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C.

Robert Mesle

Teologia do
Processo
uma introdução básica

Capítulo final por John B. Cobb, Jr.

PAULUS
C . ROBERT MESLE
JOHN B. COBB, JR. (últim o capítulo)

TEOLOGIA DO PROCESSO
Uma introdução básica

Digitalizado por: Jolosa

PAULUS
Título original: Process Theo/ogy: A Basic Introduct/on
© 1993» Chalice Press, St. Louis, USA
ISBN-10: 0-827229-45-3
IS B N -13:978-0-827229-45-7
Tradução: Luiz Alexandre Solano Rossi
Diretor editorial: Claudiano Avelino dos Santos
Assistente editorial: Jacqueline M endes Fontes
Revisão: Iranildo Bezerra Lopes
Tiago José R/si Leme
Renan Damaceno
Diagramação: A na Lúcia Perfoncio
Capa: A n derson Daniel de Oliveira
Impressão e acabam ento: PAULUS

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mesle, C. Robert
Teologia do processo: uma introdução básica / C. Robert Mesle; [tcadução Barbara
Theoto Lambert]. - 1 . ed. - São Paulo: Paulus, 2013.
Título original: Process theology: a basic introduction.
ISBN 978-85-349-3687-3
1. Deus 2. Fé 3. Processo - Teologia 4. Vida cristã I. Título.

13-06443 CDD-230.046

índices para catálogo sistemático:


1. Teologia do processo: Cristianismo 230.046

1* edição, 2013

© PAULUS - 2013
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 - São Paulo (Brasil)
Tel.: (11) 5087-3700 - Fax: (11) 5579-3627
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ISBN 978-85-349-3687-3
DEDICATÓRIA

A
meus pais, que me ensinaram como fazer teolo­
gia. Eles me ensinaram, querendo eles ou não,
que a teologia deve ser sobre valores, e que a teologia
cristã, especialmente, deve ser sobre o amor. Tenho
tentado explorar a natureza do amor, perguntando:
"Como deveria ser um Deus amoroso?". Esse é o as­
sunto deste livro.
Para Barbara, que acredita neste livro. E para Sa-
rah e Mark. Eu os amo mais do que chocolate - até
mais do que a nossa calda quente de "fudge" sobre
sorvete de baunilha e brownies, com um pedaço do
sagrado "fudge" ao lado.
Teologia do processo - Uma introdução básica

5
AGRADECIMENTOS

V
ários colegas dispuseram de seu valioso tempo,
oferecendo comentários sobre este manuscrito,
pelos quais sou muito agradecido. Roger Yarrington
fez com que tudo acontecesse, e respondeu aos meus
desvios no curso deste trabalho com mais paciência
e gentileza do que eu merecia. Estou em profunda
dívida para com ele de muitas maneiras. Jim Will
continua a ser meu professor e amigo. Rod Downing
mudou o curso deste manuscrito ao me desafiar so­
bre preocupações ecológicas e de libertação. Jerome
Stone ajudou-me sem saber. Barry W hitney foi de
enorme ajuda, especialmente por ser um amigo que
eu não havia conhecido. E, naturalmente, John Cobb
Teologia do processo - Uma introdução básica

me inspirou desde o início, ajudando-me até o fim.


Irene Shepherd merece reconhecimento especial
como uma das minhas primeiras conselheiras sobre
este manuscrito. Obrigado, Rene.
Howard Booth sempre me encorajou e apoiou,
refreando meu naturalismo de maneira muito útil. E
agradável quando acreditam em você.
Minha esposa, Barbara, merece agradecimento
especial por me ajudar com o capítulo sobre o fe­
minismo. Ela tem sido minha professora há muitos
7
anos e continuará sendo pelos anos que ainda estão
por vir.
Muitos outros me ajudaram com sugestões, de­
safios e paciência ao longo dos anos. Agradeço a to­
dos eles.
INTRODUÇÃO

Deus é amor (1 João 4,16).


O fundamento para este livro, pois, é a convicção de
que um magnífico conteúdo intelectual... está implícito
na fé religiosa, mais resumidamente expressa em três
palavras - Deus é amor palavras as quais eu creio
sinceramente são contraditas de modo tão verdadeiro
quanto o fato de estarem incorporadas ao que melhor
se conhece das teologias antigas.1
// rTleologia do processo" é o nome do esforço feito
X para que a afirmação da fé cristã básica de que
Deus é amor faça sentido no mundo moderno. Essa
não é uma tarefa fácil. Ela requer que repensemos a
Teologia do processo - Uma introdução básica

natureza tanto de Deus quanto do mundo.


Por que necessitaríamos de uma nova teologia?
Por causa do mal, da ciência moderna, dos estudos
modernos da escritura e da revelação que nos con­
frontam com suas origens históricas humanas; por
causa do aumento do contato com outras religiões
mundiais, do feminismo e da nossa habilidade em

1. Charles Hartshorne, M arís Vision of Cod (Archon Books, 1964), p. ix.


Como a maioria dos teólogos do processo, Hartshorne agora evita a lingua­
gem sexista - como Homem - neste título.

9
destruir o mundo através da poluição e de armas nu­
cleares. Ao longo dos anos, tenho me convencido de
que a teologia do processo confronta cada uma des­
sas realidades com respostas que fazem muito mais
sentido do que muitas visões tradicionais de Deus.
Embora os teólogos do processo com frequência vi­
sem a problemas econômicos, políticos e sociais, pa­
rece-me apropriado que esta introdução foque sobre
o conceito de divindade que fundam enta e motiva tal
trabalho.
A maior parte deste livro discute o teísmo do
processo - um modo de repensar o conceito de Deus
como o Sujeito divino que ama, deseja, planeja e age
na natureza e na história humana. Podemos dizer,
que esse Deus é um ser divino, mas provavelmente
isso causará mais confusão do que esclarecimentos.
Teístas do processo relacionai partilham a insistên­
cia de Paul Tillich de que devemos pensar em Deus
como um ser divino (apesar de poderoso etc.) em
meio a outros, a quem podemos ou não encontrar.
Mas os teístas do processo não partilham a visão de
Paul Tillich de que Deus é um Ser em-si-mesmo (ou
mesmo a criação em si mesma).
Preferencialmente, eles concebem Deus como
um ser no sentido de que Deus é o sujeito de sua pró­
pria experiência como Deus, é consciente, ama, pla­
neja e age. Mas como ficará mais claro no decorrer
deste livro, a experiência de Deus inclui a experiên­
cia de cada criatura e a experiência que cada criatura
necessariamente incorpora, a cada momento; uma
C. Robert Mesle

experiência de Deus. Assim, a visão de como Deus


e o mundo estão interligados não se encaixa perfei­
tamente em qualquer dos caminhos tradicionais ou
tillichianos de pensar. E para lembrar aos leitores so­
10
bre esse fato que falarei do Deus do processo como o
Sujeito divino. Também, é importante falar de um te-
ísmo do processo-relacional como sendo diferente de
muitas teologias modernas e naturalismos religiosos
que falam de "Deus" em termos de amor humano,
processos naturais e assim por diante.
Naturalmente, nem todos os teístas do processo
pensam da mesma forma. Visando à simplicidade e à
brevidade, simplesmente ignorarei as discordâncias
técnicas entre os teólogos do processo e focarei nas
ideias mais amplamente aceitas. Esta visão apresen­
tada aqui é meu próprio esforço em descrever a for­
ma do teísmo do processo que faz mais sentido para
mim. Minha meta, da Parte I até a Parte III é explicar
o teísmo do processo do modo mais simples e claro
que eu puder, de modo que você, leitor, possa con­
siderar por si mesmo se isso faz ou não sentido para
você.
Também gostaria de reconhecer que este livro
é escrito fundam entalmente para um público cris­
tão. Isto é somente uma expressão de minha própria
inadequação. Penso que não entendo outras comuni­
Teologia do processo - Uma introdução básica

dades religiosas bem o suficiente para ter confiança


em poder abordar estes pensamentos diretamente
de acordo com as suas preocupações e perspectivas.
Deve ser enfatizado, entretanto, que existem teístas
do processo judeus e teístas do processo unitaria-
nos não cristãos, assim como budistas e outros que
estão em sério diálogo com o pensamento processo-
-relacional. E, certamente, nem todos os naturalistas
do processo pensariam em si mesmos como cristãos.
Assim, se este livro chamar a atenção de leitores não
cristãos, espero que eles vejam que o intento desta
obra é abordar questões que são humanas, inter-re-
11
ligiosas e globais, e fazer isso com a maior abertu­
ra possível aos valores das religiões e povos não
cristãos.

O significado de teologia “tradicional" ou “clássica”

Do começo ao fim deste livro, serão feitas refe­


rências às visões "tradicional" ou "clássica" de Deus.
Obviamente, dois mil anos de teologia cristã produ­
ziram uma vasta gama de compreensões de Deus.
No entanto, penso que seja razoável apontar para
uma tradição prevalecente, familiar à maioria dos
cristãos. Na visão tradicional ou clássica, Deus é oni­
potente (possui todo o poder que existe, pode fazer
qualquer coisa que queira, que não seja contraditó­
ria a Si mesmo), é onisciente e eterno "(permanece
fora do tempo, de modo a ver todo o tempo de uma
só vez, e por isso conhece o "futuro" infalivelmente),
e é absolutamente imutável em todo o aspecto. Tam­
bém, muitos cristãos modernos diriam que Deus li­
mita o poder do próprio Deus a fim de perm itir espa­
ço para a liberdade hum ana. Eu poderia dizer mais,
mas isto seria bastante familiar. Assim, peço perdão
àqueles que têm plena consciência da diversidade
da teologia cristã, mas espero que m inha abordagem
seja vista como razoável para um livro introdutório
deste tipo.

A parte difícil: repensar os fundamentos filosóficos


C. Robert Mesle

O apelo à experiência hum ana comum é básico


ao pensamento do processo. A frase "experiência hu­
mana comum" tem realmente dois significados. Ela
12
parcialmente se refere a experiências "ordinárias",
tais como sentir dor, tristeza ou alegria, saborear cho­
colate, enxergar as cores ou ficar irritado. Mas ela
também se refere àquelas dimensões da experiência
que são absolutamente universais, porque elas são
elementos necessários para qualquer experiência. Os
pensadores do processo trabalham duro para obter
suas crenças a partir dessas experiências. Nesse as­
pecto, muitas pessoas percebem que partilham ideias
do processo o tempo todo. Isso torna a explicação
mais fácil. Ao mesmo tempo, no entanto, a teologia
do processo repousa sobre algumas ideias a respeito
da natureza da realidade, que são fundam entalmen­
te diferentes daquelas das teologias tradicionais. Se
ficássemos somente na superfície, poderíamos evitar
falar a respeito dessas diferenças e m anter as coisas
simples. Mas isso seria uma má teologia.
É um simples fato histórico que os antigos filó­
sofos gregos como Platão e Aristóteles tiveram um
impacto profundo na teologia cristã - um impacto
que talvez a Bíblia nunca tenha tido. Mas raramente
estamos conscientes das hipóteses filosóficas sobre a
realidade que fundamentam nossas teologias tradi­
Teologia do processo - Uma introdução básica

cionais. Entretanto, pessoas que nunca ouviram falar


de Platão ou Aristóteles têm herdado as formas ru­
des de suas ideias. E é impossível fazer revisões teo­
lógicas verdadeiramente fundamentais sem desafiar
essas origens gregas. Isso se tornará gradualmente
óbvio à medida que você ler este livro.
Quando você pergunta: "Como Deus age?”, a
maioria das teologias tradicionais não tem respos­
ta. "Ele apenas age!” Mas a teologia do processo é
estimulante e intelectualmente responsável precisa­
mente porque ela realmente tenta falar sobre como
13
Deus age no mundo. É estabelecendo a ideia de Deus
dentro de uma visão abrangente da realidade que os
teólogos do processo são capazes de abordar com
maior clareza as questões difíceis que nos confron­
tam atualmente. Para compreender essas respostas,
entretanto, será gradualmente necessário ocupar-se
da tarefa desafiadora de repensar nossas visões bá­
sicas da realidade. Devemos examinar a natureza do
tempo, do poder, da liberdade e do relacionamento
entre m entes e corpos.
M inha estratégia é começar com uma visão ge­
ral muito simples, que é essencialmente uma lista
de ideias-chave. Então, ainda evitando as questões
filosóficas mais difíceis, quero pintar um retrato m ais.
conectado daquilo que eu mais gosto na teologia do
processo. Só então voltaremos nossa atenção ao exa­
me cuidadoso de questões específicas.

Meu motivo:
teologia do processo como um modelo ético

A teologia do processo é verdadeira? O Deus que


ela descreve realmente existe fora da nossa imagi­
nação humana? Eu não sei. Na verdade, eu me vejo
como um naturalista do processo, e explorarei isso
brevemente na Parte IV. Por que, então, defendo o
teísmo do processo tão apaixonadamente nestas pá­
ginas?
^ Primeiro, a teologia do processo poderia ser ver­
C. Robert Mesle

dadeira. Isso faz sentido. Ela envolve e trabalha com


fatos confusos da vida, sofrimento, ambigüidade,
discernimento científico, pluralismo religioso, femi­
nismo e ecologia, enquanto as teologias tradicionais,
14
a meu ver, veem essas questões como embaraços a
serem acomodados ou explicados posteriormente. A
teologia do processo me parece ser consistente em
si mesma e consistente com o mundo em que vivo.
As teologias tradicionais, em minha visão, não o são.
Dessa forma, a teologia do processo merece um es­
tudo sério. Isso faz sentido. Isso pode ser verdadeiro.)
( Segundo, mas simplesmente tão importante
quanto, eu ensino o valor da teologia do processo
porque ela tem uma boa ética. A teologia do proces­
so tem me ensinado uma maneira melhor de refletir
sobre o que a ideia de "Deus" significa.^Francamen­
te, eu acho a ética do Deus tradicional terrivelmen­
te errática e frequentemente demoníaca. Na Bíblia,
e em muito do pensamento cristão, Deus tem sido
descrito como diretamente disposto a causar grandes
males: guerra, escravidão, praga, fome e mesmo a
dureza dos corações humanos. Na melhor das hipó­
teses, Deus tem sido retratado como alguém que fica
de lado, permitindo o sofrimento desnecessário que
"Ele" poderia facilmente ter impedido. Para defender
nossas ideias sobre Deus, somos impelidos a virar do
avesso nossas ideias sobre o bem e o mal, a fim de
Teologia do processo - Uma introdução básica

explicar por que é realmente bom para Deus perm i­


tir tão grande sofrimento.
A teologia do processo tem me ensinado que não
existe uma razão simples para deixar nossas velhas
ideias sobre o poder divino nos forçar para um canto
onde devemos persuadir a nós mesmos que malda-
des brutais são realmente boas. Ela tem me apresen­
tado um modelo de um Deus que é genuinamente
amoroso em um sentido direto e inteligível. O Deus
da teologia do processo faz tudo dentro do poder di­
vino para trabalhar para o bem.
15
Muitos teólogos modernos apontariam m ui­
to justam ente que qualquer visão da divindade ou
mesmo da natureza que os humanos criam deve ser
entendida como um modelo ou mito. A teologia do
processo, nesse sentido, é um mito completamente
moderno precisamente na extensão de que ela criati­
vamente guia o caminho e se baseia em nossas lutas
modernas da melhor forma para visionar a natureza
da realidade, o significado do amor e a profundidade
do sagrado, da maneira como experimentamos hoje.
Assim, mesmo que o Deus do teísmo do processo
deva deixar de existir, ou mesmo que não exista ne­
nhum ser divino, mesmo que achemos mais útil pen­
sar em todo o empreendimento como sendo a criação
de mitos ou modelos, estou convencido de que a teo­
logia do processo merece nossa mais séria .atenção. O
modelo ético que a teologia do processo nos mostra
pode transform ar toda a nossa forma de pensar sobre
religião, vida e valores. Eu estimulo você a refletir
sobre isso com a mente e o coração abertos.
O fato de eu ter tomado a decisão incomum de
incluir um capítulo (capítulo 17) que genuinamente
desafia a teologia apresentada neste livro, é porque
me parece importante que a teologia do processo te­
nha a última palavra da forma mais forte possível.
Fiquei encantado quando John B. Cobb Jr., que eu
vejo como o preeminente teólogo do processo, con­
cordou em escrever um capítulo conclusivo para o
livro. Especificamente, ele concordou em refletir
sobre três questões fundamentais: Por que necessi­
C. Robert Mesle

tamos de Deus para que o mundo faça sentido na


visão processo-relacional? Que diferença o Deus do
processo faz no mundo de nossa experiência? Que
outras contribuições o pensamento do processo pode
16
dar, além das discutidas neste livro? Dr. Cobb aborda
essas questões com sua costumeira clareza, discerni­
mento e sabedoria.
Alfred North Whitehead, sobre cujos discerni­
mentos muito do pensamento do processo é funda­
mentado, oferece bons conselhos para a jornada na
qual estamos prestes a embarcar.
E permanece a reflexão final de quão superficiais,
insignificantes e imperfeitos são os esforços para fa­
zer soar as profundezas na natureza das coisas. Na
discussão filosófica, a mera sugestão de uma certeza
dogmática quanto à finalização de uma afirmação é
uma exibição de insensatez.2
W hitehead concordou com Platão que qualquer
esforço nos dá, na melhor das hipóteses, uma "estó­
ria provável". Ademais, a própria questão merece e
requer paixão, assim como a vida merece e requer
convicção e abertura semelhantes. Junte-se à jornada
comigo por um tempo, mesmo que eu mostre algu­
ma insensatez. Teologia do processo - Uma introdução básica

2. Alfred North Whitehead, Process and reality: As Essay in Cosmology,The


Free Press, edição corrigida, Griffin and Sherburne (orgs.), 1978, p. xiv.

17
PENSAMENTO DO PROCESSO:
UMA VISÃO GERAL

A
ntes de embarcar numa longa jornada, geral­
mente é recomendado checar um mapa para
uma previsão do lugar aonde você está indo. Quanto
mais território o mapa cobrir, menos ele lhe conta
sobre cada passo ao longo do caminho. Os detalhes
das saídas da rodovia e as ruas de retorno e, espe­
cialmente, a beleza do cenário são descobertos mais
tarde. Ainda assim, o grande mapa da rodovia é útil
para nos orientar.
Essa visão geral pretende cumprir tal função. Ela
lhe dá uma inspeção bastante condensada do terreno
do pensamento do processo, porém sem as explica­
ções detalhadas, os argumentos ou as lutas mais pro­
Teologia do processo - Uma introdução básica

fundas. Ao ler o livro, você pode desejar retornar a


essa visão geral periodicamente, pois as amplas afir­
mações feitas aqui ganham profundidade e significa­
do em sua mente. Ao final do livro, você deveria ser
capaz de ver o mundo maior e mais bonito do que
esse mapa resumidamente esboça para você.

A visão do processo

Todas as coisas fluem. A realidade é relacionai


por completo. A realidade é um processo social.
19
A liberdade é inerente ao mundo. Ser um indiví­
duo - seja uma mente hum ana ou uma partícula ele­
m entar - é ser autocriativo. Mas cada indivíduo deve
criar a si mesmo a partir de tudo o que aconteceu
antes. Decisões passadas tanto alimentam quanto li­
mitam as possibilidades do presente. Dentro desses
limites, o futuro está aberto.
A experiência é rica e complexa. A clareza da
experiência do sentido está fundam entada em expe­
riências mais profundas, porém mais vagas do nosso
relacionamento com o processo do mundo. Adequa­
ção a esta riqueza de experiência é o teste definitivo
de nossas ideias.
O mundo é rico com vida. O universo não está.
centrado ao redor dos seres humanos, e nós certa­
mente não somos as únicas criaturas que^experimen-
tam dor e prazer. O "domínio" provou ser um modelo
teológico trágico para compreender nosso relaciona­
mento ético com este mundo. Ao invés disso, deve­
mos ver a nós mesmos como participantes de uma
frágil e complexa rede de relacionamentos na qual
toda criatura tem algum valor.

Teísmo do processo

Deus é amor. Isto é, Deus é o único Sujeito cujo


amor é o fundamento de toda realidade. É através do
amor de Deus que todas as coisas vivem, se movem
e têm seu ser. Deus é o supremamente relacionado,
partilhando a experiência de toda criatura e sendo
C. Robert Mesle

experimentado por toda criatura.


í O poder de Deus no mundo é necessariamen­
te persuasivo, não coercitivo. Deus age pela autor-
20
-revelação. Deus, que é a fonte de nossa liberdade,
não pode coagir o mundo. )
Jesus, também, tinha liberdade. Ele escolheu ser
completamente responsável ao chamado e ao amor
de Deus. Desse modo, sua vida e morte revelam o
caráter do amor de Deus e o chamado de Deus a cada
um de nós.
Porque Deus ama perfeitamente, Deus sofre com
o mundo, chamando-nos a cada momento através
da divina autorrevelação, partilhando uma visão do
bem e do belo. Deus não pode anular nossa liberda­
de, mas espera nossa livre resposta, constantemente
e com infinita paciência, procurando criar o melhor
que pode ser obtido de cada escolha que fazemos.
[ Deus é onisciente, conhecendo tudo o que existe
para ser conhecido perfeitamente. Mas isso significa
conhecer o futuro como aberto, como uma gama de
possibilidades e probabilidades, não fixas ou estabe­
lecidas.
Deus é coeterno com o mundo e partilha a aven­
tura do tempo conosco. Sempre existiu um mundo
de algum tipo no qual Deus tem sido criativamente
Teologia do processo - Uma introdução básica

ativo.
Deus é onipresente. Cada pessoa (na verdade,
cada criatura) a cada momento está experimentando
Deus como o fundamento, tanto da ordem quanto
da liberdade. Deus, imediatamente, torna a liberda­
de possível e nos chama para escolher o bem, para
escolher a visão de Deus para o mundo. Assim, Deus
trabalha no mundo através de uma autorrevelação
contínua e universal.
Mas nossa experiência de Deus está inerente­
mente entrelaçada com a nossa experiência do m un­
21
do, de modo que elas moldam uma à outra. Deus
luta para nos alcançar através do vidro escuro que
obscurece nossa visão. Assim, a revelação é onipre­
sente e contínua, mas sempre ambígua.
Similarmente, Deus é o fundamento do vir a ser
do mundo. Tanto na natureza quanto na história,
Deus age no mundo pela autorrevelação. Mas aqui,
também, o poder de Deus está inerentem ente entre­
laçado com o poder do mundo.
("Cada evento reflete tanto o poder de Deus quan­
to o poder do mundo. O mundo pode ser mais ou
menos responsivo para com Deus, mas não existem
eventos separados em nosso mundo que permaneçam
fora das leis da natureza e da história para os quais
podemos apontar e dizer: "Deus fez isso sozinho”J
PARTE I
UM DEUS DIGNO DE ADORAÇÃO
Capítulo 1
AMOR, PODER E ADORAÇÃO

mporta se alguém nos ama. Não há experiência


Icristãs
hum ana mais fundamental para a fé e a tradição
do que a transformação maravilhosa de ser
amado quando menos o merecemos. Ela é o próprio
coração do evangelho do Novo Testamento, no qual
a vida e a morte de Jesus revelam o amor incondi­
cional e gratuito de Deus. "Por isso, o amor de Deus
é manifesto entre nós...", "Enquanto éramos ainda
pecadores....", "Amados, se Deus nos amou de tal
maneira...", "Nós amamos porque ele nos amou pri­
meiro".
Na teologia do processo, Deus está constante­
Teologia do processo - Uma introdução básica

mente, a todo o momento e em todo lugar, fazendo


tudo dentro do poder dele a fim de trazer o bem. O
poder divino, no entanto, é persuasivo e não coerci­
tivo. ÍDeus não pode (realmente não pode) forçar as
pessoas ou o mundo a obedecer à sua vontade. Ao
contrário, Deus trabalha ao partilhar conosco uma
visão do melhor caminho, do bem e do belo. O poder
de Deus se fundam enta na paciência e no amor, não
na força.)
Isso não significa dizer que Deus é "fraco" ou fi­
nito. Teólogos do processo argumentam que simples­
mente compreendemos de maneira errada a nature­
25
za do poder divino. Uma pessoa pode levantar uma
pequena pedra. Dessa forma, pensamos que Deus,
com infinito poder, deve ser capaz de levantar pe­
dras infinitamente grandes. Um pai pode puxar uma
criança descuidada da frente de um carro; da mesma
forma Deus deve ser capaz de abrir o Mar Vermelho
e salvar os israelitas.
Mas nós temos mãos, e Deus não. Ou melhor,
quando mãos são necessárias, Deus deve contar com
as mãos das criaturas para fazer esse trabalho. Nosso
poder é de um tipo que surge de nossa existência em
pequenos corpos orgânicos com olhos, orelhas, mãos
e um sistema nervoso. Assim, enquanto levantamos
rochas e puxamos braços, nosso poder é severamente
limitado no tempo e no espaço. Deus não tem um
corpo como o nosso (embora possamos pensar no
universo inteiro como sendo o corpo de Deus). Deus
não tem mãos próprias, com as quais possa levantar
e puxar. Assim, Deus não pode fazer algumas das
coisas que nós podemos. O poder de Deus é de um
tipo radicalmente diferente do nosso de muitas ma­
neiras - mas não sem alguns pontos de contato. O
poder de Deus é infinito, eterno e universal. O poder
de Deus é o poder que permite que toda a realidade
continue seu avanço criativo, que torna as criaturas
livres, que partilha a experiência de toda criatura e é
experimentado por toda criatura. O poder criativo de
Deus sustenta o universo. Dessa forma, o poder de
Deus é infinitamente maior do que o nosso, e muito
diferente. Porém, é somente por meio das criaturas
do mundo que Deus tem mãos.
C. Robert Mesle

f Muitas pessoas, no entanto, respondem inicial­


mente â teologia do processo dizendo que um Deus
que não tem o poder de controlar o mundo não é
26
realmente Deus./Talvez esta seja uma reação com­
preensível, dada a nossa tradição, mas eu o estimulo
a deixar para trás essa ideia.í É o poder de levantar
rochas que garante a adoraçao?/Fundamentalmente,
é o poder ou o amor de Deus que leva você ao amor
de Deus, a adorá-lo, a desejar comprometer sua vida
a serviço dele?
O que significa para Deus ser adorado? Obvia­
mente, existem muitas maneiras de adoração. Pes­
soas têm adorado deuses por medo, oferecendo sacri­
fícios para aplacar a ira divina. Pessoas têm lançado
virgens de penhascos, arrancado fora os corações de
escravos, e mesmo assassinado seus próprios filhos
por medo da ira de deus (tais deuses, naturalmente,
estão sempre entre nós em forma de guerra, ganân­
cia, pobreza e ignorância). Não posso falar por você,
mas, apesar de um poder absoluto cheio de ira poder
forçar minha obediência, ele não pode vencer minha
adoração amorosa.
Além do medo, pessoas podem também adorar
no sentido de experimentar temor. Isso pode ser mais
saudável. Certamente, a maioria de nós fica impres­
Teologia do processo - Uma introdução básica

sionada diante da beleza dos céus, da majestade das


m ontanhas e da delicada arte das borboletas. Lem­
bre-se, no entanto, de que os tornados também são
impressionantes. Explosões nucleares são impressio­
nantes. Um grande mal pode ser impressionante.
Para mim, o único tipo de temor que é adoração
autêntica é o temor inspirado pela grande bondade
ou valor. Minha razão é simples. Adorar apropriada­
mente é centralizar nossas vidas ao redor de alguma
coisa, a ver isto como o foco próprio do nosso com­
promisso fundamental. Força bruta pode evocar meu
medo e mesmo meu temor, mas não minha adoração.
27
Minha adoração espera alguma coisa, ou alguém, a
quem valha a pena eu dar minha vida.
Que tipo de Deus, então, é digno de adoração?
Se eu tivesse que adorar mesmo algum Deus, o fun­
damento não seria meramente o da existência, mas o
da bondade. Seria um Deus que me chame para ser
o melhor do que eu possa ser, a dar o melhor que eu
possa dar, a partilhar em um grande e bom trabalho.
E um Deus cristão deve certamente ser um Deus que
estabelece o padrão com amor infinito.
A teologia do processo não é exclusivamente
cristã. Porém, não é por acidente que ela surgiu en­
tre os teólogos cristãos. Por um lado, você encontrará
neste livro muitas críticas à tradição cristã por ido:
latrar o poder, mais do que o amor. Mas, ao mesmo
tempo, permanece verdadeiro que o cristianismo é
uma religião construída ao redor do símbolo do amor
sacrificial - não do poder coercitivo.ÍSe Cristo é dig­
no de adoração, certamente não é porque Jesus podia
erguer grandes pedras, mas porque ele podia tocar as
vidas das pessoas e transformá-las na direção de um
amor e alegria maiores. )
Seria um erro pensar que o Deus da teologia do
processo é fraco.^Mas a teologia do processo atraiu­
-me porque ela me forçou a compreender que é a
bondade, não o poder coercitivo, que é digna do
compromisso fundamental - da adoração. Eticamen­
te, Deus é digno de amor porque Deus é perfeita­
mente amoroso. ]
C. Robert Mesle

Como um amigo, mas de um modo que nenhum


amigo pode, Deus partilha toda a nossa experiên­
cia, nossas alegrias e tristezas, nossas esperanças e
medos. Deus está conosco em nossos momentos de
28
maior culpa e desespero. Ainda, o amor de Deus
por nós nunca vacila. A cada momento, Deus toma
nossos sentimentos e decisões e responde a eles ao
chamar-nos a nos redimir daquelas experiências, não
importa o bem que possa ser obtido, e nos afastar­
mos delas em direções que podem, no futuro, render
um bem muito maior.
A diferença entre a visão tradicional do amor e
do poder de Deus e a visão do processo pode ser
ilustrada através de duas diferentes traduções de
Romanos 8,28 (por favor, perdoe-me aqui por m en­
cionar esta passagem sem considerar seu contexto.
Não estou afirmando que Paulo era um teólogo do
processo).
Nós sabemos que todas as coisas concorrem jun­
tas para o bem daqueles que amam a Deus... KJV
[King James Version).
Nós sabemos que em tudo Deus trabalha para o
bem com aqueles que o amam... RSV (Revised Stan­
dard Version).
A tradução familiar da KJV oferece claramente
Teologia do processo - Uma introdução básica

uma garantia sobre o resultado. Todas as coisas tra­


balharão para o bem, no mínimo para aqueles que
amam a Deus. Mas a tradução da RSV é rica em ou­
tras ideias. Deus trabalha para o bem. Isto não é uma
garantia de que o bem sempre irá acontecer. E uma
garantia sobre o caráter de Deus. Deus trabalha para
o bem. Onde? Em tudo. Teólogos do processo pensam
nisso com grande seriedade. Deus trabalha em tudo
para trazer o bem. E especialmente Deus trabalha
com todo o povo (na verdade, todas as criaturas) que
responderão ao chamado divino. Poderíamos ir mais
além e dizer que Deus trabalha com todo mundo e
29
todas as coisas, mas a passagem da RSV no mínimo
sugere que Deus convida à cooperação.
Afinal de contas, se Deus estivesse no controle
total, que necessidade Ele teria do nosso serviço? Pa­
rece óbvio que nossa religião hum ana quase sempre
assume que existe trabalho para fazermos, que Deus
está nos chamando para trabalhar com Ele no m un­
do. Certamente, judeus e muitos cristãos têm com­
preendido que construir o reino é um esforço coope­
rativo entre Deus e as pessoas.
A batalha entre o bem e o mal é uma batalha
real. Deus não pode garantir o resultado dentro deste
mundo. O que pode ser garantido é o amor inabalá­
vel e o constante trabalho de Deus para o bem. Deus
estará conosco a cada momento, partilhando nossas
lutas, partilhando nossas experiências de pecado e de
sofrimento e nos amando em meio a todos eles.
Capítulo 2
O AMOR DE DEUS E O NOSSO SOFRIMENTO

T
entar evitar ou atenuar dor e sofrimento desne­
cessários é lugar comum para todos nós. Se uma
pessoa próxima a nós tropeça e começa a cair, auto­
maticamente oferecemos uma mão firme para apoiá­
-la. Se alguém tem uma dor de cabeça, oferecemos
aspirina. Pais levam seus filhos para serem im uni­
zados contra doenças. Frequentemente, não temos
receio de interferir na liberdade dos outros a fim de
evitar dor desnecessária. Se uma criança começar a
correr para a frente de um carro, nós a deteremos,
se pudermos. Se virmos alguém tentando estuprar,
assaltar ou roubar alguém, tentaremos impedi-lo, no
mínimo chamando a polícia. Se não fizermos isso,
Teologia do processo - Uma introdução básica

nos sentiremos culpados.


Todos sabem que eventos dolorosos algumas ve­
zes acontecem para o bem. Algumas vezes eles po­
dem nos ajudar a crescer e a amadurecer, ensinando­
-nos a evitar males piores e a lidar com o sofrimento
que a vida inevitavelmente nos trará. Dado o mundo
cruel em que vivemos, há necessidade de alguns ti­
pos de aprendizado por meio da dor.
Mas sabemos também que nem todo sofrimento
é necessário ou valioso. A maior parte do sofrimento
31
da vida produz mais danos do que bem. Se uma pes­
soa tropeça e quebra um braço, ou mesmo só esfola
o joelho, ela pode ser mais cuidadosa no futuro, mas
ainda desejaríamos ter chegado a tempo. Se alguém é
estuprado, abusado quando criança, ou tem câncer,
essa pessoa, sem dúvida, aprenderá algo importante
sobre a vida. Mas ninguém está feliz com a existên­
cia desses males ou quer experimentá-los por razões
educacionais. E, certamente, não pensamos que o
valor da liberdade seja tão grande que justifique per­
m itir que estupradores, assaltantes ou assassinos co­
m etam seus crimes à vontade. O estupro prejudica
perm anentem ente o estuprador, bem como a vítima,
e ambos, definitivamente, perdem uma parte de sua
liberdade. Na verdade, esses crimes violentos geram
medo que assalta a liberdade de cada membro da
sociedade.
Algumas vezes, coisas más realmente se tornam
boas. Eu concordo que isso seja verdadeiro. Na ver­
dade, ninguém afirma mais ardentemente do que os
filósofos e teólogos do processo que a vida é comple­
xa, inter-relacionada e ambígua, e que o significado
e o valor dos acontecimentos podem m udar dram a­
ticamente ao longo do tempo. Isso pode ser sugerido
por uma escala informal de cinco respostas que pes­
soas podem dar quando olham para trás, num tempo
distante, para acontecimentos que, na época, foram
dolorosos.
1. Estou feliz que isto tenha acontecido! Apesar
de dolorosa na época, essa experiência me en­
C. Robert Mesle

sinou bastante e me levou a explorar formas


de vida completamente novas. As lições que
aprendi com esse evento foram mais impor­
tantes que os problemas.
32
2. Foi uma experiência difícil, mas penso que ela
foi para o bem.
3. Bem, aprendi muito com essa experiência e
sou uma pessoa melhor, de alguma forma, por
causa dela.
4. Foi uma experiência terrível. Aprendi a viver
com ela e tenho tentado usá-la como uma ex­
periência de aprendizado, mas ela sempre será
algo que eu lamento profundamente.
5. Foi horrível! Nada pode compensar o sofri­
mento que enfrentei e ainda enfrento.
Essas respostas são meramente sugestivas a par­
tir de uma série de respostas hum anas para even­
tos dolorosos. Algumas delas são bastante comuns,
outras mais raras. Um excelente exemplo da 4 a, ou
talvez mesmo da 5a, são encontrados no livro do ra­
bino Kushner, Quando coisas ruins acontecem a pes­
soas boas. O livro surgiu a partir da experiência de
Kushner com seu filho, Aaron, que morreu de uma
rápida doença do envelhecimento. Penso que parte
do poder do livro reside na recusa de Kushner em se
alegrar com o que aconteceu com seu filho. No fim
Teologia do processo - Uma introdução básica

do livro ele escreve:


Sou uma pessoa mais sensível, um pastor mais eficiente
e um conselheiro mais compreensivo por causa da vida
e da morte de Aaron do que jamais teria sido sem elas.
E eu renunciaria a todos esses ganhos em um segundo
se eu pudesse ter meu filho de volta. Se eu pudesse
escolher, abriria mão de todo crescimento e aprofun­
damento espiritual que me sobrevieram em função de
nossas experiências e seria o que eu era há 15 anos: um
rabino mediano, um conselheiro indiferente, ajudando
33
a uns e incapaz de ajudar a outros, e pai de um garoto
brilhante e feliz. Porém, não posso escolher.1
Apesar de ser difícil definir mal ou maldade
como conceitos filosóficos, todos sabemos que coisas
ruins acontecem neste mundo. Não ousamos chamá­
-las de bem com receio de dizer que a luta contra elas
é equivocada.
Tudo isso é senso comum. Confirmamos isso com
nossas ações e pensamentos várias vezes ao dia. E é
muito raro que lamentemos o fato de termos evitado
que alguém se ferisse ou ferisse a outros, num a per­
cepção tardia de que eles teriam ficado melhor pela
dor. E muito mais provável que nos sintamos culpa­
dos por termos falhado em ajudar quando podíamos.
E claro que às vezes devemos perm itir que pes­
soas assumam riscos. Crianças aprendendo a andar
de bicicleta devem finalmente obter permissão de
sair do alcance de proteção de seus pais. Porém, você
certamente compreenderá e aprovará quando eu lhe
contar que, quando nossos filhos estavam aprenden­
do a andar de bicicleta, eu corri bastante. Sempre
que possível, eu impedia que caíssem. E mesmo ago­
ra, eu os advirto a serem cuidadosos. Permitir que os
filhos caiam no cimento e no cascalho não os ajuda
a aprender a andar de bicicleta. Isso apenas cria dor
e medo e retarda o processo de aprendizagem. Se eu
pudesse, anexaria um aparelho mágico nas bicicletas
de nossos filhos que tornasse impossível que eles an­
dassem na frente de carros e caminhões. Mas eu não
posso, nem Deus pode.
1. Harold Kushner, Quando coisas ruins acontecem às pessoas boas, São
Paulo, Nobel, 2002, p. 133.
Na verdade, se você e eu pudéssemos, torna­
ríamos o mundo muito diferente. Você sabia que a
medicina moderna eliminou a varíola, uma doença
que matou milhões de pessoas no passado? É verda­
de. E pelo menos na maioria dos países desenvolvi­
dos, é raro alguém contrair doenças como sarampo,
febre tifoide, tifo, tétano, malária, difteria ou pólio.
Se você e eu puséssemos, alegremente estalaríamos
nossos dedos e eliminaríamos o câncer, a Aids, a es-
clerose múltipla e todas as outras doenças em que
pudéssemos pensar - até mesmo o mais comum res­
friado. Não estalaríamos?
A grande questão então é: Por que Deus não faz
isso?
Certamente é verdade que os valores de Deus
não são exatamente os mesmos que os meus. Eu sou
egoísta, autocentrado e míope de um jeito de que
Deus não seria. Pois nenhuma pessoa ponderada
confinaria Deus a uma perspectiva meramente hu­
mana. Do mesmo modo,(parece bem óbvio que, se
palavras como bom ou amoroso se aplicam a Deus,
mesmo remotamente, do mesmo modo que se apli­
Teologia do processo - Uma introdução básica

cam às pessoas, então Deus deve querer evitar bra­


ços quebrados, câncer e estupro da mesma forma
que nós queremos - na verdade, muito mais, porque
o amor de Deus é maiorj
( Considerando as qualificações apropriadas que
acabamos de mencionar, os teólogos do processo ad­
mitem que o amor de Deus é muito parecido com
o nosso, só que infinitamente maior.J Deus partilha
completamente a dor da pessoa com^o joelho esfola­
do. De fato, Deus partilha até mesmo a experiência
das próprias células danificadas, assim como a dor
mais complexa e consciente da pessoa. Deus sofre
35
conosco. Portanto, Deus possui mais motivos do que
nós para evitar ou suavizar o sofrimento no mundo.
Mesmo permitindo que essa porção da dor do m un­
do possa finalmente produzir um bem maior, existe
ainda um mundo inteiro cheio de sofrimento desne­
cessário e terrível que Deus desejaria evitar.
I Por que então Deus não evita o sofrimento? A
teologia do processo responde que Deus quer, mas
não pode. Pelo menos, Deus não pode fazê-lo sim­
plesmente desejando isso. Embora, como veremos
posteriormente, possa haver algum papel direto que
Deus possa representar. O papel fundamental de
Deus é nos conduzir a ser mais ativos ao evitarmos
o sofrimento. Deus não tem mãos além das n ossas^
Nós ainda não discutimos simplesmente como
Deus age no mundo, exceto para dizer que o papel
de Deus é persuasivo, ao invés de coercitivo. Um
esclarecimento pendente (Parte II): podemos ainda
dizer alguma coisa muito importante sobre o amor e
a ação de Deus no mundo.(Deus está constantemente
fazendo tudo dentro do poder divino para evitar e ameni­
zar o sofrimento desnecessário e destrutivo) Isso, afinal,
é o que poderíamos esperar de alguém que é perfei­
tamente amoroso.
Em um momento quero que você compare isso
com o teísmo tradicional. Mas primeiro, devemos
abordar outro problema.

Compreendendo as “conseqüências lógicas"


C. Robert Mesle

As pessoas frequentem ente possuem crenças


contraditórias. Imagine que alguém lhe diga que tem
exatamente duas maçãs em uma das mãos e duas
36
na outra. Você poderia dizer: "Então você tem qua­
tro maçãs". Imagine como você se sentiria se a pes­
soa respondesse: "Eu nunca disse que tinha quatro
maçãs!". Ela poderia dizer: "Eu creio que tenho duas
maçãs e duas maçãs, mas é completamente injusto
de sua parte dizer que eu alguma vez tenha afirmado
possuir quatro maçãs. Eu simplesmente não acredito
nisso”. Você se sentiria frustrado pelo fracasso dessa
pessoa ao ver as óbvias implicações de suas próprias
palavras.
Do mesmo modo, muitas pessoas ficam frustra­
das quando cristãos tradicionais parecem não reco­
nhecer as implicações óbvias de suas crenças sobre
Deus. As vezes ouvimos testemunhos de como (as
pessoas acreditam) Deus salva a vida de uma pessoa
em um acidente de avião. Eles, então, cantam louvo­
res ao poder e bondade divinos. Mas por que Deus
não salvou as outras 104 pessoas que morreram quei­
madas? Não somos forçados a dizer que, visto que
Deus amou a todas elas, ele poderia ter salvado a
todas; a permissão de Deus para que 104 pessoas
morressem nas chamas não seria também um ato de
amor divino tanto quanto foi salvando apenas uma
Teologia do processo - Uma introdução básica

pessoa? Assim, deve ter sido bom, do ponto de vista


divino, deixar as pessoas morrerem ou, caso contrá­
rio, Deus poderia tê-las salvado também. As pessoas
raram ente dizem isso, mas isso faz sentido.
Imagine também um estupro. Se qualquer ser
humano estava lá e em uma posição de evitá-lo, po­
deríamos chamar essa atitude de um ato de amor
ao evitar o estupro. Evitar o estupro seria uma coi­
sa boa. Porém, se Deus é todo-poderoso, Ele poderia
ter evitado o estupro de milhares de formas. Talvez
o Espírito Santo pudesse apenas tocar o coração do
37
estuprador com uma pequena dose de compaixão
que o levasse para longe do crime e o colocasse num
diferente caminho da vida, salvando a vítima e sua
família de uma vida de angústia. Ou Deus poderia
fazer algo mais dramático, um pouco como a experi­
ência de conversão do apóstolo Paulo. Deus, aparen­
temente, escolhe não fazer isso. Por que não? Deus
não ama a mulher e o estuprador? Com certeza sim,
dizemos. Assim, a escolha de Deus deve ser motiva­
da pelo amor por eles. Mas se, na infinita sabedoria
de Deus, perm itir o estupro é um ato de amor, deve
ser (a partir do ponto de vista divino) uma coisa boa
para Deus simplesmente ficar parado e perm itir que
a m ulher seja estuprada!O que é amoroso e moral­
mente exigido dos seres humanos é o oposto para
Deus. Mais uma vez, as pessoas raram ente dizem
isso desse modo, mas isso faz sentido. )
Se acreditamos que Deus é todo-poderoso, es­
tamos caminhando contra nossos melhores valores
e senso comum (querendo adm itir ou não) para ar­
gum entar que estupro, fome, praga, abuso infantil e
câncer definitivamente devem ser bons aos olhos de
Deus, senão Deus poderia tê-los evitado. Na melhor
das hipóteses, somos levados a dizer que é bom para
Deus permitir que soframos estupro, fome, abuso,
doenças, escravidão, drogas, e destruam os a nós
mesmos e uns aos outros em nome da liberdade.
Somos forçados, pela antiga ideia do poder de Deus,
a dizer que o que é m oralmente correto para nós
(proteger o inocente, curar o doente) é moralmente
C. Robert Mesle

errado para Deus (exceto uma vez em dez milhões


quando Deus graciosamente realiza um milagre).
Ou, tradicionalmente, visões de Deus nos forçam a
dizer que o que é amoroso para Deus (permitir tortu­
38
ra, doença, guerra e desastres naturais que Deus po­
deria evitar) para nós ê sem amor. Não posso lhe di­
zer quão fortemente eu rejeito toda essa forma de pen­
samento, e acredito que todas elas são implicações
lógicas da teologia tradicional - as pessoas afirman­
do-as ou não.
Você consegue imaginar que Jesus tivesse sim­
plesmente ficado parado e não tivesse feito nada en­
quanto uma m ulher era estuprada? Penso que Jesus
teria feito tudo dentro de seu poder para socorrer a
vítima (não duvide de que ele também teria se preo­
cupado em socorrer o estuprador potencial, para pro­
vocar nele o "siga seu caminho e não peque mais").
Se você pensa que Jesus teria ajudado, e que Jesus re­
velou amor divino, então certamente você pode ver
por que não faz muito sentido dizer que Deus poderia
interromper o ato, mas fica parado e não faz nada,
porque, de alguma maneira, isso é algo amoroso a
se fazer. Se essa atitude não é amorosa para você ou
para mim, ou para Jesus, por que seria algo amoroso
para Deus? )
Uma resposta comum é que Deus limita sua di­
Teologia do processo - Uma introdução básica

vindade a fim de preservar a livre vontade humana.


Isto é, Deus poderia evitar o mal, mas o permite como
parte necessária à salvação humana. Moralmente,
acredito que apenas essa resposta não responde ã
pergunta. Ela pode servir para alguns poucos casos,
mas não para muitos. Permitir o mal que podemos
evitar é quase tão pecaminoso como diretamente
provocá-lo, conforme nossas leis e consciências nos
dizem. Existe algo chamado negligência criminosa.
Se um pai permitiu que um filho se queimasse horri­
velmente ou bebesse veneno ou fosse atropelado por
um carro, dizendo: "É a melhor maneira de apren­
39
der", ficaríamos horrorizados. Acho que é igualmente
terrível que as pessoas atribuam tal comportamento
e valores a Deus.
Crianças pequenas são inclinadas a acreditar
que seus pais podem fazer qualquer coisa. É dolo­
roso para elas aprender o contrário. Mas como um
pai, costumo temer o pensamento de que meus filhos
possam imaginar que eu permiti que eles se m achu­
cassem ou adoecessem, quando na verdade eu estava
fazendo tudo o que podia para evitá-lo. Deus não po­
deria sentir o mesmo?(Deus não pode estar profun­
damente ferido pelas nossas constantes proclama­
ções de que os males terríveis são "desejos de Deus"
ou são "permitidos por Deus para um bem m aior"?)
Certamente, se, como os teólogos do processo acredi­
tam, Deus está fazendo tudo o que pode para evitar
o sofrimento, e se Deus partilha nosso sofrimento
conosco, isso deve acrescentar insulto à injúria de fi­
carmos constantemente "defendendo" Deus, ao pre­
gar que Ele realmente permite tal horror a partir da
sua vasta sabedoria e amor.
Provavelmente seja uma boa coisa pensar que
a maioria de nós realmente não age tanto assim de
acordo com nossas teologias.(Você pode imaginar al­
guém decidindo seguir o exemplo de Deus (na visão
tradicional) assumindo que, seja o que for que Deus
permita, deve ser fundamentalmente trabalhar para
o melhor? Eles nunca tentariam evitar a dor, o erro
ou mesmo o pecado. Eles assumiram que joelhos
machucados e os campos de concentração funcio­
C. Robert Mesle

nariam para o melhor. Eles poderiam não ver nada


como fundamentalmente mau. Qualquer pessoa que
na verdade agiu sob essa crença, estaria certamente
presa como um criminoso insano. ^
40
Felizmente, a maioria de nós não deixa que as
"soluções" tradicionais para o problema do mal diri­
jam a nossa ética. Se pensássemos que, se Deus vê
como sábio e amoroso perm itir que crianças sejam
atropeladas por caminhões, então nós também de­
veríamos. Mas, afinal, nossas teologias têm algum
impacto sobre as nossas vidas. Minha preocupação
mais séria é justam ente essa. Independentemente da
extensão que as pessoas realmente perm item que as
velhas soluções para o problema do mal afetem suas
vidas, essas ideias minam sua resolução de tornar o
mundo um lugar melhor.
Exemplos flagrantes disso podem ser encontra­
dos ao considerarmos a corrida de armas nucleares.
Alguns pregadores fundamentalistas têm publica­
mente declarado que a guerra nuclear apressará a
vinda do reino de Deus e o retorno de Jesus. Se assim
for, se a guerra nuclear for realmente uma coisa boa,
por que não saímos correndo e apertamos o botão?
Tal teologia, em minha visão, sofre da doença
do desespero. Confrontados por males reais e poten­
ciais, além de nossa compreensão emocional e inte­
Teologia do processo - Uma introdução básica

lectual, defendemos a nós mesmos ao dizer que Deus


tem esses males na mão, causando-os ou permitindo-
o s por alguma boa razão. Os céus nos socorram se o
líder de uma nação com armas nucleares alguma vez
agir a partir dessa teologia.
f A teologia do processo preserva os valores do
nòsso senso comum óbvio. Ela reconhece a distinção
crucial entre o bem e o mal (apesar de às vezes ela
poder estar embaçada) e afirma que Deus trabalha
com todos os recursos dele para o bem e contra o
mal. Nosso amor, no seu melhor, realmente é pareci­
do, ou no mínimo análogo ao amor de Deus. j
41
Poderíamos não nos comportar como o Deus da
teologia clássica. Poderíamos não ficar parados en­
quanto as pessoas sofrem os males que poderíamos
evitar. Ao contrário, poderíamos agir como o Deus da
teologia do processo, fazendo o que ao nosso alcance
para evitar o mal e amenizar o sofrimento. E, quando
não podemos evitar o sofrimento, na medida em que
nossa fraqueza hum ana permita, poderíamos parti­
lhá-lo com sensibilidade.
C. Robert Mesle

42
Capítulo 3
AMOR, PODER E RELACIONAMENTO

O
s teólogos do processo insistem que a realidade
é completamente relacionai.
Pense em alguém que você ama muito. Como
você se sentiria se essa pessoa quebrasse o braço? Ga­
nhasse um importante prêmio? Quebrasse uma pro­
messa? Salvasse a vida de alguém? Se você a amasse
ainda mais, você partilharia seus sentimentos ainda
mais, ou de maneira menos plena? Pense em alguém
que o ama muito. Essa pessoa tem partilhado seus
sentimentos de alegria, tristeza, dor e triunfo? Ela
tem expressado seu contínuo e inabalável amor de
diferentes maneiras, em resposta às suas mudanças?
Teologia do processo - Uma introdução básica

[ Em nossa experiência hum ana comum, é indis­


cutivelmente claro que o amor significa estar relacio­
nado e afetado por aqueles a quem amamoáy Teólo­
gos do processo acreditam que essas experiências são
importantes guias para compreender o amor divino.
Deus ama perfeitamente. Assim, Deus deve ser O su­
premamente relacionado, que partilha completamente
a experiência de toda criatura, que é, ao mesmo tem ­
po, totalmente inabalável e totalmente responsivo.
Curiosamente, essa óbvia característica do amor
de Deus tem sido negada. Uma das primeiras ideias
43
a ser formalmente declarada uma heresia pelo cris­
tianismo foi o "patripassianismo", a crença de que o
Pai sofre. Considerando que o cristianismo é encon­
trado na vida de alguém que "carregou nossas do­
res e levou nossas tristezas", que "sofreu e morreu"
na cruz, aquele que os cristãos declaram ser a mais
completa revelação de Deus para nós, parece-me in­
crível que teólogos cristãos possam negar, por quase
vinte séculos, a crença de que Deus sofre. O que os
levou a isso?
Os teólogos cristãos negavam que Deus sofre,
principalmente por causa da maneira que compreen­
diam o poder de Deus. Eles acreditavam que o poder
perfeito de Deus o colocava completamente fora de
qualquer relacionamento com o mundo, que pudesse
afetar a Deus de alguma maneira. Compreender por
que eles acreditavam nisso é crucial para entender
quase todo o problema que este livro vai abordar.

Poder unilateral

Pense em exemplos comuns de poder. Primeiro,


pense em crianças em uma vizinhança violenta. A
criança mais forte (mais poderosa) pode bater em to­
das as outras e não apanhar de ninguém. As crianças
mais fracas apanham de todas as outras e não batem
em ninguém. Entre elas, existe uma hierarquia des­
cendente do mais poderoso para o menos poderoso.
Pelo fato de esse mesmo tipo de hierarquia social ser
visto em galinhas, ele é frequentem ente chamado de
C. Robert Mesle

"ordem da bicada".
Tente pensar em esportes. O mais poderoso time
de futebol marca gols facilmente e raram ente é go­
44
leado. Pense em dinheiro. As poucas pessoas mais ri­
cas têm o máximo de poder. Elas podem dizer às outras
pessoas o que fazer, mas as outras não podem dizer a
elas o que deve ser feito. As pessoas mais pobres, das
quais existem milhões, não podem dizer a ninguém
o que fazer e estão em dependência daqueles que
são mais ricos. Exércitos fornecem os exemplos mais
claros. Generais dão ordens aos majores, os majores
aos sargentos e os sargentos aos soldados, mas não
o inverso. Tais hierarquias institucionais são organi­
zadas mais pela eficiência do que pela criatividade,
mas elas raramente fornecem uma coisa ou outra.
Em resumo, nossa abordagem comum ao poder
é esta: poder ê a habilidade de afetar outros, sem ser
afetado por eles. Podemos chamar isso de poder unila­
teral porque ele corre somente em uma direção, do
topo da hierarquia até a base. Além disso, poder e
valor social seguem juntos. Quanto mais poderoso
você é, melhor é tratado como um membro valioso
da gangue, do time, da empresa, da sociedade ou do
exército.
Igualmente importante, nossas concepções de
b á sica

poder se encaixam em nossas concepções de realida­


de. Frequentemente, quanto mais poderosa uma coi­
- Uma introdução

sa é - especialmente quanto mais poder ela tem para


resistir a ser afetada por qualquer coisa mais real
ela nos parece. Sombras e nuvens parecem menos
reais para nós do que barras de ferro e montanhas.
Para resistir à mudança, o poder capacita as coisas
Teologia do processo

a resistir, e o poder de resistir faz com que as coisas


pareçam mais reais.
Parece-me que há uma conexão direta entre es­
sas visões de poder, valor e realidade e nosso medo
da dor e da morte. Pessoas que são torturadas es­
45
tão totalmente à mercê dos outros. Vítimas estão na
base da hierarquia. Dor e morte são os casos hum a­
nos determinantes para que nós sejamos afetados e
mudados. Agarramo-nos àquilo que, esperamos, nos
salvará da dor e da morte - e de sermos afetados. Ad­
miramos, com inveja, e queremos nos unir àqueles
que parecem possuir tal poder.
Pense no homem "macho" que é forte, está no
controle, insensível à dor. Tradicionalmente, valori­
zamos tais modelos e voltamo-nos a eles em busca
de proteção e segurança. Torna-se, então, instantane­
amente óbvio por que "homens reais" não choram.
Chorar é admitir que alguém seja afetado, vulnerá­
vel e relacionai. No modo tradicional de pensar, ser
relacionai, vulnerável, afetado, emocional, sensível,
cuidadoso, nutridor - em uma palavra, feminino! - é
ser fraco, não valorizado, algo mesmo irreal. Não é
de se admirar que hebreus e cristãos pensassem em
Deus como Pai.
Na filosofia ocidental, esse conjunto completo de
concepções tem sido refletido na ideia de uma "subs­
tância". Substâncias, nessa visão, são as coisas mais
reais. Uma substância é aquilo que resiste e perm a­
nece inalterado através da mudança. E aquilo que
existe independentemente, que não precisa de nada
além de si mesmo para existir (Isso não se parece
com a segurança financeira? Não se parece com al­
guém que nunca precisou ter medo? Você não quer
ser assim?) Os dois casos principais de substância são
Deus e a alma hum ana (divinamente criada).
C. Robert M e sle

Estritamente falando, naturalmente, Deus foi


declarado a única substância verdadeira. Somente
Deus tem poder unilateral perfeito. Deus tem o po­
der absoluto para controlar tudo. Deus também tem
46
o podei absoluto para resistir a ser afetado por qual­
quer coisa. Na verdade, Deus é todo-poderoso, pos­
suindo todo o poder que existe. Isto é central para a
visão tradicional ou clássica - a noção da onipotência
divina como poder unilateral perfeito.
O conceito de poder unilateral pode, certamente,
ser encontrado na Bíblia, mas foram os filósofos gre­
gos que refinaram a ideia de perfeição. Embora suas
ideias sobre divindade fossem muito diferentes das
nossas de muitas maneiras, eles ainda estabeleceram
ideias fundamentais que posteriormente os teólogos
cristãos aceitariam. Eles foram bons pensadores sis­
temáticos e levaram a cabo, com honesta consistên­
cia, essa ideia de poder unilateral perfeito. Se Deus
tem poder unilateral perfeito, então Deus não é abso­
lutamente afetado pelo mundo - perfeitamente im u­
tável. Nada mesmo pode mudar o divino.
Os modelos filosóficos gregos foram a arte e a
matemática. Uma bela estátua pode afetar aquele
que a olha. Ela pode nos encher com o desejo de ser
corajoso, mais misericordioso, mais nobre de espí­
rito. Ela nos afeta. Porém, a estátua faz isso sem ser
b ásica

afetada por nós. Ela não tem pena de nós, não nos
ama nem fica com raiva de nós. O mesmo vale para a
- Uma introdução

matemática, mas de uma forma diferente. Esses filó­


sofos viam a triangularidade, a perpendicularidade e
2 + 2 = 4 como eternos, como verdades perfeitamen­
te imutáveis que ordenam o mundo. Não podemos
violar sua ordem, mas elas não "dão ordens". Não la­
Teologia do processo

mentam, riem ou gritam. Elas estão completamente


além de ser afetadas pelo mundo. Essas coisas estão
além das paixões, além das mudanças do conheci­
mento, das mudanças de hum or ou das mudanças de
intenção. Elas nunca agem. Elas estão além do amor.
47
Os filósofos gregos compreenderam tudo isso, e
suas ideias sobre Deus refletiram nisso. Eles viram
que "Deus" podia ordenar o mundo, tanto na estrutu­
ra quanto na moral, sem ser afetado por isso. Assim,
eles imaginaram a realidade fundamental como sen­
do eterna, imutável e sem paixão.
Iahweh, o Deus da Bíblia, também foi descrito
como muito poderoso. E em muitos aspectos o po­
der de Iahweh era unilateral. Mas Iahweh também
era muito variável, tomado de paixões tais como ira,
inveja, raiva, tristeza e até mesmo arrependimento.
Iahweh foi frequentem ente retratado como mudando
de ideia em resposta aos apelos de Abraão, Moisés e
outros. Iahweh era especialmente cheio de amor; era
profundamente afetado por sua criação e estava em
constante relacionamento com o mundo. Iahweh era
frequentem ente retratado como sendo cruel, mesmo
errático, mas quase sempre como envolvido, relacio­
nado e cuidadoso com a criação.
O cristianismo judaico começou com Iahwe
como seu modelo de Deus. Mas o cristianismo logo
se tornou uma religião de gentios. Os textos do Novo
Testamento foram todos escritos em grego! Os cris­
tãos gentios naturalm ente começaram a pensar em
Deus nas categorias gregas que lhes eram familia­
res. E por essa razão que eles se sentiram forçados
a negar, a declarar como heresia, a ideia de que "o
Pai sofre". Sofrer, eles acreditavam, é se tornar uma
presa da pior das fraquezas mortais, acima da qual
C. Robert Mesle

Deus deveria estar. Por quase dois mil anos, os teó­


logos cristãos têm tentado fundir as ideias gregas e
bíblicas sobre Deus. Acredito que eles nunca tiveram
sucesso. |
48
{ Se Deus não pode sofrer, não pode ser afetado de
nenhuma maneira, então Deus não pode amar. Amar
é ser afetado. Mas o poder unilateral perfeito é o po­
der de não ser afetado. Amar é entrar em íntima rela­
ção com os outros. Mas o poder unilateral perfeito é o
poder de ser independente - não relacionado. Amar é
sentir todas as paixões de alegria, tristeza, dor, medo,
esperança e triunfo que nos unem uns aos outros, que
tornam a vida tão dinâmica e variável. Mas o poder
unilateral perfeito é o poder de não ser afetado por
tais paixões variáveis. Um Deus com poder unilateral
perfeito não pode amar no sentido em que nós ama­
mos. ]
Os cristãos sempre afirmaram o amor de Deus -
mas em que sentido? Parcialmente, claro, as pessoas
comuns raramente pensam sobre isso e têm uma vi­
são bíblica mais ingênua de Deus. Elas oram a Deus
esperando que Deus responda, aja, sinta. Porém,
mesmo as pessoas comuns, sem dúvida, apelam para
a eternidade absoluta e a imutabilidade de Deus,
quando querem assegurar a si mesmas sua própria
imortalidade ou explicar por que Deus falha ao agir
a favor delas.
Teologia do processo - Uma introdução básica

Mais teólogos sistemáticos finalmente chegaram


à conclusão de que Deus nos ama sem paixões. Deus
é mais parecido com uma estátua. Podemos sentir
que ela está olhando para nós de um modo amoroso,
mas ela não sente amor. Mais intensamente, Deus
pode, a partir de uma pura e transbordante bonda­
de, fazer-nos coisas boas, mas não porque Deus sente
tristeza, piedade ou compaixão.1
1. Para uma excelente discussão a esse respeito, veja o capítulo 3 de
Process Theology: An Introductory Exposition, de John B. Cobb Jr. e David
Ray Griffin, Westminster, John Knox Press, 1976.

49
Talvez os detalhes desses argumentos pareçam
enigmáticos. Talvez você se espante porque alguém
pensaria dessa maneira. Mas é verdade que a ideia
do poder unilateral perfeito nos conduz diretamente
à conclusão de que Deus não pode sofrer, não pode
sentir pelo mundo, não pode amar no sentido hum a­
no de entrar em um relacionamento mútuo genuíno
com o mundo.

Poder relacionai

A teologia do processo opera a partir de um mo­


delo completamente diferente de poder, realidade e
valor. Relacionamento é fundamental.
No pensamento do processo, o poder relacionai
é a habilidade tanto de afetar quanto de ser afetado.
Mas ser afetado não significa ser passivamente con­
trolado pelos outros. Poder relacionai envolve três
estágios.
f Primeiro: poder relacionai é a habilidade, o poder
de ser aberto, ser sensível, de estar em relacionamen­
to com o mundo ao nosso redor)Exemplos óbvios são
daqueles cuja inteligência lhes permite rapidamente
compreender as ideias e eventos complexos ao redor
deles: artistas que veem a riqueza das cores e ouvem
sutis combinações de sons; poetas que fazem festa
com a riqueza das palavras faladas; pais que são sen­
síveis aos sentimentos, lutas, medos e esperanças de
seus filhos.
C. Robert Mesle

f Segundo: poder relacionai é a habilidade de ser


autocriativo. É a capacidade de acolher uma ampla
gama de ideias, sentimentos, influências e experiên­
cias e de criar pensamentos próprios, sentimentos e
50
decisões a partir deles.jAutocriatividade é a habili­
dade de integrar o mundo em uma pessoa unificada,
rica em relacionamentos, mas única em resposta.
fFinalmente: poder relacionai é a habilidade de in­
fluenciar outros, tendo sido primeiramente influen­
ciado por eles.^É o poder de pais amorosos quando
agem com seus filhos de um modo sensível, levando
em consideração as necessidades e desejos deles, ain­
da olhando a partir da perspectiva infantil. É a habi­
lidade do bom professor em compreender as ques­
tões, percepções e limitações dos alunos para poder
ajudá-los a aprender através de passos apropriados e
criativos.
Gandhi é um exemplo maravilhoso de poder re­
lacionai. Ao invés de se sentar em uma tenda com os
poucos ricos e poderosos, ele foi viver com a maio­
ria, para partilhar seu trabalho e comer sua comida,
para compreender seus medos, fome e sonhos, parti­
cipando da vida deles. Ainda, ele possuía uma visão
maior do que os seus, uma sensibilidade que, para
os britânicos, era mais compassiva do que a deles.
Especialmente, ele tinha a capacidade de sofrer, de
b á sica

ser afetado por todos aqueles que estavam ao seu re­


dor, sem perder-se de si mesmo. Ele não se fechou
Teologia do processo - Uma introdução

unilateralmente, deixando os outros de fora. Ao con­


trário, ele relacionalmente tomou a todos para si e
criou uma visão que levou todos em consideração.
E por essa razão que as pessoas escolheram segui-lo.
Ele os guiou ao criar neles um sonho que refletia as
esperanças deles, mas chamando-os para uma visão
maior.
Obviamente, Jesus também viveu o poder rela­
cionai. O discernimento de Paulo foi crucial - que
foi o Cristo crucificado, o Cristo que redimiu através
51
do sofrimento, quem revelou tanto a sabedoria quan­
to o poder de Deus (1 Coríntios 1,18-24). Lamenta­
velmente, penso, os cristãos têm pensado que esse
poder não foi suficiente. Muitos têm sugerido que
Jesus podia ter chamado por baixo doze legiões de
anjos, se ele tivesse desejado. Mas doze legiões de
anjos exercendo poder unilateral, apesar de fato ex­
celente, não poderiam ter tornado uma única alma
mais amorosa, não poderia ter redimido a mulher
pega em adultério, não poderiam ter produzido os
frutos do espírito que são "amor, alegria, paz, pa­
ciência, bondade, generosidade, fidelidade, docilida­
de e autocontrole" (Gálatas 5,22b-23a). Às doze legi­
ões de anjos, empunhando espadas, nunca teríamos
dito: "Por suas feridas fomos curados".

Resumo

É importante fazer uma distinção entre dois dife­


rentes significados da afirmação de que Deus é im utá­
vel. Teólogos do processo certamente afirmam a tra­
dição cristã que declara que Deus é amor, que Deus
nunca deveria parar de amar ou nos amar menos em
um dia do que em outro. Na linguagem bíblica, o
amor de Deus é inabalável, certo e fidedigno. Nesse
sentido, o amor de Deus é certamente imutável.)
Em outro sentido, no entanto, faria sentido dizer
que o amor de Deus é perfeitamente mutável. Isto
é, o amor de Deus é completamente responsivo ao
C. Robert Mesle

mundo. A cada momento, Deus partilha a experiên­


cia de cada criatura e responde a essa criatura de um
modo apropriado. Assim, enquanto é provavelmen­
te mais útil dizer que o amor de Deus é responsivo,
52
poderíamos reconhecer que partimos muito de uma
tradição teológica cristã quando afirmamos isso. Tra­
dicionalmente, há muito tem sido negado que Deus
poderia ser genuinamente responsivo, porque o ato
de ser responsivo é um tipo de mudança, e foi aceito
que Deus não poderia mudar em qualquer aspecto.
Provavelmente você sempre acreditou que Deus
foi afetado pelo mundo, que Deus foi responsivo e
ativo e que se inter-relacionava conosco, partilhando
nossas experiências e reagindo a elas. Provavelmen­
te, a respeito do amor de Deus, você foi um teólogo
do processo o tempo todo.
Na Parte II, explicarei de que modo os teólogos
do processo acreditam que o amor de Deus é o fun­
damento de toda a realidade.

Teologia do processo - Uma introdução básica

53
Capítulo 4
LIBERDADE, TEMPO E O PODER DE DEUS

D
eus passa pela experiência do tempo? Se sim,
como? Estritamente falando^ a maioria dos teó­
logos diz que Deus não experimenta o passar do tem ­
po)) Deus existe em uma eternidade atemporal. Em
outras palavras, todo o tempo se estende diante de
Deus como uma pintura. Assim, não há diferença
entre passado, presente e futuro| De onde veio essa
ideia e o que ela significa para a liberdade humana?
f Aristóteles, um filósofo grego, partilhou a ideia
de que Deus tem o poder unilateral perfeito, e des­
creveu Deus como o "motor imóvel".] Deus criou o
mundo para mover-se e mudar, mas Deus era total­
Teologia do processo - Uma introdução básica

mente não afetado - imóvel - pelo mundo. Aristó­


teles também viu uma importante implicação desta
visão da imutabilidade divina. Ele considerou que
Deus não tinha conhecimento do mundo.
Conhecimento, experiência e atividade são ca­
racterísticas fundamentais da identidade de qualquer
um. \Aristóteles reconheceu que o mundo está cons­
tantemente mudando. Se Deus tem conhecimento do
mundo, então deve constantemente ter novas experi­
ências e novo conhecimento^ Na verdade, todo mo­
mento trará um mundo completo de novas informa­
ções - novas experiências - â consciência de Deus.
55
E se permitirmos que este mundo de novas experiên­
cias inunde a vida de Deus a cada momento, pode­
mos também nos sentir obrigados a imaginar Deus
como ativamente respondendo a esse conhecimento.
Lembre-se de que, no conceito grego de poder
unilateral perfeito, Deus não era absolutamente afe­
tado por coisa alguma. Obviamente, imaginavam
eles, Deus não poderia estar engajado em nenhum
tipo de relacionamento dinâmico como o conheci­
mento de um mundo em mudança necessariamen­
te envolveria. Aristóteles defendia, então, que Deus
nãor tinha conhecimento do mundo.
I Teólogos cristãos não poderiam seguir o cami­
nho de Aristóteles, mas reconheceram seu problema.
A solução que eles escolheram foi essencialmente a
de negar que o mundo muda (nossas experiências de
mudança seriam, então, um tipo de ilusão). Isso per­
mitiria a Deus ter o conhecimento do mundo sem ter
conhecimento da mudança e, assim, ser mudado.)
Pense novamente na tradicional imagem do tem ­
po com a qual começamos - como uma grande pintu­
ra estendida diante de Deus. Deus enxerga o tempo
como sendo totalmente presente, totalmente atual,
totalmente estabelecido. A pintura, como uma tape­
çaria, poderia contar uma estória com um começo e
um fim. Mas o fim da estória já está lá, pintado deta­
lhadamente, nunca para ser alterado.
^ Uma imagem mais moderna poder ser a de um to­
ca discos. Imagine um disco virgem colocado em uma
C. Robert Mesle

prensa. O disco mestre é pressionado sobre o disco


virgem e - pssst! - as ranhuras são impressas no disco.
Toda a "música" é impressa em um só instante; a úl­
tima faixa no mesmo momento que a primeira. Em
56
alguns aspectos, essa é uma boa imagem de como
os cristãos dizem que Deus criou o tempo - tudo de
uma vez, num único instante.
Quando o disco é colocado para tocar e a agulha
toca nas ranhuras, a música vem na seqüência. Se
nos imaginarmos na ponta da agulha, podemos ver
por que temos a impressão de que o tempo se move
do começo para o fim. Há um sentido no qual ele re­
almente se move para nós. Notas de repente saltam e
então desaparecem ao serem substituídas por outras.
O tempo parece passar para nós, mas do ponto de
vista de Deus, não.y^
Com ambas as imagens sugeridas, a tradição clás­
sica tem sido hábil em garantir a Deus total conheci­
mento do mundo do "tempo" enquanto ainda protege
Deus de qualquer mudança, porque, fundamental­
mente, o mundo não muda/Para sermos completamen­
te consistentes, devemos também negar que houve
algum tempo antes que Deus decidisse criar o tempo,
ou antes que Deus realmente o criasse, ou entre a de­
cisão e a ação de Deus. Esses, também, são parte da
eternidade atemporal de Deus.)Deus tem eternam en­
Teologia do processo - Uma introdução básica

te decidido criar, e tem eternamente criado. Assim,


podemos ver, que, na visão clássica, todo o tempo
tem, na verdade, existido para Deus em uma eter­
nidade atemporal, absolutamente imutável. Somente
desse modo podemos reter o poder unilateral de Deus
de permanecer totalmente não afetado pelo mundo.
Deveria ser óbvio agora o porquê de muitos teó­
logos cristãos defenderem uma doutrina de predesti­
nação total. Embora essa não seja a única razão pela
qual essa doutrina foi afirmada, ela é suficiente por si
só para ter levado teólogos consistentes e honestos a
essa conclusão. Para Deus, o fim da estória é como ela
57
terminou; tão real e tão presente como o começo dela.
Nada pode mudar. Nada pode ser diferente do que o
fato de Deus tê-la criado como que a partir de toda a
eternidade. Deus conhece eternamente com infalibili­
dade absoluta e imutável o que você está fazendo ago­
ra nesse pedaço de pintura. Tudo isso significa "agora"
para Deus.
M artinho Lutero pode estar entre os mais hones­
tos dos teólogos cristãos ao considerar que, devido à
clássica visão cristã de Deus, os seres humanos não
devem ter liberdade. Mas muitos cristãos não com­
preenderam isso ou têm sido relutantes em admiti-lo.
Eles querem reivindicar que ainda temos liberdade.
Como eles têm feito isso? .
Frequentemente pensamos que liberdade é sim­
plesmente fazer o que queremos fazer. Esse é o senti­
do no qual teólogos cristãos têm sido hábeis ao afirmar
que temos liberdade, apesar da perfeita presciência
de Deus. Suponha que Deus tenha nos predestinado
tanto para o pecado quanto para o desejo de pecar.
Podemos, assim, afirmar que pecamos "livremente"
(fizemos o que queríamos fazer), porém, não poderí­
amos ter feito o contrário, porque Deus nos predes­
tinou "tanto para o desejo quanto para a prática" do
pecado.
Obviamente, no entanto, esse não é o sentido no
qual usualmente falamos de liberdade. No importan­
te sentido moral, liberdade ê a habilidade de esco­
lher entre duas ou mais opções, tais como pecar ou
não pecar. Mesmo que uma opção fosse uma possibi­
C. Robert Mesle

lidade real e que realmente estivesse aberta para nós,


diríamos que não somos livres para escolhê-la. Se as
visões do cristão tradicional sobre o poder e o tempo
de Deus estão corretas, não existe essa coisa de liber­
58
dade de escolha. Nunca poderíamos fazer nada além
daquilo que Deus nos predestinou a fazermos.
Há outra maneira pela qual alguns cristãos têm
tentado reconciliar a presciência perfeita de Deus
com a liberdade humana. Eles dizem que Deus pode
conhecer alguma coisa sem causá-la. É frequen­
temente observado que sabemos o que pessoas ao
nosso redor vão fazer, simplesmente porque as co­
nhecemos bem. As pessoas são previsíveis, e o resto
do mundo é muito mais previsível. Assim, por que
Deus, que nos conhece perfeitamente, não pode ser
capaz de prever perfeitamente o que nós livremente
escolhemos fazer?
Se colocarmos isso no contexto da visão total do
poder de Deus e na compreensão do relacionamento
de Deus com o tempo, incluindo a afirmação de que
Deus é o único criador do mundo do tempo, então é
óbvio que toda esta linha de pensamento é irrelevan­
te. Na tradição clássica, não há nenhuma diferença
entre o que Deus deseja, o que Deus conhece e o que
Deus cria. E tudo a mesma coisa.
No entanto, vamos considerar a ideia de que Deus
Teologia do processo - Uma introdução básica

sabe as coisas de antemão, sem ser o causador de nos­


sas escolhas. Afinal, é obviamente verdadeiro que ge­
ralmente saibamos as coisas que vão acontecer sem
sermos, nós próprios, os causadores delas. Então,
por um momento, vamos imaginar Deus puramente
como observador do mundo, não tendo poder causai
algum. Não poderia Deus ter conhecimento infalí­
vel do futuro, até mesmo de nossas livres escolhas?
Não, não se formos verdadeiramente livres. Pen­
se novamente sobre nossa habilidade de prever o fu­
turo. Temos poder para prever porque o mundo é
parcialmente determinado. As leis da natureza limi­
59
tam nossas opções. Há muitas coisas que não somos
livres para fazer. Deus certamente poderia ter perfei­
to conhecimento desses limites. Além disso, o passa­
do - nossa herança genética, nossa educação, nossas
próprias escolhas, todas as nossas experiências - in­
clinam-nos fortemente a agir de determinada manei­
ra. O passado molda o futuro. O fato de podermos
prever o futuro depende de todas essas limitações de
nossa liberdade. Se o passado determina totalmente o
futuro, se a hereditariedade e o meio ambiente, por
exemplo, combinam para controlar completamente
nossas ações, então não há verdadeira liberdade e
Deus pode perfeitamente prever o futuro.
Mas a ideia de liberdade como um todo signifi­
ca que o passado não controla totalmente o futuro,
somente o molda. Dado o meu passado, pode haver
75% de chance de que escolherei comer lingüiça e
ovos no jantar, conforme havia planejado. Há 15%
de chance de eu me juntar à família de minha esposa
para o jantar, 5% de chance de eu pular o jantar para
compensar os muitos lanches que consumi esta tar­
de enquanto escrevia, e várias outras possibilidades
que nem posso imaginar neste momento. Liberdade
significa que eu realmente tenho escolhas genuínas
diante de mim e que eu realmente poderia fazer coi­
sas diferentes, mesmo que algumas sejam mais pro­
váveis do que outras.
Se essa descrição da realidade for correta, se
Deus tem perfeito conhecimento sobre o mundo e
sobre mim, Deus saberá exatamente quais e quão
C. Robert Mesle

prováveis são essas possibilidades. Porém, mesmo


com perfeito conhecimento, Deus não poderia saber
o que eu escolherei no futuro, porque essa escolha
ainda não foi feita e é uma escolha real. Para Deus
6o
prever perfeitamente, baseado no conhecimento per­
feito do passado, o passado deve determ inar total­
mente as "escolhas" do futuro. Isto é, elas não pode­
riam ser escolhas reais, absolutamente.
Pense nisso desta maneira: presum a que eu esteja
tentando decidir se vou querer lingüiça ou sopa para
o jantar. Se dissermos que Deus sabe que escolherei
lingüiça, então não estaremos afirmando que é im­
possível que eu escolha a sopa? Não temos que dizer
que Deus causou coisa alguma. Mas deve haver al­
guma forma pela qual Deus tem esse conhecimento.
Pode ser que o mundo seja um mundo determinista,
no qual o passado controle totalmente o futuro. Pode
ser, como os cristãos tradicionalmente afirmam, que
todo o tempo seja eternamente presente para Deus
- que minha "escolha" pela lingüiça seja um fato
estabelecido na eternidade. Mas qualquer que seja
a razão, a perfeita presciência divina significa que a
liberdade real é impossível.
Teólogos do processo acreditam na liberdade.
Eles acreditam que, enquanto o passado realmente
tiver um impacto poderoso no presente e no futuro,
Teologia do processo - Uma introdução básica

ainda resta espaço para a liberdade genuína. Além


disso, como vimos, eles rejeitam toda a abordagem
ao poder unilateral que originalmente levou os teó­
logos cristãos a negar a passagem do tempo. Portan­
to, na teologia do processo, a onisciência divina - o
perfeito conhecimento de Deus - significa que Deus
conhece tudo o que há para ser conhecido. Mas o futuro
ainda não existe, exceto como uma gama de possibili­
dades que ainda não foram escolhidas.
Na teologia do processo, o tempo não é como
as ranhuras impressas em um disco. Ao contrário, o
tempo vem a ser, como a música improvisada por um
61
grupo de jazz. Os músicos têm uma ideia de onde es­
tão indo, e as escolhas que fizeram até agora sugerem
direções para o futuro. Mas o ponto inteiro de impro­
visação é que eles estão criando a música à medida
que continuam. Eles podem m udar as chaves, mudar
o tempo e repentinam ente disparar o tempo em res­
posta a uma nova ideia. Depois de tocar sete notas de
uma escala, eles podem não escolher tocar a oitava
nota, mas sim deixar uma pausa e começar em uma
direção totalmente nova.
Seguindo a imagem do mundo como um grupo
de jazz, podemos brincar com a ideia de Deus como o
flautista. Deus tem o poder para moldar a música esco­
lhendo Ele próprio que notas fará soar. À medida que
os outros instrumentistas são sensíveis e escolhem se­
guir a liderança de Deus, a revelação da visão musical
de Deus tem o poder de moldar o processo de m udan­
ça do tempo. Mas a insensibilidade do mundo e a esco­
lha do mundo para criar sua própria música significam
que a música nem sempre é a que Deus escolheria.

Liberdade e graça

A luta cristã com a liberdade está também pro­


fundam ente ligada ao debate histórico sobre graça e
obras.
No seu melhor, o conceito de graça está enraizado
na experiência hum ana de que, se é para nos tornar­
mos amorosos, as pessoas devem ser amadas. Muito
C. Robert Mesle

antes de fazermos qualquer coisa para merecermos


amor, dependemos do amor dos pais e dos amigos
para tocar nossas vidas. A medida que ficamos mais
velhos, descobrimos que existem momentos em nos­
62
sas vidas em que cuidar do outro parece estar além
de nossas forças. Podemos estar tão cheios de dor,
ira, medo, insegurança ou ódio que só queremos ata­
car os outros. Se temos sorte, encontramos pessoas
que nos amam tanto, que estão dispostas a suportar o
fardo de nosso egoísmo e nos amar de qualquer ma­
neira. Quanto mais aprendemos sobre nós mesmos,
mais aprendemos que a qualidade e a quantidade de
amor que somos capazes de dar certamente se refle­
tem na qualidade e quantidade de amor que rece­
bemos. O amor dos outros nos dá poder para amar.
Essa é a essência da graça. E na experiência cristã,
Deus é O outro supremamente amoroso.
Muito frequentemente, no entanto, os cristãos
têm se visto colocando graça e obras em oposição,
de modo que mais graça significa menos responsabi­
lidade humana. Considere a visão da total predesti­
nação divina. Nesse caso, Deus está completamente
no controle - exercendo o poder unilateral perfeito
- e não podemos reivindicar crédito algum para a
nossa salvação. Evitamos, então, quaisquer motivos
para a arrogância humana, e Deus merece crédito to­
Teologia do processo - Uma introdução básica

tal para todo bem que recebemos. Pura graça. Agora


imagine que algum pequeno passo em nossa estrada
para a salvação dependa de nós - talvez nossa livre
decisão para acreditar em Cristo. Se esse passo real­
mente depende de nós - é uma "obra" verdadeira­
mente hum ana -, então parece que somos forçados a
dizer que Deus não está completamente no controle,
e que podemos dar tapinhas em nossas costas por
"merecer" no mínimo algum crédito pela nossa pró­
pria salvação. De repente, o orgulho humano ergue
sua cabeça feia e a vitória divina sobre o mal já não
está assegurada! Assim, a teologia cristã bate num a
63
retirada apressada rumo à pura graça. Em tal qua­
dro, graça e obras parecem opostas entre si: mais
obras significa menos graça; mais graça significam
menos obras.
Algumas causas para essa visão estreita da graça
se relacionam ao conceito de poder unilateral que
já discutimos. Onde doutrinas da total predestinação
triunfaram, a graça significa que Deus sozinho deter­
mina nosso destino. Se o julgamento de Deus sobre
nós pudesse ser contingente sobre nossas livres de­
cisões, então Deus pareceria fraco, fora do controle.
Se Deus precisasse ou se beneficiasse do nosso amor,
então Deus pareceria incompleto, dependente e tal­
vez até mesmo egoísta - comprando nosso amor com
graciosa admissão no céu. Despojando totalmente
os seres humanos de qualquer papel em sua própria
salvação, pareceu a muitos que Deus poderia ser lou­
vado mais dignamente por ser todo-poderoso e com­
pletamente altruísta (gracioso) em amor.
Se, no entanto, concebemos a salvação como
qualidade de vida, então parece óbvio que graça e
obras caminham juntas. Se, como Paulo diz: "O amor
de Deus foi derramado em nossos corações através
do Espírito Santo que foi dado a nós” (Romanos 5,5b),
então a resposta natural é que o amor transborde de
nossas vidas para a vida dos outros. Ao sermos pre­
enchidos com amor, tornamo-nos mais amorosos. E
como escolhemos amar, abrimo-nos ainda mais para
deixar o amor se derram ar em nossos corações, dan­
do-nos o poder para nos tornar ainda mais amorosos.
Ainda que a graça divina sempre venha primeiro, an­
C. Robert Mesle

tes da decisão humana, por fim, elas trabalham juntas.


Na teologia do processo, o poder divino cria li­
berdade da criatura mais do que a destrói. Não é "gra­
64
ça versus obras", mas "obras por causa da graça". A
teologia do processo adota a confissão de 1 João 4,19:
"Nós amamos porque [Deus] nos amou primeiro". Na
verdade, na teologia do processo, cada criatura no
universo está continuamente experimentando o amor
divino. Esse amor é a própria fundação da liberdade
e do amor dentro de todas as criaturas. Esse gracioso
- imerecido - amor é continuamente derramado em
toda a criação. A escolha de como responderemos é
nossa. Temos o poder de aceitar ou de rejeitar esse
amor e o chamado que ele envolve. Mas esse poder
para escolher é, em si mesmo, um dom da graça.
Não quero fazer a questão parecer simples de­
mais. Mas realmente acredito que o teísmo do pro­
cesso traz excelentes valores e recursos a esta discus­
são. O núcleo dele é isto. Mais graça significa mais
liberdade, não menos. E quanto mais respondemos
livremente ao amor gracioso de Deus, mais dessa
graça é derramada em nossos corações. No pensa­
mento do processo, vejo o que sempre fez sentido
para mim: que mais graça significa mais liberdade,
mais responsabilidade humana, mais "obras"; e mais
"obras" perm item mais graça.
Teologia do processo - Uma introdução básica

Resumo

O capítulo 3 forneceu uma distinção no conceito


de mudança. Vimos que Deus é imutável, no senti­
do de que Ele ama o mundo perfeitamente. Mas por
isso mesmo, as expressões do amor de Deus estão
constantemente mudando em resposta às decisões e
necessidades do mundo.
Agora podemos dizer a mesma coisa sobre o co­
nhecimento de Deus. É uma imutável estrutura da
65
natureza de Deus que Ele sempre conheça tudo o
que existe para conhecer. Mas o que existe para Deus
conhecer - as decisões das criaturas - está constante­
mente mudando, constantemente se transformando.
Nesse sentido, precisamente porque Deus imutavel-
mente conhece tudo o que existe para conhecer, o co­
nhecimento de Deus está constantemente mudando.
Por outro lado, você e eu estamos apenas parcialm en­
te conscientes de uma pequena fração dos eventos
deste vasto universo enquanto Deus está totalmente
consciente de todos esses eventos a cada novo mo­
mento. Assim, nosso conhecimento é finito e parcial,
mudando apenas imperfeitamente em resposta ao
mundo, enquanto o conhecimento de Deus é infini­
to, mudando perfeitamente em resposta ao mundo.
Teólogos do processo diriam que Deus eterna­
mente tem possuído conhecimento perfeito e im utá­
vel de todas as possibilidades para o mundo. Mas por­
que o mundo tem real liberdade para escolher entre
essas possibilidades, o conhecimento de Deus sobre
as escolhas reais feitas está constantemente m udan­
do, assim como o mundo muda.
Na verdade, esta é uma visão muito bíblica de
Deus. Especialmente no Antigo Testamento, os pro­
fetas constantemente confrontam as pessoas com es­
colhas. Se você se arrepende e obedece ao chamado
de Deus, Ele será capaz de abençoá-lo. Se você pecar
e se rebelar contra Deus, Ele o punirá. Na teologia do
processo, Deus não controla o mundo tão facilmente
como a visão bíblica sugeriria. Mas os teólogos do
processo afirmam que a visão bíblica de nossa liber­
C. Robert Mesle

dade de escolher é verdadeira e que Deus aguarda


nossa escolha.

66
PARTE II
O MUNDO E DEUS
INTRODUÇÃO À PARTE II

C
omo Deus age no mundo? A maior parte das teo­
logias não tem resposta para essa questão, além
de negar que ela seja necessária. Diz-se que Deus
é sobrenatural, que está acima das leis da natureza
e, portanto, não está ligado a elas. Deus pode sim­
plesmente fazer qualquer coisa que desejar. Isso tem
satisfeito a maior parte das pessoas por um longo
tempo. Mas, para as pessoas que pensam muito se­
riamente hoje em dia, isso satisfaz cada vez menos.
As grandes religiões mundiais surgiram antes da
ascensão da ciência moderna, num tempo em que
não tínhamos ideia de como a natureza funcionava.
Teologia do processo - Uma introdução básica

Não tendo noção das leis naturais ou processos, nin­


guém pensava em Deus violando-os. Até muito recen­
temente, a maioria das pessoas acreditava (e algumas
ainda acreditam) que o sol nasce porque Deus diz a
ele que faça isso; que a chuva cai porque Deus abre
as janelas do céu e deixa cair a água que está acima
do domo do céu; que as mulheres tornam-se estéreis
ou férteis porque Deus assim o deseja. A Bíblia ex­
pressa cada uma dessas crenças repetidamente.
Hoje sabemos mais. O sol "nasce" e "se põe" por­
que a terra gira sobre seus eixos. O que, então, Deus
tem a ver com isso? À medida que aprendemos mais
69
sobre a natureza, vemos cada vez menos coisas que
Deus possa fazer. Na verdade, há pouco espaço na
cadeia de causas naturais para Deus desempenhar
qualquer papel. Visto que sempre existem coisas que
ainda não sabemos, as pessoas tendem a usar Deus
para preencher as lacunas do nosso conhecimento.
Se não sabemos como a natureza faz alguma coisa
então dizemos: "Deus fez isto". Mas, conforme va­
mos preenchendo as lacunas do nosso conhecimen­
to, esse "Deus das lacunas" torna-se menor, escondi­
do nas sombras de nossa ignorância, escondido da
luz do conhecimento. Inevitavelmente, tais teologias
tornam o conhecimento científico e a investigação
aberta inimigos da fé e de Deus. É um lamentável
retrato de Deus.
Uma das grandes virtudes da teologia do proces­
so é sua habilidade em oferecer visões de Deus e do
mundo que caminham juntas, que aceitam e constro-
em sobre o que conhecemos da natureza através da
investigação científica. Quando teólogos do processo
são questionados sobre como Deus age no mundo,
eles têm uma resposta que não escapa para o interior
do mundo sobrenatural da magia e dos sonhos, mas
envolve a questão científica com o conhecimento e
tudo o que ele nos ensina.
E, naturalmente, não é somente a ciência que
nos levanta estas questões. Não precisamos de uma
ciência especial para nos mostrar a diversidade das
religiões mundiais, o impacto da história e da cultura
sobre a Escritura e sobre a revelação, as tragédias da
C. Robert Mesle

opressão humana, e a miríade de modos pelos quais


o mundo mata e mutila humanos e outros animais.
Porém, essas são im portantes características do m un­
do que nossa teologia deve ser capaz de explicar.
70
Para acreditar no Deus sobrenatural da tradição,
devemos abandonar a questão de entender o mundo
sobre seus próprios termos naturais. Isso é um preço
muito alto. Para compreender como o Deus da teo­
logia do processo age, devemos tão somente abrir
nossas mentes para uma nova visão de mundo.
Nesta seção, tentei resumir as características bá­
sicas da visão do processo do mundo e de Deus da
maneira mais simples possível. Naturalmente, mui­
tas questões serão deixadas sem resposta. Mas espe­
ro que isso forneça o pano de fundo suficiente para
tornar o resto do livro inteligível e dar aos leitores
um senso de entusiasmo e de espanto que tem me
guiado ao pensamento do processo.

Teologia do processo - Uma introdução básica

71
Capítulo 5
TEMPO

C
omece com sua própria experiência de tempo.
Como ela é? Uma óbvia e inevitável característi­
ca de toda experiência é que ela se transforma conti­
nuamente. Você não consegue mantê-la parada.
Quando criança, viajando para a casa de meus
avós para o Natal, eu olhava os refletores ao longo
da rodovia à noite. Eu focava meus olhos em um
deles à nossa frente à medida que nos aproximáva­
mos a mais ou menos 100 km/h. Eu ficava tentando
congelar o momento em que o refletor não estava
nem à m inha frente, nem atrás de mim, mas bem do
lado. Eu nunca conseguia. Eu podia antecipar sua
Teologia do processo - Uma introdução básica

vinda, vê-lo ao meu lado e guardar aquele momento


em m inha mente como memória. Mas o momento
real nunca podia ficar estático. Ele vinha e partia.
Mesmo se o carro parasse ao lado de um refletor,
aquele momento de uma parada, finalmente, nunca
ficava estático. Veremos que, nesta manobra, o mo­
m entâneo "agora" escapará à captura. Ele escorre­
gará por entre nossos dedos com mais certeza do
que qualquer onda em uma praia ou a brisa em nos­
sa mão.
Podemos saborear momentos, mas até mesmo
o saborear envolve uma série de momentos que
73
se recusam a se m anter estáticos para nós. Po­
demos antecipar m omentos à frente ou relem brá­
-los depois do fato. Mas m omentos acontecem e pe­
recem.
Isso não significa que o momento presente seja
uma ilusão, enquanto somente o passado e o futuro
são reais. Ao contrário, o momento presente retém
tudo. O passado "existe" como uma memória no mo­
mento presente. O futuro "existe" como uma gama
de possibilidades latentes no momento presente.
Além disso, a frase momento presente tem uma m u­
dança de significado como a palavra hoje. Estamos
sempre "no presente", mas o presente é uma contí­
nua m udança de terreno. Ele não vai ficar estático
para nós.
Pensadores do processo acreditam que aquilo que
é verdade em nossa experiência pessoal é a verdade
de toda a realidade. Sua experiência deste momen­
to não existiu há pouco (foi possível, mas não real).
Cada novo momento ou evento de sua experiência
acontece e, então, perece, abrindo caminho para um
novo evento de experiência. Do mesmo modo (embo­
ra infinitamente mais complexo) a miríade de even­
tos constituindo o universo inteiro vem à existência
a cada momento e então perece, abrindo caminho
para novos eventos que nunca foram reais antes. O
universo é novo a cada momento, assim como sua
experiência é nova.
C. Robert Mesle

Conectividade

Entretanto, apesar de serem continuamente no­


vos, você e o universo "andam juntos" com incrível
74
teimosia. O momento presente está conectado com o
passado. Imagine um amigo repentinam ente dando
em você um grande abraço. Os sentimentos e pensa­
mentos que você tem nos momentos seguintes surgi­
rão dessa experiência de ser abraçado. E mais, você
vai sentir esses sentimentos surgindo dos sentimen­
tos anteriores. Você experimenta conexões causais.
Essas conexões não são em si experimentadas pelos
nossos sentidos, mas por uma característica intrín­
seca de sentir os sentimentos presentes (de se sentir
amado ou talvez constrangido) surgindo como que
decorrentes dos sentimentos prévios (de ser abraça­
do). O mesmo princípio poderia ser testado com a
ira, frustração ou literalmente qualquer outra experi­
ência. Experimentamos o presente como que surgin­
do do passado.
Do mesmo modo que experimentamos o presen­
te como surgindo de sentimentos prévios, antecipa­
mos eventos futuros decorrentes de eventos presen­
tes. Experimentamos nossas decisões do presente
como que preparando o palco para possibilidades
futuras, como que fornecendo matéria-prima através
da qual esperamos que alguns eventos sejam criados.
Teologia do processo - Uma introdução básica

Por conseguinte, você está lendo esta frase agora com


a expectativa de que ela desempenhará algum papel
no seu pensamento posterior.
A vida é inevitavelmente vivida nos momentos
presentes que experimentamos, como que decor­
rentes do nosso passado e preparando o caminho
para uma gama de possibilidades futuras. Memória
e antecipação são nossas expressões hum anas para
aquelas conexões causais que diretam ente expe­
rimentamos entre os momentos do tempo. O m un­
do caminha junto a uma enorme continuidade ao
75
longo do tempo, e geralmente é bastante previsí­
vel. O passado preponderantem ente determ ina o fu­
turo.

Liberdade

Além disso, determinismo não é tudo o que ex­


perimentamos. Também existem saltos e mudanças
inesperadas. Surpreendemos outros e a nós mesmos,
mudando de ideia, dando uma guinada ao de repente
tomar novas direções, ao cantar em uma nova clave.
Das opções abertas para nós, algumas vezes escolhe­
mos uma improvável ou talvez encontremos opções
inesperadas abertas para nós por eventos não pre­
vistos. O mundo contém chance e liberdade, assim
como determinismo.
Certamente, até mesmo nossa própria liberdade
decorre do passado. Eu não sou livre para m udar o
passado. Preferencialmente, o que sou livre para fa­
zer agora é um resultado do passado. Por ter passado
muitos anos na faculdade, sou livre para caminhar
em minha sala de aula e, a cada palestra, liderar uma
discussão ou aplicar um teste. Em contrapartida, es­
tou cercado aqui em Iowa por pessoas que passaram
sua vida inteira aprendendo como arar o solo e se­
mear para uma colheita abundante. Minhas escolhas
do passado não me prepararam para fazer o que eles
podem fazer. As variações da liberdade de cada um
de nós não são as mesmas. E tendo tomado nossas
decisões de estar no sul de Iowa neste exato momen­
to, nem os fazendeiros nem eu estamos livres para
estar na África daqui a um minuto. Nosso passado
tanto cria quanto limita nossas opções.
Pensadores do processo acreditam que o univer­
so se une da mesma maneira que suas experiências
- exceto que a maior parte dos eventos no universo
é menos criativa do que aqueles em sua mente. Para
um elétron, o evento que é o momento presente é
quase inteiramente uma repetição dos eventos do
passado imediato daquele elétron. Elétrons, portanto,
simplesmente não são muito criativos. E, portanto,
os eventos do universo "material'' a cada momento
surgem dos eventos passados com muito mais estabi­
lidade e persistência, e muito menos criatividade do
que os eventos de sua própria experiência. De fato,
o universo tem enorme inércia, uma enorme força
motriz continuando do passado. Daí, um mundo es­
tável.
No entanto, sabemos, nem mesmo os elétrons
são inteiramente determinados pelo passado. O fato
surpreendente a respeito da física moderna é a per­
sistente evidência de que não importa o que você
faça para controlar um elétron (ou outros elementos
individuais - "partículas"), ele terá mais de uma res­
posta possível. Ele pode tomar mais de uma direção,
Teologia do processo - Uma introdução básica

comportar-se de mais do que uma maneira, fazer


mais do que uma "escolha".
Um elétron é livre? Ele não é livre para se apai­
xonar, ficar com raiva, escrever poesia ou sabore­
ar limonada. Os aspectos importantes da liberdade
hum ana são irrelevantes para os elétrons. Mas há
um sentido em que se pode dizer que tanto os elé­
trons quanto as mentes humanas são livres. Devido
a um conjunto de condições, eles podem responder
de mais de um modo. E isso é a raiz do significado
da liberdade. Nesse sentido, pensadores do processo
77
veem na física moderna um mundo no qual a liber­
dade é um fato básico da realidade.
Se o mundo material é livre até neste sentido in­
significante, pode uma bala decidir não estilhaçar-se
no peito de uma pessoa? Não.
Em primeiro lugar, a liberdade dos elétrons, dos
prótons e dos nêutrons individuais que compõe a
bala é trivial. Eles respondem somente ao campo fí­
sico do qual fazem parte. Eles não possuem o sentido
dos órgãos para ver o peito ou cérebro para anteci­
par e avaliar as conseqüências de suas ações. Eles
somente escolhem "este" ou "aquele" caminho. E os
projéteis não são como as pessoas. Eles não têm sis­
temas nervosos que organizam e integram todas as
experiências individuais em uma mente que pode
agir pela totalidade. Projéteis apenas vão, cegamen­
te e sem se importar, e a maior parte do mundo faz
assim. A liberdade pode estar inerente nos blocos
de construção do mundo, mas ela somente se torna
significativa quando esses blocos são organizados de
maneiras muito especiais.
Em segundo lugar, quando nós lidamos com tais
entidades elementares que não estão organizadas de
modo a dar origem a qualquer forma superior de
experiência, as leis estatísticas assumem o controle.
Mesmo quando uma ou algumas entidades tomam
outras decisões que não sejam a norma, elas estão
simplesmente sobrecarregadas por seus vizinhos.
Como os físicos frequentem ente observam, não po­
C. Robert Mesle

demos prever o que um único elétron fará, mas po­


demos prever com incrível precisão o que um projétil
fará, porque estatísticas absolutas dominam decisões
individuais.
78
A organização do mundo para perm itir uma ex-
| periência superior será o tópico do próximo capítulo.
I For ora, vamos retom ar à questão do tempo e o vir a
ser do universo.

Tempo e eternidade
As pessoas frequentemente procuram por um
fundamento estável, permanente, imutável e eterno
na base do que Platão chamou de "o perecer per­
pétuo" do tempo. Platão, por exemplo, pensava que
aquilo que era "verdadeiramente real" era o Ser atem­
poral, enquanto o mundo físico do vir a ser era uma
mera aparência sombria. O cristianismo e muitas ou­
tras visões da realidade têm partilhado desta intuição
de que Ser é mais fundamental do que vir a ser.
Pensadores do processo não veem nenhum Ser
atemporal sob a realidade do vir a ser. Acreditamos
que o tempo é a passagem dos eventos e somente
isso. Olhar para alguma coisa sob os eventos como
sendo a verdadeira natureza do tempo ou da reali­
dade é simplesmente perder o foco. Nossa experiên­
Teologia do processo - Uma introdução básica

cia é inevitavelmente composta desta passagem. E a


nossa realidade. É dentro dessa contínua corrente de
eventos que vivemos, nos movemos e temos nosso
ser. E dentro do vir a ser dos eventos que amamos,
cuidamos, crescemos e encontramos qualquer signi­
ficado e alegria que existam para nós. A passagem
dos eventos é o que existe.

Deus e o tempo
De acordo com os teístas do processo, Deus par­
tilha esta aventura do tempo. No capítulo 4 já vimos
79
que a crença deles na liberdade leva os teólogos do
processo a rejeitar a ideia de que Deus vive em uma
eternidade atemporal ou que veja todo o tempo como
igualmente real e presente. A conclusão é que o tem ­
po é tão real para Deus quanto é para nós. E, além
disso, existem modos através dos quais os teólogos
do processo veem a experiência de tempo de Deus
como diferente da nossa.
Primeiro, a visão que Deus possui do tempo é di­
ferente porque Ele é eterno (embora não atemporal).
Isto é, Deus sempre existiu e sempre existirá. Ele não
pode envelhecer ou morrer. O tempo não o ameaça
da mesma forma que nos ameaça.
Segundo, existem características da existência de
Deus que, como já vimos, são imutáveis. E um fato
imutável que Deus é perfeitamente amoroso, que
Deus conhece tudo o que existe para ser conheci­
do, que Deus está sempre fazendo tudo dentro do
seu poder para trabalhar pelo bem. Especialmente,
Deus possui uma "natureza primordial", que é o seu
conhecimento sobre todas as possibilidades. A maior
parte dos teólogos do processo concorda com Whi­
tehead que as possibilidades são eternas; elas podem
ser mais ou menos relevantes e podem ser concre­
tizadas ou não em qualquer dado momento. Mas o
que é ou será possível sempre foi possível. E, visto
que Deus conhece tudo o que há para ser conhecido,
Deus tem conhecido eterna e imutavelmente todo o
reino infinito da possibilidade. E é esse fato sobre
Deus que fundam entalmente torna a novidade e a
liberdade possíveis no mundo.
C. Robert Mesle

São precisamente esses fatos imutáveis que ne­


cessariamente envolvem Deus na aventura do tem ­
po. Pois o amor, o conhecimento e a atividade de
8o
Deus são constantemente responsivos aos eventos
no mundo. Pois Deus partilha a experiência de cada
evento no universo. Deus partilha a "experiência"
de cada elétron, de cada ameba, de cada célula viva
individual em cada planta e animal. Deus partilha
a experiência de cada minhoca, formiga, morcego,
cachorro, baleia e pessoa. E se existem seres vivos
além do universo, Deus partilha a experiência deles
também. Deus partilha a experiência do vir a ser do
universo inteiro e a sintetiza na sua própria experiên­
cia infinitamente vasta e complexa.
Deus e o universo são coeternos. Deus sempre
existiu e sempre existirá. E, de alguma forma, o m un­
do sempre existiu e sempre existirá. Nunca houve
um tempo (ou uma eternidade atemporal) em que
Ele não estivesse trabalhando criativamente. Nem
jamais haverá um tempo (ou eternidade atemporal)
em que Deus cessará de agir criativamente no m un­
do. O universo, como o conhecemos, provavelmente
começou e terminará em um "Big Bang", mas isso
é somente um episódio na história infinita do tem ­
po. Deus partilhou e partilhará a aventura do tempo
eternamente. No entanto, podemos querer falar de
Teologia do processo - Uma introdução básica

um "reino de Deus”, mas isso não irá, na teologia do


processo, significar o fim do tempo ou da atividade
criativa de Deus.
O mundo, pois, é como o grupo de jazz no sen­
tido de que a "música" não é a eternidade congelada
em um disco. Ela começa a existir a cada momento.

81
Capítulo 6
UM MUNDO DE EXPERIÊNCIA

A
única coisa da qual qualquer um de nós pode
ter certeza é quanto a nossa própria experiência.
Nós conhecemos o que experimentamos. Além disso,
vemo-nos cercados por um mundo material despro­
vido de experiência - escrivaninhas, rochas, árvores,
canetas-tinteiro. Como um mundo assim pôde dar à
luz criaturas como nós? Realmente, como compre­
ender nossos relacionamentos com nossos próprios
corpos se eles são feitos de matéria sem experiência?
Ver almas humanas como seres sobrenaturais injeta­
dos neste mundo por Deus tem confortado muitos,
mas deixa os pensadores modernos incrivelmente
insatisfeitos. Não somos nós partes da natureza, sur­
Teologia do processo - Uma introdução básica

gindo e dependendo do mundo ao nosso redor? Não


somos proximamente aparentados a outros animais
que parecem sentir seus próprios prazeres e dores?
Como podemos entender o lugar das mentes na na­
tureza?
Para responder a tais perguntas, devemos explo­
rar os caminhos através dos quais os pensadores do
processo veem o mundo como inteiramente compos­
to de eventos de experiência. Uma vez que captamos
essa visão, talvez possamos ter alguma compreensão
da visão do processo sobre como Deus age no m un­
83
do, do que Deus pode e não pode fazer, e por que a
teologia do processo encara tão seriamente o destino
do meio ambiente, incluindo os animais.

Os humanos e outros animais

Nós sabemos que possuímos experiência. Estri­


tamente falando, naturalmente, eu só presumo que
você tenha experiência. Eu presumo isso porque você
é muito parecido comigo. Você possui olhos e células
nervosas, uma espinha dorsal e um cérebro como o
meu. E você age de forma muito semelhante à mi­
nha quando tocamos alguma coisa quente ou afiada.
Temos boas razões para acreditar que outras pessoas
têm experiências muito parecidas com as nossas.
E o que dizer dos outros animais? (digo outros
animais porque nós, certamente, também somos
animais).
A maior parte dos cristãos acredita que as almas
humanas são criadas por Deus de modo sobrenatu­
ral. Os cristãos geralmente defendem que, em rela­
ção a este mundo natural, estamos nele, mas não so­
mos dele. Ao invés disso, estamos nele estabelecidos
a fim de ter domínio sobre ele. De um modo que não
surpreende, alguns cristãos defendem que o fato de
Deus criar as almas hum anas de modo sobrenatural
indica que outros animais não devem ter almas e,
portanto, não devem possuir experiência. Eles pro­
vavelmente não sentem dor; são somente robôs que
C. Robert Mesle

rangem quando danificados. Consequentemente, não


precisamos ter zelo por seu bem-estar, nem nos preo­
cuparmos com o sofrimento deles. Essa teologia tem
provocado conseqüências devastadoras para os ani­
84
mais, para o meio ambiente e, definitivamente, tam ­
bém para nós.
A visão de que somente os seres humanos pos­
suem experiência parece arrogante e tola, conside­
rando a enorme extensão em que os animais superio­
res são iguais a nós. Cães, gatos e macacos possuem
olhos, células nervosas, espinhas dorsais e mesmo cé­
rebros como os nossos. Seus cérebros carecem de se­
ções importantes que tratam de pensamento abstra­
to, mas incluem seções que tratam da dor, do medo
e de outras emoções. Eles reagem a objetos quentes
e afiados, à comida e a palavras gentis, de modo m ui­
to parecido ao das pessoas. Temos boas razões para
acreditar que, apesar de cães e gatos não poderem
fazer cálculo abstrato, não poderem se empenhar em
um discurso moral ou escrever poesia, eles podem
sentir dor, fome, medo e afeição.
Primatas, baleias e golfinhos são até mais intri­
gantes para nós. O comportamento deles frequente­
mente parece mais humano do que o de cães e gatos.
Koko, uma gorila, tornou-se famosa ao aprender a
linguagem dos sinais e por ter um gatinho de estima­
Teologia do processo - Uma introdução básica

ção. As baleias parecem se comunicar por meio de


uma forma que nos sentimos levados a chamar de
"canto". Suas canções são tremendam ente complexas,
mostrando variações ao longo do tempo. Talvez elas
escrevam seu próprio tipo de poesia.
Em graus variados, outros animais parecem pla­
nejar ações, antecipar eventos no futuro próximo e
sentir algum grau de simpatia por outros. Também,
vale a pena notar que nos falta a habilidade dos gol­
finhos de "ver" o mundo acusticamente e de comuni­
car essa imagem sônica aos outros. Por isso mesmo,
ainda que digamos que (a maioria dos?) os outros
85
animais não pensam abstratamente como nós, alguns
animais certamente fazem muitas coisas que podem
ser chamadas de pensamento.
Nunca podemos saber como é ser outra pessoa.
Mas estamos confiantes de que é semelhante a al­
guma coisa. Do mesmo modo, não podemos saber
como é ser um morcego ou uma baleia, mas certa­
mente é parecido com alguma coisa.
Ainda, parece que alguns tipos de pensamentos
que ocorrem nas mentes humanas não estão presen­
tes (provavelmente) nas mentes de outros animais.
Altos níveis de abstração e reflexão moral estão entre
as formas de consciência que parecem ser (provavel­
mente) únicas aos humanos neste planeta. Ir para "â
parte inferior" do reino animal significa que encon­
traremos animais cada vez menos parecidos conosco.
O sistema nervoso e o cérebro deles são menos pa­
recidos com os nossos. E também há forte evidência
de que as abelhas possuem um intricado meio de co­
municação química e estruturas sociais complexas.
Até o quanto podemos dizer, falta a elas o tipo de
cérebro necessário para fazer cálculo abstrato ou re­
flexão moral. Porém, estamos preparados para negar
que elas possuem alguma experiência de prazer, de
dor e de comportamento, de formas socialmente sig­
nificativas?
O que dizer de organismos simples que carecem
completamente de um sistema nervoso e de cérebro?
O que dizer das células vivas?
C. Robert Mesle

Temos razão convincente para acreditar que, à


medida que vamos para "a parte inferior" do reino
animal, as experiências das criaturas vivas se tornam
cada vez menos complexas. O pensamento abstrato
86
desaparece primeiro, junto com outras formas de
emoções que dependem de nossa habilidade de pre­
ver o futuro distante. Então, outras emoções e in-
tencionalidade são perdidas à medida que o cérebro
torna-se menor. Provavelmente, a consciência depen­
de de um sistema nervoso central.
Experiências de sentido estão presentes, porém
diferentes das nossas - como nos morcegos usando
sonar, ou cobras, sentindo o calor do corpo. Gradual­
mente, até mesmo a experiência de sentido é perdida
quando olhamos para animais sem olhos, ouvido e
língua. Mesmo assim, eles ainda possuem sua forma
de encontrar comida. Como uma ameba encontra co­
mida? Eu não sei. Mesmo assim, ela reage ao mundo
ao seu redor de formas simples, porém fascinantes.
Se existe qualquer sentido em dizer que amebas
possuem experiência - ainda que primitiva, ainda
que distante da nossa -, então o que dizer das plan­
tas? Às plantas falta cérebro, células nervosas, órgãos
de sentido como os nossos e sistema nervoso central.
Porém, talvez suas células individuais ainda possu­
am níveis muito baixos de experiência inconsciente,
Teologia do processo - Uma introdução básica

mas talvez elas até partilhem sua experiência de mo­


dos que não podemos imaginar.

O mundo “material"

Finalmente, já que metemos nossas mãos nesse


absurdo há tempo, o que dizer dos elétrons? Eles pos­
suem experiência? Certamente, eles não podem ter
nenhuma das experiências que dependam da organi­
zação incrivelmente complexa das células vivas. Se
podemos nos deixar levar e esticar a palavra experi­
87
ência num a extensão que inclua os elétrons, pode-se
dizer que eles provavelmente experimentam somen­
te seus relacionamentos espaciais/temporais com
outros eventos subatômicos ao redor deles. Desse
modo, a experiência deles seria o que os físicos que­
rem dizer quando falam dos campos físicos consti­
tuindo o mundo material do tempo e do espaço, bem
como a gama de respostas possíveis que eles podem
dar para esses relacionamentos.
Se aceitamos que cães tenham experiência,
significa que esticamos essa palavra para além de
seu uso hum ano comum. Mas, quantos de nós se
recusaria a fazê-lo? Se dissermos que morcegos têm
experiência, esticamos a palavra ainda mais. Se
incluirmos as abelhas como tendo experiência, já
em purram os a palavra muito além de seus limites
normais. Mas não há uma razão para fazer isso? E
se, finalmente, dissermos que os elétrons têm a ex­
periência dos relacionam entos espaciais/temporais,
que constituem o universo físico, temos que acabar
pensando no universo inteiro como um mundo de
pura experiência, com elétrons (ou talvez quarks)
em uma extremidade de um espectro, e nós mesmos
(até o quanto sabemos) em outra extremidade (em­
bora talvez o universo esteja preenchido com cria­
turas muito distantes de nós, assim como estamos
distantes dos cães).
Em sua extremidade do espectro da experiência,
pode-se dizer que os elétrons possuem experiência
que é quase puram ente física. Tal experiência não
C. Robert Mesle

envolveria consciência, naturalmente. Esta falta até


mesmo a animais inferiores. Isso não teria nada a ver
com paixões, ideias ou moralidade. O único sentido
no qual se pode dizer que eles possuem experiência
88
conceituai seria a sua capacidade de "decidir" entre
mover-se por esse ou aquele caminho. Isso constitui
a totalidade de seu reino de liberdade.
Isso não significa que rochas, tábuas ou canetas-
-tinteiro tenham alma. Em objetos físicos comuns
não há experiência acima do nível das partículas in­
dividuais ou talvez moléculas que os compõem. Isso
é verdade para a maior parte do universo. A maior
parte do universo ê feita de eventos de experiência
de campos de energia, de relacionamentos espaciais/
temporais. Visto que essas experiências, principal­
mente, repetem os eventos anteriores aos delas, exis­
te uma abundância de estabilidade teimosa e de or­
dem no universo.
No entanto, cada indivíduo no universo tem al­
guma capacidade para criar a si mesmo. Cada even-
to-elétron encontra uma pequena gama de modos
possíveis através dos quais ele pode vir a ser no mo­
mento presente. E visto que os elétrons se juntam
com outros indivíduos elementares dentro de átomos
e moléculas e, finalmente, em células vivas, eles dão
surgimento a criaturas para as quais a experiência se
Teologia do processo - Uma introdução básica

torna mais complexa e mais intensa, com uma gama


mais extensa de respostas possíveis para o mundo.
Considerando que as células vivas são organizadas
em corpos com sistemas nervosos, olhos, ouvidos e
cérebros, a experiência se torna tão incrivelmente rica
e complexa que a riqueza da experiência de bilhões
de indivíduos pode ser amplificada, transformada e
alimentada em uma experiência central única. Essa
experiência é capaz não somente de sentimentos fí­
sicos como dor, prazer e fome, mas também de pos­
suir pensamento, imaginação e emoções como amor,
ódio, ciúme, os quais combinam sentimentos físicos
89
com pensamento. Dadas todas essas complexidades,
surge a capacidade para o pensamento moral e a sig­
nificativa liberdade moral.

Um mundo relacionai

Se você se recorda da discussão do capítulo 3,


você se lembrará das implicações de ver o mundo em
termos de "substâncias", que permanecem inaltera­
das através da mudança, e que precisam somente de
si mesmas para existir. Em contrapartida, os pensa­
dores do processo veem o mundo como fundam en­
talmente relacionai, vindo à existência mais uma vez
a cada momento e construindo a si mesmo a partir
do seu passado.
Pense outra vez em sua própria experiência. A
cada momento você cria a si mesmo. Mas você não
cria a si mesmo do nada. Ao contrário, você cria a
si mesmo a partir de tudo o que se passou antes.
Quando alguém o insulta e o deixa com raiva, a raiva
daquele momento é sentida no momento seguinte,
mas a partir de um novo ponto de vista. Nós, lite­
ralmente, sentimos os sentimentos dos eventos passados,
mas eles agora são transformados ao serem colocados
em um novo relacionamento.
Como uma simples analogia, pense em uma bola
de neve. Obviamente, não existe outra bola de neve
além da neve e de outros pedaços de cascalho, grama
e folhas que formam a bola. Nós não temos primei­
ro a "verdadeira bola de neve" à parte de qualquer
neve, e então começamos a acrescentar neve. Não há
outra bola de neve além da "união" dos objetos dos
quais ele é feita. O mesmo é verdade para tudo no
mundo, incluindo as almas humanas. Cada evento
passageiro na duradoura série de experiências, a qual
chamamos de nossa mente ou alma, é um pacote de
relacionamentos vividos. Retire as relações experi­
mentadas e nada restará.
Recentemente, eu disse a minha esposa que ela
estava em minha alma - e eu falei a sério. Por mais
de vinte anos meu relacionamento com ela tem sido
de suprema importância em minhas decisões so­
bre como eu criarei a mim mesmo. Ela e eu temos
moldado um ao outro. Decisões que ela toma sobre
quem ela será e como agirá suscitam respostas em
mim. Eu a experimento, e então crio a mim mes­
mo ao decidir quem eu serei - como agirei. O amor,
a ira, a alegria e a frustração dela se expressam de
modos que eu experimento, e essas experiências são
literalmente parte de quem eu sou. E é vivenciando
essas experiências e decidindo como responderei a
elas que eu crio a mim mesmo. A vida dela é literal­
mente parte da minha vida. Sem ela, eu seria uma
pessoa diferente da que sou - provavelmente, uma
pessoa profundamente diferente.
Teologia do processo - Uma introdução básica

O que é verdade para meu relacionamento com


Barbara - o fato de eu criar a mim mesmo a par­
tir desse relacionamento - é verdade, em variáveis
graus de importância, para minha relação com tudo
e com todas as demais pessoas no mundo. Se não
tivesse havido nenhum "big bang" quinze bilhões de
anos atrás, eu não estaria aqui. Se as estrelas, há bi­
lhões de anos de distância no tempo e no espaço,
não tivessem explodido e expelido suas dádivas de
elementos pesados, eu não estaria aqui. Minha vida
é um produto de tudo o que aconteceu antes. Embo­
ra eu responda consciente e atentamente por apenas
91
uma pequena porção do universo, tudo isso me toca.
Eu não existo primeiro e depois tenho relacionamen­
tos. Eu sou o que sou por causa dos relacionamentos
dos quais eu sou uma parte; por causa das decisões
que outras criaturas tomam sobre como criar a si
mesmas; e por causa das decisões que eu tomo sobre
como responder aos meus relacionamentos com es­
sas criaturas.
Por eu ser uma pessoa finita, posso sustentar so­
mente alguns poucos relacionamentos conscientes e
centrais. Por eu ser emocionalmente limitado, acho
difícil sustentar relacionamentos de amor com aque­
les que me odeiam ou que estão distantes. Por ser
finito em minha inteligência e segurança, eu percebo
a dificuldade para compreender e reconhecer a vasta
gama de relacionamentos que formam a minha vida.
Mas eles estão todos lá, quer eu tome conhecimento
deles quer não.
Quando empobrecemos os outros, empobrece­
mos a nós mesmos. Quando enriquecemos a vida dos
outros, enriquecemos a nós mesmos. Pois criamos a
nós mesmos a partir deles.
Teólogos do processo dizem que, quando empo­
brecemos os outros, também empobrecemos a Deus,
pois a vida divina, também, está continuamente par­
tilhando a vida de todos. É impossível acrescentar
e subtrair do infinito, acrescentar mais ou menos a
ele. A vida de Deus é infinitamente rica; além dis­
so, Deus partilha a vida do mundo, da minha espo­
sa, de meus filhos, a minha e a sua. Se tivéssemos
C. Robert Mesle

tomado as melhores decisões, teríamos contribuído


com maior riqueza para Deus. Poderíamos ter dado a
Deus mais com o que trabalhar no Seu esforço contí­
nuo para causar o bem.
92
O que é verdade para nossos relacionamentos
com outras pessoas também é verdade para os nos­
sos relacionamentos com todas as criaturas e com
Deus. Criamos a nós mesmos a partir de nossos re­
lacionamentos com eles. Assim, é melhor cuidarmos
do mundo em que vivemos.

Teologia do processo - Uma introdução básica

93
Capítulo 7
COMO DEUS AGE NO MUNDO

S e os teólogos do processo estão corretos, este é um


mundo de experiência, e cada experiência inclui
uma experiência de Deus. A experiência do amor de
Deus é o fundamento da realidade, dizem os teólogos
do processo. O que isso significa?

Deus como o fundamento da liberdade

Para ser livre, um indivíduo deve ter uma gama


de possibilidades a partir das quais escolher. Os teó­
logos do processo veem a "natureza primordial" de
Deus, a experiência eterna que Deus tem de todas
Teologia do processo - Uma introdução básica

as possibilidades, como o fundamento da liberdade


do mundo. Cada criatura, a cada momento, experi­
m enta Deus. Experimentamos Deus naquilo que ex­
perimentamos na gama de possibilidades, relevantes
para este momento de nossa existência. Os teólogos
do processo dizem que também experimentamos a
sedução de Deus em direção a algumas dessas possi­
bilidades em detrimento de outras. Ao fornecer pos­
sibilidades em um contexto de valores, Deus se inse­
re na experiência de cada criatura a cada momento
na história infinita do universo, tornando possíveis a
liberdade e os valores.
95
Em outras palavras, cada criatura experimenta
o cuidado amoroso de Deus em seus momentos de
criatividade. Cada momento criativo nasce do amor
criativo de Deus. Sem essa centelha divina, o m un­
do não poderia se tornar mundo. Assim, quando os
teólogos do processo afirmam que tudo da realidade
está fundamentado no amor de Deus, eles falam to­
talmente a sério. E a mais básica expressão do amor
de Deus é que Ele age como o fundamento da liber­
dade da criatura.

Deus não pode anular a liberdade

A maioria dos cristãos diria que Deus pode nos


dar nossa liberdade, mas Ele é também capaz de
suspendê-la sempre que assim o desejar. Eles dizem,
no entanto, que Deus obviamente escolhe abster-se
dessa intrusão, na maioria dos casos, de modo a nos
perm itir a liberdade. O pressuposto subjacente é o de
que a liberdade é um dom tão grande que vale a pena
o preço de todo o sofrimento que a torna possível. Al­
guns cristãos hoje podem ampliar essa ideia ao dizer
que Deus fez uma escolha eterna de não anular a li­
berdade hum ana e Ele obviamente não voltará atrás
em tal escolha. De qualquer forma, quando o proble­
ma do mal surge, qualquer um destes pressupostos
se constitui no que é costumeiramente chamado de
"a defesa do livre-arbítrio" do fracasso de Deus ao
evitar o sofrimento. A teologia do processo, em con­
trapartida, está afirmando seriamente que Deus não
pode anular a liberdade da criatura.
C. Robert Mesle

As diferenças morais entre a teologia do processo


e "a defesa do livre-arbítrio'' tornam-se óbvias quan­
do perguntamos por que Deus fracassa ao anular a
96
liberdade de uma criança pequena prestes a cami­
nhar à frente de um carro. Não aceitaríamos a defesa
do livre-arbítrio de pais humanos que fracassaram
ao proteger essa criança em perigo, então, por que
aceitaríamos isso como visão de Deus?
Os teólogos do processo concordam que Deus é
o fundamento da liberdade, mas não pensam em li­
berdade como alguma coisa que Deus possa simples­
mente escolher reter ou anular. Por que não?
Os teólogos do processo acreditam que liberda­
de é uma característica inerente à realidade. O uni­
verso é o vir a ser de eventos que são autocriativos;
dos quarks às mentes humanas. Sem liberdade não
haveria mundo. Liberdade não é um presente que
Deus controla ou que Deus poderia reter e ainda as­
sim haver o mundo. "Sem liberdade" significa "sem
criaturas".
Em certo sentido, portanto, liberdade é simples­
mente um fato bruto sobre o mundo que nem mes­
mo Deus pode destruir. Mas há outro sentido no qual
Deus ativamente age para "nos dar" nossa livre ação.
E isso acontece por meio do processo evolucionário.
Teologia do processo - Uma introdução básica

Depois que compreendemos como Deus deve agir no


mundo para evoluírem criaturas tão livres quanto os
seres humanos, veremos por que Deus não pode sim­
plesmente suspender esse trabalho de um momento
para outro.

Deus e evolução

Imagine alguns poucos trilhões de partículas


gama zunindo sobre a terra há quatro bilhões de
anos. Essas partículas são amplamente determinadas
97
pelo seu ambiente, mas, assim como todos os eventos
elementares ("individuais"), elas têm alguma capaci­
dade trivial para responder ao seu ambiente físico
de mais de uma forma. Talvez, se fosse para algumas
delas seguirem por "este caminho" ao invés "daquele
caminho", elas pudessem colidir com algumas célu­
las vivas primitivas e gerar mutações, dando ao pro­
cesso evolucionário de seleção natural mais material
novo com o qual trabalhar. Um teólogo do processo
poderia ver a mão de Deus no processo evolucioná­
rio quase como que "chamando" aquelas partículas
gama para "este caminho", na esperança de que algu­
mas poucas fossem responder, impulsionando junto
o processo evolucionário em direção a possibilidades
mais interessantes.
Os teólogos do processo veriam Deus como pa­
cientemente trabalhando através do processo evolu­
cionário para trazer à existência novas espécies de
criaturas com maior grau de liberdade. Uma expe­
riência do elétron de Deus é trivial. Mas dentro de
uma molécula orgânica, um elétron possui um con­
junto de relacionamentos mais rico para experimen­
tar. Como essas moléculas combinam com outras de
maneiras apropriadas, elas surgem como organismos
com capacidades substancialmente maiores para no­
vas respostas a seu ambiente. Biólogos teriam defi­
nições mais precisas, porém, é importante ver que
parte do que queremos dizer com "vida" é mesmo
esta grande capacidade para a novidade. A definição
do biólogo apontará para aquelas características de
um organismo que tornam essa criatividade possível.
C. Robert Mesle

Comparada a um elétron ou a uma molécula or­


gânica, a liberdade de uma ameba é extremamen­
te superior, e sua experiência de Deus é, de modo
98
correspondente, mais rica. Porém, comparada à das
baleias, dos primatas ou dos humanos, a experiên­
cia de uma ameba é incrivelmente trivial. Deus e a
evolução ainda têm um longo caminho a percorrer
para produzir criaturas cujas vidas possamos achar
interessantes. Mas baleias, primatas e seres humanos
não poderiam ter sido criados por Deus sem todo o
restante da rede biológica da qual dependemos. Te­
ria de haver um universo de elétrons, oceanos de
plâncton, florestas cheias de bananas e um sistema
ecológico completo antes que pudesse haver baleias,
gorilas ou nós.
Deus levou bilhões de anos para projetar o m un­
do por meio de um processo evolucionário capaz de
sustentar os seres humanos. A liberdade que des­
frutamos é fundamentada em um mundo inteiro de
criaturas. A liberdade de nossas mentes depende e
decorre da experiência de bilhões de células que for­
mam nossos corpos a cada momento. Simplesmente
não faz parte do poder de Deus suspender tudo isso
de uma hora para a outra.
Temos corpos com mãos que podem alcançar e
Teologia do processo - Uma introdução básica

puxar um gatilho ou agarrar uma criança. Deus não.


Assim, podemos negar a liberdade um do outro de
maneira que Deus não pode. Deus está em todo lugar
e em todo tempo. Deus pode tornar a liberdade pos­
sível para o universo inteiro, movendo-o através de
um processo evolucionário para criar um universo
de experiência. Nós não podemos. Estamos somen­
te aqui e agora. Nossos poderes são nossos, não de
Deus. E os poderes de Deus são de Deus, não nossos.
Deus não pode anular nossa liberdade.
Deus nos dá liberdade como um dom, pois traba­
lhou através de bilhões de anos para criar um mundo
99
capaz de produzir criaturas com cérebros e corpos
tão complexos que podem produzir mentes como as
nossas, capazes de grande liberdade. Talvez Deus
não tenha escolhido fazer isso de maneira alguma -
mas isso parece improvável. Deus certamente divide
responsabilidade com o mundo por nossa existência
e por nossa habilidade de sermos amáveis e cruéis.
Mas agora que estamos aqui, temos que aceitar a res­
ponsabilidade pelo que fazemos. Deus não pode nos
salvar de nós mesmos ou do resto do mundo, do qual
dependemos.

Humanos, criaturas e Deus

Agora, chegamos a outra importante diferença


entre o pensamento do processo e as teologias tra­
dicionais. Teólogos do processo não aceitam que os
seres humanos sejam o centro ou o fim da atividade
criativa de Deus. A atividade criativa de Deus se es­
tende infinitamente para o passado e continuará em
direção a um futuro infinito. Nós e nosso mundo es­
tamos aqui nesse infinito só por um breve momento.
O amor e os planos de Deus não começam e term i­
nam conosco.
Além disso, visto que Deus não pode controlar
o processo evolucionário, não há razão nem mesmo
para presum ir que Deus tivesse esse processo como
objetivo especificamente para nós. A história da evo­
lução foi preenchida com mais eventos cruciais do
que podemos sonhar, e Deus não poderia controlá­
C. Robert Mesle

-los. Deus e o mundo têm estado envolvidos em uma


dança contínua na qual Deus deve continuamente se­
guir as decisões das criaturas e trabalhar com elas -
quaisquer que elas sejam. Para melhor ou pior, cada
100
decisão de cada criatura desempenha algum papel
no processo de vir a ser do mundo. E Deus trabalha
para criar alguma coisa boa a partir do que o mundo
torna possível.
Evolução, portanto, é uma contínua aventura
para Deus, como é para o mundo. Não necessitamos
supor que Deus tenha algumas espécies específicas,
como os humanos, ou alguma estrutura social espe­
cífica, como o capitalismo americano, com uma meta
divina. Preferencialmente, deveríamos dizer que
Deus visa à riqueza da experiência, tanto para Ele
quanto para o mundo. Deus partilha a experiência
de cada criatura. Dessa forma, o prazer e a dor de
abelhas, morcegos e babuínos são parte da vida de
Deus. Suas vidas são importantes para Deus. Assim,
se nos importamos com a vida de Deus, deveríamos
nos importar com a vida deles.
A teologia do processo exige que paremos de ver
a felicidade dos seres humanos como o único propó­
sito da existência e atividade criativa de Deus. Deve­
mos respeitar a totalidade da criação e todas as ou­
tras criaturas com as quais partilhamos este mundo,
Teologia do processo - Uma introdução básica

pois elas também têm suas alegrias e também con­


tribuem para a vida de Deus. A dor dos animais no
laboratório, a miséria da vida em uma pequena jaula
de arame e a agonia de uma raposa em uma arma­
dilha de aço são partilhadas por Deus, assim como a
miséria dos seres humanos.
No entanto, existem modos pelos quais os hu­
manos desempenham um papel na vida de Deus que
os animais inferiores não podem. No nível dos seres
humanos - onde a experiência se torna tão rica e
complexa que cruza a crucial fronteira rumo à cons­
ciência, às abstrações, à habilidade de antecipar o
101
futuro distante e considerar uma vasta gama de pos­
sibilidades complexas a liberdade moral se torna
possível, e nossa experiência de Deus se torna dra­
maticamente mais importante. Os seres humanos po­
dem experimentar possibilidades de grande impor­
tância moral, juntam ente com o chamado de Deus
para escolher algumas ao invés de outras. Podemos
experimentar as profundezas do amor e da alegria e,
para os animais inferiores em nosso planeta, parti­
lhar isso provavelmente seja impossível.
É claro que podemos apenas imaginar parca­
mente que outras criaturas possam existir neste vas­
to universo. É possível que existam criaturas com
níveis de experiência tão além da nossa, que suas
contribuições à vida de Deus são muito maiores do
que as nossas, e sua experiência de Deus compara-
velmente mais rica do que a nossa. Se a visão de di­
vindade dos teólogos do processo for correta, então
devemos aceitar que o trabalho criativo de Deus não
é limitado às nossas pequenas espécies neste enorme
cosmos.
Deus não é um ser humano. Certamente não so­
mos o centro ou o fim do universo de Deus e da cria­
tividade de Deus. Pode haver criaturas no universo
que usufruam de uma comunicação bem mais pro­
funda com Deus do que aquela que conseguimos. E
podemos evoluir, tornando-nos criaturas muito m e­
lhores e mais complexas do que as que somos agora.
Isso não significa que Deus não nos ame. A vida
não é uma competição pelo amor de Deus. O amor
C. Robert Mesle

de Deus é infinito, tocando todas as criaturas em sua


espécie. O amor de Deus entra em cada momento de
nossas vidas, assim como entra na vida de todas as
criaturas em toda parte.
102
O entrelaçamento de Deus e o mundo

Nossa experiência de Deus está entrelaçada com


nossa experiência de todo o passado do universo.
Nossas próprias decisões do passado e nosso am­
biente imediato afetam-nos ainda mais. Elas criam
as situações que tornam as possibilidades mais ou
menos relevantes. Se alguém me dá um soco no na­
riz, m inha resposta será moldada por toda a minha
vida anterior. Se sou um lutador, provavelmente
baterei de volta. Se tenho trabalhado para evitar a
violência, provavelmente olharei para alguma ou­
tra opção. Mas qualquer que seja o m eu passado,
haverá mais de uma resposta possível, e haverá al­
gumas respostas que produzem mais bem do que
outras. Minha experiência de Deus é a minha ex­
periência dessas possibilidades, juntam ente com o
chamado de Deus em direção às melhores possibi­
lidades.
Algumas vezes, naturalmente, até mesmo as pos­
sibilidades melhores são más, mas esse é um fato que
Deus não pode mudar. Se eu tiver simplesmente dis­
parado uma bala em alguém, Deus não pode mudar
Teologia do processo - Uma introdução básica

esse fato. Deus não pode parar a bala. E mesmo as


melhores opções que Deus pode partilhar comigo po­
dem ser terríveis.
Deus pode trabalhar com o mundo material, à
parte da evolução? Visto que rochas e projéteis não
são indivíduos com sua própria experiência, e visto
que mosquitos da malária não são capazes de con­
siderar as conseqüências de se alimentarem com
sangue humano, não há muito que Deus possa fazer
para influenciá-los. Mas existem algumas coisas que
Deus pode fazer.
103
Imagine células doentes em um corpo humano.
Essas células, principalmente, funcionarão de acor­
do com padrões fixos e são bastante incapazes de
ter sentimentos de simpatia pelo organismo hum a­
no maior, do qual elas fazem parte. Naturalmente,
existem células saudáveis no corpo trabalhando para
produzir cura. Se virmos a mente hum ana como in-
trinsecamente uma parte do corpo humano, e apren­
dermos que ela é uma experimentadora no corpo en­
tre outras, podemos ficar sabendo como a mente e
Deus podem cooperar ao assistir a essas células mais
saudáveis em seu trabalho. E se tal assistência for
bem-sucedida, ela não seria uma suspensão m iracu­
losa da lei natural. Nem significaria que Deus tenha
decidido curar esta pessoa e não milhões de outras.
Deus continuamente chama o mundo e a nós para o
melhor, mas cabe ao mundo responder.
Deus não tem poder sobrenatural para coagir o
mundo. Mas Deus realmente trabalha ao mundo para
a saúde e para a cura. Dada a diferença entre as célu­
las cancerosas e as mentes humanas, o melhor cami­
nho de Deus para trazer saúde ao mundo é chamar
pessoas a aprender como curar a si mesmas. E, na
verdade, dificilmente podemos ignorar os incríveis
milagres da medicina moderna. Mas os teólogos do
processo não excluem totalmente a possibilidade de
que células do corpo também possam, em algumas
ocasiões, surpreender-nos com sua resposta ao cha­
mado de Deus para a saúde. Tampouco deveríamos
ficar surpresos ao ficar sabendo que nossas mentes e
corpos interagem mais e têm mais poder para curar
C. Robert Mesle

um ao outro do que fazíamos ideia.


Finalmente, Deus trabalha no mundo ao ser res-
ponsivo. Deus partilha a experiência de cada cria­
104
tura momentânea. Deus partilha a experiência dos
elétrons e das partículas gama, dos morcegos, das ba­
leias e das pessoas. Deus toma a experiência do m un­
do e responde com opções e chamados apropriados a
nossas decisões do passado e situações do presente.
O mundo termina, afinal, quase como uma ban­
da de jazz. Cada criatura cria a si mesmo com algum
grau de liberdade moldado pela "música" que já foi
tocada e pelas sugestões sussurradas por Deus para
harmonias e contrastes mais bonitos. Mas a música
não existe até as criaturas a criarem. E qualquer que
seja a melodia que Deus possa ter em mente, tocá-la
cabe às criaturas.

Teologia do processo - Uma introdução básica

105
PARTE III
UMA TEOLOGIA LIBERTADORA
INTRODUÇÃO À PARTE III

S empre que escrevo sobre teologia ou filosofia, luto


pensando se isso só não vai desviar os leitores das
questões verdadeiramente importantes que nos con­
frontam. Por um lado, essas questões dizem respei­
to às muitas fontes de miséria em nosso mundo -
doenças, pobreza, sexismo, militarismo, racismo etc.
- e às ameaças a nossa vida planetária, tais como
armas nucleares, superpopulação e poluição. Entre­
tanto, existem questões verdadeiramente importantes
a respeito de como podemos cuidar melhor de nossas
crianças e de nossos amados agora, neste exato dia.
Com toda honestidade, acho que as questões so­
bre como trabalhar para a libertação humana e para
Teologia do processo - Uma introdução básica

o bem-estar do planeta são mais importantes do que


questões sobre a natureza de Deus, e muitos teólo­
gos do processo também achariam isso. Com certeza,
o Deus da teologia do processo estaria ansioso para
que focássemos nos problemas que afetam nossa so­
brevivência. Mas é um fato que aquilo que acredita­
mos sobre Deus molda nossas respostas para essas
outras questões. Certamente, há muito do valor na
imagem tradicional de Deus como Pai. Mas, se acre­
ditamos que Deus é "Pai", que o Pai orienta as m u­
lheres a perm anecerem em silêncio na igreja, e que
o sistema atual de dominação masculina existe por­
109
que ele é parte do plano eterno do Pai, como descri­
to na Bíblia, então devemos nos opor a esse movimen­
to, visando a uma maior igualdade para as mulheres.
Outras imagens, no entanto, podem nos abrir
rica e entusiasticamente para diferentes jornadas
espirituais. Sally McFague sugeriu imagens de Deus
como Mãe, como alguém que ama e como Amigo.
Shug, em A cor púrpura de Alice Walkers, sugere:
"Invoque flores, vento, água, uma grande rocha".
A tradição cristã da onipresença de Deus afirma
que não há dimensão da realidade que não possa
ser ocasião para a revelação do divino. Precisamos
explorar imagens que nos ajudem a nos abrir para
as m uitas faces do sagrado. Especialmente, precisa­
mos de imagens que nos puxem para longe das visões
estreitas acerca de quem e o que é importante, e em di­
reção a visões mais amplas de libertação para todos.
Dadas essas convicções sobre o que é importante
e como a teologia afeta nossas atitudes em direção a
questões vitais, quero estruturar esta seção do livro
para que essas conexões sejam o centro.
Há um claro risco envolvido. Minha meta funda­
mental é apresentar uma visão positiva que guie as
pessoas para alguma coisa boa, mais do que apenas
atacar negativamente as ideias existentes. Mas, se ser
positivo significa ter medo de ser honesto a respeito
dos problemas sérios que vejo nas teologias tradicio­
nais, a estratégia seria de autoderrota. De qualquer
forma, qualquer leitor atento vai ver as implicações
negativas de minha posição positiva, mas eu poderia
também tirá-los desse campo negativo e levá-los para
C. Robert Mesle

um lugar aberto, que pode ser considerado o lugar


adequado para eles. Por favor, lembrem-se de que
minha meta final não é meramente derrubar, mas
oferecer alternativas construtivas.
110
Capítulo 8
COMO A RELIGIÃO SE TORNA OPRESSORA

A
o redor de 580 a.C., o filósofo grego Xenófanes
observou que, "se o gado ou os leões tivessem
mãos, para com suas mãos produzir obras de arte
como fazem os homens, eles pintariam seus deuses
e dariam a eles corpos na forma como eles próprios
são - cavalos como cavalos, gado como gado". Seu
ponto de vista, naturalmente, não era sobre animais,
mas sobre nós. Nós, também, pintamos Deus - tan­
to nas paredes quanto em nossas mentes - como se
Deus fosse igual a nós.
Ludwig Feuerbach, um filósofo alemão do sé­
culo XIX, impulsionou esta ideia para mais além,
dizendo que a teologia é realmente antropologia.
Teologia do processo - Uma introdução básica

Quando estudamos os deuses de qualquer cultura,


estamos realmente estudando as pessoas. Os valores
das pessoas são projetados para fora delas mesmas,
nos deuses que elas adoram. Tribos guerreiras, por
exemplo, possuem provavelmente deuses guerreiros.
Deuses, naturalmente, são mais do que humanos. As­
sim, valores humanos não são meramente projetados
em deuses, são engrandecidos. O deus guerreiro será
muito mais forte e feroz que os guerreiros hum anos.1
1. Existem maneiras óbvias pelas quais a teologia do processo reflete
o pensamento e a cultura americana contemporânea. Isso não a invalida

111
É claro que, geralmente, não estamos conscien­
tes de que estamos fazendo isso. Não achamos que
nossos deuses ou seus valores sejam projeções de nós
mesmos. Presumimos que nossas pinturas dos deu­
ses são imagens precisas da realidade divina, de uma
verdade e bondade eternas.
Visto que nós, seres humanos, somos frequente­
mente preenchidos com sentimentos contraditórios
sobre o que valemos, não seria surpresa que nossos
deuses refletissem e potencializassem esses confli­
tos. Considere, por exemplo, o Deus do cristianismo
tradicional, do qual se diz que ama todas as pesso­
as infinita e incondicionalmente. Aqui, certamente,
vemos o mais alto dos nossos valores elevados ao
seu máximo. E, além disso, podemos facilmente ver
como nossa estreiteza e vingança hum anas infectam
nossa teologia quando lembramos que os cristãos
geralmente descrevem Deus lançando a maioria dos
seres humanos no fogo eterno do inferno por não
acreditarem em uma religião da qual nunca ouviram
falar. Na verdade, os cristãos geralmente acredita­
vam que seu Deus predestina pessoas a queimar no
inferno pelos pecados que elas foram predestinadas
a cometer. O resultado terrível de tudo isso é que

automaticamente mais do que qualquer teoria é invalidada ao refletir o


melhor pensamento atual. Essa habilidade em responder inteligentemente
aos desafios contemporâneos mais graves e refletir o melhor pensamento
moderno é certamente um esforço da teologia do processo. Mas os
pensadores do processo estão certamente conscientes do comentário
humilhante de Whitehead que eu citei na introdução deste livro: “E
C. Robert Mesle

permanece a reflexão final de quão superficiais, insignificantes e imperfeitos


são os esforços para fazer soar as profundezas na natureza das coisas. Na
discussão filosófica, a mera sugestão de uma certeza dogmática quanto
à finalização de uma afirmação é uma exibição de insensatez” (Prefácio a
Process and reality: An Essay in Cosmology, The Free Press, edição corrigida,
GrifRn and Sherburne orgs.), p. xiv.

112
enviar pessoas ao inferno passa a ser visto como uma
expressão de amor divino.
A crença cristã tradicional de que todos os judeus
vão automaticamente para o inferno tornou mais fá­
cil para os cristãos vê-los como inimigos de Deus que
não somente poderiam, mas deveriam ser punidos
por serem judeus. Os campos de concentração nazis­
tas foram apenas uma extensão desta teologia.
Outro exemplo concreto e trágico desta fusão de
valores contraditórios, que tem contribuído para sé­
culos de miséria para escravos de senhores cristãos,
pode ser encontrado em 1 Pedro 2,18-21. Por anos
eu citei os versículos 21-24 como uma das minhas
expressões favoritas de como o Cristo crucificado
chama todos os cristãos a serem modelos de amor
sacrificial. Então um dia comecei a ler o versículo 18
e fiquei horrorizado com o que vi:
18Vós escravos, sujeitai-vos, com todo o respeito, aos
vossos senhores, não só aos bons e razoáveis, mas tam­
bém aos perversos. 19É louvável que alguém suporte as
aflições, sofrendo injustamente por amor a Deus. 20Mas,
que glória há em suportar com paciência quando sois es-
Teologia do processo - Uma introdução básica

bofeteados, se fizeram algo errado para merecer isso? Ao


contrário, se, fazendo o bem, sois pacientes no sofrimen­
to, isto sim constitui uma ação louvável diante de Deus.
21Com efeito, para isto é que fostes chamados, pois que
também Cristo sofreu por vós, deixando-vos um exem­
plo, a fim de que sigais os seus passos.
Uma passagem muito similar pode ser encontra­
da em 1 Timóteo 6,1-2:
‘Todos os que estão sob o jugo da escravidão devem
considerar os seus próprios senhores como dignos de
113
todo respeito; para que o nome de Deus e a doutrina
não sejam blasfemados. Os que têm senhores fiéis não
os desrespeitem,2por serem irmãos; ao contrário, que
os sirvam ainda melhor, porque são crentes e amigos
de Deus, que se beneficiam de seus bons serviços (BJ -
Bíblia de Jerusalém).2
A tragédia é que Cristo se tornou, parcialmente,
uma projeção dos valores dos proprietários de escra­
vos. Jesus, tal como Iahweh no Antigo Testamento, foi
usado para sancionar a escravidão e ordenar a obedi­
ência de escravos. Assim, o pior e o mais egoísta dos
valores humanos, assim como o mais alto e o melhor,
podem ser projetados em nossas imagens de Deus.
Devemos ver claramente o que acontece aqui.
Os seres humanos possuem valores que são molda­
dos pela sua cultura e experiência. Pessoas que têm
mais poder em uma sociedade e se beneficiam o má­
ximo dele - que são bastante ricas, livres e felizes
- naturalm ente verão a sua sociedade como boa. En­
tretanto, aqueles que são as vítimas impotentes de
uma sociedade - os escravos, os empobrecidos, os
oprimidos - naturalm ente terão uma visão diferente.
Inconscientemente, aqueles que têm poder em
uma sociedade moldarão seus deuses à sua própria
imagem. Os deuses do poderoso e do confortável sem­
2. Embora escritos sob os nomes de Pedro e Paulo, pesquisadores nã
fundamentalistas do Novo Testamento concordam amplamente que 1
Pedro e 1 Timóteo foram de fato escritas por autores no segundo século
da era cristã. O próprio Paulo uma vez afirmou que em Cristo “não há
C. Robert Mesle

escravo ou livre” (Gálatas 3,28), e sua carta a Filêmon tem um sentimento


poderosamente antiescravidão. Lamentavelmente, sua crença de que
Jesus retornaria em breve levou-o a dizer que os escravos não deveriam se
preocupar em procurar sua liberdade: “Cada um de vocês leve a vida que o
Senhor atribuiu, para a qual Deus os chamou... Vocês eram escravos quando
foram cham ados? Não se preocupem a esse respeito”. Veja 1 Coríntios 7,17-32.

114
pre aprovarão e mesmo ordenarão que as estruturas
da sociedade favoreçam aqueles que estão no poder.
Os valores particulares, históricos e a serviço próprio
de uns poucos se tornam valores eternos e imutáveis
de Deus, que ordena que todas as pessoas obedeçam
a este sistema social, que é parte do plano eterno
de Deus. Deste modo, a exploração e o sofrimento
das pessoas oprimidas em uma sociedade tornam ­
-se sancionadas como sendo vontade divina. E onde
há crença na vida após a morte, é dito aos escravos
obedientes que eles serão recompensados e àqueles
rebeldes, que serão punidos na vida após a morte.
Podemos esperar que escravos e outras pessoas
exploradas rejeitem tal teologia, e às vezes eles fazem
isso. Mas lembre-se de que aqueles no poder contro­
lam os púlpitos, os livros, as escolas, as igrejas. E, se
escravos são apanhados falando de um Deus que os
chama para ser livres, você pode imaginar como essa
blasfêmia será punida. Logo, os escravos aprendem a
aceitar a religião dos senhores e a ensiná-la aos seus
filhos. Se uma criança escrava desafiasse um Deus
que ordenava a escravidão, os pais poderiam mui­
Teologia do processo - Uma introdução básica

to bem dizer: "Silêncio, criança. O Senhor e Deus o


ouvirá e o punirá". Para sobreviver, geralmente o ex­
plorado aceita a religião do explorador - no mínimo
em parte. Pense na maneira como geralmente os es­
critores do Novo Testamento, temendo a perseguição
pelos romanos, diziam: "Não dê ao inimigo chance
para nos insultar”.
Em Romanos 13,1-4, Paulo vai até mesmo além:
'Todo homem se submeta às autoridades constituídas,
pois não há autoridade que não venha de Deus, e as
que existem foram estabelecidas por Deus. 2De modo
115
que aquele que se revolta contra a autoridade, opõem­
-se à ordem estabelecida por Deus. E os que se opõem
atrairão sobre si a condenação.3Os que governam incu­
tem medo quando se pratica o mal, não quando se faz o
bem. Queres então não ter medo da autoridade? Pratica
o bem e dela receberás elogios, ''pois ela é instrumento
de Deus, para te conduzir ao bem. Se, porém, praticares
o mal, teme, porque não é à toa que ela traz a espada:
ela é instrumento de Deus para fazer justiça e punir
quem pratica o mal.
Esta passagem ajudou a apoiar a doutrina m e­
dieval do "direito divino dos reis" e bem podemos
imaginar as incontáveis vezes que ela deve ter sido
citada por aqueles que estavam no poder. A clara de­
claração parece significar que, qualquer coisa que o
governante político faça, deve ter sido aprovada por
Deus, senão Deus removeria o governante do ofício.
As leis criadas pelos seres humanos - ainda que cru­
éis e exploradoras - adquirem diretamente apoio di­
vino. Rebelar-se contra a injustiça na sociedade é se
rebelar contra Deus.
Religião e sociedade também são complicadas
demais para que qualquer generalização única seja
adequada. Não se pode negar que a religião, incluin­
do a religião cristã, com frequência tem sido uma
fonte de reforma moral e social, convocando as pes­
soas para uma melhor visão de mundo. Profetas sur­
giram tanto em meio aos opressores quanto em meio
aos oprimidos, desafiando o status quo e soando um
chamado para o trabalho por um mundo melhor. Por
essas pessoas e por essas visões religiosas devemos
C. Robert Mesle

ser gratos.
Entretanto, permanece o fato claro de que a reli­
gião, incluindo a religião cristã, tem sido consistente-
116
mente uma das mais efetivas ferramentas disponíveis
à elite poderosa para m anter a opressão. Talvez o fato
mais insidioso seja que, exatamente por acreditar-se
que a opressão seja ordenada por Deus, ela não é vis­
ta absolutamente como opressão. Certamente deve
ser parte do plano justo e amoroso de Deus (dizemos)
que muitos sofram em nome de tão poucos. Serviço
amoroso, afinal, é certamente parecido com Cristo -
especialmente para escravos! E mulheres. E povos do
terceiro mundo.

A onipotência de Deus como um problema central

Uma característica crucial da teologia cristã tra­


dicional que a torna tão suscetível ao uso opressivo,
creio, é sua insistência em que Deus é todo-poderoso.
Visto que Deus é todo-poderoso, os cristãos têm dito
(ou deduzido) que o mundo está do jeito que Deus
quer que ele esteja. Mesmo a miséria e a injustiça
deste mundo têm sido vistas persistentemente como
parte do plano eterno de Deus.
Teologia do processo - Uma introdução básica

Geralmente, a suposição tem sido a de que o so­


frimento humano é necessário para nosso crescimen­
to espiritual. Sem ele, não poderíamos aprender a ser
amorosos, compreensivos ou abnegados. Uma afirma­
ção excepcionalmente clara desta visão vem do teó­
logo contemporâneo John Hick. Em seu estudo clás­
sico do problema do mal - Evil and the God of Love
(O mal e o Deus de Amor) -, Hick argumenta exten­
samente que Deus tem intencionalmente permitido
o sofrimento deste mundo para que nossa vida possa
ser um processo de "constituição da alma". Constituir
nossa alma significa nos tornarmos o tipo de pessoa
117
amorosa e cuidadosa, capaz de comunhão eterna
com Deus. E esse processo somente pode acontecer
em um mundo preenchido com sofrimento, e mesmo
injustiça.
Parece, então, que em um mundo que deve ser a
cena do amor compassivo e doação para os outros, o
sofrimento deva cair sobre a humanidade com algo
da aleatoriedade e injustiça que agora experimenta­
mos. Isso parece ser aparentem ente não merecido,
sem sentido e impossível de ser moralmente racio­
nalizado. Mas é precisamente esta característica do
destino humano comum que cria benevolência entre
os homens e evoca a gentileza e a boa vontade altru­
ístas, que estão entre os mais altos valores da vida
pessoal.3
O papel do sofrimento na vida hum ana é, certa­
mente, uma questão complexa. Mas não pode haver
nenhum engano quanto à importância de presum ir
que Deus seja todo-poderoso, de modo que, qualquer
coisa que aconteça no mundo foi permitida ou cau­
sada direta ou indiretamente pela sabedoria infini­
tamente amorosa de Deus. Se a injustiça do mundo
definitivamente não servisse aos propósitos de Deus,
Deus poderia - os cristãos acreditam - simplesmente
removê-la.
Sem dúvida, muitos leitores não concordarão
que nossas imagens tradicionais têm retratado Deus
nos convocando para melhorar este mundo, a fim
de combater suas injustiças. Isto frequentem ente é
verdadeiro. Tais crenças têm levado os cristãos a se
C. Robert Mesle

oporem à escravidão, às leis injustas, a sistemas eco­

3. John Hick, Evil and the Cod of Love, Macmillan Co., 1966, p. 370SS.

118
nômicos exploradores e à opressão do sexismo. Para
semelhantes teologias deveríamos todos ser gratos.
Mas cada um desses esforços tem sido minado
pela persistente crença de que Deus é todo-poderoso.
Se um Deus todo-poderoso escolhe não intervir para
evitar a escravidão, para erradicar a pobreza, para
limpar o racismo e o sexismo em nossos corações ou
colocar fim ao horror da guerra, então esses males
devem desempenhar algum papel no plano de Deus.
E rapidamente ouvimos pessoas citando Romanos 13
e 1 Timóteo 6 para explicar que aqueles que estão no
comando têm o apoio e a aprovação de Deus.
Nos capítulos seguintes explorarei os modos pe­
los quais a teologia do processo evita estas dificulda­
des e nos convoca para um mundo melhor.

Teologia do processo - Uma introdução básica

119
Capítulo 9
UMA TEOLOGIA DO PROCESSO DA LIBERTAÇÃO

A
visão que a teologia do processo tem de Deus
apoia diretamente teologias da libertação de três
maneiras principais. Ao afirmar o caráter relacionai
do Divino como participante na experiência de cada
criatura, a teologia do processo oferece o retrato de
um Deus partilhando diretamente os sofrimentos
do mundo. Deus se torna a vítima da injustiça e da
opressão, ao invés de tornar-se um rei indiferente.
Ao negar a noção tradicional de que Deus seja todo-
poderoso, a teologia do processo retira as escoras
que apoiam qualquer esforço que se faz para afirmar
que as injustiças sociais existentes são parte do plano
divino. E ao focar na prioridade do poder relacionai
Teologia do processo - Uma introdução básica

e não na do poder unilateral, a teologia do processo


também constrói uma afinidade natural com a liber­
tação das mulheres quando oferece melhores recur­
sos para ver a Deus através das categorias feministas.

Um Deus que sofre e se regozija conosco

W hitehead se referiu a Deus como o "grande


companheiro, o colega sofredor que compreende",
porque o Deus imaginado por ele é um Deus que par­
tilha cada experiência da criatura, a cada momento.
121
No relato de Elie Wiesel, Night, sobre suas expe­
riências nos campos de concentração, ele descreve a
morte de um garoto. Quando enforcado, o menino
estava muito leve para que a corda fizesse seu costu­
meiro trabalho. Ao invés de m orrer rapidamente, ele
demorou, ofegante, contorcendo-se na extremidade
da corda, sufocando lentamente. Um dos prisionei­
ros forçados a assistir, perguntou: "Onde está Deus
agora?''. E outro respondeu: "Ele está aqui - ele está
pendurado aqui, nesta forca..."1
Provavelmente o primeiro prisioneiro quis dizer
que sua fé em Deus estava morrendo com o menino.
Teístas do processo concordariam que tal sofrimento
proclama corretamente a morte da fé em um Deus
que poderia evitar semelhante sofrimento, mas se
recusa a fazê-lo. Apelos para a "ação humana" não
podem significar muito para a criança na corda ou
para os prisioneiros forçados a assistir.
Teólogos do processo, porém, poderiam bem ter
dito as mesmas palavras com um significado diferen­
te: "Deus está na extremidade daquela corda". Isto
é, Deus está partilhando o sofrimento do menino e
também o sofrimento dos prisioneiros. Deus também
partilha a experiência dos guardas do campo e se en­
tristece com a destruição da humanidade e da capa­
cidade deles para sentimentos humanos de amor e
de compaixão.
Esta imagem de Deus foi poderosamente expres­
sa pela Rev. Carter Heyward, em seu sermão sobre
"O Deus enigmático". Heyward luta com o significa­
C. Robert Mesle

do da estória de Moisés recebendo o nome divino:

1. Elie Wiesel, Night, Bantam Books, 1986, p. 62.

122
"Eu sou" (ou "Eu sou o que sou” ou "Eu serei o que
serei”). Deus estava sendo evasivo? Talvez não, su­
gere Heyward. Talvez essa estória sugira diretam en­
te que a natureza de Deus é dinâmica e extensiva
demais para ser capturada em um só nome. Deus
aparecerá para nós em lugares e modos nunca espe­
rados, chamando-nos para ver o mundo a partir de
um novo ângulo de visão. Possivelmente inspirado
pela estória de Wiesel sobre o enforcamento, a Rev.
Heyward nos desafia a procurar por Deus em pesso­
as inesperadas.
Deus se pendurará na forca.
Deus inspirará, preencherá, inundará Hándel, com po­
der e esplendor.
Deus será espancado como uma esposa, uma criança,
um negro, um efeminado.
Deus julgará com retidão, justiça e misericórdia aqueles
que espancam, queimam, zombam, discriminam ou
abrigam preconceito.
Deus fará uma mastectomia.
Deus experimentará a maravilha de dar à luz.
Deus será um deficiente físico.
Deus correrá a maratona.
Teologia do processo - Uma introdução básica

Deus vencerá.
Deus perderá.
Deus ficará por baixo e excluído, sofrendo, morrendo.
Deus irromperá livre, vindo à vida, pois
Deus será quem Ele será.2

O desafio de Heyward pode nos guiar em dire­


ção a outra importante percepção sobre o teísmo do
processo, isto é, que a justiça de Deus não é im par­
cialidade, mas é sim toda parcialidade. Deus não está
2. Carter Heyward, “The Enigmatic God”, The Witness, abr. 1974, p. 5.

123
acima, além ou indiferente aos interesses das criatu­
ras. Ao contrário, Deus partilha cada ponto de vista,
cada interesse da criatura, cada alegria e cada triste­
za. E mais, Deus é capaz de comparar cada experiên­
cia real da criatura com a que poderíamos ter tido
se tivéssemos sido mais sábios, amorosos, mais ge­
nerosos, mais compassivos. Deus não somente sente
nossa dor, mas acrescenta a essa dor a dor de expe­
rim entar o abismo entre o que é, e o que poderia ter
sido. E quando as possíveis alegrias tornam-se reais,
quando o potencial para a riqueza torna-se real na
vida das criaturas, Deus também experimenta essa
alegria.
Um Deus assim nunca pode se contentar com o
status quo inadequado. Um Deus assim nunca pode
sancionar um estado de coisas no qual alguns são vi-
timizados, explorados e oprimidos, porque o próprio
Deus é uma das vítimas. Deus não pode jamais se
contentar com um mundo no qual nós, da classe mé­
dia, permanecemos m eramente confortáveis, porque
Deus conhece a horrível verdade sobre quão mais
rico e melhor o mundo poderia ser para nós e para os
outros, se vivêssemos direcionados e dirigidos pela
compaixão por aqueles que arcam com o ônus do
nosso conforto.

Um Deus que está na jornada conosco

A teologia do processo rejeita todos os esforços


para identificar estruturas sociais, políticas ou eco­
C. Robert Mesle

nômicas existentes, onde haja a vontade eterna de


Deus. Ao contrário, essa teologia nos convoca a ver a
Deus como lutando para nos mover para estruturas
melhores e mais justas. O Deus da teologia do pro­
124
cesso está trabalhando para a libertação a cada mo­
mento e nos convoca a cada momento para partilhar
essa tarefa.
As teologias tradicionais sempre têm retratado
Deus como totalmente no controle. Mesmo aquelas
que afirmam o "livre-arbítrio" sustentam que Deus
poderia estender o braço a qualquer momento e
conter o demônio, ou a pessoa, ou tocar um cora­
ção humano com o amor transformador. Finalmen­
te, em um tempo predeterminado, Cristo retornará
e nos guiará no reino perfeito onde todo sofrimento
encontra seu fim, onde todo pecado é banido, onde
somente o amor, a felicidade e a alegria perm ane­
cem. O cristianismo sempre sustentou exatamente a
garantia agradável de que a vitória já está ganha, de
que Deus simplesmente está continuando com as mi­
sérias deste mundo por alguma razão que não pode­
mos especular. Deve haver uma razão para o fato de
Cristo não ter retornado para banir nossa dor. E isso
somente parece provar (de acordo com as teologias
tradicionais) que toda a injustiça e sofrimento deste
mundo servem a algum propósito divino.
Teologia do processo - Uma introdução básica

Na teologia do processo não existem, francamen­


te, tais garantias. O que é garantido é que Deus está
fazendo tudo dentro do poder divino para trabalhar
conosco para o crescimento da justiça e da bondade.
A batalha é real e contínua. Não existem resultados
predeterminados. Como muitos têm vindo a reconhe­
cer, a vida é uma jornada - um processo - e é com a
qualidade dessa jornada que devemos nos preocupar.
Lembre-se, naturalmente, de que os teólogos do
processo realmente confirmam a garantia de que o
amor de Deus estará sempre conosco, ao longo do
caminho, trabalhando para construir um mundo no
125
qual cada jornada da criatura pode ser tão rica quan­
to possível. E, além disso, existe a certeza de que,
aconteça o que acontecer, Deus definitivamente nun­
ca é derrotado. Deus trabalhará com qualquer coisa
que seja deixada aqui e em outras partes do univer­
so. Também, todos os valores alcançados durante a
aventura de Deus conosco são preservados eterna­
mente na vida de Deus.
Alguém pode responder a este último parágra­
fo de forma indignada, retrucando: "Bem, então, por
que Deus deveria se importar com o que acontece
conosco?'' A resposta é clara. Deus é o único Deus
que partilha totalmente a dor e a perda de todas as
criaturas, assim como todas as nossas alegrias. Deus
sofre conosco. Além disso, se destruímos a nós mes­
mos, existem grandes valores que são perdidos, os
quais poderíamos ter efetivado. E finalmente, é cla­
ro, Deus nos ama. Tão naturalmente, Deus se impor­
ta com o que fazemos a nós mesmos. Mas essas ga­
rantias dizem respeito à natureza e ao amor de Deus,
não sobre o que acontecerá conosco.
Poderia ser bom ter garantias sobre o futuro. Mas
elas simplesmente não estão lá. Às vezes as pessoas
dizem algo como: "Nossa crença na garantia da vi­
tória de Deus deve ser verdadeira. Sem tal garantia,
a vida seria sem significado". Mas tais clamores são
m eramente reclamações, irrelevantes para questões
de verdade. Queremos garantias, mas o que temos
é uma jornada, uma aventura, um processo - a vida
com todos os seus riscos. O Deus da teologia do pro­
cesso promete partilhar essa vida conosco e traba­
C. Robert Mesle

lhar conosco para o bem de todos.


Essa promessa é também uma convocação. O
mundo não está da m aneira que Deus quer que ele
126
esteja. Estruturas sociais injustas não refletem a vi­
são de Deus para nós. Pobreza, fome e violência não
são tentativas intencionalmente colocadas no mundo
por Deus para nossa educação. Existem males contra
os quais Deus está lutando e contra os quais Deus
nos chama a lutar.
Alguns podem se queixar de que um Deus a
quem falta poder para separar o mar Vermelho, para
vencer os brutamontes dos opressores ou para, de
repente, dar corações puros aos poderosos, não pode
ser um Deus libertador. É verdade que o Deus do
teísmo do processo não pode usar uma varinha má­
gica e acabar com o sofrimento. A teologia do pro­
cesso é para aqueles que desistiram de crer em uma
imagem de Deus cuja única virtude é o poder não
utilizado ou um poder usado seletivamente para uns
poucos sortudos. Ao contrário, a teologia do processo
nos convoca a aceitar um mundo no qual devemos
ter responsabilidade. Deus pode trabalhar no m un­
do; mas Deus pode trabalhar em nosso mundo mais
efetivamente, mais rapidamente, através de nós. So­
bre este planeta, somos provavelmente as criaturas
mais capazes de apreender e responder à visão de
Teologia do processo - Uma introdução básica

Deus de um mundo diferente e melhor. A via princi­


pal de Deus para a libertação é através de corações
humanos responsivos. Podemos esperar por milagres
sobrenaturais ou podemos arregaçar as mangas com
Deus e começar a trabalhar.

127
Capítulo 10
A EXPERIÊNCIA DAS MULHERES
E O PENSAMENTO DO PROCESSO

Independentem ente do que possamos pensar so­


bre homens e mulheres, é óbvio que, na cultura
ocidental (e também na maioria de outras culturas),
existem tradições poderosas a respeito das diferenças
entre os sexos. Muitas de nossas imagens tradicionais
têm claramente convocado os homens a serem in­
dependentes, unilateralmente poderosos, racionais,
dominadores e emocionalmente austeros e indiferen­
tes. As mulheres obviamente têm sido ensinadas a
ser dependentes dos homens (daí os títulos Senhora
e Senhorita, mas somente Senhor), a serem emocio­
nais, ao invés de racionais, e a serem carinhosas e
nutridoras, não dominadoras. A frase clássica "Espe­
Teologia do processo - Uma introdução básica

re até seu pai chegar a casa!" nos diz muito sobre


como temos visto homens e mulheres e o que signifi­
ca chamar Deus de "Pai".
Não é de surpreender que muitas pessoas sensí­
veis às questões das mulheres têm visto a teologia do
processo como um emocionante modelo de Deus. A
visão de Deus como nutridor, carinhoso, persuasivo,
participante e sofrendo conosco parece muito mais
próxima às imagens e valores femininos tradicionais
do que a maioria das imagens do Deus austero e in­
diferente. Se usarmos o modelo de Deus como Pais (o
129
pai e a mãe), então o Deus do processo parece incluir
as qualidades de uma mãe muito mais do que fazem
os modelos tradicionais.
Obviamente, a meta real é transcender a ten­
tação de fazer com que Deus se pareça mais com
um sexo do que com outro. Entretanto, precisamos
primeiro continuar a tarefa de ouvir, reconhecer e
aprender a apreciar as histórias, sofrimentos, valores
e percepções daquelas pessoas que não estão no po­
der, cujas perspectivas têm sido suprimidas na maior
parte do mundo pelas culturas masculinas dominan­
tes. A respeito do feminismo, particularmente, ho­
mens e mulheres têm muito a percorrer na recupe­
ração da história das mulheres, ouvindo as vozes das
mulheres, compreendendo e apreciando os valores
que as mulheres podem dar como contribuição para
nossa humanidade comum. Ao fazermos isso, deve­
mos estar preparados para deixar essas vozes remo­
delarem nossas imagens do sagrado. Para esse fim,
convidei Barbara Hiles Mesle para contribuir com
seus pensam entos.1

Por Barbara

Colocado de forma simples, o feminismo procu­


ra a igualdade social, econômica e política de am­
bos os sexos. Geralmente as feministas concordam
que a cultura das mulheres precisa ser recuperada
e celebrada. As feministas se engajam com outros
em busca de um mundo mais seguro e mais gentil
C. Robert Mesle

para todos da criação. Essas preocupações parecem


1. Professora assistente de Inglês no Craceland College.

130
se ajustar muito bem com aquelas dos pensadores do
processo.
Porém, discussões sobre diferenças entre ho­
mens e mulheres são como uma floresta seca, pron­
ta para pegar fogo com a menor das fagulhas. Por
algumas razões muito boas, tanto mulheres quanto
homens temem generalizações a respeito de sua na­
tureza e de seu comportamento. Como podemos fa­
lar sobre as diferenças entre os modos que mulheres
e homens experimentam o mundo sem que isso soe
como se não houvesse afinidade - sem parecer que
os homens pensam do mesmo modo, e que todas as
mulheres pensam do mesmo modo? Como um dos
meus alunos disse: "Barbara, se celebramos a singu­
laridade, simplesmente não dividimos as pessoas?
Não perpetuamos os estereótipos e as diferenças?".
Para colocar a questão de modo diferente, visto
que os pensadores do processo e as feministas con­
cordam que precisamos livrar nosso pensamento de
categorias dualistas e hierárquicas, como podemos
falar de modo legítimo sobre "diferença"? Eu gostaria
de explorar um pouco este tópico, antes de conectar
Teologia do processo - Uma introdução básica

mais diretamente o pensamento feminista e o pensa­


mento do processo.
A maioria de nós está vividamente consciente
de como estereótipos são inadequados ou absoluta­
mente falsos. Em minha primeira viagem à Europa,
lembro-me de ter dito às pessoas que eu era de Chi­
cago. Invariavelmente elas queriam saber se eu era
rica e uma gangster. Elas pareceram aliviadas e um
pouco desapontadas, quando assegurei a elas que eu
não era nem uma coisa nem outra! Se cada um de
nós pensar sobre os muitos grupos dos quais somos
membros, podemos prontam ente identificar várias
131
maneiras nas quais somos diferentes de outras pes­
soas nesses grupos.
Como Deborah Tannen sugere: "Todos sabemos
que somos indivíduos únicos, mas temos a tendência
de ver os outros como grupos representativos. É uma
tendência natural, visto que devemos ver o mundo
em padrões, a fim de dar sentido a ele. Mas essa ha­
bilidade natural e costumeira de ver padrões de si­
milaridade tem conseqüências lamentáveis".2 Essas
conseqüências lamentáveis são generalizações que
nos ofendem e nos enganam.
Ao mesmo tempo, generalizações podem nos
informar e conectar. Laços comuns saltam até nós
quando encontramos alguém do nosso antigo colégio
do segundo grau, da nossa cidade, nossa igreja ou
nossa família. Concordo com Tannen que o "risco de
ignorar diferenças é maior que o perigo de nominá-
-las. Varrer alguma coisa grande para debaixo do ta­
pete não faz com que ela vá embora; ela faz você
tropeçar e se espatifar no chão quando você se aven­
turar a atravessar a sala".3
Certamente, muitos indivíduos sempre exibem
de fato suas personalidades próprias, independente­
mente do com portam ento aceito como "masculino" e
"feminino". No entanto, esses indivíduos geralmen­
te pagam um preço em termos de aceitação social.
Nas brincadeiras familiares, os apelidos zombetei­
ros de "maricas" e " moleque" são testem unhas des­
se preço.
C. Robert Mesle

2. Deborah Tannen, You Just Don't Understand: Women and Men in


Conversation, William Morrow, 1990, p. 16.
3. Ibid.

132
Qualquer que seja a origem dessas complexas di­
ferenças entre homens e mulheres, os padrões real­
mente parecem surgir. Muitos estudos têm mostrado
que, profundamente incorporada à cultura ocidental
e, portanto, em todos nós que vivemos nessa cultura,
está uma associação de masculinidade com compe­
tição, e de feminilidade com cooperação. Esta lista
pode ser ampliada de modos que soam familiares à
maioria de nós agora. Só para sugerir alguns exem­
plos: geralmente, espera-se/esperava-se que homens
fossem/sejam racionais solucionadores de proble­
mas, preocupados consigo mesmos e despreocupa­
dos com os sentimentos dos outros ou mesmo com
seus próprios sentimentos. Reciprocamente, o foco
das mulheres era o domínio afetivo. Visto que m an­
ter a paz e a harmonia era a meta delas, muitas m u­
lheres foram socializadas para sentir muito descon­
forto com conflito ou ira e para serem abnegadas ao
extremo. A tendência dos homens ao focar mais na
independência do que na intimidade, e a tendência
das mulheres em focar mais na intimidade do que
na independência são amplamente documentadas e
têm tido conseqüências negativas em nossos relacio­
Teologia do processo - Uma introdução básica

namentos - e em nossa teologia.


Obviamente, não podemos reconhecer nosso es­
quecimento cultural quanto às perspectivas das m u­
lheres até ouvirmos as perspectivas das mulheres.
Se ignorarmos toda a diferença, é fácil impor dis­
tinções rígidas de papéis sobre mulheres e homens
e banalizar ou difamar a cultura das mulheres. Se
ignorarmos toda a diferença, é fácil esperar que as
m ulheres funcionem bem dentro de estruturas do­
minadas pelos homens, mas não esperar que os ho­
mens aprendam as estruturas femininas. Além dis­
133
so, se artificialmente atribuirmos a "esfera pública"
aos homens e a "esfera privada" às mulheres, fica
fácil esquecer os talentos dos indivíduos, cujas pro-
pensões naturais não se encaixam com a norma. Se
ignorarmos toda a diferença, fica fácil demais acei­
tar - mesmo inconscientemente - que a "perspectiva
masculina" é a natural e a correta. Fica fácil demais
para aqueles indivíduos que cresceram mulheres (ou
negros, homossexuais, judeus, mexicanos etc.) sofre­
rem de baixa autoestima, que surge quando aceitam
suas percepções como sendo algo "errado". O mundo
que o feminismo busca é um mundo mais toleran­
te, um mundo que valoriza a diversidade, ao mesmo
tempo que afirma os laços comuns que unem to­
dos nós.
Esse é o mesmo mundo que o pensamento do
processo busca. Naturalmente, nem todos os filóso­
fos do processo pensam exatamente do mesmo modo,
mais do que todas as feministas fazem.4 Mas algu­
mas afirmações gerais são possíveis. O pensamento
do processo, como o feminismo, coloca os relaciona­
mentos no centro do significado de nossas vidas. Os
pensadores do processo, assim como as feministas,
não gostam do poder unilateral e desejam reformular
toda a noção de poder de modo que ele seja relacio­
nai - isto é, poder "com" ao invés de poder "sobre".
O pensamento do processo, como o feminismo, não
trata o sofrimento como uma condição enobrecedo-
ra que, inevitavelmente, nos leva ao crescimento. Ao
contrário, na teologia do processo, Deus sofre com as
vítimas. É responsabilidade da comunidade respon­
C. Robert Mesle

4. Veja Sheila C. Davaney (org.), Feminism and Process Thought, Edwin


Mellen, 1981.

134
der com apoio amoroso. A meta é espremer o bem da
dor sem nunca chamar a dor de boa.
Muitos pensadores têm observado as semelhan­
ças entre a descrição ortodoxa de Deus como Pai e os
estereótipos clássicos do comportamento masculino
desejável. Os homens, neste modelo, deveriam ser
racionais, controladores, indiferentes e autoritários.
Eles precisariam ser elogiados, cuidados e protegidos
das realidades m undanas para que ficassem livres
para fazer "coisas importantes". As semelhanças com
o Deus masculino, branco e ortodoxo são autoeviden-
tes. Os pensadores do processo oferecem um mode­
lo de Deus cuja característica-chave é o amor. Nesse
modelo, a intimidade não é temida como sendo con­
traditória ã independência. Esse Deus é libertado do
fardo imposto por ser perfeitamente poderoso. Deus
faz tudo o que Ele pode. Deus é meu defensor e seu
defensor. Deus é o defensor da justiça para todas as
criaturas. Com essa visão de Deus, o significado não
está em algum lugar "lá fora", mas "aqui dentro" nos
relacionamentos e nas cores comuns e não tão co­
muns de nossa vida diária. Mas, pelo fato de sermos
genuinamente livres e por Deus não poder anular as
Teologia do processo - Uma introdução básica

forças físicas do universo, Deus não pode controlar


eventos ou garantir resultados. Esse Deus não tem
uma razão misteriosa e secreta para as tragédias em
nossas vidas, mas está trabalhando ativamente co­
nosco para criar o melhor que pudermos ser. Um
Deus pacífico que é completamente relacionai, um
Deus que nos nutre e sofre conosco, oferece um mo­
delo que atrairia muitas feministas.
A visão de liberdade do pensamento do proces­
so é também empolgante para uma feminista. Visto
que o futuro genuinamente ainda não existe, mas, ao
135
contrário, está constantemente sendo criado a cada
momento, nós não somos determinados. Nosso curso
não é fixo, mas flexível. Isso cria a possibilidade para
uma esperança genuína. Somos verdadeiramente li­
vres para tomar nosso passado e, a partir dele, ace­
nar para um novo futuro. Podemos tomar a história
passada de sexismo e racismo e transformá-la em um
presente que seja melhor para nós mesmos, nossos
filhos e toda a criação. Podemos viver harmoniosa­
mente com toda a vida, desde que a vida seja santa.
Capítulo 11
REVELAÇÃO, ESCRITURA E LIBERTAÇÃO

C
omo parte da doutrina da onipotência, as teolo­
gias tradicionais geralmente supõem que Deus
seja bem capaz de dar uma revelação clara e sem
ambigüidade a quem quer que Ele escolha. Por essa
razão, pessoas de todos os tipos acham fácil afirmar
que falam com Deus. Esse poder de falar com Deus
tem servido diretamente como uma das mais eficien­
tes ferramentas para opressão. Se os regulamentos e
costumes sociais podem reivindicar sua origem divi­
na e direta nas revelações infalíveis de Deus, então
como pode qualquer pessoa - mesmo as vítimas -
protestar? E por que aqueles que se beneficiam senti­
riam culpa se seu enriquecimento, de alguma forma,
Teologia do processo - Uma introdução básica

serve aos propósitos maiores de Deus?


A abordagem da teologia do processo à revela­
ção destrói qualquer dessas oportunidades de se usar
a suposta revelação para propósitos de exploração e
opressão.
Cristãos sempre têm afirmado de uma maneira
ou de outra que Deus está ativo em suas vidas, reve­
lando o amor divino no mundo. Ademais, toda uma
gama de investigações modernas sobre a natureza e
origens da Bíblia, sobre doutrinas cristãs, religiões
mundiais e a sociologia e a psicologia da consciência
137
religiosa têm gradualmente levado muitos cristãos a
reconhecer que tudo o que chamamos revelação - in­
cluindo as Escrituras e os credos - expressam a plena
humanidade de seus autores. A cultura, a teologia, o
contexto econômico e social e a biografia pessoal do
profeta moldam toda a experiência revelatória.
Como a teologia do processo fala a essas duas
convicções? A resposta, creio, é que a teologia do
processo abraça ambas com largura e profundidade
tais, que isso deve nos desafiar a repensar toda a no­
ção de revelação. E se levássemos totalmente a sério
o conceito de que a revelação divina é tão universal
quanto o amor divino? E se finalmente aceitássemos,
sem exceção, o entrelaçamento entre o divino e o hu­
mano em todo o mundo?

A revelação como contínua, universal e entrelaçada


com o mundo

Segundo a teologia do processo, Deus é revelado


a toda criatura, a todo momento, e em todo lugar do
universo. Deus não separa um seleto grupo de pro­
fetas para falar enquanto exclui bilhões de outros. A
autorrevelação de Deus é o fundamento de liberdade
de cada pessoa. A autorrevelação do amor de Deus
vem a todas as pessoas a cada momento de suas vi­
das, convocando cada pessoa para uma visão da ver­
dade, da beleza e da bondade.
Isso não significa, naturalmente, que todas as
pessoas sejam iguais na percepção, sensibilidade, in­
C. Robert Mesle

teligência e na capacidade de responder ao divino.


Certamente, há pessoas com amor maior, visão
mais ampla e maior previsão. Existem pessoas com
138
maior poder relacionai para sentir os sofrimentos dos
oprimidos, que agonizam com a injustiça que veem e
nos convocam a transformar nosso mundo. Há pes­
soas que, em vários graus, são capazes de ir além de
seu condicionamento cultural. Em resumo, existem
pessoas proféticas. Mas esse é um fato sobre o m un­
do, não sobre o plano divino. Deus chama a todos
nós para sermos proféticos, mas nós não somos todos
igualmente capazes ou estamos dispostos a ver.
Ao mesmo tempo em que afirma que a autorre­
velação de Deus é universal, a teologia do processo
claramente explica o fato de que todos nós, incluin­
do nossos gigantes proféticos, veem Deus "através de
um vidro, de m aneira obscura". Esse vidro é a influ­
ência do mundo ao nosso redor. Nós experimenta­
mos Deus, dizem os teólogos do processo, mas nossa
experiência de Deus é um dos muitos fios que tece­
mos juntos. O poder único de Deus no mundo é o de
ser eterno, universal e infinitamente paciente. Deus
está sempre lá, enquanto as vozes no mundo vêm e
vão. Porém, as vozes do mundo têm a vantagem de
ser mais altas, mais coercitivas e - lamentavelmente
- com frequência mais atrativas para nós devido a
Teologia do processo - Uma introdução básica

nosso egoísmo e insegurança.


Existem muitas vozes no mundo nos chaman­
do para coisas boas. Mas enquanto Deus nos chama
sempre para amar, o mundo todo também frequen­
temente nos chama para o amor egoísta. Enquanto
Deus nos chama a arriscar no amor, o mundo com
frequência nos chama para jogá-lo de forma segura.
Enquanto Deus nos chama para uma ampla visão de
um mundo melhor, o mundo atual frequentemente
nos chama para sacrificar o futuro pelos desejos e
medos do presente.
139
De modo trágico, facilmente confundimos nos­
sos próprios desejos com o chamado de Deus. Dis­
torcemos a visão de Deus ao forçá-la a se adequar
aos nossos próprios planos egoístas. Um exemplo
especialmente triste, mencionado anteriormente, é '
o modo pelo qual o exemplo do amor sacrificial de
Cristo foi manipulado por muitos cristãos (incluindo
alguns autores do Novo Testamento) para m anter es- j
cravos cristãos sob controle. ;
‘Da mesma maneira, vós, mulheres, sujeitai-vos aos
vossos maridos... 5Com efeito, era assim que as santas ;
mulheres de outrora, que punham a sua esperança em
Deus, se adornavam, estando sujeitas aos seus próprios
maridos. 6E o que vemos em Sara, que foi obediente a ;
Abraão, chamando-lhe Senhor (1 Pedro 3,1.5-6).
Quando os israelitas estavam peregrinando no
deserto, procurando por uma terra para chamar de
sua, eles facilmente acreditaram que Iahweh estava
oferecendo a eles direitos exclusivos sobre a terra de
Canaã. Isso foi traduzido como se fosse um chamado
divino para m atar e escravizar os habitantes da terra.
Considere Deuteronômio 20,10-18 apresentado na
Bíblia como palavras do próprio Iahweh:
10Quando estiveres para combater uma cidade, primeiro
propõe-lhe a paz. "Se ela aceitar a paz e abrir-te as por­
tas, todo o povo que nela se encontra ficará sujeito ao
trabalho forçado e te servirá. 12Todavia, se ela não aceitar
a paz e declarar guerra contra ti, tu a sitiarás. 13Iahweh
teu Deus a entregará em tua mão e passarás todos os
seus homens ao fio da espada. 14Quanto às mulheres,
crianças e animais e tudo o que houver na cidade, todos |
os seus despojos, tu os tomarás como presa. E comerás o i
despojo dos inimigos que Iahweh teu Deus te entregou.
15Farás o mesmo com todas as cidades que estiverem
muito distantes de ti, as cidades que não pertencem a
estas nações. 16Todavia, quanto às cidades destas nações
que Iahweh teu Deus te dará como herança, não dei-
xarás sobreviver nenhum ser vivo. 17Sim, sacrifrcarás
como anátema os heteus, os amorreus, os cananeus, os
ferezeus, os heveus, os jebuseus, conforme Iahweh teu
Deus te ordenou, 18para que não vos ensinem a prati­
car todas as abominações que elas praticavam para seus
deuses: estaríeis pecando contra Iahweh vosso Deus.
Que triste o fato de a visão deles sobre um cha­
mado divino para a libertação da escravidão egípcia
ter sido transformada em um clamor para escravi­
zar e assassinar outros povos inocentes, em nome da
"terra prom etida” e da pureza religiosa.
Reciprocamente, no entanto, podemos ver que,
mesmo entre as justificações bíblicas para escravidão
e sexismo, havia momentos de maior discernimento,
apontando para uma libertação maior. Ao invés de
tentar justificar a miopia hum ana do povo bíblico,
podemos reconhecê-la, enquanto o vemos partilhan­
do conosco a mesma longa luta por uma visão de
Teologia do processo - Uma introdução básica

libertação maior.
Imagine o Deus da teologia do processo como al­
guém que continuamente chama para uma visão de
libertação, para uma visão da dignidade e igualdade
humana universais. Cada pessoa ouve isso. Mas cada
pessoa ouve isso dentro de um contexto cultural que
distorce e estreita essa visão. Considere como exem­
plo Levítico 25,1.39-43:
Iahweh falou a Moisés no monte Sinai; disse-lhe: 39"Se o
teu irmão se tornar pobre, estando contigo, e vender-se
a ti, não lhe imporás trabalho de escravo; 40ele será para
141
ti como um assalariado ou hóspede [...] 42Na verdade,
eles são meus servos, pois os fiz sair da terra do Egito,
e não devem ser vendidos como se vende um escravo.
43Não o dominarás com tirania, mas terás o temor de
teu Deus".
Existe um poderoso princípio de libertação em
funcionamento aqui: "Nós experimentamos a escra­
vidão e sabemos quão errada ela é. O caminho de
Deus é um caminho de libertação, não de escravidão".
6Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi: em
romper os grilhões da iniqüidade, em soltar as ataduras
do jugo e pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar
todo jugo? 7Não consiste em repartir o teu pão com o
faminto, em recolheres em tua casa os pobres desabri­
gados, em vestires aquele que vês nu e em não te es-
conderes daquele que é tua carne? 8Se fizeres isto, a tua
luz romperá como a aurora, a cura das tuas feridas se
operará rapidamente, a tua justiça irá à tua frente e a
glória de Iahweh irá à tua retaguarda. 9Então clamarás
e Iahweh responderá, clamarás por socorro e ele dirá:
"Eis-me aqui".
Isaias 58,6-9a (BJ - Bíblia de Jerusalém)
Os autores bíblicos, lamentavelmente, com fre­
quência não foram capazes de ver esse princípio
aplicado além da comunidade hebraica (veja Levítico
25,44-46), mas essas percepções podem ter um efei­
to cumulativo ao longo do tempo. Pensadores judeus
posteriores, naturalmente, estenderam essa percep­
ção para um princípio universal. E, finalmente, como
C. Robert Mesle

a mensagem de Jesus moveu-se no grande mundo


dos gentios, escritores do Novo Testamento pude­
ram ver que os judeus não foram os únicos servos de
Deus e, por isso, chamados para a libertação. Paulo
142
foi capaz de ver, pelo menos brevemente, que esta
visão ia além.
Não há judeu nem grego, não há escravo nem
livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois
um em Cristo Jesus (Gálatas 3,28).
Infelizmente, claro, os cristãos raramente têm
sido capazes de estender este princípio para além dos
limites do cristianismo.
Imagine, pois, outra vez, Deus alcançando as
pessoas da Bíblia, dizendo: "Respeitem todas as cria­
turas. Amem todas as criaturas. Libertem todas as
criaturas. Tratem todas as criaturas com dignidade".
Mas dado seu contexto social e histórico, esse clamor
era ouvido somente ocasionalmente e de modo vago
como: "Talvez não devêssemos escravizar outros is­
raelitas"; "Talvez mesmo escravos mereçam alguma
proteção" e "Talvez mesmo as mulheres mereçam
um pouco de respeito". Nós, naturalmente, estamos
somente começando a ver mais além do que eles vi­
ram (e algumas vezes não tão longe).
Na teologia tradicional, baseada no pressuposto
Teologia do processo - Uma introdução básica

de que Deus pode revelar sua vontade clara, direta


e completamente, e tem feito isso para os profetas,
as percepções limitadas de umas poucas pessoas em
uma cultura passaram a ser consideradas como pala­
vra final de Deus. O resultado tem sido trágico para
escravos, mulheres, homossexuais e pessoas de di­
ferentes religiões. A autoridade da Bíblia tem sido
uma enorme fonte da justificação de cada forma de
opressão.
Na teologia do processo, somos capazes de ver
que a visão limitada deles não é a revelação. Ao con­
trário, a luta de Deus para quebrar completamente
143
as barreiras do mundo, para revelar a visão divina i
através do vidro escuro, é uma luta contínua que os
incluiu, mas inclui também a nós, e aqueles que nos '
seguirão.
Teólogos do processo enxergam Deus nos reve­
lando o mesmo chamado, a mesma visão da digni­
dade universal. Em nossos dias, depois de séculos de ;
luta, parece que somos mais capazes de ouvir isso J
mais claramente no que se refere à escravidão visí- I
vel. Porém, estamos longe de enxergar a visão de um j
mundo sem exploração e opressão. Estamos come- j
çando a enxergar a visão da dignidade das mulheres, j
embora essa luta, também, ainda vá longe. Nós mal j
começamos a ouvir o chamado a respeito das pessoas j
homossexuais, a vislumbrar a comunidade hum ana J
universal ou a respeitar os direitos dos animais. ■
Teólogos do processo veem revelação como um ■
processo contínuo do chamado divino e da respos­
ta humana. Existem momentos de maior percepção
pelas pessoas que articulam essa visão para nós com
maior clareza do que a maioria. Mas esses momen­
tos e essas pessoas estão sempre dentro de um con- :
texto histórico. Nunca devemos imaginar a revelação
como final e completa, mas sempre como contínua.
Mesle
C. Robert

144
Capítulo 12
RELATIVISMO COMPROMETIDO:
UMA APROXIMAÇÃO À ÉTICA
E À COMUNIDADE GLOBAL

T
orturar uma pessoa até a morte ou assassiná-la
em nome de Jesus Cristo, que nos chamou para
amar nosso próximo e mesmo nossos inimigos, pare­
ce-nos impossível de acreditar. Porém, sabemos que
essas ocorrências têm sido comuns na história cristã.
E o mais triste é que tais valores ainda são defendi­
dos. Um recente artigo na revista Ministry defendeu
a afirmação bíblica de que Deus havia comandado
os israelitas a praticar genocídio contra os canaanitas
(como mencionado no capítulo ll) .1 Dada a crença
do autor em um inferno literal e sua crença na "mal­
dade irremediável" dos canaanitas, "a autorização de
Deus para a total destruição deles é justificada, até
Teologia do processo - Uma introdução básica

mesmo misericordiosa..." (p. 10). Melhor assassinar


bebês agora do que deixar que eles produzam mais
bebês que também queimarão no inferno.
Pessoalmente, não quero estar perto de pessoas
que estão tão rigidamente certas da infalibilidade de
sua moral e religião que conseguem aprovar o assas­
sinato de crianças inocentes, em nome do amor. Es­

1. Tim Crosby, “Does God Cet Angry?”, Ministry: International Journal for
Clergy, Seventh Day Adventist, 12501 Old Columbia Pike, Silver Spring, MD
20904).

145
pecialmente, quero que essas pessoas fiquem longe
dos meus filhos. Dogmatismo é perigoso.
Porém, fico também assustado com aquelas pes­
soas que, em reação a esse dogmatismo que abraça a
violência, proclamam um relativismo total, no qual
cada crença e cada valor são tão bons quanto quais­
quer outros. Se essas pessoas realmente acreditam
nisso, então elas não têm fundamento para se opor
às crenças e valores dos dogmáticos que aprovam o
genocídio!
Pessoas que pensam cuidadosamente a respeito
de ética, com frequência sentem-se dilaceradas entre
os perigos da oposição ao dogmatismo e o relativis­
mo total. Se afirmarmos que existe uma base eterna
e sólida para declarar o que é certo e o que é errado,
então corremos o risco de nos tornarmos tão dogmá­
ticos que, como a Inquisição Espanhola, justificamos
torturar pessoas para forçá-las a aceitar nossa reli­
gião e nossa ética. Mas se, para escapar desse mal,
abraçarmos o relativismo total e dissermos que todas
as pessoas podem fazer o que quiserem, então não
temos fundamento para nos opor à tortura. Nosso
senso comum nos diz que deve haver um meio-ter­
mo, mas ele necessita de uma exposição clara.
As diferenças entre culturas intensificam a difi­
culdade deste desafio. Há muito tempo, as pessoas
reconheceram que, algo considerado um grave pe­
cado, punível sob pena da lei, em uma cultura, pode
ser perfeitamente aceitável e até mesmo recomendá­
vel, em outra. E aquilo que, em uma religião, é consi­
C. Robert Mesle

derado como verdade sagrada, parece blasfêmia, em


outra. Esses fatos levam muitas pessoas diretamente
a um relativismo radical, a negar qualquer funda­
mento para criticar outra cultura ou religião e, final­
146
mente, a negar qualquer fundamento para criticar
qualquer coisa como sendo imoral. Isso é o que eu
chamo de relativismo total ou radical. Dentro do re-
lativismo radical, podemos não gostar dos campos de
concentração, mas podemos afirmar que não temos
fundamento para declará-los imorais.
Enquanto essas dificuldades têm relação direta
com nossos esforços para vivermos bem uns com os
outros (considerando nossas diferenças individuais a
respeito do que é certo e do que é errado), a urgente
busca por uma comunidade global - dirigida pelas
ameaças de poluição global, superpopulação e ani-
quilação nuclear - dá nova importância à busca por
algum meio-termo entre o dogmatismo e o relativis­
mo radical. Como podemos viver juntos sem aprovar
as opressões baseadas na cultura, como o sexismo,
racismo e o sistema de castas? Que tipo de estrutura
ética será melhor para nos ajudar na construção de
sociedades libertadoras de justiça e de paz? E que
tipo de religião pode apoiar esse tipo de ética? Teologia do processo - Uma introdução básica

Relativismo comprometido

"Relativismo comprometido" é minha denomi­


nação para a convicção de que é possível fazer julga­
mentos de valores legítimos dentro e entre diferentes
estilos de vida, culturas e religiões, sem reivindicar
que existe somente um absolutamente certo e errado,
somente uma ação, um estilo de vida, uma cultura ou
religião que seja absolutamente melhor. Relativismo
comprometido é a insistência em que algumas ações
são imorais, que alguns estilos de vida não são sau­
dáveis e que algumas culturas são autodestrutivas,
insistindo, ainda, que existem muitas e diferentes
147
ações, estilos de vida, culturas e religiões que criam
e perpetuam valores ricos.
Relativismo comprometido é um desafio ao exi­
gir que permaneçamos com a mente aberta, sem
estar com a mente vazia. Ele requer que ouçamos
e aprendamos dos outros, mas não simplesmente
aceitemos ou aprovemos qualquer coisa que digam.
Não existem diretrizes absolutas pelas quais eu pos­
sa dizer que uma cultura seja certa e outra errada,
mas não tenho que aprovar o nazismo ou a Ku Klux
Klan. Posso mesmo lutar contra a cultura nazista sem
afirmar que o individualismo americano é superior,
digamos, à identidade japonesa, orientada para a co­
munidade. E posso reconhecer que o que pode ser
amoroso na cultura americana - abraçar alguém no
aeroporto - pode ser embaraçoso e descortês dentro
da cultura japonesa.
Existem razões pelas quais os pensadores do pro­
cesso são naturalm ente levados ao relativismo com­
prometido. Basicamente, isso tem a ver com o foco
na realidade como sendo constituída pela experiên­
cia e relacionamentos. Refletir sobre as formas em
que, a cada momento, temos de colocar em algum
tipo de ordem uma ampla e muitas vezes conflitan­
te gama de relacionamentos e valores, tem levado a
maioria dos pensadores a refletir sobre a categoria da
beleza. A beleza envolve tanto a harmonia quanto o
contraste. Muita harmonia significa monotonia e tri-
vialidade na experiência. Muito contraste conduz à
discordância destrutiva. Além disso, aprendemos na
C. Robert Mesle

vida que, mesmo um equilíbrio muito saudável em


nossos conceitos, ocupações e relacionamentos pode,
às vezes, perder a graça, de modo que, por uma ques­
tão de continuidade de crescimento, devemos perse­
148
guir novidade e aventura nas fronteiras do caos. A
vida é um contínuo equilíbrio entre estabilidade e
novidade, entre harmonia e discórdia. A vida é um
contínuo processo de criar ordem em nossa experi­
ência. A "beleza" é a categoria que os pensadores do
processo frequentem ente usam para discutir esta rea­
lidade básica.
Você não precisa ser um filósofo do processo
para partilhar a ética do relativismo comprometido.
Por essa razão, irei me contentar com esta breve ex­
planação e focar nas implicações práticas. Deixe-me
somente dizer que você não precisa ser um pensador
do processo para ser um relativista comprometido,
mas se você for, ajuda.

A pluralidade de valores

Inspirados pela reflexão sobre o conceito de be­


leza, os pensadores do processo rejeitam a ideia de
que há somente uma forma de bondade (exceto tal­
vez em termos altamente abstratos). Como exemplo,
Teologia do processo - Uma introdução básica

considere a ideia de alguém escrevendo uma sinfonia


tão bela que todo mundo diria: "Ela é perfeita! Agora
não precisamos de mais sinfonias". Ou uma pintura
tão perfeita que não precisaríamos de mais pinturas.
Absurdo! Mais absurdo seria sugerir que uma sinfo­
nia poderia ser tão perfeita que não encontraríamos
mais valor em pinturas ou poesias.
A beleza se manifesta em várias formas. E ine­
rentemente impossível para uma sinfonia expressar
todas as formas possíveis da beleza da música, das
pinturas ou da escultura. E especialmente absurdo
quando consideramos que os seres humanos (e pro­
149
vavelmente também as outras criaturas) sentem al­
gum direcionamento para a novidade e a aventura.
Independentemente de quão maravilhosa seja uma
sinfonia, precisamos de variedade e novidade para
satisfazer nosso sentido de beleza. Ainda que goste­
mos da segurança e da riqueza que vem com o que é
familiar, a mera repetição, como a proverbial tortura
com água, não é m eramente enfadonha, mas posi­
tivamente destrutiva. O pensamento de um aciden­
te ou de uma doença que reduz uma pessoa a um
"vegetal humano" é um dos nossos mais profundos
temores. Precisamos de variedade e novidade para
uma riqueza de vida. Nossa satisfação com a quin­
ta sinfonia de Beethoven é, na verdade, enriquecida
pela experiência de ouvir outras músicas em outros
tempos.

Beleza, vida e relativismo comprometido

Assim como não há um caminho correto para


criar beleza, não há uma única maneira certa para
uma pessoa viver. Podemos abstratamente dizer: "Te­
nho uma vida rica e amorosa!" Mas existem muitas
maneiras para viver rica e amorosamente. Na ver­
dade, positivamente, precisamos de pessoas que vi­
vam de diferentes maneiras. Não poderíamos querer
que todos se tornassem um médico clínico geral, um
carpinteiro ou um fazendeiro. Necessitamos e somos
enriquecidos pela diversidade da vida humana. E
um absurdo sugerir que tudo o que é bom a respeito
C. Robert Mesle

da vida esteja capturado em uma profissão ou num


modo de expressar amor. Traduzir o mandamento
abstrato "ame!" em ações concretas exige um mundo
de novidade, criatividade, diversidade e aventura.
150
O que é crucial reconhecer é que esta necessida­
de de diversidade, por diferentes maneiras de viver,
não é uma negação de todos os valores. Não é relati­
vismo radical.
Talvez este ponto possa ser mais bem ilustrado
através das artes culinárias e da nutrição. Algumas
coisas comestíveis neste mundo são venenosas, e
muitos alimentos não venenosos podem ser terri­
velmente danosos à saúde de algumas, de muitas ou
de todas as pessoas - como aprendemos todo dia.
Além disso, os nutricionistas estão constantemente
aprendendo sobre o que nossos corpos necessitam
em termos de vitaminas e outros nutrientes. Por isso,
enquanto as necessidades de uma pessoa podem va­
riar um pouco de uma para outra, aceitamos comple­
tamente a ideia de que alguns alimentos são muito
mais saudáveis do que outros e que alguns são total­
mente mortais.
Felizmente, uma vez que descartamos o que não
é saudável, existe uma grande variedade de alimen­
tos, numa miríade de combinações, capazes de nos
m anter saudáveis. Alimentos diferem de cultura para
Teologia do processo - Uma introdução básica

cultura, de região para região e de família para famí­


lia. Não há apenas uma refeição certa a ser servida.
Na verdade, poderíamos inclusive nos cansar rapi­
damente da nossa comida favorita se não houvesse
variedade. Mas o ponto principal é este: praticamos
uma espécie de relativismo comprometido em rela­
ção aos alimentos o tempo todo. Aceitamos uma am­
pla quantidade de sabores e valores culinários sem
pretender que todos os alimentos comestíveis sejam
igualmente bons para nossos corpos.
O mesmo é verdade em relação às profissões e
estilos de vida. Podemos afirmar com toda autorida­
151
de que ser um clínico geral competente e cuidadoso
é melhor do que ser um assassino profissional, sem
insistir que todos sejam um clínico geral. Ao lado
disso, está o reconhecimento de que as ações que
são moralmente melhores para um médico, podem
não o ser para um carpinteiro. Um carpinteiro não
treinado para ser médico raram ente teria justificativa
para cortar uma pessoa com um bisturi. E o que pode
ser um ato de amor e moral em uma cultura, pode
possivelmente ser falta de amor e de moral em ou­
tra. Se eu for encontrar minha esposa no aeroporto,
certamente darei nela um grande abraço para mos­
trar meu amor. Mas se eu fosse cum prim entar uma
amiga japonesa dessa maneira no Japão, esse gesto
geralmente seria considerado muito insensível e des-
cortês.
Portanto, assim como não há sinfonia perfeita
e não há cardápio perfeito, também não existe uma
m aneira perfeita de viver. Falando concretamente, a
ideia de uma vida perfeita não faz mais sentido do
que uma pintura perfeita. Porém, podemos reconhe­
cer que algumas maneiras de viver têm mais proba­
bilidade de ajudar as pessoas a viverem ricamente.
Bater ou molestar crianças fecha mais do que abre a
habilidade das pessoas de sustentar uma vasta gama
de relacionamentos humanos íntimos, e tais relacio­
namentos são geralmente os componentes mais cru­
ciais para se viver feliz.
C. Robert Mesle

Comunidade global e poder relacionai

À medida que o mundo fica m enor a partir do


aperfeiçoamento das comunicações e das viagens
152
mais rápidas, o desafio de viver de forma pluralista
se torna mais vital. Indivíduos comuns que não con­
seguem tolerar pessoas com outras maneiras de viver
geralmente não têm acesso a armas nucleares. Mas
quando nações de pessoas que suspeitam umas das
outras são forçadas a um contato cada vez mais pró­
ximo, o resultado pode ser desastroso se cada uma
trabalha a partir de um sistema de valor que afirma
sua própria normalidade como fundamento da mo­
ralidade.
Aqui, devemos retornar ao tema do poder re­
lacionai. Poder relacionai é a habilidade de ser res-
ponsivo a uma vasta gama de relacionamentos - de
ideias, valores, sentimentos, pessoas etc. - de criar a
nós mesmos a partir destes relacionamentos diver­
sos e de afetar outros, tendo sido primeiro afetados
por eles. Na educação, isto obviamente significa a
habilidade de aprender, de aceitar uma nova infor­
mação e novas perspectivas, de moldar criativamen­
te nossas próprias ideias e crenças a partir delas, e
de comunicar aos outros de maneiras responsivas
àquilo que aprendemos deles. Em relacionamentos
humanos, poder relacionai significa a habilidade de
Teologia do processo - Uma introdução básica

sentir os valores e os sentimentos dos outros - suas


esperanças seus medos, suas alegrias, suas tristezas,
seu amor e suas suspeitas - de criar nossas próprias
vidas e valores em resposta a eles e, então, nos re­
lacionar de volta com eles de m aneira que mostre
que os aceitamos criativamente primeiro em nossa
própria vida.
Outras pessoas tornam-se parte de nós. A ques­
tão é se abraçaremos ou resistiremos a essa realida­
de. Tradicionalmente, temos contrastado amor (ser
sensível e cuidadoso) com poder (a habilidade de
153
perm anecer indiferente e unilateralmente afetar ou­
tros, sem ser afetado por eles). No modelo relacionai
de poder verdadeiro, o poder é mostrado através do
amor. Naturalmente, o poder relacionai é mais efe­
tivo se quisermos ajudar outras pessoas a viverem
vidas mais ricas, plenas e amorosas. O poder unilate­
ral é mais efetivo se estivermos interessados em do­
minar, oprimir, controlar e destruir pessoas. Nossos
valores determinarão o tipo de poder que queremos
nutrir.
Por fim, porém, o poder unilateral é autoderro-
tado por qualquer pessoa que deseje que sua própria
vida seja amorosa, plena e rica em relacionamentos.
Quando empobrecemos, oprimimos, dominamos e
destruímos outras pessoas, não podemos desfrutar
de relacionamentos amorosos com elas e, portanto,
empobrecemos tanto a nós quanto a elas.
O poder de Jesus reside precisamente em sua ha­
bilidade de sustentar relacionamentos amorosos com
aqueles que supostamente deveriam ser seus inimi­
gos. Pecadores e coletores de impostos romanos, sol­
dados romanos e outros que o rejeitaram e não foram
rejeitados por ele. Ele continuou a criar a si mesmo
em resposta a eles de uma maneira que eles não pu­
deram derrotar. Eles não conseguiram impedir que
Jesus os amasse. Jesus podia sustentar o relaciona­
mento amoroso apesar da fraqueza relacionai (escon­
dida atrás do poder unilateral deles).
Se for para nutrirmos a capacidade das pessoas
para que vivam em uma comunidade global (ou, na
C. Robert Mesle

verdade, em qualquer comunidade), devemos nutrir


o poder relacionai delas. Devemos aprender sozinhos
e ajudar outros a aprender o valor de serem aber­
tos a novos valores, novos estilos de vida e novas
154
culturas, para que estas nos enriqueçam ao invés de
nos assustar. Concretamente, isso começa ao criar os
filhos amorosamente e continuar assim em sua edu­
cação diária. Devemos modelar para eles a abertura
e o cuidado, o entusiasmo em relação a outras ideias,
outros idiomas, outros estilos de vestir e de comer e,
principalmente, outras pessoas.
Ver pessoas que são diferentes como fontes ma­
ravilhosas para m utuam ente enriquecer relaciona­
mentos é a chave para a comunidade global. E disso
que trata o relativismo comprometido, o sentido do
processo da beleza e a força emocional do poder rela­
cionai. Com estas abordagens às diferenças humanas
nos valores e na religião, temos menos probabilidade
de assassinar crianças inocentes "para seu próprio
bem". Você não precisa ser um pensador do proces­
so para apreciar estas percepções, mas se você for,
ajuda.

Teologia do processo - Uma introdução básica

155
Capítulo 13
PLURALISMO RELIGIOSO

U
ma das questões globais vitais e desafiadoras que
enfrentamos hoje é a diversidade das religiões
mundiais. Obviamente, todos os conceitos do relati­
vismo comprometido, da beleza nos relacionamentos
e do poder relacionai aplicam-se aqui, tanto quanto
em qualquer outra área. Mas a questão religiosa é
complicada de maneiras especiais. Como os cristãos
comprometidos poderiam explicar a existência destas
religiões, se o Deus cristão é verdadeiramente amo­
roso e universalmente autorrevelador? Por que Cristo
não falou a elas também? Ou, se Cristo falou, por que
elas não responderam? E como nós nos relacionare­
mos com essas pessoas de uma maneira que respeite
Teologia do processo - Uma introdução básica

sua integridade, expressando, ao mesmo tempo, nos­


so desejo de partilhar o evangelho cristão que rece­
bemos? Para definir a base sobre a qual a teologia do
processo dará resposta a essas questões, é necessário
relembrar a nós mesmos o modo triste como o cristia­
nismo tratou pessoas de outras religiões no passado.

Uma triste história

Por séculos, a maioria dos cristãos viveu virtu­


almente sem nenhum contato, nem mesmo tinham
157
conhecimento sobre pessoas de outras religiões. É
claro que os cristãos sempre conheceram os judeus,
e geralmente os viam como os assassinos de Cristo,
infiéis e povo condenado ao fogo eterno. Na melhor
das hipóteses, os judeus eram tolerados e tratados
como inferiores; e na pior, foram frequentemente
brutalizados, estuprados e assassinados por seus vizi­
nhos cristãos. As atitudes dos cristãos em relação aos
povos das religiões orientais foram essencialmente as
mesmas, embora, até recentemente, a separação geo­
gráfica tenha evitado a maioria dos conflitos diretos,
com exceção das Cruzadas. A guerra que se alastra
no Iraque enquanto escrevo ressalta a necessidade
de melhorarmos a compreensão entre as comunida:
des religiosas mundiais.
Atitudes cristãs destrutivas em relação a outras
religiões do mundo (assim como hostilidades entre
denominações cristãs) resultaram parcialmente de
preconceitos humanos comuns em relação a pes­
soas que são diferentes. Mas estes problemas tam­
bém têm bases teológicas. Temos presumido, de
acordo com as atitudes dos escritores bíblicos, que
a verdade de nossa religião é perfeitamente clara
para todos os povos; assim, aqueles que a rejeitam
o fazem por um perverso autoengano. Um primeiro
exemplo dessa teologia pode ser encontrado na carta
de Paulo aos Romanos 1,18-21.25:
18Manifesta-se, com efeito, a ira de Deus, do alto do céu,
contra toda impiedade e injustiça dos homens que man­
C. Robert Mesle

têm a verdade prisioneira da injustiça. 19Porque o que


se pode conhecer de Deus é manifesto entre eles, pois
Deus lho revelou. 20Sua realidade invisível - seu eterno
poder e sua divindade - tornou-se inteligível, desde a
158
criação do mundo, através das criaturas, de sorte que
não tem desculpa. 21Pois, tendo conhecido a Deus, não
o honraram como Deus nem lhe renderam graças; pelo
contrário, eles se perderam em vãos arrazoados e seu
coração insensato ficou nas trevas. 25Eles trocaram a
verdade de Deus pela mentira e adoraram a criatura em
lugar do criador, que é bendito pelos séculos. Amém.
(RSV - Revised Standard Version).
A inclinação para ver todas as pessoas com ou­
tras crenças religiosas como intelectualm ente de­
sonestas e/ou espiritualmente preguiçosas ou per­
versas surge, como o fazem muitos problemas já
examinados, a partir da pressuposição tradicional
de que Deus é todo-poderoso. Um Deus assim não
tem dificuldade em prover as pessoas com planos e
revelações não ambíguas da verdade. Quando pes­
soas que acreditam ter recebido essas revelações
são questionadas por que outros não a receberam,
elas logicamente devem responder que, ou aquelas
pessoas não foram fiéis o suficiente para receber a
revelação, ou de fato a receberam, mas, por falta de
fé, a rejeitaram, trocando a verdade sobre Deus por
Teologia do processo - Uma introdução básica

uma mentira.
Como a passagem aos Romanos sugere, o apoio
bíblico para tal postura é forte, conforme ilustrado
nas cartas de João no Novo Testamento. Apesar das
belas palavras de "João" sobre o amor, aqueles cris­
tãos que discordam do autor são consistentemente
condenados como mentirosos, enganadores e anti-
cristos. Em um caso, 2 João 10-11, o autor joanino
até leva seus seguidores a se recusar a cumprimen­
tar os dissidentes ou recebê-los em suas casas. Isso
é muito para o diálogo interfé (como mostrado em 3
João 9-10).
159
Uma visão do processo

Felizmente, somos gratos por muitos cristãos


possuírem mais conhecimento, não serem tão pro­
vincianos ou terem mentes fechadas. Sabemos, a par­
tir da experiência diária em nossas sociedades plura­
listas, que o mundo é preenchido com pessoas que
discordam de nós sobre questões teológicas e outras,
mas que ainda são pessoas agradáveis e amorosas. A
questão que ainda nos confronta ê como podemos
explicar a diversidade religiosa considerando a con­
vicção cristã de que Deus ama todas as pessoas e
revela o amor e o desejo divino a cada uma delas.
A teologia do processo tem uma resposta dire­
ta, a qual já vimos aplicada à nossa compreensão
da Escritura. Simplesmente, não está ao alcance do
poder de Deus estender-se unilateralmente sobre o
precipício que há entre nós. Necessariamente, sem­
pre experimentamos Deus de dentro do contexto de
nosso próprio mundo. Esse mundo é moldado pelo
nosso contexto histórico, nossa cultura, nossas finan­
ças, nosso status social, nosso sexo, nossas decisões
do passado, nossa inteligência e tudo o mais de nos­
sa biografia pessoal. A revelação de Deus para nós
está continuamente entrelaçada com a influência de
todas as outras entidades, formando a rede de rela­
cionamentos a partir da qual criamos a nós mesmos.
Nunca encontramos Deus em um vácuo.
Se levarmos a sério o poder da história e da cul­
tura, dificilmente ficaremos surpresos com o fato de
que pessoas na índia, em 500 a.C., experimentavam
Deus e foram trabalhadas por Deus, de modo dife­
rente do que foram as pessoas na Palestina no tempo
de Jesus, ou dos americanos de classe média, hoje.
Deus ama e chama todos eles, mas eles experimen­
tam esse amor e chamado de modo diferente. E, na
verdade, Deus certamente aborda esse amor de for­
ma apropriada para as circunstâncias de cada um e
os chama para ações apropriadas para suas situações
pessoais e culturais. O que é amoroso e construtivo
em uma cultura, pode não ser em outra.
Talvez eu devesse fazer uma pausa para distin­
guir uma visão de outra, que podem parecer muito
similares. É comum que as pessoas expliquem pas­
sagens difíceis da Escritura, dizendo que Deus es­
tava apenas falando àquelas pessoas em termos que
elas pudessem entender. Por exemplo: os autores da
Bíblia presumiam que o mundo era plano, coberto
por uma redoma dura e cercado por água. Eles tam­
bém pensavam que Deus havia dado a eles a "terra
prometida" e, portanto, havia tanto ordenado quan­
to capacitado os israelitas a assassinar e escravizar
os canaanitas que já viviam lá. Quando presumimos
que Deus seja onipotente e capaz de revelar qual­
quer coisa que desejar, então a ideia de que Deus
realmente disse estas coisas como uma maneira de
trabalhar com aquelas pessoas cria um terrível re­
Teologia do processo - Uma introdução básica

trato de Deus. Por que Deus, por exemplo, teria dito


ao povo: "Não matarás" e depois ordenaria que eles
conduzissem um assassinato em massa; com base em
que o genocídio era o melhor termo que eles podiam
entender?
A teologia do processo está dizendo algo muito
diferente. De um lado, a teologia do processo rejei­
ta essas noções simples de revelação absoluta, ver­
bal, pois jamais encaramos a Escritura como sendo
as palavras de Deus. Elas são sempre as palavras de
seres humanos se esforçando para expressar seus
161
encontros com o Divino - encontros sempre filtra­
dos através de sua humanidade condicionada. De
outro lado, os teólogos do processo estão sugerindo
que Deus realmente trabalhará de diferentes manei­
ras com diferentes povos. Isso é só para dizer que o
amor de Deus é tanto compreensivo quanto criativo.
Deus continuamente responde às situações atuais do
mundo ao chamar pessoas para o bem. E o amor de
Deus é criativo, porque existem diferentes maneiras
pelas quais Deus pode criar o bem no mundo. Assim,
existe uma combinação entre as pessoas percebendo
Deus de modo diferente por causa de suas diferen­
tes experiências culturais, e Deus respondendo, ao
trabalhar de diferentes maneiras com pessoas, em
diferentes culturas.

Beleza, relativismo comprometido


e pluralismo religioso

As questões discutidas no último capítulo apli­


cam-se diretamente aqui. Existem muitas maneiras
boas pelas quais as pessoas podem viver, e essas ma­
neiras podem não ser inteiramente compatíveis. E
pode ser inteiramente possível que existam valores a
serem experimentados por um modo de vida budis­
ta, muçulmano ou hindu que podem não ser comple­
tamente apreciados dentro de um contexto cristão.
E esses valores podem ser simplesmente tão bons
quanto aqueles valores apreciados pelos cristãos -
simplesmente diferentes. Podemos também desco­
C. Robert Mesle

brir que, até certo ponto, aprendemos com cada um


dos outros modos de combinar nossas percepções
religiosas a fim de capturar valores novos e até mais
ricos do que aqueles que poderíamos ter sido capa­
162
zes de descobrir se o mundo fosse inteiram ente cris­
tão ou inteiramente budista. Nesse caso, o mundo
como um todo é mais rico pelo fato da diversidade
religiosa. As diferentes religiões mundiais (e mesmo
as diferentes denominações cristãs) aparecem nesse
caso não como um problema teológico, mas como
um recurso.
Considere o exemplo do budismo. O budismo
está profundam ente enraizado no fato fundamental
de que a experiência hum ana envolve sofrimento.
Esse é o primeiro princípio das Quatro Nobres Ver­
dades de Buda. Deixe-me parafrasear uma estória
que seria de grande valor no diálogo entre o pensa­
mento cristão e o budista. De acordo com essa es­
tória, um homem veio a Buda e disse: "Se você me
explicar as verdades sobre se o mundo é eterno ou
não eterno, se Deus existe ou não existe, e outras
verdades como essa, eu me tornarei seu discípulo".
Mas Buda respondeu que não desperdiçaria seu tem ­
po, explicando a natureza da eternidade, Deus ou ou­
tras verdades, visto que elas nada tinham a ver com
religião. Pois religião tinha a ver com sofrimento e
nossa fuga dele, e esse é o problema sobre o qual
Teologia do processo - Uma introdução básica

Buda ensinaria.
Os cristãos lucrariam ao dialogar com essa pers­
pectiva. Não é com frequência que reclamamos de
nossa tendência de nos tornar tão presos ao defen­
der nossas doutrinas teológicas que, não só negligen­
ciamos os seres humanos, mas de fato torturamos
e assassinamos uns aos outros para defender nossas
crenças? Não poderíamos ser enriquecidos ao apren­
der de Buda a respeito do lugar próprio da teologia
na vida humana? Ao mesmo tempo, acredito que os
cristãos têm alguma coisa importante para partilhar
163
com os budistas sobre os valores positivos da alegria
na vida.
Em outras palavras, estou sugerindo que, da
perspectiva da teologia do processo, pode haver mais
beleza religiosa - mais valores m utuam ente enrique-
cedores - em um mundo com diversidade religiosa,
do que em um mundo sem ela. Podemos aprender a
celebrar a própria existência de outras religiões do
mundo e seus valores como um presente de Deus.
O relativismo comprometido, neste contexto,
fornece uma estrutura saudável para o diálogo inter-
fé. Ele permite que as pessoas afirmem o valor da sua
própria tradição, enquanto afirmam positivamente
que as outras tradições também podem oferecer va­
lores criativos. Estes dois elementos são cruciais se
houver um diálogo genuíno e não m eramente um re­
vezamento de tentativas para converter um ao outro.

Questões de verdade religiosa

Até agora temos discutido o relativismo com­


prometido fundam entalmente em termos de valores,
mas ele também se aplica a questões de verdade.
Nesta arena, o relativismo comprometido é essen­
cialmente a mesma abordagem da busca pela ver­
dade que há muito tempo caracterizou o melhor da
filosofia e da ciência. Com o melhor que sabemos até
agora, nós nos comprometemos com as crenças que
« são mais fortemente apoiadas pela nossa experiên-
| cia, com nosso teste e nosso pensamento cuidadoso,
t Nós nos comprometemos com estas crenças apenas
o até o ponto em que elas são apoiadas pela evidência:
j nem mais nem menos. Mas reconhecemos que até
164
as nossas crenças mais poderosamente sustentadas
devem finalmente se abrir à reconsideração, se novas
evidências ou novas ideias sugerirem melhores pers­
pectivas em direção à verdade que buscamos. Pes­
soas envolvidas no diálogo religioso devem certa­
mente carregar esta ética da abertura filosófica, de
respeito mútuo e de relativismo comprometido para
dentro da discussão.
Por exemplo, pessoas que afirmam a explicação
da teologia do processo sobre a diversidade religiosa,
reivindicam, em certo grau, estar dando uma explica­
ção mais verdadeira do que as outras. Isso pode pare­
cer provinciano e autodestrutivo, mas não penso que
seja. Oferecer uma perspectiva sobre um problema
não é inerentem ente oferecê-la dogmaticamente. E
perfeitamente possível ter uma boa ideia e defendê­
-la enquanto ainda ouvimos respeitosamente e com
consideração as ideias dos outros. E os teólogos do
processo não estão necessariamente afirmando que
sua concepção particular da realidade divina exclua
a verdade de muitas percepções de outras tradições.
Porém, muitas verdades são mais compatíveis do que
podem parecer à primeira vista.
Teologia do processo - Uma introdução básica

A questão crucial para os cristãos, claro, é a di­


vindade de Jesus. Ela pode ser verdadeira e ainda
deixar espaço para a verdade de religiões não cristãs?
Esse será o assunto do próximo capítulo.

165
Capítulo 14
JESUS

U
m exemplo crucial de como verdades podem ser
mais compatíveis do que pensamos é sugerido
pela compreensão que os teólogos do processo têm
de Jesus como o Cristo (existem, naturalmente, di­
versas visões entre os pensadores do processo sobre
esse assunto. Mas existe também muito terreno co­
mum sobre o qual tentarei trilhar). Penso que seja
uma virtude particular da teologia do processo ser
capaz de tratar Jesus de um modo respeitoso, tanto
pela tradição cristã quanto pela verdade de outras
tradições religiosas. Teologia do processo - Uma introdução básica

Problemas

As visões tradicionais de Jesus formam a maior


barreira ao diálogo cristão com outras religiões. Se
Jesus foi a primeira e única encarnação verdadeira
de Deus, e se podemos ser salvos para o céu somen­
te pela crença nessa doutrina, então as pessoas em
todas as outras religiões estão, sem nenhuma espe­
rança, perdidas. Em contrapartida, religiões como o
hinduísmo e o Bahai são muito mais tolerantes, per­
mitindo que a divindade entre no mundo através de
muitas pessoas e muitas vezes. Dada a reivindicação
167
cristã de que o amor de Deus é universal, as aborda­
gens destas outras religiões algumas vezes parecem
expressar valores cristãos de modo mais pleno que o
próprio cristianismo.
Os cristãos também têm sido atormentados pelo
problema do porquê Deus ter de causar todo este
incômodo para ter a encarnação. Com o objetivo de
ter um salvador, Deus primeiro tinha que se assegu­
rar de que haveria uma queda da qual nos salvar:
sem queda, sem salvador. E então Deus tinha que
predestinar o pobre Judas para trair Jesus. E Jesus ti­
nha que m orrer ou, caso contrário, tudo seria um fra­
casso. O mais estranho é que, se as pessoas tivessem
respondido à mensagem de Jesus e não o tivessem
crucificado, se todos tivessem se tornado amorosos
e pacificadores, ia parecer que todo o plano de Deus
havia desmoronado. Se Jesus, o pregador e professor,
tivesse obtido sucesso: Cristo, o Salvador, teria fra­
cassado. Um paradoxo, para dizer o mínimo.
Os problemas lógicos com as abordagens tradi­
cionais à própria encarnação são também óbvios e
bem conhecidos. Todos admitem que chamar Jesus
tanto de totalmente humano quanto de totalmente di­
vino tem significado abraçar flagrantes contradições.
A crença nestas contradições tem sido vista simples­
mente como um teste de fé. Se olharmos para trás,
para a história do desenvolvimento destas ideias, ava­
liaríamos com empatia a luta dos primeiros cristãos
para afirmar tanto que Jesus realmente partilhou nos­
sas lutas humanas, como também que eles encontra­
C. Robert Mesle

ram, de alguma forma, a divindade por meio dele.


Entretanto, por mais que possamos apreciar esses es­
forços, muitos cristãos hoje simplesmente não têm in­
teresse em testar sua fé, acreditando em contradições.
168
O problema reside parcialm ente na suposição
de que a alma hum ana seja alguma espécie de "coi­
sa" (talvez uma substância) que prim eiro existe e,
então, entra em relacionam entos com outras "coi­
sas". John Cobb Jr. observou que, na "substância"
das teologias tradicionais, o problem a da encarna­
ção torna-se insolúvel no início, porque "divino" e
"humano" são vistos m utuam ente como substâncias
exclusivas. É afirmado que Jesus é formado tanto
de substância divina quanto de substância humana,
apesar de elas serem definidas como opostas. Seria
como tentar fazer dois objetos sólidos caberem no
mesmo espaço. Para abrir espaço para mais de um,
você precisa talhar algum espaço do outro. Do mes­
mo modo, as categorias tradicionais querem dizer
que, para Jesus ser mais completamente divino, a
parte hum ana teve de ser removida. Daí a contra­
dição impossível, a lógica absurda de afirmar que
Jesus é completamente humano, e completamente
divino.

Encarnação: uma alternativa do processo


Teologia do processo - Uma introdução básica

Ao invés de pensar o mundo em termos de subs­


tâncias, considere as implicações da visão do proces­
so de que o mundo é composto de gotas de relaciona­
mentos experimentados. Nem Deus nem uma alma
hum ana existiram e depois aconteceu de começarem
a se relacionar com os outros. Cada alma humana
surge de um conjunto de relacionamentos sociais (in­
cluindo biológico) a partir dos quais ela cria a si mes­
ma. Esses relacionamentos - essas pessoas e eventos
- dos quais criamos a nós mesmos são literalmente
parte de nós.
169
Visto que a alma hum ana é um processo, e não
uma substância, ser "completamente humano" não é
uma categoria fechada. Em certo sentido, podemos
e deveríamos definir humano de maneira a proteger
os diretos dos mais fracos entre nós e assegurar que
as pessoas diferentes não sejam tratadas como subu-
manas. Mas, em outro contexto, todos nós reconhe­
cemos que não há limite específico para o quanto
entramos nesses tipos de relacionamentos, com os
quais a humanidade tem tudo a ver. Nesse sentido,
tornamo-nos mais completamente humanos â m edi­
da que nos tornamos mais amorosos, mais completa­
mente relacionados com os outros, mais sensíveis em
relação ao meio ambiente etc. .
Podemos dizer que Jesus era responsivo a Deus
de uma maneira especial, que Jesus escolheu res­
ponder completamente ao chamado de Deus. Porém,
esse modo de colocar a questão falha ao expressar
completamente a visão processo-relacional de que
estamos continuamente criando a nós mesmos a par­
tir de nossos relacionamentos sociais. O "outro" tor­
na-se parte do "eu". Assim, na visão processo-relacio­
nal, quando dizemos que estamos experimentando
o chamado de Deus e respondendo a esse chamado,
estamos, na verdade, levando Deus para dentro de
nós mesmos e nos criando a partir de Deus. Deus se
torna encarnado em nossas vidas. Assim, a afirma­
ção ética de que Jesus respondeu completamente ao
chamado de Deus é transformada em uma afirmação
teológica de que Jesus encarnou a Palavra divina na
forma humana.
C. Robert Mesle

Esse ato de encarnação, entretanto, não foi es­


tabelecido em um único evento. Ao contrário, Jesus
teve que decidir continuar a encarnar a Palavra divi­
170
na em sua vida. Mas esse processo foi cumulativo.
Tendo feito as escolhas preliminares, Jesus começou
um processo através do qual cada "Sim" a Deus tra­
zia Jesus mais completamente para a união com o
Logos Divino. Cada momento de sua vida tornou-se
"co-constituído" por uma vida completamente mol­
dada pelo chamado de Deus no passado e pela com­
pleta resposta ao chamado de Deus no novo presen­
te. Jesus, ao contrário de outras pessoas, foi capaz de
se inspirar nas decisões do passado que tinha vivido
totalmente, a partir do chamado de Deus a ele. Isso
permitiu que Deus o chamasse para possibilidades
que, de outro modo, teriam sido impossíveis; possi­
bilidades abertas para Jesus que não foram abertas
para o resto de nós, porque não tomamos as decisões
anteriores que prepararam para essas possibilidades.
Cobb sugere que Jesus se tornou capaz de encar­
nar o Logos Divino em sua vida. Ao fazer isso, Jesus
tornou-se mais amoroso, mais sensível, mais respon-
sivo, mais relacionalmente poderoso. Isso tornou Je­
sus tanto mais completamente humano quanto mais
completamente divino. Pois, na teologia relacionai,
não há contradição entre Jesus encarnar assim tanto
Teologia do processo - Uma introdução básica

a humanidade quanto a divindade. Ser mais amoro­


so é ser ambos: mais completamente humano e mais
completamente divino. Ser mais relacionalmente po­
deroso, mais capaz de partilhar os sofrimentos dos
outros com amor curador, é ser ambos: mais humano
e mais divino.
De maneira muito responsiva à tradição cristã,
Cobb usa o símbolo Cristo para esse chamado eterno
de Deus ao mundo, esse fascínio eterno pela bonda­
de, verdade e beleza. Este chamado é, na verdade,
uma dimensão da vida divina, não algo acidental, se­
171
parado do divino. Nossa experiência do fascínio de
Deus é uma experiência do ser divino. Assim, a en­
carnação do chamado eterno de Deus é uma encar­
nação da vida divina no mundo finito. Por isso, Cobb
nos diz que Jesus tornou-se o Cristo, a encarnação do
chamado divino no mundo.

A queda: uma alternativa do processo

A teologia do processo também evita todo o es­


tranho negócio da necessidade divina de que os hu­
manos caiam, Judas traia Jesus, Jesus fracasse para
convencer as pessoas e as pessoas crucifiquem Jesus
para que ele nos salve.
Como muitos cristãos contemporâneos, os teó­
logos do processo reconhecem a estória da queda
em Gênesis como uma expressão mítica da condição
humana, ao invés de um evento literal. Em resumo,
nossa queda é um fato contínuo sobre nossas vidas,
não sobre algum momento em nosso passado. Po­
demos ser "caídos", mas não há nenhum a "queda";
há somente o processo contínuo pelo qual Deus de
modo contínuo trabalha criativamente no mundo.
Assim, como os seres humanos gradualmente
evoluem no mundo e se tornam capazes de sensibili­
dade moral e religiosa, eles também se tornam capa­
zes do ódio e da crueldade. Isto é, nossos ancestrais
se desenvolveram tornando-se criaturas com maior
capacidade, tanto para aceitar quanto para rejeitar o
C. Robert Mesle

chamado de Deus. Em um ponto na história hum a­


na, uma pessoa chamada Jesus respondeu ao chama­
do de Deus com plenitude incrível. Se o mundo ao
redor dele também tivesse respondido ou tivesse res­
172
pondido à encarnação do amor de Deus entre eles,
então o mundo poderia ser transformado e as pes­
soas poderiam experimentar Deus e umas às outras
como jamais haviam experimentado antes. Lamenta­
velmente, o mundo escolheu não fazer isso de modo
completo. Alguns realmente responderam em parte,
e daí a religião cristã nasceu. Algumas coisas boas
aconteceram, mas Deus certamente esperava mais e
sempre espera por mais.
Por que, então, Jesus sofreu e morreu na cruz?
Porque Deus não pôde evitá-lo.1 Deus também cha­
mou outros; não apenas Jesus. Na verdade, Deus
chamou (e sempre chama) todas as pessoas. Podemos
imaginar Jesus respondendo àquele chamado, dan­
do três passos à frente, enquanto a maioria das pes­
soas dá dois passos para trás. Consequentemente, foi
precisamente ao responder ao chamado de Deus, ao
encarnar o amor divino no mundo, que Jesus fez ou­
tras pessoas verem a falta de amor em suas próprias
vidas e seu próprio fracasso ao responder. Não sur­
preende que muitas tenham se ressentido com Jesus
por ter revelado a pecaminosidade delas e o mataram
Teologia do processo - Uma introdução básica

por isso. Tendo chamado Jesus para o amor, Deus


não poderia, portanto, socorrê-lo.
Não foi necessário Jesus morrer como parte
de algum plano eterno predestinado por Deus des­
de toda a eternidade. Jesus provavelmente - e Deus
certamente - previu morte cruel como uma possibi­
lidade, se ele inabalavelmente prosseguisse seu cur­
so. Além disso, Jesus se tornou o tipo de pessoa que

1. Estou em dívida ao Rev. Bernard Lee, S.M. por essas ideias em seu
excelente artigo: “The Helplessness of God”, Encounter, vol. 38:4, outono
de 1977 , p. 325-336-

173
não poderia realmente escolher afastar-se do cami­
nho de amor, mesmo se esse caminho significasse a
morte. Ele e Deus, podemos presumir, esperavam o
tempo todo que as pessoas fossem responder com
amor ao invés de ódio, mas a maioria não o fez. E,
assim, Jesus, através do seu poder do amor relacionai,
transformou até mesmo o ódio delas numa espécie
de vitória. Jesus e Deus resgataram deste triste acon­
tecimento o bem que poderia ser obtido. Teria sido
melhor que todos tivessem respondido, tornando-se
como Jesus. Mas visto que ninguém assim o fez, Deus
e Jesus criativamente extraíram da tragédia o melhor
que puderam, trabalhando para preparar o caminho
para o chamado contínuo de Deus a nós. Esse proces­
so redentor tem sido tão bem-sucedido que os cris­
tãos passaram a compreender a cruz de Cristo como
a maior vitória de Deus e como o paradigma do quan­
to é bom poder ser redimido a partir do sofrimento.

Cristo e o pluralismo religioso

Esta visão de Jesus como sendo a encarnação do


Cristo é obviamente moldada por muito da tradição
cristã e, ao mesmo tempo, molda essa tradição em
aspectos importantes. Uma das formas mais vitais
na qual a visão do processo de Jesus é responsiva a
novas compreensões é o modo como ela abre o cami­
nho para o diálogo inter-religioso. Perceber Jesus ao
encarnar o chamariz divino por ele, não impede de
ver outras pessoas encarnando esse chamariz divino
C. Robert Mesle

em outros tempos e lugares.


Toda pessoa encarna o chamado divino, isto é,
encarna Deus! - em algum grau. A teologia do pro­
174
cesso abre a porta para perceber pessoas como Buda
e Gandhi como encarnações poderosas do Logos
dentro de sua própria estrutura cultural. E por razões
explicadas no capítulo anterior, é inteiramente possí­
vel que aquilo que Deus chamou Buda para fazer em
sua cultura pode ter sido, em seu contexto cultural,
diferente do chamado de Jesus em alguns aspectos
ou a Gandhi, em seu próprio contexto. O chamado
de Deus é sempre em direção a uma vida mais rica,
mais plena e mais amorosa para as pessoas, mas não
existe uma forma única para viver amorosa e rica­
mente. Dessa forma, dados seus diferentes contextos
culturais, podemos bem esperar que Deus chamasse
Jesus, Buda e Gandhi de maneiras um tanto diferen­
tes. Nessa visão de mundo, não deveríamos nos sur­
preender ao ver tanto pontos de forte similaridade -
como em um chamado para a compaixão em relação
às outras pessoas - quanto pontos de significativa di­
ferença nas mensagens daqueles que são chamados
em diferentes culturas.
O desafio do pluralismo religioso é uma impor­
tante dimensão da busca contemporânea pela justiça,
paz e libertação humana. Assim como as modernas
Teologia do processo - Uma introdução básica

tecnologias de viagem e de comunicação nos aproxi­


mam mais dentro de uma única comunidade global,
será incrivelmente vital que desenvolvamos compre-
ensões de religião que nos permitam tratar um ao
outro com respeito, sem perder de vista os valores
que nossa própria tradição tem preservado. Acredito
que a teologia do processo tem muito a oferecer nes­
ta busca.

175
Capítulo 15
ORAÇÃO, LIBERTAÇÃO E CURA

A
oração ê um ato de adoração. O propósito fun­
damental da oração é centralizar nossas vidas ao
redor daquilo que percebemos como sagrado.
O modo como geralmente oramos é realmente
muito curioso. Nossas orações raramente combinam
com nossa visão de Deus. Não quero sugerir nem
por um momento que as orações precisem passar por
algum teste teológico antes que possam ser momen­
tos poderosos de adoração. Todos nós sabemos a fre­
quência com que lutamos por palavras - e com as pa­
lavras - e não temos bem certeza de como capturar
e expressar o que está em nossos corações. Especial­
mente em momentos de estresse, mas também em
Teologia do processo - Uma introdução básica

acontecimentos diários, nenhum de nós iria querer


pessoas nos seguindo para checar se nossas orações
combinam precisamente com nossas teologias.
Todavia, se levarmos a oração seriamente, faz
sentido parar de vez em quando e pensar a respeito
de por que e como oramos. Visto que aquilo que di­
zemos pode moldar o que sentimos e fazemos, vale a
pena dar alguma atenção às nossas palavras. Consi­
dere alguns exemplos:
"Querido Deus, pedimos que seu Espírito esteja conos­
co nesta hora."
177
Algum cristão teísta pensa que o Espírito de
Deus pode não estar presente em qualquer tempo e
lugar? Obviamente, estamos convidando as pessoas a
se abrirem para esse Espírito.
"Querido Deus, esteja com os líderes de nossa nação, e
de todas as nações do mundo; que eles possam ser guia­
dos a trabalhar por um mundo mais justo e pacífico."
Algum cristão teísta pensa que Deus já não está
chamando estas pessoas para tais visões?
"Querido Pai que está no céu, como líderes na igreja,
comissionados em nome de Jesus Cristo, convocamos­
-te para a bênção da cura para esta pessoa que está so­
frendo grandemente."
Algum de nós imagina seriamente que um Pai
perfeitamente amoroso esperaria ser solicitado antes
de fazer qualquer coisa possível para suavizar o so­
frimento dos filhos de Deus ou se importaria com
quem estivesse oferecendo essa oração? Deus ouvi­
ria somente se as pessoas corretas, com o sacerdócio
correto, e a moralidade correta estivessem pedindo,
da maneira correta?
Claramente, poucos cristãos (se é que há algum)
querem dizer o que está implícito em muitas pala­
vras que dizemos em oração. Certamente, os cristãos
não pensam que Deus fica sentado lá atrás, passiva­
mente, sem fazer nada, até que algum ser humano
implore por um favor, de modo humilhante o su­
C. Robert Mesle

ficiente. Tampouco levamos a sério as imagens bí­


blicas de um Deus que deve ser tratado como um
touro furioso - conforme sugerido nas imagens de
Abraão ou de Moisés suplicando a Iahweh para não
178
desencadear sua fúria. Então, por que oramos como
se pensássemos assim? Para alertar a Deus sobre um
problema que, do contrário, ele poderia esquecer?
Esperamos m udar a mente de Deus? Desafiar os va­
lores de Deus? Persuadir Deus a ser mais prestativo
do que Ele seria?
Essa reflexão nos leva a reconhecer muito rapi­
damente que oramos para mudar a nós mesmos, não
a Deus. A oração, mesmo nas teologias tradicionais,
é um ato de adoração. E o propósito fundamental da
adoração é centralizar nossas vidas ao redor daquilo
que consideramos ser digno de tal compromisso. A
oração seria um ato por meio do qual nos centraliza­
mos e nos alinhamos com o sagrado.
Você não precisa ser um teólogo do processo
para reconhecer que a oração deveria m udar a nós e
não a Deus. Entretanto, esse fato óbvio tem sido obs-
curecido pela inconsistência entre nossas imagens
de Deus como todo-amoroso e como unilateralmen-
te todo-poderoso. Se Deus é um Deus amoroso, ele
deve certamente procurar aliviar o sofrimento. Mas
se Deus é todo-poderoso, então ele pode obviamente
Teologia do processo - Uma introdução básica

escolher não aliviar o sofrimento real que existe. As­


sim, nossa oração de cura, que pressupõe que Deus
pode simplesmente curar sempre que desejar, deve
também supor que Deus até agora optou por não
fazê-lo. Nossa oração, então, torna-se uma luta para
fazer com que Deus mude de ideia ou talvez para sa­
tisfazer alguma estranha lei de Deus, a qual diz que
Deus agirá amorosamente - somente aliviará o sofri­
mento ou estará presente conosco ou falará aos líde­
res nacionais - se as pessoas certas, com a teologia
certa e a autoridade certa pedirem simplesmente da
maneira correta, talvez "em nome de Jesus. Amém''.
179
E se realmente imaginássemos Deus como sen­
do amoroso, como se Ele já estivesse fazendo tudo
dentro do seu poder para trabalhar pelo bem, antes
mesmo que nos tenha ocorrido pedir-lhe algo? Como,
então oraríamos? Como oraríamos a um Deus que
já está sempre presente, amando, chamando e tra­
balhando? Como oraríamos ao Deus imaginado pela
teologia do processo?

Deus, oração e a vida do mundo

Antes de falar sobre como deveríamos orar, seria


bom rever a compreensão do processo sobre o m un­
do e sobre Deus. Esse mundo é um mundo de experi­
ência, organizado em criaturas altamente complexas
e com experiência mais rica. Deus partilha a experi­
ência de cada criatura, e cada criatura experimenta
Deus. Isso é a onipresença de Deus. A experiência
que cada criatura tem de Deus é uma experiência
das possibilidades e de um chamado apropriado para
essa criatura.
No pensamento do processo, não há linha abso­
luta entre vida e não vida, embora existam frontei­
ras cruciais em que grandes diferenças surgem. Por
exemplo, não há diferença metafísica entre um cão e
uma pessoa. Ambos parecem experimentar e reagir
de uma maneira unificada, com algum grau de cons­
ciência e algumas emoções comuns. Mas os seres hu­
manos são tão mais complexos que nossas mentes
parecem cruzar uma fronteira crucial na habilidade
para lidar com abstrações, tornando possíveis a ciên­
cia, a literatura e a moralidade. Possuímos mais do
que os cães possuem. Porém, esse mais é um grau
crucial.
Do mesmo modo, a diferença entre organismos
vivos e aquelas moléculas orgânicas que pairam no
limite da vida é uma questão de grau. Mas é um grau
que é crucial. A partir da perspectiva do processo,
a diferença crucial entre eles (que se torna possível
pelo tipo de diferenças estruturais que um biólogo
poderia descrever) é que as criaturas vivas têm uma
capacidade muitíssimo maior para respostas novas
em seu meio ambiente. A vida é uma função da no­
vidade - da liberdade. E, já que (conforme os teólo­
gos do processo defendem) Deus é o fundamento da
liberdade, Deus é também o fundamento da vida. E
Deus quem, a cada momento, é o fundamento da
vida de toda criatura viva.
O teísmo do processo não é panteísmo - a vi­
são de que o mundo é Deus. Ao contrário, é pa-
nenteísta - a visão de que o mundo está em Deus e
também que Deus está em todas as coisas no mundo.
Estamos rodeados por um mundo no qual Deus es­
tá agindo, dando e sustentando a vida. Deus não
pode controlar essa vida, mas pode e age para nu­
tri-la e apoiá-la. Em cada folha de grama, em cada
Teologia do processo - Uma introdução básica

célula de nossos corpos, Deus já está presente e


ativo.
Compreender o mundo, Deus e a vida desta m a­
neira deve m udar o modo de pensarmos a respeito
de tudo. Não podemos mais ver Deus preocupado so­
mente com os seres humanos, muito menos somen­
te conosco ou nosso pequeno grupo. Os teólogos do
processo são extremamente empáticos com aqueles
que clamam pelo bem-estar das baleias, golfinhos e
outras criaturas. Os teólogos do processo veem Deus
como estando presente, vivo, no mundo todo, in­
cluindo o das plantas e dos animais.
181

i
Dessa forma, quando oramos a Deus, oramos
para aquele que já está em nós e ao redor de nós,
que já está agindo para tornar nossa oração possível,
que já está nos chamando para a saúde, para o amor
e para a vida. O que diremos a um Deus assim?
Lembre-se de que a oração é um ato de adoração
no qual procuramos nos centralizar, nos alinhar, ser
sensíveis e responsivos. A oração é principalmente
para nós. Assim, quando perguntamos o que deve­
ríamos dizer, estamos perguntando sobre como fala­
remos a nós mesmos e uns com os outros em nossos
esforços para centralizar, alinhar, ouvir e responder
ao sagrado.

Oração e libertação

Parte da resposta reside no silêncio. Nós deve­


mos ouvir. Parte da nossa resposta reside na ação.
Devemos m udar o mundo que obscurece a voz de
Deus. Mas m udar o mundo envolve m udar a nós
mesmos. Ao mudar a nós mesmos, mudamos o que
Deus pode fazer. Porque Deus pode trabalhar conos­
co quando somos amorosos, de uma maneira que Ele
não pode trabalhar quando somos detestáveis. As­
sim, m udar a nós mesmos literalmente muda o que
Deus pode fazer neste mundo. Similarmente, mudar
qualquer parte do mundo muda o que Deus pode fa­
zer. Deus não pode trabalhar com pessoas que estão
famintas, espancadas ou drogadas da mesma manei­
C. Robert Mesle

ra que pode trabalhar com elas quando suas vidas


estão mais livres. Ao m udar o mundo, mudamos a
série de possibilidades, tanto para Deus quanto para
o mundo.
182
Muita oração é direcionada a persuadir pessoas
a aceitarem a vontade de Deus. Isso, naturalmente,
permanece importante. Criaturas míopes que somos,
não partilhamos a experiência infinita de Deus. As­
sim, os teístas do processo também nos lembram que
precisamos ouvir o chamado de Deus e tentar cap­
turar uma visão mais ampla - que pode significar
m udar nossas esperanças e expectativas.
Entretanto, com demasiada frequência, as ora­
ções têm chamado as pessoas a aceitar um status quo
opressivo. Orações têm admoestado pessoas a aceitar
sua pobreza ou sua opressão como desejo de Deus.
A teologia do processo certamente rejeita isso. A teo­
logia do processo chama, ao contrário, para orações
de libertação através do silêncio, de palavras e de
ações. Libertar mentes, corações e corpos humanos
também liberta Deus para agir mais efetivamente no
mundo.
Novamente, aqui, devemos lembrar que pode­
mos fazer coisas que Deus não pode fazer. Podemos
carregar sinais de piquete. Podemos votar. Podemos
nos erguer e falar contra a injustiça. Podemos reciclar
Teologia do processo - Uma introdução básica

papel, plástico e latas. Podemos projetar e construir


sistemas de energia mais eficientes. Podemos deci­
dir fazer com menos, de modo que outros possam
ter mais. Através de nossas ações, podemos criar um
mundo melhor no qual Deus pode oferecer melhores
possibilidades.
A oração pode m udar o que Deus pode fazer.
Teístas do processo acreditam nisso. A oração pode
ser vista, então, como um conjunto de atividades no
qual trabalhamos cooperativamente com Deus para
criar um mundo melhor. Dentro desse mundo Deus
pode oferecer melhores possibilidades e fazer coisas
183
melhores; dentro desse mundo Deus pode ser mais
bem percebido e obter melhores respostas.
Finalmente, porém, lembre-se de que a verda­
deira oração nos muda. Todos nós queremos acre­
ditar que somos aqueles que realm ente respondem
ao chamado de Deus, que somos aqueles ao lado
de Deus, aqueles que estão iluminando o mundo ao
falar por Deus. Mas isso é tão raro. Nós nunca te­
mos um acesso direto a Deus que não esteja inter-
-relacionado com nossa própria humanidade: nossos
desejos, egoísmos, miopia e circunstâncias pessoais.
Nossa percepção da vontade de Deus estará sem­
pre condicionada historicamente - moldada por
nossa sociedade, cultura, biologia, finanças, políti­
ca, sexualidade, família etc. Assim, oração contínua
e arrependim ento autocrítico, abertura contínua às
percepções dos outros e a novas percepções de nós
mesmos, são componentes essenciais de uma vida
de oração. Se for para libertarmos o mundo, deve­
mos continuam ente procurar nossa própria liber­
tação.

Oração e cura

A maioria dos teólogos do processo também iria


querer dizer alguma coisa a respeito dos modos pelos
quais nossa relação com todo este mundo de experi­
ência pode ter implicações para o poder de nossas
orações. Há alguma evidência - certamente inconclu­
siva - de que as células vivas são sensíveis a outras
células vivas ao redor delas, de que toda vida par­
tilha de um "campo" comum que amarra tudo jun­
to. Normalmente nossas conexões são muito tênues,
muito triviais. Raramente podemos ler outras mentes
de modo direto, se é que alguma vez pudemos.
Mas é evidente que estamos ligados de muitas
maneiras às células vivas em nossos próprios corpos.
Alguns desses laços são fortes, específicos e diretos.
Podemos mover nossos braços e piscar nossos olhos.
Outras conexões são menos diretas e precisas. O ba­
ter do nosso coração é parte do involuntário sistema
nervoso. E mais fácil aum entar as batidas do nosso
coração através de exercícios voluntários dos m ús­
culos do que pela meditação. Mas é possível apren­
der a influenciar o coração de outras maneiras. Da
mesma maneira, nossas mentes estão conectadas a
muitas das células em nossos corpos de maneiras tão
indiretas e imprecisas que é quase impossível para
nós afetá-las por mero esforço ou vontade. Apesar de
algumas poucas histórias dramáticas, obtemos muito
pouco sucesso desejando que as células cancerosas
permaneçam longe.
O ponto, no entanto, é que as células de câncer
e os vírus são coisas vivas dentro de nossos corpos, e
que existe evidência convincente de que alguns esta­
Teologia do processo - Uma introdução básica

dos da mente tornam nossos corpos mais vulneráveis


a esses efeitos destrutivos do que outros. Isso não
significa tudo ou nada; tampouco natural versus so­
brenatural. Não é simplesmente um caso onde nos­
sas mentes têm efeito ou controle total. Não é uma
questão de "fé". Ao contrário, temos uma vasta escala
de graus nos quais nossas mentes podem influenciar
as células vivas dentro do corpo. Uma vez que nos
voltamos para as células exteriores aos nossos pró­
prios corpos, então nossas conexões com elas obvia­
mente se reduzem drasticamente, embora talvez não
inteiramente.
185
Estas visões têm muitas implicações. Os pen­
sadores do processo estariam entre aqueles que as­
sumem que, à proporção que aprendemos mais - e
aprendemos novos modos de aprender - podemos
esperar que possamos nos tornar melhores ao curar
nossos corpos com nossas mentes - e nossas m en­
tes com nossos corpos. E a oração, aqui, significaria
trabalhar com Deus para fazer o que Deus já está
fazendo - chamando-nos para a saúde. E bem prová­
vel que possamos nos tornar melhores ao orar deste
modo - especialmente se paramos de pensar que a
oração é um esforço para conseguir que Deus faça
aquilo que, sem a oração, ele não faria.
Outras implicações são que não existe competi­
ção direta entre a cura pela oração e a cura por outros
métodos. Se a aspirina cura dor de cabeça, então não
há razão para não tomarmos aspirina. Se finalmente
pudermos aprender a curar dor de cabeça mais rapi­
damente sem aspirina, tanto melhor. Mas não existe
nenhum a razão para abandonar aquilo que funciona
até encontrarmos alguma coisa que funcione melhor.
Tomar uma aspirina não mostra falta de fé no poder
curador de Deus. É apenas outro modo de ajudar Deus
a trazer a cura - um modo que Deus não pode utili­
zar sozinho. Deus não pode tomar a aspirina por nós.
É óbvio, então, que os teólogos do processo vão
ser favoráveis à imaginação, ao riso, à meditação e
outras estratégias para aprender a respeito dos pode­
res da mente para trabalhar com nossos corpos. Mas
eles diriam que podemos saber antecipadamente
C. Robert Mesle

não só o que é possível. Pode ser que existam limites


muito severos, inerentes à natureza de nossos corpos
e mentes, dentro dos quais a cura mental pode agir.
Ou, pode ser que existam poderes enormes da mente
186
sobre a matéria, jamais imaginados por nós. Estas
são questões contingentes, aguardando uma investi­
gação de tentativa e erro.

Conclusão

A oração faz muito sentido na teologia do pro­


cesso. Ela não é mágica ou sobrenatural. Não é um
esforço para m udar a mente de Deus. É um esforço
para mudar a nós mesmos e o mundo em coopera­
ção com Deus, para fazer o que Deus não pode fa­
zer, para que Deus possa fazer o trabalho dele mais
efetivamente. Deus nunca está atrasado em relação
à necessidade para que seja estimulado por nossas
orações. Ao contrário, Deus está sempre adiante de
nós, sempre nos chamando, sempre esperando por
nossa resposta.

Teologia do processo - Uma introdução básica

187
Capítulo 16
MILAGRES

// milagre do nascimento" é uma frase sábia,


apontando-nos uma teologia dos milagres
saudável. O nascimento não é sobrenatural. Ele não
envolve intervenção divina, violando os processos
naturais. Possuímos um conhecimento tremendo a
respeito da reprodução e pode ser que, um dia, seja­
mos capazes de criar vida em laboratórios. Apesar de
tudo isso, ainda sentimos e falamos sobre o milagre
do nascimento.
Proclamar o milagre do nascimento expressa
nossa admiração e reverência. E ainda mais, declara
nosso senso de que há algo sagrado aqui. No nasci­
Teologia do processo - Uma introdução básica

mento de uma criança, somos confrontados com algo


que realmente importa, que nos arrebata e nos saco­
de, centralizando nossas vidas sobre valores funda­
mentais e nos revelando o que é merecedor de nosso
compromisso fundamental. Um nascimento muda
tudo. De todas essas maneiras, o nascimento é mi­
raculoso.
Milagres tornam-se problemas quando pensa­
mos neles como demonstrando poder divino ao in­
tervir no mundo do jeito que Deus desejar. Os pro­
blemas não são meramente científicos, mas também
teológicos e morais. Nada desafia a bondade de Deus
189
i
ou a justiça do universo mais do que a completa alea-
toriedade desses chamados "milagres". A seguir, que­
ro explicar vários problemas relacionados à ideia dos
milagres sobrenaturais e explicar por que a teologia
do processo oferece uma opção melhor.

Justiça e bondade

Alegria e um senso de gratidão são respostas


apropriadas a uma cura inesperada ou a um resgate
dramático diante de um perigo. Todos nos regozija­
mos com aqueles que são tão afortunados. Mas nada
faz Deus parecer mais cruel e injusto do que a ideia
de que Ele miraculosamente salvou um passageiro da
queda de um avião que matou centenas. Inevitavel­
mente, devemos perguntar: "Por que salvar esta pes­
soa, enquanto milhões sofrem e morrem todo dia?"
A injustiça é multiplicada se atribuirmos o alegado
"milagre" ao merecimento especial ou amor divino,
pois isso implicaria então pensarmos que todos os
outros são menos merecedores e menos amados por
Deus. Todo o livro de Jó dá um testem unho angus­
tiado do fato óbvio de que o mundo não recompensa
a justiça ou pune o pecado de modo consistente. Jó,
como bilhões de outros, era inocente, e ainda assim
sofreu - e perguntou por quê.
Obviamente, quando pessoas boas gritam de ale­
gria por terem sido espantosamente curadas, elas não
pretendem condenar as outras. Além disso, uma pe­
quena reflexão sobre isso já deve nos m ostrar como
se sentem muitos dos que não experimentam essa
boa sorte: “Se Deus curou seu filho, por que não o
meu? Seu filho é mais merecedor do que o meu? Deus
ama seu filho mais do que o meu? Deus está punindo
meu filho por meus pecados?". Poucas pessoas sensí­
veis iriam querer sugerir essa imagem de Deus. Mas,
quando falhamos em pensar sobre as implicações de
nossa teologia, podemos realmente machucar aque­
les que estão ao nosso redor. Uma teologia dos mila­
gres negligente pode ser cruelmente rude.

Ciência, oportunidade e o Deus das lacunas

As razões morais para rejeitar a ideia dos mila­


gres como intervenções sobrenaturais de Deus são
fortemente reforçadas apenas por uma pequena re­
flexão sobre o que sabemos sobre história, ciência e
o mundo ao nosso redor.
Acreditava-se que o raio fosse a arma de muitos
deuses antigos. E não é de se admirar. O raio é pode­
roso, incrível, potencialmente devastador e totalmen­
te além da compreensão dos povos pré-científicos. A
maioria de nós realmente ainda não o compreende
exatamente, mas aprendemos quando crianças que
o raio é uma descarga elétrica natural, sem relação
Teologia do processo - Uma introdução básica

alguma com Zeus ou Thor. Mais importante, talvez,


seja o fato de controlarmos o poder da eletricidade
dúzias de vezes a cada dia, quando ligamos e desliga­
mos as luzes com um toque do dedo. Os deuses que
arremessavam relâmpagos se foram. Se associarmos
nosso Deus ao raio ou qualquer coisa parecida com
isso, nosso Deus gradualmente também irá embora.
É claro que sempre haverá eventos que ainda não
compreendemos. O universo é grande e complexo de­
mais para que o conheçamos completamente. Como
conseqüência, sempre haverá pessoas dizendo que
191
Deus é encontrado nessas lacunas de nosso conheci­
mento. Mas essa ideia do "deus das lacunas" ê degra­
dante para Deus e mortal para a teologia. Ela apre­
senta um deus escondendo-se nas sombras de nossa
ignorância, encolhendo-se diante da luz do conheci­
mento e da inteligência humana. Um deus assim fica
menor, à medida que nosso conhecimento fica maior.
Considere quão pouco sabemos sobre o poder da
mente para curar o corpo. Todos sabem que corpos
e mentes interagem. Aparentemente, a ansiedade, o
estresse e a depressão podem contribuir para sinto­
mas físicos, variando de herpes a câncer. Não é de
surpreender, então, que os médicos cada vez mais
vejam uma atitude saudável como parte do tratamen^
to para doenças físicas. Mas sabemos pouco sobre
como tudo isso funciona. Assim, quando a oração
ajuda uma pessoa a relaxar, a se sentir amada e es- ;
perançosa, achamos fácil ver causas sobrenaturais
para a melhora física que a oração trouxe. Mas o que
acontecerá quando, como parece provável, apren- !
dermos como treinar pessoas para curar a si mesmas, j
pelo menos parcialmente, através de suas mentes? O ]
que acontecerá quando a cura mental não for mais
misteriosa do que o raio é agora? O que foi uma vez
chamado de cura pela "fé" pode se tornar tão comum
e leigo como a luz elétrica.
A chance também desafia a ideia de milagres
sobrenaturais. Por definição, a maioria das pessoas
possui uma inteligência, tamanho ou peso "normais".
Uns poucos são brilhantes ou retardados, pequenos
C. Robert Mesle

ou grandes. Exceções à norma são regularmente ob­


servadas em todos os domínios da experiência hu­
mana. Não há nada de mais sobrenatural no gênio de
Einstein, ou num jogador de basquete de dois metros,
192
do que na tragédia de uma criança cujo crescimento
físico ou mental é atrofiado. Exatamente da mesma
maneira, algumas pessoas que desenvolvem câncer
morrerão mais rapidamente do que qualquer um
espera, deixando-nos numa consternação chocante.
A maioria dessas pessoas, por definição, seguirá um
curso mais "normal". Muito poucas se recuperarão
rapidamente, para o espanto de todos. Pelo fato de
ficarmos agradecidos pela surpreendente recupera­
ção, podemos honrá-la com o nome de milagre. Mas
a recuperação foi algo mais sobrenatural do que a
morte ou do que o caso normal?
Fé saudável não pode depender da ignorância.
Uma visão equilibrada do mundo não pode ser cons­
truída ao creditarmos a Deus a solução de alguns
poucos eventos com chances mais favoráveis. O co­
nhecimento de Deus e conhecimento do mundo nun­
ca devem ser inimigos.

Teologia do processo

Os problemas morais com milagres surgem quan­


Teologia do processo - Uma introdução básica

do assumimos que Deus pode fazer o que quiser. Os


problemas científicos aparecem quando separamos
alguns poucos eventos incomuns como sendo "atos
de Deus", em violação aos processos naturais. Pode­
mos formular uma visão do poder divino na qual a
atividade e o amor de Deus são expressos por toda a
natureza? Com a questão dos milagres diante de nós,
vamos considerar mais uma vez como os teólogos do
processo acreditam que Deus age no mundo.
Talvez, como os físicos modernos sugerem para
alguns de nós, a capacidade de agir esteja presente
193
até mesmo nos menores eventos subatômicos que
compõem o processo natural. Talvez, então, o poder
de Deus seja necessariamente persuasivo, ao invés
de coercitivo. Os teólogos do processo imaginam
Deus apresentando as possibilidades que tornam a li­
berdade significativa e nos chamando para melhores
escolhas. A atividade de Deus pode ser vista, então,
como o fundamento que torna possível para o m un­
do combinar ordem com liberdade, vida e aventura.
Moralmente, podemos retratar um amor divino tão
grande que, em todos os eventos e a cada momento,
Deus está fazendo tudo dentro de seu poder para trazer
algo de bom, avidamente nos chamando para a coope­
ração de todos os que irão responder. Mas Deus traba­
lha com um mundo no qual a capacidade de agir é
tanto fundamental quanto irrevogável, pois Deus não
pode forçar as decisões do mundo. Cientificamente,
podemos ver aqui um Deus agindo em tudo, de modo
que não existem eventos isolados que sejam "atos de
Deus", que fiquem fora do curso da natureza. A visão
crucial aqui é a do poder divino como sempre presen­
te e ativo, mas como sempre, inevitavelmente inter-
-relacionado com as forças causais do mundo.
Nessa visão, Deus deseja e trabalha para curar
toda célula doente e para nos guiar para longe de todo
pensamento odioso. Mas nem o mundo nem nós po­
demos ser coagidos por Deus. Assim, nós, com Deus,
podemos celebrar com razão quando a oração, a inte­
ligência e a boa sorte combinam para tornar o mundo
mais responsivo ao chamado de Deus. Mas, mesmo
C. Robert Mesle

quando o pior acontece, podemos afirmar que Deus


está presente conosco, lamentando conosco e traba­
lhando conosco para criar tudo o que de bom for pos­
sível a partir do mal genuíno que confrontamos.
194
Na visão que o processo tem das coisas, Deus
tem trabalhado pacientemente com o mundo duran­
te todo o tempo. Não seria possível para o poder di­
vino simplesmente criar um mundo que fosse livre
de doença. E a maioria das criaturas do mundo é in­
capaz de responder a qualquer visão de um mundo
assim. Saúde, bondade e autossacrifício não têm re­
levância para partículas elementares. Os seres hum a­
nos, entretanto, são muitíssimo mais capazes de cap­
turar essa visão divina, e tanto é assim com os seres
humanos que, com eles, Deus tem o melhor meio de
trabalhar no mundo para trazer a cura.
Independentemente do quão ambivalente possa­
mos achar que a ciência moderna seja, dificilmente
podemos fracassar ao ver quão absolutamente in­
crível ela é, pois, nas últimas poucas décadas, nós
realmente adquirimos o poder para libertar a hum a­
nidade de muitas das terríveis pragas que vinham de­
vastando as pessoas há milênios. Nas nações desen­
volvidas, doenças como febre tifoide, tifo, malária,
pólio, sarampo, coqueluche e disenteria desaparece­
ram ou têm sido amplamente controladas. Varíola,
uma assassina terrível, foi completamente derrotada.
Teologia do processo - Uma introdução básica

Pessoas que poderiam ter morrido de ataque cardía­


co agora vivem vidas mais longas e saudáveis. E os
"milagres" da medicina moderna vão além de evitar
e curar doenças. A lesão do cotovelo que minha filha
teve quando criança a teria deixado com um braço
mirrado, caso os médicos não tivessem aprendido
como reparar um osso estilhaçado.
Temos ainda muito a aprender e muitos desafios
a enfrentar. Até mesmo os nossos sucessos ao salvar
vidas criam problemas no aumento da população e
na dignidade de vida para os idosos. Mas dificilmen­
195
te fracassamos em nos regozijar pelas formas nas
quais o crescimento do nosso conhecimento permite
que as pessoas (que têm acesso a ele) vivam vidas
mais longas e saudáveis. Da perspectiva da teologia
do processo, podemos ver isso como um reflexo dire­
to da paciência de Deus, chamando através de toda a
história da raça. É provável que Deus não seja capaz
de persuadir muitas células cancerosas em muitos
corpos a reestruturar a si mesmas, mas Deus pode­
ria ser capaz de chamar pessoas neste tempo para
aprender como curar o câncer. Nós somos as mãos
de Deus em muito do trabalho que Deus deseja fazer.
PARTE IV
NATURALISMO E TEÍSMO
INTRODUÇÃO À PARTE IV

M
ilhões de cristãos no século passaram a pensar
na divindade e sacralidade isoladas da cren­
ça em um ser divino. Paul Tillich mudou a teologia
cristã para muitos ao insistir que "Deus" não "existe"
(não é um ser entre outros seres), mas sim um nome
simbólico para o fundamento de toda a existência, "o
fundamento do ser”. O pequeno clássico do bispo Ro-
binson, Honest to God, desafiou milhões de leitores a
crescerem além da crença em um Deus que estava
"lá fora”. Bonhoeffer queria um "cristianismo sem re­
ligião" no qual permanecêssemos "diante de Deus,
sem Deus". Alguns teólogos da "Morte de Deus"
buscavam uma interpretação não teísta e secular do
Teologia do processo - Uma introdução básica

evangelho cristão.
Alguns entusiastas quanto às possibilidades do
pensamento do processo perguntam-me se uma m u­
dança similar na perspectiva religiosa teria a possi­
bilidade de não funcionar tão bem assim na teolo­
gia do processo. Eles perguntaram: Nós poderíamos
preservar os valores da visão relacionai do processo
- sua reconcepção de poder e de valor, seu foco no
processo e nas relações, sua abertura para o valor
da vida não humana, sua apreciação ao feminismo,
e sua resposta positiva à ambigüidade da vida - e
199
ao mesmo tempo encontrar sacralidade inteiramente
dentro do mundo dos processos naturais? Acredito
que a resposta seja sim. Existem muitos naturalistas,
incluindo a mim, que acham significativa uma visão
de mundo religiosa, baseada no pensamento proces-
so-relacional, sem a ideia de um ser divino.
Esta seção conclusiva contém dois capítulos: no
primeiro, explicarei e explorarei brevemente o con­
ceito do "naturalismo do processo" como sendo uma
perspectiva religiosa fundam entada na visão relacio­
nai do processo, mas sem o Sujeito divino do teísmo
do processo. Como parte disso, introduzirei ideias de
Henry Nelson Wieman, que foi um porta-voz para
reconceber a religião dentro dessa estrutura.
No capítulo final, no entanto, John B. Cobb Jr.,
que vejo como o preeminente teólogo do processo,
generosamente aceitou refletir sobre três questões:
Por que necessitamos de Deus para que o mundo
faça sentido na visão do processo relacionai? Que di­
ferença o Deus do processo faz no mundo de nossa
experiência? Quais são as outras contribuições que
o pensamento do processo pode dar, além daquelas
discutidas neste livro?
C. Robert Mesle

200
Capítulo 17
NATURALISMO DO PROCESSO

P rimeiro, deixe-me definir naturalismo como a vi­


são de que a natureza é o que existe - tudo o que
existe. Não existe nenhum ser ou sujeito à parte ou
transcendente aos próprios processos naturais. Não
há fundamento para o avanço criativo do mundo se­
não o próprio mundo. Um naturalista religioso iria
defender que qualquer coisa que definamos como sa­
grado, o que quer que entendamos por bem ou mal,
é parte da natureza.
É importante repetir, no entanto, que o teísmo
do processo também não é uma forma de sobrena-
turalismo. Assim, a diferença entre as duas posições
Teologia do processo - Uma introdução básica

não é naturalismo versus sobrenaturalismo, mas a


questão de o mundo de criaturas naturais e finitas
ser unificado ou não, de tal modo a dar origem a um
Sujeito divino único. Quando falo de naturalismo do
processo, quero confirmar a visão de que não há esse
Sujeito divino de toda experiência. Existe apenas o
mundo de criaturas finitas.
Segundo, a diferença não é se falamos de Deus
ou não. Muitos naturalistas do processo, como Henry
Nelson Wieman, de fato usam a linguagem religiosa,
incluindo a linguagem-Deus, para descrever sua vi­
são de realidade e de valores. Muitos naturalistas, no
201
entanto, não fazem isso. Dessa forma, apesar de eu
querer descrever os naturalistas do processo como
aqueles que imaginam a realidade, sem a consciên­
cia divina unificadora afirmada pelos teístas do pro­
cesso, seria enganoso dizer que todos os naturalistas
rejeitam a linguagem-Deus.
Finalmente, o fundam ento comum entre o teís-
mo processo-relacional e o naturalismo é substan­
cial. Muitos dos problemas no pensamento religio­
so tradicional que os naturalistas do processo têm
desafiado, também têm sido desafiados pelos teístas
do processo. Também, a maioria das virtudes do na­
turalismo processo-relacional que eu discutirei são
partilhadas muito entusiasticamente pelos teístas do
processo.

Naturalismo e sacralidade

O naturalismo pode incluir um sentido de sa­


cralidade. No naturalismo, a sacralidade não é algo
derivado de uma fonte sobrenatural ou divina que
é impingida ao nosso mundo a partir de fora. Sacra­
lidade não é uma qualidade mágica ou mística que
alguma coisa poderia ou não adquirir. Não é uma
coisa ou material. É fundam entalmente um modo de
experimentar o mundo.
Algumas vezes as pessoas têm experiências mui­
to poderosas, nas quais elas repentinam ente com­
preendem e sentem o que realmente importa - ao
menos para elas. Teístas de várias tendências fre­
quentem ente dizem que Deus é onipresente. Alguns
teólogos atentos têm sugerido que o significado disso
é que qualquer coisa ou qualquer evento no mundo
poderia ser o meio para que estejamos abertos para
um encontro com Deus. Se simplesmente substituís­
semos "Deus" por "um sentido poderoso do que re­
almente nos importa", então um naturalista poderia
concordar. E com o teísta, podemos afirmar estas ex­
periências como momentos nos quais descobrimos o
que é sagrado.
Em minha própria linguagem religiosa, diria que
experimento minha esposa e filhos como sagrados.
Isso significa para mim, primeiramente, que eles são
a importância fundamental para mim. Mas, ao mes­
mo tempo, eles também agem como símbolos pode­
rosos (janelas através das quais eu vejo) da impor­
tância de todos os filhos, de todas as pessoas e, em
algum grau, de toda a vida. A sacralidade deles não
depende de qualquer divindade externa a nós, porém
eles participam de um reino de valores que se esten­
de através de meu mundo natural.
Em segundo lugar, eu poderia falar também de
outras coisas como sendo sagradas: um gesto de au-
tossacrifício, a beleza de uma sinfonia ou a busca
da verdade. Alguém pode experimentar esta mesma
Teologia do processo - Uma introdução básica

sacralidade em comunhão com objetos da natureza


como uma montanha, uma árvore ou um lago. Em
qualquer caso, o mesmo tipo de experiência de sa­
cralidade que os teístas veem como revelações de
um ser divino podem ser familiares aos naturalistas,
apesar das explicações diferentes de suas origens ou
referentes definitivos.
Porém, sacralidade não é uma questão pura­
mente subjetiva. Os naturalistas podem também
ligar sacralidade à linguagem sobre a transcendên­
cia. Jerome Stone sugere que pode ser útil pensar
a respeito de algumas dimensões do mundo como
203
sendo "relativamente transcendentes". Embora não
transcendentes ao mundo natural, elas de fato exer­
cem um tipo de transcendência relativa dentro do
mundo. "Por um a norm a relativam ente transcenden­
te quero dizer qualquer valor que continuamente
transcende em valor e reivindica qualquer tentativa
de alcançar isso, de fato, para form ular isso com
precisão".1
A verdade é um paradigma de uma norma continua­
mente desafiadora. Não importa o nível de compreen­
são que é obtido, a verdade continua a funcionar como
uma meta em relação à qual nossas teorias são apenas
aproximações. A verdade é um ideal, nunca plenamen­
te atingido, que funciona como uma exigência contínua
que empurramos para essa meta... Assim, a verdade
funciona como uma demanda continuamente transcen­
dente. Da mesma forma a busca de outras metas hu­
manas tais como beleza, bondade moral e justiça são
buscas de demandas continuamente transcendentais.2
Esses comentários sugerem alguns modos pelos
quais os pensadores do naturalismo podem ainda de­
sejar usar algumas das linguagens tradicionalmente
afirmadas pelas tradições teístas. Nós, também, ex­
perimentamos e concebemos o mundo de forma que
nos dão significado e força a palavras como sagrado
e transcendente. Mas as vemos como aplicadas aos
reinos da natureza e da história.
C. Robert Mesle

1. Jerome A. Stone, "The Viability of Religious Naturalism”, p. 3-4, texto


não publicado.
2. Ibid., p. 4, mas citado por ele a partir de Jerome A. Stone, “A Minimal
Model of Transcendence”, American Journal Of Theology and Philosophy,
vol. 8, n. 3 (set. 1977), p. 129SS.

204
Um naturalismo processo-relacional

Nosso foco atual, no entanto, é num naturalismo


do processo específico. Considerando a dinâmica vi­
são da natureza que o pensamento do processo tem,
o que acontece se aceitamos a visão que o processo
tem da realidade sem o Deus do teísmo do processo?
Como veríamos o mundo se fôssemos naturalistas do
processo? Em grande parte, as virtudes do teísmo do
processo que já exploramos permanecerão em um
naturalismo do processo religioso.
Para os naturalistas do processo, processo e rela­
cionamento ainda são os pontos de partida combina­
dos para todas as coisas. Ainda vemos o mundo em
um processo criativo como o surgir e o perecer de
momentos de experiência inter-relacionados. Nesse
sentido, o universo permanece profundamente espi­
ritual. Aqueles valores para os quais as feministas
e os ambientalistas têm ajudado a voltarmos nossa
atenção ainda são básicos. Conectividade e inteire­
za são fundamentais, enquanto independência e ato-
mismo não. Poder relacionai ao invés de poder unila­
teral permanece a abordagem mais apropriada para
Teologia do processo - Uma introdução básica

a existência social.
O naturalismo do processo partilha com o teís­
mo do processo um reconhecimento da ambigüidade
de toda existência. As mesmas ações, eventos e estru­
turas podem fazer surgir tanto a dor quanto o prazer,
tanto a destruição quanto a criação. Nenhum deter­
minado estado de coisas é "do jeito que as coisas ti­
nham que ser", porque não há Criador divino para
pretender qualquer coisa. Escravidão, sexismo e ho-
mofobia, por exemplo, são vistos como surgindo da
autocentralidade e preconceito humanos, e não refle­
205
tem qualquer comando moral divino. Dessa forma,
o naturalismo do processo também escapa daquelas
tendências opressoras particulares que tão facilmen­
te surgem de algumas visões religiosas.
Naturalistas do processo nos veem como par­
tilhando experiências profundas. A experiência do
sentido, como nosso foco fundamental, é apenas um
produto mais afiado, mais claro e mais abstrato das
experiências primordiais mais vagas dentro das nos­
sas células corporais. O mundo é rico e um lugar in­
crível, e temos muito a aprender sobre ele e nosso lu­
gar dentro dele. Visto que os naturalistas do processo
também acreditam que corpos e mentes são unidos,
eles também irão prever que temos muito a aprender
sobre os poderes da mente para curar nossos corpos
(e vice-versa) e as mentes e corpos uns dos outros.
Mas, sendo empíricos, eles nos lembram de que não
devemos nos lançar im prudentem ente em afirma­
ções injustificadas. Tentativa e erro serão tão neces­
sários aqui quanto em qualquer pesquisa científica.
Naturalistas do processo apoiariam a mesma fi­
losofia básica do relativismo comprometido, que é
capaz de incluir a diversidade, sem abandonar o jul­
gamento ético. Com ou sem Deus, o julgamento ético
deve ser fundamentado em processos reais - físicos,
biológicos, psicológicos e sociais. Até onde esses pro­
cessos são partilhados, poderíamos procurar as bases
comuns dos nossos valores. Assim como elas variam,
os valores também podem variar.
Similarmente, a apreciação positiva do pluralis­
C. Robert Mesle

mo religioso, cultural, étnico e pessoal seria afirma­


da. O mundo é realmente mais rico por causa destas
diversidades, desde que as abordemos aberta e cria­
tivamente. Deveríamos estar felizes por nem todo
206
mundo ser cristão, ou judeu ou budista, porque estas
diferentes religiões nos possibilitaram explorar e pre­
servar uma vasta gama de valores e de tradições do
que qualquer religião sozinha poderia.
A diversidade ecológica, também, deveria ser
um valor positivo defendido pelos naturalistas do
processo relacionai. O mundo está cheio de vida com
valores apreciáveis, além da humana. Diminuir essa
diversidade não é somente ameaçar nossa sobrevi­
vência, mas a riqueza de nossas próprias vidas como
participantes dessa sociedade ecológica.
Naturalistas do processo observariam que, uma
vez passado o choque de as pessoas verem o mundo
sem referência a um ser divino, a conduta diária da
vida e da ética não seriam essencialmente afetadas.
Ainda sentimos bastante as mesmas dores e prazeres,
alegrias e medos, temores e esperanças nesta vida.
Não estamos mudados em nossa necessidade por ali­
mento, abrigo ou amor. Na verdade, as razões para
nosso julgamento ético podem ser até mais claras.
Considere, por exemplo, a necessidade de traba­
lhar pela paz. Deveríamos trabalhar pela paz porque
Teologia do processo - Uma introdução básica

Deus nos convoca para isso, ou porque as Escrituras


dizem isso, ou porque Jesus é chamado o Príncipe da
Paz? É por isso que deveríamos trabalhar pela paz?
A verdadeira razão para trabalharmos pela paz não
deveria ser simplesmente pelo fato de que a paz é o
melhor caminho para se viver, porque é o mais sau­
dável para os nossos filhos e outros seres vivos?
O naturalismo do processo partilha virtualmente
com o teísmo do processo cada valor e cada padrão
ético, e muitos destes são partilhados com o cristia­
nismo e com outras religiões. A única diferença é
207
que os naturalistas do processo veem esses valores
como inteiram ente enraizados nos próprios proces­
sos naturais, como temporais, contingentes e ambí­
guos da maneira que eles poderiam ser. No mundo
no qual realmente vivemos, deveríamos amar uns
aos outros, buscar a justiça e trabalhar pela paz, por­
que estamos todos inseparavelmente relacionados
no avanço criativo.

Deus

O que significaria para um naturalista não teísta


falar de "Deus"? Uma importante visão vem de Hen-
ry Nelson Wieman. W ieman argumentou que geraí-
mente interpretamos mal a natureza da investigação
religiosa. Temos pensado que é uma questão sobre
se acreditar ou não em alguma noção pré-defmida de
um ser divino. A questão de fé, então, é o problema
de essa crença ter que ser baseada na revelação, au­
toridade e intuição ou na evidência e razão.
Antes de podermos falar apropriadamente de
"Deus”, Wieman argumentou, devemos ser mais cla­
ros sobre a natureza da religião. Religião é uma bus­
ca pela salvação dos males da vida. Mais fundam en­
talmente, religião é uma busca pela transformação
humana. Seres humanos são capazes de ser trans­
formados para um grande bem ou grande mal. As ,
pessoas podem ser agradáveis e amorosas, encontrar
alegria na vida de serviço aos outros, mas também ;
C. Robert Mesle

podem administrar campos de concentração. O que j


faz a diferença? O que nos salva? Dentro deste con­
texto, W ieman radicalmente lança de novo a questão
de "Deus". i
208
A palavra "Deus" é irrelevante para o problema reli­
gioso, a menos que a palavra seja usada para se refe­
rir a qualquer coisa que em verdade opera para salvar
as pessoas do mal e para o bem maior, não importa o
quanto esta operação realmente possa ser diferente de to­
das as ideias tradicionais sobre ela.3

A definição de Wieman não nos diz qual é a fon­


te do bem humano. Isso não exclui a possibilidade
de que ela possa ser, na verdade, um ser divino como
aquele descrito nos capítulos anteriores. Mas Wie­
man estava convencido de que a fonte do bem hu­
mano (e, na verdade, também o bem de criaturas não
humanas) deve residir dentro do mundo natural.
W ieman apontou para o fato óbvio de que qual­
quer coisa que nos afeta deve existir dentro do mundo
de nossa experiência. Somos nutridos por alimentos
saudáveis, pais e amigos amorosos, educação ade­
quada, justiça e paz. Somos prejudicados pelo abuso,
pobreza, fome, doença, opressão e violência. Não há
nada de sobrenatural a respeito de qualquer destas
coisas. O bem e o mal são parecidos, eles são produ­
tos dos processos naturais e sociais do mundo que
Teologia do processo - Uma introdução básica

devem ser combatidos dentro da natureza e da socie­


dade. Podemos dizer que W ieman concordava com a
convicção bíblica de que "Deus" - que nos transfor­
ma para longe do mal e para o bem - age na história.
Ao contrário do teísmo do processo, muitas for­
mas de religião negam a importância deste mundo.

3. Henry Nelson Wieman, Man’s Ultimate Commitment (Southern


Illinois University Press, 1974), P - 12 (primeira edição de 1958). Por respeito
ao compromisso de Wieman com a mudança criativa, eu editei suas
observações removendo a linguagem sexista, a qual ainda era incontestada
quando ele estava escrevendo (ênfase sua).

209
Elas procuram pela salvação em um reino atemporal
e veem as fontes fundamentais do bem como total­
mente além dos eventos temporais. W ieman afirmou
que aqueles que nos chamam para olhar algum reino
totalmente atemporal e transcendente para procurar
o que nos salva do mal e nos conduz para o bem
estão, ainda que involuntariamente, prejudicando­
-nos ao desviar nossa atenção do que realmente im­
porta. Pior, em um tempo quando temos o poder de
destruir nosso mundo, a religião que busca salvação
como fuga deste mundo é perigosa.
É como se um homem que executasse uma ope­
ração cirúrgica fosse negar que os órgãos vitais estão
no corpo. Somente suas manifestações temporais es­
tão lá, ele diz, mas, visto que os órgãos não estão lá,
nenhum corte de faca pode seriamente machucá-los.
A um homem assim nunca deveria ser permitido exe­
cutar uma importante operação.4
Nós vivemos no mundo da natureza. Os natura­
listas do processo acreditam que a natureza é o que
existe. Isso significa que as fontes do bem humano
também devem residir dentro da natureza. É aí que
devemos olhar e trabalhar.
Muitas visões religiosas incluem um sentido
muito saudável e vital de que servimos a Deus me­
lhor quando servimos nosso próximo. Os naturalis­
tas do processo querem dizer algo muito simples a
esse respeito. O que realmente ajuda as crianças a se
tornarem o melhor que elas podem ser acontece jus­
tamente aqui e agora: boa alimentação, pais e amigos
C. Robert Mesle

4. Wieman, The Source of Human Cood, Southern Illinois University


Press, 1967, p. 35 (publicado originalmente em 1948).

210
amorosos, fortes modelos, bom cuidado médico, boa
educação, justiça e paz. Com ou sem uma divinda­
de transcendente, estas são as coisas que importam.
Além disso, existe muito a respeito da natureza, da
humanidade e das fontes do bem e do mal que ainda
não compreendemos. Wieman e outros naturalistas
do processo chamam-nos para focar nosso compro­
misso religioso sobre essas questões.

Teologia do processo - Uma introdução básica

211
Capítulo 18
TEÍSMO DO PROCESSO

Por John B. Cobb Jr.

B ob Mesle é um pensador extraordinário. Ele pos­


sui uma compreensão profunda, empática e pre­
cisa do teísmo do processo e, além disso, ele mesmo
acredita que o pensamento do processo, com uma
variedade não teísta, pode capturar todos os valores
do teísmo do processo, evitando, ao mesmo tempo,
emaranhar-se em suas especulações duvidosas. No
entanto, ele está bastante disposto a dar ao teísta do
processo a última palavra!
Como ele observa, a linha entre o "naturalismo
do processo" e o "teísmo do processo" não é fácil de
traçar. Eu, por exemplo, frequentem ente me deno­
mino um teísta naturalista ou um naturalista teísta.
Teologia do processo - Uma introdução básica

Além disso, algumas pessoas que se dizem teístas


simplesmente mantêm as mesmas crenças, assim
como outras, que rejeitam o teísmo. Elas simples­
mente discordam sobre o que significa ser um teísta.
Mesle reconhece que seja particularmente difícil
dizer se Henry Nelson W ieman é um "teísta" ou um
"naturalista". Ele se encaixa na definição de natura­
lismo de Mesle e, além disso, afirma enfaticamente
a realidade de Deus. W ieman se tornou um natura­
lista por causa de sua fé em Deus! Para ele, o que é
de suprema importância é que as pessoas se dão a
213
Deus em verdade e devoção. Porém, se a realidade
de Deus estiver em disputa, esta verdade e devoção
incondicionais dificilmente serão possíveis. Ele con­
cluiu que a realidade de Deus deve ser estabelecida
indubitavelmente, de modo que, ao invés de debater
sobre a existência de Deus, veríamos que a real deci­
são é servir ou não a Deus.
Como Mesle deixa claro, W ieman compreendeu
Deus como sendo um processo real, operante na na­
tureza e, especialmente, na comunidade humana.
Com grande perspicácia e precisão, ele descreveu
esse pensamento do processo no qual o bem hum a­
no cresce. E através desse pensamento do processo
que somos criativamente transformados. Ele mos­
trou que esse processo não pode ser controlado ou
dirigido pela vontade hum ana porque é o processo
que transforma a vontade. Ele não pode ser subordi­
nado aos propósitos humanos porque transforma os
propósitos humanos. Se nossos desejos e propósitos
devem ser criativamente transformados, então deve­
mos confiar nesse processo e perm itir que ele nos
remodele, sem sabermos como serão os resultados.
Na linguagem cristã tradicional, W ieman ensina
que somos salvos pela graça, e não pelas obras. Ou
seja, nossa transformação criativa não é obra nossa.
Podemos nos colocar em situações nas quais é mais
provável que a salvação aconteça ou que nos abram
para isso. Mas não podemos nos salvar por nós mes­
mos ou fazer com que isso aconteça. Somos salvos
somente pela graça, através da fé.
Mesle

Mesle pediu que eu dissesse que diferença faz a


crença em Deus dentro do contexto do processo do
pensamento. A crença de Wieman em Deus faz dife­
C. Robert

rença quanto à nossa postura fundam ental na vida.


214
Se os seres humanos são as realidades supremas, en­
tão a resposta costumeira, mesmo a dos pensadores
do processo, é pensar em termos de planejamento in­
teligente, organização e controle dos acontecimentos
para o benefício humano. Naturalmente, tudo isso
tem um lugar. Mas acredito, com Wieman, que a ver­
dade mais profunda é que necessitamos encontrar
algo que seja confiável e confiar nele, mesmo quando
não sabemos aonde ele nos levará.
Um naturalista do processo como Mesle, apesar
de não focar naquele processo que cria e redime,
poderia servir a esse processo. Na verdade, acredito
que ele o faça. Mas a tendência do naturalismo do
processo não é focar na confiança e na devoção a
Deus. Por isso sugiro que, de forma geral, uma dife­
rença entre aqueles para quem Deus é importante e
aqueles para quem esta palavra é dispensável seja a
forte crença do autor: a crença de que não criamos
a nós mesmos ou geramos nosso próprio bem; que a
confiança e a autodoação são até mesmo mais fun­
damentais do que assumir responsabilidade por nos­
sas próprias crenças e ações; e que, por essa razão,
determ inar no que se acredita é uma questão muito
Teologia do processo - Uma introdução básica

importante.
Wieman distinguiu o que é digno de confiança
e de devoção suprema entre tudo o mais. Essa dis­
tinção é muito importante para ele. Confiar absolu­
tamente no que não é digno de tal confiança ou nos
dedicar sem reservas ao que não é digno de tal devo­
ção é "idolatria".
W ieman identifica o processo que sempre e em
toda parte faz o bem para o ser humano como o "bem
criativo". Ele o contrasta com "bens criados". O pri­
meiro é o processo através do qual coisas boas vêm a
215
existir. O último são as coisas boas que vêm a existir
através desse processo. Elas incluem relacionamen­
tos humanos ricos, comunidades e instituições con­
tínuas e sabedoria profunda. Essas coisas são m ui­
to preciosas; se não fossem, não haveria razão para
dedicar tal devoção ao processo que as faz existir.
Mas tratar até mesmo a melhor delas como se fosse
sagrada ou digna de devoção suprema é perigoso e
destrutivo.
As pessoas podem discordar se focar a atenção
na distinção entre Deus e as criaturas é desejável
ou indesejável. Mas parece evidente para mim que
a crença de W ieman em Deus tem efeitos práticos.
W ieman discutiu esses efeitos em alguns detalhes
em relação à educação, ao governo e ao mundo dos
negócios, assim como à vida religiosa.
O pensamento de W ieman tem sido importante
para mim desde os meus dias de estudante de gradu­
ação. A realidade de Deus havia se tornado muito in­
certa para mim, e eu realmente percebi que minhas
dúvidas eram muito perturbadoras. O que Wieman
identificou como Deus não era tudo o que Deus havia
significado para mim; assim, eu não estava satisfeito.
Mas, para minha satisfação, W ieman mostrou, na­
quela época e agora, que o exame cuidadoso da ex­
periência hum ana revela a realidade de um processo
criativo que é digno de nossa confiança e devoção.
Em nosso tempo, isso é uma realização muito grande.
W ieman é uma das principais fontes do teísmo
do processo. Ele desenvolveu esse teísmo no contex­
C. Robert Mesle

to do empirismo radical. Enquanto isso, um colega


em Chicago estava desenvolvendo um tipo profunda­
mente diferente de teísmo do processo. Seu nome era
Charles Hartshorne. É a forma de teísmo do processo
216
de Hartshorne que Mesle tem em mente quando faz
sua distinção entre naturalismo do processo e teísmo
do processo. Ao contrário de Wieman, Hartshorne
compreende que Deus identifica o todo, incluindo
mente, experiência ou alma.
Hartshorne sugere que vemos a relação de Deus
com o mundo como aquela da psique ou alma com
o corpo ou, mais particularmente, com o cérebro.
Hartshorne vê cada célula do cérebro em cada mo­
mento como um sujeito individual que recebe de ou­
tros e, por sua vez, age sobre outros. Cada evento ou
experiência celular é também absorvida pela experi­
ência unificada da pessoa humana. Essa experiência
não é apenas constituída de todas as experiências ce­
lulares acrescentadas umas às outras. Ao contrário,
elas são integradas com suas próprias memórias e
antecipações a uma experiência coerente única. Si­
milarmente, todas essas experiências humanas (e de
outras criaturas) são absorvidas pela experiência cós­
mica unificada, que é Deus.
Hartshorne chama essa doutrina de "panenteís-
mo". Todas as coisas estão em Deus. É diferente de
Teologia do processo - Uma introdução básica

"panteísmo", o qual significa que todas as coisas jun­


tas são Deus. Nos termos da analogia da alma para o
cérebro, o panteísmo seria como a "identificação psí-
quico-física”. Essa é a doutrina filosófica que afirma
que a psique ou alma é a mesma coisa que o cérebro,
apenas vista de uma maneira diferente.
Hartshorne acredita que a alma possui uma
unidade subjetiva própria tal que uma experiência
hum ana é muito diferente daquela das células, in­
dividual ou coletivamente. De modo similar, Deus
possui uma unidade subjetiva tal que a experiência
divina é bem diferente daquela das criaturas que
217
contribuem para essa unidade, mesmo quando todas
elas são acrescentadas juntas.
Mesle pergunta se esse modo de pensar sobre
Deus como incluindo o mundo, mas sendo mais do
que o mundo, faz uma importante diferença para a
vida humana. Não poderiam todos os valores forne­
cidos por esta doutrina existir sem ela?
A princípio, esta questão parece estranha para
aqueles de nós que veem o panenteísmo como pro­
fundamente significativo. Mas uma pequena reflexão
nos ajuda a compreender isso. Não somos levados
por essa crença em Deus a esperar que aconteça al­
guma coisa no mundo que seja diferente do que ou­
tros esperam. Algumas pessoas pensam que, a menos
que a crença em Deus justifique a intervenção divi­
na, tal crença pode não fazer diferença alguma.
Estou certo de que Mesle não limita as diferen­
ças a estas versões mais grosseiras. Ele também quer
fazer uma diferença nas vidas dos fiéis. Aqui, parece
evidente aos fiéis panenteístas que nossa crença de
fato faz diferença. Além disso, a maneira com que
explicamos nossa crença faz com que abramos a por­
ta para negar que ela também faz diferença nesse
sentido. Precisamos olhar para isto mais cuidadosa­
mente.
O problema surge porque os teístas do processo
tendem a não tomar as expressões de descrença por
seu valor nominal. Pensamos que as maneiras com
que as pessoas pensam e agem implicam algumas
C. Robert Mesle

crenças as quais as pessoas podem conscientemente


negar. Considerando que, num certo sentido, até os
incrédulos são crentes, pode-se perguntar: Que dife­
rença faz a crença consciente?
218
Isto não é tão paradoxal quanto parece. Farei
uma ilustração para isso mencionando outras duas
crenças, antes de a aplicarmos à crença em Deus. Po­
demos perguntar em cada caso se a afirmação cons­
ciente ainda faz alguma diferença, ainda que a cren­
ça possa operar mesmo quando ignorada ou negada.
Um exemplo é que o futuro será, em termos ge­
rais, muito parecido com o passado - ou seja, que as
mesmas estruturas da natureza continuarão a agir.
Toda ciência é baseada nesta crença e, simplesmente
por esta razão, a crença raramente, se nunca, é afir­
mada como uma crença científica. Cientistas avan­
çam sem nem mesmo pensar sobre esta crença. O
mesmo é verdade para todo o nosso planejamento
em relação ao futuro.
Ainda podemos perguntar se esta expectativa
de continuidade é justificada. Se não for, então nos­
sas atitudes e atividades são colocadas em profundo
questionamento. O pensamento do processo argu­
menta que a expectativa é justificada. Isso porque
cada evento ocorre da maneira como ocorre, princi­
palmente porque nele estão incluídos eventos passa­
Teologia do processo - Uma introdução básica

dos. Isso assegura que esse evento será basicamente


contínuo com o passado.
Muitas pessoas não aceitam essa teoria. Além
disso, elas continuam a acreditar que o futuro será
como o passado. Elas estão tão certas desse fato que
não sentem necessidade de ter qualquer teoria o
apoiando. Para muitos propósitos, essas pessoas tam ­
bém avançam sem se preocupar com a justificação
de suas suposições.
Mesmo neste caso, não podemos dizer que a teo­
ria não faça diferença alguma. Questões reflexivas
219
surgem aqui e ali e para elas essa teoria fornece uma
resposta. Essa resposta leva a resultados diferentes
dos outros. Por exemplo, ela nos permite ver a ma­
neira em que pode haver mudança, bem como conti­
nuidade. No entanto, ofereço este exemplo como um
caso onde a confiança no fato é tão profundamente
estabelecida e tão raram ente duvidada que a teoria
que o justifica faz pouca diferença prática na vida,
mas ela realmente dá alguma satisfação àqueles que
a sustentam.
Um segundo exemplo é a visão de que, até certo
ponto, as pessoas são as responsáveis pela maneira
como agem. Isso implica que os seres humanos to­
mam decisões que não são forçados a tomar - ou
seja, que existe liberdade humana. Mas a liberdade
humana é muito difícil de explicar e muitas pesso­
as, especialmente os filósofos, negam-na intelectu­
almente. Os pensadores do processo acreditam que,
mesmo aqueles que a negam explicitamente, ainda
acreditam nela em algum nível do seu ser e continu­
am a agir nos termos dessa crença, ao invés de nos
termos do completo determinismo afirmado por eles.
Também neste caso, podemos perguntar se a
crença consciente na liberdade hum ana faz alguma
diferença. Em um nível, a resposta é não. As pesso­
as agem livremente e tratam as outras como se elas
fossem livres, quer elas afirmem isso ou não. Além
disso, nesta área, algo em que alguém consciente­
mente acredita de fato faz diferença. Aqueles que ne­
gam que os seres humanos são livres provavelmente
aceitam menos responsabilidade por suas próprias
decisões à medida que o tempo passa. Também, dis­
tinguir pelo que somos responsáveis e pelo que não
somos é desencorajador se supusermos que todas
as nossas ações são determinadas. Existencialistas
apontam a m aneira como o pensamento determinista
pode levar a uma relação de expectador da vida, ao
invés de uma relação de engajamento.
Com estas analogias em mente, vamos retornar
ao panenteísmo. Entre outras coisas, panenteísmo é
uma teoria que explica por que existe um sentido
inextirpável de que aquilo que acontece no mundo
importa. Podemos pensar nisso como uma teoria
análoga à teoria do passado entrando no futuro, as­
segurando, assim, que o futuro seja contínuo com o
passado. Do mesmo modo que todos acreditam que
o futuro será como o passado, adotando eles essa te­
oria ou não, todos acreditam, então, que o que acon­
tece no mundo tem importância, subscrevendo eles
qualquer teoria que justifique esta crença ou não.
Preciso explicar a conexão que os panenteístas
veem entre Deus e nosso sentido da importância
daquilo que acontece no mundo. Todo evento pos­
sui certa importância em si e para si, simplesmente
porque ele acontece. Mas na verdade isto é muito
efêmero. Dor e prazer, alegria e miséria, passam tão
Teologia do processo - Uma introdução básica

depressa quanto passaram a existir. Fama e poder


são igualmente fugazes. Ao justificar o merecimento
de uma ação paciente, frequentemente colocamos a
ênfase em suas conseqüências para nós mesmos e
para os outros. Mas essas conseqüências também são
apenas transitórias. Essas reflexões levam alguns à
crença explícita na futilidade e na insignificância das
ações - de fato, na própria vida.
No entanto, mesmo aqueles que chegam a es­
tas conclusões caracteristicamente sentem que vale
a pena partilhá-las com outros. Em todo caso, eles
continuam a agir como se suas ações tivessem impor­
221
tância. Em algum nível fundamental de seu ser, suas
ações atestam a convicção de que o que acontece de
fato importa, independentemente de quão transitó­
rios sejam os eventos e de quão mínimos sejam seus
efeitos no curso da história. Isso implica que isso im­
porta para Alguém cujo ser não é transitório, Alguém
que é eterno.
A história moderna do Ocidente atesta algumas
dessas conexões entre Deus e o significado humano.
A revolta contra Deus foi frequentem ente uma revol­
ta contra a atenção a outro mundo, em detrimento
deste. Ela foi motivada por um forte sentido de signi­
ficado e de importância da vida, aqui e agora. Além
disso, quando a crença em Deus enfraqueceu, surgiu
a questão da base do significado e da importância.
O niilismo tornou-se uma ameaça espiritual funda­
mental.
No entanto, sem a crença consciente nesse Al­
guém, muitas pessoas ainda pensam inquestionavel­
mente que o que acontece em suas próprias vidas e
nas vidas dos outros tem grande importância. Elas
não experimentam o niilismo como uma ameaça.
Para elas, a situação é como aquela sobre a crença de
que o futuro será como o passado. A crença no signi­
ficado e na importância está tão segura que as teorias
que as justificam são de pouco interesse.
Por outro lado, o comentário que fiz sobre a his­
tória recente indica que esta não é a estória toda. Pes­
soas que não acreditam em Deus também podem vir
a crer conscientemente que a vida não tem nenhum
C. Robert Mesle

significado. Isso se parece mais com o segundo exem­


plo da crença de que os seres humanos não são li­
vres. Aqueles que perm anecem nestas crenças ainda
agem de muitas maneiras como se acreditassem no
222
significado e na liberdade. Mas a rejeição consciente
a essas crenças ainda tem efeitos profundos. E difícil
questionar que as tendências niilistas têm desempe­
nhado um papel crescente na sociedade ocidental em
detrimento de todos nós.
Eu não quero afirmar que os naturalistas do pro­
cesso são niilistas! Eu não detecto nenhuma obser­
vação desse tipo nos escritos de Mesle. Na verdade,
não sinto que ele experimente o niilismo ou a falta
de significado como qualquer tipo de ameaça. Isso
significa que, para ele pessoalmente, a falta de uma
crença explícita nesse tipo de Deus faz muito pouca
diferença com relação à completude de significado
da vida.
A questão é se aqueles que realmente experi­
mentam o abismo da falta de significado como uma
ameaça real podem encontrar a reafirmação de que
existe, no naturalismo do processo, um fundamento
de significado. Eu, pessoalmente, não o encontro lá.
Encontro esse significado de fato na doutrina panen-
teísta de Deus.
Existem efeitos mais específicos de uma crença
Teologia do processo - Uma introdução básica

panenteísta que podem ser mais fáceis de compreen­


der. Um destes tem a ver com o hábito da introspec-
ção. Existem várias razões para ser reflexivo sobre o
que está acontecendo dentro de nós, e nem todas elas
estão relacionadas ao teísmo. Algumas são abordadas
por preocupações terapêuticas; outras, por interesses
acadêmicos.
Mas a razão bíblica para examinar a vida interior
ou o coração de alguém é que Deus sabe o que ocorre
lá e se importa com isso. O que Deus conhece e cui­
da também tem importância para nós.
' 223
Na tradição bíblica e na história cristã influen­
ciadas por isso, há uma atenção especial e distinta
para os motivos. Não basta que as ações sejam ma­
nifestamente virtuosas. É igualmente importante
que elas sejam realizadas pelos motivos justos, es­
pecialmente o amor. Examinar nossos próprios mo­
tivos não é uma experiência prazerosa, visto que, na
melhor das hipóteses, encontraremos esses motivos
bastante misturados. Na verdade, um sério sentido
de pecado e de nossa impotência para nos libertar do
pecado surge precisamente quando nos examinamos
deste modo.
Tomado por si só, pode haver pouca dúvida de
que este sentido de pecado mais prejudica do que
ajuda. Mas, na tradição cristã, ele nunca é tomado
por si só. Ele é sempre acompanhado pela doutrina
do amor de Deus e pelo perdão. Aquele que conhece
o coração - e conhece sua pecaminosidade - tam­
bém o compreende, aceita e perdoa. Quanto mais
honestamente reconhecemos nossa pecaminosidade,
mais completamente aceitamos o amor perdoador de
Deus. Isso nos permite reconhecer a pecaminosidade
em outros, sem rejeitá-los e condená-los.
O panenteísmo também faz diferença na área
da solidão e companheirismo. A maioria de nós às
vezes sente que nenhum ser humano realmente nos
entende ou fica do nosso lado. Essa é uma experiên­
cia dolorosa. Através dos séculos, essa experiência
tem levado as pessoas a se voltarem para Deus. Con­
siderando algumas doutrinas sobre Deus, o resultado
C. Robert Mesle

tem somente piorado a situação. Mas também tem


havido o sentido de que existe Alguém que nos en­
tende, nos aceita e nos ama, mesmo quando o mundo
parece ter se voltado completamente contra nós. A
224
doutrina sobre Deus que estamos considerando aqui
afirma, embasa e fortalece esse sentido. Há muitos
que podem testificar que ela de fato faz diferença.
Estive revisando aspectos bastante centrais e co­
muns do ensino cristão com os quais o teísmo do
processo se encaixa bem. Não acho que o naturalis­
mo do processo os apoie de modo comparável. Isso
vem em resposta ao desafio de mostrar que acreditar
no Deus panenteísta faz uma significativa diferença.
Mas a diferença pode não ser aquela da superio­
ridade. Existem aqueles que sentem que o forte senti­
do da significância e da importância da ação humana,
o qual tem sido ligado ao ensino cristão sobre Deus,
tem causado mais prejuízo do que benefício e, certa­
mente, eles estão corretos quanto a esse sentido ter
causado um grande prejuízo. Acredito que o panen­
teísmo possa levar à limitação do prejuízo, sem per­
der o sentido de importância, mas isso é discutível.
Similarmente, a ênfase na pecaminosidade e no
perdão divino tem tido resultados muito misturados.
Muitos acreditam hoje que um tipo diferente de es­
piritualidade seria muito superior. Os pensadores do
Teologia do processo - Uma introdução básica

processo geralmente apoiam outras abordagens, tais


como a da espiritualidade da criação e, neste ponto,
a diferença entre naturalistas do processo e teístas do
processo é pequena. Pessoalmente, acredito que os
teístas do processo possam afirmar a espiritualidade
da criação e reconhecer a facilidade com a qual o
foco na pecaminosidade é pervertido em canais des­
trutivos, sem abandonar completamente a espiritua­
lidade. Mas, outra vez, isso é discutível.
Até mesmo o sentido de companheirismo divi­
no é ambíguo. Ele pode encorajar as pessoas a de­
' 225
sistir do esforço de se comunicar com outros seres
humanos e encontrar um substituto espúrio na ora­
ção. Essa oração, ao invés de ser uma fonte de ação
frutífera no mundo, canaliza energia para longe das
necessidades do mundo. É exatamente contra esse
tipo de espiritualidade que o secularismo acertada-
mente se revoltou. Acredito que o panenteísmo possa
checar essa distorção, sem perder o valor positivo do
sentido do companheirismo divino. Mas isso, tam ­
bém, é discutível.
Um modo muito diferente no qual o teísmo do
processo pode fazer diferença é na teoria ética. Espe­
cialistas em ética com frequência dizem que deverí­
amos agir como um ser onisciente e onibenevolente
nos faria agir. Esse é um bom princípio. Na verda­
de, ele captura um aspecto muito profundo da nossa
sensibilidade ética. Mas a descrença de que esse ser
exista enfraquece o argumento de que se deve agir
como se ele existisse. Quando se acredita que esse
Deus do teísmo do processo existe, o argumento e seu
potencial para influenciar decisões são fortalecidos.
Voltemos agora às questões de política públi­
ca. Uma das questões que tem atraído considerável
atenção recentemente é a da biodiversidade. Os se­
res humanos estão drasticamente reduzindo o núm e­
ro de espécies de coisas vivas no planeta. A maior
parte dessas espécies são eliminadas antes mesmo de
terem sido identificadas pelos cientistas, por causa
da rápida destruição das florestas tropicais. Há um
repúdio espontâneo contra essa destruição por parte
de muitas pessoas.
C. Robert Mesle

É interessante ver como este repúdio é expresso


e justificado em círculos não teístas. Geralmente, ar­
gumenta-se sobre isso em termos antropocêntricos.
226
Dizem que algumas destas espécies podem fornecer
remédios que seriam úteis para nossos descendentes.
Outros argumentam a partir de fundamentos ecoló­
gicos, dizendo que a destruição de espécies enfraque­
ce a biosfera como um todo.
Ambos os argumentos têm valor. Mas muitas das
espécies que são perdidas não possuem valor medi­
cinal, e o dano para a biosfera referente à perda da
maior parte delas é trivial. O repúdio, de fato, não se
baseia nessas considerações práticas.
O repúdio ocorre, creio, porque se percebe que
a variedade tem valor em si mesma. Um mundo
simplificado é um mundo empobrecido. Quando as
espécies destruídas são aquelas que interessam aos
seres humanos, sabemos que nossa própria experiên­
cia é empobrecida. Mas o que dizer sobre o desapare­
cimento de espécies cuja existência desconhecemos
e as quais não acharíamos atrativas, se soubéssemos
que existissem? Deveríamos argumentar que nossos
descendentes apreciariam saber a respeito delas?
Mas - para colocar a questão hipoteticamente - seria
a diferença entre trezentas mil e quatrocentas mil
espécies de besouros que teria importância na expe­
riência humana? Eu duvido.
Realmente, para entender esse repúdio, temos
de investigar mais profundamente. Penso que ele se
origina de um sentido de que, independentemente de
os seres humanos poderem apreciar esta diferença ou
não, o repúdio faz diferença para a realidade como
um todo. A realidade como um todo é empobreci­
da. Mas isso implicitamente significa que a realidade
como um todo é o tipo de coisa que pode ser empo­
brecida - isto é, que ela tem qualidades subjetivas. O
panenteísmo fundamenta e explica esse julgamento,
2If
Para Deus, a variedade de criaturas fornece o con­
traste que enriquece a experiência divina. Não vejo
que o naturalismo, mesmo o naturalismo do proces­
so, possa fornecer uma explicação comparável.
Meu segundo exemplo vem da teoria econômica
padrão. Essa teoria é baseada em afirmações natura­
listas do tipo que estamos considerando. Ela assume
que não há super-humano ou mesmo experiência in-
clusiva.
A questão surge quando economistas querem
comparar ganhos ou perdas de algumas pessoas com
ganhos e perdas de outras. Por exemplo, muitos de
nós supomos que pegar dinheiro do muito rico e dá­
-lo ao muito pobre causa muito menos perda para ó
rico do que ganho para o pobre. A perda para a famí­
lia rica pode significar que ela deve se ajustar a um
iate menor. O ganho para a família pobre pode signi­
ficar que cada criança receba alimentação suficiente.
Muitos bons economistas concordariam que,
neste caso, os ganhos do pobre prevalecem sobre a
perda do rico. Mas eles não podem afirmar isso sim­
plesmente como economistas. Como economistas,
eles subscrevem o princípio da "otimalidade de Pa-
reto”. Esse princípio diz que, como não há alguém
que possa comparar os sentimentos de perda e de
ganho quando estes são distribuídos entre diferentes
pessoas, somente podemos afirmar um ganho líquido
quando alguns são beneficiados, sem qualquer perda
para os outros.
C. Robert Mesle

Este princípio possui conseqüências abrangentes.


Significa que, quando nos voltamos aos economistas
para orientação sobre negócios públicos, e quando os
economistas funcionam simplesmente nessa capaci­
228
dade, somos encorajados a não redistribuir a riqueza,
mas a aum entar a quantia total. Não há sentido de
exigência mínima ou de suficiência construída na te­
oria econômica ou nas políticas públicas às quais ela
dá origem. Uma teoria econômica construída sobre o
teísmo do processo teria resultados muito diferentes.
Sobre estas questões públicas, duvido que Mesle
fosse discordar dos resultados sobre os quais eu ar­
gumento como um teísta do processo. Este não é ab­
solutamente meu objetivo. O desafio dele a mim tem
sido dizer por que o teísmo do processo é importante
na distinção entre o naturalismo do processo. Minha
resposta nesse caso é que o naturalismo do proces­
so não fornece uma base para desafiar claramente
o princípio da otimalidade de Pareto. O teísmo do
processo sim. Ele afirma que há aquele Alguém que
inclui e pode, portanto, comparar os sentimentos de
perda ou de ganho de diversas pessoas. Na experiên­
cia de Deus, os benefícios para o pobre são maiores
do que a perda para o rico, e nós, acreditando neste
Deus, podemos propor políticas apropriadas.
Tenho falado sobre dois tipos de teísmo do pro­
Teologia do processo - Uma introdução básica

cesso e as diferenças que eles fazem. Um deles tem o


foco num tipo de processo, diferente de todos os ou­
tros, a saber, aquele processo através do qual o bem
humano cresce. O outro é o panenteísmo, a crença
de que tudo o que acontece no mundo contribui para
a vida inclusiva do todo.
Afirmo ambos. O que me permite fazer isso é
que o pensamento de Alfred North W hitehead abran­
ge ambos de um modo coerente e convincente. W hi­
tehead mostra em detalhe técnico como a imanência
de Deus no mundo age para fazer existir a vida, a
consciência e o amor, e para transformar criativa­
229
mente todas as coisas. A visão de W hitehead é com­
pletada através de uma compreensão de como todas
as criaturas contribuem para a vida divina. Embora
existam teístas do processo que seguem W ieman ao
explorar somente o primeiro aspecto, e outros que
seguem Hartshorne ao explorar principalmente o úl­
timo, muitos de nós seguimos W hitehead ao afirmar
ambos.
Conforme Mesle solicitou, nestes comentários,
tenho focalizado na diferença que o teísmo faz. Es­
pero que o leitor compreenda que, do meu ponto de
vista, a diferença prática é considerável no nível em
que tenho escrito. Há outra diferença prática que,
acredito, também vale a pena mencionar. Trata-se da
diferença que o teísmo faz em relação às comunida­
des de fé - em meu caso, para a Igreja cristã.
Seguindo Whitehead, ao afirmar tanto a criativi­
dade de Deus quanto a atividade redentora no m un­
do e também a maneira amorosa com que Deus re­
cebe nossas vidas em sua própria vida, percebo ricos
recursos para a apropriação de minha herança cristã.
Como Mesle indica por todo o seu livro, esta apro­
priação também envolve crítica e correção. Mas eu
vejo essa crítica e correção como contínuos com o
trabalho dos teólogos em cada geração. Os teístas do
processo estão propondo novos modos de compreen­
são de Deus, de quem a Bíblia testemunha; modos
que são frequentem ente mais fiéis aos textos do que
foi o teísmo clássico com o qual com frequência dis­
cordamos. Parece-me que a relação dos naturalistas
do processo com as comunidades históricas de fé é
C. Robert Mesle

uma relação muito mais quebrada.


Tentei reconhecer, ao longo do caminho, que es­
tou argumentando somente pela diferença, não pela
230
superioridade. Naturalmente, acho que as diferen­
ças que tenho discutido são vantagens do teísmo do
processo. De outro modo eu não seria um teísta do
processo. Mas, apesar de reconhecer as diferenças,
pode-se argumentar exatamente o contrário. E, cer­
tamente, em nossos dias, quando a palavra de Deus
tem se tornado tão confusa e negativa para muitas
pessoas, um caso forte pode ser criado para o natura­
lismo do processo.
Muitos daqueles que necessitam desesperada­
mente de uma palavra de cura, não a podem ouvir
quando ela vem em uma linguagem teísta. Mesmo
aqueles de nós que estão confortáveis falando de
"Deus" devem aprender a falar também de outras
maneiras se quisermos levar boas-novas àqueles para
quem "Deus" pertence à superstição, ao legalismo
condenatório e à opressão. E para muitos destes, uma
simples mudança na linguagem não será suficiente.
Eles sentem os nomes substitutos para o Deus que
eles temem e odeiam, e não aceitarão nenhum deles.
A única boa-nova que eles conseguem ouvir é a boa-
-nova completamente naturalista no sentido descrito
por Mesle. Formular o naturalismo do processo da
m aneira que Mesle faz pode ser verdadeiramente re-
dentor para alguns. ;
Existem outros que gostariam de acreditar no
Deus descrito pelos teístas do processo, mas não
acham convincentes as razões dadas para tal crença.
Eu não acredito que as razões para esta crença, ou
para quaisquer outras crenças básicas quanto a esta
questão, sejam coercitivas. Ninguém até agora apa­
receu com uma visão completamente consistente e
adequada de Deus e do mundo - ou de algo mais. O
que as pessoas acham convincente e o que pesa nos
231
argumentos é afetado por muitos aspectos da experi­
ência de uma pessoa. Para mim, as razões empíricas,
existenciais, religiosas e racionais para se acreditar
em Deus são cumulativamente convincentes. Para
outros, elas não são. Algumas vezes, isso acontece
porque o modo como eles pensam sobre Deus é, do
meu ponto de vista, distorcido. Mas algumas vezes
não é. Então devo simplesmente respeitá-los e me
alegrar se eles puderem encontrar no naturalismo do
processo um modo satisfatório para pensar e viver.
Mesle me pediu para comentar outras contribui­
ções que o pensamento do processo pode fazer. E é
parcialmente por causa do meu interesse nelas que
eu costumeiramente gasto pouco tempo no debate
com os naturalistas do processo. Eu preferiria dire­
cionar a energia deles para algumas das tarefas ur­
gentes que partilhamos.
Partilhamos o modelo básico de um mundo
composto de eventos que são complexamente inter-
-relacionados um com o outro. Este é marcadamente
diferente do modelo que geralmente sustenta o pen­
samento político, econômico, científico e ético. Em
todos eles, o modelo mecanicista ainda perdura com
sua apresentação das coisas como objetos individuais
que podem ser examinados separados uns dos outros.
Em minha opinião, enquanto a maioria de nossa ati­
vidade intelectual e acadêmica for moldada por esses
modelos ultrapassados, não seremos capazes de res­
ponder efetivamente aos problemas complexamente
inter-relacionados que estão diante de nós.
Mesle

Gastei muito de m inha energia tentando trazer


à luz as suposições insatisfatórias que fundamentam
tantos campos do pensamento e propor suposições
C. Robert

melhores, a partir do pensamento do processo-rela-


232
cional. Mesmo nessa atividade, meu teísmo faz al­
guma diferença, especialmente porque Deus é para
mim o fundamento da esperança. Mas, a maior parte
deste trabalho pode ser partilhada com os naturalis­
tas do processo. E há muito trabalho a ser feito! Vá­
rios volumes na série SUNNY Press de David Griffin
sobre o Pensamento Pós-moderno Construtivo refle­
tem o tipo de colaboração que é urgentemente ne­
cessária hoje. Também o espírito irênico com o qual
Mesle aborda as diferenças sobre o teísmo entre os
pensadores do processo ajudaria a canalizar nossas
energias para este tipo de esforço colaborativo.

Teologia do processo - Uma introdução básica

233
PARA LEITURAS COMPLEMENTARES

U
ma boa fonte de informação sobre a teologia do
processo é o Programa Fé e Processo do Centro
para Estudos do Processo, 1325 N. College Avenue,
Claremont, CA 91711. Sinta-se livre para escrever
com suas perguntas.
Duas excelentes introduções para pessoas que
desejam dar o próximo passo depois desse livro
são:
John B. Cobb Jr. e David R. Griffin. Process Theology: An Intro-
ductory Exposition. Westminster Press, 1976.
Marjorie Hewitt Suchocki. God-Christ-Church: A Praticai Ap-
proach to Process Theology. Crossroad, 1989.

Recursos adicionais sobre 0 pensamento do processo:


John B. Cobb Jr. Becoming a Thinking Christian. Abingdon
Press, 1993.
------ . Can Chr/st Become Good News Again? Chalice Press, 1991.
------ . Praying for Jennifer: An Exploration of Intercessory Prayer
in Story Form. Upper Room, 1985.
David Griffin. God, Power, and Evil: A Process Theodicy. West­
minster Press, 1976.
Charles Hartshorne. Omnipotence and OtherTheological Mis-
takes (SUNY Press, 1984).
William Kaufman. The Case for Cod. Chalice Press, 1991.

235
David P. Polk (org.). What’s a Christian to Do? Chalice Press,
1991.
------ . Now What’s a Christian to Do? Chalice Press, 1994-
Barry Whitney. What Are They Saying About God and Evil? Pau-
list Press, 1989.

Recursos básicos sobre 0 naturalismo do processo:


Jerome A. Stone. The Minimalist Vision of Transcendence: A
Naturalist Philosophy ofReligion. SUNY Press, 1992.
Henry Nelson Wieman. Man’s Ultimate Commitment. S.I.U.
Press, 1974.
------ . The Source of Human Cood. S.I.U. Press, 1964.

236
ÍNDICE

Dedicatória:............................................................................... 5
Agradecimentos........................................................................ 7
Introdução................................................................................. 9
Pensamento do processo: uma visão geral.......................... 19

Parte I
UM DEUS DIGNO DE ADORAÇÃO

Capítulo 1
Amor, poder e adoração......................................................... 25
Capítulo 2
O amor de Deus e o nosso sofrimento................................. 31
Capítulo 3
Amor, poder e relacionamento............................................. 43
Capítulo 4
Liberdade, tempo e o poder de Deus................................... 55

Parte II
O MUNDO E DEUS

Introdução à Parte II ................................................................ 69

Capítulo 5
Tempo......................................................................................... 73

237
Capítulo 6
Um mundo de experiência...................................................... 83

Capítulo 7
Como Deus age no mundo...................................................... 95

Parte III
UMA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

Introdução à Parte III.................................................................109

Capítulo 8
Como a religião se torna opressora......................................... 111

Capítulo 9
Uma teologia do processo da libertação............................... 121

Capítulo 10
A experiência das mulheres
e o pensamento do processo.................................................. 129

Capítulo 11
Revelação, Escritura e Libertação.......................................... 137

Capítulo 12
Relativismo comprometido:
uma aproximação à ética e à comunidade global .............. 145

Capítulo 13
Pluralismo religioso...................................................................157

Capítulo 14 '
Jesus............................................................................................ 167

Capítulo 15
Oração, libertação e cura......................................................... 177

Capítulo 16
M ilagres......................................................................................189

238
Parte IV
NATURALISMO E TEÍSMO

Introdução à Parte IV ............................................................... 199

Capítulo 17
Naturalismo do processo........................................................ 201

Capítulo 18
Teísmo do processo.................................................................. 213

Para leituras complementares................................................235

239
O nde e stá D e u s q u a n d o a c r ia n ç a c o rre d e e n c o n t ro a u m c a rro
q u e p a s s a ? S e f a r ía m o s t o d o o p o s s ív e l p a r a e v it a r u m a t r a g é d ia ,
c e r t a m e n t e D e u s n ã o fa r ia m e n o s . N o e n t a n t o , e s t e é u m m u n d o n o
q u a l m ilh õ e s d e in o c e n t e s s o f r e m a o n o s s o re d o r. S e r á q u e D e u s se
im p o r ta ?
E s c r e v e n d o c o m p e r s p ic á c ia e c la r e z a d ig n a d e n o ta , R o b e rt M e s le
a p r e s e n t a a s e u s le it o r e s u m a f o r m a d e p e n s a r e m D e u s e e m n o s s o
m undo que e x p lo ra q u e stõ e s p ro fu n d a s se m se a fa sta r d o se n so
c o m u m . O r e s u lt a d o é u m a c a rt ilh a b á s i c a s o b r e o s f u n d a m e n t o s d a
t e o l o g ia d o p r o c e s s o , p e l a q u a l m u it o s a g u a r d a m h á te m p o .
O liv r o e n c e r r a c o m u m c a p ít u lo e s c r it o p e l o p r o e m in e n t e t e ó l o g o
John C obb so b re a r e la ç ã o e n tre o te ísm o do p ro ce sso e o
n a t u r a lis m o d o p r o c e s s o .

“Eu e n s in o o v a lo r d a t e o lo g ia do p ro ce sso p o r q u e e la t e m um a
b o a é t ic a . A t e o l o g i a d o p r o c e s s o m e e n s in o u q u e n ã o e x is t e u m a
r a z ã o s im p le s p a r a d e ix a r q u e n o s s a s v e lh a s id e ia s s o b r e o poder
d iv in o n o s t o r c e m p a ra um ca n to n o q u a l d e v e m o s n o s p e r s u a d ir
d e q u e m a l d a d e s b r u t a i s s ã o , n a v e r d a d e , b o a s . E la m e a p r e s e n t o u
o m o d e lo d e u m D e u s q u e é g e n u in a m e n t e a m o ro s o n u m s e n t id o
d i r e t o e in t e lig ív e l. O D e u s d a t e o lo g ia d o p r o c e s s o fa z t u d o o q u e
p e r m it e o poder d iv in o p a ra t r a b a lh a r p e lo b e m .” (Excerto da
Introdução do outor)

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