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Editor Responsável Comitê de Apoio Técnico


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Editores Matheus Garcia Coelho
Prof. Dr. João Boechat Raphael Andrade de Godoy
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Profa. Dra. Teresa Akil Prof. Dr. Valtair Afonso Miranda
Prof. Dr. Valtair Afonso Miranda Revisão
Coordenação Editorial Profa. Cláudia Luiza Boechat Pires de Almeida Sales
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Oliverartelucas

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necessariamente, a opinião da Instituição e seu Conselho Editorial.

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20510-412 – Rio de Janeiro – RJ
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Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil www.seminariodosul.com.br
Sumário
Capítulo 1 - Evangelho de Mateus..................................................... 9
1.1 O Contexto Histórico do Novo Testamento.................................... 9
1.1.1 A Grande Crise..................................................................... 10
1.1.2 O Início da Diáspora Judaica .............................................. 11
1.1.2.1 A Palestina sob o Domínio Grego (331-167 A.c.)..... 12
1.1.2.2 A Palestina no Período Dos Macabeus (167-63 A.c.).12
1.1.2.3 A Palestina sob o Domínio Romano ....................... 14
1.2 A Formação do Novo Testamento................................................ 16
1.3 O Problema Sinótico (ou Sinóptico)............................................. 23
1.4 Autoria e Data de Mateus .............................................................. 28
1.5 Destino e Propósito de Mateus .................................................... 34
1.6 A Estrutura de Mateus .................................................................. 37
1.7 Ênfase Judaica............................................................................... 41
1.7.1 A Ética do Reino ................................................................... 41
1.7.2 A Igreja de Jesus................................................................... 42
1.7.3 Missão .................................................................................. 43
1.7.4 A Grande Comissão .............................................................44
1.8 O Reino dos Céus........................................................................... 45
1.8.1 Uma Alta Cristologia .......................................................... 45
1.8.2 A Questão da Hostilidade contra os Judeus...................... 47

Capítulo 2 - Evangelho De Marcos................................................... 50


2.1 A Autoria do Evangelho de Marcos ............................................... 50

3
2.2 A Data do Evangelho de Marcos ................................................... 56
2.3 A Comunidade de Marcos ............................................................ 58
2.4 Quem é Jesus no Evangelho de Marcos....................................... 62
2.5 O Ministério de Jesus.................................................................... 67
2.5.1 João Batista, o Precursor ................................................... 69
2.6 O Evangelho da Ação .................................................................... 73
2.6.1 O Reino de Deus .................................................................. 75
2.7 Discipulado ................................................................................... 80
2.8 A Missão ........................................................................................ 83
2.8.1 Diferentes Missões, Discípulos Diferentes ......................... 84

Capítulo 3 - Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos................. 86


3.1 A Autoria de Lucas-Atos................................................................. 86
3.2 A Audiência de Lucas-Atos............................................................ 90
3.2.1 A Questão da Audiência...................................................... 91
3.3 A Composição de Lucas................................................................ 92
3.3.1 Esboço de Lucas.................................................................. 95
3.3.2 Principais Ênfases de Lucas................................................ 96
3.4 O Sermão Profético de Jesus – Parte I......................................... 97
3.4.1 Os Sinais do Fim .................................................................. 97
3.5 O Sermão Profético de Jesus – Parte Ii...................................... 100
3.5.1 A Abominação desoladora e a Destruição do Templo .... 100
3.5.2 O Filho do Homem e o Final dos Tempos ........................ 103
3.6 Atos dos Apóstolos ..................................................................... 105
3.6.1 O Título Atos dos Apóstolos.............................................. 106
3.6.2 Autoria................................................................................ 107

4
3.6.3 Comunidade de Destino ................................................... 108
3.6.4 Estrutura de Atos .............................................................. 108
3.7 A Teologia de Atos dos Apóstolos........................................ 110
3.7.1 A Soberania de Deus.......................................................... 110
3.7.2 O Senhorio de Cristo ......................................................... 110
3.7.3 O Poder do Espírito............................................................ 111
3.7.4 A Igreja................................................................................ 111
3.7.5 Missão ................................................................................ 113
3.8 O Nascimento da Igreja de Jesus Cristo .................................... 113

Capítulo 4 - Evangelho de João..................................................... 120


4.1 Autoria do Evangelho de João – Parte I.........................................120
4.1.1 Evidência Externa ............................................................. 121
4.1.2 Evidência Interna............................................................... 123
4.2 Autoria do Evangelho de João – Parte Ii..................................... 123
4.2.1 Argumentos contrários à autoria Joanina........................ 126
4.2.2 A Data de produção do Evangelho................................... 127
4.3 A audiência do Evangelho de João ............................................ 128
4.3.1 A Audiência do Evangelho de João................................... 128
4.3.2 As fontes de João.............................................................. 129
4.4 A Relação com os Sinóticos ........................................................ 132
4.5 Estrutura e Propósito do Evangelho de João ............................ 135
4.5.1 A Estrutura de João........................................................... 136
4.5.2 Ideias Essenciais .............................................................. 137
4.5.3 O Prólogo (João 1) ............................................................ 137
4.5.4 Epílogo (João 21) .............................................................. 138

5
4.6 O Livro dos Sinais........................................................................ 139
4.6.1 Quando a religiosidade se torna um empecilho.............. 140
4.6.2 O Verdadeiro Espírito de Testemunha ............................. 141
4.6.3 Os Campos Brancos para a ceifa...................................... 142
4.6.4 O Oficial do Rei e o Paralítico de Betesda......................... 143
4.6.5 Milagres sobre a Natureza e sobre a Matéria.................... 144
4.6.6 A Oposição da Família e dos Fariseus .............................. 146
4.6.7 A Cegueira de um Homem – A falta de visão de toda uma
sociedade................................................................................... 147
4.6.7.1 O que Jesus fez....................................................... 148
4.6.8 As Parábolas ..................................................................... 150
4.6.9 A Morte de um Amigo (Jo 11:1-57).................................... 150
4.7 A Exaltação de Jesus................................................................... 151
4.7.1 Uma Lição de Humildade (Jo 13:12-17)............................. 151
4.7.2 Um Convite ao Amor Mútuo (Jo 13:18-30)........................ 152
4.7.3 A Parábola da Videira (Jo 15:1-27)..................................... 153
4.7.4 A Obra do Espírito Santo (Jo 16:1-24)................................ 153
4.7.5 Alegria em Lugar de Tristeza (Jo 16:25-33).......................154
4.7.6 A Oração de Jesus (Jo 17:1-26)...........................................154
4.8 A Páscoa ..................................................................................... 156
4.8.1 Julgamento ..................................................................... 157
4.8.2 A Morte e o Sepultamento de Jesus ............................... 158
4.8.3 A Ressurreição de Jesus .................................................. 159
4.8.4 Jesus aparece aos seus Discípulos .................................. 160

Capítulo 5 - Aspectos Históricosdo Apocalipse de João............ 162


5.1 O Autor do Apocalipse................................................................. 162
5.2 A Identidade Social de João........................................................ 167

6
5.2.1 Um Judeu da Palestina ..................................................... 169
5.3 A Data de Redação do Apocalipse....................................... 171
5.4 O Gênero Literário do Apocalipse ...............................................174
5.5 O Propósito do Apocalipse.......................................................... 178
5.6 De onde João escreve ................................................................. 183
5.6.1 A Península da Ásia Menor ............................................... 184
5.7 Aspectos Sociais da Ásia Romana .............................................. 188
5.8 As Igrejas e a Sociedade Romana............................................... 192
5.8.1 O Movimento de Jesus na Província da Ásia ................... 194

Capítulo 6 - Aspectos Teológicos do Apocalipse de João........... 202


6.1 A Linguagem do Apocalipse........................................................ 202
6.2 A Seção das Cartas (Apocalipse 1-3)........................................... 207
6.2.1 A Revelação das Sete Cartas............................................. 211
6.3 O Culto no Céu (Apocalipse 4-5) ................................................ 214
6.3.1 A Visão da Corte Celestial (Apocalipse 4-5)...................... 216
6.4 Os Sete Selos do Apocalipse (Apocalipse 6-11) ......................... 219
6.4.1 A Primeira Pausa Narrativa: o Povo de Deus
(Apocalipse 7:1-17)...................................................................... 222
6.4.2 O Sétimo Selo, ou As Trombetas sobre a Humanidade Impe-
nitente (Apocalipse 8-9) ............................................................223
6.4.3 A Segunda Pausa Narrativa: o Profeta, o Livro e o Povo de
Deus perseguido (Apocalipse 10:1-11,13).................................. 224
6.4.4 A Sétima Trombeta: a Consumação do Reinado de Cristo
(Apocalipse 11:15-19).................................................................225
6.5 A Guerra Escatológica (Apocalipse 12-22)..................................225
6.5.1 O Final da Guerra Escatológica......................................... 229

7
6.6 O Fim do Mundo.......................................................................... 230
6.6.1 As Expectativas Judaicas quanto à Intervenção de Deus.231
6.6.2 O Reino Milenar ................................................................. 232
6.6.3 O Juízo Final......................................................................234
6.6.4 A Nova Jerusalém..............................................................234
6.7 Panorama Histórico da Escatologia Cristã................................. 235
6.7.1 Escatologia da Idade Média............................................... 237
6.7.2 Escatologia da Reforma em diante................................... 238
6.8 Correntes Escatológicas ............................................................. 239
6.8.1 Pré-Milenista Histórico...................................................... 240
6.8.2 Pré-Milenista Dispensacionalista..................................... 241
6.8.3 Amilenismo........................................................................ 242
6.8.4 Pós-Milenismo................................................................... 243

Sobre o Autor..................................................................................... 244


Referências........................................................................................ 245

8
CAPÍTULO 1
Evangelho De Mateus
1.1 O CONTEXTO HISTÓRICO DO NOVO TESTAMENTO
Após o exílio babilônico, ao voltar para a Palestina, alguns judeus
imaginam que Zorobabel, por ser da linhagem de Davi, irá restaurar o
reinado davídico. Quando percebem que isso não ocorreria por meio
de seus próprios esforços, estes grupos tendem a colocar suas espe-
ranças cada vez mais em um agente divino que iria renovar a glória
de Israel. Para eles, a situação de opressão e submissão às nações
estrangeiras só terminaria com a intervenção de Deus, através do seu
enviado especial, chamado por todos de Messias.
Junto com a ênfase na esperança messiânica, surge o apocalip-
sismo. Este se mostra um vigoroso movimento cultural judaico, pelo
seu meio social e por sua inspiração e, muito particularmente, por vá-
rios de seus traços. O movimento entende os conflitos do seu tempo
como a emergência de uma luta cósmica entre Deus e as potências
do mal. Na verdade, é como um jogo dualista onde Deus, junto com
os seus filhos, luta contra o mal e seus seguidores (os filhos do mal),
sendo que, no final, os primeiros seriam vitoriosos.
Uma das características desse movimento cultural é o dualismo
apocalíptico (Antiga Era e Nova Era) e a esperança escatológica (a fé
na intervenção de Deus). Esses judeus entendiam que estavam viven-
do numa era basicamente má, que seria invadida de forma súbita pelo
Messias, para implantar o Reino de Deus e a consequente Era Porvir.
Com essa inauguração, a Velha Era (Era de Satanás), caracterizada
pelo pecado, enfermidade, demônios e o triunfo do mal, seria subs-

9
tituída pela Nova Era (Domínio de Deus e do Messias), caracterizada
pela presença do Espírito, justiça, saúde, paz. Tudo gira em torno da
inauguração do Reino Messiânico de Deus, ou do fim dos tempos, que
será então o início de uma nova era para os justos. Este fenômeno
poderia ser denominado, então, de inversão escatológica.
No movimento apocalíptico - fértil de produção literária - os an-
jos assumem uma postura mediadora muito mais elevada do que a
encontrada nos escritos do Antigo Testamento. Os anjos são mensa-
geiros divinos que se movimentam sem cessar entre o céu e a terra,
levando as respostas de Deus aos homens, como carteiros celestes
que agem com prontidão.
A ênfase exacerbada nos anjos encontra contrapartida no papel
dos seres celestiais malignos. Ao se debater com o problema do mal
no mundo, a apocalíptica adota uma visão, que envolve a crença em
forças cósmicas demoníacas que usurpam o poder e a autoridade
de Deus. Mesmo assim essa crença não oferece motivo para negar a
crença fundamental em um só Deus, que fez o céu e a terra e que fará
um dia uma nova criação.
Os escritores esforçam-se, com efeito, para deixar claro que foi Deus,
o criador, que fez no começo todos os espíritos para lhe servir, e este
mesmo Deus será, no fim, seu juiz. Eles são, do começo ao fim, seus su-
balternos, inteiramente sujeitos à sua vontade, incapazes de agir sem
sua permissão. Pode ser um dualismo, mas é um dualismo que evita a
invasão do campo de poder soberano do único Deus verdadeiro.
1.1.1 A GRANDE CRISE
O que acontece com o povo judeu nos séculos que se sucedem ao
retorno do exílio poderia muito bem ser denominado de a maior das
crises de Israel. Num processo paulatino, o desejo pela intervenção
de Deus na história se acentua. Mas quando finalmente Jesus, o filho
de Deus, nasce, Ele é assassinado na cruz por aqueles que deveriam
recebê-lo.

10
O Evangelho de João expressa essa crise nas seguintes palavras:

O Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio dele,


mas o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus
não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o
poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no
seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da
carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. E o Verbo se fez
carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a
sua glória, glória como do unigênito do Pai. (João 1:10-14)

Como as coisas chegaram neste ponto? Para explicar o que levou


o povo judeu a rejeitar Jesus, precisamos conhecer o que se passou
com eles nos séculos anteriores aos eventos do Novo Testamento.
1.1.2 O INÍCIO DA DIÁSPORA JUDAICA
Apenas uma pequena parte dos judeus que foram para o exílio
babilônico volta para a Palestina. Dá-se início à diáspora judaica, um
movimento de expansão da presença judaica pelo Mediterrâneo An-
tigo.
Com a queda de Jerusalém em 586 a.C., alguns judeus fugiram
para outras regiões. O profeta Jeremias, inclusive, aparece sendo ar-
rastado para o Egito. Ao terminar o exílio, eles se encontram espalha-
dos pelo norte da África, Ibéria, Itália, Grécia, Ásia e outros lugares.
A obediência à Lei de Moisés foi um dos elementos preservados
para impedir o fim da identidade judaica. Por causa dela, eles pro-
curam preservar seus costumes, sua cultura e algum tipo de pureza
étnica. Não moram mais na terra prometida, mas ainda fazem parte
do povo de Israel. Alguns destes judeus passam a ir, pelo menos uma
vez ao ano, nas principais festividades de Jerusalém, como a Páscoa,
a Festa das Tendas, o Pentecostes e outras.

11
1.1.2.1 A PALESTINA SOB O DOMÍNIO GREGO (331-167 a.C.)
Alexandre, o Grande, surge no cenário da Palestina quando Jadua
era sumo sacerdote. O líder grego é bem recebido pelos judeus, que
retribui tratando-os de igual forma. Os gregos derrotam os persas e
assumem o controle de suas terras. Com o surgimento do Império
Grego, a política agora é de construir amizades e evitar atritos.
Um dos elementos de destaque foi a expansão do idioma grego
sobre os novos territórios helenizados. Grande parte da população
passa a ter o grego como uma segunda língua. Isso também acontece
com os judeus, que não apenas se comunicam nesta língua, como tra-
duzem suas escrituras sagradas para o idioma de Homero. Com isso,
nasce a Septuaginta, a primeira tradução das Escrituras hebraicas
para outro idioma.
A tranquilidade entre os gregos e judeus cessa em 198 a.C., quan-
do um dos monarcas helenistas sucessores de Alexandre, o Grande,
Antíoco Epífanes, assume o controle sobre a Palestina. Inauguram-se
dias difíceis para os judeus. Antíoco mata muitas pessoas, profana o
templo e proíbe a observância da Lei judaica. Várias cópias dos textos
sagrados são queimadas pelos soldados de Antíoco.
1.1.2.2 A PALESTINA NO PERÍODO DOS MACABEUS (167-63 a.C.)
Por causa da perseguição de Antíoco, brota na Palestina a revolta
dos Macabeus. Ela leva esse nome em homenagem aos filhos do sa-
cerdote Matatias, apelidados de Macabeus. São eles: João, Simão, Ju-
das, Eleazar e Jonatã. Lideram o povo numa série de guerrilhas, que
expulsam os gregos e devolvem a autonomia aos judeus.
Alguns outros motivos podem ser enumerados para explicar a re-
volta dos Macabeus, tais como:
- A expansão cultural grega, que oprime as tradições judaicas, com
seus costumes, suas ciências, seus valores, provocando reações entu-
siasmadas, mas incipientes, de um círculo mais ortodoxo.

12
- A política antijudaica de Antíoco, que queria a helenização forçada
dos judeus. O ápice desse programa foi o fechamento do Templo em
168 a.C., tornando-se ilegal praticar a Lei.
- As contendas e crises internas dos judeus, principalmente ligadas ao
círculo sacerdotal. É uma crise de liderança, que provoca nas pessoas
a sensação de que eles não são legitimamente liderados. Com isso
surge uma nova configuração política, já que os filhos de Matatias não
eram da dinastia davídica.
Escrito um pouco depois dos acontecimentos, o autor de 1Maca-
beus (1Mc.) descreveu este período nestes termos:

Deles saiu aquele rebento ímpio, Antíoco Epífanes, filho do rei


Antíoco. Ele tinha estado em Roma como refém e se tornara rei,
no ano cento e trinta e sete da dominação dos gregos. Por esses
dias apareceu em Israel uma geração de perversos, que seduzi-
ram a muitos com estas palavras: “Vamos, façamos aliança com
as nações circunvizinhas, pois muitos males caíram sobre nós,
desde que delas nos separamos”. Agradou-lhes tal modo de falar.
E alguns dentre o povo apressaram-se em ir ter com o rei, o qual
lhes deu autorização para observarem os preceitos dos gentios.
Construíram, então, em Jerusalém, uma praça de esportes, se-
gundo os costumes das nações, restabeleceram seus prepúcios e
renegaram a aliança sagrada. Assim associaram-se aos gentios e
se venderam para fazer o mal. (1Macabeus 1.10-15)

Os judeus são, de novo, senhores de sua terra. O período dos Ma-


cabeus começa no fim da Revolta dos Macabeus, em 167 a.C., e ter-
minou com a tomada de Jerusalém pelo general Pompeu, em 63 a.C.
Curiosamente, apesar da independência política, os governantes
- agora da linhagem hasmoneia (o termo histórico para descrever os
filhos de Matatias) - não conseguem trazer tranquilidade à população.
Os próprios líderes enfraquecem o país com uma série de brigas inter-
nas pelo poder.

13
Foi neste contexto que surge a figura de Herodes. Ele não é judeu,
mas de origem idumeia. Naquele período, esta região estava sob o
domínio judaico. Foi esse um dos motivos que acabou fazendo com
que seu pai, Antípater, viesse a se tornar primeiro-ministro no gover-
no de um dos últimos governantes dos macabeus.
Nesta posição, ele faz alianças com os romanos e incentiva o ca-
samento do Herodes com Mariane, de linhagem hasmoneana. Assim,
quando os romanos depuseram o último monarca hasmoneu, o sena-
do romano indicou Herodes para ser o rei da Judeia.
1.1.2.3 A PALESTINA SOB O DOMÍNIO ROMANO
Os judeus são governados pelos hasmoneus até 63 a.C. Por cau-
sa da confusão em que mergulhou a nação, alguns líderes, dentre os
próprios judeus, pedem ajuda a Roma. A chegada dos romanos não
foi violenta. As cidades abriram suas portas para Pompeu, o general
romano fundador das primeiras províncias romanas no Oriente.
Os judeus não têm condições de enfrentar a poderosa Roma. A paz
que os romanos trazem é sustentada pelas legiões e pelo pagamen-
to de impostos. Enquanto os judeus pagarem, podem continuar suas
vidas normalmente. Caso deixem de pagar, teriam suas cidades des-
truídas.
É sob o controle dos romanos que a população da Judeia ouve os
sermões e vê os milagres de Jesus de Nazaré. Seu tema principal é o
Reino de Deus. Ele gasta uma boa parte do seu ministério para expli-
car o que é isso realmente.
Esse Reino é o sonho de muitos judeus de sua época. É o assunto
preferido nas conversas pelas esquinas, nas casas e nos comércios.
Eles já sofreram muito sob o cativeiro de povos estrangeiros. Se nes-
tes dias estão sob o cativeiro dos romanos, antes estavam sob os
gregos, antes sob os persas, antes sob os babilônicos, antes sob os
assírios. De cativeiro em cativeiro, o judeu espera ansiosamente pela

14
intervenção de Deus para trazer o seu Reino. Seria um momento em
que Deus invadiria a história humana para libertá-los da opressão dos
seus adversários. Tal intervenção seria tão profunda e miraculosa,
que simplesmente dividiria suas vidas em antes e depois da chegada
do Reino.
O Reino que eles querem, entretanto, é bem diferente do Reino
que Jesus efetivamente traz. Eles acham que o Reino poria fim a todo
sofrimento e todo sistema opressor. O Reino começaria quando o
Messias derrubasse os romanos e reinasse em Jerusalém sobre eles e
sobre o mundo inteiro.
Quando Jesus indica claramente que seu reinado não é desta na-
tureza, é rejeitado pela maioria dos judeus. A relação de Jesus com o
povo que deveria aclamá-lo rei é traumática. Perseguição, ódio, inve-
ja e cruz marcam os três anos do seu ministério. Apenas um pequeno
grupo de discípulos aceita a mensagem de Jesus. São judeus, homens
e mulheres, que o seguem por suas peregrinações pela Palestina. De-
pois da morte e ressurreição, estes formam a gênese da sua igreja.
O momento em que isto acontece se encontra registrado no livro
de Atos, no capítulo 2. Durante uma festa de Pentecoste, eles rece-
bem o Espírito Santo (At 2.1-4):

Ao cumprir-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no


mesmo lugar; de repente, veio do céu um som, como de um ven-
to impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam assentados. E
apareceram, distribuídas entre eles, línguas, como de fogo, e pou-
sou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito
Santo e passaram a falar em outras línguas, segundo o Espírito
lhes concedia que falassem.

A mensagem da recém-nascida igreja é de continuidade e ruptura.


Eles são os verdadeiros herdeiros da promessa feita a Abraão. Uma
linha contínua pode ser traçada desde a aliança com o grande patriar-
ca até o nascimento da igreja em Atos. Esta é a nota de continuidade.

15
A nota de ruptura, entretanto, se manifesta na mensagem de que
os não-judeus também são convidados para participar do povo de
Deus. Este não é mais um privilégio dos judeus. A grande novidade da
igreja é que ser povo de Deus não é mais uma questão de sangue, mas
de obediência e regeneração. É filho de Deus, quem foi salvo por Ele.
Diante desta mensagem da igreja, os judeus se afastam dela. No
início guardam alguma relação, como manifestada pela participação
dos primeiros apóstolos no Templo e nas sinagogas. O Apóstolo Paulo
entra primeiro numa sinagoga, a cada cidade que prega, antes de se
dirigir para um grupo de não-judeus.
No final do primeiro século, porém, a separação entre igreja e ju-
daísmo é completa. Não há mais relação. A separação é definitiva e
permanecerá pelos séculos que virão.

1.2 A FORMAÇÃO DO NOVO TESTAMENTO


O processo de decidir quais escritos devem ser incluídos no Novo
Testamento é chamado de canonização. O termo cânon vem da pa-
lavra grega que significa “padrão de medida”. No cristianismo primi-
tivo, referia-se à “regra de fé” ou ensino tradicional na igreja, padrão
pelo qual as ideias e ensinamentos eram avaliados.
Mais tarde, foi aplicada aos escritos que estavam em conformidade
com esse padrão. Nesse sentido, o termo cânon ”refere-se à coleção
de escritos aceitos pela igreja como escritura sagrada. A princípio, a
igreja dos primórdios não possuía escritura própria, exceto as Escri-
turas Hebraicas. Como os primeiros cristãos vinham do Judaísmo,
sendo a maioria de etnia judaica, eles continuaram a estimar os livros
sagrados do judaísmo. Como muitos deles não sabiam ler hebraico
ou aramaico, os idiomas em que as escrituras judaicas foram escritas,
eles usavam a tradução grega conhecida como Septuaginta.
Eventualmente, novos escritos cristãos apareceram, que as igre-
jas leram e estudaram. Gradualmente, como essas obras foram lidas

16
na igreja junto com as Escrituras Hebraicas, algumas delas adquiri-
ram o mesmo nível de autoridade. As Escrituras Hebraicas ficaram
conhecidas como Antigo Testamento, enquanto os escritos cristãos
se tornaram Novo Testamento. No início, não havia uma coleção fixa
de escritos do Novo Testamento reconhecida em todos os lugares por
todos os crentes. Cada localidade tinha sua própria coleção de escri-
tos aprovados. Somente gradualmente se desenvolveu um acordo so-
bre os livros que compõem o Novo Testamento, como o conhecemos
hoje.
Entre os primeiros escritos cristãos, havia coleções de ditos e his-
tórias sobre Jesus. Estes não vieram diretamente dEle, uma vez que o
próprio não deixou registros escritos. Após sua morte, seus seguido-
res contaram histórias sobre Ele e transmitiram seus ensinamentos.
Esses ditos e histórias circularam de boca em boca como tradição
oral e foram reunidos em coleções escritas. Eventualmente, alguns
deles foram incorporados aos Evangelhos.
Outra forma de literatura cristã primitiva consistia de cartas. Es-
tas foram escritas quando missionários do movimento de Jesus via-
jaram pelo mundo estabelecendo igrejas. Um desses missionários foi
o apóstolo Paulo. Ao plantar igrejas, Paulo manteve contato com elas
escrevendo cartas, dando conselhos e instruções. As igrejas que re-
ceberam essas cartas as consideraram de grande utilidade espiritual,
e ainda enviaram cópias das mesmas para outras igrejas. As igrejas
coletaram essas cartas e as leram em serviços públicos de adoração.
Além das cartas de Paulo, outras também foram escritas e formaram
uma coleção de grande utilidade para as igrejas, pois forneciam ins-
truções religiosas práticas para os problemas que elas enfrentavam.
No final do primeiro século, os livros que agora compõem o Novo
Testamento já haviam sido escritos, e compunham o acervo de obras
sagradas ou devocionais das igrejas. Além destes, entretanto, outros
livros continuaram a aparecer após o primeiro século. Um grupo de
escritos, que data principalmente do período de 95 a 150 d.C., foi co-

17
letado sob o título de Pais Apostólicos. Estes incluem 1 e 2 Clemente,
as cartas de Inácio de Antioquia, o Didaquê, a Epístola de Barnabé e
o Pastor de Hermas, entre outros. Algumas igrejas primitivas consi-
deravam um ou mais desses escritos também como textos sagrados.
Os Padres Apostólicos fornecem informações valiosas sobre o cris-
tianismo primitivo e sobre a formação do cânon. Eles se referem a
muitos dos escritos agora encontrados no Novo Testamento, e mos-
tram que, nesse período, esses escritos eram conhecidos e valoriza-
dos. Esses autores consideravam as palavras de Jesus como autori-
dade, e valorizavam as cartas de Paulo como escritura sagrada.
No segundo e terceiro séculos, o cristianismo consistia em uma va-
riedade de grupos concorrentes com diferentes concepções de fé e
prática. Alguns destes grupos eram gnósticos em caráter, e costuma-
vam se apoiar em documentos escritos para justificar suas posições.
Os escritos gnósticos eram normalmente produzidos no interior dos
próprios grupos, mas ocultavam esta origem por meio da pseudoní-
mia, ou seja, uma falsa atribuição ou falso vínculo com uma grande
figura religiosa do passado do movimento cristão. É possível men-
cionar, por exemplo, evangelhos gnósticos vinculados pseudonima-
mente a João, Paulo, Tomé, Filipe, além de Atos Apostólicos de Pedro,
João, André e Paulo. Isso acabou levando os demais grupos cristãos
a definir cuidadosamente quais escritos eles acreditavam que conti-
nham a verdade e provinham verdadeiramente dos apóstolos.
Além do gnosticismo, o movimento iniciado por Marcião adotou
um cânone que muitas igrejas consideravam restrito demais. Esse
ex-presbítero da Igreja de Roma rejeitou o Antigo Testamento e vá-
rios dos escritos religiosos que sua igreja de origem costumava usar.
O princípio usado por Marcião para construir o seu cânon partiu da
proposição de uma teologia dualística que distinguia duas figuras di-
vinas: um deus inferior vinculado ao Antigo Testamento e ao Judaís-
mo; e um deus superior vinculado a Jesus. A partir disto, ele expurga
da sua comunidade o Antigo Testamento e todos os livros que, na sua

18
perspectiva, tinham traços judaicos, como o Evangelho de Mateus,
por exemplo. Ele também ensinou que Cristo parecia apenas huma-
no. Para apoiar esses pontos de vista, ele limitou seu cânon das escri-
turas a dez cartas de Paulo e ao Evangelho de Lucas. 
Os cristãos gnósticos escreveram numerosos evangelhos, atos,
cartas e apocalipses que continham seus ensinamentos. Até 1945, es-
ses escritos eram conhecidos principalmente por referências a eles
nos escritos dos pais da igreja. Nesse ano, no entanto, uma antiga bi-
blioteca gnóstica foi descoberta em Nag Hammadi, no Egito. A biblio-
teca continha manuscritos do século IV que incluíam quarenta e cinco
obras diferentes. 
À medida que o número de escritos religiosos proliferava no II e III
séculos, os líderes da igreja começaram a emitir listas de escritos que
podiam ser lidos pela igreja. Essas listas às vezes distinguiam entre
livros que podiam ser lidos em cultos públicos e aqueles que podiam
ser lidos em particular.
A lista conhecida como Cânon Muratoriano é a primeira lista co-
nhecida. Data do final do II século. Este cânone discute os escritos
aceitos em Roma e nas comunidades próximas naquele período. En-
tre estes livros é possível encontrar todos os livros agora no Novo
Testamento, exceto Hebreus, Tiago, 1 e 2Pedro, e possivelmente uma
carta de João. O autor do Cânon Muratoriano, entretanto, aceitava o
Apocalipse de Pedro, embora ele acrescente que alguns não queriam
que ele fosse lido na igreja. Já o livro conhecido como Pastor de Her-
mas poderia ser lido, mas não era considerado no mesmo nível de
autoridade que os demais escritos.
Cerca de um século depois, o historiador da igreja Eusébio de Ce-
sareia, em sua História Eclesiástica (H.E.3.25.1-7) apresenta uma lis-
ta de livros do Novo Testamento. Ele primeiro nomeia os livros que
são aceitos por todos: os Evangelhos, Atos, as cartas de Paulo (pro-
vavelmente incluindo Hebreus), 1João e 1Pedro. Em seguida, lista os

19
livros “disputados”, aqueles sobre os quais há diferenças de opinião.
Ele menciona duas classes para estes livros. Primeiro, estão os livros
disputados que, no entanto, são reconhecidos pela maioria (e pre-
sumivelmente devem ser aceitos): Tiago, Judas, 2Pedro, 2 e 3João. A
seguir, estão os livros disputados que Eusébio considera espúrios: os
Atos de Paulo, o Pastor de Hermas, o Apocalipse de Pedro, a Epístola
de Barnabé, os Ensinamentos dos Apóstolos e o Evangelho dos He-
breus. Eusébio acrescenta que alguns colocariam o livro do Apocalip-
se entre os livros reconhecidos; outros, entre os livros espúrios. Esta
lista canônica de Eusébio mostra que, no início do século IV, o núcleo
do Novo Testamento já estava fixado, mas ainda havia alguma indefi-
nição em relação a algumas poucas obras.
Vários outros líderes da igreja também publicaram listas canôni-
cas. Em 367, Atanásio, bispo de Alexandria, no Egito, listou o conteú-
do do Novo Testamento como os vinte e sete livros que conhecemos
hoje. A lista de Atanásio, entretanto, não é o ponto final na questão da
canonização do Novo Testamento, já que outras listas continuaram a
aparecer, e algumas igrejas continuaram a ler obras que não estavam
em sua lista. De qualquer forma, é um indicativo importante para os
estudiosos, já que ela coincide exatamente com os 27 livros que fe-
charam a Bíblia cristã.
Algumas décadas depois, três concílios com líderes das igrejas do
norte da África (393, 397 e 419) declararam esses vinte e sete livros os
únicos livros a serem reconhecidos como Escritura, ao lado do Antigo
Testamento.
Um dos grandes tradutores da Bíblia na antiguidade foi Jerônimo
de Estridão, conhecido como o pai da Vulgata. Em sua tradução do
Novo Testamento, ele aceitou os vinte e sete livros da lista de Ataná-
sio. Curiosamente, o primeiro decreto eclesiástico amplo a respeito
do cânon só veio no final da Idade Média, no Concílio de Florença, em
1439-43, quando a Igreja de Roma confirmou a lista de Atanásio.

20
No processo de canonização, três fatores históricos foram espe-
cialmente importantes para determinar se um livro seria aceito ou
rejeitado: conformidade com a regra de fé, origem apostólica e uso
generalizado.
a) A regra da fé. Regra de fé é o termo utilizado para descrever o en-
sino majoritário das primeiras igrejas e comunidades. Neste sentido,
o conteúdo dos livros sagrados deveria corresponder a este ensino
sobre questões de crença e prática.
b) Origem apostólica. Os escritos que foram escritos ou se origi-
naram de um apóstolo ou associado de um apóstolo eram mais acei-
tos do que aqueles que não o eram. As cartas do apóstolo Paulo, por
exemplo, estavam entre os primeiros e mais universalmente aceitos
escritos do cânon. A aplicação desse princípio exigia juízos sobre a
autoria dos livros, uma vez que muitos escritos antigos eram anôni-
mos, e outros nascidos no II e III séculos foram atribuídos falsamente
aos apóstolos. 
c) Uso generalizado. O terceiro fator que afetou a seleção de um
escrito foi a extensão de seu uso. Os escritos que foram considerados
mais edificantes e úteis seriam lidos mais amplamente nas igrejas e,
portanto, mais universalmente aceitos.
Em termos teológicos, entretanto, é possível dizer que a igreja não
considerou determinado livro como escritura, dando-lhe autoridade
com o passar do tempo, mas reconheceu a autoridade que ele já pos-
suía. Os livros que vieram a permanecer no cânon eram lidos e aceitos
como divinos, antes mesmo deles fazerem parte de alguma coleção.
Isso leva à premissa que o livro entrou no cânon porque tinha autori-
dade. Uma obra não passou a ter autoridade simplesmente por entrar
no cânon.
Alguns livros, denominados posteriormente de apócrifos, não
foram reconhecidos nem por judeus nem por cristãos como livros
inspirados, mas sim como livros, no máximo, devocionais. O termo

21
“apócrifo” é uma palavra grega que quer dizer “aquilo que está ocul-
to”. Este termo servia para designar os livros que se destinavam ex-
clusivamente ao uso privado dos adeptos de um determinado grupo
minoritário ou iniciados em algum mistério. Posteriormente, a pala-
vra passou a indicar um livro de origem duvidosa, cuja autenticidade
se impugnava. Com isso, tornou-se termo técnico para se referir aos
livros cujo autor era desconhecido ou que apresentava temas ambí-
guos ou pouco recomendáveis.
A existência de um cânon ou coleção de textos sagrados antecede
o uso do termo cânon. A comunidade judaica coligiu e preservou as
Escrituras Sagradas desde os tempos de Moisés. O fato de textos ju-
daicos serem considerados sagrados é demonstrado pelo lugar espe-
cial em que eram guardados, ao lado da arca da aliança (Dt 31:24-26) e
depois no templo (2Rs 22:8). O povo de Deus desempenhou um papel
de cabal importância no processo de canonização, ao longo dos sé-
culos. A comunidade de crentes arcou com a efetiva tarefa de chegar
a uma conclusão sobre quais livros seriam realmente inspirados e sa-
grados.
Para além dos fatores históricos já apontados acima, vamos apon-
tar cinco outros princípios teológicos que poderiam explicar a defini-
ção do cânon:
- O livro é autorizado, pois afirma vir da parte de Deus;
- É profético, pois foi escrito por um profeta que fala em nome de
Deus;
- É digno de confiança, pois fala a verdade segundo o crivo de revela-
ções anteriores;
- É dinâmico, pois possui o poder de Deus que transforma vidas;
- É aceito, pois é reconhecido pelas comunidades de Deus como pro-
veniente dEle.
É improvável que as gerações de cristãos que experimentaram o pro-
cesso de canonização montavam comissões, carregavam pilhas de

22
livros e tinham um manual de normas de critérios básicos para cano-
nização dos livros da Bíblia.
O processo foi bem mais simples e demorado do que se imagina.
Na prática, foi natural e dinâmico. Alguns princípios atuaram de modo
negativo no processo. Como por exemplo, o princípio da confiabilida-
de servia para eliminar os livros não-canônicos, mas não era critério
determinante para indicar os livros canônicos.
O princípio que parece realmente ter desempenhado um papel
crucial no processo era o princípio da natureza profética do livro. Ele
vale inclusive se o livro é anônimo e não se reconhece seu autor, já
que o critério dinâmico acaba sendo resultado do primeiro. Um livro,
para fazer parte do cânon, precisava emanar o poder de Deus para
falar aos fiéis e transformar suas vidas.

1.3 O PROBLEMA SINÓTICO (ou SINÓPTICO)


Uma das primeiras coisas a se perceber no estudo dos evangelhos
é que os três primeiros Evangelhos se distinguem nitidamente do
quarto e apresentam entre si certa unidade e uniformidade. Mateus,
Marcos e Lucas têm em comum uma mesma moldura cronológica e
geográfica: o ministério de Jesus começa na Galileia e termina na Ju-
deia, com a morte de Jesus. A estrutura joanina, entretanto, é dife-
rente.
Entretanto, apesar de serem muito parecidos, e terem partes que
são muito parecidas, que não podem ser explicadas, a não ser por
uma origem comum, os três sinóticos apresentam diferenças signifi-
cativas. Essa é justamente a grande questão sinótica: como explicar
que evangelhos tão parecidos possam ter diferenças tão marcantes.
Para início de análise, seguem alguns elementos estatísticos:
- O Evangelho mais breve é Marcos, com 678 versículos, dentre os
quais, apenas 68 lhe são únicos. Do restante de Marcos, mais de 600
versículos estão presentes em Mateus e 350 em Lucas;

23
- O Evangelho de Mateus tem 1068 versículos, com apenas 233 exclu-
sivos;
- O Evangelho de Lucas tem 1149 versículos, com apenas 564 exclusi-
vos;
- Mateus e Lucas possuem 235 versículos em comum que não aparecem
de forma alguma em Marcos, normalmente formados por discursos.
De forma esquemática, estes dados podem ser visualizados no es-
quema abaixo:

Segue, agora, o conteúdo dos três evangelhos, enquadrado num


mesmo contexto cronológico:
Marcos Mateus Lucas
Histórias da Infância 1-2 1-2
Preparação da vida pública
(Batismo e tentação) 1.1-1.13 3.1-4.11 3.1-4.13
Primeira Seção 4.14-9.50
Atividades na Galileia 1.14-6.13 4.12-13. 58 6.20-8.3
Segunda Seção 9.51-19.27
Atividades fora da Galileia e
Viagem a Jerusalém 6.14-10. 52 14.1-20. 34 9.22
A: Primeiro anúncio da morte 8.13 16.21 9.44
B: Segundo anúncio da morte 9.31 17.22-23 9.51-18.27
C: Terceiro anúncio da morte 10.33-34 20.17-19 18.31-33

24
Terceira Seção
Últimos dias em Jerusalém,
Ceia e Crucificação 11-15 21-27 19.28-23. 56
Histórias Pascais 16 28 24
No esquema apresentado, salta aos olhos:
- A ausência em Marcos de qualquer narrativa da infância de Jesus;
- As duas grandes inserções lucanas, uma delas de quase 10 capítulos.
A primeira inserção é o Sermão da Planície (que aparece em Mateus
como o Sermão da Montanha) e a outra é a narrativa da viagem.
Vamos refletir primeiro sobre as semelhanças dos três evangelhos.
A primeira conclusão a que se chega é fácil de demonstrar. Se cada
evangelista tinha inúmeros relatos sobre Jesus à sua disposição, vin-
dos das mais diferentes fontes (orais, principalmente), qualquer um
deles poderia construir um texto completamente diferente do outro,
pelo menos na estrutura. Se há um plano similar entre eles, entretan-
to, é porque há uma dependência mútua entre os três.
A partir desta constatação inicial, precisa-se resolver então o que
levou as três obras, com uma mútua dependência, a apresentarem
material exclusivo e singular. Ou seja, como explicar as similaridades
diante das singularidades.
Estas foram as principais sugestões dadas pelos estudiosos duran-
te a história da pesquisa sinótica:
- Hipótese da dependência mútua. A primeira resposta imaginava que
os três sinóticos se usaram reciprocamente, introduzindo, cada um,
suas modificações. O problema é que esta resposta explica as seme-
lhanças, mas não as diferenças.
- Hipótese do evangelho primitivo. Esta hipótese afirma que os três si-
nóticos teriam vindo de uma mesma fonte, em aramaico ou hebraico,
traduzida e explorada de forma diferente pelos sinóticos. Mas neste
caso, ficam sem resposta as coincidências quase literais entre os tex-

25
tos.
- Hipótese das “diegeses”. Acredita que antes dos evangelhos já exis-
tiam pequenos textos escritos narrativos (diegeses) que foram usa-
dos pelos sinóticos. Mas neste caso, ficam sem explicação a estrutura
e o plano idêntico dos três evangelhos.
- Hipótese da tradição oral. A tradição oral teria se fixado bem cedo
no primeiro século em formas fixas por causa das necessidades das
igrejas. Os evangelhos se parecem, porque usaram a mesma tradição
oral. Esta sugestão também não explica o plano idêntico dos sinóti-
cos.
- Hipótese das duas fontes. Acredita que Mateus e Lucas teriam utili-
zado, de forma independente, Marcos, junto com outra fonte comum
a ambos, que teria desaparecido. Ao mesmo tempo, Mateus e Lucas
teriam usado material exclusivo que lhes teria chegado às mãos. Os
estudiosos deram à fonte comum de Mateus e Lucas o nome de Q
(Quele, em alemão). Esta hipótese, aparentemente, é a que alcançou
algum tipo de hegemonia entre os estudiosos do Novo Testamento,
apesar de não resolver todos os problemas, como, por exemplo: que
versão de Marcos eles usaram? A fonte Q era escrita ou oral? Mateus e
Lucas utilizaram a mesma versão de Q, ou estágios diferentes de uma
fonte em mutação?
Assim, para complementar a hipótese das duas fontes, é preciso
levar em conta também algumas sugestões que procuram situar o
evangelho no seu próprio lugar existencial, estudando os traços ca-
racterísticos de cada evangelista. Eles não são mais considerados
meros compiladores de tradição oral ou escrita, mas verdadeiros
autores. Cada evangelho salienta aspectos ou ideias particulares de
cada autor.
Assim, à hipótese de que Marcos e Q funcionaram como base para
Mateus e Lucas, ainda acrescentamos os seguintes elementos:

26
- Jesus, com seus ditos e feitos, gerou uma tradição em torno de si.
Entre os anos 27-30, Ele percorreu a Galileia anunciando a mensagem
de Boa-nova aguardada pelos judeus. As grandes marcas dessa men-
sagem eram: Jesus se apresentou como o Filho do Homem, um título
messiânico retirado de Daniel, chamava a Deus de Abba (pai), reivin-
dicando para seus discípulos o status de filhos de Deus.
- Jesus formou seus discípulos e os treinou para que preservassem
e transmitissem essa mensagem. Para isso, seus discípulos usavam
as mesmas técnicas de memorização dos rabinos da época: títulos,
palavras-chaves, fórmulas concisas, repetições em voz alta etc.
- A ressurreição de Jesus foi o evento que mostrou aos discípulos o
verdadeiro sentido das palavras e ações de Jesus. A páscoa funciona
como óculos para determinar a dimensão exata do evento Jesus. As
mesmas pessoas que conviveram com Jesus passaram a crer que Ele
havia ressuscitado. Isto mudou radicalmente suas vidas e o desdo-
brar da comunidade de discípulos de Jesus. Por causa da ressurrei-
ção, eles compreenderam que Ele era o Cristo, o Messias.
- Os discípulos, principalmente os apóstolos, começaram a pregar os
ensinamentos e atos de Jesus, sempre de forma a atender as neces-
sidades de cada comunidade receptora aos quais falavam. Depois do
Pentecostes, as comunidades, em torno dos apóstolos, começaram
a pregar sobre a vida de Jesus, com uma mensagem que girava em
torno de sua ressurreição. Esse era o conteúdo de suas mensagens, o
querigma primitivo. Mas quando a mensagem começou a ser pregada
fora da Palestina, onde as pessoas não sabiam quem tinha sido Jesus
de Nazaré, foi necessário acrescentar à mensagem novos dados sobre
a vida de Jesus.
- Por causa da diversidade de público e de função, a pregação tomava
formas bem diversificadas. Para os crentes, ensino e liturgia. Para os
demais, apologética, na forma de controvérsias, repertórios de tex-
tos-prova, milagres. Cada uma destas formas tinha uma função e um

27
lugar específico;
- Após a fase oral, a pregação começou a ser transformada em texto.
Os evangelistas colheram material da tradição oral, alguns possivel-
mente já escritos na forma de coleções menores, para escrever Ma-
teus, Marcos, Lucas e João.
Cada um destes textos, entretanto, também teve sua função e lu-
gar específico. Os autores escreveram, com seu estilo particular, para
tratar de questões relevantes aos seus destinatários.
Os evangelistas tinham um esquema comum para relatar a his-
tória de Jesus: fase preparatória, ministério na Galileia, viagem para
Jerusalém e última semana de morte e ressurreição. Dentro deste es-
quema, os blocos menores eram arrumados. Os blocos de ditos e fei-
tos de Jesus não estão, necessariamente, narrados no seu contexto
histórico original, mas no molde cronológico e estrutural, ou seja, no
enquadramento peculiar do evangelista.
Pode-se ver isso com clareza no Sermão da Montanha de Mateus,
nos seus capítulos 5-7, distribuídos em outros contextos em Lucas
(Sermão da Planície) e Marcos. O resultado deste processo é um Evan-
gelho que traz a cara das comunidades de origem e de destino, refle-
tindo sua vida, ensino, culto e embates cotidianos.

1.4 AUTORIA E DATA DE MATEUS


Mateus é o primeiro livro do Novo Testamento, bem como o pri-
meiro dos quatro evangelhos de Jesus.
Ao contrário das cartas paulinas, que estão ordenadas no cânon
em função do seu tamanho, começando com Romanos (a carta mais
longa) e terminando com a mais curta, os Evangelhos não são ordena-
dos de acordo com a quantidade de texto.
Outro critério foi usado para colocá-lo na frente na maioria dos
manuscritos em que aparecem os quatro evangelhos. O motivo pa-

28
rece ser a convicção da igreja primitiva de que era o mais apropriado
para fazer a ponte com o Antigo Testamento. Há muitas citações de
cumprimento de profecias em Mateus que enfatizam a continuidade
da história de Jesus com as promessas das Escrituras Judaicas.
Ajudou neste sentido também o testemunho externo ao evange-
lho que o vinculava a um dos doze apóstolos de Jesus, o discípulo co-
nhecido como Mateus. Afinal, nem Marcos ou Lucas eram conhecidos
como discípulos ou apóstolos de Jesus, apesar de isso não explicar o
motivo pelo qual João aparece na quarta posição. De qualquer forma,
a posição canônica de Mateus é privilegiada, e ele servirá para entrar-
mos numa série de temas de grande relevância para nossa compreen-
são do Novo Testamento.
Vamos tratar das questões históricas mais imediatas: quem, quan-
do, para quem e por que. Estas perguntas são as primeiras que preci-
sam ser feitas numa introdução histórica de um livro da Bíblia. Quem
escreveu o livro? Quando o livro foi escrito? Para quem o autor en-
dereçou sua obra? Qual foi o propósito do autor ter escrito seu livro?
Neste capítulo nos ocuparemos da primeira, ou seja, a questão da au-
toria do primeiro evangelho canônico.
Formalmente, o evangelho é anônimo. Não há no interior do seu
texto uma declaração explícita de quem seria o autor. Entretanto, o
livro carrega o título KATA MATHAION (segundo Mateus) em pratica-
mente todos os manuscritos gregos antigos. Isso indica que a igreja
antiga entendia que um certo homem chamado Mateus o escreveu.
Há apenas um Mateus no Novo Testamento, o apóstolo (Mt 9:9;
10:3; Mc 3:18; Lc 6:15; At 1:13). Tradicionalmente, esse é o Levi de Mar-
cos 2:14, que Mateus e Lucas identificam como Mateus (Mc 2:14; Mt 9:
9; Lc 5:29). Então, acredita-se que ele é o escritor.
A mais antiga afirmação histórica sobre este evangelho vem de Pa-
pias, do início do século II. Este conhecido Pai da Igreja foi menciona-
do por Eusébio de Cesareia como tendo dito: “Mateus reuniu os orá-

29
culos na língua hebraica, e cada um deles os interpretou da melhor
maneira possível” (H.E. 3.39.16). Isso sugere que Papias entendeu que
Mateus escreveu algum material sobre Jesus em hebraico ou aramai-
co, no que ficou conhecido como Coleção Aramaica de Ditos. Alguns
estudiosos argumentam que Papias, ao falar da “língua hebraica”,
não está se referindo a um idioma específico, mas a um estilo retórico
semítico.
Mesmo assim, a ideia de que Mateus teria sido escrito em hebraico
ou aramaico foi bem comum entre os pais da igreja. Estes afirmam
que o evangelho original foi posteriormente traduzido para o gre-
go por um cristão desconhecido ou pelo próprio Mateus. Irineu, por
exemplo, afirma que Mateus foi composto em uma língua semítica
durante o tempo em que Pedro e Paulo estavam fundando a igreja de
Roma (Contra as Heresias 3.1.1). Isso dataria o Evangelho para uma
data anterior à morte destes apóstolos (antes de 68 d.C.). Eusébio
também relata isso (H.E. 5.8.2). Orígenes, Cirilo de Jerusalém, Epifâ-
nio e Jerônimo entenderam Papias dessa maneira.
Esta sugestão dos pais da igreja, entretanto, enfrenta a dificulda-
de de não existir nenhuma evidência documental de um tal texto em
hebraico ou aramaico. Todos os manuscritos antigos de Mateus estão
em grego, e não há sugestão textual de que o texto seja o resultado
de uma tradução. Assim, essa ideia tão disseminada entre os pais da
igreja parece ser baseada exclusivamente numa particular compreen-
são de Papias.
O nome Mateus aparece no Evangelho em vários lugares (Mt 9: 9;
10:3). O título “Mateus, o cobrador de impostos” aparece formalmen-
te em 10:3. Além disso, alguns observam diversas referências a tran-
sações financeiras em Mateus, que poderiam indicar que o autor es-
tava interessado no assunto, como seria de esperar de um cobrador
de impostos (Mt 17:24-27; 18:23-25; 20:1-16; 26:15; 27:3-10; 28:11-15).
Mesmo assim, alguns autores não acham os argumentos pró-Ma-

30
teus convincentes, em geral, levantando as seguintes razões:
- Papias não seria fonte suficiente. Alguns observam que a única re-
ferência a Papias é uma citação de Eusébio, historiador do século IV,
e, como tal, careceria de peso histórico. Em resposta, é importante
observar que as reivindicações de Papias sobre Marcos e Mateus fo-
ram amplamente divulgadas na igreja primitiva, para que não sejam
isoladas, mas corroboradas.
- O Evangelho parece ter sido originalmente em grego e não em ara-
maico ou hebraico. Alguns estudiosos argumentam que há pouca
evidência de hebraico e aramaico traduzidos em Mateus. No entanto,
outros estudiosos argumentam que Mateus era um cobrador de im-
postos e, portanto, seria linguisticamente versátil para saber grego e
latim.
- Alguns questionam por que Mateus, um apóstolo e testemunha ocu-
lar, usaria o evangelho de Marcos como base para seu próprio evange-
lho. Essa crítica, no entanto, poderia ser respondida se Pedro estiver
realmente por trás de Marcos, ou seja, o Evangelho de Marcos carre-
garia a autoridade apostólica de Pedro.
- Alguns observam que aspectos do evangelho parecem ser mais pro-
váveis de originar-se ​​de um escritor gentio do que de um escritor ju-
deu, como a preocupação do evangelho com a missão universal (Mt
28:19). É possível dizer, entretanto, que essa perspectiva aparece nos
quatro evangelhos.
Assim, a evidência externa fornece peso suficiente para não in-
viabilizar a autoria apostólica do primeiro evangelho. Há um amplo
acordo entre os pais da igreja com relação à autoria deste evangelho,
e não houve qualquer outra tentativa de identificação de autoria para
o evangelho durante os primeiros séculos da história da igreja.
No entanto, essa perspectiva não deixa de ter seus problemas. A
data é difícil de discernir, e depende da autenticidade histórica de di-

31
versas outras variáveis, como um original em hebraico ou aramaico
que se perdeu, ou uma data recuada para a produção do texto.
No próprio texto do Evangelho de Mateus não há qualquer referên-
cia a quem o escreveu, o que o torna, formalmente, um livro anônimo.
Seu autor não achou necessário explicitar a autoria.
Assumindo que o apóstolo Mateus é o escritor do primeiro evange-
lho canônico, o que se sabe sobre ele? Todos os três evangelhos sinó-
ticos mencionam-no como um dos doze apóstolos (Mt 10:3; Mc 3:18;
Lc 6:15), com Mateus adicionando o título, “um cobrador de imposto”.
Em cada um dos sinóticos, é registrada a chamada de um cobrador de
impostos. Em Marcos e Lucas, um certo Levi (Mc 2:13-17; Lc 5:27-32);
e em Mateus, um certo Mateus (Mt 9:9-13). Marcos acrescenta que ele
seria filho de Alfeu (Mc 2:14). A comparação das histórias sugere que
esta é a mesma pessoa, ou pelo menos o escritor de Mateus acredita-
va que Levi era Mateus. Ele talvez preferisse ser conhecido por Mateus
em vez de Levi. Como outros personagens do Novo Testamento (Saul/
Paulo, Simão/Pedro), ele parece ter dois nomes, seja por nomeação
ou por sua própria escolha. A opção por Mateus talvez tenha relação
com as implicações levíticas do nome. Ele poderia realmente ser da
tribo de Levi, mas não atua como um levita, ganhando a vida como
publicano, uma prática odiosa para seus conterrâneos. Quando foi
encontrado por Jesus, ele deixou tudo para ser seu discípulo (Lc 5:28).
Ele deixou sua fonte de renda, mas manteve sua casa, usando-a para
convidar outros publicanos para conhecer Jesus.  Mateus é um dos
cinco apóstolos cujo encontro de vocação é narrado nos sinóticos.
Isso aponta para sua importância para a igreja dos primórdios.
Em sua vida pregressa como cobrador de impostos, Mateus teria
uma existência financeiramente tranquila. Ele era um empregado de
Roma e Herodes Antipas, e talvez um cidadão romano (talvez o único
entre os Doze). Como cobrador de impostos, ele provavelmente viveu
em Cafarnaum, ou ali perto, e coletava pedágios no tráfego comercial
entre Damasco e outras cidades da Palestina. A descrição de sua casa

32
(Mt 9:10-11; Mc 2:15-16; Lc 5:29-30) sugere um ambiente espaçoso. Ele
pode ter feito sua riqueza através de cobrança fraudulenta de taxas.
Como cobrador de impostos, ele teria uma grande memória, habili-
dades matemáticas e de escrita, ideal para alguém que escreveria um
Evangelho.
Sobre a data da escrita, a maioria dos estudiosos do Novo Testa-
mento trabalha com uma data entre 70-100 para a produção de Ma-
teus, baseada nos seguintes argumentos:
- Mateus teria usado Marcos. Assumindo a prioridade de Marcos e que
este tenha sido escrito provavelmente de Roma por volta de 65, e le-
vando em conta tempo suficiente para que um tivesse acesso ao ou-
tro, Mateus deve ter surgido a partir do início dos anos 70.
- Indicações no texto de uma data posterior. Algumas referências
parecem mostrar conhecimento da destruição de Jerusalém, even-
to ocorrido no ano 70 (especialmente Mt 22:7), o que apontaria para
uma data posterior a este evento. Da mesma forma, Mateus é o úni-
co evangelista a fazer referência à existência da igreja, o que pode-
ria indicar uma eclesiologia mais desenvolvida e uma data posterior
(Mt 16:18; 18:17). Duas vezes, a frase “até hoje” se repete, primeiro no
nome “Campo de Sangue” comprado por Judas (Mt 27:8), e depois na
história do corpo roubado de Cristo que circulou entre os soldados
(Mt 28:15). A fórmula trinitária de Mt 28:19 também poderia indicar
uma data posterior, com uma cristologia mais desenvolvida.
- Alguns acreditam também que há uma perspectiva conflituosa con-
tra o Judaísmo no evangelho, sugerindo um período em que os segui-
dores de Jesus estavam sendo expulsos das sinagogas.
Assim, em função da posição dos pais da Igreja a respeito do Evan-
gelho e dos argumentos acima mencionadas, uma data razoável de
composição para o Evangelho de Mateus poderia ser algo entre 70 e
80. É preciso levar em conta também que a opção pela autoria, e a
definição da relação entre Marcos e Mateus, interferem diretamente

33
nesta questão da datação da obra.

1.5 DESTINO E PROPÓSITO DE MATEUS


Existem poucas evidências que nos ajudam a pontuar o lugar de
origem do Evangelho de Mateus.
Uma sugestão encontrada com frequência está em algum lugar da
Palestina romana, baseado em cinco ideias principais.
- Em primeiro lugar, há a inclusão de aramaico não-traduzido, indi-
cando que os leitores entendiam essas palavras.
- Em segundo, a perspectiva de Papias de que Mateus era original-
mente um Evangelho aramaico ou hebraico sugere algo semelhante.
- Um terceiro argumento é a suposição de que os leitores entendem
costumes judaicos.
- Em quarto lugar, os textos citados das Escrituras judaicas vêm tanto
do Hebraico Massorético (por exemplo, Mt 13:14-15; Is 6:9-10) quanto
da versão grega LXX (a maioria das citações).
- Finalmente, em quinto, há exemplos de formas literárias semitas
(por exemplo, Mt 5:2). 
No entanto, qualquer um destes argumentos poderia ser usado
igualmente para sugerir uma comunidade judaica da diáspora como
origem, já que havia uma grande dispersão de judeus por todo o Im-
pério Romano. Neste sentido, alguns autores sugerem a Cesareia Ma-
rítima, as cidades fenícias de Tiro ou Sidom, ou a área transjordânica
de Pella. Essa última sugestão é baseada na frase “do outro lado da
Jordânia” (Mt 4:15; 19:1).
Mais comumente, os estudiosos preferem a Antioquia da Síria
como lugar de origem, em função da produção do evangelho ter
acontecido após a destruição de Jerusalém (70 d.C.). Argumenta-se
que essa cidade seria um bom contexto pelas seguintes razões:

34
- Havia ali uma grande população judaica, contra a qual os cristãos
teriam que defender sua perspectiva. Isso é visto na importância de
Antioquia para a disseminação inicial do evangelho para os gentios, e
o debate que daí surge com a comunidade de discípulos de Jerusalém
(At 11:19-26; 13:1-3; 15:1-2, 22-23, 30; Gl 2:11). 
- Antioquia se tornou muito cedo na história da igreja um centro de
divulgação da fé em Jesus (At 11:19-22). A cidade era a base para as
viagens missionárias de Paulo (At 13:1; 14:26; 15:35; 18:22). O que po-
deria explicar a forte ênfase na missão do Evangelho de Mateus. 
- As citações de Mateus em Inácio de Antioquia, no início do século
II, fornecem uma boa evidência. Este antigo bispo de Antioquia foi o
primeiro a demonstrar conhecimento do Evangelho de Mateus, o que
poderia indicar que o Evangelho, se não surgiu na cidade, surgiu nos
seus arredores.
- Há ligações entre Mateus e o Didaquê, uma pequena obra cristã es-
crita no início do século II, provavelmente relacionada com a Síria.
Em particular, o escritor do Didaquê mostra um significativo conheci-
mento do Sermão do Monte e do Sermão Profético de Mt 24-25. 
Jerusalém é improvável como local de origem, pois foi destruída
no ano 70 pelos soldados do general Tito. Assim, à luz destas evidên-
cias, um bom número de comentaristas de Mateus situa, pelo menos
com algum grau de probabilidade, na Síria, de uma maneira ampla,
e em Antioquia, mais especificamente. Ali havia um uma grande co-
munidade judaica e uma considerável igreja já no início da história do
movimento de Jesus, conforme At 11:19-30.
Se este for realmente o lugar de origem de Mateus, o que este
evangelho queria transmitir para esta comunidade de crentes? Qual
teria sido o seu propósito ao escrever sua versão da história de Jesus?
A partir do seu conteúdo, seria possível indicar alguns destes propó-
sitos gerais.

35
- Em primeiro lugar, ele escreve para convencer seus leitores de que
Jesus é o Messias prometido nas Escrituras judaicas. Ele é o tão es-
perado Messias de Israel, o Filho de Davi, o Filho de Deus, o Filho do
Homem, o Emanuel (Immanuel). 
- Mateus quer demonstrar também que o povo judeu rejeitou Jesus.
Enquanto as multidões se reúnem para ouvir Jesus, os líderes judeus
não o reconhecem durante seu ministério e se opõem a Ele de forma
intensa e eventualmente violenta. Para o evangelista, o povo de Israel
está em grande perigo se continuar nesta posição. Isso envolverá a
destruição da nação e a condenação escatológica.
- Ele quer demonstrar que o reino prometido chegou. O reino esca-
tológico já foi inaugurado pela vida, morte e ressurreição de Jesus
Cristo. Esta inauguração, entretanto, será completada no retorno de
Cristo.
- A missão do reino messiânico é ir a todas as nações: Este reinado
continua no mundo por meio dos crentes, tanto judeus quanto gen-
tios, que se submetem à autoridade de Jesus, suportam persegui-
ções, abraçam de todo o coração o ensino do Homem de Nazaré,
e assim demonstram que são o verdadeiro e novo povo de Deus. O
novo povo se torna a autêntica testemunha do evangelho do reino
diante do mundo. 
- O reino aguarda sua consumação final. Este reinado messiânico não
é apenas o cumprimento das esperanças do Antigo Testamento, mas
o prenúncio do reino consumado que surgirá quando Jesus, como o
Cristo glorificado, retornar pessoal e historicamente ao mundo. Nes-
te momento, Jesus implementará o juízo de Deus, que envolverá a
destruição eterna da humanidade impenitente, e a recompensa dos
crentes.
- Jesus e o reino são apresentados desta forma, para encorajar a ado-
ração a Jesus, o discipulado comprometido e o evangelismo, e para

36
que os cristãos saibam viver à luz deste novo reino.

1.6 A ESTRUTURA DE MATEUS


Estudar as estruturas de livros bíblicos é uma boa maneira de com-
preender suas mensagens de uma maneira mais ampla. Isso envolve
um conhecimento de sua argumentação, de suas transições, de seus
destaques.
Analisar a estrutura de um livro envolve algum conhecimento de
suas partes. O problema é que realizar este tipo de estudo em obras
antigas envolve uma série de juízos sobre os propósitos declarados
ou não de seus autores.
Algumas perguntas são importantes neste caso: o autor planejou
deliberadamente sua obra, ou ela é o resultado de um ato de escrita
improvisado; a estrutura acompanha algum tipo de intervalo na pro-
dução das partes, ou o livro foi escrito todo de uma só vez; as partes
revelam uma autoria única da obra, ou ela é o resultado de vários au-
tores escrevendo em tempos diferentes.
Todas estas questões estão presentes quando estudamos a es-
trutura do Evangelho de Mateus. Independente da complexidade das
respostas para as questões acima, vamos pressupor, para uma suges-
tão de esboço deste evangelho, que ele é um livro de um único autor,
escrito num período curto de tempo, para uma comunidade, e que
sua estrutura é um ato planejado.
Sendo assim, há três sugestões principais sobre a estrutura do
Evangelho de Mateus: Geográfico, Cristológico e Didático.
Começamos com a sugestão que acompanha a Geografia. Esta é a
mais antiga forma de entender Mateus, e está baseada na descrição
do ministério de Jesus na Galileia, ao norte em Tiro e Sidom, e por
fim, Jerusalém. A partir deste quadro geográfico mais amplo, surge a
seguinte estrutura:

37
Mateus 1:1-4:11 Prólogo e preparação de Jesus para o ministério
Mateus 4:12-15:20 Ministério de Jesus na Galileia
Mateus 15:21-18:35 Ministério ao norte da Galileia
Mateus 19:1-20:34 A caminho de Jerusalém
Mateus 21:1-25:46 Conflitos em Jerusalém
Mateus 26:1-28:20 Morte e ressurreição

Esta parece ser uma forma natural de ler e acompanhar as narrati-


vas do Evangelho. Alguns autores, entretanto, sugeriram uma divisão
por meio da cláusula grega “apo tote”, traduzida como “a partir dis-
so”, encontrada em Mt 4:17 e 16:21. O resultado foi uma divisão em
três partes:
Mateus 1:1-4:16 Introdução ao Ministério de Jesus
Mateus 4:17-16:20 O Desenvolvimento do Ministério de Jesus
Mateus 16:21-28:20 O Clímax do ministério de Jesus

Esta é uma estrutura interessante, quase como um sermão de três


pontos de uma igreja tradicional. No entanto, ela ignora mudanças
significativas de tema dentro destes grandes blocos, como o Sermão
da Montanha (Mt 5-7), o discurso missionário de Mt 10, o Sermão Es-
catológico (Mt 24-25).
Na atualidade, a visão mais difundida de estrutura para Mateus é
aquela que considera justamente os grandes discursos do livro. Os
proponentes desta visão entendem que os cinco discursos represen-
tam as cinco partes do livro.
Alguns chegaram a argumentar que esta divisão foi uma delibera-
da ação do autor do evangelho de espelhar os cinco livros de Moisés
(o Pentateuco), e assim apresentar Jesus como o novo libertador do
povo.
Os cinco discursos de Jesus em Mateus seriam como os cinco livros
do Pentateuco: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. A
chave para isso é a frase recorrente: “E aconteceu que, quando Jesus

38
terminou de dizer essas coisas...” (Mt 7:28; 11:1; 13:53; 19:1; 26:1). Es-
sas afirmações funcionam como marcas estruturadoras da narrativa. 
Um outro elemento divisor é a coleção de parábolas em Mt 13,
bem no meio do evangelho, que funciona como um ponto de infle-
xão. Após isso, segue para Jerusalém onde terminará seu ministério.
Apesar da variação na forma de intitular cada uma das cinco seções,
elas seriam como um recurso pedagógico do evangelista para tratar
de cinco tópicos da vida de Jesus:
Mateus 1:1-2:23 Preâmbulo
Mateus 3:1-7:29 Livro Um: Discipulado
Narrativa, Mateus 3-4
Discurso, Mateus 5-7
Mateus 8:1-10:42 Livro Dois: Apostolado
Narrativa, Mateus 8-9
  Discurso, Mateus 10
Mateus 11:1-13:58 Livro Três: A Revelação
Narrativa, Mateus 11-12
  Discurso, Mateus 13
Mateus 14:1-18:35 Livro Quatro: Administração da Igreja
Narrativa, Mateus 14-17
  Discurso, Mateus 18
Mateus 19:1-25:46 Livro Cinco: O Julgamento
Narrativa, Mateus 19-22
Discurso, Mateus 23-25
Mateus 26:1-28:20 Epílogo

A estrutura identifica grandes porções de discurso, incluindo o


Sermão da Montanha em Mt 5-7, o discurso da Missão em Mt 10, as
Parábolas de Mt 24-25. No entanto, embora haja material de discurso
em Mt 18, não está claro que este é um discurso direto sobre a admi-
nistração da igreja. O discurso de Mt 23-25 é dividido em dois: o Con-
flito contra os escribas e fariseus, e o Discurso Profético.
Além disso, os títulos não resumem bem o material e uma gama
mais ampla de tópicos é abordada em cada seção. A estrutura tam-

39
bém relega a narrativa da infância a mero prólogo do evangelho, e à
paixão e ressurreição a um epílogo.
Esse é um problema para esta sugestão de estrutura, porque se-
ria possível olhar para os capítulos finais mais como o alvo de toda
a narrativa. Parece que o evangelho tem a morte e ressurreição de
Jesus como o conteúdo principal a ser compartilhado, e não como
um adendo final. A semana da Páscoa e o Comissionamento são mais
um clímax do que um epílogo. Ainda assim, esta forma de esboçar a
obra ainda tem sua utilidade, especialmente por organizar os grandes
blocos narrativos e didáticos do interior da obra.
Alguns estudiosos do evangelho preferem organizar a estrutura
em torno de blocos de transição mais clara, sem preocupação maior
com arranjo temático. Neste sentido, uma boa sugestão parece ser o
acompanhamento de suas grandes perícopes, lembrando que cada
parte poderia sofrer novas subdivisões:
GRANDES PERÍCOPES DE MATEUS
1. O Nascimento de Jesus (Mt 1:1-2:23)
2. Ministério de João Batista, inauguração e início do ministério de
Jesus (Mt 3:1-4:25)
3. Sermão da Montanha (Mt 5:1-7:29)
4. Ministério de Jesus I (Mt 8:1-9:38)
5. A comissão e a missão dos doze (Mt 10:1-42)
6. Ministério de Jesus II (Mt 11:1-12:50)
7. Parábolas do Reino (Mt 13:1-52)
8. Ministério de Jesus III (Mt 14:1-20:34)
9. Jesus em Jerusalém (Mt 21:1-23:39)
10. O Sermão Profético de Jesus (Mt 24:1-25:46)
11. A Paixão de Jesus (Mt 26:1-27:66)
12. A Ressurreição e Grande Comissão (Mt 28:1-20)

40
1.7 ÊNFASE JUDAICA
Vamos resumir, em linhas amplas, as principais características te-
ológicas do Evangelho de Mateus. Entendemos, assim, que quando
seu autor se propôs a escrevê-lo, queria transmitir algumas mensa-
gens especificas por meio das narrativas, parábolas e ditos de Jesus,
que ele escolheu inserir no livro. O que faremos é um resumo destas
mensagens.
O evangelho talvez seja o mais próximo da cultura judaica dentre
os quatro canônicos. Isso se percebe por causa de alguns traços:
- Citações das Escrituras judaicas. Estas alusões ou citações em Ma-
teus provêm geralmente do texto hebraico, apesar de não excluírem
também algumas referências ao texto grego da LXX. Por exemplo, Mt
1:21-22 diz: “Ela dará à luz um filho, e seu nome será Jesus, porque Ele
salvará seu povo de seus pecados. Tudo isso ocorreu para cumprir o
que o Senhor havia dito através do profeta: A virgem conceberá e dará
à luz um filho, e eles o chamarão de Emanuel”.
- Visão positiva da lei. Mateus tem uma visão positiva da lei em termos
de sua realização. O melhor exemplo é o resumo de Mt 5:17-20. No en-
tanto, Jesus define o que é importante para a lei, movendo a atenção
dos rituais de pureza para a justiça e misericórdia.
- Referências às histórias e relatos das Escrituras Judaicas. Mateus
recorre mais aos relatos da Bíblia Judaica, do que os demais evange-
listas. Por exemplo, sua genealogia abrange muitos personagens de
Israel. No Evangelho, ele faz referências a Abraão, Isaque e Jacó (Mt
3:9; 8:11; 22:32), Sodoma e Gomorra (Mt 10:15; 11:21-24), a Criação (Mt
19:4-5), Jonas (Mt12:40-41) e Noé (Mt 24:37-38). Somente o rei Davi é
mencionado dezessete vezes.
1.7.1 A ÉTICA DO REINO
Um dos grandes sermões de Jesus presentes em Mateus é cha-
mado Sermão da Montanha (capítulos 5-7). O sermão ensina a ética

41
radical do reino para um discípulo de Cristo. Como ele também é en-
dereçado às multidões, é possível ver nele um convite à humanidade
para participar do reino e de seu estilo de vida. A ética expressa nesta
mensagem deve ser entendida como princípios éticos do reino inau-
gurado por Jesus. Os princípios são definidos em nível muito alto,
colocando as pessoas aquém do padrão estipulado, mas Jesus insta
seus discípulos a tomá-los como objetivo de vida cotidiana.
Curiosamente, o que se percebe é que se os padrões éticos forem
seguidos, os discípulos serão rejeitados por muitos, incluindo a maio-
ria da liderança judaica na época de Cristo. Jesus insta o povo de Deus
a manter essa ética, mesmo que a sociedade mais ampla não a aceite.
Para Mateus, ao viver estes princípios, as pessoas do reino serão
sal e luz em um mundo sem sabor e mergulhado na escuridão. Atra-
vés dos valores do Sermão, os discípulos trazem o reinado de Deus
para o mundo e pessoas são atraídas para Cristo.
1.7.2 A IGREJA DE JESUS
Mateus menciona o termo igreja duas vezes (em grego, ekklesia):
- A primeira referência está em Mt 16:18: “Sobre esta pedra eu vou
construir a minha igreja;  e os portões do inferno não prevalecerão
contra ela”. A palavra “pedra” nesta passagem pode ser lida como re-
ferência à figura de Pedro, ou então à confissão messiânica que saiu
de sua boca. Parece fazer mais sentido a segunda opção interpreta-
tiva, ou seja, que a confissão de Jesus como Messias seria a base da
igreja. Em sequência, Jesus prevê que, mesmo que a perseguição ve-
nha, Satanás nunca dissolverá o povo de Deus.
- A segunda referência está em Mt 18:17: “Se ele se recusar a ouvi-los,
diga à igreja. E se ele se recusar a ouvir até mesmo a igreja, tome-o
como um gentio e publicano.” Encontramos nesta passagem um ro-
teiro para a disciplina em uma comunidade de discípulos, já chamada
explicitamente de igreja. Todo o capítulo 18 do Evangelho é sobre a

42
vida na comunidade (igreja) e particularmente a necessidade de dis-
ciplina e perdão entre os discípulos.
Essas referências são as únicas referências à ekklesia nos Evange-
lhos, o que pode ser interessante para demonstrar que Jesus tinha já
manifestado aos seus discípulos o propósito de criar uma comunida-
de de santos na terra, apesar desta comunidade passar a se chamar
igreja especificamente apenas após o Pentecostes.
1.7.3 MISSÃO
O Evangelho de Marcos tem um forte senso de missão contínua no
envio dos Doze Apóstolos (Mc 6:7-13). Isso aparece em Mateus (10:1-
42; 13:31-32; 24:14; 26:6-13). No entanto, o senso de missão em Mateus
é mais forte. Neste evangelho, o foco de Jesus é “a ovelha perdida de
Israel” (Mt 10:6; 15:24). O que poderia sugerir que Jesus estava preo-
cupado apenas com a missão judaica. 
No entanto, há muitas indicações de que, enquanto Jesus limitava
sua missão circunstancialmente, sua visão era que o mundo inteiro
deveria ouvir sua mensagem. Seu foco inicial era o povo judeu, es-
colhido por Deus, mas seus seguidores levariam sua mensagem ao
mundo. Isso pode ser demonstrado por uma implícita preocupação
com a missão universal, que inclui os Magos que vêm do Leste para
adorar o Rei (Mt 2:1-12), a cura da filha da mulher canaanita (Mt 15:21-
28), a fé exemplar do centurião romano (Mt 8:5-13) e o relato do cen-
turião diante da cruz (Mt 27:54).
Outros elementos que poderiam indicar a missão universal dos
discípulos em Mateus poderiam ser os seguintes:
- A afirmação de que os crentes são o sal e a luz do mundo. Isso enfa-
tiza o imperativo de que os discípulos vivam os valores expressos no
Sermão da Montanha na sociedade mais ampla, para que as pessoas
possam ser salvas e a sociedade e o mundo sejam transformados (Mt
5:13-16);

43
- O mandamento para amar inimigos. O que incluiria amar os go-
vernantes gentios, romanos e judeus, pagãos ou convertidos. Deus
é apontado como o modelo básico para este tipo de amor, pois Ele
manda a chuva sobre os bons e os maus;
- A expectativa de frutos fora de Israel. Pessoas de fora de Israel da-
riam frutos para o reino (Mt 21:43), em alguns momentos, em maior
quantidade;
- O mandamento para pregar a todas as nações. Mateus reafirma Mar-
cos 13:10 que o evangelho do reino será pregado em todo o mundo
antes da consumação (Mt 24:14). Os anjos reunirão os eleitos de Deus
de todas as nações (Mt 24:31). A história da mulher que ungiu Jesus
será espalhada para o mundo (Mt 26:13);
- O juízo final será universal. O mundo inteiro será julgado por Jesus
(Mt 25:31-46).
Assim, a partir das evidências acima, é possível dizer que apesar
de uma limitação inicial durante o seu ministério terreno, a missão de
Jesus inclui uma abrangência universal no final, após o Pentecostes.
Durante aqueles dias, uma missão aos judeus (Mt 10:5-6, 23; 15:24).
Após aqueles dias, ao mundo inteiro (Mt 28:18- 20).
1.7.4 A GRANDE COMISSÃO
O clímax do Evangelho de Mateus é o Jesus ressuscitado, então
com total autoridade sobre a criação, comissionando seus discípulos
para irem a todas as nações, batizando novos discípulos e ensinando
-os até que Ele retorne. 
As declarações limitadoras de Jesus durante seu ministério não
podem ser lidas de forma absoluta, como se fosse exclusivo para Is-
rael, mas como sua estratégia inicial de estabelecer o reino primeira-
mente entre o povo do antigo pacto, para então estendê-lo ao mundo
inteiro, após sua morte e ressurreição.

44
Quando Jesus deu a ordem de pregar o evangelho a todas as na-
ções, o trabalho inicial já havia sido feito em Israel. É responsabilida-
de dos seus discípulos de então e de agora levar o evangelho a todas
as nações (Mt 24:14).

1.8 O REINO DOS CÉUS


“Reino de Deus” aparece em Mateus algumas vezes (Mt 6:33; 12:28;
19:24; 21:31, 43), mas o termo preferido do evangelista é mesmo “Rei-
no dos céus” (vinte e quatro vezes).
A maioria dos estudiosos acredita que são termos intercambiáveis.
Mateus pode ter evitado “Deus” aqui por causa da preferência judaica
por evitar usar o nome divino (Yahweh).
Sete vezes ele introduz parábolas com a expressão “o reino dos
céus é semelhante a” (Mt 13:31, 33, 44, 45, 47, 52; 20:1). São as chama-
das Parábolas de Similitude, comparando o reino às coisas e situa-
ções, auxiliando a compreensão dos discípulos a respeito do assunto. 
O uso do termo “céu” também engloba aspectos da escatologia
de Mateus. Com sua escatologia futurista mais forte, Mateus dá maior
ênfase à consumação do reino. A visão do evangelista é de que esta
criação foi renovada (Mt 19:28). No julgamento, o povo de Deus não
“vai para o céu”, mas recebe o reino preparado para eles a partir da
fundação do mundo (Mt 25:34). Este reino é a criação renovada. Isso
se encaixa com a visão de Paulo sobre a libertação da criação da de-
cadência (Rm 8:19-23) e os novos céus e terra de Ap 21-22.
1.8.1 UMA ALTA CRISTOLOGIA
Mateus apresenta uma alta cristologia em função da sua visão a
respeito da identidade de Jesus. Sua intenção é convencer seus lei-
tores da identidade messiânica de Jesus, e que Ele é mais do que um
ser humano. 
Estes aspectos cristológicos de Mateus podem ser apontados pe-
las seguintes expressões:

45
- Jesus como professor e “novo Moisés”. Jesus traz uma nova reve-
lação que orienta as pessoas do reino sobre a maneira como devem
viver. Isto não é uma abolição da lei, mas seu cumprimento (Mt 4:23;
9:35). O Sermão do Monte lembra Moisés, que recebeu a Torah no
Monte Sinai. Jesus reinterpreta Moisés neste sermão, interagindo
com a lei e trazendo uma “nova lei”. Ele ensina com autoridade, ao
contrário dos escribas (Mt 7:29, 22:33) e é até tratado como “Rabi” por
um judeu que promete segui-lo (Mt 8:19). Jesus é agora o porta-voz
revestido de autoridade da vontade de Deus para a vida. Ele vence os
líderes judeus continuamente em debates públicos (Mt 21:23-22:46).
No Monte da Transfiguração, Ele encontra Moisés e Elias, dois grandes
profetas de Israel, e os discípulos são orientados a “ouvi-lo”. Para Ma-
teus, Jesus não é apenas um novo Moisés; Ele é o Profeta definitivo,
que traz a revelação completa da vontade de Deus. 
- Filho de Davi, Rei, Messias. Mateus identifica Jesus como o Messias
ou o Cristo Davídico. Ele se refere a Jesus como Cristo ou Messias
onze vezes. Jesus também é chamado de “Filho de Davi” nove vezes.
Isso se encaixa na “orientação judaica” de Mateus e seu desejo de de-
monstrar a herança judaica de Jesus. 
- O Filho de Deus. Mateus apresenta Jesus em termos de filiação divi-
na. Neste evangelho, a expressão “Filho de Deus” carrega a noção de
que Jesus não é apenas um Messias humano, um ser divinizado. Isso
poderia ser visto em alguns aspectos do evangelho. Em Mt 1:18-22,
Jesus é concebido pelo Espírito (Mt 1:18). Maria dará à luz um filho
que será chamado de Emanuel, ou “Deus conosco”. Em outras pala-
vras, Ele é a presença de Deus com a humanidade. Ele é o divino Filho
de Deus. Em Mt 26:63-64, o sumo sacerdote pergunta se Ele é o Filho
de Deus. Jesus responde positivamente, e é esbofeteado por isso. Em
Mt 4:3, o próprio diabo assume que Jesus é o Filho de Deus. Em Mt
14:33, os discípulos o confessam como o Filho de Deus, quando Ele
caminha sobre a água. Em Mt 16:16, a confissão petrina inclui sua fi-
liação divina. 

46
- Jesus é a Sabedoria Encarnada. Em alguns textos no Evangelho de
Mateus, a sabedoria de Jesus é enfatizada. Isso ressoa com a noção
de sabedoria de Deus personificada no livro de Provérbios (Pv 8-9).
Exemplos deste tipo de perspectiva messiânica aparecem em Mt
12:42, 13:54, 11:19 e 11:25-30.
- Jesus é Senhor. O termo “Senhor” é “kyrios” (kurios ou kirios). Ma-
teus não o usa tanto quanto Marcos e Lucas. Às vezes, é Deus que é
Senhor (Mt 1:20; 4:7; 11:25; 21:9; 22:37). Muitas vezes, ele o emprega
como forma vocativa quando pessoas vêm até Jesus, especialmente
em busca de cura ou libertação (quatorze vezes). Nestes casos, fala-
se do status e autoridade de Jesus diante dos seus conterrâneos, em
vez de um senhorio cósmico. Entretanto, “senhor” pode carregar o
sentido de Messias em algumas ocasiões, especialmente dos lábios
de Pedro (Mt 16:22; 17:4; 18:21, 20:30; 21:3).
- Jesus como objeto de adoração. Em várias ocasiões, Jesus é objeto
de adoração. Na narrativa da infância, os Magos vêm para venerá-lo
(Mt 2:2, 8, 11). Após acalmar a tempestade, os discípulos o adoram
como o Filho de Deus (Mt 14:33). Alguns dos discípulos o adoram na
montanha enquanto Ele lhes dá a Grande Comissão (Mt 28:17). Em um
ambiente zelosamente monoteísta, onde a adoração de qualquer coi-
sa ou qualquer outra pessoa que não Yahweh era idolatria, isso indica
que seguidores reconheciam nEle um status divino. Esta é uma atitu-
de impressionante vinda de uma comunidade que cultivava o mono-
teísmo desde o exílio babilônico.

1.8.2 A QUESTÃO DA HOSTILIDADE CONTRA OS JUDEUS


Uma questão difícil do Evangelho de Mateus é a hostilidade do
evangelista contra os judeus, ou seja, o próprio grupo étnico de Jesus,
a ponto de parecer criar uma alteridade abrupta entre Jesus, seus dis-
cípulos e os demais judeus. São todos judeus, mas a narrativa de Ma-
teus parece descrever os conterrâneos de Jesus como se fossem um
outro grupo étnico distinto, numa rígida alteridade identitária.

47
Os capítulos 23 a 25 de Mateus formam um bloco, que apesar de
possuir duas temáticas distintas, podem ser unidas sob a perspectiva
do Juízo de Jesus sobre Jerusalém, o Templo e a hierarquia religiosa
judaica de seu tempo.
O bloco textual abre com uma crítica contra os escribas e fariseus,
ou seja, os intérpretes oficiais da Lei, na forma de “sete ais”. Na nar-
rativa, Jesus culpa os fariseus e seus seguidores por cada gota de
sangue inocente derramado em toda a história de Israel. Ele condena
a liderança religiosa a sofrer pelo erro coletivo de sua geração, bem
como de seus antepassados distantes.
Os leitores de Mateus, que o leram após a destruição de Jerusalém
pelos romanos no ano 70, tenderiam a interpretar as palavras de Je-
sus como prova da ira de Deus contra Israel (Mt 23:35-36).
O evangelho intensifica o tema do juízo em sua versão do julga-
mento de Jesus por Pilatos (Mt 27), especialmente quando uma
multidão de Jerusalém exige a crucificação do Messias e aceita que
seu sangue “caia sobre nós e nossos filhos” (Mt 27:25). Mateus ainda
acrescenta que Pilatos, símbolo da Roma imperial, lavou suas mãos
da responsabilidade pela morte de Jesus, mesmo ordenando sua
execução (Mt 27:24).
Os quatro evangelistas transferem a culpa pela morte de Jesus
para a liderança judaica, mas apenas em Mateus aparece a extensão
da responsabilidade para descendentes ainda não nascidos dos ju-
deus.
É preciso lembrar que o evangelista está narrando os aconteci-
mentos três ou quatro décadas depois de terem acontecido, contra
um pano de fundo de muita hostilidade dos diversos grupos judaicos
em relação aos discípulos de Jesus, incluído aí o evangelista e os seus
leitores. O evangelista faz questão, então, de lembrar que essa hos-
tilidade já aparecera por parte da liderança judaica, dos seus líderes
sociais e religiosos, durante a vida de Jesus.

48
Isso pode explicar o conflito durante o ministério de Jesus e duran-
te o tempo do evangelista. O problema foi que o movimento cristão,
posteriormente, lendo Mateus, ampliou a hostilidade para além das
origens cristãs. Este texto foi usado durante a história para atribuir
culpa coletiva ao povo judeu em diversos períodos, o que provocou
ondas de antissemitismo que varreram repetidamente o mundo oci-
dental. Em toda a Europa, os judeus eram perseguidos como “assassi-
nos do Messias”, frequentemente com a autorização das autoridades
eclesiásticas.
Para não promover a lei da vingança que o próprio Jesus conde-
nou, é preciso lembrar que a hostilidade do evangelista é contra a li-
derança de Jerusalém, não o próprio judaísmo. Apesar do conflito de
Jesus contra os fariseus, por exemplo, é possível encontrar na frase
de Mt 23.1-3 que Ele concordava com muito do que eles ensinavam.
Jesus orienta os seus ouvintes a fazer o que os fariseus dizem, mas
não o que eles fazem. (Mt 23:1-3).
As fontes do período indicam também que, especialmente após
a guerra Judaico-romana (66-70), membros do movimento de Jesus
passaram a ser excluídos das sinagogas. Essa exclusão, em certas lo-
calidades, como Ásia e Síria, colocavam as comunidades de discípu-
los em rota de colisão contra os magistrados romanos.
Os relatos de perseguição descritos na correspondência de Plínio,
no início do século II, podem ilustrar o que acontecia quando mem-
bros das igrejas eram acusados de pertencer a uma religião nova,
considerada seita ilícita pelos romanos. Isso ajuda a entender que os
evangelhos nasceram num contexto de conflito mais acentuado com
os grupos judaicos do que no próprio tempo da vida de Jesus.

49
CAPÍTULO 2
Evangelho de Marcos
2.1 A AUTORIA DO EVANGELHO DE MARCOS
O Evangelho de Marcos é uma breve narrativa da vida de Jesus. Di-
ferentemente de Mateus ou Lucas, por exemplo, este evangelho não
fala da infância. Ele começa sua narrativa com João Batista, o pre-
gador carismático do deserto. Quando Jesus aparece em Marcos, é
para ser batizado por João. Logo em seguida, a agenda do ministério
de Jesus é apresentada (Mc 1:14-15): O reino de Deus está próximo,
e por isso os filhos de Israel devem se arrepender. Para cumprir esta
agenda ministerial, Jesus reúne um grupo de homens e mulheres em
torno de Si, como discípulos. Eles se juntam a Ele, na esperança de
que Jesus liberte sua nação do domínio romano.
Na primeira metade de Marcos, Jesus apresenta o reino, convidan-
do seus discípulos e o povo a reconhecer sua realeza. Em Cesareia de
Filipe, Pedro confessa Jesus como o Messias, o ponto de inflexão do
evangelho. A partir deste momento, Jesus os ensina que tipo de Mes-
sias Ele é, e o que significa ser um súdito do reino. Os discípulos lutam
para entender que seu ministério messiânico é do tipo sofredor, e que
Ele deve morrer para trazer a redenção. Eles se esforçam para saber
como deve ser a vida de uma pessoa neste reino: uma vida de amor
que carrega a cruz. O evangelho chega ao clímax com a traição dos
discípulos, o julgamento e a morte de Jesus. O relato de Marcos ter-
mina com as mulheres e os discípulos perplexos, se perguntando por
que a tumba está vazia. O evangelista sabe, certamente, a resposta,
mas ele convida os leitores a se fazerem ainda assim estas perguntas.

50
Neste ponto chegamos à questão mais tradicional quando o as-
sunto é um evangelho canônico: Quem o escreveu? Tradicionalmente,
João Marcos, um jovem discípulo de Jerusalém, é o escritor do se-
gundo evangelho do Novo Testamento, como aparece explicitado no
título do livro: Evangelho segundo Marcos. Ainda assim, esta questão
é recorrente e, curiosamente, tem recebido respostas diferentes no
decorrer da história do Cristianismo.
Embora a discussão de um evangelho chamado “Evangelho de
Marcos” possa surpreender algumas pessoas, essa questão não é
nova, especialmente quando se percebe que o texto, em si, não tem
qualquer assinatura. Em termos formais, ele é anônimo. O título vin-
culando-o ao nome de Marcos surgiu no século II.
A referência mais antiga à autoria de Marcos é encontrada em uma
citação de um certo Papias (70-163 d.C.), registrada na obra Histó-
ria Eclesiástica, de Eusébio de Cesareia (séc. IV). Papias foi bispo de
Hierápolis, na Ásia Menor e, de acordo com Irineu, foi “um ouvinte de
João e companheiro de Policarpo”. Papias teria dito, então: “Marcos,
tendo se tornado o intérprete de Pedro, escreveu com precisão o que
quer que tenha se lembrado das coisas ditas e feitas pelo Senhor, em-
bora não em ordem”. A última expressão provavelmente significava
que o relato de Marcos não seguia uma ordem cronológica.
Segundo Papias, Marcos não fora uma testemunha ocular de toda
a vida de Jesus, embora ele possa ter estado envolvido em alguns dos
eventos finais do seu ministério. De qualquer forma, a maior parte de
suas informações teria vindo diretamente de uma testemunha ocular,
o apóstolo Pedro.
Outros argumentos que poderiam apoiar essa posição de Papias
seriam:
1. As igrejas foram unânimes no início em relacionar o segundo evan-
gelho com Marcos e Pedro.
2. A passagem de 1Pe 5:13 indica que Marcos e Pedro estavam juntos

51
em Roma e que tinham algum tipo de vínculo de amizade: “A vossa
coeleita em Babilônia vos saúda, e meu filho Marcos”. A expressão “fi-
lho” sugere um bom relacionamento pai-filho entre Pedro e Marcos,
não muito diferente daquele de Paulo e Timóteo. Além disso, se File-
mom 24 e Colossenses 4:10 foram escritos de Roma, como é prová-
vel, Marcos também estava em Roma na época e em contato próximo
com Pedro e Paulo.
3. A forma como Mateus e Lucas usaram o Evangelho de Marcos pode
ser um sinal de que eles tinham seu relato em alta conta. O fato de
ambos usarem grandes porções de Marcos indica que atribuíram au-
toridade especial ao segundo evangelho. Talvez os autores de Mateus
e Lucas estivessem cientes de que Pedro estava por trás do Evange-
lho de Marcos.
4. Pedro aparece significativamente em Marcos, e algumas das refe-
rências são mais bem explicadas como vindas de Pedro (por exemplo,
Mc 11:21; 14:72, onde Pedro “se lembrou” de eventos). Além disso, al-
guns autores sugerem que o padrão do Evangelho de Marcos segue
razoavelmente de perto os arranjos da pregação de Pedro em Atos.
5. Outro fator citado em favor de Marcos é seu estilo literário. Há o uso
de “latinismos” no texto, sugerindo que ele escreveu em um contexto
romano. Há algumas palavras gregas tiradas do latim, como “centu-
rião” (Mc 15:39, 44, 45), “legião” (Mc 5:9, 15) e “denário” (Mc 6:37; 12:15;
14: 5). Seu estilo grego é simples e sem sofisticação. Ele também tem
muitos semitismos que se alinham com a forma como se falava no pri-
meiro século na Judeia de fala grega. Ele regularmente faz referência
ao aramaico e ao hebraico e fornece uma tradução grega.
6. Alguns têm sugerido que existe uma enigmática autorreferência
para o próprio autor na menção do jovem rapaz que fugiu nu durante
a prisão de Jesus: “E um certo jovem o seguia, envolto em um lençol
sobre o corpo nu. E lançaram-lhe a mão. Mas ele, largando o lençol,
fugiu nu”. (Mc 14: 51-52). Nesse caso, ele talvez tenha sido uma teste-

52
munha ocular; pelo menos até o fim da vida de Jesus. No entanto, a
ideia de que este jovem desnudo se trata de João Marcos é contesta-
da justamente em função de Papias ter dito que Marcos não era uma
testemunha ocular.
Se Papias estiver correto em sua lembrança, o Evangelho foi es-
crito por um certo Marcos em algum lugar perto do fim da vida de
Pedro. No entanto, é preciso reconhecer que a questão não é defini-
tiva, nem demanda ser transformada num elemento dogmático. Se
seu autor não considerou importante mencionar o próprio nome,
não faz muito sentido colocar um peso acentuado sobre esta ques-
tão, como se ela fosse parte da doutrina que seu livro quer anunciar.
O mais importante é entender que a igreja primitiva aceitou o Evan-
gelho como genuíno e digno de inclusão no Novo Testamento como
Palavra de Deus.
De qualquer forma, existem oito referências a “Marcos” no Novo
Testamento: At 12:12, 25; 15:37, 39; Cl 4:10; 2Tm 4:11; Fm 24; 1Pe 5:13.
A partir dessas passagens bíblicas, é possível dizer o seguinte so-
bre este homem:
- Ele também era chamado de “João” (At 13:5), daí o pseudônimo re-
gular, “João Marcos”.
- Seu primo era Barnabé (Cl 4:10), o que o coloca em relacionamento
com a parcela helenista do movimento de Jesus em Jerusalém. Os
helenistas de Atos eram judeus da diáspora que retornaram para a
cidade e se converteram no Pentecostes.
- Sua mãe era uma certa Maria, cuja casa era lugar de oração da igreja
de Jerusalém (At 12:12) e, talvez, também fora local da Última Ceia.
- Quando Barnabé e Saulo trouxeram uma coleta para os pobres da
igreja de Jerusalém durante o reinado de Cláudio (At 11: 27-30), eles
podem ter ficado com Maria e João Marcos. Eles provavelmente esta-
vam lá durante a decapitação de Tiago e a prisão de Pedro. Quando

53
voltaram para Antioquia, levaram João Marcos com eles como parte
da equipe (At 12:25).
- Marcos se tornou um missionário na igreja primitiva, viajando com
Paulo e Barnabé em sua primeira viagem missionária. No entanto,
Paulo e Barnabé tiveram uma disputa acirrada a respeito dele. Mar-
cos, por razões desconhecidas, mas que Paulo claramente conside-
rou inadequadas, deixou abruptamente a primeira viagem missioná-
ria na Panfília (At 13:13; 15:38) e voltou para Jerusalém.
- Quando chegou a hora da segunda viagem missionária, Barnabé
queria levar Marcos novamente. No entanto, Paulo não concordou
por causa da deserção anterior. Barnabé defendeu seu primo, o que
provocou forte divergência entre eles (At 15:39) e a consequente se-
paração. Barnabé e Marcos foram para Chipre para visitar os lugares
anteriormente visitados, enquanto Paulo foi com Silas para outros
lugares.
- Em Cl 4:10 e Fm 24, Marcos aparece novamente com Paulo em Roma,
como um colega de trabalho e, possivelmente, também um prisionei-
ro.
- Paulo descreveu Marcos como “muito útil para mim” em 2Tm 4:11.
Isso sugere que Paulo e Marcos se reconciliaram e voltaram a traba-
lhar juntos.
- Em 1Pe 5:13, Pedro também menciona Marcos como seu “filho”. É
provável, então, que Marcos tenha escrito seu Evangelho enquanto
esteve em Roma nessa época. A terna referência de Pedro a Marcos
como “filho” torna possível que em algum momento após o desen-
tendimento entre Paulo e Marcos, Pedro tenha colocado o jovem dis-
cípulo sob sua proteção.
Estudiosos que divergem da autoria marcana costumam argu-
mentar que Papias não é uma testemunha confiável. Vale lembrar o
que falamos sobre isso quando discutimos a autoria de Mateus, e a

54
curiosa afirmação de que o primeiro evangelho fora escrito em he-
braico. Como essa origem hebraica de Mateus é improvável, alguns
estudiosos se perguntam se Papias também não teria errado quando
falou de Marcos.
Estes mesmos autores entendem que é preciso tratar o evangelho
como ele se propôs a ser: um texto anônimo. A escolha pela anonimi-
dade teria sido deliberada. O autor poderia ter se apresentado em seu
texto, mas decidiu não fazer. A resposta para esta questão, entretan-
to, é que nenhum dos quatro evangelhos foi assinado pelo seu autor.
Os evangelistas não viam necessidade de fazê-lo. Um texto anônimo
seria a mais apropriada estratégia para tirar a ênfase do autor do re-
lato e colocar no conteúdo do evangelho.
Os estudiosos que rejeitam a autoria marcana entendem que seu
escritor anônimo vem de fora de Israel, e escreveu para um público
também estrangeiro por várias razões. Primeiro, a fluência de seu
grego e seu conhecimento da geografia da Palestina sugerem que não
nasceu na região. Em segundo lugar, o autor traduziu palavras e fra-
ses aramaicas para o grego (Mc 5:41; 7:34; 15:34). Isso sugere que seus
leitores também não eram da região. A tradução é uma ajuda para a
audiência. Além disso, os costumes judaicos aos quais Marcos se refe-
re são cuidadosamente explicados (por exemplo, Mc 7:2-4). Para estes
estudiosos, sendo então o autor anônimo, o texto poderia ter surgido
em Roma (como a tradição indicou), Alexandria (por causa dos co-
mentários feitos sobre o evangelho por Clemente de Alexandria), ou
Antioquia (local de origem das missões helenistas).
De qualquer forma, quando se pesa os argumentos, não há razões
suficientes para rejeitar a tradição. Podemos então tomar a hipótese
tradicional como autêntica, e considerar o evangelho como de auto-
ria do discípulo de Paulo e Pedro conhecido como João Marcos, mes-
mo reconhecendo as dificuldades inerentes a tal escolha.

55
2.2 A DATA DO EVANGELHO DE MARCOS
Certamente o ano da crucificação de Jesus (ano 30) é a data mais
recuada possível para o Evangelho de Marcos. Já última data possível
é a metade do II século, quando ele começa a ser citado em referên-
cias fora do Novo Testamento. Entre estas duas (30 e 150), três datas
para a produção de Marcos foram sugeridas, todas dentro do primei-
ro século.
Um pequeno número de estudiosos sugeriu que o Evangelho nas-
ceu numa data tão recuada quanto a década de 40. Charles Cutler
Torrey (1863-1956) sugeriu que a expressão “abominação desolado-
ra” de Mc 13:14 seria uma referência à tentativa de Calígula pôr sua
estátua no templo, em torno do ano 40. Ele também argumentou que
o evangelho nasceu originalmente em aramaico, e depois foi traduzi-
do para o grego.
J. W. Wenham, num artigo de 1972, propôs que Pedro deixou Jeru-
salém após ser libertado da prisão e foi para Roma em 42 para esta-
belecer a igreja, quando o Evangelho de Marcos foi escrito.
Outro pequeno número de estudiosos sugeriu que Marcos foi es-
crito na década de 50. Eusébio, escrevendo no IV século, diz que Pe-
dro estava em Roma durante o reinado de Claudius (41-54):

[Pedro] chegou à cidade de Roma, e com a grande ajuda do poder


que nela se assenta, em pouco tempo alcançou tamanho êxito
em seu empreendimento, que os habitantes do lugar chegaram a
honrá-lo como a um Deus, dedicando-lhe uma estátua. Não che-
garia muito longe esta prosperidade. De fato, pisando em seus
calcanhares, durante o próprio império de Cláudio, a providência
universal, santíssima e amantíssima dos homens, levava sua mão
em direção a Roma, como contra um tão grande flagelo da vida, o
firme e grande apóstolo Pedro, porta-voz de todos os outros devi-
do a sua virtude. Como nobre capitão de Deus, equipado com as

56
armas divinas, Pedro levava do oriente aos homens do ocidente
a apreciadíssima mercadoria da luz espiritual, anunciando a boa
nova da própria luz, da doutrina que salva as almas: a proclama-
ção do reino dos céus. (História Eclesiástica 2.14.5-6)

Autores que sugerem a década de 50 recorrem também ao final


de Atos como argumento. Atos termina abruptamente com Paulo em
uma prisão Romana, perto de 62. Se Lucas terminou o relato de Atos
neste momento para enviá-lo a Teófilo, e se Marcos foi usado como
base para o Evangelho de Lucas, como a maioria dos estudiosos
aceita, então Marcos pode ter sido escrito algum tempo antes de 60.
Neste caso, a década de 50 é apontada para colocar Marcos e Pedro
juntos em Roma num período recuado a ponto de servir de base para
Lucas e Mateus.
No entanto, isso não é conclusivo, já que Lucas poderia estar em
Roma e ter tido acesso ao Evangelho de Marcos logo depois de escri-
to, mesmo que a década seguinte fosse o período em que Pedro e
Marcos estiveram juntos na capital do Império. Se Lucas também es-
tivesse em Roma não haveria a necessidade de um grande intervalo
de tempo entre os Evangelhos.
Além do mais, há algumas evidências contrárias à presença de Pe-
dro em Roma na década de 50. A carta de 1Pedro narra sua presença
em Roma em torno de 63, um pouco antes da perseguição herodiana
e sua subsequente morte.
Outra obra do Novo Testamento, a carta que Paulo escreveu para os
Romanos (56-57), não faz qualquer referência a Pedro na cidade. Mesmo
se pudéssemos encontrar uma justificativa para esta omissão, como o
fato de Pedro ter estado antes e ter saído da cidade, ou que Paulo tenha
simplesmente omitido seu nome de propósito, este seria um forte indício
contrário à presença petrina em Roma na década de 50.
Assim, o mais provável é que Eusébio de Cesareia tenha se equi-
vocado no uso de suas fontes ao colocar Pedro na cidade durante o

57
reinado de Cláudio. Sendo assim, a década de 50 baseada apenas na
presença de Pedro na cidade é uma hipótese frágil e adotada por pou-
cos estudiosos.
A perseguição de Nero, que vitimou tanto Paulo quanto Pedro, se
deu nos anos 64 e 65. Um pouco depois começaria a guerra judaico
-romana (66-70). A maioria dos estudiosos entende que o Evangelho
de Marcos nasceu então entre estes dois terríveis eventos para o Ju-
daísmo e o movimento de Jesus.
Esta é a posição da maioria dos estudiosos por algumas razões
principais. - Em primeiro lugar, a tradição antiga favorece que Marcos
seja escrito em torno da data da morte de Pedro (ou seja, década de
60).
- Em segundo lugar, a evidência interna favorece um contexto de per-
seguição em Roma, aludido por meio de expressões em que os dis-
cípulos devem “tomar sua cruz” para seguir Jesus, ou as repetidas
referências às perseguições que os discípulos iriam enfrentar.
- Em terceiro lugar, está a queda de Jerusalém em 70. Enquanto al-
guns encontram alusões explícitas para a queda em Mateus (22:7) e
Lucas (19:43), sugerindo que escreveram depois desse evento, Marcos
13 parece falar do evento numa perspectiva profética, como se ainda
não tivesse ocorrido (Mc 13: 2, 14:58; 15:29). Se assim for, isto suporta
uma data antes de 70.
Uma boa sugestão seria, então, localizar o Evangelho de Marcos
entre 65 e 70, após a perseguição herodiana e antes da destruição de
Jerusalém.

2.3 A COMUNIDADE DE MARCOS


Roma é o local mais provável para a origem de Marcos. Isso é apoia-
do pela tradição da igreja primitiva. Por exemplo, o chamado Prólogo
antimarcionita de Marcos, Irineu (Contra as Heresias 3.1.2), Clemente
de Alexandria (150-215) e Eusébio de Cesareia (Hist. Ecl. 6.14.6-7) su-

58
gerem que Marcos foi escrito “nas regiões da Itália”. Outros aspectos
que apoiam Roma incluem: o uso de latinismos; a menção dos filhos
de Simão de Cirene, Alexandre e Rufo, que talvez fossem conhecidos
por Marcos em Roma (Rm 16:13); o público aparentemente gentio
como evidenciado pelos semitismos; as alusões ao sofrimento e às
perseguições; 1Pe 5:13, que coloca Marcos e Pedro juntos em Roma;
Cl 4:10 e Fm 24, que também colocam Marcos em Roma; e a conexão
histórica do Evangelho de Marcos com Roma.
No entanto, embora essas razões sejam significativas, alguns não
as consideram totalmente conclusivas e defendem outras opções.
O Egito tem algum apoio em Crisóstomo (Hom. Mat. 1.3) e, possi-
velmente, em uma suposta carta de Clemente de Alexandria que diz
que Marcos, depois de escrever seu Evangelho em Roma com Pedro,
foi para Alexandria, onde compôs um “mais profundo Evangelho de
orientação gnóstica”. Alguns sugerem Antioquia, observando a cone-
xão de Pedro com Antioquia (Gl 2:11). Galileia e Síria também foram
sugeridas como opções devido à proeminência da Galileia na narrati-
va. Mesmo assim, Roma continua sendo a opção mais provável.
A década de 60 na cidade de Roma foi turbulenta para o movimen-
to de Jesus. De acordo com Tácito, para colocar um fim ao rumor de
que havia incendiado a cidade, Nero jogou a culpa sobre os cristãos.
Por isso, muitos discípulos foram presos, torturados e sentenciados à
morte. Uma multidão imensa sofreu significativamente. Seguidores
de Jesus foram embrulhados em peles de feras e desmembrados por
cães; outros foram pregados em cruzes; outros, quando faltou luz do
dia, foram incendiados para servir de lâmpadas à noite no jardim de
Nero, como uma exposição de circo. De acordo com Tácito, isso aca-
bou gerando certa comoção pública, pois eles estavam sendo mortos
para “satisfazer a crueldade de um único homem” (Tácito, Annales
15.44).
Outro evento traumático desta década foi a guerra judaico-roma-
na que ocorreu entre 66 e 70 na Judeia, que resultou na destruição de

59
Jerusalém e do Templo. Muitos judeus morreram no conflito, e apesar
do movimento de Jesus ter se afastado da região na fase inicial, as no-
tícias da guerra eram difíceis de ignorar. Afinal, os discípulos de Jesus
guardavam vínculo étnico com o Judaísmo e entendiam as mortes
como de seus irmãos, mesmo que eles não tivessem a mesma pers-
pectiva acerca do messianato de Jesus. Essas notícias certamente
chegaram a Roma, onde Marcos, Paulo e Pedro já estariam nesta épo-
ca. Perseguição em Roma e destruição de Jerusalém são dois eventos
que subjazem ao Evangelho de Marcos a ponto de alguns estudiosos
denominá-lo de “evangelho de tempos de guerra”.
Faz sentido também que neste momento em que a vida dos gran-
des líderes da igreja estava sob ameaça, alguém tenha buscado con-
servar e estabilizar as tradições sobre Jesus.
Marcos deve ser interpretado, assim, à luz desta crise entre o Im-
pério e o movimento de Jesus. Sob a sombra de Nero, um impera-
dor despótico, o evangelista narra a história de um novo tipo de rei,
um messias que não causou morte ou sofrimento a qualquer pessoa.
Mesmo não tendo cometido crime algum, ele foi morto por causa
de um conluio entre autoridades romanas e seu próprio povo judeu.
Marcos inverte as expectativas de como um rei triunfante seria espe-
rado naquele cenário histórico.
Jesus não é uma figura militar ou política do tipo Alexandre Mag-
no ou Júlio César, que buscavam glória, fama e honra por meio da
conflitos militares e intrigas políticas. Ele não agiu como a expecta-
tiva messiânica davídica do antigo Israel esperava. Em vez disso, Ele
é o humilde servo sofredor, que vem com amor, sacrifício e morte,
erguendo-se para governar as nações e chamando seus súditos para
seguirem seus passos carregando cruzes, em vez de espadas. Em sua
vida de rei, em vez de impor a morte a outras pessoas, Ele mesmo
sofreu a morte para mostrar à humanidade um novo caminho para
Deus. Ele foi morto pelos reis deste mundo, mas é o próprio Rei do
mundo. Ele passou por sofrimento e pela morte.

60
Ao contrário de Augusto, que estabeleceu a Pax Romana através da
força militar, Ele vem para estabelecer a Pax Dei (a paz de Deus), não
através de ação violenta, mas por meio de sua aparente derrota na cruz.
Através de sua morte, Ele triunfou sobre a morte e se tornou o Christus
Victor (Cristo Vitorioso). Ele realizou muitos milagres, curando diversas
pessoas e alimentando tantas outras. Ele é rei que prefere servir seu
povo, em vez de exigir escravidão e sacrifício. Ele veio para formar um
grupo de seguidores que não o acompanham por medo ou pavor, mas
por amor e gratidão. Todos estes temas podem ser vistos como reflexo
do contexto de conflito imperial do evangelista e seu público.
Na época de Marcos, havia entre 40.000 a 60.000 judeus em Roma.
Inscrições e registros indicam que existia uma tensão considerável
entre eles e a sociedade romana, nos anos em torno da produção
do Evangelho. Suetônio registra que durante o reinado de Claudius
(41-54) “o Imperador expulsou os judeus de Roma, porque eles esta-
vam constantemente causando distúrbios por causa da instigação de
Cresto” (Suetônio, Claudius, 25.4). Vários estudiosos tomam esta re-
ferência a “Cresto” em Suetônio como uma referência a “Cristo”. Essa
confusão poderia ser por causa do pouco conhecimento que este his-
toriador romano tinha dos judeus e do movimento de Jesus. Assim é
provável mesmo que ele esteja fazendo referência a distúrbios entre
os judeus por causa da pregação de Cristo. Estes distúrbios teriam
provocado uma ação rígida do Imperador, que resolveu expulsá-los
de Roma em 49. É preciso destacar que uma ação destas, apesar do
testemunho de Suetônio, não deve ter sido total e generalizada. Ou
seja, nem todos os judeus necessariamente saíram da cidade, ou fica-
ram para sempre exilados. Alguns ficaram, outros retornaram depois.
De qualquer forma, a presença de Áquila em At 18.2 parece ser resul-
tado desta ação de Cláudio.
A carta para os romanos em 56-58 pode aludir a tensões entre ju-
deus da sinagoga e judeus do movimento de Jesus, depois que eles
retornaram (Rm 9-11; 14-15). As tensões crescerão a ponto de os

61
próprios romanos já perceberem certa diferenciação entre os dois
grupos. Foram os pagãos, por sinal, que começaram a usar o termo
“cristãos” para descrever os membros do movimento de Jesus, para
distingui-los dos demais judeus. Isso, aliado ao fato da igreja estar se
tornando um fenômeno predominantemente gentio, gerou a suspei-
ta romana de que a igreja era uma nova religião, ou religião ilícita.
O fato de Nero culpar os “cristãos” pelo incêndio indica que o movi-
mento de Jesus era percebido não mais visto como uma seita judaica.
O grupo em torno do evangelista era formado, então, de uma maioria
gentílica. Daí a necessidade do uso de aramaísmos, expressões he-
braicas e aramaicas traduzidas, explicação dos costumes judaicos e
o uso regular de latinismos. Isso reflete os traços do grupo em torno
de Marcos, grupo esse que seria também a comunidade de destino
do evangelho. Marcos foi escrito neste contexto e para este contexto.
Esses dados indicam que Marcos escreveu para leitores gentios,
cujo quadro de referência principal era o Império Romano, cuja língua
nativa era o latim, e para quem a terra e o caráter judaico de Jesus
não eram tão conhecidos. Para eles o evangelista compôs seu evan-
gelho, procurando explicar-lhes quem foi Jesus, o Messias que viveu
na Judeia.

2.4 QUEM É JESUS NO EVANGELHO DE MARCOS


O Evangelho de Marcos é a história do ministério messiânico de
Jesus. Não é uma biografia, nem mesmo uma narrativa exaustiva da
vida de Jesus. É a história do ministério de Jesus, que começou com o
batismo e terminou com sua crucificação e ressurreição.
No Evangelho, Jesus é o Messias, o Filho de Deus, que veio estabe-
lecer o reino divino (Mc 1:1). Marcos deseja que seus leitores respon-
dam com arrependimento e fé a esta mensagem (Mc 1:14-15). Diante
de uma audiência romana, Marcos insiste que Jesus é o verdadeiro
César, o Filho de Deus, que salvará e trará a libertação divina.

62
O evangelista não tem qualquer interesse em eventos anteriores
ao início do ministério de Jesus. Não há qualquer referência à sua
infância ou juventude. Curiosamente, ele também não conta quase
nada após a morte. Ele quer terminar a história de Jesus com o anún-
cio do túmulo vazio, e não trabalha muito as consequências deste tú-
mulo vazio. Assim, seu grande interesse é o ministério de Jesus que
começa com o batismo e culmina na sua morte.
Sobre este ministério, ele fala dos milagres, da pregação por meio
de parábolas, da dificuldade dos discípulos em compreender quem
Jesus é, seus encontros controversos com a liderança judaica, sua en-
trada dramática em Jerusalém para cumprir a profecia das Escrituras
judaicas, e, por fim, os eventos em torno da crucificação.
Marcos faz questão de mostrar que Jesus é o Messias sim, mas não
segundo as expectativas dos judeus contemporâneos. Eles não espe-
ravam que Ele cumprisse a profecia do servo sofredor de Is 53, em vez
do que o libertador triunfante. O Evangelho termina com a surpre-
endente notícia da ressurreição de Jesus e da esperança para todos.
Embora rejeitado por seu próprio povo e morto pelo procurador ro-
mano Pilatos, Jesus é o Rei ressuscitado de todos os reis.
Isso significa que o núcleo do Evangelho de Marcos é a questão
da identidade de Jesus. Para trabalhar esta questão, ele se concentra
em diferentes grupos e suas respostas à pessoa de Jesus. Claramen-
te, Marcos sabe quem é Jesus ao contar a história na perspectiva da
ressurreição. Jesus é o Filho de Deus, o representante divino de Deus,
que se dirigiu a Deus como “Aba, Pai” (Mc 14:36) e que viveu em rela-
cionamento íntimo com Ele. César era frequentemente mencionado
como “filho de Deus”. Marcos faz questão de dizer que Jesus é o ver-
dadeiro Filho de Deus, e Rei sobre todas as nações.
Jesus é, então, o Filho de Deus, mas também é o Filho do Homem,
termo que faz referência às expectativas messiânicas de Daniel e ou-
tras tradições judaicas que esperavam pela vinda de “um como um

63
Filho do Homem” para trazer o reino de Deus (Dn 7:13-14; 1En 37-71).
Como Filho do Homem, Ele é o Senhor supremo sobre o sábado, o
agente de Deus para estabelecer o reino. Ele é a presença divina con-
creta, o verdadeiro Senhor na terra. Ele é o Senhor sobre todo o mun-
do e, portanto, acima de todos os pretendentes terrenos (incluindo
o Imperador). Ele é o professor, aquele que ensina com autoridade e
traz a palavra de Deus ao seu povo (Mc 1:22; 4:38; 5:35; 9:17, 38; 10:17,
20; 12:14, 19, 32; 13: 1; 14:14). Como tal, Ele é a sabedoria de Deus
(como Pv 8:22-31; 1Co 1:30). Ele é aquele que perdoa o pecado como
o próprio Deus (Mc 2:9-10). Ele galardoa, cura, ressuscita os mortos e
realiza milagres sobre a natureza, como caminhar sobre as águas e
acalmar uma tempestade.
Para Marcos, Jesus é o Ressuscitado, o Messias, o divino Filho de
Deus, cumprindo as esperanças das Escrituras. Ele é o vencedor de
Satanás, que veio libertar o mundo de sua influência. Ele vence Sa-
tanás no deserto, expulsa os demônios nos exorcismos, frustra-o na
cruz, vence a morte e abre a salvação para o mundo. A missão de Je-
sus é inicialmente entre os judeus, mas se estenderá a todas as na-
ções à medida que a mensagem for pregada. Em cumprimento da
profecia de Is 53, Jesus é o servo sofredor que veio como o Messias e
morreu pelo mundo.
A narrativa de Marcos inclui diferentes respostas que as pessoas
deram ao ministério de Jesus. Alguns compreenderam quem é Ele,
como João Batista, que profeticamente reconhece o caráter messi-
ânico de Jesus (Mc 1:7-8). De forma semelhante, mas curiosa, os de-
mônios reconhecem quem é Ele, apesar de com alguma relutância,
incapazes de resistir à sua autoridade e poder (Mc 1:23-24; 3:11; 9:20).
Algumas figuras lutam para entender quem Ele é, como os discí-
pulos, que o seguem sem hesitação (Mc 1:16-20; 2:13-17). No entanto,
enquanto o seguem, fascinados com seu caráter, milagres e ensina-
mentos, eles têm dificuldade para compreender quem ele realmente
é. O fato de todos fugirem ou se esconderem no momento da cruci-

64
ficação, sem contar a negação tripla de Pedro, aponta para o fato de
que eles possivelmente não chegaram a compreender plenamente
o tipo de ministério messiânico que Jesus veio implantar. Fica claro
como suas expectativas se equivocam no final.
Esta incompreensão é vista em diferentes pontos na narrativa. Por
exemplo, no barco os discípulos estão com medo, clamando por aju-
da, e quando Jesus os salva, eles ficam aterrorizados e incrédulos (Mc
4: 35-41). Novamente, quando Jesus anda sobre as águas, os discípu-
los ficam maravilhados, atônitos, porque ainda não tinham entendi-
do a força do milagre da alimentação (Mc 6: 48-52). Eles deveriam ter
reconhecido que Jesus é o Messias por ter alimentado o povo no de-
serto como Deus fez por Israel (Êx 16). A segunda alimentação serve
para repetir isso e termina com Jesus perguntando: “Vocês ainda não
entenderam?” (Mc 8:21).
As diferentes respostas a Jesus são descritas no relato da mor-
te de João Batista. Alguns, como Herodes, consideram Jesus como
sendo João Batista ressuscitado dos mortos (Mc 6:14; 8:28). Outros
consideram que Ele é Elias, que retornou à terra depois de sua trans-
ladação ao céu, em cumprimento da profecia de Malaquias (Mc 6:15;
8:28; 2Rs 2; Ml 4:5-6). Alguns o consideram meramente um profeta em
linha com os profetas do Antigo Testamento (Mc 6:15). Essas perspec-
tivas preparam o terreno para a confissão de Pedro de que Jesus era
o Messias em Mc 8:29.
Os discípulos são como outros judeus que não entendem plena-
mente Jesus. A declaração cristológica de Pedro em Mc 8.29 é um
ponto de inflexão no Evangelho. Após ela, Jesus apresenta para eles
seu caminho do servo sofredor de Is 53: Ele iria sofrer, morrer e res-
suscitar.
As palavras de Pedro estão corretas, mas nem ele mesmo alcançou
sua real profundidade. Pouco depois, os discípulos são novamente
pegos em equivocadas expectativas messiânicas. Eles não entendem

65
completamente quem é Jesus até depois da ressurreição. A figura
de Pedro domina Marcos. No evangelho, Pedro é o primeiro e último
discípulo mencionado (Mc 1:16; 16:7); está entre os primeiros a res-
ponderem à sua chamada (Mc 1:16-20; 3:16); faz parte do círculo mais
íntimo de discípulos, junto com João e Tiago (Mc 5:37; 13:3; 14:33);
reconhece Jesus como o Messias (Mc 8:29); experimenta a repreen-
são de Jesus por duvidar da necessidade da morte (Mc 8:32-33); está
com Jesus no Monte da Transfiguração, enquanto se oferece para “fa-
zer três tendas” (Mc 9:5); é o porta-voz dos discípulos (Mc 8:29; 10:28;
11:21); declara que nunca negará Jesus, apenas para fazê-lo logo de-
pois, terminando humilhado (Mc 14:29,31,54, 66-72); fica com Jesus
no jardim, mas adormece após ser instruído a orar (Mc 14:37).
A história de Pedro forma um paradigma da história de todos os
outros discípulos. De Mc 1:16 a 8:29, os discípulos continuam a crescer
em sua realização até que Pedro verbaliza a declaração cristológica.
Mesmo que eles não tenham entendido naquele momento, três vezes
Jesus afirma que vai sofrer, morrer e ressuscitar. A visão de mundo
dos discípulos está dominada pelo desejo de alcançar a autonomia
política diante do Império Romano. Eles acreditam que o Messias es-
tabelecerá o reino de Deus por meio de um poder militar sobrenatu-
ral.
Este conflito de expectativas também pode explicar parcialmente
os judeus que rejeitaram completamente Jesus. Judas inicialmente
aceita a chamada para seguir Jesus, mas em seguida rejeita e o trai.
As pessoas da cidade natal de Jesus também falham em entender
quem Ele é, incapazes de acreditar que o filho de Maria poderia ser o
Messias profetizado. Como resultado, Marcos registra que Jesus não
pôde fazer milagres, exceto curar algumas pessoas ali (Mc 6:1-6).
Ao longo de Marcos, há uma oposição crescente dos líderes judeus
a Jesus, começando já em Mc 2:6, quando Jesus perdoa o paralíti-
co. Eles aparecem em debates contínuos (Mc 2:16; 7: 1-23; 9:14; 11:27;
12:14, 19, 28) e o acusam de operar por meio de forças demoníacas

66
(Mc 3:22). O Evangelho apresenta o desejo dos líderes judeus de ma-
tar Jesus (Mc 8:31; 10:33; 11:18; 14:1, 43, 53; 15: 1, 31). De muitas ma-
neiras, esse conflito é o ponto crucial da história. A oposição cresce a
ponto de pendurá-lo na cruz.
Outro grupo mencionado no Evangelho, a multidão, é formado de
uma massa de pessoas que o acompanha eventualmente atrás de al-
gum benefício. Eles não chegam a compreender quem é Jesus, mas
percebem que Ele pode satisfazer algumas de suas necessidades,
como cura, exorcismo e comida. No final do ministério, entretanto,
estas pessoas facilmente pediram sua cabeça a Pilatos, em vez de
Barrabás. O Evangelho termina com esta nota de rejeição do povo de
Israel ecoando no ar.
Em função deste conflito de expectativas e da oposição que Ele
enfrentou, Jesus recorre àquilo que os estudiosos chamaram de “se-
gredo messiânico”, onde Marcos repetidamente observa Jesus orde-
nando aos demônios e às pessoas que não revelassem quem Ele é
(por exemplo, Mc 1:34, 44; 3:12; 5:43; 8:30). Aparentemente, o conheci-
mento de sua identidade poderia acentuar as falsas expectativas das
pessoas.

2.5 O MINISTÉRIO DE JESUS


A maior parte do Evangelho de Marcos gira em torno do ministério
de Jesus. Os principais eventos de sua parte inicial giram em torno da
chamado e nomeação dos discípulos (Mc 1:16-20; 2:13-14; 3:16-19), do
ensino e da pregação a respeito do Reino de Deus (Mc 1:21-28, 38-39;
4:1-34), da cura e libertação de diferentes pessoas. O Evangelho apre-
senta ainda Jesus em oração (Mc 1:35-37), alimentando os pobres em
duas ocasiões diferentes e realizando milagres sobre a natureza.
Há relatos de encontros de Jesus com homens e mulheres, judeus
ou gentios, individualmente ou em grupo. Ele é amigo de pecadores,
leprosos, crianças e outros marginalizados, desafiando as expectati-

67
vas que os judeus da época colocavam sobre os contatos possíveis
para um rabino em relação a pessoas impuras da sociedade. Jesus
diz, entretanto, que essas eram exatamente as pessoas que Ele veio
buscar, para restaurar o relacionamento delas com Deus e com o
povo de Deus, do qual elas foram erroneamente excluídas (Mc 2:17).
Jesus ministra às pessoas por meio do serviço e do amor, sem recor-
rer a alguma revolução política ou militar.
Curiosamente, além da questão do governante rico (Mc 10: 17-31)
e da viúva generosa (Mc 12:41-44), o Evangelho desenvolve pouco a
questão do pobre, que ocupa um lugar proeminente no Evangelho de
Lucas. No entanto, a ênfase na renúncia ao materialismo, à ganân-
cia aparece por meio da chamada por uma generosidade radical (Mc
6:37).
O ministério de Jesus é descrito como um confronto contínuo com
as perspectivas religiosas judaicas, especialmente dos fariseus e es-
cribas. Neste sentido, o Evangelho fala do perigo do derramamen-
to de vinho novo em odres velhos (Mc 2:19-22). Em particular, Jesus
questiona a visão deles sobre o sábado (Mc 2:23 - 3:6) e a comida (Mc
7:1-23).
A limpeza do templo e a maldição da figueira também são desafios
simbólicos para a liderança judaica (Mc 11:12-25). A limpeza do tem-
plo é um ataque à forma como os líderes transformaram a fé de Israel.
A maldição da figueira aponta para a esterilidade de Israel quando o
período da velha aliança terminar e o reino for inaugurado por meio
de Jesus.
Um dos pontos fortes de Marcos é a maneira como os poderes das
trevas aparecem. Além da derrota de Satanás na narrativa da tenta-
ção (Mc 1:12-13), durante a controvérsia de Belzebu, Jesus declara que
o reino de Deus veio para saquear o reino de Satanás (Mc 3:22-30). A
repreensão de Jesus a Pedro (Mc 8:33) também ilustra a forma como
o evangelista percebe a figura de Satanás. Neste sentido, Marcos se

68
aproxima da teologia paulina, na afirmação que o ministério de Jesus
implica a libertação do mundo das garras de Satanás.
A proclamação de Jesus às multidões em Marcos é feita por meio
de parábolas (Mc 4:1-20). Para o evangelista, esta estratégia de Jesus
é cumprimento da profecia de Isaías (Is 6: 9-10), que a pregação da pa-
lavra de Deus iria resultar no endurecimento dos corações em vez de
conduzir ao arrependimento (Mc 4:11-12), indicando que esta abor-
dagem estava relacionada com os propósitos de Deus para o povo de
Israel naquela época.
Os blocos de ensino em Marcos são menores, quando comparados
com Mateus e Lucas (comparar com Mt 5-7; Lc 6). No entanto, existem
ditos espalhados pelas narrativas dos encontros de Jesus. Isso enco-
raja a apresentação do testemunho (Mc 4:21-23), a bênção de Deus
(Mc 4:24-25), a humildade (Mc 9:33-35), o acolhimento de crianças (Mc
9:36-37), ser como criança (Mc 10:13-16), a renúncia do pecado (Mc 9:
47-50), divórcio (Mc 10:1-12), riqueza (Mc 10:17-31), bênçãos presentes
e futuras (Mc 10:29-31), a liderança (Mc 10:35-45).
Durante o embate teológico com alguns líderes dos judeus na che-
gada a Jerusalém, Jesus também ensinou sobre o pagamento de im-
postos (Mc 12:13-17), a ausência de casamento na ressurreição (Mc
12:18-27), o amor a Deus como o maior mandamento (Mc 12:28-34),
o senhorio do Messias, a generosidade radical (Mc 12:41-44), a des-
truição do templo e seu retorno glorioso no final dos tempos (Mc 13).
Portanto, o relato marcano é focado mais no compromisso radical
com o discipulado e no chamado para tomar a cruz e seguir a Jesus, e
desenvolve pouco questões éticas ou morais.
2.5.1 JOÃO BATISTA, O PRECURSOR
O Evangelho de Marcos começa com uma citação misturada de
Malaquias e Isaias (Ml 3:1; Is 40:3), e declara desde o início que este
evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus, é o cumprimento de espe-
ranças longamente mantidas na história de Israel.

69
Vejamos as três passagens em paralelo:
Malaquias 3:1 Isaias 40:3 Marcos 1:2-4
Como está escrito nos pro-
fetas: Eis que eu envio o
Eis que eu envio o meu meu anjo ante a tua face,
mensageiro, que prepa- o qual preparará o teu
rará o caminho diante Uma voz clama: caminho diante de ti.
de mim; e de repente “No deserto preparem Voz do que clama no
virá ao seu templo o o caminho para o Sen- deserto: Preparai o camin-
Senhor, a quem vós hor; façam no deserto ho do Senhor, Endireitai
buscais; e o mensage- um caminho reto para as suas veredas.
iro da aliança, a quem o nosso Deus. Apareceu João batizando
vós desejais, eis que Ele no deserto, e pregando
vem, diz o Senhor dos
o batismo de arrependi-
Exércitos. mento, para remissão dos
pecados.

O papel de João Batista, como o precursor de Jesus e seu ministé-


rio, atende à expectativa judaica de que alguém como Elias viria antes
do Messias para preparar o seu caminho: “Eis que eu vos enviarei o
profeta Elias, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor; E ele
converterá o coração dos pais aos filhos, e o coração dos filhos a seus
pais; para que eu não venha, e fira a terra com maldição” (Ml 4:5,6).
Desta forma, o ministério de João é a ligação entre a antiga aliança e
o ministério de Jesus.
A passagem abaixo apresenta as características ascetas do profeta
Elias:

Então Elias, o tisbita, dos moradores de Gileade, disse a Acabe:


Vive o Senhor Deus de Israel, perante cuja face estou, que nes-
tes anos nem orvalho nem chuva haverá, senão segundo a minha
palavra. Depois veio a ele a palavra do Senhor, dizendo: Retira-te
daqui, e vai para o oriente, e esconde-te junto ao ribeiro de Queri-
te, que está diante do Jordão. E há de ser que beberás do ribeiro;
e eu tenho ordenado aos corvos que ali te sustentem. Foi, pois, e
fez conforme a palavra do Senhor; porque foi, e habitou junto ao
ribeiro de Querite, que está diante do Jordão. E os corvos lhe tra-

70
ziam pão e carne pela manhã; como também pão e carne à noite;
e bebia do ribeiro. (1 Rs 17:1-6)

João foi um profeta não diferente de Elias: “E João andava vestido


de pelos de camelo, e com um cinto de couro em redor de seus lom-
bos, e comia gafanhotos e mel silvestre”. (Mc 1:6). Ele também viveu
no deserto, sobrevivendo de mel e gafanhoto, vestido como um ho-
mem selvagem.
No deserto, ele batizou pessoas, chamando-as ao arrependimento
e fidelidade à aliança, e as preparou para encontrar seu messias. Se-
gundo Marcos, houve uma enorme resposta ao chamado do Batista:
“toda a Judeia e Jerusalém” saíram ao seu encontro. Esta expressão
não significa necessariamente a totalidade das pessoas, mas indica
o grande número de gente que ia até João Batista. Indica ainda que
havia um reconhecimento generalizado de que os tempos estavam
maduros para a irrupção messiânica.
Havia uma tradição judaica antiga que entendia que a profecia ces-
sara com o profeta Malaquias, como podemos ver em 1Macabeus 9:27:
“A opressão que caiu sobre Israel foi tal, que não houve igual desde a
época em que tinham desaparecido os profetas.” Assim, o surgimento
de João Batista anunciou que uma nova era havia surgido.
O papel de João então é direcionar sua audiência para longe de si
mesmo, para o personagem principal, que não apenas batizaria com
água, mas batizaria “com o Espírito Santo e com fogo” (Mt 3:11). O ba-
tismo de Jesus foi, assim, uma coroação como Rei e Messias, mas um
tipo de Rei e Messias que era igualmente servo.
O sinal do céu rasgado é visto, indicando que o tempo do Reino
chegou, e com ele, o céu invade a terra e inverte o evento da queda:
“Então, o véu do Lugar Santíssimo rasgou-se em duas partes, de alto
a baixo”. (Mc 15.38)
A imagem do Espírito como uma pomba sobre Jesus alude ao Espí-

71
rito que pairava sobre as águas primordiais de Gn 1. A mensagem de
Marcos é que Deus está vindo para restaurar a criação.

E aconteceu naqueles dias que Jesus, tendo ido de Nazaré da Gali-


leia, foi batizado por João, no Jordão. E, logo que saiu da água, viu
os céus abertos, e o Espírito, que como pomba descia sobre ele. E
ouviu-se uma voz dos céus, que dizia: Tu és o meu Filho amado em
quem me comprazo. (Mc 1:9-11)

João Batista é um importante precursor de Jesus. Ele prepara o


caminho e constrói uma ponte sobre as eras. Ele é o cumprimento
do antigo e aponta para o novo. Ele é o último dos profetas de Israel
e a primeira testemunha do Messias. Ele é o primeiro proclamador da
boa notícia de que Deus surgiu entre os homens na pessoa de Jesus.
A morte de João colocou um fim à sua participação no ministério
de Jesus. De qualquer forma, sua influência espiritual continuou entre
o povo, a ponto de Herodes imaginar que Jesus seria o João Batista
ressuscitado dos mortos: “E ouviu isto o rei Herodes (porque o nome
de Jesus se tornara notório), e disse: João, o que batizava, ressuscitou
dentre os mortos, e por isso estas maravilhas operam nele”. (Mc 6:14)
Mas João não era Jesus, nem o Messias. Ele era o precursor do
Messias:

E interrogaram-no, dizendo: Por que dizem os escribas que é ne-


cessário que Elias venha primeiro? E, respondendo ele, disse-lhes:
Em verdade Elias virá primeiro, e todas as coisas restaurará; e,
como está escrito do Filho do homem, que ele deva padecer mui-
to e ser aviltado. Digo-vos, porém, que Elias já veio, e fizeram-lhe
tudo o que quiseram, como dele está escrito. “Mc 9:11-13)

A morte do Batista simbolizou, então, o culminar das Escrituras


judaicas e a inauguração de uma nova era, um novo pacto, em que
pessoas de todas as nações vêm a Deus por meio de seu Messias. A

72
sua execução significa que a obra dos profetas se completou, porque
o tão esperado Messias chegou.

2.6 O EVANGELHO DA AÇÃO


Uma das características de Marcos é seu foco na ação, em vez de
nos ensinos. Mas que tipo de ação encontramos em Marcos? É de um
tipo que não está preocupado com a cronologia exata, pois o que ele
valoriza são as obras de Jesus e a demonstração do que devemos e
não devemos fazer enquanto seus discípulos.
O Evangelho de Marcos muda as cenas rapidamente com poucas
marcas de tempo. Entre um e outro relato há a expressão “imediata-
mente”, que ocorre quarenta e duas vezes no texto. O uso regular desta
expressão dá a impressão de Jesus movendo-se constantemente, rea-
lizando milagres, lidando com a oposição e ensinando seus seguidores,
sem parada ou pausa. Mas é bom lembrar que esta é uma estratégia
narrativa. Deve ter ocorrido algum espaço de tempo entre um evento e
outro, mas o texto não esclarece exatamente quanto tempo foi.
Na prática, o evangelista não está mesmo preocupado com a ques-
tão das durações. Além da expressão mencionada acima, há outras,
como “e isso aconteceu” (nove vezes), indicando a passagem de um
assunto para o outro, mas não informando o tempo que levou.
O evangelista fala que Jesus passou quarenta dias no deserto, mas
não disse em que época do ano isso aconteceu. Pode ser em qual-
quer período (Mc 1:13). Jesus entra na Galileia e prega (Mc 1:14). Logo
depois, Ele está do outro lado do lago (Mc 1:16; 2:13; 3:7-12). Um le-
proso se aproxima (Mc 1:40). “Depois de alguns dias”, Ele volta para
Cafarnaum (Mc 2:1), sobe uma montanha (Mc 3:13), volta para casa
(Mc 3:20; 6:1), é encontrado por escribas vindos de Jerusalém (Mc
3:22), sua família o visita (Mc 3: 21,31). Ele começa a ensinar (Mc 4:1)
e o faz durante um capítulo inteiro de parábolas (Mc 4). Ele vem para
o outro lado do mar (Mc 5:1), atravessa novamente para o outro lado

73
(Mc 5:21), chama e envia os Doze (Mc 6:7), e nesse mesmo dia caminha
sobre as águas (Mc 6:45-52).
Jesus visita Tiro e Sidom (Mc 7:24) e retorna à Decápolis, na Galileia
(Mc 7:31). Às vezes, os fariseus vão até ele (Mc 7:1; 8:11), e os discípulos
se esquecem do pão (Mc 8:14). Eles vêm para Betsaida (Mc 8:22), para
Cesareia de Filipe (Mc 8:27), sobem uma montanha seis dias depois
(Mc 9: 2), e então descem a montanha (Mc 9:9,14). Eles chegam a Ca-
farnaum (Mc 9:33). Depois, Jesus parte em sua jornada para a Judeia
(Mc 10: 1) e chega a Jericó (Mc 10:46).
Eles chegam a Jerusalém (Mc 11:1,11). Depois vão e voltam de Be-
tânia, diariamente (Mc 11:12, 15, 19, 20, 27), com os capítulos 12 e 13
em uma sequência. A paixão começa com Jesus em Betânia (Mc 14:3),
depois segue para Jerusalém (Mc 14:13,17), com a cena do Monte das
Oliveiras (Mc 14:26) e do Getsêmani (Mc 14:32), seguido por sua prisão
e os eventos finais da vida de Jesus.
Em alguns momentos, não há qualquer marcador narrativo de
tempo, como o encontro durante o jejum (Mc 2:18). Outras vezes,
apenas o dia é mencionado, como a informação de que Mc 1:21-34
ocorre em um sábado. Em Mc 6:6, Jesus ensina nas aldeias, mas não
há a informação de por quanto tempo Ele ensinou. Da mesma forma,
a missão dos Doze é de duração não especificada (Mc 6: 7-13, 30).
Outras características do relato marcano são a brevidade, quando
comparado com Mateus e Lucas, como a narrativa da tentação, que é
condensada em apenas dois versículos (Mc 1:12-13; Mt 4:1-11; Lc 4:1-
13). Seu ensino ético é resumido em apenas um versículo (Mc 2.13),
ao contrário do longo Sermão da Montanha de Mateus (Mt 5-7) e do
Sermão da Planície de Lucas (Lc 6:19-49).
Este estilo do Evangelho de Marcos torna a leitura do texto leve
e ágil. Quando comparado com os outros três evangelhos canônicos
(Mateus, Lucas e João), Marcos é o mais simples deles, e certamente
o mais acessível para uma primeira leitura. Em função disto, ele se-

74
ria também o evangelho mais apropriado para novos convertidos ou
para a evangelização.
A análise dos manuscritos antigos indica que o final de Marcos (de
16.9 em diante) é resultado de acréscimos posteriores. Assim, o texto
original de Marcos terminaria em 16.8, e terminaria com a informação
de que o túmulo estava vazio, com o anúncio às mulheres que Jesus
ressuscitara, e que Ele esperava os discípulos na Galileia.
Mesmo levando em conta que o final perdido poderia ter cenas de
aparição do Jesus ressuscitado, o final abrupto não significa que Mar-
cos desprezava a ressurreição.
Primeiro, as três predições de Jesus sobre sua morte afirmam ex-
plicitamente que Ele ressuscitará (Mc 8:31; 9:31; 10:34). Além disso,
em Mc 14: 27-28, através das lentes de Zc 13: 7, Jesus prediz que ele
(o pastor) será atingido, os discípulos (ovelhas) serão dispersos e que
este pastor se levantará e irá à frente deles para Galileia, uma alusão
específica à narrativa da ressurreição em Mc 16.
Em segundo lugar, a declaração de Jesus de que “alguns dos que
estão aqui não provarão a morte antes de verem o reino de Deus “
aponta não para um retorno iminente, como alguns poderiam enten-
der, mas para a ressurreição.
Terceiro, o túmulo vazio em Marcos é sinal suficiente para seus dis-
cípulos de que Ele ressuscitara (Mc 16:1-4).
De qualquer forma, o final abrupto em Mc 16.8 não pode dizer mais
do que isso: que o texto original perdeu o fim da narrativa, que muito
provavelmente terminaria com o encontro de Jesus com os discípulos
na Galileia.
2.6.1 O REINO DE DEUS
Como nos outros evangelhos sinóticos (Mateus e Lucas), a ênfase
da narrativa evangélica de Marcos está na apresentação da identida-
de de Jesus, e enquanto faz isso, o apresenta como personagem cen-

75
tral na irrupção do Reino de Deus. Isso porque desde o início Jesus é
apresentado como o pregador e instaurador do Reino.
O Reino de Deus é instaurado por meio da vinda do Messias (Je-
sus), para restaurar a vontade de Deus para Israel, toda a humanidade
e o mundo. O reino é o antídoto para a queda, corrigindo todas as di-
mensões da existência humana e da própria criação. É a restauração
do relacionamento entre Deus e seu povo, promovendo sua salvação.
O reino é o assunto principal do ministério de Jesus em Marcos.
O reino chegou em Jesus. Portanto, as pessoas devem responder e
abandonar o pecado (arrepender-se) e crer nas boas novas (Mc 1:14-
15). É isto que faz de Jesus o inaugurador deste novo reino. O rei He-
rodes ou o Imperador romano podem governar aparentemente, mas
o verdadeiro Rei do Universo, o Messias, o Filho de Deus, chegou na
pessoa de Jesus. O Reino está aqui porque o Rei já chegou.
As parábolas de Marcos são ministradas para falar deste reino.
Elas explicam por meio de comparações incisivas que o reino vem em
uma invasão secreta, oculta e imparável (Mc 4:26-34). Os milagres são
sinais do reino, demonstrando a natureza restauradora do reino de
Deus e antecipando a culminação da totalidade do reino.
A narrativa da paixão está repleta de amarga ironia em termos do
reino de Deus, com Jesus condenado por admitir perante o sumo sa-
cerdote que Ele é o Messias, o Filho de Deus, e então declarar que
Ele será o Filho de Homem sentado à direita de Deus vindo em glória
(Mc 14:61-62; Dn 7:13-14). Esta declaração direta de sua realeza causa
a resposta violenta dos líderes. A pergunta de Pilatos também gira
em torno da realeza. Ele pergunta a Jesus se Ele é o “Rei dos judeus”
(Mc 15:2). Jesus responde afirmativamente. Ele é o Messias, mas não
como eles esperavam. A ironia geral é que, ao matá-lo, eles estão de
fato trazendo o reino de Deus.
A libertação de Barrabás também é irônica, pois ele é uma ameaça
militar (Mc 15:7), mas ele é solto no lugar de Jesus, que não representa

76
qualquer ameaça política. Pilatos pergunta: “O que eu devo fazer, en-
tão, com aquele chamado rei dos judeus”? (Mc 15:12). A resposta do
povo é: “crucifica-o” (Mc 15:13).
A zombaria dos soldados envolve vestir Jesus como rei, coroando-
o com espinhos, vestindo-o com roupas roxas, enquanto declaram:
“Salve, Rei dos judeus” (Mc 15:17-20). A inscrição na cruz também de-
clara ironicamente aos olhos romanos: “O Rei dos Judeus” (Mc 15:26).
Os líderes dos judeus ainda desafiam Jesus a descer da cruz, caso
Ele fosse o rei (Mc 15:31-32). Eles não podem compreender que o reino
chegou, que Jesus é o rei. Como Israel, que ansiava por um rei como
as nações vizinhas em 1Sm 8, eles ansiavam pelo tipo errado de rei.
Eles não podem conceber que aquele que está pendurado em uma
árvore não está sendo amaldiçoado, mas é seu governante, levando a
maldição da humanidade (Dt 21:23; Gl 3:13). Eles estão cegos por suas
falsas expectativas.
De forma paradoxal, o evangelho de Marcos quer falar sobre a che-
gada do Reino, e o faz por meio da história da morte do rei. Por isso,
alguns autores sugerem que o evangelho é a história da paixão de Je-
sus, precedida de alguns eventos anteriores. Isso não deve diminuiu
o valor do material pré-paixão, mas deve indicar para o leitor que a
morte é o clímax do relato. Mesmo a ressurreição, ela ocupa um espa-
ço menor do que o espaço dedicado à morte.
A história começa bem (Mc 1:22, 28, 45), mas as coisas rapidamen-
te começam a se desenrolar depois que Ele assume a prerrogativa
divina de perdoar um paralítico (Mc 2:5-7). Fariseus e mestres da lei
questionam se Ele come com pecadores e desafia as leis de pureza
(Mc 2:16). Ele é desafiado quando tira o alimento dos campos de grãos
e cura no sábado (Mc 2:23; 3:6). A última situação é paradigmática:
Jesus cura baseado na perspectiva de que se deve trazer vida no sá-
bado, enquanto os fariseus e outros líderes buscam sua morte.
Os fariseus também duvidam de seu ministério de libertação,
acreditando que Ele está endemoninhado (Mc 3:22). Eles ficam per-

77
turbados por sua recusa em seguir a pureza do ritual judaico, no que
diz respeito à alimentação (Mc 7:1-15), e entram em conflito com Ele
sobre sua compreensão do divórcio (Mc 10:1-12). Durante todo o pro-
cesso, eles se preocupam com minúcias jurídicas, questões rituais e
aspectos periféricos de comportamento, ao invés de pensarem sobre
a razão da lei, que consiste na prática da justiça e amor para com os
outros.
Em Jerusalém, as tensões aumentam e o desejo de matar Jesus
é reafirmado após a limpeza do templo. A ação de Jesus é resultado
de seu zelo pelas coisas de Deus, mas atingiu frontalmente as pers-
pectivas religiosas dos líderes judaicos (Mc 11:18). Depois disso, há
diversos testes públicos e debates abertos com grupos diferentes (Mc
11:27-12:34). Um bom resumo destes eventos está na parábola dos in-
quilinos, que conta simbolicamente a história da rejeição dos líderes
judeus aos profetas (e, portanto, a Deus) e prediz que eles irão matá-lo
(Jesus). Ironicamente, eles não ouvem e ainda tentam prendê-lo em
segredo, temendo um motim, se o fizerem publicamente (Mc 12:12).
Ao longo de Marcos, Jesus está claramente ciente de sua morte
iminente. Ele afirma que foi enviado para ministrar e morrer nas mãos
de seu próprio povo. Por três vezes, Ele afirma explicitamente que
será torturado e morto por instigação da liderança judaica. Ele então
ressuscitará dos mortos (Mc 8: 31-32; 9:31; 10:33-34). Presos em sua
visão de mundo de um messias conquistador, nem mesmo os discí-
pulos conseguem entender estes anúncios de Jesus.
Há outras ocasiões em que Jesus revela o conhecimento de sua
morte iminente. Especialmente significativa é a última ceia, onde Je-
sus fala de seu corpo partido e seu sangue, como símbolos de uma
aliança por muitos (Mc 14:24). No versículo 27 deste mesmo capítulo,
Jesus cita Zc 13:7, outra alusão à sua morte.
A cena da oração no jardim é cheia de tensão. Jesus tem clareza
com relação ao que está para acontecer (Mc 14:36). Mesmo assim, Ele

78
pede a Deus, “se possível”, para afastar este “cálice”. Claramente, a
resposta divina foi negativa. Não era possível afastar este “cálice” de
Jesus. Ele deve morrer para salvar o mundo. Nessas passagens que se
referem ao sofrimento e à morte, Jesus atualiza em sua vida a noção
do servo sofredor de Is 53. Ele é aquele servo enviado não para ser
servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos (Mc
10:45).
Durante os debates públicos em Jerusalém, Jesus constantemen-
te vence seus adversários por meio de diferentes argumentos que alu-
dem bem à sabedoria de Salomão. Parte da proclamação de Jesus
é altamente inflamatória, especialmente a parábola dos inquilinos,
que é direcionada à rejeição do Filho de Deus pelos líderes judeus (Mc
12:1-12). Todos esses confrontos inflamam ainda mais os ânimos dos
líderes religiosos, e levam inevitavelmente à paixão.
A paixão em si ocupa dois capítulos de Marcos. É uma história trá-
gica de traição (Mc 14:1), dor (Mc 14:1-9), despedidas e refeições (Mc
14:12-26), negação por um dos primeiros seguidores (Mc 14:27-31,
66-72), luta pessoal e angústia no jardim (Mc 14:32-42), violência (Mc
14:43, 47, 65; 15:16-20), a recusa de Jesus em recorrer ao seu imenso
poder anteriormente demonstrado no Evangelho (Mc 14:48-50), injus-
tiça legal (Mc 14:53-59), intriga política (Mc 14: 60-64; 15:1-15) e crucifi-
cação e morte (Mc 15:22-37).
A participação do Sinédrio dos judeus e da magistratura roma-
na, com Pilatos, é afirmada igualmente, mas com os judeus como os
principais instigadores. Há a amarga ironia de duas forças inimigas
(romanos e judeus) se unindo na recusa em libertar Jesus, que não
havia mostrado nenhuma indicação de ameaça política, militar ou re-
volucionária.
Toda a narrativa está carregada de imagens do Antigo Testamento.
Começa com a própria escolha da Páscoa para ser o palco dos even-
tos, apontando para Jesus como o Cordeiro Pascal (Mc 14:12-26). A

79
cena da última ceia com os discípulos simbolizará o corpo partido de
Jesus (Mc 14:22-25). O rasgar da cortina do templo com a morte de
Jesus é uma ação simbólica que aponta para um novo amanhecer em
que toda a humanidade pode se aproximar de Deus por meio de Je-
sus (Mc 15:38). Ao longo da narrativa, Marcos indica que a era de Israel
culminou em Cristo e o futuro da relação de Deus com a humanidade
agora está em Jesus, que inaugurou um novo Israel em continuidade
e descontinuidade com o antigo. A participação no povo de Deus ago-
ra é baseada no arrependimento e na fé em Cristo, transcendendo a
etnia e a necessidade de se tornar um judeu. O caminho está aberto
para judeus, mas também para gentios, pelos mesmos meios: fé e ar-
rependimento (Mc 1:15).

2.7 DISCIPULADO
A noção de discípulo envolve um mestre e um aprendiz. Moisés e
Josué podem ilustrar essa relação (Êx 24:13). Esses discípulos eram
comuns no judaísmo rabínico. João Batista tinha discípulos (Mc 2:18).
Em tais situações, a iniciativa estava com o aprendiz de procurar o
professor e pedir para segui-lo. Nos Evangelhos, entretanto, é Jesus
que toma a iniciativa (Mc 1:16-20; 2:13; 10:21), embora haja exemplos
de alguns que procuram seguir Jesus (Mt 8:19; Lc 9:57).
Os discípulos são incentivados a irem após Ele (Mc 1:17), ou a “se-
gui-lo” (Mc 2:14; 8:34; 10:21,28). Bartimeu “seguiu” Jesus ao longo do
caminho, indicando que ele se juntou aos discípulos em resposta à
sua cura.
O discipulado é um elemento chave em Marcos, e um meio para o
evangelista ensinar aos leitores o ideal do seguimento de Jesus. Há
o chamamento dos quatro pescadores no lago (Mc 1:16-20) para se
porem a serviço de Jesus. A resposta destes homens demonstra as
ideias do discipulado: eles deixam tudo, incluindo comunidade, pa-
rentes e meios de subsistência, para seguir Jesus. Da mesma forma,
o cobrador de impostos, Levi (Mateus), responde sem demora, dei-

80
xando o seu trabalho e vida para trás, para seguir Jesus (Mc 2: 13-16).
Esses discípulos exemplificam a resposta certa ao chamado de Jesus
e do reino: desistir de tudo para servir ao seu Rei. Este tipo de voca-
ção lembra os chamados dos profetas das Escrituras judaicas e não é
diferente da resposta de Isaías (Is 6:1-14) e Jeremias (Jr 1:4-10).
Enquanto o endemoninhado curado demonstra obediência ideal
ao chamamento (Mc 5:1-20), o governante rico sai desanimado quan-
do desafiado a vender seus bens e seguir a Jesus (Mc 10:17-22). Ele e
Judas, que no final das contas traiu seu mestre, se destacam como
exemplos negativos.
Em Marcos, Jesus redefine o conceito de família. Quando Ele é visi-
tado por seus parentes, sua resposta é culturalmente forte. Ele desa-
fia a prioridade da família e da comunidade, redefinindo parentesco
em sentido discipular, ou seja, faz parte de sua família aquele que “faz
a vontade de Deus”. Ao longo de toda a narrativa, Jesus declara repe-
tidamente que o discipulado autêntico coloca o povo de Deus acima
dos relacionamentos de sangue (Mc 3:31-34, cf.1:16-20; 2:13-17; 10:19,
29-31).
Outra dimensão do discipulado em Marcos é o sofrimento. Não há
nenhuma doutrina de prosperidade em Marcos. Jesus antecipa o so-
frimento para aqueles que o seguem (Mc 8:34-36). Ser chamado para
servir é ser chamado para sofrer. O motivo de “tomar a sua cruz” é um
convite para seguir os passos de serviço, sacrifício e sofrimento de
Jesus. Este é o padrão da cruz que fundamenta a teologia de Paulo e
todo o Novo Testamento (Fp 2:1-11). É preciso resistir à sugestão ven-
tilada popularmente de que o cristão se verá livre de dificuldade e dor
se tiver fé suficiente. Não é este tipo de fé que o evangelista espera
dos discípulos.
A fé é importante, e é a resposta esperada diante das boas novas
do reino. O texto prega o arrependimento e fé (Mc 1:15). Em alguns
momentos, a ação de Jesus é condicionada à fé daqueles que se apro-
ximam dEle (Mc 2:5; 5:34; 10:52). Os discípulos são repreendidos por

81
sua falta de fé (Mc 4:40), e a população em geral é encorajada a ter fé
em Jesus (Mc 5:36). A falta de fé leva Jesus a não curar em sua cida-
de natal, sugerindo que para receber a cura as pessoas devem ter fé
(Mc 6:6). Com fé, pode-se alcançar o impossível (Mc 9:23), o que leva
a uma das mais belas orações das Escrituras: “Eu creio; ajude-me a
superar minha incredulidade”. (Mc 9:24).
As crianças podem acreditar e devem ser encorajadas positiva-
mente nesta direção (Mc 9:42). Jesus encoraja todos a terem fé e uma
confiança radical (Mc 11:22-24). Já a falsa fé é apontada naqueles que
exigem que Jesus desça para que eles possam crer (Mc 15:32). É claro
que a fé em Jesus, que Ele é a salvação de Deus, o Messias, o Rei que
veio para restaurar, é importante para Marcos.
Mas no jardim do Getsêmani, Jesus mostra que enquanto a fé seja
fundamental para a vida cristã, qualquer ação divina é condicionada
exclusivamente pela vontade de Deus (Mc 14:36). Certamente Jesus
tinha fé em Deus. Mas sua oração termina com a frase: “que não seja
a minha vontade, mas a tua” (Lc 22:42).
Outra questão ligada ao discipulado é a participação feminina.
Embora Marcos não fale tanto de mulheres seguindo Jesus, elas ain-
da assim aparecem na narrativa. Jesus cura a sogra de Pedro e aceita
seu serviço a Ele (Mc 1:30-31). A mulher com o fluxo de sangue é elo-
giada e curada por demonstrar grande fé ao estender a mão para to-
car o vestido de Jesus. Jesus também cura a menina de doze anos na
mesma narrativa (Mc 5:21-43). Ele exalta e cura as mulheres gentias
(Mc 7:24-30). Outra mulher escolhida para receber elogios é a viúva
que dá tudo o que tem para o tesouro do templo, ilustrando o dis-
cipulado radical que Jesus pediu (Mc 12:41-44). A mulher que ungiu
Jesus com óleo é altamente elogiada, e Ele espera que sua história
seja contada em todo o mundo (Mc 14:9).
Na narrativa da paixão, são as mulheres os melhores exemplos
de discipulado, permanecendo com Jesus durante o seu sofrimento,

82
indo ao túmulo e sendo as primeiras a testemunhar a respeito do lu-
gar vazio (Mc 15:40- 16:8). É especialmente importante lembrar que as
primeiras testemunhas da ressurreição foram mulheres, o que é ex-
tremamente surpreendente, considerando que no primeiro século o
testemunho de uma mulher não tinha valor legal. Assim, Marcos não
esconde o seguimento das mulheres ao chamado de Jesus.

2.8 A MISSÃO
A missão de João Batista é a do profeta que prediz e anuncia a
vinda do Rei-messias. A missão de Jesus é limitada principalmente
a Israel, mas há indícios de um escopo mais amplo de seu ministério
em Tiro, Sidon e Decápolis, incluindo a cura da mulher siro-fenícia e
a alimentação de quatro mil, incluindo muitos gentios (Mc 7:24- 8:9).
Nesta refeição, Jesus quebra os protocolos alimentares ao comer
com não-judeus e com as mãos ritualmente impuras. Em seu ensi-
no, Ele também fala do evangelho sendo proclamado ao mundo (Mc
13:10). Marcos registra o comissionamento de Jesus aos seus apósto-
los, para irem, com sua autoridade, pregar, curar e livrar as pessoas
indistintamente do poder do mal (Mc 3:14). Eles devem continuar a
obra de Cristo, de salvar e restaurar. Assim como Ele foi enviado, eles
são enviados.
Ao contrário de Lucas, entretanto, não há em Marcos alguma men-
ção de capacitação especial dos discípulos (At 1:8), apesar da presen-
ça do Espírito na missão não estar completamente ausente (Mc 1:8;
13:11). A missão dos discípulos não é tão desenvolvida quanto em Ma-
teus (Mt 10) e Lucas (Lc 9:1-6; 10:1-24), que adicionam outros aspectos,
como a Grande Comissão, ou a missão dos setenta.
Em Marcos, os discípulos devem ir para a missão em total depen-
dência da provisão de Deus (Mc 6:7-11). Há um pequeno resumo do
encontro missionário inicial (Mc 6:12-13). A expectativa de testemu-
nho de Jesus a todo o mundo é vista em diferentes pontos, como a
parábola da lâmpada, que trata de seus seguidores trazerem à tona o

83
que está escondido (Mc 4:21-23); e em Mc 8:38, onde Ele avisa a seus
discípulos para não se envergonharem do seu mestre ou de suas pa-
lavras. Já o impacto da missão é visto na parábola do grão de mostar-
da, onde a semente se torna uma árvore que preenche toda a terra e
para onde vêm os pássaros, ou nações (Mc 4:30-32).
Mesmo que a comissão de ir a todo o mundo não apareça antes
de Mc 16.8 (ou seja, no texto original de Marcos), ela está implícita em
vários pontos.
Primeiro, Jesus declara em seu sermão escatológico no Monte das
Oliveiras que “o evangelho deve primeiro ser pregado a todas as na-
ções” antes que venha o fim (Mc 13:10). Este não é um mandamento
necessariamente, mas uma declaração do que vai acontecer.
Em segundo lugar, Ele afirma que a história da mulher que ungiu
seus pés será contada “onde quer que o evangelho seja proclamado
em todo mundo” (Mc 14: 9).
Finalmente, anjos irão reunir o povo eleito de Deus “das extremi-
dades da terra até a extremidade do céu”, o que significa o mundo in-
teiro (Mc 13:27). Esses exemplos indicam que Marcos está trabalhan-
do com o entendimento de que o evangelho será pregado a todas as
nações. Quem deve fazer isso não está formalmente definido, mas a
sugestão do Evangelho é clara: isso acontecerá por meio de seus se-
guidores.
2.8.1 DIFERENTES MISSÕES, DISCÍPULOS DIFERENTES
O relato da convocação inicial dos irmãos pescadores, Pedro e
André, inclui a memorável imagem: “Sigam-me, e eu farei de vocês
pescadores de homens” (Mc 3:19). E a missão dos doze tem um lu-
gar proeminente nos três primeiros Evangelhos (Mc 6:7-13; Mt 10; Lc 9:
1-6). O mais impressionante nesta comissão inicial é a dependência e
entrega dos missionários. Eles não devem levar bagagem, suprimen-
tos ou dinheiro. Eles devem depender inteiramente da hospitalidade

84
oferecida nas cidades e aldeias nas quais entram (Mt 10:9-11). Eles
saem em nome de Jesus e em nome daquele que enviou Jesus (Mt
10:40). Assim, uma prova de que eles são enviados por Deus será o
sucesso de sua missão e a provisão de suas necessidades corporais. E
onde eles não são recebidos, devem seguir para a próxima cidade (Mt
10:13-14). Este tipo de movimento é chamado de “movimento caris-
mático itinerante de renovação intrajudaica”.
Tudo isso é dito com referência aos doze. Mas dentro dos círculos
do discipulado, notamos que havia também quem permanecesse em
casa. Então, na missão, há aqueles que saem, e aqueles que ficam. Há
alguns que devem abandonar tudo: lares, família e propriedade (Mc
10:28-29), para se juntar a Jesus em sua vida como pregador errante.
Mas há outros para quem há uma obrigação prévia familiar (Mc 10:7-
9), e cujo papel na missão é orar para que o senhor da colheita envie
os trabalhadores para a colheita (Mt 9:37-38), ou para fornecer a hos-
pitalidade e provisão para aqueles que saem.
Na comunidade de discípulos, nem todos têm as mesmas respon-
sabilidades. Isso significa uma comunidade voltada para apoiar aque-
les de seus membros mais ativos no evangelismo em nome de toda a
comunidade e de seu senhor.
Há uma dimensão de missão que é simplesmente a do testemu-
nho de uma vida vivida para Deus, clara e radiante na qualidade da
sua bondade, uma vida que dá sabor ao que é insípido e preserva a
utilidade daquilo que, de outro modo, seria podre. E isso não é ape-
nas uma tarefa para o discipulado individual. Uma “cidade situada em
uma colina” é uma comunidade organizada, uma comunidade que
definiu sua posição e exibe seu caráter claramente de uma maneira
que os outros não podem deixar de ver.
A preocupação em “ser um bom cidadão deste mundo” rapida-
mente provou ser um fator importante na expansão do cristianismo
para se tornar uma fé universal.

85
CAPÍTULO 3
Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos
3.1 A AUTORIA DE LUCAS-ATOS
O Evangelho de Lucas é o terceiro dos Evangelhos Sinóticos. É nor-
malmente aceito que ele é a primeira parte de uma obra formada de
duas partes. Sua continuação seria o livro de Atos dos Apóstolos. Há
uma concordância geral de que Lucas e Atos tiveram um autor co-
mum, e isso se deve inicialmente aos prólogos semelhantes, ambos
dirigidos a Teófilo (Lc 1:3; At 1:1). Além disso, em Atos, o escritor refe-
re-se a “minha obra anterior”. Outras razões incluem a semelhança
no estilo, no vocabulário e na teologia.
Alguns estudiosos chegam a sugerir que Lucas-Atos foi uma obra
só inicialmente, mas, por causa do tamanho do documento, ele foi
cortado para caber em dois rolos. O mais provável, entretanto, é que
Lucas foi escrito primeiro e, algum tempo depois, seu autor resolveu
continuar a história em Atos. De qualquer forma, os dois estão inti-
mamente relacionados, e os estudiosos costumam trabalhar os dois
documentos juntos.
Lucas-Atos foi escrito por um homem com educação na cultura
grega, e pode ser considerado um dos grandes escritores gregos da
antiguidade. Ele acompanha a história da igreja, primeiro no Evange-
lho, do nascimento de Jesus à sua ressurreição, e depois em Atos, de
suas aparições pós-ressurreição até a prisão de Paulo em Roma.
O que torna a obra de duas partes tão útil é que ela não apenas
dá um excelente relato de Jesus, mas conta a história de como seus
seguidores viveram inicialmente após sua ascensão.

86
Como no caso dos outros evangelhos, não há nenhuma evidência
interna explícita de quem escreveu o texto. O peso das evidências
externas, entretanto, está na indicação de que Lucas, um médico e
companheiro de viagem de Paulo, foi o autor.
Em algum momento no início do II século, os manuscritos do Evan-
gelho já traziam a atribuição “de acordo com Lucas”. Nesta direção, o
apoio dos pais da igreja é unânime. As igrejas dos primórdios acredi-
tavam realmente que Lucas era o escritor. Entre estas testemunhas,
podemos citar: Marcião, Justino, o Prólogo antimarcionita, (160-180),
o Cânon Muratoriano (170-180), Irineu (Contra as Heresias, 3.1.1; 13.1-
3; 15,30-35); Tertuliano (Contra Marcião, 4.2.2; 4.5.3) e Eusébio (His-
tória Eclesiástica 3.4.2). O manuscrito mais antigo de Lucas, o Papiro
XIV de Bodmer (175-225), atribui a obra a Lucas. Os antigos autores
cristãos não chegaram a sugerir outro nome para o Evangelho.
Além disso, existem quatro passagens em Atos onde o autor es-
creve na primeira pessoa do plural (At 16:10-17; 20:5-16; 21:1-18; 27:1-
28:16). Estas passagens indicariam que o escritor estava com Paulo
durante aqueles eventos. Neste sentido, o relato indica que Lucas se
juntou à viagem missionária em Trôade, e permaneceu na Macedônia
quando Paulo viajou para Acaia, voltando a viajar com o grupo quan-
do Paulo foi a Jerusalém. Essas passagens indicam que Lucas estava
tanto em Jerusalém quanto em Roma, perfeitamente posicionado
para reunir material para escrever suas duas obras.
Embora a autoria lucana seja a posição defendida amplamente
pela tradição cristã, há argumentos em contrário que precisam ser
levantados. Alguns acreditam que as passagens em que o autor se in-
clui no relato não indicam que o autor estava com Paulo, mas seriam
fragmentos de um diário ou relato de viagem que poderia ter vindo de
outra fonte inserida no relato de Atos.
Estes autores também apontam algumas discrepâncias entre as
cartas paulinas e o livro de Atos, o que pesaria contra a autoria de um

87
companheiro de viagem do apóstolo. Por exemplo, Lucas não enfatiza
a doutrina de Paulo da justificação pela fé e inclusão em Cristo, que é
tão importante em suas cartas. Além disso, a prática da lei por Paulo
em Atos aparentemente diverge de sua atitude nas cartas. Seria pos-
sível responder a esta questão dizendo que o conteúdo das cartas de
Paulo reflete suas perspectivas teológicas, enquanto as mensagens
de Atos são consistentes com pregações com propósito missionário:
ganhar o maior número possível para Cristo. Em geral, Paulo vive con-
fortavelmente entre os gentios, morando e se reunindo em suas casas
(At 16:15; 18:7) e desfrutando da comunhão com eles. No Concílio de
Jerusalém, Paulo rejeitou veementemente os líderes da igreja de Je-
rusalém que exigem a observância legal mosaica e especialmente a
circuncisão (At 15:1-12).
Paulo circuncidou Timóteo em At 16:3, mas não circuncidou Tito
em Gl 2:3. Isso é explicável, pois Timóteo é um judeu por parte de
mãe (At 16:3), e circuncidá-lo permitiria que ele se movesse livremen-
te entre judeus e gregos. Tito, entretanto, é um gentio, e Paulo não o
forçará a judaizar. Ambas as decisões são de caráter missionário, con-
sistentes com as perspectivas de Paulo sobre liberdade em relação à
lei e acomodação cultural.
Ele cortou o cabelo em um voto em At 16:3, mas não há nenhuma
posição quanto à Lei neste gesto. Em Jerusalém, sua decisão de se
unir a outros em um voto de pureza era uma preparação para entrar
no templo, de acordo com 1Co 9:19-22. Assim, as chamadas discre-
pâncias são pouco significativas e não chegam a representar uma im-
possibilidade para a autoria lucana.
Sendo, então, Lucas o autor, o que é possível dizer sobre ele?
- O nome Lucas é encontrado três vezes no Novo Testamento (Cl 4:14;
Fm 24; 2Tm 4:11). Provavelmente se referem à mesma pessoa.
- Ele é descrito como amado companheiro de Paulo em Cl 4:14.
- Cl 4:14 também revela Lucas como um médico, o que pode significar

88
algum tipo de aprendizagem e formação na área da saúde, já que a
medicina na antiguidade era uma área insipiente. Ele seria provavel-
mente um gentio treinado na arte greco-romana da cura.
- De qualquer maneira, ele provavelmente tinha posses. Não neces-
sariamente rico, mas com recursos suficientes para fazer as várias
viagens que ele parece ter feito ao lado de Paulo. Paulo estava com-
prometido com a autossuficiência como missionário (fabricante de
tendas), e isso provavelmente era replicado por seus companheiros
de missão.
- Ele pode ter fornecido cuidados médicos para Paulo e sua equipe.
Provavelmente, as muitas dificuldades de Paulo o teriam feito preci-
sar de um médico com frequência.
- Em 2Tm 4:11, quando Paulo enfrenta seu destino, quando seria jul-
gado e morto nas mãos das autoridades romanas, o texto descreve
que “só Lucas está comigo”. Lucas permaneceu ao seu lado até os
últimos dias do apóstolo.
- Lucas aparece inicialmente em Trôade, talvez indicando que esta era
sua cidade. Ele provavelmente era um adorador de Deus na sinagoga
local, e se converteu à pregação paulina durante sua passagem pela
cidade. Quaisquer que sejam as circunstâncias, Lucas, Paulo, Silas e
outros viajaram através do Mar Egeu para a Macedônia para Neápolis
e Filipos (At 16: 10-17). Ele estava também com o grupo em Tessalô-
nica e Bereia, mas ficou para trás quando Paulo foi para Atenas (At
17:1 muda de “nós” para “eles”). Lucas se juntou a Paulo e sua equi-
pe quando retornaram de Corinto (At 20:5). Provavelmente passaram
juntos por Mileto, onde Paulo fez seu discurso final aos anciãos de
Éfeso, e chegaram a Jerusalém. Lucas volta para a terceira pessoa em
At 21:19. É provável que ele não estivesse mais com Paulo, já que o
apóstolo estava preso. A primeira pessoa do plural indica que ele via-
jou com Paulo para Roma (At 27:2).

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De onde Lucas teria escrito suas obras? O Prólogo Antimarcionita
sugere que ele escreveu das “regiões da Acaia” (sul da Grécia, onde se
encontra Corinto). Outra possibilidade é que ele escreveu de Roma, o
que poderia se encaixar com o final de Atos. No entanto, o mais prová-
vel é que ele tenha escrito tanto Atos quanto Lucas em um momento
posterior à morte de Paulo e Pedro, talvez no seu retorno à sua região
de origem.

3.2 A AUDIÊNCIA DE LUCAS-ATOS


A data de Lucas é geralmente associada com o fim de Atos, que
termina com Paulo numa prisão romana em meados da década de
60. Assim, a data mais antiga provável é 62, dando tempo para passar
os dois anos da prisão paulina. Já a data mais distante possível é 180,
quando ele é citado por Irineu. Em linhas gerais, os estudiosos ten-
dem a sugerir duas datas para Lucas: meados dos anos 60; ou entre
75 e 90.
Um pequeno número de pessoas argumenta que Lucas e Atos fo-
ram escritas dentro de poucos anos após o final de Atos, e o localizam
ainda durante a perseguição nerodiana de 64-65.
Os argumentos usados para
​​ a data anterior parte do fim abrupto
dos Atos. Atos termina abruptamente quando Paulo ainda está numa
prisão romana (At 28:31). Para estes estudiosos, Lucas só narrou até
ali, porque estava muito perto dos eventos narrados.
Entretanto, é muito difícil que o Evangelho seja da década de 60
justamente por causa do seu relacionamento com os evangelhos de
Marcos e Mateus. Lucas usou uma boa quantidade de passagens de
Marcos, o que demanda a passagem de certo espaço de tempo entre
a produção de um e o surgimento do outro. Por isso, a maioria dos
estudiosos sugere um período de pelo menos dez anos entre eles, fa-
zendo com que a data mais provável de sua produção seja em torno
de 80.

90
Além disso, o evangelista escreveu no prefácio que “muitos rela-
tos” já apareceram a respeito de Jesus. Isso apoia uma data em que
não apenas Marcos já corresse entre os crentes, mas também outros
relatos, como a mencionada Fonte Q (usada em paralelo por Mateus
e Lucas).
3.2.1 A QUESTÃO DA AUDIÊNCIA
Lucas afirma claramente que seu Evangelho foi escrito para um
certo “excelentíssimo Teófilo” (Lc 1:3; At 1:1). Existem duas maneiras
principais de ler esses versículos. Mesmo que Teófilo seja um indiví-
duo, ele provavelmente também representa um grupo mais amplo.
O termo “teophilus” significa “amigo de Deus”. Como tal, a afirma-
ção poderia ser um símbolo de todos os crentes que são amigos ou
amantes de Deus. Lucas, então, não estaria escrevendo para um in-
divíduo, mas a todas as pessoas que são amantes ou amigas de Deus
em Cristo.
No entanto, At 1:1 lembra Teófilo de seu livro anterior. Neste con-
texto de Atos, o termo faz mais sentido se se referir a uma pessoa.
Assim, o mais provável é que Lucas tenha escrito realmente para uma
pessoa de nome Teófilo. O nome é encontrado em escritos gregos an-
tigos, o que parece indicar que era um nome comum do mundo helê-
nico. O termo “excelentíssimo” (kratistos) pode indicar uma posição
de projeção social, já que Lucas o usa também para oficiais romanos
de alto escalão (At 24:3; At 26:25).
De qualquer forma, mesmo que Teófilo seja uma pessoa concre-
ta e não uma expressão simbólica, isso não necessariamente implica
que Evangelho e Atos foram escritos para uma única pessoa. É bem
provável que ele seja o representante de um grupo ou comunidade.
Esta era uma prática epistolar comum da antiguidade. Um documen-
to era endereçado a uma pessoa, mas tinha como objetivo um públi-
co mais amplo. É o caso, também, das cartas que Paulo escreveu para
Timóteo e Tito, que deveriam ser lidas diante das respectivas igrejas.

91
Como o conteúdo de Lucas foca muito mais em questões de status
e riqueza do que o Evangelho de Marcos, alguns autores entendem
que isso aponte para o quadro social da comunidade de destino.
Que eles são, muito provavelmente, membros gentios do movi-
mento de Jesus, seria possível afirmar também pelos seguintes mo-
tivos:
- “Teófilo” é um nome grego, indicando que Lucas está dirigindo seu
Evangelho para um público gentílico.
- Lucas tem uma grande preocupação com os gentios e a salvação
universal por meio do Evangelho e Atos (Lc 2:32; 7:1-10; At 1: 8; 28:28-
31).
- O prefácio é escrito num formato de retórica greco-romana (Lc 1:1-4).
- Lucas usa o Antigo Testamento grego (a LXX) consistentemente em
Lucas-Atos, em vez de recorrer às Escrituras judaicas em hebraico.
- Os Romanos são geralmente vistos de forma positiva em ambos os
livros.
Isso significa que Lucas deve ser lido com o mundo greco-roma-
no em mente, ao contrário de Mateus, que tem questões judaicas em
mente. Assim, compreender questões como império, status de rique-
za, a cultura da honra-vergonha, protocolos de refeição, clientelismo,
politeísmo e patriarcado ajudam na interpretação.

3.3 A COMPOSIÇÃO DE LUCAS


A comparação entre os evangelhos indica que 88,4 por cento de
Marcos aparece em Lucas. Enquanto Mateus usa Marcos sem muita
adaptação, Lucas é muito mais criativo. Além de Marcos, Lucas usou
outro material comum a Mateus (Q) e um material único que ele mes-
mo reuniu (L). Ele levantou seu próprio material através de testemu-
nhas oculares ou pesquisas pessoais (At 1: 2), especialmente em Jeru-
salém (At 22) e em Roma (At 28).

92
Uma análise de Lucas revela algumas semelhanças e diferenças
com os outros Evangelhos:
- A narrativa da infância é única (Lc 1-2). Este é um material exclusivo
que difere em muitos detalhes de Mateus.
- A preparação para o ministério (Lc 3-4). Esta seção, incluindo João
Batista, o batismo e a tentação, usa o mesmo conteúdo que Marcos
e Mateus, exceto para a genealogia de Jesus, exclusiva de Lucas (Lc
3:23-38). A história da sinagoga em Nazaré também varia em relação
aos outros dois evangelhos (Lc 4:14-30, Mc 6:1-6; Mt 13:53-58).
- O ministério de Jesus na Galileia (Lc 3:1- 9:50 e especialmente 4:14-
9:50). Este material segue o esboço de Marcos com algum recurso
adicional em Lc 6 e 7, incluindo o Sermão sobre a Simplicidade, que
tem muitas semelhanças com o Sermão da Montanha de Mateus (Lc
6:17-49, cf. Mt 5-7). Lucas também adiciona uma série de encontros.
- A narrativa da viagem (Lc 9:51-18:37): Esta longa seção descreve
como Jesus se dirige resolutamente para Jerusalém e se move em
direção a sua morte. Nesta seção, Lucas inclui muito material próprio,
elaborados a partir de Q e L.
- A narrativa da paixão e ressurreição (Lc 18:15-24:53): As narrativas
finais de Lucas seguem o esboço de Marcos com algumas novas in-
serções.
O arranjo de Lucas revela muito material comum de Marcos e es-
pecialmente de Q. Intercalados especialmente na narrativa de viagem
(Lc 7; 9:51-18:27), há uma grande quantidade material próprio, incluin-
do parábolas, encontros, ensinamentos e curas, como: a rejeição de
Jesus em Nazaré (Lc 4: 14-30), a ressurreição do filho da viúva (Lc 7:11-
17), a rejeição dos samaritanos (Lc 9:51-56), a parábola do bom sama-
ritano (Lc 10:25-37), Maria e Marta (Lc 10: 38-42), o rico tolo (Lc 12:13-
21), a parábola do figueira estéril (Lc 13:6-9), a cura de uma mulher na
sinagoga no sábado (Lc 13:10-17), ensino sobre o custo do discipulado

93
(Lc 14:24-30), a parábola da moeda perdida (Lc 15:8-10), a parábola do
filho pródigo (Lc 15:11-32), a parábola do rico e Lázaro (Lc 16:19-31),
a cura dos dez leprosos (Lc 17:11-19), a parábola da viúva persistente
(Lc 18:1-8), a parábola do fariseu e publicano (Lc 18:9-14), e o encontro
com Zaqueu (Lc 19: 1-10).
Dentre o conteúdo de Marcos que Lucas omite, podemos destacar
um bloco de milagres (Mc 6:45-8:26), incluindo a cena de Jesus sobre
águas (Mc 6: 45-51); o conflito da pureza ritual (Mc 7:1-23); a cura da
mulher gentia (Mc 7:24-30); a cura do homem surdo e mudo (Mc 7:31-
37); a multiplicação dos pães e peixes para quatro mil (Mc 8:1-21); e
a cura do cego (Mc 8:22-26). Não fica claro porque ele omitiu estas
cenas, tendo acesso a todo o conteúdo marcano, mas provavelmente
tem relação com seus objetivos mais imediatos.
Parte do material do Sermão da Montanha também encontrado
em Mateus (Mt 5-7) e do envio dos Doze (Mt 10) está disperso por Lu-
cas em diferentes pontos. Ao contrário de Marcos e Mateus, que regis-
tram apenas uma narrativa do envio (Mc 6:6-13; Mt 10:5-15), Lucas in-
clui duas narrativas de envio, uma para os Doze (Lc 9:1-6) e outra para
os setenta (Lc 10:1-24). Assim, a perspectiva de Lucas sobre a missão
abrange um grupo muito mais amplo do que os Doze, mesmo levando
em conta que os doze possivelmente estariam incluídos no grupo dos
setenta.
Os sinais do fim dos tempos (Lc 21) são muito parecidos com as
versões de Marcos 13 e Mateus 24, mas diferem em alguns detalhes. O
relato da paixão é igualmente muito próximo entre os três sinóticos,
exceto nas cenas do julgamento de Herodes (Lc 23:8-12), ou na omis-
são da zombaria de um dos ladrões, que pede por salvação. O relato
da ressurreição de Lucas é o mais completo e inclui alguns elementos
que aparecerem no final acrescentado de Marcos (Mc 16.8 em diante),
o que pode sugerir que quem é que tenha produzido o final marcano
pode ter se inspirado em Lucas.

94
Um elemento digno de nota é que apenas Lucas inclui a narrativa
da ascensão, começando com Lc 24 e terminando em At 1:1-11. Isso é
importante para sua teologia de Jesus como Senhor reinante.
Há ainda alguns aspectos da forma como Lucas compôs o seu
evangelho que podem ser mencionados. A partir do que afirmamos
acima, é possível dizer que Lucas alterou Marcos e Q e melhorou o es-
tilo e linguagem destas fontes. Isso não significa que ele necessaria-
mente ampliou as cenas. Em alguns momentos, é o contrário, como
quando ele resume a parábola do semeador de Marcos em quase 50
por cento. Ele também agrega adjetivos para descrever os sentimen-
tos de Jesus (comparar Lc 18:22 com Mc 7:21).
Em suma, Lucas parte do relato de Marcos, organiza-o, edita-o,
reorganiza ligeiramente sua ordem, insere nele uma narrativa única
da infância como prefácio, além de muito material de Q e L (material
próprio), especialmente em Lc 7 e na narrativa de viagem.
3.3.1 ESBOÇO DE LUCAS
É importante lembrar que Lucas é efetivamente parte um de uma
obra maior: Lucas-Atos. Como tal, o evangelho não deve ser examina-
do isoladamente, mas considerado dentro do contexto de ambos os
livros como uma unidade estrutural.
Em Atos, é fácil perceber uma estrutura geográfica baseada em
At 1:8: “Mas recebereis poder quando o Espírito Santo descer sobre
vós e sereis minhas testemunhas em Jerusalém e em toda a Judeia e
Samaria, e até os confins da terra”. Atos então desenvolve a obra ca-
pacitadora do Espírito nos primeiros crentes que gera a propagação
geográfica do evangelho. Ela se irradia de Jerusalém até os confins
da terra.
Isso é visto em três fases de missão razoavelmente claras, mas so-
brepostas:
1. Jerusalém (At 1-7)

95
2.Toda a Judeia e Samaria (At 8-12)
3. Até os confins da terra (At 13-28)
Algo parecido poder ser feito com Lucas, já que sua estrutura nar-
rativa também tem elementos geográficos do ministério de Jesus:
• Lc 1:1-4: Introdução
• Lc 1:5-2:52: Narrativas da infância
• Lc 3:1-9:50: Ministério na Galileia
• Lc 9:51-19:27: Ministério em Samaria e viagem para Jerusalém
• Lc 19:28-21:38: Ministério em Jerusalém
• Lc 22:1-24:53: Narrativas da morte e ressurreição
Embora haja algumas passagens sobrepostas, há relativamente
um movimento da Galileia para Jerusalém, através de Samaria. Já em
Atos, o movimento é de Jerusalém para o resto do mundo, passando
novamente por Samaria.
3.3.2 PRINCIPAIS ÊNFASES DE LUCAS
Começamos com a menção às ênfases compartilhadas entre os si-
nóticos (Mateus, Marcos e Lucas):
- a centralidade do reino de Deus;
- Jesus como aquele que tem poder para fazer milagres, Mestre e Mes-
sias;
- a morte de Jesus para salvar o mundo;
- a ressurreição gloriosa de Jesus.
Outras notas típicas de Lucas podem ser mencionadas:
- Jesus é o salvador de todas as pessoas (Lc 19:10): “Porque o Filho do
homem veio buscar e salvar o que se havia perdido”
- Interesse nas relações pessoais (Lc 10:25-37)

96
- Proeminência dada às mulheres (Maria, Isabel, Ana, Marta e Maria,
viúva de Naim e outras)
- Ênfase no Espírito Santo (Lc 1:15; 1:35; 1:41)
- Ênfase na oração (Lc 3:21; 5:15-16; 6:12; 9:28-36; 9:18-22)
- Ênfase na alegria e nos cânticos (cântico de Maria, Gloria in Excelsis,
Benedictus, Magnificat e Nunc Dimittis).

3.4 O SERMÃO PROFÉTICO DE JESUS – Parte I


3.4.1 OS SINAIS DO FIM
O Sermão Profético de Jesus, ou Sermão das Oliveiras, é uma
longa reflexão de Jesus acerca da escatologia. Há três versões deste
Sermão. Tanto a versão de Mateus quanto a de Lucas se baseiam na
versão de Marcos 13, com algumas poucas peculiaridades. Enquanto
Marcos afirma que os discípulos perguntaram apenas sobre quando o
Templo cairia (Mc 13:1-4), Mateus expande a pergunta dos discípulos
para incluir os sinais da segunda vinda de Jesus, (a Parousia) e do “fim
da era”, o fim da história humana como a conhecemos (Mt 24:1-3).
Nesta nossa análise, vamos olhar para o Sermão em uma perspectiva
sinótica, apesar de cada evangelista ter suas peculiaridades.
O Sermão Profético de Jesus está cheio de alusões e referências
ao livro de Daniel, quase como um midrash daniélico. Alguns indícios
deste relacionamento podem ser encontrados, por exemplo, na defi-
nição das guerras como sinal do final dos tempos (Mt 24:4-8; Mc 13:5-
8; Lc 21:8-11).
Nestes versículos, surgem algumas alusões a Daniel: “guerras e
rumores de guerras”, “isto deve acontecer”, “não fique alarmado”,
e “isto ainda não é o fim”. A presença da guerra nos apocalipses de
Daniel é uma constante, que comumente contém a indicação de que
“estas coisas devem acontecer” antes que venha o fim. É um senso

97
de determinismo histórico típico da tradição apocalíptica. Mas tanto
no Sermão Profético quanto em Daniel, a guerra não significa que o
fim já chegou, mas que ele se aproxima. A expressão “ainda não é o
fim” indica a perspectiva de conflitos que se darão sobre a terra até a
intervenção escatológica de Deus.
Além da guerra, os Evangelhos Sinóticos mencionam persegui-
ções (Mt 24:9-13; Mc 13:9-13; Lc 21:12-19) e uma grande tribulação (Mt
24:21-22; Mc 13:9-20), referências que também estão reelaborando
Daniel. Os leitores destes textos esperam pela intervenção de Deus
na história para trazer salvação para os seus filhos e juízo para os ad-
versários, mas antes que isto aconteça, esperavam por dias difíceis.
Estes dias seriam marcados pela chave hermenêutica das dores de
parto, o que significa dizer que as dificuldades seriam intermitentes
e crescentes. Os leitores entenderiam que os dias ficariam cada vez
piores, até que se instaurasse a derradeira perseguição, ou a gran-
de tribulação. Daniel 12:1 fala de um tempo de angústia “qual nunca
houve” na história. Em Dn12: 7, ele complementa que “quando se aca-
bar a destruição do poder do povo santo, estas coisas se cumprirão”.
O objetivo de passagens como essa era indicar que quanto mais difí-
ceis fossem as opressões do povo de Deus, mais perto ele estaria de
ser salvo.
Quando este fenômeno aparece em Marcos e Lucas, cortes reais e
sinagogas estão envolvidas nas perseguições, quando os seguidores
de Jesus receberiam ajuda divina para se defenderem dos persegui-
dores. Já em Mateus, a fonte de perseguição não é mencionada. Tan-
to Mateus quanto Daniel falam de uma grande perseguição maior que
qualquer outra na história.
De qualquer forma, além das alusões já mencionadas, as duas
principais referências a Daniel no Sermão Profético são o Filho do
Homem e a “abominação desoladora”. Os três sinóticos relatam que
após uma grande tribulação na terra e eventos cataclísmicos no céu,
a figura do Filho do Homem virá nas nuvens (Mt 24:27; Mc 13:26; Lc

98
21:27). Aparentemente estas passagens fazem alusão à visão de Da-
niel 7, que fala do Filho do Homem que veio “com as nuvens do céu”
até o Ancião de Dias para receber o “domínio, e glória, e o reino, para
que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu
domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será
destruído” (Dn 7:13-14).
Já a “abominação desoladora” surge em Mt 24:15 e Mc 13:14. A re-
ferência mais explícita é a de Mateus: “Quando, pois, virdes o abo-
minável da desolação de que falou o profeta Daniel, no lugar santo
- quem lê entenda”. Aqui não há apenas uma alusão, mas uma orien-
tação de leitura. Por meio da frase “quem lê, entenda”, o evangelista
convoca os leitores a lerem o livro de Daniel. Dn 9:27, fala de alguém
que virá sobre “as asas da abominação”. A mesma imagem é usada
em Dn 11:31 e 12:11, mas a referência primária, em termos históricos
e literários, é mesmo Dn 9, quando o autor apocalíptico descreve a
profanação do templo por Antíoco Epífanes.
Estas duas referências (Filho do Homem e abominação desolado-
ra) parecem ser não apenas duas fortes alusões a Daniel, mas tam-
bém o ponto de partida para a estruturação do Sermão Profético,
como veremos a seguir.
Os versículos de abertura (Mt 24:1-3; Mc 13:1-4; Lc 21:6-7) indicam
que o Sermão Profético trata de dois assuntos distintos. Jesus acaba-
ra de passar pelo templo com seus discípulos. Diante daquela estru-
tura tão sólida, os discípulos ouvem que não ficará dela “pedra sobre
pedra”. Tudo seria derrubado. Eles andam um pouco mais, e ao che-
gar ao Monte das Oliveiras, os ansiosos discípulos não se contêm e
indagam Jesus sobre o cumprimento de suas palavras.
Na versão de Mateus, os discípulos fazem duas perguntas diferen-
tes: quando estas coisas acontecerão (a destruição do templo de Je-
rusalém); e quais seriam os sinais da vinda do Senhor (a parousia).
Em linhas gerais, então, Jesus faz uma profecia acerca da destruição

99
do templo, e os discípulos perguntam quando isso iria acontecer. Mas
logo em seguida indagam também acerca da parousia (volta de Cris-
to). Em Lucas e Marcos, a pergunta é apenas sobre a destruição do
templo, mas a resposta de Jesus igualmente trata da parousia.
O exercício que tentaremos fazer, então, é separar os versículos
vinculados à primeira questão dos discípulos, ou seja, a destruição
do templo, e aqueles ligados à segunda, relacionados com a volta de
Jesus.
Há pequenas divergências entre os evangelistas, mas em linhas
gerais os sinóticos mantêm a mesma estrutura, como a tabela a se-
guir pode demonstrar:
MATEUS 24 MARCOS 13 LUCAS 21
Questão A: Os discípulos perguntam sobre a destruição do templo
Versículos 2-3a Versículos 2-4a Versículos 6-7a
Questão B: Os discípulos perguntam sobre a Parousia
Versículo 3b Versículo 4b Versículo 7b
Resposta A - Jesus responde sobre a destruição do templo
Versículos 4-20 Versículos 5-18 Versículos 8-24
Resposta B - Jesus responde sobre a Parousia
Versículos 21-31 Versículos 19-27 Versículos 25-28
Ilustração A - Parábola sobre a destruição do templo
Versículos 32-35 Versículos 28-31 Versículos 29-33
Ilustração B - Dito sobre a Parousia
Versículos 36-39 Versículos 32-37 Versículos 34-36

3.5 O SERMÃO PROFÉTICO DE JESUS – Parte II


3.5.1 A ABOMINAÇÃO DESOLADORA E A DESTRUIÇÃO DO TEMPLO
Os discípulos perguntaram pelo “quando” de “estas coisas” (tauta)
acontecerem, e receberam como resposta uma série de sinais a res-
peito dos dias da “abominação desoladora”.

100
Como já argumentamos, a expressão aparece primeiramente em
Dn 9. Nesta passagem, um anjo aparece a Daniel e promove uma
revisão escatológica das setenta semanas de Jr 25:11-12 e 29:10. O
quadro final é uma exegese de Jeremias (um midrash), na forma de
esquematização apocalíptica.
É neste contexto que os últimos eventos mencionados são a inter-
rupção do culto sacrificial e a introdução da abominação desoladora
no templo de Jerusalém, um evento que se concretizou na profana-
ção do templo feita pelo monarca helenista Antíoco Epífanes e na
perseguição religiosa aos judeus em torno de 167 ou 166 a.C. A função
principal desta profecia apocalíptica é garantir que a perseguição ter-
minará, e por isso o relato faz uma revisão histórica que conclui com
a certeza da libertação do povo de Deus, libertação esta já decretada
nos planos divinos.
Esta passagem aparece nos evangelhos sinóticos como uma re-
ferência não mais à profanação anterior do templo, mas à sua des-
truição nas mãos do general romano Tito, no dia 10 de agosto de 70.
Certamente não haveria uma abominação desoladora maior do que
esta, para Israel: ver a casa de Deus pegar fogo e seus lugares santos
pisoteados por soldados impuros ainda manchados do sangue dos ju-
deus que tentavam defendê-lo.
Os conflitos começaram formalmente no ano 66, quando Jerusa-
lém se rebelou, sob a liderança de figuras aristocráticas da cidade em
parceria com zelotes da Galileia, e os sacrifícios diários pelo impera-
dor foram interrompidos.
As forças romanas poderiam ter acabado rapidamente com a re-
belião, mas as disputas sucessórias no Império Romano, com o fim do
governo de Nero e a ascensão de Vespasiano, retardaram parcialmen-
te a resolução. A guerra durou quatro anos, com focos de resistência
ativos até 73. O cerco a Jerusalém durou de abril a agosto de 70.
Diante de uma abominação como essa, os relatos evangélicos

101
orientam que era melhor fugir e se esconder nas montanhas. É neste
sentido que se pode ler os vários sinais: falsos cristos, guerras, fome,
pestes, terremotos, tortura, escândalos, traição e apostasia. A série
de indícios termina em Mt 24:14 com a orientação para se “pregar o
evangelho do Reino em todo o mundo e então virá o fim”, entendida
por vários intérpretes durante a história como um vaticínio sobre a
evangelização global antes da parousia. É significativo, entretanto,
que ela se encontra precisamente antes da referência à abominação
desoladora, e consequentemente, esteja relacionada mais com a des-
truição do templo.
Após os sinais, então, finalmente chegaria a “abominação deso-
ladora”. E neste momento, quem estivesse na Judeia deveria buscar
a segurança dos montes, e quem estivesse no telhado ou no campo,
que ficasse por lá. O sermão profético (como Daniel) defende a fuga
e não a luta contra os romanos. Por isso, ai das grávidas e das que
tivessem filhos pequenos. Geralmente são as mulheres as mais preju-
dicadas em situação de conflito armado. A exposição da abominação
desoladora termina na versão de Mt 24:20, com a curiosa oração para
que não aconteça no inverno nem no sábado, o que, de uma maneira
geral, atrapalharia a fuga.
Como os Evangelhos Sinóticos foram escritos no final da guerra
ou um pouco depois dela, é contra este pano de fundo que a igreja
dos evangelistas lia e ouvia estas passagens. Os leitores destes textos
ainda podiam se lembrar do fogo que consumiu Jerusalém, dos gritos
dos degolados pela espada romana, dos muros destruídos. Para es-
tes, a abominação desoladora acabara de acontecer, como Daniel es-
creveu, e Jesus alertou. Por isso, os evangelistas se lembram de uma
parábola sobre como ler os tempos por meio das cores e dos frutos de
uma figueira. É igualmente nesta conjunção que se pode ler a expres-
são “não passará esta geração sem que estas coisas aconteçam” (Mt
24:33; Mc 13:30; Lc 21:31). Que coisas? A abominação desoladora, ou
seja, a destruição do templo e de Jerusalém.

102
3.5.2 O FILHO DO HOMEM E O FINAL DOS TEMPOS
Retomando o quadro sinótico estruturado pelas duas perguntas
dos discípulos, o final da seção sobre a destruição do templo termina
com uma alusão à abominação desoladora de Dn 9, e a partir daí o
texto parece tratar da segunda questão, em que o foco não é mais
uma guerra histórica, mas a intervenção do Filho do Homem de Dn 7
para trazer o fim do mundo.
O primeiro apocalipse de Daniel (Dn 7) apresenta quatro bestas
que sobem do mar (representantes do caos e do abismo), indicações
alegóricas de quatro reinos: Babilônia, Média, Pérsia e Grécia.
O “pequeno chifre” com “boca que fala grandes coisas” (Dn 7:8) se
concretizou em Antíoco Epífanes. Dn 7:25, ao referir-se a mudanças
de tempos e leis parece ser alusão à supressão dos festivais religiosos
e à proibição da leitura da Torah.
Como esta visão foi preservada em Aramaico, e ainda serviu de
base para a visão de Dn 8, ela é a mais antiga da seção visionária de
Daniel (Dn 7-12). Sua função é consolar e confortar os judeus perse-
guidos pela apresentação do contexto espiritual onde as guerras são
verdadeiramente travadas e pela descrição do julgamento celestial
que solucionará todo o conflito histórico.
A perspectiva de que as perseguições de Dn 7 pertenceriam ao fu-
turo parecia ser a forma como judeus liam Daniel no tempo de Jesus.
Em Josefo (Antiguidades 10,210), 4Esdras (12:11-15), e escritos cris-
tãos, como a Epístola de Barnabé (1:1-5), Irineu (Contra as Heresias
5,26) e Tertuliano (Apologia 32), essa era a forma mais comum de si-
tuar os próprios dias, como os dias da quarta besta, e indicar que as
perseguições (do pequeno chifre) pertenceriam ao futuro, às vezes,
perto, às vezes, longe. Nestas apropriações, a última besta deixa de
ser a Grécia (dos tempos de Antíoco Epífanes) e se torna Roma (dos
dias de Jesus).
Em vez de usar referentes históricos precisos, como na seção de

103
narrativas (Dn 1-6), a visão de Dn 7 descreve animais monstruosos;
e ao apresentar os aliados celestiais, os relata ainda nos termos de
antigas histórias orientais, como o Ancião que governa, e o Filho do
Homem que o representa.
Com isso, a visão transcende sua situação histórica concreta, e se
torna facilmente transportada para novos contextos. As circunstân-
cias particulares foram assimiladas em um relato simbólico, de tal
forma que podem descrever situações diferentes na história.
Os membros do movimento de Jesus tinham uma visão específica
do futuro, pelo menos em seus momentos iniciais, com uma lista de
eventos que esperavam acontecer. O Messias morreria e retornaria
para o céu, Jerusalém cairia nas mãos dos romanos e finalmente, al-
gum tempo depois, Jesus retornaria ao mundo como o Filho do Ho-
mem celestial para julgar os opressores.
É contra este pano de fundo que as guerras entre nações, decep-
ções religiosas sobre o futuro, falsos messias e profetas, perseguição
ao povo de Deus, encontravam sentido, como características contí-
nuas da história, de forma crescente e intermitente, até que se cum-
prisse o julgamento escatológico de Dn 7.
As igrejas dos primórdios tinham a convicção de que uma das
profecias já tinha acontecido (a queda do Templo). Só faltava a outra
(a volta de Jesus). Ambas estavam relacionadas. Jesus estava para
voltar, e isso não demoraria nem um pouco. Para ilustrar a parousia,
Jesus falou dos dias de Noé (Mt 24:37). Assim os crentes manteriam a
perspectiva de iminência da vinda do seu Senhor, mas entenderiam
que este dia seria repentino. Diante da abominação desoladora, o
melhor era fugir para as montanhas. Diante da volta de Jesus, a única
coisa a fazer era vigiar (Lc 21:36).
Mas deve-se lembrar que Jesus evitou marcar tempos e datas. Ele
fala de julgamentos espirituais. Ele argumenta que Deus concedeu
um último tempo de graça. Para Jesus, Deus poderia encurtar ou

104
alongar o tempo da angústia, por causa dos eleitos que clamam por
ele. Deus poderia ampliar o prazo, se ele assim o quisesse.

3.6 ATOS DOS APÓSTOLOS


Já argumentamos que Lucas-Atos devem ser vistos em conjunto,
como se fosse um trabalho único, separado devido ao tamanho do
manuscrito. Mesmo assim, em função dos tipos de narrativas, Evan-
gelho e Atos podem ser separados. Enquanto Lucas se concentra em
Jesus e sua vida, o foco de Atos é a extensão do evangelho de Jerusa-
lém a Roma.
A importância dos Atos dos Apóstolos não pode ser subestimada.
Ele traça três décadas da igreja (30-61/62), incluindo a história da pri-
meira igreja em Jerusalém, a propagação da fé cristã para Samaria,
as primeiras conversões entre os gentios e a propagação da igreja ao
longo da borda norte do Mar Mediterrâneo até Roma. Ele descreve
como aqueles que haviam estado com Jesus durante todo o seu mi-
nistério na terra procuraram cumprir seus ensinamentos e estabele-
cer a igreja.
Alguns estudiosos do Novo Testamento concordam que o tema
central de Lucas-Atos é a salvação ou, como alguns sugerem, a his-
tória da salvação. Lucas narra a história de Jesus vinculando-a com
a história de Israel. Atos retoma a história de Lc 24, com a aparição
do ressuscitado aos seus discípulos, dizendo-lhes que eles vão rece-
ber o Espírito Santo e pregar o evangelho de Jerusalém até o fim do
mundo, e a ascensão de Jesus (At 1:1-11). Atos então narra a gênese
da igreja a partir da seleção de Matias para substituir Judas, o Pente-
costes, a igreja em Jerusalém e a subsequente expansão da igreja à
medida que a Palavra é pregada.
Visto que Atos continua a história de Jesus, a história da primeira
comunidade em Jerusalém é vital para fornecer uma compreensão
do que o Mestre tinha em mente quando chamou seus discípulos para

105
estabelecer sua igreja. A igreja em Jerusalém, embora tenha seus pro-
blemas, é paradigmática para uma compreensão adequada do que é
uma igreja no mundo.
O relato de Lucas sobre a igreja oferece uma noção do que era
importante para os primeiros discípulos. Isso não necessariamente
significa que os leitores do livro devem tomar Atos como uma des-
crição de modelos e estratégias para serem repetidos. Estes relatos
precisam ser entendidos dentro do seu contexto sociocultural. Não é
possível imitar a igreja de Jerusalém, algo que nem as outras igrejas
da época conseguiram. A igreja de Antioquia, de maioria gentílica, ti-
nha uma forma de viver o evangelho diferente da Igreja de Jerusalém.
Atos deve ser lido com prudência, e os ideais e princípios desta his-
tória dos primórdios aplicados com sabedoria em outros contextos.
A história de Atos também é especialmente importante para com-
preender a natureza da missão que Jesus deixou para seus seguido-
res. Cada Evangelho canônico termina com algum tipo de comissão
para levar a mensagem de Jesus e do reino ao mundo (Mt 28:18-20;
Mc 13:10; Lc 24:46-49; Jo 20:21). Em Atos, Lucas conta a história de
como os primeiros discípulos obedeceram a essa comissão e, mais
importante, como Deus atuou por meio da ação humana. Atos é signi-
ficativo ao falar sobre a primeira geração de cristãos e como eles es-
tabeleceram a igreja de Cristo, uma instituição que continua até hoje.
3.6.1 O TÍTULO ATOS DOS APÓSTOLOS
O título “Atos do Apóstolos” não é original. Não estava no texto es-
crito pelo autor, e foi acrescentado provavelmente no II século, quan-
do as obras do Novo Testamento começaram a circular em forma de
coleção. Este nome se tornou, então, o nome tradicional do livro. Isto
não impediu, entretanto, que os estudiosos do livro sugerissem ou-
tros títulos para a obra, mesmo que seja apenas para fins de organi-
zação de conteúdo.
O termo “Atos” (em grego, praxeis) indica um gênero literário anti-

106
go que descreve a vida e as ações de pessoas importantes. Atos dos
Apóstolos quase não dá conta do conteúdo do livro. Afinal, apenas
dois apóstolos estão em destaque: Pedro e Paulo. Os outros não pos-
suem papéis de destaque no livro. O livro poderia, então, receber,
com alguma tranquilidade, o título “Atos do Espírito Santo”, pois este
sim parece ser o principal agente de toda a obra.
3.6.2 AUTORIA
É geralmente aceito que o autor de Atos é a mesma pessoa que
escreveu o Terceiro Evangelho. Isso por causa das semelhanças entre
os prólogos, incluindo:
- a referência ao “primeiro livro”, que claramente se refere ao Terceiro
Evangelho;
- o mesmo destinatário, o “excelentíssimo Teófilo” (At 1:1 e Lc 1:3).
- a continuidade entre o final do Terceiro Evangelho, especialmente o
apelo ao testemunho, a antecipação do Espírito Santo vindo sobre os
discípulos em Jerusalém, a ascensão e o ensino sobre o reino em todo
o mundo (Lc 24: 46-49; At 1:1-11).
A história poderia muito bem ter sido seccionada em função de
sua extensão. Lucas-Atos seria uma obra muito longa para caber em
um rolo de papiro. O comprimento máximo de um rolo de papiro era
de 12 metros. O Evangelho de Lucas (19.404 palavras) caberia em um
rolo, e Atos (18.734 palavras) em outro rolo. Entretanto, a frase “em
meu primeiro livro” (At 1:1) pode sugerir uma lacuna entre as duas
obras. Talvez tenha havido um espaço de tempo entre um e outro.
Então, é difícil saber a razão precisa da existência de duas obras:
pode ser uma questão de extensão de narrativa; ou então a segunda
foi escrita algum tempo depois da primeira. De qualquer forma, a pri-
meira das duas obras enfoca “o homem” (Jesus Cristo) e a segunda,
“o movimento” (a igreja e a missão).

107
Assim, a questão da data do livro de Atos depende muito da for-
ma como vamos responder à questão do seu relacionamento com
o evangelho. Se o relato é único e foi dividido por uma questão de
tamanho, a data é exatamente a mesma que apontamos quando dis-
cutimos esse tópico sobre Lucas. Mas se entendermos que houve um
espaço de tempo entre a produção de um e outro, então Atos pode ter
surgido algum tempo depois. Nesta nossa introdução, optamos por
esta opção, entendendo que um período breve de tempo transcorreu
entre os dois livros. Sugerimos o final da década de 80 como uma data
provável para sua produção.
3.6.3 COMUNIDADE DE DESTINO
Atos e Lucas foram escritos para um certo Teófilo que provavel-
mente é um aristocrata romano, representante da sociedade imperial
romana, de cultura greco-romana, já que a língua grega é o idioma.
Ele representa, entretanto, uma comunidade subjacente, um grupo
interessado no ministério de Jesus e no desenvolvimento da igreja.
3.6.4 ESTRUTURA DE ATOS
A maioria dos estudiosos concorda que o texto-chave para enten-
der a estrutura e o propósito de Atos é At 1: 8: “Mas recebereis a vir-
tude do Espírito Santo, que há de vir sobre vós; e ser-me-eis testemu-
nhas, tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria, e até
aos confins da terra”. Este versículo aponta alguns dos propósitos e
temas-chave de Atos:
- O versículo começa a indicação dos primeiros crentes que receberão
a capacitação do Espírito no Pentecostes. A história da expansão da
fé está intimamente ligada a pessoas que trabalham com Deus pelo
poder do Espírito. Em sua graça, Deus escolhe trabalhar com e por
meio de seres humanos.
- O texto reafirma Lc 24:49, onde, antes de sua ascensão, Jesus afirma
que enviará capacitação espiritual, e que os discípulos devem ficar

108
em Jerusalém até que sejam “revestidos com poder do alto”. Eles são
instruídos a permanecer em Jerusalém até que recebam o Espírito,
e a implicação é que em seguida eles deveriam partir para pregar o
evangelho de arrependimento e perdão dos pecados às nações. En-
tretanto, eles não obedecem a isso concretamente, permanecendo
em Jerusalém até a morte de Estêvão e a instauração da perseguição
contra os helenistas. At 1:8 antecipa a experiência do Pentecostes,
quando os primeiros crentes tiveram um encontro radical com o Espí-
rito (At 2:1-4). Também antecipa outros momentos em que o Espírito
desceu sobre os novos convertidos (At 8:17; 9:17-18; 10:44; 19:6) e so-
bre a igreja novamente (At 4:31).
- A história de Atos é a narrativa de como Deus conta com seu povo
para testemunhar a respeito das boas novas de Cristo. Os discípulos
devem testemunhar o que Deus tem feito no mundo (At 2:32; 3:15;
5:32; 10:39, 41; 13:31; 22:15; 22:20; 26:16). Alguns se tornam “mártires”
no sentido pleno da palavra, morrendo por Cristo. Isso inclui Estêvão
e Tiago, filho de Zebedeu (At 7:54-60; 12:1-2). Outros morrerão ainda
nos tempos bíblicos, Paulo e Pedro durante a perseguição de Nero.
Aqueles que seguem a Cristo passarão por perseguição e eventual-
mente enfrentarão a morte por causa de sua fé. No entanto, nada vai
pará-los (At 4:19-20, 29-31; 5:29; 8:4; 11:19).
- Este versículo dá uma boa indicação da estrutura de Atos. Esta pri-
meira seção de Atos enfoca Jerusalém e o estabelecimento da igreja
no coração do Judaísmo. Embora às vezes a história volte a Jerusa-
lém (por exemplo, At 15), após a perseguição de Saulo, o foco se afas-
ta de Jerusalém à medida que o evangelho se irradia. Em seguida vem
toda a Judeia e Samaria (At 8:4-12:25). Este é o centro de Atos. Ele se
concentra na missão de Samaria através de Filipe, o evangelista, até
chegar no estabelecimento da igreja em Antioquia (At 11:19-30). Por
fim, o evangelho alcança o “fim da terra” (At 13:1-28:31).
Esta seção foca na propagação do evangelho ao restante do Im-

109
pério Romano. A figura chave aqui é o apóstolo Paulo. O relato termi-
na no coração do Império Romano com Paulo na prisão pregando o
evangelho (At 28:30-31). Embora Roma não seja o “fim da terra”, é o
“centro da terra” na perspectiva de um morador do Império. Dali ele
poderia irradiar para todos os cantos.

3.7 A TEOLOGIA DE ATOS DOS APÓSTOLOS


3.7.1 A SOBERANIA DE DEUS
Um dos temas principais de Atos é a soberania de Deus. É Deus
quem está trabalhando no mundo e na igreja. Ele guia a história. Ele
continua a história de seu povo do Antigo Pacto no povo recém-for-
mado. Esse crescimento é por meio da obra do Espírito.
Eventos importantes como o Pentecostes, a perseguição de Sau-
lo inspirando a dispersão da igreja e a evangelização dos gregos em
Antioquia, a história de Cornélio onde Deus transformou a perspec-
tiva de Pedro e derramou seu Espírito sobre os gentios, a conversão
de Saulo e os incidentes que levaram Paulo a terminar em Roma são
obras soberanas de Deus.
Deus age em circunstâncias aparentemente negativas. Atos é a his-
tória da missão imparável de Deus por meio de seu Espírito.
3.7.2 O SENHORIO DE CRISTO
No evangelho de Lucas, Jesus Cristo está no centro dos propósitos
de Deus, desde o seu nascimento, seu ministério em Israel, sua mor-
te, ressurreição, comissionamento aos discípulos, e finalmente sua
ascensão aos céus.
Em Atos, Ele é chamado de Senhor Jesus por dezoito vezes, está
sentado à direita de Deus e exerce seu senhorio (At 2:33; 5:31). At
10:36 diz: “Ele é o Senhor de todos”. Por seu Espírito, Ele continua seu
ministério de salvação.

110
3.7.3 O PODER DO ESPÍRITO
O papel do Espírito é fundamental para Atos. Ele é mencionado
cinquenta e sete vezes. Na maioria das vezes, ele é o “Espírito Santo”
(quarenta e uma vezes), enfatizando a pureza e o poder de consagra-
ção do Espírito. Em outros momentos, ele é o “Espírito de Jesus” (At
16: 7) ou o “Espírito do Senhor” (At 5: 9; 8:39), enfatizando que Cristo
continua seu trabalho na igreja, por meio do seu Espírito. Grande par-
te da expansão da igreja em Atos é baseada em obras do Espírito ao
invés de estratégias ou projetos humanos.
3.7.4 A IGREJA
Igreja é uma palavra derivada do latim, uma transliteração do
vocábulo grego ekklesia. Este substantivo é formado por uma pre-
posição (de dentro para fora) com um verbo (chamar ou convocar).
Etimologicamente, “igreja” significa “alguém que é chamado para
fora”.
A literatura grega antiga refere-se a “ekklesia” como uma convo-
cação de camponeses livres para a guerra. Eles eram convocados a
deixar suas fazendas imediatamente ao sinal de algum ataque contra
sua cidade. A partir do século V a.C., “ekklesia” passou a representar a
convocação de cidadãos efetivos de uma cidade (polis) para reuniões
populares.
Desta forma, seu significado tornou-se dinâmico, ligado ao ajunta-
mento de pessoas e não para falar de um determinado local ou edi-
fício, ou então de rituais religiosos. A ideia da palavra “igreja” apre-
senta algumas características de seu ambiente originador de uma
convocação popular para uma assembleia deliberativa na discussão
democrática de assuntos pertinentes à vida de uma comunidade.
A ideia encontrada no ambiente greco-romano é “Igreja” como
uma assembleia popular. Era um encontro de pessoas devidamente
convocadas. Na sociedade da Grécia antiga, as pessoas livres, resi-

111
dentes em uma vila ou comunidade, se reuniam em intervalos regula-
res e extraordinariamente em casos de urgência.
Os moradores deixavam seus afazeres, sua casa, seu trabalho e se
dirigiam ao local determinado para as reuniões plenárias. Essas reu-
niões serviam para anunciar oficialmente as notícias do governo, da
cidade ou apresentar problemas de cunho administrativo e político.
O termo Igreja foi recebido pelo Judaísmo, no ambiente judaico
helenístico, para representar o próprio povo escolhido por Deus. Foi a
melhor palavra encontrada para representar a comunidade religiosa
do Antigo Testamento. Ela passou a representar o próprio povo de Is-
rael, cuja convocação e eleição pertencia ao próprio Deus. Assim Isra-
el foi chamado de a igreja de Deus. O autor da carta aos Hebreus (Hb
2:12) reporta ao canto do salmista (Sl 22:22) na Septuaginta, dizendo:
“Anunciarei o teu nome a meus irmãos. Cantar-te-ei louvores no meio
da igreja”. A ideia é que o salmista estaria cantando no meio do seu
povo louvores a Deus.
O autor de Atos dos Apóstolos relata o sermão de Estevão, o qual via
nos tempos mosaicos uma ekklesia reunida no deserto (At 7.38). Esta
igreja do povo era para receber a lei, através de uma santa convocação,
a qual determinava sua organização como um povo separado. Os pri-
meiros cristãos encontraram na tradução da Septuaginta uma ekklesia
peregrina (At 5.11) em Israel como um protótipo da igreja cristã.
No Evangelho de Lucas, a igreja não é mencionada explicitamente.
Em contraste, em Atos, o termo aparece vinte vezes. Igrejas são es-
tabelecidos em Jerusalém (At 5:11; 15:4). São fundadas na Judeia (At
18:22), Samaria e Galileia (At 9:31). Elas são estabelecidas em Antio-
quia da Síria, cheias de zelo missionário (At 11:26; 13:1-2; 14:27; 15:4).
Igrejas são estabelecidas na Síria, Cilícia (At 15:41), Galácia (At 14:23;
16:5) e na Ásia Menor (At 20:17, 28). Atos fornece uma visão profunda
sobre a vida do início da igreja, a maneira com que ela lidou com pro-
blemas, a sua expansão e suas ênfases.

112
3.7.5 MISSÃO
Atos revela a maneira como a igreja intencionalmente e não inten-
cionalmente se expandiu ao longo das linhas de At 1:8, por Jerusalém,
Judeia e Samaria, e até Roma.
Deus, por meio de seu Filho e Senhor, por seu Espírito, governa
esta expansão. Mesmo a perseguição se torna um “agente” para a
evangelização (At 8: 4; 11,19).
Atos destaca algumas das principais figuras na expansão da igreja,
especialmente Pedro e Paulo. Outras figuras incluem João, Estêvão,
Filipe, Tiago, Apolo, Priscila e Áquila.
Atos revela a maneira pela qual o Cristianismo cruzou as fronteiras
raciais, de gênero e sociais, à medida que se espalhou. Consequente-
mente, tem uma forte ênfase na propagação do evangelho para os ju-
deus primeiro, e depois para os gentios, ou seja, no desenvolvimento
de uma igreja que transcende cultura e etnia.
Como no caso do Evangelho de Lucas, é possível perceber a atu-
ação das mulheres na expansão do evangelho. Particularmente na
primeira parte de Atos, há uma preocupação com os pobres e neces-
sitados. No entanto, essas ênfases são subordinadas pela ênfase na
missão até aos “confins da terra” à medida que a narrativa se desen-
volve.
A ênfase do livro de Atos está na inclusão de pessoas de todas as
raças e culturas, à medida que o evangelho se liberta das distinções
culturais judaicas e se torna um evangelho baseado somente na inclu-
são pela fé. A narrativa termina com a igreja estabelecida em Roma,
de onde o evangelho penetrará o mundo.

3.8 O NASCIMENTO DA IGREJA DE JESUS CRISTO


Na primavera do ano 58, enquanto pousava na movimentada ci-
dade de Corinto, Paulo de Tarso escreveu uma carta para algumas

113
pessoas na distante cidade de Roma. Diferentemente das cartas da
época, ele escreveu bastante, e no final, já no encerramento, enviou
diversas saudações: “Saudai Priscila e Áquila, meus cooperadores em
Cristo Jesus, os quais pela minha vida arriscaram a sua própria cabe-
ça; e isto lhes agradeço, não somente eu, mas também todas as igre-
jas dos gentios; saudai igualmente a igreja que se reúne na casa deles.
(Rm 16:3-5). Este pequeno trecho denuncia um vibrante movimento
religioso que neste momento se espalha pelo Império Romano, e faz
referências a um conjunto de “igrejas dos gentios”, bem como a uma
“igreja” que se reúne na casa de Priscila e Áquila.
Como eram estas igrejas? Como cresciam e se espalhavam? De
onde vieram? Vamos tentar responder a estas perguntas, começan-
do com uma ainda mais significativa: Quando a Igreja nasceu? Essa é
uma boa pergunta. A tendência é respondê-la vinculando a resposta
diretamente com algum evento nos dias de Jesus. Ela teria nascido,
então, no momento em que Jesus disse para Pedro: Tu és Pedro, e so-
bre esta pedra edificarei a minha igreja. Poderia ter nascido também
no momento em que Jesus reuniu seu círculo de discípulos, após a
tentação no deserto. Essa última hipótese, inclusive, tem alguma ló-
gica. Afinal, se Jesus é o fundador da Igreja, por que não ver seu iní-
cio logo no começo do ministério de Jesus? A Igreja teria começado
quando o próprio Jesus teria começado! Assim, ao chamar os primei-
ros pescadores em torno do lago da Galileia, ou ao receber os primei-
ros discípulos vindo do grupo do Batista, Jesus teria começado a sua
Igreja.
Mas é possível chamar esse grupo que Jesus reuniu em torno dele,
durante seu ministério, de igreja? Ela seria em termos estritos e for-
mais, então, a igreja de Jesus? Acredito que a resposta seja negativa
para essa pergunta. Jesus reúne um grupo, sim, em torno de si, mas
não parece que é esse grupo que devemos chamar de Igreja.
Algumas marcas desse grupo inicial, que chamarei de movimento
de Jesus, o torna um fenômeno irrepetível e sem continuidade.

114
a) O movimento de Jesus é um movimento profético radical. Deixe-
me explicar isso. Ele chama seus discípulos para deixar completa-
mente suas atividades cotidianas e gastar todo o seu tempo cami-
nhando com Ele pelas estradas da Palestina. É isso mesmo. Pedro
era pescador no lago da Galileia. Tinha família. Tinha esposa, e tal-
vez algum outro dependente de sua atividade de pesca. Mas Pedro
é chamado a deixar tudo para trás. Sua profissão, sua esposa, sua
casa, seus vizinhos, seus pais. Tudo! Para quê? Para caminhar com
Jesus. Jesus o chama para ser seu discípulo num discipulado radi-
cal. A descontinuidade com a vida anterior ao seguimento de Je-
sus é completa. É para deixar tudo para trás. Um deles, inclusive,
ao ser chamado no momento em que trabalhava numa coletoria
de impostos, deixa imediatamente o local de trabalho para seguir
Jesus. Se tinha alguma pessoa na fila para pagar o imposto, ficou
sem pagar. Se tinha alguma mesa de cobrança, ficou no lugar. Se
tinha algum dinheiro na gaveta, ficou para trás. Ele não preparou
alguém primeiro para deixar no seu lugar para depois seguir Je-
sus. O seguimento é radical porque envolve mudança imediata,
porque envolve abandono completo de todas as relações, porque
envolve deixar tudo para trás, porque envolve seguimento com-
pleto. O mesmo aconteceu com os filhos de Zebedeu, e com todos
os discípulos do círculo mais próximo de Jesus. Deixar tudo para
seguir Jesus era uma atitude radical. Imagine a esposa de Pedro
na janela, ouvindo do pescador que ele iria embora e não sabia se
voltaria. É imaginação, eu sei, mas imagine mesmo assim. Encon-
tramos nos evangelhos textos que lembram esse momento: quem
não deixar pai, mãe, por amor de Jesus, não é digno do Evangelho.
b) Depois de deixar tudo para trás, Jesus sai com este grupo íntimo
pregando uma mensagem que tem como tema básico o reino de
Deus. É isso que Jesus e seus discípulos saem anunciando. E ao
anunciar o reino de Deus, este grupo imediatamente se vincula
às profecias messiânicas e escatológicas das Escrituras judaicas.

115
Jesus anuncia que está próximo o reino de Deus. Ele passa todo
o seu ministério para tratar deste assunto. Como entrar no reino,
como são as relações do reino, como é o Deus do reino e outros
aspectos. E enquanto Jesus prega, ensina, cura, exorciza, seus dis-
cípulos aprendem. Esse movimento de Jesus ainda não é a igreja.
Não é possível copiar este movimento de Jesus em todos os seus
aspectos.
Mas não é apenas pelo seu caráter radical que esse grupo não é
identificado com a igreja. Falta um elemento de grande importância,
sem o qual não é possível falar em igreja. O Pentecostes. Sem Pente-
costes não tem igreja. Sem Pentecostes não é possível falar em igreja.
O movimento de Jesus não era a igreja, porque o Pentecostes ainda
não havia acontecido.
Mas em que consistiu o Pentecostes? O Pentecostes era uma festa
judaica, dentre as muitas festas que os judeus celebravam durante o
ano. Era um momento em que muitas pessoas apareciam em Jerusa-
lém para celebrar.
Os evangelhos registram a promessa de Jesus aos seus discípulos
de que deveriam aguardar a chegada de um “paracletos” em Jeru-
salém. Não deveriam arredar pé da cidade enquanto isso não acon-
tecesse. Pois foi no Pentecostes, 50 dias após os eventos da Páscoa,
pouco mais de um mês depois dos eventos impressionantes da últi-
ma semana de Jesus em Jerusalém, que um importante fenômeno se
deu no meio dos discípulos reunidos em Jerusalém.
O relato desse evento se encontra justamente em Atos, uma das
poucas fontes de informações a respeito desse momento, que faz a
transição entre o grupo de discípulos de Jesus, e a igreja de Jesus.
Segundo o relato de Atos, os discípulos estavam reunidos quando lín-
guas, como que de fogo, descem sobre eles. Veja que o uso da expres-
são como que indica dificuldade para descrever o evento em lingua-
gem humana. Como que descreve alguma coisa que os discípulos não

116
conseguiram entender direito o que era, mas parecia-se com fogo.
Era uma luz brilhante. Uma luz iluminou o ambiente. Iluminados por
essa luz, eles começam a adorar a Deus, todos ao mesmo tempo.
Isso não deveria ser assim tão raro de se ver, pois a adoração cole-
tiva de muitas pessoas falando ao mesmo tempo era a forma regular
de se adorar no templo. O curioso do evento acontecido com os discí-
pulos de Jesus foi que apesar de eles estarem impressionados com a
luz que apareceu, e louvarem a Deus por isso, quem ouvia a adoração
conseguia compreender o que eles falavam em suas próprias línguas.
Mas como isso era possível? O grupo de discípulos era formado de
pessoas simples. Pescadores da Galileia não eram letrados. Não sa-
biam ler ou escrever, quanto mais essa capacidade linguística apri-
morada de falar em várias línguas. O que impressionava ainda mais
é que, no relato de Atos, todos ouvem em suas próprias línguas, ao
mesmo tempo. Era como se houvesse uma tradução simultânea para
outros ouvidos. Cada um entende na sua própria língua. Não é preci-
so tradutor.
Logos eles acusam os discípulos de embriaguez. Quem se levan-
ta para defender o grupo? Pedro. O apóstolo usa primeiramente um
argumento lógico para demonstrar que não tinha ali ninguém em po-
der da bebida. Era ainda muito cedo. Não fazia sentido um grupo tão
grande manifestando sinais de embriaguez. Depois de dizer que eles
não estavam bêbados, Pedro vincula o que eles vêm com Joel. Foi
este profeta que anunciou que no fim dos tempos os filhos e filhas
de Deus falariam novas línguas, quando o Espírito de Deus descesse
sobre eles.
Pois foi, então, essa a interpretação que Pedro deu para o que ha-
via acabado de acontecer. A luz como fogo, e as línguas, eram sinais
de que havia se cumprido, naquele momento, a chegada do Espírito
sobre todos eles. E com isso, iniciou-se o tempo do Espírito, iniciou-se
o tempo da igreja. É aqui que nasce a igreja, quando chega o Espírito
sobre todos. Sem Espírito, não tem igreja. É por isso que, formalmen-

117
te, o movimento profético radical que segue Jesus durante três anos
não é necessariamente a igreja.
Diante do fenômeno sobrenatural ocorrido aos cerca de 100 dis-
cípulos no dia de Pentecostes, e principalmente por causa da acusa-
ção de que eles estariam bêbados por louvarem a Deus daquele jeito,
Pedro vincula o ocorrido à antiga profecia de Joel (Jl 2:28-32). Não
é difícil perceber que o profeta Joel falava dos últimos dias, do mo-
mento da intervenção final de Deus para trazer juízo para os perdidos
e salvação para o seu povo. Neste contexto escatológico, o profeta
menciona o Espírito. Que Espírito é esse que ele menciona? O termo
faz referência ao poder de Deus que operava eventualmente na an-
tiga aliança, dando poder para algumas pessoas realizarem coisas
fantásticas. O Espírito atuava eventualmente sobre alguns homens
e algumas mulheres para capacitá-los a realizarem a obra de Deus,
especialmente para falar em nome dele. Quando o profeta falava em
nome de Deus, o fazia capacitado pelo seu Espírito.
Mas era entendimento entre os judeus que o Espírito de Deus dei-
xara de falar, dando início a um período que eles chamavam de silên-
cio profético. Deus não falava mais, a profecia cessara, o Espírito se
afastara. Mas um dia, essa era a esperança, seu Espírito voltaria a atu-
ar entre os seres humanos, e Deus voltaria a falar para a humanidade.
O silêncio profético teria fim.
A profecia de Joel era fantástica em vários sentidos. Se no passado
o Espírito atuava eventualmente apenas sobre algumas pessoas, no
futuro, Ele atuaria sobre todos os filhos e filhas de Deus, sobre ve-
lhos e jovens, sobre servos e servas. Todos poderiam falar as palavras
de Deus, como apenas os profetas faziam antigamente. Foi isso que
Pedro viu ao seu redor. Olhando para um lado e para o outro, logo
ele vinculou o fenômeno impressionante de pessoas simples falando
em outros idiomas, possivelmente mesmo sem os conhecer, à antiga
profecia de que os filhos de Deus falariam movidos pelo Espírito. Era
o Espírito que os inspirava, o que significava que o Espírito voltou.

118
Ele estava de volta sobre a terra para inspirar os crentes a falarem a
palavra de Deus.
Ao fazer esse vínculo, assim, Pedro esclarece que a partir de en-
tão não é mais privilégio de um ou outro falar a palavra de Deus. To-
dos podem fazê-lo, porque todos agora são movidos pelo Espírito
de Deus. O Espírito não é mais privilégio de a ou b, mas companhia
contínua do povo de Deus. É verdade que o texto de Joel fala do final
dos tempos. Pedro não se esquece disso, porque a expectativa era re-
almente de que o Espírito só voltaria na intervenção última de Deus.
Agora o reino de Deus chegou, porque seu Espírito voltara a atuar.
Por meio da narrativa da descida do Espírito Santo, então, o livro
de Atos registra o nascimento da Igreja de Jesus Cristo sobre a terra.
O restante de sua história extrapolou o livro lucano até atingir real-
mente os confins da terra.

119
CAPÍTULO 4
Evangelho de João
4.1 AUTORIA DO EVANGELHO DE JOÃO – Parte I
A autoria de João é uma das questões mais controversas, com uma
gama de pontos de vista. Existem quatro ideias gerais sobre quem
escreveu o Evangelho de João. A primeira é a visão tradicional de que
João, o apóstolo, filho de Zebedeu, é o escritor. Alguns argumentam,
entretanto, que foi um outro João, denominado de João, o Presbíte-
ro, que escreveu o evangelho. Outros sugerem autores como Lázaro
ou João Marcos ou um autor não identificado. Por fim, alguns argu-
mentam que o texto é pseudônimo, ou seja, foi escrito para que fosse
reputado ao discípulo de Jesus chamado João.
Tal como acontece com os outros Evangelhos, a inscrição “de acor-
do com João” foi acrescentada em algum momento no início e mea-
dos do II século, indicando que a igreja antiga entendia que o texto
fora escrito por um João.
Existem vários personagens de nome “João” no Novo Testamento.
João Batista é o mais conhecido deles, mas foi morto ainda durante o
ministério de Jesus (Mc 6:14-29). Ele não é uma opção. O pai de Pedro
aparece com este nome no Quarto Evangelho (Jo 21:15, 16, 17), mas
não há indicação de que este seja o escritor do Evangelho de João.
Marcos, também conhecido como João Marcos (At 12:12, 25; 13:5,
13; 15:37), é um terceiro João. No entanto, o grego é profundamente
diferente do Evangelho de Marcos, e é improvável que um mesmo au-
tor tenha escrito ambos. Se ele escreveu João, ele não escreveu Mar-
cos. O melhor argumento em apoio a João Marcos é que ele é de Je-

120
rusalém e se encaixa na questão de ser conhecido do sumo sacerdote
(Jo 18:15). Pode ter sido em sua casa onde a Última Ceia foi realizada;
em caso afirmativo, faz sentido que ele esteja sentado perto de Je-
sus na Ceia do Senhor, visto que ele fazia parte da família anfitriã (Jo
13:23; 21:20). Terceiro, é possível que João Marcos seja o jovem que
foge do jardim. Ele pode ter deixado a ceia e seguido Judas. No entan-
to, embora esta seja uma possibilidade real, não tem nenhum apoio
concreto, pois João Marcos não está associado à escola joanina.
Sem dúvida, o João mais conhecido no cristianismo primitivo é
João, irmão de Tiago, filho de Zebedeu e seguidor de Jesus, alguém
do círculo interno apostólico.
4.1.1 EVIDÊNCIA EXTERNA
A maioria dos escritores da igreja primitiva entendeu que o após-
tolo João escreveu o Evangelho. Por exemplo, Teófilo de Antioquia (c.
170-185) atribui a obra a João (Antol. 2.22). O mais forte argumento
a partir de fontes externas é o testemunho de Irineu, que se tornou
bispo de Leon em 177 e morreu em 202. Irineu escreve refutando o
gnosticismo, incluindo a alegação de que os mestres falsos declara-
vam serem “seguidores dos apóstolos”. Irineu afirma que ele e sua ge-
ração de crentes aprenderam sobre o plano de salvação de ninguém
mais do que aqueles que pregaram o evangelho (ou seja, os apósto-
los). Esses apóstolos eram pregadores que, pela vontade de Deus, es-
creveram e transmitiram as Escrituras “para serem a base e a coluna
de nossa fé”. Estes apóstolos foram imbuídos com o Espírito de seus
dons e conhecimentos. Irineu diz que “todos igualmente e individual-
mente possuem o Evangelho de Deus”. Em seguida, ele lista Mateus,
a quem especifica como discípulo e intérprete de Pedro, e Lucas “o
companheiro de Paulo”. E continua: “Depois, João, o discípulo do
Senhor, que também se apoiava em seu peito, publicou ele mesmo
um Evangelho durante sua residência em Éfeso, na Ásia” (Contra as
Heresias 3.1.1). No que diz respeito a Marcos e Lucas, Irineu afirma

121
a ligação com os apóstolos Pedro e Paulo. No caso de João, não há
menção de outro apóstolo, tornando provável que ele tenha em men-
te o apóstolo.
O caso do apóstolo João em Irineu não termina aqui. Eusébio re-
gistra uma carta de Irineu a um presbítero romano, Florinus, para
alertar contra o gnosticismo dos valentinianos (Hist. Ecl. 5.20.5-6). Ele
fala de seu relacionamento próximo com Policarpo, incluindo uma
referência a João. Isso indica que Irineu conhecia Policarpo, que co-
nhecia João.
Isso é certamente viável, já que Policarpo ministrou em Esmirna.
Ele morreu com a idade de 86 anos, o que significa que era um “me-
nino” na década de 80, quando a obra joanina foi provavelmente es-
crita. Esmirna fica a pouco mais de 70 km de distância de Éfeso, onde
João tinha a reputação de viver seus dias. Eusébio também afirma
que “aqueles que viram o Senhor” confiaram a supervisão da igreja
de Esmirna a Policarpo (Hist. Ecl. 3.36.1). O chamado Prólogo anti-
marcionita de João (c. 160-180) também afirma que João escreveu o
Evangelho, talvez por meio de um ditado a Papias, um dos discípulos
de João. Clemente de Alexandria (150 - 215) também confirma que
João escreveu o Evangelho: “Mas que João, por último, consciente de
que os fatos exteriores haviam sido expostos nos Evangelhos, foi ins-
tado por seus discípulos, e divinamente movido pelo Espírito, com-
pôs um Evangelho espiritual” (Hist. Ecl. 6.14.7). O Cânon Muratoriano
(c. 170-200) também registra que João escreveu o Evangelho depois
que foi revelado que ele deveria fazê-lo em um sonho ou profetizado
a André. O Diatessaron de Taciano (c. 175) usa o Evangelho de João
como estrutura para sua harmonia dos quatro Evangelhos, indicando
que a origem apostólica de João foi assumida naquela época. Con-
sequentemente, fontes até o final do II século estão de acordo que o
apóstolo João foi responsável pelo Evangelho.

122
4.1.2 EVIDÊNCIA INTERNA
Em Jo 21:20, o escritor narra que Pedro se virou e viu “o discípulo a
quem Jesus amava”. Este claramente não é Pedro. Ele é identificado
como aquele que se recostou em Jesus na Última Ceia e perguntou
sobre a traição de Judas. Pedro então pergunta a Jesus sobre esse
discípulo. Isso leva o escritor do Evangelho a explicar que isso produ-
ziu o boato de que o discípulo amado nunca morreria.
Jo 21:24 diz: “Este é o discípulo que dá testemunho dessas coisas e
que as escreveu”. Isso significa duas coisas:
- Um discípulo escreveu o Evangelho e testificou de sua verdade;
- O pronome “nós” indica que o autor usou o plural para auto identi-
ficação ou indica algum grau de edição ou assinatura de autorização
de um grupo, provavelmente em Éfeso.
Assim, fica a questão: Quem é este discípulo? Qual foi sua função?
Não é Pedro, Judas ou Tiago, filho de Zebedeu. Então, o que podemos
descobrir sobre a identidade deste João?

4.2 AUTORIA DO EVANGELHO DE JOÃO – Parte II


É antiga a tradição que vincula este evangelho a uma figura deno-
minada “discípulo amado”. Neste caso, isso cria outro ramo de per-
guntas, desta vez a respeito da identidade do próprio discípulo ama-
do. Uma possibilidade seria Lázaro, que é descrito como “aquele que
Jesus ama” (Jo 11:3,5). No entanto, é improvável que um Evangelho
escrito por alguém como Lázaro tenha encontrado adesão nas igrejas
antigas. Ele não era apóstolo, nem é mencionado em nenhum outro
lugar do Novo Testamento. Tampouco é provável que o autor seja Ma-
ria ou Marta, ambas descritas como amadas por Cristo (Jo 11:5). En-
tão, quem seria essa pessoa?
No Quarto Evangelho, há cinco referências ao “discípulo a quem
Jesus amava” (Jo 13:23; 19:26; 20:2; 21:7, 20). Além disso, é provável

123
que ele seja referido como “outro discípulo” em Jo 18:15, conheci-
do do sumo sacerdote. Ele também é o discípulo de Jo 19:32-35 cujo
testemunho a respeito do lado perfurado de Jesus é verdadeiro. O
discípulo amado está com as mulheres na cruz, mas neste caso po-
deria ser qualquer outro dos discípulos de Jesus (Jo 19:26). Ele foi ao
túmulo com Pedro (Jo 20:2,8). Nenhuma dessas referências revela a
identidade do escritor do Evangelho de João, ou então do “discípulo
amado”, mas se a tradição estiver correta, afirmar que ambos sejam
a mesma pessoa nos faria deduzir que o filho de Zebedeu era conhe-
cido pelo sumo sacerdote.
Além das evidências externas dos pais da Igreja, há algumas evi-
dências que apontam para o apóstolo João. Primeiro, Jo 13:23 diz que
na refeição final de Jesus, a Última Ceia, o discípulo que Jesus amava
“estava reclinado à mesa ao lado de Jesus”. Portanto, essa pessoa
sentou-se à mesa durante a Ceia do Senhor, diretamente ao lado de
Jesus (Jo 13:23). Os outros três Evangelhos afirmam claramente que
aqueles que se sentaram à mesa com Jesus eram os Doze (Mc 14:17-
18; Mt 26:20; Lc 22:14). Isso significa que o discípulo amado é um dos
Doze.
Na narrativa da Última Ceia de João, quatro discípulos são nome-
ados: Judas (Jo 13:2), Pedro (Jo 13:6), Tomé (Jo 14:5) e Filipe (Jo 14:9).
Claramente, o “discípulo amado” não é um deles. Além disso, Jo 13:23
afirma que o discípulo que Ele amava “estava reclinado ao lado de
Jesus”. Enquanto comiam com a mão direita, reclinavam-se sobre o
lado esquerdo, ao redor da mesa. Portanto, o discípulo amado estava
à direita de Jesus. A posição à direita de alguém era, culturalmente,
a posição de maior status. Isso torna improvável que a pessoa não
pertencesse aos Doze. Muito provavelmente, era um dos três apósto-
los do círculo íntimo de Jesus: Pedro, Tiago ou João. Assim, a pessoa
mais provável é mesmo o apóstolo João.
Embora Jesus tenha repudiado buscar status e posições privile-
giadas durante as refeições (Mc 12:39; Lc 14: 8-11), há evidência de

124
que os discípulos tinham isso em mente durante aqueles três anos de
ministério. Os dois mais preocupados eram Tiago e João, que em um
momento memorável pediram a Jesus que lhes concedesse a honra
de sentar-se à sua direita e esquerda, as posições de maior honra (Mc
10:35-45; Mt 20:20-28). Curiosamente, a versão de Lucas do conflito
por lugares de honra não é antes da entrada em Jericó e Jerusalém,
mas na Última Ceia (Lc 22:24-30). Com seu interesse nos lugares de
maior status, é provável que os lugares direito e esquerdo ao lado
de Jesus tenham sido ocupados por Tiago e João. Além disso, João
registra Pedro observando Jesus se dirigir a Judas e sinalizando ao
discípulo amado para perguntar a Jesus quem era. Isso sugere que
Pedro está próximo do discípulo amado. Se Pedro, Tiago e João fa-
ziam parte do círculo íntimo de Jesus, isso faz sentido.
Uma segunda evidência vem de Jo 21:2. O discípulo amado é um
dos sete que encontraram Jesus à beira-mar. É João quem está no
lugar certo na hora certa e continua sendo uma possibilidade tão boa
quanto qualquer outra.
Uma terceira evidência não é explícita. Como o escritor do Evan-
gelho afirma ter dado testemunho do material dado no Evangelho,
ele deve ter estado lá desde o início. Como tal, alguns estudiosos re-
conhecem que o autor pode estar em Jo 1:35-42. Dois discípulos são
apresentados a Jesus por João Batista; um é André e o outro não tem
nome. Os Sinóticos listam Pedro, André, João e Tiago nas primeiras
chamadas (Mc 1:16-20; Mt 4:18-22; Lc 5:1-11).
Finalmente, além destes três discípulos de Jesus (Pedro, Tiago e
João) formarem um “círculo íntimo” de discípulos, Pedro e João for-
mam pares frequentemente nos primeiros textos de Atos (At 1:13; 3:1-
4, 11; 4:13, 19; 8:14), da mesma forma como fizeram no Quarto Evan-
gelho (Jo 13:23-24; 20:2, 4-6, 20). O mesmo não acontece com Tiago
e João.
Assim, as possibilidades de que o principal personagem do Quar-

125
to Evangelho, o discípulo amado, seja realmente João, o apóstolo,
continua plausível até os dias de hoje. O papel deste personagem no
Quarto Evangelho igualmente cria um forte vínculo com sua autoria.
Ele pode ser apontado, então, como o autor de parte substancial do
Evangelho, ou, pelo menos, como o fundador deste conjunto de me-
mórias que dará origem ao mesmo.
4.2.1 ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À AUTORIA JOANINA
Alguns estudiosos negam que o apóstolo João seja o João que está
por trás da produção do Evangelho. Primeiro, para estes, o testemu-
nho da igreja primitiva a respeito de João é ambíguo ou polêmico. Por
exemplo, Irineu é visto como não confiável, pois seu testemunho é do
final do século II e é de segunda mão. Alguns argumentam que a evi-
dência pode se referir a outro João, como João, o Presbítero. Outros
argumentam que a evidência de Clemente de Alexandria é lendária.
Alguns estudiosos questionam a identidade e o papel do “discípulo
amado”. Alguns acreditam que pode ser um dos discípulos anônimos
ou outro seguidor que não era um dos Doze. Outros no Evangelho são
considerados amados por Jesus, incluindo Lázaro (Jo 11:3, 36), Marta
e Maria (Jo 11:5). Alguns até sugeriram que esta figura fosse o gover-
nante rico a quem Jesus olhou e amou (Mc 10:21).
Outros argumentos levantados contra a autoria de João incluem
a observação de que o Evangelho se concentra na Judeia, enquanto
João era galileu, tornando menos provável que ele seja o autor. Al-
guns questionam como um pescador galileu do primeiro século po-
deria ser conhecido do sumo sacerdote. Também é notado que Pedro
e João são chamados de “homens comuns e sem instrução” em At
4:13, e então o filho de Zebedeu não poderia ter escrito uma obra tão
bem construída.
Esses e outros argumentos levam alguns autores a rejeitar João,
o apóstolo, como o autor. Entre estes, levantam-se outras hipóteses:

126
a) o autor seria um discípulo anônimo conhecido como “discípulo
amado”;
b) o autor seria outro João, denominado “João, o Presbítero”;
c) o texto seria resultado de uma comunidade em vez de um único
autor;
d) João esteve na origem da comunidade joanina, que posteriormen-
te registrou suas memórias.
Assim, apesar destes argumentos, a autoria joanina ainda é uma
hipótese plausível e legítima de ser defendida pelos leitores da atua-
lidade.
4.2.2 A DATA DE PRODUÇÃO DO EVANGELHO
Houve um período do século XX em que alguns autores sugeri-
ram uma data muito posterior para o Quarto Evangelho, chegando a
propor meados do século II. No entanto, estas sugestões foram des-
cartadas pela descoberta de manuscritos do início do século II. Frag-
mentos de João 18 que podem ser datados do ano 130 foram desco-
bertos. Outro manuscrito, o P⁷⁵, é do início do século II. Portanto, isso
demandaria que o texto original deste livro estivesse obrigatoriamen-
te dentro do primeiro século.
Jo 21:19 indicia que foi escrito depois da morte de Pedro (c. 64-66),
enquanto Jo 21:23 poderia indicar que foi escrito na época da morte
de João. Se a tradição de que João morreu em idade avançada estiver
correta, isso apontaria para uma data no final do século.
A maioria dos estudiosos opta por uma data entre 85-95 pelos se-
guintes motivos:
- A ideia de crentes sendo “colocados para fora da sinagoga” (Jo 9:22;
16:2) pode apontar para um tempo após o Concílio de Jâmnia 85,
quando os membros do movimento de Jesus foram proibidos de fre-
quentar a sinagoga;

127
- Não há nenhuma menção de saduceus, cuja influência declinou
após o ano 70;
- A alta cristologia se ajusta a uma data posterior (Jo 1:1-18; 5:18; 8:58;
10:30; 20:28).
- A tradição de que João escreveu o Evangelho de Éfeso quando já era
velho.

4.3 A AUDIÊNCIA DO EVANGELHO DE JOÃO


Jo 21:24 usa uma curiosa expressão que pode implicar bastante
para a questão da autoria do relato: “nós sabemos que o seu testemu-
nho é verdadeiro”. Isso poderia indicar que há pelo menos um grupo
de pessoas que está autenticando o relato. Este grupo tem sido tradi-
cionalmente chamado de “comunidade joanina”. Alguns propõe, as-
sim, que seria essa comunidade a autora final do Quarto Evangelho.
Alguns autores, a partir disso, criaram complexas teorias para fa-
lar desta comunidade, e das diversas fases de desenvolvimento deste
grupo. O Quarto Evangelho e as cartas joaninas estariam vinculados
a determinadas fases desta comunidade. Alguns argumentam que
realmente João estaria na fundação desta comunidade. Outros en-
tendem que o fundador seria o discípulo amado, mas não necessa-
riamente João. Há autores que afirmam uma participação pequena
desta comunidade no texto do Evangelho; outros entendem que ela
participou de forma mais ampla. Passagens como Jo 2:12; 2:23-25;
3:22-24; 4:43-45 podem ser exemplos de edições. No entanto, muitos
destes casos podem ser obra do próprio João, revisando seu texto
em momentos posteriores à sua produção.
4.3.1 A AUDIÊNCIA DO EVANGELHO DE JOÃO
Como acontece com todos os aspectos do estudo joanino, os desti-
natários originais são difíceis de precisar. Alguns pensam que o Evan-
gelho foi escrito para a chamada comunidade joanina. No entanto, a

128
existência da chamada comunidade joanina é alvo de disputa. A visão
tradicional que o Evangelho foi escrito em Éfeso para uma comunida-
de ao redor da cidade.
Se a tradição estiver correta, o livro foi escrito para as mesmas
igrejas da Ásia que receberam também o Apocalipse. De qualquer
forma, o movimento de Jesus nesta região demanda um relato mais
amplo e gentílico.
4.3.2 AS FONTES DE JOÃO
Uma questão complexa sobre o Quarto Evangelho é a questão das
fontes usadas no Evangelho. No auge da perspectiva crítica acerca do
Novo Testamento, os estudos focavam na origem histórica de cada
livro. As razões para esse interesse incluem as transições do Evange-
lho, como Jo 14:31 e 17:26. Outro exemplo é a aparente conclusão em
Jo 20:30-31, seguida logo depois por Jo 21. Não é também uma repe-
tição de material, tal como Jo 14 e 16.
Há mudanças geográficas da Galileia para Jerusalém, levando al-
guns a pensar que Jo 6 deveria ser colocado antes de Jo 5. Também
há mudanças na perspectiva escatológica (Jo 5:28-29) de ênfase futu-
ra para a presente (Jo 5:24-25).
Alguns estudiosos tentaram encontrar um “evangelho original” no
interior do Quarto Evangelho. Um destes, o alemão Rudolf Bultmann
(1884-1976), desenvolveu a teoria das três fontes:
- Uma fonte chamada “discurso da revelação”, escrita em aramaico,
depois traduzida para o grego, de caráter gnosticizante.
- Uma fonte de sinais, incluindo as histórias milagrosas de Jo 2-11 e a
narrativa da chamada em João 1. Essa fonte tratou Jesus como um
“homem divino” para provar sua divindade.
- Uma fonte da paixão, incluindo os relatos da ressurreição. Esta fonte
foi produzida num grego cheio de semitismos.

129
Bultmann argumentou que um editor organizou esse material de
acordo com seus propósitos e inseriu as menções ao “discípulo ama-
do”, que seria um modelo ideal de discípulo. Esta teoria, entretanto,
foi considerada impossível de ser verificada e de caráter altamente
especulativo.
Outras hipóteses foram levantadas, uma das mais conhecidas foi
postulada por Raimond E. Brown (1928-1998), que postulou o desen-
volvimento e a história da chamada comunidade joanina a partir das
reconstruções das fontes do Evangelho de João. Ele olha para os es-
tágios de desenvolvimento do texto e constrói uma imagem da comu-
nidade joanina a partir desse desenvolvimento.
Brown sugeriu cinco estágios de desenvolvimento:
- Recolhimento de material independente dos Sinóticos.
- Desenvolvimento deste material por um pregador ou mestre.
- A primeira versão grega do evangelho incluiu sinais e histórias de
Galileia e Judeia.
- Uma edição posterior tratou de lidar com questões como o relacio-
namento do grupo com os discípulos de João Batista e a excomunhão
da sinagoga.
- Outra versão posterior foi feita por um redator, amigo do evangelis-
ta, que acrescentou material como Jo 3:31-36; 6:51-58; 11-12; 12:44-
50; 15-17; 21.
Embora a construção de Raimond Brown possa ser muito interes-
sante, e em alguns momentos bem convincente, ela peca por seu ca-
ráter especulativo. Por isso alguns estudiosos tentam usar elementos
das hipóteses de Brown ao lado da ideia tradicional da autoria joani-
na. Isto leva à perspectiva de que o apóstolo João está na origem do
evangelho, que recebeu contribuições posteriores do grupo de discí-
pulos que o cercava.

130
O próprio Brown revisou suas ideias posteriormente, propondo
então um processo de quatro estágios:
- A origem do está em dois grupos que se combinaram: primeiro, dis-
cípulos de Jesus de etnia judaica com uma baixa cristologia que viam
Jesus como um Messias davídico; um grupo antitemplo que viu Jesus
como um profeta do tipo mosaico. Eles possuíam um líder que desen-
volveu uma alta cristologia, vendo Jesus como Deus. Isso levou à sua
expulsão da sinagoga.
- Gentios são então recebidos no grupo, o que é interpretado como
um sinal de Deus. Uma versão do Evangelho foi escrita nesta fase,
com uma perspectiva de alcance universal, e isso perturbou os mem-
bros da comunidade de etnia judaica, que se afastam da comunidade.
- As epístolas joaninas são escritas, condenando aqueles que se se-
pararam.
- A comunidade expulsa os crentes de perspectiva gnóstica que nega-
vam a encarnação de Jesus (1Jo 4:2-3). Os que permanecem se unem
a outras comunidades e deixam de existir como grupo autônomo.
Novamente, não há consenso sobre a existência dessa “comunida-
de joanina”. Alguns acreditam que foi a igreja de João ou seus desti-
natários, ou mesmo uma reunião maior de crentes com uma perspec-
tiva teológica particular.
Independente disso, essas discussões destacam a probabilidade
de o Evangelho ter sido escrito em um momento de tensão entre as
igrejas e sinagogas, e isso pode ser importante para a compreensão
do Quarto Evangelho.
Assim, independente se João é o autor ou a origem do evangelho,
essa questão das fontes do Quarto Evangelho é de grande complexi-
dade.

131
4.4 A RELAÇÃO COM OS SINÓTICOS
De muitas maneiras, a apresentação de Jesus por João precisa ser
relacionada com os Sinóticos. O Jesus de João é um pregador, profes-
sor, curador e evangelista. Algumas das histórias sinóticas são encon-
tradas em João com detalhes diferentes. Isso inclui alguns aspectos de
João Batista (Jo 1:6, 15, 19-42; 3:23-27; 4:1), a limpeza do templo, embo-
ra em um ponto diferente no ministério de Jesus (Jo 2:12-25), a alimen-
tação dos cinco mil (Jo 6:1-14), a caminhada sobre as águas (Jo 6:16-24),
a unção de Jesus (Jo 12:1-11), a entrada em Jerusalém (Jo 12:12- 19), as
previsões de traição e negação (Jo 13:18-38), o esboço de sua morte (Jo
18:1-19:42) e as aparições do ressuscitado (Jo 20:1-21:23).
Ao mesmo tempo, há muito material exclusivo em João. Isto inclui:
- O prólogo do logos, a pré-existência de Jesus e seu papel na criação
(Jo 1:1-18); a chamada dos discípulos do Batista (Jo 1:19-51);
- O papel significativo de algumas figuras, como André (Jo 1:35-40,
44; 6:8; 12:22), Filipe (Jo 1:43-45; 6:5; 12:21-22; 14:8-9), Natanael (Jo
1:45-49; 21:2), Tomé (Jo 11:16; 14:5; 20:24-28; 21:2), e Lázaro (Jo 11-12);
- Três encontros pessoais únicos, incluindo Nicodemos (Jo 3:1-21), a
mulher samaritana (Jo 4:1-42) e alguns gregos (Jo 12:20-26);
- Cinco milagres exclusivos: transformação de água em vinho em Caná
(Jo 2:1-11); a cura do filho do oficial, novamente em Caná (Jo 4:46-54);
a cura do paralítico no tanque Betesda (João 5:1-15); a cura do cego
(Jo 9:1-41); e a ressurreição de Lázaro (Jo 11:1-44).
- Alguns longos discursos: vida eterna (Jo 5:16-47); pão da vida (Jo
6:25-71); na Festa dos Tabernáculos (Jo 7:1-51); a luz do mundo (Jo
8:12-58) e o Bom Pastor (Jo 10:1-42); o paráclito e a videira verdadeira
(Jo 14-17).
- Os detalhes da Última Ceia, especialmente a oração de Jesus (Jo
17:1-26).
- A pesca milagrosa e a restauração de Pedro (Jo 21:1-23).

132
Além dessas diferenças óbvias de conteúdo, existem outras distin-
ções sutis. Uma distinção mais clara é a alta cristologia. João começa
declarando a divindade de Jesus.
Sua narrativa expõe a divindade e humanidade de Jesus por meio
destas passagens:
- Jo 1:1: “A Palavra era Deus”
- Jo 1:18: “Ninguém viu a Deus, exceto o próprio Deus”
- Jo 5:18: “Fazendo-se igual a Deus”
- Jo 8:58: “Antes que Abraão existisse, eu sou”
- Jo 10:30: “Eu e o Pai somos um”
- Jo 20:28: “Meu Senhor e meu Deus”
Existem também outras diferenças entre João e os sinóticos. João
omite ou usa com moderação muitas expressões comuns aos Evan-
gelhos Sinóticos. Ele não faz menção a saduceus ou escribas, demô-
nios ou cobradores de impostos. Além disso, Joao usa expressões
peculiares com grande frequência, como “vida”, “luz”, “escuridão”,
“verdade” e “mundo”.
O estilo de João é diferente dos Sinóticos. Ele possui uma aparen-
te simplicidade, pois sua teologia é de uma natureza mais densa em
comparação com os outros três evangelhos canônicos.
João também é rico em metáforas que comparam Jesus a outras
realidades, como luz (Jo 8:12; 9:5), água (Jo 4:10-11; 7:38), ou pão (Jo
6:35, 48). Há também a apresentação de contrastes dualísticos, como
luz e trevas (Jo 1:5; 3:19), vida e morte (Jo 5:34; 8:51), acima e abaixo
(Jo 8:23).
Estas metáforas são apresentadas no relato frequentemente mal
compreendidas pelos outros personagens do Evangelho. Nicodemos
interpreta erroneamente “nascer do alto” como “nascer de novo” e
especula a respeito do retorno ao ventre de sua mãe (Jo 3:3-8). Da

133
mesma forma, a mulher samaritana interpreta Jesus literalmente e
quer beber a água da vida (Jo 4:10-15). Em Jo 6, Jesus se declara o
“pão da vida” e seus oponentes ficam ofendidos com a ideia de “comê
-lo” (Jo 6:26-58).
Os personagens do Quarto Evangelho se enquadram em duas ca-
tegorias: crentes ou oponentes. Os oponentes endurecem cada vez
mais durante a narrativa. Aqueles que são crentes demonstram vá-
rios níveis de maturidade e fé. Nicodemos não consegue entender (Jo
3:1-9), mas no fim defende Jesus (Jo 7:50-51) e parece ser um crente
(Jo 19:39). A mulher samaritana passa da incompreensão à crença e à
missão (Jo 4). O oficial real demonstra profunda fé (Jo 4:46-54). Marta
demonstra crescimento na fé (Jo 11), enquanto Tomé é um exemplo
de como chegar à fé a partir da dúvida (Jo 20:24-29).
As diferenças entre João e os Sinóticos levam à pergunta inevitá-
vel: Qual é o relacionamento entre eles?
Existem duas soluções principais:
(1) João conhecia um ou mais dos Sinóticos e escreveu para comple-
mentá-los e interpretar Jesus de maneira diferente.
(2) Ele escreveu de forma totalmente independente.
Até o século XX, a visão dominante era que João estava ciente de
um ou mais dos Sinóticos e escreveu para adicionar seus temas prefe-
ridos aos relatos sobre Jesus. Alguns estudiosos ainda mantêm essa
visão. Esta visão já era defendida por Clemente de Alexandria (150-
215). Nesta hipótese, argumenta-se que João conhecia pelo menos
um dos Sinóticos. Se Clemente for levado a sério, João teria trazido
uma interpretação mais “espiritual” às narrativas de Jesus.
Alguns que assumem essa posição sugerem que João trata mais de
doutrina e teologia e menos de histórica. Alguns observam que grande
parte do Evangelho se baseia na Judeia, e não na Galileia, o que com-
plementa muito bem os Sinóticos que se concentram na Galileia.

134
Entretanto, esta sugestão foi contestada na metade do século XX.
Alguns especialistas sugeriram que João escreveu seu texto sem co-
nhecimento ou referência aos Sinóticos. Em vez disso, ele teve acesso
a uma tradição diferente. Quaisquer semelhanças são devidas ao ma-
terial comum às diferentes tradições que circulavam na igreja primiti-
va. Outros acreditam que João pode ter conhecido os Sinóticos, mas
decidiu não os usar como fonte.
Assim, em linhas gerais, mesmo que seja possível afirmar o conhe-
cimento de algum sinótico por João, parece claro que seu texto tem
uma perspectiva bem diferente. Esta diferença pode ter relação com
as opções teológicas do autor ou com as necessidades da sua audiên-
cia. É exatamente sobre a relação entre seu conteúdo e sua comuni-
dade vamos tratar na próxima seção.

4.5 ESTRUTURA E PROPÓSITO DO EVANGELHO DE JOÃO


Enquanto nos Sinóticos o propósito do escritor precisa ser deduzi-
do do conteúdo de cada evangelho, no Quarto Evangelho isso apare-
ce de forma explícita, já que o texto esclarece em Jo 20:31: “Mas estes
foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Messias, o Filho de
Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome”. Claramente,
o motivo pelo qual João escreveu o que escreveu foi para ajudar as
pessoas a acreditarem em Jesus como o Messias e Filho de Deus. Seu
propósito é que, por meio dessa fé, eles possam receber a vida eterna
por meio de Cristo.
Alguns autores, entretanto, discutem o significado do verbo “crer”
e se dividem entre aqueles que defendem um propósito evangelístico
(ajudar as pessoas a virem à fé) ou pastoral (encorajar os crentes a
permanecerem na fé).
Talvez o autor tivesse as duas ideias em mente. João sabe que o
Evangelho vai ter uma variedade de leitores, alguns crentes e outros
não. Ele espera que os descrentes que lerem seu Evangelho se con-

135
vençam de que Jesus é o Cristo, filho de Deus, e coloquem sua con-
fiança nEle. Ele espera ainda que os crentes continuem a ter fé e, as-
sim, experimentem a vida em nome de Jesus, especialmente em face
da perseguição judaica e dos falsos ensinos.
Provavelmente há uma intenção apologética também: João está
reforçando em seu relato noções que neutralizam a rejeição judaica
de Jesus como Messias, além de falsos ensinos, como ideias proto-g-
nósticas, a diminuição da supremacia de Cristo, o docetismo.
O evangelho deseja que seus leitores sejam salvos e caminhem na
salvação. Assim, é possível apontar uma intenção evangelística (que
os leitores cheguem à fé), um propósito pastoral (para encorajar os
crentes em sua fé) e um objetivo apologético (para defender Jesus e
sua comunidade contra falsos ensinos e a recusa judaica de aceitar
Cristo como Messias).
4.5.1 A ESTRUTURA DE JOÃO
O Evangelho é geralmente dividido em duas seções principais
emolduradas por um prólogo (Jo 1) e um epílogo (Jo 21):
- Prólogo (Jo 1:1-18)
a) Livro dos Sinais (Jo 1-12). Nesta seção, Jesus realiza atos milagro-
sos, envolve-se em debates com opositores, e se relaciona livremente
com um público mais amplo. Nestes capítulos, a “hora ainda não che-
gou” (Jo 2:4; 7:30; 8:20). Dentro do livro dos sinais, há sete milagres,
sinais e outros encontros que levam à fé, mas também há uma opo-
sição crescente que atinge o pico em Jo 11, quando as autoridades
tentam tirar a vida de Jesus. O miolo do evangelho está em Jo 12,
quando Jesus é ungido para sua morte e entra em Jerusalém.
b) A exaltação de Jesus (Jo 13-20). Nesta seção, Jesus fala apenas
com seus discípulos, seguido pelos relatos da paixão e ressurreição.
- Epílogo (Jo 21).

136
4.5.2 IDEIAS ESSENCIAIS
O Evangelho de João, como os outros, chega ao clímax com Jesus
crucificado e ressuscitado. Enquanto as três previsões da paixão sinó-
tica estão ausentes (Mc 8:31; 9:31; 10:33; 14:27), em todo evangelho há
numerosas alusões ao sofrimento final e morte de Jesus, indicando
que Jesus estava ciente de seu destino e da necessidade de sua morte
(Jo 12:23, 27-28, 32-33).
A ressurreição de Lázaro é o evento chave, conforme as autorida-
des judaicas reagem ao aumento do apoio popular a Jesus (Jo 12:9-
11).
João, como Lucas e Mateus, termina seu Evangelho com aparições
de ressurreição, incluindo a Maria Madalena (Jo 20:1-18), o encontro
de Tomé (Jo 20:24-28), e os sete discípulos pescando na Galileia (Jo
21:1-14).
4.5.3 O PRÓLOGO (JOÃO 1)
O Evangelho de João inicia sua narrativa de uma forma completa-
mente diferente dos demais evangelhos. Na verdade, a forma de ele
contar a história de Jesus é tão diferente que os estudiosos do Novo
Testamento costumam dividir o estudo dos evangelhos em duas par-
tes. Na primeira, estuda-se Mateus, Marcos e Lucas, naquilo que cos-
tumamos chamar de leitura sinótica, já que eles possuem uma mes-
ma estrutura literária e teológica. Numa segunda parte, trabalhamos
isoladamente com João.
O Quarto Evangelho tem uma perspectiva teológica diferente dos
demais evangelhos. Essa diferença já se nota nas primeiras linhas.
Enquanto Mateus e Lucas dedicam seus primeiros capítulos para as
narrativas da infância de Jesus, João inicia olhando para a eternida-
de, para um momento que ele denomina de “princípio”. “No princípio
era o Verbo” é uma expressão que se parece muito com o primeiro
versículo do livro de Gênesis: “No princípio criou Deus”.

137
O que ele estaria indicando com isto? Que aquele homem, que re-
cebeu muito pouco crédito enquanto caminhava pela Palestina, era a
mesma figura divina que estava no princípio de todas as coisas, quan-
do Deus criou todo o Universo. Em vez de começar com o nascimento
de uma criança, inicia com o nascimento do próprio mundo.
4.5.4 EPÍLOGO (JOÃO 21)
Após o encontro com os discípulos e a restauração da fé de Tomé,
Jesus precisa tratar o coração de outro discípulo: Pedro. Este voltara
para o Mar da Galileia. O evangelho o descreve fazendo aquilo que
ele fazia antes de conhecer a Jesus. Por que Pedro voltou a pescar?
Talvez o fato de ter negado Jesus tenha sido um golpe duro demais na
sua autoconfiança, e ele agora imaginava que não poderia mais ser
de grande ajuda para o movimento de Jesus. Ele se sentia humilhado
por causa da vergonhosa queda.
Jesus apareceu na praia. Quando um dos discípulos disse que era
Jesus, Pedro se jogou ao mar e nadou até lá. Ao chegarem em ter-
ra firme, os discípulos já encontraram uma refeição preparada pelo
Mestre. Mais uma vez, o Senhor providencia o sustento para os seus
discípulos numa demonstração de cuidado e interesse.
Ali na praia, Jesus se concentrou em restaurar a pessoa de Pedro.
Aquela praia foi palco de um teste fabuloso para Pedro, o teste do
amor, seguido de uma grande responsabilidade. Era a pretensão do
Mestre que os discípulos continuassem a obra que iniciara.
Por três vezes foi dirigida a Pedro a mesma pergunta: “Amas-me”?
Pedro precisa reafirmar o seu amor por Jesus. A tradução do texto
bíblico para a língua portuguesa não consegue manter a importante
nuança entre os verbos gregos. Jesus utiliza o verbo agapao para per-
guntar se Pedro O ama por duas vezes.
Na terceira, ele altera o verbo e pergunta utilizando o verbo phileo.
A resposta de Pedro, entretanto, não varia, e utiliza nas três vezes o

138
mesmo verbo: phileo. O tipo de amor envolvido no verbo agapao é de
natureza mais elevada que o subjacente ao verbo phileo.
Qual é o significado deste diálogo, então? Ele revela que Pedro fi-
nalmente deixara o espírito de arrogância e prepotência que o mar-
cou durante o ministério de Jesus. Ele se achava o mais capacitado
discípulo, o mais valente, o mais forte. Mas a negação ao redor da
fogueira antes do galo cantar mostrou para ele os limites de sua for-
ça. Ele agora sabia exatamente o que poderia dar para Jesus. Ele não
promete mais o que não pode cumprir. Ele se reconhece pequeno, e
somente assim está pronto para ser o pastor do rebanho de Jesus.
Por isso, ele ouve de Jesus as palavras: “apascenta minhas ovelhas”.
Pedro, quebrantado diante de Jesus, afirmou que Jesus poderia
sondar sua vida, seu coração. Podia olhar para dentro dele e verificar
que sua afirmação era verdadeira. “Senhor, tu sabes de todas as coi-
sas; tu sabes que eu te amo”.

4.6 O LIVRO DOS SINAIS


O Evangelho de João coloca o ponto inicial do ministério de Jesus
numa festa de casamento (Jo 2:11). Faltou vinho, o que levou a pró-
pria mãe de Jesus a solicitar a sua ajuda. Isso indica que Maria teria
alguma relação especial com os noivos. Talvez ela fosse membro da
família, ou uma amiga muito próxima deles. O milagre da multiplica-
ção do vinho, ao contrário da multiplicação do pão, foi percebido por
poucos, e essencialmente pelos seus discípulos, que creram nele.
Jesus agiu discretamente. Não fez nenhum gesto espalhafatoso.
Ele ordenou ao garçom para encher as talhas que as pessoas usavam
para se lavar ao chegar na casa. Depois solicitou para que se tirasse
então e levasse ao chefe de cerimônia da festa. A narrativa termina
com o reclame do perplexo chefe de cerimônia da festa ao experi-
mentar um vinho que era muito superior ao que ele havia servido pri-
meiro.

139
Depois do milagre do vinho, o evangelista passa a narrar o con-
fronto de Jesus com a situação triste em que se encontrava a institui-
ção religiosa da sua época. Jerusalém era, para os judeus, a cidade
de Deus. Nela ficava o Templo, o centro da vida religiosa dos judeus.
Símbolo da presença de Deus, no Templo aconteciam os sacrifícios e
a adoração comunitária. A vida religiosa judaica era regida por uma
série de atos e práticas que deveriam funcionar como lembretes con-
tínuos da singularidade do povo diante das demais nações. Para isso
existiam festas e celebrações. As instituições religiosas judaicas sur-
giram no Antigo Testamento como instrumentos que deveriam apro-
ximar as pessoas de Deus. Mas a reação de Jesus diante do que ele
viu no Templo indica que todos os atos foram pervertidos. O Templo
deixou de ser uma instituição religiosa para se tornar uma instituição
financeira. Essa situação explica o brado de Jesus contra aquela situ-
ação. Seu povo era oprimido pelos instrumentos que deveriam ajudá
-lo. O ato de Jesus foi mais uma de suas ações pedagógicas.
4.6.1 QUANDO A RELIGIOSIDADE SE TORNA UM EMPECILHO
O capítulo três de João descreve o encontro de Jesus com Nico-
demos, um dos líderes religiosos dos judeus. Dentro deste Evange-
lho nada aparece por acaso. O próprio João dirá mais a frente que
se fosse escrever tudo o que Cristo disse ou fez, nem todos os livros
do mundo caberiam. É uma figura de linguagem para dizer que nem
tudo o que Jesus falou, ensinou ou fez, apareceu no seu livro. Muitas
coisas ficaram de fora, e ficaram por que o evangelista escrevia com
um critério em mente, só iria registrar o que fosse necessário para
que seus leitores pudessem crer, e crendo tivessem vida eterna. Esse
é o princípio norteador que levou o escritor a definir as narrativas que
comporiam o Quarto Evangelho. As histórias precisavam despertar a
fé, que geraria a salvação.
É nesse contexto que devemos entender o registro do encontro de
Nicodemos com Jesus. Ao lê-la, muito tempo depois, os leitores do

140
Evangelho de João saberiam que os pastores de Israel se encontra-
ram com Jesus e reconheceram sua origem celestial, mas os precon-
ceitos e as tradições fortemente arraigados os afastaram do Mestre a
tal ponto que se tornaram seus adversários.
Mas o que leva um sistema religioso a afastar seus membros da-
quele que deveria adorar? Eram eles que deveriam honrar e adorar
Jesus enquanto Ele realizava seu ministério pela Palestina. O próprio
evangelista precisou dizer que “Ele veio para os que eram seus, mas
os seus não o receberam” (Jo 1:11).
Analisando a história agora, depois de tudo o que aconteceu, po-
demos dizer que o legalismo foi o principal responsável por essa que
pode ser chamada a maior das crises do povo de Deus.
Quem não conseguisse viver em função da Lei era denominado de
impuro. Essas pessoas eram forçadas a viver afastadas do Templo,
das sinagogas e das expressões de fé e culto regulares. Com isso, o
sistema religioso judaico oprimia e punia as pessoas mais simples,
que não tinham condições de atingir os elevados preceitos religiosos,
porque precisavam trabalhar num horário proibido ou porque sim-
plesmente não conseguiam ler e conhecer a Lei.
O que Jesus demonstrará com grande clareza no encontro com
Nicodemos é que todo o conhecimento que ele tinha das ordenan-
ças não era suficiente para salvá-lo. Somente a prática completa dos
mandamentos poderia satisfazer a justiça divina. Mas essa via é im-
possível de ser trilhada. Ninguém pode cumprir cabalmente todos os
mandamentos. Os judeus achavam que eram muito melhores que as
pessoas mundanas e impuras pela sua herança religiosa e suas tradi-
ções. Mas Jesus esclarece para Nicodemos que a salvação não pode
vir das obras. Ela vem pela fé no Filho Unigênito de Deus.
4.6.2 O VERDADEIRO ESPÍRITO DE TESTEMUNHA
João Batista foi uma grande personagem da história judaica. Cer-
tamente ele despertou grandes esperanças no meio do povo quando

141
apareceu. Inúmeras pessoas eram atraídas pelas suas palavras fortes
e contundentes sobre arrependimento e Reino de Deus. Alguns dos
seus discípulos logo foram ouvir Jesus. Alguns nem chegaram a vol-
tar, ficaram com o Nazareno. Outros voltaram reclamando que Jesus
também estava batizando e atraindo pessoas que antes estavam com
João. É neste momento que João demonstrou seu grande espírito de
entrega e abnegação à obra de Deus. Não importava que estivesse
fazendo a obra, se ele ou Jesus, o importante é que a obra estava
sendo feita. João não viu Jesus como um concorrente, mas como o
alvo de sua pregação. Era para isso que ele tinha sido levantado por
Deus: para apontar para Jesus, o cordeiro que veio tirar o pecado do
mundo.
As igrejas de hoje, junto com seus líderes e membros, precisam
aprender com João Batista. Não precisamos competir uns com os ou-
tros. Não somos concorrentes, mas parceiros no grande projeto de
Deus de realizar sua vontade no mundo. Quando igrejas forem aber-
tas, ministérios forem inaugurados, vamos dar nosso apoio, nosso in-
centivo e nossa oração.
4.6.3 OS CAMPOS BRANCOS PARA A CEIFA
Enquanto os discípulos iam em busca de alimento, Jesus pediu à
mulher que lhe desse água. A resposta que ela deu, ilustra o nosso
comportamento usual. Nós cultivamos em nosso coração os precon-
ceitos e os ressentimentos de que somos vítimas. Na sua resposta,
ela denunciou a inimizade entre judeus e samaritanos. Jesus não se
ofendeu. Em vez de receber água da mulher, ofereceu água viva para
ela. Ele prometeu que se ela bebesse nunca mais teria sede, mas no
seu interior se formaria uma fonte a jorrar para a vida eterna. Como a
mulher não compreendeu ainda o tipo de água que Ele oferecia, de-
nunciou para ela sua situação espiritual. Jesus perguntou pelo seu
marido, e assim confrontou-a com seu pecado. Ela não teve como
reagir, a não ser reconhecendo que Ele era profeta. Percebamos que

142
não fingiu, nem se deu por ofendida. Não tentou disfarçar ou usar
máscaras. A mulher reconheceu que Jesus devia ser alguém especial
para descobrir exatamente o que oprimia seu espírito. Faltava muito
pouco para que aquele encontro resultasse numa conversão. Depois
que ela reconheceu que precisava da água que Jesus oferecia, e que
estava em pecado, Jesus intensifica o diálogo perguntando pelo real
sentido de adoração, da religião e da fé no Deus criador do céu e da
terra. Os samaritanos criam que se devia adorar a Deus no monte Ge-
rizim, enquanto os judeus criam que a adoração a Deus devia ser no
monte Sião, em Jerusalém. Jesus diz que a questão não é o lugar e
nem os rituais exteriores, mas sim o espírito do adorador (Jo 4:23).
Ao falar da essência da fé, Jesus trouxe para a mulher a grande
esperança de judeus e samaritanos, a vinda do Messias. É neste mo-
mento que Jesus se revela. Ele diz: Eu sou o Messias, o que fala con-
tigo. Essa mensagem transformou aquela mulher. Ela imediatamente
largou o que teria vindo fazer, deixou o cântaro e foi apressadamente
anunciar aos seus conterrâneos o que só ela havia ouvido. O Messias
tinha chegado. Jesus era o Messias. A razão de suas esperanças es-
tava consumada bem ali, pertinho deles. A mulher se transformou
numa pregadora de Jesus, testemunhando para os outros o que ela
havia experimentado, ouvido e visto.
Os campos estavam brancos para a ceifa. E não estavam em Jeru-
salém, mas em Samaria, no meio dos desprezados e indignos religio-
samente. É difícil de entender, mas o texto de João deixa claro para os
leitores que Jesus viveu grande parte do seu ministério no meio dos
párias da sociedade da época. As pessoas mais religiosas da época, os
mais piedosos, os que achavam que estavam fazendo exatamente a
vontade de Deus, rejeitaram-no peremptoriamente.
4.6.4 O OFICIAL DO REI E O PARALÍTICO DE BETESDA
Depois do encontro de Jesus com os samaritanos, um oficial do
rei surge no caminho de Jesus. Era um estrangeiro, mas sua fé em

143
Jesus se mostrou maior do que a de muitas pessoas mais próximas
de Jesus. Ele estava com seu filho doente e queria que o Mestre fosse
vê-lo. Jesus não foi, mas disse que ele estava curado. O homem creu.
Não precisou ver para crer. Estava longe de casa, mas acreditou que a
palavra de Jesus era suficiente para que o milagre acontecesse.
O versículo 48, do capítulo 4 (“Se não virdes sinais miraculosos e
prodígios, de modo nenhum crereis”) era um teste para ele. Ele não
precisou de nada disso para crer. Mas era exatamente isso que pe-
diam os judeus para crerem em Jesus. Diziam para Ele, que se Ele fi-
zesse isso ou aquilo creriam.
Mas não é assim que a fé funciona. A fé não é produzida com sinais.
Vemos isso com clareza num dos maiores milagres feitos por Jesus,
que foi a ressurreição de Lázaro. Todos viram que ele estivera mor-
to. Ainda sentiam o cheiro da morte no ar, quando o viram dando os
primeiros passos vacilantes. Mas foi logo depois deste milagre que os
líderes religiosos decidiram matar Jesus (Jo 11:53).
4.6.5 MILAGRES SOBRE A NATUREZA E SOBRE A MATÉRIA
Nesta seção do Evangelho de João, seu autor narra um milagre,
vinculando-o imediatamente com outro. O primeiro foi o milagre da
multiplicação dos pães e peixes. Durante este período do ministério
de Jesus, um grupo grande de pessoas o acompanha. Alguns de seus
feitos já estavam sendo passado de boca em boca, e muita gente cor-
ria até Ele para receber algum benefício. O que eles buscavam era aju-
da na luta contra as enfermidades, contra o desconforto social provo-
cado pela fome e pela opressão política.
Isso significa que eles levavam até Jesus uma série de expectati-
vas que Ele efetivamente não veio resolver naquele momento. Jesus
demonstra seu poder para eles, mas rapidamente se movimenta para
dizer que não é para isso que Ele veio.
Este quadro maior pode ajudar a compreender o contexto do
primeiro milagre. A multidão acompanha Jesus a espera de algo da

144
parte dEle. Ele dá para ela ensino. Ele gasta uma boa parte do tempo
pregando para todas as pessoas acerca do Reino de Deus, do amor do
Pai, da forma como Ele se relaciona com seus filhos. A mensagem de
Jesus durou tanto que ficou tarde para aquelas pessoas retornarem
para suas casas. É neste momento que Ele realiza o ato milagroso.
Com apenas alguns poucos pães e peixes, uma multidão é alimenta-
da. Eles comeram até se fartar. O pouco foi suficiente para muitos, e
ainda sobrou.
A ação foi aberta, o que alimentou ainda mais a expectativa das
pessoas. Elas não arredariam pé dali, mas Jesus não as quer assim.
Ele sabe que a ansiedade exclusiva das pessoas por bens materiais
não é uma base segura para fazer delas discípulos. As pessoas que-
rem fazer dEle um rei em termos políticos. Ele quer ser senhor de seus
corações. Por isso, Ele se afasta, e quer fazer isso sem a multidão. Ele
sobe a montanha sozinho. Mais tarde seus discípulos entram no lago
com um barco.
É neste momento que se dá o segundo milagre, desta vez apenas
diante de seus discípulos. Durante uma tempestade, Jesus anda sobre
as águas. Quando esta história foi contada pelos outros evangelistas,
eles lembraram de Pedro, que ao ver Jesus, quis ir ao seu encontro.
Pedro chegou a dar alguns passos sobre a água, mas afundou. Jesus
o socorreu e levou até o barco, onde estavam os demais. O Evangelho
de João aqui só fala de Jesus caminhando sobre o lago como se ele
fosse terra firme. Aquilo não fazia sentido para eles. Eles conheciam
bem as águas. Sabiam, por experiência própria, desde criancinhas,
que uma pessoa pode até nadar sobre as águas, mas andar, ninguém
pode. Era impossível! Mas não para Jesus. Ele quebrou todas as suas
noções do que era possível e o que não era naquele momento, mos-
trando para eles que Ele fazia o que queria fazer. Jesus demonstrava
para eles seu poder sobre as forças da natureza. Aqui Ele anda sobre
o lago; noutro lugar, Ele ordena o fim de uma tempestade. Diante de

145
uma pessoa com tal poder, não restava outra reação dos seus discí-
pulos senão temor e tremor.
Jesus chegou do outro lado do lago. Seus discípulos já estão com
Ele. Mas logo o grupo que experimentou do seu poder na multiplica-
ção do pão do outro lado, e que tentara declará-lo rei, o alcança. Eles
não desistiram do seu propósito. O que este grupo deseja? Eles que-
riam de Jesus mais pão e mais peixe, certamente. Mas não apenas
isso. Eles queriam que Jesus se tornasse rei, o que, efetivamente, sig-
nificava que Ele se colocava contra as forças de domínio romano que
estavam na Judeia. Declarando Jesus como rei, eles queriam colocá
-lo em rota de colisão com o governador romano, com os soldados
romanos.
Havia aqui um conflito de expectativas. A multidão quer que Jesus
seja um Messias político. O perfil messiânico esperado por eles era de
alguém que viria com poder e força para livrá-los dos estrangeiros, e
dar a eles domínio sobre sua terra e poder sobre as demais nações.
Jesus não aceita esta expectativa. Ele não nega que seja o Messias,
mas se descreve com outras características messiânicas. Ele se volta
para Isaías 53 e afirma a vitória sobre as forças do mal por meio do
sacrifício. Ele não quer destruir os romanos. Quer salvá-los também.
A longa analogia que Ele faz, então, sobre o pão que eles comeram
recentemente, o maná que Moisés deu para o povo durante a traves-
sia no deserto, e seu próprio corpo, é uma referência direta ao seu
ministério como messias sofredor, nos moldes de Isaías 53. As pesso-
as ouviram, mas não ficaram confortáveis com este esclarecimento.
Rapidamente, a mesma multidão que queria entronizá-lo, se dispersa
e fica apenas o pequeno grupo de discípulos em torno de sua pessoa.
4.6.6 A OPOSIÇÃO DA FAMÍLIA E DOS FARISEUS
O capítulo 7 de João começa com uma notícia triste. Os leitores
são informados de que durante seu ministério, até mesmo sua família
duvidava de sua mensagem. Jesus já esperava a rejeição por parte da

146
multidão, como aconteceu no capítulo anterior. Ele também aguar-
dava a oposição por parte da liderança judaica, como aquela mani-
festada por parte dos saduceus e fariseus, ou sacerdotes e escribas.
Mas o fato de nem os próprios familiares o apoiarem deve ter doído
profundamente.
Diante da reação de sua família, Jesus se volta ainda mais para o
seu círculo de discípulos. Eles se tornam sua nova família. O ministé-
rio de Jesus forma, assim, uma nova casa, que tem Deus como Pai.
Ora, se Deus é o Pai dos discípulos, isso os torna irmãos uns dos ou-
tros, configurando assim uma nova forma de relacionamento frater-
no. Nasce uma família, não por meio do sangue, mas por meio do Es-
pírito de Deus.
4.6.7 A CEGUEIRA DE UM HOMEM – A FALTA DE VISÃO DE TODA UMA SOCIEDADE
Ao examinar esta história narrada pelo evangelista no seu capítulo
9, é preciso afirmar alguns aspectos sobre a enfermidade do homem
que será curado.
Ele era um cego de nascença. Isso torna o milagre algo absoluta-
mente radical. Os olhos daquele homem nunca funcionaram. Seu cé-
rebro não sabia interpretar as cores, as sombras, as luzes, a profundi-
dade e outros aspectos envolvidos no ato de enxergar e compreender
o que se enxerga. O milagre não poderia simplesmente liberar a visão,
mas capacitar instantaneamente seu cérebro para que fizesse a inter-
pretação correta do que o olho enxergava.
Um segundo elemento importante está na função social do mila-
gre. A doença daquele homem era lida religiosamente como uma mal-
dição. Nascer daquele jeito era, segundo padrões religiosos da época,
evidência de maldição divina. Isso fez com que aquele homem, du-
rante toda a sua vida, fosse estigmatizado e discriminado em todos
os espaços e instâncias sociais. Curar aquele homem, assim, não foi
um gesto que se deu apenas na individualidade de um doente, mas
envolveu toda a sociedade e uma soma de expectativas religiosas. O

147
milagre de Jesus busca não apenas libertar o cego da doença, mas
abrir os olhos da sociedade judaica para a misericórdia de Deus.
Quando Jesus e os discípulos passaram perto do doente, eles logo
perguntaram sobre a relação entre pecado e a doença. Para os segui-
dores de Jesus, alguém deveria ter cometido um grave delito diante
de Deus para que algo tão terrível acontecesse com aquele homem. A
única dúvida para eles era então se o delito fora praticado pelo pró-
prio cego, ou por um dos seus pais, ou mesmo um antepassado.
Diante do cego, os discípulos querem discutir teologia com Jesus.
Mas Jesus não está muito interessado nestas querelas teológicas. Ele
logo responde para eles que não há relação alguma entre o estado
do homem e algum delito diante de Deus. Daí para frente, Ele se vol-
ta para o cego e promove a recuperação da visão do cego. Diante de
palavras como as que Jesus disse para os discípulos, é difícil alguém
ainda afirmar algo parecido com maldição hereditária. Uma pessoa
não pagará pelos pecados dos antepassados, já que cada indivíduo é
responsável diretamente pelos seus atos diante de Deus.
4.6.7.1 O QUE JESUS FEZ
Frente aos discípulos, Jesus retira a situação do cego do nível me-
ramente doutrinário, no qual os discípulos colocam a questão do
cego, que eles haviam aprendido nas sinagogas.
Há uma diferença fundamental entre o Antigo Pacto e a Nova Alian-
ça de Jesus. A lei judaica era determinista, fazendo com que o destino
deste homem cego estivesse selado. Não há indício de qualquer ex-
pectativa por parte dos discípulos de que aquele homem poderia ser
restaurado. Eles só querem saber a origem da cegueira, mas não se
envolvem no auxílio do cego. Do lado de Jesus, entretanto, o que vem
é redenção, livramento e salvação.
Jesus rejeita a doutrina da maldição hereditária, que afirmava que
o cego pagava pelos erros dos seus pais, doutrina essa que era usada

148
para oprimir o povo, especialmente as mulheres e os doentes. Jesus
apresenta aos doentes daquela época e de hoje também a boa notícia
de que a porta está sempre aberta para a atuação de Deus. Qualquer
marginalizado, discriminado, doente, pecador, recebe um convite a
crer que em Jesus o milagre é possível, o jugo pode ser quebrado e o
poder e a glória de Deus aparecer como luz nas trevas.
Sob esta perspectiva, Jesus se aproxima do cego, e o toca. Jesus
poderia fazer a cura sem mesmo se aproximar. Ele curou pessoas sem
mesmo chegar perto delas. Mas no caso deste cego, Jesus não ape-
nas tocou, mas o fez de uma forma especial. Ele molhou um pouco de
argila com sua própria saliva, e encostou na fronte do cego. Jesus não
queria apenas curá-lo, mas demonstrar que aquele, que ninguém to-
cava, ou mesmo se aproximava, é digno como qualquer outro ser hu-
mano. Sua dignidade reside no fato de que é obra das mãos de Deus.
Aquele cego não era amaldiçoado - ele era especial. Se a religiosida-
de da época imaginava que tocar um doente significava ficar impuro,
Jesus inverte a lógica. Seu toque não o tornou impuro, mas tornou
limpo o doente de sua enfermidade.
Em muitos momentos históricos a religião pode afastar as pessoas
de Deus, sufocar o Espírito. No caso do cego curado por Jesus, algu-
mas pessoas se revoltam contra Jesus, porque a cura fora feita no
sábado. As instituições religiosas eram mais importantes do que o ser
humano. A marginalidade e a desgraça do cego não os sensibilizava,
mas a desobediência do sábado, sim.
Há uma grande quantidade de anônimos, vizinhos, pais, que entram
na história como interlocutores dos fariseus e do cego. Aparentemente,
a grande maioria não queria acreditar que aquele mendigo cego era
agora outra pessoa. Não só enxergava, mas tinha um semblante cheio
de alegria. Um sentimento dominava esta multidão: o medo. Eles te-
miam o que os fariseus podiam fazer com quem viesse a crer em Jesus.
Nesta armadilha de incredulidade até os pais do cego caíram (Jo 9:19-
22). Ninguém queria se comprometer com o cego, ou com Jesus.

149
4.6.8 AS PARÁBOLAS
Nos versículos 1-5 de João 10, Ele narra a Parábola do Bom Pastor.
Ela fala de um curral cheio de ovelhas. Como todo curral, ele é cerca-
do fortemente para impedir que alguma ovelha fuja, e seja capturada
por algum animal feroz. Pelo menos este é o motivo principal.
Para Jesus, há outro motivo para a cerca. Ela determina o papel de
quem acessa o curral das ovelhas. Um pastor verdadeiro entrará por
sua porta, com dignidade, sem se esconder de ninguém, aos olhos de
todos, para se relacionar abertamente com suas ovelhas. Um falso
pastor, o ladrão das ovelhas, pelo contrário, entrará na surdina, pu-
lando a cerca, para roubar as ovelhas. Para o pastor, o porteiro abre a
porta. O ladrão precisa pular a cerca.
Após a pergunta dos discípulos, Jesus começa a explicar a Parábo-
la (vers. 8-15). O início da explicação é surpreendente. A associação
mais imediata, do pastor de ovelhas com o próprio Jesus acontece,
mas apenas num segundo momento. Ele começa se declarando a
porta das ovelhas. Numa parábola que tem pastor, ovelha, cercado,
porteiro, Jesus é a porta. Ele diz: “Eu sou a porta; se alguém entrar
por mim, salvar-se-á, e entrará, e sairá, e achará pastagens” (Jo 10:9).
4.6.9 A MORTE DE UM AMIGO (Jo 11:1-57)
O capítulo 11 de João registra a impactante morte e ressurreição
de Lázaro. Podemos imaginar, assim, o que se passava com a família
de Lázaro.
Inicialmente, o desespero por vê-lo doente, morrendo aos poucos,
com a esperança de vê-lo curado por Jesus, caso Ele chegasse a tem-
po. Mas Jesus não chega a tempo de impedir a morte do amigo. Marta
e Maria, suas irmãs, se desesperam. A certeza de que se Jesus esti-
vesse presente poderia impedir sua morte as abalou profundamente.
Foi isso que Marta disse para Jesus: “Senhor, se estiveras aqui, não
teria morrido meu irmão”. (Jo 11:21) Pouco depois, quando Maria se

150
encontrou com Jesus, ela disse a mesma coisa, quase com as mesmas
palavras: “Senhor, se estiveras aqui, meu irmão não teria morrido”.
(Jo 11:32).
As duas irmãs tinham temperamentos bem diferentes, mas nesta
hora, elas pensavam do mesmo jeito: Jesus, por todo o poder já ma-
nifestado, por todos os milagres já efetuados, poderia ter impedido a
morte de Lázaro. Na conversa que tivera com Marta, Jesus lhe garan-
tiu que poderia ressuscitar seu irmão. Marta retrucou afirmando que
cria em Jesus, mas entendia que a ressurreição de Lázaro se daria no
final dos tempos, como muitos judeus de sua época criam. Na con-
versa que tivera com Maria, entretanto, Jesus não conseguiu se segu-
rar. Vendo o desespero da querida discípula, comoveu-se a ponto de
chorar.
Mesmo assim, o impressionante milagre que Ele efetuou, restau-
rando a vida de Lázaro, depois de três dias de falecido, não pode ser
explicado apenas por causa de sua amizade. Nenhuma ação de Je-
sus foi inerte. Cada uma delas queria comunicar uma mensagem para
seus discípulos, e ensinar uma verdade para as pessoas que acompa-
nhavam. No caso específico de Lázaro, a mensagem que Ele quis co-
municar com sua ressurreição pode ser resumida pela resposta que
Ele deu para Marta: Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida.
Quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; e todo o que vive e
crê em mim, não morrerá, eternamente. Crê isto? (Jo 11:25-26).

4.7 A EXALTAÇÃO DE JESUS


4.7.1 UMA LIÇÃO DE HUMILDADE (Jo 13:12-17)
Jesus estava vivendo um momento muito difícil. No caso dEle, Ele
tinha poder para se defender, mas preferiu passar por todas as dores
e angústia que a cruz traria sobre Ele.
A cena que estudamos agora é uma ação entre amigos. Ele os ajun-
tou para uma refeição, mas não era uma refeição corriqueira. Era a

151
última ceia. Possivelmente os seus discípulos já sentiam no ar o clima
tenso de que algo terrível aconteceria. Eles não sabiam exatamente o
que era, mas era impossível não perceber que algo grande os espera-
va para muito em breve. Durante esta última refeição com os discípu-
los, Jesus deixou para eles algo como um testamento. Ele não estaria
mais fisicamente no meio deles, e por isso deixou suas últimas orien-
tações de como deveriam se relacionar uns com os outros.
4.7.2 UM CONVITE AO AMOR MÚTUO (Jo 13:18-30)
A dor de Jesus era maior, porque Ele via que do meio daqueles que
Ele treinou, e amou até o fim, se levantava o traidor.
A pergunta que poderíamos fazer é: como alguém poderia trair Je-
sus, a pessoa mais doce, meiga e mansa que já passou pela Terra? Je-
sus só pensava em ajudar o próximo. Sua vida foi em função do outro.
Curava, prega e ensinava durante todo o seu dia. Ainda assim um dos
seus discípulos o traiu. Eu poderia apontar algumas respostas.
O evangelista João registra que a traição era um cumprimento da
Escritura. Ou seja, o Antigo Testamento já previra que a traição acom-
panharia o ungido de Deus. É uma citação do Sl 41:10: “Até o meu ami-
go íntimo, em quem eu confiava, que comia do meu pão, levantou
contra mim o calcanhar”. Para as igrejas que nasceram da pregação
dos primeiros apóstolos, esta era mais uma evidência nas Escrituras,
de que Jesus era realmente o enviado especial de Deus. Os evange-
listas narraram que Judas procurou os adversários de Jesus em troca
de 30 moedas. A ganância estaria por trás da traição. O dinheiro pare-
ce estar na base de quase todas as traições. Como afirmou um outro
autor do Novo Testamento: “O amor ao dinheiro é a raiz de todos os
males” (1Tm 6:10).
Outras respostas para a traição poderiam ser dadas, mas a essên-
cia delas é a fraqueza humana. Pedro, de certa forma, também traiu
Jesus, ao negá-lo por três vezes. Judas traiu, porque era gente, pes-
soa. E pessoas traem.

152
4.7.3 A PARÁBOLA DA VIDEIRA (Jo 15:1-27)
A natureza da comunhão promovida por meio do Espírito Santo é
ilustrada através de uma parábola contada por Jesus: a parábola da
videira. A função dela é ilustrar a natureza da comunhão espiritual
dos cristãos com Jesus por meio do Espírito.
Jesus é a videira. Assim como uma videira natural é a fonte de vida
e alimento para os seus ramos, assim também Ele é a verdadeira fon-
te da vida frutífera dos seus seguidores.
Deus é o agricultor, aqui descrito como o dono e cultivador da vi-
deira com as seguintes funções. É Ele quem plantou a videira. Será Ele
também cortará os ramos infrutíferos, inúteis, que atrapalham a saú-
de da videira. Os ramos são os discípulos de Jesus, meios mediante os
quais o próprio Cristo produz os seus frutos neste mundo.
4.7.4 A OBRA DO ESPÍRITO SANTO (Jo 16:1-24)
O capítulo 16 de João volta a tratar do papel do parácleto, o Espí-
rito Santo. O espaço dado ao tema dentro do Evangelho indica toda a
importância que o assunto tinha para o evangelista e para a igreja do
primeiro século.
Os versos iniciais do capítulo 16 voltam a ter como contexto a tris-
teza dos discípulos diante do anúncio da partida de Jesus. É dentro
deste quadro que o tema Espírito Santo é retomado. Talvez uma pe-
quena mudança de ênfase neste capítulo em relação ao capítulo 14
possa ser notada. Enquanto lá é o Pai que enviará o Espírito, aqui é
Jesus que O enviará.
É verdade que, diante da doutrina da Trindade estas distinções se
tornam desnecessárias, mas não custa observar as pequenas nuan-
ças dentro do discurso de Jesus. Levando isso em conta, essa mu-
dança de ênfase pode apontar para um princípio espiritual: O Espírito
representa o Filho, da mesma maneira que o Filho representa o Pai.
Jesus recebe tudo do Pai - o Espírito recebe tudo de Jesus.

153
4.7.5 ALEGRIA EM LUGAR DE TRISTEZA (Jo 16:25-33)
O tema da despedida de Jesus retorna para o centro da conversa
entre Jesus e os discípulos. Ele fala de forma mais incisiva sobre sua
partida do que já havia falado antes. Talvez porque seus discípulos
ainda não entendessem, e precisassem de muito apoio para enfren-
tar a ausência de seu Mestre.
De qualquer forma, uma compreensão plena destas palavras de
Jesus só se manifesta entre os discípulos após a ressurreição de Je-
sus. Por isso, mesmo avisando tudo o que iria acontecer, eles se as-
sustaram e fugiram no momento da prisão. Entre eles, Pedro negou
Jesus por três vezes no pátio da casa do julgamento entre os judeus,
e Tomé se recusará a acreditar na ressurreição a não ser que visse e
tocasse fisicamente em Jesus.
4.7.6 A ORAÇÃO DE JESUS (Jo 17:1-26)
O capítulo 17 contém uma oração de Jesus, tradicionalmente cha-
mada de Oração Sacerdotal, e se constitui na conclusão maravilhosa
do discurso de despedida.
Além do mais, além de ser uma linda oração, ela também é parte
do ensino de Jesus aos seus discípulos. Jesus ensinou por meio de
milagres, exorcismos, parábolas, discursos e também por meio de
suas orações. Durante a oração, Jesus se volta para seu ministério na
terra como um evento já no passado. Enquanto ora, Ele deixa seus
discípulos ouvirem sobre um tema que eles ainda não podiam enten-
der: a glória de Jesus. Aquele homem que estava diante deles poderia
ser, na aparência, um homem simples e pobre. Mas no mundo espiri-
tual, no interior do projeto divino, Ele é a própria glória de Deus.
No início de sua oração, Jesus olha para o céu, a origem de sua
glória. Entendemos de suas palavras que apenas quando Ele é glorifi-
cado, a glória do Pai é manifestada. O Filho se tornou homem para re-
velar o Pai, aquele que ninguém poderia ver. Assim, se o acesso ao co-

154
nhecimento e à glória de Deus era uma coisa impossível no passado,
agora já não era mais, porque por meio de Jesus ambas as situações
já poderiam se dar. Seus discípulos poderiam dizer que conheciam
a Deus por meio do conhecimento que tinham de Jesus. Conhecer
Jesus é conhecer a Deus.
É bom lembrar que o termo “conhecer” no contexto judaico signifi-
ca intimidade e não um evento cognitivo. Conhecer é ter união, o que
implica que o conhecimento de Deus que Jesus viabilizou é mais do
que elementos de aprendizado e doutrinamento; é um relacionamen-
to especial com o próprio Pai a origem da vida, o criador do Universo.
É este conhecimento que está na base da doutrina da vida eterna no
Evangelho de João.
Em sua oração, Jesus agora inicia um momento de intercessão.
Os seus discípulos imediatos, aqueles que naquele momento depo-
sitaram nEle a fé, eram o alvo primeiro da intercessão. Ele pede para
que eles sejam protegidos. Afinal, o que seria deles agora que Ele, o
pastor do rebanho, iria partir? O que acontece com o rebanho quando
o pastor não está presente? Por isso Jesus pede por proteção do seu
rebanho. Eles iriam passar por muitas dificuldades, mas Deus cuidaria
deles.
Numa mudança impressionante de alvo, a oração de Jesus se volta
para aqueles que ainda não eram seus discípulos. Ele intercede pelos
que ainda haverão de crer. Os discípulos logo deveriam entender que
eles não eram a última geração de discípulos na terra. O papel deles
era gerar novos discípulos e manter a missão viva até a volta de Jesus,
independentemente do tempo que levasse para acontecer. Por isso
eles ouvem Jesus orar pelos futuros discípulos. Ele intercedeu pelos
crentes de todas as gerações. Ele orou pelos crentes da presente gera-
ção. Ele orou por minha vida e pela vida dos membros da minha igreja
de hoje. Ele demonstrou que o amor que Ele tinha pelos discípulos
que o cercavam naquele momento seria replicado nos discípulos que
haveriam de surgir. Seu amor não mudaria. Ele ainda nos ama.

155
4.8 A PÁSCOA
Os romanos foram os responsáveis diretos pela cruz de Jesus. Pi-
latos era o governador da região na época da crucificação de Jesus.
Ele era o representante dos romanos ali naquele território. Isso signi-
fica que ele ocupava o mais alto cargo em termos políticos. Poderia
soltar Jesus, ou, no mínimo, poderia dar-lhe um julgamento honesto.
Preferiu agir, entretanto, de forma injusta para agradar um grupo que
gritava do lado de fora.
Além dos romanos, vários grupos judaicos aparecem envolvidos
na prisão e morte de Jesus: os fariseus, os herodianos, os sacerdotes,
os escribas e um grupo que é descrito nos evangelhos basicamente
como “a multidão”.
É possível dividir estes grupos em dois partidos: o partido da lide-
rança, que forjou um julgamento na casa do Sumo Sacerdote cheio
de contradições para condenar Jesus. Foi este grupo que apresentou
Jesus diante de Pilatos com a acusação de sedição e traição contra o
governo romano. Segundo eles, Jesus era um agitador político que se
dizia rei e por isso era inimigo de Roma.
O segundo é o partido do povo, ou a multidão. Este é o mesmo
grupo que há poucos dias havia saudado Jesus como Rei, mas dian-
te de Pilatos o ovaciona como criminoso. Quando Jesus multiplicou
o pão, quiseram fazer dele Rei. Quando entrou na cidade como Mes-
sias, aclamaram-no como Rei. Mas quando Ele aparece como um
homem prestes a morrer, apressam sua morte. Era uma turba inte-
resseira.
Diferentemente dos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lu-
cas), o Quarto Evangelho não foca na agonia de Jesus, mas, sim, no
seu controle da situação. Ele não foi pego de surpresa, não caiu numa
cilada, não cometeu um erro de estratégia. Ele sabia o caminho que
deveria percorrer. Não adiantava fugir de volta para a Galileia ou par-
tir novamente para o Egito (como fizeram seus pais na sua infância). A

156
narrativa da prisão contada por João enfatiza o poder de Jesus sobre
cada evento. Ele é o Senhor do seu próprio destino.
Judas aparece conduzindo um grupo para prender Jesus, em acor-
do com as autoridades judaicas. Eles carregam tochas para iluminar
a escuridão do lugar e procuram por Jesus. Mas quando Ele se apre-
senta com a impactante frase “eu sou”, eles caem por terra. Jesus se
apresenta e pede para que seus discípulos fiquem livres. Neste mo-
mento, Pedro, de forma impulsiva como ele frequentemente agiu du-
rante o ministério de Jesus, cortou a orelha do sumo sacerdote. Nós
já lemos essa história em Mc 14.47, mas somente o evangelista João
nos conta que ele se chamava Malco.
4.8.1 JULGAMENTO
O julgamento de Jesus foi irregular segundo os costumes judaicos.
Os judeus tinham pressa nos seus procedimentos, para impedir que
houvesse alguma mobilização para soltar Jesus. O julgamento foi rea-
lizado na casa de Anás, o patriarca de uma família sacerdotal. Segun-
do o evangelista, ele era sogro de Caifás, o sumo sacerdote.
Caifás serviu como sumo sacerdote, o principal cargo religioso e
social judaico, do ano 18 até 36, perdendo o posto assim que Pilatos
foi demitido pelos romanos, o que indica que havia uma parceria po-
lítica entre eles.
Diante do interrogatório, acusações falsas são levantadas, mas Je-
sus lembra a eles que seu ministério era público. Todas as suas pala-
vras foram ditas claramente, sem preocupação em escondê-las.
Enquanto o julgamento acontece, a principal cena da narrativa se
dá do lado de fora da casa. Detalhes desta história também podem ser
encontrados em Mt 26:69-75, Mc 14:66-72 e Lc 22:55-66. É onde Pedro
estava, ao redor de uma fogueira. Segundo o evangelista, o discípulo
amado conduziu Pedro até aquele lugar, o que indica algum tipo de
posição social significativa deste discípulo que o Quarto Evangelho

157
evita chamar pelo nome. Seu gesto poderia indicar contatos que Pe-
dro não tinha. De qualquer forma, a presença dos dois ali não ajudou
Jesus em nada, e ainda colocou a fé e a coragem de Pedro à mostra.
Diante da pressão de três pessoas diferentes, que perceberam que
Pedro deveria ter alguma ligação com Jesus, ele reincidentemente
negou que conhecesse seu Mestre. A tripla negativa foi seguida pelo
olhar triste de Jesus na sua direção e pelo cantar do galo.
Os quatro evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e João) entende-
ram que a história da negativa de Pedro era muito importante para
a destacar. Mostra o tamanho da solidão de Jesus nestes momentos
finais. Judas traiu e Pedro negou. Aparentemente, o único que não
fugiu foi o discípulo amado, mas mesmo ele não conseguirá nada, a
não ser assistir de longe o sofrimento do seu Senhor.
Após o julgamento irregular entre os judeus, Jesus é levado para
Pilatos, com a acusação de traição contra o Império. Inicialmente, o
governante romano quer que os judeus o julguem segundo suas pró-
prias leis. Os líderes judaicos não querem isso, pois se assim fosse
feito, eles não teriam condições de fazer com Jesus o que realmente
queriam, que era matá-lo. Por isso, era preciso que o tribunal romano
O julgasse.
Era costume dar uma anistia a um prisioneiro no dia da Páscoa.
Como Pilatos queria continuar a evitar revoltas e manter alguma po-
pularidade com seus subordinados, indaga ao povo quem eles que-
riam libertar. As pessoas ali presentes, instigadas pela liderança ju-
daica, definiram o resultado do julgamento ao gritar por Barrabás,
em vez de Jesus. Para o homem que fora aclamado alguns dias antes
ao entrar na cidade, não restou outra opção senão a crucificação.
4.8.2 A MORTE E O SEPULTAMENTO DE JESUS
Após o julgamento de Pilatos, Jesus foi entregue para a morte. Foi
chicoteado pelos soldados romanos, humilhado das maneiras mais
diversas, e finalmente foi levado para o local de sua crucificação.

158
Este tipo de pena capital era muito utilizado pelos romanos contra os
povos subjugados. O condenado sofria muito antes de efetivamente
morrer, o que transformava a morte numa longa tortura.
Por isso, mesmo crucificado, os evangelhos narram diversas ce-
nas. Uma delas apresenta o discípulo amado diante da cruz, ao lado
de quatro mulheres: Maria, mãe de Jesus; a irmã de Maria; Maria, mu-
lher de Cléopas; e Maria Madalena. Mesmo em agonia na cruz, Jesus
está preocupado com sua mãe; por isso, Ele a entrega aos cuidados
do discípulo amado. A partir dali Ele a trataria como um filho trata sua
mãe.
Após pedir água e receber vinagre para beber, Jesus declarou uma
das frases mais curtas e, ainda assim, mais profundas de todo o Evan-
gelho: “está consumado” (Jo 19:30). Esta última palavra mostra que
Jesus completou de uma vez para sempre tudo o que o Pai havia or-
denado, tudo o que fora predito pelos profetas. Ali estava o Messias
de Deus, morrendo pelos pecadores e cumprindo a justiça de Deus.
4.8.3 A RESSURREIÇÃO DE JESUS
Os evangelhos narram, que pelo menos duas situações sobrena-
turais se deram após o sábado, no início do domingo da ressurreição.
Primeiramente, um violento terremoto; em seguida, a aparição de se-
res angelicais que vieram para se deter diante do túmulo de Jesus. É
certo que Jesus não precisava de ajuda para sair dali. Ele não preci-
sava do terremoto, nem dos anjos para retirarem a pedra. Estes fenô-
menos devem ser vistos como sinais da intervenção de Deus. É o que
os teólogos chamam de “epifania”, ou manifestação divina. Assim,
mesmo os soldados romanos, que deveriam ser homens embruteci-
dos e acostumados a todo tipo de situação, não suportaram os even-
tos e saíram correndo deixando a guarda do túmulo.
Naquele mesmo momento, entram em cena algumas mulheres
que vieram prestar uma homenagem a Jesus. Elas esperavam encon-
trar um corpo destroçado pela crucificação, no túmulo. Até aquele

159
momento, a grande preocupação daquelas mulheres era como con-
seguir a ajuda dos guardas romanos para abrir o túmulo, para perfu-
marem o corpo de Jesus. Mas não conseguiram fazer o que queriam.
Primeiro, porque os guardas não estavam lá. Depois, além da ausên-
cia dos guardas, a pedra já estava removida. O túmulo estava exposto
e, de forma impressionante, nem corpo tinha lá dentro.
Ao ouvirem a notícia dos anjos sobre a ressurreição, elas saíram
correndo para contar aos outros. E foi neste momento que elas en-
contram Jesus. Ao contrário dos soldados, da parte das mulheres não
há incredulidade, mas adoração e alegria. Elas se prostram e beijam
os pés do seu Senhor. Com isso, logo reconhecem: Ele ressuscitou.
4.8.4 JESUS APARECE AOS SEUS DISCÍPULOS
O ministério que Jesus começou com os discípulos necessitava ser
solidificado na nova realidade de ressurreição. E essa nova realidade
traria mudanças nas mentes daqueles homens.
O anúncio da ressurreição por parte de Maria Madalena, não re-
solveu o problema do coração dos discípulos. Eles estavam reunidos
com as portas trancadas, com medo do que os judeus pudessem fa-
zer contra eles. “Paz seja convosco”. Os cabisbaixos discípulos devem
ter erguido a cabeça, e foram envoltos em uma alegria indescritível.
Era Ele mesmo, as marcas da cruz estavam em seu corpo.
Durante os pronunciamentos dos capítulos 13 a 17, Jesus faz várias
promessas aos discípulos, e agora era o cumprimento. Ele estava vivo
outra vez, e os enviava ao mundo não temerosos, mas confiantes. So-
bre eles estava o Espírito Santo consolador, e eles seriam ousados no
testemunho. Era o fortalecimento para a missão recebida.
Jesus estava concedendo a eles a paz para enfrentar a “guerra
declarada”, fora daquelas paredes. Era a segurança, o conforto que
aquela casa com as portas fechadas não podia trazer a eles.
Nessa reunião estava faltando um discípulo: Tomé. Ele ouviu o re-

160
lato dos outros discípulos, mas não consegue se alegrar. Ele sabia da
crucificação, da morte e do sepultamento. Sabia também que Jesus
ressuscitou mortos, mas se Ele mesmo morreu, quem poderia ressus-
citá-lo? Talvez ele olhasse para os discípulos e pensasse que eles esta-
vam dilacerados pela dor, abalados pela saudade do Mestre.
Mesmo não crendo no testemunho, Tomé permanecia no grupo;
o tempo que ele passou com o Senhor e com os apóstolos marcou
sua vida. Ele era de fato, um dos doze, mas descrente na ressurreição.
No coração daquela testemunha não poderia haver incredulidade, e
Jesus, no domingo seguinte, apareceu outra vez a eles. As portas per-
maneciam fechadas, a alegria voltou àqueles corações, mas o medo
ainda persistia.
Jesus apresenta-se novamente a eles e confronta Tomé: “Toque
Tomé, seja um crente verdadeiro, de fé equilibrada”. Tomé percebe
que está diante do Deus encarnado, que venceu a morte. “Senhor
meu e Deus meu”.

161
CAPÍTULO 5
Aspectos Históricos do Apocalipse de João
Nesta seção analisaremos a composição literária do Apocalipse
de João. Isso implica discutir as condições históricas que levaram um
determinado líder do movimento de Jesus até a ilha de Patmos para,
em seguida, escrever um livro para igrejas localizadas na província da
Ásia. Trataremos de questões ligadas à autoria, destinatários, data e
propósito do Apocalipse, bem como a maneira como estes elementos
se materializaram no livro, com forma e conteúdo definidos.

5.1 O AUTOR DO APOCALIPSE


A busca pela autoria de obras antigas precisa levar em conta dois
elementos principais. Primeiramente, busca-se em fontes paralelas
algo que indique quem escreveu o texto. São as chamadas evidências
externas. Num segundo instante, observa-se a própria obra para veri-
ficar o que ela pode indiciar sobre seu autor, no que se pode denomi-
nar de evidência interna. No caso do Apocalipse, tanto um quanto ou-
tro leva em conta a aparente auto identificação do autor como “João”:
- “Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu para mostrar aos seus
servos as coisas que em breve devem acontecer e que Ele, enviando
por intermédio do seu anjo, notificou ao seu servo João” (Ap 1:1);
- “João, às sete igrejas que se encontram na Ásia, graça e paz a vós
outros, da parte daquele que é, que era e que há de vir, da parte dos
sete Espíritos que se acham diante do seu trono” (Ap 1:4);
- “Eu, João, irmão vosso e companheiro na tribulação, no reino e na
perseverança, em Jesus, achei-me na ilha chamada Patmos, por cau-
sa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus” (Ap 1:9);

162
- “Eu, João, sou quem ouviu e viu estas coisas. E, quando as ouvi e vi,
prostrei-me ante os pés do anjo que me mostrou essas coisas, para
adorá-lo” (Ap 22:8).
Estas passagens do Apocalipse indicam que João é o nome assu-
mido pelo autor, que se insere na obra na forma de um personagem
enquanto descreve eventos e experiências religiosas. Não há qual-
quer outro nome vinculado a João. Identificações romanas levavam
em conta, geralmente, pré-nome, nome e pós-nome, como o Impera-
dor Titus Flavius Domitianus. Identificações judaicas seguiam nome e
filiação, geralmente o nome do pai (Isaque ben-Abraão), mas, às ve-
zes, a identificação da cidade (Jesus de Nazaré).
O João do Apocalipse, entretanto, parece ser suficientemente co-
nhecido da sua audiência para que não precise se apresentar com
nada mais além do que um nome. Isso significaria que o simples nome
de João indicaria uma personalidade bem conhecida, e a forte manei-
ra com que ele coloca seus apelos no sentido de ser ouvido mostra
que deveria se tratar de um homem que gozava de grande autorida-
de. O autor do livro também se apresenta como irmão e companheiro
daqueles que irão receber sua mensagem (Ap 1:9), o que reforça a su-
gestão de que ele era bem conhecido de sua audiência.
O mais antigo escritor familiarizado com o Apocalipse, pelo que se
conhece, foi Papias, bispo de Hierápolis, próximo a Laodiceia, uma
das cidades que aparece como destinatária do livro (Ap 3:14-22). Ele
atuou como líder eclesiástico no início do II século, e escreveu uma
obra intitulada “Interpretações de ditos do Senhor”. Esta obra se per-
deu, mas foi citada por muitos autores antigos. Andreas, bispo de Ce-
sareia, na Capadócia, escrevendo um comentário do Apocalipse no
século VI, registrou que Papias conheceu o Apocalipse, considerava-o
inspirado por Deus, e comentou uma de suas passagens. Infelizmen-
te não há nos fragmentos sobreviventes de Papias qualquer menção
clara sobre quem escreveu o Apocalipse.

163
Justino Mártir chegou a residir em Éfeso, outra das cidades men-
cionadas diretamente no Apocalipse (Ap 2:1-7), por volta do ano 135.
Ele escreveu no seu “Diálogo com Trifo”, na seção em que defende o
cumprimento de profecias judaicas, que esperavam um reinado do
Messias na terra, que um homem chamado João, um dos apóstolos
de Jesus, “numa revelação que lhe foi feita, profetizou que os que ti-
verem acreditado em nosso Cristo passarão mil anos em Jerusalém”
(Diálogo com Trifo 81.4). Nos seus termos, ele faz uma referência ao
mais tradicional círculo de discípulos de Jesus, “os doze apóstolos”.
O Evangelho de Marcos relaciona os seguintes nomes neste círculo de
seguidores: Simão Pedro, Tiago e João, filhos de Zebedeu, André, Fili-
pe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, Tiago, filho de Alfeu, Tadeu, Simão, o
cananeu, e Judas Iscariotes (Mc 3:16-19). Aparentemente, então, Jus-
tino entendeu que o “João” mencionado no início do Apocalipse era o
mesmo “João” dos primórdios do movimento de Jesus, um dos seus
discípulos originais.
Irineu fez o mesmo que Justino, em torno de 180, e não só ligou
o Apocalipse ao filho de Zebedeu, como também ao Quarto Evange-
lho canônico, conhecido como Evangelho de João (Contra as Heresias
V.30). Apesar de bispo na cidade de Lion, na Gália, ele passou parte da
infância em Esmirna, na Ásia, outra das sete cidades do Apocalipse
(Ap 2:8-11).
Outros autores antigos, como Hipólito de Roma (170-236), Tertu-
liano de Cartago (160-220) e Orígenes de Alexandria (morreu em 254),
seguiram Irineu na opinião de que o Apocalipse e o Evangelho de
João foram escritos pela mesma pessoa, um dos discípulos diretos
de Jesus, o filho de Zebedeu.
No século III, entretanto, Gaio, um presbítero da igreja de Roma,
promoveu uma forte crítica contra o Apocalipse. Ele era antimonta-
nista, e entendia que o Apocalipse precisava ser totalmente rejeitado
pelas igrejas. Na base de sua argumentação estava a sugestão de que
a obra não era nem do apóstolo João, nem do presbítero João, mas

164
de um homem chamado Cerinto. Sua crítica foi registrada por Eusé-
bio de Cesareia:

No entanto, também Cerinto, por meio de revelações que diz se-


rem escritas por um grande apóstolo, apresenta milagres com a
mentira de que lhe teriam sido mostradas por ministérios dos an-
jos, e diz que depois da ressurreição o reino de Cristo será terres-
tre e que novamente a carne, que habitará em Jerusalém, será es-
crava de paixões e prazeres. Como inimigo das Escrituras de Deus
e querendo fazer errar, diz que haverá um número de mil anos de
festa nupcial (História Eclesiástica III. XVIII. 2).

Entretanto, tanto a sugestão de Justino e Irineu, quanto a de Gaio,


se mostram frágeis. A relação do Apocalipse com um discípulo di-
reto de Jesus não encontra eco dentro do próprio livro. O autor se
autodenomina realmente João, mas não declara vínculo algum com
Zebedeu, com um apóstolo, ou com qualquer outro discípulo de Je-
sus dos tempos iniciais. Se as doze pedras mencionadas na descrição
da Nova Jerusalém (Ap 21:19-21) evocam realmente os doze após-
tolos, isso indicaria que os apóstolos, no momento da redação do
Apocalipse, já haviam alcançado um alto e elevado status dentro das
comunidades a ponto de serem considerados fundamentos da fé e
base para a existência das igrejas. Mas nada sugere que o autor se
veja entre estes. Os indícios indicam que os apóstolos eram figuras
do passado do autor.
Nesta mesma linha, se os apóstolos eram figuras tão importantes
para as igrejas, e o livro fosse uma obra pseudônima, escrita por uma
figura histórica de nome Cerinto, mas atribuída retroativamente a um
grande líder do passado, esperava-se que o Apocalipse contivesse
vínculos mais explícitos com o filho de Zebedeu ou com o Jesus de
Nazaré. Mas não há qualquer elemento no livro que pudesse levar os
primeiros leitores a fazer essa identificação, a não ser a curta auto-
apresentação do autor, homônima de um dos antigos discípulos. A

165
ausência de traços ou indícios de natureza biográfica inviabiliza a hi-
pótese do presbítero Gaio de que a obra seja pseudônima.
O vínculo do Apocalipse com o Evangelho de João é igualmente
frágil. Dionísio, um bispo de Alexandria, na segunda metade do século
III, apesar de não simpatizar em linhas gerais com o Apocalipse, rejei-
tou o ataque que Gaio e outros fizeram à obra. Ele argumentou que
Apocalipse e Evangelho são obras muito diferentes para terem sido
escritas pela mesma pessoa. Sua conclusão, registrada por Eusébio,
foi no sentido de que as obras são de autoria diferente:

Portanto, não contradirei que ele se chamava João e que este li-
vro é de João. Porque inclusive estou de acordo de que é obra de
um homem santo e inspirado por Deus. Mas eu não poderia con-
cordar facilmente em que este fosse o apóstolo, o filho de Zebe-
deu e irmão de Tiago, de quem é o Evangelho intitulado de João e
a carta católica (História Eclesiástica VII. XXV. 7).

Em função de muitas pessoas possuírem o mesmo nome, haveria


sempre a possiblidade de equívocos de identificação. Dionísio ainda
argumentou que deveria haver outro líder cristão de nome João na
Ásia. Ele faz referência, neste sentido, a dois túmulos ainda encontra-
dos nos seus dias, na cidade de Éfeso, dedicados a líderes antigos que
levavam este nome. Eusébio resumiu esta perspectiva:

De forma que também isto demonstra que é verdade a história


dos que dizem que na Ásia houve dois com este mesmo nome, e
em Éfeso dois sepulcros, dos quais ainda hoje se afirma que são,
um e outro, de João. É necessário prestar atenção a estes fatos,
porque é provável que fosse o segundo - se não se prefere o pri-
meiro - o que viu a Revelação (Apocalipse) que corre sob o nome
de João (História Eclesiástica III. XXXIX. 6).

É difícil, entretanto, relacionar o João do Apocalipse com qual-


quer título eclesiástico. Ele não usa epítetos conhecidos do período,

166
como apóstolo, evangelista, mestre, bispo, presbítero ou diácono.
Isso indica que mesmo que ele conhecesse essas nomenclaturas, e
possivelmente ele as conhecia, ele se recusou a usá-las. Essa recusa
pode indicar que ele não se enxergava nestes títulos, ou então que
as comunidades que receberam o Apocalipse não o reconheciam nos
mesmos.
Desta forma, ainda assumindo que o nome que aparece no início
do livro é uma referência autêntica (não-pseudônima) a seu autor, e
que ele se chamava realmente João, as evidências externas acumula-
das sobre ele não representam muito. O João do Apocalipse não pa-
rece ser, então, o filho de Zebedeu, um dos discípulos originais de Je-
sus, ou o autor do Evangelho de João, ou uma figura antiga das igrejas
conhecida como João, o presbítero. Possivelmente foi o fato do livro
identificar seu autor com um “João”, que levou Justino, Irineu e os
outros antigos escritores cristãos a associá-lo com o filho de Zebedeu
ou com o autor do Quarto Evangelho.

5.2 A IDENTIDADE SOCIAL DE JOÃO


O que parece é que o livro foi escrito por um homem chamado
João, que se tornou significativo para a história do Cristianismo pela
produção de apenas um livro, que se constitui, então, na fonte mais
significativa para indicar outros aspectos de sua identidade e seu
lugar social. Além das observações anteriores de que João era bem
conhecido de sua audiência, um segundo elemento interno a respei-
to de sua identidade social é a ligação com uma atividade conhecida
como profecia. João não se denomina explicitamente profeta, mas o
faz implicitamente em vários lugares do Apocalipse. Ele intitula sua
mensagem de profecia (Ap 1:3; 22:7, 10, 18), e narra uma experiência
de vocação de forma muito semelhante à dos profetas da tradição ju-
daica (Is 6:1-13; Jr 1:4-10; Ez 2:8-3.33). João foi um profeta dos primór-
dios do cristianismo, que atuou nas comunidades da Ásia com grande
vigor.

167
Estudiosos tendem a relacionar o fenômeno da profecia no movi-
mento de Jesus até o início do II século com a atividade de liderança
itinerante, principalmente como encontrada nas províncias da Ásia
Menor. As comunidades locais eram dirigidas por líderes assentados
no meio delas, que moravam nas cidades e dirigiam as congregações.
Documentos do movimento de Jesus do início do II século denomina-
vam estes líderes de epíscopos, presbíteros e diáconos (1Tm 3:1-13;
Tt 1:5-9). Do outro lado, existiam líderes itinerantes que viajavam de
igreja em igreja, de um lugar para outro, normalmente denominados
de profetas, apóstolos, evangelistas ou mestres.
Estas distinções não eram tão rígidas, já que líderes locais pode-
riam viajar, enquanto líderes itinerantes poderiam parar durante cer-
to tempo em uma igreja. Um líder local poderia ser itinerante num
momento; o itinerante poderia eventualmente residir numa cidade.
Mesmo assim, as definições funcionais ou carismáticas podem ilumi-
nar a atividade de João como profeta na região da Ásia.
No Apocalipse, ele faz referência a sete igrejas em sete cidades (Ap
1:11), o que indica que ele transitava por elas. O conteúdo das cartas
do Apocalipse (Ap 2-3) sugere também que as igrejas o conheciam,
o que aponta para uma atividade religiosa mais ampla do que uma
específica igreja local.
Por ser profeta, e profeta itinerante, João pode ter abraçado um
estilo de vida ascético, como o seu livro parece sugerir (Ap 14:1-5).
Este tipo de vida seria derivado do formato de atividade religiosa que
Jesus desenvolveu com os seus discípulos. Nos Evangelhos, eles são
vistos constantemente viajando, de lugar para lugar, sem casa fixa,
fenômeno normalmente denominado de “carismatismo itinerante”,
com a expectativa de uma vida sem pátria, sem família, sem posses e
sem proteção.
Viajar de lugar para lugar rompia com os laços locais de estabilida-
de social. Os discípulos de Jesus foram chamados a um tipo de vida

168
ascética, e mesmo após a páscoa de Jesus, alguns continuaram na vida
andarilha. Talvez seja por isso que o autor do Didaquê, no início do sécu-
lo II, chamou a itinerância de “modo de vida do Senhor” (Didaquê 11.8).
Além dos laços sociais, os andarilhos também renunciavam à família.
Poucos dos missionários destacados pelo autor dos Atos dos
Apóstolos são descritos em atividade familiar. Não há, por exemplo,
qualquer referência à família de Paulo. Estes itinerantes renuncia-
vam, também, a propriedades ou recursos financeiros, o que dava ao
pregador condições de fazer a crítica contra a riqueza. Quem peram-
bulava pela Palestina, Síria e Ásia Menor em pobreza demonstrativa
poderia criticar a prosperidade dos ricos sem cair em descrédito. Por
isso, o pregador itinerante precisava da caridade das comunidades
de Jesus localmente constituídas, para ter uma porção mínima para
sobreviver. Isso lhes parecia, bem como aos olhos das comunidades
locais, uma demonstração da bondade divina que não deixava o iti-
nerante carismático morrer de fome ou sede.
De qualquer forma, a prática do carismatismo itinerante deman-
dava abraçar um estilo radical de vida religiosa, com nítidas consequ-
ências ascéticas, e combinava amplamente com um tipo de perspec-
tiva escatológica de fim iminente da história, como provavelmente
pregada por Jesus.
5.2.1 UM JUDEU DA PALESTINA
Além do seu papel religioso como profeta, autores sugerem que
João era judeu por nascimento, um nativo da Palestina, onde passou
um bom tempo de sua vida. Há possibilidade de ele ter residido na Ju-
deia até a instauração da guerra contra os romanos (66-70), que ter-
minou com a destruição de Jerusalém e do templo judaico. Esse tipo
de identificação ilumina a forma como João compreendia a relação
entre Israel e Igreja. Ele não entendia o movimento de Jesus e suas
comunidades como uma religião nova e independente do grande e
plural fenômeno religioso que os estudiosos chamam de Judaísmo.

169
João reivindica o uso do termo “judeu” para os seguidores de Je-
sus (Ap 2:9; 3:9), e demonstra tensão com sinagogas locais, que po-
deria indiciar mais uma crise interna do que um conflito entre religi-
ões distintas. Seu uso das Escrituras judaicas, o grego semitizante do
Apocalipse, e o domínio da tradição religiosa do período do Segundo
Templo, como apocalipses e oráculos, indicam uma pessoa forte-
mente envolvida com as tradições do antigo Israel.
É neste contexto que se insere a relação de João com o movimen-
to de Jesus. O Judaísmo no período que vai da ascensão hasmonea-
na (167 a.C.) até pelo menos a guerra contra os romanos (66-70 d.C.)
abarcava diversos partidos e grupos religiosos. Um destes grupos
teve início com o ministério de Jesus, entre 27-30, inicialmente na
Galileia, para terminar em Jerusalém. O autor do Apocalipse afirma
ser seguidor deste Jesus (Ap 1:9), de quem recebeu a sua revelação.
Apesar de choques eventuais entre os grupos, os membros do movi-
mento de Jesus se reconheciam, como os judeus, como herdeiros das
mesmas tradições religiosas antigas, das alianças dos patriarcas, das
Escrituras judaicas e da Lei de Moisés.
Provavelmente, João não entendia que seu vínculo com o movi-
mento de Jesus descontinuava sua relação com o Judaísmo. O mes-
mo poderia ser afirmado a respeito das comunidades que recebe-
ram o Apocalipse. Elas faziam parte de um movimento que ainda se
entende judaico, apesar da identificação com um grupo específico
dentro do Judaísmo, aquele que nasceu da atividade de Jesus. Duas
décadas depois, na mesma região do Apocalipse, Inácio de Antioquia
falará em suas cartas de “Cristianismo” e descreverá seus membros
como “cristãos”, o que indica que o movimento, naquele período e na
sua expressão asiática, já construíra uma identidade autônoma em
relação ao Judaísmo. Nos termos de Inácio, “é melhor ouvir o cristia-
nismo de homem circuncidado do que o judaísmo de incircunciso”
(Carta aos Filipenses 6.1).

170
5.3 A DATA DE REDAÇÃO DO APOCALIPSE
O Apocalipse de João é uma obra escrita no chamado grego koinê,
língua comum aos territórios do antigo Império de Alexandre o Gran-
de. A obra, de grande porte para os padrões do período, começa des-
ta forma: “Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe deu, para mostrar
aos seus servos as coisas que devem acontecer em breve, e enviou
por intermédio do seu anjo para o seu servo João” (Ap 1:1).
Como boa parte das fontes antigas, a obra não tem um título ou
marca de identificação. Mas durante seu uso, logo passou a ser iden-
tificada por meio da sua primeira palavra: apocalipse, transliteração
simples da sua primeira palavra em grego. O termo pode ser traduzi-
do como “revelação”.
No momento de definir a datação da obra, o testemunho de Irineu
é novamente invocado pelos estudiosos. Ele registrou que “o Apoca-
lipse foi visto não há muito tempo, em nossa própria geração, no fim
do reinado de Domiciano” (Contra as Heresias 5.30.3). Grande parte
dos comentaristas da atualidade acompanha esta antiga definição,
entendendo que mesmo que o testemunho de Irineu quanto ao nome
do autor não seja confiável, a data ainda pode ser mantida para o fim
do reinado de Domiciano, em meados de 95-96. Assim, mesmo que
ele tenha se equivocado com relação à autoria, não existe nenhuma
boa razão para duvidar da sugestão de Irineu quanto à época do Apo-
calipse. Ela pressupõe, neste caso, que a obra, na sua forma atual, é
o resultado de um único autor. O Apocalipse apresenta uso de fontes,
tradicionais ou literárias, mas ainda possui uma unidade coerente
subjacente a uma única autoria.
Além de Irineu, Vitorino de Pettau, morto em 303, escreveu o mais
antigo comentário completo do Apocalipse da antiguidade a sobrevi-
ver. Ao comentar a passagem do Apocalipse, que João come um livro
(Ap 10:3), Vitorino escreveu:

171
João teve esta visão quando estava na ilha de Patmos, condena-
do às minas por Cesar Domiciano. Parece, pois, que João escreveu
dali o Apocalipse, quando já era um ancião. Depois de seus so-
frimentos, quando foi assassinado Domiciano, e anulados todos
os seus decretos, foi João liberado das minas e transmitiu este
mesmo Apocalipse que recebeu do Senhor (Comentário ao Apo-
calipse 10.3)

Eusébio de Cesareia faz comentário parecido com o de Vitorino: “É


tradição que, neste tempo, o apóstolo e evangelista João, que ainda
vivia, foi condenado a habitar a ilha de Patmos por ter dado teste-
munho do Verbo de Deus” (História Eclesiástica III. VIII. 1). Ainda: “Foi
então que o apóstolo João, voltando de seu desterro na ilha, retirou-
se para viver em Éfeso, segundo relata a tradição de nossos antigos”
(História Eclesiástica III. XX. 9).
Estes dois bispos entenderam que o Apocalipse foi escrito durante
o reino de Domiciano. Ambos acrescentam que João foi banido para
Patmos pelo Imperador, tendo sido liberado após a morte dele. A tra-
dição neles preservada do desterro de João, ou de Patmos como uma
colônia penal, não é apoiada pela historiografia. Mesmo assim, os tes-
temunhos de Vitorino e Eusébio são importantes para definir a data
do Apocalipse, mais até do que para descrever a situação em que isso
se deu.
Em termos de evidência interna, há alguns elementos que refor-
çam a hipótese da década de 90. Um primeiro pode ser encontrado
no uso muito específico que o Apocalipse faz do nome “Babilônia”
(Ap 14:8; 16:19; 17:5; 18:2, 10, 21). É muito difícil que o autor da obra
esteja fazendo referência a antiga cidade da Mesopotâmia, presente
fortemente nas antigas tradições literárias judaicas por ter destruído
o reino de Judá, em 586 a.C., derrubando a capital Jerusalém e o tem-
plo de Salomão.
Em Ap 17, João descreve Babilônia como uma mulher, e pelo me-

172
nos duas marcas na fala do anjo indicam que a mulher representa a
cidade de Roma. O versículo 9 descreve-a assentada sobre sete mon-
tanhas: “Aqui está o sentido da sabedoria: as sete cabeças são sete
montanhas, onde a mulher está assentada. Também são sete reis”
(Ap 17:9). O versículo 18 a apresenta como uma cidade “que tem po-
der sobre os reis da terra”. Estas indicações, para uma audiência da
Ásia no final do primeiro século indicariam que Babilônia era um
símbolo para a cidade de Roma. A capital do Império aparecia fre-
quentemente descrita como a cidade das sete montanhas (Capitólio,
Quirinal, Viminal, Esquilino, Célio, Aventino e Palatino), e era a cidade
politicamente mais importante do Mediterrâneo.
E o que essa associação entre Babilônia e Roma poderia indicar
em termos de datação para o Apocalipse? A maioria das ocorrências
de Babilônia como nome simbólico para Roma na literatura judaica
está no Apocalipse de Esdras (4 Esdras), no Apocalipse Siríaco de Ba-
ruque (2Apocalipse de Baruque) e no quinto livro dos Oráculos Sibi-
linos, redigidos nos últimos anos do século I. Nestas obras, Roma é
chamada de Babilônia porque ela, como a antiga cidade mesopotâ-
mica, destruiu Jerusalém e o Templo. Ou seja, o nome simbólico de
Roma, Babilônia, é forte indício de que o Apocalipse foi escrito após a
destruição de Jerusalém e do Templo no ano 70.
Além do uso simbólico do termo Babilônia para descrever Roma,
típico de obras judaicas posteriores ao ano 70, a concepção de João
de que a comunidade de Jesus é o novo templo de Deus, bem como a
profecia de que na Nova Jerusalém não haveria mais templos, indica-
ria que o Apocalipse é posterior à destruição do Templo de Jerusalém
(70 d.C.). Outros elementos, como os indícios de conflitos com sinago-
gas locais em Esmirna e Filadélfia, as referências a perseguições por
parte do Império Romano ou a crise com a instituição do Culto Impe-
rial são muito vagos para precisar melhor a datação do Apocalipse.
A partir dos dados internos, muito provavelmente o livro é poste-
rior ao ano 70, e, portanto, à destruição de Jerusalém e do templo

173
judaico. Se a hipótese de que o autor saiu da Palestina em função do
conflito for verdadeira, era preciso algum tempo para que ele consoli-
dasse uma atuação profética fora da sua terra, na Ásia Menor, e espe-
cificamente na província proconsular da Ásia. Dado o conhecimento
que Papias teve da obra, seria preciso algum tempo entre sua produ-
ção e circulação entre as igrejas. Isso nos leva a tomar o testemunho
de Irineu realmente como a hipótese mais provável, localizando o li-
vro no fim do governo do Imperador Titus Flavius Domitianus, assas-
sinado no dia 18 de setembro de 96. Nos termos de Irineu (Contra as
Heresias 5.30.3), foi em algum momento anterior à morte do Impera-
dor, que João, de Patmos, escreveu o Apocalipse.

5.4 O GÊNERO LITERÁRIO DO APOCALIPSE


Aparentemente, os antigos intérpretes do Apocalipse o liam da
mesma forma como liam outros livros proféticos da tradição judaica.
Para eles, João era profeta, e seu livro, uma profecia. Foi somente no
século XIX que se levantou a sugestão de que o Apocalipse de João
deveria ser visto como um tipo distinto de literatura. O argumento
era de que o livro não era como as demais obras da tradição profética
judaica. Além disso, as evidências indicavam que existia um corpo de
escritos parecidos com o Apocalipse, formando uma corrente literária
na qual a obra de João poderia ser inserida. Esta corrente se estende-
ria para cerca de três séculos antes do aparecimento do Apocalipse de
João, com acentuada produção em torno da Guerra dos Macabeus, e
avivada depois da guerra Judaico-romana (66-70).
A partir de então os estudiosos passaram a tentar definir o que se-
ria o gênero “apocalipse”. Estas tentativas de definição consistiam de
listas de características típicas. Autores procuraram apontar poucos
traços distintivos para abraçar um número maior de textos. Entretan-
to, o resultado é que textos, que se parecem muito pouco, passaram
a ser vistos igualmente como apocalipses.
Muitas outras listas surgiram. Cada uma apresentava um traço di-

174
ferente que considerava ser típico de um apocalipse. Isso fazia com
que um livro que um determinado autor apontava como apocalipse
fosse considerado por outro estudioso como de gênero diferente.
Um princípio básico subjacente à pesquisa do gênero destas obras
é que um apocalipse, como outros tipos de literatura, não poderia ser
considerado como obra literária estanque, pois estaria relacionado
com outras obras e tradições através de uma série de traços e cone-
xões. Por isso, definir um apocalipse passou a ser uma questão de
precisar os limites ou parâmetros dentro do qual estas obras seriam
recebidas por seus leitores.
Essa definição avançou consideravelmente na segunda metade
do século XX, cujos resultados foram resumidos por Collins (COLLINS,
1979, p. 9) e Hellholm (HELLHOLM, 1986, p. 27):

a) Apocalipse é um gênero de literatura de revelação com uma


estrutura narrativa, no qual uma revelação é mediada por um
ser sobrenatural para um ser humano, revelando uma realidade
transcendente que é tanto temporal, enquanto considera salva-
ção escatológica, quanto espacial, enquanto envolve outro mun-
do sobrenatural, b) destinada a um grupo em crise com o propósi-
to de exortar e/ou consolar através de autoridade divina.1

Esta definição possui duas partes. A parte “a” vem de Collins; a


“b” procede de Hellholm. Ambos os pesquisadores fizeram parte do
grupo de pesquisa que analisou os apocalipses durante alguns anos,
cujas conclusões aparecem nos números 14 e 36 da revista Semeia.
A proposição de Collins promoveu a análise dos aspectos de forma
e conteúdo, enquanto Hellholm tratou da função dos apocalipses.

1
  Esta definição possui duas partes. A parte “a” vem de Collins; a “b” procede de
Hellholm. Ambos os pesquisadores fizeram parte do grupo de pesquisa que anali-
sou os apocalipses durante alguns anos, cujas conclusões aparecem nos números
14 e 36 da revista Semeia. A proposição de Collins promoveu a análise dos aspectos
de forma e conteúdo, enquanto Hellholm tratou da função dos apocalipses.

175
Junto com esta definição de trabalho, os autores (HELLHOLM, 1986,
p. 22-23) apontaram as marcas e convenções literárias presentes nos
apocalipses, divididas em três grupos: marcas de conteúdo, de forma
e de função. Destacamos que um apocalipse não precisa apresentar
todas essas características. Elas formam, antes, um paradigma que
orientava o autor e o leitor do texto.
A tabela a seguir resume a lista de caraterísticas típicas de um apo-
calipse:
- Escatologia na forma de história futura
- História do universo dividida em grandes períodos
- Descrição do mundo sobrenatural
- Combate dualista entre poderes cósmicos
CONTEÚDO

- Combate dualista entre grupos ou poderes humanos


- Mediadores ou reveladores do mundo sobrenatural
- Recipientes humanos da revelação sobrenatural
- Público-alvo da revelação sobrenatural
- Exortações
-Ordem para o recipiente da revelação escrever ou comunicar a reve-
lação do mundo sobrenatural
- Sistematização por meio de números.
- Estrutura narrativa
- Abertura e/ou fechamento epistolar
- Deslocamento para um lugar terreno para receber a revelação
- Deslocamento para o mundo sobrenatural para receber a revelação
- Relato de visões
- Relato de audições
- Interpretação de visões
FORMA

- Interpretação de audições
- Discurso de mediadores
- Diálogo entre mediadores e recipientes da revelação
- Epístolas ou livros celestiais
- Citações da divindade
- Linguagem por meio de imagens e símbolos
- Pseudonímia
- Combinação de formas e estilos literários menores.
- Endereçados a um grupo em crise
FUNÇÃO

- Exortação para permanecer firme e/ou se arrepender


- Consolo na forma de promessa de vindicação ou redenção
- Legitimação da mensagem.

176
Ao aplicar esta lista de características ao livro de João, a obra se
enquadra com precisão no interior da tradição literária que gerou os
apocalipses.
Escritores não conseguem escrever sem ter em mente outros li-
vros que eles leram, os quais se tornam modelos para serem imita-
dos, transformados ou contrapostos. A inserção de um texto num
determinado veio tradicional ou literário, assim, tem função não so-
mente promotora de características (forma e conteúdo), mas também
hermenêutica. Afinal, leitores não podem ler e entender uma obra, se
eles não estiverem habilitados para relacioná-la com outras que eles
tiveram a oportunidade de ler ou conhecer.
O propósito da identificação e classificação de uma obra é orientar
e guiar a produção ou a recepção da mesma. Este processo é, normal-
mente, deliberado e consciente por parte do autor do livro, como um
de seus recursos para guiar o seu leitor.
A classificação de textos consiste no levantamento de um conjun-
to de convenções, implícitas ou explícitas. O escritor conhece estas
convenções do contexto no qual e contra o qual escreve. No processo
de produção de sua obra, ele ajuda o leitor por meio de indicações pa-
ratextuais, como títulos, subtítulos, prefácios ou outros sinais menos
óbvios. Com isso se forma um tipo de expectativa que orienta anteci-
padamente a leitura e a recepção da obra. Afinal, estas marcas estão
ali para indicar a maneira como ele queria que o livro fosse lido.
João, como todo escritor ou orador, precisou antecipar a reação
dos leitores ou ouvintes para ajustar previamente sua mensagem. As
tais marcas que viabilizam as classificações ou categorizações for-
mam uma espécie de mapa de leitura, que pode ser aceito ou não pe-
los leitores. Mesmo que uma obra não tenha estes sinais claramente,
os leitores tenderão a construir seus próprios mapas ou guias de in-
terpretação, normalmente comparando a obra com outras similares,
de forma a construir um corpo de convenções para guiar a leitura. A

177
prática da leitura se torna, então, um contínuo processo de compara-
ção com leituras anteriores.
Autores se valem de convenções. Leitores se aproveitam delas. Em
ambas as situações, a construção do texto e a busca pelo seu senti-
do é uma atividade de comparação na qual as tradições literárias se
tornam ferramentas heurísticas significativas. Autores, por múltiplos
meios, criam em relação ao seu texto expectativas de leitura, anteci-
pações de interpretação. Ao inserir sua obra numa determinada tra-
dição literária, o gênero que reveste o conteúdo e a forma do texto, o
autor a vincula com outras já conhecidas dos seus leitores, que pas-
sam a funcionar como um indicador dos saberes prévios necessários
para a leitura. O gênero literário classifica o texto, sugere uma leitura,
delimita os sentidos almejados, e viabiliza significados.
Ao escrever sua obra, João deliberadamente revestiu-a de marcas
e traços convencionais de obras que viriam posteriormente a ser co-
nhecidas como apocalipses. Ao assim fazer, ele fornece a forma como
ele esperava que sua obra fosse recebida pelas igrejas da Ásia, e com
quais textos o Apocalipse deveria ser comparado. Entre estes textos,
podemos citar os chamados apocalipses históricos (Dn 7-12, O Apoca-
lipse Animal; O Apocalipse das Semanas, Jubileus 23, 4Esdras e 2Ba-
ruque) de um lado, e os apocalipses cósmicos ou políticos do outro
(1Enoque 1-36, As Similitudes de Enoque, O livro dos Luminários Ce-
lestiais, 2Enoque e Testamento de Levi 2-5). O apocalipse redigido por
João de Patmos seria uma mistura destes dois tipos de apocalipses.

5.5 O PROPÓSITO DO APOCALIPSE


O Apocalipse foi escrito para ser encaminhado para sete igrejas da
província proconsular da Ásia: “Achei-me em espírito no dia do Se-
nhor e ouvi atrás de mim uma voz grande, como de trombeta, dizen-
do: O que vês, escreve em livro e envia para as sete igrejas: Para Éfeso,
Para Esmirna, Para Pérgamo, Para Tiatira, Para Sardes, Para Filadélfia
e Para Laodiceia (Ap 1:10-11).

178
As cartas em questão aparecem um pouco depois na estrutura da
obra:
- Ap 2:1-7: Carta à Igreja em Éfeso;
- Ap 2:8-11: Carta à Igreja em Esmirna;
- Ap 2:12-17: Carta à Igreja em Pérgamo;
- Ap 2:18-29: Carta à Igreja em Tiatira;
- Ap 3:1-6: Carta à Igreja em Sardes;
- Ap 3:7-13: Carta à Igreja em Filadélfia;
- Ap 3:14-22: Carta à Igreja em Laodiceia.
Por meio da leitura das cartas é possível notar algum tipo de con-
flito ou tensão entre João, o autor do Apocalipse, e alguns membros
das igrejas. As cartas demonstram dois tipos básicos de tensão. In-
ternamente, há algum tipo de conflito entre João e a liderança de
algumas igrejas, e algum tipo de tensão com sinagogas locais. Exter-
namente, a sociedade urbana da Ásia poderia representar algum des-
conforto, especialmente em função das demandas relacionadas com
as interações sociais.
Para as tensões internas entre os líderes das igrejas, por meio da
comparação entre as ameaças e os elogios presentes nas cartas, al-
guns autores sugerem a seguinte tipologia:
- Igrejas divididas entre a liderança de João e alguma outra lideran-
ça local: Éfeso, Pérgamo, Tiatira. Para estas igrejas, João fornece nas
respectivas cartas uma elaboração dos problemas da comunidade.
Consistiriam no principal foco de João.
- Igrejas onde João tem pouca ou mesmo nenhuma influência: Sar-
des e Laodiceia. É provável que ele tenha aliados em potencial nessas
comunidades, mas estão em número muito pequeno. Por isso, o seu
tom menos conciliador. Para elas, o autor não fornece nenhuma ela-
boração de problemas e pouco, se tiver algum, encorajamento.

179
- Igrejas simpáticas à liderança de João: Esmirna e Filadélfia. Não
contém chamada ao arrependimento ou qualquer tipo de ameaça, ao
mesmo tempo em que recebem fortes louvores. São igrejas simpáti-
cas à liderança de João e ao tipo de pregação que João defendia.
Com relação a membros das sinagogas locais, João assim se ex-
pressou: “se dizem judeus, mas não o são”. Para o autor do Apoca-
lipse, eles não eram verdadeiros judeus, mas “sinagoga de Satanás”
(Ap 2:9; 3:9). Essa crise parece ter se acentuado por causa da sinagoga
estar envolvida em um processo amplo de interação com os gentios.
Eles falavam grego, expressavam suas crenças e práticas religiosas
com categorias helenistas e estavam, em maior ou menor grau, en-
volvidos na vida pública de suas cidades.
O Apocalipse fala da morte de Antipas (Ap 2:13), que pode ter se
dado em função de algum conflito com a sociedade. Segundo João,
entretanto, o mesmo fenômeno que promoveu a morte de um mem-
bro da igreja, proverá, dentro em breve, a prisão e a morte de muitos
outros (Ap 2:10). Essa descrição conflito contém suficientes referên-
cias e alusões à Roma e ao culto imperial para perceber que o autor
esperava tribulação e opressão de instituições políticas e econômicas
na Ásia.
No campo da motivação de João para escrever o Apocalipse, as
seguintes sugestões podem ser mencionadas:
- O autor está convencido de que o Império Romano é uma ameaça
para seguidores de Jesus, e escreve para persuadir sua audiência nes-
te sentido, empurrando-a para uma determinada posição frente ao
contexto social em que viviam.
- O livro tem uma função terapêutica. Diante do Apocalipse, leitores e
ouvintes alcançariam uma catarse de medo e ressentimento ao visu-
alizarem o juízo sobre seus opositores.
- O Apocalipse de João foi produzido com o objetivo de produzir resis-

180
tência. Enquanto a ideologia imperial pregava que o Imperador era o
rei dos reis, João ressignificava a ideologia romana para afirmar que a
autoridade última sobre o mundo provém, no fim, de Jesus.
A questão do propósito do Apocalipse esbarra, geralmente, da
perspectiva quanto à perseguição aos discípulos no tempo de João.
Em termos históricos, entretanto, Domiciano não parece ter instigado
uma perseguição oficial aos seguidores de Jesus. Existe pouca evi-
dência de que ele tenha perseguido diretamente as igrejas e nenhu-
ma evidência de que ele tenha banido João para a Ilha de Patmos.
Isso não significa que conflitos locais não pudessem se manifestar
dentro de cada cidade da Ásia, conflitos estes que poderiam ter liga-
ção com o relacionamento dos membros do movimento de Jesus e a
instituição do culto imperial.
Possivelmente, ao falar do culto às bestas, João entra em polêmica
com a prática do culto ao Imperador no contexto urbano da provín-
cia, onde a primeira Besta (Ap 13:1-10) representa o Império Romano
ou o próprio Imperador, e a segunda Besta (Ap 13:11-18) é, provavel-
mente, o sacerdote do culto imperial. Acompanhar a posição do Apo-
calipse neste sentido poderia gerar suspeição e hostilidade por parte
da população local, e gerar as acusações subjacentes aos processos
contra cristãos descritos por Plínio, o Jovem, ao Imperador Trajano
(Epístola 10.96.5). As prisões descritas por Plínio estão no início do
século II, num momento em que os membros do movimento de Jesus
deixaram de se identificar com uma ou outra comunidade judaica; ao
serem expulsos dessas comunidades, eles precisam criar novas iden-
tidades em oposição àqueles que antes eram seus irmãos.
Assim, quando o movimento de Jesus passou a ser formado predo-
minantemente de não-judeus, passou a ser excluído não mais de es-
paços judaicos, mas dos âmbitos sociais que antes conviviam. Era des-
ses espaços que as ameaças que partiriam as hostilidades, de oficiais
romanos e turbas urbanas que os odiavam por seu “ateísmo”, que te-

181
miam que pudessem atrair a ira dos deuses para comunidades inteiras.
Mas se este cenário se aplica à Bitínia e Ponto, dos tempos de Plí-
nio, ainda não se aplica ao tempo do Apocalipse. A ênfase na ruptura
com a sociedade do Apocalipse indica que boa parte dos membros
das igrejas da Ásia ainda vivia suas vidas com seus vizinhos sem gran-
des conflitos. João espera por tensão e crise. Ele aguarda uma violen-
ta perseguição contra as comunidades para um futuro próximo. Sub-
jacentes aos rótulos da oposição interna (os balamitas e nicolaítas de
Pérgamo, Jezabel e seus seguidores em Tiatira, e os falsos apóstolos
de Éfeso) parecem estar pessoas que ocupavam posição de liderança
dentro das igrejas nas quais estavam inseridos, consideradas como
adversários por João. O que estes líderes de diferentes igrejas teriam
em comum? Aparentemente, eles não estavam de acordo quanto à
forma de conduzir os fiéis nas suas relações com o Império. Assim,
diante da diferença de respostas existente entre os próprios líderes
sobre a interação com a sociedade, João reage com força. Para ele,
qualquer acomodação social é prostituição e idolatria, categorias re-
ligiosas retiradas da antiga profecia judaica.
Quais seriam, então, os propósitos do Apocalipse? João, por meio
de sua obra, quer demonstrar quão diabólicas são as práticas de inte-
ração social, política e religiosa com o Império romano. Ele quer que
as igrejas da Ásia que receberão seu livro evitem os contatos com a
sociedade pagã e idólatra. Para isso ele provê motivações tanto po-
sitivas quanto negativas para o afastamento da sociedade e dos de-
mais grupos judaicos. Ele também quer demonstrar que esta socieda-
de promoverá mais à frente a morte de muitos seguidores de Jesus.
Em termos sintéticos, João quer consolar seus leitores que estão
passando por dificuldade de viver o seguimento de Jesus em função
das hostilidades judaicas ou romanas, ao mesmo tempo que desejar
exortar aqueles que querem fazer alianças com estes grupos. No fim,
o Apocalipse é um livro que quer simultaneamente consolar o sofre-
dor e exortar o vacilante.

182
5.6 DE ONDE JOÃO ESCREVE
A partir de uma referência interna (Ap 1:9), é possível circunscrever
o local de origem do Apocalipse como sendo a pequena ilha do mar
Egeu, de nome Patmos, e seu destino como um conjunto de comuni-
dades localizadas na província proconsular da Ásia (Ap 1:11): Éfeso,
Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia.
Este João de Patmos está longe de Roma, capital do Império. Ape-
sar dos atos e gestos do Imperador poderem refletir diretamente na
vida de João e no público de sua obra, em termos sociais, políticos,
econômicos ou culturais, o contexto específico do Apocalipse é mes-
mo a Ásia Romana. Em função disso, agora nos deteremos em definir
a situação desta província, caracterizando a convivência social e as
particularidades identitárias cristãs na Ásia Menor no fim do séc. I e
início do séc. II, focando em aspectos que poderiam iluminar de algu-
ma forma o processo histórico de produção do Apocalipse.
João recebeu a série de visões que deu origem à obra enquanto
estava na ilha de Patmos, no mar Egeu: “Eu, João, irmão vosso e com-
panheiro na tribulação, no reino e na perseverança, em Jesus, achei-
me na ilha chamada Patmos, por causa da palavra de Deus e do teste-
munho de Jesus”. (Ap 1:9)
Patmos é uma pequena ilha. Em termos gerais, são treze quilôme-
tros de extensão por oito de largura. Mas sua costa recortada reduz
consideravelmente suas dimensões. Sua margem fica a 64 quilôme-
tros da foz do rio Maeander, o ponto mais próximo da Península da
Ásia Menor. No final do primeiro século, 60 quilômetros a separavam
de Mileto, seu principal vínculo com o continente. Das cidades men-
cionadas no Apocalipse, entretanto, a mais próxima era Éfeso, distan-
te da ilha cerca de 100 quilômetros.
A associação de Patmos com Mileto era formal, fazendo parte do
seu território, junto com as ilhas de Lipsos e Leros. Nas três ilhas havia
algum tipo de povoamento. Em Patmos, especificamente, seu povo

183
era conhecido como frouroi, e seus líderes, os frourarchoi atuavam
como parte do governo de Mileto para a população local.
Patmos não era uma ilha deserta, ou mesmo uma colônia penal.
Como evidência disso há duas inscrições encontradas na ilha. Uma,
datada para o século II a.C., faz referência a uma associação local de
atletas, à presença de um gymnasium, e à figura de um gymnasiar-
cha eleito sete vezes para a mesma função. Outra, de duzentos anos
depois, já na Era Comum, fala de uma hidrophore, sacerdotisa de Ar-
temis, e a presença de um templo local bem estabelecido para esta
deusa. Do outro lado, não há registros da ilha como colônia penal em
fontes da época.
João escreve, portanto, de uma ilha pertencente a Mileto, a cidade
mais próxima de onde ele se achava. Curiosamente, entretanto, ela
está ausente da lista de cidades mencionadas no Apocalipse. Talvez a
resposta a esta questão tenha relação com a falta de uma comunida-
de do movimento de Jesus em Mileto.
Atos dos Apóstolos contém uma narrativa que parece indiciar a au-
sência de uma comunidade na cidade. Nela (At 20:17-38), Paulo se pre-
para para fazer uma viagem a Roma. Entre seus preparativos está uma
visita à igreja de Jerusalém. Durante sua viagem, ele para em Mileto
para conversar, não com discípulos da cidade, mas com líderes que
vieram da igreja de Éfeso. O autor explicita que “de Mileto, mandou
a Éfeso chamar os presbíteros da igreja”. (At 20:17) Não há qualquer
menção à presença de seguidores do movimento de Jesus, pelo me-
nos perto do ano 60, quando os eventos narrados por Atos se deram.
Neste sentido, a omissão do Apocalipse pode indicar que as três déca-
das que separam a parada de Paulo na cidade e a passagem de João
por ela não foram suficientes para o surgimento de uma igreja no lugar.
5.6.1 A PENÍNSULA DA ÁSIA MENOR
A expressão Ásia Menor é uma referência à península do continen-
te asiático que se estende para o Oeste na direção do Mar Egeu, cer-

184
cada ao norte pelo Mar Negro e ao sul pelo Mar Mediterrâneo, normal-
mente usada para distinguir a península do restante do continente.
A península é separada da Europa pelo Mar de Mármara e dois pe-
quenos estreitos: o estreito de Bósforo, na direção do Mar Negro, e o
Helesponto, na direção do Mar Egeu.
Nos tempos romanos ou em períodos anteriores, a região não che-
gou a constituir uma unidade política ou cultural. Nem mesmo a ge-
ografia ou o clima eram homogêneos. A região ocidental, dominada
por muito tempo pelos aqueus, fazia parte da Magna Grécia, e possuía
um clima tipicamente mediterrâneo.
O platô central era seco, com clima marcado por temperaturas
extremas, e atravessado por uma cadeia de montanhas. Essa região
permaneceu largamente rural, com um reduzido índice demográfico,
e pouco receptiva às influências ocidentais. A costa norte e a costa
sul, quase isoladas da Península por barreiras montanhosas, se en-
volveram rapidamente em atividades relacionadas com o mar. No
norte, grãos e metais do sudeste do Mar Negro atraíram comercian-
tes e colônias gregas. No sul, região banhada pelo Mediterrâneo, os
contatos maiores eram com os povos semitas.
A Península, durante sua história, acabou se tornando uma pon-
te entre povos, sempre sujeita a novos conquistadores, invasores e
culturas. Em período anterior a Alexandre, o Grande, atravessar o He-
lesponto, em 334 a.C., a região inteira estava sob o domínio persa.
Antes que terminasse o ano 333 a.C., entretanto, toda a Ásia Menor
já se encontrava sob o controle helenista. Após a morte de Alexandre
(323 a.C.), e a dificuldade dos seus sucessores em manter o governo
da região, novos reinos começaram a se constituir, sendo os dois mais
fortes o Reino da Bitínia e o Reino de Pérgamo. O rei da Bitínia, Nico-
medes I, em 278 a.C., trouxe um exército da Gália para a região para
servir como aliado, mas rapidamente perdeu o controle sobre o gru-
po, que se fixou na região central da península, dando a ela o nome
de Galácia.

185
A principal dinastia de Pérgamo foi instaurada por Atalus I (241-197
a.C.), que, junto com seus sucessores, promoveu um estável reinado.
Em 133 a.C., quando Atalus III morreu, ele entregou o governo e con-
trole do seu reino para o Senado Romano em testamento. Apesar de
uma eventual resistência local, os romanos assumiram a região de
Pérgamo e a transformaram na primeira província oriental (126 a.C.),
com o nome de Ásia Proconsular. A província comportava uma por-
ção ocidental da península e algumas ilhas do Egeu.
Em 102 a.C., os romanos também organizaram a província da Ci-
lícia para ajudar a guardar as fronteiras do leste da ainda República
romana. No ano 74 a.C., Nicomedes IV legou o reino da Bitínia para
Roma, transformado então na província de mesmo nome. Um grande
adversário romano na região, Mitrídates VI, do Ponto, foi derrotado
pelo general Pompeu em 63 a.C., que adicionou grande parte do reino
de Ponto à província da Bitínia. No ano 25 a.C., já no período do Impé-
rio, a Galácia era um reino cliente de Roma, mas com governo próprio.
Quando seu rei, Amintas, morreu, Augusto transformou o reino em
uma nova província. Após a anexação da Capadócia como província
em 17 d.C., a maior parte da Península estava finalmente sob o con-
trole direto de Roma.
Apesar de uma ou outra pequena alteração no arranjo geográfico
e político das províncias, a Ásia Menor, no final do primeiro século,
estava dividida da seguinte forma: no oeste, região do Helisponto,
local do antigo reino de Pérgamo, banhada pelo Mar Egeu, a provín-
cia da Ásia. No norte, região do Bósforo, banhada pelo Mar Negro,
separada do restante da Península por uma cadeia de montanhas,
a província da Bitínia e Ponto. Na região central da Península, numa
zona predominante rural, com número reduzido de cidades, marca-
da por clima áspero, a região habitada pelos antigos gauleses, está
a província da Galácia. No Sul, na região banhada pelo Mar Mediter-
râneo, marcadas por uma forte cadeia montanhosa na fronteira com
o centro da Península, estavam: a Cilícia, com fronteira leste para a

186
província da Síria, e a Lícia e Panfília ao centro, com fronteira para a
Ásia e a Galácia.
Se, como já argumentamos, o João do Apocalipse era realmente
um nativo da Palestina que transitou para a Ásia Menor no período
posterior à Guerra Judaico-romana (66-70 d.C.), ele pode ter passado
por um circuito muito semelhante ao que Paulo de Tarso passou na
década de 50-60 do primeiro século, e tido contato com quase todas
as províncias e cidades da Península.
O idioma predominante na região era o grego, apesar do uso do
latim para as deliberações oficiais e políticas das cidades e governos,
e idiomas próprios de grupos étnicos, como o gaulês, falado na Galá-
cia, pelo menos até o V século. Em linhas bem amplas, o ocidente da
Península e as regiões costeiras eram bem helenizados, e receptivos
com a cultura grega, enquanto o centro e a Capadócia ainda manifes-
tavam alguma resistência cultural.
Nas regiões mais helenizadas, a população girava em torno das
cidades. O mundo antigo é impensável sem a cidade. O mundo da
Grécia clássica era um mundo de cidades-estado; o Império Romano
foi um império de cidades. Entretanto, os direitos e deveres de cada
cidade variavam bastante em função dos diferentes status que cada
uma possuía e mantinha com o Império.
De uma maneira geral, as sete cidades mencionadas pelo Apoca-
lipse, com exceção de Filadélfia, eram grandes cidades com popu-
lação que girava em torno dos 200 mil habitantes, todas localizadas
dentro da principal província da Península, a Ásia. Com alguma pro-
babilidade, saindo de Patmos, o Apocalipse teria desembarcado em
Mileto, a cidade continental mais próxima. Depois, seria levado para
Éfeso. Posteriormente, ele seguiria para o norte e iniciaria uma via-
gem quase circular, em sentido horário, tendo como próxima parada
a cidade de Esmirna. Em seguida, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia
e Laodiceia.

187
5.7 ASPECTOS SOCIAIS DA ÁSIA ROMANA
A respeito da Ásia, Cícero (107-43 a.C.) escreveu: “na riqueza de
seus óleos, na variedade de seus produtos, na extensão de seus pas-
tos e no número de suas exportações, ela ultrapassa todas as outras
terras” (De Imperio cn. Pompei ad qurites oratio 14).
A Ásia Menor era uma das regiões mais ricas do Império, e dentre
as seis províncias da península, a Ásia era a mais próspera. A primei-
ra província romana no lado oriental do Helesponto era cortada por
quatro grandes rios que nasciam no leste, para desaguar no Mediter-
râneo: Caicus, Hermus, Cayster e Maeander. Cada um destes rios é
separado por uma cadeia de montanhas, formando um vale para a
agricultura. Estes vales eram fatores para o desenvolvimento econô-
mico da província.
As colinas e vales providenciavam as condições próprias para uma
grande variedade de recursos naturais: grãos, vinho, azeite, frutos e
nozes, flores aromáticas para perfumes e pomadas, plantas para a
manufatura têxtil, produtos florestais, pasto para ovelhas, cabras e
porcos. A atividade mineradora extraía chumbo, cobre, ferro, sal e
mármore das minas da região.
Além dos recursos naturais, outra fonte de riqueza para a provín-
cia eram suas cidades. Nelas surgiram espaços de comércio local e re-
gional, e também centros de manufaturas, onde artesãos produziam
seus produtos. Como estas atividades dependiam de muitas pessoas,
as cidades da Ásia se tornaram núcleos de diversas atividades.
No início do império, a costa da província já estava completamen-
te ocupada pelo território das cidades. No interior, entretanto, elas
eram encontradas basicamente nas margens das estradas. Cada ci-
dade se conectava à outra por estradas, que os imperadores, desde
Otávio Augusto, a partir de 27 a.C., construíam, reformavam e expan-
diam. Elas eram cruzadas constantemente por viajantes e pequenas
caravanas, que transportavam tecidos e metais preciosos. Arranjos

188
eram feitos pelos viajantes para viabilizar suas viagens, por meio de
associações religiosas ou redes comerciais, que ajudavam com as pa-
radas. Era relativamente seguro viajar por estas estradas, cuja segu-
rança era feita por autoridades locais, pelo menos nos dois primeiros
séculos do Império.
As grandes cidades da Ásia competiam por honras e status. Éfeso
era a capital, a residência do governador da província. Ela tinha rece-
bido já do primeiro imperador, Otávio Augusto, o direito de dedicar
um espaço sagrado para Roma e o Imperador. Outro tipo de honra
almejado pelas cidades envolvia o lugar em que os oficiais romanos
instalavam as cortes locais em suas viagens judiciais. Neste sentido, a
província era dividida em cortes distritais em torno de cidades desig-
nadas. No início do Império, estas cortes distritais incluíam Éfeso, Es-
mirna, Pérgamo, Sardes, bem como Alabanda, Adramiteum, Apamea,
Cibira, Sinada e Filomelium.
O Império Romano não tentou mudar o sistema democrático das
antigas cidades gregas, que possuíam seus concílios, magistrados e
assembleias de cidadãos. O Império era mais ou menos um amontoa-
do de comunidades autogovernadas.
Um aspecto, entretanto, marcou o período de governo dos Flávios,
inaugurado por Vespasiano, no ano de 69 (69-79), passando por Tito
(governou de 79-81), e terminando com Domiciano (governou de 81-
96). Estes imperadores incrementaram uma política de supervisão
sobre os governos locais de cada província, num processo de centra-
lização.
Estas mudanças administrativas fizeram com que núcleos urba-
nos da Ásia passassem a ser administrados mais como Roma do que
como uma polis grega. Os membros do conselho deveriam ter sua pró-
pria propriedade. O conselho se tornou permanente, não mais alvo
de eleição, tornando-se um corpo diretor. A assembleia dos cidadãos
passou simplesmente a confirmar aquilo que o conselho recomenda-

189
va. A administração direta ficava a cargo de três a cinco magistrados
executivos, que controlavam as receitas e despesas, implementando
decisões do conselho e da assembleia, e atuando como judiciário em
caso de desobediência às decisões.
Havia sete tipos de oficiais envolvidos na gestão de uma cidade:
- Um escriturário (grammateus) apresentava resoluções para a as-
sembleia, supervisionava a construção de estátuas, e atuava em ou-
tras pequenas atividades públicas;
- Um superintendente de mercado (agoranomos) supervisionava a
manutenção e a construção de prédios no mercado, estabelecia pre-
ços, controlava os pesos e medidas, observava o suplemento de co-
mida e óleo da cidade;
- Um superintendente de ruas (astynomos), cuidava das ruas da cida-
de, do saneamento básico e do suprimento de água;
- Um tesoureiro (tamias) fazia os pagamentos ordenados pelo con-
selho;
- Um juiz de paz (eirenarches) atentava para a lei e a ordem;
- Um xerife (parafylax) era responsável pelo território ao redor da ci-
dade, protegendo as terras e seus limites;
- Um advogado (ekdikos) atuava na defesa da cidade em disputas in-
ternas e externas, às vezes com o governo romano.
Esta administração se desenvolvia sob o sistema da patronagem.
Somente pessoas ricas poderiam ocupar cargos, pois não somente
deveriam ter riqueza suficiente para serem eleitos, como também
gastavam dos próprios bens na execução de suas atividades. Os ma-
gistrados eleitos pagavam por suas magistraturas, e ainda faziam do-
nativos para transportar grãos, pagar taxas imperiais, construir edifí-
cios e fazer estradas.
“Liturgia” era o termo usado para descrever tanto a doação livre

190
quanto a doação compulsória, em caso de magistratura. Duas das
mais importantes liturgias eram a manutenção do ginásio (gymna-
siarchia) e o subsídio aos festivais (agonothetes). O gymnasiarcha atu-
ava num dos mais importantes espaços de vida social de uma comu-
nidade romana, já que o ginásio não incluía apenas locais de banho
e sauna, mas também lugares para atividades físicas, para leitura e
lazer.
Os donativos de pessoas ricas formavam a mais importante fonte
de renda de uma cidade da Ásia. Mas havia outras fontes de receita.
As cidades cobravam taxas sobre o uso da terra, ou aluguéis, se era
parte do ager publicus. Outras receitas vinham de concessões para
mercados e exercício de manufatura no interior da cidade.
No campo das despesas das cidades da província, nenhum salário
era gasto com as magistraturas mais altas. Eram os escravos pessoais
dos magistrados que realizavam as tarefas regulares. Entretanto, pe-
quenos oficiais recebiam algum pagamento ou honorário. As maiores
despesas de uma cidade ficavam por conta de obras públicas, como
aquedutos, edificação de ginásios, mercados, estradas e templos.
As atividades de manufatura no interior das cidades da Ásia in-
cluem principalmente o trabalho com tecido. Podemos mencionar os
bordados de Lídia, os corantes vermelhos de Sardes, a lã negociada
em Tiatira e trabalhada em Laodiceia e Colossos, e o linho de Éfeso.
Além da manufatura de tecido, Pérgamo produzia pergaminho, cur-
tidores de couro trabalhavam em Tiatira, trabalhadores de prata e
ouro se concentravam em Esmirna. Com exceção da produção de
tecido, as demais atividades serviam basicamente às necessidades
locais e regionais.
Era difícil o transporte de grandes volumes, sendo mais prático o
trânsito do profissional com sua ferramenta para trabalhar a matéria
prima na própria região em vez de carregá-la de forma bruta. Traba-
lhadores deste tipo viviam em atividades itinerantes, movendo-se de

191
cidade em cidade.
Estas várias atividades de manufatura e comércio geravam opor-
tunidades para diversos ofícios, exercidos geralmente por pessoas
livres. O escravo atuava mais em atividades domésticas, como segu-
ranças pessoais, escriturários, secretários, funcionários públicos e
trabalhadores braçais. Outro lugar significativo da presença escrava
eram as minas e pedreiras. Os homens livres, por sua vez, envolvidos
em atividades de manufatura ou comércio, se organizavam em asso-
ciações vinculadas às suas específicas atividades. No final do primeiro
século, elas formavam uma significativa forma de organização social.

5.8 AS IGREJAS E A SOCIEDADE ROMANA


Durante o governo da dinastia Flávia, a gestão da Ásia foi marcada
pela recuperação econômica. A aclamação de Vespasiano se deu em
Alexandria, no dia 1 de julho de 69, sendo prontamente reconhecido
pelas províncias orientais. O novo imperador, viajando de navio, pa-
rou em várias cidades da costa da Ásia, onde oficiais locais fizeram os
juramentos habituais de fidelidade.
Após sua ascensão ao poder, Vespasiano encontrou o tesouro
imperial falido pelas guerras civis que se seguiram à morte de Nero.
Para restaurar as finanças públicas, ele adotou uma política econô-
mica que reduziu os gastos do governo, e procurou aumentar as re-
ceitas do estado, reorganizando o recolhimento das taxas públicas,
ou criando novas, como o fiscus Alexandrinus e o fiscus Iudaicus. Esta
segunda taxa passou a ser cobrada dos judeus, para substituir um im-
posto que os judeus recolhiam para subsidiar o Templo de Jerusalém,
recentemente destruído pelas legiões de Tito.
Uma mudança importante se deu na forma como as taxas impe-
riais eram cobradas. A cobrança saiu das mãos dos publicani para um
agente do governo liderado por um procurador em Roma e outro em
cada província. Posteriormente, Domiciano criou o oficio de curator

192
civitatis para ajudar cidades que tivessem dificuldades para gerir seus
recursos. Este processo de centralização financeira diminuiu a auto-
nomia da província, mas ajudou suas cidades.
Vespasiano buscou incentivar o desenvolvimento da Ásia Menor
promovendo melhorias no trânsito. Diversas estradas foram constru-
ídas após sua ascensão, como as duas que saiam de Pérgamo no ano
75. Uma descia na direção de Esmirna e Éfeso, margeando a costa.
Outra seguia pelo interior na direção de Tiatira e Sardes. Estas mes-
mas estradas foram restauradas posteriormente por Domiciano.
Além das vantagens para o comércio e a comunicação, o foco nas
estradas tinha também como objetivo facilitar o acesso para a região
oriental da Ásia Menor, e as fronteiras com o Império Persa no Eu-
frates. Por elas deveriam circular as legiões romanas e o suprimento
para as tropas. Mas não havia uma legião específica estacionada em
qualquer província da Ásia Menor. A defesa da região dependia intei-
ramente das legiões fixadas na Síria.
O governo de Tito deu sequência às políticas de seu pai, até que
em setembro de 81, após sua morte, ele foi sucedido por Domiciano.
Há um juízo tradicional negativo a respeito deste último imperador
da dinastia Flávia, como ilustrado pela opinião de Eusébio de Cesa-
reia (263-339):

Domiciano deu provas de uma grande crueldade para com muitos,


dando morte sem julgamento razoável a não pequeno número de
patrícios e de homens ilustres, e castigando com desterro fora das
fronteiras e confisco de bens a outras inúmeras personalidades
sem causa alguma. Terminou por constituir a si mesmo sucessor
de Nero na animosidade e guerra contra Deus. Efetivamente ele
foi o segundo a promover a perseguição contra nós, apesar de
que seu pai Vespasiano nada de mal planejou contra nós (História
Eclesiástica 3.17.1).

193
Este juízo se reflete também em comentários contemporâneos do
Apocalipse. Mesmo assim, as fontes históricas da época de João des-
crevem que a relação de Domiciano com a Ásia não foi diferente da
forma como seu irmão, Tito, e seu pai, Vespasiano, trataram a provín-
cia. A província se beneficiou com a gestão dos Flávios, que terminou
com a morte de Domiciano em setembro de 96, já que o imperador
não deixou herdeiro.
Durante as décadas da dinastia Flávia, a situação econômica da
Ásia se refletiu no volume de novas construções não apenas por meio
de recursos públicos, mas também através de subsídios de pessoas
ricas. Estas liturgias incluíam recursos para as edificações, para o re-
paro de construções, para a manutenção de centros sociais, e para
a realização de festivais. A cidade mais beneficiada no período foi,
possivelmente, a sede da província, Éfeso. Nela residia o procônsul da
cidade. O procurador, ou vice-procônsul, com alguma probabilidade,
também morava nela.
5.8.1 O MOVIMENTO DE JESUS NA PROVÍNCIA DA ÁSIA
As principais evidências da presença de cristãos nas cidades da
Ásia vêm de fontes do próprio movimento (Cartas de Paulo, Atos dos
Apóstolos, Cartas de Pedro, Apocalipse e Inácio de Antioquia). A mais
antiga referência a igrejas na região vem de cartas que Paulo de Tarso
escreveu para comunidades de discípulos de Corinto na década de
50. Ele estava em Éfeso enquanto escrevia estas cartas (1Coríntios e
2Coríntios). O autor anônimo do livro Atos dos Apóstolos também fa-
lou do tempo em que Paulo ficou em Éfeso. Segundo ele, Paulo ficou
na cidade por três anos (At 20:31).
Tanto as cartas aos Coríntios quanto Atos dos Apóstolos eviden-
ciam que na capital da província existiam outros líderes do movimen-
to. Paulo não era o único. Outros, como Áquila, Priscila e Apolo são
mencionados. Estes líderes eram artesãos independentes, oriundos
de comunidades judaicas da Ásia Menor. Isso se nota por meio de sua

194
mobilidade, sua ocupação e a hospedagem de igrejas em suas casas.
Pessoas com a mobilidade que eles possuíam deveriam possuir re-
cursos. Para acomodar pessoas, suas casas também deveriam ter ra-
zoável espaço. Não eram pessoas de classes inferiores.
Já nos tempos de Paulo se manifestou a questão da interação das
comunidades com a vida urbana da cidade, especialmente na ques-
tão da alimentação em atividades religiosas ou cívicas. Em cidades
gregas e romanas, as pessoas tinham várias oportunidades para par-
ticipar de refeições cúlticas. Isso poderia acontecer em ocasiões pú-
blicas (funerais, celebrações, festas cívicas etc.) ou privadas (clubes,
organizações comerciais, refeições privadas etc.). Tanto numa quanto
noutra situação, as refeições expressavam conexão social em torno
de causas comuns.
Fazer refeições públicas e comer carne oriunda de sacrifícios reli-
giosos são elementos diretamente ligados à questão da participação
nas instituições sociais da cidade e do Império. Este tipo de pressão
poderia ser diferente para status sociais distintos. Cristãos ricos te-
riam mais oportunidades de se envolver em refeições cúlticas de ca-
ráter público do que cristãos pobres.
Quando Paulo tratou deste assunto em 1Co 8-10, ele relacionou a
participação nas refeições com a situação dos “fracos e fortes” den-
tro da comunidade. Seu argumento caminha na direção de que so-
mente nos casos em que estratos diferentes da igreja de Corinto (for-
tes e fracos) participassem juntos, como em festivais públicos, é que
os cristãos deveriam se abster (1Co 8:7-13). Nas instâncias privadas,
poderiam participar e comer sem a necessidade de perguntar pela
origem da comida (1Co 10:27). As igrejas da Ásia provavelmente nas-
ceram a partir de mensagens e perspectivas semelhantes às de Paulo
de Tarso.
Cinco décadas depois de Paulo, entretanto, a situação histórica é
diferente. Por isso, o Apocalipse de João caminha em sentido diferen-

195
te às orientações dadas no tempo das cartas de Corinto. Os adversá-
rios de João descritos em sua obra, como os nicolaítas, baalamitas ou
Jezabel, possivelmente queriam manter as orientações paulinas de
forma estrita e continuarem a se relacionar com a sociedade romana
independe da circunstância.
De qualquer forma, o que esta questão das interações sociais nos
mostra é um tipo de perfil social do movimento de Jesus na região,
perfil esse que não parece ter mudado muito do tempo de Paulo até o
de João. As igrejas possuíam em seus quadros pessoas livres e escra-
vas, homens e mulheres, ricos e pobres, e deveriam se parecer com
muitas associações religiosas ou sociais que existiam na Ásia.
Paulo informa que “não muitos da comunidade eram sábios se-
gundo o mundo, nem poderosos, nem de nobre nascimento” (1Co
1:26). Dizer que não havia “muitos” significa afirmar que havia alguns.
Ou seja, entre os membros do movimento de Jesus na cidade havia
pessoas cultas (“sábia segundo o mundo”), ricas (“poderosos”) ou
bem-nascidas (“de nobre nascimento”). Segundo o argumento de
Paulo, estes formavam uma minoria dentro da comunidade. Suas
orientações, entretanto, reforçam a impressão de que constituíam
uma minoria dominante.
Uma carta que Paulo escreveu a Filemom, já na década de 60, no
período em que esteve preso em Roma, indica outro aspecto signifi-
cativo da composição destas comunidades. Filemom era proprietário
de escravos. Um deles, Onésimo, fugiu, encontrou-se com Paulo em
Roma, converteu-se ao movimento, e foi orientado a voltar para seu
antigo dominus, este também um convertido morador da Ásia. Uma
igreja se reunia na casa deste senhor de escravos (Fl 2). Não é possível
saber quantos escravos Filemom possuía, mas ele recebe a orienta-
ção de Paulo para que recebesse seu antigo escravo de forma amisto-
sa, não mais como escravo, e sim como alguém mais do que escravo.
O escravo agora deveria ser tratado como irmão. A regra doméstica
registrada na carta aos Efésios (Ef 6:5) especifica que os escravos de-

196
veriam obedecer aos seus senhores com temor e tremor. Isso indica
que as comunidades de Jesus tinham a presença de pessoas livres e
escravas, senhores e servos.
Outro testemunho de diversidade de posições sociais dentro das
comunidades da Ásia pode vir de uma carta que Plínio, o Jovem, es-
creveu em 112, enquanto atuava como governador da província da
Bitínia e Ponto, também na Ásia Menor. O quadro descrito por Plínio
parece ser bem parecido com a composição da igreja de Éfeso, ou
das demais cidades mencionadas no Apocalipse. Plínio resolveu tra-
tar deste assunto com o Imperador Trajano, porque entendeu que a
questão era digna de consideração imperial, em função do número
de pessoas que se engajavam no movimento. Estes “christiani” eram
de todas as idades, todas as ordens, tanto homens quanto mulheres
(Epístolas 10.96.8).
Outros elementos também podem iluminar o quadro social destas
igrejas da Ásia.
Primeiramente, o fato de alguns de seus membros escreverem li-
vros e cartas para serem lidas no interior do movimento indica uma
presença significativa de pessoas que sabiam escrever e ler numa so-
ciedade em que estas capacidades eram altamente valorizadas, mas
parcamente encontradas.
Um segundo aspecto pode ser encontrado naqueles que hospeda-
vam a comunidade em sua casa, os quais deveriam ter certa ascen-
dência sobre os membros do movimento. Possivelmente, eles agiam
como “patronos” da igreja, da mesma forma como outros patronos
da cidade suportavam clubes e associações comerciais.
Por fim, cristãos viajavam muito, num período em que viagens
eram muito custosas. Estas viagens eram financiadas geralmente por
atividades profissionais próprias, mas, em algumas circunstâncias,
como no caso de João de Patmos, algum tipo de patrocínio poderia
ser buscado entre as comunidades visitadas.

197
Com comunidades assim constituídas, de que maneira seus mem-
bros se relacionavam com a sociedade? Aparentemente, os membros
do movimento de Jesus da Ásia estavam inseridos na vida cotidiana
da província e não buscavam ruptura com seus vizinhos. Apesar da
dificuldade em situar geograficamente a origem ou o destino, escre-
vendo em meados do II século, o autor da carta a Diogneto resumiu:

Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem


por sua terra, nem por línguas ou costumes. Com efeito, não mo-
ram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm
algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por
eles, graças ao talento e especulação de homens curiosos, nem
professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo con-
trário, vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de
cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa,
ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida social ad-
mirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como
forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo
como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, e cada
pátria é estrangeira (Carta a Diogneto, 5.1-5).

Tertuliano, no final do II século, argumentou de modo semelhante


para a sociedade de Cartago ao escrever sua Apologia. Segundo ele,
os cristãos tinham a mesma maneira de vida, as mesmas roupas, e
os mesmos costumes; eles frequentavam juntos o mercado, o açou-
gue, os banhos públicos, as lojas, as fábricas, as tavernas, as feiras, e
outros negócios. Cristãos eram marinheiros, soldados, agricultores, e
se envolviam no comércio com não cristãos. Defendendo sua comu-
nidade, ele argumentou que eles proviam habilidades e serviços para
o benefício de toda a sociedade romana (Apologia 42).
Tanto a Carta a Diogneto quanto a Apologia de Tertuliano não di-
zem respeito específico à Ásia do final do primeiro século, mas pelo
menos indiciam as linhas gerais que alimentavam a interação social

198
no movimento de Jesus. Isso significa dizer que os seguidores de
Jesus procuravam viver suas vidas compartilhando das mesmas si-
tuações que os demais membros da sociedade romana. Eles tinham
contatos com pessoas de outros vínculos religiosos na economia, so-
ciedade, família e política. Os seguidores de Jesus tocavam suas vidas
de forma pacífica com seus vizinhos, tentando viver sem distúrbios,
ou mesmo chamar muita atenção.
Mas se os membros do movimento de Jesus, de uma forma geral,
tentavam manter laços regulares com a sociedade romana, o inverso
também poderia ser afirmado? Da parte dos governantes, geralmen-
te, havia certa tolerância para com costumes e mesmo divindades
locais, desde que não se opusessem aos interesses romanos. Esta ati-
tude de tolerância relativa deve ter favorecido o desenvolvimento das
igrejas. Muitas comunidades existiram sem serem notadas por quase
um século. Ações oficiais da parte dos procônsules, procuradores ou
outros magistrados locais, como as noticiadas por Plínio, o Jovem, ao
imperador Trajano no início do II século, eram raras.
Tensões se manifestavam, de forma intermitente, como persegui-
ções eventuais, mas normalmente não eram oficiais. As cartas de Plí-
nio indicam que o procedimento era novo e derivado de acusações
predominantemente vagas. Não havia um crime específico para o
processo contra os cristãos. O governador perguntou: “Há de punir-
se o simples fato de alguém ser cristão, mesmo que inocente de qual-
quer crime, ou exclusivamente os delitos praticados sob esse nome”?
(Epístola 10.96.2). Ainda assim, na dúvida sobre o que fazer, Plínio
inaugurou um teste:
Os que negarem ser cristãos, considerei-os merecedores de ab-
solvição. De fato, sob minha pressão, devotaram-se aos deuses
e reverenciaram com incenso e libações vossa imagem colocada,
para este propósito, ao lado das estátuas dos deuses, e, porme-
nor particular, amaldiçoaram a Cristo, coisa que um genuíno cris-
tão jamais aceita fazer (Epístola 10.96.5).

199
A província governada por Plínio era vizinha da Ásia e fazia par-
te do complexo cultural da mesma península. Ainda que o problema
principal não fosse o culto imperial, o gesto do governador colocou o
movimento em colisão com atividades religiosas locais. As Epístolas
do governador e as respostas de Trajano indicam que ambos enten-
diam ser crime renegar ritos sagrados locais, especialmente o culto
imperial.
Todas as sete igrejas do Apocalipse tinham manifestação do culto
imperial em algum nível: cinco delas tinham altares imperiais (com
exceção de Filadélfia e Laodiceia), seis tinham templos imperiais (com
exceção de Tiatira) e cinco tinham sacerdotes imperiais (com exceção
de Filadélfia e Laodiceia).
Além das práticas e sacrifícios religiosos nos templos e altares de-
dicados ao Imperador, sacerdotes imperiais promoviam festivais pú-
blicos que eram expressões religiosas e cívicas na Ásia. Estes festivais
poderiam acontecer em diversas datas, mas estavam normalmente
vinculados ao aniversário do Imperador. Durante as celebrações, os
templos e santuários eram enfeitados e animais eram sacrificados em
diversos altares espalhados pela cidade. Em cada local, a participa-
ção pública era aberta e esperada, tendo como clímax uma refeição
ritual.
Dentro dos templos imperiais, como em templos dedicados a ou-
tros deuses, havia estátuas do imperador vivo e de outros imperado-
res, alguma iconografia imperial e mesas para os diversos sacrifícios.
Estátuas do imperador também eram encontradas ao longo das cida-
des ou em centros da vida pública urbana. Nem todas as estátuas do
imperador encontradas nas cidades eram objeto de culto, mas aque-
las que estavam em um lugar sagrado ou quando usadas em um tem-
po sagrado (um festival religioso, por exemplo), tinham um significa-
do ritual. Estas estátuas e imagens tinham sentido religioso e político,
e funcionavam como um lembrete permanente, uma representação,
do poder do Imperador.

200
A forma generalizada como o culto imperial se manifestou na Ásia
fez com que a questão do relacionamento com a sociedade se tornas-
se significativo para o movimento de Jesus na província. Era difícil se
relacionar com a sociedade sem participar de alguma forma de suas
celebrações públicas. Para alguns líderes das igrejas da região, não
havia problema no envolvimento em atividades próprias da cidade, e
comer da comida oriunda dos sacrifícios religiosos. Se participassem
destas celebrações, diminuiriam a tensão com a sociedade e conti-
nuariam envolvidos nos diversos negócios da vida urbana. Alguns,
entretanto, como João de Patmos, possuíam uma perspectiva distin-
ta. Para ele, qualquer participação nesta rede de intimidade com a
sociedade seria abandonar o caminho de Jesus e abraçar a marca da
besta do Dragão.

201
CAPÍTULO 6
Aspectos Teológicos do Apocalipse de João
6.1 A LINGUAGEM DO APOCALIPSE
O Apocalipse fala de dragões e mulheres gigantes, de bestas e
águias, de anjos e livros comestíveis.
Fala bastante de Jesus, é verdade, mas se concentra no Jesus Glo-
rificado, descrito como o Filho do Homem ou o Cordeiro que morreu
e ressuscitou. Para falar de coisas desta natureza, a linguagem do
cotidiano tem suas limitações. Como descrever a glorificação de Je-
sus de Nazaré? Como descrever o trono em que assenta o Deus todo
poderoso? Como descrever seres sobrenaturais que povoam os céus?
Não temos nenhum objeto ou instituição humana em nossa realidade
para descrever algo que extrapola o que é natural. Como falar des-
tas coisas? Precisamos recorrer aos símbolos e imagens que, através
de analogia, querem explicar o que dificilmente pode ser explicado.
João faz isso. O resultado é uma obra repleta de símbolos e narrativas
simbólicas que precisam, em vários momentos, da ajuda do próprio
autor para serem interpretados.
O símbolo é a expressão mais apropriada para falar dos assuntos
que João se propôs a falar. Em termos amplos, a própria religião não
usa uma linguagem objetiva para se expressar. A linguagem da reli-
gião não é a língua da realidade, mas dos símbolos. São símbolos que
expressam uma relação experimentada com uma força transcenden-
te e a percepção que brota dessa relação.
Diante desse tipo de linguagem, é um equívoco entender os símbo-
los do Apocalipse de forma objetiva. Isso acontece quando um leitor

202
quer ver os símbolos usados para descrever a experiência de João em
coisas ou objetos reais. O resultado disso é a destruição do símbolo,
do sistema linguístico em que ele está inserido (a história que João
quer contar) e da mensagem por ele comunicada.
O Cordeiro que João vê não é um cordeiro de verdade. É o mesmo
Jesus que as igrejas aprenderam a adorar. A noiva do Cordeiro não é
uma pessoa. É uma cidade. Mais do que isso. É o povo de Deus que
se encontrará com seu Senhor no final dos tempos. Se alguém quiser
ver uma noiva de verdade se casando com um cordeiro de verdade,
não apenas se aproximará do divã de um psiquiatra, mas se afasta-
rá da mensagem que o profeta João queria deixar com sua narrativa
simbólica.
Quando um texto bíblico chama Deus de pastor de ovelhas não
está afirmando que ele é realmente um pastor, mas que há algo na
imagem do pastor de ovelhas que descreve a relação do salmista, ou
da comunidade que cantou o salmo, com seu Deus. Para quem nunca
viu um pastor de ovelhas, e nem sequer sabe o que é isso, essa figura
não representaria nem diria muita coisa. Neste caso, usualmente re-
corre-se a outros símbolos da realidade do grupo religioso em ques-
tão para descrever sua relação com Deus.
O que caracteriza a linguagem simbólica, de uma forma geral? Ela
não reflete, como se fosse um espelho, aquilo que os nossos sentidos
nos comunicam. Apesar de Paulo falar de um “velho homem dentro
de nós” (Rm 6:6), nenhum aparelho médico do mundo conseguiria
captar esse personagem dentro de alguém. Essa sua expressão é um
símbolo. Um símbolo de uma realidade que ele conhecia e não con-
seguia expressar de outra forma, porque era mais forte que ele, e lhe
parecia ser fora da realidade material, transcendente, mais que hu-
mano.
Assim, um símbolo é um elemento da realidade cotidiana (pode
ser um objeto, uma coisa ou até um acontecimento) que significa

203
algo além do seu sentido próprio. Apesar do significado dos símbolos
não ser único, e mudar dependendo do contexto, isso não significa
que quando João usou símbolos para descrever sua experiência com
Deus, ele queria dizer várias coisas ao mesmo tempo. O significado
do símbolo muda quando muda a experiência religiosa ou as pesso-
as que participam da religião, mas dentro da mesma experiência, ou
com as mesmas pessoas, o símbolo tem apenas um sentido, possivel-
mente para todas as pessoas que o usam naquele momento.
A revelação veio até João por meio de sinais. No verso inicial do
Apocalipse, João escreveu: “Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe
deu para mostrar aos seus servos as coisas que em breve devem acon-
tecer e que Ele, enviando por intermédio do seu anjo, notificou ao seu
servo João”. O termo traduzido nesta versão bíblica como “notificou”
é ESEMANEN, que poderia também ser vertido como “significou”, “si-
nalizou”, ou mesmo “transmitiu por meio de signos”.
O Apocalipse é descrito, então, como uma revelação por meio de
signos. Neste livro, as coisas não são o que seu significado imediato
indicaria. A leitura literal dos seus símbolos não é a mais apropriada.
Antes, uma coisa significa outra coisa. Por exemplo, a besta não é um
animal de verdade, mas uma pessoa ou uma instituição que persegue
os seguidores de Jesus; os 144.000 homens virgens que se reúnem
com Cristo não descrevem um ajuntamento misógino do final dos
tempos, mas uma referência simbólica aos seguidores de Jesus per-
seguidos pelas bestas.
Para descobrir o significado de um símbolo pode-se recorrer a
algumas fontes. A primeira fonte é a interpretação do próprio João.
Às vezes, o próprio João decifra um ou outro símbolo. Por exemplo,
na primeira visão de Jesus, João o vê como um filho do homem ca-
minhando no meio de sete candeeiros de ouro. Após descrever este
personagem impressionante, ele esclarece que cada candeeiro é uma
igreja (Ap 1:20). Em outras palavras, Jesus caminha no meio das sete
igrejas para as quais o Apocalipse seria dirigido. Jesus não estava lon-

204
ge demais para que não pudesse ver o que acontecia entre seus segui-
dores. Pelo contrário, estava bem no meio deles.
A mesma coisa acontece com o Dragão que aparece no capitulo
12. Para não deixar dúvida nenhuma sobre a identidade daquele ad-
versário assustador, o livro carrega nos títulos e epítetos: o dragão
vermelho que tentou destruir a criança e a mulher (Ap 12:1-5) é “... a
antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, que engana a todo o
mundo” (Ap 12:9).
Uma segunda fonte de interpretação dos símbolos do Apocalipse
está presente em textos e tradições religiosas judaicas. Há uma gran-
de rede de interconexões entre a obra de João e os antigos profetas
de Israel, apesar dele nunca fazer uma citação direta. A Bíblia hebrai-
ca, ou seja, o Antigo Testamento cristão, constitui uma excelente base
para a compreensão do Apocalipse.
No capítulo 12, no momento de identificar a criança que escapou
do Dragão, João o identifica como “um varão que há de reger todas as
nações com vara de ferro” (Ap 12:5). É uma referência direta ao Sl 2:9,
que também descreve um filho como alguém que “regerá as nações
com vara de ferro”. Originalmente um salmo real, foi posteriormen-
te lido de forma messiânica, como a descrever o messias e sua luta
contra as nações que se rebelariam contra Deus e seu Ungido. Não é
difícil perceber, então, que João, em Ap 12:1-5 descreve o nascimento
do próprio Jesus, mas de um jeito completamente diferente de qual-
quer um dos evangelhos. É um jeito simbólico de falar: o menino é o
Messias, é Jesus, que foi perseguido pelo Dragão, mas foi levado para
junto do Trono de Deus, possivelmente uma referência à ascensão.
Uma terceira fonte de interpretação dos símbolos está em obras
similares ao Apocalipse com as quais sua audiência seria familiar. Esta
audiência provavelmente teria a expectativa de certos significados
para imagens e símbolos semelhantes. Um determinado texto, qual-
quer que seja o seu gênero ou formato, é constituído a partir de uma

205
rede de referências a outros textos e tradições, só existindo como
parte dessa larga tradição. A importância disso para a compreensão
do Apocalipse está no fato de que a comunidade dos primeiros leito-
res e ouvintes do Apocalipse tinha o potencial para compreendê-lo
por causa do conhecimento que possuía de uma rede de significados
em comum. A função dessa rede de significados é guiar a audiência
para que compreendesse o texto de uma determinada perspectiva.
João não escreve para provocar confusão ou para ser misterioso. Ele
escreve para ser compreendido. E condições para isso aqueles leito-
res tinham.
Os livros parecidos com o Apocalipse de João vieram a ser deno-
minados pelos estudiosos de “apocalipses”. Muitos símbolos usados
por João podem ser interpretados com o recurso a outros apocalip-
ses judaicos, já que eles usaram uma linguagem bem similar. Estes
textos constituem, com seus elementos simbólicos, um idioma pró-
prio, frequentemente retendo o significado de símbolos utilizados
por outros apocalipses. Neste tipo de texto, é comum o recurso sim-
bólico a animais, cores e números. Assim, familiaridade com outros
apocalipses pode ajudar a interpretar o significado de alguns símbo-
los no Apocalipse de João. É como se eles possuíssem uma espécie de
significado padrão.
Estes parecem ser o significado simbólico de alguns números no
Apocalipse:
• 3 indica a ordem espiritual e celestial
• 4 indica a ordem criada, já que a terra tem quatro lados e quatro
direções
• 6 indica a imperfeição, já que aponta para a falha em atingir o 7, e do
humano, já que ele foi criado no sexto dia da criação
• 7 indica a perfeição, já que é a soma de 3 e 4
• 10 indica a totalidade

206
• 12 indica o povo de Deus, Israel, já que eram doze as tribos
• 3 e meio indica o mal, pois é a metade de 7
• Múltiplos e repetições indicam intensidade
Estes números são utilizados de várias formas no Apocalipse. Por
exemplo, o 666 é a tentativa frustrada do ser humano de atingir o 7, a
perfeição. Em contrapartida, o 6, que se esforça para ser 7, mas nunca
consegue, sugere a imperfeição humana. O temido 666 nada mais é
do que um homem imperfeito que deseja ser o que nunca conseguirá
ser: perfeito (Deus).
144.000 poderia ser entendido como 12 x 12 x 1000 (o número do
povo de Deus multiplicado pelo número da totalidade), indicando a
totalidade de Israel ou do povo de Deus. Múltiplas cabeças significam
múltiplos governos; vários chifres representam tanto o tamanho do
poder quanto a quantidade de reinos. Daniel, no Antigo Testamento,
está cheio destes símbolos.

6.2 A SEÇÃO DAS CARTAS (APOCALIPSE 1-3)


Vamos estruturar o Apocalipse acompanhando o desenvolvimen-
to de suas narrativas, dividindo-o em três seções principais, emol-
duradas por uma estrutura epistolar (os versículos 1:1-3 formariam o
prefácio; enquanto 22:6-21, a conclusão).
Sugerimos o seguinte esboço do livro:
- Introdução epistolar (1:1-3)
- Primeira seção - O Filho do Homem e as sete igrejas da Ásia (1:4-3:22)
• Carta à Igreja em Éfeso (2:1-7)
• Carta à Igreja em Esmirna (2:8-11)
• Carta à Igreja em Pérgamo (2:12-17)
• Carta à Igreja em Tiatira (2:18-29)
• Carta à Igreja em Sardes (3:1-6)

207
• Carta à Igreja em Filadélfia (3:7-13)
• Carta à Igreja em Laodiceia (3:14-22)

- Segunda seção - O rolo selado com sete selos (4:1-11:19)


• O culto ao Cordeiro (5:1-14)
• Selo 1 - Cavalo branco (6:1-2)
• Selo 2 - Cavalo vermelho (6:3-4)
Selo 3 - Cavalo preto (6:5-6)
• Selo 4 - Cavalo amarelo (6:7-8)
• Selo 5 - Os mártires debaixo do altar (6:9-11)
• Selo 6 - Juízo escatológico (6:12-17)
Interlúdio (7:1-17): 144.000 selados (7:1-8); Grande multidão (7:9-17)
• Selo 7 - Sete trombetas (8:1-11:19)

O anjo das orações (8:1-6)


• Trombeta 1 - Granito e fogo sobre a terra (8:8-7)
• Trombeta 2 - Mar se torna em sangue (8:8-9)
• Trombeta 3 - Estrelas tornam rios amargos (8:10-11)
• Trombeta 4 - Sol, lua e estrelas escurecem (8:12-13)
• Trombeta 5 - Gafanhotos sobem do abismo (9:1-12)
• Trombeta 6 - Quatro anjos e um exército matam pessoas (9:13-21)
Interlúdio (10:1-11.14): um livro para ser comido (10:1-11); as duas
testemunhas (11:1-14)
• Trombeta 7 - A chegada do reino de Deus (11:15-19)

- Terceira seção - A guerra escatológica (12:1-22:5)


• A origem da guerra (12:1-18)
• Os aliados do Dragão (13:1-18): a besta do mar (13:1-10); a besta da
terra (13:11-18)
• Os 144.000 guerreiros do Cordeiro (14:1-5)

208
• O anúncio dos três anjos (14:6-12)
• A bem-aventurança dos mortos (14:13)
• O juízo como uma ceifa (14:14-20)
• As sete taças da ira (15:1-16:21)
• Os mártires diante de Deus (15:1-8)
Taça 1: Dores nos marcados pela besta (16:1-2)
Taça 2: O mar se torna em sangue (16:3)
Taça 3: Os rios se tornam em sangue (16:4-7)
Taça 4: O sol provoca feridas (16:8-9)
Taça 5: Trevas no trono da besta (16:10-11)
Taça 6: A seca do Rio Eufrates e a coalizão do Dragão (16:12-16)
Taça 7: Juízo sobre Babilônia (16:17-21)

• A prostituta destruída (17:1-18)


• Hino fúnebre pela queda da Babilônia (18:1-24)
• Celebração no céu pela queda da Babilônia (19:1-4)
• O culto no céu anuncia as bodas do Cordeiro (19:5-10)
• A vitória do Jesus exaltado sobre as bestas (19:11-21)
• A prisão do Dragão (20:1-3)
• O reino messiânico milenar (20:4-6)
• A vitória do Jesus exaltado sobre o Dragão (20:7-10)
• O juízo final (20:11-15)
• A Nova Jerusalém (21:1-22:5)

- Conclusão epistolar (22:6-21)


As revelações que João recebeu na ilha de Patmos foram transmi-
tidas no formato de narrativas, no interior de três histórias distintas,
mas inter-relacionadas. A primeira história a ser narrada é a do apa-
recimento do Filho do Homem, que promove o ditado de sete car-

209
tas para um grupo de igrejas da Ásia Romana. Nestas cartas, a figura
celestial, conhecida das tradições de Daniel e 1Enoque, faz ameaças,
elogios e promessas, e termina cada carta com um convite para que
os leitores se aliem ao grupo dos vencedores. As mensagens das car-
tas giram em torno de distúrbios entre os próprios membros do movi-
mento de Jesus, por causa das diferentes posturas de relacionamen-
to com a sociedade romana em cada contexto local.
Na segunda seção do livro, o narrador das revelações é levado em
espírito por uma porta aberta no céu. Neste lugar, ele presencia uma
sucessão de atos litúrgicos, e é apresentado aos principais persona-
gens celestiais: o Ancião sobre o trono, os Quatro Viventes, os Vinte e
Quatro Presbíteros Celestiais e vários seres angelicais. A figura funda-
mental, entretanto, é descrita como o Cordeiro.
É Ele que recebe um rolo selado com sete selos, estratégia para
interpretar eventos e fenômenos históricos. A cada selo corresponde
uma revelação, até o sétimo que, por sua vez, se desdobra em outro
grupo de sete elementos, desta vez sete trombetas. Como os selos,
cada trombeta está relacionada com um evento, numa escala cres-
cente de intensidade, que culmina com a audição de um hino que co-
memora o reinado do Cordeiro e a abertura do santuário celestial.
A terceira parte do livro conta a história de uma guerra, que co-
meça quando uma figura demoníaca, o Dragão vermelho, fracassa no
seu propósito de destruir uma criança e sua mãe, sendo por isso ex-
pulso do céu para a terra. Sua reação é instaurar uma guerra contra
outros filhos da Mulher por meio do levantamento de duas bestas. Em
contrapartida, o Cordeiro reúne seu exército, convocando 144.000
guerreiros dispostos a lutar até a morte. O confronto resulta no nú-
mero determinado de mártires necessários para instaurar a interven-
ção escatológica de Deus, na forma de sete taças de ira. Após o derra-
mamento das taças, Jesus, agora como um cavaleiro celestial, desce
do céu com uma hoste de anjos para derrotar o Dragão e seus aliados.

210
Num primeiro ato, as bestas são lançadas num lago de fogo, todo
o exército adversário é morto e o Dragão é aprisionado por mil anos.
O segundo ato coloca fim à guerra, quando o Dragão é novamente
solto, somente para ser vencido e lançado no mesmo espaço de juízo
onde já estavam as duas bestas. Entre os dois atos, a narrativa apre-
senta o reino messiânico, com a participação da figura exaltada de
Jesus e os mártires ressuscitados, agora como reis e sacerdotes de
Deus. Com o fim do milênio e da guerra escatológica, o autor do Apo-
calipse descreve o fim da história, marcada pelo juízo final e a chega-
da da Nova Jerusalém.
6.2.1 A REVELAÇÃO DAS SETE CARTAS
Na saudação encontramos uma série de sentenças que lembram
bastante um culto em uma configuração trinitariana: Deus, Espírito e
Jesus (Ap 1:4-5). Se Deus e Jesus aparecem claramente, os Sete Espí-
ritos seriam uma forma simbólica de falar do Espírito Santo de Deus.
Como já sugeri, o número sete não é usado como uma formulação
matemática, mas como um símbolo. Neste caso, é um símbolo para a
plenitude ou para a perfeição. Quanto o Apocalipse descreve sua au-
diência como sete igrejas, significa que deseja alcançar uma totalida-
de divina, ou seja, o conjunto da igreja inteira. Se o público imediato
do Apocalipse estava relativamente perto da ilha de Patmos, a obra
de João tinha um público mais amplo: todas as igrejas de Cristo. Elas
descrevem, num primeiro nível, as igrejas para as quais o Apocalipse
se dirigia, mas, num nível dinâmico, também descrevem igrejas de to-
das as épocas, inclusive a nossa própria. Todas elas estão sendo ana-
lisadas pelo próprio Jesus Cristo e recebem dele um recado direto.
João diz que a sua visão ocorre no “dia do Senhor” (Ap 1:10). Esta
expressão pode ser lida em dois sentidos. Num primeiro momento,
refere-se ao dia em que as igrejas se reúnem para adoração. Isso po-
deria ser evidenciado pela Didaquê, um documento escrito um pou-
co depois do Apocalipse de João: “Reuni-vos no dia do Senhor para

211
a fração do pão e agradecei, depois de haverdes confessado vossos
pecados, para que vosso sacrifício seja puro” (Did 14.1). Este “dia do
Senhor” era o dia em que Jesus teria ressuscitado.
Numa segunda leitura, entretanto, o dia do Senhor é uma expres-
são tradicional para se referir ao dia da intervenção final de Deus.
Acompanhe estas outras aparições do referido dia:
- “O sol se converterá em trevas, e a lua, em sangue, antes que venha
o grande e glorioso Dia do Senhor” (At 2:20);
- “Entregue a Satanás para a destruição da carne, a fim de que o espí-
rito seja salvo no Dia do Senhor” (1Co 5:5);
- “Pois vós mesmos estais inteirados com precisão de que o Dia do
Senhor vem como ladrão de noite” (1Ts 5:2);
- “A que não vos demovais da vossa mente, com facilidade, nem vos
perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola,
como se procedesse de nós, supondo tenha chegado o Dia do Se-
nhor” (2Ts 2:2);
- “Virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus pas-
sarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasa-
dos; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas” (2Pe
3:10).
A construção “dia do Senhor”, no contexto do Novo Testamento,
parece ser um termo técnico para descrever o dia da volta gloriosa
de Cristo. Com sua menção, então, João simultaneamente olha para
o passado (dia da ressurreição de Jesus), para o presente (dia em que
os irmãos se reúnem para cultuar o Cordeiro que foi morto e ressusci-
tou) e para o futuro (dia em que Deus intervirá na história através do
retorno glorioso de Cristo).
A base da adoração das igrejas está no passado, no ministério de
Jesus, mas esta adoração, no presente das igrejas, é uma forma de se
apropriar da vitória escatológica de Cristo.

212
Após descrever o Filho do Homem em termos bem impressionan-
tes (Ap 1:13-16), João registra no seu Apocalipse as cartas para as
sete igrejas. A carta de Éfeso é dominada por temas da história do
Éden (árvore da vida e paraíso de Deus). Esmirna é uma carta de vida
e morte. A Igreja de Pérgamo é chamada para um confronto. Tiatira
precisa se fortalecer. Sardes é exortada a buscar paciência. Filadélfia
é alertada com as imagens da porta aberta e do pilar do templo. Lao-
diceia, por sua vez, encerra o ciclo de cartas. Seus membros deveriam
entender o que era realmente importante para Deus.
Com exceção de Sardes, todas as cartas apresentam evocações de
momentos diferentes da história do povo de Deus do Antigo Testa-
mento: Em Éfeso, criação; em Esmirna, Êxodo; em Pérgamo, deserto
e conquista da Terra Prometida; em Tiatira, o templo e em Laodiceia,
o exílio.
Nas cartas do Apocalipse conseguimos perceber dois tipos de opo-
sição. Uma é interna. A outra é externa. Sobre a oposição externa, de
um lado estariam aqueles ligados ao judaísmo. Seriam os que “se di-
zem judeus, mas não o são”, expressão que implica que eles deveriam
fazer parte de um grupo de judeus da Ásia. Para o autor de Apocalip-
se, eles não eram verdadeiros judeus, mas “sinagoga de Satanás” (Ap
2:9; 3:9). Do outro lado, também como elemento adversário externo,
pode-se perceber o contexto social mais amplo, que provocou a mor-
te de Antipas (Ap 2:13), prenderá outros, e levará muitos à morte den-
tro em breve (Ap 2:10). Este contexto será descrito como a besta, que
persegue e mata quem se recusa a adorá-la (Ap 11:7; 13:7-8; 14-17).
Esse adversário transparece no Apocalipse como o Império Romano
e sua estrutura social, política e religiosa.
Subjacentes aos rótulos da oposição interna (os balamitas e nico-
laítas de Pérgamo, Jezabel e seus seguidores em Tiatira, e os falsos
apóstolos de Éfeso) parecem estar pessoas que ocupavam posição de
liderança dentro das igrejas nas quais estavam inseridos. Aparente-
mente, os líderes das igrejas não estavam de acordo quanto à forma

213
de conduzir os fiéis nas suas relações com este contexto social mais
amplo.
Como resposta às pressões do Império Romano sobre as igrejas
através da prática do culto ao Imperador, alguns líderes e suas igre-
jas assumiram uma atitude mais aberta para com a sociedade e com
suas demandas religiosas, pretendendo, com isso, uma coexistência
pacífica. Eles acreditavam que participar de uma solenidade religio-
sa para o Imperador não era uma agressão ao senhorio de Jesus.
João, entretanto, ficou do outro lado. Sua visão profética da situação
descreve estes líderes como instrumentos diabólicos para afastar as
igrejas do caminho do Cordeiro. Para tanto, ele provê uma visão que
convoca para uma nova avaliação do presente e uma resposta para o
futuro.

6.3 O CULTO NO CÉU (APOCALIPSE 4-5)


A estrutura do Apocalipse apresenta a segunda seção como um
grande culto no céu. João subiu por uma porta aberta no céu (Ap 4:1)
e presencia grandes e impressionantes atos de culto.
Nesta seção ele descreve o trono divino e testemunha uma exten-
sa liturgia, recheada de hinos. Ainda dentro do espaço deste culto ce-
lestial, o visionário chora quando ouve falar de um rolo que ninguém
poderia abrir. Mas logo foi confortado por um dos membros da litur-
gia celestial, que revela para ele que o Leão da tribo de Judá pode
fazê-lo. A figura messiânica, porém, se manifesta para João como
um Cordeiro, que abre os selos um por um. Assim que cada selo é
removido, uma cena dramática é testemunhada, tendo como clímax
o sétimo. Quando o sétimo selo foi aberto, iniciou-se uma série de
sete trombetas. Somente após o toque da sétima trombeta é que a
seção do culto celestial parece terminar. Sua conclusão é doxológica,
com a declaração de que o reino do mundo se tornou do Senhor e seu
Cristo. A seção inteira foi narrada para inspirar a adoração e o culto.

214
No momento de definir o tempo em que recebeu as revelações, o
visionário explicitamente faz menção do “dia do Senhor”. João situa
sua obra no dia em que as comunidades se reuniam para cultuar. Se
existisse em Patmos um grupo de adoradores, pode ter sido durante
um de seus encontros, ou seja, durante um culto, que João experi-
mentou sua visão inaugural.
O Apocalipse está cheio de hinos e fragmentos de hinos: o tríplice
santo (Ap 4:8); as três canções cantadas para Deus ou o Cordeiro, os
únicos dignos de serem adorados (Ap 4:11; 5:9-10; 5:12); as três doxo-
logias (Ap 5:13; 7:12; 16:5-7); os sete hinos de vitória (Ap 7:10; 11:15;
11:17-18; 12:10-12; 15:3-4; 19:1-2; 19:6-8); o hino fúnebre pela queda
da Babilônia (Ap 18); uma exortação para louvar a Deus que é tam-
bém um hino (Ap 19:5).
Estes elementos parecem demonstrar, assim, não só a importân-
cia da liturgia para o Apocalipse, mas apontar o culto como o contex-
to vital da obra.
Mergulhado nesta atmosfera, o livro de João foi produzido para
ser recitado num culto. Suas expressões litúrgicas, quer compostas
por João, quer adaptadas dos cultos de suas comunidades, não ape-
nas comunicariam uma revelação, mas cantariam a forma como os
crentes se viam no mundo.
De forma quase linear, os hinos e as expressões de culto do Apoca-
lipse descrevem a derrota do mal como já ocorrida, o reino como já
estabelecido, o Cordeiro como governante e digno de adoração, Deus
como o rei supremo sobre todo o mundo.
O culto celestial é um evento presente. E não apenas presente, mas
paralelo ao culto das igrejas na terra. Nos cultos das comunidades de
seguidores de Jesus, o Cordeiro já pode ser declarado vitorioso, seu
Reino já pode ser percebido como realizado. No contexto do culto, se
dá a escatologia realizada do Apocalipse, onde todos os elementos do
reinado de Jesus já se mostram efetivamente estabelecidos.

215
É no espaço da liturgia que a experiência de vitória dos “santos” é
experimentada. Mesmo as narrativas de conflito do Apocalipse foram
inspiradas num contexto litúrgico. Cultuar e resistir são, no Apocalip-
se, como dois lados de uma mesma moeda. Um é parte inerente do
outro. Se no seu cotidiano o santo ainda luta, no contexto da adora-
ção, ele já é vitorioso como seu Senhor exaltado.
Os hinos do Apocalipse e suas cenas litúrgicas celebram o que na
narrativa da guerra escatológica ainda estaria por vir. Se no plano
temporal, o reino de Deus é um evento futuro, no contexto litúrgico
é uma realidade presente. E não é presente apenas porque se dá no
espaço do culto celestial, mas porque já pode ser experimentada pe-
los crentes que ainda não morreram. O culto celestial é um espaço no
qual eles já acessam, e neste espaço, o fim já chegou. O Cordeiro já
reina e seus seguidores reinam com Ele.
No aspecto pragmático, o visionário deseja que sua audiência par-
ticipe já no seu presente deste culto e deste reino. O grande tema do
culto que João vê no céu é a soberania de Deus, através de Jesus Cris-
to, consumada sobre o mundo e na história. O culto já se desenrola
antes do visionário chegar ali, mas ele o descreve como se estivesse
no início, neste caso, um ato litúrgico completo.
6.3.1 A VISÃO DA CORTE CELESTIAL (APOCALIPSE 4-5)
Nesta seção do Apocalipse, o contexto se altera. Agora, a cena
se passa na realidade celestial. João subiu por uma “porta aberta
no céu” e presenciou um grande e impressionante culto a Deus e ao
Cordeiro. A percepção de que tudo o que está dentro desta seção é
revelado durante um culto no céu é importante para compreender
seu conteúdo. Se você observar com atenção, a seção abre (Ap 4:11)
e fecha (Ap 11:15-19) com adoração, tanto Àquele que se assenta no
trono, quanto ao seu Cristo.
Novos personagens aparecem nesta seção. Deus é descrito como
um ancião sentado sobre um trono. Além dele, João vê quatro seres

216
viventes, vinte e quatro anciãos e muitos seres angelicais. Jesus, que
já aparecera antes na forma do Filho do Homem, agora é descrito
como um cordeiro com aparência de ter sido morto, com sete chifres
e sete olhos. São imagens que devem ser menos entendidas e mais
sentidas. Chifres e olhos têm a ver com a presença do poder de Deus
e do Espírito de Deus. Mas de onde vem a imagem do Cordeiro?
Esta imagem tem analogia com o sacrifício e a morte. Esta é a pri-
meira vez que o Cordeiro aparece no Apocalipse, mas, a partir daqui,
dominará o restante da obra. O termo Cordeiro aparece no Novo Tes-
tamento 30 vezes; destas, apenas uma ocorrência está fora do Apo-
calipse.
Das trinta ocorrências, uma delas está no plural (Jo 21:15), fazendo
referência à comunidade de seguidores de Jesus como “cordeiros”. As
demais estão no singular. Com exceção de Ap 13:11, que aponta para
a besta que subiu da terra, as outras se referem ao mesmo persona-
gem que abre os selos e vencerá a guerra contra o Dragão e as bestas.
Uma passagem significativa para estudar o significado de cordei-
ro no Apocalipse está no Antigo Testamento, especificamente numa
profecia de Jeremias: “Eu era como manso cordeiro, que é levado ao
matadouro; porque eu não sabia que tramavam projetos contra mim,
dizendo: Destruamos a árvore com seu fruto; a ele cortemo-lo da ter-
ra dos viventes, e não haja mais memória do seu nome” (Jr 11:19). O
profeta fala de si mesmo como um cordeiro que é levado mansamen-
te para a morte. A passagem mais próxima de Jeremias é Is 53:7: “Ele
foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi
levado ao matadouro; e, como ovelha muda perante os seus tosquia-
dores, ele não abriu a boca” (Is 53:7). O relato de Is 53 sobre o “servo
sofredor” foi aplicado pelos seguidores de Jesus de diversas formas
para falar de seu ministério e de sua morte (Lc 22:37; At 8:32-33; 1Pd
2:22).
É exatamente essa perspectiva que João evoca quando descreve

217
Jesus como um Cordeiro. Ele é o Messias pelo caminho do sacrifício.
Entretanto, João reinterpreta a tradição, ampliando-a.
No livro de Apocalipse, o Cordeiro:
- É aquele que morreu e ressuscitou (Ap 5:6);
- É adorado pelas figuras celestiais (Ap 5:8, 12, 13);
- É o que tem o poder de revelar os eventos celestiais (Ap 6:1);
- É o que julgará todas as pessoas (Ap 6:16, 7:17), pois possui o Livro
da Vida (21:27);
- É o que lavou as vestes dos “santos” com seu próprio sangue (Ap 7:9,
10, 14);
- É o que vence o Dragão em função do seu sangue (Ap 12:11);
- Reúne um exército sobre o monte Sião (Ap 14:1, 4);
- Vencerá as bestas como um guerreiro celestial (Ap 17:14);
- Se casará com sua noiva, a Nova Jerusalém (Ap 19:7, 9; 21:9);
- Possui 12 apóstolos, o que o identifica diretamente com a figura de
Jesus (Ap 21:14);
- Iluminará a Nova Jerusalém (Ap 21:23);
- Reinará ao lado do trono de Deus (Ap 22:3).
A imagem do cordeiro sacrificial, então, sofre acréscimos no Apo-
calipse, fazendo referência não apenas ao sofrimento e a morte. Ela
recebeu elementos de vitória, reinado, poder e glória. O tema do Cor-
deiro que vence pelo sangue perpassa todo o Apocalipse através de
imagens combinadas de leão e ovelha, cordeiro ensanguentado e Pa-
lavra de Deus vestida de sangue (Ap 19:13).
João também usa as imagens de Leão de Judá e raiz de Davi (Ap
5:5) para descrever Jesus. O Leão foi usado como símbolo de poder
no mundo antigo (Pv 30:30) e se tornou associado com o trono de

218
Davi através da caracterização de Judá (Gn 49:9). A raiz de Davi é me-
táfora para a linhagem de Davi (Is 11:10), e se tornou um símbolo da
restauração da monarquia davídica (Jr 23:5).
Esta é a linguagem da tradição judaica que vê o estabelecimento
do reino de Deus como um ato de poder. Mas esta não é a perspectiva
de João, que inverte a imagem. O leão se torna cordeiro. Os atos de
conquista desta história são obra de um cordeiro como tendo sido
morto, e não de um leão que estraçalha e destrói o que encontra com
a força dos dentes e das garras.
Nesta fase inicial do culto, a ênfase está realmente na descrição
dos personagens. Os principais, como seria de se esperar entre os se-
guidores de Jesus, são exatamente a pessoa de Deus e seu Ungido
Jesus Cristo. No capítulo 4 de Apocalipse, Deus é adorado de várias
maneiras pelos seres celestiais. Ele é adorado em função, principal-
mente, de seus atos criadores. Deus criou o mundo, e isso o torna dig-
no de ser adorado por todos os seres vivos.
No capítulo 5, por sua vez, a adoração se dirige para Jesus. Ele é
digno de ser adorado porque, segundo os vinte e quatro anciãos e os
quatro seres viventes, morreu, e com seu sangue comprou pessoas
de todas as nações, constituindo-as reino e sacerdotes para Deus (Ap
5:9-10). Os mesmos seres que adoram a Deus no capítulo 4, agora se
rendem em adoração ao Cordeiro de Deus.

6.4 OS SETE SELOS DO APOCALIPSE (APOCALIPSE 6-11)


Um aspecto que precisa ser destacado na estrutura do Apocalipse
é sua linearidade. Após quebrar os sete selos, a visão insere no últi-
mo uma nova série, desta vez de sete trombetas. As trombetas estão
dentro do sétimo selo, como uma espécie de prolongamento dos de-
sastres finais. Ambas as séries, entretanto, sofrem uma interrupção
dramática entre o sexto e o sétimo elemento da sequência. Após o
sexto selo, o visionário interrompe a narrativa para apresentar o povo

219
de Deus na forma de 144.000 homens selados na terra e uma grande
multidão no céu. Após a sexta trombeta, João conta a história do livro
que ele precisou comer e das duas testemunhas martirizadas.
Só depois destas pausas narrativas, ou interlúdios, como alguns
autores gostam de chamar, é que o Apocalipse retoma as séries, com
o sexto selo e a sétima trombeta, respectivamente. Estes intervalos
parecem ter algumas funções básicas no livro.
Primeiramente, ao interromper a série, eles criam uma expectati-
va pela chegada do sexto selo e da sétima trombeta, como uma espé-
cie de anticlímax.
Em segundo lugar, eles podem fornecer tantas antecipações de
eventos que João ainda vai apresentar no livro (como os 144.000, que
voltam a aparecer em Ap 14:1-5), como também recapitulações de
elementos que ele já apresentou (como a nova narrativa de sua voca-
ção profética em Ap 10:8-11).
Com isso, estas interrupções na cena dos selos e trombetas ser-
vem para explanar, elaborar, revisar e interpretar o que João narrou
e o que ele ainda vai narrar. É muito importante, então, não inserir
estas pausas na cronologia dos eventos que João narra, pois elas não
foram apresentadas para isso.
Voltando ao assunto dos selos, eles parecem descrever ou inter-
pretar o sofrimento humano diante das dores de parto dos últimos
dias. É assim que formam uma sequência dentro da história humana:
- Selo 1: Conquista
- Selo 2: Guerra
- Selo 3: Fome
- Selo 4: Morte
- Selo 5: Mártires serão justiçados
- Selo 6: O fim.

220
Os quatro primeiros selos estão claramente interrelacionados. O
quinto selo parece ser consequência dos quatro primeiros selos, en-
quanto o sexto selo vem após se completar o número de mártires
descritos no selo de número cinco.
Os quatro cavaleiros que aparecem quando os primeiros selos são
quebrados representam uma consistente série de elementos pre-
sentes na história humana. O primeiro cavaleiro evoca traços de um
general romano e um rei Parta. Desta forma, o Apocalipse critica os
símbolos da conquista romana, mostrando uma série de desastres:
guerra, fome e morte. A sequência lógica se repete continuamente
numa acentuação contínua de geração em geração: conquista, guer-
ra, fome e morte.
João não meramente descreve a história, mas quer interpretá-la
profeticamente. É assim que ele insere os dois próximos selos. O selo
cinco descreve um grupo de crentes mortos debaixo do altar. Eles cla-
mam por justiça, e lhes é garantido que a vitória já está garantida.
Eles só precisam esperar que se completasse o número de seus ir-
mãos que “iam de ser mortos como igualmente eles foram” (Ap 6:11).
Esta cena permite entender que o que poderia ser considerado uma
morte injusta neste plano histórico, é um sacrifício debaixo do altar
no outro mundo.
O selo seguinte é típico de descrições apocalípticas do fim do mun-
do, e se aproxima consideravelmente dos desastres escatológicos
descritos no Sermão Profético de Jesus em Mc 13. Estas catástrofes
simbolizam que o universo se contorcerá na direção do rompimen-
to de Cristo nos ares. Perceba que são descrições simbólicas. Lite-
ralmente, o sol não cairia na terra porque ele é maior do que nosso
planeta. O mesmo pode ser dito a respeito de qualquer outra estre-
la que, na narrativa apocalíptica, são vistas despencando do céu na
direção da terra. A mensagem que estas visões descrevem é que a
realidade, como nós a conhecemos atualmente, será descontinuada
após a intervenção final de Deus. Mas não será uma descontinuidade

221
completa, já que alguns elementos ainda serão preservados na nova
realidade posterior ao juízo final.
6.4.1 A PRIMEIRA PAUSA NARRATIVA: O POVO DE DEUS (APOCALIPSE 7:1-17)
A primeira pausa narrativa do Apocalipse descreve o povo de Deus,
e o faz de duas formas. Na primeira parte do texto, na forma de 144
mil homens, os santos protegidos na terra. Na segunda parte, uma
grande multidão no céu, os santos já mortos no céu. É importante
destacar alguns aspectos novamente.
Primeiro, há um grande esforço em caracterizar, maior do que em
descrever ações ou eventos. Veja como o texto gasta espaço para ca-
racterizar os 144.000 mil, com quase nenhuma ação narrativa em tor-
no deles.
Segundo, todo o livro é altamente repetitivo. Diferentes cenas
apresentam o mesmo ponto de vista várias vezes. O povo de Deus,
descrito como um conjunto de 144.000 mil homens, aparecerão nova-
mente reunidos em torno do Cordeiro sobre o Monte Sião (Ap 14:1-5).
A ordem natural de uma narrativa é começar no seu início e cami-
nhar na direção do final. Há uma disposição de progresso de eventos
e de personagens. Mas mesmo esse tipo de história admite anacro-
nismos, geralmente de dois tipos: flashbacks ou revisões, quando o
leitor lê novamente sobre eventos que já foram apresentados ante-
riormente; ou antecipações (os estudiosos gostam de usar o termo
prolepse), quando o leitor lê sobre coisas antes que elas sejam apre-
sentadas formalmente.
Na parte inicial do capítulo, João descreve um anjo que subia do
nascente do sol, tendo o selo de Deus. Ele ordena que nenhum dano
fosse trazido sobre a terra até que os servos de Deus fossem selados.
Eles são 12.000 mil de cada uma das 12 tribos de Israel. A natureza
simbólica deste grupo pode ser notada principalmente pelo fato de
que a lista de tribos apresentada por João não é equivalente a qual-

222
quer outra conhecida do Antigo Testamento ou de outras tradições
judaicas. Estes 144.000 estão descritos como convocados para uma
batalha. Eles foram chamados a se envolver num confronto ao lado
de Deus. Após o censo, foram selados, o que poderia indicar, no con-
texto da imagem, proteção e pertença.
Logo após descrever os 144.000 marcados de Deus, João descre-
ve uma grande multidão em pé diante do trono e do próprio Cordei-
ro, formada por pessoas de todas as tribos, povos e línguas, todos
salvos por Jesus. A visão dos 144.000 e a multidão inumerável forma
um paralelo com a descrição de Cristo como o Leão e como Cordeiro
(Ap 5:5-6). Há outra maneira de ver esta imagem do povo de Deus.
144.000 é uma composição simbólica (12 x 12 x 1000). Levando em
conta que 12 eram as tribos de Israel e 12 foram os discípulos de Je-
sus, a construção poderia estar apontando para o conjunto do povo
de Deus que ainda luta aqui na terra. Dito de outra forma, os 144.000
seria equivalente simbólico das igrejas na terra, enquanto a grande
multidão seria um equivalente da grande igreja universal no céu.
6.4.2 O SÉTIMO SELO, OU AS TROMBETAS SOBRE A HUMANIDADE IMPENITENTE (APO-
CALIPSE 8-9)
O sexto selo descreve simbolicamente a intervenção escatológi-
ca de Deus. Ele amplia e alonga sua descrição do final. É um fim ex-
pandido, que começa no sexto selo e se arrasta pelas sete trombetas
(lembro a você que as sete trombetas formam o conteúdo do sétimo
selo). Algumas coisas sobre as trombetas poderiam ainda ser ditas:
seus flagelos são limitados, não destruindo por completo a terra. Elas
reconstroem as pragas do Egito, e com isso simbolizam que Deus está
castigando os opressores do seu povo, enquanto protege os seus. Afi-
nal, eles foram marcados na terra, que é um símbolo de proteção e
pertença. Por fim, as trombetas formam um estreito paralelo com as
taças que virão a ser despejadas sobre a terra a partir do capítulo 16.
A estrutura das trombetas e taças é a mesma, indicando que ambas

223
as sequências descrevem os mesmos eventos dentro da narrativa do
fim dos tempos. A história que João conta aqui com as trombetas
será contada novamente através das sete taças dos sete anjos.
6.4.3 A SEGUNDA PAUSA NARRATIVA: O PROFETA, O LIVRO E O POVO DE DEUS PERSE-
GUIDO (APOCALIPSE 10:1-11,13)
Como a pausa anterior, esta também é formada por mais de uma
cena.
A primeira descreve a vocação de João. Alguns comentaristas
acreditam que é uma outra forma de descrever a mesma vocação que
ele já narrara no capítulo 1, quando recebeu a incumbência de escre-
ver para as sete igrejas. Aqui, entretanto, a vocação tem um alcance
mais amplo. João é chamado para falar para “povos, nações, línguas
e reis” (Ap 10:11). É uma cena inspirada na vocação de antigos profe-
tas de Israel, que também precisaram comer um livro recebido de um
ser celestial. Ainda no contexto da sua vocação, João precisa medir
simbolicamente o santuário, no que talvez seja uma referência à des-
truição do templo pelos romanos na guerra judaico-romana de 66-70.
A segunda cena descreve a morte das duas testemunhas. Esta é
uma das passagens mais enigmáticas do Apocalipse. Muitos exposi-
tores do livro entendem que ela é uma referência literal a eventos que
se darão no final dos tempos. Com isso, eles a inserem na estrutu-
ra cronológica da narrativa. Como já argumentei anteriormente, as
pausas não devem fazer parte da sequência natural da história que
João conta no seu livro. Seguindo essa linha de raciocínio, as duas
testemunhas não serão figuras históricas que se manifestarão entre a
sexta e a sétima trombeta. Acredito que faz mais sentido entendê-las
como uma descrição proléptica do povo de Deus durante a persegui-
ção das bestas, cena que se desenrolará no capítulo 13 de Apocalip-
se. Inseridas no contexto das trombetas como uma pausa narrativa,
a cena das duas testemunhas parece ser uma antecipação de eventos
que João ainda iria narrar dentro do seu livro.

224
A besta que surge nesta cena é claramente a besta do capítulo 13,
mas aqui ele não a apresenta. Ela surge do nada na narrativa. Talvez,
enquanto ouviam o texto pela primeira vez, seus ouvintes se pergun-
tariam nesta hora: “que besta é essa? De onde ela veio? Por que ela
persegue as testemunhas de Deus”? João explicará estas coisas com
propriedade a partir do capítulo 13, na terceira seção do Apocalipse.
Em suma, as duas testemunhas representam os santos perseguidos
e martirizados pelas bestas. Da mesma forma que as duas testemu-
nhas foram levadas por Deus para o céu, os crentes que morreram
também irão. A morte, então, não representa suas derrotas.
6.4.4 A SÉTIMA TROMBETA: A CONSUMAÇÃO DO REINADO DE CRISTO (APOCALIPSE
11:15-19)
Finalmente, chega a sétima trombeta. Com ela se encerra também
a revelação do livro selado. E o que João viu no final desta revela-
ção? Apesar de todas as dificuldades e perseguições, não há qualquer
possibilidade para Cristo ser derrotado. Seu reino será estabelecido e
consumado sobre a história humana
A seção começou com adoração e terminará do mesmo jeito. Gran-
des vozes no céu cantaram a vitória de Deus e seu Ungido. Chegou a
hora do juízo final. A Bíblia está repleta de cenas deste juízo. João,
entretanto, não se detém a descrevê-lo. Sua preocupação com a ado-
ração é tão grande que ele termina esta história da intervenção final
de Deus com o canto de vitória. A forma como ela se concretizará não
aparece aqui. Mas não precisa. O principal já está declarado: chegou
o tempo de galardoar os que temem o nome de Deus.

6.5 A GUERRA ESCATOLÓGICA (APOCALIPSE 12-22)


O capítulo 12 do Apocalipse marca um novo início. E desta vez é
aquilo que parece ser o início das dores messiânicas, o início da derro-
ta do dragão, o início da perseguição dos fiéis. Uma série de elemen-
tos é iniciada num lugar do livro onde se esperava que estivessem já

225
para terminar. Isso tem levado alguns autores a não apenas apontar
estes capítulos como centrais, mas indicar que o capítulo 12 é a pró-
pria chave para a compreensão do Apocalipse inteiro. Com ele inicia-
se uma narrativa que seguirá linear até o final do livro. Ela olha para
o passado e para o céu, para ler a situação presente, e projetá-la de
volta para sua audiência na forma de uma narrativa profética sobre o
conflito que se manifestaria sobre as testemunhas de Jesus.
Esta narrativa poderia ser acompanhada do capítulo 12 até o capí-
tulo 15 da seguinte forma:
- Capítulo 12: O dragão é frustrado na sua tentativa de matar o filho
da mulher. Ele é expulso do céu, e passa a perseguir a descendência
da mulher;
- Capítulo 13: Para perseguir os filhos da mulher, duas bestas são usa-
das pelo dragão. Uma se levanta do mar, e outra da terra;
- Capítulo 14: Ajuntamento do povo de Deus e a ceifa escatológica;
- Capítulo 15: Derramamento das sete taças sobre a terra, na forma de
juízo de Deus sobre os adversários dos filhos da mulher, como instru-
mento de libertação, nos moldes do Êxodo do Egito.
A narrativa está montada de forma a levar os leitores a se identi-
ficarem com a descendência da Mulher. São seus filhos, tal como a
criança arrebatada. Mas, diferentemente desta, eles não deveriam es-
perar uma salvação milagrosa da perseguição. Eles poderiam experi-
mentar o martírio por causa do Dragão e as bestas. O Dragão alcança-
ria sucesso provisório ao se dirigir contra a descendência da Mulher.
Ao sugerirmos uma estrutura para o Apocalipse de João, aponta-
mos para um livro de três seções. Na terceira, especificamente, João
se concentra em descrever uma guerra: a guerra escatológica, ou, em
outras palavras, a guerra do final dos tempos. A sequência temporal
é complexa. Há muitas duplicatas que poderiam ser entendidas como
repetições ou narração de incidentes similares.

226
Existe um íntimo paralelo entre a sequência das taças (Ap 16:1-21) e
a sequência das trombetas (Ap 8:8-11:19). Além disso, várias cenas do
culto no céu interrompem o fio narrativo. Normalmente, as interven-
ções litúrgicas, no contexto desta seção, funcionam para interpretar
o elemento narrativo. Mesmo assim, ainda existe um sentido de mo-
vimento para frente. A história começa com a Mulher e o Dragão e ter-
mina com as bodas do Cordeiro. A primeira está no passado das comu-
nidades de João, e a última está no futuro. De uma forma geral, então,
é possível acompanhar o desenvolvimento de uma narrativa contínua.
O primeiro estágio da guerra está descrito em Ap 12:1-18. Uma
guerra irrompe no céu, resultando na expulsão do Dragão para a terra.
O Dragão tenta destruir a criança messiânica, mas falha quando ela é
arrebatada para o céu. Diante disto, o Dragão tenta destruir a Mulher,
que é protegida no deserto. Depois de fracassar na perseguição da
Mulher, o dragão se dirige para sua descendência, os outros filhos da
Mulher. Estes filhos são aqueles que guardam os mandamentos de
Deus e sustentam o testemunho de Jesus. Tal descrição claramente
descreve a audiência do Apocalipse. Este estágio da guerra está no
passado da comunidade de João, e teria como função sinalizar para
esta audiência uma eminente perseguição. Apesar de a guerra estar
descrita como uma batalha primordial do passado distante no qual
um dos anjos de Deus se rebela, a vitória é declarada como elemento
presente na liturgia celestial (Ap 12:10).
O segundo estágio da guerra se dá no levantamento dos aliados
do Dragão. Ele convoca duas bestas, que desenvolvem a guerra ins-
taurada pelo Dragão. Como o dragão, estas bestas derivam de histó-
rias de conflito. São personagens de antigas narrativas cananitas e
babilônicas de criação e guerra. João as usa agora simbolicamente
para descrever um conflito histórico contra o Império Romano e sua
estrutura religiosa. Estes dois agentes agem de forma distinta, mas
complementar, à forma como o Dragão perseguiu a Mulher. O primei-
ro age pela força; o segundo pela decepção, sedução e coerção. De

227
uma perspectiva da audiência do visionário, este estágio da guerra
tem algumas coisas no passado, outras no presente, e outras ainda
no futuro. É possível entender que a comunidade está no tempo do
conflito, depois do estabelecimento das bestas, mas antes que elas
instaurem a perseguição generalizada aos crentes.
O terceiro estágio da guerra pode ser denominado de “resposta
do Cordeiro”. Ele começa sua reação com a reunião de um exército
de oposição sobre o monte Sião. São os 144.000 selados de todas as
tribos de Israel (eles já apareceram em Ap 7:1-8). A perspectiva tem-
poral é distorcida com a aparição dos três anjos (Ap 14:6-12). Cada um
faz uma proclamação. O primeiro faz uma demanda (a aceitação do
evangelho eterno); o segundo anuncia que algo está em processo de
acontecimento (a queda de Babilônia); o terceiro faz uma predição (o
futuro julgamento dos que adoram a besta).
A atenção retorna para o céu, de onde surge o Filho do homem.
Esta figura introduz a cena da colheita, uma cena de guerra com ima-
gens muito fortes. A figura celestial é Jesus. O campeão aparece. A
vitória está garantida. Mas a situação não se desenrola como se es-
peraria, já que os guerreiros acabam mortos. Após suas mortes, eles
aparecem já na forma dos vencedores da besta que cantam o Cântico
de Moisés e do Cordeiro. Como resultado dessas mortes, completou-
se o lagar da ira de Deus, que será derramado sobre a terra na for-
ma das sete taças com as sete pragas finais sobre a terra. O templo é
aberto e de lá vêm os anjos com as taças escatológicas. A sequência
evoca as sete trombetas, mas a ação é mais definitiva. Eles bombar-
deiam a terra sucessivamente com suas taças, destruindo aspectos
diferentes da dominação do mal sobre a terra.
O clímax das taças de julgamento está na descrição da queda de
Babilônia. A derrota do Dragão é descrita através da divisão do inimi-
go. Um a um eles vão caindo, começando com a grande Prostituta.
A cena inteira está ligada com a série de taças, que é concluída com
uma liturgia celestial nos moldes do culto diante do trono de Ap 4-5.

228
6.5.1 O FINAL DA GUERRA ESCATOLÓGICA
Finalmente, chega a fase final da guerra. O Jesus Glorificado apa-
rece do céu em todo o seu esplendor militar e alcança fácil vitória
sobre as bestas. Ele surge em um cavalo branco, com seu nome enal-
tecido, comandando um exército celestial, pronto para a guerra. Ele
julga e vence o conflito.
Entretanto, há ainda algumas particularidades. Primeiro, seu vesti-
do está manchado de sangue antes mesmo de a batalha começar (Ap
19:13). Segundo, seu nome é a Palavra de Deus (Ap 19:13). Terceiro,
nenhuma guerra é narrada. A história se move do seu aparecimento,
da descrição do ajuntamento para a guerra, para a declaração de que
as bestas foram capturadas. Quarto, os demais seguidores da besta
foram mortos não por espadas, mas pela palavra que sai da boca do
cavaleiro celestial (Ap 19:15).
Mas ainda não chegou o fim. Um período interino de paz foi esta-
belecido. Um anjo descerá do céu e prenderá o dragão. Nenhuma ou-
tra obra do Novo Testamento falou deste período de vitória interina. A
noção de um tempo de felicidade que precederia o último julgamento
é encontrada em antigos textos judaicos. Em 1Enoque 91.12-17 há a
afirmação de que a última de três semanas seria de paz. Já 4Esdras
7.28-29 mencionou um reino messiânico de 400 anos. Entretanto,
apenas o Apocalipse de João fala especificamente em mil anos.
Se o dragão foi expulso para a terra por Miguel, agora ele é no-
vamente expulso, desta vez para o abismo. Somente após o milênio,
Satã é libertado, reúne um novo exército, marcha outra vez contra o
acampamento do povo de Deus. Entretanto, cai fogo do céu e derrota
todo o exército adversário. Mais uma vez a batalha é vencida sem con-
flito, e agora Satanás é jogado no lago de fogo.
A partir de então o visionário se dedica a narrar a cena da nova
criação. Na maior parte, é pura descrição. O que ele descreve é a nova
Jerusalém que desce do céu.

229
Esta história inteira é uma extensão do se leu no final da segunda
narrativa, onde uma voz anunciou que o Reino de Deus já tinha come-
çado. Ela tem como função mostrar como isso aconteceu.

6.6 O FIM DO MUNDO


A cena da volta de Jesus no Apocalipse 19 se dá por meio de uma
descrição simbólica. Outros traços são vinculados ao cavaleiro para
acentuar a natureza de sua volta:
• Olhos de fogo e diademas na cabeça são traços que já apareceram an-
tes no Apocalipse, especialmente na descrição do Filho do Homem no
capítulo inicial, que ditou para João as sete cartas para as sete igrejas.
• O fato de Ele ter um nome que ninguém conhece não é sinal de ano-
nimato, mas de independência. No mundo antigo, saber o nome de
alguém era ter controle sobre a pessoa. Dizer que ninguém conhece o
nome de Jesus no seu retorno, indica que ninguém é mais poderoso
do que Ele. Ele age como quer, de forma completamente independen-
te. Ele não precisa de ajuda para cumprir seus propósitos. Seu poder
é suficiente para promover a consumação do seu Reino.
• A descrição de suas roupas como já manchadas de sangue é um ele-
mento significativo. Alguns comentaristas entendem que é uma refe-
rência ao sangue dos adversários que Ele derrotou. Mas como acaba
de apontar nos ares, isso não faz sentido. É melhor entender que o
sangue que lhe mancha as roupas é uma referência ao seu próprio
sangue. Quando Ele foi apresentado no capítulo 5, Jesus foi descrito
como um Cordeiro como tendo sido morto, ou seja, ensanguentado,
ou com marcas de feridas. As manchas representam, então, sua mor-
te, instrumento pelo qual “comprou para Deus pessoas de todos os
povos, raças e línguas”.
• Tanto seu nome como Verbo de Deus, como a espada que sai de sua
boca se referem à Palavra divina. Pela Palavra, Deus criou todas as
coisas. É pela Palavra que Ele fará a intervenção do final dos tempos.

230
• O exército que acompanha Jesus tanto pode ser formado de anjos
ou dos cristãos mortos que retornam com Ele. As duas leituras são
possíveis. A descrição de Paulo (1Ts 4:13) de que a volta de Jesus será
acompanhada do toque de trombeta angelical e o retorno dos irmãos
pode ajudar-nos a compreender o Apocalipse.
Finalmente, chega a fase final do conflito escatológico. Jesus,
como um grande Guerreiro Exaltado, aparece no céu em todo o seu
esplendor e alcança fácil vitória sobre as bestas. Ele surge em um ca-
valo branco, com seu nome enaltecido, comandando um exército ce-
lestial. Ele julga e vence o conflito.
Entretanto, há ainda algumas particularidades. Primeiro, seu nome
é a Palavra de Deus (Ap 19:13). Segundo, nenhuma guerra é narrada. A
história se move do seu aparecimento, da descrição do ajuntamento
para a guerra, para a declaração de que as bestas foram capturadas.
Terceiro, os demais seguidores da besta foram mortos não por espa-
das, mas pela palavra que sai da boca de Jesus (Ap 19.15). Mas já que
as bestas e os seus seguidores foram vencidos e mortos, o que vem
agora?
6.6.1 AS EXPECTATIVAS JUDAICAS QUANTO À INTERVENÇÃO DE DEUS
Expectativa messiânica é o nome que os estudiosos dão para a es-
perança judaica na intervenção de Deus na direção de um Reino de
paz e felicidade.
Em linhas gerais, essa expectativa pode ser dividida em três gru-
pos:
• um grupo de judeus entendia que Deus iria intervir para trazer o seu
Reino, e que essa intervenção poria fim à história e ao mundo mate-
rial. Depois da intervenção de Deus, toda a realidade seria transcen-
dente;
• um segundo grupo entendia que Deus iria intervir para trazer o seu
Reino, que se materializaria dentro da história. O mundo material se-

231
ria transformado para dar origem a um novo paraíso na terra. Em ou-
tras palavras, estes esperavam que o destino do povo de Deus não se-
ria no céu, mas aqui mesmo, numa terra transformada para sempre;
• um terceiro grupo afirmava as duas expectativas. Segundo este, a
intervenção de Deus iria inaugurar o seu governo de paz na terra du-
rante certo tempo. Após um período de felicidade na terra, o mundo
e a história iriam passar para dar origem a uma realidade exclusiva-
mente transcendente.
Estas descrições acabam indicando qual é a expectativa que apa-
rece em Ap 20. A visão de João se insere no terceiro tipo de expectava,
ao afirmar um governo na terra de mil anos, seguido do juízo final e da
Nova Jerusalém (realidade transcendente).
6.6.2 O REINO MILENAR
Jesus voltou, mas ainda não chegou o fim. Um período interino de
paz foi estabelecido. Um anjo desce do céu e prende o dragão. Ne-
nhuma outra obra do Novo Testamento falou deste período de vitória
interina. A noção de um tempo de felicidade que precederia o últi-
mo julgamento é encontrada em antigos textos judaicos. Entretanto,
apenas o Apocalipse de João fala especificamente em mil anos. Se
o dragão foi expulso para a terra por Miguel, agora ele é novamente
expulso, desta vez para o abismo. Somente após o milênio, Satã é li-
bertado, reúne um novo exército, marcha outra vez contra o acampa-
mento do povo de Deus. Entretanto, cai fogo do céu e derrota todo o
exército adversário. Mais uma vez, a batalha é vencida sem conflito e
Satanás é jogado no lago de fogo.
Os primeiros leitores do Apocalipse entenderam o milênio como a
descrição de um período histórico na terra. Havia antecedente des-
ta expectativa entre alguns judeus, o que significa que esta esperan-
ça não era uma coisa nova para eles. Formalmente, o milênio é um
período de tempo entre a volta de Jesus e o juízo final, evento que

232
marca o fim da história e a instauração de uma realidade puramente
transcendente. O milênio é, então, um parêntese entre a intervenção
de Deus no retorno do Cordeiro e o final da história. No contexto ju-
daico, esperava-se que o próprio Deus, ou um ungido dele (o Messias)
reinasse durante este período na terra. Seria um período em que se
cumpriria as profecias de Isaías, de paz e prosperidade para toda a
humanidade (Is 2:1-5, entre outras passagens).
Por que um parêntese? O Apocalipse não responde. Talvez porque
se o povo de Deus sofreu dentro da história, a justiça divina demanda
a recompensa também dentro da história, antes de encerrá-la com o
juízo final. Quanto tempo durará o reino do Messias na terra? O Apo-
calipse fala em 1000 anos. Mas esse número não é definido. Entende-
mos que o termo “milênio” é uma expressão que indica um período
de tempo grande, não necessariamente mil anos literais.
Quem estará no milênio? A leitura estrita de Ap 20:4 fala apenas
nos que morreram martirizados pela besta ou em perseguições. Te-
ologicamente, entretanto, a partir de elementos de outros textos bí-
blicos, é sensato afirmar a ressurreição de todos os crentes, e não so-
mente dos que foram martirizados.
E os incrédulos? Estes não participam do milênio na terra. Durante
o milênio, continuarão no mesmo lugar de sofrimento que já estavam
antes do milênio. Após o milênio, ressuscitarão para o juízo final.
Em termos sintéticos, o milênio será um período histórico poste-
rior à volta de Jesus, quando o povo de Deus ressuscitará para rei-
nar com Jesus na terra durante um longo período de tempo. Após o
milênio, Satanás será solto e organizará uma derradeira oposição ao
Cordeiro de Deus. O exército que ele levantará não será formado de
pessoas, já que não haverá incrédulos durante o milênio, mas de figu-
ras demoníacas que ele trará de nações dos “quatro quantos da terra”
(expressão usada em fontes judaicas para falar do lugar de origem
dos demônios). Como fez com as bestas, entretanto, Jesus derrotará

233
a todos sem necessidade sequer de enfrentamento. Fogo cai do céu e
destrói os seres demoníacos.
6.6.3 O JUÍZO FINAL
Ap 20:11-15, o texto fala do juízo final, momento em que todos os
seres humanos serão julgados.
A Bíblia esclarece, entretanto, que a salvação ou a perdição são
definidos durante nossa vida (Ef 2:8-9). O juízo final posterior ao mi-
lênio não mudará o status espiritual de qualquer pessoa. Quem esta-
va salvo com Cristo, com Ele continuará salvo. Quem estava perdido
longe de Deus, sem Ele continuará perdido pela eternidade. A função
deste juízo parece ser muito mais para definir galardão do que qual-
quer outra coisa, já que está relacionado com as obras praticadas.
6.6.4 A NOVA JERUSALÉM
A partir de então, João se dedica a narrar a cena da nova Jerusa-
lém. Na maior parte, é uma enorme descrição de uma cidade trans-
cendental. O que ele descreve é a nova cidade transcendental. João
vê a noiva do Cordeiro e a descreve com grandes detalhes. A Nova
Jerusalém, vista como “noiva”, é uma figura que se refere à Igreja, a
noiva do Cordeiro. Portanto, a Nova Jerusalém é a própria Igreja do
Cordeiro, o povo que Jesus comprou com o seu próprio sangue e os
constituiu reino e sacerdócio. O texto diz que Deus habitará com este
povo. Não haverá mais separação entre Deus e os seres humanos.
Além disso:
- Não haverá sofrimento (Ap 21:4) - As lágrimas e o pranto, bem como
a morte e o luto, suportados pelos cristãos durante as tribulações ou
a Grande Tribulação, “não existirão”. Eles fazem parte das “primeiras
coisas” que já passaram.
- A Nova Jerusalém tem a presença de Deus (Ap 21:16). A cidade é um
“cubo”. Tem comprimento, largura e altura iguais. Se antes Deus se

234
manifestava somente no Santo dos Santos e apenas para o sumo sa-
cerdote, agora, na Nova Jerusalém, ele se manifesta em toda a cidade
do mesmo modo.
- Este novo mundo é precioso (Ap 21:18-21). A cidade é a noiva do
Cordeiro, ou seja, o povo de Deus. Isso significa dizer que todas as
pedras preciosas alistadas ali, bem como “a cidade de ouro puro” (Ap
21:18) não são realidades literais, mas símbolos para falar da Igreja de
Jesus. Para Deus seu povo é tão precioso como o ouro ou as pedras
mais belas e preciosas que existem. Afinal de contas, Jesus pagou um
alto preço para formar este povo.

6.7 PANORAMA HISTÓRICO DA ESCATOLOGIA CRISTÃ


Nos primeiros séculos, entendia-se que o juízo e a salvação esca-
tológica estariam em vias de se manifestar. A base desta esperança
ainda era a apocalíptica judaica. É nesta literatura que se encontra
fartamente a crença no surgimento de um novo povo de Deus, bem
como a redenção de todas as coisas.
É verdade que essa esperança judaica é bem peculiar. Para uma
grande parte destes autores, haverá uma renovação do mundo, pre-
cisamente na história concreta das nações, para que uma delas reine
sobre as demais. Para eles, embora essa irrupção do reino de Deus
traga uma mudança radical a todas as coisas, continuará sendo este
mundo concreto e histórico.
Do judaísmo antigo, os cristãos assumiram como sua temática a
iminência do juízo de Deus e o fim deste mundo; a renovação de todas
as coisas gerada pela irrupção de Deus na história; a decisão impor-
tante a ser feita pelo indivíduo ainda na hora presente, que o habili-
taria a receber as bênçãos divinas no dia do juízo. Esta decisão era a
conversão à mensagem cristã.
Justamente nesta perspectiva, levantou-se o problema da prote-
lação da segunda vinda de Jesus. Apareceram, então, quatro formas
básicas de entender a demora da volta de Jesus:

235
- A Carta de Barnabé (séc. II) e Clemente de Alexandria (150-215) ima-
ginaram essa volta relacionada com o tempo presente. Eles afirma-
ram uma alegorização da volta de Cristo, que, na prática, teria acon-
tecido no momento do seu nascimento. Sua encarnação fora já a sua
volta à terra;
- Clemente de Roma (35-100) e a doutrina ortodoxa da igreja argu-
mentaram que o núcleo da escatologia cristã não deveria ser a volta
de Jesus, mas a ressurreição do ser humano;
- Os apologetas greco-romanos transformaram a volta iminente de
Jesus em evento protelado. Isso teria acontecido como obra de Deus
para dar oportunidade de arrependimento para o maior número de
pessoas;
- Os teólogos sírios, como Inácio de Antioquia (35-107), acreditavam
que o fim estava realmente iminente e, em função disso, deveria exis-
tir uma série de implicações éticas para a vida do cristão.
Neste contexto, ganhou destaque o quiliasmo. Este conceito esca-
tológico muito popular ainda nos dias de hoje pode ser definido como
a esperança num Reino de Deus no qual Cristo, regressado ao mundo,
há de reunir todas as pessoas piedosas, ressuscitadas e glorificadas
na terra por mil anos (o milênio), colocando-se à frente dessas pesso-
as para destruir todas as potências inimigas de Deus.
Esta interpretação bíblica quiliasta continuará muito popular pelo
menos até o século IV, quando a questão do milênio provocou as mais
ardorosas disputas teológicas. Foi Agostinho que deu uma interpre-
tação do quiliasmo que acabou prevalecendo na história da teologia
crista. Segundo ele, o quiliasmo, ou o milênio de Cristo, começou na
sua ressurreição e se estenderá até sua volta.
Como outros temas da teologia cristã, grande parte da evolução da
escatologia foi impulsionada por motivos apologéticos. Para defen-
der a fé, os antigos teólogos cristãos definiam e ampliavam os concei-

236
tos escatológicos. Um dos temas que mais insistentemente precisava
ser defendido era a ressurreição dos mortos. O rigor e a seriedade
dessas antigas formulações nos deixam vislumbrar a importância e
o significado que implicava, para a igreja antiga, a profissão de fé na
ressurreição física.
Outro problema viria a surgir um pouco depois, na forma do de-
bate sobre a questão da continuidade da história. Novamente aqui
se nota a influência marcante de Agostinho na definição da continui-
dade entre o tempo anterior e posterior a Cristo. Sua concepção de
Reino de Deus marcou a teologia cristã. Para ele, havia uma relação
direta entre Igreja e Reino. Não era exatamente uma identificação ab-
soluta. Para Agostinho, a Igreja iria crescer até a perfeição, quando,
então, se identificaria diretamente com o Reino.
Neste momento, a cristologia (doutrina sobre Cristo) e escatologia
(doutrina sobre as últimas coisas) passaram a ser discutidos juntos. A
cristologia passou a estar inserida num quadro da escatologia. A segun-
da não tinha mais sentido sem a primeira, que se tornou o seu centro.
6.7.1 ESCATOLOGIA DA IDADE MÉDIA
Na Idade Média, a tendência passou para a sistematização da es-
catologia, na forma de grandes esquemas. Muitos desses esquemas
tentavam unir todo o arcabouço teológico, da criação até o fim da his-
tória, do pecado à salvação. Ainda aqui, o problema da ressurreição
continuou aparecendo como uma importante discussão teológica.
Dizer que os mortos ressuscitariam continuava a provocar polêmica.
No centro dessas afirmações encontramos não tanto o corpo fí-
sico, mas uma natureza humana restabelecida em sua integridade.
Neste caso, a morte era entendida como a dilaceração da unidade
entre corpo e alma. Por isso era considerada como coincidindo com
o fim do ser humano. Ora, desta forma, ressurreição significaria reu-
nião do corpo e da alma novamente. Somente então haveria a efetiva
restituição dos homens e mulheres.

237
Se o ser humano só o é na sua integridade, a morte realmente sig-
nifica o fim da humanidade. Pode-se entender, assim, a ênfase dos
teólogos na necessidade da ressurreição. Uma eternidade com o ser
humano desintegrado não faria jus à obra de Cristo por ele. É neces-
sário a ressurreição para que ele esteja integralmente com Deus.
Esse é o motivo que levou os teólogos cristãos a tratarem o tema
com tanta prioridade, em alguns momentos mesmo como um patri-
mônio central da Bíblia. Para justificar a ressurreição das pessoas,
novamente a ressurreição de Cristo passou a ser usada. Jesus Cristo
passou a ser considerado o modelo do que deverá acontecer com to-
dos os humanos. A base para essa afirmação costumava ser apontada
em Ef 4:13 e Fl 3:21. Os mortos, ao ressuscitarem, serão semelhantes
a Cristo.
Com isso, a ressurreição de Cristo se tornou não apenas o ponto
mais alto da cristologia, mas também o ponto de partida da escato-
logia.
6.7.2 ESCATOLOGIA DA REFORMA EM DIANTE
Dos reformadores, somente João Calvino (1509-1564) produziu um
esboço de escatologia sistemática como os que vinham sendo produ-
zidos pela teologia católica. A diferença substancial de sua aborda-
gem, entretanto, é que a filosofia deixou de ser a base da exposição
escatológica, e a exegese da Bíblia se torna o ponto de partida.
Para Calvino, havia um íntimo nexo entre escatologia e salvação.
Ele passou a discutir a escatologia no nível individual. Discutir o fim
do indivíduo é tão importante quanto discutir o fim do mundo. Outros
reformadores, entretanto, preferiram colocar a discussão da igreja
(eclesiologia) no centro da escatologia.
No período do Iluminismo, a teologia moral ganhou destaque, e
com isso a escatologia passou a ser usada como impulsionadora de
comportamentos morais. Falava-se muito de prêmios e castigos que

238
viriam com o juízo final, para com isso estimular a prática do bem e
dissuadir o hábito do mal.
Novos impulsos para a discussão escatológica vieram a surgir pos-
teriormente. Um deles nasceu da teologia de Karl Barth (1886-1968).
Ele se apropriou das representações típicas da mentalidade escatoló-
gica para seu discurso teológico. Com isso, a própria experiência pre-
sente passou a ser interpretada no contexto da escatologia do Novo
Testamento.
Outro importante impulso para a escatologia na teologia cristã
veio da teologia de Rudolf Bultmann (1884-1976). Para este teólogo,
a escatologia é um discurso sobre o presente, e não sobre o futuro.
Sendo assim, é escatologia do presente.
Muitos autores não concordaram com a fala de Bultmann, mesmo
assim não se pode negar como isso contribuiu para perceber o que a
escatologia representa para o presente da sociedade e do indivíduo.
A ênfase sairá, então, novamente das questões de escatologia in-
dividual, para retornar para uma escatologia universal. De uma esca-
tologia predominantemente doutrinária ou dogmática, passa-se para
uma escatologia mais problematizadora, interrogativa.

6.8 CORRENTES ESCATOLÓGICAS


Vimos que o foco principal de controvérsia na antiguidade a respei-
to do Apocalipse residia na compreensão da passagem que descreve
a prisão de Satanás e o governo de Cristo durante mil anos (Ap 20:1-
10). Os que faziam uma leitura mais literal de Ap 20 eram chamados
de quiliastas, e os seus opositores de alegoristas. A escatologia em
tempos contemporâneos emula o debate da antiguidade, com os in-
térpretes divididos ainda em torno da questão literal versus espiritu-
al, e com muita importância igualmente para a narrativa do milênio.
A corrente com o maior número de seguidores é comumente cha-
mada de pré-milenista, porque espera pela volta de Jesus antes do

239
milênio. A oposição contemporânea aos pré-milenistas é feita pela
escatologia oficial das grandes denominações cristãs, que acompa-
nha geralmente o ensino de Agostinho, sendo chamados de amilenis-
tas, já que sua expectativa não inclui um reino de Cristo na terra após
a volta de Jesus.
Abaixo fornecemos de forma esquemática as principais ideias de
cada uma das correntes escatológicas da atualidade.
6.8.1 PRÉ-MILENISTA HISTÓRICO
- Entende que a volta de Jesus se dará antes do milênio, mas não re-
conhece a existência das dispensações;
- Crê num reinado de Cristo literal de mil anos aqui na terra;
- Antes da vinda de Cristo acontecerá a evangelização das nações, a
grande tribulação, a grande apostasia e a manifestação do Anticristo
escatológico;
- Quando Cristo voltar, os crentes que estiverem vivos serão transfor-
mados e os que estiverem mortos serão ressuscitados;
- Com a vinda de Cristo, o Anticristo será exterminado. Nessa época
haverá a conversão da maior parte dos judeus;
- Jesus Cristo reinará na Terra por mil anos. Seu trono e sede do reina-
do será em Jerusalém, de onde governará todo o universo. O Templo
de Jerusalém e o sacerdócio do Antigo Testamento serão novamente
restaurados;
- O milênio não é visto como um estado final, já que depois dele ainda
haverá um novo Céu e o Inferno;
- A ressurreição das pessoas não-salvas só se dará no final do milênio,
após a derrota final de Cristo sobre Satanás.

240
6.8.2 PRÉ-MILENISTA DISPENSACIONALISTA
- Esta corrente é pré-milenista porque imagina a volta de Jesus para
antes do milênio (Ap 20:4-6);
- Interpreta literalmente a maior parte das profecias da Bíblia;
- Faz distinção fundamental e permanente entre Israel e a Igreja. Deus
tem, então, dois povos com os quais lida ainda nos dias de hoje. A
maioria das profecias do Antigo Testamento foram dirigidas a Israel e
não à Igreja. Elas deverão ser cumpridas literalmente no período do
milênio aqui na Terra;
- O Antigo Testamento ensina que haverá um reino futuro, milenar e
terreno;
- O Reino seria dado aos judeus quando Cristo veio pela primeira vez,
e nesse tempo se cumpriria a Septuagésima Semana de Dn 9. Mas
quando os judeus rejeitaram e crucificaram Jesus, essa semana foi
adiada, e consequentemente, o Reino foi transferido para o futuro;
- O tempo entre a semana 69 e 70 de Daniel é chamado de Era da Igre-
ja, sendo encarado como um parêntesis na história e no propósito di-
vino. Isso faz com que seja necessário arrebatar a Igreja da terra para
que os propósitos de Deus se cumpram em Israel;
- A volta de Cristo se dará em duas etapas. Primeiro, Ele virá buscar
sua Igreja; e depois de um curto período (7 anos), voltará para reinar
no Milênio. Entre o arrebatamento da Igreja e o milênio acontecerá a
grande tribulação;
- Jesus Cristo reinará na Terra por mil anos. Seu trono e sede do rei-
nado será Jerusalém, de onde governará todo o universo. O Templo
de Jerusalém e o sacerdócio do Antigo Testamento serão novamente
restaurados.
- Esta corrente chama-se Dispensacionalista, por dividir a história hu-
mana em grandes dispensações. Uma dispensação normalmente é

241
entendida como um período de tempo caracterizado por um modo
distinto de Deus se relacionar com o ser humano.
Os autores desta corrente costumam citar sete grandes dispensa-
ções: Período da inocência; Período da consciência de responsabili-
dade moral; Período do governo humano; Período da promessa; Perí-
odo da Lei; Período da Igreja; Período do Reino.
6.8.3 AMILENISMO
- O milênio já é real no meio da humanidade. Os crentes mortos já
reinam com Cristo no céu. A expressão “a” antes da palavra “amile-
nismo” não significa negação do milênio, mas do seu sentido literal.
Esta corrente acredita no milênio, não de forma futuro, mas presente
e atual;
- O milênio não é literal (mil anos) e nem terreno. É figurado e espiri-
tual ou celestial;
- Cristo já está governando seu povo através da sua Escritura e de seu
Espírito, e irá governar de forma visível na Nova Terra e Novo Céu;
- Até o fim do mundo deve-se esperar que o pecado e o mal conti-
nuem a existir;
- O estado final, para todos os seres, só se dará com a segunda vinda
de Jesus;
- Antes da volta de Cristo a apostasia se intensificará, bem como a
tribulação. Haverá também a manifestação de um Anticristo pessoal;
- A segunda vinda de Cristo é um evento único, seguido imediatamen-
te da ressurreição geral de crentes e incrédulos;
- Os crentes que estiverem vivos quando Cristo voltar serão transfor-
mados e glorificados.

242
6.8.4 PÓS-MILENISMO
- Entende que Cristo não reinará num trono terreno em Jerusalém;
- O milênio não será literalmente um período de tempo de mil anos;
- Chama-se pós-milenismo por afirmar que Cristo voltará depois do
milênio;
- O Reino de Deus está, desde a ressurreição de Jesus até os dias de
hoje, sendo estendido no mundo através da pregação do Evangelho e
da obra salvadora do Espírito Santo nos corações dos crentes;
- O mundo, por fim, será cristianizado, o que resultará num longo pe-
ríodo de justiça e paz, que precederá a volta de Jesus;
- A segunda vinda de Jesus será imediatamente seguida pela ressur-
reição geral, o juízo geral e a consequente entrada no céu ou inferno;
- A história mundial vai melhorando cada vez mais até estar prepara-
da para a inauguração, imperceptível, do milênio.
Percebe-se que os esquemas, apesar de discordarem em vários
aspectos, tendem a discutir e apresentar os mesmos temas escatoló-
gicos, como: a volta de Cristo, a ressurreição dos mortos, o Novo Céu,
o inferno, o juízo final e a vitória final de Deus e Cristo.

243
Sobre o Autor
VALTAIR AFONSO MIRANDA é Pós-doutor em Cognição e Lingua-
gem pela UENF; Doutor em Ciências da Religião pela UMESP; Doutor
em História pela UFRJ; Mestre em Teologia pelo STBSB; Mestre em
Ciências da Religião pela UMESP; graduado em Teologia pelo STBSB/
FTSA; graduado e licenciado em História pela UNIVERSO. É professor
de Novo Testamento e História da Igreja na Faculdade Batista do Rio
de Janeiro/Seminário do Sul, onde atua como Diretor Acadêmico. É
autor de várias obras, entre elas O Caminho do Cordeiro (Paulus Edi-
tora), Fundamentos da Teologia Bíblica (Editora Mundo Cristão), Lu-
tero: História, Poder e Palavra (Fonte Editorial), Mártires e Monges:
milenarismos antigos e medievais (Kapenke), Atos Apócrifos de Pedro
(Paulus Editora) e Espiritualidade Apocalíptica: o Apocalipse ao al-
cance de todos (Litteris Editora). É também redator da Revista Atitude
(Editora Convicção), voltada para a juventude cristã.

Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/7689281124574923>

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