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SEMEADORES DA PALAVRA e-books evangélicos

A Mensagem de
Eclesiastes

Derek Kidner

A MENSAGEM DE ECLESIASTES
©Inter-Varsity Press, Leicester, Inglaterra

A Mensagem de Eclesiastes, de Derek Kidner, foi publicado em inglês em 1976


pela Inter-Varsity Press, Inglaterra, com o título A time to mourn, and a time to
dance.
A tradução em português e a publicação e distribuição pela ABU Editora, nos
países de fala portuguesa é um projeto de David C. Cook Foundation, uma
organização filantrópica constituída segundo as leis do Estado de Illinois, cuja
finalidade é a divulgação do evangelho de Cristo.

Direitos reservados pela


ABU Editora SC
Caixa postal 30505
01051 – São Paulo – SP

Tradução de Yolanda Mirdsa Krievin


Revisão de estilo de Silêda Silva Steuernagel e Milton A. Andrade
Revisão de provas de Solange Domingues da Silva

O texto bíblico utilizado neste livro é o da Edição Revista e Atualizada no Brasil,


da Sociedade Bíblia do Brasil, exceto quando outra versão é indicada.
Comentários do autor quanto às diferentes versões inglesas foram, sempre que
possível, adaptados às principais versões da Bíblia em português.

1ª Edição – 1989

2
Conteúdo
Primeira Parte........................................................................................................ 5
O que este livro está fazendo na Bíblia? - Uma visão geral...............................5
Segunda Parte..................................................................................................... 10
O que o livro diz! - um breve comentário........................................................10
Eclesiastes 1:1-11 - O autor, o tema e o reconhecimento do cenário..........10
Eclesiastes 1:12-2:26 - Em busca de satisfação............................................13
Eclesiastes 3:1-15 - A tirania do tempo.........................................................18
Eclesiastes 3:16-4:3 - A aspereza da vida.....................................................20
Eclesiastes 4:4-8 - Corrida desenfreada.......................................................22
Primeiro Resumo: Retrospectiva de Eclesiastes 1:1-4:8..............................23
Eclesiastes 4:9-5:12 - Interlúdio: Algumas reflexões, máximas e verdades. 24
Eclesiastes 5:13-6:12 - A amargura do desapontamento.............................28
Segundo Resumo: Retrospectiva de Eclesiastes 4:9-6:12.............................31
Eclesiastes 7:1-22 - Interlúdio: Mais reflexões, máximas e verdades...........32
Eclesiastes 7:23-29 - A busca continua........................................................35
Eclesiastes 8:1-17 - Frustração....................................................................37
Eclesiastes 9:1-18 - Perigo........................................................................... 40
Terceiro Resumo: Retrospectiva de Eclesiastes 7:1-9:18.............................43
Eclesiastes 10:1-20 - Interlúdio: Sê prudente!..............................................44
Eclesiastes 11:1-12:8 - Em direção do alvo..................................................48
Eclesiastes 12:9-14 - Conclusão...................................................................53
Terceira Parte...................................................................................................... 56
E nós, o que temos a dizer? - um epílogo........................................................56

Prefácio Geral
A Bíblia Fala hoje constitui uma série de exposições tanto do Antigo como
do Novo Testamento, que se caracterizam por um triplo objetivo: expor
acuradamente o texto bíblico, relacioná-lo com a vida contemporânea e
proporcionar uma leitura agradável.
Esses livros não são, pois, “comentários”, já que um comentário busca mais
elucidar o texto do que aplicá-lo, e tende a ser uma obra mais de referência do
que literária. Por outro lado, esta série também não apresenta aquele tipo de
“sermões” que, pretendendo ser contemporâneos e de leitura acessível, deixam
de abordar a Escritura com suficiente seriedade.
As pessoas que contribuíram nesta série unem-se na convicção de que Deus
ainda fala através do que já falou, e que nada é mais necessário para a vida, o
crescimento e a saúde das igrejas ou dos cristãos do que ouvir e atentar ao que
o Espírito lhes diz através da sua Palavra, tão antiga e, mesmo assim, sempre
atual.

2
J.A. Motyer
J.R.W. Stott
Editores da série

Prefácio do Autor
Qualquer pessoa que leia as Escrituras (até mesmo o menos eclesiástico
dos homens) há de deparar-se com o espírito altamente independente e muito
fascinante. Isto me leva a dizer duas coisas.
Primeiro, desejo agradecer ao editor desta série por me dar uma desculpa
para estudar o livro mais detalhadamente do que nunca.
Segundo, quero sugerir que alguns leitores fariam bem em passar
diretamente à Segunda Parte, um breve comentário, onde ouvirão o próprio
Pregador, com interrupções minhas, é claro, sem aguardar o exame pretendido
na Primeira Parte. Isso depende da pessoa: se ela prefere primeiro ter um mapa
das coisas ou mergulhar diretamente, andando às apalpadelas.
De qualquer maneira, que seja uma viagem rumo ao alvo.

Derek Kidner
Tyndale House
Cambridge

Principais Abreviaturas
ANET Ancient Near Eastern Texts (Textos Antigos do Oriente
Próximo) de J.B. Pritchard (2ªed., OUP, 1955)
AT Antigo Testamento
Barton Ecclesiastes (Eclesiastes) de G.A. Barton (International
Critical Commentary, Comentário Crítico Internacional),
(T.&T. Clark, 1908)
BJ Bíblia de Jerusalém, 1966
BLH Bíblia na linguagem de Hoje (SBB)
BV A Bíblia Viva (Ed Mundo Cristão)
Delitzsch The Song of Songs and Ecclesiastes (O Cântico dos
Cânticos e Eclesiastes) de F. Delitzsch (T.&T. Clark,
1891)
ERAB Edição Revista e Atualizada no Brasil (SBB)
ERC Edição Revista e Corrigida (IBB)
ER Edição Revisada (seg. os Melhores Textos) (IBB)
GR. Grego
Heb. Hebraico
Jones Proverbs, Ecclesiastes (Provérbios e Eclesiastes) de E.
Jones (Torch Bible commentaries, SCM Press, 1961)
LXX A Septuaginta (versão grega pré-cristã do Antigo
Testamento)
McNeile An Introduction to Ecclesiastes (Uma Introdução ao
Eclesiastes) de A.H. McNeile (CUP, 1904)
mg. À margem
MS(S) Manuscrito(s)
NT Novo Testamento
TM Texto Massorético
Scott Proverbs, Ecclesiastes (Provérbios, Eclesiastes) de R.B.Y.
Scott, Doubleday, 1965)

2
Primeira Parte
O que este livro está fazendo na Bíblia? -
Uma visão geral

A voz do Antigo Testamento tem muitas inflexões. Temos aí quase tudo,


desde a apaixonada pregação dos profetas até os comentários tranqüilos e
prudentes do sábio, entremeados de um mundo de poesia, lei, histórias, salmos
e visões.
Nenhum há, porém, que se assemelhe ao Coelet1 (ou Qoheleth, seu
intraduzível título original). Não existe, em todo este grande volume, um único
livro que tenha as mesmas ênfases.
Seu habitat, por assim dizer, fica entre os sábios que nos ensinam a usar os
olhos e ouvidos para descobrir os caminhos de Deus e os caminhos do homem.
Alguns de seus ditados lembram o livro de Provérbios. E quando, vez por outra,
essas incursões com ele nos levam às situações mais desconcertantes, ele tem
um jeito de parar e, com a sua sabedoria simples e franca, fazer-nos recobrar o
ânimo e o equilíbrio. A sabedoria, muito prática e ortodoxa, é o seu campo
básico; mas ele é um explorador. Sua preocupação é com as fronteiras da vida, e
especialmente com as questões que a maioria de nós hesitaria explorar muito
profundamente.
Suas investigações são tão implacáveis que ele pode facilmente ser tomado
por cético ou pessimista. Sua exclamação inicial, vaidade de vaidades! Ou Total
futilidade!, quase que merece isso; mas para ele há algo mais do que poderia
caber numa única frase, mesmo que fosse uma frase-tema. Tanto assim que em
certa ocasião alguns mestres quiseram sugerir que dois, ou três ou até mesmo
nove2 diferentes cabeças haviam trabalhado no livro, tais as suas contra-
correntes e rápidas mudanças. Todas elas, porém, podem ser consideradas
frutos de uma só mente, abordando os fatos da vida e da morte sob vários
ângulos.
No fundo descobrimos o axioma de todos os sábios da Bíblia, que o temor
do Senhor é o princípio da sabedoria. Porém a intenção de Coelet é levar-nos a
esse ponto apenas no final, quando estivermos desesperados por uma resposta.
Embora seja insinuada algumas vezes, o seu método principal é começar pelo
fim: a determinação de ver até onde alguém consegue ir sem essa base. Ele se
coloca – e a nós – no lugar do humanista ou do secularista. Não do ateu, pois no
seu tempo o ateísmo não era uma preocupação, mas da pessoa que começa a
pensar a partir do homem e do mundo visível e que conhece Deus apenas à
distância.
Naturalmente isto traz complicações. Surgem tensões entre o eu mais
profundo do escritor, como homem de convicção com uma fé a compartilhar, e o
seu eu temporário, de um homem que caminha às apalpadelas à luz da natureza.
Este segundo eu tem os seus próprios conflitos, familiares a todos nós, entre as
vozes da consciência, dos interesses próprios e da experiência, e entre Deus
1
A palavra tem a ver com o termo hebraico usado para “reunir” ou “juntar”, e a sua
forma sugere algum tipo de cargo público. Era possivelmente um status eclesiástico
(como um convocador da assembléia ou aquele que a ela fala), uma vez que a palavra-
padrão para congregação ou igreja tem a mesma raiz. As muitas tentativas de traduzir
este título incluem as seguintes: Eclesiastes, O Pregador, O Orador, O Presidente, O
Porta-voz, O Filósofo. Poderíamos talvez acrescentar O Professor!
2
Como diz D.C Siegfried, “Prediger und Hohelied”, em W. Nowack, Handkommentar
zum Alten Testament (Gottingen, 1898)

2
como reconhecemos e Deus como o tratamos.
Depois que captarmos o que se passa no livro de um modo geral, não nos
será difícil encontrar o caminho através dele; e o comentário fornecerá um
pouco mais de ajuda. Enquanto isso, convém juntar alguns dos ensinamentos
que se encontram espalhados por suas páginas, e buscar o conteúdo geral do
argumento.

Fatos a encarar acerca de Deus


Se uma pessoa crê realmente em Deus, as implicações disto devem ser
seguidas à risca. E o que Coelet espera que façamos, sem imaginar que
podemos tomar liberdades com o nosso criador ou manipulá-lo segundo nossos
interesses. Somos confrontados com Deus na sua condição mais temível: como
alguém que não se impressiona com a nossa tagarelice, nem com nossas ofertas
rituais ou com nossas promessas vazias. Os primeiros parágrafos co capítulo 5
destacam estes pontos de maneira vigorosa: “...Deus está nos céus, e tu na
terra; portanto sejam poucas as tuas palavras... porque não se agrada de todos.”
Deus se revela a nós neste livro sob três aspectos principais: como Criador,
como Soberano e como a Sabedoria Inescrutável. Não que estes termos sejam
exatamente assim aplicados a ele, com exceção do primeiro; mas podem servir
com um conveniente ponto de convergência.
Como Criador, ele arma todo o cenário. Somos lembrados de que o seu
mundo tem uma forma própria definida, que não pode ser mudada a nosso gosto
(e este, convenhamos, tem uma certa resistência inata que é bastante
complacente para conosco, como planejadores e padronizadores); 3 pois “quem
poderá endireitar o que ele torceu?” (7:13). Esse mundo tem também o seu
próprio ritmo inexorável ao qual nos encontramos presos: tempo para isso e
tempo para aquilo, sem nos deixar muita escolha, como o capítulo 3 destaca.
Mesmo como procriadores, nada mais fazemos do que ativar o misterioso
processo pelo qual Deus cria uma nova vida. “Assim como tu não sabes qual o
caminho do vento, nem como se formam os ossos no ventre da mulher grávida,
assim também não sabes as obras de Deus, que faz todas as cousas” (11:5).
No entanto, não podemos nos dar ao luxo de acusar o Criador pelas nossas
confusões e nossas maldades, com a Teodicéia Babilônica acusa os deuses, 4 pois
“Deus fez o homem reto”. A responsabilidade fica onde merece, nas
conseqüências desta observação: “mas ele [o homem] se meteu em muitas
astúcias” (7:29).
Como Soberano, entretanto, Deus determina as frustrações que
encontramos na vida. A rotina da existência que é apresentada logo no início do
livro (a propósito, Coelet teria feito uma carranca diante do título espetacular:
“Parem o mundo, eu quero descer!”) – essa rotina é decreto de Deus. “... Este
enfadonho trabalho impôs Deus aos filhos dos homens, para nele os afligir... e
eis que tudo era vaidade e correr atrás do vento” (1:13, 14). É verdade que
existe nas palavras de 7:29, que acabamos de ler, uma insinuação de que foia
queda do homem que deu lugar a esse decreto. Também é verdade que, em
Romanos 8:18-25, Paulo pega essa figura da “criação... sujeita à vaidade” para o
forte impulso que esta gera. A ênfase de Eclesiastes, contudo, está nas coisas
que parecem nunca mudar, e sobre os desapontamentos com os quais temos de
conviver aqui e agora.
Tudo isto vem de Deus: a trama geral da vida e seus mínimos detalhes,
estejam ou não de acordo como nosso gosto e o nosso senso de propriedade.
Algumas vezes eles fazem sentido para nós, pois via de regra o pecador recebe
uma dose extra de frustração ao ver que Deus cuida dos seus (2:26); mas o fato
é que nada nos pertence e não podemos contar com nada. Se o pecador é
atormentado, ele não é o único. A tragédia pode abater-se sobre qualquer um, e
3
Cf. 11:1-6
4
Veja o comentário sobre 7:29

2
Deus está por trás de tudo. O capítulo 6:1-6 é uma das passagens onde isto é
considerado: apresenta o fato de que, quanto mais a gente se acha com o direito
e quanto mais coisas se tem, mais difícil se torna quando Deus o retira, o que
pode acontecer a qualquer momento (6:2ss) e ele certamente o fará. Pois “não
vão todos para o mesmo lugar?” (v. 6b) – isto é, para a sepultura.
Assim somos impulsionados a enfrentar os mistérios dos caminhos de Deus
nos termos desses três títulos, ele vem agora ao nosso encontro como Sabedoria
Inescrutável, reduzindo os nossos mais brilhantes pensamentos a pouco mais
que conjecturas.
A passagem onde isto aparece de forma mais promissora e cheia de graça é
3:11, um dos inesperados pontos culminantes do livro. “Tudo fez formoso no seu
devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem, sem que este
possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até o fim.” Esta simples
sentença capta a beleza deslumbrante e assustadora de um mundo tão mutante
que o seu padrão total fica além do nosso entendimento. Mas é um padrão. Nós,
ao contrário dos animais, podemos captar o suficiente para termos a certeza
disso, ainda que nunca o suficiente para percebermos o todo.
Uma das conseqüências é que não podemos extrapolar o presente. Se as
coisas vão bem ou mal, temos de aceitá-las como são, sabendo que o quadro
completo mudará e continuará mudando. “Deus fez assim este como aquele” –
os bons e os maus tempos – “para que o homem nada descubra do que há de vir
depois dele” (7:14).
Obviamente o futuro está assim oculto. O que não é tão óbvio é que o
presente, que permanece aberto à nossa inspeção, também nos engana. Assim
como o futuro, ele pertence a Deus. “Então contemplei toda a obra de Deus, e vi
que o homem não pode compreender a obra que se faz debaixo do sol” (8:17) –
não pode, em outras palavras, compreender as atividades comuns que o cercam.
“por mais que trabalhe o homem para descobrir”, Coelet prossegue, “não a
entenderá”. Filosofias são criadas, mas cada uma delas acabará sendo
insuficiente: “ainda que o sábio diga que virá a conhecer, bem por isso a poderá
achar”. Isto está enfaticamente expresso em 7:23,24: “(Eu) disse: Tornar-me-ei
sábio, mas a sabedoria estava longe de mim. O que está longe e mui profundo,
quem o achará?”
Esta obscuridade é intelectualmente provocante; apesar disso, podemos
desfrutrar um grande problema como exercício mental. “A questão é totalmente
outra se nos pomos a conjeturar se o universo, ou até mesmo Deus, é ou não é
hostil. Mas é exatamente isto que não podemos descobrir sozinhos, e nada há
que possamos fazer para assumir o controle. Este parece ser o significado de
9:1, ao falar das coisas que “estão nas mãos de Deus”. Mas que tipo de Deus?
Para o homem que conhece o Deus de Israel, nada poderia parecer mais
tranqüilizador; mas para quem esteja tateando em busca do significado da vida é
uma idéia paralisante. “Se é amor ou se é ódio que está à sua espera, não o
sabe o homem”. Ele deve orientar pelos prazeres da natureza ou por sua
crueldade? Pelos sorrisos da sorte ou por suas carrancas – e esta certamente
não pode ser controlada, seja através de um bom comportamento ou de uma boa
gerência.
Isto nos leva ao outro aspecto da vida que somos convidados a examinar.

Fatos a enfrentar a partir da experiência


Uma das passagens mais fascinantes do livro é uma viagem de exploração
através das recompensas e satisfações da experiência. 5 Com Coelet, vestimos o
manto de um Salomão, o mais brilhante e menos limitado dos homens, para
iniciar essa pesquisa. Tendo todos os dons e poderes à nossa disposição, seria
estranho se voltássemos de mãos vazias.
Começamos com a sabedoria – a mais promissora das buscas. Neste mundo
5
Veja os comentários mais completos sobre esta passagem (1:16-2:26).

2
desordenado, porém, “na muita sabedoria há muito enfado” (1:18) e isso decorre
da própria percepção adquirida. E, em última análise, seja o que for que a
sabedoria possa fazer por alguém, ela nada pode fazer quanto ao final da vida.
Nesta crise o sábio fica tão desarmado quanto o estulto (2:15-17), e se sua
sabedoria não vale nada neste aspecto, não passa de um fracasso pretensioso.
Então passamos para a “loucura” e a “estultícia” (1:17; 2:3b). e isto parece
bem atual, fazendo coro com algumas de nossas tentativas de desviar-nos do
que é racional, passando a explorar o absurdo e o mundo das alucinações. O
prazer, naturalmente, é um outro reino: um reino de muitos aspectos que apena
para os apetites sensuais numa das pontas da escala (2:3, 8c) e para as alegrias
da estética do especialista e o trabalho criativo na outra.
Mesmo na melhor das hipóteses, esta busca só vai nos satisfazer de
passagem. Então vem o reconhecimento: “Considerei todas as obras que fizeram
as minhas mãos” (2:11) e, pensando na morte, o cômputo final resulta em nada.
O que torna tudo ainda mais doloroso é saber que este resultado nulo é uma
obliteração, um desfazimento. Os valores existem, sim: “a sabedoria é mais
proveitosa do que a estultícia quanto a luz traz mais proveito do que as trevas”
(2:13); mas nenhum valor permanecerá quando não estivermos mais aqui, ou se
não houver ninguém para lhes dar valor.
O segundo fato é a existência do mal. Este é tão tirano quanto a própria
morte, e ainda mais trágico. A transitoriedade da vida é muito triste, mas os
seus males podem ser suportáveis.
Coelet observa tanto os pecados banais quanto os grandes: a inveja que
inspira ou até mesmo resulta em sucesso (4:4); a fixação no dinheiro que
transforma o magnata solitário em uma figura patética e sem sentido (4:7,8); e a
vaidade que mantém por muito tempo um tolo no seu posto (4:13), considerando
apenas alguns deles. Mas ele lamenta principalmente “as opressões que se
fazem debaixo do sol” (4:1). “No lugar do juízo reinava a maldade” (3:16). “A
violência na mão dos opressores” (4:1). A própria estrutura da sociedade
contribui para essas coisas (5:8); no entanto, estas não são enfermidades apenas
dos governantes, mas da humanidade. “Não há homem justo sobre a terra”
(7:20); realmente, “o coração dos homens está cheio de maldade, neles há
desvarios enquanto vivem” (9:3). O leitor pode refletir sobre a insanidade
coletiva que visivelmente toma conta de uma sociedade de tempos em tempos,
mas não pode ignorar também a loucura que permanece invisível porque
participa dela como o clima do seu século.
Ainda por cima, como se a morte e o mal não bastassem, há ainda o fator
menor, mas igualmente incontrolável, “do tempo e do acaso”, que é preciso
reconhecer (9:11). O homem bem organizado pode regalar-se na sua auto-
suficiência, porém Coelet vê através dela, é pura decepção. Até mesmo os
prêmios mais específicos e mais previsíveis da vida (para não se falar da busca
de algo definitivo) podem se perder, e o homem acaba sem nada. “Não é dos
ligeiros o prêmio, nem dos valentes a vitória” – pelo menos, não e assim tão
garantido. “Pois o homem não sabe a sua hora” (9:12). Ele pode até fingir que
sabe, mas o faz-de-conta não serve como base para a sua vida. Basta
lembrarmos o comentário final acerca do homem que pensou em tudo menos
nisso: “Deus lhe disse: Louco!...”

De volta ao alicerce
Se pouca coisa restou depois desta análise, é exatamente isto que o escrito
pretende, mas apenas como trabalho preliminar. Ele está demolindo para
reconstruir. Se prestarmos atenção, veremos que as perguntas penetrantes que
ele levanta são aquelas que a própria vida nos faz. Ele pode fazê-las porque nos
capítulos finais tem boas novas para nós, contanto que paremos de fazer de
conta que as coisas mortais no bastam, a nós que temos a capacidade de
receber o que é eterno.

2
São novas, paradoxalmente, de juízo.
Para tornar esse paradoxo mais inteligível, seria bom divagarmos por
algum tempo examinando um velho exemplo de secularismo radical, sem o
abrandamento de nossas modernas fantasias utópicas e sem a formalidade de
algum sentimento transcendente: apenas pela sua própria espirituosidade e fria
imparcialidade. A passagem, muito livremente parafraseada e apresentada aqui,
é o diálogo entre um senhor e seu servo, ambos mesopotâmios, escrito talvez
antes do tempo de Moisés.6
– Servo, obedeça-me
– Sim, senhor, sim.
– A carruagem... Prepare-a. Vou ao palácio.
– Vá, meu senhor, vá!... O rei há de ser benevolente.
– Não, servo, não vou ao palácio.
– Não vá, meu senhor, não vá. O rei pode enviá-lo a algum lugar longínquo.
O senhor não terá mais um momento de paz.
Então ele resolve jantar, o que o servo acha muito conveniente. Não há
nada mais agradável e confortador, não é mesmo? Mas o capricho passa: ele
resolve não jantar mais. O servo acha isto muito adequado: existe algo mais
vulgar do que comer?
E assim o diálogo prossegue. Ele vai caçar... Mas resolve não ir mais. Ou,
quem sabe vai liderar uma rebelião... ou não. Guardará um silencia esmagador
quando encontrar o seu rival... Ou melhor ainda, vai falar com ele. Cada idéia é
rematada pelo servo com alguma observação bajuladora, e cada idéia oposta
com uma observação ainda mais profunda.
Então ele sente desejo de amar (“Oh, sim! Não há nada melhor do que isso,
senhor, para espairecer.”), mas logo muda de idéia (“Que sabedoria! As
mulheres são uma armadilha, uma faca na garganta.”). Isso! Ele será um
filantropo. Mas, por outro lado... (“Certo, senhor; de que adiantaria? Pergunte
aos esqueletos no cemitério!”).
Neste espírito ilusório e fútil, idéia após idéia, valor após valor são
apanhados, desejados e abandonados. No final, o cavalheiro brinca com uma
questão séria: “O que seria bom?” Sua própria resposta nos apanha de surpresa:
“Quebrar o pescoço, o meu e o teu, jogar os dois no rio, isto seria bom.” É claro
que ele muda de idéia: ele vai quebrar apenas o pescoço do seu servo e mandá-
lo na frente.
Como já era de se esperar, o servo tem a última palavra: como poderia o
senhor sobreviver por três dias que fossem, sem ninguém para tomar conta
dele?
Talvez apreciemos esta conversa de acabar com tudo em um pacto de
morte. É um final interessante para a comédia. Mas a verdade é mais real do
que parece, pois quando aprendemos a rir de tudo, logo descobrimos que não
temos mais nada que valha a pena uma risada. A trivialidade é mais asfixiante
do que a tragédia, e a indiferença é o comentário mais desesperado de todos.
A função de Eclesiastes é levar-nos ao ponto de começarmos a temer que
esse comentário seja o mais honesto. É o que acontece, quando tudo morre.
Enfrentamos a espantosa conclusão de que nada tem significado, nada vale a
pena debaixo do sol. É então que podemos ouvir a boa nova de que tudo vale a
pena, “porque Deus há de trazer a juízo todas as obras até as que estão
escondidas, quer sejam boas, quer sejam más”.
É assim que o livro termina. Sobre esta rocha podemos até ser destruídos:
mas é uma rocha, e não areia movediça. Pode ser que também possamos
edificar.

6
Traduzido, por exemplo em ANET, pág 438

2
Segunda Parte
O que o livro diz!
- um breve comentário

Eclesiastes 1:1-11 -
O autor, o tema e o reconhecimento do cenário

Apresentando o autor
1:1 Palavra do Pregador, filho de Davi, rei de Jerusalém:

Existe na forma Omo este escritor se anuncia um quê de mistério – e este


toque curioso não parece ser involuntário. Primeiro, ele chega quase ao ponto
de se chamar Salomão, mas não o faz. Este nome mão aparece no livro, ao passo
que tanto Provérbios quanto Cantares declaram abertamente a sua autoria.
Depois vem a curiosidade do título duplo, eclesiástico e real, 7 quase como se
alguém falasse de “O Vigário, Rei da Inglaterra!” Veremos uma outra
observação enigmática no versículo 16, com a reivindicação de uma sabedoria
que sobrepujava “a todos os que antes de mim existiram Jerusalém”. Isto exclui
qualquer sucessor do incomparável Salomão, mas quase exclui também o
próprio Salomão, que teve apenas um predecessor israelita. 8
Se acrescermos a isto o fato de que todos os sinais de realeza desaparece
depois dos dois primeiros capítulos,9 torna-se evidente que devemos considerar
o título que não é real como sendo o título do autor, e o real como um simples
meio de dramatizar a busca por ele descrita nos capítulos ume dois. Ele nos
descreve um super-Salomão (como dá a entender como termo “sobrepujei” em
1:16) para demonstrar que o homem mais dotado que posssamos imaginar, que
ultrapasse qualquer outro rei que já tenha ocupado o trono de Davi, ainda
retornaria com as mãos vazias na busca da auto-satisfação. 10
Da descrição mais completa do autor em 12:9ss. temos o retrato de um
mestre cuja vocação é ensinar, pesquisar, editar e escrever. O que o seu livro
como um todo nos ensina indiretamente é que ele é tão sensível quanto
corajoso, eu m mestre do estilo.

O tema

7
Veja a nota de rodapé à pág 1, quanto ao significado de Coelet (“O Pregador”).
8
Também o sentido e um longo retrospecto nesta frase parece ter surgido devido à
forma aparentemente avançado do hebraico neste livro, o qual parece ser um estágio no
meio do caminho entre o hebraico clássico e o rabínico. Contudo, isto não é conclusivo,
uma vez que se pode argumentar que muitos dos seus aspectos são do dialeto fenício,
não indicando data. Sobre isto, veja os comentários feitos pod M.J. Dahood em Biblica 33
(1952), pg 32-52 e 191-221; também em Bibliba 39 (1958), pg 302-318; e por G.L.
Archer em Bulletin of the Evangelical Theological Society 12 (1969) pg 167-181. Este
último argumenta em favor da autoria de Salomão, chamando a atenção para os seus
laços íntimos com os fenícios.
9
Apenas o título Coelet (“O Pregador) será usado daqui em diante (7:27; 12:8-10), e a
postura do escritor se tornará a de um simples observador, não a de um
governante.Veja, por exemplo, 3:16; 4:1-3 5:8ss.
10
Veja também o comentário e anota de rodapé sobre 1:12

2
1: 2 Vaidade de vaidades, diz o Pregador; vaidade de vaidades, tudo é
vaidade.
Um pouquinho de fumaça, uma rajada de vento, um simples sopro – nada
que se possa pegar com as mãos, a coisa mais próxima do zero. Isto é a vaidade
que se trata este livro.
O que nos perturba esta leitura sobre a vida é que tal nulidade não é
considerada como uma simples chamuscada sobre a superfície das coisas, ainda
que tenha um certo charme. É a soma total das coisas.
Se este é o caso, como argumenta no resto do livro, vaidade acaba
tornando-se uma palavra desesperadora. Ela deixa de significa simplesmente o
que é banal e passageiro e passa a descrever, desastrosamente, aquilo que não
tem sentido. O autor dobra e redobra esta palavra amarga, usando-a duas vezes
na mesma frase, como se fosse uma paródia do conhecido superlativo “santo dos
santos”. A nulidade completa apresenta-se aqui em mudo contraste com a
santidade completa, aquela realidade poderosa que deu forma e característica à
tradicional piedade de Israel. Finalmente ele conclui de maneira sucinta: “Tudo
é vaidade.” Em termos atuais a conclusão poderia ser:
“Futilidade total... futilidade total. Tudo isso não passa de futilidade”
Porém o que é “tudo isso” será que inclui a divindade – ou mesmo o próprio
Deus? Ou será que todas as coisas estão desprovidas disso?
O autor não tem pressa de responder. Antes de dar alguns toques sobre o
seu próprio ponto de vista, ele quer que examinemos muito de perto o mundo
que vemos e as respostas que este parece nos dar. A primeira destas leves
indicações vem logo a seguir na frase debaixo do sol (1:3), que vai se
transformar em uma espécie de tônica do livro, repetindo-se cerca de trinta
vezes em seus doze pequenos capítulos. A menos que isto não passe de um
hábito (se bem que este autor não é de desperdiçar palavras) , fica bem claro
que o quadro que ele tem em mente é exclusivamente o mundo que podemos
ver, e que o nosso ponto de vista está ao nível do chão.
Neste caso não só a exclamação “Vaidade de vaidades!”, mas todos os
comentários sobre a vida que se lhe acrescentam já têm seus limites, seu
sistema de coordenadas, esboçados nessa frase. No final do livro serão traçadas
linhas muito firmes, e Coelet se revelará um homem de fé. Até lá, elas são
introduzidas co o mais leve dos toques, e suas implicações serão descobertas
posteriormente. Podemos tradicionalmente chamar este homem de “o
Pregador”; mas ele coloca-se tão perto de seus ouvintes que suas palavras
poderiam lhes parecer a personificação de seus pensamentos mais radicais. A
diferença é que ele segue essas trilhas de pensamento para muito além do que
eles se disporiam a ir. Caminho após caminho, todos são incansavelmente
explorados até chegar ao ponto do nada. No final, apenas um caminho ficará.
O processo foi tão admiravelmente descrito por G.S. Hendry que seria uma
pena não citá-lo neste ponto:
“Coelet escreve a partir de premissas ocultas,e o seu livro é na realidade
uma grande obra de apologética... Seu aparente mundanismo é ditado pelo seu
alvo: Coelet dirige-se ao público em geral, cuja visão é limitada pelos horizontes
deste mundo; ele vai ao encontro desse público no seu próprio espaço, e
prossegue convencendo-o de sua inerente vaidade. Isto se confirma ainda mais
CPOR sua expressão característica ‘debaixo do sol’, com a qual ele descreve o
que o Novo Testamento chama de ‘o mundo’... Seu livro é de fato uma crítica ao
secularismo e à religião secularizada.”11

A rotina
1: 3 Que proveito tem o homem de todo o seu trabalho, com que se afadiga
debaixo do sol?
11
G.S. Hendry, Introdução ao artigo “Eclesiastes”, em The New Bible Commentary
Revised (IVP, 1970) pg 570

2
4 Geração vai e geração vem; mas a terra permanece para sempre.
5 Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar, onde nasce de novo.
6 O vento vai para o sul e faz o seu giro para o norte; volve-se, e revolve-
se, na sua carreira, e retorna aos seus circuitos.
7 Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para
onde correm os rios, para lá tornam eles a correr.
8 Todas as coisas são canseiras tais, que ninguém as pode exprimir; os
olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos de ouvir.
9 O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada
há, pois, novo debaixo do sol.
10 Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Não! Já foi nos
séculos que foram antes de nós.
11 Já não há lembrança das coisas que precederam; e das coisas
posteriores também não haverá memória entre os que hão de vir depois delas.

Já demos uma olhada nesta passagem para observar a frase debaixo do sol,
que arma o cenário para o livro como um todo de acordo com esta introdução, a
seqüencia considera a vida dentro dos limites mundanos que são iguais para
todos os homens.
Que proveito tem o homem... ? é uma pergunta prática e característica. A
palavra aqui traduzida como “proveito” extraída do mundo dos negócios, só se
encontra neste livro nas Escrituras. 12 Mas antes de a excluirmos como cínica ou
mercenária, lembremo-nos de uma pergunta parecida no Evangelho: “Que
aproveita ao homem... ?”13 Esta não é a única passagem em que Cristo e Coelet
falam a mesma linguagem. É uma pergunta justa. Qualquer idéia romântica que
pudéssemos ter, enfrentado uma situação desesperadora, ela logo se evaporaria
se não houvesse um outro tipo de situação. Mas quem nos garante que um dia a
situação será outra? “A gente gasta a vida trabalhando, se esforçando, e a final
que vantagem leva em tudo isso?”14 – esta poderia ser uma tradução livre deste
versículo.
Ah! Mas existe quem ache que pode transformar o mundo em um lugar
melhor, ou pelo menos deixar alguma coisa para aqueles que virão depois. Como
se já esperasse esta resposta, Coelet aponta para o constante fazer e desfazer
na história da humanidade: gerações após gerações se levantam e caem,
homens vêm e logo são esquecidos; tudo isto tendo como impassível cenário a
terra, que vê todas as gerações passarem e continua existindo. Sem dúvida ela
verá o último de nós que ficar em cena – e o que homem lucrará com isso?
Além disso, por mais que a terra continue existindo, o próprio padrão do
mundo é tão intranqüilo e repetitivo quanto o nosso. Tantas coisas que começam
bem voltam atrás. Tantas jornadas acabam onde começaram. Coelet destaca
três exemplos desta rotina infinita da natureza, começando como mais óbvio de
todos, o sol, que percorre a sua grande curva no céu até o seu declínio; e, tendo
concluído, apressa-se15 em repetir o que fez dia após dia. Os outros dois
exemplos parecem a princípio oferecer uma válvula de escape do círculo vicioso
– pois o que seria mais livre do que o vento ou menos reversível do que uma
torrente? Mas acompanhe o processo até o fim e você retornará ao começo. O
vento “volve-se e revolve-se”; e as águas, como é dito em Jó 36:27ss, são
recolhidas para regar a terra novamente. Assim as coisas mais regulares do
12
A BLH força um pouco a tradução do v.12 dizendo: “Será que um rei pode fazer
alguma coisa que seja nova? Não. Só pode fazer o que fizeram os reis que reinaram
antes dele”
13
Mc 8:36
14
1:3 (BLH)
15
A palavra aqui traduzida como volta (v.5) é literalmente o verbo “ofegar”, se de avidez
ou de cansaço o autor não diz. Em outras passagens o termo tem quase uma conotação
de avidez (p.e. Jó 5:5; 7:2; Sl 119:131), mas o contexto é sombrio (cf. v.8) e a palavra
pode indicar também desespero (Is 42:14)

2
mundo, que nos falam em nome de Deus e de suas misericórdias que “se
renovam a cada manhã”, dar-nos-ão uma resposta muito diferente se buscarmos
algum significado nelas mesmas. O versículo 8 resume esse infindável ciclo
taxando-o de indizível canseira.16
Tudo isto apresenta um espelho para o cenário humano. Como o oceano, os
nossos sentidos são alimentados mais e mais, mas nunca se satisfazem. Como o
ciclo da natureza,a nossa história está sempre retornando, deixando de cumprir
a sua promessa. E a jornada continua, sem nunca chegarmos ao destino.
Debaixo do sol não existe um lugar para onde ir, nada que satisfaça
completamente ou que seja realmente novo. Quanto a colocarmos as nossas
esperanças na posteridade, no final a posteridade terá perdido qualquer
lembrança dos que ficaram no passado (v.11).
A esta altura, temos que fazer uma pausa para esclarecer duas coisas.
Primeiro, o que vamos fazer com o famoso ditado: Não há nada novo debaixo do
sol? Até que ponto ele é verdadeiro? Talvez a própria forma como costumamos
usá-lo nos dê a melhor resposta. Nós o enunciamos como um comentário geral
sobre o cenário da humanidade, e não como um pronunciamento sobre as
invenções. Ninguém – muito menos Coelet – há de negar a capacidade inventiva
do homem. Mas plus ça change, plus c’est La même chose : quanto mais as
coisas mudam, mais se revelam as mesmas. As coisas antigas prosseguem em
seu novo disfarce. Como raça, jamais aprendemos.
A segunda pergunta é sobre quanto abrange o tema do círculo vicioso. Para
alguns escritores esta idéia lembra os estóicos e sua visão totalmente circular do
tempo, através da qual toda a trama da existência deve tecer o seu próprio
padrão repetidas vezes, até os mínimos detalhes, a intervalos predeterminados,
infinitamente. Desta forma todo o futuro estaria destinado a voltar à mesma
situação na qual você, leitor, encontra-se agora; e isto não uma só vez, mas
vezes incontáveis.
Por si mesmos, os versículos 9 e 10 (O que foi, é o que há de ser...)
significariam exatamente isso. Mas eles se encontram em um livro que
apresenta escolhas morais genuínas usando palavras tais como “justo” e
“perverso”, e que aponta para um julgamento futuro que não teria sentido caso
fôssemos apanhados em um processo que não nos desse alternativas. O que
vemos aqui é a fadiga de se lutar e não conseguir nada; e, embora seja muito
diferente do fatalismo que estivemos considerando, também está muito longe do
sentido de peregrinação que domina o Antigo Testamento.
Seria isto um sinal de falta de convicção? Gerhard vol Rad comenta que
com este autor “a literatura da Sabedoria perdeu o último contato coma antiga
maneira de pensar de Israel em termos de história conservadora e, muito
consistentemente, retrocedeu ao modo cíclico de pensar comum no Oriente...
apenas... de uma forma total secular”.17 Este é um comentário correto, se “o
modo cíclico de pensar” significa apenas uma preocupação com a sucessão das
estações e com os ritmos da vida.18 Mas é fácil esquecer que, se Coelet está
assumindo a posição do homem do mundo para mostrar no que isto implica, é
justamente o ponto de vista que ele tem que expor. E se assim o faz para
denunciar tal posição e despertar o desejo de alguma coisa melhor, como os
últimos capítulos vão mostrar, então não deve ser identificado com ela a não ser
por causa de sua solidariedade e de sua profunda visão interior.
16
Uma outra tradução do versículo 8a, favorecida por alguns comentaristas seria:
“Todas as palavras são frágeis”, isto é, “a cena está além da descrição”. Mas o adjetivo
em outras passagens significa “cansado” (Dt 25:18; 2Sm 17:2) e a passagem como um
todo não está enfatizando a complexidade, mas o ciclo incessante da natureza.
17
G. Von Rad, Old Testsament Theology (trad. Inglesa Oliver e Boyd, 1962), I, Pg 455
18
O. Loretz, Qohelet und der Alte Orient (Herder, 1964), pg 247ss, critica von Rad e
outros por descreverem o pensamento do antigo Oriente ou de Coelet como cíclico. Mas
com cíclico quer dizer o firme determinismo do sistema estóico (Lonretz, pg 251), que
Von Rad não está discutindo neste ponto.

2
Eclesiastes 1:12-2:26 -
Em busca de satisfação

O investigador
1: 12 Eu, o Pregador, venho sendo rei de Israel, em Jerusalém.
13 Apliquei o coração a esquadrinhar e a informar-me com sabedoria de
tudo quanto sucede debaixo do céu; este enfadonho trabalho impôs Deus aos
filhos dos homens, para nele os afligir.

O poema que acabamos de considerar estabelece a tônica do livro através


do seu tema e do quadro que apresenta de um mundo infinitamente ocupado e
desesperadamente inconclusivo.
Agora o foco se define. Voltamo-nos de analogias e impressões para o que
podemos conhecer diretamente através da experiência. Vamos esquadrinhar
uma vastidão de ocupações humanas, indagando se existe na terra alguma coisa
que tenha valor duradouro. O autor nos impressiona coma urgência da
investigação: acabamos fazendo parte dela. Mas a sua curiosa mescla de títulos,
“Coelet” e “Rei”, alerta-nos para o caráter duplo com que ele se apresenta,
como já vimos no início.19 Nesta passagem, o pregador torna-se um segundo
Salomão, para que em nossa imaginação possamos fazer o mesmo. Armados de
tais vantagens, nossa pesquisa irá muito além de uma experiência simples e
limitada: será algo grandioso, explorando tudo o que o mundo possa oferecer a
um homem de gênio e de riqueza ilimitados. Nesta área de conhecimento,
podemos aceitar suas descobertas como definitivas. Cotando suas palavras
(2:12): “Que fará o homem que seguir ao rei?”
Talvez possamos, de passagem, comparar este reconhecimento superficial
com outra passagem escrita na primeira pessoa: o exame do coração humano
que Paulo descreve no final de Romanos 7. Cada uma destas duas confissões
tem uma referência mais ampla do que o homem que está falando. Entre elas,
Coelet e Paulo exploram para nós o mundo exterior e o interior do homem, sua
busca por um significado e sua luta por uma vitória moral.
Com sua habitual franqueza, Coelet logo nos declara o pior: sua pesquisa
resultou em nada. Para nos poupar do desapontamento de nossas esperanças,
ele nos adverte do resultado (1:13b-15) antes de nos levar consigo em sua
jornada (1:16-2:11); e finalmente compartilha conosco as conclusões a que
chegou (2:12-26).

O Resumo
1: 13 Apliquei o coração a esquadrinhar e a informar-me com sabedoria de
tudo quanto sucede debaixo do céu; este enfadonho trabalho impôs Deus aos
filhos dos homens, para nele os afligir.
14 Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo
era vaidade e correr atrás do vento.
15 Aquilo que é torto não se pode endireitar; e o que falta não se pode
calcular.

Discreta, mas significativamente, Coelet resume suas descobertas em

19
Veja os comentários acerca de 1:1. Compare a expressão: “Eu venho sendo rei” (ou
“me tornei rei”, que seria a tradução mais natural), no versículo 12, com Zc 11:7ss:
“Apascentei as ovelhas (ou, tornei-me pastor)... Dei cabo de três pastores...”, etc.... que
usam igualmente uma linguagem autobiográfica, que não deve ser tomada literalmente,
ou com a intenção de enganar, mas que visa apresentar-nos uma sequência iluminadora
dos acontecimentos com muita vivacidade.

2
termos que por um breve momento saem do campo de visão do secularista. Ele
vê a inquietação da vida que qualquer observador poderia perceber; no entanto,
relaciona-a coma vontade divina: foi Deus que a impôs aos filhos dos homens.
Isto talvez pareça mais amargura do que fé, mas é na verdade uma indicação de
algo positivo que será retomado nos capítulos finais. Na pior das hipóteses,
implicaria que, por detrás da nossa situação, existe sempre algum sentido (e não
o contra-senso do acaso), mesmo que este nos pareça totalmente desanimador.
Mas bem que poderia também fazer parte da justa disciplina que Deus nos
impôs como seqüela da Queda. Foi assim que Paulo (com uma evidente
perspectiva de Eclesiastes) interpretou o sofrimento do mundo: “Pois a criação
está sujeita à vaidade... por causa daquele que a sujeitou, na esperança...”20
Essa esperança, contudo, fica totalmente além do nosso próprio alcance,
como veremos adiante. E o versículo 15 traz mais dois lembretes das nossas
limitações, coma concisão de um provérbio. A ER capta bem o sentido: “O que é
torto não se pode endireitar; o que falta não se pode enumerar.” Se esta
tortuosidade e esta falta significam as nossas próprias falhas de caráter ou as
circunstâncias que não podemos alterar,21 deparamo-nos novamente com o que
podemos fazer. Com esta advertência, juntemo-nos agora a Coelet em suas
diversas experiências.

Experimentando a vida
1: 16 Disse comigo: eis que me engrandeci e sobrepujei em sabedoria a
todos os que antes de mim existiram em Jerusalém; com efeito, o meu coração
tem tido larga experiência da sabedoria e do conhecimento.
17 Apliquei o coração a conhecer a sabedoria e a saber o que é loucura e o
que é estultícia; e vim a saber que também isto é correr atrás do vento.
18 Porque na muita sabedoria há muito enfado; e quem aumenta ciência
aumenta tristeza.
2: 1 Disse comigo: vamos! Eu te provarei com a alegria; goza, pois, a
felicidade; mas também isso era vaidade.
2 Do riso disse: é loucura; e da alegria: de que serve?
3 Resolvi no meu coração dar-me ao vinho, regendo-me, contudo, pela
sabedoria, e entregar-me à loucura, até ver o que melhor seria que fizessem os
filhos dos homens debaixo do céu, durante os poucos dias da sua vida.
4 Empreendi grandes obras; edifiquei para mim casas; plantei para mim
vinhas.
5 Fiz jardins e pomares para mim e nestes plantei árvores frutíferas de
toda espécie.
6 Fiz para mim açudes, para regar com eles o bosque em que reverdeciam
as árvores.
7 Comprei servos e servas e tive servos nascidos em casa; também possuí
bois e ovelhas, mais do que possuíram todos os que antes de mim viveram em
Jerusalém.
8 Amontoei também para mim prata e ouro e tesouros de reis e de
províncias; provi-me de cantores e cantoras e das delícias dos filhos dos homens:
mulheres e mulheres.
9 Engrandeci-me e sobrepujei a todos os que viveram antes de mim em
Jerusalém; perseverou também comigo a minha sabedoria.
10 Tudo quanto desejaram os meus olhos não lhes neguei, nem privei o
coração de alegria alguma, pois eu me alegrava com todas as minhas fadigas, e
isso era a recompensa de todas elas.

20
Rm 8:20
21
A segunda alternativa parece ser a mais provável, à vista de 7:13 com 7:29, que falam
de Deus como sendo o autor das coisas “tortas” no sentido de fatos estranhos e
irreversíveis, mas não moralmente maus.

2
11 Considerei todas as obras que fizeram as minhas mãos, como também o
trabalho que eu, com fadigas, havia feito; e eis que tudo era vaidade e correr
atrás do vento, e nenhum proveito havia debaixo do sol.

Para um pensador tão famoso, a investigação tinha naturalmente de


começar com a sabedoria, a qualidade mais louvada em seus círculos. Contudo,
ele nada diz sobre seu primeiro princípio, o temor do Senhor, e podemos
presumir que a sabedoria da qual ele fala é (segundo o seu método) o melhor
pensamento que o homem pode ter por si mesmo. A sabedoria é esplêndida em
toda a sua extensão: nada se pode comparar a ela (2:13); mesmo assim, ela não
dá respostas às nossas dúvidas acerca da vida. Apenas as aguça ainda mais com
sua perspicácia.
Assim Coelet considera a sabedoria com a devida seriedade, como uma
disciplina que se ocupa de questões máximas, e não simplesmente como um
instrumento para realizar as coisas. Se isto fosse tudo, nada poderíamos esperar
dela além do sucesso material. Mas a sabedoria preocupa-se coma verdade,e a
verdade nos compele a admitir que o sucesso nos faz mal e que nada no mundo
permanece. Ele ainda vai dizer algo mais sobre isto; por enquanto, seu primeiro
ponto sobre o descanso foi apresentado.
Então ele mergulha na frivolidade. Mas uma parte dele se retrai – regendo-
me, contudo, pela sabedoria – para ver a que a frivolidade como estilo de vida
conduz, e o que faz ao homem. Imediatamente ele percebe o “paradoxo do
hedonismo”: quanto mais se busca o prazer, menos ele é encontrado. De
qualquer forma, a pessoa está buscando algo além do prazer e através dele, pois
isto é mais que uma simples indulgência. É uma fuga deliberada da
racionalidade, para chegar a um segredo da vida AL qual a razão talvez tenha
bloqueado o caminho. Nisto reside a força do versículo 3b: “entregar-me à
loucura até ver o que melhor seria que fizessem os filhos dos homens...”
Neste ponto nos aproximamos muito do nosso próprio tempo com o seu
culto irracional em suas variadas formas, desde o romantismo até a ânsia que
manifestam os diferentes estados de consciência, e daí ao niilismo, que cultiva o
feio, o obsceno e o absurdo, não por divertimento, mas como um ataque aos
valores racionais. Embora nada disso apareça em Coelet, sua avaliação das
experiências com a loucura prova que ele está perturbado e igualmente
desapontado com o veredito ainda mais forte acerca do riso (É loucura); e nas
Escrituras tanto a “loucura” como a “estultícia” pressupõem mais perversidade
moral do que desarranjo mental.22 Para merecer tal observação, o riso que
acompanha este tipo de vida tem de ser cínico e destrutivo. Neste caso, não
estamos muito longe de nossas comédias trágicas e do humor negro.
Como que reagindo fortemente aos prazeres fúteis, agora se entrega às
alegrias da criatividade. Dedica suas energias a um projeto digno de seus
talentos estéticos, de seu domínio das artes e das ciências, e de sua habilidade
para comandar um grande empreendimento. Ele cria um pequeno mundo dentro
do mundo: multiforme, harmonioso e exótico, um Jardim do Éden secular, cheio
de deleites civilizados e deliciosamente não civilizados (v.8), 23 sem frutos
22
Por exemplo, em 9:3, “maldade” está associada a “mal” e, em 10:13, a palavra usada
para “estultícia” é considerada como um passo na direção da “loucura perversa”. Da
mesma forma, agir estultamente (usando uma palavra relacionada com “estultícia”)
geralmente implica em uma atitude fatalmente voluntariosa; cf 1Sm 13:13; 26:21; 2Sm
24:10).
23
A palavra sidda, que aparece apenas aqui, tem sido aceita como significando
“instrumento musical” (ERC). Mas em uma carta de Faraó Amenofis III ao príncile
Milkilu de Gezer, em que são exigidas quarenta concubinas, a palavra egípcia para
concubina está acompanhada de uma palavra cananita explicatória de sidda.
“Concubina” é usada então corretamente na ER. A BJ traz a palavra “cofres” (isto é,
“arcas de tesouro”), mas sugere em suas anotações “princesas” ou “concubinas” e a
ERAB, não erra, então, com a tradução “mulheres”.

2
proibidos – ou algo que ele assim considere (v.10). para tanto, ele resolve fugir
do tédio dos ricos através de uma atividade constante, desfrutada e valorizada
por seu próprio bem (v.10); e mantém um olho crítico sobre os seus projetos,
mesmo enquanto os executa. “Perseverou também comigo a minha sabedoria”,
ele nos diz (v.9). não perde de vista busca, a investigação do significado da vida,
que constituía o motivo principal de tudo.
No final qual foi o resultado? Um espírito menos exigente do que Coelet
teria encontrado muita coisa positiva para contar. As realizações foram
brilhantes. No nível material, a ambição perene do lavrador de fazer (com
nossas palavras) “duas folhas de capim crescerem onde antes só havia uma” foi
indiscutivelmente atingida; esteticamente falando, ele criou um paraíso único.
Se “a beleza produz alegria”, ele não buscou em vão pelo que é infinito e
absoluto.
Assim pensamos nós.
Coelet não pensa assim. Chamar tais coisas de eternas não passa de
retórica, e nada que seja perecível vai satisfazê-lo. Nos termos coloquiais da
BLH, ele diz: “Compreendi que tudo aquilo era ilusão, não tinha nenhum
proveito. Era como se eu estivesse correndo atrás do vento”.

A avaliação
2: 12 Então, passei a considerar a sabedoria, e a loucura, e a estultícia.
Que fará o homem que seguir ao rei? O mesmo que outros já fizeram.
13 Então, vi que a sabedoria é mais proveitosa do que a estultícia, quanto
a luz traz mais proveito do que as trevas.
14 Os olhos do sábio estão na sua cabeça, mas o estulto anda em trevas;
contudo, entendi que o mesmo lhes sucede a ambos.
15 Pelo que disse eu comigo: como acontece ao estulto, assim me sucede a
mim; por que, pois, busquei eu mais a sabedoria? Então, disse a mim mesmo que
também isso era vaidade.
16 Pois, tanto do sábio como do estulto, a memória não durará para
sempre; pois, passados alguns dias, tudo cai no esquecimento. Ah! Morre o
sábio, e da mesma sorte, o estulto!
17 Pelo que aborreci a vida, pois me foi penosa a obra que se faz debaixo
do sol; sim, tudo é vaidade e correr atrás do vento.
18 Também aborreci todo o meu trabalho, com que me afadiguei debaixo
do sol, visto que o seu ganho eu havia de deixar a quem viesse depois de mim.
19 E quem pode dizer se será sábio ou estulto? Contudo, ele terá domínio
sobre todo o ganho das minhas fadigas e sabedoria debaixo do sol; também isto
é vaidade.
20 Então, me empenhei por que o coração se desesperasse de todo
trabalho com que me afadigara debaixo do sol.
21 Porque há homem cujo trabalho é feito com sabedoria, ciência e
destreza; contudo, deixará o seu ganho como porção a quem por ele não se
esforçou; também isto é vaidade e grande mal.
22 Pois que tem o homem de todo o seu trabalho e da fadiga do seu
coração, em que ele anda trabalhando debaixo do sol?
23 Porque todos os seus dias são dores, e o seu trabalho, desgosto; até de
noite não descansa o seu coração; também isto é vaidade.
24 Nada há melhor para o homem do que comer, beber e fazer que a sua
alma goze o bem do seu trabalho. No entanto, vi também que isto vem da mão
de Deus,
25 pois, separado deste, quem pode comer ou quem pode alegrar-se?
26 Porque Deus dá sabedoria, conhecimento e prazer ao homem que lhe
agrada; mas ao pecador dá trabalho, para que ele ajunte e amontoe, a fim de dar
àquele que agrada a Deus. Também isto é vaidade e correr atrás do vento.

2
O rápido e brusco veredito do versículo 11 precisava ser explicado
detalhadamente, pois ao se aprofundar nas possibilidades da vida, Coelet não
estava agindo puramente por conta própria. Se ele, dentro todas as outras
pessoas, regressou de mãos vazias, mesmo no manto de Salomão, que esperança
resta para os demais (v.12)?24 Então ele retorna às grandes alternativas, a
sabedoria e a loucura, comparando-as e avaliando-as radicalmente. Teria
alguma delas uma resposta para esta busca de alguma coisa final? Eram estes
os dois modos de vida que ele estivera testando nas suas experiências dos
versículos 1:17-2:10, pois ele inclui na “loucura” não apenas a “insensatez” da
auto-indulgência e do cinismo, mas também a busca do prazer em qualquer
nível, mesmo no mais elevado, como uma fuga dos pensamentos dolorosos que
se deve enfrentar. Isto estava bastante claro na sequência de 1:18, onde aparece
o comentário: “quem aumenta ciência, aumenta tristeza”, o que leva à firma
resolução: “Vamos! eu te provarei com a alegria; goza, pois, a felicidade.”
A simples comparação entre sabedoria e a loucura é despretensiosa, mas a
avaliação final é avassaladora. Nada poderia ser mais óbvio do que as duas
serem comparadas com a luz e as trevas (vs 13, 14a); mas Coelet tem a
sagacidade de lembrar que estas não passam de abstrações e que nós somos
homens. De nada adiantaria nos recomendar o valor máximo da sabedoria, se no
fim nenhum de nós é capaz de exercê-la, e muito menos de avaliá-la. É por isso,
naturalmente, que as realizações puramente humanas que nós chamamos de
duradouras não são nada disso. Como humanos nós podemos reverenciá-las
deste modo, mas isto apenas porque nos falta a honestidade de Coelet em ver
que passados alguns dias, tudo cai no esquecimento (v.16). ele não tem ilusões,
sem bem que nós é que não deveríamos tê-las, nós que ouvimos dos próprios
secularistas que o nosso planeta está morrendo.
Assim, pela primeira vez no livro (mas não a última, naturalmente), o fato
da morte leva a pesquisa a uma súbita pausa. Se o mesmo (destino) lhes sucede
a ambos (v.14b), e o destino é a extinção, todo o homem fica privado, de sua
dignidade e todo projeto, de sua finalidade. Vemos estes dois resultados nos
versículos 14-17 e 18-23.
Quanto à dignidade do homem, o que é mais mortificante (que palavra
apropriada!) quanto ao fato de que todos os homens, tanto sábios tanto tolos (ao
que poderíamos acrescentar “bons e maus”, ” santos e sádicos” Ou quaisquer
outros antônimos) hão de finalmente se igualar na morte, é que, se isto é
verdade, a última palavra acaba ficando com um fato brutal que arrasa qualquer
juízo de valores que possamos fazer. Tudo pode nos dizer que a sabedoria não
está no mesmo nível que a loucura, nem o bem com o mal. Mas tanto faz: se a
morte é o fim da linha, a alegação de que não existe escolha alguma entre elas
terá a sua última palavra. No final, as escolhas que positivamente sabemos ser
significativas serão postas de lado como irrelevantes.
Pelo que aborreci a vida. Se há uma mentira no centro da existência, e falta
de sentido no final da mesma, quem tem a coragem de fazer alguma coisa? Se,
como poderíamos dizer, todas as cartas em nossa mão estão trunfadas, que
importa como jogamos? Por que tratar um rei com maior respeito do que um
velhaco?
A propósito, esta amarga reação é um testemunho de nossa capacidade de
avaliar a nossa condição desobrigando-nos dela. Sentir-se ultrajado diante do
que é universal e inevitável dá a idéia de um descontentamento divino, uma
indicação do que 3:11 vai sabiamente chamar de “eternidade” na mente do
homem. De fato, o versículo 16 usa esta palavra a fim de lamentar a falta de
qualquer lembrança duradoura do sábio.
Os versículos 18-23 consideram um mal menor, mas um mal que pode

24
A BLH força um pouco a tradução do v.12 dizendo: “Será que um rei pode fazer
alguma coisa que seja nova? Não. Só pode fazer o que fizeram os reis que reinaram
antes dele.”

2
solapar o espírito do seu jeito: a frustrante incerteza de todos os nossos
empreendimentos quando escapam ao nosso controle, como acontece mais cedo
ou mais tarde. O homem do mundo dificilmente objetaria isto, com base em seus
próprios princípios, contanto que eles durem toda a vida; mas ainda assim ele se
importa, pois compartilha do nosso anseio íntimo pelas coisas permanentes.
Quanto mais ele lutar durante a sua vida (e os versículos 22ss. mostram como
essa luta pode ser obsessiva), mais incômoda será a idéia de seus frutos irem
parar nas mãos de outras pessoas e, muito provavelmente em mãos erradas.
Este é um outro golpe, já percebido antes no capítulo, contra a esperança de
encontrar realização no trabalho duro e nos grandes empreendimentos. O
próprio sucesso acentua o anticlímax.
Finalmente uma nota mais alegre se faz ouvir. Talvez nos tenhamos
esforçado demais. O trabalhador compulsivo dos versículos 22ss.,
sobrecarregando os seus dias com trabalho e as suas noites com preocupações,
esqueceu-se das alegrias simples que Deus colocou à sua disposição. A questão
principal para ele não era decidir entre o trabalho e o repouso mas, se ele
soubesse, entre as atividades sem sentido e as significativas. Como o versículo
24 destaca, o próprio trabalho que o tiraniza seria um presente potencialmente
cheio de prazer vindo de Deus (e a própria alegria é um outro presente, v.25), 25
bastando apenas que ele se dispusesse a aceitá-los como tal.
Eis aí outro lado deste “enfadonho trabalho [que] impôs Deus aos filhos dos
homens” (1:13), pois em si mesmas e corretamente usadas, as coisas básicas da
vida são doces e boas. O alimento, a bebida e o trabalho são exemplos delas, e
Coelet nos faz lembrar ainda de outras.26 O que as estraga é a nossa ânsia de
extrair delas mais do que podem dar; um sintoma do anseio que nos diferencia
dos animais, mas cujo uso deturpado é um tema subjacente deste livro.
Assim por um momento, no versículo 26 o véu é levantado para nos
mostrar uma outra coisa além da futilidade. O livro vai terminar com forte
ênfase sobre esta nota positiva; mas, até lá, nesses vislumbres vemos o
suficiente para ter a certeza de que há uma resposta, e que o autor não é um
derrotista. Ele nos desilude para nos chamar à realidade.
O que ele está dizendo neste versículo final poderia ser lido
descuidadamente como uma cláusula de revogação para os favoritos de Deus,
poupando-os dos riscos materiais que acabam de ser descritos. A BLH esforça-se
para não dar esta impressão, retirando a palavra “pecador” (sem motivo),
substituindo-a por “os maus” e descrevendo aqueles que agradam a Deus como
simplesmente aqueles “de quem ele gosta” ou “de quem ele gosta mais”. Mas
mesmo sem esta distorção gratuita seria fácil passar por cima do vital contraste
neste versículo, de um lado os dons espirituais de Deus que trazem satisfação
(sabedoria, conhecimento, alegria) e que só aqueles que lhe agradam podem
desejar ou receber, e do outro a frustração 27 de acumular o que não se pode
guardar, que é a porção escolhida por aqueles que o rejeitam. O fato de que o
estoque do pecador vai parar finalmente nas mãos do justo é apenas uma ironia
final daquilo que não passava de vaidade e correr atrás do vento. E para o justo
é uma reivindicação final, nada mais que isso. Tal como acontece com os
mansos, que têm a promessa de herdar a terra, o tesouro deles está em outra
parte e é de outro tipo.

25
As palavras, separado deste (v.25) são um acréscimo apoiado pela LXX. O TM diz
“separado de mi”, que daria um bom sentido apenas se Deus estivesse falando na
primeira pessoa. A tradução da ER e da ERC, “melhor do que eu”, é inteligível, mas
dificilmente uma tradução aceitável.
26
Cf 9:7-10; 11:7-10
27
Trabalho, neste versículo é a mesma palavra que aparece na frase de 1:13, “este
enfadonho trabalho impões Deus aos filhos dos homens, para nele os afligir”.

2
Eclesiastes 3:1-15 -
A tirania do tempo
3: 1 Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito
debaixo do céu:
2 há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de
arrancar o que se plantou;
3 tempo de matar e tempo de curar; tempo de derribar e tempo de
edificar;
4 tempo de chorar e tempo de rir; tempo de prantear e tempo de saltar de
alegria;
5 tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar
e tempo de afastar-se de abraçar;
6 tempo de buscar e tempo de perder; tempo de guardar e tempo de deitar
fora;
7 tempo de rasgar e tempo de coser; tempo de estar calado e tempo de
falar;
8 tempo de amar e tempo de aborrecer; tempo de guerra e tempo de paz.
9 Que proveito tem o trabalhador naquilo com que se afadiga?
10 Vi o trabalho que Deus impôs aos filhos dos homens, para com ele os
afligir.
11 Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade
no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez
desde o princípio até ao fim.
12 Sei que nada há melhor para o homem do que regozijar-se e levar vida
regalada;
13 e também que é dom de Deus que possa o homem comer, beber e
desfrutar o bem de todo o seu trabalho.
14 Sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada se lhe pode
acrescentar e nada lhe tirar; e isto faz Deus para que os homens temam diante
dele.
15 O que é já foi, e o que há de ser também já foi; Deus fará renovar-se o
que se passou.

Talvez “tirania” seja uma palavra forte demais para o moderado fluxo e
refluxo descrito com essas palavras o qual nos leva durante a vida inteira de
uma atividade para outra oposta, e de volta novamente àquela. A descrição é
agradável, com uma variedade de humor e de ação revelando diferentes ritmos
em nossas ocupações. Agrada-nos o ritmo, pois quem gostaria de uma primavera
perpétua (“tempo de plantar”, mas nunca colher), ou quem invejaria o homem
de negócios que não dorme, que nós ficamos conhecendo no capítulo anterior?
No contexto de uma busca de finalidade, no entanto, este movimento de cá
para lá e de lá para cá não é nada melhor do que o círculo vicioso do capítulo
primeiro; e, além disso, traz consigo suas próprias conseqüências
perturbadoras. Uma delas é que nós dançamos ao som de uma música, ou de
muitas delas, que não foram compostas por nós; a segunda é que nada do que
buscamos tem alguma permanência. Atiramo-nos a uma atividade qualquer que
nos dê satisfação, mas com que liberdade a escolhemos? Dentro de quanto
tempo estaremos fazendo exatamente o oposto? Talvez as nossas escolhas nem
sejam mais livres do que as nossas reações diante do inverno e do verão, ou da
infância e da velhice, ditadas pela marcha do tempo e por mudanças
espontâneas.
Vista desta forma, a repetição “tempo... e tempo” começa a tornar-se
opressiva. Seja qual for a nossa capacidade e iniciativa, o nosso verdadeiro
senhor parece ser a inexorável mudança das estações: não apenas as que se
encontram no calendário como também aquela maré de acontecimentos que ora

2
leva a um determinado tipo de ação que nos parece adequado, ora a um outro
que coloca tudo de maneira inversa. Obviamente, pouco temos a dizer das
situações que nos levam a chorar, a rir, a prantear e a saltar de alegria ; mas os
nossos atos mais deliberados também podem ser condicionados pelo tempo,
mãos do que supomos. “Quem diria”, falamos às vezes, “que chegaria o dia em
que eu acabaria fazendo tal ou tal coisa, e achando que é o meu dever!” Assim, a
nação pacifista prepara-se para a guerra; ou o pastor de ovelhas pega a faca
para matar a criatura que ele antes cuidou para que não morresse. O
colecionador distribui o seu tesouro; amigos têm desavenças amargas; a
necessidade de falar vem depois da necessidade de guardar silêncio. Nada do
que fazemos parece, fica livre desta relatividade e desta pressão, quase uma
imposição, vinda de fora.
Nossa reação natural seria buscar a realidade em algo além das mudanças,
tratando a esfera das experiências cotidianas como um mero passatempo. Para
nossa surpresa, no versículo 11 Coelet nos faz ver que essas perpétuas
mudanças não são algo desordenado, mas um padrão deslumbrante e revelador,
uma dádiva de Deus. O problema não é que a vida se recuse a ficar parada, mas
sim que nós só percebemos uma fração do seu movimento e do seu plano sutil e
intricado. Em vez da ausência de mudanças, temos ma coisa melhor: um
propósito dinâmico e divino, com um princípio e um fim. Em vez de uma
perfeição congelada temos o movimento caleidoscópico de inúmeros processos,
cada um com seu próprio caráter e com seu período de florescer e amadurecer,
formoso no seu devido tempo, contribuindo para a obra-prima total que á obra
do Criador. Nós captamos estes momentos brilhantes, mas mesmo à parte das
trevas com que se entremeiam, eles deixam-nos insatisfeitos devido à falta de
um significado total que possamos entender. Diferentemente dos animais,
absorvidos pelo tempo, nós queremos vê-los em seu contexto pleno, pois
conhecemos um pouco da eternidade: o suficiente pelo menos para comparar o
efêmero com o “eterno”.28 Parecemos alguém desesperadamente míope,
percorrendo centímetro por centímetro uma grande tapeçaria ou pintura na
tentativa de entender o todo. Vemos o suficiente para reconhecer um pouco de
sua qualidade mas o grande desenho se nos escapa, pois nunca podemos nos
afastar o suficiente para vê-lo como o Criador o vê, completo e por inteiro, desde
o princípio até o fim.
Esta incompreensibilidade é desanimadora para o secularista pensante,
mas não para o crente. Ambos podem refugiar-se na vida aproveitando-a ao
máximo, mas o homem que não têm fé age no vazio. O versículo 12 não é tão
frívolo como talvez pareça em algumas versões,l como na ER a frase final,
enquanto viverem, lança uma sombra sobre qualquer empreendimento. Se nada
é permanente, muito embora grande parte do nosso trabalho vá sobreviver a
nós, estamos apenas enchendo o tempo; e disso vamos nos dar conta mais cedo
ou mais tarde.
O crente, por outro lado, pode aceitar o mesmo tipo de programa
despretensioso, não como um tapa-buraco mas como uma tarefa. É um dom de
Deus (v.13), uma porção distribuída em nossa vida cujo propósito é conhecido
pelo Doador e é parte de sua obra eterna; pois Deus não faz nada em vão. Como
o versículo 14 destaca, os planos divinos são diferentes dos nossos e em nada
precisam ser corrigidos ou acrescidos: eles perduram. O eternamente deste
versículo combina com a eternidade colocada no coração do homem (v.11).
Participar um pouco disto, por mais modestamente que seja, é um escape da
28
Eternidade (v.11) é a mesma palavra traduzida por “eternamente” no v.14, mas usada
aqui como substantivo. A LXX a traduz aqui e em outras passagens por aion, o
substantivo que dá lugar ao adjetivo “eterno” no NT. Embora possa ser usada
simplesmente em relação ao tempo passado ou futuro (cf a BLH), ou em relação a uma
época, o contraste com a palavra tempo (isto é, estação) no v.11a aponta para um
sentido mais forte do que fraco neste versículo. A ERC menciona aqui “o mundo”, usado
no sentido arcaico de uma dispensação (cf. a frase “mundo sem fim”).

2
“vaidade de vaidades”.
Assim todo o parágrafo fala coma “bondade” e a “severidade” simultâneas
que encontramos na conhecida frase de Romanos 11:22: “... para com os que
caíram, severidade; mas para contigo, a bondade de Deus...” O homem ligado às
coisas da terra, à luz dos versículos 14 e 15 e de toda essa seção é prisioneiro de
um sistema que ele não consegue quebrar nem sequer vergar; e por trás disso
está Deus na meio de fuga, e nenhum jeito de alijar-se da carga que o estorva ou
incrimina. Mas o homem de Deus ouve estes versículos sem tais receios. Para
ele o versículo 14 descreve a fidelidade divina que transforma o temor de Deus
em um relacionamento filial e frutífero; 29 e o versículo 15 lhe assegura que Deus
conhece todas as coisas de antemão, e nada fica esquecido. 30 Deus não tem
empreendimentos abortivos, nem homens que ele tenha esquecido. Novamente
Coelet demonstra, de passagem, que o desespero que ele descreve não é o seu
próprio, e nem precisa ser o nosso.
Mas há muitos outros fatos acerca do mundo que ele precisa destacar.
Agora ele volta-se para o cenário da sociedade humana e a maneira de como nós
exercemos o poder.

Eclesiastes 3:16-4:3 -
A aspereza da vida
3: 16 Vi ainda debaixo do sol que no lugar do juízo reinava a maldade e no
lugar da justiça, maldade ainda.
17 Então, disse comigo: Deus julgará o justo e o perverso; pois há tempo
para todo propósito e para toda obra.
18 Disse ainda comigo: é por causa dos filhos dos homens, para que Deus
os prove, e eles vejam que são em si mesmos como os animais.
19 Porque o que sucede aos filhos dos homens sucede aos animais; o
mesmo lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo
fôlego de vida, e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais; porque
tudo é vaidade.
20 Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó tornarão.
21 Quem sabe se o fôlego de vida dos filhos dos homens se dirige para
cima e o dos animais para baixo, para a terra?
22 Pelo que vi não haver coisa melhor do que alegrar-se o homem nas suas
obras, porque essa é a sua recompensa; quem o fará voltar para ver o que será
depois dele?
4: 1 Vi ainda todas as opressões que se fazem debaixo do sol: vi as
lágrimas dos que foram oprimidos, sem que ninguém os consolasse; vi a
violência na mão dos opressores, sem que ninguém consolasse os oprimidos.
2 Pelo que tenho por mais felizes os que já morreram, mais do que os que
ainda vivem;
3 porém mais que uns e outros tenho por feliz aquele que ainda não
nasceu e não viu as más obras que se fazem debaixo do sol.

Não temos aqui propriamente uma mudança de assunto, pois a idéia de


tempos estabelecidos e do seu poder sobre nós continua presente no versículo
17. Mas o problema da injustiça é demasiadamente comovente para ser tratado
29
Conf Sl 130:4, onde repousa sobre o perdão divino.
30
O que se passou considero uma referência ao passado. O “renovar-se” implica na ação
de Deus para julgar ou para restaurar, dependendo da natureza do que é renovado.
Outras interpretações consideram o que se passou como uma referência àquele que foi
perseguido, tradução esta possível em muitos casos, mas que dificilmente seria
apropriada aqui; ou consideram toda a frase como uma expressão da incansável busca
de Deus dos acontecimentos no passado e, novamente, no futuro. A ERC diz: “Deus pede
conta do que passou”.

2
como simples ilustração desse tema. Transforma-se num assunto à parte por um
breve espaço de tempo no capítulo 4, e vai retornar de vez em quando em
passagens posteriores.31
Primeiramente, entretanto, podemos vê-lo na apresentação das inversões e
súbitas mudanças de direção da vida, que são predominantes no capítulo 3. Pois
se já uma coisa que clama por uma reviravolta é a injustiça. Eis aí finalmente
alguma coisa obviamente proveitosa nas voltas e viravoltas de nossos negócios.
O fato de que tudo na terra obedece à periodicidade promete um fim ao longo
inverno do mal e do desgoverno. Reforça convicção puramente moral de que
Deus julgará (v.17), sabendo que para este acontecimento, como para tudo o
mais, ele já designou uma época adequada.
Isso é muito bom, achamos nós; mas por que a demora? Por que agora
ainda não é o tempo adequado para a justiça universal? A essa pergunta não
enunciada, os versículos 18ss. dão uma resposta tipicamente dura, considerando
que a nossa primeira necessidade não é ensinar a Deus o que ele deve fazer,
mas aprender a verdade acerca de nós mesmos, uma lição que nós somos muito
lentos em aceitar. (Mesmo o século vinte nos encontra ainda muito inclinados a
negar a nossa maldade inata.) Portanto, quando o versículo 18 diz para que
Deus os prove (ou melhor, os desmascare)32 e eles vejam que são em si mesmos
como animais, ficamos profundamente chocados. É verdade que o “como os
animais” da ERAB é questionável. 33 Mas temos de admitir que totalmente à
parte de nossas tendências par a crueldade e para a sordidez, que nos colocam
em uma categoria ainda mais inferior, há pelo menos dois fatores que dão
respaldo à acusação: a inclinação para a ganância e para a esperteza em nossos
negócios (que é o assunto em discussão, versículo 16), e a mortalidade que os
homens partilham com todas as criaturas da terra. O primeiro destes tristes
fatos reaparece no próximo capítulo; o segundo ocupa o restante deste e recebe
influências de outras partes do Antigo Testamento. o versículo 20, que nos
apresenta o homem em sua caminhada do pó para o pó, como em Gênesis 3:19,
confronta-nos com a Queda e coma ironia de que morremos como os animais
porque nos imaginávamos deuses.
Mas existe em nós alguma coisa que sobreviva a morte? Do seu ponto de
vista privilegiado, Eclesiastes só pode responder: Quem sabe?34 O fôlego de
vida, ou o espírito,35 nestes versículos é a vida que Deus dá tanto aos animais
quanto aos homens, e cuja retirada resulta na morte, como diz o Salmo
104:29ss. Está claro que pelo menos isso temos em comum com os animais; mas
31
Veja 5:8ss; 8:10-15; 9:13-16; 10:5-7; 10:36ss
32
A palavra para “provar” já parece ter o seu sentido posterior de “trazer à luz” ( conf
McNeile pg 64)
33
O texto não precisa dizer nada mais além disso, que os homens agem como os animais,
ou que são animais em certos sentidos indicados pelo contexto. Este versículo, um tanto
difícil diz: “... para que Deus os prove (ou os exponha, veja nota anterior), e eles vejam
que são em si mesmos como os animais.” No Sl 14:2 quem vê a situação dos homens é
Deus; aqui, ao contrário, o sujeito são as pessoas envolvidas (“e eles vejam”); mas uma
mudança de vogal daria “mostrar” (como diz a BJ e a maioria das traduções modernas
seguindo a LXX ET AL.). As palavra “em si mesmos” foram interpretadas como erro de
copista, uma vez que “animais” e “eles “ são palavras semelhantes; ou significando
“entre si” (“denunciá-los e mostrar que são animais uns para os outros”, BJ); ou, “de sua
parte”; ou “em si mesmos” (Delitzsch). Eu me inclino a aceitar Delitzsch ou a BJ.
34
Há versões, como a ERAB, que traduzem o versículo 21 como sendo uma afirmação
implícita: “Quem sabe que o fôlego de vida (ou o espírito) dos filhos dos homens se
dirige para cima”, etc. A vogal hebraica no começo de “se dirige” favorece esta versão
(embora não de maneira exclusiva: veja o hebraico de, por exemplo, Nm 16:22; Lv
10:19), mas o hi que vem a seguir comprova o contrário. O ponto de vista geralmente
defendido por Coelet, e o presente contexto em particular, apóiam a tradução da ER:
“Quem sabe se... ?”
35
Ambas são traduções de ruah aqui (19, 21). Em Gn 2:7 foi usada uma palavra diferente
para o hálito da vida que foi soprado nas narinas do homem no ato da criação.

2
se “espírito” implica em alguma coisa eterna para nós, ninguém pode chegar a
uma conclusão apenas pela observação do texto aqui.36
Mas o eco do Salmo49, aquele que faz a mesma comparação entre os
homens e os animais, nos faz lembrar que há uma resposta. O homem de fé pode
dizer: “Mas Deus remirá a minha alma do poder da morte, pois ele me tomará
para si” (Sl 49:15). É o homem “em sua ostentação”, o homem sem
entendimento, que é “como os animais, que perecem”; 37 e este é o homem com o
qual Eclesiastes se preocupa.
Para tal pessoa o versículo 22 oferece o melhor que pode dar: a satisfação
temporária de executar bem o seu trabalho. Não é coisa de se desprezar. A
possibilidade é um legado de um mundo bem criado, como esclarece o versículo
13. Tudo o que está faltando (mas é virtualmente tudo) será a satisfação de
aceitar esse trabalho como um dom do Criador (veja acima, versículo 13), e
oferecê-lo a ele.
Com o capítulo 4:1-3 retornamos às opressões que se fazem debaixo do sol ,
assunto abordado em 3:16. A passagem é tão curta quanto dolorosa, pois se não
há um meio de acabar com estas coisas (como na verdade ao existe, no tempo
presente), pouco se pode acrescentar aos amargos fatos do versículo 1 além do
lamento dos versículos 2 e 3. Talvez achemos que esta atitude seja derrotista,
pois sempre há muita coisa que pode ser feita pelos que sofrem, quando
queremos fazê-lo. Mas esta objeção dificilmente seria honesta. Coelet está
observando a cena como um todo, e ele pode muito bem retrucar que após cada
intervenção concebível ainda restariam inumeráveis bolsões de opressão nas
“moradas de crueldade”38 – o suficiente para fazer os anjos chorarem, se não os
homens. Ele poderia acrescentar que não há coincidência alguma no fato de o
poder se encontrar do lado do opressor, uma vez que é o poder que mais
rapidamente desenvolve o hábito da opressão. Paradoxalmente, ele limita a
possibilidade de uma reforma, porque quanto mais controle o reformador tiver,
maior a tendência para a tirania.
Assim um outro aspecto da vida terrena foi apresentado; e nada há mais
triste em todo o livro do que a melancólica alusão, nos versículos 2 e 3, aos
mortos e aos que ainda não nasceram, que são poupados da visão de tanta
angústia. Isto é apropriado, pois embora de um modo geral Eclesiastes esteja
preocupado com a frustração, aqui ele se ocupa como reino do mal, e como mal
em sua chocante forma de crueldade. Se a melancolia de Coelet nos choca
excessivamente neste ponto, talvez devamos nos perguntar se a nossa visão
mais otimista brota da esperança e não da complacência. Se nós, os cristãos,
vemos mais além do que ele se permitiu, não há motivos para nos pouparmos
das realidades do presente.

Eclesiastes 4:4-8 -
Corrida desenfreada
4: 4 Então, vi que todo trabalho e toda destreza em obras provêm da inveja
do homem contra o seu próximo. Também isto é vaidade e correr atrás do vento.
5 O tolo cruza os braços e come a própria carne, dizendo:
6 Melhor é um punhado de descanso do que ambas as mãos cheias de
trabalho e correr atrás do vento.
7 Então, considerei outra vaidade debaixo do sol,
36
À primeira vista, Ec 12:7 responde a esta pergunta. Mas não é preciso dizer mais do
que foi dito em Sl 104:29ss., que Deus dá e retira o hálito da vida de suas criaturas
quando quer.
37
Veja Sl 49:12,14,15 e 20. A ER e a BLH roubam do salmo o seu clímax, fazendo o
versículo 20 simplesmente repetir o v.12, quando no texto hebraico (e também na ERAB)
há a frase: “O homem... sem entendimento”.
38
Cf. Sl 74:20 (ERC)

2
8 isto é, um homem sem ninguém, não tem filho nem irmã; contudo, não
cessa de trabalhar, e seus olhos não se fartam de riquezas; e não diz: Para quem
trabalho eu, se nego à minha alma os bens da vida? Também isto é vaidade e
enfadonho trabalho.

Nesta pequena amostra de atitudes para com o trabalho somos lembrados


de alguns extremos, estranhos mas familiares. Primeiro, a ânsia competitiva. O
versículo 4 não deve sofrer tanta pressão, pois este escritor, como qualquer
outro, deve ter a liberdade de apresentar os seus pontos com vigor. Poderemos
tergiversar, se quisermos, lembrando-nos de pessoas tais como os párias
solitários ou os lavradores necessitados, que lutam simplesmente pela
sobrevivência, ou aqueles artistas que realmente amam a perfeição por amor a
ela; mas permanece o fato de que grande parte de nosso trabalho árduo e de
nosso grande esforço está misturada à ânsia de eclipsar os outros ou de não ser
eclipsado. Até mesmo na rivalidade entre amigos isto exerce um papel maior do
que possamos imaginar, pois podemos até agüentar se ultrapassados por algum
tempo e por determinadas pessoas, mas não com tanta regularidade nem tão
profundamente. Sentir-se um fracasso é descobrir na alma a inveja que Coelet
detecta aqui, em sua patética forma de ressentimentos acalentados e queixumes
autopiedosos.39
O segundo retrato (v.5) é pequeno e apresenta o extremo oposto: o
indolente. Ele despreza essas rivalidades frenéticas. Mas recebe o seu
verdadeiro nome, tolo, pois a sua inércia é igual e oposta ao erro dos outros. Ele
é o quadro da complacência e da autodestruição inconsciente, pois este
comentário sobre ele destaca um prejuízo mais profundo do que o desperdício
do seu capital. Sua preguiça, além de acabar com o que ele tem, acaba também
com o que ele é: destrói o seu autocontrole, o seu senso de realidade, a sua
capacidade de se cuidar e, finalmente, o seu auto-respeito.
A estas duas formas infelizes de viver o versículo 6 apresenta uma
alternativa sadia. A bela expressão um punhado de descanso consegue
transmitir a dupla idéia de desejos modestos e paz interior: uma atitude tão
distante da indolência egoísta do tolo quanto da luta desordenada do diligente
em busca da preeminência.
“Dá-me a minha concha de quietude,
Meu cajado de fé para me apoiar,
Minha dieta imortal de alegria,
Meu cântaro de salvação,
Minha veste de glória, real penhor da esperança,
E assim vou iniciar
A minha peregrinação”40
Mas se é que existe algo mais opressor do que a inveja, é o hábito, quando
este se transforma em fixação. Os versículos 7e 8 descrevem o maníaco
ganhador de dinheiro como alguém completamente desumanizado, que se
entregou à mera ganância e ao processo infindável de alimentá-la. Subitamente
o escritor identifica-se com tal homem, e nos leva a fazer o mesmo, através da
pergunta: Para quem trabalho eu...? estas palavras aparecem sem serem
anunciadas, como se expressassem o que a vida toda desse homem está dizendo.
Embora, a bem da clareza, estejamos examinando aqui a vida de um homem sem
família, podemos imaginar que a sua solidão não seja acidental e que, além
disse, ele não tenha amigos, vivendo como vive na sua rotina. Mesmo que tenha
39
McNeile destaca que o Heb. Deste versículo simplesmente faz da inveja o predicado
do trabalho e da destreza, isto é: “Então vi que... correspondia à inveja, etc”. Sendo
incitado por ela e sendo um resultado dela. Muitas traduções modernas (tais como a
ERAB, a ER e a BLH) fazem da inveja o incentivo para o sucesso; e outras (como a ERC)
fazem dela o efeito das realizações sobre os outros; o Heb. Deixa em aberto essas duas
possibilidades.
40
Sir Walter Raleigh, “His Pilgrimage” (Sua Peregrinação)

2
esposa e filhos, ele tem pouquíssimo tempo para lhes dedicar, convencido de
que está lutando em benefício deles, embora o seu coração esteja em outro
lugar, dedicado e enredado em seus projetos.
À semelhança da rivalidade invejosa descrita no versículo 4, este quadro de
uma vida de negócios solitária e sem sentido põe em cheque qualquer
argumentação quanto às bênçãos do trabalho duro. Não é aqui que jaz a
resposta para a frustração,e muito menos na indolência do versículo 8. Neste
ponto Coelet parece fazer uma pausa em sua busca das coisas duradouras da
vida, o que nos dá oportunidade de olhar para trás e tornar a examinar o
caminho que já percorremos com ele.

Primeiro Resumo:
Retrospectiva de Eclesiastes 1:1-4:8
Até agora, em nossa perspectiva o cenário terreno, examinamos o que o
mundo pode oferecer em quatro ou cinco diferentes níveis. Começamos com
uma impressão de sua total inquietude, as repetições infinitas e inconclusivas
que se acham na natureza e no cenário humano (1:1-11). Depois consideramos
as satisfações dos diferentes estilos de vida, racionais e irracionais, frívolos e
austeros: os prazeres da arte e do trabalho, da construção para o futuro (1:12-
2:26). Se alguns deles têm alguma coisa para dar, nenhum sobrevive ao teste
decisivo da morte. Para encontrar alguma coisa que o tempo não desfaça, temos
de procurar em outro lugar. Mas o tempo, como foi apresentado no capítulo 3,
além de ser inexorável, também nos faz flutuar ao sabor de marés e correntezas
que são mais fortes do que nós. Não somos donos de nossas circunstâncias: nem
sequer podemos nos orientar dentro delas.
Uma nota mais sinistra insinua-se em 3:16 com o tema da tirania humana e
sua crueldade. É o fato amargo que faz da morte, mesmo no momento de maior
desespero, não mais o último inimigo, como a vimos no capítulo 2, mas o último
amigo que nos resta.
Finalmente vimos, em 4:4-8, não os perdedores nesta luta humana, mas os
aparentes ganhadores e sobreviventes: aqueles que conseguiram ser por ela ou
em si mesmos totalmente absorvidos. Ao que parece, estes entraram em um
acordo com a vida. Mas será que receberam um prêmio duradouro? E será que a
sua maneira de obtê-lo poderia enfrentar uma inspeção? A expressão “corrida
desenfreada” resume a idéia principal destes versículos: uma rivalidade
frenética em um dos extremos, uma desastrosa escolha no outro; e para os
poucos que obtêm sucesso, uma vida dedicada à consecução de prêmios e mais
prêmios sem significado algum.
Após esta avaliação inclemente, será um alívio voltarmo-nos um pouco de
nossa busca desesperada por algo duradouro, para assuntos mais corriqueiros,
pois a vida continua enquanto buscamos, e há maneiras melhores e piores de
vivê-la. Pelo menos neste ponto podemos ser sábios!
Para começar, podemos ser mais sensíveis do que os solitários e obsessivos
ganhadores de dinheiro que acabamos de considerar; e um padrão mais sábio do
que o deles será o primeiro assunto dos comentários que se seguem acerca da
vida.

Eclesiastes 4:9-5:12 -
Interlúdio: Algumas reflexões, máximas e
verdades

Companheirismo

2
4: 9 Melhor é serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu
trabalho.
10 Porque se caírem, um levanta o companheiro; ai, porém, do que estiver
só; pois, caindo, não haverá quem o levante.
11 Também, se dois dormirem juntos, eles se aquentarão; mas um só como
se aquentará?
12 Se alguém quiser prevalecer contra um, os dois lhe resistirão; o cordão
de três dobras não se rebenta com facilidade.

Tendo examinado a pobreza do “solitário”, por maior que seja o seu


sucesso exterior, agora vamos refletir sobre algo melhor; e melhor aqui será
uma palavra-chave (4:9,13; 5:1,5), o que acontece com muita freqüência na
avaliação de valores pelos escritores da Sabedoria.
As idéias são simples e diretas; aplicam-se a muitas formas de
companheirismo, inclusive (embora não explicitamente) ao casamento. Com uma
brevidade graciosa elas descrevem o proveito, a elasticidade, o conforto 41 e a
força que existem em uma verdadeira aliança; e por isso vale a pena aceitar
suas exigências. Embora tais exigências não estejam explícitas aqui, dificilmente
teríamos de expor os benefícios do companheirismo se este não envolvesse
algum custo. Um preço óbvio é a independência da pessoa: uma vez
comprometida, ela tem de consultar os interesses e a conveniência da outra,
ouvir-lhe as idéias, ajustar-se ao seu modo de andar e estilo de vida, e cumprir
com as promessas. Quanto às recompensas, são todas benefícios conjuntos: um
parceiro nunca haverá de explorar o outro.
O cordão de três dobras talvez seja um lembrete de que o verdadeiro
companheirismo tem mais de uma forma. Embora os números, quando
erradamente entendidos, possam ser divisivos e desastrosos (veja o versículo
11), na sua forma certa, além de acrescentarem algo aos benefícios da união,
também se multiplicam. Um exemplo óbvio deste enriquecimento, e o predileto
dos pregadores, é a força de um casamento, ou de qualquer aliança humana,
quando Deus é o fio mestre que faz com eles o cordão triplo. Mas talvez o
escritor estivesse pensando mais nesta metáfora em termos puramente
humanos, de modo que, se aplicada ao casamento, o terceiro fio seria mais
apropriadamente os filhos, com tudo o que eles acrescentam á qualidade e à
força do laço original. Mesmo assim provavelmente estejamos sendo mais
específicos do que ele pretendia que fôssemos.

Aplausos populares
4: 13 Melhor é o jovem pobre e sábio do que o rei velho e insensato, que já
não se deixa admoestar,
14 ainda que aquele saia do cárcere para reinar ou nasça pobre no reino
deste.
15 Vi todos os viventes que andam debaixo do sol com o jovem sucessor,
que ficará em lugar do rei.
16 Era sem conta todo o povo que ele dominava; tampouco os que virão
depois se hão de regozijar nele. Na verdade, que também isto é vaidade e correr
atrás do vento.

Este parágrafo tem pontos obscuros, mas descreve uma coisa bastante
familiar na vida pública: a popularidade efêmera dos grandes. Apresenta as
faltas de ambos os lados, começando com a teimosia do homem há muito tempo
montado na sela, que ao se deixa tocar e que já não tem mais a simpatia da nova

41
O versículo 11 poderia aplicar-se ao casamento, mas possivelmente aplica-se mais aos
viajantes que dormem ao relento. Barton observa que “as noites na Palestina são frias...,
e o viajante solitário dorme às vezes unto de sua montaria para se aquecer na falta de
outra companhia.”

2
geração, esquecido de como é ser jovem, fogoso e impaciente, como ele mesmo
já foi.42 Há muita semelhança com Davi no começo e no final de sua vida, para
que reflitamos no fato de que os melhores homens podem acabar assim sem que
o percebam. MS o retrato não tema intenção de ser histórico.
Pode acontecer que um homem melhor o suplante e venha a ser melhor se
tiver as qualidades certas, ainda que lhe falte idade ou posição, como o versículo
13a destaca. Coelet, com o seu jeito de nos presentear uma cena vivamente
colorida, descreve a enorme massa de homens, e a vê do lado 43 do recém-
chegado, que é jovem, sendo ela em quantidade incontável.
Ele mesmo acaba seguindo o caminho do velho rei, não necessariamente
pelas faltas que comete, mas simplesmente porque o tempo e a familiaridade,
assim como a inquietude dos homens, acabam por fazê-lo perder o interesse. Ele
atingiu o pináculo da glória humana apenas para ser abandonado ali. Este é
contudo mais um processo de degradação humana, das realizações que
finalmente se revelam vazias.

Conversa piedosa
5: 1 Guarda o pé, quando entrares na Casa de Deus; chegar-se para ouvir
é melhor do que oferecer sacrifícios de tolos, pois não sabem que fazem mal.
2 Não te precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a
pronunciar palavra alguma diante de Deus; porque Deus está nos céus, e tu, na
terra; portanto, sejam poucas as tuas palavras.
3 Porque dos muitos trabalhos vêm os sonhos, e do muito falar, palavras
néscias.
4 Quando a Deus fizeres algum voto, não tardes em cumpri-lo; porque não
se agrada de tolos. Cumpre o voto que fazes.
5 Melhor é que não votes do que votes e não cumpras.
6 Não consintas que a tua boca te faça culpado, nem digas diante do
mensageiro de Deus que foi inadvertência; por que razão se iraria Deus por
causa da tua palavra, a ponto de destruir as obras das tuas mãos?
7 Porque, como na multidão dos sonhos há vaidade, assim também, nas
muitas palavras; tu, porém, teme a Deus.

Prosseguindo com um interlúdio de retratos, Coelet volta aos olhos


observadores para o homem como adorador. Tal fomo os profetas, ele insiste na
sinceridade nesta área; mas o seu tom é calmo, embora suas palavras sejam
afiadas com a navalha. Enquanto os profetas proferem com veemência suas
invectivas contra os maus e os hipócritas, o alvo do escritor é a pessoa bem
intencionada que gosta de cantar e de ir à igreja, mas que ouve com um ouvido
só e nunca faz o que se propõe fazer para Deus.
Esse homem esqueceu-se de onde está e de quem ele é; acima de todas as
coisas, esqueceu-se de quem Deu sé. A palavra tolo(s), várias vezes repetida é
denunciadora, pois ser negligente com Deus é um mal (v.1), uma culpa (v.6) e
uma provocação que não ficará impune (v.6b). se nós nos sentirmos tentados a
deixar isto de lado por ser parte da severidade do Antigo Testamento, o Novo
Testamento vai nos deixar desconcertados com suas advertências contra
palavras piedosas sem significado, ou para com a nossa maneira de lidar
42
As opiniões diferem quanto àquele que conheceu a prisão e a pobreza (v.140: se é o
rei velho (como eu penso) ou se é o jovem nobre e sábio que o suplanta. Se é este último,
então o versículo 15 apresenta-o espoliado por sua vez, já que o jovem é literalmente “o
segundo jovem”; ou “o jovem sucessor”, (como traduzido na ERAB) isto é, o jovem rival
do velho rei.
43
A expressão literal é “com o jovem”. “Com” pode significar tanto “assim como” ou
“junto com”. Este último sentido nos prepara melhor para a preeminência que o jovem
desfruta no versículo seguinte. Já a BLH desperta um interesse maior, parafraseando:
“Eu pensei em todas as pessoas que vivem neste mundo e imaginei que existe, entre
elas, em algum lugar, um moço que tomara o lugar do rei”; mas é ir longe demais.

2
levianamente com as coisas sagradas (Mt 7:21ss.; 23:16ss.; 1Co 11;27ss.).
nenhuma ênfase na graça pode justificar qualquer tomada de liberdades com
Deus, pois no próprio conceito da graça existe gratidão; e a gratidão não pode
ser negligente.
Ao repassarmos estes versículos com mais cuidado, somos advertidos nas
primeiras palavras (com o equivalente à nossa expressão “Cuidado!”), de como
Deus se esmerou em guardar o limiar de sua porta aqui na terra nos tempos
antigos, até mesmo com a ameaça de morte (“para que não morram nelas, ao
contaminar o meu tabernáculo”, Lv 15:31). Num certo nível, isto nos torna claro
o preço de nossa admissão no “santuário celestial” e a pureza que é exigida de
nós (“pelo sangue de Jesus... purificados... e lavado o corpo com água pura”, Hb
10:19ss), enquanto em um outro nível nos faz entender a consideração que
deveríamos ter para com a igreja de Deus, o templo vivo.44
Ouvir (v.1b) tem uma força dupla no hebraico: prestar atenção e obedecer.
Portanto esta advertência nos lembra as famosas palavras de Samuel: “Eis que o
obedecer é melhor do que sacrificar” (1Sm 15:22). Aqui, entretanto, o culto
inexpressivo não é premeditado; o pecado é mais do tolo 45 do que do velhaco, se
é que isso melhora a situação! Coelet dificilmente nos encorajaria a pensar
assim: o seu lembrete de que Deus não se agrada de tolos (v.4) é uma
observação tão calmamente esmagadora quanto qualquer outra do livro.
Dois provérbios destacam a questão ligando a conversa dos tolos coma
irrealidade dos sonhos. O elo é um tanto impalpável no versículo 3, e menos
ainda no versículo 7, onde os sonhos parecem ser divagações que reduzem o
culto a um ato puramente mecânico. O versículo 3 parece significar que, pela
sua própria quantidade, o excesso de palavras acaba em asneiras, exatamente
como o excesso de trabalho acaba em pesadelos. 46 Tais palavras nos confrontam
com o fato de que os tolos não são um determinado tipo de pessoas, mas sim
pessoas que se comportam de um determinado jeito. No contexto do culto, é
como despejar uma avalanche de frases piedosas que zombam de nosso
Soberano (v.2) e ultrapassam nossos verdadeiros pensamentos e intenções. Se
formos eventualmente interrogados sobre o que dissemos na igreja, nossas
justificativas soarão tão defeituosas quanto as palavras de um gozador ou de um
mentiroso.47
Predadores oficiais
5: 8 Se vires em alguma província opressão de pobres e o roubo em lugar
do direito e da justiça, não te maravilhes de semelhante caso; porque o que está
alto tem acima de si outro mais alto que o explora, e sobre estes há ainda outros
mais elevados que também exploram.
9 O proveito da terra é para todos; até o rei se serve do campo.

Assim continuam as reflexões sobre como enfrentar as condições da vida de


maneira realista. Agora, Coelet passa a fazer uma avaliação da burocracia. O
quadro, senão é de todo universal, não deixa de ser bastante familiar. O
vislumbre desse panorama de autoridades sugere possibilidades de subterfúgios
44
Cf 1Co 3:16ss.; Ef 2:19ss.; 1Pe 2:5
45
Sacrificio de tolos dá o sentido exato, mas a frase é mais exatamente “é melhor do que
os sacrifícios que os tolos poderiam oferecer” (McNeile)
46
Uma alternativa sugerida é que um sonho consiste de (“vem na forma de”) muitos
trabalhos (isto é, uma torrente de acontecimentos e imagens), e a voz de um tolo
consiste de uma torrente de palavras. Barton inclina-se para esta sugestão de T. Tyler,
mas duvida que trabalho possa ter este significado.
47
O mensageiro do versículo 6 tem sido interpretado de diversas maneiras: como “o
anjo” (cf. a ERC e a ER) pois a língua Heb. Não distingue entre os mensageiros
terrestres e celestes; como sacerdote (BLH; cf. Ml 2:27); como um funcionário do templo
enviado para cobrar dívidas e impostos; e como o próprio Deus (cf a expressão “o anjo
do Senhor”, usada neste sentido). Seja qual for o sentido, o ponto em questão é o pecado
que a sua chegada denuncia.

2
kafkanianos, para desconcertar o cidadão que insiste em seus direitos: ele pode
acabar sendo obstruído e derrotado. Quanto à responsabilidade mora, ela pode
ser deixada de lado com a mesma facilidade. Cada funcionário pode acusar o
sistema, enquanto as autoridades máximas governam a uma distância infinita
das vidas que afetam. Mas Coelet destaca outro aspecto da burocracia: sua
autoconcentração predatória, cada funcionário mantendo um olho malicioso
sobre aquele que o segue na lista. 48 Delitzsch descreve este processo no antigo
império persa! “O sátrapa ficava na liderança dos governadores de estado. Em
muitos casos, ele espoliava a província em seu próprio proveito. Mas acima do
sátrapa ficavam os inspetores, que freqüentemente faziam a sua própria fortuna
através de denúncias fatais; e acima de todos ficava o rei, ou melhor, a corte,
com rivalidades intrigantes entre os cortesãos e as mulheres reais.” 49 Não é de
admirar que o cidadão da base de uma tal estrutura achasse que a justiça era
um luxo que ele não podia almejar.
De acordo com o ponto de vista do livro, o comentário sobre o assunto é
seco e realista. Afinal, se estamos considerando o mundo em seus próprios
termos de completo secularismo, não podemos esperar ser a moral muito
elevada quer do sistema que encontramos no poder, quer de qualquer outra
parte. Com todo este ódio contra a injustiça, Coelet não coloca esperanças em
algum esquema utópico ou em uma revolução. Ele sabe o que existe dentro do
homem.
Por isso o seu primeiro comentário é não te maravilhes de semelhante caso,
e acaba concluindo que até mesmo a tirania é melhor do que a anarquia. O
destaque do versículo 950 parece ser que nada se ganharia caso se retornasse à
estrutura simples dos velhos dias nômades. Um país desenvolvido precisa da
força de um governo central, mesmo envolvendo o fardo do funcionalismo.

Dinheiro
5: 10 Quem ama o dinheiro jamais dele se farta; e quem ama a abundância
nunca se farta da renda; também isto é vaidade.
11 Onde os bens se multiplicam, também se multiplicam os que deles
comem; que mais proveito, pois, têm os seus donos do que os verem com seus
olhos?
12 Doce é o sono do trabalhador, quer coma pouco, quer muito; mas a
fartura do rico não o deixa dormir.

O assunto destas reflexões é um dos mais constrangedores para nós, como


Jesus deu a entender ao advertir-nos contra o fazer de mamom um segundo
Deus. Os três ditados expressam o fato como ele realmente é, destacando a
ânsia que ele gera, os parasitas que atrai e a dispepsia que é a sua típica
recompensa.
O versículo 10 é um clássico sobre o amor ao dinheiro, um bom
companheiro de 1 Timóteo 6:9ss. com suas famosas palavras acerca das

48
A ERC torna o V.8b um tanto ameno (“porque o que mais alto é do que os altos para
isso atenta”), mas a ER acha-se mais próxima do hebraico literal (“Pois quem está
altamente colocado tem superior que o vigia; e há mais altos ainda sobre eles”). O plural
“mais altos” poderia ser um plural de majestade e referir-se ao rei ou a Deus; mas neste
caso, deveria ser expresso com maior clareza. Quanto ao verbo, “vigia” implica em
proteção; mas também pode ter um sentido hostil (“explora”) como na ERAB (cf 1Sm
19:11)
49
Delitzsch, ad loc.
50
Nenhuma traduçãod este versículo recebeu aprovação geral. Alguns comentaristas
encontram nele o louvor a um rei que, tal como Uzias, gostava da lavoura; outros vêem
que até mesmo um déspota depende do solo (cf. ERAB, ER, ERC, BLH). Algumas destas
variações surgem com a possibilidade de se anexar a palavra “servir” tanto ao “rei”
como (no sentido de “cultivado”) ao “campo”. A pontuação massorética indica este
último caso.

2
conseqüências morais e espirituais desse amor. Aqui o interesse é psicológico,
embora a observação final, também isto é vaidade, nos dê a lição máxima que
devemos aprender. A gana implacável que desperta é muito óbvia no jogador, no
magnata e no bem-pago materialista que nunca tem o suficiente, pois o amor ao
dinheiro cresce na proporção com que é alimentado. Mas essa gana pode
apresentar-se de maneira mais sutil, na forma de um descontentamento geral:
um desejo não necessariamente de mais dinheiro, mas de satisfação interior. Se
existe coisa pior do que o vício gerado pelo dinheiro é o vazio que ele deixa na
vida das pessoas. O homem, com a eternidade no coração, precisa de um
alimento melhor do que esse.
O segundo dos três ditados (versículo 11) parece referir-se não apenas à
complexa instituição que de certa forma cresce com o aumento da riqueza, mas
também ao enxame de parasitas. Sobre estes há uma profecia tragicômica em
Isaías 22:23ss., que promete um alto cargo a um certo cortesão, mas adverte-o
de que vai se ver desastrosamente sobrecarregado: “Nele pendurarão toda
responsabilidade da casa de seu pai”, aqueles que buscam numa posição; e o
profeta, entusiasmando-se com o assunto, descreve tal homem como um cabide
em que se pendurou quase a metade dos utensílios da cozinha, até que o cabide
e tudo o que contém vem abaixo. Nesse versículo, porém, não temos tal clímax;
apenas a ironia de ter de viver o próprio prestígio e um pouquinho mais.
O terceiro ditado sobre o dinheiro (v.12) tem como exemplo qualquer
situação em que a riqueza e a indulgência dão-se as mãos. Aqui o rico não
consegue dormi,não por causa do excesso de trabalho, como em 2:23, ou devido
à preocupação, como dá a entender a BLH (“o rico se preocupa tanto com as
coisas que possui, que nem consegue dormir”). Não, simplesmente é porque
come demais, como bem coloca a ER (“a saciedade do rico...”).
Sejam quais forem os desconfortos do trabalhador, este ele não terá. E
sejam quais forem os fardos que Adão recebeu na Queda, havia na sentença uma
dura misericórdia: “No suor do rosto comerás o pão”. Quanto a isto, há um
comentário inconsciente nos nossos modernos aparelhos de fazer exercícios e
nas academias de saúde, pois eles são um dos nossos absurdos humanos:
jogamos fora dinheiro e esforço apenas para desfazer os estragos causados pelo
dinheiro e pelo conforto.

Eclesiastes 5:13-6:12 -
A amargura do desapontamento

No capítulo quarto, e na metade deste capítulo quintão de Eclesiastes,


ocupamo-nos mais com o viver de maneira sensata no mundo como o
encontramos (inclusive no mundo de nossas obrigações religiosas) do que com a
preocupação quanto a se estamos conseguindo alguma coisa ou não. O problema
ainda continua, refletido duas vezes no comentário “também isto é vaidade”
(4:16; 5:10); agora ele torna-se novamente o centro das atenções enquanto
Coelet cita algumas das amargas anomalias da vida. Ele conclui o capítulo6 – e
com isso a primeira metade do livro – enfatizando a pergunta que
aparentemente já havia respondido antes: “Pois quem sabe o que é bom para o
homem... debaixo do sol?”

O choque
5: 13 Grave mal vi debaixo do sol: as riquezas que seus donos guardam
para o próprio dano.
14 E, se tais riquezas se perdem por qualquer má aventura, ao filho que
gerou nada lhe fica na mão.

2
15 Como saiu do ventre de sua mãe, assim nu voltará, indo-se como veio; e
do seu trabalho nada poderá levar consigo.
16 Também isto é grave mal: precisamente como veio, assim ele vai; e que
proveito lhe vem de haver trabalhado para o vento?
17 Nas trevas, comeu em todos os seus dias, com muito enfado, com
enfermidades e indignação.

Um exemplo em miniatura coloca-nos agora face a face com a frustração;


este autor prefere nos apresentar exemplos da própria vida e não apenas
abstrações. Aqui, então, temos um homem que perde todo o seu dinheiro de um
só golpe, deixando a família desamparada. Isto até teria sentido se fosse um
castigo para negócios ilícitos (“os bens que facilmente se ganham” e que
merecem desaparecer, Pv 13:11), ou se fosse a fortuna ganha em jogos de azar 51
em vez das economias de um pai de família; ou, então, se fosse dinheiro perdido
no jogo e não um fracasso nos negócios. 52 Mas, na verdade, trata-se de dinheiro
ganho com trabalho e preocupações. A vida dele foi duplamente desperdiçada,
primeiro ganhando, depois perdendo. E, se este é um caso extremo, também nós
enfrentamos algo parecido: todos nós partiremos tão nus quanto chegamos.
“Mas isto não é justo!”, poderíamos dizer. A reação do próprio Coelet não é tão
impetuosa, pois ele está principalmente destacando o que acontece, e não o que
deveria acontecer, em u mundo no qual não podemos ditar ordens nem criar
raízes. “Um mal fatal”53 talvez seja a tradução mais aproximada de sua
expressão. Foi assim que ele apresentou o assunto (v.13); e agora ele repete: “é
grave mal... e que proveito lhe vem de haver trabalhado para o vento?” (v.16).
Neste ponto convém lembrar que esse homem talvez quisesse da vida mais
do que ela lhe podia dar. Se os seus planos eram feitos apenas com base no que
estava ao seu alcance e no que lhe prometia alguma segurança, então ele estava
olhando na direção errada. Assim o parágrafo final vai nos acalmar, falando
agora da vida em termos muito diferentes.

Um caminho mais excelente


5: 18 Eis o que eu vi: boa e bela coisa é comer e beber e gozar cada um do
bem de todo o seu trabalho, com que se afadigou debaixo do sol, durante os
poucos dias da vida que Deus lhe deu; porque esta é a sua porção.
19 Quanto ao homem a quem Deus conferiu riquezas e bens e lhe deu
poder para deles comer, e receber a sua porção, e gozar do seu trabalho, isto é
dom de Deus.
20 Porque não se lembrará muito dos dias da sua vida, porquanto Deus lhe
enche o coração de alegria.

À primeira vista isto talvez pareça um mero elogio à simplicidade e à


moderação. Mas, de fato, a palavra-chave é Deus, e o segredo da vida que nos é
apresentado é a abertura para com ele: uma disposição de aceitar tudo como
vindo do céu, quer seja trabalho ou riqueza, ou ambos. Isto é mais do que boa e
bela cousa (v.18): mais literalmente, é “uma coisa boa que é bela”. Novamente,
uma nota positiva aparece, e no final do capítulo captamos um vislumbre do
homem por quem a vida passa rapidamente, não porque ela é curta e sem
sentido, mas porque, pela graça de Deus, ele a acha completamente
arrebatadora. Este será o tema dos capítulos finais; antes, porém ainda há algo
mais a ser explorado na experiência humana e em suas duras realidades.

51
Cf Pv 11:24-26 sobre a infeliz influência disso; e 28:22 sobre sua transitoriedade.
52
Aventura (v.14) não implica necessariamente em risco; é a palavra traduzida por
“trabalho” em 1:13; 3:10; 5:3 (Heb 2), etc.
53
Lit. “doença”. Implica em problema que é perturbador e esta profundamente
enraizado.

2
Tantalização
6: 1 Há um mal que vi debaixo do sol e que pesa sobre os homens:
2 o homem a quem Deus conferiu riquezas, bens e honra, e nada lhe falta
de tudo quanto a sua alma deseja, mas Deus não lhe concede que disso coma;
antes, o estranho o come; também isto é vaidade e grave aflição.
3 Se alguém gerar cem filhos e viver muitos anos, até avançada idade, e se
a sua alma não se fartar do bem, e além disso não tiver sepultura, digo que um
aborto é mais feliz do que ele;
4 pois debalde vem o aborto e em trevas se vai, e de trevas se cobre o seu
nome;
5 não viu o sol, nada conhece. Todavia, tem mais descanso do que o outro,
6 ainda que aquele vivesse duas vezes mil anos, mas não gozasse o bem.
Porventura, não vão todos para o mesmo lugar?

Imediatamente deparamo-nos com o fato de que o “poder” de desfrutar os


dons de Deus, que nos foi apresentado em 5:19, é em si mesmo um dom que
pode ou não nos ser concedido. Podemos ser privados dele de diversas
maneiras. Em 5:13ss., temos o fracasso nos negócios: aqui tudo foi sacrificado
por um futuro que nunca se concretizou. Para este homem nunca houve uma
manha. Mas a vida pode ter longos períodos de brilho e de alegria, e ainda assim
sucumbir em trevas, que parecerão ainda mais profundas por causa da luz que
desfizeram. O homem do versículo 2, exatamente por ser notável, tem mais a
perder do que o lerdo que nunca chega a nada. E ele pode muito bem perder
tudo sem ter culpa alguma: é só vir a guerra, a enfermidade ou a injustiça e
lançar tudo no colo de outra pessoa. Se ele é atormentado, também o são
aqueles que têm riqueza material e pobreza interior, pois o problema não é
simplesmente que alguns bens são menos satisfatórios que outros, o que sem
dúvida acontece, ou que estes nos são dados escassamente. Uma pessoa pode
ter tudo que os homens sonham (o que nos termos do Antigo Testamento
significava filhos às dezenas e anos de vida aos milhares) e ainda assim partir
sem ser percebido ou lamentado54 e sem ter satisfação.
A esta altura podemos protestar dizendo que afinal de contas a fida não é
tão negra assim para a maioria das pessoas. Normalmente, podemos aceitar as
dificuldades junto com as alegrias, achando que a vida decididamente vale a
pena ser vivida. É claro que isto é verdade e está muito bem fundamentado, se
somos homens de fé como aqueles que conhecemos no final do capítulo cinco.
Mesmo que não o sejamos, ainda assim podemos viver satisfeitos, como milhares
de pessoas vivem, sem nos preocupar com o significado final das coisas.
A isto Coelet poderia responder, primeiramente, que ele está falando de
algumas pessoas e não de todas; e, em segundo lugar, que se nós não estamos
interessados em significados e valores, outras pessoas estão – e quem somos nós
para descartar essa responsabilidade? Mais uma vez ele nos convida a pensar, e
particularmente a pensar através da posição do secularista. Se esta vida é tudo,
oferecendo a algumas pessoas mais frustração do que satisfação e nada lhes
deixando para dar àqueles que delas dependem; se, além disso, todos
igualmente aguardam a sua vez de ser esquecidos (v.6c) então alguns realmente
podem invejar os natimortos, que tiveram mais proveito. Em certas horas, Jó e
Jeremias teriam concordado com isso fervorosamente (Jó 3; Jr 20:14ss.); e se nós
discordamos coma disposição de espírito desses dois homens é porque julgamos
suas vidas pelos valores que transcendem a morte e que ultrapassam os
sofrimentos e os prazeres desta vida, um critério que o secularista não pode
logicamente usar.
Tudo isto estraga qualquer quadro cor-de-rosa que se tenha do mundo; a
BLH destaca isso dizendo “tenho visto outra coisa muito triste que acontece

54
Esta é a força de não tiver sepultura (6:3); veja Jr 22:18ss

2
neste mundo...” (6:1), e faz 6:2 dizer: “e não está certo”. 55 Coelet está muito
longe de afirmar que o homem tem direitos que Deus ignora; antes, o homem
tem necessidades que Deus denuncia. Algumas delas, como já vimos, são de um
tipo que o mundo temporal não pode nem começar a usufruir, uma vez que Deus
“pôs a eternidade no coração do homem” (3:11); outras, mais limitadas, são de
um tipo que o mundo pode satisfazer um pouco e por algum tempo; nenhuma
delas, porém, com certeza e em profundidade. Se isto é sofrimento e pesa sobre
os homens (v.1), também é uma coisa muito salutar. O próprio mundo no-lo diz
com a única linguagem que geralmente entendemos: “não é lugar aqui de
descanso”.56
Mas, por enquanto, não somos incentivados a colher disso qualquer
sabedoria, pois a “corrida desenfreada” por si mesma não faz nenhum sentido.
Assim o capítulo conclui com uma nota depressiva e incerta, bem adequada ao
estado do homem abandonado a si mesmo.

Perguntas sem resposta


6: 7 Todo trabalho do homem é para a sua boca; e, contudo, nunca se
satisfaz o seu apetite.
8 Pois que vantagem tem o sábio sobre o tolo? Ou o pobre que sabe andar
perante os vivos?
9 Melhor é a vista dos olhos do que o andar ocioso da cobiça; também isto
é vaidade e correr atrás do vento.
10 A tudo quanto há de vir já se lhe deu o nome, e sabe-se o que é o
homem, e que não pode contender com quem é mais forte do que ele.
11 É certo que há muitas coisas que só aumentam a vaidade, mas que
aproveita isto ao homem?
12 Pois quem sabe o que é bom para o homem durante os poucos dias da
sua vida de vaidade, os quais gasta como sombra? Quem pode declarar ao
homem o que será depois dele debaixo do sol?

As idéias e as perguntas do parágrafo final do capítulo voltam a tocar em


alguns assuntos que já vimos antes, para consubstanciar o lema do livro,
“vaidade de vaidades!”.
A primeira delas (v.7) insiste em um ponto que é tão real para o homem
moderno em sua rotina industrial quanto o era para o lavrador primitivo que mal
tirava da terra o seu sustento: que se trabalha para comer, a fim de ter forças
para continuar trabalhando e continuar comendo. Mesmo quando se gosta do
que faz – e do que se come – a compulsão continua existindo. Quem governa,
parece, é a boca e não a mente.
Quando objetamos que os homens tema algo mais do que isso, e coisas
melhores pelas quais viver, o versículo 8 não permite que tal argumentação
fique sem resposta. A sabedoria, por exemplo, pode ser infinitamente melhor
que a loucura, como já vimos numa passagem anterior (2:13); mas será que o
sábio vive em melhores condições do que o tolo? Materialmente, tanto pode ser
que sim como não, embora ele certamente o mereça; e nós já vimos que a morte
vai nivelar os dois com total indiferença.57 Quanto à felicidade, a clareza de visão
do homem sábio não se constitui só de alegria: “Porque na muita sabedoria”,
como vimos em 1:18, “há muito enfado; e quem aumenta ciência, aumenta
tristeza.”
55
O AT pode usar a palavra mal (6:1) em um sentido neutro, para indicar dificuldade ou
desastre; cf., por exemplo, Is 45:7 (“o mal”); Am 3:6 (“Sucederá algum mal à cidade...”).
semelhantemente, bem nesta passagem é traduzido por “gozar do bem” e “fartar do
bem” (5:18; 6:3). A última frase do versículo 2, tão distante do significado de “não está
certo” (BLH), é lit. “é uma grave enfermidade” (como na ERC “má envermidade”) ou
com o sentido próximo de grande aflição (ERAB).
56
Mq 2:10
57
Ec 2:14ss.

2
Como que sentindo que nós ainda não estamos muito convencidos, uma vez
que avaliamos a qualidade da vida de um homem acima do seu conforto, Coelet
faz a prática pergunta de 8b: o que um pobre, por mais respeitado que seja, 58
realmente recebe em troca do seu sofrimento? É uma pergunta honesta.
Invertendo um dos conhecidos ditados de R.L Stevenson, para a maioria de nós
é melhor chegar do que viajar cheio de esperanças. Esta é a ênfase do versículo
9a, e o seu senso prático não dá lugar a fantasias. O problema é que “chegar”,
em qualquer sentido final e realizador, está alem do nosso poder. Qualquer coisa
que nós consigamos vai se desfazer como vaidade e correr atrás do vento, quer
seja o espírito de iniciativa do pobre, quer seja o sucesso do rico.
Será isto derrotismo ou realismo? Em termos da vida “debaixo do sol” é
realismo total, como a argumentação do livro já no-lo provou. Por mais palavras
magníficas que multipliquemos acerca do homem ou contra o seu Criador, os
versículos 10 e 11 nos fazem lembrar que não podemos alterar a maneira como
nós e o nosso mundo foram feitos. Estas coisas já receberam um nome e sabe-se
(v.10) o que são, o que é uma outra maneira de dizer, como o restante das
Escrituras, que devem a sua existência à ordem de Deus; e esta ordem inclui
agora a sentença passada a Adão na Queda. É claro que achamos tal sentença
dura e queremos protestar. A idéia de discutir com o Todo-poderoso (VS.
10b,11) fascinava Jó, que a abandonou apenas depois de muito sondar o seu
coração;59 a mesma idéia recebeu uma repreensão clássica em Isaías 45:9ss.,
com o exemplo do barro dando ao oleiro um conselho intrometido. Mas nós
continuamos achando mais fácil exagerar a maneira como achamos que as
coisas deveriam ser do que enfrentar a verdade do que elas são.
Mas esta verdade, para que seja a verdade total, deve incluir o que elas
estão se tornando e o que vai ser de nós. Uma parte disto, que vamos morrer, já
sabemos muito bem; do restante, apenas um pouquinho. Assim o capítulo, no
meio do livro, acaba com uma enfiada de perguntas sem resposta. O homem
secular, que caminha para a morte e precipita-se ao léu das mudanças, só pode
fazer-lhes eco: “Pois quem sabe o que é bom...? Quem pode declarar ao homem
o que será depois dele... ?”
É um duplo espanto. Ele fica sem valores absolutos pelos quais viver (“o
que é bom?”) e sem nenhuma certeza prática (“o que será?”) para fazer planos.

Segundo Resumo:
Retrospectiva de Eclesiastes 4:9-6:12
Em nosso primeiro resumo, fomos lembrados de quão amplamente se
estenderam os primeiros capítulos em busca de um fim satisfatório para a vida.
Então, por um pouco, a investigação parece que ficou suspensa. De 4:9 até mais
ou menos 5:12 conseguimos fazer uma pausa para olhar à nossa volta e estudar
o cenário humano com certa neutralidade. Os comentários foram penetrantes
como sempre, mas o tom foi tranqüilo, quase condescendente.
Mas foi a ironia, não aceitação. De 5:13 em diante já não fomos mais
poupados à inquietação que as anomalias e tragédias do mundo deveriam
despertar em nós. Nós experimentamos seus causticantes desapontamentos: a
súbita ruína do trabalho de toda uma vida (5:13-17) e também as realizações
deslumbrantes que não trouxeram felicidade alguma (6:1-6). Houve m vislumbre
de coisas melhores no final do capítulo 5, um sinal de que Coelet nos levaria a
uma reposta no final; mas o alívio teve curta duração. O capítulo 6, que começou
com a denúncia de algumas vidas vazias, continuou desmascarando a atividade
constante e sem sentido (6:7-9) do nosso formigueiro humano, e concluiu
58
A expressão “que sabe andar...” pode dar a entender uma vida moral ou socialmente
bem conduzida. A palavra aqui usado como pobre é aquela que em outras passagens
tende a distinguir o oprimido que busca ajuda de Deus.
59
Veja, por exemplo, Jó, capítulos 9,13 e 23; também 31:35-37; 42:1-6

2
repudiando nossos belos discursos sobre o progresso (6:10-12). Pois, apesar de
todo esse falatório, o homem por si não tem a capacidade de mudar-se a si
mesmo; não tem nenhuma permanência nem sequer um lugar para onde ir.

Eclesiastes 7:1-22 -
Interlúdio: Mais reflexões, máximas e verdades
Com um toque seguro, o autor introduz agora uma mudança estimulante no
seu estilo e método. Em vez de refletir e argumentar, ele vai nos bombardear
com o forte impacto e variados ângulos de ataque dos provérbios. Os primeiros
são provocativamente melancólicos; os restantes (na sua maioria) são
provocativamente tranqüilos e sagazes.

Você pode também enfrentar os fatos!


7: 1 Melhor é a boa fama do que o ungüento precioso, e o dia da morte,
melhor do que o dia do nascimento.
2 Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, pois
naquela se vê o fim de todos os homens; e os vivos que o tomem em
consideração.
3 Melhor é a mágoa do que o riso, porque com a tristeza do rosto se faz
melhor o coração.
4 O coração dos sábios está na casa do luto, mas o dos insensatos, na casa
da alegria.
5 Melhor é ouvir a repreensão do sábio do que ouvir a canção do
insensato.
6 Pois, qual o crepitar dos espinhos debaixo de uma panela, tal é a risada
do insensato; também isto é vaidade.

Nada na primeira metade do versículo 1 nos prepara para o golpe da


segunda metade. Houve algo parecido no capítulo anterior (6:1-6), mas falava de
casos especiais. Estas palavras são tão arrasadoras e tão contrárias à opinião
normal que temos de dar um pulo até o Novo Testamento, onde “partir e estar
com Cristo” é considerado “muito melhor” do que ficar aqui (em 3:21, contudo,
Eclesiastes já se recusou a pressupor a existência de uma vida futura); ou,
então, temos de continuar lendo, na esperança de que haja esclarecimento a
seguir.
Isto não vamos encontrar, com certeza; e fica enunciado mais
explicitamente no final do versículo seguinte, em especial na expressão e os
vivos que o tomem em consideração. Em outras palavras, o dia da morte tem
mais a nos ensinar do que o dia do nascimento; suas lições são mais concretas e,
paradoxalmente, mais vitais. No nascimento (e, como falam os versículos
seguintes, em todas as ocasiões alegres e festivas) o ambiente é de excitação e
expansividade. Não é hora de se pensar na brevidade da vida ou nas limitações
humanas: deixamos que nossas fantasias e esperanças subam alto na casa onde
há luto, por outro lado, o ambiente é sério e a realidade é evidente. Se não
pensamos nela, a culpa é nossa: não teremos outra oportunidade melhor de
encará-la. O grande salmo sobre a mortalidade humana, o Salmo90, expõe o
assunto com majestosa simplicidade:
“Ensina-nos a contar os nossos dias,
para que alcancemos coração sábio.”
Assim como o salmo, esta passagem tem em vista um resultado positivo, o
que fica explícito com a insistência na palavra melhor, e especialmente na
última parte do versículo 3 conforme a ER: a tristeza do rosto torna melhor o
coração. A idéia de que a tristeza, além de ser substituída pela alegria, também
é em si mesma uma preparação para uma forma mais perfeita de gozo (ao

2
contrário da jovialidade confusa e vazia dos tolos, rápida em se acender e rápida
em se apagar60) é mais claramente exposta em João 16:20ss., onde se usa a
analogia do parto, cujas dores preparam o caminho para uma alegria especial.
Em outros termos, veja-se 2Coríntios 4:17ss. e, no Antigo Testamento, Jó 33:19-
30.
Já a BLH toma “coração” como o sentido de “mente”: “a tristeza faz o rosto
ficar abatido, mas torna o coração compreensivo.” Apesar de ocorrer com
freqüência este sentido no AT, a expressão encontrada aqui é um padrão para o
sentimento de alegria (cf., por ex., Rt 3:7)

Você também pode ser racional!


7: 7 Verdadeiramente, a opressão faz endoidecer até o sábio, e o suborno
corrompe o coração.
8 Melhor é o fim das coisas do que o seu princípio; melhor é o paciente do
que o arrogante.
9 Não te apresses em irar-te, porque a ira se abriga no íntimo dos
insensatos.
10 Jamais digas: Por que foram os dias passados melhores do que estes?
Pois não é sábio perguntar assim.
11 Boa é a sabedoria, havendo herança, e de proveito, para os que vêem o
sol.
12 A sabedoria protege como protege o dinheiro; mas o proveito da
sabedoria é que ela dá vida ao seu possuidor.
13 Atenta para as obras de Deus, pois quem poderá endireitar o que ele
torceu?
14 No dia da prosperidade, goza do bem; mas, no dia da adversidade,
considera em que Deus fez tanto este como aquele, para que o homem nada
descubra do que há de vir depois dele.
15 Tudo isto vi nos dias da minha vaidade: há justo que perece na sua
justiça, e há perverso que prolonga os seus dias na sua perversidade.
16 Não sejas demasiadamente justo, nem exageradamente sábio; por que
te destruirias a ti mesmo?
17 Não sejas demasiadamente perverso, nem sejas louco; por que
morrerias fora do teu tempo?
18 Bom é que retenhas isto e também daquilo não retires a mão; pois
quem teme a Deus de tudo isto sai ileso.
19 A sabedoria fortalece ao sábio, mais do que dez poderosos que haja na
cidade.
20 Não há homem justo sobre a terra que faça o bem e que não peque.
21 Não apliques o coração a todas as palavras que se dizem, para que não
venhas a ouvir o teu servo a amaldiçoar-te,
22 pois tu sabes que muitas vezes tu mesmo tens amaldiçoado a outros.

Há aqui quase tantas opiniões e pontos de vista quantas afirmações; uma


certa melancolia para com o assunto, porém, destaca-se na maioria delas.
Encarando o homem do mundo no seu próprio ambiente não muito elevado,
Coelet destaca que há vantagens auto-evidentes em se tentar dar sentido à vida,
em vez de cair no cinismo e no desespero.
No versículo 7 podemos reconhecer a essência de uma lei que, nos tempos
modernos, Lord Acton formulou da seguinte maneira: “Todo poder tende a
corromper...”. É interessante que a exortação implícita aqui é para com o auto-
respeito, pois ninguém gosta de se fazer de tolo, o que o funcionário cruel ou
corrupto faz por definição, uma vez que age sem referência aos méritos de um
caso. Sua mente foi adulterada: em vez de servir à verdade, transformou-se em
60
O versículo 6 faz um trocadilho com os dois sentidos de sir no heb., “espinho” e
“panela”.

2
ferramenta da avareza e da malevolência.
Reunindo os versículos 8 e 9, vemos de novo o lado puramente louco das
atitudes que o moralista condenaria sob fundamentos mais graves, mas que são
fundamentos que pouco dizem ao homem mundano. Considerando ou não a
paciência uma virtude e a disputa um vício, podemos finalmente ver o bom
senso prático do autocontrole: examinar uma questão por completo, em vez de
abandoná-la diante da primeira afronta contra a nossa dignidade. Este não é o
único setor em que a atitude errada também pode ser acertadamente descrita
como infantil.
O versículo 10 é ainda mais esmagador, pois condiz com uma reação
nostálgica, que é um estado de ânimo enervante e auto-indulgente. Suspirar
pelos “bons dias do passado” é uma coisa (podemos refletir) duplamente irreal:
um substituto não somente para a ação como também para um raciocínio
adequado, uma vez que invariavelmente são esquecidos os males que tiveram
uma forma diferente ou que prejudicaram uma outra seção da sociedade em
outros tempos. O esclarecido Coelet é a última pessoa a se impressionar com
esta neblina dourada do passado; ele já declarou que uma época é muito
parecida com outra. “O que foi, é o que há de ser... nada há, pois, novo debaixo
do sol” (1:9). Tudo isto, ele agora dá a entender, é bastante óbvio para que valha
a pena argumentar: ele só precisa nos pedir que falemos com mais sensatez.
Nos versículos 11 e 12 surge uma estimativa invulgarmente mundana de
sabedoria. Embora haja algumas dúvidas sobre a tradução correta, é certo que a
sabedoria está sendo tratada, no momento, em pé de igualdade com o dinheiro,
pois é um valor vantajoso: uma garantia comparável ou superior contra os riscos
da vida.61 Neste caso, dificilmente seria uma comparação lisonjeira para alguma
coisa cujo verdadeiro valor é incalculável, de acordo com Provérbios 8:11 e
muitas outras passagens. O versículo 12b talvez esteja dizendo que a sabedoria,
ao contrário do dinheiro, dá vida;62 mas para estarmos dentro dos modestos
alvos desta passagem temos que considerar apenas o valor prático e protetor do
dinheiro. A frase em 11b, de proveito para os que vêem o sol , talvez seja uma
observação ambígua, um lembrete de que há um limite de tempo para o
benefício que até mesmo a sabedoria, neste nível de bom senso geral, pode
oferecer. Não produz dividendo algum na sepultura.
O restante dessas variadas afirmações, que seguem até o versículo 22,
mostra como é inconstante o conselho do bom senso quando não tem um
princípio unificante. Vai da resignação piedosa até o cinismo moral (vs 13-18); e
observa as imperfeições da natureza humana, embora muitíssimo interessada
em tentar conviver com elas (vs. 20-22).
Examinando essas afirmações um pouco mais detalhadamente: o versículo
13 não está falando de defeitos morais, mas da forma das coisas e dos
acontecimentos que nós achamos estranhos, mas temos de aceitar como vindos
de Deus. Isto inclui os seus juízos – pois ele ” transtorna” o caminho dos ímpios”,
como o Salmo 146:9 declara literalmente (ou “torce”, usando um outro verbo) –
mas também presumivelmente muitas das provações da vida, como sugere o
versículo seguinte (v.14). este versículo é um clássico sobre a maneira correta
de se comportar quando tudo vai bem ou quando tudo vai mal, ou seja, aceitar
ambas as situações como vindas de Deus: nem com a impassividade do estóico
nem com a inquietação daqueles que não conseguem aceitar um prêmio com
deleite, ou um golpe da sorte com espírito aberto e refletivo.
61
O versículo 11 pode significar que ter as duas coisas, riqueza e sabedoria, é uma dupla
vantagem (como na ERAB); mas provavelmente, o sentido seja o de comparar uma com
outra (ER, BLH, ERC): “boa é sabedoria como a herança” (ER); cf. o heb. De, por
exemplo, 2:16b; Jó 38:18, onde “da mesma sorte” é lit. “com”.
62
A simples expressão traduzida por dá a vida também pode significar “preserva a vida”
(ER) ou “conserva” (BLH) – cf., por exemplo, 1Sm 2:6; Sl 85:6 (Heb. 7). E “vida” no AT,
como no NT, geralmente significa vitalidade espiritual e não simplesmente existência
física.

2
“Aceite o que Ele dá,
E louve-o, igual:
No bem e na doença
Ele é Deus eternal.”63
Mas, de acordo com este tema, Coelet deve destacar o mistério daquilo que
Deus dá, e especialmente a sua imprevisibilidade, o que apara as asas da nossa
auto-suficiência. Esse ponto já foi destacado em 3:11, onde o tempo e a
eternidade, assim como a obscuridade e a clareza, nos tantalizam e nos alertam,
no caso de imaginarmos sermos nada mais do que animais ou nada menos do
que deuses.
Agora surge o cinismo, nos versículos 15-18: o lado desgastado e egoísta do
senso prático. Para nos mostrar a lógica da posição secular, Coelet abandona
por uns instantes qualquer indício de uma fé genuína, e introduz a religião no
final apenas em uma forma de superstição, o que reduziria Deus ao status de
uma cláusula de compensação.
De maneira bastante esclarecedora (embora o versículo 15 possa ser
comparado e até ultrapassado pelas meditações de Jó, que pinta quadros
evocativos do pecador tranqüilo e do santo atormentado, como nos capítulos 21
e 30-31), Jó nunca chega à conclusão mesquinha apresentada nos versículos
16ss. ele preferiria morrer a renunciar suas reivindicações de justiça, ainda que
para sustentá-las tivesse de desafiar o próprio céu. “Eis que me matará, já não
tenho esperança; contudo defenderei o meu procedimento.” 64
Ao lado dessa resolução vigorosa, o lema “não sejas demasiadamente”
jamais pareceu tão vulgar como nestes versículos, que recomendam covardia
moral com uma atitude tão séria que sentimo-nos forçados a aceitá-la com
seriedade no momento. Ao fazê-lo, percebemos que na verdade se trata da
moralidade, reconhecida ou não do homem mundano, se ele é fiel aos seus
princípios. Poderíamos acrescentar que isso está se tornando cada vez mais
normal em nossa atual sociedade. O versículo 18 sonda as profundidades,
advogando, um tanto misteriosamente,65 não apenas a falta de sinceridade no
bem ou no mal, mas uma generosa mistura ambos, uma vez que a religião vai
resolver tudo e a pessoa vai, portanto, desfrutar ambos os estilos de vida.
Depois disso, a declaração irrepreensível do versículo 19 restaura um
pouco a nossa confiança no valor do bom senso (embora não, talvez, no valor dos
políticos). Mesmo tratando da sabedoria, um versículo posterior (9:16) vai nos
lembrar que não devemos esperar muito reconhecimento por uma qualidade tão
intangível.
Isolado do cinismo dos versículos 16-18, o versículo 20 pode ser aceito ao
pé da letra, como uma confissão e não uma justificativa. Não se trata de uma
postura indiferente, como os versículos anteriores dariam a entender; em
continuação, Coelet parece suavizar um pouco essa verdade. Os versículos 21ss.
são em si mesmos, um excelente conselho, uma vez que, quando encaramos com
muita seriedade o que as pessoas dizem de nós ficamos magoados; e de
qualquer forma todos nós já dissemos coisas ferinas algum dia. Mas talvez os
três versículos (20-22) juntos considerem nossas falhas com um pouco mais de
negligência do que as Escrituras costumam fazê-lo, e quem sabe ainda
estejamos dando ouvidos aqui ao Sr Sensato (tomando emprestado o nome de
C.S. Lewis),66 em vez de ouvir a voz autêntica da sabedoria. Certamente Coelet
não encontra um ponto de apoio em nenhuma dessas máximas: ele está
profundamente insatisfeito com sua superficialidade, conforme veremos em suas

63
Richard Baxter, “Ye holy angels bright”.
64
Jó 13:15; cf., por exemplo, 27:1-6
65
Isto e daquilo referem-se ao que acaba de ser citado no v.15, isto é, a justiça e a
perversidade. A linha final ficou bem parafraseada pela BLH: “Se você temer a Deus,
terá sucesso em tudo”.
66
C.S. Lewis, The Pilgrim’s Regress (2ªed., Bles, 1943) pg 82ss

2
próximas palavras.

Eclesiastes 7:23-29 -
A busca continua
7: 23 Tudo isto experimentei pela sabedoria; e disse: tornar-me-ei sábio,
mas a sabedoria estava longe de mim.
24 O que está longe e mui profundo, quem o achará?
25 Apliquei-me a conhecer, e a investigar, e a buscar a sabedoria e meu
juízo de tudo, e a conhecer que a perversidade é insensatez e a insensatez,
loucura.
26 Achei coisa mais amarga do que a morte: a mulher cujo coração são
redes e laços e cujas mãos são grilhões; quem for bom diante de Deus fugirá
dela, mas o pecador virá a ser seu prisioneiro.
27 Eis o que achei, diz o Pregador, conferindo uma coisa com outra, para a
respeito delas formar o meu juízo,
28 juízo que ainda procuro e não o achei: entre mil homens achei um como
esperava, mas entre tantas mulheres não achei nem sequer uma.
29 Eis o que tão-somente achei: que Deus fez o homem reto, mas ele se
meteu em muitas astúcias.

A admissão honesta de fracasso na busca da sabedoria (na verdade, quando


a observamos, recuamos a cada passo, ao percebermos que nenhuma de nossas
sondagens chega até o fundo das coisas) é, se não co começo da sabedoria, pelo
menos um passo na direção do começo. Depois da ambiciosa busca do capítulo
2, a investigação passa agora a áreas menos exóticas, mergulhando na
experiência comum e fazendo pausas de vez em quando para ver o que se pode
fazer da vida no dia-a-dia, sejam quais forem finalmente os seus segredos. Neste
nível, as descobertas talvez tenham sido bastante sagazes, até sagazes demais.
Mas tendo dito tudo isto experimentei-o (v.23), em busca de uma resposta à
pergunta “o que é a vida?”, elas não deram nem sobra de resposta.
Portanto a confissão de 7:23 tem uma finalidade devastadora. Poderia ser o
epitáfio de qualquer filósofo, e nós poderíamos dispô-la nesta forma, adequada
para qualquer sepultura:
“Eu disse:
tornar-me-ei sábio,
mas a sabedoria estava longe de mim.
O que está longe e mui profundo,
quem o achará?”
Como qualquer pergunta sem resposta, este quebra-cabeças acerca da vida
tinha sido um estímulo no princípio. A série de verbos, conhecer... investigar...
buscar (v.25), transmite a sinceridade da busca, como Edgar Jones destaca. 67
Mas faz parte da condição do homem que, embora ele possa formular a sua
tarefa em termos de pesquisa imparcial e com filosofias (buscando um resumo
total das coisas,68 consciente do mal como estultícia e loucura) 69, ele tem
também de se voltar para a esfera dos relacionamentos humanos em sua busca
de significado para o mundo, ainda que os vendo necessariamente através das
lentes distorcidas do pecado. Assim o nosso autor nos deixa perplexos com o seu
amargo veredito: entre mil homens ele encontrou apenas um que não fosse um
desapontamento, mas mulher nenhuma. Como vamos encarar isso?
Para começar, devemos observar que ele não está dogmatizando, mas
67
Jones, pg 321
68
O juízo (vs 25,27) poderia ser traduzido por “o balanço” com os dois sentidos que esse
termo possui; isto é, a “totalidade” e a “exposição” das coisas (cf. McNeile).
69
O versículo 25b está bem traduzido na ERAB: “...a perversidade é insensatez, e a
insensatez é loucura”; melhor do que “a maldade e a falta de juízo são loucura” (BLH).

2
informando. É a experiência de um homem e ele não a universaliza. 70 Mas o mais
pertinente é que ele nos apresenta o papel que o pecado pode desempenhar em
ambos os lados de um encontro entre os sexos. Um caso profundamente
desenganador como o descrito no versículo 26 pode distorcer ou até mesmo
destruir qualquer tentativa subseqüente de relacionamento. Sem dúvida Coelet
conseguiu escapar, como ele dá a entender no versículo 26b – mas não sem
ferimentos. Sua busca infrutífera de uma mulher em que pudesse confiar pode
nos dizer muita coisa sobre ele e sobre a sua maneira de pensar, como também
sobre as suas amizades. Sentimo-nos tentados a acrescentar (e isto poderia ser
concebivelmente relevante) que, tal como Salomão, cujo manto ele assumira
anteriormente,71 Coelet teria feito melhor se tivesse lançado a sua rede sobre
um número menor, e não sobre “mil”! ele quase diz o mesmo em 9:9, com um
elogio à simples fidelidade conjugal.
No último versículo do capítulo 7 sua conclusão sobre a natureza humana é
mais firme do que ele poderia ter adquirido por sua simples experiência. Ele se
volta para o que foi revelado, baseando-se evidentemente em Gênesis 1-3. Para
apreciarmos a importância deste ponto de vista bíblico acerca de Deus e o
homem, só precisamos ouvir a narrativa sobre o assunto na Teodicéia
Babilônica, onde os deuses são os responsáveis pela malignidade dos homens:
“com mentiras, e não verdade, eles os dotaram para sempre.” 72 Tal perspectiva é
paralisante, pois a virtude já é bastante difícil sem o acréscimo da suspeita de
que não existe verdade do seu lado, e de que de fato ela vai contra tudo o que há
de mais humano. A propósito, esta idéia não se restringe aos antigos babilônios.
Na prática ela é a opinião (sem a teologia) de todos os que crêem ser reto (v.29)
é ser ingênuo e um tanto infantil.
Essa suspeita e esse ponto de vista, somos advertidos, levam-nos de volta à
Queda, mas não às nossas origens. Depois das apalpadelas deste capítulo, o
versículo 29 nos dá a certeza restauradora de que nossas muitas astúcias (nosso
obscurecimento moral, nossa recusa a andar corretamente) são nossa culpa, não
nosso destino. Já é muito mau termos estragado o que era perfeito; isso é culpa.
Mas simplesmente fazer parte do que não tem sentido levaria ao desespero. As
palavras, Deus fez o homem reto, muito embora tenham seus efeitos trágicos, já
são suficientes para levantar uma questão sobre o refrão “vaidade de vaidades”.
Considerando que “futilidade” não foi a primeira palavra enunciada sobre o
nosso mundo, também não tem de ser a última.

Eclesiastes 8:1-17 -
Frustração
8: 1 Quem é como o sábio? E quem sabe a interpretação das coisas? A
sabedoria do homem faz reluzir o seu rosto, e muda-se a dureza da sua face.
2 Eu te digo: observa o mandamento do rei, e isso por causa do teu
juramento feito a Deus.
3 Não te apresses em deixar a presença dele, nem te obstines em coisa
má, porque ele faz o que bem entende.
4 Porque a palavra do rei tem autoridade suprema; e quem lhe dirá: Que
fazes?
5 Quem guarda o mandamento não experimenta nenhum mal; e o coração
do sábio conhece o tempo e o modo.
6 Porque para todo propósito há tempo e modo; porquanto é grande o mal
que pesa sobre o homem.

70
Por outro lado, o v.20 mostra que ele não deixará de universalizar, quando for o caso.
71
Veja os comentários iniciais da sessão 1:12-2:26
72
“The Babylonian Theodicy”, linha 280 em Babylonian Wisdom Literature de W. G.
Lambert (Claredon, Oxford, 1960) pg89

2
7 Porque este não sabe o que há de suceder; e, como há de ser, ninguém
há que lho declare.
8 Não há nenhum homem que tenha domínio sobre o vento para o reter;
nem tampouco tem ele poder sobre o dia da morte; nem há tréguas nesta peleja;
nem tampouco a perversidade livrará aquele que a ela se entrega.
9 Tudo isto vi quando me apliquei a toda obra que se faz debaixo do sol; há
tempo em que um homem tem domínio sobre outro homem, para arruiná-lo.

Talvez, como muitos pensam, Coelet tenha tomado emprestado uma citação
familiar para o versículo de abertura em que elogia a sabedoria e o sábio. Mas
com os perigosos caprichos de um rei a levar em conta, a sabedoria tem de
recolher suas asas e assumir uma forma discreta, contentando-se em poder
manter longe de problemas o seu possuidor. Esta é apenas a primeira de suas
frustrações, e a menor delas; pelo menos há uma coisa útil que ela pode realizar
nesta situação, ao passo que mais adiante, no capítulo ela terá de enfrentar
problemas delicados, tais como a morte, a perversidade moral e o mistério do
governo divino.
A discrição é, então, o aspecto principal da sabedoria nesta situação,
embora o versículo 1a, com um lembrete acerca de José e Daniel, Aitofel e
Husai,73 enfatize a parte que o talento mais positivo do sábio, a interpretação
das cousas, desempenha na corte do rei. A não ser aqui, a sabedoria é uma
figura decorosa e modesta neste parágrafo, onde podemos refletir sobre a
loucura de um rei (ou de qualquer líder) cujo desprezo ou temor da verdade
reduz a sabedoria ao silêncio, mediante o expediente de fazer calar as mentes
pensantes.
Cauteloso como deve ser o homem sábio, ele não está aqui sendo
pressionado a abandonar a sua integridade. Sua disposição em agradar não
precisa ser servil. A expressão alegre e agradável de sua fisionomia, que o
versículo 1b destaca, não é fingimento: realmente é a sua expressão, a pessoa
que ele é e a disposição de sua mente. Há em sua obediência, não oportunismo,
mas também princípios, fato este revelado pela correta tradução do versículo 2:
“... Observa o mandamento do rei, e isso por causa do teu juramento feito a
Deus.”74 Dentro dessa estrutura, ele usa também, como todo sábio, 75 sua
capacidade de discernimento para avaliar uma situação perigosa (v.3) 76 e o
senso de oportunidade de suas ações (vv 5b, 6ª). Muitas passagens no Antigo
Testamento dão testemunho dos limites que a lealdade a Deus deve estabelecer
quando é necessário agir com tato, submissão e dignidade; basta lembrar a
franqueza dos profetas e, entre os sábios, do indômito Daniel e seus
companheiros. Se tais exemplos nos enchem de vergonha e nos arrancam do
conformismo, estes versículos mantêm o equilíbrio ideal, ensinando-nos o devido
respeito para com o governo. Da mesma forma, o Novo Testamento as vezes
enfatiza um lado da questão, às vezes outro.77

73
2Sm 16:20-17:14
74
No TM o versículo refere-se ao “juramento de Deus”; quer seja a legitimação do rei
feita por Deus, quer seja o juramento de lealdade do indivíduo (os dois casos são
possíveis); a questão fica de qualquer forma colocada numa situação religiosa. O fato de
a obediência compensar (v.5) é um incentivo adicional, que o NT também considera
digno de menção (Rm 13:3-5)
75
Cf., por exemplo, Pv 14:15ss.; 22:3
76
O v.3 que começa com a frase “Não te apresses”, é difícil. De início pode ser um
conselho contra a ocupação de altos cargos, ou contra uma renúncia impulsiva (Barton,
Jones). Sua sintaxe é ambígua. A cláusula seguinte pode significar “não insista em fazer
uma coisa errada” (como na BLH) ou ainda como na BJ, “Nem te coloques em má
situação”.
77
Por exemplo, Mt 23:2, 3a, em contrapartida com o restante deste capítulo, Cf. 1Pe
2:13ss. com Atos 5:29

2
A menção do tempo e do modo78 (vv 5,6) que o sábio aprende a reconhecer
(a verdade e o momento da verdade que pode ser aproveitado ou deixado de
lado) lembra o tema do capítulo 3, os traços de um mundo condicionado pelo
tempo, sempre mutante. Lá, estávamos tateando em busca de alguma coisa
permanente; aqui, buscamos algo previsível (v.7). É um consolo desanimador
descobrir que apenas a morte se encaixa neta categoria; e um pouco melhor
quando a pessoa se recupera da perspectiva para ser confrontada com um
presente cheio de sofrimento, em que um homem tem domínio sobre outro
homem, para arruiná-lo (v.9). há uma ironia toda especial nesta última
observação, onde a expressão que mais choca ao falar do abuso do poder
humano (tem domínio) relembra claramente o que acaba de ser dito sobre a
impotência humana em outras áreas: sua incapacidade de dominar os eu próprio
espírito,79 ou de dominar a morte, visto que uma só família de palavras soberbas
dão colorido a todas estas declarações. O restante do versículo 8 apresenta o
último encontro em termos bem vivos, que permitiriam uma paráfrase: “Há uma
batalha à qual não podemos fugir; não podemos trapacear.”

Perversidade moral
8: 10 Assim também vi os perversos receberem sepultura e entrarem no
repouso, ao passo que os que freqüentavam o lugar santo foram esquecidos na
cidade onde fizeram o bem; também isto é vaidade.
11 Visto como se não executa logo a sentença sobre a má obra, o coração
dos filhos dos homens está inteiramente disposto a praticar o mal.
12 Ainda que o pecador faça o mal cem vezes, e os dias se lhe prolonguem,
eu sei com certeza que bem sucede aos que temem a Deus.
13 Mas o perverso não irá bem, nem prolongará os seus dias; será como a
sombra, visto que não teme diante de Deus.

Se existe algo que mais nos revolte é ver os perversos progredindo e cheios
de si. Mas a perversidade respeitada e recebendo a bênção da religião (v.10a) 80
é ainda mais enojante. No espetáculo aqui descrito, os parasitas não têm sequer
a justificativa da ignorância. Os vilões estão sendo honrados no próprio cenário
de suas maldades, e já não estão mais vivos para conquistar o temor ou o favor
de alguém. Assim, por mais incrível que pareça, a admiração tem de ser
genuína, tornando bem claro que o julgamento moral popular pode estar
totalmente desviado, dominado pela evidência do sucesso ou do fracasso e
recebendo a paciência dos céus como aprovação. O ditador ou o magnata
corrupto pode ter contornado as regras, dizem; mas afinal eles fizeram alguma
coisa, eles tinham talento, viviam com estilo.
Isso é demais para Coelet. Ele acaba fazendo uma de suas raras
declarações de fé, deixando cair a máscara do secularismo que normalmente usa
a bem da exposição. Isso já acontecera antes (veja 2:26; 3:17; 5:18-20; 7:14), e
nos capítulos finais já não será mais exceção, mas a regra.
O que ele certamente afirma aqui é o julgamento. No final, a coisa certa
78
Alternativamente, talvez, seja correto entender modo (v.5ss) e mal (v.6) em seus
sentidos primários, como “juízo” e “mal” ou “misericórdia” (como na ER). Neste caso
(como Delitzsch destaca) a passagem logra o seu intento ao dizer que o homem sábio
aguardará o tempo de Deus para o juízo (ou julgamento) e não tomará a situação em
suas próprias mãos com rebeldia.
79
A palavra heb. Para “vento” (ERAB) serve também para “espírito” (ER). O “vento” é
proverbialmente incontrolável (cf Pv 27:16), mas “espírito” é mais diretamente relevante
neste ponto. A BV registra: “Ninguém pode se manter vivo para sempre, ninguém pode
evitar o dia de sua morte!”
80
O versículo 10 está longe de ser claro. Temos apoio esmagador em ativas versões (e
muitos MSS) para ler “louvados” (Vsbh) no lugar de “esquecidos” (Vskh). A BLH segue
esta interpretação: “Eu vi o enterro de pessoas más. Na volta do cemitério notei que
eram elogiadas, e isso na mesma cidade onde haviam feito o mal”.

2
será feita, de qualquer jeito: ... bem sucede aos que temem a Deus. Mas o
perverso não irá bem... o que ele também talvez esteja tenuemente despertando
em nossas mentes é a idéia de uma vida após a morte para os piedosos. Neste
caso, ele o faz através de um paradoxo não solucionado acerca dos perversos,
pois na mesma tirada ele fala do vilão cuja vida é prolongada (v.12) e daquele
que não prolongará os seus dias (v.13). isto talvez signifique que, enquanto o
homem piedoso tem esperanças além da sepultura, o ímpio não a tem; por mais
adiada que seja, a morte será o seu fim. Esta é a maneira como alguns dos
salmos apresentam o assunto.81
Mas a recusa de Coelet de pronunciar-se mais sobre isto, contentando-se
coma pergunta “Quem sabe?” (3:21), indica mais provavelmente que ele está
generalizando o assunto. A perversidade, declara, não produz benefícios reais
(v.13a); e, como regra, por mais notáveis que sejam as exceções (vs 12, 14), ela
criva de incertezas. A carreira do homem perverso é toda aparência, não tem
substância.82

Pequenas expectativas
8: 14 Ainda há outra vaidade sobre a terra: justos a quem sucede segundo
as obras dos perversos, e perversos a quem sucede segundo as obras dos justos.
Digo que também isto é vaidade.
15 Então, exaltei eu a alegria, porquanto para o homem nenhuma coisa há
melhor debaixo do sol do que comer, beber e alegrar-se; pois isso o
acompanhará no seu trabalho nos dias da vida que Deus lhe dá debaixo do sol.

Há um momento fomos lembrados da regra geral de que a perversidade


cava a sua própria sepultura e a justiça, por assim dizer, o seu próprio jardim.
Mas com muita freqüência o padrão é invertido, confundindo tudo; 83 não há
maneira certa de saber quando (ou por quê) a vida vai desferir sobre nós o seu
próximo golpe OUA sua próxima bênção. Esforços morais talvez não paguem
dividendos, e embora isso torne tudo ainda mais nobre, é natural buscar algum
tipo mais seguro de investimento. Naqueles termos – que no versículo 15 são
duas vezes acentuados com as palavras debaixo do sol – os prazeres simples da
vida são os mais sadios. Não é a primeira vez que somos trazidos de volta a eles,
nem será a última; mas Coelet jamais os valoriza demasiadamente. Coloca-os
sempre lado a lado com algum lembrete do lado duro da vida (aqui, o seu
trabalho), que eles só podem mitigar.

O enigma permanece
8: 16 Aplicando-me a conhecer a sabedoria e a ver o trabalho que há sobre
a terra—pois nem de dia nem de noite vê o homem sono nos seus olhos—,
17 então, contemplei toda a obra de Deus e vi que o homem não pode
compreender a obra que se faz debaixo do sol; por mais que trabalhe o homem
para a descobrir, não a entenderá; e, ainda que diga o sábio que a virá a
conhecer, nem por isso a poderá achar.

Se precisávamos ser lembrados de que o trabalho árduo e a vida simples só


podem protelar nossas perguntas mais importantes, mas nunca respondê-las,
bastaria esta continuação do conselho suave do versículo 15. Os próprios

81
Por exemplo, Sl 49:14ss.; 73:18ss
82
A frase acerca da sombra no v.13 deveria provavelmente ser entendida como “os seus
dias, que são como uma sombra”; cf. por exemplo 6:12, Sl 102:11; 109:23, etc. Com
menos probabilidade, poderia descrever o prolongamento das sombras ao entardecer;
mas esse prolongamento anuncia, e não adia, a aproximação da noite.
83
A BLH, contudo, aplica a frase “isso não tem sentido” às declarações dos versículos
12ss., depois de mudar a afirmação “eu sei....” para “eu sei que dizem...”. isto é muito
engenhoso, mas não faz parte do texto..

2
negócios84 da vida nos levam a perguntar para onde estão nos levando, e o que
significam, se é que significam alguma coisa. Nem é preciso Coelet nos indicar
que esta é exatamente a questão que nos derrota. A longa história das filosofias
do mundo, cada uma por sua vez denunciando as omissões de suas
predecessoras, torna isso mais o que claro.
Coelet o destaca, entretanto, dando-nos um raio de esperança através da
maneira como o faz. É a obra de Deus que nos desconcerta (v.17); não é “uma
história contada por um idiota”.
Mas, e se ela for contada a um idiota? Parece que o capítulo termina assim,
sem deixar aos nossos homens mais sábios qualquer perspectiva de sucesso.
Não obstante, captaremos melhor o seu significado se considerarmos a alusão
do versículo 17ª concernente à grande declaração de 3:11. Ali também
encaramos nossa incapacidade de conhecimento, mas vimos que tanto a
eternidade quanto o tempo tem acesso às nossas mentes. Embora os, como
habitantes do tempo, vejamos a obra de Deus em lampejos tantalizantes, o
próprio fato de podermos indagar acerca de todo o plano e de desejarmos vê-lo é
uma evidência de que não somos prisioneiros totais do nosso mundo.
Em palavras promissoras, esta é uma evidência não só de como fomos
feitos, mas também de por quem fomos criados.

Eclesiastes 9:1-18 -
Perigo
Antes que a ênfase positiva dos três capítulos finais possa vir à tona, temos
de nos certificar de que estaremos edificando sobre algo que não está
desprovido da realidade nua e crua. E, caso acariciemos alguma ilusão
confortadora, o capítulo 9 nos coloca diante do pouco que sabemos e a seguir
com a vastidão daquilo que não podemos controlar: particularmente, a morte, os
altos e baixos da sorte e os possíveis favores caprichosos da multidão. Em
primeiro lugar, porém, ele faz uma pergunta crucial: estamos nas mãos de um
amigo ou de um inimigo?

Será amor ou ódio?


9: 1 Deveras me apliquei a todas estas coisas para claramente entender
tudo isto: que os justos, e os sábios, e os seus feitos estão nas mãos de Deus; e,
se é amor ou se é ódio que está à sua espera, não o sabe o homem. Tudo lhe está
oculto no futuro.
Só precisamos usar os olhos sem preconceito, de acordo com o Salmo 19 e
Romanos 1:19ss., para ver que há um Criador poderoso e glorioso. Mas é
preciso mais do que uma simples observação para descobrir qual a disposição
dele para conosco. Quer tomemos aqui as palavras amor e ódio como uma forma
bíblica de dizer "aceitação ou rejeição", ou simplesmente em seu sentido
primário, teremos, de qualquer maneira, apenas uma vaga resposta acerca do
caráter do Criador se considerarmos o mundo em que vivemos, com sua mistura
de deleite e terror, de beleza e repugnância. 85
Se a questão fosse colocada no lugar exato, ainda seria desconcertante; e
84
O insone do v. 16b é considerado pela BLH como o pensador com o problema. Mas
seria mais honesto traduzir aplicando a referência às pessoas que ele observa. Cf. a BV:
“observei tudo o que acontecia em toda a terra – uma atividade contínua, dia e noite sem
parar.”
85
Podemos imaginar, entretanto, que o versículo 1b fala de atitudes humanas e não divinas; cf. BJ: "O homem
não conhece o amor nem o ódio". Delitzsch e alguns outros, inclusive a BLH, concluem a partir de 1a que o
homem não é suficientemente dono de si mesmo para saber se vai amar ou odiar numa determinada situação
(embora não negando ser responsável por aceitar ou rejeitar o sentimento que experimenta). Para mim, a
ênfase na inescrutabilidade de Deus em 8:17, imediatamente antes deste versículo, torna mais provável (e
mais relevante ao argumento) que aqui se trata da atitude de Deus e não do homem.

2
quanto menos à vontade nos sentíssemos, tanto mais nos sentiríamos entregues
nas mãos de Deus (v. 1a). Mas agora Coelet torna a questão ainda mais difícil
para nós, destacando um fato que parece colocar a balança decisivamente contra
nós (sempre supondo que estamos raciocinando apenas baseados no que podemos
ver). Então, ainda por cima, antes de concluir o capítulo, ele nos faz enfrentar
dois fatos associados ao anterior. O primeiro dos três é a morte.

A morte
9: 1 Deveras me apliquei a todas estas coisas para claramente entender
tudo isto: que os justos, e os sábios, e os seus feitos estão nas mãos de Deus; e,
se é amor ou se é ódio que está à sua espera, não o sabe o homem. Tudo lhe está
oculto no futuro.
2 Tudo sucede igualmente a todos: o mesmo sucede ao justo e ao perverso;
ao bom, ao puro e ao impuro; tanto ao que sacrifica como ao que não sacrifica;
ao bom como ao pecador; ao que jura como ao que teme o juramento.
3 Este é o mal que há em tudo quanto se faz debaixo do sol: a todos sucede
o mesmo; também o coração dos homens está cheio de maldade, nele há
desvarios enquanto vivem; depois, rumo aos mortos.
4 Para aquele que está entre os vivos há esperança; porque mais vale um
cão vivo do que um leão morto.
5 Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem
coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, porque a sua memória
jaz no esquecimento.
6 Amor, ódio e inveja para eles já pereceram; para sempre não têm eles
parte em coisa alguma do que se faz debaixo do sol.
7 Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe gostosamente o teu vinho,
pois Deus já de antemão se agrada das tuas obras.
8 Em todo tempo sejam alvas as tuas vestes, e jamais falte o óleo sobre a
tua cabeça.
9 Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias de tua vida fugaz, os
quais Deus te deu debaixo do sol; porque esta é a tua porção nesta vida pelo
trabalho com que te afadigaste debaixo do sol.
10 Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças,
porque no além, para onde tu vais, não há obra, nem projetos, nem
conhecimento, nem sabedoria alguma.
Se estamos certos em iniciar o versículo 2 com as palavras "Tudo lhe está
oculto no futuro (v. 1c), o fato é que, embora as coisas que nos cercam não nos
dêem qualquer indicação do que Deus pensa de nós, nossas esperanças tornam
tudo muito claro. A julgar pelas aparências, Deus simplesmente não se importa. As
coisas que supostamente deveriam lhe interessar mais acabam não fazendo diferença
alguma (pelo menos, nenhuma que se perceba) na forma como somos descartados
no final. Moral ou imoral, religioso ou profano, somos todos ceifados da mesma
maneira. Daqui a cem anos, como dizemos, continuará sendo a mesma coisa.
Mas, embora a morte pareça dizer isso - e ela sempre dá um jeito de ficar
com a última palavra - nós imediatamente apresentamos um protesto. Coelet fala
por nós todos ao exclamar: "isso é o pior de tudo o que acontece neste mundo" (v.
3b - BLH). O que talvez não tenhamos notado, pois ele não chama a nossa atenção
para isso neste ponto, é que este sentimento de ultraje é um fato tão certo a nosso
respeito quanto a nossa mortalidade. O que torna este livro tão fascinante são
principalmente estas colisões entre os fatos obstinados da observação e as
intuições igualmente obstinadas. Assim ele nos impulsiona rumo a uma síntese que
fica muito além de suas páginas - neste caso, a perspectiva da recompensa e do
castigo no mundo futuro.
Enquanto isso, examinamos o mundo como ele se nos apresenta, tendo a
morte como obliteradora universal e o mal aumentando em profusão. As duas
coisas têm uma certa relação. Viver em um mundo aparentemente sem significado

2
é profundamente frustrante, e a desilusão dá lugar à aniquilação e ao desespero, à
loucura dos violentos ou ao desespero dos solitários.
Será que o desespero é tudo que nos resta? Para nossa surpresa, o homem
de um modo geral pensa que não, ou, então, a raça humana já teria acabado há
muito tempo. E Coelet concorda com isso. A vida decididamente vale a pena ser
vivida. Afinal, na pior das hipóteses, ou quase isso, a vida é melhor do que o nada,
que é o que a morte parece ser. O forte senso prático do versículo 4, 86 com o
popular provérbio ilustrando o seu ponto de vista, abre caminho para uma recusa
vigorosa nos próximos dois versículos em deixar que a morte intimide os vivos
antes da hora. Antes, que a vida meta a morte no chinelo! Será que o homem vivo
sabe tanto para se sentir consolado? Mas de que valeria ser um cadáver sem
saber nada,87 sem esperar nada, sem nenhum valor no mundo?
Sob a própria sombra da morte, este espírito positivo ilumina o restante da
passagem (vs. 7-10) tanto quanto o faria uma coisa temporal, pois, embora não
seja a resposta completa, desfruta da aprovação de Deus. Não é à toa que ele é a
fonte de todos os dons da vida terrena: o pão e o vinho, as festas e o trabalho, o
casamento e o amor.
Há notáveis semelhanças entre esta passagem (9:7-10) e algumas linhas da
Epopéia de Gilgamesh, um poema acadiano que data do tempo de Abraão ou antes
e que era muito conhecido no mundo antigo. Neste ponto da história o herói,
impelido pela morte de seu grande amigo a ir em busca da imortalidade, chega ao
jardim dos deuses. Ali a jovem Siduri, a fabricante de vinhos, lhe fala:
"Gilgamesh, por onde você está vagueando?
A vida que está procurando, você nunca encontrará,
pois os deuses, quando criaram o homem, deram-lhe
a morte como quinhão, e a vida
ficou retida nas mãos deles.
Gilgamesh, encha o estômago!
Alegre-se dia e noite,
encha os seus dias de alegria,
dance e faça música de dia e de noite.
Use roupas limpas,
tome banho e lave a cabeça.
Olhe para o filho que lhe segura a mão,
e que sua esposa se deleite com o seu abraço.
Apenas essas coisas dizem respeito ao homem."88
Este não é o único lugar onde se encontram sentimentos deste tipo. A canção
de um banquete fúnebre egípcio, talvez mais ou menos contemporâneo de
Gilgamesh, contém o seguinte conselho, após advertir os vivos acerca do que
terão de enfrentar:
"Realiza os teus desejos enquanto estiveres vivo. Unge a tua cabeça com
mirra, veste-te de linho fino, e unge-te..., e não aborreças o teu coração, até que
chegue o dia da lamentação."89
Um escritor moderno, no entanto, destaca acertadamente a nota diferente
tocada por Coelet ainda que ele escreva nesse mesmo tom. "Os seus conselhos
recomendando aceitar e gozar o que é possível em cada caso contêm um lembrete

86
O TM diz "aquele que é escolhido" (Vbhr), que dá pouco sentido e parece ser um erro de copista na
palavra "junto" (com os vivos) (Vhbr), que tem o apoio da LXX et al.
87
Fora do contexto, os mortos não sabem cousa nenhuma (v. 5) tem às vezes sido tratado como uma
declaração doutrinária direta. Mas, mesmo à parte do método do autor, tanto esta declaração como a
seguinte (nem tão pouco terão eles recompensa) entrariam em choque com outras passagens bíblicas
se fossem assim interpretadas. Cf., por exemplo, Lc 16:23ss.; 2 Co 5:10.
88
A Epopéia de Gilgamesh, parte da placa X, traduzida por H. Frankfort et al., em Before
Philosophy (Pelican, 1949), pág. 226.
89
Traduzido para o inglês por A. Erman, em The Literature of the Ancient Egyptians (Methuen, 1927),
pág. 133.

2
da existência de Deus", na verdade de "uma vontade positiva de Deus". 90 Isto está
particularmente claro na convicção do versículo 7b, de que Deus já aceitou o gesto
de gratidão. Esse gesto é considerado não apenas de gratidão, mas de humildade
e avidez, na máxima faze-o conforme as tuas forças (v. 10). E, neste ponto, a
brevidade da vida tornou-se um impulso, como o foi para o nosso Senhor quando
falou da chegada da "noite ... quando ninguém pode trabalhar" (Jo 9:4). Mas uma
característica deste livro é que, até mesmo nesta conexão, a morte não é
apresentada com uma visão passageira, mas com um olhar fixo para os seus
aspectos desoladores. A morte, porém, não é o único perigo.

Mudanças e oportunidades
9: 11 Vi ainda debaixo do sol que não é dos ligeiros o prêmio, nem dos
valentes, a vitória, nem tampouco dos sábios, o pão, nem ainda dos prudentes, a
riqueza, nem dos inteligentes, o favor; porém tudo depende do tempo e do
acaso.
12 Pois o homem não sabe a sua hora. Como os peixes que se apanham
com a rede traiçoeira e como os passarinhos que se prendem com o laço, assim
se enredam também os filhos dos homens no tempo da calamidade, quando cai
de repente sobre eles.
O tempo e o acaso estão lado a lado, sem dúvida porque ambos têm um jeito
de arrancar subitamente as coisas de nossas mãos. Isto é bastante óbvio no que
se refere às oportunidades, pois a providência opera em segredo, e na perspectiva
do homem a vida é feita principalmente de passos rumo ao desconhecido e de
acontecimentos que surgem do nada, que podem mudar totalmente o padrão da
nossa existência num dado momento. Quanto ao tempo, o capítulo 3, com o
"tempo de nascer ... tempo de morrer", e assim por diante, já provou quão
inexoravelmente nossas vidas são jogadas de um extremo para o outro pela força
das vagas da maré que não podemos controlar. Tudo isso vem contrabalançar a
impressão que podemos adquirir das máximas acerca do trabalho duro, de que o
sucesso é nosso quando queremos. No mar da vida somos mais como os peixes que
se apanham com a rede traiçoeira, ou os que são inexplicavelmente poupados, e
não os donos de nosso destino nem os capitães de nossas almas.
A terceira coisa que perturba os nossos cálculos apresenta-se-nos de forma
um tanto enternecedora na pequena parábola dos versículos 13-16, e nas
reflexões que perpassam o resto do capítulo.

A inconstância dos homens


9: 13 Também vi este exemplo de sabedoria debaixo do sol, que foi para
mim grande.
14 Houve uma pequena cidade em que havia poucos homens; veio contra
ela um grande rei, sitiou-a e levantou contra ela grandes baluartes.
15 Encontrou-se nela um homem pobre, porém sábio, que a livrou pela sua
sabedoria; contudo, ninguém se lembrou mais daquele pobre.
16 Então, disse eu: melhor é a sabedoria do que a força, ainda que a
sabedoria do pobre é desprezada, e as suas palavras não são ouvidas.
17 As palavras dos sábios, ouvidas em silêncio, valem mais do que os
gritos de quem governa entre tolos.
18 Melhor é a sabedoria do que as armas de guerra, mas um só pecador
destrói muitas coisas boas.

Podemos identificar-nos imediatamente com o povo da pequena cidade sitiada,


e sentimos o seu alívio quando o estrategista amador (ou seria um diplomata?) dá o
seu golpe de mestre. Se formos honestos, poderemos ver-nos ainda na última cena,
quando todos se esqueceram totalmente dele. Mas a parábola não é uma fábula
que visa mostrar o que as pessoas deveriam fazer: é uma história de advertência
90
G. von Rad. Old Testament Theology (Tradução inglesa, Oliver and Boyd, 1962), I, pág. 457.

2
para mostrar como elas são. Se formos nos identificar com alguém, será com o
homem pobre, porém sábio. Não que devamos nos imaginar como consultores
universais, mas simplesmente que, é triste dizer, deveríamos aprender a não
contar com nada tão transitório como a gratidão pública.
"O frio, por mais intenso,
Não machuca tanto quanto
Um benefício não lembrado,
E, embora as águas congele,
Não traz sofrer mais agudo
Que o de um amigo olvidado.91"
No padrão do capítulo este é mais um exemplo do que é imprevisível e cruel
na vida, para solapar a nossa confiança naquilo que poderíamos fazer com nossas
próprias forças. Os dois últimos versículos (vs. 17ss.) constituem um arremate à
parábola, mostrando, primeiro, como a sabedoria é preciosa e, então, como ela é
vulnerável. Somos abandonados com a suspeita de que, na política humana, a
última palavra fica geralmente com os gritos do versículo 17 ou com o aço frio do
versículo 18. Raramente com a verdade, raramente com o mérito.

Terceiro Resumo:
Retrospectiva de Eclesiastes 7:1-9:18
As palavras do nosso autor, como as de Jeremias, poderiam ser assim
resumidas:
"para arrancares e derribares,
para destruíres e arruinares,"
mas, então, e apenas então,
"para edificares e para plantares".92
Ao chegar ao final do capítulo 9 ele já apresentou os argumentos contra a
nossa auto-suficiência. A primeira metade do livro, cujo andamento resumimos
rapidamente às páginas 36 e 51, deixou-nos poucas desculpas para a complacência,
e os três últimos capítulos têm insistido ainda mais no assunto.
Ao contrário dos textos anteriores, os provérbios e as reflexões de 7:1-22 não
nos aliviaram de nossa preocupação principal, embora os intitulássemos de
interlúdio. Com poucas exceções, as afirmações são todas severas (por exemplo,
7:1-4) e até mesmo, sob certo aspecto, cínicas (7:15-18), impelindo duramente o
secularista contra o fato e as implicações da morte (para ele). E quando o
argumento foi retomado em 7:23, levantou novas dúvidas quanto à sabedoria
humana. O capítulo 2 já apresentara o fato de que o sábio é tão mortal quanto o
estulto. Agora, porém, surge a questão premente: se, afinal de contas, a sabedoria
na verdade pode ser alcançada. Por mais sábio que alguém possa ser em muitos
detalhes da vida (8:1-6; 9:13-18), tornou-se claro que ele nunca chegará ao âmago
das coisas ou sequer à certeza de que a verdade, caso a descubra, poderá ser
enfrentada. "Quem o achará?" (7:24); "como há de ser" (8:7); "se é amor ou se é
ódio ... não o sabe o homem" (9:1).
Sob outros aspectos também o quadro se obscureceu. Agora temos relances
de torpeza moral, de injustiça não apenas desenfreada mas também admirada
(8:10ss.), e do homem que, além de fraco, também "está inteiramente disposto a
praticar o mal", seguindo o seu caminho "cheio de maldade" (8:11; 9:3). E, ao
longo da destruição que a morte traz e que já foi enfatizada por todo o livro,
surgem agora os perigos do tempo e da casualidade (9:11ss.), para tornar ainda
mais inúteis os planos do homem.
Apesar de tudo isto, houve alguns lampejos de coisas melhores, mantendo
dentro de nós um pouco de esperança, a ser acalentada e justificada nos capítulos

91
Shakespeare, As You Like It, Ato II, Cena 7.
92
Jr 1:10.

2
restantes, pois finalmente Coelet acabou sua obra de demolição. O local foi
desobstruído: ele pode começar a edificar e a plantar. Quer consideremos o
próximo capítulo como um modesto começo deste processo, quer como um
interlúdio para aliviar a tensão (comparável a 4:9 - 5:12 e 7:1-22), ele vai permitir
que retomemos o fôlego antes de voltarmos à veemente questão do livro: se a vida
tem algum significado e, se tem, qual é.
No início, então, há questões de senso prático que convém notarmos, pois
fazem parte da sabedoria e de uma vida sã tanto quanto as perguntas que temos
de responder, dentro dos limites do nosso conhecimento. Após sermos estabilizados
com os lembretes para sermos sensatos (capítulo 10), podemos nos atirar com mais
segurança ao convite para sermos corajosos (11:1-6), alegres (11:7-10) e tementes a
Deus (capítulo 12).

Eclesiastes 10:1-20 -
Interlúdio: Sê prudente!
Este capítulo apresenta uma visão calma da vida, escolhendo os exemplos a
esmo a fim de ajudar-nos a manter elevados os nossos próprios padrões, sem nos
surpreendermos demais com as esquisitices das outras pessoas nem ficarmos
indefesos ao nos depararmos com os poderosos.

Loucura
10:1 Qual a mosca morta faz o ungüento do perfumador exalar mau cheiro,
assim é para a sabedoria e a honra um pouco de estultícia.
2 O coração do sábio se inclina para o lado direito, mas o do estulto, para o
da esquerda.
3 Quando o tolo vai pelo caminho, falta-lhe o entendimento; e, assim, a
todos mostra que é estulto.
O versículo 1 coloca de forma pitorescamente desagradável o princípio com o
qual se concluiu o capítulo anterior: que é preciso muito menos para arruinar uma
coisa do que para criá-la. Isto, a propósito, faz parte das vantagens do mal e do
apelo que este exerce sobre a nossa parte má, pois dizendo-o da maneira rude como
Coelet o faz, é mais fácil criar fedor do que perfume. Mas neste versículo o que cria
o problema é a súbita falta ou o impulso tolo; e há infinitos exemplos de prêmios
que foram perdidos e de bons começos que foram estragados em um só momento
de imprudência, não apenas pelos irresponsáveis, como Esaú, mas também pelos
que estavam sendo dolorosamente provados, como Moisés e Arão.
No versículo 2 algumas versões modernas foram infelizes ao usar uma
anatomia duvidosa, tipo "o coração do sábio está à sua mão direita... "(ERC).
Talvez a BJ seja a melhor tradução, ainda que livre: "O sábio se orienta bem, o
insensato se desvia". A mão direita e a mão esquerda sempre foram
generalizadamente consideradas como sendo respectivamente de boa sorte e de má
sorte; coisa boa e má (cf. o sentido da palavra latina sinistro, que significa
"esquerda"). Na figura que o nosso Senhor usou para com as ovelhas e os bodes,
os dois lados correspondem a dois vereditos contrários. Mas, de maneira menos
decisiva, também há bênçãos provenientes da mão direita e da mão esquerda,
diferindo apenas em grau.93 O estulto, portanto, inclina-se para o que tem menos
valor, o menos bom e, além disso, para o que é positivamente errado. A
preferência apresenta-se de muitas maneiras, não apenas moral e
espiritualmente. Por outro lado, as predileções do homem sábio são enunciadas
na grande lista dos "tudo o que é" de Filipenses 4:8.
No versículo 3 surge a comédia, como acontece freqüentemente em Provérbios
ao tratar deste tema. No parecer prático de Coelet, o estulto não tem como

93
Cf. Efraim e Manasses, Gn 48:13ss.; veja também Pv 3:16.

2
disfarçar o que é,94 a não ser talvez com o silêncio total (cf. Pv 17:28). Mesmo
assim o seu comportamento de algum modo o acabará denunciando. Mas de fato
ele é convencido demais para se abster de expor seus pontos de vista a todos que
venha a conhecer. Julgando a partir de Provérbios, suas frases elaboradas são
incongruentes (Pv 17:7) e suas observações sem tato, impertinentes (Pv 18:6); e
quando se fala com ele, não presta atenção (Pv 18:2). Se tem uma mensagem para
alguém transmite-a com erros, e se de repente faz uma observação sábia, é por
acaso (Pv 26:6ss.). Felizmente pode-se sentir a sua aproximação pelos esforços que
todos fazem para desaparecer (Pv 17:12).

A corda bamba social


10:4 Levantando-se contra ti a indignação do governador, não deixes o teu
lugar, porque o ânimo sereno acalma grandes ofensores. 5 Ainda há um mal que vi
debaixo do sol, erro que procede do governador: 6 O tolo posto em grandes
alturas, mas os ricos assentados em lugar baixo. 7 Vi os servos a cavalo, e os
príncipes andando a pé como servos sobre a terra.
Por trás do suave conselho do versículo 4, percebe-se um agudo senso de
observação, pois o que ele nos convida a notar é o mais absurdo fenômeno
humano: o acesso de raiva. Se a pessoa consegue reconhecer os seus sintomas,
pode livrar-se de prejuízos provocados por ela mesma, pois, embora possa sentir-se
sublime "demitindo-se do seu posto" (ostensivamente por princípio, mas na
realidade em um acesso de orgulho), na verdade isto é menos impressionante e
mais imaturo do que parece. Submeter-se às autoridades, além de ser dever do
crente (como o Novo Testamento nos ensina, 1 Pe 2:18ss.), também é sábio, uma
vez que a ira que pode ser acalmada pelo ânimo sereno (v. 4b) tem ela mesma os
sintomas de um acesso de raiva; e uma pessoa nessa condição é melhor do que
duas.
Pior ainda, talvez, do que o autocrata é o covarde. Com ele no poder tudo
pode acontecer. As transformações sociais do versículo 6 e 7 acontecem por
causa do governador do versículo 5 e nos fazem pensar em quão frágeis são as
nossas pequenas hierarquias. Mas qualquer época pode ser tomada de surpresa.
Do antigo Egito, muitos séculos antes destas palavras terem sido escritas,
recebemos as desoladas observações que nos parecem tão oportunas quanto as
de Coelet:
"Ora, imaginem, os nobres estão se lamentando, enquanto os pobres se
alegram..."
"Imaginem só, todas as servas soltaram a língua. Quando as senhoras falam,
as servas se aborrecem... Eis que as senhoras da nobreza são agora
respigadeiras, e os nobres estão na oficina."95
Se há quem se sinta inclinado a aplaudir, Coelet não vai exatamente discutir
com eles, pois o seu alvo, do começo ao fim, é sacudir a nossa fé patética na
permanência de nossas ações; e, de forma alguma, ele tem ilusões quanto aos
homens que estão por cima.96 Mas ele tampouco considera tais deposições como
triunfos da justiça social. Os exemplos que ele testemunhou foram tanto giros da
roda da fortuna (v. 7), como também, nomeações de pessoas erradas (o tolo posto
em grandes alturas, v. 6). Podemos nós mesmos imaginar as intrigas, as ameaças,
as bajulações e os subornos que lhes abriram o caminho.

Fatos concretos da vida


10:8 Quem abre uma cova nela cairá, e quem rompe um muro, mordê-lo-á
uma cobra.
94
Um sentido alternativo para 3b seria gramaticalmente possível: "chama a todos de estultos". Os
comentaristas se dividem a esse respeito, mas a maioria das traduções portuguesas concordam com a
ERAB.
95
"As Advertências de Ipu-wer", traduzidas para o inglês por John A. Wilson em ANET, págs. 441s.
Provavelmente escritas antes de 2000 a.C.
96
Cf. 3:16; 4:lss., 13ss.; 5:8s.

2
9 Quem arranca pedras será maltratado por elas, e o que racha lenha
expõe-se ao perigo.
10 Se o ferro está embotado, e não se lhe afia o corte, é preciso redobrar a
força; mas a sabedoria resolve com bom êxito.
11 Se a cobra morder antes de estar encantada, não há vantagem no
encantador.
O ponto de vista em que se baseiam estas observações não é o fatalismo, como
se poderia deduzir dos versículos 8 e 9 por si mesmos, 97 mas um realismo
elementar. O lampejo ofuscante do óbvio no versículo 10, apoiado pelo humor
sarcástico do versículo seguinte, acaba com qualquer dúvida. Somos instados a
usar a cabeça, olhando um pouco mais adiante, pois qualquer ação vigorosa
envolve riscos, e a pessoa que nós chamamos de desastrada geralmente deve
culpar-se a si mesma e não à sua sorte. Ela deveria saber, deveria tomar cuidado.
Mas Coelet faz-nos entrever uma parábola falando em cova e serpente, pois a cova
que serve de arapuca para quem a fez era uma figura proverbial da justiça
poética,98 e a serpente que não se percebe era a própria imagem da retribuição
que nos pega de emboscada. Era assim que o profeta Amós entendia, como
também as testemunhas do encontro de Paulo com a víbora.99
Assim, talvez o versículo 8 esteja apresentando um aspecto diferente do
versículo 9, dirigido mais aos inescrupulosos do que aos irresponsáveis. Quanto a
estes últimos, eles (ou nós?) são muito bem atingidos nos versículos 10 e 11,
primeiro com a esmerada paciência que se deve ter para com os ignorantes e,
então, com um lampejo de bom senso e um toque de farsa. Depois do
surpreendente começo, onde a cobra é rápida demais, quase podemos perceber a
indiferença que acompanha a última linha, como a dizer: "o encantador perde a
sua remuneração". Quanto à vítima... para que perguntar?

Bom senso e falta de senso


10: 12 Nas palavras do sábio há favor, mas ao tolo os seus lábios devoram.
13 As primeiras palavras da boca do tolo são estultícia, e as últimas,
loucura perversa.
14 O estulto multiplica as palavras, ainda que o homem não sabe o que
sucederá; e quem lhe manifestará o que será depois dele?
15 O trabalho do tolo o fatiga, pois nem sabe ir à cidade.
As palavras são naturalmente um assunto preferido pelos escritores da
Sabedoria, pois desempenham um papel óbvio na arte de viver; e é a arte, e não o
objetivo da vida, que predomina neste capítulo.
Mas depois de examinarmos rapidamente o uso correto das palavras,
enfrentaremos demoradamente o seu mal uso. Quem sabe a proporção desses
enfoques seja justa.
Dizer, como muitas versões modernas, que nas palavras de um homem sábio
há favor (v. 12) é apenas meia verdade, embora isto faça um perfeito contraste
com a segunda linha. O que realmente está sendo dito é que suas palavras são
"cheias de graça" (ER). Mais do que outra coisa, é certamente isto que abrange
igualmente encanto e delicadeza, que obtém o favor. Acima de tudo, porém, ela é
desinteressada e brota da humildade básica que é o princípio da sabedoria.
Da mesma forma, o pequeno retrato do tolo indica as atitudes interiores que
jazem por trás de suas palavras. Se rimos dele no versículo 3, vemos agora o seu
lado trágico e perigoso. Nas Escrituras ele é considerado mais teimoso do que
obtuso: as suas idéias (e, portanto, suas palavras) recusam-se a aceitar a existência
de Deus. É o que se diz claramente no versículo 13, desdobrando-se todo o
processo, desde o seu tolo início até o seu fim desastroso. Esse fim, a loucura
97
As afirmações dos versículos 8ss. são generalizações, deixando de fora as exceções e meras
probabilidades por causa do resumo bem definido. A BV os traduz: "pode acabar caindo nele... pode
ser mordido", etc. sacrificando um pouco a sua potência.
98
Por exemplo, Sl 7:15; 9:15; 35:7ss.; 57:6.
99
Am 5:18-20; 9:3; Atos 28:4.

2
perversa, talvez pareça chocante demais para ser verdade; mas os seus dois elemen-
tos, o moral e o mental, são os frutos finais da recusa em aceitar a vontade e a
existência de Deus. Se há incontáveis incrédulos cujo fim terreno dificilmente
poderia ser descrito como perversidade ou loucura, é apenas porque a lógica de
sua incredulidade não foi levada aos extremos, devido à graça misericordiosa de
Deus. Mas, quando toda uma sociedade se torna secular, o processo é muito mais
evidente e completo.
Os versículos seguintes examinam dois aspectos da conversa de um tolo. Ela é
imprudente, não lhe fazendo bem algum (v. 12); e indecorosa, não demonstrando
qualquer acanhamento diante do desconhecido (v. 14). Embora este seja o caso
com todos nós, em nossos próprios momentos de tolice, é verdade em um nível
mais sério na vida do verdadeiro tolo, do homem sem Deus, cuja maneira de falar
trai em tudo os seus pontos de vista (cf. Mt 12:34-37) e cujas opiniões confiantes
jovialmente ignoram a nossa necessidade humana de revelação.
O versículo 15 é um apêndice do próprio tolo, mas apenas um sábio saberia
exatamente o que significa! A segunda linha é evidentemente um arremate
proverbial sobre o tipo de pessoa que consegue errar nas coisas mais simples (cf. Is
35:8); ele se perderia, como diríamos hoje, até mesmo se o colocássemos numa
escada rolante. Esta linha ficaria mais simplesmente traduzida sem o "pois" com
que inicia: (alguém) que "nem sabe ir à cidade!" Assim começa a surgir o quadro
de um homem que, por causa de sua estupidez, torna as coisas desnecessariamente
difíceis para si próprio. Muito possivelmente há uma conexão com o tolo loquaz do
versículo anterior, que faz tempestade em um copo de água em assuntos que
estão totalmente além de sua alçada; mas muito provavelmente estamos sendo
apresentados a apenas mais um lado da estrutura de uma pessoa tola. Neste caso,
isto também se encaixa no tema do livro, com a sua ênfase sobre a inutilidade de
qualquer trabalho que não tenha objetivo (cf., por exemplo, 1:8; 2:18-23); e quem
sabe devemos lembrar que, em última análise, é isto que pode fazer-nos de tolos. O
livro termina com uma advertência ao tolo culto, cujo "muito estudo" apenas o
desgasta e o afasta do que é mais importante (a suma, 12:12ss.), que é o temor de
Deus. Estar sempre aprendendo, nunca alcançando nada, como 2 Timóteo 3:7
descreve algumas pessoas, é ser uma pessoa frívola que consegue se perder até
mesmo no caminho mais direto para a cidade. Isto é loucura que não tem sequer a
justificativa da ignorância.

Principalmente acerca dos governantes


10:16 Ai de ti, ó terra cujo rei é criança e cujos príncipes se banqueteiam
já de manhã.
17 Ditosa, tu, ó terra cujo rei é filho de nobres e cujos príncipes se sentam
à mesa a seu tempo para refazerem as forças e não para bebedice.
18 Pela muita preguiça desaba o teto, e pela frouxidão das mãos goteja a
casa.
19 O festim faz-se para rir, o vinho alegra a vida, e o dinheiro atende a
tudo.
20 Nem no teu pensamento amaldiçoes o rei, nem tampouco no mais
interior do teu quarto, o rico; porque as aves dos céus poderiam levar a tua voz,
e o que tem asas daria notícia das tuas palavras.
O capítulo termina, assim como começou, com observações sagazes sobre
procedimentos na vida prática, como que para tornar a enfatizar que o interesse do
sábio nas questões importantes não afeta o seu interesse pelo presente. O homem
sábio importa-se muito com a forma como o seu país é governado, e como deve se
comportar e dirigir os seus negócios em um mundo que é ao mesmo tempo
exigente (v. 18), gostoso (v. 19) e perigoso (v. 20).
Os versículos 16 e 17 fazem-nos lembrar da influência que emana dos homens
que estão lá em cima, para estabelecer o ambiente de toda uma comunidade.
Aplica-se tanto às comunidades menores quanto às maiores. O primeiro quadro é o

2
de um governante sem dignidade ou sem sabedoria, rodeado de homens
responsáveis. Caso queiramos considerar criança ou nobres nestes versículos em
um sentido muito limitado, uma passagem anterior já nos fez ver que idade e status
não significam nada, mesmo para o rei, e já falou do jovem joão-ninguém que
chega com nada mais a seu favor além dos seus dotes naturais (4:13). A criança,
ou "rapaz", do versículo 16, bem pode ser que seja um homem feito que nunca
amadureceu (cf. Is 3:12), em contraste, por assim dizer, com o jovem Josias que
"sendo ainda moço, começou a buscar o Deus de Davi",100 para bênção do seu país.
E a menção de nobres, ou "príncipes", não é um toque de esnobismo, mas apenas
de estabilidade política. Eles não são descritos nas Escrituras como exemplos de
virtude,101 nem homens como Davi ou Jeroboão são desqualificados por não terem
saído desse círculo. A ênfase de ambos os versículos é dada pela profecia da
derrocada social em Isaías 3:1-5, onde os homens de peso na comunidade seriam
desapossados:
"Dar-lhes-ei meninos por príncipes,
crianças governarão sobre eles...
o menino se atreverá contra o ancião
e o vil contra o nobre."
Quanto aos cortesãos decadentes (v. 16), Israel os conhecia muito bem. Os
profetas pintam quadros fiéis de suas farras diárias (Is 5:11,22), sua ociosidade
acalentada (Am 6:4ss.) e seu aviltamento até o estupor e a obscenidade (Is
28:7ss.). Em tais situações, a justiça e a verdade transformam-se nos principais
desastres nacionais, "tropeçando pelas praças" (Is 59:14).
Parece que os provérbios dos versículos 18 e 19 foram colocados aí
especialmente por sua aplicação à vida dos poderosos, seus mandos e desmandos,
seu uso e abuso dos dons de Deus, como já vimos nos versículos anteriores. Então
o versículo 20 volta-se mais explicitamente para essa gente.
Certamente a preguiça (v. 18), que silenciosamente destrói uma casa
negligenciada ou um espírito indolente, é tão fatal para um reino quanto para um
prédio ou uma pessoa. Nada mais é preciso para que desabe, e nada é mais
devastador. Sejam quais forem os prejuízos que possam ser considerados, o
apodrecimento não está entre eles, pois o tempo está a seu favor. Quanto às
autoridades indolentes castigadas pelos profetas nas passagens que consideramos,
sua própria decadência iria espalhar a sua podridão à estrutura que os abrigava,
até que esta desmoronasse sobre suas cabeças.
No provérbio do versículo 19, as duas primeiras linhas podem empatar com as
cenas dos festins, boas e más, que dão início ao parágrafo (16ss.); mas em qualquer
outro contexto nós as veríamos relacionadas à questão do dinheiro. Não é preciso
ser cínico: a questão não é que todo homem tem o seu preço, mas que cada bem
tem o seu uso; e a prata, na forma de dinheiro, é o mais versátil de todos. Nosso
Senhor fez o mesmo tipo de observação em Lucas 16:9, e caracteristicamente
descortinou uma nova visão ao fazê-lo. No contexto atual, entretanto, as duas
primeiras linhas dos provérbios talvez destaquem que comer para refazer as forças,
e não para bebedice (v. 17), é uma coisa boa, ao passo que os excessos não têm
sentido. Os dons de Deus são todos eles bons, e o seu uso adequado e agradável é
perfeitamente suficiente.
Com o versículo 20 retornamos explicitamente aos homens do poder, inclusive
do poder financeiro (a que o versículo 19c vai se referir especificamente). Eles não
são uma companhia agradável. Para o leitor do século vinte, há algo de familiar em
sua hipersensibilidade em relação aos diz-que-diz, mas eles não precisam de
espionagem eletrônica. Eles não teriam atingido alturas vertiginosas, nem
permanecido lá, sem um sexto sentido para com os dissidentes.
Prático como sempre, o escritor vê isso como um fato da vida, e conclui o

100
2 Cr 34:3.
101
São covardes em 1 Rs 21:8,11; excessivamente transigentes em Ne 6:17ss.; 13:17; e parte de um
regime desastroso em Jr 39:6.

2
capítulo com o conselho de que se aprenda a conviver com isso. Sobreviver é o
primeiro passo, embora não seja de forma alguma o último. Agora ele já pode nos
conduzir adiante até o clímax do livro.

Eclesiastes 11:1-12:8 -
Em direção do alvo
Agora o passo torna-se mais acelerado. O cenário permanece inalterado: tem
as mesmas sombras profundas e ocasionais fachos de luz, mas agora o
consideramos com resolução e não com ansiedade. Conhecemos o pior - melhor
ainda: podemos partir na direção certa.
Três diferentes investidas nos colocam no caminho dos "finalmentes".
Podemos resumi-las nos títulos que escolhemos aqui para as três partes que
abrangem estes dois últimos capítulos: Sê corajoso! Alegra-te! Teme a Deus!

Sê corajoso!
11:1 Lança o teu pão sobre as águas, porque depois de muitos dias o
acharás.
2 Reparte com sete e ainda com oito, porque não sabes que mal sobrevirá
à terra.
3 Estando as nuvens cheias, derramam aguaceiro sobre a terra; caindo a
árvore para o sul ou para o norte, no lugar em que cair, aí ficará.
4 Quem somente observa o vento nunca semeará, e o que olha para as
nuvens nunca segará.
5 Assim como tu não sabes qual o caminho do vento, nem como se formam
os ossos no ventre da mulher grávida, assim também não sabes as obras de
Deus, que faz todas as coisas.
6 Semeia pela manhã a tua semente e à tarde não repouses a mão, porque
não sabes qual prosperará; se esta, se aquela ou se ambas igualmente serão
boas.
Isto nos leva diretamente ao sábio conselho do capítulo 10, que nós resumimos
na expressão: "Sê prudente!" A cautela teve então o seu devido lugar; agora, tem
de ceder o caminho ao empreendimento.
Uma das coisas frustrantes da vida observadas em 9:11 ss. foi o fato de que o
tempo e as oportunidades podem inverter os nossos melhores planos. Se isso é um
pensamento paralisante, também pode ser um incentivo à ação, pois, se há riscos
por toda parte, é melhor falhar sendo arrojado do que agarrando os recursos e
guardando-os para nós mesmos. Até parece que sentimos o Novo Testamento
soprando através dos dois primeiros versículos, um reflexo do paradoxo
predileto de nosso Senhor, que disse: "Quem ama a sua vida, perde-a" e "com a
medida com que tiverdes medido vos medirão também". 102 Isto é verdade, numa
certa proporção, quer Coelet esteja falando aqui de ousadia nos negócios ou de
simples generosidade, pois é difícil discernir ao certo do que ele está realmente
falando,103 ou se ele fala primeiro de um e depois do outro.
O pensamento dos versículos 3 e 4 trazem novamente à tona coisas sobre
as quais nada podemos fazer e aquelas que exigem uma firme decisão e ação. Os
dois exemplos dados (as nuvens que seguem suas próprias leis e tempos, não os
nossos, e a árvore caída que não consultou a conveniência de ninguém) podem
nos levar a pensar no que pode acontecer e no que poderia ter acontecido; a

102
Jo 12:25; Mt 7:2.
103
"Envia" (não lança, que pode ser enganoso) dá idéia de comércio, caso pão represente cereais ou a
subsistência de alguém. Da mesma forma, o versículo 2 com a sua referência a um futuro incerto já foi
muitas vezes comparado ao ditado: "Não colocar todos os ovos num único cesto". Por outro lado, pão é
o presente apropriado para o faminto (embora geralmente este se encontre na localidade, não além do
mar), e a possibilidade de vir a enfrentar maus dias (2b) pode muito bem ser um argumento para dar
com liberalidade enquanto se pode. Cf. Atos 11:27-30; 2 Co 9:6ss.; Gl 6:7ss.

2
nós, porém, cabe apenas agarrar o que realmente existe e o que está ao nosso
alcance. São poucos os grandes empreendimentos que aguardaram condições
ideais; nós também não podemos esperar. Então o versículo 5 relaciona o reino
do desconhecido e do desconhecível com Deus, que faz todas as cousas. O
exemplo que ele escolheu é o das mais notáveis obras divinas, do qual
dependem todos os nossos questionamentos e pensamentos: a maravilha do
corpo humano e o espírito humano. Será que nosso Senhor tinha este versículo
em mente ao falar a Nicodemos sobre o segundo nascimento? Tal como Coelet,
ele usou apropriadamente o fato de que uma mesma palavra serve na linguagem
bíblica para vento (v. 4) e para espírito como algumas versões traduzem no
versículo 5,104 e captou os mesmos pontos: sua invisibilidade e sua liberdade em
relação ao nosso controle, mas também a sua poderosa realidade.
O versículo 6, arrematando a passagem, tem uma leveza de espírito que
novamente nos faz lembrar o Novo Testamento. A verdadeira reação para com a
incerteza é um esforço redobrado, "aproveitando o tempo", "quer seja oportuno,
quer não", expressa por Coelet em termos de um fazendeiro e o seu trabalho, e
por Paulo em termos de colheita espiritual da boa semente do evangelho e das
obras de misericórdia.105
É um conselho estimulante, sem idéias de vacilação, mas sem traços de
bravata ou irresponsabilidade. A própria pequenez de nosso conhecimento e de
nossa capacidade de controle, e a própria probabilidade de tempos difíceis (v.
2b), tão freqüentemente enfatizados para nós em todo o livro, transformam-se
em motivos para nos reanimar e levar à atividade. Neste estado de espírito,
podemos agora voltar-nos para os prazeres da vida, assunto dos próximos
versículos, não como se fossem ópio para nos tranqüilizar, mas como
revigorantes dons de Deus.

Alegra-te!
11:7 Doce é a luz, e agradável aos olhos, ver o sol.
8 Ainda que o homem viva muitos anos, regozije-se em todos eles; contudo,
deve lembrar-se de que há dias de trevas, porque serão muitos. Tudo quanto
sucede é vaidade.
9 Alegra-te, jovem, na tua juventude, e recreie-se o teu coração nos dias da
tua mocidade; anda pelos caminhos que satisfazem ao teu coração e agradam
aos teus olhos; sabe, porém, que de todas estas coisas Deus te pedirá contas.
10 Afasta, pois, do teu coração o desgosto e remove da tua carne a dor,
porque a juventude e a primavera da vida são vaidade.
Com a sinceridade de sempre, estes versículos combinam o deleite de viver
com a seriedade da vida. Cada alegria aqui é confrontada com o seu oposto, ou o
seu complemento; não há nenhuma tinta cor-de-rosa. A bem-aventurança de
estar vivo é captada pela beleza da sentença que inicia a passagem: Doce é a luz
... (v. 7). E esta jovial radiância pode durar, como destaca o versículo 8a, até o
final. Mas não além. O autor não se retrata de sua insistência em dizer que, por
si mesmos, o tempo e todas as coisas temporais vão nos desapontar, pois temos
a eternidade em nossos corações (cf. 3:11). Essa luz tem de dar lugar aos dias
de trevas e à destruição de tudo que há debaixo do sol; e temos de enfrentar o
fato, ou então seremos destruídos por ele. A alegria não precisa de pretextos
para se intensificar. Mas como ela pode sobreviver diante da morte e das
frustrações do mundo é um segredo que apenas o próximo capítulo vai começar
a desvendar.
Enquanto isso o versículo 9 nos faz lembrar de um outro aspecto da
alegria: sua relação com aquilo que é certo. À primeira vista este lembrete do
julgamento parece uma espada de Damocles pendurada sobre a nossa cabeça,
para roubar à festa todo o seu sabor. Talvez seja verdade, mas apenas se a nossa
104
Cf. Jo 3:8.
105
Cf. Ef 5:16; 2 Tm 4:2ss.; 2 Co 8:2; 9:6.

2
alegria for uma paródia da verdadeira alegria. Os caminhos que satisfazem ao teu
coração e agradam aos teus olhos, ou, em outras palavras, a verdadeira liberdade,
devem ter um alvo que valha a pena alcançar, um "muito bem!" que desejamos ou-
vir para ter satisfação. Caso contrário, a trivialidade ou, o que é pior ainda, o vício
assume a direção. Seja qual for a conotação que a palavra "playboy" tenha para
nós, sabemos que é uma pessoa que não relaciona a sua vida com coisa alguma que
seja exigente, e muito menos com os valores eternos; é uma pessoa miserável.
Assim este versículo, ao insistir que nossos caminhos interessam a Deus e são,
portanto, significativos em toda a sua extensão, não rouba alegria alguma, mas ape-
nas acaba com o vazio.
A meu ver, o versículo 10 acompanha esta linha de pensamento. À primeira
vista talvez não pareça mais que um simples escapismo, uma tentativa desesperada
de extrair o prazer de uma situação sem sentido. Mas ele adquire mais sentido106 se
for uma extensão do convite feito ao "jovem" do versículo 9 para regozijar-se na
sua juventude, porém de maneira responsável. Idolatrar a condição de jovem e
temer perdê-la é desastroso: prejudica o dom, mesmo enquanto ainda o
desfrutamos. Considerá-lo, por outro lado, como uma fase passageira, "bela no seu
tempo" mas não além dele, é libertar-se de suas frustrações. O desgosto do qual se
fala neste versículo vem a nosso encontro mais de uma vez no livro como a
amargura provocada por um mundo duro e frustrante.107 Ele tem o seu lugar para
tornar-nos realistas, como destaca 7:3; não é motivo, contudo, para nos
tornarmos pessimistas. Desde o seu início, este versículo afasta a depressão; e a
segunda linha, remove da tua carne a dor, pode muito bem ser um eco a reforçar a
primeira, segundo o estilo da poesia hebraica. Mas também pode estar levando o
pensamento um passo além, ao reino moral, uma vez que a palavra aqui traduzida
por dor significa basicamente "mal"108. Neste caso, ela sincroniza com o lembrete
que diz que todos os nossos caminhos interessam a Deus, que é o nosso juiz (v. 9c).
A alegria foi criada para dançar junto com a bondade e não sozinha.
Mas essa maneira positiva de encarar a vida, que perpassou todo este
capítulo, deve repousar sobre alguma coisa mais substancial do que jovialidade,
coragem, ou até mesmo moralidade perfeita. O capítulo final dedica-se ao que é
básico e insta conosco a que não percamos tempo ocupando-nos também com
isso.

Teme a Deus!
12:1 Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que
venham os maus dias, e cheguem os anos dos quais dirás: Não tenho neles
prazer;
2 antes que se escureçam o sol, a lua e as estrelas do esplendor da tua
vida, e tornem a vir as nuvens depois do aguaceiro;
3 no dia em que tremerem os guardas da casa, os teus braços, e se
curvarem os homens outrora fortes, as tuas pernas, e cessarem os teus
moedores da boca, por já serem poucos, e se escurecerem os teus olhos nas
janelas;
4 e os teus lábios, quais portas da rua, se fecharem; no dia em que não
puderes falar em alta voz, te levantares à voz das aves, e todas as harmonias,
filhas da música, te diminuírem;
5 como também quando temeres o que é alto, e te espantares no caminho,
e te embranqueceres, como floresce a amendoeira, e o gafanhoto te for um peso,
e te perecer o apetite; porque vais à casa eterna, e os pranteadores andem
rodeando pela praça;

106
Observe a relação existente entre as duas frases: a segunda dá razão à primeira.
107
Veja 1:18; 2:23; 7:3 (heb.).
108
Isto não é mais que uma possibilidade, pois em geral é moralmente neutro (cf. 12:1). Contudo o
conselho "remove da tua carne o mal" (ER, ERC) dá uma introdução mais adequada para a linha final:
porque a juventude e a primavera da vida são vaidade.

2
6 antes que se rompa o fio de prata, e se despedace o copo de ouro, e se
quebre o cântaro junto à fonte, e se desfaça a roda junto ao poço,
7 e o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu.
8 Vaidade de vaidade, diz o Pregador, tudo é vaidade.
Finalmente estamos prontos, se a nossa intenção tem sido essa, para olhar
além das vaidades terrenas para Deus, que nos fez para si. O título Criador109 foi
bem escolhido, fazendo-nos lembrar a partir de passagens anteriores no livro, que
só Deus vê o padrão da existência como um todo (3:11), que nós estragamos a
obra de suas mãos com as nossas "astúcias" (7:29) e que a sua criatividade é
contínua e inescrutável (11:5). A nossa parte, lembra-te dele, não é um ato
perfunctório ou puramente mental: é deixar de lado a nossa pretensão à auto-
suficiência, entregando-nos a ele. Isto é o mínimo que as Escrituras exigem do
homem em seu orgulho ou em situações extremas.110 No seu sentido melhor e mais
forte, a lembrança pode ser uma questão de fidelidade apaixonada, uma lealdade
tão intensa quanto a do salmista para com a sua terra natal:
"Apegue-se-me a língua ao paladar,
se me não lembrar de
ti, se não preferir eu Jerusalém
à minha maior alegria."111
Quando a lembrança significa tudo isto, não pode haver meias medidas ou
contemporização. A juventude e o todo da vida não são suficientes para extravasá-
la. É neste espírito que de novo somos instados a enfrentar o fato de nossa
mortalidade. Desta última vez o trecho é mais demorado. Ao mesmo tempo é uma
das mais belas seqüências de figuras de palavras deste mestre da linguagem, uma
realização suprema de sua dupla ambição: achar "palavras agradáveis" e "pala-
vras de verdade" (v. 10).
No começo e no final desta passagem ele escreve diretamente, sem metáforas.
Ouvimos a cadência da própria idade avançada nas palavras de saudade: Não
tenho neles prazer" (v. 1), e no versículo 7 somos lembrados da sentença de Deus
a Adão: "ao pó tornarás". Mas entre estes pontos há uma profusão de imagens,
algumas das quais vão evocar com a máxima vividez alguns aspectos do
envelhecimento ou da morte, enquanto outras nos provocam com alusões que a
esta distância mal podemos captar, despertando em nós o poeta ou o pedante.
Deveria ser o poeta, ou pelo menos o apreciador da poesia. Se algumas
obscuridades nestas linhas podem ser esclarecidas, tanto melhor para acender a
nossa imaginação; tanto pior, no entanto, se elas nos levam a tratar este gracioso
poema como se fosse um elaborado criptograma, forçando cada detalhe em um
simples e rígido esquema.
No versículo 2 percebemos no ar o frio do inverno, enquanto a chuva persiste e
as nuvens transformam a luz do dia em penumbra, e, então, a noite em trevas de
breu. É uma cena bastante sombria para fazer-nos pensar não apenas nos nossos
poderes físicos e mentais que se desvanecem, mas nas desolações mais
generalizadas da idade avançada. São muitas as luzes que ficam então sujeitas a
serem apagadas, além dos sentidos e das faculdades, quando os velhos amigos
vão partindo um a um, os costumes familiares vão mudando e esperanças há muito
acalentadas têm de ser abandonadas. Tudo isto chegará num estágio da vida
quando já não haverá mais a capacidade de recuperação da juventude ou a
perspectiva de uma compensação. No começo da vida e na maior parte dela os
problemas e as enfermidades são geralmente apenas contratempos, mas não
desastres. Esperamos que o céu finalmente clareie de novo. É difícil ajustar-se à
conclusão deste longo capítulo, e saber que agora, no trecho final, não haverá mais
109
A versão inglesa (Today's English Version) sugere a possibilidade de haver um trocadilho entre
"Criador" e "sepultura", já que em heb. essas duas palavras têm o mesmo som, mas grafia diferente.
Contudo "sepultura" nunca vem acompanhada de um possessivo (tua, etc), exceto quando usada em
sentido primário de "poço" ou "cisterna".
110
Dt 8:17,18; Jn 2:7.
111
Sl 137:6.

2
possibilidade de melhora: as nuvens vão sempre se ajuntar de novo e o tempo já
não vai mais curar, mas sim matar.
Assim, estes fatos inexoráveis são melhor enfrentados, não na idade avançada,
mas na mocidade, quando ainda podem nos levar à ação, aquela reação total para
com Deus que foi o assunto do versículo 1, sem desespero e arrependimentos
vãos.
Nos versículos 3 e 4a o quadro muda. 112 Já não é mais a noite que cai, nem a
tempestade ou o inverno, mas uma grande casa em declínio. Suas antigas glórias
de poder, estilo, vivacidade e hospitalidade podem agora ser percebidas apenas
através do contraste com suas poucas e patéticas relíquias. Na corajosa luta pela
sobrevivência há um lembrete da decadência quase mais perceptível do que a ruína
total. Ainda faz parte do nosso próprio cenário; o futuro nos aguarda e não pode-
mos fugir ao envolvimento com esse seu aperitivo.
Este quadro, na minha mente, fica mais visível na sua inteireza e não quando
é laboriosamente quebrado nas metáforas que o constituem (braços, pernas,
dentes humanos e assim por diante) e que sem dúvida se encontram aí como se o
poeta se houvesse expressado inadequadamente. A casa que está em decadência
revela-nos a nós mesmos como nenhum catálogo ou inventário poderia fazê-lo.
Com a segunda metade do versículo 4, entretanto, o método muda, embora
não a disposição. Já não há mais um simples esquema, mas metáforas separadas,
particulares, que exigem, portanto, um estudo individual.
No versículo 4b, a ER fala "no dia em que... nos levantarmos à voz das aves,
e todas as filhas da música ficarem abatidas"; esta versão parece estar bem de
acordo com o heb., com o sentido de abordar o despertar de um velho de
madrugada.113 "Harmonias" (ERAB) pode, entretanto, significar as filhas da música,
como diz o hebraico; de qualquer forma, quer o entendamos deste modo ou
significando canções ou notas musicais, pouca diferença faz para o sentido do
texto.
Com a idade avançada, estas alegres evidências de um mundo vivo ao nosso
redor tornam-se distantes e frágeis; a pessoa já não se sente mais parte integrante
de tudo isso.
O versículo 5 acrescenta um toque novo ao quadro; primeiro através da
observação de um homem idoso com medo de cair ou de ser empurrado, agora
que já não tem mais firmeza e anda devagar; depois, com o pequeno conjunto de
metáforas que nos levam a meditar; e, finalmente, pelo vislumbre de um funeral
em andamento. Quanto às metáforas, o cabelo branco da idade avançada é
vivamente sugerido pela amendoeira que troca as negras cores do inverno por sua
coroa de flores brancas. A falta de naturalidade da marcha lenta e dura do velho,
uma paródia da flexibilidade e leveza da juventude, apresenta-se através da visão
incongruente de um gafanhoto, a personificação da leveza e a agilidade,
arrastando-se pesadamente em virtude de algum acidente ou do frio.114 A terceira
metáfora é convenientemente interpretada para nós nas palavras e te perecer o
apetite ou, melhor traduzidas, "e falhar o desejo" (ER), que é o verdadeiro sentido
da expressão hebraica "e o fruto da alcaparra falhar". Esse fruto era altamente
apreciado como estimulante do apetite e como afrodisíaco. A resposta do idoso
112
Alguns, entretanto, veriam uma simples estrutura de referências por todo o poema; por exemplo,
uma alegoria anatômica do começo ao fim; ou uma impressão do inverno, da tempestade ou do
anoitecer no que eles afetam o mundo da natureza e as atividades dos homens; ou a narrativa de uma
família a caminho do velório na morte do seu patriarca. Quanto a discussões dessas teorias, veja os
grandes comentários.
113
Com a surdez, dificilmente ele será despertado ou assustado pelas aves; mas talvez a frase seja
simplesmente uma observação de horário, como "ele acorda com as galinhas" para nós (cf. a BLH:
"levantará cedo, quando os pássaros começam a cantar"). O heb. também daria lugar, apenas como
uma possibilidade, à tradução: "Ele (isto é, a sua voz) tem o timbre da voz das aves"; mas seria uma
maneira estranha de falar.
114
A ERAB segue a interpretação de um verbo que significa "sobrecarregar-se" ou "tornar-se um
peso", ao dizer: e o gafanhoto te for um peso. Neste caso, o significado é que, por menor que seja o
fardo, é pesado para o idoso (Cf. a BV: "...anda se arrastando").

2
Barzilai à oferta de Davi, que queria lhe dar um lugar na corte, tem sido citada
freqüentemente por sua semelhança com todo este contexto: "Oitenta anos tenho
hoje; poderia eu discernir entre o bom e o mau? Poderia o teu servo ter gosto no
que come e no que bebe? Poderia eu mais ouvir a voz dos cantores e
cantoras?"115
Assim, no final deste versículo 5, o fluxo das metáforas é interrompido pela
conversa explícita sobre o final da jornada do homem e sobre o funeral, a última
cerimônia (aliás, sem efeito algum) que os amigos vão realizar. A expressão casa
eterna refere-se aqui apenas ao final de tudo, e não da perspectiva cristã de uma
"casa não feita por mãos, eterna, nos céus" (2 Co 5:1).
É impressionante como as figuras do versículo 6 captam a beleza e a
fragilidade da estrutura humana: uma obra-prima de delicadeza trabalhada como
qualquer obra de arte, mas tão frágil quanto uma peça de cerâmica e tão inútil no
final quanto uma roda quebrada. A primeira metade deste versículo parece
descrever um candelabro de ouro suspenso por uma corrente de prata; bastará
apenas que se quebre repentinamente um elo para que caia e se quebre. E se isto
parece um quadro sutil demais para descrever nosso ser tão familiar, temos o
equilíbrio da cena do poço abandonado: quadro eloqüente da transitoriedade das
coisas mais simples e mais básicas que fazemos. Haverá uma última vez para cada
caminhada familiar, para cada tarefa rotineira. No versículo 7 há um lembrete da
tragédia por trás desta seqüência, a escolha fatal que conduz à sentença:
"Porque tu és pó e ao pó tomaras."116
Esta não é a única alusão que o escritor faz à queda do homem: já antes,
em 7:29, ele havia colocado a culpa de nossa condição em seu devido lugar:
"Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias." E se, aos nossos
ouvidos, há uma nota de esperança no final do versículo 7, e o espírito volte a
Deus, que o deu, certamente estamos querendo ouvir mais do que ele pretendia.
Ele já levantou antes a questão de uma vida após a morte, e recusou-se a dizer uma
coisa dessas.117 O significado destas últimas palavras não precisam ir além do que
diz o Salmo 104:29 a respeito dos homens e dos animais: "Se ocultas o teu rosto,
eles se perturbam; se lhes cortas a respiração,118 morrem, e voltam ao seu pó." Em
outras palavras, a vida não nos pertence. O corpo reverterá ao seu próprio
elemento; e o hálito da vida sempre pertenceu a Deus e a Deus cabe tomá-lo.
No versículo 8, portanto, tendo atrás de nós a experiência de todo o livro e à
nossa frente o reforço trazido pelas incisivas figuras deste capítulo acerca da
mortalidade, retornamos à exclamação inicial, Vaidade de vaidade!, concluindo que
ela tem razão de ser. Nada em nossa busca nos levou ao alvo; nada que nos seja
oferecido debaixo do sol nos pertence de fato.
Mas estamos esquecendo o contexto. Esta passagem mesma indica-nos uma
coisa além daquilo que está "debaixo do sol", nas palavras teu Criador, e nos
convida a responder. Também nos aponta o presente como o momento da
oportunidade. A morte ainda não nos alcançou: que ela sacoleje suas correntes
diante de nós e nos desperte para a ação!

Eclesiastes 12:9-14 -
Conclusão

O pensador como ensinador


12:9 O Pregador, além de sábio, ainda ensinou ao povo o conhecimento; e,
atentando e esquadrinhando, compôs muitos provérbios.

115
2 Sm 19:35.
116
Veja Gn 3.
117
3:21.
118
Lit. "o espírito". É a mesma palavra que foi usada em nosso versículo.

2
10 Procurou o Pregador achar palavras agradáveis e escrever com retidão
palavras de verdade.
Afastamo-nos um pouco para ver a pessoa e o processo que se escondem por
trás deste notável livro. As observações iniciais apontam para a parceria entre as
idéias e a expressão, a busca e os ensinamentos, que o próprio livro ilustrou.
Vimos como os capítulos de conselhos práticos equilibraram e suplementaram as
profundas reflexões por eles interrompidas. O que surge no restante destes dois
versículos é a grande importância que o autor dá ao seu papel de ensinador. Ele
não é o orgulhoso pensador que não tem tempo para as mentes menos pri-
vilegiadas; antes, aceita o ideal desafiador da perfeita lucidez. Como destaca o
versículo 10, é preciso ter a habilidade e a integridade, o encanto e a coragem de
um artista e de um mestre para fazer justiça à tarefa. Na força deste único
versículo, este homem poderia ser o santo patrono dos escritores.

Ensinamentos penetrantes
12:11 As palavras dos sábios são como aguilhões, e como pregos bem
fixados as sentenças coligidas, dadas pelo único Pastor.
12 Demais, filho meu, atenta: não há limite para fazer livros, e o muito
estudar é enfado da carne.
Eis aí mais duas qualidades que caracterizam os oportunos ensinamentos do
sábio: eles despertam a vontade e se fixam na memória. Com isto, Coelet, mestre
como é, paga um tributo involuntário ao maior de todos os mestres da sabedoria:
nosso Senhor, cujas palavras apresentam estas duas marcas de maneira suprema,
da mesma forma como ultrapassam o critério do versículo 10, de "palavras
agradáveis" e "palavras de verdade". Elas casam a justeza com a intrepidez,
parceiras que não devem ser separadas.
O que importa acima de tudo é que são palavras de autoridade. Com toda a sua
variedade e evidente humanidade, elas são dadas aos sábios. Constituem uma
unidade, e provêm de Deus. Este segundo termo aplicado a Deus, o único Pastor,
é um complemento apropriado ao majestoso título do versículo 1, "teu Criador".
O Deus "distante", cuja ordem alcança a todos, também é o Deus "próximo", 119
que conhece e pode ser conhecido, que nos fala com voz humana mas decisiva.
O curioso é que, como percebemos no versículo 12, isto não nos agrada. Nós
nos tornamos viciados na pesquisa propriamente dita, apaixonados pelas nossas
perguntas mais difíceis. Uma resposta estragaria tudo. C. S. Lewis, em uma de
suas confrontações no livro The Great Divorce (O Grande Divórcio), capta o tom e
a qualidade desta atitude, à altura em que ela finalmente se apossa do homem.
Nessa cena, na fronteira do céu, um "pesquisador" vitalício é convidado a entrar.
Dizem-lhe:
"Não posso lhe prometer... qualquer campo de ação para os seus talentos:
apenas o perdão por havê-los pervertido. Nenhuma atmosfera de pesquisa, pois
vou introduzi-lo na terra onde não há perguntas, apenas respostas, e você verá a
face de Deus."
"Ah! mas nós devemos interpretar essas belas palavras à nossa própria
maneira! Para mim não existe resposta final. O vento livre da pesquisa deve
continuar sempre soprando através de nossa mente, não deve?"...
... "Ouça!", disse o Espírito Branco. "Você já foi criança. Você aprendeu para
que servia a pesquisa. Houve um tempo em que você fazia perguntas porque
queria respostas, e ficava satisfeito quando as encontrava. Torne-se essa criança
novamente, agora mesmo."
"Ah! mas quando eu me tornei um homem eu deixei de lado as coisas
infantis!120
Nenhum argumento, nenhum apelo valerá contra esta infinita elasticidade. O
encontro, já infrutífero, acaba com o gentil sofista lembrando-se de que tem um
119
Cf. Jr 23:23ss.
120
C. S. Lewis, The Great Divorce (Bles, 1945), págs. 40ss.

2
encontro; desculpa-se, então, e corre para o seu grupo de debates no inferno.

O ponto de chegada
12:13 De tudo o que se tem ouvido, a suma é: Teme a Deus e guarda os
seus mandamentos; porque isto é o dever de todo homem.
14 Porque Deus há de trazer a juízo todas as obras, até as que estão
escondidas, quer sejam boas, quer sejam más.
Até agora, nenhum dos nossos caminhos nos levou a parte alguma. Eles
acabaram muito antes de alcançarmos qualquer coisa eterna e absoluta. Mas o
caminho a que nos trouxe este capítulo aponta para Deus, o Eterno, para quem "a
eternidade no coração do homem" (cf. 3:11) foi criada para ali habitar e gravitar:
Se esta maneira de colocar as coisas destaca mais a necessidade do homem do
que a exigência de Deus, estes dois versículos logo vão restabelecer o equilíbrio.
Mas eles prazerosamente concedem ao elemento humano o seu devido direito,
através das palavras porque isto é o todo do homem. É verdade que, entre outras
cousas, é o seu dever; mas o heb. não diz isso; deixa esse todo indefinido. "Isto",
como poderíamos traduzir, "é tudo o que o homem tem"; mas é um "tudo" que
fica em total contraste com a "vaidade" com que nos tem confrontado o livro. Aqui
finalmente encontraremos realidade e nos encontraremos a nós mesmos.
Não, entretanto (e com isto o equilíbrio é restaurado), como perfeccionistas
que buscam para si o que é melhor, mas como servos apresentando-se ao seu
legítimo senhor. Teme a Deus é uma convocação que nos coloca no nosso devido
lugar, e a todos os demais temores, esperanças e perplexidades nos seus devidos
lugares.
O derradeiro versículo destaca o ponto que acabamos de apresentar, com um
golpe final que é bastante forte para machucar, mas bastante inteligente para nos
fazer sair da apatia. Acaba com a complacência, avisando-nos de que nada passa
despercebido e sem avaliação, nem mesmo as coisas que nós escondemos de nós
mesmos. Mas ao mesmo tempo transforma a vida. Se Deus se importa tanto assim,
então nada pode ser sem sentido.
Esta é a verdade que já nos foi apresentada em 11:9; e, além do mais, ela dá
colorido a todos os ensinamentos de Cristo, para quem nenhum detalhe aqui na
terra poderia ser pequeno demais para ser importante no céu: uma palavra fútil, a
morte de um pássaro, um copo de água fria, o arrependimento de um pecador.
Foi isto também que incitou Paulo a ser insistente "a tempo e fora de tempo" e a
concluir a sua carreira com alegria. Para qualquer outro senhor, ou para
nenhum.
"As nações labutam - apenas para o fogo, e os povos se fatigam - tudo para
nada."121
É uma coisa totalmente diferente ficar sob as ordens de um senhor que se
importa profundamente tanto com o trabalhador como com o trabalho e cujo
julgamento é infalível.
Não compete ao nosso autor pesquisar mais sobre este julgamento, como e
quando será realizado. Há um lugar para isso. Mas há um lugar também, e é aqui,
para o silêncio que chama a atenção para o simples fato da aprovação ou da
desaprovação de Deus. Quando todos os detalhes tiverem sido concluídos, este
continuará sendo o ponto crucial. Em torno disto e nada mais gira a questão: se
"tudo é vosso" (como Paulo o colocou, especificando ainda: "o mundo ... a vida ...
a morte ... as cousas presentes ... as futuras")122 ou se, irremediavelmente, "tudo é
vaidade".

121
Hc 2:13, conforme traduzido para o inglês por J. H. Eaton (Torch Bible Commentaries, SCM Press,
1961).
122
1 Co 3:21ss.

2
2
Terceira Parte
E nós, o que temos a dizer?
- um epílogo

O cristão pode acrescentar o seu amém a esta voz do Antigo Testamento.


Nosso autor foi breve: podemos seguir o seu exemplo. Uma confissão, um
poema, uma oração e uma das grandes perorações de Paulo serão suficientes
para concluir este livro.

A confissão é de Agostinho. Bastante conhecida para ser repetida, contudo


poderia ter sido escrita como uma coda para este livro, em vez de um prelúdio à
sua própria história:

Tu nos fizestes para ti mesmo,


e nosso coração não tem descanso até que repouse em ti

O poema é de George Herbert, e a sua adequabilidade torna-se mais e mais


aparente, à medida que se aproxima da sua perfeita conclusão.

No começo, quando Deus fez o homem,


tomando um cálice cheio de bênçãos, disse:
Vamos derramar sobre ele o máximo possível
para que as riquezas do mundo, que são dispersas
contraiam-se em um pequeno espaço.

Assim a força foi a primeira a cair;


então fluiu a beleza, a sabedoria, a honra e o prazer.
Quando quase tudo já havia sido derramado, Deus fez uma pausa,
percebendo que apenas um de todos os seus tesouros,
bem no fundo, tinha restado.

Se eu, disse ele,


concedesse esta jóia também à minha criatura,
ela adoraria os meus dons e não a mim,
e confiaria na natureza, não no Deus da natureza:
e ambos seriam perdedores assim.

Deixemos-lhe, contudo, o restante,


mas com uma inquietação aflitiva:
Que seja rico e exausto, para que ao menos,
se a bondade não o orientar,
a fadiga o impulsione ao meu seio, enfim.

Esta oração foi escrita por William Laud:

Permite, ó Senhor, que possamos viver no teu amor,


morrer no teu favor, repousar na tua paz,
ressuscitar no teu poder e reinar na tua glória;
por amor do teu próprio Filho amado,
Jesus Cristo, nosso Senhor.

2
A peroração é de 1Coróintios 15:54,58, aquela resposta final ao grito:
“Vaidade!”

E, quando este corpo corruptível se revestir de


incorruptibilidade, e o que é mortal se revestir de
imortalidade, então, se cumprirá a palavra que está escrita:
Tragada foi a morte pela vitória.

Portanto, meus amados irmãos, sede firmes, inabaláveis


e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que,
no Senhor, o vosso trabalho não é vão.

2
A MENSAGEM DE ECLESIASTES
Será que a vida é um absurdo, um caos, totalmente sem sentido?
A função de Eclesiastes é levar-nos ao ponto de
ver que a vida parece ser sem sentido. "E realmente
o é, se de fato tudo está morrendo. Defrontamo-nos com
a espantosa conclusão de que nada tem significado,
nada vale a pena debaixo do sol. É então
que podemos ouvir, como uma boa nova, que
tudo vale a pena, que tudo tem sentido..."
Com grande discernimento e clareza Derek Kidner leva o
leitor a conhecer este livro do Antigo Testamento que
fala de maneira tão poderosa à nossa geração.

Derek Kidner foi deão da Tyndale House, em Cambridge.


É autor de comentários bíblicos sobre Gênesis,
Esdras e Neemias, Salmos e Provérbios,
e do livro A Mensagem de Oséias.

ABU EDITORA — LIVROS PARA GENTE QUE PENSA

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