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0 DISCURSO DA CULTURA E A QUESTAO

DA IDENTIDADE EM LIVROS DIDATICOS


DE FRANCES COMO LfNGUA ESTRANGEIRA

Ingrid Perucbi*
Maria José R. Faria Coracini

A questao cultural esta em voga. Seja na antropologia, seja na


sociologia, na diditica de linguas ou em qualquer outra irea das chama-
das humanidades, nunca se buscou tanto debater assuntos como iden-
tidade (constitutiva de um sujeito em particular ou de toda uma co-
munidade) e cultura, que, afinal de contas, é um de seus elementos cons-
timtivos. A motivaç2o desse comportamento parece advir da diminui@o
das distâncias entre os povos, da unificaçao, ao menos aparente, que esta
caracterizando, cada vez mais, todo o planeta. O grande mobilizador
dessas discussoes que se mostram, pot vezes, acaloradas 6 certamente o
fenômeno da globalizaçao, caracteristico da modernidade tatdia (Hall,
1998), termo atribuido à p6s-modernidade (Usber e Edwards, 1994),
ou ainda da modernidade, ponta de vista que defendemos.' Afinal, se
a globalizaçao, filha legitima do capitalisme, que objetiva a uni50 eco-
nômica de blocos e o encurtamento de distâncias, parece, ii primeira
vista, desejivel, disponibilizando, aparentemente sem discriminaç5o

* Professora na escola COC. Foi orientanda de inicia~aocientifica da professora-doutora


Maria Jose R. F. Coracini e, atualmente, é mescranda em lingüistica aplicada (IEL,
UNICAMP).
' Voltaremos a esse assunro mais adiante.
alguma, informaç6es e conhecimentos, ela provoca, paralelamente, um
grande temor: o da perda das identidades e O da conseqüente unifor-
mizaçao cultural (ou aculturaçao imposta pelas grandes potências mun-
diais, sobretudo os EUA).
Inseridas nessa formaçao discursiva e, portanto, nesse debate
sobre identidade e cultura, centraremos nossa atençao, neste texto, nas
concepçoes de cultura subjacentes ao discurso do livro diditico de fran-
cês como Iingua estrangeira (doravante FLE) e, em decorrência, na busca
pelo entendimento de como O francês constr6i sua identidade e de como
ele reage, nesse material diditico, ao desafio da aparente homogeneizaçao
cultural decorrente da globalizaçao.
Nossa anilise recairi, entao, sobre O discurso do livro diditico
em vista da posiçao central que este ocupa na sala de aula, tornando-se
freqüentemente a unica fonte de conhecimento à qua1 os sujeitos im-
plicados no ensino-aprendizagem est50 expostos (Molina, 1987; Cora-
cini, 1995, 1999). O livro diditico de lingua estrangeira adquire, assim,
pape1 relevante na constituiçao da identidade de professores e alunos,
na formaçao de seu imaginirio a respeito da cultura do outro, do estran-
geiro, sobretudo se considerarmos

a) que a midia, grande formadora de opinioes, esta freqüen-


temente voltada para a realidade de uns poucos paises, em
especial daqueles que detêm O poder econômico mundial
(como os EUA); e
b) que raramente O professor de LE tem a oportunidade de viajar
para O pais onde se fala a Iingua que ele ensina e, entao, vi-
venciar a cultura do outro através de suas proprias experiên-
u a s (Zarate, 1995).

Num primeiro momento, teceremos comentirios a respeito da


questao culturallidentitiria no atual contexto da globalizaçao para, em
seguida, apresentarmos os resultados da anilise dos Iivros diditicos
Tempo 1 e Libre échange 1,largamente utilizados para O ensino de FLE
nos dias atuais, em nosso pais.
1. Identidade, cultura e globalizaçZo

Definir o conceito de identidade como pontos de referência do


individuo no grupo social em que vive, enquanto caracteristicas que Ihe
garantem uma segurança psicologica, nao é tarefa simples, assim como
nao é tarefa simples definir a cultura de uma naçao, de um grupo social,
de um individuo (Nemni, 1992), dada a heterogeneidade constitu-
riva de todo grupo social, de toda sociedade e de todo individuo que,
ilusoriamente, cremos internamente unificada. Basta considerar que o
individuo moderno nao possui apenas uma unica cultura, um unico
ponto de referência ou pontos de referência fixos aos quais se identifica.
H i todo um conjunto de pertencimentos sociais que caracterizam sua
existência: pertencimentos de classe, de sexo, de idade, de naçao, de Iin-
gua, de religiao, de etnia ...
Segundo Hall (op. cit.), as sociedades nao sa0 mais -se é que
algum dia o foram - um todo predizivel, o que faz com que as pes-
soas nao se identifiquem mais com uma das classes sociais na dicotomia
classe dominante uersus proletariado, por exemplo. NZo h i mais, por-
tanto, uma identidade mestra que pode assumir diferentes configura-
@es: ora se trata de uma identidade -tomada por alguns como cultu-
ra-, que pode ser definida no âmbito racial (em virtude dos grandes
movimentos anti-racistas que se desenvolveram nas ultimas décadas),
ora de identidade sexual (em virtude de conquistas dos movimentos
feministas e dos movimentos gays), ora nacional, étnica, dentre outras.
Essa critica à vis50 de uma identidade e, portanto, de uma cultura fixa
e objetiva (fundada na origem do individuo, em sua raiz étnica ou na
herança cultural de seu meio, sendo assim preexistente a ele e inata)
esta ligada a duas grandes tendências da p6s-modernidade: O enfraque-
cimento do modelo de Estado-naçao e a globalizaçao. Como falar,
entao, da cultura de uma naçao, se muitos dos valores, hibitos, crenças
se modificam em contato com outros povos, outras naçoes, outros gru-
pos sociais? Como identificar um povo, uma sociedade, em oposiçao a
outros povos ou sociedades?
Historicamente, e ainda nos dias atuais, a identidade tem sido
uma questao nacional, controlada pela ideologia do Estado-naçao. É
caracteristica do Estado a tendência à monoidentificaçao ou à escolha
de uma identificaçao de referência no caso de admitir a existência de
outras identidades. Assim, a ideologia nacionalista mostra-se como
uma ideologia da exclus50 das diferenças. Na globalizaçio, no entanto,
O Estado-naçao esti perdendo importância e autonomia, sobretudo em
virtude da economia. É bem verdade que, em principio, aglobalizaçio,
como um poder homogeneizante, gera resistências, mas O capital tem
livre circulaç5o: como afirma Bauman (1999, p. 18), a resistência pre-
cisa de um atacante persistente e efetivo - mas O efeito geral da nova
mobilidade 6 que quase nunca surge para O capital e as finanças a ne-
cessidade de dobrar o inflexivel, de afastar os obsticulos". Nasce, desse
novo cenirio, O que Bauman denomina "noçio de proprietirio ausente":
"Graças à nova 'incorporeidade' do poder na sua forma sobretudo finan-
ceira, os detentores do poder tornam-se realmente extraterritoriais,ainda
que corporeamente estejam 'no lugar"' (Bauman, op. cit., p. 26). Os Es-
tados-naçao nao têm mais controle sobre O capital, como bem com-
provam as ondas de desemprego na Europa, decorrentes, muitas vaes,
de fechamentos de multinacionais que, sem se aterem ao espaço, se mu-
dam, quando convém, para pdses em via de desenvolvimento.
Juntamente com essa no@o de "proprietirio ausente", a globa-
liza@o engendra a "compressao espaço-tempo" (Hall, op. cir., pp. 73-81),
permitindo que se entre em contato, em segundos, corn as noticias mais
recentes de um pais situado na outra extremidade do globo. A distância,
com essa nova perspectiva, nao é mais algo objetivo, mensurivel: o "lon-
ge" e O "proximo" dependem mais da possibilidade de O individu0 ser
"global", ter acesso à Internet, a meios de comunicaçao e transporte
rapides, a canais de televis50 internacionaisetc. Ao mesmo tempo, pois,
em que se diminuem as distâncias entre os povos, favorecendo (em teo-
ria!) O acesso indiscriminado e ripido à informaçao e à cultura do outro,
aumenta-se O fosso entre aqueles que têm acesso às novas tecnologias e
aqueles que se encontram à margem do sistema capitalista.
Os efeitos de tal panorama sobre as identidades nacionais, que
se querem fixas e Gnicas, sao os seguintes, segundo Hall (op. cit., p. 73):

O medo da desintegraçao cultural;


O reforço das identidades culturais pela resistência;

- O nascimento de identidades hibridas.


Num mundo global ou globalizado, tanto O fundamentalismo
como O nacionalismo exacerbado, que provoca, por exemplo, a queima
de lanchonetes McDonaldS, como ocorreu no ano 2000 na França, ou
bizarras politicas de protegao do idioma nacional diante da influência
do inglês, constituem decorrências tao legitimas quanto a tendência ho-
mogeneizante ou O surgimento de identidades hibridas. Nestas, esta em
questao nao O apagamento das culturas tidas como marginais, como, por
exemplo, a cultura dos imigrantes, mas a convivência da diversidade, que
provoca, inevitavelmente, uma transformaçao no que se considera as
bases culturais de um povo ou de um grupo social. Ali&, os meios de
comunicaç50 de massa expandidos pela globalizaçao provam que n5o h i
controle possivel no contato com a diferença, que sempre provocari
mudanÇa,como atesta O excerto abaixo:

Uma série de televis50 americana como Dallar, que obteve um sucesso


praticamente mundial, desde as petifenas de Lima, no Peru, até as aldeias
isoladas no Saara argelino, nZo foi compreendida do mesmo modo nem
assistida pelas mesmas raz6es aqui ou la, em um ou outro meio social.
Tao estandardizado quanto possa ser O produto da emissgo, sua recepçao
n5o seri uniforme e dependeri muito das particularidades culturais de
cada grupo (Cuche, 1996, p. 76).

Dessa maneira, O processo da globalizaçao vem questionar a


L - ~ -~ ~~ ~ ~

idéia sociolbgica clksica das sociedades vistas como um sistema deli-


mitado de identidades nacionais e, ponanto, de ~dtUra.5nacionais (con-
juntos de crenças, costumes, reaçoes, vinculados a lugares, eventos ou
historias particulares), instaurando
-- ~
as chamadas "crises identithias":
crise de referências culturais estiveis, da identidide como algo fixo,
caracteristico de uma sociedade, de um dado territbrio nacional ou re-
gional delimitado por fronteiras, que, hoje,. parecem nzo mais esta-
belecer a diferença ou O limite, demarcando onde, imaginariamente,
-~~
terminava uma identidade e outra tinha inicio.
É, portanto, com base nos conceitos de (a) cultura, ou melhor,
culturas "como sistemas complexos e evolutivos, na medida em que sao
(re)interpretadosem permanência por individuos cujos interesses podem
ser divergentes, segundo O sexo, a geraçao, O lugar na estrutura social
etc." (Cuche, op. cit., p. 112), como sistemas hibridos; (b) identidade
social elou individual como algo nao estivel, heterogêneo, em perma-
nente transformaçao -j i que "primeiramente, eu sou um ser social que
interage forçosamente corn outros seres sociais e, em segundo lugar, que
eu evoluo no espaço e no tempo" (Nemni, 1992, p. 29), de que faz(em)
parte a(s) cultura(s); (c) enfirn, de sujeito como lugar de dispersao, atra-
vessado pelo inconsciente, que passamos a abordar alguns livros didaticos
de francês, em busca da concepçao de cultura e de identidade par eles
veicuiada.

2 . O discurso d a cultura nos livros diddticos de fiancês como lingua


estrangeira

Num primeiro momento, analisaremos O livro Tempo 1,publi-


cado no Centro de Lingüistica Aplicada de Besançon e, num segun-
do momento, Libre échange 1, publicado pela Editora HatierlDidier.
Conforme afirmam no Preficio, ambos se inserem na abordagem co-
municativa e têm, portanto, O ensino da cultura francesa como urna
de suas preocupaç6es.

2.1 Tempo 1

Esse livro diditico, desenvolvido de acordo com as pesquisas


realizadas no Centro de Lingüistica Aplicada de Besançon (França), é
um material dirigido para um public0 iniciante no estudo da lingua
francesa e esta inserido, como j i dissemos, dentro de urna abordagem
comunicativa de ensino de lingua estrangeira. Em virtude disso, O livro
procura trazer urna mudança em relaçao aos demais livros de FLE, bus-
cando sair do esquema j i estabelecido do livro diditico que inclui
basicamente urna liçao-texto e, em seguida, urna exploraçao grarnatical
e lexical (vocabulirio) centrada naquele texto. No Tempo 1, encon-
tram-se variadas atividades dentro de urna mesma Iiçao; defende-se
urna vis50 de ensino de lingua menos centrada na progressao grama-
rical e mais centrada na aquisiçao de certas competências. Assim, ao
final da primeira unidade, espera-se que O aluno j i seja capaz de co-
municar-se com outra Pessoa em um primeiro contato. Para canto,
noç6es de presente e passado S ~ introduzidas
O desde o inicio, por exem-
plo. Tempo 1é ainda um livro centrado em tarefas comunicativas, como
bem explicita sua Apresentaçao, O que pressupoe que o aluno aprende
a lingua quando pode de fato usa-la, quando pode criar, realizar tarefas
em lingua estrangeira (ainda que essas tarefas sejam somente simulaç?io
de atividades da vida cotidiana, algo que j i esta presente também nos
livros diditicos menos recentes analisados em outros momentosz).
Dentro dessa mesma concepçao e abordagem de ensino de Iin-
gua, encontramos o ensino de cultura, tomado aqui como sinônimo de
civilizaçao, que o livro em questao denomina civilisation a c t i ~ eO
. ~en-
sino da "civilizaç~oativa" corresponderia à apresentaçao de aspectos da
cuitura francesa sempre associados a uma atividade, oral ou escrita, que
o aluno deve desenvolver. Os autores dizem que, para tanto, nao "sacri-
ficaram o prazer estético" e, por isso, as seçoes que tratam de aspectos
culturais sao abundantemente ilustradas.
Esse discurso sobre o tratamento dado pelo livro à questao cul-
tural pode produzir dois principais efeitos de sentido que passamos a
destacar:

1) O de que a cultura francesa parece mais elevada do que outras,


talvez menos civilizadas, j i que ela nao é nunca designada
como cultura, mas sempre como civilizaçao.

Sabe-se que, historicamente, os termos "cultura" e "civilizaçao",


largamente utilizados por historiadores franceses do século XIX, nao

Ver, a esse respeito, Coracini, 1999, pp. 105-24.


' Desde o século XVIII, na tradiçZo francesa, o termo civilizaç50 rem sido urilizado como
sinônimo de cultura, embora o primeiro evoque mais os progressos individuais e o segundo
os progressos colerivos (Cuche, 1996, p. 91, o que se faz sentir mais profundamente nos
estudos e obm destinados ao ensino do francês como lingua estrangeira. Ler, a esse respeito,
Nemni (1992, p. 141, que assume cultura como sinônimo de civilira~5oe retoma Holec
(1988, p. 1041, para criticar a idéia de que haveria, ao lado das culturas individuais, " u m s
cultura da "maioria": segundo ele, a civilizaç50 "incorpora, além d a informagoes artisticas,
técnicas, recnol0gicas, cienrificas etc., o conjunro das similitudes dos componentes in-
dividuais que existem entre as culturas da maioria, sen50 da totalidade, dos membros de
uma comunidade".
designavam opostos como ocorria corn O sentido que lhes foi atribuido
pela sociedade aiema de entao: "aigo que vem do povo" (cultura) versus
".
zntelligentsia burguesa" (civilizaç50). Entretanto, devido a essa cono-
taçao intelectual e etnocêntrica que O termo "civilizaç~o"adquiriu, vaie
lembrar que, hoje, O uso do termo "civilizaçao" vem sendo altamente
criticado pot antropologos que preferem O termo "cultura", segundo
eles, mais neutro ou, pelo menos, nao portador de uma certa discti-
minaçao (Cuche, op. cit., pp. 10-14).

2) O de que cultura é principalmente um instrument0 de mo-


tivaçao à aprendizagem da linguaestrangeira pelo aluno.

Certamente, em virtude de conceber a cultura como moti-


vaçao, O livro exp6e fotografias que representam belas paisagens da
França ou de paises francofonos, fotografias perfeitas, de lugares per-
feitos, enfim, de um pais que parece perfeito, assim como apresenta,
muitas vezes, assuntos "neutros", que nao dao margem a problema-
tizaçoes de espécie aiguma, como a moda francesa, O perhime francês,
artistas franceses e personalidades de destaque na politica francesa.
Raramente, para nao dizer nunca, um aspect0 historico ou um pro-
blema econômico-cultural, que dificulta a vida dos imigrantes e até
mesmo a aceitaçao do estrangeiro como parte da naçao, é motivo des-
sas seç6es de "civilizaç~oativa e, quando isso ocorre, é tratado de
modo superficiai, buscando transmitir uma mensagem sempre positiva
e idealista da historia social e politica da França.
Em virtude de um panorama cultural assim retratado, ocorre
O reforço de idéias estereotipadas que constitui normaimente O ima-

ginirio do estrangeiro a respeito dos franceses, ou seja, que eles sao


pessoas tefinadas, que produzem vinhos de quaiidade, perfumes caros,
roupas de grifes famosas e que tiveram alguns grandes esta dis ta^.^
Nota-se, no T~mpo1, além desses assuntos pouco ou nada pro-
blematizadores, uma caracteristica que O marca fortemente e O singu-
lariza em relaçao aos demais livros anaiisados: trata-se da preocupaçao
pela francofonia e pot aspectos geogrificos da França.

Ver, a w e respeito, Maria José rodrigues F. Coracini, X Acelebn@o do outro", neste volume.
Virios si50 os momentos no livro em que se tem contato com
cidades (famosas) francesas, com as diferentes regioes da França, com ên-
fase especial numa espécie de pluralidade cultural, j i que cada regi5o
apresenta hibitos e historia proprios. Entretanto, tanto com relaçao às
cidades como com relaçao às regioes, discute-se basicamente quais sa0
as mais ensolatadas, as mais gastronômicas, quais sacras mais "culturais"
(no sentido de tipicas) e quais estao mais bem prepatadas para O século
que se inicia. Aqui tamhém, nenhum assunto mais problematizador,
wmo a imigrago ou a historiada wlonizaç50, é motivo de discuss50 sobre
as cidades apresentadas. É como se apenas O turismo interessasse...
Vale observa que O iivro n5o se restringe às honteiras geograficas
da França: ele abre suas comportas para O mundo, mas limita essa aber-
tura aos paises francofonos, onde se fala, portanto, a lingua francesa e
onde se encontram vestigios da cultura francesa corn suas variantes.
Entramos em contato, entao, com paises como, por exemplo, O Mat-
rocos e aTunisia. Tai atitude nos permititia deduzir que avis50 de lingua
e de cultura francesas que O livro diditico husca transmitir extrapola O
âmbito daquilo que "pertence" apenas ao territbrio francês, assumindo
codas as conseqüências que isso possa acarretar (sotaques, vatiaçoes lin-
güisticas, aspectos culturais etc.). Sena possivel interpretar, igualmente,
que avis50 de cultura do livro é aquela que crê que a cultura de um povo
n5o termina em sua fronteira, que h i virias culturas, vitias identidades
e identificaçoes, ou pelo menos, que a cultura proveniente de qualquer
pais se torna hibrida.
Observemos, entao, em algumas piginas do Tempo 1, como
é tratado O aspecto da pluralidade cultural e da francofonia que nele
despontam.
Nas primeiras piginas, visto que esse livro é concebido para
principiantes no estudo do francês, ha uma sensibilizaç50 para a lingua
francesa. Ta1 sensihilizaç50 é feita mostrando O contraste do francês
com outras Iinguas, através de alguns termos transcritos no livro, que
representam virios paises (francofonos, lusofonos, anglofonos etc.),
que, pot sua v a , poderiam evocar, em tese, aquele a que pertence O
aprendiz estrangeiro da lingua francesa.
Na pagina 9 do livro em analise, um ultimo exercicio de sensi-
bilizaçao é proposto. Pot meio de fotos de alguns paises, busca-se saber
se o aluno j i esti apto a reconhecer a Iingua francesa (em meio a tantas
outras Iinguas faladas no mundo), a França e alguns dos paises anterior-
mente citados, por meio do seguinte enunciado: "Na sua opiniao, em
que paises estas fotos foram tiradas?" (Ver, no Anexo 1, a reproduçao
dessa pigina.)
Ao observarmos as fotos desse exercicio, reconhecemos, sem
muita dificuldade, paises como o Marrocos ou aTunisia, a Inglaterra,
o Japao, a Grécia e a Italia, o que decorre mais do reconhecimento das
linguas nacionais desses paises, que se encontram expressas nas fotos,
além dos limites geograficos que wocam, do que, na verdade, por reco-
nhecimento de uma de suas paisagens mais caracteristicas e difundidas
internacionalmente (salvo no caso da França, que é representada pelo
café Les Deux Magots).
Essa busca pela representaçao de diversos paises e respectivas Iin-
p a s , ou esse espaço que é cedido a outros paises que nao sejam a França,
normalmente a unica naçao retratada pelos livros diditicos de FLE, nao
parece, no entanto, constituir uma abertura para outras culturas. Apesar
de se tratar de paises estrangeiros que nao têm o francês como Iingua
nacional e que sao, em grande parte, potências tao mundialmente repre-
sentativas quanto a França, ou paises que se supije estarem mais distantes
da realidade francesa, as fotos transmitem um sentiment0 de que a cul-
tura e a lingua francesas sao "internacionais", ou seja, que elas estao
"globalizadas", que a França é um pais (central) que exporta sua cultura,
seus hibitos, suas comidas e suas gandes industrias: é o efeito de sentido
provocado pelas fotos em que todos os paises estrangeiros aparecem
associados à cultura francesa, quer pela industria evocada e pela Iingua,
expressas por exemplo em outdoors da Peugeot na Grécia, quer somente
pela industria francesa, representada, por exemplo, pela venda de iogur-
tes franceses na Inglaterra.
A pluralidade cultural a que, aparentemente, o livro se propije
se faz presente, como vimos, no aspecto da francofonia, trazendo ou-
tros paises, sempre descritos de maneira superficial, como o Marrocos,
representado na pigina 96 (ver Anexo 2). Os aspectos tratados sa0 su-
perficiais e insuficientes, reduzindo o pais, sua diversidade, ao que ele
possui de "turistico". Embora O texto responsivel pela apresentaçao do
pais nao tenha sido produzido pelos autores do livro diditico, sabe-se
que ele foi extraido, nio da imprensa escrita (que se supoe produzir ma-
térias mais reais ou menos fantasticas), mas de um guia turistico: o mate-
rial é autêntico, é bem verdade, mas a fonte (publicitiria) denuncia
interesse econômico e, portanto, forte seleçao de informaçoes. Assim,
a imagem do Marrocos construida nia corresponde nem à realidade do
pais nem tampouco à imagem que os franceses fazem dele, se conside-
rarmos as reportagens divulgadas pela midia francesa que envolvem o
Marrocos e a França. O Marrocos é, pois, apresentado Sem problemas:
resume-se a fotos de lugares bonitos, florestas, iagos e a uma dada posi-
Ç ~ geogrifica
O no maPa-mundi. Na0 hi, nesse texto, nenhuma expli-
caçio do motivo pelo qual a comunicaçio em francês no Marrocos é
possivel, nenhuma explicaçio sobre o tipo de relaçio que existe entre esse
pais e a França.
Outros pdses tratados pelo livro sao explorados da mesma ma-
neira, ou seja, de forma redutora e pelo viés turistico (supostamente
neutro). Na unidade 4, intitulada "Meu pais", h i uma atividade pro-
posta com base em um mapa-mundi. Apoiando-se no mapa, o aluno
deve primeiramente aprender quais sioos paises, j i destacados no
mapa, onde se fala francês - como Iingua materna, lingua oficial ou
por razoes historicas - e, posteriormente, dizer quais os paises
onde se fala português, inglês, irabe e espanhol. N i o resta duvidas de
que o maior objetivo da atividade em questao é levar ao conhecimento
do aluno a existência de diversos paises onde se fala e se pode falar
francês e, portanto, a abrangência e conseqüente importância do
idioma. Entretanto, isso é feito em detrimento das diferenças, dos
conflitos historicos e culturais que explicam a Iingua oficial, herança
do periodo de colonizaçio, que, certarnente, nao foi e nio é conservada
rai e qual foi recebida (se é que é possivel saher como foi recebida...).
Quanto aos paises que nao têm o francês como Iingua materna nem
oficiai - como a Tunisia, a Argélia ou o Camboja -, estes sio sim-
plesmente apresentados como paises onde se fala francês "por raz6es
historicas". Resta saber quais seriam essas razoes historicas, como se
produziram e que conseqüências tiveram, dados que, obviamente,
nio interessam ao livro diditico, preocupado em motivar O aluno a
aprender francês, o que justifica o uso de recursos proprios do dis-
curso publicitirio.
Nesse mesmo capitulo, é proposta uma atividade escrita basea-
da em um texto sobre a francofonia que reproduzimos a seguir:

La francophonie

Le français est la deuxieme langue étrangère enseignée apres l'anglais.


Il est parlé dans 37 pays et on estime que 120 millions de personnes
sont francophones.
Le français est parlé dans une vigtainr de pays ainsi qu'au Maghreb, en
Amérique du Nord: au Québec et en Louisiane, en Europe: en Suisse,
en Belgique, mais aussi en Guyane, en Nouvelle-Calédonie et dans
i'Océan Indien.
Une organisation regroupe plusieurs pays qui ont en commun l'usage du
français: les chefs des états francophones se réunissent régulikrement et
collaborent dans le domaine de i'éducation et de la ~ u l t u r e . ~

Como é possivel perceber, O texto em questao visa nao somente


a explicar O que é O movimento da francofonia (paises que faiam fran-
cês), mas, principaimente, a estabelecer O estatuto da lingua francesa no
mundo, seu lugar no ranking "das linguas mais importantes". Para tanto,
explicita, j i de inicio, que O francês é, no mundo, a segunda lingua mais
ensinada depois do inglês e que ela é faiada nos cinco continentes, em-
bora, na Europa, somente a Suiça (em parte) e a Bélgica sejam franco-
fonas. O leitor desse texto pode se perguntar: "Mas e a França?Ela nao
esti situada na Europa e nao é faiante de francês?Por que, entao, nao esta
presente na lista de paises franc6fonos europeus?"
Um dos efeitos de sentido de ta1 omissao, associado também à
vis20 da "pluraiidade cultural", que, como foi possivel observar, sempre
tem como referência a França, é de que a França é O pais onde legitima-
mente se fala francês, centro que justifica a existência dos demais paises

Em português: 'X francofonia - O francês é a segunda lingua estrangeira ensinada de-


pois do iuglês. É falado em 37 paises e estima-se que 120 milhoes de pessoas sio franco-
fonas. O francês & falado nos cinco continentes: na Africa em aproximadamente 20 paises,
bem como no Maghreb, na Am&ricado Norte: no Quebec e na Louisiane, na Europa:
na Suiga, na Bélgica, mas também na Guiana, na Nova-Caledônia e no oceano fndica.
Uma organizaçio agrupa varios paises que têm em comum o uso da francês: os chefes dos
estados francofanos reiinem-se regularmente e calaboram no campo da educa$io e da cul-
turc [tradugao nossa].
francbfonos, ponto de referência das demais culturas de lingua francesa,
territbrio de origem do idioma. O movimento da francofonia, assim, nio
é entendido como um movimento "dos paises que falam francês", à sua
moda, mas "dos paises que falam a lingua da França", do pais que tem
O mérito de ter sabido "globaiizar" sua Iingua e sua cultura.

2.2 Libre échange 1

Esse livro, assim como O livro anteriormente analisado, é recente


e se insere também numa abordagem comunicativa de ensino de linguas.
Muitas das atividades por ele propostas buscam, portanto, O desenvol-
vimento da competência de comunicaçio. Cada capido, além das sub-
divisoes tradicionais que incluem um texto, uma exploraçio lexical e
uma sistematizaçio gramatical, introduz pelo menos duas subdivisoes
a mais: uma intitulada "Itinéraire Bis" (Itinerario Bis) e a outra "La
France au quotidien (A França no cotidiano).
A primeira dessas seç6es traz variados registros lingüisticos do
francês atual através de pequenos textos que retratam situaçoes da vida
cotidiana (telefonema, saida para O cinema, pedido de informaçoes na
rua, conversa entre amigos etc.) e de excertos de roteiros de filmes fran-
ceses, transmitindo assim aquela cultura que é freqüentemente deno-
minada "cultura do cotidiano". J i a segunda dessas seçoes apresenta
como os franceses vivenciam, no dia-a-dia, um dos assuntos centrais
jd debatidos no capitulo em questio. Esse destaque que cada capitulo
d i às produgoes francesas (na arte, no cinema, na irea técnica), às in-
formaçoes prdticas e ao comportamento dos franceses estaria, segundo
a prbpria apresentaçio do manual, inserido em sua preocupaçio pela
"cultura e civilizaçio" da França. É notivel que, ainda que presente,
como de hibito nos livros diditicos de FLE, O termo "civilizaçio" nio
é aqui O unico responsivel pela caracterizaçao da sociedade francesa:
ao lado, aparece O termo "cultura" que parece reduzir O efeito de "so-
ciedade evoluida" que O termo "civilizaçao" evoca.
Os aspectos culturais, preocupaç50 aparente do livro em analise,
mostram-se, no entanto, pouco diferenciados em relaçio à maioria dos
livros diditicos de FLE. A retrataçao da familia francesa que compoe
os textos iniciais de cada capitulo corresponde a uma familia "comum"
que, no entanto, leva uma vida sem inconvenientes ou problemas de
qualquer natureza, entre visitas a amigos, partidas de tênis e tardes na
piscina, entre outros, como bem comprova a primeira liçao do livro.
Outra caracteristica marcante é sua restriçao à apresentaçao da lingua e
cultura francesas, de forma que nao h i sequer uma referência ou preo-
cupaçao com O aspecto da francofonia. Ao aluno resra uma imagem
reduzida a respeito da cultura que envolve a lingua que ele esta apren-
dendo, e ao professor resra a aceitaçao acritica desse discurso do livro
diditico, material que carrega consigo freqüentemente a imagem de "bi-
blia", de "detentor privilegiado do saber" ou a tarefa, nem sempre ficil,
de, a partir de uma vis20 critica, fugir do que j i esta estabelecido pelo
livro diditico, promovendo, por exemplo, debates entre os alunos.
É bem verdade que os numerosos estrangeiros que vivem na
França se encontram, de certa maneira, ai representados: seja nas
estorias iniciais de cada capitulo, por uma personagem inglesa e outra
espanhola (as duas sa0 amigas da familia principal), seja por referências
a estrangeiros de origem africana, que aparecem, porém, mais discre-
tamente, sobretudo através das estatisticas que representam o mercado
de trabalho francês (8% dos trabalhadores seriam estrangeiros, e, em
sua maioria, argelinos). Mas as varias liç0es se passam na França e
evitam toda e qualquer problematizaçao advinda da grande e ampla
irnigraçao.
É interessante, ainda, observar que as seç6es especificas de cul-
tura e civilizaçao sempre retratam a sociedade francesa por meio de es-
tatisticas, causando, no professor e no aluno, a impressao de uma visa0
realista e, portanto, objetiva da França atual, Sem O crivo de uma
escolha proposital ou estereotipada. Esse recurso, que, em principio,
parece O mais adequado, ja que busca dar conta da pluralidade e he-
terogeneidade de uma sociedade, Sem reduzi-la a uma imagem gené-
rica que representaria a maioria, acaba por se mostrar tao superficial
quanto todos os outros recursos presentes nos demais livros diditicos
no que concerne à representaçao cultural, fato que ocorre fundamen-
talmente em virtude dos temas sobre os quais recaem as estatisticas. No
primeiro capitulo, discutem-se as profissoes tipicas dos franceses; no
segundo, como os franceses gastam seu dinheiro; no terceiro, fala-se de
restaurantes e lanchonetes; no quarto, dos museus franceses, no quinto,
apresenta-se a moda; no sexto, O cinema; no sétimo, O esporte etc.
Entretanto, esse tratamento estatistico, dado a temas que evocam
O dia-a-dia dos franceses, nao impede que, em outros momentos, O livro

explore ou reforce alguns estereotipos positivos e, por vezes, negativos,


como O de que Paris é uma cidade extraordiniria, detentora quase uni-
camente de vantagens, e cujo unico inconveniente parecem ser os pari-
sienses, pessoas antipiticas (Fabienne: "[ ...] mais, tu trouves les Parisiens
aimables?" Carmen: "Pas toujours, mais je les trouve amusants. Ils sont
très drôles". Fabienne: "Moi, je ne les trouve pas gentils" -p. 60). Na
seçao "A França no cotidiano", desse mesmo capitula, essa supremacia
cultural de Paris, esse aspect0 extraordinirio que Ihe seria caracteristico
se vê novamente reforçado: em meio a fotos de belas paisagens parisien-
ses, uma atividade é proposta: ao aluno cabe "escolher" (como se ele ti-
vesse alguma possibilidade de escolha) a Paris de que ele gosta, que ele
imagina ou com a qua1 ele sonha e dizer a raz50 de sua escolha. Na
verdade, diante de fotos tao maravilhosas (da Torre Eiffel, do Moulin
Rouge, da Praça da Concordia, da ilha de Saint-Louis...) e da atividade
proposta, s6 resta ao aluno reaimente sonhar em também poder estar
naquela cidade, onde tudo parece perfeito, longe dos problemas sociais
e individuais que assolam a vida no Brasil. Mais uma vez, O discurso
publicitirio atravessa O discurso diditico, a fim de motiva O duno para
O aprendizado da lingua estrangeira, sem se dar conta, no entanto, das

conseqüências que pode acarretar para a constru@o do imaginirio do


aluno e, conseqüentemente, para sua subjetividade sempre em cons-
truçao,' conseqüências que, sabemos, podem chegar a uma recusa da
propria cultura, reforçada por uma admiraçao Sem limites pelo pais do
outro, ou a uma revolta inconsciente e improdutiva.
Em um dos ultimos capitulas, na seçao intitulada "A França no
cotidiano", O livro trata especificamente de eventos historicos franceses
ocorridos depois de 1968. Este é O unico moment0 em que se foge dos
assuntos descompromissados, aparentemente "neutros", dos demais ca-
pitulos, como O esporte, a moda, ou restaurantes franceses. Nessa pagina,
chamam a atençao, de inicio, as fotos: rodas elas representam conquistas

".r Maria José Rodrigues F. Coracini, 1cclebra@o da outro", neste volume.


dos franceses, como a revolta dos estudantes de 1968, uma conferência
da OPEP, a comemoraç?io da eleiçao de F. Mitterrand ou a criaçao do
TGV, e, posteriormente, os textos e seus titulos. Todos os titulos, as-
sim como os textos, têm como sujeito do discurso O pronome pessoal
"nos" - "nos fizemos", "nos desenvolvemos", "n6s mudamos" -,
nao O "nosn inclusive, mas aquele que exclui, por se referir unicamente
aos franceses, mostrando, através do pronome, certa superioridade.
Dessa forma, entramos em contato, graças aos referidos textos,
com a historia de um pais que se mostra determinado (ao lutar por seus
direitos, pela mudança de Siniaça0 da mulher na sociedade, pela liber-
dade dos costumes), organizado (pois soube superar uma crise do peu&
leo), que sabe escolher bem seus governantes (como por ocasiao da elei-
@Ode Mitterand) e extremamente desenvolvido (visto que criou O TGV,
O Concorde e outros avioes de alta tecnologia). A cada um desses fatos
historicos relatados associa-se um lema que comprova iguaimente rodas
essas supostas caracteristicas do povo francês na era da globalizaçao,
caracterizada, como j i dissemos, pela (com)press?ioespaçetempo. No
primeiro texto, O lema é: "Nos fizemos nossa revolu@o cultural"; no se-
gundo: "Na França, n?iotemos petroleo, mas temos idéias"; no terceiro:
"Mudar de vida"; e, enfim, no quarto: "Sempre mais ripido".
O terceiro desses textos parece, em principio, relatar um fat0
historico desfavorivel aos franceses, j i que tem como titulo "Nos pas-
samos por uma crise do petroleo". Porém, logo se observa pelo lema
do texto ("Na França, nao temos petroleo, mas temos idéias") que os
franceses s?iocapazes de superar quaiquer crise porque têm idéias e isso
parece ser mais importante do que ter petroleo.
Desse modo, observamos que os aspectos culturais sa0 determi-
nados pelo livro diditico como um conjunto de fatos historicos rele-
vantes para a criaçao de uma identidade nacional, conjunto de priticas
sociais cotidianas, que Imam ao conhecimento do aluno nao s6 O modo
pelo qual os franceses vivem O seu dia-a-dia, mas também como espe-
ram que O aiuno se comporte socialmente, quando (ou se) estiver em
contato com franceses, nao importando, em nenhum momento, a sua
origem, as cdturas que O constituem.
Concede-se também espaço relevante para a culmra tomada en-
quanto erudiçao, concepçao usual, popular do termo, pela exposiçao
da arte em geral e da tecnologia francesa, além dos aspectos naturais
e dus edificios construidos que, evidentemente, decorrem dos modos
de ser e de conceber O espaço - cidades bonitas, bons restaurantes,
lugares agradiveis -, aspectos da cultura de um povo, embora tudo
isso se ligue essencialmente ao turismo, O que acaba pot transformar
O livro diditico num verdadeiro "cartao-postai do pais onde se fala a
kingua estrangeira" (Bolognini, 1991).
Resta sbordar a questao da globaiizaçiio, que, como vimos, era
uma das preocupaçoes centrais do livro T~mpo1: ela esta também pre-
sente no Libre échange 1,porém, se, no primeiro livro, a globalizaç50
representa mais a influência que a França exerceria sobre O mundo do
que a influência que ela receberia dele (ou sobretudo dos EUA), O se-
g u n d ~Firo mostta uma sociedade francesa que nao necessariamente
influencia, mas qrie, sem duvida alguma, é influenciada pela globali-
zaçao. Hibitos de personagens isolados do livro (como corner hambur-
guer, beber coca-cola etc.), assim como escolhas lexicais (jeans, k must,
walkman, por exemplo), apontam para isso. Observem-se as duas trans-
criçoes abaixo, respectivamente das pp. 88-89:

Les jeunes gagnent peu mais consomment beaucoup

Pour lesvêtements: entre 100 et 400 F. Ils achètent surtout des chaus-
sures et des pulls. Lesjeans restent "Ie must": 91 % des jeunesportcnt
desjeans. [...] Les jeunes de moins de 25 ans reçoivent aussi beaucoup
de cadeaux. Leurs parents et amis leur offrent le plus souvent: un
walkman, un radiocassette, un blouson, parfois même une mobylette
ou une moto (p. 88).'

50 millions de consommateurs

Les jeunes de moins de 25 ans depensent par trimestre: au restaurant 330


F. Ilrpreprent kspizzas, puis les grillades; 4% d'entre eux prennent

Fm português: "Os jovens ganham pouco, mas consomem muito -Para as roupas: en-
- . .
tre 100 c 400 E Eles cornDram sobrerudo calcados e aeasalhoa. Os iranr Dcrmanecem 'O
muri: 91%dos jovens usamjtanr. [...] Os jovens de mcnos de 25 anos tecehem também
muitos presentes. Seus pais e amigos freqüentemente lhes aferecem: mm w a l h n n , um
radiocassete, um blus50, As v a e s até uma mobilcte ou uma moto".
essentiellement des hamburg~rs.Comme boisson, ilr boivent surtout du
coca, de i'orangine et du soda pour marquer leur différence avec le monde
des adultes. La bière et le café viennent en second (p. 89).'

No primeiro excerto, além da express20 do inglês le must, que


por si s6 j i comprova a influência americana, consta que 91% dos
jovens franceses usam jeans, roupa americana por excelência. Observe-
se, ainda, a utilizaç20 do termo inglês walkman, que poderia ter sido
substituido por baladeur, termo francês, emhora saibamos que é menos
utilizado pelos falantes de francês do que a palavra inglesa, mesmo se
considerando alguns esforços que visam a "proteger" a Iingua francesa
da influência do inglês.
No segundo excerto, descobrimos que a preferência gastronô-
mica dos jovens franceses é a pizza, comida de origem italiana, seguida
também pelo hamburguer, tipicamente americano. Sua hebida é a
coca-cola, também americana.
A sociedade francesa, vista a partir desses dois textos, parece cor-
responder melhor à realidade de um pais que, como todos os outros, n2o
escapa aos efeitos da glohalizaç20 (oriunda do regime capitalista) através
do marketinre- dos meios de comunica@o de massa. É interessante notar
que esse comportamento dos jovens franceses é justificado, entretanto,
como uma maneira que eles teriam encontrado para "marcar sua di-
ferença com O mundo dos adultos", O que faz pensar que se trata de uma
escolha pessoal ou de uma estratégia de reheldia propria da juventude e
n2o simplesmente de uma influência inevitivel da midia, da publicidade,
da globalizaç5o. Assim, apesar de mostrar que a sociedade francesa tam-
bém sofre influências externas a seu territbrio, O texto acaba por tentar
justificar essa influência como "um certo modismo de juventude", por-
tanto, passageiro.

"50 milhoes de consumidores - Os jovens com menos de 25 anos gastam por trimes-
tre: no restaurante, 330 F. Eles preferem as pizzas, depois os grelhados; 4% dentre eles
comem essencialmente hamhtirgueres. Como bebida, tamam principalmente coca-cola,
orangina e soda para marcar sua diferenga com o mundo dos adultos. A cerveja e o café
vêm em segundo lugar" [grifos nossos].
Este texto nasceu de uma certa inquietaçao a respeito da retra-
taçao dos aspectos culturais pelos livros diditicos de FLE, assim como
de uma inquietaçiio com O fenômeno atual da globalizaçao e a sua in-
cidência sobre O discurso diditico.
Observamos, por meio da analise dos livros Tmpo 1 e Libre échange
1, que os aspectos culturais abordados apontam para uma noçio de
cultura enquanto reuniao de tudo O que de melbor se produziu por uma
comunidade, nesse caso, a França. Assim, ressaltam-se nos livros as pro-
duç6es artisticas e técnicas francesas, vitorias e momentos historicos,
simplificados e isolados, que dao prova da "grande" organizaçao do pais.
A cultura ainda é entendida como folclorizaçiio (pela retrataçao
de comidas tipicas, esportes tipicos, costumes, historias particulares
etc.) e, portanto, como preexistente ao sujeito; como "cultura do co-
tidiano", de hibitos sociais dos franceses e como cultura "turistica" (das
belas paisagens, da retrataçao de um pais que se mostra perfeito).
Em meio a essas imagens, que estratificam a cultura, assumin-
do-a como conjunto, sen50 fixo, ao menos estivel, de valores, de com-
portamentos sociais (como se vestir, comer, cumprimentar etc.), en-
fim como se referindo a blocos de construçao e ao ciment0 que man-
tém os membros de um grupo, sociedade ou naçao, unidos (Schmitz,
1995, p. 8), encontramos indicios das conseqüências da globalizaçao
que j i se fazem sentir no dia-a-dia. O Tempo 1 é um material que se
mostra fortemente constituido pelo ideirio da globalizaçao e que pos-
sui uma abordagem de ensino que niio restringe a cultura da lingua
francesa ao territbrio francês, mas abre espaço para a representaçiio de
outros paises. Vimos, no entanto, que essa visiio "globalizante" ou essa
"abertura' para O mundo niio coloca, num mesmo patamar valorativo,
a França e os demais pdses de lingua francesa. A França sempre aparece
como O centro, um pressuposto para tudo O que envolve a lingua e
cultura francesas. Vimos igualmente que a imagem transmitida é a de
que a França influencia O mundo, enquanto é muito pouco influen-
ciada por ele, O que certamente nao condiz com a realidade, mas com
O desejo do povo francês de preservar sua propria cultura, de apagar

as influências externas, objetivando, assim, à construçao de uma re-


presentaçao de si proprio homogênea, singular em meio às demais
culniras.
Resistência provocada, à revelia, pelo fenômeno da globalizaçao?
Talva, j i que, em tempos de unificaçao, nada parece mais atual do que
movimentos xenofobos, racistas e protecionistas; mas O certo é que os
livros diditicos analisados (e nao apenas estes) colaboram para uma
representaç50 ideai da cultura e da lingua aprendida ou a ser aprendida,
de modo a reforçar tanto em professores como em alunos O miro do
estrangeiro.
Por tris de representaçoes tao idealizadas e parciais, esta, sabe-
mos, O desejo de motivar O aluno da lingua estrangeira a seu aprendizado,
de tornar a aula mais agradivel e mais atual, mas, talvez esteja também,
de forma sub-repticia, O desejo de ser (no imaginirio daqueles que es-
tudam sua lingua) uma sociedade coerente, que se situa em um belo ter-
ritbrio e que possui uma historia vitoriosa. É, em parte, a tentativa de
preservaçao de uma identidade coletiva (processo certamente incons-
ciente) e, em parte, O proprio desejo de se mostrar uma sociedadeviivel
e ideai (processo consciente). Visto a partir dessa conclusao, O proprio
processo de estereotipia, embora necessirio para operar uma certa sim-
plificaç5o da realidade "que seria complexa demais para ser gerida na to-
talidade de suas variantesn (De Carlo, 1997, p. 282), e, como sabemos,
para a construçao da representaçao de uma identidade nacional, é hi-
pergeneralizador e homogeneizante, eliminando, assim, as diferenças das
regioes, dos grupos sociais e dos proprios individuos, colaborando para
a construç50, nos estrangeiros, de imagens que SSOverdadeiras carica-
turas reforçadas pelos livros diditicos.

APPLE,M. W. "A politica do conhecimento oficiai: faz sentido a idéia de


um curriculo nacional", in F. M. Moreira e T T Silva ( o p ) , Cur-
riculo, cultura esociedade. SSo Paulo: Cortez, 1999, pp. 59-91.

BAUMAN,Z. GlobalizdçJo:as consequênciar humanas.Trad. M. Penchel.


Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

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