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Comunicações do III Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas ....

UNIVERSAL E SINGULAR: EM DISCUSSÃO A


ABORDAGEM CIENTÍFICA DO REGIONAL

Gilberto Luiz Alves1*

Quando educação e cultura são discutidas, quase sempre a expectativa geral é a de


que o debate seja centrado sobre a nossa realidade; sobre aquilo que nos singulariza. A
questão assim considerada já contém uma dificuldade, pois essa concepção de realidade
admite a sua atomização. Destituída de unidade, tal concepção sugere a possibilidade de
coexistência de diversas realidades em contraposição ao que tem existência concreta: a
realidade humana . 2

O fato de admitir a unidade da realidade humana não exclui o reconhecimento de seu


caráter complexo e multifacetado. O que se postula, se se considera a questão nas suas
conseqüências práticas, é que não há realidade sul-mato-grossense, ou realidade brasileira, ou
realidade latino-americana, ou realidade do negro, ou realidade do índio, etc. Essas
formulações, ao darem autonomia a aspectos isolados da realidade humana, elidem tanto a sua
unidade quanto a sua complexidade.

As conseqüências desse tipo de análise excludente têm sido graves. No caso de Mato
Grosso do Sul, por exemplo, há aqueles estudiosos que, equivocadamente, têm expressado a
preocupação de, sobretudo, desvelar os traços culturais e educacionais típicos do espaço
regional. Essa orientação tem-se revelado extremamente prejudicial porque ao buscar o
entendimento do que somos, ao buscar a nossa especificidade, tem enfatizado exclusivamente
o que nos diferencia. Assim, o universal deixa de ser parâmetro. O critério excludente, por
esse motivo, termina por revelar-se cientificamente insuficiente, por fundamentar, tão
somente, formulações preconceituosas e pseudocientíficas. Nessa ótica, os trabalhos
produzidos acabam sendo manifestações de um regionalismo estreito e estéril.

1
Professor de Fundamentos Histórico-Filosóficos da Educação no Curso de Mestrado em Educação da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul e Coordenador do Projeto de Pesquisa Problemas da sociedade e da educação nas fronteiras de
MS com o Paraguai e com a Bolívia, financiado pelo CECITEC e pela CPQ/UFMS.
2
"O homem não tem nenhum direito especial pelo fato de pertencer a uma ou outra raça: diga-se homem, e já se dizem
todos os direitos. O negro, por ser negro, não é inferior nem superior a nenhum outro homem: peca por redundante o branco que
diz: 'minha raça', peca por redundante o negro que diz: 'minha raça'. Tudo o que divide os homens, tudo o que os especifica, os
afasta ou os encurrala, é um pecado contra a humanidade."
MARTÍ, José. Nossa América. São Paulo: Hucitec; Associação Cultural José Martí, 1983, p. 229.
Ano II, Nº I, Março de 1996

O senso comum, igualmente, reforça o preconceito e a discriminação. Denota esse


fato a trivialidade com que, no cotidiano de nossas fronteiras, se dá a repetição reiterativa de
expressões verbais reveladoras de estereótipos arraigados. Para efeito de ilustração, sempre

que um brasileiro toma uma atitude considerada pouco inteligente ou demonstra apego ao
ócio, seus compatriotas fronteiriços o estigmatizam por meio de designações como
"paraguaio" ou "boliviano". Paraguaios e bolivianos também não perdem a oportunidade de
nos identificar como "imperialistas brasileños".

Em resumo, os estudos que caem no regionalismo e certos estereótipos do senso


comum negam as identidades que nos marcam, a nós e a nossos vizinhos; cavam um fosso,
Ref.
reforçando, portanto, o estranhamento entre povos. 3

O caminho eleito nesta análise é inverso ao daquele trilhado pelo regionalismo e pelo
senso comum. Tentaremos discutir o que nos aproxima, em especial o que nos identifica com
os nossos vizinhos latino-americanos. Se, no processo de formação histórica das nações
latino-americanas foram construídas representações ideológicas que provocam o
estranhamento entre elas, procuraremos evidenciar, em oposição, que as linhas gerais de tal
processo são comuns, daí a irracionalidade dessas construções ideológicas.

O próprio processo de colonização das Américas serve como um expressivo


argumento em favor da tese referente à unidade da formação histórica do Novo Mundo. Esse
processo, financiado pelo capital mercantil de origem européia, submeteu a terra aos reclamos
da produção capitalista. Isto é, o capital plasmou a produção, nas Américas, à sua imagem e
semelhança. Produção de gêneros agrícolas em grande escala; surgimento de manufaturas
avançadas, como os engenhos de açúcar, eram soluções impensáveis numa Europa cujas terras
ainda eram dominadas, em grande parte, por uma produção de caráter feudal voltada à
subsistência. Dessa forma, no Novo Mundo as relações de produção no campo já nasceram
com o sinete do capital. Eis uma especificidade das Américas, que as distingue da Europa.
4

3
Estranhamento aqui é tomado na sua acepção usual, que se expressa pela idéia geral que indica afastamento,
distanciamento e obstáculo à comunicação. Aurélio Buarque de Holanda, no dicionário ao qual empresta o nome, lhe atribui um
conjunto de significados convergentes que reforçam essa idéia geral. Entre outros significados do verbo estranhar, são listados:
achar extraordinário, oposto aos costumes, ao hábito; achar diferente do que seria natural esperar-se; causar espanto; achar
censurável; não se conformar com; não se familiarizar com; tratar com esquivança, com descortesia; manifestar timidez em
presença de, ou repulsão a; esquivar-se; afastar-se e desavir-se, entrando em luta.
4
"A colônia é a esfera de ação direta e exclusiva do capital em suas várias fases de desenvolvimento. Quanto mais ele
avança, em termos mundiais, no processo de expropriação e centralização de todos os meios de produção, transformando-os em
capital, mais se acelera a conversão de todos os produtores em produtores de mais-valia. Nesta evolução a colônia tem,
paradoxalmente, o primado, pois é nela onde o capital pode criar as condições ideais de reprodução. Nesta fase de
desenvolvimento das relações capitalistas de produção a escravidão não é somente condição ideal, mas necessária do processo
de acumulação e centralização. Em certa medida, o escravismo colonial, ou o sistema colonial, é a alavanca mais potente do
novo modo de produção." FIGUEIRA, Pedro de Alcântara e MENDES, Claudinei M. M. Estudo reliminar. In: BENCI, Jorge,
S.I. Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. São Paulo: Grijalbo, 1977, p. 16.
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Ao mesmo tempo, essa especificidade unifica as experiências de colonização empreendidas


por Portugal e Espanha nessa região que estava sendo incorporada ao mercado capitalista.

No âmbito das superestruturas, por seu turno, enquanto na Europa ocorriam


movimentos culturais avançados, resultantes e expressões do combate dirigido contra a
decadente sociedade feudal - a exemplo do Humanismo e da Reforma -, o que se difundiu na
América Latina foi a reação encetada pela Igreja Católica contra esses movimentos. Falamos
da Contra-Reforma, no interior da qual a Companhia de Jesus nasceu e tornou-se força de
vanguarda. Movidos por férrea disciplina, os jesuítas dominaram a educação e as
manifestações culturais no Brasil e em toda a América Espanhola. Eis mais um ponto de
identificação entre os povos latino-americanos.

Mas outra consideração se impõe: verifica-se que também a inserção da Companhia


de Jesus na base material na América foi idêntica, tanto nos domínios lusitanos como nos
hispânicos. Essa inserção deve ser contraposta ao que ocorreu na Europa. Lá a Companhia
assegurava a sua reprodução por meio dos dízimos dos fiéis e, principalmente, através dos
frutos de suas terras, cultivadas por servos, segundo relações feudais de produção, portanto.
Aqui, na América, as terras que os jesuítas progressivamente açambarcaram estavam voltadas
para a produção de mercadorias, o que determinou a inserção capitalista
dessa ordem religiosa na base material no Novo Mundo. 5

Conseqüências superestruturais certamente ocorreram, por força dessa determinação


material, operando contra as intenções reacionárias que estiveram na origem dos jesuítas. Se
investigações se fazem necessárias para inventariar essas conseqüências, por ora pelo menos
alguns de seus indicadores podem ser vislumbrados. O exemplo do Pe. Antonio Vieira é
ilustrativo. Nascido em Lisboa, a 06.02.1608, migrou para o Brasil aos seis anos de idade.
5
"Os jesuítas utilizavam seus bens de vários modos. Em suas fazendas cultivavam uma ampla variedade de lavouras
indígenas e européias. Entre aquelas, as mais importantes eram mandioca, arroz, algodão e tabaco; entre as últimas estavam
diversos tipos de legumes, frutas cítricas e trigo. A produção destinava-se principalmente ao sustento dos padres e seus pupilos,
as os excedentes eram vendidos a pessoas estranhas à ordem. O mercado primário para a lavoura mais lucrativa dos jesuítas, a
cana-de-açúcar, era naturalmente o reino. Embora tivessem começado a cultivar a cana logo depois de terem chegado no Brasil,
os jesuítas só adquiriram seu primeiro bangüê em 1604, quando se construiu o engenho Camamu na Bahia em local escolhido
pelo Padre Fernão Cardim. O engenho foi destruído pelos holandeses em 1640, mas os padres continuaram a adquirir outros
grande bangüês, por doação (como no caso do famoso Sergipe do Condé) ou por compra (por exemplo, o engenho Pitanga,
também na Bahia), até que cada um dos colégios mais importantes pôde retirar parte de sua renda de uma ou mais plantações de
cana. Pelos meus cálculos, os jesuítas tinham ao todo dezessete canaviais, cada um equipado com um ou mais engenhos, ao
tempo de sua expulsão. Essas instalações compreendiam não só moendas e outros maquinismos relacionados com o fabrico de
açúcar mas também destilarias de aguardente, forjas, tanoarias, olarias e oficinas de tecelagem, e, em alguns casos, estaleiros
aptos para construir embarcações que, quanto ao tamanho, iam desde as canoas amazônicas até às sumacas de navegação
marítima. Além das lavouras de subsistência e dos canaviais, cada colégio também possuía muitas fazendas de criação que
produziam principalmente leite e gado para o corte, afora cavalos, porcos, ovelhas, cabras e aves de quintal. Ao tempo do
confisco havia, por exemplo, 16 580 cabeças de gado na fazenda do colégio ao norte do Rio de Janeiro, um total avaliado em 32
000 cabeças distribuídas por trinta criatórios no Piauí, e mais de 100 000 reses nos sete estabelecimentos da ilha de Marajó."
ALDEN, Dauril. Aspectos econômicos da expulsão dos jesuítas no Brasil: notícia preliminar. In: KEITH, Henry e EDWARDS,
S.F. Conflito e continuidade na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p. 35-6.
Ano II, Nº I, Março de 1996

Estudou no colégio jesuítico da Bahia. Em 1623 ingressou na Companhia de Jesus,


ordenando-se sacerdote em 1634. Excepcional orador sacro e professor de retórica, este jesuíta
ainda destacou-se na atividade política, conspirando em favor da Restauração. Pelo seu
tirocínio e capacidade de articulação, tornou-se importante quadro da diplomacia portuguesa
no reinado de D. João IV. Nessa condição, realizou gestões visando possibilitar a volta de
judeus portugueses, que haviam migrado para outras regiões da Europa. Pode parecer
surpreendente o fato de um jesuíta, em pleno século XVII, pugnar pelo retorno de judeus a
Portugal, esgrimindo uma argumentação eminentemente pragmática. É que essa volta poderia
representar uma expressiva injeção de capitais na combalida economia portuguesa, recém
saída da dominação espanhola. Ao lutar pelo retorno de judeus a Portugal, Vieira lutava, de
fato, para que uma expressiva parcela da antiga burguesia mercantil lusitana retornasse ao
País, mesmo sendo ela constituída por um povo alvo das calúnias e maquinações da
Inquisição portuguesa. Após a morte de D. João IV, Vieira viu-se privado e proteção. Foi,
6

então, duramente perseguido pela Inquisição como decorrência de sua postura tolerante e
pragmática em relação aos descendentes dos algozes de Cristo.

Importa reforçar que Vieira, ligado a uma ordem religiosa que emergira no interior da
Contra-Reforma com o claro sentido de dar combate ao novo, postula, paradoxalmente, por
uma orientação política que se coloca, no Brasil, na perspectiva burguesa mais avançada, do
novo portanto. Este jesuíta não é um caso isolado. Pode ser lembrado, também, Antonil,
autor de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Por certo, entre os 7

quadros da Companhia de Jesus nem todos assumiram, nas Américas, uma prática política
marcada por posições tão avançadas e incisivas quanto a dos dois personagens citados. Como
exemplos limites, porém, Vieira e Antonil ilustram e reforçam a tese aqui defendida: a
6
"Enfim, Senhor, Portugal não se pode conservar sem muito dinheiro, e para o haver, não há meio mais eficaz que o
do comércio, e para o comércio não há outros homens de igual cabedal e indústria aos de nação.
Admitindo-os Vossa Majestade, poderá sustentar a guerra de Castela, ainda que dure muitos anos, como vemos no
exemplo dos Holandeses, que, fundando a sua conservação na mercancia, não só têm cabedal para resistir, como têm resistido a
todo o poder de Espanha, mas para senhorear os mares e conquistar províncias em todas as partes do mundo.
Por falta de comércio se reduziu a grandeza e opulência de Portugal ao miserável estado em que Vossa Majestade o
achou, e a restauração do comércio é o caminho mais pronto de a restituir ao antigo e ainda mais feliz estado.
E se o Castelhano, para reduzir Portugal a província e lhe quebrantar as forças, tomou por arbítrio retirar-lhe os
mercadores e chamar para as praças de Castela os homens de negócio, chame-os Vossa Majestade e restitua-os a Portugal, que
não pode ser razão de estado para a nossa restauração e conservação, o continuar e ajudar os mesmos meios que escolheram os
nossos inimigos para a nossa ruína.
E porque são duas as causas que desnaturalizaram deste Reino os homens de negócio - ou as culpas de que estão
acusados na Inquisição ou o receio do estilo com que as cousas da Fé se tratam em Portugal -, para que com segurança possam
tornar para ele, Vossa Majestade lhes deve dar sua real palavra de procurar admitir o perdão que eles alcançaram do Papa
acerca do passado, e para o futuro a moderação do rigor que Sua Santidade julgar ser mais conveniente se guarde nas
Inquisições deste Reino, como se tem feito em outros da Cristandade, principalmente no de Castela."
VIEIRA, Pe. António. Proposta feita a El-Rei D. João IV, em que se lhe representava o miserável estado do Reino e a
necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa. In: Obras Escolhidas.
Lisboa: Livr. Sá da Costa Editora, 1951, t. iv, p. 14-5.
7
ANTONIL, Andre João. Cultura e opulencia do Brasil por suas drogas e minas. Paris: Universidade de Paris,
1968. 627 p. (Trabalhos e memórias do Instituto de Altos Estudos da América Latina, 21).
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inserção capitalista da Companhia de Jesus na base material do Novo Mundo,


antagonizando-se com a razão de ser de sua origem feudal e com a sua tarefa histórica
reacionária, cria as condições objetivas para que seus membros defendam idéias
identificadas com a postura burguesa, que revolucionava o mundo feudal.

A especificidade apontada é um elemento de distinção entre os padres jesuítas que


atuavam na América e os que atuavam na Europa. Contudo, frise-se, foi um traço comum aos
jesuítas que exerciam seu ministério nos domínios de Portugal e Espanha no Novo Mundo.
Desvela-se, assim, mais um traço de identidade que aproxima luso-brasileiros e
hispano-americanos.

Também a expulsão da Companhia de Jesus se deu quase concomitantemente nos


impérios coloniais de Portugal e Espanha, durante a segunda metade do século XVIII, quando
avançava no interior da Igreja Católica um processo de corrosão de seus fundamentos feudais.

Outro indicador de identidade, neste caso referente a ocorrência recente, foi o cultivo
da doutrina de segurança nacional, que vicejou nas décadas de sessenta e setenta. Segundo
ela, os inimigos da nação deveriam ser buscados no seu próprio interior. A questão nodal da
segurança já não se reduziria à preservação das fronteiras contra inimigos externos, mas se
expressaria na necessidade de eliminação dos focos de resistência internos, que colocavam em
perigo o domínio do capital. Foi em tal contexto que as ditaduras instaladas no Brasil, na
Argentina, no Uruguai e no Chile, principalmente, deram caça aos inimigos desses regimes,
independente de suas nacionalidades.

E já que estamos falando dessa força determinante, representada pelo capital,


entendemos que foi ele que operou, de forma idêntica, tanto no Brasil como na América
Espanhola, políticas em relação aos índios, aos negros e aos imigrantes europeus.

Os colonizadores portugueses e espanhóis pressionaram para que os indígenas se


transformassem em mão-de-obra escrava e, para tanto, contaram com a decisiva contribuição
da catequese jesuítica. Desfigurados culturalmente, os índios também foram dizimados
fisicamente desde o século XVI. São inúmeros os registros desse massacre, do qual o de
Bartolomé de Las Casas é um dos primeiros e um dos mais candentes. O contato
8

com os colonizadores brancos representou, para os indígenas, o acosso de uma força


Ref.
descomunal, contra a qual não teriam condições de combater: o capital. Do choque resultou a
diluição da cultura indígena no interior da cultura burguesa emergente. Essa diluição implicou
uma transformação radical das funções dos objetos e instrumentos produzidos pelos indígenas.
A cerâmica, bem como o arco e a flecha, vendidos nas estradas e em lojas especializadas em
8
CASAS, Frei Bartolomé de Las. O paraíso destruído. Porto Alegre: L&PM Editores, 1984. 150 p. (Visão dos
Vencidos).
Ano II, Nº I, Março de 1996

artesanato indígena, já não servem à preservação de alimentos nem à caça ou à pesca. São,
basicamente, mercadorias que permitem ao "artesão" adquirir, no
mercado, as demais mercadorias que, sob as novas condições hegemonizadas pelo capital,
asseguram a sua subsistência.

Os negros, por sua vez, foram importados na condição de mercadorias e, em solo


americano, criaram riquezas como o açúcar, o ouro, a prata e o café (em especial nos
primórdios de sua exploração).

Quando a modernização dos meios de produção, como resultado ainda do impacto da


revolução industrial, expulsava os trabalhadores dos campos na Europa, em meados do séc.
XIX, foi também o capital que articulou a imigração desses excedentes de força de trabalho
para as Américas e outras regiões do mundo.

O capital comandou, como se depreende, desde as suas origens, o processo histórico


nas Américas. Capital e processo, no caso, não podem ser dissociados. O capital, além de
elemento inerente ao processo, foi o seu elemento mais essencial, daí tê-lo hegemonizado e
direcionado o seu movimento. A especificidade maior de tal processo, portanto, foi dada pela
própria especificidade do capital, expressa no seu caráter universal. Logo, foi a produção de
excedentes, isto é, a produção de mercadorias, a relação social que determinou o processo
histórico-cultural latino-americano. Alguns podem entendê-la como uma determinação
externa. Mas isto é só aparência, produzida pelo fato de o epicentro da acumulação capitalista
ter estado localizado no hemisfério norte. Não pode ser tergiversado o fato de que ocorreu,
desde os primeiros instantes de nossa colonização, algo que nos particulariza: o nosso
processo de desenvolvimento sempre esteve regido pelo capital, o que representou formidável
impulso para que o modo de produção capitalista se impusesse plenamente em escala
universal. Este traço nos diferencia da Europa que, para impor o domínio do capital sobre a
produção, foi obrigada a combater e superar os obstáculos feudais.

Mesmo assim, o processo histórico não homogeneizou as nações americanas. As


mesmas variáveis operaram de forma diferenciada em distintas regiões. Os impérios asteca e
inca, expressões da sociedade escravista nas Américas, resistiram mais tenazmente ao
processo de aculturação imposto pelos europeus do que as tribos que ainda se encontravam em
estágios compreendidos no interior da comunidade primitiva. Os negros foram importados em
maiores quantidades para o nordeste do Brasil, para Cuba e São Domingos, em função das
demandas de força de trabalho geradas pelos engenhos de açúcar. As regiões mineiras do
Brasil também atraíram contingentes significativos de mão-de-obra escrava de origem
africana. Imigrantes europeus de diversas origens se destinaram desigualmente para diferentes
regiões das Américas.
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Internamente aos países latino-americanos ocorreu, ainda, intensa mobilidade espacial


das etnias. No caso do Brasil, por exemplo, o café, nos primórdios de sua exploração,
determinou a transferência de uma boa parte da população negra do nordeste para as
plantações do Vale do Paraíba. Intenso caldeamento cultural também ocorreu em regiões
fronteiriças, onde os limites geográficos entre nações não têm sido nada além de "linhas
imaginárias". Mato Grosso do Sul presta-se a um exemplo ilustrativo nesse sentido, tanto na
fronteira com o Paraguai como na fronteira com a Bolívia. Paraguaios, predominantemente
descendentes dos guaranis, foram tangidos para a região sul, nos albores de sua colonização, e
aí constituíram o contingente de força de trabalho que fez a riqueza dos ervais, dos
quebrachais e das fazendas de criação. Para essa região também foram destinados retirantes
nordestinos fustigados pelas secas. Essas vidas secas, despojadas de tudo à exceção do sonho
de Fabiano , tornaram possível a consolidação de experiências como a Colônia Federal de
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Dourados. Mais recentemente, a expulsão dos trabalhadores dos campos, no sul do Brasil, os
empurrou para dentro do Paraguai. São contingentes desses trabalhadores que, sem ter tido
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acesso à propriedade da terra, buscam encetar um movimento de retorno ao Brasil. São eles os
brasiguaios. Em Corumbá, os bolivianos vinham representando uma reserva de força de
trabalho barata e espoliada de direitos sociais, que alimentava, principalmente, o setor
econômico de comércio e serviços do município. A mudança do quadro econômico
determinou o refluxo dessa tendência fazendo emergir uma outra de sentido contrário. A
estagnação material de Corumbá tem assistido, presentemente, a um processo muito distinto
do outro lado da fronteira. A injeção de capitais em Puerto Suarez, Quijarro e Arroyo
Concepción tem mobilizado força de trabalho, bem como capitais brasileiros, inclusive o
pequeno capital corumbaense, para o lado boliviano da fronteira.

Logo, todas as diferenças realçadas são mais de grau; não são diferenças qualitativas.
As especificidades das diferentes nações latino-americanas e mesmo de distintas regiões
brasileiras, dessa forma, não são excludentes. Tais especificidades não são intrínsecas nem

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"Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando. Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que
parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os
meninos freqüentariam escolas, seriam diferentes deles. Sinha Vitória esquentava-se. Fabiano ria, tinha desejo de esfregar as
mãos agarradas à boca do saco e à coronha da espingarda de pederneira.
Não sentia a espingarda, o saco, as pedras miúdas que lhe entravam nas alpercatas, o cheiro de carniças que
empestavam o caminho. As palavras de Sinhá Vitória encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida.
Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras
de Sinhá Vitória, as palavras que Sinhá Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o Sul, metidos naquele
sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois
velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos.
Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão
mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos." RAMOS, Graciliano. Vidas
secas. 37 ed. Rio de Janeiro: Record, (1977), p. 134.

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Essa entrada de força de trabalho de origem brasileira no Paraguai se fez acompanhar de seu antípoda: empresários
brasileiros têm adquirido vastas extensões de terras nesse país.
Ano II, Nº I, Março de 1996

às nações nem às regiões, pois são especificidades determinadas pelo capital. Extrapolam,
portanto, Mato Grosso do Sul, o Brasil e as demais nações latino-americanas. São
essencialmente universais. Só assim pode ser tratada, conseqüentemente, a questão de nossas
especificidades culturais; só nesse sentido, e exclusivamente nesse sentido, podemos falar em
especificidades culturais.

Em última instância, o elemento determinante e hegemônico do processo de formação


histórico-cultural das Américas foi o capital. Foi o capital que deu-lhe direção e definiu suas
estratégias. Exatamente quando se discutem as estratégias do capital é que começam a ganhar
sentido os mecanismos ideológicos que cindem o movimento universal do desenvolvimento
histórico e enfatizam as diferenças entre regiões e entre nações. Ideologias como o
regionalismo, o nacionalismo e o terceiro-mundismo, bem como elaborações a exemplo da
teoria da dependência, foram instrumentos importantes na produção e reprodução dessa cisão.
Esses mecanismos ideológicos terminaram por exercer uma ação desagregadora sobre as
relações dos povos latino-americanos. Como decorrência, tornam-se compreensíveis os
comportamentos interpessoais que levam os homens de uma região ou de uma nação a
desprezar ou a rejeitar os seus vizinhos. São comportamentos que ainda revelam o domínio
desses mecanismos ideológicos sobre as consciências dos povos latino-americanos. É assim
que devemos entender a tendência que busca, sob a aparência de trabalho erudito e científico,
atribuir conteúdo às especificidades que configurariam diferente um determinado povo.

Cumpre destacar, como decorrência, que a historiografia tem operado, muitas vezes,
no sentido de reforçar as representações ideológicas dominantes no senso comum. Também
ela tem sido marcada pela tendência que reforça o estranhamento entre nós e nossos vizinhos,
ao veicular idéias regionalistas, nacionalistas, terceiro mundistas, bem como concepções
fundadas na teoria da dependência. Entendemos que essa situação é sobremaneira crítica para
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Precisa ser investigada e melhor dimensionada a contribuição da historiografia no sentido de alimentar o
estranhamento entre os povos. Funcionam como elementos de desagregação estudos como os de Laino e de Cortêz que, mesmo
ricos do ponto de vista empírico, deixam de denunciar, precipuamente, a exploração do capital. Ambos se deixam enredar pelos
emaranhados das elaborações geopolíticas. Fazem emergir, em conseqüência, os antagonismos entre as nações em detrimento dos
antagonismos de classes. Dão proeminência às políticas dos estados nacionais e silenciam sobre a estratégia determinante e
universal do capital. O discurso resultante, por ser antiuniversal, termina por alimentar ódios e ressentimentos.
Laino, numa obra significativamente intitulada Paraguay: fronteras y penetración brasileña, assim define sua
plataforma:
"(...) aquí se estudia la penetración brasileña. Se analizan situaciones concretas desde la extranjerización económica
hasta la desidentificación o colonización cultural. Se estima la populación brasileña dentro del Paraguay, el territorio de
frontera y otros recursos naturales en poder de brasileños y el comercio fronterizo no registrado. Se indicam algunas inversiones
extranjeras - norteamericanas y japonesas, además de las brasileñas - que operan en las fronteras paraguayas. Igualmente, la
invasión finaciera y la operación de gunas grandes empresas agroindustriales y de otra índole ocupan un lugar en este trabajo.
Por último, se analiza la actitud y la gestión del gobierno frente a los problemas de la penetración, y surge claramente que el
régimen 'paraguayo' está empeñado en el desarrollo de una geopolítica de dependencia del Brasil."
LAINO, Domingo. Paraguay: fronteras y penetración brasileña. Asunción, Paraguay: Ediciones Cerro Corá, 1977,
p. 8.
Não é substancialmente diferente o conteúdo de um trabalho de Cácia Cortêz que procura discutir os brasiguaios:
"A estragégia geopolítica de penetração e ocupação de fronteiras executada durante os governos militares, com a
finalidade de prolongar seus domínios, somada à implantação do novo modelo agrícola, concentrador e excludente, com
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aqueles que vivem nas confluências de fronteiras latino-americanas. Como decorrência,


pesada tarefa cabe aos nossos cientistas sociais. Eles deverão desobstruir os canais por
onde pode fluir o conseqüente conhecimento de nosso passado, destruindo os preconceitos,
removendo as impressões pseudo-científicas e desarmando os artifícios ideológicos. Em
especial, os cientistas de nossas universidades e de escolas de nível superior terão a difícil
incumbência de, sob o entulho ideológico, começar a desvelar a identidade e as
especificidades dos povos latino-americanos.

Mas, frise-se, o momento que a humanidade atravessa representa, por si só, uma
denúncia viva contra formulações que intentem definir, no plano teórico, especificidades
excludentes. Os povos mais avançados do mundo procuram o seu caminho pelas sendas da
integração. A Europa unida já não é um sonho; é uma meta que os povos europeus estão
realizando. As Américas e a Ásia também cultivam projetos no sentido de aumentar os
espaços de convivência comum, tanto no plano econômico como no cultural.

Sintetizando, no âmbito das ciências humanas, a investigação científica deve gerar


conhecimentos que evidenciem: a) a unidade cultural predominante entre os povos que vivem
sob a égide do modo de produção capitalista, ele próprio a acabada expressão do universal,
pois submeteu, sem exceção, as nações de todos os quadrantes do planeta; b) assim como as
especificidades das diferentes nações e regiões. Essas especifidades, contudo, subordinam-se à
unidade cultural, pois o singular é sempre uma forma de realização do universal. Logo, o
singular refere-se, também, à escala adotada pelo pesquisador para realizar a abordagem da
realidade humana: uma cidade, uma região, um país, um continente, etc. O singular é a
manifestação, no espaço convencionado, de como leis gerais do universal operam dando-lhe
uma configuração específica. Universal e singular, nessa perspectiva, são indissociáveis. Por
isso, enquanto categorias científicas, devem estar presentes em todos os trabalhos de
investigação, sob pena de se negar teor de cientificidade a qualquer elaboração que omita uma
ou outra e, principalmente, a relação entre ambas. Se o singular é a forma singular de
realização do universal, isto é, de realização da forma pela qual é cimentada a identidade entre
os povos, a investigação científica, conduzida nessa perspectiva, tende a desempenhar um

prioridade para a monocultura mecanizada, empurrou para o Paraguai milhares de agricultores brasileiros do Sul, na década de
setenta.
Hoje os chamados brasiguaios, sem terra e sem pátria, são calculados em torno de quinhentos mil. Ocupam as terras
mais férteis, representam mais de oitenta por cento da população da fronteira paraguaia e quinze por cento dos eleitores.
Sobrevivem como posseiros, meeiros, bóias-frias, arrendatários e agregados, em condições de exploração e miséria.
A expressiva presença brasileira no Paraguai faz parte dos acordos firmados entre os dois países, nos quais o
governo paraguaio paulatinamente foi cedendo a soberania do país em troca da 'modernização e desenvolvimento', oferecido
pelos governos brasileiros desde Getúlio Vargas, passando por Juscelino Kubistchek e culminando com a assinatura do Tratado
de Itaipú, em 1975, no governo de Geisel, que previa ocupar uma área de 121.889 quilômetros quadrados (33 por cento do
território paraguaio) com 1.200.000 brasileiros (45 por cento da população do Paraguai). Assim, estava selada a entrega da
soberania paraguaia ao subimperialismo brasileiro."
CORTÊZ, Cácia. Brasiguaios: os refugiados desconhecidos. São Paulo: Brasil Agora, s.d., p 98-9.
Ano II, Nº I, Março de 1996

papel relevante não só no processo de integração latino-americana mas da humanidade como


um todo.

PROGRAMAS GOVERNAMENTAIS, EDUCAÇÃO E COMBATE À


POBREZA NO BRASIL

José Willington Germano12*

O presente trabalho empreende o esboço de uma análise comparativa, do ponto de


vista da sua formulação conceptual, entre dois programas sociais/educacionais compensatórios
postos em prática, em momentos distintos, no Brasil a partir dos anos oitenta. Trata-se do
"Programa Nacional de Ações Sócio-Educativas e Culturais para as Populações Carentes
Urbanas e Rurais13*” e o "Programa Comunidade solidária".

O primeiro Programa foi elaborado e implementado pelo Ministério da Educação no


período 1980-1985, no fim, portanto, do Regime Militar, num momento de crise econômica,
de crise política e de legitimidade do referido Regime. Nesse contexto, o Governo Militar
muda o discurso, adota uma metodologia "participacionista" no tocante ao processo de
elaboração de políticas sociais e faz fortes apelos no sentido de redistribuir a renda, ou seja, de
incluir os excluídos, até então, no processo de decisão política e de acesso a riqueza
produzida no país, através da eliminação da pobreza. Esta é a tônica que predomina no II e no

12
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Natal-RN - Brasil
13
Deve-se esclarecer, mais precisamente, que o referido Programa tinha a seguinte subdivisão: PRODASEC (Programa de Ações
Sócio-Educativas e Culturais para as Populações Carentes Urbanas) e PRONASEC (Programa Nacional de Ações
Sócio-Educativas e Culturais para o Meio Rural).
Comunicações do III Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas ....

III Planos Nacionais de Desenvolvimento (1974-1985) ao mesmo tempo em que, nos


governos de Geisel e de Figueiredo, foram tomadas várias medidas que visavam atender as
necessidades das populações "socialmente vulneráveis" e "carentes". Entre tais medidas, vale
a pena lembrar a criação, a partir de 1974, do Ministério da Previdência e Assistência Social,
do Conselho de Desenvolvimento Social, do Fundo de Assistência Social e de inúmeros
programas sociais destinados aos "carentes".

Nessa perspectiva, o III Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto (1980-1985)


explicita claramente que "a educação (...) compromete-se a colaborar na redução das
desigualdades sociais, voltando-se preferencialmente para a população de baixa renda."
Desse modo, a educação deveria "ser parceira do esforço de redistribuição dos benefícios do
crescimento econômico, bem como fomentadora da participação política...", dos setores
marginalizados. Com o afã, portanto, de promover "justiça social", o mencionado Plano
definiu cinco linhas prioritárias de ação, cujas principais foram as seguintes: "a educação no
meio rural buscando atingir um dos focos mais acentuados de pobreza no País" e a
"educação nas periferias urbanas, definidas estas como as áreas de concentração da
população urbana mais carente". (1980)

Este é o cenário em que o PRODASEC/PRONASEC é criado em 1980, objetivando:


a) "Promover a atuação integrada dos órgãos de Educação e Cultura, vinculados ao
Ministério da Educação e Cultura, Estados, Municípios e Setor Privado, para o
desenvolvimento de ações que beneficiem diretamente as Populações Carentes Urbanas e
Rurais"; b) "Integrar a ação dos órgãos do Setor Educação e Cultura com os programas no
campo social - em particular nas áreas de desenvolvimento de comunidade, de
desenvolvimento urbano, habitação, formação profissional, saúde e assistência social - que se
destinam a atender às necessidades básicas dos grupos pobres urbanos e rurais".
Nessa perspectiva o aludido programa estabeleceu as seguintes linhas de ação: 1) linha
educacional com destaque para o ensino de 1º Grau e a pré-escola; 2) linha sócio-cultural com
ênfase no "desenvolvimento comunitário"; 3) linha econômica privilegiando ações atinentes
"a relação educação/emprego-renda, tanto a partir da unidade educacional como da unidade
produtiva".

Do exposto depreende-se que o PRODASEC/PRONASEC assumia a seguinte


configuração: 1) Os pobres como prioridade das políticas educacionais e sociais; 2) Integração
inter-institucional para o desenvolvimento das ações; 3) Descentralização; 4) Privatização
(não lucrativa); 5) Participação comunitária; 6) Áreas prioritárias de combate à pobreza:
emprego/renda, habitação, formação profissional, saúde, assistência social (com forte
conotação filantrópica). Confirma-se, assim, o que Offe (1984: 45-6) identifica como as
tendências contemporâneas de "poupar recursos fiscais (e custos políticos de conflito),
destacando-se tarefas públicas a sistemas financeiros parafiscais, de um lado e as formas de
organização (auto-geridas) particulares ou semi-públicas do processo decisório, por outro
Ano II, Nº I, Março de 1996

lado." Nessa perspectiva, "os encargos financeiros e decisórios devem ser afastados dos
níveis centrais do Estado para o círculo dos imediatamente atingidos e participantes", com
todas as conseqüências daí resultantes.

No contexto brasileiro da época (crise do Regime Militar) o Programa em apreço


decorreu de: 1) uma política educacional da escassez, das sobras do sistema, resultando numa
"educação para os pobres", ainda mais precária do que a existente na rede de ensino oficial; 2)
uma estratégia de barateamento do ensino destinada aos "carentes"; 3) uma transferência de
responsabilidade do Estado para instituições comunitárias, populares, filantrópicas; 4) uma
tentativa do Estado assumir a função de organizador e controaldor da insatisfação popular
com o Regime Político; 5) uma tentativa de colocar, sob novas bases, a relação entre educação
e trabalho privilegiando as atividades informais, as fabriquetas, os pequenos negócios, o
artesanato, visando compensar o desemprego provocado pelo ciclo recessivo que acabou por
reter a "força de trabalho excedente num ideal de profissionalização sem significado na
prática" (Melo, 1990:11). Finalmente, cabe dizer que o PRODASEC/PRONASEC chegou ao
fim, por exaustão, por ter fracassado e, tal como surgiu, por uma decisão de cúpula, portanto,
sem a propalada participação comunitária.

Com a queda do Regime Militar em 1985, o Governo Sarney adota como slogan
"Tudo pelo social" e institui programas assistenciais destinados aos pobres, portanto,
dependentes de benevolência pública, de caráter claramente clientelísticos e filantrópicos,
como, por exemplo, o Programa do Leite. Durante o Governo Collor tem início uma ofensiva
neo-liberal, propriamente dita, na qual uma das expressões-chaves é a que afirma que "gastar
é ruim". Collor efetua fortes cortes nos gastos sociais bem como a desativação de programas
sociais, bem ao gosto das teses neo-liberais. Conforme Milton Friedman "a ação do Estado no
campo social deve-se ater-se a programas assistenciais - auxílio a pobreza - quando
necessário de modo a complementar a filantropia privada e das comunidades" (Draibe,
1993:90). Foi isto o que Collor fez, notadamente através da LBA, mediante o
desenvolvimento de ações focalizadoras, escandalosamente clientelísticas e filantrópicas.

Embora os Governos Thatcher e Reagan sejam considerados como protótipos da


intervenção neo-liberal, a partir dos anos 80 (não devemos nos esquecer do Chile sob a
ditadura de Pinochet implementando em princípios da década de 70, dez anos antes portanto,
o primeiro ciclo neo-liberal da história contemporânea) no caso do Brasil é emblemático, para
a análise do Programa "Comunidade Solidária", o exemplo do "Pacto da Solidariedade",
lançado pelo governo mexicano para "compensar" os efeitos sociais negativos decorrentes dos
ajustes na economia e que se caracteriza pelo assistencialismo, pela não seguridade social,
pela filantropia e pela não cidadania.

Estes são os antecedentes do Programa "Comunidade Solidária" que se apresenta


como carro-chefe da política social (notadamente no campo assistencial) do Governo
Comunicações do III Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas ....

Fernando Henrique Cardoso (1995-1999), num arranjo institucional que envolve dez
Ministérios, inclusive o da Educação, e a sociedade civil, que possui 21 representantes no
Conselho do mencionado Programa.

Afinal quais são os fundamentos do "Comunidade Solidária" e que permitem uma


comparação com o "Programa Nacional de Ações Sócio-Educativas e Culturais para as
Populações Carentes"? Vejamos: 1) Os pobres como prioridade das políticas sociais e
educacionais. Observe-se o que escreve Ruth Cardoso, Presidente do Conselho do citado
Programa: "... O Estado brasileiro precisa se capacitar para cumprir melhor e mais
eficientemente seu papel tradicional na área de educação e saúde básica para todos...".
Porém, em virtude da gravidade da situação social brasileira "(...) há urgência em manter e
expandir os programas de assistência social e de combate, a curto prazo, às situações agudas
de pobreza e de fome". 2) Integração inter-institucional para o desenvolvimento das ações. O
Programa assume proporções bem maiores do que o PRADASEC/PRONASEC à medida em
que envolve dez Ministérios e várias instituições da sociedade civil. 3) Descentralização. A
propósito afirma Ruth Cardoso que o governo no tocante aos programas de assistência social
"vem procurando aumentar sua eficiência e eficácia, intensificando a descentralização das
ações para o nível municipal e eliminando as estruturas tradicionais centralizadas onde
havia dispersão, ineficiência e clientelismo".

4) Privatização (não lucrativa) e Participação Comunitária. Comenta a Profª Ruth


que, a oportunidade que se apresenta no momento "reside numa nova disposição das
comunidades e suas organizações, dos sindicatos, das universidades, das igrejas e das
empresas para colaborar nessa tarefa, assumindo responsabilidade que nos afligem". 6)
Áreas prioritárias de combate à pobreza: redução da mortalidade infantil; acesso e melhoria da
qualidade do ensino; proporcionar alimentação à população carente; "desenvolvimento de
propostas alternativas e inovadoras nos campos da criação de oportunidades de trabalho,
capacitação profissional para jovens e promoção da saúde das crianças". (Cardoso, 1995).

Existem ainda outros aspectos que podem ser comparados. Por exemplo: o
PRODASEC/PRONASEC assimilou o vocabulário crítico da sociedade civil e a demanda por
participação num contexto de crise do Regime Militar. Enquanto isto, o Programa
Comunidade Solidária assimilou a experiência da Açào da Cidadania contra a Fome e pela
Vida, também originária da sociedade civil, e do Consea. Em ambos os casos, o apoio de
organismos internacionais como o Banco Mundial e o BID, se faz presente.

Enfim, apesar de serem políticas produzidas em conjunturas diferentes, elas se


caracterizam por apresentar princípios comuns que se coadunam com o recorte neo-liberal no
tocante a gestão pública na área das políticas sociais, expresso nos seguintes pontos: 1) a
focalização da assistência em contraposição a universalização do sistema de proteção social
(os pobres como prioridade); 2) a descentralização, notadamente através da municipalização
Ano II, Nº I, Março de 1996

das ações e serviços; 3) a privatização, a parceria com a sociedade civil (a transferência de


responsabilidade do Estado para instituições filantrópicas, religiosas e comunitárias, como
privatização não lucrativa).

É evidente que existem também diferenças, a primeira das quais diz respeito a maior
magnitude do Programa Comunidade Solidária e a outra corresponde a natureza do Governo,
uma vez que não se trata mais de uma ditadura porém, de um regime civil e democrático, cujo
governante se auto-qualifica social-democrata. Ainda não é hora de analisar os resultados de
um Programa de lançamento recente. Contudo, a julgar pelo noticiário veiculado pela
imprensa, ele está reeditando ao contrário do que proclama, velhas práticas como o
clientelismo e o desenvolvimento de ações paliativas. Assim, no Rio Grande do Norte, a
coordenação do Programa está sendo objeto de intensa disputa fisiológica entre as elites, que
tradicionalmente tem dominado a política do Estado. Em Minas Gerais, esboça-se uma
solução para o desemprego juvenil com a "implantação de micro-unidades de produção,
fábricas de vassouras e doces" conforme solicitação da Associação da Juventude de Araçuaí.
(FSP), bem ao modo do PRODASEC/PRONASEC.

Dessa maneira, ao se apresentar como novidade, o Programa Comunidade Solidária


está calçado realmente, numa forma de fazer política social que, para além do recorte
neo-liberal, esteve presente em outros momentos da história do país, inclusive nos últimos
anos do Regime Militar. O fracasso de tais políticas são notórios. Além do mais, programas
como os que estão sendo objeto de análise decorrem de uma luta distributiva em meio a
uma crise fiscal do Estado brasileiro. Nessa perspectiva, eles revelam a existência de uma
segmentação da política social, à medida em que ao lado de uma política para os pobres (em
geral uma pobre política), existe uma outra para os ricos e privilegiados (subsidiada
freqüentemente com recursos públicos), tendo como resultado a exclusão e a estigmatização
das populações pobres, o desmonte do sistema de proteção social, a privatização como
redução da carga de trabalho do Governo, a negação da cidadania.

Trata-se, por conseguinte, de programas que reeditam de forma moderna e


conservadora a antiga assistência aos pobres. Assistência que, como assinala Bruno Théret,
"dependente de uma benevolência pública, (...) não é por isso um direito sobre o Estado ao
mesmo título que aqueles que compõem a cidadania social e que são sustentados pelas
instituições de seguridade social" (In: Draibe, 1993).

ABSTRACT: Analysis of two governamental programs - "Programa Nacional de Ações


Sócio-Educativas e Culturais para as Populações Carentes Urbans e Rurais" e o "Programa
Comunidade Solidária". Such programs, developed by the Brazilian State in different
moments, presente some characteristics in common: combat to poverty, privatization,
philanthropy.
Comunicações do III Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas ....

BIBLIOGRAFIA

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Educação, Cultura e Desporto (1980-1985). Brasília, 1980.

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Alfred J. (compiladores). La Privatización y el Estado Benefactor. México, Fondo de
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