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INEXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA E O PASSADO COLONIAL DO BRASIL

Diversas são as formas de interpretar a vivência brasileira e todo o seu passado colonial,
seja com demasiada ironia, como o grande Darcy Ribeiro 1 ou da maneira como o fez Lélia
Gonzalez, pois em suas teorias, procurava associar o racismo ao sexismo 2. Teorias e leituras
atuais também se mostram eficientes no que diz respeito à questão da colonização do Brasil,
por exemplo, Renato Noguera, que ao localizar o problema da sociedade brasileira e de sua
formação, trata de reinserir as culturas e religiões que foram descartadas em um Brasil
Colônia, desenvolvendo, dessa forma, um movimento inverso daquele utilizado pelos
colonizadores: a palavra não mais é desintegração e apagamento, porém, integração e
visibilidade, pois em seus escritos, as vozes que foram silenciadas finalmente são ouvidas e
não mais caladas, seja qual for a raça, etnia ou gênero 3. O mesmo se dá com Martina
Davidson, pois a pesquisadora constrói, em suas teorizações, um “veganismo feminista
decolonial”4, que procura articular as lutas pelos animais não humanos com as das mulheres,
ao mesmo tempo em que não deixa de problematizar as origens de muitos dos países da
América Latina, expondo assim, todo o passado violento e sangrento a que muitos foram
submetidos em nome da fé e da razão. Todos esses estudos e textos mencionados acima
realizam exames acerca da história do Brasil, escancarando desse modo, o passado colonial e
denunciando o que as “Grandes Navegações” realmente significaram, dado que, suas
preocupações voltam-se para os reflexos que essas empreitadas deixaram no país, as marcas e
cicatrizes que são sentidas até nos dias de hoje, seja nos altos índices de analfabetismo ou na
burguesia que domina a nação, ou para com o forte racismo e sexismo que há entre a
população brasileira, especialmente na figura da mulher negra – empregada doméstica e/ou
musa do carnaval – ou no preconceito religioso gigantesco com as demais práticas religiosas
que fujam do bom – e colonizador – e velho cristianismo, ou na pobreza alimentar que
inúmeras pessoas e famílias por todo o país passam – sem contar no envenenamento diário
dos alimentos digeridos por essa mesma população.
Essa, por fim, é a mesma aflição de Paulo Freire em seu “Educação e Atualidade
Brasileira”, visto que, angustiado pelos “ímpetos de mudança” de sua nação, vê uma
população inteira desejando reformas e melhorias5, quando a mesma sequer sabe como
realizar essas reivindicações, dado o seu forte “gosto por obediência”. O filósofo depara-se
com um país que almeja transitar para um cenário mais preferível do que o atual, mesmo que
não saiba como agir. O que fazer em uma situação dessas? Para tal, em sua tese, publicada em
1959, o autor desenvolve tentativas de identificação para o problema de sua terra – no caso, o
“gosto pela obediência” – em busca de auxiliar os mesmos nesse processo de transformação
política e encontra nesse percurso, desafios como a “assistencialização”, o “mutismo” ou a
“inexperiência democrática”, que, por muitos anos, tem acometido esse povo. Suas soluções
para tais barreiras são vistas na “dialogação”, no trânsito de uma consciência para a outra, em
uma educação horizontal e aberta, na “participação política e social”, na concepção de
democracia enquanto “forma de governo” e “forma de vida” e, sobretudo, na análise e
1 O texto “Sobre o Óbvio” do autor é um excelente exemplo. A obra ficcional “Utopia Selvagem”, de mesmo
responsável, também é uma ótima indicação de leitura.
2 Seu ensaio “Racismo e sexismo na cultura brasileira” é uma relevante recomendação acerca do tema.
3 Do autor, seus livros “Mulheres e deusas: Como as divindades e os mitos femininos formaram a mulher
atual” e “O ensino de filosofia e a lei 10.639” são fortemente recomendados.
4 Seu livro em questão é o “Repensando o veganismo”.
5 Impulsionadas, por exemplo, pela industrialização do país.
posterior inversão daquela “inexperiência democrática” citada anteriormente para que a
mesma se trate de uma verdadeira “experiência democrática”.
E é no conceito de “inexperiência democrática”, encontrado no capítulo dois de
“Educação e Atualidade Brasileira”, que os esforços desse presente texto estarão voltados.
Inicialmente, “inexperiência democrática” pode ser entendida como uma das “(...) marcas
de nosso acontecer histórico (...), situada originariamente no ‘ontem’ de nossa história. No
tipo de formação que tivemos.” (FREIRE, 2003, p. 59), ela é como um marco da formação
brasileira enquanto sociedade, mas que infelizmente, tem contribuído para “(...) um dos
muitos pontos de estrangulamento de nossa democratização.” (FREIRE, 2003, p. 59), pois a
mesma afasta o povo dessa forma de governo ou transforma suas indagações ininteligíveis,
confundindo-se, dessa forma, com “algazarra” e não com “voz”. É essa inexperiência,
portanto, que está impedindo que brasileiros e brasileiras saibam como agir frente aos
“ímpetos de mudanças” e aos ares democráticos, dado que, embora tenham “condições
externas e culturais” para tal forma de governo se desenvolver, lhes faltam um “clima
cultural”6, uma educação que trabalhe com a horizontalidade 7 e com o diálogo e por fim, lhes
é ausente a bendita experiência e vivência em uma democracia.
Para um povo que sequer teve uma “consciência participante” ou um “autogoverno” em
quase toda a sua história, o desenvolvimento de uma democracia somente torna-se difícil, pois
esses são somente alguns dos exercícios que essa forma de governo pede, e que, para essa
população faltou. E tudo isso, mais uma vez, deve-se quase que em sua totalidade, à
“inexperiência democrática”, pois a mesma desenvolveu-se fortemente em uma época que o
Brasil passava por sua infeliz e violenta colonização 8, e, se há algo que tornou a população
brasileira quebrada – em todos os sentidos – enfraquecida e derrotada – fatores esses que
tornam o “florescer” de uma democracia quase que impossível – foi essa colonização, e Paulo
Freire, mais do que ninguém, está ciente disso (FREIRE, 2003, p. 61).
Para Paulo Freire, essa colonização feriu o espírito democrático, o reprimiu, deixou a
população sem voz, sem diálogo e autenticidade, sempre submissa e obediente. Com um
instinto “fortemente predatório”, juntamente de um “poderio feudal”, focado na dominação e
na “exploração econômica”, estabelecia-se, dessa forma, a colonização do povo brasileiro.
Seus colonizadores tornaram a relação entre ambos unilateral e arbitrária, de senhor para
escravo, e com ela, exercia seu domínio de animais não humanos 9 para animais humanos,
entre eles, por exemplo, “nativos e posteriormente africanos”. Diz Paulo Freire: “A nossa
colonização foi sobretudo uma empreitada comercial. Os nossos colonizadores não tiveram
(...) intenção de criar na terra descoberta, uma civilização. Interessava-lhes a exploração
comercial da terra.” (2003, p. 61), e assim, a possibilidade de criar “condições favoráveis”

6 Conceito esse, emprestado de Zevebel Barbu, que em seus escritos, busca explicar que a democracia não
restringe-se em ser uma “ideia” ou “teoria”, porém, é também um “clima cultural” e que, necessita dessa
forma, de “condições favoráveis” para existir e se desenvolver (FREIRE, 2003, p. 60).
7 Dado que, para Paulo Freire, “Continuamos a insistir numa educação vertical, autoritária, fundada numa
autoridade externa, (...).” (2003, p. 60).
8 Sob análise de Ailton Krenak, essa colonização, juntamente das tantas outras “Grandes Navegações” somente
ocorreu por conta da “(...) premissa que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da
humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi
justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de
verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história.” (KRENAK, 2020, p. 11).
9 Grande exemplo disso pode ser visto em relação a extinção do Dodô, ave essa que foi massacrada por
“navegadores” europeus. Ver mais em: https://biologo.com.br/bio/dodo-um-icone-da-extincao/ .
para o pleno desenvolvimento de um estado democrático foi se esvaindo entre a população
brasileira.
Com a colonização, “(...) não teria criado condições necessárias ao desenvolvimento de
uma mentalidade permeável, flexível, característica do clima cultural democrático, (...).”
(FREIRE, 2003, p. 61), visto que, a mesma era “impermeável e inflexível”, o que
possibilitava, dessa maneira, o mando dos colonizadores, que pouco importavam-se com o
livre e pleno desenvolvimento mental de seus colonizados 10. Constata o filósofo: “Sua
intenção era realmente a de explorá-la. A de ficar ‘sobre’ ela. Não a de ficar nela e ‘com’ ela.
Integrados. Daí, dificilmente, virem animosos de trabalhá-la. De cultivá-la.” (FREIRE, 2003,
p. 62). Tratava-se de exploração, voltada para atividades ligadas ao comércio e ao mercado,
não de integração, que por sua vez, precisaria construir vínculos e diálogos.
Mais tarde, com toda a regalia e extração de recursos, bichos e pessoas, os
“descobridores” passariam a desenvolver “grandes propriedades”, locais que serviriam para
homens que tinham por ambição trabalhar o campo dessa “nova terra” (FREIRE, 2003, p. 63).
Nessas “grandes propriedades”, distantes umas das outras 11, haviam os “senhores” e os
“protegidos”, cujos últimos, estavam vulneráveis às "(...) incursões predatórias dos nativos.
Da violência arrogante do trópico. Das arremetidas até de outros senhores.” (FREIRE, 2003,
p. 63) e por isso, precisavam ser protegidos por seus “senhores”. Esse fato contribuiu
imensamente, como aponta Paulo Freire, para “(...) as primeiras condições culturológicas em
que nasceu e se devolveu no homem brasileiro o gosto, a um tempo de mandonismo e de
dependência, de ‘protecionismo’”. (2003, p. 63-64), “costumes” esses que tinham por pilares
a obediência e a dependência, dois fatores que impossibilitam totalmente o livre
desenvolvimento de uma democracia, pois a mesma pede por independência – diga-se
“autogoverno” – e participação. Desses “hábitos”, expõe Freire, desse posicionamento
submisso e subserviente, cria-se tendências paternalistas, por parte dos “senhores”, e
comportamentos silenciosos, pelos ditos “escravos”, por exemplo, o “mutismo” 12, como
define o autor (FREIRE, 2003, p. 64)13.
Com essas tendências paternalistas e comportamentos silenciosos, as relações de poder
somente degradam-se, pois o “senhor” é quem tem voz e domínio, enquanto o “escravo”
encontra-se calado e servil. Se um traz as soluções e é quem comanda, o segundo aquiesce e
abaixa a cabeça, pois não sabe o que é melhor para si, em comparação ao seu “dono”, cujo
indivíduo é um pai demasiado bondoso, de pulso e chicote firmes, condescendente,
compreensivo e que desenha o caminho para o filho ingênuo. O vínculo entre os dois trata-se
de imposição e superposição, de “verticalidade das imposições”, onde um único verbo é
ouvido: o do “senhor”. Assim, pais e filhos permaneceram isolados em suas “ilhas

10 Não só mental, como físico também, pois de acordo com Ailton Krenak: “O simples contágio do encontro
entre humanos daqui e de lá fez com que essa parte da população desaparecesse por um fenômeno que depois
se chamou de epidemia, uma mortandade de milhares e milhares de seres. Um sujeito que saía da Europa e
descia numa praia tropical largava um rastro de morte por onde passava. O indivíduo não sabia que era uma
peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento, um fim de mundo; tampouco o sabiam as vítimas
que eram contaminadas.” (KRENAK, 2020, p. 71).
11 O que não abria margem pra o diálogo entre o povo colonizado, já que eram afastados e separados de uma
fazenda para outra.
12 Entendido por Paulo Freire como “(...) a posição meramente espectante do nosso homem diante do
processo histórico nacional. Posição espectante que não se alterava em essência e só acidentalmente, com
movimento de turbulência.” (2003, p. 64).
13 Nessa parte do capítulo dois, a concepção de democracia, forma de governo, enquanto um “modo de vida”
é inaugurado.
particulares” e fechadas para forasteiros, a experiência e a vivência coletiva não se faziam
presentes, fato este que Paulo Freire atenta-se: “A distância social existente e característica
das relações humanas no grande domínio não permite a ‘dialogação’.” (FREIRE, 2003, p. 65),
e a mesma, em contraste com o “grande domínio”, está em contato com a abertura, com a
participação, seja no campo social ou político, que pede por uma “consciência transitiva” e
que está em intimidade com o “autogoverno”. Todos esses elementos encontram-se barrados
por esse “grande domínio”, dado que o mesmo é exterminador de autonomias, do diálogo e da
horizontalidade, de culturas e de povos e, sobretudo, celebrador da violência e da exploração.
A colonização do Brasil foi igualmente marcada pela não participação – seja social ou
política – do povo e pela ausência de “vivências comunitárias”. Ora, afastados uns dos outros,
separados por léguas, é evidente que o contato não teria possibilidade de existir. E sendo
assim, os poderes eram passados de mão em mão: “senhor”, “capitão” ou "governador",
porém, nada de povo, pois não se tinha um: “É que em todo o nosso background cultural,
inexistam condições de experiência, de vivência da participação popular na coisa pública. Não
havia povo.” (FREIRE, 2003, p. 65). Tampouco “participação da vida comum”, coletividade
e abertura existiam e faziam-se vigentes: “Nas circunstâncias de nossa colonização e de nosso
povoamento, ao contrário, tudo nos levava a um fechamento extremamente individualista.”
(FREIRE, 2003, p. 66). Nesse cenário, via-se uma “população arrebanhada” e não uma
emancipada, assim como “centros urbanos” construídos baseados na verticalidade e não na
horizontalidade. Na verdade, pouquíssimas foram as vezes que a “vontade do povo” fez-se
presente (FREIRE, 2003, p. 67), visto que, tendências como a do “(...) interesse privado
sobrepondo-se ao público. As de submissão. As das mãos estendidas.” (FREIRE, 2003, P. 68)
eram vigentes na história do povo brasileiro. Freire medita:

Em verdade, o que caracterizou, desde o início, a nossa colonização, foi, sem


dúvida, o poder exacerbado. Foi a robustez do poder em torno de que foi se criando
um quase gosto (...) masoquista de ficar sob ele a que correspondia outro, o de se ser
o todo poderoso. Poder exacerbado a que foi se associando sempre submissão.
Submissão de que decorria, em consequência, ‘ajustamento’, não propriamente
concordante, ou discordante, mas ‘acomodado’ (...). (2003, p. 68)
Esse “ajustamento” de que refere-se Paulo Freire é permissivo, não exige posição, crítica
ou razão, porém, somente emoção, diferentemente do “ajustamento” da vida democrática
(FREIRE, 2003, p. 69). Nesse “ajustamento”, não há participação, nem diálogo, apenas
silêncio, um silêncio que oprime e que torna o indivíduo acomodado e acrítico, como aponta o
autor (FREIRE, 2003, p. 69). Prossegue o filósofo:

Esta foi, na verdade, a constante de toda a nossa vida colonial. Sempre o homem
esmagado pelo poder. Poder do senhor das terras. Poder dos governadores gerais,
dos capitães generais, dos vice-reis, do capitão-mor. Nunca ou quase nunca,
interferindo na constituição e na organização da vida comum. Sempre perdido na
dispersão tremenda de terras imensas. Perdido e vencido por essas imensidades, (...).
(FREIRE, 2003, p. 69)
Desequilíbrio de poder e passividade foram os marcos dessa colonização. A mesma afetou
o desenvolvimento e a experiência da democracia. Roubou da vida brasileira a autonomia e a
participação, a “vivência em comunidade”, deixando para esse povo, somente “dispersão”,
pressão e proibição, fechamento e isolamento, além de uma constante tutela e um
impedimento de “crescer”. Como se não bastasse, seus desejos e pautas eram sempre
secundários, quando ouvidos: “Somente o isolamento imposto à colônia, fechada nela mesma,
e tendo por tarefa bastar as exigências e os interesses cada vez mais gulosos da metrópole,
revelava claramente a verticalidade e a impermeabilidade antidemocrática da política da
Corte.” (FREIRE, 2003, p. 70). No campo político, as decisões não chegavam ao povo
brasileiro, a deliberação não estava em suas mãos, pois essa, tinha por comando, as
oligarquias e aristocracias do Brasil (FREIRE, 2003, p. 70-71). Assim, a nação ia dividindo-
se: de um lado, o “povo massa”, caracterizado como o “homem comum”, aquele que sequer
participa do “processo eletivo”, que promove “algazarras” 14 e não produz “voz” alguma, e, de
outro, os “homens bons” e “homens novos”, ambos pessoas da nobreza, dos privilégios e dos
poderes, do “engenho” e do comércio, vindos de classes abastadas, propícios para serem os
líderes dessa gentalha comum, desinteressante e não instruída.
E com a chegada da Corte, com seus fortes avanços industriais e urbanos, trazendo
jornais, ensino e técnica, vinha a ruína do “Patriciado Rural”, entretanto,

Essa transferência de poder ou de ‘majestade’ do patriciado rural. Consolidado nas


‘casas-grandes’, para as cidades, então começando a tomar posição diferente –
participante – na vida do país, não significava ainda, porém, a participação do
homem comum nos destinos de sua comunidade. A grande força nas cidades estava
na burguesia que se fazia opulenta enriquecendo no comércio e substituindo o todo-
poderosismo do campo. Estaria também e depois nas ideias dos bacharéis, filhos dos
campos, mas homens fortemente citadinos. Doutores formados na Europa e cujas
ideias eram discutidas em nossas amplamente analfabetizadas províncias, como se
fossem centros europeus. (FREIRE, 2003, P. 73)
De “senhores”, donos das “grandes propriedades” para a burguesia da cidade. Uma ótima
troca, não? Independente de qual fosse, o povo não possuía o poder em suas mãos, sequer
tinha algum. E pior, após a chegada da Corte, com seus doutores pomposos, iniciou-se não
projetos democráticos, horizontais e abertos, porém sim, “(...) a europeização 15 ou a
reeuroupeização, a que se aliou todo um conjunto de procedimentos antidemocráticos, a
reforçar a nossa ‘inexperiência democrática’.” (FREIRE, 2003, p. 73). Os bonitos da Corte e
da cidade decidiram introduzir ou reintroduzir seus costumes, hábitos e culturas para um povo
que, na concepção deles, sequer era civilizado, pois era uma cambada de bárbaros 16 não
instruídos, jesuítas sim, porém, desatualizados das verdadeiras culturas do mundo e que ainda
possuem a pachorra de ter a ideia de galopar quando bem quiser ou de ficar berrando nas ruas
e chamando isso de religião ou de cultura.
A partir desse momento, o que aconteceu ao Brasil, infelizmente, somente foi uma troca de
poder, de um opressor para outro: “Continuávamos, assim, a alimentar a nossa ‘inexperiência
democrática’ e a dela nos alimentarmos. Com imposições. Com descobrimento de nossas
realidades. Com a superposição a elas de modo de ser estranhos em grande parte à sua
índole.” (FREIRE, 2003, p. 74). De toda forma, a “mentalidade feudal” e colonial persistia e
dessa maneira, como que a inserção de um “estado democrático” poderia dar certo nessas
condições, dado que, o modo de vida colonial, ainda se fazia presente? Diz Paulo Freire:

14 “Só a partir, repita-se, dos primeiros surtos de industrialização, implicando modificações de nossa
economia, mais fortemente neste século, é que se pode, na verdade, falar de um legítimo ímpeto popular. De
uma ‘voz’ do povo. Não ‘algazarra’ do povo.” (FREIRE, 2003, p. 73).
15 Aqui, cabe mencionar um conceito importante de Paulo Freire, a “Alienação Cultural”, definida por ele,
como a “(...) característica da inautenticidade dos povos colonizados.” (FREIRE, 2003, p. 74).
16 Perspectiva essa que coincide com as críticas de Ailton Krenak: “A civilização chamava aquela gente de
bárbaros imprimiu uma guerra sem fim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados que
poderiam integrar o clube da humanidade.” (2020, p. 28).
Importávamos o Estado democrático não apenas quando não tínhamos nenhuma
experiência de autogoverno acumulada durante toda a nossa vida colonial,
experiência de dialogação, mas também e sobretudo quando não tínhamos ainda
condições institucionais capazes de oferecer ao povo inexperimentado,
circunstâncias ou clima para as primeiras experiências verdadeiramente
democráticas. (...) superpúnhamos a uma estrutura economicamente feudal e a uma
estrutura economicamente feudal e a uma estrutura social em que o homem quedava
vencido, esmagado e mudo, uma forma política e social, cujos fundamentos
exigiam, ao contrário do mutismo, a dialogação, a participação, a responsabilidade,
política e social. (2003, p. 75).
Como seria possível nessas condições, em uma situação de exploração e de colonização?
“Na educação jesuíta17, verbosa e superposta à nossa realidade, em grande parte?” (FREIRE,
2003, p. 76) ou “No descaso à educação popular a que sempre fomos relegados?” (FREIRE,
2003, p. 76), ou melhor, “Na força das cidades, fundada no poderio de uma burguesia
enriquecida no comércio, que substituiu o poder do patriciado em decadência?” (FREIRE,
2003, p. 76). Nenhuma delas seria adequada, pois as alternativas e os meios realmente certos
não estavam ao alcance das mãos brasileiras. À isso, deve-se à colonização do Brasil, com
toda sua violência, sangue e morte e com o largo e produtivo desenvolvimento da
“inexperiência democrática” entre a população brasileira. Essa mesma inexperiência que
impede com que a nação viva uma democracia, para que então, ela possa finalmente abraçar
toda a liberdade, igualdade, diálogo, abertura e coletividade que lhe foi negada.
Por fim, todas essas preocupações de Paulo Freire com a “inexperiência democrática”
eram para o momento de “transição” 18 que sua nação estava vivendo, para que pudesse dar
teorizações e assim, possibilitar melhores circunstâncias e ares para um povo que foi marcado
pela falta de experiência e vivência “comunitária” na vida democrática. Por isso de uma
educação que flerte com a “organicidade”, com o diálogo e com a horizontalidade, com um
clima e condições favoráveis para esses “ímpetos de participação”, para que todas essas coisas
ajam de forma conjunta e consonante e para auxiliar uma população que quando teve essas
motivações, foi silenciada ou ignorada, e, sobretudo, para interromper essa “inexperiência
democrática” e dar início à uma “experiência democrática”, com as vozes finalmente ouvidas
e não mais confundidas com “algazarras”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2020.
FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire,
2003.

17 Diz Ailton Krenak, “(...) os povos do Caribe, a América Central, da Guatemala, dos Andes e do resto da
América do Sul tinham convicção do equívoco que era a civilização. Eles não se renderam porque o programa
era um erro: ‘A gente não quer essa roubada’. E os caras: 'Não, toma essa roubada. Toma a bíblia, toma a cruz,
toma o colégio, toma a universidade, toma a estrada, toma a ferrovia, toma a mineradora, toma a porrada.’ Ao
que os povos responderam: ‘O que é isso? Que programa esquisito! Não tem outro, não?’” (2020, p. 29-30).
18 “Daí, para nós, o nosso grande problema está em sabermos dar um passo. Dar o passo da
‘assistencialização’ para a ‘dialogação’, a da ‘parlamentarização’, em consonância com o clima cultural novo,
que vem ampliando incoercivelmente as áreas de participação do povo.” (FREIRE, 2003, p. 77).

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