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2 Co 9.12.

Aqui Paulo fala da coleta que está sendo Conclusões:


organizada a favor da igreja de Jerusalém e empre- 1. "Não encontramos no Novo Testamento
ga os termos leitourgesai e leitourgia. Talvez haja vocábulo que expresse exatamente o que atual-
aqui alguma referência cúltica (a coleta como mente chamamos de "culto" cristão." (PERROT, C.
sacrifício), mas tudo indica que o apóstolo usa os "O Culto da Igreja Primitiva." Concilium 182:p.7).
termos em seu sentido popular de "prestar serviço". 2. Para designar o culto cristão, evita-se
O texto de Atos 13.2 (leitourgounton de conscientemente a terminologia cultuai do Antigo
auton to kyrio kai nesteuonton, "servindo eles ao Testamento. Esta aparece, não há dúvida. Agora,
Senhor, e jujuando") é a única vez em que um ato designa o culto do Antigo Testamento, a obra de
litúrgico da igreja é descrito em termos de Cristo e a vida dos cristãos no mundo. Por
leitourgein. Entretanto, se comparado com o em- exemplo: em Rm 9.4 latreia designa o culto do
prego do verbo na Septuaginta, ficará evidente que Antigo Testamento; em Rm 12.1 refere-se à vida
leitourgeo designa algo bem diferente, a saber, a cristã.
oração. Neste fato alguns vêem a espiritualização 3. É possível que esta reserva se deva ao risco
de um importante termo cúltico do Antigo de confundir a celebração cristã com o culto do
Testamento (oração como sacrifício espiritual). Antigo Testamento ou com o culto pagão. Neste
Outros entendem - e isto talvez seja mais provável - ponto, na escolha da terminologia, os cristãos fi
que o termo é empregado em seu sentido profano zeram o mesmo que fizeram com o vocabulário
de "serviço público" ou "função pública". ministerial, que nunca tem caráter sacerdotal. Por
Mais importante talvez do que a ocorrência exemplo: episkopos ("supervisor", bispo) era ter-
dos vocábulos é o fato de os mesmos não serem mo profano, não cúltico.
usados para designar o ofício ou a atividade de 4. Quando se trata de designar o culto dos
apóstolos, bispos ou de qualquer outro ministro da cristãos, os únicos termos que aparecem em certa
igreja apostólica. Acontece que havia algo novo. O regularidade são synerchesthai ("reunir-se") e
culto tinha chegado a seu alvo (telos) com o synagesthai ("ajuntar-se"). Na verdade, isto é
sacrifício de Cristo, como o autor aos Hebreus tudo que a igreja faz e pode fazer: reunir-se em tor
mostra de forma tão eloqüente. Os ministros de no daquilo que é absolutamente central no culto, a
Cristo, muito mais que realizar uma leitourgia a saber, a palavra de Deus e os sacramentos. O lou-
favor do povo ou da igreja, anunciam a leitourgia, vor, as orações, as ofertas, tudo isto decorre e de-
o serviço de Cristo realizado uma vez por todas, a flui da presença de Cristo em e sob palavra e sacra
favor de todos, no sacrifício da cruz. Além do mais, mentos, dando perdão, vida e salvação.
a igreja cristã não tem sacerdotes como uma classe (Obs.: Recomendamos o estudo detalhado
distinta, pois a igreja como tal, no seu todo, é feita deste assunto no Dicionário Internacional de
ou composta de sacerdotes (Hb 10 19). Portanto, no Teologia do Novo Testamento (Edições Vida Nova,
emprego (ou pouco uso) dos termos revela-se a 4 volumes), artigo "Servir, Diácono, Adoração"
novidade da mensagem cristã. (vol. 4, p. 448-457).

ADORAR EM 'ESPÍRITO E VERDADE':


QUE É ISSO?
Prof. Vilson Scholz
O diálogo de Jesus com a mulher samaritana tendemos o texto como fundamental para a com-
se apresenta como texto aparentemente inesgotável. preensão da atitude do Salvador e do ensino neo-
Citado como exemplo de entrevista evangélica, testamentário sobre o culto.
destacado como modelo de conversão pastoral, Interessam-nos de forma especial os versí-
esse texto de João 4 é também importante no culos 20 a 26, que são o ponto alto do diálogo. O
estudo da teologia do culto. Especialmente para assunto é adoração. Para ser mais exato, o assunto
determinar a atitude de Jesus frente ao culto. é lugar de adoração e verdadeiros adoradores.
Verdade seja dita, João 4 nem sempre é le- A mulher afirma que os samaritanos adoram
vado em conta quando se considera a postura de "neste monte" (entō orei toutō), ou seja, no monte
Jesus ante o culto. Os críticos entendem - erro- Gerizim. Efetivamente, no Pentateuco samari-tano,
neamente, é claro - que se trata de teologia joanina em Dt 27.4, está escrito que Josué deveria construir
e não de palavras de Jesus. Nós, porém, en- um santuário naquele exato local. Diante

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disso, os samaritanos tinham transformado o culto pneuma como Espírito Santo. Qual seria o sentido
no monte Gerizim em parte do decálogo. Os do texto?
judeus, por sua vez, tinham Jerusalém. Devemos então lembrar que este pneuma é
Jesus contrapõe: nem no Gerizim nem no acima de tudo o dom escatológico, prometido pelos
Moriá em Jerusalém. Diz o Senhor: "Mulher, po- profetas e concedido de forma toda especial no
des crer-me, que a hora vem, quando nem neste pentecoste. Este pneuma é o agente do reino de
monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós Deus, do novo éon, do século vindouro, ao qual se
adorais o que não conheceis, nós adoramos o que faz referência no uso das palavras hora ("hora") e
conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. nyn ("agora") no versículo 23. Este pneuma, o
Mas vem a hora, e já chegou, quando os verdadei- Espírito Santo, ressuscita Cristo (Rm 8.11), num
ros adoradores adorarão o Pai em espírito e em evento essencialmente escatológico (a irrupção do
verdade; porque são estes que o Pai procura para mundo vindouro no presente século) e ponto
seus adoradores." (w. 21 -23). culminante na inauguração do reino de Deus. O
As palavras de Jesus, en pneumati kai pneuma congrega a igreja, a comunidade escatoló-
alētheia ("em espírito e em verdade") são o foco da gica na qual os poderes do reino de Deus operam. O
presente discussão. Geralmente toma-se pneuma pneuma impulsiona a igreja para a missão universal
("espírito") em referência ao espírito do homem, (veja o livro de Atos!), neste período que
com a inferência de que o culto verdadeiro deve ser intermedeia a inauguração do reino e sua consu-
interiorizado. Alētheia ("em verdade"), por sua vez, mação no último dia. O pneuma faz renascer, dá
é entendido como denotando a necessidade de nova vida, vida esta que é eterna, vida do mundo
assumir uma atitude pessoal correta. Assim, esse vindouro que o povo de Deus já desfruta prolepti-
texto se torna locus classicus ou sedes doctrinae camente no presente século. O penuma é a garantia
daqueles que defendem uma espiritualização ou (arrabon, 2 Co 1.22;Ef 1.14) do mundo vindouro.
interiorização do culto, muitas vezes em Assim sendo, proskynein en pneumati kai
detrimento de formas exteriores ou como pretexto alētheia refere-se antes de mais nada ao culto
para abolir a liturgia (o ritual). Como se fosse escatológico, a este culto novo no novo éon, a esta
possível, a nós que somos corpo (soma), prestar adoração que é tornada possível pelo pneuma.
culto sem formas, sem liturgia! Este culto en pneumati, por ser escatológico,
Na verdade, porém, as palavras de Jesus po- é antecipação do culto no mundo vindouro. O culto
dem ser tomadas em outro sentido. Pneuma, a cristão, de fato, é antecipação do culto no céu. A
exemplo de espírito em português, pode designar confissão escatológica Kyrios Shristos ("Cristo é
tanto o espírito (alma) do homem como o Espírito Senhor!"), a ser proferida por toda língua no último
de Deus, o Espírito Santo. Tudo depende de como dia, já é feita por antecipação na igreja que clama
se grafa a letra inicial, maiúscula ou minúscula. "Kyrie, eleison" (Senhor, tem misericórdia)!
Isto, por sua vez, depende da interpretação do (s) O novo culto, o culto escatológico, o culto
editor(es) do texto grego ou dos tradutores. (O daquela hora ("hora") que é nyn ("agora"), tem seu
mesmo debate, diga-se de passagem, surge em ponto focai, não num local geográfico definido
outras passagens, especialmente Gaiatas 4 e 5.) A (Gerizim, Jerusalém ou qualquer outro), nem num
grafia já revela uma compreensão do texto, pois ritual, muito menos na interioridade do homem.
também neste particular uma tradução é sempre Seu ponto focai é aquele que é autobasileia (ele
interpretação. próprio o reino), a saber, Cristo, a verdade. Cristo,
Pois bem, em João 4.23 o en pneumati pode seu corpo ressuscitado e glorioso, é o novo templo.
ser entendido como referindo-se ao Espírito Santo. Este Cristo está presente em palavra e sacramento.
Neste caso, grafa-se "em Espírito". Mais ainda: Para o culto, portanto, não é essencial o lugar
alētheia (verdade) pode referir-se a Cristo. Quem, nem o ritual. Essencial é este en pneumati kai
entre outros, defende esta interpretação são os alētheia, que corresponde ao tantas vezes repetido
renomados exegetas católico-romanos Raymond E. en Christo ("em Cristo") de Paulo. (Confira neste
Brown e Rudolf Schnackenburg. (Sendo católicos, particular Fp 3.3, onde Paulo parece parafrasear as
isto talvez não cause surpresa, assim como não palavras de Jesus.) Essencial é a presença de Cristo
surpreende que exegetas da linha reformada tomam em palavra e sacramento. Assim, o culto, longe de
pneuma como referência ao espírito do homem e ser um esforço humano ou um exercício espiritual,
nada mais!) Brown aponta inclusive para a é ação de Deus a nosso favor, em sua graça,
possibilidade de considerar en pneumati kai mediante ação do Espírito Santo (1 Co 12.3 ss.)
alētheia uma hendíadis, equivalente a "Espírito da
verdade".
Consideremos a possibilidade de tomar

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