Você está na página 1de 6

A vocação eclesial do teólogo

A grande dificuldade por trás de certas correntes teológicas atuais está no fato de
que muitos teólogos não querem lembrar-se de que pertencem à Igreja. Ora, a
cientificidade da teologia é diretamente proporcional à sua eclesialidade, ou seja:
quanto menos contato a reflexão teológica tiver com o ensinamento da Igreja,
menos científica e mais ideológica ela será. Uma teologia verdadeiramente digna
deste nome tem de lançar raízes no que sente e ensina a Igreja, una, santa,
católica e apostólica.

___________

69. Introdução. — Queremos dedicar estes últimos momentos do curso a um


tema que desde a década de 1960 tem merecido a atenção dos Pastores de
toda a Igreja Católica: trata-se da vocação eclesial do teólogo e suas relações
com o Magistério, assunto a que já tivemos ocasião de nos referir vez por outra
ao longo de nossas primeiras aulas (cf., por exemplo, §§ 6, 11, 15 e 53). A
Congregação para a Doutrina da Fé publicou, em 24 de maio de 1990, vinte e
cinco anos após o encerramento do Concílio Vaticano II, uma «Instrução» [1]
cuja finalidade é esclarecer qual o papel da teologia na vida da Igreja; para isso,
a Congregação julgou oportuno orientar os bispos a respeito da função e dos
limites específicos do teólogo e do magistério pastoral dentro da Igreja e
estabelecer, assim, alguns parâmetros para o reto relacionamento entre eles.
Baseados nessa «Instrução» e nalguns apontamentos que o Cardeal Ratzinger
fez sobre ela [2], abordaremos hoje, a fim de circunscrever o assunto às
finalidades do curso, apenas alguns aspectos da vocação eclesial do teólogo e
deixaremos para a próxima aula o que concerne à relação entre ele e o
Magistério. Desse modo, o conjunto destas duas aulas nos permitirá ter um olhar
mais concreto sobre o caráter eclesial da teologia.

70. O problema da teologia moderna. — Talvez a mais expressiva dificuldade


em que se vêem enredados muitos teólogos modernos é o fato de esquecerem
que pertencem a uma comunidade mística cujos interesses não podem
submeter-se às modas do tempo nem às novas correntes de espírito: a Igreja.
Com efeito, desde o início da modernidade até o Concílio Vaticano II—e de
modo mais intenso e cristalizado durante o século XIX—o trabalho teológico foi
considerado uma ocupação reservada a um restrito número de clérigos
capacitados cuja voz «quase não conseguia despertar nenhum interesse para a
opinião pública na Igreja.» [3] Esse como que encastelamento do teólogo sofreu
um forte abalo quando, após a Primeira Guerra Mundial, a Igreja Católica
começou a presenciar um gradativo processo de reorientação teológica que,
soçobrada nos destroços da guerra a esperança de se conformar o cristianismo
a uma cosmovisão liberal do mundo, levaria o Concílio a tomar em consideração
novos modos de expressar e transmitir a fé cristã [4]. Os movimentos bíblicos,
litúrgicos, ecumênicos e marianos, nesse sentido, serviram, ao longo da primeira
metade do século XX, para criar dentro da comunidade dos crentes «um novo
clima espiritual» do qual, naturalmente, veio a nascer uma nova maneira de fazer
teologia «que no Concílio Vaticano II tornou-se fecunda para toda a Igreja.» [5]
71. A eclesialidade da teologia. — Encerrado o Concílio, muitos teólogos
deram continuidade às tendências que então surgiam e, como não estivessem
ainda bastante claros e definidos os limites em que essa evolução se poderia
desenvolver, «passaram a sentir-se mais e mais como os verdadeiros mestres
da Igreja» [6], inclusive dos Pastores, assaltados esses, de resto, «por um
teologia que em parte ainda lhes era pouco familiar.» [7] Os meios de
comunicação tiveram neste período o impactante papel de transformar alguns
teólogos em novos formadores de opinião e desacreditar, perante o público
geral, o magistério eclesiástico «como o último resquício de um fracassado
autoritarismo.» [8] De fato, a imagem veiculada da Santa Sé dava, pois, a
impressão de que a só existência de uma «instância extracientifica» que se
arrogasse o poder e a autoridade de imiscuir-se em matérias de pesquisa era, de
qualquer jeito, uma forma de «controlar o pensamento» e opor-se à livre
investigação [9]. Devido a este estado de coisas, a Igreja passou a sentir a
necessidade de reanalisar o lugar que o teólogo e o magistério pastoral ocupam
no Corpo de Cristo, a fim de que «não haja dissensões [...] e os membros
tenham o mesmo cuidado uns para com os outros» (1Cor 12, 25). À tarefa de
compreender a relação entre teólogo e Magistério, segundo a lógica interna e
função próprias a cada um deles [10], buscou servir a «Instrução Donum
veritatis», contribuindo, assim, também para a paz na Igreja e para «uma reta
forma de ligação entre fé e razão.» [11] Concretamente, a «Instrução» nos veio
recordar de que a cientificidade da teologia é diretamente proporcional à sua
eclesialidade, ou seja: a teologia será tanto mais rigorosamente científica quanto
mais fiel for à Igreja.

72. A capacidade do homem para a verdade. — Procuramos demonstrar na


primeira parte do curso como o desenvolvimento da teologia e seu método teve
por problema de fundo os encontros e desencontros entre razão e fé, cujo
relacionamento, em dados momentos da história da Igreja, oscilou entre a paz
nupcial e a discórdia dum divórcio. Esse descompasso entre religião e
racionalidade manifestou-se, como vimos nas aulas 1 e 2, no gnosticismo, em
que razão e fé justapõem-se e perdem, assim, seus traços distintivos, e,
emblematicamente, no arianismo, em que as limitações da primeira impõem-se à
segunda e pervertem-lhe, deste modo, o seu autêntico sentido. Vimos em
seguida, na quinta aula, como Guilherme de Ockham, ao tentar salvaguardar
uma equivocada concepção de onipotência divina, iniciou um processo de cisão
entre razão e fé que Immanuel Kant, no século XVIII, enfim levaria a cabo. Em
Kant, com efeito, a razão humana tem de ver-se limitada ao campo da
experiência sensível e, mesmo em tão estreitos limites, ela não pode chegar a
saber o que são as coisas em si mesmas, o seu quid, mas tão-somente como se
apresentam aos nossos sentidos e são acomodadas à estrutura racional por que
a nossa mente as pode compreender. Fechados, assim, quaisquer canais de
comunicação entre o homem e o transcendente, descartada a metafísica como
uma impossibilidade pura e simples, a fé não pode ser senão uma convicção
pessoal, ou, como escreve Kant, uma crença subjetivamente suficiente (para
mim), mas objetivamente insuficiente (para os outros) [12]. A consequência
desta antropologia kantiana é a desagregação da unidade íntima que deve haver
no homem entre a sua racionalidade e a fé com que é presenteado por Deus,
porque
Quando a religião e a razão não conseguem retamente encontrar-se, a vida
espiritual do [h]omem se desfaz, seja em um acanhado racionalismo tecnicista,
seja em um sombrio irracionalismo. A onda de esoterismo que observamos hoje
mostra que no racionalismo positivista dominante as camadas mais profundas da
condição humana não conseguem mais ser integradas, e por isso as formas
atávicas de superstição voltam a ganhar ascendência sobre o [h]omem [13].

Diversamente do que ensinam muitas correntes filosóficas atuais que, de um


modo ou de outro, fazem seus os resultados de Kant, A Igreja Católica, «em
consonância com um reto modo de pensar confirmado pela Escritura» [14],
sustenta que o homem é capaz de chegar à verdade com as forças da razão,
sob cuja luz, a partir das coisas criadas, pode inclusive, segundo um
conhecimento metafísico proporcionado às limitações do seu intelecto, conhecer
com certeza a existência de Deus (cf. § 29), «pois o invisível Dele é divisado,
sendo compreendido desde a criação do mundo, por meio do que foi feito»
(Rm 1, 20) [15]. Nesse sentido, a Igreja, atribuindo à razão o seu devido valor e
confiando firmemente na possibilidade de se falar de Deus a todos os homens,
crentes e não-crentes, dedica-se desde sempre ao serviço da doutrina que, por
mandato divino, é chamada a anunciar a todas as gentes. «Ao defender», deste
modo, «a capacidade da razão humana de conhecer a Deus» [16], a Igreja
aponta para o fato de que a fé, longe de ser um movimento irracional do espírito,
tem por base a própria Razão divina, o Logos, que é, eternamente, princípio e
fundamento de todas as coisas, em Quem são, por isso mesmo, razoáveis
desde a origem [17].

73. A Verdade, dom de Deus. — A mesma santa Igreja ensina, por outro lado,
que Deus, impelido por Seu imenso amor aos homens, determinou revelar-Se a
Si mesmo ao gênero humano e manifestar, assim, o mistério de Sua vontade
(cf. Ef 1, 9), pela qual nos ordenou, em Sua infinita bondade, à participação dos
bens divinos, preparados desde todos os séculos para aqueles que O amam
(cf. 1 Cor 2, 9). Esta revelação sobrenatural, com efeito, chegou à plenitude em
Cristo, Verbo feito carne, pelo qual temos, no Espírito Santo, acesso ao Pai e,
participantes da natureza divina, nos associamos à comunhão da aliança e à
promessa que Deus fizera ao Seu Povo (cf. Ef 2, 12-14) [18]. Por isso,
desejando tornar-nos «capazes de responder-Lhe, de conhecê-lO e de amá-lO
bem além» do que seríamos capazes por nós mesmos [19], Deus vem ao nosso
encontro e Se nos dirige como a amigos muito queridos (cf. Ex 33, 11; Jo 15,
14s) e nos convida a entrar em Sua intimidade, a fim de que ali encontremos a
«plena verdade e verdadeira liberdade» [20]. Este projeto benevolente, como
recorda a Congregação para a Doutrina da Fé, Deus o realizou perfeitamente
pelo Filho vencedor da morte (cf. Jo 8, 36) e constantemente o atualiza, durante
a peregrinação terrena da Igreja, pela ação de Seu Espírito, que, fazendo pela
mesma fé um só o Povo de Deus, nos conduz «à verdade plena» (Jo 16, 13)
[21].

Por essa razão, Cristo, tendo completado e promulgado a Boa Nova prometida
pelos Profetas, atribuiu à Igreja a missão de conservar inalterado e transmitir às
gerações futuras, «como fonte de toda verdade salvífica», o Seu Evangelho [22].
Desta verdade evangélica, dom de Deus, todo o povo santo, enquanto «sal da
terra» e «luz do mundo» (cf. Mt 5, 13s), deve dar testemunho, segundo as
vocações e carismas próprios a cada um de seus membros. Aderindo, pois,
fielmente ao sagrado depósito, escrito ou transmitido, que lhe foi entregue, a
«totalidade dos fiéis» ungidos no Espírito (cf. 1Jo 2, 20, 27), tanto da parte dos
Antístites quanto da dos crentes comuns, experimentam, com a assistência do
mesmo Espírito, «uma singular convergência no conservar, praticar e professar a
fé transmitida.» [23] Ora,

Para exercitar a sua função profética no mundo, o Povo de Deus deve


continuamente despertar ou «reavivar» a própria vida de fé (cf. 2 Tm 1, 6),
particularmente por meio de uma reflexão sempre mais aprofundada, guiada pelo
Espírito Santo, sobre o conteúdo da própria fé e através do esforço de mostrar a
sua racionabilidade àqueles que lhe perguntam pelas razões (cf. 1 Pd 3, 15). Em
vista desta missão o Espírito de verdade dispensa, entre os fiéis de toda ordem,
graças especiais dadas «para a utilidade comum» (1 Cor 12, 7-11) [24].

74. A vocação do teólogo. — A fim de fazer crescer na vida da Igreja a


compreensão das realidades contidas no depósito da fé, Deus suscita, de modo
particular, a vocação do teólogo, que é especialmente chamado, pela
contemplação e pelo estudo, a aprofundar-se, em benefício de todos os fiéis, no
conhecimento da verdade revelada [25]. Ora, se bem que essa verdade
transcenda as limitações dos conceitos e linguagem humanos e desafie todo
conhecimento (cf. Ef 3, 9), ela, não obstante, como que impele a razão, em
consonância com as aspirações naturais desta, a «entrar na sua luz, tornando-se
[...] capaz de compreender, em certa medida, aquilo em que crê.» [26] A ciência
teológica surge então como resposta ao convite da verdade divina e busca,
naturalmente, a razão dessa fé sob cuja luz o cristão antegoza, de modo limitado
e imperfeito, as delícias do conhecimento de Deus. Para dispensar a todo o
Povo um ensinamento que, em comunhão com o Magistério, ao qual
exclusivamente foi confiada a interpretação autêntica da Palavra de Deus, lhes
corrobore a esperança, conforme o mandamento do Apóstolo (cf. 1Pd 3, 14) [27],
e não lese a doutrina da fé, o teólogo, como servidor da Palavra, tem por tarefa
principal auscultar e compreender o sentido da Revelação. É, portanto, dentro
dos limites desta Revelação que o teólogo, sem se esquecer de que também ele
é membro do Povo de Deus, pode retamente desenvolver sua pesquisa, que só
pode respirar com verdadeira liberdade «no interior da fé da Igreja» [28].

O teólogo tem inscrita no interior da vida a Igreja a sua vocação, pela qual é
chamado, segundo os carismas que lhe são próprios, a associar-se à herança
eclesial que é a doutrina católica e a auxiliar os Pastores a manter viva e íntegra
a sagrada fé da Igreja de Cristo.
Referências

1. Congregação para a Doutrina da Fé, «Instrução Donum Veritatis sobre a


Vocação Eclesial do Teólogo», de 24 mai. 1990. Disponível em (sítio):
<goo.gl/mPl8R>.

2. V. J. Ratzinger, Natureza e Missão da Teologia. Trad. port. de Carlos Almeida


Pereira. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, c. 3, pp. 85-104.

3. Id., p. 87.

4. Cf. Id., ibid.

5. Id., p. 88.

6. Id., ibid.

7. Id., ibid.

8. Id., ibid.

9. Cf. Id., ibid.

10. Cf. Id., ibid.

11. Id., ibid.

12. Cf. Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura. Trad. port. de Manuela P. dos Santos
e Alexandre F. Morujão. 6.ª ed., Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008, p. 650 (A
DCCCXXII; B DCCCL); v. também, mais à frente, p. 653 (A DCCCXXVII; B
DCCCLV): «[...] a palavra fé diz respeito unicamente à direção que me é dada
por uma ideia e à influência subjetiva que exerce sobre o desenvolvimento dos
atos da minha razão e que me confirma nessa ideia, embora não me encontre
no estado de a justificar do ponto de vista especulativo.»

13. J. Ratzinger, op. cit., loc. cit.

14. Congregação para a Doutrina da Fé, instr. Donum Veritatis, n. 10.

15. Cf. Concílio Vaticano I, const. dogm. Dei Filius, de 24 abr. 1870, c. 2 (DS 3004).

16. CIC, n. 39.

17. Cf. J. Ratzinger, op. cit., p. 89.

18. Cf. Id., ibid.; Concílio Vatiano II, const. dogm. Dei Verbum, de 18 nov. 1965, c. 1
(DS 4202); Congregação para a Doutrina da Fé, op. cit., n. 3.

19. CIC, n. 52.

20. Congregação para a Doutrina da Fé, op. cit., n. 2; cf. Cf. Concílio Vaticano
II, op. cit., loc. cit.

21. Cf. Id., ibid.

22. Concílio Vaticano II, op. cit., c. 2 (DS 4206).


23. Id., ibid.; cf. CIC, nn. 91-3.

24. Congregação paea a Doutrina da Fé, op. cit., n. 5.

25. Cf. Id., const. past. Gaudium et spes, de 7 dez. 1965, n. 62; CIC, 94;
Congregação para a Doutrina da Fé, op. cit., n. 6.

26. Congregação paea a Doutrina da Fé, op. cit., loc. cit.

27. Cf. Concílio Vaticano II, Dei Verbum, c. 2 (DS 4213).

28. Congregação paea a Doutrina da Fé, op. cit., n. 11.

Bibliografia

o CONCÍLIO VATICANO I, «Constituição Dogmática Dei Filius», de 24 de abril de


1870.

o CONCÍLIO VATICANO II, «Constituição Dogmática Dei Verbum», de 18 de


novembro de 1965.

o «Constituição Pastoral Gaudium et spes», de 7 de dezembro de 1965.

o CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, «Instrução Donum


Veritatis sobre a Vocação Eclesial do Teólogo», de 24 de maio de 1990.

o KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. port. de Manuela P. dos Santos
e Alexandre F. Morujão. 6.ª ed., Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008.

o RATZINGER, Joseph. Natureza e Missão da Teologia. Trad. port. de Carlos


Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

Você também pode gostar