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Adoração em

perspectiva bíblica
João 4 – Adoração em Espírito e Verdade e aspectos
cúlticos no Novo Testamento
Introdução – Jo 4.20-26
20Nossos pais adoravam neste monte, mas vocês dizem que em Jerusalém é o lugar onde se deve
adorar.
21Jesus respondeu:
— Mulher, acredite no que digo: vem a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém vocês
adorarão o Pai. 22Vocês adoram o que não conhecem; nós adoramos o que conhecemos, porque a
salvação vem dos judeus. 23Mas vem a hora — e já chegou — em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e em verdade. Porque são esses que o Pai procura para seus adoradores.
24Deus é espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade.
25A mulher respondeu:
— Eu sei que virá o Messias, chamado Cristo. Quando ele vier, nos anunciará todas as coisas.
26Então Jesus disse:
— Eu sou o Messias, eu que estou falando com você.
De Almeida, J. F. (Trad.). (2017). Nova Almeida Atualizada (Edição Revista e Atualizada®, 3a edição, Jo 4.20–26). Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil.

Introdução
O diálogo de Jesus com a mulher samaritana se apresenta como texto aparentemente
inesgotável. Citado como exemplo de entrevista evangélica, destacado como modelo
de conversão pastoral, esse texto de João 4 é também importante no estudo da
teologia do culto. Especialmente para determinar a atitude de Jesus frente ao culto.

Verdade seja dita, João 4 nem sempre é levado em conta quando se considera a
postura de Jesus ante o culto. Os críticos entendem - erroneamente, é claro - que se
trata de teologia joanina e não de palavras de Jesus. Nós, porém, entendemos o texto
como fundamental para a compreensão da atitude do Salvador e do ensino
neotestamentário sobre o culto.
O Diálogo de Jesus com a mulher samaritana
Interessam-nos de forma especial os versículos 20 a 26, que são o ponto alto do
diálogo. O assunto é adoração. Para ser mais exato, o assunto é lugar de
adoração e verdadeiros adoradores.

A mulher afirma que os samaritanos adoram "neste monte" (entō orei toutō - ἐν τῷ
ὄρει τούτῳ), ou seja, no monte Gerizim. Efetivamente, no Pentateuco samaritano,
em Dt 27.4, está escrito que Josué deveria construir um santuário naquele exato
local. Diante disso, os samaritanos tinham transformado o culto no monte Gerizim
em parte do decálogo. Os judeus, por sua vez, tinham Jerusalém.
Jesus contrapõe: nem no Gerizim nem no Moriá em Jerusalém. Diz o Senhor: "Mulher,
podes crer-me, que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém
adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis, nós adoramos o que conhecemos,
porque a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora, e já chegou, quando os
verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque são estes
que o Pai procura para seus adoradores." (w. 21 -23).

As palavras de Jesus, en pneumati kai alētheia ("em espírito e em verdade") são o


foco da presente discussão. Geralmente toma-se pneuma ("espírito") em referência ao
espírito do homem, com a inferência de que o culto verdadeiro deve ser interiorizado.
Alētheia ("em verdade"), por sua vez, é entendido como denotando a necessidade de
assumir uma atitude pessoal correta. Assim, esse texto se torna locus classicus ou
sedes doctrinae daqueles que defendem uma espiritualização ou interiorização do
culto, muitas vezes em detrimento de formas exteriores ou como pretexto para
abolir a liturgia (o ritual). Como se fosse possível, a nós que somos corpo (soma),
prestar culto sem formas, sem liturgia!
Na verdade, porém, as palavras de Jesus podem ser tomadas em outro sentido.
Pneuma, a exemplo de espírito em português, pode designar tanto o espírito (alma) do
homem como o Espírito de Deus, o Espírito Santo. Tudo depende de como se grafa a
letra inicial, maiúscula ou minúscula. Isto, por sua vez, depende da interpretação do
(s) editor(es) do texto grego ou dos tradutores. (O mesmo debate, diga-se de
passagem, surge em outras passagens, especialmente Gaiatas 4 e 5.) A grafia já
revela uma compreensão do texto, pois também neste particular uma tradução é
sempre interpretação.

Pois bem, em João 4.23 o en pneumati pode ser entendido como referindo-se ao
Espírito Santo. Neste caso, grafa-se "em Espírito". Mais ainda: alētheia (verdade)
pode referir-se a Cristo. Quem, entre outros, defende esta interpretação são os
renomados exegetas católico-romanos Raymond E. Brown e Rudolf Schnackenburg.
(Sendo católicos, isto talvez não cause surpresa, assim como não surpreende que
exegetas da linha reformada tomam pneuma como referência ao espírito do homem e
nada mais!) Brown aponta inclusive para a possibilidade de considerar en pneumati
kai alētheia uma hendíadis, equivalente a "Espírito da verdade".
Consideremos a possibilidade de tomar pneuma como Espírito Santo. Qual seria o sentido do texto?
Devemos então lembrar que este pneuma é acima de tudo o dom escatológico, prometido pelos profetas
e concedido de forma toda especial no pentecoste. Este pneuma é o agente do reino de Deus, do novo
éon, do século vindouro, ao qual se faz referência no uso das palavras hora ("hora") e nyn ("agora") no
versículo 23. Este pneuma, o Espírito Santo, ressuscita Cristo (Rm 8.11: Se em vocês habita o Espírito
daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou Cristo dentre os mortos
vivificará também o corpo mortal de vocês, por meio do seu Espírito, que habita em vocês. num evento
essencialmente escatológico (a irrupção do mundo vindouro no presente século) e ponto culminante na
inauguração do reino de Deus. O pneuma congrega a igreja, a comunidade escatológica na qual os
poderes do reino de Deus operam. O pneuma impulsiona a igreja para a missão universal (veja o livro de
Atos!), neste período que intermedeia a inauguração do reino e sua consumação no último dia. O
pneuma faz renascer, dá nova vida, vida esta que é eterna, vida do mundo vindouro que o povo de Deus
já desfruta prolepticamente no presente século. O penuma é a garantia (arrabon, 2 Co 1.22:Mas aquele
que nos confirmar juntamente com vocês em Cristo e que nos ungius é Deus, que também pôs o seu
selo em nós e nos deu o penhor do Espírito em nosso coração; Ef 1.14: Antes da fundação do mundo,
Deus nos escolheu, nele, para sermos santos e irrepreensíveis diante dele.) do mundo vindouro.

Assim sendo, proskynein en pneumati kai alētheia refere-se antes de mais nada
ao culto escatológico, a este culto novo no novo éon, a esta adoração que é
tornada possível pelo pneuma.

Este culto en pneumati, por ser escatológico, é antecipação do culto no mundo


vindouro. O culto cristão, de fato, é antecipação do culto no céu. A confissão
escatológica Kyrios Christos ("Cristo é Senhor!"), a ser proferida por toda língua
no último dia, já é feita por antecipação na igreja que clama "Kyrie, eleison"
(Senhor, tem misericórdia)!

O novo culto, o culto escatológico, o culto daquela hora ("hora") que é nyn ("agora"),
tem seu ponto focal, não num local geográfico definido (Gerizim, Jerusalém ou
qualquer outro), nem num ritual, muito menos na interioridade do homem. Seu ponto
focai é aquele que é autobasileia (ele próprio é o reino), a saber, Cristo, a verdade.
Cristo, seu corpo ressuscitado e glorioso, é o novo templo. Este Cristo está presente
em palavra e sacramento.
Para o culto, portanto, não é essencial o lugar nem o ritual. Essencial é este en
pneumati kai alētheia, que corresponde ao tantas vezes repetido en Christo ("em
Cristo") de Paulo. (Confira neste particular Fp 3.3 (Porque nós é que somos a
circuncisão, nós, que adoramos a Deus no Espírito e nos gloriamos em Cristo Jesus,
em vez de confiarmos na carne.) Essencial é a presença de Cristo em palavra e
sacramento. Assim, o culto, longe de ser um esforço humano ou um exercício
espiritual, é ação de Deus a nosso favor, em sua graça, mediante ação do Espírito
Santo (1 Co 12.3: Por isso, quero que entendam que ninguém que fala pelo Espírito
de Deus afirma: “Anátema, Jesus!” Por outro lado, ninguém pode dizer: “Senhor
Jesus!”,a senão pelo Espírito Santo.)
Terminologia cúltica no Novo Testamento
No cristianismo, nada é mais central do que a mensagem e o ministério de Jesus
Cristo (sua morte e ressurreição), sua presença continuada (através de palavra e
sacramentos), e a ação do Espírito Santo (que dá vida). Tudo isto faz parte da
inauguração do reino de Deus (o eschaton, o anion mellon) no presente século. A
salvação de Deus em Cristo se tornou o foco de atenção da igreja cristã em seu
louvor, sua ação de graças e suas orações.
Se isto é assim, então esta novidade deve refletir-se também no próprio emprego de
palavras. De fato, nada indica melhor a novidade do culto cristão do que o emprego
de terminologia cúltica no Novo Testamento, especialmente as palavras gregas
latreuo e leitourgeo.
Terminologia cúltica no Novo Testamento
Tanto o verbo latreuo ("sirvo") como o substantivo latreia ("serviço") são pouco
freqüentes na literatura grega secular.) Inicialmencialmente latreia designava
trabalho por salário, serviço. Posteriormente adquiriu sentido cúltico.

Na versão grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, latreuo aparece noventa


vezes e latreia nove vezes. Trata-se de um grupo de pa- lavras usado quase que
exclusivamente num sentido cúltico, denotando serviço e culto a Deus,
especialmente por meio de sacrifício. Refere-se ao culto do povo como um todo e
também ao culto do indivíduo.
Terminologia cúltica no Novo Testamento
No Novo Testamento, latreuo ocorre vinte e uma vezes, sendo oito vezes em Lucas, seis em Hebreus,
quatro em Paulo, duas em Apocalipse e uma em Mateus. Sempre tem sentido religioso, designando
inclusive culto a deuses estranhos (Rm 1.25; At 7.42).

Particularmente importantes são as seis ocorrências em Hebreus. Em quatro ocasiões latreuo refere-se
ao culto no tabernáculo/templo (8.5; 9.9; 10.2; 13.10). Hebreus 9.14(Muito mais o sangue de Cristo, que,
pelo Espírito eterno, a si mesmo ofereceu sem mácula a Deus, purificarás a nossa consciência de obras
mortas, para servirmos ao Deus vivo) e 12.28 (Por isso, recebendo nós um Reino inabalável,
retenhamos a graça, pela qual sirvamos a Deus de modo agradável, com reverência e temor.)

De forma resumida pode-se dizer que reconhecem um latreuein Theo (culto a Deus), embora de um tipo
novo. Sacrificial, certamente. Agora, antes de mais nada kainos (novos), na medida em que se lhe
antepõe expressões como to haimatou Christou (o sangue de Cristo, 9.14) e basileian paralambanontes
(recebendo um reino, 12.28)!
Terminologia cúltica no Novo Testamento
Das ocorrências de latreuo nas epístolas de Paulo, merecem destaque Rm 1.9 (9Pois Deus, a quem sirvo em meu espírito, no
evangelho de seu Filho, é minha testemunha de como nunca deixo de fazer menção de vocês) e Fp 3.3 (3Porque nós é que somos a
circuncisão, nós, que adoramos a Deus no Espírito e nos gloriamos em Cristo Jesus, em vez de confiarmos na carne) Nesta última
passagem Paulo expressa basicamente o mesmo que Jesus diz em João 4.23,24 (Mas vem a hora — e já chegou — em que os
verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. Porque são esses que o Pai procura para seus adoradores. Deus
é espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade.)

Das cinco ocorrências de latreia no Novo Testamento (Jo 16.2; Rm 9.4; 12.1; Hb 9.1,6), merece destaque Rm 12.1 (Portanto, irmãos,
pelas misericórdias de Deus, peço que ofereçam o seu corpo como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus.a Este é o culto racional
de vocês.) Nesta conhecida passagem toda a vida cristã é inserida no conceito de culto ou serviço (latreia).

Quando ao verbo leitourgeo, originalmente não tem nada a ver com o sentido moderno da palavra liturgia. Era um termo profano,
denotando "prestar serviço ao povo". No grego do período helenístico (grego coinê), veio a designar todas as formas de serviço à
coletividade.

Na Septuaginta, o verbo aparece com o sentido um pouco alterado, aplicando-se


o mesmo ao substantivo leitourgia. Referem-se quase que exclusivamente ao
Terminologia cúltica no Novo Testamento
serviço dos sacerdotes e levitas no templo. Na verdade, eram palavras bastante
apropriadas para designar o serviço cúltico, pois o culto do templo era público,
regulado por leis, e visava ao bem-estar do povo de Deus.

No Novo Testamento, leitourgeo aparece somente três vezes: At 13.2; Rm 15.27;


Hb 10.11. Leitourgia ocorre seis vezes: Lc 1.23; 2 Co 9.12; Fp 2.17,30; Hb 8.6;
9.21.
Em Hebreus, o autor elucida o significado da pessoa e obra de Cristo sob a perspectiva e mediante o emprego do
vocabulário cúltico do Antigo Testamento. Em outras palavras, o sacrifício de Cristo é único, final, por todos, etc.

Em Paulo, merecem destaque Rm 15.27 (Isto lhes pareceu bem, e de fato lhes são devedores. Porque, se os gentios têm
sido participantes dos valores espirituais dos judeus, devem também servi-los com bens materiais.) e 2 Co 9.12
Terminologia cúltica no Novo Testamento
(Porque o serviço desta assistência não só supre a necessidade dos santos, mas também transborda em muitas orações
de gratidão a Deus.)

Aqui Paulo fala da coleta que está sendo organizada a favor da igreja de Jerusalém e emprega os termos leitourgesai e
leitourgia. Talvez haja aqui alguma referência cúltica (a coleta como sacrifício), mas tudo indica que o apóstolo usa os
termos em seu sentido popular de "prestar serviço". O texto de Atos 13.2 (leitourgounton de auton to kyrio kai
nesteuonton, "servindo eles ao Senhor, e jujuando") é a única vez em que um ato litúrgico da igreja é descrito em termos
de leitourgein. Entretanto, se comparado com o em- prego do verbo na Septuaginta, ficará evidente que leitourgeo
designa algo bem diferente, a saber, a oração. Neste fato alguns vêem a espiritualização de um importante termo cúltico
do Antigo Testamento (oração como sacrifício espiritual). Outros entendem - e isto talvez seja mais provável - que o termo
é empregado em seu sentido profano de "serviço público" ou "função pública".

Mais importante talvez do que a ocorrência dos vocábulos é o fato de os


mesmos não serem usados para designar o ofício ou a atividade de
apóstolos, bispos ou de qualquer outro ministro da igreja apostólica.
Acontece que havia algo novo. O culto tinha chegado a seu alvo
Terminologia cúltica no Novo Testamento
(telos) com o sacrifício de Cristo, como o autor aos Hebreus mostra de forma
tão eloqüente. Os ministros de Cristo, muito mais que realizar uma leitourgia
a favor do povo ou da igreja, anunciam a leitourgia, o serviço de Cristo
realizado uma vez por todas, a favor de todos, no sacrifício da cruz. Além do
mais, a igreja cristã não tem sacerdotes como uma classe distinta, pois a
igreja como tal, no seu todo, é feita ou composta de sacerdotes (Hb 10.19).
Portanto, no emprego (ou pouco uso) dos termos revela-se a novidade da
mensagem cristã.
Conclusões
1. "Não encontramos no Novo Testamento vocábulo que expresse
exatamente o que atualmente chamamos de "culto" cristão." (PERROT,
C. "O Culto da Igreja Primitiva." Concilium 182:p.7).

2. Para designar o culto cristão, evita-se conscientemente a


terminologia cultuai do Antigo Testamento. Esta aparece, não há dúvida.
Agora, designa o culto do Antigo Testamento, a obra de Cristo e a vida
dos cristãos no mundo. Por exemplo: em Rm 9.4 latreia designa o culto
do Antigo Testamento; em Rm 12.1 refere-se à vida cristã.

Conclusões
3. É possível que esta reserva se deva ao risco de confundir a celebração cristã
com o culto do Antigo Testamento ou com o culto pagão. Neste ponto, na escolha da
terminologia, os cristãos fizeram o mesmo que fizeram com o vocabulário ministerial,
que nunca tem caráter sacerdotal. Por exemplo: episkopos ("supervisor", bispo) era
termo profano, não cúltico.
4. Quando se trata de designar o culto dos cristãos, os únicos termos que aparecem
em certa regularidade são synerchesthai ("reunir-se") e synagesthai
("ajuntar-se"). Na verdade, isto é tudo que a igreja faz e pode fazer: reunir-se em torno
daquilo que é absolutamente central no culto, a saber, a palavra de Deus e os
sacramentos. O louvor, as orações, as ofertas, tudo isto decorre e deflui da presença
de Cristo em e sob palavra e sacramentos, dando perdão, vida e salvação.

Bibliografia
Scholz, Vilson. “A Novidade do Culto Cristão Expresso no Uso da Terminologia
Cúltica do Novo Testamento”.
Scholz, Vilson. “Adorar em Espírito e Verdade. O que é isso?”

Vox Concordiana, Volume 1, 1.

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