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CAPÍTULO 2

A IDÉIA DE DEUS E A
PERGUNTA POR SUA VERDADE

1. A palavra nDeus"

Em culturas pré-modernas, as palavras "Deus" e "deuses" tinham


seu lugar mais ou menos claramente determinado em conexão com o
mundo de vida cultural. Com isso também tinham seu lugar no mundo
lingüístico dos homens, ou seja, em geral ali onde se trata dos últimos
fundamentos da ordem tanto social quanto cósmica, bem das instân­
cias que os garantem, às quais se devia mostrar a veneração, atenção e
dispensação devidas. Nas culturas seculares da era moderna, a palavra
"Deus" perdeu mais e mais essa função e esse sentido, em todo caso na
consciência pública.
Com isso, em primeiro lugar, a realidade designada por essa
palavra tornou-se incerta. No contexto de uma consciência pública
emancipada em relação à religião, o caráter afirmativo de enunciados
a respeito de Deus, na medida em que, como afirmações, pressupõem
a existência de seu objeto', se tornaram mais visíveis. Isso vale tanto
para as afirmações da tradição de uma teologia filosófica quanto para
as da tradição e da proclamação cristã. No contexto de uma cultura
inteiramente secularizada, tais afirmações se apresentam inicialmente
como meras afirmações, cuja verdade ainda está por ser discutida. Isso
significa que a verdade de tais afirmações ou também apenas de seu

1
Assim com razão I. U. DALFERTH, Existenz Gottcs und clzristlichcr Glrwhe. Skizzen
zu einer eschatologischen Ontologie, 1984, pp. 88s., em seguimento à tese de W.
V. O. QUINE, From a Logical Point of View, 1953, 2ª ed., 1961, pp. 12s. (HTB 566),
acerca de um "encontro ontológico" de afirmações.
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conteúdo central (proporcional) não mais é aceita sem exame como


plausível e crível e isenta de qualquer discussão. Ainda que o indiví­
duo se comporte desse modo em decisão subjetiva, a consciência pú­
blica da cultura secular aceita com prazer as pretensões de verdade
de tajs meras afirmações quando têm por conteúdo assuntos seculares
e se apóiam na autoridade da ciência, por exemplo, entre sociólogos
e psicólogos. Isso, porém, não vale no caso de afirmações a respei­
to de Deus, e inclusive sequer quando estas são apresentadas com
maior empenho de perspicácia do que acontece, às vezes, em temas
da moda no campo das ciências humanas. Na consciência pública,
afirmações a respeito de Deus permanecem "meras" afirmações, atri­
buídas exclusivamente à subjetividade de seus autores. Isso se dá não
apenas no sentido de que sua pretensão de verdade é considerada,
em gernl, carente de um exame, antes de se poder cogitar de sua acei­
tação, mas no sentido muito mais amplo de supor de antemão que tal
exame só pode levar a nada, e que portanto pretensões de verdade
de afirmações a respeito de Deus sequer são dignas de uma discussão
pública séria.
Mais incisiva é ainda outra mudança, que todavia pode ser com­
preendida como conseqüência da anterior: com o esmaecimento da
idéia de Deus em sua função para o mundo do ser humano na consciên­
cia pública de um mundo cultural que se tornou indiferente à religião,
não apenas a existência de Deus se torna problemática, mas também o
conteúdo da idéia de Deus se torna difuso. Em sua meditação sobre a
palavra "Deus", que serve de introdução a seu Grundkurs des Glaubens
[Curso Básico da Fé], KARL RAHNER disse que esta palavra parece enigmá­
tica aos homens de hoje, "como um rosto cego"2. Justamente por isso
ela pode parecer "digna de reflexão" para aquele que tem consciência
da importância da idéia de Deus nas culturas históricas da humanida­
de. Mas também pode parecer como um abracadrabra, que não cabe
mais no mundo sóbrio da atualidade.
Daí é compreensível que, ao lado de outros componentes da lin­
guagem cristã, também a palavra "Deus" pôde parecer um agravo até
para teólogos com vistas à pregação cristã, porqu€ parecia obstacula­
rizar a compreensibilidade da pregação para o homem secular. Acon­
tece, porém, que sem essa palavra o convite à fé em Jesus de Nazaré
A IDÉIA DE DEUS E A PERGUNTA POR SUA VERDADE 103

perde todo seu fundamento: não se pode crer no sentido da pregação


cristã-primitiva, e, sobretudo, não se pode esperar que outros creiam
num ser humano ao lado de outros, que, apesar de todas as singula­
ridades de sua doutrina e sua biografia, afinal também é somente um
ser humano como outros, visto que então muitas das palavras dele que
nos foram legadas, e decerto também sua auto-compreensão, deveriam
ser julgadas como extravagantes e superadas pelo curso da história.
Por isso pregação cristã e fé cristã não podem prescindir da palavra
"Deus", que está na base do discurso concreto de Jesus a respeito de
seu "Pai", de modo que esta não é compreensível sem aquela. Como,
então, se pode lograr novamente um acesso àquilo que "o rosto" dessa
palavra encerra e oculta?
Hoje talvez estejamos tentados a responder a essa pergunta com
a exigência de experiência, de experiência religiosa, como fonte de
uma redefinição da palavra "Deus" 3• Isso corresponde ao espírito de
uma época de orientação empirística. A resposta, no entanto, é menos
lógica do que poderia parecer. Isso já se pode perceber ao olhar a re­
lação entre fé e experiência. As duas coisas de modo algum são idên­
ticas, embora tivessem sido intimamente relacionadas especialmente
na tradição da Reforma, por LUTERO. A fé dirige-se a Jesus Cristo como
revelação de Deus, a qual, porém, é transmitida por meio de prega­
ção e doutrina da Igreja. Segundo LUTERO, essa fé está relacionada à
experiência do desespero com a Lei. Não obstante, a mensagem do
Evangelho - e com isso também a fé nela - se agrega à experiência da
consciência como algo- novo, que não é derivável dela, por mais que,
por sua vez, fundamente uma nova experiência do consolo e da con­
fiança4. A ligação entre fé e experiência da consciência teve importân­
cia duradoura na história da espiritualidade evangélica por meio do
pietismo e do avivamento. No entanto, a crescente fundamentação da

'Assim, p.ex., J. TRACK, Sprachlíche Untersuchungen zum christliche11 Rcdcn vu11 Gott,
1977, exige uma fundamentação do discurso a respeito de Deus "cm experiência
religiosa" (pp. 242, cf. 183s., 311, 314). Também I. U. DALFERTI 1, Religiiísc Rcden
von Gott, 1981, fala de uma "base de experiência do discurso cristão da fé" (p.
393-494). DALFERTH encontra essa base em uma "experiência da palavra de Deus
dirigida a nós" por Jesus Cristo (pp. 446, cf. 469ss., 489).
4
A respeito da tensa relação entre fé e experiência em LUTEI<O, vide P. J\Lnit\US,
Dic Theologie Martin Luthers, 1962, pp. 58-65, bem como U. KôPF cm TRE 10, 1982,
DD. 114<;.
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fé na experiência da consciência de culpa, que aconteceu nesse desen­


volvimento, tornou-se objeto de uma crítica tão destruidora a partir
de NtETZSCHE e FREUD, que dificilmente ainda se pode encetar por esse
caminho para a exposição da relevância humana da fé cristã5• Para o
tema do questionamento atual, porém, ainda é importante o fato de
que nesta tradição a idéia de Deus justamente não foi fundamentada
na experiência da consciência, mas já foi pressuposta para sua inter­
pretação.
Quem quer recorrer à experiência religiosa para o esclarecimen­
to da própria idéia de Deus terá de trabalhar com um conceito de ex­
periência religiosa mais abrangente. Tal conceito foi elaborado espe­
cialmente pela moderna filosofia da religião inglesa. HYWEL D. LEWIS
falava em 1959 da admiração (wonder) como ponto de partida de uma
consciência religiosa, no sentido de que por "atrás" ou "acima" de
todos os acontecimentos e fatos se apercebe de uma realidade mis­
teriosa, da qual depende todo o restante6 • Essa descrição aproxima­
se das exposições clássicas tanto de WILLIAM JAMES quanto de RuoOLF
Orro. Com ela também tem afinidade a exposição de lAN T. RAMSEY,
publicada dois anos antes (1957) e desde então muito controvertida.
Esta respondeu ao desafio lançado à teologia pela filosofia lingüís­
tico-analítica, referindo o conceito da experiência religiosa a "situa­
ções", nas quais, de repente, alguém descobre (disclosure) algo, como
quando se diz que lhe "acende uma luz" ou "se rompe o gelo"7• Mais
do que LEw1s, RAMSEY enfatizou a instantaneidade da experiência re­
ligiosa, bem como seu caráter de intelecção ligada a um engajamento
subjetivo: a partir dela muda toda a vida8 • Isso lembra, talvez não por
acaso, a ligação de contemplação e sentimento na teoria da religião
de SCHLEIERMACHER, de 1799, tanto mais quanto RAMSEY dá, de modo

,; B. LAURET, Sclwlderfnhrung und Gottesfrage beí Nietzsche und Freud, 1977, demons­
trou a importância fundamental da crítica psicológica contra a consciência de
culpa para o ateísmo em NIETZSCHE e FREUD.
"H. D. LEw1s, Our Experiencc of God, Londres, Allen and Unwin, 1959, Fontana ed.
21315, 1970, pp. 120.128.
;- l. T. RAMSEY, Religious Language. An Empírica/ Placing of Theological Phrases, Lon­
dres, Macmillan, 1957, paperback ed., 1963, pp. 28s., cf. pp. 25s. Esta última pas­
sagem mostra a orientação de RAMSEY segundo a psicologia gestáltica. Ao desafio
lançado pela análise lingüística filosófica refere-se a introdução �sp. p. 15).
A IDÉIA DE DEUS E A PERGUNTA POR SUA VERDADE 105

semelhante como em SCHLEIERMACHER, à experiência religiosa uma re­


lação com "todo o universo"9•
Acaso a experiência religiosa descrita deste modo abre acesso a
uma definição mais exata da idéia de Deus? Em RAMSEY - como aliás
também em ScHLEIERMACHER - acontece antes o contrário: a idéia de
Deus funciona como interpretamento de tal experiência 111• Esse estado
de coisas se revelou com nitidez ainda maior na discussão posterior
da filosofia analítica da religião. Uma experiência religiosa pode apre­
sentar-se primeiramente como numa interpretação corno "encontro"
com Deus (ou com um Deus) ao fazer uso da própria idéia de Deus11 .
Especialmente JOHN HICK acentuou que uma experiência religiosa,
assim como todas as outras experiências, está ligada à interpretação
que primeiro percebe e entende o percebido "como algo" 12. Nisso
a interpretação de experiências individuais depende de característi­
cas gerais que ultrapassam o momentâneo e o esporádico da impres­
são e que, por sua vez, tem seu lugar em outros contextos de com-

9
lb,. p. 41.
rn Assim em RAMSEY, Deus (God) é um termo-chave (key word, p. 51), no qual se
expressa a totalidade do engajamento associada à experiência religiosa, que,
por sua vez, não é derivável de percepções (p. 48). Em ScHLEJERMACHER, a idéia
de Deus faz parte da reflexão sobre a experiência religiosa. Na primeira versão
dos discursos Sobre a Religião, de 1799, a idéia de Deus serve como uma entre
várias interpretações possíveis do "universo", que o ser humano experimenta
como agente em sua experiência religiosa (p. 129). Na Glaubenslehre [Doutrina
da Fé] (1821, 2ª ed., 1830), a palavra "Deus" vale como expressão para a "refle­
xão direta" sobre o sentimento de dependência, a saber, como aquilo "ao qual
remontamos nosso ser-assim" (§ 4,4).
11
Assim tb. I. U. DALFERTH, Religiose Rede von Gott, 1981, pp. 432s. com referência,
sobretudo, a R. W. HEPBURN, Christínnity and Paradoxy, 1958, e a J. I. CAMPBET.L, The
Lnnguage of Religion, 1971.
12 J H
. lcK, Religious Faith as Experiencing-As, in: G. N. A. VESEY (ed.), Talk of God,
Royal lnstitute of Philosophy Lectures lI, 1967 /68, Londres, 1969, pp. 20-35,25.
Também H1cK se reporta com suas exposições ao caráter de gestalt da percepção,
mas, por sua vez, vê a esta ligada a identificações do conteúdo da experiência
em forma de concepts, os quais pertencem a seu respectivo mundo lingüístico
como social products. A. JEFFNER, The Study of Religious Languagc, Londres (SCM),
1972, pp. 112ss. reune essa descrição de HrcK com a concepção de F. FERRÉ, Lnn­
guage, Logic and God, Londres, 1961, acerca da importância de concepções con-
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prcensão 13 • Pode-se considerar todo esse processo de interpretação


como fazendo parte do conceito de experiência. Torna-se proble­
mático distinguir a experiência como "base" do discurso a respeito
de Deus de outras interpretações que se somam secundariamente.
Também se torna problemático contrapô-las. Isso seria plausível so­
mente se fosse possível reduzir o conceito de experiência à percep­
ção, distinguindo-se de sua posterior elaboração. Mas justamente
tais concepções revelaram-se insustentáveis, porque como "percep­
ção da gestalt" a própria percepção já é uma interpretação que já
implica contextos de compreensão mais avançados, mediados his­
tórica e socialmente, que então são expressos hermeneuticamente
por meio de enquadramento em contextos de experiência, sendo
também modificados.
Até agora vimos que a palavra "Deus" tem, na verdade, uma fun­
ção no contexto da experiência religiosa. Ela mesma, porém, não é de­
rivável da percepção em uma "situação de descobrimento", mas serve
à compreensão interpretativa do que nela acontece. Nisso não se pode
supor que se trata da única possibilidade de interpretação e compreen­
são para o conteúdo de tais situações. Agora é preciso esclarecer com
mais exatidão que espécie de interpretação e concepção daquilo que
se descobre na situação de descobrimento se expressa com a palavra
"Deus". Inicialmente se pode constatar que o emprego dessa expressão
designa um interlocutor que se experimenta na situação de descobri­
mento. Mais exatamente, a situação de descobrimento é experimenta­
da por aquele que, em ligação com ela, fala de "Deus", como "encon­
tro" com um interlocutor. A palavra "Deus" serve, neste caso, para

13
Assim I. U. ÜALFERTI 1, Religíose Rede von Gott, 1981, pp. 454-466. Permane­
ce incompreensível como DALFERTH pode encontrar "o plano da verdade" da
experiência cristã de interpelação pela palavra como estando "articulado em
afirmações históricas" (p. 467), a saber, em afirmações sobre Jesus e sua impor­
tância (cf. pp. 486ss.). Tais afirmações históricas afinal não contêm apenas per­
cepções, méls estágios bastante avançados de sua elaboração interpretadora. J.
TRACK diferencia mais rigorosamente entre a experiência religiosa na "situação
de exploração", à qual atribui o "caráter pessoal" do oposto transcendente, e o
enquadramento em contextos da orientação do existir e agir que possibilita a
compreensão de tais experiências (Zoe. cit., pp. 254s.). No entanto, tb. ele admite
que já na compreensão da "experiência direta" como experiência de Deus se
A loÉIA DE DEUS E A PERGUNTA POR SUA VERDADE 107

designar esse interlocutor14 . No entanto, em que sentido é esse o caso?


A palavra tem a função de nome próprio ou funciona como descrição
identificadora? Essa questão é controvertida 15 . No fundo disso tam­
bém se encontra a relação do conceito teológico e metafísico de Deus.
Enquanto que a análise metafísica fala de "Deus" com caracterização
descritiva, inclusive ainda quando se postula para "Deus" uma catego­
ria ontológica própria com apenas um único caso de aplicação t6, o uso
lingüístico teológico tende a preferir a função da palavra "Deus" como
nome próprio. Não obstante, não é possível reduzir o uso lingüístico
teológico a essa função. Sem a suposição também de um uso predica­
tivo dessa palavra, não se poderia falar, por exemplo, da "deidade" de
Jesus Cristo 17. O desenvolvimento da compreensão bíblica de Deus está
caracterizado especialmente pela duplicidade das designações Javé e
Elohim, no que Javé é exclusivamente nome próprio, enquanto Elohim
- embora igualmente usado com freqüência como nome próprio - ori­
ginalmente é designação de gênero. O fato da designação de gênero
"Deus" se tornar o nome de um único "Deus" é característico para o
uso lingüístico de religiões monoteístas. Isso, porém, não muda em
nada o fato de que inicialmente se trata, no caso da palavra "Deus", de
uma designação geral de gênero. Somente a partir daí é compreensível
o uso predicativo da palavra. Mas também somente sobre essa base se
pode tornar compreensível a pretensão monoteísta como tal, a saber,
como restrição da categoria da divindade a esse um. O fato da palavra
"Deus" ter "um pronunciado uso pré e extracristão" 18 é condição da
compreensibilidade da designação de Javé como Deus, bem como do

14
Com isso a descrição da função da palavra "Deus" como expressão que qualifi­
ca meramente determinada concepção de vida e orientação do agir se evidencia
como um mal-entendido na linguagem religiosa quando usado para designação
de um objeto. Cf. I. U. DALFERTH, Existenz Gottes und christlicher Glaube. Skizzen
zu einer eschatologischen Ontologie, Munique, 1984, pp. 89ss. a respeito das
contribuições de H. BRAUN, P. VAN BuREN e F. KAMBARTEL acerca deste tema. So­
bre a proposta de F. KAMBARTEL no sentido de entender a palavra "Deus" como
expressão sincategorernática (ZEE 15,1971,pp. 32-35),vide esp. J. TRACI<,loc. cif.,
pp. 219ss., 224,229,252ss.
15
Quanto a isso, vide J. TRACK, pp. 175ss., esp. 185ss., bem corno I. U. DALFElffH,
Religidse Rede von Gott, 1981,pp. 571-583.
16
Assim M. DuRRANT, The Logical Status of 'God', Londres, 1973, pp. 15 e 49.
17
I. U. DALFERTH, Religiose Rede von Gott, 1981,pp. 574ss.
108 TEOLOGIA SISTEMÁTICA - VOLUME l

discurso cristão da deidade de Cristo. Ele também é condição para a


compreensibilidade da afirmação da "exclusiva deidade" de Javé, do
Pai de Jesus Cristo e do Deus triúno: o conteúdo da afirmação reside,
neste caso, na restrição de uma categoria geral a um único caso de sua
realização. Nisso certamente está contida uma correção do uso lingüís­
tico extra-cristão. Isso, porém, não significa que o emprego da mesma
expressão não deveria ser tomado aqui como indício de que "se está fa­
lando do mesmo" 19. Está se falando do mesmo, sim, a saber, de "Deus"
exclusivamente, no entanto, de outro modo, no modo de uma correção
fundamental.
A singularidade da palavra "Deus" como caracterização geral é
importante não apenas para a história de origem do discurso bíblico e
cristão de Deus, mas tem importância permanente como condição da
compreensibilidade do discurso a respeito de Deus. Nomes próprios
são compreensíveis somente em ligação com designações de gêneros,
e isso também vale para o caso específico da limitação da designação
de gênero a uma única realização. O conceito do "divino" para desig­
nação de gênero para "deuses", todavia, foi substituído na teologia
cristã pelo conceito metafísico de Deus que já contém em si mesmo a
unidade do divino como da única origem de um só cosmo. Por possuir
igualmente a forma de uma descrição geral, o conceito metafísico de
Deus pôde exercer a mesma função na teologia cristã como o conceito
geral "Deus" (Elohím) nos começos da concepção bíblica sobre Deus e
em especial também para a compreensão da afirmação da única deida­
de de Javé. Na teologia cristã, o conceito metafísico de Deus tem a fun­
ção da condição de compreensão geral do discurso cristão a respeito
de Deus: "Deus", ao qual a filosofia já havia concebido como um, em
contraposição à pluralidade dos deuses da crença popular politeísta,
existe de modo real no Deus da Bíblia, no Pai de Jesus Cristo. Com
vistas à unidade de Deus, em todo caso, o uso lingüístico extrabíblico
não precisava ser corrigido de modo tão radical do que na contraposi­
ção de Javé como o único Deus contra os deuses dos povos. Ficou mais
claro que a mensagem missionária cristã, quando proclama a revelação
do Deus uno em Jesus Cristo, apesar de todas as correções, fala "do
mesmo" Deus que as pessoas já conheciam anteriormente sob o nome
"Deus". Se hoje a teologia cristã rejeita a idéia de Deus proveniente da
A IDÉIA DE DEUS E A PERGUNTA POR SUA VERDADE 109

teologia filosófica, que concebia a Deus como unidade, porque afinal


na teologia se estaria falando "do Deus cristão e não de qualquer outro
deus"2º, então, com isso, mesmo sem querer, ela promove un1 retrocesso
à situação de uma pluralidade de deuses. Em meio a essa pluralidade,
o discurso cristão de Deus se refere a esse Deus determinado, ao Deus
bíblico, como um entre outros. Quem argumenta desse modo não faz
valer a argumentação baseada na restrição filosófica do conceito de
Deus baseada no monoteísmo simultaneamente para afirmar a unici­
dade de Deus baseada sobre fundamento lingüístico-analítico. Quando
inversamente se faz isso, também se deve assumir as implicações meta­
físicas dessa descrição quanto ao uso lingüístico para a palavra "Deus".
A teologia cristã fez isso desde seus inícios em interesse próprio, porque
com isso ela pôde afirmar a validade geral do discurso bíblico do Deus
único em contraposição ao politeísmo da crença popular e aos cultos
protegidos pelo estado. As dificuldades para a compreensibilidade do
discurso cristão a respeito de Deus na atualidade foram no mínimo
acentuadas pelo fato de que a teologia cristã por sua vez talvez aderiu
com demasiada imprudência ao abandono da "metafísica" na tradição
da teologia filosófica, tal corno ela ocorreu na consciência cultural da
Modernidade, e considerou insuficientemente as conseqüências para a
compulsoriedade do discurso a respeito de Deus. Deverá tratar-se de
um dos muitos casos de acomodação precipitada ao espírito da época.
Com isso, a teologia evangélica não prestou um bom serviço à compre­
ensibilidade do discurso cristão a respeito de Deus.
Ficou evidente que o recurso à experiência religiosa pouco pro­
duz para o esclarecimento do discurso a respeito de Deus, por que
esta palavra inversamente é um dos interpretamentos mais importan­
tes para o entendimento acerca do conteúdo da experiência religiosa.
A referência à religião e à experiência religiosa tem sua importância
em outro lugar, a saber, na pergunta se e que realidade correspon­
de à idéia de Deus. Isso ainda será discutido pormenorizadamente
num contexto futuro. A idéia de Deus já é pressuposta para o es­
clarecimento do conteúdo da experiência religiosa, em todo caso em
uma forma geral, acessível à determinação mais exata. Para esse con­
teúdo geral da idéia de Deus, a tradição da teologia filosófica é mais
esclarecedora do que o recurso a quaisquer experiências especiais.
110 TEOLOGIA SISTEMÁTICA - VOLUME J

Pois nisso trata--se da compreensão do mundo. A teologia filosófica


concebia um deus como origem da unidade do cosmo. Com isso ela
entrou apenas condicionalmente em oposição ao que a tradição reli­
giosa dizia a respeito dos deuses. Também as religiões atribuem aos
deuses esferas de atuação dentro da ordem cósmica, e funções em
seu estabelecimento. A teologia filosófica se contrapôs às tradições
religiosas de modo crítico somente na medida em que a unidade do
cosmo em última análise necessita da unidade de uma origem divina,
ainda que essa possa apresentar-se secundariamente em uma plura­
lidade de aspectos. De modo análogo, a relação com o mundo e com
a fundamentação de sua unidade teve importância decisiva para o
desenvolvimento da fé de Israel em seu Deus, desde a idéia da cria­
ção até a convicção da exclusiva deidade de Javé, tal como ela veio
plenamente à luz em Dêutero-Isaías (Is 40.12s.; 45.18-21). Também o
fato de a teologia filosófica ter feito da relação com o mundo, com o
mundo em seu todo, o critério da idéia de Deus, de modo algum se
encontra em oposição ao discurso bíblico a respeito de Deus. Tam­
bém a teologia cristã primitiva preservou a convicção de que o Deus
revelado em Jesus Cristo não é outro do que o criador do mundo,
e, deste modo, pura e simplesmente o único Deus. Justamente esta
é a função fundamental do discurso a respeito de Deus na teologia
cristã: em Jesus Cristo, o criador do mundo se tornou presente en­
tre os homens e se revelou a eles. Esse conteúdo da palavra "Deus"
naturalmente não pode ser deduzido de qualquer experiência indi­
vidual, também não de qualquer experiência individual religiosa21•

21
Por isso certamente não é acaso que nas explanações de DALFERTH sobre a "ex­
periência da palavra de Deus dirigida a nós" em Jesus Cristo é inteiramente
omitida a relação com o mundo dada com a palavra "Deus". DALFERTH faz a
objeção a si mesmo: "Para se experimentar Jesus como a interpelação de Deus,
"Deus" não pode ser uma expressão vazia para mim". Ele, contudo, denomina
essa objeção como "não consistente nesses termos", porque nisso a palavra
"Deus" estaria sendo compreendida como caracterização geral, e não como
"designativo rígido" que denomina apenas uma única pessoa (p. 600). Nisso
DALFERTH esquece que a compreensão da palavra "Deus" como designativo
rígido já pressupõe a singularidade de Deus (e a relação com o mundo nela
implícita). Sem essa implicação, porém, o próprio discurso sobre uma "expe­
riência da palavra de Deus dirigida ao ser humano" em Jesus Cristo é vazio e
A foÉIA DE DEUS E A PERGUNTA l'OR SUA VERDADE 11'1

Como ainda veremos mais adiante, a singularidade da experiência


religiosa vem ao encontro da interpretação por meio dessa palavra
de modo especial, como aliás as interpretações do mundo das cul­
turas antigas, em cujo ambiente se desenvolveu a idéia de Deus,
têm origem e caráter religiosos. Justamente no uso singular, a pa­
lavra "Deus", para falar com lAN T. RAMSEY, é uma "palavra-chave"
da compreensão do mundo baseada na religião. É uma palavra que
não é, em primeiro lugar, uma descrição do conteúdo de percepções
individuais ou que uma palavra tenha sua função no contexto de tais
descrições, mas ela possibilita uma "explicação derradeira" para o
ser do mundo em seu todo. Faz isso, p.ex., por meio da afirmação da
criação, sendo assim simultaneamente expressão e fundamentação
daquele engajamento absoluto, ligado à experiência religiosa22 .
Uma lembrança dessa função está ligada a essa palavra "Deus"
ainda no contexto do secularismo moderno. Se ela nos olha como
um "rosto cegado", por sua estranheza, ela lembra o déficit de sen­
tido do moderno mundo de vida, no qual o tema da unidade e to­
talidade está eliminado, e no qual a totalidade da existência huma­
na se tornou uma pergunta sem resposta. Que aconteceria se essa
palavra tivesse desaparecido por completo? KARL RAHNER respon­
deu a isso com razão dizendo: "Então o ser humano não é mais
confrontado com o todo da realidade como tal, e não mais com o
todo de sua existência como tal. Pois é justamente isso que a palavra
'Deus' faz, e somente ela ..."23. Essa talvez nem sempre foi a função

22
I. T. RAMSEY, Religious Language, p. 53, cf. p. 83 (sobre idéia da criação) e p. 48
(sobre a relação de palavras-chave e percepção), e, por fim, a descrição do "en­
contro religioso como um encontro total como o universo inteiro", o qual, por
causa de sua totalidade, está ligado a "palavras-chave" que fundamentam a
intelecção, da qual o engajamento resulta como resposta (p. 41).
23
Grundlcurs des Glaubens, 1976, p. 57. Cf. tb. T. RENDTORFF, Gott - cin Wort unsercr
Sprache? Ein theologischer Essay, 1972, pp. 18ss. Apesar de uma expressão mal­
entendida na p. 28, em RENDTORFF, a palavra "Deus" não deve ser tornada como
"nome" para o todo da realidade (assim J. TRACK, loc. cit., p. 303, nota 64), mas,
como consta expressamente na p. 31, como o "sujeito" desse todo do mundo.
RENDTORFF se refere com essas exposições criticamente a E. JüNCEL, Gott - als
Wort unserer Sprache (Unterwegs zur Sache, Theologische Bermerkungen, 1972,
pp. 80-104), assumindo, por sua vez, a concepção de C. EBEUNG, Gott und Wort,
- ... .
1966, pp. 60s., contestada por JüNGEL (p. 84), segundo a qual Deus já é antes da
,
1J2 TEOI.C1GIA SJSTEMÁTICA - VOLUMEI

da palavra "Deus". Enquanto se contava com uma pluralidade de


deuses, a pergunta pela unidade do mundo se apresentava como
uma pergunta especial, não respondida sem mais nem menos com
a existência de deuses. Ela encontrou sua resposta primeiramente
na compreensão da ordem do mundo dos deuses que se manifes­
ta na ordem do cosmo e serve de base à ordem social do mundo
dos homens. No entanto, desde que o grande número de deuses foi
reduzido à idéia do um só Deus como origem do único mundo, a
palavra "Deus" se tornou a "palavra-chave" para a consciência do
mundo em seu todo e da totalidade da vida humana. Ao lado do
desenvolvimento da fé de Israel da monolatria, da veneração de um
só Deus, do monoteísmo como a convicção da existência somente
desse único Deus, a filosofia teológica dos gregos se tornou pioneira
para isso. Ela foi especialmente condição da compreensibilidade e
plausibilidade para não-judeus da mensagem cristã da revelação do
Deus uno de todos os seres humanos (lTs 1.9s., cf. Rm 3.29s.) em Je­
sus Cristo. Nesse sentido, não se trata aqui de uma herança da qual
o cristianismo de urna Igreja gentílico-cristã pudesse distanciar-se
sem mais nem menos - e sem conseqüências de longo alcance e de
peso. Esse estado de coisas muitas vezes foi avaliado e apresentado
de modo errado na teologia protestante desde ALBRECHT RITSCHL e
sua escola, da qual provém KARL BARTH com sua rejeição da "teo­
logia natural". O espírito do helenismo e especialmente a teologia
filosófica dos gregos não podem ser expulsos sem mais nem menos
da compreensão do cristianismo como um fator meramente exterior
e falsificador da mensagem do Evangelho pretendido como pura-

Nisso, todavia, RENDTORFF não conta com a concentração de EBELING no "caráter


linguístico", na "situação elementar do ser humano como situação da palavra"
(p. 57). No mais, porém, suas exposições concordam em grande parte com as
de EBELJNG, Wort und Glaube l, 1960, p. 434, sobre a pergunta por Deus, que con­
cerne à consciência como "pergunta pelo todo, pelo primeiro e pelo último", e
que encerra em si a pergunta pelo mundo e pelo ser humano. EBEL!NG natural­
mente também acentua na passagem citada a mediação lingüística ("modo de
encontro") desse contexto. Isso não precisa ser motivo de conflito na medida em
que existe consenso sobre o fato de que no caso de palavra e linguagem não se
trata de "meras" palavras, mas de linguagem com a função de compreender a
realidade. Disso faz parte a diferenciação entre palavra e conteúdo por meio da
A IDÉIA DE DEUS E A PERGUNTA POR SUA VERDADE 113

mente moral. No mínimo, o gentílico-cristão e uma Igreja gentílico­


cristã não podem julgar o estado de coisas de modo tão indiferen­
ciado, sem destruir as premissas da própria opção pelo Deus dos
judeus como pelo Deus uno de todos os seres humanos. Com isso,
todavia, ainda se disse muito pouco sobre a função que compete
a tal teologia filosófica ou "natural" no contexto de uma compre­
ensão cristã de Deus. De modo algum ainda não está esclarecida a
relação entre teologia filosófica e o conhecimento de Deus por parte
da fé cristã mediado pela revelação histórica de Deus pela simples
constatação de que aqui não bastam meras alternativas. Essa cons­
tatação também não diz que ao lado da revelação de Deus pudesse
existir algum conhecimento de Deus sem Deus, um conhecimento
de Deus que não partisse do próprio Deus2\ já em passagem an­
terior ficara evidente que tal suposição aboliria a própria idéia de
Deus. Ainda está por ser esclarecido se a "teologia natural" afirmou
tal coisa, mas não deveria ser suposto de antemão. Por outro lado,
também não se pode excluir de antemão, antes deve ser presumido,
que na luta de proeminentes teólogos evangélicos dos últimos dois
séculos contra a influência de uma "teologia natural" podem estar
contidos momentos de verdade na tradicional doutrina teológica
de Deus, os quais devem ser considerados. Disso inclusive poderia
evidenciar-se que o conceito de uma "teologia natural" a ser distin­
guida da teologia da revelação como tal não é adequado e que seria
melhor desistir dele, sem que com isso se tivesse que negar à tradi­
ção da teologia filosófica, com suas demonstrações da existência de
Deus e com seus critérios para uma determinação positiva da idéia
de Deus, qualquer relevância no contexto de uma doutrina cristã de
Deus. Antes, porém, de podermos chegar a um juízo razoavelmente
fundamentado sobre qualquer uma dessas perguntas, haveremos
de esclarecer p�rimeiro o conceito de teologia natural e suas funções
na tradicional doutrina dogmática a respeito de Deus.

24
Este é o ponto de vista que determina a argumentação de JONGEI. no artigo citado
(loc. cit., pp. 84s.). O próprio JüNGEL colocou sua abrangente análise da idéia de
Deus sob o título Gott ais Geheimnis der Welt [Deus como Mistério do Mundo]
(1977); nisso deu ao conceito de mistério a interpretação de que ele próprio deve

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