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I

DESENVOLVIMENTO DA LITURGIA
NA HISTÓRIA

1. A LITURGlA JUDAICA

Bendito sejas tu, ó Senhor, nosso Deus e Deus de nossos


pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó,
Deus grande, poderoso e venerado, Deus altíssimo que
tens misericórdia, que possuis 10das as coisas, que te
recordas das ações piedosas dos pais e enviarás 11111
redentor para os filhos de teus filhos, por causa de teu
nome, no amor: bendito sejas, escudo de Abraão. 4

Toda a realidade do evento Cristo e su·a vivência não


podem ser compreendidos, se essas não foram situadas em seu
contexto adequado. Deus foi-se revelando na história de um
povo e tal revelação alcança seu apogeu no judeu Jesus.
Válido para toda a teologia, isso toma-se peremptório no
panorama litúrgico. O que significa que a liturgia cristã deve
ser enfocada e entendida no contexto da oração judaica. Essa é
a sua fonte principal. A liturgia cristã é a celebração, pelo povo
de Deus, da salvação realizada por Javé e que culmin1 no
mistério de Jesus Cristo, morto e ressuscitado.
Anteriormente, os estudos no campo da história das reli­
giões ressaltaram a semelhança de nossa liturgia com as cha­
madas religiões helênicas dos mistérios. Essas aparentes coin­
cidências pretenderam transformar-se em filiação. Hoje, está
demonstrado que não é assim.

4. Berakah Aboth, da liturgia judaica.

7
ção do concílio. Essa tarefa foi realizada com rapidez e acerto,
em apenas I O anos. Isso é possível, evidentemente, graças a
toda a bagagem oferecida pelos 50 anos de movimento litúrgico.
A Igreja conta, desde então, com um novo missal (pro­
mulgado, significativamente, quatrocentos anos depois do mis­
sal do concílio de Trento: o de S. Pio V), orações eucarísticas,
lecionários, ritual e liturgia das horas. Isso possibilita à Igreja
viver logo uma liturgia renovada.
A liturgia cric;1ã é a celebração feiia pelo próprio povo de
Israel, agora ofuscada pela luminosidade do e,e,110 pascal de
Crrsto.

Como era a liturgia judaica?

Em primeiro lugar, é preciso destacar que Israel marca


uma ruptura com os demais povos no que diz respeito à sua
concepção religiosa e, em geral, à sua visão de mundo.
Os povos da antigüidade movem-se num contexto clara­
mente cosmológico. O mundo, a natureza e seus fenômenos
prodigiosos aparecem corno cenário da revelação divina, a
teofania O di,ino penetra no mundo den1ro do miro do eterno
retomo Isso significa que o tempo é circular, não avança ,·er­
dadcirarnente. E encontrar-se com o divino implica voltar a um
tempo mítico original.
Israel, ao con1rário, desde sua origem como povo, tem
uma experiência diferente do divino. Em primeiro lugar, já não
é o divino, mas sim Javé, um Deus personificado. Esse mani­
festa-se a Israel mediante acontecimentos históricos salvíficos,
que dessa forma prova a misericórdia de seu Deus. O tempo já
não é circular, mas linear, inaugurado pela criação e caminhan­
do para a culminação da salvação. Por isso Israel não buscará
Javé num tempo mítico, mas viverá da memória de seu Deus.
Esse conceito de memorial (::.ikkaron) é a chave para a
compreensão do que é liturgia. Israel faz memória desses even­
tos singulares, nos quais Deus re\'elou ·•a força de seu braço".
Mais adiante, trataremos de explicar detalhadamente o
sentido profundo do memorial

Pois bem, mas como é a oração de Israel?

Em primeiro lugar, é sempre resposta à palaHa de Deus.


Se há um elemento chave para entender a oração e liturgia
cri�tãs esse é a berakah judaica. Ela é a expressão que resume
8
a oração de Israel. A berakah é uma oração que começa pelo
louvor às maravilhas que Deus operou por Israel. Porém, logo
que terminado esse louvor, faz-se a súplica para que a sah ação
que Javé realizou no passado permaneça hoJe na \ida de Israel.
O fecho da oração é a doxologia, a glorificação desse Senhor
O culto de Israel, memorial dos acontecimentos liberta­
dores do passado, contém um movimento de esperança, uma
tensão escatológica diante do tempo futuro.
Essa oração acompanha os grandes momentos de oração
de Israel· as celebrações da ceia do sábado, as orações da tarde
e manhã. Pode-se inclusive dizer que a berakah é o coração da
espiritualidade de Israel e a impregna.
Israel se caracteriza por essa bênção-ação de graças-súplica.
O sistema cultuai e litúrgico do Templo tende a rituali­
rnr essa atitude fundamental.
Por iS<;O, quando o culto desvirtua-se num ritualismo va­
zio, os profetas denunciarão essa adulteração, convocando Is­
rael a \ altar ao verdadeiro culto.
A amarga experiência do exílio abre o coração de Israel
à essência de sua atitude para com Javé. A distância da terra
prometida coloca o povo numa situação limite. Como celebrar
Javé se já não há Templo nem sacerdotes? Como ser grato a ele?
Sei, redescobrem o verdadeiro sentido do culto: signifi­
car a atitude de um coração aberto à palavra de Javé. É no exílio
que surge uma instituição de grande importância para Israei e
também para a compreensão da nossa liturgia: a sinagoga.
A sinagoga é a "casa de oração", o lugar onde o povo de
Deus reúne-se em torno da palavra sah ífica de Javé, para
celebrá-la na fé.
Após o regresso do exílio, a sinagoga e sua liturgia cons­
tituirão um sistema em certo paralelismo com a liturgia do
Templo. Os judeus se reunirão sobretudo no c!ia santo, o shabbat,
para celebrar Javé, presente na assembléia mediante sua pala­
vra. Essa é proclamada e rezada. Deus é abençoado por sua
glória e sua salvação. A liturgia sinagoga! é o âmbito da berakah.
9
Os judeus piêdosos rcza,am diariamente na �magoga, às
mesmas horas do sacrifício do Templo. tanto o vespertino quanto
o matutino. Isso expressa a noção do "sacrifício de lou,or" ou
"sacrifício dos lábios". Esse louvor do coração \ale mais pe­
rante Javé, dizem os profetas e os salmos, que o sacrif1c10 de
bois.
O serviço sina(?ogal, tal como se realizava na manhã dos
sábados, tinha duas partes:

A primeira incluía a recitação do decálogo, a prnf1ssão


de fé (shemá Israel, composta de textos bíblicos. 1)1 6,4-
9s; Dt 11,13-22;15,37-41) e uma série de 18 bênçãos
(she111011h-esreh).
A segunda parte da reunião centrma-se na audição da
palavra de Deus; comportava uma primeira leitura, a mais
importante, tirada do Pentateuco, a leitura da To1<Í (a
Lei). Depois, seguia uma leitura mais breve dos li\ro<,
proféticos. A homilia, comentário sobre os textos escri­
turísticos lidos, ei a elemento comum e importante do
serviço sabático. A distância entre a pr�ítica sinagoga! e
o serviço da palavra da nova comunidade consiste em
que, enquanto aquela baseia-se na Torâ e toda a sua
tradição oral centra-se em explicar e tornar a explicar a
Torâ, a comunidade cristã busca anunciar Jesus e fazer
ressoar cm sua atualidade viva, a palavra deste.

2. O CULTO NA ÉPOCA DO N0\'0 TESTA1\IEI\TO

Fsse é o âmbito espiritual e cultuai do judeu Jesus. Esse


rabbi participa ati\ amente da oração e culto de seu povo Sobe
ao Templo para as grandes festas, celebra o slwbbar, participa
da liturgia sinagoga! e, sobretudo, celebra a Páscoa, centro do
culto isiaelita.
Jesus, sobretudo no Evangelho de Lucas, aparece como
um homem de profunda oração Todo o seu fazer parece brotar
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desse estado de oração contínua e grata ao Pai. Vejamos esta
berakah que ele pronuncia, arreba1ado pelo Espírito Santo:

Eu Te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, eu te bendi­


go porque ocultaste essas coisas aos sábios e i11teligen­
tes, e as revelaste aos peque11i11os... 5

Todavia, há um certo inconformismo em Jesus. Ele


insere-se na corrente profética. Seu anseio contínuo por um
culto autêntico, "em espírito e em verdade", o levará a um
trágico confronto com as autoridades de seu povo.
Porém, não se trata de uma atitude anticultual. Ao con­
trário, Jesus, o profeta escatológico, quer conduzir Israel ao
culto original, ao sacrifício puro e autêntico expresso no amor
e no perdão aos irmãos. "Que sentido tem" - disse ele -
"celebrar Deus quando não concelebro com meu irmão? Como
posso louvar o Senhor se estou separado de meus irmãos?" Ao
contrário, o culto deve expressar ritualmente essa aber1ura amo­
rosa a Deus e aos irmãos.

"E amar a Deus de todo o coração, com toda a me11te e


com todas as forças, e amar o próximo como a si mes­
mo, vale mais q11e todos os holornustos e todos os sacri­
fícios" (Me 12,33).

Daí a sua dor e indignação quando os "homens de Deus",


os "piedosos" afastaram-se dessa atitude fundamental e do co­
ração misericordioso de Javé.
Jesus anuncia, no tão fecundo diálogo com a samaritana,
a chegada do culto "em espírito e em verdade", no qual o
próprio Deus penetra e capacita a comunidade. Ele mesmo
manifesta-se como o "lugar" do culto, o âmbito no qual o povo
de Deus se encontrará com a face de Javé, com a salvação de
seu Deus.
Por fim, com sua atitude profética no Templo, manifesta
a iminente abolição desse último. Ele conver1e-se no verdadei-
5 Lc 10.21.

li
ro Templo, no Templo escatológico. O rompimento do véu do
Templo no momento da morte de Jesus é visto pela comunida­
de como o fim desse sic,tcma cultuai ultrapassado É justamente
esse mistério de morte e ressurreição o centro, o lugar do culto
definitivo.
O culto a Deus centra-se no crucificado que foi ressusci­
tado pelo braço poderoso de Javé. A comunidade do<; primeiros
discípulos é fascinada pela luz pascal. Nesse mistério, descobre
a manifestação definitiva da sah ação de Javé. É a revelação
plena de sua glória.
A comunidade vê em Cristo o novo Templo (Jo 2,19), e
mais que o Templo (Mt 12,5s); ele é o sumo e eterno sacerd9te
(Ilb 2, l 7;7,23-28); é o liturgista dos cristãos por excelência
(Hb 8,1s), o único mediador da aliança (Hb 8,6). Toda sua
existência é um mistério sacerdotal de expiação que culmina
na oferenda de sua morte, como sacrifício (llb 10,5s); ele pró­
prio é a oferenda (Ef 5,2), o Cordeiro de sacrifício que purifica
e santifica por meio de seu sangue (Jo 1,29.36; 1Pd 1,19; Ap
5,6.12; 13,8). Uma vez exaltado, o Senhor exercita seu sacerdó­
cio em favor dos seus; por isso, nele temos "acesso" diante de
Deus (Rm 5,1s) e por ele temos caminho livre e podemos
aproximarmo-nos confiantemente de Deus (Hb I O,19s).

Vemos, então, uma co11ce11tração cristológica 110 culto

Temos aqui uma percepção da originalidade cristã. Esse


cristocentrismo fará com que os discípulos tomem consciência
da diferença que os separa de seus irmãos judeus.
Eles descobrem no evento Cristo a realização do culto
definitivo, perfeito, que os profetas haviam anunciado para oc;
últimos tempos. É, precisamente, o tempo em que o Espírito
derramou-se sem medida, convertendo todo o povo num povo
santo e sacerdotal. E esse, uma vez que penetrado pelo mistério
pascal de Jesus Cristo, é um povo de sacerdotes. Eles oferecem
a Deus o ,erdadeiro culto.
12
É o culto "em espírito e em verdade"
que Jesus anunciara à samaritana.

É evidente ao leitor dos escritos neotestamentários o acen­


tuado anticultualisrno. Melhor dizendo, trata-se da expressão
da superação do culto veterotestamcntário. O Novo Testamen­
to marca uma distância com as instituições de Israel. É a com­
preensão da novidade original, a superação definitiva no culto
a Javé em Jesus Cristo.
Desse modo, os autores do Novo Testamento, à clara
exceção da carta aos Hebreus, evitam abordar o evento Cristo a
partir de chaves tecnicamente cultuais.
Isso é verdade num certo sentido, porque por outro lado,
nos escritos joaninas, há uma leitura litúrgica de Jesus Cristo.
Ele insere-se no quadro das festas judaicas como o verdadeiro
lugar do culto.
Nos escritos paulinos, há uma leitura cultuai da existên­
cia. O culto a Deus é a consagração numa vida pura. Por meio
dela, transformamo-nos em verdadeiras vítimas, unidos a Cris­
to em nosso viver, constituímos o verdadeiro sacrifício, na san­
tidade de vida rendemos o culto devido a Deus.
Assim, o sacrifício não é mais a vítima animal, mas sim
o próprio Cristo que se oferece num sacrifício espiritual. Tam­
bém os cristãos oferecem a Cristo o sacrifício de louvor. A
noção de sacrifício é urna noção ampla que vai incluir o martí­
rio, as orações pelo próximo e a oração de um coração puro.
Em seu "culto espiritual", o cristão oferece um "sacrifício in­
cruento" sobre um altar que é Cristo, mas que é também for­
mado por quantos estão unidos na oração c0mum.
O templo dos cristãos é o corpo ressuscitado de Cristo,
não feito pela mão dos homens, ele é o templo da nova Jerusa­
lém (Ap 21,22). É a santa morada de Deus no Espírito (Ef
2,21-22). Nesse corpo habita a plenitude da divindade (CI 2,9).
Porém, esse corpo não é só templo, mas também sacrifício.
Os cristãos, assentados na pedra angular e nos alicerces
da fé dos apóstolos, também formam o templo. Desse modo, os
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homens tornando-se espirituais chegam a ser um templo perfei­
to de Deus. De fato, a própria comu111dade é a "casa da oração
e do culto".

Vê-se, assim, que surge a nova teologia do culto.

Tudo o que foi dito sobre o culto espiritual não significa


que o cristianismo não detivesse um sistema "ritual" próprio.
Ao contrário, os ritos cristãos eram sinais que condensavam a
presença salvífica de Cristo, expressão perfeita e única do culto
"e!ipiritual".
Esse culto existencial precisa ser realizado mediante um
culto eclesial, ritual, numa liturgia eclesial. Da assembléia do
novo povo de Deus brotará a força para a vivência do culto
existencial.
Como as comunidades apostólicas viviam tais celebra­
ções cultuais?
Temos o testemunho das primeiras comunidades no li­
vro dos Atos e depois o das assembléias no mundo helênico
por conta dos escritos paulinos.
Há um texto paradigmático de Lucas nos Atos (2,42)
que nos apresenta o ideal de uma comunidade cristã ou, o que
é o mesmo, a idealização da comunidade.
Nesse retrato, ela é apresentada em quatro traços pecu­
liares: a perse1•era11ça 110 ensinamento dos apóstolos, na comu­
nidade (koi11onia), na fração do pão e nas orações.
Em primeiro lugar, fala-se de um perseverar, de um con­
tinuar ao longo do tempo, apesar das dificuldades que devem
ser vencidas. Implica uma comunidade posta à prm a, experi­
mentada.

1. Que é o e11si11a111ento dos apóstolos?

A comunidade é ensinada sobre Cristo por meio daque­


les que o testemunharam. Porém, supõe também uma leitura do
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Antigo Testamento à luz de seu cumprimento em Cnsto. A
importância da palavra de Deus é caracterbtica do povo de
Deus na antiga e na nova aliança. Mais ainda, veremos como a
palavra constitui, conforma a própria assembléia.
Sem dúvida, essa "celebração da palavra" não é criação
dessa comunidade de discípulos de Cristo. É a mesma celebra­
ção da palavra de Javé que vinham realizando na sinagoga. A
novidade é a concentração dessa palavra no mistério de Cristo,
descoberta à luz da Páscoa.

2. Que é essa comunhão ou comunidade?

Em primeiro lugar, isso pode ser entendido em dois sen­


tidos. É uma comunhão que forma uma comunidade. É a as­
sembléia dos que se fizeram iguais pela fé em Jesus Cristo. Por
ela, compartilham sua vida, seus bens e, o terceiro elemento, a
fração do pão.
Por outro lado, vemos que essa comunidade não é um
gueto, mas tem abertura para uma comunidade mais ampla: a
comunidade dos necessitados, dos carentes. Uma da peculiari­
dades que vão marcar as comunidades cristãs será o serviço.

3. Há pouco mencionamos a 'Jraçlio do pão"_ Tal denomina­


ção revela-se-nos estranha. Evidentemente não o era para os
leitores dos Atos.

Em todas as religiões, a comida atinge uma densidade


muito grande como comunhão com o divino.
Já nos referimos à importância, na vida de Israel, das
ceias festivas, cm especial a que dá início ao shahl>at, na sexta­
feira à tarde. Nelas, o alimento e a bebida têm um fo1te conteú­
do ritualístico. A essência da celebração da ceia consiste na
dupla bênção do cálice (no começo e no fim da ceia) e do pão.
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Essas bênçãos (berakot) são o eixo de nossa celebração euca­
rística.6
A bênção do pão dá-se no momento de parti-lo. Para quê
parti-lo? O pai de família, que tem a seu encargo a função
sacerdotal, parte o pão para distribuí-lo a todos os celebrantes.
A berakah, já dissemos, é uma bela bênção, súplica e ação de
graças a Javé por sua intervenção salvífica em favor de Israel.
Os discípulos de Jesus realizam esse ritual também numa
ceia. A novidade reside em que a berakah é dirigida a Javé
como bênção-ação de graças pela salvação realizada no misté­
rio pascal de Cristo. Ao mesmo tempo, é um memorial dessa
Páscoa, ritualizada por Jesus em sua última ceia. É o cumpri­
mento da ordem: "Fazei isto em memória de mim" (zikkaro11,
em hebraico; a11á11111esis em grego), é a proclamação da morte
do Senhor na espera de sua vinda.
Essa celebração receberá nomes diferentes: nos escritos
de Paulo será a "ceia do Senhor", nos de Lucas a "fração do
pão" e, por fim, também será chamada "eucaristia", isto é, ação
de graças. Enquanto as duas primeiras denominações ressaltam
o momento ritual (o comer e o partir); "eucaristia" privilegia o
momento verbal de ação de graças, situando-se em clara conti­
nuidade com a berakah judaica.
Dissemos que as comunidades cristãs passam a celebrar
essa fração no meio de uma refeição. Rapidamente a ritualiza­
ção rompe com a ordem judaica. De fato, o estilo simétrico das
narrações sobre a instituição que nos traz o Novo Testamento
mostra que essas bênçãos foram reunidas e colocadas ao final
do ato de comer. Nesse sentido, há duas tradições. Por um
lado, Paulo e Lucas em seus relatos oferecem-nos a tradição
palestina, respeitando a ordem judaica. A primeira bênção so­
bre o cálice, a ceia durante a qual se abençoa o pão e, ao final,
a bênção solene do cálice.
Marcos e Mateus são testemunhas da formulação
helenística. Essa, apresenta uma fórmula mais evoluída em re-
6. Na segunda parte, referimo-nos aos ritos, apresentando o ritual judaico
da ceia, com as bênçãos dos cálices e do pão.

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lação à primeira. Nela, ambas as bênçãos estão em paralelo e
com a mencionada simetria. Há uma bênção para o pão e outra
para o cálice (desapareceu uma das bênçãos sobre o cálice).
Os primeiros discípulos assistem, em Jerusalém, àc; cele­
brações do Templo e celebram também a "ceia do Senhor".
Com o tempo, passam a compreender a novidade absoluta, a
ruptura que significa o evento Cristo e abandonarão o Templo.
A ceia judaica enquadra-se na casa de família, não no
Templo. Por isso, os cristãos se reunirão em casas de alguns
deles para celebrar a ceia. Nesse ponto reside uma das origina­
lidades dos cristãos que chamará fortemente a atenção dos pa­
gãos. Os discípulos desse Cristo não possuem Templo nem
altar. Por isso, durante a perseguição, a acusação mais freqüen­
te será a de "ateus".
O espaço da celebração aparece como casa, onde se reú­
ne a assembléia.
Qual é o tempo? Ou, se quiserem, que relação esse culto
incipiente mantém com o tempo?
Tampouco nesse ponto, como em outros, há uma criação
cristã. Israel está marcado pelas manifestações de Javé na his­
tória, no tempo. Isso leva o povo de Deus a celebrar ao longo
do ano, culminando na Páscoa, e ao longo tia semana, concen­
trada no shabbat. Nesse ponto, está a raiz da santificação do
tempo na liturgia cristã.
Os discípulos, ao compreenderem a centralidade de Cris­
to na história da salvação, situam seu dia de celebração não
mais no shabbat, recordação do descanso de Javé na criação e
antecipação do descanso e paz escatológicos, mas sim no pri­
meiro dia da semana.
O primeiro dia é o dia da ressurreição, da aparição do
Senhor a seus discípulos. Outros o chamarão o oitavo dia, por­
que é a superação da antiga economia de salvação. É o "dia do
Senhor".

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3. A comunidade deve também perseverar nas orações

Em face do ensinamento dos apóstolos, da comunhão e


fração do pão, novidades cristãs, embora arraigadas no húmus
judaico, as orações são o elemento mais tradicional.
Para esses primeiros cristãos, o que significava perseve­
rar nas orações?
Os Atos parecem referir-se à oração judaica, que se des­
dobra em três momentos: a oração do meio-dia (hora sexta) e,
sobretudo, as orações vespertinas e a da manhã (hora terça).
Essas duas últimas são as horas do sacrifício solene no Tem­
plo, o sacrifício perpétuo (tamid).
Já vimos também como rapidamente os cristãos toma­
ram consciência da radical novidade que significa Jesus Cristo.
Isso os levará a compreender a superação do culto judaico e os
fará reinterpretá-lo totalmente.
Já no fim do século I temos o testemunho da Didaqué.
Por sua candura, é um dos documentos mais belos da Igreja
nascente. Esse documento, que parece ser uma instrução para
os catecúmenos da Igreja na Síria, contém a essência a respeito
da doutrina e da práxis cristãs. Nele, manda-se que a oração
seja feita três vezes ao dia, mas com o pai-nosso (Didaqué 8).
A Didaqué oferece-nos a seguinte prece de grande riqueza:

Quanto à Eucaristia, celebrai-a assim (9):

Primeiro, sobre o cálice:

Damos-te graças, Pai nosso,


pela santa videira de Davi, teu servo,
que nos deste a conhecer por meio de Jesus, teu servo.
Glória a ti através dos séculos!

Depois, sobre o pão partido:

Damos-te graças, Pai nosso,


pela vida e pela sabedoria

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que nos deste a conhecer por meio de Jesus, teu servo.
Glória a ti através dos séculos!
Assim como este pão, outrora disseminado sobre as
montanhas,
uma vez ajuntado, tomou-se uma só massa,
seja também reunida tua Igreja
dos confins da terra, em teu reino.
Pois a ti pertence a glória e o poder,
por Jesus Cristo, para sempre,

Que ninguém coma ou beba de tua eucaristia


Sem que seja batizado em nome do Senhor, pois a esse
respeito disse ele "Não deis aos cães o que é santo".
Depois de vos terdes saciado, dai graças assim ( 10):
Nós te damos graças, Pai Santo,
pelo teu santo nome
que reside em nossos corações,
e pelo conhecimento, pela fé e pela imortalidade
que nos deste a conhecer por meio de Jesus, teu servo.
Glória a ti através dos séculos!
Tu, Senhor onipotente,
que tudo criaste para honra de teu nome;
e deste aos homens,
para seu desfrute comida e bebida, para que te
dessem graça.
A nós porém, deste um alimento e uma bebida espirituais
e a vida eterna, por meio de teu servo.
Antes de tudo, damos-te graças porque és poderoso.
Glória a ti através dos séculos!
Lembra-te, Senhor, de tua Igreja, para livrá-la do mal
e tomá-la perfeita em teu amor.
Reunida dos quatro ventos, santificada,
no reino que lhe preparaste,
pois a ti pertence o poder e a glória, para sempre!

Venha a graça e passe este mundo!


Hosana ao Deus de Davi!
Se alguém é santo, que se aproxime;

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se alguém não é, con\erta-se!
Mara11mhâ. Amém.
Quanto aos profetas, deixai-os render graças o quanto
quiserem.7

3. A LITURGIA NA IGREJA DOS MÁRTIRES

Até meados do século II a Igreja nutriu-se de uma inten­


sa vida espiritual, foi consolidando-se, foi descobrindo a origi­
nalidade que a distanciava do judaísmo. São tempos em que a
Igreja, de algum modo, viveu das portas para dentro.
A partir da segunda metade do século II, a Igreja inicia
um período de forte expansão. Já consolidada, parte ao encon­
tro do mundo que a cerca, procurando impregná-lo do espírito
cristão. O cristianismo compreende a si próprio como algo
diferente de uma se11a.
Surgirão os apologistas, os cristãos que procurarão dar
razão à sua fé, expô-la perante os homens. Começa um notável
esforço de autocompreensão da Igreja e de sua mensagem.
Esse processo, somado à expansão que o acompanha, implica o
surgimento de novas estruturas. Sociologicamente, pode-se fa­
lar de um processo de institucionalização.
Ao mesmo tempo, o poder político atenta para esse fenô­
meno crescente e misterioso. Alguns considerarão que essa
força comporta um sério perigo para a vida do império. Isso
desencadeará ondas de perseguições que porão à prova o com­
promisso desses seguidores de Cristo.
Perante os tribunais, justificarão a sua fé, deverão teste­
munhar com a própria vida sua inserção no mistério de Cristo.
Serão os mártires ("testemunhas", em grego) que instituirão
em meio a essa cultura decadente um instigante sinal.

7 D1daq11é, 9-1 O trad port. de Cirilo F Gomes, OSB. in Anrnlo11w dos


Santos Podres, Ed Paulinas. S Paulo, 1979. p. 30. (N do T)

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Diante das mais diversas acusações, tão inverossímeis
quanto infundadas, os cristãos aprenderão que sua adesão ao
Crucificado impõe duras provas à sua existência.
Como já mencionamos, uma das imputações que mais
nos surpreendem é a de serem "ateus". Eram ateus aos olhos
dos pagãos porque não tinham templos nem sacrifícios, nem
\ ítimas, nem altares, nem sacerdotes. Numa época de grande
busca religiosa, num império atribulado por cultos orientais
ansiosos de salvação, os cristãos aparecem como aqueles que
não têm deuses, como ímpios. É, significativamente, a mesma
acusação que a Sócrates custou a cicuta.
Com isso, vemos a radical novidade que surge com o
cristianismo. Que tipo de culto exercem esses homens? Per­
guntam-se alarmados. Circulam as versões mais disparatadas.
Ademais, surpreende e alarma esse car2ter internacional,
universal dos seguidores de Cristo. Isso é uma novidade que
hoje nos é difícil dimensionar. O culto surge desligado de uma
raça, de um território.
Tudo isso leva ao martírio de numerosos cristãos que
respondem com a coerência de suas vidas à novidade da qual
são portadores. As Igrejas rapidamente começam a valorizar o
martírio como testemunho perfeito que o cristão pode dar. São
eles os que cumpriram o discipulado em Jesus Cristo. Em Roma,
o bispo Inácio de Antioquia, prisioneiro acorrentado a caminho
de seu martírio, escreve às diferentes comunidades para que
essas não o privem da possibi I idade de tornar-se verdadeiro
discípulo de Jesus Cristo, mediante o seu sangue:

Sou trigo de Deus, motdo pelos dentes das feras pare


tomar-me pêio puro de Cristo ... Então, quando o 111111uio
lllio puder mais ver meu corpo, serei 1•erdadeirame11te
disdp11/o de Jesus Cristo... e tomar-me-ei mediante esse
instrume11to, 11111 sacrifício a Deus. 8

A Igreja Jesenvolve toda uma espiritualidade do martí­


rio. Eles são cristãos perfeitos, que st.! uniram ü paixão do
8 Santo lmício de Antioquia.Cn,111110.1 Ro1111111os, IV, 1-2

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Senhor. Em pouco tempo, começa com grande vigor o culto
dos mártires. Vê-se neles o verdadeiro culto. Tanto é, que os
martírios são descritos em termos cultuais e eucarísticos.
As comunidades cristãs, desde o princípio, estiveram mar­
cadas pela espiritualidade do batismo. Recordemos sua impor­
tância nas cartas de Paulo. Pelo batismo incorporamo-nos ao
mistério pascal de Cristo, mas também, ao mesmo tempo, à
uma comunidade cultuai, a um povo sacerdotal. A Didaqué
falava-nos também de sua relevância na vida das assembléias
cristãs.
Nessa época de maior organização e institucionalização,
adquire vigor uma das instituições mais fecundas da Igreja
primitiva: o catecumenato.
Além da crescente expansão da Igreja, a ação evangeli­
zadora, o empenho em formar verdadeiros cristãos e a ameaça
das primeiras heresias são as causas do catecumenato.
Esse, catecumenato ao qual as comunidades dedicaram
um desmedido esforço, implica um prolongado processo de
provação dos candidatos. O processo era balizado por celebra­
ções nas quais esses iam sendo introduzidos na vida da comu­
nidade. Essa inserção culminava, para aqueles julgados dignos,
nos sacramentos da iniciação cristã.
Esse processo abria-se com o apadrinhamento do candi­
dato. Um membro conhecido da comunidade devia apresentá­
lo, garantindo junto a essa a seriedade de sua motivação.
O fato de ser aceito no estado catecurnenal implicava
incompatibilidade com certas profissões ligadas ao culto pa­
gão, corno o serviço militar ou a administração do império. Ser
cristão não se mostrava fácil, tampouco, querer sê-lo.
Durante essa longa preparação, os candidatos iam sendo
instruídos doutrinalmente, sobretudo no conhecimento das Es­
crituras.
Depois de urna longa provação de aproximadamente três
anos, entravam na preparação imediata à iniciação. Durante a
quaresma e, em especial, na última semana, os esforços são
22
redobrados. Por fim, chega a noite santa em que serão feitos
plenamente cristãos.
Hipólito, num testemunho dessa época, informa-nos so­
bre esses mistérios de iniciação:

No momento do como do galo, se re:ará primeiro sobre


a água... Serão despidas e batizad<IS pri111eiro as crian­
ças. Todos aqueles que possam falar por si falarão. Quan­
to aos que não pode111 Ja:ê-lo. falarão seus pais 011 al­
g11é111 da fa111ília. Depois, serão batizados os ho111ens e,
por f,111, as 111111/reres... No 1110111e1110 deter111inado para o
batismo, o bispo dará graças sobre os óleos... E o pres­
bítero, tomando cada 11111 dos q11e vão receber o batismo,
orde11arâ a que diga: Renuncio a ti, Sata11âs, a todo o
teu aparato pompa e a todas as tuas obras. Depois que
rnda 11111 ti1·er re1111nciado, (o presbítero) unge-o com
óleo de exorcismo dizendo: Que todo espírito 111aligno
afaste-se de ti. Dessa mwzeira, o entregará despido ao
bispo 011 presbítero que se encontra próximo da ág11a
para batizar. Assim, 11m diácono descerá com ele. Qumz­
do o que é batizado tiver descido até à .igua, aquele que
batiza lhe dirá, i111po11do a mão sobre ele: Crês em De11s
Pai todo-poderoso? E o que é batizado dirá por sua vez:
Creio. E emão (aquele q11e batiza), tendo a mão posta
sobre sua cabeça, o batizará (sub111ergirá) 11111a vez. E
depois dirá: Crês e111 Cristo Jesus, Filho de Deus, que
pelo Espírito Santo nasce11 da Virgem Maria, foi crucifi­
cado sob Pôncio Pilatos, morre11 e ressuscito11 ao tercei­
ro dia dentre os mortos, subi11 aos cé11s e está sentado à
direita do Pai, donde há de vir a julgar os vivos e os
mortos? E q11a11do tiver dito: Creio, será batizado (sub­
mergido) pela segunda l'ez. Nova111e11te, (o q11e batiza)
dirâ: Crês 110 Espírito Santo, na Santa Igreja? A que o
batizado dirá: Creio. e assi111 será batizado (rnbmergi­
do) pela terceira ve:. Depois, qua11do tiver subido, será
ungido pelo presbítero com o santo óleo em nome de

23
Jesus Cristo. E assim, depois de cada 11m ter-se secado,
1·0/tará a 1 estir-se e em seguida rodos pertencerão à
lgreja... 9

Depois, Hipólito menciona uma �ene de ritos pós­


batismais realizados pelo hispo: imposição das mãos com invo­
cação, unção com óleo de ação de graças, sinal da cruz na testa
e ósculo de paz. Depois, juntam-se à comunidade dos fiéis e
participam com eles da eucaristia.
A celebração eucarística nos primeiros séculos conhece
um triplo movimento evolutivo: o primeiro estágio correspon­
de ao próprio Cristo, que celebra a ceia durante um banquete
enquadrado entre dois ritos. preexistentes, porém transforma­
dos por ele mesmo, o rito do pão e do cálice de vinho. A idade
apostólica efetu;i muito rapidamente um remate, reunindo esses
dois ritos e situando-os ao final do banquete. Mais tardt.:, ocor­
re uma mudança essencial (talvez a maior de toda a história
litúrgica): o abandono do banquete como suporte da celebmção.
Essa mudança produziu por sua vez diversas modifica­
ções nas formas ce!ebrativas: desaparecem as mesas, à exceção
das do presidente da assembléia; caem em desuso os termos
neotestamentários "fração do pão" e "ceia do Senhor"; a ora­
ção de ação de graças, já unificada, enriquece-se progressiva­
mente e alcança uma importância excepcional, passando a dar
nome à celebração em seu conjunto, assim corno à oferenda
feita: desde o princípio do século II, com efeito, a designação
mais geralmente empregada é "eucaristia". 10
Por outro lado, os cristãos se reunirão no dia do Senhor
para celebrar o Senhor. São Justino mostra-nos a estrutura des­
sa celebração eucarística, que em meados do século II já apre­
senta a mesma forma das nossas celebrnções.
9. Hipólito, Tradição Apostólica, 21.
1 O. Xabier Basurko: La Vida Litúrgico-Sacramental de la lglesia em su
Evolución Histórica. em D. Borobio (org.). La Celebrac1ó11 em la lglesw.
Tomo 1, Lit11rg1a y sacra111e111olog1afunda111e111al. 2• cd., Sígueme, Salamanca,
1987,p. 77.

24
No dia que se chama do sol, celebra-se 111110 re1111iâo dos
que mora111 nas cidades 011 nos campos e ali são 1/{ios,
fllllfO quanto o tempo permill', aJ Memônas dos Apósto­
los ou os escritos cios profews.
Assim que o leiror ter111i11a, o presidente fa: 11111a exorta­
çüo e co111·ula para 1111iwr111os tms bdos e.\emplos.
Erg11e1110-11os, entiío, e elel'{lmos em co11j1111to nossas pre­
ces, após as quais se oferecem piío, 1•i11ho e âg11a, como
jâ dissemos. O presidente ta111hém, à medida de sua ca­
pacidade, fa: elevar a Deus rnas preces e ações de gra­
ças, ao que todo o povo responde "amém". Segue-se a
distribuição, dos alime11tos co11sagrados pela ação de
graças, e seu envio aos ause11tes, por 111eio dos diáconos.
Os que posrnem bens, e assim o querem, dão o que
melhor lhes apra:, conforme sua liin! deten11i11açüo, sen­
do" coll'tCI c:ntreg11e ao pre.1ide111e, que: assim a11rilia os
ó,fcios e 1·11Í1'(IS, os enfemws, os polnes, os enc:ltrcc:ra­
dos, os forasteiros, co11stitui11do-se, 111111,a palavra, o pro­
vedor de quantos se llcham em necessidade. 11

Nessa liturgia dominical encontramos a seguinte estrutu­


ra (fundamentalmente igual à nossa celebração hoje):
Começa com a dupla liturgia da palavra: a proclamação
dos Evangelhos (Memórias dos Apóstolos) e dos Profetas (O
culto judaico e a liturgia sinagoga!, como vimos, constava de
duas leituras da Lei e dos Profetas, privilegiando a primeira.
Veremos como a liturgia cristã, sem a descurar, destacará a dos
Profetas). Segue-se a homilia. Depois, aparece como momento
importante e fortemente comunitário a nossa oração dos fiéis.
Após a apresentação das oferendas, o presidente improvisa ("à
medida de sua capacidade") a oração eucarística à qual os fiéis
dão seu assentimento.
Na segunda parte, fica patente a profunda conexão entre
esse banquete de (ágape) e a caridade para com os necessita­
dos. Da celebração do mistério pascal de Jesus Cristo brota a
força caritativa da assembléia.
11 Justino. Apologw. 67
25
Por outro lado, ,emos agora estabelecido o primeiro dia
da semana, o "dia do Senhor", como o dia da assembléia, o dia
da Igreja.
Justino refere-se ligeiramente à eucaristia, mas l lipólito,
na citada Tradição Apostólica, registra o próprio texto dessa
oraçiio eucarística:

- O Senhor esteja convosco.


- E com teu espírito.
- Corações ao alto!
- Já os temos no Senhor.
- Demos graças ao Senhor.
- É digno e justo.
Graças te damos, ó Deus, por meio de teu Filho querido,
Jesus Cristo, que nos últimos tempos nos em iaste, corno
Salvador e Redentor, mensageiro da tua vontade. Ele é
teu Verbo inseparável, por quem fizeste todas as coisas e
que, segundo teu agrado, enviaste do céu ao seio de uma
Virgem; onde, ao ser encerrado, tomou um corpo para
revelar-se CO'llO teu Filho, nascido do Espírito Santo e
da Virgem.
Ele, cumprindo a tua vontade e arrebanhando para ti um
povo santo; ergueu as mãos enquanto sofria, para salvar
do sofrimento os que confiaram em ti.
Ele, entregando-se voluntariamente à paixão a fim de
destruir a morte, quebrar as cadeias do demônio, esma­
gar os poderes do mal, iluminar os Justos, estabelecer a
Lei e dar a conhecer a Ressurreição, tomou o pão e deu
graças a ti, dizendo: Tomai, comei, isto é o meu Corpo
que por vós será imolado.
Tomou, do mesmo modo, o cálice, dizendo: isto é meu
Sangue, que por vós será derramado. Quando fizerdes
isto, fá-lo-eis em minha memóna.
Por isso, lembrando-nos de sua morte e ressurreição, ofe­
recemos-te este pão e este cálice, dando-te graças porque
nos consideraste dignos de estar aqui, diante de ti e te
servir.
26
E te suplicamos que envies o teu Espírito Santo à obla­
ção da Santa Igreja, congregando-a na unidade. Reúne
em um só rebanho todos os que recebemos a eucaristia
na plenitude do Espírito Santo para o fortalecimento da
nossa fé na Verdade, concede que te louvemos e te glori­
fiquemos, pelo teu Filho Jesus Cristo, por quem te é
dada a glória e a honra - ao Pai e ao Fil�o, com o
Espírito Santo na tua santa Igreja, agora e pelos séculos
dos séculos.
Amém.12

Essa oração eucarística é quase idêntica à nossa atual


oração II. Com efeito, a reforma conciliar, com o intento de
dotar a Igreja de novas orações eucarísticas, adotou essa, reto­
cando-a em algumas partes.
É uma oração muito breve, com marcado cristocentrismo.
Sua estrutura interna contém os seguintes elementos: um
diálogo inicial entre o bispo e a assembléia; uma ação de gra­
ças imediatamente centrada em Jesus Cristo, a quem se evoca
na encarnação, morte e ressurreição; não há sanctus e a ação de
graças desemboca diretamente na narrativa da instituição euca­
rística; segue-se a anamnese sacrificial, recordando apenas a
morte e a ressurreição; em seguida, a epiclese de comunhão
conclui com uma doxologia trinitária e o amém do povo.
Não se trata de uma fórmula fixa, mas sim de uma estru­
tura básica.
Na metade do século II, como já mencionamos, a insti­
tuição do domingo já está solidamente fundamentada. O nome
mais comum é o de "dia do Senhor". A carta de Barnabé
(XV, 9) chama-o "o oitavo dia".
Queremos, agora, nos referir à celebração da penitência
na Igreja antiga. Ela possui um lugar fundamental na espiritua­
lidade dessa época. Infelizmente, a partir do início da Idade
Média, a Igreja esquecerá a dimensão eclesial na celebração da
penitência.
12. Hipólito, Tradição Apostólica, 4.

27
O pecado não é só ruptura com Deus, mas também com
a comunidade de Deus. Pode-se inclusive dizer que é ruptura
com Deus porque é antes ruptura com a assembléia. Pelo peca­
do, fica-se excluído da comunidade. Por isso a reconciliação
com Deus é mediada pela reconciliação com a Igreja, com a
assembléia dos redimidos.
Essa teologia expressa-se muito claramente na liturgia.
Pela manifestação pública de sua situação de pecado (em que
se proclama especificamente perante a assembléia quais foram
seus pecados), é dolorosamente excluído da comunidade, da
qual ele próprio se separa pelo pecado. Os pecadores são ex­
cluídos da plenitude da vida eclesial. Nas celebrações, só podi­
am participar da liturgia da palavra.
A comunidade acompanhava todo o processo penitencial
dos pecadores, de modo especial rezando por eles, para que
não fraquejassem no duro caminho da conversão. E, chegado o
momento, eram publicamente reconciliados e readmitidos na
comunidade, perante o júbilo desta.

4. 3 LITURGIA NA IGREJA DO Il\IPÉRIO (313-590)

A Igreja experimenta uma grande mudança, que trans­


forrr.ará sua existência no que ela tem de mais profundo. O
império, com Constantino, muda sua atitude de perseguição até
adotar o cristianismo como religião oficial.
Para a Igreja, isso significa um esforço de adaptação a
uma situação nova, porém não menos perigosa, como rapida­
mente se verá.
A Igreja enfrenta um novo fenômeno: as conversões em
massa, além dos benefícios e privilégios recebidos do Estado.
Alguns, como Eusébio de Cesaréia, exultam de júbilo por essa
nova situação.
Os problemas, no entanto, não desaparecem, ao contrá­
rio, surgem outros. O mais sério deles, talvez, seja a baixa
qualidade dos candidatos. Ser cristão não é mais um estigma
28
social, mas um benefício e, mais ainda, algumas funções são
reser\'a<las somente àqueles que o fossem.
Isso desencadeia o surpreendente fenômeno do mona­
quismo. O deserto do Egito e outros pontos do imperio são, aos
poucos, povoados por esses cristãos que buscam numa vida
ascética o substituto do antigo martírio, diante da fraqueza que
invade muitos cristãos. Anseiam por atingir a perfeição, por con­
verter-se, como os mártires, em perfeitos discípulos do Senhor.
Esse fenômeno do monaquismo é bastante importante
para a história da liturgia, uma vez que, na espiritualidade mo­
nástica, a celebração do Senhor ocupa um lugar central. Duran­
te séculos, os monges destacaram-se por sua especial dedica­
ção à liturgia.
Diante da nova situação da Igreja no Império, é evidente
que a sinceridade das conversões diminuiu. Longe ficara a Igreja
dos mártires, que renunciavam até à própria vida ao professas­
sem o nome de Jesus Cristo. Somado a isso, o crescimento do
número de batismo de crianças põe em crise a tão fecunda
instituição do catecumenato, que assegurara à Igreja cristãos
comprovados.
Outro problema concomitante é o da penitência. O siste­
ma mostrava-se muito severo. Tratava-se de uma penitência
-pública, concedida somente uma vez na vida. Havia, inclusive,
pecados que não eram perdoados, havia outros que exigiam
uma penitência por toda a vida ou por longos períodos. Isso
significava, antes de tudo, ficar excluído da comunidade e en­
trar para a ordem dos penitentes.
Num sistema em que o poder político está unido e quase
se identifica com o religioso, isso é bastante perigoso. Nos
regimes teocráticos, o herege é um inimigo. Bem o sabe Salman
Rushdie, em nossos dias.
Num sistema de cristandade como o do império romano,
vigoram proibições e acusações graves sobre os que fazem
parte dessa comunidade penitencial.
Isso leva muitos a postergar o batismo até momentos
antes da morte.
10
E, já que mencionamos a heresia, digamos, que essa é
uma época de grandes co11tro11érstas teológicas entre as heresi­
as e a ortodoxia, que impõe sua doutrina nos concílios ecumê­
nicos. Nicéia (325) professará a fé da Igreja na divindade de
Cristo, contra o arianismo. Constantinopla (381) ai 1r111ará o
Espírito Santo. Nesses concílios, a Igreja define sua doutrina
trinitária.
Em Éfeso ( 431) e Calcedônia (451 ), os concílios se con­
centrarão no problema cristológico: uma única pessoa (Éfeso),
contra Nestório, e duas naturezas (Calcedônia), contra Êutiques
e o monofísismo.
Essas controvérsias não são puramente teológicas, nunca
o foram. Nelas inserem-se motivos culturais, políticos e até
econômicos. Assim, a controvérsia protestante implicava muito
mais do que uma determinada visão teológica. Ninguém pro­
põe uma teologia no ar, mas sim a partir de uma situação
concreta. A situação caracteriza de algum modo a compreen­
são teológica. E isso não é novo, o mesmo ocorria já em Israel.
Porém, como a liturgia é celebração da fé, as controvér­
sias têm uma forte i11jluê11cia 11a liturgia. À guisa de exemplo,
temos a introdução da doxologia: Glória ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo, como uma afinnação da consubstancialidade
trinitária, da divindade de Cristo e do Espírito, perante a here­
sia ariana. Ou as orações dirigidas a Cristo, e não ao Pai, na
liturgia hispânica, pelo mesmo motivo. Isso atinge inclusive a
arte, os pamocrator orientais e do românico espanhol nada
fazem senão manifestar o mesmo que a liturgia. Modelarão sua
fé na divindade de Jesus Cristo.
Nossa época é também testemunha da fixação dos textos
litúrgicos. Vimos como Justino testemunhava que o centro da
celebração, a oração eucarística, ficava liberada à improvisa­
ção, à "capacidade" do presidente.
Isso já não condiz com a nova situação da Igreja. Uma
Igreja expandida pelo mundo, ameaçada por heresias, necessi­
tada de expor sua doutrina e não podendo permitir que sua fé
fique à mercê da "inspiração". Desse modo, as diferentes Igre-
30
jas começam a fixar por escrito suas formas de celebrar, seus
te>..tos 01 ,cionais. Vivemos uns dos momentos de maior criati­
vidade na história da liturgia.
Porém, como dissemos anteriormente, toda teologia é
uma teologia situada, assim como a celebração, porque se ceie­
. bra o que se crê e crê-se naquilo que se celebra (/ex ormuli /ex
credendi).
As diferentes Igrejas distinguem-se pela ênfase que dão
à aproximação ao mistério teológico.
Assim, por exemplo, a Igreja de Alexandria situa-se numa
cultura de tradição grega neoplatônica. Ela acentuará a divin­
dade de Cristo e fará uma leitura em chave alegórica das Escri­
turas, como já o tinham feito alexandrinos, como o judeu Fílon
e os cristãos Clemente e Orígenes.
A Igreja de Antioquia, na Síria, ao contrá, io, vive uma
cultura essencialmente semita, com forte sentido do concreto e
corporal. Isso em teologia significará, diante do espiritualismo
helênico da Igreja de Alexandria, uma acentuação na humani­
dade do Senhor e na interpretação literal da Escritura, diante
do alegorismo alexandrino.
Assim, a maneira de enfrentar a oração e a celebração
varia dentro do espectro do cristianismo. Essa é a riqueza da
universalidade da Igreja, de sua catolicidade.
Desse modo, surgem as chamadas famílias litúrgica�.
Teremos como diferentes grupos litúrgicos: fundamentalmente
o grupo alexandrino, o antioqueno, o bizantino (influenciado
pelo anterior), o jerosolimitano e o romano.
Cada um irá desenvolvendo um enfoque sobre o mistério
litúrgico com matizes diferentes, impregnando a liturgia do
"ethos" próprio de sua cultura. Assim, enquanto os orientais
caracterizam-se por um estilo esplendoroso, poético e muito
sensível, a liturgia romana, ao contrário, destaca-se por sua
sobriedade, pela densidade de suas formulações, pela escassez
de espaço que concede aos sentidos, e pelo forte traço sacrificial
presente, por exemplo, de modo quase reducionista na oração
eucarística romana.
31
Ao mesmo tempo dessa fixação, atribuída muitas vezes
a Padres da importância de um Basílio ou de um Crisóstomo,
começará também a influência mútua entre os diferentes gru­
pos litúrgicos. Isso chega a tal ponto, que se torna difícil en­
contrar o estado puro de uma família litúrgica.
Notável, à guisa de exemplo, é a iníluênci:: que exerce­
ram sobre as outras liturgias orientais e ocidentais, a liturgia e
os costumes da Igreja de Jerusalém, de modo espec,al na liturgia
da semana santa � do tríduo pascal.
Com a transferência da capital do império para
Constantinopla, o processo de diferenciação entre o cristianis­
mo oriental e o ocidental acelera-se. Com o tempo, chega a
constituir dois tipos culturamente díspares. O oriental mais con­
templativo, aberto a sutilezas e aos sentimentos, e o ocidental,
pragmático e concreto. Essas diferenças incrementarão de modo
crescente as dificuldades de compreensão em todos os níveis:
organizacional, teológico, espiritual etc. Os diferentes enfo­
ques culturais que séculos mais tarde levarão ao cisma, não
deixam de manifestar-se na atitude litúrgica.
Arquitetonicamente, surgem os primeiros templos cris­
tãos. Anteriormente, a assémbléia reunia-se e celebrava nas
casas. Agora, devido à mudança radical da situação da Igreja
no mundo, as exigências são outras.
O número de cristãos aumenta sensivelmente. Somado a
isso, o caráter oficial do culto e a significação do triunfo do
cristianismo levam à necessidade de uma nova moldagem no
espaço arquitetônico.
Surge a basílica como templo cristão, distinto tanto dos
templos pagãos quanto do próprio Templo judaic·J em seu as­
pecto físico. Um espaço público no império, comumente ligado
·à aplicação da justiça. Com uma grande nave que culmina
numa abside, o magistrado senta-se diante de uma mesa, rodeado
de seus conselheiros, sentados na abside, e os cidac ãos na nave.
No que tange a arquitetura, ela adapta-se bem ao tipo de
celebração de então. O bispo diante da mesa da ceia, rodeado
de seu presbitério na abside, e pelo povo na nave.
32
Os altares assemelham-se aos pagãos, convertendo-se
cada vez mais em altares e menos em mesa, como reivindica o
culto espiritual. No século II, Minúcia Félix escreve: "Não
temos altar". Os cristãos não ofereciam vítimas animais, se
não a si próprios num sacrifício incruento e espiritual a Deus.
. Reuniam-se à volta de uma mesa e assim participavam da víti­
. ma espiritual, representada pelo corpo e sangue do Senhor no
memorial de sua morte.
Ao mesmo tempo, por essa nova e perigos:t mentalidade
sacralizadora, os fiéis (agora convertidos em massa, devido às
facilidades que o império outorga à Igreja) são paulatinamente
afastados do âmbito do sagrado, do presbitério e do altar.
Juntamente com a basílica, o fenômeno do culto aos
mártires se faz sentir na periferia das cidades. Nos lugares de
martírio surgem santuários onde os fiéis dedicam um culto
muito piedoso aos discípulos do Senhor.
A Igreja instalara-se no tempo com a festa da Páscoa,
semanal (o dia do Senhor) e anual. A Páscoa, eixo do tempo
litúrgico, começa a desenvolver-se no tríduo pascal, no tempo
pascal e sua preparação, a quaresma.
Também nessa época emerge um outro pólo do tempo
litúrgico, embora subordinado à Páscoa. O Natal-Epifania cele­
bra a manisfestação divina na humanidade e no mundo. A
partir desse pólo, desenvolve sua preparação, seu advento. A
exemplo dessa, surgem outras festas cristãs que procuram subs­
tituir arraigadas festividades pagãs. Assim, instituem-se os te­
mas essenciais do tempo litúrgico.
Por outro lado, a proximidade da Igreja com o poder
político não deixa de influir nos costumes litúrgicos. O cerimo­
nial da corte se fará sentir na liturgia do bispo de Roma, assim
como em outras Igrejas. Numerosos ritos, gestos e vestimentas
somente podem ser compreendidos à luz dessa influência. As­
sim, por exemplo, os bispos, dotados de dignidade senatorial,
são precedidos, como os senadores, por uma procissão de seis
candelabros. Essa é a origem de nossas velas no altar, que até
antes do Concílio Vaticano II eram seis.
33
5. DE GREGÓRIO f\lAGNO A GREGÓRIO VII

Nossa época começa com a queda e desmembramento


do império. Nol'a111e11te muda a sir11açiio para a Igreja. Um
novo esforço é necessário para corresponder à sua missão num
mundo totalmente novo.
No âmbito político-social, é a emergência, depois das
invasões bárbaras, de um sistema novo, o Feudalismo. Essa
nova organização centra-se no campo. Eclesiastic.amente, isso
encontra eco nos mosteiros, verdadeiros centros religiosos des­
sa primeira etapa da Idade Média, que caracterizan a espiritua­
lidade de toda a época. De Bento a Bernardo, o medievo é a
expressão da visão monástica do mundo.
Como já dissemos anteriormente, há uma mútua impli­
cação e condicionamento dos fatores político, social, econômi­
co, artístico, religioso e espiritual. Isso se manifestará no verti­
calismo e transcendentalismo fortemente caracterizado em to­
dos os espaços da vida dessa época. Evidentemente, tampouco
a liturgia poderá deixar de moldar-se a essa cultura dominante.
Esse período está marcado pelas figuras dos papas refor­
madores, que criam uma reviravolta em suas épocas.
São Gregório Magno enfrenta na própria carne os novos
tempos. Durante seu pontificado, tem de haver-se com os bár­
baros que atacam Roma. Seu prestígio leva-o a organizar a
defesa e o funcionamento da cidade.
No campo litúrgico, o papa Gregório promove uma re­
forma motivada por uma finalidade claramente pastoral. Busca
a simplicidade dos ritos, com uma linguagem direta, acessível
ao povo e simples (Proposta bastante semelhante, à reforma
litúrgica de nosso século).
Muitas outras Igrejas apropriam-se da obra de Gregório.
No Ocidente, fortalece-se cada vez mais o costL me de olhar
Roma como garantia da ortodoxia.
É preciso ressaltar que no Ocidente, juntainente com a
romana, situam-se importantes liturgias, como a ambrosiana
34
(centrada em Milão), a galicana (na França) e a hispânica,
\ isigótica ou moçárabe (na Espanha).
Os séculos V-VIII constituem a época clássica da litur­
gia romana. Posteriormente, recebe influências franco­
germânicas.
O gênio específico da liturgia romana clássica caracte­
. riza-se por:

1. Como elementos formais: sua precisão, sobriedade,


brevidade e suas escassas concessões aos sentimentos; sua dis­
posição geral transparente e lúcida; a grandeza contida de seu
estilo literário.
2. Como elementos teológicos: a oração litúrgica romana
orienta-se sempre para o Pai, por Cristo, no Espírito Santo; em
contraposição às liturgias orientais, galicanas ou visigóticas,
onde freqüentemente fala-se diretamente ao Senhor Jesus; esse
modo de oração não existe na liturgia romana clássica; não há
manifestações externas de veneração ou adoração aos elemen­
tos sagrados, nem tentativas de explicar com argumentos teoló­
gicos ou especulativos o fato da presença real do corpo e san­
gue de Cristo; a celebração eucarística aparece plenamente li­
gada à comunidade local ou como expressão da mesma; as
comunidades dos tit11li recebem o fermentum da missa episco­
pal, como signo de intercomunhão com aquela comunidade; o
memorial do Senhor celebra o mistério pascal de Cristo e tam­
bém de seus santos, através do ano litúrgico, num perfeito
equilíbrio teológico. Por fim, a comunidade local não esquece,
em sua celebração litúrgica, a reconciliação com a comunidade
mais ampla, a Igreja universal.13
Essa liturgia romana emigra para os países francos, no
princípio graças às iniciativas individuais dos peregrinos e mais
tarde graças ao apoio do poder político. Em 757, Pepino o
Breve decreta a adoção da liturgia romana em todo o império
franco. Porém, como essa não satisfaz plenamente o caráter
desse povo, gera-se um hibridismo na liturgia romana nos paí­
ses francos e uma situação de maior anarquia litúrgica.

13. B. Neunhauser. Storia dei/a liwrgia 011raverso le epocl,e culturali,


Roma. 1977. pp 55-70.
35
Por outro lado, há também nos séculos YII-YIII uma
iníluência oriental, em virtude da grande aíluênc1a de fug11nos
do oriente: a introdução do Ag,111s Dei (Cordeiro de Deus) na
missa, a adoração da cruz na sexta-feira santa e a aceitação das
festas marianas (Assunção, Nascimento, Purificação e Anun­
ciação).
A respeito da contribuição franco-germânica, podemos
destacar:

1. Como elementos formais: o calor afetivo, uma expres­


são mais forte do sentimento lírico em comparação com a so­
briedade romana, a riqueza do vocabulário e do simbolismo,
assim como a intensidade da ação dramática.
2. Como elementos litúrgico-teológicos: a multiplicação
das orações privadas durante a celebração litúrgica; uma cons­
ciência muito profunda do pecado e da culpa (.1pologias); a
oração voltada para "Cristo, nosso Deus", deixando de lado
sua função de mediador entre Deus e os homens e a introdução
de orações dirigidas à Santíssima Trindade.
Juntamente com os livros oficiais, surge urna nova lite­
ratura de onde ressoa essa n9va sensibilidade: testemunhos dessa
criatividade são o hino Ve11i Creator ao Espírito Santo (do final
do século IX) e a seqüência Victimae paschali laudes, que se
canta na missa da manhã da Páscoa (século X).
A nova mentalidade tem também sua adequada expres­
são na arte; o que acontece na liturgia mista desse período,
reflete-se na arte da época carolíngia e no românico primitivo.
Produz-se uma combinação harmônica da herança romana an­
tiga (com sua simplicidade, equilíbrio e expressão estática) com
vigor dos novos povos jovens (mais vital, lírico e às vezes um
pouco anárquico).
Por isso, a arte românica consegue unir o estático ao
dinâmico, a linha horizontal à vertical; é um conflito criativo
que gera uma beleza específica, plena de tensão; porém, esse
novo vigor está ainda dominado pela grande tradição romana.
Outra característica é o dista11ciame1110 do culto que se
produz em relação à comu11idade cristü.
36
A celebração converte-se, a partir do século VII, num
misterioso espetáculo que o povo deve contemplar. Ritos in­
compreensíveis e extremamente complicados, inspirados 110
Antigo Testamento, numa língua que já não se entende, os fiéis
cada vez mais distanciados do altar e de um sacerdote que
progressivamente apropria-se da liturgia.
Isso se dará de tal modo que surgirão as chamadas mis­
sas privadas, centradas não na assembléia, mas na devoção e
espiritualidade do celebrante. A esse cabe tudo; leituras, cantos
e orações. Chegou-se a prescindir da assembléia e da razão de
ser. A liturgia converte-se num patrimônio exclusivo dos pro­
fissionais: os saccn.lotes.
Outro aspecto (]Ue se perde é, pelo que acabamos de ver,
o caníter comunitário da celebração.
Isso manifesta-se de modo particular na involução que
sofre a celebração do sacramento da penitência. Já nos referi­
mos à sua característica dimensão comunitária na antigüidade.
Na alta idade média, os monges irlandeses evangelizam
a Europa. Nessa tarefa, implantam a forma auricular (confessa­
se ao ouvido do sacerdote) e individual da penitência. Ade­
mais, essa adquirirá um caráter tarifado. Isto é, a tal pecado
corresponderá tal pena estipulada. Para isso, rapidamente sur­
gem os livros penitenciais que indicam a correspondência par­
ticular da pena a cada pecado.
Essa mudança produz uma enorme deterioração na cele­
bração. Em primeiro lugar, o culto penitencial passa a ser um
caminho totalmente individual, já não contará com o necessá­
rio auxílio da comunidade. Mostra-se muito difícil, com essa
prática, intuir a dimensão eclesiástica da celebração desse sa­
cramento.
Em segundo lugar, corre-se o risco de fazer desse encon­
tro salvífico com o Senhor que cura, um espaço de casuística,
onde o fundamental não é a proclamação das maravilhas que o
Senhor faz em seu perdão, mas sim uma confissão ou recitação
de pecados, aos quais está vinculada mecanicamente uma série
de penitências.
37
Essa é a origem de nosso atual sistema mais usual de
penitência, ainda que a reforma do Vaticano 11 enha querido
ressaltar a dimensão comunitária da celebração da reconciliação.
Trata-se de uma notável involução litúrgica. O magnífi­
co espiritualismo cristão da Igreja primitiva, degenerou-se nes­
se ritualismo, que os próprios profetas tinham denunciado.
Isso que declaramos dá-se em progressivo desdobramen­
to durante toda a Idade Média.

6. DE GREGÓRIO Vil A TRENTO

Entramos na chamada baixa Idade Média, ou seja, sua


segunda parte.
A partir do século XII, e atingindo seu apogeu no século
XIrl, dá-se uma mudança no âmago da Idade Média. Vai-se
passar de uma cultura rural para uma cultura de burgos e cida­
des. Isso marca uma reviravolta na concêpção d·) mundo. Em
contraponto à alta Idade Média, com o verticalis.no que carac­
terizava a estrutura social.do Feudalismo, e que se estende a
todas as manifestações culturais, a baixa Idade Média avança
para uma diferente valoração do mundo.
Embora o mundo continue tendo o sentido de ponto de
referência, de sinal da realidade celeste, ao mesmo tempo cres­
ce a consciência da valoração de sua imanência, de sua realida­
de própria. Há um princípio de valoração do mundo em si que
culminará no Renascimento.
Em face dos séculos anteriores, dominados por uma cul­
tura predominantemente monástica, o saber transfere-se para
uma instituição citadina: a universidade. Juntamente com a ân­
sia do saber teológico, começa a destacar-se a autonomia dos
outros saberes.
Essa cultura de época manifesta-se no âmbito religioso
com o surgimento das ordens mendicantes, com uma concep­
ção totalmente diferente da monástica. Há um forte desejo de
regresso à simplicidade da vida evangélica e apostólica.
38
O fenômeno do franciscanismo implica uma nova visão
do mundo. Da Igreja monástica anterior, voltamo-nos para uma
Igreja que sabe pregar em todos os espaços da vida a mensa­
gem de Cristo, com o testemunho de uma vida simples e pobre.
As respostas do povo à pregação é magnífica. Manifesta-se um
ânseio de escutar as maravilhas da palavra de Deus. Evidente­
mente, isso conduz a uma nova autoconcepção da Igreja.
Os dominicanos, dedicados também à pregação e repre­
sentados por São Tomás, procuram estabelecer uma síntese
teológica adaptada à época. Tomás recorrerá à filosofia pagã e
o valorizará: o grego Aristóteles, que chega por intermédio de
seus comentadores árabes. Isso implica uma tomada de posi­
ção, assinala a abertura da Igreja à cultura contemporânea.
Ao mesmo tempo, a partir do papa Gregório VII, um
monge, dá-se uma sincera busca de reforma da vida da Igreja.
Para tal, ele considera que é necessária uma crescente centrali­
zação da vida da Igreja. Esse fenômeno desenvolve-se cada
vez mais na Igreja.
Essa centralização manifesta-se também no domínio da
liturgia. Significa a adoção da liturgia romana e seus costumes
por toda a cristandade. Ocorre uma situação semelhante à do
século IX, quando a liturgia romana dissemina-se por todo o
ocidente. A diferença reside em que o autor dessa unificação
era então o poder civil, e agora é a autoridade eclesiástica.
Essa medida, infelizmente, leva à diminuição das outras
liturgias e, inclusive, a desaparecimento de algumas, como a
visigótica.
Nesse caminho centralizador, o franciscanismo desem­
penhou um importante papel. Adotou para si a liturgia papal e
propagou-a em todos os lugares por onde estendeu sua pregação.
Outro fator centralizante foi a invenção da imprensa. Só
ela pode permitir a identidade de formulários e textos litúrgicos.
Infelizmente, o multissecular processo de distanciamen­
to do povo dentro da celebração acentua-se, até chegar a posi­
ções realmente inacreditáveis.
39
A celebração torna-se cada vez mais um espetáculo in­
compreensível. A comunhão praticamente desaparece. Surge
então como substituição o culto ao Santíssimo Sacramento.
Isso leva à introdução, no século XII, do costume ée elevar as
espécies na consagração, para que os fiéis possam contemplá­
las. Esse passa a ser, psicologicamente, o momento central da
celebração. Para o culto dessas espécies, o momento prolonga­
se por meio de cantos, inclusive volta a repetir-se em outras
partes da celebração. Muitos outros gestos são utilizados para
caracterizar a solenidade desse momento.
A ceia do Senhor transformou-se na visão, de longe, das
espécies consagradas.
O culto ao Santíssimo Sacramento estende-se para fora
do quadro da celebração nas adorações. Nelas, com os cantos
em língua vernácula, a piedade dos fiéis, ansiosa por esse con­
tato individual, sensível ou íntimo com o sacramento, chega a
um paroxismo. Era lógico que assim acontecesse.
A celebmçiio e11carística, como os owros mos litúrgi­
cos, per111a11ece total111e11te estra11ha à religiosidade dos fiéis.
Ademais, o sacralismo crescente assume as formas de
um forte juridicismo, que se toncentrará no problen ,a da validez.
Grande relevância será dada ao exteriorismo e ·naterialismo
das fórmulas e gestos.
Por outro lado, acontecem aberrações na celebração da
eucaristia.
Os sacerdotes, para escaparem à proibição de celebrar
mais de uma vez ao dia, pela questão da espórtula, criam um
ridículo ardil. Surgem as missas duplicadas, triplicadas e qua­
druplicadas.

O que é isso?

Iniciava-se a missa até o ofertório, depois se começava


outra e outras. Faz-se um único ofertório, cânon e comunhão,
40
para depois retomar as orações e ritos pós-comunhão, tantas
vezes quanto se tivesse feito no início.
Outra elocubração era a chamada missa seca, que não é
realmente uma missa, porque não se consagra. Porém, o curio­
so era que a espórtula era cobrada.
Esses dois exemplos, além de nos fazerem rir, ou lamen­
tar, revelam até onde caíra a celebração da liturgia.
Todavia, há tentativas de retomar a um espiritualismo
cultuai, como a Igreja primitiva.
Tais tentativas, fracassadas, são fundamentalmente as ex­
plicações alegóricas da missa e, por outro lado, o devocionismo.
Dá-se uma confusão entre alegorismo e símbolo. O
alegorismo leva adiante um perigoso subjetivismo. À guisa de
exemplo, interpreta-se o altar como o túmulo de Cristo, os
diáconos como os anjos etc. Não há relação entre o significante
e o significado, como havia entre os Padres. É evidente o cará­
ter arbitrário e rebuscado dessas alegorias. Não há nenhuma
conexão entre a realidade e a alegoria. A conseqüência do
alegorismo foi, por um lado, o esvaziamento do sentido da
celebração. É preciso resgatar o substrato da intenção: compre­
ende-se que a vida espiritual da comunidade não pode nutrir-se
fora da celebração.
O devocionismo surge como uma busca, por parte do
povo fiel, de um alimento espiritual, quando as fontes sólidas
da espiritualidade como as Escrituras e a liturgia, estavam ve­
dadas ou eram incompreensíveis.
O culto devocional tem por objetivo os mistérios da hu­
manidade do Senhor, da Virgem e dos santos. A admiração
devotada ao Menino do presépio, a profunda compaixão pelo
Cristo sofredor, o terno amor por Maria dolorosa são os ele­
mentos que dentre o povo substituem a liturgia.
As conseqüências desse devocionismo são a fragmenta­
ção do mistério de Cristo em mistérios e devoções, um forte
sentimentalismo e, sobretudo, a perda da celebração comunitá-
41
ria, um marcado individualismo. lnfelizmente, o caminho "de­
vocional" fracassou, não conseguiu salvar a vida espiritual do
povo.
Embora a liturgia do medievo não fosse um momento de
contato interior com Deus e com o mistério de Cristo, também
é certo que o devocionismo não o foi melhor.
Percebemos uma nova atitude religiosa nesse período. É
a manifestação, em nosso âmbito, da cultura do gótico. Marca­
damente subjetivista, com ênfase na sensibilidade e concentra­
da no culto à humanidade do Senhor. A espiritualidade
objetivista do primeiro milênio, que ressalta a manifestação
gloriosa do Senhor, moldada nos pa111ocm1or, no hieratismo
dos ícones e nos "divinos mistérios", dá lugar no segundo mi­
lênio a uma destacada mudança.
É a humanidade desse Senhor que atrai .! devoção dos
cristãos. Talvez o Senhor glorioso, como a liturgia que o cele­
bra, ache-se muito distante da vida e espiritualidade dos fiéis
A unidade do mistério de Cristo começa a 1rag111entar-se
nos diversos mistérios da vida.
Nascimento e paixão são, portanto, os dois núcleos fun­
damentais da piedade medieval na humanidade de Cristo, que
tem, no início do século XIII, um representante privilegiado
em Francisco de Assis, que constrói o primeiro "presépio" e
recebe as chagas da paixão.
O culto mariano tem grande desenvolvimento durante a
Idade �1édia. Surgem muitas festas. Todavia, a conexão de
Maria com o mistério pascal do Senhor não se mostra tão forte
como nas antigas devoções, por exemplo, a da Theorúkos, a
Mãe de Deus
Juntamente com Maria, os santos aparecem como desti­
natário� de um fen,01oso culto. São eles os mediadores de um
Deus demasiado distante Isso expressa-se plasticamente na mul­
tiplicação de estátuas nos templos, deslocando do altar-mor o
próprio Cristo, que representa o aílito crucificado. O ano litúr-
42
gico é sobrecarregado com as festividades dos �antas que, in­
clusive, suplantam o domingo, o dia do Senhor.
Tudo isso vai fertilizando o terreno para que surjam mo­
vimentos de reforma, dentro e fora da Igreja, diante da subver­
são do culto cristão.
Dentro da espiritualidade, surge no "outono da Idade
Média" um movimento conhecido como "devotio moderna". A
representação mais acabada dessa corrente espiritual é a Imita­
ção de Cristo, de Tomás de Kempis.
Opõe-se ao intelectualismo de uma escolástica, na oca­
sião tão decadente quanto fútil, acentuando um certo volunta­
rismo ascético. Insiste-se na vida interior, na chamada "oração
mental", dando ênfase à sua dimensão psicológica. Longe fi­
cou a oração comunitária, que brota da escuta fecunda da pala­
vra de Deus.
Essa corrente responde a uma situação cultural de políti­
ca determinada: o desmoronamento dos princípios que susten­
taram a Idade Média: a unidade política do Império fica destro­
çada com o surgimenlO das nações; a unidade entre fé e razão,
penosamente obtida pela escolástica, é desintegrada pela cor­
rente filosófica chamada nominalismo. Essa, sustenta que os
conceitos universais não correspondem às realidades individu­
ais. São mera ficção, meros nomes (nominalismo). É o prima­
do do individual. Ao mesmo tempo, a fé nada tem a ver com a
razão (daí a crítica à escolástica). A doutrina segue por um
lado e a religiosidade por outro; a liturgia da Igreja por um
lado e as devoções por outro.
Isso cava um fosso intransponível entre teologia e vida
espiritual, fosso que ainda não conseguimos superar. Um emi­
nente teólogo de nosso século, von Balthasar, declarou que o
drama de nossa época é que os teólogos não são mais santos,
nem os santos teólogos. Para os Padres da Igreja, ao contrário,
a espiritualidade não era senão o dogma vivido.

43
7. DE TRENTO AO t\lOVll\JENTO LITÚRGICO

Vimos corno a vida da Igreja "inha pedindo una reforma.


Pois bem, ocorre então a reforma encabeçada pelo frade
agostiniano Martinho Lutero.
Mas, que é essa reforma exatamente?
A reforma protestante é um acontecimento cultural ex­
tremamente complexo, em si próprio e em sua infra-estrutura.
A decadência da práxis eclesiástica acelera a necessida­
de da reforma.
Trata-se de um fenômeno espiritual. Sim e não.
Foi um fenômeno espiritual. Porém, como insistimos sem­
pre, o homem religioso e espiritual insere-se num mundo e
numa cultura concretos.
No final do período anterior, mencionamos a decompo­
sição das bases culturais que alicerçaram uma certa visão do
mundo que acabou por denominar-se medievo. Surge uma nova
cultura e cosmovisão. Isso acontece em termos políticos com o
despertar nacional (que será extremamente importante no caso
da reforma luterana, em relação à nação alemã), rom sua nas­
cente identidade, com sua língua própria (a tradução da Bíblia
feita por Lutero será um dos pilares da gramática alemã).
Essas mudanças políticas possibilitam o surgimento de
uma no"a classe dirigente, que pretende fazer val�r suas prer­
rogativas, logicamente, no terreno econômico (isso será claro
no caso de Lutero, apoiado pelos príncipes alemã;!s que resis­
tem ao poder econômico romano, no significativo âmbito das
indulgências).
A mudança cultural avança cada vez mais para uma cres­
cente autonomia da realidade humana (Lutero procura edificar
um cristianismo leigo, sem hierarquias).
Filosoficamente, falamos da corrente nominalista que pri­
vilegia o individual sobre o universal e que conduz, ao mesmo
tempo, à separação entre fé e razão.
44
Por último, 1ampouco se pode esquecer do próprio lem­
peramenlo reformador (Ião propenso a passar de um exlremo
ao outro), sua formação filosófico-leológica impregnada de
nominalismo, suas angúslias espirituais e existenciais.
O conjunto de tudo o que foi descrito assume a forma de
. todo esse complexo fenômeno que é a reforma luterana.
O concílio de Trento foi um dos mais interessantes da
história. Significou um esforço grandioso por parte da Igreja
em responder às interrogações suscitadas, afirmando a fé da
Igreja.
A crítica de Lutero é dupla: a partir da crítica à práxis da
Igreja (realmente num estado lamentável) ele avança sobre o
terreno dogmático. Essa última crítica concentra-se na Igreja e
sua realidade sacramental.
É preciso reconhecer que a má práxis eclesiástica e a
corrupção, tomavam difícil ver os princípios dogmáticos.
Por exemplo, a práxis celebrativa na qual ninguém co­
mungava fizera esquecer a essência da "ceia do Senhor", unila­
teralizando a dimensão sacrificial. Era necessário ressaltar a
dimensão de convivência, de banquete, da celebração eucarísti­
ca. E isso tinha de começar a partir de uma celebração renova­
da. Porém, Lutero vai mais além e, com o tempo, chega a
negar a dimensão sacrificial da celebração.
Cremos que o exemplo esclarece-nos a situação: como
se passa de uma crítica da práxis celebrativa a uma crítica
dogmática.
Por isso o concílio deve replicar simultaneamente nestes
dois terrenos: o da práxis e o dogmático.
No terreno prático, ele inicia uma reforma, mesmo quan­
do se revela extremamente apologético com algumas práticas.
Isso explica-se a partir do aspecto de que é muito difícil esca­
par da polêmica que se intalara.
Todavia, em sua etapa final, o concílio empreende um
programa de reforma intra-eclesiástico, procurando refrear os
abusos susci1ados.
45
Na área dogmática, Trento evidencia a parcialidade e o
reducionismo da concepção reformista. Uma parcialidade que
não encontra fundamento na autêntica tradição da Igreja.
O reducionismo manifesta-se nas fontes :Ja fé (a sola
Scriptura, deixando de lado a interpretação que a tradição rea­
liza dessa Escritura, que é antes de tudo um documento eclesi­
ástico, isto é, que surge da fé da Igreja), no processo salvífico
(sua afirmação de ser obra somente de Deus e da fé. O funda­
mento de tudo isso é a antropologia pessimista e voluntarista
que Lutero herdara de sua formação nominalista), e sua con­
cepção espiritualista e subjetivista da Igreja.
Para ser mais claro, a revalorização da palavra não tem
por que levar à supressão do rito; nem a afirmação da fé à
supressão das obras; nem a salvação proveniente de Deus deve
levar a negar que o homem coopera de algum modo nessa
salvação.
Diante do dilema protestante que propõe a fé ou as obr.as,
a Escritura ou a Igreja, Deus ou o homem, Trento afirma a fé e
as obras, a Escritura e a Igreja, Deus e o homem.
Esse dilema é também nominalista: a destruição da sín­
tese em favor do particular..
Da doutrina sacramental dos protestantes podem-se de­
tectar algumas notas características de seu aspecto global: o
individualismo da fé, a antropologia marcadamente individua­
lista, a minimização do papel visível da Igreja, a insuficiente
consideração das conseqüências da encarnação, a atenção ex­
clusiva à transcendência de Deus e a marginalida:Je da imanên­
cia divina.
Pelo que explicamos mais acima, vimos cc,mo a concep­
ção luterana é fruto da cultura da época.

O século XVII é o século do barroco

É a manifestação artística da cultura católica que triun­


fou sobre o perigo da dissolução proposta pela reforma (ao
menos no entendimento de seu tempo).
46
Esse triunfo plasma-se na exuberância das formas, de
uma Europa ainda impregnada do cristianismo.
Por volta do final do século XVII e início do seguinte,
dá-se outro fenômeno cultural: o iluminismo.
O iluminismo é fruto da longa evolução, já mencionada,
em busca de afirmar a imanência. Isso revela-se agora a partir
da área intelectual cognoscitiva.
O homem situa-se, novamente, no centro do mundo. Esse
é considerado, antes de tudo, como razão. É o fenômeno do
racionalismo, fenômeno cultural extremamente amplo.
O mito primitivo do eterno retorno no tempo encontra
aqui um paralelo no mito do eterno progresso. O homem lança­
se na conquista de uma realidade que se lhe demonstra total­
mente maleável. Ao mesmo tempo, experimenta o otimismo de
pensar que vivemos no "melhor dos mundos possíveis".
A realidade se encarregará rapidamente di> desfazer essa
ilusão.
O século XIX é uma época esgotada, quase sem origina­
lidade. Supõe uma volta para olhar para trás. Surgem assim os
movimentos "neo".
A Igreja, em seu aspecto institucional, cria um fosso em
relação a todas as manifestações do mundo moderno. Será pre­
ciso esperar até o Vaticano II para tentar restabelecer, de forma
global e institucional, esse diálogo da Igreja com o mundo
moderno.
Faz-se uma interpretação reducionista das Escrituras e
da tradição.
No que diz respeito à evolução litúrgica, Lutero produz
uma decomposição da tradição multissecular. Reduz a missa
romana, fazendo desaparecer o cânon ou oração eucarística, a
oração do Senhor (ao menos do seu lugar tradicional), a paz, o
sm1ctus, etc.; tem-se a impressão de um conjunto heteróclito,
um amontoado de ruínas sem nenhuma conexão, um conjunto
amorfo de elementos que perderam sua unidade e o sentido de
ser. A estimável herança de tantos séculos, a grande oração
eucarística, praticamente desapareceu.

47
A nobre intenção de recuperar a palavra de Deus leva-o,
praticamente, a suprimir a ritual idade das celebrações.
Um dos pontos mais importantes de sua reforma litúrgi­
ca é a introdução da língua vernácula na celebração.
Trento procura extinguir os abusos, já mencionados, que
se condensavam em avareza, irreverência e supe ·stição.
A intenção fundamental da reforma litúrg·ca é a de vol­
tar às fontes antigas e genuínas da liturgia, dei <ando de lado
acréscimos e repetições, frutos de uma época determinada.
Trata-se, definitivamente, de voltar à tradição da Igreja,
deixando de lado as tradições "com letra minúscula".
Paradoxalmente, os integristas de nossos dias fazem de
Trento e seu missal (o promulgado por Pio V) um paradigma,
quando o concílio Vaticano II, quatro séculos depois, é anima­
do pelo mesmo propósito, o de voltar à mais genuína tradição
da Igreja.
No que diz respeito à liturgia, a principal responsabilida­
de da missa recai sobre os bispos. O concílio encarregou o
Papa da reforma do Missal (promulgado em 1570) e do Breviá­
rio (em 1568).
Esse Missa/e Roma1111m vai constituir a única norma para
todas as Igrejas; e doravante nada podia ser mudado nele, a não
ser o que provasse ser uma tradição anterior a dois séculos.
Isso vai ser também usado como arma pelos integristas
em virtude da reforma do Missal em 1970 (curiosamente 400
anos depois do anterior). Esquecem-se de que o propósito que
impregnava essa proibição era o de conservar 1 liturgia mais
genuína, sem eílorescências espúrias. A reforma do Vaticano
li, da qual um dos novos frutos é o Missal, é motivada, na
reforma em questão, pelo mesmo propósito.
A liturgia do barroco caracteriza-se por e�se espírito fes­
tivo, repleto de ornamentações.
A íesta do Corpus Chrisri surge como o �spaço em que
o barroco maniíesta-se sem freios. A controvérsia com os pro­
testantes sobre a presença real conduz, na Contra-reforma, a
48
uma ênfase especial nesse aspecto da eucaristia, tanto na teolo­
gia quanto nas expressões litúrgicas e populares.
Já destacamos como a corrente devocional tende a es­
quecer a unidade e centralidade do mistério pascal. A arquite­
tura dos templos barrocos reflete essa dispersão, com a muti­
plicação dos altares laterais. Longe se está de expressar a uni­
dade de uma celebração comunitária. A multiplicidade de alta­
res reflete a concepção da eucaristia como uma prática devo­
cional dos sacerdotes.
Ademais, esse esquecimento do caráter axial do mistério
pascal revela-se no fato de que as estátuas dos santos e as
devoções vão deslocando a do Cristo. Como se pode entender
isso teologicamente? Que fundamento há no culto aos santos,
ou mesmo à Virgem, sem o fato de que em sua vida manifeste­
se o mistério pascal de Cristo?
Os fiéis comungam cada vez menos, inspirados por uma
terrificante espiritualidade do sacramento. Os que comungam,
fazem-no majorirariamente fora da missa.
Voltou-se à situação anterior à reforma: a distância dos
fiéis, distância esla incrementada pela língua que desconhecem.
Diante da afirmação, por parte da reforma, do sacerdócio
dos fiéis, a liturgia pós-tridenrina insiste em ser uma ação fun­
damentalmente hierárquica, à qual os fiéis assistem. Ê uma
prerrogativa clerical.
A celebração não é senão, antes de tudo, um espetáculo
que é preciso contemplar, comparecer, ver e ouvir. Não há
sequer uma mínima participação. No máximo, pode ser o espa­
ço onde os fiéis recolhem-se em oração individual e em comu­
nhões "espirituais".

8. O l\lOVIMENTO LITÚRGICO
Ao longo da história, houve épocas de intensa criativida­
de lirúrgica. Desracamos de modo especial os séculos IV-VI,
em que se criam tanlo no Oriente quanto no Ocidente as gran-
49
des "famílias litúrgicas", nos séculos X-XI no reino franco
com Pepino, Alcuíno e Carlos Magno; o movimento cistercien­
se e o começo do franciscanismo; o ante e o pós-Trento.
Porém, o movimento litúrgico é um fenômeno bastante
moderno, não só na finalidade, mas também no conteúdo; é um
fenômeno histórico-social próprio de nosso tempo.
Entretanto, vê-se cada vez com maior nitidez que os
primeiros impulsos e realizações desse programa de renovação
já existiam, de modo surpreendente por sua clareza de visão e
tenacidade de propósitos, na época do iluminismo. Embora re­
conhecendo isso, é claro que não há uma relaçii.o direta entre
eles.
Note-se bem o Sínodo de Pistóia, em 17:36. Ele repre­
senta, do ponto de vista da liturgia, o fenômeno mais interes­
sante do iluminismo.
Entre os desejos de reforma desse sínodc de tendência
heterodoxa encontramos o seguinte: participação ativa dos fiéis
no sacrifício eucarístico; comunhão com hóstias consagradas
na própria missa; menor estima pela missa particular; unicida­
de do altar; limitação na exposição das relíquias sobre o altar;
significação da oração eucarística; necessidade da reforma do
Breviário; veracidade e historicidade das leituras; leitura anual
de toda a Sagrada Escritura; a língua vernácula, junto com o
latim, nos livros litúrgicos; supressão de muitas novenas e for­
mas devocionais similares; relevância dada à comunidade pa­
roquial, contra o fracionamento.
Significativamente, muitas dessas aspirações vão ser
realizadas pela reforma conciliar.
Os princípios que conduziram a esses anseios de reforma
eram a tendência à simplificação, o caráter co111u11itário, a com­
preensão e edificação. Embora o ângulo seja préprio do ilumi­
nismo, isso não tira a validez das reivindicações.

50
. O século XIX
Nessa época marcada pelo romantismo, temos sobretudo a
renovação monástica, primeiro na França e depois na Alema­
nha. Ela rapidamente toma consciência da importância da litur­
gia na vida monástica. Portanto, renovar a vida monástica im-
plica renovar a liturgia e sua vivência.
O que é levado a cabo por D. Guéranger, o primeiro
abade do monastério beneditino de Solesmes, que irá publicar
numerosas obras, resgatando documentos litúrgicos antigos. Jun­
tamente com isso, D. Guéranger reduz, infelizmente, a liturgia
à maneira romana, rejeitando qualquer elemento da liturgia
galicana.
Uma fundação do mosteiro de Solesmes, o do Beuron,
na Alemanha, começa a difundir esse trabalho litúrgico.
Todavia, todo esse movimento não ultrapassou os claus­
tros, em virtude da falta de uma noção adequada de Igreja.
Essa era considerada, no século XIX sobretudo, úestacando sua
função social, pedagógica e organizadora. Sua essência litúr­
gica e seu ser sacramental ficavam em segundo plano na
reflexão.

O século XX

No século XX, continua a reflexão monástica sobre a


liturgia.
Porém, o nascimento do movimento litúrgico dá-se pro­
priamente quando essa corrente monástica encontra-se com o
mundo leigo no Congresso Nacional de Obras Católicas, em
Matinas, 1909, encontro esse conduzido por D. Beauduin, ou­
tro monge beneditino.
Os mosteiros começam a organizar "semanas" de confe­
rências litúrgicas.
Os mosteiros alemães de Beuron e Maria Lach entram
51
em contato com o mundo universitário católico, quando come-
ça a haver grande adesão. Nesse ponto é um elemento chave a
figura de Romano Guardini. Porém, também destacam-se
Mohlberg, o professor Baumstark, especialista em liturgias com­
paradas e, sobretudo, as figuras do abade Herwegen e Odo
Casei, ambos monges do mosteiro de Maria Lach.
O primeiro objetivo do movimento litúrgico é o mundo
culto leigo e clerical, para depois atender aos outros setores.
Na Áustria, em 1940, é relevante o agostiniano Pio Parsch,
que empreende uma imensa obra de divulgação, em âmbito
pastoral, das investigações que, em nível teológico, ia realizan­
do o movimento litúrgico. É clássica sua obra, O A110 Lirrírgico.
Em toda a Europa, o movimento litúrgico expande-se,
sempre apoiado em algum mosteiro.
Na Alemanha, entrementes, surgem debate; e confronta­
ções, particularmente devidos à teoria de Odo Casei e sua vi­
são "mistérica" da teologia. O episcopado alemãc vai tomar-se
solidário, perante a Santa Sé, com o movimento litúrgico, cri­
ando ao mesmo tempo uma comissão litúrgica em seu próprio
âmago.
O Magistério vai focar o tema na enc1clica Mystici
Corporis Christi, em 1943, porém o fará de cheio na Mediator
Dei, em 1947. Essa encíclica assume muitos aspectos positivos
do movimento litúrgico e critica outros. Seu maior proveito é
situar a liturgia no plano teológico. Seu aspecto negativo é
considerá-la ainda como obra clerical, e não de toda a Igreja.

9. A CONSTITlJIÇÃO SOBRE LITURGIA


DO CONCÍLIO VATICANO li

O movimento litúrgico entra assim em sua última e cul­


minante fase.
Após 50 anos do início do movimento litúrgico, esse
penetra plenamente na Igreja Universal. 5acrosa11ct11m
concilium, justamente em virtude de toda essa longa e frutífera
preparação, é o primeiro documento conciliar a ser aprovado,
levando no próprio nome o concílio e fixando os objetivos do
mesmo.
Sacrosa11ct11m concili11111 expressa a dimensão teológica
da liturgia, juntamente com as aplicações práticas dessa nova
concepção, reecontrando-se com as fontes litúrgicas e abando­
. nando muitas aderências que ao longo dos diversos momentos
culturais foram formando-se.
O arcabouço princípio-práxis direcionou-se para rever a
teologia e a celebração da liturgia da Igreja, para obter uma
melhor participação dos fiéis. Revisão-participação é a cons­
tante do documento conciliar, que coloca em primeiro plano a
pastoral litúrgica.
Pode-se dizer que o ganho fundamental da constituição é
o de situar a liturgia no plano teológico, como já o fizera a
Mediator Dei. Todavia, vai mais além disso ao fundamentar a
dimensão teológica na atuação do mistério pascal de Jesus Cris­
to. A liturgia é a presencialidade ritual desse mistério.
Analisaremos agora dois números de artigos f undamen­
tais dessa nossa constituição, que manifestam a essência da
compreensão litúrgica conciliar.
O artigo número S apresenta a obra salvífica de Cristo,
enviado pelo Pai na plenitude dos tempos, come mediador en­
tre Deus e os homens. Nele "ocorreu a perfeita satisfação de
nossa reconciliação e nos foi comunicada a plenitude do culto
divino", mediante "o mistério pascal de sua bem-aventurada
Paixão, Ressurreição dentre os mortos e gloriosa Ascensão" e
"do lado de Cristo cravado na cruz nasceu o admirável sacra­
mento de toda a Igreja".
Os Padres conciliares, fiéis à tradição patrística, vêem
toda a salvação de Deus concentrada nesse conceito-chave, o
"mistério pascal". Esse refere-nos à Páscoa, centro da história
da salvação. Porém, ao mesmo tempo nô-la oferece em sua
celebração; esse é o sentido do mistério. Desse mistério pascal,
surge a Igreja, a qual aparece como sacramento, essencialmen­
te como a comunidade dos que celebram essa Páscoa. Desse
modo, o concílio propõe a leitura da história salvífica a partir
53
de uma chave litúrgica. Isso vai ser explicitado rJo número
seguinte.
O número 6 faz uma proposta ainda mais explicitamente
litúrgica. Embora o texto desse número seja bastante extenso, o
fio condutor fundamental é o seguinte: assim como o Pai en­
viou Cristo, este envia os apóstolos para pregarem a salvação
(pelo evangelho) e realizarem-na ("através do Sacrifício e dos
Sacramentos, sobre os quais gira toda a vida a litúrgica"). A
Igreja vive da contínua celebração do mistério pascal ("nunca,
depois disto, a Igreja deixou de reunir-se para celebrar o misté­
rio pascal").
Em primeiro lugar, como já estava esboçado no número
anterior, a teologia conciliar propõe o nexo entre história, sal­
vação e liturgia: a salvação enviada pelo Pai, em Cristo, conti­
nua na Igreja (os apóstolos). Essa salvação é proclamada e
atuada. Isto é, as maravilhas operadas pelo Senhor na história
realizam-se e atualizam-se na celebração litúrgica, •·epresenta­
da aqui pelo batismo e pela celebração eucarística. A Igreja é
lugar de salvação de Deus, em virtude da celebração do misté­
rio pascal. A liturgia é o momento culminante da história da
salvação. Inclina-si! para ela.'Nela saímos ao encortro da sal­
vação de Deus, em meio à Igreja.
O número 7 verá na liturgia o exercício do sacerdócio de
Cristo.
Os três artigos analisados apresentam, como dissemos, a
alma da compreensão da liturgia no concílio. Ela é a atuação
celebrativa, ritual, da Páscoa do Senhor. Ela é o sentido da
Igreja, "fonte e ápice" de sua atividade, para ela destina-se
todo o fazer da Igreja. A liturgia é o encontro com a salvação
de Deus operante em Sua Igreja.
Esse é o centro da teologia litúrgica do Vaticano li. O
resto da constituição deverá deduzir conseqüências dessa com­
preensão, de modo especial na práxis celebrativa.
Hoje as determinações conciliares são avaliadas como
realistas e prudentes em seu momento histórico. Para alguns,
entretanto, foram tímidas e casuísticas. Para outros, finalmente,
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elas caíram na inconseqüência de afirmar, por um lado, o latim
como língua litúrgica e por outro, possibilitar ao menos, a eli­
minação do mesmo.
A catequese conciliar sobre a palavra na liturgia e os
novos lecionários contam-se entre os melhores ganhos da cons­
tituição Sacrosanctum conciliwn. O novo lecionário da missa
foi inspirado na reforma dos lecionários de outras confissões
cristãs.
Todavia, detectam-se certos vazios na Constituição:

Embora discorra sobre a participação dos fiéis no culto


da Igreja, não desenvolve o fundamento dessa participa­
ção: o sacerdócio comum ou real. Faz apenas alusão a
esse; trata-o mais detidamellfe em outros documentos
conciliares. 1� Dá-se também, pelo menos algw11a atenção,
ao movimento ecumênico, mencionado 110 início (SC 4).

Por fim, os capítulos pobres da constituição: os três últi­


mos dedicados ao ano litúrgico, à música, à arte e aos objetos
sagrados.

10. O PERÍODO PÓS-CONCILIAR

Nessa época, tão fecunda quanto polêmica, podemos dis­


tinguir duas fases: os primeiros dez anos estão marcados por
uma efervescência e polêmica, a época posterior é mais calma
e, de algum modo, desapaixonada.
Nesses tempos difíceis e belos na vida da Igreja, o orga­
nismo encarregado de levar adiante o projeto do Vaticano II foi
o Co11cilium criado por Paulo VI, em 1964. Teve a missão de
orientar a prática da constituição de liturgia, preparar novos
livros litúrgicos e promover as experiências exigidas.
Uma tarefa ingente, sem paralelo na história da Igreja,
foi a elaboração dos livros litúrgicos de acordo com a inspira-
14 LG ll,34;AA,3.

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ção do concílio. Essa tarefa foi realizada com rapidez e acerto,
em apenas I O anos. Isso é possível, evidentemente, graças a
toda a bagagem oferecida pelos 50 anos de movimento litúrgico.
A Igreja conta, desde então, com um novo missal (pro­
mulgado, significativamente, quatrocentos anos depois do mis­
sal do concílio de Trento: o de S. Pio V), orações eucarísticas,
lecionários, ritual e liturgia das horas. Isso possibilita à Igreja
viver logo uma liturgia renovada.

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