente interpretação de O Povo Brasileiro não se absterá de
promover determinadas interlocuções de Darcy Ribeiro consigo mesmo. Especialmente
correlacionando O Povo Brasileiro, ponto de chegada, com o de O Processo Civilizatório,
ponto de partida de seu corpus teórico.
Dessa maneira, possibilitar-se-ão a exposição e alguma mensuração do quão
transmutadas terão sido, pelas circunstâncias mundiais pós-1989 e as implicações destas
sobre o Brasil, sua percepção da história e suas predições acerca do futuro.
À maneira de Casa Grande & Senzala, O Povo Brasileiro se edifica a partir de cinco
capítulos. Os dois primeiros – O Novo Mundo e Gestação Étnica – centralizam o século
XVI, embora apontem antecedentes quanto à caracterização dos indígenas de matriz tupi,
previamente à chegada dos portugueses, assim como descrevam a “lusitanidade” e suas
motivações para cruzar o mar-oceano. A descrição dessas motivações retoma o conceito
de atualização histórica de Darcy Ribeiro, quadrando a pretendida continuidade entre
os Estudos de Antropologia da Civilização e a narrativa da década de 1990.
O emprego da atualização histórica resgata o critério tecnológico de classificação
evolutiva das sociedades humanas e explicita a assimetria entre a lusitanidade a matriz

175
tupi, estando a primeira em um patamar evolutivo mais avançado. Do entrecruzamento
dessas duas realidades humanas se dá, fundamentalmente, a “gestação étnica” do povo
brasileiro. Os capítulos mencionados também retomam e desenvolvem conceitos já
colocados por Darcy Ribeiro na introdução do compêndio de documentos históricos que
originara o livro A Fundação do Brasil, de 1992 (dele, em parceria com Carlos de Araújo
Moreira Neto). Em especial, a prática indígena do cunhadismo. O terceiro capítulo –
Processo Sociocultural – aproxima-se do tempo presente da produção da obra, isto é, há
um salto temporal do período colonial ao século XX. Todavia, querendo demonstrar a
perpetuação da violência das elites contra quaisquer tentativas populares de reversão
da ordem vigente.
Esta violência mantém uma sociedade fortemente estratificada, na qual se
pronunciam abismos de classe menos intransponíveis do que as diferenças de caráter
étnico e cultural. Por isso, o Brasil urbano e industrial do século XX conservaria as marcas
do projeto original de uma dominação colonial firmada na escravidão e no latifúndio.
O cotejo entre o arcaico e o moderno, como se nomina um dos subtítulos a este
capítulo, tem por mote a preservação do favorecimento de interesses alheios ao país,
em detrimento das necessidades do povo. Do engenho às corporações multinacionais, o
“sentido” do Brasil permaneceria inalterado.
Interessante reparar no aspecto quantitativo deste terceiro capítulo. Dados
concernentes à entrada de imigrantes no Brasil, ao crescimento populacional, dos centros
urbanos ou figuras ilustrativas da estratificação social no país são uma constante que não
se deixa ver tão expressiva nos demais capítulos do livro. Terão pesado, aí, as pesquisas
dirigidas por Ribeiro sobre a urbanização no Brasil, quando, trabalhando junto a Anísio
Teixeira, encabeçara o CBPE, em fins dos anos 1950.
Como aquelas pesquisas enfatizassem particularidades regionais, por certo sob
seu influxo se redige parte substancial do quarto capítulo. Este, intitulado Os Brasis
na História, procura retratar a existência de diversos “Brasis”, quer dizer, de diversos
modos de ser brasileiro, sob a univocidade da identidade nacional “etnicamente gestada”
conforme a descrição dada no segundo capítulo. Sem prejuízo à sobrelevação de um
Brasil no tempo e no espaço, Darcy Ribeiro aponta que questões ligadas à adaptação
ecológica do povo a cada porção geoclimática do país, além de particularidades locais
do grande processo histórico-social e sociocultural da formação brasileira, terminaram
por criar um mosaico de áreas culturais.
Diferenciadas contingentemente, entre as formas crioula, cabocla, sertaneja, caipira
e sulina – esta subdividida entre gaúchos, matutos e gringos – do povo brasileiro, porém,
necessariamente, coesas sob uma identificação nacional unívoca, ancorada em fatores
homogeneizadores outros, como a mestiçagem e determinados traços do comportamento
coletivo, os quais se procurará explicitar nas linhas subsequentes.
O derradeiro capítulo, exíguo, chama-se O Destino Nacional. Se os capítulos
primeiro e segundo se dirigem sobremodo a um passado quinhentista, e o terceiro toca
às particularidades de um Brasil presente, o último se presta a um balanço do que vem

176
sendo o país, no decurso de cinco séculos. Para asseverar que, não obstante As Dores do
Parto – nome de um dos seus subtítulos –, resguardar-se-iam no porvir a superação do
atraso e a satisfação dos anseios de felicidade de seu povo.57
Esse epílogo da narrativa darcyana se direciona para o futuro, como conclamação
ao invento de um tempo jubiloso para o Brasil. O Povo Brasileiro quer abarcar todas as
temporalidades. No geral da obra, as mesmas fontes, os mesmos referenciais e conceitos
e as mesmas categorias analíticas se prestam à descrição do passado, como à tipificação
dos “Brasis” presentes e a predição dos tempos vindouros.

A diluição do narrador no tempo-espaço brasileiro

Passado, presente e futuro se articulam em O Povo Brasileiro. A interpretação


do Brasil, pretensamente original e completa, tem de explicar o país em todas as
suas dimensões, sejam estas dispostas ao longo do tempo, sejam referentes às formas
socioculturalmente variadas assumidas pelos brasileiros ao largo da ocupação do vasto
território nacional. Deseja-se ora demonstrar que essa procura por interpretar o Brasil
como totalidade deriva-se da multiplicidade de nuances da formação de Darcy Ribeiro.
Por conseguinte, tentar-se-á apresentar alguns cruzamentos entre sua própria formação
e os modos através dos quais narra a formação do Brasil.
Darcy Ribeiro, ao elogiar obras de autores prógonos como Gilberto Freyre, fazia
a ressalva de que, embora estas fossem indispensáveis à autocompreensão nacional,
circunscreviam-se ao estudo de regiões ou de determinados aspectos da formação do país,
parcialmente tomados.58 Esse modo de louvação mesclada à crítica de outros intérpretes
do Brasil denota um propósito de ultrapassá-los em alcance, abrangência e profundidade.
Tanto quanto fim último e acabamento a seus Estudos de Antropologia da Civilização,
Ribeiro parece, com a escrita de O Povo Brasileiro, desejoso de atingir o zênite dentre a
miríade de intelectuais que se ocuparam de explicar o Brasil. Dessa maneira, é própria
a O Povo Brasileiro a procura por exibir uma interpretação do Brasil como totalidade. O
ressalto dessa característica faz eclodir a definição deste livro como “grande narrativa”.
Constante do subtítulo – A formação e o sentido do Brasil –, o termo “formação” considera

57
“Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical,
orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humani-
dades.” (RIBEIRO, 1999, p. 455).
58
“Então esse livro para mim é muito importante porque nós não temos uma teoria global do Brasil. Por
exemplo, Gilberto Freyre fez um livro admirável que é o Casa Grande & Senzala, mas é o mundo do enge-
nho. É o mundo do açúcar. Mas este mundo... mais importante que aquele, que é o mundo de São Paulo,
que é o mundo das bandeiras, que é o mundo de Minas, que é o mundo do Sul, que são os outros Brasis,
não estavam descritos e não estavam interpretados.” (RIBEIRO, Darcy. RODA VIVA. São Paulo: TV Cultura,
17 de abril de 1995. Programa de televisão).

177
tanto a criação do país no decurso do tempo quanto o delineamento de suas fronteiras
espaciais.
A interpretação recai sobre cinco séculos de moldação de um povo, considerando
variações socioculturais, conformadas no processo de ocupação de milhões de quilômetros
quadrados. O território brasileiro é descrito como unidade, conformada em nome de
uma definição identitária nacional. Mas, simultaneamente, pluralizado por força da
diversidade de condições naturais a ensejar modos peculiares de adaptação ecológica dos
brasileiros, bem como em razão das particularidades dos processos históricos, sociais,
culturais, políticos e econômicos locais.
Ao enarrar a formação do Brasil, Darcy Ribeiro se dilui em ambas as dimensões –
tempo e espaço – como se fora seu livro um extenso testemunho da feitura do Brasil. Sua
autoafirmada autoridade para a empreitada de recontar a história do país se sustenta, em
primeiro lugar, na caracterização de O Povo Brasileiro como resultante da já consolidada
série de Estudos de Antropologia da Civilização.
Em nome dessa caracterização, ao objetivo de interpretar o livro de 1995 bastaria
o exame daquela série, identificando-se, especialmente, em O Processo Civilizatório e As
Américas e a Civilização a gênese dos conceitos que fornecem suporte e permeiam seu
derradeiro volume. A consideração à formação de Ribeiro abarca os Estudos de Antropologia
da Civilização e pode expor os mais expressivos conceitos e categorias analíticas sobre
os quais estes se estabelecem.
O correr das páginas de O Povo Brasileiro demonstra uma retomada de tais conceitos
e categorias, desde a classificação do povo brasileiro como povo novo, até a nominação
de subcapítulos por Atualização histórica e Transfiguração étnica. Mas apontar este uso
não satisfaz o intuito de interpretar o livro para mais do que simples remate ao conjunto
de estudos que o antecede.
A recorrência de parte do léxico, em perspectiva de outros livros, arrisca embotar
a apreensão de particularidades presentes em O Povo Brasileiro. Essas particularidades
se tornam mais seguramente explicáveis pela incidência do olhar interpretativo sobre a
formação de seu autor, e sobre o seu contexto de produção da obra, do que pela mera
circunscrição desta uma série. Exatamente neste ponto, justifica-se o emprego da imagem
de uma “diluição” de Darcy Ribeiro no tempo-espaço brasileiro. Em O Povo Brasileiro,
sucede um espelhamento entre o narrador e o narrado, entre o autor e a obra.
A formação de Ribeiro se imiscui à formação do Brasil. A enunciação do passado
quinhentista se imbrica à memória do etnólogo dos anos 1940 e 1950. A antevisão
preditiva de um jubiloso tempo vindouro reflete o discurso trabalhista, do antigo PTB dos
anos 1960 ao PDT de Leonel Brizola da redemocratização, em seus anelos de alcance do
poder para a consecução de um projeto de desenvolvimento nacional, na contramão da
desestatização econômica em curso nos anos 1990 pelos Governos Collor e, sobremodo,
Fernando Henrique Cardoso.
A imbricação entre as formações de Ribeiro e do país permite pensar que sua
pretendida autoridade para recontar a história brasileira se sustenta menos no repertório

178
conceitual desenvolvido nos Estudos de Antropologia da Civilização do que nas nuances
da sua formação. Nesse sentido, a começos de O Povo Brasileiro, coloca-se à vista uma
descrição das duas Matrizes étnicas que, entrecruzando-se plasmariam um povo novo nos
trópicos: a matriz tupi e a lusitanidade.
A descrição da matriz tupi demonstra a pertinência daquela imbricação. Isso
porque, embora não faltem no texto referenciais teóricos à explanação relativa aos povos
originários – como as obras de Florestan Fernandes A Organização Social dos Tupinambá
e A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá –, sopesam nesse embasamento a
formação acadêmica e as pesquisas etnológicas de Ribeiro dos anos 1940 e 1950. Assim
é que surgem no texto menções a Sérgio Buarque de Holanda, sobremaneira à sua obra
O extremo oeste. Essas menções vêm a justificar a perspectiva diacrônica que historiciza
o pensamento darcyano sobre os povos indígenas, em conjugação com os revérberos de
uma etnohistória de inspiração baldusiana59.
Ao explanar a respeito dos índios Guaikuru, Darcy Ribeiro se insere no texto, em
primeira pessoa.60 No papel de testemunha ocular da conservação dos traços distintivos
destes índios na forma dos Kadiwéu dos anos 194061:

Os Mbayá acabaram se fixando no sul de Mato Grosso que, em grande parte graças
a essa aliança, ficou com o Brasil; e os Payaguá, nas vizinhanças de Assunção. A
Guerra do Paraguai deu, a uns e outros, suas últimas chances de glória, assaltando
e saqueando populações paraguaias e brasileiras. Terminaram, por fim, despojados
de seus rebanhos de gado e de suas cavalarias, debilitados pelas pestes brancas e
escorchados. Sem embargo, guardaram até o fim, e ainda guardam, sua soberba,
na forma de uma identificação orgulhosa consigo mesmos que os contrasta,
vigorosamente, com todos os demais índios, como pude testemunhar nos anos
em que convivi nas suas aldeias, por volta de 1947 (RIBEIRO, 1999, p. 37).

A correlação de ancestralidade entre os índios Guaikuru e os Kadiwéu afigura


no interior da obra com o amparo da autenticação pelas experiências etnológicas do
autor, extrapassando as fontes documentais propiciadas pelos primeiros cronistas, por
Florestan Fernandes e outros referenciais. Por isso, faz-se válida a inferência segundo
59
A referência é ao alemão Herbert Baldus (1899–1970), Professor de Etnologia de Darcy Ribeiro e Flo-
restan Fernandes na USP dos anos 1940.
60
É pertinente realçar que, à diferença do que se lê nos volumes da série dos Estudos de Antropologia da
Civilização, nos quais Darcy Ribeiro se manifesta em primeira pessoa do plural, em O Povo Brasileiro os
trechos autorreferentes do discurso do autor se expõem na primeira pessoa do singular.
61
Cabível, aqui, uma observação. Claude Lévi-Strauss, que estudara os Kadiwéu nos anos 1930, não consta
da bibliografia de O Povo Brasileiro. Se o antropólogo francês os estudara antes, Darcy Ribeiro os com-
preendera com mais valência, ao “elucidar” suas origens. Como se o diacronismo que abalizaria a antro-
pologia dialética se imbuísse de uma capacidade explicativa superior à do sincronismo que desembocaria
no estruturalismo. A Lévi-Strauss teria “escapado” a percepção da ascendência Guaikuru dos Kadiwéu.
Perdura nos anos 1990, mesmo que velada nesse caso, a contraposição, promovida pelo próprio Ribeiro,
entre sua obra antropológica e a do “mentor” dos antropólogos “cavalos-de-santo” brasileiros.

179
a qual O Povo Brasileiro se constrói à imagem de um testemunho da feitura do Brasil.
Na década de 1990, o septuagenário Darcy Ribeiro se reporta aos primeiros séculos de
formação do Brasil por intermédio das memórias dos primeiros anos de sua própria
formação profissional.
Se os Guaikuru do Brasil pretérito implicam os Kadiwéu do século XX, o mesmo
ocorre quanto aos Tupinambá em relação aos Urubu-Kaapor, como retratado nos Diários
Índios (1996). Os Tupinambá são o componente fundamental da matriz tupi, conforme O
Povo Brasileiro. Através desses indígenas, dado o seu pioneiro contato com a lusitanidade,
ter-se-ia concebido um adâmico primeiro brasileiro. Tendo convivido com os Kaapor ao
perquiri-los em seus trabalhos etnológicos, Ribeiro acreditava ter, através deles, obtido
ciência das mais fidedignas manifestações vivas da sobrevivência dos Tupinambá. Dessa
feita, em O Povo Brasileiro, descreve o primevo encontro entre a matriz tupi e a lusitanidade
com a propriedade de quem o presenciara:

Para os índios que ali estavam, nus na praia, o mundo era um luxo de se
viver, tão rico de aves, de peixes, de raízes, de frutos, de flores, de sementes,
que podia dar as alegrias de caçar, de pescar, de plantar e colher a quanta
gente aqui viesse ter. Na sua concepção, sábia e singela, a vida era dádiva de
deuses bons, que lhes doaram esplêndidos corpos, bons de andar, de correr, de
nadar, de dançar, de lutar. Olhos bons de ver todas as cores, suas luzes e suas
sombras. Ouvidos capazes da alegria de ouvir vozes estridentes ou melódicas,
cantos graves e agudos e toda a sorte de sons que há. [...] Aos olhos dos
recém-chegados, aquela indiada louçã, de encher os olhos só pelo prazer de
vê-los, aos homens e às mulheres, com seus corpos em flor, tinha um defeito
capital: eram vadios, vivendo uma vida inútil e sem prestança. Que é que
produziam? Nada. Que é que amealhavam? Nada. Viviam suas fúteis vidas
fartas, como se neste mundo só lhes coubesse viver. Aos olhos dos índios, os
oriundos do mar oceano pareciam aflitos demais. Por que se afanavam tanto
em seus fazimentos? Por que acumulavam tudo, gostando mais de tomar e
reter do que dar, intercambiar? Sua sofreguidão seria inverossímil se não fosse
tão visível no empenho de juntar toras de pau vermelho, como se estivessem
condenados, para sobreviver, a alcançá-las e embarcá-las incansavelmente?
(RIBEIRO, 1999, p. 44-45).

Eis que a diluição no tempo em nome da experiência vivida, manifesta de maneira


consciente ou não, entremeie a composição da narrativa. Para a caracterização dos
Tupinambá, havia o aporte dos livros de Florestan Fernandes. Porém, além da tendência
de Darcy Ribeiro a complementar ou mesmo extrapassar as fontes bibliográficas pela
própria experiência etnológica, havia ao tempo da publicação de O Povo Brasileiro sua
aludida indisposição em relação a Fernandes, calcada em motivações político-partidárias.
Sendo assim, ao ataviado discurso sobre os Tupinambá veiculado por O Povo Brasileiro,
Ribeiro dotou do complemento dos Diários Índios.

180
Da consubstanciação do conhecimento dos primeiros tempos da formação do
Brasil pela via das próprias experiências pregressa, não se segue, contudo, o menosprezo
de Darcy Ribeiro acerca dos escritos legados pelos primeiros cronistas, utilizados por
Florestan Fernandes. À vista disso, cabe evocar o trabalho empreendido por Ribeiro poucos
anos antes, em A Fundação do Brasil. As experiências, articuladas com a erudição nutrida
por aqueles escritos conferem-lhe a autoridade de conhecimento para a reconstituição
de um passado indígena prévio à chegada da lusitanidade, tal como a dos primeiros
contatos entre os dois universos humanos distintos. A caracterização da forma “pura”
da matriz tupi – ainda não corrompida pelos males que acompanharam e se seguiram
àqueles contatos, feito as moléstias e a escravização –, assentada em uma autoridade de
conhecimento ocular, visa à resolução de um problema colocado diante de Darcy Ribeiro.
O problema consistia na perspectiva de continuum de dominação e exploração
através da qual Ribeiro percebia e usualmente caracterizava, por diferentes formas
de discurso, a história brasileira. Se o passado contém em si as marcas vexatórias da
dominação colonial, presentificada pela perpetuidade da condição subdesenvolvida e
dependente do país, não haveria em que se estribar a perspectiva de reversão dessa
condição. Em outras palavras, essa concepção de passado fazia carecer de referentes
fundados em experiências, para mais que os utopismos de Thomas Morus ou Jean-Jacques
Rousseau, quaisquer enunciados a respeito de um futuro promissor para o Brasil. O
raconto da gestação do povo brasileiro ressoa feito uma contraditória benesse em meio
ao funcionamento de perversos mecanismos de dominação colonial.
Dessa feita, Darcy Ribeiro recua o princípio de sua narrativa a um tempo pré-co-
lonial. Esse recuo o desvencilha do viciado continuum originado pelo empreendimento
colonial lusitano. Logo, O Povo Brasileiro recobra uma visão idílica dos povos indígenas
em seu estado original, tal como o fizera em romance Utopia Selvagem (1982). Mas
incorporando a autoridade testemunhal-etnológica de quem “vira” esse modus vivendi.
Contudo, Ribeiro não intenta se prender a esse passado. Seu fulcro é a predição do futuro.
Versando sobre a reconstituição do passado, Reinhart Koselleck (2006, p. 310)
esclarece que “a história é desde sempre concebida como conhecimento de experiências
alheias.”. Ao superdimensionar as próprias vivências de etnólogo, assemelhando-se a um
cronista temporão dos indígenas do Brasil, Darcy Ribeiro parece andar na contramão da
definição koselleckiana de história: em lugar de concebê-los, exclusivamente, através
dos textos do século XVI, Ribeiro quer historiá-los mediante as próprias experiências.
O que não significa que, eventualmente, deixe de lançar mão “de olhares alheios.”.
Mas, mesmo quando o faz, denota que os critérios para a incorporação desses olhares à
sua obra são a parecença e a presteza relativas às intenções subjacentes ao seu reconto
da história brasileira. O conhecimento de Ribeiro quanto a esses olhares fora proveito
do mergulho na documentação referente ao Brasil dos séculos XVI e XVII, que originara
o livro A Fundação do Brasil.

181
O Povo Brasileiro é caudatário dos efeitos desse mergulho. Reside nisto um diferencial
entre este livro e os demais que compõem a série de Estudos de Antropologia da Civilização,
à feitura dos quais essa documentação não houvera corroborado.
Um exemplo de uso desses olhares alheios por Darcy Ribeiro é a incorporação
de relatos do Padre Fernão Cardim a O Povo Brasileiro. O juízo de valor acerca do Padre
denota a força dos critérios de seleção para essa incorporação, sacado de um leque de
cronistas disponíveis. Nesse sentido, tem-se a impressão de que o antropólogo se coloca
em certa posição de “superioridade” em relação a seu informante quinhentista. Como se,
ao invés de Cardim confirmar os enunciados de Ribeiro referentes aos índios do Brasil
do primeiro século, seus enunciados é que validassem os relatos de Cardim. Insubmisso
aos testemunhos do padre, Ribeiro se posiciona a seu lado na visitação a engenhos
açucareiros e aldeamentos de índios em catequese:

O padre Cardim, que foi reitor do Colégio da Bahia, gostava muito de descrever
o mundo que via. Foi, para meu gosto, um dos primeiros e mais altos intelectuais
brasileiros. Identificado com nossas coisas e nossa gente, descreve, encantado,
florestas, roças, pescarias, sempre com o mais vívido interesse. [...] Visitando as
várias missões entre os anos de 1583 e 1590, em companhia do padre Cristóvão
de Gouveia, o bom Cardim nos conta os poucos índios que aí estavam em
cada uma delas, todos vivendo na mais vil pobreza, simulando uma conversão
inverossímil, mas cheios de unção e até de adulação diante dos padres (RIBEIRO,
1999, p. 179-180).

A referida “superioridade” de Darcy Ribeiro em relação ao informante se mostra


na simulação de “uma conversão inverossímil” dos indígenas aldeados. O conceito de
transfiguração étnica, engendrado por Ribeiro no século XX para designar a resistência
dos indígenas ante o “processo civilizatório”, projeta-se na leitura do relato do Padre.
Eis o significado de “inverossímil” no texto, justificado por uma resistência de elementos
culturais visualizada em indígenas do século XX e projetada sobre indígenas do século
XVI. Ribeiro reveste a experiência de Cardim com um conceito elaborado a partir de
sua etnologia indígena, posta a serviço do SPI e da UNESCO entre os anos 1940 e 1950.
Dessa maneira, a história não se qualificaria apenas como resultante da apreensão das
experiências de outrem.
Se válido o contraponto, ainda assim, Reinhart Koselleck oferece boas lentes para
a leitura de O Povo Brasileiro. Assim é porque as reconstituições do passado, segundo
um princípio escudado de Benedetto Croce aos Annales e aperfeiçoado por Koselleck,
obedecem a necessidades presentes. À luz destas necessidades, o aspecto historiográfico
da narrativa em questão será mais bem compreendido.
Caso observasse não mais que a cruenta dominação colonial, Darcy Ribeiro
careceria do suporte ao prenúncio de um futuro próspero para o Brasil. Logo, antes da
descrição do choque provocado pela colonização, apresenta as Matrizes étnicas basilares

182
à formação do povo, a tupi e a lusitanidade. No escopo dessa apresentação, aviva-se uma
dicotomia entre ambas.
De um lado, os indígenas capazes de infundir nos filósofos do “velho continente”
a fé na viabilidade da reedificação das sociedades ante a contemplação de seu mundo
idílico. De Morus a Rousseau, a humanidade mediante a qual se engenha o pensamento
utópico moderno é produzida no Brasil. De outro, a lusitanidade, ávida por arrebatar
toras de pau-de-tinta e almas.
Deve-se ter em conta que, conforme o esquema evolutivo disposto em O Processo
Civilizatório, os países ibéricos se classificam por impérios mercantis salvacionistas. Dessa
feita, em não sendo países plenamente capitalistas, como o seriam Inglaterra e Holanda, o
salto tecnológico que caucionara a Espanha e Portugal a realização da travessia oceânica
se propulsara em nome da avidez da expansão comercial combinada com um fervor
religioso.
A duplicidade dessas motivações ter-se-ia precipitado perniciosamente sobre os
indígenas, tanto em sentido natural – em função da dizimação física suscitada pelas
doenças trazidas pelos lusitanos, pela escravidão e pela devastação de seus meios de
subsistência – quanto cultural – por imposição da catequese, representada pelo relato e
mesmo pela presença do padre Cardim como reputado intelectual no primeiro século.
A dicotomia entre as duas Matrizes étnicas promove uma polarização necessária
para que Darcy Ribeiro resgate no passado mais do que a violência característica do
empreendimento colonial. Existe um polo positivo, encarnado ética e esteticamente pela
cosmovisão e pela forma do estar no mundo dos povos de matriz tupi, feito contraparte
dialética à negatividade material e imaterialmente avassaladora da lusitanidade que
veio dar em suas praias.
Como matriz, não obstante seu padecimento, dos Tupi se teria feito em parte o
povo brasileiro. Por isso, a benignidade dessa ancestralidade subsistiria, mesmo que
latente, nas formas contemporâneas deste povo. Estabelece-se nessa existência, então, a
garantia do benfazejo futuro propalado por Ribeiro. Perduraria “na carne e no espírito” do
povo brasileiro a humanidade inspiradora do pensamento utópico europeu. Mais do que
produzida no Brasil, essa humanidade produz o Brasil, como espaço de concretização das
utopias possíveis, calcadas nas “qualidades diferenciadoras” (RIBEIRO, 1999, p. 20) da
indianidade original. Ainda que herdeiro dos malfeitos da lusitanidade, o povo brasileiro
carregaria em si uma redentora capacidade tupi de convivência antiautoritária e generosa.
A atribuição de virtudes aos povos indígenas, ancorada em uma matricialidade
tupi a garantir o regozijo do amanhã, mais do que percorrer, entrelaça temporalidades.
De tal modo que à leitura de O Povo Brasileiro bem sirvam as lentes ofertadas por
Koselleck. Além de se determinar pelo presente a reconstituição do passado, em nome
dessa determinação, o mesmo também se ressignifica. O passado, ressignificado ante as
necessidades de cada presente, reverbera no modo de conceber o futuro, alterando-o.
Assim é que despontam as categorias espaço de experiência e horizonte de expectativa.

183
Estas acorrem à compreensão do presente, revelando seus contornos através das formas
como nele se concebem tanto o passado quanto o futuro.
Em O Povo Brasileiro, a ressignificação do passado brasileiro por Darcy Ribeiro,
afiançada pela memória de seus trabalhos etnológicos, equivale à composição de um espaço
de experiência prescrito pelo contexto dos anos 1990. O modo positivado de conceber a
ancestralidade indígena se deriva das influências do indigenismo de Herbert Baldus e
Cândido Rondon. Porém, não exclusivamente, em um contexto no qual essa positivação
refletia a necessidade de afirmação de um projeto político-partidário.
A ressignificação do passado altera a expectativa acerca do futuro. Em O Povo
Brasileiro, manifesta-se esse fenômeno, todavia, em sentido contrário. A expectativa
acometeu a experiência. Internaliza-se na narrativa um discurso exortativo quanto ao
futuro, desde que constituído pela retomada do poder, a nível nacional, pelos trabalhistas.
Por essa expectativa, o nacionalismo trabalhista professado por Ribeiro perpassa
a descrição do passado. No excerto supracitado de O Povo Brasileiro, o estranhamento
no olhar dos portugueses sobre a “inutilidade” da existência indígena é uma alegoria do
olhar do capital privado exógeno sobre as empresas estatais brasileiras.
Os indígenas de 1500 não explorariam todas as possibilidades de riqueza ofertadas
pela terra, entendida como acumulação, como as estatais do século XX não aufeririam
o máximo lucro possível das atividades sobre as quais detêm monopólio. O argumento
da maior eficácia das empresas mediante sua privatização, combatido pelo trabalhismo,
transpõe-se para o século XVI, encontrando-se com as “toras de pau vermelho” desperdiçadas
pela inépcia dos nativos da terra.
Contrapondo a ganância dos colonizadores com a generosidade indígena, Darcy
Ribeiro entabula não um mito fundador, mas uma “utopia fundadora” do Brasil. Para
que o país se desenvolva autonomamente, o povo deverá reassumir a feição benevolente
do ser e estar no mundo de seus ancestrais de matriz tupi. A consecução de um futuro
prodigioso depende do enunciado de um passado mirífico. Compondo e disseminando
tal utopia, ao intelectual cabe ainda fazê-la passível de se crer pela consciência do povo.
Quanto à diluição de Darcy Ribeiro no espaço brasileiro – o qual não é por exato
o mesmo que o espaço de experiência koselleckiano –, o Brasil é tomado como totalidade
geográfica, virtuosamente tramada como “a maior das nações neolatinas.” (RIBEIRO,
1999, p. 454). Mas, sob “o” Brasil subsistem diversos “Brasis”: crioulo, caboclo, sertanejo,
caipira, além dos “Brasis sulinos”. Estes últimos, por sua vez, decompostos analiticamente
em matutos, gaúchos e gringos. Por adaptação ecológica, a variabilidade do espaço do
território nacional origina em parte as diferentes faces do povo brasileiro.
Assim, Darcy Ribeiro sustenta que a paisagem constitui o povo: em termos ecológicos,
psicológicos e sociais. Não é de se estranhar, pois, que na descrição do Brasil sertanejo,
Euclides da Cunha preste-lhe auxílio.62 A premissa da força do sertanejo, impulsada pela
62
“Arma-se, em 1897, um exército inteiro contra o arraial de Canudos, dotado de todo apetrecho de guerra,
inclusive artilharia pesada. Mesmo esse exército profissional moderno, só depois de lutar arduamente,
consegue vencer a resistência obstinada dos fanáticos. Mas só o pode fazer ao preço da dizimação de toda
a população. O episódio celebrizou-se por seu próprio vulto sinistro e, também, pelo retrato candente desse

184
aridez do meio natural, estende-se à contemplação generalizada da rudeza das condições
de existência como explicação da origem da fibra moral dos habitantes dos outros “Brasis.”.
A título de exemplo dessa generalização, escreve o antropólogo que “A primeira geração
de imigrantes enfrentou a dura tarefa de subsistir enquanto abriam clareiras na mata
selvagem, enfrentando, por vezes, índios hostis, de construir suas casas e estradas, vivendo
uma vida trabalhosa e severa.” (RIBEIRO, 1999, p. 438). Dessa maneira, apresenta os
gringos que se achegavam à porção meridional do Brasil, no século XIX.
Mas, se leitura de Os Sertões incide sobre a escrita de O Povo Brasileiro no
entendimento de parte da definição do caráter do povo como resultado de adaptação
ao meio, esse entendimento não se deriva apenas da leitura de Euclides da Cunha por
Ribeiro. Em sua narrativa, reverberam ecos dos trabalhos de Donald Pierson, em sua
predileção pela “ecologia humana.”.
A diluição de Darcy Ribeiro no espaço brasileiro denota influências de seu
antigo Professor norte-americano da Escola Livre de Sociologia e Política paulistana
na caracterização dos diversos “Brasis”. Tal como no próprio amparo de Euclides da
Cunha, uma vez que a primeira leitura de Os Sertões fora determinada por Pierson
ao jovem bolsista da ELSP, por volta de 1943. Pode-se situar também nesse amparo à
caracterização dos “Brasis” a leitura de Oliveira Vianna. Populações Meridionais do Brasil
integra a bibliografia de O Povo Brasileiro para aportar especialmente a interpretação
dos “Brasis” sulinos.
Por intermédio de Donald Pierson se haviam transmitido a Darcy Ribeiro os
métodos e técnicas de pesquisa da sociologia de Chicago. O fulcro de sua influência se
encontra no peso dos “estudos de comunidade” sobre a feitura do quarto capítulo de O
Povo Brasileiro. A exposição de “cada” Brasil se ancora nas pesquisas dirigidas por Darcy
Ribeiro no CBPE, na passagem dos anos 1950 aos 1960, efetuadas à moda daquele tipo de
estudo.63 Delas advém, unida às leituras de Euclides da Cunha, Oliveira Vianna e outros
intelectuais, o conhecimento de Ribeiro a respeito das particularidades regionais do país.
Se bem que O Povo Brasileiro revele rasgos da sociologia de Donald Pierson, há
que se considerar sobre essa obra também a influência da etnologia de Herbert Baldus. A
repartição do território brasileiro de acordo com o feitio culturalmente manifesto do povo
sobrepõe as áreas culturais – caracterizadas mediante laivos de difusionismos apreendidos
de Baldus – à divisão regional convencionada por critérios políticos. Ao modo de um
mapa alternativo, destapando as formas culturais consequentes do estabelecimento do
povo sobre a terra. Por isso, não há apenas um Nordeste, mas crioulos e sertanejos, bem
como não se reconhece no Sul senão as facetas matuta, gaúcha ou gringa.
Portanto, a diluição de Darcy Ribeiro sobre o espaço brasileiro escoa sobremodo
da formação na ELSP. De Pierson e Baldus às leituras extracurriculares, essa formação se
desencontro entre as duas faces da sociedade brasileira, deixando em Os sertões, de Euclides da Cunha,
escrito como um libelo terrível contra o genocídio que ali se cometera.” (RIBEIRO, 1999, p. 358-359).
63
Quanto às pesquisas que Darcy Ribeiro coordenara no CBPE, advieram pelo trabalho de outros partícipes
obras como Uma comunidade teuto-brasileira – Ibirama, Santa Catarina, de Úrsula Albersheim, constante
da bibliografia de O Povo Brasileiro.

185
cristalizara em pesquisas empíricas empreendidas decênios antes da publicação de O Povo
Brasileiro, neste retomadas e reinterpretadas. Por meio da utilização dessas pesquisas,
Ribeiro tenciona fazer legítima uma capacidade de interpretação do país como totalidade,
simultaneamente respeitando e explicitando particularidades culturais empiricamente
reconhecidas.
Mais do que manifestas dentro de cada região, essas particularidades fazem em O
Povo Brasileiro as vezes de delimitadores espaciais mais verossímeis do que as fronteiras
entre Estados e regiões brasileiras exibidas em mapas políticos. Daí que as formas
particulares do povo – crioula, cabocla, sertaneja, caipira, sulinas – perfaçam “Brasis”
diferenciados, mas regidos por uma argumentada unidade.
Em sendo os brasileiros plasmados pela mestiçagem tanto quanto pela adaptação
ecológica a variados meios, a caracterização de cada região funde o Brasil, enquanto
natureza, com seu povo, enquanto cultura. Dessarte, a narrativa da formação do país, no
aspecto da ocupação do território, é a narrativa da formação do povo, sendo verdadeira
sua recíproca. O emprego desta equivalência sobreleva a continuidade entre o povo e o
país, como uma interação vitalmente necessária e por isso indispensável.
Seu rompimento, por decorrência da entrega do patrimônio do nacional, entendido
como natureza, ao capital privado, especialmente de origem estrangeira, representa, então,
a supressão das possibilidades de sobrevivência do povo. Essa correspondência, que se
pode exprimir como interação entre corpo e território, sugere, a julgar pelos discursos
políticos do Senador Darcy Ribeiro no contexto dos anos 1990, uma imagem das empresas
multinacionais coincidindo com a de instrumentos de mutilação. Entrementes, a crença
na unidade subjacente a um território natural e culturalmente vário, sobre o qual vive
um povo formado por múltiplas procedências, mas imbuído de uma identidade unívoca,
requer apreciações mais apuradas. Com efeito, Ribeiro enaltece o fato de que

A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia ter resultado


numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de componentes diferenciados
e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário, uma vez que, apesar de sobreviverem
na fisionomia somática e no espírito dos brasileiros, os signos de sua múltipla
ancestralidade, não se diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais
ou regionais, vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia
frente à nação. As únicas exceções são algumas microetnias tribais que sobreviveram
como ilhas, cercadas pela população brasileira. Ou que, vivendo para além das
fronteiras da civilização, conservam sua identidade étnica. São tão pequenas,
porém, que qualquer que seja seu destino, já não podem afetar à macroetnia em
que estão contidas (RIBEIRO, 1999, p. 20).

Coloca-se, pois, o problema da unidade do Brasil em face da multiplicidade dos


“Brasis”. Se a formação do povo brasileiro se originou da “confluência de tantas e tão
variadas matrizes formadoras”, estas por seu turno originando um país recortável em áreas

186
culturais notadamente dissemelhantes, em princípio afigura contrassensual o sustento
da univocidade identitária nacional de uma “macroetnia”.

Unidade sem uniformidade

Harmonia é a unidade do misturado e a


concordância das discordâncias.

Filolau de Crotona, século V a.C.

Diluído no espaço brasileiro e no pretendido conhecimento de suas variabilidades,


Darcy Ribeiro retrata diversos “Brasis”. Esses “Brasis”, embora múltiplos, reúnem-se
sob uma definição unívoca de nacionalidade. As variantes apresentadas, não obstante
conformadas por processos socioculturais e históricos localmente peculiares, perfazem
um povo apenas.64
Por conseguinte, ressai da leitura de O Povo Brasileiro um questionamento, sugestivo
de tensão. Este concerne à correlação entre os distintos “Brasis”, descritos e exaltados
em suas particularidades, e a ideia de uma nacionalidade brasileira, abrangente de
todas as variantes das formas sob as quais o povo se apresenta. A conciliação entre a
heterogeneidade das partes e a homogeneidade do todo, em se tratando da definição
identitária nacional tencionada por Ribeiro, pode por vezes se aparentar anfibológica.
Formulado de outro modo, o questionamento faz ir à cata, na obra em análise,
dos elos entre os diferentes “Brasis”. Não obstante a multiplicidade das áreas culturais
que o conformam, o país é dotado, segundo Ribeiro, de uma “unidade étnica básica.”
(RIBEIRO, 1999, p. 21) a qual faz com que seu povo se comporte “como uma só gente.”
(RIBEIRO, 1999, p. 21-22). Busca-se, à vista disso, desvelar em que se assenta, segundo
o autor, a identidade nacional. Irrompa-se a busca com uma citação.
Ao se referir à América Latina, nos anos 1970, Darcy Ribeiro atribuíra ao continente
a existência de uma “uniformidade sem unidade.” (RIBEIRO, 1986, p. 17). Mediante tal
atribuição, sustentava que, sob o pano de fundo da dominação colonial ibérica, comum
ao Brasil e aos países avizinhados também em formação, plasmaram-se fartas variantes

64
Interessante mencionar que, logo a começos de O Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro exalta a unidade do
Brasil, levando em conta as possibilidades de fragmentação do país em razão da existência de múltiplas
identidades locais, concebidas e sedimentadas pela pluralidade das “matrizes formadoras”: “A confluência
de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada
pela oposição de componentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário, uma vez que,
apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos brasileiros os signos de sua múltipla
ancestralidade, não se diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais, vinculadas
a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia frente à nação.” (RIBEIRO, 1999, p. 20).

187
socioculturais. Esse entendimento resultou, sustentando-a, na tipologia etnonacional dos
povos americanos65. Por essa tipologia, o povo brasileiro se classifica como povo novo.
Porém, na narrativa publicada nos anos 1990, do esmiuçar da formação do Brasil no
tempo e no espaço decorre uma inversão de juízo em relação ao afirmado sobre a América
Latina. Se no continente se verificara uma “uniformidade sem unidade”, a descrição dos
diversos “Brasis” faz reluzir quanto ao país a ideia de uma “unidade sem uniformidade.”.
A categoria povo novo servira à caracterização de outros países, a exemplo de
Colômbia, Venezuela e Cuba. Qualidade comum aos três, motor da formação de povos
novos, seria acentuada mestiçagem, pelo incurso expressivo de componentes indígenas,
europeus e africanos. Logo, a prática ostensiva de mestiçagem não consistiria em apanágio
brasileiro, legado por plasticidade étnica lusitana. Inescapável confrontar, por esse ângulo,
Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre. Ao critério do primeiro, a América hispânica experimentara
a mestiçagem nas regiões em que se teriam achegado maiores contingentes africanos,
em comparação com outras. Por isso, pareceria se explicar o pendor miscigenatório mais
por conta da entrada de componentes negros no Novo Mundo do que por disposições
atribuídas a qualquer dos colonizadores ibéricos.
Contudo, embora conclusivamente passível do olhar sobre escritos anteriores
de Ribeiro, este argumento esbarra em um problema quando defrontado com O Povo
Brasileiro, o que pode evidenciar descontinuidades entre este livro e o restante de sua
obra. O problema consiste no superdimensionamento, na narrativa tardia, do componente
indígena – a matriz tupi – no primeiro e definitivo ato de fundação do Brasil.
Com efeito, seu autor testifica que a “gestação étnica”66 do povo brasileiro se
deu de fato por meio do intercurso sexual entre portugueses e mulheres indígenas,
anteriormente à chegada dos africanos. Por outro lado, a tipificação dos povos novos
operada nos Estudos de Antropologia da Civilização toma por modelos justamente os
países latino-americanos onde, em época colonial, preponderou o emprego de mão de
obra de procedência africana.
Destarte, desdobra-se o problema. O princípio da nacionalidade brasileira, originado
pelo entrecruzamento luso e tupi, parece mera variável de um fenômeno mais geral, que
65
“Os povos extra-europeus do mundo moderno podem ser classificados em quatro grandes configurações
histórico-culturais. Cada uma delas engloba populações muito diferenciadas, mas também suficientemente
homogêneas quanto às suas características básicas e quanto aos problemas de desenvolvimento com que se
defrontam, para serem legitimamente tratadas como categorias distintas. Tais são os Povos-Testemunhos,
os Povos-Novos, os Povos-Transplantados e os Povos-Emergentes. Os primeiros são constituídos pelos re-
presentantes modernos de velhas civilizações autônomas sobre as quais se abateu a expansão européia. O
segundo bloco, designado como Povos-Novos, é representado pelos povos americanos plasmados nos últimos
séculos como um subproduto da expansão européia pela fusão e aculturação de matrizes indígenas, negras
e européias. O terceiro – Povos-Transplantados – é integrado pelas nações constituídas pela implantação
de populações européias no ultramar com a preservação do perfil étnico, da língua e da cultura originais.
Povos-Emergentes são as nações novas da África e da Ásia cujas populações ascendem de um nível tribal
ou da condição de meras feitorias coloniais para a de etnias nacionais.” (RIBEIRO, 1979b, p. 87-88).
66
Cabe lembrar que a expressão “Gestação Étnica” é empregada como título do segundo capítulo do livro
(RIBEIRO, 1999, p. 80).

188
acometera todo o continente no correr do século XVI e daí em diante. Este se caracteriza
pelas alterações de composição populacional consequente da miscigenação entre ibéricos
e nativos. Nesse caso, a formação do povo brasileiro pouco ou nada se diferenciaria da
formação dos povos colombiano, venezuelano, cubano, bem como das formações de
praticamente todos os povos conformadores dos países avizinhados.
A categoria povo novo, ainda que por ora se restringindo à conjugação de ibéricos
e nativos ante a secundarização dos africanos na descrição da gênese do primeiro
brasileiro, permanece ampla. Por isso, sua aplicabilidade não se aquiesce exclusiva ao
Brasil, impossibilitando-se o cimentar de particularismos constitutivos de nacionalidade.
Os conceitos “ibérico” e “nativo” confluem com a amplitude de povo novo, prestando-
se à elaboração de um discurso sobre a formação da América Latina em seu conjunto.
Isso posto, obtém-se um possível entendimento das razões da elaboração, em O Povo
Brasileiro, da categoria matrizes étnicas. Para elucidação da formação do Brasil, “nativo”,
esmiuçado pela busca de particularismos, dá lugar à matriz tupi, enquanto “ibérico” é
desmembrado, com o sobrelevo da porção concernente à lusitanidade.
O esquadrinhamento da origem do povo brasileiro, balizado por essas duas
matrizes étnicas apresentadas em suas especificidades, singulariza a versão brasileira
do fenômeno da miscigenação. Sob esse fenômeno, geral à formação do continente,
caberiam variadas matrizes, de cujas especificidades, mantidas ou modificadas pelo
entrecruzamento, se derivaria a singularidade de cada povo novo. Por conseguinte, à
compreensão da nacionalidade brasileira, como ao próprio sustento de sua existência,
se exige a apreciação dessas matrizes em sentido originário, ou seja, previamente à
“gestação étnica”.
A gestação étnica do povo brasileiro se enceta, precedentemente, ao início da
colonização efetiva do país, constando do recuo supradito de Darcy Ribeiro ao tempo
idílico de uma indianidade original. Os poucos portugueses advindos antes de 1530,
deparando-se com essa indianidade e sua prática do cunhadismo, com ela passam a
compor “criatórios de gente mestiça.” (RIBEIRO, 1999, p. 83).
O texto de O Povo Brasileiro, ancorado na formação etnológica e indigenista e na
predisposição política de seu autor de dar voz aos “vencidos”, estima a relevância dos
grupos indígenas na composição da sociedade nacional, à revelia do que se expressa
taxativamente em Casa Grande & Senzala. Outra vez o paralelo com Gilberto Freyre
se faz inapelável. Conforme o intelectual pernambucano, “Os portugueses [...] vieram
defrontar-se na América, não com nenhum povo articulado em império ou em sistema
já vigoroso de cultura moral e material [...] mas, ao contrário, com uma das populações
mais rasteiras do continente.” (FREYRE, 1963, p. 149). Em sequência, Freyre (1963, p.
162-163) ainda afirma ser um

erro, e dos maiores, supor-se a vida selvagem [...] uma vida de inteira liberdade.
Longe de ser o livre animal imaginado pelos românticos, o selvagem da América,
aqui surpreendido em plena nudez e nomadismo, vivia no meio de sombras

189
de preconceito e de medo; muitos dos quais nossa cultura mestiça absorveu,
depurando-os de sua parte mais grosseira ou indigesta.

A crítica freyriana aos “românticos”, registrada nos anos 1930, por certo se direciona
aos dezenovistas José de Alencar e Gonçalves Dias. Ambos seriam criticados igualmente
por Darcy Ribeiro (1979a, p. 95), em entrevista à Encontros com a Civilização Brasileira, na
década de 1970. Porém, ao passo que Freyre maldiz tanto as representações idealizadas
dos românticos quanto os indígenas “reais”, Ribeiro limitara sua crítica às representações.
Ocorre que o outrora etnólogo converter-se-ia em romancista. Representações de indígenas,
embasadas pelas vivências etnológicas em pretensa contrapartida às idealizações
dezenovistas alavancariam Maíra e Utopia Selvagem, naquela mesma década de 1970 e
na seguinte.
Semelhante procedimento de conceber indianidades remotas, mediante o
reavivamento da própria formação – inerente à sua diluição no tempo –, verifica-se em O
Povo Brasileiro. À diferença daqueles romances, não há neste livro intenção declaradamente
ficcional. Nada obstante, da caracterização dos índios com os quais se teriam deparado
os portugueses em 1500 não será legítimo afirmar notáveis discrepâncias entre O Povo
Brasileiro e romantizações alencarianas:

Para os índios que ali estavam, nus na praia, o mundo era um luxo de se viver
[...]. Na sua concepção sábia e singela, a vida era dádiva de deuses bons [...].
Os recém-chegados eram gente prática, experimentada, sofrida, ciente de suas
culpas oriundas do pecado de Adão, predispostos à virtude, com clara noção dos
horrores do pecado e da perdição eterna. Os índios nada sabiam disso. Eram,
a seu modo, inocentes, confiantes, sem qualquer concepção vicária, mas com
claro sentimento de honra, glória e generosidade, e capacitados, como gente
alguma jamais o foi, para a convivência solidária (RIBEIRO, 1999, p. 44-45).

Ausente o superdimensionamento da ancestralidade indígena do povo brasileiro, na


exaltação de seu caráter inocente e isento de pecados, perderia o sustentáculo a legitimação
do projeto político subjacente ao livro. Sem a caracterização, de veio rousseauniano,
de uma matriz tupi honrada e generosa como “gente alguma jamais o foi”, tornar-se-ia
impraticável o entabulamento da utopia fundadora do Brasil.
Por isso, embora Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre se aproximem, no que toca à
ambição de explicar os primórdios da formação da sociedade brasileira, procurando cada
qual quanto a esta consolidar textualmente uma interpretação dignificante, entre os
dois, a apreciação do papel dos indígenas nessa formação constitui uma irreconciliável
divisão. À medida que Freyre coloca em relevo uma percepção negativa acerca dos nativos,
justificadora da colonização, Ribeiro incorre em romantização por querer construir

190
sua narrativa a partir do olhar destes sobre seus invasores. Um olhar menos próprio,
entretanto, aos próprios indígenas do que a Rousseau ou Alencar.
A caracterização em O Povo Brasileiro de indígenas por vezes mais imagéticos do que
admitiria seu autor indica um horizonte de expectativa remarcado por intencionalidades
políticas. Mais do que releitura, a reescrita do passado com vistas à fundamentação
de uma identidade nacional positivada corresponde aos enfrentamentos do Senador à
negação das premissas maiores do nacionalismo trabalhista, efetivada pela desestatização
econômica em curso nos anos 1990. Nesse sentido, tem cabimento a asseveração de que

Las identidades nacionales no son, pues, eternas. No son hechos naturales,


objetivos, estables, como los ríos o las montañas, sino construcciones de caráceter
contingente que, debido a uma confluencia de circunstancias, políticas sobre
todo, surgieron em algún momento del pasado [...] (JUNCO, 2016, p. 23).

A contingência das identidades contrasta com o discurso ontologizante de O Povo


Brasileiro sobre a formação do País. Segundo esse discurso, compôs-se um povo novo a
partir de um componente nativo portador de virtudes suplantadas pelos que vinham de
fora, especialmente os portugueses, em seu afã exploratório e doutrinário. Na salvaguarda
da virtuosidade do componente nativo se justapõe a defensa dos frutos da terra, em
detrimento do que seja exógeno.
Dessa feita, a maior integridade moral dos indígenas em face dos portugueses
espelha a benemerência das empresas estatais ante o capital estrangeiro. Similarmente, o
discurso economicista veiculado pela grande imprensa em sua – recorrentemente alegada
por Darcy Ribeiro – venalidade, difusor de uma imagem distorcida e alienadora do
neoliberalismo e da globalização, denunciada por Ribeiro nos anos 1990 (ver: RIBEIRO,
1998, p. 92-94), encontraria parecença na descrição do trabalho jesuítico de evangelização
no Brasil quinhentista.
Diante disso, aclara-se o lugar fulcral destinado à matriz tupi na exposição acerca
da edificação do povo brasileiro. Mesmo que dizimada pelas pestilências trazidas pelos
colonizadores, ou subalternizada pela escravidão e pela catequese, afixam-se na indianidade
os mais nobres predicados atribuíveis à identidade nacional. Tanto quanto intrínsecos
à indianidade, esses predicados derivar-se-iam em grande parte da relação com a terra.
Não será por motivação diversa que Darcy Ribeiro prediga a futura “civilização brasileira”
como mestiça com o recorrente acompanhamento do termo tropical.67
A representação do passado tupi, quiçá ressoando algum edenismo68, não pode
prescindir da composição de um cenário provido de fartura e beleza, refletida no
comportamento social dos primeiros habitantes.
67
“Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical,
orgulhosa de si mesma.” (RIBEIRO, 1999, p. 455).
68
Pertinente mencionar, nesse sentido, que Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, consta da
bibliografia de O Povo Brasileiro.

191
Assim, a relação longeva e estreita com a terra, evidenciada pela domesticação de
plantas69 ou pela toponímia tupi encontrada pelos portugueses, faria do mestiço de matrizes
tupi e lusa, isto é, o mameluco decantado por Ribeiro, mais “genuinamente brasileiro”
do que o mulato freyriano, dada a conservação a hereditariedade tupi do primeiro em
detrimento da africanidade do segundo. Não apenas pela precedência do mameluco no
tempo. Sem embargo, mamelucos e mulatos se irmanam quanto à dominância lusa no
processo que os origina, bem como na deculturação de suas respectivas ancestralidades,
efetivada pela miscigenação. De todo modo, o passado idílico tupi em que se funda a
ontologia nacional, se não despreza, confere à África, tida por exógena como a lusitanidade,
uma condição de suplementaridade na formação da identidade do povo brasileiro.
A preservação do que seja nativo garante a identidade do povo. O passado tupi, em
sua apropriação e gozo da terra, subentende a memória dos tempos áureos do trabalhismo
no poder, a fundar empresas estatais. Conformando um mesmo espaço de experiência
em Darcy Ribeiro, a façanha da domesticação da mandioca e o êxito getulista da criação
da Petrobras se equivalem.
Dentro do esquema evolucionista de Ribeiro, a superioridade tecnológica que
permitiu a dominância portuguesa na formação do Brasil não se traduz em superioridade
moral. A apreciação das matrizes étnicas do povo brasileiro expressa uma polarização de
contornos maniqueístas entre os prístinos habitantes da terra e os invasores portugueses.
À semelhança da antinomia Estado nacional e capital estrangeiro, sustentada pelos
discursos na Tribuna do Senado.
O avassalamento da generosidade tupi pela avidez lusa, narrada em O Povo
Brasileiro, incorpora personagens mais bem definidos a um enredo prescrito na arena
política.
Da matriz tupi, não obstante tal avassalamento, teria restado nos brasileiros uma
qualidade que se impregna na definição identitária nacional, qual seja, uma “inverossímil
alegria”.70
A qualidade preconizada por Darcy Ribeiro reitera da indianidade a congruência entre
o povo e a terra, preservada a posteriori entre seus mestiços. Opondo-se deliberadamente
a Paulo Prado, Ribeiro não acede à disjunção entre a exuberância tropical e uma psique
coletiva desalegre.71 Isso atesta que a ontologia nacional em Darcy Ribeiro se assenta, ao
69
“É de assinalar que eles o faziam por um caminho próprio, juntamente com outros povos da floresta tropical
que haviam domesticado diversas plantas, retirando-as da condição de selvagem para a de mantimento
de seus roçados. Entre elas, a mandioca, o que constitui uma façanha extraordinária, porque se tratava de
uma planta venenosa a qual eles deviam, não apenas cultivar, mas também tratar adequadamente para
extrair-lhe o ácido cianídrico, tornando-a comestível.” (RIBEIRO, 1999, p. 31).
70
“Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado,
que alenta e comove a todos os brasileiros.” (RIBEIRO, 1999, p. 19).
71
“Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram
ao mundo e a povoaram. O esplêndido dinamismo dessa gente rude obedecia a dois grandes impulsos
que dominam toda a psicologia da descoberta e nunca foram geradores de alegria: a ambição do ouro
e a sensualidade livre e infrene que, como culto, a Renascença fizera ressuscitar” (PRADO, 1962, p. 3).
Embora consoante com a crítica de Paulo Prado, originalmente publicada em 1928, à “ambição do ouro”

192
menos parcialmente, em traços demarcados de comportamento coletivo. Os brasileiros,
plasmados a partir de bases físicas entrecruzadas, distinguir-se-iam de outros povos novos,
como seus pares latino-americanos, pela expressão de uma alegria enraizada na matriz
tupi. Escassa a uniformidade perceptível no âmbito da produção material, por conta das
áreas culturais distintas que compõem o país, sua unidade adviria dessa alegria.
A afirmação de homogeneidade do povo brasileiro mediante o aditamento de
traços de comportamento coletivo é revérbero de Sérgio Buarque de Holanda em Darcy
Ribeiro. Mais do que referência bibliográfica, Raízes do Brasil é ostensivamente referido
em O Povo Brasileiro com vistas a conferir fundamento às descrições da psique nacional,
quanto à perscrutação das causas do subdesenvolvimento.72 Ou do “atraso” do Brasil, em
contraste com outros países, conforme o léxico do evolucionismo antropológico darcyano.
Nesse domínio, vale ressaltar, há mais correlações cabíveis entre o mencionado livro de
Sérgio Buarque e o de seu ex-aluno da ELSP, publicado quase sessenta anos depois.

Singularidade e incompletude

Trazendo de países distantes nossas formas de


convívio [...] e timbrando em manter tudo isso
em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil,

que remarca a lusitanidade quinhentista, Darcy Ribeiro se aproxima mais de Gilberto Freyre ao exortar
a “sensualidade livre e infrene”, fator determinante ao fenômeno da miscigenação e, de resto, não de-
finidor exclusivamente do comportamento dos portugueses. Além disso, Ribeiro não compartilha com
Prado a visão pejorativa acerca da Renascença, dado que ao longo desta emergira o pensamento utopista
de Thomas Morus, caro à convicção quanto ao porvir jubiloso a que se destinaria o Brasil. Por fim, em
que pese a ausência de Retrato do Brasil nas referências bibliográficas de O Povo Brasileiro, o paralelo
opositivo entre os dois valida-se por uma assertiva alhures de Ribeiro: “Paulo Prado, que desenhou um
retrato vexaminoso do Brasil que de fato é uma auto-análise dos vícios e das taras de sua própria classe
[...]” (RIBEIRO, 1993, p. 15).
72
“Outros intérpretes de nossas características nacionais vêem os mais variados defeitos e qualidades aos
quais atribuem valor causal. Um exemplo nos basta. Para Sérgio Buarque de Holanda seriam características
nossas, herdadas dos iberos, a sobranceria hispânica, o desleixo e a plasticidade lusitanas, bem como o
espírito aventureiro e o apreço à lealdade de uns e outros e, ainda, seu gosto maior pelo ócio do que pelo
negócio. Da mistura de todos esses ingredientes, resultaria uma certa frouxidão e anarquismo, a falta de
coesão, a desordem, a indisciplina e a indolência. Mas derivariam delas, também, certo pendor para o
mandonismo, para o autoritarismo e para a tirania. Como quase tudo isso são defeitos, devemos convir
que somos um caso feio, tamanhas seriam as carências de que padecemos. Seria assim? Temo muito que
não. Muito pior para nós teria sido, talvez, e Sérgio o reconhece, o contrário de nossos defeitos, tais como,
o servilismo, a humildade, a rigidez, o espírito de ordem, o sentido do dever, o gosto pela rotina, a gravi-
dade, a sisudez. Elas bem poderiam nos ser ainda mais nefastas porque nos teriam tirado a criatividade do
aventureiro, a adaptabilidade de quem não é rígido mas flexível, a vitalidade de quem enfrenta, ousado,
azares e fortunas, a originalidade dos indisciplinados.” (RIBEIRO, 1999, p. 451).

193
somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra
(HOLANDA, 1995, p. 31).

Sérgio Buarque de Holanda, 1936.

No texto em epígrafe, constante da página inicial de Raízes do Brasil, chama a


atenção o ainda, advérbio de tempo a manifestar um entendimento da relação entre
temporalidades – passado e presente – como continuum. Quiçá denote, também, o
anseio por superar entraves à consecução de uma ordem racional no país, tais como o
patrimonialismo e o exacerbado personalismo, constitutivos, segundo Sérgio Buarque de
Holanda, da psique coletiva do ser brasileiro. Assim, “somos uns desterrados em nossa
terra” porquanto um Brasil desejável ainda não se tenha consumado como realidade
efetiva.
Não se quer incorrer em uma problematização do que seria o Brasil desejável
para o pensador paulista. Pretende-se, sim, ressaltar que, para o ele, a gênese – e
consequentemente a explicação – dos entraves à sua efetividade estaria na permanência
de condições e práticas do passado colonial.
Quase seis décadas depois da publicação de Raízes do Brasil, vem a lume O Povo
Brasileiro. Em Darcy Ribeiro, similarmente se explicita na interpretação do Brasil uma
correlação de continuidade entre as mazelas do passado e os infortúnios do presente,
pensados na perspectiva do povo. Característica geral dessa obra de Ribeiro é a primazia
da ideia de povo sobre todas as demais instâncias da vida coletiva.
Em O Povo Brasileiro, a ideia de povo é dúbia. Se, por um lado, este se realizou
como engendramento de uma nova faceta da humanidade desde o primeiro século, por
outro não é senão latência, porquanto aprisionado nas velhas, porém presentificadas
estruturas da época colonial. Não apenas como implicações psicossociais, mas postas em
relevo as dimensões econômica e política das defectividades brasileiras. Postas à luz de um
materialismo histórico que, se não predomina, assinala em parte a produção intelectual
de Darcy Ribeiro. Tanto nessa produção, focalizado O Povo Brasileiro, quanto em Raízes
do Brasil, narra-se o Brasil como singularidade, não obstante sua arguida incompletude.
O povo novo é, ambiguamente, velho. Que o diga o próprio Ribeiro:

Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer dizer, como
um implante ultramarino da expansão europeia que não existe para si mesmo,
mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial
de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta
no país ou importa (RIBEIRO, 1999, p. 20).

Até aqui, apresentaram-se ou se sugeriram neste trabalho conceitos como povo,


nação, e nacionalidade, todavia, sem maiores especificações. A essa altura, porém, interessa

194
abarcar mesmo que pequeníssima parte da complexidade envolvida em definições de
sentidos e significados de tais conceitos. Busca-se, assim, compreender como povo, nação
e nacionalidade se significam e correlacionam no interior da opus magna de Darcy Ribeiro,
a partir de contribuições de problematizações historiográficas presentes, por meio das
quais se desnaturaliza a ideia de nação e, consequentemente, de seus conceitos correlatos.
Essa desnaturalização reforça o entendimento antevisto, pelo qual a ressignificação
do passado em O Povo Brasileiro se determinou por um horizonte de expectativa alavancado
por pretensões políticas. Destarte, conceitos como povo, nação e nacionalidade, em uma
narrativa de origem, são partes de uma produção discursiva derivada de interesses
contextualmente demarcados.73
Para ilustrar a centralidade do conceito de povo no conjunto da obra de Darcy
Ribeiro, é válido recordar a tipologia presente à série de Estudos de Antropologia da
Civilização em suas quatro categorias de análise: povos testemunhos, povos novos, povos
transplantados e povos emergentes. Na falta dessa tipologia, tornar-se-iam inexplicáveis em
Ribeiro os países americanos. Destarte, não há condição de possibilidade de existência de
nacionalidade sem povo, componente elementar da nação, seu substrato indispensável.
Entretanto, em Ribeiro os brasileiros se distanciam de caracterizações de povo,
as quais eram caras a Cícero ou Santo Agostinho, posto que não encontrem condições
de subsistir ao redor do consenso do direito. Há carências e defasagens de direitos, em
razão de impeditivos calcados na perenidade de determinados modos de estratificação,
historicamente explicáveis. Deriva-se disto a dubiedade: o povo se realizou como ente
étnico, ao passo que se mantém impossibilitado de cidadania em função da permanência
dos mecanismos socioeconômicos traumáticos de sua formação.74
Embora Ribeiro retroceda a um idílico tempo indígena para sustentar a existência
de uma identidade unívoca do povo brasileiro, o conteúdo dessa identidade não é
exclusivamente passadista. Justamente do passado provêm os traumas de formação que
resultam na opressão histórica das parcelas majoritárias do povo. Por outro lado, se a
mestiçagem formativa da brasilidade se principiou pela prática do cunhadismo de matriz
tupi, continuou a se fazer mesmo sem este. Isso significa que a mestiçagem genésica do
povo brasileiro se operou também pela institucionalização da dominância lusitana, a
qual implantou os mecanismos traumáticos supracitados. Logo, estes mecanismos seriam
73
Quanto às motivações presentes a determinar os usos do passado, torna-se interessante reparar que o
próprio Darcy Ribeiro, duas décadas antes da publicação de O Povo Brasileiro, no prefácio a uma edição
venezuelana do clássico Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, indagara reflexivamente: “Afinal, que
é a história, senão esta reconstituição alegórica do passado vivente que nos ajuda a compor nosso próprio
discurso sobre o que estamos sendo?” (RIBEIRO, 2011b, p. 25).
74
Cabe apresentar, aqui, um paralelo entre Darcy Ribeiro e Francis Fukuyama. Diz o pensador nipo-es-
tadunidense que “à medida que se revelam os padrões de vida, à medida que as populações se tornam
cosmopolitas e melhor educadas, e à medida que a sociedade como um todo conquista uma condição de
maior igualdade, o povo começa a exigir não apenas mais riquezas, mas reconhecimento de seu status.”
(FUKUYAMA, 1992, p. 13). Ora, a inaplicabilidade de um pressuposto de triunfo da democracia liberal ao
Brasil se explica pela incompletude do povo segundo Ribeiro. Estaria, a seu juízo, ainda distante a conquis-
ta de “uma condição de maior igualdade” pelo povo brasileiro, assim como a de uma melhor educação.

195
também conformadores de identidade. A fim de sanar essa dubiedade, Ribeiro aponta
para o futuro.
A abertura dos brasileiros para o futuro75 faz coincidir os conceitos de povo e nação:
mais do que dispostos em relação de causa e efeito, os dois se amalgamam. A nação
brasileira, sobrelevando-se à própria incompletude, equivale ao povo a se construir.76 Essa
perspectiva encontra ressonância em uma definição apresentada por Junco:

La complejidad del término “pueblo” es incluso mayor que la de la nación, porque,


siendo de similar antigüedad, tuvo sin embargo una carga política ya desde la
Roma clásica y la escolástica medieval siguió atribuyendo al populus un papel
teórico como intermediario em la expresión de la voluntad divina en relación
com la soberanía. Pero fue sobre todo desde la era romántica cuando recibió
uma fortísima carga ética en términos de legitimidad política. Bajo la impronta
romántica, el “pueblo” se convertió em el portador de la pureza y el desinterés
político, de la cultura “auténtica”, de la identidade colectiva esencial; y, como
consecuencia de todo ello, de la legitimidad política. De esta forma, el pueblo,
outra forma de llamar a la nación, reemplazó, o absorbió, la identidad religiosa
a medida que ésta declinaba com la llegada de la secularización. Em sus dos
vertientes – bien fuera asimilado con las clases bajas o con la esencia intemporal
de la nación –, el pueblo pasó a ser el sujeto mesiánico que se contraponía a las
debilidades o traiciones de las elites (JUNCO, 2005, p. 43-44).

Muitos dos princípios mencionados perfazem o mote da definição de povo segundo


Ribeiro. De fato, se no Brasil a construção do futuro depende do povo, a expressão “sujeito
messiânico” de pronto sintetiza uma tendência de pensamento que, além de atribuir
ao povo o papel de sujeito ético da construção nacional, de fato contrapõe o mesmo
às “debilidades ou traições das elites”, mobilizando o passado no intuito de apontar as
origens não apenas do próprio povo, mas das estratificações sociais e antagonismos de
classe do presente:
75
“Estamos abertos é para o futuro.” (RIBEIRO, 1999, p. 454).
76
Interessante fazer dialogar, neste ponto, Darcy Ribeiro e Manoel Bomfim. O intelectual sergipano, desco-
berto por Ribeiro durante exílio em Montevidéu, é uma das mais nítidas influências sobre a elaboração de O
Povo Brasileiro, para além das obras O Brasil na América, O Brasil nação, O Brasil na História e a coletânea
O Brasil, constantes da bibliografia daquele em edições de 1929, 1930, 1931 e 1935, respectivamente. Um
exemplo dessa influência é a convicção de Darcy Ribeiro quanto da precedência da formação do povo em
relação à formação do Estado brasileiro, entendido como a transferência da Corte lusitana de Lisboa para
o Rio de Janeiro, em 1808. Lampejos de identificação de um povo e, portanto, de nacionalidade, podem-
-se verificar historiograficamente, segundo Bomfim, na mobilização dos pernambucanos para a expulsão
dos holandeses, no século XVII, descrita em O Brasil nação. Para Ribeiro, o povo brasileiro floresce pelo
entrecruzamento de portugueses e mulheres nativas ainda antes, a começos do século XVI, mediante a
prática do cunhadismo. Todavia, a autoconsciência nacional ter-se-ia esboçado em Gregório de Matos
guerra, amadurecendo-se no ínterim da Inconfidência Mineira. Afora a variação de marco originário, tanto
para Bomfim quanto para Ribeiro a fundação de uma espécie de nação-Estado se antepõe à emergência
do Estado-nação. Sobre a obra de Manoel Bomfim, ver: Reis (2006, p. 183–231).

196
Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais
díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam
e se fundem para dar lugar a um povo novo [...]. Povo novo, ainda, porque é um
novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma singular de
organização socioeconômica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa
servidão continuada ao mercado mundial (RIBEIRO, 1999, p. 19).

Se em O Povo Brasileiro Darcy Ribeiro retoma antigos conceitos e categorias


analíticas, também desenvolve um léxico, se não novo, até então pouco explorado. Este
é, especialmente, o caso das matrizes étnicas formadoras de povos novos.77 Como povo
novo, o povo brasileiro teria resultado dos cruzamentos e decomposições de matrizes os
quais teriam originado um “gênero humano novo.”.
A primeira matriz apresentada é a tupi, descrita com mais detalhamento em
termos de sua cosmovisão e com um entusiasmo romântico maior do que o verificável
na ulterior caracterização da lusitanidade. Sem deixar de afirmar formas de pluralismo
identitário europeu, Ribeiro compõe uma narrativa avessa à compreensão homogeneizada
das populações indígenas. Mesmo que as enfocando através de uma matriz indígena
preponderante à parte litorânea do futuro território nacional.
Diversamente, conquanto faça referências à formação plural da península Ibérica,
evocando os períodos de dominação romana e moura, a Reconquista e a emergência do
Estado português, Darcy Ribeiro descreve Portugal quinhentista como uma totalidade
cultural praticamente homogênea e consolidada econômica e politicamente, destacando
o vanguardismo lusitano no que tange à expansão marítima, por uma perspectiva que
o aproxima de Gilberto Freyre. Mais até do que matriz étnica, a lusitanidade é tomada
como matriz etno-nacional:

77
Note-se que, apesar de nominar por Matrizes étnicas um dos mais importantes subcapítulos de O Povo
Brasileiro, um trecho reproduzido anteriormente, extraído da Introdução da mesma obra, alude a matrizes
raciais. Descrevendo tupis, lusos e africanos sob a categoria matrizes, Darcy Ribeiro não isenta sua narrativa
do conceito de raça. José Maurício Arruti, ao analisar O Povo Brasileiro, comenta que uma das principais
críticas feitas à obra se ancora no fato de que praticamente todas as referências por ela apresentadas,
mormente no âmbito da Antropologia, datam no mais tardar da década de 1960 (ARRUTI, 1995, p. 235-
243). Quiçá dessa forma se explique o uso do conceito de raça por Ribeiro como remanescência de uma
formação defasada em Ciências Sociais, apontada pelos críticos desde a época de publicação no Brasil
dos Estudos de Antropologia da Civilização. Esse uso recebeu severas críticas, na década de 1990, como de
resto recebera o livro como um todos, pelo antropólogo alemão Erwin Frank. Segundo ele, O Povo Brasi-
leiro não possuiria sustentação epistemológica porquanto se assente em uma teoria da história variante
de neoevolucionismo unilinear, a qual se encontrando “plenamente desacreditada” dentro da comunidade
científica (FRANK, 1997, p. 1-18). A categoria matrizes, em não suplantando o conceito de raça, ao se
reportar aos índios, portugueses e africanos como fundadores do povo brasileiro dá a impressão de estar
a encobrir a “fábula das três raças” denunciada por Roberto Da Matta, longevo desafeto de Darcy Ribeiro,
em livro da década de 1980. Sobre tal “fábula”, ver: Da Matta (1987, p. 58-85).

197
Ao contrário dos povos que aqui se encontraram, todos eles estruturados em tribos
autônomas, autárquicas e não estratificadas em classes, o enxame de invasores era
a presença local avançada de uma vasta e vetusta civilização urbana e classista.
Seu centro de decisão estava nas longuras de Lisboa, dotada sua Corte de muitos
serviços, sobretudo do poderoso Conselho Ultramarino, que tudo previa, planificava,
ordenava, provia (RIBEIRO, 1999, p. 34).

Afirmando a existência de uma lusitanidade constituída, prossegue, emparelhando


portugueses e espanhóis a outras nacionalidades por meio de uma nova categoria:

Nações germinais, como Roma no passado, foram os iberos, os ingleses e os russos


no mundo moderno. Cada um deles deu origem a uma variante ponderável da
humanidade – a latino-americana, a neobritânica e a eslava –, criando gentes tão
homogêneas entre si, como diferenciadas de todas as demais (RIBEIRO, 1999,
p. 59).

Finalmente, a África não é aludida como matriz com o mesmo relevo conferido
às matrizes lusa e tupi. Ao se referir ao negro na formação do povo brasileiro, Darcy
Ribeiro o denomina, desde as primeiras menções, afro-brasileiro, inclusive no título do
subcapítulo dedicado ao tema, demarcando a incorporação dos negros ao povo brasileiro
durante um processo já em andamento:

Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana.


[...] A contribuição cultural do negro foi pouco relevante na formação daquela
protocélula original da cultura brasileira. Aliciado para incrementar a produção
açucareira, comporia o contingente fundamental da mão de obra. [...] A África
era, então, como ainda hoje o é, em larga medida, uma imensa Babel de línguas.
Embora mais homogêneos no plano da cultura, os africanos variavam também
largamente nessa esfera (RIBEIRO, 1999, p. 102-103).

Sem deixar de distinguir, citando Arthur Ramos78, tipos culturais africanos –


Sudaneses, bem como os Peuhl, Mandinga e Haussa, além dos Bantus, e diversos grupos
compreendidos por cada tipo –, perpassa a narrativa darcyana uma asserção segundo a qual
as diferenciações dos povos africanos em tais tipos, ou não perduraram significativamente
do lado de cá do Atlântico, onde todos esses contingentes humanos foram homogeneizados
na forma do trabalho escravo, ou se diluíram no percurso da desafricanização prévia à
formação do povo novo brasileiro.

78
Ribeiro cita as obras O negro brasileiro, A aculturação negra no Brasil, Introdução à antropologia brasileira
e As culturas negras no Novo Mundo, em edições de 1940, 1942, 1943-47 e 1946, respectivamente.

198
Nas categorizações empreendidas por Darcy Ribeiro – indianidade, lusitanidade,
africanidade, num gradiente de intensidade explicativa decrescente da primeira categoria
em direção à última –, mesmo quando este pormenoriza sua descrição enquanto matrizes,
prepondera o tom generalista. Dada a multiplicidade das formas do ser brasileiro,
interpretadas em O Povo Brasileiro – sob as denominações Brasil crioulo, Brasil caboclo,
Brasil sertanejo, Brasil caipira e Brasis sulinos –, não obstante a procura de Ribeiro pela
unidade identitária nacional, respeitam-se variações regionais e se esmiúçam relatos
particularistas de formação de cada variante dentro do todo.
O mesmo modus operandi, contudo, é negado à apreensão das suas matrizes. Será
legítimo, historiograficamente, afirmar a factibilidade de um Portugal, singularizado não
só por tal onomástica, mas etnoculturalmente, no século XVI, e mesmo antes ou depois?
Sem embargo, fora esse tipo de afirmação, precisamente – em que pese sua imprecisão –,
um recurso utilizado por Ribeiro, necessário à classificação do povo brasileiro como povo
novo e, sobretudo, ainda sem identidade: o ninguém “à procura de si mesmo” derivado
da diluição de outros alguéns, com identidade constituída.
Tanto o indígena quanto o português ou o africano seriam alguéns em sua forma
original. O primeiro sofreu a invasão do segundo, que também trasladou o terceiro, na
condição de escravo, para uma terra distante. A partir de então, entrecruzaram-se e, assim,
perderam sua originalidade. O filho do português com a mulher indígena é o ninguém
mameluco: não reconhecido como igual pelo pai europeu e não se identificando com a
etnia materna; o filho do português com a mulher negra africana é o ninguém mulato,
igualmente rechaçado pelo pai branco e não retornável à condição da mãe. Destarte,
sucessivamente, a narrativa de Darcy Ribeiro sobre a formação do povo brasileiro aponta
para inevitáveis perdas de identidade, de que decorre o não passadismo suprarreferido.
O não-europeu, o não-índio e o não-africano não possuem passado, donde a sua
“abertura para o futuro.”. Sequer passado em sentido de primordialismos linguísticos,
o que é a negação de Fichte79: a língua nacional nasceu depois do povo e o português
brasileiro não é o português de Portugal. O português brasileiro, tão novo quanto seus
falantes, ter-se-ia conformado e disseminado ulteriormente, depois da língua geral, na
fala dos negros desafricanizados (RIBEIRO, 1999, p. 109).
A ninguendade é qualidade do mestiço, o qual, em não sendo indígena, europeu
ou africano e que, para sua autocompreensão e afirmação no mundo, na falta da
identidade herdada, necessita inventá-la. A ninguendade homogeneíza o povo brasileiro,
predominantemente mestiço. Consequência de um processo de corrupção de identidades,
o povo brasileiro procuraria a si mesmo em detrimento da busca por qualquer terra
prometida, uma vez que a terra é algo dado na narrativa darcyana. Porém, loteada pela elite
latifundiária que teria originando estratificação. Eis um segundo ponto de ruptura entre
Freyre e Ribeiro. Enquanto o primeiro principia o discurso da nacionalidade brasileira pelo
viés étnico e segue por este, o segundo volta sua atenção para as estruturas econômicas
e políticas como causalidade das configurações sociais, o que inclui a ninguendade.

79
Sobre Johann Gottlieb Fichte e a questão da nacionalidade, ver: Ferrer (2000, p. 97-119).

199
Apesar de Gilberto Freyre creditar à escravidão e ao latifúndio as deficiências
alimentares da população colonial80, somente em Darcy Ribeiro etnia e classe social se
conjugam e articulam como fatores explicativos de subdesenvolvimento. À deculturação,
geradora da ninguendade, atribuem-se tanto as raízes do Brasil quanto as da sua miséria.

Povo e estratificação

O ninguém de Darcy Ribeiro é categoria de fundo étnico, cujo engendramento


se destina à interpretação do povo brasileiro. Designa uma coletividade genesicamente
variada, contudo, homogeneizada na forma de um povo novo. Forjado pela mestiçagem, esta
compreendida como amálgama, de ordem tanto biológica quanto cultural, de caracteres
basilares de suas três matrizes, encontra-se este povo em processo de constituição de
identidade. Mas, além de étnica, o ninguém é categoria socioeconômica. Dessa forma, a
superação da ninguendade para a construção da nacionalidade passa pela luta de classes:

Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde-se uma profunda distância


social, gerada pelo tipo de estratificação que o próprio processo de formação
nacional produziu. O antagonismo classista que corresponde a toda estratificação
social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao grosso
da população, fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis que as diferenças
raciais (RIBEIRO, 1999, p. 20).

A elite brasileira, herdeira dos mecanismos de dominação e opressão coloniais,


seria o principal obstáculo a essa superação da ninguendade. Por isso, aquela não se
identifica com o povo brasileiro, ainda que nasça e viva sobre o mesmo território. Logo,
população não é o mesmo que povo. O povo, efetivamente, corresponderia às camadas
inferiores da estratificação socioeconômica, ao conjunto dos oprimidos:

Com efeito, no Brasil, as classes ricas e as pobres se separam umas das outras
por distâncias sociais e culturais quase tão grandes quanto as que medeiam entre
povos distintos. [...] Essas duas características complementares – as distâncias
abismais entre os diferentes estratos e o caráter intencional do processo formativo
– condicionaram a camada senhorial para encarar o povo como mera força de
80
“No caso da sociedade brasileira o que se deu foi acentuar-se, pela pressão de uma influência econô-
mico-social – a monocultura – a deficiência das fontes naturais de nutrição que a policultura teria talvez
atenuado ou mesmo corrigido e suprido, através do esfôrço agrícola regular e sistemático. Muitas daquelas
fontes foram por assim dizer pervertidas, outras estancadas pela monocultura, pelo regime escravocrata
e latifundiário, que em vez de desenvolvê-las, abafou-as, secando-lhes a espontaneidade e a frescura.”
(FREYRE, 1963, p. 97). Cabe correlacionar esta percepção freyriana e a premissa da necessidade de re-
forma agrária como condição sine qua non ao desenvolvimento do Brasil, sustentada por Darcy Ribeiro
desde o Governo de João Goulart e suas Reformas de Base.

200
trabalho destinada a desgastar-se no esforço produtivo e sem outros direitos
que o de comer enquanto trabalha, para refazer suas energias produtivas, e o
de reproduzir-se para repor a mão de obra gasta (RIBEIRO, 1999, p. 194-195).

Entrementes, o antagonismo entre classes dominantes e povo seria catalisador da


formação da identidade deste último, aglutinando desde o indígena destribalizado ao
campesino sem-terra para a oposição dialética aos estratos superiores. Enquanto em Sérgio
Buarque de Holanda há uma identidade brasileira comum, não obstante deformada por
uma psique coletiva impregnada pelo patrimonialismo e pelo personalismo difundidos por
toda a sociedade, ainda que partindo das elites tradicionais, Darcy Ribeiro polariza elite
e povo, atribuindo àquela a exclusividade da culpa pelo subdesenvolvimento do Brasil.
Não há, à diferença de Gilberto Freyre, harmonização possível para esses antagonismos.
A elite é perversa e o povo brasileiro necessariamente deve derrotá-la. Especialmente
porque o segmento mais elevado da elite tem caráter exógeno, vivendo em território
brasileiro a serviço de interesses alheios à consecução da nacionalidade – sendo um
“estamento gerencial estrangeiro.” (RIBEIRO, 1999, p. 193).
Neste ponto, a similitude entre Darcy Ribeiro e Caio Prado Júnior é maior do que
a verificada em relação a Sérgio Buarque de Holanda. Não apenas pelo pecebismo outrora
comum a ambos, cada qual peculiarmente se valendo do materialismo histórico-dialético
para a construção de teorias sobre o Brasil, como também porque, em Caio Prado, a
prioridade do olhar está na inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho, no
Brasil como produto resultante de um processo de expansão do capitalismo.
Por essa perspectiva, afirma Ribeiro, os brasileiros surgiram subalternizados e têm
servido como “proletariado externo” sob o domínio das nações capitalistas desenvolvidas.
Eis que o outro termo do subtítulo de O Povo Brasileiro – o sentido, além da formação
do Brasil – possa encontrar antecedentes e paralelos na ideia de sentido da colonização,
de Caio Prado Júnior.81 A leitura de Caio Prado lança luz sobre a recorrente alocução de
81
“Todo povo tem na sua evolução, vista à distância, um certo ‘sentido’. Este se percebe não nos porme-
nores de sua história, mas no conjunto de fatos e acontecimentos essenciais que a constituem num largo
período de tempo. Quem observa aquele conjunto, desbastando-o do cipoal de incidentes secundários que
o acompanham sempre e o fazem muitas vezes confuso e incompreensível, não deixará de perceber que
ele se forma de uma linha mestra e ininterrupta de acontecimentos que se sucedem em ordem rigorosa, e
dirigida sempre numa determinada orientação. É isto que se deve, antes de mais nada, procurar quando
se aborda a análise da história de um povo, seja aliás qual for o momento ou o aspecto dela que interessa,
porque todos os momentos e aspectos não são senão partes, por si sós incompletas, de um todo que deve
ser sempre o objetivo último do historiador, por mais particularista que seja. Tal indagação é tanto mais
importante e essencial que é por ela que se define, tanto no tempo como no espaço, a individualidade
da parcela de humanidade que interessa ao pesquisador: povo, país, nação, sociedade, seja qual for a
designação apropriada no caso. É somente aí que ele encontrará aquela unidade que lhe permite destacar
uma tal parcela humana para estudá-la à parte.” (PRADO JÚNIOR, 2000, p. 7). Além da afirmação de
um “sentido” para a história brasileira, equivalente a seu horizonte de expectativa pautado pela ideia de
recobrar uma “utopia fundadora”, há outro elo indissimulável entre Darcy Ribeiro e Caio Prado Júnior,
qual seja, o da procura pelo conhecimento enquanto totalidade. Em sendo ambos de formação marxista,

201
Darcy Ribeiro segundo a qual o Brasil “nunca existiu para si”, desvelando os porquês de
seu discurso identitário na década de 1990, dentre outros aspectos, refratário à então
recente disseminação do uso do termo globalização.
Por esse ângulo, faculta-se elucidar a dubiedade apresentada como própria ao
povo brasileiro, reveladora de uma tensão entre a afirmação de identidade constituída
em paralelo à sua multissecular incompletude. Este povo existe. Contudo, ainda não
existe “para si”. A ninguendade étnica, vazia de autoconsciência, reflete a constância de
um sentido da colonização tal como acusado por Caio Prado, exploratório e voltado para
fora. Invertido “para dentro”, o sentido da colonização romperia o aprisionamento do
povo mantido pelas estruturas coloniais presentificadas, conformadoras do continuum
da história brasileira indicado pelo atraso do país em meio ao “processo civilizatório”
humano. Sob o olhar retrospectivo de Darcy Ribeiro, com Getúlio Vargas, João Goulart e,
mais recentemente, com Leonel Brizola, ensejaram-se possibilidades para uma tal ruptura.
Ribeiro afirma, com recorrência, em O Povo Brasileiro ou fora deste, que aos
brasileiros se negaram a contar, do início da colonização, os meios à realização de
suas potencialidades para erigir uma grande civilização. Potencialidade, concebida por
Aristóteles, significa capacidade de vir a ser algo diverso do que se é efetivamente. Ainda
conforme o pensador da Antiguidade, sobre determinada porção de matéria deve se
imprimir a força de uma causa eficiente, operando a passagem da potência ao ato. Por
ato, diz-se da realização das potencialidades, da fruição do que fora tão-somente latência.
Concebido à semelhança de uma matéria repleta de potencialidades, o povo
brasileiro necessitaria, segundo Darcy Ribeiro, do incurso de uma causa eficiente para
se realizar. Esta, efetuada tanto na feição da luta político-partidária do Senador quanto
pela elaboração de uma narrativa pelo intelectual, destinada ao preenchimento dos vazios
da autoconsciência nacional e, destarte, à superação da ninguendade.

não representa engano se supor o influxo do método dialético sobre essa busca por uma compreensão
totalizante, maior em O Povo Brasileiro do que em Formação do Brasil Contemporâneo, uma vez que este
se centraliza enquanto interpretação, na época colonial. Ademais, os passos adequados ao procedimento
do historiador, indo de uma apreensão totalizante em direção ao destaque analítico de uma parcela da
humanidade, soam descritivos do trabalho de Darcy Ribeiro na composição dos Estudos de Antropologia
da Civilização. A partir de dez mil anos da trajetória humana reconstituídos em O Processo Civilizatório,
passando no volume seguinte à descrição da formação das Américas, e após a da América Latina, até che-
gar na enunciação da formação do Brasil, Ribeiro efetivamente esteva a palmilhar o caminho apontado
por Caio Prado em sua obra dos anos 1940.

202
Em busca de uma Eneida tropical

Já do oceano a aurora despontava.


Bem que urja o tempo de inumar seus mortos
E o turbe o funeral, no primo eôo
Piedoso o vencedor cumpria os votos.

Virgílio, século I a.C.

Ante o exposto, é apropriado serem destinadas algumas linhas a uma ponderação


final. Afirmou-se que, em O Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro ressignifica o passado do país,
indo dar em uma benignidade nativa originária, a fim de legitimar seu discurso preditivo
de um horizonte de expectativas utópico. Esse recuo no tempo faz com que a narrativa
principie pela caracterização de um tempo prévio à ruína de um mundo indígena, descrito
de modo lírico, pela ação de um poderoso invasor procedente do oceano.
Dessa maneira, antes do entrecruzamento das matrizes étnicas tupi e lusa, res-
ponsável pela gênese do brasileiro como um “gênero humano novo” (RIBEIRO, 1999,
p. 19), dera-se um inevitável entrechoque, seja no plano físico, seja no espiritual. Esse
entrechoque aos poucos se transmutaria em entrecruzamentos. Do trauma inicial, de
polaridade negativa – traduzido em decréscimos, ao modo da depopulação e da decul-
turação – paradoxalmente surge o brasileiro como rebento inédito da história. A desin-
dianização dos nativos, como a deseuropeização dos portugueses e a desafricanização de
contingentes escravizados, incorporados a posteriori, produzem escombros étnico-cultu-
rais vivificados em sobrevivências físicas às pestes ou ao açoite. Mas, desses escombros,
emerge uma nova nacionalidade, mesmo que ainda insciente de si mesma, metaforizada
pela imagem do ninguém.
Da polaridade negativa surge uma fortuita ontologia nacional positiva. A trama
enarrada por Darcy Ribeiro comuta o caráter lírico da indianidade original desfeita em
uma espécie de epopeia. Se “a formação” fora acossada pelo trauma da desfiguração,
o “sentido” utópico do Brasil, composto de mestiçagem espiritual a amalgamar a Terra
Sem Males e o Jardim do Éden, feito vetor histórico apontado para uma teleologia,
determinaria a autossuperação. Assim sendo, a narrativa de Ribeiro teria por propósito o
exercício de uma função curativa. Curioso que, à época da publicação de O Povo Brasileiro,
Paul Ricoeur redigia um texto atribuindo às memórias coletivas a necessidade em geral
individualmente prescrita de se considerar o princípio terapêutico de cura mediante a
reconciliação com o passado:

é preciso pôr em questão um preconceito tenaz, a saber, a crença fortemente


enraizada de que unicamente o futuro é indeterminado e aberto e o passado

203
determinado e fechado. Certamente, os factos passados são inapagáveis: não
podemos desfazer o que foi feito, nem fazer com que o que aconteceu não tenha
acontecido. Mas ao invés, o sentido do que nos aconteceu, quer tenhamos sido
nós a fazê-lo, quer tenhamos sido nós a sofrê-lo, não está estabelecido de uma
vez por todas. Não só os acontecimentos do passado permanecem abertos a
novas interpretações, como também se dá uma reviravolta nos nossos projectos,
em função das nossas lembranças, por um notável “acerto de contas”. O que
do passado pode então ser mudado é a carga moral, o seu peso de dívida, o
qual pesa ao mesmo tempo sobre o projecto e sobre o presente.82

Tanto mais fácil se fará a mudança pelo sopeso de uma visão mirífica do passado,
reportada a um tempo precedente ao trauma.83 Ou seja, pela constituição de um espaço
de experiência livre das “dores do parto” do povo brasileiro. Destarte, se dos escombros
pode se soerguer uma nova forma humana, singular e grandiosa, é porque mesmo à feição
de escombros não perece a matéria excelente de que se fizera a indianidade original.
A ideia de uma glorificante reconstrução a partir de um mundo devastado remete
ao poeta Virgílio, em sua Eneida. Antes do trauma, a matriz tupi se assemelha a uma
próspera Troia, todavia carente dos muros. Nela, a evangelização “salvacionista” jesuítica
se emparelha com o cavalo engendrado por Ulisses. A catequese se torna promotora
de uma deculturação corrosiva das identidades nativas. Porém, mesmo o opressor se
decultura entre os trópicos, tal como os africanos que passa a trazer. Não obstante,
emerge dos escombros da deculturação um povo-ninguém, à semelhança de um Eneas
coletivo, sem rosto definido.84
Eis o herói fundador da nova Roma, tropical e mestiça. Uma Roma do Hemisfério
Sul, “lavada em sangue índio e negro”85, a contrapesar a enganosa Roma norte-americana,
82
RICOEUR, Paul. O perdão pode curar? Disponível em: <http://www.lusofonia.net/textos/paul_ri-
coeur_o_perdao_pode_curar.pdf>, folhas 4-5.
83
Sobre a correlação entre Ricoeur e a obra de Darcy Ribeiro, ver: MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adélia Maria.
Narrativa e reconciliação em “O Povo Brasileiro” de Darcy Ribeiro. In: Naveg@mérica. Revista Electrónica
de la Asociación Española de Americanistas [en línea], 2010, n. 5. Disponible em: <http://revistas.um.es/
navegamerica>. Acesso em: 3 jan. 2019.
84
Em Darcy Ribeiro, à exceção da incorporação eventual de Tiradentes a seus discursos e de seu apego a
lideranças políticas pregressas como Getúlio Vargas e João Goulart, os heróis nacionais não se destacam
do povo. Sua projeção de heroísmos em sujeitos coletivos se faz na esteira de Capistrano de Abreu, do
qual obras como Caminhos antigos e povoamento do Brasil, Capítulos de História Colonial, dentre outras,
constam das referências bibliográficas de Os Brasileiros: 1. Teoria do Brasil, mas surpreendentemente não
se verificam nas de O Povo Brasileiro. Surpreendentemente também porque Ribeiro o enaltece em suas
Confissões (2012, p. 107-108): “E também em Capistrano de Abreu, que, pensando que fazia História, por
vezes fez antropologia da melhor sobre o processo de edificação do povo brasileiro.”. Sobre vida e obra
de Capistrano de Abreu, ver: Reis (2007, p. 85-114).
85
“Isso significa que, apesar de tudo, somos uma província da civilização ocidental. Uma nova Roma, uma
matriz ativa da civilização neolatina. Melhor que as outras, porque lavada em sangue negro e em sangue
índio, cujo papel, doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar o mundo a viver mais alegre
e mais feliz” (RIBEIRO, 1999, p. 265).

204
de “sotaque anglo-texano” (RIBEIRO, 1991, p. 7), autoproclamada hegemônica no
mundo pós-1989. Para que sua Roma faça frente àquela, o Eneas tem de ultrapassar a
condição da ninguendade. A tomada de consciência do seu ser e estar no mundo exige o
entendimento do passado. Somente assim o herói pode se reconciliar com sua própria
história, advindo o “tempo de inumar seus mortos” do verso em epígrafe. Os traumas
causados pela depopulação e pela deculturação que caracterizam o entrechoque das
matrizes étnicas fundadoras do Brasil, descritos genericamente em O Processo Civilizatório,
não são mais do que os efeitos da passagem de uma formação primitiva a uma formação
colonial escravista, descrita à luz dos Grundrisse, de Marx. A base da antropologia
dialética inaugurada por aquele livro, assim como categorias e conceitos dele decorrentes,
encontram-se em O Povo Brasileiro.
Todavia, mesmo que antropológica no léxico e possivelmente historiográfica
na maneira de lidar com as temporalidades, este livro apresenta o diferencial de uma
forma narrativa reveladora do lapso de tempo que a separa dos volumes dos Estudos
de Antropologia da Civilização. Essa forma narrativa se estriba nas experiências de seu
autor como romancista, realizadas durante o dito lapso de tempo. Gritante evidência
disto é o despudor de Darcy Ribeiro em introduzir, em meio à exposição enaltecedora
de sua Minas Gerais como berço da urbanidade brasileira e dos primeiros lampejos de
uma consciência nacional, um capítulo inteiro de um de seus romances:

Ali, em Ouro Preto e arredores, quando o ouro já não era tanto, se viu florescer
a mais alta expressão da civilização brasileira. Com figuras extraordinárias de
artistas, como Aleijadinho; de poetas, como Gonzaga e Cláudio Manoel da Costa.
Releve, mas não resisto à tentação de dar à sua leitura o capítulo “Cal” de meu
romance da mineiridade: Migo. “Vendo estas Minas tão mofinas, quem diria,
desatinado, que escarmentado, somos o povo destinado? Somos o tíbio povo
dos heróis assinalados. Eles aí estão, há séculos, a nos cobrar amor à liberdade.
Filipe grita, Joaquim José responde: - Libertas quae sera tamen. – Liberdade, aqui
e agora. Já!” (RIBEIRO, 1999, p. 153-154).

A romantização constatada na representação da matriz tupi, nas páginas iniciais,


alcança as revoltas mineiras da época colonial. Longe de opor, a narrativa de Ribeiro
fusiona Antropologia, Historiografia e Literatura. Efeito da variação de suas condições de
existência entre as feituras de O Processo Civilizatório e O Povo Brasileiro. Se um extremo
dos Estudos de Antropologia da Civilização se redige pelas mãos de um ex-Ministro exilado,
o outro vem à luz pelas de um imortal da Academia Brasileira de Letras.86 Entre esses
extremos, a imortalidade se alcançara pela publicação de escritos ficcionais como Migo.

Darcy Ribeiro havia sido eleito, em 1992, para a Cadeira Onze da Academia Brasileira de Letras, cujo
86

patrono fora Nicolau Fagundes Varela. Sucedendo a Deolindo Augusto de Nunes Couto, Ribeiro se incor-
porava à Academia como consequência de sua obra literária, composta pelos quatro romances publicados
no Brasil, no retorno do exílio: Maíra (1976), O Mulo (1981), Utopia Selvagem (1982) e Migo (1988).

205
Logo, à ponderação proposta se faz pertinente o uso de um referencial. Versando
sobre o desenvolvimento da “sociologia paulista”, Richard Morse (1990, p. 133-160) se
inspira em uma categorização empreendida pelo filósofo Alfred Whitehead, a respeito
das etapas de consolidação do sistema escolar superior inglês. Dessa maneira, sugere
que, em São Paulo, certo romantismo demarca a primeira fase de produção de um
pensamento sociológico, pelos modernistas dos anos 1920. Embora “fertilizadoras”, suas
tentativas de interpretação do Brasil e sua procura pela identidade nacional, empreendidas
literariamente, teriam carecido de um substrato epistemológico que o desenvolvimento
da Sociologia viria, década após, a proporcionar.
A fase seguinte, caracterizada pela precisão, corresponderia à do incurso de
intelectuais estrangeiros, nos anos 1930 e 1940. Esses intelectuais teriam trazido na
bagagem aquele substrato. Exemplifica-se esse incurso pela menção à composição
original dos corpos docentes de Universidade de São Paulo (USP) e Escola Livre de
Sociologia e Política (ELSP), com seus professores franceses e norte-americanos, e
alemães, respectivamente. Enfim, nos anos 1950, quando uma Sociologia nativa já se
havia constituído, sobrelevar-se-ia a fase da generalização. Aí, o incurso das pesquisas
empíricas, estimuladas por gente como Donald Pierson ou Roger Bastide, teria elidido
uma ampliação do alcance das práticas sociológicas ao Brasil como um todo, despontando
seu caráter profissionalizado e voltado à perquirição de um vasto leque de fenômenos.
A formação intelectual de Darcy Ribeiro, desembocada em O Povo Brasileiro,
parece abarcar essas três etapas. Porém, de modo inverso à sequencialidade acusada por
Morse. Com efeito, os primeiros anos da atuação profissional de Ribeiro, variando entre
atividades distintas como a etnologia indígena e as pesquisas educacionais, dão os ares
de uma generalização, na mesma década de 1950 em que por generalização se definia
o momento experimentado pela Sociologia produzida a partir de São Paulo. Dessarte,
Darcy Ribeiro se valeria do conhecimento angariado pela formação em Ciências Sociais
para executar trabalhos tão variados quanto a etnologia indígena junto ao Serviço de
Proteção aos Índios (SPI) ou a coordenação dos programas de pesquisas junto ao Centro
Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE).
A seguir, em tempos de desterro pós-1964, o mergulho em uma ampla bibliografia,
com vistas à consecução de uma teoria antropológica, original e própria, sinaliza sua
procura por conferir precisão à sua produção intelectual. Depois de publicar os cinco
volumes dos Estudos de Antropologia da Civilização, Ribeiro se lançaria como romancista.
A aproximação em relação a uma forma de raciocínio própria dos intelectuais dos anos
1920 na procura pela definição identitária nacional sobressairia em Utopia Selvagem e
jamais viria a se decolar de sua forma maturada de compreender o Brasil. Romantizado a
começos dos anos 1980, após períodos de produção intelectual marcada sucessivamente
por movimentos de generalização e precisão, o pensamento que forja O Povo Brasileiro se
distancia do que desencadeara a escrita de O Processo Civilizatório.
Forjado romanticamente, em contraste com a precisão procurada por O Processo
Civilizatório, não se conclui entrementes uma inépcia de O Povo Brasileiro em busca da

206
“verdade” sobre a “formação e o sentido do Brasil”. Entre as composições de um e outro
– 1968-1995 –, transcorrera a década de 1970 em suas alterações no bojo da teoria da
história, ante o incurso de categorias oriundas da teoria literária. Dessa feita, O Povo
Brasileiro veio à luz ao tempo em que as barreiras de natureza historicista e positivista
entre a história e a literatura, em nome de uma pretensa objetividade científica, já se
haviam contestado.
Interessante aludir, nesse sentido, que tal como Paul Ricoeur, Jörn Rüsen levava
a público um texto que se presta a uma operativa interpretação da opus magna de
Ribeiro, à época mesma de seu lançamento (RÜSEN, 1996, p. 75-102). Conforme Rüsen,
narratividade não é antônimo de objetividade, exceto sob o olhar de uma teoria da história
então em obsolescência. Por extensão, pode-se supor que, malgrado a dessemelhança
no que tange à forma, narratividade de O Povo Brasileiro não se inferioriza em valor de
verdade frente à precisão atribuível a O Processo Civilizatório:

A abordagem objetivista perdeu sua credibilidade. [...] O último recuo da


objetividade como ideia constitutiva dos estudos históricos enquanto disciplina
acadêmica ficou evidente com a emergência metahistórica da narrativa como
forma constitutiva do conhecimento histórico e como procedimento mental de
fazer história (RÜSEN, 1996, p. 88-89).

A maior contribuição do texto de Rüsen à interpretação de O Povo Brasileiro


consiste, no entanto, na enunciação de quatro categorias definidoras da narratividade, à
luz das quais o livro de Darcy Ribeiro por certo se compreende. A primeira categoria é a
da retrospectividade, responsável pelo efeito de que “a abordagem da evidência empírica
do passado está sob a influência das projeções para o futuro [...]” (RÜSEN, 1996, p.
89). Aqui, a narratividade histórica deslindada por Jörn Rüsen dialoga com os tempos
históricos de Reinhard Koselleck. Logo, a caracterização idílica da matriz tupi por Ribeiro,
executada mediante um horizonte de expectativa conformado por intencionalidades
políticas, determinadas pelo contexto dos anos 1990, situa O Povo Brasileiro no domínio
da retrospectividade tal como enunciada por Rüsen. Bem como justifica este se situar
também no âmbito da segunda categoria, a da perspectividade. Por esta, a “relação
constitutiva entre o passado e o presente insere a perspectiva histórica nos problemas
práticos de orientação da época do historiador.” (RÜSEN, 1996, p. 89).
A terceira categoria, seletividade, “indica as consequências da retrospectividade
e da perspectividade para o conteúdo empírico do conhecimento histórico.” (RÜSEN,
1996, p. 89-90). Isso se relaciona às finalidades pretendidas por Ribeiro ao recuar,
aproveitando como fontes para O Povo Brasileiro os textos selecionados para a feitura de
A Fundação do Brasil, a um tempo prévio ao início efetivo da colonização. Na explanação
sobre o modus vivendi da matriz tupi a esse tempo, a escolha por explicar uma prática
como o cunhadismo87, em detrimento de outras escolhas possíveis, denota um propósito
87
Descrito anteriormente em A Fundação do Brasil, o cunhadismo é afirmado com veemência em O Povo

207
de “produção de sentido, significado e significação do passado para os problemas de
orientação do presente.” (RÜSEN, 1996, p. 90).
Deslocando para a prática do cunhadismo o entendimento dos primeiros movimentos
da formação do povo brasileiro, Darcy Ribeiro quer sobrelevar a institucionalidade indígena
e fazer aumentar o peso relativo da matriz tupi na composição da nacionalidade, exalçando
a ideia de uma “utopia fundadora” do país. Isto significa que, ao menos anteriormente a
1530, o processo de formação do povo fora orquestrado por uma prática cultural nativa.
A última categoria definidora da narratividade é a particularidade, a qual “reflete
as limitações da abordagem, pela interpretação histórica, das evidências empíricas do
passado.” (RÜSEN, 1996, p. 90). Em tal categoria, por certo a narrativa de Ribeiro se faz
acomodar com manifesta prontidão, uma vez que a seletividade “relaciona o conhecimento
histórico à finalidade de construção da identidade.” (RÜSEN, 1996, p. 90). Afinal, O Povo
Brasileiro é um discurso identitário nacional mobilizador do passado e que, segundo seu
autor, “quer ser participante, que aspira a influir sobre as pessoas, que aspira a ajudar o
Brasil a encontrar-se a si mesmo.” (RIBEIRO, 1999, p. 17).
Enfim, se a forma narrativa viabiliza o acesso ao conhecimento da história enquanto
“um construto mental de representação do passado para finalidades culturais da vida
atual.” (RÜSEN, 1996, p. 77), não parece haver motivos para a contestação da classificação
de O Povo Brasileiro em seus domínios. Outrossim, ante as especificidades da formação
do autor e do contexto de produção da obra, as finalidades culturais se acrescem de
sentido político.
Esse sentido se revela ocasionalmente circunscrito ao plano político-partidário
do trabalhismo, em seu feitio pedetista, confrontado pelas circunstâncias internacionais
refletidas nacionalmente nos anos 1990. Exemplifica tal circunscrição uma advertência
prefaciadora de Darcy Ribeiro, segundo a qual O Povo Brasileiro “é, e quer ser, um gesto
meu na nova luta por um Brasil decente. Portanto, não se iluda comigo, leitor. Além
de antropólogo, sou homem de fé e de partido. Faço política e faço ciência movido por
razões éticas e por um fundo patriotismo.” (RIBEIRO, 1999, p. 17).
Não constitui engano ajuizar, pois, que O Povo Brasileiro remata, na linha dos
Estudos de Antropologia da Civilização, o esforço de lapidação do nacionalismo de têmpera
trabalhista, irrompido em tempos de exílio. Como um derradeiro esforço dessa lapidação,
após duas derrotas eleitorais do PDT, nas disputas de Leonel Brizola à Presidência da
República no Brasil redemocratizado.
Haja vista uma permissividade à exploração de imagens mitológicas, assegurada
pelo paralelo entre O Povo Brasileiro e a Eneida, de Virgílio, essa lapidação, derradeira e
tardia, assemelha-se a um “canto de cisne” do nacionalismo trabalhista. O neoliberalismo,
alavancado pelos planos de desestatização dos Governos Collor e Fernando Henrique
Cardoso, contrapunha-se, frontalmente, à memória política do getulismo.
Brasileiro: “A instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro foi o cunhadismo, velho uso
indígena de incorporar estranhos à sua comunidade. Consistia em lhes dar uma moça índia como esposa.
Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laços que o aparentavam com todos os
membros do grupo.” (RIBEIRO, 1999, p. 81).

208
Após o pleito de 1994, Brizola não mais encabeçaria chapas na disputa pelo cargo
político máximo da nação, candidatando-se a Vice-Presidente por uma coligação do
PDT com o partido de Luís Inácio Lula da Silva, nas eleições seguintes. Darcy Ribeiro,
desaparecido em 1997 após alguns anos de luta contra um câncer, não tomaria parte
nesse pleito. Em verdade, o “canto de cisne” de O Povo Brasileiro justapõe, em uníssono,
os anúncios da morte do nacionalismo trabalhista e do perecimento do próprio autor.
No entanto, a “Eneida tropical” dos anos 1990, em contraste com a precisão
objetivista pretendida por O Processo Civilizatório, guarda ainda um aspecto interpretável
pelo propósito rüseniano de delineamento da forma da narrativa histórica. À sua captura,
deve-se pensar em cotejo a intenção manifesta por Ribeiro de sobreviver bibliograficamente
ao conhecimento das gerações pósteras, ratificado por seu açodamento na conclusão de O
Povo Brasileiro ante a iminência da própria morte, e a rotulação deste como instrumento
de “luta por um Brasil decente.”.
Importa apreender o sentido encerrado pelo adjetivo “decente”, proferido por
um Darcy Ribeiro provecto, ícone de uma geração intelectual e política em vias de
obliteração. Esse sentido é moralizante, mas não somente dirigido aos usos da atividade
política ou ao atenuamento das iniquidades socioeconômicas. Diante do ocaso do modelo
político radicado em 1930 e da proximidade do fenecimento de seus longevos bastiões,
Ribeiro intenta evitar o aniquilamento moral do trabalhismo. Como se legasse ao futuro
a memória dos fracassos políticos que experimentara, conjugados com o que poderia ter
sido. Desse modo, a “nova Roma” tropical e mestiça retrata um contrafactual sucesso das
Reformas de Base janguistas, bem como as benesses de um imaginado Governo Brizola,
caso vitorioso nos pleitos de 1989 ou 1994.
Portanto, O Povo Brasileiro possui conotação moral. Sua ressignificação do passado
é também a prestação de contas de uma trajetória em conclusão, seja a do autor, seja a
do modelo político que o mesmo professara por décadas. Tal ressignificação palmilha o
caminho da reaproximação entre o entendimento da narratividade histórica contemporânea
e o que Rüsen denomina discurso pré-moderno (RÜSEN, 1996, p. 76) sobre a história,
anterior à racionalização modernizadora (RÜSEN, 1996, p. 76) atribuída à historiografia
dezenovista.
Esse discurso pré-moderno se centralizava nos “princípios morais que faziam do
passado algo importante para o presente e amoldava sua representação em uma mensagem
moral, apta a habilitar seus destinatários a entender e a operar as regras da vida humana.”
(RÜSEN, 1996, p. 76). O Darcy Ribeiro de O Povo Brasileiro, à imagem dos vetustos
depositários da memória coletiva, de fato ressignifica e mobiliza quase quinhentos anos
do passado brasileiro no intuito de promover uma forma de entendimento das “regras
da vida humana”.
A ressignificação desse passado se iguala à ressignificação das memórias do
intelectual e político septuagenário. Por uma diluição no tempo possibilitada a quem
pudera “ver” resquícios da pia indianidade quinhentista, tanto quanto o Comício da
Central do Brasil pelas Reformas de Base, em março de 1964: “Verifica-se, assim, que as

209
etimologias de histor, juiz-testemunho e de justiça confirmam o relevo dado às evidências
da visão.” (CATROGA, 2006). Condicionado o esplendoroso futuro do Brasil, apontado
por Darcy Ribeiro, ao conhecimento desse passado, é-lhe própria uma perspectiva de
história como magistral vitae. No entanto, entoada pelo “canto de cisne” do trabalhismo
brasileiro no contexto dos anos 1990, a história “em” O Povo Brasileiro mostra-se mestra
de uma vida necessariamente nacional.

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Equipe colaboradora desta edição: Pré-impressão, impressão e acabamento
Antônio Dimas Cardoso Empresa Gráfica CS Eireli
Irany Maria Gomide Miranda
José Francisco Carvalho de Morais (Chorró Morais) Tiragem: 1000 exemplares
Noêmia Coutinho Pereira Lopes Impressão: offset
Waldir de Pinho Veloso
Papel: Papel couchê fosco 150 gr
Capa: Capa dura com revestimento, laminação fosca
hot stamping e verniz localizado

Fotos
Arquivos da Fundação Darcy Ribeiro
Arquivo de família

Setembro de 2022

Selo comemorativo do Centenário de Darcy pensamentos, mas dependentes uns dos


Ribeiro, criado exclusivamente para essa outros para viver e para escrever a história de
edição de Darcy Ribeiro, o homem e suas um povo.
peles, lançado pela Editora Unimontes.
As cores usadas são o vermelho e o marrom.
Memorial Descritivo
Criado a partir das iniciais DR (Darcy Ribeiro), Vermelho
na construção das duas letras se percebe o É a cor de nosso sangue, conflito, remete-nos
grafismo carregado com traços de desenhos à luta, mas também cor de pele enrubescida
indígenas. pelas emoções, cor das rosas que entregamos
Esses mesmos traços se encontram no a outra pessoa em sinal de amor.
logotipo da Fundação Darcy Ribeiro e Cor do fogo que esquenta para moldar e fazer
também pintados nos rostos de Darcy e de curvar o mais duro metal.
Bertha, conforme documento fotográfico. Assim enxergo Darcy Ribeiro.
Nota-se uma harmonia contínua no grafismo,
interligando as duas partes desalinhadas do Marrom
logotipo, criando uma necessidade de união Cor da terra, do chão, do barro, da madeira. É
para assim formar uma segunda letra, o R, uma das cores que representam a natureza.
que só é possível com a ajuda da letra D. Também é possível associá-la a pigmentos
Afinal, assim somos nós, seres sociais, às naturais, coisas com as quais Darcy Ribeiro
vezes com divergências de costumes e conviveu, quando passou bom tempo com os
indígenas - nosso povo.

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