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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

MARCUS VINICIUS NETO SILVA

A consolidação do mito de fundação da psicanálise nas biografias de Freud: contexto, efeitos


e ecos

Belo Horizonte
2019
MARCUS VINICIUS NETO SILVA

A consolidação do mito de fundação da psicanálise nas biografias de Freud: contexto, efeitos


e ecos

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais
como parte dos requisitos para a obtenção do grau de
Doutor em Psicologia

Área de concentração: Estudos Psicanalíticos

Orientador: Guilherme Massara Rocha

Belo Horizonte
2019
Nome: Silva, Marcus Vinicius Neto
Título: A consolidação do mito de fundação da psicanálise nas biografias de Freud: efeitos,
contexto e ecos

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da


Universidade Federal de Minas Gerais como parte dos requisitos para
obtenção do grau de Doutor em Psicologia

Aprovado em:

Banca examinadora

Prof. Dr. Guilherme Massara Rocha (orientador)


Instituição: UFMG Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. Richard Theisen Simanke
Instituição: UFJF Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. Carlos Roberto Drawin
Instituição: FAJE Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. Gilson de Paulo Moreira Iannini
Instituição: UFMG Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé
Instituição: UFMG Assinatura: ____________________________
Às Sabinas, a do passado e a do futuro.
Agradecimentos

Assim como qualquer contribuição à ciência, também essa tese é fruto de um trabalho coletivo.
Por essa razão, expresso meus sinceros agradecimentos a todos que participaram dessa pesquisa
de alguma forma.
Ao meu orientador Guilherme Massara Rocha, pelo cuidado e liberdade fornecidos em mais
quatro anos de trabalho conjunto.
Aos amigos do Travessias, por construirmos juntos um espaço de resistência e debate que
ultrapassa as barreiras da universidade.
Aos amigos Rafael Silva e Vanessa Nery por me afastarem do meu isolamento esplêndido.
À querida amiga Luciana Torquato, que dividiu comigo cada etapa desse percurso nem sempre
agradável.
Ao José Tiago, que se foi, mas nunca será esquecido. E ao Flávio Lage, que ainda tolera
pacientemente o pouco que ofereço.
À Ana Cecília Carvalho, que apoiou os primeiros passos dessa pesquisa e forneceu fontes
importantes para sua conclusão.
Aos professores Richard Simanke e Mauro Condé pelas valiosas contribuições e comentários
precisos fornecidos no exame de qualificação.
Aos incansáveis Paul Hogroian, Patrick Kerwin, Barbara Bieringer, Kerry Kresse, Kia
Campbell, Kenneth Johnson, Joanne Halford, Bryony Davies, Mutahara Mobashar, Alexis
Valentine, Chamisa Redmond, Suzana Chilaka e Bruce Kirby pelas informações, orientações e
pela dedicação ao difícil trabalho de manter viva a memória de nossa ciência.
Ao Michael Plastow pelo diálogo sempre estimulante e apoio.
Ao amigo Ernane Salles, pelas trocas, leituras e comentários nas diferentes etapas da pesquisa.
Aos queridos Manju e Ramona, meus co-autores do coração.
À Marina, que me cobre de carinho mesmo nos dias mais críticos. Que entre um livro velho e
outro me oferecia um café e um beijo, que entre uma página e outra me fazia ouvir uma música.
Por nossa casa, nossa família e por ainda topar correr esse risco comigo.
Resumo
Silva, M. V. N. (2019). A consolidação do mito de fundação da psicanálise nas biografias de
Freud: contexto, efeitos e ecos. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

Os estudos em história da psicanálise são marcados pela forte influência da biografia de Freud
escrita por Jones. Essa obra, apesar de ser uma contribuição importante para esse campo,
consolida uma narrativa sobre a criação da psicanálise que muito se assemelha a um mito de
fundação. Esse modo de narrar a criação de nossa disciplina produz efeitos na forma como
pensamos a psicanálise, bem como na maneira como nos enxergamos como psicanalistas.
Nosso esforço é investigar como isso se estabeleceu e quais seus principais efeitos. A partir de
um recorte de três temas que parecem servir de suporte a nosso mito de fundação, reconstruimos
o caminho que levou a sua formação. Assim, revisitamos a relação de Freud com Breuer, que
inicialmente é de continuidade, mas passa a ser vista como uma ruptura resultante das
limitações de Breuer e sua incapacidade de aceitar a sexualidade como fator causador das
neuroses. Recuperamos também a autoanálise freudiana, que para alguns foi o experimento que
cria as bases conceituais do pensamento psicanalítico. Por fim, ao investigar o período que
Freud denominava de splendid isolation, notamos que se ele era experimentado como
isolamento, na prática as coisas se deram de modo diverso. De toda forma, ao refletir sobre
esses três elementos, fica claro que eles convergem para a visão de Freud como herói isolado
que cria a psicanálise a partir de uma investigação do próprio inconsciente e apesar das
dificuldades que outros colocam em seu caminho. A forma como essa narrativa se organiza nos
leva a considerar seriamente a analogia entre ela e os mitos de origem e mitos do herói. Isso é
realizado através da leitura de Eliade e Campbell, que nos ajudam a compreender a função
dessas narrativas e sua força como modelo explicativo de nossa experiência. Reconstruímos o
contexto imediato da produção da biografia por Jones, explicitando as forças político-
institucionais que operavam no momento e que comparecem em sua obra. Em seguida,
refletimos sobre alguns motivos da persistência das versões sobre a fundação da psicanálise de
caráter mítico, o que nos leva a interrogar se a propagação dessa narrativa não é efeito de uma
organização institucional pautada pelo isolamento freudiano agora transposto para o
movimento psicanalítico, resultando numa visão da psicanálise como ocupando uma posição
de excepcionalidade.

Palavras-chave: História da psicanálise, biografia, Sigmund Freud, Ernest Jones.


Abstract
Silva, M. V. N. (2019). The consolidation of the foundation myth of psychoanalysis in Freud's
biographies: context, effects and echoes. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

Studies in the history of psychoanalysis are marked by the strong influence of Freud's biography
written by Jones. This work, despite being an important contribution to this field, consolidates
a narrative about the creation of psychoanalysis that very much resembles a foundation myth.
This way of narrating the creation of our discipline produces effects in the way we think of
psychoanalysis, as well as in the way we view ourselves as psychoanalysts. Our effort is to
investigate how this was established and what its main effects are. Taking three main themes
that seem to support our myth of foundation, we rebuilt the path that led to its formation. Thus,
we revisit Freud's relationship with Breuer, which initially is presented as continuity, but is later
seen as a break resulting from Breuer's limitations and his inability to accept sexuality as a
causative factor of the neuroses. We also recover Freudian self-analysis, which for some was
the experiment that created the conceptual bases of psychoanalytic thinking. Finally, in
investigating the period that Freud called splendid isolation, we note that even if he experienced
it as isolation, in practice things came about differently. However, in reflecting on these three
elements, it is clear that they converge on a picture of Freud as an isolated hero who creates
psychoanalysis from an investigation of his own unconscious and despite the difficulties others
put in his way. The way this narrative is organized leads us to seriously consider the analogy
between it and the myths of origin and myths of the hero. This is accomplished through the
reading of Eliade and Campbell, who help us understand the function of these narratives and
their force as an explanatory model of our experience. We reconstruct the immediate context
of the production of the biography by Jones, explaining the political-institutional forces that
operated at the moment and that appear in his work. Next, we reflect on some of the reasons for
the persistence of the versions on the foundations of psychoanalysis of mythical character,
which leads us to wonder if the propagation of this narrative is not an effect of an institutional
organization ruled by the Freudian isolation now transposed to the psychoanalytic movement,
resulting in a view of psychoanalysis as occupying a position of exceptionality.
Keywords: History of psychoanalysis, biography, Sigmund Freud, Ernest Jones.
Sumário

Introdução ................................................................................................................................. 8

1 – A criação da psicanálise narrada por Jones ................................................................... 16


1.1 – As narrativas sobre o fundador da psicanálise ............................................................. 20
1.2 – A autoanálise ................................................................................................................ 25
1.3 – O isolamento de Freud ................................................................................................. 28
1.4 – A biografia escrita por Jones........................................................................................ 31
1.4.1 – Como Jones se torna biógrafo de Freud ................................................................ 31
1.4.2 – O fundador da psicanálise de acordo com Jones ................................................... 35
1.4.3 – A autoanálise na visão de Jones ............................................................................ 37
1.4.4 – O isolamento de Freud visto por Jones ................................................................. 40
1.5 – A recepção da biografia ............................................................................................... 43
2 – As narrativas sobre a criação da psicanálise posteriores a Jones ................................ 46
2.1 – As narrativas sobre o fundador da psicanálise ............................................................. 46
2.1.1 – Breuer e seu pensamento ....................................................................................... 47
2.1.2 – O caso Anna O. ..................................................................................................... 54
2.2 – A autoanálise ................................................................................................................ 61
2.3 – O isolamento de Freud ................................................................................................. 67
2.3.1 – A recepção inicial aos trabalhos de Freud............................................................. 69
2.3.2 – Os ataques à psicanálise: o congresso de Breslau. ................................................ 73
3 – O mito de fundação da psicanálise .................................................................................. 77
3.1 – A função das narrativas sobre a fundação da psicanálise ............................................ 77
3.2 – O estabelecimento da narrativa de Jones como fato .................................................... 84
3.3 – Contexto de produção do mito de fundação da psicanálise ......................................... 90
3.3.1 – A psicanálise na Inglaterra .................................................................................... 91
3.3.2 – A psicanálise nos EUA ......................................................................................... 94
4 – O problema de uma historiografia psicanalítica ......................................................... 102
4.1 – A biografia psicanalítica em questão ......................................................................... 104
4.2 – Ficção, idealização e identificação ........................................................................... 108
4.3 – A difusão da psicanálise e seus efeitos ..................................................................... 114
Considerações finais ............................................................................................................. 122
Referências bibliográficas .................................................................................................... 126
Anexos .................................................................................................................................... 135
Anexo A – Duas cartas da correspondência Jones-Bernfeld .............................................. 135
Anexo B – Reprodução do cartão que Freud enviou a Lacan ............................................. 137
Introdução

A presente tese é resultado de mais de quatro anos de pesquisa sobre biografias de Freud.
Por um lado, ela é o fechamento de uma etapa, a conclusão de um ciclo. Por outro, ela significa
uma abertura para um novo campo, uma transição de meu interesse na história dos conceitos
psicanalíticos para a história da psicanálise em sentido mais amplo. No trabalho que se segue,
faço amplo uso de biografias não só de Freud, mas também daqueles que tentaram biografá-lo;
acesso livros de memórias, cartas e rascunhos que os autores não planejavam expor ao público.
Também me sirvo, em momentos pontuais, de situações vivenciadas diretamente por mim.

Esse é, até o momento, o trabalho mais pessoal que escrevi. Porém, é também meu
esforço mais sério de me colocar como autor, me inserir numa longa tradição de comentadores
e estudiosos da vida de Freud e da história da psicanálise. Muitas das minhas referências são
pensadores conceituados, que eu mesmo admiro, e isso também dificultou a tarefa de destacar
pontos de suas obras que seriam alvo de críticas minhas. Mas o respeito pelos autores e pela
produção de conhecimento científico me obrigam a ultrapassar essa admiração e abordar
seriamente as hipóteses e conclusões a que eles chegaram, movidos eles próprios por fatores
não apenas científicos, mas também afetivos. Assim, deixo já exposto que espero que meu
próprio trabalho seja alvo de uma crítica semelhante, inicialmente pelos membros da banca e
posteriormente por qualquer leitor que venha a se deparar com essa tese.

A pesquisa em questão passou por diversas modificações antes de assumir sua forma
atual. É esperado que ela venha a sofrer ainda outras depois da defesa. Mas de início minha
intenção era elaborar um método (ou sistematizar algum método que já pudesse ser deduzido
de outras obras) que combinasse pesquisa histórica e psicanalítica. Nas biografias de Freud a
partir da década de 1980, era possível notar que autores como Gay, Sulloway e outros já
apontavam para a tentativa de aplicar de algum modo os conhecimentos da psicanálise para
apresentar a vida de Freud. Nenhum deles, porém, mostrava como havia feito aquilo, o que
deixava uma enorme lacuna no conhecimento do método utilizado.
Meu objetivo, portanto, era, através da leitura de biografias de Freud, mas tomando a
biografia escrita por Jones como centro, utilizar o material publicado e o material de arquivo
como equivalentes um tanto insuficientes das associações de um paciente. Eu partia da
suposição, emprestada de trabalhos como os de Abraham, Rank e Freud, de que era possível
estabelecer um paralelo entre mitos e sonhos. Dei um passo a mais, e considerei que a história

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da psicanálise, ao menos no que dizia respeito a sua fundação, tinha as características de um
mito. Dessa forma, eu poderia reproduzir o método desses autores, aplicando-o ao meu objeto:
a fundação da psicanálise por Freud.
Como logo ficou claro, as coisas não eram assim tão simples. Primeiro porque o volume
de material era assustador: havia tantas biografias de Freud e em tantos idiomas que seriam
necessárias algumas décadas para cobrir tudo. Segundo porque autores contemporâneos
apresentavam críticas ao método no qual eu pretendia me basear, me deixando exposto ao risco
de escrever um trabalho que já nascia morto.
Era preciso, portanto, repensar esse propósito. Mesmo que não fosse possível uma
aplicação do método psicanalítico nesses moldes, ainda parecia que eu poderia obter muitos
ganhos ao me valer de um certo olhar psicanalítico para investigar o problema das narrativas
sobre a fundação da psicanálise. Assim, tomei a biografia escrita por Jones como núcleo e
elenquei três elementos que pareciam centrais a seu mito de fundação: a relação de Freud com
Breuer, a autoanálise e seu isolamento da comunidade científica.
Esses temas, a meu ver, organizam o relato de Jones e reaparecem nas versões
posteriores. Na verdade, já apareciam nos relatos anteriores (inclusive do próprio Freud). Esses
elementos persistiam e ainda persistem, mesmo diante de algumas análises mais críticas que
apresentam bons argumentos para, se não refutá-los, ao menos abalar seu lugar como verdade
fundadora desse campo.
De posse desse recorte, era preciso efetivamente percorrer o caminho que eu havia
traçado, o que significava enfrentar uma pilha de biografias de Freud e umas tantas outras obras
que tratavam do contexto histórico, de metodologia e também alguns volumes de
correspondência. Além disso, era quase sempre necessário, em momentos mais críticos, voltar
ao material de arquivo, que custava bastante tempo e dinheiro, duas coisas escassas.
Ocorre que saber por onde ir não significa que eu conseguiria chegar lá facilmente. Para
além da dificuldade de acesso a algumas obras, surgiu também uma série de dificuldades
internas. Elas se manifestavam de formas mais diversas: tentativa de ler tudo sobre um tema
lateral antes de escrever uma simples nota de rodapé; insatisfação com o que eu produzia, por
considerar o resultado muito inferior a outras obras que admiro; preocupação com a reação de
meus pares, que pareciam acreditar que eu estava atacando Freud; colonização da pesquisa
sobre o pai da Psicanálise por um conflito anterior com meu próprio pai. Tudo isso me obrigou
a trabalhar em várias frentes simultaneamente, e, consequentemente, consumia muita energia.

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Assim, ao longo do primeiro e segundo anos de pesquisa, me dediquei a tentar apresentar
o material bibliográfico que reuni em uma ordem cronológica, acrescentando comentários e
explicações sobre o contexto das obras e seus autores, na expectativa de que alguma conclusão
se formasse a partir dessa maneira de organizar o material. Como ficou evidente na banca de
qualificação, fazer isso não bastava.
Parte dos comentários feitos durante a qualificação tocavam nesse ponto: ordenar
cronologicamente e narrar o conteúdo não gerava automaticamente uma interpretação. Era
preciso que eu me posicionasse mais claramente e indicasse de forma aberta ao leitor como eu
estava entendendo as ligações entre esses autores todos. O texto parecia uma narrativa que
aspirava isenção, algum acesso a uma verdade oculta, que era exatamente um ponto que eu
pretendia criticar na obra de outros.
Era preciso que eu participasse mais, que me tornasse mais visível ao leitor. Para tanto,
abandonei essa expectativa de que o ordenamento cronológico bastaria. Procurei ler algumas
das recomendações de bibliografia que me fizeram na banca e estabeleci alguns pontos que
serviriam de guia metodológico ao longo de todo o trabalho. Primeiro: embora grande parte dos
biógrafos de Freud tentasse apresentá-lo como herói solitário, o conhecimento científico é fruto
de um trabalho coletivo, e seria preciso inserir a narrativa sobre a fundação da psicanálise no
campo mais amplo da história das ciências. Isso já vem sendo tentado, de forma mais ou menos
explícita, por diversos autores ao longo das últimas décadas. Mas, mesmo assim, persistia entre
nós, psicanalistas, uma ideia menos complexa desse processo. Se entre os pensadores do campo
da história e historiografia psicanalítica estava já estabelecido que a versão de Jones apresentava
uma série de limitações, para o psicanalista comum, ou mesmo aqueles que frequentavam a
pós-graduação, a narrativa construída por Jones era ainda mantida quase integralmente. Assim,
surgia a questão de por que, mesmo de posse de documentos e informações que nos obrigavam
a rever certos posicionamentos de Jones, ele seguia sendo tomado como narrador preferencial
desse momento. Por que sua versão era elevada à categoria de um fato?
Aqui, passei a me valer da leitura de Fleck (recomendada pelo professor Condé) e se
instalou em mim a hipótese de que se Jones ocupava esse lugar, era porque sua versão se
alinhava com o estilo de pensamento da época, que ainda era vigente hoje. As diversas outras
versões só eram consideradas na medida em que se alinhavam com essa forma de enxergar o
que havia se tornado fato. Fleck me forneceu os elementos teórico-metodológicos para abordar
a questão, ou pelo menos parte dela. Era preciso então revisitar o material com esse novo olhar.

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Apesar da mudança na forma de olhar a questão inicial, ainda parecia útil pensar as
relações entre mitos de fundação e narrativas sobre a criação da psicanálise, bem como entre
mitos do herói e relatos sobre a vida de Freud. Esse ponto, que inicialmente parecia central ao
problema, ainda participa da discussão, mas agora de uma maneira mais lateral, através da
leitura de Eliade e Campbell.
Assim, no primeiro capítulo, explicitamos o problema de se tentar indicar uma data de
fundação da psicanálise, e argumentamos que isso foi menos um evento e mais um processo.
Em seguida, tomando os três elementos já citados (a relação de Freud com Breuer, a autoanálise
e o splendid isolation), recuperamos como cada um parece ter se formado. Acompanhamos as
mudanças de posição de Freud sobre quem fundou a psicanálise, inicialmente atribuindo grande
valor a Breuer, para em seguida afirmar o papel secundário de seu antigo colaborador. Vemos
como alguns discípulos mais próximos reproduzem e confirmam a segunda versão veiculada
por Freud, com exceção de Stekel, que toma Breuer como descobridor da psicanálise. O mesmo
percurso é feito ao investigarmos a autoanálise. Observamos que Freud não dava ao
procedimento o mesmo grau de importância que posteriormente foi atribuído e que é apenas
após sua morte que alguns autores começam a enxergar na autoanálise um processo que fez
com que Freud conseguisse elaborar pontos centrais de sua teoria. Em seguida, ao discutir o
isolamento esplêndido, é possível notar que Freud é quem insiste nessa narrativa, referindo não
apenas a estar isolado quanto a ter sofrido ataques ao apresentar suas ideias. Isso surge não só
em publicações, mas em sua correspondência, principalmente nas cartas enviadas a Fliess.
Toda essa discussão serve para estabelecer o terreno em que se formaria a biografia
escrita por Jones. Recuperamos brevemente como Jones surge como principal opção para ser o
biógrafo oficial, para em seguida mostrar sua abordagem dos temas relativos à criação da
psicanálise. Ao narrar a participação de Breuer, ele oscila entre o reconhecimento de sua
importância e a desconsideração de suas hipóteses sobre a histeria. Jones fornece inclusive uma
versão altamente distorcida do final do tratamento do caso de Anna O., que serve para depor
contra o papel de Breuer como um dos fundadores da psicanálise. A autoanálise, em Jones, é
de fato alçada ao lugar de processo fundador da psicanálise, e tomada como demonstração do
caráter heroico de Freud. Ele faz um relato bastante apaixonado de como Freud enfrenta
corajosamente a exploração do próprio inconsciente e acredita que o efeito foi uma modificação
permanente e profunda da personalidade de seu mestre. Em seguida, ao debater o tema do
isolamento, Jones questiona a versão que Freud forneceu, analisando alguns dos episódios
referidos por ele. Sua conclusão é de que há um exagero de Freud, e que ele talvez não tenha

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estado tão sozinho quanto parecia acreditar. O capítulo se encerra com uma discussão da
recepção da biografia de Jones, tanto no meio psicanalítico quanto fora dele, e constatamos que
embora a reação tenha sido majoritariamente positiva, há aqueles que apontam desde cedo a
limitação dessa obra, principalmente pela idealização excessiva.
O segundo capítulo avança para uma discussão da produção posterior a Jones.
Revisitamos a participação de Breuer, explorando dois pontos geralmente levantados contra
ele: sua recusa da sexualidade como fator etiológico e seu abandono do tratamento de Anna O.
Com relação ao primeiro ponto, fica evidente que ele não desconsiderava a sexualidade, embora
talvez não atribuísse a ela o mesmo papel que Freud. Mesmo essa comparação entre o
pensamento dos dois é repensada, já que é no rastro da ruptura com Breuer que Freud começa
a dar maior importância ao fator sexual. Com relação ao caso de Anna O., recuperamos a
extensa produção bibliográfica que analisa o caso e tentamos localizar principalmente os
acréscimos feitos por variados autores ao desfecho dramático do tratamento. As reconstruções
de Freud sobre o que teria acontecido são geralmente tomadas como fato, e algumas das análises
do próprio tratamento acabam por inserir elementos da teoria psicanalítica mais tardia no
tratamento, algo que não estava disponível a Breuer no momento em que ele ocorreu. Notamos,
ao comparar o relato de Jones com a produção posterior, que o tratamento dado ao tema por ele
sobrevive como narrativa oficial, que empurra para o segundo plano algumas obras consistentes
e que questionam pontos centrais de seu relato. O efeito de desconsideração da contribuição de
Breuer parece ser o de exaltação de Freud.
Com relação ao tema da autoanálise, discutimos brevemente se e de que maneira uma
análise desse tipo seria possível. Para isso, recorremos a um autor contemporâneo de Freud,
Ernest Pickworth Farrow, que explora uma técnica de autoanálise baseada em anotar as próprias
associações ou ditá-las para um gravador. As considerações levantadas a partir do relato de
Farrow são transpostas para a autoanálise freudiana: é possível uma análise sem transferência?
Os resultados alcançados são idênticos a uma análise comum? Se não, quais as limitações do
método? Ao analisar a produção bibliográfica posterior a Jones, notamos uma tendência a
valorizar ainda mais a autoanálise como processo produtor de conceitos centrais da psicanálise
e parece-nos que o efeito disso é também a exaltação de Freud como fundador único da
psicanálise, contribuindo muito para a visão de que ele estava isolado.
Por fim, tomamos exatamente os relatos sobre o isolamento de Freud, que é contestado
por um grande número de autoras e autores. A ideia de isolamento encontra apoio nas duas
anteriores, a ruptura com Breuer e a autoanálise. Freud realmente entendia a reação a suas ideias

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como rejeição e, em parte motivado por desconhecimento, pensava que sua obra era ativamente
ignorada. Essa impressão inicial parece retornar com muita força anos depois, quando a
psicanálise é de fato alvo de ataques oriundos da psiquiatria alemã. Esse período é também
marcado por importantes dissidências, inicialmente de Adler, mas em seguida de Jung e Bleuler.
Feito esse percurso, chegamos ao terceiro capítulo com o objetivo de compreender como
se forma essa narrativa sobre a fundação da psicanálise e que funções ela cumpre. A partir da
leitura de Eliade e Campbell, estabelecemos um paralelo entre a forma dos mitos de fundação
e mitos do herói e a narrativa sobre a fundação da psicanálise e sobre a vida de Freud. Recorrer
a esse paralelo nos ajuda a compreender um pouco do efeito que as biografias de Freud parecem
ter sobre os psicanalistas e, em certa medida, também a sua função. Observamos como essa
forma de relatar nossa história parece nos obrigar a retornar a esse enredo e notamos como
Lacan recorre a isso na fundação da Escola Francesa de Psicanálise. Percebemos também que
esse caráter mítico atribuído a fundação da psicanálise e a Freud se assenta em uma visão da
vida do autor e sua obra como absolutamente inseparáveis.
Em seguida, nos valemos da leitura de Fleck para pensar que não apenas o conhecimento
científico é um trabalho coletivo, mas o estabelecimento de uma narrativa como fato é um
processo realizado ao longo de um tempo e que, assim que ele se consolida, passa a atuar para
sua manutenção, empurrando para segundo plano ou ignorando aquelas informações que
poderiam contradizê-lo. Jones, portanto, não pode ser tomado como criador de uma lenda, mas
um dos vários autores que contribui para a consolidação da narrativa da fundação de teor mítico,
mesmo que seu nome seja comumente o mais associado a isso. Fleck também nos auxilia na
compreensão dos motivos para a manutenção dessa narrativa, mesmo após décadas de trabalhos
que a colocam em questão.
Informados por Eliade e Fleck, percebemos a importância de estabelecer de forma mais
ampla o contexto de produção da biografia escrita por Jones, e exploramos o cenário
psicanalítico mundial, com foco na Inglaterra e Estados Unidos, que parecem ter afetado mais
diretamente essa obra. Recuperamos também influências mais diretas, em especial de Anna
Freud, que ajuda a construir o objetivo que a biografia de seu pai deveria cumprir. Jones,
vivendo na Inglaterra, foi um dos principais articuladores da criação de um movimento
psicanalítico no país e também participante ativo na costura de acordos entre as correntes
divergentes de Melanie Klein e Anna Freud. Ele compartilhava com Freud a desconfiança com
relação à psicanálise estadunidense, baseado em parte em suas próprias experiências no país,
onde tentou se instalar no início da década de 1910, sem sucesso. Ao voltarmos nosso olhar

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para o contexto norte-americano, é possível perceber que a recepção da psicanálise no país foi
marcada por uma fragmentação e tentativas de apropriação pela psiquiatria. Isso é visível
principalmente na resistência muito intensa à prática da psicanálise por leigos, um dos motivos
principais para a ruptura da American Psychoanalytic Association com o modelo de formação
proposto pela IPA. A tensão apenas se agrava com a migração de psicanalisas europeus que
fugiam da Segunda Guerra. Essa situação de disputa política entre os psicanalistas norte-
americanos e ingleses, parece também ter deixado sua marca no projeto jonesiano da biografia.
Assim, chegamos ao quarto capítulo, onde partimos da ideia de que o isolamento
freudiano encontra um paralelo na forma da psicanálise se relacionar com outros campos. A
relação complexa entre psicanálise e história é explorada, e em seguida discutimos os efeitos
do pensamento psicanalítico na produção de biografias. Aqui, vemos os psicanalistas tentando
entender como se proteger do risco de, como biógrafos, produzir distorções no material.
Notamos, entretanto, que uma biografia vai necessariamente carregar em si algo do autor.
Exploramos, então, as soluções dos diversos autores para o problema, desde Freud até os dias
de hoje.
Pensando nos elementos que borram os limites entre realidade e ficção, tomamos o
exemplo da carta que Freud teria enviado a Lacan para investigar não apenas seu surgimento,
mas seu uso como documento. Se a carta não foi efetivamente escrita por Freud, ela ganha um
valor de documento verídico ao confirmar expectativas de determinados psicanalistas, algo que
alcança o ponto máximo nos trabalhos em que ela é citada como carta real. Isso nos leva ao
problema da idealização de Freud (e também de outros psicanalistas), algo que parece se
esconder por trás do uso da categoria “gênio”, como é o caso do livro de Eissler. Exploramos
também esse caráter mais individual do problema, que diz respeito ao vínculo transferencial
que cada psicanalista estabelece com Freud e que, assim nos parece, se assenta muitas vezes no
isolamento e sensação de ser um gênio incompreendido.
Nessa altura, retomamos um elemento que já havia aparecido nas discussões anteriores,
a inseparabilidade entre a biografia de Freud e a história da psicanálise. Já vimos como isso
abre espaço tanto para os relatos exageradamente elogiosos e também para os difamatórios.
Analisamos mais um exemplo de pesquisa que aspira atacar a imagem de Freud como pessoa,
com evidências mínimas, mas que é de pouco ou nenhum interesse para uma historiografia da
psicanálise. Em seguida, notamos que essa inseparabilidade entre Freud e a psicanálise já era
um problema desde muito cedo. A própria expansão do pensamento psicanalítico para fora do
pequeno círculo vienense já coloca essa questão, que se agrava na década de 1910 com as

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dissidências de Adler, Jung e Bleuler, bem como com a difusão da psicanálise para outros
continentes, tendo como caso exemplar aqui a forma como os EUA se apropria da psicanálise.
Essa tensão entre esforços de difusão e tentativas de controle e manutenção do núcleo
teórico é expressa por Freud e sobrevive a ele. O surgimento dos institutos de formação é, de
certo modo, uma resposta a essa questão, mas não conseguem alcançar uma solução satisfatória
para ela. As instituições continuam sujeitas à fragmentação, dissidências e embates, além de
uma relação nem sempre amistosa com outros campos.
Por fim, ficamos com a impressão que a mitificação da nossa história, que foi resultado
de um processo de décadas, talvez já esteja sendo combatida e seja preciso ainda algum tempo
para sua efetiva desconstrução. Um caminho poderia ser tornar visíveis outras narrativas que
não sejam centradas em Freud, ou que nos ajudem a compreender o caráter coletivo da produção
de suas teorias. Os movimentos nesse sentido, contudo, tem de ser intensificados e ampliados,
já que é pela via da formação que geralmente são veiculadas as narrativas idealizantes que
discutiremos ao longo de toda a tese. É um problema a ser resolvido não apenas no campo
teórico, mas na prática institucional, que valida a forma mítica, já que ela atende a interesses
políticos e sustenta o lugar das próprias instituições.
Esperamos que essa tese possa servir como mais uma voz nesse vasto campo e contribua
para que consigamos criar uma relação com nosso passado menos marcada pelas idealizações
e mitos.

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Capítulo 1 – A criação da psicanálise narrada por Jones

A biografia de Freud escrita por Jones é um marco na história dos estudos biográficos
de Freud. Mesmo antes de levarmos em conta seus méritos e limitações, somos forçados a
reconhecer seu lugar de destaque entre as obras que trataram da vida do fundador da psicanálise.
Esse livro, que narra a versão oficial e autorizada da história, produziu um impacto duradouro
no movimento psicanalítico.

O primeiro volume desse trabalho monumental foi publicado em 1953 e, por ter o apoio
da família Freud, contou com documentos e cartas inacessíveis até então a outros biógrafos. Só
essa esmagadora diferença no número de fontes disponibilizadas a Jones já seria suficiente para
colocá-lo em um patamar superior. Mas, além disso, o próprio Jones pôde se valer de suas
décadas como discípulo e amigo de Freud para produzir um retrato mais íntimo de seu mestre.

De toda forma, para compreender o lugar ocupado por essa obra, é necessário refazer o
percurso de sua escrita. Isso significa não apenas discutir o contexto de sua produção, mas
também conhecer os diversos estudos biográficos publicados anteriormente e que
estabeleceram as bases para Jones. Sendo assim, nos interessa acompanhar como as diferentes
narrativas sobre a fundação da psicanálise vão sendo produzidas e se sobrepondo umas às
outras, como se fossem diferentes camadas que precisassem ser agora cuidadosamente
removidas e separadas.

Freud é, possivelmente, quem inaugura esse campo da historiografia psicanalítica. Seja


quando relata de modo passageiro como a psicanálise foi criada, como em “Cinco Lições de
Psicanálise” (1910/2006), ou nas ocasiões em que pretende fornecer uma visão mais detalhada
desse processo, como em “A história do movimento psicanalítico” ou “Um estudo
autobiográfico” (1925/1996), ele parece preocupado em estabelecer o seu lugar na história da
psicanálise ao mesmo tempo em que apresenta o lugar da psicanálise na história de sua própria
vida. É Freud quem constrói a visão de que as narrativas sobre a psicanálise e as sobre sua vida
são inseparáveis.

Jones (1953/1989), no prefácio de “A vida e a obra de Sigmund Freud”, parece


concordar com essa posição, ao apontar que “a psicanálise [...] só pode ser estudada de maneira
proveitosa como uma evolução histórica [...] e seu desenvolvimento esteve peculiar e
intimamente vinculado com a personalidade de seu fundador”. (Jones, 1953/1989, p.12).

16
“Esta não se destina a ser uma biografia popular de Freud: várias já foram escritas,
contendo graves distorções e inverdades”. (Jones, 1953/1989, p.11; Jones 1953, p.xi) Assim
tem início o prefácio de “A vida e a obra de Sigmund Freud”. Na visão de Jones, o próprio
Freud desaprovaria a existência desse livro, mas ele se fazia necessário, pois “pessoas de má-
fé já se davam ao trabalho de distorcer passagens isoladas, com o objetivo de depreciar seu
caráter, e isso só poderia ser retificado através de uma exposição muito mais completa de sua
vida particular e pública”. (Jones, 1953/1989, p.11; Jones 1953, p.xi).

A família de Freud, prossegue Jones, tentou ser fiel ao seu desejo de privacidade.
Entretanto, as notícias falsas sobre ele continuavam a surgir, “de modo a constituir uma lenda
mentirosa”. Diante desse cenário, Jones afirma: “ela então decidiu dar-me seu apoio irrestrito
em meu empenho de apresentar um relato da vida de Freud tão verdadeiro quanto estivesse em
meu alcance”. (Jones 1953/1989, p.11; Jones, 1953, p.xi).

Jones passa em seguida a justificar sua decisão de escrever a biografia. De acordo com
ele, sendo “o único sobrevivente de um pequeno círculo de colaboradores (o ‘Comitê’) em
constante e íntimo contato com Freud” e também “um amigo bem próximo”, essa tarefa era
imposta a ele. Ele supõe que o fato de ser “o único estrangeiro nesse círculo” tenha dado a ele
“oportunidade para algum grau de maior objetividade do que os outros”. (Jones, 1953/1989,
p.13; Jones, 1953, p.xiii). Defendendo-se antecipadamente de qualquer acusação de que seu
relato pudesse ser muito idealizado, afirma: “[...] tenho dificuldade em imaginar maior
profanação do respeito que se tem por ele do que apresentar um retrato idealizado de alguém
distante da humanidade”. (Jones, 1953/1989, p.13; Jones, 1953, p.xiii). Em que medida Jones
foi bem sucedido em sua tentativa de escrever uma biografia mais objetiva é algo que
tentaremos discutir posteriormente.

Como nosso interesse é debater especificamente o momento de fundação da psicanálise,


ou melhor, a forma como Jones narra esse momento, não é necessário abordar os três volumes
da biografia de Freud. É possível tomar apenas o primeiro volume e manter o foco nos capítulos
que tratem desse período. Para isso, porém, seria preciso pensar em como definir esse momento.
A partir de quando seria possível considerar que a psicanálise foi criada? Parte da dificuldade
se deve ao fato de que os avanços na técnica não ocorrem sempre alinhados a modificações na
teoria; ora um desses campos sofre modificações, ora outro. Isso dificulta qualquer tentativa de
estabelecer uma narrativa um pouco mais linear. Além disso, esses dois campos não estão
necessariamente ligados ao estabelecimento e desenvolvimento institucional da psicanálise, o
que torna a questão ainda mais complexa.
17
Há várias formas de avançar a partir destas questões. Andersson (2000), por exemplo,
estabelece como momento de fundação da psicanálise o ano de 1896. Para isso, se baseia no
fato de que, segundo ele, Freud já havia nessa data determinado o papel das experiências
infantis (de natureza sexual) na etiologia das neuroses e também já se valia da noção de defesa.
Para além disso, 1896 é o ano da primeira ocorrência do termo “psicanálise” em uma publicação
de Freud.
Em geral, porém, não encontramos elementos para uma demarcação clara do momento
de fundação da psicanálise. Os psicanalistas parecem localizar o ano de 1900 como sendo a
data de criação de sua disciplina, associando essa escolha à publicação de “A Interpretação dos
Sonhos”. Aparentemente essa escolha é mais aceita, mesmo estando assentada em um equívoco,
já que essa obra foi, na verdade, publicada em 18991.
Sendo assim, não existe uma data que apareça como evidente e o estabelecimento de
uma dependerá dos critérios adotados. Não há, portanto, como escapar de algum grau de
incerteza e toda decisão com relação a isso poderá parecer um pouco arbitrária. Para contornar
em certa medida esse problema, será mais sensato localizar não uma data específica, mas um
intervalo em que possamos supor que a psicanálise se encontrasse em construção.
Essa estratégia, entretanto, já nos apresenta novas dificuldades de imediato. Como
estabelecer os limites desse período? Não seria ele também produto de uma decisão arbitrária?
Façamos uma primeira aproximação da questão, nos apoiando no relato de Freud em “A
História do Movimento Psicanalítico” (1914/2006). Nesse texto, logo no início, ele discute a
participação de Breuer na criação da psicanálise e afirma: “não tem grande importância que a
história da psicanálise seja considerada como tendo início com o método catártico ou com a
modificação que nele introduzi”. (Freud, 1914/2006, p.19) Poucas páginas adiante decide
finalmente que “a história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova técnica que
dispensa a hipnose”. (Freud, 1914/2006, p.26).
Na opinião de Freud, portanto, parece que teríamos de localizar a criação da psicanálise
no intervalo entre 1890-1895, entre o tratamento das histéricas que o levaram a essa
modificação da técnica e a publicação dos “Estudos sobre a Histeria” (1895/1996), que marcaria
em definitivo seu surgimento. Parece-nos difícil concordar com este ponto de vista, tanto pelo
fato de que nessa data ele não havia sequer cunhado o termo “psicanálise”, quanto pelo fato de
que certos elementos essenciais da teoria psicanalítica ainda se encontravam em estado

1
O que pode ser confirmado na carta a Fliess de 5 de novembro de 1899, em que Freud afirma: “O livro saiu,
finalmente, ontem”. (Masson, 1986, p. 382).
18
embrionário nesse período. Dessa forma, podemos no máximo estabelecer como ponto inicial
de nossa investigação o período em que Freud tratou das pacientes que viriam a aparecer em
“Estudos sobre a Histeria”, no início dos anos 1890.
Mas para demarcar o ponto final, teremos de levar em conta ainda outros elementos.
Não é incomum encontrarmos autores que apontam a autoanálise de Freud como uma das bases
da psicanálise. Por exemplo, Gay (1988/2012) afirma: “Freud, dizem os analistas, empreendeu
uma autoanálise que iniciou em algum momento da metade dos anos 1890; [...] esse gesto de
paciente heroísmo, a ser admirado e palidamente imitado, mas nunca repetido, é o ato fundador
da psicanálise”. (Gay, 1988/2012, p. 112). Jones também parece considerar a autoanálise como
tendo papel importante na criação da psicanálise e dedica um capítulo inteiro da biografia de
Freud a esse tema.
Além disso, Freud também aparentemente concorda com esse argumento. Como ele
indica em “A História do Movimento Psicanalítico”: “logo me dei conta da necessidade de levar
a efeito uma auto-análise, e o fiz com a ajuda de uma série de meus próprios sonhos que me
conduziram de volta a todos os fatos de minha infância”. (Freud, 1914/2006, p. 30) E se nos
valermos da sua correspondência com Fliess, logo fica claro que boa parte dos sonhos que
analisou nesse período estão incluídos em “A Interpretação dos Sonhos”.
Um outro fator que Freud recupera insistentemente em seus trabalhos posteriores é seu
total isolamento da comunidade médica/científica. Se em determinados momentos ele parece
se referir a esse período com algum pesar, acusando seus colegas de não terem compreendido
suas teorias ou de as terem rejeitado por motivos inconscientes, em outros momentos considera
esse distanciamento como positivo. Ele declara, por exemplo, que seu isolamento “não deixou
de ter suas vantagens e encantos”. (Freud, 1914/2006, p.31-2). De acordo com ele, já que não
precisava se preocupar com a defesa da prioridade na exploração desse campo novo, podia
adiar publicações o quanto desejasse. Entretanto, após a publicação de “A interpretação dos
sonhos”, começa a ganhar atenção de alguns médicos de Viena que, a partir de 1902, se reúnem
para estudar suas teorias semanalmente, no grupo que veio a ser conhecido como Sociedade
Psicológica das Quartas-feiras.
Dessa forma, parece aceitável considerar que 1902 seja uma data em que já é possível
afirmar que a Psicanálise existia. Tomaremos portanto esse ano como sendo o limite de nossa
pesquisa, o que nos levará a analisar o intervalo entre 1890 e 19022.

2
Embora esse intervalo nos sirva de referência, em alguns momentos será necessário explorar certos eventos que
ultrapassam esse período.
19
No interior desse intervalo, faremos, portanto, um recorte a partir de três temas que
parecem centrais no argumento de Jones e que reaparecem em diversas biografias posteriores:
a relação de Freud com Breuer, a autoanálise de Freud e seu chamado splendid isolation.

Será interessante manter em mente que os diversos autores se deparam com esse
problema de indicar o momento exato em que a psicanálise nasce e suas respostas, quando
pretendem apontar essa espécie de marco zero de forma muito rígida, produzem uma narrativa
que pende mais para um relato idealizado do processo. Essa é uma de nossas hipóteses: diversos
autores distorcem retroativamente o material, na tentativa de apresentar um relato mais linear,
e essas distorções atendem a algumas motivações e produzem alguns efeitos, que tentaremos
acompanhar ao longo de toda a tese.

1.1 – As narrativas sobre o fundador da Psicanálise

Um primeiro ponto que pretendemos investigar se refere à disputa narrativa a respeito


de quem teria de fato fundado a psicanálise. Para um leitor contemporâneo, essa questão talvez
pareça irrelevante, mas o próprio Freud oscilou em suas posições com relação a isso; ora
incluindo Breuer, ora se apropriando completamente dessa criação. Por esse motivo, talvez não
nos surpreendamos com o fato de que outros autores que pretenderam narrar esse momento
inicial também adotem ora uma dessas narrativas, ora outra.

No ano de 1896, exatamente no texto em que Freud utiliza pela primeira vez a palavra
psicanálise, “A hereditariedade e a etiologia das neuroses” (1896a/1996), o nome de Breuer já
é mencionado3: “Devo meus resultados a um novo método de psicanálise, o procedimento
exploratório de Josef Breuer [...]”. (Freud, 1896a/1996, p. 150).

O primeiro relato que pretende estabelecer algum tipo de história da psicanálise,


narrando sua criação e desenvolvimento, é publicado em 1904, no livro de Loewenfeld, “Die
psychischen Zwangserscheinungen4”. Esse autor havia solicitado a Freud que contribuísse com

3
Esse relato é precedido por uma referência breve, no verbete “Histeria”, da enciclopédia de Villaret, em que
Freud, ao discutir o tratamento da histeria, afirma: “O efeito até se torna maior se adotarmos um método posto em
prática, pela primeira vez, por Joseph [sic] Breuer, em Viena, e fizermos o paciente, sob hipnose, remontar à pré-
história psíquica da doença, compelindo-o a reconhecer a ocasião psíquica em que se originou o referido distúrbio”.
(Freud, 1888/1996, p.93).
4
“Os fenômenos psíquicos de compulsão”.
20
uma descrição das modificações sofridas por sua técnica desde a publicação de “Estudos sobre
a histeria” (1895).

O resultado disso é “O método psicanalítico de Freud” (1904/1996), um texto breve,


mas que contém uma tentativa de fornecer um resumo objetivo desses primeiros anos. Ele
também tem a particularidade de fazer referências a Freud na terceira pessoa, embora tenha sido
escrito por ele mesmo. O autor indica que “o singular método psicoterápico que Freud pratica
e designa de psicanálise é proveniente do chamado procedimento catártico [...]”. (Freud,
1904/1996, p.236). Logo em seguida, afirma que

a terapia catártica foi uma descoberta de Breuer, que, cerca de dez anos antes, curara
com sua ajuda uma paciente histérica e obtivera, nesse processo, uma compreensão
da patogênese de seus sintomas. Graças a uma sugestão pessoal de Breuer, Freud
retomou o procedimento e o pôs à prova num número maior de enfermos. (Freud,
1904/1996, p.236).

O texto prossegue demonstrando como o método catártico proporcionava a ab-reação


dos afetos estrangulados através do uso da hipnose ao revelar a participação de diversas
impressões traumáticas na gênese do sintoma. Contudo, “as alterações que Freud introduziu no
método catártico de Breuer foram, a princípio, mudanças de técnica: estas, porém, levaram a
novos resultados e, em seguida, exigiram uma concepção diferente do trabalho terapêutico,
embora não contraditória à anterior”. (Freud, 1904/1996, p.236).

O autor passa então a uma descrição da técnica atual, uma vez que “o método catártico
já havia renunciado à sugestão, e Freud deu o passo seguinte, abandonando também a hipnose”.
(Freud, 1904/1996, p.237). O texto detalha o método de associação livre e fornece uma visão
geral do recalcamento e das resistências encontradas ao longo de um tratamento. Ele termina
expondo as limitações e vantagens desse procedimento.

Em 1909, Freud parte em viagem aos Estados Unidos para proferir cinco conferências
(publicadas em 1910) na Clark University, em comemoração do vigésimo ano de sua fundação.
Foram também convidados Jung, Ferenczi, Jones e Brill. Embora não seja a primeira ocasião
em que ele relata como a psicanálise foi criada, talvez seja útil acompanhar a versão que ele
fornece nesse texto para posteriormente compará-la às presentes em textos mais tardios.

Freud (1910/2006) começa afirmando que já que o convite para apresentar as


conferências se devia ao fato de seu nome estar “ligado ao tema da psicanálise”, ele tentará
apresentar, “o mais sinteticamente possível, uma visão de conjunto da história inicial e do

21
ulterior desenvolvimento desse novo processo semiológico e terapêutico”. (Freud, 1910/2006,
p.27).

Iniciando esse relato, declara:

Se algum mérito existe em ter dado vida à psicanálise, a mim não cabe, pois não
participei de suas origens. Era ainda estudante e ocupava-me com os meus últimos
exames, quando outro médico de Viena, o Dr. Joseph [sic] Breuer, empregou pela
primeira vez esse método no tratamento de uma jovem histérica (1880-1882). (Freud,
1910/2006, p.27).

Ele prossegue relatando de que modo Breuer tratou os diversos sintomas de Anna O.5,
e apresentando uma visão geral de suas teorias. Contudo, não se furta a fazer observações que
demonstram sua discordância de Breuer. Afirma, por exemplo, que a teoria dos estados
hipnoides “tornou-se aliás embaraçante e supérflua, e foi abandonada pela psicanálise
moderna”. (Freud, 1910/2006, p.36). Conclui que “a pesquisa de Breuer só lhes pode dar uma
teoria muito incompleta e uma explicação insuficiente dos fenômenos observados [...]”. (Freud,
1910/2006, p.36).

No ano seguinte a essas conferências, em 1910, no II Congresso de Psicanálise em


Nuremberg, Ferenczi apresentou uma análise da situação do movimento até então, com o título
“Sobre a história do movimento psicanalítico”. Na abertura dessa apresentação, afirma:

A psicanálise é uma ciência ainda jovem, sem dúvida, mas já suficientemente rica de
experiências para justificar uma pausa a fim de examinar os resultados, avaliar os
êxitos e insucessos do método, tal como vem sendo aplicado até o presente momento,
e deles extrair conclusões. (Ferenczi, 1910/2011, p.167).

Nesse texto, que é uma proclamação para que se funde uma associação de psicanálise
de alcance internacional, Ferenczi estabelece uma divisão da história do movimento em dois
períodos. “A primeira época, a época heroína, por assim dizer, da psicanálise é representada
por esses dez anos em que Freud sustentou sozinho o combate travado contra ele por todos os
meios e de todas as partes” (Ferenczi, 1910/2011, p.168). O autor prossegue, apontando que
“os amigos de outrora, e mesmo um antigo colaborador, abandonaram-no [...]”. (Ferenczi,
1910/2011, p.168).

Ele faz um elogio a Freud, que teria sofrido diversos ataques ao longo desses anos, mas
havia resistido bravamente. “A segunda época da psicanálise é marcada pelo aparecimento de
Carl Jung [...]”. (Ferenczi, 1910/2011, p.169). A partir daí, Ferenczi descreve como o

5
O desfecho desse célebre caso será alvo de muitas controvérsias ao longo das décadas seguintes. Trataremos
disso com maior detalhe no capítulo 2.
22
movimento cresceu e “novos pesquisadores afluíram na esteira de Jung ao território descoberto
por Freud [...]”. (Ferenczi, 1910/2011, p.169). Ele insiste, até o final de seu texto, na
necessidade de organizar os diversos grupos regionais sob a orientação de uma instituição
maior, e o resultado imediato disso foi a criação, nesse mesmo congresso, da Associação
Psicanalítica Internacional, presidida por Jung.

Percebemos aqui, embora ainda de forma muito discreta, uma mudança no tom e na
forma como é apresentada a criação e desenvolvimento inicial da psicanálise. Freud não é mais
colocado como herdeiro do método de Breuer, que aparece aqui apenas de modo muito indireto
como o colaborador que o teria abandonado. Surge também uma descrição do período inicial
que parece ecoar nos textos posteriores: Freud esteve não apenas isolado, trabalhando sozinho
em suas descobertas, mas foi duramente atacado pelo meio médico.

Freud, em 1914, produz a primeira “correção” na narrativa (difundida, como vimos,


através de suas conferências nos Estados Unidos) da criação da psicanálise. Já na abertura de
“A História do Movimento Psicanalítico” (1914/2006), afirma: “Não é de se estranhar o caráter
subjetivo desta contribuição que me proponho trazer à história do movimento psicanalítico,
nem deve causar surpresa o papel que nela desempenho, pois a psicanálise é criação minha”.
(Freud, 1914/2006, p.18).

Embora afirme que “não tem importância6 que a história da psicanálise seja considerada
como tendo início com o método catártico ou com a modificação que nele introduzi[u]” (Freud,
1914/2006, p.19), o texto objetiva exatamente a apropriação completa da psicanálise por Freud,
especialmente por ser escrito no rastro da cisão com Adler e Jung.

Anos mais tarde, em “Um estudo autobiográfico” (1925/1996), Freud volta a narrar
como chegou a criar a psicanálise. De acordo com ele, após voltar de Paris e iniciar sua vida
como clínico de neuroses, abandonou rapidamente a maioria dos métodos disponíveis à época
e passou a se valer apenas da hipnose. Entretanto, alega que fez “uso da hipnose de outra
maneira, independente da sugestão hipnótica”. Ele se servia dela “para fazer perguntas ao
paciente sobre a origem de seus sintomas”. (Freud, 1925/1996, p.26). Esse procedimento lhe
havia sido apresentado por Josef Breuer, que tratou um caso de histeria com sucesso a partir
dele.

6
Como vimos anteriormente (p.14), ele em seguida declara que prefere considerar o abandono da hipnose como
marco fundador da psicanálise.
23
Freud dá crédito a Breuer, não apenas pela criação do método catártico, mas por produzir
boa parte da teoria presente em “Estudos sobre a Histeria”. Ele descreve a transição desse
método para a psicanálise propriamente dita e indica que o evento que o levou a essa transição
foi o afastamento de Breuer7. A partir desse ponto, o texto envereda por uma discussão de cunho
teórico (sobre o desenvolvimento da noção de resistência, a descoberta da sexualidade infantil,
etc.) que, apesar de interessante, não fornece elementos para nosso debate.

Se nos basearmos unicamente no relato de Freud, não é possível chegar a qualquer ideia
clara de como se deu sua colaboração com Breuer, visto que ele produz versões contraditórias
ao longo dos anos. Inicialmente muito interessado em se mostrar vinculado a seu antigo mestre,
nos anos posteriores demarca insistentemente suas discordâncias e toma posse do posto de
fundador da Psicanálise. Essa versão é quase imediatamente corroborada por alguns de seus
discípulos do período, como Ferenczi, mas não parece ser uma unanimidade entre os autores
que tratariam do tema nas décadas seguintes.

De toda forma, a narrativa hegemônica era a veiculada por Freud, propagada até mesmo
por aqueles que haviam rompido com ele. É esse o caso de Fritz Wittels, primeiro biógrafo de
Freud. Em dezembro de 1923 ele envia a biografia que acabara de escrever a Freud, que
responde com correções e comentários, incluídos na tradução para o inglês publicada no ano
seguinte, com o título “Sigmund Freud – his personality, his teaching and his school”.
Wittels havia conhecido Freud em 1905, tendo frequentado suas conferências na
Universidade e também se tornado membro da Sociedade Psicanalítica de Viena. Sua
participação se estendeu até 1910, quando se afastou de Freud. Posteriormente veio a se
reconciliar com Freud, já na segunda metade da década de 1920. Seu livro se baseia muito mais
no relato do que presenciou, ou que ouviu de testemunhas, do que efetivamente numa pesquisa
em documentos e textos. Por essa razão, ele é constantemente levado a preencher lacunas com
suas interpretações dos fatos. Isso, sem dúvida, nos obriga a ler com cautela seu livro. (Wittels,
1924).
Boa parte de sua narrativa sobre a criação e desenvolvimento da psicanálise concorda
com a de Freud, mas com relação à colaboração de Breuer ele apresenta uma versão ainda mais
radical que a freudiana. Wittels (1924) não apenas sustenta que Freud era o mais genial dos
dois, e que foi o maior responsável pelo desenvolvimento da psicanálise, mas chega a afirmar

7
Freud faz questão de detalhar não apenas as divergências teóricas que já se faziam presentes, mas também narrar
sua versão do final do tratamento de Anna O. e a fuga de Breuer diante da descoberta da etiologia sexual do caso.
Isso será objeto de nossa atenção no segundo capítulo.
24
que as pesquisas de Freud eram “prejudicadas, e não ajudadas, pela colaboração de Breuer”.
(Wittels, 1924, p.41). Ele afirma isso pensando particularmente que as teorias de Breuer
pareciam excluir certos aspectos que viriam a ser essenciais na psicanálise e que o apego a esses
princípios talvez tivesse atrasado Freud em seu percurso.

Outro discípulo de Freud resolve, anos mais tarde, se valer de suas observações para
fazer um relato de teor semelhante ao de Wittels. Hanns Sachs, em “Freud – master and friend”
(1944), elenca as principais influências que seu mentor teria sofrido e aponta sem qualquer
ambiguidade “Breuer, cujas observações se tornaram o ponto de partida da psicanálise” (Sachs,
1944, p.38).

Sachs também procura entender como Freud desenvolveu sua teoria, e parece localizar
como ponto central o que chama de concepção dualista de Freud:

Depois que o ponto de vista dualista-dinâmico foi introduzido e aplicado, em face de


todas as dificuldades, a teoria dos ‘estados hipnoides’ se tornou insignificante. O
ponto de virada foi alcançado e a via aberta em direção a descoberta do inconsciente
e o começo de uma nova psicologia. (Sachs, 1944, p.135).
Entretanto, há aqueles como Wilhelm Stekel, que em 1925 publica “On the history of
the analytical movement”. Seu texto é um documento interessante por conter várias opiniões
frontalmente opostas às de Freud sobre o desenvolvimento inicial da psicanálise, embora ele
opte também por um relato baseado no que testemunhou e que parece, ainda na ocasião da
escrita do artigo, altamente afetado por conflitos com seu antigo mestre e analista. De toda
forma, interessa-nos o fato de Stekel se referir a Breuer como “o descobridor da psicanálise, a
quem Freud deve toda sua carreira e fama” (Stekel, 1925/2005, p.123), deixando evidente sua
posição contrária ao que se havia estabelecido a partir das revisões freudianas e recuperando
um tom semelhante ao adotado pelo próprio Freud inicialmente.

1.2 – A autoanálise

Freud parece atribuir à autoanálise, que realizou ao longo da década de 1890, uma
importância bem menor do que a que lhe conferimos atualmente. Como veremos a seguir, ele
se refere a ela, nos textos publicados, apenas lateralmente. Mesmo nas cartas a Fliess, em que
a profundidade desse processo fica mais evidente, a autoanálise geralmente aparece conjugada
a dificuldades em sua clínica e tentativas de construir uma teoria sobre a formação dos sintomas
de seus pacientes. Talvez seja o caso, como tentaremos observar adiante, de uma crescente
25
relevância dada ao tema por outros autores, após a morte de Freud. Voltaremos a isso em outra
ocasião.

Freud comenta de forma fragmentada sobre o tema da autoanálise ao longo de sua obra.
Em “A história do movimento psicanalítico” (1914/2006), relata ter se dado conta “da
necessidade de levar a efeito uma auto-análise”, que realizou com uma série de seus próprios
sonhos. Ele conclui que “essa espécie de análise talvez seja o suficiente para uma pessoa que
sonhe com frequência e não seja muito anormal” (Freud, 1914/2006, p.30).

Anos mais tarde, refere-se às limitações de uma autoanálise em “As sutilezas de um ato
falho”, afirmando:

Na auto-análise, porém, o perigo de fazer coisas incompletas é muito grande. Pode-


se, com muita facilidade, ficar satisfeito com uma explicação parcial, atrás da qual a
resistência facilmente pode estar ocultando algo que talvez seja mais importante.
(Freud, 1935/1996, pp.231-2).
Mas a fonte mais direta para conseguirmos construir alguma imagem do que pode ter
sido a autoanálise é a correspondência de Freud com Fliess. Ali encontramos diversas
referências a diferentes momentos desse processo e vemos Freud enfrentando as dificuldades
que um procedimento desse tipo impõe a ele.

Na carta de 18 de agosto de 1897, comenta que “O principal paciente com que estou
preocupado sou eu mesmo” (Masson, 1985, p.261). E completa: “A análise é mais difícil que
qualquer outra. [...] Ainda assim, acredito que deve ser realizada e é um estágio intermediário
necessário em meu trabalho” (Masson, 1985, p.261).

Em 3 de outubro de 1897, retoma o tema, afirmando que “Nos últimos quatro dias minha
autoanálise, que eu considero indispensável para a clarificação de todo o problema, continuou
em sonhos [...]”. (Masson, 1985, p,268). Ele relata então uma série de recordações de infância
que foi capaz de recuperar através da análise de sonhos. Não muito depois, em 15 de outubro8,
relata: “Minha autoanálise é de fato a coisa mais essencial que tenho a apresentar e promete se
tornar de grande valor para mim se ela chegar ao final”. (Masson, 1985, p.270). Entretanto,
Freud narra suas dificuldades e sensação de não conseguir avançar. Em 27 de outubro,
novamente tomado pelo movimento oscilante da análise, em que experimenta dias de total
estagnação, seguidos por dias em que tudo se esclarece de modo surpreendente, Freud percebe
que tudo que já havia se acostumado a ver em seus pacientes, agora nota em si mesmo. Nas

8
Nessa carta, Freud faz referências ao mito de Édipo e a Hamlet, o que levou alguns autores (por exemplo Kris) a
supor que foi nesse ponto que ele pela primeira vez entrou em contato com o complexo de Édipo.
26
cartas de 5 e 14 de novembro, se queixa de que a análise não avança, e de que não consegue
compreender o rumo que ela toma:

Minha autoanálise permanece interrompida. Percebi porque eu consigo me analisar


apenas com a ajuda de conhecimento obtido objetivamente (como alguém de fora). A
verdadeira autoanálise é impossível; caso contrário não haveria doença [neurótica]. Já
que ainda estou lutando com algum tipo de enigma em meus pacientes, isso está
fadado a me atrasar em minha autoanálise. (Masson, 1985, p.281).
Freud continua enviando a Fliess comentários e trechos de sonhos, que ele considera
como sendo “parte da [...] autoanálise, que ainda está tateando, completamente no escuro”.
(Masson, 1985, p.291), até que em 9 de fevereiro de 1898, declara: “Minha autoanálise está em
repouso em favor do livro dos sonhos”. (Masson, 1985, p.299). Há ainda outras referências ao
tema espalhadas pela correspondência, mas com o gradual afastamento entre Freud e Fliess,
cada vez menos é revelado e os comentários são cada vez mais breves. O próprio Freud, no
prefácio da segunda edição de “A interpretação dos sonhos”, ao comentar a importância que o
livro tem para ele, afirma: “Ele foi, como verifiquei, parte de minha própria auto-análise, minha
reação à morte de meu pai [...]”. (Freud, 1900/1996, p.32).

Essa afirmação é um dos pontos em que Kris (1954) assenta sua visão de que as
descobertas centrais da época foram efeito da autoanálise. Ele atribui à autoanálise a descoberta
do complexo de Édipo, a percepção da importância das zonas erógenas, o significado dos atos
falhos, e a ideia de que através da interpretação dos sonhos é possível chegar à solução de
sintomas neuróticos. De acordo com Kris (1954, p.34), “dois problemas distintos [interpretação
de sonhos e questões da clínica de neuroses] fundiram-se em um único campo de investigação
científica, e a psicanálise, como teoria e terapia, nasceu”. Mesmo antes disso, Sachs (1944) já
apontava que Freud “tinha tornado sua própria mente em seu principal laboratório, sua
incansável autoanálise se tornou a base de todas suas descobertas analíticas”. (p.7).

Sendo assim, parece-nos que tanto Sachs quanto Kris são os primeiros autores a apontar
a autoanálise como processo fundador da própria psicanálise, concedendo a ela um lugar de
destaque que seria posteriormente aceito e reproduzido largamente por outros autores. Teremos
oportunidade de investigar as repercussões desse arranjo nos trabalhos posteriores no capítulo
2. Por ora, passaremos à discussão da recepção das teorias freudianas pelo meio científico e seu
isolamento da comunidade médica e acadêmica.

27
1.3 – O isolamento de Freud

Freud recorre com alguma frequência à descrição do período inicial de sua obra como
sendo uma época de isolamento, em que era ignorado ou até mesmo atacado pelo meio
científico. Ao mesmo tempo, declarava que tal afastamento produzia alguns bons efeitos, e
julgava ter saído desse período fortalecido. Para que possamos posteriormente comparar essa
narrativa freudiana à de outros autores, será preciso estabelecer suas linhas gerais. Boa parte
desses comentários fornecidos por Freud se encontra em “A história do movimento
psicanalítico” (1914/2006) e “Um estudo autobiográfico” (1925/1996).

Sobre a reação a suas obras, declara que elas “não constavam das resenhas críticas das
revistas médicas, ou, quando excepcionalmente constavam, era para serem rechaçadas com
expressões desdenhosas ou de superioridade compassiva”. (Freud, 1914/2006, p.32). Mesmo
assim, Freud é capaz de afirmar: “Quando lanço um olhar retrospectivo àqueles anos solitários,
longe das pressões e confusões de hoje, parece-me uma gloriosa época de heroísmo. Meu
‘splendid isolation’ não deixou de ter suas vantagens e encantos”. (Freud, 1914/2006, pp.31-
2).

Em “Um estudo autobiográfico” (1925/1996), Freud narra brevemente sua vida até o
momento em que decide cursar Medicina, e a partir desse ponto passa a apresentar mais
detalhes. Comenta sua passagem pelo laboratório de fisiologia de Brücke, seu contato com
Meynert e sua viagem à Paris, onde estudou com Charcot. A partir de sua volta a Viena, em
1886, se estabelece como especialista em doenças nervosas e apresenta um relatório de seus
estudos na França à Sociedade de Medicina em Viena. De acordo com Freud, seu relato foi mal
recebido e seus resultados, mesmo sendo reconhecidos, não foram alvo de elogios. Como efeito
disso, afastou-se da vida acadêmica9.

Há apenas outro ponto do argumento de Freud que gostaríamos de destacar. De acordo


com ele, “por mais de dez anos após meu afastamento de Breuer, não tive seguidores”. E
completa: “Fiquei completamente isolado”. (Freud, 1925/1996, p.52). Em sua visão, o
desenvolvimento da psicanálise poderia ser descrito da seguinte forma: “Se se deixar de lado o
período catártico preliminar, a história da psicanálise enquadra-se [...] em duas fases. Na

9
O quão fria foi a recepção é algo a ser debatido. Até mesmo Jones (1953/1989) coloca dúvidas sobre esse ponto.
Quanto a interrupção de sua participação na vida acadêmica, parece ser um exagero de Freud, que proferiu
conferências na Universidade de Viena até 1917. Isso será debatido adiante (p.24-27) e também no capítulo
seguinte (p.53 e segs.).
28
primeira dessas fiquei sozinho e tive de fazer eu mesmo todo trabalho: isso ocorreu de 1895-6
até 1906 ou 1907”. (Freud, 1925/1996, p.58). A segunda fase teria início nesse ano e se
estenderia até o momento em que o texto foi escrito, em 1925. Nela, Freud já conta com
colaboradores e afirma até mesmo considerar, a partir de seu estado de saúde, encerrar sua
participação no movimento.

Também nas cartas que Freud envia a Fliess o tema do isolamento é recorrente. Por
exemplo, em 13 de maio de 1895, Freud afirma: “I reported many of my neurotic findings in
the psychiatric association and privately, and finally became annoyed at the small measure of
understanding; I am withdrawing again”. (Masson, 1985, p.120). Fica insinuado aqui que ele já
havia se isolado, tentou novamente se aproximar do meio psiquiátrico, mas após uma
experiência ruim, se retirava novamente ao isolamento.

Um fato curioso são as referências que Freud faz a um isolamento voluntário,


supostamente atendendo a um conselho de Fliess, como podemos notar na carta de 16 de abril
de 1896: “In accordance with your request, I have started to isolate myself in every respect
[...]”. (Masson, 1985, p.181). Isso reaparece na carta de 26 de abril do mesmo ano: “Of all the
advice you gave me, I followed the one concerning my isolation most completely”. (Masson,
1985, p.183).

Entretanto, logo em seguida, na carta do dia 4 de maio de 1896: “I am as isolated as you


wished me to be. Word was given out to abandon me, for a void is forming all around me”.
(Masson, 1985, p.185). Aqui Freud parece enxergar o isolamento, que afirmou estar buscando
voluntariamente a pedido de Fliess, como algo imposto a ele e é essa a posição que prevalece
nas cartas posteriores em que ele menciona o assunto10.

Freud chega até mesmo a usar a mesma expressão que utilizaria nos trabalhos
posteriores para se referir ao período, na carta de 7 de maio de 1900: “I would have no objection
to the fact of splendid isolation if it were not carried too far and did not come between you and
me as well”. (Masson, 1985, p.412).

O tratamento dado ao tema por Hanns Sachs não se distancia muito do relato freudiano.
Tendo conhecido Freud apenas em 1904, quando passou a frequentar suas conferências na
Universidade de Viena, Sachs fornece pouca informação sobre a criação da psicanálise.
Entretanto, por ter participado da Sociedade Psicanalítica de Viena por um longo período

10
Ver, por exemplo as cartas de 4 de dezembro de 1896, 23 de outubro de 1898 e 3 de março de 1901.
29
(filiou-se em 1909), pode fornecer sua versão das diversas dissidências, desde a saída de Adler
em 1911 até a ruptura de Rank por volta de 1926.

Com relação ao tratamento dado às teorias de Freud pelo meio acadêmico, ele parece
seguir bem de perto a versão fornecida pelo próprio Freud. “Eu também sabia que ele e sua
ciência eram rejeitados pelos círculos acadêmicos oficiais, mas que ele havia recebido o título
de professor extraordinarius em reconhecimento por seu trabalho pregresso em neurologia”.
(Sachs, 1944, p.41). Em outro momento, afirma: “Conflitos eram uma parte intrínseca de sua
vida, já que seu trabalho desafiava tabus de longa data e abalava a fundação das crenças mais
sagradas”. (Sachs, 1944, p.112). Entretanto, insistia que isso não afetava Freud, pois ele
“permanecia no interior de um círculo mágico, em que nenhum dos espíritos hostis podiam
entrar”. (Sachs, 1944, p.112).

Deutsch (1940) também apresenta o isolamento em termos similares. A autora, ao


discutir como Freud se viu obrigado a abandonar essa posição, afirma que, mesmo depois de
ter ao redor de si um grupo de seguidores, “this did not settle the matter of Freud’s solitariness;
it only changed it, as it were, into a spatially enlarged, socialized solitariness [...]”. (Deutsch,
1940, p.188). Além disso, ela destaca que aquele que se aproximava de Freud “knew that he
was going into exile, that he would have to renounce his career and the usual gratification of
professional ambition”. (Deutsch, 1940, p.189).

O interessante nesse relato de Sachs e Deutsch é a percepção de quem decidia se tornar


discípulo de Freud sabia que sofreria algum tipo de represália do meio
científico/profissional/acadêmico, mas mesmo assim optavam por esse caminho. Desse modo,
quem decidia se tornar psicanalista precisava voluntariamente se isolar, ou, dependendo de
como se coloca a questão, tolerar o isolamento que lhe seria imposto. Assim, ao optar por sofrer
essas consequências, era possível, talvez, produzir uma identificação com o seu mestre, bem
como com os colegas, todos compartilhando essa “solidão socializada”.

30
1.4 – A história da biografia escrita por Jones

1.4.1 – Como Jones se torna o biógrafo de Freud

Após a leitura deste vasto material, algumas palavras são necessárias para trazer alguma
ordem ao caos de narrativas tão diversas. Notamos que foi Freud quem inaugurou uma tradição
historiográfica em psicanálise, mas que seus esforços foram, de alguma maneira, afetados por
seus objetivos políticos do momento. Em alguns pontos ele apresenta uma versão visivelmente
distorcida por fatores que ainda não analisamos, enquanto em outros parece se manter mais
próximo do que se esperaria de um relato dito objetivo.

A primeira onda de produções histórico-biográficas, escritas num período em que Freud


ainda era vivo, teve como resultado textos que pareciam quase sempre tratar mais do próprio
autor do que do suposto objeto de sua pesquisa. Assim é o trabalho de Stekel, e, em menor
escala, o de Wittels. Notamos que eles se valem em grande medida de suas próprias observações
dos eventos que relatam, e, na falta disso, se fiam na versão freudiana ou constroem
interpretações com o material que possuem, cheios de lacunas. O efeito disso é que a versão
freudiana ganhava destaque e arrastava as outras para a obscuridade.

Com a morte de Freud, em 1939, o cenário começa a se modificar. Surgem artigos que
examinam pontos específicos da vida de Freud, e muitos deles têm um tom crítico. Durante a
década de 1940, a situação parece se agravar e culmina na publicação, em 1947, dos livros de
Puner (1947/1959) e Ludwig (1948). Talvez uma das características mais marcantes de tais
livros seja o fato de terem sido escritos por pessoas completamente externas ao movimento
psicanalítico. Até então, todos os relatos vinham de ex-discípulos, ex-pacientes ou psicanalistas
distantes de Freud, mas ainda do interior do movimento.

Não há muitos trabalhos que exploram como e porque Jones veio a se tornar o biógrafo
oficial. O livro de Borch-Jacobsen e Shamdasani (2014) apresenta um relato relativamente
detalhado desse período, que será debatido a seguir. Os autores, embora tenham acesso a muito
material inédito, extraem muitas vezes conclusões com as quais não concordamos. Recorremos

31
a seu livro unicamente pelos trechos de correspondência entre autoras e autores importantes
para nossa compreensão da decisão sobre quem seria escolhido como biógrafo de Freud11.

Nesse período, estava sendo preparada para a publicação, também, a coletânea de cartas
a Fliess12 acompanhada de comentários de Ernst Kris, que continha material potencialmente
polêmico. Tanto Kris como Anna Freud estavam preocupados com os efeitos de um livro de
cartas tão reveladoras num público já contaminado pelos relatos escandalosos publicados nos
Estados Unidos. A única forma de combater tais obras, era publicando uma biografia oficial.
Como Kris relata a Anna Freud em 7 de dezembro de 1947: “Espero que as duas ‘biografias’
[...] tenham tanto saciado o interesse mesquinho quanto satisfeito a hostilidade [...]. E então
Bernfeld terá tempo de escrever uma biografia correta”. (Borch-Jacobsen & Shamdasani, 2014,
p.257). Hartmann é mais um que se junta ao coro, em carta a Anna Freud, em 17 de março de
1947: “Existirão biografias de Freud. A questão é se dentre elas haverá uma obra que seja
aceitável”. (Borch-Jacobsen & Shamdasani, 2014, p.259).

Mas antes de Jones ser escolhido como o biógrafo oficial, Siegfried Bernfeld13 era o
nome preferido de Anna Freud. Ele já havia publicado alguns artigos de caráter biográfico sobre
a infância de Freud, seus primeiros anos como médico, etc. Ele havia, inclusive, esboçado um
trabalho maior, em 14 capítulos, que cobria a vida de Freud até aproximadamente 1900. Ernst
Kris também era cotado para auxiliar no projeto.

Em 1946, Jones é abordado por uma editora de Nova Iorque, questionando seu interesse
em escrever a biografia de Freud. Ele prontamente comunica o fato a Anna Freud, que propõe
que ele colabore com Bernfeld. Além de não confiar totalmente em Jones, ela também
acreditava que ele não fosse sobreviver pelo tempo necessário para a execução do projeto.

Quando Anna Freud relata a Bernfeld o plano de Jones de escrever a biografia, sugere
a ele que colabore. Bernfeld responde, dizendo: “estou preocupado com a contribuição de
Jones”. (Borch-Jacobsen & Shamdasani, 2014, p.261). De acordo com ele, em 1937, Jones teria

11
Tivemos acesso direto a parte das cartas que os autores usam, mas infelizmente não foi possível verificar todo
o material devido ao custo financeiro envolvido nessa tarefa. Analisamos e checamos as citações que os autores
fazem da correspondência entre Jones e Bernfeld e entre Jones e Anna Freud.
12
Esse livro veio a ser publicado com o título “Origins of Psychoanalysis” e contava com cartas selecionadas e
editadas. As cartas completas só apareceram décadas depois.
13
Siegfried Bernfeld publicou ao longo da década de 1940 e início da década de 1950 um grande número de
artigos: “Freud’s earliest theories and the School of Helmholtz” (1944), “An unknown autobiographical fragment
by Freud” (1946), “Freud’s scientific beginnings” (1949), “Sigmund Freud, M.D. – 1882-1885” (1951) e “Freud’s
studies on cocaine” (1953). Suzanne Cassirer Bernfeld, sua esposa e colaboradora, também chegou a publicar
artigos biográficos, como “Freud and archeology” (1951). A produção dos autores é muito rica e consegue, na
maior parte do tempo, evitar as distorções e idealizações que, como veremos, eram presentes na grande parte dos
trabalhos do tipo.
32
feito comentários chocantes e hostis sobre a vida de Freud e que ele era “privado da espécie de
simpatia e reverência por Freud que é condição para um historiador objetivo”. (Borch-Jacobsen
& Shamdasani, 2014, p.261).

Em resposta a isso, Anna alega que está ciente da atitude de Jones, que atribui a
sentimentos de ciúme, mas crê que isso tenha se modificado desde a morte de Freud. Em dúvida
sobre a saúde de Jones, afirma que deveriam ao menos deixá-lo reunir material, que poderia ser
útil para um trabalho posterior.

Alguns meses depois, Anna resolveu comunicar a Leon Shimkin (diretor da Shimkin &
Schuster) que não mais concordava com o plano de confiar a biografia a Jones. Shimkin propôs,
então, que ela e Bernfeld assumissem a empreitada. Anna indica Bernfeld e Kris como autores,
com Jones ainda colaborando como provedor de informações. Curiosamente, nos meses
seguintes, o editor finalmente oferece a Jones um contrato para escrever o primeiro volume.

Apenas cerca de dois anos e meio depois, em 23 de março de 1950, Jones envia uma
carta a Bernfeld, que esperava ser a primeira de “uma longa e frutífera correspondência”. De
fato, entre 1950 e 1952, eles trocaram uma quantidade considerável de cartas 14, discutindo
vários pontos da vida de Freud. Bernfeld fornecia esclarecimentos, cópias de seus trabalhos
(alguns ainda inéditos na época) e alimentou Jones com informações sobre diversos tópicos.

Ao final de 1950, o primeiro capítulo já estava concluído e Jones o enviou a James


Strachey. Com isso, angariou o auxílio de Strachey, que na época estava organizando a Edição
Standard e poderia fornecer diversos esclarecimentos e correções. Em maio de 1951, enviou o
material também a Anna e Bernfeld. Ele continuou enviando manuscritos com versões dos
capítulos ao longo desse ano e também do ano seguinte.

Anna Freud ficou entusiasmada logo de início. Afirma constantemente em suas cartas
ter lido com grande interesse e que tem esperado ansiosamente por mais material. Quando, em
setembro de 1952, Jones a informa do plano de dedicar a biografia a ela, Anna responde
completamente tomada por satisfação. Se até esse momento ela já cooperava com Jones,
fornecendo informações, correções e acesso a alguns documentos, desse ponto em diante o
apoio era quase incondicional.

14
A correspondência entre Jones e Bernfeld é composta por 63 cartas (se incluirmos também as cartas trocadas
após a morte de Siegfried, escritas por sua esposa), a maioria de Bernfeld. Há cartas de Jones que parecem ter se
perdido. As cartas, bem como os textos de Bernfeld sobre Freud já foram traduzidos por mim e estão sendo
revisados para eventual publicação. Incluímos as duas primeiras cartas que os autores trocaram como anexo, ao
final da tese.
33
Paralelamente, Bernfeld continuava pesquisando sobre a vida de Freud. Em alguns
momentos, tocou em questões que eram sensíveis aos familiares de Freud. Um destes pontos
foi o trabalho de Freud com a cocaína.

Bernfeld estava escrevendo um artigo sobre esse tema e, sabendo que poderia encontrar
mais informações em cartas trocadas entre Freud e Martha, pergunta a Jones (que tinha acesso
ao material) se não poderia lhe fornecer indicações mais precisas. Como resposta, Jones afirma
que de fato as cartas continham informações e poderia tentar interceder junto a Anna para que
ela permitisse que Bernfeld lesse o material.

Jones faz isso e Anna concede que ele envie a Bernfeld fragmentos das referidas cartas
que tivessem relação com o tema da cocaína. Pouco depois, em setembro de 1952, Anna leu o
manuscrito do artigo de Bernfeld (que só viria a ser publicado no ano seguinte) e não pareceu
nada satisfeita. Em carta a Jones, afirma: “Não gostei nem um pouco, excetuando os fatos que
são muito interessantes. Mas as interpretações [...] são frouxas, equivocadas e às vezes ridículas.
Por favor, não permita que ele o publique dessa forma”. Ela ainda vai mais além, dizendo: “[...]
deveria ser seu papel silenciar os outros biógrafos”. (Borch-Jacobsen & Shamdasani, 2014,
p.267).

A estratégia de Jones foi tentar deixar claro a Anna que se afastava da posição de
Bernfeld, e que tentaria ser mais objetivo em seu capítulo sobre a cocaína. Mesmo assim, seu
texto se assemelhava ao de Bernfeld e repetia boa parte dos argumentos dele. Tanto que Jones
se diz surpreso por Anna ter aprovado o capítulo, na mesma carta em que comunica a Bernfeld
o desejo dela de que ele não publicasse seu artigo.

Em resposta, Bernfeld escreve a Jones, em 31 de dezembro de 1952: “Não consigo


entender porquê Anna Freud se opõe tão fortemente a meu artigo sobre a cocaína. E o que me
confunde ainda mais é que ela aceita o seu, que, de fato, vai um passo além do meu. Não tente
mais me influenciar a não publicá-lo”. (Borch-Jacobsen & Shamdasani, 2014, p.269).

Esta é a última carta trocada entre eles. Bernfeld morre em abril de 1953, ano em que é
publicado o primeiro volume da biografia de Freud escrita por Jones. Daí em diante, Jones
manteve o apoio da família Freud em suas pesquisas e continuou submetendo seus escritos à
leitura e crítica de Anna.

34
1.4.2 – O fundador da psicanálise de acordo com Jones

Já vimos que os diversos autores parecem divergir em suas avaliações referentes à


extensão da participação de Breuer na criação da psicanálise. Wittels afirma que “Breuer [...]
teria permanecido praticamente desconhecido, não fosse o fato de Freud alardear
persistentemente seu nome, aclamando-o como o verdadeiro fundador da psicanálise”. (Wittels,
1924, p.40). Stekel, por outro lado, chama Breuer de “descobridor da psicanálise”. (Stekel,
1925/2005, p.123). O próprio Freud oscila entre as duas posições. Conforme destacamos
anteriormente, inicialmente ele atribui a Breuer a criação da psicanálise, mas retifica essa
afirmação anos depois, colocando menos ênfase na participação dele nesse processo.

O relato de Jones carrega a marca dessa posição ambígua de Freud. Em sua visão:

Não tem sido fácil estimar a importância de Breuer para Freud e seu trabalho. Freud
certamente superestimou-a no último aspecto, mas não, provavelmente, no anterior.
Quando algumas vezes se referiu a Breuer como o Fundador da Psicanálise, estava
por alguma razão transferindo, modestamente, esse título de si próprio para ele, já que
os fundamentos da psicanálise – tanto o método quanto as descobertas – pertencem
inteiramente a Freud e foram estabelecidos numa época em que os dois já se tinham
separado definitivamente. (Jones, 1953/1989, p.229-30; Jones, 1953, p.221-2).
Jones completa, afirmando que “a perspectiva que será adotada aqui é a de que Breuer
teve considerável importância para Freud em termos pessoais [...], mas a de que suas
contribuições intelectuais foram de menor importância”. (Jones, 1953/1989, p.230; Jones, 1953,
p.222).

Entretanto, em outro momento se refere a Breuer como “o homem que o conduziu ao


longo do caminho para a psicanálise”. (Jones, 1953/1989, p.18; Jones 1953, p.4). Ele aponta,
também, que a ruptura de Freud com Breuer não poderia ser entendida baseada apenas em
diferenças científicas. Analisando a correspondência entre Freud e Fliess, afirma: “As razões
que apresentou para sua irritação com Breuer não são muito convincentes e as expressões que
usou são tão fortes que fazem concluir que sua reação tinha algo de neurótico [...]”. (Jones,
1953/1989, p.311; Jones, 1953, p.308).

No entanto, a imagem que Jones pinta de Breuer é a de um homem que “em seu trabalho
era reservado, cauteloso, avesso a qualquer generalização, realista e acima de tudo vacilante em
sua ambivalência”. (Jones, 1953/1989, p.301; Jones, 1953, p.297). Outra de suas características
seria “a fraqueza de personalidade que lhe tornava difícil assumir uma posição definida em
qualquer questão” e “uma espécie de censura trapaceira que o levava a inutilizar qualquer

35
apreciação ou elogio com a busca de um pequeno ponto sujeito à crítica”. (Jones, 1953/1989,
p.260; Jones, 1953, p.254).

Completando esse quadro, Jones, ao recontar o tratamento de Anna O., não apenas
endossa a versão fornecida por Freud em 1925, mas vai além. Ele não se envergonha de fazer
interpretações e reconstruções, e fornece muito pouco de material documental para comprová-
las. Para ele,

Parece que Breuer desenvolvera o que hoje se chamaria de uma forte


contratransferência em relação a sua interessante paciente. De qualquer modo, ele
estava tão absorvido que sua mulher passou a se entediar por não ouvi-lo falar a não
ser desse assunto [...]. Foi preciso algum tempo para que Breuer [...] percebesse o
significado do estado de espírito de sua mulher. Isso provocou uma violenta reação
por parte dele [...], de modo que decidiu encerrar o tratamento”. (Jones, 1953/1989,
p.232; Jones, 1953, p.224).
Jones prossegue, afirmando que Breuer comunicou essa intenção à paciente, que já se
encontrava bem melhor. Ele foi surpreendido na mesma noite com um chamado para atendê-
la, e, ao chegar, se deparou com a paciente sofrendo com dores de um parto histérico, que era
“culminação lógica de uma gravidez fantasmática que vinha se desenvolvendo invisivelmente
em resposta ao trabalho de Breuer”. (Jones, 1953/1989, p.232; Jones, 1953, p.224). Breuer a
hipnotizou, acalmando-a e foi embora bastante agitado. No dia seguinte, teria partido em
viagem com a esposa, resultando na concepção de uma filha.

Jones indica como fonte uma carta de Freud a Martha do período, que “contém
basicamente a mesma história”. (Jones, 1953/1989, p.232; Jones, 1953, p.224). A referida carta,
datada de 31 de outubro de 1883, parece confirmar parte das afirmações de Jones. Freud relata
a Martha que Breuer tinha a paciente em alta conta e “abandonou seu cuidado porque seu
matrimônio feliz ameaçou partir-se em pedaços”. Ele prossegue:

A pobre esposa não podia tolerar que ele se dedicasse tão exclusivamente a uma
mulher, de quem falava evidentemente com muito interesse, e certamente sentiu
ciúmes do uso de seu marido por uma estranha. Não manifestou isso de modo feio e
torturante, mas de forma quieta e resignada. Ela adoeceu, perdeu seu humor, até que
isso chamou a atenção dele e ele descobriu o motivo, o que o obrigou a abandonar
completamente seu trabalho como médico de B.P.15. (Freud, 1883, p.3).
Dessa forma, embora a carta autorize Jones a supor que Breuer encerrou o tratamento
porque acreditou estar excessivamente envolvido com o caso e que isso estava prejudicando a
relação com sua esposa, não há nenhuma informação sobre a gravidez histérica e nem sobre a

15
Die arme Frau konnte es nicht vertragen, dass er sich einem Weibe, von dem er offenbar mit viel Interesse
sprach, so ausschliesslich widme und war gewiss auf nichts anderes als auf die Inanspruchnahme ihres Mannes
durch eine Fremde eifersüchtig. Nicht in der hässlichen quälerischen, sondern in der still ergebenen Weise. Sie
erkrankte, verlor ihre Stimmung, bis es ihm auffiel und er den Grund erfuhr, was natürlich Gebot für ihn war, sich
ganz von seiner ärztlichen Thätigkeit bei B. P. zurückzuziehen.
36
viagem que resultou na concepção da filha. Não encontramos também nenhuma palavra sobre
a fuga assustada de Breuer na noite em que o tratamento foi terminado16.

Fica claro, portanto, que Jones se coloca totalmente favorável a Freud com relação à
participação de Breuer na criação da psicanálise. Inicialmente ele elogia a ajuda que Breuer
fornecia a Freud (colocando ênfase nos empréstimos de dinheiro), mas desmerece suas
contribuições teóricas17. Em seguida reconstrói o caso de Anna O. de modo a solidificar a
versão freudiana de que Breuer recuou diante das manifestações sexuais da paciente e não
compreendeu o caráter universal da transferência. Mas ele vai além de Freud e narra o término
do tratamento de modo dramático, causando ainda mais prejuízo à imagem de Breuer que vinha
construindo ao longo da obra. Freud aparece então como aquele que teve coragem de enfrentar
os fenômenos da transferência, em oposição ao “assustado Breuer”. (Jones, 1953/1989, p.249;
Jones, 1953, p.242). No capítulo 2 teremos oportunidade de analisar os documentos levantados
após 1953 que ajudam a revisar a versão fornecida por Jones para o término do tratamento e
destino subsequente da paciente.

1.4.3 – A autoanálise na visão de Jones

O problema da autoanálise é também extremamente complexo. Provavelmente foi Kris


(1954) quem vinculou de forma direta a autoanálise com a própria fundação da psicanálise, em
sua introdução às cartas de Freud a Fliess, publicada originalmente em 1950 (em alemão). Ali,
ele destaca o papel das descobertas de Freud em sua autoanálise para o abandono da teoria da
sedução, bem como a primeira aproximação do complexo de Édipo18.

Jones não se afasta muito dessa forma de enxergar a questão, embora seu relato dê a
todo esse processo um tom muito mais elevado do que se poderia depreender da leitura das

16
Discutiremos esse ponto em detalhes no capítulo 2, onde tentaremos compreender como Jones poderia ter
chegado a essa versão.
17
Em uma entrevista que concedeu a Richard Evans, em 1957, Jones torna a participação de Breuer ainda menos
significativa: “A minha opinião é que Freud foi um daqueles casos raríssimos que surgem da maneira mais
inesperada. Nada havia em Viena que pudesse favorecê-lo, absolutamente nada. Houve, dez anos antes, um
pequeno episódio, quando Freud travou conhecimento com Herr Breuer e sua obra, mas creio que Freud já o
esquecera, em grande parte, e que não tirara disso grande proveito”. (Evans, 1964, p.157).
18
Com relação ao complexo de Édipo, há boas razões para duvidar dessa afirmação de Kris. Ver, por exemplo, a
excelente e detalhada pesquisa de Van Haute e Geyskens (2016).
37
cartas a Fliess. Tanto que ele chega a afirmar, de um modo no mínimo exagerado, que “o ano
de 1897 constitui o ápice da vida de Freud”. (Jones, 1953/1989, p.271).

Aparentemente o que motiva uma afirmação desse teor é o abandono da teoria da


sedução, que Freud comunica a Fliess na já notória carta de 21 de setembro de 1897, que na
opinião de Jones, “talvez seja a mais importante dessa valiosa série [...]”. (Jones, 1953/1989,
p.269). Ele avança nessa linha de raciocínio e conclui que “renunciar a essa convicção deve ter
sido uma grande dor e é muito possível que o fator desencadeante tenha sido sua própria auto-
análise, que iniciara em junho desse ano decisivo”. (Jones, 1953/1989, p.269).

Essa questão, referente a quando seria possível considerar a autoanálise como tendo
início, é algo que parece confundir Jones, que fornece diferentes datas para isso. Na passagem
acima, por exemplo, ele aponta o mês de julho de 1897 como sendo o começo da autoanálise.
Noutros momentos indica a data de julho de 1895 como sendo o início do processo, já que teria
sido nessa ocasião que Freud teria pela primeira vez analisado um sonho completamente. Jones
sustenta, portanto, que o processo teve início em 1895, mas se tornou uma análise frequente e
sistemática apenas em julho de 1897.

Ele vincula a autoanálise à amizade de Freud com Fliess e parece considerar que esse
vínculo fazia parte da neurose. “É certamente digno de nota que tanto seu sofrimento quanto
sua dependência tenham alcançado seu auge entre 1897 e 1900, exatamente quando seu
persistente empenho para explorar suas próprias profundezas por meio da auto-análise estava
mais ativo”. (Jones, 1953/1989, p.310).

Assim, narra o início da autoanálise da seguinte maneira:

No verão de 1897, o encanto começou a quebrar-se e Freud empreendeu seu feito mais
heroico – uma psicanálise de seu próprio inconsciente. [...] Freud não teve auxílio,
ninguém que o ajudasse um mínimo que fosse no empreendimento. Pior ainda: a única
coisa que o impulsionava para a frente, ele deve ter percebido vagamente (por mais
que tentasse ocultar isso de si próprio), só poderia resultar em profundas influências
em suas relações – talvez até mesmo rompendo-as – com a única pessoa a quem ele
estava muito ligado e que havia estabilizado seu equilíbrio mental. Era muita ousadia
e muito risco. Que indômita coragem, tanto intelectual como moral, deve ter sido
necessária! (Jones, 1953/1989, p. 322).
Percorrendo a correspondência com Fliess, Jones nota que o processo não foi nada
tranquilo, e que esse “trabalho hercúleo” só se deu com algum sacrifício. (Jones, 1953/1989,
pp.322-3). Nesse sentido, esclarece que “a própria decisão de empreender a tarefa foi muito
pouco uma decisão de vontade consciente ou de motivação deliberada. Não houve súbito
lampejo de gênio, mas crescente intuição de sua necessidade”. (Jones, 1953/1989, p.323).

38
Jones acompanha Kris ao afirmar que “duas partes importantes das pesquisas de Freud
estão intimamente ligadas com sua auto-análise: a interpretação dos sonhos e sua crescente
consideração da sexualidade infantil”. (Jones, 1953/1989, p.323). Assim,

Foi a observação e investigação de seus próprios sonhos, material mais prontamente


acessível para propósitos de estudo e o mais usado em seu livro, que deram a ele a
ideia, em termos conscientes, de prosseguir com sua auto-análise até seu final lógico.
[...] Ele mais tarde sustentou que uma pessoa honesta, razoavelmente normal e que
sonhasse, poderia fazer muita coisa em termos de auto-análise, mas nem todo mundo
é um Freud. (Jones, 1953/1989, pp.323-4).
Lembrando a passagem em que Freud conecta sua autoanálise à escrita de “A
interpretação dos sonhos”, ao afirmar que a produção desse livro foi uma reação à morte de seu
pai, Jones propõe que se considere as duas como fazendo parte de um conjunto. Dessa forma,
“a partir desse momento, consequentemente, ele estava destinado, mais cedo ou mais tarde, a
transformar o interesse científico pelos mecanismos de seus sonhos em uma auto-análise ampla
e regular”. (Jones, 1953/1989, p.327).

Se até aqui Jones, embora deixe entrever em seu relato a admiração por seu mestre,
ainda parece relativamente isento, ao tentar descrever o final desse processo passa a apresentar
contradições mais evidentes, numa tentativa de manter intacta a imagem que ele parece ter de
Freud. Não causará surpresa, então, lermos que

naturalmente, a análise de Freud, como todas as outras, não produziu resultados


mágicos de imediato. [...] A neurose em si, e a correspondente dependência de Fliess,
parece ter sido mais intensa, ou mais manifesta, por um ou dois anos seguintes, mas a
determinação de Freud em superar isso nunca fraquejou e por fim saiu vitoriosa.
(Jones, 1953/1989, p.329).
Assim, “o fim de todo esse trabalho e sofrimento foi a última e derradeira fase na
evolução da personalidade de Freud. Aí então emergiu o sereno e compassivo Freud, livre, daí
para a frente, para prosseguir seu trabalho com imperturbável serenidade”. (Jones, 1953/1989,
p.323).

Entretanto, de forma absolutamente contraditória, Jones encerra o capítulo reforçando


que esse trabalho de análise não terminou efetivamente:

Tendo em vista que poucas psicanálises – se não nenhuma – se completam já que a


perfeição absoluta é negada aos mortais -, seria pouco sensato esperar que a auto-
análise de Freud, privada da assistência de um analista objetivo e sem a incalculável
ajuda fornecida pelo estudo das manifestações da transferência, também fosse
concluída. [...] Freud me disse que jamais parou de analisar-se, dedicando a última
meia hora do dia a esse propósito. (Jones, 1953/1989, p.330).
Dessa forma, embora a versão que Jones forneça da autoanálise de Freud não seja
completamente desconectada dos documentos, sua leitura das fontes tende a aparar as arestas e
contradições inerentes ao processo experimentado por Freud e que ele relata nas cartas a Fliess.
39
Também é possível notar que ele apresenta um retrato altamente idealizado dos resultados desse
trabalho, ao mesmo tempo em que tenta justificar as limitações no alcance desse tratamento
feito sem o auxílio de um analista. Nesse sentido, ele parece se valer dos argumentos de Kris,
que também tinha a autoanálise em alta conta. Porém, ao tomar como base o argumento de Kris,
ele se vê em dificuldades para manter suas próprias conclusões sobre o alcance e efeitos desse
procedimento, já que para seu colaborador, a autoanálise “foi estendida indefinidamente e agia
como um controle constante” em trabalhos posteriores de Freud. (Kris, 1954, p.33).

1.4.4 – O isolamento de Freud visto por Jones

Conforme já indicamos anteriormente, a ideia de que Freud esteve completamente


sozinho após seu retorno de Paris e que após uma recepção desfavorável teria se isolado
completamente, deixando de participar de encontros em sociedades médicas e se afastando
também da vida acadêmica, foi reproduzida por diversos autores. Ferenczi, por exemplo, chega
a definir esse período como a primeira fase do movimento psicanalítico, em que “Freud
sustentou sozinho o combate”. (Ferenczi, 1910/2011, p.168), enfrentando bravamente os
ataques que eram dirigidos a ele de toda parte.

O próprio Freud insiste nessa versão, especialmente em “A história do movimento


psicanalítico” (1914/2006) e “Um estudo autobiográfico” (1925/1996). Em ambos os textos,
seu relato é de que ao retornar de Paris, tinha a obrigação de apresentar um relatório sobre suas
pesquisas à Sociedade de Médicos, o que fez prontamente. Freud afirma: “tive, porém, má
recepção. Pessoas de autoridade, como o presidente (Bamberger, o médico), declararam que o
que eu disse era inacreditável”. (Freud, 1925/1996). Meynert o desafiou e encontrar em Viena
casos como os que havia descrito e apresenta-los à Sociedade, o que ele efetivamente fez algum
tempo depois. Entretanto, prossegue Freud:

Dessa vez fui aplaudido, mas não adquiriram mais interesse por mim. [...] Como logo
fui excluído do laboratório de anatomia cerebral e como durante intermináveis
trimestres não tive onde pronunciar minhas conferências, afastei-me da vida
acadêmica e deixei de frequentar as sociedades eruditas. Faz uma geração inteira
desde que visitei a Gesellschaft der Ärzte. (Freud, 1925/1996, p.23).
Na medida em que avançava com suas pesquisas, parecia encontrar ainda mais
dificuldades. Quando passou a considerar mais seriamente a etiologia das neuroses como sendo
sexual, e em seguida, a discutir a sexualidade infantil, a situação parece ter se tornado ainda
mais séria. Nas palavras de Freud:
40
Considerava minhas descobertas contribuições normais à ciência e esperava que
fossem recebidas com esse mesmo espírito. Mas o silêncio que se formou em torno
de mim, as insinuações que me foram dirigidas, pouco a pouco me fizeram
compreender que as afirmações sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses
não podem contar com o mesmo tipo de tratamento dado ao comum das
comunicações. (Freud, 1914/2006, p.31).
Com relação a isso, Jones contesta o relato de Freud, demonstrando como as afirmações
dele mereciam ser vistas com mais cuidado. À primeira vista, a versão freudiana dos fatos dava
a impressão de uma recepção extremamente dura e de ataques quase despropositados.
Recontando passo a passo o que Freud havia narrado em suas obras, Jones afirma: “Em 15 de
outubro de 1886, leu seu artigo intitulado ‘Sobre a histeria masculina’, estando von Bamberger
na presidência. Essa foi a famosa ocasião a que Freud se referiu como sendo sua ‘incumbência
de relatar à Sociedade’ e que lhe causou tanto aborrecimento”. (Jones, 1953/1989, p.237). Ao
contrário do que se possa imaginar, o artigo de Freud era apenas um dos vários a serem lidos
na reunião. A maior parte dos comentários destacava o fato de a histeria masculina já ser
conhecida, com exceção do comentário de Meynert, que desafiou Freud a demonstrar a
sintomatologia que ele havia postulado a partir de Charcot. Jones prossegue:

Ao escrever mais tarde sobre essa reunião, que parece tê-lo afetado profundamente,
Freud referiu-se a sua ‘má recepção’ e com frequência falou de o quanto ela o
magoara. (Poder-se-ia depreender de suas observações que ele deixou de frequentar
encontros médicos desde então, mas na verdade ainda estava longe disso). (Jones,
1953/1989, pp.237-8).
Freud em seguida encontrou um paciente histérico para apresentar diante da Sociedade.
“Dessa vez houve alguns aplausos, mas havia tantas comunicações nessa noite que não houve
tempo para qualquer discussão. Ainda assim, a Wiener Medizinische Wochenschrift referiu-se
a ‘esse artigo muito interessante’”. (Jones, 1953/1989, p. 238).

Jones ainda demonstra que as afirmações de Freud sobre o período não são totalmente
confiáveis. De acordo com ele, “ao se referir a esse incidente, quase quarenta anos depois, Freud
ainda demonstrava alguma amargura”. (Jones, 1953/1989, p. 239). Freud havia afirmado, em
seu texto de 1925, que após essa recepção fria, havia deixado de frequentar sociedades médicas
e também se afastado da vida acadêmica. Jones, entretanto, levanta dúvidas sobre essas
afirmações:

Temos registros de seu comparecimento à Gesellschaft der Ärzte em 13 de maio de


1887, 21 de outubro de 1887 e 3 de fevereiro de 1888, podendo ter havido ainda vários
outros comparecimentos. [...] Em outras sociedades médicas ele falou ou leu artigos
até cerca de 1904, e suas conferências universitárias prosseguiram, com poucas
interrupções, até 1917. (Jones, 1953/1989, p.239).

41
Por fim, ele também põe em questão a alegação de Freud de que foi expulso do
laboratório de Meynert imediatamente após seu retorno de Paris e de sua impossibilidade de
encontrar um local para suas conferências. Quanto ao primeiro ponto, Jones comenta:

Freud resumiu a história quando escreveu na Autobiografia que Meynert o excluiu de


seu laboratório quando de sua volta de Paris. Isso só podia ter ocorrido seis meses
mais tarde, depois da volta da lua-de-mel. Na verdade, Meynert recebeu-o
efusivamente quando do retorno de Paris e o convidou, bem como a quaisquer alunos
que pudesse ter, para trabalhar em seu laboratório. (Jones, 1953/1989, p.241).
A respeito da afirmação de Freud de que “durante intermináveis trimestres” (Freud,
1925/1996, p.23) não teve onde proferir suas conferências, Jones também é enfático ao apontar
que

[...] isso se aplicava às demonstrações clínicas, sendo que essa dificuldade não pode
ser corretamente atribuída a Meynert [...]. Freud pronunciou conferências no outono
do ano em questão, embora apenas sobre anatomia – e as conferências tiveram boa
frequência. (Jones, 1953/1989, p.241).
Jones até mesmo esboça uma interpretação sobre o motivo de Freud ter relatado as
coisas dessa forma: “Uma reação assim tão imediata e forte revelava grande expectativa de
sucesso e elogio, uma visão muito otimista de seus antigos professores, e talvez uma excessiva
suscetibilidade a qualquer crítica ou ausência de reação favorável”. (Jones, 1953/1989, p. 239).

Fica claro, portanto, que com relação ao splendid isolation, Jones não tem dúvidas de
que há um exagero por parte de Freud, exagero que ele supõe ter bases psicológicas, inclusive.
Dada essa diferença tão gritante entre os registros e documentos da época e a impressão pessoal
de Freud sobre seu isolamento, ficamos inclinados a supor que talvez ele tivesse, mesmo que
não intencionalmente, fornecido um relato um bocado distorcido dos fatos. Curiosamente, é
possível ler, numa carta que enviou a Fliess em 21 de maio de 1894: “há algo de curioso na
incongruência entre o apreço que se dá ao próprio trabalho intelectual e o valor que os outros
lhe atribuem”. (Masson, 1985, p.74).

Se até o momento Jones era retratado por nós como o principal responsável por
solidificar uma imagem idealizada de Freud e da fundação da psicanálise, somos levados a
flexibilizar também essa narrativa. De fato, com relação aos três pontos que elencamos como
sendo centrais para a discussão do problema, ele toma partido de Freud e apresenta-nos um
Breuer coadjuvante nesse processo, além de declarar que a autoanálise foi o procedimento que
tornou Freud consciente das limitações de suas teorias da época e forneceu-lhe as condições
psicológicas para toda sua produção posterior. Porém, a respeito do tema da recepção recebida
por Freud, ele se vê forçado a apontar a incompatibilidade entre a narrativa freudiana e a que
era possível reconstruir a partir dos documentos. Essa aparente contradição; por um lado
42
acusamos Jones de falsear e idealizar a fundação da psicanálise, e por outro elogiamos sua
versão que coloca em dúvida a de Freud, será melhor trabalhada após uma passagem pelas
produções que surgiram após a biografia publicada por Jones.

Somente após compreendermos os efeitos que sua obra tem sobre os trabalhos escritos
ao longo das décadas seguintes seremos capazes de retornar a Jones e tentar extrair daí algumas
conclusões. É exatamente esse o percurso que realizaremos no capítulo seguinte. Antes, porém,
faremos um breve desvio e observaremos como a biografia de Jones foi recebida imediatamente
após seu lançamento.

1.5 – A recepção da biografia

Assim que foi publicado nos Estados Unidos, o primeiro volume de “A vida e a obra de
Sigmund Freud” apareceu na lista de best-sellers do New York Times, em décimo segundo lugar.
“As resenhas entusiásticas instantaneamente estabeleceram Jones como o principal historiador
do movimento psicanalítico”. (Maddox, 2006, p.268).

O New York Times publicou uma resenha em 11 de outubro de 1953, de autoria de


Lionel Trilling, que afirmava que o “Dr. Jones é seu biógrafo ideal, não apenas por causa de
seus quarenta anos de associação a Freud [...], mas também por causa da excelência de seu
estilo de exposição e o escopo de seu conhecimento científico e humanístico”. E prossegue,
declarando que “a biografia pode, portanto, ser chamada de ‘oficial’, mas certamente não no
sentido de que é constrangida de lidar livremente com seu sujeito”. No último parágrafo,
Trilling indica que uma biografia deveria fazer mais do que satisfazer nossa curiosidade, deveria
também aprimorar o conhecimento da “ciência de Freud”. E conclui: “Psicanálise é melhor
compreendida não como um sistema completamente formulado, mas como uma ideia em
desenvolvimento na mente de seu descobridor. É difícil imaginar uma história melhor do
desenvolvimento da ideia de Freud ou da mente que a concebeu do que a que Jones nos
forneceu”. (Trilling, 1953).

Em um tom bastante parecido, a resenha da revista Time, de 19 de outubro de 1953,


insiste que “o britânico Dr. Ernest Jones é o homem certo para o trabalho. [...] O presente
volume é apenas o primeiro de três planejados, mas é o suficiente para sugerir que o trabalho
completo será uma obra-prima da biografia contemporânea”. (Time, 1953, p.122). Apenas em

43
um momento, coloca em questão o quão objetivo Jones efetivamente é na escrita da obra, mas
afirma que o “forte partidarismo não embota de modo algum o brilhantismo da biografia de
Jones”. (Time, 1953, p.130).

No Reino Unido, foi elogiado no Manchester Guardian, The Spectator e The Observer.
Apenas algumas poucas resenhas continham comentários desfavoráveis. The Economist, por
exemplo criticava o estilo de escrita de Jones. (Maddox, 2006).

Nos periódicos psicanalíticos, a recepção foi semelhante. Greenson (1954) afirma que
o volume é “um feito notável” e que “só poderia ter sido escrito por Ernest Jones e apenas com
o apoio da família Freud”. (Greenson, 1954, p.359). O autor considera que o livro traz
contribuições tanto para o campo da psicanálise quanto para o das biografias. Para ele, embora
fique claro que Jones escreve o livro a partir de sua grande admiração por Freud, “nunca se
deixa tomar por adoração cega”. (Greenson, 1954, p.359). Em sua resenha no Psychoanalytic
Review, Zinkin, mesmo fazendo algumas críticas ao estilo de escrita de Jones ou a alguma
parcialidade em sua narrativa, declara que o livro é excepcional e que “de muitas formas, é uma
‘biografia oficial’, no melhor sentido da palavra”. (Zinkin, 1954, p.400). De modo muito
similar, Rubins, em sua resenha para The American Journal of Psychoanalysis, considera o
livro como a biografia definitiva. O autor tece elogios sobre a profundidade da pesquisa de
Jones e, embora pareça achar que a apresentação da personalidade de Freud não seja tão
completa quanto poderia, afirma que o volume provavelmente “será colocado entre os clássicos
de nosso tempo”. (Rubins, 1955, p.86).

O segundo volume foi publicado em 1955 e o terceiro em 1957. Apesar de os três


volumes terem sido amplamente elogiados, também foram alvo de alguns protestos e polêmicas.
Em especial pelo fato de Jones retratar alguns dos discípulos dissidentes como psicóticos e
tentar usar esse diagnóstico para justificar o afastamento deles de Freud. Mesmo assim, seu
trabalho monumental se consolidou como a obra de referência e mesmo nas biografias
contemporâneas podemos sentir seus efeitos. Trilling escreveu novamente resenhas para o NY
Times a respeito do segundo e terceiro volumes. Quanto ao segundo, afirma: “Talvez a melhor
maneira de elogiar o segundo volume da biografia de Freud de Ernest Jones é dizendo que é tão
bom quanto o primeiro”. (Trilling, 1955, p.1). Em relação ao terceiro volume, declara: “É um
trabalho que não reduz a completude de detalhes e vivacidade robusta dos dois volumes
precedentes”. (Trilling, 1957, p.1).

44
Uma das poucas vozes dissidentes era Bruno Bettelheim. Ele publicou duas resenhas,
uma em 1957, no American Journal of Sociology, e outra em 1958, na revista The New Leader19.
Para Bettelheim, “a biografia, embora volumosa, apresenta muitas falhas”. (Bettelheim, 1991,
p.38). E completa: “Embora essa não deva ser considerada a biografia definitiva de Freud, é
sem dúvida uma biografia oficial, apresentando aquela imagem de Freud que os membros do
círculo interno da psicanálise gostariam que fosse aceita como definitiva”. (Bettelheim, 1991,
p.39). Ele faz duras críticas às distorções de Jones, que, em sua opinião, produzem um retrato
de Freud pouco fiel. Ele se pergunta: “Que esplêndida história de Freud, o homem, poderia ter
sido escrita se a psicanálise oficial não tivesse lacrado os arquivos de Freud, com mais de 2500
de suas cartas, durante cinquenta anos, a contar da data em que foram depositadas na Biblioteca
do Congresso”. (Bettelheim, 1991, p.41).

Por fim, o autor termina afirmando que

Seria errôneo concluir que não vale a pena conhecer essa biografia. Contém um grande
número de incidentes reveladores da história de Freud, e um grande número de
vislumbres de sua vida quotidiana que não se encontram em lugar algum. Mas o leitor
terá que se acautelar ao tirar suas próprias conclusões do que Jones conta, e rejeitar
suas inúmeras distorções. (Bettelheim, 1991, p.45).

Bettelheim denuncia, assim, as diversas distorções que Jones veicula, colocando ênfase
na disputa política pela memória de Freud. Sua preocupação de que o material inédito que havia
sido colocado na Biblioteca do Congresso pudesse servir para fornecer um relato mais fiel (e
também para contestar algumas das afirmações de Jones) será manifestada ainda por outros
autores ao longo de várias décadas, já que muito do que estava depositado nesse local só seria
liberado no final do século XX.
A recepção, portanto, foi majoritariamente favorável, e, apesar de algumas poucas
críticas, alçou a biografia de Freud escrita por Jones ao patamar de biografia oficial. Em certa
medida, mesmo após tantas outras serem publicadas após 1957, ela ainda mantém essa posição
central e é uma das principais referências quando se pretende estudar a vida de Freud. Resta-
nos agora avançar em direção a estas outras obras, atentando para as semelhanças e diferenças
no tratamento dado pelas autoras e autores ao momento de fundação da psicanálise.

19
As duas resenhas foram reunidas na forma de um ensaio publicado em “A Viena de Freud e outros ensaios”
(1991). Tivemos acesso às resenhas originais, mas o conteúdo é idêntico e, por praticidade, citamos a tradução
para o português publicada no referido livro.
45
Capítulo 2 – As narrativas sobre a criação da psicanálise posteriores a Jones

Até aqui investigamos a forma como diversos autores tentaram narrar a fundação da
psicanálise, culminando na versão fornecida por Jones em sua biografia de Freud em três
volumes. Realizamos esse percurso guiados por três temas: a discussão sobre quem seria o
“verdadeiro” fundador da psicanálise, o problema da autoanálise de Freud e seu isolamento da
comunidade médica e científica.

Nosso intuito agora é voltar nosso olhar para as obras escritas sobre o tema após a
publicação da biografia de Jones. Tentaremos acompanhar os esforços de outros autores para
corrigir, confirmar ou refutar certos pontos da narrativa de Jones sobre a fundação da
psicanálise.

2.1 – As narrativas sobre o fundador da psicanálise

No primeiro capítulo, observamos como Freud inicialmente atribui a Breuer a criação


da psicanálise e se coloca como herdeiro de seu método, mas não demora a retificar essa
afirmação e passa a se apresentar como o único criador. Notamos que isso é realizado no
contexto das cisões da década de 1910, e que essa segunda versão é levada adiante por Wittels
e Ferenczi, mas contestada por Stekel. Quando Jones decide fornecer um relato da relação entre
Breuer e Freud e de como isso afetou o surgimento da psicanálise, ele o faz de modo a favorecer
claramente Freud e atacar em várias frentes Breuer, com críticas a suas teorias, à condução do
caso de Anna O., e até mesmo qualificando-o com adjetivos pouco elogiosos.

Para avançarmos na discussão dessa questão, será necessário separar as críticas que são
feitas a Breuer em dois grupos: primeiro, aquelas que atacam suas teorias e sua importância
pessoal para Freud; segundo, os esforços de diversos autores para recontar o caso de Anna O.,
com intenção de diminuir a relevância de Breuer na fundação da psicanálise.

46
2.1.1 – Breuer e seu pensamento

Como já referimos, Freud, em seus textos iniciais, colocava mais ênfase na continuidade
entre o método de Breuer e o que ele veio a utilizar. Com o passar dos anos, passou a demonstrar
como a criação da psicanálise só foi possível após uma ruptura com o método catártico. Em
seus comentários, entretanto, essa não é a única diferença que ele aponta entre seu pensamento
e o de Breuer.

Uma fonte interessante para acessar a relação de Freud com Breuer é sua
correspondência com Fliess. Ao todo, entre 1887 e 1904, o nome de Breuer é mencionado 59
vezes por Freud, em circunstâncias diversas. A maior parte das referências é breve, e envolve
a escrita e publicação de “Estudos sobre a histeria”. Noutros momentos, Freud apenas narra
algum encontro com Breuer na casa de pacientes ou em eventos sociais, ou ainda, comenta
sobre os empréstimos de dinheiro que Breuer fazia a ele. No geral, inicialmente os comentários
de Freud são amistosos, mas gradualmente se instala uma animosidade e o tom passa a ser
negativo.

Não é incomum encontrar elogios de Freud a Breuer no início da década de 1880, e


mesmo em 1888, após a publicação da tradução de Freud das conferências de Charcot, Masson
(1985) relata que ele enviou uma cópia a Breuer com a seguinte dedicatória: “To my friend,
Josef Breuer, whom I esteem beyond all men, the secret master of hysteria and other
complicated problems, in quiet dedication from the translator”. (Masson, 1985, p.19n).

No início da década de 1890, porém, já se manifesta uma leve insatisfação, que vai desde
Freud queixando-se que Breuer comparece a uma mesma conferência que ele (p.34), a
afirmações de que “Breuer is an obstacle to my professional progress in Vienna” (p.56).
Curiosamente, Freud lamenta, na carta de 22 de junho de 1894, o fato de a colaboração científica
com Breuer ter sido interrompida20. Não é possível apontar o momento preciso em que a ruptura
acontece, já que mesmo após essa data ambos publicam “Estudos sobre a histeria”. Entretanto,
é após o surgimento dessa publicação, que as diferenças se tornam explícitas.

Um episódio ilustra bem esse ponto. Na carta de 8 de novembro de 1895, Freud relata a
Fliess:

20
Parece ser nessa carta que Jones se baseia para afirmar que “a cooperação teve fim no verão de 1894” (Jones,
1953/1989, p.258).
47
Recentemente, no Colégio de Medicina, Breuer fez um grande discurso em
homenagem a mim e se apresentou como um adepto convertido da etiologia sexual.
Quando lhe agradeci por isso em particular, ele estragou meu prazer, dizendo: “Mas,
ainda assim, não acredito nela”. Você entende isso? Eu não. (Masson, 1985, p. 152).
Jones reproduz esse trecho, apontando esse acontecimento como um dos motivos para
o afastamento entre Breuer e Freud. Masson (1985), entretanto, recupera o relato dessa
conferência de Breuer, que foi publicado no Wiener medizinische Blätter, e há ligeira diferença
entre a versão fornecida por Freud e a do periódico. De acordo com a revista, Breuer inicia sua
fala dizendo que embora tenha acompanhado o surgimento das teorias de Freud, o recalcamento
foi ideia apenas de seu colega. Breuer afirma ter resistido às hipóteses de Freud, mas nesse
momento já havia se convertido e concordava com elas. Breuer também defende Freud,
apontando que suas hipóteses foram obtidas através de um longo trabalho e coleta de
observações de seus pacientes. Porém, o relato apresenta-nos a informação de que

Um dos pontos em que o orador não concorda com Freud é a valorização excessiva
da sexualidade; é provável que Freud não tenha pretendido dizer que todo sintoma
histérico tem um fundo sexual e sim que a raiz original da histeria é sexual. Ainda não
enxergamos com clareza: caberá ao futuro, aos grandes volumes de observações,
trazer um esclarecimento completo dessa questão; seja como for, devemos ser gratos
a Freud pelas sugestões teóricas que nos forneceu. (Masson, 1985, p.152n).
Comparando os dois relatos, as contradições se tornam evidentes. Na versão de Freud,
Breuer se apresentou publicamente favorável a suas hipóteses sobre a etiologia sexual das
neuroses, e apenas depois, em particular, declarou que na verdade não concordava com elas. A
versão publicada no periódico, porém, pinta um outro quadro: Breuer se diz convencido da
teoria do recalcamento, mas demonstra suas ressalvas com relação à etiologia sexual. Dessa
forma, vemos Breuer defendendo Freud mesmo sem concordar completamente com suas
hipóteses etiológicas.

Mesmo não sendo possível saber exatamente o que levaria Freud a relatar esse evento
dessa maneira, não seria surpreendente se sua indisposição com Breuer já estivesse afetando
sua percepção sobre as ações de seu colega. Poderíamos também levantar a conjectura de que
o relato publicado pudesse não ser fiel ao discurso de Breuer, o que poderia ser verificado
cruzando-o com outros periódicos médicos da mesma data que tivessem também fornecido um
relatório sobre essa reunião. Sulloway (1979, p.507-8) apresenta também o relato publicado no
Wiener medizinische Presse, que em linhas gerais concorda com o anterior. Breuer teria narrado
como as descobertas de Freud vem de uma extensa observação, debatido como a teoria
freudiana talvez supervalorize o elemento sexual, mas assegurado que as conclusões de Freud
eram valiosas, embora provavelmente provisórias.

48
Ainda sobre a etiologia da histeria, já em “Estudos sobre a histeria” (1895/1996), Freud
manifesta certa desconfiança com relação aos estados hipnoides. Embora indique que não
descarta a hipótese da histeria hipnoide, declara que nunca encontrou um caso do tipo. Mas
mesmo aqui, ele já evidencia a posição que adotará no futuro: “[...] é-me impossível reprimir a
suspeita de que em algum ponto as raízes da histeria hipnoide e da histeria de defesa se reúnem,
e que seu fator primário é a defesa”. (Breuer & Freud, 1895/1996, p.299). Freud já havia
percebido que sua teoria de que a divisão da consciência era resultado de uma defesa tornava a
hipótese de um estado hipnoide desnecessária; na verdade a contradizia. Gradualmente, ele
coloca ênfase nesse mecanismo e deixa de fazer referência a uma histeria hipnoide. Em
“Fragmento da análise de um caso de histeria” (1905/1996), já é capaz de afirmar que
abandonou a teoria dos estados hipnoides e, além disso, que essa hipótese “brotou da iniciativa
exclusiva de Breuer”. (Freud, 1905/1996, p.36n). Como já vimos21, em 1910 Freud chega a
caracterizar a teoria dos estados hipnoides como supérflua e já abandonada pela psicanálise.

Em “A história do movimento psicanalítico” (1914/1996), Freud insiste nesse fato,


acrescentando que a teoria de Breuer ainda mantinha uma explicação de base fisiológica, já que
os estados hipnoides funcionavam como causadores da histeria, mas eles próprios não eram
passíveis de explicação a não ser através da pressuposição de uma tendência herdada. Nesse
ponto, Freud (1914/1996) considera que a “teoria da ‘defesa’ passou a se opor à teoria
‘hipnoide’ de Breuer”. (p.22). Porém, logo em seguida, Freud afirma surpreendentemente:

Estou bem certo, contudo, de que esta oposição entre os nossos pontos de vista nada
teve que ver com o rompimento de nossas relações que se seguiu pouco depois. Este
teve causas mais profundas, mas ocorreu de forma tal que de início não o compreendi;
só depois é que, através de claras indicações, pude interpretá-lo. (Freud, 1914/1996,
p.22).
Freud se refere aqui ao caso de Anna O., que teria tido um desfecho bastante diferente
daquele relatado por Breuer em “Estudos sobre a histeria” (1895/1996). Discutiremos esse caso
na seção seguinte.

Mas além desse ponto de divergência bastante óbvio, costuma-se apontar que Breuer
não reconhecia a sexualidade como fator causador de sintomas histéricos. Com isso, ele
permaneceria num estágio de pensamento que alguns poderiam qualificar como pré-
psicanalítico, dada a importância da sexualidade para a teoria psicanalítica posterior. Aqui,
entretanto, será necessária alguma cautela e tentaremos reconstruir o contexto do período para
verificar dois pontos: a) se e em que medida Breuer considerava a sexualidade como causadora

21
Ver p.18.
49
de sintomas histéricos e b) se e em que medida Freud se valia da sexualidade para explicar os
sintomas histéricos nesse momento de seu pensamento. Não há dúvidas de que ela veio a
desempenhar papel fundamental na teoria psicanalítica posterior, mas talvez estejamos
projetando sobre nosso passado um raciocínio mais tardio.

Com relação ao primeiro ponto, temos acesso ao que os autores relataram em suas
publicações, mas também a material de correspondência que pode ajudar a lançar luz sobre a
questão. Comecemos pelo que Freud diz sobre o problema.

Tanto em “A história do movimento psicanalítico” (1914/1996), quanto em “Um estudo


autobiográfico” (1925/1996), ele declara que Breuer desconsiderava fatores sexuais como
causadores de sintomas histéricos. Isso se tornaria evidente também no caso de Anna O., onde
a sexualidade não parecia desempenhar nenhum papel. Mesmo em sua correspondência, essa
narrativa é repetida. Em carta a Abraham, em 3 de outubro de 1913, por exemplo, afirma

At the first lecture yesterday I realized the complete analogy between the first running
away from the discovery of sexuality behind the neuroses by Breuer and the latest one
by Jung22. That makes it the more certain that this is the core of . (Falzeder, 2002,
p.202).
Breuer aparece no relato de Freud, mesmo décadas após a ruptura entre os dois, como
aquele que entrou em contato com o material sexual e recuou assustado diante dele. Já
observamos como essa visão ecoa na biografia escrita por Jones. Tanto Jones quanto Freud vão
ancorar suas conclusões na discussão do desfecho do caso Anna O., que será debatido com mais
detalhes na seção seguinte.

Quanto à forma como Breuer pensava a questão, temos duas fontes principais: suas
afirmações sobre o tema em “Estudos sobre a histeria” (1895/1996) e uma carta que ele enviou
a Forel em 21 de novembro de 1907, recuperada, traduzida e publicada por Cranefield (1958).

Em “Estudos sobre a histeria” (1895/1996), na seção teórica de sua autoria, Breuer


afirma: “A pulsão sexual é sem dúvida a fonte mais poderosa de acúmulos sistemáticos de
excitação (e, por conseguinte, de neuroses)”. (Breuer & Freud, 1895/1996, p.221). Ele completa
dizendo que esses aumentos se distribuem de forma desigual pelo sistema nervoso. Isso
significa que para ele a sexualidade seria a principal causadora de neuroses, embora ele também
faça questão de indicar que não é, em sua opinião, a única. Um pouco adiante, discute com
algum grau de detalhe como, principalmente no caso das mulheres, são propriamente os afetos

22
De modo muito similar, na carta de 13 de abril de 1919, afirma: “I feel too that S., like Breuer at the time, can
personally not endure his own findings”. (Falzeder, 2002, p.395).
50
sexuais que são alvo das defesas e que, sendo rechaçados, abrem caminho para o aparecimento
dos sintomas. Ele ainda inclui a observação interessante de que nessas mulheres “a excitação
sensual tem uma mescla de angústia, de medo do que está por vir, do que é desconhecido e
apenas suspeitado [...]”. (Breuer & Freud, 1895/1996, p.263).

Ele avança nesse rumo e passa a discutir como o casamento é, por vezes, produtor de
neurose, e se surpreende com o fato de a noite de núpcias não produzir mais neuroses, posto
que “o que ela implica é, muitas vezes, não uma sedução erótica, mas uma violação”. (Breuer
& Freud, 1895/1996, p.264). Nesse momento, declara: “Não penso estar exagerando ao afirmar
que a grande maioria das neuroses graves nas mulheres tem sua origem no leito conjugal23”.
(Breuer & Freud, 1895/1996, p.264). Breuer ainda inclui uma nota de rodapé em que censura
os médicos da época: “É muito lamentável que a medicina clínica ignore um dos mais
importantes de todos os fatores patogênicos, ou pelo menos só aluda a eles discretamente”.
(Breuer & Freud, 1895/1996, p.264n). Mesmo após todas essas afirmações, ainda se dá ao
trabalho de apresentar novamente seu ponto de vista: “[...] Talvez valha a pena insistir
repetidamente em que o fator sexual é de longe o mais importante e o que mais produz
resultados patológicos”. (Breuer & Freud, 1895/1996, p.264).

Assim, diante de todas essas afirmações, não é fácil sustentar a visão de que Breuer
desprezava a sexualidade como causadora de neuroses e que ele evitava o tema. Sem dúvida, a
confusão se instala por ele ter dito, a respeito de Anna O., que o fator sexual não estava presente
em seu caso e que nunca ocorreu nenhuma alusão à sexualidade em seu relato. Mas parece-nos
injusto tomar essa afirmação como certa e ignorar todos os outros trechos em que ele apresenta
uma visão mais ampla. Temos, no mínimo, de procurar novas evidências que nos auxiliem a
compreender melhor essa aparente contradição.

A carta a Forel de 21 de novembro de 1907 nos ajuda a formar uma imagem mais
completa da situação. Escrita em resposta a um pedido de mais informações sobre sua
participação na fundação da psicanálise, ela apresenta vários pontos de interesse. Breuer abre a
carta pedindo desculpas pelo atraso na resposta, justificado pela necessidade que sentiu de reler
“Estudos sobre a histeria”. Em seguida, afirma que tudo que vai relatar é fruto da própria
memória, uma vez que não teve como conversar com Freud, com quem rompeu já há muitos

23
Comparar com a narrativa de Freud sobre como Breuer lhe comunica de passagem sobre o caso de uma paciente
neurótica: “Estas coisas são sempre ‘secrets d’alcôve’”. (Freud, 1914/1996, p.23-4). Nesse trecho, embora atribua
a fala a Breuer, considera que ele próprio não a levava suficientemente a sério e não extraía dela as devidas
consequências.
51
anos. Ele alerta que nem sempre é fácil saber de quem havia partido qual ideia, mas aponta
como sendo contribuições unicamente suas: o significado etiológico das ideias carregadas de
afeto e que não encontram descarga, a histeria de retenção, os estados hipnoides e a terapia
analítica. Como contribuições exclusivas de Freud, indica a noção de conversão, a teoria da
defesa e seus importantes desdobramentos.

Em seguida, Breuer afirma:

Together with Freud I was able to observe the prominent place assumed by sexuality,
and I can give an assurance that this arose from no inclination towards the subject but
from the findings – to a large extent most unexpected – of our medical experience.
(Cranefield, 1958, p.320).
Na opinião de Breuer, contudo, Freud se deixa levar por um ímpeto por formulações
que generalizam excessivamente os achados. Ele apresenta a ideia de que o caso de Anna O.
prova que uma histeria pode surgir, se desenvolver e ser resolvida sem que esteja baseada na
sexualidade. E completa: “I confess that the plunging into sexuality in theory and practice is
not to my taste. But what have my taste and my feeling about what is seemly and unseemly to
do with the question of what is true?” (Cranefield, 1958, p.320).

Vemos aqui, portanto, que Breuer reconhecia a importância da sexualidade como fator
etiológico, mas, ao mesmo tempo, não parecia disposto a continuar tratando pacientes que
pudessem obriga-lo a enveredar por esse caminho. Se descontarmos sua afirmação de que a
terapia analítica foi criação exclusiva sua como sendo seu modo de dizer que o método catártico
foi de sua autoria, a carta não parece contradizer os pontos que levantamos anteriormente pela
leitura de “Estudos sobre a histeria”.

A afirmação de Freud de que Breuer recuou diante do tema da sexualidade também


encontra algum respaldo aqui, mas no relato de Breuer a situação parece menos uma fuga e
mais uma decisão de que não pretendia se dedicar ao tratamento da histeria. Como a versão de
Freud se assenta em sua reconstrução do desfecho do caso Anna O., deixaremos nossa
conclusão em suspenso até que tenhamos discutido esse tema.

Resta-nos ainda verificar se no período anterior à publicação de “Estudos sobre a


histeria” Freud já apontava a sexualidade como fator etiológico principal. Se nos fiarmos no
relato de Freud, veremos que em “Cinco lições de psicanálise” (1910/1996) ele afirma
explicitamente que no momento da publicação de “Estudos sobre a histeria” ainda não era da
opinião de que os sintomas eram causados necessariamente por fatores sexuais24. Se isso for

24
Ver Freud, 1910/1996, p.52.
52
assim, sua acusação de que Breuer não o acompanhou na causação sexual da neurose não faria
sentido algum, já que ele próprio também não estaria convencido disso. Será necessário,
portanto, investigar mais a fundo o problema.

Hirschmüller (1989) considera que “during the period from 1888 to the end of 1893
Freud’s ideas regarding sexual etiology are still relatively unclear”. (p.171). Recorrendo à
correspondência com Fliess, o autor demonstra como nesse período Freud ligava certos fatores
sexuais (masturbação, coitus interruptus, coitus reservatus) especialmente aos quadros de
neurastenia e neurose de angústia. Apenas quando a teoria da defesa começa a ganhar mais
espaço, a sexualidade se apresenta como elemento etiológico mais geral. Dessa forma, mesmo
em “As neuropsicoses de defesa” (1894/1996), vemos Freud afirmar que “é fácil verificar que
é precisamente a vida sexual que traz em si as mais numerosas oportunidades para o surgimento
de representações incompatíveis”. (p.59). Essa declaração não se diferencia muito das que
Breuer faria no ano seguinte em “Estudos sobre a histeria”, de modo que parece-nos que eles
concordavam com relação a esse ponto.

Tanto Hirschmüller (1989) quanto Silva (2010) destacam que é apenas a partir do texto
“Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada
neurose de angústia” (1895) que Freud começa a apontar para o campo da sexualidade como
fator primordial e indispensável na produção de neuroses. Nesse artigo, veremos Freud se
ocupar dos destinos para a “excitação sexual somática” que, em condições normais se
converteria em libido ou desejo psíquico, mas, na neurose de angústia, encontra seu caminho
impedido e não alcança a esfera psíquica.

A sexualidade alcança o primeiro plano nas explicações freudianas das neuroses apenas
a partir do ano seguinte, 1896. Em textos como “Observações adicionais sobre as neuropsicoses
de defesa” (1896b/1996), “A hereditariedade e a etiologia das neuroses” (1896a/1996) e “A
etiologia da histeria” (1896c/1996) encontraremos Freud afirmando que “qualquer que seja o
caso e qualquer que seja o sintoma que tomemos como ponto de partida, no fim chegamos
invariavelmente ao campo da experiência sexual”. (p.196). Ele passará a defender a hipótese
de que as neuroses são fruto de uma defesa que atua sobre experiências de sedução na infância,
que tomam o lugar antes atribuído a uma predisposição hereditária. Nesse sentido, afirma: “O
evento do qual o sujeito reteve uma lembrança inconsciente é uma experiência precoce de
relações sexuais com excitação real dos órgãos genitais, resultante de abuso sexual cometido
por outra pessoa [...]”. (p.151).

53
Mesmo que nesses textos Freud ainda faça referência a Breuer e seu método, tomando
como base nossa discussão anterior é possível afirmar que a colaboração entre eles já estivesse
encerrada. Portanto, com relação às ideias apresentadas por Freud até 1895, nos vemos
inclinados a concordar com Hirschmüller (1989) ao afirmar que “no geral, Breuer aceitava a
importância da sexualidade na etiologia das neuroses sem objeção. Seus comentários sobre esse
assunto são coerentes e não inconsistentes”. (p.176). O que parece ter ocorrido aqui é que Freud
dá um passo adiante ao introduzir a teoria da sedução e torna a experiência real de abuso um
dos pilares de suas hipóteses sobre a formação dos sintomas. Com isso, Breuer não manifestou
concordância. Como o próprio Freud veio a abandonar essa teoria e adotou uma posição mais
crítica no que diz respeito aos relatos de seus pacientes, suas afirmações posteriores sobre o
afastamento de Breuer se tornam alvo de nossa desconfiança. Como veremos a seguir, sua
reconstrução do término do caso Anna O. também carrega o tom de crítica a Breuer e produzirá
o efeito de tomar de seu antigo colaborador o papel de descobridor da psicanálise, ao utilizar a
transferência como marca distintiva do pensamento psicanalítico.

2.1.2 – O caso Anna O.

Como já indicamos em pontos anteriores de nossa discussão, o caso Anna O. é utilizado


por Jones e Freud tanto como exemplo de tratamento que originou a psicanálise, como para
demarcar a separação entre o método catártico e o analítico. Acontece que o caso e seu desfecho
servem não apenas a esses propósitos, mas também funcionam como ponto de apoio para
ataques a Breuer. Acompanharemos aqui as versões fornecidas para o término do caso, bem
como as interpretações construídas a partir delas.

Freud (1910/1996) utilizou o caso de Anna O. como ilustração para o mecanismo de


formação de sintomas e também do método de tratamento que inicialmente utilizava. Em
ocasiões posteriores, ao relatar o caso, passa a colocar ênfase maior em seu desfecho. Por
exemplo, em “A história do movimento psicanalítico” (1914/1996), afirma que qualquer pessoa
que lesse o caso de Anna O. munido dos conhecimentos psicanalíticos adquiridos desde aquela
época seria capaz de enxergar nos sintomas e nas alucinações da paciente um simbolismo
sexual. Ele em seguida declara:

Tenho agora fortes razões para suspeitar que, depois de ter aliviado todos os sintomas
de sua cliente, Breuer deve ter descoberto por outros indícios a motivação sexual dessa
transferência, mas que a natureza universal deste fenômeno inesperado lhe escapou,
54
resultando daí que, como se tivesse sido surpreendido por um ‘fato inconveniente’,
ele tenha interrompido qualquer investigação subsequente. (Freud, 1914/1996, p.22).
Freud completa, indicando que “Breuer nunca me falou isso assim, mas me disse o
bastante em diferentes ocasiões para justificar esta minha reconstituição do acontecido”. (Freud,
1914/1996, p.22). Em tom semelhante, em “Um estudo autobiográfico” (1925/1996), revela
que “[...] na fase final desse tratamento permaneceu um véu de obscuridade, que Breuer jamais
levantou para mim [...]”. (p.27). Freud passa a se interrogar porque Breuer não usou o caso de
Anna O. como argumento contra suas teorias sobre a sexualidade, já que ali não estava presente
o fator sexual, e conclui que esse fato lhe era incompreensível “até que vim a interpretar o caso
corretamente e a reconstituir, a partir de algumas observações que fizera, a conclusão de seu
tratamento desse mesmo caso”. (Freud, 1925/1996, p.33). A partir daí, repete essencialmente o
que já havia exposto no texto de 1914: “Depois que o trabalho de catarse parecia estar
concluído, a moça subitamente desenvolvera uma condição de ‘amor transferencial’; ele não
havia feito a ligação disso com sua doença e então se afastara desalentado”. (Freud, 1925/1996,
p.33).

Como já vimos no capítulo anterior25, Freud relata em carta a Martha que Breuer se viu
obrigado a encerrar o tratamento por ter percebido que sua esposa estava enciumada e sofria
com sua dedicação tão intensa ao caso. Todas essas afirmações de Freud parecem contrastar
com a versão fornecida por Breuer em “Estudos sobre a histeria” (1895/1996). Nessa obra,
afirma: “A própria paciente formara o firme propósito de que todo o tratamento deveria terminar
no dia em que fizesse um ano da data em que foi levada ao campo”. (Breuer & Freud,
1895/1996, p.75). Também já indicamos que a versão de Jones não apenas apresenta a decisão
de interromper o tratamento como sendo de Breuer, como a complementa, narrando sua fuga
assustada diante de uma “gravidez fantasmática”.

Aqui se torna necessário colocar em questão essa versão de Jones e nos interrogarmos
como ele poderia ter chegado a ela. Ele certamente não estava sozinho em sua narrativa sobre
a gravidez histérica de Anna O. Rank (1941), por exemplo, relata que “this patient had
seemingly fallen in love with Breuer and imagined having a child by him – a phantasy which
Breuer treated as a pathological hallucination”. (p.276). Como veremos, diversos autores, como
Hirschmüller (1989), Ellenberger (1970), Borch-Jacobsen (1996) e Skues (2006) se debruçaram
sobre essa questão, e tentaram demonstrar algumas inconsistências nessa narrativa.

25
Ver p.32.
55
Há três documentos geralmente referenciados com relação ao término do tratamento de
Anna O. para corroborar a versão de Jones. Uma carta de Freud a Stefan Zweig, uma carta a
Tansley e anotações no diário de Marie Bonaparte de comentários que teria ouvido do próprio
Freud. Vejamos o que eles contêm de fato.

Comecemos pelo diário de Bonaparte. Borch-Jacobsen (1996) relata ter conseguido


acesso a esse material através de Roudinesco, que enviou a ele o seguinte trecho: “[...] Freud
told me the Breuer story. His wife tried to kill herself towards the end of Anna = Bertha’s
treatment. The rest is well know: Anna’s relapse, her fantasy of pregnancy, Breuer’s flight”.
(Borch-Jacobsen, 1996, p.100). Esse relato é datado provavelmente de 1927.

É curioso que Bonaparte se refira aos fatos que Freud narra como se fossem já
amplamente conhecidos. Isso leva Skues (2006) a supor que essa história já circulava no meio
psicanalítico há algum tempo, e que Freud a havia comunicado a mais de uma pessoa ao longo
dos anos. Como já foi possível observar, Rank era alguém que já conhecia essa versão dos fatos,
e, segundo Skues (2006), Jung, em 1925, forneceu uma versão ainda mais curiosa: “Freud told
me he was called to see the woman the same night that Breuer had seen her for the last time,
and that she was in a bad hysterical attack, due to the breaking off of the transference”. (Jung,
1989, citado em Skues, 2006, p.60). Não há dúvidas de que Jung está completamente
equivocado em sua lembrança dos fatos, uma vez que ele relata que Freud foi chamado a atender
Anna O., algo que não foi narrado por ninguém mais em nenhum momento, nem mesmo pelo
próprio Freud. Skues (2006) recupera ainda a entrevista de Jung a Eissler, em que ele afirma
simplesmente que a paciente não havia sido curada, relatando a história da fantasia de gravidez
de Anna O.

Outro que fornece uma versão altamente distorcida do término do tratamento é Brill
(1947). De acordo com ele:

There was another and perhaps even more conclusive reason for Breuer’s ultimate
retreat. His famous patient, Anna O., kept coming to see him for advice and assistance
with her problems; and Breuer, following his custom, used to hypnotize her. One day
the young woman came to see him in a hysterical state, and while he was going
through the hypnotizing formulas she suddenly grabbed him, kissed him, and
announced that she had become pregnant by him. Of course the old man was shocked.
He decided that the girl must be crazy, or, at all events, that the treatment had its
dangers. The experience was too much for Breuer. […] There and then he decided to
separate from Freud. (Brill, 1947, p.36).
A versão de Brill é tão peculiar e carregada de anacronismos que é até mesmo difícil
saber de onde ele poderia ter obtido tais informações. De qualquer modo, como veremos, Freud
parecia veicular versões de sua reconstrução do caso com maior ou menor grau de
56
detalhamento, o que ajudaria a entender o enredo criado por Brill. Talvez ele teria ouvido uma
versão resumida de Freud (ou de algum outro discípulo) e preenchido as lacunas com sua
própria reconstrução da história.

Passemos agora à carta a Tansley, datada de 20 de novembro de 1932. Ela é descoberta


por Forrester e Cameron (1999), que argumentam em favor de sua autenticidade apesar de na
verdade ser uma cópia redigida com a caligrafia de Tansley. Ali, Freud afirma que suas
suposições sobre o final do tratamento de Anna O. estão definitivamente corretas, já que a filha
de Breuer teria interrogado o pai a respeito depois de ler “Um estudo autobiográfico” e ele teria
confirmado tudo. “[...] Após a fuga de Breuer, ela novamente desabou em uma psicose e, por
um período relativamente longo – acredito que ¾ de um ano – teve de ser colocada em uma
instituição longe de Viena”. (Forrester & Cameron, 1999, p.930). Freud conclui:

Subsequently the disease had run its course, but it was a cure with a defect. […] On
condition of the renunciation of the entire sexual function she was able to remain
healthy. […] It is of interest that, as long as she was active, she devoted herself to her
principal concern, the struggle against white slavery. (Forrester & Cameron, 1999,
p.930).
Essa forma de narrar os acontecimentos parece um relato muito resumido das versões
que Freud aparentemente vinha veiculando a alguns discípulos. Se a compararmos à carta que
envia a Zweig, em 2 de junho de 1932, notaremos que, embora sejam mantidas as linhas gerais
da história, ele acrescenta detalhes inexistentes em sua comunicação a Tansley. A carta a Zweig
objetiva corrigir o que Freud considera um erro no relato fornecido por ele em “A cura pelo
espírito” (1956), no trecho em que é narrado o tratamento de Anna O. por Breuer 26. É
interessante nos atentarmos para a seguinte passagem:

What really happened with Breuer’s patient I was able to guess later on, long after the
break in our relations, when I suddenly remembered something Breuer had once told
me in another context before we had begun to collaborate and which he never
repeated. On the evening of the day when all her symptoms had been disposed of, he
was summoned to the patient again, found her confused and writhing in abdominal
cramps. Asked what was wrong with her, she replied: ‘Now Dr. B.’s child is coming!’
(E. Freud, 1975, p.266).
Freud afirma, em seguida que Breuer tinha nesse momento a chave que teria aberto as
“portas às mães”, mas que ele fugiu horrorizado e deixou um colega cuidando da paciente, que
durante alguns meses ainda teria lutado para recuperar a saúde internada em um sanatório. E

26
O trecho em questão: “Para desembaraçar o caminho obstruído que levava ao acontecimento oculto, Breuer teve
a ideia de hipnotizar regularmente a moça. [...] No estado de hipnose, em que todo pudor é absolvido, a moça
exprime livremente o que com tanta obstinação dissimulara ao médico e principalmente a si mesma; à cabeceira
do pai doente, experimentara e reprimira certos sentimentos. Esses sentimentos, recalcados pelas razões que a
decência inspira, haviam encontrado ou antes inventado como derivativo os sintomas mórbidos constatados”. (S.
Zweig, 1956, p.258).
57
completa: “I was so convinced of this reconstruction of mine that I published it somewhere”.
(E. Freud, 1975, p.266). Por fim, declara que a filha de Breuer, ao ler esse relato, indagou o pai,
que confirmou a história.

Para tentar desembaraçar essa complexa trama, será necessário atentarmos para alguns
pontos que Freud repete em quase todas as ocasiões em que narra o desfecho do tratamento. Na
carta a Zweig, aponta abertamente que essa história é uma reconstrução sua a partir de uma fala
de Breuer em outro contexto e em outro período. Algo parecido já havia sido dito em “A história
do movimento psicanalítico” (1914/1996), onde Freud começa o relato afirmando que tem
razões para suspeitar do ocorrido, mas que Breuer nunca havia dito isso a ele, isso representava
uma reconstituição a partir de falas anteriores de seu colega. Também em “Um estudo
autobiográfico” (1925/1996), Freud se refere ao véu de obscuridade que revestia o final do
tratamento, que Breuer não revelou a ele, mas que ele próprio teve de reconstituir.

Assim, uma leitura cuidadosa nos leva a interpretar a versão que Freud fornece em mais
de uma ocasião como sendo uma reconstrução feita por ele, que insere no caso conhecimento
teórico posterior (em particular o uso da noção de transferência e interpretações edípicas de
cenas narradas no caso). Por essa razão, quando Jones toma essa reconstrução e a apresenta sob
a forma de um fato ocorrido, ele, embora se baseie em documentos, exclui o caráter de dúvida
que deveria pairar sobre essa história. Isso nos leva a crer que a narrativa já era de fato corrente
entre os psicanalistas, de modo que não foi difícil a Jones e nem aos que leram seu relato tomar
a reconstrução como sendo um fato27.

Skues (2006) aponta como uma das primeiras (senão a primeira) ocorrências dessa
hipótese das fantasias de gravidez um texto de Eitingon28, “Anna O. in psychoanalytischer
Betrachtung” (1909/1998). Segundo Eitingon, Anna O., enquanto cuidava do pai,
experimentava a ação de ideias incestuosas que permaneciam inconscientes, mas que foram
ganhando intensidade com o tempo. Em sua opinião, a situação se torna tão insuportável que
Anna realiza uma verdadeira fuga para a doença e, ao mesmo tempo, também realiza essas
fantasias.

27
Além disso, a declaração de Freud de que a filha de Breuer recebeu confirmação de seu pai de que a reconstrução
de Freud era verdadeira não pode se referir à gravidez fantasmática, já que ele próprio não narrou isso em nenhum
de seus textos. O que ele relata, e que supostamente teria sido confirmado, deve dizer respeito ao caráter
transferencial da relação. Skues (2006), Hirschmüller (1989) e Ellenberger (1970) também adotam posição
semelhante à nossa com relação a essa questão.
28
Skues (2006) supõe que o texto de Eitingon, provavelmente apresentado por ele nas conferências de Freud na
universidade, foi previamente discutido com Freud e tinha o aval dele. Ver Skues (2006), p.59.
58
Anna entra em um estado de fraqueza, anemia, repugnância por alimento e este fica
tão ruim que ela, em sua grande dor, tem que ser afastada do cuidado do doente; ela
foge então, mas, em decorrência de seu estado, ela mesma logo fica confinada à cama;
ou seja, ela também vai para a cama, ainda que uma outra, e o complexo de sintomas
citado parece bastante com as observações de uma fantasia de gravidez. No começo
dessa fantasia está a alucinação angustiante da cobra, ou seja uma fantasia de coito.
(Eitingon, 1909/1998, p.20).
Eitingon (1909/1998) também indica Breuer como substituto do pai e, portanto, como
receptor das fantasias sexuais originalmente dirigidas ao pai. É Eitingon, então, quem apresenta,
de forma mais detalhada do que o próprio Freud faria, as explicações baseadas na teoria
psicanalítica muito posterior ao caso.

Para além desse relato de uma fuga diante do caráter sexual do caso de Anna O., em
geral também vemos ataques a Breuer através de alegações de que o tratamento fracassou
(supostamente por não ter sido levado até o fim) e declarações de que Breuer nunca mais tratou
qualquer paciente histérica. Aqui temos, portanto, duas questões: a) Anna O. foi curada? Suas
subsequentes internações são indício de que o tratamento não surtiu o efeito que Breuer teria
sustentado em “Estudos sobre a histeria”? b) Breuer abandonou o tratamento de histéricas após
a experiência assustadora com Anna O.?

O caso Anna O. vem sendo insistentemente revisitado ao longo de mais de um século.


Há autores que tentam estabelecer um novo diagnóstico e apontar as limitações do tratamento
de Breuer. Esse é o caso de Schonbar e Beatus (1990), que abordam a história clínica a partir
da teoria de Winnicott, Kohut e Faibairn, refletindo sobre as relações de Bertha Pappenheim
com sua mãe e com seu pai; Ramos (2003), por sua vez, propõe que todos os sintomas
apresentados pela paciente poderiam ser atribuídos a sua dependência química de morfina e
hidrato de cloral ou a abstinência ao tentar suspender o uso de tais medicações; já Middleton
(2004) crê que os sintomas parecem ser indicativos de uma forma complexa de transtorno de
stress pós-traumático resultante de a paciente ter sofrido abuso em sua infância. Bram (1965) é
da opinião de que “não há dúvida de que ela hoje seria vista por muitos como sofrendo de um
transtorno esquizofrênico [...]”. (p.53).

Por essa razão, as opiniões sobre a cura também variam enormemente. Entretanto, um
olhar mais atento revela que o próprio Breuer afirma, ao relatar o término do tratamento, que a
paciente “saiu de Viena e viajou por algum tempo, mas passou-se um período considerável
antes que recuperasse inteiramente seu equilíbrio mental”. E conclui: “Desde então tem gozado
de perfeita saúde”. (Breuer & Freud, 1895/1996, p.75). Desse modo, ficamos sabendo já através
do próprio autor que a cura não se deu de forma súbita. Essa informação por si só já coloca em

59
questão qualquer tentativa de argumentar que Breuer de algum modo falseou o caso, ocultando
o fato de a paciente não ter se curado totalmente em 1882. O estudo detalhado de Hirschmüller
(1989) serve de apoio a essa afirmação, já que o autor recupera não apenas os relatos do caso
clínico escritos por Breuer quando ele a encaminhou para internação no sanatório de Bellevue
em Kreuzlingen, mas também reúne cartas que Breuer envia a Robert Binswanger, médico
responsável pela instituição.

Na opinião de Hirschmüller (1989), essa primeira internação após o término do


tratamento era coerente com um esforço para tratar o vício em morfina, que ela teria adquirido
devido a uma nevralgia. Os registros demonstram que ela é internada em 12 de julho de 1882 e
deixa o hospital em 29 de outubro do mesmo ano, com a anotação de que sua condição
melhorou. Anna O. passa um período em Karlsruhe por insistência de sua mãe, e retorna a
Viena em janeiro de 1883. A partir dos arquivos do Hospital Psiquiátrico de Viena,
Hirschmüller (1989) é capaz de demonstrar que ela passa, ao longo dos anos seguintes por mais
três internações: de 30 de julho de 1883 a 17 de janeiro de 1884; de 4 de março de 1885 a 2 de
julho de 1885 e de 30 de junho de 1887 a 18 de julho de 1887. Ainda de acordo com
Hirschmüller (1989), Breuer se manteve informado sobre o estado de saúde dela durante todo
esse período29.

Por fim, quanto ao segundo ponto, a afirmação de que Breuer tendo ficado tão assustado
com sua experiência com Anna O. teria abandonado para sempre o tratamento de histéricas.
Isso foi repetido em diversos trabalhos30 e poderia inclusive ser inferido a partir da carta que
Breuer envia a Forel (a que já referimos anteriormente), em que afirma: “I vowed at the time
that I would not go through such an ordeal again”. (Cranefield, 1958, p.319). Porém, mais uma
vez encontramos apoio nos achados de Hirschmüller (1989) e é possível afirmar que Breuer
tratou pelo menos mais três outras pacientes histéricas: Frau Clara B. (um caso com conteúdo
marcadamente sexual), Frau Emma L. (um caso de melancolia) e Frau Amalie G. (paciente que
aparentemente apaixonou-se por Breuer). Assim, talvez a afirmação de Breuer signifique que
ele não estava disposto a tratar outra paciente com o método catártico, que demandava enorme
dedicação e tempo, e não que ele jamais trataria pacientes semelhantes.

29
Isso é comprovado, por exemplo, pela carta que ele envia a Binswanger em 13 de janeiro de 1884, em que
afirma: “I saw the young Pappenheim girl today. She is in good health, no pains or other troubles”. (Hirschmüller,
1989, p.310).
30
Por exemplo, Schonbar e Beatus (1990), Rabelo (2011), Bram (1965) e, para um contraponto interessante não
só sobre o final do tratamento, mas sobre a forma como Anna O. foi retratada na literatura psicanalítica, Kimball
(2000).
60
O que nos parece, após discutirmos o modo como Jones retrata Breuer e o término do
caso de Anna O. é que dificilmente sua versão poderia ser mantida com o acesso aos
documentos que temos hoje. Mesmo assim, encontramos em trabalhos posteriores, alguns
inclusive muito recentes, reproduções desses argumentos de Jones. Breuer é visto como aquele
que não teve a coragem necessária aos grandes descobridores, que evitava o tema da
sexualidade e por isso não pode descobrir a transferência, e que não curou efetivamente sua
paciente. Como observa Forrester (1986), “if this is an account of the origin of psychoanalysis,
then it is couched in the form of a negative: it recounts Breuer’s failure to found psychoanalysis,
here conceived of as centered on the sexual transference”. (p.328). Com ataques nessas
diferentes frentes, temos, portanto, como efeito, uma visão de Breuer como mero coadjuvante,
talvez até mesmo alguém que coloca dificuldades no caminho de Freud, com uma visão limitada
dos problemas e hesitante em avançar na investigação da sexualidade. Nesse contexto, Freud
emerge como o criador solitário que precisa tomar a frente, corajosamente, na exploração desse
novo campo que ele funda enquanto caminha. Veremos a seguir como essa imagem heroica
também está presente na forma como é apresentada a autoanálise de Freud.

2.2 – A autoanálise

Como tivemos ocasião de observar no primeiro capítulo31, a hipótese de que o


surgimento da psicanálise (ou de seus conceitos centrais) foi resultado da autoanálise
empreendida por Freud ao longo da década de 1890 não pode ser tomada como evidente. O
próprio Freud não parecia atribuir esse papel ao processo, apesar de ter estabelecido o vínculo
de sua autoanálise e da superação do luto pela morte de seu pai com a escrita de “A interpretação
dos sonhos” (1900/1996).

A atitude de Freud sobre a possibilidade de uma autoanálise ser bem-sucedida também


oscila e vimos como ele inicialmente confia que qualquer pessoa capaz de analisar os próprios
sonhos teria condições de se analisar, mas posteriormente percebe e alerta para os limites que
alguém encontra ao ser analista de si mesmo.

Foi Ernst Kris, na introdução que escreve para o volume de cartas selecionadas de Freud
a Fliess, quem primeiro vincula a criação da psicanálise à autoanálise. Jones parece concordar

31
Ver p.21-3.
61
com essa proposição e a desenvolve no capítulo da biografia dedicado a isso. O resultado,
porém, é uma visão altamente idealizada do procedimento, que torna o feito freudiano único e
impossível de ser repetido.

Essa posição de Freud, analista de si mesmo, que nunca se submeteu à análise por outra
pessoa, não passou despercebida por Stekel (1925/2005), que afirmou ser essa a “tragédia de
Freud” (p.127). Stekel vai além e chega a afirmar que, por essa razão, ele seria o único freudiano
verdadeiro: “Eu agora represento Freud muito melhor do que ele próprio”. (Stekel, 1925/2005,
p.127). Se o argumento de Stekel nos parece exagerado, ele ao menos serve de alerta contra
uma supervalorização da autoanálise freudiana.

Stekel, entretanto, não estava sozinho em sua crítica à autoanálise. Jones (Paskauskas,
1995, p.212) em uma carta a Freud em 22 de julho de 1913, alerta o vienense de que Jung
parecia atacá-lo em suas conferências realizadas em Nova Iorque (publicadas em 1913 no
Jahrbuch für Psychoanalytische und Psychopathologische Forschungen). No trecho destacado
por Jones, Jung afirma: “Há médicos que pensam que uma autoanálise basta. Isso é psicologia
de Münchhausen, com a qual eles certamente ficarão empacados“. (Jung, 1913, p.145).

É curioso notar que, em 1926, Freud escreve um comentário introdutório a um texto de


Ernest Pickworth Farrow em que este relata ter acessado uma lembrança de seis meses de vida
através de um método de autoanálise:

Conheço o autor deste artigo como um homem de inteligência valiosa e independente.


Provavelmente por ser um tanto voluntarioso deixou de manter boas relações com
dois analistas com os quais fez a tentativa. Logo depois passou a fazer uma aplicação
sistemática do método de auto-análise que eu próprio empreguei no passado32para a
análise de meus próprios sonhos. Seus achados merecem atenção precisamente por
causa do caráter peculiar de sua personalidade e de sua técnica. (Freud, 1926/1996,
p.277).
Freud parece indicar aqui que Farrow se valeu de um método idêntico ao que ele
empregou na década de 1890; fato interessante já que ele mesmo nunca apresentou um relato
detalhado desse método. Mas qual era, afinal, o método de Farrow?

O autor chegou a publicar artigos que abordavam o tema entre 1925 e 1927, e, em 1947
reuniu suas observações em um livro, intitulado “A practical method of self-analysis”. Entre
seus artigos da década de 1920, um em particular é de interesse: “A method of self-analysis”
(1925).

32
Grifo nosso.
62
O método de Farrow consistia essencialmente em tomar uma hora por dia para analisar
o que lhe ocorria no momento, tomando nota dos pensamentos que surgiam. Ele almeja
substituir o relato em voz alta para outra pessoa, a associação livre, pelo ato de tomar notas e
seguir o fluxo de pensamentos. Não fica muito claro se e quando ele retornaria a essas
anotações, mas segundo ele, através desse método simples, denominado “note-writing”,
conseguiu se recordar de fatos muito precoces e “removeu a maior parte de seu complexo de
Édipo através desse processo e se sente muito melhor de saúde em resultado disso”. (Farrow,
1925, p.106). Farrow se interroga sobre a transferência, que inexistiria nesse procedimento, e
relata que apesar de seu temor de que isso tornasse a autoanálise infrutífera, “uma transferência
era aparentemente desnecessária em seu próprio caso”. (Farrow, 1925, p.107). Ele crê, ao
contrário, que a ausência de um analista pode ser um fator que contribui para o sucesso de um
tratamento nesses moldes, já que o indivíduo não teria vergonha de relatar a si mesmo por
escrito vários fatos que poderiam provocar inibição caso fosse necessário narrar a um analista.

Farrow indica que também é possível, com alguma prática, usar não apenas o “note-
writing”, mas também um complemento, que ele designa como “talking-to-oneself”. Em
essência o procedimento é o mesmo, mas a fala seria ditada para um gravador.

Esse método parece, à primeira vista, bastante peculiar. Os resultados que Farrow
promete também soam grandiosos demais, e, no lugar de enxergar dificuldades, ele vê diversas
vantagens desse procedimento quando o compara com a análise no modelo tradicional. Ele
refere no texto, assim como Freud também já havia declarado em seu comentário introdutório
ao artigo de 1926, que passou por duas análises sem sucesso. Poderíamos interrogar sobre os
motivos do fracasso de tais análises, ou talvez tentar encontrar alguma informação que nos
ajude a entender sua posição.

A correspondência de Freud com Jones nos fornece algumas pistas. Em 7 de novembro


de 1924, Jones informa Freud: “A Mr. Farrow, with whom you are in correspondence, has sent
me a rambling auto-biographical article. From the content of it I should suspect him of suffering
from dementia praecox […]”. (Paskauskas, 1995, p.560). Freud responde, em 16 de novembro:
You must not take Mr. Farrow for a fool. I know him through Tansley and from a
personal conversation. He is an odd man, but a very able, shrewd one, who had no
luck with two analysts and has since then undertaken a self-analysis and is coming up
with some serious findings. To be sure he is a bit of a grumbler, but both analysts
(near you) really made technical mistakes with him. (Paskauskas, 1995, p.562).

De fato, Farrow não era um esquizofrênico como Jones supunha. Graduado em


Cambridge em 1912, com formação em Agricultura, se interessou por psicanálise por influência

63
de Tansley e, em 1913 já havia lido a tradução inglesa de “A interpretação dos sonhos”. Em
1923, ele decide se submeter a uma análise e sua primeira tentativa dura apenas três meses. Ele
é encaminhado a outro analista33, que o atende duas horas por dia cinco vezes por semana
durante três meses e meio. Mesmo afirmando ter se beneficiado do processo, decide abandonar
a análise e se engaja na criação de seu método de autoanálise. (Forrester & Cameron, 2017).
Estaria Freud, portanto, indicando que sua autoanálise havia sido realizada ao tomar
notas de suas associações, exatamente como Farrow descreve? Deixaremos essa questão sem
resposta, na falta de mais informações, e retomaremos nosso ponto de partida: a vinculação da
autoanálise freudiana à fundação da psicanálise.
Anzieu (1989)34 leva adiante e ajuda a consolidar a ligação estabelecida por Kris e Jones
entre a autoanálise de Freud e a criação da psicanálise. Para ele, “a auto-análise de Freud
constituiu um acontecimento excepcional, pois ela coincidiu com a própria descoberta da
psicanálise”. (Anzieu, 1989, p.418). É esse o argumento que serve de base a todo seu livro e
que reaparecerá ao longo de suas mais de 400 páginas. Ele busca demonstrar que os principais
conceitos e avanços teóricos estão intimamente relacionados ao trabalho interno realizado por
Freud durante sua autoanálise. Schur (1972) segue a mesma linha: “Nós corretamente
consideramos a autoanálise de Freud um feito único e insuperável”. (Schur, 1972, p.74).
Gay (1988/2012) está entre os autores que levantam questões sobre o procedimento:
Autoanálise poderia parecer uma contradição nos termos. Mas a aventura de Freud se
converteu na menina dos olhos da mitologia psicanalítica. Freud, dizem os analistas,
empreendeu uma autoanálise que iniciou em algum momento da metade dos anos
1890, e empenhou-se sistematicamente nela a partir do final da primavera ou do início
do verão de 1897; esse gesto de paciente heroísmo, a ser admirado e palidamente
imitado, mas nunca repetido, é o ato fundador da psicanálise. (Gay, 1988/2012,
p.112).

Sulloway (1979) também vê com desconfiança o fato de que “a autoanálise de Freud se


coloca no ponto focal do relato psicológico que estes comentadores [Kris, Jones, etc.]
forneceram das origens da teoria psicanalítica”. (Sulloway, 1979, p.19).
O que podemos destacar desses relatos, é que a forma como tem sido narrada a
autoanálise freudiana coloca diante de nós dois problemas principais: primeiro, compreender
como se deu esse processo, já que o próprio Freud não fornece muitas indicações. Como e em
que condições ele foi possível? Quais suas limitações e que resultados atingiu? Qual a relação

33
Forrester e Cameron (2017) recuperam uma carta de James Strachey a sua esposa em que ele supõe que os
analistas de Farrow seriam “Eder & Co.” (p.131). Os autores levantam a hipótese de que se trataria de Montague
David Eder e sua cunhada Barbara Low (ou, possivelmente, sua esposa, Edith Eder).
34
A versão que utilizamos, em português, corresponde à terceira versão francesa do livro. A primeira versão, que
certamente teve impacto na produção posterior, é datada de 1959.
64
de Fliess (a quem Freud reportava os entraves e progressos de seus esforços) com esse
procedimento? Em segundo lugar, ao apresentar a autoanálise como ato fundador de conceitos
centrais da teoria psicanalítica, constrói-se a ideia de que a psicanálise nasce através de um
esforço individual de Freud, e que, portanto, ela se coloca absolutamente apartada de todas as
outras ciências, que são resultado de processos históricos e esforços coletivos de centenas de
pesquisadores ao longo de séculos.
Com relação à primeira questão, a solução encontrada por alguns autores, e que parece
sobreviver nos relatos contemporâneos, é fruto das hipóteses de Buxbaum (1951). A autora
afirma que
Fliess […] had taken the place of a transference figure toward whom Freud had
developed a transference neurosis. This seems to me of importance, since one always
wonders how it was possible for Freud to do an analysis all by himself. He still did it
by himself; yet he used another person as a projection screen for his thoughts and
emotions. (Buxbaum, 1951, p.200).

Assim, Fliess seria também um representante da figura do pai, do sobrinho com quem
Freud brincava quando criança e de toda uma série de figuras que suscitavam em Freud afetos
ambivalentes. Após discutir o desenvolvimento dessa relação ao longo da correspondência,
Buxbaum (1951) declara que no final desse processo, a transferência não foi resolvida, já que
não havia analista para fazer isso. Apesar dessa limitação, a autoanálise havia afetado o
desenvolvimento científico de Freud positivamente, fornecendo a ele condições de construir
vários conceitos e hipóteses que guiariam suas pesquisas posteriores.
Nesse sentido, Schur (1972) também se interroga: “Como esse aspecto, o
desenvolvimento de uma transferência, se aplica a Freud?” (p.75). Para o autor, a necessidade
de uma transferência “se manifesta mesmo em sua autoanálise e foi refletida em sua relação
com Fliess”. (p.75). Percebendo que a autoanálise não coincide exatamente com uma análise
comum, Schur (1972) afirma que é preciso distinguir o que ele denomina de “fenômeno similar
à transferência” e “relação similar à transferencial” da transferência que se observa nas análises
regulares. Mesmo assim, essa distinção tem pouco efeito já que, em sua descrição posterior do
procedimento, ele a aproxima novamente de uma análise regular, tanto com relação a suas idas
e vindas, quanto com relação a seus resultados. Gay (1988/2012), da mesma forma, propõe que
“o psicanalista, em suma, é para seu analisando aquilo a que Freud elevou Fliess: o Outro”.
(p.113).
Portanto, se acompanharmos os argumentos desses autores, teríamos de considerar,
como faz Gay (1988/2012), que a “transferência, da qual depende grande parte do trabalho
curativo do processo psicanalítico, é por definição uma transação entre dois seres humanos”.

65
(p.113). Desse modo, a conclusão que se impõe é a de que, na análise de Freud, Fliess era alvo
da transferência e, que, de certo modo, ocupava o lugar de analista para ele. Se isso for assim,
a autoanálise não é tão auto quanto imaginamos35. Se, por outro lado, optarmos por manter a
ideia de uma autoanálise, teríamos de pensar em um modelo de análise que exclui a
transferência, o que causa estranhamento em qualquer psicanalista. Entretanto, se dermos
algum crédito ao modelo proposto por Farrow, em que o indivíduo relata suas associações a si
mesmo, seria possível manter a noção de uma autoanálise, mas teríamos de abandonar as
tentativas de localizar Fliess funcionando como analista. Parece-nos, desse modo, que em
qualquer dos casos, deixaremos questões sem resposta.
Essa dificuldade não pode ser vista como uma limitação de nossos argumentos, mas
como um efeito da forma como foi construída a narrativa sobre a autoanálise freudiana. Como
indica Porge (1998), “por um lado, ela projeta sobre o começo da psicanálise um esquema que
foi posterior a ela, e por outro, pareia duas ideias incompatíveis: a análise com analista e a
análise sem analista”. (p.31). Para o autor, a fonte desse problema é a ausência das cartas de
Fliess na correspondência com Freud, que contribui para criar uma impressão de um
interlocutor silencioso, que ocupa um lugar vazio. “É muito fácil, a partir daí, dar um passo a
mais e dizer que Fliess encarnou a posição do analista para Freud, e que Freud fez uma auto-
análise com Fliess”. (Porge, 1998, p.27).
O segundo problema de que precisamos tratar diz respeito à hipótese de alguns autores
de que conceitos centrais da teoria psicanalítica nascente foram criados como resultado da
autoanálise. Já vimos que Buxbaum (1951) é uma das propagadoras dessa hipótese, apoiada em
sua leitura da edição das cartas a Fliess editadas por Kris (1954). Gedo (1968), Sadow et al.
(1968), Schur (1972) e Anzieu (1989) são alguns dos que também enxergam uma relação direta
entre a criação do complexo de Édipo, abandono da teoria da sedução e descoberta da
sexualidade infantil com a autoanálise de Freud. Anzieu (1989) é sem dúvida o mais enfático e
apresenta uma tabela em seu livro que lista 114 noções psicanalíticas que Freud teria adquirido
durante sua autoanálise36.
Van Haute e Geyskens (2016) demonstram, ao acompanhar a construção do complexo
de Édipo (um dos conceitos apontados como tendo sido criados por efeito direto da autoanálise),
que a situação se deu de modo muito diverso. Para os autores, “o tema edipiano não é central
em importantes trabalhos de 1905, oito anos após a teoria da sedução ter sido deixada de lado”.

35
Bernfeld, comentando as dificuldades de uma autoanálise, pergunta em tom de brincadeira: “Do you know
what’s wrong with self-analysis? It’s the countertransference”. (Buxbaum, 1951, p.201).
36
Ver a tabela que ele apresenta nas páginas 416 e 417 de seu livro.
66
Até mesmo na primeira edição de “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), “não há
traços do complexo de Édipo”. (p.32). O argumento dos autores, contrariando as afirmações de
Anzieu (1989) e outros, se alinha à nossa percepção de que o abandono da teoria da sedução
não foi imediatamente seguido pela teoria do complexo de Édipo, que foi construído ao longo
de um processo de mais de uma década. Também outros conceitos geralmente atribuídos à
autoanálise freudiana foram formados apenas através de uma construção demorada e não podem
ser vistos como tendo surgido de uma vez, já prontos, como resultado desse procedimento de
investigação do próprio inconsciente.
A principal objeção a esse tipo de abordagem que vincula a autoanálise ao surgimento
de conceitos fundamentais da psicanálise é o fato de que ela desconsidera outras influências
sofridas por Freud nesse período, bem como aqueles fatores que já estavam em ação antes
mesmo de ele iniciar a autoanálise. Não é nossa intenção, sem sombra de dúvidas, desconsiderar
o efeito que esse processo teve sobre Freud e nem ignorar que ele teve participação no
desenvolvimento de seu pensamento. Entretanto, estamos de acordo com Ellenberger (1970) ao
afirmar que “a autoanálise de Freud era um aspecto de um processo complexo (os outros sendo
seu relacionamento com Fliess, sua neurose e a elaboração da psicanálise) e que esse processo
era um exemplo do que pode ser chamado de uma doença criativa”. (Ellenberger, 1970, p.447).
Portanto, a ênfase na importância da autoanálise para a criação dos mais variados
conceitos psicanalíticos, “contribuiu muito para reforçar o mito difundido de que ele [Freud]
estava intelectualmente ‘isolado’ nos anos de 1890”. (Sulloway, 1979, p.208). Como veremos
na seção seguinte, também essa ideia de que Freud se encontrava isolado foi alvo de um longo
debate, que será objeto de nossa atenção a seguir.

2.3 – O isolamento de Freud

Até aqui analisamos dois dos três elementos centrais na narrativa de Jones: o problema
referente a quem funda a psicanálise e a autoanálise freudiana. De certa forma, nossa
expectativa era a de que compreendê-los isoladamente nos ajudaria a formar uma visão mais
ampla da situação e, então, estaríamos aptos a pensar de que modo e atendendo a que interesses
essas narrativas se mantiveram ativas até hoje, mesmo quando não totalmente embasadas pelas
pesquisas acadêmicas e documentais.

Porém, ao discutirmos cada fator, notamos que o efeito produzido era a imagem de
Freud como alguém desconectado, isolado de seu meio, até mesmo lutando contra ele. A
67
complexa operação de tornar Breuer pouco significativo, bem como a de relacionar a
autoanálise à criação de conceitos centrais à psicanálise já, de início, dá suporte ao fator que
analisaremos nessa seção: o isolamento de Freud.

Se recuperarmos o que já destacamos no primeiro capítulo37, Freud tentou demonstrar


que, quando retornou de Paris, foi mal recebido pela comunidade médica e acadêmica vienense,
e, por essa razão, teria se afastado do contato com elas. Referiu-se a esse período de
distanciamento como splendid isolation, e parecia crer que ele foi até mesmo vantajoso para
sua produção. Isso é corroborado por alguns de seus discípulos, como Ferenczi e Sachs.

Observamos também que Jones coloca em dúvida essas afirmações freudianas e


demonstra que, se nos basearmos na documentação disponível, Freud estava muito menos
isolado do que inicialmente pareceria.

Em primeiro lugar, podemos nos interrogar a respeito da escolha desse termo por Freud:
splendid isolation, escrito em inglês. Goodlad (2005) afirma que a expressão geralmente é
usada para se referir à política externa britânica entre os anos de 1885 e 1902, sob comando de
Lord Salisbury. Para o autor, “the notion of ‘isolation’ as a description of British foreign policy
is one that enjoyed wide currency at the time”. (p.60). George Goshen, comandante da Marinha
Real à época, declarou em discurso em fevereiro de 1896: “our isolation is not an isolation of
weakness; it is deliberately chosen, the freedom to act as we choose in any circumstances that
might arise”. (Goodlad, 2005, p.61). Como indica Howard (1962), a expressão foi de fato
cunhada durante um debate na House of Commons do Canadá, onde George Foster afirma: “In
these somewhat troublesome days, when the great mother-Empire stands splendidly isolated in
Europe”. (Howard, 1962, p.36). Em resposta, Richard Cartwright teria dito: “I have a word or
two to say on this same subject of the ‘splendid isolation’”. (Howard, 1962, p.36). Forster e
Cartwright prosseguem num acalorado debate sobre o isolamento ser esplêndido ou perigoso,
e por fim Cartwright apresenta uma formulação intermediária: “[...] England stands in a state
of splendid but dangerous isolation”. (Howard, 1962, p.38).

Porém, a popularização do termo se deu na imprensa britânica, ao reportar não apenas


o debate no Canadá, mas também o discurso de Chamberlain a respeito. Howard (1962)
recupera edições dos jornais The Times, Spectator e Sunday Times em que a expressão aparecia
de forma proeminente. Apesar de mesmo durante esse período ter havido aqueles que
consideravam esse isolamento prejudicial, parece que o sentido corrente era de um isolamento

37
Ver p.24-5.
68
voluntário, sem fechamento de acordos e compromissos de longo prazo, que permitiriam ao
império britânico alguma liberdade sem comprometer sua sobrevivência. É provavelmente esse
o sentido que chega a Freud, o que nos leva a interrogar se sua analogia entre seu isolamento e
o britânico também carrega esse sentido, de um afastamento voluntário de seu meio. Essa
possibilidade, inclusive, já havia sido levantada por nós no primeiro capítulo, quando
discutimos trechos de sua correspondência com Fliess38.

Seja como for, investigaremos a seguir esse período após o retorno de Freud de Paris,
em que ele afirma ter sido recebido com desprezo por seus pares. Também dedicaremos espaço
para as alegações de que seus trabalhos não eram lidos, deixando-o completamente à margem
do cenário acadêmico-científico.

2.3.1 – A recepção inicial aos trabalhos de Freud

No capítulo anterior, observamos como Freud queixou-se repetidamente de ter sido mal
acolhido quando apresentou seus trabalhos aos colegas médicos e que, no rastro disso, ficou
abandonado num isolamento quase completo, algo que posteriormente viu como vantagem.
Jones contesta essa versão freudiana, demonstrando que ele, mesmo depois dos eventos
narrados, continuou em contato com seus pares. Acompanharemos agora os trabalhos de autores
posteriores a Jones que complementaram suas afirmações e trouxeram à tona mais documentos
para substanciá-la.

Anzieu (1989) vincula o tema do isolamento à autoanálise, afirmando: “que Freud tenha
se encerrado em si mesmo, é certo, embora tenha exagerado notavelmente, a seguir, a
importância de seu isolamento: isolamento científico, sim; isolamento social, profissional,
afetivo, não”. (p.418). Ele defende a ideia de que Freud encontrou em Fliess alguém com quem
dialogar, o que fazia com que ele não estivesse tão isolado. O argumento de Anzieu caminha
na direção oposta ao nosso: ele supõe que o isolamento científico de Freud funcionou como
combustível para sua autoanálise; nós vemos a autoanálise servindo como mais um fator que
será utilizado como prova de seu isolamento.

Nas duas obras em que faz menção mais direta a isso, “A história do movimento
psicanalítico” (1914/1996) e “Um estudo autobiográfico” (1925/1996), Freud destaca dois

38
Ver p.25.
69
episódios que demonstram a recepção que teve em Viena. O primeiro, ocorrido em 1886, na
ocasião de seu retorno de Paris, em que relatou à Sociedade de Medicina o que havia aprendido
com Charcot. Ele apresenta uma discussão sobre histeria masculina e, em sua versão, foi não
apenas mal recebido, mas até mesmo desafiado por Meynert a encontrar e apresentar um caso
que comprovasse suas afirmações (o que fez em seguida). O segundo episódio, em 1896, em
que apresentou à Sociedade de Psiquiatria e Neurologia de Viena suas hipóteses sobre a
etiologia da histeria.

Além das objeções levantadas por Jones, apresentadas no primeiro capítulo39, também
Ellenberger (1970) discute em detalhes a apresentação de Freud diante da Sociedade de
Medicina. Para ele, “the paper that he read at the Viennese Society of Physicians caused him
disappointment, and this incident has given rise to a tenacious legend”. (p.437).

A Sociedade (Kaiserliche Gesellschaft der Ärtzte in Wien), fundada em 1800, era


altamente prestigiada e qualquer médico poderia apresentar trabalhos em seus encontros
semanais, desde que tivesse algo original a relatar. Também era comum o palestrante receber
críticas duras, que eram, contudo, apresentadas de forma educada. Ellenberger (1970) baseia-
se em relatos da época40 para apresentar mais detalhes do que ocorreu na reunião de 5 de outubro
de 1886.

Após uma apresentação de Freud, em que ele explicava a forma atual como Charcot
pensava a histeria, relatou um caso de histeria masculina que observou em Paris: o homem
havia sofrido um acidente em seu trabalho e desenvolveu paralisia em um braço e toda uma
gama de sintomas similares. Charcot, dizia Freud, pensava como equivalentes a histeria
masculina e os casos conhecidos como railway spine e railway brain. (Ellenberger, 1970,
p.439).

Na discussão que se seguiu, Rosenthal41 afirmou que histeria masculina não era um
quadro raro, tendo ele mesmo descrito dois desses casos 16 anos antes. Meynert disse que
também observou casos de ataques epiléticos e perturbações da consciência que se seguiam a
um trauma, e que seria interessante verificar se em tais casos também estariam presentes os
sintomas descritos por Freud. Bamberger, que presidia a sessão, “acknowledged Charcot’s
merits, but saw nothing new in Freud’s interesting paper”. (Ellenberger, 1970, p.440). A isso

39
Ver p.37-8.
40
Ellenberger (1970) lista 6 periódicos que publicaram o relato da reunião. Ver Ellenberger (1970), p.554.
41
Mais informações sobre Rosenthal, Meynert, Bamberger e Leidesdorf podem ser encontradas em Lesky
(1976).
70
se seguiu o comentário de Leidesdorf, que mencionou casos em que após acidentes os pacientes
desenvolviam sintomas orgânicos não relacionados à histeria e que, por essa razão, era preciso
avaliar o problema com cautela antes de concluir que a histeria era causada por um trauma.

Assim, é impossível não concordar com a conclusão de Ellenberger (1970):

In the legendary accounts of that meeting it would seem as though tremendous


discoveries, which had not yet reached Vienna, had been revealed to Freud in Paris
(such as the existence of male hysteria), and that, while acting as Charcot’s missionary
to the Viennese ‘pundits’, he was shamefully scorned and rejected. Actually, things
were quite otherwise. Freud had returned from Paris with an idealized picture of
Charcot. Much of what he attributed to Charcot were the views of previous authors
[…]. (Ellenberger, 1970, p.440).
Dois dos pontos que mais parecem ter ofendido Freud podem ser examinados agora de
forma menos apaixonada. Em primeiro lugar, a afirmação de Bamberger de que não havia nada
de novo na exposição de Freud não parecia ter intenção de diminuir o valor do que ele dizia,
mas unicamente informá-lo de que o conteúdo de sua apresentação (histeria masculina) já era
conhecido e que, portanto, não fazia sentido ele apresentá-lo diante da Sociedade, que tinha
como uma das suas regras principais a originalidade das comunicações. Em segundo lugar,
apesar do que Freud relatou, não há, na fala de Meynert, desafio para que ele encontre e
apresente um paciente histérico. Se isso se deu, não foi relatado em nenhum dos registros
publicados.

Freud então apresenta o caso de histeria masculina no dia 26 de novembro, mas, ao que
parece, não houve discussão devido à quantidade de trabalhos apresentados naquela noite.
Ellenberger (1970) supõe que isso talvez justifique a afirmação de Freud de que foi aplaudido,
mas que não recebeu mais interesse da sociedade. Seja como for, Ellenberger (1970) destaca:

Contrary to legend, Freud did not break his ties with the Society after that meeting.
His candidacy was submitted by seven prominent members of the Society on February
16, 1887, and he was elected on March 18, 1887. He never ceased to be a member of
the Society until he left Vienna. (Ellenberger, 1970, p.442).
Além dos episódios em que Freud julga que foi mal recebido, ele costuma evocar
também a memória de como seus trabalhos não eram notados e nem resenhados pelos
periódicos especializados e, nas raras ocasiões em que eram mencionados, recebiam elogios
ambíguos ou ataques abertos.

Há um grande número de textos que discutem a recepção de Freud pela comunidade


científica e, com exceção de alguns que tomam apenas o relato de Freud e seus discípulos como
fonte, parece haver consenso de que a situação se deu de modo diverso. Decker (1977) apresenta
em detalhes como as teorias freudianas foram recebidas na Alemanha entre os anos de 1893 e

71
1907. A autora sugere, ao longo de sua investigação, que os textos de Freud não foram de forma
alguma ignorados. Mesmo um trabalho breve, como a “Comunicação preliminar” (1893), foi
resenhado por três autores e de forma positiva: “The German medical reaction was limited, but
it was interested and appreciative. Two of the three commentaries were by well-known
authorities. There was no hostile reaction”. (Decker, 1977, p.87).

Com relação a “Estudos sobre a histeria” (1895/1996), a reação foi um pouco mais
dividida, mas não foi uma rejeição unânime como Freud parecia indicar. Uma das resenhas
referidas por Freud e por Jones é a escrita por Strümpell. O autor apresenta uma descrição do
método de Breuer e Freud, mas manifesta dúvidas sobre sua aplicação geral e também sobre a
investigação aprofundada da vida sexual dos pacientes. Por fim, Strümpell vê como um dos
perigos do método o médico poder ser capturado por fantasias e invenções dos pacientes e
também prevê que os mesmos resultados que os autores apresentam na obra poderiam ser
obtidos com um tratamento sem hipnose. Mesmo assim, ele reconhece “o sucesso do método
nas ‘mãos capazes’ de Breuer e Freud”, embora não recomende que outros os imitem. (Decker,
1977, p.160).

Outra obra que Freud frequentemente indicava como sendo alvo de descaso e ataques
de seus contemporâneos era “A interpretação dos sonhos” (1900/1996). Bry e Rifkin (1962),
contudo, relatam que o livro foi resenhado em 11 periódicos apenas no primeiro ano após a
publicação. Já o texto “Sobre os sonhos” (1901/1996) foi resenhado em nada menos que 19
periódicos em oito meses. Os autores também recuperam o conteúdo de algumas dessas
resenhas42 para demonstrar que, apesar de algumas críticas, elas eram respeitosas e, por vezes,
elogiosas.

Elliger (1990) também investiga a recepção de Freud e não concorda com a versão
freudiana do splendid isolation. O autor apresenta uma tabela em que lista a quantidade de
resenhas os trabalhos de Freud receberam entre 1900 e 1945. Se observarmos, por exemplo, “A
interpretação dos sonhos”, poderemos notar que o livro foi resenhado ao todo 73 vezes, sendo
43 em periódicos médicos, 9 em periódicos de psicologia e 21 em periódicos de outras áreas.
Esse dado, entretanto, deve ser lido com cautela, já que o autor inclui resenhas de todas as
edições do livro. Portanto, embora inicialmente pareça corroborar o estudo de Decker, o
argumento perde força devido a essa particularidade. Porém, Elliger (1990) também inclui uma
outra tabela, essa referente a jornais vienenses, em que podemos constatar que Freud é

42
Ver Bry e Rifkin (1962), especialmente p.20-4.
72
mencionado 29 vezes entre 1900 e 1913, incluindo aqui resenhas de alguns de seus trabalhos e
comentários sobre outros aspectos da vida de Freud (carreira como professor, querela sobre
plágio envolvendo Fliess, Weininger e Swoboda, comemoração de aniversário, etc.). Mesmo
com limitações, a impressão é de que Freud e seus trabalhos ganhavam atenção crescente não
apenas de veículos especializados, mas também de jornais comuns.

Algo que surge de maneira recorrente nos trabalhos que investigam a recepção de Freud
é a percepção de que talvez o relato dele sobre a frieza com que foi recebido pela comunidade
acadêmica e científica seja efeito de uma expectativa exagerada de Freud. Assim, Zwettler-Otte
(2008) afirma categoricamente:

O fato é que os escritos de Freud não foram ignorados. De 1895 a 1938, 381 artigos
foram publicados sobre psicanálise no semanário médico Wiener Medizinische
Wochenschrift (apenas 78 deles eram curtos); no mesmo período o Wiener Klinische
Wochenschrift publicou 223 artigos (apenas 15 deles sendo notas breves). E nos
jornais públicos que estudamos (Neue Freie Presse, Die Wage, Die Zeit, Die Fackel e
Neues Frauenleben), encontramos 1450 artigos. (Zwettler-Otte, 2008, p.31).
Portanto, os autores parecem concordar que a acolhida dada aos trabalhos de Freud não
foi muito diferente da que outros autores do período receberam, mas ele sentiu esse fato como
decepcionante e ofensivo. Mas se até aqui parece que os ataques não foram tão intensos quanto
Freud denunciava, a partir de 1906 (sendo a década de 1910 um período de ataques insistentes)
é possível localizar, especialmente no âmbito da psiquiatria alemã, uma ação organizada de
ataques à psicanálise. Veremos como isso se deu a seguir.

2.3.2 – Os ataques à psicanálise: o Congresso de Breslau

Embora tenhamos visto que a recepção inicial aos trabalhos de Freud não foi tão
negativa quanto ele sugeriu, a partir de 1906 os psiquiatras alemães iniciam uma investida
contra as teorias psicanalíticas. Esse movimento coincide com, e parece mesmo uma reação a
um crescimento do interesse pela psicanálise no início do século. Bleuler, no Burghölzli,
estimulava os médicos a estudar psicanálise e aplicá-la no tratamento dos pacientes. Jung, que
também trabalhava no mesmo local, começava a publicar textos expondo as teorias freudianas.
A psicanálise parecia alcançar boa parte da Europa.

Um dos primeiros a dar voz a essa corrente contrária à psicanálise foi Gustav
Aschaffenburg. Em 1906, em um congresso em Baden-Baden, ele instiga os colegas a combater
as ideias de Freud onde elas viessem a surgir, já que agora ganhavam atenção maior devido ao
73
apoio de Bleuler e Jung. Ele afirma que o método freudiano era “errado na maioria dos casos,
censurável em muitos e supérfluo em todos”. (Falzeder, 2015, p.202). Aschaffenburg repete os
ataques no ano seguinte, no I Congresso Internacional de Psiquiatria e Neurologia, em
Amsterdam. Em 1910, em uma reunião da Sociedade Médica de Hamburgo, Heinrich Georg
Embden e Wilhelm Weygandt propõe um boicote a instituições que praticassem a psicanálise,
não encaminhando pacientes para internação nesses locais.

Outro ferrenho opositor era Alfred Erich Hoche, professor de psiquiatria e diretor da
clínica psiquiátrica em Freiburg. Hoche publica em 1910 um trabalho intitulado “Uma epidemia
psíquica entre os médicos”, em que ataca violentamente a psicanálise e seus praticantes.

Talvez o episódio que melhor ilustre essa articulação dos psiquiatras alemães contra
Freud seja o congresso da Sociedade Alemã de Psiquiatria, realizado em 1913 em Breslau. O
congresso reuniu mais de 200 participantes, entre eles proeminentes psiquiatras da época:
Alzheimer, Kraepelin, Bonhoeffer, Weygandt. Além deles, Hoche e Bleuler dividiram uma
mesa onde discutiram a validade da psicanálise a partir da própria experiência.

Bleuler, que já havia publicado em 1911 um trabalho de tom semelhante43, afirmava que
não concordava com todas as partes da teoria de Freud, e listou tanto pontos em que achava que
as hipóteses freudianas não eram suficientemente embasadas, quanto conceitos que ele julgava
serem valiosos. Com relação à técnica, afirmou que não poderia ainda avaliá-la cientificamente
porque não dispunha de casos suficientes. No todo, “his paper can be seen as a masterful
example of legendary Swiss neutrality, or one of ambivalence and indecisiveness”. (Falzeder,
2015, p.209).

Hoche apresentou em seguida suas próprias conclusões sobre o tema. Criticou a


importância da sexualidade para a psicanálise, considerou o método não-científico e as
interpretações arbitrárias. Alertou ainda para os perigos do tratamento, referindo-se a casos de
suicídios como efeito de uma análise, mas não forneceu detalhes a respeito.

A discussão que seguiu foi uma sequência de ataques realizados pelos presentes. O
único a falar favoravelmente sobre a psicanálise foi Stegmann, um dos poucos psicanalistas
presentes (o outro era Max Eitingon). Houve apenas um comentário sobre o quanto a discussão

43
Die Psychanalyse Freuds – Verteidigung und kritische Bemerkungen.
74
já parecia ter proferido um julgamento desfavorável da psicanálise44 antes mesmo de se analisar
seus méritos e problemas.

Não muito depois do congresso, Bleuler se afasta das instituições psicanalíticas que
apoiava e abandona o cargo de editor do Jahrbuch für psychoanalytische und
psychopathologische Forschung. Sua relação com a psicanálise, de fato, já carregava a marca
de uma certa ambivalência desde o início. Como exemplo, podemos observar que seu livro
publicado em 1911, “Die Psychanalyse Freuds”, grafava Psychanalyse e não Psychoanalyse,
como Freud insistia em nomear seu método e sua teoria. Mesmo assim, Bleuler já havia
resenhado positivamente “Estudos sobre a histeria” e “A interpretação dos sonhos”, algo que
Freud recebeu com entusiasmo na ocasião45.

Os dois se corresponderam a partir de 1904, e, como demonstra Falzeder (2015), a


relação era por vezes conflituosa, especialmente devido às reservas de Bleuler com relação a
certos aspectos da teoria freudiana e a insistência de Freud em apontar resistências internas à
teoria em Bleuler46. De toda forma, a separação apenas se consolida em 1911. Bleuler resistia
também à ideia da fundação da IPA, que lhe parecia um pouco sectária. Mas o que de fato
precipita a ruptura foi um episódio em que Jung proíbe um dos assistentes de Bleuler de
participar de uma reunião da sociedade por não ser membro.

Diante disso, ele escreve a Freud:

Both from an intellectual and an affective point of view, an intolerance that


disagreeably resents the presence of an honest man, only because he is of a different
opinion in a few details that have nothing to do with science, is in my opinion
mistaken. I dare hope that after what has happened you will accept my resignation as
something natural and necessary, and above all that this resignation will in no way
change our personal relationship. (Falzeder, 2015, p.193).

Freud ainda tenta mantê-lo no movimento psicanalítico, mas ele estava decidido, e
sustenta essa posição nas cartas seguintes que envia a ele. Por fim, em uma carta enviada em 1
de janeiro de 1912, Bleuler declara:

I do not think at all that getting together in an association was something harmful for
psychanalysis. On the contrary. The association was very welcome, perhaps even a
necessity. If it were a scientific association in the same sense as other ones, nobody

44
Falzeder (2015) descobriu uma carta de um médico norte-americano, William Sweasey Powers, que estudava
na Europa na ocasião, em que relata a Smith Jelliffe como o congresso de Breslau foi articulado pelos psiquiatras
com o objetivo não de discutir a validade da psicanálise, mas de dar a Bleuler a oportunidade de se afastar das
perigosas teorias freudianas em público, minando assim a força que seu apoio dava ao movimento psicanalítico.
Ver Falzeder (2015), p.213-219.
45
Ver a carta a Fliess de 26 de abril de 1904. (Masson, 1985, p.461).
46
Os dois chegaram a tentar uma espécie de análise por correspondência, para resolver a questão, o que não trouxe
resultados satisfatórios e parece ter contribuído para o posterior afastamento entre eles.
75
could have objected, and it would simply have been useful. But it is the type of
association that is harmful. Instead of trying to have as many points of contact as
possible with the other sciences and scientists, it has shielded itself against outside
influences with the help of a thick skin, and it hurts friends and enemies alike […].
Hoche’s malicious dictum that psychanalysis is a sect—which at the time was
incorrect—has been made true by the psychanalysts themselves. And these are facts,
not opinions. (Falzeder, 2015, p.194).

Assim, Bleuler, embora ainda tenha mantido correspondência com Freud por mais
algum tempo, se afasta em definitivo, não sem antes alertar Freud de que seus amigos estavam
fazendo mais mal ao movimento do que seus inimigos. Esse rompimento afetou diretamente a
aceitação da psicanálise no meio acadêmico e científico. Embora a essa altura os psicanalistas
já pudessem contar com uma associação internacional e diversas sociedades locais a ela filiadas,
e periódicos próprios para suas publicações, o acesso à universidade parecia fechado.

Parece-nos que, diante tanto dos ataques diretos e boicotes realizados pelos psiquiatras
alemães nesse período, quanto da ruptura com alguém do calibre de Bleuler (isso sem
considerar também as dissidências de Jung, Adler e Stekel que já vinham se anunciando), Freud,
ao escrever “A história do movimento psicanalítico” não muito depois, teria usado os eventos
dessa época como confirmação daquilo que já sentia em seu íntimo desde o começo de suas
pesquisas: ele estava de fato isolado e era atacado pelo meio médico e acadêmico. Era como se
ele projetasse para o passado os conflitos de agora, de modo que uma situação funcionava como
confirmação da outra. Assim, o isolamento de Freud se torna uma marca da psicanálise, e sua
coragem para avançar mesmo diante dessas condições se torna uma característica fundamental
de sua personalidade, como ele mesmo e outros costumam destacar.

O isolamento ainda se alimenta, na construção do Freud herói, dos outros pontos


discutidos anteriormente: o experimento único que foi sua autoanálise e sua coragem de
enfrentar o tema da sexualidade sem recuar, como fez Breuer. No capítulo seguinte, tentaremos
abordar esse problema a partir de outro ponto de vista: a discussão sobre mitos de fundação
proposta por Eliade e a construção do fato científico por Fleck.

76
Capítulo 3 – O mito de fundação da psicanálise

Até o momento acompanhamos os primeiros esforços de se criar uma narrativa


historiográfica a respeito da fundação da psicanálise, desde o próprio Freud até a consolidação
dessa tentativa com a biografia oficial escrita por Jones. Percorremos também as autoras e
autores que contestaram alguns pontos importantes do relato de Jones e foi possível perceber
que mesmo diante da existência de versões que contrastam com as desse autor, muito do que
ele defende continua de pé e é endossado por obras posteriores. Mesmo quando Jones é crítico
e se opõe ao relato veiculado por Freud (como foi o caso do splendid isolation), a forma como
ele apresenta a grandiosidade de Freud diante de Breuer e o esforço heroico da autoanálise
contribui para que o mito do herói solitário se sustente apesar de tentativas de colocá-lo em
questão.

Embora já tenhamos esbarrado em respostas parciais, resta-nos compreender melhor: a)


o que motivou a criação dessa narrativa sobre a fundação psicanalítica; b) que função ela
cumpriu e ainda cumpre; c) quais os seus principais efeitos. É o que tentaremos a seguir.

3.1 – A função das narrativas sobre a fundação da psicanálise

Não é incomum encontrar referências a uma certa mitologia psicanalítica ou lenda


freudiana. Roudinesco (1989), por exemplo, aponta que “a história de Anna O. tornou-se
lendária e funciona como um dos mitos fundadores da história da psicanálise”. (Roudinesco,
1989, p.25). Da mesma maneira, Hirschmüller se esforça para demonstrar que “o relato de
Freud-Jones do término do tratamento deve ser considerado um mito”. (Hirschmüller, 1978,
p.131). Gay (1988/2012), ao discutir a autoanálise, afirma que “a aventura de Freud se
converteu na menina dos olhos da mitologia psicanalítica”. (Gay, 1988/2012, p.112).

Entretanto, apontar a existência de certos mitos não significa que podemos apenas
descartá-los, ou considerá-los como relatos equivocados. Como percebe Roudinesco (1989),
“nessa história, não podemos acusar Jones de falsificação. Ele inventou uma ficção, mas essa
invenção testemunha uma verdade histórica à qual não podemos opor a argumentação simplista
de uma ‘realidade’ dos fatos”. (Roudinesco, 1989, p.25). Da mesma forma, Rodrigué (1995)

77
também declara: “Digamos que Jones tenha fabricado a história. Os mitos, porém, são forjados
mas não se falsificam. São construções e não representações”. (p.277).

De modo geral, entretanto, os autores parecem fazer esse tipo de apontamento de modo
um tanto vago, sem extrair disso maiores consequências. Há, contudo, exceções. A principal
delas talvez seja a obra de Sulloway, “Freud – biologist of the mind” (1979).

Assim como outros, Sulloway (1979) vê Freud “shrouded by legend” e argumenta que
“the traditional account of Freud’s achievements has acquired its mythological proportions at
the expense of historical context”. (p.445). O autor afirma que “Freud’s life history has lent
itself to an archetypal pattern shared by almost all hero myths, and his biography has often been
remolded to fit this archetypal pattern whenever suggestive biographical details have first
pointed the way”. (p.446).

A partir dessa percepção, Sulloway recorre a Campbell (1949/2006), que compilou um


volume enorme de mitos do herói em seu livro “O herói de mil faces”. Campbell propõe que
“o percurso padrão da aventura mitológica do herói é uma magnificação da fórmula
representada nos rituais de passagem: separação-iniciação-retorno – que podem ser
considerados a unidade nuclear do monomito47”. (p.36). A discussão de Campbell, agora
apropriada por Sulloway (1979) faz com que o autor interprete a história da fundação da
psicanálise como uma variação do mito do herói.

Assim, Sulloway enxerga “o chamado para a aventura [...], inicialmente precipitado por
uma circunstância casual” como sendo o equivalente do relato que Breuer faz do caso de Anna
O. a Freud. O herói-Freud recusa o chamado (não avança ao estudo das neuroses a não ser anos
mais tarde), mas com o auxílio de um guia (Charcot, na opinião de Sulloway) ele finalmente
inicia a jornada. O herói-Freud agora deve passar por graves provações, mas, com um ajudante
secreto (Fliess), embarca em uma viagem ao submundo (a autoanálise) da qual ressurge
transformado e com conhecimentos que beneficiam seus pares. (Sulloway, 1979, p.447).

Em seu retorno ao mundo, o herói-Freud encontra oposição dos outros homens, que não
compreendem sua nova visão de mundo. Após longo conflito, os ensinamentos do herói são
aceitos e ele recebe a fama e reconhecimento devidos (o splendid isolation e subsequente vitória
sobre ele). (Sulloway, 1979, p.448).

47
Campbell (1949/2006) indica que toma o termo “monomito” de James Joyce em Finnegans wake.
78
Apesar de a hipótese de Sulloway nos parecer bastante interessante, não concordamos
com algumas das conclusões que ele extrai disso. Talvez nossa divergência principal esteja
assentada na hipótese que guia todo o estudo de Sulloway (1979): essa narrativa mítica almeja
negar a história. Ele supõe que isso foi executado por Freud e seus seguidores e que, no fundo,
um dos efeitos principais da criação do mito do herói-Freud é a ocultação das raízes da
psicanálise na biologia. Sulloway insiste em enxergar em Freud o que ele denomina de cripto-
biólogo, ou seja, um pesquisador que, embora negue, está baseando suas teorias psicanalíticas
em conhecimentos advindos do campo da biologia48.

De toda forma, apesar de esse paralelo da história de fundação da psicanálise com o


monomito de Campbell nos fornecer elementos para pensar porque essa narrativa é tão potente
e ainda exerce tanto fascínio sobre nós, não nos parece que essa narrativa tenha a intenção de
negar a história, mas de inserir nela outros elementos. É uma reconstrução que não abandona
seu contato com certos elementos que poderiam ser caracterizados como factuais.

Se de fato for possível manter essa analogia entre a história da criação da psicanálise e
os mitos, talvez nos seja mais útil debater não apenas o mito do herói, como fez Sulloway
apoiado em Campbell, mas também os mitos de fundação e de origem. Nos serviremos
principalmente da leitura de Mircea Eliade em “Mito e realidade” (1963/2016).

Sem dúvida essa analogia não deve ser entendida como uma espécie de tentativa de
desvalorizar a historiografia psicanalítica; concordamos com Eliade ao declarar que

Hesitamos, contudo, em afirmar que o pensamento mítico tenha sido abolido. [...] Ele
conseguiu sobreviver, embora radicalmente modificado (se não perfeitamente
camuflado). E o mais surpreendente é que, mais do que em qualquer outra parte, ele
sobrevive na historiografia! (Eliade, 1963/2016, p.102).
Assim, é possível considerar que entre nós psicanalistas, o mito da fundação da
psicanálise é “’vivo’ no sentido de que fornece os modelos para a conduta humana, conferindo,
por isso mesmo, significação e valor à existência”. (Eliade, 1963/2016, p.8). A forma como
narramos a fundação de nossa disciplina e as características que atribuímos ao seu criador
parecem se presentificar em nossa conduta, de uma maneira que nem sempre é fácil estimar. É
nesse sentido que somos capazes de afirmar que “alguns ‘comportamentos míticos’ ainda
sobrevivem sob nossos olhos. Não que se trate de ‘sobrevivências’ de uma mentalidade arcaica.

48
A questão aqui não é negar que conhecimentos do campo da biologia tenham influenciado o pensamento
freudiano, mas não de modo tão intenso e exclusivo como Sulloway parece propor.
79
Mas alguns aspectos e funções do pensamento mítico são constituintes do ser humano”. (Eliade,
1963/2016, p.156-7).

Desse modo, as narrativas sobre a criação da psicanálise que investigamos nos capítulos
anteriores funcionam nesse limite entre a historiografia e o mito: “O mito conta uma história
sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do
‘princípio’. [...] É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ele relata de que modo algo
foi produzido e começou a ser”. (Eliade, 1963/2016, p11).

Interessa-nos destacar que uma das funções que Eliade nota nos mitos é que esse
recontar a história da origem nos coloca em contato com esse tempo primordial. “O ‘essencial’,
portanto, é atingido através de um prodigioso ‘voltar atrás’: não mais um regressus obtido por
meios rituais, mas efetuado por um esforço do pensamento”. (Eliade, 1963/2016, p.101). Mas
que motivos teríamos para realizar repetidamente esse retorno? Eliade (1963/2016) afirma que
esse retorno é geralmente parte de um processo de cura: retornamos ao tempo primordial para
realizar uma espécie de renascimento.

No caso de nosso retorno ao tempo primordial da psicanálise, esse retorno poderia ser
entendido também de modo similar. Acessamos essa narrativa sobre como Freud cria a
psicanálise (e, indiretamente cria a todos nós, psicanalistas) para tomá-lo como exemplo e
também extraímos dela força para nosso próprio processo de nos tornarmos psicanalistas. Não
é incomum a imagem de estarmos todos ligados a Freud por laços transferenciais. Além disso,
de tempos em tempos, retornamos a essa narrativa: é preciso recontar nossas origens
insistentemente. Isso talvez ajude a explicar a profusão de biografias de Freud, que ainda hoje
não param de surgir.

Esse retorno também opera individualmente, produzindo a sensação de proximidade


com Freud: “O indivíduo evoca a presença dos personagens dos mitos e torna-se
contemporâneo deles”. (Eliade, 1963/2016, p.22). Em alguns casos, isso talvez pode chegar até
mesmo a uma espécie de recuperação do tempo da origem, a uma verdadeira refundação.
Assim, “o profeta ou o fundador do culto proclama o iminente ‘retorno às origens’ e,
consequentemente, a recuperação do estado ‘paradisíaco’ inicial”. (Eliade, 1963/2016, p.67).

Talvez um elemento adicional, que até então não havíamos evocado, pode nos ajudar a
tornar mais explícito o fato de os psicanalistas se relacionarem com sua história de modo
análogo a um mito. Um movimento semelhante ao que acabamos de descrever, de um retorno
às origens, é realizado por Jacques Lacan (1971/2003) após seu afastamento da IPA. Ele
80
inicialmente afirma: “Fundo – tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa
psicanalítica – a Escola Francesa de Psicanálise”. (p.235). Em seguida, explica sua intenção da
seguinte maneira:

[...] que, no campo aberto por Freud, restaure a sega cortante de sua verdade; que
reconduza a práxis original que ele instituiu sob o nome de psicanálise ao dever que
lhe compete em nosso mundo; que, por uma crítica assídua, denuncie os desvios e
concessões que amortecem seu progresso, degradando seu emprego. (Lacan,
1971/2003, p.235).
Temos aí desenhado um quadro quase idêntico ao que indicamos acima: um projeto de
retorno às origens, motivado por um esforço de recuperação de um estado inicial perdido.
Notamos, portanto, que aqui “não se trata de uma comemoração dos eventos míticos mas de
sua reiteração”. (Eliade, 1963/2016, p.22). Lacan não apenas incita ao retorno, mas se apresenta
ele mesmo como aquele que guiará esse percurso e, ao mesmo tempo, como alguém que já fez
esse trajeto. Isso pode ser visto na criação de uma relação de proximidade com Freud: ele se
declara isolado (assim como Freud teria estado) e almeja recuperar a potência da criação
freudiana que teria sido tornada amortecida e degradada com o tempo. Esse retorno se justifica,
já que esse tempo da origem “é considerado um tempo ‘forte’ justamente porque foi, de certo
modo, o ‘receptáculo’ de uma nova criação. O tempo decorrido entre a origem e o momento
presente não é ‘forte’ nem ‘significativo’ [..] razão por que é negligenciado ou por que se
procura aboli-lo”. (Eliade, 1963/2016, p.36).

Ora, alguém que funda uma escola dificilmente pode ser visto como isolado. Mas o
isolamento lacaniano talvez não se refira necessariamente a não haver ninguém próximo a ele,
mas à narrativa que ele constrói sobre si mesmo como aquele que sozinho alcança alguma
verdade da obra freudiana. Assim, notamos que o mito de fundação é utilizado com fins
políticos: através dele é possível estabelecer quem são os verdadeiros herdeiros da tradição
freudiana, ao mesmo tempo em que são desmascarados os falsos profetas. Mezan (2014),
debatendo um problema similar, declara: “Eis por que não é possível aceitar a imagem que cada
escola propõe de sua relação com Freud: todas essas imagens, além de serem demasiado
simplistas, desempenham uma função polêmica que não interessa ao historiador convalidar”.
(p.41). É importante destacar que todo esse processo de mitificação de nossa história não é fruto
de um trabalho individual, ou seja, não podemos apontar Jones (ou Lacan, ou qualquer outro
individualmente) como o autor dessa construção.

O que vemos em ação aqui é o esforço de Jones em tornar Freud um herói, que é
reiterado por uma grande quantidade de autores, que opera de um modo similar ao que o próprio

81
Freud havia reconhecido, por exemplo, ao discutir a figura de Moisés, ou mesmo em sua breve
reflexão sobre “Romances familiares” (1909/1996). Uma exaltação da figura do pai, de forma
idêntica ao que faz uma criança ao fantasiar que é filha ilegítima de um rei ou rainha: “Dessa
forma a criança não está se descartando do pai, mas enaltecendo-o”. (Freud, 1909/1996, p.222).
Nossa historiografia, ao se render a essas tendências recua para um modo de pensar mais
próximo dos mitos.

Como é possível a um homem isolado desenvolver uma eficácia tão extraordinária


para poder formar um povo a partir de indivíduos e famílias ocasionais, cunhá-los
com seu caráter definitivo e determinar seu destino por milhares de anos? Não
constitui uma hipótese como essa uma recaída na modalidade de pensamento que
levou aos mitos de um criador e à adoração de heróis, em épocas em que a redação da
história nada mais era do que uma relação das façanhas e destinos de indivíduos
isolados, de dominadores ou conquistadores? (Freud, 1939/1996, p.121).
Esse modo de pensar a história é encontrado em Freud em várias de suas obras. Um
exemplo pode ser visto em “Notas sobre um caso de neurose obsessiva” (1909ª/1996), quando
discute alterações na memória do paciente, uma espécie de reformulação, que seria um processo
“perfeitamente análogo ao processo pelo qual uma nação constrói lendas sobre sua história
primitiva”. Poucas linhas abaixo, afirma que esse mecanismo de alteração faz com que o
neurótico apague recordações de certos atos exaltando outros traços de memória, “do mesmo
modo como um verdadeiro historiador verá o passado à luz do presente”. (Freud, 1909a/1996,
p.180 n.2).
Mesmo antes dessa data, na reunião de 27 de março de 1907 da Sociedade Psicanalítica
de Viena, Freud afirma que “devemos nos precaver contra aceitar as declarações dos pacientes
como material científico inteiramente válido (...), já que apresentam uma imagem falsificada,
composta de fantasia e realidade”. Ele completa, apontando que “a fantasia preenche lacunas
de memória de uma forma plausível e geralmente engenhosa”. E conclui que “pessoas normais,
também, projetam suas fantasias no passado. (...) O historiador procede de modo similar quando
projeta a visão de sua época no passado”. (Nunberg & Federn, 1962, p.156).
Como já deve ter ficado claro, nossa hipótese é que, da forma como vem sendo narrada
nossa história, com grande ênfase na pessoa de Freud e com sucessivos esforços de desligá-lo
de seu contexto e negar as contribuições de seus precursores, estamos projetando nossas
fantasias no passado, distorcendo-o para que atendam a certos desejos, que inicialmente
motivaram esse processo.

Parece-nos, nesse sentido, que uma das maiores dificuldades de se realizar uma
investigação historiográfica em psicanálise é a sobreposição entre a vida de Freud e a própria
psicanálise. Aqui, tanto os autores que pretendem enaltecer Freud quanto os que almejam
82
destruí-lo se valem do mesmo pressuposto. Essa vinculação entre a vida de Freud e a própria
história da psicanálise já se faz presente nos primeiros relatos do próprio Freud, e é também
reforçada por Jones49. Esse tipo de vinculação também favorece a criação de narrativas míticas
e abre espaço para uma outra forma de idealização: as biografias difamatórias. Mesmo esses
pesquisadores que almejam desmascarar Freud partem dessa inseparabilidade entre o criador e
a teoria. Por exemplo, Borch-Jacobsen e Shamdasani (2014) insistem que “questionar a lenda
freudiana resulta no questionamento da própria psicanálise”. (p.23).

Um exemplo50 é a biografia escrita por Crews (2017), “Freud – the making of an


illusion”. Ele se refere a uma tendência de biógrafos exagerarem as qualidades e sucessos de
Freud, que ele denomina, em tom jocoso, Freudolatria. Alegando ter sido ele próprio capturado
no que chama de um “episódio de apaixonamento em massa”, Crews acredita estar em
condições de julgar mais friamente a pessoa de Freud. (p.2). Em sua opinião, “his temperament
and self-conception demanded that he achieve fame at any cost”. (p.3). E que, nessa busca por
fama, Freud abriu mão de sua integridade como médico e cientista.

Crews (2017), portanto, parte dessa concepção de Freud como alguém disposto a fazer
o que for necessário para alcançar a fama e, através de sucessivos ataques a ele, parece acreditar
que está demonstrando que a teoria psicanalítica é um equívoco, construída sobre um grande
número de mentiras e distorções. Alguns exemplos do tipo de ataque que Crews dirige à Freud:
a) Freud prescreveu cocaína a seu amigo Fleischl von Marxow causando sua morte; b) boa parte
da teoria psicanalítica foi criada sob efeito de cocaína, c) Freud abusou de suas irmãs, e essa foi
a base da teoria da sedução; d) Freud teria precipitado o suicídio da noiva de seu amigo Eduard
Silberstein; e) Freud chantageou Breuer; f) Freud engravidou a cunhada e pagou para que ela
abortasse.

O Freud de Crews parece inverossímil e pode fazer um leitor sério abandonar o livro
logo nos primeiros capítulos. Entretanto, isso só se dá dessa forma porque Crews insiste em
exagerar na extensão de suas reconstruções, extraindo conclusões de grande consequência a
partir de indícios muito discretos. Já vimos Jones recorrendo a reconstruções similares (embora
em seu trabalho isso tenha ocorrido em pontos específicos) que, contudo, parecem ter sido
melhor acolhidas. Tentaremos refletir sobre esse ponto nas seções seguintes, mas é preciso
concordar com Freud (1939/1996) que “[...] nosso intelecto facilmente se extravia sem qualquer

49
Ver p.12.
50
Esse é um exemplo dentre vários. Seria possível elencar ainda Breger (2009), Kramer (2006), Webster (1999),
Puner (1947/1959) e Ludwig (1948).
83
aviso, e que nada é mais facilmente acreditado por nós do que aquilo que, sem referência à
verdade, vem ao encontro de nossas ilusões carregadas de desejo”. (p.143).

3.2 – O estabelecimento da narrativa de Jones como fato

Nosso raciocínio nos levou a supor que a função da narrativa veiculada principalmente
por Jones é aproximar a criação da psicanálise de um mito e tornar Freud um herói. Isso é
realizado através de uma sobreposição da vida de Freud e da fundação da psicanálise. A função
desse mito, portanto, não seria tanto negar a história, como pensa Sulloway, mas reconstruí-la,
inserindo nela elementos míticos retroativamente. Assim, essa reconstrução consegue
sobreviver apesar de conter algumas contradições e inconsistências, já que parece atender a
desejos grupais e fornecer elementos para que nos sintamos vinculados a Freud.

Mas antes que possamos avançar para uma discussão sobre como essa narrativa se
forma, será necessário expor, de forma resumida, o pensamento de um autor que servirá como
uma das bases de nossa argumentação: Ludwik Fleck. O autor, um médico polonês, produz uma
contribuição extremamente relevante para nosso debate com seu livro “Gênese e
desenvolvimento de um fato científico” (originalmente publicado em 1935).

Nessa interessante obra, Fleck tenta demonstrar como o conhecimento científico é


construído coletivamente através de uma dinâmica complexa de interações entre os indivíduos
e o pensamento vigente. Ele faz isso ao estudar como o diagnóstico da sífilis se estabelece,
investigando tanto as modificações com relação a essa entidade nosológica quanto a criação da
chamada reação de Wassermann, fruto de uma série de contribuições nem sempre evidentes de
diversos pesquisadores.

Fleck nos apresenta, portanto, como ao longo da história uma protoideia (também
referida por ele como pré-ideia) se transforma num fato científico. Para ele,

Costuma-se opor o fato, enquanto algo fixo, permanente e independente da opinião


objetiva do pesquisador, ao caráter passageiro das teorias. Ele é o objetivo visado por
todas as ciências particulares; o objeto da teoria do conhecimento é a crítica aos
métodos para se chegar ao fato. (Fleck, 1935/2010, p.37).
Mas o surgimento do fato científico é efeito de um processo nem sempre óbvio de
modificações sutis. Muitas vezes, esse processo parecerá um caminho linear de
desenvolvimento e progresso se o observarmos com os olhos do nosso tempo. Por vezes, como

84
parece ser o caso do surgimento da psicanálise narrado por Jones, parecerá que ocorre uma
ruptura radical com a tradição, uma novidade absoluta e original. Porém, Fleck alerta:

Não existe geração espontânea (Generatio spontanea) dos conhecimentos; eles são,
por assim dizer, determinados pelos seus ancestrais. O passado é muito mais perigoso,
isto é, só é perigoso quando os vínculos com ele permanecem inconscientes e
desconhecidos. (Fleck, 1935/2010, p.61-2).
Fleck percorre, como já apontamos, a história do surgimento da sífilis como entidade
nosológica. Ele percebe que inicialmente ela está vinculada à concepção, que ele caracteriza
como “ético-mística”, de uma “epidemia venérea”. Paralelamente a isso, também estava em
ação outra concepção, definida como “empírico-terapêutica”. Ambas se contradiziam, mas
conviveram durante um período bastante longo (Fleck percorre autores entre o século XV e
XIX). A entidade nosológica final, a sífilis, combina elementos dessas duas concepções.

Assim que as condições se alteram suficientemente, sem abandonar totalmente as


protoideias presentes no período anterior, essas noções vagas ganham corpo e passam
efetivamente a fazer parte do estilo de pensamento. Para Fleck,

uma vez formado, um sistema de opinião elaborado e fechado, constituído de muitos


detalhes e relações, persiste continuamente diante de tudo que o contradiga. [...] Não
se trata de mera inércia, ou de cautela diante das inovações, mas de um procedimento
ativo [...]. (Fleck, 1935/2010, p.69).
Nesse sentido, o conceito de um “coletivo de pensamento” é central no raciocínio
fleckiano. Em sua concepção,

Se definirmos o ‘coletivo de pensamento’ como a comunidade das pessoas que


trocam pensamentos ou se encontram numa situação de influência recíproca de
pensamentos, temos, em cada uma dessas pessoas, um portador do desenvolvimento
histórico de uma área de pensamento, de um determinado estado do saber e da
cultura, ou seja, de um estilo específico de pensamento. (Fleck, 1935/2010, p.82).
Embora o coletivo de pensamento seja composto por indivíduos, e se atualize através
deles, ele não é simplesmente a resultante de sua soma. Isso porque

o indivíduo nunca, ou quase nunca, está consciente do estilo de pensamento coletivo


que, quase sempre, exerce uma força coercitiva em seu pensamento e contra a qual
qualquer contradição é simplesmente impensável. (Fleck, 1935/2010, p.84).
Desse modo, cada indivíduo, coagido pelo estilo de pensamento, contribui para que, a
partir de observações confusas e formulações inseguras, seja alcançado o solo firme do fato
científico. “A tendência geral do trabalho de conhecimento é, portanto: um máximo de coerção
de pensamento (Denkzwang) com um mínimo de pensamento baseado na própria vontade”.
(Fleck, 1935/2010, p.144). Isso significa que a situação ideal para o cientista seria a que o coloca
como passivo diante do fato: o fato se impõe a ele como uma realidade que exige dele pouca
atividade para construir um sentido.
85
Fleck conclui, afinal: “Assim nasce o fato: primeiro um sinal de resistência no
pensamento inicial caótico, depois uma certa coerção de pensamento e, finalmente, uma forma
(Gestalt) a ser percebida de maneira imediata”. (Fleck, 1935/2010, p.144).

Além disso, Fleck também propõe uma organização no interior do coletivo de


pensamento, que seria composto por um círculo esotérico, formado pelos especialistas,
detentores das ferramentas e teorias que tornam possíveis enxergar de imediato os fatos com
que trabalham, e um círculo exotérico, formado por leigos instruídos, que ainda não dominam
o instrumental daquele estilo de pensamento, mas que validam a posição do círculo esotérico.
Há entre os grupos uma interação dinâmica que serviria para pensar como se dão as mudanças
no estilo de pensamento.

Se pensarmos que também os diferentes coletivos de pensamento interagem entre si e


que, por vezes, um indivíduo pertence a mais de um coletivo, fica visível a complexidade das
interações com que Fleck trabalha. Há trocas no interior do coletivo, há trocas entre coletivos e
também há indivíduos promovendo um tráfego de ideias entre coletivos. Posteriormente isso
será valioso para pensarmos não apenas o estabelecimento da versão de Jones sobre a fundação
da psicanálise, mas também como ela resiste a versões que a contradizem.

Seria possível aplicar o pensamento fleckiano ao próprio processo de surgimento da


psicanálise. Entretanto, o que faremos aqui é algo diferente: usaremos seu raciocínio para
pensar como a versão de Jones se torna o equivalente a um fato científico, nos termos de Fleck.
Antes disso, porém, poderíamos levantar a objeção de que Freud não teria como fazer parte de
um “coletivo de pensamento”, já que ele é o fundador de uma disciplina. Com relação a isso,
seria possível pensar que, mesmo inaugurando um campo, ele se inseria em um “estilo de
pensamento”. Ocorre que ele foi gradualmente se afastando do núcleo esotérico habitado por
seus mestres e com isso eventualmente reuniu reconhecimento suficiente para o aparecimento
de um novo núcleo, agora com ele incluído.

Além disso, Freud sempre trabalhou, como neurologista e futuro psicanalista, com
material muito diferente do que, por exemplo, um sorologista trabalha. Lidava com pessoas
que, de certo modo, funcionavam como um “círculo exotérico”, confirmando ou contestando a
validade de seu pensamento. E, levando em conta nossa discussão anterior, Freud não se
encontrava tão isolado quanto ele talvez acreditasse, o que faz com que também o meio
científico operasse nesse jogo complexo de reconhecer e rechaçar suas teorias, afastando-o do

86
coletivo de pensamento puramente neurológico e separando-o em um outro coletivo que estava
em vias de criação. Ou, colocando a questão de outra forma, Schäfer e Schnelle (2010) afirmam:

Novas possibilidades de se fazer descobertas somente se abrem, segundo Fleck,


quando a coerção exercida no pensamento começa a afrouxar, isto é, quando o
significado dos termos muda em virtude da manifestação de outras possibilidades de
significação no tráfego coletivo. (Schäfer & Schnelle, 2010, p.16).
Assim, nesse momento em que a coerção se torna menos intensa, ocorre uma disputa
entre as formas de explicação de determinado problema, até que uma acabe novamente tomando
lugar de destaque. Importante notar, porém, que em geral até mesmo essas novas formas não
representam uma completa ruptura com o saber anterior e carregam elementos presentes no
estilo de pensamento que rege aquele domínio do saber.

Animados por essa reflexão de Fleck, podemos agora avançar em nossa tentativa de
compreender a formação da narrativa de teor mítico sobre a fundação da psicanálise. Aqui, nos
valemos, como já referimos, de uma analogia entre a gênese do fato científico pensada por
Fleck e a criação da narrativa de Jones. Ao fazer isso, contudo, temos de ter em mente as
limitações de nossa investigação:

É difícil, quando não impossível, descrever corretamente a história de um domínio do


saber. Ele consiste em numerosas linhas de desenvolvimento das ideias que se cruzam
e se influenciam mutuamente e que, primeiro, teriam que ser apresentadas como linhas
contínuas e, segundo, em suas respectivas conexões. (Fleck, 1935/2010, p.55-6).
Como nossa proposta é bem mais restrita, talvez não seja impossível, apesar de ainda
difícil. Já vimos nos capítulos anteriores que muito dessa narrativa mítica foi inicialmente
construída por Freud e posteriormente consolidada por Jones. Observamos também que a
situação aqui não é de completa concordância, já que Jones em certos pontos contesta a versão
freudiana. De toda forma, o fio a ser seguido se inicia com Freud e é daí que partiremos.

Tomando o primeiro eixo de nossa discussão, a participação de Breuer na fundação da


psicanálise, já vimos que Freud de início apresenta-se como herdeiro de Breuer, como alguém
que apenas deu continuidade ao trabalho de seu predecessor. Entretanto, quando ele já havia
conseguido angariar apoiadores para suas teorias, se inicia uma mudança nessa narrativa,
propagada primeiramente por Ferenczi, que aponta Freud como quem sozinho avançou a
psicanálise e que foi, na verdade, abandonado por seu antigo colaborador. O próprio Freud
passa também a narrar os momentos iniciais de seu trabalho dessa mesma forma e começa a
apontar a si mesmo como único e legítimo criador. Na esteira disso, discípulos que não
acompanharam o momento da fundação radicalizam a posição freudiana, como Wittels faz, e
consideram que Breuer atrasou o progresso do pensamento freudiano. Num movimento de

87
reação, Stekel, ex-discípulo, vai no sentido contrário e declara que é Breuer o descobridor da
psicanálise.

Assim, notamos que os anos iniciais são de disputa entre narrativas que oscilavam entre
a consideração de Breuer ou de Freud como verdadeiro pai da psicanálise. Quando Jones
apresenta a questão, ele, embora deixe transparecer em um trecho ou outro certa ambiguidade,
toma a narrativa retificada de Freud como verdadeira. Ele vai além, se valendo das histórias
que circulavam sobre o término do tratamento de Anna O. para dar suporte à imagem de Breuer
que pretende transmitir. Como resultado, torna-se um fato que Breuer recuou diante da
descoberta do caráter sexual dos sintomas e que, portanto, estava justificada a posição de Freud
como único criador da psicanálise.

Jones está, com relação a esse ponto, completamente alinhado com o coletivo de
pensamento psicanalítico. A ação conjunta de algumas décadas de trabalhos cria as condições
para que essa versão já fosse tida como verdadeira antes mesmo que ele a imortalizasse em sua
biografia de Freud. Os trabalhos posteriores, como os de Sulloway, Hirschmüller, Ellenberger,
Skues e outros, embora apresentem larga documentação que contradiz diversos pontos dessa
versão parecem não conseguir ainda suplantá-la. De toda forma, a acumulação de versões que
contradizem a de Jones deve (ou deveria) eventualmente abalar a narrativa hegemônica, mas
não o fazem porque contradizem um ponto que é tomado como certo: Freud é um gênio solitário
que teve de vencer resistências até de seu colaborador para fundar sua ciência.

Com relação ao segundo ponto, a experiência única e inimitável da autoanálise


freudiana, sua elevação a ato fundador da psicanálise não se dá com Freud, mas como fruto dos
esforços combinados de Sachs, Kris e posteriormente Jones. Havia também umas poucas vozes
dissonantes, principalmente Stekel e Jung, mas que tinham pouco impacto na versão oficial,
visto que ambos já não integravam o coletivo de pensamento psicanalítico.

A produção posterior a Jones conta com Anzieu, Schur e Gedo insistindo no lugar
central da autoanálise para a criação de conceitos que servem de base à psicanálise, ao mesmo
tempo em que Ellenberger, Sulloway e, em certa medida, Gay, colocam em dúvida o
procedimento e seus efeitos. Também aqui, a narrativa de tom mítico, do Freud herói
desbravador das profundezas do próprio inconsciente e que emerge desse processo de posse de
um saber valioso parece ter sobrevivido. Essa reconstrução ignora até mesmo o fato de o próprio
Freud não localizar na autoanálise esse ponto central de suas principais descobertas.

88
Sobre o terceiro ponto, o splendid isolation, a situação é similar. Freud se sentia isolado
e se queixava disso e da má recepção de suas ideias desde muito cedo. Provavelmente seus
primeiros discípulos já entravam no círculo sob efeito dessa narrativa (vimos, por exemplo,
Sachs reproduzindo essa ideia). O curioso aqui é que Jones indica que o relato de Freud exagera
esse isolamento e apresenta alguns documentos para mostrar que ele não foi efetivamente mal
recebido e nem esteve isolado, já que continuou participando de sociedades médicas e também
proferindo conferências na universidade.

A produção posterior a Jones concorda com ele e fornece ainda mais elementos para
contestar a versão freudiana. Ellenberger, Masson, Decker e outros estudam com bastante
atenção a recepção às ideias freudianas e não tem dúvida de que se trata de uma lenda. Essa
impressão de rejeição da psicanálise talvez tenha se consolidado devido ao efeito retroativo de
episódios ocorridos principalmente na década de 1910, em que de fato o meio psiquiátrico
alemão se levantou contra o avanço do movimento psicanalítico. Tanto Freud quanto os
discípulos da época talvez tenham visto essa reação como confirmação da perseguição já
sentida desde antes e mais, como comprovação de que as verdades que a psicanálise acessava
causavam resistências nos médicos similares às dos pacientes. Assim, temos dois eventos
separados por mais de uma década, que se fundem na noção de que a psicanálise não foi bem
recebida (e talvez nunca seria) devido à natureza do material com que os psicanalistas
trabalham.

Se observamos agora em conjunto os três elementos, salta aos olhos que na base deles
se encontra uma noção de que Freud e a psicanálise sempre estiveram isolados do meio
científico hegemônico, e que a própria criação da psicanálise dependeu desse isolamento, que
obrigou Freud a um trabalho de fechamento em si mesmo para extrair, a partir da investigação
do próprio inconsciente, as bases conceituais para a nova ciência. Devido a isso, não faria
sentido que ele dividisse o mérito de sua criação com mais ninguém. Uma vez que essa versão
tenha sido alçada à categoria de um fato, ela era altamente resistente às modificações
posteriores. Desse modo, é possível pensar, como faz Fleck (1935/2010) que

O estilo de pensamento não é apenas esse ou aquele matiz dos conceitos e essa ou
aquela maneira de combiná-los. Ele é uma coerção definida de pensamento e mais: a
totalidade das disposições mentais, a disposição para uma e não para outra maneira de
perceber e agir. Evidencia-se a dependência do fato científico em relação ao estilo de
pensamento. (Fleck, 1935/2010, p.110).

89
Portanto, mesmo com o acúmulo de trabalhos que tentam abalar essa certeza, a lenda se
mantém porque se tornou necessário que a psicanálise ocupe esse lugar de singularidade, ou
melhor, de “excepcionalidade”, para usar a expressão de Simanke e Caropreso (2016).

O ineditismo da descoberta freudiana e a impossibilidade de se repetir a experiência da


autoanálise são a contraparte de uma posição da psicanálise como ciência absolutamente
singular, que rompe com os paradigmas que regem as outras disciplinas científicas. Embora
isso possa ser pensado por esse viés, é necessário marcar que nossa discussão não diz respeito
ao estatuto epistemológico da psicanálise, a um questionamento sobre que tipo de ciência ela
seria, mas nossa preocupação é, especificamente, o modo como analistas parecem crer que
apenas eles estão aptos a narrar a história de sua ciência e que, de modo geral, ela resiste a ser
integrada ao campo mais amplo de uma história das ciências.

3.3 – Contexto de produção do mito de fundação da psicanálise

Antes de discutirmos detalhadamente a reivindicação de excepcionalidade dos


psicanalistas, temos ainda de explorar outros aspectos desse processo que produz uma narrativa
de caráter mítico e faz com que ela seja tomada como fato por boa parte dos integrantes do
movimento. Embora tenhamos nos referido constantemente a uma “versão de Jones” ou
apontado o psicanalista galês como responsável por consolidar essa narrativa, tornou-se
evidente que ele se alimenta das informações veiculadas por toda uma série de pesquisadores e
as organiza em torno de uma certa figura de Freud heroico.

Assim, será inevitável examinar o cenário psicanalítico do período em que a biografia é


escrita e, embora possamos tocar em certos pontos da vida de Jones, o esforço é para
compreender o jogo de forças políticas que o afetavam, mas que no fim das contas o
atravessavam sem que ele estivesse sempre ciente disso.

Como já discutimos resumidamente no primeiro capítulo51, embora a biografia escrita


por Jones seja publicada a partir de 1953, o projeto de uma biografia oficial já estava em
andamento desde a década anterior. Já exploramos alguns elementos da decisão da família
Freud de apoiar Jones nesse projeto, mas agora precisamos expandir essa investigação, já que

51
Ver p.27-30.
90
parece-nos que outros fatores operavam nesse contexto. Para isso, teremos de acompanhar a
expansão do movimento psicanalítico em direção à Inglaterra e aos Estados Unidos.

3.3.1 – A psicanálise na Inglaterra

O interesse pela psicanálise na Inglaterra parece ter sido despertado relativamente cedo.
O primeiro autor a discutir ideias psicanalíticas no país foi Frederic William Henry Myers,
membro de destaque da Society for Psychical Research. Myers se vale do texto que Freud
publica em coautoria com Breuer, “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos”
para escrever “O mecanismo da histeria”, publicado em 1894. Entretanto, é apenas após o
retorno de Jones a Londres, em 1913, que começam as movimentações para uma
institucionalização. (Keeley, 2001).

Nesse mesmo ano, Jones se une a outros quatorze colegas na fundação da London
Psycho-Analytical Society. Essa sociedade, porém, não tem vida longa e em 1919 é dissolvida
após divergências entre os membros. Robinson (2019) aponta que a dissolução da sociedade foi
uma estratégia de Jones para expulsar os apoiadores de Jung após a ruptura deste com Freud.
Vemos, portanto, que Jones52 participa ativamente do esforço de expurgo daqueles que não se
mantém dentro do campo cada vez mais estreito do pensamento freudiano.

Após a experiência malsucedida da primeira sociedade, no mesmo ano Jones empreende


novos esforços para a fundação de outro grupo, a British Psycho-Analytical Society. No ano
seguinte foi fundado o International Journal of Psycho-Analysis e em 1924 o Institute of
Psycho-Analysis, que proporcionaria formação aos analistas britânicos, que não precisariam
mais buscar os centros de formação em Viena e Berlim. (King & Holder, 1992).

O International Journal, inclusive, era um importante instrumento de divulgação da


psicanálise aos falantes da língua inglesa, mas também exercia uma função de centralização e
controle do movimento. Jones se tornava, como editor do periódico e presidente da British
Society, uma liderança incontestável e também se via na posição de decidir que tipo de material
chegaria ao público através do veículo oficial do movimento. Não surpreende, portanto, que ele
tenha escrito, no editorial do primeiro número do International Journal: “The Journal will not

52
Jones, inclusive, era um dos membros do Comitê criado após a ruptura com Jung e que aspirava manter a
integridade do pensamento de Freud, combatendo as distorções e conduzindo, a partir dos bastidores, a política
institucional psicanalítica. Voltaremos a isso no capítulo 4.
91
only concern itself with psycho-analytical material, but will also crtically review all
publications dealing with the lines of research that diverge from Freud’s original work”. (Jones,
1920, p.5). O Journal já nasce como guardião da teoria freudiana contra os desvios promovidos
em toda parte. Jones se posiciona de modo semelhante ao que Freud já havia feito53, e considera
que a psicanálise enfrenta resistências idênticas às que os psicanalistas se acostumaram a
encontrar no tratamento de neuróticos. Ele menciona duas formas principais que essa resistência
assume: “the first, more obvious, and therefore less dangerous one is opposition, the new truths
being denied as false and decried as obnoxious”. (p.4). A segunda forma, “more insidious, and
much more formidable one is to acquiesce in the new ideas on condition that their value is
discounted, the logical consequences not drawn from them, and their meaning diluted until it
may be regarded as ‘harmless’”. (p.4). Num movimento não muito diplomático, Jones
acrescenta:

The opposition to PsychoAnalysis, particularly in America, is assuming more and


more the second of these forms, under all sorts of specious guises and by the aid of
various seductive catchwords that appeal to attitudes or principles entirely legitimate
in themselves, such as "resistance to dogma", "freedom of thought", "widening of
vision", "re-adjustment of perspective", and so on. That this opposition may not only
be displayed by outside antagonists, but may assume subtle forms also amongst those
having a nearer acquaintance with the subject, has been shewn on two or three notable
occasions already and will doubtless be shewn again in the future. A notable, and
perhaps unique, feature of this second form of defence against Psycho-Analysis is that
it conceals its negative antagonistic nature by pretending to develop a more positive
attitude towards Psycho-Analysis; it makes use of its technical terms, Libido,
"repression", etc., but in such a way as to rob them of their intrinsic meaning. (Jones,
1920, p.4).

Além disso, Jones declara que essas duas formas de resistência à psicanálise, a oposição
e a psicanálise selvagem, serão tratadas no periódico como se fossem idênticas. O recado aqui
é claro: os desvios que abundam em território norte-americano serão desmascarados e
denunciados, já que prejudicam tanto o movimento quanto a oposição aberta vinda de outros
campos.
Jones, portanto, se dedicava intensamente à consolidação da psicanálise na Inglaterra e
já guiava seus rumos desde muito cedo. Tanto ele quanto James e Alix Strachey e também Joan
Riviere traduziam textos de Freud, Ferenczi e Abraham para o inglês, garantindo assim o acesso
à obra desses autores àqueles que não dominavam o alemão.

53
Esse é o argumento de Freud (1914/1996): “Se era verdade que o conjunto de fatos que eu descobri foram
mantidos fora do conhecimento dos próprios pacientes por resistências internas de natureza emocional, então essas
resistências forçosamente apareceriam também em pessoas sadias logo que alguma fonte externa as levasse a um
confronto com o que fora reprimido”. (p.33).
92
Mesmo com uma relativa estabilidade alcançada e com a união dos membros, um tema
dividia a sociedade e incitou debates na década de 1920: a análise leiga. Apesar de cerca de
40% dos membros da sociedade serem leigos, após uma consulta realizada pelo Sub-Comitê
sobre Análise Leiga, concluiu-se que “the British Psychoanalytical Society is practically
unanimously of the opinion that most analysts should be medical but that a proportion of lay
analysts should be freely admitted provided that certain conditions are fulfilled”. (Robinson,
2019, p.6). Jones era ainda mais radical e defendia que os analistas “should not engage in
practice independently of the medical profession”. (Jones, 1927, p.182; citado por Robinson,
2019, p.6). As divergências com relação ao problema da análise leiga e seus desdobramentos
serão determinantes para o desenvolvimento da psicanálise particularmente nos EUA, como
veremos na seção seguinte.
Ao longo da década de 1920, o interesse dos ingleses por questões referentes à infância
levou a uma aproximação dos trabalhos de Klein, que foi posteriormente, em 1927, trazida para
Londres. A partir de 1933, com o aumento do antissemitismo, começam a emigrar psicanalistas
judeus, inicialmente vindos da Alemanha e posteriormente da Áustria. Em 1938, Londres passa
a ser residência da família Freud, que também se viu forçada a abandonar Viena. (Robinson,
2019).
Após a morte de Freud, há um acirramento das tensões no interior da Sociedade que
precipita o que veio a ser conhecido como “controvérsias Freud-Klein”. Essa situação só é
resolvida após longas discussões entre 1942 e 1944, que resultou num programa de formação
de analistas que oferecia tanto uma formação baseada no pensamento de Klein quanto no de
Anna Freud, com a participação também daqueles que não se posicionavam em nenhum dos
lados. Interessante notar que, em outros momentos da história do movimento, divergências tão
radicais geralmente culminavam na expulsão daquele que se afastava demais do pensamento
freudiano. Aqui, talvez pela primeira vez, é formado um acordo que tolerava a diferença e
tentava manter a integridade do movimento. Não parece ser coincidência que um tal arranjo só
é possível após a morte de Freud.
Já no início da década de 1950, e com a escrita da biografia em andamento, Anna Freud
comenta e fornece informações a partir dos rascunhos que Jones envia a ela. Entretanto, ela
também o pressiona em diversos momentos e deixa transparecer o que ela espera da biografia
do psicanalista galês. Por exemplo, em 19 de setembro de 1952, após criticar as pesquisas de
Bernfeld e sua esposa sobre a relação de Freud com a cocaína, Anna afirma: “deveria ser seu
papel silenciar os outros biógrafos, que precisam inventar metade desses fatos”. (Borch-

93
Jacobsen & Shamdasani, 2014, p.267). Apenas alguns dias mais tarde, em 23 de setembro de
1952, pergunta, impaciente, quando sairá o primeiro volume, já que “basta [o aparecimento de
seu livro] para silenciar os autodesignados biógrafos, já que a diferença no material disponível
se tornará evidente. Certamente farei o que puder para desencorajar os outros”. (Borch-Jacobsen
& Shamdasani, 2014, p.291). Ela insiste na questão na carta de 25 de novembro do mesmo ano,
onde declara: “Faço votos para que agora seu livro impeça quaisquer tentativas malucas de
biografia sobre meu pai que estejam no ar (ou no papel)”. (Borch-Jacobsen & Shamdasani,
2014, p.291).
É possível notar então que Jones, um dos fundadores e principal psicanalista da British
Society, ao tomar para si a tarefa da escrita da biografia, enfrentava alguma pressão da família
Freud, mas também era afetado pelas suas próprias concepções sobre quem era Freud. Parece-
nos que, para além desses fatores, havia uma questão referente a um certo deslocamento do
centro do movimento psicanalítico, inicialmente de Viena para Londres, com o exílio de Freud
nessa cidade, mas com o crescimento da psicanálise nos EUA, essa posição estava ameaçada.
Já vimos que Jones, que havia tentado se estabelecer nos EUA décadas antes, agora via o avanço
da psicanálise no país com desconfiança. Tentaremos em seguida destacar alguns elementos da
entrada e expansão do pensamento psicanalítico no novo continente para refletir sobre os
diversos fatores que afetavam a produção da biografia e podem ter contribuído para a forma
como Jones retrata Freud.

3.3.2 – A psicanálise nos EUA

Ainda antes da morte de Freud, com a ascensão de Hitler ao poder e o crescimento do


antissemitismo na Europa, os psicanalistas judeus europeus (inicialmente os alemães, mas
posteriormente também austríacos, húngaros e outros) começaram a buscar refúgio em outros
lugares. Um dos destinos preferenciais eram os Estados Unidos, e a onda migratória das décadas
de 1930 e 1940 modificou não apenas o cenário no interior desse país, mas também o mapa da
psicanálise no mundo.

A entrada da psicanálise nos Estados Unidos ocorre oficialmente com a visita de Freud
em 1909, mas mesmo antes já havia grande interesse por seu pensamento. William James

94
resenha em 1894 um texto de Freud54, Havelock Ellis resenha “Estudos sobre a histeria” em
1899 e em 1906 Adolf Meyer publica um relato da teoria freudiana da sexualidade. De acordo
com Gifford (2008), “the first Americans to identify themselves as ‘Freudians’ and later as
analysts were J. J. Putnam and A. A. Brill”. (p.630). Ambos foram conduzidos à psicanálise por
influência de Jones, que em 1908 residia e trabalhava em Toronto e viajava com alguma
frequência aos Estados Unidos para proferir conferências sobre a teoria freudiana.

A visita de Freud em 1909, convidado por Stanley Hall para proferir conferências em
comemoração aos 20 anos da Clark University, foi um ponto importante na consolidação de um
movimento norte-americano que já se esboçava. Foi também nessa ocasião em que Freud teria
dito a Jung, ao avistar a Estátua da Liberdade: “Eles não sabem que lhes estamos trazendo a
peste”. (Lacan, 1955/1998, p.404). A frase, ao que parece, nunca foi dita. O que Jung relata é
que Freud disse: “Se eles soubessem o que estamos lhes trazendo”. (Roudinesco, 2016, p.180).

Roudinesco (2008) também aponta que

Lacan succeeded in bestowing a mythical aura on a phrase attributed to Freud to the


point where everyone in France is convinced that Freud really said it. In reality, this
phrase has become – for all Lacanians and for all the French – the founding myth of
a subversive representation of Freudian theory which fits in perfectly with what I have
called French exceptionalism. France is, in truth, the only country in the world in
which, as a result of the surrealists and Lacan’s teachings, Freud’s doctrine has been
regarded as ‘subversive’ and characterized as an ‘epidemic’ akin to the Revolution of
1789 and certainly not reducible to any variety of adaptive psychology. (Roudinesco,
2008, p.232).
Esse efeito, porém, não se restringiu à França. No Brasil é recorrente o uso dessa
referência55 para indicar o caráter disruptivo e subversivo da psicanálise. Também fica
insinuado nessa comparação da psicanálise com uma peste que a reação do mundo a ela é de
repúdio, combate e tentativa de eliminação. Roudinesco (2008) usa essa frase que Lacan atribui
a Freud para apontar também que ela faz parte de um projeto político do psicanalista francês,
de um modo similar ao que já indicamos acima: tomar as rédeas de um movimento que visa
recuperar esse caráter subversivo do saber psicanalítico que teria sido perdido desde Freud.

Mas voltemos ao tema da expansão da psicanálise nos EUA. Inicialmente existiam três
grandes centros de interesse pela obra freudiana: Nova Iorque, Boston e Baltimore-Washington.
Em 1911 foi fundada em Baltimore a American Psychoanalytic Association, apenas um ano

54
Gifford (2008) afirma que a resenha é de “Estudos sobre a histeria”, mas essa informação não pode estar correta,
já que esse texto só foi publicado no ano seguinte. A resenha é provavelmente da “Comunicação preliminar”, de
1893.
55
Há até mesmo um periódico intitulado “A Peste: revista de psicanálise e sociedade e filosofia”, da PUC-SP.
95
depois da criação da IPA. Em Boston, James Jackson Putnam56 funda a Boston Psychoanalytic
Society em 1914. Com a morte de Putnam em 1918, a Sociedade fica sem liderança e deixa de
existir, retornando em 1924 e continuando até 1928 sob coordenação de Isador Coriat. No início
da década de 1910, Putnam tenta conseguir a indicação de Jones para lecionar na Harvard
Medical School, sem sucesso. Jones retornaria à Inglaterra em 1913 após fracassar em conseguir
lecionar também na Johns Hopkins University. (Kurzweil, 1998; Millet, 1966; Hale, 1995).

O fato de Jones não ter conseguido efetivamente se estabelecer nos Estados Unidos foi
algo que produziu efeitos posteriormente em toda a distribuição da psicanálise no mundo. É por
esse motivo que ele retorna à Inglaterra e se estabelece ali como figura de liderança e cria em
Londres um importante polo de formação e produção psicanalítica. O curioso é que, pelo que
indica o estudo de Leys (1981), foi por interferência de Adolf Meyer 57 que Jones foi impedido
de receber o cargo de docente na Johns Hopkins University. Em Baltimore, Adolf Meyer era a
figura central. Ele dirigia a Phipps Clinic nessa mesma universidade. Mais tarde, por volta de
1930, se afasta da psicanálise.

Seu posicionamento com relação à psicanálise era vacilante58. Como aponta Leys
(1981), “although Meyer was influenced by Freudian theory, he never identified his views with
psychoanalysis”. (p.447). Na verdade, “he attempted to subsume psychoanalysis within what
he saw as his own broader psychobiological approach”, e, além disso, “the process of
subsumption was carried out at the expense of modifying Freudian ideas almost beyond
recognition”. (p.447).

Mas no episódio referente à tentativa de Jones de conseguir um lugar na universidade


onde Meyer trabalhava, ocorre que era conhecida a reputação de Jones desde sua saída da
Inglaterra, visto que ele tinha se envolvido em escândalos nos anos de 1906 e 1908, resultando
em sua demissão do hospital onde trabalhava. Ao que tudo indica, além disso, Jones havia
visitado Baltimore com Loe Kann, mulher com quem ele vivia, mas sem ser casado. Loe sofria
com dependência de morfina e sua saúde era bastante instável. Como indica Leys (1981), não
fica claro exatamente o que ocorreu nessa visita, mas tanto Meyer quanto os psiquiatras de
Baltimore parecem ter ficado chocados com o comportamento de Jones e, ao que parece, após

56
A relação de Putnam com a psicanálise e com Freud era complexa e carregada de ambivalência. Mais
informações a respeito podem ser encontradas em Hale (1971).
57
Uma outra fonte de informação sobre Meyer, para além de sua relação com a psicanálise é Lamb (2014).
58
Leys (1981) explora em detalhes a posição de Meyer no episódio em que ele pede Jones para redigir um artigo
que explore as principais ideias da psicanálise e que posteriormente teve trechos enormes removidos devido à
intervenção do editor da revista e do próprio Meyer (agindo como mediador). Como se pode supor, os trechos
censurados tinham relação com o tema da sexualidade.
96
esse momento as portas da Johns Hopkins estavam fechadas para ele. A hipótese, portanto, é
que uma postura excessivamente puritana dos membros da universidade os tornaram
indispostos com Jones e Meyer, fosse por concordar com eles ou por não pretender criar um
conflito, abandonou a ideia de trazer Jones para trabalhar no local.

Em Washington, o principal nome era William A. White, superintendente do Hospital


St. Elisabeth a partir de 1913. White publicou livros importantes parra a divulgação da
psicanálise nos EUA, como “Mental mechanisms” e “Outlines of psychiatry”. Em parceria com
Smith Elly Jelliffe, editava o Journal of Nervous and Mental Diseases e fundam, em 1914, o
Psychoanalytic Review, primeiro periódico de psicanálise em língua inglesa. Nesse mesmo ano,
funda a Washington Psychoanalytic Socitey, que mantém suas atividades até 1918, quando as
encerra por motivos não muito claros (especula-se que isso tenha relação com a eclosão da
Primeira Guerra Mundial). White presidiu a American Psychoanalytic Association duas vezes,
de 1915 a 1916 e de 1927 a 1928. De acordo com Gifford (2008), em 1919 White se rebela
contra o movimento psicanalítico internacional e declara: “The time has come to free American
psychiatry from the domination of the Pope at Vienna”. (Gifford, 2008, p.633). Ele propõe que
a associação se dissolva e seja integrada à American Psychopathological Association, o que não
acontece.

O centro de maior importância era Nova Iorque. Desde o início esteve vinculado
diretamente ao exercício da psicanálise por médicos no Manhattan State Hospital, onde Meyer
trabalhou entre 1902 e 1910. Mas a figura principal era A. A. Brill. Foi ele quem articulou a
fundação da New York Psychoanalytic Society em 1911. Essa sociedade não permitia membros
não-médicos (uma posição diferente da Sociedade de Boston, por exemplo), algo que era
mantido por pressão de Brill, embora na década de 1920 ele já aceitasse a presença de analistas
leigos com restrições (as analistas de crianças estadunidenses eram geralmente esposas de
médicos que se dedicavam à psicanálise).

É possível notar que já nos primórdios da recepção da psicanálise nos EUA, havia
disputas de poder e tentativas de romper com a influência europeia, bem como uma enorme
resistência à participação de psicanalistas não-médicos. Havia também o problema de não haver
um centro de formação de analistas, o que levava um grande número de praticantes a viajar para
a Europa, buscando ser analisado por Freud ou por alguns de seus discípulos de maior destaque.
Também não era incomum que algum analista europeu visitasse o país para realizar
conferências e ficasse por um período de alguns meses, para realizar análises dos psicanalistas
locais.
97
A partir da década de 1930, institutos de formação começam a ser fundados (primeiro
em Nova Iorque, depois em Chicago e Boston, bem como em Washington) e as tensões
referentes à presença de analistas leigos ganha novo fôlego, já que muitos dos europeus que
migravam não eram médicos (como Hanns Sachs) e não concordavam com essa restrição.
Também havia a questão da presença de psicanalistas junguianos e rankianos mesmo após a
ruptura desses autores com o movimento psicanalítico. Esse cenário heterogêneo estava fadado
a alimentar conflitos internos e externos.

No congresso da IPA em Paris, em 1938, a American Psychoanalytic Association


declara que passaria a não reconhecer membros europeus que migrarem para os Estados Unidos.
Essa resolução, em si mesmo problemática, era ainda mais grave com a intensa onda migratória
resultante do crescimento de tensões e expansão do poder nazista sobre a Europa. Apesar dos
esforços das sociedades para manter a prática da psicanálise acessível apenas aos médicos, era
impossível não conceder espaço a alguns psicanalistas europeus de renome e que já gozavam
de grande reputação como colaboradores de Freud.

Com a onda migratória resultante da Segunda Guerra Mundial, a maior parte dos
membros da IPA agora residiam em solo americano. Sua integração era difícil, já que implicava
em adotar um novo idioma59, começar uma prática clínica a partir do nada e se situar no
complexo jogo de forças político das sociedades locais60. Segundo Kurzweil (1998), “in 1925
the IPA had had 210 members, of whom 16 percent lived in the United States; [...] by 1952, of
the 762 members, 64 percent were in the U.S.”. (Kurzweil, 1998, p.132).

De forma aparentemente contraditória, as tentativas de restringir a prática da psicanálise


conviviam com uma profunda absorção do pensamento psicanalítico pela cultura norte-
americana. Assim, a sociedade estadunidense respirava psicanálise e incorporava seu
vocabulário à linguagem corriqueira.

Um indicativo da penetração da psicanálise na sociedade estadunidense foi o fato de


Freud ter sido capa da revista Time de 26 de junho de 193961. Numa reportagem de 5 páginas
(nas quais o espaço era disputado pelo relato sobre a vida de Freud e anúncios de aparelhos de
ar condicionado, lâminas de barbear, sapatos e whisky), temos uma amostra da forma como ele

59
Siegfried Bernfeld, por exemplo, se queixava constantemente em suas cartas a Jones que após escrever seus
artigos, tinha de enviá-los ao “Englischer” para revisá-los e torná-los legíveis.
60
Essa situação resultou em um grande número de cisões: Theodor Reik, Karen Horney e Erich Fromm são alguns
dos que se afastaram das instituições oficiais.
61
Hale (1995) também recupera entrevistas que Freud havia concedido a repórteres norte-americanos ao longo da
década de 1920. Parecia haver enorme curiosidade do público leigo com relação à psicanálise.
98
e suas teorias eram vistos. Freud era retratado como o psiquiatra de Viena que era perseguido e
criticado em sua cidade por sua ênfase no fator sexual e suas teorias extravagantes sobre o
complexo de Édipo. O tom da reportagem é no geral elogioso, e há inclusive referências aos
dissidentes Jung e Adler.

Outra prova da inserção da psicanálise na cultura norte-americana pode ser vista na


publicação, em 1955, de uma história em quadrinhos com o título “Psychoanalysis”. Embora
tenha tido vida curta, cancelada após 4 volumes, a publicação contém informações interessantes
sobre como a psicanálise era vista pela sociedade estadunidense. O personagem principal,
referido apenas como “o psiquiatra” tratava três casos, Freddy Carter, Ellen Lyman, Mark
Stone. Além das histórias dos referidos personagens, há um texto de uma página sobre “O
homem de Viena”. Nesse breve texto, somos informados que “by the time he was twenty, the
young doctor had established a name for himself in the field of psychological research”. Além
disso, os autores declaram que “Freud was regarded as something of a heretic for flouting the
long held beliefs of his older colleagues”. Por fim, apontam que “for ten years, Freud worked
alone in psychoanalysis. But after that decade, by 1906, others joined him and today
psychoanalysis is an accepted medical therapy practised all over the world”. (Gaines, Feldstein
& Severin, 1955, p.20).

Fica evidente que além de tomarem como base o relato freudiano (a referência aos dez
anos de isolamento é inegavelmente emprestada de “A história do movimento psicanalítico”),
há distorções difíceis de rastrear, como a afirmação de que já aos vinte anos Freud tinha uma
reputação na psicologia. Interessa-nos destacar a presença constante da figura do médico e da
Medicina, tanto na figura do psiquiatra que conduz os tratamentos quanto no trecho em que a
psicanálise é descrita como “terapia médica”.

Portanto, no final da década de 1940, já era possível localizar nos Estados Unidos
elementos suficientes para que as instituições se sentissem independentes do que era sentido
como controle político exercido pelos europeus. Já havia centros de formação de analistas no
país, que possibilitaram maior autonomia e tornavam todo o processo menos dispendioso
financeiramente. Isso certamente contribuiu para o aumento no número de analistas nos EUA.
Havia também a questão de já no final da década de 1930 as instituições norte-americanas terem
rompido com as regras gerais para a aceitação de candidatos e puderam aplicar a exigência de
treinar apenas médicos.

É nesse contexto que Hale (1995) afirma:

99
The formal winnowing of candidates, the training analysis, the case seminars, and the
new medical and psychiatric requirements profoundly altered the professional role of
the analyst himself. He was once an outsider, attracted to a new idea, for which he
was willing to brave disapproval. He became part of an organization in which tradition
became more important than originality, orthodoxy than creativity. (Hale, 1995, p.35).

A grande penetração da psicanálise na cultura também criava o clima ideal para a


popularização da psicanálise, ampliando o mercado de trabalho dos analistas e tornando a
carreira de psicanalista atraente para médicos. Entretanto, todo esse clima favorável não
apagava as diversas tensões: internas, com os protestos de analistas refugiados se sentindo
excluídos e tendo sua participação nas instituições limitada e externas, com a visão dos
psicanalistas europeus de que a psicanálise estadunidense era uma versão diluída e banalizada
que já não correspondia à teoria fundada por Freud. Adicionalmente, surgem no país as
biografias de Freud que despertam revolta e reprovação da família Freud e que, de certa
maneira, funcionam como o estopim para o projeto da biografia de Jones.

Então, quando Jones toma para si esse projeto, esse clima de tensão entre os psicanalistas
estadunidenses e europeus estava particularmente ativo. Anna Freud se ressentia do tratamento
dado a seu pai em algumas biografias publicadas em solo norte-americano, Jones se apoiava
em Freud para criticar a recepção superficial e distorcida da psicanálise no país e a proporção
de psicanalistas residentes nos EUA, quando comparada à Europa, dava a impressão de que o
centro político do movimento deveria se deslocar em direção ao país. Bernfeld, que havia ao
longo da década de 1940 ambicionado produzir uma biografia de Freud de teor mais crítico,
chegava ao início da década de 1950 com a saúde muito debilitada e não consegue avançar com
seu projeto. Todos esses elementos contribuem e comparecem na versão que Jones constrói de
Freud, versão que inclusive resiste ao uso que os norte-americanos faziam de sua obra. Ao
concentrar novamente o poder de decisão sobre o que é ou não psicanálise na figura de Freud,
Jones, entre outras coisas, tenta conter o avanço de uma forma de psicanálise que ele considera
ilegítima, ao mesmo tempo que atende a um anseio da família Freud e apresenta-nos uma figura
heroica que também ressoa positivamente na mente daqueles que já estavam prontos a recebê-
la há décadas.

Assim, parece que um efeito dessa forma de pensar o movimento psicanalítico é a


produção de divisões cada vez maiores, fragmentando o movimento no nível mundial, mas
também produzindo diversas pequenas fraturas no interior de cada país. Essa forma de se
organizar, que por um lado tende à ortodoxia e conservação da tradição, e por outro tende à

100
desagregação, parece ser mantida nas instituições ao redor do mundo. Tentaremos no próximo
capítulo refletir sobre essa questão.

101
Capítulo 4 – O problema de uma historiografia psicanalítica

No capítulo anterior interpretamos as narrativas sobre a fundação da psicanálise, em


particular a de Jones, a partir do pensamento de Eliade sobre mitos de origem e das hipóteses
de Fleck sobre a gênese do fato científico, além de olharmos com mais cuidado para o contexto
em que Jones escreve a biografia de Freud. Eliade nos auxilia a compreender a força de uma
narrativa mítica e como nos apegamos a um mito de fundação. Campbell, da mesma forma,
demonstra que o mito do herói ainda é potente e se atualiza, como estamos supondo ser o caso
dos relatos sobre Freud. Já Fleck, nos dá as ferramentas para colocar em questão a forma como
se constroem essas narrativas, que tendem a retratar Freud como isolado, já que o autor torna
explícito o fato de que o conhecimento científico é necessariamente uma produção coletiva.
Além disso, ele nos ajuda a refletir sobre como essa narrativa resiste a retificações, sob efeito
da coerção de um estilo de pensamento.

Foi possível notar algo que já vinha se insinuando desde os capítulos anteriores: os três
eixos que destacamos para a compreensão das narrativas sobre a criação da psicanálise
convergem para uma visão de Freud como herói e da psicanálise como uma ciência que ocupa
um lugar de excepcionalidade.

A “reivindicação de excepcionalidade” apontada por Simanke e Caropreso (2016)


transpõe o isolamento freudiano para toda a psicanálise. É como se tomássemos esse elemento
como representativo da posição da psicanálise no mundo, estabelecendo como fato que os
outros campos da ciência não são capazes de compreender devidamente nosso modo de pensar
e, em última instância, como se cada psicanalista individualmente atualizasse essa posição, que
varia desde outsider a perseguido pelo establishment.

Em outras palavras, esse discurso da excepcionalidade cumpre, por si só, uma função
de desconhecimento, ao fomentar uma visão idealizada e heroica da história da
psicanálise e de seus protagonistas, cultivando uma autoimagem subversiva (e algo
adolescente, diga-se de passagem) e passando por alto o fato de que nenhuma ciência
permanece jovem e revolucionária para sempre 62. (Simanke & Caropreso, 2016,
p.323).

Young-Bruehl e Schwartz (2012) também já haviam notado essa dificuldade dos


psicanalistas de realizar uma pesquisa historiográfica sem cair nos relatos biográficos de

62
Utilizamos uma versão da obra em e-book que não contava com numeração de página e sim com o marcador de
“localização”. O número incluído após o ano diz respeito a isso.
102
personagens de destaque, o que faz com que, na visão dos autores, a psicanálise permaneça
sendo uma disciplina sem história. A solução proposta por eles, entretanto, parece-nos
contraditória: devemos tratar a psicanálise como um indivíduo traumatizado, que permanece
ainda preso ao momento traumático. Assim, embora localizem de forma precisa o problema,
retornam a uma posição que prega uma historiografia pautada por preceitos psicanalíticos, que
talvez seja exatamente o tipo de postura que torna difícil a relação dos psicanalistas com a
própria história.

Esse tipo de proposição nos fornece ocasião para refletir sobre a relação tensa entre
psicanálise e história. Gay (1998) pensa que a psicanálise, assim como a história, “se concentra
em compreender o passado, trabalha para tornar legíveis indícios ilegíveis” e “escavar além da
superfície até as camadas ocultas obscurecidas e distorcidas pela passagem do tempo ou [...]
pela necessidade de negar verdades desprazerosas”. (Gay, 1998, p.118). Meyerhoff
(1962/1987) também vê proximidade entre as duas disciplinas e afirma que “um método
histórico é uma parte integral da teoria e terapia psicanalítica”. (Meyerhoff, 1962/1987, p.17).

Ambos argumentam que tanto a psicanálise quanto a história trabalham no limite entre
a ciência e a arte, entre o objetivo e o subjetivo. Há, sem sombra de dúvidas, diferenças entre
as disciplinas, a principal delas se referindo ao acesso ao material com que trabalham. Como
aponta Gay (1998), “não é possível psicanalisar os mortos”. (p.120). De toda forma, “o
historiador está fadado a fazer suposições, se espera que suposições bem informadas, para
preencher as lacunas nas evidências”. (Gay, 1998, p.120). Um historiador informado pela
psicanálise poderia se servir muito mais das perguntas que ela ajuda a levantar do que das
respostas que ela eventualmente pode fornecer. (Gay, 1998, p.124). Há também aqueles, como
Löwenberg (2007), que afirma que “psicanálise é história, e as metas culturais e profissionais
do historiador e do psicanalista são as mesmas: nos libertar do fardo do passado consciente e
inconsciente ao nos ajudar a compreendê-lo”. (Löwenberg, 2007, p.19).

Um dos pontos que Gay (1998) indica como sendo uma contribuição importante da
psicanálise para a história diz respeito ao uso da noção de contratransferência. Ele argumenta
que assim como na psicanálise, historiadores que tem atenção a fatores contratransferenciais
podem se beneficiar e produzir uma reflexão menos distorcida do seu problema de pesquisa.

103
Esse ponto, das distorções que o historiador pode introduzir63 é ainda mais evidente
quando se trata de uma biografia. Há um longo e complexo debate a respeito das formas como
um biógrafo pode se proteger da interferência excessiva de fatores afetivos ao narrar a vida de
outra pessoa, e psicanalistas participam ativamente desse debate.

4.1 – A biografia psicanalítica em questão

Desde o estudo biográfico de Freud sobre Leonardo, em 1910, houve um crescimento


das biografias que se afirmariam psicanalíticas. Inicialmente, apenas psicanalistas se
aventuravam por esse terreno, mas não demorou para autores fora do movimento psicanalítico
se servirem das teorias freudianas em seus trabalhos. (Hoffman, 1984).

Sabemos que o próprio Freud se mostrava desconfiado, quando não abertamente


indisposto, com relação à escrita de biografias. Quando, por exemplo, soube que Arnold Zweig
tinha intenção de biografá-lo, reage imediatamente: “qualquer um que se torne biógrafo
compromete-se com mentiras, dissimulação, hipocrisia, lisonjeio e até mesmo ocultação de sua
própria falta de compreensão, já que a verdade biográfica não é atingível, e mesmo se fosse,
não poderia ser utilizada”. (E. Freud, 1970, p.127). Talvez acreditando que ele mesmo estivesse
protegido contra idealizações64, em “Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci”, Freud
(1910/2015) alerta:

biógrafos, de uma maneira muito própria, se fixam em seus heróis. Com frequência,
eles os escolheram como seu objeto de estudo, porque eles, devido a sua vida afetiva
pessoal, lhes confrontaram de antemão, com um afeto especial. Eles se dedicam então
a um trabalho de idealização, que se esforça em inserir o grande homem no interior
de seus modelos infantis, para reviver nele a imagem do pai. Eles apagam esses
desejos, preferindo os traços individuais em sua fisionomia, apagam os rastros de sua
luta com resistências internas e externas, não toleram neles nenhum resto de fraqueza
humana ou imperfeição e nos dão, realmente, uma imagem ideal, fria, estranha em
vez de uma pessoa, que poderíamos sentir como um parente distante. Deve-se
lamentar que, ao fazer isso, eles sacrificam a verdade por uma ilusão, renunciando,
em troca, às suas fantasias infantis e à oportunidade de se ismicuir nos mistérios mais
excitantes da natureza humana. (p.153).

63
Como vimos brevemente no capítulo anterior, Freud já apontava as distorções que o historiador insere em seu
relato desde muito cedo, comparando-o com o neurótico. Ver p.68-9.
64
Para além das críticas contra basear parte de suas hipóteses ao usar uma fonte que continha um erro de tradução,
como podemos ver em Lichtenberg (1978) e Caine (2010), há autores, como Elms (1988), que apontam como, ao
longo de seu texto sobre Leonardo, Freud incorre exatamente nos erros contra os quais alerta na passagem citada
adiante.
104
Os posicionamentos com relação ao tipo de trabalho que é possível realizar ao escrever
uma biografia variam bastante. Elms (1994) propõe que o biógrafo tome como sujeito de seu
estudo alguém com quem tenha uma relação ambivalente, de modo que isso o proteja de
idealizações. Ele crê que desse modo a objetividade será obtida, já que sentimentos negativos
serão contrabalançados pelos positivos. O autor acredita, também que qualquer biógrafo se
beneficiaria de um tratamento analítico, embora isso não seja uma garantia de sucesso:

o campo dos estudos biográficos de Freud está repleto de trabalhos de psicanalistas


que presumivelmente foram completamente analisados, mas que (como Ernest Jones)
permanecem incapazes de controlar sua forte transferência positiva ou negativa com
relação ao velho. (Elms, 1994, p.20).

Gedo (1972) não tem nenhuma dúvida ao afirmar que “o mais difícil problema
metodológico da biografia é a questão da transferência”. (p.644-5). Edel (1984) é da mesma
opinião: “’transferência’ está no centro de toda escrita biográfica, mas os biógrafos resistem a
essa concepção de seu trabalho”. (p.284). Para Schepeler (1990), há uma série de estratégias
para ajudar o biógrafo a lidar com fatores transferenciais. Em primeiro lugar, ele deve se
interrogar sobre o motivo de ter escolhido determinado sujeito para ser biografado. Além disso,
o biógrafo pode se defender de uma escrita completamente dominada pela transferência através
da colaboração com um analista, autoanálise ou discussão detalhada dos resultados com
colegas. Uma outra recomendação interessante de Schepeler (1990) é que o autor inclua na
biografia um pequeno texto discutindo sua relação com o biografado.

Esse é também o modo de pensar de Dosse (2009). O biógrafo “ficcionaliza seu objeto
e torna-o, por isso mesmo, inalcançável, apesar do efeito de vivido que com isso obtém”. (p.71).
Nesse exercício complexo de combinação entre o factual e ficcional, será tarefa do biógrafo
expor “as motivações que o levaram a acompanhar a vida do biografado e retraçar-lhe a
carreira”. (Dosse, 2009, p.95). Somente ao fazer isso, ele “revela seus objetivos, suas fontes e
seu método, elaborando assim uma espécie de contrato de leitura com o leitor”. (p.95).

Um curioso exemplo de contrato de leitura pode ser visto na introdução ao estudo


biográfico de Freud e Bullitt (1966/1984) sobre Thomas Woodrow Wilson. Ali, Freud afirma:

Devo porém, iniciar minha contribuição a este estudo psicológico de Thomas


Woodrow Wilson confessando que a figura do presidente americano, ao despontar no
cenário europeu, foi-me antipática desde o começo, e que esta aversão só fez crescer
à medida que, com o passar do tempo, vim a saber mais dele. (Bullitt & Freud,
1966/1984, p.18)

105
Em seguida Freud declara que eventualmente sentiu por Wilson alguma simpatia, logo
substituída por comiseração, e que foi sob efeito desse afeto que escreveu aquela obra. Mesmo
após essa confissão, Freud insiste para que o leitor “não rejeite o presente trabalho como
produto de preconceito. Embora não tenha nascido isento de sentimentos fortes, estes
sentimentos foram totalmente subjugados”. (Bullitt & Freud, 1966/1984, p.20).
Anderson (1981) afirma que “o reconhecimento da contratransferência e o
desenvolvimento da empatia são as duas técnicas mais adequadas para proteger contra a
tendência a ser depreciativo”. (p.465). Desse modo, não basta manter sob controle fatores
transferenciais, mas também construir algum vínculo empático com o biografado. É nesse
sentido que Edel (1961) propõe que
o biógrafo deve tentar se conhecer antes de tentar conhecer a vida de outra pessoa.
Auto-conhecimento, como sabemos, é raramente completamente alcançado. E nosso
dilema é que para escrever uma boa biografia, devemos nos identificar com nosso
sujeito em algum grau; de que forma re-experimentamos seus sentimentos, seus
problemas, suas lutas? Devemos tentar medir o mundo através dos olhos do sujeito e
penetrar nesse mundo. Mas ao nos tornarmos essa outra pessoa para os propósitos da
biografia, o biógrafo arrisca tudo. (...) Ele deve ser compreensivo porém reservado,
envolvido e não envolvido. Esse é o coração de sua tarefa. (p.461).

O autor conclui que “o melhor [...] que o biógrafo orientado analiticamente pode fazer
é cultivar sua consciência de tais questões e reconhecer a ameaça constante que elas
representam à sua objetividade. Assim ele pode trabalhar um pouco menos cegamente e de
forma menos ignorante”. (Edel, 1961, p.461). Young-Bruehl (1998) também advoga em favor
do estabelecimento de uma relação de empatia entre o biógrafo e seu sujeito. Ela, contudo, faz
a ressalva de que empatia não significaria “colocar-se no lugar do outro”, mas “empatia
envolve, ao contrário, colocar o outro em si, se tornar o habitat de outra pessoa, [...] mas sem
dissolver a pessoa, sem digeri-la”. (Young-Bruehl, 1998, p.22).
Parece haver acordo sobre o fato de que “não há algo como um biógrafo invisível”.
(Novak, 1989, p.38). Seria prudente, para Novak (1989), que “no lugar de ambicionar uma
objetividade ilusória”, o biógrafo tentasse “admitir sua presença na obra e oferecer seus
julgamentos tão honestamente quanto possível”. (p.38). É nesse sentido que Dosse (2009),
apesar de definir a biografia como um “relato no qual o narrador se ausenta da história que
conta”, faz questão de destacar que ela não é “escrita a partir de uma exterioridade total”. (p.95).
Mesmo assim, há autores que acreditam que a psicanálise é a única ferramenta capaz de
neutralizar essa tendência à idealização e distorção presente na escrita de uma biografia.
Hitschmann (1956) talvez seja o autor mais radical nesse sentido. Em seu texto “Some psycho-
analytic aspects of biography”, ele propõe que “the developments of psycho-analysis and

106
biography in the course of recent years have been such that, in a sense, the two have become
identical”. (Hitschmann, 1956, p.265). Ele compara o processo de análise ao de construção de
uma biografia: o analisando seria compelido a produzir sua autobiografia ao relatar sua vida ao
analista, ou, como Hitschmann denomina em tom de brincadeira, “biolistener”.

Se uma análise é um processo idêntico à produção de uma biografia, e apenas o analista


é habilitado para a condução de um tratamento analítico, não resta a Hitschmann (1956)
nenhuma dúvida de que “only an analyst is competent and qualified to write the biographies of
great men”. (p.269). Essa afirmação é um exagero que demonstra exatamente quão longe alguns
analistas são capazes de chegar em sua idealização da psicanálise. Mesmo que muitos de nós
possamos não concordar com a declaração de Hitschmann, ela ainda encontra eco em nossos
contemporâneos.

Um exemplo pessoal ilustra esse ponto: enquanto cursava uma disciplina de


metodologia no primeiro ano de doutorado, todos os discentes deviam relatar brevemente suas
pesquisas e ouvir comentários e sugestões dos colegas. Ao ouvir sobre minha pesquisa uma
colega faz o seguinte questionamento: “Você é analisado?” Ela não interrogou sobre minhas
fontes, ou sugeriu algum cuidado em termos de método, apenas insinuou, com sua pergunta,
que eu talvez não estivesse qualificado para investigar os relatos que eu considerava idealizados
da vida de Freud e que provavelmente deixaria fatores inconscientes influenciarem minha
pesquisa, comprometendo qualquer resultado que eu pudesse alcançar. Embora esse tipo de
cuidado deva ser tomado em toda pesquisa, já que seria prudente que não deixássemos nossos
conteúdos internos tomarem o primeiro plano em nosso trabalho de investigação, ela não fez
essa pergunta a mais ninguém. Nenhum outro pesquisador precisaria desse cuidado extra da
análise, apenas aquele que pretendia revisitar a forma como narramos a fundação de nossa
disciplina.

Portanto, a questão talvez não seja sobre a possibilidade de produzir uma biografia
objetiva, mas de como, sabendo que o autor inevitavelmente participa da obra que produz,
comunicar ao leitor o melhor possível os pontos onde o biógrafo surge de forma mais marcada.
Além disso, o biógrafo não deveria estar atento unicamente ao surgimento de conteúdos
inconscientes em seu relato, mas também localizar as influências do contexto histórico na
produção de sua biografia. De toda forma, se, para grande parte dos autores, parece que o
contato com a psicanálise pode ser útil para escrita de uma biografia, ele não é garantia de
sucesso e nem a única fonte a que eles recorrem. Mesmo Hitschmann (1956), o mais veemente
defensor da psicanálise como ferramenta para produção de biografias, é capaz de afirmar que
107
“whatever you write, you write only about yourself – even when writing biographies of others”.
(p.269). Desse modo, não há possibilidade de isenção total, e nossa investigação deve se manter
ainda nesse campo das idealizações retratadas nas biografias e o que pode tê-las motivado.

4.2 – Ficção, idealização e identificação

Um exemplo um tanto radical de uma ficção que toma o lugar do fato por ser algo que
concorda com os desejos mais íntimos de quem as acessa diz respeito à circulação de uma carta
que Freud teria enviado a Lacan em resposta ao envio da tese deste. É difícil localizar a primeira
referência feita a esse documento, mas a carta surgia em blogs de instituições psicanalíticas65
ou páginas pessoais de psicanalistas no Facebook com alguma frequência (principalmente entre
2012 e 2017).

A carta aparece pela primeira vez como um capítulo do livro “Discorrer a psicanálise”,
de Roberto Harari, publicado em 1987. É acompanhada de uma nota preliminar, onde o autor
destaca a importância do documento: “nesta carta inédita [...] o criador da psicanálise comenta
e discute – como é habitual nele, com lucidez e perspicácia – o caso fundamental da tese de
doutorado do jovem psiquiatra Lacan”. (Harari, 1987, p.172). A carta, composta por 7 páginas
em que Freud debate detalhadamente a tese que lhe foi enviada por Lacan, é no geral carregada
de elogios e esforços para estabelecer parentesco entre o pensamento de Freud e Lacan. Há um
estranho tom de reverência, como se Freud já estivesse enxergando no francês um gênio que
ainda não havia alcançado todo seu potencial.

Porém, o capítulo conta também com um epílogo. Nele, o autor revela: “Se seu poder
discrecional, leitor soberano, outorgou uma margem de verossimilhança ao que acaba de
concluir, meu propósito ao escrever esta carta se dá por cumprido”. (Harari, 1987, p.180). Desse
modo, no próprio texto em que apresenta a carta, o autor revela não passar de um exercício de
ficção66. Ficção, contudo, que, no seu modo de pensar, não é sem razão. A carta, para Harari

65
Por exemplo, a versão publicada no site da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro
(http://www.freudiana.com.br/textos-interessantes/carta-de-freud-lacan.html) e no Centro Lacaniano de Chile
(http://ceiplacan.blogspot.com/2014/04/carta-de-freud-lacan-en-respuesta-al.html).
66
Na realidade, Freud enviou a Lacan apenas um cartão, com uma única frase, agradecendo o envio da tese. Isso
pode ser visto em Ornicar? (1984). Não conseguimos acesso direto à revista, apenas a uma imagem da página onde
aparece o cartão, que incluímos como Anexo B.
108
(1987), cumpre o “propósito de transmitir aquilo que, ao estar de Miller, existe – não só
epistolarmente, claro – entre Freud e Lacan: ‘nada mais que uma linha’”. (Harari, 1987, p.181).

É alarmante que ela tenha sido apresentada como documento de forma incontestável, e,
ao que parece, ninguém checou de fato a origem da carta, apesar de em muitos lugares ela vir
acompanhada de uma nota sobre o livro de onde foi retirada. A situação chega ao seu ápice
quando é citada e são extraídas conclusões do que Freud teria dito no infame documento, como
é o caso com a dissertação67 de Raquel Briggs de Albuquerque, defendida na UERJ em 2012.
A autora voltaria a tomar essa referência como se fosse real em um artigo68 publicado na Revista
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental em 2014, escrito em coautoria com a
orientadora de sua dissertação, Doris Rinaldi. Ambas também apresentaram um trabalho69 onde
se valem mais longamente dessa referência no VI Congresso Internacional de Psicopatologia
Fundamental, realizado em 2014 em Belo Horizonte.

Não é nossa intenção acusar as autoras de terem realizado uma pesquisa pouco criteriosa
(embora pareça ter sido esse o caso, já que a referência foi incluída e tomada como fonte de
algumas reflexões sem que checassem a informação), mas elas servem como um trágico
exemplo de como, na ânsia por confirmação de algo em que já acreditávamos, por vezes não
nos valemos de nossa capacidade crítica e apenas reproduzimos aquilo que nos foi comunicado.
Parece ser um processo complexo de recepção e reprodução de informações verossímeis,
embora improváveis, muitas vezes acompanhadas de detalhes que depõe contra a confiabilidade
do material, mas que são tomadas como factuais de toda forma. Interessante destacar, também,
que de fato a crença na veracidade da carta ultrapassa as autoras, já que seu texto foi submetido
a um periódico conceituado, seu trabalho lido diante de outras pessoas no congresso, ou seja,
foi avaliado por outros psicanalistas que, ao que parece, compartilhavam com elas a certeza de
que a carta era real. Aqui, estamos certamente no campo que percorremos no capítulo anterior,
acompanhados de Fleck (1935/2010), em que a coerção de um determinado estilo de
pensamento torna efetiva a assunção de algo à categoria de fato, à qual é muito difícil não ceder.

Se uma ficção construída deliberadamente alcança esse efeito de realidade, não é difícil
imaginar que os pontos que levantamos nos dois primeiros capítulos também tenham o mesmo
resultado. Ao pintar a imagem de um Breuer assustado, que foge para uma segunda lua de mel

67
Albuquerque (2012), especificamente na p. 88.
68
Albuquerque e Rinaldi (2014a), p.424.
69
Nessa ocasião, as autoras acrescentam que a referida carta teria chegado às mãos de Miller, que a teria publicado
na revista Ornicar?. Como já indicamos, nessa revista há apenas o cartão em que Freud agradece ao envio da tese,
sem nenhum desenvolvimento maior ou comentário. Ver Albuquerque e Rinaldi (2014b), p.3.
109
após descobrir que Anna O. encenava suas fantasias de gravidez, Jones toma certos elementos
factuais e acrescenta informações que circulavam informalmente, mas que se baseavam nas
reconstruções que Freud fez do episódio. Jones, portanto, não cria propositalmente uma ficção,
mas retira o caráter de dúvida que deveria estar presente, dada a origem da história. Da mesma
maneira, quando Jones relata a autoanálise e seus efeitos magníficos, o pano de fundo é sua
crença na genialidade de Freud, compartilhada pela maioria dos psicanalistas de então (e mesmo
de agora). Somente essa crença torna verossímil sua ficção e a protege das tentativas de colocar
em questão esse relato. Por fim, o profundo isolamento descrito por Freud, embora colocado
em dúvida por Jones, sobrevive como narrativa que explica as dificuldades enfrentadas na
recepção da psicanálise mais tarde e funciona como justificativa de sua eficácia. Freud estava
isolado exatamente porque suas teorias estavam corretas e suas descobertas provocavam em
seus pares a mesma resistência que ele encontrava nos pacientes em tratamento.

Mas por que precisaríamos de atribuir o status de gênio a Freud? Por que infundir nele
tantas qualidades, tornando uma figura quase sobre-humana? Praticamente toda biografia de
Freud afirma estar combatendo esse tipo de idealização, mas já notamos que um grande número
delas não é capaz de escapar dessa armadilha. O próprio Freud, ao ler a biografia que Wittels
escreve, comenta sobre esse ponto em carta a ele em 18 de dezembro de 1923:

Em alguns respeitos, penso existirem deformações positivas e acredito que essas


sejam o resultado de uma noção preconcebida sua. O senhor julga que um grande
homem deve possuir tais e quais méritos e defeitos, e apresentar certas características
extremas. E sustenta que pertenço à categoria dos grandes homens. Essa é a razão por
que me atribui toda sorte de qualidades, dentre as quais muitas são mutuamente
conflitantes. (Freud, 1924, p.320-1).

Esse alerta de Freud parece ter passado despercebido e é reproduzido, como vimos, tanto
nas biografias que aspiram demonstrar sua genialidade quanto nas que pretendem provar que
ele era nada mais que um charlatão. Para além dos exemplos já levantados, temos um livro que
não carrega a intenção de ser uma biografia, mas é quase uma resposta ao que o autor sentiu
como ataque. A obra em questão é “Talent and genius – the fictitious case of Tausk contra
Freud” (1971), que foi redigida por Eissler como reação à publicação de “Irmão animal – a
história de Freud e Tausk” (1969/1995), de Paul Roazen.

Como diz o título, Eissler pretende revisitar a relação entre Freud e Tausk por acreditar
que ela exemplifica essa distinção entre alguém que pode ser definido como um talento – Tausk
– e um gênio – Freud. A defesa realizada por Eissler nos interessa não apenas porque ela segue
esse padrão apontado por Freud na carta a Wittels (de categorizá-lo como gênio para em seguida

110
atribuir a ele características que se imaginam necessárias aos gênios), mas porque explicita a
inseparabilidade entre vida de Freud e história da psicanálise e evidencia algumas
consequências desse tipo de argumento.

Para Eissler (1971), o conhecimento científico está assentado em determinados


paradigmas e é a tarefa do gênio a descoberta de novos paradigmas. Comparando Freud a
Newton, propõe que “ele não é apenas o descobridor de uma ainda indeterminada quantidade
de paradigmas, mas em seus escritos psicológicos ele também cria um novo mundo”. (Eissler,
1971, p.250). Freud, para o autor, é um gênio da ciência, mas também da arte. De acordo com
ele, “os escritos de Freud contêm um novo mundo, um cosmos comparável em sua extensão
àqueles criados por gênios antes dele – digamos, similares às peças de Shakespeare70”. (p.250).
Nesse novo mundo criado por Freud encontraríamos representados quase todos os fenômenos
do mundo real. Assim, esses fenômenos “são descritos e vistos de uma nova forma, que surge
para o leitor como algo original, individual e interessante, até mesmo fascinante,
independentemente de seu conteúdo ser verdadeiro ou falso”. (p.250). Com essa proposição,
Eissler (1971) torna a própria obra de Freud algo fora do mundo: não importa mais se o que ele
afirma é verdade ou não, ela produz seus efeitos independente disso.

Aqui, nos encontramos no perigoso limite em que nossa pesquisa toca um problema que
não pretendemos explorar aqui, referente a que tipo de ciência seria a psicanálise. Esse debate
é complexo e há tanto aqueles que vão caracterizá-la como pseudociência quanto os que vão
defender sua posição entre as ciências em geral71. Independente do caminho que se escolha com
relação a essa questão, nossa discussão aqui se refere mais a uma visão da história da psicanálise
como singular e uma insistência em manter as narrativas sobre a fundação sob o domínio de um
modo de pensar psicanalítico.

Mas voltemos à questão da recorrência de relatos idealizados da fundação e de Freud.


Talvez parte da dificuldade de abandonar uma visão altamente idealizada de Freud e da
psicanálise tenha relação com o fato de que os psicanalistas têm, individualmente, laços afetivos
com ele. Cada um de nós se sente de algum modo próximo de Freud, como herdeiros de seu

70
Anzieu (1989) também compara Freud a Shakespeare, citando Starobinski (1967, p.xvi): “Freud é Shakespeare
que se analisou”. (Anzieu, 1989, p.153).
71
O debate é extenso demais para ser desenvolvido aqui. Temos Grünbaum (1985) que argumenta contra a visão
da psicanálise como ciência, Iannini (2007) se vale do pensamento lacaniano para considerar a psicanálise uma
ciência êxtima, Japiassu (1989) trabalha com o tensionamento entre ciência e contraciência, etc.
111
legado e defensores de sua causa. Esse fato provavelmente tem relação com o modo como se
formam analistas.

Apenas a título de ilustração, peço licença para um relato pessoal que pode contribuir
para a compreensão do problema. Nasci em 1981, filho de um pai comerciante de artigos
religiosos (que posteriormente se tornou fabricante de velas) e de uma mãe vinda do interior
que tentava carreira como desenhista em uma fábrica de tecidos (que mais tarde, por pressão
do marido, abandonou para cuidar dos filhos). Nessa casa, havia muito pouco estímulo à
atividade intelectual e uma expectativa de que os filhos fossem se conformar a seguir a carreira
do pai. Isso não era sem razão. O pai de meu pai tinha sido de tudo um pouco: fabricante de
sabão, de tijolos, militar. Até que finalmente se estabeleceu como comerciante na mesma loja
que meu pai viria a herdar. Da parte da minha mãe, seu pai era habilidoso com dinheiro e
eventualmente conseguiu sustentar sua família emprestando dinheiro a outros. As minhas duas
avós, tanto da parte de mãe quanto de pai, eram donas de casa que dedicaram a vida inteiramente
à criação dos muitos filhos.

Eu, entretanto, tinha um temperamento nada adequado ao comércio: era tímido,


introvertido, pouco habilidoso no contato social. Apesar de me sentir sem lugar nos planos da
família, encontrei nos estudos um caminho para me destacar. Esforcei-me para aprender a ler
antes que meus colegas de classe, devorava todos os livros que conseguia, gastava dinheiro de
mesada comprando mais e mais livros. Mesmo com um desempenho excelente na escola,
recebia pouca atenção em casa, já que ali a produção intelectual era considerada quase
desnecessária.

Foi nesse ambiente que cresci, estimulado por algumas professoras e ignorado em larga
medida pelos meus pais. Acostumei-me com a sensação de ser ignorado e às vezes criticado
pelo meu gosto pelo pensamento e aprendizado. Também me tornei muito cedo o filho
problemático, já que eu questionava as regras estabelecidas por meu pai, por parecerem sem
sentido. Nesses momentos, era castigado não só por não cumprir determinada regra, mas por
expor sua arbitrariedade.

Por mais que na adolescência eu tenha conseguido expandir um pouco meu círculo
social, ainda era visto como esquisito e era alvo de zombarias no colégio por minha dedicação
aos estudos. Mesmo na faculdade, o sentimento de inadequação se manteve, embora tenha
tomado uma outra forma. E assim me tornei o primeiro de toda minha família a ter uma
formação universitária.

112
Até aqui, eu desconhecia completamente a psicanálise e sabia quase nada sobre Freud.
Quando entrei em contato com isso, a sensação foi ambígua: certo mal-estar por ele tratar de
assuntos que eu considerava muito íntimos para se discutir abertamente, mas admiração pela
coragem que ele tinha de fazer isso. Os primeiros textos que li foram as “Cinco lições de
psicanálise”, avançando em seguida para o caso Hans, tudo isso intercalado com textos
lacanianos que supostamente extraíam da obra de Freud alguma outra verdade oculta.

Na medida em que eu me familiarizava com a obra freudiana, também era frequente


ouvir e ler narrativas sobre sua ruptura com uma ciência conservadora, sua invenção da
psicanálise mesmo encontrando forte oposição do meio científico, etc. Eu, me sentindo também
há muito tempo como alguém que encontrava uma oposição inexplicável daqueles que eu
imaginava que deveriam me apoiar e que confiava no conhecimento científico como arma
contra essa injustiça, muito rapidamente me vi retratado naquela figura heroica. Freud me
lembrava de mim mesmo, lutando desde muito cedo para ser reconhecido.

Toda minha formação posterior carrega a marca dessa identificação. Imagino que em
meu caso talvez o grau de identificação e idealização tenha sido um pouco exagerado dadas as
minhas condições particulares. Mas mesmo que se queira descartar esse meu relato como
peculiar e extravagante, suponho que algo do tipo possa ser encontrado em outros. Parece-me
que o poder de atração da figura de Freud, como é comunicada durante nossa formação, tem a
ver com esse revestimento meio literário, meio mítico, que é dado a ele. É algo parecido com o
que ele afirma quando relata o poder da tragédia de Édipo sobre nós: todos nós já fomos um
pequeno Freud, isolados e lutando contra opositores, julgando que merecíamos mais
reconhecimento do que aquele que recebemos.

Se esse relato, excessivamente pessoal para uma tese, soar como pouco convincente, o
leitor pode ficar à vontade para descartá-lo como se fosse uma nota de rodapé exageradamente
longa e se voltar aos outros argumentos levantados. Antes de fazer isso porém, o leitor pode se
fiar no relato de Deutsch (1940), que presenciou os momentos iniciais do movimento
psicanalítico. A autora também argumenta que aqueles que decidiam se aproximar da
psicanálise naquela época, por se sentirem isolados do resto do mundo científico/acadêmico,
desenvolviam uma forte ligação com Freud. Para ela, “to achieve such an identification was
very uplifting for it created in the person concerned the illusion of feeling himself to be
something he was not: a misunderstood genius”. (Deutsch, 1940, p.189).

113
Mesmo que uma grande distância nos separe daquele tempo dos pioneiros, parece que
um intenso vínculo transferencial ainda nos mantém ligados à figura de Freud. Além disso,
parece estar associada à identidade dos psicanalistas essa relação com o mundo exterior ao
movimento pautada pela sensação de ser incompreendido, não devidamente valorizado e, nos
casos mais extremos, atacados. Sem dúvida, aqui cabe a ponderação de que, se por um lado
esse vínculo transferencial direto com Freud pode ser um elemento importante e que contribui
para uma certa mitologização da nossa identidade, não podemos valorizar demais esse fator.
Aqui operam também fatores político-institucionais, e um pouco adiante teremos também algo
a dizer sobre isso.

4.3 – A difusão da psicanálise e seus efeitos

Já abordamos no capítulo anterior a função que os relatos de caráter mítico parecem ter,
bem como alguns fatores que podem ter motivado a formação desse tipo de narrativa. Mas os
efeitos, que tínhamos pretendido também abordar ali, parecem mais complexos e de alcance
maior do que imaginamos na ocasião. Também somos levados a questionar se estamos diante
de uma situação como a que Freud (1909/1996) constata ao tratar do Homem dos Ratos, onde
afirma: “na realidade, o que parece ser a consequência da doença é a causa ou motivo de ficar
doente”. (p.175).

Isso porque os efeitos que notamos até o momento parecem intimamente vinculados
com o que pensávamos ser a causa, de modo que nem sempre fica explícito o que age como
provocador e o que surge como resultado. Obviamente que não adotamos nenhum tipo de
raciocínio ingênuo em que causa e efeito tem uma relação linear e direta, mas trabalhamos com
a noção, com a qual todo psicanalista está familiarizado desde muito tempo, de uma
sobredeterminação. As causas são múltiplas, estabelecem relações entre si e com os diversos
efeitos, formando uma rede complexa, que é exatamente o que temos tentado mapear.

Assim, tomemos um elemento a que já aludimos em mais de uma ocasião: a suposta


inseparabilidade entre a vida de Freud e a história da psicanálise. Essa ideia parece operar como
uma das causas das mais diversas narrativas, indo desde Freud e Jones a Crews e Borch-
Jacobsen e Shamdasani. Estes últimos tomam isso como certo e afirmam que “questionar a
lenda freudiana resulta no questionamento da própria psicanálise”. (Borch-Jacobsen &
Shamdasani, 2014, p.23). É também, como vimos, um pressuposto de todo o livro de Crews
114
(2017), que crê que se for capaz de provar que Freud era um ser humano desprezível estaria
invalidada a sua contribuição à ciência automaticamente.

Esse modo de pensar faz brotar todo tipo de pesquisa de interesse questionável. Por
exemplo, as investigações sobre uma suposta relação que Freud teria mantido com sua cunhada,
Minna Bernays. Esse debate já se estende por décadas, mas foi trazido novamente à baila por
Maciejewski (2006, 2008). O autor descobriu um livro de registro em um hotel onde Freud e
Minna teriam ficado durante uma de suas viagens e aponta como evidência da relação entre eles
o fato de no livro estar anotada a estadia de “Dr. Sigm. Freud und Frau”. (Maciejewski, 2006,
p.501). Isso, obviamente, suscitou manifestações de outros autores, como Hirschmüller (2007)
e Lothane (2007).

A discussão que se segue à descoberta desse documento diz respeito ao tipo de


conclusões ele permite aos pesquisadores, com Maciejewski tomando o registro como prova
irrefutável do caso e Hirschmüller e Lothane tentando demonstrar que qualquer indício só faz
sentido se for possível recoloca-lo em seu contexto, caso contrário as afirmações que o autor
faz estarão sustentadas sobre uma base frágil. Maciejewski (2006) chega a declarar que “all the
biographies will now have to be rewritten”. (p.504).

A questão que parece não incomodar nenhum deles é: por que isso seria relevante? Que
efeito isso tem sobre a validade da psicanálise ou sobre a figura de Freud como fundador desse
campo? Esse ataque à imagem de Freud só faz sentido no contexto em que descrevemos, de
consideração da inseparabilidade entre sua vida e sua obra. Como isso é sustentado por alguns
de seus biógrafos mais entusiastas, fica aberto o caminho para aqueles que aspiram abalar a
posição da psicanálise no mundo.

Parece-nos que é também nesse ponto que se assenta a transposição do isolamento


freudiano para toda a psicanálise. Isso, como já vimos, tem efeitos no nível individual,
funcionando como um polo gravitacional que justifica a identificação de cada um com Freud,
mas talvez também produza efeitos em outro nível, da relação da psicanálise com outras
ciências. Uma das manifestações disso também já foi levantada, a resistência a realizar uma
historiografia da psicanálise que não seja psicanalítica.

Mas para nos auxiliar a compreender a questão, será importante que abordemos as
tensões referentes à difusão da psicanálise que, como vimos no capítulo anterior, ocuparam um
lugar central no cenário pós Segunda Guerra Mundial. Freud trabalhou ativamente para que a

115
psicanálise fosse não apenas difundida, mas reconhecida em diversos países. Como afirma
Kupermann (1996),

Freud buscou realizar dois desejos relativos à psicanálise de difícil conciliação:


promover sua difusão social e manter a força e vigor originais; institucionalizá-la,
sem perder seu caráter transgressivo, o que significava não ceder às deformações
exigidas pelas resistências da cultura que a própria difusão da psicanálise incita.
(p.10).

Um dos primeiros esforços de Freud nesse sentido, após já ter formado o primeiro
círculo de discípulos em Viena, foi a expansão para outras partes da Europa. O interesse de
Bleuler e Jung pela psicanálise surge, então, como a melhor via para uma aceitação da
psicanálise pelo meio científico, bem como para alcançar um público não-judeu. Entretanto,
muito rapidamente ficou claro que Bleuler não apoiava a causa de Freud de modo
incondicional72, e nem mesmo Jung teria condições de conduzir o movimento psicanalítico na
direção que Freud pretendia. Isso leva Freud (1914/1996) a se posicionar abertamente e
declarar, na abertura de “A história do movimento psicanalítico”:

Não é de se estranhar o caráter subjetivo desta contribuição que me proponho trazer à


história do movimento psicanalítico, nem deve causar surpresa o papel que nela
desempenho, pois a psicanálise é criação minha; durante dez anos fui a única pessoa
que se interessou por ela, e todo o desagrado que o novo fenômeno despertou em meus
contemporâneos desabou sobre minha cabeça em forma de crítica. Embora de muito
tempo para cá eu tenha deixado de ser o único psicanalista existente, acho justo
continuar afirmando que ainda hoje ninguém pode saber melhor do que eu o que é a
psicanálise, em que ela difere de outras formas de investigação da vida mental, o que
deve precisamente ser denominado de psicanálise e o que seria melhor chamar de
outro nome qualquer. (p.18)

Assim, o tom polêmico do texto é proposital, para expor da forma mais clara possível
que os dissidentes Jung e Adler não eram mais psicanalistas. Ficam evidentes para nós as
intenções políticas de Freud ao fazer isso: ele almejava retomar as rédeas do movimento, alçar
a si mesmo ao papel de criador único da psicanálise a quem cabia o direito de afirmar os limites
de sua criação. Entretanto, ao mesmo tempo, ele provoca um dano difícil de reverter, já que
apaga as contribuições de Breuer e outros ou, pelo menos, reduz dramaticamente sua
importância.

Esse efeito colateral, que contribui muito para a criação do Freud-herói, talvez não tenha
sido produzido deliberadamente, mas seja um subproduto do próprio desenvolvimento do
conhecimento científico. Como percebe Fleck (1935/2010),

72
Ver p.70-2.
116
após vários rodeios dentro de uma comunidade, muitas vezes um conhecimento
retorna ao seu autor inicial – e até ele o vê com outros olhos, não o reconhece como
sendo seu ou, o que acontece com frequência, acredita tê-lo visto na forma atual desde
o início. (p.86).

Essa visão de si como único fundador também cria condições para a atribuição de uma
importância exagerada à autoanálise como processo a partir do qual emergem os principais
conceitos psicanalíticos. Mas, como também já destacamos nos capítulos anteriores, essa é uma
narrativa que não encontra apoio em Freud e só ganha força a partir do relato de outros autores.
Freud, em certa medida, nos ajuda a privilegiar a ideia da criação da psicanálise como um
processo que tomou algum tempo e esforço. Blanton (1975) relata ter ouvido o próprio Freud
afirmar, durante a análise que fez com ele: “É exatamente isso que os críticos gostam de fazer.
Aparentemente, pensam que a análise caiu dos céus ou emergiu do inferno – isto é, que é fixa
como um bloco de lava e não um conjunto de fatos que foram lenta e dolorosamente reunidos
pela pesquisa científica”. (Blanton, 1975, p.25). Esse comentário vem acompanhado da
recomendação de que Blanton, ao ler um artigo de psicanálise, procurasse observar a data em
que foi escrito. Freud chama atenção, portanto, para o fato de que o desenvolvimento das ideias
psicanalíticas não pode ser pensado fora de seu caráter histórico.

A essa percepção da construção de conhecimento científico como um processo


histórico, faltou apenas Freud acrescentar que é, como podemos afirmar com a leitura de Fleck,
um trabalho coletivo necessariamente.

Mas além desse movimento de apropriação de toda a psicanálise e concentração de


poder em sua figura, podemos notar no trecho citado acima outro elemento que reaparecerá ao
longo desse texto, mas também em diversas ocasiões em que Freud tentará pensar a difusão e
recepção de suas ideias. Referimo-nos à percepção dele de que os contemporâneos despejavam
críticas sobre ele. Já discutimos esse tema nos capítulos anteriores73, mas aqui cabe uma nova
exploração da forma como ele tratava o problema.

Figueira (1994) indica que “o fato de Freud e dos primeiros psicanalistas estarem
interessados na difusão da psicanálise não significa que estivessem interessados em sua difusão
em qualquer direção, ou seja, tal interesse em ter a psicanálise difundida não era
indiscriminado”. (p.19). Já tivemos oportunidade de observar como essas restrições à difusão
estiveram em ação, por exemplo, no caso da expansão da psicanálise para os Estados Unidos74.

73
Ver p.24-6 e p.65-72.
74
Ver p.88.
117
Figueira (1994) também aponta que Freud costumava enxergar qualquer apropriação da
teoria psicanalítica que não fosse uma adesão integral a suas hipóteses como sendo uma
resistência à psicanálise. Há exemplos disso não apenas em seus textos publicados, mas também
em sua correspondência com diversas pessoas e conversas com discípulos em congressos. É o
caso de um comentário de Freud, em resposta a uma felicitação de Barbara Low pelo sucesso
alcançado pela teoria psicanalítica nos Estados Unidos: “Meu sucesso, como você chama, terá
vida curta: os americanos me tratam como uma criança trata sua boneca mais nova – é a nova
favorita, mas logo é substituída em favor da próxima nova boneca (ou outro brinquedo) e é
atirada de lado”. (Freud, 1914, p.2-3). Freud teria ainda completado, afirmando: “Os ingleses
vão pegar apenas uma parte de mim e deixar de fora os pedaços que não aprovam, mas se
manterão fiéis ao que eles aceitarem”. (Freud, 1954, p.2). Noutros momentos, como na carta a
Arnold Zweig em 28 de janeiro de 1934, declara: “[...] let us make no mistake, this day and age
has rejected me and all I had to give, and acclamations will not cause it to revise its judgement”.
(E. Freud, 1970, p.59).

Assim, tanto Freud quanto “a maior parte dos analistas tem uma tendência a se referir
ao fenômeno da difusão como sempre relacionado a (e refletindo) resistências à psicanálise”.
(Figueira, 1994, p.10). Diante dessa percepção, o próprio movimento psicanalítico acabou
sendo moldado de acordo com essa visão. É como resistência dos psicanalistas às distorções a
que estavam sujeitas as teorias de Freud que foi criado o Comitê Secreto, quando a ruptura com
Jung já se mostrava inevitável.

O Comitê era inicialmente composto pelo próprio Freud, Ferenczi, Rank, Abraham,
Jones, Sachs (e mais tarde Eitingon). Eles se reuniam em intervalos irregulares e estabeleceram
uma correspondência entre si, com o envio de cartas-circulares, em que debatiam estratégias
institucionais e como combater a ameaça imediata de Jung. Foi através da ação organizada
desse grupo que o suíço foi isolado e eventualmente renunciou a sua posição como presidente
da IPA. Como demonstra Grosskurth (1992), a IPA parecia funcionar de forma autônoma e
democrática, mas o trabalho nos bastidores realizado pelo Comitê moldava a composição
burocrática da instituição e guiava também os rumos tomados pela teoria.

Ao longo da década de 1920, porém, essa organização secreta começa a se desfazer,


com a morte de Abraham e as tensões criadas com a publicação, em 1924, de “O trauma do
nascimento”, de Rank, bem como do trabalho que ele escreve em coautoria com Ferenczi, “O
desenvolvimento da psicanálise”. Com a crescente institucionalização, o Comitê parecia ter se
tornado de algum modo obsoleto. Já havia um grande número de institutos criados para
118
formalizar e de algum modo padronizar a formação de analistas, esvaziando um dos principais
propósitos desse grupo secreto.

Hale (1995) percebe que a criação dos institutos de formação opera uma mudança na
relação dos psicanalistas com a psicanálise e com Freud. Para ele, há uma modificação na
imagem que os psicanalistas teriam de si mesmos e também da autoridade atribuída a Freud:
“the intensely filial relationships to Freud of the first generation were gradually replaced by
highly emotional relationships to a fantasied Freud, still the primal founder, but also to
organizations, to peers, to superiors in the institute hierarchy”. (p.32).
Como destaca Kupermann (1996), “o Comitê deixa de existir justamente quando não é
mais necessário, pois, com a burocratização da IPA e a padronização e institucionalização da
formação psicanalítica, a proteção da ‘causa’ passaria a ter outras garantias”. (p.68). Entretanto,
esse processo de crescente institucionalização não é sem consequências. Hale (1995) aponta
que, “the foundation of institutes, the tightening and systematization of training, made the
psychoanalytic movement more homogenized, and conservative”. (Hale, 1995, p.36).

De toda forma, percebemos que os psicanalistas parecem ter uma propensão a crer que
são alvo de ataques oriundos das mais diversas fontes: a cultura e o uso comum a distorcem;
outras ciências tentam negar seu valor ou torná-la apenas um método acessório. Isso talvez
pareça justificado a eles, já que em intervalos mais ou menos regulares surge alguém para
decretar a morte da psicanálise ou desmascarar definitivamente Freud. Japiassu (1989) parece
pensar de modo semelhante e elenca os dois principais perigos que ameaçam os psicanalistas e
a psicanálise: primeiro, “o risco que ela corre de fechamento, de retorno sobre si mesma,
consequentemente, [...] riscos de esterilidade precoce e de dogmatismo” e, segundo, “o perigo
de perder sua identidade, sempre mal assegurada, refugiando-se em outros domínios do saber
[...] ou deixando-se infiltrar por noções e conceitos provenientes de outros campos teóricos”.
(Japiassu, 1989, p.9-10).

Mas talvez seja o caso de refletirmos se as defesas que comumente são levantadas contra
esses perigos não acabam causando dano maior do que defesa nenhuma. Se para nos
protegermos da dissolução da nossa identidade for necessário erigir muros tão altos que
impossibilitam o diálogo com outros campos, o que faríamos em seguida quando começassem
a surgir divergências no interior do próprio movimento? Teríamos de repetir o processo,
expulsando o que não fizesse mais parte da nossa identidade e fortalecendo as defesas contra o
perigo outrora interno. E, sabendo que é inevitável que esse processo se repita, o efeito seria
uma morte da psicanálise por fragmentação absoluta e absurda em pequenos grupos de grande
119
consistência identitária, mas incapazes de flexibilizar essa visão de si mesmos e perigosamente
violentos com os desvios.

Seria o caso então de tratarmos a psicanálise como o indivíduo fixado em seu trauma?
Teríamos condições de realizar uma pesquisa historiográfica que produzisse efeitos similares
ao tratamento de um indivíduo traumatizado? Ou estaria o antídoto para nosso isolamento auto-
imposto exatamente na abertura para outros saberes, que talvez nos colocassem em contato com
outras interpretações, diferentes das que já nos acostumamos a produzir?

O isolamento de Freud molda a forma como a psicanálise, como movimento, se


relaciona com outras ciências e também sua organização interna. Ao guiar as coisas desse modo,
mesmo que estivesse motivado por experiências muito particulares, o isolamento passa a ser
uma política das instituições psicanalíticas. Mesmo sua expansão e incorporação de elementos
quando ela se move para outros países é vista como distorção a ser combatida ou perda de sua
essência. Ignorar que qualquer saber, quando transportado para além de suas fronteiras iniciais,
vai necessariamente receber influência de outros elementos não contribui para a sobrevivência
da psicanálise, mas sim para sua cristalização, rigidez e nos piores cenários, desaparecimento75.

O caminho, portanto, talvez seja o de tornar as fronteiras da psicanálise mais flexíveis,


tanto as fronteiras dela com as outras ciências, quanto suas fronteiras internas (as diferentes
escolas que nem sempre são capazes de trocar experiências, as instituições que repetem um
ciclo de fundação e dissidências, etc.). O risco de que a psicanálise perca aquilo que tem de
mais próprio ou de que façam mau uso dela existirá independente dos esforços em sentido
contrário. Um estudo mais amplo das diversas formas tomadas pela psicanálise ao redor do
mundo (tanto das particularidades do pensamento psicanalítico em diferentes países e regiões,
quanto dos variados modelos de instituições de formação que surgiram como alternativa à
formação tradicional) sem dúvida abriria caminho para novas reflexões e talvez nos ajudasse a
pensar em saídas para esse problema do enrijecimento que às vezes surge como reação ao perigo
do isolamento.

Se por alguma razão o leitor alimentou a expectativa de que teríamos ao final do


percurso não apenas uma visão mais ampla de como nosso isolamento foi construído
historicamente e justificado a partir de uma certa narrativa sobre nossa fundação, mas alguma

75
Aqui, cabe um comentário: mesmo que já tenhamos indicado como o próprio Freud contribui para uma visão de
teor mais mítico da fundação da psicanálise, e Lacan, por sua vez, a atualize, ambos frequentemente ultrapassavam
as fronteiras da psicanálise e recorriam a outras ciências, às artes, etc. Eles ao mesmo tempo contribuem para uma
visão da psicanálise como isolada e, na prática operam para além desse isolamento.
120
solução prática para esse problema, somos forçados a alertá-lo para o fato de que nossa
discussão já se aproxima do final e será melhor abandonar a esperança de que uma resposta
desse tipo virá. Não escaparemos, contudo, de refletir sobre alguns possíveis antídotos para
nosso isolamento esplêndido e perigoso.

121
Considerações finais

Antes de propor algumas respostas possíveis às questões com as quais nos deparamos
ao final do percurso, talvez nos seja útil recuperar o fio da pesquisa que nos trouxe até aqui.
Partimos da percepção de que a forma como narramos a fundação da psicanálise está carregada
de idealizações e que isso, embora não tenha sido inaugurado por Jones, parece se consolidar a
partir de sua biografia de Freud. Na tentativa não só de desmontar essa idealização, mas também
de compreender sua formação, destacamos três elementos que nos parecem centrais a essa
narrativa: a relação de Freud com Breuer, a autoanálise e o splendid isolation.

Ao longo dos dois primeiros capítulos, observamos como esses elementos, embora
tenham uma história individual, convergem de certa maneira para uma visão de Freud como
herói que, sozinho, cria uma nova ciência e precisa defendê-la dos ataques do meio científico.
As narrativas sobre a participação de Breuer servem para apagá-lo da história e transferir para
Freud o título de fundador único; a autoanálise torna a criação de conceitos importantes um
processo individual de exploração do próprio inconsciente e o isolamento demonstra como
Freud sustentou sozinho o peso de suas descobertas durante o período inicial. Essa forma de
relatar a criação da psicanálise favorece a idealização e tende a apagar o contexto histórico que
tornou possível seu surgimento.

Não é sem motivo, portanto, que enxergamos uma proximidade entre esse tipo de relato
e os mitos de fundação e mitos do herói, que exploramos no início do terceiro capítulo. Outra
forma de combater essa idealização é através da leitura de Fleck, que serve, de certo modo, para
desmontar um mito da descoberta científica como fruto do trabalho de um gênio isolado. De
posse desse instrumental, tentamos reconstruir minimamente o contexto imediato em que Jones
escreve sua biografia, para compreender a que objetivos ela atende. De certo modo, a biografia
escrita por Jones tenta resolver toda uma série de tensões políticas no movimento psicanalítico,
que vinham se acumulando há décadas, mas que ganham destaque após a morte de Freud e com
a migração dos psicanalistas europeus devido à Segunda Guerra.

Essa forma de narrar nossa fundação tanto é efeito de um determinado modo de enxergar
a psicanálise quanto produz efeitos sobre a visão que temos de nossa disciplina. Um dos
principais efeitos talvez seja a forma como enxergamos os limites da psicanálise, suas fronteiras
externas e internas. Como vimos principalmente no capítulo 4, não é incomum que os esforços

122
para manter a integridade da psicanálise produzam rupturas institucionais e também uma
flagrante ficcionalização do passado, como meio de justificar o atual estado de coisas.

Ficamos, ao final, diante do problema de pensar de que modo podemos tornar nossa
relação com o passado menos problemática e se flexibilizar nossas fronteiras pode ser
executável sem que isso seja lido como ameaça à sobrevivência da psicanálise.

Em primeiro lugar, se observarmos a já extensa produção crítica à narrativa oficial,


talvez já esteja em curso uma tentativa de transformar nossa relação com a fundação da
psicanálise e com seu fundador. Entretanto, o alcance dessas produções parece ser restrito, e
isso contribui para que modificações nesse sentido sejam mais lentas. É necessário multiplicar
as produções com esse teor, para que elas possam fazer frente à narrativa hegemônica. Nesse
sentido, também é preciso considerar, como fazem Simanke e Caropreso (2016) que

Embora já exista uma literatura séria e crítica de ambas as mitologias, sua recepção,
ainda limitada, se dá frequentemente em termos ditados por essas posições
antagônicas; ou seja, a crítica da mitologia hagiográfica é percebida como difamação
e a crítica da mitologia difamatória é percebida como hagiografia. (p.168).

Além disso, não é incomum que os trabalhos que adotam uma postura mais neutra com
relação a essas duas correntes sejam utilizados por ambas para validar as próprias hipóteses e
visões, minando exatamente a potência crítica da obra76.

Com relação à possibilidade de flexibilização das nossas fronteiras, um ponto de partida


interessante seria uma tentativa de separar criador e criatura, de enxergar a psicanálise para
além da figura de Freud. Mezan (2014) caminha nessa direção, ao afirmar que “[...] é preciso
afastar a ideia – muito mais difundida do que se costuma acreditar – de que a psicanálise é
sinônimo de ‘pensamento de Freud’. Pois, se assim fosse, ele teria sido não apenas o primeiro
psicanalista, mas também o único e o último”. (p.26). Fazer isso implicaria, por exemplo, numa
consideração menos rígida das diferentes formas assumidas pela psicanálise ao longo do século
XX, sem descartar de partida alguma escola como mera deturpação do pensamento freudiano.

Um movimento nesse sentido parece também estar em ação, e uma manifestação disso
pode ser vista nos esforços para recuperar autoras e autores que foram colocados em segundo
plano. Especificamente no Brasil, vimos recentemente o reaparecimento do interesse por Sabina
Spielrein, com a publicação da tradução de uma biografia77 detalhada da autora e a organização
de suas obras completas78, ainda em andamento. Outro autor, alvo de uma ação similar, é Otto

76
Nesse sentido, estamos também de acordo com a posição defendida por Simanke e Caropreso (2016).
77
Richebächer (2016).
78
Cromberg (2014).
123
Gross. Recentemente, foi lançado um volume com uma coletânea de seus trabalhos e um
resumo biográfico, que almeja recuperar o principal de sua produção e torná-lo familiar ao leitor
contemporâneo79. Fora do Brasil, iniciativas similares também estão em andamento, além de
uma profusão de edições de correspondência de psicanalistas de destaque80.

Ao incluir outras vozes no debate, talvez diminuamos, no longo prazo, a resistência em


pensar a psicanálise e seus desdobramentos como fruto de um trabalho coletivo, menos centrado
na figura de Freud ou de alguns psicanalistas ilustres.

Ao mesmo tempo, é imprescindível refletir também sobre como se formam


psicanalistas, já que essa talvez seja a via principal de inoculação dos relatos de teor mítico nos
recém-chegados. Isso pediria também uma investigação mais detalhada, mas enxergamos um
caminho nas reflexões de Kupermann (1996) sobre o pluralismo do campo psicanalítico. O
autor vê a possibilidade do estabelecimento do que denominou de “transferência nômade”, que
“não é dirigida a um único mestre, a uma teoria una e hegemônica e a um endereço institucional
fixo”. (p.207).

Essa forma de se relacionar com a psicanálise e suas instituições protegeria o


psicanalista das armadilhas das grandes idealizações e das resistências muito intensas a formas
de pensamento que não sejam as suas próprias. De que forma isso se daria na prática, contudo,
é algo que pede mais reflexão. De todo modo, talvez algo nesse sentido já esteja em operação,
de forma muito tímida, já que é possível observar psicanalistas que não aderem de forma total
a uma instituição, autor ou escola. Isso, contudo, não deve ser pensado no campo apenas
individual, como se alguns psicanalistas conseguissem, por vias muito particulares, chegar a
uma relação mais saudável com a psicanálise. É preciso tornar isso um horizonte na formação
de analistas, combatendo o dogmatismo e a colonização dos espaços por um pensamento único,
geralmente visto como herdeiro legítimo de Freud.

Portanto, se Freud era capaz de ver retroativamente seu isolamento como esplêndido,
precisamos recuperar aí a ambiguidade dessa posição: o isolamento é esplêndido e perigoso.
Da mesma forma, uma abertura e expansão sem critérios resultaria num perigo para a
integridade do pensamento psicanalítico, mas não só isso. Essa abertura também carrega um
lado que mereceria ser qualificado como esplêndido. Talvez a nossa maior contribuição, ao

79
Checchia, Souza e Lima (2017).
80
Por exemplo, os diversos volumes de correspondência de Freud e Martha, a correspondência Freud-Eitingon e
mesmo a correspondência Jones-Ferenczi. Também há esforços de produzir coletâneas de autoras e autores que
vem sendo historicamente relegados a uma posição de coadjuvantes.
124
final de todo esse caminho, seja o apego a uma posição de tensionamento, de conflito e o
abandono de visões muito cristalizadas que parecem ter dominado o campo da historiografia da
psicanálise por tempo demais.

125
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134
Anexos

Anexo A – Duas cartas da correspondência Jones-Bernfeld

1J – 23 de março de 1950

Caro Dr. Bernfeld,


Esta carta é a primeira do que espero honestamente se tornará uma longa e frutífera
correspondência. A próxima coisa mais urgente que tenho a dizer é expressar minha enorme
apreciação pela pesquisa e compreensão que demonstra em seu trabalho “Freud’s Scientific
Beginnings”, que você tão gentilmente me enviou. Ele até mesmo supera seu ensaio anterior
sobre Freud e é extraordinariamente valioso.
Você pode ter possivelmente ouvido que eu estou embarcando em uma biografia
detalhada de Freud, e ninguém sabe melhor que você que tarefa formidável isso representa. Há
alguns milhares de cartas para tomar nota, a leitura dos trabalhos dele e de outras pessoas, etc.
Agora você me coloca frente a um problema específico, a saber, a relação do seu
trabalho com a biografia. O trabalho que você realizou, por exemplo, em seu último ensaio, não
pode ser duplicado e poderia de uma forma ou de outra ser transferido para a biografia. No
momento pensei em convidá-lo a publicar um ensaio como um capítulo na biografia, mas temo
que isso poderia prejudicar a cronologia do arranjo geral. Ainda estou num estágio de
planejamento geral e não tenho nenhuma sugestão concreta a fazer no presente, mas pensei que
deveria esboçar o assunto para que ambos o mantenhamos em nossas mentes.
Há muito problemas fascinantes levantados em seu trabalho que espero ter a
oportunidade de discutir com você. O fracasso da fisiologia experimental é muito notável em
vista da ênfase posterior de Freud nos aspectos dinâmicos da vida. Havia possivelmente alguma
profunda inibição da agressividade, que foi positiva para sua personalidade e seu trabalho.
Havia, eu acho, alguma ambivalência com relação ao contraste entre desejos e realizações. Por
um lado, uma de suas maiores realizações foi igualá-los psicologicamente quando ele mostrou
que um desejo pode conduzir a tanta culpa quanto um ato. E, ainda assim, sinto que algo da
velha fenda persistiu e ele foi capaz de perseguir os aspectos dinâmicos de seus estudos, apenas
na condição de que eles concerniam a desejos e não atos; tenho alguma evidência disso.
Com saudações amigáveis e gratidão.
Muito sinceramente seu,
Ernest Jones.

135
2B – 24 de abril de 1950

Caro Dr. Jones:


Sua carta me trouxe a agradável confirmação dos rumores de que planejava publicar
uma biografia abrangente de Freud. Espero com grande interesse ouvir mais sobre esse plano.
Meus planos – se quiser chamá-los assim – não são tão amplos. Por vários anos venho
coletando material sobre a vida de Freud. Se meus arquivos em uma ou outra fase do problema
parecem grandes o suficiente, publico o material. Desse modo, a primeira infância, um episódio
na adolescência de Freud, a conexão de Freud com a escola de Helmholtz e os anos de Freud
na universidade foram cobertos. Tenho material suficiente à mão para “Freud como médico
assistente no hospital de Viena”, “Freud como hipnotizador” e “Freud como anatomista do
cérebro”. Consegui novas fontes de informação referentes aos anos de escola secundária de
Freud e espero em breve ter alguns fatos interessantes. Recentemente entrei em contato com
um amigo em Viena que prometeu desenterrar material nos arquivos da universidade e no
Ministério da Educação lá.
Vejo meus esforços nesse campo como uma ampliação e notas para a biografia de Freud
e penso que serão úteis para uma biografia definitiva.
Neste trabalho, a senhora Bernfeld tem certa participação, então, de fato, eu deveria fala
em “nós”. Uso o “eu” apenas como abreviação.
Não vejo como meus estudos poderiam interferir com seu trabalho e não vejo porque
você não poderia ou deveria usar minhas publicações em seu plano. Se desejar citar parágrafos
ou páginas de minhas publicações, isso pode ser arranjado com o portador dos direitos autorais.
Mantive os direitos de alguns de nossos artigos e tentarei manter essa política tanto quanto
possível no futuro.
Ficarei feliz em cooperar quando desejar receber informação não publicada de mim.
Gosto bastante de discutir este tópico da “vida e obra de Freud”, que me fascina.
Seus comentários sobre o contraste entre desejos e atos são bem convincentes. Sinto que
as inibições que afastam Freud dos estudos da fisiologia em seus anos mais jovens foram
resolvidos com sua autoanálise e o permitiam ser mais produtivo no campo da dinâmica
humana, especialmente por o método psicanalítico permitir a ele permanecer meramente um
observador, mesmo nestes estudos.
Muito sinceramente seu,
Siegfried Bernfeld.

136
Anexo B – Reprodução do cartão que Freud enviou a Lacan

137

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